Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
LAÇOS DO PASSADO
Uma intriga... Um segredo...
Garrett Blackhawk esperava que seu romance com Mary Jane um dia acabasse em casamento. Mas teve de se ausentar temporariamente da cidade, e mal virou as costas ela se casou com outro! Agora, Mary Jane está viúva, tem três filhas e... Garrett está de volta... querendo explicações!
Mary Jane Kelleher ficou surpresa quando Garrett a acusou de ser responsável pelo fim do relacionamento. Afinal, não fora ele quem escrevera uma carta terminando tudo? Mas sua grande surpresa foi saber que Garrett ainda pretendia se casar com ela!
De pé junto ao telefone na cozinha, Mary Jane Kelleher apertava com tanta força o aparelho na mão que apresentava os dedos brancos. Gostaria de não ter de dar aquele telefonema. Na verdade, abriria mão de metade da fazenda para evitar o suplício. As filhas Becca, Shannon e Brittnie a encorajavam a telefonar, até porque não apreciariam o depauperamento da herança.
Apesar do medo e do nó na garganta, não tinha escolha. Alguém precisava telefonar e, por processo de eliminação... sem mencionar covardia por parte dos vizinhos... fora eleita.
Pela décima vez, leu o número escrito no papel amassado, embora já o soubesse de cor. Respirando fundo, posicionou o fone ao ouvido e teclou os números. Atenderam no segundo toque. Com o coração disparado, sentou-se na banqueta alta para não desabar.
– Bom dia. Obrigada por ligar para o Grupo Blackhawk atendeu uma voz jovem e nítida. – Meu nome é Kay. Em que posso ajudar?
A eficiência da moça forçou Mary Jane a parar de tremer e justificar a chamada.
– Eu gostaria de falar com o sr. Garrett Blackhawk – sussurrou. Conseguiria, convenceu-se. Conseguiria, se permanecesse calma e focada.
– Lamento, o sr. Blackhawk está em uma reunião. Quer deixar recado?
Mary Jane resistiu à vontade de resolver a questão de forma fácil. Deixaria um recado com as informações necessárias. Garrett não teria de dar retorno. Não seria necessário falar com ele... para felicidade de uma covarde.
– É realmente muito importante – declarou Mary Jane. Quantos dos funcionários de Garrett saberiam de sua situação familiar?, imaginou. – É... pessoal e confidencial – esclareceu, franzindo o cenho à frase banal. Informou seu nome e telefone e pediu: – Por favor, peça que ele me ligue o mais rápido possível e...
– Oh, espere um segundo, senhora – interrompeu a moça. – A reunião acabou. Vou ver se o sr. Blackhawk pode atendê-la agora. Por favor, aguarde na linha.
A atendente colocou-a na espera e Mary Jane passou a ouvir música de uma rádio de Albuquerque, onde Garrett morava. Dono de uma fazenda enorme e de outros negócios na maior cidade do Novo México, Garrett era um homem bem-sucedido, o orgulho de sua cidade natal, Tarrant, no Estado vizinho do Colorado, embora a visitasse poucas vezes naqueles vinte e oito anos desde a formatura no ensino médio. Ele se alistara no Exército e lutara no Vietnã. Na volta, cursara a faculdade e finalmente abrira seu próprio negócio.
Ela estava feliz por Garrett, contente por ele ter conseguido aquilo em que o pai dele nunca acreditara: que alcançaria o sucesso sem sua ajuda, influência ou dinheiro.
Mary Jane estivera em Albuquerque várias vezes ao longo dos anos, mas nunca se encontrara com Garrett. Mesmo agora, não queria. Na verdade, provavelmente não teria de vê-lo. Bastava dar o recado e seria o fim de...
– Mary Jane? – clamou uma voz grave através da linha telefónica. Houve pausa, e o homem repetiu, num tom permeado de incredulidade. – Mary Jane Sills?
Mary Jane sobressaltou-se, quase deixando cair o telefone.
– É... é Kelleher agora, Garrett.
– Sim – apressou-se ele. – Claro, eu sabia. É que estou surpreso com o telefonema...
– Eu sei, Garrett, e lamento ter assustado você. – Como se procurasse segurança, uma âncora familiar, ela olhou ao redor da cozinha. Garret. Garrett Blackhawk, após tantos anos!
Tinha os pensamentos mais dispersos do que as bolas de gude que seu neto Jimmy largara no chão da cozinha.
– Não me assustou. É só... que estou surpreso. – Ele riu, desdenhoso de si mesmo. – Já disse isso, não?
– Sim, eu... – Mary Jane procurou ficar calma. – Garrett, estou telefonando por causa de seu pai.
Ele prendeu a respiração.
– Ora, o que ele fez? Ele a magoou, ou a sua família? Porque se ele...
– Não, não, nada disso. – Mary Jane enrolou o fio do telefone no dedo. – Ele está muito doente... está muito doente há meses, mas não deixou a sra. Chandliss lhe telefonar. – A verdade era que o velho Augustus Blackhawk ameaçara a vida de Ruth Chandliss se ela tentasse chamar Garrett, mas Mary Jane não lhe contaria a respeito... não ainda. – Acho que ele teve um derrame leve, mas não procurou o médico.
– Quando? – indagou Garrett.
– Em junho passado. Foi quando notamos pela primeira vez uma mudança nele...
– E ninguém se incomodou em me telefonar para contar?
– Espere um pouco, Garrett. Todos nós...
– Todos quem?
Mary Jane não esperava aquela rèação.
– Todos os vizinhos – especificou, sombria. – Achamos que, se fosse um problema sério, um dos empregados lhe telefonaria para avisá-lo, ou que você viria para casa um dia e verificaria sozinho.
– Casa? – indagou ele. – Tarrant não é minha casa há vinte e oito anos.
Frustrada, Mary Jane massageou as têmporas.
– Entendeu o que eu quis dizer. Ouça, Garrett, não sei como anda seu relacionamento com seu pai e, francamente, não me importo. Só estou sendo prestativa como vizinha, telefonando para avisar que seu pai está doente e que precisa de você. – Se não for tarde demais, acrescentou, silenciosamente.
– Meses depois do fato – reclamou Garrett, e Mary Jane irritou-se.
– Assim como uma visita sua parece estar meses defasada – rebateu. Céus. Nem nos sonhos mais selvagens imaginara essa primeira conversa tão áspera. Ao menos, servia para alguma coisa: a irritação suplantava o nervosismo.
– Eu soube hoje o quanto Ruth Chandliss está preocupada com ele. Ele ameaçou despedi-la, ou pior, se ela lhe telefonasse.
– Não sei como ela ainda não pediu a conta... – replicou Garrett. Mary Jane imaginava o mesmo mas não comentou.
– O que a faz pensar que foi um derrame?
– Ele está com péssima aparência, a fala arrastada, o comportamento irregular e...
– Quer dizer, ele está pior e mais intratável do que o normal – concluiu Garrett, o tom de voz procurava disfarçar a contrariedade, sem muito sucesso.
– Sim, temo que sim. Ninguém pode fazer nada por ele.
– É minha responsabilidade. Irei para Tarrant em se guida – decidiu ele. – Vou de jatinho.
Mary Jane sentiu a irritação amainar e quase sorriu. Quando tomava uma decisão, Garrett agia rápido.
Ele sempre adorara a velocidade... carros, cavalos, aviões. Mary Jane ouvira dizer que ele fora atirador no Vietnã, atuando na porta dos helicópteros, cobrindo ações e retiradas. Não conseguia imaginar o rapaz que conhecera pendurado na porta do transporte aéreo... as mãos de jogador de basquete empunhando uma metralhadora. Afastou as imagens de horror. Tinha de parar com aquilo. As lembranças só a deixavam mais agitada.
– Alguém pode me pegar na pista de pouso de Tarrant? – indagou Garrett.
– Sim – respondeu Mary Jane, sem pensar. – Posso encontrar... – Quase disse "alguém", mas não havia motivo para não ir buscá-lo pessoalmente. Era a atitude de boa vizinhança esperada. A atitude adulta. – Estarei lá. Diga-me a que horas. – Provavelmente, era imprudência ir ao encontro dele, mas precisava inteirá-lo de alguns fatos sobre o pai antes de encarar o velho turrão. Além disso, ele veria que a garota doce e obediente transformara-se em uma mulher madura, dona de seu próprio negócio.
Garrett ficaria chocado ao ver Gus. Mesmo achando que ele fora negligente com o pai, ela poderia suavizar um pouco o golpe.
– Seria ótimo, Mary Jane. Eu gostaria muito. – Ele informou o horário provável da chegada e, antes de desligar, fez uma pausa. O mau humor e a aspereza dissiparam-se.
– Sei que meu pai foi rude com você e sua família, MarJay, e agradeço que tenha me telefonado.
Ela sentiu o coração disparar com a mudança de atitude.
– Eu sinto que lhe devia isso, Garrett. Pelos... pelos velhos tempos – sussurrou.
– Oh, MarJay – começou ele, a voz grave e contida. – Você não me deve nada. – Então, despediu-se e desligou.
Mary Jane desligou também e atravessou a cozinha, sentando-se numa cadeira. Respirava ofegante e abandonava as mãos frouxas no colo. MarJay, Ninguém nunca a chamara assim, exceto Garrett... quando tinham dezessete anos e estavam desesperadamente apaixonados um pelo outro. Tratava-se de uma lembrança doce e triste ao mesmo tempo, pois não eram mais as mesmas pessoas. Estavam com quarenta e seis anos e uma vida de experiências os separava agora. Quando se reencontrassem, notariam as mudanças.
Fitou as mãos trémulas. Não eram mais as mãos macias de uma jovem. Estavam calejadas do trabalho na fazenda, com cicatrizes de arame farpado. Levantou-se e se olhou no espelho pendurado na porta dos fundos.
Seus olhos cinza continuavam límpidos e brilhantes. As feições tinham suavizado com o tempo, ganhara uns cinco quilos com a maternidade, o passar dos anos, o trabalho pesado na fazenda e o aperfeiçoamento dos dotes culinários.
Os cabelos curtos loiros não apresentavam nenhum fio grisalho, graças a frascos e mais frascos de tintura. As filhas caçoavam de tanta vaidade, mas não se importava, sempre cuidara bem dos cabelos e da pele. Considerando as rugui-nhas ao redor dos olhos, não via motivo para denunciar a idade revelando os cabelos grisalhos.
O fato de ter filhas adultas denunciavam sua verdadeira idade.
Reparando na camisa e calça jeans que vestira pela manhã, decidiu trocar de roupa. Não era por vaidade, assegurou a si mesma, mas porque se sujara ao desatolar um novilho da lama.
Na verdade, tinha tempo para tomar um banho, arrumar os cabelos, aplicar maquiagem e passar a ferro o terninho que Becca lhe dera de aniversário no mês anterior. Não era vaidade, assegurou a si mesma novamente. Era cortesia se apresentar bem ao receber alguém no aeroporto, principalmente quando não se queria demonstrar fraqueza. Meramente, observava as regras de boas maneiras que ensinara às filhas. Satisfeita com a lógica, dirigiu-se ao quarto.
Garrett Blackhawk sentou-se e pousou a mão na pilha de tarefas a concluir ou delegar antes de partir para Tarrant, mas não tomou nenhuma providência.
Mary Jane Sills... Saboreou o nome e só então corrigiu-se. Mary Jane Kelleher. Sabia que ela enviuvara havia quatro anos. Na verdade, sabia muito a respeito da ex-namorada porque até hoje assinava o principal jornal da pequena cidade do Colorado.
Conhecia todos os marcos da vida dela, o nascimento das filhas, as ocasiões em que ela e o marido compraram ou venderam propriedades. A morte de Hal.
Na verdade, a única informação que o periódico nunca dera sobre Mary Jane era o motivo de ela ter se casado com Hal.
Raios. Por que falara com ela daquele jeito? Culpando-a de não o avisar sobre a doença de Gus? Não era culpa dela, nem de nenhum vizinho da Fazenda Blackhawk. A culpa era toda dele próprio, por nunca ter se controlado nem por cinco minutos para conversar com o pai.
Telefonava todos os meses para a fazenda e perguntava a Ruth como estavam as coisas, mas Gus provavelmente instruíra a governanta a não revelar nada sobre seu estado de saúde. Devia ter ido pessoalmente. Conhecia o pai.
Ignorando o trabalho sobre a mesa, levantou-se e foi se servir do café fresco que a secretária Jill mantinha sempre pronto. Com a caneca intitulada "chefão" em letras vermelhas, aproximou-se da janela. O apelido era só brincadeira, pois Jill lhe dissera que, embora ele fosse o chefe mais difícil que ela já tivera, não tinha dificuldade em mantê-lo na linha. Com efeito, ele jamais discutia com o dínamo de ar maternal que tomava cuidava de seu escritório. Na verdade, encarava a mensagem na caneca como um elogio. Não se importava em ser difícil, desde que não se revelasse um patife como Gus, seu pai.
Deleitou-se com a visão do pátio central do Edifício Black-hawk. A fonte lançava água sob o sol de setembro produzindo vários pequenos arco-íris. Funcionários deslocavam-se para lá e para cá, em passos variados, dependendo da urgência de seus afazeres e do fato de terem notado ou não a presença do patrão à janela.
A construção de três andares abrigava várias empresas de seu império, interesses agropecuários, incorporações de imóveis e aplicações financeiras. Uma das paredes da estrutura tinha acabamento em argila e dava para a praça central da cidade em que morava havia mais de vinte anos. Orgulhava-se do que empreendera em Albuquerque, mas ainda só começara a provar que Gus errara ao apostar que ele não conseguiria nada sem o dinheiro e a influência do pai.
Conseguira. Era um empresário rico e bem-sucedido, mas nunca se casara. Não tinha família. Quando Gus morresse, não haveria ninguém além dele para ficar com seu legado.
Tomou um gole de café e franziu o cenho, sem saber se era a bebida que estava ruim ou se o amargor derivava de seu próprio arrependimento.
Mary Jane não enriquecera, mas tinha família, relacionamentos pessoais que ele não possuía.
Sentira um golpe quando Kay lhe informara quem aguardava na linha. Atendera recordando a jovem Mary Jane e ficara atónito ao ouvir a voz feminina madura. A lógica justificava a mudança. Ele também devia ter mudado. Já atingira a meia-idade, embora Jill lhe assegurasse que ainda não o aparentasse. Caso contrário, a tirana já o estaria submetendo a dieta e ginástica.
Seus cabelos continuavam pretos, com alguns fios brancos nas têmporas. Se tentasse, provavelmente ainda entraria no uniforme do Exército, embora seu corpo não fosse mais o do jovem de dezoito anos.
Com um suspiro, deu as costas à janela.
Por que passara a pensar em Mary Jane e em sua própria aparência somente após ela telefonar para informar que seu pai estava mal? Um derrame, dissera ela. Talvez mais que um, e nem assim Gus fora ao médico. Bem, tomaria providências assim que chegasse a Tarrant. Seria uma tarefa árdua, mas antes tinha de limpar aquela mesa.
O jatinho brilhou sob o sol do entardecer ao realizar um círculo em aproximação ao aeroporto do condado de Tarrant.
Mary Jane admirou a manobra elegante, reparando no falcão estilizado preto estampado na cauda da aeronave. Quando o jatinho se inclinou, leu a inscrição "Grupo Black-hawk" na fuselagem e reconheceu Garret no assento do piloto. O homem possuía no mínimo um jatinho corporativo! Quanto enriquecera, afinal?
Alisou o paletó do terninho, desejando ter passado mais creme hidratante nas mãos para suavizar as áreas ásperas. Mas para quê? Todos sabiam que realizava um trabalho braçal, e suas mãos denunciavam esse fato.
Garrett não se abalara até Tarrant para vê-la, de qualquer forma, mas por causa do pai. Mesmo assim, aliviava-se por ter os cabelos ajeitados e macios em torno do rosto, enfatizando os olhos mais maquiados do que o usual.
Meneou a cabeça, triste, e recostou-se na lateral da caminhonete branca para relaxar, cuidando para não sujar a roupa, entretanto. Claro, podia vestir a parca, mas esta não combinaria com o terninho.
Vaidade, teu nome é Mary Jane!
Deslizando suave, o jatinho pousou na pista simples e taxiou até o barracão onde Red Adkins, o gerente da pista, mantinha os registros das idas e vindas do esparso tráfego local.
Dali a pouco, a porta na fuselagem se abriu, uma escada desceu e Garrett surgiu. Ocupando o vão todo, ele roçou os cabelos pretos na parte superior da abertura, brigando com uma bolsa de viagem e uma pasta executiva. Deu uma olhada ao redor, avistou Mary Jane e lhe acenou rapidamente antes de tomar os degraus.
Ela o fitava atónita. Não recordava que ele fosse tão grande. Garrett continuara crescendo após deixar Tarrant? Analisou sua figura, absorvendo cada detalhe. Definitivamente, tornara-se mais robusto e adquirira passos sólidos, sem sinal da leveza do pivô do time de basquete da escola.
Claro que não. Que tolice. Garret era um homem agora, não um garoto. Por algum motivo, as lágrimas brotaram nos olhos de Mary Jane. Ela levou algum tempo para perceber que se emocionava, de arrependimento e tristeza. Os dois foram tão importantes um ao outro certa época, mas agora eram quase estranhos.
Foi ótimo ele seguir primeiro para o escritório de Red. Ela teria alguns minutos para respirar fundo e se recompor. Não previra que sentiria tanta emoção ao rever o amor da adolescência. Precisava aprender a se controlar, ou lamentaria muito mais do que os anos passados. Garret concluiu as formalidades com a administração e saiu do escritório, caminhando determinado pela pista ao encontro de Mary Jane. Estacou diante dela e lhe tomou a mão.
– Olá, Mary Jane – cumprimentou com um sorriso, evocando inúmeras lembranças.
Ela sentiu o calor da mão forte e grande o bastante para envolver a dela completamente. As feições dele haviam mudado, apresentando linhas de maturidade, o queixo forte contrastando com as maçãs do rosto altas e os olhos profundos. Quando ele sorria, ruguinhas sedutoras surgiam nos cantos dos lábios. Os olhos ainda eram azuis, um tom escuro que ela nunca mais vira semelhante.
– Olá, Garrett. É bom vê-lo novamente. – Lamentou a saudarão banal, mas ele não pareceu notar.
– E bom vê-la novamente também, Mary Jane. Faz muito tempo. – Ele parecia examiná-la, como ela fizera.
Desconfortável, Mary Jane desviou o olhar.
– Trouxe só essa bolsa?
Garrett assentiu e instalou a bolsa e a pasta na caçamba da caminhonete.
– Tenho certeza de que Gus vai me mandar embora e achei melhor trazer pouca coisa. – Sem delongas, contornou o veículo e a surpreendeu abrindo-lhe a porta do motorista.
Mary Jane, acostumada a fazer tudo sozinha, divertiu-se ao vê-lo estender a mão para ajudá-la a subir ao banco.
– Desculpe-me – murmurou, ao se ajeitar atrás do volante. Garrett só estava sendo gentil. Devia aceitar as atenções com mais graça, em vez de se constranger.
Ele sorria de leve, como se soubesse em que ela pensava. Como poderia, se nem ela sabia?
Garrett instalou-se na poltrona ao lado. Mary Jane deu a partida no motor e finalmente relaxou. Saíram do estacionamento já descendo o planalto onde ficava a pista de pouso, seguindo em direção da cidade.
Garrett olhou ao redor.
– Sempre que venho aqui, fico espantado em constatar como as coisas não mudam...
– A população não cresce muito em Tarrant – concordou Mary Jane. – Não há muito emprego.
Ele assentiu, e calaram-se. Como a tensão na cabine parecia sugar todo o ar, Mary Jane acionou o ventilador. Não imaginava que a distância entre eles fosse tão grande, mas também, nem sabia o que esperar. Não era nada parecido com as reuniões de turma da escola, quando as pessoas corriam a se abraçarem. TSÍem lhe passava pela cabeça abraçar Garrett. Ficaria sem graça, e duvidava de que ele apreciasse a iniciativa.
– Mary Jane, lamento sobre Hal. Era um bom homem.
Ela o olhou rapidamente.
– Sim, era.
– E um bom marido, imagino. – Não era uma pergunta.
Garrett parecia querer que ela confirmasse sua suposição.
– O melhor. E um ótimo pai também – assegurou.
Garrett estava meio voltado para ela, o ombro apoiado na porta.
– Acho que foi por isso que se casou com ele tão rápido. Sabia que ele daria um bom marido e pai.
Mary Jane sobressaltou-se e a caminhonete foi para o centro da pista. Endireitou o volante e olhou rapidamente para Garrett. Ele ergueu o sobrolho, como se perguntasse qual era o problema. Ela voltou a atenção à estrada, agarrando o volante com as mãos suadas.
–Garrett, por que não discutimos sobre minha família em outra hora? Agora, você precisa saber o que se passa com seu pai. Ruth pode não se sentir confortável em lhe contar. É uma empregada muito leal.
Garrett olhou-a como se não quisesse deixar de lado o tema, relutante em falar do próprio pai, mas finalmente assentiu.
– Tem razão. Andei pensando no meu pai a viagem toda, mas agora evito o assunto. Diga-me o que está acontecendo.
Aliviada, Mary Jane assentiu e passou a descrever o comportamento estranho de Gus Blackhawk desde junho.
– Ele expulsou várias pessoas da propriedade, até ameaçou-as com uma espingarda. Pode ter tido um derrame, mas, pelo que sabemos, não procurou um médico.
Garrett assentiu, sério.
– Ele não procuraria, claro. Gus acha que sabe mais do que os médicos.
– Foi o que Ruth disse. – Mary Jane desacelerou a caminhonete. – Chegamos – anunciou, desnecessariamente, adentrando a porteira da Fazenda Blackhawk. Passara por ali centenas de vezes desde que se mudara para a vizinha Fazenda Running K, mas nunca entrara, cônscia de que não era bem-vinda.
Garrett tornava-se mais tenso. Endireitou-se no banco e olhou ao redor, notando que uma parte da cerca estava quebrada e que o gado invadia a estrada. Mary Jane teve de frear e buzinar, aguardando que os bois vagarosamente saíssem da frente. A via de cascalho apresentava capim por toda parte, como se raramente a usassem. Havia outros sinais de negligência e falta de manutenção. Mary Jane percebia seu espanto. Gus sempre fora perfeccionista.
– Ruth contou que as coisas na casa também estão mal – comentou, sentindo que devia alertá-lo. – Gus não permite que ela conserte nada, nem que chame alguém para cuidar dos reparos.
Do topo da colina, avistaram o pequeno vale no qual se assentava a casa, o celeiro e outros anexos. Era patente a decadência da fazenda.
– Eu devia ter vindo antes confessou Garrett. – Mas ele não me queria aqui.
Cheia de compaixão, Mary Jane freou a caminhonete e pousou a mão sobre a dele.
– Lamento que tenha de ser assim.
Ele não respondeu, mas assentiu após um segundo. Mary Jane retirou a mão e retomou o avanço pela estrada.
Diante da sede, a porta se abriu e Gus Blackhawk em pessoa saiu à varanda. Mary Jane o vira recentemente e não se espantou. Mas Garrett prendeu a respiração, surpreso com a aparência do pai.
Gus trajava roupas rasgadas e sujas, tinha os cabelos compridos e desgrenhados, a barba grisalha descuidada crescendo irregular. Estreitou o olhar e ergueu o queixo ao reconhecer Mary Jane. Trémulo de fúria, desceu os degraus da varanda apoiando-se pesadamente no corrimão:
– O que faz aqui? Sabe que não é bem-vinda. Está tentando pegar o que é meu, é isso o que está tentando fazer. Bem, isso não vai acontecer...
Garrett saltou da caminhonete, contornou-a e bloqueou o caminho de Gus.
– Pai! Pare.
Concentrado em Mary Jane, o velho ignorou o filho, até que Garrett o segurou pelo braço. Ainda tentou se desvencilhar, mas então voltou os olhos azuis marejados ao filho.
– Pai, Mary Jane me trouxe aqui para ver você.
Gus esboçou um sorriso.
– Garrett... Já era hora de voltar para casa. – Olhou irado para a vizinha. – Mas não tinha de vir com ela!
Garrett conteve-se para não discutir.
– Não se importe com isso. Vim ver como você está.
– Como se se importasse! – disparou Gus, desvencilhando o braço. Lançou outro olhar ameaçador a Mary Jane.
– E você, saia da minha propriedade ou eu a processarei!
– Dando meia-volta, subiu os degraus para entrar em casa.
Não seria a primeira vez. Mary Jane sentiu-se constrangida e quis rebater, mas achou mais sábio manter-se calada. A raiva que sentia do velho senhor dissipou-se ao ver o desgosto na expressão de Garrett.
– Que foi isso tudo? – indagou ele. – Sei que ele odeia todos os vizinhos, mas por que esse rancor por você?
– Ele sempre foi assim – comentou ela, vaga. – Desde quando desconfiava de que namorávamos, na escola.
Garrett passou a mão nos cabelos.
– Isso é passado. Por que ele, ou qualquer pessoa, se importaria com isso agora?
Mary Jane sentiu uma pontada no coração, mas conseguiu dar de ombros.
– Ele mantém o ressentimento.
– Isso é ridículo! – Garrett retirou sua bolsa e pasta da caçamba da caminhonete. – O que aconteceu entre nós acabou há muito tempo. Com certeza, não importa mais agora. – Lançou-lhe um olhar perturbado. – Obrigado pela carona, Mary Jane. Agradeço por ter me telefonado. Nós nos veremos em breve. – Apressado, subiu à varanda atrás do pai.
Mary Jane respirou fundo, ligou o motor e conduziu o veículo de volta pela estrada. Garrett tinha razão, claro. O que acontecera entre eles não importava mais. Na verdade, ele deixara claro que o relacionamento entre eles acabará vinte e oito anos antes.
Aproximadamente, sete meses antes de ela dar à luz a filha de ambos.
Percorrendo toda a varanda da casa, Garrett desejou ter dezoito anos novamente e poder se dependurar nos postes que sustentavam o telhado. Agarrou-se a um deles com força.
Raios, o velho era teimoso!
Deu meia-volta e caminhou até a outra extremidade da varanda. Passara as duas últimas horas discutindo com o pai, tentando convencê-lo a procurar um médico. Gus refutou cada argumento, até o filho gritar nervoso e sair para a varanda. Precisava se acalmar antes de recomeçar, mas a visão da fazenda só aumentava sua perturbação.
Parado com as mãos nos quadris, Garrett apreciou aquela que um dia fora a melhor fazenda de Tarrant. O cenário parecia tirado das velhas fotografias que seu avô tirara ao tomar posse do local, logo após a Crise de 1929. Totalmente abandonado.
Como o próprio Gus. Garrett franziu o cenho. Era evidente que seu pai estava muito doente. Tinha certeza de que o velho sofrera pelo menos um derrame, como sugerira Mary Jane, e provavelmente apresentava outras complicações.
Mary Jane... Ainda não a desculpara por ela ter esperado tanto tempo para lhe avisar sobre a condição de Gus, mas entendeu a atitude após ver o tratamento que o pai lhe dispensara. Os vizinhos não haviam telefonado porque não queriam ser agredidos. Gus nunca se dera bem com ninguém. Odiara Hal Kelleher porque o fazendeiro se recusara a lhe vender sua propriedade, anos antes, mas nem isso justificava tanta agressividade contra a viúva Mary Jane.
Tinha que admitir que se abalara ao revê-la. Não esperara uma moça de dezoito anos ainda, claro, mas tampouco a imaginara aos quarenta e seis. Mary Jane parecia pairar em algum momento entre as duas idades. Loira, bonita, com um toque desajeitado que ele sempre achara atraente. Ela também ficara nervosa ao reencontrá-lo.
Compreensível, pois ainda tinham um assunto pendente.
Garrett estreitou o olhar ao analisar as ruínas da outrora próspera fazenda do pai. Antes de partir de Tarrant, conversaria com Mary Jane, decidiu. Assim que o pai estivesse melhor e pudesse se concentrar em Mary Jane, conseguiria respostas para as perguntas que guardava havia tanto tempo.
– Garrett!
Voltou-se ao alarme de Ruth. A governanta saiu à varanda, estacou ao vê-lo e agitou as mãos.
– Seu pai... desmaiou na sala.
Garrett levou alguns segundos para reagir e entrar apressado na casa.
