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Series & Trilogias Literarias
Eu não conseguia respirar.
Uma mão cobria minha boca e outra sacudia meu ombro para me despertar do sono pesado. Mil pensamentos frenéticos foram disparados pela minha mente em um piscar de olhos. Estava acontecendo. Meu pior pesadelo estava se tornando realidade.
Estão aqui! Vieram me pegar!
Meus olhos piscaram, enlouquecidos, examinando o quarto escuro até focarem o rosto do meu pai. Parei de me debater, totalmente confusa. Ele me soltou e recuou um passo para me olhar com frieza. Eu me sentei ereta na cama, com o coração ainda batendo acelerado.
— Pai?
— Sydney. Você não acordava.
Claro que essa foi a única desculpa que ele deu por quase me matar de susto.
— Precisa se vestir e ficar mais apresentável — ele prosseguiu. — Rápido e em silêncio. Me encontre lá embaixo, no escritório.
Arregalei os olhos, mas não hesitei em responder. Só havia uma resposta aceitável.
— Sim, senhor. Claro que sim.
— Vou acordar sua irmã — ele se virou em direção à porta, e eu dei um pulo da cama.
— Zoe? — exclamei. — Para que precisa dela?
— Shh — ele me repreendeu. — Ande logo e se apronte. E lembre-se: não faça barulho. Não acorde a sua mãe.
Ele fechou a porta sem dizer mais nenhuma palavra e me deixou lá, sem entender nada. O pânico que tinha começado a se acalmar voltou a crescer dentro de mim. Para que ele precisava de Zoe? Se estava me acordando no meio da noite, era assunto de alquimista — e ela não tinha nada a ver com isso. Tecnicamente, eu também não estava mais envolvida, já que havia sido suspensa por tempo indeterminado por mau comportamento durante o verão. E se a questão fosse essa? E se finalmente eu estivesse sendo mandada para um centro de reeducação e Zoe iria me substituir?
Por um momento senti o mundo girar, e me segurei na cama para manter o equilíbrio. Centros de reeducação. Eles eram o pesadelo de jovens alquimistas como eu, lugares misteriosos para onde levavam aqueles que se aproximavam muito dos vampiros, para que aprendessem sobre seus erros de conduta. O que realmente acontecia lá era um mistério que eu nunca quis descobrir. Tinha quase certeza de que “reeducação” era um jeito bonito de dizer “lavagem cerebral”. Eu só tinha visto uma pessoa voltar de um lugar desses e, sinceramente, ela parecia ser apenas metade do que fora antes. Era como se fosse quase um zumbi, e eu nem quis pensar no que poderiam ter feito para que ficasse daquele jeito.
O pedido do meu pai para que me apressasse ecoou pela minha mente e tentei deixar os medos de lado. Ao me lembrar de seu outro aviso, também tratei de não fazer barulho. Minha mãe tinha sono leve. Normalmente ela não iria se importar se nos visse saindo para atender ao chamado dos alquimistas, mas ultimamente ela não andava demonstrando muita boa vontade com os empregadores do marido (e da filha). Desde que alquimistas irritados me deixaram na porta da casa dos meus pais no mês passado, o lugar esteve tão acolhedor quanto um presídio. Meus pais tiveram discussões terríveis, e não raro eu e a minha irmã, Zoe, acabávamos saindo de fininho.
Zoe.
Para que ele precisa da Zoe?
A pergunta ardia dentro de mim enquanto eu me apressava para me arrumar. Eu sabia o que ele queria dizer com “apresentável”. Vestir um jeans e uma camiseta qualquer estava fora de questão. Em vez disso, coloquei uma calça social cinza e uma camisa branca bem passada. Vesti um casaquinho mais escuro, cinza carvão, por cima dela e coloquei um cinto preto bem ajustado na cintura. Uma cruz de ouro pequena (que eu sempre usava no pescoço) foi o único enfeite que me dei ao trabalho de colocar.
Já o meu cabelo era um problema um pouco maior. Mesmo depois de apenas duas horas de sono, estava espetado para todos os lados. Abaixei os fios da melhor maneira que consegui e passei uma camada grossa de spray, torcendo para que ficassem no lugar durante o que estava por vir. A única maquiagem que usei foi uma camada de pó. Não tive tempo para mais nada.
O processo todo demorou seis minutos no total, e talvez fosse o meu novo recorde. Disparei escada abaixo em silêncio completo, novamente com cuidado para não acordar a minha mãe. A sala estava escura, mas saía luz da porta entreaberta do escritório do meu pai. Tomei aquilo como um convite, empurrei a porta e me esgueirei para dentro. Uma conversa abafada cessou com a minha chegada. Meu pai me examinou da cabeça aos pés e demonstrou sua aprovação à minha aparência em seu melhor estilo: apenas sem fazer nenhuma crítica.
— Sydney — ele disse de um jeito brusco. — Acredito que já conheça Donna Stanton.
A extraordinária alquimista estava parada à janela, de braços cruzados, com a aparência tão rígida e esbelta quanto eu me lembrava. Eu tinha passado muito tempo com Stanton recentemente, apesar de não poder dizer que éramos exatamente amigas — principalmente depois que certas ações minhas acabaram nos colocando em uma espécie de “prisão domiciliar vampiresca”. Mas, se ela nutria algum ressentimento em relação a mim, não deixou transparecer. Ela me cumprimentou com um aceno educado da cabeça, com uma expressão de quem veio tratar de negócios.
Havia mais três outros alquimistas ali, todos homens. Foram apresentados como Barnes, Michaelson e Horowitz. Barnes e Michaelson tinham a idade do meu pai e de Stanton. Horowitz era mais novo, devia ter uns vinte e poucos anos, e estava arrumando instrumentos de tatuador. Todos estavam vestidos como eu, com roupas de trabalho comuns, de cores discretas. Nosso objetivo era sempre ter boa aparência, mas sem chamar atenção. Havia séculos que os alquimistas faziam o papel dos Homens de Preto, muito antes de os seres humanos sonharem com a existência de vida em outros mundos. Quando a luz batia no rosto deles da maneira correta, cada alquimista exibia uma tatuagem de lírio idêntica à minha.
Eu me senti ainda mais desconfortável. Será que aquilo era algum tipo de interrogatório? Uma avaliação para ver se a minha decisão de ajudar uma meio-vampira renegada significava que as minhas lealdades haviam mudado? Cruzei os braços sobre o peito e assumi uma expressão neutra, torcendo para parecer tranquila e confiante. Se eu ainda tivesse oportunidade de me defender, minha intenção era apresentar um argumento sólido.
Antes que alguém pudesse proferir qualquer palavra, Zoe chegou. Ela fechou a porta atrás de si e olhou ao redor, aterrorizada, com os olhos arregalados. O escritório do nosso pai era enorme (ele tinha construído um anexo à casa para ele), e abrigava os ocupantes com folga. Mas, observando a minha irmã absorver a cena, percebi que ela se sentia sufocada e encurralada. Olhei nos olhos dela e tentei enviar uma mensagem silenciosa de solidariedade. Deve ter funcionado, porque ela se apressou para ir até onde eu estava, com a aparência um pouquinho menos amedrontada.
— Zoe — meu pai disse. Deixou o nome dela pairar no ar daquele jeito dele, mostrando com muita clareza para nós duas que estava decepcionado. Eu adivinhei imediatamente por quê. Ela estava usando jeans e um casaco de moletom velho, com o cabelo preso em duas tranças fofas, mas malfeitas. Ela estaria “apresentável” de acordo com os padrões de qualquer pessoa... mas não os dele. Eu senti ela se encolher contra mim e tentei parecer mais alta e mais protetora. Depois de se assegurar de que sua reprovação tinha sido entendida, nosso pai apresentou Zoe aos outros. Stanton dirigiu a ela o mesmo aceno educado que tinha dado para mim e se voltou para o meu pai.
— Não estou entendendo, Jared — Stanton disse. — Qual das duas você vai usar?
— Bom, este é o problema — ele respondeu. — Zoe foi solicitada... mas não tenho certeza se ela está pronta. Aliás, sei que não está. Ela só recebeu o treinamento mais básico. Mas, à luz das... experiências... recentes de Sydney...
Imediatamente, a minha cabeça começou a juntar as peças. Em primeiro lugar, e o mais importante, aparentemente eu não seria mandada para um centro de reeducação. Não por enquanto, pelo menos. A reunião era para tratar de outro assunto. Minha desconfiança anterior estava correta. Havia alguma missão ou tarefa em andamento, e queriam convocar Zoe porque ela, diferentemente de uma outra integrante daquela família, não tinha histórico de traição aos alquimistas. O meu pai estava certo em dizer que ela só tinha recebido o treinamento básico. Nosso trabalho era hereditário, e eu tinha sido escolhida, anos antes, para ser a próxima alquimista da família Sage. Minha irmã mais velha, Carly, tinha sido preterida; agora já estava na faculdade e era velha demais. Em vez dela, meu pai treinou Zoe como reserva, para o caso de algo acontecer comigo, como um acidente de carro ou um massacre de vampiros.
Dei um passo à frente, sem saber o que ia dizer até abrir a boca. A única coisa que eu sabia com certeza era que não podia deixar Zoe ser sugada pelas tramoias dos alquimistas. Eu tinha mais medo de colocar a segurança dela em risco do que de ser mandada a um centro de reeducação — e eu tinha bastante medo disso.
— Conversei com um comitê sobre as minhas ações depois do que aconteceu — eu disse. — Fiquei com a impressão de que entenderam por que eu fiz as coisas que fiz. Estou totalmente qualificada para servir da maneira que for necessária... bem mais do que a minha irmã. Eu tenho experiência no mundo real. Conheço este trabalho de trás para a frente.
— Um pouco de experiência demais no mundo real, se me lembro bem — Stanton disse, seca.
— Eu, pelo menos, gostaria de escutar essas “razões” mais uma vez — Barnes disse, traçando aspas no ar com os dedos. — Não acho nada bom atirar uma menina sem treinamento completo em ação, mas também acho difícil acreditar que uma pessoa que ajudou uma vampira criminosa está “totalmente qualificada para servir” — mais aspas pretensiosas no ar.
Respondi com um sorriso agradável para mascarar minha irritação. Se eu mostrasse minhas verdadeiras emoções, não iria me ajudar em nada.
— Compreendo, senhor. Mas Rose Hathaway acabou sendo inocentada do crime de que foi acusada. Portanto, tecnicamente, eu não ajudei uma criminosa. As minhas ações, no final, ajudaram a encontrar o verdadeiro assassino.
— Pode ser, mas nós, incluindo você, não sabíamos que ela era “inocente” na época — ele disse.
— Eu sei — respondi. — Mas eu acreditava que ela fosse.
Barnes soltou uma gargalhada de desdém.
— E este é o problema. Você deveria ter acreditado no que os alquimistas lhe disseram, e não sair por aí aplicando as suas próprias teorias mirabolantes. No mínimo, deveria ter apresentado as provas que reuniu a seus superiores.
Provas? Como eu poderia explicar que não foram provas que me levaram a ajudar Rose, mas sim uma sensação profunda de que ela dizia a verdade? Mas isso eu sabia que eles nunca iriam entender. Todos nós fomos treinados para acreditar no pior em relação a criaturas como ela. Dizer a eles que eu tinha visto verdade e honestidade nela não ajudaria em nada a minha causa ali. Dizer a eles que eu tinha sido chantageada por outro vampiro para ajudá-la seria uma explicação ainda pior. Só havia um argumento que os alquimistas talvez fossem capazes de compreender.
— Eu... eu não contei para ninguém porque queria ficar com todo o crédito para mim. Eu tinha esperanças de que, se descobrisse tudo, poderia conseguir uma promoção e uma tarefa melhor.
Precisei usar todo o meu autocontrole para contar essa mentira com o rosto impassível. Eu me sentia humilhada fazendo tal confissão. Até parece que a ambição realmente iria me levar a comportamentos tão extremos! Aquilo fazia com que eu me sentisse desprezível e superficial. Mas, como eu desconfiava, era algo que os alquimistas entenderiam.
Michaelson soltou uma gargalhada de desdém.
— Ela é mal orientada, mas isso não é totalmente inesperado para sua idade.
Os outros homens trocaram olhares igualmente condescendentes, até o meu pai. Apenas Stanton pareceu em dúvida, mas ela tinha presenciado mais do desastre do que eles.
Meu pai deu uma olhada nos outros, à espera de mais comentários. Como ninguém disse nada, ele deu de ombros.
— Se ninguém tiver objeções, então eu prefiro usar Sydney. Não que eu entenda completamente por que precisam dela. — Havia um leve tom de acusação em sua voz, por ainda não ter sido colocado a par da situação. Jared Sage não gostava de ser deixado de fora.
— Eu não vejo problema em usar a garota mais velha — Barnes disse. — Mas mantenha a mais nova por perto até os outros chegarem, para o caso de alguém fazer objeção.
Fiquei imaginando quantos “outros” iriam se juntar a nós. O escritório do meu pai não era nenhum estádio. Além do mais, quanto mais gente chegasse, mais provável era que o caso fosse importante. Comecei a sentir arrepios enquanto pensava em que missão deveria ser aquela. Eu já tinha visto os alquimistas darem conta de desastres enormes com apenas uma ou duas pessoas. Que tamanho o problema deveria ter para exigir tantas pessoas assim?
Horowitz falou pela primeira vez.
— O que vocês querem que eu faça?
— Reforce a tatuagem de Sydney — Stanton disse em tom decisivo. — Mesmo que ela não vá, não vai fazer mal reforçar os feitiços. Não vai adiantar nada tatuar Zoe até sabermos o que vamos fazer com ela.
Meus olhos se voltaram para as bochechas visivelmente nuas — e pálidas — da minha irmã. Sim. Desde que não houvesse nenhum lírio ali, ela estaria livre. Uma vez gravada a tatuagem na sua pele, não havia como voltar atrás. Você pertencia aos alquimistas.
A realidade disso só tinha me atingido mais ou menos um ano antes. Era algo que eu não havia percebido quando criança. Desde muito pequena, meu pai me levara a acreditar piamente no caráter correto da nossa obrigação. Eu ainda acreditava que era algo correto, mas gostaria que ele também tivesse mencionado quanto da minha vida isso iria consumir.
Horowitz tinha armado uma mesa dobrável na outra ponta do escritório. Ele deu um tapinha nela e lançou um sorriso simpático para mim.
— Suba aqui — ele disse. — Venha validar a sua passagem para a missão.
Barnes lançou um olhar de desaprovação para ele.
— Por favor. Você podia mostrar um pouco de respeito por este ritual, David.
Horowitz só deu de ombros. Ele me ajudou a deitar e, apesar de estar com medo demais dos outros para sorrir abertamente, fiquei torcendo para que a minha gratidão aparecesse nos meus olhos. Ele sorriu de novo, comunicando que tinha entendido. Virei a cabeça e vi quando Barnes colocou reverentemente uma pasta preta em uma mesa de canto. Os outros alquimistas se reuniram ao redor e deram as mãos na frente dele. Percebi que ele devia ser o hierofante. A maior parte do que os alquimistas faziam se baseava na ciência, mas algumas tarefas exigiam assistência divina. Afinal de contas, a nossa missão principal de proteger a humanidade partia da crença de que os vampiros eram antinaturais e contrários ao plano de Deus. É por isso que os hierofantes — os nossos sacerdotes — trabalhavam lado a lado com nossos cientistas.
— Ó Senhor — ele entoou de olhos fechados. — Abençoe estes elixires. Remova a mácula do mal que carregam, para que seu poder doador de vida brilhe através deles com pureza para nós, os seus servos.
Ele abriu a pasta e tirou quatro ampolas pequenas, cheias de um líquido vermelho-escuro. Rótulos que eu não consegui ler marcavam cada recipiente. Com a mão firme e olho clínico, Barnes derramou quantidades precisas de cada ampola em um frasco maior. Depois de usar as quatro, pegou um pacotinho de pó e esvaziou sobre a mistura. Senti um formigamento no ar e o conteúdo do frasco ficou dourado. Ele entregou o frasco a Horowitz, que já estava com uma agulha em punho. Quando a parte cerimonial acabou, todos relaxaram.
Obediente, virei para o lado, deixando a bochecha exposta. Um momento depois, a sombra de Horowitz caiu sobre mim.
— Vai arder um pouco, mas não vai ser nada em comparação com a tatuagem original. É só um retoque — ele explicou com delicadeza.
— Eu sei — respondi. Já tinha sido retatuada antes. — Obrigada.
A agulha perfurou minha pele e eu tentei não me contorcer. Ardeu mesmo, mas, como Horowitz tinha dito, não estava criando uma nova tatuagem. Simplesmente injetava quantidades pequenas de tinta na minha tatuagem existente, para recarregar seu poder. Considerei aquilo como um bom sinal. Zoe talvez ainda não estivesse fora de perigo, mas eles certamente não se dariam ao trabalho de retocar minha tatuagem se fossem me enviar apenas para um centro de reeducação.
— Enquanto esperamos, será que podem nos dizer o que está acontecendo? — meu pai pediu. — Só me disseram que vocês precisavam de uma adolescente.
Pela maneira como ele falou, parecia um papel dispensável. Eu segurei uma onda de raiva. Para ele, nós não passávamos disso.
— Estamos com um problema — ouvi Stanton dizer. Finalmente, eu teria algumas respostas. — Com os Moroi.
Soltei um pequeno suspiro de alívio. Melhor eles do que os Strigoi. Qualquer “problema” que os alquimistas enfrentavam sempre envolvia uma das raças de vampiro, e eu sempre preferia os vivos, que não matam. Às vezes, eles quase pareciam humanos (mas eu nunca diria isso a ninguém presente ali), e viviam e morriam como nós. Os Strigoi, no entanto, eram aberrações da natureza. Vampiros assassinos, que nunca morrem, criados ou quando um Strigoi forçava uma vítima a beber seu sangue ou quando um Moroi tirava a vida de outro de propósito, ao beber seu sangue. Problemas com os Strigoi costumavam terminar com alguém morto.
Todos os tipos de situações possíveis se desenrolavam em minha mente enquanto eu imaginava qual problema tinha exigido ação dos alquimistas naquela noite: um humano que tinha reparado em alguém com caninos compridos, um fornecedor que fugiu e tornou pública sua condição, um Moroi tratado por médicos humanos... Esses eram os tipos de problemas que nós, os alquimistas, mais enfrentávamos, e eu tinha sido treinada para dar conta deles e encobri-los com facilidade. No entanto, por que precisariam de “uma adolescente” para qualquer uma dessas coisas era um mistério para mim.
— Vocês sabem que eles elegeram sua jovem rainha no mês passado — Barnes disse. Praticamente dava para vê-lo revirando os olhos. Todos os presentes soltaram murmúrios de afirmação. Claro que sabiam. Os alquimistas prestavam muita atenção aos trâmites políticos dos Moroi. Saber o que os vampiros estavam fazendo era fundamental para mantê-los em segredo do resto da humanidade — e o resto da humanidade a salvo deles. Essa era a nossa razão de ser: proteger nossos semelhantes. Conheça bem seu inimigo era um ditado que nós levávamos muito a sério. A garota que os Moroi tinham escolhido como rainha, Vasilisa Dragomir, tinha dezoito anos, assim como eu.
— Não fique tensa — Horowitz disse com gentileza.
Eu não tinha percebido a minha tensão. Tentei relaxar, mas pensar em Vasilisa Dragomir me fez lembrar de Rose Hathaway. Pouco à vontade, pensei que talvez não devesse ter me apressado tanto em concluir que estava fora de perigo. Felizmente, Barnes só continuou com a história, sem mencionar a minha conexão indireta com a jovem rainha e seus associados.
— Por mais chocante que isso seja para nós, é chocante na mesma medida para alguns membros do povo deles. Houve muitas manifestações contrárias e dissidências. Ninguém tentou atacar a menina Dragomir, mas isso provavelmente se deve ao fato de ela ser muito bem protegida. Parece que os inimigos dela encontraram um jeito de atingi-la: por intermédio de sua irmã.
— Jill — deixei escapar. Horowitz me repreendeu por ter me mexido, e no mesmo instante me arrependi de ter chamado a atenção para mim e o meu conhecimento dos Moroi. Ainda assim, uma imagem de Jillian Mastrano surgiu na minha mente, alta e irritantemente magra, como todos os Moroi, com grandes olhos verdes que sempre pareciam nervosos. E ela tinha bons motivos para isso. Quando tinha quinze anos, Jill havia descoberto ser irmã ilegítima de Vasilisa, o que fazia dela a única outra integrante da linhagem real de sua família. Ela também estava envolvida na confusão em que me meti no verão.
— Vocês conhecem as leis deles — Stanton prosseguiu, após um momento de silêncio constrangedor. O tom dela transmitia tudo que nós pensávamos das leis dos Moroi. Uma monarquia eletiva? Não fazia sentido, mas que outra coisa podia ser esperada de seres tão antinaturais quanto os vampiros? — E Vasilisa precisa ter um familiar para poder manter o trono. Portanto, seus inimigos resolveram que, se não podem removê-la diretamente, vão remover sua família.
Um calafrio percorreu minha espinha devido ao significado subentendido daquela afirmação, e mais uma vez fiz um comentário sem pensar.
— Aconteceu alguma coisa com Jill? — Dessa vez, pelo menos, escolhi um momento em que Horowitz estava recarregando a agulha, sem perigo de estragar a tatuagem.
Mordi o lábio para me impedir de falar mais, imaginando a bronca nos olhos do meu pai. Mostrar preocupação por um Moroi era a última coisa que eu devia fazer, levando em conta minha situação incerta. Eu não era apegada a Jill, mas a ideia de que havia alguém tentando matar uma garota de quinze anos — a mesma idade de Zoe — era apavorante, independentemente da raça à qual ela pertencesse.
— É isso que não está claro — Stanton refletiu. — Ela foi atacada, disso sabemos com certeza, mas não temos informação se foi realmente ferida. De todo modo, ela está bem agora, mas a tentativa ocorreu na própria corte deles, indício de que há traidores no alto escalão.
Barnes soltou uma gargalhada de desdém:
— Mas o que se pode esperar? Não sei como a raça deles conseguiu sobreviver por tanto tempo sem que se voltassem uns contra os outros.
Ouviram-se murmúrios de concordância.
— Seja ridículo ou não, não podemos permitir de jeito nenhum que entrem em uma guerra civil — Stanton disse. — Alguns Moroi fizeram protestos, tanto que chamaram a atenção da mídia humana. Não podemos permitir isso. Precisamos que o governo deles tenha estabilidade, e isso significa garantir a segurança dessa menina. Talvez não possam confiar em si mesmos, mas podem confiar em nós.
Não adiantaria nada eu observar que os Moroi, na verdade, não confiavam nos alquimistas. Mas, como nós não tínhamos interesse em matar a monarca dos Moroi ou sua família, suponho que isso nos tornava mais confiáveis do que muita gente.
— Precisamos fazer a menina desaparecer — Michaelson disse. — Pelo menos até que os Moroi desfaçam a lei que deixa o trono de Vasilisa tão vulnerável. Esconder Mastrano no meio de seu próprio povo não é seguro no momento, então precisamos escondê-la entre os humanos. — Pingava desprezo das palavras dele. — Mas é imperativo que ela também permaneça escondida dos humanos. A nossa raça não pode saber da existência deles.
— Depois de nos consultarmos com os guardiões, encontramos um local que todos acreditamos ser seguro para ela, protegido tanto dos Moroi quanto dos Strigoi — disse Stanton. — No entanto, para garantir que ela e seus acompanhantes permaneçam despercebidos, vamos precisar ter alquimistas a postos, dedicados exclusivamente às necessidades dela, para o caso de qualquer complicação surgir.
Meu pai desdenhou.
— Isso é um desperdício dos nossos recursos. Além disso, vai ser uma tarefa insuportável para quem precisar ficar com ela.
Tive um mau pressentimento a respeito do que estava por vir.
— É aí que Sydney entra — Stanton falou. — Gostaríamos que ela fosse um dos alquimistas a acompanhar Jillian no esconderijo.
— O quê? — meu pai exclamou. — Não pode estar falando sério.
— Por que não? — O tom de Stanton era calmo e firme. — Elas têm idade próxima; por isso, se estiverem juntas, não vão despertar suspeitas. E Sydney já conhece a menina. E certamente conviver com ela não será tão “insuportável” quanto seria para outros alquimistas.
A mensagem subentendida era alta e clara. Eu não estava livre do meu passado, pelo menos por enquanto. Horowitz fez uma pausa e ergueu a agulha, para me dar chance de falar. A minha mente estava em disparada. Eu precisava dar alguma resposta. Não queria parecer muito incomodada com o plano. Eu precisava restaurar minha reputação entre os alquimistas e demonstrar a minha disposição de seguir ordens. Dito isso, eu também não queria passar a impressão de que me sentia à vontade demais na companhia de vampiros, nem de seus correspondentes meio-humanos, os dampiros.
— Passar tempo com um deles nunca é divertido — eu disse com cuidado, mantendo a voz despreocupada e insolente. — Por mais que você faça isso várias vezes. Mas farei o que for necessário para manter a nós... e a todos os demais... em segurança — não precisava explicar que “os demais” eram os humanos.
— Pronto, está vendo só, Jared? — Barnes parecia satisfeito com a resposta. — A menina sabe qual é sua obrigação. Já tomamos várias providências para que tudo corra bem, e certamente não vamos mandá-la para lá sozinha... principalmente porque a menina Moroi também não estará sozinha.
— Como assim? — O meu pai ainda não parecia contente com nada daquilo, e eu fiquei imaginando o que estaria incomodando-o mais. Ele achava mesmo que eu estaria em perigo? Ou a sua preocupação era apenas com a possibilidade de que, se eu passasse mais tempo com os Moroi, minha lealdade mudaria ainda mais de lado? — Quantos deles virão?
— Vão mandar um dampiro — Michaelson disse. — Um dos guardiões deles, e eu realmente não vejo problema nisso. O local que escolhemos deve estar livre de Strigoi, mas, se não estiver, é melhor que eles lutem contra aqueles monstros no nosso lugar.
Os guardiões eram dampiros com treinamento especial, que serviam de guarda-costas.
— Pronto — Horowitz disse para mim e se afastou. — Pode se sentar.
Obedeci e resisti à vontade de tocar na bochecha. A única coisa que senti do trabalho dele foi a picada da agulha, mas eu sabia que uma magia poderosa estava agindo sobre mim, uma magia que me daria um sistema imunológico sobre-humano e me impediria de falar sobre assuntos dos vampiros com humanos comuns. Tentei não pensar na outra parte, a respeito da origem da magia. As tatuagens eram um mal necessário.
Os outros continuavam em pé, sem prestar atenção em mim — bom, à exceção de Zoe. Ela continuava com uma expressão de confusão e medo, e olhava ansiosa para a minha direção.
— Talvez haja mais um Moroi como acompanhante — Stanton prosseguiu. — Sinceramente, não sei bem por que, mas insistiram muito para que ele ficasse com Mastrano. Dissemos que, quanto menos Moroi precisássemos esconder, melhor seria, mas... bom. Eles pareceram considerar necessário, e disseram que tomariam as providências para acomodá-lo lá. Acho que é algum Ivashkov. Irrelevante.
— Onde é “lá”? — meu pai perguntou. — Para onde querem mandá-la?
Excelente questão. Eu estava me fazendo a mesma pergunta. Meu primeiro trabalho em tempo integral com os alquimistas havia me mandado para o outro lado do mundo, até a Rússia. Se os alquimistas estavam determinados a esconder Jill, não havia como saber qual seria o local remoto que escolheriam para colocá-la. Por um momento, ousei sonhar que poderíamos ir parar na cidade dos meus sonhos: Roma. Obras de arte lendárias e comida italiana pareciam uma boa maneira de recompensar o trabalho burocrático e os vampiros.
— Palm Springs — Barnes respondeu.
— Palm Springs? — repeti. Não era isso que eu estava esperando. Quando eu pensava em Palm Springs, enxergava astros de cinema e campos de golfe. Não eram exatamente férias em Roma, mas também não era o Ártico.
Um sorrisinho torto repuxou os lábios de Stanton.
— Fica no deserto e recebe muito sol. Totalmente indesejável para os Strigoi.
— Não seria indesejável para os Moroi também? — perguntei, pensando mais à frente. Os Moroi não eram incinerados debaixo do sol como os Strigoi, mas a exposição excessiva a ele, ainda assim, deixava os Moroi fracos e doentes.
— Bom, seria — Stanton reconheceu. — Mas um pouco de desconforto vale a segurança que o local nos proporciona. Desde que os Moroi passem a maior parte do tempo em ambientes fechados, não será um problema. Além disso, vai desestimular outros Moroi a irem até lá e...
O som da porta de um carro se abrindo e batendo do lado de fora chamou a atenção de todos.
— Ah — disse Michaelson. — Os outros chegaram. Vou abrir a porta.
Ele saiu do escritório e provavelmente se dirigiu à porta de entrada, para receber quem havia chegado. Momentos depois, ouvi uma voz nova falando, enquanto Michaelson voltava até onde nós estávamos.
— Bom, meu pai não pôde vir, por isso mandou que eu viesse sozinho — o recém-chegado vinha dizendo.
A porta do escritório se abriu e o meu coração parou.
Não, eu pensei. Qualquer um menos ele.
— Jared — o recém-chegado disse ao avistar o meu pai. — É bom vê-lo de novo.
Meu pai, que mal tinha olhado para mim a noite toda, chegou a sorrir.
— Keith! Estive me perguntando como você estava.
Os dois se apertaram as mãos e uma onda de desgosto tomou conta de mim.
— Este aqui é Keith Darnell — Michaelson disse ao apresentá-lo aos outros.
— Filho de Tom Darnell? — Barnes perguntou, impressionado. Tom Darnell era um líder famoso entre os alquimistas.
— O próprio — Keith respondeu, alegre. Ele era uns cinco anos mais velho, e seu cabelo tinha um tom de loiro mais claro do que o meu. Eu conhecia muitas garotas que o achavam bonito. Mas, eu? Achava que ele era péssimo. Era praticamente a última pessoa que eu esperava ver ali.
— E acredito que você conheça as irmãs Sage — Michaelson completou.
Keith voltou seus olhos azuis primeiro para Zoe. Havia uma diferença mínima de um para o outro na cor: um olho, feito de vidro, olhava para o nada adiante e nunca se movia; o outro piscava para ela, enquanto seu sorriso se alargava.
Ele ainda consegue piscar, eu pensei, furiosa. Aquela piscadela irritante, idiota e arrogante! Mas, bom, por que não conseguiria? Nós todos ficamos sabendo do acidente que ele sofrera naquele ano, acidente que tinha lhe custado um olho. Ele havia sobrevivido com um olho intacto, mas, de algum modo, na minha cabeça, achava que a perda do outro acabaria com aquela piscadela insuportável.
— Pequena Zoe! Olhe só para você, tão crescida — ele disse, cheio de carinho. Eu não sou uma pessoa violenta, de jeito nenhum, mas senti uma vontade repentina de bater nele por olhar para a minha irmã daquela maneira.
Ela conseguiu dar um sorriso, obviamente aliviada por ver um rosto conhecido. Mas, quando Keith se voltou para mim, todo o charme e a simpatia desapareceram. O sentimento era mútuo.
A fúria cega e ardente que ia crescendo dentro de mim era tão avassaladora que eu demorei para formular qualquer tipo de reação.
— Olá, Keith — eu disse, rígida.
Keith nem tentou se equiparar à minha civilidade forçada. Ele se virou imediatamente para os alquimistas.
— O que ela está fazendo aqui?
— Sabemos que você requisitou Zoe — Stanton disse com a voz firme —, mas, depois de considerarmos, resolvemos que é melhor Sydney fazer esse papel. A experiência que ela tem se sobrepõe a qualquer preocupação que tenhamos em relação a suas ações.
— Não — Keith logo respondeu e voltou seu olhar azul de aço mais uma vez para mim. — Ela não vai me acompanhar de jeito nenhum. Não posso deixar que uma adoradora de vampiros degenerada estrague a missão para todos nós. Vamos ficar com a irmã dela.
2
Algumas pessoas engoliram em seco, sem dúvida por causa da expressão “adoradora de vampiros” que Keith usou. Nenhuma das palavras era tão terrível assim sozinha, mas juntas... bom, elas representavam uma ideia que era praticamente um anátema a tudo que os alquimistas defendiam. Nós lutávamos para proteger os humanos dos vampiros. Estar em conluio com essas criaturas era basicamente a pior coisa de que qualquer um de nós podia ser acusado. Mesmo quando me questionaram anteriormente, os outros alquimistas tinham sido muito cuidadosos na escolha das palavras.
O palavreado de Keith foi quase obsceno. Horowitz parecia irritado em meu nome e abriu a boca para falar, como se pudesse retrucar com tanta acidez quanto ele. Depois de dar uma olhada rápida em Zoe e em mim, ele pareceu reconsiderar e permaneceu em silêncio. Michaelson, no entanto, não conseguiu segurar um murmúrio:
— Proteja todos nós — e fez o sinal contra o mal.
No entanto, não foram as palavras de Keith que me deixaram louca da vida (apesar de aquilo certamente me fazer sentir um calafrio). Foi a observação que Stanton deixou escapar. Nós sabemos que você requisitou Zoe.
Keith tinha requisitado Zoe para aquela tarefa? A minha resolução de mantê-la fora daquilo aumentou ainda mais. Cerrei os punhos só de pensar em Zoe o acompanhando. Todo mundo ali podia achar que Keith Darnell era algum tipo de garoto exemplar, mas ele não me enganava. Nenhuma menina — muito menos a minha irmã — devia ficar sozinha com ele.
— Keith — Stanton disse, com um leve ar de advertência na voz. — Posso respeitar a sua opinião, mas você não está em posição de fazer essa escolha.
Ele corou.
— Palm Springs é o meu posto! Tenho todo o direito de determinar quem entra no meu território.
— Consigo entender por que você se sente assim — meu pai disse.
Inacreditável. Se Zoe ou eu questionássemos a autoridade como Keith tinha feito, ele não teria hesitado em dizer quais eram os nossos “direitos” — ou melhor, diria que não tínhamos nenhum. Keith tinha passado um verão com a minha família — jovens alquimistas às vezes faziam isso durante o treinamento —, e o meu pai começou a tratá-lo como o filho que nunca teve. Já naquela época havia dois pesos e duas medidas entre Keith e nós. Parece que o tempo e a distância não tinham acabado com isso.
— Palm Springs pode ser o seu posto — Stanton disse —, mas esta missão se origina de lugares na organização que estão muito fora de seu alcance. Você é essencial para a coordenação, sim; mas não é, de maneira nenhuma, a autoridade máxima neste caso.
Ao contrário de mim, desconfio que Stanton devia ter batido em algumas pessoas quando era mais nova — e acho que era exatamente isso que queria fazer com Keith naquele momento. Era engraçado ela se tornar minha defensora, já que eu tinha certeza de que ela não havia engolido a história de eu ter usado Rose para fazer a minha carreira avançar.
Keith visivelmente se acalmou; ele teve a prudência de admitir que uma explosão infantil não levaria a lugar nenhum.
— Eu compreendo. Só estou preocupado com o sucesso desta missão. Conheço as duas garotas Sage. Mesmo antes do “incidente” de Sydney, já tinha sérias preocupações em relação a ela. Mas achei que ela tinha superado aquela fase, por isso não me dei ao trabalho de dizer nada na época. Agora vejo que estava errado. Na ocasião, realmente achava que Zoe teria sido uma escolha muito melhor para ocupar a posição da família. Sem ofensas, Jared — ele lançou para o meu pai um sorriso que supostamente deveria ser encantador.
Nesse ínterim, ia ficando cada vez mais difícil esconder a minha incredulidade.
— Zoe tinha onze anos quando você esteve aqui — eu disse. — Como poderia tirar essas conclusões? — Eu não acreditei, nem por um instante, que ele tinha “preocupações” em relação a mim naquela época. Não, apague isso. Ele provavelmente tinha preocupações no último dia que passou conosco, quando eu o confrontei a respeito de um segredo sujo que ele guardava. Eu tinha quase certeza de que era esse o motivo para tudo aquilo. Ele queria me silenciar. As minhas aventuras com Rose eram apenas uma desculpa para me tirar do caminho.
— Zoe sempre foi madura para a idade — Keith disse. — Às vezes, a gente vê logo.
— Zoe nunca viu um Strigoi, muito menos um Moroi! E provavelmente ficaria paralisada se visse. Isso também vale para a maior parte dos alquimistas — observei. — Qualquer pessoa que for enviada terá que aguentar ficar perto deles, e independentemente do que você pense sobre as minhas motivações, eu estou acostumada a isso. Não gosto deles, mas sei como tolerá-los. Zoe só recebeu a mais básica das instruções... e apenas dentro de casa. Todo mundo fica repetindo que esta é uma missão séria. Você quer mesmo arriscar o desfecho dela por inexperiência e receios sem fundamento? — terminei, orgulhosa de mim mesma por ter permanecido calma e apresentado um argumento tão razoável.
Barnes se mexeu, mudando de posição, pouco à vontade.
— Mas se Keith tinha dúvidas anos atrás...
— O treinamento de Zoe provavelmente basta para que ela se vire — meu pai disse.
Havia cinco minutos, ele tinha concordado que eu fosse no lugar dela! Será que alguém tinha escutado o que eu disse? Parecia que eu tinha ficado invisível depois da chegada de Keith. Horowitz estava ocupado limpando e arrumando seus instrumentos de tatuagem, mas ergueu os olhos para desdenhar da observação de Barnes.
— Você disse as palavras mágicas: “anos atrás”. Na época, Keith não devia ser muito mais velho do que estas meninas são agora. — Horowitz fechou seu estojo de instrumentos e se apoiou despreocupadamente na parede, com os braços cruzados. — Não duvido de você, Keith. Não exatamente. Mas não tenho muita certeza se você pode basear a sua opinião em lembranças de quando todos vocês eram crianças.
Pela lógica de Horowitz, ele estava dizendo que eu ainda era criança, mas não me incomodei. Ele havia feito seus comentários de uma maneira simples e sem esforço, e ainda assim deixou Keith parecendo um idiota. Keith também percebeu isso, e ficou todo vermelho.
— Concordo — disse Stanton, que estava claramente ficando impaciente. — Sydney quer muito fazer isso, e poucas pessoas pensariam assim, levando em conta que ela vai ter que morar com uma vampira.
Quero muito? Não exatamente. Mas eu realmente queria proteger Zoe a todo custo, e restaurar a minha credibilidade. Se isso significava frustrar Keith Darnell no caminho, melhor ainda...
— Espere — eu disse, repassando as palavras de Stanton. — Você disse morar com uma vampira?
— Disse — Stanton respondeu. — Mesmo que esteja escondida, a vida da menina Moroi precisa ter certa semelhança com uma vida normal. Decidimos matar dois coelhos com uma cajadada só e matriculá-la em um internato particular. Isso dá conta da educação e da hospedagem dela. Vamos tomar providências para que vocês dividam o mesmo quarto.
— Mas isso não significa... isso não significa que eu teria de frequentar a escola? — perguntei, sentindo-me um tanto confusa. — Eu já me formei.
No ensino médio, pelo menos. Tinha deixado claro para o meu pai, várias vezes, que adoraria fazer faculdade. Ele tinha deixado igualmente claro que não via necessidade disso.
— Está vendo? — Keith disse, agarrando-se à oportunidade. — Ela é velha demais. Zoe combina melhor em relação à idade.
— Sydney pode passar por aluna do último ano. Ela tem a idade certa. — Stanton me mediu com os olhos. — Além do mais, você recebeu educação em casa, certo? Esta será uma experiência nova para você. Vai poder ver o que perdeu.
— Provavelmente você vai achar fácil — meu pai disse, com má vontade. — A sua educação foi superior a qualquer coisa que eles possam oferecer.
Belo autoelogio disfarçado, pai.
Eu estava com medo de demonstrar como esse acordo estava me deixando desconfortável. A minha resolução de cuidar de Zoe e de mim mesma não tinha mudado, mas as complicações só aumentavam. Repetir o ensino médio. Morar com uma vampira. Mantê-la sob um programa de proteção à testemunha. E apesar de eu ter me gabado a respeito de ficar à vontade perto de vampiros, a ideia de dividir o quarto com uma — mesmo que fosse aparentemente benigna como Jill — era enervante. Um outro desgosto possível me ocorreu.
— Você também seria um aluno disfarçado? — perguntei a Keith. A ideia de emprestar anotações de aula para ele me deixou enjoada mais uma vez.
— Claro que não — ele respondeu, parecendo insultado. — Eu sou velho demais. Eu serei o Facilitador de Missão de Área Local — eu podia apostar que ele tinha acabado de inventar aquele título ali mesmo. — A minha função é ajudar a coordenar a missão e fazer relatórios aos nossos superiores. E não vou fazer isso se for ela quem estiver lá — ele olhou de rosto em rosto ao proferir a última frase, mas não havia dúvidas de quem era ela. Eu.
— Então, não faça — Stanton disse sem rodeios. — Sydney vai. Esta é a minha decisão, e vou defendê-la perante qualquer autoridade superior, se for preciso. Se é tão contrário à colocação dela, sr. Darnell, providenciarei pessoalmente para que seja transferido de Palm Springs e não precise lidar com ela.
Todos os olhos se voltaram para Keith, e ele hesitou. Percebi que ela o tinha pegado em uma armadilha. Eu imaginava que, com o clima que fazia lá, Palm Springs não devia ter muita ação de vampiros. O trabalho de Keith provavelmente era bem fácil; já eu, quando trabalhei em São Petersburgo, tive que remediar danos várias vezes. Aquele lugar era um porto seguro para os vampiros, assim como alguns outros lugares na Europa e na Ásia que o meu pai tinha me levado para visitar. Sem falar de Praga. Se Keith fosse transferido, ele correria o risco de ter muito mais trabalho, além de ser mandado para um local muito pior. Afinal, apesar de Palm Springs não ser agradável para os vampiros, parecia um lugar fantástico para os humanos.
O rosto de Keith confirmou tudo isso. Ele não queria sair de Palm Springs.
— E se ela for para lá e eu tiver motivos para suspeitar de traição mais uma vez?
— Então você a delata — Horowitz respondeu, segurando um bocejo. Ele obviamente não estava nada impressionado com Keith. — Da mesma maneira que faria com qualquer outra pessoa.
— Enquanto isso, posso aprimorar o treinamento de Zoe — meu pai disse, quase em tom de desculpa para Keith. Ficou claro de que lado ele estava. Não era do meu. Não era também do de Zoe, para falar a verdade. — Então, se encontrar falhas em Sydney, poderemos substituí-la.
Eu me arrepiei ao pensar que Keith iria decidir se eu tinha falhas ou não, mas nem de longe isso me incomodou tanto quanto o pensamento de que Zoe ainda estaria envolvida naquilo. Se o meu pai iria mantê-la na reserva, então ela ainda não estava fora de perigo. Os alquimistas ainda poderiam ficar de olho nela — assim como Keith. Naquele momento eu jurei para mim mesma que faria tudo que fosse necessário, até dar uvas na boca de Keith, mas iria garantir que ele não teria razão nenhuma para duvidar da minha lealdade.
— Tudo bem — ele disse, e as palavras pareciam causar-lhe muita dor. — Sydney pode ir... por enquanto. Mas vou ficar de olho em você — ele fixou o olhar em mim. — E não vou cobrir as suas falhas. Vai ser responsável por manter aquela vampira na linha e levá-la para se alimentar.
— Levá-la para se alimentar? — perguntei com surpresa. Claro que sim. Jill precisaria de sangue. Por um momento, toda a minha confiança vacilou. Era fácil falar em andar com vampiros quando não havia nenhum deles por perto. Mais fácil ainda quando não se pensava naquilo que fazia dos vampiros o que eles eram. Sangue. Aquela necessidade terrível e antinatural que preenchia sua existência. Uma ideia horrível surgiu na minha cabeça e sumiu com a mesma rapidez que apareceu. Será que eu vou ter que dar o meu sangue para ela? Não. Isso era ridículo. Esse era um limite que os alquimistas jamais ultrapassariam. Engoli em seco e tentei esconder meu breve momento de pânico. — Como planejam alimentá-la?
Stanton fez um sinal com a cabeça para Keith.
— Pode explicar a ela? — Acho que estava dando a ele uma chance de se sentir importante, uma maneira de compensar sua derrota anterior. Ele entrou na dela.
— Só há um Moroi morando em Palm Springs de que temos notícia — Keith disse. Enquanto falava, reparei que o cabelo loiro desgrenhado dele estava todo coberto de gel. Por causa disso, os fios tinham um brilho pegajoso que eu não achava nem um pouco atraente. Além do mais, eu não confiava em nenhum homem que usasse mais produtos de beleza do que eu. — E se quer saber a minha opinião, ele é louco. Mas é um louco inofensivo... na medida em que qualquer um deles pode ser inofensivo. É um velho recluso que mora nos arredores da cidade. Tem alguma birra contra o governo dos Moroi e não se associa a nenhum deles, de modo que não vai contar para ninguém que vocês estão lá. E o mais importante é que ele tem uma fornecedora e está disposto a compartilhá-la.
Franzi a testa.
— Nós queremos mesmo que Jill ande com um Moroi contrário ao governo? O motivo disso tudo é manter a estabilidade deles. Se a apresentarmos a algum rebelde, como poderemos saber que ele não vai tentar usá-la?
— Esta é uma observação excelente — Michaelson disse, aparentemente surpreso ao admitir isso.
A minha intenção não era acabar com Keith. Meu raciocínio apenas tinha avançado pelo caminho, localizando um problema em potencial e apontando-o. Mas, pelo olhar que ele lançou na minha direção, foi como se eu estivesse tentando desacreditar a informação dele de propósito e deixá-lo mal.
— Obviamente, não vamos contar para ele quem ela é — ele disse com um brilho de raiva no olho bom. — Isso seria estupidez. E ele não faz parte de nenhuma facção. Não faz parte de nada. Está convencido de que os Moroi e seus guardiões o decepcionaram, por isso não quer ter envolvimento com nenhum deles. Contei para ele uma história sobre como a família de Jill tem os mesmos sentimentos antissociais que ele tem, por isso ele se mostrou solidário.
— Você está certa de ter cautela, Sydney — Stanton disse. Havia uma expressão de aprovação em seus olhos, como se estivesse contente por ter me defendido. Essa aprovação significava muito para mim, levando em conta que ela sempre parecia ser muito rígida. — Não podemos nos deixar levar por nenhuma ideia preconcebida deles. Apesar de também termos pedido informações a respeito deste Moroi a Abe Mazur, que concorda que ele é bem inofensivo.
— Abe Mazur? — Michaelson desdenhou. Ele passou a mão na barba grisalha. — Sei. Tenho certeza de que ele é especialista em saber quem é inofensivo ou não.
O meu coração deu um salto ao ouvir aquele nome, mas tentei não demonstrar. Não demonstre reação, não demonstre reação, ordenei ao meu rosto. Depois de respirar fundo, perguntei com muito, muito cuidado:
— Abe Mazur é o Moroi que vai acompanhar Jill? Eu o conheço... mas achei que tinham dito que um Ivashkov seria seu acompanhante.
Se Abe Mazur fixasse residência em Palm Springs, isso alteraria as coisas, e muito.
Michaelson desdenhou.
— Não, nós jamais enviaríamos você para trabalhar com Abe Mazur. Ele só está ajudando com a organização da missão.
— O que há de tão ruim a respeito de Abe Mazur? — Keith perguntou. — Não sei quem ele é.
Eu observava Keith com muita atenção enquanto falava, em busca de algum vestígio de que ele queria nos enganar. Mas não. Seu rosto era só inocência, estava obviamente curioso. Seus olhos azuis, ou melhor, seu olho azul exibia uma rara expressão de confusão, em contraste com sua constante arrogância de quem sabe tudo. O nome de Abe não significava nada para ele. Soltei a respiração que eu nem percebi estar segurando.
— É um canalha — Stanton disse sem rodeios. — Ele tem informações demais sobre coisas que não devia saber. É útil, mas eu não confio nele.
Um canalha? Isso era elogio. Abe Mazur era um Moroi cujo apelido na Rússia — zmey, a serpente — resumia tudo. Abe tinha feito vários favores para mim, e precisei retribuir de maneiras que me colocaram em grande risco. Uma das coisas que precisei fazer foi ajudar Rose a fugir. Bom, ele chamou de retribuição; para mim foi chantagem. Eu não tinha o menor desejo de voltar a cruzar com ele, principalmente porque tinha medo do que mais ele poderia pedir. A parte mais frustrante era que não havia ninguém a quem eu pudesse recorrer para pedir ajuda. Os meus superiores não iriam reagir bem se soubessem que, além de todas as minhas outras atividades com os vampiros, eu ainda fazia acordos paralelos com eles.
— Nenhum deles merece confiança — meu pai observou. Ele fez o sinal dos alquimistas contra o mal, uma cruz no ombro esquerdo traçada com a mão direita.
— É, mas Mazur é pior do que a maioria — Michaelson disse. Ele disfarçou um bocejo que serviu para lembrar a todos nós que estávamos no meio da madrugada. — Estamos combinados, então?
Murmúrios de concordância se fizeram ouvir. A expressão anuviada de Keith demonstrava como estava insatisfeito por as coisas não serem do jeito que queria, mas não esboçou mais nenhuma tentativa de impedir que eu fosse.
— Acho que agora nós já podemos ir embora — ele disse.
Demorei um segundo para perceber que “nós” éramos ele e eu.
— Agora? — perguntei, incrédula.
Ele deu de ombros.
— Os vampiros vão chegar logo. Precisamos nos assegurar de que tudo estará pronto para eles. Se nos revezarmos no volante, conseguiremos chegar lá amanhã à tarde.
— Ótimo — eu disse, emburrada. Uma viagem de carro com Keith. Eca. Mas o que mais eu podia dizer? Não tinha escolha em relação a isso e, mesmo que tivesse, não estava em posição de recusar nada que os alquimistas exigissem de mim no momento. Naquela noite, eu tinha avaliado todas as minhas possibilidades, e precisava acreditar que estar com Keith era melhor do que ir para um centro de reeducação. Além do mais, eu tinha acabado de travar uma batalha árdua para provar o meu valor e poupar Zoe. Precisava continuar demonstrando que eu encararia qualquer coisa.
O meu pai me dispensou para fazer as malas com a mesma rispidez com que tinha me ordenado a parecer apresentável antes. Deixei os outros no escritório e me apressei em silêncio até o quarto, sem deixar de pensar na minha mãe que dormia. Eu era especialista em fazer as malas com rapidez e eficiência, graças às viagens-surpresa em que o meu pai havia me levado durante a infância. Aliás, eu até mantinha uma nécessaire com produtos de toalete pronta para partir. O problema não estava tanto na velocidade, e sim em saber quanta coisa levar. A duração da missão não tinha sido especificada, e eu fiquei com a sensação desagradável de que, na verdade, ninguém sabia. Será que estávamos falando de algumas semanas? De um ano letivo inteiro? Eu tinha ouvido alguém mencionar que os Moroi queriam acabar com a lei que colocava Jill em perigo, mas esse parecia ser o tipo de processo legal que poderia demorar um pouco. Para piorar as coisas, eu nem sabia o que vestir para ir à escola. A única coisa de que eu tinha certeza era que o clima seria quente. Acabei colocando na mala dez das minhas roupas mais leves e torci para ter acesso a uma lavanderia.
— Sydney?
Eu estava colocando o laptop em uma bolsa a tiracolo quando Zoe apareceu à minha porta. Ela tinha refeito as tranças, que estavam mais bem presas, e fiquei imaginando se aquilo era uma tentativa de impressionar o nosso pai.
— Oi — eu disse, dando um sorriso. Ela entrou no quarto e fechou a porta atrás de si. Fiquei contente por ela ter vindo se despedir de mim. Eu sentiria a falta dela e queria que ela soubesse...
— Por que fez isso comigo? — ela perguntou antes que eu pudesse falar uma única palavra. — Você imagina como me sinto humilhada?
Fui pega de surpresa, e fiquei muda por alguns momentos.
— Eu... do que está falando? Eu estava tentando...
— Do jeito que você falou, parece que eu sou incompetente! — ela disse. Fiquei surpresa de ver lágrimas brilhando em seus olhos. — Ficou falando sem parar que eu não tinha experiência, e que não poderia dar conta de fazer o que você e o papai fazem! Fiquei parecendo uma idiota na frente de todos aqueles alquimistas. E do Keith.
— Keith Darnell não é alguém que você precisa se preocupar em impressionar — eu me apressei em dizer, tentando controlar a raiva. Ao ver seu rosto anuviado, suspirei e repassei na cabeça a conversa no escritório. A minha intenção não era fazer com que Zoe parecesse ruim, mas sim fazer todo o possível para garantir que eu fosse enviada, e não ela. Não fazia ideia de que ela iria se sentir assim. — Olhe, eu não estava tentando deixar você envergonhada. Estava tentando proteger você.
Ela soltou uma risada seca e a raiva pareceu estranha vinda de uma pessoa tão gentil quanto Zoe.
— É isso mesmo que você pensa? Até chegou a dizer que estava tentando conseguir uma promoção!
Fiz uma careta. Era verdade. Eu tinha dito aquilo. Mas eu não podia exatamente contar a verdade a ela. Nenhum humano sabia por que, de verdade, eu tinha ajudado Rose. Mentir para a minha própria espécie — e principalmente para a minha irmã — me fazia sofrer, mas eu não podia fazer nada. Como sempre, eu me senti em uma armadilha. Por isso, desviei do assunto.
— Nunca houve a intenção de que você se tornasse alquimista — eu disse. — Há coisas melhores para você fazer.
— Porque eu não sou tão inteligente quanto você? — ela perguntou. — Porque eu não falo cinco línguas?
— Não tem nada a ver com isso — eu soltei. — Zoe, você é incrível e provavelmente daria uma ótima alquimista! Mas, pode acreditar, a vida de alquimista... você não vai querer fazer parte disso.
A minha vontade era dizer que ela iria odiar. Queria dizer a ela que nunca mais seria responsável pelo próprio futuro, nem poderia tomar qualquer decisão sozinha. Mas minha noção de dever me impediu de fazer isso e eu permaneci em silêncio.
— Eu faria isso — ela disse. — Eu gostaria de nos proteger dos vampiros... se o papai quisesse.
A voz dela vacilou um pouco, e de repente imaginei o que realmente estava alimentando seu desejo de ser alquimista.
— Se você quer ficar mais próxima do papai, encontre outro jeito. A causa dos alquimistas pode ser boa, mas depois que você se junta a eles, eles se tornam seus donos — eu gostaria de poder explicar a ela qual era a sensação. — Você não vai querer levar esta vida.
— Porque você quer ela só para você? — ela questionou. Zoe era alguns centímetros mais baixa do que eu, mas estava tão cheia de fúria e determinação que parecia ocupar o quarto todo.
— Não! Eu não... você não entende — terminei por dizer. Eu queria jogar as mãos para o alto, exasperada, mas me segurei, como sempre.
O olhar que ela lançou para mim quase me transformou em gelo.
— Ah, acho que entendo perfeitamente — ela deu meia-volta de um jeito abrupto e disparou porta afora, mas conseguiu se mover sem fazer barulho. O medo que ela tinha do nosso pai superava a raiva que estava sentindo por mim.
Fiquei olhando para o lugar em que ela tinha estado e me senti péssima. Como podia pensar que eu na verdade estava tentando roubar toda a glória e a deixar mal? Porque foi isso exatamente que você disse, uma voz dentro de mim observou. Acho que era verdade, mas eu nunca pensei que ela ficaria ofendida. Eu não sabia que ela tinha interesse em ser alquimista. Mesmo agora, ficava me perguntando se o que ela desejava, na verdade, era fazer parte de algo e provar o seu valor para o nosso pai, e não realmente ser escolhida para a tarefa.
Quaisquer que fossem suas razões, não era possível fazer mais nada a respeito. Eu talvez não gostasse da maneira impositiva como os alquimistas tinham lidado comigo, mas ainda acreditava veementemente no que faziam para proteger os humanos dos vampiros. E eu com toda a certeza acreditava em manter Jill a salvo de seu próprio povo se isso significasse evitar uma extensa guerra civil. Era capaz de fazer esse trabalho, e faria bem. E Zoe... ela estaria livre para fazer o que quisesse da vida.
— Por que demorou tanto? — meu pai perguntou quando eu voltei ao escritório. A minha conversa com Zoe tinha me atrasado uns minutinhos, e isso significava tempo demais para ele. Nem tentei responder.
— Podemos ir quando você quiser — Keith me disse. O humor dele tinha mudado enquanto eu estava no andar de cima. Ele exalava uma simpatia tão forte que eu fiquei maravilhada de ver que ninguém tinha percebido que era falsidade pura. Parece que ele tinha resolvido adotar uma atitude mais agradável em relação a mim — ou para tentar impressionar os outros, ou para puxar o meu saco e eu não revelar o que sabia a respeito dele. No entanto, mesmo com aquele sorriso de plástico estampado no rosto, a postura dele continuava rígida e o jeito como ele cruzava os braços revelava para mim — apesar de não revelar a mais ninguém — que ele não estava mais feliz do que eu por nós dois termos sido colocados juntos. — Posso até dirigir a maior parte do caminho.
— Não me importo de fazer a minha parte — eu disse, tentando não olhar diretamente para seu olho de vidro. Também não me sentia confortável em viajar com um motorista que tinha a percepção de profundidade falha.
— Eu gostaria de conversar com Sydney em particular antes de sua partida, se não houver objeção — meu pai disse.
Ninguém apresentou objeção; ele me conduziu até a cozinha e fechou a porta atrás de nós. Ficamos lá em silêncio durante alguns minutos, apenas nos encarando de braços cruzados. De repente, ousei ter esperanças de que talvez ele fosse me dizer que sentia muito pela maneira como as coisas estavam entre nós no último mês, que me perdoava e que me amava. Sinceramente, eu ficaria feliz se o desejo dele fosse me dar apenas uma despedida de pai em particular.
Ele me olhou com muita atenção, com aqueles olhos castanhos tão idênticos aos meus. Fiquei torcendo para que os meus nunca viessem a ter uma expressão tão fria.
— Não preciso lhe dizer como isto é importante para você, para todos nós.
E eu que queria um pouco de afeição paterna.
— Não, senhor — respondi. — Não precisa.
— Não sei se você pode desfazer a desgraça que fez se abater sobre nós ao ficar do lado deles, mas este é um passo na direção certa. Não estrague a oportunidade. Este é um teste para você. Siga as ordens que receber. Mantenha a menina Moroi longe de problemas — ele suspirou e passou a mão no cabelo loiro escuro, que eu também tinha herdado. Estranho, pensei, nós termos tantas coisas em comum... e, no entanto, sermos completamente diferentes. — Graças a Deus Keith está com você. Siga as orientações dele. Ele sabe o que faz.
Meu corpo ficou tenso. Lá estava aquele tom de orgulho na voz dele mais uma vez, como se Keith fosse a melhor criatura a caminhar pela terra. Meu pai tinha se assegurado de me fornecer treinamento completo; mas quando Keith ficou conosco, ele o levou em viagens e lhe deu lições das quais eu nunca fiz parte. Minhas irmãs e eu ficamos furiosas. Sempre havíamos desconfiado de que o nosso pai se ressentia de ter apenas filhas, e aquilo tinha servido de prova. Mas não era o ciúme que fazia o meu sangue ferver e os meus dentes se cerrarem.
Por um instante, eu pensei: E se eu contar a ele tudo que sei? Aí, o que vai pensar de seu garoto de ouro? Mas respondi à minha própria pergunta ao ver os olhos endurecidos do meu pai. Ninguém iria acreditar em mim. Em seguida, imediatamente me lembrei de outra voz e do rosto amedrontado e suplicante de uma menina que olhava para mim com olhos castanhos arregalados. Não conte, Sydney. Faça o que fizer, não conte o que Keith fez. Não conte para ninguém. Eu jamais poderia traí-la dessa maneira.
Meu pai continuava esperando uma resposta. Eu engoli em seco e assenti.
— Sim, senhor.
Ele ergueu as sobrancelhas, claramente satisfeito, e me deu um tapinha brusco no ombro. Isso era o mais próximo de carinho verdadeiro que ele conseguia chegar, já havia algum tempo. Eu me encolhi de surpresa, e também por estar tensa com tanta frustração.
— Muito bem — ele se dirigiu à porta da cozinha e então fez uma pausa para voltar os olhos para mim. — Talvez ainda haja esperança para você.
3
A viagem até Palm Springs foi uma agonia.
Eu estava exausta por ter sido arrancada da cama mas não consegui cair no sono nem quando Keith tomou a direção. Havia coisas demais na minha cabeça — Zoe, minha reputação, a missão que se aproximava... Os pensamentos rodavam na minha cabeça. Eu só queria consertar todos os problemas da minha vida. O fato de Keith estar dirigindo não diminuía em nada a minha ansiedade.
Também estava incomodada porque meu pai não tinha permitido que eu me despedisse da minha mãe. Ele ficou falando sem parar que nós deveríamos deixar que ela dormisse, mas eu sabia a verdade. Ele tinha medo de que ela tentasse nos deter se soubesse que eu estava de partida. Ela tinha ficado furiosa depois da minha última missão: eu tinha viajado até o outro lado do mundo sozinha, e fui trazida de volta sem fazer a menor ideia do que ia acontecer comigo no futuro. Minha mãe achou que os alquimistas tinham feito mau uso de mim, e disse ao meu pai que acharia ótimo se eles não quisessem mais nada comigo. Não sei se ela realmente poderia ter atrapalhado os planos daquela noite, mas eu não queria arriscar e fazer Zoe ser mandada no meu lugar. Eu certamente não esperava uma despedida calorosa e carinhosa dele, mas foi estranho partir deixando as coisas tão mal resolvidas com a minha irmã e a minha mãe.
Quando amanheceu e a paisagem do deserto de Nevada se transformou por um instante em um mar ardente vermelho e cobre, desisti totalmente de dormir e resolvi apenas seguir em frente a todo vapor. Comprei um copão enorme de café em um posto de gasolina e garanti a Keith que dirigiria o resto do caminho. Ele abriu mão da direção de bom grado, mas, em vez de dormir, também comprou um café e ficou conversando comigo nas horas restantes. Ele ainda estava investindo pesado em sua nova atitude de amizade, quase me fazendo desejar nossa antipatia anterior. Estava determinada a não lhe dar motivo para duvidar de mim, por isso me esforcei para sorrir e concordar da maneira apropriada. Foi um tanto difícil fazer isso enquanto cerrava os dentes.
Parte da conversa não foi assim tão ruim. Eu conseguia lidar com assuntos de trabalho, e nós ainda tínhamos muitos detalhes a resolver. Ele me disse tudo que sabia sobre a escola, e absorvi com avidez a descrição que fez do meu futuro lar. A Escola Preparatória Amberwood parecia ser um lugar de prestígio, e fiquei imaginando, descompromissada, que talvez pudesse tratá-la como uma faculdade de mentirinha. De acordo com os padrões dos alquimistas, eu já sabia tudo de que precisava para o meu trabalho, mas algo em mim sempre clamava por mais e mais conhecimento. Tive que aprender a me contentar com as minhas próprias leituras e pesquisas, mas, ainda assim, a faculdade — ou simplesmente estar perto de quem sabia mais do que eu e tinha algo a ensinar — era uma fantasia minha havia muito tempo.
Como aluna do último ano, eu teria o privilégio de sair do campus, e uma das nossas primeiras providências — depois de obter identidades falsas — seria arrumar um carro para mim. Saber que eu não ficaria presa em um internato fez as coisas parecerem um pouco mais suportáveis. Mas era óbvio que grande parte do entusiasmo de Keith para providenciar meu próprio meio de transporte se devia à necessidade de garantir que eu poderia dar conta de qualquer tarefa que a missão exigisse.
Keith também esclareceu uma coisa de que eu não tinha me dado conta — mas que devia ter percebido.
— Você e essa tal de Jill vão ser matriculadas como irmãs — ele disse.
— O quê? — O fato de eu ter aguentado firme e não ter perdido o domínio sobre a direção serviu como medida do meu autocontrole. Morar com uma vampira era uma coisa... mas ser da família dela? — Por quê? — quis saber.
Com minha visão periférica, vi quando ele deu de ombros.
— Por que não? Explica por que você vai passar tanto tempo perto dela, e é uma boa desculpa para vocês duas ficarem no mesmo quarto. Normalmente, a escola não coloca alunos de idades diferentes no mesmo quarto, mas... bom... os “pais” de vocês prometeram uma doação generosa que os levou a abrir uma exceção.
Fiquei tão atordoada que nem reagi com o reflexo natural de dar um tapa nele quando concluiu a fala com uma risadinha cheia de satisfação. Eu sabia que nós íamos morar juntas... mas, irmãs? Era... estranho. Não, não apenas isso. Era bizarro.
— Isso é loucura — eu disse finalmente, ainda chocada demais para elaborar uma resposta mais eloquente.
— É só no papel — ele disse.
Era verdade. Mas havia algo em ser escalada para o papel de parente de vampiro que me tirava do eixo. Tinha orgulho da maneira como aprendi a me portar perto de vampiros, mas parte disso derivava da crença sólida de que eu era uma forasteira, uma parceira de negócios diferente e afastada. Representar a irmã de Jill destruía esse raciocínio. Trazia à tona uma familiaridade para a qual eu não estava bem certa de estar preparada.
— Morar com uma delas não deve ser assim tão ruim para você — Keith comentou, batucando com os dedos na janela de um jeito que deixou meus nervos à flor da pele. Algo em seu tom despreocupado demais me fez pensar que ele estava me levando para uma armadilha. — Você está acostumada a isso.
— Não diria que estou — respondi, escolhendo as palavras com cuidado. — Passei uma semana com eles, no máximo. E, na verdade, a maior parte do tempo estive com dampiros.
— É tudo igual — ele respondeu, vago. — Se é para diferenciar, acho que os dampiros são piores. São abominações. Não são humanos, mas também não são totalmente vampiros. São produtos de uniões antinaturais.
Não respondi imediatamente e, em vez disso, fingi estar profundamente interessada na estrada à minha frente. O que ele dissera era verdade, de acordo com os ensinamentos dos alquimistas. Eu tinha sido criada acreditando que ambas as raças de vampiros, Moroi e Strigoi, eram obscuras e erradas. Eles precisavam de sangue para sobreviver. Que tipo de pessoa bebia o sangue de outra? Era nojento, e só de pensar que em breve eu teria que levar uma Moroi para se alimentar me deixava enjoada.
Mas os dampiros... aquela era uma questão mais delicada. Ou, pelo menos, naquele momento era para mim. Os dampiros eram meio humanos e meio vampiros, criados em uma época em que as duas raças conviviam livremente. Com o passar dos séculos, os vampiros tinham se afastado dos humanos, e as duas raças passaram a concordar que aquelas uniões eram tabus. Mas a raça dos dampiros havia persistido, apesar de todas as probabilidades contrárias, e do fato de que os dampiros não podiam se reproduzir entre si. Podiam procriar com os Moroi ou com humanos, e muitos Moroi se apresentavam à tarefa.
— Certo? — Keith perguntou.
Percebi que ele olhava fixamente para mim, esperando que eu concordasse com ele na questão de que os dampiros eram abominações — ou talvez estivesse torcendo para eu discordar. De qualquer modo, tinha ficado em silêncio durante tempo demais.
— Certo — eu disse. Soltei a retórica padrão dos alquimistas. — Em certos aspectos, eles são piores do que os Moroi. A raça deles nunca devia ter surgido.
— Você me assustou por um segundo — Keith disse. Eu estava de olho na estrada, mas fiquei com a desconfiança chata de que ele tinha piscado para mim. — Achei que você fosse defendê-los. Eu não devia acreditar nas histórias a seu respeito. Entendo totalmente por que você quis jogar com a glória... mas, cara, deve ter sido difícil tentar trabalhar com um deles.
Não dava para explicar como era fácil esquecer que Rose Hathaway era dampira depois de passar certo tempo com ela. Até do ponto de vista físico, dampiros e humanos eram praticamente idênticos. Rose era tão cheia de vida e de paixão que às vezes parecia mais humana do que eu. Rose certamente não teria aceitado aquele trabalho de maneira tão dócil, com um “sim, senhor” cheio de afetação. Não como eu fiz.
Rose não tinha aceitado nem ser trancada na cadeia, com o peso do governo Moroi sobre ela. A chantagem de Abe Mazur tinha sido o catalisador que me levou a ajudá-la, mas eu nunca cheguei a acreditar que Rose tinha cometido o assassinato do qual fora acusada. Essa certeza, junto com a nossa amizade frágil, tinha me levado a desrespeitar as regras dos alquimistas e ajudar Rose e seu namorado dampiro, o formidável Dimitri Belikov, a enganar as autoridades. Enquanto tudo aquilo acontecia, eu observava Rose com uma espécie de encantamento pela sua batalha contra o mundo. Não tinha como ter inveja de alguém que não era humana, mas certamente podia invejar a força dela — e sua recusa em desistir, independente de qualquer coisa.
Mas, de novo, não dava para dizer isso a Keith. E, apesar de sua atitude bem-humorada, eu continuava sem acreditar que de repente ele começou a achar ótimo que eu participasse da missão.
Dei de ombros de leve.
— Achei que o risco valia a pena.
— Bom — ele disse ao perceber que eu não ia dizer mais nada. — Da próxima vez que você resolver se rebelar e ficar do lado de vampiros e dampiros, providencie um pouco de retaguarda para não se meter em tanta confusão.
Eu desdenhei.
— Não tenho intenção de voltar a me rebelar — pelo menos isso era verdade.
Chegamos a Palm Springs no fim da tarde e começamos a trabalhar imediatamente nas nossas tarefas. Àquela altura, eu já estava louca para dormir, e até Keith — apesar de sua tagarelice — parecia um pouco acabado. Mas nós recebemos a informação de que Jill e sua comitiva chegariam no dia seguinte, por isso tínhamos muito pouco tempo para dar conta dos últimos detalhes.
Uma visita à Escola Preparatória Amberwood revelou que a minha “família” estava crescendo. Parecia que o dampiro que acompanhava Jill também iria se matricular e fazer o papel de nosso irmão. Keith também seria nosso irmão. Quando questionei isso, ele explicou que precisávamos de alguém por perto para fazer o papel de guardião legal, para o caso de Jill ou algum de nós precisar ser tirado da escola ou receber algum privilégio. Como os nossos pais fictícios moravam em outro estado, conseguir autorizações com ele seria mais fácil. Eu não podia questionar a lógica, apesar de achar que ser parente dele era ainda mais repulsivo do que ter dampiros ou vampiros na família. E isso significava bastante.
Mais tarde, uma carteira de motorista feita por um falsificador de boa reputação declarava que eu agora era Sydney Katherine Melrose, da Dakota do Sul. Escolhemos Dakota do Sul porque achamos que o pessoal local não estava muito acostumado a ver carteiras de motorista de lá, e então não seria capaz de notar qualquer falha nas nossas. Não que eu achasse que haveria alguma. Os alquimistas não se associavam a pessoas que faziam trabalho de segunda linha. Também gostei da imagem do monte Rushmore no documento. Era um dos poucos lugares dos Estados Unidos que eu nunca tinha visitado.
O dia terminou com a parte pela qual eu mais esperava: uma visita a uma concessionária de carros. Keith e eu negociamos tanto entre nós quanto com o vendedor. Eu tinha sido criada para ser prática e manter minhas emoções sob controle, mas adorava carros. Essa era uma das poucas coisas que eu puxara da minha mãe. Ela trabalhava como mecânica, e algumas das minhas melhores lembranças de infância haviam acontecido enquanto a ajudava na oficina.
Eu tinha uma queda específica por carros esportivos e carros antigos, daqueles com motor potente que eu sabia que prejudicavam o meio ambiente — mas, mesmo com culpa, eu os adorava. Mas eles estavam fora de questão para este trabalho. Keith argumentou que eu precisava de algo em que coubessem todos nós e mais alguma carga — e que não chamasse muita atenção. Mais uma vez, eu concordei com o raciocínio dele, como uma alquimista boazinha.
— Mas não sei por que precisa ser uma perua — eu disse a ele.
Nossa negociação tinha nos levado a um Subaru Outback novo, que atendia à maior parte das exigências dele. Os meus instintos automobilísticos me diziam que o Subaru serviria para as minhas necessidades. Seria bom de dirigir e o motor era decente para sua categoria. No entanto...
— Estou me sentindo como se fosse uma mãe suburbana — eu disse. — Sou nova demais para isso.
— Mães suburbanas andam de minivans — Keith falou. — E não há nada de errado com o subúrbio.
Desdenhei.
— Mas precisa mesmo ser marrom?
Precisava, a não ser que nós quiséssemos um carro usado. Por mais que eu preferisse algo azul ou vermelho, o fato de ser novo se sobrepunha. A minha natureza rabugenta não gostava da ideia de dirigir o carro “de outra pessoa”. Eu queria que fosse meu — novo, limpo e reluzente. Por isso, fechamos negócio, e eu, Sydney Melrose, tornei-me a orgulhosa proprietária de uma perua marrom. Dei a ela o nome de Pingado, na esperança de que o meu amor por café logo se transferisse para o carro.
Quando terminamos nossos afazeres, Keith me deixou e foi para seu apartamento em Palm Springs. Ele ofereceu que eu passasse a noite lá, mas recusei com educação e preferi um quarto de hotel, agradecida pelo fato de os alquimistas terem bons recursos financeiros. Sinceramente, eu teria pagado do meu bolso para não ter que dormir sob o mesmo teto que Keith Darnell.
Pedi um jantar leve no quarto e aproveitei o tempo a sós depois de tantas horas no carro com Keith. Então vesti um pijama e resolvi ligar para a minha mãe. Apesar de estar contente de me livrar da reprovação do meu pai por um tempo, sentiria falta de estar perto dela.
— São bons carros — ela me disse depois que eu comecei a nossa conversa contando sobre a visita à concessionária. A minha mãe sempre teve espírito livre, coisa que não combinava em nada com alguém como o meu pai. Enquanto ele me ensinava equações químicas, ela me mostrava como trocar o óleo do carro. Os alquimistas não eram obrigados a se casar com outros alquimistas, mas não conseguia entender que forças teriam atraído os meus pais. Talvez meu pai fosse menos tenso quando era mais jovem.
— Acho que sim — eu disse, ciente de que parecia desanimada. A minha mãe era uma das poucas pessoas com quem podia ficar à vontade mesmo que não fosse perfeita ou contente o tempo inteiro. Ela era uma grande defensora de deixar os sentimentos livres. — Acho que estou incomodada porque não tive muita escolha nessa missão.
— Incomodada? Eu estou furiosa por ele não ter sequer falado comigo sobre isso — ela bufou. — Não acredito que ele contrabandeou você para longe sem mais nem menos! Você é minha filha, não um objeto que ele pode simplesmente mandar para lá e para cá.
Por um instante, de um jeito estranho, minha mãe me lembrou Rose — as duas possuíam uma tendência inabalável de dizer tudo que lhes passava pela cabeça. Essa capacidade me parecia estranha e exótica, mas às vezes — quando eu pensava a respeito da minha própria natureza tão controlada e cuidadosamente reservada — ficava imaginando se a esquisita não era eu.
— Ele não sabia de todos os detalhes — eu disse, defendendo-o de maneira automática. Com o temperamento do meu pai, se os dois ficassem brigados, a vida em casa seria péssima para Zoe... isso sem falar na minha mãe. Era melhor garantir a paz. — Não tinham dito tudo para ele.
— Às vezes eu odeio essa gente — havia um rugido na voz da minha mãe. — Às vezes odeio ele também.
Eu não sabia muito bem o que dizer diante disso. Eu tinha ressentimentos do meu pai, claro, mas ele continuava sendo o meu pai. Muitas escolhas difíceis que ele fez foram por causa dos alquimistas, e eu sabia que, por mais que me sentisse sufocada de vez em quando, o trabalho dos alquimistas era importante. Os humanos tinham que ser protegidos da existência dos vampiros. Saber que os vampiros existiam criaria pânico. Pior ainda: poderia levar alguns dos humanos fracos de espírito a se tornarem escravos dos Strigoi em troca da imortalidade, culminando na corrupção das almas. Isso acontecia com mais frequência do que gostaríamos de reconhecer.
— Não faz mal, mãe — eu disse para acalmá-la. — Eu estou bem. Não estou mais metida em confusão, e até estou nos Estados Unidos.
Na verdade, eu não sabia se a parte da confusão era verdade, mas achei que a segunda informação iria acalmá-la. Stanton tinha me dito para manter a nossa localização em Palm Springs em segredo, mas informar que não tínhamos saído do país não faria assim tão mal, e minha mãe pensaria que eu tinha pela frente um trabalho mais fácil do que provavelmente era. Eu e ela conversamos mais um pouco antes de desligar, e ela me disse que tinha recebido notícias da minha irmã Carly. Tudo estava bem com ela na faculdade, e fiquei aliviada em saber. Estava desesperada para ter notícias de Zoe também, mas resisti e não pedi para falar com ela. Estava com medo de que, se ela pegasse o telefone, eu descobrisse que continuava irritada comigo. Ou, pior ainda, que nem queria falar comigo.
Fui para a cama me sentindo melancólica; queria ter sido capaz de colocar para fora todos os meus medos e inseguranças para a minha mãe. Não era isso que mães e filhas normais faziam? Eu sabia que ela teria gostado. Era eu que tinha dificuldades em me abrir. Estava envolvida demais nos segredos dos alquimistas para ser uma adolescente normal.
Depois de dormir bastante, e com o sol da manhã entrando pela janela, eu me senti um pouco melhor. Tinha um trabalho a fazer, e ter um objetivo me fez parar de sentir pena de mim mesma. Eu me lembrei de que estava fazendo aquilo por Zoe, pelos Moroi e pelos humanos ao mesmo tempo. Assim fui capaz de encontrar o meu eixo e colocar minhas inseguranças de lado — pelo menos por ora.
Busquei Keith por volta do meio-dia e fomos até os arredores da cidade para encontrar Jill e o Moroi recluso que nos ajudaria. Keith tinha muito a dizer a respeito do homem, que se chamava Clarence Donahue. Fazia três anos que ele morava em Palm Springs, desde que a sobrinha dele havia morrido em Los Angeles — acontecimento que aparentemente tinha surtido efeito traumático sobre o homem. Keith tinha se encontrado com ele um par de vezes em trabalhos anteriores e ficava fazendo piadas sobre o contato frágil que Clarence tinha com a sanidade mental.
— Ele tem alguns litros de sangue a menos, sabe como é? — Keith disse e deu risada para si mesmo. Aposto que estava havia dias querendo usar essa piada.
As brincadeiras dele eram de mau gosto — e idiotas até não poder mais — mas, na medida em que nos aproximávamos da casa de Clarence, Keith ia ficando muito quieto e nervoso. Algo me ocorreu.
— Quantos Moroi você já conheceu? — perguntei quando saímos da rua principal e entramos em uma alameda comprida e cheia de curvas. A casa parecia ter saído diretamente de um filme gótico, quadradona e feita de tijolos cinzentos que não combinavam em nada com a maior parte da arquitetura de Palm Springs que tínhamos visto. A única coisa que lembrava o sul da Califórnia eram as palmeiras onipresentes que rodeavam a casa. Era uma combinação estranha.
— O suficiente — Keith disse vagamente. — Sou capaz de suportar a presença deles.
O tom de confiança em sua voz parecia forçado. Percebi que, apesar de sua arrogância em relação àquele trabalho, seus comentários a respeito da raça dos Moroi e dos dampiros, e a avaliação que fez das minhas ações, Keith na verdade não se sentia nada, nadinha confortável com a ideia de ficar perto de não humanos. Era compreensível. A maior parte dos alquimistas se sentia assim. Uma grande parte do nosso trabalho nem incluía interagir com o mundo dos vampiros — era o mundo dos humanos que necessitava dos nossos cuidados. Registros tinham que ser acobertados; testemunhas, subornadas. A maior parte dos alquimistas tinha muito pouco contato com os seres centrais do nosso trabalho, e isso significava que o conhecimento da maior parte dos alquimistas sobre os vampiros vinha de histórias e ensinamentos passados de geração em geração nas famílias. Keith disse que conhecia Clarence, mas não mencionou ter convivido com mais nenhum outro Moroi ou dampiro — certamente nunca tinha encarado um grupo como o que estávamos prestes a conhecer.
Eu não estava mais animada do que ele para ficar perto de vampiros, mas percebi que a ideia já não me amedrontava tanto quanto no passado. Rose e seus companheiros tinham feito com que eu criasse uma couraça. Eu já tinha até visitado a corte real dos Moroi, um lugar aonde poucos alquimistas tinham ido. Se consegui sair do coração da civilização deles intacta, tinha certeza de que seria capaz de dar conta de qualquer coisa que se encontrasse no interior daquela casa. Reconheço que seria um pouco mais fácil se a casa de Clarence não se parecesse tanto com uma mansão assombrada de filme de terror.
Caminhamos até a porta em uma demonstração de equipe unida, vestindo trajes formais e elegantes. Por mais que Keith tivesse defeitos, sua aparência era boa. Ele usava calça de sarja com camisa branca e gravata de seda azul-marinho. A camisa tinha manga curta, mas duvido que aliviasse muito o calor. Estávamos no início de setembro e a temperatura passava dos trinta graus quando saí do hotel. Estava igualmente bem-vestida, com uma saia marrom, meia-calça e uma blusa bege com manguinha solta e estampa de flores.
Quando já era tarde demais, percebi que estávamos meio que combinando.
Keith ergueu a mão para bater na porta, mas ela se abriu antes que ele fizesse qualquer coisa. Eu me encolhi, um pouco nervosa apesar das garantias que tinha acabado de dar a mim mesma.
O sujeito que abriu a porta pareceu tão surpreso quanto nós. Ele segurava um maço de cigarros e devia estar saindo para fumar. Fez uma pausa e nos examinou de cima a baixo.
— Então. Vieram aqui para me converter ou para vender revestimento de parede?
O comentário para nos desarmar foi suficiente para espantar minha ansiedade. O homem que falava era um Moroi, um pouco mais velho do que eu, com cabelos castanhos-escuros que sem dúvida haviam sido penteados com muito cuidado para parecerem desgrenhados. Diferente das tentativas de Keith com uma quantidade enorme e ridícula de gel, o sujeito tinha feito de um jeito que realmente ficava bom. Assim como todos os Moroi, ele era pálido e alto, com um tipo físico esguio. Olhos verde-esmeralda nos examinavam a partir de um rosto que podia ter sido esculpido por um dos artistas clássicos que eu tanto admirava. Chocada, recusei a comparação assim que surgiu na minha mente. Afinal de contas, ele era um vampiro. Era ridículo admirá-lo da mesma forma que eu faria com um humano.
— Sr. Ivashkov — eu disse com educação. — É bom encontrá-lo novamente.
Ele franziu a testa e me examinou do alto de sua estatura.
— Eu conheço você. De onde te conheço?
— Nós... — eu comecei a dizer “nos conhecemos”, mas percebi que não seria bem exato, já que não tínhamos sido formalmente apresentados na última vez que o vi. Ele apenas estava presente quando Stanton e eu fomos levadas à corte Moroi para interrogatório. — Nós nos cruzamos no mês passado. Na sua corte.
A lembrança acendeu seus olhos.
— Certo. A alquimista — ele pensou por um momento, e então me surpreendeu ao resgatar meu nome pela memória. Com tudo mais que estava acontecendo quando estive na corte Moroi, não achava que minha presença teria sido notada. — Sydney Sage.
Assenti, tentando não parecer aturdida por ele ter me reconhecido. Então percebi que Keith estava paralisado ao meu lado. Ele tinha afirmado que era capaz de “suportar” a proximidade com os Moroi, mas parece que isso significava ficar encarando, de queixo caído e sem proferir nenhuma palavra. Com um sorriso amável no rosto, eu disse:
— Keith, este é Adrian Ivashkov. Adrian, este é meu colega Keith Darnell.
Adrian estendeu a mão, mas Keith não o cumprimentou. Se era porque ainda estava chocado ou porque simplesmente não queria tocar em um vampiro, não soube dizer. Adrian pareceu não se incomodar. Baixou a mão, pegou um isqueiro e saiu andando para longe da casa. Fez um sinal com a cabeça na direção da porta.
— Estão à espera de vocês. Podem entrar — Adrian se inclinou para perto do ouvido de Keith e falou com voz cavernosa. — Se. Tiver. Coragem. — Cutucou o ombro de Keith e soltou uma risada monstruosa, do tipo “muahahahaha”.
Keith quase deu um salto olímpico. Adrian deu risada e seguiu por um caminho no jardim, acendendo o cigarro enquanto caminhava. Olhei feio para ele — apesar de aquilo ter sido meio engraçado — e empurrei Keith em direção à porta.
— Vamos — eu disse. Senti o frio do ar-condicionado na minha pele.
Para não dizer outra coisa, Keith pareceu ter voltado à vida.
— O que foi aquilo? — ele questionou quando entramos na casa. — Ele quase me atacou!
Fechei a porta.
— Aquilo foi você fazendo papel de idiota. E ele não fez nada contra você. Não tinha como você parecer mais apavorado. Eles sabem que não gostamos deles, e pela sua cara você estava prestes a sair correndo.
Reconheço que até que gostei de ver Keith sendo pego de surpresa, mas a solidariedade humana não deixava dúvidas quanto ao lado de quem eu estava.
— Não estava nada — Keith retrucou, apesar de obviamente estar envergonhado. Caminhamos por um corredor comprido com piso de madeira e acabamento tão escuro que parecia absorver toda a luz. — Meu Deus, mas qual é o problema dessa gente? Ah, já sei. Eles não são gente.
— Quieto — eu disse, um pouco chocada com a veemência da voz dele. — Eles estão logo ali. Não está escutando?
Encontramos portas envidraçadas pesadas no fim do corredor. O vidro era fosco e manchado, escondendo o que havia do outro lado, mas mesmo assim dava para escutar um murmúrio baixo de vozes. Bati na porta e esperei até uma voz me dizer para entrar. A raiva no rosto de Keith desapareceu quando nós dois trocamos um breve olhar de solidariedade. Era isto. O início.
Atravessamos a porta.
Quando vi quem estava presente, tive que segurar meu queixo para não cair, como o de Keith tinha caído antes.
Por um momento, não consegui respirar. Tinha caçoado Keith por ficar com medo perto de vampiros e dampiros; mas agora, cara a cara com um grupo deles, de repente me senti encurralada. As paredes ameaçavam se fechar à minha volta, e a única coisa em que conseguia pensar eram caninos e sangue. O meu mundo desmoronou — e não só por causa do tamanho do grupo.
Abe Mazur estava ali.
Respire, Sydney, respire, disse a mim mesma. Mas não era fácil. Abe representava mil medos para mim, mil problemas em que havia me metido.
Lentamente, tudo à minha volta se cristalizou e eu retomei o controle. Abe não era o único presente, afinal de contas, e me forcei a me concentrar nos outros e ignorá-lo.
Três outras pessoas o acompanhavam, sendo que duas delas eu reconhecia. O outro, um Moroi mais velho de cabelo ralo e grosso bigode branco, devia ser nosso anfitrião, Clarence.
— Sydney! — Foi Jill Mastrano que falou, com os olhos brilhantes de alegria. Eu gostava de Jill, mas não achava que tinha causado tamanha impressão na menina para provocar tal recepção. Jill dava a impressão de estar pronta para se levantar em um pulo e me dar um abraço, e rezei para que não fizesse isso. Eu não precisava que Keith visse uma cena dessas. E, mais importante, não precisava que Keith fizesse um relatório a respeito disso.
Ao lado de Jill havia um dampiro que eu conhecia da mesma maneira que conhecia Adrian — quer dizer, só de vista. Eddie Castile também estava presente quando fui interrogada na corte real e, se me lembro bem, ele mesmo tinha se metido em alguma confusão. Para todos os efeitos, ele parecia humano, com corpo atlético e rosto de quem passava muito tempo sob o sol. O cabelo dele era castanho cor de areia, e seus olhos de avelã olhavam para mim e Keith de maneira simpática — ainda que cautelosa. Era assim que funcionava com os guardiões. Estavam sempre alertas, sempre de olho na próxima ameaça. Em certos aspectos, eu considerava isso reconfortante.
Minha inspeção da sala logo me fez retornar a Abe, que me observava e parecia se divertir com a minha tentativa descarada de evitá-lo. Um sorriso sorrateiro se espalhou por seu rosto.
— Ora, srta. Sage — ele disse devagar. — Não vai me cumprimentar?
4
Abe tinha o tipo de aparência capaz de deixar muita gente sem fala, mesmo que não soubessem nada a seu respeito.
Alheio ao calor que fazia lá fora, o Moroi estava vestido de terno e gravata. Pelo menos o terno era branco, mas ainda assim parecia quente. A camisa e a gravata eram roxas, mesma cor da rosa enfiada no bolso. Ouro brilhava em suas orelhas e pescoço. Era de origem turca e tinha mais cor do que a maior parte dos Moroi, mas, mesmo assim, era mais pálido do que humanos como eu e Keith. Na verdade, a pele de Abe me fazia pensar em uma pessoa bronzeada que estivesse doente havia bastante tempo.
— Olá — eu disse, rígida.
O sorriso dele se espalhou mais pelo rosto.
— Como é bom vê-la de novo.
— É sempre um prazer — minha mentira soou mecânica, mas eu esperava que fosse melhor do que demonstrar medo.
— Não, não — ele disse. — O prazer é todo meu.
— Se está dizendo... — eu falei. Isso o divertiu ainda mais.
Keith tinha ficado paralisado de novo, por isso me aproximei do velho Moroi e estendi a mão, para que pelo menos um de nós parecesse ter educação.
— Você é o sr. Donahue? Sou Sydney Sage.
Clarence sorriu e apertou a minha mão com sua mão enrugada. Eu não me encolhi, apesar de sentir vontade. Diferente da maior parte dos Moroi que eu conhecia, ele não escondia os caninos ao sorrir, e isso quase fez a minha fachada desmoronar. Era outro lembrete de que, por mais humanos que às vezes pudessem parecer, continuavam sendo vampiros.
— É um prazer conhecê-la — ele disse. — Ouvi coisas maravilhosas a seu respeito.
— É mesmo? — eu perguntei com a sobrancelha arqueada, imaginando quem tinha falado de mim.
Clarence assentiu com ênfase.
— Seja bem-vinda à minha casa. É ótimo receber tantas visitas.
As apresentações foram feitas para todos os outros. Eddie e Jill eram um pouco reservados, mas ambos simpáticos. Keith não trocou nenhum aperto de mão, mas pelo menos parou de agir como um idiota babão. Sentou-se quando lhe ofereceram uma cadeira e estampou uma expressão de arrogância no rosto, que supostamente devia demonstrar segurança. Fiquei torcendo para ele não nos envergonhar.
— Desculpe-me — Abe disse e se inclinou para a frente. Seus olhos escuros brilharam. — Você disse que seu nome era Keith Darnell?
— Disse, sim — Keith respondeu. Ele observou Abe com curiosidade, sem dúvida lembrando-se da conversa com os alquimistas em Salt Lake City. Apesar da fachada corajosa que Keith tentava mostrar, eu percebia que não estava à vontade. Abe surtia esse efeito nas pessoas. — Por quê?
— Por nada — Abe falou. Seus olhos se voltaram para mim e depois para Keith. — Só me pareceu familiar, nada mais.
— O meu pai foi um homem muito importante entre os alquimistas — Keith disse, cheio de si. Ele tinha relaxado um pouco, provavelmente pensando que as histórias sobre Abe eram exageradas. Tolo. — Sem dúvida já ouviu falar dele.
— Sem dúvida — Abe disse. — Tenho certeza de que deve ser isso.
Ele falava de um jeito tão descontraído que ninguém iria desconfiar de que não estava dizendo a verdade. Só eu sabia a verdadeira razão por que Abe sabia quem Keith era, mas certamente não queria que isso fosse revelado. Também não queria que Abe desse mais indiretas, e desconfiava que estava fazendo isso só para me irritar.
Tentei desviar o assunto — e obter algumas respostas por minha conta.
— Eu não sabia que se juntaria a nós, sr. Mazur — a doçura na minha voz se equiparava à dele.
— Por favor — ele disse. — Sabe que pode me chamar de Abe. E, infelizmente, não vou ficar. Só vim até aqui para garantir a chegada do grupo em segurança, e para conhecer Clarence pessoalmente.
— Foi muita gentileza da sua parte — eu disse em tom seco, sinceramente duvidando que as motivações de Abe fossem tão simples assim. Se eu tinha aprendido alguma coisa, era que nada era simples quando Abe Mazur estava envolvido. Ele era uma espécie de manipulador de marionetes. Não queria apenas observar as coisas, mas também controlá-las.
Ele deu um sorriso vitorioso.
