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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LÁGRIMAS SOBRE A BABILÓNIA - P.2 / Nelson Demille
LÁGRIMAS SOBRE A BABILÓNIA - P.2 / Nelson Demille

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

                

 

 

                                                     BABILÓNIA A PORTA DE ISTAR

 

Saímos da Babilónia, fugimos da aldeia Anunciem esta nova com gritos de alegria, publiquem-na até ao extremo da Terra. Digam: o Senhor resgatou o seu servo Jacob! Não passámos sede quando nos guiou pelo deserto, porque Ele fez brotar água de um rochedo, fendeu a rocha para que a água jorrasse.

 

O ataque começou logo depois de a cerimónia religiosa ter terminado. Não vinham em cordão como acontecera na noite anterior, mas sim em pequenos grupos aos três, seis, nove. Deslocavam-se com rapidez e em silêncio, passando de uma área que lhes oferecesse cobertura e camuflagem para a seguinte, escolhendo os melhores caminhos de aproximação, uma vez que na noite anterior os tinham descoberto da maneira mais difícil. Ficaram surpreendidos ao se lhes depararem muros baixos erguidos perto das valas, mas subiram-nos saltando para o outro lado como se fossem serpentes e continuando a subir pelos sulcos provocados pela erosão, sempre em direcção ao cume da colina. Procuravam não fazer barulho e a disciplina era rígida o armamento era levado com o cano para baixo, os rostos haviam sido escurecidos fora implementada a pena de morte para quem não cumprisse as ordens recebidas.

 

 

 

  

Ahmed Rish rastejava junto do seu lugar-tenente, Salem Hamadi, à retaguarda, a alguma distância do grupo principal que continuava a avançar. Ambos sabiam antecipadamente que aquele talvez fosse o último esforço, e que caso fracassassem, o resultado seria a humilhação, possivelmente a morte às mãos dos seus próprios homens, ou de um tribunal constituído por outros palestinianos. Contudo, pior ainda, era possível que fossem perseguidos pelo Mivtzan Elohim e não era improvável que passassem o resto das suas vidas na prisão de Ramalá. A ironia era que o responsável por aqueles serviços de informação, Isaac Burg, encontrava-se ao alcance deles, tal como a fama, a fortuna e a glória. No tocante a Rish e a Hamadi, aquela era a noite mais importante das suas vidas, e o primeiro, após cobrir os olhos, açoitados por uma rajada de vento que levantara a areia do solo, chegou a boca ao ouvido de Hamadi.

 

Os deuses antigos estão connosco. Pazuzu enviou-nos este vento.

 

Hamadi que não tinha a certeza de quem era o destinatário daquelas rajadas, com um resmungo, cuspiu um pouco de areia que lhe entrara para a boca.

 

Nathan Brin esfregou os olhos antes de espreitar outra vez, após o que fechou a mira telescópica e colocou um braço em redor de Naomi Haber, que se aninhara junto dele.

 

Sinto os olhos fatigados, desde o pôr do Sol que só vejo coisas.. Empurrou a espingarda para o lado, fazendo-a deslizar ao longo do muro de terra. Toma, dá uma olhadela.

 

Naomi passou os dedos pelos cabelos de Brin, limpando o suor e a terra que servia de camuflagem da testa do jovem. O inevitável acabara por acontecer ao cabo de várias horas de companhia forçada a que se aliara uma grande tensão nervosa, combinada com o facto de nenhum dos dois saber se continuaria vivo durante muito mais tempo. Naomi duvidava de que se o encontrasse por acaso num café de Telavive, Brin tivesse sido merecedor de um segundo olhar da sua parte, mas ali era a Babilónia, sendo possível que alguma da libertinagem que reinara na região continuasse a pairar no ar, como uma névoa que se impregnara para sempre.

 

Tinham feito amor entre o pôr do Sol e o final do serviço religioso, um acto que fora tão apressado como acontecera com Hausner e Miriam, embora de forma bastante mais frenética, pois paravam de cada vez que um deles tinha um pressentimento, ou um momento de pânico, altura em que perscrutavam a vertente. Até se riram daquele acto sexual tão atabalhoado, mas isso fora antes, quando ainda havia poucas probabilidades de os ashbals atacarem a área. Contudo, naquele momento, os dois já se tinham vestido e a ameaça de ataque era iminente.

 

Naomi Haber encostou a lente da mira telescópica à cara, observando a encosta. Aquilo era muito diferente das competições de tiro ao alvo, de facto existia uma grande diferença. Ela era capaz de atingir alvos estáticos ou em movimento com uma habilidade excepcional, mas nunca fora muito boa a enquadrar na sua mira os que tivessem por pano de fundo uma paisagem pouco nítida. Ainda não se familiarizara com o dispositivo de visão nocturna, e ver o terreno com contornos esverdeados, um tanto ou quanto espectrais, era algo que a confundia ainda mais.

 

Consegues descobrir alguma coisa? perguntou Brin.

 

Parece-me que não, maldito vento!

 

Eu sei disse Brin.

 

O sherji levantava a poeira do chão lançando sombras esfarrapadas por toda a superfície do solo, as quais só podiam ser vistas através da poderosa mira telescópica. Naomi praguejou entre dentes, invectivando-se a si própria e devolvendo a espingarda a Brin.

 

Não presto para isto.

 

O jovem pegou na arma e apontou-a para o ar durante uns bons três minutos, até detectar o Lear, que sobrevoava a zona. Pelas suas estimativas, o aparelho estava a uma altitude de mais de dois mil metros, muito fora do alcance da sua espingarda. Hausner dera-lhe instruções para que tentasse abatê-lo, e ainda pensou em disparar um tiro, mas decidiu não desperdiçar munições. Àquela altitude seria impossível atingi-lo, e contra isso nada havia a fazer. Desligou a mira telescópica, recostando-se. Acho que as baterias e nós próprios precisamos de cinco minutos de descanso e acendeu um cigarro, colocando as mãos em concha para o vento não apagar a chama.

 

Os ashbals avançavam sem grandes pressas, parando nas zonas que lhes proporcionavam cobertura para em seguida se deslocarem até à seguinte. Sabiam que os israelitas teriam tido o cuidado de colocar dispositivos que os alertariam da sua presença, para além de postos avançados, o que os obrigava a manterem-se atentos tentando descobrir a sua localização. Adicionalmente, haviam recebido ordens para não ripostar ao fogo destinado a sondar a sua presença. Contudo, se adoptassem uma táctica de corridas curtas e rápidas em silêncio, depressa chegariam junto dos parapeitos defensivos dos israelitas, entrando nas trincheiras em poucos minutos, mas continuavam a deslocar-se em corridas curtas e silenciosas, mas pouco velozes.

 

Bastante mais à frente, afastados do grupo principal de ashbals, avançavam dois franco-atiradores cuja missão era abater o que lhes aparecesse pela frente. Um deles, Amnah Murad, estava armado com uma potente espingarda Dragunov, de fabrico russo, equipada com um dispositivo de infravermelhos, que ele segurava cuidadosamente acima da cabeça, enquanto se deslocava. O outro, Moniem Safar, munira-se de uma bússola e de uma AK-47. Os dois homens haviam recebido instrução de tiro, sempre em equipa, desde os cinco anos e os laços que os uniam eram mais fortes do que se fossem irmãos de sangue, além de que lutavam pela mesma causa. Por isso, ambos tinham a faculdade de antecipar todos os movimentos e emoções do outro, conseguindo comunicar entre si sem terem de recorrer às palavras: um esgar, uma sobrancelha arqueada, um trejeito imperceptível com os lábios. O Lear transportara-os nessa mesma tarde da base militar no deserto.

 

Os dois seguiam as indicações que lhes eram dadas pela bússola, instrumento que, segundo lhes haviam dito, guiá-los-ia ao cômoro onde devia estar localizada a arma israelita com mira telescópica e dispositivo de visão nocturna.

 

Com o olhar, os dois homens percorreram o cume da vertente, distinguindo o seu contorno envolto na escuridão que se recortava contra o céu estrelado, calculando que distavam dela cerca de quinhentos metros. Murad ajoelhou-se, ligou a mira telescópica, e olhou, enquanto ajustava os botões de enquadramento da lente telescópica. A encosta apareceu-lhe com uma luminosidade avermelhada que lhe recordou sangue, ou o inferno, causando-lhe, por momentos, um certo mal-estar. Com a mira procurou o cômoro, que encontrou e tentou descortinar a luzinha que lhe indicaria a presença de uma arma com visão nocturna, mas nada avistou. Deitou-se de barriga, apoiando a espingarda sobre uma pequena elevação de terreno, e relaxou os músculos, enquanto continuava a perscrutar tudo o que se enquadrava na sua mira.

 

A posição avançada e posto de observação número dois localizava-se numa área a meio da ladeira, a uma distância de quase trezentos metros do cume. O homem que fora destacado para esse posto era Yigael Tekoah, um membro do Knesset, juntamente com Deborah Gideon, a sua secretária. Ele pensou ter ouvido qualquer coisa à sua frente, e depois à esquerda, para logo a seguir ficar com a impressão de que o ruído viera da sua retaguarda. Então, sobressaltado e receoso, tocou no ombro da rapariga, murmurando-lhe ao ouvido.

 

Estou em crer que eles conseguiram colocar-se à nossa volta. Ela acenou na escuridão, mas ambos se sentiam demasiado assustados

 

para se mexer quando ouviram o primeiro barulho. Naquele momento, encontravam-se atrás das linhas inimigas, sem maneira de regressar ao seu cordão defensivo, abandonados à sua sorte.

 

Tekoah sabia que, numa unidade militar a sério, estaria equipado com dispositivos de amplificação de som e de visão nocturna, armas e rádios, ou telefones de campanha que lhe permitiam falar com o corpo principal de efectivos, mas naquela situação, estar numa posição avançada que servia também de posto de observação, era o equivalente a uma missão suicida, eles eram os cordeiros sacrificiais. Ainda assim, não fora muito difícil encontrar seis voluntários para ocuparem as três trincheiras com estas características.

 

Tekoah sentia que falhara, não cumprira a sua obrigação de alertar os camaradas, pois não havia fogo das posições israelitas, o que lhe deu a entender que os árabes estavam a efectuar um ataque de surpresa, que seria coroado de êxito. Era bastante plausível que se conseguissem infiltrar nas linhas defensivas antes que fosse disparado um único tiro.

 

Vou gritar para os avisar.

 

Deborah ficou como que paralisada, como um pequeno coelho assustado.

 

Tenho muita pena, mas é a minha obrigação.

 

Claro que sim concordou ela, dando a impressão de que recuperara de um estado de inconsciência e afagando-lhe a face.

 

Naquele momento, Tekoah já começara a ouvir passos muito próximos, mas deixou-se ficar na trincheira individual que os dois ocupavam e, colocando as mãos em forma de concha em redor da boca, virou-se para o cume da colina, respirando fundo.

 

Entretanto um ashbal tropeçou num fio onde estavam enfiadas várias latas com seixos no interior, que chocalharam ruidosamente, quebrando a quietude da noite, mas depois continuou a reinar um silêncio absoluto, e Tekoah ficou hirto, sustendo a respiração.

 

Brin empunhou a M-14, ligou a mira telescópica e observou tudo o que se encontrava no seu raio de visão. Nada se mexia na encosta, nem sequer as sombras a que as nuvens de poeira davam origem. Ao longo de todo o perímetro defensivo, os israelitas continham a respiração, e a toda a largura da vertente os árabes faziam exactamente a mesma coisa. Brin perguntou a si mesmo se teria sido o vento que fizera chocalhar as latas, algum animal ou um pequeno desprendimento de terras, pois ao longo de todo o dia isso sucedera, mas continuou a sondar o terreno através da mira.

 

A equipa composta pelos dois franco-atiradores ficou em estado de alerta e Murad avistou finalmente a pequena luz que denunciava a presença da mira telescópica, quando o dispositivo de visão nocturna foi ligado. Reparou que era verde, por isso tratava-se de uma arma de fabrico norte-americano, tal como pensara, e sabia que proporcionava uma imagem mais nítida do que a sua, mas tal não significava que o atirador que a empunhava fosse melhor do que ele, com a de infravermelhos. Murad, confiante, ajustou a luz verde na sua mira e esperou até conseguir enquadrar a cabeça que estaria por detrás dela.

 

Brin inclinou-se mais para fora da pequena saliência de terra e segredou a Naomi Haber.

 

É melhor passares a palavra aos outros: ainda não vi nada.

 

Ela fez que sim com a cabeça e correu descalça, num silêncio total, uma vez mais de regresso à principal posição avançada e posto de observação.

 

Murad observava a pele de Brin, branco-avermelhada na testa, onde Naomi Haber lhe limpara a transpiração e a pasta que serviam de camuflagem, e disparou três tiros numa sucessão rápida. O silenciador amorteceu o som dos disparos, que soaram com suavidade, como se fosse um homem de idade, enfraquecido, a pigarrear.

 

Brin sentiu apenas uma ligeira pancada, ao que se seguiu o vazio. Foi lançado para trás, tombando na terra solta, enquanto a sua espingarda rolava pela encosta, como que também nas vascas da morte.

 

Decorridos alguns minutos, os ashbals recomeçaram a avançar, mas um deles tropeçou igualmente noutro fio e, uma vez mais, o chocalhar das latas quebrou o silêncio da noite.

 

Hausner encontrava-se com Dobkin e Burg no posto de comando, que Naomi tinha dificuldades em encontrar, no meio das trevas, mas finalmente avistou as cores fosforescentes do estandarte improvisado e correu para os três homens, passando a informação que Brin lhe dera.

 

Hausner tentou ouvir uma vez mais o som do chocalhar das latas, mas sem êxito, por isso virou-se para Haber e para outros dois jovens que também eram mensageiros.

 

Vão lá abaixo e digam-lhes que disparem uma rajada de um minuto assim que ouvirem o meu assobio, não, apenas dez segundos rectificou.

 

Os mensageiros afastaram-se velozmente, correndo em diversas direcções, e, decorridos alguns minutos Hausner assobiou. Os que se encontravam mais perto dele ouviram e dispararam uma rajada, o que era sinal para que todos ao longo da linha defensiva os imitassem.

 

Os ashbals imobilizaram-se, mas logo se estenderam ao comprido no chão. Alguns foram atingidos, mas não soltaram gritos de dor receando ser abatidos pelos seus próprios chefes, enquanto estes lhes ordenavam freneticamente, em vozes sussurradas, que não ripostassem ao fogo.

 

Trata-se apenas de uma barragem de fogo para sondar o terreno, não disparem explicavam por entre dentes cerrados.

 

Contudo, à medida que os segundos se arrastavam, com uma lentidão que pareciam anos, e com as AK-47 dos israelitas a vomitarem fogo, varrendo toda a encosta de cima a baixo, até mesmo os mais disciplinados entre os árabes começaram a tactear o mecanismo de segurança dos gatilhos. Então, quando um dos mais jovens se preparava para ripostar aos disparos dos israelitas, estes cessaram tão repentinamente como haviam começado. O fogo cerrado reduzido a dez segundos devido à escassez de munições tinha terminado.

 

O cheiro a cordite queimada era arrastado para longe pelo vento, que soprava vindo de oriente, enquanto os últimos disparos reverberavam, ecoando pelas colinas circundantes e acabando por morrer nos ouvidos dos defensores. Ninguém entre estes acreditava que os ashbals estivessem suficientemente disciplinados para se conter, não ripostando ao fogo, ou que fossem capazes de abafar um gemido de dor, caso atingidos, ou que contivessem um grito de pânico quando a terra fosse levantada do solo, atingindo-lhes o rosto.

 

Parece-me que estamos a ficar um pouco enervados comentou Hausner para Burg e Dobkin.

 

Espero bem que os que foram destacados para as posições avançadas não tenham sido atingidos desejou Burg.

 

Se todos tornaram a precaução de seguir as indicações contidas nos mapas do terreno e se os que se encontram nos postos de observação se deixaram ficar onde deviam, então não correrão perigo retorquiu o general, lançando um olhar na direcção da encosta oriental. E, já que estamos a falar de posições avançadas, se eles não deram conta de movimentos suspeitos, não me parece que haja alguma coisa mais abaixo. Devem ser apenas os animais, o vento e os desprendimentos de terra. Esse é o problema com os dispositivos de alerta accionados por meio de um fio. Estou a lembrar-me de uma ocasião em que um pardal pousou num foguete de sinalização no Suez, em mil novecentos e sessenta e sete, e... mas quem, neste momento, estará interessado no que aconteceu na porra do Suez nessa altura?

 

Ninguém garantiu-lhe Hausner.

 

Micah Goren e Hannah Shiloah, dactilógrafas, haviam sido destacadas para a posição avançada no posto de observação número um, situado na extremidade a norte da ladeira, e também elas se deram conta, tarde de mais, de que estavam cercadas. Permaneceram agachadas na sua pequena trincheira até a inesperada barragem de fogo ter terminado, e reflectiam sobre qual deveria ser o passo seguinte quando de repente, surgindo das trevas, três jovens ashbals saltaram sobre elas empunhando facas-de-mato, de lâminas afiadas, com que degolaram as duas israelitas desarmadas.

 

Reuben Taber e Leah Usar, intérpretes, mantinham-se vigilantes na posição número três, no extremo sul da vertente, e, apercebendo-se igualmente do que lhes tinha acontecido, saíram do buraco na terra que lhes servia de abrigo e começaram a subir pela encosta.

 

Murad, ao avistar, através do dispositivo de raios infravermelhos, as duas jovens a menos de quarenta metros de distância, ergueu o cano da sua espingarda com silenciador e disparou sobre as duas com tiros certeiros que lhes perfuraram a cabeça.

 

Pouco depois, os ashbals começaram a rastejar sempre a tactear à procura de fios onde tropeçassem acidentalmente. Avançavam com lentidão, embora com uma determinação inexorável, e os mais próximos já se encontravam a apenas trezentos metros do cume da colina.

 

Foi então que Tekoah, compreendendo qual fora o objectivo dos segundos de fogo cerrado, ficou com a certeza de que os israelitas ainda não tinham dado pela presença dos atacantes. Voltou-se para Deborah Gideon.

 

Só te desejo que tenhas sorte.

 

Recuou o braço o mais que lhe foi possível, desferiu-lhe um violento murro no queixo e ela caiu na pequena trincheira que lhes servia de abrigo. Com rapidez, ele lançou terra e barro para cima do buraco, após o que saltou e começou a correr pela ladeira acima, com as mãos em forma de concha à volta da boca e gritando com toda a força dos seus pulmões:

 

Sou o Tekoah, posição avançada número dois! Eles já estão a meio da encosta!

 

Nunca chegou a saber se foi abatido por uma AK-47 árabe ou israelita, o que, diga-se de passagem, para ele teria sido completamente indiferente.

 

Os ashbals deram início ao ataque e a primeira armadilha tombou sob o peso de um deles, uma rapariga, que caiu sobre as estacas, as quais a empalaram imediatamente, embora não tivesse morrido. De início os seus gritos de dor eram muito mais fortes do que o estralejar dos projécteis, mas pouco depois começaram a enfraquecer.

 

Os israelitas ficaram desmoralizados quando se aperceberam da presença dos ashbals tão perto das suas linhas defensivas. O que se teria passado com as posições avançadas? E com os dispositivos de aviso, que deveriam ter dado o alerta a tempo? Por que motivo a súbita rajada de fogo cerrado não surtira os efeitos desejados? Onde estaria Ben com a sua eficaz espingarda equipada para tiro nocturno?

 

Entretanto, um grupo formado por três ashbals conseguiu alcançar o cume, mas caiu numa armadilha. Um ficou logo com o pescoço trespassado, enquanto outro teve a mesma sorte, empalado pelo peito, e de seguida Abel Geller, um comissário de bordo, disparou sobre o terceiro homem à queima-roupa com o Colt de Dobkin.

 

As armadilhas que os israelitas tinham espalhado pelo terreno causavam um número razoável de baixas, todavia não eram em número suficiente, o que teria exigido um trabalho ainda mais árduo, para as necessidades defensivas. Por outro lado, os gritos dos que nelas caíam mantinham os outros atacantes afastados, além de que as vítimas ficavam espetadas nas estacas, tornando depois essas armadilhas inúteis.

 

Naquele momento, os israelitas já dispunham de seis AK-47, o número de ashbals era mais reduzido do que aquando do primeiro ataque, mas não obstante essa vantagem, os atacantes haviam beneficiado do elemento surpresa, factor sempre muito importante. Para agravar mais a situação, já não podiam contar com a Uzi de Joshua Rubin, tal como lhes faltava o apoio da M-14, embora os defensores da colina ainda não tivessem conhecimento disso.

 

Um dos grupos de ashbals conseguiu chegar perto do cômoro onde estivera Brin, depois de terem percorrido uma faixa de terreno não defendida, e concentraram-se no pequeno clarão verde do dispositivo de visão nocturna da espingarda caída no solo arenoso junto da elevação.

 

Ao longo de todo o perímetro, à medida que se acercavam, os ashbals iam-se colocando entre as posições de tiro dos israelitas, de que se inteiravam através dos clarões dos disparos vindos do cume, os quais tinham de abranger um raio mais alargado, quer para a direita quer para a esquerda, de forma a poderem cobrir os pontos que estavam mal defendidos.

 

Os ashbals dispunham de outra vantagem: naquela segunda noite já eram veteranos, enquanto na anterior não passavam de jovens sem experiência militar, apanhados de surpresa pela resistência que os israelitas lhes ofereceram. Agora, o fogo de que eram alvo não lhes suscitava um terror irracional, tendo este dado lugar a um sentimento de receio saudável incutido pela experiência. Já tinham perdido muitos irmãos e irmãs, o que os levava a ansiar por vingança, e Hamadi prometera-lhes que, em caso de vitória, poderiam servir-se dos israelitas homens e mulheres indiscriminadamente como muito bem lhes aprouvesse, ao passo que Ahmed Rish garantira a todos riquezas depois do saque. Uma outra diferença entre aquela noite e a anterior consistia numa longa dissertação feita por Hamadi, com a finalidade de estimular os seus homens. A partir de agora, toda a gente sabia, ou pensava saber, qual a razão que os levava a combater.

 

Um dos seguranças de Hausner, Jaffe, saltou um parapeito baixo e correu por entre as estacas das armadilhas, a fim de recuperar as AK-47 dos árabes que haviam sido empalados. Lançou-as para o perímetro, mas foi atingido quando se preparava para regressar à linha defensiva e rebolou pela ladeira. Um outro, Marcus, recolheu as munições e a AK-47 do ashbal que Abel Geller abatera com o revólver do general.

 

As três armas suplementares foram entregues a dois homens e uma mulher que haviam sido treinados por Dobkin, mas, apesar destas medidas, os ashbals contavam com a vantagem da acção inicial e encontravam-se numa situação peculiar, que, por vezes, se verificava em combate, em que a retirada ocasionaria mais baixas do que se continuassem a avançar, pois já se encontravam muito próximos do cume.

 

Os israelitas haviam retirado tudo o que pudesse obstruir o terreno de fronte das suas posições e nivelado os amontoados de terra argilosa em toda aquela zona, mas os ashbals já se encontravam tão perto que conseguiam, dado o seu poder de fogo muito superior a que se aliava o número ilimitado de munições, disparar ininterruptamente contra os parapeitos defensivos erigidos no cimo da colina. Os defensores viam-se assim cada vez mais obrigados a manter a cabeça baixa, o que lhes permitia poucas oportunidades de ripostarem aos disparos de que eram alvo. De cada vez que erguiam a cabeça, constatavam que os clarões que saíam das armas inimigas estavam mais próximos do que na última investida.

 

As balas zuniam, embatendo nos parapeitos de terra, que se esboroavam com a força do impacte, provocando pequenos aluimentos ou abrindo buracos nas trincheiras, e também furavam os reflectores de alumínio, derrubando grande parte deles. A malha blindada retirada da estrutura do Concorde era eficaz, mas depois de ter sido atingida mil vezes, começava a esfiapar-se, e os postes que a fixavam, cortados em dois, tombaram no solo. Quanto às estacas de alumínio destinadas a empalarem os inimigos estavam seccionadas, desprendendo-se da terra por acção das rajadas de balas, deixando aberturas nas paliçadas. A reacção dos israelitas, que nunca tinham visto acções militares daquela natureza, era de grande perplexidade perante a devastação que as pequenas armas de fogo podiam provocar.

 

Hausner, Dobkin e Burg mantinham-se no posto de comando, onde recebiam os relatórios que os mensageiros lhes entregavam. Dobkin sabia que os ashbals dispunham da vantagem do ataque inicial, e ciente de que os minutos seguintes poderiam trazê-los até ao cume da colina, pousou uma mão sobre o ombro de Hausner.

 

Não saio daqui anunciou.

 

O senhor vai como estava planeado, general replicou Hausner, empurrando-lhe o braço num gesto brusco. E agora, é uma ordem!

 

A voz de Dobkin subiu de tom, o que nele era uma raridade.

 

Ouça o que lhe digo... você tem necessidade de um militar aqui, e dadas as circunstâncias, não me parece que seja necessário ir procurar ajuda algures.

 

Tem toda a razão concordou Hausner. Está tudo acabado, mas a verdade é que você estava disposto a ir quando a situação parecia segura aqui em cima e, por conseguinte, agora insisto em que parta para sua própria segurança. Quero alguém fora desta colina, para que os sobreviventes, se os houver, possam manter a esperança durante o seu cativeiro. E agora parta imediatamente!

 

Perante aquele argumento, Dobkin hesitou.

 

Vá! gritou-lhe Hausner.

 

Vá-se embora, Ben interveio Burg. Até mesmo o melhor chefe militar do mundo não teria possibilidade de nos salvar da situação desesperada em que nos encontramos. O destino está na mão deles... e de Deus. Portanto, só lhe resta partir.

 

Dobkin deu meia volta, saltou do pequeno cômoro e, sem uma palavra

de despedida, encaminhou-se para a posição defendida por McClure na encosta ocidental.

 

Na vertente oriental, dois ashbals conseguiram chegar aos parapeitos defensivos onde não existiam AK-47 nem revólveres, e os dois israelitas para aí destacados, Daniel Jacoby, um comissário de bordo, e Rachel Baum, uma hospedeira, arremessaram as lanças improvisadas, feitas de pedaços de alumínio, gritando avisos. Os Ashbals esquivaram-se às lanças e abriram fogo, atingindo Jacoby e Baum, e, passando com cuidado entre as estacas da armadilha, saltaram o parapeito da trincheira tinham furado o perímetro defensivo.

 

Contudo, Alpern, outro elemento dos serviços de segurança, correu ao longo das linhas israelitas empunhando a sua AK-47, disparou rajadas sucessivas e os dois ashbals caíram. Depois saltou para dentro da trincheira e acabou com a vida dos dois árabes, para o que se serviu de uma das lanças. Entretanto surgiram dois homens com uma tosca maca feita de placas de alumínio e alcatifa retirada ao avião, na qual colocaram Daniel Jacoby e Rachel Baum, levando-os imediatamente para a cabana. Alpern chamou então duas mulheres que não tinham armas e entregou-lhes as espingardas dos ashbals mortos. Daquela vez a sorte estivera do lado deles, mas o israelita, um veterano da guerra de 1973, estava bem ciente de que as hostilidades estavam prestes a chegar ao fim, a menos que o derradeiro plano defensivo, fruto do desespero, desse resultados positivos para os sitiados.

 

Na carlinga do Concorde, o piloto David Becker recostou-se no seu assento de piloto e acendeu o seu último cigarro, pensando nos filhos, que viviam nos Estados Unidos, e na sua segunda mulher, uma israelita. Do rádio saiu um som elevado e penetrante, mas ele deu a impressão de não o ter ouvido. Ocasionalmente, uma bala perdida atingia a fuselagem, provocando um som semelhante ao de uma rolha a saltar de uma garrafa de champanhe, quando ricocheteava, e algumas também ressaltaram em redor da carlinga. Dois desses projécteis tinham entrado pelas janelas laterais, fazendo com que os vidros ficassem com fissuras que formavam uma teia de aranha. Becker esmagou a ponta do cigarro no chão, estendeu a mão para desligar o botão da energia de emergência, mas então recordou-se de que Hausner queria que o rádio estivesse permanentemente ligado, para poder impingir ao inimigo mais alguns embustes de última hora que tivesse maquinado. Becker encolheu os ombros, todo o engenho do mundo de nada serviria perante as hordas inimigas. A expressão dera origem a uma piada entre os soldados americanos durante a Guerra da Coreia: um pelotão chinês era formado por uma multidão, ou qualquer coisa desse género. Engraçado, as hordas estavam, a pouco e pouco, a tomar de assalto o mundo civilizado, tal como acontecera aquando da queda de Roma. Becker levantou-se e preparou-se para sair do aparelho.

 

O rádio continuava silencioso, mas de súbito começou a emitir um zunido deveras agradável e ouviu-se alguém que falava num hebreu incorrecto através dos altifalantes.

 

Vocês têm de desistir dizia a voz. Ordene ao H que desista. Becker ficou a olhar fixamente para o rádio, pois o árabe exprimia-se

 

com celeridade e de forma enigmática, prevendo a possibilidade de a transmissão poder estar sob escuta algures, e, numa fracção de segundos, as obstruções regressaram à frequência.