– Chame os paramédicos! – gritou, achegando-se ao velho. Gus estava largado no sofá, o braço e a mão esquerdos contraídos.
Ao endireitá-lo, Garret reparou no canto da boca e no olho repuxados. Com a cabeça pendente, Gus revirou os olhos, mas então pareceu ver o filho e reconhecê-lo. Começou a balbuciar. Garrett aproximou-se para entender.
– Fiz... fiz a coisa certa... colocando-a... para correr... Mary Jane Sills... a escória...
Atónito, Garrett fitou o pai. Numa hora dessas, a única coisa em que o pai podia pensar era em Mary Jane e na discussão acontecida havia tanto tempo sobre ela não ser boa o bastante para o filho de Gus Blackhawk? Horrorizado, Garrett sentiu tristeza e pena ao se inteirar do que ainda era importante para o pobre homem.
– Sabe... eu... tinha razão – murmurou Gus. – Tinha razão. – Fechou os olhos e a respiração ficou mais fraca.
Angustiado, Garrett tomou a mão do pai, um homem tão teimoso que as últimas palavras só poderiam ser uma justificativa para seus atos.
Após muito andar pela pequena sala de espera daquela ala do hospital, Garrett sentou-se no sofá. Incomodado, levantou-se e examinou o móvel. Não se adequava a um homem com um metro e oitenta de altura. Na verdade, não imaginava quem poderia se sentir bem naquilo. A fim de não prejudicar as costas, continuou andando, enquanto esperava Frank Kress vir lhe reportar o estado do velho Gus.
Acompanhara o pai até a sala de exames, mas Frank franzira o cenho, deixando claro que não o queria ali. Assim, retirara-se. Precisava pensar, precisava entender o que o pai quisera dizer ao confessar que colocara Mary Jane para correr. Passou a mão no rosto.
Mas Gus não a pusera para correr. Ela se casara com Hal Kelleher e se mudara para a fazenda vizinha. Irritado, ávido por anexas mais terras, o velho tentara desacreditar os Kelleher junto aos demais fazendeiros. Garrett não se surpreenderia se soubesse que o pai chegara a roubar gado e derrubar cercas, mas não entendia tanta animosidade contra Hal e Mary Jane. Sentira um quê de amargura na voz do pai ao remoer o triste sentimento.
Em busca de uma distração, olhou ao redor na sala. Os móveis eram feios, sobras de outros ambientes, como se a decoração do lugar onde familiares aguardavam notícias de seus entes queridos não importasse. A feiúra era como um aviso às pessoas: "espere pelo pior".
Garrett sabia o que era o pior no caso do pai. Frank lhe diria que Gus estava morrendo e que não havia nada a fazer. Não que o velho desejasse a ajuda do filho. Aos oitenta e cinco anos, parecia determinado a morrer à sua maneira, como vivera. Sozinho. A esposa morrera quando o filho tinha cinco anos. Garrett sempre imaginou se a mãe não se fora simplesmente por não poder atender às expectativas do marido.
Garrett afastou esse pensamento. Não queria pensar no passado. Já tinha muito com que se preocupar no presente. Solucionara sua relação com o pai ao decidir não ser como ele. Recordando como Gus tratava as pessoas... vizinhos, empregados, conhecidos... agia da maneira oposta. Se tivesse se casado e tido filhos, continuaria com a mesma atitude amigável.
Sabia que o pai teria sofrido o novo colapso, tivessem discutido ou não. Mesmo assim, sentia-se culpado pelas palavras que haviam trocado. A tensão adicional não ajudara em nada. Não queria pensar que era parcialmente responsável pelo agravamento do estado do velho, embora achasse que sim.
Precisava sair daquela sala miserável.
A caminho da lanchonete, passou pela ala pediátrica e deteve-se. Mary Jane saía de um quarto e fechava a porta com cuidado. Ela também o viu e estacou.
Havia surpresa e algo mais nos olhos cinza. Seria culpa? Por que ela devia se sentir culpada? Curioso, Garrett avaliou seu semblante e notou o rubor nas faces.
– Oh, olá, Garrett – saudou ela. – O que faz aqui? – Tensa, apertou-lhe o braço. – É o seu pai?
Ele confirmou e resumiu os acontecimentos após a partida dela. Fitou a mão pequena contra sua pele bronzeada. Não se lembrava da última vez em que uma mulher o tocara para confortá-lo. Havia quantos anos Mary Jane o tocara pela última vez? Uma vida. Sentiu-se perturbado, apreensivo e aquecido com o gesto.
Ao saber da discussão que ele tivera com o pai e ver a frustração em seu rosto, Mary Jane concluiu que ele se culpava pelo colapso de Gus. Gostaria de ajudar, mas os problemas entre pai e filho começaram com o nascimento de Garrett e provavelmente nunca se resolveriam.
– E você? – indagou ele, indicando a porta que ela acabar de fechar. – Faz trabalho voluntário ou algo assim?
– Antes fosse – retrucou ela, pensando nas responsabilidades familiares. – Mas não. Meu neto está aqui.
Garrett reagiu atónito.
– Seu neto?
Mary Jane riu.
– Não fique tão surpreso. Eu tenho dois netos. Netos-enteados, na verdade. Filhos de Becca. Jimmy caiu da árvore e quebrou o braço esta tarde. Estou aqui com ele, enquanto Becca e o marido, Clay, foram tomar um lanche. Como ele dormiu, resolvi andar pelo corredor para esticar as pernas.
– É incrível você já ter netos. – Ele a fitou detidamente. – É incrível já sermos velhos o bastante. – Deu de ombros e sorriu sem jeito. – Claro, eu não tenho filhos, nem netos.
Ela se compadeceu ante a solidão impressa na voz. Sentindo-se culpada, baixou o olhar. Então, ouviram passos no corredor. Eram Clay e Becca de volta. Becca e as irmãs sempre tiveram curiosidade sobre Garrett, queriam saber se ele era como Gus... agora, finalmente, descobririam. Mary Jane sentiu um frio no estômago, apreensiva... eles perceberiam a semelhança física entre Garrett e Shannon?
– Jimmy deu trabalho? – indagou Becca à mãe. – Ele não tem paciência...
Mary Jane meneou a cabeça.
– Ele está bem. Dormiu. Como não estou acostumada a ficar sentada, resolvi esticar as pernas.
Becca ficou mais tranquila e voltou a atenção a Garrett. Mary Jane observou cautelosa, mas não viu nenhum sinal de estranhamento em Becca ou Clay. Aliviada, fez as apresentações. Eles desejaram melhoras a Gus e ela notou um brilho irónico no olhar &e Garrett. Após a agressão verbal de Gus contra ela naquela mesma tarde, ele devia cogitar se ainda se mostrariam tão compassivos, se soubessem. Garrett agradeceu e comentou que ainda esperava o diagnóstico do dr. Kress.
– Eu ia tomar um café – declarou, meio se despedindo. – Estou precisando.
Clay franziu o cenho.
– Se tomar o café da lanchonete aqui, vai demorar para digeri-lo. – Voltou-se para Mary Jane. – Nós cuidaremos de Jimmy agora. Becca vai pegar Christina com Shannon, depois. Por que não vai tomar um lanche com Garrett?
– Oh, bem, eu não... – Mary Jane parou de gaguejar e fitou as três pessoas que a encaravam. O que podia dizer de razoável?
– Não me diga que meu pai foi tão rude com você ao longo dos anos a ponto de se recusar a tomar um lanche comigo? – forçou Garrett.
Becca e Clay a fitavam como se não acreditassem que aquele fosse o motivo de tanta relutância. Não era, mas ela não lhes diria a verdade: que não queria ficar na companhia de Garrett porque lamentava e sentia-se culpada pelo passado.
– Claro que não – afirmou, juntando as mãos suadas. Desejou saber mascarar melhor os sentimentos. – Será ótimo comer alguma coisa. Vou pegar minha bolsa. – Entrou no quarto de Jimmy.
Becca e Clay despediram-se de Garrett e adentraram o cómodo.
– Mãe? Há algo errado? – indagou Becca, encostando a porta. Deu uma olhada no filho adormecido e baixou a voz. – Não se preocupe, Jimmy vai ficar bem.
Mary Jane pegou a bolsa pendurada numa cadeira.
– Claro que sim. E só que estou um pouco cansada. Foi um dia atarefado, desatolando bezerros da lama, um neto quebrando o braço...
Becca e Clay trocaram olhares, como Mary Jane e Hal costumavam fazer, e que significava: "Conversaremos sobre isso mais tarde. A sós".
– Se é o que diz – respondeu Becca. – Obrigada por ficar com Jimmy.
Sorrindo, Mary Jane voltou-se para a porta e respirou fundo. Às vezes, era terrível ter a enteada como melhor amiga. Não havia segredos entre ela e Becca. Tendo em mente ser mais cuidadosa dali para a frente, reencontrou-se com Garrett no corredor.
Recostado na parede, ele mantinha os braços cruzados e analisava o piso de cerâmica bege e marrom. Com os pés cruzados nos tornozelos, tinha expressão concentrada e cansada. Mary Jane deteve-se. Quantas vezes o vira exatamente naquela posição? Com o olhar intenso e solene, a expressão preocupada? Dezenas de vezes. Era perturbador dar-se conta de que se lembrava de tudo sobre Garrett.
Apiedou-se dele. Sabia como era ficar naqueles corredores, aguardando notícias de. entes queridos. Devia ser pior ainda esperar pelo diagnóstico de alguém como Gus, que fazia de tudo para não ser amado. Sem dúvida, Garrett agora tentava identificar os sentimentos que nutria pelo pai.
–As enfermeiras sabem como encontrá-lo em caso de necessidade? – indagou Mary Jane, gentil.
Garrett ergueu o rosto, absorto.
– Sim. Vão me chamar assim que Frank tiver o diagnóstico.
Mary Jane assentiu, contendo o impulso de confortá-lo através de contato físico, e dirigiu-se à lanchonete. O salão estava vazio. Junto ao balcão de auto-atendimento, escolheram café e sanduíches e Garrett pagou a conta.
– Pelos velhos tempos – justificou, enquanto ocupavam uma mesa que dava para o pequeno jardim de rosas do hospital. – Você nunca permitiu que eu gastasse muito.
– Tínhamos de nos esconder de seu pai – replicou ela, sem pensar. – Por isso, não podíamos ir a muitos lugares onde se gastava muito... – Só então e notou o queixo tenso e o olhar frio de Garrett. – Desculpe-me – murmurou. – Não devia ter dito isso. – Céus, o que dera nela? Jamais se mostrava rude e, com certeza, nunca em situações delicadas como aquela. Trémula, agarrou a caneca de café.
– Não precisa se desculpar. – Garrett ergueu sua caneca e sorveu um gole de café. – É verdade. Toda aquela correria e a necessidade de nos escondermos eram desgastantes. Por isso, você estava saindo com Hal ao mesmo tempo?
Mary Jane ergueu a cabeça.
– Eu não estava – declarou.
Garrett ergueu o sobrolho, cético.
– É compreensível, acho. Afinal, não tinha quem lhe dissesse que não devia ou não podia sair com Hal. Você e eu não tínhamos nenhum compromisso, e Hal devia lhe parecer atraente com sua vida estável, sua própria fazenda. Você nunca tinha tido nada disso na vida.
Sem mencionar a casa precisando de uma presença feminina, a filha de seis anos que Hal já tinha, a hipoteca que quase os levou à falência nos primeiros dez anos de casamento e a carga de trabalho muito maior do que duas pessoas podiam realizar. Mary Jane estava atónita com o fato de Garrett pensar que ela saíra com Hal e com ele ao mesmo tempo.
Acreditava que ela escolhera o homem que podia lhe oferecer mais naquele momento? De certa forma, ela escolhera, sim, mas só por estar grávida de um filho de Garrett, sendo que ele deixara claro que não queria mais nada com ela.
Da base do Exército onde recebia treinamento, ele lhe enviara a carta pedindo para não escrever mais, terminando o relacionamento entre ambos.
Idiota que era, Mary Jane ainda tentara entrar em con-tato. Escrevera novamente e até tentara lhe telefonar. Estava convencida de que Garrett concordaria em se casar, se soubesse da gravidez. Claro, enganara-se. Ele nem respondera à missiva. Anos depois, soube que poderia ter entrado em contato com ele através do oficial comandante, mas a ideia não lhe ocorrera aos dezoito anos, assustada.
Mary Jane ergueu o queixo, ciente de que estava quieta havia algum tempo. Guardaria consigo certos segredos... o mais importante de todos, Shannon... mas pretendia esclarecer outros.
– De fato, minha família não era chegada a estabilidade, família ou trabalho. Como meu irmão Dave dizia, nossos parentes preferiam permanecer desempregados.
– E Hal lhe fez proposta melhor.
Ela comprimiu os lábios.
– Hal foi um homem decente e maravilhoso, que me prometeu uma boa vida e que cuitípriu a promessa.
– Enquanto eu não lhe prometi nada – finalizou Garrett, a voz grave, como se tocasse num assunto que mantivera guardado por muito tempo.
– Como disse, você não me prometeu nada. – Mas tomou tudo, pensou Mary Jane, lutando contra o amargor. Levou a caneca aos lábios com as mãos trémulas e sorveu um gole de café. Respirando fundo, recordou que já enfrentara situações mais difíceis. Venceria esta também. – Quer mesmo conversar sobre isso agora? Hoje foi um dia difícil para você. Para que vasculhar o passado?
Garrett fitou-a por um bom tempo, como se quisesse negar. Como se fosse tão forte e macho que poderia lidar com a situação difícil do pai e ainda travar aquela conversa delicada com a ex-namorada.
– Talvez eu esteja me sentindo nostálgico – reconheceu.
Então, perguntou sobre os ex-colegas da escola, acerca das mudanças ocorridas em Tarrant ao longo dos anos e quanto às dificuldades da agropecuária da região.
Mary Jane relaxou um pouco ao conversar, mas o assunto anterior sempre lhe voltava. Se tinha dúvidas quanto a terem encerrado o assunto, Garrett as dissipou quando a enfermeira o localizou e informou que o dr. Kress completara os exames em Gus.
Ele assentiu à enfermeira e levantou-se.
– Eu a verei por aí, Mary Jane. Ainda temos muito o que conversar.
Ela sentiu medo e não conseguiu responder. Enquanto observava Garrett deixar a lanchonete, teve a impressão de que ele falara a sério. Terminariam aquela conversa e nenhum dos dois ficaria satisfeito com o desfecho.
Gus Blackhawk sofreu outro derrame grave e morreu naquela noite, sem recobrar a consciência. Mary Jane soube que Garrett passara a noite ao lado da cama do pai, em vigília às últimas horas de vida do genitor, que o afastara anos antes.
No dia seguinte, tomada de tristeza, ela telefonou para a Fazenda Blackhawk a fim de expressar condolências e oferecer ajuda e soube que Garrett estava na cidade providenciando o funeral. Ruth Chandliss disse que provavelmente não precisariam de assistência, mas agradeceu. Afinal, não tinham parentes que compareceriam ao enterro. Garrett era a única família que Gus possuía. Rezariam uma missa em poucos dias, e o evento seria anunciado no jornal local.
Deprimida e ao mesmo tempo aliviada por saber que não haveria mais desentendimentos, com a morte do vizinho, Mary Jane desejou poder conversar com alguém sobre os últimos acontecimentos. O único que conhecia a história em todos os detalhes era seu irmão Dave, que se mudara recentemente para Denver. Pela primeira vez em dois anos, sentiu saudade de Hal, como se fosse uma perda recente. Como não podia se abrir com mais ninguém, sentiu-se sozinha e desolada. Procurou manter-se ocupada para não se entregar às emoções.
Cedendo à necessidade de falar com alguém, telefonou para Becca para saber como estava Jimmy.
– Ele está bem, mãe! – exclamou a enteada, animada. –- Recebeu alta hoje cedo e já está tirando proveito do bracinho quebrado. Agora está brincando com os presentes que o sr. Blackhawk lhe deu...
A princípio, por mais improvável que fosse, Mary Jane pensou em Gus Blackhawk, mas então percebeu que Becca falava de outro sr. Blackhawk.
– Garrett? Garrett deu brinquedos a Jimmy?
– Sim, aqueles caros da lojinha do hospital. Na verdade, gastou tanto lá que a receita daria para construir uma nova ala. Eu não sabia que vocês eram tão amigos a ponto de ele deixar o pai por algum tempo para fazer essa gentileza ao seu neto.
Mary Jane sentiu um nó na garganta. Olhou pela janela na direção da Fazenda Blackhawk. Talvez ele se sentisse culpado pelo que lhe dissera no hospital.
– Eu... eu não sabia que éramos, tampouco, Becca. Acho que ele só quis ser gentil.
– Muito gentil. Eu me surpreendi, mas você sempre disse que ele não era como o pai. – Bècca mudou o tom. – Aquele pobre homem.
– De fato – concordou Mary Jane. – Fico contente por Jimmy estar bem. Eu ligo de novo mais tarde. Preciso fazer umas coisas aqui... – Tais como descobrir por que Garrett tomara tal atitude. Seria um sinal para que ela o mantivesse nos pensamentos? Como se pudesse esquecê-lo! Seria uma promessa de que ainda resolveriam os assuntos pendentes entre ambos?
Talvez. De qualquer forma, ele garantira que ela não o esquecesse. Na verdade, dera um jeito de se impor à família toda. Jimmy passaria dias enaltecendo os brinquedos novos e o homem que os dera, a quem provavelmente nem conhecera ainda. Brittnie ficaria sabendo, bem como Shannon...
Mary Jane deteve-se, o olhar expressando uma súplica. Não queria que Shannon ficasse curiosa a respeito de Garrett, não queria que ela fizesse perguntas. Não estava pronta para responder às perguntas inevitáveis da filha.
Pegou um copo de água, tomou um gole e mais outro. Finalmente, sentiu-se mais calma. Talvez estivesse reagindo desproporcionalmente.
Por que estava tão preocupada, afinal? Garrett não se demoraria em Tarrant. Cuidaria do funeral do pai e voltaria para Albuquerque, onde centralizara a vida, os negócios. Sem dúvida, venderia ou arrendaria a Fazenda Blackhawk. O lugar lhe guardava poucas boas lembranças. Havia pouca chance de Garrett e Shannon se encontrarem.
Aliviada com a conclusão, Mary Jane foi ao escritório cuidar de tarefas administrativas. Estava em pânico por nada. O episódio se encerraria, e a vida voltaria ao normal, exatamente como antes de dar aquele telefonema fatídico.
Satisfeita com a ideia, Mary Jane entregou-se ao trabalho, ignorando a voz que alertava sobre estar se enganando.
– Mãe, você vai à casa após o enterro, não é?
Mary Jane voltou-se e fitou Becca e suas duas outras filhas. Fora ao funeral por cortesia, mas elas filhas insistiram em acompanhá-la. Devia ter imaginado que iriam, já que tinham sido elas a incentivá-la a telefonar para Garrett informando sobre o estado de Gus. Até seus genros compareceram, embora somente o marido de Shannon, Luke Far-raday, tivesse conhecido Gus.
No cemitério, mantivera a família toda afastada da cerimónia na esperança de que Garrett não reparasse em Shannon. Sem questionar, todos haviam obedecido a suas instruções. Aquela era a vantagem 'de ser a matriarca de seu pequeno clã, pensou, irónica. Os membros lhe faziam as vontades, embora fosse jovem demais para se encaixar no termo matriarca.
O pequeno grupo permaneceu longe da aglomeração de pessoas que compareceram para ver Gus Blackhawk encontrar a paz que não conhecera em vida. O vento de setembro varreu o solo, levantando poeira em meio ao pouco que restara da grama do verão. Quando a missa terminou, os presentes apresentaram condolências a Garrett e retornaram a seus veículos. Garrett permaneceu junto à cova aberta e conversou rapidamente com o pastor que realizara o serviço.
Mary Jane espantou-se com a elegância dele no terno preto, que lhe enfatizava a cor dos cabelos e os ombros largos. Futilmente, imaginou se ele voltara a Albuquerque para pegar o traje. Parecia perfeito demais para uma roupa comprada pronta numa das lojas de Tarrant. Garrett marcava presença ao inclinar-se para conversar com o pastor, marcadamente composto e discreto.
O pastor era um ótimo orador na pequena igreja comunitária, porém novo na área, de modo que não imaginara que seu convite para que as pessoas proferissem algumas palavras sobre o falecido seria recebido com silêncio retumbante. Garrett atenuara o mal-estar geral convidando todos a tomar um refresco em sua casa.
– Eu não pensava em ir, Becca – declarou Mary Jane. – Preciso voltar para casa. Há muito trabalho a ser feito e...
Shannon arregalou os olhos azuis.
– Mas, mãe, somos os vizinhos mais próximos e, embora ele não fosse gentil, papai esperaria que apresentássemos condolências.
– Isso mesmo – reforçaram Brittnie e Becca.
Mary Jane suspirou desanimada. As filhas tinham razão, claro. Deviam ir à sede da fazenda de Blackhawk, assim provando que esqueciam as desavenças que tinham tido com Gus ao longo dos anos. E correndo o risco de que Shannon e Garrett se vissem frente a frente.
Após uma vida dízendo-lhes que os vizinhos deviam se ajudar, que deviam cuidar uns dos outros, que deviam perdoar e esquecer, não podia de repente dizer que ela e Hal mentiram todos aqueles anos, que a lição de cortesia não se aplicava nesse caso.
Perturbada, Mary Jane assentiu.
– Tem razão. Vamos lá, fazer um pouco de companhia a Garrett. – Ainda assim, estava longe de seu feitio, pois em geral permanecia e ajudava os familiares abalados com a perda a arrumar a casa depois que as demais visitas iam embora. Com certeza, conseguiria esquivar-se desta vez sem arruinar completamente sua reputação na comunidade, certo?
Assim que viram Garrett apertar a mão do pastor e deixar o cemitério, entraram nos carros e acompanharam o pequeno cortejo até a Fazenda Blackhawk. Administradora, Shannon lamentou o abandono da propriedade outrora próspera.
– Tinha ouvido dizer – comentou ela com a mãe. – Mas não imaginava que estivesse assim. Imagino se o sr. Blackhawk vai permitir que trabalhemos aqui, recuperando a mata original antes que o solo se deteriore irreversivelmente. – Recentemente, assumira o comando da Secretaria Municipal de Recursos Naturais e demonstrava entusiasmo com o trabalho.
– Se alguém pode convencê-lo é você – declarou o marido Luke, com um sorriso. – Afinal, você recuperou a minha fazenda. A nossa fazenda – corrigiu-se.
– Garrett provavelmente vai vendê-la – opinou Mary Jane. – Ele tem fazendas e negócios em Albuquerque, e deve voltar para lá. – Quanto antes, melhor, acrescentou silenciosamente.
Shannon olhou por sobre o ombro, espantada com a frieza da mãe. Mary Jane desviou o olhar, incapaz de se justificar. Só queria que aquele dia acabasse logo e que Shannon fosse embora logo, para longe da verdade, embora estivessem indo de encontro à mesma.
Estacionaram diante da moradia de aspecto vazio e triste, ao lado de uma dúzia de outros carros de visitantes. Simplesmente, não havia como mudar a impressão, após tanta tristeza ocorrida ali. Mary Jane respirou fundo e saltou, apoiando-se na mão do genro.
Ao entrar na ampla sala de estar, aliviou-se ao ver o local lotado e que Garrett não estava presente. Apesar do desejo de se retirar o quanto antes, foi com as filhas ajudar Ruth Chandliss a arrumar a mesa para o almoço.
A governanta ergueu o olhar e sorriu condoída. Já contava uns setenta anos, dos quais quarenta dedicados ao trabalho na sede daquela fazenda. Por mais difícil que fosse conviver com Gus Blackhawk, nunca quisera se aposentar. Mary Jane imaginou o que Ruth faria agora que o patrão partira para sempre.
Em poucos minutos, dispuseram as travessas sobre a mesa e Ruth convidou as visitas a se servirem. Mary Jane foi à cozinha buscar mais talheres e ouviu um barulho vindo da varanda dos fundos. Curiosa, foi até lá e encontrou Garrett junto ao enorme freezer vertical, transferindo sacos de gelo ao balcão próximo. Quando a viu, ele explicou:
– Vamos fazer um ponche. Usaremos a vasilha de ponche de prata de minha mãe. A peça não saiu da embalagem desde que ela morreu.
Mary Jane arregalou os olhos. Garrett despira o paletó e enrolara as mangas da camisa, exibindo músculos. Ele fora um rapaz alto e magro. Quando se tornara tão... sólido?
– Será que não está oxidada?
Garrett voltou-se para ela.
– Oxidada?
Mary Jane recuou um passo, constrangida.
– É... é isso o que acontece com a prata, sabe, principalmente após ficar sem uso por mais de quarenta anos.
Garrett meneou a cabeça.
– Nem pensei nisso. Acho que não a usaremos, então. É que... vi os utensílios nos armários, esquecidos por tanto tempo, e pensei: "por que não?"
Mary Jane compadeceu-se. Devia haver muitos objetos tão negligenciados quanto a vasilha de ponche naquela casa. Sorriu compreensiva.
– Ninguém vai se importar, Garrett. Não estão aqui para ver a vasilha de ponche de sua mãe. Estão aqui para lhe dar apoio.
– A mim? Eles nèm me conhecem mais.
– Está enganado. As pessoas aqui do vale se mantêm a par de suas realizações.
Ele a avaliou.
– E você é uma delas, Mary Jane? Você acompanhou as minhas conquistas?
Ela não gostou do olhar, nem da pergunta.
– Eu sou uma das pessoas do vale, não sou?
– Com certeza – reconheceu Garrett. – Nunca vai sair daqui, não é?
– É o meu lar.
– Então, acho que foi bom meu pai não ter conseguido expulsá-la – provocou ele, aproximando-se. – Foi ao enterro se certificar de que o velho está mesmo morto?
– Claro que não! –Mary Jane ergueu bem o queixo para poder encará-lo, já que era tão mais alto.
– Por que não comemorar, agora que seus problemas acabaram? Ruth me contou que Gus costumava chamar o xerife para reclamar de você e de sua família. Não está contente por não ter mais de se preocupar? Por não ter de aturar um vizinho turrão tentando regular a vida de todos neste vale?
Mary Jane impressionava-se com o amargor na voz dele, sem saber se o sentimento se dirigia a ela ou ao pai que acabara de morrer.
– Garrett, seu pai partiu solitário e infeliz. Eu nunca comemoraria tal fato.
Garrett avaliou-a por um minuto e então meneou a cabeça.
– Raios – murmurou, massageando as pálpebras. – Eu sei que não. Desculpe-me. Eu...
Mary Jane estendeu a mão e o tocou no braço.
– Está tudo bem, Garrett. Você não tem nada a ver com o que seu pai fez, nem é responsável. Ele escolheu ser como era, mas você pode ficar de luto pelo homem que ele devia ter sido, aquele que você gostaria que ele tivesse sido.
Garrett fitou a mão delicada sobre o braço. Devagar, colocou a própria mão sobre a dela, prendendo-a.
– Tem razão. Eu sei, mas tenho de me lembrar sempre desse fato. Havia tanta coisa pendente entre nós... e agora nunca poderemos conversar.
Ele a fitou nos olhos cinza. Por um segundo, Mary Jane imaginou se ele falava de si mesmo ou do pai, ou dos dois. Sentiu a mão forte sobre a sua.
Garrett inclinou-se sobre ela, desafiando-a a recuar, a fugir.
Nenhum dos dois se movia ou dizia algo. Era como se desafiassem um ao outro a recuar primeiro ou a se aproximar.
Agiam errado. Mary Jane arregalou os olhos. Não deviam agir assim na casa em que havia uma reunião para chorar um morto. Nem assim se mexeu.
Finalmente, Garrett a soltou, porém deslizando a mão pela seda preta macia de seu vestido, insinuando um convite. Ele a segurou pelos ombros, aproximando-a. Nenhum dos dois piscou. Ela não tentou se desvencilhar.
Mary Jane sentia o coração na garganta, o sangue late-jante nos ouvidos. Quando o calor lhe subiu pelo pescoço, gemeu perturbada.
Garrett sorriu, como se apreciasse a reação. Então, beijou-a.
Cheia de calor e energia, Mary Jane entregou-se e saboreou a essência de Garrett, as lembranças reavivadas. Aquele não era o rapaz que conhecera anos antes, mas o homem em que o rapaz se transformara, se bem que o gosto dele continuava o mesmo.
