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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LADRÃO DE ALMAS - P.2 / Alma Katsu
LADRÃO DE ALMAS - P.2 / Alma Katsu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LADRÃO DE ALMAS

Segunda Parte

 

                       FRONTEIRA DO MAINE, HOJE

Luke vira para sair da via expressa e pega uma estrada velha e empoeirada, deixando o ponto morto levar a SUV pelos buracos. Quando chega a um cotovelo, estaciona ao lado da via de acesso, mas mantém o motor funcionando. A visão deles é clara graças à nudez das árvores de inverno e ambos, ele e a passageira, conseguem ver o ponto de travessia da fronteira dos Estados Unidos e do Canadá a distância. Parece um brinquedo de criança montado num local de construção: uma gigantesca fileira de cabines e gabinetes abarrotados de caminhões e carros, o ar pairando pesado com o ar abafado da fumaça dos veículos.

— É para lá que estamos indo — ele diz, gesticulando na direção do para-brisa.

— É enorme — a garota responde. — Achei que estávamos indo para algum posto mais afastado, com dois guardas e um cão de caça inspecionando carros com uma lanterna...

— Tem certeza de que quer continuar com isso? Há outras maneiras de chegar ao Canadá — Luke diz, apesar de achar que não deveria encorajá-la a desobedecer a lei mais do que ela já tinha feito. O olhar que ela lança a Luke vai direto a seu coração, como uma criança procurando o apoio dos pais.

— Não, você me trouxe até aqui e acredito que vá conseguir me fazer atravessar a fronteira.

Quando se aproximavam do posto de controle, os nervos de Luke começaram a enfraquecer. O tráfego estava leve, mas, ainda assim, a perspectiva de ficarem numa fila muito tempo era assustadora. A esta hora já deveria haver um boletim da polícia sobre eles, por suspeita de assassinato e cumplicidade com a fuga... Ele quase sai da fila, mas para, as mãos tremendo sobre o volante. A garota olha para ele, nervosa.

— Você está bem?

— Está demorando muito — ele murmura, suando apesar do ar frio do inverno do lado de fora do carro.

De repente, uma luz verde se acende numa das cabines na fila ao lado e, com uma velocidade surpreendente, Luke corta, vira a direção e pisa no acelerador, jogando o carro na direção do policial da fronteira, que gentilmente faz sinal para organizar o trânsito. Ele atravessa na frente de um carro que aguardava dois veículos à frente, na fila, e a mulher atrás da direção lhe mostrou o dedo, mas Luke não liga. Ele breca forte em frente do agente da fronteira.

— Com pressa? — o oficial diz, disfarçando seu interesse com descuido enquanto alcança a identificação do médico. — Geralmente atendemos a próxima pessoa que está esperando quando abrimos uma nova fila.

— Me desculpe — Luke responde abruptamente. — Eu não sabia...

— Da próxima vez, ok? — ele fala amigavelmente, nem mesmo olhando para cima enquanto analisa a carteira de motorista e, depois, o passaporte de Lanny. O agente é de meia-idade, veste um uniforme azul-escuro e um colete utilitário com um rádio, canetas e outras coisas. Em suas mãos, há uma prancheta e um instrumento eletrônico que parece um scanner. Sua parceira, uma mulher mais jovem, caminha em volta do carro com uma longa vara, em cuja ponta há um espelho, como se esperasse encontrar uma bomba amarrada na parte de baixo do SUV. Luke observa a policial pelo espelho retrovisor e uma nova onda de nervosismo toma conta dele.

Então, ele se dá conta de algo: se eles perguntarem pelo registro do veículo, terá problemas, pois não está registrado em seu nome. “Você não é dono desse carro?”, o agente perguntará. “As pessoas emprestam carros todos os dias”, Luke tenta dizer a si mesmo. “Não há nada de criminoso nisso.”

“Terei que dar uma olhada no sistema só para ter certeza de que não é roubado...”

“Não peça o registro, não peça o registro”, ele pensa, como se, direcionando este mantra ao agente, pudesse evitar que ele se lembrasse disso.Se o nome de Luke aparecer em alguma lista em algum lugar (“procurado para interrogatório”), as chances de eles escaparem se reduziriam a zero. Esse pequeno problema deixa Luke ainda mais nervoso, pois ele nunca esteve em apuros antes, nunca, nem mesmo quando criança, e não é muito hábil em enganar autoridades. Ele tem medo de suar, parecer muito ansioso e...

— Então você é médico? — o agente pergunta à janela, fazendo Luke prestar atenção.

— Sim, cirurgião. — “Idiota”, ele se apercebe; “ele não está nem aí para sua especialidade. É somente sua vaidade médica se mostrando, querendo atenção”.

— Motivo para viagem ao Canadá?

Antes que Luke pudesse responder, Lanny inclina-se para a frente, para ser vista pelo agente da fronteira.

— Na verdade, ele está me fazendo um favor. Passei um tempo com ele e agora está na hora de viver à custa do próximo parente. E, em vez de me colocar num ônibus, ele generosamente insistiu em me trazer de carro.

— Ah, e onde está o primo? — o agente pergunta, uma astúcia leve escondida na pergunta.

— Baker Lake — a garota responde casualmente. — Bem, nós nos encontraremos com ele em Baker Lake, mas na verdade ele mora mais perto de Quebec. — Ela sabia o nome de uma cidade nos arredores, o que, para Luke, parece um milagre. O médico relaxa um pouco.

O agente vai para dentro da cabine e, pela janela Plexiglas riscada, Luke o observa, apoiado sobre um terminal, preenchendo uma base de dados, com certeza. É tudo o que ele pode fazer para não pisar no acelerador; não há nada para impedi-lo: nem cancelas automáticas, nem correntes de dentes de metal para furar os pneus, nada que impeça a fuga.

De repente, o guarda está à janela de novo, a carteira de motorista e o passaporte em sua mão estendida.

— Aqui estão... tenham uma boa estadia! — ele diz, acenando para eles, já olhando para o próximo carro na fila.

Luke não volta a respirar até que a estação da fronteira fique bem reduzida no espelho retrovisor.

— Por que estava tão preocupado? — Lanny ri, olhando sobre o ombro. — Não somos terroristas e não estamos tentando contrabandear cigarros. Somos apenas dois gentis cidadãos norte-americanos indo ao Canadá para o almoço.

— Não, não somos — Luke diz, mas ele está rindo, também, aliviado. — Me desculpe, não estou acostumado a ser um fora da lei.

— Desculpe, não quis rir. Sei que não está acostumado, mas se saiu muito bem! — Ela aperta a mão dele.

Eles param num motel nos arredores de Baker Lake, um lugar indefinido, que não pertence a nenhuma cadeia. Luke aguarda no carro enquanto Lanny está na recepção. Ele a observa bater papo com o cavalheiro mais velho atrás do balcão, que se mexe vagarosamente, aproveitando a oportunidade de falar com uma garota bonita naquela manhã. Lanny sobe de volta na SUV e eles dirigem até uma unidade do fundo, com vista para um trecho cheio de árvores e um campo de beisebol da vizinhança. O carro deles é o único no estacionamento.

Uma vez dentro do quarto do motel, Lanny, num surto de atividade, desfaz a mala, verifica o banheiro, reclama da qualidade das toalhas. Luke senta-se na cama, repentinamente cansado para permanecer sentado. Ele se deita em cima da colcha de poliéster e fica olhando para o teto. Tudo a seu redor gira como uma grande roda-gigante.

— Qual é o problema? — Lanny senta-se ao lado dele, na ponta da cama, e toca sua testa.

— Exaustão, eu acho. No plantão da meia-noite, geralmente vou para a cama assim que chego em casa.

— Então faça isso, durma um pouco. — Ela desaperta os sapatos do médico sem desamarrá-los.

— Não, preciso voltar. É só meia hora — ele protesta, mas não se mexe. — Tenho que devolver o carro...

— Bobagem. Além disso, só vai servir para levantar suspeita na fronteira: dar meia-volta e voltar para casa cansado desse jeito. — Ela coloca um cobertor sobre ele, dá uma bisbilhotada na mala e puxa um saco plástico lotado com a marijuana mais volutuosa que Luke jamais vira.

Em menos de um minuto, ela enrola um cigarro de maconha habilidosamente, acende-o e dá uma tragada longa e cheia de vontade. Ela fecha os olhos enquanto exala e seu rosto relaxa com satisfação. Luke pensa que ele gostaria de causar uma expressão como esta no rosto dela qualquer dia.

Lanny passa o cigarro de maconha para ele. Depois de um segundo de hesitação, Luke pega-o e o traz até os lábios. Ele inspira e segura a fumaça, sentindo-a espalhando-se pelos lóbulos de seu cérebro, sentindo seus ouvidos se tamparem e se bloquearem. Bom Jesus, esta coisa é potente! Rápida.

Ele tosse e passa o cigarro de volta para Lanny.

— Faz tempo que não faço isso. Onde conseguiu esta coisa?

— Na cidade. St. Andrew. — A resposta dela o alarma e o surpreende um pouco, o faz lembrar que há outros mundos invisíveis bem debaixo do nariz dele. Ele está feliz por não saber que ela carregava isso quando atravessaram a fronteira ou teria ficado ainda mais nervoso.

— Você sempre faz isso? — ele aponta o cigarro de maconha.

— Não conseguiria sobreviver sem. Você não sabe das memórias que carrego em minha cabeça. Vida após vida de coisas que se arrepende de ter feito. Coisas que já viu outras pessoas fazerem. Coisas das quais não pode fugir... sem isto. Faço isso às vezes, quando tenho vontade de desmaiar por, vamos dizer, uma década. Dormir, fazer tudo parar. Não há como apagar as memórias ruins. Não é fazer que é tão difícil, é viver com o que você já fez.

— Como o homem no necrotério...

Ela pressiona um dedo sobre os lábios de Luke, para impedi-lo de dizer qualquer palavra. Teremos tempo para isso depois, ele imagina. De fato, ela não tem nada além de tempo se estendendo à sua frente para perceber a coisa irreversível que havia feito a seu verdadeiro amor. Não haveria baseado suficiente para levar isso embora. Inferno na terra. Comparativamente, as coisas que ele havia feito pareciam pequenas. Ainda assim, ele pega o cigarro.

— Vou voltar — ele diz como se quisesse convencê-la disso. — Assim que eu tirar um cochilo. Será mais seguro dirigir depois de tirar um cochilo. Mas tenho que voltar... coisas para fazer, me esperando... o carro de Peter...

— Com certeza — ela responde.

Quando o médico acorda, o hotel está banhado de cinza. O sol está se pondo, mas nenhuma das luzes foi acesa. Luke continua deitado, quieto, sem se levantar, tentando retomar o controle. Durante um longo minuto, sua cabeça está leve e ele não consegue se lembrar de onde está e por que tudo lhe é tão estranho. Ele está quente e suado por estar debaixo do cobertor e sente-se como uma vítima de sequestro obrigada a sair correndo do carro, olhos vendados, tudo girando em volta.

Aos poucos, o quarto entrou em foco. A estranha está sentada numa das duras cadeiras de madeira à mesa, olhando pela janela. Ela está sentada absolutamente quieta.

— Ei! — Luke diz, para avisá-la de que está acordado.

— Está melhor? Deixa eu pegar um copo d’água para você. — Ela se levanta da cadeira e se apressa até a geladeira. — É água da torneira. Pus na geladeira para gelar.

— Quanto tempo eu dormi? — Luke estica a mão para pegar o copo; a água está deliciosamente gelada e fica tentado a colocá-la em sua testa. Ele está fervendo.

— Quatro, cinco horas.

— Minha nossa, é melhor eu pegar o caminho de volta! Devem estar me procurando. — Ele empurra o cobertor de lado e senta-se na ponta da cama.

— Por que a pressa? Você disse que não tem ninguém em casa esperando você — a jovem responde. — Além do mais, você não parece bem. Aquela porcaria deve ter sido muito para você. É forte. Talvez deva deitar-se um pouco mais.

Lanny retira o laptop da gaveta da cômoda envernizada e lascada, e caminha até ele.

— Eu baixei isso da câmera enquanto você dormia. Achei que você quisesse vê-lo. Quer dizer, eu sei que já o viu, viu o corpo dele, mas pode estar interessado, de qualquer maneira...

Luke recua ao ouvir esse discurso macabro, descontente por ser lembrado do corpo morto no necrotério e da relação dele com Lanny, mas aceita o laptop quando ela o passa para ele. As imagens saltam brilhantemente na tela, naquela escuridão empoeirada do quarto: é o homem de dentro do saco, mas não tem comparação. Aqui ele está brilhantemente vivo, vibrante e inteiro. Os olhos, o rosto animado, eletrizado com vida.

E ele é tão, tão belo que a visão dele faz Luke sentir-se estranhamente triste. A primeira foto deve ter sido tirada de um carro, a janela abaixada, seus cabelos pretos e compridos desgrenhados e seus olhos apertados enquanto ri para a mulher tirando a foto, ri de alguma coisa que Lanny disse ou fez. Na foto ele está na cama, a cama que devem ter compartilhado no Dunratty, a cabeça dele sobre um travesseiro branco, de novo o cabelo caindo sobre o rosto, fios tocando o rosto, o rubor cor-de-rosa perfeito nas maçãs do rosto. Uma parte do pescoço e a clavícula saliente visível embaixo da dobradura do lençol branco amarelado.

Após um minuto, olhando foto por foto, ocorre a Luke que a coisa mais bela daquele homem nas fotos não é seu magnífico rosto. Não é sua beleza. É algo em sua expressão, um efeito recíproco entre o prazer nos seus olhos e o sorriso em seu rosto. É que ele está feliz por estar com a pessoa que segura a câmera e tira as fotos.

Um nó se forma na garganta de Luke e ele devolve o laptop para Lanny. Não quer mais olhar.

— Eu sei — a garota diz, também emocionada e tomada pelas lágrimas. — Me mata pensar que ele se foi, que se foi para sempre. Sinto a ausência dele como um buraco em meu peito. Um sentimento que carreguei por duzentos anos foi dilacerado. Não sei como farei para seguir em frente. É por isso que estou lhe pedindo... por favor, fique comigo mais um pouco. Não posso ficar sozinha. Ficarei louca. — Ela coloca o laptop no chão e, então, alcança a mão de Luke. A mão dela é pequena e quente. A palma está úmida, mas Luke não consegue dizer se a umidade é dele ou dela.

— Não sei como agradecer tudo o que fez por mim — ela diz, enquanto olha através dos olhos e dentro dele, como se pudesse ver o que está se passando em sua mente. — Eu, eu nunca... quero dizer, ninguém nunca foi tão bom para mim. Arriscando-se dessa maneira.

De repente, sua boca está sobre a dele. Ele fecha os olhos e mergulha seu ser inteiro na umidade quente do beijo dela. Ele cai de costas no mesmo lugar da cama de onde havia saído, o peso quase imperceptível do corpo dela sobre o seu, e ele sente como se estivesse se dividindo. Uma parte dele se sente terrível pelo que está fazendo, mas ele quis fazer isso desde o primeiro momento em que a viu. Ele não voltará para St. Andrew, pelo menos não agora; irá segui-la, como poderia ir embora? A necessidade que ela tem dele é como um gancho plantado em seu peito, puxando-o sem o menor esforço, e ele não consegue resistir. Ele está pulando de um penhasco para dentro de águas escuras, não pode ver o que o espera lá embaixo, mas sabe que não há força no mundo que possa impedi-lo.

                               BOSTON, 1817

Depois de ouvir a história de Adair, me recolhi a meu quarto, apavorada. Engatinhei até a cama e encolhi os joelhos debaixo do queixo. Estava com medo de todas as coisas que ele havia me contado e tentei afastá-las de mim.

Alejandro bateu à porta e, como não houve resposta, a empurrou um pouquinho para poder deslizar para dentro com uma bandeja de chá e biscoitos. Ele acendeu muitas velas.

— Não pode se sentar no escuro, Lanore, é detestável — então colocou a xícara e o pires silenciosamente em minhas mãos, mas eu não queria sua hospitalidade. Fingi olhar pela janela, só que não conseguia ver nada, ainda estava cega de raiva e de desespero.

— Ah, minha querida, não fique triste! Sei que é assustador. Fiquei assustado quando aconteceu comigo.

— Mas, Alej, o que nós somos? — eu perguntei, apertando o travesseiro em meu peito.

— Você é você mesma, Lanore. Você não faz parte de um mundo mágico. Não pode atravessar paredes como um fantasma ou visitar Deus no paraíso como um anjo. Nós dormimos e acordamos, comemos e bebemos, passamos o dia como qualquer outra pessoa. A única diferença é que outra pessoa pode pensar, de vez em quando, quando será seu último dia. Mas, para mim e para você, nossos dias nunca terão fim. Nós prosseguiremos sendo testemunhas de tudo o que acontece a nosso redor — ele disse tudo isso totalmente sem paixão, como se a desordem dos dias intermináveis tivesse sugado todo seu entusiasmo. — Quando Adair me explicou o que tinha feito comigo, eu quis fugir dele, mesmo se isso significasse me matar, algo que não seria capaz de fazer. Mas perder o bebê, além de tudo... bem, é muito terrível. Pobre Lanore! Sua tristeza vai passar, sabe — ele continuou em seu inglês monótono, com sotaque espanhol. Tomou um gole de chá e então olhou para mim através da fumaça subindo da xícara. — Todos os dias nosso passado se afasta cada vez mais e a vida com Adair passa a ser mais e mais comum. Você passa a fazer parte da família. Então, se lembrará de alguma coisa de sua outra vida, um irmão, uma irmã, a casa onde vivia, um brinquedo de que gostava, e perceberá que não sofrerá mais por isso. Parecerá algo de muito tempo atrás. Aí, então, verá que a mudança está completa.

Olhei para ele por cima do meu ombro.

— Quanto tempo até a dor ir embora?

Alejandro levantou um torrão de açúcar da tigela com um pequeno par de pegadores e o derrubou dentro do chá.

— Depende de quão sentimental você é. Eu, eu sou muito amoroso. Eu amava minha família e senti falta dela durante muito tempo após a transformação. Mas Dona, por exemplo, ele provavelmente nunca olhou para trás. A família o havia abandonado quando ele era pequeno, por ser um garotinho de pederastas — Alejandro disse baixando a voz, até murmurar as últimas palavras, apesar de sermos todos sodomitas naquela casa. — A vida dele foi repleta de depravação e incerteza. Linchamentos. Fome. Prisão. Não, não imagino que tenha qualquer tipo de arrependimento.

— Não acho que meu sofrimento terminará um dia. Meu filho se foi! Quero meu filho de volta, quero minha vida de volta!

— Nunca mais terá seu filho de volta, sabe disso — falou suavemente, acariciando meu braço. — Mas por que, minha querida, iria querer sua velha vida de volta? Pelo que me contou, não tem para quem voltar: sua família a abandonou e a expulsou. Eles a abandonaram num momento de necessidade. Não vejo nada do que deva se arrepender os deixando para trás. — Alejandro olhou fixamente para mim com seus olhos escuros e doces, como se pudesse resumir o que estava em meu coração. — Em momentos de dificuldade, sempre queremos voltar para aquilo que conhecemos. Isso desaparecerá.

— Bem, há uma coisa... — sussurrei.

Ele inclinou-se para a frente, ansioso por minha confissão.

— Um amigo. Sinto falta de um amigo em particular.

Alejandro era, como ele havia dito, um alma sensível que adorava nostalgia. Ele apertou os olhos, como um gato sentando-se ao calor do sol no peitoril da janela, sedento para beber minha história.

— Sempre são as pessoas de quem sentimos mais saudade. Me conte sobre esse seu amigo.

Desde que deixara St. Andrew, tentei, o máximo que pude, não pensar em Jonathan. Estava acima da minha capacidade não pensar nele, então, me permiti algumas indulgências, como alguns minutos antes de pegar no sono, quando me lembrava de seu calor, de sua face ruborizada colada à minha, o jeito que minhas costas se arrepiavam quando ele me agarrava pela cintura para tomar posse de mim. Era muito difícil controlar as emoções quando Jonathan era somente um fantasma às margens de minha memória: lembrar-me dele diretamente era muito doloroso.

— Não posso. Sinto muito a falta dele — disse a Alejandro.

Alejandro recuou.

— Este amigo é tudo para você, não é? Ele é o amor da sua vida. Era o pai de seu filho.

— Sim — respondi. Alejandro esperou que eu continuasse, seu silêncio era como uma corda me puxando, até que fui forçada a falar. — O nome dele é Jonathan. Sou apaixonada por ele desde que éramos crianças e a maioria das pessoas dizia que ele era bom demais para mim. A família dele é dona da cidade onde eu vivia, não é grande nem rica, mas todo mundo lá depende da família dele para sobreviver. E também tem a sua beleza esplendorosa. — Enrubesci. — Deve achar que sou uma pessoa frívola.

— Nem um pouco — ele disse em tom amigável. — Ninguém está imune ao poder da beleza. Mas, de verdade, Lanore, o quão belo ele poderia ser? Pense em Dona, por exemplo. Tão impressionante que encantou um dos maiores artistas da Itália. Ele é mais bonito do que Dona?

— Se conhecesse Jonathan, entenderia. Ele faria Dona parecer um troll.

Aquilo fez Alejandro engasgar: nenhum de nós gostava muito de Dona; ele era tão fútil que chegava a ser intolerável.

— Não pode deixar Dona ouvi-la dizer isso! Muito bem, então... e quanto a Adair? Ele não é um sujeito bonito? Já viu olhos como os dele? São como os olhos de um lobo...

— Adair tem um certo charme. — “Um charme animalesco”, pensei, apesar de não dizê-lo em voz alta. — Mas não há comparação, Alej, acredite. Mas falar dele não adianta nada. Nunca mais o verei.

Alejandro acariciou minha mão.

— Não diga isso. Você não sabe, pode ser que sim.

— Não consigo imaginar voltar para casa, não agora. Não é como Adair contou na história dele? Como explicaria o que me aconteceu para eles? — respondi em tom de zombaria.

— Há algumas maneiras... você não poderia viver com eles novamente. Não, isso estaria fora de questão, mas uma breve visita... se ficasse só um pouquinho... — Ele brincou com seu lábio inferior, contemplativo.

— Não alimente minhas esperanças. É muito cruel. — Lágrimas encheram meus olhos. — Por favor, Alejandro, preciso descansar! Estou com uma dor de cabeça terrível.

Ele pressionou os dedos rapidamente na minha testa.

— Sem febre... Me diga, esta dor de cabeça, você sente como um latejar constante no fundo da cabeça?

Concordei.

— Sim? Bem, minha querida, melhor se acostumar com isso. Não é uma dor de cabeça: é parte do dom. Agora você está conectada a Adair.

— Conectada a Adair? — repeti.

— Existe um vínculo entre vocês dois e essa sensação é um sinal desse vínculo. — Ele se inclinou, conspiratório. — Lembra quando eu disse que você havia mudado só de uma maneira, que não era mágica? Bem, nós somos um tanto mágicos, apenas um pouquinho. Às vezes acho que somos como animais, sabe? Deve ter notado como tudo parece um pouco mais brilhante, como consegue ouvir o menor barulho, como todo cheiro fica muito forte? Isso é parte do dom: a transformação nos faz melhores. Somos mais refinados. Ouvirá uma voz bem de longe e saberá quem está vindo visitá-la, conseguirá detectar o aroma da cera de selo e saber que uma pessoa guarda uma carta escondida. Com o tempo, não notará mais essas habilidades, mas aos outros parecerá que pode ler os pensamentos, que é mágica! A segunda coisa que deve saber é que nunca mais sentirá dor. Tem a ver com a habilidade de não morrer. Não sentirá fome ou sede. Ah, leva um tempo para o reflexo, a expectativa de que se deve comer ou beber, ir embora. Mas poderia jejuar por semanas e não sentir a fome apertando seu estômago, nem ficar fraca ou desmaiar. Poderá ser atropelada por um cavalo de corrida e não sentir nada, além de um leve desconforto onde algum osso pode ter se quebrado, mas a dor desaparecerá minutos depois, enquanto o osso se cicatriza sozinho. — As palavras dele me fizeram arrepiar. — E essa conexão com Adair, essa agulhada no cérebro, é um lembrete desse poder, pois só ele pode torná-la mortal novamente. Nas mãos dele, e somente nas mãos dele, você sente dor. Mas qualquer dano que ele a faça sofrer será temporário, a não ser que ele próprio decida que será diferente. Ele pode lhe desejar qualquer coisa: dor, desfiguração, morte. Pelas mãos e intenção dele. Essas são as palavras que ele usa no feitiço. Essas são as palavras que criam o vínculo com ele.

Coloquei a mão sobre meu abdômen; ele estava certo com relação à dor.

O la­tejar silencioso que sentira em meu útero desaparecera completamente.

— Ele deve ter dito isso tudo a você. Acredite: Adair é seu deus agora. Você vive ou morre de acordo com o desejo dele. E... — a expressão dele se suavizou completamente por um momento, como se um manto protetor tivesse descido brevemente sobre ele — deve tomar cuidado com Adair. Ele lhe deu tudo o que um mortal quer, mas só enquanto você o satisfizer. Não hesitará em lhe tirar o que deu, caso o deixe enfurecido. Nunca se esqueça disso.

Percebi rapidamente que, quisesse ou não, agora eu era parte daquela estranha casa e seria de meu total benefício se descobrisse meu lugar ali dentro. Minha vida mudara de forma irrevogável e eu não tinha certeza de como sobreviveria. Adair, no entanto, tinha centenas de anos de experiência. Os outros que ele escolhera haviam permanecido com ele provavelmente por uma boa razão.

Também decidi tentar esquecer Jonathan. Acreditava que nunca o veria novamente, apesar do que Alejandro dissera. Minha antiga vida se fora, em todos os sentidos: Boston era tão diferente de St. Andrew assim como a água do vinho, e eu não era mais uma pobre menina do campo com um futuro infeliz pela frente. Perdi o bebê, a única coisa que poderia me manter ligada a Jonathan. Era melhor deixar tudo para trás de uma vez só.

Em poucos dias percebi que os ritmos da casa não se pareciam em nada com minha experiência anterior, em minha cidade puritana. Para começar, ninguém na casa, além dos serviçais, levantava-se antes do meio-dia. Ainda assim, os cortesãos e seus convidados permaneciam nos quartos até duas ou três da tarde, apesar de poder ouvir sons baixos atrás das portas, murmúrios, um pedaço de uma risada ou o arranhar da perna de uma cadeira sendo arrastada pelo chão. Alejandro explicara que este era o jeito europeu: as noites, a parte mais importante do dia, eram dedicadas à socialização (jantares, bailes, jogos de mesa), e os dias eram dedicados à arrumação: ter o cabelo penteado e vestir os trajes mais formidáveis. Haviam trazido com eles, da Europa, alguns serviçais-chave, aqueles especializados em arrumar os cabelos e manter o guarda-roupa. Eu achava muito decadente viver daquela maneira, mas Alejandro me garantiu que era só porque eu havia sido educada por norte-americanos puritanos. Houve uma razão para os puritanos deixarem a Inglaterra em busca do Novo Mundo, ele fez questão de salientar.

O que me leva à segunda coisa estranha sobre os arranjos domésticos de Adair: ninguém parecia ter um objetivo na vida. Nenhum assunto de negócios ou finanças era discutido na minha frente. Nenhuma menção ao Velho Mundo, nenhuma lembrança de vidas passadas (como Alejandro me disse: “deixamos os mortos dormirem”). Não chegavam cartas, somente cartões de membros da sociedade bostoniana, ávida para conhecer o misterioso europeu da realeza. A bandeja no corredor estava abarrotada de convites para festas, salões e chás.

O único assunto que interessava a Adair e seu séquito, o único esforço que levavam a sério, a preocupação que permeava os dias, era sexo. Cada membro do séquito mantinha um companheiro, às vezes por uma noite ou por uma semana; podia ser um membro da alta sociedade conhecido numa soirée ou um lacaio comum eleito para uma noite. Também havia um rio de mulheres perambulando pela mansão, tanto prostitutas mal-ajambradas como ousadas filhas da sociedade. Ninguém na casa dormia sozinho. Nem Alejandro nem Donatello pareciam interessados em mim, e quando perguntei a Alej se não me achava atraente, ele riu e me disse para não ser tão estúpida.

A família era dedicada a buscar e experimentar prazer, simples assim. Tudo ao meu redor era a antítese de como eu havia sido criada e, com o tempo, a falta de ter o que fazer me irritou. Porém, no início, fui seduzida pelos luxos que não imaginava existir. St. Andrew fora uma cidade de roupas de linho feito à mão e mobília de pinho natural. Agora, eu vivia rodeada de coisas refinadas, cada nova tentação ainda melhor do que a anterior. Degustava comidas e bebidas que nunca soube existir, usava vestidos e túnicas de exóticos tecidos europeus, feitos por costureiras profissionais. Aprendi a dançar e a jogar cartas, li romances que me expuseram a mundos ainda mais diferentes.

Adair gostava de festas e, já que ainda era uma sensação em Boston, íamos a uma quase toda noite. Ele levava seu séquito aonde quer que fosse, deixando Alejandro, Dona e Tilde entreterem os bostonianos com suas maneiras continentais, roupas escandalosas de Paris, Viena e Londres e histórias sobre a decadente aristocracia europeia.

O que realmente deixou os ricos e cultos bostonianos estupefatos foi quando Adair obrigou Uzra a nos acompanhar. Ela se aventurava pela rua envolvida num manto de tecido cor de vinho que a cobria dos pés à cabeça. Assim que estávamos entre os convidados, o manto caía ao chão para revelar Uzra numa de suas fantasias: espartilho de organza apertado e saia de véus, os olhos com um espesso contorno de kajal, adornos de metal ao redor da cintura nua, das mãos e dos tornozelos. As sedas ricamente coloridas eram maravilhosas, mas transparentes; ela estava praticamente nua comparada ao restante das mulheres com camadas de roupas de baixo, espartilhos e meias-calças. Uzra tilintava suavemente enquanto caminhava, olhos baixos, ciente dos olhares de desejo e malícia, como um animal num desfile. As mulheres colocavam as mãos sobre a boca aberta, em choque, e, com os homens, o ar tornava-se espesso com o cheiro de desejo, as casacas ajeitadas com pressa, cobrindo a ereção deselegante. Mais tarde, Adair ria sobre as propostas que havia recebido, homens oferecendo imensas quantidades de dinheiro por uma hora com sua odalisca. Se ele deixasse, eles lhe dariam a alma, Adair dizia quando já tínhamos voltado para casa depois da festa e nos sentávamos em volta da mesa da cozinha, perto do fogo ainda quente, compartilhando uma garrafa.

— Você poderia fazer o mesmo — Adair me disse, em particular, enquan­-

to subíamos as escadas para nossos quartos, a voz dele suave feito veludo. — O de­sejo de um homem é algo poderoso. Pode reduzir um homem forte a nada. Quando vê uma mulher que o fascina, ele desiste de tudo por ela. Lembre-se disso, Lanore: de tudo.

— Desistir de tudo por mim? Você é louco! Nenhum homem jamais desistiu de alguma coisa pela minha companhia — eu zombei, pensando na incapacidade de Jonathan para se doar a mim por completo. Mergulhada em autopiedade, não estava sendo justa com ele, eu sei, mas tinha sido ferida pelo meu amante incrédulo e estava doendo.

Adair me olhou, tentando se controlar, e disse algo que nunca esperei ouvir:

— É muito triste ouvir isso de qualquer mulher, mas é especialmente triste ouvi-lo de você. Talvez seja assim porque você nunca pediu nada em troca de sua atenção. Você não sabe o valor que tem, Lanore.

— Valor? Entendo muito bem o meu valor: sou uma garota comum, vinda de uma família pobre.

Ele pegou meu braço e o enfiou debaixo do seu.

— Você está longe de ser comum. Você tem algo que atrai certos homens, um tipo de homem que dá valor a um vigor discreto e não se interessa pela exposição vulgar dos charmes femininos. Muito peito saindo pelo espartilho, anca muito saliente, muito voluptuosa, entende? — Não conseguia acompanhá-lo; em minha experiência, os homens pareciam fascinados exatamente por isso e o fato de eu não ser assim me parecia um detrimento a vida toda.

— Sua descrição do charme feminino “vulgar” me faz lembrar de Uzra, e ela nunca deixa de seduzir um homem que a deseja. Ela e eu somos como água e vinho — eu disse, querendo brincar com Adair.

— Não há só um padrão de beleza, Lanore. Todos adoram a rosa vermelha, mas ainda assim é um tipo comum de beleza. Você é como uma rosa dourada, um botão raro, mas não menos belo — ele disse, tentando ser lisonjeiro, mas eu quase ri alto de sua tentativa. Eu era magra como um garoto e com o peito quase reto. Meu cabelo louro e encaracolado era indisciplinado feito um ninho de pássaro. Só podia imaginar que ele estava me elogiando com algum objetivo, mas suas palavras doces foram, de qualquer forma, atraentes.

— Então, se você confia em mim, deixe-me guiá-la. Eu a ensinarei a ter poder sobre homens comuns. Como Tilde, Alej e Dona — ele disse, acariciando minha mão. Talvez este fosse o objetivo deles; talvez este fosse o trabalho deles. Eles pareciam conseguir que a maioria das pessoas, principalmente os homens, os que tinham o poder, fizesse a vontade deles, e esta parecia uma habilidade muito boa para se adquirir.

— Não é suficiente ser capaz de conquistar seus inimigos; para controlá-los, deve ser capaz de seduzi-los também.

— Considere-me sua aprendiz — eu disse, deixando Adair me levar até seu quarto.

— Não se arrependerá — ele prometeu.

E assim comecei meu aprendizado no negócio da sedução. Começou com noites na cama de Adair. Depois daquela noite, quando Adair abriu meus olhos, ele pareceu determinado a me provar que eu era merecedora da atenção de um homem: ele. Continuamos a ir às festas, onde entretínhamos os bostonianos, mas ele sempre voltava para casa comigo em seus braços. Ele me levava para a cama toda noite. Ele me mimava e me dava tudo o que eu pedia. Mandei fazer lindas roupas de baixo, espartilhos (apesar de quase não precisar deles para segurar meus seios, de tão modestos que eram) e camisolas de seda coloridas, com acabamentos de fitas. Cintas-ligas decoradas com pequenas rosas de seda. Deleites para serem descobertos por Adair enquanto ele tirava minha roupa. Eu devotei-me a me transformar em sua rosa dourada.

Estaria mentindo se dissesse que não pensei em Jonathan nessa época. Ele foi meu primeiro amante, afinal de contas. Mesmo assim, tentei matar o amor que sentia por ele lembrando-me dos maus momentos entre nós: das vezes em que ele me machucou profundamente; sempre que ouvia que ele havia se engraçado com uma nova garota; ao lado dele na colina enquanto olhávamos para o túmulo de Sophia, lá embaixo, sabendo que ele estava pensando nela; beijando Evangeline em frente de toda a congregação poucos momentos depois de lhe dar a notícia de minha gravidez. Tentei ver meu amor por Jonathan como uma doença, uma febre queimando em meu coração e em meu cérebro, e essas lembranças avassaladoras eram o purgativo, a cura.

E as atenções de meu novo amante seriam meu tônico restaurador. Comparando minhas experiências com os dois homens, parecia que o ato com Jonathan me preenchia com uma felicidade tamanha que sentia que morreria. Nessas vezes, mal tinha consciência de meu corpo; poderia ter flutuado até o teto nos braços dele. Era sublime. Com Adair, era tudo sensação, uma necessidade da carne e do poder de ter essa fome satisfeita. Na época, eu não tinha medo dessa fome inédita que ele criara em mim. Sentia prazer nisso e Adair, em vez de me julgar indulgente e vulgar, parecia satisfeito de ter feito isso aflorar em mim. Ele confirmou isso uma noite na cama, acendendo o narguilé após uma sessão acrobática.

— Acho que você tem uma disposição natural para os negócios do prazer — ele disse, sorrindo obsceno. — Ouso dizer que você gosta de suas aventuras na alcova. Fez tudo o que lhe pedi, não fez? Nada que fiz lhe assustou? — Quando sacudi a cabeça, ele continuou: — Então, chegou a hora de expandir suas experiências, pois a arte do amor é assim: quanto mais amantes se tem, mais especialista se torna. Entende? — Recebi sua afirmação franzindo o cenho, sentindo que não tinha entendido alguma coisa. Ele já estava cansado de mim? O vínculo que criamos fora só uma ilusão? — Não fique zangada! — ele disse, colocando a fumaça narcótica de sua boca na minha com um beijo. — Ficou com ciúme? Deve lutar contra esses sentimentos, Lanore. Eles estão abaixo de você, agora. Tem uma vida à sua frente, uma vida cheia de experiências, se não tiver medo.

Ele não estava inclinado a explicar mais nada naquele momento. Mas descobri o que quis dizer na noite seguinte, quando Dona esgueirou-se para dentro do quarto conosco. E Tilde, na outra noite. Quando eu fiz objeção, protestando que era muito autoconsciente para sentir prazer na frente dos outros, deram-me uma venda para colocar nos olhos. Na manhã seguinte, quando olhei rápida e timidamente para Tilde enquanto passávamos pela escadaria, ainda embasbacada pelo prazer que ela havia me proporcionado na cama, ela murmurou ruidosamente:

— Foi só atuação, sua vagabunda estúpida! — e saiu a passos largos, desfazendo qualquer dúvida sobre ter sido outra coisa além disso. Acho que era ingênua, mas os prazeres da carne eram novos para mim, as sensações, avassaladoras. Logo eu me tornaria indiferente a tudo isso e indiferente a tudo o que provocara em minha alma.

 

Não muito tempo depois, um evento notável aconteceu, apesar de eu não lhe dar muita importância na época. Tudo começou com uma palestra sobre astronomia e artes da navegação, da qual participamos em Harvard. A ciência estava um tanto em moda naqueles dias e às vezes as faculdades ofereciam palestras abertas ao público. Eram lugares para as pessoas serem vistas, como em qualquer festa, uma forma de demonstrar que, ainda que fosse uma pessoa da sociedade, tinha inteligência. Assim, Adair fez questão de ir. A palestra daquele dia não me interessava, então, sentei-me ao lado de Adair e emprestei seus binóculos para examinar a plateia. Havia muitos rostos que já tinha visto antes, mas não conseguia me lembrar dos nomes e, no momento em que estava pensando que essa saída havia sido um desperdício de tempo, espiei Tilde conversando com um homem no fundo do auditório. Dava para ver só uma pequena parte de seu rosto e a maior parte do que podia ver eram suas costas, mas podia dizer que tinha um físico maravilhoso.

Passei os binóculos para Adair.

— Parece que Tilde encontrou um novo homem — cochichei e apontei com a cabeça na direção dela.

— Humm, acho que está certa — ele disse, dando uma espiadela pelos binóculos. — Ela é uma caçadora inata, essa Tilde.

Era comum encontrar com outras pessoas da sociedade, após as palestras, numa taberna das proximidades. Naquela tarde, no entanto, Adair não estava com paciência para conversa fiada com café e cerveja, e observava a porta. Pouco tempo depois, Tilde entrou de braços dados com o jovem que víramos na faculdade. Ele era bem vistoso, com um belo rosto (mais para delicado), um nariz afilado, um sulco no queixo e gloriosos cachos dourados. Parecia ainda mais jovem ao lado da sofisticada Tilde e, apesar de não haver razões para confundi-la com a mãe dele, era difícil não notar a diferença de idade entre os dois.

Eles se juntaram a nós na mesa e Adair passou o tempo enchendo-o de perguntas. Ele era estudante de Harvard? (Sim.) Tinha família em Boston? (Não, tinha vindo da Filadélfia e não tinha família na região.) O que estava estudando? (Tinha paixão por ciências, mas seus pais queriam que continuasse no ramo da família, que era Direito.) Quantos anos ele tinha? (20) Com essa última resposta, Adair franziu o cenho como se não tivesse ficado satisfeito; uma resposta intrigante para uma pergunta tão direta. Então, Adair convidou o jovem para jantar conosco aquela noite, na mansão.

Falarei sem rodeios: o cozinheiro pode até ter servido um lombo de cordeiro, mas era claro e evidente que o jovem de cabelos cor de trigo era o prato principal. Adair continuou a fazer todo tipo de perguntas pessoais (tinha amigos na faculdade? Noiva?) e, quando o jovem começou a ficar constrangido, Alejandro interveio e passou a distrair a todos ao redor da mesa com histórias autodepreciativas e piadas. Mais vinho do que o normal foi servido, principalmente no copo do jovem, e, então, após o jantar, foi oferecido aos homens uma dose de conhaque, e todos nós nos juntamos novamente no salão de jogos. Ao final de uma noite de faraó, Adair deu a desculpa de que não poderíamos mandar o jovem de volta a seus aposentos da faculdade naquele estado, pois ele seria admoestado por embriaguez se os professores o vissem, e insistiu para ele passar a noite conosco. A essa altura, o jovem estudante quase não conseguia ficar em pé sem ajuda e não estava em condições de recusar o convite.

Adair pediu que um lacaio o acompanhasse escada acima enquanto nós nos juntamos do lado de fora do quarto de Adair, como chacais se limpando antes de dividir a caça da noite. Ao final, Adair decidiu que ele e eu apreciaríamos a companhia do jovem e liberou os outros. Bêbado como estava, ele, corajoso, seguiu as ordens de tirar a roupa e, afoito, seguiu-me até a cama. Aqui está a parte curiosa: enquanto o jovem se despia, Adair o observava de perto, não com prazer (como eu esperava), mas com olho clínico. Foi só então que notamos que o garoto tinha um pé torto; não era terrivelmente deformado e ele tinha uma bota especial que o ajudava a andar sem mancar muito. Mas, ao perceber isso, Adair pareceu visivelmente decepcionado.

Adair sentou-se numa cadeira e observou enquanto o jovem se encaixava em mim. Vi, sobre os ombros do garoto, a decepção no rosto de Adair, um desprezo por nosso convidado, que ele lutava para disfarçar. Ao final, Adair tirou a roupa e se juntou a nós, surpreendendo o jovem com suas atenções, que, todavia, foram aceitas (ele não resistiu a nada, apesar de ter uivado um pouco quando Adair foi mais bruto com ele). E nós três dormimos juntos, nosso convidado relegado ao pé da cama, sucumbido aos efeitos do álcool e ao resultado comum das efusões amorosas de um homem.

Na manhã seguinte, depois de o jovem ter sido levado embora por uma carruagem, Adair e Tilde estavam discutindo atrás das portas fechadas. Alejandro e eu nos sentamos à sala do desjejum, tomando chá, e os ouvimos, ou tentamos não ouvi-los.

— Sobre o que estão discutindo? — eu perguntei, apontando com a cabeça em direção ao cochicho.

— Adair nos deu ordens permanentes para procurarmos homens atraentes, mas só os mais atraentes. Devemos trazê-los para a apreciação dele. O que posso dizer? Adair gosta de um rosto bonito. Mas ele não é o único interessado em perfeição, vê? E entendo que o homem que Tilde trouxe para Adair era muito menos que perfeito...

— Ele tinha um pé torto. — Não via como isso pudesse fazer a mínima diferença; o rosto dele era maravilhoso.

Alejandro deu de ombros.

— Ah, então é isso! — Ele se ocupou passando manteiga na ponta do pão e não disse mais nada. Eu fiquei misturando o chá e pensando sobre as estranhas obsessões de Adair. O que aconteceu foi que ele fez sexo com o garoto como se fosse uma punição por decepcioná-lo de alguma forma. Incomodou-me pensar naquilo. Inclinei-me sobre a mesa e agarrei a mão de Alejandro.

— Lembra a conversa que tivemos, há algumas semanas, sobre o meu amigo? Meu belo amigo? Me prometa, Alejandro, que nunca contará a Adair sobre ele.

— Acha que eu faria isso com você? — ele disse, ofendido. Sei agora que seu ar ofendido era uma farsa. Ele era muito bom ator, Alejandro. Todos tínhamos que ficar com Adair, mas este era o papel de Alejandro no grupo: ser aquele que dissipava as preocupações e as incertezas, aliviava e acalmava a vítima de forma que ela não percebesse o golpe iminente. Na época, eu achava que ele fosse bom, ao passo que Tilde e Dona eram maus e amargurados, os impostores, mas vejo agora que cada um tinha um papel a desempenhar.

No entanto, na ocasião, acreditei nele.

 

Comecei a ficar mais curiosa com relação a meus companheiros de casa. Agora já os via como um bando que trabalhava junto, cada um com um objetivo, cada um desempenhando um papel com a facilidade adquirida ao fazer um trabalho muitas vezes. Incitar a vítima, distrair a presa, derrubar a caça azarada no chão, quer fosse o jovem de pé torto, quer uma figura fácil na mesa de jogo. Os três eram como cães de caça mantidos sob controle em suas coleiras; Adair só tinha que soltá-los e eles saíam, confiantes, para fazer o que ele ou ela tinham a obrigação de fazer. Eu era o quarto cão de caça, novo no bando e incerta sobre meu papel. E, como instrumentos bem afinados quando estavam juntos, eles relutavam em abrir espaço para eu entrar, certos de que eu os faria tropeçar, diminuindo a graça e a eficiência deles. Funcionava bem para mim: não tinha nenhuma vontade de me juntar a eles.

Esperei uma reação dos outros com relação à ternura de Adair por mim e fiquei surpresa quando não houve nada. Afinal, devo ter tirado um deles do posto de confidente e favorito de Adair. Mas ninguém estava incomodado. Não havia nem uma faísca de ciúme no ar. Na verdade, exceto por Alejandro, eles tinham pouco que ver comigo. Agora, todos os três me ofereciam um largo espaço na cama, mas sem malícia. Eles nos evitavam, a mim e a Adair, exceto quando voltávamos das festas, e, nessas ocasiões havia um ar de jovialidade forçada pairando sobre nós, como uma nuvem. Quando Tilde e eu nos olhávamos, por exemplo, às vezes notava o sorriso amargo combinado ao cenho franzido, mas o que via não parecia ser ciúme. Os três desapareciam pela casa como fantasmas, assombrados e impotentes.

Uma noite resolvi perguntar sobre isso a Adair. Afinal, era mais fácil que ele me dissesse a verdade do que os outros. Esperei até que encontrasse uma garrafa de conhaque e duas taças para levar ao quarto, enquanto os lacaios me ajudavam a tirar minha saia e o corpete, e a desmanchar o penteado. Quando Adair colocou a bebida em nossos copos, eu disse:

— Há algo que faz tempo que quero lhe perguntar...

Ele tomou um gole da bebida antes de passar uma taça para mim.

— Já esperava por isso. Você tem andado meio distraída ultimamente.

— São... são os outros — comecei, sem saber direito como continuar.

— Não me peça para mandá-los embora. Eu não farei isso. Você pode querer que passemos todo o tempo juntos, mas não posso deixá-los vagando por aí. E, além disso, é importante que fiquemos juntos. Nunca se sabe quando precisará que um de nós venha nos salvar, alguém que compreenda a obrigação. Um dia você entenderá o que estou falando — ele se apressou em dizer.

— Não quero que os mande embora. É só que fiquei pensando, Adair, qual coração está machucado agora que você passa todo seu tempo comigo? Qual deles sente mais profundamente a perda de sua atenção? Eu os vejo e sinto pena... Por que está rindo de mim? Não era minha intenção fazer graça para você.

Esperava que ele risse de minha pergunta, fizesse brincadeira sobre minha sensibilidade tola e me assegurasse que ninguém tinha ressentimentos contra mim, que os outros já tiveram sua vez como favoritos e sabia que esse nosso prazer não duraria para sempre, que a harmonia da família estava intacta. No entanto, essa não foi a reação de Adair. Sua risada não foi de prazer: foi de desdém.

— A perda de minha atenção? Acha que estão lá em cima, em prantos antes de dormir à noite, agora que já não são mais a menina dos meus olhos? Deixe-me contar um pouco sobre as pessoas com quem você divide seu lar; tem o direito de saber, já que está ligada a eles pela eternidade. É melhor manter a guarda quando eles estiverem por perto, minha querida! Eles não vão se preocupar com seu bem-estar, nunca. Não tem a menor ideia sobre quem eles são, não é?

— Alej me contou um pouco — murmurei, baixando os olhos.

— Aposto que ele não contou nada que tivesse alguma consequência e certamente nada que a fizesse pensar mal dele. O que ele falou sobre si mesmo?

Comecei a me arrepender de ter trazido esse assunto à tona.

— Só que ele vem de uma boa família da Espanha...

— Uma família muito boa. Os Pinheiro. Pode-se até dizer uma nobre família, mas hoje em dia não encontrará mais nenhum Pinheiro em Toledo, na Espanha. Sabe por quê? Já ouviu falar na Inquisição? Alejandro e sua família foram cercados pela Inquisição, pelo próprio inquisidor, Tomás de Torquemada. A mãe, o pai, a avó e a irmãzinha de Alejandro foram jogados na prisão. Deram-lhe duas chances: confessar os pecados e converter-se ao catolicismo, ou permanecer na prisão e morrer ali.

— Por que não se converteram? — gritei. — Para salvar a vida dele, isso teria sido assim tão terrível?

— Mas ele se converteu. — Adair serviu-se de mais conhaque e então ficou em pé, em frente ao fogo, com seu rosto iluminado. — Ele fez o que eles pediram. Teria sido um tolo em recusar, dadas as circunstâncias. A Inquisição se orgulhava de sua capacidade de quebrantar o ânimo de um homem: eles fizeram disso uma ciência. Eles o puseram numa cela tão pequena que precisava se curvar como uma bola para caber lá dentro, e então tinha que ouvir os gritos e as orações de todos os prisioneiros até o nascer do sol. Quem não enlouqueceria nessa situação? Você não faria qualquer coisa que lhe pedissem para se salvar?

Por um momento, havia só o som do crepitar do fogo e, em meu coração, implorei para que Adair não continuasse. Queria manter aquele Alejandro que conhecera, doce e preocupado com os outros, e continuar ignorando qualquer que fosse o mal que ele guardava. Adair inclinou a cabeça para trás para tomar o último gole da bebida, e olhou novamente para as chamas.

— Ele lhes deu a irmã. Eles queriam alguém para servir de exemplo, alguma pecadora no meio deles. Uma razão para eliminarem os judeus do país. Assim, ele lhes disse que sua irmã era uma bruxa, uma bruxa pecadora. Em troca de sua irmã de 14 anos, os padres o deixaram ir. E foi nessa época que o encontrei, gaguejando palavras sem sentido sobre o que tinha feito, como um louco.

— Isso é horrível! — Arrepiada, puxei o cobertor de pele em volta dos ombros.

— Dona entregou seu mestre às autoridades quando foi preso por ser sodomita. O homem que o havia tirado das ruas, que o alimentara e o vestira, e pintara sua imagem em todos os murais de Florença. Um homem que o adorava, o adorava de verdade, e Dona o entregou sem um segundo de hesitação. Seria tolo de minha parte esperar algo diferente vindo dele.

— E, então, tem a Tilde. Ela é a mais perigosa de todos. Vem de um país muito ao norte, onde, nos dias de inverno, o sol só brilha por algumas horas. Encontrei-me com Tilde numa dessas noites frígidas, na estrada. Ela havia sido molhada e deixada no frio da noite por seu próprio povo. Veja bem, ela tinha dado seu coração a um homem rico do vilarejo vizinho. Havia somente um obstáculo no caminho: ela era casada. E como ela resolveria o problema? Matando seu marido e seus dois filhos. Mas as pessoas do vilarejo descobriram seu plano e a condenaram à morte. Era para ela ter congelado até morrer e, quando eu a encontrei, ela já estava metade congelada. O cabelo estava duro como gelo, seus cílios e sua pele congelados feito cristal. Ela estava morrendo e, ainda assim, conseguiu olhar para mim com uma expressão de puro ódio.

— Chega — choraminguei, enterrando-me completamente debaixo do cobertor de pele. — Não quero saber de mais nada.

— O verdadeiro caráter de um homem está em como se comporta diante da morte. — Havia um tom de escárnio na voz de Adair.

— Isso não é justo. Uma pessoa tem o direito de fazer qualquer coisa para sobreviver.

— Qualquer coisa? — Ele arqueou a sobrancelha e bufou. — De qualquer forma, achei que tinha o direito de saber que é desperdício de tempo e de energia se simpatizar com eles. Embaixo da beleza e de seus bons modos, são monstros. Há uma razão por que escolhi cada um deles. Cada um deles tem um lugar em meus planos, mas nenhum é capaz de amar alguém, exceto a si mesmos. Eles não pensariam duas vezes em entregá-la caso pudessem ganhar algo em troca. Eles poderiam até ignorar a obrigação para comigo, se acreditassem poder se livrar de tal traição. — Ele deslizou de volta para a cama, acoplando seu corpo no meu, e notei uma estranha necessidade em seu toque. — E é isso que acho atraente em você, Lanore. Você tem uma grande capacidade de amar. Anseia entregar seu coração a alguém e, quando o faz, é com um comprometimento impossível, com uma lealdade inexaurível. Acho que faria qualquer coisa pelo homem que ama. Será um sortudo aquele que um dia ganhar seu coração. Gostaria de pensar que até mesmo eu poderia ser tão sortudo.