 

Vão-se foder! praguejou Becker, e, exasperado, saiu da carlinga ao encontro dos seus companheiros. Tencionava estar junto deles quando começassem a debandar.

 

O grupo de ashbals que avançava em direcção ao posto de observação número dois distava apenas cem metros da luzinha verde da M-14, mas os dois franco-atiradores, que estavam perto deles, já tinham estabelecido uma posição, donde Murad disparava em silêncio, e com toda a precisão, tendo como alvo as cabeças que se erguiam acima dos parapeitos defensivos, no cume da colina.

 

Acho que já estão muito perto disse Burg dirigindo-se a Hausner.

 

Este assentiu com um acenar de cabeça. Dobkin instruíra-os para que suspendessem o fogo, pondo em prática aquilo que haviam classificado de últimas medidas de protecção, incluindo as de guerra psicológica, até que fosse absolutamente imprescindível entrar em acção, e Hausner sabia que esse preciso momento chegara. Assim, deu ordem ao seu mensageiro para que passasse palavra aos outros, dizendo-lhes que deveriam dar imediatamente início às últimas medidas defensivas, e em seguida virou-se para Burg.

 

Vou ver como está a situação no posto de Brin. Você fica responsável pelo comando, mantenha-se aqui.

 

Burg aquiesceu, e quando Hausner já se afastava surgiu uma jovem mensageira.

 

Eles estão a subir pela encosta do lado do rio informou.

 

Burg acendeu o cachimbo. Comandar batalhas a partir do cume de colinas não era o seu ponto forte, pois já tinham decorrido mais de trinta anos desde que prestara serviço militar. Dobkin já partira e Hausner fora inspeccionar o perímetro defensivo, certamente com a intenção de se suicidar, não lhe restava a mais pequena dúvida. Também já há algum tempo que não tinha notícias do ministro dos Negócios Estrangeiros devia estar morto, ferido ou a lutar pela sua vida, a exemplo dos demais e era ele, Burg, quem ficara a arcar com a responsabilidade das operações, talvez forçado a negociar os termos da rendição, isto é, caso houvesse oportunidade de encetar negociações. Ele, que sempre tivera a precaução de se distanciar das situações de crise, mantendo-se numa posição de neutralidade, desta feita encontrava-se bem no âmago da questão, sem ninguém a quem pudesse recorrer. Os mensageiros tinham parado de correr de um lado para o outro para dar informações sobre o desenrolar do combate, e Burg presumia que estariam todos a lutar no perímetro de defesa. Não havia adjuntos que pudessem ser consultados, nem reuniões para se tomarem decisões, o que lhe deu uma vaga noção de como Hausner deveria ter-se sentido, concluindo que não lhe invejava a sorte. A mensageira aproximou-se mais e ele olhou-a atentamente: era Esther Aronson, uma das assessoras do ministro dos Negócios Estrangeiros, que, toda a tremer e numa voz entrecortada, lhe apresentou um relatório verbal, uma avaliação fragmentada da situação.

 

O que vamos fazer? perguntou ela depois, com ansiedade. Burg levou a mão ao cachimbo. Ouvia os disparos de pelo menos dez

 

AK-47 em acção na encosta oriental e não lhe restava sombra de dúvida de que todas eram necessárias, mas não podia permitir que os árabes se aproximassem pela vertente ocidental sem encontrarem a mínima resistência.

 

O ministro era o responsável por esse lado do perímetro e Burg supunha que o diplomata tinha consciência de não possuir as qualificações necessárias para essa missão, além de que esse cordão defensivo era composto somente por oito pessoas, incluindo Richardson e McClure. Apontou para a encosta oriental.

 

Vá àquelas posições e peça emprestadas, implore ou roube duas AK-47 e, pelo menos, duas pistolas carregadas. Entregue-as ao senhor Weizman e diga-lhe que dê início às medidas defensivas de último recurso. Está a perceber?

 

A mensageira acenou afirmativamente com a cabeça num gesto rápido, que mal se viu na escuridão.

 

Burg olhou a jovem e pensou que era uma responsabilidade muito pesada para uma só pessoa, e para mais tão imatura. Sozinha, ela tinha de apropriar-se das armas e das respectivas munições, carregá-las ao longo de algumas centenas de metros e colocá-las nos locais onde pudessem ser mais úteis, após o que teria ainda de transmitir ordens ao ministro dos Negócios Estrangeiros, o qual, muito provavelmente, não saberia o que fazer no meio de todas as dúvidas que deveriam assediar-lhe a mente. E tudo isto antes que os árabes atingissem o cume da colina. Burg deu uma palmadinha amigável no ombro da rapariga.

 

Vai ver que tudo há-de correr pelo melhor. Só tem de fazer uma coisa de cada vez.

 

Eu estou bem, não me parece que haja qualquer problema.

 

Óptimo. Por acaso encontrou o general Dobkin quando vinha para cá?

 

Não respondeu ela.

 

Muito bem. Nesse caso, despache-se. Boa sorte.

 

A rapariga começou logo a correr na direcção donde vinha o som das armas de fogo.

 

Dobkin encontrava-se na pequena trincheira de McClure e Richardson.

 

Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles tentariam subir por esta encosta.

 

McClure inclinou-se para a frente, empunhando o revólver com as duas mãos, e disparou, numa sucessão rápida, dois tiros para a sua direita, dois para a sua frente e mais dois para a esquerda, atraindo o fogo inimigo antes de terminar aquela espécie de rajadas, o que o obrigou a baixar-se.

 

Cobrir uma frente de quinhentos metros apenas com um revólver de seis tiros, dá uma trabalheira dos diabos observou, procurando nas algibeiras mais algumas balas.

 

Estou certo de que eles nos enviarão alguma coisa do outro lado redarguiu Dobkin, numa tentativa para o tranquilizar.

 

Espero que sim replicou McClure, recarregando a arma. Quando o tiroteio cessou, Richardson olhou para baixo, observando a

 

vertente íngreme. A intervalos curtos, ouviam-se os seixos que chocalhavam dentro das latas, ou a voz de um árabe que praguejava por ter escorregado.

 

Quando tencionam eles iniciar as últimas medidas de defesa? perguntou Richardson mais para si próprio do que para os outros. Para onde foi essa mensageira? Onde estão as AK-47?

 

Dobkín içou-se para fora da pequena trincheira.

 

Terá de perguntar ao «general» Hausner, eu deixei de trabalhar aqui. Agachou-se, assumindo a postura de um mensageiro. Há dias, Texano disse a McClure, à laia de despedida, havemos de nos encontrar em Haifa ou em Houston.

 

Com um movimento rápido, endireitou-se e avançou um passo, ficando à berma do cume e dando a impressão de estar suspenso no ar durante breves momentos. Olhou para baixo, apercebendo-se de quão íngreme era aquela vertente, mas logo se recordou de que fora a parte inclinada da antiga fortificação, um bastião defensivo, com um declive muito acentuado, erigido a partir da margem do rio. Então rebolou pela encosta, violentamente sacudido, e só parou dez metros mais à frente ao chocar com uma pequena saliência rochosa. A seguir, teria de se haver com um percurso de mais vinte metros até poder parar novamente, o que o levou, na verdade, a lançar-se quase na vertical até à reentrância situada por baixo de si. Depois, em meia dúzia de segundos cobriu metade da vertente, mas de súbito surgiram à sua frente dois árabes, que, após a surpresa inicial, logo reagiram instintivamente, empunhando as suas AK-47 de baioneta calada em riste.

 

Hausner encontrou Naomi Haber, que aninhara a cabeça esfacelada de Nathan Brin no seu colo, e naquele momento ficou a saber que parte do problema, pelo menos, tinha a ver com as primeiras linhas defensivas e com os postos de observação.

 

Onde está a espingarda? perguntou numa voz brusca.

 

Ele está morto replicou ela, soerguendo o olhar.

 

Sou muito capaz de ver isso por mim mesmo, porra! Onde está o raio da arma?

 

Naomi limitou-se a um abanar de cabeça.

 

Hausner agachou-se sobre a elevação e, apalpando ao de leve o solo, localizou o ponto onde a espingarda de Brin teria estado assente na saliência, dando também conta de um sulco feito por uma bala que fendera o solo. Sentiu então qualquer coisa quente e húmida e limpou a mão. A morte de Brin não se devera a um tiro perdido, concluiu ele. No mínimo, os árabes estavam de posse de uma arma com mira telescópica e passariam a ter outra quando encontrassem a de Brin. Continuariam eles a manter aquela posição sob vigilância? Não tardaria muito para que ficasse inteirado disso. Saltou um mureto de terra, deslizou pela ladeira e não teve grandes dificuldades em avistar o pequeno ponto de luz esverdeado, lançando-se de cabeça na sua direcção.

 

Murad enquadrou-o na sua mira e gritou aos nove ashbals que se encamínhavam para o ponto onde a espingarda caíra, mas estes nada conseguiam ver.

 

Hausner apanhou a arma caída e rebolou para se pôr noutra posição, após o que a ergueu. Avistou os árabes a uma distância inferior a trinta metros e disparou cinco projécteis seguidos, atingindo um ou dois, enquanto os outros se dispersavam. Na escuridão, não tinham meios para fazer frente àquela arma e Hausner sabia disso.

 

Entretanto, Murad ajustou a pontaria de forma a ter Hausner na mira. Estava firmemente decidido a apoderar-se daquela arma, mas agora aquele tresloucado podia danificá-la se ele o alvejasse. Contudo, apesar desse risco, fez fogo.

 

Hausner, que já se deslocara, ouviu o barulho do projéctil, o qual levantou terra perto dos seus pés, e colou-se à encosta íngreme, perscrutando o terreno à sua frente. O árabe conhecia a sua localização, mas, ao contrário, ele não sabia onde se encontrava o outro, e se não conseguisse descobri-lo nos segundos seguintes, morreria sem apelo nem agravo.

 

Murad tinha Hausner enquadrado e premiu o gatilho, convencido de que era impossível falhar aquele tiro, mas então os outros ashbal, que estavam atrás dele, começaram a disparar às cegas na direcção da mira telescópica. As suas balas tracejantes deixavam rastos verdes, os quais se entrecruzavam, atravessando a escuridão e alojando-se no solo, como pirilampos à beira da morte, enquanto ressaltavam em todas as direcções.

 

Murad apertou o gatilho já quando a imagem no dispositivo de infravermelhos da mira telescópica estava prestes a desaparecer. A maior desvantagem daquele tipo de equipamento, quando em combate, era o facto de passar a branco sempre que a pontaria era feita sobre algo fosforescente em combustão. As balas tracejantes disparadas pelo seu grupo de apoio descreviam trajectórias em arco, atravessando-se à frente da imagem avermelhada e deixando traços brancos, que engrossavam, fundindo-se uns nos outros. Era por esse motivo que ele tanto almejara a outra espingarda, que tinha um sistema diferente de visão nocturna. Praguejou em voz alta e começou a disparar às cegas.

 

Parem, grandes idiotas! Parem! vociferou, voltando a disparar rajadas sucessivas.

 

O seu companheiro de equipa, Safar, gritou para se fazer ouvir acima do som dos projécteis das AK-47 e os tiros disparados pelos ashbals cessaram completamente.

 

Hausner deduziu o que teria acontecido e outro homem no seu lugar diria que Deus estivera, uma vez mais, do seu lado, mas ele apenas se sentia vítima de uma brincadeira malévola. A carga explosiva, a queda do Concorde, a recuperação das AK-47 e por último aquilo. Chegou à conclusão de que não estava sob qualquer feitiço, mas, isso sim, amaldiçoado. A provação nunca mais chegaria ao fim?

 

Murad voltou a ver com nitidez na sua mira pelo que recomeçou a sondar o local onde Hausner estivera, sem, no entanto, conseguir localizá-lo.

 

Entretanto, este descobrira uma pequena depressão de terreno por baixo do cômoro que servira de posto de observação e deixou-se cair dentro dela. À semelhança do que acontecia com todos os soldados de infantaria Hausner sabia como encolher-se os seus músculos contraíram-se e o ar saiu-lhe dos pulmões dando a impressão de se ter colado ao fundo daquele buraco que tão pouca protecção oferecia. O seu tórax, coxas e até as virilhas cederam de maneira inexplicável, o que só acontecia a homens debaixo de fogo, e a depressão cedeu mais alguns preciosos centímetros.

 

Subitamente, Murad sentiu-se invadido pelo temor, tinha a sensação de estar nu, como que exposto aos olhos de todos, e também ele encontrou uma cavidade onde procurou refúgio.

 

Os sons do confronto que continuava a decorrer no cume da colina enchiam o ar, mas naquele ponto, tinha-se a sensação de o silêncio ser absoluto, Hausner e Murad aguardavam que um deles passasse à acção. As armas de ambos estavam munidas de dispositivos de visão nocturna e de supressores az flash. As duas espingardas, do melhor que se fabricava, dispunham ainda de silenciadores, o que as tornava invisíveis e mortíferas.

 

O grupo principal de ashbals encontrava-se a cem metros do cordão defensivo, mas alguns sapadores bem treinados já tinham penetrado a linha da frente e encontravam-se mesmo por baixo dos parapeitos defensivos e das paliçadas. Aí se deixaram ficar imobilizados e num silêncio absoluto, armados apenas com facas-de-mato e pistolas, com todos os centímetros de pele exposta camuflados, esperando pela chegada do grupo principal, que deveria proceder ao derradeiro ataque. Se possuíssem granadas de mão ou cargas explosivas, de que supostamente os sapadores deveriam estar munidos, poderiam provocar um autêntico pandemónio destruidor nas linhas israelitas, mas ninguém pensara que fossem forçados a tomar uma colina de assalto a fim de fazerem reféns. Aqueles homens sentiam que estavam a ser mal utilizados naquele tipo de acção militar, eram profissionais, a elite de qualquer unidade de infantaria. Rastejar até às linhas inimigas na vanguarda do principal corpo de ataque era uma verdadeira missão suicida, e ali estavam eles, já onde era suposto chegarem, mas sem poderem agir até que o grosso da coluna pudesse passar ao ataque. Nessa altura, saltariam as trincheiras dos israelitas, matando-os à facada e com tiros de pistola. Se ao menos tivessem cargas explosivas, que detonariam antes de proceder ao ataque corpo a corpo...

 

Dobkin deu um salto e passou velozmente pelos dois árabes perplexos, que giraram sobre si próprios e, firmando os calcanhares na terra solta, assestaram as AK-47 sobre o alvo, mais abaixo, e dispararam. O coice das armas automáticas fazia os seus corpos estremecerem, obrigando-os a deslizar pela encosta e a quebrar a crosta superficial expondo os tijolos que o tempo havia sepultado.

 

Dobkin foi literalmente impulsionado para a frente por entre o silvar das balas que passavam rente a si. Os seus pés voltaram a apoiar-se sobre o chão para de imediato darem outro salto, e sentiu que os calcanhares espezinhavam os maciços de mamoneiras quando os seus pés aterraram bruscamente na margem aluviada. Depois, deu outro salto enorme, para tentar concluir o mais depressa possível a descida.

 

Dobkin foi perseguido pelo verde luminoso das balas tracejantes e pareceu-lhe ter dado várias cambalhotas sucessivas em redor e por entre aquela espécie de longas tiras verdes que traziam a morte consigo. Manteve-se suspenso no ar pelo que pareceu ser uma eternidade, vendo acima de si a abóbada celestial da Mesopotamia, de um negro muito estrelado. Os contornos do solo, de traçado pouco nítido, passavam velozmente por baixo de si, e avistava também as águas luminescentes do Eufrates, até que, instantes depois, o seu corpo voltou a girar, os terrenos pantanosos passaram instantaneamente pelo seu ângulo de visão, para logo depois tornar a ver o céu. Pelo canto do olho, continuava a seguir aquele tracejado verde-fosforescente, como se fossem raios mortíferos num filme de ficção científica, os quais se aproximavam cada vez mais, em sua perseguição, acompanhados pelo matraquear que crescia de intensidade à medida que o número de armas em acção aumentava. Não compreendia por que motivo ainda não tinha caído, por que razão parecia manter-se suspenso acima do rio, mas então foi violentamente atingido por uma das balas tracejantes, uma luz verde que lhe provocou dores excruciantes. A partir daí, tudo retomou a sua velocidade normal, como se tivesse acabado de despertar de um sonho, ouviu apenas um chapinhar e as águas lodacentas do Eufrates fecharam-se sobre ele.

 

Hausner percebeu que não conseguiria regressar às linhas israelitas, o terreno era demasiado descoberto e, para agravar ainda mais a situação, o franco-atirador árabe já estabelecera a sua nova posição. Todavia, do ponto onde se encontrava, Hausner não era capaz de fazer fogo com eficácia, excepto tendo por alvo o que estava directamente defronte de si. A mira telescópica não podia ser utilizada em todo o seu potencial e, em qualquer dos casos, já tinha poucas munições.

 

Sentiu que o calcanhar fora atingido, a perna agitou-se num movimento espasmódico e praguejou enquanto punha a cabeça fora da depressão. Fez pontaria, mas o árabe mantinha-se invisível no buraco onde se acolhera. Entretanto, o grupo principal de ashbals passara a disparar balas normais, pondo de parte as tracejantes, na direcção onde acreditavam que ele se encontrava. Avistou o colega do franco-atirador que atravessava o terreno dirigindo-se para os companheiros para lhes indicar a sua localização exacta. Disparou, e o homem, Safar, caiu por terra, levando a mão a um dos flancos.

 

Murad fez também fogo, e Hausner, sentindo um ardor na orelha, virou-se e alvejou a forma que desaparecia na depressão de terreno. Sentiu uma humidade quente no ouvido quando se deixou cair de costas na depressão rasa, e por breves instantes pensou, irracionalmente, em Miriam.

 

Hausner estava farto daquela situação, não conseguia fazer nada de produtivo e adivinhava que os ashbals, ladeando-o pelos flancos, continuavam a aproximar-se do cimo da colina.

 

Haber! chamou, virando-se para trás, gritando para ser ouvido acima do barulho do tiroteio, mas não recebeu resposta. Haber! gritou outra vez.

 

Ela continuava com a cabeça ensanguentada de Brin pousada no seu regaço com os miolos a extravasarem do crânio, e ocorreu-lhe que momentos antes Hausner estivera junto de si, mas não sabia o que lhe acontecera. Apercebeu-se então de que ele gritava, porém não lhe respondeu.

 

Hausner rasgou a camisa, enrolando-a à volta do dispositivo de visão nocturna da mira telescópica, inverteu a posição horizontal da espingarda e pegou-lhe pelo silenciador e pelo supressor de flash, que estava quase a atingir o ponto de incandescência. Pôs-se então de pé, fê-la girar acima da cabeça e arremessou-a pelos ares. A arma elevou-se, passou por cima do parapeito do posto de observação e foi cair na terra solta, a alguma distância de Naomi Haber. A rapariga ouviu o barulho ensurdecido do impacte no solo e soube instintivamente do que se tratava e o que deveria fazer. Por isso, baixou a cabeça, depositou um beijo nas frontes esfaceladas de Nathan Brin e pegou na espingarda.

 

A ordem para accionar as últimas medidas de defensa já percorrera toda a extensão do perímetro, e a operação, previamente ensaiada ao pormenor, começou a ser posta em prática. Todos os estratagemas e todo o equipamento improvisado, resultado de um extraordinário espírito inventivo, e que tão eficazes pareciam à luz do dia, estavam prestes a ser postos à prova, mas, no meio das sombras, apenas inspiravam grandes dúvidas.

 

Ouviu-se então uma voz a gritar em árabe, a cerca de cem metros do posto de comando.

 

Por aqui! A linha defensiva foi penetrada! Venham atrás de mim! Dois grupos de ashbals, dezoito homens, começaram a convergir para o ponto donde viera a ordem, seguindo a voz de comando, e como ninguém disparou sobre eles aproximaram-se, tendo ficado a cinquenta metros dos parapeitos defensivos, aparentemente abandonados. Decorridos mais alguns segundos encontrar-se-iam para lá do perímetro defensivo, e o combate teria chegado virtualmente ao fim.

 

Aqui! voltou a chamar a mesma voz. Depressa! Passem por cima!

 

No meio de todo o tiroteio, se os ashbals se deram conta que desta feita a voz tinha um cunho ligeiramente metálico, ou que o sotaque palestiniano não correspondia exactamente ao que devia ser, não agiram em consonância com essa percepção. Um dos seus comandantes devia utilizar um megafone, por isso continuavam a convergir para o ponto onde se ouvia a voz, o qual ficava muito próximo das posições defensivas dos israelitas.

 

Ibrahim Arif estava estendido atrás dos parapeitos baixos, num pequeno abrigo escavado na terra e, uma vez mais, gritou através do microfone do sistema de altifalantes:

 

Agora, subam, passem por cima das defesas!

 

A caixa do altifalante, colocada trinta metros à frente da linha defensiva, incitava os ashbals a continuarem a avançar.

 

Agora, subam e passem por cima da defesa! Gritem! Gritem morte a Israel!!!

 

Os árabes puseram-se de pé e correram, gritando:

 

Morte a Israel!!!

 

Kaplan, que decidira dar alta a si próprio, Marcus e Rebecca Livni, uma jovem estenógrafa que tinha acabado de encontrar uma AK-47, abriram fogo, cada um disparou dois pentes com trinta balas cada, tendo por alvo as fileiras dos ashbals.

 

Estes, iluminados pelos clarões que saíam dos canos das espingardas, ficaram paralisados e embasbacados, enquanto os projécteis de sete milímetros lhes estraçalhavam os corpos, caindo uns em cima dos outros, como uma pilha de bonecos de palha. Até ao momento, aquele era o maior número de baixas que haviam sofrido de uma assentada, as quais causaram uma brecha enorme na linha frontal de ataque dos árabes.

 

Esther Aronson suplicara a todos com quem se cruzava na escuridão que lhe dessem ouvidos. Burg ordenara-lhe que pedisse armas emprestadas, ou as roubasse, no entanto, as suas tentativas não estavam a resultar. Todos se encontravam demasiado atarefados com a sua própria sobrevivência para se preocuparem com problemas de ordem estratégica inerentes a um ataque pela retaguarda, e os que se predispuseram a ouvi-la manifestaram a sua simpatia, apenas isso. Desesperada, começou à procura de Hausner, que resolveria o problema com uma simples ordem, mas ninguém sabia por onde ele andava, presumivelmente já morrera.

 

Esther ouviu e viu a artimanha do sistema de altifalantes ser posta em prática, o que lhe deu a saber que os derradeiros truques e defesas, fruto do desespero, tinham começado, mas na encosta oriental nada havia que se pudesse comparar àquela acção e ela precisava de arranjar armas, imediatamente. Correu então para o local onde Marcus e Rebecca Livni, cautelosamente, atravessavam os muros e as paliçadas, a fim de recuperarem as armas dos árabes abatidos, protegidos por Kaplan, de AK-47 em riste. Esther Aronson passou por este e saltou uma trincheira e dois parapeitos baixos e esgueirou-se por entre as estacas, deixando Marcus e Livni estupefactos com a sua presença.

 

Desculpem! gritou ela. Preciso de arranjar armas para a encosta oriental. Eles estão a atacar-nos por ali.

 

Em passos rápidos, passou por cima dos corpos chacinados, tanto dos que já eram cadáveres como dos feridos, e com agilidade, começou a recolher os pentes de balas repletos de munições e também várias AK-47, sendo mais as vezes em que lhes pegava pelos canos a escaldar do que pelas coronhas, pelo que ficou com as mãos e o corpo queimados por as ter posto a tiracolo.

 

Entretanto, Marcus e Livni correram para junto de Aronson prontos a ajudá-la, e o primeiro gritava constantemente para que as duas raparigas se mantivessem atentas aos árabes ainda vivos, mas Esther Aronson dava a impressão de não prestar atenção a esses avisos, parecia que nem sequer os ouvia. Marcus teve até de disparar contra um que fez menção de agarrar na sua espingarda, prestes a ser-lhe retirada.

 

Obrigada gritou Esther, desaparecendo logo do outro lado dos parapeitos defensivos, com um peso que parecia ser superior às suas forças.

 

Marcus e Livni apressaram-se a reunir o resto das espingardas, sempre protegidos por Kaplan, enquanto o altifalante se ouvia com estridência, sem interrupções.

 

Recuem! Recuem! Afastem-se, camaradas! Os judeus estão bem armados nesta área! e os ashbals mantiveram-se à distância.

 

Naomi Haber carregou a M-14 com um novo pente de balas antes de procurar um alvo com mira telescópica. Toda a vertente estava coberta de silhuetas agachadas, que avançavam lentamente. Sondou a área mais próxima da sua posição e avistou Hausner imobilizado na depressão que lhe servia de abrigo. Teria sido atingido? Não sabia. Ele devia ter-se posto de pé para arremessar a espingarda até àquela distância e certamente que o franco-atirador árabe teria aproveitado para o abater.

 

Naquele momento, uma bala roçou pelos nós dos dedos da mão direita de Naomi, que soltou um grito de dor e esteve prestes a largar a arma. Agachou-se contra o murete de terra até lhe ter passado o choque e lambeu o ferimento como fazem os animais, o que pareceu ter o efeito de a acalmar. Sabia que o atirador que estivera quase a ceifar-lhe a vida era o mesmo que tinha morto o seu amante e também que, por essa razão mais do que por qualquer outra, era forçoso abatê-lo. Com lentidão, levantou-se, espreitando por cima do muro de protecção.

 

Entretanto, Murad já se dera conta de que Safar fora abatido o seu companheiro de infância, o único amigo de verdade, e aquele judeu não hesitara em matá-lo. Teria conseguido atingi-lo quando ele lançou a espingarda para as linhas defensivas? Através da mira da sua arma, perscrutou a distância entre a cavidade onde Hausner continuava e a elevação onde por certo alguém já pegara na M-14. Naquele momento, era desta posição que vinha o maior perigo, mas as suas emoções não lhe permitiam afastar os olhos do último lugar onde avistara aquele maldito judeu.

 

Respirando fundo, Haber começou a fazer pontaria, muito devagar. Tinha sob mira o corpo do franco-atirador, que estava deitado de bruços a uma distância aproximada de oitenta metros. Um tiro certeiro, com um pouco de sorte, destruiria a mira telescópica e atingi-lo-ia na cabeça, se bem que alvejar-lhe as costas fosse mais seguro. Naomi ajustou então o fio de retículo, enquadrando a região lombar do homem, após o que disparou duas vezes.

 

Ao longo do perímetro, os israelitas posicionavam os bonecos de trapos que tinham levado tanto tempo a fazer, e à medida que eram colocados, atraíam o fogo inimigo, tombando para logo ficarem erectos.

 

Uma dúzia de homens e mulheres desarmados seguravam latas de aerossóis cujo conteúdo lançado em jactos curtos entrava em combustão, simulando clarões provocados por disparos. Os árabes apressavam-se a alvejar esses simulacros de tiros que avistavam ao longo de toda a linha defensiva israelita, e a estimativa que haviam feito, quanto ao número de armas de que os judeus se tinham apoderado foi substancialmente acrescida.

 

Entretanto, as verdadeiras AK-47, recentemente capturadas com as respectivas munições, entraram em acção.

 

Duas mulheres também desarmadas, que tinham passado os últimos trinta minutos a registar num gravador todos os sons da refrega, utilizando para o efeito duas dúzias de leitores de cassetes, já os haviam colocado em vários pontos da linha de defesa e accionado os botões de retrocesso das fitas magnéticas, fazendo com que o volume de fogo dos israelitas parecesse ter sido substancialmente acrescido.

 

Uma vez mais, as coisas pareciam ter entrado nos eixos e os mensageiros retomaram o seu vaivém para a posição avançada posto de comando de Burg onde o punham a par do desenrolar da situação e recebiam ordens, as quais eram dadas como se ele nunca tivesse feito outra coisa em toda a sua vida. Ao que tudo indicava, as últimas medidas defensivas estavam a dar resultado, pelo que o moral dos atiradores estava de novo a subir, mas Burg sabia que a situação continuava a ser bastante precária.

 

Esther Aronson tropeçava na escuridão, encaminhando-se para a encosta oriental. Chamou, mas aparentemente ninguém a ouviu.

 

Os ashbals, momentaneamente surpreendidos pela carga efectuada por um único homem Dobkin, detiveram-se por uns momentos, mas recomeçaram o seu avanço vertente acima. Conseguiam distinguir os contornos do cume da colina, que se recortavam contra o céu estrelado, a menos de cinquenta metros, e o seu comandante, Sayid Talib, quase não acreditava na sua sorte, pois, com excepção da única pistola que disparava contra eles a intervalos intermitentes, não dava conta de mais defensores. Contudo tinha a certeza de que isso não duraria sempre e exortava os seus homens a avançarem com mais rapidez. Acreditara que aquele assalto era uma missão suicida, tanto para si como para os seus quarenta companheiros, mas Ahmed Rish conseguira tranquilizá-lo, narrando-lhe a história de um general inglês que conduziu o seu exército por um penhasco mais inexpugnável do que aquela vertente, e capturara um forte, no Canadá, para a coroa inglesa. E era verdade, ninguém acreditaria num ataque por aquele lado da colina.