— Bom, meu objetivo é sempre ajudar aqueles que precisam.
— Sei — uma voz nova de repente disse. — É exatamente o que me vem à cabeça quando penso em você, meu velho.
Não achei que ninguém fosse capaz de me chocar mais do que Abe, mas estava errada.
— Rose? — O nome saiu como uma interrogação dos meus lábios, apesar de não haver dúvidas sobre a identidade da recém-chegada. Afinal de contas, só existia uma Rose Hathaway.
— Oi, Sydney — ela disse, e me lançou um sorrisinho torto ao entrar na sala. Seus olhos escuros e brilhantes eram simpáticos, mas também avaliavam tudo por ali, como o olhar de Eddie. Era uma característica dos guardiões. Rose tinha mais ou menos a minha altura e estava vestida de maneira bem casual, com jeans e uma camiseta regata vermelha. Mas, como sempre, havia algo de exótico e perigoso na beleza dela que a destacava de todos os outros. Ela parecia uma flor tropical naquela sala escura e abafada. Uma flor capaz de matar. Eu nunca tinha visto sua mãe, mas era fácil perceber que parte de sua aparência vinha da ascendência turca de Abe, como o cabelo castanho-escuro comprido. Naquela luz fraca, seu cabelo parecia quase preto. Seus olhos pousaram em Keith e ela acenou com a cabeça, em um gesto educado. — Oi, outro alquimista.
Keith ficou olhando para ela com os olhos arregalados, mas se isso foi uma reação por estarmos cada vez mais em minoria ou simplesmente uma resposta à natureza extraordinária de Rose, eu não saberia dizer.
— E-eu sou Keith — ele finalmente gaguejou.
— Rose Hathaway — ela disse a ele. Os olhos dele saltaram ainda mais ao reconhecer o nome. Ela atravessou a sala, caminhando em direção a Clarence, e eu reparei que metade de seu encanto era simplesmente a maneira como dominava o lugar ao seu redor. A expressão dela se suavizou quando olhou para o senhor de idade. — Dei uma olhada no perímetro da casa, como pediu. É tão segura quanto poderia ser, mas acho que a fechadura da porta dos fundos provavelmente precisa ser trocada.
— Tem certeza? — Clarence perguntou, descrente. — É novinha em folha.
— Talvez fosse quando a casa foi construída — uma outra voz falou. Olhei para a porta e percebi que havia mais alguém com Rose quando ela chegara, mas eu tinha ficado surpresa demais para perceber. De novo, essa era uma característica de Rose. Ela sempre concentrava toda a atenção.
— Está enferrujada desde que nos mudamos para cá.
O recém-chegado era um Moroi, o que me deixou sobressaltada mais uma vez. Isso elevava a conta para quatro Moroi e dois dampiros. Estava me esforçando muito para não adotar a atitude de Keith — principalmente porque eu já conhecia alguns dos presentes —, mas era difícil me livrar da sensação de que éramos “nós” e “eles”. Os Moroi envelheciam como os humanos, e calculei que aquele sujeito tinha mais ou menos a minha idade, no máximo a mesma de Keith. Ele tinha traços bonitos, acho, com cabelo preto encaracolado e olhos cinzentos. O sorriso que ele ofereceu parecia sincero, apesar de haver uma leve sensação de desconforto em sua postura. Seu olhar intrigado se fixou em Keith e em mim, e fiquei imaginando que talvez ele não passasse muito tempo na companhia de humanos. A maior parte dos Moroi não passava, apesar de não compartilharem dos mesmos medos que tínhamos deles. Mas até aí a nossa raça não os usava para se alimentar.
— Sou Lee Donahue — ele disse e estendeu a mão. Mais uma vez, Keith não retribuiu o gesto, mas eu retribuí e nos apresentei.
Lee ficou olhando de mim para Keith, com uma expressão maravilhada.
— Alquimistas, certo? Nunca conheci um de vocês. A tatuagem que vocês têm é linda — ele disse ao observar o lírio dourado na minha bochecha; a mesma tatuagem que todos os alquimistas tinham. — Já ouvi falar do que ela é capaz de fazer.
— Donahue? — Keith perguntou. Ele olhou de Lee para Clarence. — São parentes?
Lee lançou um olhar tolerante para Clarence.
— Pai e filho.
Keith franziu a testa.
— Mas você não mora aqui, mora? — Fiquei surpresa por ele se ater especificamente a isso. Talvez se incomodasse com a ideia de que suas informações não eram precisas. Afinal de contas, ele era o alquimista de Palm Springs, e acreditava que Clarence fosse o único Moroi da região.
— Regularmente, não — Lee respondeu. — Faço faculdade em Los Angeles, mas neste semestre só estou cumprindo meio período. Então quero tentar passar mais tempo com o meu pai.
Abe deu uma olhada em Rose.
— Está vendo? — disse. — Isso que é dedicação.
Ela revirou os olhos para ele.
Keith parecia ter mais perguntas a esse respeito, mas a mente de Clarence ainda estava na conversa anterior.
— Eu podia jurar que tinha mandado trocar aquela fechadura.
— Bom, eu posso trocar em breve para você, se quiser — Lee disse. — Não deve ser assim tão difícil.
— Acho que está boa. — Clarence se levantou desequilibrado. — Vou dar uma olhada.
Lee se apressou até o lado dele e lançou para nós um olhar de desculpa.
— Precisa ser agora? — Como parecia que sim, ele disse: — Vou com você.
Fiquei com a impressão de que Clarence costumava fazer o que lhe desse na telha, e que Lee já estava acostumado com isso.
Aproveitei a ausência dos Donahue para conseguir algumas respostas que estava louca para obter. Eu me virei para Jill.
— Vocês não tiveram problemas para chegar até aqui, certo? Não houve mais nenhum... incidente?
— Nós esbarramos com alguns dissidentes antes de deixar a corte — Rose disse com um tom perigoso na voz. — Nada que não pudéssemos controlar. De resto, não aconteceu mais nada.
— E vai continuar assim — Eddie disse como quem faz uma constatação. Ele cruzou os braços sobre o peito. — Pelo menos no que depender de mim.
Dei uma olhada nos dois, sem entender nada.
— Fui informada de que um dampiro iria acompanhá-la... resolveram mandar dois?
— Rose se convidou para vir junto — Abe respondeu. — Só para garantir que o restante de nós não deixaria passar nada. É Eddie que vai se juntar a vocês em Amberwood.
Rose desdenhou.
— Eu é que devia ficar. Devia ser a colega de quarto de Jill. Sem ofensa, Sydney. Precisamos de você por causa da documentação, mas sou eu que vou ter que dar um pau em qualquer um que causar problemas a ela.
Eu é que não ia argumentar contra isso.
— Não — Jill disse com uma intensidade surpreendente. Da última vez em que eu a tinha visto, ela ficara quieta e agira com hesitação, mas seus olhos se aguçaram com a ideia de ser um fardo para Rose. — Você precisa ficar com Lissa e mantê-la em segurança. Eu tenho Eddie e, além do mais, ninguém sabe que estou aqui. Não vai acontecer mais nada.
A expressão nos olhos de Rose era cética. Eu também desconfiava que ela não acreditava de verdade que alguém fosse capaz de proteger Vasilisa ou Jill tão bem quanto ela mesma. E isso era algo importante, levando em conta que a jovem rainha estava rodeada de guarda-costas. Mas nem Rose era capaz de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e ela deve ter precisado fazer uma escolha. Suas palavras fizeram com que eu voltasse a atenção mais uma vez para Jill.
— O que realmente aconteceu? — perguntei. — Você se feriu? Ouvimos falar de um ataque, mas não tivemos confirmação.
Um silêncio pesado se instalou na sala. Todos menos Keith e eu pareciam claramente sem jeito. Bom, nós também estávamos sem jeito — mas por outros motivos.
— Está tudo bem comigo — Jill finalmente disse, depois de um olhar afiado de Rose. — Houve um ataque, sim, mas nenhum de nós se feriu. Quer dizer, nada sério. Nós estávamos no meio de um jantar da realeza quando fomos atacados por uns Moroi, tipo, assassinos Moroi. Eles fizeram parecer que estavam lá para atacar Lis, a rainha, mas em vez disso foram para cima de mim — ela hesitou e baixou os olhos, deixando o cabelo comprido e encaracolado cair para a frente. — Mas fui salva e os guardiões os encurralaram.
Havia uma energia nervosa em Jill da qual eu lembrava. Era bonitinho, e fazia com que ela se parecesse muito com a adolescente tímida que era.
— Mas não achamos que todos tenham sido eliminados, e é por isso que precisamos ficar longe da corte — Eddie explicou. Enquanto dirigia suas palavras a mim e Keith, ele irradiava um senso de proteção em relação a Jill, desafiando qualquer um a atacar a menina que tinha a obrigação de manter em segurança. — E não sabemos onde estão os traidores nas nossas próprias fileiras. Então, até lá, vamos todos ficar aqui.
— Espero que não seja por muito tempo — Keith disse. Lancei a ele um olhar de advertência, e ele pareceu perceber que o comentário podia ser tomado como grosseria. — Quer dizer, este lugar não deve ser muito divertido para vocês, com o sol e tudo o mais.
— É seguro — Eddie disse. — É isso que importa.
Clarence e Lee voltaram e ninguém mais mencionou o histórico de Jill ou o ataque. Até onde pai e filho sabiam, Jill, Eddie e Adrian simplesmente tinham entrado em conflito com um Moroi importante da realeza e estavam exilados ali. Os dois Moroi não sabiam quem Jill era de verdade e acreditavam que os alquimistas a estavam ajudando devido à influência de Abe. Era uma teia de mentiras necessária. Mesmo que Clarence estivesse em exílio autoimposto, não podíamos arriscar que ele (ou agora Lee, também) deixasse escapar para algum desconhecido que a irmã da rainha estava escondida ali.
Eddie deu uma olhada no Moroi mais velho.
— Você disse que nunca ouviu falar de nenhum Strigoi que tivesse vindo até aqui, certo?
Os olhos de Clarence ficaram sem foco por um instante quando seus pensamentos se voltaram para dentro.
— Não... mas existem coisas piores do que os Strigoi...
Lee soltou um gemido.
— Pai, por favor. Não me venha com isso.
Rose e Eddie se levantaram em um instante, e foi uma surpresa não terem sacado as armas.
— Do que está falando? — Rose quis saber.
— Que outros perigos existem por aí? — Eddie perguntou com um tom de aço na voz.
Lee estava realmente corado.
— Não é nada... por favor. É um delírio dele, mais nada.
— Delírio? — Clarence questionou e apertou os olhos para o filho. — A morte da sua prima foi delírio? O fato de as pessoas no alto escalão na corte permitirem que Tamara não fosse vingada é um delírio?
Minha mente retrocedeu a uma conversa que tinha tido com Keith no carro. Lancei para Clarence um olhar com a intenção de ser reconfortante.
— Tamara era sua sobrinha, certo? O que aconteceu com ela?
— Ela foi assassinada — ele respondeu. Fez uma pausa dramática. — Por caçadores de vampiros.
— Desculpe, por quem? — perguntei, certa de que tinha escutado mal.
— Caçadores de vampiros — Clarence repetiu. Todos os presentes pareciam tão surpresos quanto eu, o que foi um pequeno alívio. Até um pouco da ferocidade de Rose e de Eddie se aplacou. — Ah, não vão encontrar isso em lugar nenhum; nem mesmo nos seus relatórios. Estávamos morando em Los Angeles quando ela foi pega. Eu informei os guardiões, exigi que os responsáveis fossem caçados. Sabe o que disseram? — Ele olhou em volta, um por um. — Sabem?
— Não — Jill respondeu acanhada. — O que disseram? — Lee suspirou; parecia arrasado.
Clarence soltou uma gargalhada de desdém.
— Disseram que isso não existia. Que não havia evidência para fundamentar a minha alegação. Determinaram que os Strigoi a tinham matado e que ninguém podia fazer nada, que eu devia ficar agradecido por ela não ter sido transformada.
Olhei para Keith, que mais uma vez pareceu surpreso com a história. Aparentemente, ele não conhecia Clarence tão bem quanto alegava conhecer. Keith sabia que o senhor de idade havia tido um problema envolvendo a sobrinha, mas não conhecia a extensão da questão. Keith deu de ombros levemente na minha direção, parecendo dizer: Está vendo? O que eu disse? É louco.
— Os guardiões são muito detalhistas — Eddie disse. Seu tom e suas palavras claramente tinham sido escolhidos com cuidado, esforçando-se para não ofender. Ele se sentou ao lado de Jill. — Tenho certeza de que tiveram seus motivos para chegar a essa conclusão.
— Motivos? — Clarence indagou. — Se considerar “negação” e “viver uma mentira” como motivos, então acho que pode ser. Simplesmente não querem aceitar o fato de que existem caçadores de vampiros por aí. Mas me diga uma coisa. Se a minha Tamara foi morta pelos Strigoi, por que cortaram a garganta dela? Foi cortada com um único golpe de lâmina — ele fez um gesto para imitar o golpe embaixo do queixo. Jill estremeceu e se encolheu na cadeira. Rose, Eddie e Abe também pareceram atordoados, coisa que me deixou surpresa, porque não achei que existia nada capaz de impressionar aquele grupo.
— Por que não usaram os caninos? Assim é mais fácil para beber.
— Eu fiz essa observação aos guardiões, e eles disseram que, como metade do sangue tinha sido bebido, obviamente tinha sido um Strigoi. Mas eu disse que tinha sido um caçador de vampiros e que ele tinha feito parecer que beberam o sangue dela. Os Strigoi não teriam motivo para usar uma faca.
Rose começou a falar, fez uma pausa e recomeçou.
— É estranho — ela disse com calma. Fiquei com a sensação de que provavelmente ela estava pronta para dizer como essa teoria da conspiração era ridícula, mas pensou melhor. — Mas tenho certeza de que há outra explicação, sr. Donahue.
Fiquei imaginando se mencionar que os alquimistas não tinham nenhum registro de caçadores de vampiros — pelo menos não em muitos séculos — iria ajudar ou não. Keith de repente levou a conversa para uma direção inesperada. Ele olhou bem nos olhos de Clarence.
— Pode parecer estranho para um Strigoi, mas eles fazem várias coisas terríveis sem motivo. Sei disso por experiência própria.
Meu estômago se contraiu. Ai, não. Todos os olhos se voltaram para Keith.
— Hein? — Abe perguntou e passou os dedos pelo cavanhaque preto. — O que aconteceu?
Keith apontou para seu olho de vidro.
— Fui atacado por um Strigoi no começo do ano. Eles me espancaram e arrancaram meu olho. Então me largaram.
Eddie franziu a testa.
— Sem beber sangue nem matar? Isso é mesmo estranho. Não parece ser o comportamento normal de um Strigoi.
— Não sei se é possível esperar que um Strigoi faça algo “normal” — Abe observou. Eu cerrei os dentes, desejando que ele não envolvesse Keith naquilo. Por favor, não faça perguntas sobre o olho, eu pensei. Deixe para lá. Claro que era pedir demais, porque a pergunta seguinte de Abe foi: — Só arrancaram um olho? Não tentaram pegar os dois?
— Com licença — me levantei antes que Keith pudesse responder. Eu não podia ficar sentada no meio daquela conversa, escutando enquanto Abe tentava fisgar Keith, só pela diversão de me atormentar. Eu precisava fugir dali. — Eu... eu não estou me sentindo muito bem. Vou tomar um pouco de ar.
— Claro, claro — Clarence disse, com cara de quem também queria se levantar. — Devo pedir à criada que traga uma água para você? Posso tocar a campainha...
— Não, não — respondi e me desloquei em direção à porta. — Eu só... só preciso de um minuto.
Saí apressada e ouvi Abe dizer:
— Mas que sensibilidade tão delicada. Ela não devia ser assim tão frágil, levando em conta a profissão que tem. Mas você, rapaz, parece capaz de suportar uma conversa sobre sangue...
A massagem no ego aplicada por Abe funcionou, e Keith começou a contar exatamente a história que eu, com toda a certeza, não queria ouvir. Voltei pelo corredor escuro e saí da casa. O ar fresco foi bem-vindo, apesar de estar uns cinco graus mais quente de onde eu tinha saído. Respirei fundo para me recompor e fiz força para me acalmar. Tudo iria ficar bem. Abe iria embora logo. Keith voltaria para seu próprio apartamento. Eu iria a Amberwood com Jill e Eddie, que realmente não pareciam ser más companhias, levando em conta as outras opções que podiam ter sido mandadas para serem meus colegas.
Sem nenhum destino específico em mente, resolvi dar uma volta por ali e avaliar a casa de Clarence — que, na verdade, estava mais para uma ampla propriedade. Escolhi um dos lados da construção e fui dando a volta de um jeito meio aleatório, admirando o trabalho rebuscado no exterior da casa. Apesar de estar totalmente deslocada no meio da paisagem do sul da Califórnia, era impressionante. Eu sempre adorei estudar arquitetura — um assunto que meu pai considerava inútil — e estava impressionada com o entorno. Dei uma olhada ao redor e percebi que o terreno não era igual às áreas por onde tínhamos passado até chegar ali. Uma boa parte das terras da região havia ganhado uma tonalidade marrom, por causa do verão e da falta de chuva; mas Clarence obviamente tinha gastado uma fortuna para manter toda aquela extensa área verdejante. Árvores que não eram nativas — lindas e cheias de flores — tinham sido arranjadas com esmero para formar caminhos e pátios.
Depois de vários minutos de passeio pela natureza, dei meia-volta e retornei para a parte da frente da casa. Parei quando ouvi alguém.
— Onde você está? — uma voz perguntou. Abe. Que ótimo. Ele estava à minha procura.
— Aqui — mal ouvi Adrian responder. A voz dele veio do outro lado da casa, oposto ao que eu estava. Ouvi alguém atravessar a entrada de cascalho e os passos pararem ao alcançar a porta de trás, onde Abe estava, segundo os meus cálculos.
Mordi o lábio e fiquei onde estava, escondida pela casa. Estava quase com medo de respirar. Com a audição que tinham, os Moroi eram capazes de captar o menor dos ruídos.
— Você não ia voltar lá para dentro nunca? — Abe perguntou em tom de surpresa.
— Não sei para quê — foi a resposta lacônica de Adrian.
— Por educação. Você podia ter feito o esforço de se apresentar aos alquimistas.
— Eles não querem ser apresentados a mim. Principalmente o rapaz — havia uma risada oculta na voz de Adrian. — Você tinha que ter visto a cara dele quando nos cruzamos à porta. Queria estar usando uma capa. A garota pelo menos tem um pouco de coragem.
— Ainda assim, eles têm papel fundamental na sua estadia aqui. E na de Jill. Você sabe como é importante que ela fique em segurança.
— É, eu entendo. E entendo por que ela está aqui. O que não entendo é por que eu estou aqui.
— Não entende? — Abe perguntou. — Achei que tinha ficado óbvio tanto para Jill quanto para você. Precisa ficar perto dela.
Eles fizeram uma pausa.
— É isso que todo mundo diz... mas eu ainda não sei bem se é necessário. Não acho que ela precise de mim por perto, independentemente do que Rose e Lissa digam.
— Você tem alguma coisa melhor para fazer?
— Essa não é a questão. — Adrian parecia aborrecido, e eu fiquei feliz por Abe não ter esse efeito só sobre mim.
— Essa é exatamente a questão — Abe disse. — Você estava se acabando na corte, afogando-se em pena de si mesmo, entre outras coisas. Aqui, tem a oportunidade de ser útil.
— A você.
— A si mesmo também. Esta é uma oportunidade para você fazer alguma coisa da vida.
— Mas você não me diz o que eu devo fazer! — Adrian respondeu, irritado. — Tirando Jill, qual é esta grande tarefa que você tem para mim?
— Ouça. Ouça e observe. — Eu era capaz de enxergar claramente Abe passando a mão no queixo enquanto falava, como se fosse o idealizador da missão. — Observe todos: Clarence, Lee, os alquimistas, Jill e Eddie. Preste atenção a cada palavra, a cada detalhe, e me informe depois. Tudo pode ser útil.
— Não sei se isso esclarece as coisas.
— Você tem potencial, Adrian. Potencial demais para ser desperdiçado. Sinto muito pelo que aconteceu com Rose, mas você precisa seguir em frente. Talvez as coisas não façam sentido agora, mas farão mais tarde. Confie em mim.
Eu quase me senti mal por Adrian. Abe também tinha me dito para confiar nele certa vez, e veja só como as coisas terminaram.
Esperei os dois Moroi voltarem para dentro da casa e depois de um minuto também entrei. Na sala, Keith ainda mantinha sua postura arrogante, mas pareceu aliviado ao me ver de volta. Discutimos mais detalhes e elaboramos uma programação para o fornecimento de sangue, que era minha responsabilidade, já seria minha responsabilidade levar Jill (e Eddie, porque ele não queria tirar os olhos dela) de carro para a casa de Clarence, e depois de volta para a escola.
— Como você vai se alimentar? — perguntei a Adrian. Depois de ouvir a conversa dele com Abe, estava mais curiosa do que nunca para saber qual seria o papel dele aqui.
Adrian estava encostado na parede, do outro lado da sala. Os braços dele estavam cruzados em uma posição defensiva e havia uma rigidez em sua postura que contrastava com o sorriso preguiçoso que ele tinha nos lábios. Eu não tinha certeza, mas ele parecia se distanciar o máximo possível de Rose de propósito.
— Vou apenas caminhar até o fim do corredor.
Ao ver minha expressão confusa, Clarence explicou:
— Adrian vai ficar aqui comigo. Vai ser bom ter mais alguém entre estas velhas paredes.
— Ah — eu disse. Para mim mesma, balbuciei: — Isso está parecendo O jardim secreto.
— Hã? — Adrian perguntou e inclinou a cabeça na minha direção.
Estremeci. A audição deles era boa mesmo.
— Nada. Só estava pensando em um livro que eu li.
— Ah — Adrian disse com desdém, e desviou o olhar. O tom em sua voz parecia condenar todos os livros existentes.
— Não se esqueça de mim — Lee disse e sorriu para o pai. — Eu disse que vou passar mais tempo por aqui.
— Talvez o jovem Adrian aqui o mantenha longe dos problemas, então — Clarence declarou.
Ninguém fez nenhum comentário, mas vi os amigos de Adrian trocarem olhares de surpresa.
Keith não parecia nem de longe tão apavorado quanto estava quando chegamos, mas havia um novo ar de impaciência e irritação nele que eu não estava entendendo muito bem.
— Bom — ele disse depois de limpar a garganta. — Preciso ir para casa e cuidar de alguns assuntos de trabalho. E como você vai me dar uma carona, Sydney...
Ele deixou as palavras pairando no ar e olhou para mim cheio de intenções. Pelo que eu tinha descoberto, estava mais convencida do que nunca de que Palm Springs era a área com menos atividade de vampiros da história. Sinceramente, não consegui entender quais “assuntos de trabalho” Keith teria para cuidar, mas nós teríamos que ir embora cedo ou tarde. Eddie e Jill foram pegar suas bagagens e Rose aproveitou a oportunidade para me puxar de lado.
— Como você está? — ela perguntou em voz baixa. Seu sorriso era sincero. — Andei preocupada com você desde... bom, você sabe. Ninguém quis me dizer o que tinha acontecido com você.
Na última vez em que a vira, eu estava sendo mantida como prisioneira por guardiões em um hotel, enquanto os Moroi tentavam descobrir a extensão da minha participação na fuga de Rose.
— No começo, enfrentei algumas dificuldades — respondi. — Mas já passou.
O que era uma pequena mentira entre amigas? Rose era tão forte que eu não suportava a ideia de parecer fraca na frente dela. Não queria que ela soubesse que ainda vivia com medo dos alquimistas, forçada a fazer o que fosse necessário para cair novamente nas graças deles.
— Que bom — ela disse. — Tinham me dito que era para a sua irmã estar aqui.
Essas palavras me lembraram mais uma vez que Zoe poderia me substituir a qualquer momento.
— Foi um mal-entendido.
Rose assentiu.
— Eu me sinto um pouco melhor com você aqui, mas, mesmo assim, é difícil... ainda sinto que deveria proteger Jill, mas também preciso proteger Lissa. Eles acham que Jill é o alvo mais fácil, mas, mesmo assim, vão tentar atacar Lissa. — Seu turbilhão interior transpareceu em seus olhos escuros e senti uma pontada de pena. Era exatamente isso que eu tinha dificuldade em explicar para os outros alquimistas: como os dampiros e vampiros às vezes eram capazes de parecer tão humanos. — Tem sido uma loucura, sabe? Desde que Lissa assumiu o trono. Achei que finalmente ia poder relaxar com Dimitri — o sorriso dela se ampliou. — Eu devia saber que nunca as coisas são simples conosco. Passamos o tempo todo cuidando de Lissa e Jill.
— Jill vai ficar bem. Enquanto os dissidentes não souberem que ela está aqui, tudo vai ser fácil. Até mesmo entediante.
Ela continuava sorrindo, mas um pouco menos.
— Espero que sim. Ah, se você soubesse o que aconteceu... — A expressão dela se modificou quando foi acometida por alguma lembrança. Ia pedir para que me contasse o que tinha ocorrido, mas ela mudou de assunto antes que eu pudesse fazer isso. — Estamos trabalhando para modificar a lei que diz que Lissa precisa ter um familiar para continuar sendo rainha. Quando isso estiver feito, tanto ela quanto Jill estarão fora de perigo. Mas isso também significa que aqueles querendo acabar com Jill estão mais enlouquecidos do que nunca, porque sabem que têm pouco tempo.
— Quanto tempo? — perguntei. — Quanto tempo vai demorar para modificar a lei?
— Não sei. Alguns meses, talvez? Assuntos legais... bom, não são a minha especialidade. Não os detalhes, pelo menos — ela fez uma leve careta e voltou à sua rigidez de batalha de sempre. Jogou o cabelo por cima de um ombro. — Mas gente louca querendo prejudicar meus amigos? Essa é a minha especialidade e, pode acreditar, sei dar conta disso.
— Eu me lembro — respondi. Foi estranho. Considerava Rose uma das pessoas mais fortes que eu conhecia, mas parecia precisar do meu apoio. — Olhe, vá fazer o que você faz melhor, e eu farei o meu trabalho. Vou me assegurar de que Jill passe despercebida. Vocês a tiraram de lá sem que ninguém soubesse. Agora ela está fora do radar.
— Espero que sim — Rose repetiu com a voz sombria. — Porque, caso contrário, este seu grupinho aqui não vai ter a menor chance contra aqueles rebeldes enlouquecidos.
5
E, com isso, Rose me deixou para se despedir dos outros.
Suas palavras me deixaram gelada. Por meio segundo, tive vontade de exigir uma reavaliação da missão. Queria insistir para que enviassem pelo menos meia dúzia de guardiões para ficarem ao lado de Jill, para o caso de os Moroi que a tinham atacado voltarem. Logo descartei a ideia. Um dos elementos principais para aquele plano dar certo era não atrair atenção. Desde que seu paradeiro ficasse em segredo, Jill estaria mais segura se conseguisse se misturar ao ambiente. Um esquadrão de guardiões dificilmente passaria despercebido, e poderia chamar a atenção da comunidade Moroi mais ampla. Estávamos fazendo a coisa certa. Enquanto ninguém soubesse que estávamos ali, tudo ficaria bem.
Claro que, se eu repetisse isso para mim mesma muitas vezes, se tornaria realidade.
Mas... por que Rose havia feito aquela afirmação agourenta? Por que a presença de Eddie era necessária? Será que a missão realmente tinha sido promovida de “inconveniente” a “com risco de vida”?
Sabendo como Jill e Rose eram próximas, eu meio que esperava que a despedida delas fosse mais lacrimosa. Em vez disso, Jill teve mais dificuldade de dizer adeus a Adrian. Ela se jogou em cima dele em um abraço gigante, agarrando sua camisa com os dedos. A menina Moroi tinha permanecido em silêncio durante a maior parte da visita, apenas observando o resto de nós com aquele seu jeito curioso e nervoso. O máximo que tinha falado foi quando Lee tentara fazê-la abrir a boca antes. Sua demonstração de despedida também pareceu surpreender Adrian, mas a expressão irritada que estampava no rosto deu lugar a algo parecido com afeto, enquanto dava tapinhas sem jeito no ombro dela.
— Está tudo bem, minha pequena Chave de Cadeia. A gente vai se ver de novo logo.
— Eu queria que você viesse conosco — ela disse com a voz bem fraca.
Ele deu um sorriso torto para ela.
— Não queria, não. Talvez o restante deles possa passar despercebido por essa brincadeira de volta às aulas, mas eu seria expulso no primeiro dia. Pelo menos aqui não vou poder corromper ninguém... a menos que esse alguém seja Clarence e seu armário de bebidas.
— Eu vou manter contato — Jill prometeu.
O sorriso dele estremeceu e ele lançou para ela um olhar compreensivo, ao mesmo tempo surpreso e desconsolado.
— Eu também.
Aquele pequeno momento entre os dois me surpreendeu. Com a natureza leviana e arrogante dele e a timidez tão doce dela, eram uma dupla de amigos improvável. No entanto, havia óbvia afeição entre os dois. Não parecia ser de natureza romântica, mas guardava uma intensidade definitiva que eu não conseguia entender muito bem. Eu me lembrei da conversa que tinha escutado entre Abe e Adrian, em que Abe havia dito que era imperativo Adrian permanecer perto de Jill. Algo me dizia que havia uma conexão entre isso e o que eu testemunhava naquele momento, mas não tinha informações suficientes para juntar os pontos. Arquivei aquele mistério para mais tarde.
Foi triste me despedir de Rose, mas fiquei contente pela nossa separação também significar que eu iria me separar de Abe e Keith. Abe foi embora com suas observações tipicamente enigmáticas, e um olhar de sabichão para cima de mim, que não gostei nada. Deixei Keith na casa dele antes de seguir para Amberwood, e ele disse que me manteria a par dos acontecimentos. Sinceramente, fiquei imaginando que informações exatamente ele iria me passar, já que eu faria a maior parte do trabalho. Até onde eu sabia, ele realmente não tinha nada para fazer além de matar o tempo em seu apartamento no centro. Mesmo assim, valeu a pena me livrar dele. Nunca achei que ficaria tão contente em sair de carro com uma vampira e um dampiro.
Jill parecia perturbada no trajeto até a escola. Eddie, ao pressentir isso, tentou acalmá-la. Olhou para ela do banco da frente.
— Vamos voltar a ver Adrian logo.
— Eu sei — ela respondeu com um suspiro.
— E não vai acontecer mais nada de ruim. Você está a salvo. Eles não vão conseguir encontrar você aqui.
— Também sei disso — ela falou.
— Foi ruim mesmo? — perguntei. — O ataque, quero dizer. Ninguém precisa entrar em detalhes.
De canto de olho, vi Eddie dar uma olhada em Jill.
— Foi bem ruim — ele respondeu, sombrio. — Mas agora todo mundo está bem, e é isso que importa.
Nenhum deles disse mais nada, e eu logo entendi que não dariam mais nenhum detalhe. Eles agiam como se o ataque não tivesse sido grave, que já tinha ficado no passado, mas agiam de maneira evasiva demais. Algo que eu não sabia o que era — e que provavelmente os alquimistas desconheciam — tinha acontecido; algo que eles estavam se esforçando para manter em segredo. A minha intuição dizia que isso estava relacionado à presença de Adrian ali. Ele tinha mencionado uma “razão óbvia” para ter vindo a Palm Springs, e então Abe deu a entender que havia algum outro motivo camuflado, que o próprio Adrian não sabia qual era. Aquilo era meio irritante, tendo em vista que eu estava arriscando a minha vida ali. Como eles achavam que eu poderia fazer o meu trabalho de maneira adequada se insistiam naquele emaranhado de segredos?
Os alquimistas lidavam com segredos o tempo todo, e apesar do meu passado cheio de percalços eu ainda era alquimista o bastante para me ressentir quando me negavam respostas. Felizmente, eu também era alquimista o suficiente para caçar as respostas por conta própria.
Claro que eu sabia que interrogar Jill e Eddie naquele momento não ia me levar a lugar nenhum. Eu precisava ser simpática e permitir que se sentissem à vontade comigo. Eles podiam não alimentar a crença secreta de que os humanos são criaturas das trevas, mas isso não significava que já confiavam em mim. Eu não os culpava. Afinal de contas, sem dúvida eu também não confiava neles.
A noite já estava bem avançada quando chegamos a Amberwood. Keith e eu tínhamos dado uma olhada na escola antes, mas Eddie e Jill a absorveram com olhos arregalados. Na mesma medida em que a casa de Clarence tinha parecido antiquada, a escola era reluzente e moderna, formada por construções de estuque típicas da Califórnia e da arquitetura do sudoeste dos Estados Unidos. Palmeiras se espalhavam ao longo dos gramados verdejantes. Com a luz que ia desaparecendo no céu, ainda havia alunos andando em duplas e em grupinhos pelos diversos caminhos que serpenteavam pelo terreno.
Tínhamos passado em um fast-food no caminho para comprar comida, mas como já era tarde, Jill e eu teríamos de nos separar de Eddie. Com dezoito anos, por ter carro e “permissão dos pais”, eu tinha muita liberdade de ir e vir, mas precisava respeitar o horário de recolher como todos os outros alunos quando anoitecia. Eddie ficou incomodado em abandonar Jill, principalmente quando se deu conta de como estaria longe dela.
O terreno extenso da escola Amberwood era dividido em três campi: leste, oeste e central. O campus leste abrigava o alojamento das meninas; o oeste, o dos meninos. O central, que era o maior dos três, era onde se localizavam as instalações administrativas, acadêmicas e de recreação. Eles ficavam a mais ou menos um quilômetro e meio de distância um do outro, e havia um ônibus que circulava durante o dia para interligar os três, apesar de ir caminhando ser sempre uma opção para quem conseguia aguentar o calor.
Eddie já devia saber que não poderia ficar no alojamento feminino, mas acho que, se as coisas fossem do jeito que ele queria, dormiria ao pé da cama de Jill, como um cachorro fiel. Observar os dois era uma coisa fantástica. Eu nunca tinha visto um par de guardião e Moroi antes. Quando estive com Rose e Dimitri, eles estavam simplesmente tentando sobreviver — além do mais, os dois eram dampiros. Agora eu finalmente era capaz de ver o sistema em ação e compreendia por que o treinamento dos dampiros era tão severo. Para cumprir esse papel tão vigilante, tinha que ser assim. Até nos momentos mais rotineiros, Eddie sempre estava de olho no entorno. Nada escapava à sua atenção.
— O sistema de segurança aqui é bom? — ele questionou ao entrarmos no alojamento das meninas. Ele havia feito questão de checá-lo antes de ir para o dele. O saguão estava tranquilo àquela hora, e só havia um par de alunas por lá, carregando caixas e malas em uma mudança de última hora. Lançaram olhares curiosos para nós quando passamos, e eu tive que aplacar o nó de ansiedade que ia crescendo dentro de mim. Levando em conta todas as outras coisas que estavam acontecendo na minha vida, o lado social do ensino médio não devia me assustar — mas assustava. Os alquimistas não tratavam desse assunto em suas lições.
— A segurança é boa o bastante — eu disse em voz baixa ao me voltar para Eddie. — O pessoal aqui não está preocupado com assassinos vampiros, mas com certeza desejam manter seus alunos em segurança. Eu sei que há seguranças que patrulham o terreno à noite.
Eddie olhou feio para a responsável pelo alojamento, uma mulher corpulenta de cabelo grisalho que de sua mesa supervisionava o saguão.
— Você acha que ela tem algum tipo de treinamento em combate? Acha que seria capaz de dominar um intruso?
— Aposto que ela seria capaz de dominar um sujeito que tentasse entrar no quarto de uma menina — Jill brincou. Ela apoiou a mão no braço dele, o que lhe causou um sobressalto. — Relaxe. Este lugar é seguro.
Em alguns aspectos, a preocupação de Eddie era reconfortante e me fazia sentir segura. Ao mesmo tempo, eu não podia deixar de me perguntar mais uma vez por que ele se mostrava tão cauteloso. Ele estava presente no ataque que ninguém queria comentar. Ele conhecia as ameaças porque as tinha visto com seus próprios olhos. Se estava assim tão preocupado, mesmo agora, então qual era o tamanho do perigo que nós ainda corríamos? Os alquimistas tinham me levado a acreditar que, uma vez que estivéssemos escondidos em Amberwood, tudo ficaria bem e seria apenas uma questão de esperar. Eu tinha tido a mesma conversa com Rose e tentara convencê-la da mesma coisa. A atitude de Eddie dizia o contrário.
O dormitório que eu ia dividir com Jill era pequeno para os meus padrões. Quando criança, sempre tive um quarto só meu, e nunca precisei me preocupar em dividir o espaço ou o armário. Durante o tempo que passei em São Petersburgo, tive até um apartamento só para mim. Pelo menos a nossa única janela tinha uma vista completa para o pátio dos fundos do alojamento. Tudo dentro do quarto era reluzente e arejado, com móveis com acabamento de bordo que pareciam novos: camas, escrivaninhas e penteadeiras. Eu não tinha experiência com quartos de dormitório — mas pude deduzir, pela reação de Jill, que tínhamos conseguido um ótimo. Ela jurou que o quarto era maior do que o que ela tinha na escola dos Moroi, a Escola São Vladimir, e estava bem feliz.
Fiquei imaginando se ela não havia achado o quarto assim tão grande só porque nós tínhamos tão pouca coisa para colocar nele. Nenhuma de nós tinha podido trazer muita coisa com a partida tão apressada. A mobília conferia a tudo uma sensação calorosa e dourada, mas sem decoração pessoal ou outros toques o quarto poderia ter saído direto de um catálogo. A responsável pelo alojamento, a sra. Weathers, tinha ficado surpresa ao nos ver com tão pouca bagagem. As meninas que eu tinha visto chegando vinham a bordo de carros estourando de tão cheios. Fiquei torcendo para que não parecêssemos suspeitas.
Jill fez uma pausa para olhar pela janela enquanto nos preparávamos para ir para a cama.
— Aqui é tão seco — ela murmurou, mais para si mesma do que para mim. — O gramado é bem verde, mas é muito estranho não sentir a umidade no ar — ela deu uma olhada acanhada para mim. — Sou do tipo que tem domínio sobre a água.
— Eu sei — respondi, sem saber muito bem o que dizer. Ela estava se referindo aos dons mágicos que todos os Moroi possuíam. Cada Moroi era especializado em um elemento, que podia ser um dos quatro elementos físicos — terra, ar, água e fogo — ou o elemento mais intangível e psíquico do espírito. Quase ninguém trabalhava com este último, mas eu tinha ouvido dizer que Adrian era um dos poucos. Se Jill tivesse dificuldade para acessar sua magia, eu não ficaria desapontada. Assim como beber sangue, a magia era uma das atividades dos vampiros que serviam como um lembrete e jogavam na minha cara que essas pessoas com quem eu dava risada e fazia as refeições não eram humanas.
Se eu ainda não estivesse exausta pela viagem com Keith, provavelmente teria ficado acordada, agoniada por estar dormindo no mesmo quarto que uma vampira. Quando eu conheci Rose, nem conseguia ficar no mesmo recinto que ela. Nossa fuga conjunta caótica havia mudado isso um pouco e, no fim, eu consegui baixar a guarda. Naquele instante, um pouco desse antigo medo retornou na escuridão. Vampira, vampira. Com firmeza, disse a mim mesma que era apenas Jill. Eu não tinha nada com que me preocupar. No final, o cansaço venceu o medo e eu dormi.
Quando a manhã chegou, não pude evitar me examinar no espelho para ver se não havia nenhuma marca de mordida ou outro sinal de dano causado por vampiro. Quando terminei, imediatamente me senti uma boba. Com a dificuldade que Jill estava tendo para acordar naquele momento, não fazia sentido imaginar que ela me atacaria sorrateira no meio da noite. Do jeito que as coisas estavam, tive dificuldade de fazê-la sair pela porta a tempo da orientação. Ela estava tonta de sono, com os olhos vermelhos, e ficava reclamando de dor de cabeça. Imaginei que não precisaria me preocupar com ataques noturnos da minha colega de quarto.
Ainda assim, ela conseguiu se levantar e se arrumar. Deixamos o alojamento e fomos ao encontro de Eddie, que estava reunido com mais dois alunos novos, perto de uma fonte no campus central. A maior parte dos alunos parecia ser do primeiro ano, como Jill. Só uns poucos tinham a mesma idade que eu e Eddie, e fiquei surpresa de ver como ele conversava com facilidade com quem estava ao seu redor. Por causa do comportamento vigilante que tinha demonstrado no dia anterior, achei que estaria com a guarda mais armada, que seria menos capaz de estabelecer relações sociais normais — mas ele se encaixou na turma direitinho. Porém, enquanto caminhávamos, eu o vi observando o entorno disfarçadamente. Ele podia estar fazendo papel de aluno — como eu —, mas continuava sendo um dampiro.
Ele nos dizia que ainda não tinha conhecido seu colega de quarto quando um sujeito sorridente com olhos bem azuis e cabelo meio ruivo veio na nossa direção.
— Oi — ele disse. De perto, dava para ver um monte de sardas. — Você é Eddie Melrose?
— Sou sim... — Eddie tinha se virado para trás com eficiência de guardião, pronto para dar conta de uma ameaça em potencial. Quando viu o recém-chegado, ficou totalmente imóvel. Seus olhos se arregalaram um pouco e o que quer que pretendesse dizer se esvaiu.
— Eu sou Micah Vallence. Sou seu colega de quarto. E também seu líder de orientação — ele apontou com a cabeça para os outros alunos que conversavam e sorriu. — Mas eu queria vir aqui primeiro dar um oi, já que só cheguei hoje de manhã. A minha mãe esticou nossas férias o máximo possível.
Eddie ainda estava olhando fixamente para Micah, como se tivesse visto um fantasma. Também avaliei o garoto, imaginando o que eu estava deixando passar. Ele me parecia normal. Seja lá o que estivesse acontecendo, Jill também não estava a par, porque olhava para Micah com uma expressão absolutamente normal, sem alarme ou surpresa.
— Prazer em conhecer — Eddie finalmente disse. — Estas são as minhas, hã, irmãs... Jill e Sydney.
Micah deu um sorriso para cada uma de nós. Ele tinha um jeito que me deixava à vontade, e deu para perceber por que tinha sido escalado como líder de orientação. Fiquei me perguntando por que Eddie estava agindo de um modo tão estranho.
— Em que série vocês estão? — ele nos perguntou.
— Último ano — eu disse. Ao me lembrar da história do nosso disfarce, completei: — Eddie e eu somos gêmeos.
— Eu estou no primeiro ano — Jill falou.
Ao olhar para a nossa “família”, percebi que Eddie e eu provavelmente podíamos passar por irmãos com bastante facilidade. Nossos tons de pele eram semelhantes e, é claro, havia o fato de nós dois parecermos humanos. Ainda que um humano não fosse olhar para Jill e necessariamente dizer “vampira!”, ela possuía certos traços que a destacavam como fora do comum. Seu tipo físico e sua palidez criavam um contraste marcante em relação a mim e Eddie.
Se Micah reparou na ausência de semelhança familiar, não deixou transparecer.
— Está nervosa para começar o ensino médio? — ele perguntou a Jill.
Ela sacudiu a cabeça e retribuiu o sorriso.
— Estou pronta para o desafio.
— Bom, se precisar de alguma coisa, é só falar — ele disse. — Agora eu preciso dar início a essa festa. Falo com vocês mais tarde.
Pela maneira como a atenção dele se concentrou unicamente nela, ficou óbvio que o “se precisar de alguma coisa” era dirigido a Jill, e as bochechas vermelhas dela mostravam que ela também tinha percebido. Ela sorriu e olhou nos olhos dele por um momento, então desviou o olhar, acanhada. Eu teria achado aquilo fofo, se não representasse uma perspectiva preocupante. Jill estava em uma escola cheia de humanos. Namorar um deles estava completamente fora de questão, e garotos como Micah não podiam ser incentivados. Eddie pareceu não se incomodar com o comentário, mas isso porque ainda parecia incomodado com Micah de maneira geral.
Micah pediu ao nosso grupo que prestasse atenção e deu início à orientação. A primeira parte era simplesmente uma volta pelo terreno. Fomos andando atrás dele, entrando e saindo de ambientes com ar-condicionado, enquanto ele nos mostrava os prédios importantes. Ele explicou o sistema de ônibus e nós embarcamos em um deles para ir ao campus oeste, que era quase uma imagem espelhada do leste. Meninos e meninas tinham permissão de entrar no alojamento uns dos outros, com certas limitações, e ele explicou essas regras também, causando alguns resmungos. Ao me lembrar da temível sra. Weathers, fiquei com pena de qualquer garoto que tentasse desrespeitar as regras do alojamento.
Ambos alojamentos tinham seu próprio refeitório, que qualquer aluno podia usar, e nosso grupo de orientação almoçou enquanto ainda estávamos no campus oeste. Micah se juntou aos meus “irmãos” e a mim, dando-se ao trabalho de conversar com cada um de nós. Eddie respondeu com educação, assentindo e fazendo perguntas, mas seus olhos ainda pareciam vagamente assombrados. Jill no começo ficou acanhada, mas assim que Micah começou a brincar com ela, acabou se soltando.
Que engraçado, pensei. A facilidade de adaptação de Eddie e Jill era maior do que a minha. Eles estavam em um ambiente estranho, com uma raça diferente, mas ainda entre coisas familiares, como refeitórios e vestiários. Eles logo entraram nos papéis e nos procedimentos sem dificuldade. Enquanto isso, apesar de ter viajado e vivido no mundo todo, eu me sentia deslocada naquele ambiente que para todas as outras pessoas era muito comum.
Independente disso, não demorou muito para eu entender como a escola funcionava. Os alquimistas eram treinados para observar e se adaptar e, apesar de a escola ser uma coisa estranha para mim, logo entrei na rotina. Eu também não tinha medo de falar com as pessoas — estava acostumada a puxar papo com desconhecidos e encontrar explicações para escapar de alguma situação complicada. Mas tinha uma coisa que eu sabia que precisava desenvolver.
— Ouvi dizer que a família dela talvez se mude para Anchorage.
Estávamos no almoço de orientação, e duas garotas do primeiro ano perto de mim conversavam sobre uma amiga delas que não tinha aparecido naquele dia.
Os olhos da outra menina se arregalaram.
— Sério? Eu iria morrer se tivesse que me mudar para lá.
— Não sei — refleti, remexendo a comida no prato. — Com tantos raios uv aqui, Anchorage na verdade poderia fornecer maior expectativa de vida. Não é preciso usar tanto protetor solar, então parece ser uma solução mais econômica também.
Pensei que o meu comentário tinha sido útil, mas, quando ergui os olhos, vi que as duas olhavam fixamente para mim, boquiabertas. Era óbvio, pelo jeito que elas me olhavam, que eu não podia ter feito um comentário mais bizarro.
— Acho que eu não devia dizer tudo que me vem à cabeça — murmurei para Eddie. Estava acostumada a ser direta em situações sociais, mas me ocorreu que simplesmente dizer “é, total!” provavelmente teria sido a resposta correta. Eu tinha poucos amigos da minha idade e estava sem prática.
Eddie sorriu para mim.
— Não sei não, irmãzinha. Você é bem divertida do jeito que é. Continue assim.
Depois do almoço, nosso grupo voltou para o campus central, onde nos separamos para ter reuniões com conselheiros acadêmicos e elaborar o horário de aulas. Quando me sentei com a minha conselheira, uma mulher toda animada chamada Molly, fiquei surpresa de ver que os alquimistas tinham enviado históricos escolares de uma instituição fictícia na Dakota do Sul. Eram até bem consistentes com o que eu tinha estudado em casa.
— As suas notas e provas a colocaram nas nossas classes mais adiantadas de matemática e de inglês — Molly disse. — Se você se sair bem, poderá receber créditos para a faculdade — pena que não vai ter como eu ir para a faculdade, pensei com um suspiro. Ela folheou algumas páginas no meu arquivo. — Agora, não estou vendo nenhum registro de línguas estrangeiras aqui. É exigência de Amberwood que todos aprendam pelo menos uma língua.
Ops. Os alquimistas tinham pisado na bola com o meu histórico escolar falso. Na verdade, eu havia estudado várias línguas. O meu pai se assegurou de que eu tivesse aulas desde muito pequena, já que um alquimista nunca sabe onde vai parar. Ao examinar a lista de línguas oferecidas em Amberwood, hesitei e fiquei me perguntando se devia mentir. Então decidi que realmente não queria aturar aulas de conjugações e tempos verbais que já tinha aprendido.
— Eu já sei falar todas estas — disse a Molly.
Ela ficou me olhando sem acreditar.
— Todas estas? Há cinco línguas aqui.
Eu assenti e completei, para tentar ajudar:
— Mas eu só estudei japonês durante dois anos. Então acho que posso aprender mais.
Molly continuou com cara de quem não estava acreditando.
— Está disposta a fazer testes de proficiência?
E, assim, acabei passando o resto da tarde fazendo provas de línguas estrangeiras. Não era daquele jeito que eu queria passar o meu tempo, mas achei que valeria a pena depois — os testes eram facílimos.
Quando eu finalmente terminei todas as cinco línguas, três horas depois, Molly me fez sair apressada para tirar as medidas para o meu uniforme. A maior parte dos alunos novos já tinha passado por lá, então ela estava preocupada que a mulher que tirava as medidas já tivesse ido embora. Eu me apressei o máximo possível pelos corredores sem chegar a correr, e quase dei um encontrão com duas meninas que dobravam uma esquina.
— Ah! — exclamei, sentindo-me uma idiota. — Sinto muito... estou atrasada para tirar as medidas para o uniforme...
Uma delas deu uma risada gostosa. Ela tinha a pele escura, corpo atlético e cabelo ondulado.
— Não se preocupe com isso — ela falou. — Acabamos de passar pela sala. Ela ainda está lá.
A outra menina tinha cabelo loiro um tom mais claro que o meu, preso em um rabo de cavalo. As duas tinham a segurança tranquila das pessoas que sabiam se virar naquele mundo. Elas não eram alunas novas.
— A sra. Delaney sempre demora mais do que pensa com as medidas — a loira disse em tom de quem sabe das coisas. — Todo ano, é a... — o queixo dela caiu, suas palavras se congelaram por alguns momentos. — Onde... onde você conseguiu isso?
Eu não fazia ideia do que ela estava falando, mas a outra menina logo notou e se inclinou mais perto de mim.
— Que demais! É isso que estão fazendo este ano?
— A sua tatuagem — a loira explicou. Devo ter continuado com cara de quem não estava entendendo nada. — Onde você fez isso?
— Ah. Isso — meus dedos tocaram a bochecha sem prestar atenção. — Foi, hum, na Dakota do Sul. De onde eu vim.
As duas meninas pareceram decepcionadas.
— Acho que é por isso que nós nunca vimos — disse a morena. — Achei que a Nevermore estivesse fazendo algo novo.
— Nevermore? — perguntei.
As meninas trocaram olhares silenciosos e alguma mensagem foi transmitida entre elas.
— Você é nova, certo? Como se chama? — a loira perguntou. — Eu sou Julia. Esta é Kristin.
— Sydney — eu disse, ainda curiosa.
Julia tinha voltado a sorrir.
— Almoce com a gente na ala leste amanhã, certo? Vamos explicar tudo.
— Tudo sobre o quê? — perguntei.
— É uma longa história. Por enquanto, só vá ver a Delaney — Kristin completou e começou a se afastar. — Ela fica até mais tarde, mas não vai ficar ali para sempre.
Quando elas se foram, eu continuei o meu caminho — bem mais devagar —, imaginando que história era aquela. Será que eu tinha acabado de fazer amigas? Eu realmente não tinha certeza de como devia me comportar em uma escola assim, mas a conversa toda tinha parecido bem esquisita.
A sra. Delaney estava começando a guardar suas coisas quando eu cheguei.
— Que tamanho você usa, querida? — ela perguntou ao me ver à porta.
— pp.
Ela me mostrou diversas peças: saias, calças, blusas e suéteres. Duvidei que os suéteres tivessem muita utilidade, a menos que uma tempestade de neve apocalíptica e sobrenatural se abatesse sobre Palm Springs. Amberwood não se importava muito com a combinação que os alunos usassem, desde que as peças viessem da linha de roupas aprovada. As cores eram vinho, cinza-escuro e branco, e eu até achei que ficavam bem juntas.
Ao me ver abotoar uma blusa branca, a sra. Delaney estalou a língua:
— Acho que você precisa de P.
Eu fiquei paralisada com um botão meio abotoado na mão.
— Eu uso pp.
— Ah, sim, você cabe neste tamanho, mas olhe só as mangas e o comprimento da saia. Vai ficar mais confortável com P. Experimente estas peças — ela me entregou uma pilha nova e então deu risada. — Não fique com esta cara horrorizada, menina! Usar P não é nada de mais, você continua sendo um palito — ela deu palmadinhas em sua barriga grande. — Cabem três de você nas minhas roupas!
Apesar dos meus protestos, fui mandada embora com as roupas tamanho P. Voltei de ônibus para o dormitório, arrasada, e encontrei Jill deitada na cama, lendo. Ela se sentou ereta quando cheguei.
— Oi, estava mesmo imaginando o que tinha acontecido com você.
— Eu me atrasei — disse com um suspiro. — Está se sentindo melhor?
— Estou, sim. Muito melhor — Jill observava enquanto eu guardava os uniformes.
— Eles são bem horrorosos, não são? Nós não usamos uniformes na São Vladimir. Vai ser a maior chatice usar a mesma coisa todos os dias.
Eu não queria dizer a ela que, por ser alquimista, eu provavelmente ia usar roupas parecidas com aquelas de todo modo.
— Que tamanho deram para você? — perguntei para mudar de assunto. Eu sentia uma espécie de avidez por punição.
— pp.
Uma pontada de irritação percorreu o meu corpo quando pendurei meus uniformes no armário, ao lado dos dela. Eu me senti enorme em comparação. Como é que esses Moroi eram tão magros? Genética? Dieta de sangue com poucos carboidratos? Talvez fosse porque todos eles eram muito altos. Só sabia que, sempre que passava um tempo perto deles, me sentia inchada e desajeitada, e ficava com vontade de comer menos.
Quando terminei de desfazer as malas, Jill e eu comparamos nossos horários. Não foi surpresa ver que, levando em conta a diferença de séries, nós não tínhamos quase nada em comum. A única coisa que compartilhávamos era a aula de educação física, que juntava todos os anos. Os alunos tinham que frequentar aquela aula todos os semestres, já que estar em forma era considerado parte da experiência escolar completa. Talvez eu pudesse perder alguns quilos e voltar para o meu tamanho normal.
Jill sorriu e devolveu o meu horário.
— Eddie foi lá e exigiu ficar na mesma classe de educação física que nós, porque é basicamente a única que podemos fazer juntos. Mas ela entra em conflito com a aula de espanhol dele, e não permitiram. Acho que ele não vai conseguir passar um dia letivo inteiro sem checar se eu estou viva. Ah, e Micah está conosco na educação física.
Fui para a minha cama pisando firme, ainda irritada por causa dos uniformes. As palavras de Jill chamaram a minha atenção.
— Ei, você sabe por que Eddie pareceu ficar incomodado com Micah?
Jill sacudiu a cabeça.
— Não, e não tive oportunidade de perguntar, mas também reparei... principalmente no começo. Depois, quando você estava fazendo as suas provas e nós esperávamos os uniformes, Eddie pareceu se acalmar. Um pouco. Mas, de vez em quando, eu via que ele estava olhando de um jeito estranho para Micah.
—Você não acha que ele pode considerar Micah perigoso, acha?
Jill deu de ombros.
— Ele não pareceu perigoso para mim, mas não sou guardiã. Se Eddie achasse que ele representa algum tipo de ameaça, acredito que iria agir de outra maneira. Com mais agressividade. Ele parecia mais estar nervoso perto de Micah. Quase, mas não exatamente, com medo. E isso é o mais estranho de tudo, porque os guardiões nunca parecem amedrontados. Não que Eddie seja tecnicamente um guardião. Mas você sabe o que eu quero dizer.
— Sei, sim — respondi sorrindo, apesar das minhas intenções mal-humoradas. Aquela divagação natural e meiga me animou um pouco. — Como assim, Eddie não é tecnicamente guardião? Ele não foi designado para proteger você aqui?
— Foi, sim — Jill respondeu enquanto brincava com um de seus cachos castanho-claros. — Mas... bom, é meio esquisito. Ele se meteu em algum tipo de confusão com os guardiões por ajudar Rose e por, hum, matar um cara.
— Ele matou aquele Moroi que atacou Vasilisa, certo? — Isso tinha sido mencionado no meu interrogatório.
— É — Jill respondeu, perdida em suas próprias lembranças. — Foi em legítima defesa, e em defesa de Lissa, mas todo mundo ficou chocado por ele ter matado um Moroi. Os guardiões não podem fazer isso, mas até aí, os Moroi também não podem atacar uns aos outros. Mas, bom, ele recebeu suspensão. Ninguém sabia o que fazer com ele. Quando eu fui... atacada, Eddie ajudou a me proteger. Depois, Lissa disse que era uma estupidez deixá-lo sem trabalhar se ele podia ser útil, e levando em conta que também havia um Moroi por trás do ataque, ela disse que todo mundo ia ter que se acostumar com a ideia de ter alguns Moroi como inimigos. Hans, o guardião encarregado na corte, finalmente concordou e mandou Eddie vir comigo, mas eu acho que, oficialmente, o cargo de Eddie ainda não foi restituído. É estranho — Jill tinha feito todo o discurso sem pausa e então parou para retomar o fôlego.
— Bom, tenho certeza de que tudo vai ser resolvido — eu disse, tentando tranquilizá-la. — E parece que ele vai ganhar pontos por manter uma princesa viva.
Jill me lançou um olhar afiado.
— Não sou princesa coisa nenhuma.
Eu franzi a testa e tentei me lembrar das complexidades da lei dos Moroi.
— O príncipe ou a princesa é o integrante mais velho da família real. Como Vasilisa é a rainha, o título passa para você, certo?
— No papel — Jill respondeu e desviou o olhar. O tom dela era difícil de decifrar, uma mistura estranha que parecia ser amargor e pesar. — Eu não sou princesa, não de verdade. Sou apenas alguém que por acaso tem parentesco com a rainha.
A mãe de Jill tinha sido amante de Eric Dragomir, pai de Vasilisa, por um curto período, e mantivera a existência de Jill em segredo durante anos. O fato tinha sido trazido às claras recentemente, e eu desempenhei um papel importante para ajudar Rose a localizar Jill. Com toda a confusão na minha própria vida, além da ênfase sobre a segurança de Jill, eu não tinha passado muito tempo imaginando como ela tinha se adaptado ao seu novo status. Devia ser uma tremenda mudança de estilo de vida.
— Tenho certeza de que é mais do que isso — eu disse com gentileza. Fiquei imaginando se ia ter que passar muito tempo fazendo papel de terapeuta para Jill durante a missão. A perspectiva de realmente reconfortar uma vampira ainda me parecia muito estranha. — Quero dizer que você é obviamente importante. Todo mundo se esforçou muito para que você ficasse aqui em segurança.
— Mas é mesmo por mim? — Jill perguntou. — Ou é para ajudar Lissa a manter o trono? Ela mal falou comigo desde que descobriu que éramos irmãs.
Aquela conversa estava se desviando para águas nada confortáveis, para questões pessoais com as quais eu nem sabia lidar. Não podia imaginar como seria estar no lugar de Vasilisa ou de Jill. A única coisa que parecia certa era que não devia ser fácil para nenhuma delas.
— Tenho certeza de que ela gosta de você — eu disse, apesar de não ter certeza nenhuma. — Mas deve ser estranho para ela... principalmente com todas as outras mudanças na vida dela também. Dê um tempo a ela. Concentre-se no que é importante primeiro: ficar aqui e continuar viva.
— Você tem razão — Jill disse. Ela voltou a se deitar na cama e ficou olhando para o teto. — Estou nervosa com amanhã; ficar perto de tanta gente, tendo aula o dia inteiro. E se repararem? E se alguém descobrir a verdade a meu respeito?
— Você foi ótima na orientação — garanti a ela. — Só não mostre os seus caninos. E, além do mais, eu sou boa em convencer as pessoas de que elas não viram o que acham que viram.
A expressão agradecida no rosto dela me lembrou, de um jeito desconfortável, de Zoe. Elas eram tão parecidas em tantos aspectos, tímidas e cheias de incertezas — e, no entanto, extremamente impetuosas e desesperadas para provar o seu valor. Eu tinha tentado proteger Zoe — e, aos olhos dela, só falhei. Naquele momento, estar com Jill fazia me sentir em conflito. Em certos aspectos, eu podia compensar o que não tinha sido capaz de fazer por Zoe. No entanto, quando eu pensava nisso, uma voz baixinha interior ficava dizendo: Jill não é sua irmã. Ela é uma vampira. Isto aqui é trabalho.
— Obrigada, Sydney. Fico contente que você esteja aqui — ela sorriu, e a culpa só se contorceu mais fundo dentro de mim. — Sabe, eu meio que tenho inveja de Adrian. Ele acha tão chato ficar na casa do Clarence, mas não precisa se preocupar em conhecer gente nova nem se acostumar com uma nova escola. Ele só fica lá assistindo tv, jogando sinuca com o Lee, dormindo até tarde... parece fantástico — ela suspirou.
— Suponho que sim — eu disse, um pouco surpresa com tantos detalhes. — Como é que você sabe tudo isso? Você... falou com ele depois da nossa partida? — A ideia parecia improvável enquanto eu falava. Eu tinha passado a maior parte do dia com ela.
O sorriso desapareceu do rosto dela.
— Ah, não. Quer dizer, só supus que é isso que está acontecendo. Ele mencionou algumas coisas antes, só isso. Desculpe. Estou sendo melodramática e falando bobagem. Obrigada por me escutar... realmente faz com que eu me sinta melhor.
Dei um sorriso contido e não disse mais nada. Não conseguia superar o fato de que estava começando a simpatizar tanto com uma vampira. Primeiro Rose, e agora Jill? Não importava o quão adorável ela fosse. Eu precisava manter a nossa relação estritamente profissional para que nenhum alquimista pudesse me acusar de me apegar a ela. As palavras de Keith ecoaram na minha cabeça: adoradora de vampiros...
Isso é ridículo, eu pensei. Não havia nada de errado em ser legal com uma pessoa que estava sob os meus cuidados. Era normal, estava muito longe de ficar “próxima demais” deles. Certo? Coloquei minhas preocupações de lado e me concentrei em terminar de desfazer as malas e pensar sobre a nossa nova vida ali. Eu sinceramente torcia para que o dia seguinte fosse correr tão bem quanto eu havia garantido a Jill que correria.
Infelizmente, não foi assim.
6
Para ser justa, o dia começou ótimo.
O sol entrava pelas janelas quando acordamos, e eu já podia sentir o calor, apesar de ser bem cedo pela manhã. Escolhi a combinação mais leve entre as opções do uniforme: uma saia cinza e uma blusa branca de manga curta. Joias simples eram permitidas, por isso continuei com a cruz de ouro. O meu cabelo estava em um daqueles dias difíceis — que pareciam ser mais frequentes naquele novo clima. Minha vontade era prendê-lo em um rabo de cavalo, como Jill fez com o dela, mas ele tinha camadas demais para que eu conseguisse fazer direito. Fiquei olhando para o jeito como os fios batiam nos meus ombros em comprimentos diferentes e pensei se não estava na hora de deixar crescer.
Depois de um café da manhã que nenhuma de nós realmente comeu, pegamos o ônibus até o campus central, que de repente ficou todo lotado de gente. Apenas cerca de um terço dos alunos ficava na escola em regime de internato. O resto morava nas proximidades, e agora todos tinham chegado. Jill mal falou durante todo o trajeto e parecia passar mal mais uma vez. Era difícil dizer, mas a achei mais pálida do que o normal. Seus olhos estavam vermelhos de novo, pesados e com olheiras escuras. Eu tinha acordado uma vez no meio da noite e a vi dormindo profundamente, por isso não sabia muito bem qual era o problema. Aquelas olheiras escuras, aliás, eram a primeira falha que eu via na pele de um Moroi — a pele deles era sempre perfeita, de porcelana. Não era para menos que podia dormir até mais tarde. Não precisava se preocupar com o corretivo e o pó que eu usava.
À medida que a manhã foi avançando, Jill não parava de morder o lábio e olhar ao redor, preocupada. Talvez só estivesse nervosa por mergulhar em um mundo todo povoado por humanos. Ela não parecia nem um pouco preocupada com a logística de chegar às salas certas e fazer as lições. Isso era o que continuava me assustando um pouco. Apenas vá de uma aula para a outra, disse a mim mesma. É a única coisa que você precisa fazer.
A minha primeira aula era História Antiga. Eddie também estava nela, e ele praticamente me atacou quando me viu.
— Está tudo bem com ela? Esteve com ela?
— Bom, nós dividimos o mesmo quarto, então, estive — nos sentamos em carteiras vizinhas. Sorri para Eddie. — Relaxe. Está tudo bem com ela. Parecia nervosa, mas não dá para culpá-la por isso.
Ele assentiu, mas ainda parecia inseguro. Ele concentrou toda a atenção na frente da sala quando a professora entrou, mas estava inquieto, ali sentado, como se mal pudesse se segurar para não levantar em um salto e ir ver se Jill estava bem.
— Bem-vindos, bem-vindos — nossa professora era uma mulher de quarenta e poucos anos, com cabelo eriçado preto, rajado de fios brancos, e energia nervosa suficiente para rivalizar com Eddie. E se a xícara de café gigante dela servisse como pista, não era difícil descobrir por quê. Fiquei com um pouco de inveja e desejei que todos nós tivéssemos permissão para trazer bebidas à sala de aula, principalmente porque o refeitório do alojamento não servia café. Eu não sabia como iria sobreviver aos meses seguintes sem cafeína. O guarda-roupa dela dava preferência ao padrão xadrez de losangos. — Eu sou a sra. Terwilliger, sua ilustre guia à jornada fantástica que é a história antiga — ela falava em um tom dramático e grandioso que fez alguns dos alunos darem risadinhas. Ela fez um gesto indicando um rapaz que estava sentado atrás dela, perto da mesa grande. Ele estava olhando para a classe com expressão de tédio, mas quando ela se virou ele se animou todo. — E este é o meu assistente, Trey, que, acredito, alguns de vocês devem conhecer. Trey é o meu monitor estudantil para este período, então, o que ele vai fazer é ficar cabisbaixo pelos cantos preenchendo papelada. Mas vocês devem ser legais com ele, porque é bem provável que ele seja o responsável por passar as suas notas para o meu computador.
Trey deu um leve aceno e sorriu para alguns de seus amigos. Ele tinha a pele bem bronzeada e cabelo preto cujo comprimento flertava com as normas de aparência da escola. O uniforme bem passado de Amberwood dava a ele a impressão de ser muito competente, mas havia um brilho maroto em seus olhos escuros que me fez pensar que, na verdade, ele não levava muito a sério esse negócio de ser monitor.
— Bom — a sra. Terwilliger continuou. — A história é importante porque nos ensina a respeito do passado. E, ao aprender sobre o passado, nós entendemos o presente, para podermos tomar decisões embasadas a respeito do futuro.
Ela fez uma pausa dramática para permitir que as palavras fossem absorvidas. Quando se convenceu de que todos estavam maravilhados, foi até o seu laptop, que estava conectado a um projetor. Ela apertou algumas teclas e a imagem de uma construção com pilastras brancas apareceu na tela na frente da sala.
— E então? Alguém sabe me dizer o que é isto?
— Um templo? — alguém arriscou.
— Muito bem, senhor...?
— Robinson — o garoto informou.
A sra. Terwilliger pegou uma prancheta e examinou uma lista.
— Ah, aqui está você. Robinson. Stephanie.
— Stephan — o garoto corrigiu e ficou todo vermelho enquanto alguns amigos dele davam risada.
A sra. Terwilliger ajeitou os óculos no nariz e apertou os olhos.
— É mesmo. Ainda bem. Estava aqui pensando como a sua vida devia ser difícil com um nome desses. Peço desculpas. Quebrei meus óculos em um acidente maluco jogando croquet no fim de semana passado, por isso fui obrigada a trazer os velhos hoje. Então, Stephan--não-Stephanie, é isso mesmo. É um templo. Pode ser mais específico?
Stephan sacudiu a cabeça.
— Alguém pode dar alguma ideia?
Como apenas o silêncio respondeu à sra. Terwilliger, respirei fundo e ergui a mão. Estava na hora de ver como era ser uma aluna de verdade. Ela fez um gesto com a cabeça na minha direção.
— É o Parthenon.
— É mesmo — ela falou. — E qual é o seu nome?
— Sydney.
— Sydney... — ela conferiu a prancheta e ergueu os olhos, surpresa. — Sydney Melbourne? Nossa. Você não fala como australiana.
— Hum, é Sydney Melrose, senhora — corrigi.
A sra. Terwilliger deu uma risadinha e entregou a prancheta para Trey, que parecia achar o meu nome a coisa mais engraçada do mundo.
— Assuma, sr. Juarez. Seus olhos juvenis são melhores do que os meus. Se eu continuar assim, vou ficar transformando os meninos em meninas e mocinhas perfeitamente adoráveis em descendentes de criminosos. Então — a sra. Terwilliger voltou a se concentrar em mim —, o Parthenon. Sabe alguma coisa a respeito dele?
Os outros me observavam, a maior parte com curiosidade simpática, mas mesmo assim senti a pressão de estar no centro das atenções. Concentrei-me apenas na sra. Terwilliger e disse:
— Faz parte da Acrópole, senhora. Em Atenas. Foi construído no século v a.C.
— Não precisa me chamar de “senhora” — a sra. Terwilliger disse. — Mas é agradável receber um pouco de respeito, para variar. E a resposta foi brilhante.
Ela deu uma olhada no resto da sala.
— Agora, digam-me o seguinte: por que diabos devemos nos preocupar com Atenas ou com qualquer coisa que aconteceu há mais de mil e quinhentos anos? Que relevância isso pode ter para nós hoje?
Mais silêncio e olhos agitados. Quando aquele silêncio insuportável se arrastou por um momento que pareceu durar horas, comecei a levantar a mão de novo. A sra. Terwilliger não viu e olhou de novo para Trey, que estava com os pés apoiados na mesa da professora. O garoto no mesmo instante baixou as pernas e aprumou as costas.
— Sr. Juarez — a sra. Terwilliger declarou. — Está na hora de ganhar os seus créditos. Você fez esta matéria no ano passado. Pode dizer a eles por que os eventos de Atenas antiga são relevantes para nós hoje? Se não for capaz, vou ter que voltar a chamar a srta. Melbourne. Parece que ela sabe a resposta, e imagine só como isso vai ser uma vergonha para você.
Os olhos de Trey passaram para mim e depois retornaram à professora.
— O sobrenome dela é Melrose, não Melbourne. E a democracia foi fundada em Atenas no século vi. Muitos dos procedimentos que foram estabelecidos lá ainda são seguidos pelo nosso governo hoje.
A sra. Terwilliger apertou o peito com a mão em um gesto dramático.
— Você estava prestando atenção no ano passado! Bom, quase. A data não está correta — o olhar dela recaiu em mim. — Aposto que você sabe a data em que a democracia foi criada em Atenas.
— Século v — eu respondi imediatamente.
Isso me valeu um sorriso da professora e uma olhada feia de Trey. O resto da classe fez mais ou menos a mesma coisa. A sra. Terwilliger prosseguiu com seu estilo espalhafatoso e destacou diversos períodos e locais que iríamos estudar com mais detalhes. Descobri que eu era capaz de responder a qualquer pergunta que ela fazia. Alguma parte em mim dizia para eu me conter, mas eu não fui capaz de me segurar. Se ninguém sabia a resposta, eu me sentia forçada a fornecê-la. E cada vez que eu fazia isso, a sra. Terwilliger dizia: “Trey, você sabia disso?”. Eu senti um calafrio. Realmente não queria fazer inimigos logo no primeiro dia. Os outros alunos me observavam com curiosidade enquanto eu falava, coisa que me deixou um pouco envergonhada. Também vi alguns deles se entreolharem cada vez que eu falava, como se soubessem de algum segredo que eu não sabia. Isso me preocupou mais do que o fato de irritar Trey. Será que parecia que eu estava me exibindo? Eu não entendia nada das políticas sociais dali para saber o que era normal e o que não era. Aquela era uma escola em que existia concorrência acadêmica. Certamente não devia ser algo ruim ter bons conhecimentos, não é?
A sra. Terwilliger nos deu como tarefa ler os dois primeiros capítulos do livro didático. Os outros reclamaram, mas eu fiquei animada. Eu adorava história, principalmente história da arte e arquitetura. Minha educação em casa tinha sido rígida e abrangente, mas essa matéria específica não era algo que o meu pai considerava muito importante para nós. Eu tive que estudar sozinha, então era ao mesmo tempo surpreendente e magnífico pensar que agora eu tinha uma aula cujo único propósito era aprender aquilo, e, além disso, saber que o meu conhecimento seria valorizado — ainda que só pela professora.
Eu me separei de Eddie quando a aula terminou e fui para a aula de química aplicada. Enquanto esperava a aula começar, Trey se acomodou em uma carteira ao meu lado.
— Então, srta. Melbourne — ele disse, imitando a voz da sra. Terwilliger. — Quando vai começar a dar suas próprias aulas de história?
Eu achei chato a sra. Terwilliger ter implicado com ele, mas não gostei nada daquele tom.
— Agora você veio mesmo para aprender? Ou vai ficar aí sem fazer nada, fingindo que está ajudando a professora de novo?
Isso fez um sorriso se abrir em seu rosto.
— Ah, eu, infelizmente, sou aluno nesta aula aqui. E fui o melhor da classe na aula da sra. T no ano passado. Se você for tão boa em química quanto é em história, quero te pegar para ser minha parceira de laboratório. Assim, vou poder tirar férias o semestre todo.
A química era uma parte fundamental das funções de um alquimista, e eu duvidava que houvesse algo naquela aula que eu ainda não soubesse. Os alquimistas tinham surgido na Idade Média como “cientistas mágicos”, que tentavam transformar chumbo em ouro. A partir dessas primeiras experiências, eles descobriram as propriedades especiais do sangue dos vampiros, e como ele reagia com outras substâncias — o que acabou levando à cruzada para manter vampiros e humanos separados. Essa bagagem científica inicial, assim como nosso trabalho atual com sangue de vampiro, tornou a química uma das matérias principais da minha educação na infância. Ganhei o meu primeiro conjunto de química aos seis anos. Enquanto outras crianças treinavam o alfabeto, meu pai me fazia perguntas sobre ácidos e bases.
Incapaz de confessar tudo isso a Trey, desviei os olhos e tirei uma mecha de cabelo do rosto em um gesto casual.
— Não sou ruim.
O olhar dele passou para a minha bochecha e uma expressão de compreensão tomou conta dele.
— Ah. Então é isso.
— O que é o quê? — perguntei.
Ele apontou para o meu rosto.
— A sua tatuagem. É isso que ela faz, hein?
Ao mexer no cabelo, havia revelado o meu lírio dourado.
— O que você quer dizer? — perguntei.
— Não precisa se fazer de desentendida comigo — ele disse, e revirou os olhos escuros. — Já entendi. Quer dizer, para mim parece trapaça, mas acho que nem todo mundo se importa com a honra. Mas é muita coragem ter uma no rosto. É contra o código de conduta da escola, sabe como é... não que isso impeça alguém.
Eu me mexi e deixei o cabelo cair de novo onde estava.
— Eu sei. Ia disfarçar com maquiagem, mas esqueci. Mas como assim, trapaça?
Ele só sacudiu a cabeça mostrando claramente que não queria mais conversar. Fiquei lá me sentindo impotente, imaginando o que tinha feito de errado. Logo a minha confusão foi substituída por desalento quando o nosso instrutor fez uma apresentação do curso e de sua organização. Eu tinha um conjunto de química no quarto mais vasto do que todo o material disponibilizado por Amberwood. Paciência. No final das contas, achei que uma revisão elementar não iria fazer mal.
As minhas outras aulas se passaram de maneira semelhante. Eu já estava mais adiantada que todas as minhas aulas e vi que era capaz de responder a todas as perguntas. Isso me fez ficar bem com os professores, mas não sabia avaliar a reação dos meus colegas. Continuei vendo muitas cabeças balançando de maneira tristonha e expressões intrigadas — mas apenas Trey de fato me condenava. Não sabia se devia me conter ou não.
Cruzei com Kristin e Julia algumas vezes, e elas me lembraram de encontrá-las para o almoço. Foi o que fiz, e as encontrei em uma mesa de canto no refeitório do campus leste. Elas acenaram para que eu me aproximasse e, enquanto eu ziguezagueava entre as fileiras de mesas, dei uma olhada rápida no lugar, na esperança de encontrar Jill. Não tinha cruzado com ela o dia todo, mas isso não era nada surpreendente, levando em conta nossos horários de aulas. Ela devia estar comendo no outro refeitório, talvez com Eddie ou Micah.
Kristin e Julia foram simpáticas, ficaram perguntando como tinha sido o meu primeiro dia e me deram informações sobre alguns professores com quem elas já tinham caído. Eram alunas do último ano, como eu, e estávamos juntas em duas aulas. Passamos a maior parte do almoço trocando informações básicas, como, por exemplo, de onde tínhamos vindo. Só quando o almoço foi chegando ao fim é que eu comecei a obter respostas para algumas das perguntas que estavam me incomodando o dia todo. Mas isso exigiu que eu primeiro ultrapassasse ainda mais perguntas.
— Então — Kristin disse e se debruçou por cima da mesa. — Serve para dar a você uma supermemória? Ou, tipo, não sei, chega mesmo a mudar seu cérebro para deixar você mais inteligente?
Julia revirou os olhos.
— Não tem como deixar alguém mais inteligente. Tem que ser a memória. O que eu quero mesmo é saber o seguinte: quanto tempo dura?
Olhei de uma para a outra, mais confusa do que nunca.
— Não sei do que vocês estão falando, mas o que quer que seja, não pode estar me deixando mais inteligente, porque neste momento estou bem perdida.
Kristin deu risada.
— A sua tatuagem. Ouvi quando você respondeu a todas as questões mais difíceis de matemática. E uma amiga minha está na sua aula de história e disse que você dominou lá também. Estamos tentando descobrir como a tatuagem ajuda.
— Se me ajuda... a responder as perguntas? — perguntei. O rosto delas confirmou. — Não. Aquilo tudo... bom, sou só eu. Simplesmente sei as respostas.
— Ninguém é tão inteligente — Julia argumentou.
— Não é tão estranho assim. Eu não sou gênio coisa nenhuma. Acho que só aprendi muita coisa. Eu fui educada em casa por um tempo, e o meu pai era muito... rígido — completei, achando que podia ajudar.
— Ah — Kristin disse enquanto brincava com sua trança comprida. Eu tinha reparado que ela prendia o cabelo escuro de maneira bem prática; já o de Julia, loiro, estava sempre jogado e bagunçado. — Acho que até pode ser... mas, então, o que a sua tatuagem faz?
— Não faz nada — respondi. Mas antes mesmo que eu terminasse de proferir essas palavras, senti um leve formigamento na pele. A tatuagem possuía um tipo de magia que me impedia de falar qualquer coisa relacionada aos alquimistas com pessoas que não faziam parte do nosso círculo restrito. Aquela sensação era a tatuagem me impedindo de falar demais, não que houvesse necessidade para isso. — Eu só achei que era bacana.
— Ah — Julia disse. As duas meninas pareciam inexplicavelmente decepcionadas.
— Por que diabos vocês iam achar que a tatuagem estava me deixando mais inteligente? — perguntei.
O sinal interrompeu a conversa ao nos lembrar de que estava na hora de ir para a próxima aula. Uma pausa se instalou enquanto Kristin e Julia refletiam sobre alguma coisa. Kristin parecia ser a líder entre as duas, porque foi ela que acenou com a cabeça em um gesto decisivo. Fiquei com a sensação inconfundível de que eu estava sendo avaliada.
— Certo — ela finalmente disse e me lançou um grande sorriso. — Mais tarde nós vamos dar mais informações a você.
Marcamos um horário para nos encontrar e estudar mais tarde, e então nos separamos. A minha impressão era de que o tempo seria mais gasto para socializar e menos para estudar, o que para mim não tinha problema, mas fiz uma anotação mental de fazer os deveres de casa antes do encontro. O resto do dia passou rápido, e eu recebi um recado de Molly, a conselheira, durante uma das aulas. Como eu esperava, fui aprovada em todas as provas de línguas e ela queria que eu fosse falar com ela para conversar sobre o assunto durante o último período, quando eu tecnicamente não tinha aula. Isso significava que o meu dia letivo iria terminar oficialmente com educação física.
Vesti meu uniforme de ginástica, short e camiseta de Amberwood, e saí para o sol escaldante junto com os outros. Tinha sentido um pouco do calor ao ir de uma aula para outra, mas foi só quando precisei ficar ao ar livre por um tempo que realmente me dei conta de que estávamos no meio do deserto. Dei uma olhada nos meus colegas, garotos e garotas de todos os anos, e vi que não era a única que suava. Era raro eu me queimar, mas fiz uma anotação mental para me lembrar de comprar protetor solar para garantir. Jill também iria precisar.
Jill!
Dei uma olhada ao redor. Quase tinha esquecido que Jill devia estar na mesma aula. Mas onde ela estava? Não havia sinal dela. Quando a nossa instrutora, srta. Carson, fez a chamada, nem disse o nome de Jill. Fiquei imaginando se tinha havido alguma mudança de última hora.
A srta. Carson era do tipo que achava melhor entrar logo em ação. Fomos divididos em times de vôlei, e eu me vi parada ao lado de Micah. A pele clara e coberta de sardas dele estava ficando cor-de-rosa, e eu fiquei com vontade de sugerir que ele também usasse protetor solar. Ele me lançou um de seus sorrisos simpáticos.
— Oi — eu disse. — Por acaso você viu a minha irmã menor hoje? Jill?
— Não — ele respondeu. Sua testa se franziu de leve. — Eddie estava atrás dela no almoço. Ele achou que ela estava comendo com você no seu alojamento.
Sacudi a cabeça e uma sensação desagradável foi crescendo no meu estômago. O que estava acontecendo? Cenas de pesadelo passaram pela minha mente. Pensei que Eddie estava exagerando com tanta vigilância, mas e se tivesse acontecido alguma coisa com Jill? Será que era possível que, apesar de todo o nosso planejamento, um dos nossos inimigos havia se esgueirado para dentro da escola e levado Jill bem debaixo do nosso nariz? Será que eu ia ter que dizer aos alquimistas — e ao meu pai — que nós tínhamos perdido Jill no primeiro dia? O pânico cresceu dentro de mim. Se não iam me mandar para um centro de reeducação antes, era certeza que agora eu estaria a caminho de um deles.
— Está tudo bem com você? — Micah perguntou, olhando para mim com atenção. — Está tudo bem com Jill?
— Não sei — respondi. — Com licença.
Saí da minha formação de time e corri até onde a srta. Carson estava supervisionando os alunos.
— Pois não? — ela perguntou para mim.
— Sinto incomodar, senhora, mas estou preocupada com a minha irmã. Jill Melrose. Meu nome é Sydney. Ela devia estar aqui. Sabe se ela trocou de classe?
— Ah, sim. Melrose. Recebi um recado da secretaria, logo antes da aula, para informar que ela não estaria presente.
— Disseram por quê?
A srta. Carson sacudiu a cabeça em um pedido de desculpa e vociferou uma ordem para um sujeito que estava fazendo corpo mole. Voltei a me juntar ao meu time com a cabeça a mil. Bom, pelo menos alguém tinha visto Jill, mas por que diabos ela não compareceu à aula?
— Está tudo bem com ela? — Micah perguntou para mim.
— Acho... acho que sim. A srta. Carson sabia que ela não viria à aula hoje, mas não soube dizer por quê.
— Posso fazer alguma coisa? — ele perguntou. — Para ajudar Jill? Hum, vocês?
— Não, obrigada. É legal da sua parte oferecer. — Eu queria que houvesse um relógio por ali. — Vou ver se ela está bem assim que a aula terminar — então algo me ocorreu. — Mas posso pedir uma coisa, Micah? Não diga nada a Eddie.
Micah me lançou um olhar curioso.
— Por que não?
— Ele é protetor demais. Vai ficar preocupado, e provavelmente não é nada.
Além do mais, ele vai colocar a escola abaixo à procura dela.
Quando a aula terminou, tomei uma chuveirada rápida e troquei de roupa antes de ir até o prédio da administração. Estava desesperada para correr até o dormitório antes e ver se Jill estava lá, mas não podia me atrasar para a reunião. Ao caminhar pelo corredor na direção da sala de Molly, passei pela secretaria — e tive uma ideia. Parei para falar com a recepcionista antes de ir para a minha reunião.
— Jill Melrose — a recepcionista disse, assentindo. — Ela foi mandada de volta para o alojamento.
— Mandada de volta? — exclamei. — O que isso significa?
— Não tenho permissão para dizer.
Mas que melodrama, hein?
Aborrecida e mais confusa do que nunca, fui para a sala de Molly, reconfortada com a ideia de que, mesmo que a ausência de Jill fosse misteriosa, pelo menos era sancionada pela escola. Molly me disse que eu podia fazer mais uma aula optativa ou algum tipo de estudo independente no lugar de uma língua, se um professor me supervisionasse. Uma ideia me veio à cabeça.
— Posso falar com você amanhã? — perguntei. — Preciso conversar com uma pessoa primeiro.
— Claro — Molly respondeu. — Só decida logo. Pode voltar para o seu dormitório agora, mas não pode ficar circulando por aí todos os dias neste horário.
Garanti a ela que lhe daria uma resposta logo e voltei para o alojamento. O ônibus não circulava com muita frequência durante as aulas, por isso fui caminhando até lá. Demorou apenas quinze minutos, mas parecia o dobro do tempo por causa do calor. Quando finalmente cheguei ao nosso dormitório, o alívio me invadiu. Jill estava lá, despreocupada, como se nada estranho tivesse acontecido.
— Está tudo bem com você!
Jill estava deitada na cama, novamente lendo seu livro. Ela ergueu os olhos, desanimada.
— Está, sim. Mais ou menos.
Sentei na minha cama e chutei os sapatos para longe.
— O que aconteceu? Tive um ataque de pânico quando vi que você não estava na aula. Se Eddie soubesse...
Jill se sentou ereta de supetão.
— Não, não conte para Eddie. Ele vai ter um chilique.
— Certo, certo. Mas me conte o que aconteceu. Disseram na secretaria que você foi mandada para cá?
— Fui — Jill fez uma careta. — Porque fui suspensa da minha primeira aula.
Fiquei sem palavras. Não podia imaginar o que Jill, tão doce e tímida, podia ter feito para merecer isso. Ai meu Deus. Espero que ela não tenha mordido ninguém. Todo mundo achava que eu é que teria dificuldades para me encaixar nos esquemas da escola. Jill devia ser especialista nisso.
— Por que você foi suspensa?
Jill suspirou.
— Por estar de ressaca.
Fiquei mais sem palavras ainda.
— O quê?
— Eu estava passando mal. A sra. Chang... minha professora... deu uma olhada em mim e disse que era capaz de detectar uma ressaca a um quilômetro de distância. Ela me mandou para a secretaria por desrespeitar as regras da escola. Eu disse que só estava passando mal, mas ela ficava repetindo que sabia. O diretor acabou dizendo que não tinha como provar que era por isso que eu estava passando mal, então não fui punida, mas fui impedida de ir às outras aulas. Tive que ficar aqui o dia inteiro.
— Isso... isso é a maior idiotice! — saltei da cama e comecei a andar de um lado para o outro. Agora que tinha me recuperado da descrença inicial, estava simplesmente ultrajada. — Eu estava com você durante a noite passada. Você dormiu aqui. Eu iria saber. Acordei uma vez, e você estava apagada. Como é que a sra. Chang pode fazer uma acusação dessas? Ela não tinha provas! A escola também não. Não tinham o direito de tirar você das aulas. Eu devia ir à secretaria agora mesmo! Não, vou falar com Keith e com os alquimistas para que os nossos pais entrem com uma reclamação.
— Não, espere, Sydney — Jill se levantou de um pulo e me agarrou pelo braço, como se estivesse com medo que eu saísse para fazer aquilo naquele minuto mesmo. — Por favor. Não faça isso. Deixe para lá. Não quero causar mais confusão. Não recebi nenhuma nota ruim. Não recebi nenhum castigo.
— Você vai ficar para trás nas suas aulas — eu disse. — Isso já é castigo suficiente.
Jill sacudiu a cabeça, com olhos arregalados. Percebi que ela estava com medo, mas não fazia ideia de por que não queria que eu dissesse nada. Ela que era a vítima.
— Não, tudo bem. Eu recupero. Não vai haver nenhuma consequência a longo prazo. Por favor, não faça caso disso. Os outros professores só devem ter achado que eu estava passando mal. Nem devem estar sabendo da acusação.
— Mas não está certo — resmunguei. — Eu posso fazer algo a respeito. É por isso que estou aqui, para ajudar você.
— Não — Jill disse, inabalável. — Por favor. Deixe para lá. Se você quiser mesmo me ajudar... — ela desviou o olhar.
— O quê? — perguntei, ainda cheia de fúria por causa da injustiça. — Do que você precisa? Pode dizer.
Jill voltou a erguer os olhos.
— Preciso... preciso que você me leve até Adrian.
7
— Adrian? — eu perguntei, surpresa. — O que ele tem a ver com tudo isso?
Jill simplesmente sacudiu a cabeça e olhou para mim com ar de súplica.
— Por favor. Só me leve até ele.
— Mas nós vamos voltar lá daqui a dois dias para o seu fornecimento.
— Eu sei — Jill respondeu. — Mas preciso falar com ele agora. Ele é o único que vai entender.
Achei difícil de acreditar naquilo.
— Está dizendo que eu não iria entender? Ou que Eddie também não?
Ela gemeu.
— Não. Você não pode contar para Eddie. Ele vai ficar louco da vida.
Tentei não franzir a testa enquanto digeria tudo aquilo. Por que Jill iria precisar falar com Adrian depois daquele percalço na escola? Adrian não poderia fazer nada para ajudar que eu não pudesse. Como alquimista, eu estava na melhor posição para prestar uma queixa. Será que Jill só queria apoio moral? Eu me lembrei de como Jill tinha abraçado Adrian ao se despedir, e de repente fiquei imaginando se ela estaria a fim dele. Afinal, se Jill precisava se sentir protegida por alguém, Eddie certamente seria uma fonte melhor a que recorrer. Seria mesmo? Eddie provavelmente começaria a jogar carteiras para todos os lados pelo ultraje sofrido por Jill. Não dizer isso para ele talvez não fosse má ideia.
— Certo — eu finalmente disse. — Vamos.
Eu peguei permissão para que saíssemos do campus, coisa que exigiu certa negociação. A sra. Weathers foi rápida ao afirmar que Jill tinha sido mandada para o dormitório pelo resto do dia. Eu prontamente observei que as aulas já tinham quase acabado, e isso significava que o dia estava quase terminando. A sra. Weathers não pôde negar a lógica, mas nos fez esperar os dez minutos até o sinal tocar. Jill ficou lá sentada, batendo o pé na cadeira, nervosa.
Fizemos o trajeto de meia hora de carro até a propriedade de Clarence nas montanhas sem conversar muito. Na verdade, eu não sabia que tipo de papo puxar. “Como foi o seu primeiro dia de aula?” não era exatamente um tema apropriado. E, de todo modo, cada vez que eu pensava no assunto só ficava mais irritada. Não dava para acreditar que qualquer professora teria a audácia de acusar Jill de beber e estar de ressaca. Realmente, não havia como comprovar aquilo e, além do mais, dava para perceber que era algo impossível depois de passar cinco minutos com ela.
Uma humana de meia-idade nos recebeu à porta. O nome dela era Dorothy, e ela era a empregada e fornecedora de Clarence. Dorothy era bem agradável, apesar de um pouco distraída, e usava um vestido cinza de tecido encorpado, com gola alta para esconder as marcas de mordida no pescoço. Eu retribuí o sorriso dela e mantive minha pose profissional, mas não pude deixar de estremecer ao pensar o que ela era. Como é que alguém podia fazer uma coisa dessas? Como é que alguém era capaz de oferecer o próprio sangue de bom grado desse jeito? Meu estômago se revirou e eu percebi que mantinha certa distância dela. Não queria nem roçar meu braço nela sem querer quando passasse.