Ele acariciou meu cabelo por um tempo antes de pegar no sono, me fazendo pensar em quanto ele sabia sobre Jonathan, o quão precisamente Adair lera meus pensamentos. A conversa toda me deu arrepios; não conseguia ver o propósito de dar vida eterna a pessoas que não mereciam, em viver rodeado, pela eternidade, por covardes e assassinos, especialmente se o que ele buscava era lealdade. Os planos dele, e eu não duvidava que ele os tivesse, me intrigavam.

E a pior parte, a parte que eu não suportava encarar, era a razão de ele ter me escolhido para fazer parte daquela família tão perversa. Deve ter visto algo em mim que me fazia como os outros; talvez estivesse escrito em minha alma que eu fora egoísta a ponto de fazer outra mulher tirar a própria vida para ter quem amava. E, quanto ao convite para amá-lo, nunca imaginei que alguém como Adair sentisse a necessidade de ser amado ou que eu fosse o tipo de mulher capaz de amar um monstro. Passei a noite nos braços de Adair, arrepiada, enquanto ele dormia profundamente.

 

E Uzra? Não precisava ser um místico para ver que ela não se enquadrava no padrão dos outros membros da família de Adair. Ela flutuava acima deles. Não que os outros se esquecessem dela, mas nada se falava sobre ela. Não se esperava que ela se juntasse a nós quando nos reuníamos para beber e conversar até tarde da noite depois de voltar de uma festa; ela nunca se sentava à mesa conosco para uma refeição na sala de jantar. Mas podíamos ouvir ruídos dos passos no andar de cima ou nos corredores, como um rato subindo pelas paredes de madeira.

De vez em quando, Adair a chamava até o quarto, onde ela se juntava a nós, lábios cerrados, olhos baixos, rendendo-se, sem participar. No entanto, ela me procurava, depois, quando eu estava sozinha e me deixava pentear seu cabelo ou ler para ela, o que eu assumia ser uma maneira de me dizer que não me responsabilizava pelo que acontecia na cama de Adair ou que, pelo menos, perdoava minha obediência a ele. Uma vez, sentei-me quieta para que ela pudesse pintar meu rosto à moda de sua tribo nativa, com grossos contornos de kajal ao redor de meus olhos e a linha estendida para fora, na direção das têmporas. Ela me envolveu num de seus tecidos longos e esvoaçantes de forma que só meus olhos ficassem visíveis e, devo dizer, fiquei com um visual bem exótico.

Às vezes, ela me lançava uns olhares estranhos, como se estivesse tentando falar com a minha alma, encontrar alguma forma de enviar uma mensagem a mim. Um aviso. Não acreditava precisar de nenhum aviso dela; eu sabia que Adair era um homem perigoso e que arriscava ter um grande estrago em minha alma e em minha sanidade se chegasse muito perto dele. Acreditava saber onde ficava a linha de controle e que seria capaz de parar a tempo. Que estúpido de minha parte!

Ocasionalmente, Uzra vinha ao meu quarto e me abraçava, como se quisesse me confortar. Algumas vezes ela me tirava da cama, insistindo para que eu a acompanhasse até um de seus esconderijos. Agora entendo que ela fez isso para que eu soubesse aonde ir quando viesse o dia em que teria de me esconder de Adair.

Tilde, por outro lado, não me avisou de nada quando, uma tarde, pegou-me pela mão com um suspiro irritado e, ignorando minhas perguntas, segurou-me firme e me levou até um quarto raramente usado. Lá, na mesa perto do fogo, havia um frasco de tinta, algumas agulhas dispostas em leque e um velho lenço muito manchado. Ela ajeitou-se numa cadeira, colocou os cabelos caídos atrás da orelha e não se importou nem um pouco comigo.

— Tire seu espartilho e arregace as mangas da camisa — ela ordenou, bem objetiva.

— O que está acontecendo? — quis saber.

— Não estou pedindo, sua vagabunda estúpida! — ela disse, tirando a tampa do frasco de tinta e limpando a tinta de seus dedos. — Isso é ordem de Adair. Me dê seu braço.

Rangendo os dentes, fiz o que mandou, sabendo que Tilde adorava me perturbar, e sentei-me, irritada, no banquinho oposto a ela. Ela agarrou meu punho direito e puxou meu braço para ela, girando-o para que a parte de dentro ficasse exposta; então, prendeu meu braço embaixo do dela do jeito que um ferreiro prende o casco de um cavalo entre os joelhos para colocar as ferraduras. Olhei desconfiada enquanto ela selecionava a agulha, mergulhava-a na tinta e, depois, enfiava-a na pele branca delicada da parte de dentro de meu antebraço. Eu pulei, ainda que não sentisse nada mais do que a pressão do contato.

— O que está fazendo?

— Já lhe falei, são ordens de Adair — ela grunhiu. — Estou espetando uma marca na sua pele. Chama-se tatuagem. Pelo jeito você nunca viu uma.

Olhei para os furinhos pretos, três, agora quatro; Tilde trabalhava rápido. Pareciam pintas falsas feitas com maquiagem. Depois de quase uma hora, Tilde completara o contorno de um brasão quase do tamanho de um dólar e começava a desenhar uma figura animalesca e fantástica. Levei um minuto para perceber que estava desenhando um dragão. Foi nessa hora que Adair entrou. Ele meneou a cabeça para assistir Tilde fazer o trabalho; passou o dedão sobre o desenho, agora cheio de tinta preta e sangue vermelho, para ter uma visão melhor.

— Sabe o que é isso? — ele me perguntou, orgulhoso. Balancei minha cabeça. — É o brasão de minha família. Ou melhor, o símbolo de minha linhagem adotiva — ele corrigiu. — É o emblema do selo do qual lhe falei.

— Por que está fazendo isso comigo? O que isso significa? — perguntei.

Ele pegou o lenço e limpou a tatuagem, para melhor admirá-la.

— O que acha que isso significa? Estou marcando você como minha.

— Isso é realmente necessário? — perguntei, tentando soltar meu braço, o que só me rendeu um leve tapa na cara, dado por Tilde. — Suponho que faça isso com todas as suas criaturas. E a sua, Tilde? Posso ver, assim vou saber como vai ficar quando...

— Não tenho uma — ela disse abruptamente, sem tirar os olhos do trabalho.

— Não tem? — Olhei para Adair. — Então, por que eu?

— É algo especial que escolhi dar a você. Significa que é minha para sempre.

Não gostei do ar de posse no olhar dele.

— Há outras formas de demonstrar uma intenção tão especial a uma garota. Um anel, um colar, algum objeto de sua devoção é um método mais tradicional, acredito — eu disse, testando-o. Minha alegria pareceu alegrá-lo.

— Esses são apenas momentos, triviais e passageiros. Pode-se tirar um anel; não conseguirá fazer a mesma coisa com isso.

Olhei para o trabalho manual de Tilde.

— Quer dizer que... minha pele ficará pintada para sempre?

Com isso, ele deu aquele sorriso sarcástico que já conhecia quando estava prestes a fazer algo doloroso. Ele puxou meu braço para longe de Tilde e o prendeu embaixo do seu, respirou fundo, pegou uma das agulhas e enfiou no centro do trabalho manual de Tilde, com cuidado para fincar bem no meio do desenho. Uma dor lancinante percorreu meu antebraço, as picadas das agulhas de Tilde vindo à tona todas de uma vez só.

— Pela minha mão e intenção — ele disse para o ar, como uma proclamação, e, assim, a ferida doeu como se tivessem esfregado sal na carne aberta. Ele girou meu braço bem forte para poder olhar novamente a tatuagem e eu retorci de dor antes de ele me soltar.

— Lanore, assim você me surpreende! — Adair disse, apesar do exagero para fazer drama. — Achei que fosse gostar de saber que eu a tenho em tão alta estima que quis lhe possuir pela eternidade.

O problema era que ele estava certo: aquilo realmente agradava à minha parte perversa que queria que um homem me desejasse tanto que quisesse queimar seu nome em minha pele. Mas não estava tão iludida a ponto de não ficar alarmada; também pelo fato de ser tratada com um animal.

Semanas se passaram dessa maneira. Eu estava satisfeita com Adair na maioria dos dias: ele era atencioso, bondoso e generoso. Fazíamos amor ardentemente. Mas havia vezes que ele agia com crueldade, sem razão aparente, a não ser por seu próprio prazer. Nessas vezes, Alejandro, Tilde, Dona e eu nos tornávamos bobos da corte tentando agradar um regente vingativo e fazê-lo mudar seu humor terrível ou, pelo menos, tentando escapar de ser o objeto da sua crueldade. Nesses momentos, sentia-me trancada num manicômio, desesperada para sair, mas sabia que não podia. Os outros ainda estavam com Adair, mesmo após décadas desse tratamento exasperante. Disseram-me que Uzra tentara fugir dele incontáveis vezes. Com certeza, se existisse uma maneira de escapar, eles já o teriam feito.

Além disso, apesar de minha preocupação com Adair, Jonathan começou a voltar para os meus pensamentos. No início era culpa o que eu sentia, pois havia outro homem em minha vida (como se eu tivesse opção!). Ainda assim, por mais logicamente que pensasse sobre o assunto, por mais que me lembrasse vigorosamente de como me tratara mal, como havia sido frio, sentia falta de Jonathan e sentia estar sendo desleal a ele. Não tinha importância que ele estava prometido a outra mulher e que abdicara da posse de meu coração: dormir com um homem amando outro parecia errado.

E eu ainda amava Jonathan. Um exame profundo de meu coração me disse isso. Por mais que estivesse lisonjeada com as atenções de Adair, contente por um homem que já vira o mundo me achar inebriante, em meu coração, sabia que, se Jonathan chegasse à cidade amanhã, eu abandonaria Adair sem nem mesmo dizer adeus. Estava só sobrevivendo. A única esperança que me restava era um dia ver Jonathan novamente.

 

O tempo passava vagaroso, imensurável. Havia quanto tempo estava com Adair: seis semanas, seis meses? Já tinha perdido a conta e estava convencida de que não tinha importância; na minha nova condição, nunca mais teria que contar o tempo de novo. O tempo, em todo seu infinito, estava aberto a mim como o oceano e, como da primeira vez que o vi, muito além de meu alcance.

Numa tarde azul e dourada de verão, ouvi uma batida na porta da frente. Como estava passando por lá e não havia nenhum criado por perto (com certeza estavam se recuperando da bebedeira com o vinho tinto roubado da despensa), eu abri a porta, pensando que seria um vendedor ou alguém para visitar Adair. Em vez disso, em pé nos degraus, bolsa na mão, estava o carismático pastor de olhos esbugalhados de Saco.

Ficou boquiaberto ao me ver e seu rosto perspicaz se iluminou de prazer.

— Conheço você, senhorita, não conheço? Reconheço seu lindo rosto, pois um rosto como o seu eu não esqueceria — ele me disse, esgueirando-se para dentro do hall sem ser convidado. Ele esbarrou sua capa empoeirada em mim e tirou o chapéu de três pontas da cabeça.

— Também o conheço, senhor — respondi horrorizada, esquivando-me, incapaz de adivinhar o quê no mundo o trouxera até ali.

— Bem, não mantenha em suspense, então. Qual é seu nome e onde nos encontramos? — ele perguntou, ainda sorrindo, tentando esconder os cálculos que fazia em sua cabeça para lembrar onde havíamos nos conhecido e em quais circunstâncias. Então, em vez de lhe responder, perguntei:

— Por que veio aqui? Você conhece Adair? — Minha cautela parecia diverti-lo.

— Claro que eu o conheço, senão, por que apareceria aqui em sua porta? Eu o conheço da mesma forma que você o conhece, posso apostar.

Então, era verdade, ele e eu éramos a mesma coisa: duas criaturas de Adair. E finalmente ele se lembrou, seu rosto se iluminou com puro prazer.

— Ah, agora me lembro! Aquele pequeno vilarejo no Maine, não muito longe do assentamento de Acadia! É de lá que conheço você! Sem aquele vestido marrom mal-ajambrado, você está praticamente irreconhecível! Vestida em seda azul e renda francesa! É uma transformação formidável, dou-lhe minha palavra. Deixou os puritanos para trás sem arrependimentos, não é? São sempre os mais comportados que têm o coração mais selvagem — ele disse, semicerrando os olhos maliciosamente, provavelmente pensando que tínhamos uma boa chance de terminarmos na cama. Tudo o que tinha que fazer era pedir para Adair, e era muito improvável que Adair lhe negasse. Naquele momento, fomos interrompidos pela voz de Adair, vinda do patamar do andar de cima.

— Vejam só quem apareceu na minha porta! Jude, veio dar uma trégua de suas viagens? Entre, entre, já faz muito tempo que não o vejo — ele disse enquanto descia correndo pelas escadas. Depois de abraçar Jude afetuosamente, notou que ele olhava fixamente para mim, em regozijo, e então Adair perguntou: — O que é isso? Vocês já se conhecem?

— Na verdade, já — Jude disse, rodando à minha volta, fazendo um grande espetáculo sobre a minha figura. — Escrevi para você falando sobre uma jovem, um tempo atrás. Você se lembra da carta descrevendo uma beleza provavelmente virgem com um traço selvagem?

Eu me recompus, queixo para cima.

— O que quer dizer com isso?

Mas Adair só gargalhou e tocou meu rosto para amainar minha raiva.

— Tudo bem, minha querida. Acho que o que ele quis dizer é bem simples, e você não estaria aqui ao meu lado se não fosse verdade.

Os olhos do visitante indesejado passaram por mim como as mãos de uma dona de casa provando um pedaço de fruta.

— Bem, posso apostar que ela não é mais uma virgem, ahn? Então você transformou essa mocinha de pavio curto em sua esposa espiritual, não foi? — Jude perguntou a Adair num tom de desdém e se dirigiu a mim. — Deve ser seu destino, minha querida, você ter vindo parar aqui, não acha? E você tem sorte, Adair, por não precisar ter feito a jornada até lá para buscá-la; acredite em mim, não é uma viagem que desejaria a ninguém. Ela também me deu um pouquinho de trabalho quando eu estava lá. Não quis me apresentar o camarada sobre quem lhe escrevi.

Ele estava se referindo a Jonathan. Segurei minha língua.

— Gostaria que você parasse com essa bobagem de “esposa espiritual”, pelo menos quando estiver comigo. Não me serve para nada esse lero-lero espiritual — Adair falou ao jogar um braço sobre o ombro de Jude e levá-lo até o salão de visitas, onde o visitante caminhou diretamente até as garrafas de vinho. — Mas de quem você está falando? De que camarada?

O pastor encheu uma taça para si.

— Você não lê minhas cartas? Para que pedir que eu escreva sobre minhas observações se não vai prestar atenção nelas? Estava tudo no meu relatório, sobre o que encontrei naquele vilarejo miserável no fim do mundo, no canto mais ao norte do território. Sua última aquisição aqui — ele fez um sinal com a cabeça enquanto tomou um gole de vinho — me impediu de conhecer um jovem extraordinário. Pelo que pude ver, ela o protegia com muito ciúme. Esse homem é exatamente o que procura, se as histórias que ouvi sobre ele forem verdadeiras.

Minha pele se arrepiou; algo terrível estava prestes a acontecer. Fiquei paralisada de apreensão.

Adair colocou vinho para ele e não o ofereceu para mim.

— Isso é verdade, Lanore? — Eu não sabia como responder e, de qualquer maneira, naquele momento o bom senso havia me abandonado. — Pelo seu silêncio posso dizer que sim. Quando ia me contar sobre ele? — Adair perguntou.

— Seu espião entendeu tudo errado. Esse homem não é digno de sua atenção. — Nunca imaginei dizer palavras como essas sobre Jonathan. — Ele é só um amigo.

— Ah, não é digno de minha atenção! Estamos falando de Jonathan, o homem de quem você falou maravilhas para Alej? Não fique surpresa; claro que Alejandro me contou. Ele sabe que não deve manter segredos. Então, para esclarecermos, esse Jonathan, esse ideal de beleza, é o homem que ama? Estou decepcionado, Lanore, de saber o quanto você pode ser facilmente levada por um rosto bonito...

— Quem é você para falar! — eu disse enraivecida. — Quando se fala em amor à beleza, quem é que junta criaturas bonitas em volta de si como um colecionador de artes? Se o amor à beleza é sinal de superficialidade, você é muito mais culpado do que eu...

— Ah, não se ofenda tão rápido. Só estou brincando. O simples fato desse tal de Jonathan ser o homem que você acredita amar é razão suficiente para eu querer conhecê-lo, não acha?

Jude levantou as sobrancelhas.

— Se eu não o conhecesse, Adair, diria que está levemente enciumado.

Para que Adair mudasse de ideia, eu implorei:

— Tenha misericórdia de Jonathan! Ele tem uma família que depende dele. Não quero que ele seja trazido para isso. Quanto a amá-lo... você está certo, mas ele já saiu da minha vida. Eu já o amei uma vez, não o amo mais.

Adair inclinou a cabeça e me avaliou.

— Ah, minha querida, você está mentindo. Você já teria desistido dele agora, se fosse o caso. Mas ainda o ama. Posso sentir aqui — ele disse e tocou meu peito acima do coração. — Quero conhecer esse homem de beleza extraordinária que encantou nossa Lanore.

— Se isso tem a ver com ir para cama com ele, não vai adiantar. Ele não é... como Alejandro ou Dona.

Jude soltou uma gargalhada rude, então cobriu a boca rapidamente e, por um momento, pareceu que Adair, borbulhando de raiva, ia me bater.

— Acha que estou interessado nesse homem só para poder copular com ele? Acha que esse seria o meu único uso para um homem como o seu Jonathan? Não, Lanore, quero conhecê-lo. Quero ver por que ele é tão merecedor de seu amor. Talvez sejamos almas gêmeas, ele e eu. Seria bom ter um novo companheiro, um amigo. Estou cansado de estar rodeado por bajuladores. Vocês não passam de criados, traidores maquiavélicos, arrogantes. Estou cansado de todos vocês. — Adair saiu e bateu o copo vazio sobre o aparador. — Além do que, que reclamações você teria sobre a vida aqui? Seus dias são plenos de prazer e conforto. Já lhe dei tudo o que queria, tratei-a como a uma princesa. Ampliei seus horizontes, não foi? Livrei sua mente das limitações impostas por aqueles ministros e pastores ignorantes, e lhe mostrei segredos que os sábios passam a vida buscando. Dei-lhe todas essas coisas gratuitamente, minha querida, não foi? Francamente, sua ingratidão me ofende.

Mordi minha língua, sabendo que a reação não seria nada boa se eu falasse sobre tudo o que ele me havia feito passar. O que poderia fazer, exceto baixar a cabeça e murmurar...

— Desculpe-me, Adair.

Ele abriu e fechou as mandíbulas, pressionando as articulações dos dedos na mesa, usando o silêncio entre nós para mostrar que sua fúria estava passando.

— Se Jonathan é seu amigo de verdade, imagino que queira compartilhar sua boa sorte com ele.

Aquela devia ser a visão de Adair sobre minha vida com ele, mas apenas demonstrava o tamanho de sua desilusão. A verdade era mais complexa; por mais grata que eu fosse, também tinha medo dele e me sentia uma prisioneira naquela casa. Tinha sido transformada numa prostituta e não queria que Jonathan me visse assim, quanto mais trazê-lo a esse sofrimento comigo.

Quando saía da sala, Adair deu-me um sorriso falso por sobre o ombro.

— Não pense, em nenhum momento sequer, que pode me enganar, Lanore. Você protesta, mas, em seu coração, você também deseja isso.

Não podia deixar que Jonathan tivesse o mesmo destino que o meu; jamais.

— Jude não está exagerando: Jonathan vive longe, muito longe — continuei, ignorando seu ultraje. — Teria que viajar durante três dias de navio e carruagem, e, no final, encontraria nada além de floresta e pasto. Sem festas, sem jogos de azar. Nem mesmo uma taverna para animá-lo.

Adair me estudou por um segundo.

— Muito bem, então. Eu não farei esta viagem, se é tão tediosa assim como diz. Você a fará e o trará para mim. Este é um bom teste para sua lealdade, não acha?

Meu coração partiu.

 

Durante a estadia na mansão, Jude ia conosco às festas, mas, ao final de uma noite de bebedeira, quando o grupo ia para os quartos, Adair não permitia que ele nos acompanhasse lá dentro, colocando um ombro na porta, com um sorriso falso e um boa-noite festivo.

A estadia de Jude foi curta. Ele passou uma tarde a portas fechadas com Adair no estúdio e, depois, o vi enchendo sua bolsa de moedas; com certeza Adair o estava recompensando por algo.

No dia de sua partida, Jude me procurou enquanto estava costurando na sala do desjejum, aproveitando a luz do sol. Ele fez uma mesura, como se eu fosse a dona da casa, segurando o chapéu nas mãos.

— Ponto cruz? Estou surpreso em ver que você ainda pegue em agulha e linha, Lanore. Certamente tem criados para fazer as tarefas domésticas — ele disse. — Mas, pensando bem, é uma boa ideia praticar suas habilidades. A vida com Adair não será sempre assim, sabe: a mansão, os criados, as riquezas na ponta dos dedos. Haverá tempos magros quando precisará cuidar de si mesma, se é que minha experiência pode lhe ser útil — ele disse, sorrindo com melan­colia.

— Obrigada pelo conselho — eu disse friamente, demonstrando minha intolerância com sua presença. — Está vendo que estou ocupada; tem algum motivo para me procurar?

— Não vou mais abusar de sua boa vontade, senhorita Lanore — ele respondeu quase docilmente. — Irei embora hoje.

— De minha boa vontade? Meus sentimentos não são considerados no que tange à sua presença nessa casa ou não. O desejo de Adair é tudo o que interessa.

O pastor deu uma risada, batendo o chapéu na perna para tirar o pó.

— Lanore, com certeza você sabe que Adair leva em consideração os seus desejos na maioria das coisas. Ele gosta de você; acho que deve ser muito especial para ele. Não me importo em lhe dizer que nunca o vi agir dessa forma antes... Ousaria dizer que ele nunca esteve tão envolvido com uma mulher. — Tenho que admitir ter ficado lisonjeada com as palavras dele, apesar de manter a cabeça baixa sobre a costura e tentar não demonstrar nada. Jude, então, fixou seu olhar maníaco sobre mim.

— Eu também vim para lhe prevenir. É um jogo perigoso, esse que você está jogando. Há uma razão para o resto de nós mantermos uma distância de Adair, e aprendemos nossa lição da maneira mais difícil. Mas, agora, você mostrou-lhe o amor e isso deu a ele a noção de que ele é merecedor de tal devoção. Alguma vez já pensou que a única coisa que mantém o demônio sob controle é o fato de ele saber o quanto é desprezado? Até mesmo o demônio, às vezes, anseia por simpatia, mas simpatia pelo demônio é o combustível para a chama. Seu amor o fará mais forte, provavelmente de uma maneira que fará você se arrepender.

Seu aviso me surpreendeu e me deixou agitada; não era algo que esperava dele. Mas não disse nada, esperando que ele continuasse.

— Tenho uma pergunta para você e espero que seja honesta comigo. O que uma garota como você vê em Adair? Já olhei dentro de seu coração e vi que é selvagem e aventureiro. Ele lhe apresentou o mundo dos prazeres carnais e você o tomou de uma forma que somente uma criança criada pelos puritanos o faria, para o deleite de Adair, devo dizer. Talvez sua impetuosidade seja apenas tolice, Lanore; já pensou nisso? Entregue seu lindo corpo a Adair, se isso é o que quer, mas por que daria seu coração para um homem que só vai abusar dele? Ele não é merecedor de sua lealdade, do seu amor. Está sendo irresponsável com seu coração, Lanore. Acho que é inocente demais para se envolver com pessoas do tipo de Adair. Perdoe-me por dizer o que penso, mas é para o seu próprio bem.

Fiquei estupefata com as palavras dele. Quem era ele para me chamar de tola? Estava presa como o restante deles, não estava obrigada a agradar o mestre tirânico para sobreviver. Não, naquele tempo eu me via fazendo o melhor que podia numa situação terrível. Vejo diferente agora, obviamente. Sei que fui impulsiva e incapaz de dizer a verdade a mim mesma. Deveria ter sido grata por Jude arriscar-se tanto para me prevenir dentro da casa do próprio Adair, mas estava muito desconfiada para confiar nele e, em vez disso, tentei enganá-lo, a fim de pensar que eu sabia o que estava fazendo.

— Bem, obrigada pelo aviso, eu acho, mas perdoe-me se eu disser que devo decidir sozinha o que será feito.

— Ah, mas isso não envolve só você, não é? — ele perguntou. — Está prestes a trazer o seu Jonathan para dentro dessa história, o homem por quem você professa um amor tão imenso. O ímpeto com que concordou com a proposta de Adair me faz pensar se, talvez, ele não esteja certo. Você quer fazer como Adair lhe mandou, não quer? Você quer que seu amor seja capturado pela armadilha de Adair, pois isso significa que ele estará preso com você.

— Sabe o que eu acho? — eu quase gritei, empurrando a costura do meu colo para ficar em pé. — Não está aqui para me prevenir de nada; está com ciúmes. Você queria ter trazido Jonathan para Adair, mas não conseguiu. Eu terei sucesso onde você falhou... — Apesar de toda a minha veemência, não fazia ideia do que estava falando; eu com certeza teria mais influência do que Jude sobre Adair, mas com que objetivo? Jude sabia, mas eu não. Ele balançou a cabeça e recuou um passo.

— Eu me certifico de que as pessoas que trago até Adair sejam merecedoras da atenção. E eles vão até Adair por livre-arbítrio. Além disso, nunca daria a ele alguém que eu alegasse amar. Nunca.

Deveria ter perguntado a ele o que queria dizer com tudo aquilo, mas, jovem como era, achei melhor enganá-lo do que lhe revelar que eu não sabia o que estava fazendo. E eu não confiava em Jude; ele estava me mostrando um lado completamente diferente de tudo o que estava acontecendo e eu não sabia o que fazer com aquilo. Será que estava tentando me encurralar num momento de deslealdade a Adair, o mestre a quem servira por muito mais tempo do que me conhecia? Talvez esse fosse o papel dele no bando de Adair, ser o infiltrador, o informante.

Forcei um brilho no meu rosto, mas estava tremendo, nervosa. Jude havia me levado ao limite de minha compostura.

— Já ouvi o suficiente. Saia antes que eu vá até Adair e conte sua traição.

Ele recuou, surpreso, mas só por um momento, então deixou os ombros caírem. Fez uma nova mesura, fingindo respeito, enquanto saía da sala.

— Vejo que estava completamente errado sobre você, Lanore. Está muito longe de ser irresponsável com seu coração... Sabe exatamente o que está fazendo, não sabe? Espero que tenha feito as pazes com Deus antes de fazer o que está prestes a fazer.

Tentei acalmar minha respiração e meu coração disparado, e dizer a mim mesma que nenhuma palavra dele era verdade.

— Saia — repeti, dando um passo na direção dele como se pudesse enxotá-lo da casa. — E espero nunca mais vê-lo de novo.

— Ah, suponho que esse não seja o nosso destino. O mundo é um lugar pequeno, ainda mais quando se tem a eternidade, como vai perceber. Quer queira, quer não, nossos caminhos se cruzarão de novo — ele disse enquanto saía da sala.

 

Os preparativos para minha viagem começaram imediatamente, minha passagem estava marcada e eu partiria num navio de carga que sairia de Camden em quatro dias. Dona, absolutamente feliz por me ver partir, ajudou-me a escolher dois baús de viagem reforçados, dentro das dúzias e dúzias que vieram da viagem da Europa. Num deles pusemos minhas melhores roupas e, no outro, presentes para minha família: um rolo de seda da China; um conjunto de gola e punhos feitos com renda da Bélgica, prontos para serem colocados num vestido; um colar de ouro com opalas ligeiramente rosadas. Adair insistiu para que eu levasse atrativos a Jonathan, para mostrar a ele algumas das delícias disponíveis fora da Floresta Great North. Expliquei a ele que meu amigo tinha apenas uma fraqueza, as mulheres, e, assim, Dona revirou as caixas e descobriu um jogo de cartas de baralho pintado com figuras lascivas no lugar do rei, da rainha, do valete de vários naipes, com a rainha de copas sendo decapitada em uma pose especialmente distinta e ousada; um livro de versos pornográficos (Jonathan nunca tendeu muito à literatura; se algum livro pudesse fazer de Jonathan um leitor, esse certamente seria o tal); uma estátua de jade, que disseram ter sido comprada no Oriente distante, de um trio que participava de uma aventura sexual; e, por último, um rolo de veludo para joias contendo, em vez de pulseiras ou brincos, um jogo de pênis esculpidos em madeira, ébano e marfim. Franzi o cenho para o último presente.

— Não sei se isso faria o gosto dele — eu disse, segurando o de ébano, o maior do trio, para analisar seus detalhes.

— Não para o uso dele — Dona disse, tirando o objeto de mim e o enrolando junto com os outros, no invólucro de veludo. — Você já deixou claras as tendências dele. Isso pode ser usado, por exemplo, para divertir suas mulheres, uma novidade para estimular o apetite delas e as deixar mais animadas. Quer que mostre como são usados? — ele perguntou e então me jogou um olhar de lado, incrédulo com minha falta de sofisticação sexual, pensando que talvez eu não estivesse à altura do trabalho.

Enquanto Dona fuçava os baús, determinado a encontrar a bugiganga que tinha na cabeça, eu me diverti mexendo também nas cômodas, desenrolando pacotes misteriosos, maravilhando-me com o tesouro guardado dentro deles (uma caixa de música adornada com joias no formato de um ovo; um pássaro mecânico de miniatura que batia as asas e cantava uma musiquinha). Algum tempo depois, num baú empoeirado enfiado debaixo das calhas no canto mais ao fundo, encontrei um objeto que me deu frio na barriga. Um selo pesado, de cor dourada (mas com certeza feito de latão; um objeto daquele tamanho feito de ouro valeria uma fortuna), enrolado em veludo e guardado dentro de uma bolsa de pele de veado. O selo do físico, morto havia muitos anos, de quem Adair havia contado? Teria ficado com ele como lembrança?

— Aqui está! — A voz de Dona me trouxe de volta e eu fechei o baú apressadamente, colocando-o de volta no lugar onde estava. Dona havia embalado os pacotes de Jonathan num quadrado de seda vermelha e amarrado com uma corda dourada. Os presentes de minha família, ele havia embrulhado num pedaço de tecido azul com fitas brancas. — Não confunda estes dois pacotes.

Talvez eu tivesse ficado complacente por causa dessas preparações. Adair estava sendo muito generoso com a quantidade de presentes, com os luxuosos arranjos de viagem. Comecei a pensar se eu não teria uma escolha, se essa não seria minha chance de escapar de seu domínio. Talvez eu não confiasse em mim mesma para considerar essas possibilidades rebeldes na presença de Adair, deitada na cama ao lado dele, mas certamente estaria segura a centenas de milhas longe dele.

Esses pensamentos me confortavam, até me deixavam mais forte. Comecei a ver a viagem como minha chance de fuga; talvez pudesse convencer Jonathan a abandonar a família e deixar suas expectativas com relação a ela para trás, e a fugir comigo.

Foi assim, até a tarde seguinte.

Tilde e eu voltávamos da chapelaria com seu novo chapéu, quando vimos a garota. Ela estava num beco, olhando para o tráfego na rua. Do que podíamos ver dela, era magra e acinzentada, uma ratinha vestida em trapos soltos. Tilde foi até a garota, fazendo-a esconder-se ainda mais para dentro do beco.

Fiquei pensando por que Tilde fora até a garota, para começar, e se eu deveria me juntar a elas, quando começaram a vir em minha direção. Na penumbra da luz da tarde, pude ver o estado deplorável dela: parecia um trapo que fora amassado e jogado fora, a consciência de que era descartável estampada para sempre em seus olhos.

— Esta é Patience — Tilde falou, segurando a mãozinha da menina nas mãos dela. — Ela precisa de um lugar para ficar, então achei que pudéssemos levá-la para casa conosco, dar-lhe um prato de comida e um teto por alguns dias. Você não acha que Adair se importaria, acha? — O sorriso dela era lupino e triunfante, fazendo-me lembrar de como ela e os outros me acharam na rua alguns meses antes. O efeito foi exatamente o que ela pretendia. Vendo a preocupação em meu rosto, Tilde me lançou um olhar duro e de advertência, e eu sabia que não era para falar nada.

Tilde chamou a carruagem e apressou a garota pelos degraus na nossa frente. A pequena sentou-se na ponta do banco, olhando pela janela com olhos arregalados, observando Boston passar. Será que eu estava assim, tão deplorável, nada além de uma presa para o caçador, praticamente implorando para ser devorada?

— De onde você é, Patience? — eu perguntei.

Ela me olhou com cautela.

— Eu fugi.

— De casa?

Ela assentiu, mas não deu mais explicações.

— Quantos anos você tem?

— Quatorze. — Ela parecia não ter mais do que 12 anos e sabia disso, seus olhos fugiram de meu olhar inquisitivo. Tilde a levou para um dos quartos no andar de cima quando chegamos à mansão.

— Mandarei um criado com água, para você poder se lavar — ela disse, fazendo a garota passar a mão em seu rosto sujo, constrangida. — Vou mandar alguém trazer comida também e procurar algo mais quente para você vestir. Lanore, por que não vem comigo?

Ela foi direto a meu quarto e começou a remexer em minhas roupas, sem pedir permissão.

— Demos todas as coisas pequenas para você, eu acho... Com certeza você tem algo que servirá na garota...

— Não entendo... — cortei a frente de Tilde e fechei a porta do armário. — Por que a trouxe aqui? O que pretende fazer com ela?

Tilde sorriu zombeteira.

— Não se faça de boba, Lanore. Você, mais do que todo mundo, deveria saber...

— Ela ainda é uma criança! Não pode oferecê-la a Adair como se ela fosse um brinquedo. — Até onde eu sabia, Adair nunca molestara uma criança. Achei que não teria estômago para isso. Tilde foi até o baú.

— Ela pode ser novinha, mas não é inocente. Ela me disse que fugiu de um reformatório para onde foi mandada para ter seu bebê. Quatorze anos e com um filho! Honestamente! Estamos fazendo um favor a ela — Tilde falou, enquanto pegava um conjunto de roupas de baixo com rendas de algodão. Eu me joguei na cama.

— Dê-lhe isso e ajude-a a se limpar um pouco. — Tilde jogou a roupa em minha cara. — Vou providenciar alguma coisa para ela comer.

Patience estava em pé, perto da janela, olhando para a rua, quando eu voltei para o quarto. Ela tirou as mechas sujas de cabelo castanho dos seus olhos e olhou cobiçosamente para as roupas em meus braços. Dei as roupas para ela.

— Vamos, coloque isso! — Virei as costas enquanto ela se despia. — Tilde me disse que você veio de um reformatório...

— Sim, senhorita.

— E que você teve um bebê. Diga-me, o que aconteceu com seu filho? — Meu coração batia na garganta; sem dúvida ela não teria fugido e deixado o bebê para trás.

— Eles o tiraram de mim — ela disse, em defesa. — Nunca mais o vi, desde que nasceu.

— Sinto muito.

— Isso está feito e acabado. Gostaria... — Ela parou, talvez pensando melhor sobre compartilhar muita coisa com essas mulheres suspeitas que a tiraram da rua. Sabia como ela se sentia. — A outra mulher me disse que talvez haja um emprego para mim aqui, como ajudante de cozinha, quem sabe?

— Você gostaria?

— Mas ela disse que tenho que conhecer o dono da casa antes, para ver se ele me aprova. — Ela procurou algum sinal de concordância em meu rosto, um sinal de que não estavam lhe pregando uma peça. Tilde estava errada; essa menina ainda era muito inocente. Gostando ou não, eu ouvia as palavras de Jude soarem em meus ouvidos: ela era muito inocente para se envolver com pessoas do tipo de Adair. Não podia deixar que lhe acontecesse o mesmo que acontecera comigo. Agarrei a mão dela.

— Me acompanhe. Não diga uma palavra, nem faça barulho.

Descemos apressadamente a escadaria de trás, a dos criados, que eu sabia que Tilde nunca usava, e atravessamos a cozinha até a entrada de serviço. Havia um punhado de moedas no canto de tábua de cortar, certamente esperando pelo entregador; peguei o dinheiro e o pressionei dentro da mão de Patience.

— Vá. Leve o dinheiro e fique com a roupa.

Ela olhou para mim como se eu tivesse ficado louca.

— Mas para onde irei? Se eu voltar para o reformatório, eles com certeza vão me castigar, e eu não posso voltar para casa, para minha família...

— Então receba seu castigo ou peça perdão à sua família. Há ainda muito mais maldade, além de tudo o que viu até agora, Patience. Vá! É para seu próprio bem — eu disse enquanto a empurrava para fora. Fechei a porta. Neste momento, a arrumadeira entrou e me olhou, desconfiada. Então eu subi para o abrigo do meu quarto.

Andava com passos apressados. Se eu havia expulsado a garota para sua própria segurança, que desculpa me restava para viver ali? Sabia que o que estava fazendo com Adair era errado, sabia que esse era um lugar perverso e ainda assim... o medo me manteve no lugar. Assim como o medo tomava conta de mim, seria só uma questão de minutos até Tilde perceber que sua presa fora solta. Então ela e Adair me caçariam como dois leões. Comecei a colocar as roupas numa sacola, já que todos os nervos do meu corpo me diziam para fugir. Fugir ou encarar uma fúria terrível.

Eu estava na rua, dentro da carruagem, e sem pensar, contava o dinheiro em minha bolsa. A carruagem me deixou no escritório de um serviço de carruagem onde comprei uma passagem para a próxima carruagem que sairia de Boston para a cidade de Nova York.

— A carruagem só sairá daqui a uma hora — o vendedor me disse. — Tem uma taberna atravessando a rua onde algumas pessoas costumam esperar até dar o horário da partida — ele comentou, solícito.

Sentei-me com um bule de chá em minha frente, minha sacola a meus pés, minha primeira chance de retomar o fôlego desde que tinha fugido. Mesmo com o medo martelando em meu coração, também me sentia estranhamente otimista; estava indo embora da casa de Adair. Quantas vezes desejei fazer isso, mas a coragem me faltara! Agora havia feito a proeza com pressa e não havia sinais de que fora descoberta. Com certeza ele não me encontraria em uma hora. Boston era uma cidade grande, e logo eu estaria na estrada e não deixaria pistas. Coloquei minhas mãos ao redor da porcelana branca para esquentá-las e me permiti um suspiro de alívio. Talvez a casa de Adair tivesse sido uma ilusão, um sonho ruim que só parecia realidade quando no meio dele. Talvez ele não tivesse poderes para me machucar aqui fora. Talvez juntar coragem para fugir fosse o único teste. A questão agora era para onde ir e o que fazer da minha vida.

De repente, notei a presença de várias pessoas às minhas costas. Adair, Alejandro, Tilde. Adair agachou-se perto de mim e sussurrou em meu ouvido:

— Venha comigo agora, Lanore, e nem pense em fazer uma cena. Posso lhe garantir que há joias em sua bolsa e, se pedir ajuda, direi às autoridades que você roubou essas preciosidades de minha casa. E os outros serão testemunhas.

A mão dele quase estraçalhou meu cotovelo quando me puxou do assento. Podia sentir sua raiva irradiando feito o calor do fogo. Não consegui olhar para nenhum deles na carruagem a caminho da casa; sentei-me, fechada em mim mesma, minha boca cerrada pelo medo. Mal tínhamos passado pela porta da frente quando ele me alcançou e me estapeou o rosto, me jogando no chão. Alejandro e Tilde passaram apressadamente por trás de mim e saíram do salão, como pássaros alçando voo antes de uma tempestade.

Pela fúria nos olhos de Adair, parecia que ele queria me quebrar em pedaços.

— O que achou que estava fazendo? Para onde estava indo?

As palavras me fugiram, mas, como esperado, ele não queria respostas. Só queria me espancar, repetidamente, até que caísse destroçada a seus pés, olhando para ele com olhos inchados e turvos de sangue. Sua raiva ainda não havia diminuído; isso era visível, já que passava a mão pelas articulações dos dedos e andava de um lado para o outro na minha frente.

— É assim que você retribui minha generosidade, minha confiança? — ele rugia. — Trago você para a minha casa, para a minha família, dou-lhe roupas, segurança... de certa maneira, você é como uma filha para mim. Eu lhe avisei: você é minha, quer goste, quer não. Você nunca, jamais me deixará, não até eu permitir que você vá.

Então ele me levantou e me carregou para a parte dos fundos da casa, a cozinha e a parte dos criados, mas todos eles desapareceram como ratos. Ele me carregou por um conjunto de escadas até o porão abandonado, depois dos barris de vinho, sacos de farinha e mobílias não utilizadas cobertas por lençóis, através de uma passagem estreita, as paredes úmidas pela friagem e, finalmente, por uma porta de mogno, terrivelmente assustadora. A luz na sala era fraca. Dona estava em pé ao lado da porta, com um robe bem apertado na cintura e arqueado, como se estivesse doente. Algo terrível estava prestes a acontecer se Dona, que geralmente se deliciava com os infortúnios alheios, estava com medo. Em sua mão havia uma teia de aranha de tiras de couro, um arreio, mas um arreio de cavalo como eu jamais tinha visto. Adair me derrubou no chão.

— Prepare-a — ele ordenou a Dona, que começou a tirar minhas roupas suadas e ensanguentadas. Atrás dele, Adair começou a tirar a roupa. Uma vez despido, Dona começou a amarrar o arreio em mim. Era um modelo de horrores e começou a torcer meu corpo numa posição anormal, uma posição de vulnerabilidade absoluta. Prendia meus braços atrás das costas e puxava minha cabeça quase ao ponto de quebrar meu pescoço. Dona soltou um gemido enquanto apertava as tiras, mas não as deixou mais soltas. Adair ergueu-se diante de mim, seus modos ameaçadores e sua pretensão muito clara.

— Chegou a hora de lhe ensinar obediência. Esperava, pelo seu bem, que não fosse necessário. Parece que seu destino é ser diferente... — Ele parou, se controlando. — Todos devem ser punidos uma vez, assim sabem o que acontecerá se tentarem de novo. Eu lhe disse que nunca me deixaria e, mesmo assim, você tentou fugir. Você nunca tentará fugir de novo. — Adair enrolou os dedos em meu cabelo e aproximou seu rosto do meu. — E lembre-se disso quando estiver de volta a seu vilarejo, com sua família e seu Jonathan: não existe nenhum lugar onde eu não possa encontrá-la. Você nunca escapará de mim.

— A garota... — eu tentei dizer, com os lábios cerrados com sangue seco.

— Isso não tem nada a ver com a garota, Lanore! Você deveria aprender a aceitar o que acontece em minha casa; você aceitará e também fará parte de tudo. Isso tem a ver com não virar as costas para mim, não me rejeitar. Eu não permitirei isso. Especialmente vindo de você, nunca esperei que você... — Ele engoliu o resto, pensando melhor, mas eu sabia o que ele queria dizer, que ele não queria se arrepender por ter entregado uma parte de seu coração a mim.

Não contarei o que aconteceu comigo naquela sala. Permita-me um pouco de privacidade, para lhe poupar dos detalhes de minha humilhação. Deveria ser suficiente saber que foi a experiência mais terrível pela qual já passei na vida. Adair não foi meu único torturador; ele também convocou Dona, ainda que fosse totalmente contra o desejo do italiano. Foi minha pitada do fogo do demônio, sobre a qual Jude me alertara, uma lição de que provocar o amor de um demônio é um grande risco. Esse amor, se é que pode ser chamado assim, nunca é doce. Um dia irá experimentá-lo da maneira que realmente é. É corrosivo. É venenoso. É como ácido derramado dentro da garganta.

Estava quase inconsciente quando eles terminaram. Abri meus olhos numa fenda e vi Adair recolhendo suas roupas do chão. Ele estava coberto de suor e seu cabelo colado ao pescoço, em cachos escuros. Dona também já havia vestido seu robe de volta e rastejava sobre as mãos e os joelhos, pálido e trêmulo, como se fosse passar mal a qualquer momento.

Adair passou a mão pelos cabelos molhados, então virou a cabeça na direção de Dona.

— Leve-a para cima e peça para alguém limpá-la — ele disse, antes de sair da sala.

Eu me encolhia de dor enquanto Dona tirava as tiras de couro. Elas tinham corroído minha pele e me deixado com dezenas de cortes, as feridas se abrindo de novo cada vez que as tiras esbarravam no sangue seco. Ele deixou o medonho instrumento no chão, as tiras fazendo o contorno oco de uma forma humana, e me pegou nos braços, da forma mais cuidadosa que jamais vira Dona fazer, antes ou depois disso.

Ele me levou ao quarto onde havia a banheira de cobre, e Alejandro esperava com baldes de água quente. Então, Alejandro me lavou gentilmente, tirando o sangue e os fluidos, mas eu mal podia aguentar seu toque e não conseguia parar de chorar.

— Estou no inferno, Alejandro. Como posso continuar assim?

Ele pegou minha mão e a cobriu com um pano.

— Você não tem escolha. Se lhe conforta saber, todos nós já passamos por isso, cada um de nós. Não há do que se envergonhar pelo que aconteceu a você, pelo menos não entre nós.

No momento em que ele estava me lavando, minhas feridas se curaram, os pequenos cortes desapareceram, as manchas roxas ficaram amareladas. Ele me secou e me envolveu numa túnica limpa, e nos deitamos juntos na cama, Alejandro encaixado atrás de mim, sem me deixar sair de perto dele.

— E agora, o que acontece? — perguntei, meus dedos entrelaçados aos dele.

— Nada. Voltará a ser como antes. Deve tentar esquecer o que foi feito com você hoje, mas não a lição. Nunca se esqueça da lição.

 

A noite anterior à minha partida para Boston foi horrível. Queria ficar sozinha com minhas preocupações, mas Adair insistiu em me levar para a cama. Desnecessário dizer que agora eu tinha muito medo dele, mas ele não se importou com a mudança de meu comportamento. Acho que já conhecia isso de seus outros servos e esperava que um dia, com o tempo, eu superasse o fato.

Adair tinha bebido muito, talvez para se esquecer do que havia feito para me deixar com tanto medo dele, e fumou o narguilé até que nuvens de fumaça narcótica enchessem o quarto. Aquela noite eu fui uma parceira distraída e ausente na cama: só conseguia pensar no que faria com Jonathan. Estava prestes a condená-lo à eternidade com aquele homem insano. Jonathan não tinha feito nada para merecer isso.

Também não tinha pensado no que diria à minha família quando retornasse a St. Andrew. Afinal de contas, tinha desaparecido da vida deles desde minha fuga do porto, um ano antes. Claro que deveriam ter feito perguntas ao convento e ao mestre do navio, e ouviram que eu havia chegado a Boston e desaparecido imediatamente. Talvez ainda tivessem esperanças de que eu estivesse viva e tivesse fugido para ficar com meu bebê. Será que tinham verificado com as autoridades em Boston? Será que pediram para os policiais procurarem por mim até não terem mais esperança e estarem certos de que eu não fora assassinada? Fiquei imaginando se teriam feito um falso funeral para mim em St. Andrew; não, meu pai nunca os deixaria demonstrar tais sentimentos. Em vez disso, minha mãe e minhas irmãs carregariam seu pesar com elas, pedras pesadas costuradas abaixo da pele, perto do coração.

Falando nisso, e Jonathan? O que será que ele pensava que havia acontecido comigo? Talvez que eu estivesse morta, se é que pensava em mim. As lágrimas me encheram os olhos prontamente: claro que ele pensava em mim de vez em quando, a mulher que o amara mais do que a qualquer homem no mundo! Mas tinha que encarar o fato de que todos em St. Andrew me tinham como morta. Os sobreviventes se acostumam com a morte de entes amados; ficam de luto durante semanas ou meses, mas, passado algum tempo, a lembrança é deixada no passado e só é revisitada esporadicamente, como quando tropeçamos em um antigo brinquedo querido, jogado no porão, e o deixamos novamente para trás.

Acordei nas primeiras horas da madrugada, suada e desgrenhada por causa do sono inquieto. O navio zarparia de manhã e eu tinha que chegar às docas antes do nascer do sol. Quando me abaixei para procurar minha roupa de baixo sob os lençóis, fui tomada pela visão de Adair, sua cabeça sobre o travesseiro. Acho que é verdade que até mesmo os demônios parecem anjos quando dormem, quando a quietude e o contentamento tomam conta deles. Seus olhos estavam fechados, seus cílios longos tocando o rosto; seus cabelos esparramados pelos ombros em cachos escuros e lustrosos; e os fios de barba esparsa em seu rosto o faziam parecer um jovenzinho, não um homem capaz de crueldades inumanas.

Minha cabeça doía da droga que fumara a noite toda. Se estava me sentindo assim, imaginei que Adair devia estar próximo do coma. Peguei sua mão e a deixei cair, peso morto. Ele não grunhiu nem se mexeu embaixo das cobertas.

Então, um pensamento perverso me veio à mente. Lembrei-me do pequeno frasco de prata que guardava o elixir da vida, a gota de magia demoníaca que havia me transformado para sempre. “Pegue”, a voz disse, “esse frasco é a raiz do poder de Adair. Esta é sua chance de se vingar dele. Roube o poder dele e o leve com você para St. Andrew.”

Com a poção, eu seria capaz de vincular Jonathan a mim, da mesma forma que eu era vinculada a Adair. O pensamento passou rapidamente pela minha mente, mas meu estômago arrefeceu. Nunca poderia usá-lo; nunca poderia transformar alguém no que eu sou agora.

“Pegue o frasco para se vingar de Adair. Isso é toda a mágica que ele possui no mundo. Pense no pânico que tomará conta dele quando perceber que desapareceu!”

Queria vingança pelo que tinha feito comigo no porão. Não queria ter sido enviada para essa missão, ser forçada a condenar meu amado a uma eternidade com esse monstro. Mais do que tudo, queria me vingar de Adair.

Prefiro pensar que estava possuída por uma força maior do que minha razão, pois saí da cama devagar e com muito cuidado, deixando meus pés descalços caírem silenciosamente no chão. Enquanto vestia uma das túnicas de Adair, fiz uma busca pelo quarto: onde ele esconderia o frasco? Vi somente naquele dia e nunca mais.

Fui até o quarto de vestir. Estaria na bandeja com as agulhas de costura ou na caixa de joias, entre os anéis e os broches? Talvez na ponta de um chinelo raramente usado? Estava de joelhos percorrendo uma fileira de sapatos, quando me dei conta de que Adair nunca guardaria um objeto tão valioso onde seu lacaio pudesse achá-lo e roubá-lo. Ou ele o manteria consigo o tempo todo (e eu já havia visto Adair nu em pelo em muitas ocasiões, sem sinal do frasco) ou o manteria em segredo onde ninguém pensaria em procurá-lo. Onde ninguém ousaria procurá-lo.

Com a vela na mão, saí sorrateira e apressadamente do quarto e percorri a escadaria dos criados até a adega, atravessei os úmidos corredores subterrâneos que cheiravam à água parada, tateando as grossas paredes de pedra. Indo mais devagar conforme me aproximava da sala aonde ninguém ia e de que todos tinham medo, empurrei a porta marcada e pisei sobre o chão de terra batida onde, há pouco tempo, tinha me deitado, sangrando.

Segurando a respiração fui, na ponta dos pés, até o baú solitário do outro lado da sala e levantei a tampa. Lá dentro estava aquele instrumento odioso, o arreio pavoroso, as tiras duras com meu suor, ainda com a forma do meu corpo. Quase deixei a tampa cair quando vi aquilo, mas controlei meu medo quando notei um pequeno embrulho no canto do baú. Enfiei a mão e encontrei um lenço masculino, dobrado como um pequeno travesseiro.

Desfiz um canto do lenço e vi... o frasco. À luz da vela, o frasco prateado brilhava como um ornamento de árvore de Natal, reluzindo com o mesmo brilho levemente escurecido. A luz parecia pulsar de forma agourenta, algum tipo de presságio. Mas já tinha chegado até ali e não desistiria. O frasco era meu. Agarrei-o, pressionei-o contra o coração e saí, furtiva e apressadamente do calabouço.