 

O sangue de Talib afluiu-lhe às faces enquanto prosseguia a sua escalada, mal conseguindo conter a ânsia de se encontrar frente a frente com os israelitas. Levou a mão ao rosto parcialmente mutilado. Na época em que vivera em Paris, recebera uma carta remetida pelo Ministério Francês da Imigração e abrira-a confiadamente, mas na realidade a «missiva» fora enviada pelo Mivtzan Elohim, e esse descuido custara-lhe ficar com a face direita desfigurada. A partir daí, a sua vida nunca mais voltou a ser a mesma. As mulheres emitiam pequenos gritos de horror quando o olhavam e até mesmo os homens tinham relutância em encará-lo.

 

Talib rezava para que conseguisse encontrar Isaac Burg com vida. De todas as fantasias a que se entregara em pensamento, chegara à conclusão de que esfolá-lo vivo seria a tortura ideal a aplicar ao chefe do Mivtzan Elohim. Arrancar-lhe-ia a pele lentamente durante vinte e quatro horas talvez mesmo mais e tencionava dá-la a comer aos cães. Ergueu o olhar e verificou que distavam menos de vinte e cinco metros do cume.

 

McClure inseriu as últimas balas no carregador do seu revólver e virou-se para Richardson, o qual se mantinha completamente imóvel.

 

Como se diz em árabe «levem-me ao Consulado dos Estados Unidos»?

 

Devia ter feito essa pergunta ontem, quando esteve a falar com o Hausner.

 

Então... quer dizer que você não sabe árabe?

 

Não, porquê?

 

Não sei, apenas deduzi que sim.

 

Inclinou-se para fora da trincheira individual, observando a encosta até ao sopé. Distinguia os homens, semelhantes a lagartos, que trepavam saídos da escuridão e fez pontaria sobre um deles.

 

Miriam Bernstein e Ariel Weizman encontraram Esther Aronson, que mal podia com a sua carga e, sem quaisquer formalidades, pegaram nas AK-47 e respectivas munições, e correram ao longo do perímetro de quinhentos metros, em direcções opostas, distribuindo-as pelas trincheiras individuais, mas Miriam passou em branco a de McClure. Por fim chegou à extremidade sul do perímetro, com a última AK-47, e naquele momento uma jovem ashbal, com a sua espingarda do mesmo tipo à tiracolo, ergueu-se do solo plano a cinco metros do local onde ela se encontrava, e quando deu pela presença da israelita começou a tirar a arma do ombro, com movimentos deliberadamente lentos.

 

Míriam não tinha a mais pequena noção de como usar uma AK-47, além de não saber se, para começar, desejava dispará-la. Estaria o mecanismo de segurança activado? Estaria carregada e destravada? Como é óbvio, o árabe a quem aquela arma pertencera tinha-a engatilhada, pronta a disparar, mas isso nem sequer lhe passou pelo pensamento. Tudo o que sabia com certeza absoluta era que a espingarda estava munida de um gatilho e localizou-o, hesitando.

 

Entretanto, a ashbal disparou uma primeira rajada na direcção dela, à queima-roupa, e Miriam viu os clarões que saíam do cano e que a cegaram momentaneamente. Parecia-lhe um sol de uma radiância extraordinária e lembrou-se de um episódio ocorrido na esplanada de um café em Jerusalem

 

Um jovem soldado de infantaria contava-lhe a história de um árabe qUe saíra de rompante de uma casa nos montes Golã e começara a disparar uma metralhadora contra ele a uma distância de escassos metros. O jovem estava perto de uma árvore, e esta, no enfiamento directo das suas costas, foi atingida por rajadas sucessivas, o que originou que pedaços de casca e de lascas do tronco saltassem em todas as direcções, atingindo o israelita na cabeça, pescoço e costas. Logo de seguida, o árabe desapareceu. Na altura o soldado dissera-lhe: «Nesse dia, havia um anjo à minha frente.”

 

Bernstein ouviu outra rajada, a espingarda automática saltou-lhe nas mãos e a jovem árabe pareceu ter dado um salto para trás, precipitando-se pela vertente.

 

Miriam Bernstein caiu de joelhos, ocultando o rosto nas mãos.

 

A bordo do Concorde, Yaakov Leiber estava sentado a ver um filme americano de guerra. Nessa mesma tarde já tinha visto o mesmo filme e tomara alguns apontamentos. Depois pusera a máquina de projectar a trabalhar ao ralenti e quando surgiram no ecrã algumas cenas que tinham por pano de fundo sons de um teatro de guerra a sério, ele voltou à velocidade normal, elevando ao mesmo tempo o volume do som. Os efeitos sonoros daquele excerto do filme foram posteriormente transmitidos através do sistema de altifalantes instalado no perímetro defensivo, reproduzindo os sons matraqueados de uma metralhadora pesada. Os rumores relativos à existência desta arma já corriam insistentemente no campo dos ashbals desde que Muhammad Assad fora libertado pelos israelitas, pois antes de ter sido executado sob a acusação de traição, ele contara aos seus guardas muitas histórias sobre o poderio do armamento israelita.

 

Naquele momento, os ashbals vacilavam, pois o lampejar das rajadas disparadas das linhas defensivas dos judeus alongava-se a todo o cordão, e pela encosta abaixo cada vez se ouviam mais sons de um fogo rápido e crescente, a que se sobrepunha o matraquear da metralhadora pesada. Até parecia que os israelitas tinham mais armas do que gente, e os militares ashbals, antecipando o cheiro a derrota que pairava no ar, começaram a lançar olhares de esguelha, onde se lia ansiedade, aos seus comandantes.

 

Naomi Haber observava o corpo do franco-atirador, que ressaltou devido à força do impacte. Toda ela tremia ao dar-se conta que de facto alvejara o árabe com duas balas certeiras nas costas. Chamou, tentando manter um tom de voz calmo.

 

Senhor Hausner! O árabe foi atingido. Eu dou-lhe cobertura! Baixou o olhar para o corpo de Hausner, mais abaixo, que não dava acordo de si. Senhor Hausner! Ele está acabado! Eu vou...

 

Foi então que, vendo o braço dele agitar-se ligeiramente num acenar vago, posicionou a espingarda de molde a apontar para a vertente e começou a disparar contra todos os árabes que lhe surgiam na mira. Alvo à frente em deslocação, a oitenta metros: fogo! Alvejar outro, estacionário, a noventa metros: fogo! Da direita para a esquerda, a cinquenta metros. fogo! Falhou. Ajustar o enquadramento da mira, disparar contra o mesmo alvo, apontar ao alvo seguinte!

 

Hausner agarrava-se com as mãos às superfícies laterais, íngremes, do posto de observação, mas não havia maneira de conseguir subir. Deslocou-se então para a direita onde a vertente tinha um declive mais suave e começou a correr pela colina acima. À sua frente, para a esquerda, ouvia o som metálico da M-14, e defronte de si via os parapeitos baixos da linha defensiva israelita. Supostamente, não deveria haver ninguém naquele local em princípio, a M-14 deveria cobrir toda aquela área, mas apesar disso avistava um número inacreditável de clarões provocados por disparos ao longo de todo o cordão defensivo. Onde diabo teriam eles arranjado tantas armas? Ou seria tudo aquilo obra dos aerossóis? Os clarões surgiam à sua frente, o que o fez ter a certeza de que de facto se tratava disso. As balas silvavam rente aos seus ouvidos, vindas da retaguarda, e gritou para se fazer ouvir acima do tiroteio intenso.

 

Por amor de Deus, parem de disparar! Sou o Hausner! Hausner! A terra cedeu sob os seus pés, obrigando-o a avançar com dificuldade

 

para as linhas israelitas, enquanto gritava com toda a força dos seus pulmões entre paragens que lhe permitiam recuperar a respiração. Pouco depois, deu consigo no fundo de uma trincheira. Dois jovens, um homem e uma mulher, armados com AK-47, fitavam-no com uma expressão de grande curiosidade. Hausner levantou-se e comentou:

 

Vocês são os piores atiradores que me foi dado ver até agora.

 

Sorte a sua replicou a rapariga, irónica.

 

Os resistentes que não estavam armados começaram a empurrar pela vertente enormes placas de barro, que retiravam de uma pilha. Estas placas, bastante pesadas, rolavam, fendendo a crosta do solo endurecido à medida que adquiriam mais velocidade, e abatendo-se sobre as fileiras dos ashbals fracturavam pernas e esmagavam costelas quando os atingiam.

 

Repentinamente, as linhas israelitas ficaram iluminadas por labaredas que pareciam vir de archotes, quando dúzias de pavios de cocktails molotov foram acesos, e estes, descrevendo trajectórias em arco, caíram entre os árabes. A fim de terem a certeza de que explodiriam aquando do impacte, os israelitas tinham recorrido a tijolos, que presos com tiras de couro a todos os engenhos incendiários desempenhavam a função de detonadores. Os boiões e garrafas estilhaçavam-se aquando do impacte, e a gasolina em estado bruto, um combustível do mais mortífero que existe, entrava em combustão, disseminando as chamas por toda a encosta da colina.

 

Para distâncias maiores foram utilizados sutiãs no lugar das fisgas com que os cocktails molotov eram arremessados. A vertente ficou toda iluminada, permitindo que os disparos dos israelitas se tornassem mais certeiros, uma vez que os inimigos passaram a estar expostos.

 

Os ashbals, confusos, começaram a andar de um lado para o outro à toa e alguns procuravam protecção nas zonas mais escuras onde o querosene em combustão não revelasse a sua presença. Ocasionalmente, um ou outro era atingido pela mistura explosiva incandescente e os seus gritos sobrepunham-se a todos os outros sons do confronto.

 

As últimas armadilhas colocadas pelos israelitas para apanharem os árabes que ainda não haviam entrado em acção pouco depois já tinham cumprido o papel para que estavam reservadas. Meia dúzia de jovens de ambos Os sexos berravam e guinchavam enquanto a vida se lhes esvaía dos corpos, empalados nas estacas, debatendo-se numa tentativa de se libertarem daquele suplício.

 

Os sapadores, que se fingiam mortos mesmo por baixo dos parapeitos defensivos dos israelitas, ficaram desde logo cientes de que, na verdade, era como se já o estivessem. Os disparos dos seus próprios companheiros já tinham abatido alguns deles, pelo que as probabilidades de tomarem de assalto as linhas inimigas eram cada vez mais remotas, pois estavam praticamente apanhados entre dois fogos. Todavia, a instrução militar que haviam recebido preparara-os para quase todas as contingências, e lentamente começaram a rolar pela encosta, parando de poucos em poucos metros, fingindo, uma vez mais, que estavam mortos. Sabiam que a atenção dos que defendiam o cume da colina se fixara noutro lugar, e assim, metro a metro, cada vez se aproximavam mais dos seus camaradas. Era um processo lento e torturante, e quase todos foram atingidos pelo menos uma vez, mas metade daquele corpo militar de elite, composto por vinte homens, acabou por conseguir regressar às suas linhas. Porém, não era garantido que, chegados aí, estivessem em segurança.

 

O combate que se travava na encosta ocidental terminou em apenas sessenta segundos a contar do momento em que a primeira AK-47 disparou o primeiro tiro. Os cocktails molotov queimaram por completo os maciços de mamoneiras, iluminando as silhuetas dos asbbals que subiam pela ladeira. As placas de terra argilosa e o fogo das AK-47 varreram toda a vertente sem deixarem nada de pé. As ruínas da antiga fortificação revelaram-se tão inexpugnáveis, como quando Dario as viu pela primeira vez, mais de dois mil e quinhentos anos atrás, ou quando Alexandre Magno teceu comentários sobre aquelas mesmas defesas, alguns anos mais tarde. Quase todos os atacantes morreram de imediato, ou ficaram incinerados nos arbustos, e os poucos que caíram ao Eufrates, como, a exemplo da maioria dos árabes, não sabiam nadar, acabaram por se afogar nas profundas águas lamacentas.

 

Sayid Talib, agora que os seus sonhos de esfolar Isaac Burg em vida se tinham desvanecido, corria aos gritos entre os arbustos em chamas. As dores lancinantes provocadas por dois ferimentos quase fizeram com que perdesse a consciência. Tropeçou e caiu, começando a arrastar-se pelo solo até que finalmente avistou o Eufrates e se lançou à água. Uma das coisas que aprendera na Europa tinha sido precisamente a nadar, deixou-se levar para sul ao sabor da corrente. Alguns dos seus homens esbracejavam descoordenadamente, gritando à sua volta, até que acabaram por se afundar. Acreditava ter sido o único sobrevivente.

 

Hausner abeirou-se de Burg, que se encontrava no posto de comando.

 

Você ou é o melhor comandante militar desde os tempos de Alexandre Magno, ou então teve o bom senso de se quedar aqui sem fazer nada

 

Burg ficou surpreendido ao ver Hausner com vida, embora não fizesse qualquer comentário a esse respeito.

 

Creio que foi um pouco das duas coisas. Viu que Hausner estava de tronco nu e sem sapatos, com o rosto manchado de sangue. Por onde raio tem andado?

 

Estive na encosta, ali mais abaixo respondeu o interpelado, subindo até ao cimo da elevação e percorrendo o perímetro defensivo com o olhar. O Brin foi abatido por um franco-atirador.

 

Estou a ver. Burg acendeu o cachimbo, que durante algum tempo mantivera suspenso entre os lábios. Sofremos um grande número de baixas e receio bem que as posições avançadas tenham sido completamente eliminadas.

 

Suponho que sim concordou Hausner.

 

Entretanto surgiram duas raparigas, ambas vindas da encosta ocidental, com várias espingardas à tiracolo. Uma delas era Esther Aronson.

 

Ali acabou tudo para eles disse esta. Não sofremos nenhuma baixa, mas há uma pessoa desaparecida.

 

Você fez um trabalho excelente elogiou Burg.

 

Acho que estas armas podem ter uma utilização mais proveitosa na encosta oriental acrescentou.

 

Estou de acordo retorquiu Burg. Quem desapareceu?

 

A Miriam Bernstein. Já andam à procura dela. Aparentemente, Hausner não manifestou qualquer reacção, e pouco depois as duas jovens afastaram-se num passo apressado, desaparecendo na escuridão.

 

Deixe-me dar uma cachimbada no diabo dessa coisa pediu Hausner, estendendo a mão.

 

Terá isto sido um milagre? perguntou-se Burg, passando-lhe o cachimbo para a mão.

 

Não merece essa qualificação replicou Hausner, com as mãos a tremer.

 

E porque não?

 

Porque eu não ouvi a voz do Senhor.

 

É imprescindível que a ouça? Só você é que poderá ouvi-La?

 

Exactamente. Burg riu-se.

 

E o Dobkin? interrogou Hausner, devolvendo-lhe o cachimbo.

 

Aí tem o seu milagre... se é que ele escapou com vida respondeu Burg com um encolher de ombros.

 

Certo. Ouça... vou até à vertente ocidental.

 

Não há necessidade disso, as acções decorrem todas aqui.

 

Não me venha dizer como devo comandar esta batalha, Burg e saltando da elevação caminhou num passo cheio de energia na direcção que indicara, deixando o outro a olhá-lo fixamente.

 

Ibrahim Arif recomeçou a falar através do sistema de altifalantes, elevando o tom de voz de maneira a sobrepor-se aos sons profundos e ressonantes da batalha, ao mesmo tempo que falava com uma entoação trocista.

 

Regressai a casa, crianças pequenas. Já levaram uma grande tareia. Agora vão e escondam a cara! Salem Hamadi, estás a ouvir-me? Volta para casa e deita-te com o teu namorado, tão novinho... Esta semana quem é? O Ali? O Abdel? O Salman? Ou será o Abdullah? O Muhammad Assad disse que é com ele que tens andado a fazer amor!

 

Arif continuou, inflexível, usando o timbre lamuriento e elevado tão peculiar dos árabes. Enquanto falava, o coração batia-lhe pesadamente no peito e sentia a garganta ressequida pela escassez de água, como que cheia de areia do deserto. Entre ele e a navalha de Rish, cruel e mutiladora, havia uma mão-cheia de judeus, cujas armas, uma vez mais, estavam prestes a ficar sem munições. E se, por qualquer milagre de Alá, conseguisse sair daquela situação com vida, seria perseguido durante o resto da sua existência pelo povo a que em tempos ele chamara irmão. Mas essa seria uma preocupação do amanhã, a dessa noite era manter-se afastado da faca de Rish, cumprindo as ordens de Jacob Hausner. Ou será com um camelo ou um burro que te satisfarás esta noite, Salem? Ou ainda, quem sabe se não será com o teu amo e senhor, o Ahmed Rish, que darás larga à tua luxúria. Os jovens ashbals, no meio da confusão e infelicidade que lhes ia na alma ripostaram-lhe aos gritos. Dois deles levantaram-se e investiram em direcção ao cume da colina, tendo sido imediatamente abatidos, enquanto outros premiam o gatilho das suas armas, possuídos de uma raiva que não podiam expressar doutra maneira.

 

Ahmed Rish mantinha-se acocorado numa vala junto do seu operador de rádio, e Salem Hamadi estava sentado a alguns metros de distância. As sombras da noite não permitiam uma boa visão, mas este parecia estar a chorar ou a rezar, ou talvez apenas a resmungar com os seus botões.

 

Levanta-te! gritou-lhe Rish. É preciso fazer um último esforço. Eles já devem ter poucas munições e a Lua ainda não nasceu. Vamos! É necessário que chefiemos este ataque pessoalmente.

 

Hamadi pôs-se de pé, avançou ao lado de Rish e a maior parte dos ashbals que restavam seguiram-nos mecanicamente.

 

Os cocktails molotov começaram então a chover sobre os atacantes, que pareciam prestes a ir-se abaixo, enquanto as balas dispersavam as fileiras e os desprendimentos de terra intencionais os faziam cair ou lhes cobriam os corpos inclinados para a frente.

 

Finalmente, a ordem de retirada ouviu-se alto e bom som vinda da retaguarda.

 

Retroceder! Retroceder! Cessar hostilidades! Bater em retirada!

 

Abdel Jabari sentara-se perto da cabana, falando num tom autoritário através do microfone.

 

Recuar! Recuar! Cessar fogo! Bater em retirada!

 

O sistema de altifalantes, cujos fios continuavam miraculosamente intactos, transmitia com uma ressonância impressionante da trincheira da posição avançada número dois.

 

Deborah Gideon despertou com aquele som, e começando a afastar a terra que lhe cobria o rosto olhou para fora do buraco observando o firmamento. Directamente acima de si, avistou um conjunto inacreditavelmente belo de estrelas cintilantes, que brilhavam com matizes branco-azulados. Por ela passaram passos apressados em direcção ao sopé da colina e cerrou as pálpebras quando uma silhueta lhe obstruiu a visão das estrelas.

 

Retroceder! continuava a gritar Jabari.

 

Embora naquele momento os jovens ashbals já se tivessem apercebido de que aquilo era outra artimanha, fingiram não ser esse o seu entendimento, e agiram de acordo com as ordens que supostamente lhes eram dadas por aquela voz forte. Entretanto, ouviu-se outra, tão autoritária e persuasiva como a primeira, a de Ahmed Rish (ou seria apenas mais uma artimanha), ordenando-lhes que continuassem a avançar, a qual se fazia ouvir com clareza por entre a escuridão e, de facto, era possível escutá-la apesar dos ruídos de estática dos poucos rádios de campanha ainda em funcionamento.

 

Em frente! Atacar! Sigam-me!

 

Contudo, a outra voz que soava vinda de um ponto mais abaixo na vertente, contrapunha, mais premente:

 

Recuar! Retroceder!

 

Era por de mais evidente que seria mais fácil a qualquer pessoa descer a colina do que subi-la... para não mencionar que era bastante menos mortífero. Na verdade, o fogo dos israelitas pareceu abrandar, como se esperassem para ver qual seria o desfecho da situação. O significado daquela pausa, do ponto de vista dos ashbals, era claro e os israelitas davam a impressão de estar a dizer: «Já não estão encurralados na encosta. A porta das traseiras foi aberta, ide em paz.”

 

Próximo do centro da linha defensiva, vinte metros por detrás desse perímetro, Peter Kahn e David Becker estavam junto da botija de nitrogénio. Acoplada à válvula via-se um espeque oco enganchado noutros retirados ao sistema articulado da proa do Concorde, em cujo topo fora instalado um dos assentos do aparelho, e sobre este havia sido colocado um pneu do trem de aterragem dianteiro. Kahn deu o sinal, Becker chegou um fósforo ao assento e ao pneu ensopados em combustível e as chamas deflagraram, envolvendo os dois improvisados engenhos de arremesso, no momento em que Kahn soltou a válvula de pressão. O nitrogénio começou a fluir em jactos fortíssimos através dos espeques ocos, impulsionando o assento e a roda, que saíram disparados no sentido ascendente e, descrevendo uma trajectória em arco por cima dos parapeitos defensivos, qual imagem flamejante retirada do Livro de Ezequiel, embateram na vertente, projectando partículas incandescentes da roda envolta em chamas. O assento e o pneu rolaram aos ressaltos pela encosta, furando as fileiras dos ashbals.

 

Kahn e Becker recolheram aquela espécie de aríete, prenderam à extremidade outro assento e um segundo pneu, o último, e catapultaram o «míssil», que se elevou com um grande impulso, para logo a seguir prenderem um terceiro assento, apontando-o mais para sul, e repetirem o gesto.

 

Os ashbals viraram-se para trás, inicialmente apenas alguns, mas pouco depois todos lhes seguiram o exemplo, incluindo os graduados que restavam. Deslocavam-se com rapidez, mas não largaram a correr nem começaram a dispersar desordenadamente. Recolhiam alguns feridos sempre que as circunstâncias o permitiam, mas deixaram os mortos e os moribundos para os chacais e abutres, enquanto outros feridos, que não eram auxiliados, se arrastavam como podiam pela vertente abaixo.

 

Os israelitas haviam cessado fogo até mesmo antes de os mensageiros terem transmitido essa ordem dada por Burg, pois o entendimento mútuo, que não necessitava ser expresso por palavras, pressupunha uma retirada dos árabes sem obstruções ou acções de retaliação. Entretanto, os ashbals recuperaram muito do seu equipamento espalhado pelo terreno, aproveitando o cessar-fogo por parte dos israelitas, mas aquilo parecia um preço baixo pelo fim das hostilidades. Foram as fileiras de ashbals, e não os seus comandantes, que tacitamente aceitaram a proposta de Israel, o que Burg considerou ser um aspecto muito importante.

 

A quietude era total no cume da colina, e nas encostas uma calma que penetrava as trevas estendia-se até às superfícies pantanosas e às colinas circundantes. O vento que soprava ininterruptamente de levante dispersava os cheiros a querosene e a cordite e, com toda a imparcialidade, cobria tanto os vivos como os mortos com uma película de finas partículas de poeira. Enquanto a zoada nos ouvidos de todos desaparecia a pouco e pouco, os sitiados tinham bem a noção de que aquela quietude era apenas temporária, resultante do pós-combate. Pouco depois, o vento, vindo de oriente, fez-se ouvir e sentir, trazendo consigo o som dos gemidos e prantos dos homens e mulheres espalhados pela vertente. Os chacais começaram a uivar ululando, qual turba romana que tivesse acabado de assistir a um confronto magnífico entre gladiadores como uma multidão ensimesmada que, remetida a um silêncio temporário, bruscamente vociferava a sua aprovação à chacina prestes a ocorrer.

 

Burg olhou para o seu relógio: toda aquela acção durara apenas trinta e nove minutos.

 

Dobkin sangrava, caído na margem esquerda do Eufrates, e, apercebendo-se de que o silêncio era total, perguntou a si mesmo qual seria o seu significado. Podia ter duas interpretações, como era evidente, e em pensamento tentou lembrar-se dos sons dos últimos quinze minutos a fim de os interpretar com a experiência do militar veterano que era, mas as dores na coxa afectavam-lhe o poder de concentração. Apesar disso, assumia que não tardaria muito em escutar os gritos de vitória dos árabes, caso o desfecho do combate tivesse pendido para esse lado. Esforçou-se então por ouvir atentamente, mas nada, um silêncio total, até que as dores e a exaustão se apoderaram dele, fazendo com que perdesse a consciência.

 

Hausner encontrou-a próximo da extremidade da encosta ocidental, olhando fixamente para a vertente íngreme que descia até ao rio. Segurava uma espingarda e ele pôs-se ao seu lado, examinando-lhe o rosto atentamente, perscrutando-lhe as feições iluminados pelo reflexo nas águas do rio.

 

Mataste alguém?

 

Eu... começou ela a titubear, virando a cabeça num movimento repentino, mas contigo não há problema, tu és compreensivo.

 

Miriam deixou que a arma tombasse e voltou-se de frente para ele, que pareceu mostrar alguma hesitação. Fazer amor era uma coisa, mostrar afecto na manhã seguinte implicava um compromisso bastante mais profundo, e não sabia se estaria preparado para isso.

 

Tu... tu és uma «desaparecida em combate».

 

Estou aqui replicou ela denotando também alguma hesitação, não desapareci e riu-se suavemente, deixando adivinhar nervosismo.

 

Também eu disse Hausner com o que lhe pareceu ser uma entoação de descrença. Conseguimos safar-nos.

 

Tive de matar uma rapariga.

 

Todos os que disparam uma arma pela primeira vez numa batalha pensam que mataram alguém.

 

Não, não é isso, matei-a realmente, ela caiu pela encosta.

 

É possível que só tenha ficado ferida ao de leve, e fugisse.

 

Não, atingi-a em cheio no peito... creio eu.

 

Não digas disparates contrapôs Hausner, mas sabendo que ela não estava a disparatar. Queria poder dizer-lhe: «Ainda bem por ti, Miriam, bem-vinda ao clube», só que não foi capaz de se obrigar a dizer aquelas palavras. Tu disparaste a arma e acreditas que mataste alguém. Ouviste-a a gritar?

 

Eu... não sei. Tudo aconteceu...

 

Vem comigo, tenho de regressar para junto dos outros. Miriam apanhou a espingarda e caminhou atrás dele. Queria dizer algo

 

neutro, como, por exemplo, «obrigada», mas, ao invés, o que lhe saiu da boca foi:

 

Amo-te e repetiu mais alto. Amo-te.

 

Hausner parou, mas não se virou para trás. Sabia antecipadamente que não sairia daquilo com vida, tinha mais certezas quanto a esse desfecho do que alguma vez sentira ao longo da vida em relação a outra coisa qualquer, mas talvez ela também não sobrevivesse. Na hipótese de Míriam vir a morrer sem que ele lhe tivesse dito que o amor dela era retribuído, isso seria uma verdadeira tragédia, todavia, na eventualidade de ela conseguir sobreviver, então o seu «amo-te» só lhe poderia causar mais desgostos. Hausner recomeçou a caminhar, ouvindo os passos dela na terra solta, um som que cada vez se deixava ficar mais para trás.

 

O rabino Levin tratava espiritual e fisicamente dos feridos: ajudava a transportar os corpos caídos na linha da frente para a cabana quase em ruínas, para em seguida lhes prestar cuidados médicos, ligando-lhes os ferimentos. Ele próprio parecia fazer parte das baixas, todo ensanguentado e de olhos cavados, para além de cheirar distintamente a mortos.

 

Depois de estarem todos reunidos dentro e em redor da cabana, o rabino registou-os num pequeno bloco de apontamentos, acrescentando o nome dos feridos na segunda noite de hostilidades aos da primeira e tomando notas sobre a sua situação clínica. O estado de Tamir continuava inalterável e, quanto aos três homens de Hausner, Rubin já estava a pé andando por todo o lado, Jaffe ficara bastante ferido e Kaplan recomeçara a sangrar. Brin falecera, informaram-no, o que deixava apenas Marcus e Alpern, dos seis iniciais, em condições físicas de cumprirem cabalmente as suas funções. Ruth Mandei continuava em estado febril, e Daniel Jacoby e Rachel Baum, atingidos ao mesmo tempo, não davam mostras de melhoras. Abel Geller, um dos comissários de bordo, sangrava profusamente, às portas da morte, deitado no chão da cabana, com o uniforme branco todo manchado de vermelho. Numa reentrância no chão, de tijoleira antiga, começara a acumular-se o sangue de várias pessoas e, de cada vez que o rabino chapinhava essa poça, dela saía um som cavo. Havia mais seis feridos que ele não conhecia, tendo optado por lhes atribuir números até ter oportunidade de se inteirar das respectivas identidades.

 

Levin, que sentia necessidade de respirar um pouco de ar puro, saiu da cabana e deu-se conta de que havia mais baixas. Shimon Peled, o assessor do ministro dos Negócios Estrangeiros, estava morto, encostado a uma das paredes do casebre, mas não falecera do ferimento, que, aliás, era de pouca gravidade, antes de um ataque cardíaco. Dado como incapacitado para qualquer acção militar, insistira, apesar disso, em que lhe dessem uma espingarda, e Levin abanou a cabeça com tristeza. Durante as horas e dias que se avizinhavam, certamente que assistiria a muitos exemplos de estupidez e teimosia que passariam por bravura. Descobriu algumas toalhas e cobriu o rosto de Peled com uma delas estranho costume aquele, ocultar o rosto dos mortos. Depois, avistou duas raparigas encostadas a uma parede, que também tinham morrido, e dispôs os seus corpos de forma a ficarem numa posição mais condizente com o repouso eterno, cerrando-lhes os olhos sem vida outro costume estranho, caso uma pessoa reflectisse nisso, após o que tapou igualmente os rostos das jovens com toalhas. Mais tarde, informar-se-ia sobre os seus nomes.