Com um gemido, Garrett baixou os braços e a enlaçou pela cintura. Apertando-a meio erguida contra o corpo másculo, parecia deleitar-se ao contato. Mary Jane levou as mãos aos ombros largos e sentiu os músculos poderosos. Agarrando-o pela camisa branca, hesitou apenas um segundo antes de se pendurar no pescoço dele e enterrar os dedos em seus cabelos.
Era um gosto tão familiar e por tanto tempo negado. Quente, doce, salgado... não conseguia definir. Mary Jane se pôs na ponta dos pés, querendo mais.
Garrett aprofundou o beijo, tirando-lhe o fôlego, aquecendo-lhe o sangue. Abraçava-a com força e desejo.
Fazia tanto tempo desde que um homem saudável a abraçara daquele jeito, quando Hal ainda tinha saúde e força... Hal. Shannon!
Mary Jane sentiju como se um saco de gelo caísse sobre sua cabeça e recuperou a razão imediatamente. Desvencilhou-se e recuou tropeçando até dar de costas contra o free-zer. Levou a mão aos lábios e encarou Garrett chocada, envergonhada.
– Você... você não devia. Nós... – Fez pausa ao perceber que parte da responsabilidade era dela mesma. Recuperou o fôlego, recompôs-se e cruzou os dedos. – Não devíamos fazer isso. Não é a hora nem o lugar.
Garrett recuperava o fôlego com mais facilidade, avaliando a reação dela.
– Houve tempo em que não se importava onde ou quando eu a beijava.
– Espero ter amadurecido um pouco desde então, e imagino que você também tenha – replicou Mary Jane, abalada.
– Talvez um homem jamais amadureça em certos assuntos – considerou Garrett. – Eu não esperava isso, nem você, mas está aqui entre nós agora e...
– Mãe, precisamos de talheres e... Mãe?
Shannon! Aflita, Mary Jane desencostou-se do freezer e passou da varanda à cozinha, sem deixar de notar a expressão atónita de Garrett. Só pensava em impedir que os dois se encontrassem, afastar Shannon, por mais descontrolada e irracional que pudesse parecer.
A filha espantou-se ao vê-la de cabelos meio desgrenhados e os lábios intumescidos.
– Mãe? Você está bem?
– Sim, claro – afirmou Mary Jane, ofegante, a voz esganiçada. Ajeitou os cabelos e olhou ao redor na cozinha estranha. – Eu estava... Aqui! – Agarrou os talheres que Ruth deixara sobre a mesa. – Vamos levar isto para a sala. – Pegou Shannon pelo braço, mas a filha desvencilhou-se e lançou um olhar à porta da varanda.
Apavorada, Mary Jane voltou-se para ver Garrett entrando na cozinha com os pacotes de gelo.
– É uma das suas filhas, Mary Jane?
Mary Jane tinha a boca tão seca que não conseguia falar. Limitou-se a assistir à cena com um senso de inevitabili-dade, Shannon atravessando a cozinha com a mão estendida. Por que ensinara boas maneiras às filhas?, imaginou, histérica. Por que não lhes ensinara a fugir correndo quando viam um estranho?
– Como vai, sr. Blackhawk? Sou Shannon Farraday. Acho que sou sua vizinha duas vezes. Como sabe, cresci na Fazenda Running K, e agora meu marido e eu somos os proprietários da Fazenda Crescent.
Garrett forçou a memória.
– Meu pai foi dono dessa propriedade por muitos anos... – Fitou o rosto transtornado de Mary Jane. Ela sabia que Gus comprara aquela fazenda para o filho, como se colocasse uma cenoura diante de um burro, exigindo que ele desmanchasse o namoro com Mary Jane.
Ela sempre achara estranho que Garrett, mesmo rompendo o relacionamento, nunca tivesse assumido a Fazenda Crescent. Sem dúvida, Gus atrelara outras condições...
Então, viu sua filha alta e linda ao lado do pai biológico e engoliu em seco. Céus! Eles não percebem a semelhança dos cabelos pretos, dos olhos azuis, das maçãs do rosto altas, do queixo quadrado?
Aparentemente, não percebiam. Shannon ofereceu condolências pela perda de Garrett e ele assentiu. A seguir, ambos retomaram seus afazeres.
Mary Jane quase se ajoelhou de alívio. O momento tão temido acontecera, passara, mas o céu não caíra em sua cabeça.
A porta abriu-se novamente e Ruth surgiu.
– O que está acontecendo aqui? – indagou a governanta, levando as mãos aos quadris. – Algum tipo de buraco negro no espaço? As pessoas vão atrás de gelo e talheres e desaparecem!
Os três na cozinha sobressaltaram-se. Shannon apressou-se para a sala com os talheres, Mary Jane acompanhou-a. Ruth e Garrett encarregaram-se de levar o gelo.
Embora quisesse ir embora logo, Mary Jane obrigou-se a permanecer para ajudar. As filhas e os genros se despediram tranquilos quando ela afirmou que pegaria carona com outro vizinho. Tão logo a família partiu, ela mesma if procurou se esconder de Garrett, circulando na periferia da sala, conversando com pessoas que não via há algum tempo. Mesmo evitando contato visual com Garrett, continuou pensando freneticamente no breve interlúdio que haviam tido.
Onde estava com a cabeça ao beijar Garrett como se quisesse fundir-se a ele? Fora um comportamento totalmente inadequado.
Só podia concluir que fora uma combinação de curiosidade e insanidade de sua parte, agravada pela necessidade de sair mais e incrementar a vida social!
Quanto às motivações de Garrett, talvez ele também estivesse curioso.
Várias vezes, sentindo a atenção de Garrett, erguia o olhar. Ele não parecia sofrer a culpa de consciência que ela sentia. Observava-a pensativo, como se tentasse determinar exatamente em que ela pensava. A única coisa em sua mente naquele instante era a esperança de que o dia acabasse logo.
Quando as pessoas começaram a ir embora, Mary Jane ajudou Ruth a organizar as sobras, deu um abraço na amiga e apressou-se até a varanda para pegar carona com alguém. Aliviada, viu Pete Minton cumprimentando Garrett e preparando-se para partir. A esposa dele, Sheryl, já estava no carro.
– Pete, posso pegar uma carona com vocês? – indagou, ofegante. – Vim com as meninas, mas elas já foram.
O vizinho assentiu e ajeitou o chapéu na cabeça calva.
– Claro, Mary Jane. Nós já íamos...
–Eu a levarei para casa – intrometeu-se Garrett.
Mary Jane sorriu, apesar dos lábios comprimidos, e ergueu a mão para dispensá-lo.
– Não é necessário. Pete vai para o mesmo lado e...
– Eu disse que a levo para casa. – Garrett apertou novamente a mão de Pete. – Foi bom vê-lo novamente, amigo.
Pete assentiu e foi para o carro, enquanto Mary Jane se voltava para Garrett.
– Não precisa se incomodar comigo.
Ele ergueu o sobrolho, e Mary Jane viu um brilho travesso no olhar.
– Por que não? Você se incomodou comigo.
Ela ficou tensa.
– Ajudando Ruth, quero dizer – esclareceu Garrett. – Obrigado. Vou pegar a chave. Volto já.
Frustrada, Mary Jane ficou andando na varanda, os passos curtos e instáveis de irritação. Pensou em ir andando, já que era apenas um quilómetro e meio até a estrada que levava à Fazenda Running K, mas Garrett insistira em levá-la... Além disso, não estava habituada a usar salto alto e machucaria os pés caminhando em terreno irregular.
Ao ver Garrett de volta, desceu a escada da varanda. Ele a seguiu, mas sem se incomodar em alcançá-la.
Mary Jane sabia que estava sendo deselegante, mas não conseguia evitar. Sentia-se constrangida, envergonhada e abalada. Não havia explicação para a loucura de retribuir o beijo de Garrett. A sra. Kelleher, cidadã íntegra, pilar da comunidade, mãe de três, avó de dois, não tomava atitudes desse tipo, muito menos com um homem que devia evitar a todo custo.
Sentiu uma pontada no coração. Não queria reviver o passado.
Garrett ultrapassou-a e ergueu o portão da garagem. Mary Jane contornou a velha caminhonete que Gus dirigia e imaginou como o velho turrão odiaria vê-la ali. Havia ferramentas, partes de lataria e peças mecânicas empilhadas nas estantes. Notou a expressão desolada de Garrett ao abrir-lhe a porta da caminhonete.
– Vai vender a fazenda? – indagou ela. – Esvaziar a casa?
Ele a fitou como se captasse a nota de esperança em sua voz.
– Sim. Não há motivo para mantê-la. Minha vida e meus negócios estão em Albuquerque.
– Faz sentido você tomar essa atitude – opinou Mary Jane, tentando não evidenciar a mistura de alívio e desapontamento que sentia. Queria que ele voltasse para Albuquerque, não queria? Ele e Shannon não deveriam se reencontrar. Quase sofrera um ataque cardíaco ao presenciar aquele breve encontro dos dois... pois já tinha a pulsação acelerada naquele momento, devido ao beijo.
Sentiu-se aliviada quando pegaram a estrada que levava a sua fazenda.
– Não precisa descer – comentou, assim que ele estacionou. – Obrigada pela carona. – Frustrada, viu-o saltar e contornar o veículo para lhe abrir a porta.
– Tem um belo lugar aqui, Mary Jane – comentou ele, estendendo a mão para ajudá-la a descer. Reparava nas cercas bem conservadas, no celeiro que ela e os genros haviam pintado no mês anterior, nos novilhos no curral.
– Obrigada. – Ela expressou orgulho. – Hal e eu trabalhamos muito para construir tudo isto.
Garrett fechou a porta da caminhonete e apoiou a mão na lataria.
– Ele foi um bom marido, Mary Jane?
Já haviam conversado sobre aquele assunto antes, e ela não estava ansiosa em retomá-lo.
– Claro. O melhor.
– Mas ele se foi... há alguns anos.
Mary Jane desviou o olhar, sem graça.
– E meu pai morreu, então, agora tudo mudou para mim também – prosseguia Garrett.
Ela o fitou.
– O que quer dizer?
– Quero dizer, como tentei lá em casa antes, que ainda há algo entre nós. Algo que não morreu vinte e oito anos atrás, quando você se casou, quando meu pai tornou a situação impossível para você, para nós dois.
Contra toda a lógica, Mary Jane sentiu uma ponta de esperança, mas tratou de sufocá-la.
– O passado está morto e enterrado, Garrett, e assim deve permanecer.
– É o que você pensa. – Ele avançou de repente e lhe tomou o queixo. Por um segundo, Mary Jane temeu que ele a beijasse novamente, mas ele se deteve, confuso. – Não entendo exatamente do que tem medo.
Ela expressava pânico no olhar.
– Eu... eu não tenho medo de nada – blefou.
– Tem, sim. – Garrett se inclinou para a frente e lhe aplicou um leve beijo na testa. – E juro que vou descobrir o que é.
Com isso, liberou-a e entrou de novo na caminhonete. Foi embora, deixando Mary Jane agarrada ao corrimão da escada da varanda, fitando-o desolada. Ele não tinha esse direito, pensou, furiosa. Ele não tinha o direito de voltar e revirar sua vida daquele jeito. Garrett dera a entender, anos antes, que não queria nada com ela. Por que mudaria de ideia agora? Não permitiria que ele interferisse em sua vida e na de sua família.
Na próxima vez que o visse, deixaria isso bem claro. Garrett achava que faria tudo a seu modo, mas estava enganado. O que houve entre eles era passado e ela não permitiria que sua vida fosse arruinada por outro membro da família Blackhawk.
Por que não passava o tempo soltando touros em lojas de porcelana?, pensou Garrett, desgostoso, enquanto se afastava da fazenda de Mary Jane. Os touros teriam tanto tato quanto ele. Pelo retrovisor, viu Mary Jane apressando-se para dentro de casa. Apesar do barulho do motor, quase ouviu o som da porta de tela fechando-se atrás dela.
Voltou a atenção à estrada. Para um homem que achava que se conhecia bem, não sabia explicar por que beijara Mary Jane daquela forma. Pelos velhos tempos, talvez? Curiosidade? As duas coisas, mais o desejo que imaginava ter morrido havia muito. Tinha tanta certeza de que não sentiria mais nada... afinal, aplacara o sentimento com afinco.
Era difícil descobrir que falhara. Queria Mary Jane, era simples assim. Mas para ela parecia impossível.
Do que Mary Jane tinha tanto medo? Estaria ainda tão apaixonada pelo marido a ponto de não olhar para outro homem? Se fosse assim, por que respondera ao beijo de um ex-namorado com tanta força e ansiedade?
Se ela ainda amava o falecido marido... Hal era um homem de sorte. Garrett viu-se na infeliz posição de invejar um homem morto.
Pegou a estrada precária que levava à casa do pai. Sua casa agora, corrigiu-se. Olhou ao redor, desolado. Sentia dor pela morte do pai, culpa por terem brigado pouco antes e miserável pelo relacionamento difícil que cultivaram a vida inteira.
Garrett oferecera ajuda a Gus mais de uma vez. Queria contratar empregados e pagar-lhes bem para que ficassem. O pai nem quis ouvir. Oferecer ajuda não adiantara, pensou Garrett, triste. As exigências de Gus e sua natureza desconfiada teriam espantado todos os empregados em poucos dias.
Devia ter pressionado, mas não imaginava que o lugar estivesse tão abandonado. Ruth teria lhe avisado, se não temesse tanto perder o emprego. Imaginou se Gus um dia considerara a lealdade da velha governanta.
Levaria semanas para deixar a fazenda em condições de venda, inventariar e separar todos os objetos na casa e no celeiro. Seria bem mais fácil simplesmente jogar gasolina em tudo, acender um fósforo e dar as costas.
Claro, Ruth o ajudaria. Pretendia mantê-la na folha de pagamento, e ela ficaria contente em se ocupar separando os objetos, muitos dos quais Gus nem tocara durante a vida, incluindo alguns itens que pertenceram à mãe de Garrett, havia muito encaixotados no sótão.
Isso significava que teria de voltar a Tarrant em poucas semanas. Talvez até passasse parte dos feriados de Natal ali. Seria uma mudança, em vez de passar as festas em sua casa, em Albuquerque, e as férias em Aspen.
O melhor de tudo seria ver Mary Jane novamente. Então, tentaria descobrir por que ainda se sentiam atraídos um pelo outro e por que ela parecia tão relutante em se entregar ao que obviamente sentia.
A ideia bastou para deixá-lo ansioso pelas férias. Sorriu a si mesmo enquanto estacionava diante da casa. Imaginou se conseguiria arrancar um convite para a ceia de Natal com Mary Jane.
– Oque é que você está fazendo?
Ao ouvir a voz severa, Mary Jane assustou-se e largou o fardo de feno que retirava da caçamba da caminhonete. O volume caiu no chão de uma vez, quase atingindo seu pé e assustando o gado próximo. Os animais recuaram, mugindo.
– Alimentando o gado, é óbvio! Que história é essa de chegar de mansinho assim... Oh, Garrett. – Ela arregalou os olhos ao vê-lo montado num garanhão negro enorme.
Vestia preto também, calça jeans, botas e jaqueta forrada para aplacar o frio da farde de novembro.
Cavalo e cavaleiro formavam uma figura bela e poderosa.
Mary Jane sentiu o coração disparar. Garrett parecia um bandido de filmes de bangue-bangue. Ele a examinou com seus olhos azuis, apreciando a calça jeans enfiada nas botas, uma capa pesada de trabalho, que fora de Hal, camiseta de mangas compridas sob camisa de flanela velha.
– Está alimentando o gado sozinha? – indagou Garrett, desmontando graciosamente do garanhão. Passou as rédeas para a frente e amarrou-as num poste junto à cerca que separava as duas propriedades. O garanhão inclinou a cabeça, ignorou os humanos e concentrou-se em consumir a grama seca ao seu alcance.
– Isso mesmo. – Mary Jane reposicionou o chapéu e as luvas. Agarrou o fardo seguinte.
Garrett manteve as mãos nos quadris enquanto contemplava os campos abertos.
– Não tem ninguém para ajudá-la?
Ela ergueu o queixo. Não gostara do tom dele nem da insinuação de que ela não tinha condições de realizar o serviço.
– No momento, não. Meu empregado foi a Durango por alguns dias. A negócios – especificou, profissional.
A verdade era que seu empregado fora à cidade vizinha no final de semana e acabara na cadeia após três dias de bebedeira. Pretendia demiti-lo, mas não contaria nenhum desses detalhes a Garrett.
– Eu vou ajudar você. – Ele subiu na cerca e procurou um lugar para saltar com o cavalo.
Mary Jane ergueu o queixo e lançou um olhar que deteria a maioria das pessoas.
– Não, obrigada, eu posso cuidar disto. – Raios, de onde Garrett aparecera? Nem sabia que ele estava de volta a Tarrant.
No começo de novembro, já se esquecera completamente de que Garrett voltaria ao vale, ou assim convencera-se. Retomara a rotina, tocando a vida como sempre, cumprindo suas tarefas, cuidando dos negócios da fazenda, vendo as filhas com frequência e ocasionalmente tomando conta dos netos.
Quando pensava em Garrett, sentia um misto de surpresa e irritação. Surpresa porque ele a beijara e irritação porque ela permitira e gostara. Banindo o episódio para um canto do cérebro, classificara-o na seção de "erros a não repetir".
– Não precisa se incomodar – avisou, áspera. – E, além disso, você está do lado errado da cerca para me ajudar. Mas obrigada.
– Isso é fácil de corrigir. – Garrett montou e afastou o garanhão da cerca alguns metros. Sussurrou algo no ou vido do animal.
Mary Jane levou um tempo para entender o que ele ia fazer. Ao entender, subiu na caçamba da caminhonete e agitou os braços.
– Garrett! Não!
Ele a ignorou e instigou o animal ao galope ao encontro da cerca. Parecia excitado com a perspectiva do salto enquanto controlava o cavalo. Antes que Mary Jane pudesse verbalizar outro protesto, o conjunto voou sobre a cerca com vários centímetros de folga, pousando na propriedade vizinha. Garrett inclinou-se e bateu no pescoço do animal. Trotaram até chegar ao lado da caminhonete.
A seu serviço, senhora! – apresentou-se ele, sorridente.
Mary Jane levou a mão ao coração.
– Não está um pouco velho para isso?
– Não me sinto velho.
– A atitude é de alguém com dezesseis anos, a idade que devia contar quando o vi fazer isso pela primeira vez. Tive medo de que quebrasse o seu pescoço e o do cavalo.
– Mas não quebrei. – Garrett tirou o chapéu e fez uma mesura. – E ainda estou vivo para contar a história.
– E me assustar – resmungou Mary Jane, amuada, pulando da caçamba para retomar o trabalho. O gado aproximou-se enquanto ela cortava o arame com o alicate que tinha no bolso e espalhava o feno.
– Estou comovido com a sua preocupação – comentou Garrett, acariciando o pescoço do garanhão. – E, acredite, Renegade também.
Ela não respondeu enquanto ele desmontava. Como pudera se esquecer de que ele gostava de se arriscar? Aquela característica não mudara, provavelmente nunca mudaria, por mais que ele amadurecesse.
Quando começaram a namorar, no ensino médio, sentira-se atraída pelo jeito atrevido dele. Percebia agora que se envolvera no relacionamento meio selvagem porque crescera numa família regrada pelos impulsos do pai alcoólatra. Para Garrett, claro, a atração estava em saber que saía com alguém que seu pai nunca aceitaria... a garota do lado errado dos trilhos de Tarrant.
O namoro baseara-se totalmente em motivos errados... a necessidade dele de mostrar ao pai que não podia ser mandado, e a dela de ter alguém que a amasse incondicionalmente. Mantiveram o relacionamento em segredo de quase todo o mundo, exceto do irmão dela.
As escapadas, os encontros secretos, as cavalgadas noturnas nos animais que Garrett surrupiava do curral de Gus foram eventos que alimentaram sua necessidade juvenil de drama.
Claro, um relacionamento como aquele estava fadado ao fracasso. Não se baseava em respeito, nos interesses que sempre partilhara com Hal. O namoro adolescente fora exibicão, uma ligação baseada na necessidade de desafiar as famílias e as formações.
E baseada na luxúria. Algo novo e ardente com que não souberam lidar. Tudo naquele relacionamento parecia errado. Dave tentara lhe abrir os olhos, mas ela estivera cega demais para ouvir.
Mary Jane respirou fundo e tentou se acalmar. Felizmente, superara a necessidade do tipo de amor que Garrett lhe oferecia. Por outro lado, permanecia a necessidade dele de se arriscar. O que ela comentara era verdade. Os anos passavam, porém certas coisas nunca mudavam.
Mary Jane desejou poder encerrar o trabalho e voltar para casa. Podia realizar outras tarefas, no celeiro, longe do vento gelado e da ajuda indesejada de Garrett. Mas isso seria fugir, algo que definitivamente não fazia mais. Além disso, estava quase acabando e, com dois trabalhando, o gado seria alimentado num piscar de olhos.
Fez mais duas paradas para alimentar o gado que se reunia perto dos tanques de água, com Garrett acompanhando a cavalo, desmontando sempre para ajudá-la a tirar os fardos de feno da caçamba da caminhonete. Tentou ignorar como era bom ter um parceiro novamente. Ela e Hal sempre trabalhavam juntos. Não podia pensar assim, após o sermão que passara em si mesma, mas lá estava.
Cada brisa leve trazia o cheiro dele... o couro, a loção pós-barba, o discreto suor masculino, tudo o que ela não queria sentir, mas que não conseguia evitar.
Na verdade, era uma pena não ter levado seus óculos escuros para bloquear a visão. E talvez um lenço gigante, para não sentir a presença máscula pelo olfato.
Achando graça, perdeu a concentração por um instante, quando se feriu no polegar com o arame da cerca.
– Ai!
– O que foi? – Garrett a viu deixar cair o alicate. – Machucou-se?
Mary Jane descalçou a luva e observou o arranhão longo e vermelho no polegar.
– Não. Tudo bem. Nem cortou a pele.
– Deixe-me ver. – Ele lhe tomou a mão. Mary Jane tentou se desvencilhar, mas ele ordenou: – Fique quieta.
Garrett examinou o ferimento e Mary Jane espantou-se com o contraste entre suas mãos. Pareciam ter o mesmo tempo de uso... até os calos combinavam... mas a mão dela tinha mais cicatrizes, arranhões e marcas.
– Está em dia com a vacina antitetânica?
Ela riu.
– Está brincando? – Apontou para os ferimentos que sofrera ao longo dos anos. – Sempre me machuco com arames e facas. Claro que nunca deixei minha vacina vencer.
Garrett ergueu a cabeça para encará-la.
– Você trabalha demais – opinou.
Ela deixou de sorrir e recolocou a luva.
– Só sei trabalhar assim – retrucou. – Então, por que não voltamos ao trabalho?
Garrett fitou-a por mais tempo, estreitando o olhar e avaliando. Finalmente, pegou o alicate do chão e voltaram a trabalhar.
Quando acabaram de alimentar o gado, Mary Jane descalçou as luvas de couro e calçou as de lã que tinha no bolso. Se estivesse sozinha, passaria creme hidratante, mas o cuidado lhe parecia fútil diante de Garrett.
– Obrigada pela ajuda. É melhor eu ir para casa agora.
Ele ignorou o tom de dispensa.
– Tem algo para beber aí na caminhonete?
Ela o fitou. Claro, ele devia estar com sede. Estavam trabalhando havia mais de uma hora e ele não devia ter levado cantil.
– Tenho uma garrafa de água e soda gelada na caixa de isopor. Lamento, mas já tomei todo o café quente que trouxe comigo.
– Soda? – Garrett interessou-se. – Por acaso é aquela de morango?
Mary Jane riu e meneou a cabeça, o coração disparado. Oh, os beijos com sabor de morango que partilharam...
– Você é a única pessoa que conheço que realmente gosta de soda de morango. Ainda toma isso?
– Claro. Minha casa em Albuquerque tem uma geladeira cheia de soda de morango. Você precisa me visitar um dia.
Mary Jane não queria conversar sobre a casa dele, uma vez que já pensara bastante a respeito. Foi até a caminhonete, pegou uma lata de soda e entregou-lhe.
– Terá de se satisfazer com esta.
– Obrigado. – Ele tirou a tampa, inclinou a cabeça e tomou um bom gole. Mary Jane notou o pescoço forte, o movimento ritmado do pomo-de-adão, os cabelos escuros, e lembrou-se do beijo que trocaram no dia do funeral.
Ainda se envergonhava do ocorrido. Fora errado, uma atitude desrespeitosa, mesmo assim, a lembrança ainda suscitava calor e desejo, e ficou ainda mais envergonhada. Desviou o olhar e regularizou a respiração.
Ao acabar a soda, Garrett esmagou a lata e levou-a para a caminhonete.
– Obrigado. – Encarou-a como se soubesse que ela o observara e em que ela pensava. – É melhor eu voltar para casa. Eu só queria dar uma volta com Renegade após a viagem desde Albuquerque. Ele não gosta do trailer de transporte.
Mary Jane enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
– Oh, bem, alguns cavalos não gostam – replicou, vagamente. Tentava ser amigável e sociável, mas não era boa em conversa fiada, principalmente com ele. – Bem, obrigada novamente pela ajuda, Garrett.
Ele pegou as rédeas de Renegade e preparou-se para montar.
– Disponha, Mary Jane. Seremos vizinhos por algum tempo, portanto, se precisar de mim, basta chamar. – O tom desdenhoso indicava que ele sabia que esperaria sentado.
Ela se alarmou.
– Por algum tempo? Por quê?
– Não precisa se assustar. Apenas descobri que os negócios de Gus estão tão desorganizados que levarei meses para acertar as coisas. Dividirei meu tempo entre Albuquerque e Tarrant até estar tudo em ordem. Por isso, trouxe Renegade. – Garrett inclinou-se para bater no pescoço do animal. – Assim, podemos ambos nos exercitar.
– Oh... – Mary Jane desviou o olhar, fitou a grama amarelada e, então, o horizonte. As árvores de um bosque apresentavam folhas amarelas que caíam a cada rajada de vento. Garrett ficaria na Fazenda Blackhawk. Ali, em Tarrant. Ele não era como o pai, que passava semanas enfurnado em casa e só aparecia rapidamente na cidade. Garrett sairia a toda hora para estar com os amigos e vizinhos. Iriam se ver com frequência. Mary Jane sentia alegria e medo.
– Acho que uma das suas filhas pode me ajudar com uma parte do problema da fazenda.
Shannon! Mary Jane o encarou apavorada. Endireitou os ombros e fechou os punhos.
– Por quê?
Garrett estreitou o olhar ante a reação estranha.
– Por quê?
– Sim. Por que precisa da ajuda dela? Afinal, vai vender o lugar, não vai? O novo proprietário pode fazer as melhorias...
– A venda está distante – comentou Garrett. – Há muito a fazer antes.
Ela sentiu pânico e um gosto amargo na boca.
– Por exemplo?
Garrett suspirou.
– A casa está cheia de/papéis antigos, documentos. Acho que uma das suas filhas pode separar e dar um destino a esses itens para mim.
Brittnie, então, concluiu Mary Jane, aliviada. Não Shannon. Não era tão mau, mas também não era bom.
– Si... sim – improvisou, trémula. – Minha filha Brittnie é bibliotecária e arquivista, mas está ocupada com um projeto da família do marido, avaliando pertences de um tio-avô, e...
– E ela não teria tempo para4 me atender? – deduziu Garrett, áspero. – Sei que ela é uma profissional e seu tempo é valioso. Pagarei pela consultoria.
– Tenho certeza de que não será necessário – afirmou Mary Jane. – Além disso, ela mora em Durango e...
– E o quê? – indagou ele, confuso. – Fica a quarenta e cinco minutos daqui, não no outro lado da lua.
– Ela anda realmente muito ocupada.
– Você é agente dela ou algo assim? Ela pega todos os trabalhos por seu intermédio?
– Bem, não, claro que não, mas...
– Então, conversarei com ela pessoalmente – decidiu Garrett, e franziu o cenho. – Se ela é adulta, profissional, uma mulher casada, duvido de que precise da permissão da mãe para falar comigo!
– Não, claro que não – respondeu Mary Jane. Seu orgulho pelas filhas brigava com a necessidade de protegê-las.