                   PROVÍNCIA DE QUEBEC, HOJE

Do lado de fora da janela do quarto do motel, o céu ficara negro-azulado, a cor de tinta de uma caneta esferográfica. Haviam deixado as cortinas suspensas quando se jogaram na cama juntos e, agora que a ânsia para descobrir o corpo um do outro terminara, Lanny e Luke estavam deitados lado a lado, olhando as estrelas do norte através da janela. Ele passa os dedos pelo braço nu dela, fascinado pela luminosidade de sua pele, tão perfeita ela é, creme, toda salpicada com sardas douradas. O corpo dela é feito de uma série de curvas suaves e profundas. Ele quer deslizar as mãos por ela, sem parar, como se fazendo isso pudesse arrancar uma parte dela para ele. Ele se pergunta se a mágica que possui a fez mais bela, se evidenciou ainda mais sua aparência natural.

Ele não acredita na sorte de ter ido para a cama com ela; sente-se quase como um velho homem depravado, pois não tocava numa mulher tão firme desde muito antes de se casar. Na verdade, desde seus 20 e poucos anos, mas não se lembra de o sexo ter sido tão bom, talvez porque ele e suas parceiras fossem muito inseguros. Podia imaginar o que sua ex-mulher ou seus amigos diriam se vissem Lanny; eles pensariam que ele estava à beira de uma crise épica de meia-idade, ajudando uma mulher em situação praticamente ilegal a fugir da polícia em troca de sexo.

Lanny olha para ele com um sorriso em seu rosto lindo, e ele fica imaginando o que ela teria visto nele de interessante. Ele sempre se achou um homem comum: altura média, mais magro do que gordo, porém longe de ter um físico digno de admiração; cabelo desgrenhado e ondulado entre o marrom-areia e o louro. Seus pacientes já tinham sugerido que ele parecia meio hippie, como alguns dos mochileiros que vinham para St. Andrew no verão, mas Luke acha que eles tiveram essa impressão porque ele tendia a ser desarrumado quando não havia ninguém perto dele para arrumá-lo. O que uma mulher como ela poderia ver em um homem como ele? Era o que ele se perguntava.

No entanto, antes que ele conhecesse a resposta, ocorre uma distração na janela, uma ondulação de sombras do lado de fora do vidro, que indica movimento no corredor. Luke mal tem tempo de se levantar antes de os golpes do outro lado da porta começarem, e uma voz masculina grossa grita:

— Abram! É a polícia!

Luke segura a respiração, incapaz de pensar, de reagir, de fazer coisa alguma, mas Lanny pula da cama num salto, o lençol enrolado no corpo, e caminha silenciosamente, como um gato. Ela coloca um dedo sobre os lábios, desliza pelo canto até a área da cozinha e, de lá, para dentro do banheiro. Quando está fora do campo de visão, ele sai da cama, enrola um cobertor em volta da cintura e abre a porta.

Dois policiais preenchem o espaço da porta aberta, acendendo uma lanterna bem na cara de Luke.

— Recebemos uma ligação sobre um homem fazendo sexo com uma menor... pode acender a luz, senhor? — um dos oficiais pergunta, parecendo enfurecido, como se não houvesse nada que ele gostasse mais do que empurrar Luke contra a parede, a coronha da polícia atravessada na garganta dele. Ambos os policiais olharam fixamente para o peito nu de Luke e o cobertor amarrado em volta dos quadris. Luke bate a mão no interruptor mais próximo e acende a luz.

— Onde está a menina que fez o check-in do quarto?

— Que menina? — Luke consegue dizer, apesar da garganta seca como areia do deserto. — Deve haver um engano, este é meu quarto.

— Então você fez o check-in neste quarto?

Luke concorda.

— Acho que não. O atendente da recepção disse que há só um quarto alugado deste lado do prédio. Para uma menina. Ela disse ao atendente que o quarto era para ela e o pai. — Os policiais bloquearam a porta. — A camareira disse que ouviu o que parecia ser duas pessoas fazendo sexo aqui, e já que o atendente sabia que estava sendo ocupado por um pai e sua filha...

O pânico toma conta de Luke quando tenta consertar sua mentira.

— Ah, sim, é isso que quero dizer. A garota, nós estamos juntos, por isso disse que este é meu quarto... mas ela não é minha filha. Não sei por que ela teria dito isso a alguém.

— Certo. — Eles não pareciam estar convencidos. — Se importa se entrarmos e dermos uma olhada? Gostaríamos de conversar com ela; ela está aqui?

Luke congela, tentando ouvir; ele não escuta nada, o que o leva a pensar que ela havia escapado. Nos olhos dos policiais, Luke mal consegue ver uma indignação controlada; eles provavelmente não queriam nada além de jogá-lo no chão e dar-lhe uma surra por todas as filhas abusadas sexualmente que já viram em sua carreira. Luke está a ponto de soltar uma desculpa quando nota que os policiais estão olhando para alguma coisa atrás dele. Ele se vira, enroscando o cobertor barato em suas pernas.

Lanny está em pé, com o lençol ainda enrolado no corpo nu, bebendo de uma garrafa plástica vermelha surrada, uma expressão de surpresa e falsa vergonha em seus olhos.

— Ah, pensei ter ouvido alguém à porta. Boa noite, policiais. Algo errado?

Os dois policiais a olharam de cima a baixo, da cabeça aos pés, antes de responder.

— Você fez o check-in para este quarto, senhorita?

Ela concorda.

— Esse homem é seu pai?

Ela finge estar encabulada.

— Ah, meu Deus, não! Não... Não sei por que disse aquilo para o cara da recepção. Tive medo de ele não querer nos alugar o quarto, eu acho, já que não somos casados. Ele parecia, sei lá, ser meio crítico. Não achei que ele tivesse nada a ver com isso.

— Ah-hã. Precisamos ver algum documento de identificação. — Estão tentando ser imparciais, dissipar a indignação, agora que não há nenhum pervertido para ser trazido à justiça.

— Não têm o direito de nos investigar. Foi consensual o que fizemos — Luke fala enquanto passa o braço ao redor de Lanny, puxando-a para seu lado. Ele quer que a polícia vá embora; quer que essa experiência embaraçosa e exasperante fique para trás.

— Só queremos prova de que vocês não são... você sabe — o policial mais jovem explicou, abaixando a cabeça e fazendo um gesto impaciente com sua lanterna. Não havia alternativa a não ser deixar os policiais olharem sua carteira de motorista e o passaporte dela, esperando que qualquer relatório da polícia de St. Andrew ainda não tivesse atravessado a fronteira do Canadá.

Logo Luke percebe que ele não precisava se preocupar: os dois policiais estavam tão frustrados e decepcionados que passaram os olhos superficialmente pela identificação, muito provavelmente nem leram os documentos, antes de darem meia-volta e saírem pela porta, pedindo desculpas quase inaudíveis pelo inconveniente. Assim que saíram, Luke desceu as persianas da janela que dão para o corredor.

— Ah, meu Deus! — Lanny diz, antes de cair na cama.

— Precisamos ir embora; preciso levar você até alguma cidade.

— Não posso pedir para correr mais riscos por mim...

— Não posso deixar você aqui, posso? — Ele se veste, enquanto Lanny está no banheiro, a água escorrendo. Luke passa a mão no queixo, sentindo os pelos eriçados, dando-se conta de que já faz 24 horas desde que se barbeou, então resolve ver se o estacionamento está vazio. Ele enrosca um dedo na persiana e dá uma espiada: o carro da polícia está ao lado da SUV. Deixa a persiana voltar ao lugar.

— Droga! Eles ainda estão lá fora!

Lanny olha, mexendo na mala.

— O quê?

— Os dois policias, eles ainda estão lá fora. Verificando a licença da placa do carro, talvez.

— Você acha?

— Talvez estejam vendo se já fomos fichados. — Ele esfrega o lábio inferior, pensando. É provável que não consigam respostas imediatas para placas licenciadas nos Estados Unidos ou carteiras de motoristas; eles provavelmente têm que esperar por uma resposta do sistema, através de unidades de comunicação da polícia. Deve haver uma brecha de tempo antes... Luke agarra Lanny pelo braço.

— Temos que ir, agora.

— Não acha que eles vão nos parar?

— Deixe sua mala, deixe tudo. Apenas ponha uma roupa.

Eles deixam o motel de mãos dadas e começam a caminhar em direção ao veículo, quando a janela do carro de polícia se abaixa.

— Ei — o policial do lado do passageiro gritou —, vocês ainda não podem ir embora.

Luke solta a mão de Lanny para que ela fique para trás enquanto ele se aproxima do carro-patrulha.

— Por que não podemos ir embora? Não fizemos nada de errado. Mostramos nossos documentos. Vocês não têm nenhum motivo para nos deter. Isso já está começando a parecer assédio.

Indecisos, os policias se encresparam; contudo, não gostaram do som da palavra “assédio”.

— Vejam — Luke continua, abrindo as mãos para mostrar que estavam vazias. — Só estamos saindo para jantar. Parece que vamos fugir? Deixamos nossa bagagem no quarto; já pagamos pela noite. Se ainda tiverem perguntas quanto às nossas fichas, podem nos encontrar depois do jantar. Mas, se não vai me prender, acredito que não possa me impedir de sair. — Luke fala calma e razoavelmente, braços abertos, como um homem tentando convencer ladrões a não o roubar. Lanny sobe no assento da frente da SUV, dando um olhar hostil aos policiais. Ele vai logo depois, dá partida no carro e sai do estacionamento vagarosamente, olhando uma última vez para ter certeza de que o carro-patrulha não está atrás deles.

Quando já estão bem distantes na estrada, Lanny puxa o laptop de dentro de sua jaqueta.

— Não podia deixar isso para trás. Tem muita informação incriminatória que liga Jonathan a mim, coisas que poderiam ser usadas como provas, se quisessem — ela explica, já que se sente culpada por se arriscar para salvá-lo. Um segundo depois, ela tira o saco de maconha de dentro do bolso, como se estivesse tirando um coelho de dentro da cartola de um mágico. O coração de Luke trila em sua garganta.

— A erva também?

— Pensei que depois que percebessem que não vamos voltar, fariam uma busca de verdade no quarto. Isso lhes daria um motivo para nos prender... — Ela enfia o saco de volta no bolso da jaqueta. — Acha que estamos seguros?

Ele olha o espelho retrovisor de novo.

— Sei lá... agora eles têm o número da placa. Se eles se lembrarem dos nomes, do meu nome... — Eles terão que abandonar a SUV e Luke sente-se mal por ter emprestado o carro de Peter. Tem que tirar isso da cabeça. — Não quero pensar nisso agora. Conte-me mais da sua história.

A autoestrada até Quebec tem mão dupla nas duas direções e é tão escura quanto uma pista de decolagem abandonada. As árvores desfolhadas e a paisagem sem graça lembravam a Luke Marquette, a cidadezinha ao norte, na ponta solitária do Michigan, onde sua ex-esposa morava. Luke a visitara uma vez para ver suas filhas, logo após Tricia ter ido morar lá com seu namorado, que conhecia desde a infância. Tricia e as duas filhas de Luke agora viviam na casa do namorado dela, numa fazenda de cerejas, e o filho e a filha dele também os visitam duas noites por semana.

Durante sua estadia, Luke achou que Tricia não parecia estar mais feliz com o namorado do que quando estava com ele, ou talvez ela estivesse envergonhada por ser vista por seu ex numa casa em situação precária, com um Camaro de 12 anos na garagem. Não que a casa de Luke em St. Andrew fosse muito melhor.

As meninas, Winona e Jolene, estavam infelizes, mas isso já era esperado; elas tinham acabado de se mudar para a cidade e não conheciam ninguém. O coração de Luke quase partiu ao se sentar com elas na pizzaria onde as tinha levado para o almoço. Elas estavam quietas e eram muito jovens para saber a quem culpar ou com quem ficar zangadas. Ficaram mal-humoradas quando ele tentou puxar conversa, e Luke não suportava a ideia de levá-las de volta para a mãe, de dizer adeus quando todos eles estavam tão sensíveis e magoados. Também sabia que não havia nada a fazer: o processo pelo qual estavam passando não seria resolvido num fim de semana.

No final, quando estava se despedindo nos degraus de cimento na porta da frente de Tricia, as coisas haviam melhorado entre ele e as filhas. O pânico havia diminuído, elas haviam encontrado chão firme sob seus pezinhos. Elas choraram quando ele lhes deu um abraço de despedida e abanaram as mãozinhas enquanto Luke saía em seu carro alugado, mas ainda lhe cortava o coração ter de deixá-las.

— Tenho duas filhas — Luke desabafou, tomado pela necessidade de dividir uma parte de sua vida com Lanny. Ela olha para ele.

— Aquela era a foto delas, na sua casa? Quantos anos elas têm?

— Cinco e seis. — Ele sente um pequeno orgulho, tudo que lhe restou da paternidade. — Elas vivem com a mãe. E com o cara com quem ela pretende se casar. — Outra pessoa estava cuidando das filhas dele agora. Ela se ajeita para poder ficar de frente para ele.

— Por quanto tempo foram casados?

— Seis anos. Agora estamos divorciados — acrescenta. — Foi um erro nos casarmos, vejo isso agora. Tinha acabado de terminar minha residência em Detroit. A saúde dos meus pais estava começando a piorar e eu sabia que voltaria a St. Andrew... Acho que não queria voltar sozinho. Não podia imaginar encontrar alguém lá. Conhecia todo mundo, fui criado lá. Acho que vi Tricia como minha última chance.

Lanny dá de ombros, com uma expressão de desconforto marcada no cenho franzido. Desconfortável pelo excesso de honestidade, Luke imagina, se é que ela estava sendo honesta.

— E você? Já se casou alguma vez? — ele a questiona e a pergunta a faz rir.

— Não me escondi do resto do mundo todo esse tempo, se é isso o que você pensa. Não, com o tempo eu caí na realidade; vi que Jonathan nunca se comprometeria comigo. Vi que não tinha essa intenção. — Luke se lembra do homem no necrotério. As mulheres se ofereciam para homens como aquele. Convites e propostas intermináveis, quanta vontade e desejo, quanta tentação! Como podia se esperar que um homem como aquele se comprometesse com uma só mulher? Era natural para Lanny querer que Jonathan fosse fiel, mas como culpar o homem por decepcioná-la?

— Então encontrou outra pessoa e se apaixonou? — Luke tenta esconder a esperança em sua voz. Ela ri de novo.

— Para um homem que se casou no desespero e acabou divorciado, você me parece um romântico incorrigível. Eu disse que me casei, não que estava apaixonada. — Ela se vira e, assim, não olha de frente para ele. — Isso não é exatamente verdade. Amei todos os meus maridos, só que não da mesma maneira que amei Jonathan.

— Todos eles? Quantas vezes já se casou? — De novo, Luke tem a mesma sensação de desconforto que sentiu no Dunratty, olhando para a cama remexida.

— Quatro vezes. Uma garota sente-se sozinha depois de uns cinquenta anos ou mais — ela responde, zombeteira, fazendo piada de si mesma. — Eles eram todos amáveis, cada um a seu modo. Cuidaram de mim; me aceitaram como eu sou, aceitaram somente o que eu podia lhes dar.

Esses vislumbres da vida dela o faziam querer saber mais.

— Quanto da sua vida contou a eles? Você falou com alguém sobre Jonathan?

Lanny movimenta a cabeça para trás e remexe os cabelos, ainda evitando olhar para ele.

— Nunca contei a verdade sobre mim a ninguém, Luke. Você é o primeiro.

Ela está dizendo isso só para me agradar? Luke pensa. Ela é treinada para saber o que as pessoas querem ouvir. É o tipo de habilidade que tem que desenvolver se vai sobreviver por centenas de anos e não pode ser descoberta. Tudo parte da sutil arte de entrelaçar as pessoas em sua vida, prendê-las a você, fazê-las gostar de você, ou até mesmo amar você.

Luke quer ouvir sua história, saber tudo sobre ela, mas será que pode confiar que lhe dirá a verdade, ou ela só o está manipulando até estarem a salvo da polícia? Enquanto Lanny volta a seu estado de silêncio pensativo, Luke dirige, imaginando o que acontecerá quando chegarem a Quebec, se ela desaparecerá e o deixará apenas com sua história.

 

                                  BOSTON, 1819

Havia planejado minha viagem de volta a St. Andrew com o entusiasmo típico de um funeral. Usando um saco de moedas de Adair, marquei minha passagem num navio de carga que zarparia de Boston para Camden, e de Camden em diante viajaria numa carruagem especial, com um cocheiro. O único transporte de ida e volta de St. Andrew havia sido a charrete do fornecedor, que trazia mercadorias frescas para a mercearia dos Watford duas vezes ao ano. Planejei chegar com estilo, exibindo uma carruagem maravilhosa, repleta de almofadas para amaciar seus bancos e com cortinas nas janelas, para mostrar a eles que eu não era a mesma mulher que tinha ido embora.

Era o começo do outono e, enquanto Boston estava apenas fria e úmida, os caminhos em direção ao norte até o condado de Arroostook já tinham neve. Fiquei surpresa por minha nostalgia ao ver a neve de St. Andrew, os sulcos altos e profundos e a paisagem branca intocada, as pontas dentadas dos pinheiros surgindo através de grossas camadas de neve. Quando criança, olhava pela vidraça da janela do chalé de meus pais e assistia ao vento soprar lufadas de neve tão finas quanto poeira, e agradecia por estar dentro do chalé com o fogo e cinco outros corpos para me manter aquecida.

Mas, naquela manhã, eu estava no porto de Boston, esperando para embarcar no navio que me levaria de volta a Camden em circunstâncias completamente diferentes das em que havia partido: dois baús de roupas maravilhosas e presentes, uma bolsa com mais dinheiro do que o vilarejo inteiro vira em cinco anos e acomodações de viagens luxuosas. Saí de St. Andrew como uma jovem desgraçada e sem perspectivas, e voltava como uma dama refinada que encontrara, por acaso, uma fonte secreta de riqueza, da qual me valia. Obviamente eu devia muito a Adair, mas isso não me deixava menos entristecida pelo que estava fazendo.

Durante a viagem pelo mar, eu me escondia na cabine, ainda tomada pela culpa. Numa tentativa de encobrir minhas emoções, sentei-me com uma garrafa de conhaque e, gole após gole, tentei me convencer de que não era uma traidora de meu ex-amante. Eu apresentaria uma oferta a Jonathan em nome de Adair, um presente que alguém só poderia sonhar em ter: a capacidade de viver para sempre. Qualquer homem aceitaria prontamente esse presente e até mesmo pagaria uma fortuna por isso, se lhe fosse oferecido. Jonathan fora escolhido para fazer parte desse mundo secreto, para aprender que a vida como conhecíamos não era tudo que existia. Ele mal poderia reclamar do que eu estava lhe trazendo.

Porém, sabia que este outro nível de existência tinha um preço; só não sabia qual seria, ainda. Não me sentia superior aos mortais, assim como não me sentia uma deusa. No máximo, sentia que tinha deixado a esfera da humanidade e atravessado para uma esfera de segredos obscenos e arrependimentos, um submundo escuro, um lugar de punições. Mas, com certeza, eu não estava totalmente perdida. Devia haver uma chance de me redimir.

Ao chegar a Camden, aluguei a carruagem e iniciei minha viagem solitária para o norte. Então a ideia de me rebelar contra Adair começou a martelar em minha mente novamente. Afinal, o ambiente à minha volta era tão diferente de Boston que Adair parecia estar muito longe. Negociei comigo mesma: se, depois de chegar a St. Andrew, visse que Jonathan estava vivendo feliz com sua família dominadora e sua esposa criança, teria misericórdia dele. Eu poderia arcar com as consequências: fugiria e faria o próprio caminho no mundo, pois nunca poderia voltar a Boston sem Jonathan. Ironicamente, o próprio Adair me dera as armas para fugir: tinha mais dinheiro do que precisava para um novo começo. Todavia, essas fantasias duravam pouco; eu não conseguia me esquecer dos avisos de Adair para fazer o que havia mandado ou sofreria em suas mãos. Adair nunca me deixaria ir!

Diante desse quadro infeliz, me enchi de coragem e força para entrar em St. Andrew naquela tarde de outubro, para encarar a surpresa de minha família e conhecidos por estar viva e a provável decepção com aquilo que eu havia me tornado.

 

Cheguei num domingo nublado. Estava com sorte porque a estação não estava sendo tão severa quanto costumava ser, e a neve ao longo da estrada nos permitia passar. As árvores estavam nuas diante de um céu cinzento e as últimas folhas penduradas nos galhos, secas e enroladas, tinham uma cor morta, como morcegos empoleirados.

O culto da igreja havia terminado e as pessoas saíam para o pátio pelas portas largas do salão da congregação. Os paroquianos estavam em pé conversando, apesar do frio e do vento, relutantes como sempre em abrir mão da companhia e voltar para casa. Não havia sinal de meu pai; talvez, com ninguém para acompanhá-lo, resolvera frequentar a missa católica, por ser mais conveniente. No entanto, meus olhos encontraram Jonathan imediatamente e meu coração alegrou-se ao vê-lo. Ele estava do outro lado do pátio, onde os cavalos e as carruagens eram deixados, e subia na charrete de sua família, suas irmãs e irmão esperando em fila pela vez deles. Onde estavam a mãe e o capitão? A ausência deles me deixou inquieta. De braço dado com ele, estava uma jovem, branca de fadiga. Jonathan ajudou-a a subir no assento da frente da charrete. Havia uma trouxa nos braços dela, um bebê. A noiva criança dera a Jonathan aquilo que eu não pude dar. Ao ver o bebê, quase perdi a coragem e disse ao cocheiro para dar meia-volta. Mas, não.

Minha carruagem roubou a cena e tornou-se imediatamente objeto de curiosidade. Ao meu sinal, o cocheiro parou os cavalos e, com o coração na boca, eu saí da carruagem para o meio da multidão que havia se formado.

Minha recepção foi mais calorosa do que esperava. Eles me reconheceram, apesar de minhas roupas novas, de meu cabelo arrumado e de minha carrua­gem. Fui rodeada pelas pessoas que sempre suspeitei não se importarem comigo: os Watford, Tinky Talbot, o ferreiro, e sua prole suja de fuligem, Jeremias Jacobs e sua nova esposa, de quem eu me lembrava do rosto, mas não do nome. O pastor Gilbert desceu apressadamente os degraus do salão da congregação, as vestes reviradas pelo vento, enquanto meus ex-vizinhos se juntavam a meu redor.

— Lanore McIlvrae, em carne e osso!

— Olhem só para ela, toda embonecada!

Mãos vinham da multidão para me oferecer um cumprimento, apesar de ter visto, do canto do olho, o estalar das línguas e o balançar das cabeças das pessoas ao redor. Então, a multidão se abriu para o pastor Gilbert, que chegou com o rosto vermelho de cansaço.

— Meu Deus, é você, Lanore? — ele perguntou, mas eu mal o ouvi; fiquei tão preocupada com a aparência dele! Como Gilbert envelhecera! Ele encolhera e sua barriguinha protuberante diminuíra, mas seu rosto velho estava enrugado feito uma maçã esquecida num porão gelado e seus olhos estavam remelentos e vermelhos. Ele agarrou minha mão num misto de afeição e emoção.

— Sua família ficará tão feliz em vê-la! Tínhamos dado você como... — ele enrubesceu, como se fosse deixar escapar a palavra errada: “perdida” — e aqui está você de volta entre nós e obviamente em boa fortuna.

À menção de minha família, a expressão dos espectadores mudou, apesar de ninguém dizer nada. Bom Deus, o que aconteceu com minha família? E por que todos pareciam tão mais velhos? A senhorita Watford tinha tufos cinza nos cabelos, dos quais eu não me lembrava. Os garotos Ostergaard estavam totalmente crescidos e quase explodindo para fora de suas roupas surradas, os punhos saindo das mangas muito curtas de seus casacos.

A multidão se abriu novamente com o tumulto ao fundo e, então, Jonathan entrou no meio do círculo. Ah, ele mudara tanto! Havia perdido os ares de menino, o brilho despreocupado dos olhos escuros, o ar arrogante. Ainda belo, pairava agora um ar de sobriedade sobre ele. Ele me olhou, notando minhas óbvias mudanças e parecendo se entristecer por causa delas. Eu queria rir e jogar meus braços em volta dele para quebrar esse humor sombrio, mas não o fiz. Ele colocou minha mão entre as dele.

— Lanny, não achei que nos veríamos de novo. — Por que todos ficavam dizendo isso? — Pelo jeito, os ares de Boston fizeram bem a você.

— Sim — respondi sem dar mais detalhes, querendo aguçar a curiosidade dele.

Nesse momento, a jovem que segurava a criança atravessou a multidão e tocou no cotovelo de Jonathan. Ele se virou para trás e a trouxe para a frente.

— Lanny, você se lembra de Evangeline McDougal. Nós nos casamos logo depois de você ter ido embora. Como pode ver, demoramos um pouco para ter nosso primeiro filho. — Ele riu nervosamente. — Uma menina! Consegue acreditar que meu primeiro filho seja uma menina? Digo que foi azar, mas vamos acertar da próxima vez, não é? — ele disse para Evangeline, agora com as bochechas coradas.

Racionalmente eu sabia que Jonathan estaria casado e que era possível que tivesse um filho agora. No entanto, ver a esposa e a filha dele foi mais difícil do que imaginava. Meus pulmões diminuíram. Fiquei paralisada, incapaz de murmurar as congratulações. Como tudo podia ter passado tão depressa? Eu tinha ido embora só havia alguns meses.

— Sei que parece muito rápido, a paternidade e tudo mais — Jonatahn disse, olhando para o chapéu em suas mãos —, mas o velho Charles estava determinado a me ver estabelecido antes de morrer. — Minha garganta se apertou.

— Seu pai está morto?

— Ah, sim, me esqueci, você não sabia. Um pouco antes do casamento. Dois anos atrás, eu acho. — Seus olhos estavam sem brilho e calmos. — Ele ficou doente logo depois que você se foi.

Mais de dois anos que eu havia ido embora? Como podia ser? Era surreal, como algo saído de um conto de fadas. Será que tinha sido enfeitiçada e dormira enquanto o resto do mundo continuou sua vida normal? Não tinha palavras. Jonathan apertou minha mão, interrompendo meu transe.

— Não deveríamos atrasá-la para ver sua família. Faça planos para vir à nossa casa jantar. Gostaria de ouvir as aventuras que a impediram de voltar para nós mais cedo.

— Sim, claro! — Minha cabeça estava em outro lugar: se todas essas mudanças aconteceram na família de Jonathan, o que teria acontecido com a minha? Que infortúnios teriam acontecido com eles? E, a julgar pelo que Jonathan dissera, fazia dois anos que eu fora embora da cidade, apesar de isso não fazer sentido. O tempo passava mais rápido aqui ou em Boston, no redemoinho das festas noturnas e no langor dos quartos de Adair?

Pedi ao cocheiro que parasse a carruagem na estrada que subia para a casa de meus pais. O chalé mudara, não havia como negar. Modesto como já era, ele havia ficado ainda mais dilapidado enquanto estive fora. Meu pai o construíra sozinho, assim como os outros colonizadores (a única exceção foi o capitão, que trouxe carpinteiros de Camden para construir sua casa elegante). Meu pai construiu uma casa de madeira de um cômodo para ir aumentando depois. E realmente aumentou: ele fez uma alcova atrás do cômodo principal para dar espaço para Nevin dormir, um sótão para nós, as meninas, onde, por muitos anos, dormimos as três, lado a lado, como bonecas numa prateleira.

A casa se deteriorara como um cavalo envelhecido. Pedaços de barro haviam caído do meio dos troncos de madeira; o teto precisava de telhas: escombros caíram sobre a varanda estreita e os tijolos da chaminé haviam se soltado. Vi manchas de pele avermelhada entre as árvores acima da casa, o que significava que o gado ainda estava solto nos pastos. Minha família manteve pelo menos parte do rebanho, mas, a julgar pela condição da casa, algo drástico acontecera com seus bens.

Observei a casa. A família tinha voltado da igreja, a charrete estava vazia ao lado do celeiro e eu conseguia ver a velha égua castanha vagando pelo curral, mas não havia movimento na casa, só uma fraca nuvem de fumaça saindo pela chaminé. Um fogo fraco para um dia tão frio. Dei uma olhada na pilha de lenha. Abandonada. A lenha mal alcançava três fileiras de altura, com o inverno chegando.

Finalmente, pedi ao cocheiro para parar em frente da casa. Esperei por um sinal de movimento, mas, como não vi nada, enchi-me de coragem e me aproximei da porta.

Foi Maeve quem atendeu a porta. Boquiaberta, ela me olhou da cabeça aos pés antes de começar a gritar e a jogar seus braços em volta de meu pescoço. Atravessamos a porta valsando e entramos na casa, sua voz feliz enchendo meus ouvidos.

— Meu bom Deus, você está viva! Querida Lanore, pensamos que não a veríamos nunca mais! — Maeve limpava as lágrimas de seu rosto com a ponta do avental. — Quando não tivemos notícias suas... as freiras escreveram para Mama e Papa, e disseram a eles que era muito provável que você tivesse se perdido — Maeve piscou.

— Perdido? — perguntei.

— Morta. Assassinada. — Maeve me olhou astutamente. — Dizem que acontece o tempo todo em Boston. Os recém-chegados à cidade são sequestrados por bandidos, que depois os matam. — Ela olhou para mim, fascinada. — Se você não morreu, irmã, então, o que aconteceu? Por onde andou? Já se passaram quase três anos.

Quase três anos! Mais uma vez, a passagem do tempo me surpreendia. Fora do tempo na companhia de Adair, o restante do mundo era como um trem cumprindo seu percurso no horário marcado, sem parar para me esperar.

Escapei de dar uma explicação no momento em que minha mãe apareceu pelo alçapão do porão, o avental repuxado para segurar algumas batatas. Ela derrubou tudo quando me viu, ficou branca como um lençol.

— Não pode ser!

Meu coração se apertou até quase parar.

— Sim, mãe, é sua filha.

— Ressurgida dos mortos!

— Não sou um fantasma — eu disse, com a mandíbula travada, tentando segurar as lágrimas e, quando a abracei, senti a relutância de seus músculos cansados se dissipando. Ela me abraçou de volta com toda a força que lhe restava, que estava consideravelmente menor do que eu me lembrava.

Quando nos falamos, ela também limpou as lágrimas dos olhos. Olhou por sobre o ombro para minha irmã e fez um sinal com a cabeça.

— Vá buscar Nevin!

Meu estômago revirou.

— Precisa mesmo, tão rápido?

Minha mãe assentiu novamente.

— Sim, precisamos. Ele é o homem da casa agora. Sinto dizer que seu pai mor­reu, Lanore.

Não se pode prever como irá reagir a notícias desse tipo. Por mais que estivesse zangada com meu pai, e por mais que suspeitasse que algo terrível tivesse acontecido, a notícia de minha mãe me tirou o fôlego. Caí numa cadeira. Minha mãe e minhas irmãs me rodearam, mãos dadas comigo.

— Foi há um ano — minha mãe disse, de forma sóbria. — Um dos touros; um coice na cabeça. Foi muito rápido, ele não sofreu.

Mas eles haviam sofrido todos os dias a partir de então: era evidente em seus rostos ásperos, na pobreza do vestuário e na falta de cuidados da casa. Minha mãe notou meus olhos observando tudo discretamente.

— Tem sido muito difícil para Nevin. Ele assumiu a responsabilidade pela fazenda, e você sabe que é muito trabalho para um homem só. — A fala suave de minha mãe tinha se endurecido, era sua maneira de lidar com essa situação cruel.

— Por que não contratam alguém para ajudar, um garoto de uma das outras fazendas? Ou arrendam a propriedade? Com certeza alguém na cidade tem interesse em expandir — eu disse.

— Seu irmão não quer nem ouvir falar nisso, então, tome cuidado para não dizer isso a ele. Você sabe como ele é orgulhoso — ela falou, virando a cabeça para que eu não visse sua expressão amargurada. O orgulho dele havia se transformado na desgraça delas. Precisava mudar de assunto.

— Onde está Glynnis?

Maeve enrubesceu.

— Ela trabalha no Watford’s agora. Hoje ela está estocando as prateleiras.

— No sábado? — ergui as sobrancelhas.

— Tentando pagar nossas dívidas, para falar a verdade — minha mãe disse, a confissão dela terminando num suspiro de irritação enquanto mexia nas batatas.

O dinheiro de Adair pesava em minha bolsa. Não havia dúvida de que eu daria aquele dinheiro a eles e lidaria com as consequências mais tarde.

A porta se abriu e Nevin entrou na casa mal iluminada, a silhueta escura de uma figura robusta contra o céu encoberto. Levou alguns minutos para meus olhos se ajustarem e verem Nevin. Ele perdera peso e havia ficado mais forte e musculoso; cortara o cabelo tão rente à cabeça que era preferível ter raspado, e seu rosto estava sujo e cheio de cicatrizes, assim como suas mãos. Ele tinha nos olhos o mesmo escárnio do dia em que fui embora, alimentado pela pena de si mesmo e pelo que acontecera a eles desde então.

Ele fez um som na parte de trás da garganta quando me viu e passou de cabeça baixa até o balde com água para se lavar, enfiando as mãos dentro dele.

Eu fiquei em pé.

— Olá, Nevin.

Ele secou as mãos num pedaço de pano, tirando seu casaco surrado; cheirava a gado, poeira e cansaço.

— Gostaria de falar com Lanore em particular — ele disse. Minha mãe e irmã trocaram olhares e então seguiram em direção à porta.

— Não, esperem — eu chamei. — Pode deixar que Nevin e eu iremos para fora. Vocês fiquem onde está quente.

Minha mãe balançou a cabeça.

— Não, temos coisas que precisam ser feitas antes do jantar. Podem conversar. — Ela empurrou minha irmã, que estava na sua frente.

Na verdade, eu estava com medo de ficar sozinha com Nevin. Seu ódio por mim expressava-se num semblante duro; ele não me deu a menor chance para começar. Era preferível ir embora; sua resistência parecia me dizer que tentava encontrar um caminho para chegar a seu coração ou à sua cabeça.

— Então você está de volta — ele disse, levantando uma sobrancelha. — Mas não para ficar.

— Não. — Não havia motivo para mentir para ele. — Minha casa é em Boston agora.

Ele me olhou com superioridade.

— Por suas roupas elegantes, posso adivinhar o que anda fazendo por lá. Você acha que sua mãe ou eu queremos saber que tipo de coisa vergonhosa se tornou? Por que voltou? — a pergunta que eu temia.

— Para rever todo mundo — respondi em tom de defesa. — Para vocês saberem que eu não estava morta.

— Essas notícias poderiam ter sido colocadas numa carta. Ficamos muito tempo sem receber uma palavra sua.

— Só posso pedir desculpas por isso.

— Você estava presa? É por isso que não podia escrever? — ele perguntou com escárnio.

— Eu não escrevi porque não tinha certeza se a carta seria bem-vinda. — O que eu poderia ter dito? Tinha certeza de que era melhor que eles nunca mais ouvissem falar de mim e isso foi o que Alejandro me aconselhou a fazer. É prepotência, ou fraqueza dos jovens, pensar que pode exorcizar o passado sem que ele nunca o persiga. Ele bufou à minha desculpa.

— Alguma vez pensou no efeito que seu silêncio pudesse ter sobre a mãe e o pai? Quase matou a mãe; e foi a razão de o pai ter morrido.

— A mãe disse que ele foi morto por um touro...

— Foi assim que ele morreu, com certeza. Sua cabeça foi rachada no meio pelo touro, o sangue escorrendo pela lama sem que tivéssemos como fazê-lo parar. Mas alguma vez viu o pai abaixar a guarda perto dos animais? Não. Isso aconteceu porque estava de coração partido. Depois que recebeu a carta das freiras, nunca mais foi o mesmo. Culpava-se por ter mandado você embora... e pensar que ele ainda estaria aqui se você tivesse mandado notícias, avisando que estava viva! — Ele esmagou os ossos da mão na mesa.

— Já falei que sinto muito! Houve circunstâncias que não me permi­tiram...

— Não quero ouvir suas desculpas. Você disse que não estava na prisão. Você volta parecendo a prostituta mais rica de Boston. Faço ideia de como esses anos foram difíceis para você. Não vou ouvir mais nada — disse e se virou para longe de mim, acariciando as articulações dos dedos que sangravam. — Me esqueci de perguntar: onde está o bebê? Você o deixou para trás com seu alcoviteiro?

Meu rosto estava quente como brasa.

— Ficará feliz em saber que a criança morreu antes de nascer. Um aborto.

— Ah, a vontade de Deus, como dizem! Punição pelos seus pecados, se entregar àquele demônio do St. Andrew. — Nevin estava cego de raiva, satisfeito com minha notícia, feliz por fazer seus próprios julgamentos. — Nunca consegui entender como uma garota inteligente como você pôde ser cega por aquele patife. Por que não me escutou? Sou um homem, como ele, eu sei como um homem pensa... — Ele parou, irritado. Queria tirar aquela expressão de desgosto do rosto de Nevin, mas não podia. É possível que estivesse certo. Talvez ele realmente pudesse ver dentro da mente de Jonathan e a entendesse melhor do que eu, e que durante todos aqueles anos tivesse tentado me proteger da tentação. Meu fracasso significava o fracasso dele.

Ele limpou os dedos da mão novamente.

— Está planejando ficar aqui por quanto tempo?

— Não sei. Algumas semanas.

— A mãe sabe que você não está voltando para ficar? Que você vai nos deixar novamente? — Nevin perguntou, com prazer em sua voz, sabendo que eu magoaria minha mãe mais uma vez.

Balancei a cabeça.

— Não pode ficar muito tempo — ele me avisou — ou ficará presa na neve até a primavera.

Quanto tempo levaria para convencer Jonathan a vir para Boston comigo? Será que conseguiria passar o inverno isolada em St. Andrew? Ficava claustrofóbica só de pensar nos dias longos e escuros do inverno, presa na neve, dentro de um chalé, com meu irmão.

Nevin mergulhou sua mão ensanguentada dentro do balde de água, cuidando do ferimento que ele mesmo provocara enquanto falava comigo.

— Pode ficar conosco durante sua visita. Poderia expulsá-la daqui, mas não quero ser motivo de mexericos para nossos vizinhos. Mas deve se comportar o tempo todo, caso contrário, coloco você para fora.

— Claro.

— E não trará aquele cretino do St. Andrew nem perto daqui. Eu diria que está proibida de vê-lo enquanto estiver sob o meu teto, mas sei que você iria até ele e mentiria para mim.

Ele estava certo, obviamente. Por ora, tinha que fingir estar arrependida.

— Como quiser, meu irmão. Obrigada!

 

Aquela primeira noite em casa foi difícil. Por um lado, não consigo me lembrar de um jantar mais prazeroso. Quando Glynnis voltou para casa de seu trabalho na Watford’s, tivemos a oportunidade de nos reunir novamente, o que encheu nosso coração de alegria mais uma vez (exceto por Nevin, que nunca me perdoaria). Enquanto os biscoitos assavam, eu trouxe os presentes de meu baú e os distribuí como se fosse o Papai Noel. Maeve e Glynnis dançavam ao redor da seda chinesa colocada em seus corpetes, planejando os vestidos elegantes que fariam com ela, e minha mãe quase chorou de alegria com o xale. O deleite delas só deixava Nevin ainda mais zangado; graças a Deus não tinha trazido nada para ele (sabendo que ele atearia fogo) ou provavelmente teria me dado um soco na orelha, ou me colocado para fora com um chute no traseiro.

Nós nos sentamos ao redor da mesa depois de acabar de jantar, as velas já queimadas pela metade, minha mãe e meu irmão me contando sobre tudo o que tinha acontecido no vilarejo desde quando eu fora embora: plantações que não vingaram, doenças, um ou outro recém-chegado. E, claro, mortes, nascimentos e casamentos. Ficaram um bom tempo falando sobre o casamento de Jonathan, esperando que eu quisesse saber sobre tudo, que comida diferente fora servida (sem saber das delícias que eu já havia provado), quais os sócios dos St. Andrew que fizeram a dura viagem para participar do evento.

— Muito triste, o capitão não viveu para vê-la — minha mãe disse.

E o bebê! O jeito que minha mãe e minhas irmãs falaram dele daria para pensar que ele era fruto de um esforço conjunto da cidade. Todos, exceto Nevin, pareciam ter um provinciano interesse na criança.

— Que nome Jonathan deu a ela? — perguntei, molhando a última casca de pão no molho de gordura de bife.

— Ruth, como a mãe dele — Glynnis respondeu, sobrancelhas arqueadas.

— É um bom nome cristão — minha mãe argumentou. — Tenho certeza de que queriam um nome da Bíblia.

Comecei a bater os dedos na mesa.

— Nem Jonathan nem Evangeline, aposto; foi tudo arranjado pela mãe dele. Podem escrever o que estou falando.

— Talvez a ideia de ter um filho assim que possível, talvez isso tenha sido ideia da sra. St. Andrew também. — Maeve segurou a respiração por um momento, olhando para a irmã para buscar apoio, antes de continuar. — Foi um parto muito difícil, Lanore. Quase perderam Evangeline. Ela é tão pequena...

— E jovem...

Todos assentiram.

— Tão jovem... — Maeve respirou fundo. — Ouvi dizer que a parteira disse a ela para não ter mais bebês por enquanto.

— É verdade — Glynnis acrescentou.

— Chega! — Nevin enfiou a ponta de sua faca na mesa, fazendo as mulheres pularem de susto. — Será que um homem não consegue comer seu jantar em paz sem ter que escutar os mexericos sobre o dândi da cidade?

— Nevin... — minha mãe começou, mas ele a cortou.

— Não quero mais ouvir sobre isso. É culpa dele ter casado com aquela garota. É escandaloso, mas não esperava nada melhor dele — Nevin resmungou. Por um breve momento, quase acreditei que ele tinha esbravejado com minhas irmãs para me poupar de mais conversa sobre bebês. Ele se afastou da mesa e foi em direção à cadeira ao lado do fogo, o lugar onde nosso pai costumava se sentar após o jantar. Vê-lo naquela cadeira, com o cachimbo de meu pai, me causou estranheza.

A julgar pela posição da Lua no céu, era quase meia-noite quando eu, insone, desci do sótão. Os restos do fogo decoravam as paredes com um brilho dançante e tremeluzente. Agitada, não conseguia ficar trancada no chalé. Precisava de companhia. Geralmente, àquela hora da noite, eu estaria me preparando para uma noite na cama de Adair e percebi, sentada no banco, que estava ansiosa, ou melhor, ávida por conforto físico. Vesti-me e escapei, tão quieta quanto pude. Meu cocheiro estava dormindo no celeiro, aquecido por uma montanha de cobertores e o calor de uma dúzia de vacas colocadas sob o mesmo teto que ele. Eu não queria colocar a sela na égua castanha da família, tirar a pobre coitada de seu merecido descanso; assim, saí a pé na única direção que me veio à cabeça: a cidade. Para qualquer outra pessoa, mesmo num trecho curto como esse, caminhar a pé essa distância seria suicídio. A temperatura estava abaixo de zero e o vento, cortante, mas eu não era suscetível ao tempo e podia caminhar num ritmo acelerado sem me cansar. Cheguei às casas na beirada da cidade num piscar de olhos.

Onde poderia ir? St. Andrew estava longe de ser uma cidade grande. Poucas luzes eram visíveis pelas janelas das casas. A cidade dormia, mas a taberna de Daniel Daughtery ainda estava aberta, a luz brilhando através da única janela. Eu hesitei ao chegar à porta, imaginando se seria prudente ser vista vagando por aí àquela hora. Poucas mulheres entravam na Daughtery’s e nenhuma delas ia lá sozinha. A notícia chegaria facilmente aos ouvidos de Nevin e alimentaria sua convicção de que eu era uma prostituta comum. No entanto, a sedução dos corpos quentes do lado de dentro, do burburinho da conversa, da alegria de uma gargalhada ocasional, era forte. Tirei a lama dos sapatos e entrei.

Havia poucos clientes naquele pequeno espaço: uma dupla de lenhadores, empregados de Jonathan e Tobey Ostergaard, o pai cruel da pobre Sophia, parecendo, ele próprio, um defunto, a pele cinza e seus olhos mortos olhando fixamente para a parede do fundo. Todas as cabeças viraram em minha direção quando entrei, e Daughtery me lançou um especial olhar atravessado.

— Uma bebida — pedi, apesar de ser desnecessário, pois só havia um tipo de bebida no cardápio.

A taberna um dia já havia sido parte da casa dos Daughtery e fora repartida (sob objeção da esposa) para acomodar o balcão do bar, uma pequena mesa e vários bancos construídos com sobras de madeira, com pernas de alturas diferentes. Nos meses mais quentes, havia jogos de azar e, às vezes, brigas de galo no celeiro, que era separado da casa principal por uma trilha enlameada. A maioria dos fregueses não ficava, mas levava um barril de cerveja para tomar em casa com as refeições, já que fazer cerveja era um negócio trabalhoso e Daughtery, todos concordavam, era o melhor cervejeiro da cidade.

— Ouvi dizer que você tinha voltado — Daughtery comentou, enquanto pegava minha moeda. — Pelo que parece, Boston lhe fez bem. — Ele fez um comentário bem direto sobre minha roupa. — O que uma criatura do campo feito você faz para comprar roupas tão elegantes quanto estas?

Como meu irmão, Daughtery deve ter adivinhado, eles todos devem ter adivinhado, o que tinha acontecido para eu me tornar uma mulher tão rica. Daughtery foi o primeiro a me acusar abertamente, querendo se exibir para os clientes. Ainda assim, o que podia responder nessas circunstâncias? Lancei-lhe um sorriso indecifrável sobre a borda da caneca.

— Fiz o que incontáveis outros fizeram para melhorar a vida: associei-me a pessoas de posse, Sr. Daughtery.

Um dos lenhadores foi embora assim que cheguei, mas outro veio me chamar para dividir a mesa com ele. Ele ouviu Daughtery falar de Boston e estava ansioso para conversar com alguém que estivera lá recentemente. Era jovem, talvez 20 anos, de temperamento meigo e aparência limpa, diferente da maioria dos trabalhadores contratados de St. Andrew. Viera ao Maine para trabalhar. Ganhava bem, mas o isolamento o estava matando; sentia falta da cidade, ele disse, e das opções de diversão. Seus olhos se encheram de lágrimas quando eu descrevi o jardim público num sábado ensolarado e a superfície negra e brilhante do rio Charles sob a lua cheia.

— Gostaria de ir embora daqui antes da neve — ele comentou, olhando para dentro de sua caneca. — Mas ouvi dizer que o St. Andrew precisa de trabalhadores durante o inverno e pagará bem. Quem já ficou no turno do inverno diz que é terrivelmente solitário.

— Acho que é uma questão de perspectiva.

Daughtery bateu uma caneca em cima do balcão, nos assustando.

— Terminem. Hora de ir para as respectivas camas.

Ficamos do lado de fora da porta trancada do Daughtery’s, encostados um no outro para nos proteger do vento. O estranho encostou sua boca perto da minha orelha, de modo que o calor de suas palavras fez a penugem de minha face se arrepiar, como flores se voltando na direção do sol. Ele me contou que fazia muito tempo que não tinha uma companhia feminina. Confessou ter pouco dinheiro, mas perguntou se eu gostaria mesmo assim.

— Espero não estar sendo presunçoso sobre sua profissão — disse ele, com um sorriso nervoso. — Mas quando entrou sozinha no Daughtery’s... — Eu não tinha o que dizer: ele estava certo.

Entramos furtivamente no celeiro do Daughtery’s, e os animais, de tão acostumados aos visitantes noturnos do bar, nem fizeram alarde. O jovem lenhador ajeitou a roupa, desabotoando a parte de baixo das calças e colocando seu membro em minha mão. O jovem se derreteu diante das minhas manobras, instantaneamente perdido em sua própria nuvem de extremo prazer. Deve ter sido a volta a St. Andrew e o fato de ter visto Jonathan novamente o que deixou meu sangue fervendo de paixão. A mão do lenhador estava sobre minha pele, mas era em Jonathan que eu pensava. Estava sendo incauta, me permitindo pensar em Jonathan, mas, naquela noite, a combinação de pele e memória me deu uma amostra do que poderia acontecer e me deixou ávida por mais. Assim, puxei o jovem para mais perto de mim e coloquei um pé em cima de uma pilha de feno, para que ele pudesse chegar mais fácil às minhas roupas de baixo.

O jovem se enfiou em mim, subindo e descendo, a pele firme e suave, as mãos carinhosas, e tentei fingir que ele era Jonathan, mas não conseguia me concentrar na ilusão. Talvez Adair estivesse certo, talvez houvesse alguma vantagem em transformar Jonathan em um de nós. Um desejo terrível me dizia que eu tinha que tentar ou ficaria insatisfeita pelo resto da vida, ou seja, eternamente.

O lenhador deu um profundo suspiro enquanto gozava, então tirou um lenço e o ofereceu a mim.

— Perdão por minha sinceridade, senhorita — ele murmurou morno, em meu ouvido —, mas esse foi o melhor sexo que já tive na vida. Você dever ser a puta mais talentosa de Boston!

— Cortesã — eu o corrigi gentilmente.

— E eu não vou fingir que posso compensá-la da maneira como deve estar acostumada... — ele disse, enfiando as mãos até o fundo dos bolsos para pegar o dinheiro, mas coloquei a mão em seu braço para impedi-lo.

— Deixe para lá. Fique com o dinheiro. Apenas prometa que não dirá uma só palavra para ninguém — pedi.

— Ah não, madame, não vou... mas vou me lembrar disso pelo resto de minha vida!

— Eu também — eu disse, apesar de este garoto de rosto doce ser apenas mais um numa sucessão de muitos outros ou, talvez, o último, para ser substituído por Jonathan e somente Jonathan, se eu tivesse sorte. Fiquei observando o jovem lenhador sair, trôpego, noite adentro, indo na direção da estrada que levava à propriedade de St. Andrew, antes de fechar bem meu casaco e começar a jornada na direção contrária. A quentura do jovem escorria por dentro de minhas coxas e senti um tremor conhecido em meu peito, a satisfação que sentia toda vez que deixava um homem em estado de servidão sexual. Não via a hora de ter essa experiência com Jonathan e de surpreendê-lo com minhas habilidades recém-adquiridas.

O caminho que peguei me levou até o estabelecimento do ferreiro e, por força do hábito, olhei pela estradinha na direção da casa de Magda. Dava para ver um brilho atrás do xale com o qual ela tapava a janela, então sabia que ela estava acordada. Engraçado pensar que um dia invejei ter uma casa como a dela; e acho que ainda invejo porque senti certo aperto no coração ao avistá-la, lembrando-me dos tesouros caseiros que tanto me impressionaram quando menina. A mansão de Adair poderia até ser toda ornamentada e cheia de coisas luxuosas, mas uma vez que se atravessava a porta, sua liberdade deixava de existir. Magda era dona de sua própria casa e isso ninguém poderia tirar dela.

Quando parei no caminho que levava até a casa dela, a porta da frente se abriu e, de dentro da casa, saiu um lenhador (ainda bem, pois ficaria mortificada caso fosse um dos meus vizinhos saindo da alcova de Magda). A velha garota veio atrás dele e, por um momento, foram pegos pela luz saindo pela porta. Os dois riam, Magda enrolava uma capa sobre os ombros enquanto apressava seu cliente escada abaixo, com um aceno de despedida. Eu recuei, para poupar ao lenhador da vergonha de ser observado, mas não antes de Magda perceber.

— Quem está aí? — ela gritou. — Não quero ter problemas agora.

Saí da escuridão.

— Nenhum virá de minha parte, mestra Magda.

— Lanore? É você? — Ela esticou o pescoço. Passei correndo pelo lenhador, que descia, e subi os degraus para receber um abraço de Magda. Os braços dela pareciam mais frágeis do que nunca.

— Meu Deus do céu, garota, me disseram que tínhamos perdido você! — ela disse enquanto me puxava para dentro. A sala estava abafada por causa do calor vindo da pequena lareira e da união de dois corpos (o cheiro almiscarado ainda pairava no ar; esses lenhadores não eram muito afeitos a banho e podiam ficar muito malcheirosos), então tirei minha capa. Magda me girou pelos ombros para poder olhar melhor meu vestido elegante.

— Bem, senhorita McIlvrae, pelo que vejo, diria que se saiu muito bem.

— Não posso dizer que tenho orgulho do meu trabalho — eu disse.

Magda olhou para mim em reprovação.

— Quer que eu imagine que você encontrou a sorte do mesmo modo que as jovenzinhas...? — Quando não respondi, ela chacoalhou sua capa com força. — Bem, você sabe qual é minha posição sobre esse assunto. Não chega a ser um crime seguir pelo único caminho que se tem aberto e fazer disso um sucesso. Se Deus não quisesse que ganhássemos a vida sendo prostitutas, ele nos daria outro jeito de nos sustentarmos. Mas ele não deu...

— Não sou exatamente uma prostituta. — Por que senti necessidade de esclarecer minha situação a ela? — Tem um homem que me sustenta...

— Vocês são casados?

Balancei a cabeça.