 

No entanto, as baixas mais pesadas tinham-se verificado nas posições avançadas, com a morte de seis israelitas de ambos os sexos, e o rabino deu entrada dos nomes destas vítimas no seu pequeno caderno: Deborah Gideon, Yigael Tekoah, Micah Goren, Hannah Shiloah, Reuben Taber e Leah Ilsar. Logo que tivesse uns minutos livres, tencionava rezar uma oração por eles.

 

E por onde andaria Hausner? Fora dado como desaparecido, como morto e depois como vivo, mas nem mesmo ele conseguiria assumir os três estados em simultâneo, e Levin perguntou-se se ficariam melhor ou pior sem a sua presença. E quanto a Dobkin? Teria conseguido ludibriar as sentinelas árabes? Não podia esquecer-se de rezar uma oração pelo general.

 

Quando o rabino voltou a entrar na cabana, Beth Abrams desmaiou devido ao calor intenso e ao cheiro nauseante, e Levin levou-a para o exterior, mas ela recuperou a consciência antes mesmo que tivesse tempo de a sentar, insistindo em retomar os cuidados médicos que dispensava aos feridos. O rabino suspirou, cedendo à vontade da rapariga, sim, aquela seria uma noite muito longa e terrível. Naquele momento, ocorreu à mente do rabino um pensamento muito pouco ortodoxo: se todos começassem a olhar por si em primeiro lugar, então, todos teriam pelo menos uma pessoa que zelasse pelos seus interesses. Era um pensamento que talvez não fosse o mais adequado à mente de um religioso mas o certo é que lhe agradava, e respirou fundo, regressando à cabana.

 

Nessa noite, não houve manifestações de regozijo entre os israelitas, pois, se bem que tivessem conseguido levar a cabo uma extraordinária façanha militar, não só o preço fora demasiado elevado, como também estavam bem cientes de que o pior ainda estava para vir. A partir de agora, enfrentariam o espectro da fome e da sede, que já espreitava. Os feridos ingeriam grandes quantidades de água e os seus gemidos e gritos ecoavam por todo o cume da colina, minando insidiosamente o moral dos outros.

 

Organizou-se um grupo que percorreu a encosta, tentando apanhar armamento abandonado, e outras três equipas de trabalho foram incumbidas de ir às posições avançadas. Quando trouxeram os cadáveres mutilados de Jvlicah Goren e Hannah Shiloah, entre os sitiados muitos choraram de desgosto e os corpos de Reuben Taber e Leah Usar, ambos com orifícios redondos na testa, foram também juntar-se aos mortos nas traseiras do casebre.

 

Ocasionalmente, ouvia-se um tiro isolado, que ecoava na encosta, e embora tanto os homens como as mulheres, no cimo da colina, fingissem não ouvir esses disparos, era impossível não se aperceberem de que cada vez se ouviam menos gemidos dos árabes que haviam sido deixados para trás.

 

Os israelitas precisavam desesperadamente de algo que lhes levantasse o moral, o que encontraram na pessoa de Yigael Tekoah. O homem já gozara do estatuto de herói presumivelmente, o de um herói morto por, com risco da própria vida, ter dado o alerta, mas actualmente era um herói vivo, que fora encontrado com ferimentos múltiplos, embora nenhum mortal, e levado para trás das linhas defensivas. Durante os períodos em que recuperava a consciência, contou o que fizera para tentar salvar a vida de Deborah Gideon e perguntava constantemente pela rapariga. Tinha a certeza de que ela estava bem, o que levou os outros a enviarem imediatamente um mensageiro com a missão de comunicar aos grupos que procuravam sobreviventes o que Tekoah dissera quanto ao seu possível paradeiro.

 

No posto avançado número dois, viram o sítio onde a rapariga estivera enterrada no solo, embora não avistassem qualquer vestígio da sua presença, e, depois de chamarem por ela enquanto passavam toda aquela área a pente fino, chegaram à conclusão de que deveria ter sido feita prisioneira.

 

Jacob Hausner juntou-se a Burg no posto de comando, observando a lua cheia que se erguia no firmamento a oriente. A ser verdade que esta fazia com que os lunáticos ficassem desassossegados, então, naquela noite, Ahmed Rish deveria estar a uivar. Toda a superfície da vertente adquiriu uma tonalidade branco-azulácea, o que permitia ver com toda a clareza, e em toda a sua extensão, o resultado daquela carnificina.

 

Não podemos fazer nada até que a Lua se ponha comentou Hausner.

 

Burg assentiu com um gesto de cabeça. O próximo período de escuridão, entre o desaparecimento da Lua e o começo do lusco-fusco da manhã, teria a duração de aproximadamente hora e meia, e perguntou a si mesmo se Rish o aproveitaria para levar a cabo um ataque, pois essa semipenumbra poderia apanhá-lo na vertente, o que significaria o fim dele e dos seus homens.

 

É possível que eles já estejam fartos acrescentou Hausner em voz alta.

 

Os sons horríveis que sempre se sucedem a uma batalha pairavam na noite: os gemidos, os gritos de dor, os choros, as respirações arfantes devidas a esforços necessários, os passos arrastados e pesados dos que tinham chegado ao limite das suas forças, o som de vómitos e o detonar ocasional de um coup de grace, dado a alguém caído na encosta, às portas da morte. Aqueles sons eram bastante mais inquietantes do que os ruídos característicos do confronto militar que lhes dera origem, reflectia Hausner, olhando fixamente para o cadáver de Nathan Brin, o qual ainda não fora removido do local onde tombara. Queria ser capaz de dizer qualquer coisa em voz alta ou tocar no morto, mas Naomi Haber, que continuava de serviço armada com a espingarda de mira telescópica, já se encontrava à beira de um ataque de histeria. A pouca capacidade para a compaixão que ainda lhe restava seria mais bem empregada nos vivos, pensou Hausner. Em silêncio, proferiu umas palavras de despedida dedicadas à memória do jovem, que, em vida, fora uma grande fonte de optimismo e força moral, após o que se abeirou da rapariga, rodeando-lhe os ombros com um braço. Sentia-se fascinado pela forma como os jovens se apegavam uns aos outros num tão curto período de tempo, mas foi então que se recordou da sua própria situação.

 

Conheço uma mulher que para mim é muito importante e que esta noite também foi forçada a matar. Ela é uma pacifista profissional, não obstante, está a lidar bem com essa situação.

 

Eu sinto-me bem retorquiu Haber, pousando a arma no chão. Não me vou deixar ir abaixo, só quero que me permita cumprir aquilo de que fui incumbida.

 

Limpou os olhos, continuando a perscrutar a colina através da mira telescópica, e Hausner afastou-se, iniciando a inspecção solitária ao perímetro defensivo.

 

Com o decorrer da noite, o choque foi-se esbatendo, permitindo que a maior parte dos que defendiam a colina retomassem o seu estado normal, e tudo recomeçou a funcionar dentro da rotina estabelecida. A escassa provisão de água e as munições foram distribuídas equitativamente, os feridos tratados e, onde tal fosse possível, a linha de defesa reparada.

 

Depois de Hausner ter completado a sua inspecção ao cordão defensivo juntou-se a Burg e os dois dirigiram-se para a carlinga do Concorde. Quando entraram, viram que Becker tentava comunicar via rádio, e os ruídos provocados pelo sistema de obstrução quebraram o silêncio que reinava na carlinga. O piloto desligou o aparelho e comentou:

 

O Lear continua na pista e muito provavelmente não descolará para se reabastecer antes do nascer do dia.

 

Pois bem, sendo assim, voltaremos a tentar nessa altura disse Hausner, bebendo um trago enorme directamente de uma garrafa que continha vinho doce de Israel, a ração que coubera a Becker.

 

Fez uma careta e, mesmo não conseguindo ler o rótulo, soube imediatamente que não era Trockenbeerenauslese. Sentou-se no assento retráctil fixo à parede e apanhou do chão, onde os deixara, os dados referentes ao perfil psicológico de Ahmed Rish, após o que começou a folhear o dossiê com uma expressão abstracta.

 

Um dos nossos brilhantes psiquiatras do exército afirma aqui que o Ahmed Rish responderia favoravelmente a uma terapia a que fosse sujeito. Não especifica de que tipo seria, mas presumo que se tenha referido à decapitação. Soergueu o olhar. Isaac, se você fosse o Ahmed Rish, o que faria a seguir?

 

Burg, sentado no assento rotativo do engenheiro de voo, deu meia volta, cruzando as pernas enquanto levava um fósforo ao fornilho do cachimbo.

 

Se eu fosse paranóico, acho que estaria tão desejoso de vingança que chefiaria aqueles pobres desgraçados pela colina acima.

 

Mas será que eles o seguirão? perguntou Becker.

 

Foi isso que tentámos descobrir há pouco retorquiu Hausner. Estou certo de que o Rish conseguirá convencê-los da nossa fraqueza, ele é capaz de fazer isso. Agora dispõe de uma prisioneira e, independentemente do que ela lhe possa dizer a nosso respeito, Rish traduzirá essas informações de modo a ajustá-las às suas próprias conveniências.

 

Fez-se um longo silêncio no interior da carlinga e cada um deles via com os olhos da mente a imagem de Deborah Gideon à mercê de Ahmed Rish toda nua, brutalizada, psicologicamente desfeita, sozinha e... à beira da morte. Hausner tinha esperança de que ela poupasse a si própria um sofrimento atroz, dizendo-lhes tudo o que sabia, pois não era muito, e manter segredo não compensava os tormentos a que seria sujeita. Contudo, receava que a torturassem, quaisquer que fossem as circunstâncias, apenas pelo prazer que tal lhes propiciaria. Tinha dificuldade em nutrir sentimentos de cólera por Rish, sentindo-se, isso sim, condoído pela má sorte que estava reservada à jovem. Qualquer sentimento de cólera contra o árabe seria o tipo mais puro de hipocrisia que se pudesse conceber, tal como Muhammad Assad poderia atestar.

 

Com um pouco de tabaco para cachimbo de Burg e uma mortalha improvisada com um pedaço de papel rasgado de uma carta meteorológica, Becker enrolou um cigarro e pigarreou, quebrando o silêncio que se instalara entre os três.

 

Neste momento, quais são as nossas hipóteses? perguntou.

 

Para lhe ser franco, as mesmas respondeu Hausner tendo a percepção de que Becker era um homem discreto. Possuímos quase trinta armas, embora não haja mais munições por cada uma do que anteriormente... acrescentou, como se estivesse a pensar em voz alta, apenas cem balas por unidade, se a memória não me falha. As nossas posições defensivas estão quase totalmente destruídas, com a agravante de não termos a energia necessária para as reconstruirmos. Já utilizámos todos os nossos estratagemas, além de que eles nunca se deixariam enganar duas vezes pelas mesmas artimanhas. Brin está morto e, muito provavelmente, a energia da M-14 encontra-se prestes a chegar ao fim. Seja como for, só nos restam dez balas para ela. Já encarreguei dois homens de tentarem adaptar a mira telescópica a uma das AK-47. Bebeu outro grande gole da garrafa de vinho, engolindo-o antes que o paladar se lhe instalasse na língua. A propósito como vamos de combustível?

 

Custa a acreditar que os instrumentos de bordo possam estar tão dessincronizados replicou Becker com um sorriso. Não sei donde veio todo o que temos.

 

Não diga isso ao rabino atalhou Hausner, se o fizer, teremos de ouvir um sermão subordinado ao tema do combustível sagrado. De qualquer maneira, já esgotámos todos os recipientes que poderíamos utilizar para os cocktails molotov e os que nos restam são muito poucos. Acabou de beber o vinho que ainda havia na garrafa e deixou-a cair no chão. Mas não nos esqueçamos de que você fez uma pergunta quanto às nossas hipóteses, e estas continuam a depender inteiramente dos ashbals, não somos nós que as ditamos, temos de nos limitar a aguardar a jogada seguinte por parte deles. Baixou o olhar para a pasta de cartolina que tinha sobre as coxas e examinou minuciosamente a fotografia de Rish. Ahmed disse em voz baixa, se possuísses um grama de saúde mental, pôr-te-ias a andar da Babilónia antes que se transforme na tua campa. Mas, como é óbvio, não é isso que farás.

 

Teddy Laskov observava a fotografia de Rish.

 

Fala comigo, Ahmed.

 

Itzhak Talman bebia pequenos goles de vinho do Porto, folheando a sua própria pasta, onde guardava os documentos que reunira sobre Rish.

 

Porque será que ainda não tivemos notícias dele? O que pretenderá ele?^

 

Aquela hora, o Michel’s era muito barulhento, estava cheio, e quase todas as conversas que a clientela travava relacionavam-se com a missão de paz até dava a impressão que falar de outro assunto demonstraria falta de patriotismo. Todos os que se encontravam no café reconheceram os antigos generais da Hei Avir, mas ninguém os olhava com fixidez, por isso eles estavam à vontade.

 

Não acredito que os tenha capturado adiantou Laskov, beberricando a sua vodca. Se assim fosse, já teríamos recebido notícias de Rish.

 

Teddy, se não foram capturados, só podem estar mortos. Laskov debruçou-se bruscamente sobre o tampo da mesa, entornando

 

alguma vodca do seu copo.

 

Estão vivos, sei que sim, sinto-o nos ossos.

 

Então, aprisionaram-nos, mas aonde?

 

Na Babilónia.

 

Aquela palavra surpreendeu tanto Talman quanto o próprio Laskov, talvez porque usavam sempre o vocábulo hebraico shrym, «feito cativo», em vez das expressões «mantido como refém», ou «feito prisioneiro». Aquela associação de palavras era inevitável e talvez a vodca contribuísse em parte para essa linha de raciocínio, ou possivelmente seria mais do que uma mera associação de ideias à mistura com álcool.

 

Babilónia repetiu Laskov sentindo que estava na senda da verdade, Babilónia insistiu uma vez mais, levantando-se e fazendo girar a cadeira de forma a ficar com o espaldar virado para a mesa. Babilónia! quase gritou, fazendo com que algumas cabeças se virassem na sua direcção.

 

Talman pegou-lhe num braço, mas Laskov afastou-se, meteu os papéis de qualquer maneira dentro da pasta e correu para a rua, deixando sozinho o general, que se apressou a lançar para cima da mesa um punhado de notas.

 

Já cá fora, Talman ainda teve tempo de saltar para o táxi, sentando-se ao lado de Laskov, no preciso momento em que este se preparava para arrancar.

 

Para Jerusalém! gritou Laskov ao motorista. Depressa, é uma emergência nacional!

 

Talman puxou a porta para si quando o taxista, para quem infringir os limites de velocidade não era novidade, o que acontecia sempre que alguém lhe gritava «emergência nacional», acelerou, contornando o Largo de São Jorge e virando em direcção à estrada que os levaria a Jerusalém.

 

Babilónia repetiu Laskov uma vez mais, mas desta feita numa voz mais calma.

 

O motorista lançou um olhar de fugida por cima do ombro, observando o rosto dos seus passageiros no espelho retrovisor.

 

Babilónia secundou Talman, mas não com tanta convicção. Sim, é possível.

 

Babilónia disse Jacob Hausner, lendo atentamente o perfil psicológico de Rish, a Babilónia em toda a sua desolação não é uma visão tão apocalíptica quanto uma mente humana em descalabro lera aquilo algures. Entretanto, já descobrira a garrafa meia de vinho que coubera a Kahn de ração e apanhou-a do chão. Muito agradável, bebeu um longo trago directamente da garrafa, mas já não tinha estômago para mais, vendo-se forçado a cuspir o vinho. Se eu alguma vez conseguir regressar a Haifa, tenciono dedicar as minhas energias, e vastos talentos de enólogo, a aperfeiçoar um bom vinho de cepa local.

 

Burg não se mostrou impressionado com a erudição em vitivinicultura de Hausner, nem com os seus planos para o futuro.

 

Aquilo que me deixa francamente boquiaberto comentou Burg, é termos de ficar à espera, aqui, pelo próximo passo desse lunático. Não somos nós que ditamos as regras do jogo.

 

Mas talvez devêssemos ser replicou Hausner. Talvez tenha chegado a altura de passarmos à ofensiva.

 

Burg detectou um sinal de perigo e sentou-se a direito.

 

Isso quer dizer o quê?

 

Provavelmente, neste momento os ashbals já regressaram ao acampamento, nas proximidades da Porta de Istar respondeu Hausner distendendo os membros no seu exíguo assento e, caso tenham a intenção de voltar a atacar aquando do ocaso da Lua, em primeiro lugar agrupar-se-ão ainda longe do sopé da colina, donde partirão ao assalto. Faz parte dos procedimentos militares e o ponto de referência mais apropriado para esse objectivo é a antiga muralha da cidadela. Podemos armar-lhes uma cilada aí mesmo, mais ou menos uns dez ou quinze homens seria o suficiente.

 

Por amor de Deus, Hausner atalhou Burg, não comece com devaneios a pensar que é um general. Vimo-nos aflitos para impedir que eles chegassem ao cume da colina, por isso não nos podemos dar ao luxo de enviar gente para fora destas linhas defensivas. Na hipótese de o grupo que armaria a cilada não conseguir estabelecer contacto com eles, passaríamos a ter menos dez ou quinze homens e armas aqui em cima quando o ataque começar.

 

Numa situação dessas, o grupo que tivesse por missão armar-lhes a cilada poderia acometê-los pela retaguarda argumentou Hausner ou, em alternativa, atacar o acampamento, aniquilar os feridos e os auxiliares de enfermagem, destruir o equipamento de comunicações, queimar as provisões e até mesmo, quem sabe, resgatar Deborah Gideon.

 

Burg fitou-o, por momentos, com um olhar fixo por cima do cachimbo aceso.

 

Mas quem é você, Hausner... Átila, o Huno, ou o chefe dos Serviços de Segurança da El Al? Matar os feridos... queimar as provisões, enlouqueceu? Aconselho-o a manter-se afastado do luar.

 

Desde que comecei a trabalhar na El Al que sempre o conheci louco adiantou Becker, e da entoação da sua voz transparecia algum fundo de verdade no que acabara de dizer.

 

É forçoso que façamos qualquer coisa insistiu Hausner e o mínimo é enviar um grupo que desça até ao rio para ir buscar água.

 

Mesmo que só tenha ficado um ashbal de sentinela no sopé da colina, o grupo não teria a mais pequena possibilidade contrapôs Burg. Essa encosta, melhor dizendo, fortificação, é um suicídio. Sem dúvida que encontraremos voluntários mais que suficientes, disso estou seguro, mas vejo-me forçado a opor-me ao envio de alguém para fora deste perímetro. No que, lamento dizer, se incluem posições avançadas, pois o que se passou foi um autêntico massacre.

 

Naquele momento, Burg sentia-se com mais capacidade para chefiar homens e, além do mais, Hausner havia-o, até certo ponto, abandonado, o que o levava a sentir que a sua posição saíra reforçada em resultado dessa deserção, intencional ou não. As pessoas tinham-no visto no cimo da colina, numa postura de comandante, e admitia que era uma sensação que lhe agradava sobremaneira. Já não se satisfazia em desempenhar um papel onde as suas responsabilidades fossem secundárias, era capaz de se pôr no mesmo plano de Hausner em funções de chefia, pelo que este doravante teria de levar em atenção os seus pontos de vista.

 

Temos de organizar um cordão defensivo inexpugnável, nada de incursões aleatórias. Devemos tomar medidas para que a água não se acabe e, a partir de agora, nada de posições avançadas. Vamos cerrar fileiras, como se fôssemos tartarugas recolhidas nas carapaças, aguentando até que alguém dos nossos descubra que estamos aqui.

 

Hausner levantou-se do pequeno assento retráctil e ficou a olhar fixamente para o rosto de Burg durante uns momentos que pareceram infindáveis.

 

Sabe, eu estava convencido de que o feito de convertermos os nossos pacifistas em guerreiros decididos tinha sido um milagre, mas sou forçado a concluir que milagre ainda maior foi transformar Isaac Burg, que até agora, não passava de um tipo apagado, sempre na sombra dos serviçOs secretos, num homem de substância, verdadeiramente de carne e osso, que até tem opiniões formadas! O marechal-de-campo Von Burg. Com que então agradou-lhe, não é verdade? É reconfortante ser o rei da montanha, senhor do nosso próprio destino, e ter a vida de tanta gente nas mãos. Se por acaso você cometer um erro esta noite, não ficará mais morto do que se for eu a cometê-lo, mas caso saia vencedor... ah, aí é que está o cerne da questão, Isaac. Se vencer, fá-lo-ão desfilar pela Porta de Jafa, qual imperador romano.

 

O que acabou de dizer é uma treta de merda! ripostou Burg, pondo-se de pé. Meu Deus, Hausner, não quer ajuda?

 

Becker achou mais prudente concentrar-se no seu diário de bordo, mantendo-se à margem daquela troca de palavras.

 

A única ajuda que estou disposto a aceitar retorquiu Hausner terá de vir de militares competentes, o que é o mesmo que dizer de Dobkin, nunca de si. Baixou o tom de voz. Até simpatizo consigo, Burg, mas não se atravesse no meu caminho.

 

Já o fiz, quer isso seja do seu agrado, quer não, e estou firmemente decidido a ter uma palavra em todo o processo de tomada de decisões que digam respeito à nossa situação o cachimbo de Burg agitava-se entre os lábios.

 

Hausner apercebeu-se de que ele não falava de ânimo leve e subitamente largou a rir.

 

Grande sacana! exclamou a meio caminho da saída da carlinga. De acordo, já que está disposto a bater-se de maneira tão aguerrida pelo que acha ser seu de direito, bem que o merece. Bem-vindo ao topo da pirâmide e, caso eu decida saltar, ficará sozinho outra vez. Hausner continuava a rir-se quando se encaminhou para a saída de emergência, saltando para cima da asa, mas ainda se virou para trás, gritando para o interior: Você é um pobre sacana!

 

Benjamin Dobkin observava a fisionomia de seis ou sete árabes, inclinados sobre ele e sem despregarem os olhos do seu rosto. Um deles curvou-se mais, abanando Dobkin pelo ombro. Falavam-lhe num árabe pouco escorreito, mas por que motivo?

 

Recordava-se de se ter arrastado pela margem do rio, de a certa altura desmaiar e de voltar a arrastar-se quando recuperou a consciência. Não fazia a mais pequena ideia do tempo que decorrera desde que saíra do perímetro defensivo. A Lua já ia alta e a temperatura do ar arrefecera bastante. Com lentidão, começou a mexer uma mão, com cuidado para não os alarmar, e levou-a a uma algibeira tentando encontrar os comprimidos de digitalina, mas tinham desaparecido.

 

Ao ver um dos árabes acenar-lhe com o pequeno saco de plástico, que os continha em frente da cara, estendeu a mão para os agarrar, mas o homem afastou o saco com toda a celeridade.

 

Remédio? Precisar? perguntou ele num árabe execrável.

 

Sim respondeu Dobkin. Remédio. Precisar.

 

Isto deu origem a uma troca sussurrada de palavras e um outro homem debruçou-se sobre Dobkin, erguendo qualquer coisa à frente do seu rosto.

 

Pazuzu, maléfico.

 

Dobkin ficou a olhar embasbacado para a figura satânica, a escassos centímetros dos seus olhos, cujo esgar feroz adquiria, à luz do luar, um aspecto obsceno e grotesco. Deduziu que o facto de trazer consigo aquela estatueta não o faria cair nas boas graças dos muçulmanos. Proferiu a palavra em árabe que significava arqueólogo, mas eles davam a impressão de não prestar atenção ao que lhes dizia, e o homem deixou cair a figura demoníaca no chão, voltando-lhe costas.

 

Os árabes começaram a falar entre si e foi com uma percepção muito lenta que Dobkin constatou que usavam palavras hebraicas à mistura com o seu estranho linguajar.

 

Meteu a mão por dentro da camisa, apalpou a estrela continuava no mesmo sítio e puxou o fio para fora, erguendo a medalha. A superfície reflectia a luz azul-fria da Lua.

 

Shema Yisroel Adonoi Elohenu Adonoi Echod.

 

Se tivesse descido do espaço envergando um fato espacial, o efeito das suas palavras teria sido o mesmo pois os homens pararam de falar uns com os outros e fitaram-no de olhos arregalados. Recomeçou a falar em hebraico, articulando as palavras com lentidão e cingindo-se aos termos mais clássicos, sabendo à partida que os reconheceriam da Santa Escritura.

 

O meu nome é Benjamin Dobkin, aluf recorreu à palavra do hebraico antigo para general, um aluf dos israelitas. Vim com... certamente que eles não compreenderiam essa construção verbal hebraica, pelo que recorreu à palavra árabe para avião. Preciso de ajuda, os judeus que estão na colina... na Babilónia, necessitam de vosso auxílio. Acham que podem ajudá-los?

 

O mais idoso de todos, que se ajoelhou ao lado de Dobkin, correspondia exactamente ao que seria de esperar num judeu dos tempos da Babilónia pele trigueira curtida pelo sol, barbas brancas, olhos escuros e usando uma espécie de manto até aos pés, que adejava quando ele andava, uma peça não exactamente igual a um gellebiah.

 

Claro que estamos prontos a ajudar um aluf AOS israelitas, somos parentes acrescentou o ancião.

 

Sim disse Dobkin, vocês não se esqueceram de Jerusalém.

 

Hausner percorria o cordão defensivo, o que não fazia pela primeira vez. Estava sozinho, sentia-se cansado, sequioso, esfaimado e com dores provocadas por uma dúzia de cortes e nódoas negras. Tinha náuseas, a orelha ferida pela bala que passara de raspão ardia-lhe e o vinho fazia com que sentisse a cabeça a andar um pouco à roda.

 

Ergueu o olhar até às estrelas, para a seguir se concentrar na paisagem iluminada pelo luar. Havia qualquer coisa de irresistível naquelas extensões de terra a que a Lua emprestava uma tonalidade branco-azulada. Hausner sentia-se mais que farto por estar restringido ao cume daquela colina, pof ser obrigado a ver constantemente o gigantesco Concorde com a secção da cauda destruída, como que a troçar do seu trágico erro. Estava também cansado de ver sempre as mesmas pessoas, sentir os mesmos cheiros, da proximidade com que todos eram obrigados a conviver, rodeados sempre pela mesma paisagem. Sofria daquilo que tantos homens antes dele, confinados ao interior de fortalezas, sofreram uma sensação de claustrofobia misturada com desprezo, a que o excesso de familiaridade dava origem, por tudo o que o rodeava. E, contudo, só há pouco mais de vinte e quatro horas se encontrava naquela colina com os seus companheiros de infortúnio, mas, na sua mente, tinha a percepção de que estava ali desde sempre. Em termos geográficos, o cume da colina era suficientemente espaçoso, as pessoas é que o tornavam confinante, os olhares seguiam-no constantemente para onde quer que fosse.

 

Contornou o cume até à vertente ocidental, observando a imensa superfície de terras alagadas, e ergueu as mãos ao céu.

 

Meu Deus, como desejo regressar a casa! Estou cansado e quero ir para casa! Ocorreu-lhe a famosa pergunta: «Porquê eu, meu Deus?”, e a resposta sardónica: «E porque não?», e soltou uma sonora gargalhada, gritando para si mesmo: Sim, e porque não? Jacob Hausner é tão bom como qualquer outro de quem se faça gato-sapato! Obrigado, ó Deus, não me esquecerei disto!

 

Riu-se de novo, mas logo a seguir desfez-se num choro convulsivo, caindo de joelhos sobre a terra cálida. Através das lágrimas, parecia-lhe ver as cúpulas e as torres de Jerusalém, banhadas pela luminescência de um dourado-quente do pôr do Sol. Imaginava-se num ponto alto acima da cidade, observando os rebanhos que eram conduzidos aos seus redis por rapazes que os apascentavam fora das muralhas da Cidade Antiga. Era Domingo de Páscoa e a cidade estava cheia de forasteiros. Então, de súbito, sentiu-se transportado para a moradia do seu pai, em Haifa, sobranceira à baía de águas azuis. Já era Outono Succoth, o dia de Acção de Graças, a casa tinha sido decorada com motivos alusivos às colheitas e as mesas estavam repletas de comida. Hausner era um jovem prestes a deixar o lar paterno para ir trabalhar nos serviços secretos britânicos. A vida sorria-lhe, o que sempre tinha sido a regra. Na guerra, passavam-se uns momentos deveras divertidos, montes de raparigas, e havia uma que era bastante parecida com Miriam, recordava-se ele. Miriam, nessa época, era apenas uma criança, e enquanto ela e a família eram tratadas como gado, despojadas de tudo pelos nazis, ele encontrava-se no conforto da casa do seu pai, em Haifa, lendo os filósofos germânicos, ou, em alternativa, brincava às guerras. Claro que essa situação não era por culpa sua, embora não deixasse de ser um facto inegável. Por cada vítima, havia um cônjuge, um marido, um filho, uma filha, um amigo ou amiga, ou ainda um amante, que lhes sobrevivia.