– O que há com você? – questionou Garrett. – O que acha que sou? Um seqúestrador de vizinhos? Algum tipo de cafajeste capaz de machucar sua garotinha? – Segurou com força as rédeas, controlando o garanhão inquieto. – Não sou nada disso. E a única capaz de machucá-la é você, com suas ideias malucas.
Garrett esporeou o cavalo, saltou sobre a cerca e galopou pelos campos.
Mary Jane apoiou-se na caminhonete e cobriu os olhos com as mãos trémulas. Não podia lidar com aquilo. Não podia. Para proteger Shannon e as outras filhas, agia e dizia coisas que levantavam suspeitas. Tinha de se controlar, ou acabaria com uma bomba nas mãos.
Ela ergueu a cabeça e viu cavalo e cavaleiro desaparecendo ao longe, pensando que talvez já estivesse com a bomba acesa nas mãos.
– Quem diria que ele ficaria assim? É o homem mais lindo que já vi. – Millie Ferguson suspirou enquanto empacotava os itens que Mary Jane comprara na mercearia.
Mary Jane passou o cheque para pagar as compras.
– Quem? – indagou ela. – Ficaria como?
Millie revirou os olhos.
– Garrett, claro. Ele é um daqueles que eu não me importaria em conhecer numa noite de inverno...
Mary Jane ficou tensa. Garrett. Ele estava ali? Fingindo descontração, olhou ao redor. :– E o que Don diria?
– Meu marido fica na mercearia até às dez horas da noite todos os dias da semana, lembra-se? – comentou a caixa, com um sorriso. – Eu diria a ele que tinha uma reunião do clube de senhoras na igreja.
– Até às dez? – indagou Mary Jane cética.
Millie suspirou teatralmente.
– Fazendo mantas para almas necessitadas dos Estados ao norte... e testando-as.
Mary Jane sorriu enquanto olhava ao redor novamente. De fato, avistou Garrett pela vitrine. Ele parara para conversar com Don Ferguson, que varria a calçada. Os dois tinham sido amigos na escola, jogado futebol e basquete juntos. Mary Jane sabia porque Garrett lhe contara, alardeando a grande dupla que os dois formavam. Os três nunca haviam estado juntos, entretanto. Nunca se vira incluída nessa parte da vida de Garrett.
Nunca haviam saído como um casal de namorados, ido ao cinema, ou feito um programa com os amigos. Por isso, fora tão fácil esconder a identidade do verdadeiro pai de Shannon. Exceto por seu irmão, poucas pessoas souberam de seu envolvimento com Garrett. Cavalgavam, ficavam conversando no carro, ou, mais tarde, fazendo amor. Estava tão apaixonada que não acreditava que ele mantinha o relacionamento em segredo porque se envergonhava de estar com a filha do bêbado da cidade. Finalmente, ela entendera a realidade, mas então já era tarde demais.
O erro fora cometido. Quisera manter o fato em segredo também, porque seu pai a teria forçado a se casar com Garrett. Sempre atrás de uma oportunidade, ele adoraria colocar as mãos em algum dinheiro de Gus Blackhawk, nem que fosse um suborno para manter a filha longe de Garrett.
– Sou nova aqui – comentou Millie, passando o recibo a Mary Jane. – Só estou casada com Don há vinte anos e não imaginava que esta cidade produzisse homens como Garrett Blackhawk. Você o conhecia?
– Sim. – Mary Jane pegou suas compras. – Já o conhecia, – Não comentou mais nada e despediu-se de Millie, que já atendia outro cliente.
Contra toda a lógica, Mary Jane tinha de concordar com Millie e admitir que Garrett estava com ótima aparência. Ele usava a mesma jaqueta forrada da última vez em que haviam se encontrado. Chapéu, calça jeans e botas eram as roupas normais de inverno dos homens em Tarrant, mas nele pareciam perfeitas, devido aos ombros largos, as pernas longas e o aspecto sólido. Ele mantinha as laterais da jaqueta para trás, as mãos na cintura, a cabeça levemente inclinada para ouvir Don. De repente, inclinou a cabeça para trás e riu. Mary Jane sentiu uma onda de prazer pelo corpo. Millie tinha razão. Era o homem mais lindo que já pisara na cidade.
Mary Jane desejou que ele fosse embora logo, para ela poder voltar à caminhonete e sair da cidade sem ser percebida. "Não que Garrett quisesse conversar com ela, após o confronto na semana anterior.
Ela não o vira desde então, mas ouvira muito sobre ele. Parecia que todos na cidade comentavam sobre Garrett, embora não nos mesmos termos... praguejando... que usavam para se referir ao pai dele.
Garrett já tomara algumas providências, preparando a fazenda para a venda. Queria garantias de que o comprador a manteria intacta, sem fracioná-la em minifazendas, que haviam trazido tantas pessoas da Califórnia nos últimos anos.
A decisão ganhara respeito dos moradores. Ele também conversara com o conselho da cidade sobre a doação de dinheiro para a construção de uma piscina municipal que levaria o nome de seu pai. Mary Jane achava aquilo irónico. Gus não gostava de crianças, as principais frequentadoras da piscina. Imaginava quais seriam as motivações de Garrett, mas ninguém mais o questionava. Os moradores estavam contentes em ter um cidadão tão rico de volta a Tarrant.
Mary Jane fez hora junto à porta, até começar a receber olhares das pessoas. Respirou fundo e apressou-se para a caminhonete, sabendo que não havia como evitar Garrett. Em Tarrant, todo mundo falava com todo mundo.
Mary Jane mais uma vez usava a velha jaqueta de Hal, calça jeans, botas e os cabelos escondidos sob um boné de beisebol, pois não tivera tempo de arrumá-los pela manhã. Ajeitou os fios mais rebeldes e saiu para a calçada. Não usava um pingo de maquiagem e gostaria de não se importar com isso, raios!
– Bom dia, Mary Jane – saudou Garrett, interrompendo a conversa com Don. O sorriso era irónico, bem como o modo como lhe tirou o chapéu.
– Bom dia, Garrett. Don – respondeu ela, descontraída, sem parar para conversar.
Garrett despediu-se do amigo e a acompanhou.
– Deixe-me levar as compras para você, Mary Jane.
– Não é preciso. Não estão pesadas. Afinal, passo o tempo arrastando fardos de feno.
– Eu sei – declarou ele, e tirou-lhe as compras de qualquer forma. – E aposto que tem músculos para provar.
– Se tenho – respondeu ela, sentindo os músculos tensos. – Quer uma demonstração?
Garrett meneou a cabeça.
– Não, obrigado, embora não tenha medo de seus músculos. – Alojou as compras no baú da caçamba da caminhonete e voltou-se. – Mas sim da sua boca...
Mary Jane ficou furiosa e comprimiu os lábios. Desejou ter uma resposta pronta, mas só ficou irritada. Por que ele tentava transformá-la em vilã? Afinal, ela só queria proteger a família. Ele não sabia disso, claro, nem ela não lhe contaria.
Tinha de evitá-lo a todo custo, embora não soubesse como fazê-lo, já que ele se sentia em casa na cidade. A venda da fazenda e a construção da piscina levariam tempo, e ele obviamente planejava ficar por ali enquanto tudo se consumava.
Mary Jane entrou na caminhonete e ligou o motor. O homem não tinha um gerente para isso? Outra pessoa não podia cuidar dos negócios para ele?
Emitiu um som de desgosto enquanto conduzia a caminhonete pelas ruas a caminho de casa.
Queria sua vida de volta, como era no começo de setembro, antes de dar aquele telefonema fatídico. Ironicamente, lidar com Gus fora mais fácil, porque sempre soubera o que esperar do velho... o pior.
Mas não sabia como lidar com Garrett, nem queria saber, assegurou-se. A última coisa que desejava era ter de se preocupar todos os dias com a possibilidade de Shannon encontrá-lo na cidade, de eles perceberem a semelhança física entre ambos e começarem a fazer perguntas.
Queria que Garrett fosse embora, que a deixasse e a sua família em paz. Queria a segurança de saber que a decisão que tomara anos antes fora acertada.
Por que não tira o dia de folga e vem comigo? – indagou Brittnie, entrando na casa da mãe, na fazenda.
Mary Jane sobressaltou-se à interrupção de seus pensamentos atormentados. A janela da cozinha, fitava a paisagem e pensava no encontro que tivera com Garrett na cidade pela manhã. Sequer percebera a chegada de Brittnie nem ouvira suas palavras. Afastou os cabelos dos olhos e piscou, interrogativa.
– Como, querida? Ir aonde?
– Até a Fazenda Blackhawk. – Brittnie abriu a geladeira e pegou a caixa de leite. Despejou uma porção generosa no copo, guardou a caixa e fechou de novo a geladeira. – O sr. Blackhawk me pediu para examinar uns papéis que ele encontrou. São escrituras e concessões de terras de quase cem anos. Mal posso esperar para vê-las, mas resolvi passar aqui para ver se quer ir comigo, visitar Ruth, distrair-se um pouco...
– Oh, não sei, Brittnie – respondeu Mary Jane, automaticamente. Passou as mãos na calça jeans, tentando enxugar o suor repentino. – Tenho muito a fazer por aqui. – O empregado da fazenda voltara, e ela o despedira no ato. Agora, tinha de realizar todas as tarefas sozinha.
– Eu sabia que diria isso – respondeu Brittnie, revirando os olhos. Passou a argumentar persuasiva, mas a mãe ouvia apenas parcialmente.
Então, Garrett chamara Brittnie. Fizera-o por vingança, raiva ou o quê? Talvez para provar que pretendia ignorar sua histeria? Procurara Brittnie após o encontro que tiveram na cidade pela manhã? A filha parou para tomar fôlego, e ela confirmou a desconfiança. Ele vira Mary Jane na cidade e imediatamente telefonara para Brittnie. Por quê? Para provar que podia?
Inconscientemente, passou o dedo na cicatriz no polegar. Não se esquecia da forma carinhosa com que ele a tocara no dia em que se machucara, da conversa que tiveram, do pânico que a assolara ao imaginar Garrett perto de sua família. Ele estava furioso com ela, mas Mary Jane não sentia que lhe devia explicação. Sua primeira preocupação era proteger a filha.
– Não concorda?
– Sim, querida, concordo – respondeu Mary Jane, vagamente.
Brittnie expressou alívio.
– Ótimo. Vamos, então.
Atónita, Mary Jane perguntou-se com o que concordara.
– Vamos?
– Francamente, mãe, você está com a cabeça nas nuvens hoje. Eu disse que ét uma oportunidade boa demais para perder. Vamos ver tudo o que o sr. Blackhawk herdou do pai, e Ruth disse que precisa da sua ajuda para decidir aonde mandar alguns itens. Mãe, ela está trabalhando com afinco lá, você não pode decepcioná-la.
Claro que não. Ruth devia estar perdida diante de tudo o que se acumulara naquela casa ao longo de cinquenta anos. Além disso, se uma de suas filhas passaria algum tempo com o curioso Garrett Blackhawk, tinha de estar presente.
– Vou pegar o casaco – avisou.
– O casaco? – Brittnie expressou desalento. – Quer dizer que não vai trocar de roupa?
Mary Jane olhou para a calça jeans e a camisa que usava desde cedo.
– Querida, uso estas roupas o tempo todo.
– Não para visitar um vizinho.
Era verdade, pensou Mary Jane, desgostosa. Por que ensinara às filhas que se arrumar para sair era sinal de respeito às pessoas que veriam? Por que elas tinham de se lembrar de tudo o que lhes ensinara? Não queria trocar de roupa, não queria que Garrett pensasse que se arrumava para ele. Por outro lado, não queria que Brittnie achasse seu comportamento diferente do normal. Aquilo poderia levá-la a achar que ela se perturbava com Garrett, o que com certeza não era verdade. Não queria que nenhum membro de sua família gastasse mais tempo do que o necessário pensando em Garrett.
– Tem razão – concordou, com um suspiro. – Vou trocar de roupa.
Garrett olhou pela janela ao ouvir um automóvel estacionar diante da casa. Emitiu um som de desgosto ao ver que Brittnie Kelleher Cruz trouxera a mãe junto... ou talvez Mary Jane tivesse se convidado, para manter a garotinha a salvo de outro lobo mau da família Blackhawk.
Espantou-se com o fato de ela ter trocado de roupa, uma vez que haviam se visto na cidade pela manhã. Agora, ela usava calça preta, suéter comprido azul-claro e uma capa. Ótimo. Ao menos, livrara-se da jaqueta velha que obviamente pertencera ao finado marido. Detestava vê-la com a peça. Gostaria de vê-la usando as coisas que lhe prometera décadas antes... roupas de grife, cetim, seda. Era uma pena ela não ter esperado. Poderia lhe dar tudo isso facilmente agora.
Mas por que faria isso?
Avaliou a moça alta e bonita, de cabelos loiros cacheados presos com cuidado atrás da cabeça. Ela usava calça de sarja, suéter e jaqueta, dando a impressão de que sabia cuidar de si. Pelo que via, Mary Jane criara três filhas trabalhadoras e competentes. Por quê, de repente, achava que elas não podiam se proteger?
Não, não se tratava de não confiar nelas. Mary Jane não confiava nele. A percepção entalou em sua garganta como um osso do peru do Dia de Ação de Graças, que Ruth lhe preparara na semana anterior. Talvez Mary Jane tivesse razão em preocupar-se. Afinal, não se conheciam mais. Mas, raios, também não era nenhum monstro! Gostaria de saber o que se passava na cabeça dela. Afinal, ele tinha o direito de estar irritado com ela, após todos aqueles anos. Após declarar que o amava e que esperaria por ele, Mary Jane se casara com Hal, assim que ele deixara a cidade.
Tais preocupações não ajudavam a descontraí-lo. Ao abrir a porta, de cenho franzido, Brittnie assustou-se e Mary Jane imediatamente abraçou os ombros da filha, como se quisesse protegê-la. Raios!
Garrett quis enfrentar Mary Jane, mas forçou um sorriso menos assustador. Ou assim esperava. Sua secretária, Jill, dizia que fotografias de seu semblante zangado podiam ser vendidas para espantar ursos.
– Entrem – convidou. Pegou os casacos delas e os pendurou em um mancebo junto à porta. – Reuni alguns documentos que quero que veja na sala de jantar, Brittnie. Não quer ir dando uma olhada? – Não evitou o olhar severo a Mary Jane, enquanto Brittnie se apressava para a outra sala. – Cuidando da segurança de sua garotinha?
Ela ergueu o queixo. Como aprendera a fazer aquilo? Houve época em que era tímida e temia a própria sombra. Era uma das características de que mais gostava nela. Sentia-se forte e protetorí Devia ser fingimento dela. Como o amor que ela lhe declarava.
– Vim porque soube que Ruth precisava de ajuda. – Mary Jane desviou-se dele como se fosse um cachorro deixado para tomar conta da casa. Deteve-se ao pé da escada.
– Ela está lá em cima?
Garrett detestou o tom frio.
– Sim, está. No sótão, talvez. – Quase observou que ela não estava vestida para remexer objetos guardados desde 1940, mas se conteve. Mary Jane não apreciaria comentários pessoais. Além disso, o que ele queria dizer a ela não tinha nada a ver com roupas.
Assentindo orgulhosa, ela subiu a escada. Garrett permitiu-se admirar suas formas esguias. Bonita. Mais que bonita. Era uma pena aquele pacote todo estar envolto em uma atitude defensiva. Mas lidaria com ela mais tarde. Naquele momento, precisava conversar com Brittnie. E dirigiu-se à sala de jantar.
No sótão, Mary Jane tratou logo de ajudar Ruth a encher caixas com roupas velhas. Passaram uma tarde agradável, analisando todos os itens e decidindo o que seria destinado a caridade.
Quando a primeira caixa ficou pronta, Ruth levantou-se para levá-la para baixo, mas Mary Jane tirou-lhe o fardo.
– Eu faço isso. Volto já.
No térreo, ao colocar a caixa junto à pilha crescente de donativos junto a porta, Mary Jane prestou atenção nas vozes na sala de jantar, mas não conseguiu entender nada. Teve vontade de espionar, ver se Garrett ainda estava com Brittnie, mas não era tão obsessiva. Além disso, Garrett teria mais um motivo para acusá-la de ser superprotetora.
Subiu a escada e, no corredor do primeiro pavimento, sentiu a curiosidade suplantar a relutância por estar naquela casa. Fora lá no dia do funeral de Gus, mas não estivera na ala íntima. Agora, podia se deter e dar uma olhada nos cómodos. Ruth tentara manter a casa limpa. Os banheiros brilhavam, bem como o piso de carvalho.
Como a maioria dos quartos estava empoeirada, Mary Jane imaginou se Gus proibira a governanta de limpá-los.
Um cómodo diferia dos demais. Mary Jane deteve-se à porta. Logo percebeu tratar-se de uma saleta íntima, saída de um filme da década de 1950.
Nas janelas, belas cortinas de chintz. Espantou-se ao ver que não estavam desbotadas, como se sempre tivessem sido protegidas do sol. O tapete persa em vários tons de verde e azul, parecia ter sido instalado no dia anterior.
Havia duas poltronas confortáveis e uma espreguiçadeira com estofamento em veludo azul formando um canto agradável para conversas. Uma delicada escrivaninha ocupava o vão junto à janela. O ambiente era bonito, tranquilo e tão diferente de Gus que Mary Jane não pôde evitar a surpresa.
– Esta era a saleta de minha mãe – informou Garrett.
Mary Jane sobressaltou-se. Estava tão distraída que não percebera a aproximação.
– Oh! Entendo. Está assim há...
– Mais de quarenta anos. – Garrett entrou na saleta e olhou ao redor, pensativo. – Meu pai nunca me deixava entrar aqui quando menino. Tinha medo de que eu quebrasse alguma coisa. – Sorriu maroto. – Eu costumava entrar quando ele não estava.
Mary Jane levou as mãos à cintura e entrou na saleta também. Não conseguia encarar Garret, imaginando o ga-rotinho confuso que fora, saudoso da mãe, buscando uma maneira de resgatá-la, tentando senti-la nos objetos, sempre rechaçado pelo pai severo. Sentiu um nó na garganta de tristeza.
– É lindo – comentou, a única coisa que conseguiu pensar em dizer. – Você... você se lembra dela? Eu não a conheci, pois me mudei para Tarrant só aos dezesseis anos.
Garrett ergueu o sobrolho.
– Eu sei quantos anos tinha quando se mudou para Tarrant. – Após breve pausa, acrescentou: – Eu me lembro de que ela nunca ficou nervosa comigo, nunca gritou comigo.
– Já recebia demais desse tratamento de seu pai – murmurou Mary Jane, arrependendo-se em seguida. – Oh, desculpe-me. Eu não devia...
– Gus não era assim quando ela estava viva. Ele era feliz.
Mary Jane fitou-o pasma.
– É verdade – reafirmou Garrett. – Ele mudou depois que ela morreu, perdeu interesse em tudo por algum tempo. Lembro-me dele sentado à escrivaninha, fitando a janela. Eu costumava ficar junto à porta, observando-o. Um dia, ele se levantou e saiu, disse que nada na saleta devia ser tocado ou mudado, mas as persianas deviam ser abertas, e Ruth as limpava toda semana. Nunca o vi voltar aqui, mas acho que ele vinha. Às vezes, encontrava alguns objetos fora de lugar na escrivaninha. – Indicou o móvel, sobre o qual empilhavam-se papéis de carta amarelados.
– É... triste. – Inesperadamente, Mary Jane sentiu as lágrimas brotarem. Voltou-se e enxugou os olhos discretamente. Quem diria que se solidarizaria com o velho Gus Blackhawk?
– Acho que entendo – admitiu, cautelosa. – Meu pai sempre bebeu, mas piorou quando minha mãe morreu de pneumonia, pouco antes de nos mudarmos para cá. – Era outro fato que tinham em comum, a perda da mãe. Mary Jane sempre imaginara se teria sido tudo diferente, se sua mãe não tivesse morrido. Connie Sills a teria alertado para ficar longe de Garrett? Teria feito Bryce Sills largar a bebida? Talvez, mas Mary Jane aprendera a não se iludir com a possibilidade.
– Isso foi triste também – comentou Garrett, interrompendo seus pensamentos. – Deve ter sido difícil para você. – Fez pausa. – Acho que devia ter chorado por minha mãe, como todos os garotinhos fazem. Por outro lado, só já adulto entendi a forma como meu pai expressou a dor.
– Você quer dizer a retração dele, a...
– O mau humor? A natureza controladora? Sim. Ele deve ter achado que, se controlasse todos e tudo a seu redor, não perderia o que amava.
– Você.
Garrett deu de ombros.
– Acho que, a seu modo, ele me amava.
– Mas ele o perdeu de qualquer forma. Ele o afastou.
–Sim, e sempre me perguntei se ele lamentava isso.
Garrett devia ter lamentado, sabendo que não podia voltar, que nunca seria o filho perfeito que Gus queria.
Lamentara deixá-la para trás, em Tarrant, ao se alistar no Exército? Sabia que era egoísmo; mas desejava aquela resposta, mais do que tudo. Era estranho como aceitara a situação anos antes, porém, ao revê-lo, todas as respostas voltavam a parecer urgentes.
Mary Jane avaliou os olhos cinza cheios de compaixão e questionamentos. Queria perguntar por que ele nunca respondera a suas cartas, por que não escrevera explicando que ela não tinha lugar em sua vida. Mas conteve-se.
– Parece que entendemos melhor as coisas à medida que envelhecemos – comentou ela.
– Talvez, e talvez nunca venhamos a entender algumas coisas. Sempre quis saber por que se casou tão rápido com Hal após eu me alistar.
Ela levou a mão à têmpora.
– Eu realmente não quero discutir isso, Garrett. Foi há muito tempo. Uma eternidade, não importa mais.
– Oh, acho que importa – contrariou ele, os olhos azuis fixos nela. – Acho que explica por que anda tão nervosa perto de mim. Sente-se culpada?
– Claro que não. Não tenho por que me sentir culpada.
– Arrependimento, então?
– Nada disso. E não vou mais discutir esse assunto.
– Nunca o discutimos – replicou Garrett, irónico. – Até agora, você não fez outra coisa senão fugir da questão.
Ele agia como se fosse culpa dela. Mary Jane contraiu os lábios e cerrou os punhos ao longo do corpo. Estava tão irritada que não conseguia revidar. Antes que se manifestasse, ele continuou:
– É espantoso como a vida muda num piscar de olhos.
– O que quer dizer?
– Quero dizer que, em minha ingenuidade juvenil, imaginei que fôssemos nos casar. – Garrett ergueu os braços e girou o corpo no meio da saleta. – Que íamos morar aqui, ou na Fazenda Crescent, que meu pai comprara para mim.
Então, por que ele mudara de ideia? Por que lhe escrevera aquela carta? Mary Jane queria saber, mas conteve-se, apesar de ele parecer culpé-la. Não queria que o nascimento de Shannon viesse à tona.
– Não é irónico que agora sua filha more na fazenda Crescent?
Mais do que imagina, pensou Mary Jane, sentindo o coração na garganta.
– Eu... não passo todo o tempo pensando nas ironias da sua vida – retrucou, orgulhosa do tom frio. – E é inútil discutirmos isso agora.
– Oh, não sei... – Ele inclinou a cabeça enquanto a avaliava. – Acho interessante partilhar lembranças, lembrar de como eram as coisas. Lembra-se das datas em que saímos?
– Não.
– Mentirosa – desdenhou ele. – Lembra-se tão bem quanto eu. – A voz saiu grave, e ele estreitou o olhar. – Lembra-se dos passeios na minha caminhonete? Dos pique niques ao luar?
– Não – mentiu ela. Tinham sido encontros com que toda jovem sonhava... românticos e proibidos.
– Lembra-se da coberta que estendemos no chão? De fazer amor sob as estrelas?
– Não! – Mary Jane sentiu o rosto queimar. Lembrava-se perfeitamente do episódio, e pensou do bebé que aquele amor descuidado gerara. Trémula, cerrou mais os punhos.
– Eu me lembro de que você não saía comigo em público. Nunca fizemos nada que namorados normais fazem... ir ao cinema, à lanchonete, ao baile de formatura... – Calou-se, pois soava amarga. O fato de não terem comparecido junto ao baile de formatura era o que mais magoava. Tivera certeza de que Garrett a convidaria, mas ele não convidara. Pelo menos, ele não convidara mais ninguém.
Garrett ficou tenso.
– Eu era um idiota – reconheceu. – Nós dois éramos.
– Então, por que falar sobre isso? Deixe o passado enterrado. – Magoada com as lembranças e irritada com Garrett, Mary Jane saiu ao corredor. – Ruth precisa da minha ajuda no sótão.
Garrett acompanhou-a. Ela via que ele ainda se atormentava com as dúvidas.
– Ruth desceu há cinco minutos para nos preparar um lanche. Você vai ficar, claro.
Ela se recusou automaticamente.
– Oh, acho que não. Tenho tarefas em casa e...
– Brittnie disse que vocês duas ficariam.
Mesmo acuada, Mary Jane tinha de admirar a habilidade dele. Só que queria dar a palavra final.
– Minha filha não responde por mim. – Queria deixar aquela casa e manter todos os membros de sua família longe também.
– Devia – rebateu Garrett, e indicou a escada. – Ela tem mais juízo do que você.
Tanto trabalho para ter a última palavra. Mary Jane sabia que era infantil, mas forçou um sorriso e tomou a direção indicada.
No térreo, Brittnie chamou-a da sala de jantar.
– Olhe para isto, mãe! – Entusiasmada, mostrou caixas de papéis empoeirados que assustariam qualquer um, menos uma arquivista. Havia diários, livros de contabilidade, revistas antigas.
Mary Jane admirou os itens, desejando que aquilo fosse tudo, e que Brittnie não tivesse mais contato com Garrett.
Duvidava de que esse fosse o caso, após ver a quantidade de caixas no sótão. Teria de se conformar em ter Garrett por perto por algum tempo. A noção deixava-a irritada e atenta. Sua esperança de manter a família afastada dele caía por terra.
Ruth chamou-os à cozinha, para saborearem sanduíches e uma sopa. Mary Jane não sentia fome. Na verdade, não tinha certeza se conseguiria engolir qualquer coisa, mas não queria magoar a amiga. Assim, pegou um prato, serviu-se de uma concha de sopa, aceitou uma xícara de café e sentou-se à mesa ao lado da filha. Ruth comentou seus planos de aposentaria. Não queria parar de trabalhar, mas Garrett a proveria com uma pensão generosa. Com planos de morar perto da filha, na Califórnia, comentava animada que agora passaria mais tempo com os netos.
Enquanto ouvia Ruth, Mary Jane também prestava atenção à conversa entre Brittnie e Garrett, que se sentara à cabeceira da mesa. Ao ouvir o nome de Shannon, interrompeu o que dizia a Ruth e voltou-se rápido para Brittnie.
– Shannon saberia exatamente o que fazer. Ela está na Secretaria de Recursos Naturais – comentava a filha, orgulhosa da irmã. – Ela sonha em recuperar a Fazenda Blackhawk há anos.
Mary Jane pousou a xícara no pires.
– Oh, tenho certeza de que Garrett não está interessado nisso – opinou. – Afinal, ele vai vender a fazenda e os novos proprietários poderão cuidar do assunto eles mesmos.
Brittnie a fitou de olhos arregalados. Sem dúvida, imaginava se a mãe perdera a razão. Mary Jane era uma das maiores defensoras do manejo sustentável das terras. Esboçou um sorriso que reconhecia que "as mães sabem das coisas", ergueu sua xícara e sorveu um gole de café.
Garrett tinha os olhos brilhantes ao comentar:
– Conseguirei um preço melhor se a recuperação das terras já estiver em andamento. Um verdadeiro fazendeiro não vai querer o lugar como está. Os únicos que se interessariam seriam empreendedores imobiliários, prontos para lotear o terreno. – Enrijeceu o maxilar.
– E isso só vai acontecer sobre o meu cadáver. Brittnie riu.
– Você parece Shannon... – Fitou Garrett detidamente. – Na verdade, você parecia Shannon falando.
Apavorada, Mary Jane entornou seu café, e o líquido quente se derramou sobre sua mão.
– Ai!
Todos se levantaram aflitos.
– Mãe, você está bem? – indagou Brittnie, correndo à geladeira. – Vou pegar um pouco de gelo.
– Eu tenho um creme para queimaduras. – Ruth foi buscar a caixa de remédios sobre a pia na varanda dos fundos.