— Então você é amante dele. — Ela colocou gim dentro de dois pequenos copos, manchados pela idade, e eu contei a ela sobre minha vida em Boston e sobre Adair. Era um alívio poder contar sobre ele para alguém; uma visão adulterada, obviamente, omitindo as partes dele que, se pudesse, mudaria: seus violentos ataques de fúria, os altos e baixos constantes, a companhia masculina na cama de vez em quando. Disse a ela que ele era lindo, rico e apaixonado por mim, e ela balançava a cabeça diante das minhas boas notícias. — Que bom para você, Lanore! Guarde um pouco do dinheiro que ele gasta com você.

À luz da vela, era possível ver o rosto de Magda mais claramente. A passagem dos anos durante minha ausência tinham deixado marcas nela: a pele delicada formava bolsas ao redor da boca e do pescoço, e seu cabelo negro estava quase todo branco. Seus espartilhos, um dia belos, agora estavam acinzentados e surrados. Fosse ela a única prostituta da cidade ou não, não poderia continuar naquele ramo por muito mais tempo. Os lenhadores mais jovens não viriam mais visitá-la e, os mais velhos, que ainda pagariam por seus serviços, eram afeitos a não lhe tratarem bem. Logo ela seria uma velha sem amigos numa cidade onde a vida era dura.

Eu usava um discreto broche de pérola, um presente de Adair. Minha família não entendia nada sobre joias e, assim, eu o usava abertamente na frente deles, mas Magda com certeza sabia que aquilo valia uma pequena fortuna. A princípio, pensei em dá-lo à minha família, eles tinham mais direito a ele do que uma mulher que era apenas minha amiga, mas resolvi deixar o dinheiro para eles, e não era pouco. Assim, tirei o broche da roupa e o ofereci a ela.

Magda meneou a cabeça.

— Ah, não, Lanore, você não precisava fazer isso. Não preciso de sua caridade.

— Quero que fique com isso...

Ela colocou de lado minha mão esticada.

— Sei o que está pensando. Tenho planos de me aposentar logo. Guardei um bom dinheiro durante esse meu tempo aqui; Charles St. Andrew deveria ter mandado o pagamento de alguns de seus homens diretamente para mim, pelo tempo que eles passaram nessa casa, e poupá-los do trabalho de ter que carregar o dinheiro no bolso por um ou dois dias — ela riu. — Não, prefiro vê-la guardar isso para você. Pode não acreditar em mim agora, já que é jovem e linda, e tem um homem que dá valor à sua companhia, mas, um dia, todas essas coisas acabarão e aí poderá precisar do dinheiro que esse broche lhe trará.

Claro que não podia contar a ela que esse dia nunca chegaria para mim. Forcei um sorriso amarelo enquanto colocava o broche de volta no lugar.

— Não, estou planejando me mudar na primavera. Algum lugar perto da costa — ela continuou. Ela olhou ao redor da sala melancolicamente, como se planejasse ir embora amanhã. — Quem sabe eu não encontro um bom viúvo solitário e me acomodo de novo?

— Não tenho dúvida de que a sorte brilhará para você, Magda, em qualquer coisa que queira fazer, pois você tem um coração generoso — eu disse e me levantei. — Vou deixar você se retirar para a noite, e devo voltar para minha família. Foi bom lhe ver, Magda!

Nós nos abraçamos de novo e ela esfregou a mão carinhosamente em minhas costas.

— Cuide-se, Lanore! Tenha cuidado. E, o que quer que faça, não se apaixone pelo seu companheiro. Nós, mulheres, tomamos as piores decisões quando estamos apaixonadas.

Ela me acompanhou até a porta e se despediu com um aceno de mão. A verdade contida no conselho dela pesava em meu coração e fui em direção à floresta menos alegre do que antes.

No caminho para casa, fiquei ainda mais inquieta e, quando refleti sobre isso, percebi que era porque tinha mentido à Magda sobre Adair. Eu não havia apenas escondido o segredo dele, o nosso segredo. Essa parte era compreensível. No entanto, se existia alguém em St. Andrew capaz de perdoar Adair pelas suas peculiaridades, seria Magda e, mesmo assim, escolhi mentir para ela sobre ele e sobre meu relacionamento com ele. Acima de tudo, uma mulher quer sentir orgulho do homem de sua vida e, obviamente, eu não sentia orgulho dele. Como poderia sentir orgulho do que Adair havia trazido à tona de dentro de mim, sabendo, só de olhar, que eu compartilhava alguns dos seus apetites mais nefastos. Por mais que tivesse medo dele, também tinha que admitir que reagia a ele, que havia aceitado toda a aventura sexual que propusera. Ele trouxe à tona algo que eu não poderia negar, mas de que não sentia orgulho. Talvez eu não tivesse vergonha de Adair; talvez eu tivesse vergonha de mim mesma.

Esses pensamentos assustadores enchiam minha mente enquanto apertava mais a capa por causa do vento e me apressava pelo caminho até o chalé de meus pais. Não conseguia parar de me lembrar de todas as coisas terríveis que eu tinha feito ou como podia deleitar-me tanto diante de prazeres tão sinistros. Não foi à toa que me perguntei se não alcançaria mais a redenção.

 

Quando acordei no dia seguinte, ouvi minha mãe e Maeve cochichando na cozinha, para não me acordar. Para elas, eu devia parecer uma preguiçosa, desperdiçando o horário mais produtivo, dormindo até meio-dia, apesar de ser o mais cedo que já tivesse me levantado havia muito tempo.

— Ei, olha só quem acordou! — minha mãe disse, da lareira, quando me ouviu resmungando no andar de cima.

— Imagino que Nevin disse algumas palavras sobre meus hábitos de sono! — respondi, enquanto descia a escada.

— Fizemos o que conseguimos para dissuadi-lo a não lhe puxar pelos pés — Maeve disse, entregando-me minhas roupas, que ficaram sobre a cadeira perto da lareira para tirar a friagem.

— Claro! Bem, estava inquieta ontem à noite e fui andar pela cidade.

— Lanore! — Minha mãe quase deixou a faca cair. — Ficou louca? Poderia ter congelado até a morte! Sem falar que algo muito pior poderia ter acontecido — ela disse, trocando um olhar com minha irmã, ambas sabendo que eu já não tinha mais nenhuma virtude para preservar, o que tirou o tom de urgência da voz dela.

— Tinha me esquecido do quanto é frio à noite aqui, mais para o norte — menti.

— E aonde você foi?

— Não foi à igreja, posso apostar — Maeve disse, com uma gargalhada.

— Não, não fui à igreja. Fui ao Daughtery’s.

— Lanore...

— Um pouco de companhia num momento de solidão, era tudo o que eu queria. Não estou mais acostumada a esse silêncio e a acordar cedo. Minha vida em Boston é muito diferente. Vão ter que me aguentar. — Apertei as amarras de minha saia na altura da cintura antes de me dirigir até minha mãe e beijá-la na testa.

— Você não está em Boston agora, querida — minha mãe murmurou.

— Não fique preocupada — Maeve comentou. — Não que Nevin não seja visto no Daughtery’s de vez em quando. Se os homens podem fazer isso, não vejo por que você não pode, pelo menos algumas vezes — nesse momento, ela deu uma olhada para minha mãe, para ver se ela reagiria —, e teremos que nos acostumar com isso.

Quer dizer que Nevin ia ao Daughtery’s... Eu teria que ser cuidadosa. Se ele descobrisse meus galanteios noturnos, as coisas se complicariam para mim.

Naquele momento, fomos interrompidos por uma batida na porta. Um dos criados de St. Andrew estendeu um envelope cor de marfim, com meu nome nele. Dentro, havia um recado com a meticulosa escrita cursiva da mãe de Jonathan, convidando minha família para jantar aquela noite. O criado esperou na porta por nossa resposta.

— O que devo dizer a ele? — perguntei, apesar de ser muito fácil adivinhar a resposta. Maeve e minha mãe dançavam como a Cinderela quando soube que ia ao baile.

— E Nevin? Com certeza ele se recusará a ir — eu disse.

— Com certeza; e sem motivo — Maeve respondeu.

— Gostaria que seu irmão tivesse uma cabeça melhor para os negócios — minha mãe murmurou. — Ele poderia aproveitar essa oportunidade para falar com Jonathan sobre comprar mais regularmente de nós. Metade da cidade vive à custa daquela família. Quem mais compraria nosso bife? Eles, com todos aqueles homens para alimentar... — Ela provavelmente pensava nos St. Andrew como avarentos por alimentar seus empregados com carne de cervos caçados na propriedade. Voltei até a porta e me dirigi ao criado.

— Por favor, diga à senhora St. Andrew que estamos honradas em aceitar o con­vite e que seremos quatro para o jantar.

O jantar daquela noite foi surreal para mim; estar rodeada pelas duas famílias. Nunca acontecera durante todo o tempo em que Jonathan e eu fomos amigos quando crianças, e estaria feliz naquela noite se o jantar tivesse se limitado a nós dois, numa mesa em frente do fogo, no estúdio dele. Mas não seria apropriado, considerando que agora Jonathan tinha mulher e filha.

As irmãs dele já haviam se tornado solteironas com caras de coruja, observando minhas irmãs mais jovens e vigorosas como se fossem macacos soltos pela casa. Pobre Benjamin, lerdo, sentado ao lado da mãe, olhos fixos no prato, lábios cerrados, desejando permanecer quieto. Vez ou outra, a mãe pegava a mão dele e fazia um carinho, o que parecia ter um efeito calmante no pobre garoto.

E, à esquerda de Jonathan, estava Evangeline, parecendo uma criança a quem deram permissão para se sentar à mesa com os adultos. Seus dedos rosados tocavam cada peça dos talheres, como se não estivesse familiarizada com o uso do elegante faqueiro de prata. E, de vez em quando, seu olhar passava rapidamente pelo rosto do marido, como um cão se assegurando da presença do dono.

Vendo Jonathan desse jeito, cercado pela família que sempre dependeria dele, senti pena.

Após a refeição, uma bandeja de carne de veado e uma dúzia de codornas assadas, que resultaram em pratos morbidamente empilhados com costelas de veado e pequenos ossos de pássaros devorados, Jonathan olhou ao redor da mesa, onde havia praticamente apenas mulheres, e me convidou para ir com ele até o antigo estúdio de seu pai, de que agora ele tomara posse. Quando sua mãe abriu a boca para fazer objeção, ele disse:

— Não há nenhum homem aqui para me fazer companhia com o cachimbo, e gostaria de conversar a sós com Lanore, se me permitirem. Tenho certeza de que, de outra forma, ela ficaria muito entediada.

As sobrancelhas de Ruth se levantaram, apesar de as irmãs dele não se ofenderem. Talvez ele estivesse tentando poupá-las da estranheza de minha companhia; tenho certeza de que elas também achavam que eu era uma puta e Jonathan provavelmente me convidara contra a vontade delas.

Depois de fechar as portas, ele nos serviu uísque, preparou dois cachimbos com tabaco e nos acomodamos em cadeiras puxadas para perto do fogo. Primeiro ele quis saber como eu desapareci em Boston. Contei a ele uma versão mais detalhada da que dera à minha família, que eu era empregada de um rico europeu, contratada para trabalhar como sua interlocutora norte-americana. Jonathan ouvia com desconfiança, debatendo-se entre questionar ou somente apreciar a história.

— Deveria pensar em se mudar para Boston. A vida lá é muito mais fácil — eu disse, segurando a chama perto do cachimbo. — Você é um homem de posses; se vivesse na cidade grande, poderia tirar proveito dos prazeres da vida.

Ele chacoalhou a cabeça.

— Não podemos nos mudar; tem a colheita de madeira, é a fonte de renda. Quem administraria as operações de madeira?

— O senhor Sweet, como já o faz agora. Ou outro responsável. É assim que os homens ricos tomam conta das propriedades deles. Não há razão nenhuma para você e sua família sofrerem as mazelas dos terríveis invernos daqui.

Jonathan olhava fixamente para o fogo, tragando seu cachimbo.

— Poderia imaginar que minha mãe estivesse ansiosa para voltar para a família dela, mas nunca sairemos de St. Andrew. Ela não admitiria, mas acostumou-se à sua posição social. Em Boston, seria somente mais uma viúva bem de vida. Ela poderia até sofrer socialmente, por ter passado tanto tempo na floresta. Além disso, Lanny, já pensou no que aconteceria se nós deixássemos a cidade?

— Seus negócios continuariam aqui. Ainda teria que pagar os moradores para fazer o que paga para eles fazerem agora; a única diferença é que você e sua família teriam o tipo de vida que merecem. Haveria médicos para cuidar de Benjamin; você poderia participar das reuniões sociais aos domingos com seus vizinhos, ir a festas e jogar cartas toda noite, como os que pertencem à elite social da cidade.

Jonathan me lançou um olhar incrédulo, duvidoso o suficiente para me fazer pensar que o que ele havia dito sobre sua mãe poderia servir de desculpa. Talvez fosse ele quem tivesse medo de desistir de St. Andrew, deixar o único lugar que conhecia e tornar-se um peixe pequeno num lago grande e cheio de outros peixes. Eu me inclinei em direção a ele.

— Isso não deveria ser sua recompensa, Jonathan? Você trabalhou com seu pai para construir essa fortuna. Não faz ideia do que lhe espera fora dessas florestas, essas árvores tão espessas quanto as paredes de uma prisão!

Ele pareceu ofendido.

— Até parece que eu nunca saí de St. Andrew! Já estive em Fredericton.

Os St. Andrew tinham sócios em Fredericton como parte do negócio de madeira. Os troncos desciam pelo rio Allagash até o rio St. John e eram processados em Fredericton, cortados em lâminas ou queimados até virar carvão. Charles levara Jonathan numa viagem quando Jonathan ainda era adolescente, mas tinha ouvido falar muito pouco sobre isso. Agora, pensando bem, me pareceu que Jonathan não tinha curiosidade sobre o mundo fora de nossa pequena cidade.

— Fredericton não chega nem aos pés de Boston — retruquei. — Além disso, se você viesse a Boston, teria a oportunidade de conhecer meu patrão. Ele é um nobre europeu, praticamente um príncipe. Mas, para irmos direto ao ponto, ele é um verdadeiro mestre do prazer. Um homem que busca o coração. — Tentei sorrir zombeteiramente. — Posso lhe garantir que ele mudará sua vida para sempre.

Ele me olhou nos olhos.

— Um mestre do prazer? E como sabe disso, Lanny? Achei que fosse a in­terlocutora dele.

— Pode-se agir como intermediário de alguém para muitas coisas.

— Tenho que admitir que você me deixou curioso — ele disse, ainda que seu tom fosse de complacência. Parte de mim lamentava que Jonathan tivesse sido obrigado a assumir novas responsabilidades e não tivesse a mínima curiosidade sobre as tentações que eu lhe oferecia. No entanto, tinha certeza de que o antigo Jonathan estava lá; só tinha que trazê-lo à tona.

Jonathan e eu passamos a maioria das noites juntos. Percebi rapidamente que ele não havia cultivado outros amigos. Não sabia ao certo o motivo, pois com certeza não faltariam homens querendo desfrutar o status e os possíveis benefícios financeiros advindos de ser o maior aliado de Jonathan. Todavia, Jonathan não era tolo. Esses eram os mesmos homens que, quando jovens, tinham se ressentido por sua beleza, sua posição social e sua riqueza. Ressentidos por seus pais deverem obrigações ao capital, por salários ou aluguel.

— Sentirei sua falta quando for embora — Jonathan disse para mim numa dessas noites, quando nos trancamos atrás das portas do estúdio e queimamos um bom tabaco. — Você consideraria ficar? Você não tem que voltar para Boston, não se a questão for dinheiro. Eu poderia lhe dar um trabalho e então você ficaria aqui para ajudar sua família, agora que seu pai se foi.

Fiquei imaginando se Jonathan tinha pensado sobre essa oferta ou se ela tinha sido espontânea. Mesmo que ele encontrasse alguma posição para mim, a mãe dele seria contra ter uma mulher desonrada trabalhando para ele. Ele estava certo sobre esta ser uma oportunidade de me corrigir com minha família e, por dentro, eu me contorcia. Mas, ao mesmo tempo, convivia com um medo inominável diante da perspectiva de não obedecer às ordens de Adair.

— Não posso abrir mão da cidade agora que sei como é. Você se sentiria da mesma forma.

— Já expliquei a você...

— Não precisa tomar uma decisão no calor do momento. Afinal, mudar sua família inteira para Boston não seria pouca coisa. Venha comigo para uma visita. Diga à sua família que fará uma viagem de negócios. Veja se você gosta. — Eu limpara habilidosamente o cano do cachimbo com um fio (uma habilidade aprendida com a manutenção dos canos de água de Adair) e bati a tigelinha numa pequena bandeja para limpar a cinza. — Também poderia ser vantajoso para você do ponto de vista de negócios. Não há cultura aqui em St. Andrew! Você não faz ideia das coisas que está perdendo: peças, concertos. E o que imagino que você acharia mais fascinante... — inclinei-me para a frente, nossas cabeças abaixadas bem perto, para ser revelado o maior segredo de todos — é que Adair é bem parecido com você no que diz respeito aos prazeres de um cavalheiro.

— Se está dizendo... — A expressão dele me implorava para eu continuar.

— As mulheres se oferecem a ele. Todo tipo de mulher. Mulheres da sociedade, mulheres comuns e, quando ele se cansa dessas companhias, há sempre as “coelhas”.

— Coelhas?

— Prostitutas. Boston tem prostitutas de todos os tipos. Bordéus elegantes. Prostitutas de rua. Atrizes e cantoras que ficariam felizes de ser sua amante, em troca de belas acomodações e gastança de dinheiro.

— Você está dizendo que eu tenho que ir até uma atriz ou cantora para encontrar uma mulher que queira me fazer companhia? — ele perguntou, então olhou de lado. — Todos os homens em Boston pagam pela companhia de uma mulher?

— Se ele quer sua atenção exclusiva. Essas mulheres tendem a ser mais versadas nas artes do amor do que outras — eu disse, esperando aguçar a curiosidade dele. Era hora de compartilhar um dos segredos de Adair. — Um presente de meu patrão — eu disse, enquanto tirava um pequeno pacote embrulhado em seda vermelha: o jogo de cartas obsceno. — De um cavalheiro para outro.

— Divertido! — ele disse enquanto olhava intensamente para cada carta. — Tinha visto um conjunto como esse quando fui a Fredericton, apesar de não ser tão... criativo. — Quando ele foi pegar a seda vermelha para embrulhar de volta as cartas, um segundo presente caiu, um que eu havia esquecido que trouxera. Jonathan reteve a respiração.

— Meu Deus, Lanny, quem é essa? — Ele segurava a pintura em miniatura de Uzra nas mãos, um brilho de encantamento nos olhos. — Ela é um fantasma, a criação da mente de um artista?

Não me importei com seu tom de voz, nenhum cavalheiro falaria dessa forma em frente da mulher com a qual alegasse se importar, mas o que eu podia fazer? A foto tinha a intenção de tentá-lo e, claramente, o truque funcionara.

— Ah, não, posso lhe garantir que ela existe em carne e osso! Ela é a concubina de meu patrão, uma odalisca que trouxe com ele da rota da seda.

— Seu patrão tem um arranjo doméstico curioso, me parece. Uma concubina, mantida abertamente, em Boston? Não achei que permitiriam isso lá. — Jonathan olhava da foto para mim, cenho franzido.

— Não entendo... por que seu patrão mandaria presentes para mim? Qual o interesse dele? O que você disse a ele a meu respeito?

— Ele está procurando uma companhia que combine com ele e sente que você pode ser sua alma gêmea. — Ele estava desconfiado, talvez temendo que qualquer interesse vindo de um homem que ele não conhecia estaria ligado à sua fortuna. — Para falar a verdade, acho que ele está meio decepcionado com as companhias de Boston. Eles são bem circunspectos. Até agora ele não encontrou um bostoniano com o espírito parecido com o dele, com a vontade de ceder ao desejo de qualquer coisa que chame a sua atenção...

Mas Jonathan não parecia estar prestando atenção ao que eu dizia. Ele me estudava tão de perto que eu temi, sem querer, ter dito algo ofensivo.

— O que é? — perguntei.

— É que você está... tão mudada — ele disse, finalmente.

— Não tenho o que argumentar sobre isso. Eu mudei completamente. A per­gunta é: você está decepcionado com a mudança?

Ele piscou, uma sombra de dor em seus olhos negros.

— Devo dizer que sim, talvez um pouco. Não sei como dizer isso sem ferir seus sentimentos, mas não é mais a mesma garota de quando foi embora. Está tão falante; você é amante desse homem, não é? — ele perguntou com hesitação.

— Não exatamente. — Um termo de anos anteriores me veio à cabeça: — Sou sua esposa espiritual.

— Esposa espiritual?

— Todas somos: a odalisca, eu, Tilde... — Achei melhor não incluir Alejandro e Dona, não tinha noção de como Jonathan reagiria a esse tipo de arranjo.

— Ele tem três esposas sob o mesmo teto?

— Isso sem falar das outras mulheres com quem se diverte...

— E você não se importa?

— Ele pode compartilhar as afeições dele como quiser, assim como nós. O que temos é algo que nunca ouviu dizer antes, mas... sim, esse arranjo funciona para mim.

— Meu Deus, Lanny, mal posso acreditar que você é a mesma menina que eu beijei na igreja anos atrás. — Ele lançou um olhar tímido em minha direção, como se não tivesse certeza de como se comportar. — Suponho, dada toda essa conversa sobre compartilhar suas afeições livremente, que não seria indecoroso se eu lhe pedisse... outro beijo? Só para ter certeza de que você é a Lanny que conheci um dia, que está aqui comigo de novo?

Esta era a abertura pela qual eu esperava. Ele se levantou da cadeira e inclinou-se sobre mim, pegando meu rosto em suas mãos, mas seu beijo foi hesitante. Essa hesitação quase me partiu o coração.

— Deve saber que eu achava que nunca mais o veria novamente, Jonathan, muito menos que sentiria seus lábios nos meus. Pensei que fosse morrer de tanto que senti sua falta!

Enquanto meus olhos mapeavam seu rosto, percebi que a esperança de ver Jonathan novamente foi a única coisa que me manteve sã. Agora que estávamos juntos, eu não seria enganada. Eu me levantei e pressionei-me contra ele. Depois de hesitar mais uma vez, ele me envolveu em seus braços. Estava agradecida por ele ainda me desejar, mas tudo nele havia mudado desde a última vez que estivemos juntos, até mesmo o cheiro do cabelo e da pele. A reserva das suas mãos quando agarrou minha cintura. O gosto dele quando nos beijamos. Tudo mudara. Ele estava mais vagaroso, mais carinhoso, mais triste. Seu ato de fazer amor, apesar de dócil, perdera a ferocidade. Talvez porque estávamos na casa da família dele, sua esposa e sua mãe bem atrás da porta trancada. Ou ele estaria consumido de arrependimento por trair a pobre Evangeline?

Deitamos juntos no banco depois de Jonathan terminar, a cabeça dele entre meus seios emoldurados por um corpete de seda fina, ornamentado e arrematado com renda. Ele ainda estava no meio de minhas pernas, deitado sobre um amontoado de saias e o espartilho levantado até a minha cintura. Eu passava os dedos pelos seus cabelos enquanto meu coração batia forte de felicidade. E, sim, senti a servidão secreta de tê-lo feito entregar-se totalmente ao seu prazer. E, quanto à esposa esperando obedientemente do outro lado da porta, bem, ela não tinha roubado Jonathan de mim, para começar? E um contrato de casamento não significava muito se ele ainda me desejava, se o coração dele ainda me pertencia. Meu corpo tremia com a prova do desejo dele. Apesar de tudo o que acontecera a nós durante os anos em que ficamos separados, mais do que nunca estava convencida de que nosso elo era inquebrável.

 

                       PROVÍNCIA DE QUEBEC, HOJE

Luke para num restaurante, perto da saída da estrada. Precisava descansar um pouco. Assim que se acomodam no balcão, ele empresta o laptop de Lanny para se atualizar com as notícias e olhar seu e-mail. Além das costumeiras filas de e-mails dos administradores do hospital (“Funcionários, devem se lembrar de não parar no estacionamento leste, uma vez que este espaço será usado para a remoção da neve...”), ninguém lhe mandara nenhuma mensagem. Ninguém parecia ter notado sua ausência. Distraído, Luke faz o cursor deslizar para lá e para cá na área de trabalho, mas não há nada para verificar. Está prestes a desligar o computador quando ouve um alerta. Alguém acabara de lhe enviar um e-mail.

Ele espera que seja um spam, outro convite comemorativo e impessoal de seu banco, ou alguma porcaria do gênero, mas era de Peter. Luke sente uma pontada de desconforto por ter tirado vantagem da bondade de seu amigo. Peter é mais um conhecido do que um amigo, mas uma vez que há poucos anestesistas na cidade e Luke é um médico da emergência, eles se viam mais do que outros médicos. A última série de infortúnios na vida de Luke o tinha deixado menos amigável do que o normal, mas Peter era um dos poucos médicos que ainda falava com ele. “Onde você está?”, estava escrito no e-mail. “Não achei que planejasse ficar com o carro por tanto tempo. Tentei ligar, mas você não atende seu celular. Está tudo bem? Sofreu algum acidente? Está machucado? Estou preocupado com você. ME LIGUE.” Então Peter listou todos os seus números de telefone e o número do celular da esposa dele.

Luke fecha o e-mail de Peter, sua mandíbula travada. “Ele está com medo que eu tenha enlouquecido”, Luke percebe. Ele tem consciência de que seu comportamento é estranho, para dizer o mínimo, e as pessoas na cidade prendem a respiração quando estão perto dele, com medo de falar sobre Tricia e o divórcio, ou sobre a morte de seus pais. Elas não acham que ele seja capaz de administrar toda a abundância de infelicidade de sua vida. Só agora Luke se dá conta de que sair da cidade com essa mulher serviu para distraí-lo da própria infelicidade. Há meses que ele se sente miserável. Esta é a primeira vez que consegue pensar em suas filhas sem ter vontade de chorar.

Luke inspira fundo e expira devagar e longamente. “Não tire conclusões apressadas”, diz a si mesmo. Peter está sendo legal, paciente. Não ameaçou ligar para a polícia. Peter é a pessoa mais bem-ajustada na vida de Luke nesse momento, mas Luke sabe que essa amizade ainda existe porque Peter é novo em St. Andrew. O jovem doutor ainda não foi afetado pela estranheza inerente à cidade, pelo distanciamento frio, pelo vício puritano de fazer julgamentos.

Por um momento, Luke está tentado a ligar para Peter. Peter é a corda que o mantém preso ao mundo real, o mundo que existia antes de ele ajudar Lanny a fugir da polícia, antes de ouvir a fantástica história dela, antes de dormir com a paciente. Peter talvez conseguisse fazer Luke desistir dessa insensatez. Ele respira fundo mais uma vez. A questão é: ele quer que alguém o faça desistir?

Ele abre de novo o e-mail de Peter e aperta “Responder”.

— Sinto muito pelo seu carro — ele digita. — Logo vou deixá-lo em algum lugar e a polícia o encontrará e o devolverá a você. — Ele pensa no que escreveu e percebe que o que está realmente dizendo é que ele foi embora e não vai mais voltar. Sente um enorme alívio. Antes de apertar o botão “Enviar”, ele adiciona à mensagem: — Fique com minha caminhonete; é sua.

Luke para no banheiro antes de entrar na SUV e vê que Lanny já está no banco da frente, olhando fixamente para a frente, com um sorriso triste no rosto.

— Algo errado? — Luke pergunta, enquanto gira a chave na ignição.

— Não é nada... — Ela abaixa o olhar. — Quando fui pagar a conta, quando você estava no banheiro, vi que eles tinham bebida à venda atrás do balcão, então pedi uma garrafa de Glenfiddich, mas ela não quis vender para mim. Disse que eu tinha que esperar meu pai sair do banheiro se ele quisesse comprar uma garrafa.

Luke tenta alcançar a maçaneta da porta.

— Eu posso ir, se você quiser...

— Não, não é pelo uísque; é só que... isso acontece o tempo todo. Estou cansada dessa situação, é só. Sempre sendo confundida com uma adolescente, tratada como uma criança. Posso parecer uma criança, mas não penso como uma criança e, às vezes, não quero ser tratada como se fosse uma. Sei que ter uma aparência jovem também me ajuda, mas, Deus... — Ela segura a cabeça, chacoalhando-a, então joga os ombros para trás. — Vamos fazer um show para impressioná-la?

Antes que Luke pudesse responder, Lanny agarra a jaqueta dele pelo colarinho e puxa-o até ela. Ela trava a boca sobre a dele, dando-lhe um beijo longo, se esfregando nele. O beijo continua, até ele ficar tonto. Sobre os ombros de Lanny, ele consegue ver a mulher petrificada atrás do balcão do caixa, sua boca aberta num círculo horrorizado e os olhos espantados.

Lanny o solta, rindo, e dá um tapa no painel.

— Vamos lá, papai, vamos achar um motel para eu trepar com você até cansar.

Luke não ri junto com ela. Sem pensar, ele limpa a boca.

— Não faça isso. Não gosto de ser confundido com seu pai. Faz com que me sinta... — “Uma pessoa horrível, e eu não sou”, ele pensa, mas não diz.

Ela fica quieta, enrubesce de vergonha e olha para as mãos, desamparada.

— Você está certo. Me desculpe, não quis deixá-lo constrangido — ela diz. — Não acontecerá de novo.

 

  1. ANDREW, 1819

Aquele nosso delicioso encontro não foi o último. Planejávamos nos encontrar o máximo que podíamos, apesar de, às vezes, as circunstâncias serem inconvenientes, para dizer o mínimo: um celeiro de feno no final do pasto, cheirando a alfafa seca (nesse caso tínhamos que tomar cuidado para tirar qualquer semente e caule de nossas roupas), ou na estrebaria da casa dos St. Andrew, onde nos atracávamos na sala das selas e nos esfregávamos um no outro em meio a arreios e estribos pendurados.

Durante essas ocasiões com Jonathan, até mesmo quando inalava seu hálito e gotas de seu suor caíam sobre meu rosto, ficava surpresa por sentir Adair permeando meus pensamentos. Surpresa por me sentir culpada, como se o estivesse traindo, pois, à nossa maneira, éramos amantes. Também me percorria uma corrente de medo, da punição que Adair me daria, não por copular, mas por amar outro homem. Por que deveria me sentir culpada e amedrontada se estava fazendo o que ele queria? Talvez porque, em meu coração, eu soubesse que amava Jonathan, apenas Jonathan. Ele venceria todas as vezes.

— Lanny — Jonathan sussurrou, beijando minhas mãos enquanto deitava-se sobre o feno se recuperando do nosso encontro amoroso. — Você merece mais do que isso.

— Eu me encontraria com você na floresta, numa caverna, no campo — respondi —, se essa fosse a única maneira de vê-lo. Não interessa onde estamos; tudo o que interessa é que estamos juntos.

Lindas palavras, palavras de amantes. Mas, enquanto deitávamos juntos sobre o feno e eu passava os dedos em seu rosto, minha cabeça não fazia outra coisa a não ser vagar. E vagou para lugares perigosos, mexendo em feridas que não deveriam ser tocadas, como as circunstâncias envolvendo minha partida abrupta anos antes e o silêncio de Jonathan sobre o assunto. Desde que voltara para a cidade, ele não havia me perguntado nenhuma vez sobre a criança. Ele queria me perguntar; eu sentia toda vez que havia um momento de silêncio incômodo entre nós, quando o pegava olhando de lado para mim. “Quando foi embora de St. Andrew...”, mas as palavras permaneciam em sua boca. Ele deve ter presumido que eu abortara o bebê, como disse que faria aquele dia na igreja. Mas queria que ele soubesse a verdade.

— Jonathan — eu disse suavemente, pegando e deixando escorregar os cachos negros de seus cabelos por entre meus dedos —, já se perguntou por que meu pai me mandou embora da cidade?

Senti que ele segurava a respiração, uma hesitação em seu silêncio. Pouco depois, ele respondeu:

— Não, só soube que havia ido embora quando já era tarde... Foi errado de minha parte não procurar você mais cedo, para saber se não estava com problemas ou se algo terrível tinha acontecido com você... — Ele começou a brincar com a renda de meu espartilho, distraído.

— Que desculpa minha família deu por eu ter sido mandada embora? — perguntei.

— Disseram que você tinha ido cuidar de um parente doente. Eles se fecharam muito depois que você se foi e só ficaram entre eles. Perguntei a uma de suas irmãs se havia notícias suas e se podiam me dar um endereço para onde pudesse lhe escrever, mas ela saiu correndo sem me responder. — Ele levantou a cabeça de meu peito. — Não foi esse o caso? Você não estava cuidando de alguém?

Eu poderia ter rido da ingenuidade dele.

— A única pessoa que precisava de cuidados era eu mesma. Eles me mandaram embora para que eu pudesse ter o bebê. Não queriam que ninguém daqui soubesse.

— Lanny! — Ele pressionou a mão sobre meu rosto, mas eu a tirei. — E você...

— Não há nenhum filho; sofri um aborto. — Agora eu conseguia dizer essas palavras sem emoção, sem tremor na voz ou nó na garganta.

— Sinto muito por tudo o que passou, e sozinha... — Ele sentou-se, incapaz de tirar os olhos de mim. — Foi por isso que você acabou conhecendo esse homem? Esse Adair?

Tenho certeza de que minha expressão ficou muito sombria.

— Não quero falar sobre isso.

— Por quantas provações você teve que passar, Lanny? Devia ter escrito, me informado sobre sua situação. Teria feito alguma coisa por você, qualquer coisa que pudesse... — Ele veio me dar um abraço e meu corpo queria isso; então, ele pareceu pensar melhor e recuou. — Fiquei louco? O que... o que estamos fazendo? Já não a prejudiquei o suficiente? Que direito eu tenho de começar tudo de novo, como se fosse algum tipo de jogo? — Jonathan segurou a cabeça entre as mãos. — Precisa me perdoar pelo meu egoísmo e pela minha estupidez...

— Você não me forçou a nada — eu disse, tentando acalmá-lo. — Eu quis isso também. — Se pudesse retirar minhas palavras; foi um erro mencionar o filho, morto e perdido para sempre. Amaldiçoei-me por ter me rendido à minha natureza trivial. Queria que Jonathan soubesse que eu sofri e que reconhecesse a parte dele no mal que recaíra sobre mim, mas o tiro saíra pela culatra.

— Não podemos continuar assim. Esta é a última complicação de que eu preciso na vida. — Jonathan saiu de perto de mim e ficou em pé. Quando viu minha expressão de choque e mágoa, continuou: — Perdoe minha franqueza, querida Lanny! Mas sabe muito bem que eu tenho uma família, uma esposa, uma filha, obrigações das quais não posso fugir. Não posso colocar em risco a felicidade deles por alguns momentos de prazer com você... E não há futuro para nós, não pode haver. Seria doloroso e injusto com você nós continuarmos...

“Ele não me ama o suficiente para ficar comigo.” A verdade cortou meu coração como uma lâmina. Engasguei procurando ar. A raiva inflamou-se dentro de mim diante de suas palavras. Ele percebera isso só agora, depois de termos recomeçado nosso caso de amor ilícito? Ou eu estava magoada por ele estar me renegando pela segunda vez, por causa de Evangeline? Enquanto me sentava, totalmente pasma, devo admitir que o primeiro pensamento que me vinha à mente era me vingar. Consigo entender agora como as mulheres rejeitadas fazem pactos com o demônio; naquele momento, a necessidade de vingança é forte, mas a capacidade de extraí-la é insuficiente. Se Lúcifer tivesse aparecido diante de mim naquele segundo, prometendo-me as ferramentas para fazer Jonathan sofrer as intermináveis tormentas do inferno em troca de minha alma, eu teria aceitado de bom grado.

Ou talvez não houvesse necessidade de encontrar o demônio, de fazer o maldito contrato, de assinar meu nome com sangue. Talvez eu já tivesse feito isso.

 

Estava confusa sobre como prosseguir com o plano de Adair, e a perspectiva de que eu pudesse falhar me deixava doente de medo. Pensei que fisgaria Jonathan para Boston com meu amor e meus favores sexuais, mas não funcionara. O remorso fez meu amante renunciar a mim solenemente, apesar de ter prometido ser meu amigo e benfeitor para sempre, se necessário. Esperei para ver se Jonathan mudava de ideia e voltava para mim, porém, com o passar dos dias, ficou claro que ele não voltaria. “Uma visita”, implorei a ele. “Venha para Boston para uma visita”, mas Jonathan resistia. Um dia a desculpa dele era que não podia confiar em sua mãe para cuidar dos negócios do vilarejo durante sua ausência e, no outro, era que tinha surgido um problema que precisava de sua atenção. No final, era sempre a esposa que o impedia de concordar em ir.

— Evangeline nunca me perdoaria se eu a deixasse sozinha com minha família por muito tempo, e ela nunca faria a viagem com o bebê — ele me disse, como se estivesse à mercê de sua esposa e filha, como se nunca tivesse colocado seus próprios desejos na frente dos delas, marido e pai responsável que era. Aquelas desculpas seriam críveis se viessem de outro homem, mas não do Jonathan que eu conhecia.

Todavia, a aproximação da época de neve pressionava minha partida. Achava que, se ficasse em St. Andrew durante o inverno, alguma coisa terrível aconteceria. Adair, enfurecido por desafiá-lo, poderia vir até a cidade com seus cães do inferno e quem saberia o que aquele demônio de coração sombrio seria capaz de fazer com os inocentes de St. Andrew, isolados do restante do mundo? Pensei nas histórias que Alejandro e Dona me contaram sobre o passado bárbaro de Adair, liderando saques em vilarejos e matando os moradores que resistiam. Lembrei-me das criadas que ele estuprara e a maneira como havia me drogado e me usado para diversão. O trânsito na sociedade bostoniana garantia que as tendências brutais de Adair ficassem sob controle; não havia como dizer o que aconteceria numa cidade isolada no meio da neve. E eu seria a responsável por trazer a praga a meus vizinhos.

Uma noite, no Daughtery’s, estava analisando minha situação difícil, esperando encontrar com o dócil lenhador que conhecera no início de minha visita, quando Jonathan entrou. Já vira aquela expressão no rosto dele antes: tinha vindo até o Daughtery’s querendo companhia. Seu rosto estava vermelho de satisfação; acabara de vir de um encontro amoroso.

Ele parou quando me viu e não podia ir embora sem tomar conhecimento de minha presença. Sentou-se no banquinho do outro lado da mesa, com as costas para o fogo.

— Lanny, o que está fazendo aqui? Não é um lugar para uma senhorita fre­quentar sozinha.

— Ah, mas eu não sou uma senhorita, sou? — eu disse sarcasticamente e me arrependi imediatamente. — Aonde mais poderia ir? Mal consigo beber na companhia de minha mãe e meu irmão; não suporto o ar de reprovação deles. Você, pelo menos, sempre pode voltar para sua casa e tomar uma bebida antes de dormir. A bebida seria de melhor qualidade, com certeza. E, de qualquer maneira, a esta hora você não deveria estar em casa com sua esposa? Você aprontou alguma coisa essa noite, consigo sentir o cheiro em você.

— Considerando sua posição, não achei que seria tão rápida em me julgar — ele disse. — Tudo bem, vou lhe dizer a verdade, já que quer saber. Estive com outra mulher; alguém com quem eu já estava me encontrando antes de seu retorno inesperado. Eu também tenho uma amante. Anna Kolsted.

— Anna Kolsted é uma mulher casada.

Ele deu de ombros. Eu tremi de raiva.

— Então você não terminou seu caso com ela, mesmo depois daquele belo discurso que fez para mim outro dia?

— Eu... eu não poderia deixá-la tão rápido, sem uma explicação sobre o que aconteceu.

— E vai explicar que teve um epifania moral? Que resolveu não vê-la mais? — ordenei, como se tivesse o direito de fazê-lo.

Ele permaneceu em silêncio.

— Você nunca aprende, Jonathan? Isso não vai acabar bem — eu disse friamente.

Jonathan franziu os lábios com desdém, o ressentimento antigo e fervente borbulhando entre nós.

— Isso parece ser o que você sempre me diz, não é? — O nome de Sophia pairava no ar entre nós, não dito.

— Vai terminar como sempre. Ela se apaixonará por você e vai lhe querer só para ela. — Medo e pena tomaram conta de mim, como quando encontrei Sophia no rio. Nunca imaginei, depois de tudo pelo que havia passado, que a visão dela ainda me afetasse; talvez ainda o fizesse porque, de vez em quando, imaginava se não teria sido melhor para mim seguir o exemplo dela. — É inevitável, Jonathan. Todos que o conhecem querem possuí-lo.

— Você fala por experiência própria?

A agudeza dele me silenciou por um segundo, mas eu não podia deixar passar. Respondi sarcasticamente:

— Aqueles que têm você tendem a destruir a boa fortuna deles. Talvez devesse perguntar à sua esposa sobre isso. Já pensou em como seu caso com a sra. Kolsted afetará Evangeline, caso ela descubra?

A raiva tomou conta de Jonathan rapidamente, como uma tempestade. Ele olhou por sobre os ombros para ter certeza de que Daughtery estava ocupado e que ninguém o ouvia, então agarrou meu braço e me puxou para perto.

— Pelo amor de Deus, Lanny, tenha piedade de mim! Sou casado com uma criança. Quando eu a levei para nosso leito conjugal, ela chorou depois. Chorou. Ela tem medo de minha mãe e fica impassível ao redor de minhas irmãs. Não preciso de uma criança, Lanny, preciso de uma mulher!

Puxei meu braço.

— Acha que não sei disso?

— Juro por Deus que gostaria de nunca ter cedido ao pedido do meu pai e me casado com ela. Ele queria um herdeiro, era tudo o que interessava a ele. Viu uma garota com muitos anos de procriação pela frente e fechou negócio com o senhor McDougal, como se ela fosse uma égua reprodutora. — Ele passou a mão pelos cabelos. — Não faz ideia da vida que tenho que levar agora, Lanny. Ninguém para cuidar dos negócios além de mim. Benjamin continua tão inútil quanto um garoto de quatro anos de idade. Minhas irmãs são idiotas. E, quando meu pai morreu, bem... todas as preocupações foram colocadas sobre meus ombros. Essa cidade depende da fortuna de minha família. Faz ideia de quantos colonizadores compraram suas terras com empréstimos financiados por meu pai? Basta um inverno rigoroso ou nenhum talento para plantar, e vão deixar de pagar suas obrigações. Eu posso executar a dívida e pegar as terras de volta, mas de que me serviria outra fazenda improdutiva? Assim, peço que me perdoe por arranjar uma amante e poder fugir um pouco de todas as minhas responsabilidades! — Eu abaixei o olhar. Ele continuou, olhos arregalados. — Não faz ideia de quão atraentes têm sido suas ofertas! Daria qualquer coisa para me livrar de minhas obrigações! Mas não posso, e acho que você entende o porquê. Não só minha família estaria perdida, mas a cidade também entraria em derrocada. Vidas estariam destruídas. Acho que me pegou num momento de fraqueza quando voltou, Lanny, mas os últimos anos me ensinaram lições difíceis. Não posso ser tão egoísta.

Será que tinha se esquecido de que uma vez me dissera que queria deixar tudo para trás, a família e a fortuna, por mim? Que uma vez desejou que o mundo fosse apenas nós dois? Uma mulher mais sensata ficaria feliz por ver que Jonathan assumira suas responsabilidades e tinha sobre os ombros obrigações que poderiam esmorecer um homem mais fraco. Eu não podia dizer que estava feliz ou orgulhosa.

Mas eu o compreendia. Eu amava a cidade, à minha maneira, e não gostaria de vê-la em ruínas. Mesmo vendo minha própria família passando por dificuldades, mesmo que os moradores tenham me tratado mal e falado de mim nas minhas costas, não poderia levar embora quem mantinha a cidade unida. Sentei-me do outro lado, em frente de Jonathan, desgostosa e simpática à situação difícil que acabara de compartilhar comigo, mas, por dentro, o pânico tomou conta de mim dos pés à cabeça. Eu ia falhar com Adair. O que eu faria?

Bebemos nossa cerveja, desanimados. Parecia claro que eu teria que desistir de Jonathan e precisaria me concentrar em minha situação: o que fazer? Para onde poderia ir sem que Adair pudesse me encontrar? Não tinha a menor vontade de encenar, de novo, a tortura pela qual já tinha passado.

Pagamos nossa bebida e fomos para a estrada, cada um em silêncio com seus próprios pensamentos. Mais uma vez, a noite estava gélida, o céu, claro e brilhante, estrelado, nuvens finas cortando a luz prateada. Jonathan colocou a mão em meu braço.

— Me perdoe pela minha explosão e esqueça meus problemas. Você tem todo o direito de me desprezar pelo que acabei de dizer. A última coisa que quero é que carregue meu fardo. Meu cavalo está no celeiro do Daughtery’s. Deixe-me levá-la para casa.

Mas, antes que pudesse dizer a ele que não era necessário e que preferia ficar com meus pensamentos, fomos interrompidos pelo barulho de neve sendo pisoteada ao pé da estrada.

Estava tarde e quase congelando, improvável que alguém estivesse por ali.

— Quem está aí? — perguntei para a figura nas sombras. Edward Kolsted deu um passo sob uma fenda de luz da lua, com um rifle na mão.

— Siga seu caminho, senhorita McIlvrae. Não tenho querela com você. — Kolsted era um jovem rude de uma das famílias mais pobres da cidade e não era páreo para Jonathan na competição pela afeição de qualquer pessoa. Seu rosto longo fora desfigurado pela varíola, assim como o de muitos outros durante a juventude, e, para um homem jovem, seu cabelo castanho já estava afinando, seus dentes, caindo. Ele ergueu o rifle na altura do peito de Jonathan.

— Não seja estúpido, Edward! Há testemunhas: Lanny e os homens que estão dentro do Daughtery’s... a não ser que esteja planejando matá-los também — Jonathan disse para seu futuro assassino.

— Não me importo. Você arruinou minha Anna e me transformou em motivo de piada. Terei orgulho de ser conhecido por ter me vingado de você. — Ele ergueu ainda mais o rifle. Um arrepio de medo tomou conta de mim. — Olhe só para você, seu pavão enfeitado — Edward cutucou Jonathan com o rifle, mas Jonathan, para sua sorte, permaneceu onde estava. — Acha que a cidade vai lamentar quando estiver morto? Não vamos, senhor. Nós desprezamos você, os homens desta cidade. Acha que não sabemos o que tem aprontado, amaldiçoando nossas esposas, colocando-as sob seu feitiço? Você pegou a Anna para se divertir um pouco e, em troca, roubou-me a coisa mais preciosa que tinha. Você é o próprio demônio, é mesmo, e seria melhor esta cidade se livrar de você!

A voz de Edward aumentou, mais defensiva, mas, independentemente das palavras dele, tive a certeza de que Kolsted não levaria a cabo sua ameaça. Ele queria assustar Jonathan, humilhá-lo e fazê-lo implorar perdão, e isso daria ao corno um pouco de dignidade. Mas ele não tinha coragem de matar seu rival.

— É isso o que quer de mim, que eu seja um demônio? Isso serviria a seu propósito, exoneraria sua culpa? — Jonathan abaixou os braços. — Mas a verdade é que sua esposa é uma mulher infeliz, e isso tem muito pouco a ver comigo e muito a ver com você.

— Mentiroso! — Kolsted gritou.

Jonathan deu um passo em direção a seu agressor e minhas vísceras reviraram, sem saber se ele tinha um desejo de morte ou se queria que Koslted encarasse a verdade. Talvez achasse que devia isso à sua amante. Mas seu semblante raivoso foi mal interpretado e Kolsted talvez acreditasse que Jonathan estava furioso porque amava Anna.

— Se sua esposa fosse feliz, não procuraria minha companhia. Ela...

O rifle de Kolsted disparou, um estouro de chama branco-azulada na boca da arma, que eu vi com o canto dos olhos. Foi muito rápido: um barulho como o do trovão, uma luz como a de um raio, e Jonathan foi jogado para trás e caiu no chão. O rosto de Kolsted se contorceu, capturado por um instante sob a luz do luar.

— Eu atirei nele — ele murmurou, como se precisasse ter certeza. — Eu ati­rei em Jonathan St. Andrew.

Caí de joelhos na lama quase congelada, puxando Jonathan para meu colo. Sua roupa já estava encharcada de sangue, inclusive o paletó. Era um ferimento sério e profundo. Passei meus braços em volta dele e olhei com ódio para Kolsted.

— Se tivesse um rifle, atiraria em você bem onde está. Saia da minha frente.

— Ele está morto? — Kolsted esticou o pescoço, pois não era corajoso o suficiente para caminhar até o homem em quem acabara de atirar.

— Eles vão estar aqui fora num segundo e, se o encontrarem aqui, vão prendê-lo imediatamente — avisei, sussurrando entre os dentes. Queria que ele fugisse, já era possível ouvir o burburinho vindo do Daughtery’s e alguém sairia logo para ver quem tinha atirado. Tinha que esconder Jonathan antes de sermos descobertos.

Não tive que avisar Kolsted duas vezes; se foi por medo, por remorso ou porque ele não estava preparado para ser preso, o fato é que o agressor de Jonathan recuou feito um cavalo assustado e bateu em retirada. Prendendo meus braços em volta do peito de Jonathan, puxei-o para dentro do celeiro do Daughtery’s. Tirei seu sobretudo e depois o paletó, até que encontrei o ferimento em seu peito, o sangue espirrando de um buraco perto do coração.

— Lanny — ele ofegou, procurando minha mão.

— Estou bem aqui, Jonathan. Fique quieto.

Ele ofegou novamente e tossiu. Não havia o que fazer, a julgar pela distância do tiro e pela localização do ferimento. Reconheci a expressão em seu rosto: era o olhar fatigado de quem estava prestes a morrer. Ele ficou inconsciente, mergulhando em meus braços.

Podia ouvir vozes vindas do outro lado das tábuas comidas por vermes, homens do Daughtery’s que saíram até a estrada. Não encontrando ninguém, se afastaram.

Olhei para o belo rosto de Jonathan. Seu corpo, ainda morno, pesava em meu colo. Meu coração vociferava em pânico. “Mantenha-o vivo. Mantenha-o vivo a qualquer custo.” Eu o abracei com mais força. Não podia deixá-lo morrer. E só havia um jeito de salvá-lo.

Soltei seu corpo no chão, abri o sobretudo e o paletó. Graças a Deus que ele estava inconsciente, do contrário, assustada como estava, nunca teria conseguido executar a maldita tarefa. Será que funcionaria? Talvez me lembrasse errado: havia palavras especiais que precisaria recitar para fazer a poderosa mágica funcionar. No entanto, não havia tempo para pensar duas vezes.

Remexi no arremate de meu corpete, procurando pelo frasco. Assim que senti o toque do pequeno frasco de prata, arranquei-o da costura e tirei-o do esconderijo. Minhas mãos tremiam enquanto eu puxava a tampa do frasco e abria os lábios de Jonathan. Havia somente uma gota aqui, menos do que uma gota de suor. Rezei para que fosse o suficiente.

— Não me abandone, Jonathan. Não posso viver sem você — sussurrei no ouvido dele, a única coisa que conseguia pensar em dizer. Mas, então, as palavras de Alejandro me vieram à mente, aquilo que havia me contado no dia em que fui transformada; rezei para não ser muito tarde. — Por minhas mãos e intenção — eu disse, me sentindo tola enquanto falava, sabendo que eu não tinha poderes sobre nada, nem sobre o céu, nem sobre o inferno, nem sobre a terra.

Ajoelhei-me na palha, Jonathan apoiado em meu colo, e tirei o cabelo de sua testa, esperando por um sinal. Tudo o que conseguia me lembrar da terrível experiência era a sensação de queda e da febre percorrendo meu corpo como fogo e, então, acordando bem depois, no escuro.

Mais uma vez, abracei Jonathan junto a mim. Ele parara de respirar e estava ficando mais frio. Pus o casaco em volta dele, imaginando se conseguiria levá-lo até a fazenda de minha família sem ser notada. Parecia improvável, mas não havia outro lugar para levá-lo e, cedo ou tarde, alguém vasculharia o celeiro do Daughtery’s.

Selei o cavalo de Jonathan, impressionada por descobrir que já não tinha mais medo do maldito garanhão. Com uma força que não sabia possuir, surgida da necessidade, joguei Jonathan sobre o lombo do cavalo, montei na sela e saí pelas portas abertas do celeiro, galopando pelo vilarejo. Mais tarde, mais de um morador do vilarejo diria ter visto Jonathan St. Andrew cavalgar para fora da cidade naquela noite, sem dúvida inventando teorias desbaratadas sobre seu desaparecimento.