Dorothy nos acompanhou até a sala onde todos tínhamos estado no dia anterior. Não havia sinal de Clarence, mas Adrian estava deitado em um sofá verde de tecido felpudo, assistindo tv em um aparelho que tinha ficado habilmente escondido dentro de um armário de madeira da última vez. Quando ele nos viu, desligou a tv com o controle remoto e se sentou ereto. Dorothy pediu licença e fechou as portas envidraçadas atrás de si.
— Ora, mas que bela surpresa — ele disse, e nos mediu de cima a baixo. Jill tinha vestido suas roupas normais durante o tempo que ficou isolada no quarto, mas eu ainda estava usando a blusa e a saia de Amberwood. — Sage, vocês não tinham que usar uniforme? Essa roupa parece o que você sempre usa.
— Que engraçado — eu disse, e me segurei para não revirar os olhos.
Adrian fez uma reverência irônica para mim.
— Cuidado. Você quase sorriu. — Ele estendeu a mão para pegar uma garrafa de conhaque em uma mesa próxima. Havia copinhos arranjados ao redor dela, e ele se serviu de uma quantidade generosa. — Querem um pouco?
— Estamos no meio da tarde — eu disse, incrédula. Não que a hora do dia fizesse alguma diferença.
— Estou com uma dor de cabeça terrível — ele declarou, e fez um gesto de brindar. — Isso aqui é perfeito para acabar com ela.
— Adrian, preciso conversar com você — Jill disse toda séria.
Ele olhou para ela e o sorrisinho de desdém desapareceu de seu rosto.
— O que foi, Chave de Cadeia?
Jill olhou para mim, pouco à vontade.
— Será que você se importa de...
Entendi a dica e tentei não demonstrar como estava irritada com tantos segredos.
— Claro, eu vou... só vou voltar lá para fora. — Não gostava da ideia de ser exilada, mas não tinha como ficar andando pelos corredores daquela casa velha. Eu tinha que encarar o calor.
Eu não tinha avançado muito pelo corredor quando alguém surgiu na minha frente. Soltei um gritinho e quase dei um salto olímpico. Um piscar de olhos depois, percebi que era Lee — não que isso fosse muito tranquilizador. Por mais que eu me esforçasse para parecer simpática com aquele grupo, antigas defesas dentro de mim se agitaram por estar sozinha com um vampiro novo. Deparar-me com ele de repente também não ajudou em nada, porque o meu cérebro processou aquilo como um ataque! Lee só ficou lá parado, olhando para mim. Pela expressão no rosto dele, estava tão surpreso de me ver na casa dele quanto eu — mas talvez não tenha se assustado tanto.
— Sydney? — Lee perguntou. — O que está fazendo aqui?
Em poucos momentos, meu medo se transformou em vergonha, como se tivesse sido pega bisbilhotando.
— Ah... vim aqui com Jill. Ela teve um dia meio difícil e precisava falar com Adrian. Quis deixar os dois à vontade e estava só indo... hum, lá para fora.
A confusão de Lee se transformou em um sorriso.
— Não precisa fazer isso. Não há necessidade de se isolar. Venha, eu ia fazer um lanche na cozinha. — Meu rosto deve ter mostrado um pavor abjeto, porque ele deu risada. — Não do tipo humano.
Corei e fui atrás dele.
— Desculpe — eu disse. — É instinto.
— Sem problema. Vocês alquimistas se assustam fácil, sabe?
— É — dei uma risada pouco à vontade. — Eu sei.
— Sempre quis conhecer um alquimista, mas vocês com toda a certeza não são o que eu esperava. — Ele abriu a porta para uma cozinha espaçosa. O resto da casa podia ser antiga e escura, mas ali dentro tudo era brilhante e moderno. — Se isso a ajuda a se sentir melhor, você não é tão ruim quanto Keith. Ele passou aqui hoje e estava tão nervoso que ficava literalmente olhando por cima do ombro — Lee fez uma pausa, pensativo. — Talvez tenha sido porque Adrian ficava dando risada feito um cientista louco enquanto assistia a uns filmes velhos em preto e branco.
Eu parei de maneira abrupta.
— Keith esteve aqui... hoje? Para quê?
— Você teria que perguntar ao meu pai. Foi com ele que Keith mais conversou.
Lee abriu a geladeira e pegou uma lata de Coca.
— Quer uma?
— Eu... hum, não. Açúcar demais.
Ele pegou outra lata.
— Zero?
Hesitei apenas por um momento antes de aceitar.
— Claro. Obrigada.
Eu não tinha intenção de comer nem beber nada naquela casa, mas a lata parecia bem segura. Estava selada e parecia ter saído diretamente de um supermercado humano, não de algum caldeirão vampiresco. Abri a lata e dei um gole enquanto a minha mente girava.
— Você não faz ideia do que eles conversaram?
— Hã? — Lee tinha adicionado uma maçã ao seu cardápio e sentado no balcão. — Ah, Keith? Não. Mas, se eu fosse adivinhar, diria que foi sobre mim. Como se ele estivesse tentando entender se eu ia ficar aqui ou não.
Ele deu uma mordida gigantesca na maçã e eu fiquei imaginando se ter caninos tornava aquilo mais fácil.
— Ele só gosta de esclarecer as coisas — eu disse em tom neutro. Por mais que não gostasse de Keith, continuava querendo ter uma equipe humana unida. Mas eu não fui totalmente inexata. Tinha quase certeza de que Keith se sentira prejudicado ao saber que havia um Moroi extra no “território dele”, e agora queria ter certeza de que estava a par de tudo. Em parte isso representava o bom trabalho dos alquimistas, claro, mas possivelmente era mais devido ao orgulho ferido de Keith.
Lee parecia não se incomodar muito com aquilo e continuou mastigando sua maçã, apesar de eu ser capaz de sentir seus olhos me examinando.
— Você disse que Jill teve um dia difícil? Está tudo bem?
— Está, acho que sim. Quer dizer, não sei. Nem sei bem como as coisas se complicaram. Ela queria falar com Adrian por algum motivo. Talvez ele possa ajudar.
— Ele é um Moroi — Lee disse com pragmatismo. — Talvez seja algo que só ele possa entender... algo que você e Eddie não podem. Sem querer ofender.
— Não me ofendi — eu disse. Era natural que Jill e eu tivéssemos diferenças marcantes: eu era humana, e ela era vampira, afinal de contas. Não conseguiríamos ser ainda mais diferentes nem se tentássemos e, de fato, eu meio que preferia que fosse assim. — Você frequenta a faculdade... em Los Angeles? Uma escola humana? — Esse não era um comportamento assim tão estranho para um Moroi. Às vezes eles se agrupavam em suas próprias comunidades; outras vezes tentavam se misturar à multidão em grandes cidades humanas.
Lee assentiu.
— Sim. E para mim também foi difícil no começo. Quer dizer, mesmo sem que os outros obviamente saibam que você é um vampiro... bom, há uma sensação de estranheza que sempre está presente. Eu acabei me acostumando... mas sei o que ela está passando.
— Coitada da Jill — eu disse, e de repente percebi que estava encarando a situação toda da maneira errada. A maior parte da minha energia tinha se fixado no fato de a escola achar que a doença de Jill era ressaca. Em vez disso, eu devia ter me concentrado em saber por que ela estava passando mal, em primeiro lugar. A ansiedade em relação àquela nova mudança de vida devia estar produzindo seus efeitos. Eu tinha lutado contra o meu próprio mal-estar, tentando entender as amizades e os indícios sociais, mas pelo menos eu lidava com minha própria raça. — Eu realmente não parei para pensar sobre o que ela estava passando.
— Quer que eu converse com ela? — Lee perguntou. Ele colocou o talo da maçã de lado. — Não que eu ache que tenho muita sabedoria para compartilhar.
— Qualquer coisa pode ajudar — eu disse com sinceridade.
Um silêncio caiu entre nós e eu comecei a me sentir desconfortável. Lee parecia muito simpático, mas os meus antigos medos estavam arraigados demais. Parte de mim sentia que ele não queria tanto me conhecer, mas sim me estudar. Os alquimistas obviamente eram novidade para ele.
— Será que você se incomoda se eu perguntar... a tatuagem. Ela lhe dá poderes especiais, certo?
Era quase uma repetição da conversa na escola, só que Lee realmente conhecia a verdade por trás dela.
— Não são exatamente poderes. Há uma coerção nela que nos impede de falar a respeito do que nós fazemos. E o meu sistema imunológico fica fortalecido. Mas, de resto, não tenho nada de especial.
— Fascinante — ele murmurou. Desviei o olhar, sem jeito, e tentei colocar o cabelo em cima do rosto como quem não quer nada.
Foi nesse momento que Adrian enfiou a cabeça pela fresta da porta da cozinha. Todo seu bom humor anterior tinha desaparecido.
— Ah, você está aqui. Podemos conversar em particular um segundo?
A pergunta era dirigida a mim, e Lee pulou de cima do balcão.
— Captei a deixa. Jill está no escritório? — Adrian assentiu e Lee deu uma olhada com ar questionador para mim. — Você quer que eu...?
Concordei.
— Seria ótimo. Obrigada.
Lee saiu e Adrian olhou para mim com curiosidade.
— O que foi isso?
— Ah, nós achamos que Lee talvez possa ajudar Jill com os problemas dela — eu expliquei. — Porque ele se identifica.
— Problemas?
— É, sabe como é. Se acostumar a conviver entre humanos.
— Ah — Adrian disse. Ele pegou um maço de cigarros e, para a minha surpresa completa, acendeu bem ali na minha frente. — Isso. É, acho que vai ser bom. Mas não era sobre isso que eu queria falar com você. Preciso que você me tire daqui.
Eu me sobressaltei. Ele não queria falar sobre Jill?
— De Palm Springs? — perguntei.
— Não! Deste lugar — ele fez um gesto apontando o lugar à sua volta. — Parece que estou morando em um asilo! Clarence está tirando uma soneca agora, e ele janta às cinco. É a maior chatice.
— Você só está aqui há dois dias.
— E isso já foi mais do que o suficiente. A única coisa que me mantém vivo é o belo estoque de álcool que tenho à mão. Mas, na velocidade em que eu estou indo, vai acabar tudo até o fim de semana. Jesus Cristo, estou subindo pelas paredes — os olhos dele caíram sobre a cruz no meu pescoço.
— Ah. Desculpe. Sem ofensa a Jesus.
Eu ainda estava chocada demais com o assunto inesperado para me sentir ofendida.
— Mas e Lee? Ele também está aqui, não está?
— Está — Adrian concordou. — Às vezes. Mas ele fica ocupado com... saco, não sei com o quê. Coisas da faculdade. Ele vai voltar para Los Angeles amanhã, e vai ser mais uma noite de tédio para mim. Além do mais... — ele olhou ao redor em atitude conspiratória. — Lee é bem simpático, mas... bom, ele não gosta muito de se divertir. Não como eu me divirto.
— Isso deve ser algo positivo — observei.
— Não me venha com sermões morais, Sage. E, veja bem, como eu disse, até que gosto dele, mas ele não passa tempo suficiente por aqui. Quando está presente, fica na dele. Está sempre se olhando no espelho, até mais do que eu. Ouvi quando estava todo preocupado com cabelos brancos outro dia.
Eu não ligava para as excentricidades de Lee.
— Mas para onde você quer ir? Não vai querer... — uma ideia muito desagradável me ocorreu. — Você não vai querer se matricular em Amberwood, vai?
— O que você acha? Vou brincar de Anjos da lei com vocês? Não, obrigado.
— Anjos do quê?
— Esquece. Olhe — ele apagou o cigarro, no balcão, gesto que eu achei meio ridículo, porque ele mal tinha fumado. Por que se incomodar com um hábito tão imundo se você nem fosse aproveitar? — Preciso ter uma casa só minha, certo? Vocês fazem as coisas acontecerem. Será que você não consegue me arrumar um flat legal como o do Keith no centro para eu poder me divertir com todos os ricos que passam férias aqui? Beber sozinho é triste e patético. Eu preciso de pessoas. Mesmo que sejam pessoas humanas.
— Não — respondi. — Não tenho autorização para fazer isso. Você não é... bom, você não é responsabilidade minha, na verdade. Nós só estamos tomando conta de Jill... e de Eddie, já que ele é o guarda-costas dela.
Adrian desdenhou.
— E um carro? Você consegue isso?
Sacudi a cabeça.
— E o seu carro? E se eu deixar vocês na escola e pegar emprestado por um tempo?
— Não — eu disse logo. Essa foi provavelmente a sugestão mais maluca que ele podia ter feito. O Pingado era o meu bebê. Claro que eu não ia emprestar para um sujeito que bebia tanto, principalmente para alguém que por acaso também era vampiro. Se já existiu um vampiro que parecesse especialmente irresponsável, era Adrian Ivashkov.
— Você está acabando comigo, Sage!
— Não estou fazendo nada.
— Exatamente.
— Olhe — eu falei, cada vez mais irritada. — Eu já disse. Você não é minha responsabilidade. Fale com Abe se quiser mudar as coisas. Não é por causa dele que você está aqui?
O aborrecimento de Adrian e a pena de si mesmo se transformaram em cautela.
— O que você sabe sobre isso?
Certo. Ele não sabia que eu tinha ouvido a conversa deles.
— Quero dizer, foi ele que trouxe vocês para cá e fez o acordo com Clarence, não é? — fiquei torcendo para que fosse convincente o bastante, e que me rendesse um pouco de informação a respeito do grande plano de Abe.
— É — Adrian disse depois de vários segundos de exame intenso. — Mas Abe quer que eu fique nesta tumba. Se eu tivesse uma casa só minha, não poderíamos contar para ele.
Desdenhei.
— Então eu com toda a certeza não vou ajudar, mesmo que pudesse. Nem por todo dinheiro do mundo eu iria contrariar Abe.
Percebi que Adrian estava se preparando para outra discussão e resolvi me retirar. Dei as costas para ele e suas novas reclamações, saí da cozinha e voltei para a sala. Lá encontrei Jill e Lee conversando, e seu rosto estampava o primeiro sorriso sincero que eu tinha visto em um bom tempo. Ela deu risada de algum comentário que ele fez e então ergueu os olhos quando eu entrei.
— Oi, Sydney — ela disse.
— Oi — respondi. — Está pronta para ir embora?
— Já está na hora? — ela perguntou. Ela e Lee pareciam decepcionados, mas ela respondeu sua própria questão. — Acho que está. Você provavelmente tem lição de casa, e Eddie já deve estar preocupado.
Adrian entrou na sala atrás de mim, fazendo bico. Jill deu uma olhada nele e, por um momento, seu olhar se voltou para dentro, como se sua mente tivesse ido parar em outro lugar. Então ela se virou mais uma vez para mim.
— É — ela disse. — Nós precisamos ir andando. Espero que a gente possa conversar depois, Lee.
— Eu também — ele disse e se levantou. — Estarei aqui de vez em quando.
Jill deu um abraço de despedida em Adrian, claramente relutando por deixá-lo para trás também. Com Lee, parecia mais que ela estava triste por abandonar algo que tinha acabado de começar a ficar interessante. Com Adrian, era mais como se ela não soubesse como conseguiria suportar ficar longe dele. O próximo fornecimento dela estava marcado para dali a dois dias, e Adrian a incentivou, dizendo que ela tinha força suficiente para sobreviver ao próximo dia de aula. Apesar de ter ficado me irritando, fiquei comovida com a sua compaixão pela jovem garota. Qualquer pessoa que fosse legal com Jill não podia ser assim tão ruim. Ele estava começando a me surpreender.
— Você parece melhor — disse a ela enquanto seguíamos para Vista Azul.
— Conversar com Adrian... com os dois... ajudou.
— Você acha que vai estar bem amanhã?
— Vou, sim — Jill suspirou e se recostou no assento. — Foi só nervosismo. E não ter tomado muito café da manhã.
— Jill... — mordi o lábio, hesitante em seguir em frente. Confronto não era o meu forte, principalmente em relação a assuntos pessoais constrangedores. — Você e Adrian...
Jill me lançou um olhar de cautela.
— O que tem nós dois?
— Tem alguma coisa... quer dizer, vocês dois...?
— Não! — de canto de olho, vi quando Jill ficou em um tom de rosa forte. Era o máximo de cor que eu já tinha visto no rosto de um vampiro. — Por que está dizendo uma coisa dessas?
— Bom. Você estava passando mal hoje de manhã. E depois fez muita questão de falar com Adrian. Você também sempre fica triste quando se despede dele...
Jill ficou boquiaberta.
— Você acha que eu estou grávida?
— Não exatamente — eu disse ao perceber que aquela era uma resposta meio sem sentido. — Quer dizer, talvez. Não sei. Só estou pensando em todas as possibilidades...
— Bom, não leve essa em conta! Não existe nada entre nós. Nada. Nós somos amigos. Ele nunca se interessaria por mim — ela disse isso com certeza desoladora, e talvez até um pouco melancólica.
— Isso não é verdade — eu disse, esforçando-me para desfazer o dano. — Quer dizer, você é mais nova, é verdade, mas é tão fofa...
Nossa, mas que conversa horrível. Eu só estava falando bobagem.
— Não faça isso — Jill falou. — Não me diga que eu sou legal e bonita e tenho muito a oferecer. Ou sei lá o quê. Nada disso importa. Não se ele continua a fim dela.
— Ela? Ah. Rose.
Eu tinha quase esquecido. A primeira vez que vi Adrian pessoalmente foi na minha visita à corte, mas na verdade já o tinha visto antes uma vez, nas imagens de uma câmera de segurança em um cassino, com Rose. Os dois tinham namorado, mas eu não sabia bem se a relação tinha sido séria ou não. Quando eu ajudei Rose e Dimitri a fugir, a química entre os dois era incrível, apesar de ambos negarem o fato. Até eu teria sido capaz de perceber a um quilômetro de distância, e eu não sabia quase nada sobre relacionamentos. Tendo em vista que Rose e Dimitri formavam um casal oficial agora, eu supunha que as coisas com Adrian não tinham acabado bem.
— É. Rose — Jill suspirou e ficou fitando o nada à sua frente. — A única coisa que ele vê quando fecha os olhos é ela. Olhos escuros brilhantes e um corpo cheio de fogo e energia. Por mais que ele tente esquecer, por mais que ele beba... ela sempre está lá. Ele não consegue fugir dela.
Pingava um amargor surpreendente da voz de Jill. Eu poderia ter atribuído esse amargor ao ciúme, mas ela falava como se também tivesse sido pessoalmente prejudicada por Rose.
— Jill? Está tudo bem com você?
— Hã? Ah — Jill sacudiu a cabeça, como se tentasse se livrar das teias de aranha de um sonho. — Está tudo bem, desculpe. Foi um dia estranho. Estou meio fora de mim. Você não tinha dito que nós poderíamos comprar algumas coisas?
Uma placa para a próxima saída anunciava um shopping.
Entrei na onda da mudança de assunto, contente por me afastar de questões pessoais, mas continuava bem confusa.
— Hum, é. Precisamos de protetor solar. E quem sabe podemos comprar uma tv pequena para o quarto.
— Seria ótimo — Jill disse.
Deixei as coisas assim e segui pela próxima saída. Nenhuma de nós voltou a mencionar Adrian pelo resto da noite.
8
— Você vai comer isso? — Eddie perguntou.
Apesar de não saber de toda a confusão que tinha acontecido com Jill no primeiro dia de aula, não vê-la durante o dia inteiro o havia deixado nervoso. Por isso, quando eu e ela descemos para o segundo dia de aula, ele estava esperando no saguão do nosso alojamento, pronto para tomar café da manhã com a gente.
Empurrei o meu prato com meio bagel para o outro lado da mesa. Ele já tinha acabado com o bagel dele, além de panquecas e bacon, mas aceitou minha oferta com rapidez. Ele até que podia ser uma criatura híbrida antinatural, mas, pelo que eu pude notar, seu apetite era igual ao de qualquer adolescente humano.
— Como você está se sentindo? — ele perguntou a Jill depois de engolir uma bocada de bagel. Como ele havia ouvido falar que ela não tinha ido às aulas, nós simplesmente informamos a Eddie que Jill tinha passado mal de tanta ansiedade ontem. As acusações de ressaca continuavam me irritando, mas Jill insistiu para deixarmos para lá.
— Estou bem — ela respondeu. — Muito melhor.
Não fiz nenhum comentário sobre isso mas, no fundo, tinha lá minhas dúvidas. Jill realmente parecia melhor naquela manhã, mas ela não tinha conseguido dormir muito bem à noite.
Aliás, tinha acordado no meio da madrugada, gritando.
Eu pulei da cama, esperando encontrar nada menos do que cem assassinos Strigoi ou Moroi irrompendo pela janela. Mas, quando olhei, só havia Jill ali, se debatendo e gritando durante o sono. Corri até ela e finalmente consegui acordá-la com certa dificuldade. Ela se sentou ereta, sem fôlego, agarrando o próprio peito. Quando se acalmou, disse que tinha sido apenas um pesadelo, mas havia algo em seus olhos... o resquício de algo real. Isso me lembrou das várias vezes em que eu havia acordado achando que os alquimistas tinham chegado para me levar para um centro de reeducação.
Ela insistiu que estava bem e, quando a manhã chegou, a única menção que fez ao pesadelo foi para reforçar que não contássemos a Eddie.
— Só vai servir para deixá-lo preocupado — ela disse. — E, além disso, não é nada de mais.
Eu até concordei, mas quando tentei perguntar o que tinha acontecido, ela mudou de assunto e se recusou a discutir a questão.
Depois, no café da manhã, ela sem dúvida demonstrava um certo nervosismo, mas, até onde eu sabia, isso estava mais relacionado a finalmente ter que enfrentar seu primeiro dia em uma escola dos humanos.
— Ainda não consegui superar o fato de que sou tão diferente de todo mundo — ela disse em tom baixo. — Quer dizer, para começo de conversa, eu sou mais alta do que quase todas as outras meninas aqui! — Era verdade. Não era incomum as Moroi chegarem a um metro e oitenta de altura. A altura de Jill não chegava a tanto, mas sua silhueta alongada e delgada fazia com que parecesse mais alta do que era de verdade. — E eu sou muito ossuda.
— Não é, não — eu disse.
— Sou magra demais... comparada a elas — Jill argumentou.
— Todo mundo tem alguma coisa — Eddie retrucou. — Aquela menina ali tem uma tonelada de sardas. Aquele cara raspou a cabeça. Não existe essa coisa de “normal”.
Jill ainda parecia em dúvida, mas foi para a aula obediente quando o primeiro sinal tocou e prometeu se encontrar com Eddie para almoçar e comigo na educação física.
Cheguei à aula de história alguns minutos adiantada. A sra. Terwilliger estava em pé ao lado da mesa, mexendo em alguns papéis, e me aproximei com hesitação.
— Professora?
Ela ergueu os olhos para mim e empurrou os óculos para cima do nariz.
— Humm? Ah, eu me lembro de você. Srta. Melbourne.
— Melrose — corrigi.
— Tem certeza? Eu podia jurar que o seu nome era o mesmo de algum lugar na Austrália.
— Bom, o meu primeiro nome é Sydney — eu disse, sem saber muito bem se devia incentivá-la.
— Ah. Então não estou louca. Não por enquanto, pelo menos. Em que posso ajudar, srta. Melrose?
— Eu queria perguntar... bom, veja bem, eu tenho uma lacuna no horário de aulas porque já atendi a todos os requisitos de línguas. Queria saber se a senhora não precisa de outro monitor... igual ao Trey — o supracitado Trey já estava presente, sentado em uma carteira alocada para ele e organizando papéis. Ele ergueu os olhos quando ouviu seu nome e me olhou com desconfiança. — É o último período, professora. Então, se houver algum trabalho extra de que precisa...
Os olhos dela me avaliaram durante vários momentos antes que respondesse. Eu tinha me assegurado de cobrir a minha tatuagem, mas parecia que ela estava olhando diretamente para ela.
— Não preciso de outro monitor — ela disse de modo direto. Trey deu um sorriso sacana. — O sr. Juarez, apesar de suas muitas limitações, é mais do que capaz de dar conta de todas as minhas pilhas de papel — o sorrisinho dele desapareceu com aquele elogio malsucedido.
Assenti e comecei a me afastar, decepcionada.
— Tudo bem. Eu compreendo.
— Não, não. Acho que não. Sabe, eu estou escrevendo um livro — ela fez uma pausa, e percebi que estava esperando que eu parecesse impressionada. — Sobre religião herege e magia no mundo greco-romano. Já dei aulas sobre isso na Faculdade Carlton. É um assunto fascinante.
Trey segurou uma tosse.
— Então, eu realmente estava precisando de um assistente de pesquisa para me ajudar a encontrar certas informações, executar pequenas tarefas, esse tipo de coisa. Estaria interessada?
Fiquei boquiaberta.
— Claro, professora. Muito.
— Para que você conseguisse crédito como estudo independente, teria que fazer algum projeto paralelo... pesquisa e trabalho próprios. Não precisa nem chegar perto do tamanho do meu livro, é claro. Há algo dessa época que a interessa?
— Hum, sim — eu mal conseguia acreditar. — Arte e arquitetura clássicas. Eu adoraria poder estudar mais sobre isso.
Agora ela parecia impressionada.
— É mesmo? Então parece que nós formamos uma combinação perfeita. Bom, quase. É uma pena você não saber latim.
— Bom... — desviei o olhar. — Eu, hum, na verdade... eu sei ler latim — arrisquei dar mais uma olhada nela. Em vez de impressionada, ela estava mais para estupefata.
— Nossa. Mas que coisa — ela sacudiu a cabeça, inconformada. — Tenho até medo de perguntar sobre grego. — O sinal tocou. — Vá para o seu lugar, depois venha falar comigo no fim do dia. O último período é o meu horário de planejamento, então vamos ter tempo de sobra para conversar e preencher a papelada necessária.
Voltei para a minha carteira e Eddie tocou seu punho fechado no meu, em aprovação.
— Belo trabalho. Agora você não vai precisar fazer uma aula de verdade. Claro que, se ela fizer você ler em latim, vai ser pior do que uma aula de verdade.
— Eu gosto de latim — respondi com absoluta seriedade. — É divertido.
Eddie sacudiu a cabeça e disse bem baixinho:
— Não acredito que você acha que nós somos os estranhos.
Os comentários de Trey na aula seguinte foram menos elogiosos.
— Uau, mas você realmente tem Terwilliger na palma da mão. — Ele apontou com a cabeça na direção da professora de química. — Vai dizer a ela que desmembra átomos nas horas livres? Tem um reator no quarto?
— Não há nada de errado em... — interrompi a mim mesma, sem ter certeza do que dizer. Quase falei “ser inteligente”, mas ia parecer muito arrogante. — Não há nada de errado em saber as coisas — eu finalmente disse.
— Claro — ele concordou. — Quando o conhecimento é legítimo.
Eu me lembrei da conversa maluca com Kristin e Julia no dia anterior. Como tive que levar Jill até Adrian, tinha perdido a sessão de estudos e não pude dar continuidade às perguntas sobre a minha tatuagem. Mesmo assim, pelo menos sabia de onde vinha o desdém de Trey — apesar de parecer absurdo. Ninguém mais na escola tinha mencionado especificamente o fato de a minha tatuagem ser especial, mas várias pessoas já tinham se aproximado para perguntar onde eu a tinha feito. Ficavam decepcionados quando eu respondia que tinha sido na Dakota do Sul.
— Olhe, não sei de onde veio esta ideia de que a minha tatuagem me deixa inteligente, mas se é o que você pensa, bom... não pense. É só uma tatuagem.
— Ela é dourada — ele argumentou.
— E daí? — perguntei. — É só uma tinta especial. Não entendo por que as pessoas acreditam que tenha alguma propriedade mística. Quem acredita nessas coisas?
Ele deu uma gargalhada de desdém.
— Metade desta escola acredita. Então, como é que você é tão inteligente?
Será que eu era uma aberração assim tão grande no quesito acadêmico que as pessoas tinham que recorrer a explicações sobrenaturais? Dei a minha resposta de sempre.
— Fui educada em casa.
— Ah — Trey disse, pensativo. — Isso explica tudo.
Suspirei.
— Mas aposto que a sua educação em casa não ajudou muito com a educação física — ele completou. — O que vai fazer a respeito da exigência de prática esportiva?
— Não sei, não tinha pensado sobre esse assunto — respondi, me sentindo um pouco desconfortável. Eu era capaz de dar conta do conteúdo acadêmico de Amberwood enquanto dormia. Mas a parte atlética? Não sabia dizer.
— Bom, é melhor decidir logo, o prazo final está chegando. Não fique com uma cara tão preocupada — ele completou. — Quem sabe deixam que você abra um clube de latim em vez disso.
— O que você quer dizer com isso? — perguntei sem gostar nada do tom dele. — Eu já pratiquei esportes.
Ele deu de ombros.
— Você é que sabe. Não parece ser do tipo atlético. Você parece muito... arrumadinha.
Não sabia dizer se isso era um elogio ou não.
— Qual é o seu esporte?
Trey levantou o queixo, parecendo muito orgulhoso de si mesmo.
— Futebol americano. Um esporte para homens de verdade.
Um sujeito que estava sentado por perto ouviu o que ele disse e olhou para trás.
— Pena que você não vai ficar com a vaga de lançador, Juarez. Chegou tão perto no ano passado... Parece que vai se formar sem realizar mais esse sonho.
Eu achava que Trey não gostava de mim — mas quando ele voltou a atenção para o outro sujeito foi como se a temperatura caísse dez graus. Percebi naquele momento que Trey só gostava de pegar no meu pé. Mas, com esse outro cara... Trey o desprezava completamente.
— Não me lembro de você estar no páreo, Slade — Trey retrucou com olhos duros. — Por que você acha que vai ficar com a posição este ano?
Slade — não ficou claro se esse era seu nome ou sobrenome — trocou olhares significativos com dois amigos.
— É só uma sensação — eles se viraram para o outro lado, e Trey desdenhou.
— Maravilha — resmungou. — Slade finalmente conseguiu juntar dinheiro para fazer uma. Quer saber sobre tatuagens? Vá falar com ele.
Minha primeira impressão me dizia que Slade não era alguém com quem eu iria gostar de conversar, mas Trey não deu mais explicações. A aula logo começou, mas enquanto eu tentava me concentrar na lição, só conseguia pensar na obsessão que Amberwood parecia ter com tatuagens. O que aquilo significava?
Quando chegou a hora da educação física, fiquei aliviada ao ver Jill no vestiário. A menina Moroi me lançou um sorriso cansado enquanto saímos para a quadra.
— Como foi o seu dia? — perguntei.
— Tudo bem — Jill respondeu. — Não foi ótimo. Não foi péssimo. Na verdade, não conheci muita gente. — Ela não falou nada, mas seu tom implicava o seguinte: “Está vendo? Eu disse que ia parecer esquisita”.
Mas, quando a aula começou, notei que o problema era que Jill passava despercebida demais. Ela evitava olhar nos olhos das pessoas, deixando-se levar pelo nervosismo, e não fazia nenhum esforço para conversar. Ninguém a deixava de lado de maneira explícita, mas com as vibrações que ela passava, ninguém se dava ao trabalho de falar com ela. Eu com certeza não era a pessoa mais sociável do mundo, mas, mesmo assim, sorria e tentava conversar com os meus colegas enquanto treinávamos jogadas de vôlei. Era o suficiente para alimentar faíscas de amizade.
Também reparei logo em outro problema. A turma tinha sido dividida em quatro times, que disputavam dois jogos simultâneos. Jill estava no outro jogo, mas de vez em quando eu dava uma olhada nela. Ela parecia arrasada e esgotada depois de dez minutos, mesmo sem participar muito do jogo. Os reflexos dela também eram ruins. Várias bolas passaram por ela, e as que percebeu foram recebidas com manobras desajeitadas. Alguns de seus colegas de time trocavam olhares de frustração por trás das costas dela.
Voltei a atenção ao meu próprio jogo, ainda preocupada com ela, bem quando o outro time lançou uma bola para uma zona que não estava bem defendida pelo meu time. Eu não tinha os reflexos que, digamos, um dampiro tinha, mas, naquela fração de segundo, o meu cérebro percebeu que eu seria capaz de bloquear a bola se me movesse com rapidez suficiente. Fazer isso era contra os meus instintos naturais, aqueles que me diziam: Não faça nada que possa machucar ou te sujar. Eu sempre tinha raciocinado com cuidado antes de tomar qualquer atitude; nunca agi por impulso. Mas não dessa vez. Eu tinha que deter aquela bola. Mergulhei na direção dela e a passei para outro colega de time, que então pôde mandá-la para o outro lado da rede e fora de perigo. A jogada me fez cair de joelhos com tudo, não foi nada graciosa e fez os meus dentes se chocarem, mas eu tinha conseguido impedir que o time adversário marcasse ponto. Os meus colegas de time comemoraram e eu fiquei surpresa ao me pegar dando risada. Eu sempre havia sido treinada só para fazer coisas que tivessem algum motivo maior e concreto. Esportes eram uma coisa meio contrária ao modo de vida dos alquimistas, porque serviam apenas para diversão. Talvez um pouco de diversão não fosse assim tão ruim de vez em quando.
— Ótimo, Melrose — a srta. Carson disse ao se aproximar. — Se você quiser adiar o seu esporte até o inverno e ficar no time de vôlei, venha falar comigo mais tarde.
— Muito bem — Micah disse e me ofereceu a mão. Sacudi a cabeça e me levantei sozinha. Fiquei desanimada ao ver um arranhão na minha perna, mas continuava sorrindo de orelha a orelha. Se alguém tivesse me dito duas semanas antes que eu ficaria assim tão feliz de rolar no chão, eu não teria acreditado. — Ela não costuma fazer muitos elogios.
Era verdade. A srta. Carson já tinha pegado no pé de Jill várias vezes, e agora parava o nosso jogo para corrigir a postura relaxada de um dos nossos colegas de time. Eu aproveitei o intervalo para observar Jill, cujo jogo prosseguia. Micah seguiu o meu olhar.
— Não é coisa de família, certo? — ele perguntou, solidário.
— Não — murmurei. Meu sorriso desapareceu. Senti uma pontada de dor no peito por me exaltar tanto com meu próprio triunfo quando ela obviamente estava tendo tanta dificuldade. Não parecia justo.
Jill ainda parecia exausta, e seu cabelo encaracolado estava empapado de suor. Pontos cor-de-rosa tinham aparecido em sua bochecha, dando a ela um ar febril, e ela parecia se esforçar ao máximo para continuar de pé. Era estranho Jill ter tanta dificuldade. Eu tinha ouvido uma breve conversa em que ela e Eddie discutiam golpes de defesa e combate, o que me dera a impressão de que Jill era bem atlética. Ela e Eddie tinham até falado em treinar mais tarde naquela mesma noite e...
— O sol — resmunguei.
— Hã? — Micah perguntou.
Eu tinha mencionado as minhas preocupações a respeito do sol a Stanton, mas ela as tinha desprezado. Ela apenas aconselhou Jill a tomar cuidado e ficar em ambientes fechados — o que Jill fez. Exceto quando as exigências da escola a forçavam a fazer uma aula ao ar livre, claro. Obrigarem Jill a praticar esportes sob o sol escaldante de Palm Springs era uma crueldade. Era impressionante o fato de ela ainda estar em pé.
Suspirei e fiz uma anotação mental para falar com os alquimistas mais tarde.
— Vamos ter que pedir uma dispensa médica para ela.
— Do que você está falando? — Micah perguntou. O jogo havia recomeçado e ele se colocou na posição ao meu lado.
— Ah. Jill. Ela... ela é sensível ao sol. É mais ou menos uma alergia.
Como se estivesse aproveitando a deixa, ouvimos a srta. Carson exclamar da outra quadra:
— Melrose Júnior! Está cega? Não viu a bola vindo bem para cima de você?
Jill balançou o corpo, mas aceitou a crítica, cabisbaixa.
Micah ficou observando as duas com a testa franzida e, assim que a srta. Carson saiu para reclamar com outra pessoa, ele saiu correndo da formação do nosso time e foi até o jogo de Jill. Apressada, tentei cobrir a posição dele e a minha. Micah foi até um sujeito ao lado de Jill, cochichou alguma coisa e apontou para mim. Um momento depois, o sujeito correu para o meu time e Micah ficou com a posição ao lado de Jill.
Conforme a aula seguia, eu percebi o que estava acontecendo. Micah era bom no vôlei — muito bom. Tanto que foi capaz de defender a posição dele e também a de Jill. Sem ver mais nenhum erro crasso, a srta. Carson voltou a atenção para outro lugar e o time de Jill ficou um pouco menos hostil em relação a ela. Quando o jogo terminou, Micah pegou o braço de Jill e a levou com rapidez até a sombra. Pelo modo como ela cambaleava, parecia que ele era a única coisa que a mantinha de pé.
Eu estava para me juntar a eles quando ouvi vozes elevadas ao meu lado.
— Vou fazer hoje à noite. O cara com quem eu falei jura que vai ficar incrível — era Slade, o sujeito que tinha discutido com Trey antes. Eu não tinha percebido no sol no meio do jogo, mas ele era o garoto com quem Micah tinha trocado de lugar. — É melhor que fique mesmo — Slade prosseguiu — pelo valor que ele está me cobrando.
Dois amigos de Slade se juntaram a ele quando tomou o rumo do vestiário.
— Quando vão ser os testes, Slade? — um dos amigos perguntou. Na aula de química, eu havia descoberto que o nome de Slade era Greg, mas aparentemente todo mundo se referia a ele pelo sobrenome, até os professores.
— Sexta-feira — Slade disse. — Eu vou matar. Tipo, destruir todo mundo completamente. Vou arrancar o couro do Juarez e fazer ele comer.
Que amor, eu pensei enquanto observava o grupinho se afastar. Minha avaliação inicial de Slade tinha sido correta. Eu me virei para Jill e Micah e vi que ele tinha pegado uma garrafa de água para ela. Eles pareciam bem por ora, por isso chamei a atenção da srta. Carson quando ela passou.
— A minha irmã passa mal no sol — eu disse. — Fica muito difícil para ela.
— Muitos alunos têm problemas com o sol no começo — a srta. Carson disse com ar de quem sabe do que está falando. — Só precisam se fortalecer. Você se virou bem.
— É, bom, nós somos bem diferentes — eu disse, seca. Ah, se ela soubesse. — Não acho que ela vá se acostumar.
— Não posso fazer nada — a srta. Carson disse. — Se eu permitir que ela não jogue, você tem ideia de quantos outros alunos de repente vão se sentir “cansados” pelo sol? A menos que ela tenha uma dispensa médica, vai ter que aguentar.
Agradeci e fui me juntar a Jill e Micah. Ao me aproximar, ouvi Micah dizer:
— Vá tomar um banho. Eu acompanho você até a próxima aula. Não quero que você saia desmaiando pelos corredores — ele fez uma pausa e refletiu. — Claro que eu vou ficar muito feliz em segurar você caso realmente desmaie.
Jill estava compreensivelmente tonta, mas bem o suficiente para agradecê-lo. Ela lhe disse que se encontraria com ele em breve e foi para o vestiário feminino comigo. Vi o sorriso estampado no rosto de Micah e um pensamento preocupante me ocorreu. Jill parecia bem estressada, por isso resolvi não dizer nada, mas a minha preocupação cresceu quando saímos para o último período. Micah acompanhou Jill, como tinha prometido, e disse a ela mais tarde, quando anoiteceu, que podia ensiná-la a jogar vôlei se ela quisesse.
Enquanto estávamos paradas na frente da sala de aula, uma menina de cabelo ruivo comprido e atitude arrogante passou por nós, seguida por um grupinho de outras garotas. Ela fez uma pausa quando viu Micah e jogou o cabelo por cima do ombro, lançando um enorme sorriso para ele.
— Oi, Micah.
Micah estava tão concentrado em Jill que mal olhou na direção da outra garota.
— Ah, oi, Laurel.
Ele saiu andando e Laurel ficou observando com uma expressão sombria enquanto ele se afastava. Ela lançou um olhar perigoso para Jill, jogou o cabelo comprido por cima do outro ombro e saiu pisando firme.
Opa, eu pensei ao vê-la andando com passos pesados pelo corredor. Será que isso vai voltar para nos assombrar? Foi um daqueles momentos em que eu desejava ter tido uma aula sobre comportamento social.
Fui para a sala da sra. Terwilliger em seguida, e passei a maior parte desse encontro inicial estabelecendo os objetivos do semestre e esboçando o que eu faria para ela. Teria que ler e traduzir muito, o que para mim era ótimo. Também parecia que metade do meu trabalho consistiria em organizar tudo para ela — e eu era excelente nisso. O tempo voou e, assim que fui liberada, corri ao encontro de Eddie. Ele estava esperando com um grupo de garotos na parada de ônibus para voltar ao alojamento.
Quando me viu, sua reação foi a de sempre:
— Está tudo bem com Jill?
— Tudo certo... bom, mais ou menos. Podemos conversar em algum lugar?
O rosto de Eddie se fechou, sem dúvida imaginando que havia uma legião de Strigoi a caminho dali para caçá-la. Nós voltamos para dentro de um dos prédios acadêmicos e encontramos cadeiras em um canto isolado que recebia a potência total do ar-condicionado. Fiz um relatório rápido sobre Jill e suas desventuras debaixo do sol na educação física.
— Não achei que fosse ser assim tão ruim — Eddie disse, sombrio, ecoando os meus pensamentos. — Graças a Deus Micah estava lá. Você pode fazer alguma coisa?
— Posso, acho que podemos conseguir algo com os nossos “pais” ou com um médico. — Por mais que odiasse a ideia, completei: — Keith pode nos ajudar a acelerar o processo.
— Que bom — Eddie disse, firme. — Não podemos permitir que ela seja judiada. Falarei com a professora pessoalmente, se for necessário.
Escondi um sorriso.
— Bom, espero que não chegue a tanto. Mas tem mais uma coisa... nada perigoso — completei com rapidez, ao ver aquela expressão combatente passar por seu rosto mais uma vez. — É só uma coisa... — tentei não dizer as palavras que estavam pipocando na minha cabeça. Terrível. Errada. — Preocupante. Acho... acho que Micah gosta de Jill.
O rosto de Eddie ficou paralisado.
— Claro que ele gosta dela. Ela é legal. Ele é legal. Ele gosta de todo mundo.
— Não é isso que eu estou dizendo, e você sabe muito bem o que quero dizer. Ele gosta dela. Do jeito que é mais do que amizade. O que nós vamos fazer a respeito disso?
Eddie fitou o outro lado do corredor por alguns momentos antes de se voltar mais uma vez para mim.
— Por que nós precisamos fazer alguma coisa?
— Como é que você pode perguntar uma coisa dessas? — exclamei, chocada com a resposta. — Você sabe por quê. Humanos e vampiros não podem ficar juntos! É repugnante e errado — as palavras saltaram da minha boca antes que eu pudesse segurá-las. — Até um dampiro como você devia saber disso.
Ele deu um sorriso desolado.
— “Até um dampiro como eu”?
Suponho que tenha sido um pouco insultante, mas não tinha como evitar. Os alquimistas — eu incluída — nunca acreditavam que os dampiros e os Moroi se preocupavam o suficiente com problemas que eram importantes para nós. Eles até podiam reconhecer um tabu como aquele, mas anos de treinamento diziam que só nós, os humanos, realmente levávamos isso a sério. Esse era o motivo pelo qual o trabalho dos alquimistas era tão importante. Se nós não cuidássemos daquelas questões, quem cuidaria?
— Estou falando sério — disse a ele. — Isso é algo com que todos nós concordamos.
O sorriso dele sumiu.
— É mesmo.
Até Rose e Dimitri, que tinham alta tolerância para loucura, tinham ficado chocados quando conheceram os conservadores, Moroi rebeldes que se relacionavam livremente com dampiros e humanos. Era um tabu que nós três compartilhávamos, e tínhamos nos esforçado muito para tolerar o costume durante o tempo que passamos com os conservadores. Eles viviam escondidos nas montanhas Apalache e haviam fornecido um refúgio excelente para Rose quando ela estava foragida. Ignorar seus modos selvagens tinha sido um preço aceitável pela segurança que eles nos ofereciam.
— Você pode falar com ele? — pedi. — Não acho que Jill tenha qualquer sentimento forte por ele. Ela tem muito mais coisas com que se preocupar. De todo modo, deve saber que é melhor não se aproximar... mas, mesmo assim, seria melhor se você pudesse desencorajá-lo. Podemos acabar com isso antes que ela se envolva.
— O que você quer que eu diga? — Eddie perguntou. Ele parecia perdido, e achei isso engraçado, levando em conta que estava pronto para fazer qualquer tipo de exigência à srta. Carson em nome de Jill.
— Sei lá. Dê uma de irmão mais velho. Aja como se quisesse protegê-la. Diga que ela é nova demais.
Eu achava que Eddie iria concordar, mas ele mais uma vez desviou o olhar.
— Não sei se devemos dizer alguma coisa.
— O quê? Está louco? Você acha que tudo bem se...
— Não, não — ele suspirou. — Não estou defendendo isso. Mas olhe para a situação da seguinte maneira. Jill está em uma escola cheia de humanos. Não é justo se ela for proibida de conversar com todos os caras.
— Acho que Micah quer mais do que conversar.
— Bom, e por que ela não pode sair com alguém de vez em quando? Ou ir a um baile? Ela devia fazer todas as coisas normais que as meninas da idade dela fazem. A vida dela já sofreu mudanças radicais. Não devemos torná-la ainda mais difícil.
Olhei descrente para ele, tentando entender por que estava tão tranquilo em relação a isso. Claro que ele não iria encarar as mesmas consequências que eu. Se os meus superiores descobrissem que eu estava “incentivando” um namoro entre um humano e uma vampira, seria mais uma prova contra mim e a minha suposta tendência a proteger vampiros. Lá no fundo, eu sempre soube que havia a possibilidade de haver um centro de reeducação à minha espera. Ainda assim, eu sabia que o pessoal de Eddie também não gostaria da ideia. Então, qual era o problema? Uma hipótese estranha de repente me ocorreu.
— Acho que você simplesmente não quer confrontar Micah.
Eddie olhou bem para mim.
— É complicado — disse. Algo em seu rosto me dizia que eu tinha acertado o alvo. — Por que você não fala com a Jill? Ela conhece as regras. Vai entender que pode ficar com ele, mas só se não for nada sério.
— Acho que é uma má ideia — eu disse, ainda incapaz de acreditar que ele estava tendo aquela atitude. — Nós estamos criando uma área cinzenta aqui que vai acabar nos trazendo confusão. Nós podemos manter tudo preto no branco e proibir que ela saia com alguém enquanto estiver aqui.
Aquele sorriso seco voltou.
— Tudo é tão preto no branco com vocês, alquimistas, não é mesmo? Vocês acham que realmente podem impedir que ela faça qualquer coisa? Devia saber que as coisas não funcionam assim. Até a sua infância não deve ter sido tão anormal.
Com esse tapa na cara, Eddie saiu pisando firme e me deixou em choque. O que tinha acabado de acontecer? Como Eddie podia achar que tudo bem Jill sair com Micah? Logo ele, que fazia tanta questão de fazer sempre o que era certo para Jill? Havia algo estranho acontecendo ali, algo ligado a Micah, apesar de eu não conseguir entender o quê. Bom, eu me recusei a deixar o assunto para lá. Era importante demais. Eu conversaria com Jill para ter certeza de que ela sabia distinguir o certo do errado. Se fosse necessário, também iria conversar com Micah — apesar de ainda achar melhor que a conversa partisse de Eddie.
E, ao lembrar que eu tinha que ir atrás de uma dispensa médica, pensei em mais uma fonte que tinha muita influência sobre Jill à qual eu poderia apelar.
Adrian.
Eu teria que fazer mais uma visita no futuro.
9
Levando em conta que eu só deveria visitar a casa de Clarence duas vezes por semana para os fornecimentos, fiquei surpresa ao perceber que eu estava indo lá quase todos os dias. Além disso, essa era a primeira vez que eu ia à propriedade sozinha. Antes, eu tinha estado lá com Keith ou com Jill, sempre com um objetivo bem definido. Agora, eu estava sozinha. Não tinha me dado conta de como isso me apavorava até me aproximar da casa, que pareceu ainda mais imponente e sombria que o normal.
Não há nada a temer, disse a mim mesma. Você passou a semana toda com uma vampira e um dampiro. Já devia estar acostumada. Além do mais, na realidade, a coisa mais assustadora do lugar era a casa em si. Clarence e Lee não eram de intimidar tanto assim, e Adrian... bom, Adrian era basicamente o vampiro menos assustador que eu já tinha conhecido. Ele agia demais como um pirralho para suscitar qualquer medo real e, na verdade... por mais que eu detestasse reconhecer, eu meio que estava ansiosa para vê-lo. Não fazia sentido, mas algo em sua natureza enfurecedora fazia com que eu me esquecesse das minhas outras preocupações. Estranhamente, eu sentia que podia relaxar perto dele.
Dorothy me acompanhou pelo corredor e achei que seria levada para a sala de estar mais uma vez. Em vez disso, a empregada me conduziu por curvas e corredores escuros da casa e finalmente chegamos a um salão de bilhar que poderia ter saído diretamente de um tabuleiro de Detetive. Mais madeira escura forrava o aposento e janelas de vitrais coloridos filtravam a luz do sol que entrava. A maior parte da iluminação vinha de uma luminária que pendia sobre uma mesa de sinuca verde, toda rebuscada. Adrian estava se preparando para uma tacada quando fechei a porta atrás de mim.
— Ah — ele disse, ao jogar a bola vermelha dentro de uma caçapa. — É você.
— Estava esperando outra pessoa? — perguntei. — Estou interrompendo sua agenda social? — Fiz uma encenação olhando ao redor da sala vazia. — Não quero fazer você se afastar da multidão de fãs batendo à sua porta.
— Ei, a gente pode ter esperança. Quer dizer, não é impossível que um carro cheio de garotas da faculdade com roupas ínfimas quebre ali na rua e elas precisem da minha ajuda.
— É verdade — eu disse. — Talvez eu possa colocar uma placa na frente da casa que diga: “Atenção, garotas: ajuda grátis aqui”.
— “Atenção, garotas gostosas” — ele corrigiu e aprumou o corpo.
— Certo — eu disse, tentando não revirar os olhos. — Essa é uma distinção importante.
Ele apontou para mim com o taco de sinuca.
— Falando em gostosa, gostei do uniforme.
Dessa vez, realmente revirei os olhos. Depois da última vez, quando Adrian tinha brincado que o meu uniforme se parecia com as minhas roupas normais, tratei de tirá-lo antes de ir para lá naquele dia. Eu estava usando jeans escuro e uma blusa estampada de preto e branco com gola de babados. Devia ter previsto que a troca de roupa não me pouparia dos seus comentários engraçadinhos.
— Só você está aqui? — perguntei ao notar seu jogo solitário.
— Que nada. Clarence está por aí fazendo... não sei o quê. Alguma coisa de velho. E acho que Lee está consertando aquela fechadura antes de voltar para Los Angeles. É meio engraçado. Parece que ele está aborrecido por precisar usar ferramentas. Ele fica achando que a força das próprias mãos devia ser suficiente.
Não pude deixar de sorrir.
— Acredito que você não tenha se oferecido para ajudar, certo?
— Sage — Adrian declarou. — Estas mãos não executam trabalho pesado. — Ele jogou outra bola em uma caçapa. — Quer jogar?
— O quê? Com você?
— Não, Sage, com Clarence — ele suspirou ao ver a minha cara de quem não estava entendendo nada. — É claro que é comigo.
— Não. Preciso conversar com você sobre a Jill.
Ele ficou em silêncio por alguns momentos e então retomou o jogo como se nada tivesse acontecido.
— Ela não passou mal hoje — ele disse com segurança, apesar de haver um tom amargo estranho em suas palavras.
— Não. Bom, não da mesma maneira. Ela passou mal no sol durante a educação física. Vou falar com Keith depois que sair daqui para ver se conseguimos uma dispensa médica. — Na verdade, eu tinha tentado ligar para ele antes, sem sorte. — Mas não foi por isso que eu vim aqui. Tem um cara que gosta de Jill... um humano.
— Peça a Castile para dar uma dura nele.
Eu me recostei e suspirei.
— Essa é a questão. Eu pedi. Bom, não exatamente para dar uma dura. É o colega de quarto dele. Eu pedi a Eddie para dizer a ele que se afastasse, e para inventar alguma desculpa... tipo dizer que ela é muito nova. — Com medo de que Adrian fosse tão relapso a esse respeito quanto Eddie, eu perguntei: — Você compreende por que é importante, não é? Moroi e humanos não podem namorar, certo?
Ele observava a mesa, e não a mim.
— É, concordo com você, Sage. Mas, mesmo assim, não entendi qual é o problema.
— Eddie se nega a falar com ele. Diz que não acha que Jill deva ser impedida de aproveitar a chance de namorar e ir a bailes. Que tudo bem se ela e Micah saírem, desde que não fique sério.
Adrian era bom em esconder seus sentimentos, mas aparentemente eu o tinha pegado de surpresa. Ele endireitou o corpo e começou a girar a base do taco no chão enquanto pensava.
— Isso é estranho. Quer dizer, eu entendo a lógica, e ele tem certa razão. Ela não deve ser forçada a se isolar enquanto estiver aqui. Só estou surpreso por Castile ter dito isso.
— Pois é, mas é um conceito difícil de seguir. Qual é o limite entre o que é “sério” e o que não é? Sinceramente, tenho a sensação de que Eddie simplesmente não quis confrontar Micah... o colega de quarto dele. E isso é loucura, porque Eddie não parece ser do tipo que tem medo de nada. O que Micah tem para deixar Eddie tão desconfortável?
— Esse Micah é algum tipo de sujeito grandalhão?
— Não — respondi. — Ele tem um bom físico, acho. É bom nos esportes. Muito simpático e bom de conversa... não é do tipo que iria se voltar contra você se dissesse a ele que não é para sair com a sua irmã.
— Então você pode conversar com ele. Ou pode só conversar com a Chave de Cadeia e explicar as coisas para ela — Adrian parecia satisfeito por ter solucionado o problema e encaçapado a última bola.
— Esse era o meu plano. Só queria ter certeza de que você me apoiaria. Jill escuta o que você diz, e achei que seria mais fácil se ela soubesse que você concorda comigo. Não que eu saiba como ela se sente. Até onde eu sei, isso tudo é exagero.
— Não faz mal nenhum sermos cuidadosos em relação a ela — Adrian disse. Ele ficou fitando o nada, perdido em seus próprios pensamentos. — E vou dizer a ela o que eu acho disso.
— Obrigada — eu disse, um pouco surpresa com a facilidade daquilo.
Os olhos deles dançavam, marotos.
— Agora, será que você jogaria uma partida comigo?
— Eu, na verdade, não...
A porta se abriu e Lee entrou vestido casualmente, com jeans e camiseta. Ele trazia na mão uma chave de fenda.
— Oi, Sydney. Achei mesmo que tinha visto o seu carro lá fora — ele deu uma olhada ao redor. — Hum, Jill veio com você?
— Hoje, não — respondi. Tive uma ideia quando me lembrei de que Lee estudava em Los Angeles. — Lee, você já namorou alguma garota humana na sua faculdade?
Adrian arqueou a sobrancelha.
— Está convidando Lee para sair, Sage?
Eu me irritei.
— Não!
Lee ficou pensativo.
— Não, na verdade, não. Tenho alguns amigos humanos, e nós saímos em grupo e passamos um tempo juntos... mas nunca fiz mais do que isso. Só que Los Angeles é uma cidade grande. Há garotas Moroi por lá, se você souber onde procurar.
Adrian se animou.
— É mesmo?
A minha esperança de que Lee pudesse dizer a Jill que ele também tinha evitado namorar.
— Então a sua facilidade em arranjar encontros deve ser bem maior do que a de Jill.
— Como assim? — Lee perguntou.
Contei a ele tudo sobre Micah e Eddie. Lee foi assentindo enquanto escutava, pensativo.
— Isso é complicado — ele reconheceu.
— Será que podemos voltar à parte das garotas Moroi que circulam por Los Angeles? — Adrian perguntou, todo esperançoso. — Será que você poderia me apresentar a algumas das... ah, digamos, das que têm a mente mais aberta?
Mas a atenção de Lee estava em mim. O sorriso fácil dele se transformou em ar de preocupação e ele olhou para os pés.
— Isto pode parecer meio estranho... mas, quer dizer, eu não acharia ruim convidar a Jill para sair.
Adrian já estava dando a sua opinião antes mesmo de eu conseguir pensar em uma resposta.
— Como assim? Tipo, em um encontro? Seu filho da mãe! Ela só tem quinze anos. — Nem dava para imaginar que, um momento antes, ele estava falando de garotas Moroi fáceis.
— Adrian — eu disse. — Estou achando que a definição de Lee para encontro é um pouco diferente da sua.
— Desculpe, Sage, mas você tem que confiar em mim quando a questão é definir um encontro. Pelo que eu saiba, você não é especialista em questões sociais. Quer dizer, qual foi a última vez em que você esteve em um encontro? — esse era só mais um dos comentários espertinhos que ele lançava para todos os lados com tanta facilidade, mas doeu um pouco. Será que a minha falta de experiência social era assim tão óbvia?
— Mas — completei, ignorando a pergunta de Adrian — há uma grande diferença de idade.
Eu sinceramente não fazia a menor ideia de quantos anos Lee tinha. Como ele estava na faculdade, era uma pista, mas Clarence parecia ser incrivelmente velho. Mas ter filhos no fim da vida não parecia assim tão estranho, tanto para humanos quanto para os Moroi.
— Pronto — Lee disse. — Eu tenho dezenove anos. Não é uma diferença assim tão grande... mas é o suficiente. Eu não devia ter dito nada — ele parecia constrangido e eu fiquei com pena dele e confusa comigo mesma. Formar casais era algo que não estava no manual dos alquimistas.
— Por que você iria querer convidar Jill para sair? — perguntei. — Quer dizer, ela é ótima. Mas você quer fazer isso só para que ela se distraia de Micah e tenha uma alternativa de encontro segura? Ou você, hum, gosta dela?
— Claro que ele gosta dela — Adrian disse, apressando-se em defender a honra de Jill.
Fiquei com a sensação de que realmente não havia uma resposta boa que Lee pudesse dar àquela altura. Se ele expressasse interesse nela, os instintos cavalheirescos bizarros de Adrian entrariam em ação. Se Lee não estivesse interessado, Adrian sem dúvida iria exigir saber por que Lee não queria se casar com ela ali mesmo, naquele momento. Era uma das excentricidades fascinantes — e esquisitíssimas — de Adrian.
— Eu gosto dela — Lee disse sem rodeios. — Só conversei com ela umas duas vezes, mas... bom, eu realmente gostaria de que a gente pudesse se conhecer melhor.
Adrian desdenhou, e eu olhei feio para ele.
— Mais uma vez — eu disse. — Acho que vocês dois têm definições diferentes para as mesmas palavras.
— Não é verdade — Adrian falou. — Todos os homens querem dizer a mesma coisa quando falam que querem “conhecer uma garota melhor”. Você é uma mocinha muito bem-educada, por isso compreendo por que é inocente demais para entender. Ainda bem que eu estou aqui para interpretar.
Eu me virei de novo para Lee, sem nem me incomodar em responder a Adrian.
— Acho que tudo bem se você sair com ela.
— Isso se ela estiver interessada — Lee disse com ar de incerteza.
Eu me lembrei do sorriso dela quando eles haviam conversado no dia anterior. Aquilo tinha parecido bem promissor. Mas, bem, o mesmo podia ser dito a respeito do entusiasmo dela por Micah.
— Aposto que deve estar.
— Então você simplesmente vai permitir que ela saia sozinha? — Adrian perguntou e me lançou um olhar que dizia para não questioná-lo. Dessa vez, a preocupação dele era legítima. Eu compartilhava dela. Jill estava em Palm Springs para ter segurança. Estava matriculada em Amberwood porque era segura também. Começar de repente a sair com um cara que nós mal conhecíamos não atendia aos protocolos de segurança nem dos alquimistas, nem dos guardiões.
— Bom, ela nem pode sair do terreno da escola — eu disse, pensando em voz alta. — Não se eu não for junto.
— Opa — Adrian disse. — Se você for de vela, eu vou também.
— Se nós dois formos, Eddie também vai querer ir — observei.
— E daí? — O breve momento de seriedade e preocupação de Adrian tinha desaparecido diante daquilo que ele considerava diversão social. Como é que o humor de alguém podia mudar com tanta rapidez? — Pense como se fosse menos um encontro e mais um passeio da falsa família. Que vai me divertir e ao mesmo tempo vai proteger a virtude dela.
Coloquei as mãos na cintura e me virei para ele. Isso pareceu diverti-lo ainda mais.
— Adrian, a nossa preocupação aqui é a Jill. Não a sua própria diversão.
— Não é verdade — ele disse com os olhos verdes brilhando. — Tudo condiz com a minha própria diversão. O mundo é o meu palco. Continue assim... você está se transformando em uma das estrelas do show.
Lee olhou para nós com uma expressão cômica de quem não sabia o que fazer.
— Vocês querem ficar a sós?
Eu fiquei vermelha.
— Desculpe.
Adrian não se desculpou, claro.
— Olhe — Lee disse. Ele parecia estar começando a se arrepender de ter tocado no assunto. — Eu gosto dela. Se isso significa andar com o grupo inteiro de vocês para poder ficar com ela, tudo bem.
— Talvez seja melhor assim — eu refleti. — Talvez, se nós fizermos mais coisas em grupo... tirando os fornecimentos dela... não vai haver o risco de ela querer namorar um humano. — E nós nem sabíamos com certeza se ela estava interessada nele. Nós também não sabíamos se ela estava interessada em Lee. Percebi que estávamos realmente pegando pesado com a vida amorosa dela.
— Isso é mais ou menos o que eu queria antes — Adrian me disse. — Só um pouco mais de vida social.
Fiquei pensando na conversa do dia anterior, em que ele exigiu que eu achasse um lugar para ele morar.
— Não foi bem isso que você pediu.
— Se você quiser sair mais — Lee disse —, pode ir comigo a Los Angeles hoje à noite. Eu ia voltar para cá depois da aula amanhã de qualquer forma, então vai ser só uma viagem rápida.
Adrian se alegrou tanto que fiquei imaginando se Lee não tinha feito essa sugestão para tentar aplacar qualquer resquício de tensão por causa de seu interesse por Jill.
— Você me apresenta para aquelas garotas? — Adrian perguntou.
— Inacreditável — eu disse. Os dois pesos e as duas medidas de Adrian eram ridículos.
Eu só reparei que a porta tinha sido aberta quando Keith já havia entrado na sala. Eu nunca ficava exatamente contente em vê-lo, mas foi sorte ele de repente estar ali, bem quando eu precisava falar com ele sobre Jill e seus problemas na educação física. O meu melhor plano era passar no apartamento dele e torcer para que ele estivesse lá. Ele me poupou o trabalho.
Keith olhou para nós três — mas não compartilhou dos nossos sorrisos. Nada de piscadelas ou charme vindo dele hoje.
— Vi o seu carro lá fora, Sydney — ele disse, ríspido, e se voltou para mim. — O que você está fazendo aqui?
— Eu precisava conversar com Adrian — eu disse. — Você recebeu a minha mensagem? Eu tentei ligar antes.
— Andei ocupado — ele disse com frieza. Sua expressão era dura, seu tom gelou a sala. Adrian e Lee tinham perdido o sorriso e os dois agora pareciam confusos, tentando entender por que Keith estava tão incomodado. Eu compartilhava da curiosidade deles. — Vamos conversar. Em particular.
De repente, me senti como uma criança levada, sem saber por quê.
— Claro — eu disse. — Eu... já estava mesmo indo embora.
Avancei para me juntar a Keith à porta.
— Espere — Lee disse. — E aquela... — Adrian deu uma cotovelada nele, sacudiu a cabeça e murmurou algo que eu não consegui entender. Lee ficou quieto.
— A gente se vê por aí — Adrian disse, todo animado. — Não se preocupe... vou me lembrar da nossa conversa.
— Obrigada — eu disse. — A gente se vê depois.
Keith saiu sem dizer uma palavra e eu o segui para fora da casa e para o calor do fim da tarde. A temperatura tinha baixado desde a malfadada aula de educação física, mas não muito. Keith saiu pisando firme pela entrada de cascalho e parou ao lado do Pingado. O carro dele estava estacionado ali perto.
— Você foi muito grosseiro — eu disse a ele. — Nem se despediu deles.
— Desculpe se eu não exibo a minha melhor educação com vampiros — Keith soltou. — Eu não sou tão próximo deles quanto você.
— O que quer dizer com isso? — exigi saber e cruzei os braços. Examinei-o de cima a baixo e senti minha velha antipatia borbulhar. Era difícil acreditar que apenas um minuto antes eu estava dando risada.
Keith desdenhou.
— É só que você parecia tremendamente à vontade com eles lá dentro... batendo papo, se divertindo. Eu não sabia que era aqui que você passava seu tempo livre depois da escola.
— Como você pode dizer uma coisa dessas? Eu vim aqui tratar de trabalho — urrei.
— É, deu para ver.
— E foi mesmo. Eu precisava conversar com Adrian sobre a Jill.
— Eu não me recordo de ele ser o guardião dela.
— Ele só se preocupa com ela — argumentei. — Do mesmo jeito que a gente iria se preocupar com qualquer amigo.
— Amigo? Eles não são nem um pouco parecidos conosco — Keith disse. — Eles são profanos e antinaturais, e você não tem nada que ficar amiga de nenhum deles.
A minha vontade era berrar que, pelo que eu tinha observado, Lee era uma pessoa cem vezes mais decente do que Keith jamais seria. Até Adrian era. Foi só no último segundo que me lembrei do meu treinamento. Não crie confusão. Não contradiga seus superiores. Por mais que eu detestasse a ideia, Keith era o responsável ali. Respirei fundo.
— Não foi exatamente uma confraternização. Eu só vim aqui para conversar com Adrian, e Lee por acaso estava em casa. Até parece que nós todos tínhamos planejado alguma grande festa.
Era melhor não mencionar o plano do encontro em grupo.
— Por que você simplesmente não ligou para Adrian se tinha uma pergunta? Você ligou para mim.
Porque ficar cara a cara com ele é menos enjoativo do que ficar perto de você.
— Era importante. E como eu não consegui falar com você, achei que teria que passar na sua casa de qualquer jeito.
Na esperança de desviar a atenção do meu “mau comportamento”, me apressei em recapitular tudo que tinha acontecido naquele dia, incluindo a insolação de Jill e as atenções de Micah.
— Claro que ela não pode namorar um humano — ele exclamou depois que expliquei sobre Micah. — Você precisa acabar com isso.
— Estou tentando. E Adrian e Lee disseram que vão ajudar.
— Ah, que bom, agora eu me sinto muito melhor — Keith sacudiu a cabeça. — Não seja ingênua, Sydney. Eu disse para você. Eles não se importam tanto com essas coisas quanto nós.
— Acho que se importam, sim — argumentei. — Adrian pareceu entender, e ele tem muita influência sobre Jill.
— Bom, não é ele que os alquimistas irão mandar a um centro de reeducação por ficar brincando com vampiros em vez de discipliná-los.
Eu só fiquei olhando. Não sabia bem qual parte do que ele tinha acabado de dizer era mais ofensiva: a insinuação batida de que eu era uma “adoradora de vampiros” ou que seria capaz de “disciplinar” qualquer um deles. Eu devia saber que a simpatia falsa dele não ia durar.
— Estou fazendo o meu trabalho aqui — eu disse, ainda com a voz firme. — E, pelo que posso ver, estou trabalhando mais do que você, já que fui eu quem passou a semana toda apagando incêndios.
Eu sabia que era ilusão, já que o olho de vidro não podia realmente olhar fixo para mim, mas eu senti que ele me fitava com ambos os olhos.
— Estou fazendo muita coisa. Nem pense em me criticar.
— O que veio fazer aqui? — perguntei, ao me dar conta de como aquilo era estranho. Ele tinha me acusado de “socializar”, mas nunca tinha explicado seus motivos.
— Precisava falar com Clarence, não que seja da sua conta.
Eu queria mais detalhes, mas me recusei a demonstrar como estava curiosa. De acordo com Lee, ele também tinha estado ali no dia anterior.
— Você pode ligar para a escola amanhã e fazer Jill ser dispensada da educação física?
Keith me lançou um olhar longo e pesado.
— Não.
— O quê? Por que não?
— Porque ficar no sol não vai matá-la.
Mais uma vez, engoli a raiva e tentei aplicar a diplomacia que tinham me ensinado.
— Keith, você não viu como ela estava. Talvez não mate, mas foi terrível para ela. Estava em agonia.
— Eu realmente não me importo se eles passam por coisas terríveis ou não — Keith disse. — E você também não devia se importar. O nosso trabalho é mantê-la viva. Não havia nenhuma menção sobre garantir que ela ficasse feliz e confortável.
— Achei que ninguém precisasse nos dizer isso — eu falei, estarrecida. Por que ele estava tão incomodado? — Eu achei que, por sermos seres humanos sensíveis, nós poderíamos simplesmente ajudar.
— Bom, agora você pode ajudar. Ou pode pedir para alguém acima de nós mandar um bilhete para a escola, ou pode dar banhos gelados nela depois da aula de ginástica. Por mim, realmente não importa o que você faça, mas talvez assim você vá ficar tão ocupada a ponto de parar de vir aqui sem avisar e ficar se jogando em cima das criaturas da escuridão. Não quero mais ficar sabendo que isso aconteceu.
— Você é inacreditável — eu disse. Estava aborrecida demais e totalmente sem palavras para conseguir elaborar algo mais eloquente.
— Estou cuidando da sua alma — ele disse, cheio de soberba. — É o mínimo que eu posso fazer pelo seu pai. Pena que você não é mais parecida com as suas irmãs.
Keith deu as costas para mim e abriu a porta do carro sem dizer mais uma palavra. Ele entrou e deu a partida; eu fiquei lá parada. Lágrimas ameaçaram os meus olhos, e eu as engoli. Eu me sentia uma idiota — mas não por causa das acusações dele. Eu não acreditei nem por um instante que tinha feito algo de errado ao ir até lá. Não, eu estava louca da vida — louca comigo mesma — porque tinha deixado que ele partisse com a última palavra e porque eu não tinha tido coragem de retrucar. Eu tinha ficado em silêncio, como todo mundo sempre me dizia para fazer.
Chutei o cascalho de tanta raiva, espalhando-o por todo lado. Algumas pedrinhas bateram no meu carro e eu fiz uma careta.
— Desculpe.
— Será que ele iria acusar você de ser do mal por falar com um objeto inanimado?
Eu me virei para trás, com o coração acelerado. Adrian estava apoiado na casa, fumando.
— De onde você surgiu? — perguntei. Apesar de saber tudo que havia para saber a respeito dos vampiros, era difícil me livrar dos medos supersticiosos de que eles apareciam do nada.
— Vim pela outra porta — ele explicou. — Eu saí para fumar e escutei a agitação.
— É falta de educação escutar a conversa dos outros — eu disse, ciente de que eu parecia insuportavelmente pudica, mas fui incapaz de evitar.
— É falta de educação ser um imbecil igual a ele — Adrian apontou com a cabeça para o lugar onde o carro de Keith tinha estado. — Você vai conseguir tirar Jill daquela aula?
Eu suspirei, de repente sentindo um enorme cansaço.
— É, eu acho que consigo. Só vai demorar um pouco mais, até eu conseguir outros alquimistas para serem nossos pais falsos. Teria sido bem mais rápido se Keith tivesse ajudado.
— Obrigado por cuidar dela, Sage. Você até que é legal para uma humana.
Quase dei risada.
— Obrigada.
— Você também pode dizer a mesma coisa de mim, sabe?
Caminhei até o Pingado e fiz uma pausa.
— Dizer o quê?
— Que eu até que sou legal... para um vampiro — ele explicou.
Eu sacudi a cabeça, sem parar de sorrir.
— Vai ser difícil fazer com que um alquimista confesse isso. Mas posso dizer que você até que é legal para um baladeiro irreverente com momentos ocasionais de brilhantismo.
— Brilhantismo? Você acha que eu sou brilhante? — ele lançou as mãos para o alto. — Você ouviu isso, universo? Sage disse que eu sou brilhante.
— Ei! Não foi isso que eu disse!
Ele largou o cigarro, apagou com o pé e me lançou um sorriso desinteressado.
— Valeu pela massagem no ego. Vou contar a Clarence e a Lee a opinião elevada que você tem de mim.
— Ei, eu não...
Mas ele já tinha desaparecido. Ao me afastar da casa, cheguei à conclusão de que os alquimistas precisavam de um departamento inteiro dedicado a cuidar de Adrian Ivashkov.
Quando voltei ao meu dormitório, encontrei Jill sentada, rodeada de livros didáticos e papéis, sem dúvida tentando recuperar as aulas perdidas do dia anterior.
— Uau — eu disse, pensando na lição de casa que também estava à minha espera. — Você organizou todo um centro de comando.
Em vez de sorrir com a minha piada, Jill ergueu olhos gélidos.
— Será que, da próxima vez que você resolver estragar a minha vida afetiva, pode falar primeiro comigo? — ela indagou.
Eu fiquei sem palavras. Adrian tinha dito que ia falar com Jill. Só não achei que fosse ser tão rápido.
— Não precisa agir pelas minhas costas para me manter afastada de Micah — ela completou. — Eu não sou idiota. Sei que não posso namorar um humano.
Então, aparentemente Adrian tinha contado isso para ela.
— Além disso — Jill prosseguiu, sempre com aquele tom frio —, você não precisa me arranjar o único Moroi solteiro em um raio de cem quilômetros para me manter longe de confusão.
Certo... parecia que Adrian tinha contado tudo para ela. Eu achava que ele seria mais discreto, principalmente na parte sobre Lee.
— Nós... nós não estávamos arranjando nada para você — eu disse de um jeito meio ridículo. — Lee queria mesmo convidar você para sair.
— Mas, em vez de falar comigo, ele foi pedir permissão para vocês! Vocês não mandam na minha vida.
— Eu sei — respondi. — Não estávamos tentando fazer isso! — Como é que tudo tinha estourado bem na minha cara? — Lee tomou a iniciativa sozinho.
— Igual a você quando foi falar com Adrian pelas minhas costas — os olhos dela brilhavam com lágrimas de raiva, me desafiando a negar. Eu não consegui, e só agora estava percebendo como era errado o que eu tinha feito. Desde que ela descobriu que era da realeza, Jill passou a ver outras pessoas mandarem em sua vida. Talvez as minhas intenções de fazer Adrian conversar com ela sobre Micah fossem boas, mas eu tinha usado a abordagem errada.
— Você tem razão — eu disse. — Sinto muito por...
— Esqueça — ela disse, e colocou um par de fones nos ouvidos. — Não quero saber de mais nada. Você me fez parecer uma idiota na frente de Adrian e de Lee. Não que eles vão chegar a pensar duas vezes em mim em Los Angeles hoje à noite — ela fez um gesto para eu me afastar e olhou para o livro que tinha à frente. — Não quero mais saber de você.
Se ela não podia me ouvir por causa da música ou simplesmente porque preferia me ignorar, eu não sabia dizer. A única coisa que eu sabia era que mais uma vez me peguei comparando-a a Zoe. Assim como aconteceu com Zoe, eu tinha tentado fazer uma coisa boa para Jill e o tiro saiu pela culatra. Assim como acontecera com Zoe, eu acabei magoando e humilhando a pessoa que tentava proteger.
Desculpe, Sage. Pelo que eu saiba, você não é especialista em questões sociais.
Pensei com amargor que essa era a parte mais triste de todas — o fato de Adrian Ivashkov ter razão.
10
Foi bem aí que o meu telefone tocou e me salvou do incômodo de não saber o que fazer com Jill. Eu atendi sem nem conferir o identificador de chamadas.
— Srta. Melbourne? Preciso dos seus serviços imediatamente.
— Professora? — perguntei, surpresa. A voz frenética da sra. Terwilliger não era o que eu esperava. — Qual é o problema?
— Preciso que você vá buscar um cappuccino com calda de caramelo do Spencer’s para mim. Não tem como eu acabar de traduzir este documento se você não for.
Havia um milhão de respostas que eu podia dar a isso, sendo que nenhuma delas era muito educada, por isso eu usei a lógica mais óbvia.
— Acho que não posso — eu disse.
— Mas você tem permissão para sair do campus, não tem?
— Bom, tenho, professora, mas está quase na hora do toque de recolher. Não sei onde fica o Spencer’s, mas acho que não consigo voltar a tempo.
— Bobagem. Quem é a responsável pelo seu dormitório? A tal da Weathers? Vou ligar para ela e pedir uma exceção para você. Estou trabalhando em uma das salas da biblioteca. Venha me encontrar aqui.
Apesar da minha devoção pessoal ao café, pedir uma “exceção” ao toque de recolher da escola me parecia um tanto excessivo para uma coisa dessas. Eu não gostava de desrespeitar as regras. Por outro lado, eu era a assistente da sra. Terwilliger. Por acaso isso não fazia parte das minhas funções? Os velhos instintos de alquimista de obedecer às ordens se instalaram.
— Bom, acho que sim, professora...
Ela desligou e eu fiquei olhando para o telefone, chocada.
— Preciso sair — disse a Jill. — Espero voltar logo. Talvez volte bem logo mesmo, porque eu ficaria surpresa se ela se lembrasse de ligar para a sra. Weathers.
Ela nem ergueu os olhos. Dei de ombros, peguei meu laptop e um pouco de lição de casa, para o caso de a sra. Terwilliger se lembrar de mais alguma coisa que eu precisasse fazer.
Com café em jogo, a memória da minha professora funcionou, e descobri que de fato tinha permissão para sair quando desci. A sra. Weathers até me explicou como chegar ao Spencer’s, um café a alguns quilômetros de distância. Eu comprei o cappuccino, imaginando se ela ia me reembolsar, e também comprei algo para mim. Os atendentes da biblioteca de Amberwood pegaram no meu pé quando eu entrei com bebidas, mas quando expliquei minha tarefa, eles me deixaram entrar e ir para as salas dos fundos. Parece que o vício da sra. Terwilliger era famoso.
A biblioteca estava surpreendentemente agitada, e logo deduzi por quê. Depois de uma certa hora, todas as noites, meninos e meninas eram expulsos do dormitório uns dos outros. A biblioteca ficava aberta até mais tarde, por isso era o lugar certo para interagir com o sexo oposto. Também havia muita gente que estava lá para estudar, incluindo Julia e Kristin.
— Sydney! Aqui! — Kristin chamou em um sussurro.
— Livre-se da professora Terwilliger — Julia completou. — Você consegue. Ergui o café quando passei por elas.
— Estão de brincadeira? Se ela não consumir sua cafeína logo, não vou ter como escapar dela. Eu volto, se puder.
Ao seguir o meu caminho, vi um grupinho de alunos que se aglomerava ao redor de alguém — e ouvi uma voz conhecida e irritante. A de Greg Slade.
Curiosa a contragosto, caminhei até a beirada do grupo. Slade exibia algo no antebraço: uma tatuagem.
O desenho em si não era nada de mais. Era uma águia voando, o tipo de arte que qualquer estúdio de tatuagem tinha em estoque e copiava em massa. O que chamou a minha atenção foi a cor. Era toda feita em um tom prata metálico chamativo. Um tom metálico daqueles não era fácil de conseguir, não com aquele brilho e aquela intensidade. Eu conhecia as substâncias químicas que faziam parte da minha tatuagem dourada, e a fórmula era complexa e composta de vários ingredientes raros.
Slade fazia uma tentativa nada convincente de manter a voz baixa — afinal de contas, tatuagens eram proibidas por lá —, mas era óbvio que ele estava adorando toda aquela atenção. Eu observei em silêncio, feliz por outras pessoas fazerem algumas das minhas perguntas no meu lugar. Claro que essas perguntas só me deixaram com mais dúvidas.
— Esta é mais brilhante do que as que eles costumavam fazer — um dos amigos dele observou.
Slade virou o braço para fazer a luz refletir.
— É uma coisa nova. Dizem que estas são melhores do que as do ano passado. Não sei bem se é verdade, mas não foi barata, isso eu posso dizer.
O amigo que tinha comentado sorriu.
— Você vai descobrir nos testes.
Laurel — a garota ruiva que tinha demonstrado interesse por Micah — esticou a perna ao lado de Slade e revelou um tornozelo fino enfeitado com uma borboleta desbotada. Não havia nada metálico ali.
— Talvez eu retoque a minha, quem sabe para o baile de volta às aulas, se conseguir o dinheiro com os meus pais. Você sabe se as celestiais também melhoraram este ano? — Ela jogava o cabelo de um lado para o outro enquanto falava. Pelo que eu tinha observado no pouco tempo que tinha passado em Amberwood, Laurel era muito vaidosa com o cabelo e se assegurava de jogá-lo por cima do ombro no mínimo a cada dez minutos.
Slade deu de ombros.
— Não perguntei.
Laurel reparou que eu estava olhando.
— Ah, oi. Você não é a irmã da Garota Vampira?
Meu coração parou.
— Vampira?
— Vampira? — Slade repetiu.
Como é que ela descobriu? O que eu iria fazer? Eu tinha acabado de começar a fazer uma lista mental de todos alquimistas para quem precisava ligar quando uma das amigas de Laurel soltou uma risada.
Laurel olhou na direção delas e soltou uma gargalhada, então se virou de novo para mim:
— É o apelido que nós demos para ela. Nenhum ser humano poderia ter a pele tão pálida assim.
Eu quase desabei de tanto alívio. Era uma piada — que se aproximava dolorosamente da verdade, mas ainda assim uma piada. No entanto, Laurel não parecia ser alguém que eu devia confrontar, e seria melhor para todos nós se a piada logo fosse esquecida. Reconheço que soltei o primeiro comentário distraído que me veio à mente.
— Olhe, tem coisa pior. Quando eu vi você pela primeira vez, não achei que alguém pudesse ter o cabelo tão comprido ou tão ruivo. Mas não é por isso que eu fico falando sobre apliques ou tintura.
Slade quase se dobrou ao meio de tanto rir.
— Eu sabia! Sabia que era falso!
Laurel ficou quase tão vermelha quanto seu cabelo.
— Não é! É de verdade!
— Srta. Melbourne?
Eu me sobressaltei com a voz atrás de mim e vi a sra. Terwilliger ali, olhando para mim, surpresa.
— Você não ganha crédito para bater papo, principalmente quando o meu café está em jogo. Venha.
Eu me afastei, cabisbaixa, apesar de quase ninguém ter notado. Os amigos de Laurel estavam se divertindo demais tirando sarro dela. Eu esperava ter acabado com as piadas de vampiro. Mesmo assim, não conseguia tirar a imagem da tatuagem de Greg da cabeça. Deixei meus pensamentos voarem para o mistério de quais componentes seriam necessários para aquela cor prateada. Eu achava que tinha descoberto — pelo menos, tinha pensado em uma possibilidade —, e queria ter acesso aos ingredientes dos alquimistas para fazer algumas experiências. A sra. Terwilliger pegou o café, agradecida, quando chegamos a uma pequena sala de trabalho.
— Graças a Deus — ela disse depois de tomar um gole comprido. Ela apontou com a cabeça para o meu. — Esse aí é de reserva? Excelente ideia.
— Não, professora — eu disse. — É meu. Quer que eu comece a trabalhar nisto? — Uma pilha de livros conhecidos estava na mesa; eu já os tinha visto na sala de aula. Eram partes centrais da pesquisa dela, e ela tinha me dito que uma hora eu teria que fazer resumos e documentá-los para ela. Peguei o que estava no alto da pilha, mas ela me deteve.
— Não — ela disse, e se dirigiu para uma pasta grande. Ela folheou papéis e remexeu materiais de escritório variados até pegar um livro com a capa velha de couro. — Faça este aqui.
Peguei o livro.
— Posso trabalhar lá fora?
Minha esperança era voltar para a área principal de estudo e poder falar com Kristin e Julia.
A sra. Terwilliger refletiu.
— Não vão deixar você tomar café lá fora. É melhor deixar ele aqui.
Vacilei, pensando se o meu desejo de conversar com Kristin e Julia se sobrepunha ao fato de que a sra. Terwilliger iria tomar o meu café antes de eu voltar. Resolvi correr o risco e me despedi do meu café com pesar ao levar os meus livros e apetrechos para a biblioteca.
Julia olhou para o livro surrado da sra. Terwilliger com desdém.
— Isso aqui não está em algum lugar na internet?
— Provavelmente não. Acho que ninguém nem sequer olha para este aqui desde antes de a internet ter sido inventada. — Abri a capa. Um monte de poeira se espalhou pelo ar. — Muito antes.
Kristin tinha uma lição de matemática aberta a sua frente, mas não parecia muito interessada nela. Ela batucou com uma caneta na capa do livro, sem prestar muita atenção.
— Então, você viu a tatuagem do Slade?
— É difícil não ver — disse e peguei meu laptop. Olhei por cima do computador. — Ele ainda está lá se exibindo.
— Fazia um tempão que ele queria fazer uma, mas nunca teve dinheiro — Julia explicou. — No ano passado, todos os grandes atletas se tatuaram. Bom, todos menos Trey Juarez.
— Trey quase não precisa de uma — Kristin observou. — Ele é bom de verdade.
— Agora ele vai precisar... se quiser se equiparar a Slade — Julia disse.
Kristin sacudiu a cabeça.
— Mesmo assim, ele não vai fazer. Ele é contra. Tentou dedurar quem fez para o sr. Green no ano passado, mas ninguém acreditou nele.
Eu olhei de uma para a outra, mais perdida do que nunca.
— Ainda estamos falando de tatuagens? Sobre Trey “precisar” de uma ou não?
— Você realmente ainda não descobriu? — Julia perguntou.
— É o meu segundo dia — observei, frustrada. Lembrei que estava em uma biblioteca e falei mais baixo. — As únicas pessoas que realmente conversaram comigo foram Trey e vocês duas... e vocês não falaram muita coisa.
Pelo menos elas foram graciosas o bastante para parecerem acanhadas com isso. Kristin abriu a boca, fez uma pausa e então pareceu mudar o que ia dizer.
— Tem certeza que a sua não faz nada?
— Positivo — menti. — Como é que uma coisa dessas é possível?
Julia deu uma olhada na biblioteca e se contorceu na cadeira. Ela ergueu a camisa um pouco para mostrar a parte de baixo das costas — e a tatuagem desbotada de uma andorinha voando. Satisfeita por eu ter visto aquilo, ela se virou para a frente mais uma vez.
— Eu fiz essa na semana de férias de primavera... e foi a melhor semana sem aulas da minha vida.
— Por causa da tatuagem? — perguntei, descrente.
— Quando eu fiz, não era assim. Era metálica... não igual à sua. Nem à de Slade. Era mais parecida com...
— Cobre — Kristin ajudou.
Julia pensou a respeito e assentiu.
— É, tipo dourado-avermelhado. A cor só durou uma semana e, enquanto durou, foi fantástico. Tipo, eu nunca me senti tão bem. Foi a melhor coisa da minha vida.
— Juro, tem algum tipo de droga naqueles celestiais — Kristin disse. Ela tentava falar como se não aprovasse, mas detectei um tom de inveja.
— Se você fizesse uma, iria entender — Julia disse a ela.
— Celestiais... eu ouvi aquela menina ali falar disso — eu disse.
— Laurel? — Julia perguntou. — É, é como as cor de cobre são chamadas. Porque elas fazem com que você se sinta do outro mundo — ela parecia quase envergonhada pelo próprio entusiasmo. — Que nome idiota, hein?
— É essa que Slade fez? — perguntei, atordoada com o que se desenrolava à minha frente.
— Não, a dele é de aço — Kristin respondeu. — Essas dão tipo uma força atlética. Tipo, você fica mais forte, mais rápido. Coisas assim. Elas duram mais do que as celestiais... tipo duas semanas. Às vezes, três, mas o efeito diminui. Chamam de aço porque são fortes, acho. E talvez porque elas contenham aço.
Não é aço, eu pensei. É um composto de prata. A arte de usar metal para inserir certas propriedades na pele era algo que os alquimistas haviam aperfeiçoado havia muito tempo. O ouro era absolutamente o melhor, e por isso nós o usávamos. Outros metais — quando formulados da maneira adequada — atingiam efeitos parecidos, mas nem prata nem cobre eram tão eficientes na inserção quanto o ouro. A tatuagem de cobre era fácil de entender. Um grande número de substâncias para elevar o humor ou drogas podiam ser combinadas com esse metal para efeito de curto prazo. A prata era mais difícil de entender — ou, melhor, os efeitos da prata. O que elas descreviam parecia um tipo de esteroide atlético. Será que prata era capaz de fazer isso? Eu precisava conferir.
— Quantas pessoas têm essas tatuagens? — perguntei a elas, maravilhada. Não dava para acreditar que tatuagens tão complicadas faziam tanto sucesso ali. Eu também estava começando a entender como os alunos daquela escola realmente eram ricos. Só os materiais deviam custar uma fortuna, isso sem mencionar os supostos efeitos colaterais.
— Todo mundo — Julia respondeu.
Kristin corrigiu.
— Nem todo mundo. Mas eu já economizei quase todo o dinheiro.
— Eu diria que pelo menos metade da escola já experimentou pelo menos uma celestial — Julia disse, e lançou um olhar de consolo para a amiga. — Depois dá para mandar retocar... mas, mesmo assim, custa caro.
— Metade da escola? — repeti, incrédula. Olhei ao redor, imaginando quantas camisas e calças escondiam tatuagens. — Isso é uma loucura. Não acredito que uma tatuagem possa fazer coisas assim — eu esperava estar sendo convincente em esconder o quanto de fato eu sabia.
— Faça uma celestial — Julia disse com um sorriso. — Daí você vai acreditar.
— Onde vocês fazem?
— É um estúdio chamado Nevermore — Kristin disse. — Mas eles são seletivos, e não é fácil fazer uma. — Não tão seletivos assim, pensei, se metade da escola já tinha feito. — Ficaram bem mais cautelosos depois que Trey tentou denunciar.
Lá estava o nome de Trey mais uma vez. Agora fazia sentido ele desdenhar tanto da minha tatuagem quando nós nos conhecemos. Mas fiquei me perguntando por que ele se importava tanto — o suficiente para tentar fechar a loja. Essa não era apenas uma discordância casual.
— Será que ele acha injusto? — levantei a hipótese, diplomática.
— Acho que ele só tem inveja porque não tem dinheiro para fazer uma — Julia disse. — Ele tem uma tatuagem, sabe? É um sol nas costas. Mas é só uma tatuagem preta, normal... não é dourada como a sua. Eu nunca vi nada parecido com a sua.
— Então foi por isso que vocês acharam que a minha me deixava inteligente — eu disse.
— Isso poderia ter sido muito útil nas provas finais — Julia disse, esperançosa. — Tem certeza de que não é por isso que você sabe tanta coisa?
Eu sorri, apesar de estar pasma com o que tinha acabado de descobrir.
— Bem que eu queria. Podia fazer com que fosse mais fácil ler este livro. Coisa que eu, aliás, devia estar fazendo — completei e olhei para o relógio. Era sobre sacerdotes e magos greco-romanos, uma espécie de apanhado detalhando vários tipos de encantos e rituais com os quais eles trabalhavam. Não era um material de leitura terrível, mas era longo. Eu achava que a pesquisa da sra. Terwilliger era mais concentrada em religiões de massa daquela época, por isso o livro parecia ser uma escolha estranha. Talvez ela estivesse querendo incluir uma seção sobre práticas de magia alternativas. Independente disso, quem era eu para questionar? Se ela pedisse, eu faria.
Permaneci mais tempo do que Kristin e Julia na biblioteca, porque tinha que ficar até a sra. Terwilliger decidir ir embora, o que aconteceu só quando a biblioteca fechou. Ela pareceu contente por eu ter avançado tanto nas anotações e disse que queria o livro todo pronto em três dias.
— Sim, professora — disse de modo automático, como se eu não tivesse mais nenhuma outra aula naquela escola. Por que eu sempre concordava sem pensar?
Voltei para o campus leste com os olhos vermelhos de tanto trabalhar e exausta com a ideia da lição de casa que ainda faltava fazer. Jill estava dormindo pesado, coisa que tomei como uma pequena bênção. Eu não ia precisar enfrentar seu olhar de acusação nem descobrir como lidar com o silêncio constrangedor. Eu me preparei para ir para a cama rápido e sem fazer barulho, e caí no sono quase assim que encostei no travesseiro.
Acordei por volta das três com um som de choro. Eu me sacudi para afastar a sonolência e consegui distinguir Jill sentada na cama, com o rosto enterrado nas mãos. Enormes soluços trêmulos acometiam seu corpo.
— Jill? — eu perguntei, incerta. — Qual é o problema?