 

Mas porque haveria de sentir complexos de culpa? O sofrimento cabe a todos, mais cedo ou mais tarde. No que lhe dizia respeito essa hora tardara, mas quando chegou veio em toda a sua inteireza com desgraça, humilhação, culpabilidade, sofrimento físico, amor fútil e sem futuro, e... morte. Quando e como? E porque não agora? Baixou o olhar para a amplidão do curso do Eufrates, pondo-se em bicos de pés. E o que o impedia de saltar daquele penhasco? Mas ele queria ir para casa, queria levar Minam a casa do seu pai, vê-la sentada à mesa do jantar pascal e enchê-la de comida dar-lhe toda aquela de que tanto carecera durante a meninice e desejava poder explicar-lhe que a vida para ele durante a guerra também não havia sido tão agradável como se pudesse pensar à primeira vista. Os familiares da mãe tinham sido mortos. Estaria Miriam ao corrente dessa tragédia? Era isso o que mais ansiava sentar Míriam à mesa do jantar, altura em que congeminaria um qualquer sofrimento para si, com efeitos retroactivos, de molde a ela poder aceitá-lo como companheiro de agruras, para depois declarar o sofrimento como encerrado.

 

Hausner limpou os olhos e as faces e perguntou a si mesmo até que ponto aquele sentimentalismo repentino era fruto da ingestão de álcool, qual seria a quota-parte de Miriam Bernstein nas suas emoções e em que medida a fadiga de batalha também interferia. Em qualquer dos casos, bem no fundo do seu íntimo não acreditava que alguma vez voltasse a passar a Páscoa judaica em Haifa, e se, por obra de qualquer milagre, isso viesse a verificar-se, não seria na companhia de Miriam Bernstein.

 

O vento começou a soprar com rajadas mais fortes, levantando do chão grandes nuvens de terra e poeira. O sherji chegava com toda a força, ouvia-o a assobiar por entre a aeronave que jamais voltaria a levantar voo e que gemia como se quisesse atormentar os homens e mulheres que jaziam feridos na antiga cabana de pastores. Se Deus tinha uma voz, essa seria a do vento, pensava Hausner, e dizia tudo o que se desejasse ouvir.

 

Voltou-se para oriente e foi então que os viu aproximarem-se na sua direcção. Observava-os a saírem das colinas, envoltos num turbilhão de terra solta com que cobririam a Babilónia. Abaixo daquela Lua branco-azulácea, as bolas enormes formadas por restolho e terra solta desciam velozmente pelas encostas das montanhas circundantes, só parando quando chegavam ao sopé. Atrás destes tornados em miniatura, grandes nuvens de poeira bloqueavam a vista e Hausner girou sobre si mesmo, viu as águas do Eufrates agitadas, aos ouvidos chegava-lhe o som do seu marulhar nas margens. As poças escuras nos terrenos pantanosos agitavam-se como que inquietas, os chacais calaram-se e os bandos de aves nocturnas começaram a voar para levante aos milhares, sobrevoando as planícies lodosas. Os lírios-de-água, antes à tona do rio, ficaram submersos, não se ouvia já o coaxar das rãs, que haviam abandonado as águas, procurando os seus buracos no lodo das margens, mas sim os ruídos estranhos de uma manada de javalis selvagens, a qual se reunia na margem mais afastada.

 

O corpo de Hausner foi percorrido por um calafrio, e ele ergueu o olhar para o firmamento, perguntando-se se as rajadas de vento arrastariam consigo terra suficiente para ocultar por completo a lua cheia.

 

Teddy Laskov sentara-se à cabeceira de uma mesa comprida numa sala espaçosa espartanamente mobilada. O vento fazia estremecer as vidraças das janelas e agitava as portadas. Numa parede estavam pendurados retratos de corpo inteiro de Theodor Herzl e Chaim Weizman e numa outra fora pendurada uma fotografia a cores de Israel, a qual tinha sido tirada por um astronauta americano, Wally Schirra, aquando de uma viagem espacial a bordo de uma nave Apoio. Tanto na mesa de conferências como no chão à sua volta viam-se inúmeras pastas de couro. O primeiro-ministro já estava sentado, olhando com fixidez para os dois intrusos. Ninguém se recordava, em qualquer das sessões conjuntas do gabinete, dos chefes de Estado-Maior e do Comité Nacional para a Segurança, de alguma vêz ter existido um silêncio como o que naquele momento reinava na sala.

 

Babilónia...? perguntou o primeiro-ministro, incrédulo, tomando a palavra.

 

Sim, senhor.

 

Não estará a referir-se às pirâmides junto ao rio Nilo, general? Babilónia?!

 

Sim, senhor.

 

Trata-se de um palpite? De um pressentimento? Ou estaremos perante uma inspiração divina?

 

Um pouco de tudo isso respondeu Laskov, humedecendo os lábios.

 

Em Israel ainda era possível falar-se com os principais dirigentes políticos caso se berrasse e gritasse aos adjuntos e seguranças com a persistência devida. Em qualquer dos casos, o gabinete provisório do primeiro-ministro em Jerusalém era suficientemente acessível para que este tivesse ouvido pessoalmente os gritos de Laskov na portaria. Lançou um olhar de soslaio a Talman, que se sentava ao seu lado, tentando manter uma postura digna muito britânica, embora fosse por de mais evidente que não se sentia à vontade, sem saber bem se lhe assistiria o direito de estar ali. Laskov retomou a palavra, quebrando aquele silêncio opressivo.

 

Alguns dos dados em nosso poder, registos de radar, transmissões via rádio e outras informações do género, apontam, na minha opinião, para o Iraque.

 

A sério? E onde foi o senhor buscar essas informações, general?

 

Laskov limitou-se a um encolher de ombros. Na espaçosa sala começaram a ouvir-se inúmeros murmúrios, segredados aos ouvidos dos parceiros do lado. Laskov aguardava, olhando de relance para as altas individualidades presentes. Naquele pequeno edifício de tijolos vermelhos já se fizera muita história. Originalmente fora a sede dos Cavaleiros da Ordem do Templo e durante a Segunda Guerra Mundial os britânicos tinham-no utilizado para aí colocarem, sob prisão domiciliária, os civis alemães suspeitos de se dedicarem a actividades de espionagem, ou os que eram simpatizantes do Partido Nacional-Socialista. Jacob Hausner enviara para aquele prédio a sua quota-parte de germânicos, mas Laskov não estava a par deste pormenor. Depois da guerra, os militares britânicos instalaram o seu quartel-general naquele edifício, o que aconteceu durante o período em que haviam sido a potência administrante do território. Numa estranha coincidência, Laskov fora interrogado precisamente na sala contígua, sob suspeita de pertencer à força aérea clandestina de Israel. Agora encontrava-se ali de novo, e a secura que sentia na boca trazia-lhe ao pensamento o tipo de vida que levara nessa época. Certamente que algumas pessoas a classificariam de empolgante e romântica, porém, na sua óptica, fora pejada de perigos. Por que motivo não teria aceitado de bom grado a aposentação forçada, desaparecendo no anonimato do comum dos mortais? Devia ter deixado que o governo se preocupasse com o paradeiro da delegação que participaria na conferência de paz, e era muito possível que tivesse adoptado essa atitude não fora o facto de Miriam se encontrar entre os desaparecidos.

 

Muito bem, general continuou o primeiro-ministro. Mais tarde voltaremos a abordar a questão das suas fontes de informação. O chefe do governo levou um lenço ao colarinho aberto da sua camisola desportiva, limpando o suor do pescoço. Era um homem alto e magro, com tiques que denotavam nervosismo, num dos quais, rasgar tiras de papel, estava empenhado naquele momento. Pois bem, o que nos sugere o senhor que façamos com as informações de que nos deu conta... ou, melhor dizendo, com o seu palpite?

 

Proponho que enviemos uma aparelho de reconhecimento que dê pouco nas vistas, até à Babilónia replicou Laskov falando alto e bom som, ainda esta noite. Deverá ter por missão tirar fotografias e proceder a reconhecimentos à vista desarmada, se tal for possível. Se eles estiverem de facto nessa região, devíamos tentar dar-lhes a conhecer a nossa presença, efectuando voos a baixa altitude, numa palavra, incutindo-lhes alguma esperança. Na retaguarda do aparelho de reconhecimento deve seguir uma força de ataque formada por tropas aerotransportadas... Os F-14 para o fogo de preparação e atrás destes os C-130, com tropas dos comandos, na hipótese de haver um lugar onde possam aterrar ou, em alternativa, os mesmos C-130 com pára-quedistas caso não existam condições para isso. Talvez mesmo substituir estes aparelhos por helicópteros, mas este é um pormenor que deve ser deixado à decisão dos militares. Na hipótese de o avião de reconhecimento conseguir confirmar a presença dos desaparecidos, então, a força de intervenção deverá entrar imediatamente em acção O primeiro-ministro começou a tamborilar com a ponta do lápis sobre o tampo da mesa.

 

O senhor apresentaria alguma objecção se eu telefonasse ao rei da Jordânia para o informar de que me preparo para enviar aviões que violarão o espaço aéreo do seu país? perguntou com ironia. Ouviram-se gargalhadas, que levaram o chefe do governo a fazer uma pausa, como qualquer actor muitíssimo bem ensaiado, e depois continuou. Com certeza que o senhor não me censuraria muito se eu ligasse ao presidente do Iraque para lhe dizer, assim como quem não quer a coisa, que me preparo para invadir o seu território... com o objectivo da atacar a Babilónia em nome dos bons velhos tempos, pois não?

 

Laskov esperou pacientemente que os risos terminassem. Sem dúvida que o primeiro-ministro possuía um certo sentido de humor, mas depois de se ter divertido, acompanhado pelos membros do Knesset e pelos generais, começou a abordar o assunto com mais seriedade, revelando-se mais aberto do que seria normal naquela situação.

 

Senhor primeiro-ministro, com certeza que existe um plano de contingência para circunstâncias como estas. Por certo que não estamos à espera de encontrar a missão de paz na praia de Herzlya. Como devemos então agir?

 

O primeiro-ministro recostou-se ainda mais, instalando-se confortavelmente na cadeira, e a sua fisionomia ensombrou-se.

 

Na verdade, temos planos de resgate de reféns, mas acontece que o Iraque não consta da lista de países amigos, por isso será difícil que coopere connosco. Na realidade, se me permite acrescentar, até é potencialmente hostil, ao ponto de não se poder ignorar a possibilidade de uma declaração de guerra por parte dos seus governantes.

 

Lamento, senhor primeiro-ministro, mas, a exemplo do que acontece com todos os generais, eu não compreendo os meandros da política.

 

À semelhança de todos os generais, conhece-os até bem de mais, mas acontece que não está para se incomodar com isso. Não se faça de ingénuo comigo, Laskov, o senhor está bem ao corrente da situação entre Israel e o Iraque. Mas agora, a primeira coisa que tenho de fazer é pedir que me liguem a Bagdade.

 

Laskov assentiu reconhecendo implicitamente a admoestação que efectivamente merecia, embora não estivesse na disposição de fazer cedências.

 

Senhor primeiro-ministro começou a dizer num timbre de voz onde transparecia muita emoção desde quando deixámos nas mãos de governos estrangeiros a segurança de cidadãos israelitas?

 

Sempre que estejam em terras estranhas, general Laskov.

 

E quanto ao que aconteceu no Uganda?

 

Um lugar diferente e uma época diferente.

 

São situações em que ninguém obedece a princípios estabelecidos. Laskov respirou fundo. Veja uma coisa, senhor primeiro-ministro, tropas da Alemanha ocidental fizeram uma incursão dessa natureza na Somália, exemplo que seguimos no Uganda... Nada nos impede de repetir esse tipo de acção militar na Babilónia.

 

O primeiro-ministro retorquiu exasperado.

 

É indispensável que, antes de tudo o mais, eu faça alguns telefonemas, se não vir inconveniente nisso acrescentou, debruçando-se sobre a mesa. Seja como for, se eles se encontrarem realmente na Babilónia, não fazemos a mais pequena ideia da sua situação. Estarão mortos? Vivos? num cativeiro? Em boa verdade, senhor general, tem de reconhecer que estou a fazer muitas cedências no que respeita a esta questão. Há já trinta horas que esta sessão dura e podemos dizer que atingimos a exaustão. Contudo, o senhor entrou aqui de rompante a gritar Babilónia, interrompendo a reunião, e não o impedimos de dizer o que entendeu. Qualquer outro governo não hesitaria em pô-lo no olho da rua... ou tomaria medidas mais drásticas e bebeu um gole do café que tinha numa chávena à sua frente.

 

O som do vento quebrava o silêncio que se fez na sala, as portadas de madeira começaram a bater uma vez mais e o primeiro-ministro elevou a voz, fazendo-se ouvir acima daqueles ruídos,

 

Apesar de tudo tenho de admitir algum cabimento no que o senhor nos diz. Acredito em Deus, e estou em crer que Ele lhe segredou ao ouvido, Teddy Laskov... se bem que porquê a si e não a mim seja um mistério que me transcende. Em qualquer dos casos, vamos telefonar imediatamente ao presidente do Iraque, e quando ele enviar um avião de reconhecimento e a sua Força Aérea tiver interpretado os dados que esse aparelho recolher no terreno, teremos mais certezas quanto ao paradeiro da nossa gente. Está de acordo?

 

Não, senhor primeiro-ministro. Entretanto perder-se-á muito tempo.

 

Raios o partam, Laskov! ripostou o chefe do governo pondo-se de pé. Ponha-se a andar antes que eu me arrependa e o convoque para o serviço activo, destacando-o permanentemente para o serviço de limpeza das latrinas! Virou-se para Talman. Tem alguma coisa a acrescentar, senhor general, antes de ambos saírem desta sala?

 

Talman engoliu em seco e o seu bigode estremeceu num trejeito de nervosismo. Respirou tão fundo que a sua voz pareceu ter-se sumido quando respondeu.

 

Bem... senhor primeiro-ministro, na verdade penso que devíamos ser nós próprios a proceder a esse reconhecimento... quero dizer... bem vê, é um tipo de acção em que somos competentes, sendo possível que os iraquianos não sejam tão eficazes, além de não termos nenhum acordo de troca de informações com eles e todos sabemos que este tipo de assunto tem tendência para provocar complicações. Ora, se a iniciativa fosse nossa, no mínimo poderíamos pedir aos norte-americanos que fizessem um reconhecimento fotográfico do solo com o SR-71, a uma altitude elevada... dado que sabemos que eles não estarão dispostos a voar baixo, mas mesmo assim é possível que consigam obter algumas fotografias nítidas e...

 

Vamos com calma interrompeu o primeiro-ministro, a erguer uma mão e voltando-se para os membros do Estado-Maior, que tinham começado a dar mostras de alguma agitação. Com um gesto, indicou-lhes que se aproximassem, o que fizeram rodeando-o e começando a falar em vozes sussurradas. O primeiro-ministro soergueu o olhar. Meus senhores, quero agradecer a vossa presença, mas doravante, o assunto passa para a nossa alçada. Muito obrigado pela vossa colaboração, e agora façam o favor de se retirar.

 

Laskov caminhou num passo vagaroso atrás de Talman, com uma sensação estranha pior do que isso, concluiu depois de reflectir, por lhe ter sido pedido que saísse de uma sala onde estavam prestes a ser discutidos assuntos secretos. Era uma consequência de ter deixado de fazer parte das esferas do poder político. Os assuntos de que passara a ter conhecimento cingiam-se estritamente aos indispensáveis, limitando-se a alguns memorandos mensais enviados pelo correio, que confirmavam ter sido a pessoa a quem eram dirigidos retirada da lista de assuntos sigilosos. Em troca desta perda de poder, ganhava-se tranquilidade e paz de espírito, que andavam de mãos dadas com o tédio. Chegado à porta, Laskov voltou-se para trás. Não sabia qual o assunto que os chefes do Estado-Maior discutiam em vozes segredadas, mas ficou um tanto ou quanto mais descansado ao constatar que eram os militares que concitavam a atenção do primeiro-ministro, e não os membros do seu gabinete. Contudo, sentiu-se na obrigação de não se retirar sem proferir uma tirada de despedida.

 

Eles encontram-se na Babilónia e estão vivos, sinto-o no meu íntimo, por isso temos o direito de jogar pelo seguro. Seja qual for a conclusão a que cheguem, ela deve ter por base o bem-estar deles, assim como o que a longo prazo for melhor para esta nação. Não tomem uma decisão que fique a dever-se aos vossos objectivos imediatos de carreira.

 

Houve alguém Laskov não soube quem que lhe disse acintosamente:

 

Isso é fácil de dizer quando a nossa própria carreira chegou ao fim, general.

 

Laskov virou costas e saiu.

 

O primeiro-ministro aguardou até ter a certeza de que Talman e Laskov não ouviriam as suas palavras.

 

Não sei aonde é que o Laskov foi buscar essas informações em relação a este assunto e, tal como acabaram de me recordar, também ignoramos onde o Chaim Mazar arranjou as suas. Mas se este não estiver enganado a respeito do adido da Força Aérea dos Estados Unidos... o tal Richardson, então os americanos encontram-se em dívida para connosco. Olhou para a fotografia a cores pendurada na parede, uma oferta destes últimos. Sim, estamos em posição de lhes pedir que efectuem um voo especial de reconhecimento com o SR-71, sobre o Eufrates recolhendo algumas informações para nós. Então, poderemos saber se o Laskov tem ou não razão. Bebeu um pequeno gole do seu café antes de prosseguir. Aparentemente, existe um anjo, ou qualquer outra entidade celestial, que anda por aí a voar, murmurando aos ouvidos de determinadas pessoas. Algum dos que aqui se encontram tem conhecimento de qualquer informação sigilosa? Não? Ora bem, sendo assim, temos de reconhecer que não fazemos parte dos eleitos. Minhas senhoras e meus senhores, proponho que façamos um intervalo de dez minutos.

 

As fortes rajadas dos sherji varriam toda a Babilónia, arrastando consigo toneladas de poeira e de areia. As trincheiras, tanto colectivas como individuais, que tão laboriosamente haviam sido escavadas naquela terra argilosa, encheram-se até cima no espaço de escassos minutos e as armadilhas, assim como os dispositivos que serviam para avisar da proximidade dos inimigos, foram arrastadas pela força do vento. O fosso onde haviam guardado os cocktails molotov que lhes restavam estava coberto de terra e os reflectores de alumínio, tal como as coberturas que protegiam os sitiados do sol, tudo engenhos toscos, também tinham sido levados pelas rajadas. Grande parte dos ramos de palmeira que serviam de telhado à antiga cabana de pastores tiveram o mesmo destino, e consequentemente a poeirada tinha começado a cair sobre os feridos. As armas foram embrulhadas em bocados de plástico ou em peças de roupa, para que as peças móveis ficassem defendidas, e tanto os homens como as mulheres tapavam o rosto com panos amarrados à volta da cabeça, como se fossem beduínos do deserto, caminhando todos curvados para a frente, numa tentativa para se protegerem do vento que os açoitava violentamente.

 

Somente o Concorde mantinha a posição em que ficara após a aterragem de emergência no cimo da colina, como se suportasse aquela indignidade com uma indiferença feita de altivez. As rajadas de vento assobiavam através das fendas abertas na fuselagem exterior deixando depósitos de terra por todo o interior da aeronave.

 

Hausner e Burg foram visitar os feridos e falaram com o rabino e com a enfermeira improvisada, Beth Abrams. Levin explicou que o estado da maior parte deles era estável, mas as infecções e outras complicações matariam a maior parte deles, caso não recebessem os devidos cuidados médicos dentro de pouco tempo. Depois, ambos percorreram, uma vez mais, o perímetro defensivo.

 

Eu conheço os árabes gritou Burg ao ouvido de Hausner, para que este conseguisse escutá-lo. Eles vão pensar que este vento é um bom presságio, o que os motivará para nos atacarem de novo.

 

Quanto a mim, preferia que o considerassem um bom motivo para se porem a andar retorquiu Hausner, também aos gritos.

 

Observou o céu. A Lua estava prestes a atingir o seu zénite, devendo começar a pôr-se dentro de minutos. Mais cedo ou mais tarde, as nuvens de poeira erguer-se-iam a uma altura suficiente para obscurecerem os raios de luar e, por alguns segundos, a escuridão seria quase total por todo o cume da colina. Ao olhar para a encosta oriental, ocorreu a Hausner que os Hasbbals podiam muito bem estar a dez metros de distância, sem que ninguém os ouvisse ou desse pela sua presença. Burg puxou mais para o rosto a camisola de algodão que enrolara à volta da cabeça.

 

Ainda que, por milagre, alguém descubra onde estamos, qualquer operação de resgate seria impossível nestas circunstâncias.

 

Hausner sentia-se mais preocupado com a probabilidade de serem atacados de surpresa.

 

A menos que estabeleçamos algumas posições avançadas, tenho a certeza de que seremos atacados quando menos esperarmos.

 

Seria um autêntico suicídio enviar alguém lá para baixo. Hausner pensava que o facto de ter de partilhar o poder de decisão lhe provocava uma sensação esquisita. Não, não era esquisita, era... isso sim, irritante.

 

Apesar da sua opinião, marechal-de-campo, tenciono destacar pelo menos um homem... ou uma mulher. De facto, até é possível que vá eu próprio.

 

Burg perguntou-se se aquilo não seria uma boa ideia, mas remeteu-se ao mutismo.

 

Quando se encaminharam para o outro lado do cume da colina, o vento empurrou-os com tal violência que tiveram de se firmar para não serem derrubados pela força das rajadas. Chegados à primeira posição defensiva, viram duas mulheres que dormiam no que restava de uma trincheira individual, tapadas com um cobertor azul da El Al sobre o qual a terra se acumulara, o mesmo acontecendo aos corpos parcialmente expostos.

 

Hausner recordou-se da prelecção de Dobkin sobre a similaridade que existia entre as antigas cidades soterradas e as pessoas amortalhadas, e ficou a olhar para aquelas formas no seu sono desassossegado. As probabilidades de os árabes atacarem pela encosta ocidental eram muito remotas. De facto, o mais provável seria não restar nenhum ashbal naquela vertente, mas, em qualquer dos casos conseguiriam eles subir até ao cume açoitados por aquela ventania? Era uma hipótese irrelevante. Assim que Hausner avistou as mulheres adormecidas, sentiu um pequeno baque no coração. No decorrer de todas as inspecções que efectuara, ele, a exemplo de milhões de oficiais e sargentos responsáveis por sistemas de vigilância, esperara nunca se ver confrontado com uma caso daqueles. O sono, uma necessidade natural e inócua na vida civil, era uma infracção das mais graves para uma sentinela, em todos os exércitos do mundo.

 

Hausner agachou-se junto das duas mulheres pigarreando, esperando sinceramente que elas, sobressaltadas, se pusessem de pé de imediato, de forma a dar-lhes apenas uma reprimenda, mas nenhuma delas deu mostras de ter dado conta da sua presença. Sentia os olhos de Burg presos a si e não podia restar a mais pequena dúvida de que ambas estavam profundamente adormecidas. Estendeu a mão, afastando o cobertor: Esther Arotson. Puxou-o mais para trás: Miriam.

 

Uma delas devia estar de plantão, permitindo que a outra dormisse com toda a legitimidade, ou seja, uma viveria para partilhar do destino de todos eles, enquanto a outra corria o risco de ser abatida na próxima hora

 

Míriam chamou, mas nenhuma se mexeu.

 

Burg contornou Hausner, colocando-se no seu campo de visão, acocorou-se ao seu lado e, com suavidade, pegou na AK-47 caída ao lado das mulheres. Hausner sabia que aquela medida fazia parte dos regulamentos militares, para além de também se aperceber de que a situação estava a deteriorar-se com grande rapidez.

 

Perscrutou atentamente a fisionomia de Burg, mas não conseguiu ler nada na sua expressão, ele afivelara a sua expressão mais indecifrável. Estaria disposto a deixar passar o incidente em branco? Hausner perguntava a si mesmo se procederia assim caso estivesse sozinho, como era seu costume, e concluiu que o teria feito. Pousou a mão num ombro de Miriam, abanando-a.

 

Miriam chamou, e reparou que a voz lhe saía tremida, tal como acontecia com a sua mão. Miriam!

 

De súbito sentiu-se invadido por um sentimento de cólera por ser forçado a lidar com uma situação daquelas, por se ver confrontado, por obra do destino, com outro dilema.

 

Miriam, raios te partam!

 

Oh! exclamou ela sobressaltada, sentando-se apressadamente.

 

De que horas a que horas devia estar de sentinela? perguntou Burg com brusquidão, num tom autoritário, aproximando-se e agarrando-a por um braço.

 

O quê? replicou ela ainda meio ensonada. Oh! De sentinela. Da meia-noite às duas horas e das quatro até ao nascer do Sol. Porquê?

 

Miriam olhou em redor com uma expressão de perplexidade, viu Hausner, e foi então que constatou que Esther Aronson dormia ao seu lado, compreendendo o que se estava a passar.

 

Burg viu rapidamente as horas no seu relógio de pulso: Passavam quinze minutos da meia-noite.

 

A Esther Aronson não a acordou para o seu turno de sentinela? perguntou em voz alta. Então...?

 

Miriam olhou Hausner com fixidez, mas este desviou o olhar.

 

Ela despertou-a ou não? insistiu Burg, enquanto a sacudia.

 

Sim confirmou Míriam.

 

Nesse caso, sou obrigado a dar-lhe voz de prisão por ter adormecido quando devia estar de guarda. Devo avisá-la de que esta é uma infracção extremamente grave, senhora Bernstein.

 

Miriam levantou-se. As rajadas açoitavam-lhe as roupas e o cabelo, enquanto a areia parecia flagelar-lhe o rosto.

 

Estou a ver retorquiu ela, alisando o vestuário e olhando-o bem de frente. Claro, estou a compreender, pus em perigo a vida de todos e por isso devo ser punida.

- O que acabou de dizer está correcto assentiu Burg, virando-se para Hausner. Não é verdade?

 

A custo, este conteve o impulso de lhe dar um murro em cheio, que o aremessaria pela vertente, mas preferiu baixar o olhar para Esther Aronson, que continuava adormecida, e depois fitou Miriam. A falta de popularidade de que gozava, passada e presente, devia-se em grande medida ao que as pessoas apelidavam de disciplina teutónica, o que, até ao momento, nunca o incomodara minimamente. Na civilização de que fazia parte, existiam sempre pessoas que intervinham a fim de suavizar a sua atitude de tirania, mas agora via-se perante um homem que queria pô-lo à prova ou que, de facto, desejava efectivamente fazer de Miriam Bernstein um exemplo para os outros. Aquela situação era absolutamente inacreditável, contudo, ali tudo era possível. Não era verdade que Burg e Dobkin tinham considerado a hipótese de o pôr face a um pelotão de fuzilamento?

 

É correcto ou não? repetiu Burg. É correcto ou não que... Miriam Bernstein deve sofrer as consequências de ter colocado em risco a vida de quase cinquenta pessoas?

 

Hausner ficou a olhar para Míriam, vestida de trevas e poeira, com um lenço que levava ao rosto, qual criança desamparada.

 

Sim concordou por fim. Temos de a julgar... amanhã de manhã.

 

Agora! replicou Burg inflexível. É muito possível que para nós não haja amanhã. A disciplina no campo de batalha tem de ser rápida e infalível, é assim que as coisas devem ser feitas. Agora!

 

Amanhã de manhã insistiu Hausner, abeirando-se de Burg.

 

O general Dobkin estava deitado sobre uma enxerga num casebre de lama. O vento entrava pelas portadas fechadas, depositando terriça sobre o seu corpo. A chama da candeia bruxuleava, mas não se apagava. O homem deitado numa enxerga ao seu lado mexeu-se, depois resmungou e Dobkin apercebeu-se de que ele acordara. Falou-lhe num árabe mais ou menos razoável.

 

Quem é você?

 

Quem é você? perguntou o outro por sua vez.

 

Dobkin adivinhou que aquele homem também havia sido retirado do rio. Estava descalço e sem camisa, mas usava o que dava a impressão de ser um par de calças camuflado igual ao dos «gatos-monteses». O mais idoso dos aldeãos, que dava pelo nome de Shear-Jashub, perguntara a Dobkin se o outro ferido também era judeu, mas o general mentira-lhe dizendo-lhe que não sabia, e naquele momento sentia-se quase certo de que o homem com quem falava era um ashbal. Shear-Jashub, que era um rabino no sentido que a palavra tivera na Antiguidade um professor que nunca fora ordenado, um mestre, perguntara depois a Dobkin se existia alguma razão para que o homem não fosse tratado, ou que o impedisse de ser colocado na cabana do aluf, e este respondera que não havia qualquer motivo para que isso não fosse feito.

 

Agora, observava o indivíduo demoradamente antes de voltar a faljj

 

Sou um pescador, o meu dhow virou-se com o vento e fiquei ferido. Estes judeus encontraram-me e auxiliaram-me.