Quando chegamos à fazenda de minha família, com o corpo de Jonathan aninhado em meu colo, fui diretamente ao celeiro e acordei o cocheiro de aluguel. Tínhamos que sair de St. Andrew naquela noite; não podia arriscar e esperar até amanhecer, quando a família de Jonathan viria procurar por ele. Disse ao cochei­ro para selar os cavalos com rapidez; iríamos embora imediatamente. Quando ele protestou, dizendo que estava muito escuro para viajar, disse a ele que o luar estava forte o bastante para iluminar o caminho. Então acrescentei:

— Estou pagando seu salário, então, escute o que estou dizendo. Você tem quinze minutos para selar aqueles cavalos.

Quanto ao meu baú de roupas e as outras coisas, seriam deixados para trás. Não podia arriscar acordar minha família voltando ao chalé. Meu único pensamento nesse momento era tirar Jonathan da cidade. Assim que a carrua­gem saiu pela estrada coberta de neve, dei uma olhadinha pela janela acortinada para ver se alguém na casa tinha nos ouvido, mas ninguém se mexeu. Imaginei-os acordando, descobrindo que eu tinha ido embora, imaginando, com o coração dilacerado, por que tinha escolhido sair assim, minha partida tão misteriosa quanto meus anos de silêncio. Estava cometendo uma grande injustiça com os corações bondosos de minha mãe e minhas irmãs, e isso me magoava profundamente, mas a verdade era que, para mim, era mais fácil decepcioná-las do que perder Jonathan para sempre ou, ainda, desobedecer a Adair.

Jonathan estava deitado no banco à minha frente, enrolado em seu sobretudo e num robe de zibelina, minha capa enrolada como um travesseiro, a cabeça dele caída num ângulo esquisito. Ele não fez nenhum movimento, não havia o subir e descer do peito pela respiração, nada. Sua pele estava pálida como gelo ao luar. Mantive meus olhos grudados no rosto dele, esperando pelo primeiro sinal de vida, mas ele estava tão quieto que comecei a pensar que havia fracassado.

Percorremos muitos quilômetros nas primeiras horas da madrugada, a carrua­gem barulhenta atravessando a trilha solitária e rude da floresta enquanto eu vigiava Jonathan. Poderia ser uma armação funerária, eu fingindo ser uma viúva acompanhando o corpo do marido morto na jornada até seu lugar de repouso final.

O sol já havia nascido havia algum tempo quando Jonathan começou a acordar. Até aquele momento, quase chegara à conclusão de que ele não voltaria; sentei-me tremendo e suando durante horas, a ponto de vomitar, odiando-me. O primeiro sinal de vida foi um tremor na sua face direita, então o movimento dos cílios. Como estava branco feito um morto, duvidei de meus olhos por um momento, até que ouvi um resmungo baixo, vi os lábios entreabertos e, então, os dois olhos se abriram.

— Onde estamos? — ele perguntou, num sussurro que mal dava para ouvi-lo.

— Numa carruagem; deite-se quieto. Vai se sentir melhor daqui a pouco.

— Numa carruagem? Para onde estamos indo?

— Para Boston. — Não sabia o que dizer a ele.

— Boston! O que aconteceu? Eu... — seu pensamento deve ter voltado até a última coisa de que conseguia se lembrar, nós dois no Daughtery’s — ... perdi uma aposta? Estava bêbado, para concordar com você...

— Não houve acordo — eu disse, ajoelhando-me mais perto para apertar o robe em volta dele. — Estamos indo porque temos que ir. Você não pode mais ficar em St. Andrew.

— Do que está falando, Lanny? — Jonathan estava irritado e tentou me empurrar, embora estivesse tão fraco que não conseguia nem me tirar do lugar. Senti algo desconfortável sob meu joelho, como um seixo afiado; esticando a mão para baixo, meus dedos encontraram uma bala de chumbo. A bala da espingarda de Kolsted. Segurei para Jonathan vê-la.

— Reconhece isso?

Ele tentou focar na pequena forma escura em minha mão. Eu vi quando a memória voltou e ele se lembrou da briga na estrada e da explosão de pó que lhe havia tirado a vida.

— Fui baleado — ele disse, ofegante. Sua mão foi até o peito, as camadas de sua camisa e do paletó endurecidas pelo sangue seco. Sentiu a carne embaixo da roupa, mas estava inteira.

— Sem ferimento — Jonathan disse com alívio. — Kolsted deve ter errado a mira.

— Como isso poderia ter acontecido? Você está vendo o sangue, os buracos nas suas roupas. Kolsted não errou, Jonathan. Ele atirou em seu coração e matou você.

Ele apertou os olhos.

— O que você está dizendo não faz sentido. Não entendo.

— Não é algo que possa ser compreendido — respondi, pegando a mão dele. — É um milagre.

Tentei explicar tudo, embora Deus saiba que eu mesma compreendia muito pouco. Contei a ele minha história e a de Adair. Mostrei o pequeno frasco, agora vazio, e deixei que cheirasse seus últimos vapores malcheirosos. Ele ouviu, o tempo todo me observando como se eu fosse uma mulher insana.

— Diga a seu cocheiro para parar a carruagem — ele pediu. — Vou voltar para St. Andrew nem que tiver que andar a pé todo o caminho de volta.

— Não posso deixá-lo fazer isso.

— Pare a carruagem! — ele esbravejou, ficando em pé e esmurrando o teto do veículo. Tentei fazê-lo se sentar, mas o cocheiro havia escutado e parou os cavalos.

Jonathan abriu a porta da carruagem e pulou para a neve virgem, que ia até a altura dos joelhos. O cocheiro virou-se, olhando desconfiado para nós de seu banco alto, o bigode congelado pela própria respiração. Os cavalos tremiam buscando fôlego, exaustos de puxar a carruagem pela neve.

— Nós já voltamos. Derreta neve para dar água aos cavalos — eu disse, numa tentativa de distrair o cocheiro. Corri atrás de Jonathan, minhas saias me prendiam na neve, e agarrei o braço dele quando finalmente o alcancei.

— Você tem que me ouvir; não pode voltar a St. Andrew. Você se transformou.

Ele me empurrou.

— Não sei o que aconteceu com você desde que foi embora, mas só posso suspeitar que tenha ficado louca...

Segurei o punho dele com toda a força.

— Provarei a você. Se eu conseguir fazê-lo ver que estou dizendo a verdade, promete vir comigo?

Ele parou, mas olhou para mim como se esperasse um truque.

— Não vou prometer coisa nenhuma.

Ergui minha mão, soltando a manga da camisa dele, fazendo sinal para que esperasse. Com minha outra mão encontrei uma faca pequena, porém firme, no bolso do meu sobretudo. Abri a parte de cima de minha roupa, expondo meu corpete ao ar frígido e cortante e, então, pegando o cabo da faca com as duas mãos, enfiei-a no peito até o punho.

Jonathan quase caiu de joelhos, mas, num reflexo, suas mãos tentaram me alcançar.

— Meu Deus! Você é louca! Em nome de Deus, o que está fazendo...

O sangue brotava ao redor do punho da faca, rapidamente encharcando minha roupa, até que uma enorme mancha vermelha espalhou-se pela seda, da barriga até o esterno. Puxei a lâmina para fora, agarrei a mão dele e pressionei seus dedos no ferimento. Ele tentou se desvencilhar, mas eu o segurei com força.

— Toque. Sinta o que está acontecendo e me diga se ainda não acredita em mim.

Eu sabia o que ia acontecer. Era um truque de salão que Dona fazia para nós quando nos juntávamos na cozinha para relaxar, depois de uma noite pela cidade. Ele se sentava diante do fogo, jogava o casaco nas costas de uma cadeira, enrolava para cima suas volumosas mangas de camisa e, então, com uma faca, fazia um corte profundo nos antebraços. Alejandro, Tilde e eu assistíamos quando as duas pontas de carne vermelha rastejavam uma em direção à outra, impotentes feito dois amantes amaldiçoados, e se juntavam num abraço sem costuras. Uma façanha impossível, feita repetidamente, tão certa como o sol da manhã (Dona ria sarcasticamente enquanto observava sua própria pele se juntar, mas, ao recriar este truque por minha conta, percebi que havia uma sensação única: buscávamos dor, mas não podíamos recriá-la, não exatamente. Chegamos a querer algo próximo do suicídio, e assim teríamos o prazer temporário de infligir dor a nós mesmos, mas até isso nos era negado. Como nos odiávamos, cada um à sua maneira!).

O rosto de Jonathan empalideceu quando sentiu a carne macia se mexer, tremer e fechar.

— O que é isso? — ele murmurou, horrorizado. — A mão do demônio está aí, com certeza.

— Não sei nada sobre isso; não tenho explicação. O que está feito, está feito e não há como fugir. Você nunca mais será o mesmo, e o seu lugar não é mais em St. Andrew. Agora, venha comigo — eu disse. Ele veio, débil e pálido, e não resistiu quando coloquei minha mão sobre seu braço e o levei de volta à carruagem.

Jonathan não se recuperou do choque durante toda a viagem. Foi um período de muita ansiedade para mim, já que estava ávida para saber se teria meu amigo e amante de volta. Jonathan fora sempre confiante e me deixava doente ter que ser a líder. Era tolo de minha parte esperar outra coisa; afinal, quanto tempo ficara enfiada na casa de Adair, recolhida em mim mesma e recusando-me a acreditar no que tinha acontecido?

Ele permaneceu na cabine do navio durante todo o percurso e não pisou no deque uma vez sequer. Aquilo aguçou a curiosidade da tripulação e de todos os outros passageiros, e, embora o mar estivesse calmo como a água de um poço, disse a eles que Jonathan estava doente e não confiava nas próprias pernas para ficar andando por aí. Eu trazia sopa da cozinha e sua cota de cerveja, apesar de ele não ter mais necessidade de comer e de seu apetite tê-lo abandonado. Como Jonathan logo se daria conta, comer era algo que fazíamos por hábito e conforto, e para fingir que éramos os mesmos de sempre.

Quando o navio chegou ao porto de Boston, Jonathan tinha se tornado uma criatura estranha, devido às muitas horas na semiescuridão da cabine. Pálido e nervoso, com os olhos vermelhos por não dormir, ele saiu da cabine vestido com os trapos que tínhamos comprado em Camden, numa pequena loja que vendia coisas de segunda mão. Ficou no deque, aguentando os olhares dos outros passageiros, que, sem dúvida, imaginavam se o passageiro desaparecido morrera dentro da cabine durante a jornada. Ele observava a atividade no porto quando o navio ancorou, com os olhos arregalados diante da multidão. Sua beleza extraordinária fora prejudicada pela situação difícil pela qual estava passando e, por um momento, desejei que Adair não visse Jonathan nessas condições lamentáveis durante o primeiro encontro. Queria que Adair visse que Jonathan era tudo o que eu havia prometido; que vaidade tola!

Desembarcamos e não tínhamos andado nem 40 metros no píer quando vi Dona esperando por nós com uma dupla de criados. Dona vestia uma roupa funérea: plumas pretas de avestruz no chapéu, enrolado numa capa preta e apoiado numa bengala, elevando-se sobre as pessoas comuns como o próprio anjo da morte. Um olhar malicioso tomou conta do rosto dele enquanto nos espiava.

— Como sabia que eu estava voltando hoje? Neste navio? — perguntei. — Não mandei nenhuma carta para avisá-los sobre meus planos.

— Ah, Lanore, você é tão ingênua que me faz rir! Adair sempre sabe dessas coisas. Ele sentiu sua presença no horizonte e me mandou vir buscá-la — ele disse, me empurrando para o lado. Dedicou toda sua atenção a Jonathan, sem tentar disfarçar que o inspecionava da cabeça aos pés e vice-versa. — Então, apresente-me a seu amigo!

— Jonathan, este é Donatello — eu disse, objetivamente. Jonathan nem se mexeu para olhá-lo, nem retornou o cumprimento; se foi por causa da avaliação descarada de Dona ou porque ainda estava em choque, não saberia dizer.

— Ele não fala? Não tem boas maneiras? — Dona disse. Quando Jonathan não fisgou a isca, Dona parou repentinamente e virou-se para mim. — Onde estão suas malas? Os criados...

— Acha que estaríamos vestidos assim se tivéssemos outra coisa para usar? Tive que deixar tudo para trás. Mal tinha dinheiro para chegar a Boston. — Em minha imaginação, via o baú que deixara para trás na casa de minha mãe, acomodado discretamente num canto. Quando eles o inspecionassem, esperando até que a curiosidade os consumisse antes de violar minha privacidade, ainda que soubessem que eu não voltaria mais, encontrariam a bolsa de couro de veado cheia de moedas de ouro e prata. Estava feliz por ter deixado a bolsa de dinheiro para trás; achava que devia isso à minha família; considerava aquela a dívida de sangue de Adair, pagando a minha família por terem me perdido para sempre, da mesma forma que ele aliviou sua culpa deixando dinheiro para a família dele séculos antes.

— Quão consistente de sua parte! A primeira vez, você veio até nós sem nada. Agora traz seu amigo, ambos sem nada. — Dona jogou as mãos para o ar como se eu fosse incorrigível, mas eu sabia por que estava agindo de forma tão irritada: mesmo no atual estado de Jonathan, sua beleza excepcional era óbvia. Ele se tornaria o predileto de Adair, o amigo e companheiro com quem Dona nunca poderia competir. Dona seria renegado por Adair; não havia nada a ser feito e isso ficara claro para Dona desde o momento em que colocara os olhos em Jonathan.

Jonathan voltou à vida na carruagem, a caminho da mansão de Adair. Esta era sua primeira viagem a uma cidade tão grande como Boston e, pelos seus olhos, revivi minha chegada três anos antes: a multidão nas ruas empoeiradas; a quantidade de lojas e tabernas, as casas maravilhosas feitas de tijolo, com muitos andares de altura; o número de carruagens nas ruas, puxadas por cavalos bem-cuidados; as mulheres com vestidos da moda, decotes reveladores e longos pescoços brancos. Por um instante, Jonathan teve que se afastar da janela e fechar os olhos.

Então, surgiu a mansão de Adair, tão fascinante quanto um castelo, embora, a essa altura, Jonathan já não sentisse mais nada com relação à novidade da grandeza. Ele me deixou guiá-lo escada acima, para dentro da casa, pelo hall com o candelabro pendurado e os criados uniformizados abaixando-se tanto para fazer reverência, que conseguiam até inspecionar os sapatos descascados de Jonathan. Passamos pela sala de jantar, com sua mesa para dezoito pessoas, até a escadaria dupla, que levava aos quartos no andar de cima.

— Onde está Adair? — quis saber de um dos mordomos, ansiosa por terminar esta parte.

— Bem aqui — a voz veio de trás de mim e eu me virei para vê-lo entrar. Ele havia se vestido cuidadosamente, com uma casualidade estudada, seu cabelo amarrado para trás com uma fita, como um cavalheiro europeu. Assim como Dona, passou os olhos pelo meu Jonathan tentando avaliar um preço justo por ele, esfregando os dedos da mão direita. Da parte dele, Jonathan tentou ser indiferente, dando uma olhada rápida para Adair e, logo em seguida, afastando o olhar. Mas senti um peso no ar e um reconhecimento passar entre os dois. Poderia ser o que os místicos chamam de elo entre as almas destinadas a viajar juntas pelo tempo. Ou poderia ter sido a dança dos machos rivais na floresta, imaginando quem ficaria no topo e quão sangrenta a batalha seria. Ou seria porque ele finalmente estava conhecendo o homem que me capturara.

— Então este é o amigo de quem você nos falou — Adair disse, fingindo que a situação era tão simples quanto a visita de um velho amigo.

— Tenho o prazer de apresentá-lo ao senhor Jonathan St. Andrew. — Fiz minha melhor representação de mestre de cerimônias, mas nenhum deles achou graça.

— E você é o ... — Jonathan procurou pela palavra para descrever o Adair da minha história fantástica, pois, honestamente, do que poderia chamá-lo? Monstro? Ogro? Demônio? — Lanny me falou de você.

Adair levantou uma sobrancelha.

— Falou? Espero que Lanny não tenha feito muito alarde; ela tem uma imaginação fantástica. Precisa me dizer o que ela lhe contou, algum dia. — Ele estalou os dedos para Dona. — Acompanhe nosso convidado até o quarto. Ele deve estar cansado.

— Eu posso levá-lo — disse, mas Adair me interrompeu.

— Não, Lanore, fique comigo. Gostaria de falar com você por um momento. — Foi só então que percebi que estava numa enrascada: ele tinia de raiva, oculta em consideração ao nosso convidado. Observamos enquanto Dona acompanhava um Jonathan sonâmbulo subindo pela escada espiralada, até que desapareceram de nossa vista. Então, Adair virou-se para mim, me esbofeteando com violência no rosto. Caída no chão, segurei meu rosto e olhei para ele.

— Por que isso?

— Você o transformou, não foi? Roubou meu elixir e o levou com você. Achou que eu não descobriria o que tinha feito? — Adair estava em cima de mim, bufando, ombros tremendo.

— Não tive escolha! Ele foi baleado... estava morrendo...

— Acha que sou estúpido? Você roubou o elixir porque, desde o princípio, tinha a intenção de vinculá-lo a você. Adair esticou-se e me agarrou pelo braço, suspendeu meus pés do chão e me atirou contra a parede. Nas mãos dele, senti o terror do episódio do porão, amarrada no arreio diabólico, impotente diante de sua violência e mergulhada em pânico. Então, ele me bateu de novo, um golpe doloroso que me derrubou no chão pela segunda vez. Mais uma vez, passei a mão no rosto, agora sujo de sangue. Ele havia cortado a pele e a dor irradiava por minha face, embora as bordas dos ferimentos já tivessem começado a se juntar.

— Se eu quisesse roubá-lo de você, acha que teria voltado? — Ainda no chão, me arrastei de costas como um caranguejo, para sair do alcance de Adair, escorregando na barra de seda da minha saia. — Teria fugido e o levado comigo. Não, é exatamente o que contei a você... Peguei o frasco, sim, mas por precaução. Foi uma premonição que senti, de que algo terrível aconteceria. Mas claro que eu voltei. Sou fiel a você — disse, mesmo com raiva em meu coração, fúria por ter apanhado, por ser impotente e não conseguir me defender.

Adair deu-me uma olhada, questionando minha declaração, mas não me bateu de novo. Em vez disso, virou-se e saiu, seu aviso ainda ecoando no corredor.

— Veremos sobre essa sua suposta lealdade. Não pense que isso está terminado, Lanore. Eu destruirei os laços entre você e esse homem tão completamente, que sua relação com ele será reduzida a nada. Seu roubo e seu plano serão um fracasso total. Você é minha e, se acredita que não posso desfazer o que já fez, está enganada. Jonathan será meu também.

Permaneci no chão, com a mão na face, tentando não entrar em pânico com suas palavras. Não podia deixá-lo tirar Jonathan de mim; não podia deixá-lo cortar os laços com a única pessoa de quem eu gostava. Jonathan era tudo o eu tinha e tudo o que eu queria. Se o perdesse, a vida ficaria sem sentido, e, infelizmente, vida era tudo o que me restava.

                   CIDADE DE QUEBEC, HOJE

É quase meia-noite quando eles chegam à cidade de Quebec. Lanny direciona Luke para o que parece ser o melhor hotel na parte antiga da cidade, um edifício alto parecido com uma fortaleza, com parapeitos onde coroas e bandeiras tremulam ao vento gelado da noite. Agradecido por estar dirigindo uma SUV nova em vez de sua velha caminhonete, Luke dá as chaves ao atendente do estacionamento e, então, ele e Lanny entram de mãos vazias no lobby.

O quarto do hotel é o lugar mais luxuoso onde ele já se hospedara; faz o hotel em que passara sua lua de mel parecer vergonhoso. A cama é macia, com colchão de penas, meia dúzia de travesseiros e lençóis de algodão egípcio, e, enquanto ele se acomoda em sua voluptuosidade, ergue o controle remoto em direção à TV de tela plana. O programa de notícias locais deveria começar em alguns minutos e ele está ansioso para ver se vão mencionar o desaparecimento de uma suspeita de assassinato de um hospital no Maine. Luke espera que St. Andrew seja longe e insignificante o bastante para a história não chegar até o Quebec.

Seu olhar passa pelo laptop de Lanny, ao pé da cama. Ele poderia ver se havia alguma coisa on-line, mas Luke é tomado por um medo súbito e irracional de que, se procurar pela história na internet, isso poderá denunciá-los de alguma forma, que as autoridades serão capazes de rastreá-los pela combinação da conexão e pelo uso de palavras-chave. Seu coração acelera, embora saiba que isso não é possível. Ele fica tonto com a paranoia, ainda que não tenha certeza se há razão para isso.

Lanny sai do banheiro envolvida por uma nuvem de ar úmido e morno. Está dançando dentro do roupão do hotel, imenso para ela, e tem uma toalha sobre os ombros, o cabelo molhado caindo em cachos sobre seus olhos. Ela tira um pacote de cigarros de sua jaqueta. Antes de acender, oferece um a Luke, mas ele recusa.

— A pressão da água é maravilhosa — ela diz, mandando um fio de fumaça em direção aos alarmes de incêndio colocados discretamente no teto. — Você deveria tomar um banho quente e demorado.

— Daqui a pouco.

— O que tem na televisão? Está procurando alguma coisa sobre nós?

Ele assente, mexendo os pés ainda com meias para a tela de plasma. O logotipo brilhante do programa de notícias aparece e então um homem de meia-idade, com o semblante sério, começa a ler as manchetes enquanto o segundo âncora concorda, compenetrado. Lanny continua sentada com as costas viradas para a tela, enxugando os cabelos com a toalha. Depois de sete minutos de programa, uma foto do rosto de Luke aparece atrás do âncora. É a foto dos funcionários do hospital, que é usada toda vez que seu nome é mencionado no jornalzinho interno.

“... desapareceu após tratar de uma suspeita de assassinato no Hospital de Aroostook, ontem à noite, e as autoridades temem que algo possa ter acontecido a ele. A po­lícia está pedindo a quem tiver informações sobre a localização do médico que, por favor, ligue para a linha direta do crime...”

A história inteira dura menos do que sessenta segundos, mas é tão alarmante ver seu rosto na tela da televisão que Luke não consegue absorver o que o âncora está dizendo. Lanny tira o controle remoto da mão dele e desliga a TV.

— Então, estão procurando você — ela diz, sua voz quebrando a paralisia dele.

— Não é preciso esperar 48 horas antes de considerarem alguém desaparecido? — ele pergunta, um pouco indignado, como se tivessem feito uma injustiça com ele.

— Eles não vão esperar; acham que você está correndo perigo.

“Estou?”, ele se pergunta. “Será que Joe Duchesne sabe de alguma coisa que eu não sei?”

— Eles falaram meu nome no ar. O hotel...

— Não há razão para se preocupar. Nós fizemos o check-in em meu nome, lembra? A polícia em St. Andrew não sabe quem eu sou. Ninguém vai somar dois e dois. — A garota se afasta e sopra outro fio de fumaça. — Ficará tudo bem. Confie em mim. Sou especialista em fugas.

É como se o cérebro de Luke se apertasse dentro do crânio, como se o pânico estivesse tentando escapar. Ele se dá conta da gravidade do que fizera: Duchesne estará esperando para falar com ele. Peter deve ter contado à polícia sobre o SUV e o e-mail, então, não há como continuar o usando. Para conseguir voltar para casa, terá que mentir de forma convincente para o xerife e repetir a mesma mentira para todos quando voltar para St. Andrew, talvez pelo resto da vida. Ele fecha os olhos e tenta respirar. O inconsciente dele o levou a ajudar Lanny. Se ele conseguisse ir contra o alarme tocando em sua cabeça, seu inconsciente deveria lhe dizer o que ele realmente quer, por que deixou sua vida para trás e pegou a estrada com essa mulher, o mundo desabando atrás dele.

— Isso significa que não posso voltar? — ele pergunta.

— Se é isso o que você quer — ela responde cautelosamente. — Eles farão perguntas, mas nada que você não consiga administrar. Você quer voltar para St. Andrew? Para a fazenda de seus pais, a casa cheia dos pertences deles; consegue viver com a ausência de suas filhas? Quer voltar para o hospital para cuidar de seus vizinhos ingratos?

O incômodo de Luke fica ainda maior.

— Não quero falar sobre isso.

— Me escute, Luke! Sei o que está pensando. — Ela desliza pela cama e senta-se ao lado dele, perto, assim ele não pode se afastar dela. Ele sente o cheiro suave do perfume de sabonete amornado pela pele dela, saindo do roupão. — Você quer voltar para lá porque é o que conhece; é o que deixou para trás. O homem que eu vi entrar na sala de emergência estava devastado e cansado. Passou por muitas coisas com seus pais e sua ex-mulher, perdeu suas filhas... Não há mais nada lá, para você. É uma armadilha. Se voltar para St. Andrew, nunca mais sairá de lá. Só ficará mais velho, cercado de pessoas que não estão nem aí para você. Sei o que está sentindo. Está sozinho e com medo de ficar sozinho para o resto da vida, andando de um lado para o outro numa casa enorme, sem ter ninguém para conversar. Quem estará lá para você? Quem cuidará de você do mesmo jeito que cuidou de seus pais? Quem segurará sua mão quando chegar a sua vez de morrer? — O que ela disse é brutalmente verdadeiro e ele mal consegue ouvi-la. Ela coloca um braço ao redor do ombro de Luke e, quando percebe que ele não a empurra para o lado, ela o puxa para mais perto ainda.

— Você está certo em ter medo de morrer. A morte já levou todos os que eu conheci na vida. Segurei-os em meus braços até o último momento, confortei-os, chorei quando eles se foram. A solidão é uma coisa terrível. — As palavras parecem contraditórias, vindas dessa mulher, mas sua tristeza é palpável. — Posso ficar com você para sempre, Luke. Não irei embora. Estarei aqui para o resto de sua vida, se você quiser que eu esteja.

Luke não se afasta, mas considera bastante as palavras dela. Ela não está propondo amor (está?), não, Luke sabe que não, ele não é tolo. Embora também não seja exatamente uma amizade. Ele não se ilude imaginando que sejam almas gêmeas: eles se conhecem há menos de 36 horas. Ela precisa de companhia. Luke seguira um instinto que não sabia ter e se saiu bem com ele. Ela acha que pode funcionar. E, em troca, ele pode deixar para trás sua vida antiga e complicada sem ter que fazer muita coisa a não ser cancelar a conta de energia elétrica. E Luke nunca mais estaria sozinho.

Ele permanece nos braços de Lanny, deixando-a passar a mão em suas costas, apreciando o toque de sua mão. Isso clareia a mente e traz paz a Luke pela primeira vez desde que o xerife a levou até a sala de emergência.

Ele sabe que, se pensar muito, a nuvem encobrirá tudo de novo. Sente-se como um personagem no meio de um conto de fadas, mas, se parar para refletir sobre o que está acontecendo, se resistir ao embalo suave da história, a confusão tomará conta. Está tentado a não questionar o mundo misterioso de Lanny; se aceitar ser verdade o que ela diz, então o que acredita sobre a morte é uma mentira. Mas, como médico, Luke já testemunhou o final da vida, acompanhou pacientes enquanto a vida deles se esvaía aos poucos. Ele aceitava a morte como uma das verdades absolutas do mundo e agora estão lhe dizendo que não é bem assim. No final da vida, as exigências são escritas com tinta invisível. Se a morte não era uma verdade absoluta, e os outros fatos e crenças com os quais fora criado? Quais desses outros também seriam mentira?

Isto é, se a história dessa jovem for verdadeira. Embora esteja caminhando por uma névoa de aquiescência, Luke ainda não consegue deixar de lado a suspeita de que esteja sendo enganado. Ela obviamente tem talento para manipular as pessoas, como muitos dos psicopatas. Mas agora não é hora de ter esses pensamentos. Ela está certa: ele está cansado, devastado e com medo de chegar à conclusão errada, de tomar a decisão errada.

Ele encosta de volta no travesseiro, que cheira a lavanda, e se aninha no corpo morno de Lanny.

— Não precisa se preocupar. Eu não vou a lugar nenhum agora. Para começar, você ainda não me contou o resto da história. Quero saber o que acontece depois.

                             BOSTON, 1819

Saímos naquela noite, a primeira de Jonathan em Boston. O evento era mais sossegado, um sarau, com um piano e um cantor de renome, mesmo assim não achei uma boa ideia levá-lo enquanto ainda estava em choque e tinha a mente confusa. Segredo era a palavra-chave de Adair, que havia nos impressionado com lendas sobre ser suspeito de bruxaria e mal ter escapado da gentalha violenta, fugindo a cavalo sob o luar, deixando para trás uma fortuna que levara anos para amealhar, e sabia-se lá o que Jonathan poderia dizer no estado em que estava. No entanto, Adair não desistiu e fomos enviados para remexer os baús e achar roupas de festa para Jonathan. Ao final, Adair confiscou a maravilhosa sobrecasaca francesa de Dona (Jonathan era tão alto quanto Dona, mas tinha os ombros mais largos) e mandou uma das criadas trabalhar nas alterações enquanto o restante de nós nos maquiávamos, nos perfumávamos e nos vestíamos para apresentar Jonathan à cidade.

A única coisa é que ele não podia continuar sendo Jonathan, podia?

— Deve se lembrar de se apresentar com outro nome — Adair explicou, enquanto os criados nos ajudavam a colocar as capas e os chapéus sob um candelabro no hall. — Não podemos deixar que fiquem sabendo, em seu pequeno vilarejo, que Jonathan St. Andrew foi visto em Boston.

A razão era óbvia: a família de Jonathan estaria procurando por ele. Ruth St. Andrew se recusaria a aceitar que o filho tivesse simplesmente desaparecido. Ela faria uma busca pela cidade inteira, incluindo as florestas e o rio. Quando a neve derretesse, na primavera, e ainda assim não encontrassem o corpo, ela deduziria que Jonathan havia ido embora por conta própria e, então, formaria uma rede ainda maior na tentativa de encontrá-lo. Não podíamos deixar uma trilha de migalhas para trás, pistas que pudessem trazer alguém à nossa porta.

— Por que você insiste em sair com ele hoje? Por que não o deixa se recuperar primeiro? — perguntei a Adair, enquanto nos amontoávamos na carruagem. Ele deu atenção a mim como daria a um idiota ou a uma criança barulhenta.

— Porque não quero que ele fique trancado no quarto, remoendo sobre o que deixou para trás. Quero que aproveite o que o mundo tem a lhe oferecer. — Ele sorriu para Jonathan, embora Jonathan só olhasse tristemente para fora da janela da carruagem, ignorando até mesmo a mão de Tilde brincando de maneira provocativa com seu joelho. Alguma coisa na resposta de Adair não me convenceu, e eu já havia aprendido a confiar em meus instintos quando achava que Adair estava mentindo. Adair queria muito que Jonathan fosse visto em público, mas, o motivo, eu não sabia.

A carruagem nos levou para uma casa imponente e alta, não muito longe do Boston Common, de um intendente municipal e advogado cuja esposa enlouquecera por Adair ou, melhor dizendo, enlouquecera pelo que ele representava: aristocracia europeia e sofisticação (se ela soubesse que, na verdade, estava recepcionando o filho de um trabalhador braçal itinerante, um camponês com sangue e lama nas mãos...). O marido se retirava para a fazenda deles a oeste da cidade toda vez que a esposa dava uma dessas festas, e era melhor assim, do contrário, morreria de ataque cardíaco se soubesse o que acontecia nesses eventos e como ela gastava o dinheiro dele.

Além de ficar pendurada nos braços de Adair praticamente a noite toda, a esposa do intendente também tentou fazê-lo interessar-se por suas filhas. Apesar de a América ter acabado de conseguir sua independência e desbancar a monarquia a favor da democracia, alguns ainda se enamoravam da ideia da realeza, e a esposa do intendente provavelmente desejava, em segredo, que uma de suas filhas se casasse com um nobre. Esperava que, quando chegássemos, ela cairia sobre Adair numa agitação de saias de tafetá e reverências, conduzindo as filhas para mais perto do conde, de onde ele pudesse espiar seus decotes sem problema.

Quando Jonathan entrou no salão de baile, houve um silêncio brusco e então um ti-ti-ti se espalhou pela multidão. Não seria exagero dizer que todos os olhares recaíram sobre ele. Tilde estava de braço dado com ele e o acompanhou até onde Adair estava conversando com as anfitriãs.

— Permita-me apresentar a vocês... — Adair começou e então disse um nome à esposa do intendente pelo qual Jonathan seria chamado, Jacob Moore, um nome ilusório e comum. Ela o olhou e ficou sem fala por um momento.

— Ele é meu primo americano, acredita nisso? — Adair passou as mãos afetuosamente em volta do pescoço de Jonathan. — Do ramo da família na Inglaterra, do lado de nossas mães. Um braço distante da família... — Adair parou quando ficou aparente que ninguém, pela primeira vez desde que chegara à América, prestava atenção no que estava dizendo.

— Você é novo em Boston? — a anfitriã perguntou a Jonathan, os olhos dela presos no rosto dele. — Porque eu certamente me lembraria se o tivesse visto antes.

Eu fiquei perto da mesa de ponche, com Alejandro, observando Jonathan enrolar-se para dar uma explicação, precisando que Adair viesse em seu socorro.

— Acho que não vamos ficar muito tempo aqui esta noite — eu disse.

— Isso não será tão fácil quanto Adair pensa. — Alejandro ergueu o copo na direção deles. — Não dá para esconder aquele rosto. A notícia vai se espalhar, talvez até chegue a seu vilarejo miserável.

Havia uma preocupação mais imediata, pensei, enquanto observava Jonathan e Adair juntos. As mulheres se juntavam não ao redor do europeu aristocrático, mas do estranho alto. Elas olhavam para ele de trás de seus leques; enrubesciam a seu lado, esperando para serem apresentadas. Já vira aquelas expressões antes e percebi, naquele momento, que isso nunca mudaria. Onde quer que Jonathan estivesse, as mulheres tentariam possuí-lo. Mesmo que ele não as incentivasse, elas o perseguiam. Por mais difícil que tenha sido a concorrência em St. Andrew, agora Jonathan nunca seria só meu; sempre teria que dividi-lo com alguém.

Nessa noite, Adair parecia satisfeito em deixar Jonathan ser o centro das atenções; na verdade, parecia prestar muita atenção na reação dos convidados. Mas eu me perguntava até quando isso duraria. Adair não parecia ser do tipo que viveria à sombra de alguém, e nunca havia opção senão deixá-lo ser a estrela. O próprio Jonathan não tinha chance.

— Acho que teremos problemas logo, logo — murmurei para Alejandro.

— Com Adair, sempre há problema; é só uma questão de quão sério o problema é.

Ficamos mais do que esperava: a noite começava a dar lugar ao nascer arroxeado da madrugada, quando voltamos à mansão, exaustos e calados. Percebi que, mesmo sem querer, Jonathan parecia ter saído um pouco da concha. Pontos de cor (por excesso de bebida?) espalhavam-se por suas bochechas e ele estava definitivamente menos tenso.

Subimos as escadas em silêncio, o som agudo de nossos saltos sobre o chão de mármore ecoando pela casa grande e vazia. Tilde agarrou a mão de Jonathan, tentada em levá-lo para o quarto dela, mas ele chacoalhou a cabeça e escapou de suas garras. Um por um, os cortesãos desapareciam atrás das portas douradas de seus aposentos até ficarmos apenas Jonathan, Adair e eu. Estava prestes a acompanhar Jonathan ao quarto dele, para lhe dizer algumas palavras de conforto e encorajamento, e, com alguma sorte, ser convidada para mantê-lo quente sob as cobertas, quando Adair me puxou para mais perto dele, bem na frente de Jonathan, e passou sua mão sobre meus seios e minhas nádegas. Ele abriu a porta de seu quarto com um chute.

— Vai se juntar a nós essa noite? — ele perguntou, com uma piscadela. — Podíamos fazer desta uma noite memorável, para comemorar sua chegada. Lanore pode muito bem dar prazer a nós dois; já fez isso muitas vezes antes. Deveria ver por si mesmo: ela tem um dom para amar dois homens ao mesmo tempo. — Jonathan empalideceu e deu alguns passos para trás. — Não? Uma próxima vez, então. Talvez quando estiver mais descansado. Boa noite! — Adair disse enquanto me puxava para dentro, atrás dele. Não havia dúvida em sua mensagem: eu era uma prostituta comum. Era assim que Adair planejara matar a afeição de Jonathan por mim e percebi, naquele exato momento, que fora tola de duvidar da capacidade dele em fazer o plano dar certo. Mal olhei para o rosto de Jonathan, que estava chocado e magoado, e a porta se fechou com uma pancada.

De manhã, juntei minhas roupas em meus braços e, de camisola e descalça, fiquei do lado de fora do quarto de Jonathan, tentando ouvir os sinais de que estava acordado. Morri de vontade de escutar os barulhos cotidianos de seu ritual matinal, o farfalhar do lençol de linho, a água caindo na bacia, achando que isso consertaria tudo. Não fazia ideia se conseguiria encará-lo. Queria o tipo de reafirmação que uma criança recebe de seus pais depois de ser punida, mas não tinha coragem de bater à porta. No entanto, não fazia diferença: estava completamente quieto do lado de dentro, e dado o dia longo e complicado que ele tivera, não duvidaria se ele dormisse por 24 horas.

Lavei-me em meu quarto e coloquei uma roupa limpa, então desci as escadas na esperança de que, embora tão cedo, os criados tivessem colocado o café para ferver. Para minha surpresa, Jonathan estava sentado na sala de jantar, o leite soltando fumaça e o pão torrado na mesa em frente dele. Ele me olhou.

— Você já está de pé — eu disse.

Ele se levantou e puxou a cadeira diante dele.

— Mantive os horários de fazendeiro a vida toda. Com certeza se lembra disso em St. Andrew; se dormisse depois das seis horas da manhã, a cidade inteira estaria falando de você antes do meio-dia. A única coisa capaz de mudar isso é se estivesse em seu leito de morte — ele disse com ironia. Um jovem sonolento e desajeitado entrou com uma xícara e um pires, deixando espirrar café nas bordas, então colocou-a em minha mão esquerda, fez um aceno com a cabeça e saiu.

Apesar de ter pensado a noite toda sobre como me explicaria para Jonathan, estava confusa. Não fazia ideia de como começar, então passei a mexer na alça da xícara.

— O que viu na noite passada...

Jonathan ergueu a mão, uma expressão controlada no rosto, como se não quisesse, mas soubesse que tinha que falar.

— Não sei por que reagi daquele jeito ontem à noite...Você já tinha me falado claramente sobre sua situação em St. Andrew. Se fiquei chocado é porque, bem, não esperava que Adair fizesse o convite que fez. — Jonathan limpou a garganta. — Você sempre foi uma boa amiga para mim, Lanny...

— Isso não mudou — eu disse.

— ... mas não estaria dizendo a verdade se dissesse que as palavras dele não me abalaram. Ele não me parece o tipo de homem que uma mulher deveria permitir-se amar. — Parecia incomodá-lo muito falar tudo aquilo para mim. — Você o ama?

Como Jonathan poderia pensar que eu amasse alguém além dele? Ele não parecia estar com ciúmes; estava preocupado.

— Não tem nada a ver com amor — eu disse, com tristeza. — Tem que entender isso.

Seu rosto mudou repentinamente, como se um pensamento lhe tivesse vindo à cabeça. — Diga-me que ele não a força a fazer essas coisas.

Enrubesci.

— Não exatamente.

— Então você quer ficar com ele?

— Não agora que você está aqui — eu disse, e ele se contorceu, embora eu não tivesse certeza do porquê. Naquele momento, queria avisar Jonathan sobre as possíveis intenções de Adair com relação a ele. — Veja bem, há uma coisa sobre Adair que devo lhe contar, apesar de provavelmente já ter percebido, agora que conheceu Dona e Alejandro. Eles... — Hesitei, sem saber quanto mais Jonathan poderia aguentar depois de tudo o que havia passado em 24 horas.

— Eles são sodomitas — ele disse, objetivamente. — Não se passa a vida cercado por homens como aqueles lenhadores, que têm outros homens como companhia, sem que se perceba alguma coisa.

— Eles têm relações com Adair. Você verá; Adair tem uma natureza muito peculiar — eu disse. — Ele é louco por qualquer tipo de fornicação. Mas não há nada de amoroso nisso, nem de suave. — Parei quase a ponto de lhe falar que Adair usava o sexo como punição, para sobrepujar seus desejos sobre nós, para nos fazer obedecê-lo. Eu não disse nada porque estava com medo, assim como Alejandro teve medo de me contar a verdade. Jonathan olhou diretamente para mim, um franzido firme enrugando seus lábios.

— No que você foi me enfiar, Lanny?

Alcancei sua mão.

— Sinto muito, Jonathan, de verdade! Tem que acreditar em mim. Mas, embora não queira me ouvir dizer isso, é um conforto tê-lo aqui comigo. Tenho estado tão sozinha! Precisei tanto de você. — Ele apertou minha mão, relutante. — Além disso — continuei —, o que poderia fazer? Kolsted lhe deu um tiro. Você estava sangrando até a morte em meus braços. Se eu não agisse, você estaria...

— Morto, eu sei. É só que... espero não estar na posição, um dia, de desejar que estivesse morto.

 

Naquela manhã, Adair mandou um criado buscar um alfaiate. Jonathan precisava de um guarda-roupa, Adair ordenou; seu novo convidado não poderia ser visto em público em trajes descombinados e mal-ajambrados. Como todos os membros da família eram como mancebos e enriqueceram muito o alfaiate, o sr. Drake se apressou e chegou antes mesmo que as coisas do café da manhã fossem retiradas, trazendo com ele uma fila de assistentes carregando os rolos de tecido. As últimas lãs e veludos, sedas e brocados, vindos das lojas europeias. Caixas de chá repletas de botões caros feitos de madrepérola e osso, fivelas de estanho para um par de sapatilhas. Senti que Jonathan não aprovava e não queria ficar em débito com Adair por causa de um guarda-roupa extravagante, mas não disse nada. Sentei-me num banquinho, ao lado da confusão, olhando com admiração os lindos tecidos, na esperança de poder conseguir um ou dois vestidos nesse processo de provas e ajustes.

— Sabe, eu bem que poderia usar umas coisas novas — eu disse a Adair, segurando um pedaço de cetim cor-de-rosa perto da face para ver se combinava com a cor da minha pele. — Deixei todo meu guarda-roupa para trás, em St. Andrew, quando fugimos. Tive que vender minha última peça de joia para comprar as passagens do navio para Boston.

— Não me faça lembrar disso — ele disse secamente.

O sr. Drake fez Jonathan ficar em pé, em cima de seu banquinho de alfaiate, em frente do maior espelho da casa, e começou a tirar as medidas com a fita métrica, falando sozinho as proporções impressionantes de Jonathan.

— Ora, ora, você é bem alto! — ele disse, correndo as mãos pelo comprimento das costas de Jonathan, então sobre os quadris e, finalmente, quase me fez desmaiar, até o meio de sua perna, para medir a altura do “cavalo”. — O cavalheiro acomoda o membro do lado esquerdo — Drake murmurou, quase gentilmente, para o assistente que tomava nota dos números.

O pedido para o alfaiate era extenso: três paletós e meia dúzia de pares de calças, com um par feito com a mais fina pele de veado, para cavalgar; uma dúzia de camisas, incluindo uma bem elegante, com renda, para eventos de gala; quatro sobretudos, pelo menos uma dúzia de gravatas. Um novo par de botas para o campo. Meias de seda e lã, e ligas, três pares de cada. E isso era só para cobrir as necessidades imediatas; seriam feitos mais pedidos assim que a nova carga de tecidos chegasse. O sr. Drake ainda estava tirando o pedido quando Adair colocou um imenso rubi sobre a mesa, diante do alfaiate. Nenhuma palavra foi dita, mas, pelo sorriso no rosto do sr. Drake, ele estava mais do que feliz com seu pagamento. O que ele não sabia era que a gema era uma mera bugiganga, retirada de uma caixa com muitas outras, a própria caixa, uma entre tantas outras. Adair tinha tesouros que vinham desde o saque de Viena; para ele, uma pedra preciosa daquele tamanho era tão comum quanto uma plantação de cogumelos.

— Uma capa também, acho, para meu sócio. Forrada com cetim grosso — Adair acrescentou, girando o rubi sobre seu lado facetado, como um pião de madeira. O rubi atraiu a atenção de todos, e eu fui a única a perceber o olhar longo e avaliador de Adair em Jonathan, dos ombros até a graciosa curva na parte mais baixa das costas e sobre seu quadril benfeito. O olhar era tão descarado e cheio de desejo que congelou meu coração de medo pelo que ainda viria pela frente para meu Jonathan.

Quando o alfaiate empacotou suas coisas, chegou uma estranha visita para Adair. Um cavalheiro circunspecto, com dois livros contábeis e um kit portátil com objetos de escrita (tinteiro e penas) enfiados debaixo do braço. Os dois foram imediatamente para o estúdio sem dizer uma só palavra a ninguém.

— Sabe quem é esse homem? — perguntei a Alejandro enquanto observava a porta fechada do estúdio.

— Adair contratou um advogado enquanto esteve fora. É compreensível: agora que está neste país, tem problemas legais para resolver com relação à sua propriedade no exterior. Essas coisas aparecem de vez em quando. Não têm consequência nenhuma — ele respondeu, como se isso fosse a coisa mais entediante que se pudesse imaginar. Assim, não prestei mais atenção nela, naquela época.

— É loucura — Jonathan disse, quando Adair falou que um artista estava vindo à casa naquele dia para fazer esboços dele para uma pintura a óleo.

— Seria um crime não ter um retrato seu — Adair argumentou de volta. — Há homens muito mais feios que se imortalizaram para a posteridade e cobriram as paredes das mansões da família com seu rosto patético. Esta casa é um exemplo disso! — Adair disse, gesticulando em direção às paredes cheias de retratos, alugados com a casa para dar um aspecto de pedigree já pronto. — Além do mais, a sra. Warner me falou do artista, muito talentoso, e quero ver se ele é merecedor dos elogios que lhe estão sendo feitos. Ele deveria agradecer a Deus por ter um modelo como você, pode acreditar. Seu rosto pode muito bem dar um empurrão na carreira desse homem.

— Não me importo com a carreira de ninguém — Jonathan revidou, mas sabia que a batalha estava perdida. Posou para o artista, mas não cooperou muito: se jogou na cadeira, inclinando-se com a face encostada na mão, o rosto mal-humorado como o de um aluno que ficou de castigo depois da aula. Fiquei sentada à janela durante toda a sessão, vendo a beleza dele novamente através dos rápidos esboços de carvão do artista. O pintor resmungava para si mesmo durante todo o processo, sem dúvida agradecido pela sorte de trabalhar com uma figura tão impressionante e ainda ser pago por este privilégio.

Dona, que já fora modelo, sentou-se comigo durante uma tarde, aparentemente para estudar a técnica do artista. Notei que ele parecia observar mais a Jonathan do que ao artista.

— Ele vai se tornar o preferido, não vai? — Dona disse a certa altura. — Pode-se dizer pelo retrato; Adair só faz retratos dos favoritos. A odalisca, por exemplo.

— E o que isso significa: ser seu preferido?

Ele me lançou um olhar cínico.

— Ah, não finja que não sabe! Você foi a preferida de Adair durante um tempinho. De alguma forma, ainda é. Então, você sabe, é oneroso. Ele espera sua atenção o tempo todo. Exige muito e se cansa rápido, especialmente quando falamos de jogos sexuais — Dona disse, erguendo os ombros de maneira astuciosa, como se para expressar que estava feliz por não sofrer mais a pressão de ter que inventar novas maneiras de fazer Adair chegar ao clímax. Olhei Dona bem de perto, estudando seus traços enquanto ele falava: ele também era um belo homem, embora sua beleza tenha sido destruída pela infelicidade que carregava dentro de si. Uma malícia secreta encobriu-lhe os olhos e transformou sua boca num sorriso de escárnio.

— E ele só fez retrato desses dois? — perguntei, retomando a conversa. — Apenas Uzra e Jonathan?

— Ah, houve alguns outros! Só dos absolutamente lindos. Ele deixou a pintura deles guardadas no Velho Continente, como os rostos de anjos trancados num cofre. Eles caíram em desgraça. Talvez os encontre algum dia. — Ele meneou a cabeça, estudando Jonathan com olhos críticos. — Os quadros, quero dizer.

— Os quadros... — repeti. — Mas e os que caíram em desgraça, o que acon­teceu com eles?

— Ah, alguns foram embora. Com a bênção de Adair, é claro. Ninguém vai embora sem isso. Mas estão espalhados como folhas ao vento... Nós raramente os vemos. — Ele parou por um minuto. — Embora você tenha conhecido Jude, pensando bem. Não fez falta nenhuma. Que homem diabólico, fingir-se de pastor! Um pecador em roupa de santo — Dona riu, como se fosse a coisa mais engraçada que pudesse conceber: o maldito fantasiado de pastor.

— Você disse que apenas alguns foram embora. E os outros? Alguém foi embora sem a permissão de Adair?

Dona me dirigiu um sorriso levemente maléfico.

— Não finja ser estúpida! Se fosse possível fugir de Adair, acha que Uzra ainda estaria aqui? Você já passou tempo suficiente com ele para saber que não é negligente nem sentimental. Ou você vai embora com as bênçãos dele ou, bem... ele não deixaria alguém para trás para se vingar dele e revelá-lo para as pessoas erradas, não é? — Mas isso seria a última coisa que Dona diria sobre nosso misterioso senhor. Ele me olhou e, parecendo pensar melhor sobre revelar mais alguma coisa, saiu do quarto e me deixou refletindo sobre o que me contara.

Nesse momento, houve uma comoção no quarto; Jonathan levantou-se abruptamente da cadeira.

— Já cansei dessa insensatez! Não aguento mais — ele disse, seguindo Dona e deixando o artista decepcionado por ver sua boa sorte caminhar para fora do quarto. No final, a pintura de Jonathan nunca foi terminada e Adair foi forçado a se contentar com o esboço de carvão que, logo em seguida, foi emoldurado em vidro e mantido no estúdio. O que Adair não sabia é que Jonathan seria o último de seus preferidos a ser imortalizado num retrato, que todas as peculiaridades e intrigas de Adair estavam prestes a ser completamente desfeitas.

 

Após o sucesso da primeira noite, Adair levava Jonathan com ele a todos os lugares. Além das diversões noturnas, ele começou a encontrar coisas para os dois fazerem juntos, deixando o restante de nós sozinhos. Adair e Jonathan iam a corridas de cavalo, reuniões no campo, jantares e debates no clube dos cavalheiros, e participavam das palestras de Harvard. Ouvi dizer que Adair levou Jonathan ao bordel mais exclusivo da cidade, onde escolheram meia dúzia de garotas para atender a ambos. A orgia parecia um tipo de ritual com a intenção de uni-los, como um pacto de sangue. Adair, com impaciência, apresentou Jonathan a todas as suas coisas favoritas: empilhou romances na mesa de cabeceira ao lado da cama de Jonathan (os mesmos que ele me fez ler quando me tinha embaixo das asas dele), mandava fazer pratos especiais para ele. Havia até uma conversa sobre voltar ao Velho Mundo, assim Jonathan poderia vivenciar as grandes cidades. Era como se Adair estivesse determinado a criar uma história que os dois pudessem compartilhar. Ele faria sua vida a de Jonathan. Era assustador, mas parecia distrair Jonathan. Ele não mencionara os temores relacionados à sua família e à cidade desde que partimos, mas com certeza isso estava em sua mente. Talvez estivesse fazendo uma gentileza para mim, não falando sobre isso, já que não havia nada que pudéssemos fazer para mudar a situação.

Depois de algum tempo vivendo desse jeito, os dois homens passando a maioria do tempo na companhia um do outro, Adair me puxou de lado. A família estava relaxando na sala de estar, os outros três ensinando as complexidades de apostas do faraó, Adair e eu sentados no divã observando, como pais satisfeitos a admirar a prole brincar em harmonia.

— Agora que tenho estado na companhia de Jonathan, formei uma opinião sobre ele... Gostaria de saber qual é? — Adair me disse em voz baixa, para que não fosse ouvido. Seu olhar não saiu de Jonathan enquanto falava. — Ele não é o homem que pensa que é.

— Como você sabe o que penso dele? — tentei soar confiante, mas não consegui esconder o tremor em minha voz.

— Sei que acha que um dia ele vai cair em si e dedicar-se inteiramente a você — ele disse sarcasticamente, dando indícios do quanto desprezava a ideia. Renegar todas as outras... Jonathan já não fizera um voto de fidelidade a uma só mulher, com tudo o que isso acarreta? Ele provavelmente não fora fiel à Evangeline nem por um mês depois de terem se casado. Eu pus um sorriso congelado em meus lábios; não daria a Adair a satisfação de saber que tinha me magoado. Adair mudou seu peso de lado no divã, cruzando uma perna sobre a outra, indiferente.

— Não devia levar a inconstância dele tão a sério. Ele não é capaz de um amor assim, por nenhuma mulher. Ele não consegue colocar as necessidades dos outros à frente de suas próprias vontades e desejos. Por exemplo, ele me contou que fica muito incomodado por fazê-la tão infeliz...