Com a luz fraca que vinha de fora, vi Jill erguer a cabeça e olhar para mim. Incapaz de responder, ela só sacudiu a cabeça e voltou a chorar mais uma vez, agora mais alto. Eu me levantei e fui me sentar na beirada da cama dela. Eu não conseguia abraçá-la ou tocá-la para reconfortar. Ainda assim, me senti péssima. Eu sabia que aquilo devia ser culpa minha.
— Jill, eu sinto muito. Jamais devia ter ido falar com Adrian. Quando Lee mencionou você, eu devia ter feito com que ele parasse e dito que falasse com você se estivesse interessado, em primeiro lugar... — as palavras saíram todas confusas. Quando olhei para ela, só pude pensar em Zoe e em suas acusações terríveis na noite em que eu parti.
De algum jeito, minha ajuda sempre surtia o efeito contrário.
Jill fungou e conseguiu soltar algumas palavras antes de desabar no choro mais uma vez.
— Não... não é isso...
Fiquei olhando para as lágrimas dela impotente, frustrada comigo mesma. Kristin e Julia me consideravam inteligente de maneira sobre-humana. No entanto, garanto que qualquer uma delas teria sido capaz de reconfortar Jill cem vezes melhor do que eu. Estendi a mão e quase dei tapinhas no braço dela — mas recuei no último momento. Não, eu não podia fazer isso. A voz de alquimista dentro de mim, aquela que sempre me alertava para manter distância dos vampiros, não permitia que eu tocasse em uma vampira de maneira tão pessoal.
— Então, o que foi? — eu finalmente perguntei.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não é... Não posso contar... Você não iria entender.
Com Jill, eu pensei, várias coisas podiam estar erradas. A incerteza de sua posição real. As ameaças contra ela. Ser mandada para longe da família e dos amigos, presa entre humanos sob o sol perpétuo. Eu realmente não sabia por onde começar. Na noite passada, havia um terror congelante e desesperado em seu olhar quando ela acordara. Mas aquilo era diferente. Era pesar. Vinha do coração.
— O que posso fazer para ajudar? — perguntei, finalmente.
Ela demorou alguns momentos para se recompor.
— Você já está fazendo demais — ela conseguiu dizer. — Nós todos apreciamos... de verdade. Principalmente depois do que Keith disse para você. — Será que não havia nada que Adrian não tinha contado para ela? — E sinto muito... sinto muito por ter sido tão maldosa com você antes. Você não merecia aquilo. Só estava tentando ajudar.
— Não... não peça desculpas. Eu causei a maior confusão.
— Não precisa se preocupar, sabe? — ela completou. — Com Micah. Eu compreendo. Só quero ser amiga dele.
Eu sabia que ainda não estava conseguindo ajudá-la a se sentir melhor. Mas eu tinha que reconhecer que me pedir desculpas pelo menos parecia distraí-la daquilo que a tivesse feito acordar com tanta dor.
— Eu sei — respondi. — Não devia ter me preocupado com você.
Ela me garantiu mais uma vez que estava bem, sem mais explicações a respeito do motivo pelo qual tinha acordado chorando. Eu sentia que devia ter me esforçado mais para ajudar, mas, em vez disso, voltei para a minha própria cama. Não ouvi mais soluços pelo resto da noite, mas, quando acordei algumas horas depois, dei uma olhadinha nela. Mal dava para enxergar suas feições à luz do amanhecer. Ela estava lá deitada, com os olhos arregalados, olhando para o nada, com uma expressão assombrada no rosto.
11
Antes das aulas no dia seguinte, deixei um recado com alguém na sede dos alquimistas, dizendo que precisava que “o sr. e a sra. Melrose” mandassem um recado para que Jill não precisasse fazer educação física — ou, pelo menos, as atividades ao ar livre. Eu esperava que eles fossem fazer isso rápido. Os alquimistas eram rápidos quando queriam, mas às vezes tinham ideias estranhas a respeito do que era prioridade. Eu esperava que eles não tivessem a mesma atitude de Keith em relação às dificuldades de Jill.
Mas eu sabia que nada iria acontecer naquele mesmo dia, por isso Jill teve que sofrer em mais uma aula de educação física — e eu tive que sofrer assistindo ao seu sofrimento. O mais terrível foi que Jill não choramingou nem tentou escapar de nada. Ela nem demonstrou qualquer sinal do episódio da noite anterior. Chegou com otimismo e determinação, como se talvez naquele dia o sol não fosse afetá-la. Mas não demorou muito para ela começar a ficar mole. Ela parecia enjoada e cansada, e o meu próprio desempenho foi um pouco falho porque ficava sempre de olho nela, com medo que desmaiasse.
Micah foi a salvação. Mais uma vez, ele trocou de time, destemido — desta vez, desde o começo da aula. Ele cobriu a posição dela como tinha feito da outra vez, permitindo que nem a professora nem os colegas reparassem nela — bom, tirando Laurel, que pareceu notar e ficar irritada com tudo que ele fez. Os olhos dela passavam bravos dele para Jill, e ela ficava jogando o cabelo por cima do ombro para chamar a atenção dele. Eu me diverti um pouco ao ver que a atenção de Micah permaneceu unicamente em manter a bola longe de Jill.
Micah também foi imediatamente para o lado dela quando a aula terminou, levando uma garrafa d’água, que ela aceitou com gratidão. Eu também fiquei agradecida, mas ver como ele cuidava dela trouxe todas as minhas preocupações de volta. Ela cumpriu sua palavra, no entanto. Retribuiu a atenção dele com simpatia, mas definitivamente não dava para chamar aquilo de paquera. Mas ele não fez segredo de suas intenções, e eu fiquei preocupada, achando que seria melhor se ela não precisasse lidar com aquilo. Eu falei sério quando disse que confiava nela, mas não podia deixar de pensar que seria muito mais fácil para todo mundo se ele parasse de dar em cima dela. Isso exigiria “a conversa”.
Nada feliz com o que eu tinha que fazer, alcancei Micah na frente dos vestiários. Nós dois estávamos esperando Jill terminar, e eu aproveitei o tempo que tinha sozinha com ele.
— Oi, Micah — eu disse. — Preciso falar com você...
— Oi — ele respondeu todo alegre. Seus olhos azuis estavam arregalados e animados. — Eu tive uma ideia e queria falar com você. Se vocês não conseguirem uma dispensa para ela, quem sabe conseguem mudar o horário das aulas dela? Se ela fizesse educação física no primeiro horário do dia, não seria assim tão quente. Talvez não seja tão difícil para ela. Quer dizer, acho que ela gostaria de participar de algumas dessas atividades.
— Ela iria gostar, sim — eu disse devagar. — E essa é uma ótima ideia.
— Eu conheço algumas pessoas que trabalham na secretaria e vou pedir a elas que encontrem algumas opções para ver se é possível reencaixar as outras aulas dela. — Ele fez um bico fingido. — Vou ficar triste por não estar na mesma aula que ela, mas vai valer a pena por saber que ela não está sofrendo tanto.
— É — concordei sem muito entusiasmo, de repente me sentindo perdida. Ele realmente tinha dado uma boa ideia. Ele era até altruísta o suficiente para abrir mão da oportunidade de ficar perto dela em nome de um bem maior. Como é que podia ter “a conversa” com ele agora? Como é que eu de repente ia dizer: “Deixe a minha irmã em paz”, se ele estava tendo tanto trabalho para ser legal? Eu era tão ruim quanto Eddie, ao evitar o confronto com Micah. Aquele sujeito era adorável demais para seu próprio bem.
Antes que conseguisse dar uma resposta, Micah tomou uma direção inesperada.
— Mas você realmente devia levá-la ao médico. Não acho que ela tenha alergia ao sol.
— Ah, é? — perguntei, surpresa. — Mas você não viu como ela sofre durante a aula todos os dias?
— Não, não, pode acreditar, ela com toda a certeza tem um problema com o sol — ele se apressou em me garantir. — Mas pode ser que o diagnóstico esteja errado. Eu fiz uma pesquisa sobre alergia ao sol, e as pessoas costumam ter urticária junto. Essa fraqueza generalizada que ela tem... não sei. Acho que pode ser outra coisa.
Ai não.
— Tipo o quê?
— Não sei — ele refletiu. — Mas vou continuar pesquisando teorias e depois te digo o que descobri.
Que maravilha.
A educação física também me deixou ver pela primeira vez uma das tatuagens metálicas de Amberwood em ação. Era impossível não observar Greg Slade durante a aula, e eu não fui a única que me distraí com ele. Assim como Kristin e Julia tinham dito, ele realmente estava mais rápido e mais forte. Ele deu mergulhos que ninguém mais tinha reflexos rápidos o suficiente para dar. Quando ele acertava a bola, era uma surpresa não escutarmos um estrondo sônico logo depois. Isso lhe valeu elogios no começo, mas logo reparei uma coisa. Havia algo de descontrolado no jogo dele. Ele estava cheio de habilidade, sim, mas às vezes não se concentrava. Os golpes poderosos nem sempre ajudavam porque ele mandava a bola para fora. E quando corria para fazer uma jogada, era raro levar em conta quem estava ao seu redor. Quando um garoto da minha sala de inglês foi derrubado e caiu de costas no chão, simplesmente por estar no caminho entre Slade e a bola, a srta. Carson parou o jogo e vociferou sua insatisfação com a agressão de Slade. Ele engoliu tudo com um sorriso sacana meio desanimado.
— Pena que Eddie não está nessa aula — Jill disse depois. — Ele iria fazer frente ao Slade.
— Talvez seja melhor se ninguém reparar — observei. Eddie, pelo que eu tinha ouvido dizer, já era o astro de sua aula de educação física. Isso fazia parte do tipo físico naturalmente atlético dos dampiros, e eu sabia que na verdade ele estava se esforçando para não ser bom demais em tudo.
Fui falar com a sra. Terwilliger depois da educação física, feliz por ver que ela já estava bem provida com seu próprio café. Passei a maior parte do período lendo o livro e fazendo anotações no meu laptop. Depois que tinha feito uma parte, ela veio conferir o meu trabalho.
— Você é muito organizada — ela disse, olhando por cima do meu ombro. — Títulos e intertítulos e mais intertítulos.
— Obrigada — eu disse. Jared Sage tinha sido muito específico ao ensinar habilidades de pesquisa a suas filhas.
A sra. Terwilliger deu um gole no café e continuou a ler a tela.
— Você não listou os passos dos rituais e dos encantos — ela observou alguns momentos depois. — Só fez um resumo em poucas linhas.
Bom, era verdade, aquele era o objetivo de fazer anotações.
— Eu citei todos os números das páginas — eu disse. — Se precisar checar os componentes específicos, tem uma referência fácil.
— Não... retorne e coloque todos os passos e os ingredientes nas anotações. Quero ter tudo no mesmo lugar.
A minha vontade era dizer: está tudo no mesmo lugar. No livro. As anotações eram uma condensação do material, não a repetição do texto original, palavra por palavra. Mas a sra. Terwilliger já tinha se afastado e olhava para o seu arquivo sem prestar muita atenção enquanto balbuciava a si mesma que uma pasta estava no lugar errado. Com um suspiro, voltei para o começo do livro, tentando não pensar em como aquilo iria me atrasar. Pelo menos eu só estava fazendo aquilo para ganhar crédito, não nota.
Fiquei lá até depois do toque do último sinal, tentando recuperar um pouco do tempo perdido. Quando voltei ao quarto, precisei acordar Jill, que dormia pesado depois de um dia exaustivo.
— Boa notícia — disse a ela quando piscou para mim com olhos sonolentos. — Hoje é dia de fornecimento.
Definitivamente, aquelas eram palavras que eu nunca achei que fosse dizer.
Também não achei que ficaria animada com aquilo. E, com certeza, não estava nada animada com a ideia de Jill morder o pescoço de Dorothy. Mas eu estava me sentindo mal por Jill, e então ficava contente em saber que ela iria se alimentar. Estar sujeita a um fornecimento de sangue tão limitado devia tornar as coisas duplamente difíceis para ela.
Nós nos encontramos com Eddie no andar de baixo quando chegou a hora de partir. Ele olhou para Jill com preocupação.
— Está tudo bem com você?
— Estou bem — ela disse com um sorriso. Ela não parecia nem de longe tão mal quanto antes. Estremeci de pensar o que Eddie teria feito se estivesse mesmo na nossa aula e a tivesse visto em sua pior forma.
— Por que isso ainda está acontecendo? — ele me perguntou. —Você não ia falar com Keith?
— Vai demorar um pouco — eu disse, sem dar maiores detalhes, e os levei até onde o Pingado estava no estacionamento dos alunos. — Vamos providenciar.
Se os alquimistas não mandassem o bilhete, eu iria tentar a sugestão de Micah e transferi-la para a aula de educação física mais cedo pela manhã.
— Sabemos que sim — Jill disse. Eu só senti a simpatia na voz dela de leve, lembrando a mim mesma que ela sabia sobre a minha briga de ontem com Keith. Eu torcia para que ela não a mencionasse na frente de Eddie e fui salva quando ela passou para um tema mais aleatório, até surpreendente. — Acha que podemos pegar uma pizza no caminho? Adrian não quer mais comer a comida de Dorothy.
— Que péssimo para ele — Eddie observou ao entrar no banco de trás, deixando o assento da frente para Jill. — Ter uma chef particular à mão para preparar qualquer coisa que ele precisar. Não sei como ele sobrevive.
Eu dei risada, mas Jill pareceu ultrajada em nome de Adrian.
— Não é a mesma coisa! Ela só prepara coisas super-refinadas.
— Ainda estou esperando para saber qual é o problema — Eddie disse.
— Ela também tenta fazer tudo bem saudável. Diz que é melhor para Clarence. Então, nunca tem sal nem pimenta nem manteiga. — Caramba, com que frequência Jill e Adrian se falam? — Não tem nenhum sabor nem nada. Ele está ficando louco.
— Tudo parece estar deixando ele louco — observei, me lembrando de sua súplica por novas acomodações. — E não pode estar tão ruim assim. Por acaso ele não foi para Los Angeles ontem à noite? — A única resposta de Jill foi franzir a testa.
Ainda assim, eu tinha a sensação de que iríamos passar um bom tempo na casa de Clarence, e eu particularmente não queria comer nada preparado ali. Então, foi mais por motivos egoístas que eu concordei em passar em um lugar que tinha comida para viagem e comprar algumas pizzas. O rosto de Adrian ficou radiante quando entramos na sala de estar, onde — tirando as partidas de sinuca — parecia ser o lugar em que ele mais passava tempo na casa de Clarence.
— Chave de Cadeia — ele declarou e se levantou em um salto. — Você é uma santa. Talvez até uma deusa.
— Opa — eu disse. — Quem pagou fui eu.
Adrian levou uma das caixas até o sofá, para tristeza de Dorothy. Ela saiu apressada, falando alguma coisa sobre pratos e guardanapos. Adrian me lançou um aceno de cabeça conciliador.
— Você também não é nada mau, Sage — ele disse.
— Ora, ora, o que temos aqui? — Clarence entrou cambaleante na sala. Eu não tinha reparado, mas ele usava bengala para se locomover. Tinha uma cobra de cristal no alto, que era ao mesmo tempo impressionante e assustadora. Era bem o tipo de coisa que seria de se esperar de um vampiro idoso. — Parece que temos uma festa.
Lee estava com ele e nos cumprimentou com sorrisos e acenos de cabeça. Os olhos dele se demoraram brevemente em Jill e ele fez questão de se sentar perto dela — mas não perto demais. Jill se animou como não se animava havia dias. Todo mundo estava começando a atacar as pizzas quando Dorothy apareceu à porta com um novo visitante. Senti meus olhos se arregalarem. Era Keith.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, mantendo um tom de voz neutro.
Ele deu uma piscadela.
— Vim conferir se todo mundo estava bem. Essa é a minha função... tomar conta de todo mundo.
Keith estava mais animado e mais simpático quando se serviu de pizza, sem indicações da briga que havia ocorrido da última vez.
Ele sorriu e conversou com todos como se fossem seus melhores amigos, coisa que me deixou totalmente chocada. Ninguém mais parecia achar que havia algo de estranho no comportamento dele — mas, bom, por que achariam? Nenhum deles tinha o mesmo histórico que eu tinha com Keith.
Não — isso não era bem verdade. Apesar de estar envolvido em uma conversa profunda com Eddie, Adrian fez uma pausa para me lançar um olhar curioso, perguntando em silêncio sobre a briga do dia anterior. Ele deu uma olhada em Keith e depois voltou a olhar para mim. Dei de ombros, mostrando a ele que também estava confusa em relação à mudança de humor. Talvez Keith estivesse arrependido da explosão do dia anterior. Claro que seria bem mais fácil de aceitar se tivesse vindo acompanhado de uma desculpa.
Mordisquei um pedaço de pizza de queijo, mas a maior parte do tempo fiquei observando os outros. Jill contava para Adrian, toda animada, como tinham sido seus primeiro dias, e reparei que ela tinha deixado de fora todas as partes negativas. Ele a escutou com indulgência, assentindo e fazendo interjeições com comentários espirituosos ocasionalmente. Algumas das coisas que ela disse a ele eram bem básicas, e fiquei impressionada por não terem sido mencionadas em suas conversas telefônicas. Talvez ele simplesmente tivesse tanta coisa a dizer nessas ocasiões que não sobrava oportunidade para ela. Assim, ele não mencionou seu tédio nem suas outras reclamações.
Clarence conversava de vez em quando com Eddie e Lee, mas seus olhos sempre se desviavam para Jill. Havia uma expressão de melancolia em seu olhar, e eu me lembrei de que a sobrinha dele só era um pouco mais velha do que Jill. Fiquei imaginando se talvez parte da razão pela qual ele se mostrou tão disposto a nos acolher foi alguma espécie de tentativa de recuperar uma parte da vida em família que tinha se perdido.
Keith tinha se sentado perto de mim, coisa que no começo me deixou pouco à vontade, mas que depois me deu oportunidade de entender o pensamento dele. Ao ver que os outros estavam envolvidos em conversas, perguntei, baixinho:
— Você já ouviu falar em imitações de tatuagens dos alquimistas que chegaram à população em geral?
Ele me olhou assustado em resposta.
— Nem sei o que isso significa.
— Em Amberwood está na moda. Parece que existe um lugar na cidade que faz tatuagens metálicas, e elas têm propriedades especiais... mais ou menos como as nossas. Algumas só deixam a pessoa alegre. Outras meio que têm efeito de esteroide.
Ele franziu a testa.
— Elas não são feitas com ouro, são?
— Não. Prata e cobre. Por isso não duram. Provavelmente para que os tatuadores possam ganhar mais dinheiro.
— Mas então não podem ser nossas — ele argumentou. — Há séculos não usamos esses metais em tatuagens.
— É, mas alguém pode estar usando a tecnologia dos alquimistas para criar essas tatuagens.
— Só para deixar as pessoas chapadas? — ele perguntou. — Eu nem saberia como chegar a isso com agentes metálicos.
— Eu tenho algumas ideias — respondi.
— Deixe-me adivinhar. Elas incluem misturas com narcóticos. — Quando eu assenti, ele suspirou e me olhou como se eu tivesse dez anos de idade. — Sydney, o mais provável é que alguém tenha descoberto algum método grosseiro de tatuar que é parecido com o nosso, mas que não tem nenhuma relação com a gente. Se for isso, não podemos fazer nada a respeito. Drogas existem. Coisas ruins acontecem. Se não tiver relação com os assuntos dos alquimistas, não é da nossa conta.
— Mas e se tiver conexão com os assuntos dos alquimistas? — perguntei.
Ele resmungou.
— Está vendo? É por isso que eu estava preocupado com a sua vinda para cá, com essa sua tendência de aparecer com teorias paralelas malucas.
— Eu não...
— Por favor, não me envergonhe — ele sibilou e lançou um olhar para os outros. — Nem com eles, nem com nossos superiores.
A bronca dele me silenciou, principalmente pela surpresa. O que ele quis dizer com essa minha “tendência”? Será que ele realmente estava sugerindo que tinha feito algum tipo de análise psicológica profunda de mim anos antes? A ideia de que eu iria envergonhá-lo era ridícula... e, no entanto, suas palavras plantaram uma dúvida na minha cabeça. Talvez as tatuagens em Amberwood fossem apenas uma modinha sem relação com nada.
— Como está a educação física? — As palavras de Adrian me arrastaram para longe dos meus próprios pensamentos. Ele ainda estava ouvindo o resumo da escola de Jill. Ela fez uma careta frente à pergunta.
— Não muito bem — ela reconheceu e fez uma retrospectiva de alguns dos piores momentos. Eddie me lançou um olhar significativo, parecido com o de antes.
— Você não pode continuar desse jeito — Lee exclamou. — O sol aqui é brutal.
— Concordo — disse Keith, ninguém menos. — Sydney, por que você não me disse como estava difícil?
Acho que o meu queixo bateu no chão.
— Eu disse! Foi por isso que tentei fazer você entrar em contato com a escola.
— Na verdade, você não me contou a história toda. — Ele lançou um de seus sorrisos melosos para Jill. — Não se preocupe, vou resolver isso para você. Vou entrar em contato com os responsáveis da escola... e com os alquimistas.
— Eu já falei com eles — argumentei.
Mas eu não precisava ter dito nada. Keith já tinha mudado de assunto e conversava com Clarence a respeito de algo irrelevante. De onde tinha vindo essa mudança radical de atitude? Ontem, o desconforto de Jill tinha sido de baixa prioridade. Hoje, Keith era o cavaleiro de armadura brilhante que saía em sua defesa. E, com isso, ele sugeria que quem estava pisando na bola era eu. Esse é o plano dele, percebi. Ele não me quer aqui. Nunca quis. E então, uma coisa ainda pior me ocorreu.
Ele vai usar isso para começar a montar um caso contra mim.
Do outro lado da sala, Adrian chamou a minha atenção. Ele sabia. Ele tinha escutado quando eu discuti com Keith na entrada da casa. Adrian começou a falar, e eu sabia que ele ia pegar Keith em sua mentira. Foi um gesto galante, mas não era o que eu queria. Eu daria conta de Keith sozinha.
— Como estava Los Angeles? — perguntei logo, antes que Adrian tivesse a oportunidade de dizer alguma coisa. Ele olhou para mim com um ar curioso, sem dúvida imaginando por que eu não queria permitir que ele testemunhasse a meu favor. — Você foi para lá ontem à noite com Lee, não foi?
Adrian parecia confuso, mas um sorriso se abriu em seu rosto.
— Fui — ele finalmente disse. — Foi ótimo. Lee me mostrou como é a vida na faculdade.
Lee deu risada.
— Eu não iria assim tão longe. Não sei onde você se meteu metade da noite.
Adrian ficou com uma expressão no rosto que de algum modo era encantadora, mas que me deu vontade de dar um tapa nele ao mesmo tempo.
— Nós nos separamos. Eu quis conhecer alguns dos outros Moroi da área.
Nem Eddie conseguiu ficar em silêncio com isso.
— Ah, é assim que você descreve?
Jill se levantou de maneira abrupta.
— Vou tomar o meu sangue agora. Tudo bem?
Houve um momento de silêncio constrangedor, principalmente porque acho que ninguém realmente sabia a quem ela estava pedindo licença.
— Claro que sim, querida — Clarence disse e assumiu seu papel de anfitrião. — Acredito que Dorothy esteja na cozinha.
Jill assentiu de leve e saiu apressada da sala. Nós, que sobramos, trocamos olhares confusos.
— Há algum problema? — Lee perguntou, parecendo preocupado. — Será que eu... será que devo ir falar com ela?
— Ela só está estressada — eu disse, sem coragem de mencionar os episódios de grito e de choro.
— Pensei em uma coisa que pode ser divertida para ela... para todos nós fazermos — ele disse, e ficou esperando pelas reações. Ele olhou ao redor e então voltou os olhos para mim. Acho que eu tinha sido escolhida para fazer o papel de mãe. — Se você achar que tudo bem. Quer dizer... é meio bobo, mas achei que podíamos ir jogar minigolfe qualquer noite dessas. Tem um monte de fontes e laguinhos no campo. Ela tem domínio sobre a água, certo? Deve estar sentindo falta disso aqui.
— Está mesmo — Eddie respondeu com a testa franzida. — Ela mencionou isso ontem.
Eu estremeci. Keith estava mandando uma mensagem de texto pelo telefone e ficou paralisado.
Por mais que tivéssemos nossas diferenças, continuávamos compartilhando o grosso do treinamento que tínhamos recebido, e nós dois ficamos pouco à vontade de pensar na magia dos Moroi.
— Acho que ela vai gostar muito — Adrian falou. Ele parecia relutante em admitir. Acho que ainda estava pouco à vontade com a ideia de Lee estar interessado por Jill, por mais que os dois se dessem bem. A sugestão de Lee era ao mesmo tempo inocente e demonstrava preocupação. Era difícil encontrar algum problema nela.
Lee deixou a cabeça pender para o lado, pensativo.
— O toque de recolher é mais tarde nos fins de semana, não é? Querem ir hoje à noite?
Era sexta-feira, e isso nos garantia uma hora extra no toque de recolher do alojamento.
— Eu estou dentro — Adrian disse. — Literal e figurativamente.
— Se Jill for, eu vou — Eddie falou.
Eles olharam para mim. Eu estava encurralada. Queria voltar e tirar o atraso da lição de casa. Mas se eu dissesse isso ia parecer ridículo, e achava que tinha de estar presente como a única acompanhante mulher de Jill. Além do mais, lembrei a mim mesma, aquela missão não era a respeito de mim e da minha vida acadêmica, por mais que eu fingisse que fosse. O mais importante era Jill.
— Eu posso ir — disse devagar. Pensei que isso talvez se parecesse demais com confraternização com vampiros, por isso eu olhei sem jeito para Keith. Ele tinha voltado a mandar a mensagem de texto, agora que a magia não estava mais em discussão. — Keith? — perguntei, como se estivesse pedindo permissão.
Ele ergueu os olhos.
— Hã? Ah, eu não posso ir. Tenho um compromisso.
Tentei não fazer careta. Ele tinha me entendido mal, e achava que eu estava fazendo um convite. Por outro lado, ele também não mostrou objeção em relação ao resto de nós irmos.
— Ah, que bacana — disse Clarence. — Um passeio para os jovens. Quem sabe não dividem uma taça de vinho comigo antes? — Dorothy ia entrando com uma garrafa de vinho tinto, com Jill atrás dela. Clarence sorriu para Adrian. — Eu sei que você apreciaria uma taça.
A expressão de Adrian dizia que sim, com toda a certeza. Em vez disso, ele respirou fundo e sacudiu a cabeça.
— É melhor não.
— Você devia beber — Jill disse com gentileza. Mesmo depois de beber apenas um pouco de sangue, ela parecia cheia de vida e de energia.
— Não posso — ele disse.
— É fim de semana — ela disse a ele. — Não tem assim tanto problema. Principalmente se você tomar cuidado.
Os dois ficaram se encarando e então, finalmente, ele disse:
— Tudo bem. Pode servir uma taça para mim.
— Sirva uma para mim também — Keith disse.
— É mesmo? — perguntei a ele. — Não sabia que você bebia.
— Tenho vinte e um anos — ele contra-atacou.
Adrian aceitou a taça que Dorothy lhe ofereceu.
— Por algum motivo, acho que a preocupação de Sage não é essa. Achei que os alquimistas evitassem o álcool da mesma maneira que evitam cores primárias.
Eu olhei para baixo. Estava vestida de cinza. Keith usava marrom.
— Uma taça não vai fazer mal — Keith disse.
Não discuti com ele. Não era minha função ser babá de Keith. E os alquimistas não tinham nenhuma regra específica contra beber. Nós tínhamos crenças religiosas fortes em relação ao que significava levar uma vida boa e pura, e a bebida costumava ser desprezada. Mas se era proibida? Não. Era um hábito que eu considerava significante. Se ele não considerava, a escolha era dele.
Keith estava levando a taça aos lábios quando Adrian disse:
— Humm. O+, o meu preferido.
Keith cuspiu o vinho que tinha acabado de beber e começou a tossir. Fiquei aliviada por não ter respingado em mim. Jill começou a dar risada e Clarence ficou olhando para a taça, cheio de dúvidas.
— É mesmo? Eu achei que fosse um cabernet sauvignon.
— E é mesmo — Adrian disse, com o rosto impassível. — Me enganei.
Keith lançou um sorriso contido para Adrian, como se também achasse que a piada era engraçada, mas eu não me deixei enganar. Keith estava louco da vida por terem tirado sarro dele, e por mais que ele fingisse ser simpático com todo mundo, suas opiniões contra vampiros e dampiros continuavam mais duras do que nunca. Claro que Adrian provavelmente não estava ajudando em nada. Eu achei bem engraçado, sinceramente, e me esforcei muito para esconder o meu sorriso, para Keith não ficar bravo comigo de novo. Foi difícil fazer isso porque, logo depois, Adrian me lançou um sorriso secreto, cheio de segundas intenções, que parecia dizer: Isso foi o troco pelo que ele fez antes.
Eddie deu uma olhada em Jill.
— Ainda bem que você tomou seu sangue hoje. Sei que queria aprender alguns golpes de defesa, mas queria esperar até você recuperar sua força.
Jill se alegrou.
— Podemos fazer isso amanhã?
— Claro que sim — ele respondeu, parecendo quase tão feliz quanto ela.
Keith franziu a testa.
— Por que ela precisa aprender a lutar se tem você por perto?
Eddie deu de ombros.
— Porque ela quer, e deve ter toda vantagem sempre que possível.
Ele não mencionou especificamente os atentados contra a vida dela — não na frente de Lee e Clarence —, mas o resto de nós entendeu.
— Mas eu achei que os Moroi não fossem bons de briga — Keith disse.
— Isso ocorre mais porque nunca são ensinados. Não são tão fortes quanto nós, claro, mas os reflexos deles são melhores do que os seus — Eddie explicou. — É apenas uma questão de aprender as habilidades e ter um bom professor.
— Como você? — caçoei.
— Eu não sou ruim — ele disse com modéstia. — Sou capaz de ensinar a qualquer um que queira aprender. — Ele deu uma cotovelada em Adrian, que esticava a mão para pegar o vinho e encher o copo mais uma vez. — Até este sujeito aqui.
— Não, obrigado — Adrian disse. — Estas mãos não se sujam com brigas.
— Nem com trabalho pesado — observei, ao lembrar seus comentários anteriores.
— Exatamente — ele disse. — Mas talvez você devesse pedir a Castile que lhe mostre como dar uns socos, Sage. Pode ser útil. Parece ser uma habilidade que uma moça assim tão corajosa como você deve possuir.
— Bom, agradeço o voto de confiança, mas não sei quando iria precisar disso — eu falei.
— Claro que ela precisa aprender!
A exclamação de Clarence nos pegou de surpresa. Eu na verdade achava que ele estava tirando um cochilo, já que seus olhos tinham se fechado momentos antes. Mas agora ele se inclinava para a frente com uma expressão zelosa. Eu me encolhi sob a intensidade de seu olhar.
— Você precisa aprender a se proteger! — ele apontou para mim, depois passou para Jill. — E você também. Jure que você vai aprender a se defender. Jure para mim.
Os olhos verde-claros de Jill se arregalaram de choque. Ela tentou lançar um sorriso reconfortante para ele, mas o gesto saiu de mau jeito.
— Claro, sr. Donahue. Estou tentando. E, até lá, tenho Eddie para me proteger dos Strigoi.
— Não dos Strigoi! — A voz dele passou para um sussurro. — Dos caçadores de vampiros.
Nenhum de nós disse nada. Lee parecia estar morrendo de vergonha.
Clarence apertou a taça de vinho com tanta força que eu fiquei preocupada que fosse quebrar.
— Ninguém falava disso naquela época... de se defender. Talvez, se Tamara tivesse aprendido algo, não teria sido morta. Não é tarde demais para você... para nenhuma de vocês duas.
— Pai, nós já conversamos sobre isso — Lee disse.
Clarence o ignorou. O olhar daquele senhor de idade passava de mim para Jill, e eu fiquei imaginando se ele por acaso sabia que eu era humana. Ou talvez não fizesse diferença. Talvez ele só tivesse um instinto de proteção distorcido por todas as garotas com a idade próxima à de Tamara. Eu meio que esperava que Keith observasse, sem nenhum tato, que não existiam coisas como caçadores de vampiros, mas ele ficou quieto, algo incomum para ele. Foi Eddie quem finalmente falou, com palavras reconfortantes e gentis. Ele sempre passava a impressão de ser um guerreiro do tipo matar ou morrer; foi surpreendente perceber que, na verdade, ele era cheio de compaixão.
— Não se preocupe — Eddie disse. — Eu vou ajudar as duas. Vou mantê-las em segurança e garantir que nada aconteça a elas, certo?
Clarence ainda parecia agitado, mas focado em Eddie com esperanças.
— Você jura? Não vai permitir que voltem a matar Tamara?
— Juro — Eddie disse, sem deixar transparecer, de jeito nenhum, como aquele pedido era bizarro.
Clarence observou Eddie com atenção por alguns segundos e então assentiu.
— Você é um bom garoto — ele pegou a garrafa de vinho e encheu a taça. — Mais? — perguntou a Adrian, como se nada tivesse acontecido.
— Sim, por favor — Adrian disse e pegou a garrafa.
Nós demos prosseguimento à conversa como se nada tivesse acontecido, mas a sombra das palavras de Clarence continuou pairando sobre mim.
12
Quando saímos para o encontro em grupo ou passeio em família ou seja lá o que fosse, Lee não parava de pedir desculpas pelo pai.
— Sinto muito — ele disse, e se largou arrasado no banco de trás do Pingado. — Não dá mais para fazer com que ele recupere a razão. Tentamos dizer a ele que Tamara foi morta pelos Strigoi, mas ele se recusa a acreditar. Ele não quer saber. Não pode se vingar de um Strigoi. Eles são imortais. Invencíveis. Já um caçador de vampiros humano... De algum modo, na cabeça dele, é algo que ele poderia perseguir. E, se isso não for possível, ele pode se concentrar em como os guardiões se recusam a ir atrás desses caçadores de vampiros inexistentes.
Eu mal ouvi Eddie balbuciar:
— Os Strigoi não são assim tão invencíveis.
Pelo espelho retrovisor, vi o rosto de Jill cheio de compaixão. Ela estava sentada entre Lee e Eddie.
— Mesmo que seja uma fantasia, talvez seja melhor assim — ela sugeriu. — Isso lhe dá conforto. Quer dizer, mais ou menos. Ter algo concreto para detestar é o que permite que ele aguente. Senão, simplesmente iria se entregar ao desespero. Ele não faz mal a ninguém com suas teorias. Acho que ele é um amor — ela tomou fôlego daquele jeito que fazia quando falava muito de uma vez só.
Os meus olhos estavam na estrada, mas pude jurar que vi Lee sorrindo.
— Isso foi legal da sua parte — ele disse a ela. — Eu sei que ele gosta de ter você por perto. Vire aqui.
Essa última frase ele disse para mim. Lee estava me dando as instruções do caminho desde que havíamos saído da casa de Clarence. Tínhamos acabado de sair de Palm Springs propriamente dita, e nos aproximávamos do Resort e Campo de Golfe Desert Gods, cuja aparência era muito impressionante. Mais instruções nos levaram até o Centro de Minigolfe Mega-Fun, ao lado do resort. Procurei um lugar para estacionar e ouvi Jill engolir em seco quando avistou a glória que coroava o campo de golfe. Ali, no centro de um aglomerado de gramados com decoração cafona, havia uma grande montanha falsa com uma cachoeira artificial caindo do alto.
— Uma cachoeira! — ela exclamou. — É fantástico.
— Bom — Lee disse —, eu não iria assim tão longe. É feita de água que é bombeada sem parar, e tem só Deus sabe o que nessa água. Quer dizer, eu é que não iria tentar beber ou nadar nela.
Antes mesmo que o carro parasse, Adrian já tinha saído e acendia um cigarro. Nós tínhamos discutido no caminho, apesar de eu dizer três vezes que o Pingado era um carro estritamente para não fumantes. Logo todos nós também saímos, e eu fiquei imaginando no que eu tinha me metido enquanto nos dirigíamos à entrada.
— Na verdade, eu nunca joguei minigolfe — comentei.
Lee parou e ficou olhando fixamente para mim.
— Nunca?
— Nunca.
— Como isso pode ser possível? — Adrian perguntou. — Como é possível você nunca ter jogado minigolfe?
— A minha infância foi meio fora do comum — eu disse finalmente.
Até Eddie parecia incrédulo.
— A sua? Eu fui praticamente criado em uma escola isolada no meio do nada, em Montana, e até eu já joguei minigolfe.
Dizer que eu tinha sido educada em casa não servia de desculpa dessa vez, por isso só deixei para lá. Na verdade, o negócio é que a minha infância foi mais concentrada em equações químicas do que em diversão e recreação.
Quando começamos a jogar, eu logo peguei o jeito. Minhas primeiras tentativas foram bem ruins, mas eu logo compreendi o peso do taco e como manobrar os ângulos de cada campo. A partir daí, foi bem fácil calcular a distância e a força para dar tacadas certeiras.
— Inacreditável. Se você tivesse jogado desde criança, provavelmente ia ser profissional agora — Eddie me disse quando eu enfiei a bola na boca aberta de um dragão. A bola saiu rolando pela parte de trás, desceu por um tubo, bateu em um muro e caiu no buraco. — Como você faz isso?
Dei de ombros.
— É pura geometria. Você também não é assim tão ruim — observei ao ver a tacada dele. — Como você faz?
— Eu só alinho e bato na bola.
— Muito científico.
— Eu só confio no meu talento natural — Adrian disse ao chegar com passos gingados à Toca do Dragão. — Quando se tem tanto assim à disposição, o perigo é ter demais.
— Isso não faz absolutamente nenhum sentido — Eddie falou.
A resposta de Adrian foi fazer uma pausa e pegar um cantil prateado do bolso de dentro do casaco. Ele desenroscou a tampa e deu um gole rápido antes de se inclinar para dar sua tacada.
— O que foi isso? — exclamei. — Não pode beber álcool aqui.
— Você ouviu o que a Chave de Cadeia disse antes — ele retrucou. — É fim de semana.
Ele ajeitou a bola e deu a tacada. Ela foi direto para o olho do dragão, ricocheteou e voltou na direção de Adrian. Depois rolou e parou aos pés dele, quase no mesmo lugar de onde tinha saído.
— Talento natural, hein? — Eddie perguntou.
Eu me inclinei para a frente.
— Acho que você quebrou o olho do dragão.
— Ficou igualzinho ao Keith — Adrian disse. — Achei que você iria gostar, Sage.
Olhei feio para ele, imaginando se havia mais algum significado oculto por trás daquilo. De maneira geral, Adrian pareceu surpreso com a própria gracinha. Eddie entendeu mal a minha expressão.
— Isso foi inapropriado — ele disse a Adrian.
— Desculpe, pai — Adrian deu mais uma tacada e conseguiu não aleijar nenhuma estátua dessa vez. Com mais duas tacadas, ele acertou a bola na mira. — Pronto. Três.
— Quatro — Eddie e eu dissemos em uníssono.
Adrian olhou para nós, incrédulo.
— Foram três.
— Está se esquecendo da primeira — eu disse. — A que cegou o dragão.
— Aquilo foi só aquecimento — Adrian argumentou. Ele estampou um sorriso no rosto que, acredito, tinha a esperança de me encantar. — Vamos lá, Sage. Você compreende a maneira como a minha mente funciona. Você disse que eu era brilhante, lembra?
Eddie olhou para mim, surpreso.
— Disse mesmo?
— Não! Eu nunca disse isso. — O sorriso de Adrian era de enfurecer. — Pare de dizer isso para todo mundo.
Como eu era responsável pela ficha de pontos, marquei a jogada dele como sendo de quatro tacadas, apesar das reclamações subsequentes. Comecei a avançar, mas Eddie ergueu a mão para me deter, com os olhos cor de avelã olhando por cima do meu ombro.
— Não vá ainda — ele disse. — Precisamos esperar Jill e Lee.
Segui o olhar dele. Os dois tinham mergulhado numa conversa profunda desde a nossa chegada, tanto que tinham se atrasado e estavam bem atrás de todos nós. Mesmo enquanto discutia comigo e com Adrian, Eddie sempre conferia onde ela estava — e o nosso entorno. A maneira como ele fazia várias coisas ao mesmo tempo era impressionante. Até então, Jill e Lee só tinham estado um buraco atrás de nós. Agora eram quase dois, e isso era longe demais para Eddie permitir que ela ficasse fora de sua vista. Por isso, nós esperamos até que o casal distraído chegasse à Toca do Dragão.
Adrian deu mais um gole em seu cantil e sacudiu a cabeça, maravilhado.
— Você não tinha com o que se preocupar, Sage. Ela foi direto para cima dele.
— Não graças a você — me irritei. — Não acredito que você contou para ela todos os detalhes da minha visita naquela noite. Ela ficou tão brava comigo por eu ter interferido com você, Lee e Micah pelas costas dela.
— Eu não falei quase nada para ela — Adrian argumentou. — Só disse para ela ficar longe daquele humano.
Eddie deu uma olhada em nós dois.
— Micah?
Eu troquei o peso do corpo de um pé para o outro, sem jeito. Eddie não sabia que eu tinha tomado iniciativas.
— Lembra quando eu pedi para você dizer algo a ele? E você se recusou? — Então contei a ele como tinha buscado ajuda com Adrian e acabei descobrindo o interesse que Lee tinha por Jill. Eddie ficou boquiaberto.
— Como é que você não me contou nada disso? — ele questionou.
— Bom — eu disse, imaginando se tudo que eu fizesse sempre resultaria na ira de um Moroi ou de um dampiro. — Não era da sua conta.
— A segurança de Jill é sempre da minha conta! Se tem algum cara que gosta dela, eu preciso saber.
Adrian deu risada.
— Será que Sage devia ter passado um bilhete para você durante a aula?
— Não há nada de errado com Lee — eu disse. — Ele obviamente a adora e, se estiver com ele, ela nunca vai estar sozinha.
— Nós não sabemos com certeza se não há nada de errado com ele — Eddie disse.
— E Micah por acaso é cem por cento confiável? Você checou o histórico dele ou algo assim? — perguntei.
— Não — Eddie respondeu, parecendo envergonhado. — Eu simplesmente sei. É uma sensação que eu tenho a respeito dele. Não tem problema ele passar um tempo com Jill.
— Tirando o fato de ele ser humano.
— Não ia acontecer nada sério entre eles.
— Você não tem como saber disso.
— Já chega, vocês dois — Adrian interrompeu. Jill e Lee tinham finalmente chegado ao início da Toca do Dragão, o que significava que nós podíamos avançar. Adrian baixou a voz. — Essa discussão é inútil. Quer dizer, olhe para eles. Aquele humano está fora de questão.
Eu olhei. Adrian tinha razão. Jill e Lee estavam muito envolvidos. Alguma parte de mim cheia de culpa ficou imaginando se eu devia me esforçar mais para cuidar de Jill. Fiquei tão aliviada por ela estar interessada em um Moroi que nem parei para pensar se ela devia mesmo namorar alguém. Será que quinze anos era idade suficiente? Eu não namorava quando tinha quinze anos. Bom, na verdade, eu nunca tinha namorado.
— Há uma diferença de idade entre eles — admiti, mais para mim mesma.
Adrian caçoou.
— Pode acreditar, já vi diferença de idade. A deles não é nada.
Ele se afastou e, alguns momentos depois, Eddie e eu nos juntamos a ele. Eddie manteve sua vigília simultânea a Jill, mas dessa vez fiquei com a impressão de que o perigo que ele vigiava estava bem ao lado dela. A risada de Adrian soou à nossa frente.
— Sage! — ele chamou. — Você tem que ver isto.
Eddie e eu chegamos ao próximo campo e ficamos olhando, surpresos. Então eu caí na risada. Tínhamos chegado ao Castelo do Drácula.
Um castelo enorme, preto e cheio de torres, guardava o buraco a certa distância. Havia um túnel no meio dele com uma ponte estreita por onde a bola devia passar. Se a bola caísse pela lateral antes de chegar ao castelo, voltava para o ponto inicial. Um boneco animado do conde Drácula ficava ao lado do castelo. Ele era de um branco puro, com olhos vermelhos, orelhas pontudas e cabelo penteado para trás. Com gestos meio desajeitados, ele ficava erguendo os braços para exibir sua capa em forma de morcego. Nas proximidades, um alto-falante tocava bem alto uma música misteriosa de órgão.
Eu não conseguia parar de dar risada. Adrian e Eddie olharam para mim como se nunca tivessem me visto.
— Acho que nunca tinha ouvido a risada dela — Eddie disse a ele.
— Com certeza não era a reação que eu estava esperando — Adrian refletiu. — Eu estava contando com um terror absoluto, a julgar por seu comportamento anterior de alquimista. Não achei que você gostasse de vampiros.
Ainda sorrindo, fiquei observando o Drácula sacudir a capa para cima e para baixo.
— Isso aqui não é um vampiro. Não é de verdade. E é por isso que é tão engraçado. É a pura cafonice de Hollywood. Os vampiros de verdade são aterrorizantes e antinaturais. Isso aqui? Isso é hilário.
Ficou claro, pela expressão deles, que nenhum dos dois estava entendendo por que aquilo tinha tanto apelo ao meu senso de humor. Mas Adrian se ofereceu para tirar uma foto com o meu celular quando eu pedi. Fiz uma pose ao lado do Drácula e estampei um sorriso enorme no rosto. Adrian conseguiu tirar a foto bem quando o Drácula erguia a capa. Quando eu conferi a foto, fiquei feliz de ver que tinha saído perfeita. Até o meu cabelo tinha saído bom.
Adrian acenou com a cabeça em aprovação à foto antes de me entregar o celular.
— Certo, até eu sou capaz de admitir que ficou bem bonitinha.
Eu me peguei analisando o comentário excessivamente. O que ele quis dizer com “até ele era capaz de admitir”? Que eu era bonitinha para uma humana? Ou que eu tinha atendido a algum padrão de beleza em sua avaliação? Momentos depois, me forcei a parar de pensar nisso. Deixe para lá, Sydney. Foi um elogio. Aceite.
Jogamos pelo resto do campo e finalmente fomos dar na cachoeira em si. Aquele foi um buraco especialmente desafiador, e eu demorei para calcular a minha tacada — não que fosse necessário. Eu estava ganhando de todo mundo com bastante facilidade. Eddie era o único que chegava perto. Ficou claro que Jill e Lee nem estavam prestando atenção ao jogo, e no que dizia respeito a Adrian e seu talento natural... bom, eles ocupavam a última posição com solidez.
Eddie, Adrian e eu ainda estávamos na frente dos outros dois, por isso ficamos esperando por eles perto da cachoeira. Jill praticamente correu na direção dela quando teve oportunidade, admirando-a com olhos encantados.
— Ah — ela disse, sem fôlego. — Isso é maravilhoso. Não vejo tanta água assim há dias.
— Lembre-se do que eu disse a respeito do nível de toxinas — Lee brincou. Mas era óbvio que ele tinha achado a reação dela uma graça. Quando olhei para os outros dois, vi que eles compartilhavam dos mesmos sentimentos. Bom, não eram exatamente os mesmos. A afeição de Adrian era obviamente a de um irmão. Mas a de Eddie... era difícil de decifrar, meio que uma mistura das outras duas. Talvez fosse um tipo de afeto de guardião.
Jill fez um gesto na direção da cachoeira e, de repente, parte da água se separou da cascata que caía. Essa porção tomou a forma de uma trança e se contorceu alto no ar, formando espirais, antes de se despedaçar em um milhão de gotas que caíram como uma névoa por cima de nós todos. Eu olhava para aquilo com os olhos arregalados e paralisada, mas as gotas que me atingiram me despertaram.
— Jill — eu disse em uma voz que mal reconheci como sendo minha. — Nunca mais faça isso.
Jill, com os olhos brilhantes, mal me notou ao fazer outra porção de água dançar no ar.
— Não tem ninguém por aqui para ver, Sydney.
Não era por isso que eu estava tão aborrecida. Não tinha sido isso que me enchera de tanto pânico que eu mal conseguia respirar. O mundo estava começando a girar, e eu fiquei com medo de desmaiar. Um medo frio e envolvente tomou conta de mim, medo do desconhecido. Do antinatural. As leis do meu mundo tinham acabado de ser rompidas. Aquilo era magia de vampiro, algo estranho e inacessível aos humanos — inacessível porque era proibido, uma coisa com que nenhum mortal devia se meter. Eu só tinha visto magia sendo usada uma vez, quando duas vampiras usuárias de espírito tinham se voltado uma contra a outra, e eu nunca mais quis ver aquilo. Uma tinha forçado as plantas da terra a fazerem seu encanto, enquanto a outra usava a telecinesia para lançar objetos com a intenção de matar. Tinha sido apavorante, e apesar de o alvo não ser eu, me senti encurralada e esmagada diante de um poder tão de outro mundo. Aquele foi um lembrete de que essas não eram pessoas divertidas para ter como companhia. Eram criaturas completamente diferentes de mim.
— Pare com isso — eu disse, sentindo o pânico crescer. Eu tinha medo da magia, tinha medo que me tocasse, medo do que podia fazer comigo. — Não faça mais isso!
Jill nem me escutou. Ela sorriu para Lee.
— Você é do ar, certo? Consegue criar neblina por cima da água?
Lee enfiou as mãos nos bolsos e desviou o olhar.
— Ah, bom, acho que não é boa ideia. Quer dizer, estamos em público...
— Vamos lá — ela implorou. — Não vai dar nenhum trabalho para você.
Ele na verdade parecia nervoso.
— Não, agora não.
— Não me venha com essa você também — ela deu risada. Acima dela e à sua frente, aquela água endemoniada continuava rodando, rodando, rodando...
— Jill — Adrian disse com um tom de voz rude, que eu nunca tinha escutado. Aliás, eu não me lembrava de alguma vez ter escutado o nome verdadeiro dela saindo da boca dele. — Pare.
Foi a única coisa que ele disse, mas foi como se uma onda tivesse passado por Jill. Ela se encolheu e as espirais de água desapareceram, desabando em gotículas.
— Tudo bem — ela disse com ar confuso.
Houve um momento constrangedor, e então Eddie disse:
— Precisamos andar logo, senão vamos perder o toque de recolher.
Lee e Jill foram dar suas últimas tacadas e logo já estavam dando risada e flertando mais uma vez. Eddie continuou a observá-los com sua maneira preocupada. Só Adrian prestava atenção em mim. Percebi que ele era o único que realmente entendia o que tinha acontecido. Seus olhos verdes me examinavam, sem vestígio de seu humor amargo de sempre. Mas eu não me deixei enganar. Eu sabia que devia haver alguma observação espertinha por vir, para caçoar da minha reação.
— Você está bem? — ele perguntou baixinho.
— Está tudo bem — eu disse e me virei para o outro lado. Não queria que ele visse o meu rosto. Ele já tinha visto demais, já tinha visto o meu medo. Eu não queria que nenhum deles soubesse como eu tinha medo. Ouvi quando deu alguns passos na minha direção.
— Sage...
— Me deixe em paz — soltei, ríspida. Fui apressada em direção à saída do campo, certa de que ele não iria me seguir. Tinha razão. Esperei até que eles terminassem a partida e usei o tempo que tive sozinha para me acalmar. Quando eles me alcançaram, eu tinha quase certeza de ter apagado a maior parte das emoções do rosto. Adrian continuava me olhando com preocupação, e eu não gostei nada daquilo, mas pelo menos ele não disse mais nada sobre meu ataque de nervosismo.
Sem surpresa nenhuma para ninguém, a pontuação final mostrava que eu tinha ganhado e Adrian tinha ficado em último. Lee tinha ficado em terceiro, e isso parecia incomodá-lo.
— Eu costumava ser melhor — ele balbuciou, com a testa franzida. — Costumava ser perfeito nesse jogo. — Levando em conta que ele tinha passado a maior parte do tempo prestando atenção em Jill, achei que terceiro lugar tinha sido um desempenho bem respeitável.
Deixei Lee e Adrian em casa primeiro, depois quase não consegui fazer com que Eddie, Jill e eu chegássemos a Amberwood a tempo. Àquela altura eu já estava mais ou menos de volta ao normal, não que alguém fosse notar. Jill flutuava em uma nuvem quando entramos no nosso dormitório, falando sem parar sobre Lee.
— Eu não fazia ideia de que ele viajava tanto! Talvez ele já tenha visitado ainda mais lugares do que você, Sydney. Ele fica me dizendo que vai me levar a todos eles, que vamos passar o resto da vida viajando e fazendo tudo que a gente quiser. E ele faz todo tipo de aula na faculdade porque não tem certeza em que quer se formar. Bom, não tanto assim neste semestre. Ele está com o horário leve para poder passar mais tempo com o pai. E para mim isso é bom. Para nós, quer dizer.
Segurei um bocejo e assenti, cansada.
— Isso é ótimo.
Ela fez uma pausa de onde estava, procurando um pijama na cômoda.
— Aliás, queria pedir desculpa.
Congelei. Eu não queria uma desculpa pela magia. Eu nem queria me lembrar de que aquilo tinha acontecido.
— Por ter gritado com você na outra noite — ela prosseguiu. — Você não me empurrou para cima do Lee. Eu nunca devia ter acusado você de interferir. Ele realmente sempre gostou de mim, e, bom... ele é o máximo, de verdade.
Soltei a respiração que estava segurando e tentei dar um sorriso fraco.
— Fico contente que você esteja feliz.
Ela retomou toda alegre as suas tarefas, e ficou falando sobre Lee até eu sair para ir ao banheiro. Antes de escovar os dentes, fiquei parada na frente da pia e lavei as mãos e os braços vez após outra, esfregando com a maior força possível para lavar as gotas mágicas de água, que eu jurava ainda ser capaz de sentir.
13
Meu celular tocou ao nascer do sol no dia seguinte. Eu já estava em pé, por estar acostumada a acordar cedo, mas Jill rolou para o lado na cama e colocou o travesseiro em cima da cabeça.
— Faça isso parar — ela resmungou.
Eu atendi e descobri que Eddie estava do outro lado da linha.
— Eu estou aqui embaixo — ele disse. — Pronto para treinar um pouco de autodefesa antes que fique quente demais.
— Vocês vão ter que fazer isso sem mim — eu disse. Estava com a sensação de que Eddie estava levando muito a sério a promessa feita a Clarence de nos treinar. Eu não sentia aquele tipo de obrigação. — Tenho uma tonelada de lição de casa para fazer. Além disso, tenho certeza de que a sra. Terwilliger vai me fazer sair para buscar café para ela hoje.
— Bom, então mande Jill descer — Eddie disse.
Eu dei uma olhada para o casulo de cobertores na cama dela.
— Acho que isso é mais fácil falar do que fazer.
Surpreendentemente, ela conseguiu acordar o suficiente para escovar os dentes, tomar uma aspirina para dor de cabeça e vestir uma roupa de ginástica. Ela me deu tchau, e eu prometi ir ver como eles estavam se saindo mais tarde. Não demorou muito para a sra. Terwilliger ligar com seu pedido de café, e eu me preparei para mais um dia de tentar conciliar meu próprio trabalho com o dela.
Fui até o café Spencer’s e nem reparei que Trey estava lá até parar bem na frente dele.
— É para a sra. Terwilliger? — ele perguntou, e apontou para o cappuccino com calda de caramelo.
— Hã? — ergui os olhos. Trey era o meu atendente do caixa. — Você trabalha aqui?
Ele assentiu.
— Preciso ganhar dinheiro de algum jeito para pagar as minhas despesas.
Entreguei algum dinheiro para ele e reparei que tinha me cobrado a metade do preço.
— Não leve a mal, mas você não parece estar muito bem — eu lhe disse. Parecia cansado e meio desgastado. Um exame mais próximo mostrou que ele também tinha hematomas e cortes.
— É, bom, o meu dia ontem foi meio difícil.
Hesitei. Aquele era um comentário que convidava para mais conversa, e não havia ninguém na fila atrás de mim.
— O que aconteceu? — perguntei, ciente de que era aquilo que ele esperava.
Trey franziu a testa.
— Aquele imbecil do Greg Slade causou a maior confusão nos testes para o time de futebol americano ontem. Quer dizer, os resultados ainda não saíram, mas é bem óbvio que ele vai ficar com a posição de lançador. Ele parecia uma máquina, passava por cima de todo mundo — ele estendeu a mão esquerda e mostrou alguns dedos enfaixados. — Ele também pisou na minha mão.
Eu me encolhi ao me lembrar da exibição atlética descontrolada de Slade na educação física. A política do ensino médio e a posição de lançador no time de futebol americano não eram coisas muito relevantes para mim. A verdade é que fiquei com pena de Trey, mas o que me intrigava era a fonte por trás das tatuagens. Os avisos de Keith a respeito de não criar confusão retornaram, mas eu não consegui me segurar.
— Eu sei das tatuagens — disse. — Julia e Kristin me contaram sobre elas. E agora eu sei por que você ficou desconfiado da minha... mas não é o que você pensa, de verdade.
— Não foi o que eu ouvi dizer. A maioria das pessoas diz que você está falando isso porque não quer contar onde fez.
Fiquei um pouco surpresa com aquilo. Eu tinha quase certeza de que Julia e Kristin tinham acreditado em mim. Será que elas realmente estavam espalhando o oposto?
— Eu não fazia ideia disso.
Ele deu de ombros com um sorrisinho nos lábios.
— Não se preocupe. Eu acredito em você. Há algo meio ingênuo e encantador em você. Não parece ser do tipo que trapaceia.
— Ei — dei uma bronca. — Eu não sou ingênua.
— Foi um elogio.
— Há quanto tempo as pessoas estão fazendo essas tatuagens? — perguntei, achando melhor esclarecer logo. — Ouvi dizer que começou no ano passado.
Ele entregou o meu café, pensativo.
— É, mas foi no fim do ano passado. Do ano letivo, quero dizer.
— E elas vêm de um lugar chamado Nevermore?
— Pelo que sei, sim. — Trey me olhou desconfiado. — Por quê?
— Só estou curiosa — respondi com doçura.
Dois universitários vestidos como mendigos ricos entraram na fila atrás de mim e ficaram nos olhando com impaciência.
— Será que podemos ser atendidos?
Trey lhes lançou um sorriso forçado e então virou os olhos para mim enquanto eu me afastava.
— A gente se vê por aí, Melbourne.
Voltei para Amberwood e entreguei o café da sra. Terwilliger. Eu não estava a fim de ficar acorrentada a ela o dia todo, por isso perguntei se podia ir para outro lugar se ficasse com o celular ligado. Ela concordou. A biblioteca tinha muita atividade e — ironicamente — muito barulho para o meu gosto. Eu queria a solidão do meu quarto.
Enquanto atravessava o gramado para pegar o ônibus, avistei algumas silhuetas conhecidas atrás de um aglomerado de árvores. Mudei de direção e encontrei Jill e Eddie treinando em uma pequena clareira. Micah estava sentado no chão de pernas cruzadas, assistindo a tudo com avidez. Ele acenou para mim quando me aproximei.
— Eu não sabia que o irmão de vocês era mestre de kung fu — ele observou.
— Não é kung fu — Eddie disse, mal-humorado, sem nunca tirar os olhos de Jill.
— Não faz diferença — Micah falou. — É incrível do mesmo jeito.
Eddie deu um golpe como se fosse atingir a lateral do corpo de Jill. Ela reagiu com bastante rapidez com um bloqueio, apesar de não tão ter sido tão rápida a ponto de impedir o ataque dele. Se o golpe fosse pra valer, ele teria acertado. Mesmo assim, ele pareceu satisfeito com os reflexos dela.
— Muito bem. Isso teria bloqueado parte de um golpe, mas você ainda iria sentir. O melhor é conseguir se abaixar e desviar completamente, mas isso exige um pouco mais de treino.
Jill assentiu, obediente.
— Quando vamos poder trabalhar isso?
Eddie olhou para ela com orgulho. A expressão se suavizou depois de alguns momentos de exame.
— Hoje, não. Tem sol demais.
Jill começou a reclamar e então se deteve. Ela estava de novo com aquela aparência exausta por causa do sol, e suava muito. Ela olhou para o céu por um momento, como se estivesse implorando para que nos desse um pouco de nuvens. Como ele permaneceu inalterado, ela concordou com Eddie.
— Tudo bem. Mas vamos fazer de novo amanhã no mesmo horário? Ou quem sabe mais cedo. Ou talvez hoje à noite! Será que podemos fazer os dois? Treinar hoje à noite quando o sol estiver baixando e de novo pela manhã? Você se incomoda?
Eddie sorriu, surpreso com o entusiasmo dela.
— Como você quiser.
Jill retribuiu o sorriso e se sentou ao meu lado, colocando-se o máximo possível embaixo da sombra. Eddie ficou me olhando, cheio de expectativa.
— O que foi? — perguntei.
— Você não tinha que aprender a dar uns socos?
Eu revirei os olhos.
— Não. Quando é que eu vou precisar disso?
Jill me cutucou com o cotovelo.
— Vai lá, Sydney!
Com relutância, permiti que Eddie me desse uma aula rápida sobre como dar socos sem machucar a mão. Eu mal prestei atenção e achei que só estava divertindo os outros. Quando Eddie terminou minha lição, Micah perguntou:
— Ei, você poderia mostrar alguns golpes de ninja para mim também?
— Isso não tem nada a ver com ninjas — Eddie reclamou, sem parar de sorrir. — Venha.
Micah se levantou em um pulo e Eddie o conduziu por alguns golpes rudimentares. Parecia que Eddie estava sobretudo avaliando Micah e suas capacidades. Depois de um tempo, Eddie ficou à vontade e permitiu que Micah treinasse alguns golpes ofensivos para se livrar de algum ataque.
— Ei — Jill reclamou quando Eddie acertou um chute em Micah. Ele nem se incomodou, dando de ombros como os meninos fazem. — Não é justo. Você não me acertou quando nós estávamos treinando.
Eddie foi pego de surpresa o suficiente para que Micah conseguisse acertar um golpe nele. Eddie lançou um olhar de respeito a contragosto para ele, e então disse a Jill:
— Aquilo foi diferente.
— Porque eu sou menina? — ela questionou. — Você nunca se segurava com Rose.
— Quem é Rose? — Micah perguntou.
— Outra amiga — Eddie explicou. Para Jill, ele disse: — E Rose tem vários anos de experiência a mais do que você.
— Ela também tem mais do que Micah. Você estava facilitando para mim.
Eddie ficou corado e manteve os olhos em Micah.
— Não estava, não — ele disse.
— Estava, sim — ela balbuciou. Quando os rapazes retomaram seu embate, ela disse baixinho para mim: — Como eu vou aprender se ele tem medo de me machucar?
Observei os dois e analisei o que sabia sobre Eddie até então.
— Acho que é mais complicado do que isso. Acho que ele também acredita que você precisa se arriscar... pois se ele estiver fazendo um trabalho bom o bastante você não precisará se defender.
— Ele está fazendo um ótimo trabalho. Você tinha que ter visto o desempenho dele durante o ataque — o rosto dela assumiu aquele ar assombrado que sempre aparecia quando o ataque que a obrigara a se esconder era mencionado. — Mas, mesmo assim, eu preciso aprender — ela baixou a voz ainda mais. — Eu realmente quero aprender a usar a minha magia para lutar também, não que eu vá poder treinar muito nesse deserto.
Estremeci ao me lembrar de sua exibição na noite anterior.
— Vai haver ocasião — eu disse de maneira vaga.
Eu me levantei e disse que precisava fazer lição de casa. Micah perguntou a Eddie e Jill se eles queriam almoçar. Eddie disse sim imediatamente. Jill olhou para mim em busca de ajuda.
— É só um almoço — Eddie disse com uma mensagem nas entrelinhas. Eu sabia que ele continuava achando Micah inofensivo. Eu não tinha certeza, mas depois de ver como Jill estava apaixonada por Lee, passei a achar que Micah teria de fazer alguns movimentos bem agressivos para chegar a algum lugar.
— Tenho certeza de que vai ficar tudo bem — eu disse.
Jill pareceu aliviada, e o grupo se afastou. Passei o dia todo terminando aquele livro miserável para a sra. Terwilliger. Eu continuava achando que ter de copiar os feitiços e rituais arcaicos palavra por palavra era um desperdício de tempo. O único propósito que eu via naquilo era que, se em algum momento ela precisasse fazer referência a eles para sua pesquisa, ela teria um arquivo digital fácil para checar sem arriscar estragar o livro antigo.
Estava anoitecendo quando terminei o livro mais o resto da minha lição de casa. Jill ainda não tinha voltado, e eu resolvi aproveitar a oportunidade para verificar uma coisa que estava me incomodando.
Mais cedo, Jill tinha mencionado que Eddie a defendera no ataque. Eu achava, desde o começo, que havia algo de estranho naquele ataque inicial, algo que não estavam me dizendo. Assim, entrei na rede dos alquimistas e separei tudo que tínhamos sobre os rebeldes Moroi.
Naturalmente, estava tudo documentado. Nós precisávamos estar a par dos acontecimentos principais entre os Moroi, e aquele assunto era um dos mais importantes. De algum modo, os alquimistas tinham conseguido imagens da corte Moroi, com manifestantes enfileirados na frente de um dos prédios administrativos. Os guardiões dampiros eram fáceis de identificar, já que se misturavam e mantinham a ordem. Para a minha surpresa, reconheci Dimitri Belikov — o namorado de Rose — entre os que estavam controlando a multidão. Ele era fácil de identificar porque quase sempre era mais alto do que todo mundo ao seu redor. Os dampiros parecem muito humanos, e até eu tinha de reconhecer que ele era bem bonito. Ele tinha uma beleza rústica e, até mesmo em uma fotografia, dava para ver sua ferocidade enquanto observava a multidão.
Outras fotografias da manifestação confirmaram o que eu já sabia. Sem dúvida, a maior parte das pessoas apoiava a jovem rainha. As pessoas contrárias a ela eram a minoria — mas eram ruidosas e perigosas. Um vídeo de um noticiário humano de Denver mostrava dois Moroi quase se metendo em uma briga de bar. Eles gritavam sobre rainhas e justiça, sendo que a maior parte daquilo não faria sentido para um observador humano. O que fazia aquele vídeo ser especial era o sujeito que o tinha filmado — algum humano aleatório com uma câmera de celular — afirmar ter visto caninos em ambos os homens que discutiam. O dono do vídeo tinha apresentado sua gravação afirmando que tinha presenciado uma briga de vampiros, mas ninguém lhe deu muita credibilidade. A imagem estava granulada demais para qualquer coisa aparecer. Mesmo assim, era um lembrete sobre o que poderia acontecer se a situação dos Moroi ficasse fora de controle.
Fui conferir a situação atual e vi que a rainha Vasilisa de fato estava tentando fazer aprovar uma lei para que seu governo não dependesse da existência de pelo menos mais uma pessoa em sua família real. Especialistas alquimistas avaliavam que demoraria três meses, que era mais ou menos o que Rose tinha dito. O número pairava na minha cabeça como uma bomba-relógio tiquetaqueando. Nós precisávamos manter Jill em segurança durante três meses. E, durante três meses, os inimigos de Vasilisa tentariam, mais do que nunca, pegar Jill. Se ela morresse, o governo de Vasilisa iria terminar — junto com suas tentativas de consertar o sistema.
No entanto, não tinha sido nada daquilo o motivo da minha pesquisa. Eu queria saber sobre o ataque inicial a Jill, aquele sobre o qual ninguém falava. O que eu encontrei não ajudou muito. Na época, não havia nenhum alquimista por lá, claro, de modo que as nossas informações tinham como base o que as fontes Moroi haviam informado. A única coisa que sabíamos era que “a irmã da rainha tinha sido atacada com maldade e severidade — mas tinha se recuperado completamente”. Pelo que eu tinha observado, aquilo certamente era verdade. Jill não apresentava sinais de ferimentos e o ataque tinha ocorrido uma semana antes de ela ir para Palm Springs. Será que isso era tempo suficiente para se recuperar de um ataque com “maldade e severidade”? E será que um ataque como aquele era suficiente para fazer com que ela acordasse aos berros?
Eu não sabia, mas não conseguia me livrar das minhas desconfianças. Quando Jill voltou para o quarto, mais tarde, estava de tão bom humor que não tive coragem de interrogá-la. Também me lembrei, tarde demais, de que tinha a intenção de pesquisar sobre o caso da sobrinha de Clarence e sua morte bizarra com a garganta cortada. O caso de Jill tinha me distraído. Deixei a questão de lado e fui dormir cedo.
Amanhã, pensei sonolenta. Faço isso amanhã.
O dia seguinte chegou bem mais rápido do que eu esperava. Acordei de um sono profundo por alguém que me sacudia e, por uma fração de segundo, o antigo pesadelo estava ali, aquele em que os alquimistas me levavam embora no meio da noite. Ao reconhecer Jill, consegui segurar meu berro, mas foi por pouco.
— Ei, ei — dei uma bronca. Havia luz do lado de fora, mas era arroxeada. O sol mal tinha nascido. — O que está acontecendo? Qual é o problema?
Jill olhou para mim com o rosto sombrio e os olhos arregalados de medo.
— É Adrian. Você precisa salvá-lo.
14
— Dele mesmo?
Não consegui me segurar. A piada já tinha saído antes que eu me desse conta.
— Não — ela se empoleirou na ponta da cama e mordeu o lábio inferior. — Talvez “salvar” não seja a palavra certa. Mas precisamos buscá-lo. Ele está preso em Los Angeles.
Esfreguei os olhos, sentei-me ereta e esperei alguns segundos, só para o caso de aquilo ser só um sonho. Não. Nada mudou. Peguei meu celular da mesinha de cabeceira e resmunguei ao ver a tela.
— Jill, ainda não são nem seis horas.
Comecei a questionar se Adrian estaria acordado àquela hora, mas então me lembrei de que ele provavelmente estava funcionando em horário noturno. Se fizessem as coisas do seu jeito, os Moroi iriam para a cama mais ou menos no horário que é o fim da manhã para o resto de nós.
— Eu sei — ela disse com a voz baixinha. — Sinto muito, eu não iria pedir se não fosse importante. Ele pegou uma carona para lá ontem à noite porque queria ver aquelas... aquelas garotas Moroi de novo. Lee devia estar em Los Angeles também, por isso Adrian achou que teria carona para voltar. Só que ele não consegue falar com Lee, então agora ele não pode voltar. Adrian, quero dizer. Ele está preso lá, e de ressaca.
Comecei a voltar a deitar.
— Não tenho muita compaixão por isso. Talvez ele aprenda uma lição.
— Sydney, por favor.
Coloquei um braço por cima dos olhos. Talvez se eu parecesse estar dormindo, ela me deixaria em paz. Uma pergunta de repente surgiu na minha cabeça e eu afastei o braço.
— Como você sabe disso? Ele ligou? — eu não tinha o sono superleve, mas teria escutado o celular dela tocar.
Jill desviou os olhos de mim. Com a testa franzida, eu me sentei ereta.
— Jill? Como é que você sabe dessas coisas?
— Por favor — ela suspirou. — Nós não podemos simplesmente ir lá buscá-lo?
— Não até você me dizer o que está acontecendo.
Uma sensação estranha se espalhava pela minha pele. Já fazia um tempo que eu estava me sentindo excluída de algo importante e, naquele momento, de repente percebi que estava prestes a descobrir o que os Moroi estavam escondendo de mim.
— Você não pode contar para ninguém — ela disse, e finalmente me olhou nos olhos mais uma vez.
Bati com o dedo na tatuagem do meu rosto.
— Dificilmente eu poderia contar algo assim para qualquer um.
— Não, para ninguém. Não para os alquimistas. Não para Keith. Não para qualquer um dos outros Moroi ou dampiros que ainda não saibam.
Não contar para os alquimistas? Isso seria um problema. Entre todas as outras loucuras da minha vida, por mais que as minhas missões me enfurecessem e independente do tempo que eu passasse com os vampiros, eu nunca tinha questionado a quem devia ser leal. Eu tinha que contar aos alquimistas se estivesse acontecendo alguma coisa com Jill e com os outros. Era a minha obrigação para com eles, para com a humanidade.
Claro que parte da minha obrigação para com os alquimistas era cuidar de Jill, e o que quer que a estivesse incomodando agora estava ligado a seu bem-estar. Por meio segundo, pensei em mentir para ela mas imediatamente mandei a ideia para longe. Eu não podia fazer isso. Se eu fosse guardar o segredo dela, eu guardaria. Se não fosse guardar, então precisava dizer a ela de antemão.
— Eu não vou contar — eu disse. Acho que as palavras surpreenderam tanto a mim quanto a ela. Jill me examinou sob a luz fraca e deve ter finalmente chegado à conclusão de que eu estava dizendo a verdade. Ela assentiu devagar.
— Adrian e eu estamos conectados. Tipo, com uma conexão espiritual.
Senti meus olhos se arregalarem de descrença.
— Como é que isso... — tudo de repente se encaixou, com as peças que estavam faltando. — Durante o ataque. Você... você...
— Eu morri — Jill disse sem rodeios. — Foi a maior confusão quando os assassinos Moroi chegaram. Todo mundo achou que eles estavam atrás de Lissa, por isso a maior parte dos guardiões foi rodeá-la. Eddie foi o único a me defender, mas não foi rápido o suficiente. Aquele homem, ele... — Jill colocou a mão no centro do peito e estremeceu. — Ele me apunhalou. Ele... ele me matou. Foi aí que Adrian entrou na história. Ele usou o espírito para me curar e me trazer de volta, e agora nós temos um laço. Tudo aconteceu tão rápido... As pessoas que estavam lá nem se deram conta do que ele tinha feito.
A minha mente girava. Um laço espiritual. O espírito era um elemento problemático para os alquimistas, principalmente por termos tão poucos registros dele. O nosso mundo era feito de documentos e conhecimento, de modo que qualquer lacuna fazia com que nos sentíssemos fracos. Sinais do uso de espírito tinham sido registrados ao longo dos séculos, mas ninguém tinha percebido que era um elemento por si só. Aqueles acontecimentos tinham sido registrados como fenômenos mágicos aleatórios. Apenas recentemente, quando Vasilisa Dragomir tinha se exposto, o espírito havia sido descoberto, junto com seus numerosos efeitos psíquicos. Ela e Rose haviam tido um laço de espírito, o único registrado na modernidade. A cura era um dos atributos mais notáveis do espírito, e Vasilisa tinha trazido Rose de volta de um acidente de carro. Aquilo tinha criado uma conexão psíquica entre elas, que só se desfez quando Rose teve uma segunda experiência quase mortal.
— Você consegue enxergar dentro da cabeça dele — eu disse, sem fôlego. — Os pensamentos dele. Os sentimentos dele.
Tantas coisas começaram a fazer sentido. Como por exemplo a maneira como Jill sempre sabia tudo sobre Adrian, mesmo quando ele afirmava não ter contado nada para ela.
Ela assentiu.
— Eu não quero enxergar. Acredite em mim. Mas não posso fazer nada. Rose disse que, com o tempo, eu vou aprender a me controlar para deixar os sentimentos dele de fora, mas não consigo fazer isso ainda. E ele tem tantos, Sydney. Tantos sentimentos. Ele sente tudo com tanta força... amor, pesar, raiva. As emoções dele sobem e descem, disparam por todos os lados. O que aconteceu entre ele e Rose... faz com que ele se dilacere. Às vezes é difícil se concentrar em mim com tudo isso que está acontecendo com ele. Pelo menos é só durante uma parte do tempo. Eu realmente não consigo controlar quando acontece.
Eu não disse nada, mas fiquei pensando se alguns daqueles sentimentos voláteis não eram parte da tendência do elemento espírito de levar as pessoas que o possuíam à loucura. Ou talvez só fosse parte da personalidade inata de Adrian. Tudo isso era irrelevante, por enquanto.
— Mas ele não pode sentir você, certo? Só funciona em um sentido? — eu perguntei. Rose era capaz de ler os pensamentos de Vasilisa e ver suas experiências no dia a dia — mas não funcionava na outra direção. Fiquei achando que fosse a mesma coisa agora, mas com o espírito não se podia partir de ideias pré-concebidas.
— Certo — ela concordou.
— É por isso que você... é por isso que você sempre sabe coisas sobre ele. Como as minhas visitas. E quando ele teve vontade de pizza. É por isso que ele está aqui, por isso que Abe queria que ele estivesse aqui.
Jill franziu a testa.
— Abe? Não, foi mais uma escolha do grupo o fato de Adrian ter vindo para cá. Rose e Lissa acharam que seria melhor se nós dois estivéssemos juntos enquanto nos acostumávamos com o laço, e eu também queria que ele estivesse por perto. Por que você achou que Abe estivesse envolvido?
— Hum, por nada — eu disse. Jill não devia ter visto a instrução que Abe dera a Adrian para que ficasse na casa de Clarence. — Eu só estava confusa a respeito de uma coisa.
— Podemos ir agora? — ela implorou. — Eu respondi às suas perguntas.
— Primeiro, deixe-me ter certeza de que entendi uma coisa — eu disse. — Explique como ele foi parar em Los Angeles e por que não tem como ir embora.
Jill juntou as mãos e desviou o olhar mais uma vez, um hábito que eu estava começando a associar às ocasiões em que ela sabia que suas informações não seriam bem recebidas.
— Ele, hum, saiu da casa de Clarence ontem à noite. Porque estava entediado. Pegou carona até a cidade... até Palm Springs... e acabou caindo na balada com algumas pessoas que estavam indo para Los Angeles. Então, ele foi com eles. E quando estava em um clube, encontrou umas garotas... umas garotas Moroi... e foi para casa com elas. E daí ele passou a noite lá e meio que desmaiou. Até agora. Agora ele acordou. E quer ir para casa. Para a casa de Clarence.
Com toda essa conversa de cair na balada e garotas, uma ideia desconcertante estava se formando na minha mente.
— Jill, exatamente quanto disso tudo você realmente experienciou?
Ela ainda evitava o meu olhar.
— Isso não é importante.
— Para mim, é — eu disse. Na noite em que Jill tinha acordado chorando... Adrian também estava com aquelas garotas. Será que ela estava vivendo as experiências sexuais dele? — Onde ele estava com a cabeça? Ele sabe que você está aqui, que você vive tudo que ele faz, mas nunca para pra... ai meu Deus. O primeiro dia de aula. A sra. Chang estava certa, não é? Você estava de ressaca. Por tabela, pelo menos.
E ela acordava enjoada quase todas as outras manhãs — porque Adrian também estava de ressaca.
Jill assentiu.
— Não havia nada físico que eles pudessem testar... como sangue ou algo assim... para provar que era isso. Mas era. Era como se eu mesma tivesse bebido. Eu com toda a certeza me sentia assim. Foi horrível.
Estendi o braço e virei o rosto dela na minha direção, para que ela fosse obrigada a me encarar.
— E está agora de novo.
Havia mais luz no quarto, já que o sol tinha se erguido mais alto, e eu enxergava os sinais mais uma vez. A palidez doentia e os olhos vermelhos. Eu não ficaria surpresa em saber que ela também estava com dor de estômago. Abaixei a mão e sacudi a cabeça, aborrecida.
— Ele pode ficar lá.
— Sydney!
— Ele merece. Eu sei que você sente... algo... por ele. — Se era afeto fraternal ou romântico, realmente não fazia diferença. — Mas você não pode ficar cuidando dele como se fosse um bebê e atender a todo pedido que ele envia.
— Ele não está pedindo, não exatamente — ela disse. — Eu só sinto que é o que ele quer.
— Bom, ele devia ter pensado nisso antes de se meter nessa confusão. Ele é capaz de descobrir um jeito de voltar.
— Acabou a bateria do celular dele.
— Ele pode pedir um telefone emprestado para alguma das “amigas” novas dele.
— Ele está em agonia — ela disse.
— A vida é assim — eu disse.
— Eu estou em agonia.
Suspirei.
— Jill...
— Não, estou falando sério. E não é só a ressaca. Quer dizer, sim, parte disso é a ressaca. E como ele está passando mal sem tomar nada, a mesma coisa está acontecendo comigo! Além do mais... os pensamentos dele... Credo. — Jill apoiou a testa na mão. — Não consigo me livrar da infelicidade dele. Parece... parece que tem uma marreta batendo na minha cabeça. Não consigo evitar isso. Não consigo fazer nada além de pensar em como ele está se sentindo péssimo! E isso me deixa péssima. Ou eu acho que estou péssima. Não sei — ela suspirou. — Por favor, Sydney. Podemos ir?
— Você sabe onde ele está? — perguntei.
— Sei.
— Tudo bem, então. Eu vou — deslizei pela beirada da cama. Ela se levantou comigo.
— Eu também vou.
— Não — eu disse. — Você volta para a cama. Tome algumas aspirinas e veja se consegue ficar melhor. — Também havia algumas coisas que eu queria dizer em particular a Adrian. Sabia que se ela estava constantemente conectada a ele acabaria “ouvindo” a nossa conversa, mas seria bem mais fácil dizer a ele o que eu queria se ela não estivesse presente em carne e osso, olhando para mim com aqueles olhões.
— Mas como é que você...
— Não quero que você fique enjoada no carro. Só me ligue se algo mudar ou se ele for embora ou algo assim.
As reclamações seguintes de Jill não foram assim tão impositivas, ou porque ela não estava a fim ou só porque estava disposta a se sentir agradecida por qualquer pessoa que fosse “salvar” Adrian. Ela não tinha o endereço exato, mas tinha uma descrição muito detalhada do apartamento em que ele estava, que era vizinho a um hotel muito famoso. Quando fui ver onde ficava, descobri que o hotel na verdade se localizava em Long Beach, e isso significava que eu teria de atravessar toda a Los Angeles. Eu tinha uma viagem de duas horas pela frente. O café seria indispensável.
O dia pelo menos estava bonito, e quase não tinha congestionamento assim tão cedo no domingo. Olhando para o sol e para o céu azul, fiquei pensando em como seria legal se eu estivesse fazendo a viagem a bordo de um conversível, com a capota abaixada. Também teria sido legal se eu estivesse viajando por outro motivo que não fosse resgatar um vampiro baladeiro que não tinha como voltar para casa.
Eu ainda estava com dificuldade para aceitar a ideia de Jill e Adrian unidos por um laço de espírito. A noção de que alguém podia trazer outra pessoa de volta dos mortos não era algo que se conciliava bem com as minhas crenças religiosas. Era tão desagradável quanto outra proeza do espírito: restaurar um Strigoi. Nós também tínhamos dois casos documentados de isso ter acontecido — dois Strigoi transformados por magia do espírito de volta a sua forma original. Um deles era uma mulher chamada Sonya Karp. O outro era Dimitri Belikov. Entre aquilo e toda essa ressurreição, o espírito realmente estava começando a me apavorar. Tanto poder assim não parecia correto.
Cheguei a Long Beach bem dentro da minha previsão e não tive problemas para encontrar o condomínio em que ele estava. Ficava bem na frente de um hotel à beira-mar chamado Cascadia. Como Jill não tinha ligado para informar nenhuma mudança de local, supus que Adrian continuava enfurnado ali. Foi fácil encontrar lugar para estacionar na rua àquela hora do dia, e eu fiz uma pausa do lado de fora para apreciar a extensão azul acinzentada do Pacífico no horizonte a oeste. Foi de tirar o fôlego, principalmente depois da minha primeira semana no deserto de Palm Springs. Quase desejei que Jill tivesse vindo. Talvez ficar próxima de tanta água a fizesse se sentir melhor.
Os apartamentos ficavam em um prédio de estuque cor de pêssego com três andares, duas unidades em cada andar. Pelas lembranças de Adrian, Jill se recordava de ele ter ido até o alto do prédio e virar à direita. Retracei esses passos e cheguei a uma porta azul com uma aldrava pesada de latão. Bati.
Ninguém respondeu durante quase um minuto, então tentei de novo, com mais força. Estava prestes a fazer a terceira tentativa quando ouvi a porta ser destrancada. Uma fresta se abriu e uma garota espiou para fora.
Ela era obviamente Moroi, com o corpo magérrimo de modelo de passarela, a pele pálida e perfeita que me pareceu especialmente irritante, levando em conta que eu tinha certeza de que uma espinha iria sair na minha testa muito em breve. Ela tinha a minha idade, talvez fosse um pouco mais velha, com cabelo preto liso e olhos de um azul profundo. Ela parecia uma espécie de boneca de outro planeta. Também estava meio sonolenta.
— O que foi? — ela me olhou de cima a baixo. — Está vendendo alguma coisa?
Perto daquela Moroi alta e perfeita, eu de repente me senti acanhada e desarrumada com minha saia de linho e camisa de abotoar.
— Adrian está aqui?
— Quem?
— Adrian. Alto. Cabelo castanho. Olhos verdes.
Ela franziu a testa.
— Você quer dizer Jet?
— Eu... eu não sei bem. Por acaso ele fuma feito uma chaminé?
A garota assentiu, compreensiva.
— Fuma. Você deve estar falando de Jet — ela olhou para trás e gritou: — Ei, Jet! Tem uma vendedora aqui que quer falar com você.
— Mande embora — respondeu uma voz conhecida.
A Moroi abriu mais a porta e fez um sinal para eu entrar.
— Ele está na sacada.
Atravessei uma sala de estar que servia como alerta do que iria acontecer caso Jill perdesse toda a noção de organização e respeito próprio. O lugar era um desastre. Um desastre feminino. Pilhas de roupa suja cobriam o chão e louças usadas cobriam cada centímetro quadrado que não estava ocupado por garrafas de cerveja vazias. Um vidrinho de esmalte caído tinha criado uma mancha rosa-chiclete no tapete. No sofá, enrolada em cobertores, uma garota Moroi loira deu uma olhada sonolenta em mim e em seguida voltou a dormir.
Fui desviando de tudo e cheguei até onde Adrian estava, passando por uma porta envidraçada de correr. Ele estava em pé na sacada, debruçado sobre o parapeito, de costas para mim. O ar da manhã era quente e limpo, de modo que, naturalmente, ele tentava estragar tudo com seu cigarro.
— Me diga uma coisa, Sage — ele disse sem se virar para mim. — Por que diabos alguém coloca um prédio perto do mar e não faz as sacadas viradas para a água? Elas foram feitas para dar vista para as montanhas atrás de nós. A menos que os vizinhos comecem a fazer algo interessante, estou pronto para declarar que esta estrutura é um desperdício total.
Cruzei os braços e olhei cheia de raiva para as costas dele.
— Fico muito contente de ter a sua opinião tão valiosa a esse respeito. Vou me assegurar de fazer essa observação quando entrar com a minha queixa sobre a insuficiência de vistas para o mar para o conselho municipal.
Ele se virou para trás com uma espécie de sorriso se contorcendo em seus lábios.
— O que você está fazendo aqui? Achei que ia estar na igreja ou algo do tipo.
— O que você acha? Estou aqui por causa das súplicas de uma garota de quinze anos que não merece o que você faz ela passar.
Qualquer vestígio de sorriso desapareceu.
— Ah. Ela contou para você — ele se virou de costas.
— Contou, e vocês todos deviam ter me contado antes! Isso é sério... é descomunal.
— E sem dúvida é algo que os alquimistas adorariam estudar — dava para imaginar o sorrisinho cínico dele perfeitamente.
— Eu prometi a ela que não vou contar. De todo jeito, vocês tinham que ter me contado. É uma informação que eu precisava saber, já que sou eu quem tem de ficar de babá de todos vocês.
— “Ficar de babá” é meio exagerado, Sage.
— Levando em conta a cena atual? Realmente, acho que não.
Adrian não disse nada, e eu fiz uma rápida avaliação dele. Usava uma calça jeans escura de boa qualidade e uma camisa de algodão vermelha com a qual devia ter dormido, a julgar pelo amassado. Seus pés estavam descalços.
— Você trouxe casaco? — perguntei.
— Não.
Voltei para dentro e dei uma busca no meio da bagunça. A garota Moroi loira dormia pesado e a que tinha me deixado entrar estava esparramada em uma cama desfeita em outro quarto. Finalmente encontrei as meias e os sapatos de Adrian jogados em um canto. Eu me apressei em pegar tudo, voltei para fora e joguei no chão da sacada, ao lado dele.
— Coloque isto. Estamos de saída.
— Você não é minha mãe.
— Não, a sua está cumprindo pena por perjúrio e roubo, se me lembro bem.
Foi uma coisa muito, muito maldosa de dizer, mas ao mesmo tempo era a verdade. E serviu para chamar a atenção dele.
A cabeça de Adrian se virou para trás em um gesto brusco. A raiva brilhava nas profundezas de seus olhos verdes; era a primeira vez que eu via aquilo de verdade nele.
— Nunca mais volte a falar dela. Você não faz ideia do que está dizendo.
A raiva dele era um pouco intimidadora, mas eu fiquei firme.
— Na verdade, fui eu a responsável por encontrar os registros que ela havia roubado.
— Ela teve seus motivos — ele disse entredentes.
— Você tem tanta disposição para defender uma pessoa que foi condenada por um crime e, no entanto, não tem nenhuma consideração por Jill... que não fez nada.
— Tenho muita consideração por ela, sim! — Ele fez uma pausa para acender um cigarro com as mãos trêmulas e desconfiei que também estava tentando controlar suas emoções. — Penso nela o tempo todo. Como é que poderia não pensar? Ela está aqui... Eu não consigo sentir, mas ela está sempre aqui, sempre escutando as coisas na minha cabeça, escutando coisas que eu nem quero que ela escute. Sentindo coisas que eu não quero que ela sinta. — Ele tragou o cigarro e se virou para olhar a vista, apesar de eu duvidar que ele estivesse enxergando alguma coisa.
— Se você tem tanta consciência dela, então por que faz coisas assim? — Fiz um gesto para o entorno. — Como é que você é capaz de beber se sabe que isso a afeta também? Como foi capaz de fazer — eu disse com uma careta — as coisas que fez com essas garotas, sabendo que ela era capaz de “ver”? Ela tem quinze anos.
— Eu sei, eu sei — ele respondeu. — Eu não sabia sobre a bebida... não no começo. Quando ela foi até a casa de Clarence depois da escola e me contou, eu parei. Parei de verdade. Mas daí... quando vocês foram lá na sexta, ela disse para eu beber, porque era fim de semana. Acho que ela não estava muito preocupada em passar mal. Por isso, eu disse a mim mesmo: “Só vou tomar algumas”. Só que, ontem à noite, foi mais do que isso. E daí as coisas ficaram meio loucas, e eu vim parar aqui e... o que eu estou fazendo? Não tenho que justificar as minhas ações para você.
— Não acho que você possa justificá-las para ninguém — eu estava furiosa. Meu sangue fervia.
— Olha só quem fala, Sage — ele apontou um dedo acusatório para mim. — Pelo menos eu faço alguma coisa. Mas e você? Você deixa o mundo seguir em frente sem a sua participação. Fica aí parada enquanto aquele imbecil do Keith trata você feito merda, e só sorri e concorda. Você não tem amor-próprio. Não revida. Até o velho Abe parece ter você na palma da mão. Será que Rose estava certa quando disse que ele tinha algo contra você? Ou será que ele é apenas mais alguém contra quem você não consegue se opor?
Eu me esforcei muito para não deixar transparecer como aquelas palavras tinham me atingido fundo.
— Você não sabe nada sobre mim, Adrian Ivashkov. Eu revido sim, e muito.
— Quase acreditei.
Lancei um sorriso contido para ele.
— Eu só não faço um espetáculo quando demonstro oposição. Isso se chama ser responsável.
— Claro. Qualquer coisa que te ajude a dormir tranquila à noite.
Joguei as mãos para o alto.
— Bom, esta é a questão: eu não durmo mais à noite porque tenho que vir salvar você de sua própria estupidez. Podemos ir embora agora? Por favor?
Como resposta, ele apagou o cigarro e começou a calçar as meias e os sapatos. Ele ergueu os olhos para mim ao fazer isso, já totalmente sem raiva. Os humores dele mudavam com tanta facilidade como se fossem acionados por um interruptor de luz.
— Você precisa me tirar de lá. Da casa de Clarence — a voz dele era firme e séria. — Ele é um sujeito bem bacana, mas vou enlouquecer se tiver que ficar lá.
— Está comparando com o seu comportamento excelente quando não está lá? — Dei uma olhada para o apartamento atrás de mim. — Talvez as suas duas fãs tenham lugar para você.
— Ei, tenha um pouco de respeito. Elas são pessoas de verdade e têm nome. Carla e Krissy — ele franziu a testa. — Ou será que era Missy?
Eu suspirei.
— Eu já disse antes, não tenho controle nenhum sobre as suas acomodações. Por que é tão difícil assim para você arrumar um lugar para morar? Por que precisa de mim?
— Porque eu não tenho quase dinheiro nenhum, Sage. O meu velho me cortou. Ele me dá uma mesada que mal paga os meus cigarros.
Pensei em sugerir que ele parasse de fumar, mas esse não seria um rumo útil para a nossa conversa.