 

O homem voltou-se, encarando Dobkin, e a chama tremeluzente da candeia iluminou-lhe parcialmente o rosto, fazendo com que o general ficasse quase sem respiração ao ver-lhe as feições, com o olhar fixo na sua face grotesca. Não lhe escapou que a desfiguração já era antiga e estava bem cicatrizada, pelo que não se tratava de um ferimento recente. Reparou que o ashbal naquele momento não lhe restava a mínima dúvida O avaliava, observando o seu corte de cabelo, as mãos e os braços desnudados, que se encontravam fora do cobertor. Dobkin descalçara as botas, que colocara num sítio onde a luz da candeia não chegava, e talvez o homem ainda não as tivesse visto, contudo, Dobkin apercebia-se de que o outro já vira o suficiente para saber que ele não era um pescador do Eufrates.

 

Numa atitude de indiferença, o árabe rolou, deitando-se de costas.

 

Ora bem, pescador, isto é uma situação curiosa... estarmos em dívida para com estes judeus que nos ajudaram.

 

Os infortúnios dão origem a camaradagens bastante estranhas concordou Dobkin, lançando um olhar de esguelha ao homem. Sim, estava certo de o ter visto quando corria para o rio, recordava-se daquele rosto como um pesadelo pouco nítido... mas ali estava ele, em carne e osso.

 

Qual é o seu nome? perguntou.

 

Sayid Talib. E você, como se chama?

 

Dobkin hesitou, com uma vontade enorme, perversa, de lhe dizer a verdade, incluindo que era general de infantaria do exército israelita.

 

Trate-me apenas por «pescador».

 

A maneira como falava árabe não era a mais correcta, mas procurava exprimir-se sofrivelmente nessa língua, de forma a que Talib tivesse uma razão para acreditar naquela farsa. Contudo, pareceu-lhe que ambos esperavam apenas a oportunidade de se lançarem um ao outro e uma palavra menos adequada seria o suficiente. Perguntava-se se Talib teria, por seu turno, tido ocasião de o ver bem na encosta da colina.

 

Dobkin também se interrogava quanto à gravidade do ferimento do ashbal. E quanto a ele próprio, até que ponto estaria incapacitado? Flexionou os músculos por baixo do cobertor, respirando fundo, e ficou com â impressão de que recuperara algumas das suas forças.

 

A candeia, que não passava de um pequeno pires com um pavio no azeite, continuava a bruxulear no chão entre os dois. Devagar, Dobkin observou o que se encontrava à sua volta, mas, além do cobertor, nada viu. De maneira despercebida, apalpou o corpo, verificando que a sua faca desaparecera, e censurou-se por não ter pedido uma a um dos judeus. No entanto, sentiu algo duro dentro do bolso superior, o Pazuzu tinham-lhe devolvido a estatueta obscena.

 

Dobkin e Talib continuavam deitados de lado sem desprenderem o olhar um do outro, ouvindo o soprar do vento e observando a chama bruxuleante da candeia.

 

. Como tem corrido a pesca?

 

-Até hoje à noite foi boa. O que disse que fazia?

 

Sou negociante de tâmaras.

 

Ocasionalmente, as máscaras iam caindo, permitindo que cada um visse nos olhos do outro uma expressão de ódio, temor e ameaça.. Como veio parar ao rio?

 

Da mesma forma que você.

 

O diálogo esmoreceu e nenhum deles se mexeu durante bastante tempo, mas Dobkin sentia a boca cada vez mais seca, enquanto os músculos eram percorridos por contracções nervosas.

 

Pouco depois, uma rajada de vento mais forte abriu a portada da janela, extinguindo a chama da candeia, e os dois homens, soltando um grito animalesco na escuridão, atiraram-se à garganta um do outro.

 

Deborah Gideon estava deitada, nua, no chão de tijoleira do gabinete do gerente da casa de hóspedes. Tinha as costas cheias de vergões, pois fora açoitada, além de pequenas queimaduras arredondadas feitas com a ponta incandescente de cigarros. As coxas estavam manchadas de sangue, que lhe escorrera para a região inferior das pernas, bem como as nádegas, ferimentos que, ao que tudo indicava, lhe haviam sido infligidos por um animal. Por seu turno, Ahmed Push lavava as mãos e o rosto numa bacia.

 

Fuzilem-na disse a Hamadi.

 

Este chamou o guarda que estava de serviço na recepção.

 

Kassim.

 

Push enxugou as mãos. O que a rapariga lhe dissera sobre o número de israelitas, as posições destes e a disposição geográfica dos meios defensivos pouco mais acrescentara àquilo de que se havia inteirado da maneira mais difícil, mas agora encontrava-se na posse de elementos que lhe permitiriam elaborar um relatório, o qual tencionava apresentar aos seus homens, para que acreditassem no que lhes dizia.

 

Dentro de uma hora poderemos estar naquela colina, Salem, se o sherji não nos abandonar. Ele impulsionará os nossos homens pela encosta acima, além de que servirá para camuflar os movimentos e os ruídos que possamos fazer.

 

Hamadi fez que sim com a cabeça. Aquele vento devia ter sido enviado por Alá, uma vez que, caso não surgisse, sabia que Rish e ele teriam sido chacinados pelos seus próprios homens, mas, inexplicável e estranhamente, parecia que só Rish não se dava conta desta realidade.

 

Vou mandar reunir a nossa gente.

 

Óptimo. Rish baixou o olhar, observando Deborah Gideon e depois o homem que mandara chamar e que a fitava com um olhar fixo. ” Sim, sim, Kassim, podes servir-te dela como te apetecer, mas em seguida tens de a abater, queimar o corpo e atirar as cinzas ao rio. Não quero que fique nenhuma prova. Dadas aquelas instruções, virou-se para Hamadi. Uma operação militar é uma coisa, mas tortura e assassínio são outras inteiramente diferentes. Amanhã vamos ter de iniciar as negociações com Israel quanto ao destino dos reféns.

 

Hamadi assentiu. Rish agia sem qualquer lógica, as suas atitudes eram inconsequentes, como só um homem mentalmente incapacitado faria. E não fosse um herói aos olhos de todo o povo palestiniano, há muito que Hamadi o teria assassinado com as próprias mãos. A imagem de Rish, como um animal de quatro patas, a abocanhar aquela rapariga dera-lhe volta ao estômago. Hamadi já torturara pessoas em diversas ocasiões, mas aquilo que o seu chefe fizera era algo totalmente diverso e perverso. Sem dúvida que as chicotadas e as queimaduras de cigarros tinham provocado mais dores do que as dentadas, mas fora a atitude daquele homem tresloucado e animalesco que a açoitara, enquanto uivava e lhe despedaçava a carne à dentada, que lhe instilara um terror levado ao extremo, fazendo com que ela tivesse gritado tudo o que Rish queria saber. Hamadi não tinha por onde censurá-la, só desejava que os homens, cá fora, não suspeitassem do que se estava a passar naquela sala. Virou costas, saiu do gabinete e atravessou um pequeno vestíbulo, que dava para a varanda.

 

O que lhe restava dos palestinianos, cerca de cinquenta homens e mulheres, sentavam-se de pernas cruzadas, em grupo, debaixo das tendas abertas, enquanto seguravam as estacas que as mantinham de pé. Hamadi soprou no seu apito e, imediatamente, os ashbals acercaram-se num passo apressado, deixando cair as tendas. Ficaram de pé ao vento com longos panos enrolados à volta da cara, cujas pontas adejavam atrás deles, e com os kheffiyahs todos puxados para os olhos. Hamadi ergueu a mão e gritou para que o ouvissem acima do ruído do vento.

 

Foi Alá quem nos enviou este sherji começou ele a dizer.

 

Hausner subira para a asa delta, e de lá observava as pessoas, que pareciam ter-se enfaixado em todo o tipo de vestuário, algum bastante estranho, dirigindo-se, quais fantasmas entre a poeira que o vento levantava, para os seus postos sob um luar já menos intenso àquela hora.

 

Voltou-se e entrou na cabina de passageiros. O barulho que o vento fazia através das fendas abertas na fuselagem do aparelho e o som da areia que embatia na superfície dificultavam qualquer diálogo. Haviam sido abertos alguns orifícios na parte superior para permitirem a entrada de ar, pois durante o dia fazia um calor abrasador no interior do avião, mas por esses orifícios entrara muita areia, que se acumulara em pequenos montículos por toda a coxia. Hausner encaminhou-se então para a secção posterior da cabina através da passagem que dava para a copa, próximo da qual existia um pequeno compartimento, destinado a alguma da bagagem de mão, contíguo à antepara onde a explosão abrira uma brecha enorme. Aquele compartimento estava completamente destruído, e dele emanava um vago cheiro a gasolina, plástico derretido e roupas queimadas.

 

Miriam Bernstein improvisara um colchão com algumas peças de vestuário parcialmente queimadas e sentara-se sobre ele encostada à antepara, com as pernas dobradas, de maneira que os joelhos lhe tocavam no queixo. Estava entretida a ler um livro à luz de uma pequena lanterna de mão que alguém lhe oferecera. Acima da sua cabeça também havia uma luz de emergência pouco intensa. Hausner conseguia ver, através da brecha na antepara, a superfície externa do alumínio contorcido e a estrutura da cauda. A instalação eléctrica, com os fios retorcidos, e a tubagem do sistema hidráulico emprestavam ao ambiente uma aparência espectral sob a luminosidade azulada do luar. Na sua opinião, tudo o que estava em ruínas tinha uma espécie de beleza grotesca o que se aplicava até mesmo àqueles escombros, fruto de uma tecnologia de ponta, que ali se encontravam em toda a sua imponência como que para o insultar, não deixando que se esquecesse do motivo que os levara àquela situação. Baixou o olhar até ao rosto de Miriam.

 

Já está na hora? perguntou ela, interrompendo a leitura.

 

A Esther Aronson admitiu não te ter acordado disse Hausner em voz alta devido ao ruído do vento, depois de ter aclarado a garganta. Disse que adormeceu enquanto estava de sentinela, e que não chegou a despertar-te.

 

Com gestos vagarosos, Miriam fechou o livro, que pousou sobre os joelhos.

 

A rapariga está a mentir para me proteger. Ela acordou-me, eu é que me deixei dormir.

 

Não tentes armar em boa samaritana, Míriam replicou Hausner, olhando para o livro de Camus, que continuava sobre os joelhos dela, O Estrangeiro.

 

E porque não? perguntou ela desligando a pequena lanterna. Seria uma mudança de atitude entre as pessoas deste grupo.

 

Não critiques o que fizemos aqui, nem a forma como agimos.

 

As pessoas que estão condenadas podem arrogar-se o direito de criticar o que bem lhes aprouver. Ora bem... já está na hora?

 

Ainda não.

 

Ambos deixaram que o silêncio se arrastasse. Finalmente, foi Miriam quem o quebrou, e a sua voz tinha uma entoação agressiva e de escárnio.

 

Peço desculpa, não devia ter criticado. Passei a ser como um dos teus... Quer dizer, depois de ter matado aquela rapariga.

 

Sim, provavelmente mataste.

 

É claro que não tive outra alternativa, mas neste caso a escolha é tua.

 

Não, isso não é verdade. A legítima defesa pode ser muita coisa, dependendo da perspectiva de cada um. Para alguns é disparar contra um indivíduo que ameaça a nossa vida, enquanto para outros é fazê-lo só depois de serem alvejados. Esta situação também é um caso típico de legítima defesa, Miriam, a sociedade tem de defender-se dos preguiçosos e dos que se fingem doentes para se furtar às suas obrigações. É tudo uma questão de interpretação dos factos, tem a ver com a percepção de cada um do que é uma situação-limite.

 

Miriam compreendeu, na verdade, desde sempre que entendera esses conceitos.

 

Por conseguinte, quem irá a julgamento? perguntou.

 

As duas, a menos que a responsável pela infracção confesse.

 

Mas eu já confessei adiantou Miriam.

 

Sabes bem o que quero dizer.

 

Ambas mentiremos.

 

Tenho a certeza que sim, mas para isso também existe um regulamento militar, não se trata de uma situação nova. Ambas serão dadas como culpadas em consequência do testemunho que eu e o Burg prestarmos.

 

Isto é tudo uma fantochada, ou tencionam realmente fuzilar uma de nós, ou mesmo as duas?

 

Hausner acendeu um cigarro, perguntando a si mesmo se conseguiria encontrar alguém que estivesse disposto a integrar um conselho de guerra, quanto mais quem quisesse fazer parte de um pelotão de fuzilamento. Por conseguinte, qual seria a finalidade de todo aquele aparato pretensamente judicial? Para demonstrar que a disciplina tinha de ser mantida a todo o custo, custasse a quem custasse? Ou o seu objectivo seria instilar medo a todos os homens e mulheres extenuados que pudessem adormecer enquanto estivessem de sentinela, ou que não obedecessem às ordens que lhes eram dadas com a prontidão necessária? Ou, por outro lado, seria uma maneira de Burg fazer com que ele vergasse um pouco?

 

E então? Tencionam fuzilar-nos ou não? Se não for esse o caso, agradeço que me deixes sair daqui, tenho mais que fazer. Se desejam ir para a frente com esse tribunal de fantochada, não estejam com mais demoras, obrigando-nos a esperar até amanhã de manhã.

 

Hausner atirou a ponta do cigarro para o chão, fitando-a. O luar que entrava pelas pequenas janelas iluminava-lhe o rosto. Ela tinha o olhar preso nele e a sua expressão não mostrava o mesmo grau de cólera, a dureza que a entoação da sua voz dava a entender. Era uma fisionomia aberta, que inspirava confiança, pronta para aceitar o que quer que ele dissesse. Subitamente, Hausner deu-se conta de que aquele encontro entre os dois poderia ser o derradeiro.

 

Serás tu próprio quem puxará do gatilho, Jacob?

 

A voz era inquiridora, como se ela lhe estivesse a perguntar quais eram, na generalidade, os seus pontos de vista sobre a pena capital.

 

Hausner aproximou-se mais de Miriam, parecendo indeciso quanto ao que dizer e fazer e de repente ajoelhou-se defronte dela, colocando as mãos sobre os seus joelhos desnudados.

 

Eu... Eu acabaria com a minha vida antes de te causar qualquer mal, mataria alguém que tentasse prejudicar-te. Estou apaixonado por ti.

 

Aquelas palavras não o surpreenderam, ao contrário do que sucedeu com Miriam, que desviou o rosto e olhou fixamente através do orifício na antepara de pressurização.

 

Amo-te confessou ele, agarrando-lhe os joelhos.

 

Miriam virou a cabeça, olhou-o e, com um aceno de cabeça, pousou as mãos sobre as dele. A sua voz era baixa e enrouquecida.

 

Lamento muito ter-te posto numa situação tão comprometedora, Jacob.

 

Ora bem... Certamente que sabes que aquilo em que acreditámos ao longo de toda uma vida não vale grande coisa face a uma decisão desta natureza... decisões do coração, como se costuma dizer rematou Hausner obrigando-se ao esboço de um sorriso.

 

Isso não corresponde à verdade retorquiu ela, retribuindo-lhe o sorriso. Tu tens sido uma pessoa bastante coerente, um sacana coerente, se me permites a expressão. Miriam quase riu. Sinto muita pena por te colocar numa situação como esta. Para ti, seria mais fácil se tivesses de disparar contra Esther Aronson?

 

Já chega de falarmos deste assunto. Hei-de conseguir safá-las desta

embrulhada.

 

Pobre Jacob atalhou ela, apertando-lhe as mãos. Devias ter continuado na casa do teu pai, levando uma vida de homem rico e indolente.

 

Gostarias de passar o Domingo de Páscoa em casa do meu pai? Ocorreu-lhe bruscamente que, ao fazer-lhe aquela pergunta, admitia para si próprio regressar a Haifa.

 

Ela sorriu-lhe, agarrou-lhe as mãos e levou-as à face e Hausner sentiu um baque no coração como há muito não sentia, há muitos, muitos anos. Esperou alguns momentos até recuperar a confiança necessária em si próprio para falar.

 

Eu... Eu lamento muito... ter-me afastado de ti como fiz.

 

Eu compreendo retorquiu Míriam, num timbre de voz profundo e suave.

 

Compreendes mesmo?

 

O futuro, para nós dois não há futuro retorquiu Miriam, encostando a face ao peito dele.

 

Não, de facto, não existe concordou Hausner, apertando-a contra si.

 

Sentia uma ânsia enorme de viver, queria ter um futuro, mas, ainda que conseguisse sobreviver àquela situação desesperada, sabia que acabaria por perdê-la. Por causa de Laskov, do marido, ou de outro homem qualquer. Aquela não era uma relação destinada a perdurar e, quando essa altura chegasse, desejaria antes ter morrido na Babilónia.

 

Naquele momento, Miriam já chorava, emitindo uns sons que Hausner associava aos barulhos do vento, avassalador e perpetuamente triste, e ele sentia as lágrimas dela na sua face, julgando inicialmente que fossem suas; pouco depois, assim foi. Aquela situação era como se o tivesse despertado de um sonho da sua meninice que lhe deixara na boca um sabor agridoce, descobrindo que tinha um nó na garganta e os olhos humedecidos. Era o género de pesadelo que entristecia uma pessoa para o resto do dia, sem que nada se pudesse fazer para dissipá-lo, uma vez que era fruto de um sonho. Era esse tipo de tristeza que ele sentia junto dela.

 

Abraçaram-se com desespero, chorando convulsivamente nos braços um do outro, e nada lhe ocorria que pudesse dizer para que Míriam deixasse de chorar, porque, reflectia Hausner, ela tinha todo o direito de chorar, se era isso que desejava fazer. «Isso mesmo», pensava, «grita, chora, faz o que bem te apetecer, Miriam; só te peço que não sofras em silêncio, essa atitude é para os idiotas. Porta-te como a mulher que todos conhecem em Telavive e Jerusalém, deixa que conheçam a tua dor. Se todos vociferassem contra as injustiças do mundo, contra todos os actos de barbárie e de crueldade, então, estaríamos a dar o primeiro passo para uma sociedade verdadeiramente humanista. Porque haveriam as pessoas de caminhar, sem protestos, para a morte? Grita! Chora! Uiva!”

 

Como se conseguisse ler os pensamentos de Hausner, ela lançou a cabeça para trás, soltando um longo gemido.

 

«Isso mesmo, Miriam, grita. Eles deixaram-te exangue, chacinaram a tua família, privaram-te da tua infância, arrebataram-te o marido, mataram-te o filho, assassinaram os teus amigos, deixando-te sozinha, aqui, na companhia de um homem como eu. Assiste-te todo o direito de dar largas à tua ira.”

 

O choro convulsivo a que Miriam se entregava intensificou-se, sobrepondo-se ao barulho do vento, e Hausner teve a certeza de que Becker podia ouvi-la e que os que se encontravam fora do aparelho possivelmente também a escutariam, o que concluiu ser-lhe indiferente.

 

Se estivesse na minha mão fazer alguma coisa que aliviasse a tua tristeza, podes crer que o faria.

 

Miriam acenou com a cabeça, dando-lhe a entender que compreendia e, num gesto repentino, estendeu as mãos agarrando-lhe o rosto e beijando-o com o mesmo ardor com que se despedira do marido no dia em que este partira para a guerra.

 

Yosef disse ela numa voz entrecortada pelas lágrimas. Jacob e tartamudeou mais algumas palavras que Hausner foi incapaz de discernir.

 

Com os lábios, ele aflorou-lhe as faces e o pescoço, saboreando-lhe as lágrimas. Yosef. Teddy. Jacob. Que diferença faria qualquer dos nomes? Desde que a reconfortassem e não lhe trouxessem mais sofrimento, qualquer serviria. Hausner desejou que o marido desaparecido de Miriam acabasse por ser encontrado com vida. Deveria contar-lhe que Rish sabia do seu paradeiro? Não, nem pensar, jamais lhe diria isso, mas, enquanto ela continuava a esperar por Yosef Bernstein, só desejava que Teddy Laskov, ou qualquer outro, pudesse propiciar-lhe aquilo de que precisava. Quem lhe dera poder ser ele a suprir essas carências, mas sabia de antemão que tal seria impossível. Hausner sentia que não voltaria a ver Jerusalém e, ainda que tal fosse possível, não lhe serviria de conforto fora da Babilónia. Bebeu as lágrimas dela da mesma maneira que um animal lambe as feridas de um outro.

 

Dobkin nunca tivera oportunidade de saborear o paladar do sangue, ou o suor de outro homem, concluiu ao pensar no assunto, sentindo-se surpreendido ao constatar quanto ambos eram salgados. O árabe agarrara-o pelos testículos, enquanto ele lhe abocanhara a traqueia. A intenção, tanto de um como do outro, era matar o adversário, mas, dada a ausência de armas de parte a parte, ao princípio mostraram-se hesitantes, sem saberem bem como levar os seus intentos avante. Tinham começado por se esmurrar mutuamente, socando as regiões do corpo mais evidentes a cabeça e o peito. Talib escaqueirara a candeia na cabeça de Dobkin, dando origem a que o azeite misturado com sangue começasse a escorrer pelo pescoço e costas do corpulento general, mas aquelas duas regiões da anatomia estavam protegidas por uma armadura que a mãe natureza dera ao homem. Contudo, pouco depois do início da contenda, os antigos instintos profundamente arraigados na psique humana vieram à superfície. Os dois sentiram um formigueiro percorrer-lhes a espinha, enquanto os pêlos se lhes eriçavam e os testículos se contraíam à medida que se apercebiam da transformação que se verificava na sua atitude, e procuraram os pontos mais fracos que a natureza deixara inexplicavelmente vulneráveis.

 

Dobkin concentrou-se em obrigar as suas mandíbulas a manterem-se cerradas, tentando ignorar as dores lancinantes, e, apesar de a jugular do árabe lhe ter escapado por pouco, sabia que a cartilagem da traqueia acabaria por ceder, caso persistisse.

 

Quanto a Talib, tentava agarrar mais firmemente os testículos de Dobkin, mas os joelhos deste, dada a sua grande força física, batiam-lhe constantemente, enquanto os dois rebolavam pelo chão de terra batida. Talib estendeu uma mão, tentando enfiar os dedos nos olhos do general, mas este fechou as pálpebras com toda a força, ocultando mais a cabeça contra o pescoço do árabe. Tanto um como o outro travavam a luta da sua vida, a qual decorria num quase silêncio absoluto, e nem por um segundo passou pelo pensamento de qualquer dos dois pedir misericórdia.

 

Entretanto, numa outra cabana próxima, os dois judeus indigitados para prestarem assistência aos forasteiros preparavam um chá de ervas numa fogueira crepitante feita com cardos secos, trocando histórias com que ambos se entretinham, e nada ouvindo de invulgar para além do assobiar do vento e do entrechocar das portadas de madeira.

 

Dobkin não conseguia aguentar as dores por mais tempo, e o ferimento que tinha na coxa voltou a abrir, sangrando e fazendo-o sentir que estava prestes a perder a consciência. Foi então que, lembrando-se da estatueta de terracota que guardara numa das algibeiras, atingiu violentamente Talib numa orelha com essa arma improvisada. A asa do demónio do vento estilhaçou-se com o impacte, e o grito que o árabe soltou perdeu-se numa súbita rajada de vento, a qual abafou todos os outros barulhos, soprando tão forte que abriu as portadas todas para trás.

 

Talib, atordoado, aliviou o aperto aos testículos de Dobkin durante o tempo suficiente para este conseguir soltar-se e, aproveitando a oportunidade para erguer a mão enorme, desferiu um golpe com a extremidade quebrada do Pazuzu com toda a sua força, o qual atingiu o olho bom de Talib. O árabe soltou um grito prolongado, cobriu o rosto, e Dobkin, empunhando o fragmento pontiagudo da asa do demónio, perfurou-lhe a jugular, fazendo esguichar um jorro de sangue, que salpicou as faces do general.

 

Talib atravessou a cabana num passo cambaleante, mantendo a mão na garganta, donde saíam sons gorgolejantes. No espaço reduzido e envolto em sombras os dois homens chocaram várias vezes, e de cada vez que embatiam um no outro soltavam sons primitivos. Nas vascas da morte, Talib salpicava de sangue as paredes e o chão de terra batida.

 

Finalmente, Dobkin deixou-se cair a um canto, onde ficou imóvel, até ter a certeza de que o árabe estava morto, e só então se encostou à parede, esforçando-se por se manter consciente e cuspindo sem parar, numa tentativa para se livrar do sabor a sangue que tinha na boca, embora soubesse que isso nunca seria possível.

 

Laskov e Talman ficaram algo surpreendidos, o que era uma reacção normal, quando foram convidados a participar numa outra reunião com o primeiro-ministro.

 

Laskov ouvia atentamente o fotoanalista, Ezra Adam, que apresentava o seu relatório verbal. Aparentemente, falava sem deixar transparecer qualquer traço de emoção, mas Laskov fazia uma leitura diferente das suas palavras, como se ele dissesse: «Encontrei o Concorde desaparecido. Acreditem em mim, não percam mais tempo, vão buscá-los.» Ao longo dos anos tivera ocasião de ouvir numerosos fotoanalistas para se enganar na entoação que ele imprimia à voz. O técnico analisou ao pormenor cada uma das doze fotografias a infravermelhos que os americanos tinham tirado, a grande altitude, a bordo do SR-71, o que acontecera há algumas horas, a pedido dos israelitas.

 

Os vários ministros e generais, a maioria dos quais não era capaz de discernir rigorosamente nada naqueles borrões, aparentemente indecifráveis, uns a claro e outros a escuro, comparavam os seus próprios conjuntos de fotografias de acordo com o que Adam ia dizendo, até que este seleccionou outra, erguendo o olhar para o rosto do primeiro-ministro.

 

Como pode constatar, senhor primeiro-ministro, é um pouco difícil fazer uma leitura de fotografias tiradas à noite, e ainda por cima dada a presença do... como lhe havemos de chamar? O sherji que levanta nuvens de poeira, para não mencionar a grande altitude a que este trabalho foi executado. Na verdade, acho que devíamos dispor de algumas obtidas por nós próprios a baixa altitude, apesar de eu, como é evidente, compreender as implicações políticas que...

 

Vá direito ao assunto, meu rapaz interrompeu um general da Força Aérea com modos desabridos, e deixe esse assunto a cargo do nosso primeiro-ministro.

 

Sim, senhor. Pois bem, aqui... temos a fotografia número dez, similar às outras, com padrões de imagem que me são familiares. Resíduos de ondas de calor dispersas um pouco por toda a parte, o que talvez possa sugerir uma situação de conflito bélico.

 

Ou um acampamento de pastores alvitrou um general do exército.

 

Ou até mesmo a localização de uma aldeia acrescentou um ministro para quem as fotografias por meio de raios infravermelhos eram desconhecidas até há uma hora, mas que se apressara a colmatar essa lacuna com bastante rapidez.

 

Sim concordou Adam. Qualquer dessas probabilidades é pertinente, mas, com a experiência, qualquer pessoa vai adquirindo uma percepção instintiva para este género de coisas. Para começar, não se conhece a existência de nenhuma aldeia nesta área. Agradeço que façam o favor de observar os vossos mapas arqueológicos da Babilónia. A aldeia de Kweirish situa-se a um quilómetro para sul destas fontes de calor, perto da Porta de Istar, e, mais ainda, as povoações costumam apresentar um aspecto diferente. Acrescente-se também que as fogueiras com que os aldeãos cozinham e as lamparinas para iluminação de qualquer acampamento, ou localidade, deixam vestígios de calor bastante diferentes dos que vemos aqui, o que se comprova nas fotografias que incluem Kweirish. Com base numa análise espectrográfica a que submeti estas, tenho razões para acreditar que aqui interrompeu-se apontando, nesta encosta, deflagrou qualquer substância fosforosa, e aqui, no quadrante um-três... só têm de observar com atenção o tamanho da mancha de calor. Como poderão constatar apesar de pouco nítida, é extensa. Estão a ver? Pode ser de uma aeronave cujos motores não funcionam há talvez vinte e quatro horas ou mais. Depois, temos uma série de pontos, aqui, talvez camiões em movimento... ou um avião ligeiro a levantar voo. Estão a vê-los em todas as fotografias? É muito possível que seja um pequeno avião quando sobrevoava a elevação de terreno.

 

Laskov sabia que tudo o que Sam dizia, na perspectiva dos leigos presentes na sala, levantava muitas desconfianças, mas, para sua grande surpresa, o primeiro-ministro interrompeu subitamente Sam a meio de uma frase.

 

Acredito no que nos diz, sargento Adam, Deus saberá porquê, mas o certo é que acredito. Em seguida, numa atitude ainda mais desconcertante, virou-se para Laskov, em vez de se dirigir aos seus conselheiros militares. Ora bem, Laskov, conte-me uma história cujo enredo tenha por base estas manchas ridículas de calor.

 

Ao que tudo indica começou Laskov, olhando os presentes, isto é, só podemos conjecturar...

 

Não! Não interrompeu o primeiro-ministro, nada de suposições. Quero que fundamente o que vai dizer numa das suas inspirações divinas. O que é isto? perguntou acenando com uma das fotografias particularmente indecifrável, o que significa isto, general?