No caminho, pegou uma toalha, voltou-se e lançou-a a Garrett, que arrebatou a peça no ar. Rapidamente, ele tomou a mão de Mary Jane e enxugou o café enquanto avaliava sua expressão.
– Qual é o problema? Acha que, porque me aproveitei de você quando era jovem, que farei o mesmo com suas filhas?
Ela quis negar, mas conteve-se. Afinal, se negasse, teria de explicar o motivo verdadeiro.
– Não sei qual é o seu problema – continuava Garrett, a voz baixa e sarcástica. – Mas você se tornou uma mulher amarga e doentia.
Brittnie chegou com o gelo e Mary Jane aplicou a compressa gelada sobre a queimadura.
– Está... está tudo bem – afirmou, com um sorriso fraco para tranquilizar a filha. – Você me conhece, sou desajeitada, faço isso todo o tempo.
Aliviada, Brittnie sorriu.
– Sim, papai sempre dizia que, se alguém tivesse de sofrer algum acidente, seria você.
– Ele tinha razão.
Ruth voltou com o creme. Enquanto a amiga e a filha
cuidavam do curativo, Mary Jane encarou Garrett. A opinião dele era óbvia na expressão severa. Ela não se importava, porque, se Garrett a considerasse maluca e obsessiva, ficaria longe dela e, talvez, de seus familiares.
E era isso o que ela queria. Era exatamente isso o que queria. Não importava o desconforto de saber que ele pensava assim dela. Era o melhor para todos.
– Mary Jane não parecia um pouco... nervosa? – indagou Ruth a Garrett, na varanda, ao acenarem às vizinhas que partiam. Ergueu o avental para proteger os braços do vento frio do entardecer.
– Parecia – concordou Garrett. Cruzou os braços e fitou o carro que se afastava. Na verdade, aflita seria a palavra certa. – Ela anda... preocupada com algo? – Ou seria ele o motivo do nervosismo?
–- Não mais do que a maioria dos fazendeiros por aqui. Anda trabalhando muito desde a morte de Hal. Mary Jane está determinada a tocar a fazenda, já que nenhuma das filhas se interessa. Becca e o marido têm seu próprio negócio. Ele é engenheiro de minas e trabalha selando minas perigosas por todo o Oe^te. Shannon e o marido, donos da Fazenda Crescent, planejam transformá-la num hotel-fazenda. Brittnie trabalha mais em Durango, e o marido tem um escritório especializado em administração de imóveis. Talvez uma das filhas de Mary Jane se interesse pela fazenda um dia, mas duvido, e é cedo demais para saber se um dos netos vai se interessar.
Garrett espantava-se em pensar em Mary Jane como avó. Parecia errado que, após cuidar da família e perder o marido, ela não pudesse descansar e tivesse que continuar trabalhando com afinco.
Segurou a porta para Ruth enquanto entravam na casa. A governanta retornou ao trabalho e ele deu uma olhada na pilha de itens que Brittnie separara. Sorriu. Nunca vira alguém tão entusiasmado diante de uma pilha de papéis velhos. Era uma garota e tanto.
Como a mãe fora.
Toda vez que encontrava Mary Jane, tinha de reajustar a ideia que fazia dela. Não se tratava mais da garota meiga e suscetível que conhecera anos antes. Não que esperasse isso, mas fora assim que pensara nela durante todos aqueles anos.
Recordou o que ela dissera sobre o namoro de ambos e franziu o cenho ao admitir a verdade. Ela acreditava mesmo que ele se envergonhara dela, mas não era assim. Lamentara a vida de Mary Jane com o pai alcoólatra e quisera salvá-la.
Mantivera o relacionamento em segredo não por se envergonhar dela, ou do amor que sentia por ela, mas porque tinha medo do que seu pai poderia fazer a ela e sua família se desconfiasse da seriedade de suas intenções.
Mas aquilo era passado. E devia ser esquecido. Pensou na saleta que o pai preservara com tanto cuidado, com os objetos de sua mãe, o lugar em que ele se refugiava para se lembrar da esposa que morrera tão jovem.
Garrett também se sentia assim em relação a Mary Jane. Não eram mais os mesmos. Como poderiam, após tantos anos? Mesmo assim, parte dele não deixava as lembranças para trás. Queria acreditar que ocorria o mesmo com Mary Jane. Afinal, o beijo que trocaram semanas antes indicava mais do que uma mulher solitária. Tivera o sabor de um desejo compatível ao seu.
Ela queria evitá-lo, manter a família longe dele, mas isso não aconteceria. Ele não construíra uma vida bem-sucedida recuando diante de um desafio. E não pretendia começar agora, gostasse ela ou não.
Uma mulher amarga e doentia. Dias depois, a condenação de Garrett ainda ecoava nos ouvidos de Mary Jane. Ela permitira que ele pensasse assim para distraí-lo do comentário de Brittnie. Na verdade, você parecia Shannon falando agora há pouco...
Pensou que fosse morrer de ansiedade naquele instante. O pior era que a filha estava certa. Ao erguer o queixo e anunciar que a fazenda só seria fracionada sobre seu cadáver, Garrett imprimira a mesma expressão determinada que Shannon usava a<> tratar do mesmo assunto.
Mas isso não era o pior, ponderou Mary Jane, enquanto dirigia a caminhonete pela rua principal à procura de uma vaga para estacionar. O pior seria Garrett concluir que precisava da ajuda de Shannon e entrar em contato com ela. Se isso acontecesse, não poderia fazer nada para evitar que se encontrassem. Shannon era adulta e administrava a própria carreira sem interferência da mãe. A filha a acharia maluca se lhe pedisse para não atender Garrett Blackhawk. Poderia ter dado certo quando Shannon tinha cinco anos, mas não agora.
Mary Jane estacionou a caminhonete e saltou, esmagando a neve recém-caída com as botas. Era a primeira nevada da estação. Após vários anos com pouca neve, os habitantes de Tarrant estavam atónitos em ver tal quantidade. E nevar assim logo no começo de dezembro tornava tudo especial, pois ajustava o humor de todos à estação natalina.
Aconchegou-se mais no velho casaco de Hal e protegeu as mãos nos bolsos. As filhas provocavam-na por continuar usando a peça, aliás, muito quente e prática. Começara a usá-lo após a morte de Hal porque tinha o cheiro dele. Lembrava-lhe os bons tempos, de antes da doença. Já fora lavado tantas vezes que cheirava a amaciante de roupas, mas ainda guardava boas recordações. Além disso, usá-lo se tornara um hábito, proporcionando economia, pois não teria de comprar um novo por um bom tempo. Afinal, a responsabilidade pela fazenda era toda sua agora, e ficara mais comedida quanto a gastar dinheiro.
Mary Jane entrou na loja de ferragens para comprar alguns itens de que precisava. Ao ver a vitrine com enfeites e luzes de Natal, comprou alguns ornamentos também e saiu carregada de pacotes.
Não precisava de mais decoração de Natal, porém, incapaz de resistir, adquiria novos itens a cada ano.
Assim, tornava a expectativa pelo feriado mais divertida, tendo ideias sobre como usar os novos enfeites.
A família reclamava que ela levava uma semana para arrumar tudo. Naquele ano, fora esperta e chamara todos para ajudar. Iriam à noite, para ajudar a montar a árvore e decorar a casa.
Deixou as compras trancadas na caminhonete e foi almoçar na lanchonete. No caminho, passou diante da vitrine da butique de Lauren e interessou-se por um vestido de veludo azul lindo ali exposto.
Parou e observou os detalhes. Desde quando não comprava um vestido para o Natal? A resposta era fácil. Nunca comprara. Nunca vestira roupa nova para usar num feriado específico, nem mesmo para o Natal.
Meneou a cabeça e voltou a caminhar. Mesmo que comparecesse a alguma festa de Natal, usaria um traje simples com cardigã, não um vestido de veludo. Mas aquele era tão bonito... Estacou e deu meia-volta. Não faria mal entrar e dar uma olhada de perto. Empurrou a porta da butique.
Lauren Wilberson ergueu o olhar da vitrine de bijuterias que arrumava.
– Oi, Mary Jane. Como vai?
Mary Jane saudou-a, e trocaram as novidades sobre suas famílias. Lauren, uma das melhores amigas de Becca, tentava tocar aquele estabelecimento. Recém-divorciada de um marido mulherengo, agora criava os dois filhos sozinha.
– Entrou só para dizer olá ou está interessada em algo especial?
– O vestido na vitrine – informou Mary Jane, sentindo-se uma adolescente frívola com a ideia de experimentá-lo.
Os olhos de Lauren brilharam.
– Não é lindo? Chegou esta manhã. Eu o coloquei na vitrine assim que removi as dobras. Vou pegá-lo para você.
– Abriu a vitrine, retirou a peça, levou-o ao provador e convidou Mary Jane a experimentá-lo com uma mesura. – É todo seu.
Assim que vestiu a peça, Mary Jane teve de admitir que Lauren estava certa. O decote em V acentuava a cintura. A renda preta tornava o modelo sofisticado e enfatizava os seios. As mangas compridas apresentavam franzido nos ombros, justas nos punhos. O efeito geral era elegante. A cor parecia favorecer seus cabelos loiros e os olhos cinza.
– Deixe-me ver – pediu Lauren. – Não há mais ninguém na loja agora, pode sair.
Mary Jane deixou o provador, sentindo-se jovem e maluca ao rodopiar diante do fespelho de corpo inteiro triplo.
– Oh, está perfeito! – avaliou Lauren, os olhos brilhando. – Mesmo que não tivesse esperança de que comprasse, diria isso.
Mary Jane riu ante a honestidade da amiga. Tinha de concordar. O vestido era perfeito. Daria quase tudo por ele... Olhou discretamente a etiqueta e franziu o cenho... exceto pagar aquela quantia.
O telefone tocou e Lauren foi atender. Mary Jane deu meia-volta para ver as costas. O melhor de tudo era que, apesar de toda aquela renda e drapeado, ainda parecia magra.
Sorrindo, Mary Jane ergueu o olhar e percebeu uma figura alta observando-a pela vitrine.
Garrett Blackhawk. Tinha de ser ele. Inclinado para a frente, quase tocando no vidro, ele a apreciava com um brilho satisfeito nos olhos. Ergueu a mão e formou um "ok" com o indicador e o polegar. Então, com uma piscadela, movimentou os lábios formando a palavra "compre".
Automaticamente, Mary Jane ficou tensa e ergueu o queixo. Não gostava de ser observada sem seu conhecimento e menos ainda por Garrett. O pior era sentir o coração disparado...
Garrett parecia ter mudado de ideia a seu respeito. Se o brilho nos olhos dele era indicação, ele não a considerava uma mulher amarga e doentia, pelo menos, não naquele momento.
Ela meneou a cabeça, indicando que não tinha a intenção de comprar o vestido. Por mais que tivesse gostado do modelo e apesar de querer ajudar Lauren, não podia arcar com aquela despesa.
– Covarde. – Garrett apenas movimentara os lábios, sem emitir som, mas a mensagem fora clara.
Mary Jane fez uma careta, ele riu. No provador, Mary Jane despiu o vestido com cuidado, ajeitou-o no cabide, vestiu de novo a calça jeans e a camisa de flanela, calçou as botas e cobriu tudo com o velho casaco de Hal. Faltava um detalhe. Tirou o boné do bolso e o ajeitou na cabeça para aquecê-la.
– Pode muito bem completar o visual maltrapilha – resmungou.
Por breves minutos, sentira-se maravilhosa, livre, não uma dona de fazenda com um rebanho de vacas não muito boas dependendo de seus esforços. Suspirou. Bastava de fantasia. Era hora de voltar ao mundo real.
Pegou o vestido, devolveu-o a Lauren, agradeceu e se encaminhou à porta. Como desconfiava, Garrett a aguardava do lado de fora, recostado na parede de tijolos antiga.
– Por que não comprou o vestido?
– Não preciso dele.
– Toda mulher precisa de um vestido como aquele – declarou Garrett, os olhos brilhando. – Entretanto, seria melhor se o decote fosse mais baixo na frente...
Mary Jane ignorou o comentário e continuou andando pela calçada, cumprimentando amigos e conhecidos.
– Não tem trabalho a fazer, Garrett? Não imagino um homem de negócios com tempo para abordar mulheres em vias públicas.
– Bem, imaginou errado. Faço isso todos os dias a esta hora, para polir a imagem de inútil que tento consolidar. Que tal se eu lhe pagasse um almoço? Ela o olhou de soslaio.
– Que tal se eu não quiser?
– A lanchonete fica ali na esquina.
Ela se voltou para ele carrancuda.
– Moro nesta cidade há trinta anos. Eu sei onde fica a lanchonete. – Não mencionou que se dirigia para lá.
– Ah, ótimo – respondeu ele, indiferente. – Então, não terei de levá-la pela mão.
– Você não vai me levar pela mão a lugar algum – admoestou Mary Jane. Raios, por que se divertia tanto sob o assédio? Cada encontro com Garrett era diferente, de enternecedor a irritante, porém sempre estimulante.
– Talvez tenha razão – admitiu ele. – Você não é velha o bastante para eu ter de levá-la pela mão.
Mary Jane estacou.
– Como? Já se esqueceu de que é seis meses mais velho do que eu?
– É, mas as mulheres envelhecem mais rápido – observou ele, e aguardou a reação.
E não demorou. Ela arregalou os olhos e enrubesceu.
– Porque temos de lidar com homens como você!
– Nem queira pensar em como a vida seria maçante sem nós – afirmou Garrett, arrogante.
– Oh, mas tão serena...
Continuavam parados na calçada diante da farmácia, enfrentando-se. Mary Jane ofegava, o coração leve de excitação. Os olhos azuis de Garrett obscureceram-se, o bom humor substituído por interesse e, então, desejo.
– Almoce comigo, Mary Jane – pediu ele.
– Não. Eu... não posso. – Na verdade, ela não conseguia se lembrar do motivo para não almoçar com ele.
– Qual é o problema? A viúva Kelleher nunca sai e se distrai?
O prazer se esvaiu e Mary Jane adotou uma expressão fria.
– Não acho que isso seja da sua conta.
Ele estendeu a mão e agarrou a gola de seu casaco.
– Por que sempre usa isto? Toda vez que a vejo, está com este casaco. Não tem um do seu tamanho?
– Ele é quente – justificou ela. – E foi de Hal.
– Existe alguma lei obrigando viúvas a usar o casaco do falecido onde quer que vá? Você o usa para se lembrar de que ele está morto e não tem o direito de se distrair almoçando com outra pessoa?
Horrorizada, Mary Jane encarou-o. Era cruel e injusto. Antes que pudesse dar uma resposta irritada, ele continuou:
– Pois saiba que não existe nenhuma lei obrigando viúvas a deixar de viver quando o marido se vai. É meio inútil, não acha? Afinal, meu pai passou a vida de luto pela esposa e nunca voltou a viver de fato. É isso o que pretende fazer? Não comprou aquele vestido porque ele não combina com sua imagem de viúva angustiada.
Mary Jane estreitou o olhar e ergueu o queixo.
– Você é arrogante e pretensioso. Acha que sabe muito. Tem tanta certeza de que sabe todas as respostas, mas não faz ideia do que está falando. Não sabe o que é cuidar de alguém que ama durante uma longa enfermidade e, então, perder a luta.
Não sabe como é voltar para casa depois do funeral e ver a caneca de café favorita dele na mesa, diante da cadeira, os chinelos debaixo da cama, as roupas no armário.
Não sabe como é fechar os olhos, abraçar as roupas e sentir o cheiro da pessoa, fingir por um momento que ainda está viva, que só está no outro quarto e logo estará a seu lado, se você desejar com força... – As lágrimas brotaram inesperadamente. – Você nunca perdeu um cônjuge, perdeu? Sendo assim...
Então ele percebeu que fora longe demais. Ele a magoara. Garrett via isso e estava chocado, mas alguma força irracional o forçava a continuar.
– Nunca tive alguém para perder. – Ele se aproximou até ficarem quase de narizes colados. – Nunca tive esposa, porque você não esperou por mim.
– Agora sabemos por quê, não é mesmo? – acusou Mary Jane, furiosa.
Garrett fitou-a por um segundo e então se retraiu.
– Não, não sabemos. É difícil para mim, acreditar que você me passou para trás e se casou com Hal porque imaginava que eu envelheceria e me tornaria um cafajeste arrogante e pretensioso.
– Pois acredite – sussurrou ela, querendo magoá-lo tanto quanto ele a magoara. – Porque foi isso mesmo o que aconteceu. Afinal, conheci seu pai. Não tinha motivo para achar que você não acabaria igual a ele.
Aos tropeções, Mary Jane deu meia-volta e correu para a caminhonete. Tomou o volante e deu a partida no motor com mãos trémulas. Dando ré sem olhar, entrou na via principal ao som de buzinadas. Pisando fundo no acelerador, deixou a cidade.
Garrett ficou parado, observando-a, alheio às pessoas que o contornavam e fitavam curiosas. Ele sentia como se seu coração tivesse sido arrancado.
Céus, o que fizera? Por que a pressionara daquele jeito? Por que dissera aquelas coisas terríveis? Ergueu a mão, vagamente ciente de estar trémulo, e esfregou os lábios .secos.
Mary Jane tinha razão? Ele estava ficando como Gus?
Às quatro horas daquela tarde, um furgão branco parou diante da casa de Mary Jane e o entregador caminhou pela neve até a porta da frente. Olhando pela janela, ela se surpreendeu ao ver que era da floricultura de Margie, na cidade.
Talvez fosse a guirlanda que seu irmão Dave lhe enviava todos os anos no Natal. Assinou o recibo ansiosa, deu uma gorjeta ao entregador e pousou a caixa no aparador do vestíbulo para abri-la. Era uma guirlanda, mas não do tipo que seu irmão sempre mandava. Aquela tinha mais detalhes, como frutas de cera. Encantada, procurou o cartão e murmurou as palavras:
– Desculpe-me. Você tinha razão. Sou um cafajeste arrogante e pretensioso. – Estava assinado com as iniciais maiúsculas familiares "GB".
Garrett. Fitou a guirlanda sem saber o que fazer. Jogou o cartão de volta à caixa. Sua vontade era embrulhar tudo de novo e jogar no lixo... ou melhor, na lareira! Levara a tarde toda para se acalmar da discussão com Garrett na cidade, entregue à melhor fórmula que conhecia para se esquecer dos problemas: limpar e cozinhar.
A casa estava imaculada, cheirando a limpeza, e havia tortas de abóbora esfriando na cozinha, mas ainda lutava com os sentimentos de mágoa, raiva e humilhação após as palavras de Garrett.
A guirlanda era linda, mas não compensava a mágoa. Estava abalada devido ao confronto com Garrett. Queria evitá-lo. Não se tratava mais apenas de proteger Shannon e sua família, mas se poupar de mais dor. Não importava quão linda fosse a guirlanda, não iria pendurá-la. Pegou o cartão mais uma vez, leu a mensagem e jogou-o na lareira, onde queimaria quando a acendesse.
Então, carregou a caixa à varanda dos fundos e a deixou sobre a máquina de lavar roupas. Mais tarde se livraria do presente inconveniente. Com um brilho no olhar, imaginou se os animais gostariam de uma decoração de Natal no celeiro...
Às cinco horas da tarde, o furgão da floricultura voltou, desta vez com duas dúzias de rosas de cabo longo, os botões mais perfeitos que Mary Jane já vira. Não havia cartão, mas sabia de quem eram. Como já pedira desculpas, ele não vira necessidade de outro bilhete.
Mary Jane sentiu-se fraquejar e sorveu o perfume das flores em pleno dezembro, algo que não se lembrava de ter feito antes.
A guirlanda era para a casa. As ro'sas, para ela, lindas de morrer!
Mesmo assim, decidiu que não as arrumaria no vaso nem as colocaria sobre o piano, por mais que fossem enfeitar a sala. Com um aperto no coração, levou a caixa para a varanda dos fundos e a deixou ao lado da guirlanda. Não daria as rosas para o gado, mas se livraria delas, de qualquer forma. Não aceitaria nenhum presente daquele homem horrível.
Determinada, fechou a porta e foi para a cozinha, pronta para receber a família. Shannon ligou pouco depois para dizer que estava com gripe e não compareceria com o marido à reunião marcada. Mary Jane lhe fez recomendações e desligou.
Em seguida, Becca e Clay chegaram com as crianças e, logo depois, Brittnie e Jared, com o avô dele, Roberto, e uma tia de Hal, Katrina. Os dois idosos saíam juntos havia quase um ano, e Mary Jane não se surpreenderia se eles resolvessem se casar.
Eram representantes legítimos da terceira idade, mas isso não os impedia de aproveitar a vida. Em poucos minutos, a casa foi tomada de canções natalinas, conversas paralelas e reclamações de Brittnie e Becca sobre a quantidade de enfeites de Natal da mãe.
– Espere para ver sua coleção após trinta anos – rebatera Mary Jane, bem-humorada.
Em meio à algazarra, Mary Jane ouviu uma leve batida na porta e franziu o cenho.
– Espero que não seja Shannon, ela está gripada... – comentou, a caminho da porta. – Devia ficar na cama e... – Emudeceu ao ver quem era o visitante. – Garrett?
Ele estava na varanda com o chapéu preto na mão e uma caixa quadrada enorme sob o braço. Parecia grande, sinistro e perigoso, mas, não obstante, constrangido. Ele a encarou sob a iluminação fraca.
– Vim pedir desculpas pessoalmente, já que a guirlanda e as rosas não surtiram efeito.
– Garrett, não é necessário...
Ele ergueu a mão.
– Na verdade, é pouco para compensá-la pelo que eu disse. – Meneou a cabeça e expressou arrependimento, como se ainda não acreditasse. – Não sei por que disse aquelas coisas. Eu... – Interrompeu-se ao olhar além dela e perceber que havia pessoas na sala. – Desculpe-me. Interrompi sua festa. Vi os carros, mas queria lhe dar isto...
– Fitou-a detidamente, e ela notou seu olhar de desejo.
– O que é?
– Mãe, quem é? – indagou Brittnie, lá de dentro. –Convide a entrar e feche a porta.
– Claro! – concordou Mary Jane, concluindo que o arrependimento era genuíno, mas também estava magoada.
Apesar disso, considerando que era Natal, não podia abrandar o coração e incluir Garrett na reunião familiar? Podia
colocar as preocupações e temores de lado por uma hora, certo? Ainda mais porque Shannon não estava presente. – Por favor, entre e junte-se a nós, Garrett.
Ele hesitou.
– Não sei se é uma boa ideia...
– Por favor – insistiu Mary Jane. Ambos tinham sido desagradáveis um com o outro e mereciam a oportunidade de se redimirem.
Garrett percebeu o pedido de desculpa embutido no convite e entrou carregando a caixa.
– Obrigado.
Assim que Garrett entrou, o silêncio tomou conta da sala e a família toda olhou para ele. Mary Jane repetiu os nomes das filhas e genros, embora já o tivessem conhecido no funeral. Então, apresentou Roberto e Katrina, e seu netinho Jimmy, de sete anos.
– É um presente? – O menino apontou para a caixa. – Para quem?
– Para Mary Jane. – Garrett finalmente entregou-lhe a caixa. Despiu o casaco, tirou o chapéu e os pendurou no mancebo junto à porta.
Mary Jane recebeu a caixa desajeitadamente, com uma mão na tampa e a outra no fundo. Para ela? Tinha a sensação de que não eram flores...
– Não está embrulhado – ralhou Jimmy. – Você devia embrulhar os presentes...
– Jimmy! – censurou Becca, aproximando-se do filho. – Não seja rude.
O menino revirou os olhos.
– Bem, que tipo de camarada traz um presente sem embrulhar? Você me fez embrulhar o meu.
– Tem razão, meu jovem – reconheceu Garrett. – Não tive tempo de embrulhar, e não sou muito bom nisso, de qualquer forma. Além disso, eu queria que Mary Jane o vestisse esta noite.
– Vestisse... – Mary Jane arregalou os olhos. – Oh, Garrett, você não comprou...
– Abra e veja. – Ele enfiou as mãos nos bolsos traseiros e balançou-se no salto das botas enquanto a observava. – Por favor.
Mary Jane viu o sorriso nos lábios dele. Exceto pela neta Christina, ainda bebé, que mordiscava um Papai Noel de plástico, todos a olhavam curiosos. Riu constrangida, instalou a caixa numa cadeira, removeu o fecho e afastou as folhas de papel de seda. Como desconfiava, era o vestido de veludo azul. Quando o tirou da caixa, as mulheres presentes emitiram um som de espanto e admiração, enquanto os homens lançavam olhares especuladores ao visitante.
– Oh, Garrett, não devia ter feito isso! É demais... – Era totalmente inadequado ele lhe dar um presente desses. Ambos sabiam disso. A família sabia, e provavelmente imaginava os motivos a justificar um presente tão caro:
– Eu lhe devo um, lembra-se? – provocou Garrett, a voz grave reverberando pela casa, enquanto os presentes assistiam ao drama maravilhados.
– Por que estaria me devendo um vestido?
Garrett estreitou o olhar.
– Por causa daquele que eu rasguei na escola.
Os presentes prenderam a respiração. Becca levantou-se e pegou a filha que brincava no chão.
– Brittnie, tia Kat, por que não vamos ver se há serviço na cozinha?
A velha tia resmungou:
– Agora que está ficando interessante?
Becca e Brittnie pegaram a velha senhora cada uma por um braço e a arrastaram da sala.
– Clay, Jared, Roberto, por que não saem para pegar a árvore de Natal? – sugeriu Becca, do corredor. – Está num barril de água lá nos fundos.
– Mas os três precisam ir? – Clay engoliu em seco sob o olhar fulminante da esposa.
– Precisam, e leve Jimmy com você! – As mulheres sumiram na cozinha. Os homens saíram em seguida. Em segundos, a sala ficou vazia.
Mary Jane encarou Garrett.
– Você grita "fogo" num teatro lotado?
Garrett sorria sem arrependimento.
– Ora, não fiz de propósito. Eu disse a verdade. Rasguei seu vestido e nunca o substituí, lembra-se?
– Sim, eu me lembro. – Mary Jane fitou o vestido e passou a mão pela superfície macia do veludo.
Acontecera num jogo de basquete no último ano. Garrett machucara o ombro e não estava jogando, mas comparecera ao ginásio. Na arquibancada, ria com os amigos, como fazem os rapazes de dezessete anos para impressionar as garotas. Ao empurrar um colega, pisou na barra do vestido de Mary Jane, no instante em que ela se virava para evitá-lo. Foi um rasgo enorme.
Humilhada, ela correra ao toalete para tentar reparar o dano, mas não houve jeito. Foi para casa segurando as partes da saia, em prantos, porque ela gostava de Garrett desde que chegara a Tarrant e ele nunca lhe dera a menor atenção.
– Eu a procurei no dia seguinte e me ofereci para pagar pelo vestido, mas você não aceitou. Então, eu a convidei para sair.
Ela não precisava recordar. Mary Jane lembrava-se de tudo muito bem. Deram uma volta na caminhonete dele, e conversaram. Garrett já a lembrara dessa parte, e ela não queria pensar naquilo. Era passado e não importava mais. O que importava agora era aquele lindo vestido azul.
– Obrigada – murmurou, o olhar brilhante. – Vou vesti-lo. – Com uma risada constrangida, indicou a sala. – Sinta-se em casa. Nós íamos começar a decoração da árvore. Você sabe instalar lampadinhas?
Garrett coçou o queixo.
– Nunca fiz isso. Se as lampadinhas ficarem embaraçadas, mandarei um novo jogo para vocês.
– Bem, está prestes a aprender uma nova habilidade, parceiro. Elas estão na caixa marcada "lâmpadas". – Mary Jane tomou o corredor para o quarto ouvindo a risada suave dele.
Não podia aceitar o vestido, sabia disso, mas não resistira. Continuava tão lindo quanto se lembrava dele ao prová-lo pela manhã. Vestiu o modelo e procurou um par de sapatos pretos. Não satisfeita, arrumou os cabelos, refez a maquia-gem e usou os brincos e o colar de pérolas.
Mary Jane respirou fundo, convenceu-se de que não era velha demais para tais tolices e voltou para a sala.