— Sinto muito. De verdade. Se eu pensar em algo, digo para você. Além do mais, por acaso Abe não quer que você fique lá? — resolvi abrir o jogo. — Eu ouvi vocês dois conversando no primeiro dia. Ele pediu para você fazer algo para ele.
Adrian se endireitou com os sapatos calçados.
— É, eu não sei que negócio é esse. Você ouviu como ele foi totalmente vago também? Acho que ele só está tentando sacanear comigo, quer me manter ocupado porque, em algum lugar daquele coração ferrado dele, ele se sente mal pelo que aconteceu com...
Adrian fechou a boca, mas eu pude ouvir o nome que não foi proferido: Rose. Uma tristeza terrível passou pelo seu rosto, e seus olhos pareceram perdidos e melancólicos. Eu me lembrei de quando estava no carro com Jill e ela tinha falado algo sobre Rose, sobre como a lembrança dela atormentava Adrian. Sabendo o que sabia agora a respeito do laço, fiquei com a sensação de que havia muito pouco de Jill naquelas palavras. Aquela tinha sido uma linha direta com Adrian. Olhando pra ele, eu mal conseguia compreender o alcance daquela dor, e também não sabia como ajudar. Eu só sabia que de repente tinha compreendido um pouquinho melhor por que ele queria tanto afogar as mágoas, não que isso ajudasse a tornar o vício mais saudável.
— Adrian — eu disse sem jeito. — Eu...
— Deixe para lá — ele disse. — Você não sabe o que é amar alguém daquele jeito e depois pegarem esse amor e jogarem de volta na sua cara...
Um grito de furar os tímpanos de repente cortou o ar. Adrian se encolheu mais do que eu, comprovando o lado negativo da audição de vampiro: sons irritantes eram ainda mais irritantes.
Em uníssono, corremos para dentro do apartamento. A garota loira estava sentada ereta no sofá, tão sobressaltada quanto nós. A outra garota, que tinha aberto a porta para mim, estava parada na frente do quarto, pálida como a morte, com um celular apertado na mão.
— Qual é o problema? — perguntei.
Ela abriu a boca para falar e então me olhou de cima a baixo duas vezes, parecendo lembrar que eu era humana.
— Tudo bem, Carla — Adrian disse. — Ela sabe sobre nós. Pode confiar nela.
Isso era tudo de que Carla precisava. Ela se jogou nos braços de Adrian e começou a chorar de maneira descontrolada.
— Ah, Jet — ele disse entre soluços. — Não acredito que aconteceu com ela. Como foi que isso aconteceu?
— O que aconteceu? — a outra garota Moroi perguntou e se levantou cambaleante. Assim como Adrian, parecia que ela tinha dormido com aquela roupa. Ousei ter esperança de que Jill não tivesse sido submetida a tanta indecência quanto eu tinha imaginado originalmente.
— Conte para nós o que aconteceu, Carla — Adrian disse com um tom de voz gentil que eu só o tinha visto usar perto de Jill.
— Eu sou a Krissy — ela fungou. — E a nossa amiga... a nossa amiga... — Ela enxugou os olhos quando mais lágrimas caíram. — Acabei de receber a ligação. A nossa amiga... outra Moroi que estuda na nossa faculdade... ela morreu. — Krissy ergueu os olhos para a outra garota, que agora eu presumi ser Carla. — Foi Melody. Ela foi morta por um Strigoi ontem à noite.
Carla engoliu em seco e começou a chorar, causando mais lágrimas em Krissy. Olhei para Adrian, nós dois estávamos boquiabertos. Mesmo que não soubéssemos quem era essa tal de Melody, um assassinato por Strigoi continuava sendo uma coisa terrível e trágica. Minha mente de alquimista entrou em ação imediatamente. Eu precisava garantir que a cena do crime estivesse protegida e que o assassinato fosse mantido em segredo dos humanos.
— Onde? — eu perguntei. — Onde foi que aconteceu?
— Em West Hollywood — Carla respondeu. — Atrás de um clube qualquer.
Eu relaxei um pouco, apesar de ainda estar abalada por aquela tragédia toda. Era uma região movimentada e cheia de gente, que com toda a certeza estaria no radar dos alquimistas. Se algum humano tivesse descoberto, os alquimistas já teriam dado conta do assunto há muito tempo.
— Pelo menos ela não foi transformada — Carla disse, desamparada. — Ela pode descansar em paz. Claro que os monstros não foram capazes de deixá-la em paz sem mutilar seu corpo.
Fiquei olhando fixamente, sentindo-me gelada.
— Como assim?
Ela esfregou o nariz na camisa de Adrian.
— Melody. Eles não só beberam o sangue dela. Também cortaram sua garganta.
15
Adrian dormiu durante boa parte do caminho de volta a Palm Springs. Parece que a balada tarde da noite com Carla e Krissy tinha resultado em muito pouco descanso. Pensar nisso me deixou pouco à vontade. Pensar que Jill tinha passado por isso através dele me deixava enjoada.
Havia muito pouco que pudéssemos fazer por Carla e Krissy, a não ser oferecer nossas condolências. Ataques de Strigoi aconteciam. Era trágico e terrível, mas a única maneira que a maior parte dos Moroi tinha para se proteger era exercer cautela, manter os arredores seguros e sempre que possível ter guardiões por perto. Para os Moroi que não pertenciam à realeza e que estudavam pelo mundo, como Carla e Krissy, guardiões não eram uma opção. Muitos Moroi se viravam assim; só precisavam ter cuidado.
As duas consideraram as circunstâncias relativas à morte da amiga terríveis. Era verdade. Eram mesmo. Mas nenhuma das duas pensou muito além disso nem achou que houvesse algo estranho no fato de a garganta ter sido cortada. Eu também teria agido da mesma maneira se não tivesse ouvido o relato de Clarence a respeito da morte da sobrinha.
Levei Adrian até Amberwood comigo e o coloquei na lista de visitantes, achando que Jill iria se sentir melhor se o visse pessoalmente. E, é claro, ela estava à nossa espera no alojamento quando chegamos. Ela o abraçou e lançou um olhar agradecido para mim. Eddie estava com ela e, apesar de não dizer nada, havia uma expressão exasperada em seu rosto que demonstrava que eu não era a única a achar que o comportamento de Adrian era ridículo.
— Eu estava tão preocupada — Jill disse.
Adrian bagunçou o cabelo dela, gesto que a fez se afastar.
— Nada com que se preocupar, Chave de Cadeia. Desde que essa camisa possa ser passada para desamassar, não aconteceu nada de ruim.
Não aconteceu nada de ruim, pensei, sentindo a raiva esquentar dentro de mim. Nada de ruim, tirando o fato de que Jill teve que assistir Adrian ficando com outras garotas além de aguentar seu consumo excessivo de álcool. Não fazia diferença se a queda dela por Lee havia superado sua antiga queda por Adrian. Ela simplesmente era nova demais para testemunhar uma coisa daquelas. Adrian tinha sido egoísta.
— Agora — Adrian prosseguiu —, se Sage puder fazer a gentileza de continuar como chofer, convido todo mundo para almoçar.
— Achei que você não tivesse dinheiro nenhum — observei.
— Eu disse que não tenho muito dinheiro.
Jill e Eddie se entreolharam.
— Nós, hum, íamos nos encontrar com Micah para almoçar — Jill disse.
— Tragam ele também — Adrian falou. — Assim ele pode conhecer a família.
Micah chegou um pouco depois e ficou contente em conhecer o nosso outro “irmão”. Ele apertou a mão de Adrian e sorriu.
— Agora estou vendo uma certa semelhança na família. Estava começando a imaginar se Jill era adotada, mas vocês dois são parecidos.
— O nosso carteiro na Dakota do Norte também — Adrian disse.
— Do Sul — corrigi. Felizmente, Micah não pareceu achar que houvesse algo de estranho no deslize.
— Certo — Adrian disse. Ele examinou Micah, pensativo. — Há algo familiar em você. Nós já nos conhecemos?
Micah sacudiu a cabeça.
— Eu nunca estive na Dakota do Sul.
Tive quase certeza de ouvir Adrian murmurar “então somos dois”.
— Nós devíamos ir andando — Eddie se apressou em dizer e se dirigiu para a porta do alojamento. — Preciso tirar o atraso da lição de casa mais tarde.
Eu franzi a testa, confusa com a mudança de atitude. Eddie não era mau aluno, de jeito nenhum, mas tinha ficado óbvio para mim, desde que tínhamos chegado a Amberwood, que ele não tinha o mesmo interesse pela escola que eu. Aquele era um ano repetido para ele, e ele se contentava em representar seu papel e só fazer o que fosse realmente necessário para manter as aparências.
Se alguém mais considerou o comportamento dele estranho, não demonstrou. Micah já estava falando com Jill sobre alguma coisa e Adrian ainda parecia estar tentando descobrir de onde conhecia Micah. A oferta generosa de Adrian de pagar o almoço só se estendia a fast-food; por isso, a nossa refeição foi rápida. Mas, depois de uma semana de comida do refeitório, a mudança foi bem-vinda, e já fazia tempo que Adrian tinha deixado claras suas opiniões a respeito da comida “saudável” de Dorothy.
— Você devia ter pedido uma refeição infantil — Adrian me disse apontando para o meu hambúrguer meio comido e o resto das minhas batatas fritas. — Você me teria feito economizar muito dinheiro. E ainda teria ganhado um brinquedo.
— “Muito” é meio exagerado — eu disse. — Além do mais, você agora tem sobras para ajudar com a sua sobrevivência.
Ele revirou os olhos e roubou uma batatinha do meu prato.
— É você que devia levar os restos para casa. Como é que consegue funcionar com tão pouca comida? — ele questionou. — Um dia desses, vai sair voando com o vento.
— Pare com isso — eu disse.
— Só estou constatando um fato — ele disse e deu de ombros. — Você podia engordar uns bons cinco quilos.
Fiquei encarando-o, incrédula, chocada demais para dar qualquer resposta. O que um Moroi podia falar sobre ganho de peso? Eles tinham a silhueta perfeita. Não sabiam o que era se olhar no espelho e ver algo inadequado, nunca se sentir boa o suficiente. Para eles, isso não exigia nenhum esforço; já para mim, por mais que eu me esforçasse, parecia que eu nunca conseguiria me equiparar a sua perfeição inumana.
Os olhos de Adrian se voltaram para onde Jill, Eddie e Micah conversavam bem animados sobre treinar mais autodefesa juntos.
— Eles são meio fofos — Adrian disse com um tom de voz apenas para os meus ouvidos. Ele ficou brincando com o canudo enquanto examinava o grupo. — Talvez Castile tivesse certa razão em permitir que ela namorasse na escola.
— Adrian — resmunguei.
— Brincadeirinha — ele disse. — Lee provavelmente iria desafiá-lo para um duelo. Ele não consegue parar de falar sobre ela, sabe? Quando nós voltamos do minigolfe, Lee só ficou repetindo: “Quando nós podemos sair de novo?”. E, no entanto, ele sumiu da face da terra quando estava em Los Angeles e eu precisava dele.
— Vocês tinham combinado de se encontrar? — perguntei. — Ele tinha dito que levaria você de volta para casa?
— Não — Adrian reconheceu. — Mas que outra coisa ele realmente estava fazendo?
Naquele momento um homem de cabelo grisalho passou e esbarrou na cadeira de Jill enquanto equilibrava uma bandeja de hambúrgueres e refrigerantes. Nada derramou, mas Eddie se levantou de um pulo com a velocidade da luz, pronto para saltar para o outro lado da mesa e defendê-la. O homem recuou e balbuciou um pedido de desculpas.
Adrian sacudiu a cabeça, surpreso.
— É só fazer com que ele seja o acompanhante sempre que ela sair com qualquer um, e nós nunca vamos ter que nos preocupar.
Sabendo sobre o laço entre Adrian e Jill, pude observar o senso de proteção de Eddie sob uma luz diferente. Ah, claro, eu sabia que seu treinamento de guardião tinha instaurado nele essa natureza, mas sempre parecia haver algo um pouco mais forte ali. Algo quase... pessoal. No começo, fiquei imaginando se talvez fosse porque Jill simplesmente fazia parte de seu círculo mais amplo de amizades, como Rose. Agora, eu ficava pensando que talvez fosse mais do que isso. Jill tinha dito que Eddie era o único que tinha tentado protegê-la na noite do ataque. Ele falhou, provavelmente mais por falta de tempo do que de habilidade.
Mas que tipo de marca isso devia ter deixado nele? Ele era alguém cuja única razão na vida era defender outras pessoas — e teve que assistir alguém morrer sob sua guarda. Agora que Adrian a tinha trazido de volta à vida, será que era quase como uma segunda chance para Eddie? Uma oportunidade de se redimir? Talvez fosse essa a sua razão de ser tão vigilante.
— Você parece confusa — Adrian disse.
Eu sacudi a cabeça e suspirei.
— Acho que só estou pensando demais em tudo.
Ele assentiu, solene.
— É por isso que nunca tento fazer isso.
Uma questão anterior surgiu na minha mente.
— Ei, por que você disse para aquelas garotas que o seu nome era Jet?
— É uma prática padrão quando você não quer que uma garota encontre você depois, Sage. Além do mais, achei que estivesse protegendo esta nossa operação.
— É, mas por que Jet? Por que não... sei lá... Travis ou John?
Adrian me lançou um olhar para dizer que eu estava desperdiçando o tempo dele.
— Porque Jet é um nome de cara durão.
Depois do almoço, devolvemos Adrian à casa de Clarence e o restante de nós voltou a Amberwood. Jill e Micah foram fazer o que tinham para fazer, e eu convenci Eddie a ir comigo para a biblioteca. Lá, nós ocupamos uma mesa e eu peguei meu laptop.
— Então, nós descobrimos uma coisa interessante quando fui buscar Adrian hoje — disse a Eddie, usando minha voz baixa de biblioteca.
Eddie me olhou feio.
— Aposto que a experiência toda de buscar Adrian foi interessante... pelo menos de acordo com o que Jill me contou.
— Poderia ter sido pior — especulei. — Pelo menos ele estava vestido quando eu cheguei. E só havia duas outras Moroi lá. Eu não me deparei com uma casa cheia delas nem nada assim.
Isso o fez rir.
— Provavelmente você teria tido mais dificuldade em tirar Adrian de lá se esse fosse o caso.
A tela do meu laptop se acendeu e ganhou vida, e eu dei início ao processo complicado de entrar no banco de dados superseguro dos alquimistas.
— Bom, quando nós estávamos saindo, a garota com quem ele estava descobriu que uma amiga delas tinha sido morta pelos Strigoi na noite anterior.
Todo o humor sumiu do rosto de Eddie. Seus olhos endureceram.
— Onde?
— Em Los Angeles, não aqui — completei. Eu devia ter sido mais esperta e não começar a conversa sem afirmar antes com clareza que ele não precisava sair correndo para procurar Strigoi pelo campus. — Até onde sabemos, todo mundo tem razão... os Strigoi não estão a fim de circular por Palm Springs.
Eddie ficou cerca de um por cento menos tenso.
— Mas o negócio é o seguinte... — prossegui. — Essa garota Moroi... a amiga delas... supostamente foi morta do mesmo modo que a sobrinha de Clarence.
As sobrancelhas de Eddie se ergueram.
— Com a garganta cortada?
Assenti.
— Isso é estranho. Tem certeza de que foi isso mesmo que aconteceu... com as duas? Quer dizer, nós só estamos confiando no relato de Clarence, certo?
Eddie ficou batendo com um lápis na mesa enquanto refletia sobre a questão.
— Clarence é bem legal, mas por favor... Todos sabemos que ele não bate bem da cabeça.
— É por isso que eu trouxe você aqui. E é por isso que eu queria consultar este banco de dados. Nós acompanhamos a maior parte das mortes relacionadas a Strigoi.
Eddie olhou por cima do meu ombro quando eu puxei um texto sobre Tamara Donahue de cinco anos antes. E lá estava a informação: ela tinha sido encontrada com a garganta cortada. Outra busca sobre Melody Croft — a amiga de Krissy e Carla — também revelou um relatório da noite anterior. Meu pessoal tinha chegado rapidamente ao local e enviado as informações com rapidez. A garganta de Melody também tinha sido cortada. Havia outros relatos sobre assassinatos ligados aos Strigoi em Los Angeles — afinal de contas, aquela era uma cidade grande —, mas só dois se encaixavam no perfil.
— Você ainda está pensando sobre o que Clarence disse... sobre os caçadores de vampiros? — Eddie me perguntou.
— Não sei. Só achei que valia a pena conferir.
— Os guardiões deram sua opinião em ambos os casos — Eddie disse e apontou para a tela. — Eles também declararam que foram ataques dos Strigoi... sangue foi tirado das duas garotas. É isso que os Strigoi fazem. Não sei o que os caçadores de vampiros fazem, mas não acho que beber sangue seja parte de seus objetivos.
— Eu também não. Mas nenhuma das garotas perdeu todo o sangue.
— Os Strigoi nem sempre bebem todo o sangue das vítimas. Principalmente se forem interrompidos. Esta garota, Melody, foi morta perto de um clube, certo? Quer dizer, se o assassino dela ouviu alguém se aproximar, simplesmente fugiu.
— Acho que sim. Mas e esse negócio de cortar a garganta?
Eddie deu de ombros.
— Temos toneladas de relatos sobre Strigoi que fazem coisas malucas. É só olhar para Keith e o olho dele. Eles são maldosos. Não dá para entender logicamente suas ações.
— Hum, vamos deixar o olho dele fora disso. — Keith não era um caso que eu desejasse discutir. Eu me recostei na cadeira e suspirei. — É só que tem algo me incomodando nesses assassinatos. O sangue meio bebido. A garganta cortada. São duas coisas estranhas que aconteceram juntas. E eu não gosto de coisas estranhas.
— Então você está na profissão errada — Eddie disse, mais uma vez sorridente.
Eu retribuí o sorriso, ainda revirando tudo na cabeça.
— Acho que sim.
Como eu não disse mais nada, ele me lançou um olhar curioso.
— Você não pensa realmente... não acha que caçadores de vampiros existam, acha?
— Não, na verdade não. Não temos evidências para pensar que eles existam.
— Mas... — Eddie ofereceu.
— Mas — eu disse. — Por acaso a ideia não deixa você um pouco apavorado? Quer dizer, agora você sabe no que deve prestar atenção. Outros Moroi. Strigoi. Eles se destacam. Mas você imagina um caçador de vampiros humano? — Fiz um gesto indicando os alunos reunidos na biblioteca. — Você não iria saber distinguir uma ameaça.
Eddie sacudiu a cabeça.
— Na verdade, é bem fácil. Basta tratar todos como ameaça.
Eu não sabia dizer se isso fazia eu me sentir melhor ou não. Quando voltei ao alojamento, mais tarde, a sra. Weathers me chamou.
— A sra. Terwilliger deixou uma coisa aqui para você.
— Ela trouxe algo para mim? — perguntei, surpresa. — Não é dinheiro, é? — Até agora, nenhum dos cafés que eu comprara tinha sido reembolsado.
Como resposta, a sra. Weathers me entregou um livro encadernado em couro. No começo, achei que era o mesmo que eu tinha acabado de terminar.
Então examinei a capa mais de perto e li “Volume 2”. Um post-it amarelo preso ao livro trazia a caligrafia fina da sra. Terwilliger: “Próximo”. Suspirei e agradeci à sra. Weathers. Eu faria qualquer coisa que a minha professora pedisse, mas estava torcendo um pouco para ela me dar um livro que fosse mais relato histórico e menos receitas de feitiços.
Enquanto caminhava pelo corredor, ouvi algumas exclamações assustadas na outra ponta. Vi uma porta aberta e algumas pessoas aglomeradas ao redor dela. Passei apressada pelo meu próprio quarto e fui ver qual era o problema. Era o quarto de Julia e de Kristin. Apesar de eu não ter certeza se realmente tinha o direito, forcei minha passagem entre algumas meninas. Ninguém me deteve.
Vi Kristin deitada na cama, contorcendo-se com violência. Ela suava muito e suas pupilas estavam tão dilatadas que mal dava para ver a íris. Julia estava sentada ao lado dela na cama, junto com mais duas meninas que eu não conhecia bem. Ela ergueu os olhos quando eu me aproximei, com o olhar cheio de medo.
— Kristin? — exclamei. — Kristin, está tudo bem com você? — Como não houve resposta, eu me virei para as outras. — O que aconteceu com ela?
Ansiosa, Julia voltou a dobrar uma toalhinha úmida e a colocou na testa de Kristin.
— Não sabemos. Ela está assim desde hoje de manhã.
Eu fiquei encarando, incrédula.
— Então ela precisa ir ao médico! Precisamos chamar alguém agora. Vou chamar a sra. Weathers...
— Não! — Julia se levantou em um pulo e pegou o meu braço. — Não pode fazer isso. O motivo por que ela está assim... bom, nós achamos que é por causa da tatuagem.
— Tatuagem?
Uma das outras meninas pegou o pulso de Kristin e o virou para que eu pudesse ver a parte de dentro. Ali, tatuada em tinta cor de cobre reluzente, havia uma margarida. Eu me lembrei de que Kristin queria fazer uma tatuagem celestial, mas, pelo que eu sabia, ela não tinha dinheiro para isso.
— Quando foi que ela fez?
— Hoje, mais cedo — Julia disse. Ela parecia envergonhada. — Eu emprestei o dinheiro para ela.
Fiquei olhando para aquela flor faiscante, tão linda e de aparência inofensiva. Eu não tinha dúvidas de que ela era a causa da crise. A substância misturada à tinta para dar barato não estava reagindo da maneira correta com o sistema dela.
— Ela precisa de um médico — eu disse com firmeza.
— Não pode fazer isso. Vamos ter que contar a eles sobre as tatuagens — a garota que segurava a mão de Kristin disse. — Ninguém acreditou em Trey, mas se vissem algo assim... bom, podem acabar com tudo na Nevermore.
Que bom! Eu pensei. Mas, para a minha surpresa, as palavras dela foram recebidas com acenos de cabeça afirmativos das outras meninas reunidas. Será que elas estavam loucas? Quantas delas tinham aquelas tatuagens ridículas? E será que protegê-las era mais importante do que proteger a vida de Kristin?
Julia engoliu em seco e se sentou na beirada da cama.
— Nós estávamos esperando que fosse passar. Talvez ela precise de um tempinho para se acostumar.
Kristin gemeu. Uma das pernas dela tremia como se estivesse sofrendo um espasmo muscular e então parou. Seus olhos com suas pupilas dilatadas olhavam para o nada e sua respiração era superficial.
— Já passou um dia inteiro! — observei. — Gente, ela pode morrer.
— Como é que você sabe? — Julia perguntou, surpresa.
Eu não sabia, não com certeza. Mas, de vez em quando, as tatuagens dos alquimistas também não davam certo. Em noventa e nove por cento dos casos, o corpo humano aceitava o sangue de vampiro usado em uma tatuagem de alquimista, permitindo que suas propriedades se infundissem nas nossas, mais ou menos como um dampiro de baixo grau. Nós obtínhamos vigor e vida longa, apesar de não adquirirmos as habilidades físicas incríveis que os dampiros possuíam. O sangue era diluído demais para isso. Mesmo assim, sempre havia uma pessoa que ocasionalmente passava mal por causa de uma tatuagem de alquimista. O sangue as envenenava. Era pior ainda porque o ouro e outras substâncias químicas funcionavam para fazer com que o sangue se infundisse à pele, de modo que nunca tivesse como sair. Quem não recebia tratamento, morria.
Sangue de vampiro não causava barato eufórico, por isso eu não achava que houvesse algum naquela tatuagem. Mas o tratamento que nós usávamos para as tatuagens dos alquimistas consistia em dissociar os componentes metálicos das tatuagens para liberar o sangue, permitindo então que o corpo o limpasse naturalmente. Eu precisava acreditar que o mesmo princípio se aplicava ali. Só que eu não conhecia a fórmula exata do composto dos alquimistas e nem tinha certeza se conseguiria dissociar o cobre como acontecia com o ouro.
Mordi o lábio, pensando, e finalmente tomei uma decisão.
— Já volto — disse a elas e disparei para o meu quarto. Durante o tempo todo, uma voz interna me repreendia pela minha tolice. Eu não tinha nada que tentar fazer o que estava prestes a fazer. Devia ir direto falar com a sra. Weathers.
Em vez disso, abri a porta do meu quarto e encontrei Jill com seu laptop.
— Oi, Sydney — ela disse e sorriu. — Estou conversando por mensagem instantânea com Lee e... — Ela olhou para mim com mais atenção. — Qual é o problema?
Eu liguei o meu próprio laptop e coloquei na cama. Enquanto ele ia começando a carregar, peguei uma maleta de metal que preparei com todo cuidado, mas que não achava que iria usar.
— Você pode pegar um pouco de água para mim? Rápido?
Jill hesitou só por um instante antes de assentir.
— Já volto — ela disse e saiu da cama em um pulo.
Quando ela saiu do quarto, abri a maleta com uma chave que sempre carregava comigo. Dentro dela havia pequenas quantidades de vários compostos dos alquimistas, os tipos de substâncias que misturávamos e usávamos como parte do nosso trabalho. Havia uma grande quantidade de alguns ingredientes — como os que eu usava para dissolver corpos de Strigoi. De outros, eu só tinha amostras. Meu laptop terminou de ligar e eu entrei no banco de dados dos alquimistas. Depois de algumas buscas, encontrei a fórmula do tratamento antitatuagem.
Foi aí que Jill voltou, trazendo uma caneca cheia de água.
— Será que isto é o suficiente? Se nós estivéssemos em outro clima, eu poderia ter puxado do ar.
— Está ótimo — eu disse, contente pelo clima mantê-la afastada da magia.
Dei uma olhada na fórmula, analisando quais ingredientes faziam o quê. Mentalmente, descartei aqueles que tinha certeza que eram específicos para o ouro. Também não tinha alguns deles, mas tinha quase certeza de que só tratavam o desconforto da pele e não eram fundamentais. Comecei a tirar ingredientes do meu kit, medindo com cuidado — apesar de continuar fazendo tudo com a maior rapidez possível — em outra caneca. Fiz as substituições necessárias e adicionei um ingrediente que eu tinha certeza que iria desmembrar o cobre, mas cuja quantidade necessária tive que supor. Quando terminei, peguei a água de Jill e adicionei a mesma quantidade das instruções originais. O resultado final era um líquido que parecia solução de iodo.
Ergui a caneca e me senti um pouco como se fosse uma cientista maluca. Jill tinha me observado sem fazer comentários, sentindo a urgência. Seu rosto estava cheio de preocupação, mas ela estava engolindo todas as perguntas que eu sabia que queria fazer. Ela me seguiu quando eu saí do quarto e voltei para o de Kristin. Havia mais meninas lá do que antes, e sinceramente era um milagre a sra. Weathers não estar escutando toda aquela algazarra. Para um grupo tão dedicado a proteger suas preciosas tatuagens, elas não estavam agindo com muita discrição.
Retornei à cabeceira de Kristin e a encontrei no mesmo estado.
— Mostre o pulso dela de novo e segure o braço o mais imóvel possível para mim. — Não dirigi a ordem para ninguém específico, mas falei com força suficiente para saber que alguém iria obedecer. Estava certa. — Se não funcionar, vamos chamar um médico — meu tom de voz não deixava espaço para discussão.
Julia parecia mais pálida do que Jill, mas me deu um aceno fraco com a cabeça para concordar. Peguei a toalhinha que ela estava usando e molhei na minha caneca. Na verdade, eu nunca tinha visto ninguém fazer isso, e precisei tirar minhas próprias conclusões a respeito de como aplicar. Fiz uma oração silenciosa e pressionei a toalhinha contra a tatuagem no pulso de Kristin.
Ela soltou um grito estrangulado e seu corpo todo corcoveou. Duas garotas que estavam perto ajudaram a segurá-la por instinto. Fios de fumaça saíam de onde eu estava segurando a toalhinha contra a pele dela, e senti um cheiro pungente e acre. Esperei uma quantidade de tempo que julguei adequada e finalmente removi a toalhinha.
A margarida bonitinha se transformava perante os nossos olhos. Suas linhas definidas começaram a escorrer e ficar borradas. A cor de cobre começou a mudar, foi escurecendo para um verde azulado. Em pouco tempo, o desenho estava irreconhecível. Era uma mancha amorfa. Ao redor dela, vergões apareceram na pele, mas pareciam ser uma irritação superficial, e não algo perigoso.
Ainda assim, a coisa toda parecia terrível, e eu fiquei encarando, horrorizada. O que eu tinha feito?
Todas as outras garotas estavam em silêncio, sem saber o que fazer. Alguns minutos se passaram, mas pareceram horas. De repente, Kristin parou de se contorcer. A respiração dela ainda parecia difícil, mas ela piscou e seus olhos entraram em foco, como se ela estivesse vendo o mundo pela primeira vez. Suas pupilas continuavam enormes, mas ela conseguiu olhar ao redor e finalmente focar em mim.
— Sydney — ela disse sem fôlego. — Obrigada.
16
Expliquei a minha experiência química dizendo que era apenas uma substância que eu tinha guardada da época em que fizera a minha tatuagem, para o caso de ter uma reação alérgica. Certamente não revelei que eu mesma a tinha preparado. Acho que elas teriam acreditado nessa história se não fosse pelo fato de que, alguns dias depois, eu consegui colocar as mãos em uma fórmula para ajudar a tratar as queimaduras químicas na pele de Kristin. A mistura não ajudou em nada com a mancha de tinta — parecia ser permanente, a não ser que fosse removida com o uso de laser —, mas os vergões melhoraram um pouco.
Depois disso, começou a correr o boato de que Sydney Melrose era a nova farmacêutica de plantão. Como tinha sobrado creme depois de usar em Kristin, dei o resto para uma menina que tinha um problema sério de acne, porque também servia para isso. Aquilo provavelmente não me ajudou em nada. As pessoas começaram a me procurar para tratar todo tipo de coisa e até se ofereceram para pagar. Alguns pedidos eram inúteis, como cura para dor de cabeça. Para essas pessoas, eu simplesmente dizia que comprassem aspirina. Outros pedidos estavam fora do meu alcance e não eram coisas que eu quisesse tratar, como evitar gravidez.
Tirando os pedidos estranhos, eu na verdade não me incomodava com o aumento das minhas interações sociais diárias. Estava acostumada às pessoas precisando de mim, então aquele era um território conhecido. Algumas pessoas simplesmente queriam saber mais sobre mim como pessoa, o que era uma novidade mais agradável do que eu achei que seria. E, ainda assim, outras pessoas queriam... coisas diferentes de mim.
— Sydney.
Eu estava esperando a minha aula de inglês começar e fiquei assustada ao ver um dos amigos de Greg Slade de pé na frente da minha carteira. O nome dele era Bryan, e apesar de eu não ter muitas informações sobre ele, não me parecia ser tão insuportável quanto Slade, o que era um ponto a favor de Bryan.
— Pois não? — perguntei, imaginando se ele queria pegar as minhas anotações de aula emprestadas.
Ele tinha cabelo castanho despenteado que parecia ter sido cortado daquele jeito de propósito, e na verdade era bem bonitinho. Passou a mão no cabelo enquanto escolhia suas palavras.
— Você sabe alguma coisa sobre filmes mudos?
— Claro — respondi. — Os primeiros foram feitos no final do século xix e às vezes eram acompanhados por música ao vivo, mas o som só foi realmente incorporado aos filmes na década de 1920, e isso tornou os filmes mudos obsoletos.
Bryan ficou de queixo caído, como se aquilo fosse mais do que estava esperando.
— Ah. Certo. Bom, hum, tem um festival de cinema mudo no centro da cidade na semana que vem. O que você acha de ir?
Balancei a cabeça.
— Não, acho que não. Eu respeito o cinema mudo como forma de arte, mas realmente não gosto muito de assistir.
— Hum. Tudo bem — ele voltou a colocar o cabelo para trás e deu para ver que ele estava tentando ter alguma ideia. Por que diabos ele estava me perguntando sobre filmes mudos? — Que tal Starship 30? Estreia na sexta. Quer assistir?
— Na verdade, também não gosto de ficção científica — respondi. Era verdade, eu achava aquilo completamente implausível.
Bryan parecia pronto para arrancar todo aquele cabelo desgrenhado.
— Tem algum filme em cartaz que você quer ver?
Repassei na cabeça uma lista dos filmes que estavam passando.
— Não. Na verdade, não.
O sinal tocou, Bryan sacudiu a cabeça e voltou a se afundar em sua carteira.
— Que coisa estranha — balbuciei. — Ele tem mau gosto para filmes.
Olhei para o lado e fiquei surpresa de ver Julia com a cabeça abaixada sobre a mesa, tremendo de tanto rir sem fazer barulho.
— O que foi?
— Aquilo — ela respondeu, sem fôlego. — Foi hilário.
— O quê? — perguntei de novo. — Por quê?
— Sydney, ele estava convidando você para sair!
Eu repassei a conversa.
— Não, não estava. Estava fazendo perguntas sobre cinema.
Ela dava tanta risada que precisou enxugar uma lágrima.
— Para poder descobrir do que você gostava e levar você para sair!
— Bom, então por que ele simplesmente não falou?
— Você é tão ingênua e adorável — ela disse. — Espero estar por perto no dia em que você de fato reparar que tem alguém interessado em você.
Continuei sem entender nada e ela passou o resto da aula tendo ataques espontâneos de riso.
Enquanto me transformava em objeto de fascínio, a popularidade de Jill ia caindo. Parte disso se devia à própria timidez dela. Ela continuava tão acanhada e preocupada com o fato de ser diferente que partia do princípio de que todos reparavam em sua estranheza também. Ela continuou não se conectando às pessoas por medo, e isso fazia com que parecesse arredia. A “licença médica” de Jill finalmente tinha sido enviada pelos alquimistas, e isso, surpreendentemente, fez as coisas piorarem. A escola não quis colocá-la em uma optativa diferente cujas aulas já tivessem começado. Alunos do primeiro ano não podiam ser monitores, como Trey. Depois de uma consulta com a srta. Carson, finalmente ficou decidido que Jill iria participar de atividades internas de educação física e fazer “tarefas alternativas” quando as atividades fossem externas. Isso geralmente significava fazer relatórios sobre coisas como a história do beisebol. Infelizmente, o fato de ela ficar separada do resto da turma só serviu para isolar Jill ainda mais.
Micah continuava a dar em cima dela, mesmo diante das adversidades.
— Lee me mandou uma mensagem de texto hoje de manhã — ela me disse no almoço um dia. — Ele quer me levar para jantar no fim de semana. Você acha... quer dizer, eu sei que vocês também teriam que ir... — ela deu uma olhada incerta entre mim e Eddie.
— Quem é Lee? — Micah perguntou. Ele tinha acabado de se sentar com o nosso grupo.
Alguns momentos de silêncio constrangedor se instalaram.
— Ah — Jill disse e desviou os olhos. — Ele é, hum, um cara que a gente conhece. Ele não estuda aqui. Está na faculdade. Em Los Angeles.
Micah processou a informação.
— Ele convidou você para sair?
— Convidou... na verdade, nós já saímos juntos antes. Acho que nós estamos meio que namorando.
— Não é nada sério — Eddie se intrometeu. Eu não tinha certeza se ele estava dizendo isso para poupar os sentimentos de Micah ou se havia alguma noção de proteção ali, para impedir que Jill se aproximasse demais de qualquer pessoa.
Micah era bom em esconder seus sentimentos, admito. Depois de pensar mais um pouco, ele finalmente lançou um sorriso a Jill que só parecia um pouco forçado.
— Bom, isso é ótimo. Espero que eu possa conhecer esse Lee.
Depois disso, a conversa se voltou para o jogo de futebol americano que estava se aproximando, e ninguém mais voltou a mencionar o nome de Lee.
Ficar sabendo da existência de Lee fez Micah passar a agir de maneira diferente perto de Jill, mas ele continuava andando conosco o tempo todo. Talvez tivesse a esperança de que Lee e Jill terminassem. Ou poderia ser simplesmente porque Micah e Eddie passavam muito tempo juntos, e Eddie era um dos poucos amigos de Jill. Mas o problema não era Micah. Era Laurel.
Eu achava que Micah não iria se interessar por ela, mesmo que Jill não estivesse no meio, mas ela continuava vendo Jill como ameaça — e fazia de tudo para acabar com ela. Espalhou boatos sobre ela e fazia comentários específicos pelos corredores e durante a aula sobre a pele pálida da menina, sua altura e sua magreza — as maiores inseguranças de Jill.
Uma ou duas vezes ouvi o nome Garota Vampira sussurrado pelos corredores. Isso fazia meu sangue gelar, por mais que eu lembrasse a mim mesma que era piada.
— Não é Jill quem mantém Laurel e Micah separados — observei para Julia e Kristin um dia. Elas ficavam surpresas com os meus esforços contínuos para aplicar lógica e racionalidade aos comportamentos sociais na escola. — Eu não entendo. Ele simplesmente não gosta de Laurel.
— É, só que fica mais fácil para ela pensar que o problema é Jill, quando, na verdade, o negócio é que Laurel é uma vaca e Micah sabe disso — Julia explicou. Desde a minha interação sem jeito com Bryan, ela e Kristin tinham assumido a tarefa de tentar me educar em relação às maneiras como os humanos “normais” se comportavam.
— Além do mais, Laurel simplesmente gosta de ter alguém com quem implicar — Kristin disse. Ela raramente falava sobre a tatuagem, mas tinha ficado mais séria e sóbria desde o acontecimento.
— Certo — respondi, tentando acompanhar a lógica —, mas fui eu quem disse que ela tingia o cabelo. Ela mal dirigiu uma única palavra para mim.
Kristin sorriu.
— Não tem a menor graça implicar com você. Você responde. Jill não se defende muito e também não tem muita gente para defendê-la. Ela é um alvo fácil.
Pelo menos uma coisa positiva aconteceu. Adrian estava se comportando bem depois do deslize de Los Angeles, mas eu ficava me perguntando quanto tempo aquilo ia durar. Com base no que eu tinha apreendido com Jill, ele continuava entediado e infeliz. O horário de Lee era irregular e, de todo modo, não era função dele cuidar de Adrian. Parecia não haver nenhuma boa solução para isso, de verdade. Se Adrian cedia aos seus vícios, ela sofria o efeito de suas ressacas e de seus “interlúdios românticos”. Se não cedia, então ele ficava arrasado, e essa atitude também ia tomando conta dela aos poucos. A única esperança que eles tinham era que Jill no fim aprendesse a controlar a situação e fosse capaz de bloqueá-lo de sua mente, mas pelo que Rose tinha dito, isso podia demorar muito tempo.
Quando chegou a hora do fornecimento seguinte, fiquei decepcionada ao ver o carro de Keith estacionado na frente da casa de Clarence. Se ele realmente não fosse fazer nada para ajudar naquela missão, preferia que ele ficasse longe de uma vez. Aparentemente, ele achava que essas visitas de “supervisão” contavam como trabalho e continuavam a justificar sua presença. Só que, na hora em que nos encontramos com Adrian na sala, Keith não estava à vista. Nem Clarence.
— Onde eles estão? — perguntei a Adrian.
Ele estava estirado no sofá e largou um livro que estava lendo. Tive a sensação de que ler era uma atividade rara para ele e quase me senti mal pela interrupção. Ele segurou um bocejo. Não havia álcool à vista, mas eu vi o que pareciam ser três latas vazias de bebida energética.
Ele deu de ombros.
— Não sei. Devem estar conversando por aí. O seu amigo tem um senso de humor doentio. Acho que ele está alimentando a paranoia de Clarence relativa aos caçadores de vampiros.
Eu olhei sem jeito para Lee, que imediatamente começou a conversar com Jill. Os dois estavam tão envolvidos um com o outro que nem perceberam sobre o que o resto de nós estava conversando. Eu sabia o quanto a conversa sobre caçadores de vampiros incomodava Lee. Ele não gostaria de saber que Keith estava incentivando o tema.
— Clarence está sabendo do assassinato em Los Angeles? — Eddie perguntou. Não havia razão para que Keith não soubesse, já que era informação aberta aos alquimistas, mas eu não sabia dizer se ele faria a conexão para Clarence ou não.
— Ele não mencionou se sabia — Adrian respondeu. — Juro que Keith só está fazendo isso por tédio ou algo do tipo. Nem eu afundei tanto assim.
— É isso que você tem feito em vez de se embebedar? — perguntei ao me sentar na frente dele, apontando para as bebidas energéticas.
— Ei, não é vodca nem conhaque nem... bom, qualquer coisa que seja boa — Adrian suspirou e virou uma lata para beber as últimas gotas. — Então, me dê algum crédito.
Eddie deu uma olhada nas latas.
— Jill por acaso não disse que tinha tido dificuldade para dormir ontem à noite?
— Adrian — eu disse com um gemido. Eddie tinha razão. Eu tinha reparado que Jill tinha ficado se agitando na cama o tempo todo. Uma enorme quantidade de cafeína explicaria isso.
— Ei, eu estou tentando — Adrian disse. — Se você conseguir me tirar daqui, Sage, daí não vou ser forçado a afogar as mágoas na taurina e no ginseng.
— Ela não pode fazer isso, Adrian, e você sabe muito bem — Eddie falou. — Será que não dá para você... sei lá. Encontrar um passatempo ou algo assim?
— Ser encantador é o meu passatempo — Adrian respondeu, obstinado. — Eu sou a vida de qualquer festa... mesmo sem beber. Não fui feito para ficar sozinho.
— Você podia arrumar um emprego — Eddie disse e se acomodou em uma cadeira de canto. Ele sorriu, surpreso com a própria esperteza. — Vai resolver ambos os seus problemas... pode ganhar algum dinheiro e estar perto de outras pessoas.
Adrian revirou os olhos.
— Cuidado, Castile. Só há um comediante nesta família.
Eu me endireitei.
— Na verdade, não é má ideia.
— É uma péssima ideia — Adrian disse e olhou de mim para Eddie.
— Por quê? — perguntei. — É esta a parte em que você nos diz que as suas mãos não foram feitas para executar trabalhos pesados?
— É mais a parte em que eu digo que não tenho nenhuma contribuição a oferecer para a sociedade — ele retrucou.
— Eu posso ajudar — ofereci.
— Você vai trabalhar e me dar o pagamento? — Adrian perguntou, cheio de esperança. — Porque isso realmente poderia ajudar.
— Eu posso dar uma carona para as entrevistas — respondi. — E posso fazer um currículo para que você consiga qualquer emprego. — Olhei para ele e reconsiderei. — Bom, dentro dos limites.
Adrian voltou a se recostar.
— Desculpe, Sage. Simplesmente não estou sentido firmeza.
Clarence e Keith entraram bem naquele momento. O rosto de Clarence estava exuberante.
— Obrigado, obrigado — ele ia dizendo. — É tão bom conversar com alguém que compreende as minhas preocupações a respeito dos caçadores...
Eu não tinha me dado conta de que Keith não compreendia nada além de sua própria natureza egoísta. O rosto de Lee se fechou quando ele percebeu que Keith estava alimentando a irracionalidade daquele senhor de idade. Ainda assim, o Moroi segurou os comentários que sem dúvida tinha vontade de fazer. Era a primeira vez que eu via qualquer tipo de emoção sombria no rosto de Lee. Parecia que Keith era capaz de desanimar até a pessoa mais alegre.
Clarence ficou feliz em nos ver, assim como Dorothy. Os humanos que davam sangue para vampiros não eram nojentos apenas por causa do ato em si. O que era mais apavorante era o vício que resultava disso. Os vampiros soltavam endorfinas para aqueles de quem se alimentavam, endorfinas que criavam uma espécie de barato agradável. Os fornecedores humanos que viviam entre os Moroi passavam dias inteiros nessa viagem e acabavam se tornando muito dependentes. Alguém como Dorothy, que vivia apenas com Clarence havia anos, não tinha experimentado mordidas suficientes para realmente se viciar. Agora, com Jill e Adrian por perto, Dorothy estava recebendo uma quantidade maior de endorfinas no dia a dia. Seus olhos se iluminaram quando ela viu Jill, mostrando que estava ansiosa por mais.
— Ei, Sage — Adrian disse. — Eu não quero entrevista nenhuma, mas será que você pode me dar uma carona para eu comprar cigarro?
Comecei a dizer a ele que não iria contribuir com um vício tão imundo, mas então reparei que ele olhava de modo significativo para Dorothy. Será que ele estava tentando me tirar dali? Fiquei me perguntando. Queria me dar uma desculpa para não estar por perto na hora do fornecimento? Pelo que eu entendia, os Moroi normalmente não escondiam seus fornecimentos uns dos outros. Jill e Dorothy costumavam simplesmente sair da sala para me deixar mais à vontade. Eu sabia que elas provavelmente fariam isso mais uma vez, mas resolvi aproveitar a oportunidade de cair fora. Claro que dei uma olhada em Keith para confirmar, achando que ele iria reclamar. Ele só deu de ombros. Parecia que eu era a última coisa que ele tinha na cabeça.
— Tudo bem — eu disse e me levantei. — Vamos.
No carro, Adrian se virou para mim.
— Mudei de ideia — ele disse. — Aceito a sua ajuda para arrumar um emprego.
Quase perdi o controle da direção e bati o carro. Poucas coisas vindas dele poderiam ter me surpreendido mais — e ele dizia coisas bem surpreendentes com bastante regularidade.
— Isso foi rápido. Está falando sério?
— Como nunca falei antes. Ainda quer me ajudar?
— Acho que sim, mas não posso fazer muita coisa. Não posso de fato arrumar o emprego para você. — Repassei minha lista mental do que eu sabia sobre Adrian. — Acredito que você não tenha ideia do que realmente gostaria de fazer, tem?
— Quero algo divertido — ele respondeu. Ele pensou mais um pouco. — E quero ganhar muito dinheiro... mas trabalhando o mínimo possível.
— Que adorável — balbuciei. — Isso limita as opções.
Nós chegamos ao centro e eu consegui fazer uma baliza perfeita para estacionar que não o impressionou nem de longe o tanto que deveria ter impressionado. Estávamos bem na frente de uma loja de conveniência e eu fiquei esperando enquanto ele entrou. As sombras da noite estavam caindo. Eu saía do campus o tempo todo, mas até agora as minhas viagens tinham sido até a casa de Clarence, campos de minigolfe ou restaurantes de fast-food. Acontece que a cidade de Palm Springs era muito bonita. Lojas e restaurantes enchiam as ruas e eu podia passar horas só observando as pessoas. Aposentados com roupa de jogar golfe caminhavam ao lado de socialites cheias de glamour. Eu sabia que muitas celebridades também frequentavam o local, mas eu não era ligada o suficiente no mundo do entretenimento para saber quem era quem.
— Cara — Adrian disse ao sair da loja. — Subiram o preço da minha marca de sempre. Tive que comprar uma vagabunda.
— Sabe — eu disse. — Parar de fumar também seria uma maneira ótima de economizar um pouco...
Fiquei paralisada quando avistei algo rua abaixo. A três quarteirões de distância, através das folhas de algumas palmeiras, eu mal enxerguei uma placa que dizia Nevermore em letras góticas rebuscadas. Era o tal lugar. A fonte das tatuagens que corriam à solta em Amberwood. Desde o incidente de Kristin, eu queria ir mais fundo naquela questão, mas não sabia muito bem como. Agora eu tinha a minha chance.
Por um momento, lembrei de Keith me dizendo para não me envolver em nada que pudesse chamar a atenção ou causar problemas. Então pensei sobre o jeito que Kristin ficara durante sua overdose. Era a minha oportunidade de realmente descobrir alguma coisa. Tomei uma decisão.
— Adrian — eu disse. — Preciso da sua ajuda.
Eu o puxei na direção do estúdio de tatuagem enquanto explicava a situação. Por um momento, ele pareceu tão interessado em tatuagens que davam barato que eu achei que ia querer fazer uma. Mas quando contei a ele sobre Kristin, seu entusiasmo arrefeceu.
— Mesmo que não seja tecnologia dos alquimistas, estão fazendo algo perigoso — expliquei. — Não só a Kristin. Aquilo que Slade e os outros garotos fazem... usando esteroides para se dar bem no futebol... também é muito ruim. Tem gente que acaba se machucando — eu pensei, de repente, nos cortes e hematomas de Trey.
Um pequeno beco separava o estúdio de tatuagem de um restaurante, e nós paramos diante dele. Uma porta se abriu dentro do beco, do lado do estúdio, e um homem saiu e acendeu um cigarro. Ele só tinha dado dois passos quando outro homem enfiou a cabeça para fora da porta lateral e chamou:
— Quanto tempo você vai demorar?
Vi prateleiras e mesas atrás dele.
— Só vou até o mercado — disse o homem com o cigarro. — Volto em dez minutos.
O outro sujeito voltou para dentro e fechou a porta. Alguns momentos depois, nós o vimos pela vitrine da loja, arrumando algo no balcão.
— Preciso entrar ali atrás — eu disse a Adrian. — Por aquela porta.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Como assim? Você vai invadir? Mas que coisa mais sorrateira da sua parte. E, ah, sabe como é... perigosa e tola.
— Eu sei — respondi, surpresa por parecer tão calma ao admitir isso. — Mas preciso descobrir alguma coisa, e esta pode ser a minha única chance.
— Então eu vou com você, para o caso de aquele sujeito voltar — ele disse com um suspiro. — Que nunca ninguém possa dizer que Adrian Ivashkov não ajuda donzelas em perigo. Além do mais, você viu a cara dele? Parecia um motoqueiro insano. Os dois pareciam.
— Não quero que você... espere — tive uma ideia. — Vá você conversar com o sujeito que está lá dentro.
— Hã?
— Entre pela frente. Faça com que ele fique distraído para eu poder dar uma olhada. Fale com ele sobre... sei lá. Você vai pensar em algo.
Nós logo traçamos um plano. Mandei Adrian entrar enquanto me esgueirava pelo beco e me aproximava da porta. Puxei a maçaneta e vi que estava... trancada.
— Claro que sim — resmunguei. Que estabelecimento comercial iria deixar aberta uma porta tão isolada e exposta? Meu plano brilhante começou a se desfazer até eu me lembrar de que tinha minhas ferramentas “essenciais” de alquimista na bolsa.
Era raro eu precisar do kit completo, a não ser quando ocorriam crises de acne na escola, por isso costumava deixá-lo em casa. Os alquimistas estavam sempre prontos, independentemente do lugar, para encobrir qualquer aparição de vampiro. Por isso, sempre levávamos algumas coisas conosco. Uma delas era a substância capaz de derreter o corpo de um Strigoi em menos de um minuto. A outra tinha quase a mesma eficiência para derreter metal.
Era um tipo de ácido que eu guardava em uma ampola protegida na bolsa. Bem rápido, eu a encontrei e tirei a tampa. Um cheiro amargo saiu dela e me fez torcer o nariz. Com o conta-gotas de vidro da garrafinha, me abaixei com muito cuidado e coloquei algumas gotas bem no meio da fechadura. Imediatamente dei um passo para trás quando uma névoa branca se ergueu com o contato. Em trinta segundos, tudo tinha se dissipado e havia um buraco no meio da maçaneta da porta. Uma das vantagens daquela substância, chamada fogo-rápido, era que sua reação ocorria com extrema rapidez. Agora já estava inerte e não representava perigo para a minha pele. Empurrei a maçaneta para baixo e ela cedeu.
Abri uma fresta da porta só para conferir se não havia ninguém por ali. Não. Estava vazio. Eu me esgueirei para dentro, fechei a porta atrás de mim sem fazer barulho e prendi uma tranca interna para garantir que permaneceria fechada. Como eu tinha visto do lado de fora, o lugar era uma despensa onde todos os tipos de instrumentos para fazer tatuagens ficavam guardados. Havia três portas ao meu redor. Uma levava a um banheiro, outra para uma sala escura e a última para a frente da loja e o balcão principal. Vinha luz dessa porta, e eu conseguia escutar a voz de Adrian.
— Um amigo meu fez uma — ele ia dizendo. — Eu vi, e ele disse que foi aqui. Vamos lá, não me enrole.
— Desculpe — foi a resposta mal-humorada. — Não faço ideia do que você está falando.
Lentamente, comecei a examinar os armários e as gavetas, lendo rótulos e procurando algo suspeito. Havia muitas substâncias e pouco tempo.
— O problema é dinheiro? — Adrian perguntou. — Porque eu tenho bastante. Só me diga quanto custa.
Houve uma longa pausa, e fiquei torcendo para que o homem não pedisse a Adrian para mostrar o dinheiro, já que o que sobrara ele havia doado para sua campanha a favor do câncer.
— Não sei — o sujeito finalmente disse. — Se eu pudesse fazer essa tatuagem de cobre de que você está falando... e não estou dizendo que posso... você provavelmente não teria dinheiro para pagar.
— Estou dizendo que tenho — Adrian respondeu. — É só dizer o preço.
— No que exatamente você está interessado? — o homem perguntou devagar. — Só na cor?
— Acho que nós dois sabemos a resposta — Adrian disse, ardiloso. — Eu quero a cor. Eu quero os efeitos-bônus. E eu quero que fique incrível. Você provavelmente nem iria conseguir fazer o desenho que eu quero.
— Essa é a menor das suas preocupações — o sujeito garantiu. — Faço isso há anos. Consigo desenhar qualquer coisa que você quiser.
— Ah é? Você consegue desenhar um esqueleto andando de moto com fogo saindo dela? E quero um chapéu de pirata no esqueleto. E um papagaio no ombro dele. Um papagaio-esqueleto. Ou quem sabe um papagaio-esqueleto ninja? Não, isso seria exagero. Mas seria legal se o motoqueiro-esqueleto pudesse atirar alguns shurikens. Que estivessem pegando fogo.
Nesse meio-tempo, eu ainda não tinha encontrado sinal daquilo que eu precisava, e havia mais um milhão de cantinhos e reentrâncias para serem examinados. O pânico começou a crescer dentro de mim. Não daria tempo. Então avistei o quarto escuro e me apressei até ele. Dei uma olhada rápida para a frente da loja, acendi a luz e prendi a respiração. Ninguém devia ter reparado em nada, porque a conversa continuou de onde tinha parado.
— Essa é a coisa mais ridícula que eu já ouvi — o tatuador disse.
— Não é o que as moças vão dizer — Adrian respondeu.
— Olhe, garoto — o sujeito disse. — O problema nem é dinheiro. É disponibilidade. Isso que você descreveu exige muita tinta, e não tenho tanta assim em estoque.
— Bom, e quando é a próxima entrega do seu fornecedor? — Adrian perguntou.
Fiquei olhando fixamente, aturdida com o que havia encontrado: eu estava na sala em que as tatuagens eram feitas. Havia uma espreguiçadeira — bem mais confortável do que a mesa em que eu tinha recebido a minha tatuagem — e uma mesinha lateral coberta com instrumentos que pareciam recém-utilizados.
— Já tenho algumas pessoas na lista de espera. Não sei quando vai chegar mais.
— Será que você poderia me avisar quando souber? — Adrian pediu. — Vou deixar o meu contato com você. Meu nome é Jet Steele.
Se não fosse pela situação tensa, teria soltado um grunhido. Jet Steele? Sério mesmo? Antes que eu pudesse pensar muito a respeito, finalmente encontrei o que estava procurando. A pistola de tatuagem na mesa tinha seu próprio recipiente de tinta, mas ao lado havia várias ampolas menores. Todas estavam vazias, mas algumas ainda tinham um resíduo metálico dos ingredientes suficiente para me ajudar a descobrir o que era. Sem nem pensar duas vezes, comecei a tampá-los e colocar na bolsa. Ali perto, reparei em algumas ampolas lacradas cheias de um líquido escuro. Fiquei paralisada por um instante. Com cuidado, peguei uma, abri e cheirei.
Era o que eu temia. Voltei a fechar a tampa e coloquei as ampolas na bolsa.
Naquele instante ouvi um barulho atrás de mim. Alguém estava tentando abrir a porta dos fundos. Mas eu tinha fechado a tranca, e ela não cedeu. Ainda assim, significava que a minha espionagem tinha chegado ao fim. Eu estava fechando o zíper da bolsa quando ouvi a porta da frente se abrir.
— Joey, por que a porta dos fundos está trancada? — uma voz irritada indagou.
— Sempre fica trancada.
— Não, a tranca estava fechada. Por dentro. Não estava quando eu saí.
Era a deixa para eu ir embora. Apaguei a luz e me apressei pela despensa.
— Espere! — Adrian exclamou. Havia um tom de ansiedade na voz dele, como se estivesse tentando chamar a atenção de alguém. Fiquei com a sensação desagradável de que os dois sujeitos que trabalhavam ali estavam se dirigindo para os fundos para ver o que tinha acontecido. — Preciso saber mais uma coisa sobre a tatuagem. Será que o papagaio também pode usar chapéu de pirata? Tipo em miniatura?
— Aguarde um momento. Precisamos conferir uma coisa. — A voz estava mais alta do que antes. Mais próxima.
As minhas mãos se atrapalharam para soltar a tranca. Consegui destrancar e abri a porta, disparando para fora no exato momento em que ouvi vozes atrás de mim. Sem fazer nenhuma pausa ou olhar para trás, fechei a porta e saí correndo pelo beco até a rua, de volta ao lugar onde tinha estacionado. Eu tinha quase certeza de que os sujeitos não tinham me visto direito. Acho que eu era só uma silhueta disparando porta afora. Ainda assim, fiquei contente com a multidão pelas ruas. Pude me misturar às pessoas enquanto voltava a atenção para o carro e abria a porta. As minhas mãos estavam suadas e tremiam enquanto eu remexia nas chaves.
Eu queria muito olhar para trás, mas tinha medo de atrair a atenção dos dois homens, se estivessem à minha procura na rua. Enquanto não tivessem razão para desconfiar de mim...
Uma mão agarrou o meu braço de repente e me puxou. Engoli em seco.
— Sou eu — disse uma voz.
Adrian. Soltei um suspiro de alívio.
— Não olhe para trás — ele disse com calma. — Apenas entre no carro.
Obedeci. Quando nós dois estávamos em segurança lá dentro, respirei fundo, atordoada com as batidas fortes do meu coração. A adrenalina liberada pelo medo encheu o meu peito, com tanta força que doeu. Fechei os olhos e me inclinei para trás.
— Foi por muito pouco — eu disse. — E você se saiu muito bem, aliás.
— Eu sei — ele respondeu, todo orgulhoso. — E, na verdade, acho que quero fazer essa tatuagem agora. Você encontrou o que estava procurando?
Abri os olhos e suspirei.
— Encontrei. E muito mais.
— Então, o que é? Estão colocando drogas nas tatuagens?
— Pior — respondi. — Estão usando sangue de vampiro.
17
A minha descoberta elevou o problema da tatuagem a um nível completamente diferente. Antes, eu acreditava que só estivesse lidando com pessoas que usavam técnicas semelhantes aos métodos dos alquimistas para expor Amberwood às drogas. Tinha sido uma questão moral. Agora, com sangue de vampiro na equação, passava a ser uma questão dos alquimistas. Toda nossa razão de ser era proteger os humanos da existência dos vampiros. Se alguém estava colocando sangue de vampiro em humanos de maneira ilícita, tinha extrapolado os limites que nos esforçávamos muito, todos os dias, para manter.
Eu sabia que devia fazer um relatório sobre aquilo imediatamente. Se alguém tinha colocado as mãos em sangue de vampiro, os alquimistas precisavam enviar uma força para cá para investigar. Se eu seguisse a hierarquia normal, acho que deveria contar a Keith e permitir que ele contasse aos nossos superiores. Mas se ele contasse, não tenho dúvidas de que tomaria para si o crédito da descoberta. Eu não podia permitir que isso acontecesse — e não porque quisesse a glória para mim. Havia alquimistas demais que acreditam erroneamente que Keith era uma pessoa de caráter. Eu não queria alimentar essa crença.
Mas, antes de fazer qualquer coisa, precisava descobrir o resto do conteúdo das ampolas. Eu podia fazer suposições a respeito dos resíduos metálicos, mas não tinha certeza se, assim como o sangue, eles tinham vindo diretamente do catálogo dos alquimistas ou eram apenas imitações. E se fossem mesmo as nossas fórmulas, não ficaria óbvio à primeira vista qual era qual. O pó prateado em uma ampola, por exemplo, poderia ser um entre vários compostos dos alquimistas. Eu tinha meios de fazer algumas experiências para descobrir, mas uma substância estava me deixando confusa. Era um líquido transparente e um pouco grosso, sem cheiro específico. Eu achava que era o narcótico usado nas tatuagens celestiais. Sangue de vampiro não causaria aquele barato, apesar de ser capaz de explicar a disposição atlética maluca das chamadas tatuagens de aço. Por isso, comecei a fazer os testes possíveis enquanto seguia com as rotinas normais da escola.
Estávamos jogando basquete em uma quadra fechada naquela semana na educação física, por isso Jill estava participando — e sendo submetida aos comentários mordazes de Laurel. Eu ficava ouvindo quando ela dizia coisas como: “Achava que ela iria ser muito melhor, já que é tão alta. Ela praticamente toca na cesta sem pular. Talvez ela devesse se transformar em morcego e voar até lá”.
Fiz uma careta. Tinha que ficar repetindo a mim mesma para não dar muita bola para as piadas, mas cada vez que eu ouvia uma, o pânico tomava conta de mim. Mas eu tinha que esconder. Se eu quisesse ajudar Jill, precisava que as gozações parassem completamente — e não apenas a parte sobre ser vampira. Dar mais atenção a esses comentários não iria ajudar.
Micah tentava reconfortar Jill depois de cada insulto, o que obviamente enfurecia Laurel ainda mais. Só que os comentários dela não eram os únicos que chegavam aos meus ouvidos. Desde a minha incursão ao estúdio de tatuagem, eu andava ouvindo muita informação interessante vinda de Slade e seus amigos.
— Bom, e ele disse quando? — A srta. Carson fazia a chamada e Slade estava interrogando um sujeito chamado Tim a respeito de uma visita recente ao estúdio.
Tim sacudiu a cabeça.
— Não. Estão com problemas na entrega. Parece que o fornecedor tem, mas não quer vender pelo mesmo preço.
— Que droga — Slade grunhiu. — Preciso de um retoque.
— Opa — Tim disse. — Mas e eu? Ainda nem fiz a primeira.
Não era o único comentário que eu tinha ouvido de alguém que já tinha uma celestial e precisava retocar. Era o vício em ação.
O rosto de Jill estava rígido quando a educação física terminou, e eu fiquei com a sensação de que ela estava tentando não chorar. Tentei conversar com ela no vestiário, mas ela só sacudiu a cabeça e foi para o chuveiro. Eu mesma estava pronta para tomar banho quando ouvi um grito estridente. Aquelas entre nós que ainda estavam perto dos armários correram para os chuveiros para ver o que estava acontecendo.
Laurel jogou a cortina de sua cabine para o lado e saiu correndo, ignorando o fato de estar pelada. Fiquei olhando boquiaberta. A pele dela estava coberta por uma fina camada de gelo. Gotas da água do chuveiro tinham se congelado sólidas sobre sua pele e cabelo, apesar de já estarem começando a derreter com o vapor do resto do vestiário. Dei uma olhada no chuveiro em si e reparei que a água que saía da torneira também estava congelada.
Os berros de Laurel fizeram com que a srta. Carson chegasse correndo — chocada, assim como o resto de nós, com o acontecimento aparentemente impossível que acabávamos de presenciar. Ela finalmente declarou que era algum tipo de problema maluco com os canos e o aquecedor de água. Isso era típico dos meus colegas humanos. Sempre buscavam explicações científicas mirabolantes antes de aceitar as fantásticas.
Mas eu não tinha nenhum problema com isso. Tornava o meu trabalho mais fácil.
A srta. Carson tentou fazer Laurel entrar em outro chuveiro para tirar o gelo, mas ela recusou. Ficou esperando até tudo derreter e então se enxugou com a toalha. O cabelo dela estava horroroso quando finalmente saiu para a aula seguinte, e eu dei um sorriso sacana. Fiquei imaginando que ela não poderia jogar o cabelo de um lado para o outro.
— Jill — chamei ao vê-la tentando se misturar a um grupo de garotas que ia saindo do vestiário. Ela deu uma olhada cheia de culpa por cima do ombro, mas não fez mais nada para mostrar que tinha me escutado. Fui atrás dela.
— Jill! — chamei mais uma vez. Ela com toda a certeza estava me evitando.
No corredor, Jill avistou Micah e correu até ele. Esperta. Ela sabia que eu não faria nenhuma pergunta perigosa com ele por perto.
Ela conseguiu me evitar durante o resto do dia, mas eu fiquei de tocaia no nosso quarto até ela finalmente voltar para lá, logo antes do toque de recolher.
— Jill — exclamei assim que ela entrou pela porta. — Onde você estava com a cabeça?
Ela largou os livros e se virou para mim. Fiquei com a sensação de que eu não era a única que tinha preparado um discurso naquele dia.
— Estou cheia de ficar escutando Laurel e as amigas dela falarem mal de mim.
— E por isso você congelou o chuveiro dela? — perguntei. — Como é que isso vai fazer ela parar? Não é como se você pudesse tomar o crédito para si.
Jill deu de ombros.
— Fez eu me sentir melhor.
— Essa é a sua desculpa? — Mal podia acreditar. Jill sempre tinha parecido tão razoável. Ela tinha sobrevivido com a consciência tranquila ao fato de se tornar princesa e de ter morrido. Mas aquilo a tinha feito perder a cabeça. — Você sabe o quanto se arriscou? A nossa intenção aqui é não atrair atenção!
— A srta. Carson não achou estranho.
— A srta. Carson inventou uma desculpa fraca para se consolar! É isso que as pessoas fazem. Basta um encanador para examinar os canos e dizer que eles não congelam assim desse jeito aleatório, principalmente em Palm Springs!
— E daí? — Jill inquiriu. — E depois? Por acaso já vão suspeitar que foi magia de vampiro?
— Claro que não — eu disse. — Mas as pessoas vão comentar. Você despertou a desconfiança de todo mundo.
Ela me olhou com muito cuidado.
— Foi realmente isso que deixou você aborrecida? Ou foi o simples fato de eu ter usado magia?
— E não é a mesma coisa?
— Não. Quer dizer, você está incomodada por eu ter usado magia porque você não gosta de magia. Você não gosta de nada que tenha a ver com vampiros. Acho que é uma questão pessoal. Eu sei o que você pensa de nós.
Eu soltei um gemido.
— Jill, eu gosto de você. Mas tem razão em dizer que a magia me deixa um pouco incomodada. — Certo, muito incomodada. — Mas não são os meus sentimentos pessoais que vão fazer as pessoas ficarem imaginando qual foi a causa de a água ter congelado daquele jeito.
— Não é correto ela continuar fazendo isso!
— Eu sei, mas você tem que ser superior a ela.
Jill se sentou na cama e suspirou. Daquela maneira, sua raiva pareceu se transformar em desespero.
— Odeio ficar aqui. Quero voltar para São Vladimir. Ou para a corte. Ou para o Michigan. Qualquer lugar que não seja aqui. — Ela me lançou um olhar de súplica. — Não tem nenhuma notícia a respeito de quando eu vou poder voltar?
— Não — eu disse, sem querer revelar que poderia demorar um pouco.
— Todo mundo está se divertindo aqui — ela disse. — Você adora. Tem um monte de amigos.
— Eu não...
— Eddie também gosta. Ele tem Micah e outros caras do alojamento deles para conversar. Além do mais, ele tem que cuidar de mim, e por isso tem um propósito. — Eu nunca tinha pensado na questão dessa maneira, mas percebi que ela tinha razão. — Mas, e eu? O que eu tenho? Nada além desse laço idiota que me deixa ainda mais deprimida porque tenho que escutar Adrian com pena de si mesmo.
— Vou levar Adrian para procurar emprego amanhã — eu disse, sem saber com certeza se isso realmente ajudava.
Jill assentiu, desalentada.
— Eu sei. A vida dele provavelmente também vai ficar ótima agora.
Ela estava se afundando em melodrama e autocomiseração, mas, à luz de tudo, eu até que sentia que naquele momento ela tinha o direito.
— Você tem Lee — eu disse.
Isso fez um sorriso surgir em seu rosto.
— Eu sei. Ele é ótimo. Gosto muito dele, e nem consigo acreditar... quer dizer, parece uma loucura ele gostar de mim também.
— Não é tanta loucura assim.
O brilho dela arrefeceu.
— Sabia que Lee acha que eu podia ser modelo? Ele diz que eu tenho a silhueta mais desejável pelos estilistas humanos, e que conhece uma estilista na cidade que está procurando novas modelos. Mas quando eu contei a Eddie, ele falou que era uma péssima ideia, porque eu não posso arriscar que tirem fotos minhas. Ele disse que, se vazasse, outros poderiam me encontrar.
— É verdade — falei. — Em todos os sentidos. Você tem mesmo silhueta de modelo... mas seria perigoso demais.
Ela suspirou, parecendo derrotada.
— Está vendo? Nada dá certo para mim.
— Sinto muito, Jill, de verdade. Eu sei que é difícil. A única coisa que posso pedir é que você tente continuar forte. Você tem sido ótima até agora. Só aguente mais um pouco, certo? Apenas continue pensando em Lee.
As minhas palavras pareceram vazias até para mim mesma. Quase fiquei imaginando se devia levá-la comigo e Adrian, mas acabei chegando à conclusão de que era melhor não. Adrian não precisava de nenhuma distração. Também não tinha certeza se aquilo seria interessante para ela. Se ela realmente estivesse assim tão ansiosa para ver Adrian passar pelas entrevistas de emprego, poderia “escutar” pelo laço.
Eu me encontrei com Adrian depois da escola no dia seguinte e, pela primeira vez em um tempão, nem Lee nem Keith estavam na casa velha. Mas Clarence estava, e praticamente passou por cima de mim quando eu entrei.
— Você soube? — ele indagou. — Soube da coitada da moça?
— Que moça? — perguntei.
— A que foi morta em Los Angeles há umas duas semanas.
— Ah, sim — respondi, aliviada por não haver nenhuma morte nova. — Foi trágico. Temos sorte por não haver nenhum Strigoi aqui.
Ele me olhou de um jeito surpreso e cheio de certeza.
— Não foi um Strigoi! Você não presta atenção? Foram eles. Os caçadores de vampiros.
— Mas beberam o sangue dela. O senhor não disse que os caçadores de vampiros são humanos? Nenhum humano teria motivos para beber sangue de Moroi.
Ele me deu as costas e ficou andando de um lado para o outro da sala. Dei uma olhada ao redor, imaginando onde Adrian estaria.
— Todo mundo fica repetindo isso! — Clarence falou. — Como se eu já não soubesse. Não sei explicar por que eles fazem o que fazem. É uma turma estranha. Eles louvam o sol e têm crenças esquisitas a respeito do mal e da honra... são até mais fora do comum do que as crenças de vocês. — Bom, isso já era algo. Pelo menos ele sabia que eu era humana. Às vezes, eu não tinha certeza se ele sabia. — Também têm pontos de vista estranhos, e de acordo com eles os vampiros devem morrer. Eles matam Strigoi sem restrições. Com Moroi e dampiros, são mais seletivos.
— O senhor certamente sabe muito sobre eles — eu disse.
— Foi o que me propus a fazer desde Tamara — ele suspirou e de repente pareceu muito, muito velho. — Pelo menos Keith acredita em mim.
Fiquei com o rosto impassível.
— Ah, é?
Clarence assentiu.
— Ele é um bom rapaz. Você deveria dar uma chance a ele.
Meu autocontrole escapou, e percebi que estava fazendo careta.
— Vou tentar.
Naquele momento Adrian chegou, para o meu alívio. Estar sozinha com Clarence já era apavorante o suficiente sem que ele ficasse elogiando Keith Darnell.
— Está pronto? — perguntei.
— Pode apostar que sim — Adrian respondeu. — Mal posso esperar para me transformar em um integrante produtivo da sociedade.
Dei uma examinada na roupa dele e tive que engolir meus comentários. Era legal, mas, claro, ele sempre se vestia bem. Jill tinha dito que as minhas roupas eram caras, mas as de Adrian deixavam as minhas no chinelo. Hoje ele estava de jeans preto e uma camisa social cor de vinho. A camisa parecia ser de algum tipo de mescla de seda, e ele a usava solta, com alguns botões abertos. Seu cabelo tinha sido penteado cuidadosamente para parecer que ele tinha acabado de sair da cama. Pena que o cabelo dele não tinha a mesma textura do meu. O meu ficava daquele jeito sem eu precisar fazer absolutamente nada.
Tinha que admitir que ele estava lindo — mas não parecia preparado para uma entrevista de emprego. Parecia que estava pronto para cair na noite. Isso me causou um certo conflito. Ainda assim, me peguei admirando-o, e mais uma vez me lembrei da impressão que tinha de vez em quando, de que ele era uma espécie de obra de arte. Era um pouco desconcertante, principalmente porque eu tinha que ficar relembrando a mim mesma que vampiros não eram bonitos do mesmo jeito que humanos. Felizmente, a parte pragmática em mim logo assumiu o controle e me deu uma bronca, dizendo que não fazia diferença se ele estava bonito ou não. O que importava é que ele não estava apropriado para uma entrevista de emprego. Mas eu não devia ter ficado surpresa. Aquele era Adrian Ivashkov.
— Então, qual é a programação? — ele perguntou quando pegamos a estrada. — Eu realmente acho que “diretor Ivashkov” soa bem.
— Tem uma pasta no banco de trás com o nosso itinerário, diretor.
Adrian se virou para trás e pegou a pasta. Depois de dar uma olhada rápida, ele declarou:
— Você ganhou pontos por variedade, Sage. Mas não acho que nenhum destes vá conseguir me manter com o estilo de vida a que estou acostumado.
— O seu currículo está atrás. Eu fiz o que pude, mas estamos operando com parâmetros limitados aqui.
Ele folheou os papéis e encontrou o currículo.
— Uau. Eu fui assistente educacional na Escola São Vladimir?
Dei de ombros.
— Foi a coisa mais próxima de um emprego que você já fez.
— E Lissa era minha supervisora? Espero que ela dê boas referências minhas.
Quando Vasilisa e Rose ainda estavam na escola, Adrian morava lá e trabalhava com Vasilisa para aprender o domínio sobre o espírito. “Assistente educacional” era um certo exagero, mas fazia parecer que ele era capaz de cumprir várias tarefas ao mesmo tempo e chegar ao trabalho na hora.
Ele fechou a pasta, recostou-se no assento e fechou os olhos.
— Como vai a Chave de Cadeia? Ela parecia pra baixo na última vez que a vi.
Pensei em mentir, mas achei que ele provavelmente descobriria a verdade mais cedo ou mais tarde, ou diretamente por ela ou por meio de suas próprias deduções. Adrian podia não tomar as melhores decisões, mas eu tinha descoberto que ele era ótimo para decifrar as pessoas. Eddie alegava que isso advinha do poder que ele tinha sobre o espírito, e havia mencionado algo a respeito de auras, mas não tinha muita certeza se acreditava naquilo. Os alquimistas não tinham evidências concretas de que elas eram reais.
— Ela não está muito bem — eu disse, e fiz o relatório completo no caminho.
— Aquela coisa do chuveiro foi hilária — ele disse quando eu terminei.
— Foi uma irresponsabilidade! Por que ninguém enxerga isso?
— Aquela vaca mereceu.
Suspirei.
— Vocês esqueceram por que estão aqui? Você, principalmente! Você a viu morrer. Não entende como é importante para ela ficar em segurança e não chamar a atenção?
Adrian ficou em silêncio durante vários instantes, e quando olhei para ele, seu rosto estava sério, algo pouco comum.
— Eu sei. Mas também não quero que ela fique arrasada. Ela... ela não merece. Não é como o resto de nós.
— Acho que nós também não merecemos.
— Talvez você não mereça — ele disse com um sorrisinho. — Afinal, você tem esse estilo de vida tão puro e tudo o mais. Não sei. É só que Jill é tão... inocente. Foi por isso que a salvei, sabe? Quer dizer, em parte.
Estremeci.
— Quando ela morreu?
Ele assentiu, com uma expressão melancólica nos olhos.
— Quando eu vi que ela estava lá, toda ensanguentada e sem se mexer... não pensei nas consequências do que estava fazendo. Eu só sabia que precisava salvá-la. Ela tinha que viver. Eu agi sem parar para pensar, sem nem saber com certeza se eu era capaz de fazer aquilo.
— Foi corajoso da sua parte.
— Talvez. Não sei. Sei que ela passou por muitas dificuldades. Não quero que ela passe por isso de novo.
— Eu também não. — Fiquei comovida com a preocupação dele. Ele continuava me surpreendendo de maneiras bizarras. Às vezes era difícil imaginar que Adrian realmente se importava com qualquer coisa, mas um lado mais suave dele vinha à tona quando ele falava de Jill. — Vou fazer o que puder. Sei que devia conversar mais com ela... ser mais amiga, ou até mais uma irmã falsa. É só que...
Ele olhou feio para mim.
— Realmente é assim tão terrível ficar perto de nós?
Corei.
— Não — respondi. — Mas... é complicado. Me ensinaram certas coisas a vida toda. É difícil me livrar delas.
— As maiores mudanças na história aconteceram porque as pessoas foram capazes de se livrar do que os outros lhes diziam para fazer.
Ele desviou o olhar e ficou olhando pela janela.
Aquela afirmação me incomodou. Parecia algo bom, claro. Era o tipo de coisa que as pessoas diziam o tempo todo sem entender as implicações. Seja você mesmo, lute contra o sistema! Mas as pessoas que falavam essas coisas — gente como Adrian — não tinham vivido a minha vida. Não tinham crescido com um sistema de crenças tão rígido quanto o meu; era como ser prisioneira. Elas não tinham sido forçadas a abrir mão de sua capacidade de pensar por si mesmas ou de fazer suas próprias escolhas. As palavras dele não só me incomodaram, percebi. Elas me deixaram irritada. Elas me deixaram com inveja.
Desdenhei e lancei um comentário digno dele.
— Será que devo adicionar “palestrante motivacional” ao seu currículo?
— Se o pagamento for adequado, estou dentro. Ah — ele endireitou o corpo. — Finalmente descobri de onde o conheço. Aquele tal de Micah com quem você se preocupa tanto.
— Descobriu de onde o conhece?
— É. Por que ele me parece tão familiar. Micah é igualzinho a Mason Ashford.
— Quem?
— Um dampiro que estudou na São Vladimir. Ele namorou Rose por um tempo. — Adrian bufou e encostou a bochecha na janela. — Bom, tanto quanto qualquer outro namorou Rose. Ela era louca por Belikov, já naquela época. Igual a quando nós namoramos. Não sei se Ashford chegou a perceber ou se ela conseguiu enganá-lo o tempo todo. Espero que sim. Pobre coitado.
Franzi a testa.
— Por que está dizendo isso?
— Ele morreu. Quer dizer, foi assassinado. Você sabia disso? Um bando deles foi capturado por Strigoi no ano passado. Rose e Castile escaparam. Ashford, não.
— Não — respondi, e fiz uma anotação mental para dar uma olhada naquilo. — Eu não sabia. Eddie também estava presente?
— Estava. Fisicamente, pelo menos. Os Strigoi ficaram se alimentando dele, por isso ficou inútil a maior parte do tempo. Quer saber sobre danos emocionais? É só falar com ele.
— Coitado do Eddie — eu disse. De repente, muita coisa sobre o dampiro começou a fazer sentido para mim.
Chegamos à primeira parada, um escritório de advocacia que precisava de um assistente de escritório. O título parecia mais glamoroso do que era na verdade, e provavelmente iria envolver muitas das mesmas tarefas que Trey e eu fazíamos para a sra. Terwilliger. Mas, das três vagas que eu tinha encontrado, esta também tinha o maior potencial para avanços futuros.
O escritório obviamente ia bem, a julgar pela recepção em que ficamos esperando. Orquídeas cresciam em vasos gigantescos, bem colocados, e havia até uma fonte no meio da sala. Três outras pessoas esperavam na recepção conosco. Uma era uma mulher muito bem-vestida, na casa dos quarenta anos. Na frente dela havia um homem mais ou menos da mesma idade, sentado com uma mulher bem mais nova cuja blusa decotada faria com que fosse expulsa de Amberwood.
Cada vez que eu olhava para ela, tinha vontade de ir lá cobrir o decote com um cardigã. Mas era óbvio que os três se conheciam, porque ficavam se entreolhando.
Adrian examinou-os, um por um, e então se voltou para mim.
— Este escritório de advocacia — disse em voz baixa — é especializado em divórcio, não é?
— É, sim — respondi.
Ele assentiu e levou alguns momentos para processar a informação. Então, para o meu horror, ele se inclinou por cima de mim e disse para a mulher mais velha:
— Ele foi um idiota, obviamente. Você é uma mulher estonteante, cheia de classe. É só esperar. Ele vai se arrepender.
— Adrian! — exclamei.
A mulher se contorceu de surpresa, mas não pareceu inteiramente ofendida. Enquanto isso, do outro lado da sala, a mulher mais nova se aprumou e parou de se aninhar no homem.
— Desculpe? — ela inquiriu. — O que você quer dizer com isso?
Desejei que a terra me engolisse e me salvasse. Felizmente, a segunda melhor opção aconteceu, quando a recepcionista chamou o trio para uma reunião com um advogado.
— Sério? — perguntei quando eles saíram. — Você tinha mesmo que dizer aquilo?
— Eu falo o que penso, Sage. Você não acredita que devemos dizer a verdade?
— Claro que sim. Mas tem hora e lugar! Não com completos desconhecidos que obviamente estão em uma situação difícil.
— Tanto faz — ele disse, parecendo extremamente satisfeito consigo mesmo. — Sem dúvida eu fiz o dia daquela mulher.
Naquele instante, uma mulher de tailleur preto e saltos altíssimos saiu de uma sala interna.
— Meu nome é Janet McCade, sou a gerente do escritório — ela disse. Olhou para nós dois, em dúvida, e então apostou em mim. — Você deve ser Adrian.
A confusão do nome era compreensível, mas não caiu bem para ele. A minha avaliação de sua roupa pronta para a balada estava correta. Minha saia marrom e minha blusa marfim pareciam mais apropriadas para uma entrevista.
— Este é Adrian — disse e apontei. — Sou apenas a irmã dele, estou aqui para dar apoio moral.
— É muita gentileza da sua parte — Janet disse com a expressão um pouco perplexa.
— Então pronto. Vamos conversar, Adrian?
— Pode apostar — ele disse e se levantou para ir atrás dela, e eu saltei do meu lugar.
— Adrian — sussurrei, puxando a manga dele. — Você quer dizer a verdade? Diga agora. Não comece a inventar detalhes rebuscados nem alegue que já foi procurador da Justiça.
— Entendi — ele disse. — Isso aqui vai ser moleza.
Se com “moleza” ele quis dizer rápido, então estava certo. Ele saiu pela porta da sala depois de cinco minutos.
Quando chegamos no carro, eu disse:
— Não imagino que ela tenha dado o emprego a você com base só no seu visual, certo?
Adrian estava olhando para o outro lado, mas então me lançou um sorriso reluzente.
— Nossa, Sage, como você diz palavras doces.
— Não foi o que eu quis dizer! O que aconteceu?
Ele deu de ombros.
— Eu contei a verdade.
— Adrian!
— Estou falando sério. Ela me perguntou qual era a minha maior força. Eu disse que era lidar bem com as pessoas.
— Isso não foi ruim — reconheci.
— Daí ela perguntou qual era a minha maior fraqueza. E eu disse: “Por onde devo começar?”.
— Adrian!
— Pare de falar meu nome sem parar. Eu contei a verdade. Quando estava no quarto item, ela me disse que eu podia ir embora.
Eu soltei um grunhido e resisti à vontade de bater com a cabeça na direção.
— Eu devia ter orientado você. Essa é uma pegadinha padrão. Você tem que responder com coisas como “me dedico demais ao trabalho” ou “sou perfeccionista”.
Ele soltou uma gargalhada de desdém e cruzou os braços.
— Isso é uma besteira completa. Quem iria dizer uma coisa dessas?
— Pessoas que conseguem empregos.
Como agora nós tínhamos um tempo extra, dei o melhor de mim para prepará-lo para as perguntas antes da próxima entrevista. Na verdade, era no café Spencer’s, e consegui fazer com que Trey ajudasse. Enquanto Adrian fazia a entrevista no fundo, eu me sentei em uma mesa para tomar um café. Trey veio me fazer uma visita depois de uns quinze minutos.
— Ele é mesmo seu irmão? — ele quis saber.
— É, sim — eu disse, com esperança de parecer convincente.
— Quando você disse que ele estava procurando emprego, imaginei uma versão masculina de você. Achei que ele iria querer organizar as xícaras por cores ou algo assim.
— O que você quer dizer com isso? — perguntei.
Trey sacudiu a cabeça.
— Quero dizer que é melhor vocês continuarem a procurar. Acabei de sair lá de trás e ouvi ele conversando com a gerente. Ela estava explicando como é a limpeza que ele teria que fazer toda noite. Daí ele falou algo sobre as mãos dele e trabalho pesado.
Eu não era do tipo de falar palavrão, mas, naquele momento, desejei ser.
A última entrevista era em um bar da moda do centro. Eu tinha partido do princípio de que Adrian provavelmente conhecia todos os drinques do mundo e tinha inventado uma credencial falsa para o currículo, afirmando que ele já tinha feito curso de barman. Chegando lá, fiquei no carro e o mandei ir sozinho, achando que sua melhor chance era ali. No mínimo, a roupa dele seria apropriada. Quando ele saiu depois de dez minutos, fiquei boquiaberta.
— Como? — exigi saber. — Como você conseguiu ferrar essa?
— Quando cheguei, disseram que o gerente estava ao telefone e que iria demorar alguns minutos. Então eu me sentei e pedi uma bebida.
Dessa vez, eu realmente apoiei a cabeça na direção.
— O que você pediu?
— Um martíni.
— Um martíni. — Ergui a cabeça. — Você pediu um martíni antes de uma entrevista de emprego.
— É um bar, Sage. Achei que não teria problema.
— Não, não achou! — exclamei. O volume da minha voz surpreendeu a nós dois e ele se encolheu um pouco. — Você não é burro, por mais que finja ser! Você sabe que não pode fazer isso. Você só fez isso para sacanear com eles. Você fez isso para sacanear comigo! Foi isso. Você não levou nada a sério. Desperdiçou o tempo dessa gente e o meu, só porque não tinha nada melhor para fazer!
— Não é verdade — ele disse, mas parecia não ter certeza. — Eu quero, sim, um trabalho... mas não estes.
— Você não está em posição de ser exigente. Quer sair da casa de Clarence? Estas eram as suas chances. Poderia ter conseguido qualquer um desses empregos se você se esforçasse só um pouquinho. Você consegue ser encantador quando quer. Poderia ter conseguido um emprego só pelo papo. — Dei a partida no carro. — Para mim, chega.
— Você não entende — ele disse.
— Entendo que você esteja passando por um período difícil. Entendo que esteja magoado. — Eu me recusei a olhar para ele e coloquei toda a minha atenção na rua. — Mas isso não lhe dá o direito de ficar brincando com a vida das outras pessoas. Tente cuidar de si mesmo sozinho para variar.
Ele não respondeu até estarmos de volta à casa de Clarence e, mesmo naquele momento, eu não quis escutar.
— Sage... — ele começou.
— Saia daqui — eu disse.
Ele hesitou como se fosse discordar, mas finalmente assentiu com a cabeça. Saiu do carro em direção à casa e aproveitou para acender um cigarro no caminho. Fúria e frustração queimavam dentro de mim. Como é que uma pessoa era capaz de me fazer passar por tantos altos e baixos? Sempre que eu começava a gostar dele e sentia que nós estávamos nos conectando, ele fazia uma coisa dessas. Eu era uma idiota por me permitir começar a ter simpatia por ele. Será que eu tinha realmente pensado que ele se parecia com uma obra de arte antes?
Meus sentimentos ainda estavam agitados quando cheguei a Amberwood. Eu não estava nem um pouco a fim de encontrar Jill no nosso quarto. Não tinha dúvida de que ela já sabia tudo que havia acontecido com Adrian, e não tinha o menor desejo de escutar as defesas que ela teria para ele.
Mas, quando entrei no meu dormitório, nem passei da recepção. A sra. Weathers estava no lobby com Eddie e um segurança do campus. Micah estava ali por perto, com o rosto pálido. Meu coração parou. Eddie disparou na minha direção, com o pânico estampado no rosto.
— Você finalmente apareceu! Não conseguia falar com você nem com Keith.
— M-meu telefone estava desligado. — Olhei para a sra. Weathers e para o segurança e vi no rosto deles a mesma preocupação. — O que aconteceu?
— É Jill — Eddie disse, sombrio. — Ela sumiu.
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— Como assim, “sumiu”? — perguntei.
— Era para ela ter se encontrado com a gente há umas duas horas — Eddie falou e trocou olhares com Micah. — Achei que talvez ela estivesse com você.
— Não vejo Jill desde a educação física. — Estava me esforçando muito para não entrar no modo pânico por enquanto. Havia muitas variáveis em jogo, e não havia evidências suficientes para começar a pensar que dissidentes Moroi enlouquecidos a tinham sequestrado. — Este lugar é muito grande. Quer dizer, são três campi. Tem certeza de que ela não está só escondida em algum canto, estudando?
— Fizemos uma busca bem abrangente — o segurança disse. — E os professores e funcionários estão em alerta, à procura dela. Ninguém a avistou por enquanto.
— E ela não está atendendo o celular — Eddie completou.
Finalmente permiti que o medo tomasse conta de mim de verdade, e meu rosto deve ter demonstrado. A expressão do segurança se abrandou.
— Não se preocupe. Tenho certeza de que ela vai aparecer — esse era o tipo de reconforto que as pessoas da profissão dele tinham que dizer aos parentes. — Mas você tem alguma outra ideia de onde ela pode estar?
— E os seus outros irmãos? — Micah perguntou.
Estava com medo que chegasse a isso. Tinha quase certeza absoluta de que ela não estava com Keith, mas ele provavelmente já devia ter sido notificado do desaparecimento dela. Não era algo que eu estivesse ansiosa para que acontecesse, porque sabia que um sermão estaria à minha espera. Também seria um sinal do meu fracasso perante os olhos dos outros alquimistas. Eu devia ter ficado ao lado de Jill. Esse era o meu trabalho, certo? Em vez disso, eu — idiota como sou— fui ajudar alguém com tarefas do dia a dia. E não uma pessoa qualquer — um vampiro. Era assim que os alquimistas iam ver as coisas. Adoradora de vampiros.
— Eu estive com Adrian agorinha mesmo — disse devagar. — Acho que ela pode ter conseguido ir à casa de Clarence de algum modo para esperar por ele. Não cheguei a entrar.
— Também tentei falar com ele — Eddie disse. — Ele não atendeu.
— Desculpe — eu falei. — Nós estávamos nas entrevistas dele, por isso deve ter desligado o telefone. Quer tentar mais uma vez? — Eu, com toda a certeza, não queria ligar para ele.
Eddie se afastou para ligar para Adrian enquanto eu conversava com a sra. Weathers e o segurança. Micah andava de um lado para o outro, com ar preocupado, e me senti culpada por sempre querer que ele ficasse longe de Jill. A disputa era um problema, mas ele gostava mesmo dela. Eu disse ao segurança quais eram os lugares que Jill gostava de frequentar no campus. Eles confirmaram que já tinham verificado todos.
— Conseguiu falar com ele? — perguntei quando Eddie voltou.
Ele assentiu.
— Ela não está lá. Mas fiquei meio mal. Agora ele está bem preocupado. Talvez devêssemos ter esperado para contar para ele.
— Não... na verdade, pode ser bom.
Olhei Eddie nos olhos e vi uma fagulha de compreensão. As emoções de Adrian pareciam passar por cima das de Jill quando eram fortes. Se ele ficasse em pânico mesmo, havia a esperança de ela perceber que as pessoas estavam preocupadas e voltar. Isso partindo do princípio de que ela só estava escondida ou que tinha ido a algum lugar onde nós não conseguíamos encontrá-la. Tentei não levar em conta a alternativa de algo ter acontecido e ela estar em algum lugar onde não podia entrar em contato conosco.
— Às vezes os alunos simplesmente saem escondidos da escola — o segurança disse. — É inevitável. Geralmente, tentam voltar sem que ninguém perceba antes do toque de recolher. Espero que este seja o caso. Se ela não aparecer até lá... bom, daí nós chamamos a polícia.
Ele se afastou para entrar em contato com os outros seguranças pelo rádio e saber se havia alguma novidade, e nós agradecemos sua ajuda. A sra. Weathers voltou para a mesa da recepção, mas ela estava claramente preocupada e agitada. Às vezes ela parecia enfezada, mas tinha a sensação de que ela se preocupava com as alunas de verdade. Micah nos deixou para falar com alguns amigos que trabalhavam no campus, para o caso de terem visto algo.