 

Pois bem, senhor primeiro-ministro, significa que o Concorde teve de fazer uma aterragem forçada na Babilónia começou Laskov a explicar depois de limpar o suor do rosto com um lenço, obrigado pelo Lear... e sabemos como pode ter acontecido. Como todos temos conhecimento geral, a bordo do Concorde zero dois não seguia nenhum pirata do ar, por conseguinte o piloto, Becker, depois de uma votação, do que tenho a certeza, aterrou numa área fora do controlo dos terroristas que o aguardavam numa pista improvisada.

 

Laskov cerrou os olhos, como que ensimesmado nos seus pensamentos, e decorridos alguns segundos voltou a descerrar as pálpebras, mas o seu olhar parecia perdido na distância, até que retomou a palavra.

 

Nessa altura, os passageiros tinham duas opções: fugir ou fazer frente aos sequestradores... Não, isso não é verdade, não lhes restava qualquer escolha. O Concorde parece ter aterrado junto do Eufrates, pelo que qualquer hipótese de fuga era impossível... só podiam correr para o rio, e com certeza que os terroristas se apressaram a cercá-los, barrando-lhes o caminho, pelo que decidiram ficar, opondo-lhes resistência. Encontram-se numa cidadela soterrada, o que, note-se, não é uma posição defensiva nada má. Olhem para os mapas. Sabemos que dispõem de uma Uzi e de uma M-14 munida de mira telescópica e dispositivo de visão nocturna, ao que, possivelmente, se poderão acrescer meia dúzia de armas de mão. Os terroristas terão começado a subir por esta encosta, provavelmente sem esperarem encontrar resistência, mas, para sua surpresa, são alvejados e com certeza que ficaram confusos. Talvez até tenham deixado para trás umas quantas armas quando bateram em retirada, mas, como é evidente, devem ter tentado outro ataque mais tarde... Neste ponto da exposição de um cenário hipotético, Laskov fez uma pausa, mas logo continuou: O rádio de bordo do Concorde foi impedido de transmitir, todas as frequências ficaram obstruídas, pois temos conhecimento, através das nossas próprias fontes, de que existe um emissor algures, nas proximidades de Hilla, que provoca interferências, o que nada tem de invulgar... estamos constantemente a receber dúzias de relatórios dessa natureza. Laskov interrompeu-se de novo, olhando os que se encontravam à sua volta. Portanto, eles decidem aguentar enquanto esperam... por alguém que vá em seu auxílio e olhou fixamente para o primeiro-ministro.

 

É uma história e pêras, general atalhou este, retribuindo-lhe o olhar. Veja lá se é capaz de me sintonizar na rede de frequência de rádio celestial em que você está. Fez uma pausa e começou a tamborilar com a ponta do lápis sobre a mesa. Portanto, posso deduzir que se trata apenas de alguns terroristas, certo? Em número suficientemente reduzido para que as pessoas que seguiam a bordo do Concorde se pudessem defender deles com êxito, não é verdade?

 

Senhor primeiro-ministro, se o que estamos a ver nestas fotografias é um confronto bélico, então tenho de reconhecer que foi violento e demorado interveio o fotoanalista. Numa extensão de quinhentos metros, toda a superfície da encosta mostra resíduos de calor.

 

Pois bem continuou o primeiro-ministro, isso significa que não foi a nossa gente. Sem dúvida que eles nunca poderiam resistir a uma numerosa força árabe num confronto bélico a essa escala. Possivelmente, o que estamos a ver aqui acrescentou, batendo com a ponta do indicador nas fotografias é uma insurreição qualquer de carácter doméstico.

 

Mas há que não esquecer o avião de grande porte, senhor primeiro-ministro recordou-lhe Adam, para já não mencionar o outro que sobrevoava esta área.

 

Avião de grande porte, o tanas! ripostou o visado. Uma data de disparates que se reduzem a traços e manchas em fotografias pouco nítidas. Afastou de si a pilha que estivera à sua frente e, continuando a tamborilar com o lápis durante mais algum tempo, rasgou umas tiras de papel, recostou-se e suspirou. Pois seja, um avião de grandes dimensões, um violento combate, e porque não? Virou-se para o encarregado das comunicações, sentado a um canto, e dirigiu-lhe a palavra. Já temos Bagdade em linha?

 

Já estabelecemos ligação, senhor primeiro-ministro. O presidente do Iraque entrará em linha dentro de um minuto.

 

Enquanto os segundos davam a sensação de se arrastarem interminavelmente, fez-se um silêncio total na sala.

 

O presidente do Iraque na linha quatro anunciou o telefonista decorridos os sessenta segundos.

 

O primeiro-ministro olhou em redor, pegou no auscultador e premiu o botão correspondente à linha quatro, começando a falar num árabe sofrível.

 

Bom dia, senhor presidente. Sim, senhor, é claro que o assunto tem a ver com o Concorde. Na Babilónia, senhor presidente, sim, exactamente aí.

 

Miriam Bernstein e Esther Aronson continuavam a ser mantidas, em termos técnicos, sob prisão na cabina de passageiros do Concorde. Hausner conseguira empatar os planos de Burg, que exigira um conselho de guerra imediato; mas o homem era teimoso mesmo muito, do que Hausner estava bem ciente e desejava aproveitar o incidente para fazer com que ele próprio ficasse mal visto. Hausner nutria fortes suspeitas de que Burg deixara de confiar na sua capacidade de liderança e que acreditava, com toda a convicção, que agia de forma a zelar da melhor maneira pelos interesses do grupo, ainda que para isso tivesse de fuzilar uma ou as duas mulheres, ao mesmo tempo que privava Hausner das últimas duas coisas que o ajudavam a aguentar aquela situação Míriam e a sua posição de chefia. Nesse caso, a atitude de Burg, na sua óptica, seria absolutamente justificável e, apesar de este estar ao corrente da relação existente entre Hausner e Miriam, isso não parecia ter qualquer efeito na sua maneira de agir, o que merecia respeito. Contudo, Hausner sentia-se bastante contrariado por não ser capaz de nutrir um ódio salutar por Isaac Burg, por não conseguir impedir-se de gostar da sua maneira de ser. Não fosse esse o caso, ele nunca teria chegado tão longe.

 

A acrescentar a estes problemas, o ministro dos Negócios Estrangeiros decidira, embora tardiamente, reclamar o poder a que julgava ter direito, secundado por um grande número de passageiros, não só devido à sua posição, que hierarquicamente lhe conferia a liderança do grupo, mas também porque apresentara uma solução irresistivelmente atraente, que resolveria os problemas de todos. Ariel Weizman acreditava convictamente que todos os árabes tinham abandonado as margens do Eufrates e, consequentemente, os israelitas poderiam escapar-se pela vertente ocidental e fugir para a outra margem do rio. Os coletes salva-vidas que equipavam o Concorde seriam entregues aos feridos e aos que não sabiam nadar.

 

Entretanto, Hausner e Burg tinham combinado uma reunião abreviada em que discutiriam a proposta do ministro, a qual decorreu na cabina de passageiros, com o lixo espalhado por todo o interior do Concorde, presidida pelo governante.

 

Tenho de admitir que a ideia tem os seus méritos admitiu Hausner, falando em primeiro lugar, mas duvido bastante de que Ahmed Rish seja descuidado ao ponto de negligenciar a táctica militar mais fundamental, que consiste em cortar a retirada aos inimigos. Depois tentou explicar este princípio àqueles cuja linha de raciocínio seguira os moldes característicos dos civis, mas a resistência ao que quer que fosse que ele alegasse era crescente.

 

A predominância, em termos de chefia, de que Hausner gozara havia sido formada pelos seus seis homens que lhe eram fanaticamente leais: Brin, Kaplan, Rubin, Jaffe, Marcus e Alpern, mas o primeiro morrera, enquanto Kaplan, Rubin e Jaffe estavam feridos, a que acrescia o facto de agora já não serem as únicas pessoas armadas na colina. Por isso, até mesmo quando os seus conselhos tinham toda a razão de ser davam origem a respostas negativas.

 

Burg saiu em defesa de Hausner, salientando que mesmo que conseguissem atravessar o rio, não iriam longe, caso Rish viesse a descobrir que tinham fugido.

 

Seríamos perseguidos em terreno aberto, nas planícies pantanosas onde o massacre seria inevitável, como se fôssemos coelhos no meio de uma alcateia de chacais... ou pior ainda, a única alternativa que nos restaria seria a rendição.

 

Contudo, apesar destes argumentos, inegavelmente válidos, metade das pessoas continuava a querer fugir e Hausner sabia que tinha de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para manter o grupo coeso. Seria lamentável uma autêntica tragédia ver os sacrifícios e a bravura daquela gente serem desperdiçados numa fuga precipitada e irreflectida.

 

Entretanto, o ministro insistia em discutir com Burg o assunto de Miriam Bernstein e Esther Aronson, mas ele recusava-se, dizendo que as duas mulheres continuariam sob prisão até que houvesse oportunidade de formar um colectivo de juizes improvisados que presidiria ao conselho de guerra. O rabino Levin brindou-o com o epíteto de asno, virando-lhe costas numa atitude de desprezo, e aquela curta conferência foi suspensa sem que ficasse estabelecido o seu reinicio.

 

Nem Hausner nem Burg, nem alguns dos seus apoiantes deram mostras de lamentar a rápida subversão dos valores democráticos, pois sabiam de antemão que uma votação levada a cabo naquele momento muito provavelmente conferiria ao ministro a necessária autorização para os levar para fora dali, o que daria origem a que aquele êxodo terminasse em desastre. Ariel Weizman não era nenhum Moisés dos tempos modernos, e as águas não se apartariam, dando-lhe passagem e aos seus, enquanto se fechariam, tragando os ashbals de Ahmed Rish. Se em alguma coisa Burg g Hausner estavam de acordo, era que o desfecho de uma operação militar, pela importância de que se revestia, não podia ser deixado ao critério dos políticos.

 

Ahmed Rish e Salem Hamadi conduziram o que restava dos seus efectivos através da Porta de Istar e começaram a percorrer a Via-Sacra até chegarem ao templo da deusa Ninmakh, onde viraram em direcção ao anfiteatro grego. Caminhavam pelo leito de um antigo canal, passando pela muralha interior da antiga cidade e seguindo para norte, com destino à cidadela setentrional.

 

Rish alcançou Hamadi, colocando-se ao seu lado e murmurando-lhe ao ouvido:

 

Vamos penetrar as linhas dos israelitas sem lhes darmos tempo para se aperceberem da nossa presença.

 

Sim assentiu Hamadi, escutando o soprar do vento que vinha das colinas.

 

Ambos caminhavam numa linha paralela à muralha e verificaram que a areia e a poeira levantadas pelo vento sufocavam os homens, que se debatiam com muitas dificuldades de respiração, tentando acompanhar o ritmo da passada de Rish.

 

Temos de abrandar a marcha, Ahmed observou Hamadi.

 

Não, o vento pode parar a qualquer momento.

 

Hamadi não era um árabe do deserto, pelo que a terriça que pairava no ar lhe era tão estranha como aos israelitas que se encontravam no cume da colina. Olhou em redor, observando os seus homens que mais se assemelhavam a espectros deslocando-se através daquele negrume em turbilhão, e entre eles via grande número de ligaduras e mais alguns que coxeavam. Era por de mais evidente que tinham deixado de ser uma tropa absolutamente disciplinada e fiável e, na hipótese de o confronto não lhes correr de feição, Hamadi sabia que seriam muito capazes de se sublevar, não hesitando em chacinar os seus comandantes. Contudo, se, por outro lado, o desfecho fosse a seu favor, não teriam o mínimo pejo em massacrar os israelitas sem fazerem reféns, e sem estes ele e Rish não teriam nada que lhes servisse para negociar. Para onde quer que aquela situação pendesse, tanto para ele como para Rish estava tudo acabado, mas Rish parecia não ter a percepção desta realidade e Hamadi estava disposto a deixá-lo naquela santa ignorância.

 

Acelerou a passada, no que foi acompanhado pelos ashbals, e naquele momento avançavam quase em passo de corrida, dando a sensação de que todos marchavam inexoravelmente rumo ao seu destino e a uma colisão com a história, ao encontro do destino pessoal de cada um, em direcção a um confronto que afectaria as relações entre judeus e árabes durante a próxima década. No decorrer das últimas vinte e quatro horas, Hamadi escutara atentamente a Rádio Bagdade, o que lhe dera a saber que, se mais não houvessem feito, no mínimo já tinham prejudicado gravemente os trabalhos da conferência de paz. No entanto, a possibilidade de se vir a alterar o rumo da história mundial perdia terreno quando comparada com as paixões e motivações de carácter pessoal. Pensou em Hausner aquando da revista a que este tivera de se submeter de pé, completamente nu, sob o sol abrasador, ao lado do Leão da Babilónia. Recordava-se da sensação que a pele dele lhe provocara quando a percorreu com as suas mãos e sentira-se invadido por um desejo avassalador de o violar de sodomizar Jacob Hausner. Queria humilhá-lo antes de finalmente o torturar, mutilando-o para sempre.

 

Hausner afastou-se sozinho, abandonando a reunião convocada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, e caminhou curvado contra a fúria do sherji. A poeira, levantada pela força das rajadas, açoitava-lhe a face e as roupas esfarrapadas, e o barulho incessante estava a deixá-lo um tudo-nada enlouquecido, só lhe apetecendo vociferar contra aquele vento implacável.

 

Foi encontrar Kaplan todo enrolado no lugar que Brin ocupara durante tanto tempo. A mira telescópica com visão nocturna fora adaptada a uma AK-47, mas este dispositivo não ajudava mais a ver através daquela noite de pesadelo do que a lua obscurecida. Num estado febril, devido ao ferimento infectado, Kaplan tremia descontroladamente, todavia insistia em que era o homem mais qualificado naquela colina para tirar partido da mira com visão nocturna.

 

Naomi Haber observava atentamente por cima do parapeito baixo, tentando descortinar qualquer movimento entre as nuvens de poeira, para o que usava um dos recentemente improvisados quebra-ventos destinados a proteger o rosto. A engenhoca era feita de plexiglas retiradas das pequenas janelas do Concorde, a que se juntara esponja de borracha arrancada dos assentos e colocada à volta das extremidades, evitando assim que a areia passasse, da mesma maneira que as máscaras dos mergulhadores impediam a entrada de água. O engenho mantinha-se preso à volta da cabeça por um elástico bastante resistente.

 

Não sei se sabes, mas com esta tempestade de areia eles não precisarão de esperar até ao ocaso da Lua comentou Hausner, chegando-se mais a Kaplan.

 

Eu sei.

 

Kaplan conhecia bem Hausner, sabia interpretar as suas entoações de voz e a linguagem corporal, o que lhe deu a entender estar prestes a suceder alguma coisa, o que o levou a desconfiar desde logo de que, o quer que fosse, não seria muito agradável.

 

Já não dispomos de posições avançadas, postos de observação ou engenhocas que nos avisem atempadamente da chegada deles. É como se estivéssemos cegos.

 

Eu sei repetiu Kaplan, que começara a ver como as coisas se iriam delinear.

 

O meu lugar-tenente, o Burg, proibiu absolutamente qualquer pessoa de abandonar o perímetro defensivo.

 

Também estou a par disso.

 

Hausner surgira-lhe vindo das trevas, acompanhado de rajadas de poeira, aflorando-o como se fosse o anjo da morte, e agora Kaplan estava prestes a morrer.

 

Mas, como se costuma dizer, a melhor defesa é passar à ofensiva. Não podemos ficar aqui à espera, como se fôssemos uma manada assustada de veados, na esperança de que sejamos em quantidade suficiente para fazer com que os lobos pensem duas vezes antes de se decidirem atacar. E, se de facto o fizerem então, tudo o que nos resta é colocarmo-nos ombro a ombro, a exemplo dos veados, e começar a escoucinhar. Temos de levar o combate ao terreno deles, é imprescindível que passemos à ofensiva, a exemplo do que aconteceu a noite passada.

 

Tem razão concordou Kaplan.

 

Se não procedemos assim, eles sairão da cortina de poeira e tomarão a colina de assalto antes que tenhamos tempo para reagir. Dá uma espreitadela ao que nos rodeia.

 

Obedientemente, Kaplan começou a observar a poeirada em turbilhão. As linhas defensivas encontravam-se cobertas por areia soprada pelo vento, enquanto o raio de visibilidade não ultrapassava os cinco metros para lá do perímetro. Tanto quanto lhes era dado saber, os inimigos até já podiam estar a seis metros de distância, e ninguém se aperceberia da sua presença. De súbito, Kaplan ficou muito apreensivo, quase em estado de pânico, firmando o aperto que mantinha à volta do gatilho da espingarda. Sentiu um impulso avassalador que o levava a querer correr para a noite, penetrar o manto de escuridão com o seu corpo, a fim de conseguir descortinar o que se encontrava naquela vertente.

 

O que estará ali fora, Moshe? O que nos espera?

 

Não sei respondeu Kaplan.

 

Não gostarias de saber? insistiu Hausner.

 

Kaplan não lhe deu resposta e Hausner ainda esperou, mas ao ver que o outro não dizia nada, prosseguiu com a avaliação que fizera à situação.

 

O estratagema militar mais eficaz, dadas as circunstâncias, seria enviar uma patrulha que armasse uma cilada mais abaixo, no sopé da encosta, e, na minha opinião, o melhor local seria junto da muralha exterior. Os ashbals terão de segui-la a partir da Porta de Istar para chegarem até aqui. Uma emboscada não só dizimaria as forças atacantes, como também serviria para nos alertar com bastante antecedência. Hausner suspirou. Mas acontece que o Burg se recusa terminantemente a arriscar a vida de mais pessoas, ou a desagregar as nossas forças, uma decisão subjectiva, mas a que sou forçado a submeter-me. Fez uma pequena pausa. Por outro lado... por outro lado, se alguém munido de uma arma automática, com algumas centenas de balas, estivesse oculto no ponto que indiquei quando os árabes começassem a surgir ao longo da muralha, disporia da vantagem de abater mais ou menos uns dez antes que eles tivessem tempo de reagir. Hausner fez outra pausa. Estás a compreender? interrompeu-se para acender um cigarro, protegendo a chama com as mãos em forma de concha, que depois entregou a Kaplan, na atitude de maior intimidade de que este alguma vez se recordava de ter visto, ou ouvido, por parte de Jacob Hausner.

 

Kaplan inspirou uma longa baforada de fumo, e não devolveu o cigarro.

 

Eu... Eu suponho que tenha razão... isto é, se eles já não estiverem a meio caminho da encosta.

 

Sim, de facto... concordou Hausner. Há que considerar essa hipótese, e não me resta a mais pequena dúvida de que colocaram sentinelas ao longo do sopé da colina, mas um só homem não devia ter qualquer dificuldade em passar despercebido por eles no meio desta escuridão.

 

Kaplan não duvidava de que o próprio Hausner seria capaz de cumprir pessoalmente essa missão, se necessário, e se optara por não o fazer tal devia-se apenas ao ter sentido que lhe estava reservada uma missão mais importante no cimo da colina. Mas Kaplan, depois de já ter arriscado a sua vida uma vez por Hausner, começara a sentir um desejo esmagador de viver até uma idade provecta, embora o seu chefe tentasse minar essa mesma vontade.

 

Qualquer homem que aceitasse essa missão teria muito poucas possibilidades de regressar.

 

Muito poucas confirmou Hausner.

 

Especialmente se tivesse um ferimento que lhe restringisse os movimentos.

 

Sabes, Moshe replicou Hausner, nesta colina eram em número muito reduzido aqueles que podiam ser apelidados de verdadeiros soldados. Os meus seis homens, Dobkin... mais alguns veteranos... e o Burg. Este número é cada vez menor, e todos os profissionais sabem que chegará o dia em que talvez sejam chamados a cumprir uma missão que nunca seria atribuída a um recruta. Compreendes?

 

Claro que sim respondeu Kaplan, perguntando a si mesmo por que razão Hausner não teria optado por falar com Marcus ou Alpern.

 

Nenhum dos dois fora ferido e presumia que aquilo fosse um caso clássico do género «Isto é uma honra», mas estava convicto de que existiriam outros motivos, embora não fosse capaz de imaginar quais eram os que haviam movido Jacob Hausner.

 

Bem... obrigado por dares ouvidos às minhas divagações, Moshe.

 

Não tem de quê retorquiu Kaplan hesitante, e quando viu que Hausner não fazia menção de se afastar acrescentou: Na verdade, uma pessoa pode ter umas quantas ideias da sua lavra só por ouvir os outros a expressarem as suas.

 

Isso é verdade.

 

Kaplan voltou a hesitar, virou-se e deu um passo. Sentia a mão de Hausner no seu ombro e ouvia a voz deste, que lhe dizia algo apropriado à situação, embora as palavras exactas não tivessem ficado registadas na sua. mente. O que mais o incomodava naquilo tudo era o facto de não se poder despedir das pessoas que ao longo das últimas vinte e quatro horas tanto significado haviam adquirido para si. Sentia-se extremamente abandonado, caminhando em direcção ao que a noite lhe reservava.

 

O primeiro-ministro sentara-se de costas bem direitas, mantendo o auscultador junto ao ouvido, e com o olhar percorria todos, homens e mulheres, que escutavam a conversa através de dispositivos auditivos. O telefonema para Bagdade não estava a correr da melhor maneira, pois o presidente do Iraque manifestara surpresa e incredulidade à medida que se inteirava das informações que lhe eram fornecidas, para finalizar com uma evidente falta de vontade em se comprometer perante as sugestões que o primeiro-ministro de Israel lhe fazia. Este exprimia-se com firmeza e determinação.

 

Senhor presidente, não posso divulgar-lhe a fonte das minhas informações, embora lhe possa garantir que, habitualmente, é de bastante confiança.

 

Com o olhar percorreu de novo a sala, como se quisesse confirmar perante si próprio essa fonte de confiança, e fixou-o em Teddy Laskov e Itzhak Talman, que se mantinham perto da porta, parecendo submeter os dois homens a uma reavaliação.

 

O presidente iraquiano suspirou, o que o chefe do governo israelita interpretou, dada a maneira de pensar árabe, como querendo dizer «E uma pena, mas não conseguiremos chegar a acordo», ou outras palavras que tivessem precisamente o mesmo significado.

 

Em qualquer dos casos proferiu o iraquiano, um voo de reconhecimento, mesmo que não desse muito nas vistas, está absolutamente fora de questão, pois o sherji continua a soprar. No entanto, estou certo de que os seus amigos norte-americanos já efectuaram uma incursão ilegal pelo nosso espaço aéreo, com um dos seus aparelhos capazes de voar a grande altitude, o que, a meu ver, deveria ser o suficiente.

 

Não estou ao corrente de acções desse género.

 

O presidente iraquiano ignorou aquela afirmação de ignorância, começando a enumerar as objecções que tinha a apresentar quanto à adopção de qualquer medida precipitada.

 

O primeiro-ministro ouvia o bater das portadas agitadas pela ventania, escutando apenas parcialmente o que o iraquiano lhe dizia. Sabia antecipadamente que devido às cheias, à tempestade de areia ou à escuridão da noite qualquer meio de transporte por terra, tal como aéreo, estaria inteiramente fora de questão. Quanto mais sondava o seu interlocutor, melhor se inteirava das carências de meios de transporte adequados do Iraque, assim como redes de comunicação, para não mencionar a falta de eficácia das respectivas forças armadas em termos de conhecimento do terreno do seu próprio país. Ser forçado a admitir a existência desses problemas só tornava o presidente iraquiano ainda mais irascível. Não obstante, Hilla encontrava-se muito próximo, e era uma cidade de dimensões razoáveis, reflectia o primeiro-ministro israelita.

 

Vocês não têm uma guarnição militar em Hilla? perguntou, apesar de já ter tido confirmação da existência dessas tropas através dos seus serviços secretos.

 

Fez-se uma longa pausa e o presidente iraquiano parecia ter consultado os seus assessores. Finalmente, retomou a conversa ao telefone.

 

Receio ter de lhe dizer que essa é uma informação que não devo divulgar.

 

Os dedos do primeiro-ministro apertaram-se mais à volta do auscultador até ficar com os nós dos dedos esbranquiçados.

 

Senhor presidente... o que sugere que façamos? e lançou um olhar de fugida ao seu relógio.

 

Sugiro que esperem que a tempestade de areia amaine, ou pelo menos, até ao nascer do dia.

 

Talvez não haja tempo para isso.

 

Senhor primeiro-ministro... estamos perante a velha questão de arriscar vidas para salvar outras vidas. Diz-me que existem cinquenta israelitas vítimas de um cerco militar na Babilónia e pede-me que ponha em marcha uma operação arriscada que nos poderia custar igual número de vítimas só em incidentes de percurso... para já não mencionar o custo financeiro... Seja como for, nós não temos a mínima indicação de que... esteja a acontecer alguma coisa de anómalo na Babilónia.

 

Contudo, sabe que sucedeu «qualquer coisa» nessa região. Não é verdade?

 

Sim... replicou o iraquiano depois de hesitar. Passa-se qualquer coisa, acabámos de receber confirmação das autoridades governamentais de Hilla de que, efectivamente, algo acontece de estranho nas proximidades das ruínas da Babilónia.

 

Perante aquela admissão de anomalia por parte do presidente iraquiano, ouviu-se na sala um murmurar de entusiasmo.

 

O primeiro-ministro inclinou-se mais para o telefone, pois, na sua opinião, deixara de existir qualquer razão para continuar a jogar as suas cartas com precaução. Começou a falar com brusquidão.

 

Sendo assim, por amor de Deus, envie a guarnição que tem em Hilla.

 

Fez-se outra pausa e quando a voz do iraquiano voltou a ouvir-se deixava transparecer algum constrangimento, como se tentasse justificar-se.,

 

A guarnição de Hilla é o Batalhão quatrocentos e vinte e um... o j que certamente não será desconhecido dos serviços secretos do vosso exército. Trata-se de uma unidade quase inteiramente formada por palestinianos, os mesmos que os combateram durante as guerras de mil novecentos e sessenta e sete e mil novecentos e setenta e três. Os oficiais são iraquianos, mas os efectivos são refugiados de guerra ou filhos destes. Não seria justo colocá-los numa situação em que a sua lealdade ficaria forçosamente dividida. Com certeza que não lhe será difícil entender até que ponto esta situação é melindrosa.

 

Ó primeiro-ministro compreendia e olhou em redor. As pessoas que escutavam o telefonema mostravam-se encolerizadas, naquela sala começara a estabelecer-se uma facção de linha dura.

 

Senhor presidente, sei que tem possibilidades de entrar em contacto com Hilla de imediato, enquanto eu fico em linha. Peça à sua gente nessa cidade, aos seus oficiais leais, que tentem averiguar o que se passa com exactidão na Babilónia.

 

Infelizmente, de momento temos muitas dificuldades com as comunicações terrestres. As cheias e a tempestade de areia conjugaram-se para as criar. Vamos tentar comunicar com eles via rádio, pode ser que consigamos apurar essa situação.

 

Estou a perceber retorquiu o primeiro-ministro, não vendo qualquer razão que o levasse a acreditar que o iraquiano lhe estaria a mentir quanto às linhas telefónicas, mas não tinha mais nenhuma carta que pudesse colocar sobre a mesa. Senhor presidente, os meus assessores militares informaram-me de que é possível chegar à Babilónia pelo rio sem dificuldades de maior. Uma guarnição militar de qualquer outra cidade na margem do Eufrates poderia alcançar a Babilónia em apenas algumas horas.

 

A voz do presidente do Iraque voltou a fazer-se ouvir, desta feita deixando adivinhar uma entoação de dureza e impaciência.

 

Por acaso pensa que o Eufrates é como o seu minúsculo Jordão? Estamos a falar de um rio com um vasto caudal, que nesta altura do ano transborda ao acaso, como uma ovelha perdida na planície. As águas confluem para os lagos e terrenos pantanosos, dando origem a um grande número de afluentes, que neste momento engrossaram ao ponto de serem erroneamente considerados o próprio Eufrates. Esta noite existem muitos rios falsos em cujas águas qualquer expedição poderia perder-se.

 

O primeiro-ministro estava bem ciente daquela probabilidade, pois de facto a própria Babilónia deixara de se situar na margem do Eufrates dos tempos modernos, localizando-se, isso sim, à beira de um afluente, ao contrário do que sucedia na Antiguidade. Apesar disso, qualquer exército moderno, ou unidade anfíbia, teria capacidade para navegar por essas águas os mesopotâmios, na sua época, haviam dominado esse rio.

 

Senhor presidente, todos nós temos conhecimento das atribulações por que o seu país passa todos os anos durante a Primavera, além de também sabermos que em qualquer outra época do ano poderíamos contar com uma resposta rápida, e em tempo útil, ao nosso pedido. Compreendemos que uma das razões por que esses... não queria utilizar o termo «terroristas» essas forças de guerrilha se decidiram pela sua pátria foj precisamente pela inacessibilidade da Babilónia durante as semanas mais próximas. Apesar desta dificuldade, senhor presidente, estou certo de que nos concederá toda a assistência que esteja ao seu alcance.