Katrina também retornava com uma torta de abóbora, creme de leite batido, pratos e talheres. Os homens acabavam de instalar a árvore. Todos se voltaram para vê-la no vestido novo. Mary Jane odiava ser o centro das atenções, mas aceitou os elogios e encarou Garrett. Ele sorriu tão doce e tão triste que ela sentiu dor no coração. Desejou ir até ele e abraçá-lo, agradecer pelo vestido e dizer o quanto lamentava... o rumo que as coisas haviam tomado, mas não fez nada disso. Sorriu e assentiu, pois bastava para aliviar a tensão.
– Ei, por que estas flores estão nos fundos? – indagou Brittnie, com a caixa de rosas.
– E isto? – indagou Becca, mostrando a guirlanda.
Antes que Mary Jane respondesse, elas passaram a admirar o vestido. Trocaram olhares curiosos, mas a mãe decidiu responder somente às perguntas verbalizadas.
– Oh, eu só tentava mante-las frescas até todos chegarem. – Mary Jane olhou para Garrett. Ele sabia por que as caixas estavam nos fundos, mas, sem se abalar, voltou a desembaraçar os fios e as lampadinhas.
Brittnie e Becca arrumaram as rosas em um vaso e começaram a separar os enfeites para a árvore.
– Ugh, mãe, isto é lamentável! – Brittnie ergueu um punhado de farelo verde que encontrou no fundo da caixa.
– O que é?
– Para sua informação, é uma guirlanda de tinta e cereais que você fez no jardim-de-infância.
– E você o guardou todos esses anos?
– Você o fez para mim. – Mary Jane ao ver a filha revirar os olhos. – Não se importe, querida, vai entender um dia, quando tiver filhos.
– Isso vai demorar um pouco – murmurou Brittnie, e sorriu para o marido. Em plena lua-de-mel, não estavam prontos para começar uma família ainda.
No outro lado da sala, o avô de Jared suspirou teatralmente. Estava ansioso por um bisneto.
Mary Jane riu e então sentiu o escrutínio de Garrett. Ele a observava com um toque de tristeza no olhar. Ela se sentiu culpada. Garrett não tinha filhos e não via netos no futuro. Imaginava se alguma vez participara de uma reunião barulhenta e feliz como aquela, a menos que tivesse amigos em Albuquerque que o incluíssem nas festividades familiares.
Passou a mão na saia do vestido novo e sorriu insegura. Não queria pensar que agira de forma desonesta. Partilhava sua família com ele naquela noite. Isso devia bastar para acalmar sua consciência, não?
– Mãe, está acontecendo algo entre .você e o sr. Blackhawk? – indagou Brittnie, quando as duas estavam sozinhas na cozinha. – Porque, se não há, deveria haver.
Atónita, Mary Jane voltou-se da geladeira com um prato contendo meia torta de abóbora.
– Como? – O prato quase virou, e o equilibrou com as duas mãos.
– Não tente disfarçar – censurou a filha. – Acho que seria bom para você... sair com alguém, e ele parece ser interessante. – Riu. – E, ainda por cima, é rico.
– Brittnie! Não sabe do que está falando. – Mary Jane se voltou para a geladeira e fingiu arrumar os itens lá dentro, para recuperar o controle. Não era todo dia que se ganhava de um homem um vestido de presente. Bastara para a família ter ideias... as quais pretendia rechaçar o mais rápido possível. Foi à pia, pegou um pano e começou a limpar o balcão.
– Sei mais do que pensa – insistiu a filha. – Sei que ele gosta muito de você. Muito.
– Não seja ridícula – respondeu Mary Jane, e continuou limpando o balcão.
– Mãe, ele lhe comprou um vestido – observou Brittnie. Aproximou-se da mãe e a fez cessar a limpeza obsessiva.
– Não por motivos românticos, eu lhe asseguro – assegurou Mary Jane, tensa. – Acredite, ele não gosta tanto de mim como parece.
– Então, por que ele olha tanto para você?
Ele olha? Mary Jane contraiu os lábios. Isso era novidade.
– Talvez por não acreditar que uma mulher bonita como eu possa ter uma filha com imaginação tão fértil – retrucou, amuada.
Brittnie deu risada.
– Imaginação fértil? Só porque acho que deve começar a sair com um homem gentil? Mãe, você precisa sair mais, desenvolver algum tipo de vida social.
– Eu tenho uma vida social – protestou Mary Jane. Largou o pano e fitou a filha. Não sabia como Garrett conseguia convencer a todos de que era "gentil", mas com certeza o adjetivo não se lhe aplicava.
– Sim, você tem uma vida social. – Brittnie ergueu as mãos. – Conversa com as vacas, com os grilos...
– Não seja tola. Sabe que estou sempre ocupada e não preciso que me diga quando for hora de...
A porta se abriu e Becca entrou, seguida por Katrina. Ao vê-las tão sérias, estacaram.
– O que está acontecendo? – indagou Becca.
Brittnie cruzou os braços e se pôs ao lado da irmã.
– Estou tentando convencer mamãe de que ela precisa começar a sair. Na veídade, devia começar a sair com o sr. Blackhawk.
– E eu estou dizendo a sua irmã para se meter com a própria vida – respondeu Mary Jane, azeda.
– É uma grande ideia! – Becca olhou para Katrina, que se alinhou às jovens.
Mary Jane alegrou-se.
– Isso mesmo. Brittnie não devia meter o nariz onde... Não, não, não. – Becca agitou as mãos. – Quero dizer é uma grande ideia você começar a sair, principalmente com o sr. Blackhawk. Ele é muito gentil.
Lá estava o adjetivo inadequado novamente.
– Ouçam. Não sei se "gentil" é a palavra certa para descrever...
– Vi Frank Kress na cidade hoje, e ele disse que Garrett se ofereceu para comprar um equipamento para o hospital e montar uma nova sala de espera, com móveis confortáveis. Isto já basta para ele merecer a nossa admiração – justificou Becca. Em várias ocasiões, já passara naquela sala de espera. – Além disso, ele gosta de você.
– Foi o que eu disse – reforçou Brittnie, animada com o apoio.
Mary Jane fitou-as. O que estava acontecendo? Nunca imaginara que a família tivesse tais preocupações a seu respeito. Sair? Com Garrett? Não, não podia. Não queria nem pensar nas implicações.
– Não. Não estou pronta para começar a sair.
As filhas se entreolharam e Brittnie manifestou-se:
– Mãe, já faz quatro anos que papai morreu. Nesse tem po, você nunca saiu com outro homem.
– Não sinto necessidade de sair.
– Toda mulher precisa sair com um homem bonitão, querida – aconselhou Katrina.
Brittnie relembrou:
– Esteve em Denver uma vez para um jogo de beisebol com Ben e Timmy, e isso só porque eles são seus sobrinhos e tinham entradas para o jogo. Foi três vezes a Albuquerque para exames de rotina... que deixou atrasar agora, aliás. Nunca sai para se divertir. Só o que fez nesses últimos quatro anos foi trabalhar na fazenda.
– Que é sua herança, aliás – lembrou Mary Jane.
– Sabemos disso – replicou Becca. – Mas não tem de se matar para preservar a fazenda para nós e nossos filhos. Você precisa se distrair.
– Elas estão certas – reforçou Katrina. – Eu não comentei nada até agora. Sabe como é difícil para mim ficar calada, mas garanto que a família Kelleher não espera que se mate para manter a fazenda. Claro, a propriedade está na família há quase cem anos, mas ninguém quer trabalhar nela, portanto, não protestaríamos se resolvesse vendê-la para ir morar na cidade. Nem Hal iria querer que mantivesse a fazenda à custa de sua saúde.
Mary Jane olhou para cada uma das mulheres. Sabia que todos se preocupavam com sua saúde, mas nunca ninguém fora tão explícito.
– Bem, ouvi todas as opiniões, mas poderiam ter escolhido uma hora melhor para tocar no assunto que não uma festa de Natal familiar.
Com isso, foi para a sala, onde os homens já haviam instalado a árvore e as lâmpadas. Garrett ligou o último trecho de fios, e a árvore brilhou com as luzes coloridas. A pequena Christina bateu palmas e balbuciou de alegria, enquanto Jimmy pulava, ansioso para colocar a estrela no topo da árvore.
Zangada e perturbada, Mary Jane pegou uma caixa de enfeites e pôs-se e decorar a árvore, sem considerar nenhuma ordem ou estética.
Apesar de tudo, tinha de admitir que as filhas e Katrina estavam certas quanto a sua falta de vida social. Mas isso não significava que gostaria de sair com Garrett. Supondo que ele a convidasse, claro. Sabia que ele não gostava dela tanto quanto demonstrava. Provavelmente, as três continuavam conspirando e planejando na cozinha. Precisava alertar Garrett sobre um possível ardil. Sem dúvida, ele acharia a situação tão absurda quanto ela.
Ergueu o olhar e viu Garrett observando-a.
– Você está bem? – indagou ele.
– Sim. – Ela respirou fundo. – Você pode ficar um pouco depois que os outros forem embora? Preciso conversar com você.
– Claro – respondeu ele, avaliando sua expressão. – Claro que posso.
Como ela esperava, Kat, Brittnie e Becca logo apareceram na sala para ajudar na decoração. Não a pressionaram mais, considerando a presença dos homens, mas não pareciam arrependidas. Quando a árvore ficou pronta, as crianças já estavam sonolentas e Becca e Clay as levaram embora. Os demais despediram-se pouco depois. Brittnie deteve-se à porta para abraçar a mãe, sussurrando:
– Não se esqueça do que eu disse. O sr. Blackhawk é um homem gentil.
– Não se esqueça do que eu disse – respondeu Mary Jane, dando-lhe um puxão de orelha. – Não é da sua conta e tenho outra novidade: está grande demais para levar uma surra.
Mary Jane esperou na varanda até o carro se afastar. Respirou fundo o ar fresco e voltou-se para enfrentar Garrett na sala.
– Acho que nunca vi uma casa com tantas decorações de Natal – comentou ele, pasmo.
– É ridículo, não é? – Mary Jane olhou ao redor, atónita. – E compro mais a cada ano. Hal costumava dizer que eu... – Contendo-se, desviou o olhar, lembrando-se da conversa naquela manhã e da acusação de que ela usava o casaco de Hal para se lembrar de que ele estava morto e, portanto, não devia mais sair e se divertir.
– O quê? – incentivou Garrett. – O que ele costumava dizer?
Mary Jane recordou que Garrett já lhe pedira desculpas.
– Que eu era uma sentimental incorrigível em relação ao Natal. Ele me provocava, mas eu não me importava. Hal sabia que eu tentava compensar os Natais que perdi quando criança.
– Por causa do problema de seu pai com o álcool.
– Sim. Ele arruinava o feriado todos os anos. Nunca tivemos uma ceia de Natal que ele não destruísse por causa da bebida. – Ela o fitou. – Nunca pensei nisso antes, mas acho que os seus Natais não foram muito diferentes dos meus.
– Não, não foram. Gus não bebia, mas passou a não gostar das festas de fim de ano após a morte da minha mãe. Resmungava dos presentes, das decorações e até da árvore. Melhorou quando Ruth veio trabalhar para nós, porque ela fazia questão de comemorar, mas estava longe de ser a "estação das boas festas", como desejavam os cartões que recebíamos.
– Lamento – murmurou Mary Jane. Precisou se controlar para não confortá-lo com uma carícia no rosto.
– Isso é passado – conformou-se Garrett. – Espera-se que um homem da minha idade já tenha superado tudo isso.
– Acho que nunca se supera a perda do que poderia ter sido – comentou Mary Jane, e baixou o olhar. Ele pensava no que poderia ter acontecido entre eles? Talvez. Ela pensava mais e mais nisso ultimamente. Para salvar o momento, ergueu as mãos e sorriu. – Por isso, acabamos com uma casa cheia de decorações de Natal.
Garrett assentiu, mas não respondeu à tentativa de amenizar o clima.
Um silêncio constrangedor pairou entre eles. Mary Jane não sabia o que fazer. Garrett retomou uma tarefa, enquanto ela passava a montar um arranjo com pinhas que recolhera no quintal e pintara com spray dourado.
– Acho que a forma como decora a casa faz diferença se ela lhe pertence – comentou Garrett.
Ela se voltou e viu que ele a observava. Não estava propriamente perto, mas ela se sentiu pressionada. Levantou-se para levar o arranjo ao aparador da lareira.
– O que quer dizer?
– A minha casa não fica assim. Eu contrato uma firma para decorar a empresa, pois a festa de Natal dos funcionários acontece lá. Mas nunca fica assim. A decoração é bonita, mas não tem alma.
Mary Jane sentiu-se desconfortável.
– Por que pediu qu£ eu ficasse? – indagou Garrett. – Achou que eu ia me castigar com brasa pelo que lhe disse esta manhã?
Ela sorriu triste.
– Não, você já pediu desculpas. – E pensara o dia todo que talvez ele estivesse certo. Talvez fosse hora de parar de usar o velho casaco de Hal, presa ao passado. Não que estivesse pronta para sair com homens, como as filhas sugeriam.
– Eu... queria alertá-lo. Minhas filhas acham que você e eu...
Ele ergueu o sobrolho.
– Você e eu...?
Mary Jane revirou os olhos.
– Devíamos sair – completou. – Elas acham que há algo entre nós.
– É mesmo? – Ele riu, mas então ficou pensativo. – Elas sabem que namoramos no tempo da escola?
Haviam feito muito mais que namorar, mas Mary Jane não tocaria no assunto.
– Não.
Ele assentiu.
– Pensam que o pai foi seu único amor.
– É.
– Gosto da ideia.
Mary Jane assustou-se.
– De que devíamos começar a sair?
– É. – Garrett sorriu. – Por que não?
Ela levou as mãos aos quadris.
– Porque não gostamos mais um do outro, e também porque estamos velhos demais para namorar.
– É aí que se engana. – Ele a tocou na ponta do nariz. – Eu gosto muito de você. Até já andamos nos trombando desde que voltei... exceto por aquele beijo no funeral. Gostei muito daquilo...
Mary Jane enrubesceu, mas manteve o olhar firme. Não iria demonstrar reação à lembrança, embora sentisse o corpo se aquecendo.
– E as pessoas nunca são velhas demais para sair, namorar, procurar alguém para... acompanhar.
Mary Jane imaginou se ele ia dizer "alguém para amar". Para os dois, era tarde demais. E, se lhe contasse sobre Shannon àquela altura, com certeza não haveria nenhum amor entre ambos.
– Oh, realmente não acho uma boa ideia. – Mary Jane sentia um nó na garganta de tão apreensiva. Tratava-se de um risco que, com certeza, não podia assumir. – Além disso, você nem vai ficar por aqui tanto tempo. Assim que acertar a documentação da fazenda do seu pai, voltará para Albuquerque. – Mal disfarçou o tremor à ideia.
Céus, o que estava acontecendo? Planejara aquela cena com tanto cuidado, com tanta lógica... Ela contando a ele o que suas filhas pensavam, ele desdenhando, ambos rindo de tudo, e a partida dele.
– Melhor assim, não acha? – Ele estendeu a mão virada para cima, a imagem perfeita de um homem racional, mas havia um toque travesso no sorriso. – Quando eu me for, elas pensarão que você está desistindo e a deixarão em paz.
– Desistindo? – O olhar dela brilhou. – Posso ter feito isso aos dezessete anos, mas... mas não desisti – concluiu, lamentavelmente. Ele estreitou o olhar, uma indicação de que ela falara demais. – E não conhece a minha família se acha que vão me deixar em paz. Elas nunca desistem quando começam.
Garrett ficou sério e apoiou um cotovelo contra o aparador da lareira. O fogo baixo lançava um brilho alaranjado em seu rosto.
– Qual é o problema, MarJay?
Ela cobriu o rosto com a mão.
– Eu gostaria que não me chamasse assim.
– Por que não? – Ele não pareceu surpreso. O tom incentivava à honestidade. – Porque voltei após tantos anos? Porque isso a faz infeliz? Porque isso a faz se lembrar de épocas mais felizes? Ou porque isso a lembra de que um dia me quis tanto quanto eu a quis? Ou porque isso a faz pensar no beijo que lhe dei após o funeral?
Ela soltou os braçps ao longo do corpo, esquivando-se de todas aquelas indagações.
– Aquilo foi totalmente inadequado – protestou.
– Não, não foi. – Ele se aproximou. – Aquilo nos ajudou. Na verdade, acho que, se a beijasse agora, você concluiria que sair comigo é uma boa ideia.
Mary Jane o fitou alarmada.
– Não. – Ergueu a mão para impedi-lo.
Garrett simplesmente envolveu-lhe a mão com a sua.
– Mary Jane, não sei o que está acontecendo entre nós, mas essa animosidade e irritação não vão nos levar a lugar algum. Parece que você não quer lidar com o passado, nem com o futuro, então, por que não lidamos só com o presente? O aqui e agora?
Não era uma pergunta de fato. Garrett não lhe deu tempo para reagir, simplesmente a beijou. Mary Jane quis afastá-lo, mas então sentiu os músculos sob a flanela da camisa e relaxou.
O desejo permeou-lhe o corpo. O último beijo fora uma tentação, aquele era a finalização. Garrett tinha o mesmo sabor de que ela se lembrava de anos antes, de meses antes... ardente, vivo e faminto. Ele a beijou repetidas vezes, impedindo-a de pensar, de manter sua determinação, prometendo-lhe algo que não podia dar. Um futuro.
– Não concorda, Mary Jane?
Ela suspirou.
– Com o quê?
– Que devíamos lidar só com o presente? Vamos enterrar o passado e deixar que o futuro simplesmente aconteça. – Garrett a beijou novamente e então afastou-a, atentos aos olhos brilhantes. – Não acha que ganhamos esse tempo para fazermos o que quisermos? Não somos mais um casal de garotos que têm de pedir a permissão de alguém.
Garrett a confundia. Mary Jane piscou. Não acabara de afirmar que não permitiria que as filhas lhe dissessem o que fazer, com quem sair? Fitou os lábios carnudos dele. Beijá-lo? Não. Tentou se concentrar. De algum modo, tudo ficara confuso porque o que ele lhe oferecia era cada vez mais atraente.
– Sim – respondeu, insegura. – Acho que sim.
Ele sorriu satisfeito, triunfante.
– Ótimo. Aonde você quer ir? O que quer fazer?
Mary Jane engoliu em seco. Oh, socorro! Concordara? Precisava pensar, ficar sozinha, refletir sobre o que havia feito.
– Para a cama – respondeu, e riu.
– Bem – avaliou ele. – Se tem certeza, mas acho que estamos pulando várias etapas.
Mary Jane recuou.
– Ora, espertinho, não foi isso que eu quis dizer.
Garrett sorriu.
– Eu sei, mas sempre foi divertido provocá-la... não resisti.
– Muito engraçado.
– Não vai voltar atrás na promessa, vai? Não logo após se comprometer?
– Não, claro que não. – Na verdade, Mary Jane apreciava a ideia de sair com Garrett. – Quando... quando iremos? E aonde?
– Amanhã à noite, a Durango. – Garrett passou ao vestíbulo, pegou o chapéu e o casaco. Voltou-se e sorriu irresistível. – E use o vestido.
Rindo, ela o acompanhou à varanda.
– Está bem, usarei. Mas estou avisando, adorei o vestido e vou usá-lo sempre, até você ficar cansado de vê-lo.
– Acho que isso não vai acontecer. – Ele dirigiu-se ao carro e avisou a que horas passaria para buscá-la. – Tenho uma reunião à tarde, mas acho que não vou sair tarde.
– Uma reunião?
– Com sua filha Shannon. Ela virá para me contar sobre a recuperação das terras da fazenda.
Mary Jane paralisou-se, enregelada. Shannon. Como pudera esquecer seu motivo para manter-se afastada dele?
– Ela está doente! – avisou, tentando controlar o pânico. – Por isso, não veio aqui hoje.
– Oh, entendo. – Garrett se deteve e franziu o cenho, pensativo. – Lamento em saber. Tenho certeza de que a secretária vai ligar para remarcar a reunião.
– Ou podem mandar outra pessoa. – Mary Jane preferia essa hipótese.
– Vou esperar até ela melhorar – decidiu ele. – Prefiro tratar com a chefia. – Acenou, entrou no carro e partiu.
– Claro que ele prefere lidar com a chefia – murmurou Mary Jane, os ombros caídos. – O problema era que a chefia se representava pela filha que tinham tido, sobre a qual não queria que ele soubesse.
Trémula, ergueu a mão e afastou os cabelos do rosto. Como um autómato, voltou-se e entrou em casa. Sentia que perdera o controle da situação.
Garrett dirigiu para casa sentindo que finalmente fizera algum progresso para se aproximar de Mary Jane. Sua secretária diria que a briga que tiveram pela manhã fora resultado de sua tendência controladora. De que adiantava ser o chefe se não se podia ter as coisas a seu modo?
Entretanto, Mary Jane desafiava todas as suas tentativas de controlar qualquer aspecto daquela situação, mostrando-lhe que ele não era o chefe. Ainda não sabia por que ela agia de forma superprotetora em relação às filhas, desconversando, esquivando-se, embora o beijasse com calor bastante para derreter a primeira nevada.
Ela evitava falar do passado com tal graça que merecia um prémio. E não lhe respondera por que se casara tão repentinamente com Hal. Imaginava se um dia conseguiria que ela falasse no assunto.
Após o desentendimento na rua pela manhã, não entendia como ela ainda o convidara a participar da reunião familiar em casa, mas sentia-se grato. Divertira-se ajudando o pessoal a montar o cenário natalino, vendo o amor que os unia. Mesmo os conflitos e discussões ocasionais foram interessantes, pois retratava a dinâmica de uma família de verdade.
Garrett entrou na estrada que levava a sua fazenda e fitou a casa escura. Esquecera-se de deixar a luz da varanda acesa e não havia nenhum calor para recepcioná-lo, pois Ruth fora para sua casinha em Tarrant.
Conformara-se com sua vida de solteiro havia muito, acostumara-se à falta de vida familiar. Trabalhando com afinco, raramente deixava que isso o aborrecesse, mas algo na casa de Mary Jane fizera sua solidão se evidenciar.
Queria o que a família Kelleher tinha... pessoas, crianças, conflitos, amor mútuo. Na verdade, queria a família Kelleher para si. Acima de tudo, queria Mary Jane, apesar de ela mantê-lo a distância.
Felizmente, descobrira uma brecha na armadura da mulher e, a começar na noite seguinte, tiraria proveito dela. Vinte e oito anos podiam ser recuperados, sim, e havia um futuro para os dois, se convencesse Mary Jane disso.
Em algum lugar também, naquele futuro, estavam as respostas que queria dela... as quais conseguiria, de um modo ou de outro.
Garrett telefonou no dia seguinte para lhe contar que Shannon adiara a reunião por uma semana e também para confirmar que passaria em sua casa às seis horas para o passeio a Durango. Mary Jane suspirou de alívio ao saber que ele não se encontraria com Shannon, embora continuasse preocupada por viver naquela corda bamba. Podia ter cancelado o compromisso com Garrett alegando ter de cuidar da filha gripada, mas Luke estava cuidando de Shannon e ela provavelmente não precisava da mãe.
Sentindo-se culpada, Mary Jane tentou preparar o espírito para se divertir. Como Garrett pedira, usou o vestido de veludo azul, ainda atónita por ter aceitado o presente. Adorara o vestido, não se lembrava de alguma vez possuir nada tão lindo. O olhar de Garrett ao subir os degraus da varanda fez eco a sua impressão.
– Você está maravilhosa – elogiou ele. – O vestido caiu mesmo bem, não? – Sorriu tão bonito e charmoso que Mary Jane chegou a sentir um aperto no coração.
– É lindo – concordou, sorrindo. – Perfeito. Obrigada mais uma vez. – Pôs-se de lado. – Quer entrar?
Ele meneou a cabeça.
– Reservei mesa para as sete horas, é melhor irmos.
Mary Jane percebeu que ele se indagava qual casaco ela vestiria. Para provocá-lo, tirou o casaco velho do armário, o olhar brilhando de divertimento.
– Este serve?
– Ah, bem... não sou crítico de moda, mas... – Garrett olhou-a desconfiado. – Por que não calça as botas também?
Rindo, ela guardou o velho casaco de Hal e pegou um de lã preto que usava em ocasiões especiais.
– Este está melhor? – Voltou-se para que ele a ajudasse a vestir o casaco.
– Está ótimo. Sabe, talvez eu deva lhe comprar um casaco de pele também – considerou ele. Após ajudá-la a vestir a peça, manteve as mãos em seus ombros.
– Não se atreva. Se fizer isso, minha família vai achar que estamos mesmo namorando.
Garrett lhe apertou os ombros e sussurrou ao ouvido.
– E isso seria tão ruim?
Mary Jane estremeceu à carícia do hálito quente dele em sua pele. Como ele conseguia uma sentença simples parecer tão convidativa e ao mesmo tempo tão imprópria?
Desajeitadamente, alojou os botões nas casas.
– Bem... acho um pouco prematuro, não acha? – desconversou. Desvencilhando-se dele, pegou a bolsa.
Sorrindo, Garrett assentiu ao casaco velho.
– Você deu o troco, não foi?
– E não foi tão engraçado – respondeu ela, erguendo o queixo, orgulhosa, mas sorriu.
A tensão diminuiu e eles riram juntos. Mary Jane trancou a casa e partiram para Durango. No caminho, Garrett perguntou-lhe sobre a família e ela contou orgulhosa todas as realizações das filhas.
– Eu devia parar de me gabar delas. Deve ser maçante para quem ouve.
– Imagine – retrucou Garrett. – Adoro ouvir sobre elas.
Mesmo assim, estava na hora de mudar de assunto.
– E você, Garrett? Por que nunca se casou?
Como as conversas que já haviam tido sobre o assunto não foram agradáveis, Mary Jane hesitava em retomá-lo, mas não continha a curiosidade.
Garrett não desviou o olhar da estrada, mas ela percebeu que ele passou a segurar o volante com mais força.
– Sei que conversamos sobre nos casar, mas eu estava muito confuso quando voltei do Vietnã, assim, acho que provavelmente foi bom você ter se casado com Hal. Meu pai achou que eu voltaria e retomaria de onde havia parado, como empregado dele.
– Mas você não queria? – Mesmo fazendo a pergunta, Mary Jane pensou na carta que ele lhe escrevera, cujo conteúdo não combinava com o que ele contava naquele momento.
Garrett parecia atormentado por lembranças.
– Após um ano pendurado num helicóptero, dando cobertura a meus companheiros e tentando abater inimigos que atiravam de todos os lados, trabalhar para meu pai cuidando de gado parecia muito monótono... não que as brigas diárias com Gus não fossem uma guerra à parte.
– Lamento – murmurou Mary Jane, franca.
Sim, ele a abandonara, mas quando se encontrava numa fase muito difícil. Talvez por isso nunca tivesse respondido a suas cartas. Embora ainda estivesse no treinamento, ele já imaginava como seria difícil a readaptação na volta do Vietnã e não quisera envolvê-la. Era uma possibilidade remota, mas ela podia quase se convencer da hipótese.
Ansiava por perguntar por que ele nunca respondera a suas cartas, mas continha-se. E se ele perguntasse por que ela tentara entrar em contato durante o treinamento, sabendo que correspondências não eram permitidas exceto, em emergências familiares?
Era melhor deixar como estava.
– São águas passadas – definiu Garrett, dando de ombros. – Mudei-me para Albuquerque, fui para a faculdade, arranjei um emprego. Não havia tempo para encontrar uma esposa. – Sorriu. – Como se casou praticamente ao sair do berço, não imagina como é o jogo de encontros nesse mundo afora. Leva tempo e exige atenção, e eu estava ocupado demais para me dedicar a isso. Mas confesso que me surpreendi quando acordei no dia do meu quadragésimo aniversário e percebi que não tinha tantas provas de realização de vida quanto imaginava.
Garrett se menosprezava, e Mary Jane sentiu o impacto de saber disso. Ele tinha mais do que imaginava, mas ela não podia lhe revelar o quê. Deu uma resposta fraca e mudou de assunto. Os ex-colegas de escola eram um tópico seguro, ao qual se ativeram durante o resto do trajeto e em boa parte da noite.
Saborearam o jantar recordando o passado, porém evitando fatos pessoais. Mary Jane relaxou e decidiu que aquela noite fora a mais agradável que tivera em anos.
O tempo todo, porém, Mary Jane pensou no que ele dissera sobre família. Agora, sabia que ele lamentava não ter formado uma, que lamentava a falta de filhos.