Enfiei minhas unhas com força na parte da trás de uma mão, mas não havia dor para me distrair.

— ... mas ele está confuso sobre o que fazer. No entanto, para a maioria dos homens, o remédio seria óbvio: ou dar à mulher o que ela deseja ou separar-se dela de uma vez. Mas ele ainda anseia por sua companhia e, desse modo, não pode separar-se de você — ele suspirou, quase teatralmente. — Não se desespere! A esperança não está totalmente perdida. Virá o dia em que ele conseguirá amar apenas uma pessoa e há uma chance, ainda que pequena, de que essa pessoa seja você. — Então, ele riu.

Desejava estapeá-lo, avançar nele, pegar seu pescoço com as duas mãos e estrangulá-lo até a morte.

— Está zangada comigo, posso sentir. — Minha raiva impotente também parecia diverti-lo. — Zangada comigo por lhe dizer a verdade.

— Estou zangada com você — respondi —, mas é porque está mentindo para mim. Está tentando destruir meus sentimentos por Jonathan.

— Consegui deixá-la bem irritada, não é? Vou lhe fazer essa concessão; você geralmente consegue dizer quando eu estou mentindo, e é a única que parece ter essa habilidade, minha querida, mas não estou mentindo para você dessa vez. Até gostaria que eu estivesse mentindo, assim não ficaria tão magoa­da, não é?

Não podia suportar aquilo. Adair tendo piedade de mim ao mesmo tempo em que tentava me jogar contra Jonathan. Olhei para Jonathan, que prestava atenção nas cartas no meio da mesa, absorvido no jogo do faraó. Começara a achar sua presença reconfortante, como um zumbido ressonante dentro de mim. Mas, ultimamente, percebi uma melancolia disfarçada nele, que eu julgava ser tristeza por ter abandonado Evangeline e a filha. Se o que Adair dissera era verdade, será que poderia ser melancolia pela infelicidade que me causava? Pela primeira vez pensei se o obstáculo do nosso amor, o defeito, na verdade, estaria em Jonathan e não em mim, pois parecia quase inumano não ser capaz de se doar totalmente a uma só pessoa.

A vibração de uma risada feminina interrompeu meus pensamentos, quando Tilde baixou as cartas em sinal de vitória. Jonathan olhou de soslaio e, naquele olhar, percebi que já havia dormido com ela. Dormira com Tilde apesar de não achá-la particularmente atraente, apesar de saber que devia desconfiar dela, apesar de saber que, se eu descobrisse, ficaria arrasada. O desespero percorreu todo meu corpo como uma carreira de pólvora acesa, desespero por aquilo que não podia mudar.

— Que desperdício! — Adair estava imediatamente sussurrando na minha orelha, como a serpente no Jardim do Éden. — Você, Lanore, é capaz de um amor tão perfeito, um amor como eu jamais vi antes. E por que escolhe desperdiçá-lo com alguém tão sem valor quanto Jonathan?

Seu sussurro era como o perfume no ar da noite.

— O que está dizendo? Está se oferecendo como um objeto mais merecedor do meu amor? — perguntei, buscando a resposta em seus olhos de lobo.

— Ah, se você me amasse, Lanore! Se realmente me conhecesse, veria que não sou digno de seu amor. Mas, um dia talvez, será que olhará para mim do mesmo jeito que olha para Jonathan, com o mesmo carinho? Parece impossível, dada sua devoção a ele, mas quem sabe? Já vi o impossível acontecer, uma vez na vida, outra na morte — ele disse com malícia. Porém, quando pedi para se explicar, ele simplesmente franziu o nariz e riu. Então, levantou-se do divã e disse que entraria na rodada seguinte de faraó.

Ignorada, fui até o estúdio procurar um livro para me distrair. Quando passei pela escrivaninha de Adair, a luz da vela caiu sobre um calhamaço de papéis deixados sobre o mata-borrão, e meus olhos, como mágica, passaram pelo nome de Jonathan, escrito com a letra de Adair.

Por que Adair estaria escrevendo sobre Jonathan? Uma carta a algum amigo? Duvidei que ele tivesse algum amigo no mundo. Segurei as páginas mais perto da luz da vela.

Instruções para Pinnerly (o nome do advogado, soube depois).

Conta a ser estabelecida para Jacob Moore (o nome falso de Jonathan) junto ao Bank of England, no valor de oito mil libras (uma fortuna), transferidos da conta de... (um nome que eu não reconheci).

As instruções também estabeleciam que fossem abertas outras contas no nome falso de Jonathan, saques de outras contas de outros estranhos em Amsterdã, Paris e São Petersburgo. Li tudo mais duas vezes, mas não fazia sentido, e deixei a folha no mesmo lugar em que a havia encontrado.

Aparentemente, Adair estava tão encantado com Jonathan que tomara providências para sustentá-lo, como se o estivesse adotando. Admito que senti um leve ciúme e me perguntei se havia algum fundo em meu nome em algum lugar. De que valeria, se Adair nunca me contara sobre isso? Tinha que adulá-lo e lhe implorar para gastar dinheiro, assim como os outros. Isso era outra prova de que Adair tinha um interesse especial em Jonathan.

 

Jonathan parecia aceitar sua nova vida. Afinal, ele não fazia objeção de compartilhar as indulgências e depravações de Adair, e não trouxe St. Andrew à tona. Havia só um vício que Adair ainda não dividira com o seu favorito, um que Jonathan não declinaria se lhe fosse oferecido. Esse vício era Uzra.

Jonathan já estava vivendo conosco havia três semanas quando foi apresentado a ela. Adair pediu a ele para esperar na sala de visitas, comigo, vigilante, e então trouxe Uzra com um floreio, a odalisca vestida em seu traje típico de tecido esvoaçante. Quando ele soltou a mão dela, o tecido caiu no chão e revelou Uzra em toda sua glória. Adair ordenou a ela que dançasse para Jonathan, mexendo os lábios e volteando os braços enquanto ele cantava uma música improvisada. Ao final, pediu que trouxessem o narguilé e nos reclinamos sobre as almofadas espalhadas pelo chão, sugando o bocal entalhado de mármore, um de cada vez.

— Ela é linda, não é? Tão linda que ainda não consegui me separar dela. Não que ela não tenha sido um problema: ela é um demônio. Já se jogou das janelas e do teto. Não faz outra coisa a não ser ter ataques. Ainda arde de ódio de mim. — Ele passou a mão pela linha do nariz dela, embora parecesse que ela poderia arrancar-lhe o dedo com uma mordida, se tivesse a chance. — Acho que é isso que me manteve interessado nela ao longo dos anos. Deixe-me contar como Uzra veio parar comigo. — À menção de seu nome, Uzra ficou visivelmente tensa.

— Encontrei Uzra durante uma viagem aos países mouros — Adair começou, indiferente ao nervosismo de Uzra. — Eu estava na companhia de um nobre, que negociava a liberdade do irmão que havia, bestamente, tentado roubar algum tesouro de um dos líderes. Naquela época, eu tinha boa reputação de guerreiro; tinha cinquenta anos de experiência com a espada, mais do que a maioria dos homens. Eu havia sido comprado, supostamente, para ajudar esse nobre, minha lealdade paga em moedas. Foi assim que fui parar no Oriente e me deparei com Uzra.

— Foi numa cidade grande, no mercado; ela seguia atrás de seu pai, sob um véu, como mandava a tradição. Tudo o que eu conseguia ver eram os olhos dela, mas foi o suficiente: sabia que tinha que ver mais. Então, eu os segui até o acampamento nos arredores da cidade. Conversando com alguns homens que cuidavam dos camelos, soube que o pai era o líder de uma tribo nômade e que a família estava na cidade para que ela fosse dada a algum sultão, algum príncipe indolente, em troca da vida do pai.

A pobre Uzra estava completamente paralisada agora. Ela parara até mesmo de sugar o narguilé. Adair enrolou um cacho de seu cabelo brilhante ao redor de um dedo, deu um puxão, como se a repreendesse por sua apatia, então soltou o cabelo.

— Encontrei sua tenda, onde ela estava sendo preparada por uma dúzia de criadas. Elas formavam um círculo a seu redor e, achando que não poderia ser vista, ajudavam-na com suas roupas, tiravam o tecido de sua pele cor de canela e desenrolavam seus cabelos, as mãos passando por todo seu corpo. Instalou-se o caos quando entrei na tenda de repente — Adair disse com uma risada gutural. — As mulheres gritavam, corriam, caíam umas sobre as outras tentando se proteger de mim. Como poderiam pensar que eu estava atrás de alguma delas com esta djim nua na minha frente? E, pelo seu olhar, Uzra sabia que eu tinha ido atrás dela. Ela mal teve tempo de se cobrir com um robe antes que eu a pegasse no colo e a carregasse dali. — Eu a levei para um lugar no deserto onde sabia que ninguém iria nos encontrar. Eu a possuí vez após outra naquela noite, indiferente a seu choro — ele contou, como se não tivesse nada do que se envergonhar, como se tivesse o direito a ela assim como teria à água para matar sua sede. — O sol nasceu, na manhã seguinte, antes que meu delírio começasse a acalmar e antes que eu estivesse saciado com sua beleza. Entre um prazer e outro, perguntei-lhe por que seria dada ao sultão. Era porque a tribo tinha uma superstição, sobre uma djim com olhos verdes que traria a peste e o sofrimento. Eles estavam com medo, os idiotas, e apelaram ao sultão. O pai teria que entregá-la ou seria morto. Vejam, para quebrar o feitiço, ela teria que morrer.

— Sabia que eu não fora o primeiro homem com quem ela estivera, então perguntei quem tinha tirado sua virgindade. Um irmão? Algum homem da família, sem dúvida; quem mais poderia chegar tão perto dela? Descobri que fora o pai dela. Dá para acreditar nisso? — ele perguntou, incrédulo, bufando, como se fosse a coisa mais ridícula que jamais ouvira. — Ele era o chefe, um patriarca acostumado a ter tudo a seu modo. Mas quando Uzra fez cinco anos, ele notou, pela cor da pele da menina, que não era o pai dela. A mãe havia sido infiel e, pelos olhos verdes da criança, tivera relações com um estrangeiro. Ele não disse nada; simplesmente levou a mãe para o deserto um dia e voltou sem ela. Quando Uzra completou doze anos, tinha tomado o lugar da mãe na cama dele; ele disse a ela que era filha de uma prostituta e não tinha relações de sangue com ele, assim, não era proibido. Não deveria contar a ninguém. Os criados achavam encantador que a garota fosse tão afetuosa com o pai a ponto de não conseguir ficar longe dele. Disse a ela que nada disso importava; eu não iria entregá-la ao sultão supersticioso. Nem mandá-la de volta ao pai, que iria molestá-la uma última vez antes de entregá-la, como um covarde. — Durante a história de Adair, consegui pegar a mão de Uzra e a apertava, de vez em quando, para dizer que me comiserava dela, mas vi, em seus olhos verdes e mortos, que estava em outro lugar, longe dessa crueldade. Jonathan, também, estava envergonhado por ela. Adair continuou, indiferente ao fato de que era o único que estava apreciando sua narração. — Resolvi salvar sua vida. Como a dos outros. Disse a ela que seu sofrimento estaria terminado. Ela começaria uma nova vida comigo e ficaria comigo para sempre.

Assim que o ópio fez efeito em Adair e ele caiu no sono, Jonathan e eu escapamos da sala.

— Meu bom Deus, Lanny, o que devo achar daquela história? Por favor, me diga que ele estava se exibindo, que estava exagerando...

— É estranho... ele disse que salvou a vida dela, “como a dos outros”. Mas ela não é como os outros, não de acordo com a história que ele acabou de nos contar.

— Como assim?

— Ele me contou um pouco sobre como os outros vieram viver com ele, Alejandro, Tilde e Dona. Tinham feito coisas terríveis antes de Adair os encontrar. — Entramos sorrateiramente no quarto de Jonathan, que ficava do lado do quarto de Adair, mas era menor, embora tivesse um vestíbulo de bom tamanho, uma vista para o jardim e uma porta que dava acesso direto aos aposentos de Adair. — Acho que é por isso que ele os escolheu, porque são capazes de fazer as coisas ruins que ele pede. Acho que é isso que procura nas companhias. Um fracasso.

Tiramos algumas camadas de roupas para ficarmos mais confortáveis antes de nos deitarmos na cama, lado a lado, e Jonathan passou a mão sobre minha cintura, de modo protetor. O ópio também estava nos afetando e eu estava à beira de cair no sono.

— Não faz sentido... por que ele escolheu você, então? — Jonathan perguntou meio tonto. — Você nunca machucou ninguém na vida.

Se alguma vez houvera um tempo oportuno para contar sobre Sophia e como eu a havia levado ao suicídio, era agora. Até respirei fundo para me preparar, mas, mais uma vez, não consegui. Jonathan me achava inocente demais para estar aqui. Ele acreditava que eu não fosse capaz de maldades e eu não estragaria isso.

E, talvez tão notável quanto isso, fosse o fato de ele não questionar por que ele próprio havia sido escolhido, o que Adair havia visto nele. Jonathan se conhecia bem o bastante para acreditar que havia alguma maldade escondida dentro dele, alguma coisa que merecesse punição. Talvez eu também soubesse disso. Éramos dois fracassados, cada um a seu modo, e escolhidos para uma punição que merecíamos.

— Queria contar a você — Jonathan murmurou sonolento, olhos já fechados. — Logo, logo farei uma viagem com Adair. Ele me disse que gostaria de me levar a algum lugar... esqueci aonde, exatamente. Talvez para a Filadélfia... apesar de que, depois daquela história, eu não esteja muito animado para ir sozinho com ele a lugar nenhum...

Quando puxei seu braço para mais perto de mim, percebi, pelo tecido fino de sua camisa, uma marca em seu braço. Havia algo asquerosamente familiar nos matizes escuros escondidos sob sua manga, então puxei o tecido solto para trás para ver as finas linhas pretas gravadas do lado de dentro de seu braço.

— Onde fez isso? — perguntei, sentando-me, alarmada. — Foi Tilde, não foi? Ela fez com as agulhas dela?

Jonathan mal conseguia abrir os olhos.

— Sim, sim... outra noite, quando saímos para beber...

Estudei o desenho de perto; não era o brasão heráldico, mas duas esferas com rabos longos e fogosos, interligados como dois dedos enganchados. Podia até ser diferente do que eu tinha, mas já o havia visto antes, enfeitando as costas de Adair.

— É o mesmo de Adair — consegui dizer.

— Sim, eu sei... ele insistiu para que eu fizesse. Significa que somos irmãos ou alguma besteira desse tipo. Fiz só para ele parar de me perturbar.

Tocando a tatuagem com o dedo, senti um arrepio gelado me percorrer; o fato de Adair ter colocado sua marca em Jonathan significava alguma coisa, mas não sabia dizer o que era. Queria implorar para que ele não fosse viajar com Adair, para desobedecê-lo... mas sabia qual seria o resultado inevitável daquela bobagem. Então, não disse nada e fiquei acordada um bom tempo, ouvindo o ritmo da respiração tranquila e compassada de Jonathan, incapaz de ignorar a premonição de que nosso tempo juntos estava chegando ao fim.

                                   QUEBEC, HOJE

Luke acorda ao som da comiseração humana. Está desorientado, como sempre fica quando acorda de um cochilo, e seu primeiro pensamento é que dormiu demais e está atrasado para seu turno no hospital. Só quando quase derruba o alarme do criado-mudo com um movimento impetuoso é que percebe que está num hotel e que só há uma pessoa com ele, e essa pessoa está chorando.

A porta para o banheiro está fechada. Luke bate gentilmente e, quando ninguém responde, empurra a porta para trás. Lanny está encolhida dentro da banheira, totalmente vestida. Quando ela olha sobre os ombros para ele, Luke vê que a maquiagem dela escorreu pelo rosto como negros punhais, como um palhaço assustador de um filme.

— Ei, você está bem? — ele pergunta, alcançando a mão dela. — O que está fazendo aqui?

Ela deixa que ele a ajude a sair da banheira.

— Não queria acordar você.

— É para isso que estou aqui. — Ele a leva até a cama e deixa que se enrosque em seus braços, como uma criança.

— Me desculpe... estou começando... a perceber... — ela diz em soluços irregulares, em meio a gemidos de choro.

— Que ele se foi — Luke termina a frase, para que ela possa continuar chorando. Faz sentido; até agora ela estava concentrada em fugir, em não ser descoberta. Agora, a fuga ficara para trás, a adrenalina baixara e ela se lembra de como chegara até ali, de que tem que lidar com o fato de que a pessoa mais importante de sua vida se fora para sempre.

Ele pensa nas muitas vezes que passou por alguém chorando nos corredores do hospital, alguém que acabara de receber más notícias, uma mulher escondendo o rosto entre as mãos e um homem em pé ao lado dela, paralisado e lutando com seus sentimentos. Luke não consegue contar as vezes em que saíra da sala de cirurgia, tirando as luvas e a máscara, meneando a cabeça enquanto caminha até a esposa à espera, com o rosto petrificado, desejando teimosamente boas notícias. Aprendera a construir um muro entre si e os pacientes e os familiares mais próximos; não podia se envolver pela dor deles. Pode-se balançar a cabeça e compartilhar o sofrimento dessa maneira, mas só por um momento. Se tentar dividir o fardo, não dura um ano dentro de um hospital.

Essa jovem em seus braços, o sofrimento dela é infinito. Ela caíra num poço de tristeza por um longo período, despencando sem ter como parar. Ele acredita haver uma fórmula para saber quanto tempo leva para a dor passar, mas provavelmente esteja ligada a quanto tempo se conhece o morto. Obviamente, não haverá alívio para ela. Quanto tempo levará até Lanny tolerar a dor diária da ausência de Jonathan, sem contar que fora ela que o havia matado? Muitas pessoas enlouqueciam por muito menos, tomadas pela tristeza. Não há garantia de sobrevivência a algo assim.

Ele vai ajudá-la; tem de ajudá-la. Ele acha que está particularmente preparado para essa situação. Com seu treinamento (“Sra. Parker? Fizemos tudo o que podíamos pelo seu filho, mas sinto muito...”), ele espera que a dor dela escorra por ele. Ela diminui o choro e esfrega os olhos com a parte de trás das mãos.

— Melhor? — Luke pergunta, erguendo seu queixo. — Quer ir lá fora e tomar um pouco de ar? — Ela concorda.

Em quinze minutos, estavam caminhando de mãos dadas na noite escura. Lanny limpara o rosto. Ela se inclina sobre o braço de Luke como uma jovem apaixonada, mas em seu rosto está o sorriso mais triste que o mundo jamais viu.

— Que tal uma bebida? — ele pergunta. Eles saem da rua e entram num bar escuro. Ele pede uma dose de uísque puro para cada um.

— Duvido que beba tanto quanto eu! — ela o avisa, e eles batem os copos como se estivessem comemorando. E, como esperado, após uma dose, Luke sente a quentura que vem com o início da bebedeira, mas Lanny já tomou três doses e só mostra sinais de um meio-sorriso embriagado.

— Há algo que quero lhe perguntar. É sobre... ele — ele fala, como se, não dizendo o nome, a pergunta pudesse magoar menos. — Depois de tudo pelo que fez você passar, como pôde continuar a amá-lo? Não parece que ele merecia você...

Ela pega o copo vazio pela borda, como uma peça de xadrez.

— Poderia dar todo tipo de explicação, por exemplo, dizer que era assim que acontecia naquela época, que as esposas esperavam que seus maridos saíssem da linha. Ou que esse era o tipo de homem que Jonathan era e eu tinha que aceitar isso. Mas não seria o verdadeiro motivo: eu não sei explicar. Sempre quis que ele me amasse do mesmo modo que eu o amava. Ele me amou, sei que sim. Mas não da maneira como eu queria. Então, não é muito diferente do que o que muitas pessoas que conheci viveram. Um parceiro não ama o outro o suficiente para parar de beber, ou jogar, ou sair com outras mulheres. Um é o que dá e o outro é o que recebe. O doador espera que o recebedor pare.

— Mas o recebedor nunca muda — Luke diz, embora fique pensando se este é mesmo o caso.

— Às vezes, o doador tem que desistir; mas às vezes não faz isso. Não consegue. Não conseguia abrir mão de Jonathan. Eu era capaz de perdoá-lo por tudo.

Luke vê o oceano encher-lhe os olhos e tenta distraí-la.

— E Adair? Pelo que contou, parece que ele estava apaixonado por você...

— O amor dele é como o amor que o fogo tem pela madeira — ela ri com melancolia. — Durante um tempo ele me deixou confusa, admito isso. Num minuto, ele me encantava, no outro, me humilhava. Tudo era jogo e armação com ele. Acho que ele queria ver se conseguia me fazer amá-lo. Porque imagino que ninguém jamais o amou. — Ela fica quieta, mãos cruzadas sobre o colo e a superfície vitrificada de seus olhos se rompem. — Veja o que fez... Vou começar a chorar de novo; não quero chorar em público. Não quero deixá-lo envergonhado. Vamos voltar para o hotel. Podemos fumar maconha.

O rosto de Luke se ilumina, lembrando-se da grande sacola de plástico, do “barato” de resina.

— Topo fumar aquela sacola inteira com você, se isso servir para deixá-la mais feliz.

— Meu herói! — ela diz enquanto enfia o braço embaixo do dele. Eles sobem a rua em direção ao hotel, um vento cortante batendo em seus rostos. Luke gostaria de poder dar a ela uma dose de morfina, para lhe aliviar a dor. Ele lhe daria uma injeção de tranquilizante diariamente para lhe trazer paz, se pudesse. Sacode a cabeça para clarear os pensamentos; sente que faria qualquer coisa para deixá-la feliz novamente, mas não quer se tornar uma muleta na vida dela.

— O que há comigo, pode me dizer a verdade? Eu não sou digna de ser amada? — ela desabafa, assim que estão na cama. A pergunta o surpreende.

— Não posso dizer por que Jonathan não retribuiu seu amor, mas, se serve de alento, acho que ele cometeu um grande erro. — Jonathan era um idiota; só um tolo desperdiça uma devoção como esta, pensa Luke.

O olhar dela é descrente, mas ela sorri; e, então, pega no sono. Ele a puxa para perto dele, passando os braços em volta do corpo de sílfide dela, juntando seus braços e pernas elegantemente espalhados. Ele não se lembra de se sentir bem, assim, exceto naquela ocasião miserável na pizzaria com suas filhas, quando quis colocá-las dentro de seu carro alugado e levá-las de volta ao Maine. Sabe que fez a escolha certa de não se deixar levar pela tristeza da época, as meninas estão em melhor situação com a mãe, mas será eternamente assombrado por ter ido embora e tê-las deixado. Só um tolo desperdiça um amor como esse.

E Lanny. Ele está disposto a fazer qualquer coisa para proteger essa mulher vulnerável, para ajudá-la a se recompor. Gostaria de poder tirar o veneno de dentro dela, como uma sanguessuga. Se pudesse, tomaria seu lugar, mas sabe que tudo o que pode fazer é ficar ao lado dela.

                             BOSTON, 1819

Uma noite, uma luz cinzenta me fez levantar as pálpebras e me acordou. Uzra apareceu ao lado de minha cama, uma pequena lamparina a óleo balançando em sua mão. Devia ser muito tarde, pois a casa de Adair estava silenciosa como uma cripta. Os olhos dela imploravam para que eu saísse da cama, e foi isso o que eu fiz.

Ela saiu sorrateiramente do quarto, silenciosa como de costume, seguindo à minha frente. O som dos meus chinelos sobre os tapetes mal podia ser ouvido, mas, em uma casa quieta, ele ecoava pelos corredores. Uzra tampou a lamparina enquanto passávamos pelos outros quartos, assim tínhamos o mínimo de luz possível e ninguém nos notou até alcançarmos as escadas para o sótão.

O sótão era dividido em duas seções: uma, transformada em quarto para os criados, e um espaço menor, inacabado, transformado em depósito. Esta era a área onde Uzra se escondia. Ela me guiou através do quebra-cabeça de baús que funcionava como sua barreira contra o mundo e, então, por um corredor inacreditavelmente estreito, que dava numa porta diminuta. Tivemos que nos agachar e nos dobrar para passar pela porta e emergir do outro lado, no que parecia a barriga de uma baleia: asnas no lugar das costelas, uma chaminé de tijolos em vez da traqueia. A luz do luar entrava pelas janelas descobertas, possibilitando avistar o caminho sem adornos até onde ficavam as carruagens. Ela escolhera morar nesse espaço cavernoso para fugir de Adair. Era um lugar difícil para se viver, muito quente no verão e muito frio no inverno, tão solitário quanto a lua.

Passamos pelo que assumi ser seu ninho, escondido pelos esvoaçantes tecidos que ela usava como sarongue, pendurados a partir das asnas como um varal de lavanderia. A cama era composta de dois cobertores da sala de visitas, enrolados num padrão circular, não muito diferente do ninho de um animal selvagem, desorganizado e improvisado. Vários ornamentos empilhavam-se ao lado da cama: diamantes do tamanho de uvas, um véu de uma fina rede dourada para usar com o xador. Mas também havia bugigangas, coisas que uma criança poderia esconder: um lindo e gélido punhal, lembrança do lugar onde nascera; sua lâmina serpenteada parecendo uma cobra em movimento; um espelho de mão de bronze.

Ela me levou até uma parede, não havia saída. Mas, onde eu não via nada, ela se ajoelhou e retirou um par de tábuas, revelando um espaço escondido. Pegando a lamparina a óleo, mergulhou sem medo dentro da escuridão, como um rato acostumado a andar entre as paredes. Respirei fundo e a segui.

Depois de percorrer, sobre as mãos e os joelhos, quase seis metros, saímos num quarto sem janelas. Uzra ergueu a lamparina para podermos ver onde estávamos: era um espaço inacabado, parte do quarto dos criados, com uma pequena lareira e uma porta. Fui até a porta e tentei abri-la, mas estava fortemente trancada por alguma coisa do lado de fora. O quarto era dominado por uma grande mesa coberta de garrafas e jarros, e uma variedade de miudezas. Havia uma arca e também ela estava lotada de recipientes de todos os tamanhos e formas, a maioria deles cobertos com tecido encerado ou tampados com rolhas. Cestas enfiadas debaixo da mesa estavam cheias de tudo: de pinhas e galhos a indecifráveis partes de corpos de animais. Alguns livros, antigos e despedaçados, estavam enfiados entre os jarros; velas sobre pratos no canto da mesa.

Inspirei profundamente: o quarto continha uma grande variedade de cheiros, especiarias, ervas e poeira, e outros odores que não conseguia identificar. Posicionei-me no meio dele e olhei ao redor, vagarosamente. Acho que soube imediatamente o que era aquele quarto e o que significava sua existência, mas não queria admitir.

Tirei um dos livros da prateleira. A capa era de linho azul prensado, enfeitada com letras escritas à mão e diagramas intrincados de símbolos dentro de símbolos. Virando as páginas pesadas, vi que não havia uma só página impressa em todo o livro: cada parte fora feita num roteiro cuidadoso, anotada com fórmulas em ilustrações (a melhor parte a ser mantida de uma planta, por exemplo, ou uma dissecação ornamentada do funcionamento interno de um homem), tudo numa língua que eu não reconhecia. Os desenhos eram mais reveladores, pois eu reconhecia alguns dos símbolos de minha infância assim como dos livros das bibliotecas de Adair: pentagramas, o olho que tudo vê, esse tipo de coisa. O livro era uma obra maravilhosa, o produto de centenas de horas de trabalho, e cheirava aos muitos anos em que ficara escondido, a segredos e intrigas, e, sem dúvida, fora cobiçado por outros homens, mas seu conteúdo era um mistério para mim.

O segundo livro era ainda mais velho, com placas de madeira como capas, amarradas por um fio de couro. Dentro, as páginas estavam soltas e, pela variedade de papéis, parecia ser mais uma coleção de anotações do que um tomo. A letra parecia a de Adair, mas, de novo, numa língua que eu não conhecia.

Uzra andava de um lado para o outro, inquieta, chacoalhando os guizos da corrente em volta de seu tornozelo. Ela não gostava de estar naquele quarto e eu não a culpava. Adair trancara o lado de fora por algum motivo: ele não queria que ninguém o encontrasse. Porém, quando me ergui para colocar o segundo livro de volta em seu lugar, Uzra deu um passo à frente e agarrou meu punho. Ela segurou a lanterna perto de meu braço e, quando viu a tatuagem (que eu já havia esquecido fazia muito tempo), soltou um gemido, como um gato prestes a morrer.

Enfiou o braço embaixo de meu nariz, a palma virada para cima. Ela tinha a mesma tatuagem no mesmo exato lugar, uma versão um pouco maior, mas executada de forma mais rústica, como se a mão do artista não fosse tão firme quanto a de Tilde. O olhar dela era acusatório, como se eu a tivesse feito em mim mesma e, mesmo assim, não havia como se enganar sobre seu significado. Adair escolhera nos marcar da mesma forma. As intenções dele para comigo não estariam muito longe do tratamento dado a ela.

Segurando a lanterna bem no alto, absorvi o conteúdo do quarto mais uma vez. Uma descrição que ouvira dos próprios lábios de Adair voltou à minha cabeça: aquela do quarto da casa do físico, que havia sido a prisão de sua juventude. Só havia uma razão para precisar de um quarto como esse e escondê-lo no canto mais longínquo da casa. Eu compreendia o que era esse lugar e por que ele o mantinha, e um arrepio gélido me percorreu. A lenda aflitiva que Adair tecera sobre sua captura e servidão ao físico demoníaco voltou à minha memória a galope. Mas agora eu imaginava com qual dos dois homens eu havia estado, nesses muitos meses; quem era o homem com quem havia dividido a cama e, mais ainda, a quem eu dera a vida do homem que era tudo para mim nesse mundo? Adair queria que seus seguidores acreditassem que ele era o garoto camponês injustiçado que havia se libertado e que agora estava simplesmente apreciando o prêmio por ter deposto um tirano cruel e desumano. Quando, de fato, dentro daquela juventude encantadora, estava o monstro da história, o coletor de força e o ladrão de almas capaz de mudar de corpo para corpo. Ele deixara sua própria casca decrépita para trás, sacrificando-a aos aldeões, sem dúvida, com o camponês preso lá dentro, passando seus últimos minutos aterrorizado, pagando pelas crueldades do físico. Essa mentira combinava bem com seu plano monstruoso e aparentemente o tinha ocultado por centenas de anos. Agora que eu conhecia a verdade, a questão era: o que eu faria?

Estava mais do que na hora de suspeitar da mentira de Adair, mas precisava de provas: tomar consciência da verdade, mesmo que ninguém mais a soubesse. Com Uzra puxando minha manga para irmos embora, agarrei uma página de um dos livros antigos e peguei um punhado de ervas de um dos jarros empoeirados sobre a mesa. Teria que pagar um preço terrível por roubar essas coisas; eu ouvi a história da própria boca de Adair, não foi? Aquela que terminou com uma barra de ferro embrulhada num cobertor e uma enxurrada de pancadas, mas eu tinha que saber.

 

Comecei com uma visita a um professor de Harvard, a quem havia conhecido numa das festas de Adair. Não um simples chá da tarde ou reunião de intelectuais; não, conheci esse homem numa das festas de modalidade especial de Adair. Procurei seu escritório no Wheydon Hall, mas ele estava com um estudante. Quando me viu esperando-o no corredor, despachou o jovem e saiu para me buscar, o sorriso mais charmoso estampado em seu velho rosto demoníaco. Talvez estivesse receoso de que eu viera fazer chantagem com ele, já que, na última vez em que o vira, ele estava de pernas escancaradas sobre um garoto de aluguel ainda mais jovem do que seus estudantes, montando nele com orgulho. Ou talvez esperasse que eu tivesse vindo entregar um convite para outra festa.

— Minha querida, o que a traz aqui hoje? — perguntou, dando tapinhas em minha mão enquanto me levava até seu escritório. — Raramente sou abençoado com visitas de jovens bonitas. E como vai nosso amigo em comum, o conde? Espero que esteja gozando de boa saúde.

— Está bem como sempre — eu disse objetivamente.

— Então, a que devo essa feliz visita? Talvez um recado sobre outra soirée...? — Os olhos dele brilharam com os desejos mais agudos, seu apetite estimulado pelas muitas tardes olhando para hordas de garotos inexperientes.

— Estava esperando que pudesse lhe pedir um favor — eu disse, enfiando a mão dentro de minha bolsa de amarrar para pegar a página que havia roubado. O próprio papel era diferente de tudo o que já vira: grosso, áspero e quase tão marrom quanto o papel do açougueiro, e agora que estava livre da pressão da capa de madeira, começara a se enrolar como um pergaminho.

— Hummm? — ele respondeu, claramente surpreso. Mas pegou o papel de minha mão e o trouxe mais para perto de seu rosto, erguendo os óculos para inspecioná-lo. — Onde você encontrou isso, minha querida?

— Com um livreiro — menti. — Um livreiro particular que diz ter uma coleção de livros antigos sobre um assunto do qual Adair gosta muito. Pensei em comprar os livros de presente para Adair, mas a língua é ilegível para mim. Gostaria de ter certeza de que o livro é mesmo o que o vendedor diz ser. Excesso de cuidado nunca faz mal.

— Não, nunca — ele murmurou enquanto examinava a página. — Bem, o papel não é de manufatura local. Não foi alvejado. Possivelmente foi feito por um indivíduo para uso próprio, melhor dizendo. Mas veio até mim por causa da língua, não foi? — Ele sorriu modestamente sob seus óculos; era um professor de línguas antigas, lembrava-me disso de nossa rápida apresentação na festa. Porém, de exatamente quais línguas, eu não me lembrava.

— Prussiano, eu diria, ou pelo menos parecido. Muito estranho, possivelmente uma forma arcaica da língua. Nunca vi nada igual antes. — Ele alcançou uma prateleira na parte de trás, tirou um livro grande e pesado, e começou a folhear suas páginas finas e transparentes.

— Pode me dizer o que está escrito? O assunto?

— De que você espera que ele esteja falando? — perguntou curioso, ainda folheando as páginas. Limpei a garganta.

— Magia, de algum tipo. — Ele parou o que estava fazendo e olhou fixamente para mim. — Alquimia? — eu disse, mais fraco dessa vez. — Algo a ver com transformar uma coisa em outra?

— Ah, minha querida, é certamente sobre alguma coisa mágica, possivelmente um feitiço ou encantamento. Exatamente o quê, não sei dizer. Talvez possa deixar isso comigo por alguns dias...? — Seu sorriso foi recatado. Eu sabia o suficiente do trabalho dos estudiosos para suspeitar o que ele faria com o papel deixado sob seus cuidados: poderia tentar alavancar sua carreira com ele, usando-o como base para este ou aquele estudo, e eu nunca mais o veria de novo. Ou, pior ainda, se Adair descobrisse que ele havia sumido, dado ao nosso impudente amigo professor... bem, dizer que as coisas ficariam feias para mim seria pouco. Ele ergueu uma sobrancelha em expectativa, mas me inclinei sobre sua escrivaninha e peguei rapidamente o papel de volta.

— Não, não poderia, mas agradeço sua oferta. O que me falou já é suficiente — eu disse, pulando da cadeira e abrindo a porta. — E, por favor, me faça a gentileza de não mencionar isso a Adair, caso o encontre. Quando se trata de presentes, ele é um homem muito difícil de agradar. Eu quero realmente surpreendê-lo com os livros.

O velho professor pareceu levemente surpreso quando eu saí apressadamente de seu escritório.

 

Depois, fui atrás de uma parteira.

Era difícil encontrá-las. Estavam se tornando cada vez mais raras em cidades como Boston. Os doutores tinham praticamente tomado conta do trabalho de trazer crianças ao mundo, pelo menos para aqueles que podiam pagá-los. Mas eu também não estava procurando qualquer parteira: precisava de uma daquelas que vivesse no campo, alguém que soubesse sobre tratamentos e curas com plantas, e coisas do tipo. As que, um século antes, nessa mesma cidade, poderiam ter sido chamadas de bruxas por seus vizinhos e encontrado a morte esmagadas nas prensas ou enforcadas.

As prostitutas de rua me disseram onde encontrar uma parteira, já que ela era a única ajuda que elas podiam pagar para tratar a gonorreia ou auxiliar com a gravidez indesejada. Senti um arrepio percorrer minhas costas quando atravessei a porta do quartinho dessa mulher: cheirava a poeira, pólen e coisas velhas prestes a apodrecer, não como o quarto secreto trancado, no sótão de Adair.

— Sente-se, queridinha, e me diga por que veio até aqui — ela disse, indicando um banquinho do outro lado da lareira. Era uma mulher mais velha, com uma expressão dura e pragmática no olhar, mas com uma expressão de compreensão no rosto.

— Preciso saber o que é isso, senhora. Já viu algo assim antes? — Tirei um lenço de minha bolsa e o abri para ela ver. O punhado de plantas que havia roubado se amassara no deslocamento, separando-se em pequenos caules e delicadas lascas de folhas marrons. Ela segurou uma folha perto do olho, então a esmagou entre os dedos e a cheirou.

— Isso é casca de mogno, minha querida. Usada para uma grande variedade de doenças. Não muito comum nessas partes e está em estado natural, o que é ainda mais raro. Geralmente se vê em tinturas ou coisas do gênero, diluída com água para fazê-la durar o máximo possível. Como você encontrou isso? — ela perguntou, objetivamente, como se tivesse encontrado no mercado para comprar. Talvez pensasse que era por isso que viera procurá-la. Bateu as mãos sobre o fogo para tirar a poeira e deixou os fragmentos da folha caírem nas chamas.

— Infelizmente, não posso lhe dizer — respondi enquanto pressionava uma moeda na mão dela. Ela deu de ombros, mas a aceitou, guardando o dinheiro dentro do bolso. — Aqui vai meu segundo pedido. Preciso de uma coisa... Preciso que prepare algo que traga um sono muito profundo. Não necessariamente um sono tranquilo. Deve fazer a pessoa ficar inconsciente o mais rápido possível.

A parteira me olhou longa e silenciosamente, talvez imaginando se eu realmente estava dizendo que queria envenenar alguém, ou se deveria interpretar meu pedido de outra forma. Finalmente respondeu:

— Não, isso pode se voltar contra mim, se as autoridades forem envolvidas nessa questão por algum motivo.

— Tem minha palavra! — Coloquei mais cinco moedas na mão dela, uma pequena fortuna. Ela olhava das moedas para mim, então fechou os dedos em volta do ouro.

Na carruagem, no trajeto de volta para a mansão, sentei-me e desembrulhei o lenço com o torrão que a parteira havia me dado. O torrão era branco e duro feito pedra, e — eu não sabia na época — era fósforo branco mortal, provavelmente comprado de um produtor de fósforos, que, por sua vez, o roubara do lugar onde trabalhava. A parteira o manuseou com cuidado, como se não gostasse de segurá-lo, e me instruiu a triturá-lo em um pilão, depois misturá-lo em um pouco de vinho ou bebida, adicionando láudano para ajudar a mistura a descer.

— É muito importante diluí-la, para efeitos medicinais. Poderia usar o láudano sozinho, mas ele demora muito para fazer efeito. Fósforo fará o truque mais rapidamente, mas, se um corpo ingerir esse tanto de fósforo, as conse­quências serão ruins, de verdade — ela disse com um olhar inquestionável.

Eu já tinha elaborado um plano, um plano muito perigoso, mas só conseguia pensar no verdadeiro Adair. Minha mente sentia muita pena do garoto camponês, sem nem mesmo um túmulo, porque não havia corpo para ser devolvido à terra. Sua forma atraente era a possessão de um homem que tinha tomado seu corpo mediante as artes das trevas.

Quanto aos últimos fragmentos da história do físico, bem, estava além de minha capacidade saber o quanto era verdade. Talvez ele tenha visitado a família de Adair e deixado um presente por causa da culpa, ou em agradecimento por terem lhe oferecido o filho, por terem lhe dado um corpo tão belo. Ou, talvez, essa parte fosse mentira, contada somente para tornar a história mais palatável e trágica, para influenciar o coração do ouvinte a seu favor, para dispersar a suspeita. E a perda de seu reino? Um risco calculado... Mas talvez valesse a pena, ao final, ganhar um novo invólucro para abrigar sua velha alma miserável. No entanto, se eu não detivesse esse homem, ele tiraria de mim a coisa mais querida do mundo, Jonathan.

Belo, forte e capaz, com uma virilidade assustadora, o garoto camponês de-ve ter parecido uma dádiva dos céus para o físico. Aqui no Novo Mundo, entretanto, o corpo do camponês tinha suas limitações. Ou melhor, as limitações estavam em seu rosto: desconcertantemente exótico, pele morena, emoldurado por cabelos despenteados e encaracolados. Vi na expressão dos brancos e sofisticados bostonianos quando conheceram Adair, pelo franzido em suas testas, a desconfiança pairando em seus olhos. Aqui, entre descendentes de britânicos, holandeses e alemães, que nunca tinham visto um turco ou árabe, e para quem o cabelo dele não era muito diferente do de seus escravos, o corpo do camponês era um problema. Agora entendia o olhar frio e avaliador de Adair quando estudava o belo estudante com pé torto que Tilde arrumara, e a admiração faminta pela beleza impecável de Jonathan. Ele soltava seus cães de caça pelo mundo para buscar o invólucro perfeito; tinha até enviado Jude ao campo para achar um substituto. Aqui em Boston, o tempo acabara para Adair e ele precisava de um novo corpo, que fosse compatível com os gostos de seus mestres nesse novo ambiente.

Ele queria Jonathan; queria apoderar-se dele como um disfarce. As pessoas eram atraídas por Jonathan, assim como as abelhas pelo açúcar, tontas e impotentes pela atração desconhecida. Os homens queriam ser seus amigos, orbitando ao redor dele como os planetas em volta do Sol. As mulheres se entregavam a ele totalmente e ninguém sabia disso melhor do que eu. Sempre haveria uma multidão a seu redor, oferecendo-se a ele, sem perceber que o espírito em seu interior era demoníaco e explorador.

E porque ninguém conhecia o segredo de Adair, não havia ninguém para impedi-lo. Ninguém, exceto eu.

 

Cheguei à mansão e encontrei a casa em balbúrdia. Os criados corriam escada abaixo, como água escorrendo pela montanha, para o porão, escondendo-se nas despensas, longe da barulheira no andar superior. Socos nas portas, trancas batendo. As vozes abafadas de Tilde, Dona e Alejandro ecoavam vindas de cima.

— Adair, o que está acontecendo?

— Deixe-nos entrar.

Subi as escadas correndo e encontrei os três, agachados e sem ação, ao pé da escadaria do sótão, sem vontade de interromper o que quer que estivesse acontecendo atrás daquela porta fechada. Ouvimos barulhos horríveis: Uzra gritando, Adair rugindo em resposta. Ouvimos o som seco da troca de tapas.

— Por que tudo isso? — quis saber, rodeando Alejandro.

— Adair foi procurar Uzra, é tudo o que sei.

Pensei na história de Adair; a fúria do físico por causa das coisas roubadas de sua mesa.

— Precisamos ir até lá! Ele a está machucando! — Alcancei a maçaneta da porta, mas ela se recusou a mexer. Ele trancara a porta. — Pegue um machado, uma marreta, qualquer coisa. Precisamos colocar esta porta abaixo! — gritei, mas eles apenas olharam para mim como se eu tivesse ficado louca. — Vocês não sabem do que ele é capaz...

Então, o barulho parou.

Após alguns minutos, a chave virou na fechadura e Adair saiu, pálido feito leite. A adaga em serpentina de Uzra estava na mão dele e o punho de sua camisa estava manchado de vermelho brilhante. Ele jogou a adaga no chão e nos empurrou de lado, retornando a seu quarto. E foi então que encontramos o corpo dela.

— Você teve alguma coisa a ver com isso, não teve? — Tilde disse para mim. — Dá para ver a culpa em seu rosto. — Eu não respondi. Olhando para o corpo de Uzra, meu estômago revirou. Ele a esfaqueara no peito e também lhe cortara a garganta, e isso deve ter sido a última coisa que fizera, pois ela havia caído no chão com a cabeça jogada para trás, o cabelo ainda enrolado onde ele o enroscara nos punhos. As palavras “por minhas mãos e intenção” ecoavam em minha cabeça; as mesmas palavras que haviam lhe dado vida eterna foram evocadas para lhe tirar a vida. Pensar nelas agora me dava arrepios, assim como olhar a tatuagem em seu braço, jogado displicentemente ao lado dela. No final, a marca dele sobre ela não significou nada. Ele retiraria a promessa quando bem quisesse.

A briga poderia ter sido sobre qualquer coisa e eu nunca saberia com certeza, mas o momento fazia parecer improvável que tivesse sido por outra coisa que não o quarto secreto. De algum modo, Adair deve ter descoberto que algumas coisas foram retiradas e a culpou por isso. E ela não tentara corrigir o mal-entendido dele. Ou ela queria me proteger, o que era muito provável, ou dera as boas-vindas à morte, sua melhor chance de escapar de tudo aquilo.

Roubei aquelas coisas sabendo da punição que poderia ter, só não sabia que recairia sobre Uzra. Nem pensei que ele mataria um de nós, muito menos ela. Fazia mais seu gênero impor uma punição física brutal e manter a vítima sob seu domínio, tremendo de terror, imaginando quando Adair decidiria fazer tudo outra vez. Nunca, em um milhão de anos, sonhei que ele a mataria de verdade, pois achava que, a seu modo, ele a amava.

Joguei-me no chão e segurei a mão dela, já fria; talvez, em nosso caso, a alma saísse do corpo mais rápido, ávida por escapar. A coisa mais terrível era que estava planejando minha fuga, minha e de Jonathan, mas não tinha nem pensado em levar Uzra conosco. Mesmo sabendo o quão desesperadamente ela desejava fugir, não passou pela minha cabeça ajudar aquela pobre garota que aturara a obsessão doentia de Adair por tantos anos, que fora tão gentil comigo e que tentou me ajudar a navegar por aquela casa de lobos. Não tinha dado o devido valor a ela, e o frio reconhecimento de meu egoísmo me fez pensar se eu realmente não era a alma gêmea de Adair.

Jonathan acompanhou a comoção do andar de cima e, quando viu o corpo de Uzra no chão, quis invadir o quarto de Adair e resolver as diferenças com ele. Foi preciso que Dona e eu o segurássemos.

— Para quê? — gritei com Jonathan. — Você e Adair poderiam se socar daqui até a eternidade e nunca se entenderem. Por mais que queiram matar um ao outro, não têm poderes para isso. — Como queria contar a verdade a ele, que Adair não era quem pensávamos que fosse, que era muito mais poderoso, perigoso e cruel do que qualquer um de nós poderia imaginar, mas não podia me arriscar. Tinha medo que Adair intuísse meu medo.

Além disso, não poderia dizer a Jonathan sobre minha verdadeira suspeita. Eu sabia de tudo, agora. Aqueles olhares mansos que Adair lançava a Jonathan não eram porque ele planejava levá-lo para a cama. A cobiça que tinha por Jonathan ia muito mais fundo; Adair queria tocar aquele corpo, acariciar e afagar, conhecer cada sulco, cada saliência, cada curva não porque queria ter relações com Jonathan, mas porque queria possuí-lo. Possuir aquele corpo perfeito e ser conhecido por aquele rosto perfeito. Ele estava pronto para habitar um corpo, ao qual, verdadeiramente, não se podia resistir.

 

Adair mandou as instruções: tínhamos que limpar o fogão da cozinha e fazer um esquife. A copeira e o cozinheiro sumiram enquanto tomávamos posse da cozinha e Dona, Alejandro e eu tirávamos as coisas penduradas sobre o enorme fogão. Limpamos as paredes enegrecidas e varremos as cinzas. O esquife foi feito com suportes de madeira de tábuas largas e construímos uma pira no espaço entre os suportes, gravetos secos e pinhas espalhadas com gordura de carne para acender o fogo, palha compacta e lenha seca como combustível. O corpo, embrulhado num manto de linho branco, foi colocado sobre as tábuas.

Colocamos uma tocha sobre o combustível, que se acendeu facilmente. A le­nha levou algum tempo para pegar fogo e quase uma hora até se transformar numa fogueira flamejante. O calor na cozinha era enorme. Finalmente, o corpo pegou fogo, o manto foi consumido rapidamente, o fogo dançando sobre os fios, o tecido enrolando como pele, cinza preta subindo pela parede e saindo pela chaminé. O cheiro, estranho e de natureza assustadora, deixou todos na casa inquietos. Só Adair o suportava; ele se jogou na cadeira colocada diante do fogão e assistiu ao fogo devorar Uzra aos poucos: o cabelo, a roupa, a pele de seu braço macio. Finalmente, o corpo, muito úmido, começou a chamuscar e assar, e o cheiro de carne queimada tomou conta da casa.

— Imagine esse cheiro se levantando sobre a casa, lá na rua. Será que ele não acha que os vizinhos o sentirão? — Tilde disse, sarcasticamente, com os olhos lacrimejando.

Nós nos juntamos, agachados, na porta da cozinha, mas em algum momento Dona e Tilde escaparam furtivamente para seus aposentos, murmurando misteriosamente, enquanto Alejandro e eu permanecemos do lado de fora da porta da cozinha, afundados no chão, observando Adair.

Quando o céu lá fora começou a se iluminar, o fogo já havia apagado. A casa agora estava repleta de uma fina fumaça cinza, que pairava no ar, um odor acre de cinza de madeira. Só quando a brasa esfriou Adair se levantou de sua cadeira e encostou no ombro de Alejandro quando passou.

— Junte as cinzas e as jogue na água — ordenou numa voz profunda.

Alejandro insistiu em fazer isso sozinho, ajoelhando-se dentro do fogão ainda quente, com uma vassoura e um espanador.

— Tanta cinza — ele disse, sem perceber minha presença. — De toda aquela madeira, eu acho. A própria Uzra não daria mais do que um punhado.

Naquele momento, a vassoura tocou em algo sólido e ele se abaixou, procurando em meio aos sedimentos. Ele encontrou algo carbonizado, um pedaço de osso.

— Devo guardar isso? Para Adair? Algum dia ele ficará feliz em tê-lo. Essas coisas podem ser maravilhosos talismãs — ele brincou, virando-o para lá e para cá como um objeto raro. Mas, então, jogou-o no balde. — Acho que não.

Adair afastou-se do restante de nós depois daquilo. Ficava em seu quarto e a única visita que recebia era a do advogado, o sr. Pinnerly, que, no dia seguinte, chegou apressado, com uma profusão de papéis explodindo de sua sacola. Ele saiu uma hora depois, o rosto vermelho como se tivesse percorrido quilômetros. Interceptei-o na porta, mostrando preocupação com seu rosto avermelhado e me oferecendo para buscar alguma coisa fresca para beber.

— Quanta gentileza! — ele disse enquanto engolia um pouco de limonada, enxugando a testa. — Infelizmente, não posso ficar muito tempo. Seu senhor tem grandes expectativas sobre o que um mero advogado é capaz de fazer. Como se eu pudesse mandar no tempo e o fazer dançar de acordo com minha música! — ele comentou em tom de desaprovação; então notou que os papéis ameaçavam voar de sua maleta e correu para colocá-los no lugar.

— Ah, verdade? Ele é do tipo exigente, mas ouso dizer que o senhor parece inteligente o bastante para conseguir resolver qualquer tarefa que Adair coloque à sua frente — eu disse, lisonjeando-o despudoradamente. — Então, me diga, quais milagres ele espera do senhor?

— Uma série de complicadas transferências financeiras, que envolve bancos europeus, algumas cidades das quais nunca ouvi falar antes — ele respondeu, então pareceu pensar melhor sobre revelar quaisquer deficiências suas a qualquer membro da família de seu cliente. — Ah, não é nada, nem preste atenção em mim. Só estou um pouco cansado, minha querida. Será feito conforme solicitado. Nem pense em preocupar essa linda cabecinha com esses assuntos. — Ele deu tapinhas em minha mão de uma maneira tão arrogante, que tive vontade de lhe dar um tapa de volta. Entretanto, isso não me traria o que queria saber.

— Só isso? Ficar mexendo em dinheiro de um lugar para o outro? Pensei que um homem tão inteligente quanto o senhor fosse capaz de fazer isso apenas com o dedo mindinho. — Pontuei minhas palavras com um pequeno gesto obsceno que envolvia meu próprio dedo mínimo e uma insinuação da boca, um gesto que vira ser feito por garotos de aluguel e que passava uma mensagem inquestionável para a maioria dos homens e, certamente, chamaria a atenção dele. Foi o que realmente aconteceu. A discrição pareceu fugir de seus ouvidos feito serragem de um brinquedo de criança quebrado, e ele me olhou de queixo caído. Se nunca suspeitara de que essa era uma família de prostitutas lambedoras de traseiros, com certeza soube naquele exato momento.