Assim, sobramos Eddie e eu. Sem dizer nada, nós nos dirigimos para algumas cadeiras que havia no saguão. Assim como eu, acho que ele queria ficar de olho na porta, para avistar Jill no instante em que ela aparecesse.
— Eu não devia ter deixado Jill sozinha — ele disse.
— Você precisou deixar — eu disse, racional. — Você não pode ficar com ela nas aulas nem no quarto.
— Este lugar foi má ideia. É grande demais. É difícil para manter a segurança — ele suspirou. — Não estou acreditando nisso.
— Não... foi boa ideia, sim. Jill precisa ter algo que se pareça com a vida normal. Vocês poderiam ter trancado Jill em algum quartinho e feito com que ela ficasse isolada de qualquer interação, mas de que adiantaria? Ela precisa ir à escola e estar rodeada de gente.
— Mas ela não tem feito muito isso.
— Não — reconheci. — Tem sido difícil para ela. Eu fiquei torcendo para melhorar.
— Eu só queria que ela estivesse feliz.
— Eu também. — Endireitei as costas quando algo alarmante me ocorreu. — Você não acha... não acha que ela fugiu e voltou para a mãe, acha? Ou para a corte, ou para algum outro lugar?
O rosto dele ficou ainda mais desolado.
— Espero que não. Você acha que as coisas estavam tão ruins assim?
Pensei na nossa briga depois do incidente do chuveiro.
— Não sei. Talvez.
Eddie enterrou o rosto nas mãos.
— Não estou acreditando nisso — repetiu. — Eu falhei.
Quando se tratava de Jill, Eddie costumava ser apenas violência e raiva. Eu nunca o tinha visto tão próximo da depressão. Vivia com medo da minha própria falha desde que tinha chegado a Palm Springs, mas só agora tinha percebido que Eddie dependia tanto daquilo quanto eu. E me lembrei das palavras de Adrian sobre Eddie e Mason, amigo dele, sobre como Eddie se sentia responsável. Se Jill não voltasse, não seria como se a história estivesse se repetindo? Será que ela seria mais uma pessoa que ele perdeu?
Tinha achado que aquela missão poderia ser a redenção para ele. Em vez disso, poderia fazê-lo reviver tudo o que acontecera a Mason.
— Você não falhou — eu disse. — A sua função é protegê-la, e você fez isso. Não pode controlar a felicidade dela. Se existe algum culpado, sou eu. Eu dei a maior bronca nela por causa do incidente do chuveiro.
— É, mas eu destruí as esperanças dela quando disse que a ideia de Lee de que ela fosse modelo não ia dar certo.
— Mas você estava certo sobre... Lee! — engoli em seco. — É isso. É lá que ela está. Ela está com ele, tenho certeza. Você tem o telefone dele?
Eddie soltou um grunhido.
— Como eu sou idiota — disse, pegou o celular e procurou o número. — Eu devia ter pensado nisso.
Toquei na cruz no meu pescoço e fiz uma oração em silêncio, pedindo para que aquilo tudo se resolvesse logo. Se significasse que Jill estava viva e bem, eu poderia dar conta do fato de que ela e Lee haviam fugido para ficar juntos.
— Oi, Lee? É Eddie. Jill está com você?
Houve uma pausa quando Lee respondeu. A linguagem corporal de Eddie respondeu à pergunta antes que eu escutasse qualquer outra palavra. A postura dele relaxou e o alívio preencheu sua expressão.
— Certo — Eddie disse alguns momentos depois. — Bom, traga Jill de volta até aqui. Agora. Todo mundo está procurando por ela. — Mais uma pausa. O rosto de Eddie ficou rígido. — Podemos conversar sobre isso mais tarde. — Ele desligou e se virou para mim. — Está tudo bem com ela.
— Graças a Deus — eu disse, com um suspiro. Eu me levantei, e foi só aí que percebi como tinha ficado tensa. — Já volto.
Encontrei a sra. Weathers e o segurança e dei a notícia. O segurança informou seus colegas imediatamente e logo foi embora. Para a minha surpresa, a sra. Weathers parecia estar à beira das lágrimas.
— Está tudo bem com a senhora? — perguntei.
— Está, está — ela se virou apressada, envergonhada por ter ficado tão emotiva. — Eu só estava preocupada. Eu... eu não queria dizer nada para não assustar vocês, mas cada vez que uma aluna desaparece... bom, há alguns anos, outra garota desapareceu. Nós achamos que ela só tinha saído escondida da escola... como Matt disse, acontece. Mas, no final... — A sra. Weathers fez uma careta e desviou o olhar. — Eu não devia contar isso para você.
Até parece que ela podia parar depois de uma introdução dessas.
— Não, por favor. Conte.
Ela suspirou.
— A polícia a encontrou dois dias depois... morta. Ela tinha sido sequestrada e assassinada. Foi terrível, e nunca pegaram o assassino. Agora, sempre que alguém desaparece, só penso nisso. Nunca mais aconteceu, claro. Mas uma coisa dessas assusta a gente.
Eu podia imaginar. E quando retornei a Eddie, voltei a pensar nele e em Mason. Parecia que todo mundo carregava um histórico pesado de acontecimentos. Eu, com toda a certeza, sim. Agora que a segurança de Jill não era mais preocupação, a única coisa em que eu pensava era a seguinte: O que os alquimistas vão dizer? O que o meu pai vai dizer? Eddie estava guardando o celular de novo quando me aproximei.
— Liguei para Micah para dizer a ele que está tudo bem — ele explicou. — Ele estava muito preocupado.
Todos os sinais do antigo trauma da sra. Weathers desapareceram no instante em que Jill e Lee passaram pela porta. Jill na verdade parecia animada, até ver nossas expressões. Ela parou no meio do caminho. Ao lado dela, Lee já demonstrava o pesar. Acho que ele sabia o que viria pela frente.
Eddie e eu avançamos apressados, mas não tive a oportunidade de falar imediatamente. A sra. Weathers logo exigiu saber aonde eles tinham ido. Em vez de encobrir o fato, Jill confessou a verdade: ela e Lee haviam saído do campus e foram para Palm Springs. Ela tomou cuidado para ter certeza de que Lee não fosse acusado de sequestro, jurando que ele não sabia que ela só podia sair com familiares autorizados. Eu confirmei aquilo — mas Lee ainda estava na minha lista negra.
— Você pode esperar lá fora? — pedi a ele, com educação. — Gostaria de falar com você em particular, mais tarde.
Lee começou a obedecer e lançou um olhar de desculpas para Jill. Ele roçou a mão dela de leve para se despedir e deu meia-volta. Foi a sra. Weathers que o deteve.
— Espere — ela disse, e ficou olhando para ele com curiosidade. — Por acaso eu conheço você?
Lee pareceu surpreso.
— Acho que não. Nunca estive aqui antes.
— Tem algo de familiar em você — ela insistiu. Sua testa se franziu por mais alguns momentos. Finalmente, ela deu de ombros. — Não pode ser. Devo estar enganada.
Lee assentiu, olhou nos olhos de Jill com compaixão mais uma vez, e saiu.
A sra. Weathers não tinha terminado com Jill. Ela começou a desfiar uma ladainha a respeito de como aquilo tinha sido perigoso e como eles tinham sido irresponsáveis.
— Se você queria sair em segredo e desrespeitar as regras, podia pelo menos ter contado para os seus irmãos. Eles estavam em pânico por sua causa.
Era quase engraçado ela dar um conselho sobre como desrespeitar as regras de maneira “responsável”. Mas, levando em conta como eu tinha ficado apavorada, era difícil achar qualquer coisa divertida naquele momento. Ela disse a Jill que aquilo iria para a ficha dela e que seria castigada.
— Por enquanto — a sra. Weathers disse —, você vai ficar no seu quarto sem sair pelo resto da noite. Venha falar comigo depois do café da manhã e vamos descobrir se o diretor acha que é um caso para suspensão.
— Com licença — Eddie disse. — Será que podemos conversar com ela alguns minutos em particular, antes de ela subir? Gostaria de falar com ela.
A sra. Weathers hesitou, e parecia querer que o castigo de Jill entrasse em vigor imediatamente. Ela então examinou Eddie de cima a baixo. A expressão no rosto dele era rígida e irritada, e acho que a sra. Weathers percebeu que o irmão mais velho de Jill aplicaria um outro tipo de castigo nela.
— Cinco minutos — a sra. Weathers disse e bateu com o dedo no relógio. — Depois disso, ela precisa subir.
— Não digam nada — Jill falou no instante em que ficamos sozinhos. O rosto dela era uma mistura de medo e desafio. — Eu sei que o que fiz foi errado. Não preciso levar sermão de vocês.
— Não precisa? — perguntei. — Se você soubesse que era errado, não teria feito isso!
Jill cruzou os braços por cima do peito.
— Eu precisava sair daqui. De acordo com os meus próprios termos. E sem vocês.
O comentário nem me atingiu. Parecia infantil e mesquinho. Mas, para a minha surpresa, Eddie realmente parecia magoado.
— O que você quer dizer com isso? — ele perguntou.
— Quero dizer que eu só queria sair deste lugar sem que vocês ficassem me dizendo o tempo todo o que estou fazendo errado — foi uma indireta para mim. — Ou que se sobressaltassem com cada sombra — essa, claro, era para Eddie.
— Só quero proteger você — ele disse com um tom de mágoa. — Não quero sufocá-la, mas não posso permitir que nada aconteça. Não de novo.
— Eu corro mais perigo com Laurel do que com qualquer assassino! — Jill exclamou. — Sabe o que ela fez hoje? Nós estávamos trabalhando no laboratório de computação e ela “sem querer” tropeçou no fio do meu computador. Eu perdi metade do trabalho e não pude terminar a tempo, e agora vou levar nota baixa.
Um sermão sobre fazer backup do trabalho provavelmente não seria útil naquele momento.
— Olhe, isso é horrível mesmo — eu disse. — Mas não está na mesma categoria de alguém querer matar você. Nem de longe. Aonde exatamente vocês foram?
Por um instante, pareceu que ela não ia entregar a informação. Finalmente, ela disse:
— Lee me levou a Salton Sea. — Ao ver nossa cara de quem não entendeu nada, ela completou: — É um lago fora da cidade. É maravilhoso. — Uma expressão quase sonhadora cruzou seu rosto. — Fazia tanto tempo que eu não ficava perto de tanta água assim... Daí nós fomos para o centro e só ficamos andando por lá, fazendo compras e tomando sorvete. Ele me levou àquela loja, com a estilista que está procurando modelos e...
— Jill — interrompi. — Não me importa como o seu dia foi maravilhoso. Você nos assustou. Não entende?
— Lee não devia ter feito isto — Eddie disse, irritado.
— A culpa não é dele — Jill disse. — Eu convenci Lee a fazer isso... fiz com que acreditasse que vocês não iriam se incomodar. E ele não sabe a verdadeira razão pela qual estou aqui nem o perigo que eu corro.
— Talvez namorar tenha sido uma má ideia — balbuciei.
— Lee é a melhor coisa que me aconteceu aqui! — ela disse, irritada. — Eu mereço ser capaz de sair e me divertir igual a vocês.
— “Diversão” é um exagero — eu disse, ao me lembrar da tarde com Adrian.
Jill precisava de um alvo para sua frustração, e eu recebi a honra.
— Não é o que me parece. Você nunca está aqui. E, quando está, só fica me dizendo o que eu faço de errado. Parece até que é minha mãe.
Eu estava lidando com tudo aquilo com muita calma; mas, de repente, algo naquele comentário me fez explodir. Meu controle tão bem afinado se despedaçou.
— Quer saber de uma coisa? Eu me sinto assim mesmo. Porque, até onde eu sei, sou a única desse grupo que age como adulta. Você acha que eu estou aqui me divertindo? Só estou como babá de vocês, consertando as suas confusões. Passei a tarde inteira... desperdicei a tarde inteira... levando Adrian de carro de um lado para o outro, só para ele ferrar com as entrevistas que consegui. E daí chego aqui e tenho que lidar com o problema do seu “passeiozinho”. Entendo que Laurel seja um saco... mas, se Micah tivesse sido alertado desde o início, esses problemas jamais teriam acontecido — este último comentário foi dirigido a Eddie. — Eu não entendo por que sou a única que enxerga a seriedade das coisas. Vampiros e humanos namorando. A vida de vocês em jogo. Não são coisas com que se pode brincar! E, no entanto... de algum modo, é o que vocês todos fazem. Largam todas as coisas difíceis para mim, para que eu limpe a sujeira atrás de vocês... e, enquanto isso, tenho Keith e os outros alquimistas na minha cola, só esperando que eu ferre com tudo porque ninguém confia em mim desde que ajudei a sua amiga Rose. Você acha que isso é divertido? Quer viver a minha vida? Então, viva. Pode ficar no meu lugar e começar a assumir um pouco de responsabilidade para variar.
Eu não tinha gritado, mas o volume da minha voz certamente tinha aumentado. Eu basicamente tinha feito todo o discurso sem respirar e agora fazia uma pausa para tomar fôlego. Eddie e Jill ficaram olhando para mim, de olhos arregalados, como se não estivessem me reconhecendo.
Naquele momento a sra. Weathers voltou até onde nós estávamos.
— Já basta por hoje. Você precisa subir agora — ela disse a Jill.
Jill assentiu, ainda um pouco atordoada, e saiu apressada sem se despedir de nenhum de nós. A sra. Weathers a acompanhou até a escada e Eddie se voltou para mim. Seu rosto estava pálido e solene.
— Você está certa — ele disse. — Eu não tenho feito a minha parte.
Suspirei, de repente me sentindo exausta.
— Você não é tão mau quanto eles.
Ele sacudiu a cabeça.
— Mesmo assim... Talvez você tenha razão em relação a Micah. Talvez ele mantenha alguma distância se eu conversar com ele, e daí Laurel vai parar de pegar no pé de Jill. Vou falar com ele hoje à noite. Mas... — ele franziu a testa, escolhendo as palavras com muito cuidado. — Tente não ser muito dura com Adrian e Jill. Isso é estressante para ela, e às vezes eu acho que um pouco da personalidade dele esteja passando para ela através do laço. Tenho certeza de que foi por isso que ela fugiu hoje. É algo que ele faria no lugar dela.
— Ninguém a forçou a fazer o que fez — eu disse. — Adrian menos ainda. O fato de ela ter convencido Lee e não ter nos contado mostra que ela sabia que era errado. Isso se chama livre-arbítrio. E Adrian não tem essas desculpas.
— É... mas ele é o Adrian — Eddie disse, desanimado. — Às vezes não sei distinguir quais atitudes são dele e quais são do espírito.
— Aqueles que têm o domínio sobre o espírito podem tomar antidepressivos, não podem? Se ele está preocupado em se tornar um problema, então precisa tomar juízo e assumir o controle. Ele tem uma escolha. Não é impotente. Não há vítimas aqui.
Eddie me examinou durante vários segundos.
— E eu achei que a minha visão da vida era dura.
— Sua vida é dura — corrigi. — Mas ela é construída em torno da ideia de que você sempre precisa tomar conta de outras pessoas. Eu fui ensinada que isso às vezes é necessário, mas que, mesmo assim, todo mundo precisa cuidar de si mesmo.
— E, no entanto, aqui está você.
— Nem me diga. Quer vir comigo conversar com Lee?
Qualquer expressão de arrependimento desapareceu do rosto de Eddie.
— Quero — ele disse com determinação.
Encontramos Lee sentado em um banco do lado de fora, parecendo arrasado. Ele se levantou em um pulo quando nos aproximamos.
— Pessoal, sinto muito! Eu não devia ter feito isso. Mas é que ela parecia tão triste e tão perdida e eu só quis...
— Você sabe como nós protegemos Jill — eu disse. — Como pôde pensar que não iria nos deixar preocupados?
— E ela é menor de idade — Eddie falou. — Não pode simplesmente levar Jill embora e fazer o que bem entender com ela!
Reconheço que fiquei um pouco surpresa com sua opção por mencionar a ameaça à virtude de Jill. Não me entenda mal. Eu também estava preocupada com a idade dela. Mas, depois de ele tê-la visto literalmente morrer, achei que Eddie iria se preocupar com outras coisas além de os dois ficarem juntos.
Os olhos cinzentos de Lee se arregalaram.
— Não aconteceu nada! Eu jamais faria algo assim com ela. Eu juro! Eu nunca me aproveitaria de uma pessoa tão inocente. Não posso estragar isto. Ela é mais importante para mim do que qualquer garota com quem já namorei. Quero ficar com ela para sempre.
Achei que “para sempre” era um exagero considerando a idade deles, mas havia uma sinceridade comovente em seus olhos. Mesmo assim, não servia de desculpa para o que tinha feito. Ele levou nosso sermão a sério e prometeu que aquilo nunca mais iria se repetir.
— Mas, por favor... será que eu ainda posso me encontrar com ela quando vocês estiverem por perto? Nós podemos continuar a fazer programas em grupo?
Eddie e eu nos entreolhamos.
— Se ela tiver permissão para sair do campus depois disso, sim — respondi. — Realmente não sei o que vai acontecer.
Lee foi embora depois de mais alguns pedidos de desculpas e Eddie também voltou para o alojamento dele. Eu estava subindo as escadas quando meu celular tocou. Dei uma olhada e fiquei assustada ao ver o número do telefone da casa dos meus pais em Salt Lake City no identificador de chamadas.
— Alô? — atendi. Durante um momento inquieto, torci para que fosse Zoe.
— Sydney.
Meu pai. Meu estômago se encheu de pavor.
— Precisamos conversar sobre o que aconteceu.
O pânico se alastrou dentro de mim. Como é que ele já sabia do desaparecimento de Jill? Keith me veio à cabeça como o culpado óbvio. Mas como é que ele havia descoberto? Será que estava na casa de Clarence quando Eddie ligou para Adrian? Apesar de seus defeitos, não podia acreditar que Adrian teria contado a Keith o que tinha acontecido.
— Conversar sobre o quê? — perguntei, tentando ganhar tempo.
— Sobre o seu comportamento. Keith me ligou ontem à noite e, devo dizer, estou muito decepcionado.
— Ontem à noite — aquilo não era a respeito do desaparecimento de Jill. Então, sobre o que seria?
— O seu trabalho é coordenar os esforços para que a menina Moroi tenha uma boa adaptação. Não precisa ser simpática com eles! Mal pude acreditar quando Keith disse que você levou todos para jogar boliche.
— Era minigolfe, e Keith disse que não tinha problema! Eu perguntei a ele primeiro.
— E, depois, ouvi dizer que você está ajudando outros vampiros a cuidarem de suas tarefas rotineiras e não sei mais o quê. A sua obrigação é apenas com a menina, e isso só está relacionado à sobrevivência dela... coisa que também ouvi dizer que você não está fazendo. Keith me disse que houve um incidente em que você não cuidou das dificuldades dela no sol da maneira adequada?
— Eu informei o problema imediatamente! — exclamei. Eu deveria saber que Keith tinha planos de usar aquilo contra mim. — Keith... — fiz uma pausa, pensando na melhor maneira de lidar com aquilo. — Ele não entendeu bem o meu relatório inicial. — Keith tinha desprezado o meu relatório inicial, mas dizer ao meu pai que o protegido dele havia mentido só iria servir para fazer meu pai ficar na defensiva. Ele não acreditaria em mim. — E olha só quem fala! Ele está sempre com Clarence e se recusa a dizer por quê.
— Provavelmente é para se assegurar de que ele esteja estável. Compreendo que o velho não tem a cabeça muito no lugar.
— Ele é obcecado por caçadores de vampiros — expliquei. — Ele acha que tem humanos por aí que mataram a sobrinha dele.
— Bom — meu pai disse. — Há mesmo alguns humanos que ficam sabendo do mundo dos vampiros e nós não conseguimos dissuadi-los. Não são exatamente caçadores. Keith está cumprindo sua obrigação ao esclarecer com Clarence. Você, no entanto, está equivocada.
— Essa comparação não é justa!
— Honestamente, culpo a mim mesmo — ele disse. De algum modo, eu duvidava disso. — Eu não devia ter deixado que você fosse mandada para aí. Você não estava pronta... não depois daquilo pelo que passou. Passar tempo com esses vampiros está deixando você confusa. É por isso que vou pedir para que volte.
— O quê?
— Se as coisas fossem do meu jeito, seria imediatamente. Infelizmente, Zoe vai demorar mais duas semanas para se aprontar. Os alquimistas querem que ela passe por alguns testes antes de fazer a tatuagem. Quando isso estiver resolvido, vamos mandá-la no seu lugar e arrumar... ajuda para você.
— Pai! Isso é uma loucura. Estou indo bem aqui. Por favor, não mande Zoe...
— Sinto muito, Sydney — ele disse. — Você me deixou sem escolha. Por favor, não se meta em confusão durante o tempo que lhe resta.
Ele desligou e eu fiquei parada no corredor com o coração apertado. Duas semanas! Duas semanas e iam mandar Zoe. E eu...? Para onde iam me mandar? Eu não queria pensar sobre o assunto, mas sabia. Precisava impedir que aquilo acontecesse. As engrenagens já estavam em movimento. As tatuagens, pensei de repente. Se pudesse terminar meus testes com as substâncias roubadas e descobrir informações sobre o fornecedor de sangue, eu ganharia pontos com os alquimistas — espero que o suficiente para tirar a mácula que Keith tinha colocado sobre mim.
E por que ele tinha feito isso? Por que agora? Eu sabia que ele nunca quis que eu tivesse ido para lá. Talvez ele só estivesse ganhando tempo, juntando evidências contra mim até que pudesse fazer com que eu fosse deposta com um golpe certeiro. Mas não iria permitir que aquilo acontecesse. Eu desvendaria o caso das tatuagens e provaria quem era a estrela dos alquimistas. Eu tinha provas suficientes agora para chamar a atenção deles, e poderia simplesmente entregar o que tinha se nada de novo viesse à tona em uma semana.
A decisão me encheu de determinação, mas, mesmo assim, tive dificuldade para dormir quando fui para a cama, mais tarde. A ameaça do meu pai pairava sobre mim, assim como meu medo do centro de reeducação.
Depois de mais ou menos uma hora revirando na cama, finalmente caí no sono. Mas, mesmo assim, fiquei agitada e preocupada. Acordei depois de poucas horas e tive que me esforçar para conseguir dormir novamente.
Dessa vez, eu sonhei.
No sonho, eu estava na sala da casa de Clarence. Tudo estava arrumado e no lugar, a madeira escura e a mobília antiga davam ao ambiente uma sensação agourenta. Os detalhes eram surpreendentemente vívidos, e era como se eu pudesse sentir o cheiro dos livros empoeirados e do couro da mobília.
— Hum. Deu certo. Não tinha certeza se ia dar com um humano.
Eu me virei para trás e vi Adrian apoiado na parede.
Ele não estava lá no momento anterior, e tive um flash do medo de vampiros surgindo do nada que eu tinha na infância. Então me lembrei de que era só um sonho, e que aquele tipo de coisa acontecia.
— Sobre o que você não tinha certeza? — perguntei.
Ele fez um gesto ao redor de si.
— Se eu seria capaz de entrar em contato com você. Trazer você para dentro deste sonho. — Eu não entendi muito bem o que ele queria dizer e não falei nada. Ele arqueou uma sobrancelha. — Você não sabe, sabe? Onde você está?
— Na casa de Clarence — respondi, razoável. — Bom, na realidade, estou dormindo na minha cama. Isso é só um sonho.
— Você está meio certa — ele disse. — Este é um sonho de espírito. É real.
Franzi a testa. Um sonho de espírito. Como a maior parte das informações que nós tínhamos a respeito do espírito era incerta, não sabíamos quase nada sobre sonhos de espírito. A maior parte do que eu sabia tinha aprendido com Rose, que com frequência tinha recebido visitas de Adrian enquanto dormia. De acordo com ela, a pessoa que sonhava e o vampiro usuário de espírito na verdade estavam juntos, em um encontro de mentes, comunicando-se através de longas distâncias. Para mim, era difícil apreender aquilo totalmente, mas eu havia testemunhado Rose acordando com informações que não poderia ter obtido de outra maneira. Mesmo assim, não tinha evidências para sugerir que de fato estivesse em um sonho de espírito agora.
— Este é apenas um sonho como outro qualquer — retruquei.
— Tem certeza? — ele perguntou. — Olhe ao redor. Concentre-se. Não acha que a sensação é diferente? É como um sonho... mas não é um sonho. E também não é exatamente igual à vida real. Chame do que quiser, mas da próxima vez que nos virmos no mundo desperto, poderei dizer a você exatamente o que aconteceu aqui.
Olhei ao redor da sala, observando tudo como ele tinha sugerido. Mais uma vez, fiquei surpresa pela nitidez até dos mínimos detalhes. Certamente parecia real, mas os sonhos geralmente pareciam... certo? Você geralmente nunca sabia que estava sonhando até acordar. Fechei os olhos e respirei fundo, tentando acalmar a mente. E, assim, eu senti. Entendi o que ele quis dizer. Não era exatamente igual a um sonho. Não era exatamente igual à vida real. Meus olhos se abriram.
— Pare com isso — exclamei e me afastei dele. — Faça acabar. Me tire daqui.
Porque, ao aceitar que aquele realmente era um sonho de espírito, eu teria que reconhecer outra coisa: eu estava rodeada por magia de vampiro. A minha mente estava entremeada nisso. Eu me senti claustrofóbica. A magia fazia pressão sobre mim, esmagava o ar.
— Por favor — a minha voz foi ficando cada vez mais frenética. — Por favor, me deixe ir embora.
Adrian se endireitou, demonstrando surpresa.
— Nossa, Sage. Acalme-se. Está tudo bem.
— Não. Não está. Eu não quero isto. Eu não quero que a magia me toque.
— Não vai prejudicar você — ele disse. — Não é nada.
— É errado — sussurrei. — Adrian, pare com isto.
Ele estendeu a mão como se fosse tentar me reconfortar, e então pensou melhor.
— Eu não vou prejudicar você — repetiu. — Só escute o que eu tenho a dizer e vou dissolver tudo. Prometo.
Mesmo no sonho, meu coração estava disparado. Abracei a mim mesma e recuei para a parede, tentando me fazer pequena.
— Certo — sussurrei. — Ande logo.
— Eu só queria dizer... — Ele enfiou as mãos nos bolsos e desviou o olhar, pouco à vontade, antes de voltar a olhar para mim mais uma vez. Será que seus olhos estavam mais verdes do que na realidade? Ou será que era apenas a minha imaginação? — Eu queria... queria pedir desculpas.
— Por quê? — perguntei. Não conseguia processar nada além do meu próprio terror.
— Pelo que eu fiz. Você tinha razão. Desperdicei seu tempo e seu trabalho hoje.
Forcei a minha mente para não ficar retornando às lembranças daquela tarde.
— Obrigada — eu disse simplesmente.
— Não sei por que faço essas coisas — ele completou. — É que eu não consigo evitar.
Eu continuava apavorada, continuava sufocada pela magia que me rodeava. De algum modo, consegui reproduzir a minha conversa anterior com Eddie.
— Você é capaz de se controlar — eu disse. — Você não é uma vítima.
Adrian estava olhando para o outro lado, incomodado com seus pensamentos. De repente, com um gesto brusco, voltou a olhar para mim.
— Igualzinha a Rose.
— O quê?
Adrian estendeu a mão e uma rosa vermelha cheia de espinhos de repente se materializou ali. Engoli em seco e tentei recuar mais. Ele brincou com o cabo entre os dedos, com cuidado para não se espetar.
— Ela disse isso. Que eu estava fazendo papel de vítima. Será que eu sou assim tão patético?
A rosa murchou e se desfez diante dos meus olhos; primeiro transformou-se em cinzas, e depois desapareceu completamente. Fiz o sinal contra o mal no ombro e tentei me lembrar do que nós estávamos falando.
— Patético não é a palavra que eu usaria — eu disse.
— Que palavra você usaria?
A minha mente tinha dado um branco.
— Não sei. Confuso?
Ele sorriu.
— Isso é amenizar a situação.
— Vou conferir em um dicionário quando acordar e dou um retorno para você. Pode por favor acabar com isto?
O sorriso se transformou em uma expressão de surpresa.
— Você está assustada mesmo, não está?
Deixei meu silêncio responder por mim.
— Certo, então, só mais uma coisa. Pensei em outro jeito para conseguir sair da casa de Clarence e arrumar algum dinheiro. Estava lendo sobre auxílio financeiro para a faculdade. Se eu estudasse em algum lugar, você acha que eu conseguiria o suficiente para viver?
Aquela era uma pergunta concreta que eu tinha como encarar.
— É possível. Mas acho que é tarde demais. As aulas já começaram em todos os lugares.
— Encontrei uma faculdade na internet. Carlton. Fica do outro lado da cidade e as aulas ainda não começaram. Mas eu vou ter que ser rápido, e... é isso que eu não sei fazer. A papelada. Os procedimentos. Mas essa é a sua especialidade, certo?
— É triste, mas é verdade — respondi. Uma parte de mim achava que Carlton parecia familiar, mas eu não conseguia localizar a informação.
Ele respirou fundo.
— Você me ajuda? Eu sei que é fazer você dar uma de babá outra vez, mas não sei por onde começar. Só prometo que vou fazer a minha parte. Diga o que tenho que fazer, e eu faço.
Dar uma de babá. Ele andou falando com Jill ou com Eddie ou com ambos. Mas isso era compreensível. Ele iria querer saber se estava tudo bem com ela. Eu só podia imaginar como o meu discurso tinha sido parafraseado.
— Você já esteve na faculdade — eu disse, ao me lembrar dos registros dele. Eu os tinha examinado quando montei seu famigerado currículo. — E largou os estudos.
Adrian concordou.
— Foi.
— Como é que vou saber que você não vai fazer a mesma coisa desta vez? Como vou saber que você não vai só desperdiçar o meu tempo de novo?
— Não tem como saber, Sage — ele reconheceu. — E eu não culpo você. Só posso pedir que me dê mais uma chance. Que tente acreditar em mim quando digo que vou fazer o que estou dizendo. Que acredite que eu estou falando sério. Que confie em mim.
Longos momentos se estenderam entre nós. Eu tinha relaxado um pouco, sem nem perceber, apesar de continuar contra a parede. Eu o examinei, desejando que fosse melhor em desvendar as pessoas. Os olhos dele eram verdes daquele jeito na realidade, concluí. Era só que eu não costumava olhar para eles com tanta atenção.
— Certo — eu disse. — Eu confio em você.
Uma expressão chocada tomou suas feições.
— É sério?
Eu não era melhor em desvendar as pessoas do que tinha sido dez segundos antes, mas, naquele momento, de repente tive um insight sobre o mistério que era Adrian Ivashkov. As pessoas não acreditavam nele com muita frequência. Todos tinham baixas expectativas em relação a ele, por isso ele agia da mesma forma. Até Eddie de certa forma o desprezava: “Ele é o Adrian”. Como se não houvesse nada a se fazer a respeito disso.
Também percebi de repente que, por mais improvável que fosse, Adrian e eu tínhamos muito em comum. Nós dois vivíamos tolhidos pelas expectativas dos outros. Não fazia diferença se as pessoas esperavam tudo de mim e nada dele. Nós continuávamos iguais, ambos sempre tentando fugir dos limites que os outros tinham definido para nós e sermos donos do próprio nariz. Adrian Ivashkov — vampiro baladeiro e irreverente — era mais parecido comigo do que qualquer outra pessoa que eu conhecia. A ideia era tão surpreendente que eu nem consegui responder na hora.
— Confio — eu disse finalmente. — Vou ajudar você. — Estremeci. O medo do sonho tinha voltado, e eu só queria que aquilo terminasse. Teria concordado com qualquer coisa para retornar à minha cama nada sobrenatural. — Mas não aqui. Por favor... pode me mandar de volta? Ou acabar com isso? Ou seja lá o que você tem de fazer?
Ele assentiu devagar, ainda com a expressão em choque. A sala começou a desaparecer, suas cores e linhas se derreteram como uma pintura deixada na sala. Logo tudo ficou preto, e eu me vi acordando na cama do dormitório. Quando isso aconteceu, mal escutei o som da voz dele na minha mente:
Obrigado, Sage.
19
Se eu estava com dificuldades para dormir antes, o sonho de Adrian só serviu para piorar as coisas. Apesar de estar de volta à minha própria cama, em segurança, eu não conseguia me livrar da sensação de que tinha sido invadida. Imaginei que a minha pele estivesse toda arrepiada com a mácula da magia. Fiquei tão ansiosa para sair do sonho que não me dei conta direito do que eu tinha concordado em fazer. Eu respeitava o desejo de Adrian de ir para a faculdade, mas agora ficava imaginando se realmente devia ajudar, depois de receber a bronca do meu pai por ser “simpática” com vampiros.
Eu não estava no melhor dos humores quando finalmente me levantei, algumas horas mais tarde. A tensão no nosso quarto era pesada enquanto Jill e eu nos preparávamos para as aulas. A atitude de desafio de Jill da noite anterior não estava mais lá, e ela ficava me observando, nervosa, quando achava que eu não estava prestando atenção. No começo, achei que a minha explosão da noite anterior a tivesse deixado sem jeito. Mas, quando saímos do quarto para tomar café da manhã, percebi que não era só isso.
— O que foi? — perguntei sem rodeios, finalmente rompendo o silêncio. — O que você quer me perguntar?
Jill me olhou de soslaio mais uma vez quando nos juntamos ao fluxo das meninas que desciam a escada.
— Hum, aconteceu uma coisa ontem.
Muitas coisas aconteceram ontem, pensei. Esse era o meu eu exausto e amargo falando, e sabia que não era isso que ela queria dizer.
— O quê? — perguntei.
— Bom... eu estava começando a contar para você que Lee me levou àquela loja. A loja de roupas cuja dona ele conhece, sabe? O nome dela é Lia DiStefano. Nós conversamos, e ela, hum, me ofereceu um trabalho. Mais ou menos.
— O trabalho de modelo? — Nós chegamos à fila da comida no refeitório, apesar de eu estar sem apetite. Escolhi um iogurte, que parecia triste e sozinho no meio da minha bandeja vazia. — Nós já conversamos sobre isso. Não é seguro.
Ainda assim, era irônico o fato de uma visita aleatória ter rendido um emprego para Jill, ao mesmo tempo que três entrevistas formais não adiantaram nada para Adrian.
— Mas não é para fotos posadas que seriam publicadas em uma revista ou algo assim. É um desfile de estilistas locais. Nós contamos a ela uma história de que fazemos parte de uma religião que tem restrições a respeito de fotos e identidade. Lia disse que, na verdade, estava pensando em fazer as modelos usarem meia-máscara. Sabe, aquele tipo que se usa em bailes mascarados? Considerando isso, a iluminação e o movimento... bom, vai ser difícil me identificar se alguma foto for divulgada. É um evento único, mas eu teria que ir lá antes para as provas de roupas... e para ensaiar. Ela também iria me pagar, mas preciso de carona e permissão dos pais.
Nós nos sentamos e eu passei uma quantidade de tempo desnecessária mexendo o meu iogurte enquanto refletia sobre as palavras dela. Dava para sentir seu olhar em cima de mim enquanto eu pensava.
Como eu não respondi nada, ela prosseguiu:
— Acho que é meio bobo. Quer dizer, eu não tenho nenhuma experiência. E eu nem sei por que ela quer que eu participe. Talvez esteja procurando alguma coisa específica. Modelos bizarras ou algo assim.
Finalmente comi uma colherada de iogurte e então ergui os olhos para ela.
— Você não é bizarra, Jill. Você tem o tipo físico ideal para ser modelo. Isso é difícil de encontrar. Entre os humanos, pelo menos. — Tentei não pensar em como era difícil para nós, humanos, atingir a perfeição dos Moroi. Tentei não pensar sobre como, anos antes, meu pai tinha criticado a minha silhueta e dito: “Se aqueles monstros conseguem, como é que você não consegue?”.
— Mas você acha que é uma péssima ideia — ela disse.
Não respondi. Eu sabia o que Jill queria, mas ela não conseguia me pedir diretamente. E eu ainda não podia entregar isso a ela com facilidade. Ainda estava perturbada demais com o que tinha acontecido no dia anterior, e não estava inclinada a fazer nenhum favor. Por outro lado, eu também não podia dizer “não” a ela. Não por enquanto. Apesar da maneira irresponsável como ela tinha agido, suas palavras a respeito de como a vida dela era triste tinham me atingido profundamente. Aquilo era algo positivo e bom que preencheria seu tempo. Também era uma inflada no ego de que ela estava precisando muito. Laurel tinha deitado e rolado usando os traços incomuns de Jill contra ela; seria bom se ela visse que outras pessoas os viam de maneira positiva. Ela precisava se dar conta de que era especial e maravilhosa. Não sabia se devia xingar ou agradecer Lee por aquela oportunidade.
— Acho que não podemos decidir nada até conversarmos com a sra. Weathers — finalmente disse a ela. Dei uma olhada em um relógio próximo. — Aliás, precisamos falar com ela agora.
Dei mais algumas colheradas no iogurte antes de jogar fora. Jill pegou uma rosquinha para viagem. Quando voltamos ao saguão do alojamento, descobrimos que havia chegado uma encomenda para Jill: um buquê de rosas vermelhas perfeitas e um bilhete de desculpa de Lee. Jill se derreteu toda, seu rosto se enchendo de adoração com o gesto. Até eu admirei aquele gesto romântico, apesar de uma parte sarcástica de mim dizer que Lee devia ter mandado flores para mim e Eddie, e não para ela. Ele precisava pedir desculpas para nós. De todo modo, as flores logo foram esquecidas quando nos acomodamos na sala da sra. Weathers e descobrimos qual seria o veredicto para Jill.
— Conversei com o diretor. Você não vai ser suspensa — ela disse a Jill. — Mas, durante o próximo mês, ficará restrita ao seu dormitório quando não estiver em aula. Deve se apresentar imediatamente a mim depois do fim das aulas, para eu saber que está aqui. Pode ir ao refeitório durante as refeições... mas só ao do seu alojamento. Não pode ir ao do campus oeste. As únicas exceções a esta regra são no caso de uma tarefa ou um professor exigir que você vá a algum outro lugar fora do horário de aulas, como a biblioteca.
Nós duas assentimos e, por um instante, fiquei simplesmente aliviada por Jill não ter sido expulsa ou algo do tipo. Então o problema real me ocorreu como um tapa na cara. Eu tinha dito a Jill que aquela reunião iria surtir efeito sobre qualquer decisão relativa ao trabalho de modelo, mas havia algo muito pior em jogo.
— Se ela estiver de castigo no dormitório, então não pode sair da escola — eu disse.
A sra. Weathers me lançou um sorriso seco.
— Sim, srta. Melrose. Geralmente é isso que “estar de castigo” significa.
— Ela precisa sair, senhora — argumentei. — Nós temos reuniões de família duas vezes por semana. — O ideal era que fosse mais vezes do que isso, mas eu tinha esperanças de que um número baixo pudesse comprar a nossa liberdade. Era absolutamente essencial que Jill obtivesse sangue, e dois dias por semana era mais ou menos o mínimo com o qual um vampiro era capaz de sobreviver.
— Sinto muito. Regras são regras e, ao desrespeitá-las, sua irmã perdeu o privilégio de participar de atividades assim.
— Os encontros são religiosos — eu disse. Detestava jogar com a carta da religião, mas aquilo era algo que a escola teria dificuldade em recusar. E, bom, parecia ter funcionado com a estilista. — Nós vamos à igreja em família nesses dias... nós e nossos irmãos.
O rosto da sra. Weathers revelava que eu tinha ganhado terreno.
— Vamos precisar de uma carta assinada pelos pais de vocês — ela finalmente disse.
Maravilha. Afinal, isso tinha funcionado tão bem na educação física...
— Mas e o nosso irmão? Ele é o nosso guardião legal aqui. — Era certeza que, naquele caso, nem Keith poderia enrolar, não quando a questão era sangue.
Ela refletiu sobre o assunto.
— Sim. Isso pode ser aceitável.
— Sinto muito — disse a Jill quando saímos para tomar o ônibus. — Sobre o trabalho de modelo. Já vai ser bem difícil conseguir fazer você sair para os fornecimentos.
Jill assentiu, esforçando-se para esconder a decepção.
— Quando é o desfile? — perguntei, achando que talvez ela pudesse participar depois que o castigo tivesse terminado.
— Daqui a duas semanas.
Que ideia mais furada.
— Sinto muito.
Para a minha surpresa, Jill chegou a dar risada.
— Você não tem motivo para sentir muito. Não depois do que eu fiz. Eu é que tenho de sentir muito. E também sinto muito por Adrian... pelas entrevistas.
— Isso é algo pelo qual você não tem que se desculpar.
Mais uma vez, fiquei impressionada de ver como todo mundo ficava se desculpando em nome dele com tanta facilidade. Ela comprovou essa teoria com seu próximo comentário.
— Ele não pode fazer nada. Ele é assim.
Mas ele pode fazer alguma coisa, sim, pensei. Em vez disso, disse:
— Aguente firme, certo? Vou pedir a Keith para assinar a sua liberação religiosa.
Ela sorriu.
— Obrigada, Sydney.
Nós costumávamos nos separar quando o ônibus chegava ao campus central, mas ela hesitou quando descemos. Mais uma vez, pude ver que ela queria me contar alguma coisa, mas estava com dificuldade de juntar coragem para isso.
— O que foi? — eu perguntei.
— Eu... só queria dizer a você que sinto muito, de verdade, por dar tanto trabalho. Você faz muito por nós. De verdade. E se está aborrecida, é porque... bom, eu sei que se importa conosco. E isso é mais do que posso dizer de algumas pessoas da corte.
— Isso não é verdade — eu disse. — As pessoas lá se importam. Elas tiveram muita dificuldade para mandar você para cá, para que pudesse ficar a salvo.
— Eu continuo achando que foi mais por Lissa do que por mim — ela disse, tristonha. — E a minha mãe não demonstrou muita oposição quando disseram que iam me mandar para longe.
— Querem que você fique em segurança — disse a ela. — Isso significa fazer escolhas difíceis... que são difíceis para eles também.
Jill assentiu, mas não sei se acreditou em mim. Fiz o relatório da manhã a Eddie quando cheguei à aula de história. O rosto dele exibiu toda uma gama de emoções a cada novo avanço da história.
— Você acha que Keith vai assinar a autorização? — ele perguntou em voz baixa.
— Ele tem que assinar. A questão toda de estarmos aqui é para mantê-la viva. Se ela morrer de fome, meio que vai contra o propósito principal.
Nem me dei ao trabalho de dizer a Eddie que estava encrencada com meu pai e com os alquimistas, e que havia uma grande chance de eu nem estar mais ali em duas semanas. Eddie já estava bem aborrecido com a situação de Jill, e eu não queria que ele tivesse mais uma coisa com que se preocupar.
Quando me encontrei com a sra. Terwilliger no final do dia, entreguei as últimas anotações dos livros antigos que tinha feito para ela. Quando estava me acomodando em uma carteira, reparei em uma pasta de artigos em cima de uma mesa. As palavras Faculdade Carlton estavam gravadas na pasta em letras douradas. Então me lembrei por que achei o nome familiar quando Adrian o tinha mencionado no sonho.
— Sra. Terwilliger... Por acaso disse que conhecia alguém na Faculdade Carlton?
Ela ergueu os olhos do computador.
— Humm? Ah, conheço, sim. Jogo pôquer com metade do corpo docente de história. Até dou aula lá no verão. De história, quer dizer, não de pôquer.
— Será que conhece alguém responsável pelas admissões de novos alunos? — perguntei.
— Não exatamente. Suponho que eu conheça pessoas que conhecem as pessoas que trabalham com isso lá. — Ela retornou a atenção para a tela. Não disse nada e, depois de vários minutos, ela voltou a olhar para mim. — Por que está perguntando?
— Por nada.
— Claro que há uma razão. Está interessada em estudar lá? Deus sabe que ia aproveitar mais lá do que aqui. Claro que a minha aula é exceção.
— Não, senhora — respondi. — Mas o meu irmão queria estudar lá. Ele ouviu dizer que as aulas ainda não começaram, mas não tem certeza se pode ser aceito assim de última hora.
— É muito de última hora — a sra. Terwilliger concordou. Ela me avaliou com muita atenção. — Quer que eu dê uma perguntada?
— Ah. Ah não, senhora. Só queria ver se conseguia uns nomes para entrar em contato. Jamais pediria para a senhora fazer algo assim.
As sobrancelhas dela se ergueram.
— Por que não?
Não sabia o que responder. Às vezes era tão difícil entendê-la...
— Porque... a senhora não tem por que fazer isso.
— Eu faria como favor a você.
Não consegui dizer nada diante daquilo e só fiquei olhando para ela. Ela sorriu e ajeitou os óculos em cima do nariz.
— Você não consegue acreditar nisso, certo? Que alguém possa fazer um favor para você.
— Eu... bom, quer dizer... — minha voz foi sumindo, não sabia bem o que dizer. — A senhora é minha professora. O seu trabalho é, bom, me ensinar. Só isso.
— E o seu trabalho — ela disse — é vir até esta sala durante o último período para cumprir qualquer tarefa rotineira que eu tenha para você, e depois entregar um trabalho no fim do semestre. Você não é obrigada, de maneira nenhuma, a buscar café para mim, vir me atender tarde da noite, organizar a minha vida, ou ter que reordenar a sua completamente para cumprir os meus pedidos ridículos.
— Eu... não me incomodo — respondi. — E tudo isso precisa ser feito.
Ela deu risada.
— É verdade. E você insiste em fazer muito mais e além das suas tarefas, não é mesmo? Por mais inconveniente que seja para você.
Dei de ombros.
— Eu gosto de fazer um bom trabalho, senhora.
— Você faz um trabalho excelente. Muito melhor do que precisa fazer. E ainda faz sem reclamar. Portanto, o mínimo que eu posso fazer é dar alguns telefonemas para ajudá-la. — Ela deu risada mais uma vez. — Isso é o que mais assusta você, não é? Receber elogios.
— Ah, não — respondi, sem jeito. — Quer dizer, acontece.
Ela tirou os óculos para me observar com mais atenção. A risada tinha desaparecido.
— Não, estou achando que não acontece. Não conheço a sua situação específica, mas já conheci muitos alunos como você... alunos que os pais despacharam desta maneira. Ao mesmo tempo que aprecio a preocupação pela educação superior, cada vez mais vejo que uma parcela muito grande de alunos estuda aqui porque seus pais simplesmente não têm tempo nem inclinação para se envolver... ou simplesmente para prestar atenção à vida dos filhos.
Estávamos lidando com uma daquelas áreas interpessoais que me deixavam constrangida, especialmente por haver um elemento de verdade inesperado ali.
— É mais complicado do que isso, senhora.
— Tenho certeza que sim — ela respondeu. Sua expressão ganhou sagacidade e ela ficou bem diferente da professora estabanada que eu conhecia. — Mas escute o que eu digo. Você é uma garota excepcional, talentosa e brilhante. Nunca deixe que ninguém a faça sentir inferior. Nunca deixe que ninguém faça com que você se sinta invisível. Não permita que ninguém... nem mesmo uma professora que a manda buscar café o tempo todo... mande em você. — Ela voltou a colocar os óculos e começou a erguer pedaços de papel aleatórios. Finalmente, encontrou uma caneta e deu um sorriso de triunfo. — Então, pronto. Qual é o nome do seu irmão?
— Adrian, senhora.
— Certo. — Ela pegou um pedaço de papel e escreveu o nome com cuidado. — Adrian Melbourne.
— Melrose, senhora.
— Correto. Claro. — Ela rabiscou o erro e balbuciou para si mesma: — Ainda bem que o primeiro nome dele não é Hobart. — Quando terminou, se recostou na cadeira com um gesto casual. — Agora que você falou nisso, tem uma coisa que quero que faça.
— É só dizer — respondi.
— Quero que você faça um dos feitiços daquele primeiro livro.
— Desculpe. Disse para eu fazer um feitiço?
A sra. Terwilliger acenou com a mão.
— Ah, não se preocupe. Não estou pedindo para você abanar uma varinha nem fazer um sacrifício com animal. Mas estou enormemente intrigada pela complexidade de algumas das fórmulas e dos passos dos feitiços. Preciso me perguntar se as pessoas de fato seguiam essas instruções assim tão detalhadas. Algumas delas são bem complicadas.
— Eu sei — respondi, seca. — Digitei todas elas.
— Exatamente. Então, quero que faça um. Siga os passos. Veja quanto tempo demora. Veja se as medidas pedidas chegam a ser possíveis. Depois escreva os dados em um relatório. Nessa parte, sei que você é excelente.
Não sabia o que dizer. A sra. Terwilliger não estava pedindo que eu realmente usasse magia, certamente não da mesma maneira que os vampiros usavam. Algo daquele jeito nem seria possível. Magia não era o campo dos humanos. Era antinatural e ia contra as leis do universo. Aquilo que os alquimistas faziam tinha base na ciência e na química. As tatuagens tinham magia, mas era a magia dos vampiros moldada de acordo com a nossa vontade — não a usávamos por nossa conta. O mais perto que chegávamos de qualquer coisa sobrenatural eram as bênçãos que invocávamos para nossas poções. Ela só estava me pedindo para recriar um feitiço. Não era real. Não havia mal nenhum. E, no entanto... por que eu me sentia tão sem jeito? Eu me sentia como se ela estivesse me pedindo para mentir ou roubar.
— Qual é o problema? — ela perguntou.
Por um momento, pensei em usar a religião mais uma vez, mas então desisti. Aquela desculpa já tinha sido usada vezes demais naquele dia, apesar de dessa vez ser parcialmente legítima.
— Nada, senhora. É só que parece estranho.
Ela pegou o primeiro livro de couro e abriu na metade.
— Pronto. Faça este aqui... um amuleto de incineração. É complicado, mas pelo menos você terá um projeto de artesanato quando terminar. Também deve ser fácil encontrar a maior parte desses ingredientes.
Peguei o livro dela e o examinei.
— Onde vou arrumar urtiga?
— Pergunte ao sr. Carnes. Ele tem um jardim do lado de fora da classe dele. Tenho certeza de que vai poder comprar o resto. E, sabe como é, você pode me trazer as notas fiscais. Eu pago sempre que peço para você comprar algo. Já deve ter gastado uma fortuna em café.
Eu me senti um pouco melhor quando vi como os ingredientes eram aleatórios. Urtiga. Ágata. Um pedaço de seda. Não tinha nada inflamável. Aquilo era bobagem. Assenti com a cabeça e disse a ela que iria começar no dia seguinte.
Nesse ínterim, digitei uma carta para Amberwood em nome de Keith. Explicava que as nossas crenças religiosas exigiam a presença da família na igreja duas vezes por semana e que Jill precisava receber licença de seu castigo nessas ocasiões. Também prometia que Jill iria se apresentar à sra. Weathers antes e depois das saídas familiares. Quando terminei, fiquei bem satisfeita com o meu trabalho e senti que tinha feito Keith parecer bem mais eloquente do que merecia.
Liguei para ele quando as aulas terminaram e fiz um resumo breve do que tinha acontecido com Jill. Naturalmente, ele jogou a culpa em mim.
— Você tem que ficar de olho nela, Sydney! — Keith exclamou.
— Também devo ficar aqui disfarçada de aluna, e não posso ficar com ela todos os segundos do dia.
Não valia a pena mencionar que eu, na verdade, tinha saído com Adrian quando Jill fugiu — não que Keith pudesse fazer algo contra mim. Ele já tinha causado seu dano.
— E, assim, eu é que tenho que sofrer as consequências — ele disse em um tom de voz exausto. — Eu é que fico malvisto por causa da sua incompetência.
— Malvisto? Você não tem que fazer nada além de assinar a carta que eu escrevi para você. Está em casa agora? Ou vai chegar logo? Vou até aí levar para você.
Como ele tinha se aborrecido com a questão, achei que ficaria todo contente com a oferta. Por isso, foi uma surpresa quando ele respondeu:
— Não, não precisa fazer isso. Vou me encontrar com você.
— Não tem problema. Posso chegar à sua casa em menos de dez minutos. — Eu não queria que ele tivesse mais um motivo para continuar com a ladainha de que eu estava dando trabalho, ou para reclamar com os alquimistas.
— Não — Keith disse, com uma intensidade surpreendente. — Vou me encontrar com você. Estou saindo agora mesmo. Nos encontramos na secretaria?
— Certo — eu disse, totalmente confusa com a mudança de atitude dele. Será que ele queria vir conferir as coisas ou algo do tipo? Exigir uma inspeção? — A gente se vê daqui a pouco.
Eu já estava no campus central, então cheguei à secretaria bem rápido. Fiquei sentada do lado de fora, em um banco de pedra esculpido que me dava uma boa visão do estacionamento de visitantes, e esperei. Fazia calor ao ar livre, como sempre, mas a sombra era bem agradável. O banco ficava em um espaço bem gostoso, cheio de plantas floridas e uma placa que dizia Memorial Kelly Hayes. Parecia nova.
— Oi, Sydney!
Kristin e Julia estavam saindo do prédio e acenaram para mim. Elas se aproximaram e se sentaram ao meu lado para perguntar o que eu estava fazendo.
— Estou esperando o meu irmão.
— Ele é bonito? — Kristin perguntou, cheia de esperança.
— Não — respondi. — De jeito nenhum.
— É, sim — Julia retrucou. — Eu o vi no alojamento no fim de semana passado. Quando vocês todos saíram para almoçar.
Demorei um segundo para perceber que ela estava falando de Adrian.
— Ah. É outro irmão. Eles não são muito parecidos.
— É verdade que a sua irmã se meteu na maior confusão? — Julia perguntou.
Dei de ombros.
— Só um pouco. Ela não pode sair do campus, a não ser para coisas de família. Podia ser pior. Mas... custou a ela um trabalho de modelo, então ela está triste por isso.
— Ela ia trabalhar de modelo para quem? — Kristin perguntou.
Eu me esforcei para lembrar.
— Lia DiStefano. Haverá um desfile daqui a duas semanas, e ela queria que Jill participasse. Mas ela não pode ensaiar porque tem que ficar aqui.
Os olhos delas se arregalaram.
— As roupas da Lia são fantásticas! — Julia disse. — Jill tem que participar. Ela pode ganhar coisas grátis.
— Eu já disse. Ela não vai poder desfilar.
Kristin deixou a cabeça pender para o lado, pensativa.
— Mas e se fosse para a escola? Tipo uma coisa de carreira, vocacional? — Ela se virou para Julia. — O clube de costura ainda existe?
— Acho que sim — Julia respondeu, assentindo toda animada. — Que boa ideia. Jill tem alguma atividade? — Além de um esporte, Amberwood também exigia que seus alunos participassem de atividades extracurriculares para que sua educação fosse completa. — Tem um clube de costura para o qual ela poderia entrar... e aposto que ela consegue fazer com que o trabalho com Lia conte como algum tipo de pesquisa especial.
Ao tentar consertar um fio solto em seu cardigã outro dia, Jill quase desfiou a peça toda.
— Não acho que Jill leve jeito para isso.
— Não faz mal — Kristin disse. — A maior parte das pessoas que está lá nem sabe costurar. Mas, todos os anos, o clube faz trabalho voluntário com os estilistas locais. A srta. Yamani sem dúvida iria permitir que a participação em um desfile contasse como trabalho voluntário. Ela adora Lia DiStefano.
— E deixariam ela participar de qualquer jeito — Julia disse com expressão triunfante. — Porque seria para a escola.
— Interessante — eu disse, imaginando se havia alguma chance de dar certo. — Vou dizer a Jill. — Um carro azul conhecido encostou na entrada e me levantei. — Ele chegou.
Keith estacionou, saiu do carro e ficou olhando ao redor, à minha procura. Kristin soltou um som baixinho de aprovação.
— Ele não é nada mal.
— Pode acreditar — eu disse, e fui em direção ao carro. — Você não vai querer se meter com ele.
Keith lançou para as meninas algo que supostamente devia ser um sorriso encantador e até piscou para elas. No instante em que elas se foram, o sorriso dele desapareceu. A impaciência irradiava dele, e era surpreendente o fato de ele não estar batendo o pé no chão.
— Vamos andar logo com isto — ele disse.
— Se está com tanta pressa, devia ter me deixado ir até o seu apartamento quando tivesse mais tempo.
Peguei a pasta que continha a carta e entreguei para ele com uma caneta. Keith assinou sem nem olhar e devolveu.
— Precisa de mais alguma coisa? — ele perguntou.
— Não.
— Não arrume mais nenhuma confusão — ele disse e abriu a porta do carro. — Não tenho tempo para ficar consertando os seus erros.
— E faz diferença? — eu o desafiei. — Você já fez tudo que pôde para se livrar de mim.
Ele me lançou um sorriso frio.
— Você não devia ter tentado me sacanear. Nem agora, nem daquela vez.
Com uma piscadela, ele deu meia-volta para ir embora. Fiquei só encarando, sem conseguir acreditar em sua audácia. Era a primeira vez que ele fazia referência ao que tinha acontecido tantos anos antes.
— Bom, essa é a questão — gritei para a silhueta que se afastava. — Eu não consegui sacanear com você daquela vez. Você se safou com facilidade. Não vai acontecer de novo. Acha que estou preocupada com você? Você é que devia ficar com medo de mim.
Keith parou e se virou devagar para mim, com o rosto inundado de descrença. Eu não o culpava. Eu mesma fiquei um pouco surpresa. Não me lembrava de nenhuma vez em que tivesse desafiado de maneira tão escancarada alguém que ocupava uma posição hierárquica mais elevada; e certamente não alguém que tinha tanto poder de afetar a minha situação.
— Tome cuidado — ele disse finalmente. — Posso tornar a sua vida bem difícil.
Lancei um sorriso gélido para ele.
— Isso você já fez, e é por isso que a vantagem é minha. Você já fez a pior coisa possível... mas ainda não viu tudo que eu sou capaz de fazer.
Foi um blefe enorme da minha parte, principalmente porque eu tinha quase certeza de que ele ainda podia fazer coisa pior. Até onde eu sabia, ele podia fazer com que Zoe fosse para lá amanhã. Ele podia fazer com que me mandassem para um centro de reeducação em um piscar de olhos.
Mas, se eu caísse... ele cairia comigo.
Ele ficou me encarando por alguns instantes, sem saber o que fazer. Não sei se realmente o assustei ou se ele resolveu não se dignar a me dar uma resposta, mas finalmente ele se virou e foi embora de vez. Furiosa, entrei para entregar a carta na secretaria. A secretária da recepção, a sra. Dawson, carimbou e fez uma cópia para eu entregar à sra. Weathers. Quando ela me entregou o papel, perguntei:
— Quem é Kelly Hayes?
O rosto da sra. Dawson, normalmente cheio de covinhas, murchou.
— Coitadinha. Ela foi aluna aqui há alguns anos.
Minha memória deu um estalo.
— Foi ela que a sra. Weathers mencionou? A garota que desapareceu?
A sra. Dawson assentiu.
— Foi terrível. Ela também era tão doce... Tão jovem... Ela não merecia morrer daquele jeito. Não merecia morrer, de jeito nenhum.
Detestava ter que perguntar, mas era necessário.
— Como ela morreu? Quer dizer, eu sei que foi assassinada, mas nunca soube dos detalhes.
— Provavelmente é melhor assim. Foi tudo bem horrível. — A sra. Dawson deu uma olhada ao redor, como se estivesse com medo de se meter em confusão por fazer fofoca com uma aluna. Ela se debruçou por cima do balcão, na minha direção, com o rosto sério. — A coitadinha sangrou até morrer. Cortaram a garganta dela.
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Quase perguntei: “Está falando sério?”. Mas, vamos encarar: ela provavelmente não brincaria com aquele tipo de coisa, principalmente levando em conta como seu rosto estava sério. Outras perguntas surgiram na minha mente, mas as guardei para mim também. Elas não eram assim tão estranhas, mas não queria chamar a atenção por demonstrar um interesse fora do comum por um assassinato terrível. Em vez disso, apenas agradeci à sra. Dawson pela ajuda com a carta e voltei para o campus leste.
A sra. Weathers estava em sua mesa quando entrei no alojamento. Entreguei a carta e ela a leu duas vezes antes de guardar em seu arquivo.
— Certo — ela disse. — Apenas garanta que a sua irmã assine a lista quando sair e quando voltar, todas as vezes.
— Pode deixar, senhora. Obrigada. — Hesitei, sem saber se ia embora ou se fazia as perguntas que a informação dada pela sra. Dawson tinha suscitado. Resolvi ficar. — Sra. Weathers... desde o desaparecimento de Jill, fico pensando sobre aquela garota de quem a senhora me falou. A que morreu. Fico pensando que podia ter sido Jill.
O rosto da sra. Weathers se suavizou.
— Está tudo bem com Jill. Eu não devia ter lhe contado isso. Não era minha intenção assustá-la.
— É verdade que cortaram a garganta da garota?
— É, sim — ela sacudiu a cabeça, tristonha. — Terrível, simplesmente terrível. Não sei quem faz uma coisa dessas.
— Chegaram a descobrir o que aconteceu? Quer dizer, havia algo fora do comum a respeito dela?
— Fora do comum? Não, na verdade, não. Quer dizer, era uma garota adorável. Inteligente, bonita, popular. Era boa... não, ótima atleta. Tinha amigos, namorado. Mas nada que a fizesse se destacar especialmente como alvo. Claro que as pessoas que fazem coisas horríveis assim provavelmente não precisam de motivos.
— É verdade — murmurei.
Fui até o meu quarto desejando que a sra. Weathers tivesse descrito um pouco mais a beleza de Kelly. Na verdade, queria saber se Kelly era Moroi. Se fosse, tinha esperança de que a sra. Weathers talvez comentasse sobre como era alta ou pálida. De acordo com os relatos de Clarence e dos alquimistas, não havia nos registros nenhum Moroi que tivesse morado na área de Palm Springs. Mas isso não significava que alguém não pudesse ter passado despercebido. Teria que encontrar a resposta sozinha. Se Kelly fosse mesmo Moroi, então já teríamos três garotas Moroi mortas da mesma maneira no sul da Califórnia em um período relativamente curto. Clarence podia defender sua teoria de caçadores de vampiros, mas, para mim, aquele padrão indicava claramente os Strigoi.
Jill estava no quarto, cumprindo seu castigo. Quanto mais o tempo passava, menos me sentia irritada com ela. Ter acertado a questão do fornecimento ajudou. Ficaria muito mais aborrecida se não pudesse tirá-la do campus.
— Qual é o problema? — ela ergueu os olhos do laptop e perguntou.
— Por que você acha que há algum problema?
Ela sorriu.
— Você está com aquela cara. É uma ruguinha que aparece entre as suas sobrancelhas quando está tentando decifrar alguma coisa.
Sacudi a cabeça.
— Não é nada.
— Sabe — ela falou —, talvez todas essas responsabilidades que você tem não seriam tão ruins se você conversasse sobre elas e deixasse outras pessoas ajudarem.
— Não é bem assim. É só algo que estou tentando desvendar.
— Conte o que é — ela ofereceu. — Pode confiar em mim.
Não era uma questão de confiança. Era uma questão de deixá-la preocupada sem necessidade. A sra. Weathers tinha medo de me assustar, mas se havia mesmo alguém matando garotas Moroi, não era eu que estava em perigo. Olhei para Jill e para seu olhar determinado e cheguei à conclusão de que, se ela era capaz de viver com o fato de que seu próprio povo estava tentando matá-la, seria capaz de lidar com aquilo. Apresentei a ela um resumo breve do que eu sabia.
— Mas você não sabe se Kelly era Moroi — ela disse, quando terminei.
— Não. Essa é a questão central — me sentei de pernas cruzadas na cama com o laptop. — Vou conferir os nossos registros e os jornais locais para ver se encontro alguma foto dela. A única informação que a sra. Weathers me deu é que ela era uma ótima atleta.
— O que pode significar que ela não era Moroi — Jill disse. — Quer dizer, veja como o meu desempenho no sol é horrível. E se ela não fosse? Suas teorias dependem do fato de ela ser Moroi. Mas e se ela fosse humana? E daí? Podemos ignorar? Ainda pode ser a mesma pessoa... mas o que significaria se o assassino tivesse matado duas Moroi e uma humana?
Jill tinha razão.
— Não sei — respondi.
A minha pesquisa não demorou muito. Os alquimistas não tinham registro do assassinato, mas, bom, não teriam mesmo se Kelly fosse humana. Muitos jornais traziam reportagens a respeito dela, mas não encontrei nenhuma foto.
— E que tal um anuário da escola? — Jill perguntou. — Alguém deve ter um por aí.
— Na verdade, essa é uma ideia excelente — eu disse.
— Está vendo? Eu disse para você que sou útil.
Sorri para ela e então me lembrei de algo.
— Ah, tenho boas notícias para você. Talvez.
Fiz um resumo rápido do “plano” de Kristin e Julia sobre ela entrar para o clube de costura.
Jill se alegrou, mas de maneira cautelosa.
— Você acha mesmo que pode dar certo?
— Só tem um jeito de descobrir.
— Nunca toquei em uma máquina de costura na vida — ela disse.
— Acho que é a sua oportunidade de aprender — disse a ela. — Ou talvez as outras garotas já fiquem felizes por ter você por perto como a modelo da turma.
Jill deu uma risadinha.
— Como você sabe que só meninas se inscrevem nisso?
— Não sei — reconheci. — Só estou me atendo aos estereótipos de gênero, acho.
Meu telefone tocou e o número da sra. Terwilliger piscou na tela. Atendi e já me preparei para buscar café.
— Srta. Melbourne? — ela disse. — Se você e o seu irmão puderem ir até a Carlton daqui a uma hora no máximo, poderão falar com alguém na secretaria de admissões antes que feche. Vocês conseguem?
Dei uma espiada no relógio e imaginei que Adrian não devia estar fazendo nada de importante.
— Hum, conseguimos. Conseguimos, sim, senhora, com certeza. Obrigada. Muito obrigada mesmo.
— O homem com quem vocês devem falar se chama Wes Regan. — Ela fez uma pausa. — E será que pode me trazer um cappuccino quando voltar?
Garanti a ela que sim e então liguei para Adrian e dei instruções para que se aprontasse e me esperasse. Com rapidez, tirei o uniforme e vesti uma blusa e saia até os joelhos. Dei uma olhada no meu reflexo e percebi que ele tinha razão. Realmente, não havia muita diferença entre as roupas de Amberwood e o meu guarda-roupa normal.
— Queria poder ir junto — Jill disse, esperançosa. — Gostaria de ver Adrian de novo.
— Mas você não o vê todos os dias, de certa forma?
— É verdade — respondeu. — Mas eu ainda não consigo entrar na cabeça dele quando quero. Só acontece de um jeito aleatório. E, de todo modo, não é a mesma coisa. Ele não pode me responder por meio do laço.
Quase respondi que aquilo parecia melhor do que estar perto dele pessoalmente, mas achei que não iria ajudar em nada.
Adrian estava pronto para sair quando cheguei à casa de Clarence, animado e ávido por ação.
— Você não encontrou com o seu amigo por pouco — ele disse ao entrar no Pingado.
— Quem?
— Keith.
Fiz uma careta
— Ele não é meu amigo, na verdade.
— Ah, jura? A maioria de nós percebeu isso no primeiro dia, Sage.
Eu me senti um pouco mal com isso. Uma parte de mim sabia que eu não devia permitir que os meus sentimentos pessoais em relação a Keith se misturassem com o trabalho. Nós éramos mais ou menos colegas, e devíamos nos manter como uma equipe unida e profissional. Ao mesmo tempo, estava meio feliz por essas pessoas — apesar de serem vampiros e dampiros — não acharem que eu era simpática com Keith. Eu não queria que eles achassem que nós tínhamos muita coisa em comum. Eu definitivamente não queria ter muito em comum com ele.
O significado completo das palavras de Adrian de repente me ocorreu.
— Espere. Ele estava aqui agora há pouco?
— Faz meia hora.
Devia ter ido para lá direto da escola. Tive sorte de não me encontrar com ele. Algo me dizia que ele não iria aprovar minha ajuda com a educação de Adrian.
— O que ele veio fazer aqui?
— Sei lá. Acho que veio ver como Clarence estava. O velho não anda se sentindo muito bem. — Adrian tirou um maço de cigarros do bolso. — Você se incomoda?
— Me incomodo, sim — respondi. — O que há de errado com Clarence?
— Não sei, mas ele anda descansando muito, e isso deixa as coisas ainda mais entediantes. Quer dizer, ele não é a melhor pessoa para se conversar, mas algumas das histórias malucas dele eram interessantes — Adrian ficou melancólico. — Principalmente com uísque.
— Mantenha-me informada sobre como ele está indo — murmurei. Fiquei imaginando se era por isso que Keith estava com tanta pressa antes. Se Clarence estivesse com alguma doença séria, nós teríamos que tomar providências junto a um médico Moroi. Isso complicaria o nosso arranjo em Palm Springs porque ou íamos ter que transferir Clarence para outro lugar, ou trazer alguém para cá. Se Keith estivesse trabalhando nisso, então não precisava me preocupar... mas eu simplesmente não confiava nele para fazer um bom trabalho em relação a nada.
— Não sei como você aguenta esse cara — Adrian disse. — Eu antes achava que você era fraca e simplesmente não revidava... mas, agora, sinceramente, acho que você é bem durona. É preciso ter uma força dos infernos para não reclamar e não explodir. Eu não tenho tanto autocontrole assim.
— Você tem mais do que imagina — eu disse, um pouco sem jeito com o elogio. Eu me culpava tanto pelo que considerava falta de reação que até já tinha me ocorrido que aquilo tivesse adquirido força própria. Fiquei ainda mais surpresa de ter sido necessário que Adrian fizesse aquela observação para mim. — Eu sempre ando na linha. O meu pai, e os alquimistas, são muito rígidos em relação a obediência e a seguir as ordens dos superiores. Estou no meio de uma saia justa dupla porque estou pisando em ovos com eles, então é superimportante que eu não crie agitação.
— Por causa da Rose? — O tom dele era controlado com muito cuidado.
Assenti.
— É. O que eu fiz foi como traição aos olhos deles.
— Do jeito que você fala, parece muito sério mesmo. — Dava para ver que ele estava me examinando de canto de olho. — Valeu a pena?
— Até agora, sim. — Era fácil dizer aquilo, já que Zoe ainda não tinha sido tatuada e eu não tinha pisado em nenhum centro de reeducação. Se essas coisas mudassem, as minhas respostas poderiam ser outras. — Foi a coisa certa a fazer. Acho que justificou uma ação radical.
— Eu também desrespeitei muitas regras para ajudar Rose — ele disse com um tom de preocupação na voz. — Fiz aquilo por amor. Amor mal direcionado, mas, ainda assim, amor. Não sei se foi algo tão nobre quanto a sua motivação. Principalmente porque ela estava apaixonada por outra pessoa. A maior parte das minhas “ações dramáticas” não foi em nome de causa nenhuma. A maior parte delas foi só para irritar os meus pais.
Percebi que, na verdade, fiquei com um pouco de inveja daquilo. Eu não conseguia nem imaginar provocar em meu pai algum tipo de reação — apesar de certamente desejar isso.
— Acho que o amor é sempre uma razão nobre — disse a ele. Eu estava falando de maneira objetiva, é claro. Nunca tinha me apaixonado, então não tinha referência para avaliar. Com base no que eu tinha observado em outras pessoas, achava que devia ser algo maravilhoso... mas, por enquanto, estava ocupada demais com o trabalho para reparar naquela ausência. Eu ficava imaginando se não devia me sentir decepcionada com aquilo. — E acho que você ainda tem tempo de sobra para fazer outras coisas nobres.
Ele deu risada.
— Nunca pensei que a minha maior torcedora seria alguém que me considerava do mal e antinatural.
Então éramos dois.
Hesitante, consegui fazer uma pergunta que queimava dentro de mim.
— Você ainda ama Rose?
Além de não saber o que era estar apaixonada, também não sabia quanto tempo demorava para se recuperar do amor.
O sorriso de Adrian desapareceu. Seu olhar se voltou para dentro.
— Sim. Não. É difícil superar alguém como ela. Ela surtiu um efeito enorme sobre mim, tanto bom quanto ruim. É difícil seguir em frente. Tento não pensar muito sobre ela em termos de amor e ódio. O principal é que estou tentando tocar a minha vida. Os resultados, infelizmente, não são regulares.
Logo chegamos à faculdade. Wes Regan era um homem gordo com cabelo grisalho, que trabalhava na secretaria de matrículas de Carlton. A sra. Terwilliger tinha dado aulas particulares de graça para a sobrinha de Wes durante um verão, e Wes achava que devia um favor a ela.
— O negócio é o seguinte — ele disse quando nos acomodamos em cadeiras na frente da mesa dele. Adrian usava calça de sarja e camisa social cor de sálvia, o que teria sido um modelo ótimo para as entrevistas de emprego. Era um pouco tarde demais para isso. — Eu não posso simplesmente matricular você. Os processos de inscrição na faculdade são longos e exigem históricos escolares, e não vai ter como você conseguir isso em dois dias. O que posso fazer é admiti-lo como auditor.
— Tipo do imposto de renda? — Adrian perguntou.
— Não. Auditor ou ouvinte significa que você frequenta as aulas e faz as lições, mas não recebe nota.
Adrian abriu a boca para falar, e só fiquei imaginando que tipo de comentário ele teria a respeito de estudar sem receber crédito. Eu me apressei em interrompê-lo.
— E depois, o que acontece?
— Depois, se você conseguir cumprir o processo de admissão, em, digamos, uma ou duas semanas, e se for aceito, posso mudar a sua situação para a de aluno.
— E o auxílio financeiro? — Adrian se inclinou para a frente e perguntou. — É possível obter algum dinheiro para isso?
— Se você se qualificar, sim — Wes respondeu. — Mas você só pode entrar com o pedido depois que for aceito.
Adrian largou o corpo na cadeira e eu fui capaz de adivinhar seus pensamentos. Se a matrícula ia demorar umas duas semanas, sem dúvida haveria atraso no pedido de auxílio também. Adrian iria ter que passar pelos menos mais um mês morando com Clarence, e esse provavelmente era um prazo otimista. Fiquei esperando que Adrian se levantasse e colocasse tudo a perder. Em vez disso, uma expressão de resolução tomou conta de seu rosto. Ele concordou.
— Certo. Vamos começar com esse negócio de ouvinte.
Fiquei impressionada.
Também fiquei com inveja quando Wes trouxe o catálogo de cursos. Tinha conseguido me convencer a ficar contente com as aulas de Amberwood, mas olhar para as oportunidades de uma faculdade de verdade me mostrou que as escolas eram dois mundos diferentes. As aulas de história eram mais concentradas e mais profundas do que eu poderia ter imaginado. Mas Adrian não tinha interesse por elas. Ele imediatamente ficou de olho no departamento de arte.
Acabou se inscrevendo em dois cursos introdutórios: um sobre pintura a óleo, e o outro, aquarela. As aulas eram três vezes por semana e uma em seguida da outra, o que era bem conveniente.
— Vai ser mais fácil assim, já que vou ter que vir de ônibus — ele explicou quando nós saímos.
Olhei espantada para ele.
— Você vai vir de ônibus?
Ele pareceu se divertir com a minha surpresa.
— E de que outro jeito eu viria? As aulas são durante o dia. Você não pode me trazer.
Pensei na casa afastada de Clarence.
— Mas onde diabos você vai pegar o ônibus?
— Tem uma parada a menos de um quilômetro de distância. Dali, posso fazer a baldeação para outro ônibus que vai para Carlton. O trajeto todo demora mais ou menos uma hora.
Confesso que aquilo me deixou sem palavras. Fiquei surpresa por Adrian ter pesquisado tanto assim, isso sem mencionar que estava disposto a ter tanto trabalho. Além disso, no caminho de volta, ele não soltou nenhum comentário para dizer como aquilo seria inconveniente ou quanto tempo teria que esperar até poder se mudar da casa de Clarence.
Quando voltei a Amberwood, fiquei contente de dar a Jill a notícia a respeito do sucesso universitário de Adrian — não que ela precisasse que eu dissesse algo, provavelmente. Com o laço, ela já devia saber mais do que eu. Ainda assim, ela sempre se preocupava com ele e sem dúvida iria ficar contente de ver algo dando certo para Adrian.
Jill não estava no quarto quando cheguei, mas um bilhete me dizia que ela estava estudando em outro lugar do alojamento. A única parte positiva do castigo era que limitava os lugares em que ela poderia estar. Resolvi aproveitar aquela oportunidade para fazer o amuleto maluco da sra. Terwilliger. Fazia dois dias que eu estava juntando os ingredientes e, junto com a cooperação da professora de biologia, a sra. Terwilliger também tinha garantido o meu acesso a um dos laboratórios de química. Não havia ninguém lá àquela hora da noite, por isso eu tinha espaço e tranquilidade de sobra para preparar a fórmula.
Como tínhamos observado, as instruções eram extremamente detalhadas e — na minha opinião — supérfluas. Não era suficiente apenas medir as folhas de urtiga. As instruções pediam que elas “descansassem durante uma hora” e, durante esse tempo, eu tinha que ficar dizendo para elas “em vós, chamas eu coloco” a cada dez minutos. Eu também tinha que ferver a pedra de ágata “para infundi-la de calor”. O resto das instruções era parecido e eu sabia que não teria como a sra. Terwilliger descobrir se eu tinha ou não seguido tudo ao pé da letra — principalmente os cânticos. Mesmo assim, o propósito daquela tarefa era relatar como agia um praticante antigo. Assim, eu segui tudo à risca, e me concentrei tanto em executar cada passo com perfeição que logo entrei em um transe em que nada existia além do feitiço.
Terminei duas horas depois e fiquei surpresa de ver como tinha ficado exausta. O resultado final certamente não parecia justificar toda a energia que eu tinha gastado. Finalizei com uma cordinha de couro que amarrava um saquinho de seda cheio de folhas e pedras. Levei aquilo e as minhas anotações de volta para o quarto no alojamento, com a intenção de escrever o relatório para a sra. Terwilliger e deixar a tarefa para trás. Quando cheguei ao quarto, engoli em seco ao ver a porta. Alguém tinha pegado tinta vermelha e desenhado morcegos e rostos com caninos afiados na porta inteira. Rabiscadas na frente, em letras grandes, estavam as palavras:
garota vampira
Em pânico, irrompi quarto adentro. Jill estava lá — junto com a sra. Weathers e outra professora que eu não conhecia. Estavam revirando todas as nossas coisas. Fiquei encarando, descrente.
— O que está acontecendo? — perguntei.
Jill sacudiu a cabeça, com uma expressão totalmente envergonhada, e não conseguiu responder. Parece que eu tinha chegado ao final da busca, porque a sra. Weathers e sua companheira logo terminaram e caminharam até a porta. Fiquei contente por ter levado meus equipamentos de alquimista comigo para o laboratório naquela noite. O kit continha algumas ferramentas de medida que eu achei que talvez fosse precisar. Certamente não queria explicar por que mantinha uma coleção de substâncias químicas para as responsáveis pelo dormitório.
— Bom — a sra. Weathers disse, severa. — Parece não haver nada aqui, mas posso fazer outra busca mais tarde... por isso, não tenha nenhuma ideia. Já está bem encrencada sem adicionar mais uma acusação à lista. — Ela suspirou e sacudiu a cabeça para Jill. — Estou muito decepcionada com você, srta. Melrose.
Jill ficou pálida como papel.
— Estou dizendo. É tudo um erro!
— Vamos torcer para que seja mesmo — a sra. Weathers falou, de maneira agourenta. — Vamos torcer para que seja. Estou meio tentada a mandar que você limpe o vandalismo do lado de fora da porta, mas como não tenho nenhuma prova concreta... bom, vamos pedir para a faxineira dar conta disso amanhã.
Quando as nossas visitas se foram, imediatamente questionei:
— O que aconteceu?
Jill desabou na cama e gemeu.
— Laurel aconteceu.
Eu me sentei.
— Explique.
— Bom, eu liguei para a biblioteca para saber se eles tinham aqueles anuários... sabe, com Kelly Hayes? Acontece que eles costumam ter, mas todos tinham sido retirados pela equipe do jornal para uma edição de aniversário de Amberwood ou algo assim. E você não vai acreditar quem está à frente do projeto: Laurel.
— Tem razão — eu disse. — Jamais teria adivinhado. Ela não está no primeiro ano de inglês? — Laurel já era aluna do último ano.
— Está, sim.
— Acho que todo mundo precisa ter uma atividade — balbuciei.
Jill assentiu.
— Mas, bom, a srta. Yamani estava no prédio, então fui falar com ela para ver se eu podia entrar para o clube de costura e trabalhar para Lia. Ela ficou toda animada e disse que ia dar um jeito.
— Bom, já é alguma coisa — eu disse com cautela, ainda sem saber muito bem como aquilo tinha levado a vandalismo e a uma busca no nosso quarto.
— Quando eu estava voltando, cruzei com Laurel no corredor. Resolvi arriscar... cheguei pra ela e disse: “Olhe, eu sei que nós tivemos as nossas diferenças, mas eu realmente estou precisando de uma ajuda”. Daí eu expliquei que precisava dos anuários e perguntei se podia pegá-los emprestados só por esta noite e que devolveria imediatamente.
A isso, eu não disse nada. Com certeza foi uma atitude nobre e corajosa de Jill, principalmente depois de eu tê-la incentivado a ser superior a Laurel. Infelizmente, eu não achava que Laurel teria a mesma atitude madura em relação a ela. Eu estava certa.
— Ela me disse... bom, em termos bem explícitos, disse que eu nunca vou ver esses anuários. — Jill fez uma careta. — Ela me disse algumas outras coisas também. Então eu, hum, chamei Laurel de vadia delirante. Provavelmente não devia ter feito isso, mas, bom, ela mereceu! Bom, mas daí ela foi falar com a sra. Weathers com uma garrafa de... sei lá. Acho que era schnapps de framboesa. Ela disse que eu tinha vendido para ela e que tinha mais no meu quarto. A sra. Weathers não podia me castigar sem provas concretas, mas depois de a sra. Chang ter me acusado de estar de ressaca no primeiro dia, a sra. Weathers chegou à conclusão de que aquilo era suficiente para dar uma busca no quarto.
Sacudi a cabeça, descrente, com a irritação crescendo dentro do meu peito.
— Para um lugar tão prestigioso e de elite, esta escola realmente tira conclusões apressadas a respeito de qualquer acusação! Quer dizer, acreditam em qualquer coisa que qualquer pessoa diz sobre você. E de onde veio a tinta na porta?
Lágrimas de frustração brilharam nos olhos dela.
— Ah, foi Laurel, é claro. Ou, sei lá, alguma amiga dela. Aconteceu enquanto Laurel estava falando com a sra. Weathers, então é claro que ela tem um álibi. Você não acha... não acha que alguém está desconfiando de verdade, acha? Antes, você tinha dito que era só uma brincadeira de mau gosto... e que os humanos nem acreditam em nós... certo?
— Certo — respondi no automático.
Mas eu estava começando a me perguntar se era verdade. Desde o telefonema do meu pai, quando ele mencionou que havia humanos que desconfiavam e que não havia como silenciá-los, fiquei me perguntando se eu tinha me apressado demais em desprezar a piadinha de Laurel. Será que ela simplesmente tinha encontrado uma piada cruel para maltratar Jill? Ou será que ela era um desses humanos que suspeitavam da existência do mundo dos vampiros e podia causar muitos problemas por causa disso? Eu duvidava que alguém fosse acreditar nela, mas nós não podíamos arriscar atrair a atenção de alguém assim.
Será possível ela realmente pensar que Jill é vampira?
A expressão desconsolada de Jill se transformou em raiva.
— Talvez eu devesse fazer alguma coisa a respeito de Laurel. Há outras maneiras de me vingar dela além de fazer a água congelar.
— Não — me apressei em dizer. — Não se rebaixe a isso. Vingança é uma coisa mesquinha, e você é melhor do que isso. — Além do mais, pensei, se houver mais qualquer atividade sobrenatural, Laurel pode perceber que as provocações dela eram mais verdadeiras do que pensava no começo.
Jill me lançou um sorriso triste.
— Você fica me dizendo isso. Mas não acha que algo precisa ser feito em relação a Laurel?
Ah, sim. Achava que sim, com toda a certeza. Aquilo tinha ido longe demais, e eu estava errada por não dar muita importância ao fato. Jill tinha razão ao dizer que havia outras maneiras de se vingar. E eu estava certa ao dizer que vingança era uma coisa mesquinha e que Jill não devia usar isso para se consolar. Era por isso que eu iria me vingar.
— Eu cuido disso — disse a ela. — Vou... vou pedir aos alquimistas para fazerem uma reclamação formal em nome dos nossos pais.
Ela pareceu duvidar.
— E você acha que isso vai dar conta da situação?
— Positivo — respondi. Isso porque a reclamação traria algo a mais. Dei uma olhada no relógio e percebi que estava tarde demais para voltar ao laboratório. Não fazia mal. Eu apenas ajustei meu despertador para bem cedo, com a intenção de me levantar e ir até lá antes de as aulas começarem.
Eu tinha mais uma experiência para fazer no futuro, e Laurel seria a minha cobaia.
21
Misturar o que era preciso foi fácil. Colocar onde eu queria demorou uns dois dias. Primeiro tive que prestar atenção no tipo de xampu que Laurel usava nos chuveiros da educação física. A escola fornecia xampu e condicionador, claro, mas ela não confiava em algo assim tão banal para usar em seu cabelo precioso. Quando descobri a marca que ela usava, fui a uma loja de produtos de beleza local para comprar um igual, e joguei aquele conteúdo caro pelo ralo. Enchi o frasco com a minha fórmula caseira.
O passo seguinte era trocar o frasco com o de Laurel. Recrutei Kristin para isso. O armário dela ficava ao lado do de Laurel na educação física, e ela estava mais do que disposta a me ajudar. Em parte porque ela não gostava de Laurel, assim como nós. Mas também porque, desde que eu a tinha salvado de sua reação à tatuagem, Kristin tinha deixado claro que tinha uma dívida comigo e iria me ajudar em qualquer coisa que eu precisasse. Eu não gostava da ideia de ela me dever algo, mas a ajuda veio a calhar. Ela encontrou uma oportunidade quando Laurel desviou o olhar do armário aberto e, disfarçadamente, fez a troca. Nós então só tivemos que esperar até a próxima vez que Laurel usasse o xampu para ver os resultados do meu trabalho manual.
Nesse meio-tempo, a minha outra experiência de laboratório não obteve exatamente o reconhecimento que eu esperava. A sra. Terwilliger aceitou o meu relatório, mas não o amuleto.
— Ele não me serve de nada — ela observou, ao erguer os olhos dos papéis que eu tinha entregado a ela.
— Bom... para mim também não, com certeza, senhora.
Ela pousou os papéis na mesa.
— Isto aqui é tudo verdade? Você seguiu cada passo com precisão? Certamente não tenho como saber se você, sabe, passou por cima de alguns detalhes.
Sacudi a cabeça.
— Não. Eu segui todos os passos.
— Muito bem, então. Parece que você arrumou um amuleto de fazer fogo.
— Senhora! — eu disse, em tom de reclamação.
Ela sorriu.
— O que dizem as instruções? Para jogar e recitar o último encanto? Você sabe qual é?
— “Em chamas, em chamas” — respondi prontamente. Por ter digitado o feitiço para as anotações, e depois ainda recriá-lo, era difícil não ter decorado tudo. De acordo com o livro — que era uma tradução para o inglês de um texto em latim —, a linguagem não importava muito, desde que o significado fosse claro.
— Bom, então pronto. Experimente um dia desses e veja o que acontece. Só não bote fogo em nada que pertença à escola. Porque isso não vai ser nada seguro.
Ergui o amuleto pela cordinha.
— Mas isso aqui não é real. É uma bobagem. É um monte de lixo junto em um saquinho.
Ela deu de ombros.
— Quem somos nós para questionar os antigos?
Fiquei encarando-a, tentando descobrir se estava fazendo uma piada. Soube que ela era excêntrica desde o primeiro dia, mas, ainda assim, passava a impressão de ser uma pesquisadora séria.
— A senhora não pode acreditar nisso. Magia desse tipo... não é real. — Sem pensar, completei: — E mesmo que fosse, senhora, seres humanos não devem ficar brincando com poderes assim.
A sra. Terwilliger ficou vários momentos em silêncio.
— Você acredita mesmo nisso?
Toquei na cruz pendurada no meu pescoço.
— Fui criada assim.
— Entendi. Bom, então, pode fazer o que quiser com o amuleto. Jogue fora, doe para alguém, faça experiências com ele. Independente de qualquer coisa, eu preciso desse relato para o meu livro. Obrigada por dedicar seu tempo a isso. Como sempre, você fez mais do que era exigido.
Coloquei o amuleto na bolsa ao sair, sem ter muita certeza a respeito do que fazer com ele. Era inútil... e, no entanto, também tinha me custado muito tempo. Eu estava decepcionada por ele não ser mais importante para a pesquisa dela. Tanto esforço desperdiçado.
Mas o último dos meus projetos mostrou seu resultado no dia seguinte. Em química aplicada, Greg Slade e alguns dos amigos dele entraram na classe correndo bem quando o sinal tocou. A professora olhou feio para eles, que nem ligaram. Slade estava se exibindo com a tatuagem de águia, mostrando a pele para todo mundo ver. A tinta brilhava prateada mais uma vez. Ao lado dele, um de seus amigos também mostrava, todo orgulhoso, outra tatuagem prateada. Era um par de adagas cruzadas estilizadas, só um pouquinho menos cafona do que a águia. Era o mesmo amigo que mais cedo, naquela mesma semana, estava preocupado de não conseguir fazer a tatuagem dele. Parece que as coisas tinham se resolvido com o fornecedor. Interessante. Parte do motivo para eu ainda não ter feito meu relatório aos alquimistas era esperar para ver se a Nevermore iria repor o estoque que eu roubei.
— É impressionante — o amigo de Slade disse. — O vigor que dá.
— Sei como é — Slade o cumprimentou batendo seu punho fechado no dele. — Bem a tempo de amanhã.
Trey observava os dois com expressão sombria.
— O que tem amanhã? — sussurrei para ele.
Ele olhou para os dois com desprezo durante alguns momentos antes de se virar para mim.
— Você mora embaixo de uma pedra? É o nosso primeiro jogo em casa.
— Claro que sim — eu disse. A minha experiência no ensino médio não seria completa sem o furor causado pelos jogos de futebol americano.
— E isso vai ser muito bom para mim — ele resmungou.
— Você não está mais usando curativo — observei.
— É, mas o treinador está me fazendo pegar leve. Além do mais, agora sou quase um peso morto — ele apontou com a cabeça para Slade e o amigo dele. — Como é que eles não se metem em confusão por causa das tatuagens? Eles não se esforçam nem um pouco para esconder. Esta escola não tem mais disciplina. Estamos praticamente na anarquia.
Eu sorri.
— Praticamente.
— O seu irmão devia estar no time, sabia? Eu o vi na educação física. Ele podia ser um astro do esporte se tivesse o trabalho de concorrer no teste para alguma modalidade.
— Ele não gosta de chamar a atenção — expliquei. — Mas ele provavelmente vai assistir ao jogo.
— Você vai ao jogo?
— Provavelmente não.
Trey arqueou uma sobrancelha.
— Tem algum encontro com um gostosão?
— Não! É só que... bom, eu não gosto de assistir a esportes. E acho que devo ficar com Jill.
— Você não vai nem para torcer por mim?
— Você não precisa da minha torcida.
Trey me lançou um olhar de decepção como resposta.
— Talvez seja melhor assim — ele disse. — Porque você não me veria jogando com meu nível de excelência total.
— É uma pena — concordei.
— Ah, pare logo com esse sarcasmo — ele suspirou. — Meu pai é que vai ficar mais decepcionado. Há expectativa na família.
Bom, isso era algo com que eu era capaz de me identificar.
— Ele também joga futebol?
— Que nada, tem menos a ver com o futebol em si e mais com estar sempre com a melhor forma física. Ser o melhor. Estar pronto para ser chamado de última hora. Ser o melhor do time estava sendo uma maneira de deixá-lo orgulhoso... até as tatuagens começarem.
— Você é bom sem a ajuda de nenhuma tatuagem. Ele devia se sentir orgulhoso de todo jeito — eu disse.
— Você não conhece o meu pai.
— Não, mas acho que conheço alguém igualzinho a ele — sorri. — Sabe, acho que, no final das contas, estou precisando ir a um jogo de futebol.
Trey simplesmente sorriu e a aula começou.
O dia passou calmo, mas Jill veio correndo até mim assim que entrei no vestiário para a educação física.
— Lia me procurou! Ela pediu para eu ir lá hoje à noite. Ela já fez os ensaios regulares com as outras modelos, mas achou que eu podia aproveitar uma sessão especial, já que não tenho nenhuma experiência. Claro que o negócio é que... eu... sabe como é, preciso de carona. Você acha que... Quer dizer, será que você pode...