Passara semanas esquivando-se, decidida a não revelar a origem de Shannon, mas concluiu que teria de fazê-lo. Garrett tinha o direito de saber.
De soslaio, observando o perfil dele enquanto dirigia de volta para Tarrant, viu que se tratava de um homem forte e determinado. Garrett tinha o direito de saber sobre a filha e Shannon também devia saber sobre ele. Então, era aguardar as reações. Logo após o Natal, num momento que considerasse adequado, contaria a ele a verdade sobre Shannon. Era o correto a fazer.
Naquela semana, Shannon passou na casa da mãe após ir à fazenda de Garrett e anunciou que ela e o marido dariam uma festa de Natal.
– Luke finalmente acabou a reforma do térreo e quer mostrar a todos. Você está convidada, claro, e convidei Garrett também.
Mary Jane sentiu como se o chão lhe faltasse de sob os pés. Então perguntou:
– Convidou?
– Sim, mas não falei muito com ele hoje. Após fazer a avaliação das terras, voltei para a casa, mas ele estava no telefone. Terei de voltar depois com o meu relatório.
Mary Jane experimentou alívio, mas, a seguir, repreendeu-se. Estava saindo com Garrett, mas não o queria perto da filha. Embora tivesse uma boa justificativa, sentia-se hipócrita. Uma festa na casa de Shannon, com muita gente, poderia ser até conveniente. Shannon estaria ocupada entretendo os convidados, sem tempo para prestar atenção em Garrett. Discreta, passou a ouvir os planos da filha para a festa enquanto servia o café.
Shannon acrescentou creme à bebida e tomou um gole.
– Não está com um gosto estranho? Talvez o creme tenha azedado.
Mary Jane experimentou o creme.
– Não. Para mim está ótimo. – Tomou um gole de café enquanto observava a filha. – Está se sentindo bem? Ainda não se recuperou da gripe...
– Estou bem hoje – afirmou Shannon. – Mas tem acontecido várias vezes nas últimas duas semanas. Sinto-me mal à tarde, mas na hora de dormir já estou bem de novo. Então, o dia seguinte é uma maravilha até as seis horas, quando tudo recomeça. Mas não é grave o bastante para ir ao médico, só dá um enjoo...
Mary Jane paralisou-se outra vez, baixou a mão de repente e a caneca de café colidiu com a mesa.
– Shannon... será que está grávida? Eu tive exatamente os mesmos sintomas quando comecei a esperar você. Enjoo vespertino, em vez de matutino. Na verdade, ficava tão enjoada que... – Conteve-se. Estava maluca? Revelar que sentia enjoo na escola e que levara duas semanas para criar coragem e pedir ao jrmão que a levasse a um médico em Durango? Com certeza, não queria que Shannon soubesse de nada disso.
A filha a fitou consternada.
– Não... – Meneou a cabeça. – Não estamos prontos para um bebé ainda. Acabo de ser promovida, a casa não está acabada. Nem nos acostumamos à vida de casados ainda. Além disso, usamos preservativos e...
– Que podem falhar – observou Mary Jane. – Acredite em mim, os bebés vêm quando querem.
– Acho que sim – resignou-se Shannon, e fitou o vazio. – Afinal, eu vim bem rápido, só sete meses após você e papai terem se casado. – Sorriu. – Quem diria que meu pais conservadores andavam dando uns pulinhos antecipadamente?
Mary Jane disfarçou.
– Oh, sabe como é... a gente se empolga.
Shannon riu descontraída.
– Acho que sim, mas, como a maioria das pessoas, não quero pensar nos meus pais fazendo algo tão malicioso. Afinal, você só tinha dezoito anos.
Desanimada, Mary Jane fitou a filha. Com certeza, não queria que Shannon pensasse mal dela, ou de Hal, mas, antes que pensasse numa réplica, Shannon apoiou o queixo na mão e fitou o infinito, sonhadora.
– Um bebé – sussurrou ela. – Espere até eu contar a Luke. Ele vai ficar sem fala. Mas Luke é bom com bebés. Ele fez um curso-relâmpago na primavera, quando a irmã, Jeanette, deixou o bebé com ele para ir ao Texas cuidar do marido Steve, que tinha se machucado num rodeio.
– Eu me lembro, querida. – Mary Jane sorriu com o encantamento no semblante da filha. Quem diria que sua filha, génio em matemática e ciências, ficaria tão emocionada com a chegada de seu primeiro bebé?
– Quando Luke comprou a Fazenda Crescent, havia um berço lindo num dos quartos. Agora que ele acabou a reforma no térreo, poderá arrumar o cómodo e transformá-lo em berçário.
Shannon sonhou mais um pouco acordada. Então, levantou-se de repente, quase derrubando a caneca de café.
– Tenho de ir para casa contar a Luke. Até mais, mãe.
Da porta, Shannon voltou-se sorridente.
– Gostaria que papai estivesse aqui. Lembra-se de como ele ficou quando Jimmy nasceu?
– Sim. – Mary Jane sentiu um nó na garganta. – Ele ficaria muito orgulhoso. – Então, antes que recuperasse o fôlego, viu a filha partir.
Confusa, Mary Jane sentou-se e pensou em Shannon. Seria avó. Novamente. Sempre considerara Jimmy e Chris-tina como seus netos, mas, desta vez, sua filha biológica estava grávida. Era incrível.
Não apenas seu neto. E não de Hal, embora ele sempre pensasse em Shannon como sua filha. Sentiu a boca seca. Sentiu medo. Seria o neto de Garrett, também.
Mary Jane levantou-se e passou a andar em círculos, agitada. A vida toda evitara pensar nesse acontecimento. Não quisera considerar que estava privando Garrett de uma família.
Foi à janela e fitou o céu, cinzento com a aproximação de nuvens que trariam neve, já encobrindo totalmente o pico Randall. Lembrou-se de Hal, andando com Jimmy até o celeiro, conversando com a criança naquele seu jeito calmo, contando ao neto alguma informação importante que um fazendeiro devia saber. Jimmy, de olhos arregalados, ouvia como se entendesse tudo.
Podia quase ver Hal inclinado para ajustar-se à baixa estatura de Jimmy, a criança com a mão agarrada ao dedo de Hal, tentando manter o passo com suas perninhas gorduchas.
Cobriu os olhos para aplacar as lembranças e bloquear o sentimento de culpa. Mas elas continuavam fluindo.
Garrett só teria a mesma felicidade se ela levasse adiante o plano de lhe contar a verdade. Ele tinha o direito de saber, mas ela sentia a pressão para esclarecer tudo empurrando-a pela correnteza de um rio turbulento.
– A mãe da anfitriã também tem de ficar até o fim? – sussurrou Garrett no ouvido de Mary Jane.
Mary Jane sentiu um arrepio na espinha à voz dele tão próxima, mais a carícia.do hálito. Garrett sempre lhe falava daquela forma. Ao irfclinar-se para ajudá-la com o casaco, ou ao atrair sua atenção num restaurante ruidoso. Ele tivera de se aproximar e sussurrar porque a festa estava tão animada que ela não o teria ouvido nem a quinze centímetros de distância. Ele a enlaçou pela cintura e puxou para um canto. Ela nunca deixava de se sentir quente e incomodada sob os sussurros e toques dele.
Mesmo após duas semanas vendo-o quase todos os dias, não se acostumara à intimidade física. Como pudera esquecer o jeito dele de tocar e acariciar? Ele já se comportava assim quando namoraram, e não mudara. Devia ser uma reação dele à criação estéril que ele recebera do pai, mas reconhecer isso não aplacava sua reação nervosa. Sempre respondia aos toques arrebatada por um desejo sensual.
– Mary Jane, você tem de ficar? – insistiu Garrett.
– Não. Becca e Brittnie disseram que iam ajudar Shannon a arrumar, já que cheguei cedo para os preparativos.
– Ela sorriu desolada. – Descobri que Shannon é uma verdadeira "sargenta" no que se refere a preparativos para uma festa. Ele riu.
– É difícil quando elas trocam de lugar com você, hein?
– Ora, ela não herdou isso de mim – protestou Mary Jane. – Deve ser do... pai. – Repreendeu-se mentalmente ao perceber que quase dissera que Shannon herdara esse lado perfeccionista de Garrett. Desviou o olhar e prometeu a si mesma ser mais cuidadosa.
– Então, posso roubá-la a partir de agora?
Ela sentiu outra onda de arrepios na espinha.
– Sim... acho que sim.
– Então, vamos.
Garrett foi buscar os casacos num dos quartos no andar de cima. Shannon o viu subindo e se aproximou da mãe na companhia do marido.
– Já vão? Aposto que Garrett a quer só para si. Mãe, é tão romântico... E você está enrubescendo.
– Não seja ridícula. Eu nunca enrubesço. – Mary Jane abanou-se de forma cómica, revelando que mentia.
Garrett voltou com os casacos e ajudou Mary Jane a vestir o dela. A caminho da porta, Luke atrasou-se para que Shannon ficasse entre o casal.
Shannon sorriu para Garrett.
– Tome cuidado com minha mãe.
Ele sorriu também.
– Sua mãe sabe se cuidar. Mas você, tome cuidado com o neto dela.
– Oh, agora eu gostei... esta criança nada mais é que o neto de Mary Jane – divertiu-se Shannon.
Enquanto eles brincavam, Mary Jane olhou para o genro e sentiu um calafrio. Parecendo intrigado, ele analisou detidamente as feições de Garrett e Shannon e então encarou a sogra. Apesar do choque, Mary Jane tentou manter uma expressão cordial. Luke adivinhara? Afinal, ele era quem mais convivia com Shannon agora. Teria notado a semelhança física e de temperamento entre ela e Garrett Blackhawk?
O momento tão temido acontecia, e Mary Jane queria afastá-lo, negar que estivesse acontecendo. Incapaz de encarar Luke, ocupou-se com os botões do casaco. Logo depois, Garrett lhe tomou o braço e passaram ao vestíbulo.
O episódio todo durara poucos segundos, nem Garrett nem Shannon perceberam qualquer diferença, mas Luke continuava observando-os de cenho franzido, o braço prote-tor sobre os ombros da esposa. Sentindo a tensão, Shannon olhou para o marido, para a mãe e para Garrett. Fez uma pergunta, mas Ltíke meneou a cabeça, beijou-a na cabeça e levou-a para junto de um grupo de convidados.
Mary Jane só pensava na expressão desconfiada do genro. Ele percebera? Mesmo que tivesse percebido, sabia que ele não diria nada a Shannon porque não queria magoá-la. Disso tinha certeza.
Mary Jane sentia a corrente do rio caudaloso mais forte, impelindo-a a contar a verdade para todos os envolvidos.
Garrett não pareceu notar sua perturbação, e Mary Jane continuou com as despedidas enquanto rumavam à porta.
– Vamos assistir a algum show de fogos de artifício? – indagou ela, sem fôlego. Aja normalmente. Converse. Responda. Não fique histérica. Após respirar fundo, Mary Jane sentiu-se melhor e concentrou-se no que Garrett dizia.
– Eu só não querfa que ficasse a noite inteira se despedindo – explicou ele, oferecendo-lhe o braço enquanto desciam os degraus da varanda. – Podíamos ficar presos lá para sempre.
– Oh, que resposta tipicamente masculina. Hal costumava dizer o mesmo.
– Bem, já pensou que ele podia ter razão? – Garrett instalou-a no carro e fechou a porta.
– Você conhecia pessoas em todos os lugares que frequentamos nas duas últimas semanas, e falou com todas elas por um bom tempo.
– Só estou sendo amigável. E seja gentil comigo, ou o deixarei com minha bolsa enquanto vou ao toalete.
Garrett fingiu horror.
– Não se atreveria!
Mary Jane riu.
– Não me provoque.
– Bem, não me deixou alternativa. Terei de levá-la a um lugar onde não é conhecida.
– E onde seria?
– Em Albuquerque.
– Como?
Ele tomou a estrada na direção da casa dela.
– Em Albuquerque. Na minha casa.
Já haviam circundado o pico Randall quando ela recuperou a voz.
– Para quê?
– Para relaxar – sugeriu ele. – Suas filhas me disseram que você não tira férias há cinco anos. Já está na hora.
– Oh, não sei, Garrett... Acho que não é uma boa ideia.
Garrett a ignorou.
– Faço uma festa de Natal para meus funcionários todos os anos. Está marcada para a semana que vem. Eu gostaria que fosse e ficasse comigo lá.
– Quer dizer... como um encontro?
– Encontro. Hóspede. Você escolhe. Mas vá e fique lá comigo. Já conversei com Luke. Ele, o cunhado e seus dois sobrinhos disseram que podem cuidar da fazenda até você voltar.
– Você discutiu isso com Luke? – Mary Jane levou a mão à cabeça. Sobre o que mais haviam conversado? Engoliu em seco, apavorada. Não, não tinham conversado nada a respeito de Shannon. Luke só desconfiara de algo pouco antes ao se despedirem. – Não devia ter feito isso.
– Decidi tomar logo as primeiras providências. Se dei xasse por sua conta, acabaria não indo.
– Como sabe?
– Desde que voltei, você se sente relutante, resistente e ridícula quanto a estar comigo, por isso tomei a iniciativa.
– Tomou mesmo – concordou ela, desanimada.
– Então, já decidiu? Vai comigo a Albuquerque na semana que vem, para ser minha hóspede? – Ele estacionou o carro diante da casa dela e voltou-se para fitá-la.
Na penumbra, os ângulos do rosto dele se suavizavam. Garrett inclinou-se para a frente e tomou-lhe o queixo. Por algum motivo, quando ele se aproximava daquele jeito, Mary Jane se esquecia de tudo. O segredo que guardava, por maior que fosse, parecia encolher.
–Venha comigo, Mary Jane. Deixe-me mostrar-lhe a minha casa, a minha empresa. Deixe-me mostrá-la a meus funcionários. Eles acham que não tenho ninguém porque sou viciado em trabalho. Ajude-me a provar que estão errados. – Ele e beijou de leve.
Mary Jane entreabriu os lábios. Ele aproveitou e aprofundou o beijo, até deixá-la sem fôlego. Ela deslizou as mãos pela lapela, retribuindo cada investida. Naquele momento de ternura e descoberta, naquela ilha de paz, Mary Jane acreditou que tudo ficaria bem.
Melhor, tudo parecia razoável sob a óptica de Garrett. Ele precisava dela a seu lado. A ideia lhe parecia cada vez mais maravilhosa. Estariam longe de Tarrant. A corda bamba não oscilaria tão forte. Sem dúvida, era covardia, mas ansiava por ir com ele, por ter paz e segurança por algum tempo antes que a tempestade caísse sobre sua cabeça.
De repente, não desejava mais nada no mundo. Desvencilhou-se e sorriu.
– Está bem, Garrett. Irei com você.
Mary Jane imaginou se Gus Blackhawk chegara a conhecer a casa do filho. Se tivesse conhecido, não teria mais duvidado da capacidade de realizações de Garrett. Após conhecer o edifício que sediava as várias divisões do Grupo Blackhawk, e agora a casa, Mary Jane deu-se conta de que Garrett poderia ter comprado e vendido os negócios do pai a qualquer hora.
A fazenda e as outras propriedades de Gus Blackhawk em Tarrant eram insignificantes comparadas aos empreendimentos de Garrett na região de Albuquerque.
Na sexta-feira à tarde, Mary Jane completou uma semana de preocupação, desde a festa de Shannon e Luke. Vira-os duas vezes desde então. A filha ainda estava atordoada com a notícia da gravidez, enquanto o marido parecia mais quieto e pensativo junto da sogra agora. O genro parecia avaliar Mary Jane com expressão meio decepcionada e confusa, como se esperasse que ela comentasse algo sobre as evidentes semelhanças entre Shannon e Garrett.
Mas Mary Jane não podia revelar o segredo a Shannon e Garrett ainda. Sentia que a verdade magoaria sua filha adorada, o genro querido e principalmente Garrett, que ganhava espaço por si mesmo em sua vida e em seu coração. Esperava que uns poucos dias longe de casa a ajudassem a criar coragem. Pondo as preocupações de lado, determinou-se a aproveitar aquele período com Garrett.
No carro, percorrendo a via pavimentada que levava à casa dele, uma verdadeira mansão, Mary Jane apreciou os arredores de olhos arregalados.
Cavalos pastavam em áreas cercadas, animais de raça, com certeza. Celeiros e outros anexos bem conservados pareciam abrigar intensa movimentação.
Naquela Fazenda Blackhawk não havia desleixo, nada de máquinas velhas ou equipamentos em desuso nem construções abandonadas.
Aquela casa não devia ter cómodos cheios de coisas velhas a despachar, nenhuma prataria guardada ou nunca usada. Não que Garrett não pudesse ter um quarto de despejos, se quisesse. A mansão era imensa, não no estilo mediterrâneo tão popular na região, mas uma variação do tema georgiano, com uma ampla varanda que circundava todo o andar térreo. Os cómodos do andar superior davam num terraço sobre a varanda.
– Garrett, sua casa é linda! – exclamou Mary Jane, antes mesmo de saltarem do automóvel. – Simplesmente maravilhosa. – Tomou fôlego e o fitou. – A campainha toca o tema de "E o vento levou..."?
Garrett riu.
– Meio pretensioso, não? Comprei esta propriedade de um camarada da Geórgia que queria ser fazendeiro. Só que ele perdeu dinheiro 'nesse negócio e decidiu criar cavalos de corrida. Quase perdeu a camisa com este e outros maus investimentos. No fim, teve de vender isto aqui. Eu estava no lugar certo na hora certa.
– Acho que é mais que isso – opinou Mary Jane. Sem dúvida, Garrett procurara e encontrara aquela boa oportunidade. Ninguém alcançava tamanho sucesso por acaso.
– Talvez. – Ele estacionou diante da mansão, tirou a bagagem do porta-malas e subiu os degraus da varanda. A porta dupla impressionante estava decorada com enormes guirlandas de Natal.
– Desculpe-me por não ter lhe enviado uma guirlanda tão grande quanto estas – comentou Garrett. – Aquela era a maior que havia em Tarrant.
– Ainda bem – retrucou Mary Jane. – Não caberia na minha porta!
Risonho, ele a convidou a entrar no vestíbulo, tão amplo quanto uma sala. Mary Jane arregalou os olhos diante da escada curva que levava ao andar superior e das portas que se abriam para salas ricamente decoradas.
– Garrett... estou atónita. Não imaginava que sua casa fosse tão bonita.
Ele ergueu o sobrolho.
– Imaginava um solteirão morando num quarto cheio de livros sobre gerenciamento de fazendas, não é? De cigarro pendurado na boca e se deitando com as botas sujas?
– Não precisa exagerar – assegurou Mary Jane, divertida. – Sei que você não fuma.
Uma mulher alta e magra aproximou-se. Ostentava uma mecha branca nos cabelos e tinha os olhos verdes.
– Ah, Lena, aí está você – saudou Garrett. Tomou o braço de Mary Jane e apresentou-a. – Mary Jane Kelleher, esta é a gerente da casa, Lena Olveras.
Lena estendeu a mão.
– É uma palavra pomposa para governanta – comentou ela, e sorriu enquanto apertava com firmeza a mão de Mary Jane. – O seu quarto está pronto. Por favor, avise se precisar de qualquer coisa. Se desejar, poderei desfazer a sua bagagem. – Voltou a seus afazeres, e Mary Jane surpreendeu-se com a semelhança entre ela e Ruth Chandliss.
Garret pareceu adivinhar seu pensamento.
– Como não podia contratar Ruth, consegui a segunda melhor profissional do país.
Mary Jane assentiu e, então, analisou a casa com outros olhos. Percebia-se que a mansão grandiosa fora decorada de modo a contrastar com a riqueza e a influência de Gus. Não que fosse repreender Garrett. Afinal, ele conquistara o sucesso com esforço próprio, e era isso que importava.
Garrett indicou-lhe a escada, levando sua bagagem, um conjunto de malas que Brittnie lhe emprestara, presente de casamento do avô de Jared. A velha mochila que usava nas viagens para compra e venda de gado teria combinado mais com o celeiro de Garrett.
No corredor do andar superior, ele abriu uma porta.
– Este é o seu quarto, mas, se não gostar, pode escolher entre outros quatro. – Ergueu o sobrolho sugestivamente. – Ou partilhar o meu, logo ali.
Mary Jane torceu o nariz, divertida, embora achasse o convite tentador.
– Não, este aqui está ótimo – afirmou, apreciando a decoração suntuosa do aposento. – Mais que ótimo. Na verdade, é maravilhoso.
O quarto parecia um mostruário de decorador, em tons de pêssego, verde-água e amarelo-claro. A cama de casal, alta e antiga, tinha cabeceira acolchoada em pêssego e se cobria de almofadas. A televisão e o aparelho de som sofisticados ficavam escondidos num armário, e portas em arco davam para o terraço de forma a se tirar o máximo de proveito da luz. Era um ambiente para sonhar, relaxar. De algum modo, os tecidos caros e luxuosos convidavam a outras formas de sonho... Percebeu que Garrett acompanhava sua reação. Se ela se permitisse, poderia extravasar suas fantasias eróticas ali.
– E perfeito! – finalizou, sorridente.
– O banheiro fica ali, e não vamos partilhá-lo, caso esteja planejando entrar para dar uma olhada nas minhas nádegas enquanto tomo banho.
– Espere sentado! – desdenhou Mary Jane.
– Só estou dizendo que notei como me olha e sei que está morrendo de vontade de me ter, mas um homem tem de proteger a reputação, por isso, ficaremos em quartos separados. – Garrett foi até a porta e se voltou. – Gostaria de uma volta pela fazenda? Bem rápido? Já vai escurecer.
– Eu adoraria, mas tenho de trocar de roupa.
– Venho chamá-la em quinze minutos – avisou ele, e saiu fechando a porta.
Mary Jane despiu a calça e o suéter com que viajara até Albuquerque e vestiu calça jeans e botas. Poderia se acostumar com aquela casa maravilhosa sem esforço.
Em exatos quinze minutos, Garrett bateu na porta. Ofegante com a correria, Mary Jane atendeu quando ainda enfiava a blusa na calça.
– Sabe, não faria mal se se atrasasse de vez em quando – ralhou, brincando.
– Ora, esta é minha casa. Eu faço as regras. – Ele avaliou seus trajes e ficou satisfeito.
– O rei do castelo? – provocou Mary Jane, e pegou uma parca.
Ele a ajudou com o agasalho.
– Você não faz as regras na sua casa?
– Sim, e as obedeço também, já que moro sozinha.
Aos poucos, com as brincadeiras, livravam-se do constrangimento. Garrett levou-a até a cozinha, onde Lena preparava o jantar, e depois ao estábulo, onde dois cavalos os aguardavam,
Cavalgaram por algum tempo, com Garrett mostrando a propriedade. Mary Jane espantou-se com as dimensões da fazenda, em comparação à dela.
De volta à mansão, Mary Jane sentiu-se sonolenta de cansaço, embora não tivesse feito nenhum trabalho de fato. Certamente, estava ansiosa e apreensiva com a chegada da noite. Pelo que sabia, ficariam sozinhos naquela casa enorme.
– Tenho de tratar de alguns assuntos e dar alguns telefonemas – informou Garrett, indicando a porta do escritório. – Sinta-se em casa. Pegue o interfone e chame Lena se precisar de algo. O ramal dela está escrito no aparelho.
– Acho que não precisarei de nada – retrucou Mary Jane, e abafou um bocejo. – Esse negócio de tirar férias é exaustivo...
– Mas são só três dias – protestou Garrett, afastando uma mecha de cabelos rebelde de sua testa
Ela sentiu o calor da mão dele espalhar-se por sua pele.
– Eu sei. Por isso, nunca tiro férias. Uma semana inteira acabaria comigo.
Ele ergueu o sobrolho.
– Não acho que esse seja o motivo. Você trabalha demais – censurou.
– É o que minha família me diz, então, não comece você também com a mesma ladainha.
– Já pensou que as pessoas podem estar preocupadas com seu bem-estar?
– Já, e fico contente, mas não é necessário. Estou sozinha há algum tempo e tenho me saído bem.
– Está? Não há algum aspecto de que não goste no fato de estar sozinha?
– Por exemplo?
Ele a segurou pelos ombros.
– Fazer as refeições sozinha, não ter com quem conversar.
– Na verdade, não. Se me sentir sozinha, sempre posso levar meu prato para o pasto e conversar com as vacas. – O peso das mãos dele era agradável, reconfortante.
Garrett ignorou o comentário e a massageou de leve.
– Na verdade, há algumas coisas que não podemos fazer sozinhos.
Mary Jane bateu os cílios, coquete.
– Por exemplo?
– Beijar. – Ele se aproximou. – Pense nisso, uma pessoa sozinha beijando o ar. Parece esquisito.
– Também acho estranho – concordou ela, ofegante. – Nunca vi algo assim. Você já viu?
– Não – admitiu ele. – Só estou especulando. Já duas pessoas podem se beijar do jeito certo.
Ela se aninhou junto dele, enlaçando-o pela cintura.
– É mesmo?
– É. Tenho certeza.
Mary Jane franziufo cenho, fingindo confusão.
– Não sei se entendi bem, Garrett. Talvez você possa me mostrar...
– Por que não? – Garrett abraçou-a com força, até seus corpos ficarem bem colados, inclinou a cabeça e beijou-a. Começou suave, mas logo aprofundou o beijo, e Mary Jane correspondeu.
Garrett encerrou o momento e beijou-a no rosto, carinhoso.
– Entende o que eu digo?
Mary Jane sentia falta de ar.
– Eu... não tenho tanta certeza. Talvez deva me mostrar novamente, para... para eu ver se entendi mesmo.
Garrett riu, beijou-a no pescoço e sentiu sua pulsação acelerada.
– Acho que entendeu muito bem e, se não pararmos com isso, todo mundo vai entender muitas coisas.
– Oh. – Ela afastou-se abruptamente e enrubesceu enquanto olhava ao redor. – Esqueci que estávamos no corredor. Qualquer um podia ter aparecido.
Ele riu e a tocou no queixo.
– Mas ninguém apareceu, portanto, pare de se preocupar. – Encaminhou-se ao escritório. – Tenho um trabalho a fazer. Venho chamá-la em algumas horas. Aproveite e descanse um pouco.
Como se ela pudesse... Mary Jane sorriu e apressou-se pelo corredor. Garrett entrou no escritório. Ela pretendia tomar a escada, mas deteve-se para apreciar a decoração de Natal na sala.
O ambiente imponente era dominado pela árvore branca de três metros e meio diante da janela ampla que ocupava a parede toda. Adoraria ver o efeito de fora, à noite. Entre as lampadinhas brancas, os enfeites também eram quase todos alvos, com um ou outro detalhe em vermelho ou dourado.
Era lindo, porém, como o próprio Garrett definira, sem alma. Não havia ornamentos feitos por crianças, como em sua casa. Tentou se convencer de que, se considerasse uma família importante, ele teria se casado, mas não conseguiu. Bastava ver a empresa e a fazenda e entender que Garrett só aceitava o melhor. Seria possível que não tivesse se casado porque não encontrara o relacionamento que considerava ideal? Ou ainda se sentia traído por ela e era incapaz de se arriscar amando outra pessoa? Era difícil acreditar nessa hipótese, pois ele nunca demonstrara amá-la tanto quanto ela o amava. O desprezo ficara claro quando ele a abandonara. Cada vez mais, porém, percebia que a atitude do passado não combinava com o Garrett que reencontrara.
Suspirou frustrada e tomou a escadaria. As decisões que tomasse afetariam Shannon e o bebé que ela esperava. Sempre quisera apenas protegê-là, mas agora, vendo a casa e os negócios de Garrett, temia estar privando a filha de sua herança, de conhecer o homem que era seu pai biológico. Shannon obviamente tinha a determinação e a ambição de Garrett, bem como a habilidade matemática e científica.
Anos antes, Shannon indagara sobre sua aparência, diferente da de suas irmãs, e Hal inventara uma bisavó francesa. Se Mary Jane contasse a verdade agora, Shannon se ressentiria do homem que a criara e que não era seu pai, talvez o acusasse de participar ativamente da farsa.
Oh, tinha de parar com aquilo. Esperara que seu subconsciente arranjasse uma solução para o problema, mas isso não acontecera nem aconteceria. Teria de contar a verdade. E logo.
No quarto, despiu-se, vestiu um robe e deitou-se sobre a macia colcha cor de pêssego matelassada. Em segundos, adormeceu.