— Minha querida, você acabou de...

— O que mais Adair pediu ao senhor? Nada, tenho certeza, que o manteria ocupado a noite toda. Nada que o impediria de, vamos dizer, divertir um visitante...

— Passagens para amanhã para a Filadélfia — ele disse com pressa —, o que eu respondi ser impossível. E, então, tenho que alugar uma carruagem particular...

— Para amanhã! — exclamei. — Ele está partindo tão rápido...

— E não levará você com ele, minha querida. Não. Já esteve na Filadélfia? É uma cidade fantástica, muito mais animada do que Boston e não o tipo de lugar que, digamos, a senhora Pinnerly estaria apta a visitar. Talvez eu pudesse mostrá-la a você...

— Espere. Como sabe que eu não vou com ele? Ele lhe disse?

O advogado grunhiu para mim, revigorado.

— Bem, não se preocupe. Não é como se ele fosse fugir com outra mulher. Ele vai com um homem, o feliz beneficiário de todas essas malditas transferências de dinheiro. Se seu senhor me consultasse, eu o aconselharia a simplesmente adotar esse sujeito, pois seria muito mais fácil a longo prazo...

— Jonathan? — perguntei, querendo chacoalhar o advogado pelos ombros para fazê-lo parar de tagarelar e arrancar o nome de sua boca como uma lesma reticente em sair da casca. — Jacob, quero dizer. Jacob Moore?

— Sim, é esse o nome. Você o conhece? Ele será um homem muito rico, pode ter certeza. Se não se importa que lhe diga isso, talvez deva considerar investir nesse tal de senhor Moore antes que a notícia se espalhe... Hummm? — Com suas suposições sobre minhas intenções, Pinnerly se colocara numa situação difícil e eu gostei de vê-lo tentar se destrinçar. Ele limpou a garganta. — Isso não quer dizer que eu imagine, nem por um segundo, que você... e o benfeitor do conde... Peço desculpas! Acredito ter ultrapassado os limites de minha posição.

Juntei minhas mãos discretamente.

— Acho que sim.

Ele me devolveu o copo e pegou sua maleta.

— Por favor, acredite quando eu digo que falei de brincadeira, senhorita. Confio que não contará ao conde sobre minha indiscrição a respeito do... Hummm?

— Sua indiscrição? Não, senhor Pinnerly. Sou absolutamente discreta.

Ele hesitou.

— E suponho que minha pergunta sobre uma visita à meia-noite...?

Balancei a cabeça.

— Está fora de questão.

Ele me lançou um olhar controlado, dividido entre o arrependimento e o desejo, e, então, saiu rapidamente da casa peculiar, de seu cliente mais bizarro, feliz (tenho certeza) de nos deixar para trás.

Aparentemente, vultosas quantias de dinheiro estavam sendo transferidas para contas em nome de Jonathan e a fatídica viagem para a Filadélfia começaria no dia seguinte. Adair estava pronto para dar o bote, o que significava que o tempo tinha se acabado para mim e Jonathan. Precisava agir agora ou passar o restante da eternidade em arrependimento.

Fui até Edgar, o mordomo-chefe, o encarregado de supervisionar os outros criados e administrar os assuntos da casa. Ele tinha um coração desconfiado e culpado, como todos aqueles que ocupavam um lugar naquela família, do senhor até os criados, o que significa dizer que ele fazia direito o seu trabalho no mínimo grau necessário. É uma característica terrível num criado quando se deseja ter uma casa bem-administrada, mas a atitude perfeita para alguém numa casa na qual as convenções e os escrúpulos havia muito saíram pela porta.

— Edgar — eu disse, cruzando as mãos formalmente diante de mim como se fosse a senhora da casa. — Há um conserto na adega de vinhos que Adair gostaria que visse durante a ausência dele. Por favor, mande alguém até a mansão para entregar uma carriola de pedras e uma de tijolos no porão hoje à tarde. Já contratei um homem para executar o trabalho assim que o conde sair de viagem. — Quando Edgar olhou de modo desconfiado para mim (a adega de vinhos sempre foi uma bagunça, por que a pressa agora?), eu acrescentei: — E não precisa incomodar Adair com isso; ele está se preparando para a viagem. Ele me confiou essa tarefa durante sua ausência e espero que seja feita. — Eu podia ser bem arrogante com os criados; Edgar sabia que era melhor não me aborrecer. Com isso, virei-me e saí andando, para colocar o próximo passo de meu plano em ação.

 

Na manhã seguinte, a família estava consumida pelas preparações com a viagem de Adair. Ele passara a manhã escolhendo as roupas que levaria e então mandou os criados arrumarem tudo nos baús e carregarem a carruagem alugada. Jonathan se fechara em seu quarto, onde supostamente também estaria arrumando as coisas para a viagem, mas senti que ele não queria ir e que uma briga estava prestes a acontecer.

Eu me escondi na despensa, com o pilão do cozinheiro, e ralei o fósforo metodicamente até virar pó. Enquanto arrumava as coisas de que precisaria, estava nervosa como nunca, certa de que Adair sentiria minhas emoções e ficaria em alerta. Na verdade, eu não sabia a extensão de seus poderes, se é que podiam ser chamados de poderes. Porém, já havia chegado até ali e não tinha outra escolha a não ser jogar com a minha vida e a de Jonathan, e ir até o fim.

Nessa altura, a casa estava em silêncio e, pode ter sido minha imaginação, parecia estar tensa e com emoções veladas: abandono, ressentimento, raiva de Adair pairando no ar pelo que tinha feito à Uzra, indecisão sobre o que nos aguardava dali para frente. Carregando uma bandeja com o vinho envenenado, passei pela porta fechada do quarto de Adair, que, nesse momento, estava quieto, uma vez que os criados já haviam retirado os baús. Bati uma vez e, sem esperar resposta, empurrei a porta para trás e entrei devagar.

Adair estava sentado numa poltrona que puxara para perto do fogo, o que era incomum por si só, já que ele geralmente descansava sobre um monte de almofadas. Talvez tivesse se sentado mais formalmente por estar com trajes de viagem, isto é, vestido como um distinto cavalheiro da época e não com o peito nu como era de hábito. Ele estava sentado com as costas retas no braço da poltrona, com calças e botas, um paletó e uma camisa de colarinho alto, amarrada ao pescoço com uma gravata de seda, seu sobretudo pendurado nas costas de uma segunda poltrona. Seu traje era feito de lã cinza-escura com muito pouco bordado ou enfeites, muito mais discreto do que seus trajes de sempre. Não estava usando peruca; em vez disso, tinha o cabelo penteado para trás e amarrado com capricho. Sua expressão era de tristeza, como se estivesse sob pressão, sendo forçado a embarcar naquela viagem, e isso não fazia seu gênero. Ele ergueu a mão e foi quando notei que tinha o narguilé a seu lado, e que o quarto cheirava à doce fumaça de ópio, do tipo mais forte. Ele sugava o bocal, bochechas para dentro, olhos semicerrados.

Coloquei a bandeja sobre a mesa perto da porta e me agachei no chão perto dele, gentilmente enrolando meus dedos nos cachos brilhantes caídos em sua testa, colocando-os de lado.

— Achei que pudéssemos passar um momento juntos antes de você ir. Trou­xe algo para você beber.

Ele abriu os olhos lentamente.

— Fico feliz por estar aqui. Quis contar-lhe sobre essa viagem; deve estar se perguntando por que irei com Jonathan e não com você. — Eu controlei minha vontade de dizer a ele que já sabia o motivo, mas esperei que continuasse. — Sei que mal pode aguentar separar-se de Jonathan, mas eu o manterei longe de você só por alguns dias — ele disse, sarcasticamente. — Jonathan retornará, mas eu viajarei sozinho por um tempo. Tenho essa necessidade de vez em quando... de ficar sozinho com meus pensamentos e minhas memórias.

— Como pode me deixar desse jeito? Não sentirá minha falta? — perguntei, tentando fazer charme. Ele assentiu.

— Sim, sentirei, mas não posso fazer nada. É por isso que Jonathan virá comigo; preciso explicar algumas coisas a ele. Ele será responsável pela família enquanto eu estiver fora. Ele me contou sobre as responsabilidades que tinha cuidando dos negócios da família e fazendo com que as dívidas dos vizinhos não quebrassem a cidade; administrar as contas da família deverá ser fácil para ele. Já transferi todo o dinheiro para o nome dele. Ele terá autoridade; você e o restante não terão outra opção a não ser obedecê-lo.

Soava quase plausível e imaginei, por um segundo, se não tinha avaliado mal a situação. Contudo, conhecia Adair muito bem para acreditar que as coisas fossem tão simples como ele fazia parecer.

— Deixe-me pegar sua bebida — eu disse, me levantando.

Havia escolhido um conhaque bem forte, forte o suficiente para mascarar o sabor do fósforo. Na despensa, havia derramado cuidadosamente o pó dentro da garrafa com uma folha de papel, adicionado a maior parte de uma garrafa de láudano, fechado a boca com uma rolha e mexido o líquido vagarosamente. O pó tinha soltado alguns brilhos brancos no ar enquanto eu o manuseava, e rezei para que não ficasse aparente no fundo do copo de Adair.

Enquanto derramava o elixir para Adair, notei algumas coisas sobre a cômoda, provavelmente para a viagem. Havia um pergaminho amarrado com um pedaço de fita, o papel velho e grosseiro que tinha certeza de que viera da coleção presa entre as capas de madeira no quarto secreto. Ao lado dela, havia uma caixa de rapé e um pequeno frasco com tampa, similar aos usados para perfume, contendo aproximadamente trinta mililitros de um líquido marrom repulsivo.

— Aqui está — passei uma taça cheia para Adair. Servi uma taça para mim, mas não tinha a intenção de tomar o conteúdo todo. Só um gole para convencê-lo de que não havia nada de errado. Ele parecia completamente ébrio pelo ópio, no entanto, eu sabia que o ópio sozinho não o faria dormir.

Voltei a meu lugar perto dos pés dele e olhei para cima de um jeito que esperava ser entendido como adoração e preocupação.

— Você tem estado aborrecido há dias; é por causa da questão com Uzra, não é? Não proteste! É normal que esteja aborrecido com o que aconteceu, você a manteve por centenas de anos. Ela tinha que significar alguma coisa para você.

Ele suspirou e me deixou ajudá-lo com o bocal de novo; sim, ele estava ávido por distração. Parecia doente, mexendo-se vagarosamente e inchado. Talvez estivesse sofrendo por ter matado a odalisca, ou tivesse medo de trocar este corpo pelo próximo; afinal, fazia muito tempo que fizera isso pela última vez. Talvez fosse doloroso passar pelo processo ou tivesse medo das consequências por fazer outra maldade, adicionada à longa lista de pecados que já cometera, uma lista pela qual ele teria que pagar algum dia. Após umas duas baforadas, ele me olhou com os olhos semicerrados.

— Você tem medo de mim?

— Por ter matado Uzra? Teve seus motivos; não cabe a mim questioná-lo. É assim que é: você é o mestre.

Ele fechou os olhos e colocou a cabeça de volta no alto encosto da poltrona.

— Você sempre foi a mais racional, Lanore. É impossível viver com eles, os outros; me acusando com seus olhares. Eles são frios, se escondem de mim. Deveria matá-los todos e começar de novo. — Pelo tom de sua voz, percebi que não era uma mera ameaça; uma vez ele já fizera exatamente isso com outro grupo de servos. Dizimou a todos num ataque de fúria. Para ter uma vida que supostamente duraria uma eternidade, fora uma existência precária.

Tive que me controlar para não tremer enquanto continuava a passar os dedos pela testa dele.

— O que ela fez para merecer essa punição? Quer me dizer?

Ele empurrou minha mão para o lado e sugou novamente o bocal. Peguei a garrafa e enchi mais uma taça para ele. Deixei que acariciasse meu rosto desajeitadamente com suas mãos assassinas e continuei a acalmar sua consciência com afirmações mentirosas de que ele tinha o direito de ter matado a odalisca.

A certa altura, ele tirou minha mão de sua testa e começou a acariciar meu punho, tracejando minhas veias.

— O que você acha de tomar o lugar de Uzra? — ele me perguntou, um pouco ansioso.

A ideia me alarmou, mas tentei não deixar que percebesse.

— Eu? Não mereço você... Não sou tão bela quanto Uzra... Nunca poderia dar a você o que ela lhe deu.

— Você pode me dar algo que ela nunca me deu. Ela nunca se entregou a mim, nunca. Ela me desprezou todos os dias em que estivemos juntos. De você eu sinto... nós tivemos alguns momentos felizes juntos, não tivemos? Chegaria até a dizer que houve vezes em que chegou a me amar. — Colocou a boca em meu pulso, seu fogo em meu pulso. — Eu facilitaria as coisas para você me amar, se concordar. Seria só minha; não dividiria você com mais ninguém. O que acha?

Ele continuou a acariciar meu pulso enquanto eu tentava pensar numa resposta que não soasse falsa. Em certo momento, ele mesmo respondeu para mim:

— É Jonathan, não é? Posso sentir em seu coração. Quer estar disponível para Jonathan, caso um dia ele queira você. Eu quero você e você quer Jonathan. Bem... talvez haja uma maneira de fazer isso funcionar, Lanore. Talvez haja um jeito para que nós dois tenhamos o que queremos. — Parecia uma confissão de tudo aquilo que eu suspeitara, e a ideia em si só fez meu sangue congelar.

A perspicácia de Adair para escolher almas degeneradas seria sua derrocada. Veja, ele me escolhera bem. Ele me pinçou da multidão, sabendo que eu era o tipo de pessoa que, sem hesitação, encheria taça após taça de bebida venenosa para o homem que acabara de declarar seu amor por mim. Quem sabe, se fosse só por mim, se somente meu futuro estivesse em jogo, tivesse sido diferente. No entanto, Adair incluía Jonathan em seus planos. Talvez achasse que eu seria feliz, que eu era superficial o bastante para amá-lo e ficar com ele contanto que tivesse a maravilhosa casca de Jonathan para admirar. Todavia, o assassino estaria por trás do rosto tão familiar de meu amado e ecoaria cada uma de suas palavras; ao pensar nisso, o que mais eu poderia fazer?

Ele deixou meu braço cair, deixou o narguilé escorregar de sua mão. Adair estava ficando cada vez mais lento, um brinquedo de corda que gastara toda sua força. Não podia esperar mais. Pelo que estava preparada para fazer com aquele homem, eu tinha que saber. Tinha que ter absoluta certeza. Inclinei-me mais perto para perguntar:

— Você é o físico, não é? O homem de quem me falou?

Ele pareceu precisar de um momento para entender minhas palavras, mas, então, não reagiu com raiva. Em vez disso, um sorriso vagaroso espalhou-se em seus lábios.

— Tão esperta, minha Lanore! Você sempre foi a mais esperta de todos, vi isso de imediato. Era a única que conseguia saber quando eu estava mentindo... Encontrou o elixir. Encontrou o selo, também... Ah, sim, eu sabia. Senti seu cheiro no veludo... Por todo o tempo que estive vivo, foi a primeira a resolver meu enigma, a ler as pistas corretamente. Você me descobriu, como eu achei que faria.

Ele mal estava lúcido e não parecia saber que eu estava lá. Inclinei-me sobre ele, minhas mãos agarrando-o pelas lapelas de seu paletó, e tive que dar um safanão para que prestasse atenção em mim.

— Adair, me diga, o que pretende fazer com Jonathan? Vai tomar posse do corpo dele, não é? Foi isso que fez com o garoto camponês, o garoto que era seu criado, e agora vai tomar posse de Jonathan. É esse o plano?

Os olhos dele se abriram e aquele olhar gélido recaiu sobre mim, quase quebrando minha compostura.

— Se isso fosse possível... se isso fosse acontecer... você me odiaria, Lanore, não é mesmo? E, mesmo assim, eu não seria diferente do homem que você conheceu, o homem por quem você teve afeição. Você me amou, Lanore. Eu senti.

— É verdade! — respondi, confirmando sua afirmação.

— Você ainda me teria e teria Jonathan também, porém, sem a indecisão dele. Sem o desprezo pelos seus sentimentos, sem a dor, sem o egoísmo e sem arrependimentos. Eu a amaria, Lanore, e você teria certeza dos meus sentimentos. O que é algo que não pode ter de Jonathan. Isso é algo que nunca terá dele. — Suas palavras me chocaram, pois eu sabia que eram verdadeiras. Como de fato aconteceu, as palavras dele foram também proféticas; foi como uma maldição que Adair colocou sobre mim, destinando-me a ser infeliz para sempre.

— Sei que não devo. Ainda assim... — murmurei, acariciando o rosto dele, tentando avaliar o quanto ainda estava alerta. Não parecia possível que um corpo pudesse ingerir tanto veneno e continuar consciente. — Ainda assim, é Jonathan a quem eu escolho — disse, finalmente.

Ao ouvir essas palavras, os olhos vidrados de Adair se acenderam com o último brilho de consciência dentro deles, consciência do que eu acabara de dizer. Consciência de que algo terrível estava acontecendo com ele, que não conseguia se mover. Seu corpo estava parando, ainda que lutasse contra isso, revirando em sua poltrona como uma vítima de parada cardíaca, espasmódico e trêmulo, a baba começando a escorrer pelos cantos da boca em fios borbulhantes. Pus-me de pé e recuei, evitando as mãos dele que buscavam por mim, e então parou, depois congelou e finalmente ficou frouxo. Ele ficou quieto de repente, quieto como a morte e cinza como água encoberta, e rolou da cadeira, caindo no chão.

Era hora de dar o último passo. Mais cedo, já colocara tudo no lugar, mas não poderia fazer essa parte sozinha. Precisava de Jonathan. Saí apressadamente do quarto e percorri o corredor até o quarto dele, entrando repentinamente, sem bater. Ele andava de um lado para o outro, mas parecia preparado para sair, capa sobre o braço e chapéu na mão.

— Jonathan — eu disse buscando ar, fechando a porta e bloqueando o caminho dele.

— Onde você esteve? — ele perguntou, a voz levemente zangada. — Procurei você, mas não consegui encontrá-la... Esperei um pouco, com a esperança de que viesse até mim, até que não pude mais esperar. Vou dizer a ele que não tenho intenção de viajar com ele. Vou dizer a ele que estou me separando dele e que vou embora.

— Espere, preciso de você, Jonathan. Preciso de sua ajuda. — Por mais bravo que estivesse, ele viu que eu estava nervosa e deixou suas coisas de lado para me escutar. Eu derramei a história, certa de que parecia uma mulher insana porque não tive tempo de pensar numa maneira de contar tudo a ele sem parecer louca ou paranoica. Por dentro, eu me encolhia, pois agora ele seria capaz de me ver como eu realmente era, capaz de maldades elaboradas, capaz de condenar alguém a um sofrimento terrível, ainda a mesma garota que levara Sophia a se suicidar, cruel e resistente como aço, apesar de tudo pelo que eu mesma havia passado. Com certeza Jonathan me denunciaria. Esperava que fosse virar as costas e ir embora, que fosse perdê-lo para sempre.

Depois de contar toda a história, de como Adair pretendia exterminar sua alma e usurpar seu corpo, segurei minha respiração, esperando por Jonathan me mandar embora ou me atacar verbalmente, me chamar de louca, pelo farfalhar da capa e a batida da porta. Mas ele não fez nada disso. Ele pegou minha mão e eu senti uma ligação entre nós que já não sentia há algum tempo.

— Você me salvou, Lanny! De novo — ele disse, a voz trêmula.

Ao ver Adair no chão, parado feito um morto, Jonathan recuou por um momento e então juntou-se a mim para amarrar Adair o mais seguro que conseguíssemos. Amarramos as mãos do monstro atrás das costas, juntamos seus tornozelos e enfiamos um pedaço de pano macio em sua boca. No entanto, quando Jonathan foi amarrar os nós dos pulsos aos pés de Adair, arqueando nosso prisioneiro numa posição de absoluta vulnerabilidade, me lembrei do arreio humano. O sentimento de impotência assolou-me e não pude fazer o mesmo com Adair, ainda que ele fosse meu torturador. Quem saberia quanto tempo ele teria que ficar amarrado daquele jeito até que fosse encontrado e desamarrado? Parecia uma punição muito cruel, mesmo para ele.

Então, enrolamos Adair em seu cobertor favorito de zibelina, um conforto solitário. Saí primeiro e, caso Jonathan encontrasse com os outros e fosse questionado, poderia fingir que o embrulho em seus braços era eu. E planejamos nos encontrar no porão para finalizar meu plano.

Corri na frente, pela escadaria dos criados até o porão. Enquanto esperava ao pé da escada, descansando contra uma parede fria de pedra, me preocupei com Jonathan. Deixei que ele passasse por todo o risco de remover Adair do quarto secretamente. Apesar de os outros terem se retirado, introspectivos e chocados pela morte de Uzra, e confusos pela partida de Adair, nada garantia que Jonathan não cruzaria com um deles pelo caminho. Ele também poderia facilmente ser espiado por um criado e uma breve olhadela poderia arruinar nossos planos. Esperei, tensa, até Jonathan aparecer com a figura frouxa em seus braços.

— Alguém viu você? — perguntei, e ele negou com a cabeça.

Eu o guiei através do labirinto sinuoso até o nível mais baixo do porão, para o quarto cavernoso onde os vinhos eram guardados. Aqui, o porão era mais parecido com o calabouço de um castelo, separado do restante dos aposentos, coberto por grossas camadas de terra e pedra para manter a temperatura constante do vinho. Eu encontrara um nicho bem no fundo, uma cela pequena e sem janela, cortada dentro da fundação de pedra maciça da mansão. Parecia uma extensão inacabada da adega de vinhos, com tijolos e madeira espalhados. As entregas de tijolos e pedras do dia anterior estavam no chão, junto a um balde de cimento amarrado com um tecido molhado, quase seco agora. Jonathan olhou para as ferramentas e depois para mim, chegando instantaneamente à conclusão sobre o uso do material, e então derrubou o corpo de Adair no chão de terra úmido. Sem dizer uma só palavra, tirou o paletó e arregaçou as mangas da camisa.

Fiz companhia a Jonathan enquanto ele fechava a pequena abertura que servia como entrada para a cela. Primeiro, tijolo; depois, uma camada de pedras para fazer a entrada desaparecer dentro da parede espessa. Jonathan desempenhou a tarefa silenciosamente, colocando as pedras no lugar com batidas do cabo da pá de pedreiro, lembrando-se do trabalho que fizera quando criança, enquanto eu mantinha os olhos sobre a forma escura de Adair, um mero pedaço de sombra sobre o chão da cela.

Na hora que Adair tinha marcado de sair, subi quieta e vagarosamente, e despachei a carruagem, dizendo ao cocheiro que os viajantes haviam mudado de ideia, mas queria que a bagagem fosse enviada na frente para seus alojamentos, conforme planejado. Então, disse casualmente a Edgar que o senhor havia partido em sua viagem um pouco mais cedo, para evitar ostentação, querendo sair sem chamar atenção. Os aposentos vazios de Adair e Jonathan confirmavam o que eu acabara de dizer, e Edgar simplesmente deu de ombros e voltou às suas tarefas. Suspeito que diria isso aos outros caso alguém perguntasse.

Jonathan continuou a trabalhar, parando toda vez que ouvíamos qualquer movimento que parecesse estar vindo de longe. Durante a maior parte do tempo, esse subterrâneo profundo era excessivamente silencioso e ouvíamos alguns movimentos vindos dos andares ocupados, mas era muito improvável que pudéssemos ser ouvidos, com as despensas situadas entre o primeiro andar e a adega de vinhos. Mesmo assim, eu estava nervosa, certa de que os outros poderiam vir me procurar. E eu queria deixar para trás esse ato horripilante. “O homem na cela é um monstro”, eu dizia a mim mesma para amainar minha culpa galopante. “Ele não é o homem que conheci.”

— Vamos logo, por favor! — murmurei de meu posto sobre um velho barril.

— Não há nada a fazer, Lanny — Jonathan disse por sobre o ombro, sem quebrar o ritmo. — Seus venenos...

— Não são meus, com certeza! Não são só meus — gritei, pulando do barril, agitada.

— O efeito do veneno desaparecerá, em instantes. Os nós podem se soltar e a mordaça se desfazer, mas esta parede não pode falhar. Tem que ser a mais forte que pudermos fazer.

— Muito bem — eu disse, apertando as mãos enquanto andava de um lado para o outro. Sabia que a poção não poderia matá-lo, mesmo que tivesse sido veneno, mas esperava que pudesse fazê-lo dormir para sempre ou causar algum dano ao cérebro, assim nunca teria consciência do que acontecera a ele. Porque ele não era um ser mágico, nem um demônio, nem um anjo; não poderia fazer os nós se desamarrarem ou atravessar as paredes como um fantasma. O que significava que, algum dia, ele acordaria no escuro e não conseguiria tirar a mordaça da boca, não conseguiria gritar por socorro e quem saberia quanto tempo permaneceria aqui, enterrado vivo.

Esperei um momento do nosso lado da parede fria de pedra para ver se sentia o familiar arco elétrico da presença de Adair, mas não senti nada. Tinha desaparecido. Talvez tivesse desaparecido apenas por estar tão profundamente sedado. Talvez eu voltasse a senti-lo quando recuperasse a consciência, e que tortura seria sentir a agonia dele viva em mim, dia após dia, e não poder fazer nada. Não posso dizer quantas noites pensei sobre o que fizera com Adair, e houve vezes em que quase pensei em desfazer o que lhe fizera, se fosse possível. Mas, naquela época, não podia me permitir pensar nisso. Era muito tarde para piedade ou remorso.

 

Jonathan saiu naquela noite, quando os outros estavam fora dedicando-se a um de seus passatempos. Tive uma amostra dos conflitos por vir com Jonathan quando, uma vez do lado de fora, ele se virou para mim e perguntou:

— Podemos voltar a St. Andrew agora, não podemos?

Eu respirei fundo.

— St. Andrew é o último lugar no mundo para onde podemos ir, pois, lá, de todos os lugares, é onde seremos descobertos mais rapidamente. Nós nunca envelheceremos, nunca ficaremos doentes. Todas aquelas pessoas, para quem você retornaria, passariam a olhar para você com horror. Eles terão medo de você. É isso o que quer? Como nos explicaríamos? Não podemos, e o pastor Gilbert nos condenaria como bruxos, com certeza.

A expressão dele se anuviou enquanto me escutava, mas não disse nada.

— Precisamos desaparecer. Devemos ir para onde ninguém nos conheça e estar preparados para partir a qualquer momento. Deve confiar em mim, Jonathan. Deve contar comigo. Só temos um ao outro agora. — Ele não argumentou; beijou minha bochecha e começou a caminhar em direção à taberna onde combinamos nos encontrar no dia seguinte.

Na manhã seguinte, disse aos outros que estava indo me juntar a Adair e a Jonathan na Filadélfia. Quando Tilde ergueu a sobrancelha, desconfiada, usei as palavras do próprio Adair com ela, explicando que ele não tinha paciência com os olhares acusatórios pelo que tinha feito a Uzra e que, ainda que eles não o tivessem perdoado, eu tinha. Então, fui ver o sr. Pinnerly para saber sobre a lista de contas que foram abertas em nome de Jonathan. Quando o advogado ficou relutante em me entregar os documentos pessoais de Adair, uma sessão de não mais do que dez minutos ajoelhada no quartinho dos fundos foi suficiente para fazê-lo mudar de ideia; e o que eram dez minutos a mais de prostituição em troca de um futuro financeiro seguro? Jonathan me perdoaria, tinha certeza, e, de qualquer forma, ele nunca saberia.

Os outros não disseram nada abertamente contra mim, mas estavam claramente céticos e desconfiados, e se juntavam nos cantos e em lugares escuros para sussurrar entre eles. Depois de um tempo, eles se recolheram a seus aposentos ou retomaram seus afazeres, abrindo caminho para que eu fosse até o estúdio. Jonathan e eu precisávamos de dinheiro para fugir, pelo menos até termos acesso aos fundos que Adair havia guardado para o próprio uso futuro, obviamente.

Para minha surpresa, Alejandro estava sentado, caído sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. Ele observou indiferente, todavia, enquanto eu retirava dinheiro do cofre de Adair passava para uma sacola; seria natural que eu carregasse mais dinheiro para Adair usar em sua viagem. Alejandro ergueu a cabeça, curioso, quando eu retirei da parede o desenho em carvão emoldurado de Jonathan. Era um item que eu não suportaria deixar para trás. Forcei a parte de trás da moldura e, com um pedaço de tecido sobre o desenho e uma camurça embaixo, enrolei a figura num cilindro apertado e a amarrei com um cordão de seda vermelha.

— Por que está levando o desenho? — ele perguntou.

— Tem um pintor na Filadélfia; Adair planeja apresentá-lo a Jonathan. Jonathan nunca concordará em posar para um retrato de novo, e Adair sabe disso, assim ele quer que o artista crie uma pintura a partir do esboço. Parece ser uma coisa muito trabalhosa, concordo, mas você sabe como Adair é quando resolve fazer alguma coisa... — eu disse, alegremente.

— Eu nunca fiz nada desse tipo — Alejandro disse, desistindo de suas perguntas com o desespero de alguém que aceita o inevitável. — É muito... inesperado. Muito estranho. Estou confuso com relação ao que fazer daqui para frente.

— Todas as coisas têm um fim — comentei, antes de sair do estúdio, indiferente.

Esperei na carruagem enquanto os criados traziam meus baús, amarrando-os na parte de trás. Então, com um balanço abrupto, a carruagem começou a andar e eu deslizei para dentro do tráfego de Boston, desaparecendo completamente no meio da multidão.

 

                     CIDADE DE QUEBEC, HOJE

Sentam-se à mesa no quarto do hotel, Luke e Lanny, um elegante conjunto de louça de café de porcelana branca colocado à frente deles, com um prato de croissants intocado. Quatro pacotes de cigarro, pedidos com o restante do serviço de quarto, dentro de uma tigela de prata.

Luke toma outro gole de café, cheio de creme. A noite anterior foi difícil, com toda a bebida e a maconha, e enquanto pode-se notar a fadiga no rosto dele, o rosto de Lanny não mostra nada além de uma pele viçosa, macia e lisa. E tristeza.

— Imagino que tenha tentado aprender sobre esse feitiço — Luke diz em algum momento. Sua pergunta traz um brilho confuso ao rosto de Lanny.

— Claro que sim. Não é fácil encontrar um alquimista, um de verdade. Toda cidade onde fui, procurava pelos mais sombrios, você sabe, aqueles com as inclinações mais sinistras. E eles estão em todas as cidades, alguns a céu aberto, outros escondidos. Em Zurique, encontrei uma loja numa ruazinha estreita bem perto da via principal. Vendia artefatos raros, crânios antigos com inscrições esculpidas no osso, manuscritos escritos em pele humana, cheios de palavras que não se entendem mais. Achei que, se alguém conhecesse a verdadeira arte da necromancia, seriam as pessoas donas dessa loja, que colocaram suas vidas em busca da mágica arcana. Mas eles só sabiam rumores. Não cheguei a lugar algum. Foi assim até este século, mais ou menos cinquenta anos atrás, quando finalmente ouvi algo que tinha um longínquo toque de verdade. Foi em Roma, num jantar. Conheci um professor, um historiador. A especialidade dele era a Renascença, mas sua vocação pessoal era a alquimia. Quando perguntei se conhecia uma poção que conferia a imortalidade, ele explicou que um verdadeiro alquimista não precisaria de uma poção para imortalidade, porque o verdadeiro propósito da alquimia era transformar o homem, transformá-lo num ser superior. Assim como a suposta busca para transformar metal comum em ouro: ele disse que isso era uma alegoria, que buscavam transformar um homem comum em um ser mais puro. — Ela empurra a xícara um ou dois centímetros, o pires deixando um pequeno rastro sobre a toalha branca adamascada. — Fiquei frustrada, como pode imaginar. Mas, então, ele continuou a dizer que ouvira falar de uma poção rara, com um efeito parecido ao que eu tinha descrito. Transformava um objeto em algo, bem, familiar é o melhor termo, acho. Trazer um objeto inanimado à vida, como um golem, e transformá-lo num criado do alquimista. A poção podia reanimar os mortos, trazê-los de volta à vida, também. Esse professor achava que o espírito que preenchia a pessoa morta, ou o objeto, vinha do mundo do demônio — ela disse, tremendo de medo. — Um demônio com o objetivo de obedecer às ordens de alguém. Isso foi tudo o que eu suportei ouvir. Não fui atrás de explicações desde então.

Eles se sentam em silêncio e observam o tráfego a distância. O sol da manhã começa a aparecer entre as nuvens, deixando os talheres e a tigela de prata em fogo. Tudo é branco e prata e vidro, limpo e estéril, e tudo sobre o que eles estiveram conversando, escuridão e morte, parece estar a um milhão de quilômetros de distância. Luke pega um cigarro, enrola entre os dois dedos antes de colocá-lo de lado, apagado.

— Então, você deixou Adair dentro da parede na mansão. Alguma vez voltou lá para ver se ele havia saído?

— Eu me preocupava se ele havia escapado, claro — ela diz, assentindo quase imperceptivelmente. — Mas aquela sensação, aquela conexão havia desaparecido. Não havia nada para prosseguir. Voltei lá uma, duas vezes. Tinha medo do que ia encontrar, sabe; ver se a casa ainda estava em pé. E estava. Por muito tempo foi usada por uma família. Eu andava ao redor do quarteirão, tentando sentir a presença de Adair. Nada. Então, um vez voltei e vi que a casa havia sido transformada numa funerária, se é que pode acreditar. A vi­zinhança estava passando por tempos difíceis... Podia imaginar os quartos onde eles trabalhavam nos corpos, no porão, apenas a alguns passos de onde Adair estava enterrado. A incerteza era muito... — Lanny descarta o cigarro em sua mão e imediatamente acende outro. — Então, pedi a meu advogado que entrasse em contato com a funerária com uma oferta para comprá-la. Como disse, havia a recessão; foi um valor melhor do que os proprietários esperavam ver em suas vidas... então, aceitaram. Assim que eles se mudaram, fui lá sozinha. Era difícil imaginá-la como a casa que eu conhecera; tanta coisa havia mudado! A parte do porão, embaixo das escadas da frente, tinha sido reformada. Chão de cimento, fornalha e aquecedores de água. A parte de trás não fora modificada. Não havia eletricidade e permanecia escura e úmida. Fui até o local onde... pusemos Adair. Não dava para dizer onde a parede original terminava e onde a parte que Jonathan construíra começava. Tudo havia envelhecido junto àquela altura. Mesmo assim, não havia nenhuma sensação vinda de trás das pedras. Nenhuma presença. Não sabia o que pensar. Fiquei quase tentada, quase, a colocar a parede abaixo. É como aquela voz perversa em sua cabeça que diz para pular quando está bem perto da borda. — Ela sorri com pesar. — Eu não fiz nada, obviamente. Na verdade, mandei reforçar a parede com barras de aço e cimento. Tinha que ser cuidadosa; não queria que a parede fosse estragada durante a construção. Está bem selada e fechada agora. Durmo muito melhor. — Ela não dorme bem; Luke aprendeu pelo menos isso durante o curto tempo que estiveram juntos.

Ele precisa tirá-la do lugar onde a deixou, o porão escuro com o homem que ela condenara. Luke a alcança do outro lado da mesa e pega sua mão.

— Sua história... ainda não terminou, não é? Então, você e Jonathan saíram juntos da casa de Adair; o que aconteceu depois?

Lanny parece ignorar a pergunta por um momento, estudando a bituca do cigarro em sua mão.

— Ficamos juntos por mais alguns anos. A princípio, ficamos juntos porque era, acima de tudo, a melhor coisa a fazer. Podíamos cuidar um do outro, dar cobertura um para o outro, como de fato aconteceu. Foram tempos aventureiros. Viajávamos muito, porque precisávamos, porque não sabíamos como sobreviver. Aprendemos a criar novas identidades, a nos tornarmos anônimos, apesar de ser muito difícil para Jonathan não chamar atenção. As pessoas eram sempre levadas por sua beleza excepcional. Ficava cada vez mais evidente que estávamos juntos porque era o que eu queria. Uma imitação de casamento, mas sem intimidade. Éramos como um casal velho num pacto de amor, e eu forçara Jonathan a desempenhar o papel do marido sem-vergonha.

— Ele não precisava se extraviar — Luke retrucou.

— Era a natureza dele. E as mulheres que se interessavam por ele... era uma fila interminável. — Ela bate a cinza no pires que estão usando como cinzeiro. — Nós dóis nos sentíamos muito mal. Chegou a ponto de ser doloroso ficarmos na presença um do outro; não nos entendíamos e dizíamos coisas dolorosas um ao outro. Às vezes eu o odiava e queria que ele fosse embora. Eu sabia que teria que ser ele a me deixar, pois nunca teria força para ir embora. Então, um dia, acordei e encontrei um recado no travesseiro a meu lado. — Ela ri, ironicamente, como se estivesse acostumada a observar sua dor a distância. — Ele escreveu: “Me perdoe. É melhor assim. Prometa que não virá me procurar. Se eu mudar de ideia, eu a encontrarei. Por favor, respeite o meu desejo. Seu querido, J.”.

Ela para, amassando o cigarro no pires. Sua expressão é dura e levemente distraída, enquanto olha fixamente através das janelas altas.

— Ele finalmente encontrou coragem para partir; foi como se tivesse lido meu pensamento. Claro, sua ausência foi agonizante. Queria morrer, certa de que nunca mais o veria de novo. Mas a vida continua, não é? De qualquer jeito, não tinha escolha, porém ajuda pensar que se tem.

Luke se lembra de como é sentir-se exaurido pela tensão, lembra-se daqueles dias quando ele e Tricia não suportavam estar no mesmo quarto. Quando ele se sentava no escuro e tentava imaginar como se sentiria se eles se separassem, a paz que tomava conta dele. Não havia dúvida de que ela teria que ir embora, ele não deixaria suas filhas nem sua casa de infância, mas quando sua família foi embora e ele ficou sozinho na casa da fazenda, não se sentia sozinho. Era como se algo tivesse sido violentamente arrancado dele, como se tivesse sido amputado.

Ele lhe dá um momento, para ela dobrar a dor e guardá-la de volta em seu lugar.

— Não estava terminado, não é? Obviamente vocês se viram de novo.

A expressão dela é inescrutável, clara e sombria.

— Sim, nós nos encontramos.

                         PARIS, UM MÊS ANTES

Dia cinzento. De trás das cortinas, dei uma olhada no fino trecho de céu visível do terceiro andar de minha casa, uma das muitas casas antigas do 5º Arrondissement. Era o início do inverno em Paris, o que significava que quase todos os dias seriam cinzentos.

Liguei meu computador, fiquei em pé ao lado da escrivaninha e mexi o creme dentro do café enquanto o computador iniciava. Acho a série de zunidos e cliques inconscientemente reconfortante, como o chilrear dos pássaros ou algum outro sinal de vida externa à minha. Gosto muito da normalidade e anseio por uma rotina com a qual possa me fartar; do contrário, minha existência é completamente sem sentido.

Dei um gole no café. Embora não precise dele como a maioria, para se pôr em estado de alerta, bebo por hábito. Mal dormi, apenas cochilei; fiquei acordada até as primeiras horas da manhã, como sempre, fazendo a pesquisa necessária para o livro que eu fora contratada para escrever, mas que, agora, me entediava a ponto de perder a paciência. Quando cansei, comecei a catalogar minha coleção de cerâmica enquanto assistia a reprises de séries americanas na televisão. Tinha chegado ao ponto de pensar em enviar minha coleção de cerâmica para alguma universidade ou museu de arte, algum lugar onde pudesse ser vista. Havia me cansado de ter tantas coisas amontoadas a meu redor o tempo todo, elas me assombravam como mãos saindo do túmulo. Senti necessidade de me desfazer de algumas delas.

Meu e-mail terminou de carregar e olhei para a lista de remetentes. Negócios, na maioria: meu advogado, meu editor da pequena e cambaleante editora que publicara minhas monografias sobre cerâmica antiga da Ásia, um convite para uma festa. Que vida surpreendente tinha construído nos últimos vinte anos, como uma falsa especialista em xícaras de chá chinesas. Minha identidade falsa foi inspirada numa coleção de xícaras de valor inestimável que meu empregador chinês colocara em minhas mãos enquanto embarcava num navio britânico para escapar dos saqueadores nacionalistas. Isso aconteceu na época de O templo de Jade, uma vida anterior a essa, outra história que ninguém sabia.

Então percebi, na lista de e-mails, um endereço que não reconhecia. Do Zaire. Ah, é chamado de República do Congo agora! Eu me lembrava de quando ainda era Congo Belga. Fiz uma careta; será que conhecia alguém no Zaire? Provavelmente era só um pedido de caridade ou um engano, um falso artista se passando por um príncipe africano que precisava de um pouco de ajuda para resolver um dilema financeiro temporário. Quase o apaguei sem lê-lo, mas mudei de ideia no último minuto.

“Cara Lanny”, eu li. “Olá de quem pensou que nunca mais ia ouvir falar. Antes de mais nada, deixe-me agradecer por honrar meu último pedido e não tentar me encontrar desde que nos separamos...”

Malditas palavras inocentes, escritas em pixels trêmulos na tela. “Imprimir”, eu apertei no botão do mouse. “Imprima, maldita, preciso segurar essas palavras em minhas mãos.”

“... espero que me perdoe por me dirigir a você dessa forma. Apesar de toda conveniência, nunca deixei de achar que a correspondência por e-mail é menos educada e correta do que escrever uma carta. Tenho dificuldades em usar o telefone pela mesma razão. Mas tenho pressa e, então, tive que recorrer ao e-mail. Estarei em Paris em alguns dias e gostaria muito de vê-la enquanto estiver aí. Espero que sua agenda nos permita isso. Por favor, responda dizendo se poderá me ver... Com carinho, Jonathan.”

Sentei-me apressadamente na cadeira, os dedos colocados sobre as teclas. O que dizer? Tanta coisa guardada depois de décadas de silêncio! De querer conversar e não ter ninguém com quem falar. De falar com as paredes, com os céus, com os pombos, com as gárgulas penduradas nos pináculos da Catedral de Notre-Dame. “Graças a Deus; achei que nunca mais fosse ter notícias suas. Me desculpe; me desculpe. Isso quer dizer que você me perdoou? Fiquei esperando por você. Não faz ideia do que é ver seu nome escrito na tela do meu computador. Você me perdoou?”

Eu hesitei, fechei as mãos e cerrei os punhos, chacoalhei-as, abri-as, chacoalhei-as mais uma vez. Fiquei parada sobre o teclado. Finalmente, digitei: “Sim”.

 

Esperar por aquele dia foi torturante. Tentei manter minhas expectativas baixas. Sabia que não devia ter muitas esperanças, mas ainda havia uma parte de mim que alimentava sonhos românticos no que se referia a Jonathan. Era impossível não me dar ao luxo de sonhar acordada uma ou duas vezes ao dia, só para sentir esse tipo de prazer novamente. Fazia tanto tempo que eu não ansiava por alguma coisa!

Jonathan me contou sobre a vida dele num segundo e-mail. Ele havia se formado em Medicina, nos anos 1930, na Alemanha, e aproveitou-se disso para viajar a lugares pobres e remotos, e prestar serviços médicos. Quando se tinham documentos suspeitos, era mais fácil passar pelas autoridades de áreas isoladas onde precisavam de um médico e os oficiais corruptos do governo empurravam o caso. Ele trabalhara com leprosos na Ásia, vítimas de varíola no subcontinente. Um surto de febre hemorrágica o levou ao centro da África e ele permaneceu lá para administrar uma clínica médica num campo de refugiados perto da fronteira de Ruanda. Não é cirurgia cardíaca, ele digitara: ferimentos de bala, disenteria e vacinação contra sarampo. O que fosse necessário.

O que poderia responder, além de confirmar o horário e o lugar onde nos encontraríamos? O fato de Jonathan ser um médico, um anjo de piedade, me deixava muito feliz e ansiosa. Mas Jonathan esperava que eu lhe contasse sobre minha vida e, sentada diante do computador, não conseguia pensar no quê escrever. O que eu poderia dizer que não fosse vergonhoso? A vida fora difícil depois que nos separamos. Fiz coisas estúpidas, que, na época, acreditei serem necessárias à minha sobrevivência. Agora, finalmente, minha vida estava tranquila, quase como a vida de uma freira e não totalmente por falta de opção. Eu chegara a um acordo com ela.

Jonathan perceberia minha omissão, mas me assegurei de que ele não tivesse nenhuma ilusão de que eu mudara durante o tempo em que ficamos separados, pelo menos não tão drasticamente quanto ele. Em vez disso, meu primeiro e-mail para Jonathan estava cheio de amenidades: como eu ansiava por encontrá-lo e coisas do gênero.

Não consegui dormir na noite anterior ao encontro e me sentei, olhando-me no espelho. Será que estaria diferente para ele? Examinei meu reflexo atenciosamente, preocupada se houvera mudanças, como se fosse uma dessas mulheres nos comerciais, analisando as marcas do sorriso ou os pés de galinha. Nada mudara, eu sabia. Eu ainda parecia uma estudante colegial com uma eterna expressão zangada. Tinha o mesmo rosto macio que Jonathan vira no dia em que fora embora. Ainda tinha o fogo de uma jovem mulher que não fizera sexo o bastante, embora, na verdade, eu tivesse feito sexo para cinco vidas. Não queria parecer tão desesperada quando ele me visse, mas não tinha como evitar, percebi, olhando para o espelho. Sempre seria louca por ele.

Ainda olhando no espelho, imaginei se seria estranho ou enlouquecedor, quando nos encontrássemos no dia seguinte. Olhar um para o outro, o tempo poderia parar. Quanto tempo fazia desde que vira Jonathan pela última vez? Cento e sessenta anos? Não conseguia nem me lembrar em qual ano ele me deixara. Estava surpresa ao perceber que isso já não doía tão violentamente; que levara décadas, mas a dor finalmente tinha atenuado e tornara-se somente uma pulsação enfadonha, facilmente sobreposta por minha ânsia em vê-lo.

Guardei o espelho. Era hora de uma bebida. Abri uma garrafa de champanhe. Para que serviria guardá-la para amanhã na esperança de que ele voltaria para mim? Já não era motivo suficiente que Jonathan tivesse entrado em contato comigo após uma eternidade de separação? Resolvi cortar minha esperança pela raiz antes de trocar os lençóis ou colocar toalhas extras no banheiro. Ele estava vindo me visitar e nada mais.

“Encontre-me no lobby ao meio-dia”, ele instruíra em seu último e-mail. Eu mal podia esperar e, em vez disso, considerei chegar mais cedo ou ir até o quarto de Jonathan. Isso seria patético; seria melhor fingir que eu tinha algum autocontrole. Fiquei observando os minutos se arrastarem até as 11 horas, antes de sair, pegar um táxi e me dirigir ao Hotel Prix St. Germain. Da janela de trás do táxi, vi minha rua desaparecer como o desenho de um pano de fundo de um carrossel quando a música começa.

Eu já tinha ouvido falar do Hotel Prix St. Germain, mas nunca estivera lá. Era um lugar quieto, enterrado numa rua sem estilo na margem esquerda do Sena, bem de acordo com um médico expedicionário que passa alguns dias em Paris. O lobby era malcheiroso e um atendente profissionalmente circunspecto, na recepção, observou quando eu me sentei numa das poltronas de couro. Será que todos os lobbies de hotel eram assim: sufocantes, inquisidores? A poltrona que escolhi dava de frente para o caminho entre a porta e a recepção. Um relógio antigo, todo enfeitado, pendurado sobre a porta da frente, marcava 11h48. Quando mais novo, Jonathan tinha o hábito de deixar os outros esperando. Como um médico expedicionário, imaginei que tivesse aprendido a ser mais pontual.

Um jornal já lido estava sobre a mesa de apoio. Nunca segui os acontecimentos do mundo e raramente me dava ao trabalho de ler um jornal. As notícias me confundiam, tornaram-se todas muito parecidas umas com as outras. Assistia às da noite e caía num profundo sentimento de déjà vu. Um massacre na África? Ou era em Ruanda? Não, espere, foi em 1993. Ou era o Congo Belga, ou a Libéria? Um chefe de Estado assassinado? O mercado de ações em derrocada? Uma praga, pólio, varíola, tifo ou Aids? Passei por todos os eventos a uma distância segura e os assisti assolarem e aterrorizarem a humanidade. Era horrível ver o sofrimento e não ser capaz de fazer nada. Eu era um fantasma no fundo da paisagem.

Conseguia imaginar como Jonathan se sentira inclinado a ir para a escola de Medicina, preparar-se para fazer algo contra as coisas terríveis que aconteciam no mundo. Arregaçar as mangas e dedicar-se, mesmo sabendo que seria impossível erradicar uma doença, numa só vila que fosse, mas tentando, mesmo assim. Sem perceber, meus olhos tinham recaído sobre o jornal durante todo o tempo em que estivera pensando. Olhei para cima abruptamente, antecipando a chegada de Jonathan.

A porta da frente foi aberta e me inclinei para a frente ansiosamente, em direção ao que parecia uma figura conhecida, mas relaxei novamente. O homem usava uma calça cáqui amassada e uma jaqueta surrada de tweed. Um pedaço de tecido étnico estava enrolado em volta de seu pescoço, óculos de sol cobrindo os olhos. E seu rosto tinha uma barba por fazer, suja e irregular, de três dias ou mais. O homem caminhou em minha direção, mãos nos bolsos. Estava sorrindo; então, eu percebi.

— São essas as boas-vindas que eu recebo? Não se lembra de mim? Talvez devesse ter mandado uma foto recente — Jonathan disse.

Fomos para fora por sua sugestão, dizendo que parecia que eu desmaiaria. Jonathan pegou meu braço e o segurou com força enquanto me acompanhava até a calçada. Encontramos um canto quieto num parque que era só cimento e bancos, uma só árvore cercada de concreto nos quatro lados, mas dava a ilusão de natureza.

— É bom ver você.

Não consegui responder, mas minha resposta era desnecessária, de qualquer forma. Parecia absurdo que ele tivesse ficado ausente de minha vida por tanto tempo e, vendo-o novamente, parecia não haver motivo no mundo para nos mantermos separados. Queria tocá-lo e beijá-lo, ter certeza de que ele estava lá, em carne e osso, diante de mim. Mas, por mais que fôssemos íntimos um do outro, havia entre nós mais de cem anos de separação. E alguma coisa em seu comportamento me dizia para ir devagar.

Assim que minha cor voltou, achamos um café, onde ficamos durante horas. Entre cafés, copos de Lille e cigarros (para mim, embora Jonathan, o médico, não aprovasse), nos sentamos num banco e colocamos a conversa sobre muitas vidas em dia. As histórias da selva eram fascinantes e me surpreendia ver que Jonathan pudesse ter sido feliz numa terra tão seca e escassa quanto o Maine era frio e luxuriante. Que ele pudesse sentar-se numa tenda, enchendo seringas, sem pensar nos mosquitos zunindo em volta dele. Malária, meningite, que diferença fazia? Ele se voluntariara para descer até um vale tomado por um surto de dengue. Havia carregado antidiarreicos e outros remédios nas costas quando o Land Rover não conseguia atravessar o rio. Por mais que admirasse o que ele fez, as histórias que o colocavam em perigo me causavam incômodo, embora esses medos fossem irracionais.

— Como me encontrou, depois de tanto tempo, nesse mundo tão grande? — perguntei a ele, finalmente, morrendo de vontade de saber. Ele sorriu misteriosamente e deu outro gole em seu aperitivo.

— É uma história divertida. A resposta curta é: tecnologia... e sorte. Fazia tempo que queria procurá-la, mas tinha dúvida se devia ou não. Como poderia fazer isso? A resposta começou com um livro infantil que vi por acaso na casa de um colega...

— O templo de Jade — adivinhei.

— O templo de Jade — ele respondeu, assentindo. — Lendo o livro para o filho de meu colega, encontrei a modelo do artista, Beryl Fowles, uma expatriada britânica vivendo em Shangai...

— Sempre gostei desse nome. Eu mesma o inventei.

— ... e contratei alguém para achar o que conseguisse sobre Beryl. Mas, na época, Beryl Fowles já tinha morrido há décadas.

— Mesmo assim, você me achou.

— Contratei um investigador para encontrar quem havia herdado o dinheiro de Beryl e daí por diante. Mas as pistas não deram em lugar nenhum.

— E você não desistiu?

Jonathan sorriu para mim novamente.

— Aqui é onde entra a tecnologia. Sabe aqueles softwares de reconhecimento fotográfico que existem on-line hoje em dia, para que possa encontrar fotos suas ou de amigos em websites? Bem, tentei com uma das fotos do livro e acredita que funcionou? Não foi fácil e tive que ser persistente, mas apareceu uma combinação, uma foto pequena da autora de uma monografia sobre xícaras de chá chinesas. De todas as coisas... Nunca imaginei que se tornaria uma especialista em porcelana chinesa. Bem, seu editor me informou como entrar em contato com você.