— Claro — respondi. — É para isso que estou aqui.
— Obrigada, Sydney! — ela me abraçou, e me deixou espantada com o gesto. — Eu sei que você não tem motivo nenhum para me ajudar depois de tudo que fiz, mas...
— Tudo bem, tudo bem — eu disse meio sem jeito e dei tapinhas no ombro dela. Respirei fundo para me recompor. Pense nisso como Jill dando um abraço em você. Não como uma vampira dando um abraço em você. — Fico contente em ajudar.
— Vocês duas querem privacidade? — Laurel caçoou ao entrar com seu séquito. — Sempre achei que tinha algo de estranho na família de vocês.
Jill e eu nos separamos e ela ficou toda vermelha, coisa que só serviu para elas darem ainda mais risada.
— Meu Deus, como eu detesto essas meninas — Jill disse quando elas abriram uma distância suficiente para não escutar. — Eu realmente quero me vingar delas.
— Paciência — murmurei. — Elas vão receber o troco delas um dia desses. — Dei uma olhada no armário de Laurel e fiquei pensando que “um dia desses” podia acontecer bem em breve.
Jill sacudiu a cabeça, maravilhada.
— Não sei como você consegue perdoar tanto assim, Sydney. Nada te atinge.
Eu sorri, imaginando o que Jill iria pensar se soubesse a verdade — que eu não era assim tão de “perdoar” quanto parecia. E não só no que dizia respeito a Laurel. Se Jill queria pensar isso de mim, então que fosse. Claro que a minha fachada de boazinha que dá a outra face se despedaçou quando o berro estridente de Laurel encheu o vestiário no fim da aula, uma hora mais tarde.
Foi quase uma repetição do incidente do gelo. Laurel saiu do chuveiro às lágrimas, enrolada em uma toalha. Ela correu horrorizada até o espelho, segurando o cabelo bem perto dele.
— Qual é o problema? — uma das amigas dela perguntou.
— Você não está vendo? — Laurel exclamou. — Tem algo de errado... não parece certo. É óleo, ou... não sei o que é!
Ela pegou um secador e secou uma mecha enquanto todas nós observávamos com interesse. Depois de alguns minutos, os fios compridos estavam secos, mas mal dava para ver. Realmente parecia que o cabelo dela estava coberto de óleo ou de gordura, como se não tivesse sido lavado havia semanas. O cabelo que normalmente brilhava e esvoaçava agora escorria em molas soltas e feias. A cor também estava um pouco desbotada. O vermelho brilhante e fogoso tinha assumido um tom de amarelo doentio.
— O cheiro também está esquisito — ela exclamou.
— Lave de novo — outra amiga sugeriu.
Foi o que Laurel fez, mas não ia ajudar. Mesmo depois de ela perceber que era o xampu que estava causando o problema, não seria fácil tirar aquela coisa que eu fiz do cabelo dela. A água iria continuar alimentando a reação, e ela precisaria esfregar muitas, muitas vezes, até consertar o problema.
Jill me lançou um olhar de surpresa.
— Sydney? — ela sussurrou, com um milhão de perguntas.
— Paciência — garanti a ela. — Este foi só o primeiro ato.
Naquela noite, levei Jill até a loja de Lia DiStefano. Eddie nos acompanhou, é claro. Lia só era alguns anos mais velha do que eu e quase trinta centímetros mais baixa. Apesar do tamanho diminuto, havia algo grande e cheio de força na personalidade dela quando nos confrontou. A loja era cheia de vestidos formais e casuais lindos, apesar de ela própria estar vestida com um jeans rasgado e uma bata bem larga. Ela colocou a plaquinha de “fechado” na porta, e então falou conosco com as mãos na cintura.
— Então, Jillian Melrose — ela começou. — Temos menos de duas semanas para transformá-la em modelo. — Os olhos dela recaíram em mim. — E você vai ajudar.
— Eu? — exclamei. — Eu só dou carona.
— Não se quiser que a sua irmã participe do meu desfile. — Ela voltou a olhar para Jill; a diferença de altura entre as duas era quase cômica. — Você tem que comer, beber e respirar como modelo se quiser fazer isso direito. E precisa fazer todas essas coisas... usando isto aqui.
Com um floreio, Lia pegou uma caixa de sapatos próxima de onde retirou um par roxo cintilante com saltos que deviam ter pelo menos treze centímetros de altura. Jill e eu ficamos encarando.
— Mas ela já não tem altura suficiente? — finalmente perguntei.
Lia soltou uma gargalhada de desdém e jogou os sapatos em cima de Jill. — Estes aqui não são para o desfile. Mas, depois de dominar este par, vai estar pronta para qualquer coisa.
Jill pegou os sapatos cheia de animação e os ergueu para examiná-los. Os saltos me lembravam das estacas de prata que Eddie e Rose usavam para matar Strigoi. Se Jill realmente quisesse estar preparada para qualquer situação, era só estar com aqueles sapatos sempre por perto. Acanhada com o fato de todo mundo estar olhando para ela, finalmente descalçou os sapatos baixos marrons que usava e prendeu as diversas correias trabalhadas do par roxo. Quando estava calçada, levantou-se devagar — e quase caiu. Levantei-me apressada para segurá-la.
Lia assentiu em sinal de aprovação.
— Está vendo? Era disto que eu estava falando. Trabalho em equipe de irmãs. Você é que tem que garantir que ela não vai cair e quebrar o pescoço antes do meu desfile.
Jill me lançou um olhar de pânico que, eu desconfiava, estava refletido no meu próprio rosto. Comecei a sugerir que Eddie ficasse responsável por ajudar Jill, mas ele já tinha se deslocado com discrição para a lateral da loja para observar e parecia ter passado despercebido a Lia. Acho que os serviços de proteção dele tinham limites.
Enquanto Jill tentava simplesmente não cair, ajudei Lia a abrir espaço no meio da loja. Lia então passou mais ou menos a hora seguinte demonstrando como caminhar da maneira adequada para a moda, com ênfase na postura e no passo para poder exibir as roupas com o melhor efeito possível. Mas a maior parte dos detalhes mais sutis passou batida para Jill, que se esforçava para simplesmente conseguir atravessar a sala sem cair. Graça e beleza não eram preocupações tão grandes quanto permanecer em pé.
Ainda assim, quando olhei para Eddie, ele observava Jill com uma expressão encantada no rosto, como se cada passo que ela desse fosse magia pura. Ao perceber que eu estava olhando, ele imediatamente retomou sua expressão protetora de guardião.
Eu fiz o que pude para oferecer palavras de incentivo a Jill — e, sim, para impedir que ela caísse e quebrasse o pescoço. No meio da sessão, ouvimos alguém batendo na porta de vidro. Lia começou a fazer uma careta e então reconheceu o rosto do outro lado da porta. Ela se alegrou e foi abrir.
— Sr. Donahue — ela disse, deixando Lee entrar. — Veio ver como a sua pequena estrela está indo?
Lee sorriu e seus olhos cinzentos dispararam na direção de Jill imediatamente. Ela olhou nos olhos dele e sorriu tanto quanto ele. Lee não tinha estado presente no último fornecimento dela, e apesar de os dois se falarem o tempo todo ao telefone e por mensagem de texto, eu sabia que ela estava louca para se encontrar com ele. Só de dar uma olhada no rosto de Eddie percebi que ele não estava, nem de longe, tão feliz quanto ela com a presença de Lee.
— Já sei como ela está indo — Lee disse. — Ela é perfeita.
Lia deu uma gargalhada de desdém.
— Eu não iria assim tão longe.
— Ei — eu disse quando uma ideia me ocorreu. — Lee, você não quer ficar responsável por impedir que Jill quebre o pescoço? Eu preciso fazer uma coisa.
Evidentemente, Lee estava mais do que disposto a fazer aquilo, e eu sabia que não precisava temer pela segurança dela com Eddie de sentinela.
Eu os deixei e percorri apressadamente dois quarteirões, até a Nevermore. Desde que eu tinha ouvido Slade e os amigos dele confirmarem que os tatuadores estavam trabalhando mais uma vez, estava com vontade de ir até lá pessoalmente. Mas eu não queria ir escondida. O que eu tinha roubado já tinha rendido provas. Tirando o líquido transparente, eu tinha identificado todas as outras substâncias das ampolas. Todos os compostos metálicos eram combinações exatas das fórmulas dos alquimistas, e isso significava ou que essas pessoas tinham um contato entre os alquimistas, ou que estavam roubando. De qualquer modo, o meu caso só estava ficando cada vez mais importante. Eu só esperava que fosse suficiente para me redimir e manter Zoe longe dali, principalmente porque o momento da chegada dela se aproximava. Já tinha se passado quase uma semana desde que o meu pai havia dito que ela iria me substituir.
Meu plano era ver qual a disposição da Nevermore para fazer uma tatuagem em mim. Eu queria saber quais eram os avisos que eles davam (se é que davam algum) e se era ou não fácil conseguir uma tatuagem, em primeiro lugar. A conversa de Adrian não tinha rendido muita informação, e provavelmente seu pedido por uma tatuagem de uma moto em chamas com um esqueleto e um papagaio não tinha servido muito para aumentar sua credibilidade. Hoje eu estava armada com dinheiro vivo, e esperava que aquilo me levasse a algum lugar.
Do jeito que as coisas aconteceram, nem precisei mostrar dinheiro nenhum. Assim que eu entrei, o sujeito atrás do balcão — o mesmo com que Adrian tinha conversado — pareceu aliviado.
— Graças a Deus — ele disse. — Por favor, diga que tem mais. Essa garotada está me deixando maluco. Quando nós entramos nessa... eu não fazia ideia de que iria ficar tão grande assim. O dinheiro é bom, mas, por Deus. É uma loucura acompanhar a demanda.
Mantive meu rosto isento da confusão que estava sentindo, imaginando de que diabos ele estaria falando. Ele agia como se eu fizesse parte do esquema dele, e aquilo não fazia o menor sentido. Mas então seus olhos dispararam para a minha bochecha e eu de repente entendi.
A minha tatuagem de lírio.
Não estava escondida, já que as aulas do dia tinham terminado. E foi então que eu soube, com certeza absoluta, que a pessoa com quem ele trabalhava para obter seu material era um alquimista. Ele achou que a tatuagem fazia de mim uma aliada.
— Não tenho nada comigo — respondi.
Ele ficou de cara no chão.
— Mas a demanda...
— Você perdeu a outra remessa — eu disse, enfezada. — Deixou que roubassem bem debaixo do seu nariz. Sabe quanto trabalho deu para arrumar aquilo?
— Já expliquei para o seu amigo! — ele exclamou. — Ele disse que entendia. Disse que tinha dado conta do problema e que nós não precisávamos mais nos preocupar.
Senti um aperto na boca do estômago.
— É, bom, ele não fala em nome de todos nós, e não temos tanta certeza se queremos continuar. Vocês ficaram comprometidos.
— Nós somos cuidadosos — ele argumentou. — Aquele roubo não foi nossa culpa! Agora, fala sério. Ele não contou para você? Há uma demanda enorme para amanhã porque os garotos da escola particular têm jogo. Se pudermos fazer o serviço, vamos ganhar o dobro do dinheiro.
Lancei a ele o meu melhor sorriso gélido.
— Vamos discutir a questão entre nós e daremos um retorno.
Com isso, dei meia-volta para ir embora.
— Espere — ele chamou. Olhei brava para ele. — Será que você pode fazer com que aquela pessoa pare de ligar?
— Que pessoa? — perguntei, imaginando se ele estava falando de algum aluno insistente de Amberwood.
— Aquela que tem uma voz bizarra e fica perguntando se apareceu alguma pessoa alta e pálida por aqui. Gente que parece vampiro. Achei que fosse alguém que você conhecesse.
Gente alta e pálida? Não gostei nada de ouvir aquilo, mas fiquei com o rosto impassível.
— Desculpe. Não sei do que você está falando. Deve ter sido um trote.
Saí e fiz uma anotação mental para investigar melhor a questão. Se alguém estava fazendo perguntas a respeito de pessoas que pareciam vampiros, era um problema. No entanto, não era o problema imediato. A minha mente corria em disparada enquanto processava as outras coisas que o tatuador tinha me dito. Havia um alquimista que era o fornecedor do material da Nevermore. Em certos aspectos, isso não devia ser surpresa. De que outra maneira eles conseguiriam sangue de vampiro e todos os outros materiais necessários para as tatuagens? E parece que esse alquimista rebelde tinha “dado conta do problema” que levou ao roubo do material. Quando foi que o meu pai ligou dizendo que eu seria tirada da missão por causa dos relatórios de Keith?
Logo depois de eu invadir a Nevermore.
Eu sabia quem era o alquimista rebelde.
E eu sabia que “o problema” era eu. Keith tinha dado um jeito em mim, tomando providências para que eu fosse afastada de Palm Springs e que mandassem no meu lugar uma pessoa nova e sem experiência, que não iria interferir em sua operação ilícita de tatuagens. Era por isso que ele queria Zoe desde o começo.
Eu estava chocada. Já não tinha Keith Darnell em alta conta, de jeito nenhum. Mas eu nunca, jamais tinha imaginado que ele se rebaixaria a esse nível... Ele era uma pessoa imoral, mas, ainda assim, tinha sido criado com os mesmos princípios que eu a respeito de humanos e vampiros. Abandonar essas crenças e expor inocentes aos efeitos colaterais terríveis do sangue de vampiro em nome de seu próprio ganho material... bom, isso era mais do que traição aos alquimistas. Era traição a toda a raça humana.
Minha mão estava no celular, pronta para ligar para Stanton. Só seria necessário aquilo, mais nada. Bastava uma ligação com o tipo de notícia que eu tinha, e os alquimistas iriam dar uma batida em Palm Springs — e em Keith. Mas e se não houvesse evidências concretas para ligar Keith ao crime? Era possível que outro alquimista fizesse a mesma coisa que eu, levando o tatuador a pensar que ele fazia parte da equipe de Keith. Mas era ele que eu queria pegar. Eu precisava garantir que não teria como ele escapar daquilo.
Tomei a minha decisão e, em vez de ligar para os alquimistas, liguei para Adrian.
Quando voltei à loja de Lia, vi que o ensaio havia terminando. Lia estava dando a Jill alguma instrução de último minuto enquanto Eddie e Lee esperavam por perto. Eddie deu só uma olhada no meu rosto e logo percebeu que havia algo de errado.
— Qual é o problema?
— Nada — respondi, sem convicção. — É só um problema com que eu vou ter de lidar em breve. Lee, será que você se incomoda de levar Jill e Eddie de volta à escola? Preciso dar conta de algumas coisinhas.
Eddie franziu a testa.
— Está tudo bem? Precisa de alguém para proteger você?
— Já tenho alguém. — Reconsiderei, tendo em vista que logo me encontraria com Adrian. — Bom, mais ou menos. De todo modo, não me meti em nenhuma confusão. O seu trabalho é ficar de olho em Jill, está lembrado? E obrigada, Lee. — Uma ideia de repente me ocorreu. — Espere... eu achei que hoje era um dos dias em que você tinha aula à noite. Será que nós estamos prendendo você... ou... bom, quais são os dias em que você tem aula?
Eu não tinha pensado muito naquilo, só tinha reparado que alguns dias Lee estava por lá e, outros, em Los Angeles. Mas, pensando bem, na verdade não havia muito padrão. Percebi pelo rosto de Eddie que ele tinha se dado conta da mesma coisa.
— É verdade — ele disse e olhou desconfiado para Lee. — Que tipo de horário é esse que você tem na faculdade?
Lee abriu a boca e eu senti que uma história pronta estava para sair. Então ele parou e lançou um olhar ansioso para Jill, que ainda estava conversando com Lia. Seu rosto desabou.
— Por favor, não contem para ela — ele sussurrou.
— Contar o quê? — perguntei, mantendo a voz baixa também.
— Não estou na faculdade. Quer dizer... eu estava. Mas não estou neste semestre. Eu queria dar um tempo, mas... não queria decepcionar o meu pai. Então, disse a ele que estava estudando só meio período, e era por isso que podia ficar mais aqui.
— Então, o que você tem feito em Los Angeles durante todo esse tempo? — Eddie perguntou.
— Eu ainda tenho amigos lá, e preciso manter o meu disfarce. — Lee suspirou. — É idiotice, eu sei. Por favor... deixem que eu mesmo conte para ela. Eu queria tanto impressionar Jill e mostrar para ela o meu valor. Ela é maravilhosa. Só me pegou em um momento ruim.
Eddie e eu trocamos olhares.
— Eu não vou contar — eu disse. — Mas você realmente precisa dizer a ela. Quer dizer, acho que não há mal nenhum... mas você não deve manter esse tipo de mentira entre vocês dois.
Lee parecia arrasado.
— Eu sei que não. Obrigado.
Quando ele se afastou um pouco, Eddie sacudiu a cabeça para mim.
— Eu não gosto que ele minta. Nem um pouco.
— Lee tentando manter uma boa fachada é a coisa menos estranha que está acontecendo aqui — eu disse.
Foi então que eu percebi que Jill já conseguia andar de um lado para o outro da loja sem cair. Não era nada gracioso, mas era um começo. Ela ainda estava bem longe de se parecer com as modelos da tv, mas levando em conta que ela nem conseguia ficar em pé sobre aqueles sapatos no começo, achei que tinha feito um progresso considerável. Ela começou a tirar o sapato de salto, mas Lia a deteve.
— Não. Eu já disse. Você tem que usar esses sapatos o tempo todo. Treine, treine, treine. Use-os em casa. Use-os em todo lugar. — Ela se voltou para mim. — E você...
— Já sei. Preciso garantir que ela não vá quebrar o pescoço — eu disse. — Mas ela não vai poder usar isso o tempo todo. A nossa escola tem um código de vestimenta.
— E se for de outra cor? — Lia perguntou.
— Não acho que seja apenas a cor — Jill disse, em tom de desculpa. — Acho que é a parte do salto agulha. Mas eu prometo usar fora das aulas e treinar no quarto.
Assim estava bom para Lia e, depois de mais alguns conselhos, ela nos deixou ir. Nós prometemos treinar e voltar dali a dois dias. Disse a Jill que me encontraria com ela mais tarde, mas não sei se ela ouviu. Ela estava tão envolvida na ideia de que Lee iria levá-la para casa que tudo o mais se tornou insignificante.
Fui à casa de Clarence e Adrian me encontrou à porta.
— Uau — eu disse, impressionada com a iniciativa dele. — Não achava que você ficaria pronto com tanta rapidez.
— Não estou — ele respondeu. — Preciso que você veja uma coisa imediatamente.
Franzi a testa.
— Certo. — Adrian me levou para dentro da casa, para um lugar depois da sala que eu normalmente frequentava, e isso me deixou nervosa. — Tem certeza de que isso não pode esperar? Essa coisa que precisamos fazer é meio urgente...
— Isso aqui também é. O que você achou de Clarence na última vez que o viu?
— Esquisito.
— Mas o que achou da saúde dele?
Pensei a respeito.
— Bom, eu sei que ele anda cansado. Mas, de maneira geral, parecia bem.
— É, bom, ele não está “bem” agora. Está muito mais do que cansado. Está fraco, tonto e acamado.
Chegamos a uma porta de madeira fechada e Adrian parou.
— Você sabe qual a causa? — perguntei, assustada. Tinha me preocupado com as complicações de ter um Moroi doente, mas não achava que ia ter de lidar com isso tão cedo.
— Tenho uma boa ideia do que aconteceu — Adrian respondeu com firmeza surpreendente. — Foi o seu amigo Keith.
— Pare de dizer isso. Ele não é “meu amigo”! — exclamei. — Ele está acabando com a minha vida!
Adrian abriu a porta e revelou uma cama toda entalhada, com dossel. Entrar no quarto de um Moroi não era algo que me deixasse à vontade, mas o olhar firme de Adrian era forte demais. Eu o segui e fiquei boquiaberta quando vi Clarence deitado na cama.
— Não é só com a sua — Adrian disse e apontou para o senhor de idade.
Os olhos de Clarence se abriram um pouco com o som da nossa voz e então voltaram a se fechar quando ele caiu no sono. Mas não foram os olhos dele que chamaram a minha atenção. Foi a palidez doentia em sua pele — assim como a ferida sangrenta em seu pescoço. Era pequena, feita com uma picada só, como se tivesse sido causada por um instrumento cirúrgico. Adrian olhou para mim, cheio de expectativa.
— Bom, e então, Sage? Tem alguma ideia por que Keith está tirando o sangue de Clarence?
Engoli em seco, quase sem conseguir acreditar no que estava vendo. Aquela era a última peça. Eu sabia que Keith fornecia o material para os tatuadores, e agora sabia também onde ele conseguia seus “estoques”.
— Tenho, sim — respondi finalmente, com a voz bem baixinha. — Tenho uma ideia muito boa do motivo dele.
22
Clarence não quis falar conosco a respeito do que tinha acontecido. Aliás, ele negou categoricamente que houvesse algo de errado, alegando que tinha cortado o pescoço enquanto se barbeava.
— Sr. Donahue — eu disse com a maior gentileza possível —, esta ferida foi feita por uma ferramenta cirúrgica. E só aconteceu depois da visita de Keith.
— Não, não — Clarence conseguiu dizer com a voz fraca. — Não tem nada a ver com ele.
Naquele momento, Dorothy enfiou a cabeça no quarto, trazendo um copo de suco. Nós a tínhamos chamado pouco depois de eu chegar. Para perda de sangue, o remédio era o mesmo tanto para Moroi quanto para humanos: açúcar e líquidos. Ela ofereceu o copo para ele com um canudinho, com o rosto enrugado cheio de preocupação. Eu fazia meu inquérito enquanto ele bebia.
— Diga o que está acontecendo — implorei. — Qual é o acordo? O que ele dá para você em troca do seu sangue? — Como Clarence continuou quieto, tentei outra tática. — Tem gente que está sendo prejudicada. Ele está distribuindo o seu sangue de maneira indiscriminada.
Isso causou uma reação.
— Não — Clarence disse. — Ele está usando o meu sangue e a minha saliva para curar as pessoas. Para curar humanos doentes.
Saliva? Eu quase soltei um gemido. Era isso. O líquido transparente misterioso. Agora eu sabia o que dava às tatuagens celestiais seu barato viciante. Que nojo.
Adrian e eu trocamos olhares. Cura certamente era um dos usos do sangue de vampiro. A tatuagem que eu tinha era prova disso, e os alquimistas tinham trabalhado muito para tentar reproduzir algumas das propriedades do sangue para uso medicinal mais amplo. Até agora, não havia maneira de criar essas propriedades de modo sintético, e usar sangue real simplesmente não era prático.
— Ele mentiu — respondi. — Ele está vendendo para adolescentes ricos para ajudar nos esportes. O que ele prometeu para você? Uma parte do dinheiro?
Adrian deu uma olhada no quarto opulento.
— Ele não precisa de dinheiro. Só precisa da única coisa que os guardiões se negaram a lhe dar. Justiça por Tamara, não é?
Surpresa, me virei para Clarence e vi as palavras de Adrian confirmadas no rosto do velho Moroi.
— Ele... ele está investigando os caçadores de vampiros para mim — ele disse devagar. — Diz que está perto. Perto de descobrir quem eles são.
Sacudi a cabeça, com vontade de dar um soco em mim mesma por não ter percebido antes que Clarence era a fonte do sangue. Isso explicava por que Keith sempre estava aqui sem que eu esperasse — e por que ele ficou tão aborrecido quando apareci sem avisar. A minha “confraternização com os vampiros” não tinha nada a ver com isso.
— Senhor, garanto que a única coisa que ele está investigando é como gastar o dinheiro que anda ganhando.
— Não... não... ele vai me ajudar a encontrar os caçadores que mataram Tamara...
Eu me levantei. Não suportava ouvir mais nada.
— Traga um pouco de comida de verdade para ele, e vamos ver o que ele consegue comer — disse a Dorothy. — Se estiver fraco só por causa da perda de sangue, só precisa de tempo.
Fiz um sinal para Adrian me seguir para fora. Enquanto caminhávamos em direção à sala, observei:
— Bom, há lados bons e ruins nisto. Pelo menos podemos ter certeza de que Keith tem uma quantidade de sangue fresco para podermos pegá-lo no flagra. Sinto muito por Clarence ter sido tão afetado...
Fiquei paralisada quando entrei na sala. Eu só quis ir para lá porque seria um lugar familiar para discutirmos nossos planos, um lugar menos assustador do que o quarto de Clarence. Levando em conta a maneira como a minha imaginação costumava correr solta quando eu estava naquela casa velha, poucas coisas me surpreendiam. Mas, nunca, nem nos meus sonhos mais loucos, eu imaginei que a sala teria se transformado em uma galeria de arte.
Cavaletes e telas estavam montados por toda a sala. Até a mesa de sinuca estava coberta com um rolo grande de papel. As imagens variavam muito em conteúdo. Algumas eram só manchas de cor jogadas. Outras traziam retratos tão realistas de objetos e de pessoas que surpreendiam. Uma ampla variedade de tintas a óleo e aquarela se espalhava pelo meio dos quadros.
Por um momento, todos os pensamentos a respeito de Clarence e Keith desapareceram da minha cabeça.
— O que é isso?
— Lição de casa — Adrian respondeu.
— Você... você não acabou de começar as aulas? Como é possível já ter recebido tanta tarefa?
Ele caminhou até uma tela que mostrava uma linha vermelha em espiral traçada por cima de uma nuvem negra e experimentou de leve com o dedo para ver se a tinta estava seca. Eu a examinei e tentei decidir se de fato estava vendo uma nuvem. Havia algo de quase antropomórfico naquilo.
— Claro que não nos deram tanta coisa para fazer, Sage. Mas eu tinha que ir bem na primeira tarefa, de qualquer jeito. É necessário tentar muitas vezes para atingir a perfeição. — Ele fez uma pausa para reconsiderar. — Bom, exceto para os meus pais. Eles acertaram de primeira.
Não pude deixar de sorrir. Depois de ver o humor de Adrian oscilar de maneira tão descontrolada nas duas últimas semanas, era legal vê-lo alegre.
— Bom, isto é bastante fantástico — reconheci. — O que eles representam? Quer dizer, eu entendi aquele ali — apontei para um quadro que era o olho de uma mulher, castanho e com cílios compridos, e depois para outro de rosas. — Mas os outros estão abertos a, hum, um pouco mais de interpretação criativa.
— Estão, é? — Adrian perguntou e se voltou para a pintura com a espiral vermelha. — Achei que era óbvio. Este é Amor. Você não percebe?
Dei de ombros.
— Talvez eu não tenha uma mente suficientemente artística.
— Talvez — ele concordou. — Depois que pegarmos o seu amiguinho Keith, vamos discutir a minha genialidade artística o tanto quanto você quiser.
— Certo — eu disse, e voltei a ficar séria. — Precisamos fazer uma busca na casa dele para encontrar evidências. Achei que a melhor maneira de fazer isso seria eu o atrair para longe e você invadir enquanto ele não está lá. Para abrir a fechadura...
Adrian me dispensou.
— Eu sei arrombar fechaduras. Como você acha que eu abria o armário de bebidas dos meus pais quando estava no ensino fundamental?
— Eu devia ter adivinhado — eu disse, seca. — Tenha certeza de procurar em todos os lugares, não só nos mais óbvios. Ele pode ter compartimentos escondidos nas paredes ou nos móveis. Você deve ficar atento para ampolas de sangue ou de líquido metálico, e também para o instrumento que perfurou Clarence.
— Entendi. — Nós acertamos mais alguns detalhes, incluindo para quem ele devia ligar se encontrasse algo, e estávamos para sair quando ele perguntou: — Sage, por que você me escolheu para ser o seu cúmplice nisso?
Pensei a respeito.
— Por eliminação, acho. Jill não deve se meter em encrenca. Eddie seria um bom parceiro, mas precisava voltar com ela e Lee. Além do mais, eu sabia que você não teria nenhuma questão moral em relação a invadir a casa de alguém.
— Essa foi a coisa mais bacana que você já me disse — ele declarou com um sorriso.
Depois disso, fomos para a casa de Keith. As luzes estavam acesas no primeiro andar do prédio dele, o que acabou com a minha última esperança de que talvez não precisasse atraí-lo para fora. Na verdade, eu ia gostar de ajudar na busca. Deixei Adrian lá perto e fui para um restaurante vinte e quatro horas que ficava do outro lado da cidade, nos arredores. Achei que seria perfeito para manter Keith fora de casa. Só o tempo de pegar o carro e ir até lá já daria tempo extra para a busca de Adrian, apesar de significar que Adrian teria que esperar um bom tempo do lado de fora até Keith sair. Quando finalmente cheguei, sentei a uma mesa, pedi um café e digitei o número do Keith.
— Alô?
— Keith, sou eu. Preciso falar com você.
— Então fale — ele disse. Parecia arrogante e cheio de confiança, sem dúvida contente por ter conseguido realizar aquelas vendas de tatuagem de última hora.
— Não pelo telefone. Preciso que você venha se encontrar comigo.
— Em Amberwood? — perguntou, surpreso. — Já não passou da hora do toque de recolher?
Já tinha passado mesmo, mas esse era um problema para depois.
— Não estou na escola. Estou no Margaret’s Diner, aquele lugar que fica perto da estrada.
Longo silêncio. E então:
— Bom, se o seu horário já passou, simplesmente venha aqui.
— Não — eu disse com firmeza. — Você é que vem até onde eu estou.
— Por quê?
Hesitei só um pouco antes de dar a cartada que eu sabia que iria convencê-lo, a única coisa que o faria pegar o carro e ir até ali sem levantar suspeitas sobre as tatuagens.
— É sobre Carly.
— O que tem ela? — ele perguntou depois de um momento de pausa.
— Você sabe exatamente o que é.
Depois de uma pausa de um segundo, Keith cedeu e desligou. Reparei que eu tinha uma mensagem de voz daquele mesmo dia, mais cedo, que eu não havia escutado. Liguei e escutei.
— Sydney, aqui é Wes Regan da Faculdade Carlton. Eu só queria repassar algumas coisas com você. Em primeiro lugar, acho que tenho más notícias. Parece que não vou poder passar o seu irmão da situação de ouvinte para a de aluno regular. Posso matriculá-lo com certeza no próximo semestre se ele tiver um bom desempenho agora, mas a única maneira de continuar frequentando as aulas agora é se permanecer como ouvinte. Por causa disso, ele não poderá obter auxílio financeiro e, inclusive, vocês precisarão pagar uma taxa para ele poder frequentar as aulas. Se ele quiser largar tudo, também é possível. Só me ligue para dizer o que vocês querem fazer.
Fiquei olhando desolada para o telefone quando a mensagem terminou. Lá se iam os nossos sonhos de colocar Adrian na situação de aluno regular, sem falar nos sonhos dele de obter auxílio financeiro e sair da casa de Clarence. O semestre seguinte devia começar em janeiro, então Adrian teria que ficar mais quatro meses na casa de Clarence. Adrian também teria de enfrentar mais quatro meses de trajetos de ônibus e aulas da faculdade sem receber crédito por elas.
Mas será que os créditos e o auxílio financeiro realmente eram as coisas mais importantes ali? Lembrei como Adrian tinha ficado animado depois de só umas poucas aulas, como ele tinha se lançado à arte. O rosto dele estava radiante no meio de sua “galeria”. As palavras de Jill também ecoaram pela minha mente, sobre como a arte tinha dado a Adrian uma maneira de canalizar seus sentimentos, e tinha feito com que se tornasse mais fácil para ela lidar com o laço. As aulas eram boas para os dois.
Quanto seria a taxa de ouvinte? Eu não sabia com certeza, mas imaginava que seria menos do que o curso com crédito. Também era um custo único que eu provavelmente poderia incluir nos meus gastos sem chamar a atenção dos alquimistas. Adrian precisava daquelas aulas, disso eu tinha certeza. Se ele soubesse que o auxílio financeiro não era uma opção para esse semestre, havia uma boa chance de que ele decidisse simplesmente largar tudo. Eu não podia permitir que aquilo acontecesse. Ele seria informado de que talvez houvesse um “atraso” até o auxílio financeiro acontecer. Se eu conseguisse fazer com que ele ficasse na Carlton mais um pouco, então talvez ele pudesse se envolver o suficiente com a arte para continuar, mesmo depois que descobrisse a verdade. Era uma coisa dissimulada de se fazer, mas faria bem para ele — e para Jill — no final.
Telefonei para o escritório de Wes Regan, mas já sabia que iria cair na caixa postal. Deixei um recado para ele dizendo que eu deixaria um cheque para a taxa de ouvinte e que Adrian continuaria o curso até poder se matricular no semestre seguinte. Desliguei e fiz uma prece silenciosa para que demorasse um pouco até Adrian descobrir o que estava acontecendo.
A garçonete ficava me olhando feio porque eu só tinha pedido café, até que eu finalmente pedi uma fatia de torta para viagem. Ela tinha acabado de colocar a caixa na mesa quando Keith entrou no restaurante, todo irritado. Ele ficou parado à porta, olhando ao redor com impaciência, até me localizar.
— Certo, o que está acontecendo? — ele questionou e se sentou cheio de pompa. — O que é tão importante que você sentiu a necessidade de desrespeitar as regras da escola e de me arrastar até o outro lado da cidade?
Por um instante, fiquei paralisada. Olhar nos olhos de Keith — tanto o verdadeiro quanto o artificial — trouxe à tona todos os sentimentos conflituosos que eu havia tido em relação a ele ao longo do último ano. Medo e ansiedade em relação ao que eu estava tentando fazer brigavam com o ódio profundo que eu carregava fazia tanto tempo. Instintos mais básicos desejavam que eu o fizesse sofrer, que jogasse alguma coisa em cima dele. Como a torta. Ou uma cadeira. Ou um taco de beisebol.
— Eu...
Antes que pudesse dizer qualquer outra palavra, meu telefone tocou. Olhei para baixo e vi uma mensagem de texto de Adrian: consegui. ligação feita. uma hora.
Enfiei o celular na bolsa e soltei a respiração. Keith tinha demorado vinte minutos para chegar e, durante esse tempo, Adrian tinha feito a busca detalhada no apartamento. Parece que tinha sido bem-sucedido. Agora minha função era segurá-lo até os reforços aparecerem. Uma hora na verdade era bem menos tempo do que eu esperava. Tinha dado a Adrian o telefone de Stanton, e ela devia ter despachado os alquimistas que estivessem mais próximos. Achei que isso significaria Los Angeles, mas era difícil dizer, devido ao alcance do nosso trabalho. Se houvesse alquimistas do lado leste da cidade, eles chegariam bem rápido. Também era possível que ganhassem tempo se viessem em um jatinho particular.
— O que foi? — Keith perguntou, irritado. — Uma mensagem de texto de um dos seus amigos vampiros?
— Pode parar com a encenação — eu disse. — Eu sei que na verdade você não se importa com o fato de eu estar me “aproximando muito” deles.
Eu não tinha a intenção de que aquele fosse o tema para distraí-lo, mas aquilo era bom o suficiente.
— Claro que eu me importo. Eu me preocupo com a sua alma.
— Foi por isso que ligou para o meu pai? — perguntei. — É por isso que quer me ver longe de Palm Springs?
— É para o seu próprio bem — ele disse, e estampou no rosto um ar todo angelical. — Você tem ideia de como foi errado você querer este trabalho, para começo de conversa? Nenhum alquimista teria esse desejo. Mas você praticamente implorou.
— É — respondi, e senti a minha irritação crescer. — Para que Zoe não tivesse que passar por isso.
— Diga a si mesma o que você quiser. Eu sei a verdade. Você gosta dessas criaturas.
— Por que as coisas têm que ser tão preto no branco? Na sua visão, ou eu tenho que odiá-los ou me aliar a eles. Há um meio-termo, sabia? Eu posso continuar sendo leal aos alquimistas e ser simpática com vampiros e dampiros.
Keith olhou para mim como se eu tivesse dez anos de idade.
— Sydney, você é tão inocente. Não entende como o mundo funciona do mesmo jeito que eu entendo. — Eu sabia tudo a respeito de como ele achava que “o mundo funcionava”, e teria dito isso se a garçonete não tivesse chegado para pegar o pedido de bebida dele bem naquele momento. Quando ela se afastou, Keith continuou sua ladainha. — Quer dizer, como é que você pode saber que realmente está se sentindo do jeito que se sente? Os vampiros podem forçar, sabe como é. Eles usam o controle da mente. Os que controlam o espírito, como Adrian, são bons de verdade nisso. Até onde sabemos, ele tem usado seus poderes para conquistar você.
Pensei em todas as vezes que tive vontade de chacoalhar Adrian para ver se adquiria um pouco de noção das coisas.
— Então ele não está fazendo um trabalho muito bom, não.
Nós ficamos discutindo o assunto durante um tempo e, pelo menos dessa vez, fiquei feliz com a obstinação de Keith e com sua recusa em enxergar a razão. Quanto mais ele debatia comigo, mais tempo os alquimistas tinham para chegar ao apartamento dele. Se Stanton tinha dito a Adrian que iria demorar uma hora, devia ter sido exata. Mesmo assim, era melhor garantir.
A gota d’água foi quando Keith disse:
— Você devia se sentir agradecida por eu cuidar de você desta maneira. Isso aqui é mais abrangente do que os vampiros, sabe como é. Estou dando lições de vida para você. Você pode memorizar os livros, mas não entende as pessoas. Você não sabe como se conectar a elas. Vai carregar essa mesma atitude ingênua com você para o mundo real, achando que todo mundo tem boas intenções, e alguém... algum garoto, provavelmente... vai simplesmente tirar vantagem de você.
— Bom — explodi. — E você sabe tudo a respeito disso, não é mesmo?
Keith deu uma gargalhada de desdém.
— Eu não estou interessado em você, pode ficar tranquila.
— Não estou falando de mim! Estou falando de Carly.
Pronto. Era isso. O motivo original do nosso encontro ali.
— O que ela tem a ver com tudo isso? — Keith manteve o tom firme, mas eu pude perceber. A menor das centelhas de ansiedade apareceu em seu olho.
— Eu sei o que aconteceu entre vocês. Eu sei o que você fez com ela.
Ele ficou muito interessado em mexer o gelo do copo com o canudinho.
— Eu não fiz nada com ela. Não sei do que você está falando.
— Você sabe exatamente do que estou falando! Ela me contou. Veio falar comigo depois do que aconteceu — me inclinei para a frente, sentindo muita segurança. — O que você acha que o meu pai faria se descobrisse? O que o seu faria?
Keith ergueu os olhos em um gesto brusco.
— Se tem tanta certeza de que uma coisa horrível aconteceu, então como é que o seu pai ainda não soube? Hein? Talvez seja porque Carly tem consciência de que não tem nada para contar. Qualquer coisa que nós tenhamos feito, ela quis fazer, pode acreditar.
— Como você é mentiroso — sibilei. — Eu sei o que você fez. Você a estuprou. E nunca vai sofrer o bastante por isso. Devia ter perdido os dois olhos.
Ele ficou tenso com a referência aos olhos.
— Essa foi forte. E não tem nada a ver com isso aqui. Que diabos aconteceu com você, Sydney? Como foi que você virou uma vaca assim? Talvez levar você a se associar com vampiros e dampiros tenha causado mais danos do que nos demos conta. A primeira coisa que vou fazer amanhã é ligar para Stanton e pedir para tirarem você daqui imediatamente. Nada de esperar até o final da semana. Você precisa se afastar dessa influência sombria. — Ele sacudiu a cabeça e me olhou de um jeito que era ao mesmo tempo condescendente e cheio de pena. — Não, você precisa ser reeducada, ponto final. Devia ter acontecido há muito tempo, assim que pegaram você ajudando aquela assassina.
— Não mude de assunto — falei em tom insolente, apesar de ele mais uma vez ter despertado uma fagulha de medo em mim. E se Adrian e eu tivéssemos falhado? E se os alquimistas dessem ouvidos a Keith e me mandassem para um centro de reeducação? Ele nunca mais teria que se preocupar comigo. — Não estávamos falando de mim. Estávamos tratando de Carly.
Keith revirou os olhos, irritado.
— Para mim, já chega de falar da sua irmã galinha.
Naquele instante, meu impulso inicial de jogar alguma coisa em cima dele me venceu. Para a sorte dele, foi só o meu café e não uma cadeira. Também para a sorte dele, o café já tinha esfriado. Ainda tinha sobrado bastante, e ele se espalhou por todos os lados, ensopando a escolha infeliz dele por uma camisa branca. Ele ficou me encarando, atordoado, cuspindo ao proferir suas palavras:
— Sua vaca! — ele disse e se levantou.
Quando ele começou a se dirigir para a porta, percebi que a minha irritação podia ter estragado o plano todo. Corri até ele e o puxei pelo braço.
— Espere, Keith. Eu... eu sinto muito. Não vá embora.
Ele desvencilhou o braço e ficou me olhando com ódio.
— Já é tarde demais para você. Teve sua chance e não aproveitou.
Eu o agarrei mais uma vez.
— Não, não. Espere. Ainda tem muita coisa sobre o que precisamos conversar.
Ele abriu a boca para fazer alguma observação espertinha e então prontamente a fechou. Ele me examinou durante vários segundos e sua expressão foi ficando mais séria.
— Você está tentando me segurar aqui? O que está acontecendo?
Como eu não consegui dar nenhuma resposta, ele se desvencilhou e irrompeu porta afora. Voltei correndo para a mesa e joguei uma nota de vinte em cima dela. Peguei a torta e disse para a garçonete em choque que ficasse com o troco.
O relógio do meu carro informou que nós tínhamos vinte minutos até o horário em que os alquimistas deviam chegar à casa de Keith. Também era o tempo que ele iria demorar para voltar até lá. Fui seguindo na sua cola, sem fazer nenhum esforço para esconder a minha presença. Agora não era segredo que algo estava acontecendo, algo para longe do qual eu o havia atraído. Abençoei cada sinal vermelho que nos fez parar, rezando para que ele não chegasse cedo demais. Se isso acontecesse, Adrian e eu teríamos que atrasá-lo. Não seria impossível, mas também não era algo que eu quisesse fazer.
Finalmente chegamos. Keith parou no estacionamento minúsculo do prédio e eu estacionei sem me incomodar em uma área reservada para os bombeiros, à frente. Eu estava apenas alguns passos atrás dele quando ele correu até a porta, mas pareceu nem notar. Sua atenção estava nas janelas iluminadas do prédio e nas silhuetas escuras que mal dava para distinguir por trás das cortinas pesadas. Ele irrompeu pela porta; entrei atrás um segundo depois e quase dei um encontrão nele, que tinha ficado completamente paralisado ali.
Eu não conhecia os três homens de terno que estavam com Adrian, mas sabia que eram alquimistas. Passavam aquela impressão fria e polida que todos nós almejávamos, e suas bochechas traziam a marca do lírio dourado. Um deles examinava os armários da cozinha de Keith. Outro segurava um bloco de notas e conversava com Adrian, que estava apoiado em uma parede e fumava. Ele sorriu quando me viu.
O terceiro alquimista estava ajoelhado no chão da sala, perto de um pequeno armário embutido. Uma pintura cafona de uma mulher com as costas nuas, que aparentemente tinha servido para esconder o compartimento, estava jogada ali perto. A porta de madeira tinha sido visivelmente aberta à força e seu conteúdo diverso estava espalhado por todos os lados — com algumas exceções. O alquimista estava se dedicando muito para separar a pilha de objetos: tubos de metal e agulhas usadas para drenar sangue, junto com ampolas de sangue e pacotinhos de pó prateado. Ele ergueu os olhos com a nossa entrada repentina e se fixou em Keith com um sorriso frio.
— Ah, que bom que está aqui, sr. Darnell. Queríamos mesmo lhe fazer algumas perguntas.
Keith ficou de cara no chão.
23
— O que você fez?
Eu estava sentada na ponta de uma fileira de cadeiras no desfile de Jill, quase uma semana depois, no centro de Palm Springs, esperando as coisas começarem. Eu nem sabia que Trey estava no desfile e fiquei surpresa ao vê-lo de repente, ajoelhado ao meu lado.
— Do que exatamente você está falando? — perguntei a ele. — Há mais ou menos um milhão de coisas pelas quais eu posso assumir a responsabilidade.
Ele desdenhou e manteve a voz baixa, o que não era muito necessário devido ao barulho de conversas ao nosso redor. Várias centenas de pessoas haviam comparecido ao desfile.
— Estou falando de Slade e dos amigos dele, e você sabe muito bem disso — Trey disse. — Eles andam muito aborrecidos por causa de alguma coisa esta semana. Ficam só reclamando dessas tatuagens idiotas — ele olhou para mim cheio de segundas intenções.
— O quê? — perguntei com expressão de inocência no rosto. — Por que você acha que isso tem alguma coisa a ver comigo?
— Está dizendo que não tem? — ele indagou, sem se deixar enganar nem um pouco.
Senti um sorrisinho traidor brincando nos meus lábios. Depois da inspeção ao apartamento de Keith, os alquimistas haviam garantido que os colegas tatuadores dele não teriam mais meios de continuar com as tatuagens ilícitas. Além disso, ninguém mais falou sobre Zoe me substituir. Demorou vários dias até que Slade e seus amigos percebessem que a conexão que tinham com aquelas tatuagens que melhoravam o desempenho não estava mais lá. Eu tinha passado a semana toda observando suas conversas furtivas com interesse, mas não tinha percebido que Trey também notara.
— Vamos dizer apenas que é possível que Slade em breve já não seja mais o superastro que tem sido — respondi. — Espero que você esteja pronto para se apresentar e ocupar o lugar dele.
Trey me examinou durante mais alguns momentos; parecia que estava esperando que eu dissesse algo mais. Como eu não falei nada, ele só sacudiu a cabeça e deu risada.
— Sempre que quiser café, Melbourne, é só falar comigo.
— Anotado — respondi. Fiz um gesto para o público que continuava crescendo. — Mas, aliás, o que você está fazendo aqui? Não sabia que você se interessava pela moda mais quente da atualidade.
— E não me interesso mesmo — ele concordou. — Mas algumas pessoas que eu conheço estão trabalhando no desfile.
— Garotas? — perguntei em tom de sacanagem.
Ele revirou os olhos.
— Amigas minhas. Não tenho tempo para essa bobagem de distração feminina.
— É mesmo? Achei que tinha sido por isso que você fez a sua tatuagem. As mulheres gostam dessas coisas.
Trey se retesou.
— Do que você está falando?
Eu me lembrei de que Kristin e Julia tinham mencionado como era estranho o fato de Trey ter tatuagem, e depois Eddie tinha mencionado que tinha visto o desenho na parte baixa das costas de Trey no vestiário. Eddie tinha dito que parecia um sol com diversos raios, feita com tinta muito comum. Eu estava esperando a chance para tirar sarro de Trey por causa dela.
— Não se faça de desentendido. Estou sabendo do seu sol brilhante. Como é que você sempre me critica tanto, hein?
— Eu...
Ele realmente não sabia o que dizer. Mais do que isso. Ele parecia pouco à vontade, preocupado — como se aquilo fosse algo que ele não queria que eu soubesse. Foi estranho. Não era nada tão sério assim. Eu estava prestes a questioná-lo mais quando Adrian de repente abriu caminho até nós pelo meio da multidão. Trey deu uma olhada no rosto perturbado de Adrian e se levantou imediatamente. Dava para entender a reação dele. A expressão de Adrian também teria me intimidado.
— Bom — Trey disse, sem jeito. — Obrigado mais uma vez. A gente se fala depois.
Murmurei uma despedida e observei quando Adrian passou por mim. Micah estava sentado ao meu lado, depois vinha Eddie e em seguida duas cadeiras vazias que tínhamos guardado. Adrian se sentou em uma delas e ignorou o cumprimento de Eddie. Momentos depois, Lee chegou apressado e ocupou a outra cadeira. Ele parecia incomodado com algo, mas, mesmo assim, conseguiu ser simpático com Adrian. Ele fitava o nada, e o meu bom humor se esvaiu. De algum modo, sem saber por quê, eu tinha a sensação de que eu era o motivo daquele mau humor todo.
Mas não tivemos tempo de discutir a questão. As luzes diminuíram e o desfile começou. A apresentação era feita pelo âncora de um telejornal local, que falou sobre os cinco estilistas que iriam se apresentar aquela noite. A de Jill era a terceira, e assistir aos que vieram antes nos deixou ainda mais ansiosos. Aquilo estava muito longe das sessões de ensaio que eu tinha presenciado antes. As luzes e a música faziam com que tudo assumisse um nível mais profissional, e as outras modelos pareciam bem mais velhas e experientes. Comecei a compartilhar do receio que Jill havia tido, de que talvez ela estivesse tentando fazer algo fora de seu alcance.
Então chegou a vez de Lia DiStefano. Jill foi uma de suas primeiras modelos a entrar, e apareceu com um vestido de noite prateado fluido, feito um tecido que parecia desafiar a gravidade. Uma meia-máscara de pérolas e prata cobria parte de seu rosto, escondendo sua identidade daqueles que não soubessem quem ela era. Eu achava que eles fossem amenizar um pouco suas características de vampira, possivelmente lhe dando uma cor mais parecida com a de uma humana. Em vez disso, tinham acentuado seu visual fora do comum, com um pó para iluminar a pele que a deixava ainda mais pálida, de um jeito que a fazia parecer sobrenatural. Cada cacho tinha sido ajeitado no lugar e caía ao redor do rosto de maneira artística; os fios estavam enfeitados com pedrinhas brilhantes.
A maneira de andar dela tinha melhorado imensamente desde o primeiro ensaio. Ela praticamente dormia com aqueles saltos e tinha ido além de simplesmente tentar não cair. Havia uma nova confiança e motivação nela que não existiam antes. De vez em quando, eu captava um vislumbre de nervosismo em seus olhos, ou um ajuste em seus passos enquanto ela controlava os saltos prateados altíssimos. Mas eu duvidava que alguém mais estivesse reparando nessas coisas. Qualquer pessoa que não conhecesse Jill nem suas características só iria ver uma mulher forte e etérea desfilando pela passarela. Era uma coisa fantástica. Se ela era capaz de se transformar tanto assim só com um pouco de incentivo, o que mais estaria por vir?
Dei uma olhada nos rapazes ao meu lado e vi sentimentos parecidos espelhados em seus rostos. O de Adrian estava cheio daquele orgulho de irmão que ele sempre demonstrava por ela, com todos os vestígios de seu mau humor anterior desaparecidos. Micah e Lee demonstravam adoração pura e sem filtro. Para a minha surpresa, a expressão de Eddie também era de adoração, junto com mais alguma coisa. Era quase como se ele... a idolatrasse. Era isso, percebi. Ao se mostrar como essa criatura com jeito de deusa, maior do que a vida, Jill concretizava todas as fantasias de proteção idealizadas de Eddie. Ela era a princesa perfeita agora, com seu cavaleiro prestativo pronto para servi-la.
Ela desfilou mais duas vezes para a linha de Lia, estonteante todas as vezes, apesar de não se equiparar exatamente à estreia com o vestido prateado. Assisti ao resto do desfile só com meia atenção. Meu orgulho e meu afeto por Jill me distraíram demais e, sinceramente, a maior parte das roupas que eu vi naquela noite era chamativa demais para o meu gosto.
Havia uma recepção depois do desfile, em que convidados, estilistas e modelos podiam interagir e beber alguma coisa. Nosso grupo encontrou um canto perto dos salgadinhos para esperar Jill, que ainda não tinha chegado. Lee tinha nas mãos um buquê enorme de lírios brancos. Adrian observou uma garçonete passar com uma bandeja cheia de taças de champanhe. Seus olhos se encheram de desejo, mas ele não fez nada para que ela parasse. Fiquei tão orgulhosa e aliviada! Jill, equilíbrio e álcool não eram coisas que nós íamos querer misturar.
Quando a garçonete se afastou, Adrian se virou para mim e eu finalmente vi a irritação de antes retornar. E, como eu desconfiava, o alvo era eu.
— Quando é que você pretendia me contar? — ele perguntou.
Aquilo era tão enigmático quanto a fala de abertura de Trey.
— Contar o quê?
— Que o auxílio financeiro não vai rolar! Conversei com a secretaria de matrícula e disseram que você já sabia.
Suspirei.
— Eu não estava exatamente escondendo de você. Só não tinha tido oportunidade de contar ainda. Havia mais um monte de coisas acontecendo.
Certo, eu na verdade estava adiando, exatamente por este motivo. Bom, não exatamente. Eu não sabia que ele iria ficar tão aborrecido por causa daquilo.
— Mas parece que você teve tempo suficiente para pagar a taxa de ouvinte. E teve dinheiro bastante para isso. Mas não para financiar a minha moradia.
Acho que o que mais me incomodava naquilo, além do tema, era a insinuação de que de algum modo eu havia optado por agir de uma maneira inconveniente para ele. Como se eu tivesse me submetido de propósito àquilo, apesar de haver uma maneira de evitar.
— É fácil incluir um pagamento único nas despesas — disse a ele. — Mas pagar um aluguel todo mês? Nem tanto.
— Então para que se dar ao trabalho? — ele exclamou. — O objetivo todo disso era conseguir dinheiro para sair da casa do Clarence! Se não fosse por isso, eu não faria esses cursos idiotas. Você acha que eu gosto de passar horas no ônibus todos os dias?
— As aulas estão te fazendo bem — retruquei, sentindo que eu mesma estava ficando irritada. A minha intenção não era perder a paciência, não ali e certamente não com todos os nossos amigos assistindo a tudo. No entanto, fiquei estarrecida com a reação de Adrian. Será que ele não era capaz de enxergar como era bom para ele fazer algo útil? Eu tinha visto o seu rosto quando me mostrara os quadros. Eles tinham lhe dado um canal saudável para lidar com Rose, isso sem falar em uma motivação para ele. Além disso, fiquei arrasada de ver como ele foi capaz de desprezar com tanto desdém as aulas “idiotas”. Era mais um lembrete de como o mundo era injusto, como eu não podia ter as coisas às quais os outros não davam valor.
Ele desdenhou.
— “Me fazendo bem”? Fala sério, pare de bancar a minha mãe mais uma vez! Não é o seu trabalho me dizer como viver a vida. Se eu quiser os seus conselhos, eu peço.
— Certo — eu disse, e coloquei as mãos na cintura. — Não é minha função dizer a você como viver a vida... só é minha função facilitar ao máximo para você. Porque só Deus sabe como você não pode sofrer com nada que seja levemente inconveniente. O que aconteceu com todas aquelas coisas que você disse? Sobre como estava determinado a melhorar sua vida? Quando me pediu para acreditar em você?
— Parem com isso, pessoal — Eddie disse, sem jeito. — Não é a hora nem o lugar.
Adrian o ignorou.
— Você não tem nenhum problema em facilitar a vida de Jill o máximo possível.
— Esta é a minha função — resmunguei em resposta. — E ela ainda é uma menina. Eu não achava que um adulto como você precisasse dos mesmos cuidados que ela!
Os olhos de Adrian se encheram de fogo cor de esmeralda quando ele olhou feio para mim, e então seu olhar se fixou em algo atrás de mim. Eu me virei e vi Jill se aproximar. Ela usava o vestido prateado mais uma vez e sua expressão estava cheia de alegria radiante — uma alegria que desabou quando ela se aproximou e percebeu que uma briga se desenrolava. Quando ela parou ao meu lado, toda a animação de um momento antes tinha sido substituída por preocupação e inquietação.
— O que está acontecendo? — ela perguntou e olhou de Adrian para mim. Claro que ela já sabia, por causa do laço. Era uma surpresa que os sentimentos sombrios dele não tivessem atrapalhado o desempenho dela antes.
— Nada — disse com a voz inalterada.
— Bom — disse Adrian. — Isso depende da sua definição de “nada”. Quer dizer, se você considera que mentir e...
— Pare com isso! — exclamei, erguendo a voz apesar de todos os meus esforços. Havia barulho demais no salão para alguém escutar, mas algumas pessoas que estavam por perto olharam para nós com curiosidade. — Apenas pare com isso, Adrian. Será que você pode não estragar esse momento para ela? Será que não pode fingir, apenas por uma noite, que existem outras pessoas no mundo além de você?
— Estragar as coisas para ela? — ele exclamou. — Como você ousa dizer uma coisa dessas? Você sabe o que eu fiz por ela! Eu fiz tudo por ela! Abri mão de tudo por ela!
— É mesmo? — perguntei. — Porque pelo que eu sei, não parece que...
Dei uma olhada no rosto de Jill e prontamente me interrompi. Atrás da máscara, os olhos dela estavam arregalados de desalento com as acusações que Adrian e eu estávamos trocando. Eu tinha acabado de dizer a ele que era egoísta e não pensava em Jill e, no entanto, lá estava eu, brigando sem parar com ele na grande noite dela, na frente dos seus amigos. Não importava se eu estava certa — e eu tinha certeza de que estava. Aquele não era o momento de ter aquela discussão. Eu não devia ter permitido que Adrian me fizesse cair nessa, e se ele não tinha sensatez de parar antes que tudo piorasse, então eu faria isso.
— Estou indo — eu disse. Forcei o sorriso mais sincero possível para Jill, que parecia estar à beira de lágrimas. — Você foi maravilhosa. De verdade.
— Sydney...
— Está tudo bem — disse a ela. — Tenho algumas coisas a fazer — me esforcei para pensar em algo. — Eu preciso, hum, limpar as coisas que Keith deixou para trás. Algum de vocês pode levar Eddie e ela de volta a Amberwood? — esta pergunta eu fiz para Micah e Lee. Eu sabia que um deles iria se oferecer. Não achei que precisasse tomar a mesma providência para Adrian. Sinceramente não me importava com o que fosse acontecer com ele aquela noite.
— Claro que sim — Lee e Micah responderam em uníssono. Mas, depois de um momento, Lee franziu a testa. — Por que você precisa arrumar as coisas de Keith?
— É uma longa história — balbuciei. — Vamos dizer que ele saiu da cidade e não vai voltar por um bom tempo. Talvez não volte nunca mais.
De maneira inexplicável, Lee pareceu incomodado com aquilo. Talvez durante todo o tempo que Keith tinha passado na casa de Clarence, os dois tivessem ficado amigos. Se fosse isso, Lee me devia uma.
Jill continuava aborrecida.
— Achei que nós todos iríamos sair para comemorar, não?
— Vocês podem ir se quiserem — eu disse. — Desde que Eddie esteja com você, para mim não faz diferença — estendi a mão sem jeito para Jill. Quase fiquei com vontade de abraçá-la, mas ela estava tão rebuscada e magnífica com sua roupa e sua maquiagem que eu fiquei com medo de estragar. Eu me contentei com um tapinha não muito convincente no ombro. — Falei sério. Você estava de tirar o fôlego.
Eu me afastei apressada, com um pouco de medo de que ou Adrian ou eu não nos aguentássemos e disséssemos algo idiota um para o outro. Eu precisava sair dali. A minha esperança era que Adrian tivesse noção suficiente para deixar a questão de lado e não fizesse a noite ficar ainda pior para Jill. Eu não sabia por que a briga com ele tinha me incomodado tanto. Nós vivíamos brigando desde que nos conhecemos. Que diferença fazia mais uma discussão? Era porque nós andávamos nos dando bem, percebi. Eu ainda não pensava nele em termos humanos, mas, em algum ponto do caminho, tinha passado a considerá-lo menos como monstro.
— Sydney?
Fui detida por uma voz inesperada: Laurel. Ela tinha tocado no meu braço enquanto eu passava por um grupo de garotas de Amberwood. Eu devia estar parecendo bem irritada mesmo porque, quando olhei nos olhos dela, ela chegou de fato a estremecer. Devia ser algo inédito.
— O que foi? — perguntei.
Ela engoliu em seco e se afastou das amigas com os olhos arregalados e desesperados. Um chapéu cobria a maior parte do cabelo que — pelo que tinha ouvido dizer — ela ainda não tinha conseguido recuperar e fazer voltar ao normal.
— Eu ouvi... ouvi dizer que talvez você poderia me ajudar. Com o meu cabelo — ela disse.
Esse era mais um favor que Kristin tinha feito para mim. Depois de deixar Laurel sofrer durante alguns dias, pedi a Kristin que fizesse correr a notícia de que Sydney Melrose — com sua farmácia no dormitório — talvez fosse capaz de consertar o que estava errado. Mas eu também tinha me assegurado de deixar bem claro que Laurel não era a minha pessoa preferida no mundo e que ela teria muito trabalho para me convencer.
— Talvez — respondi, tentando manter uma expressão severa, o que não foi difícil porque eu ainda estava muito brava com Adrian.
— Por favor — ela disse. — Faço qualquer coisa que você quiser se puder me ajudar! Já tentei tudo no meu cabelo, e nada funciona. — Para a minha surpresa, ela empurrou alguns anuários para cima de mim. — Pronto. Você queria ver isso, não queria? Fique com eles. Fique com qualquer coisa que quiser.
Mais cinco dias de lavagem com detergente forte iriam na verdade resolver o problema, mas eu é que não ia lhe dizer aquilo. Peguei os anuários.
— Se eu ajudar você — falei —, vai ter que deixar a minha irmã em paz. Está entendendo?
— Estou — ela se apressou em responder.
— Não sei se está. Chega de pegadinhas, de bullying ou de falar mal dela pelas costas. Você não precisa ser a melhor amiga dela, mas não quero que continue interferindo. Fique fora da vida dela. — Fiz uma pausa. — Bom, menos para pedir desculpas.
Laurel concordava com tudo que eu dizia.
— Tudo bem, tudo bem! Vou me desculpar agora mesmo!
Ergui os olhos para o lugar em que Jill estava com seus admiradores e as flores de Lee nos braços.
— Não. Não faça com que esta noite seja ainda mais estranha para ela. Amanhã está bom.
— Vou pedir desculpas — Laurel disse. — Prometo. Só me diga o que fazer. Como eu conserto isto.
Eu não achava que Laurel fosse falar comigo naquela noite específica, mas estava à espera dela mais dia, menos dia. Por isso, estava com o vidrinho de antídoto pronto na bolsa. Eu o peguei e os olhos dela quase saltaram para fora das órbitas quando o estendi na sua frente.
— Você só precisa de uma dose. Use como se fosse xampu. Depois, vai ter que tingir de novo. — Ela estendeu a mão para pegar o frasco e eu o tirei do alcance dela. — Estou falando sério. Você vai parar de incomodar Jill agora mesmo. Se eu der isto para você, não quero mais ouvir dizer que você está causando problemas para ela. Chega de ficar ofendida se ela falar com Micah. Chega de piadas dizendo que ela é uma vampira. Chega de ligar para a Nevermore e ficar perguntando sobre pessoas altas e pálidas.
Ela ficou boquiaberta.
— Chega do quê? Eu nunca liguei para ninguém!
Hesitei. Quando o tatuador tinha mencionado que alguém ficava ligando para perguntar sobre pessoas que pareciam vampiros, achei que era Laurel dando continuidade a sua piada. Pela expressão estarrecida no rosto dela, já não achava que fosse verdade.
— Bom, se eu ficar sabendo que qualquer uma das outras coisas continua, então o que aconteceu com o seu cabelo não vai ser nada em comparação com o que vai acontecer a seguir. Nada. Está entendendo?
Ela assentiu, trêmula.
— P-perfeitamente.
Entreguei o frasco para ela.
— Não se esqueça.
Laurel começou a se virar e então lançou mais um olhar sem jeito para mim.
— Sabe, às vezes você pode ser assustadora como o diabo.
Fiquei imaginando se os alquimistas tinham alguma ideia do que eu andava fazendo em relação àquela missão. Pelo menos a conversa servira para confirmar uma coisa. O desespero de Laurel me convenceu de que as piadas de vampira só tinham sido uma tática. Na verdade, ela não acreditava que nada daquilo fosse verdade. Mas, por outro lado, aquilo deixava no ar a pergunta preocupante de quem era a pessoa que estava ligando para a Nevermore e perguntando sobre vampiros.
Quando finalmente saí do prédio e seguia na direção do carro, resolvi que realmente iria à casa de Keith. Alguém precisava separar os pertences dele, e parecia uma maneira segura de evitar os outros. Ainda tinha umas duas horas antes do toque de recolher em Amberwood.
Ninguém tinha mexido no apartamento de Keith desde que os alquimistas haviam feito a inspeção. Os indícios incriminadores de antes estavam lá, onde tínhamos descoberto suas reservas de sangue de Clarence e de prata. Os alquimistas praticamente só tinham tirado o essencial e deixado o resto dos pertences dele para trás. A minha esperança de ir até lá naquela noite era pegar os outros ingredientes dele, os que não eram usados na produção de tatuagens ilícitas. Sempre era útil ter quantidades extras dessas substâncias químicas à mão, seja para destruir corpos de Strigoi ou para fazer experiências no dormitório.
Não tive tanta sorte. Apesar de os outros suprimentos dele não serem ilegais, parecia que os alquimistas acharam melhor confiscar tudo. Mas, como eu estava ali, resolvi conferir se alguns dos outros bens dele seriam úteis para mim. Keith com certeza não tinha se segurado para gastar seus fundos ilícitos incrementando o apartamento temporário com todos os confortos que ele devia ter em casa. Apague isso. Duvidava que ele tivesse em casa qualquer coisa daquele tipo: uma cama bem maior do que uma king size, uma tv de tela plana gigantesca, um sistema de som digno de um teatro e comida suficiente para dar festa todas as noites durante um mês. Examinei armário após armário, chocada por ver quanta comida era só porcaria. Ainda assim, talvez valesse a pena levar um pouco para Jill e Eddie, por isso coloquei os doces mais transportáveis em sacolas apropriadas, organizando por cor e tamanho.
Também fiquei pensando sobre o lado prático de levar a tv para Amberwood. Parecia um desperdício deixar ali para a turma de desmanche dos alquimistas, mas eu já podia imaginar a expressão da sra. Weathers se nos visse arrastando aquilo escada acima para o quarto. Nem tinha certeza de que Jill e eu tínhamos uma parede grande o bastante para comportá-la. Sentei na cadeira reclinável de Keith para refletir sobre a questão da tv. Até a poltrona era da mais alta qualidade. O couro luxuoso parecia manteiga, e eu praticamente afundei nas almofadas. Pena não haver espaço para ela na sala da sra. Terwilliger. Eu era capaz de enxergá-la relaxando ali enquanto tomava um cappuccino e lia documentos antigos.
Bom, seja lá o que acontecesse com o resto das coisas de Keith, seria necessário contratar um caminhão de mudança, porque o Pingado com certeza não ia ter lugar para a tv, a poltrona e a maior parte das outras coisas. Quando isso ficou decidido, eu não tinha mais motivo para ficar ali naquela noite, mas detestaria ter que voltar. Estava com medo de ver Jill. Eu não iria receber bem nenhuma reação dela. Se ela ainda estivesse triste por causa da briga, iria me sentir culpada. Se ela tentasse defender Adrian, eu também ficaria aborrecida.
Suspirei. A cadeira era tão ridiculamente confortável que eu bem que podia aproveitar mais um pouco. Remexi na minha bolsa a tiracolo para achar a minha lição de casa e me lembrei dos anuários. Kelly Hayes. Quase não tinha tido tempo de pensar nela ou nos assassinatos, não com todo o drama sobre Keith e as tatuagens. Kelly estava no penúltimo ano quando morreu, e eu tinha um anuário de cada um dos anos que ela tinha passado em Amberwood.
Mesmo quando era caloura, Kelly ocupava muito espaço no anuário. Eu me lembrei de como a sra. Weathers tinha dito que Kelly era boa atleta. Não estava brincando. Kelly tinha participado de praticamente todos os esportes oferecidos por Amberwood e tinha sido excepcional em todos eles. Ela entrou para os times competitivos já no primeiro ano e ganhou todo tipo de prêmios. Outra coisa que eu também descobri imediatamente era que Kelly, com toda a certeza, não era Moroi. Isso era óbvio, mesmo em branco e preto, e foi confirmado na página dupla em cores do segundo ano. Seu tipo físico era bem humano e sua pele bronzeada obviamente adorava sol.
Eu estava examinando o índice do anuário do penúltimo ano quando ouvi alguém bater à porta. Por um momento, não quis atender. Até onde eu sabia, devia ser algum amigo fracassado que Keith tinha feito em seu período de estadia, querendo comer a comida dele e assistir à televisão. Mas então fiquei preocupada que pudesse ser alguma coisa relacionada aos alquimistas. Encontrei a seção de homenagem a Kelly que estava procurando e pus o anuário no chão, antes de me aproximar da porta. Espiei pelo olho mágico e avistei um rosto conhecido.
— Lee? — perguntei ao abrir a porta.
Ele me lançou um sorriso tímido.
— Oi. Desculpe vir incomodar você.
— O que está fazendo aqui? — exclamei e fiz sinal para que ele entrasse. — Por que não está com os outros?
Ele me seguiu até a sala.
— Eu... precisava conversar com você. Quando disse que vinha para cá, fiquei imaginando se o que o meu pai disse era verdade. Que Keith não está mais aqui.
Voltei a me sentar na poltrona reclinável. Lee se acomodou no sofazinho próximo.
— É. Keith se foi. Ele, hum, recebeu outra missão.
Keith tinha sido afastado e estava recebendo seu castigo em algum lugar, e por mim estava mais do que bom.
Lee deu uma olhada ao redor e absorveu a mobília cara.
— Este lugar é bacana — os olhos dele pousaram no armário onde o material de alquimia ficava guardado. A porta ainda estava pendurada de maneira precária pelas dobradiças, e eu não me dei ao trabalho de arrumar, já que os alquimistas tinham levado embora todo o conteúdo.
— Este lugar... — Lee franziu a testa. — Este lugar foi invadido?
— Não exatamente — respondi. — Keith, hum, só precisou pegar umas coisas apressado antes de ir embora.
Lee torceu as mãos e olhou ao redor mais um pouco antes de se virar para mim outra vez.
— Ele vai voltar?
— Provavelmente não.
Lee ficou desolado, e isso me deixou surpresa. Sempre tinha tido a impressão de que ele não gostava de Keith.
— Algum outro alquimista vai substituí-lo?
— Não sei — respondi. A questão ainda estava sendo debatida. O fato de eu ter entregado Keith tinha impedido que eu fosse substituída por Zoe, e Stanton agora estava pensando em simplesmente me colocar como a alquimista local, já que as funções eram leves. — Se alguém for mandado para cá, ainda vai demorar um pouco.
— Então você é a única alquimista na área — ele repetiu, parecendo ainda mais triste.
Dei de ombros.
— Tem alguns em Los Angeles.
Isso inexplicavelmente fez com que ele se alegrasse um pouco.
— É mesmo? Será que você pode me dizer qual é o...
Lee se interrompeu quando sua atenção se voltou ao anuário aberto que estava aos meus pés.
— Ah — eu disse e o recolhi. — É só um projeto de pesquisa que eu estou fazendo sobre...
— Kelly Hayes — a expressão animada desapareceu.
— É. Você ouviu falar dela? — Estendi o braço para pegar um pedaço de papel, para usar como marcador na seção de homenagem.
— Pode-se dizer que sim — ele respondeu.
Eu comecei a perguntar o que ele queria dizer, e foi aí que eu vi. Na página dupla que tinha sido feita em honra a Kelly, havia fotos de todas as suas atividades no ensino médio. Como não era de surpreender, na maior parte das fotos ela praticava algum esporte. Havia algumas de outras áreas de seu mundo social e acadêmico, incluindo uma dela no baile de formatura. Ela usava um vestido de cetim azul estonteante que ressaltava sua silhueta atlética e dava um enorme sorriso para a câmera enquanto abraçava seu lindo par, vestido com um smoking.
Lee.
Ergui a cabeça de supetão e olhei para ele, que agora me observava com uma expressão impassível. Eu me voltei de novo para a foto e a analisei com cuidado. O mais notável não era o fato de Lee estar na foto — apesar de, pode acreditar, eu ainda não ter entendido o que havia se passado ali. O que me pegou foi o momento. Aquele anuário tinha cinco anos. Lee teria catorze anos na época, mas o sujeito que olhava para mim ao lado de Kelly com toda a certeza não era tão novo assim. O Lee da foto era igualzinho ao rapaz de dezenove anos que estava sentado à minha frente, e aquilo era impossível. Os Moroi não tinham imortalidade especial. Eles envelheciam como os humanos. Voltei a erguer os olhos, imaginando se eu devia perguntar se ele tinha um irmão.
Mas Lee me poupou a pergunta. Ele simplesmente me olhou com uma expressão de tristeza e sacudiu a cabeça.
— Merda. Eu não queria que as coisas acontecessem assim.
E então, ele pegou uma faca.
24
É estranho como a gente reage em momentos de perigo iminente. Parte de mim era pânico puro, com o coração disparado e a respiração rápida. Aquela sensação de vazio, que fazia parecer que um buraco tinha se formado no meu peito, voltou. Outra parte de mim foi capaz de inexplicavelmente continuar pensando com raciocínios lógicos, algo como: Certo, este é o tipo de faca que poderia cortar uma garganta. O resto de mim? Bom, o resto de mim estava apenas confuso.
Fiquei onde estava e mantive minha voz baixa e inalterada.
— Lee, o que está acontecendo? O que é isso?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não finja. Eu sei que você sabe. Você é inteligente demais. Sabia que ia descobrir tudo, mas não achei que seria tão rápido.
A minha mente girava. Mais uma vez, alguém me achava mais esperta do que eu realmente era. Acho que devia ficar lisonjeada com a crença que as pessoas tinham na minha inteligência, mas a verdade é que ainda não sabia o que estava acontecendo. Mas não sabia se deixar isso transparecer iria me ajudar ou me prejudicar. Resolvi agir com calma enquanto conseguisse.
— É você na foto — eu disse, com cuidado para não fazer soar como uma pergunta.
— Claro que sim — ele respondeu.
— Você não envelheceu — ousei dar uma olhada rápida na foto, só para confirmar por conta própria. Aquilo ainda estava me confundindo. Só os Strigoi não envelheciam e permaneciam imortais com a idade em que tinham sido transformados. — Isso... isso é impossível. Você é Moroi.
— Ah, eu envelheci — ele disse com amargor. — Não muito. Não o suficiente para você poder perceber, mas, pode acreditar, eu envelheço. Não é mais como era antes.
Ainda não fazia a menor ideia do que ele estava falando, ainda não tinha certeza de como tínhamos chegado ao ponto de Lee — cujos olhos sempre brilhavam e morriam de amores por Jill — estar me ameaçando com uma faca. Mas eu também não entendia como ele tinha exatamente a mesma aparência de uma foto de cinco anos antes. Só havia uma coisa terrível da qual estava começando a ter certeza.
— Você... matou Kelly Hayes — o medo no meu peito se intensificou. Ergui o olhar da lâmina para fitar os olhos dele. — Mas, com certeza... com certeza não matou Melody... nem Tamara...
Mas ele assentiu.
— E Dina. Mas você não deve ter ouvido falar dela, não é mesmo? Ela era apenas humana, e vocês não acompanham as mortes humanas. Só as dos vampiros.
Era difícil não voltar a olhar para a faca. Eu só conseguia pensar em como era afiada e estava perto de mim. Com apenas um golpe eu acabaria igualzinha àquelas outras garotas, com a vida se esvaindo em sangue à minha frente. Tentei enlouquecidamente encontrar algo para dizer, desejando mais uma vez ter aprendido as habilidades sociais que eram tão fáceis para outras pessoas.
— Tamara era sua prima — consegui dizer. — Por que matou sua própria prima?
Um momento de arrependimento passou pelo rosto dele.
— Não era o que eu queria... quer dizer, era sim... mas, bom, eu estava fora de mim quando voltei. Eu só sabia que precisava ser despertado mais uma vez. Tamara estava no lugar errado na hora errada. Eu ataquei a primeira Moroi que vi... mas não funcionou. Foi aí que tentei outros. Achei que com certeza um dos tipos ia funcionar. Humano, dampiro, Moroi... nada deu certo.
Havia um desespero terrível na voz dele e, apesar do meu medo, uma parte de mim queria ajudá-lo... mas estava perdida, sem esperança.
— Lee, sinto muito. Não estou entendendo. Por que você precisava “tentar outros”? Por favor, largue esta faca e vamos conversar. Talvez eu possa ajudar.
Ele me lançou um sorriso triste.
— E pode. Mas eu não queria que fosse você. Queria que fosse Keith. Ele certamente merece morrer mais do que você. E Jill... bom, Jill gosta de você. Eu queria respeitar isso e poupá-la.
— Ainda é possível fazer isso — eu disse. — Ela... ela não ia querer que você fizesse isso. Ela ficaria triste se soubesse...
De repente, Lee estava em cima de mim e me prendia à cadeira com a faca no meu pescoço.
— Você não sabe! — exclamou. — Ela não sabe. Mas vai saber, e vai ficar agradecida. Ela vai me agradecer, e nós dois seremos jovens e ficaremos juntos para sempre. Você é a minha chance. Os outros não deram certo, mas você... ele passou a lâmina da faca perto da minha tatuagem. — Você é especial. Seu sangue é mágico. Eu preciso de um alquimista, e agora você é a minha única chance.
— De que... chance... você está falando? — eu soltei, sem fôlego.
— Minha chance de ser imortal! — ele exclamou. — Meu Deus, Sydney. Você nem é capaz de imaginar. Como é ter isso nas mãos e depois perder. Ter força e poder infinitos... não envelhecer, saber que você vai viver para sempre. E então, acabou! Foi tirado de mim. Se algum dia eu encontrar o usuário de espírito filho da mãe que fez isso comigo, eu mato. Mato e bebo o sangue dele já que, depois desta noite, voltarei a ser completo. Vou me redespertar.
Um calafrio percorreu a minha espinha. À luz de tudo, seria de se pensar que eu já estava no nível máximo de terror. Que nada. Acontece que ainda havia mais por vir. Porque, com essas palavras, comecei a formar uma teoria frágil a respeito do que ele poderia estar falando. “Despertado” era um termo usado no mundo dos vampiros apenas sob circunstâncias muito especiais.
— Você era um Strigoi antes — sussurrei, sem nem mesmo ter certeza se eu mesma acreditava no que dizia.
Ele recuou um pouco com os olhos cinzentos arregalados e com um brilho febril.
— Antes eu era um deus! E vou voltar a ser. Isso eu juro. Sinto muito, de verdade. Sinto muito por ser você e não Keith. Sinto muito por você ter descoberto a respeito de Kelly. Se isso não tivesse acontecido, eu podia procurar outro alquimista em Los Angeles. Mas você não percebe? Agora eu não tenho outra alternativa... — a faca continuava na minha garganta. — Eu preciso do seu sangue. Não posso continuar assim... não como um Moroi mortal. Preciso voltar a ser o que era antes.
Alguém bateu na porta.
— Não dê nenhum pio — Lee sibilou. — A pessoa vai desistir.
Segundos depois, a batida se repetiu, seguida por:
— Sage, eu sei que você está aí. Eu vi o seu carro. Sei que você está irada, mas precisa me escutar.
Ding-dong, a distração está chamando.
— Adrian! — eu berrei e levantei da cadeira em um salto. Não fiz nenhuma tentativa de desarmar Lee. O meu único objetivo era a segurança. Eu o empurrei antes que pudesse reagir e fui na direção da porta, mas ele estava mais preparado do que eu esperava. Ele pulou para cima de mim e me jogou no chão; a faca pegou no meu braço quando eu caí. Gritei de dor quando senti a ponta da lâmina entrar na minha pele. Eu me debati contra ele, mas isso só serviu para a faca se enterrar ainda mais.
A porta se abriu de repente e eu fiquei feliz por tê-la deixado destrancada após convidar Lee para entrar. Adrian avançou e se deteve ao absorver a cena.
— Não se aproxime — Lee avisou, e encostou a faca na minha garganta mais uma vez. Dava para sentir o sangue quente escorrendo do meu braço. — Feche a porta. E então... sente-se e coloque as mãos atrás da cabeça. Mato Sydney se não fizer isto.
— Ele vai me matar de qualquer jeito... ahh! — as minhas palavras foram interrompidas quando a faca perfurou a minha pele, não o suficiente para me matar, mas sim para causar dor.
— Certo, certo — Adrian disse e ergueu as mãos. Ele parecia mais sóbrio e mais sério do que eu jamais tinha visto. Quando se sentou no chão, com as mãos atrás da cabeça conforme tinha sido ordenado, ele disse em tom suave: — Lee, não sei o que você está fazendo, mas precisa parar com isso agora, antes que vá mais longe. Você não tem uma arma de fogo. Não vai ter como segurar nós dois aqui só com uma faca.
— Já deu certo antes — Lee disse. Ainda sem afastar a faca de mim, ele enfiou a outra mão no bolso do casaco e pegou um par de algemas. Aquilo foi inesperado. Jogou para Adrian. — Coloque isso nos pulsos. — Como Adrian não reagiu imediatamente, Lee forçou a faca até eu berrar. — Agora!
Adrian colocou as algemas.
— Eram para ela, mas você ter vindo pode ser uma coisa boa — Lee disse. — Provavelmente terei fome quando for redespertado.
Adrian arqueou uma sobrancelha.
— Redespertado?
— Ele era Strigoi — consegui dizer. — É ele que anda matando as garotas... cortando a garganta delas... para tentar voltar a ser um deles.
— Fique quieta — Lee disse, irritado.
— Por que você cortava a garganta delas? — Adrian perguntou. — Você tem caninos.
— Porque não funcionava! Eu usei, sim, os meus caninos. Bebi o sangue delas... mas não deu certo. Não voltei a me redespertar. Então, precisei cobrir os meus rastros. Os guardiões sabem distinguir as mordidas de Moroi e de Strigoi. De todo modo, eu precisava da faca para dominá-las. Por isso, cortei o pescoço delas para esconder o rastro... fazer com que eles pensassem que eu era um Strigoi maluco. Ou um caçador de vampiros.
Dava para ver Adrian processando aquilo tudo. Não sei se ele acreditou ou não, mas, de todo o modo, ele tinha facilidade para embarcar em ideias malucas.
— Se as outras não funcionaram, então Sydney também não vai funcionar.
— Ela tem que funcionar — Lee disse em tom fervoroso. Ele me virou, de modo que fiquei voltada com a barriga para cima, ainda presa pelo peso do corpo dele, maior do que o meu.
— O sangue dela é especial. Eu sei que é. E se não der certo... vou procurar ajuda. Vou procurar ajuda para me redespertar, e então vou despertar Jill para podermos ficar juntos para sempre.
Adrian se levantou em um salto, cheio de uma fúria surpreendente.
— Jill? Não faça nada contra ela! Nem toque nela!
— Sente-se — Lee vociferou. Adrian obedeceu. — Jamais faria nada de mal contra ela. Eu amo Jill. E é por isso que vou me assegurar de que ela permaneça exatamente como é. Para sempre. Vou despertá-la depois que me redespertar.
Tentei olhar nos olhos de Adrian, imaginando se seria capaz de transmitir alguma mensagem silenciosa. Se nós dois atacássemos Lee juntos — mesmo com Adrian algemado —, talvez tivéssemos uma chance de dominá-lo. Lee estava a ponto de rasgar a minha garganta, eu tinha certeza, na esperança de que... o quê? De que pudesse beber o meu sangue e se tornar Strigoi?
— Lee — eu disse com a voz baixinha. Movimento demais na minha garganta faria com que a faca me cortasse. — Não deu certo com as outras garotas. Não acho que o fato de eu ser alquimista faça diferença. Seja lá o que o vampiro usuário de espírito fez para salvar você... agora não dá mais para voltar atrás. Não importa de quem seja o sangue que você beber.
— Ele não me salvou! — Lee vociferou. — Ele acabou com a minha vida. Faz seis anos que eu tento recuperá-la. Eu estava quase pronto para o último recurso... até você e Keith chegarem. E eu ainda tenho essa última opção. Mas não quero que chegue a isso. Pelo bem de todos nós.
Eu não era o último recurso? Sinceramente, não conseguia ver como qualquer outro plano alternativo poderia ser pior para mim. Nesse ínterim, Adrian continuava sem olhar na minha direção, coisa que me deixou frustrada — até eu perceber o que ele estava tentando fazer.
— Isso é um erro — ele disse a Lee. — Olhe para mim e diga que você realmente quer fazer isso com ela.
Algemado ou não, Adrian não tinha a velocidade nem a força de um dampiro, alguém que poderia dar um pulo e desarmar Lee antes que a faca causasse danos. Adrian também não tinha o poder de usar um elemento físico, como o fogo, algo que poderia ser usado como arma concreta. No entanto, Adrian tinha a habilidade de compelir. A coação era uma habilidade inata a todos os vampiros, mas para os que controlavam o espírito a aptidão era especial. Infelizmente, funcionava melhor quando se olhava nos olhos, e Lee não estava cooperando. Sua atenção estava toda em mim, bloqueando as iniciativas de Adrian.
— Tomei minha decisão há muito tempo — disse Lee. Com a mão livre, ele molhou os dedos no ferimento do meu braço que sangrava. Levou os dedos aos lábios com uma expressão de resignação sombria no rosto. Ele lambeu o sangue da mão, coisa que não me pareceu nem de longe tão nojenta quanto teria parecido sob outras circunstâncias. Com tanta coisa acontecendo naquele momento, sinceramente não era mais terrível do que o resto e eu simplesmente deixei passar.
Uma expressão de choque e surpresa total passou pelo rosto de Lee, que logo se transformou em nojo.
— Não — ele disse sem fôlego. Repetiu o movimento, passando mais sangue nos dedos e lambendo. — Tem alguma coisa... tem alguma coisa errada...
Ele levou a boca até o meu pescoço e eu choraminguei, temendo o inevitável. Mas não foram os dentes dele que eu senti, e sim apenas um roçar bem de leve de seus lábios e da língua no ferimento que ele tinha causado, como alguma espécie de beijo perverso. Ele recuou de supetão imediatamente e me encarou, horrorizado.
— O que há de errado com você? — sussurrou. — O que há de errado com o seu sangue? — Ele fez a terceira tentativa de experimentar o meu sangue, mas não conseguiu terminar. Ele fez uma careta. — Eu não consigo. Não consigo engolir nem um pouco. Por quê?
Nem Adrian nem eu sabíamos responder. Lee ficou murcho com a derrota durante um momento, e eu de repente ousei pensar que ele poderia simplesmente desistir e colocar fim àquela loucura. Ele respirou fundo e endireitou o corpo, com determinação renovada nos olhos. Fiquei tensa, esperando ele dizer que agora iria tentar beber o sangue de Adrian, apesar do fato de que uma Moroi — duas, contando Melody — parecia ter feito parte do cardápio de seus fracassos anteriores.
Em vez disso, Lee tirou o celular do bolso, sem afastar a faca da minha garganta e impedindo que eu tentasse qualquer tipo de fuga. Ele digitou um número e ficou esperando atenderem.
— Dawn? É Lee. É... é, eu sei. Bom, tenho dois para você, prontinhos, só esperando. Um Moroi e uma alquimista. Não... não é o velho. Sim. Sim, ainda estão vivos. Tem que ser hoje à noite. Eles sabem sobre mim. Pode ficar com eles... mas sabe qual é o acordo. Você sabe o que eu quero... isso. Ã-hã. Certo. — Lee disse o nosso endereço e desligou. Um sorriso de satisfação cruzou seu rosto. — Nós temos sorte. Elas estão no leste de Los Angeles, então não vão demorar muito para chegar até aqui... principalmente porque não estão muito preocupadas com os limites de velocidade.
— Quem são “elas”? — Adrian perguntou. — Eu me lembro de você ligar para uma tal de Dawn em Los Angeles, mas achei que fosse alguma das suas amigas gostosas da faculdade.
— São elas que fazem o nosso destino — Lee respondeu em tom sonhador.
— Que coisa deliciosamente enigmática e sem sentido — Adrian balbuciou.
Lee olhou feio e então examinou Adrian com atenção.
— Tire a gravata.
Percebi que eu tinha passado tanto tempo com Adrian que estava pronta para fazer algum comentário do tipo: “Ah, fico feliz em saber que as coisas já não estão mais tão formais”. Aparentemente, a situação era perigosa o suficiente — e a faca na minha garganta problemática o suficiente — para Adrian não retrucar. Ele tinha algemado os pulsos na frente do corpo e, depois de algumas manobras complexas com as mãos, finalmente conseguiu soltar a gravata que tinha vestido para o desfile de Jill. Ele a jogou para Lee.
— Cuidado — Adrian falou. — É de seda. — No final das contas, não estava completamente desprovido de sarcasmo.
Lee me rolou para que eu ficasse de barriga para baixo; ele me livrou da faca, mas não me deu tempo para reagir. Com habilidade notável, rapidamente amarrou as minhas mãos nas costas com a gravata de Adrian. Para isso, precisou segurar e puxar um pouco os meus braços, o que doía bastante depois da facada. Ele me largou quando terminou e permitiu que me sentasse cautelosamente, mas só de tentar forçar a gravata já percebi que não conseguiria desatar aqueles nós tão cedo. Inquieta, fiquei imaginando quantas garotas ele tinha amarrado antes naquela sua tentativa doentia de se tornar Strigoi.
Um silêncio estranho e constrangedor recaiu enquanto esperávamos pelas “pessoas que fazem o destino” chegarem. Os minutos iam passando e eu pensava, enlouquecida, no que fazer. Quanto tempo nós tínhamos até que as pessoas para quem ele tinha ligado chegassem? Pelo que ele tinha dito, imaginava que seria quase uma hora. Sentindo-me corajosa, finalmente tentei me comunicar com Adrian, mais uma vez esperando que nós pudéssemos combinar um ataque conjunto a Lee disfarçadamente — apesar de a nossa possibilidade de sucesso ter diminuído demais com nós dois de mãos amarradas.
— Como foi que você chegou até aqui? — perguntei.
O olhar de Adrian estava fixado em Lee, ainda esperançoso por contato direto dos olhos, mas ele deu uma olhadela rápida e seca para mim.
— Da mesma maneira que eu vou a todo lugar, Sage. De ônibus.
— Por quê?
— Porque eu não tenho carro.
— Adrian! — Impressionante. Mesmo com a nossa vida em perigo, ele ainda conseguia me enfurecer.
Ele deu de ombros e voltou a se concentrar em Lee, apesar de as palavras obviamente serem para mim.
— Para pedir desculpas. Porque eu fui um grande imbecil com você no desfile da Chave de Cadeia. Pouco depois de você sair, percebi que tinha que ir atrás. — Ele fez uma pausa eloquente e olhou ao redor. — Acho que nenhuma boa ação passa sem castigo.
De repente me senti péssima. O fato de Lee ter se transformado em psicopata certamente não era minha culpa, mas fiquei incomodada por Adrian estar naquela situação por ter ido pedir desculpas para mim.
— Tudo bem. Você não foi, hum, assim tão mau — eu disse de um jeito meio ridículo, na esperança de fazê-lo se sentir melhor.
Um sorrisinho brincou nos lábios dele.
— Você é uma péssima mentirosa, Sage, mas, mesmo assim, estou comovido pela sua tentativa de me consolar. Dou nota dez para o seu esforço.
— É, bom... o que aconteceu lá parece meio pequeno à luz da situação atual — balbuciei. — É fácil perdoar.
A testa de Lee ia ficando mais franzida à medida que nos escutava.
— Os outros sabem que vocês estão aqui? — ele perguntou a Adrian.
— Não — Adrian respondeu. — Eu disse que ia voltar para a casa de Clarence.
Não sabia se ele estava mentindo ou não. Por um momento, não achei que fosse fazer diferença. Os outros tinham ouvido quando eu disse que ia para lá, mas nenhum deles teria razão para ir atrás de nós.
Nenhuma razão a não ser o laço.
Prendi a respiração e olhei nos olhos de Adrian. Ele virou o rosto, talvez com medo de entregar o que eu tinha acabado de perceber. Não importava se a turma toda sabia onde eu estava. Se Jill estivesse conectada a Adrian, ela saberia agora. E saberia que nós estávamos encrencados. Mas isso era partir do princípio de que aquele era um dos momentos em que ela era capaz de enxergar dentro da mente dele. Os dois tinham admitido que o laço era inconsistente e que emoções fortes podiam causar a conexão. Bom, se isso não contasse como situação de emoção forte, não sei o que contaria. Mesmo que ela se desse conta do que estava acontecendo, havia muitas questões em jogo. Jill teria que chegar até ali, e não poderia fazer isso sozinha. Ligar para a polícia seria o método mais rápido, mas ela podia hesitar se soubesse que era caso de vampiro. Ela precisaria de Eddie. Quanto tempo eles demorariam se já tivessem voltado para o alojamento?
Eu não tinha ideia. A única coisa que eu sabia era que precisávamos continuar vivos porque, se conseguíssemos, Jill iria mandar ajuda para nós de um jeito ou de outro. Só que eu não sabia mais quais eram nossas chances de sobrevivência. Adrian e eu estávamos confinados, encurralados com um sujeito que não tinha medo de matar com uma faca e que estava desesperado para voltar a ser Strigoi. Essa era uma péssima combinação, e ameaçava piorar...