Ela estava ali. Enquanto vestia o suéter e alisava os cabelos úmidos, Garrett mal disfarçava a euforia por ter finalmente levado Mary Jane para sua casa. Planejava fazê-lo desde que a reencontrara, em setembro. Ou melhor, planejava isso desde que soubera do falecimento de Hal Kel-leher, quatro anos antes. Começava a achar que o passado não importava tanto, afinal. Mary Jane não queria conversar a respeito, e era aceitável. Que deixassem para trás as perguntas não respondidas, pois a vida era curta demais. Queria recomeçar daquele ponto. Queria Mary Jane em todos os dias de sua vida.
Ele bateu na porta do quarto dela e aguardou, impaciente. Agora que tomara a decisão, queria saber como ela reagiria... como se não fosse tentar convencê-la, caso fosse contrária...
Não houve resposta. Garrett bateu novamente e apurou o ouvido. Preocupado, abriu a porta e deu uma olhada. Ergueu o sobrolho, surpreso, ao vê-la dormindo, com o acolchoado até o queixo.
– Mary Jane?
Ela não se mexeu.
Garrett entrou no quarto e aproximou-se. Esqueça o jantar, concluiu. Mary Jane precisava dormir. Ajeitou melhor o acolchoado e avaliou suas mãos. Fortes, competentes. Pela primeira vez, imaginou como teria sido para ela casar-se aos dezoito anos com um homem bem mais velho que já tinha uma filha de seis anos e uma fazenda onde só havia trabalho.
– Não terá de fazer mais isso, MarJay – sussurrou. – Não importa o que seja preciso, vou me casar com você. Merece um descanso e vou lhe dar isso.
Inclinou-se, beijou-a de leve e deixou o quarto.
Mary Jane acordou sobressaltada, recordando instantaneamente onde estava e de se deitara para descansar antes do jantar. Rolou na cama e gemeu ao ver que eram sete horas. Afastou o acolchoado, andou um pouco pelo quarto e percebeu que a luz varando as cortinas era natural. Sol. Olhou novamente para o relógio e entendeu.
Dormira por catorze horas seguidas.
Impossível. Ajeitou os cabelos desgrenhados. Por que Garrett permitira que dormisse tanto? Onde ele estava, aliás? Meneou a cabeça. Manhã de sábado, onde mais ele estaria senão na cama dormindo?
– Convide Mary Jane Kelleher a se hospedar em sua casa e veja como ela dorme o fim de semana inteiro – resmungou, apressando-se ao banheiro.
Lembrava-se vagamente de Garrett entrar no quarto e lhe sussurrar qualquer coisa. Podia ter sido sonho. Claro, bastava perguntar a. ele, mas assim teria de lidar com uma situação para a qual não estava pronta.
Meia hora depois, desceu em busca de café. Sentindo seu aroma inconfundível, seguiu-o até a cozinha. Garrett estava à mesa, lendo jornal e tomando o desjejum. Ele não ergueu o olhar quando ela abriu a porta, e ela aproveitou para observá-lo um pouco.
Uma cena doméstica. Mary Jane percebeu que estava apaixonada por Garrett. Não era o sentimento movido a hormônios da juventude, mas algo que Hal semeara em seu espírito. Tratava-se de companheirismo, compreensão, família, trabalho e opiniões.
Ao impacto daquela percepção, sentiu os joelhos fracos.
– Olá, bela adormecida – saudou Garrett, ao perceber sua presença. Levantou-se. – Você está bem?
Por instinto, ela esboçou um sorriso para mantê-lo afastado até que recuperasse o equilíbrio.
– Estou bem – afirmou, descontraída. – Fiquei... espantada por vê-lo de pé tão cedo. Pensei que você fosse do tipo que dormia até mais tarde aos sábados. Ele sorriu.
– Só se tiver um bom motivo para isso.
Mary Jane lançou-lhe um olhar severo, e ele riu. Garrett foi ao armário e pegou uma caneca para ela.
– Deve estar faminta. Não come nada desde o almoço de ontem.
– Não devia ter me deixado dormir tanto – protestou.
Aceitou a caneca com café e acrescentou creme.
– Bem, achei que tinha se cansado demais após a visita à fazenda e achei melhor deixá-la dormir.
Mary Jane sorriu, e em poucos minutos atingiram o nível de descontração do dia anterior. Saber que o amava só acrescentava outra peça à linha de dominó. Se uma peça caísse, todas se seguiriam e arrasariam suas boas intenções. Tinha de contar tudo a ele, e logo, mas não podia ser naquele dia. Era importante contar primeiro a Shannon.
Lena entrou apressada e atarefada com as providências para a festa de Natal.
Naquela noite, Garrett recebeu os funcionários em casa. Eles saudaram Mary'Jane com interesse, principalmente Jill, que ela já conhecera no dia anterior, no escritório, e que parecia aprovar a namorada do patrão.
A festa foi alegre. Houve dança, cantoria e troca de presentes. Mary Jane levara uma raridade para dar a Garrett, uma foto em preto-e-branco da Fazenda Blackhawk tirada na década de 1940. Mandara recuperar o instantâneo original que Brittnie encontrara entre outros documentos.
Passava da meia-noite quando o último convidado foi embora. Cansada e sonolenta, Lena olhou desanimada para a sala em desordem antes de se encaminhar a seu apartamento, na edícula.
– Vou organizar o batalhão de limpeza amanhã – declarou, exausta. – Mas que ninguém me acorde antes do meio-dia!
– Sim, senhora – declarou Garrett. Assim que a governanta se foi, voltou-se para Mary Jane. – Finalmente, sós – entoou, os olhos brilhando. – Venha ao escritório comigo. Tenho algo para você. – Tomou-lhe a mão e conduziu-a pelo corredor.
Mary Jane notou que o local não fora aberto aos convidados e percebeu por quê. Aquele era o santuário particular de Garrett. Livros favoritos nas estantes, fotos e coleções em vitrines. Diante da lareira acesa, havia uma garrafa de champanhe num balde com gelo e duas taças numa bandeja.
Garrett encheu as taças com a bebida cara e estendeu-lhe uma.
– Venha cá, MarJay...
O apelido nunca falhava, e ela atendeu.
– Vamos comemorar com champanhe.
– O que estamos comemorando? – indagou ela, sorvendo um gole. Como não provara as delícias da festa, tinha o estômago vazio e o álcool logo lhe subiu à cabeça.
– Já vou lhe mostrar. – Ele foi à mesa e tirou uma pequena caixa da gaveta. Era um anel de safira, a pedra azul rodeada de diamantes.
Estaria tendo uma alucinação devido ao champanhe?
– Garrett, o que...
– Case-se comigo, MarJay. São vinte e oito anos de atraso, mas case-se comigo.
– Garrett, eu... – Ela ficou trémula e chegou a derrubar um pouco do champanhe. Garrett retirou-lhe a taça. – Eu... não sei que dizer.
Ele estreitou o olhar.
– "Sim" seria um bom começo. E não diga que é repentino. O que achava que eu estava planejando?
– Eu... não imaginei...
– Pois comece a imaginar. – Garrett fechou a caixinha com a jóia, obviamente desapontado com a reação. – E Hal? Ainda ama tanto seu finado marido que não pode se casar comigo?
– Sempre amarei Hal, mas não me enterrei com ele.
– Então, o que é?
– Preciso de tempo – pediu Mary Jane, angustiada. – Preciso resolver uns assuntos...
Garrett avaliou-a demoradamente e então suavizou a expressão.
–Então, resolva-os. Mas resolva logo. Esperei vinte e oito anos e estou cansado. – Abraçou-a e beijou-a. – Tenha dó, Mary Jane. Já não sofri bastante?
Mary Jane alojou a cabeça dele sob o queixo, desejando nunca ter de deixar a segurança daquele abraço.
– Está bem, Garrett, resolverei tudo bem rápido – prometeu.
Mas, depois que ela resolvesse tudo, éle ainda a amaria?
– Tanto planejamento – resmungou Garrett, enquanto se afastava da casa de Mary Jane, onde a deixara após a viagem em silêncio. Depois de persegui-la por Tarrant provocando encontros, mandar-lhe flores e guirlandas de Natal, dar-lhe de presente o vestido de que ela gostara, levá-la para jantar todas as noites por duas semanas e convencê-la a se hospedar na fazenda dele, tinha certeza de que ela já sabia o que ele planejava.
Acelerando o automóvel, tomou a via que levava a sua fazenda. Amava Mary Jane, raios. Amava-a desde os de-zessete anos. Ainda tinha dificuldade em aceitar o fato de ela ter-se envolvido com ele e Hal ao mesmo tempo, mas isso era passado. Hal se fora e ele estava ali, pronto para desposá-la.
O que a impedia? A fazenda? Isso seria fácil resolver. Contrataria o melhor capataz para administrar a propriedade para ela. Mas não era esse o problema, havia algo mais. Bem, ela prometera resolver tudo rápido.
Concentrado em Mary Jane, não percebeu que já havia um carro estacionado diante de casa. Sorriu ao ver que era Brittnie Cruz. Ela devia estar lá, trabalhando nos itens que ete pretendia doar à sociedade histórica. Pegou a bagagem e apressou-se para entrar.
Na sala de jantar, Brittnie trabalhava em seu microcom-putador portátil, organizando o inventário.
– Até que enfim, o homem que sumiu com minha mãe durante o final de semana. O que tem a dizer em sua defesa?
Garrett riu e tocou-lhe o queixo. Gostava dela, gostava de toda a família de Mary Jane, principalmente de Shannon, com quem parecia ter uma ligação especial de compreensão mútua. Mal podia esperar para adotar as três irmãs.
– Eu diria que nos divertimos, sua mãe teve um descanso merecido e todo o resto ficará sem resposta... pelo menos, da minha parte.
Brittnie riu e começou a lhe contar sobre suas descobertas. Garrett nunca conhecera alguém que se animasse tanto diante de livros e papéis antigos.
– Encontrei algo no fundo de uma caixa, que acho que você devia abrir sozinho. – Brittnie pegou uma caixa de metal verde com a inscrição: "Pessoal e Confidencial".
Garrett franziu o cenho. A letra era de Gus, mas ele nunca vira aquilo. Havia uma fechadura, mas teria de arrombá-la, pois a chave se perdera.
– Obrigado, Brittnie. Aviso se for algo importante para a coleção que está organizando.
Os olhos cinza dela brilharam.
– Talvez sejam as cartas de amor de seus pais, Garrett. Vai querer guardá-las– Levantou-se e pegou o casaco. – Estou encerrando por hoje. Ruth já foi, mas deixou uma caçarola com seu jantar.
Curioso a respeito da caixa, Garrett apenas assentiu, enquanto Brittnie apressava-se à porta. Foi à cozinha e procurou uma chave de fenda na gaveta de ferramentas de Ruth. Colocou a caixa sobre a mesa e forçou a fechadura.
A caixa se abriu. Havia uma carta endereçada a ele, com data de vinte e oito anos antes. Devagar, ergueu-a e então olhou o resto do conteúdo.
Eram cartas, sim, mas não cartas de amor de seus pais.
Mary Jane acabara de desfazer as malas e estava na cozinha, abrindo a correspondência de dois dias, quando ouviu a porta de um carro se fechando. Abriu a porta dos fundos e encontrou Garrett já na varanda. Enrubescido, exibia um olhar de quem planejava cometer um assassinato.
– Garrett, o que foi?
– Isto. – Ele ergueu a mão, e Mary Jane viu um calhamaço de papéis.
Entraram na cozinha.
– 0 que é isso?
– Qualquer idiota pode ver que são cartas. Aquelas que você me escreveu. – Ele as entregou.
– E daí? – Olhando as cartas, Mary Jane não entendia a irritação de Garrett.
– E daí? – repetiu ele, incrédulo.
Ela ergueu o olhar, confusa.
– Garrett, até parece que você só tomou conhecimento delas agora...
– São auto-explicativas – interrompeu ele. – Lendo nas entrelinhas, entendi algo que devia ter adivinhado há muito. Pela idade de Shannon, para começar. Ela é minha filha, não é? E você não me disse nada durante todos esse anos. Permitiu que ela crescesse achando que outro homem era seu pai!
– Espere aí! Agora essas cartas lhe fazem sentido? Quando as leu pela primeira vez, não captou nas entrelinhas?
– Mary Jane agitou o calhamaço diante do nariz dele. – Eu disse que precisava desesperadamente conversar com você, implorei que me telefonasse, que me escrevesse, que viesse me ver, qualquer coisa, porque eu tinha algo importante para lhe contar.
– Do que está falando? Eu nunca vi essas cartas antes.
– Não minta para mim, Garrett. – Ela bateu as cartas na mão. – Escrevi estas cartas e a única resposta que obtive foi uma mensagem seca dizendo que estava tudo acabado entre nós, que você percebeu que era jovem demais para se envolver com alguém... alguém... alguém como eu!
– Eu nunca escrevi nada disso! E nunca vi essas cartas antes. Estavam trancadas numa caixa na casa de meu pai.
Estavam frente a frente, gritando um com o outro, quando a verdade revelou-se.
– Meu pai – murmurou Garrett, a voz trémula. Mary Jane estava igualmente horrorizada. – Não pensei... fiquei tão furioso com você quando as vi. Estavam naquela caixa porque Gus as roubou. – Olhou para os envelopes. – Mas foram seladas...
– Meu pai – deduziu Mary Jane. – Ele as roubou. Meu pai trabalhou no correio por algum tempo, logo após você se alistar. Disse que um amigo lhe arranjara o emprego, talvez... talvez tivesse sido seu pai, mas... mas logo pediu a conta e deixou a cidade, disse que não precisava mais do emprego. Agora imagino se seu pai lhe deu uma boa soma para... -– Meneou a cabeça, incapaz de aceitar a evidência.
– Ele não podia tê-las roubado. Violar correspondência é crime federal.
Garrett riu áspero.
– Isso não teria impedido nenhum deles. Meu pai deve ter pago ao seu para roubar as suas cartas, para nos manter afastados. – Fitou Mary Jane no rosto transtornado. – Disse que recebeu uma carta minha. Que carta?
– Após despachar estas cartas, recebi uma resposta sua. Era uma mensagem datilografada na qual você dizia não ter nada em comum comigo. Que percebera que não me amava. Que eu não era para você. Dizia que tinha coisas a fazer que não me incluíam. Estava assinada com as suas iniciais, GB, em maiúsculas, como sempre. Na carta, você me tratava de MarJay. Joguei fora, de tão furiosa. Achei que você tinha me usado. – Ergueu as mãos desamparada.
– A filha do bêbado da cidade.
Garrett meneou a cabeça devagar, ainda tentando entender.
– Ele deve ter procurado em meus pertences e encontrado um bilhete ou algo assim. – Passou a mão no rosto. Meu pai não queria que namorássemos, mas nunca imaginei que fosse capaz disso. Nunca considerei... – Fitou-a com expressão desolada. – Nunca me envergonhei de você por causa de sua família. Mas, mesmo que tenha pensado isso, por que não insistiu?
– Garrett, eu tinha dezoito anos. Estava assustada, sem dinheiro, sem emprego, sem apoio da minha família, exceto por meu irmão, que tinha um emprego de salário-mínimo. Então, recebo uma carta sua dizendo que não queria mais nada comigo. Por que continuaria insistindo?
– Então, casou-se com Hal.
– Ele era o melhor amigo de meu irmão David. Sempre gostou de mim, sempre foi gentil comigo. Hal fora feliz no primeiro casamento e queria se casar novamente, precisava de uma mãe para Becca. Eu não sabia o que fazer. Não tinha dinheiro, não tinha profissão, e lá estava ele, se oferecendo para cuidar de mim. Foi um bom marido. Cheguei a amá-lo. E ele... ele sempre considerou Shannon como sua filha.
– Mas não era. – Garrett adotou de novo o tom frio. – Shannon é minha filha, e vai me dar um neto.
– Você não vai contar a ela – advertiu Mary Jane. – Não se atreva a contar que é o pai dela.
– Você vai contar?
– No devido tempo...
– Agora! – gritou Garrett, furioso. – Ou eu mesmo contarei. Não tenho outros filhos, quero saber se Shannon...
– Garrett, não ter filhos foi escolha sua, podia ter se casado...
– Eu era apaixonado por você. Desde os dezessete anos, nunca deixei de amá-la. Podia ter me casado com outra, mas como saber se essa outra não me trairia, como você?
– Eu não traí você!
– Mas eu não sabia. – Ele adotou uma atitude pragmática. – Ou você conta a verdade a Shannon, ou eu conto.
– Retirou-se pelos fundos batendo a porta.
Mary Jane foi atrás dele.
– Garrett, não! Não pode fazer isso. Não... – Mas ele já partia com o carro.
Mary Jane não conseguia raciocinar. Só sabia que tinha de chegar a Shannon antes dele. Atordoada, pegou a caminhonete e tomou o rumo da Fazenda Crescent.
A própria Shannon abriu a porta.
– Oi, mãe. Como foi em Albuquerque? Eu... – Reparou no rosto transtornado da mãe e se assustou. – Mãe, o que foi?
– Querida... eu... eu preciso conversar com você – declarou Mary Jane, trémula. – Luke está? Acho que ele devia ouvir.
– Está. Venha se sentar. – Shannon amparou a mãe até uma poltrona junto à lareira. – Vou chamá-lo.
– Não... Não pode ser verdade. – Shannon olhou para Mary Jane, para Luke e então de volta à mãe. – Garrett Blackhawk? Meu pai? Não.
Mary Jane segurou a mão da filha com carinho. Acabara de contar toda a história.
– Eu lamento tanto, querida... – Sabia que precisava reafirmar o amor que ela e o marido haviam lhe dedicado.
– Hal e eu nunca quisemos que soubesse. Para mim, e para o resto do mundo também, ele era o seu pai. Tive de lhe contar a verdade agora porque Garrett descobriu e ameaçou revelar tudo se eu não o fizesse.
Shannon afastou-se de Mary Jane e de Luke.
– Eu... estou com enjoo. – Deteve-se ao pé da escada.
O marido foi ampará-la, murmurando palavras de conforto enquanto subiam.
Mary Jane ficou sozinha, desejando que aquela calamidade estivesse acontecendo com outra pessoa. Logo, Becca e Brittnie saberiam e, em seguida, todos em Tarrant. O pesadelo continuaria, a história se modificando a cada versão. Ergueu o olhar e viu o genro voltando.
– Ela vai descansar – avisou Luke.
Mary Jane levantou-se.
– Vou ver se...
– Não, você já fez muito – declarou ele. – Ela vai começar a se ajustar à ideia agora.
– Eu a magoei. – Mary Jane meneou a cabeça, amargurada.
– Mas não foi intencional. No fundo, Shannon sabe que o que você e Hal fizeram foi para o bem dela. Mary Jane, você -a criou para ser forte e agora tem de dar tempo para ela se lembrar disso.
Ela encarou o genro.
– Você adivinhou, não é?
Ele meneou a cabeça.
– Comecei a desconfiar na festa de Natal que demos aqui. Ela e Garrett realmente se parecem.
– Eu sei, mas não acredito que alguém mais tenha percebido. Por que não contou a ela?
Luke sorriu triste.
– Não era meu segredo para contar, Mary Jane, mas, para ser franco, achei que você teria de revelar logo. – Apertou-lhe o ombro. – Vai ficar tudo bem. Pode levar algum tempo, mas vai ficar tudo bem. É difícil agora, por causa do bebé.
– Ela não devia ter esse tipo de preocupação – lamentou Mary Jane.
– O que está feito está feito – resumiu o genro.
Mary Jane o abraçou e olhou ao redor, perdida.
– É melhor eu voltar para casa. Cuide dela. E me avise se precisar de algo.
– Eu aviso – prometeu ele.
Mary Jane saiu e sentiu o ar frio da noite. Percebeu que saíra sem casaco. Tremendo, entrou na caminhonete e voltou para casa. Shannon superaria aquele choque, tinha certeza. Mas e Garrett? Amava-o e queria se casar com ele. Só não sabia se ele conseguiria perdoá-la por não o ter procurado antes.
Dois dias se passaram sem notícias. Mary Jane pensou em telefonar para Shannon e para Garrett, mas não o fez. Ambos precisavam de tempo para se acostumar com a ideia.
No terceiro dia, preparava o café da manhã quando ouviu um automóvel parar diante da casa. Alegrou-se ao reconhecer o carro de Shannon. Estreitou o olhar e viu que a filha estava acompanhada. Seria Luke? Não, era Garrett.
Saiu à varanda frontal de braços cruzados para se proteger do frio.
– Shannon, Garrett – saudou, os olhos brilhando com
as lágrimas.
A filha subiu os degraus da varanda. Estava pálida e abatida, mas parecia em paz.
– Mãe – murmurou, e correu a abraçá-la.
Mary Jane abraçou e beijou a filha, levando-a para dentro. A porta ficou aberta para Garrett.
– Você está bem, querida? – indagou Mary Jane, passando as mãos trémulas no rosto da filha. – Eu estava tão preocupada, mas sabia que precisava lhe dar tempo...
– Estou bem, mãe – assegurou Shannon. – Telefonei para Garrett ontem à noite. Ele foi lá em casa, conversamos e combinamos vir aqui juntos hoje.
Mary Jane olhou para Shannon e para Garrett.
– Está... tudo bem?
– Sim – reafirmou a filha. – Vou levar algum tempo para me acostumar, mas ficarei bem. – Deu de ombros.
– Isso muda a forma como sempre pensei em mim mesma, mas Hal Kèlleher era meu pai, e sei que as decisões que vocês tomaram foram para o meu bem.
Mary Jane apreciou o rosto bonito da filha mais uma vez.
– Hal ficaria orgulhoso se a ouvisse agora. Nós não que ríamos que se magoasse.
Assentindo, Shannon beijou a mãe novamente e avisou:
– Vou trabalhar, mas nos vemos mais tarde, está bem?
Mary Jane abraçou-a novamente e a soltou.
Quando Shannon se foi, Mary Jane fechou a porta e voltou-se para Garrett no meio da sala, ainda de casaco e com o chapéu na mão.
Ele tinha os olhos avermelhados, denunciando cansaço e noites mal dormidas.
– E você, Garrett? Está bem?
Ele esboçou um sorriso, atirou o chapéu no sofá e despiu o casaco.
– Depende... de você me perdoar por ser um cafajeste. Eu disse coisas...
– Você estava chocado. É compreensível.
– Agi como Gus, fazendo exigências, estabelecendo as regras. – Garrett soltou os braços ao longo do corpo, a expressão puro tormento. – Gus devia saber.
– Sobre Shannon?
– Sim. Ele era esperto, deve ter lido nas entrelinhas e deduzido o motivo de você querer tanto falar comigo. Depois, viu Shannon por aí, com seus cabelos negros e olhos azuis...
claro que adivinhou.
– Sempre achei que ele sabia – admitiu Mary Jane. – Era um dos motivos por ele nos odiar tanto. Tentou comprar a fazenda para se livrar de todos nós, mas Hal não vendeu. Gus era um homem amargo por ter perdido você, por ter afastado o próprio filho, e com isso perdeu a chance de ser avô também.
– Isso o consumiu – afirmou Garrett. – Suas últimas palavras foram sobre ter o direito de colocar você para correr, que você não era boa o bastante para mim... parece a carta que ele lhe escreveu em meu nome, não? Até o fim, ele tentou justificar seus atos.
– Sinto pena dele. Na verdade, sempre senti. – Mary Jane fez pausa e endireitou os ombros. – Você tinha razão. Se insistisse, eu acabaria conseguindo falar com você. Mas aceitei aquela carta sem questionar, era jovem demais, e tola demais, para perceber que você realmente me amava e não me abandonaria daquele jeito, mas...
– Como? – Garrett aproximou-se.
– Como eu disse, convenci-me de que você se envergonhava de mim por ser filha de Bryce Sills, o bêbado da cidade. Nós nunca íamos aonde os outros casais de namorados iam. Esperei que me levasse ao baile de formatura, mas você não me levou.
– Nunca me envergonhei de você. Tem de acreditar nisso. Sempre a amei, mas sabia que, se a levasse a lugares públicos, meu pai ficaria sabendo e tomaria alguma atitude para nos separar. Fiz o que ele queria, alistei-me, lutei no Vietnã, para ele ficar orgulhoso e me deixar em paz. Na volta, eu poderia me casar com você e moraríamos na Fazenda Crescent, criando filhos e gado.
– Oh, Garrett, você nunca me disse nada disso...
– Temia que não desse certo. – Garrett deu de ombros.
– Como não deu. Gus pareceu não se importar por eu estar com você, mas estava fingindo. Tenho certeza de que queria escolher uma mulher para mim. Ele me mandava o jornal de Tarrant, e vi o anúncio de seu casamento com Hal. Quando voltei da guerra, ele passou a me pressionar para me casar. – Fitou-a pesaroso. – Mas eu só queria você, e você já estava casada.
– Lamento tanto. Você deve ter sofrido muito.
– Sim, mas, se soubesse que estava grávida de um filho meu e casada com Hal, teria ficado arrasado. Portanto, acho que foi melhor assim.
– Por que acha que ele guardou as cartas que lhe enviei? – indagou Mary Jane. – Devia saber que você as encontraria um dia e ficaria furioso com ele.
– Não sei. Talvez considerasse usá-las para chantagear você e forçá-la a ir embora. Se tivesse sido mais específica na carta, dizendo que estava grávida, ele provavelmente teria usado isso contra você.
Mary Jane deixou caírem os ombros.
– Que homem triste e amargo. É irónico que eu só sinta pena dele. Nunca o odiei como ele odiou minha família.
– Isso é bom, não acha? – opinou Garrett. – Ou você e sua família sentiriam a mesma amargura que o consumiu.
Mary Jane estremeceu. Era impensável. Garrett a segurou pelos ombros.
– E agora? Para onde vamos daqui?
– Agora? – Reanimada, Mary Jane conseguiu rir. – Agora, vamos ser avós!
Garrett a abraçou e cobriu de beijos.
– Sim, vamos ser avós, e juntos! – Ávido, beijava-a nos olhos, na boca, no rosto. – Bolas, ainda somos jovens. Podemos fazer qualquer coisa. Esperei uma vida por você, MarJay. Eu te amo. Por favor, diga que vai se casar comigo.
Ela sentiu a alegria invadindo seu corpo.
– Sim, Garrett. Parte de mim sempre o amou, mesmo quando estava assustada e zangada por você ter me abandonado tão friamente. Eu me casarei com você, sim. – Risonha, pôs-se na ponta dos pés e o estreitou com força. – Afinal, já perdemos muito tempo, mas entramos num novo milénio. O que seria melhor do que vivê-lo juntos?
Garrett a conduziu ao sofá e procurou algo no bolso do casaco. Era uma caixinha de jóia aveludada.
– Agora, vai me deixar colocar isto lio seu dedo?
Mary Jane ergueu a mão esquerda.
– Por favor. Mas terá de se casar comigo logo, Garrett Blackhawk. Esta avó não vai ficar mais jovem.
Ele colocou o anel e a puxou para o colo.
– Vovozinha, vovozinha, que olhos grandes você tem!
Ela bateu os cílios.
– São para melhor flertar com você, meu querido.
Ele a fez pousar as mãos em seus ombros.
– E que lábios sensuais você tem...
Ela sorriu e o beijou no queixo.
– São para melhor beijá-lo, meu querido.
Garrett sorriu malicioso enquanto se deitava no sofá levando-a junto. Apalpou-lhe as nádegas.
– E que corpão você tem...
Mary Jane soergueu-se para beijá-lo novamente.
– Não se fazem mais vovozinhas como antigamente, meu querido.
No dia de Ano-Novo, Mary Jane e Garrett se casaram na sede da Fazenda Blackhawk na presença de familiares e amigos. Mary Jane desceu os degraus da varanda conduzida pelo irmão, David, que viera de Denver.
Ela contemplou a família... Becca com Clay, Jimmy e Christina... Brittnie sorria com Jared a seu lado... Shannon com Luke atrás, abraçando-a protetor. Suas vidas não seriam fáceis, mas seriam compensadoras. Mary Jane agradeceu silenciosamente a Hal Kelleher por lhe ter dado aquelas filhas maravilhosas.
Então, fitou o semblante bonito e os olhos azuis brilhantes de Garrett. Amava-o, e teriam uma vida maravilhosa juntos.
Patricia Knoll
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