As xícaras de chá chinesas, confiadas a mim por meu empregador em Shangai, onde eu fora trabalhar depois de posar para o livro infantil. E, assim, minha última grande aventura na China tinha trazido Jonathan até mim.

Acabamos indo para minha casa no final da tarde; o champanhe se foi, assim como três quartos do cabernet, junto com o foie gras e as torradas. Por insistência de Jonathan, mostrei a casa para ele, mas, a cada quarto que entrávamos, ficava mais constrangida. Eu mesma me surpreendi com o tanto de coisas adquiridas ao longo dos anos, amontoadas como uma proteção contra o futuro incerto. Jonathan disse palavras gentis, elogiou-me por minha atitude visionária em guardar objetos raros e de grande beleza para as gerações futuras, mas só fez isso para aliviar minha culpa. Um médico expedicionário não viajaria com tamanha carga de quinquilharias. Não havia um depósito de memórias esperando pela volta de Jonathan. Deparei-me com uma caixa que não via fazia mais de duas décadas, cheia de joias preciosas que me foram dadas por admiradores: um anel com um rubi do tamanho de uma uva; um alfinete de gravata com um diamante azul, relíquia de família. A visão de tamanho exagero era doentia e empurrei a caixa de volta à prateleira esquecida, onde ela estivera mofando.

Deparamo-nos com coisas ainda piores: pilhagem, coisas que eu roubara de países distantes durante meus anos frenéticos. Certamente Jonathan os reconhecia: budas maravilhosamente entalhados, tapetes de vinte cores trançados à mão, armaduras cerimoniais. Tesouros que conseguira em troca de rifles, ou tomados na ponta da arma, ou, em alguns casos, arrancados dos mortos. Tudo isso iria embora, jurei, fechando as portas dos quartos; cada cetro e estátua seria mandado para museus, de volta aos países de onde vieram. Como pude viver tanto tempo com essas coisas em minha casa sem nem me lembrar delas?

O último aposento que visitamos foi meu quarto, no andar de cima. Tinha o triste ar de um quarto que não era mais usado para seu propósito. Havia uma cabeceira sueca e um estrado ao lado de um par de janelas altas e estreitas; as janelas e a cama eram cobertas com algodão branco, e um edredom de seda azul cobria o colchão. Uma secretária francesa do século XVIII servia como mesa de computador, pernas finas e compridas e tudo mais, com uma cadeira Biedermeier. A mesa estava bagunçada, com papéis e bugigangas, uma camisola de seda cinza pendurada nas costas da cadeira. Parecia um quarto de onde acabaram de tirar os lençóis de cima dos móveis, como se tudo estivera esperando pelo momento de ser usado.

Jonathan parou em frente da foto pendurada do outro lado da cama. O nome do artista já havia sumido fazia muito tempo, mas eu me lembrava do dia em que o esboço fora feito. Jonathan não queria posar para o retrato, mas Adair insistira, de modo que ele foi desenhado inclinado grosseiramente para trás, na cadeira, sombrio, mal-humorado e de tirar o fôlego. Ele pensou que fosse estragar o retrato, mas só fez o desenho ficar ainda melhor. Nós dois ficamos parados diante da foto, levados de volta há pelo menos dois séculos.

— De todos os tesouros que acumulou nessa casa... não posso acreditar que guardou esse desenho estúpido. — Jonathan disse, baixinho. Quando viu a expressão aflita em meu rosto, ele se acalmou e pegou minha mão. — Claro que você guardaria... fico feliz que o tenha guardado! — Olhamos uma última vez para ele antes de sairmos do quarto.

Quando a noite caiu, Jonathan estava esparramado no sofá na sala de visitas e eu, no chão, inclinada sobre o encosto do braço. Contamos histórias durante horas. Eu não aguentei e lhe contei algumas coisas do passado das quais tinha vergonha: sair em busca de aventura com o louco que tomara o lugar de Jonathan quando ele me deixou. O nome dele era Savva e era um de nós, um dos acompanhantes anteriores de Adair, o único outro de nós que eu jamais conhecera. Savva teve a má sorte de ter sido encontrado por Adair, séculos antes, perto de São Petersburgo, durante uma tempestade. Savva não quis contar os detalhes de sua briga com Adair, mas eu podia imaginar, pois ele tinha um temperamento caprichoso e uma língua afiada e impaciente.

Por Savva não suportar ficar num só lugar por muito tempo, viajamos pelos continentes feito exilados. Para um homem que nascera no meio do gelo e da neve, Savva era inexplicavelmente atraído pelo calor e pelo sol, o que significa que passamos a maior parte do tempo no norte da África e na Ásia central. Viajamos com os nômades pelo deserto, contrabandeamos armas pela passagem do Khyber. Ensinamos beduínos a atirar com rifles longos e chegamos até a viver com os mongóis durante um tempo (eles ficaram impressionados com os extraordinários dotes equestres de Savva durante a corrida de caça). Éramos unidos, como irmão e irmã, até o final do século XIX, quando percebemos que não tínhamos mais nada a dizer um ao outro. Provavelmente deveríamos ter nos separado décadas antes, mas era fácil demais viver com alguém a quem não precisávamos dar explicações.

— E você... — aproveitei a oportunidade para mudar de assunto, exaurida por trazer à tona todas aquelas memórias. — Com certeza não ficou sozinho esse tempo todo. Casou-se novamente?

Ele torceu a boca, mas não falou nada.

— Não me diga que ficou sozinho todo esse tempo? Isso teria sido muito triste.

— Bem, eu não diria sozinho. Raramente se fica sozinho quando se é um médico nesses vilarejos... era sempre convidado para comer com eles, participar de suas cerimônias. Partilhar a vida deles. — Os olhos dele fechavam-se por instantes cada vez mais demorados e um langor tomou conta de seu rosto. Peguei um cobertor e coloquei sobre ele. Ele abriu os olhos por um breve momento.

— Vou voltar para o Maine; quero ver tudo de novo. É por isso que procurei você, Lanny. Quero que vá comigo. Você vai?

Tive que me controlar para não chorar, com a perspectiva de voltar para casa com Jonathan.

— Claro que sim.

 

Tomamos um daqueles aviões gigantescos para a viagem de volta à América. De Nova York, pegamos um voo com conexão até Bangor e, então, alugamos um carro esportivo para irmos até o norte. Não via essa terra havia dois séculos e, por mais louco que pareça, algumas partes pareciam ter mudado muito pouco. O restante eram estradas asfaltadas, casas de fazenda vitorianas, imensos campos de plantações bem-cuidadas, as mangueiras dos canos de irrigação girando no horizonte. Vista pelo espelho retrovisor, era fácil me enganar e achar que nunca estivera aqui. Então, a estrada cortava uma das planícies das fazendas, em direção à Floresta Great North. Mergulhamos na floresta escura e fresca, ladeados pelos troncos das árvores, o céu tampado por um cobertor de folhas. O carro descia e subia, seguindo o movimento do terreno, e desviava dos seixos que brotavam da terra, agora escorregadia como limo. Eu me lembrava de tudo. Vi as árvores e fui levada para duzentos anos antes, repleta de memórias de minha primeira vida, minha verdadeira vida, aquela que haviam tirado de mim. Imagino que Jonathan sentia a mesma coisa.

Sentimos nossa terra natal ficar cada vez mais próxima. A viagem passara rápido dentro do carro. A última vez que fizemos essa viagem havia sido dentro da carruagem, Jonathan em choque pelo que eu fizera a ele, mal me dirigindo a palavra.

Ficamos mudos ao nos aproximarmos da cidade. Como tudo mudara! Nem tínhamos certeza se estávamos no caminho certo, a estrada principal atravessava o meio da cidade, era a mesma trilha empoeirada das charretes que levavam até a novata St. Andrew, duzentos anos antes. Onde estavam a igreja e o cemitério? Será que conseguiríamos ver a congregação daqui? Passamos o mais vagarosamente que pudemos, assim podíamos tentar sobrepor a cidade que lembrávamos a esta em nossa frente.

St. Andrew não se tornara como as muitas outras cidades da América, onde cada loja, restaurante e hotel é o produto de uma empresa multinacional e de seus correspondentes genéricos. Pelo menos St. Andrew tinha alguma individualidade, mesmo que tenha perdido o objetivo original. As imensas fazendas espalhadas haviam desaparecido e não havia nem sinal dos negócios de madeira nos últimos vinte quilômetros. O turismo tinha tomado o seu lugar. Lojas de roupas e materiais para expedições na floresta se alinhavam dos dois lados da estrada principal, estabelecimentos onde homens bem-cuidados, com roupas resistentes, acompanhavam outros homens e mulheres pela floresta ou pelo rio Allagash. Ou os levavam para o meio do rio com galochas de pesca, esperando o dia todo por um peixe que soltariam depois de terem tirado uma foto com ele. Havia lojas de artesanato e pousadas onde outrora houvera casas de fazenda e celeiros, a fundição de Tinky Talbot e a loja de mantimentos dos Watford. Ficamos surpresos ao descobrir, finalmente, que a congregação provavelmente fora demolida e que o centro da cidade era agora ocupado por uma loja de ferramentas, uma sorveteria e uma agência do correio. Pelo menos o cemitério fora mantido.

Essa nova geração de habitantes certamente o achou agradável o bastante e, se não soubesse o que fora dois séculos atrás, eu também não faria objeção. A cidade agora vivia de prestar serviços às hordas de turistas e parecia decadente; como descobrir que sua casa de infância fora transformada num bordel, ou, pior, numa loja de conveniência? St. Andrew havia trocado sua alma por um jeito mais fácil de viver, e quem era eu para julgar?

Hospedamo-nos num hotelzinho para turistas aventureiros, fora da cidade. O Dunratty’s se parecia com um velho motel, desgastado por causa da indiscutível falta de cuidado, e hospedava caçadores sazonais e pescadores; portanto, era de se esperar certa austeridade. Havia um conjunto de dez quartos ou mais formando um bloco, anexo à recepção. Pedimos uma cabana, a que ficasse mais para o interior da floresta. O atendente não disse nada, só olhou discretamente procurando pela presença de rifles ou varas de pescar e, nada encontrando, voltou vagarosa e resignadamente a seu trabalho. Perguntou se éramos casados, como se importasse que uma daquelas cabanas escuras fosse usada como um ninho de amor. Fomos informados de que, exceto por nós, o lugar estava vazio; tudo estaria muito quieto. Ele estaria disponível na casa, se precisássemos de alguma coisa, e apontou para uma direção indecifrável, mas, caso contrário, ninguém nos incomodaria.

A cabana era lúgubre, com as quatro paredes forradas com papel de parede barato, o teto mal forrado com madeira compensada. O espaço era dominado por duas camas um pouco maiores do que camas de solteiro, mas não tão grandes quanto uma cama de casal, com armações de metal da era da Depressão, separadas por uma pequena cômoda colocada no lugar de um criado-mudo, com um abajur de louça em cima. Duas poltronas com o forro surrado estavam de frente para o que parecia ser uma televisão de trinta anos atrás. De um lado, havia uma mesa pequena e redonda, acompanhada de três cadeiras de madeira sem braço. Atravessando a porta, encontrei uma cozinha pequena e funcional e, passando por uma segunda porta, um banheiro quase mofado. Eu ri quando Jonathan jogou as malas sobre uma das camas.

— Vamos ficar aqui? — perguntei, incrédula. — Deve haver outro lugar melhor. Talvez na cidade...

Jonathan não falou nada e ficou em pé diante de um conjunto de portas corrediças. Além do deque comum de madeira, ficava a floresta; troncos imensos e grossos subiam acima de nós, rangendo ao vento. Abrimos a porta e pisamos na floresta, o ar límpido nos lambendo por todos os lados. Ficamos parados no modesto quadrado do deque e olhamos para a floresta sem-fim durante um tempo imensurável. Esse era o lar que conhecíamos; ele nos encontrara.

— Vamos ficar aqui — Jonathan finalmente respondeu.

Saímos da cabana por volta das 5 horas da tarde, ansiosos para dar uma olhada em tudo antes do pôr do sol. Foi difícil encontrar o caminho; as estradas que esperávamos nos levar numa direção, nos levavam para outro lugar, completamente diferente, já que a área havia passado por várias mudanças ao longo dos anos. A atual rede de rodovias fora construída pelas empresas madeireiras e passava por quilômetros e quilômetros dentro da floresta, sem nenhuma razão aparente, levando direto à estrada principal, que, por sua vez, nos levava à junção do rio Allagash com o St. John. Depois de duas iniciativas frustradas, encontramos uma estrada que nos lembrava a trilha das charretes que levava até a casa de Jonathan, e foi com um sinal silencioso dele que percorremos a estrada até o fim.

Atravessamos um túnel de árvores enormes até chegarmos a uma área limpa, que um dia fora os campos de feno em frente da casa dos St. Andrew. A estrada mudara, não passava mais pelo canal do depósito de gelo para depois subir até a casa principal, mas eu reconheci o formato do terreno. Agora, uma estrada passava pelo lado direito da casa, que ainda permanecia em pé sobre a escarpa. Aumentamos um pouco a velocidade, ansiosos para vê-la novamente, e, conforme chegávamos mais perto, fui soltando o acelerador. A casa ainda estava de pé, porém só alguém que tivesse vivido lá um dia seria capaz de reconhecê-la.

A casa, em outros tempos gloriosa, fora abandonada até apodrecer. Era como um cadáver exposto aos elementos do tempo, um esqueleto, cujas características pelas quais se conhecia a pessoa tivessem sido destruídas. A grandiosa casa de outrora sucumbira; sem pintura, com telhas de ardósia faltando no telhado, ripas de madeira como costelas faltando no torso. Até mesmo a fileira de pinheiros à frente, que formava uma proteção do vento, estava se deteriorando, os pinheiros magros e abandonados, como as árvores que se encontram em cemitérios.

— Está abandonada — Jonathan disse.

— Quem imaginaria... — repliquei, não sabendo o que dizer. — Ah, Jonathan... pelo menos a deixaram no mesmo lugar. Você viu o lugar onde era a casa de minha família: nada além de um cruzamento de ruas, agora. A vida continua, não é?

Jonathan ficou quieto em resposta à minha tentativa de animá-lo. Demos meia-volta no carro e voltamos à cidade.

Naquela noite, fomos a um pequeno restaurante no centro da cidade para jantar. Se é que se poderia chamar aquilo de restaurante, pois era um lugar onde podíamos comprar refeições, mas não lembrava nem de longe o tipo de restaurante que eu estava acostumada a frequentar. Era mais como um vagão-restaurante, com uma dúzia de mesas de tampo laminado, cada uma rodeada por quatro cadeiras de tubo de metal. As toalhas de mesa eram impermeáveis, os guardanapos, de papel. Os cardápios estavam cobertos de um plástico amarelado e grudento, podia apostar que não haviam sido trocados nos últimos vinte anos. Havia cinco clientes, incluindo Jonathan e eu. Os outros eram todos homens vestindo jeans, camisas de flanela e um tipo de gorro. A garçonete era, provavelmente, também a cozinheira. Lançou-nos um olhar crítico enquanto nos passava os cardápios, como se estivesse em dúvida sobre nos servir ou não. Música country tocava suavemente no rádio.

Pedimos comida que há muito tempo não víamos, se é que víamos, vivendo no exterior: filé de bagre frito, frango e bolinhos de carne, o tipo de comida que chega quase a ser exótica, de tão incomum. Nós esperamos, tomando cerveja e falando pouco, os dois com a impressão de que os outros clientes nos observavam. A garçonete, com cabelos parecendo arame enrolado e sulcos no rosto, olhou explicitamente para nossas refeições, comidas pela metade, antes de nos perguntar se queríamos alguma sobremesa. — A torta é boa — disse impassível, como se fazendo uma observação geral.

— Foi frustrante visitar sua casa? — eu perguntei, depois que a garçonete nos trouxe mais duas cervejas. Jonathan balançou a cabeça.

— Deveria ter esperado isso mesmo. Mesmo assim, não estava preparado.

— É tudo tão diferente, mas, ao mesmo tempo, tudo tão igual! Me sinto deslocada; se você não estivesse comigo, iria embora.

Saímos do restaurante e caminhamos pela rua. Estava tudo fechado, exceto um pequeno bar, o Blue Moon, a julgar pelo sinal de néon em forma de lua crescente. Parecia romântico, e estava completamente cheio de homens, caminhoneiros e lenhadores assistindo a um evento esportivo na televisão. Depois que a parte comercial da cidade havia fechado, chegamos ao cemitério da igreja. Havia um luar fraco, o suficiente para vagarmos entre as lápides.

O cemitério tornara-se deserto e coberto de vegetação. Arbustos de frutas silvestres e urtiga tomavam conta da parede de pedra, encobrindo as colunas gêmeas que, um dia, marcaram a entrada, e engoliam algumas das marcações. Anos de geadas e solo congelado haviam tirado algumas lápides do lugar; outras sofreram a erosão do tempo ou foram destruídas por vândalos. Achei meu caminho pelos túmulos rapidamente, sem a menor vontade de visitar os antigos vizinhos desse jeito, enquanto Jonathan ia de túmulo em túmulo, tentando ler os nomes e as datas, arrancando as ervas daninhas que subiam nas pedras. Ele estava tão triste e tão pesaroso que tive que controlar minha vontade de fazê-lo ir embora.

— Veja, é a lápide de Isaiah Gilbert — Jonathan falou em voz alta. — Ele morreu em... 1842.

— Viveu um tempo respeitável. Uma longa vida boa — respondi, de volta do lugar onde eu estava, fumando e tentando fugir das memórias e da vertigem.

A essa altura, Jonathan já tinha se virado para outro túmulo. Ele estava de cócoras, sobre os calcanhares, olhando pelo cemitério.

— Fico imaginando se todos que conhecemos estão aqui, em algum lugar.

— É inevitável que alguns deles tenham ido embora. Encontrou alguém de minha família?

— Será que eles não estariam no cemitério católico do outro lado da cidade? — ele perguntou, andando por uma passagem, olhando lápide por lápide. — Podemos ir até lá depois, se quiser.

— Não, obrigada! Não tenho nenhuma curiosidade.

Sabia que Jonathan havia encontrado algo significativo quando ele se ajoe­lhou perto de uma lápide dupla. A pedra estava desgastada e manchada pelo tempo, a parte de trás, larga e plana, de costas para mim, de modo que eu não podia ler a inscrição.

— De quem é essa aí? — perguntei enquanto me aproximava.

— Do meu irmão. — As mãos dele passavam sobre as palavras entalhadas. — Benjamin.

— E Evangeline. — Eu toquei o outro lado do túmulo. — Evangeline St. Andrew, esposa amada. Mãe de Ruth.

— Então eles se casaram.

— Honra de família? — eu perguntei, limpando as letras com as pontas dos dedos. — Parece que ela não viveu muito tempo.

— E Benjamin foi enterrado ao lado dela; ele nunca se casou de novo.

No decorrer das horas seguintes, encontramos a maior parte da família de Jonathan: sua mãe e, mais tarde, sua filha Ruth, a última St. Andrew a viver na cidade. As irmãs de Jonathan não estavam lá, o que o levou a ter esperança de que elas teriam se casado e saído da cidade para constituírem famílias felizes e bem-sucedidas em algum outro lugar, e serem enterradas ao lado de seus maridos numa vizinhança mais alegre. Ele queria acreditar que elas haviam escapado de toda a melancolia de St. Andrew.

Levei Jonathan de volta à cabana. Havia trazido, escondidas, da França, em minha mala, duas garrafas de um cabernet extraordinário. Tiramos a rolha de um e deixamos respirar sobre a bancada enquanto nos deitamos na cama. Segurei Jonathan bem perto até que o frio tivesse deixado seu corpo e, então, o despi. Ficamos deitamos na cama entre os lençóis de algodão amaciados e surrados, tomando goles de cabernet em copos de vidro e conversando sobre nossa infância, irmãos e irmãs, amigos e inimigos; nossos entes queridos mortos havia muito tempo, decompostos e matérias inertes no chão, enquanto nós estávamos inexplicavelmente vivos. Não tinha coragem de contar a ele sobre Sophia. Falamos sobre pessoas queridas, até que Jonathan caiu no sono; então, chorei pela primeira de muitas vezes.

 

Não houve mais excursões para reviver o passado: nem visitas ao cemitério nem tentativas de refazer os caminhos pela floresta, antes conhecidos, mas agora quase inexistentes e fantasmagóricos. Caminhamos ao longo do Allagash, observando alces e veados e admirando a luz do sol do Maine brilhar sobre a correnteza, em vez de ficarmos falando sobre eventos que ocorreram nesse ou naquele lugar. Passamos o restante do tempo silenciosamente na companhia um do outro.

O tempo que passávamos juntos tornou-se uma droga da qual eu não me saciava e comecei a pensar que talvez pudéssemos nos perder aqui, onde tudo havia começado. Não teríamos que viver necessariamente em St. Andrew; como a cidade mudara tanto, talvez fosse incômodo ficar aqui. Poderíamos encontrar algum pedaço de terra na floresta e construir uma cabana, onde viveríamos longe de tudo e de todos. Sem jornal, sem o tique-taque insistente do tempo nos cutucando no ombro, reverberando em nossos ouvidos. Sem fugir do passado a cada cinquenta ou sessenta anos, para surgir como uma nova pessoa, em outro lugar, ou melhor, fingir ser outra pessoa, tão nova quanto um pintinho que acabou de sair do ovo, mas, por dentro, sentindo-me como a pessoa que sempre fui e da qual nunca pude fugir.

Uma noite, estávamos no deque da cabana deteriorada, enrolados em nossos casacos, sentados em duas cadeiras de dobrar, bebendo vinho em copos de vidro e olhando para a lua no céu. Jonathan direcionou nossa conversa de volta ao passado, o que me deixou incomodada. Ele se pôs a imaginar se Evangeline tivera uma vida difícil e infeliz depois que ele desaparecera e se ele teria sido a causa da morte prematura de sua mãe. Eu disse que sentia muito, repetidamente, mas Jonathan não queria ouvir, balançando a cabeça e dizendo que não, que fora culpa dele, que ele fora terrível comigo, tirando vantagem do meu óbvio amor por ele.

— Mas, veja bem, eu quis tanto você! — disse a ele. — A culpa não foi toda sua.

— Vamos até lá de novo — Jonathan disse —, àquele lugar na floresta onde costumávamos nos encontrar; o lugar com as mudas de vidoeiros. Tenho pensado muito nele, o lugar mais lindo do mundo. Acha que elas ainda estão lá? Odiaria se alguém as tivesse cortado.

Zonza e quente de beber, subimos na SUV, embora eu tenha voltado para dentro da cabana para buscar um cobertor e uma lanterna. Segurei a garrafa de vinho aberta sobre o peito enquanto Jonathan manobrava o veículo pela floresta. Tivemos que deixar o carro ao lado da estrada de madeira e percorrer os últimos 200 metros a pé.

Conseguimos encontrar a clareira, embora estivesse mudada. As mudas cresceram até certa altura e então pararam. Os galhos mais altos agora se tocavam, fechando a abertura da abóbada, encobrindo as mudas que tentavam seguir o exemplo delas. Lembro-me dessa clareira, de quando, ainda crianças, nos encontrávamos para rir e contar histórias sobre nossas vidas solitárias, mas o tempo havia levado embora sua beleza particular. A clareira não era mais abençoada e alegre; era como qualquer outro pedaço da floresta, nem mais nem menos.

Estiquei o cobertor sobre o chão e nos deitamos de costas, tentando ver o céu da noite através da folhagem da abóboda, mas havia só alguns lugares por onde conseguíamos espiar as estrelas. Tentamos acreditar que aquele era o mesmo lugar onde nos encontrávamos, mas ambos sabíamos que poderia ser cinco passos para oeste ou 200 metros para a esquerda. Resumindo, era um lugar tão bom quanto qualquer outro na floresta, desde que as folhas do topo das árvores rareassem, desde que pudéssemos deitar de costas e ver as estrelas.

Pensar em minha infância me fez lembrar do fardo que tenho carregado todo esse tempo. Chegara a hora de contar a Jonathan a verdade sobre Sophia. Antigos segredos têm sempre maior impacto, e eu estava aterrorizada sobre como Jonathan reagiria. Nosso encontro poderia terminar nessa noite; ele poderia me banir para sempre de sua vida, dessa vez. Esse medo quase me fez desistir, mais uma vez, mas não podia mais carregar esse peso comigo. Tinha que falar.

— Jonathan, há algo que preciso lhe contar. É sobre Sophia.

— Hummm? — ele se mexeu perto de mim.

— Foi minha culpa ela ter se matado. Minha culpa. Menti para você quando me perguntou se tinha ido vê-la. Eu a ameacei; disse que estaria arruinada se tivesse o bebê, disse que você nunca se casaria com ela, que não queria mais saber dela. — Sempre imaginei que cairia no choro quando fizesse essa confissão, mas nada aconteceu. Meus dentes começaram a bater e meu sangue congelou em minhas veias.

Ele se virou para mim, embora não pudesse ler a expressão de seu rosto no escuro. Alguns longos segundos se passaram antes que ele respondesse:

— Esperou esse tempo todo para me contar isso?

— Por favor, por favor, me perdoe!

— Está tudo bem, de verdade. Pensei muito sobre isso ao longo desses anos. É engraçado como vemos as coisas diferentes com o tempo. Naquela época, imaginei que meu pai e minha mãe nunca teriam permitido que eu me casasse com Sophia. Mas o que eles poderiam ter feito para me impedir? Se eu ameaçasse abandonar a família para ficar com Sophia e o bebê, eles não teriam me deserdado; teriam concordado. Eu era a única esperança deles para dar continuidade aos negócios, para cuidar de Benjamin e das garotas depois que eles morressem. Só que não via assim naquela época. Não sabia o que fazer e, então, recorri a você. Injustamente, vejo isso agora. Então... a culpa é tão minha quanto de qualquer outra pessoa que Sophia tenha se suicidado.

— Teria se casado com ela? — perguntei.

— Não sei... pelo bem da criança, possivelmente.

— Você a amava?

— Foi há tanto tempo, não me lembro dos meus sentimentos, exatamente. — Ele poderia estar falando a verdade, mas não percebeu que me deixava louca com esse tipo de resposta. Tinha certeza de que ele colocava as mulheres de sua vida numa longa lista de prioridades, e eu queria muito saber qual era minha posição, quem estava na frente, quem estava atrás. Queria que nossa história complicada fosse simplificada: certamente as coisas tinham se resolvido com a passagem de tantos anos. Jonathan devia saber como se sentia agora.

Sentei-me, sem tocar em Jonathan, o que me deixou um pouco nervosa. Eu precisava da segurança do toque dele para saber que ele não me odiava. Mesmo que não me culpasse pela morte de Sophia, podia estar enojado por todas as coisas terríveis que eu fizera.

— Está com frio? — perguntei.

— Um pouco. E você?

— Não. Tudo bem se eu me deitar do seu lado? — Tirei minha jaqueta e a estendi sobre nós dois. Nossos hálitos congelantes pairavam sobre nós como espectros, enquanto admirávamos o céu noturno.

— Sua mão está gelada. — Ergui a mão de Jonathan e soprei um hálito morno sobre ela, antes de beijar cada dedo. Tomei seu rosto em minhas mãos.

— Seu rosto está gelado. — Também não houve protesto quando eu passei a mão sobre seu rosto cheio de penugem, seu lindo nariz e suas pálpebras finas feito papel. A partir daí, não houve interrupção, quando tirei peça por peça da roupa de Jonathan até abrir caminho por seu peito e sua virilha. Então, tirei minha roupa e fiquei por cima dele, a flanela do forro de minha jaqueta roçando em meus quadris.

Fizemos amor ali mesmo, embaixo das estrelas. Nós nos mexemos durante o ato sexual, porém, algo mudara entre nós. O sexo era vagaroso e carinhoso, quase cerimonial; mas como podia reclamar? O turbilhão de nossa paixão de juventude havia passado e em seu lugar ficara algo amoroso, mas que me deixava triste. Era como se estivéssemos nos despedindo.

Quando terminamos, alcancei o bolso de minha jaqueta para pegar um cigarro. Uma tragada de fumaça foi expelida no ar gelado, a quentura em meus pulmões se acalmando. Continuei a tragar o cigarro enquanto Jonathan passava os dedos na parte de cima de minha cabeça.

Fiquei imaginando o que aconteceria ao final dessa viagem. Jonathan não dissera nada e eu não tinha certeza de quando terminaria. As passagens estavam com a volta em aberto e Jonathan não mencionara quando o esperavam de volta ao campo de refugiados. Não que a viagem ainda fosse se arrastar por muito mais tempo; não havia acontecido nada além de decepções (com desejos intermitentes de “felizes para sempre”) e lembranças de perdas, somente com as árvores e o lindo céu para nos acolherem de volta.

Eu também não conseguia deixar de lado a dúvida mesquinha de que eu era a causa da melancolia de Jonathan. Será que o tinha decepcionado ou, talvez, ele ainda não tivesse me perdoado? Ainda não tínhamos conversado sobre a razão de ele ter me deixado e achei que sabia qual era: que, após anos de frustrações e recriminações, ele se cansara de me decepcionar.

Dessa vez, entretanto, não era sobre ficarmos juntos para sempre, era sobre algo mais; só não tinha certeza do quê. Ele queria estar comigo, isso era óbvio; caso contrário, não teria me convidado para fazer essa viagem com ele. Se estivesse zangado, nunca teria me procurado, enviado e-mail, bebido champanhe, beijado meu rosto, me deixado levá-lo para a cama. Eu era insegura ao lado dele e sempre seria, o fardo do amor como uma pedra amarrada a meu pescoço.

— O que gostaria de fazer amanhã? — perguntei, fingindo indiferença, amassando o cigarro no chão. Jonathan ergueu o queixo em direção às estrelas e fechou os olhos. — Bem, então... — eu falei lentamente quando ele não respondeu — ... quanto tempo mais vai querer ficar? Não estou lhe apressando; ficarei o quanto você quiser.

Ele sorriu devagar, mas nada respondeu. Rolei de lado em direção a ele, apoiando minha cabeça na mão.

— Já pensou no que vamos fazer depois? Sobre... nós?

Finalmente, os olhos dele se abriram e piscaram para o céu.

— Lanny, chamei você aqui por uma razão. Não consegue adivinhar...?

Balancei a cabeça.

Ele alcançou a garrafa de vinho, ergueu-a e bebeu, então passou-a para mim, só com um restinho no fundo.

— Sabe por que sugeri voltarmos para cá? — Eu balancei minha cabeça. — Fiz isso por você.

— Por mim?

— Achei que pudesse ficar feliz se voltássemos juntos para cá, que seria um jeito de me retratar por tê-la deixado. Essa viagem não foi para mim; tem sido um inferno para mim. Eu sabia que seria assim. Sempre desejei que pudesse me desculpar com eles, minha família, a esposa e a filha que pensaram que eu as abandonei. Daria qualquer coisa para ter tudo de volta.

Como tudo pode ter virado do avesso tão rápido, se tornado tão ruim? Senti que uma barreira fria estava se formando entre nós.

— Não foi culpa sua — eu disse, como se não soubéssemos de quem era a culpa. Eu não tinha mais estômago para o vinho e devolvi a garrafa para Jonathan. — Por que falar sobre isso, Jonathan? Não há nada que eu ou você possamos fazer para trazer o passado de volta. O que passou, passou.

— O que passou, passou — ele repetiu, antes de secar a garrafa. Olhou fixamente para a escuridão, cauteloso para não olhar para mim. — Estou tão cansado disso, Lanny! Não posso mais continuar nessa vida monótona, nessa sucessão sem-fim de dia após dia... Já tentei de tudo para conseguir seguir em frente.

— Por favor, Jonathan! Você está bêbado. E cansado...

A garrafa de vinho afundou na terra macia enquanto Jonathan se inclinou sobre ela.

— Sei o que estou dizendo. É por isso que a chamei para vir comigo. Você é a única que pode me ajudar.

Sabia aonde isso iria chegar: a vida era circular e, até mesmo as piores partes dela certamente voltariam uma segunda vez. Era a briga que tivéramos todas as noites durantes meses... anos? Antes de ele finalmente partir. Ele atormentara, implorara, ameaçara. Este fora o motivo real da partida dele, não porque não conseguia parar de me decepcionar. Seu único desejo pendurava-se no ar entre nós, a única maneira de ele escapar de tudo o que queria esquecer: o abandono de suas responsabilidades, um filho morto, a traição da pessoa que mais o amava. Só uma coisa poderia fazer tudo isso desaparecer.

— Não pode me pedir para fazer isso. Nós concordamos que seria um pedido abominável. Não pode me deixar sozinha com... isso.

— Não acha que eu mereça ser livre, Lanny? Você tem que me ajudar.

— Não, não posso.

— Quer que eu diga que me deve isso? — Aquelas palavras foram como uma facada; ele jamais dissera isso antes. De alguma forma, ele conseguiu nunca atirá-las na minha cara, palavras que eu certamente merecia. — Deve isso a mim porque você fez isso comigo. Você colocou essa maldição sobre mim.

— Como pode dizer isso... — eu lamentei, querendo revidar, querendo fazê-lo sentir-se tão mal quanto ele me fizera sentir — ... como pôde ir embora? Me deixou imaginando o que aconteceu durante todos esses anos...

— Você não estava sozinha. Eu estava lá com você, de certa forma. Independentemente de onde estivesse, sabia que eu estava lá, também, em algum lugar do mundo. — Jonathan fez um esforço para se levantar, exausto. — As coisas mudaram para mim. Tenho uma coisa para lhe contar; eu não queria, Lanny. Não quero magoá-la, mas tem que entender por que isso é muito importante para mim agora. — Ele respirou profundamente. — Veja bem, eu me apaixonei.

Ele esperou, achando que eu fosse reagir mal à notícia da melhor coisa que já lhe acontecera. Abri minha boca para lhe dar os parabéns, mas, obviamente, nenhuma palavra saiu.

— Uma mulher tcheca, uma enfermeira. Nós nos conhecemos nos campos de refugiados. Ela trabalhava para outra organização humanitária. Um dia, foi chamada à sede de seu escritório em Nairóbi, para uma reunião. Recebi a notícia pelo rádio, no meio da selva, que ela havia morrido num acidente de carro. Levei um dia para conseguir ir de helicóptero até lá para recuperar o corpo. Só ficamos juntos por alguns anos. Não podia acreditar naquela injustiça... tinha esperado tanto, vidas inteiras, para encontrar a pessoa destinada a ficar comigo, e tivemos tão pouco tempo juntos! — Ele falava suavemente, sem muita dor, para me poupar, eu acho. Mesmo assim, minhas entranhas se reviravam cada vez mais apertadas enquanto o ouvia.

— Consegue entender agora? Não consigo mais ir em frente.

Balancei a cabeça, determinada a ser forte, irredutível diante de sua dor.

— Não quero magoar você — ele disse. — E sei que entende a dor pela qual estou passando. Quer que lhe diga o quanto ela era maravilhosa? Que eu não tinha outra coisa a fazer senão amá-la? O quanto é impossível viver sem ela?

— As pessoas fazem isso todos os dias — consegui dizer. — O tempo passa, você esquece. Fica cada vez mais fácil.

— Não, não para mim. Sei que não é assim; você também sabe. — Talvez naquele momento ele me odiasse. — Não posso mais continuar com isso. Não suporto a perda dela; não posso aceitar que não haja nada, absolutamente nada que possa ser feito para acabar com essa dor. Ficarei louco, louco e preso para sempre dentro desse corpo. Não pode me condenar a esse inferno. Aguentei o máximo que pude porque sei... eu sei que é uma coisa terrível para lhe pedir. Não queria ter que pedir dessa maneira. Não queria contar a você sobre ela, tão de repente. Contudo, você me obrigou a isso, e agora que já lhe contei... não dá para voltar atrás. Pronto, é isso, sabe o que quero de você; tem que me ajudar.

Ele esticou os braços e bateu a garrafa de vinho numa pedra. A cascata de sons, alta e pungente, espalhou-se por todo lado. Ele apertou o gargalo e a parte de cima da garrafa, as pontas serrilhadas de vidro verde presas em sua mão como um bouquet. Era a única arma à disposição; era tosca e violenta e ele queria que eu a usasse nele. Queria sangrar até a morte.

“Não pode me deixar aqui, totalmente sozinha, sem você.” Queria dizer isso a ele, mas não conseguia. Ele tinha me dado um motivo incontestável: perdera seu amor e não podia mais viver assim. Havia chegado a hora de deixá-lo partir.

Não conseguia falar e só notei que estava chorando pelo frio de minhas faces ao vento, frio como um fogo cortante. Ele ergueu as mãos e tocou minhas lágrimas.

— Perdoe-me, Lanny! Perdoe-me por ter chegado a esse ponto. Perdoe-me por não ter dado o que você queria. Eu tentei... você não sabe o quanto eu quis fazê-la feliz, mas simplesmente não funcionou. Você merece ser amada da maneira que sempre quis. Rezo para que encontre esse amor.

Vagarosamente, tirei a garrafa quebrada da mão dele. Jonathan tirou a camisa e se ofereceu a mim; olhei, por sobre minha mão, para aquele peito pálido, brilhando azulado sob a luz da lua.

Poderíamos ter tido uma vida de um amor grandioso.

Não consegui olhar; simplesmente me empurrei contra ele, sabendo que as pontas do vidro se encarregariam do restante. O dente verde do vidro afundou-se em sua carne, um círculo perfeito de uma mordida, macia e flexível. A garrafa quebrada entrou profundamente e o sangue de Jonathan escorreu pelos meus dedos. Ele arfou silenciosamente.

E, então, um golpe de minha mão e três linhas foram traçadas na brancura de sua pele. Profundos, os ferimentos se abriram, deixando mais sangue escapar. Jonathan dobrou-se, caindo sobre o peito e, depois, virando-se de costas, as mãos colocadas fracamente sobre o ferimento, o sangue jorrando de dentro dele. Chamou-me a atenção o fato de a carne ceder tão facilmente. Fiquei esperando as pontas dos ferimentos se unirem de volta, mas isso não aconteceu. Devo ter dito as palavras “pelas minhas mãos e intenção” em minha mente. Não havia como negar que aquela proeza fora feita por minhas mãos, mas não fora minha intenção. Tinha cometido um erro; esta não era minha intenção. “Acorde!”, ouvi minha própria voz à distância; “Preciso acordar”.

E, então, acordei, no meio da floresta, com meu amado tremendo, convulsionando na terra diante de mim, engasgando e cuspindo sangue, mas sorrindo. O peito dele subia e descia deliberadamente, e percebi que já vira Jonathan daquele jeito uma vez, no celeiro do Daughtery’s. Fiquei ao lado dele pressionando a camisa sobre os ferimentos, tentando, estupidamente, estancar o fluxo de sangue. Jonathan balançava a cabeça e tentava empurrar a camisa de minhas mãos. Ao final, tudo o que pude fazer foi segurá-lo.

E foi aí que percebi o que havia perdido. Jonathan sempre estivera lá, mesmo durante os anos em que estivemos separados, e o som ressonante sempre estivera no cantinho de minha cabeça; era reconfortante. Tudo o que existia agora era um grande e profundo vazio. Acabara de perder a única pessoa importante de minha vida. Não tinha nada, estava sozinha, o peso do mundo desabando sobre as minhas costas, sem ninguém para me ajudar. Tinha cometido um erro. Queria Jonathan de volta. Melhor ser egoísta. Melhor que ele se ressentisse de mim até o fim dos tempos do que me sentir desse jeito. Sentir-me assim e não ter como mandar embora essa dor.

Segurei o corpo dele por muito tempo, até que o sangue tivesse esfriado, e estava coberta por uma camada úmida e viscosa. Não me lembro de ter deixado Jonathan para trás; não me lembro de deixar seu corpo e correr pela floresta, gritando aos céus para que tivessem piedade de mim e me deixassem morrer. Que deixassem tudo terminar para mim também. Não conseguiria viver sem ele. Não me lembro de ter ido parar na estrada, vagando, antes de ser encontrada pelo xerife e por seu assistente. Foi quando me trancaram no carro, com as mãos algemadas, que tudo voltou à tona, que percebi que tudo o que queria era voltar para junto dele na floresta, morrer com ele para que pudéssemos ficar juntos para sempre.

                           PARIS, HOJE

O corredor do saguão do sobrado está repleto de caixotes, a madeira nova e toda cheia de farpas. Um martelo, grampos e um par de luvas de trabalho descansam sobre uma mesa de apoio, junto com uma pilha de correspondência fechada. Luke carrega um busto de mármore escada abaixo, o rosto vermelho pelo esforço. O busto é o segundo de um par que estamos enviando para Bargello, em Florença, um dos muitos museus da Itália, escolhido em vez do Uffizi por sua fantástica coleção de esculturas renascentistas. Da parede, assistindo a toda a atividade, está a única obra de arte que nunca deixará a casa, o esboço de carvão de Jonathan que Lanny tirou da casa de Adair. O re­trato tinha sido retirado de seu lugar original, aos pés da cama de Lanny, colocado no hall, embora Luke não fizesse objeção de deixá-lo no lugar original. Ele não consegue ter ciúme de um homem num retrato mais do que consegue odiar o dourado nascer do sol ou a catedral de Notre-Dame.

Lanny sai do estúdio com um envelope selado nas mãos. Dentro, está um bilhete de desculpas por ter mantido uma obra de arte longe de seus verdadeiros donos, quem quer que eles fossem, depois de todo esse tempo. A nota, que tinha acompanhado cada peça despachada até agora, era de arrependimento, mas vaga, sem nenhum fato relacionado à aquisição da peça, nem quando, nem por quem. Lanny trabalhou nisso durante dias, leu várias versões em voz alta para Luke, antes de os dois concordarem com as palavras finais. Eles usam luvas de látex enquanto trabalham, para não deixarem impressões digitais. Lanny arranjara para que a entrega e a doação dos presentes anônimos fossem feitas através de seu advogado em Paris, a quem escolheu pela especial devoção a seus clientes e sua atitude flexível com relação a alguns aspectos do código legal. Ela tem certeza de que as entregas não serão rastreadas de volta para ela, não importa o quão insistentes os vários museus e outros receptores possam ser.

Quanto a Luke, ele tem pena de ver todas essas maravilhas irem embora, logo agora que chegou lá. Ele gostaria de ter mais tempo para conhecer o que seria a maior coleção particular de artes e artefatos do mundo. Lanny não havia exagerado quando disse que sua casa era mais fascinante do que qualquer outro museu. Os andares superiores estavam entulhados de tesouros, guardados sem ordem ou razão. Cada vez que tirava uma coisa para despachar, descobria outras oito ou dez. E não eram apenas pinturas ou esculturas; havia montanhas de livros, sem dúvida incluindo a primeira edição de muitos deles; tapetes orientais feitos de seda tão fina que poderiam atravessar a pulseira de uma mulher; quimonos japoneses e caftans de seda bordados; todo tipo de espadas e armas de fogo. Vasos gregos, samovares russos, tigelas de jade ou feitas de ouro batido, esculpidas em pepitas. Muitos baús cheios de pedaços de seda e veludos amassados, cada um abrigando uma peça de alguma pedra preciosa. E, então, havia as surpresas completas: por exemplo, dentro de uma caixa de leque, ele encontrou um bilhete para Lanny, escrito por Lord Byron. Luke não consegue entender a maioria das palavras, mas consegue discernir “Jonathan” em meio aos rabiscos. Lanny diz não se lembrar ao que se referia essa carta, mas como alguém se esqueceria de um bilhete de um dos maiores poetas do mundo? Essa é a casa de uma colecionadora insana, tentando compensar alguma falta desarticulada e desconhecida de sua vida, uma escrava da compulsão por acumular beleza. Mesmo assim, ela generosamente deixou algumas peças de lado para serem colocadas num investimento destinado às filhas de Luke, o bastante para pagar os custos de uma boa faculdade quando elas ficarem mais velhas.

Luke descobre que, tirando a coleção de porcelana chinesa antiga, nunca houve uma tentativa de catalogar nada. Então ele faz Lanny catalogar as peças conforme são despachadas: uma descrição, uma estimativa de onde foi adquirida, o nome da pessoa ou lugar que receberia a peça. Ele acha que, um dia, isso será um conforto para ela; permitirá que ela se lembre das aventuras distantes sem ter que suportar o peso dos objetos em si.

É bom para ela se dispor dessas coisas, ele acha. Afasta seu pensamento de Jonathan, ainda que não inteiramente; Luke já a pegara chorando no banheiro ou na cozinha, enquanto esperava a água ferver para um chá. Mesmo assim, ultimamente o choro tinha melhorado e o atual projeto deles, despachar o conteúdo da casa dela, a tinha deixado visivelmente mais feliz. Ela diz estar mais em paz, que está se redimindo pelos erros que cometeu. Uma vez, ela chegou a dizer que esperava que, se tentasse muito reparar os erros, seria perdoada e o feitiço se quebraria. Assim poderia ficar velha ao lado de Luke e deixar essa terra ao mesmo tempo que ele, mais ou menos; nunca mais teria de sofrer dessa profunda solidão de novo. Esse tipo de conversa, dependência de algum tipo de intervenção mágica, deixa Luke desconfortável.

Lanny enfia o bilhete embaixo do busto de mármore e Luke martela a tampa da caixa de madeira. O carregador virá às 2 horas da tarde para a entrega do dia e Luke só conseguiu empacotar os dois bustos até agora. Esperava ter pelo menos uma meia dúzia de peças prontas. Terá que trabalhar mais rápido.

Quando coloca o martelo no chão para limpar a testa, nota uma pilha de correspondências não respondidas. Em cima de tudo, está um envelope grosso, da América, e, por reflexo, ele a puxa para ler o endereço. É de um advogado em Boston, o responsável pela casa de Adair, ou melhor, pela cripta de Adair. Luke revira rapidamente a pilha: há sete cartas com o endereço do mesmo advogado, de até um ano antes. Ele abre a boca para dizer algo para Lanny quando ela entra apressada, com a bolsa nos ombros, procurando discretamente pela chave da casa.

— Tenho horário na cabeleireira, mas voltarei antes de o carregador chegar. Posso pegar alguma coisa para o almoço enquanto estiver fora. O que gostaria de comer?

— Faça uma surpresa — ele diz.

Luke se delicia em ver como ela já se adaptou de volta à rotina, um sinal de que não se deixara imobilizar pela depressão, e, em particular, como ela o incorporou à vida dela. Eles se sentem tão confortáveis juntos. Ela deixou de fumar porque ele pediu, pois não suportava vê-la fumando, embora soubesse que não causava nenhum mal à saúde dela. Ela divide tudo com ele: a padaria favorita, sua caminhada à tarde, os homens idosos com quem ela conversa no parque. Ele está feliz por fazer as coisas para ela, por cuidar dela, e, em retorno, ela é agradecida por toda a consideração que ele demonstra ter com ela. Será que ele a ama? Ele é cético, verdadeiramente cético; não acredita que o amor possa acontecer tão rápido, especialmente pelo que contou a ele, mas, ao mesmo tempo, há essa sensação de vertigem que toma conta dele e que ele não sentia desde que suas filhas nasceram.

Assim que Lanny sai, ele volta para o andar de cima em busca do novo item a ser repatriado. Deve lembrar-se de dizer a Lanny para dar uma olhada na correspondência, pois ele tem um compromisso mais tarde, vai se encontrar com o diretor dos serviços voluntários na Mercy International, uma organização que envia médicos para zonas de guerra, campos de refugiados e clínicas para os sem-teto. Foi a última organização para a qual Jonathan tra­balhou; alguém entrara em contato com Lanny logo após ela e Luke chegarem ao Quebec, procurando por Jonathan. Ele havia dado o endereço dela à organização, como um ponto de contato durante a ausência dele, mas ele nunca retornou e eles queriam saber se Lanny sabia onde ele estava. Por um momento, ela ficou sem fala, depois retomou o controle e disse que conhecia outro médico que poderia doar seus serviços, desde que pudesse permanecer em Paris. Luke está feliz pela entrevista, contente que Lanny saiba que ele não será feliz se não puder usar seu treinamento médico, e espera que seu francês enferrujado seja bom o bastante para ajudar os imigrantes do Haiti e do Marrocos.

Luke seleciona o último item a ser despachado, uma enorme tapeçaria que será enviada a um museu têxtil em Bruxelas. A tapeçaria estava enrolada como um tapete e espremida contra uma prateleira lotada de todo tipo de bugiganga. Metade das portas de vidro foi deixada aberta e algo cai da prateleira enquanto Luke luta para manter a tapeçaria de pé.

Ele se inclina para pegá-lo. É uma pequena bola de camurça e ele reconhece a maneira que a camurça está dobrada, o jeito fortuito de Lanny empacotar as coisas. Há alguma coisa dentro daquele pedaço de tecido empoeirado. Ele o abre cuidadosamente, quem sabe o que há lá dentro, e encontra um pequeno objeto de metal. Um frasco, para ser mais preciso, mais ou menos do tamanho do dedo mindinho de uma criança. Embora esteja coberto de musgo e escurecido pela idade, pode-se dizer que é um trabalho tão delicado quanto uma joia. Com os dedos tremendo, ele puxa a tampa e tira a rolha. Está vazio.

Ele cheira o frasco vazio. Sua cabeça vai a mil: pode até estar vazio, mas há maneiras de se analisar o resíduo. Poderiam enviar para um laboratório e descobrir os ingredientes do elixir, as proporções. Poderiam tentar fazer uma amostra e, provavelmente, depois de algumas tentativas e erros, teriam sucesso. Recriar a poção significaria viver com Lanny para sempre. Ela não estaria sozinha e, claro, outras pessoas teriam interesse na imortalidade. Poderiam vendê-la por quantias absurdas, espalhar pelas línguas dos clientes feito hóstias de comunhão. Ou poderia ser tudo por caridade, afinal, de quanto dinheiro alguém realmente precisa? Poderiam oferecê-lo às grandes cabeças para ser estudado. Quem saberia que tipo de impacto isso teria sobre a medicina e a ciência? Um elixir que regenera tecidos machucados poderia revolucionar o tratamento dos ferimentos e das doenças.

Isso mudaria tudo. Assim como revelar a condição de Lanny ao mundo. Luke suspeita, no entanto, que a análise do resíduo não revelaria nada. Algumas coisas resistem ao escrutínio, não podem ser examinadas em plena luz do dia. Uma pequena fração de uma porcentagem de ocorrências não pode ser explicada ou reproduzida. Quando era estudante de Medicina, ouviu falar sobre algumas dessas frações, que foi comentada espontaneamente por um sábio e velho professor no final de uma palestra, sussurrada entre os alunos enquanto lotavam a sala de cirurgia após uma dissecação. Há alguns médicos e pesquisadores que descartam tais histórias e querem acreditar que a vida é mecânica, que o corpo não é nada além de um sistema de sistemas, como uma casa. Que viverá desde que coma isso, beba aquilo, siga essas regras, como se houvesse uma receita para a vida; consertar o cano ou arrumar a moldura quando estragarem, pois seu corpo é somente um navio que carrega sua consciência.

Luke acredita que o corpo não seja tão objetivo assim. Mesmo que um cirurgião fosse procurar algo dentro de Lanny, e que pesadelo seria, o corpo tentando se fechar mesmo com as mãos e os instrumentos ainda lá dentro, não encontraria qual parte dela mudara para fazê-la eterna. Nem mesmo exames de sangue e biópsias ou quaisquer exames radiológicos. Ela até poderia dar a poção para ser analisada, dar a receita para que milhares de químicos a recriassem, mas Luke acha que nenhum deles seria capaz de duplicar o resultado. Há uma força em movimento dentro de Lanny, ele pode sentir isso, mas, se ela é espiritual, mágica, química ou algum tipo de energia, ele não faz ideia. Tudo o que sabe é que o milagre da existência de Lanny, assim como a fé e a oração, funciona melhor na solidão, protegido do ceticismo e da força bruta da razão e que, se sua situação fosse a público, ela poderia se reduzir a pó ou evaporar como o orvalho sob a luz do sol. É por isso que nenhum dos outros (aqueles outros de quem Lanny lhe contou, Alejandro, Dona e a diabólica Tilde) nunca vieram a público, Luke imagina.

Ele rola o frasco entre os dedos como um cigarro e, então, rapidamente, coloca-o embaixo do calcanhar e joga todo seu peso sobre ele. O frasco dobra-se tão facilmente quanto uma folha de papel, fica totalmente amassado. Luke vai até a janela, abre-o, e atira o pedaço de metal o mais longe que consegue, sobre o teto de seus vizinhos, e não acompanha o trajeto com os olhos. Sente um alívio imediato. Talvez devesse ter falado com Lanny antes de destruir o frasco, mas não; ele sabe o que ela teria dito. Está feito.

 

                                                                                Alma Katsu  

 

                      

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