— Quem está vindo para cá, Lee? — perguntei. — Para quem você ligou? — Como ele não respondeu, tirei a próxima conclusão lógica. — São Strigoi. Você chamou Strigoi para vir aqui.
— É o único modo — ele disse, enquanto jogava a faca de uma mão para a outra. — A única maneira que restou. Sinto muito. Não posso mais ficar desse jeito. Não posso mais ser mortal. Já passou tempo demais.
Claro. Os Moroi podiam se tornar Strigoi de duas maneiras. Uma era beber o sangue de outra pessoa e matá-la no processo. Lee tinha tentado isso, usando toda combinação de vítimas que conseguiu, e fracassou. Isso o deixava com uma última opção desesperada: a conversão por meio de outro Strigoi. Normalmente, isso acontecia à força, quando um Strigoi matava alguém e depois dava seu próprio sangue para a vítima. Era o que Lee queria que fizessem com ele, e em troca daria nossas vidas aos Strigoi que iriam convertê-lo. E depois ele queria fazer o mesmo com Jill, motivado por algum tipo de amor equivocado...
— Mas não vale a pena — eu disse, com o desespero e o medo a me dar coragem. — Não vale a pena o preço de matar inocentes e colocar a sua alma em perigo.
O olhar de Lee recaiu sobre mim e sua expressão de indiferença era tão gélida que tive dificuldade para assimilar que a pessoa à minha frente era a mesma para quem eu sorria com indulgência enquanto paquerava Jill.
— Não vale, Sydney? Como é que você pode saber? Você se privou de prazer a maior parte da vida. Você é distante dos outros. Você nunca se permitiu ser egoísta, e olhe só onde isso a fez parar. A sua “moral” fez com que a sua vida fosse curta e austera. Pode me dizer agora, quando está prestes a morrer, que não gostaria de ter se permitido um pouco mais de diversão?
— Mas a alma imortal...
— Que diferença isso faz para você? — ele inquiriu. — Por que se incomodar em viver uma vida triste, toda regulada, neste mundo, na esperança de que talvez a nossa alma vá para algum domínio celestial, se eu posso assumir o controle agora... garantir que vou viver para sempre neste mundo, com todos os seus prazeres, forte e jovem para sempre? Isso é real. Isso é algo em que posso depositar a minha fé.
— É errado — eu disse. — Não vale a pena.
— Você não diria isso se tivesse passado pelo que eu passei. Se tivesse sido Strigoi, também não ia querer perder isso nunca.
— Como foi que você perdeu? — Adrian perguntou. — Qual vampiro usuário do espírito salvou você?
Lee deu uma gargalhada de desdém.
— Você quer dizer qual me roubou. Não sei. Tudo aconteceu tão rápido. Mas assim que eu encontrar esse vampiro... ahh!
Um anuário não é a melhor das armas, principalmente se for do tamanho do de Amberwood, mas em uma situação desesperadora — e de surpresa — serve.
Eu tinha percebido antes que não ia conseguir soltar os nós da gravata rápido. Era verdade. Demorei todo esse tempo, mas consegui. Por algum motivo, dar nós era uma habilidade útil no currículo dos alquimistas, que eu tinha treinado na infância com o meu pai. Assim que me livrei da gravata de Adrian, estendi o braço e peguei a primeira coisa que consegui: o anuário do penúltimo ano de Kelly. Eu me levantei em um pulo e bati com tudo na cabeça de Lee. Ele se encolheu com o impacto e largou a faca no processo, e eu aproveitei a oportunidade para disparar até o outro lado da sala e agarrar o braço de Adrian. Ele não precisou da minha ajuda e já estava tentando se levantar.
Não fomos muito longe antes de Lee nos alcançar. A faca tinha escorregado para algum lugar que ninguém viu, e ele confiava apenas na própria força. Ele me arrastou e me separou de Adrian, com uma mão no meu braço machucado e a outra no meu cabelo, me fazendo tropeçar. Adrian saiu atrás de nós e fez o que pôde para acertar Lee, apesar das mãos algemadas. Nós não éramos a força de luta mais eficiente, mas se pudéssemos segurar Lee ainda que por um momento, havia chance de conseguirmos sair dali.
Lee estava distraído com nós dois, tentando lutar conosco e nos afastar ao mesmo tempo. Sem que eu me desse conta, a aula de Eddie me voltou à cabeça, a parte sobre como um soco bem dado era capaz de causar danos sérios a alguém mais forte do que você. Avaliei a situação em segundos e cheguei à conclusão de que tinha uma abertura. Fechei a mão do jeito que Eddie tinha me ensinado naquela aula rápida e posicionei meu corpo de maneira a dirigir o peso de maneira eficiente. Dei o golpe.
— Ai!
Berrei de dor quando meu punho fechado bateu nele. Se essa era a maneira “segura” de dar um soco, não era capaz de imaginar quanto um golpe desleixado devia doer. Felizmente, parece que causou o mesmo nível de dor — se não maior — a Lee. Ele caiu para trás e bateu na poltrona reclinável de um jeito que perdeu o equilíbrio e desabou no chão. Fiquei de queixo caído com o que tinha feito, mas Adrian continuava em movimento. Ele me empurrou para a porta, aproveitando a desorientação momentânea de Lee.
— Vamos lá, Sage. É agora.
Nós corremos até a porta, prontos para fugir enquanto Lee gritava palavrões para nós. Estendi a mão para a maçaneta, mas a porta se abriu antes que eu encostasse nela.
E duas Strigoi entraram na sala.
25
Eu tinha tirado sarro de Keith quando chegamos a Palm Springs, por ficar paralisado perto de um Moroi. Mas, ali parada, cara a cara com um pesadelo, eu soube exatamente como ele se sentiu. Eu não tinha o menor direito de julgar alguém por perder todo o raciocínio lógico ao se confrontar com seus maiores medos.
Dito isso, se Keith estivesse ali, acho que ele iria entender por que os Moroi já não eram lá grande coisa para mim. Porque em comparação com os Strigoi... Bom, de repente as pequenas diferenças entre humanos e Moroi se tornavam insignificantes. Apenas uma diferença importava: a diferença entre os vivos e os mortos. Era essa a linha que nos dividia, e eu e Adrian nos encontrávamos juntos e firmes de um lado dessa linha — de frente para as que se encontravam do outro.
Já tinha visto Strigoi antes. Na época, não me senti imediatamente ameaçada por eles. Além do mais, estava com Rose e Dimitri à mão, prontos para me proteger. E agora? Não havia ninguém aqui para nos salvar. Só nós mesmos.
Elas eram apenas duas, mas poderiam ser duzentas. Os Strigoi operavam em um nível tão diferente do restante de nós que não era necessário muitos deles para fazer a balança pender. As duas mulheres deveriam estar na casa dos vinte anos quando se tornaram Strigoi. Há quanto tempo isso tinha sido, não sabia dizer. Lee tinha se preocupado muito em falar repetidamente a respeito de como ser Strigoi significava ser “jovem para sempre”. Mas, ao olhar para aqueles dois monstros, eu realmente não pensava assim. Claro que elas tinham a aparência superficial da juventude, mas era manchada por maldade e podridão. A pele delas podia não ter rugas, mas era de um branco doentio, muito mais branco do que a de qualquer Moroi. Os olhos avermelhados que nos fitavam não faiscavam com vida ou energia, mas sim com uma espécie de reanimação profana. Não eram exatamente pessoas. Elas não eram naturais.
— Que amor — disse uma, loira de cabelo curtinho. Os traços dela me faziam achar que tinha sido dampira ou humana antes de ser transformada. Ela nos olhava da mesma maneira como eu costumava ver o gato da minha família olhando passarinhos. — E exatamente de acordo com a descrição.
— Eles são tãããão lindos — entoou a outra, com um sorriso lascivo no rosto. Sua altura dizia que antes tinha sido Moroi. — Não sei qual dos dois eu quero primeiro.
A loira olhou feio para ela.
— Nós vamos dividir.
— Igual da última vez — a outra concordou e jogou uma juba de cabelos pretos encaracolados por cima do ombro.
— Não — a primeira disse. — Da última vez, você matou os dois. Aquilo não foi dividir.
— Mas eu deixei você se alimentar deles depois.
Antes que a outra pudesse retrucar, Lee se recompôs de repente e cambaleou até onde a Strigoi loira estava.
— Esperem, esperem. Dawn. Você prometeu. Prometeu que iria me despertar primeiro, antes de fazer qualquer coisa.
As duas Strigoi voltaram a atenção para Lee. Eu ainda estava paralisada, incapaz de me mexer ou de realmente reagir enquanto estava tão próxima daquelas criaturas do inferno. Mas, de algum modo, através do terror denso e esmagador que me rodeava, eu ainda assim consegui sentir uma pena inesperada de Lee. Havia um pouco de ódio ali também, é claro, levando em conta a situação. Mas, na maior parte, eu sentia uma pena enorme de alguém que realmente acreditava que sua vida não tinha sentido a menos que sacrificasse sua alma pela imortalidade vazia. Não só isso, eu tinha pena dele por realmente pensar que poderia confiar nessas criaturas para lhe darem o que queria. Porque, ao examiná-las, ficou perfeitamente claro para mim que elas estavam decidindo se iam ou não tornar aquilo uma refeição de três pratos. Lee, eu desconfiava, era o único que não se dava conta.
— Por favor — ele disse. — Você prometeu. Me salve. Me faça voltar a ser o que eu era.
Também não pude deixar de notar a pequena mancha avermelhada no lugar em que eu o tinha acertado. Eu me permiti sentir um pouquinho de orgulho por isso, mas não era convencida o suficiente para achar que tivesse qualquer habilidade de luta digna de nota para conseguir escapar daquela situação só com a força física. As Strigoi estavam perto demais, e nós tínhamos muito poucas saídas.
— Eu sei onde tem mais — ele completou, começando a parecer pouco à vontade por suas “salvadoras” não estarem agindo imediatamente para realizar seus sonhos. — Um é jovem... um dampiro.
— Faz um bom tempo que eu não tenho um dampiro — disse a Strigoi de cabelo cacheado, quase desejosa.
Dawn suspirou.
— Na verdade eu não me importo, Jacqueline. Se quiser despertá-lo, vá em frente. Eu só quero estes dois. Ele não importa para mim.
— Então eu fico com o dampiro só para mim — Jacqueline avisou.
— Tudo bem, tudo bem — Dawn falou. — Só ande logo.
Lee ficou tão radiante, tão contente... era uma coisa repugnante de se ver.
— Obrigado — ele disse. — Muito obrigado mesmo! Faz tanto tempo que eu quero isso que não acredito que vai... ahh!
Jacqueline foi tão rápida que mal vi quando aconteceu. Em um momento ela estava à porta e, no seguinte, tinha prendido Lee contra a cadeira reclinável. Lee soltou um grito semiabafado quando ela mordeu o pescoço dele, um grito que logo se aquietou. Dawn fechou a porta e nos fez avançar. Eu me encolhi toda quando ela tocou em mim.
— Bom — ela disse, divertida. — Vamos nos aproximar para ver melhor.
Nem Adrian nem eu respondemos. Nós simplesmente avançamos mais pela sala. Eu dei uma olhada nele, mas não pude perceber muita coisa. Ele era tão bom em esconder seus verdadeiros sentimentos de maneira geral que eu acho que não devia me surpreender com sua capacidade de mascarar terror abjeto com a mesma facilidade. Ele não me deu incentivo nem com a expressão nem com palavras, coisa que na verdade considerei bem adequada. Porque, realmente, eu não estava vendo nenhum final feliz para aquela situação.
De perto, forçada a assistir ao ataque de Jacqueline, eu agora via a expressão de enlevo que se instalara no rosto de Lee. Era a coisa mais horrível que eu já tinha presenciado. Minha vontade era de fechar os olhos bem apertados ou de virar para o outro lado, mas alguma força maior do que eu me fazia olhar fixamente para aquele espetáculo horripilante. Eu nunca tinha visto nenhum vampiro se alimentar, nem Moroi nem Strigoi, mas agora eu entendia por que fornecedores como Dorothy eram capazes de se entregar de tão bom grado a seu estilo de vida. Endorfinas estavam sendo injetadas na corrente sanguínea de Lee, tão fortes que o cegavam para o fato de que sua vida estava sendo sugada. Em vez disso, ele existia em um estado de êxtase, perdido em um torpor químico. Ou talvez estivesse apenas pensando em como seria feliz quando voltasse a ser Strigoi, se fosse possível manter qualquer tipo de pensamento consciente sob aquelas circunstâncias.
Perdi a noção de quanto tempo demorou para todo o sangue de Lee ser sugado. Cada momento era agonizante para mim, como se eu estivesse sentindo a dor pela qual Lee devia estar passando. O processo pareceu demorar uma eternidade e, ainda assim, havia uma sensação esquisita de velocidade nele. Parecia errado o corpo de alguém ser drenado de sangue em tão pouco tempo. Jacqueline bebia sem parar, só fez uma pausa para observar:
— O sangue dele não é tão bom quanto eu achava que seria.
— Então pare — Dawn sugeriu. Ela estava começando a parecer entediada. — Deixe que ele morra e divida estes dois aqui comigo.
Jacqueline realmente parecia estar considerando a ideia, mais uma vez me fazendo pensar em como Lee tinha sido bobo em depositar sua confiança naquelas duas. Depois de alguns minutos, ela deu de ombros.
— Estou quase acabando. E realmente quero que ele me traga aquele dampiro.
Jacqueline voltou a beber, mas, como tinha dito, não demorou muito. A esta altura, Lee estava quase tão pálido quanto os Strigoi, e sua pele tinha adquirido uma textura esticada e estranha.
Agora ele estava perfeitamente imóvel. Seu rosto parecia paralisado em um sorriso que era tanto choque quanto êxtase. Jacqueline ergueu o rosto e limpou a boca, examinando sua vítima com prazer. Ela então ergueu a manga da camisa e pousou as unhas no pulso. Mas antes que rasgasse a própria pele, avistou alguma coisa.
— Ah, assim vai fazer bem menos bagunça — ela se afastou e se abaixou para pegar a faca de Lee. Tinha escorregado para baixo do sofazinho durante nosso embate. Jacqueline a pegou e, sem esforço nenhum, cortou o próprio pulso; o sangue bem vermelho começou a escorrer. Parte do meu cérebro não achava que o sangue deles devia ser tão parecido com o meu. Devia ser preto. Ou ácido.
Ela colocou o pulso sanguinolento na boca de Lee e inclinou a cabeça dele para trás, para que a gravidade pudesse ajudar o fluxo. Cada horror que eu testemunhava naquela noite era pior do que o anterior. A morte era terrível — mas também fazia parte da natureza. Aquilo? Aquilo não fazia parte do plano da natureza. Eu estava prestes a testemunhar o maior pecado do mundo, a corrupção da alma por meio da magia negra para reanimar os mortos. Aquilo fazia eu me sentir imunda, e desejei poder fugir. Eu não queria ver. Eu não queria ver um sujeito que eu cheguei a considerar quase um amigo de repente se erguer como uma espécie de perversão da natureza.
Um toque na minha mão me sobressaltou. Era Adrian. Seus olhos estavam sobre Lee e Jacqueline, mas ele tinha pegado na minha mão e apertado, apesar de ainda estar algemado. Fiquei surpresa com o calor de sua pele. Apesar de eu saber que os Moroi eram tão vivos quanto eu e portanto tinham o sangue tão quente quanto o meu, medos irracionais sempre me faziam pensar que eles seriam frios. Igualmente surpreendente foi o conforto e a conexão repentina que senti com aquele toque. Não era o tipo de toque que dizia: Olhe, eu tenho um plano, por isso, aguente firme, porque nós vamos escapar dessa. Era mais o tipo de toque que simplesmente dizia: Você não está sozinha. Essa era realmente a única coisa que ele podia oferecer. E, naquele momento, foi suficiente.
Então, uma coisa estranha aconteceu. Ou melhor, não aconteceu.
O sangue de Jacqueline se derramava em um fluxo contínuo na boca de Lee, e apesar de não termos muitos casos documentados de conversões de Strigoi, eu sabia basicamente como funcionavam. O sangue da vítima era drenado e depois o Strigoi que tinha matado a pessoa dava seu sangue para o morto. Eu não sabia exatamente quanto tempo demorava para funcionar — certamente não exigia todo o sangue do Strigoi —, mas, a certa altura, Lee devia começar a se agitar e a levantar como um morto-vivo. A expressão fria e arrogante de Jacqueline começou a se transformar em curiosidade e, então, confusão. Ela olhou para Dawn com ar de quem não estava entendendo nada.
— Por que está demorando tanto? — Dawn perguntou.
— Não sei — Jacqueline respondeu, e se virou para Lee mais uma vez. Com a mão livre, ela cutucou o ombro de Lee, como se isso pudesse acordá-lo. Não aconteceu nada.
— Você nunca fez isto antes? — Dawn perguntou.
— Claro que fiz — Jacqueline respondeu, irritada.
Não demorou tanto assim, nem de longe. Ele já devia estar acordado, andando por aí. Há algo errado.
Eu me lembrei das palavras de Lee, quando ele contou que todas as suas tentativas desesperadas ao tirar vidas inocentes não tinham feito com que ele voltasse a ser Strigoi. Eu não sabia muito a respeito do espírito — e menos ainda a respeito de restaurar um Strigoi —, mas algo me dizia que não existia força na terra capaz de fazer Lee voltar a ser Strigoi.
Mais um longo minuto se passou enquanto observávamos e esperávamos. Finalmente, desgostosa, Jacqueline se afastou da poltrona reclinável e ajeitou a manga da camisa. Ficou olhando com raiva para o corpo imóvel de Lee.
— Algo está errado — ela repetiu. — E eu não quero desperdiçar mais sangue para descobrir o que é. Além do mais, meu corte já está sarando.
Não havia nada que eu quisesse mais do que Dawn e Jacqueline esquecerem a minha existência, mas as palavras seguintes escaparam da minha boca antes que eu pudesse segurá-las. A cientista em mim estava envolvida demais em uma revelação.
— Ele foi restaurado... e isso o afetou de maneira permanente. A magia do espírito deixou alguma espécie de marca, e agora ele não pode voltar a ser transformado.
As duas Strigoi olharam para mim. Eu me encolhi toda sob aqueles olhos vermelhos.
— Eu nunca acreditei em nenhuma dessas histórias de espírito — Dawn disse.
Jacqueline, no entanto, continuava claramente confusa com seu fracasso.
— Mas havia algo de errado com ele. Não sei explicar... mas foi o tempo todo. Ele não parecia certo. Ele não tinha o gosto certo.
— Esqueça — Dawn disse. — Ele teve a chance dele. Recebeu o que queria, e agora vou seguir em frente.
Vi a minha morte nos olhos dela e tentei tocar a minha cruz.
— Deus me proteja — disse, bem quando ela se projetou para a frente.
Contra todas as probabilidades, Adrian estava pronto para detê-la — ou, pelo menos, para tentar. Na verdade, ele só se colocou na frente dela. Não teve a velocidade nem o reflexo necessários para bloqueá-la com eficiência, e estava ainda mais atrapalhado por causa das mãos algemadas. Acho que ele só percebeu o que aconteceria em seguida, que ela ia me atacar, e se colocou na minha frente para evitar o bote, em alguma tentativa nobre, porém malsucedida, de me proteger.
E como foi malsucedida. Com um movimento ágil e aparentemente sem esforço, ela o empurrou de lado e o mandou para o meio da sala. Fiquei sem fôlego. Ele caiu no chão e eu comecei a berrar. De repente, senti uma dor aguda na garganta. Sem parar, Dawn havia prontamente me agarrado e me erguido no ar para ganhar acesso ao meu pescoço. Eu balbuciei mais uma oração frenética quando a dor se espalhou, mas, em segundos, tanto a reza quanto a dor desapareceram do meu cérebro. Tinham sido substituídas por uma sensação doce, tão doce, de felicidade e enlevo e encantamento. Eu não tinha pensamentos, a não ser de que eu de repente existia no estado mais feliz e mais esplêndido que se podia imaginar. Eu queria mais. Mais, mais, mais. Eu queria me afogar naquilo, me esquecer de mim mesma, esquecer tudo ao meu redor...
— Ugh — exclamei quando bati no chão de maneira súbita e inesperada. Ainda naquela névoa de êxtase, eu não sentia dor. Por enquanto.
Com a mesma rapidez que tinha me agarrado, Dawn tinha me soltado e me empurrado para longe. Por instinto, estendi o braço para não cair, mas não consegui me segurar. Eu estava fraca e desorientada demais e me estatelei de maneira nada graciosa no carpete. Os dedos de Dawn tocavam seus lábios com uma expressão de ultraje que contorcia ainda mais seus traços já pavorosos.
— O que foi isso? — ela inquiriu.
Meu cérebro ainda não estava funcionando direito. Eu só tinha sentido um gostinho da endorfina, mas foi suficiente para me deixar podre. Eu não tinha resposta para ela.
— Qual é o problema? — Jacqueline exclamou, avançando em nossa direção. Ela olhou de mim para Dawn, confusa.
Dawn fez uma careta e então cuspiu no chão. O líquido era vermelho por causa do meu sangue. Que nojo.
— O sangue dela... tinha um gosto horrível. Não dava para engolir. Imundo. — Ela cuspiu de novo.
Os olhos de Jacqueline se arregalaram.
— Igual ao outro. Está vendo? Eu disse para você.
— Não — Dawn sacudiu a cabeça. — Não pode ser a mesma coisa. Você nunca teria conseguido beber tanto dela. — Cuspiu mais uma vez. — Não é só que tivesse gosto estranho ou ruim... era como se estivesse adulterado. — Ao ver o olhar descrente de Jacqueline, Dawn deu um soco no braço dela. — Não acredita em mim? Experimente para ver.
Jacqueline deu um passo na minha direção, hesitante. Então Dawn cuspiu mais uma vez e acho que, de algum modo, convenceu a outra Strigoi de que ela não ia querer saber de mim.
— Não quero outra refeição medíocre. Caramba. Isso aqui está ficando absurdo. — Jacqueline deu uma olhada em Adrian, que estava perfeitamente imóvel. — Pelo menos, ainda temos este.
— Se não estiver estragado também — Dawn balbuciou.
Meus sentidos estavam voltando e, durante meio segundo, fiquei imaginando se havia alguma maneira insana de nós sobrevivermos àquilo. Talvez as Strigoi nos dispensassem como refeições ruins. Mas não. Mesmo nutrindo essa esperança, eu sabia que, ainda que elas não se alimentassem de nós, não nos deixariam vivos. Não tinham motivo para simplesmente ir embora. Iriam nos matar por diversão antes de sair.
Com a mesma velocidade notável, Jacqueline saltou na direção de Adrian.
— Está na hora de descobrir.
Eu gritei quando Jacqueline prendeu Adrian contra a parede e mordeu o pescoço dele. Só demorou alguns segundos para experimentar. Ela ergueu a cabeça e fez uma pausa para saborear o sangue. Um sorriso vagaroso se espalhou por seu rosto, mostrando seus caninos ensanguentados.
— Este aqui é bom. Muito bom. Compensa o outro. — Ela passou os dedos pela bochecha dele. — É uma pena. Ele é tão bonito.
Dawn foi pisando firme até onde eles estavam.
— Quero experimentar antes que você acabe com tudo!
Jacqueline a ignorou e já estava se inclinando por cima de Adrian mais uma vez; ele estava com os olhos vidrados. Nesse ínterim, eu já estava livre o bastante da endorfina para clarear os pensamentos mais uma vez. Ninguém estava prestando atenção em mim. Tentei me levantar e senti o mundo girar. Fiquei agachada e fui engatinhando na direção da minha bolsa, que estava jogada e esquecida no canto da sala. Jacqueline tinha bebido de Adrian mais uma vez, mas só um pouquinho, antes de Dawn a puxar para longe e exigir sua vez, para poder tirar o gosto do meu sangue da boca.
Assustada com a velocidade com que me movia, remexi na minha bolsa funda, procurando desesperada por algo que pudesse ajudar. Alguma parte fria e lógica em mim dizia que não havia como escaparmos, mas também não havia como ficar lá parada olhando enquanto as duas secavam o sangue de Adrian. Eu tinha que lutar. Tinha que tentar salvá-lo, do mesmo jeito que ele tinha feito comigo. Não importava se a tentativa não desse certo ou se eu morresse. De algum modo, eu precisava tentar.
Alguns alquimistas carregavam armas, mas eu não. A minha bolsa era enorme, cheia com mais coisas do que eu realmente precisava, mas nada em seu conteúdo se assemelhava a uma arma. E mesmo que se assemelhasse, a maior parte das armas era inútil contra os Strigoi. Uma arma iria detê-las por um tempo, mas não matá-las. Apenas estacas de prata, decapitações e fogo podiam matar um Strigoi.
Fogo...
Minha mão se fechou em volta do amuleto que eu tinha feito para a sra. Terwilliger. Eu tinha enfiado na bolsa quando ela me entregou, sem saber muito bem o que fazer com aquilo. Só podia supor que a perda de sangue e os pensamentos dispersos tinham me levado a pegá-lo e considerar a possibilidade de usá-lo. Até esse pensamento era ridículo. Não dava para usar algo que não funcionava! Era uma bugiganga, um saquinho inútil de pedras e folhas. Não havia magia ali e eu era idiota só de considerar a possibilidade.
E, no entanto, era um saco de pedras.
Não era pesado, mas certamente bastava para chamar a atenção de alguém se lhe batesse na cabeça. Era a melhor coisa que eu tinha. O único objeto que eu tinha para adiar a morte de Adrian. Coloquei o braço para trás, mirei em Dawn e joguei, recitando o encanto tolo:
— Em chamas, em chamas!
Foi um belo lançamento. A srta. Carson teria ficado orgulhosa. Mas eu não tive chance de admirar minhas habilidades atléticas porque fiquei distraída demais com o fato de que Dawn tinha pegado fogo.
Meu queixo caiu enquanto eu olhava fixo para o impossível. Não era um fogo enorme. Não era como se o corpo todo dela estivesse sendo engolido por chamas. Mas no lugar em que o amuleto a atingiu, um fogo pequeno se acendeu e se espalhou com rapidez por seu cabelo. Ela berrou e começou a bater na cabeça em gestos frenéticos. Os Strigoi tinham medo de fogo e, por um instante, Jacqueline recuou. Então, com determinação firme, ela soltou Adrian e pegou uma manta. Ela a enrolou na cabeça de Dawn e abafou o fogo.
— Mas que diabo? — Dawn quis saber quando saiu de baixo da manta. Ela imediatamente começou a avançar na minha direção em sua ira. Eu sabia que só tinha conseguido acelerar minha própria morte.
Dawn me agarrou e bateu a minha cabeça contra a parede. O mundo girou e eu me senti enjoada. Ela estendeu a mão para mim mais uma vez, mas ficou paralisada quando a porta se abriu de supetão e Eddie apareceu com uma estaca de prata na mão.
O mais impressionante sobre o que aconteceu a seguir foi a velocidade. Não houve pausa, nenhum longo momento para avaliar a situação e nenhuma troca de provocações entre os combatentes. Eddie simplesmente atacou; foi para cima de Jacqueline primeiro. Ela reagiu com igual rapidez, avançando rápido para enfrentar sua única ameaça presente.
Depois que ela soltou Adrian, ele desabou no chão, ainda sob os efeitos das endorfinas da Strigoi. Sem me levantar do chão, corri até ele e ajudei-o a se arrastar até a “segurança” do outro lado da sala, enquanto Eddie lutava com a Strigoi. Só dei uma olhada neles, o suficiente para perceber a natureza mortal de seus golpes, que pareciam uma dança. Ambas Strigoi estavam tentando agarrar Eddie, provavelmente com esperança de quebrar seu pescoço, mas tomando cuidado para escapar dos golpes de sua estaca de prata.
Olhei para Adrian, que estava perigosamente pálido e cujas pupilas tinham se reduzido ao tamanho de pontas de alfinete. Eu só tinha uma impressão grosseira do quanto Jacqueline tinha bebido dele e não sabia se o estado de Adrian era mais devido à perda de sangue ou às endorfinas.
— Estou bem, Sage — ele balbuciou e piscou como se a luz o machucasse. — Mas estou bem chapado. Isso faz as coisas que eu uso parecerem bem fracas — ele piscou, como se estivesse se esforçando para acordar. Suas pupilas se dilataram para um tamanho mais normal e então pareceram se focar em mim. — Meu Deus. Você está bem?
— Vou ficar — eu disse e comecei a me levantar. Mas, antes mesmo que eu pudesse terminar de falar, uma onda de tontura me atingiu e eu cambaleei. Adrian fez o que pôde para me segurar, mas estava bem desajeitado por causa das mãos presas. Nós nos apoiamos um contra o outro e eu quase dei risada do ridículo da situação, um tentando ajudar o outro, sendo que nenhum dos dois estava em condições de fazer isso. Então algo chamou a minha atenção e todos os outros pensamentos se desfizeram.
— Jill — sussurrei.
Adrian imediatamente seguiu o meu olhar até o lugar em que Jill tinha acabado de aparecer na porta da sala. Não fiquei surpresa em vê-la. Eddie só podia estar ali porque Jill devia ter dito a ele o que estava acontecendo com Adrian por meio do laço de espírito.
Ali parada, com os olhos faiscando, ela parecia algum tipo de deusa feroz, pronta para a batalha enquanto assistia ao embate de Eddie com a Strigoi. Aquilo foi ao mesmo tempo inspirador e assustador. Adrian compartilhou dos meus pensamentos.
— Não, não, Chave de Cadeia — ele murmurou. — Não faça nenhuma idiotice. Castile vai ter que dar conta disso sozinho.
— Ela sabe lutar — eu disse.
Adrian franziu a testa.
— Mas ela não tem nenhuma arma. Assim, ela é um peso-pena nesta luta.
Ele tinha razão, é claro. E ao mesmo tempo que eu não queria que Jill arriscasse a própria vida, não podia evitar pensar que, se ela estivesse equipada adequadamente, poderia ser capaz de ajudar. No mínimo, uma distração poderia ser um benefício. Eddie estava tomando conta de seu terreno contra as duas Strigoi, mas também não estava fazendo nenhum progresso contra elas. Uma ajuda seria boa. E nós precisávamos garantir que Jill não entrasse apressada naquilo, só com os próprios punhos para se defender.
Uma inspiração se abateu sobre mim e eu consegui ficar em pé. O mundo girava ainda mais do que antes, mas — apesar das reclamações de Adrian — consegui cambalear até a cozinha. Mal consegui chegar até a pia e abrir a torneira e as minhas pernas cederam embaixo de mim. Eu me agarrei à beirada da pia e consegui continuar em pé.
— Jill! — berrei.
Ela se virou na direção do meu grito, viu a água correndo e no mesmo instante soube o que fazer. Ela ergueu a mão. O jato de água que saía da torneira de repente mudou de direção e disparou para fora da pia, para o outro lado da sala. Ele foi até Jill, que pegou uma grande quantidade com as mãos e, usando magia, forçou a água a assumir um formato cilíndrico longo. Ele se sustentou no ar assim, um taco de água aparentemente sólido, ainda que ondulante. Ela o agarrou e entrou na luta, dando um golpe nas costas de Jacqueline com sua arma. Gotas saíram voando do “taco”, mas ele manteve sua rigidez o suficiente para que ela desferisse um segundo golpe antes de ele explodir completamente em um borrifo de água.
Jacqueline se virou para trás com a mão estendida para acertar Jill. Mas ela já estava esperando por isso e se jogou no chão, desviando-se exatamente da maneira como eu tinha visto Eddie ensiná-la. Ela recuou para longe do alcance de Jacqueline e a Strigoi foi atrás — dando assim uma chance a Eddie de acertar suas costas. Eddie aproveitou a oportunidade, esquivando-se de Dawn, e enterrou sua estaca nas costas de Jacqueline. Eu nunca tinha pensado nisso, mas se fosse enfiada com força suficiente, uma estaca era capaz de perfurar o coração de alguém pelas costas com a mesma facilidade que teria se fosse enfiada pelo peito. Jacqueline ficou rígida, e Eddie arrancou a estaca, por muito pouco se esquivando de um golpe desferido com toda a força de Dawn. Mesmo assim, ela o acertou um pouco e ele cambaleou de leve antes de retomar o equilíbrio com rapidez e voltar a atenção para ela. Jill foi esquecida e logo correu até nós, na cozinha.
— Está tudo bem com vocês? — ela exclamou ao olhar para nós dois. A expressão feroz tinha desaparecido. Agora ela era só uma garota comum preocupada com os amigos. — Ai, meu Deus. Eu estava tão preocupada com vocês dois... As emoções eram tão fortes! Eu não conseguia me fixar no que estava acontecendo, só sabia que algo estava muito errado.
Arrastei meu olhar para Eddie, que dançava de um lado para o outro com Dawn.
— Precisamos ajudar Eddie...
Dei dois passos para longe da pia e comecei a cair. Tanto Jill quanto Adrian estenderam os braços para me segurar.
— Por Cristo, Sage — ele exclamou. — Você está péssima.
— Não tanto quanto você — reclamei, ainda preocupada em ajudar Eddie. — Elas beberam mais de você...
— É, mas eu não tenho uma ferida no braço que está sangrando — ele apontou. — Nem uma possível concussão.
Era verdade. Com toda aquela agitação, eu estava tão cheia de adrenalina que quase tinha me esquecido da facada que Lee tinha me dado. Não era para menos que eu estava tão tonta. Ou talvez fosse por ter batido a cabeça com toda a força na parede. Àquela altura, qualquer uma das alternativas podia estar correta.
— Pronto — Adrian disse com gentileza. Ele pegou os meus braços com as mãos algemadas. — Eu cuido disto.
Um calor lento e formigante tomou conta da minha pele. No começo, o toque de Adrian foi reconfortante, como um abraço. Senti a tensão e a dor começarem a relaxar. Tudo estava certo no mundo. Ele tinha tudo sob controle. Ele estava cuidando de mim.
Ele estava usando sua magia em mim.
— Não! — soltei um berro estridente e me afastei dele com uma força que eu não sabia ter. O pavor e a percepção total do que estava acontecendo comigo foram muito fortes. — Não toque em mim! Não toque em mim com a sua magia!
— Sage, você vai se sentir melhor, pode acreditar — ele disse e estendeu a mão para mim mais uma vez.
Eu recuei, agarrada à beirada da pia para me apoiar. A lembrança fugidia daquele calor e conforto era diminuída pelo pavor que eu tinha carregado a vida toda em relação à magia dos vampiros.
— Não, não, não. Nada de magia! Não comigo. A tatuagem vai me curar! Eu sou forte!
— Sage...
— Pare, Adrian. — Jill disse. Ela se aproximou de mim, incerta. — Tudo bem, Sydney. Ele não vai curar você. Juro que não vai.
— Nada de magia — sussurrei.
— Pelo amor de Deus — Adrian resmungou. — Isso é besteira supersticiosa.
— Nada de magia — Jill disse com firmeza. Ela tirou a camisa de abotoar que usava por cima de uma camiseta. — Venha aqui e eu vou usar isto para amarrar, para você não perder mais san...
Um berro de perfurar o tímpano fez com que todos nós voltássemos a atenção para a sala. Eddie tinha acertado sua vítima, enfiando a estaca bem no meio do peito de Dawn. Durante minha breve disputa com Adrian e Jill, Dawn devia ter acertado alguns golpes em Eddie, porque havia uma marca vermelha grande em um dos lados do rosto dele e seu lábio sangrava. Mas a expressão em seus olhos era dura e triunfante quando ele puxou a estaca e observou Dawn cair.
No meio de toda aquela confusão e horror, os instintos básicos de alquimista tomaram conta de mim. O perigo tinha acabado. Havia procedimentos que precisavam ser seguidos.
— Os corpos — eu disse. — Precisamos destruí-los. Tem uma ampola na minha bolsa.
— Opa, opa — Adrian disse, enquanto ele e Jill amarravam a camisa em mim. — Fique onde está. Castile pode pegar. O único lugar aonde você vai é até um médico.
Não me mexi, mas imediatamente discordei da última afirmação.
— Não! Nada de médicos. Pelo menos, vocês têm que... vocês têm que arrumar um médico que seja alquimista. Os números estão na minha bolsa...
— Vá pegar a bolsa dela — Adrian disse a Jill —, antes que ela tenha um chilique. Eu amarro o braço. — Olhei feio para ele. — Sem magia. Que, por sinal, poderia fazer com que isso fosse dez vezes mais fácil.
— Vou sarar sozinha — eu disse enquanto observava Jill pegar a minha bolsa.
— Você se dá conta — Adrian completou — de que vai precisar superar a sua fixação por dieta e consumir umas boas calorias para lutar contra a perda de sangue? Açúcar e líquidos, igualzinho a Clarence. Ainda bem que alguém embalou todos esses doces que estão no balcão.
Eddie caminhou até onde Jill estava, e ela fez uma pausa quando ele perguntou se estava tudo bem com ela. Jill garantiu que sim e, apesar de Eddie estar com o jeito de quem seria capaz de matar mais uns cinquenta Strigoi, também havia uma expressão nos olhos dele... algo que eu acreditei nunca ter notado. Algo sobre o que eu teria que refletir.
— Droga — disse Adrian, lutando com o pano. — Eddie, veja no corpo de Lee se tem uma chave para estas algemas desgraçadas.
Jill tinha se envolvido na conversa com Eddie, mas ficou paralisada ao escutar as palavras “o corpo de Lee”. O rosto dela ficou tão pálido que ela poderia ser um dos mortos. No meio de toda aquela confusão, ela não tinha reparado no corpo de Lee na poltrona. Tinha havido agitação demais com as Strigoi, distração demais com a ameaça que elas representavam. Ela deu alguns passos na direção da sala e foi quando o viu. Sua boca se abriu, mas nenhum som saiu imediatamente. Então ela deu um passo adiante e agarrou as mãos dele, berrando.
— Não! — ela exclamou. — Não, não, não! — ela o sacudiu, como se isso pudesse acordá-lo. Em um piscar de olhos, Eddie estava ao seu lado, abraçando-a, enquanto murmurava coisas sem sentido para reconfortá-la. Ela não escutou. Seu mundo inteiro era Lee.
Senti lágrimas brotando nos meus olhos e detestei o fato de estarem ali. Lee tinha tentado me matar e depois tinha chamado mais duas para terminar o serviço. Tinha deixado um rastro de inocentes atrás de si. Eu devia estar contente por ele não estar mais ali; no entanto, eu me sentia triste. Ele amava Jill, à sua maneira insana, e pela dor no rosto dela, era óbvio que ela também o amava. O laço de espírito não tinha lhe mostrado a morte dele nem o papel que ele tinha desempenhado para nossa captura. Naquele momento, ela simplesmente achava que ele tinha sido vítima das Strigoi. Ela logo ficaria a par da verdade sobre os intuitos dele. Eu não sabia se isso iria aliviar a dor dela ou não. Estava achando que não.
De uma maneira estranha, uma imagem do quadro Amor de Adrian me veio na cabeça. Pensei no traço vermelho torto, rasgando o meio da escuridão, dilacerando-a. Ao olhar para Jill e sua dor inconsolável, de repente entendi a arte dele um pouco melhor.
26
Demorou dias até que eu conseguisse reunir a história toda, tanto em relação a Lee quanto sobre como Eddie e Jill tinham chegado para nos salvar naquela noite.
Depois de ter Lee como a peça que faltava, foi fácil conectar os assassinatos de Tamara, Kelly, Melody e Dina, a garota humana que ele tinha mencionado. Todas tinham sido mortas no decorrer dos últimos cinco anos, ou em Los Angeles ou em Palm Springs, e muita gente tinha provas documentadas de conhecê-lo. Elas não tinham sido vítimas aleatórias. O pouco que conseguimos descobrir a respeito da história de Lee partiu de Clarence, apesar de nem isso ter ficado muito claro. Pelo que pudemos concluir, Lee tinha sido transformado em Strigoi à força, cerca de quinze anos antes. Tinha passado dez anos assim, até que um vampiro usuário de espírito o restaurou, para o desgosto de Lee. Clarence já não tinha a cabeça muito no lugar naquela época e não havia questionado como o filho tinha voltado para casa depois de dez anos sem envelhecer. Ele evitou responder às nossas perguntas relativas a Lee ser Strigoi, e nós não sabíamos se Clarence simplesmente não sabia ou se estava em negação. Da mesma maneira, não ficou claro se Clarence sabia ou não que o próprio filho estava por trás da morte de Tamara. A teoria maluca dos caçadores de vampiros provavelmente era mais fácil para ele engolir do que a verdade sobre o caráter assassino do filho.
Investigações sobre a faculdade de Lee em Los Angeles mostraram que ele na verdade não estivera realmente matriculado desde antes de se tornar Strigoi. Quando voltou a ser Moroi, tinha usado a faculdade como desculpa para ficar em Los Angeles, onde era mais fácil encontrar suas vítimas — e nós desconfiávamos que havia mais delas do que nossos registros mostravam. Assim como Melody e Dina, parece que ele tinha tentado tomar o sangue de algumas vítimas de cada raça, na esperança de que alguma delas fosse “a certa”, que o faria voltar a ser Strigoi novamente.
A pesquisa mais aprofundada sobre Kelly Hayes revelou algo em que eu devia ter pensado logo de cara. Ela era dampira. Tinha aparência de humana, mas o histórico estrelar nos esportes foi o que me deu a dica. Lee tinha se deparado com ela quando visitava o pai cinco anos antes. Atacar uma dampira não era fácil, e por isso ele parecia ter aplicado o truque de namorá-la para atraí-la.
Nenhum de nós sabia nada sobre o “maldito usuário de espírito” que o tinha convertido, apesar de isso ser do interesse tanto dos alquimistas quanto dos Moroi. Havia poucos usuários de espírito nos registros, e com tantas informações ainda desconhecidas sobre seus poderes, todo mundo queria saber mais. Clarence afirmava com veemência que não sabia nada a respeito desse usuário de espírito misterioso, e eu acreditava nele.
Alquimistas passaram a semana toda indo e vindo de Palm Springs, dando jeito na bagunça e entrevistando todos os envolvidos. Tive reuniões com vários deles, contei a minha história vez após outra, e finalmente tive meu último interrogatório com Stanton, na hora do almoço em um sábado. Eu meio que tinha um interesse perverso em saber o que tinha acontecido com Keith, mas cheguei à conclusão de que não devia tocar no assunto à luz de tudo o mais que estava acontecendo. Ele não estava ali, e era o que importava para mim.
— A autópsia de Lee não revelou nada fora do comum para um Moroi normal, de acordo com os médicos deles — Stanton me disse entre garfadas de linguini à carbonara. Parece que comer e discutir cadáveres não eram coisas excludentes. — Mas, bom, é provável que uma coisa... mágica não fosse aparecer mesmo.
— Mas deve haver algo de especial a respeito dele — eu disse. Estava só remexendo a comida pelo prato. — O fato de seu envelhecimento ter sido retardado já era uma prova suficiente... mas e o resto? Quer dizer, ele bebeu de tantas vítimas. E aí eu vi o que Jacqueline fez com ele. Aquilo devia ter funcionado. Todos os procedimentos corretos foram seguidos.
Fiquei surpresa de ser capaz de falar de modo tão clínico a respeito daquilo, de poder parecer tão desapegada. Mas, na verdade, era apenas o meu lado de alquimista assumindo o controle. Dentro de mim, os acontecimentos daquela noite tinham deixado uma marca permanente. Quando fechava os olhos na hora de dormir, enxergava a morte de Lee e Jacqueline lhe dando sangue. Lee, que tinha dado flores para Jill e nos levado para jogar minigolfe.
Stanton assentiu, pensativa.
— E isso sugere que aqueles que são restaurados depois de se tornarem Strigoi ficam imunes a uma nova transformação.
Ficamos ali em silêncio por um momento, deixando o peso das palavras ser absorvido.
— Isso é algo importantíssimo — eu finalmente disse. Nossa, era muito mais do que isso. Lee apresentava diversos mistérios. Ele tinha começado a envelhecer quando voltou a ser Moroi, mas em ritmo bem mais lento. Por quê? Nós não sabíamos dizer com certeza, mas essa descoberta por si só era monumental, assim como a minha desconfiança de que ele não podia mais usar a magia dos Moroi. Eu tinha ficado apavorada quando Jill pediu a ele que criasse névoa enquanto estávamos jogando minigolfe, mas, pensando melhor, ocorreu-me que ele na verdade pareceu nervoso com os pedidos dela. Mas e o resto? O fato de que algo tinha mudado nele, que o protegia, ainda que contra sua própria vontade, de voltar a ser Strigoi? Pois é. “Importantíssimo” nem começava a descrever a gravidade daquilo.
— Muito — Stanton concordou. — Metade da nossa missão é impedir que os humanos escolham sacrificar sua alma pela imortalidade. Se houvesse uma maneira de captar essa magia, descobrir o que protegeu Lee... bom, os efeitos teriam longo alcance.
— Para os Moroi também — observei. Eu sabia que entre eles e os dampiros, ser forçado a se transformar em Strigoi era considerado com frequência um destino pior do que a morte. Se houvesse alguma maneira mágica de se proteger, isso significaria muito, já que eles se deparavam com Strigoi muito mais do que nós. Podíamos estar falando de algum tipo de vacina mágica.
— Claro que sim — disse Stanton, apesar de seu tom implicar que ela não estava muito preocupada com os benefícios para aquela raça. — Pode até ser possível impedir criações futuras de Strigoi. Mas também há o mistério do seu sangue. Você disse que os Strigoi não gostaram dele. Isso também pode ser um tipo de proteção.
Estremeci com a lembrança.
— Talvez. Aconteceu tão rápido... é difícil dizer. E certamente não serviu para me proteger contra os Strigoi quererem quebrar o meu pescoço.
Stanton assentiu.
— Certamente é algo que vamos ter de investigar mais para a frente. Mas, primeiro, precisamos entender o que aconteceu com Lee.
— Bom — eu disse. — O espírito deve ter um papel importante, certo? Lee foi restaurado por um usuário de espírito.
Um garçom se aproximou e Stanton fez um sinal para que levasse seu prato.
— Exatamente. Infelizmente, temos uma quantidade muito reduzida de usuários de espírito com quem trabalhar. Vasilisa Dragomir mal tem tempo de fazer experiências com seus poderes. Sonya Karp se ofereceu para ajudar, e esta é uma notícia excelente, já que ela própria é uma ex-Strigoi. No mínimo, poderemos observar a desaceleração do envelhecimento em primeira mão. Ela só tem disponibilidade por um período curto, e os Moroi ainda não responderam ao meu pedido por alguns outros indivíduos úteis. Mas, se tivéssemos outro usuário de espírito à mão, que não tivesse outras obrigações para distraí-lo de sua tarefa de nos ajudar em tempo integral...
Ela olhou para mim, esperando uma reação.
— Adrian? — perguntei.
— Você acha que ele ajudaria nessa pesquisa? Sobre alguma maneira mágica de se proteger contra a conversão em Strigoi? Como eu disse, entre Sonya e os outros, ele teria ajuda — ela se apressou em completar. — Falei com os Moroi, e eles estão montando um grupinho com bastante experiência com os Strigoi. O plano é que os mandem para cá em breve. Só precisamos que Adrian ajude.
— Uau. Vocês são rápidos — murmurei.
Com as palavras “Adrian” e “pesquisa”, a minha mente juntou imagens em que ele estava em um laboratório, com avental branco, debruçado por cima de tubos de ensaio e béqueres. Eu sabia que a pesquisa real não seria nem um pouco parecida com isso, mas era uma imagem difícil de desfazer. Também era difícil imaginar Adrian concentrado com seriedade em qualquer coisa. Só que eu ficava pensando e pensando que Adrian poderia se concentrar se tivesse algo com que se preocupar. Será que aquilo tinha importância suficiente?
Realmente não sabia dizer. Era difícil demais imaginar que motivo poderia ser nobre o suficiente para chamar a atenção dele. Mas eu tinha quase certeza de conhecer alguns benefícios bem menos nobres que poderiam fazer com que ele ficasse do nosso lado.
— Se vocês arrumarem um lugar para ele morar sozinho, ele ajuda — eu finalmente disse. — Ele está louco para sair da casa de Clarence Donahue.
As sobrancelhas de Stanton se ergueram. Ela não estava esperando por isso.
— Bom. Este não é um pedido enorme, suponho. E, na verdade, estamos pagando a conta do antigo apartamento de Keith, já que ele tirou um ano de licença. O sr. Ivashkov poderia simplesmente se mudar para lá, só que...
— Só que o quê?
Stanton deu de ombros de leve.
— Eu ia oferecer o lugar para você. Depois de muita discussão, resolvemos simplesmente deixar você como a alquimista responsável pela área aqui, tendo em vista a... partida desafortunada de Keith. Você pode sair de Amberwood, mudar-se para o apartamento dele e simplesmente supervisionar as atividades de lá.
Eu franzi a testa.
— Mas eu achei que vocês queriam alguém para ficar com Jill o tempo todo.
— Queremos, sim. Na verdade, encontramos uma opção melhor... sem querer ofender. Os Moroi conseguiram localizar uma garota dampira da idade de Jill que, além de servir como colega de quarto para ela, também poderá ser sua guarda-costas. Ela vai vir para cá junto com os pesquisadores. Você não precisa mais fazer o papel de aluna.
O mundo rodou. Tramoias e planos dos alquimistas estavam sempre em ação. Parecia que muita coisa tinha sido decidida naquela semana. Refleti a respeito do que aquilo significava. Nada mais de lição de casa, nada mais de política de ensino médio. Liberdade de ir e vir quando eu bem entendesse. Mas isso também significava me afastar dos amigos que eu tinha feito — Trey, Kristin, Julia. Eu continuaria me encontrando com Eddie e Jill, mas não tanto. E se eu estivesse sozinha, será que os alquimistas — ou o meu pai — iriam ajudar a pagar aulas na faculdade? Pouco provável.
— Tenho mesmo que sair da escola? — perguntei a Stanton. — Posso dar o apartamento a Adrian e ficar em Amberwood mais um pouco? Pelo menos até vermos se conseguimos outro lugar para eu morar?
Stanton não se deu ao trabalho de esconder sua surpresa.
— Não achei que você iria querer continuar lá. Achei que ficaria particularmente feliz por não precisar mais dividir o quarto com uma vampira.
E, assim, todos os medos e a pressão que eu tinha enfrentado antes de vir a Palm Springs desabaram em cima de mim. Adoradora de vampiros. Como eu era idiota. Eu devia ter agarrado a chance de me afastar de Jill. Qualquer outro alquimista teria agido assim. Ao me oferecer para ficar, era provável que eu estivesse levantando suspeitas a meu respeito mais uma vez. Como eu poderia explicar que havia muito mais coisa em jogo na minha escolha do que apenas uma troca de colega de quarto?
— Ah — eu disse, com expressão neutra. — Quando você disse que ia providenciar para Jill uma dampira da mesma idade dela, achei que elas ficariam no mesmo quarto e eu não precisaria mais ficar com ela. Achei que ia ter um quarto só para mim no alojamento.
— Isso provavelmente pode ser providenciado...
— E, sinceramente, depois de algumas das coisas que aconteceram, me sentiria melhor se pudesse ficar de olho em Jill. Vai ser mais fácil se eu estiver na escola. Além do mais, se é necessário um apartamento para deixar Adrian feliz e trabalhar no mistério dos Strigoi, então é o que precisamos fazer. Eu posso esperar.
Stanton me examinou durante vários longos segundos e só rompeu o silêncio quando o garçom deixou a conta na mesa.
— Isso é muito profissional da sua parte. Vou tomar as providências.
— Obrigada — eu disse. Uma sensação de alegria tomou conta de mim, e eu quase sorri, imaginando o rosto de Adrian quando ele ficasse sabendo de sua casa nova.
— Só tem mais uma coisa que eu não compreendo — Stanton observou. — Quando investigamos o apartamento, encontramos alguns danos causados por fogo. Mas nenhum de vocês mencionou nada a esse respeito.
Franzi a testa de maneira fingida.
— Sinceramente... uma parte grande do que aconteceu ficou confusa na minha cabeça pela perda de sangue e a mordida... não sei dizer com certeza. Keith tinha algumas velas. Não sei se alguma foi acesa... ou, não sei. Só fico pensando naqueles dentes e em como foi horrível ser mordida...
— Sei, sei — Stanton disse. A minha desculpa era fraca, mas nem ela estava totalmente imune à ideia de ter seu sangue sugado por um vampiro. Esse era basicamente o pior pesadelo de um alquimista, e eu tinha direito ao meu trauma. — Bom, não se preocupe com isso. Aquele fogo é a menor das nossas preocupações.
Não era a menor das minhas preocupações. E quando voltei ao campus naquele mesmo dia, finalmente fui dar conta do assunto e achei a sra. Terwilliger em um dos escritórios da biblioteca, onde ela estava trabalhando.
— Você sabia — eu disse, fechando a porta. Todos os protocolos entre aluna e professora sumiram da minha mente. Eu estava ignorando a minha raiva fazia uma semana, e agora finalmente podia colocá-la para fora. Tinha passado a vida toda sendo ensinada a respeitar a autoridade, mas agora uma delas tinha me traído, pura e simplesmente. — Tudo o que me fez fazer... copiar aqueles livros de feitiços, produzir aquele amuleto “só pare ver como era”! — sacudi a cabeça. — Era tudo mentira. Você sabia... sabia que era... real.
A sra. Terwilliger tirou os óculos e olhou para mim com cuidado.
— Ah, então presumo que tenha experimentado?
— Como pôde fazer isso comigo? — exclamei. — Não tem ideia de como eu me sinto em relação à magia e ao sobrenatural!
— Ah — ela disse, seca. — Na verdade, eu tenho, sim. Sei tudo sobre a sua organização — ela disse, batendo com o dedo na própria bochecha, espelhando a minha que continha a tatuagem. — Eu sei por que a sua “irmã” tem licença médica para não fazer atividades externas e por que o seu “irmão” é ótimo em esportes. Estou muito bem informada a respeito das diversas forças que trabalham no nosso mundo, as que se escondem da maior parte dos olhos humanos. Não se preocupe, minha cara. Com toda a certeza, não vou contar para ninguém. Não estou preocupada com vampiros.
— Por quê? — perguntei, decidida a não confirmar que ela tinha exposto tudo que me esforçava tanto para manter em segredo. — Por que eu? Por que me forçou a fazer aquilo... principalmente se alega saber como eu me sinto?
— Mmm... por algumas razões. Os vampiros, como sabe, têm uma espécie de magia interna. Eles se conectam com os elementos em nível muito básico, quase sem esforço. Os humanos, no entanto, não têm essa mesma conexão.
— Os humanos não devem usar magia — disse com frieza. — Você me obrigou a fazer algo contrário às minhas crenças.
— Para os humanos fazerem magia — ela prosseguiu, como se eu não tivesse dito nada — precisamos arrancá-la do mundo. Isso não nos vem com tanta facilidade. Claro que os vampiros usam feitiços e ingredientes de vez em quando, mas não é nada parecido com o que nós precisamos fazer. A magia deles sai de dentro para fora. A nossa vem de fora para dentro. É necessário muito esforço, muita concentração e cálculos exatos... bom, a maior parte dos humanos não tem paciência nem habilidade para isso. Mas uma pessoa como você? Essas técnicas detalhadas foram incutidas em você desde que aprendeu a falar.
— Então esse é o único requisito para usar magia? Capacidade de organizar e medir? — Não me dei ao trabalho de esconder meu sarcasmo.
— Claro que não — ela deu risada. — Certo talento natural também é necessário. Um instinto que se combina à disciplina. Eu senti isso em você. Sabe, eu mesma tenho uma certa proficiência nisso. Ela me dá um status de bruxa, mas é relativamente pequeno. Mas você? Sou capaz de sentir uma fonte de poder em você, e a minha pequena experiência só serviu para comprovar que eu tinha razão.
Eu me senti gelar.
— Isso é mentira — eu disse. — Vampiros usam magia. Não humanos. Não eu.
— Aquele amuleto não pegou fogo sozinho — ela disse. — Não negue o que você é. E agora que terminamos com isso, podemos seguir em frente. O seu poder inato pode ser maior do que o meu, mas eu posso iniciá-la no treinamento básico de magia.
Não dava para acreditar que eu estava ouvindo aquilo. Não era real. Era como se fosse algo saído de um filme, porque não tinha como aquela ser a minha vida.
— Não! — exclamei. — Você é... você é louca! A magia não é real, e eu não tenho nenhuma! Isso é antinatural e errado. Não vou colocar a minha alma em perigo.
— Tanta negação para uma cientista tão boa... — ela refletiu.
— Estou falando sério — eu disse, mal reconhecendo minha própria voz. — Eu não quero ter nenhuma relação com estudos do oculto. Fico contente em continuar fazendo anotações e comprando café para você, mas se continuar fazendo essas afirmações e exigências malucas... vou à secretaria exigir uma mudança de professora. Pode acreditar, quando é necessário dar conta de burocracia e convencer gente que trabalha na administração, aí sim eu tenho um poder inato.
Ela quase sorriu, mas então murchou.
— Você está falando sério? Realmente rejeita este potencial fantástico... essa descoberta... que você possui?
Não respondi.
— Então, que seja — ela suspirou. — É uma perda. E um desperdício. Mas tem a minha palavra de que eu não vou voltar a tocar neste assunto, a não ser que parta de você.
— Isso não vai acontecer mesmo — eu disse com veemência.
A sra. Terwilliger só deu de ombros como resposta.
— Muito bem, então. Já que está aqui, então é melhor ir buscar um café para mim.
Eu me dirigi para a porta e então pensei em uma coisa.
— Era você que ligava para a Nevermore perguntando sobre vampiros?
— Por que raios eu faria isso? — ela perguntou. — Já sei onde encontrá-los.
Mais tarde, cheguei ao refeitório bem quando Eddie, Jill e Micah estavam terminando de jantar. Compreensivelmente, Jill estava com dificuldade de aceitar a morte de Lee e todas as revelações que nós tínhamos feito — incluindo o desejo que ele tinha de transformá-la em sua rainha morta-viva. Tanto Eddie quanto eu conversávamos com ela o máximo possível, mas Micah parecia surtir um efeito mais reconfortante para ela. Acho que era porque ele nunca abordava o assunto de maneira explícita. Ele sabia que Lee tinha morrido, mas achava que tinha sido um acidente e naturalmente não sabia das conexões vampirescas do acontecimento. Enquanto Eddie e eu ficávamos tentando dar uma de psicólogos amadores, Micah simplesmente tentava distraí-la e fazê-la feliz.
— Precisamos ir — ele disse em tom de desculpa quando me sentei. — Rachel Walker vai nos dar uma aula em uma das máquinas de costura.
Eddie sacudiu a cabeça para ele.
— Ainda não acredito que você se inscreveu no clube de costura.
Isso, claro, não era verdade. Nós dois sabíamos exatamente por que Micah havia se inscrito.
O rosto de Jill estava com a expressão grave que não a abandonara desde a morte de Lee — uma expressão que ela ainda carregaria durante um tempo, desconfiava —, mas o fantasma de um sorriso se agitou em seus lábios.
— Acho que Micah tem tudo para ser um verdadeiro estilista. Quem sabe eu não desfilo para ele um dia?
Sacudi a cabeça, escondendo meu próprio sorriso.
— Nada de fazer trabalho de modelo durante um tempo.
Depois do desfile, Lia e outros estilistas tinham entrado em contato, todos querendo voltar a trabalhar com Jill. Tínhamos precisado recusar para proteger a identidade dela aqui, mas Jill tinha ficado triste por não poder participar.
Jill assentiu.
— Eu sei, eu sei — ela se levantou com Micah. — Vejo você mais tarde no quarto, Sydney. Quero conversar mais um pouco.
Eu assenti.
— Claro que sim.
Eddie e eu observamos enquanto eles se afastavam apressados. Suspirei.
— Isso vai ser um problema — disse a ele.
— Talvez — ele concordou. — Mas ela sabe o que pode e o que não pode fazer com ele. Ela é inteligente. Vai ser responsável.
— Mas ele não sabe — eu disse. — Acho que Micah já está apaixonado demais por ela. — Olhei para Eddie com cuidado. — Entre outras pessoas.
Eddie ainda observava Micah e Jill, de modo que demorou um momento para entender o que eu estava dizendo. Voltou o olhar para mim em um gesto brusco.
— Hein?
— Eddie, não vou dizer que sou especialista em romance, mas até eu sou capaz de ver que você é louco por Jill.
Ele prontamente desviou o olhar, apesar de seu rubor o trair.
— Não é verdade.
— Percebi desde o começo, mas foi só na noite na casa de Keith que realmente entendi o que eu estava vendo. Eu vi como você olhava para ela. Eu sei o que você sente por ela. Então, o que eu quero saber é o seguinte: por que nós temos que continuar nos preocupando com Micah? Por que você não a convida para sair e nos poupa muita confusão?
— Porque ela é minha irmã — ele disse, seco.
— Eddie! Estou falando sério.
Ele fez uma careta, respirou fundo e então se voltou para mim mais uma vez.
— Porque ela pode arrumar coisa melhor do que eu. Quer falar sobre regras sociais? Bom, no lugar de onde nós viemos, Moroi e dampiros não têm relacionamentos sérios.
— É, mas isso é tipo uma questão de classe — eu disse. — Não é a mesma coisa que humanos e vampiros.
— Talvez não, mas, com ela, pode muito bem ser. Ela não é uma Moroi qualquer. Ela é da realeza. Uma princesa. E você viu como ela é! Inteligente e forte e linda. Ela está destinada a coisas grandiosas, e uma delas não é se envolver com um guardião controverso como eu. A linhagem de sangue dela é real. Diabo, eu nem sei quem é o meu pai. Namorar Jill não é possível. A minha função é protegê-la. Mantê-la em segurança. É nisso que toda a minha atenção deve se concentrar.
— Então você acha que, em vez disso, ela merece ficar com um humano? — perguntei, incrédula. — Dançando no limite de um tabu que existe em nossas raças?
— Não é ideal — ele reconheceu. — Mas, ainda assim, ela pode ter uma vida social divertida e...
— Mas e se fosse outro cara? — interrompi. — E se outro humano a convidasse para sair e eles simplesmente tivessem um encontro casual? Você iria achar que tudo bem?
Ele não respondeu, e eu vi que a minha intuição estava correta.
— Isso aqui vai além de você não se sentir digno de Jill — eu disse. — Tem a ver com Micah também, não tem? É porque ele faz você se lembrar de Mason.
Eddie empalideceu.
— Como é que você sabe disso?
— Adrian me contou.
— Desgraçado — Eddie disse. — Por que ele não é tão desencanado quanto finge ser?
Isso me fez sorrir.
— Você não deve nada a Micah. Certamente não deve Jill a ele. Ele não é Mason, por mais que os dois se pareçam.
— É mais do que o visual — Eddie disse, pensativo. — É a maneira como ele age também. Micah é igual: simpático, otimista, animado. Mason era assim. Existem muito poucas pessoas desse jeito no mundo: pessoas boas de verdade. Mason foi levado do mundo cedo demais. Não vou permitir que isso aconteça a Micah.
— Micah não está em perigo — eu disse com suavidade.
— Mas ele merece coisas boas. E, mesmo que seja humano, continua sendo uma das melhores combinações que eu conheço para Jill. Eles merecem um ao outro. Os dois merecem coisas boas.
— E, por isso, vai permitir seu próprio sofrimento como consequência? Porque está tão apaixonado por Jill e convencido de que ela merece algum tipo de príncipe que você não é? E porque você sente que é sua obrigação dar apoio a todos os Mason do mundo? — Sacudi a cabeça. — Eddie, isso é loucura. Até você tem que perceber isso.
— Talvez — ele reconheceu. — Mas parece a coisa certa a fazer.
— A coisa certa? Isso é masoquismo! Você está incentivando a menina de quem gosta a ficar com um dos seus melhores amigos.
— Eu quero que ela seja feliz. Vale a pena me sacrificar.
— Não faz o menor sentido.
Eddie lançou um pequeno sorriso para mim e deu um tapinha de leve no meu braço antes de se dirigir a um ônibus que se aproximava.
— Lembra quando você disse que não era especialista em romance? Bom, estava certa.
27
Acho que Adrian teria concordado com qualquer coisa para ter um apartamento só dele. Ele não perdeu tempo em transferir seus poucos pertences para o antigo apartamento de Keith, para o desalento de Clarence. Precisei reconhecer que fiquei meio mal pelo senhor de idade. Ele tinha passado a gostar de Adrian, e perdê-lo logo depois de Lee foi especialmente difícil. Clarence continuou disponibilizando sua casa e sua fornecedora para o nosso grupo, mas se recusou a acreditar em qualquer coisa que lhe dissemos a respeito de Lee e os Strigoi. Mesmo depois de aceitar que Lee estava morto, Clarence continuou culpando os caçadores de vampiros.
Pouco depois de Adrian se mudar, fui ver como ele estava. Tinham nos informado que o “grupo de pesquisa” dos Moroi ia chegar naquele dia, e resolvemos nos encontrar com os enviados primeiro, antes de apresentar Jill e Eddie a eles. Como tinha acontecido antes, Abe aparentemente iria acompanhar os recém-chegados, que incluíam Sonya e a nova colega de quarto de Jill. Eu tinha a impressão de que talvez houvesse outros com eles, mas ainda não tinha sido informada sobre os detalhes.
— Opa! — eu disse quando Adrian abriu a porta do apartamento para mim.
Ele só estava lá havia poucos dias, mas a transformação era impressionante. Tirando a tv, não havia sobrado nenhum móvel original. Estava tudo diferente, e até a disposição do apartamento tinha mudado. As cores da decoração também eram todas novas e havia um cheiro pesado de tinta fresca no ar.
— Amarelo, é? — perguntei ao olhar para as paredes da sala.
— O tom se chama “junco dourado” — corrigiu. — E, supostamente, é alegre e calmante.
Comecei a comentar que as duas características não andavam juntas, mas então achei que era melhor não falar nada. A cor, apesar de ser levemente detestável, tinha transformado a sala completamente. Com isso e as persianas que tinham substituído as cortinas pesadas de Keith, a sala agora estava cheia de cor e luz, o que ajudava em muito a obscurecer a lembrança da batalha. Estremeci ao me lembrar dela. Mesmo que o apartamento não tivesse sido necessário para conseguir a ajuda de Adrian, não sei dizer se eu o teria aceitado e me mudado para lá. A lembrança da morte de Lee — e das duas mulheres Strigoi — era forte demais.
— Como foi que você teve dinheiro para comprar móveis novos? — perguntei. Os alquimistas tinham lhe dado o lugar, mas não havia mais nenhuma verba incluída.
— Eu vendi as coisas antigas — Adrian disse, aparentemente muito contente. — Aquela poltrona reclinável... — a voz dele sumiu e uma expressão de perturbação cruzou seu rosto por um instante. Fiquei imaginando se ele também ficava se lembrando da vida de Lee se esvaindo junto com seu sangue, sugado naquela poltrona. — Aquela poltrona valia muito dinheiro. O preço dela é um exagero de caro, até para os meus padrões. Mas consegui o suficiente por ela para poder substituir o resto. É tudo usado, mas que opção eu tinha?
— Ficou legal — eu disse, passando a mão em um sofá xadrez estofado demais. Ficava horroroso com aquelas paredes, mas parecia estar em bom estado. Além do mais, assim como o tom amarelo berrante das paredes, a mobília nada convidativa ajudava a amenizar as lembranças do que tinha acontecido. — Você deve ter feito compras bem econômicas. Deixe-me adivinhar: você não está acostumado a comprar muitas coisas usadas.
— Fique sabendo que eu nunca tinha feito isso — ele disse. — Você não faz ideia das coisas a que eu tive que me rebaixar. — O sorriso contente dele diminuiu quando me observou com cuidado. — Como você está indo?
Dei de ombros.
— Tudo bem. Por que seria diferente? O que aconteceu comigo não é nem de longe tão ruim quanto as coisas por que Jill passou.
Ele cruzou os braços.
— Não sei. Jill não viu um sujeito ser morto na frente dela. E não vamos esquecer que era o mesmo sujeito que quis matar você apenas momentos antes, para poder voltar a se erguer dos mortos.
Essas eram coisas que definitivamente tinham ocupado demais a minha mente na semana anterior, coisas que eu iria demorar um pouco para superar. Às vezes eu não sentia absolutamente nada. Outras vezes, a realidade do que tinha acontecido desabava sobre mim com tanta força e peso que eu não conseguia respirar. Pesadelos com Strigoi tinham substituído os dos centros de reeducação.
— Na verdade, estou melhor do que você pode imaginar — eu disse devagar, olhando para nada em específico. — Tipo, o que aconteceu com Lee e o que ele fez é terrível, mas sinto que vou superar com o tempo. Mas sabe qual é a coisa em que eu mais fico pensando?
— O quê? — Adrian perguntou com gentileza.
As palavras pareceram sair sem o meu controle. Eu não esperava dizê-las a ninguém, e certamente não a ele.
— Lee ter me dito que eu estava desperdiçando a minha vida e me mantendo distante das pessoas. E daí, no meu último encontro com Keith, ele me disse que eu era ingênua, que não entendia o mundo. E é verdade de certo modo. Quer dizer, não o que ele disse sobre vocês serem do mal... mas, bom, eu fui ingênua. Eu devia ter tomado mais cuidado com Jill. Acreditei no melhor de Lee, mas devia ter sido mais precavida. Eu não sou uma lutadora como Eddie, mas sou uma observadora do mundo... ou pelo menos é o que gosto de pensar. Mas fracassei. Não sou boa no trato com as pessoas.
— Sage, o seu primeiro erro em tudo isto é dar ouvidos a qualquer coisa que Keith Darnell diz. O sujeito é um idiota, um imbecil e mais uma dúzia de palavras que não são adequadas para uma dama como você.
— Está vendo? — eu disse. — Você acabou de admitir que eu sou algum tipo de alma intocável e pura.
— Nunca disse nada parecido — ele retrucou. — Quero dizer que você está léguas acima de Keith, e que o que aconteceu com Lee foi um azar idiota e ridículo. E lembre-se de que nenhum de nós percebeu o que ia acontecer, não foi só você. Isso não tem nenhuma repercussão sobre você. Ou... — as sobrancelhas dele se ergueram. — Talvez tenha. Você não disse que Lee pensou em matar Keith para conseguir o sangue de alquimista?
— Disse... mas Keith foi embora cedo demais.
— Bom, então pronto. Até um psicopata reconheceu o seu valor o suficiente para querer matar outra pessoa primeiro.
Eu não sabia se ria ou se chorava.
— Isso não faz com que eu me sinta melhor.
Adrian deu de ombros.
— O que eu tinha dito continua valendo. Você é uma pessoa sólida, Sage. Você faz bem para os olhos, apesar de ser um pouco magra, e a sua capacidade de memorizar informação inútil vai sem dúvida fazer algum cara se amarrar. Tire Keith e Lee da cabeça, porque eles não estão nem um pouco envolvidos no seu futuro.
— Magra? — perguntei, torcendo para não estar vermelha. Também torcia para parecer ultrajada o suficiente para que ele não notasse como o outro comentário tinha me desarmado. Faz bem para os olhos. Não é exatamente a mesma coisa que dizer que eu era a gostosura em pessoa ou linda de morrer. Mas depois de passar a vida toda vendo a minha aparência ser julgada como “aceitável”, era um elogio e tanto — principalmente vindo dele.
— Só estou dizendo as coisas como elas são.
Quase dei risada.
— É, é isso mesmo. Agora, por favor, fale de outro assunto. Estou cansada desse.
— Claro que sim — Adrian às vezes me enfurecia, mas eu tinha que admitir que adorava sua curta capacidade de atenção. Isso tornava bem mais fácil evitar os assuntos desconfortáveis. Ou pelo menos era o que eu pensava. — Está sentindo esse cheiro?
Uma imagem dos corpos passou pela minha cabeça e, por um momento, só consegui pensar que ele estava falando do cheiro de podridão. Então respirei mais fundo.
— Estou sentindo o cheiro da tinta, e... espere... isso é pinho?
Ele pareceu impressionado.
— Nossa, está certa. Produto de limpeza com cheiro de pinho. Ou seja, eu limpei — ele fez um gesto dramático para a cozinha. — Com estas mãos, estas mãos que não fazem trabalho pesado.
Olhei para a cozinha.
— No que você usou o produto? Nos armários?
— Os armários estão ótimos. Eu limpei o chão e a pia. — Devo ter parecido mais confusa do que surpresa, porque ele acrescentou: — Até me ajoelhei.
— Você usou pinho no piso e na pia? — perguntei. O piso era de lajota de cerâmica; a pia era de granito.
Adrian franziu a testa.
— Passei, e daí?
Ele parecia tão orgulhoso por realmente ter limpado algo uma vez na vida que eu não tive coragem de dizer a ele que produto de limpeza com cheiro de pinho geralmente era usado em madeira. Lancei um sorriso de incentivo para ele.
— Bom, está ótimo. Agora preciso que você vá até o meu alojamento para limpar o meu quarto. Está coberto de poeira.
— De jeito nenhum, Sage. Limpar a minha própria casa já é ruim o bastante.
— Mas será que vale a pena? Se ficasse na casa de Clarence, teria uma cozinheira e faxineira residente.
— Com certeza absoluta, vale a pena. Eu nunca tive uma casa minha de verdade. Meio que tinha na corte... mas estava mais para um dormitório chique. Mas, isto? Isto aqui é maravilhoso. Mesmo que precise limpar. Obrigado.
A expressão cômica de horror que ele tinha no rosto enquanto falava da limpeza da casa tinha sido substituída por seriedade, enquanto aqueles olhos verdes me avaliavam. De repente me senti pouco à vontade sob seu exame e me lembrei do sonho de espírito, em que eu tinha questionado se os olhos dele eram mesmo tão verdes na realidade.
— Por quê? — perguntei.
— Por isto... eu sei que você deve ter torcido alguns braços de alquimista. — Eu não tinha dito a ele que na verdade tinha recusado o apartamento. — E por tudo o mais. Por não ter desistido de mim, mesmo quando eu fui o maior imbecil. E, sabe, pela parte de ter salvado a minha vida.
Desviei o olhar.
— Eu não fiz nada. Foi Eddie... e Jill que fizeram isso. Foram eles que salvaram você.
— Não sei muito bem se estaria vivo para o salvamento deles se você não tivesse posto fogo naquela vaca. Como fez aquilo?
— Não foi nada — retruquei. — Foi só, hum, uma reação química do arsenal de truques dos alquimistas.
Aqueles olhos me examinaram mais uma vez, pesando a verdade das minhas palavras. Não tenho certeza se ele acreditou em mim, mas deixou passar.
— Bom, pela cara com que ela ficou, a sua pontaria foi certeira. E depois você levou o troco por causa disso. Qualquer pessoa que apanha por Adrian Ivashkov merece certo crédito.
Eu me virei de costas para ele, ainda tímida com o elogio — e nervosa com a referência ao fogo — e fui até a janela.
— Mas você pode ficar tranquilo, porque foi um ato egoísta. Você não faz ideia do saco que é preencher a papelada quando um Moroi morre.
Ele deu risada, e foi uma das poucas vezes que eu o ouvi rir com humor e calor verdadeiros — e não por causa de alguma coisa distorcida ou sarcástica.
— Certo, Sage. Se está dizendo... Sabe, você hoje é muito mais espirituosa do que quando a gente se conheceu.
— É mesmo? Com todos os adjetivos do mundo à sua disposição, você escolhe “espirituosa”? — Suas brincadeiras eu era capaz de encarar. Desde que ele se concentrasse naquilo, eu não ia precisar pensar no significado por trás das palavras nem em como meu coração começou a bater só um pouquinho mais rápido. — Só para você saber, você hoje é um pouco mais estável do que quando a gente se conheceu.
Ele se aproximou e parou ao meu lado.
— Bom, não conte para ninguém, mas acho que sair da corte me fez bem. Este clima é um saco, mas Palm Springs pode fazer bem para mim... isso e todas as maravilhas que tem aqui. Vocês. Aulas de arte. Produto de limpeza com cheiro de pinho.
Não consegui segurar um sorriso e olhei para ele. Eu estava fazendo piada, mas era verdade: ele tinha mudado de maneira notável desde que tínhamos nos conhecido. Ainda havia um homem que sofria lá dentro, que carregava as cicatrizes daquilo que Rose e Dimitri tinham feito com ele, mas dava para ver os sinais de melhora. Agora ele estava mais firme e mais forte, e se conseguisse continuar nos trilhos, sem crises por um tempo, uma transformação notável poderia acontecer de verdade.
Demorou vários segundos de silêncio para que eu percebesse que estava olhando fixamente para ele, enquanto a minha mente tecia esses pensamentos. E, na verdade, ele olhava fixo para mim também, com um ar de encantamento.
— Meu Deus, Sage. Os seus olhos. Como foi que eu nunca reparei neles?
Aquela sensação desconfortável se espalhava por mim mais uma vez.
— O que têm eles?
— A cor — ele disse sem fôlego. — Quando você fica na luz. Eles são fantásticos... como ouro derretido. Eu poderia pintá-los... — ele estendeu a mão na minha direção, mas então recuou. — São lindos. Você é linda.
Algo na maneira como ele olhava para mim me paralisou e fez o meu estômago dar cambalhotas, mas não sabia deduzir exatamente por quê. Só sabia que ele parecia estar me enxergando pela primeira vez... e aquilo me assustou. Conseguia deixar para lá os elogios fáceis e engraçadinhos dele, mas aquela intensidade era algo completamente diferente, algo a que eu não sabia como reagir. Quando ele olhou para mim daquele jeito, eu acreditei que ele achava os meus olhos bonitos — que eu era bonita. Aquilo era mais do que eu estava pronta para ouvir. Sem jeito, dei um passo para trás, para longe do sol, com a necessidade de me afastar da energia do olhar dele. Eu tinha ouvido dizer que o espírito poderia enviá-lo a tangentes estranhas, mas não fazia ideia se era isso. Fui salva da minha tentativa parca de dar forma a algum comentário espertinho quando uma batida na porta nos causou um sobressalto.
Adrian piscou, e um pouco daquela conexão se desfez. Os lábios dele se torceram em um de seus sorrisinhos maliciosos e foi como se nada de estranho tivesse acontecido.
— Está na hora do show, hein?
Assenti, agitada com uma mistura confusa de alívio, nervosismo e... animação. Só não sabia se os sentimentos tinham sido causados por Adrian ou pelos visitantes que chegavam. A única coisa que eu sabia era que de repente consegui respirar com mais facilidade do que alguns momentos antes.
Ele atravessou a sala e abriu a porta com um floreio. Abe entrou esvoaçante, resplandecente com um terno cinza e amarelo que combinava de maneira desconcertante com a pintura de parede de Adrian. Um sorriso enorme se abriu no rosto do Moroi mais velho.
— Adrian, Sydney... como é adorável vê-los de novo. Acredito que um de vocês já conheça esta mocinha, não? — Ele passou por nós e revelou uma garota dampira magra, com cabelo castanho avermelhado e olhos azuis grandes cheios de desconfiança.
— Olá, Angeline — eu disse.
Quando me disseram que Angeline Dawes iria ser a nova colega de quarto de Jill, achei que era a coisa mais ridícula que eu já tinha escutado. Angeline fazia parte dos conservadores, um grupo separatista de dampiros, humanos e Moroi que viviam juntos nas florestas da Virgínia Ocidental. Eles não queriam saber da “civilização” de nenhuma das nossas raças e tinham diversos costumes bizarros, não sendo o pior deles sua abominável tolerância a relacionamentos inter-raciais.
Depois, quando pensei melhor, cheguei à conclusão de que Angeline talvez não fosse uma escolha tão ruim. Ela tinha a mesma idade que Jill, provavelmente iria lhe oferecer uma conexão mais próxima do que eu era capaz de dar. Angeline, apesar de não ter sido treinada da mesma maneira que um guardião como Eddie era, de todo modo seria capaz de se dar bem em uma briga. Se alguém atacasse Jill, teriam muito trabalho para passar por Angeline. E com a aversão que o povo de Angeline tinha em relação aos Moroi “maculados”, ela não teria motivo para dar apoio à política de qualquer facção rival.
Mas, enquanto eu a observava com suas roupas gastas, fiquei pensando em como ela iria se adaptar a ficar longe dos conservadores. Ela tinha uma expressão arrogante no rosto que eu tinha visto quando visitara sua comunidade, mas aqui ela ficava menos acentuada, por causa do nervosismo, enquanto ela ia absorvendo a casa de Adrian. Depois de passar a vida toda morando na floresta, aquele apartamentinho com sua tv e seu sofá xadrez provavelmente era o auge do luxo moderno.
— Angeline — Abe disse. — Este aqui é Adrian Ivashkov.
Adrian estendeu a mão e ligou seu charme natural.
— Prazer.
Ela apertou a mão dele depois de hesitar por um momento.
— Prazer em conhecer — ela disse com seu estranho sotaque do sul. Ela o examinou durante mais alguns segundos. — Você parece bonito demais para ser útil.
Eu não consegui me segurar e engoli em seco. Adrian deu risada e apertou a mão dela.
— Palavras mais verdadeiras jamais foram ditas — ele falou.
Abe deu uma olhada em mim. Eu devia estar com uma expressão de terror no rosto, porque já estava imaginando o controle de danos que precisaria efetuar se Angeline dissesse ou fizesse algo completamente errado em Amberwood.
— Sydney sem dúvida vai querer... orientar você a respeito do que esperar antes que comece na escola — Abe disse, diplomático.
— Sem dúvida — repeti.
Adrian tinha se afastado de Angeline, mas continuava sorrindo.
— Deixem que a Chave de Cadeia faça isto. Melhor ainda, deixem para Castile. Vai ser bom para ele.
Abe fechou a porta, mas não antes que eu desse uma olhada atrás dele, para o corredor vazio.
— Não são só vocês dois, não é mesmo? — perguntei. — Ouvi dizer que haveria outros. Sonya é um deles, certo?
Abe assentiu.
— Eles já vêm. Estão estacionando o carro. É muito difícil estacionar na rua por aqui.
Adrian olhou para mim, atingido por uma revelação.
— Ei, eu também vou herdar o carro de Keith?
— Acredito que não — eu disse. — Era do pai dele, que pegou de volta.
Adrian ficou com a cara no chão.
Abe enfiou as mãos nos bolsos e caminhou pela sala como quem não quer nada. Angeline permaneceu onde estava. Acho que ainda estava avaliando a situação.
— Ah, sim — Abe refletiu. — O finado e grande sr. Darnell. Aquele garoto realmente foi acometido por tragédias, não é mesmo? Que vida dura. — Ele fez uma pausa e se voltou para Adrian. — Mas você, pelo menos, parece ter se beneficiado da ruína dele.
— Opa — Adrian disse. — Eu mereci isso, portanto não venha fazer com que eu me sinta mal por ter saído da casa de Clarence. Sei que você queria que eu ficasse lá por algum motivo esquisito, mas...
— Deu certo — Abe disse com simplicidade.
Adrian franziu a testa.
— Hã?
— Você fez exatamente o que eu queria. Eu desconfiava que havia algo de estranho acontecendo com Clarence Donahue, que ele podia estar vendendo o próprio sangue. Eu achava que ter você por perto iria desvendar o caso. — Abe massageou o queixo daquele jeito de quem tem a mente cheia de tramoias. — Claro que eu não fazia ideia de que o sr. Darnell estivesse envolvido. Nem achava que você e a jovem Sydney iriam se unir para desvendar tudo.
— Eu não iria assim tão longe — disse, seca. Um pensamento estranho me ocorreu. — Por que você iria se incomodar se Keith e Clarence estivessem vendendo sangue de vampiro? Quer dizer, nós, os alquimistas, temos motivos para não desejar isso... mas por que você se sentiria assim?
Um brilho de surpresa passou pelos olhos de Adrian, seguido pela iluminação. Ele examinou Abe com cuidado.
— Talvez porque ele não queira concorrência.
Meu queixo quase caiu. Não era segredo para ninguém, nem para alquimistas nem para Moroi, que Abe Mazur fazia tráfico de bens ilegais. O fato de ele vender grandes quantidades de sangue de vampiro para humanos que desejassem a mercadoria nunca tinha me ocorrido. Mas, ao examiná-lo de maneira mais profunda, percebi que devia ter pensado nisso.
— Ora, ora — Abe disse, sem suar nem um pouquinho. — Não precisamos tocar em assuntos desagradáveis.
— Desagradáveis? — exclamei. — Se você está envolvido em algo que...
Abe ergueu a mão para me deter.
— Basta, por favor. Porque se esta frase terminar com você dizendo que vai falar com os alquimistas, então, por favor, traga-os aqui para que possamos discutir todo tipo de mistério. Digamos, por exemplo, como o sr. Darnell perdeu o olho.
Fiquei paralisada.
— Foram Strigoi que arrancaram — Adrian disse, impaciente.
— Ah, por favor — Abe disse com um sorriso torcendo seus lábios. — Minha fé em você acabou de ser restaurada. Desde quando Strigoi aleijam alguém de maneira tão precisa? E foi um aleijamento muito artístico, devo acrescentar. Não que alguém jamais tenha notado. Um talento desperdiçado, vou lhes dizer.
— Do que está falando? — Adrian perguntou, estarrecido. — Não foram Strigoi? Está dizendo que alguém arrancou o olho dele de propósito? Está dizendo que você... — ele não encontrou as palavras, e simplesmente ficou olhando de mim para Abe e vice-versa. — É isso, não é? Seus malditos acordos. Mas por quê?
Eu me encolhi toda quando três pares de olhos se fixaram em mim, mas não havia como reconhecer as peças que Adrian estava começando a encaixar. Talvez eu pudesse contar para ele se estivéssemos sozinhos. Talvez. Mas eu não podia contar para ele com Abe com aquele ar de tanta arrogância, e certamente não com uma forasteira como Angeline ali parada.
Não podia contar a Adrian como tinha encontrado a minha irmã Carly alguns anos atrás, depois de um encontro com Keith. Foi quando ele ainda estava morando conosco e logo antes de ela ir para a faculdade. Ela não queria sair com ele, mas o nosso pai adorava Keith e tinha insistido. Keith era o garoto dos olhos dele e jamais poderia fazer algo errado. Keith também acreditava nisso, e foi por isso que não conseguiu aceitar um “não” como resposta quando ele e Carly ficaram sozinhos. Ela me procurou depois: esgueirou-se para o meu quarto tarde da noite e ficou chorando enquanto eu a abraçava.
A minha reação instantânea era contar para os nossos pais, mas Carly ficou com muito medo — principalmente por causa do nosso pai. Eu era nova e fiquei quase tão assustada quanto ela, pronta para concordar com qualquer coisa que ela quisesse. Carly tinha me feito prometer que não ia contar para os nossos pais, por isso dediquei todo o meu esforço para garantir a ela que não tinha culpa. Durante todo o tempo, ela me disse, Keith ficou lhe dizendo como ela era linda e como não deixava escolha para ele, que era impossível tirar os olhos dela. Eu finalmente a convenci de que ela não tinha feito nada de errado, que não o tinha encorajado — mas ainda assim ela me fez manter a promessa de que ficaria em silêncio.
Foi um dos maiores arrependimentos da minha vida. Eu detestava o meu silêncio, mas não tanto quanto detestei Keith por achar que poderia estuprar uma pessoa tão doce e gentil quanto Carly e sair impune. Foi só bem mais tarde, quando recebi a minha primeira missão e conheci Abe Mazur, que percebi que havia outras maneiras para Keith pagar pelo que havia feito e ainda assim eu poder manter a minha promessa a ela. Por isso, fiz o meu acordo com o diabo, sem me importar que aquilo me deixaria comprometida — nem que significaria me rebaixar a níveis bárbaros de vingança. Abe tinha encenado um ataque falso de Strigoi e arrancado um olho de Keith no começo do ano. Em troca, eu tinha me transformado em uma espécie de “alquimista contratada” de Abe. Em parte, era por isso que eu tinha ajudado Rose a fugir da cadeia. Eu tinha uma dívida com ele.
Em certos aspectos, refleti com amargor, talvez eu tivesse feito um favor a Keith. Com um olho apenas, talvez ele não achasse tão “impossível” ficar afastado de moças interessantes no futuro.
Não, eu certamente não podia contar a Adrian nada disso, mas ele ainda olhava para mim com um milhão de perguntas no rosto enquanto tentava entender o que raios poderia ter me levado a contratar Abe como mercenário.
As palavras de Laurel de repente me voltaram: Sabe, às vezes você pode ser assustadora como o diabo.
Engoli em seco.
— Lembra quando você me pediu para confiar em você?
— Lembro... — Adrian respondeu.
— Preciso que faça a mesma coisa por mim.
Longos momentos se seguiram. Não conseguia olhar para Abe porque eu sabia que ele teria um sorriso malicioso nos lábios.
— “Espirituosa” foi meio que uma palavra leve — Adrian disse. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, ele assentiu devagar. — Certo. Eu confio em você, sim, Sage. Confio que você tem bons motivos para as coisas que faz.
Ele não falava com zombaria nem sarcasmo. Estava sendo absolutamente sincero e, por um momento, fiquei me perguntando como eu tinha conseguido ganhar a confiança dele de maneira tão intensa. Tive um flashback estranho dos momentos logo antes de Abe chegar, quando Adrian tinha falado sobre me pintar e os meus sentimentos ficaram todos confusos.
— Obrigada — eu disse.
— Do que é que vocês estão falando? — Angeline questionou.
— Nada de interessante, garanto — Abe respondeu. Ele realmente estava apreciando demais tudo aquilo. — Lições de vida, desenvolvimento de caráter, dívidas que não foram pagas. Esse tipo de coisa.
— Que não foram pagas? — Surpreendi a mim mesma ao dar um passo à frente e olhar muito feio para ele. — Eu paguei aquela dívida cem vezes. Não devo mais nada a você. Agora a minha lealdade é apenas aos alquimistas. Não a você. O nosso caso está terminado.
Abe ainda sorria, mas vacilou de leve. Acho que o fato de eu me defender o tinha pegado de surpresa.
— Bom, isso é o que ainda... ah. — Mais batidas na porta. — Eis aqui o resto do nosso grupo.
Ele se apressou até a porta.
Adrian deu alguns passos na minha direção.
— Nada mal, Sage. Acho que você acabou de assustar o velho Mazur.
Senti um sorriso começar a se formar em meus lábios.
— Não sei se isso é verdade, mas até que fez eu me sentir bem.
— Você devia confrontar as pessoas com mais frequência — ele disse. Nós trocamos sorrisos e ele me olhou com carinho; senti a mesma sensação enjoativa de antes. Ele provavelmente não estava com a mesma sensação, mas havia algo fácil e alegre nele. Raro — e muito atraente. Ele apontou com a cabeça para onde Abe abria a porta. — É Sonya.
Os usuários de espírito eram capazes de pressentir uns aos outros quando estavam em proximidade suficiente, mesmo atrás de portas fechadas. E, claro, quando a porta se abriu, Sonya Karp entrou pisando firme feito uma rainha, alta e elegante. Com o cabelo ruivo preso em um coque, a Moroi poderia ser a irmã mais velha de Angeline. Sonya sorriu para todos nós, apesar de eu não poder deixar de estremecer ao me lembrar da primeira vez em que a tinha visto. Na época, ela não pareceu tão bonita e encantadora quanto agora. Estava com os olhos vermelhos e tentou nos matar.
Sonya era uma Strigoi que tinha sido restaurada a Moroi, e por isso realmente era a escolha ideal para trabalhar com Adrian e descobrir como usar o espírito para impedir que as pessoas fossem transformadas.
Sonya abraçou Adrian e estava caminhando na minha direção quando alguém mais apareceu à porta. Pensando bem, eu não devia ter me surpreendido com quem era. Afinal de contas, se queríamos descobrir qual era a magia de espírito especial em Lee que tinha impedido que ele fosse transformado mais uma vez, então iríamos precisar de todos os dados possíveis. E se ter uma Strigoi restaurada era bom, ter dois era ainda melhor.
Adrian empalideceu e ficou totalmente imóvel enquanto olhava fixo para o recém-chegado e, naquele momento, todas as grandes esperanças que eu tinha para ele vieram abaixo. Antes, eu havia tido certeza de que Adrian simplesmente seria capaz de ficar longe de seu passado e dos acontecimentos traumáticos dele, que seria capaz de encontrar motivação e se firmar. Bom, parecia que seu passado o tinha encontrado, e se isso não se qualificava como acontecimento traumático, não sabia o que poderia se encaixar nessa categoria.
O novo parceiro de pesquisa de Adrian entrou porta adentro e eu vi que a paz desajeitada que tínhamos acabado de estabelecer em Palm Springs estava prestes a se desfazer.
Dimitri Belikov havia chegado.
Richelle Mead
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