 

Não obteve resposta, e o primeiro-ministro apercebia-se de que o presidente iraquiano já sofrera muitas afrontas ao seu orgulho, admitindo uma eventual deslealdade nas suas próprias fileiras, além da incapacidade de deslocar forças armadas pelo seu território, para já não citar o facto de o Concorde ter sido desviado para o centro do seu país por piratas do ar sem que disso tivesse conhecimento. A tudo isto, havia ainda que acrescentar a existência de um pequeno exército particular formado por palestinianos, o qual operava na sua pátria. O primeiro-ministro adivinhava que o iraquiano estaria, compreensivelmente, bastante mal-humorado e, para o insultar ainda mais, só faltaria tentar levá-lo a tomar a iniciativa de pôr em marcha uma operação de natureza militar.

 

Está ao corrente, senhor presidente, da existência de uma base palestiniana no planalto de Chamiyé? É daí que, muito plausivelmente, vieram os palestinianos que se encontram na Babilónia.

 

Uma vez mais, o israelita não obteve qualquer resposta, limitando-se a observar os que se encontravam sentados à mesa. Entretanto, um coronel, cuja especialidade era a guerra psicológica e que dedicara bastante tempo ao longo dos anos a estudar o presidente iraquiano, escreveu uma mensagem, a qual fez deslizar pela mesa até junto do chefe do governo, que a leu de imediato: «Já que conseguiu espicaçá-lo a este ponto, acabe com ele. É tarde de mais para diplomacias.” O primeiro-ministro fez um gesto de assentimento com a cabeça e recomeçou a falar ao telefone.

 

As suas forças armadas serão capazes de organizar uma expedição a esta hora tardia, senhor presidente?

 

O israelita continuou sem obter resposta, até que finalmente o iraquiano retomou a palavra, e do seu tom de voz transparecia grande frieza.

 

Sim, vou dar ordens para que se organize uma expedição fluvial. Contudo, as tropas não desembarcarão até ao nascer do dia, é o melhor que posso fazer dadas as circunstâncias.

 

Isso é excelente retrucou o primeiro-ministro, sabendo no seu íntimo que aquilo seria tudo menos excelente, se bem que não quisesse pôr em risco o pouco que conseguira.

 

O que espera que venhamos a encontrar nessa região? perguntou o presidente iraquiano.

 

Não faço a mais pequena ideia.

 

Ora bem, nem nós. Para seu bem, só espero que de facto encontremos qualquer coisa, caso contrário, está a parecer-me que o senhor ficará numa situação um tanto ou quanto embaraçosa...

 

Eu sei admitiu o primeiro-ministro fazendo uma breve pausa, pois chegara a altura de fazer a grande pergunta. Estaria disposto a aceitar a nossa ajuda? Podíamos organizar uma operação conjunta.

 

Desta feita nem sequer houve lugar a uma pequena pausa.

 

Essa sugestão está absolutamente fora de questão.

 

De acordo assentiu o israelita reconhecendo que não valia a pena argumentar. Só lhes podemos desejar muita sorte.

 

O iraquiano deixou que o silêncio se arrastasse antes de retomar a palavra numa voz cheia de suavidade.

 

A Babilónia, o exílio, é estranho.

 

Sim, muito estranho.

 

Era impossível tomar uma iniciativa, quer fosse de natureza política, quer diplomática, no Médio Oriente, sem se tropeçar em cinco mil anos de história e sangue, o que era algo que os americanos, por exemplo, jamais conseguiriam compreender. Os acontecimentos que tinham ocorrido há mais de três milénios eram abordados à mesa das conferências de âmbito internacional como se tivessem acontecido apenas na quinzena precedente. Em virtude de circunstâncias como as presentes poderia restar-lhes alguma esperança?

 

Contudo, não é assim tão estranho quanto isso acrescentou ainda o israelita.

 

Talvez não concordou o presidente iraquiano, fazendo outra pausa. Não pense que a. vossa situação não merece a nossa simpatia. Os terroristas também não nos prestam nenhum serviço, não existe um único governo árabe minimamente responsável que sancione o que eles têm vindo a fazer.

 

Nova interrupção, mas os israelitas conseguiram ouvir um ruído, através do altifalante electrónico, que se assemelhava muito a um suspiro repassado de melancolia. Era uma atitude tão caracteristicamente árabe e, ao mesmo tempo, tão judaica, que muitos dos presentes na sala não conseguiram evitar um sentimento irresistível de empatia, até mesmo de afinidade de raça. O iraquiano pigarreou antes de acrescentar:

 

Agora tenho de desligar.

 

Tenciono ligar-lhe antes do amanhecer, senhor presidente.

 

De acordo.

 

A comunicação foi cortada e o primeiro-ministro ergueu o olhar.

 

Então, decidimos avançar ou não? Olhou para o relógio de parede e viu que faltavam pouco mais de seis horas para que na Babilónia raiassem os primeiros raios de Sol. Ou vamos esperar pelos iraquianos? perguntou, acendendo um cigarro, e o barulho que o fósforo fez ao ser riscado sobre a lixa ressoou no silêncio reinante na sala. Estou certo de que sabem que este é o primeiro diálogo alguma vez travado entre um primeiro-ministro israelita e um presidente iraquiano. Estaremos nós dispostos a arriscar o que poderá resultar deste contacto? Quereremos nós afectar negativamente todo o clima de paz que fez com que os dois Concordes tivessem levantado voo?

 

Olhou em redor, tentando ler as fisionomias dos que se sentavam àquela mesa. Muitos daqueles rostos tinham participado nas reuniões aquando do caso de Entebe, mas aquela situação era bastante mais complicada do que a que se vivera nessa época, e mesmo assim essa demorara vários dias até se conseguir chegar a acordo quanto à solução militar.

 

Um a um, os políticos e os generais começaram a pôr-se de pé e cada um dispunha de dois minutos para apresentar os seus pontos de vista. As opiniões dividiam-se equitativamente, sendo que essa cisão não se fazia na base de militares ou civis, pois tanto uns como outros se encontravam nos dois campos: a favor e contra uma intervenção militar, ou seja, contenção e acção. Caso se procedesse a uma votação, o resultado teria andado muito perto dos cinquenta por cento para ambas as partes.

 

Amos Zevi, o ministro interino dos Negócios Estrangeiros, na ausência do titular da pasta, pôs-se de pé e começou por salientar que se Ariel Weizman, o seu ministro, e Miriam Bernstein, a chefe de gabinete do ministro dos Transportes, estivessem presentes seriam os primeiros a votar por uma atitude de contenção.

 

É possível que isso fosse verdade, senhor ministro, em exercício. adiantou o general Gus, mostrando-se espirituoso, mas se pudessem enviar-nos uma procuração, manifestando o seu sentido de voto, tenho a certeza de que defenderiam um ataque aéreo sem mais demoras.

 

Esta tirada foi a única que suscitou alguns risos naquele debate, que, até então, se pontuara por uma atmosfera sombria.

 

Algumas pessoas continuavam a acreditar que Ahmed Rish mantinha os israelitas em cativeiro, mostrando-se convictas de que ele tornaria públicas as suas exigências, o que não tardaria muito a fazer, e por isso queriam estar preparadas para negociar quando os termos do resgate fossem conhecidos.

 

Um dos ministros, Jonah Galili, levantou-se e recordou que, por ocasião do incidente em Entebe, dois dos principais rabinos de Israel tinham interpretado a halaca, a colectânea de leis que regiam a tradição religiosa judaica, concluindo que permitia o intercâmbio de terroristas por reféns, comentário que fez com que o ministro da Justiça, Nathan Dan, ele próprio um rabino formado em direito, se pusesse imediatamente de pé.

 

Oponho-me frontalmente a essa interpretação.

 

O primeiro-ministro deu um murro na mesa, originando que a sua pequena pilha de tiras de papel saltasse.

 

Já chega! interveio, irritado. Isto não é uma yeshiva1 nem tão-pouco um café em Telavive. Não estou interessado nas halacas de antigamente, nem sequer nas questões de semântica hebraica da Antiguidade, mas apenas na situação presente. Laskov, chegou a sua vez, dispõe de dois minutos.

 

O general aproximou-se da cabeceira da comprida mesa e começou a falar em linhas gerais, socorrendo-se dos argumentos clássicos que justificavam uma acção militar, tendo-se imediatamente apercebido de que as suas palavras não causavam o mínimo impacte. Era evidente que a dificuldade de se alcançar um consenso tinha por base o receio de se organizar um raide aéreo à Babilónia para posteriormente se concluir que não estava ninguém nessa região, para além dos animais selvagens do deserto. Em qualquer

 

1 Escolas que se dedicam aos estudos talmúdicos. (N. da T.)

 

sistema de governação parlamentar, um fiasco dessa magnitude poderia enviar todos os membros do governo e metade do Knesset para sUas casas onde se dedicariam a escrever as respectivas memórias. Contudo, se por acaso decidissem agir e encontrassem o Concorde, constatando que as pessoas que integravam a missão de paz estavam desaparecidas Ou todos mortos, longe fosse o agouro, então, no mínimo, poderiam justificar a sua acção, que fundamentariam em princípios humanitários. Vias e se Laskov estivesse enganado, se os fotoanalistas tivessem feito interpretações erróneas, se não se lhes deparasse nada do que procuravam?

 

Estou a ver qual é o problema com que nos estamos a debater prosseguiu Laskov, decidido a arriscar. Pois bem, caso eu consiga provar-lhes de maneira conclusiva que a nossa gente se encontra na Babilónia, alguém aqui presente levantará objecções à decisão de irmos até lá numa missão de resgate?

 

Aí é que está o cerne da questão, general atalhou o primeiro-ministro, levantando-se. Se conseguir provar-me, sem margem para qualquer dúvida, que os nossos se encontram nessa região, serei o primeiro a votar favoravelmente essa acção.

 

Aí estava uma saída para todos. Se os acontecimentos viessem a comprovar posteriormente que deveriam ter optado por uma acção militar aérea, poderiam justificar a ausência dessa mesma acção, perante o povo israelita, alegando a falta de elementos sólidos e concretos por parte dos serviços secretos, e afirmar categoricamente que desconheciam que os elementos da delegação de paz estivessem em solo da Babilónia. Seria mais do que uma mera desculpa, corresponderia inteiramente à verdade.

 

E onde se propõe ir buscar essas provas conclusivas, general? perguntou o primeiro-ministro. Na verdade, devo-lhe dizer que não podemos aceitar outra inspiração divina, a menos que a todos nós seja permitido sintonizar a mesma frequência.

 

Laskov ignorou os risos que se ouviram um pouco por toda a sala.

 

Concede-me a autoridade para poder agir em seu nome?

 

Está a parecer-me que isso é pedir de mais.

 

Só até ao nascer do Sol atalhou Laskov.

 

Ora bem, suponho que não poderá provocar muitos estragos nesse curto período de tempo. De acordo, mas entretanto a operação aerotransportada deverá manter-se em alerta máximo. Se regressar aqui antes das cinco e meia da manhã, apresentando-me provas irrefutáveis de que, pelo menos, o Concorde aterrou em solo da Babilónia, então, não hesitarei em carregar no botão vermelho e só nos restará fazer figas, esperando que tudo corra pelo melhor. No entanto, se recebermos notícias dos iraquianos até essa hora e eles nos afirmarem que não têm informações que os levem a concluir que há israelitas na Babilónia, nesse caso, qualquer prova que me possa apresentar deixará de ser ipso facto incontestável. Em qualquer das hipóteses, depois do alvorecer, serei obrigado a confiar nos iraquianos, acreditando que cumprirão a promessa de enviar uma força militar à Babilónia. Não desejo que as nossas tropas se choquem com as deles, por conseguinte, cinco horas e trinta minutos será o prazo-limite para se dar início a uma operação militar. Esta alternativa parece-lhe justa?

 

Gostaria de comandar a esquadrilha de caças que for enviada. O primeiro-ministro sentou-se.

 

Você tem uns tomates e tanto. Já nem sequer faz parte das forças armadas. O que me terá levado a acabar de lhe conceder toda a autoridade do meu gabinete? Devo estar desarranjado do juízo.

 

Por favor insistiu Laskov.

 

Na sala reinava um silêncio absoluto e durante algum tempo o primeiro-ministro pareceu embrenhar-se nos seus pensamentos. Pouco depois, pôs-se de pé outra vez, fitando Laskov.

 

Se conseguir convencer-me a levar esta operação a cabo, então será com o maior prazer que o nomearei para chefiar a esquadrilha. Não me lembro de outro oficial que seja mais apto para a missão do que você disse o político, com alguma ambiguidade.

 

Laskov despediu-se com uma continência, virou costas e saiu num passo enérgico, logo seguido por Talman.

 

Quando atravessaram o vestíbulo apinhado de gente, Talman falou-lhe em voz baixa.

 

Que raio de informações pensa que poderá reunir num espaço de tempo tão curto?

 

Ainda não sei replicou Laskov com um encolher de ombros.

 

Ambos saíram para a rua, franqueando a fachada com colunas e transpondo os portões de ferro, caminhando em silêncio. Jerusalém encontrava-se mergulhada numa quietude só quebrada pelo vento seco e quente. A noite, apesar do calor intenso, estava espectacular, como quase sempre sucedia durante a Primavera. No ar pairava uma fragrância doce a botões em flor e o firmamento apresentava-se de uma limpidez cristalina. A Lua, quase cheia, emanava uma luminosidade de um amarelo-cálido, e as flores, as trepadeiras e as árvores cresciam em todos os espaços vazios, como em qualquer aldeia. As ruas eram pavimentadas com pedras milenares, enquanto as casas poderiam ter sido construídas num período compreendido entre os últimos vinte anos e os dois milénios, mas essa discrepância não parecia ter qualquer relevância na paisagem de Jerusalém. Tudo o que se via pela cidade era antigo, ao mesmo tempo que parecia nunca envelhecer.

 

Então, porque raio disse que sabia? perguntou Talman pouco depois. Embora não fossem grandes, existiam algumas hipóteses de terem votado a favor da acção militar, e agora foi-lhes oferecida de bandeja uma saída.

 

Eles nunca teriam optado por uma iniciativa dessas argumentou Laskov.

 

Dar-se-á o caso de estar com dúvidas? questionou Talman, olhando-o à luz difusa do luar.

 

Nem por sombras afirmou Laskov parando abruptamente.

 

Eles estão na Babilónia, Izhak. Sinto-o no meu íntimo. E hesitou antes de acrescentar: Consigo «ouvir» as suas vozes.

 

- Isso é um absurdo, vocês, os russos, são uns místicos incuráveis.

 

É a pura verdade insistiu Laskov.

 

Insisto em saber o que lhe terá passado pela cabeça quando disse que seria capaz de arranjar provas conclusivas exigiu Talman, readquirindo a sua antiga autoridade.

 

Vamos supor que você queria enviar uma mensagem para um aparelho de reconhecimento que voasse a grande altitude aventou Laskov, recomeçando a andar. Como faria isso, se não tivesse um radiotransmissor?

 

Está a referir-se a uma mensagem pictográfica? perguntou Talman depois de pensar por momentos. Pois bem, desenharia um sinal de grandes dimensões no solo... sabe ao que me refiro, e caso isso fosse impossível, ou o avião voasse a uma altitude excessiva, ou o céu estivesse encoberto... ou ainda se houvesse uma tempestade de areia, então criaria uma fonte de calor, suponho. Mas nós tivemos oportunidade de observar essas fontes de calor, que não nos permitem concluir nada de concreto,

 

Mas seria conclusivo se uma dessas fontes de calor tivesse a forma de uma estrela de David.

 

Mas não observámos nada disso contrapôs Talman.

 

Ah, isso é que observámos!

 

Não, não é verdade.

 

Laskov calou-se, mas logo retorquiu, parecendo falar consigo mesmo enquanto continuava a caminhar.

 

Com tantos cérebros privilegiados, sinto-me surpreendido por isso não ter ocorrido a ninguém, mas esse é um campo misterioso... Quer dizer, um reconhecimento feito a grande altitude através de raios infravermelhos. Talvez eles tenham uma estrela à espera de entrar em combustão se avistarem uma aeronave. Não compreendem que, se o fizessem sem mais demoras, esse sinal poderia ser fotografado de qualquer avião algum tempo depois de a combustão se extinguir. Dobkin e Burg tinham obrigação de pensar nisso, mas estou a exercer uma crítica demasiado severa. É muito possível que não lhes reste combustível ou ainda que, por uma razão ou por outra, não conseguissem pôr esse plano em prática, não sendo de excluir que a gasolina tivesse sido necessária para o fabrico de engenhos explosivos. Além do mais, porque haveriam de pensar que alguém faria um voo de reconhecimento pelos céus da Babilónia? Quer dizer, porquê...

 

Teddy, a realidade é que não acenderam nenhuma estrela de David, nem enviaram mensagem alguma onde se pudesse ler: «Estamos aqui, companheiros!”, nada fizeram desse género atalhou Talman interrompendo Laskov. Talvez não arranjassem tempo para isso... A sua voz esmoreceu. Seja como for, é inegável que não existem sinais ou mensagens desse tipo.

 

E se existissem...?

 

Então, ficaria convencido, tal como aconteceria com a maior parte dos cépticos.

 

Ora bem, então só nos resta observar as fotografias que os serviços secretos da Força Aérea consideraram não ter importância, decidindo, por isso, que não valia a pena enviá-las ao primeiro-ministro. Tenho a certeza de que seremos capazes de distinguir o calor residual deixado pelas chamas de uma estrela de David. Tudo se resume a uma questão de sabermos do que andamos à procura... e então pode crer que encontraremos o que nos interessa.

 

Você está doido?! perguntou Talman, detendo-se subitamente estupefacto, numa voz que era quase um sussurro.

 

De maneira nenhuma!

 

Está a tentar dizer-me que seria capaz de alterar deliberadamente uma dessas fotografias?

 

E você acredita que eles estão... ou estiveram na Babilónia?

 

Acredito respondeu Talman, que admitia essa probabilidade, embora não soubesse explicar porquê.

 

Será que os fins justificam os meios? perguntou Laskov.

 

Não, nunca.

 

Se a sua mulher estivesse lá, ou as suas filhas, pensaria de maneira diferente?

 

Não respondeu Talman categórico, pois tinha conhecimento da relação amorosa que existia entre o seu interlocutor e Miriam Bernstein.

 

Laskov fez um gesto de cabeça, dando a entender que compreendia. Talman não mentia, passara um número excessivo de anos entre os britânicos e as suas emoções interferiam muito pouco, ou mesmo nada, no processo mental que lhe servia de base à tomada de decisões, o que, na maior parte das vezes, era um factor positivo na sua maneira de ser. Apesar de reconhecer isso, Laskov era da opinião de que por vezes o outro deveria comportar-se um pouco mais como um judeu comum.

 

Promete-me que se esquecerá do que eu acabei de lhe dizer antes de ir dormir um pouco?

 

Não, de facto, penso que tenho a obrigação de lhe dar voz de prisão.

 

Neste momento, eles estão a morrer na Babilónia, Itzhak argumentou Laskov, colocando as suas mãos maciças sobre os braços do outro. Eu sei que estão. De facto, os russos são um povo muito místico, e os de origem judaica ainda são piores. Sou capaz de os ver, pode acreditar no que lhe estou a dizer. Ontem à noite vi-os em sonhos, vi a Miriam Bernstein a dedilhar uma zither, uma harpa, enquanto chorava junto de um ribeiro. Foi só há pouco, quando estava num café, que compreendi o significado desse sonho. Pensa que lhe mentiria num assunto tão grave como este? Não, claro que não. Itzhak, não me impeça de ir em auxílio deles, permita-me fazer aquilo que é minha obrigação. Esqueça-se do que lhe disse. Quando você era meu comandante, costumava olhar para o outro lado, fez isso por mim numa ou duas ocasiões... sim, sim, não negue, eu sei que é verdade, não fique perturbado. Vá para casa e durma até ao meio-dia, e quando despertar já tudo terá terminado. Partilharemos um sentimento de júbilo nacional ou... sim, estaremos perante uma tragédia, talvez até mesmo a iminência de uma guerra. Mas que outra alternativa nos resta? Não me impeça de levar isto avante, é-me indiferente o que me possa acontecer depois. Agora permita-me que me afaste e Laskov apertava fortemente as mãos de Talman.

 

Este sentia algum mal-estar em presença daquela intimidade tanto física quanto emocional, a seu ver despropositada, por parte de Laskov. Fez um pequeno movimento que esperava dar a entender ao outro que preferia que ele não o agarrasse, mas Laskov continuava a apertar-lhe as mãos com força. Aquela situação era uma encruzilhada para Talman, convencido de que seria capaz de tomar uma decisão mais facilmente se Laskov se afastasse um pouco. Os israelitas tinham o costume de procurarem manter um contacto físico, não tanto como os árabes, mas mesmo assim demasiado perto dos outros, na verdade, uma proximidade excessiva para o feitio de Talman.

 

Bem... mas a presença de Laskov continuava a fazê-lo sentir... o quê? O calor do homem, a sua respiração... algo que se transmitia dos dedos de Laskov para o seu corpo. Na verdade, eu... Aquela situação causava-lhe um mal-estar terrível, o rosto do outro encontrava-se a menos de meio metro do seu. Era capaz de... sentir o mesmo que Laskov. Eu... acho que vou para casa... Não... vou consigo. Sim, que diabo! Isto é uma loucura, compreende... é de doidos, realmente... mas tenciono ajudá-lo, é isso mesmo!

 

Laskov esboçou um sorriso lento, sim, de facto, conhecia Talman, tal como pensara. Até mesmo aquele homem duro podia deixar-se levar pelas emoções e o sonho fora um pormenor bastante convincente.

 

Óptimo! exclamou Laskov soltando as mãos de Talman e retrocedendo alguns passos. Ouça, conheço um técnico de fotografia que trabalha no laboratório da Força Aérea, em Telavive. Podemos passar por lá a caminho da cidadela. Se quisermos, fazemos com que um aterro sanitário fique com o aspecto da Elizabeth Taylor. Ele acederá a tudo o que eu lhe pedir sem pôr quaisquer perguntas.

 

Talman assentiu com um acenar de cabeça e ambos recomeçaram a caminhar, num passo quase de corrida, em direcção à praça de táxis, perto do gabinete do primeiro-ministro. Saltaram para dentro de um.

 

Para Telavive indicou Laskov quase sem respiração. É uma emergência nacional!

 

Benjamin Dobkin tomou nas suas a mão de Shear-Jashub. Ambos estavam junto do molhe argiloso que entrava pelo Eufrates. A aldeia em peso, constituída por algumas dezenas de habitantes, encontrava-se ao fundo do ancoradouro, observando em silêncio os dois homens. A luz do luar revelava as nuvens de poeira na margem oposta e naquela o vento também soprava, mas a maior parte do pó era levada para a superfície das águas. O próprio rio estava encapelado, com pequenas ondas que lambiam o improvisado cais. A travessia não parecia nada fácil, tal como em terra a jornada também não seria desprovida de dificuldades. Dobkin virou-se para trás observando o ancião.

 

Levem o cadáver do árabe para o pântano, onde os chacais se encarregarão dele, e quando a manhã chegar façam a vossa vida normal.

 

Numa atitude de cortesia, o homem idoso acenou com a cabeça. Não precisava que ninguém lhe desse instruções de como sobreviver, há mais de dois mil anos que a sua aldeia conseguia resistir tendo passado por episódios que só perderiam o primeiro lugar na escala de atrocidades comparando-as com o Holocausto.

 

Que Deus te acompanhe ao longo da tua jornada, Benjamin. Dobkin usava o camuflado ensanguentado e o kheffiyah do ashbal morto. Não faltaria muito para que o cadáver deste se encontrasse nas barrigas dos chacais, mas Dobkin não conseguia expulsar da sua mente o pensamento perturbador de que Rish, mais cedo ou mais tarde, iria àquela aldeia para vingar a morte de Talib, completando com toda a rapidez o trabalho que dois milénios de atritos não conseguira terminar.

 

Achas que a tua gente quereria... regressar a Israel, caso isso fosse possível?

 

Para Jerusalém? perguntou Shear-Jashub, fitando Dobkin.

 

Sim, para Jerusalém ou para qualquer parte em Israel. Para a praia de Herzlya, se assim quiserem.

 

Era capaz de compreender, ainda que vagamente, o que ia no pensamento do ancião. No conceito dele, Israel não passava de um nome bíblico, tal como a Judeia e o Sião, na sua óptica não era um lugar verdadeiro, pelo que não se revestia de um significado muito maior do que a Babilónia tivera para Dobkin até há apenas dois dias.

 

É uma terra boa insistiu o general, mas como diabo conseguiria Ancião ultrapassar um fosso de dois milénios? Não só a língua hebraica falada por ambos era diferente, como também os conceitos e valores de cada um se encontravam em mundos totalmente diversos. É muito possível que vocês corram perigo nesta região.

- Sempre vivemos assim nesta terra.

 

Que direito assistia a Dobkin, quaisquer que fossem as circunstâncias, para lhes prometer um regresso a Jerusalém? Como tencionava concretizar essa promessa, caso a sua proposta fosse aceite? Apesar das dúvidas que o invadiam, continuou:

 

Vocês vivem na Babilónia há demasiado tempo, chegou a altura de regressarem à vossa terra.

 

Teria de ser insistente, aquelas pessoas eram como crianças, não se apercebiam das vantagens de que poderiam desfrutar em Israel. Além de que Dobkin não gostava de ver nenhum judeu a viver numa situação de submissão e sempre que, no decorrer das suas viagens, encontrava alguns que tentavam não dar muito nas vistas onde quer que estivessem, sentia-se encolerizado, só lhe apetecendo gritar-lhes: «Venham para a vossa terra, grandes idiotas! Regressem a vossa casa, onde poderão andar de cabeça bem erguida. Agora já existe uma nação que é a vossa, comprámo-la com o nosso próprio sangue.” Apertou a mão do velho rabino com mais força., Voltem para a vossa terra repetiu.

 

Shear-Jashub colocou a outra mão sobre o ombro de Dobkin.

 

Aluf começou a dizer, vieste para nos tirares do exílio? Ou estarás destinado, sem que disso tenhas consciência, a ser o instrumento da nossa destruição final? Espera, deixa-me terminar. A Sagrada Escritura diz mais ou menos isto: «Então, levantou-se o chefe dos patriarcas de Judá, os padres dos Levitas e todos aqueles cujo espírito Deus elevara para que fossem construir a casa do Senhor, que é em Jerusalém.» Mas Deus não elevou o espírito dos meus antepassados, estes permaneceram nesta terra, e permite que eu te diga uma coisa, Benjamin. Quando esta casa de Deus, a dos exilados, o Segundo Templo, também foi destruído e a populaça se dispersou, começando a errar pelo mundo, os judeus que permaneceram ia Babilónia é que mantiveram acesa a chama do conhecimento. Foi a Babilónia, e não Jerusalém, a primeira cidade da cultura e conhecimento judaicos durante esses anos. Israel terá sempre necessidade dos seus exilados, Benjamim, a fim de garantir que existirá sempre alguém que dê cumprimento à Lei, podendo regressar a Jerusalém, se esta voltar a ser destruída. O velho esboçou um sorriso e as suas faces trigueiras e lustrosas enrugaram-se à luz do luar. Tenho esperança de que o espírito de Deus, um dia, te faça construir o Terceiro Templo e, caso o faças, não te esqueças disto... Se Jerusalém cair de novo, então existirão sempre os judeus da Diaspora, e até mesmo nós, que vivemos no exílio, regressaremos a fim de ^construirmos o Quarto Templo. O ancião apertou a mão e o ombro de Dobkin, para depois, com suavidade o afastar de si. Vai, Benjamin, e completa a tua missão, e quando estiver concluída, nessa altura, talvez voltemos a conversar sobre Jerusalém.

 

Dobkin deu meia volta, num movimento rápido, encaminhando-se para o outro extremo do molhe. Olhou por cima do ombro, fazendo o gesto vago de despedida dirigido às figuras vestidas com as suas túnicas que se mantinham imobilizadas sob o luar. Sentiu-se invadido por uma sensação de irrealidade, o que não lhe acontecia pela primeira vez desde que chegara ali. As paisagens, os sons e, muito em especial, os cheiros daquela região dificultavam-lhe um processo de pensamento racional. Raciocinar como qualquer homem do século XX, para mais militar de carreira.

 

Baixou depois o olhar para o Eufrates, observando atentamente as águas do rio, onde avistou uma gufa, uma embarcação de linhas estranhas, junto ao molhe. Pouco mais era do que uma espaçosa cesta arredondada, revestida com o famoso betume-da-judeia e parecia que acabara de levar uma demão viscosa tanto poderia ter sido há alguns dias como há alguns milhares de anos. Dobkin entrou nela, a qual ficou quase submersa até aos bordos, e um jovem de nome Chislon saltou atrás dele, aparentemente pouco preocupado com os poucos centímetros que o separavam das águas. A gufa balouçava perigosamente, mas acabou por se equilibrar, tendo ficado apenas com cerca de dez centímetros de bordo livre do lado de Chislon, e aproximadamente cinco do de Dobkin. O rapaz pegou numa vara comprida, que retirou do molhe, soltou o cordame de amarração e, com a vara, impulsionou a embarcação, afastando-se do pequeno cais.

 

Dobkin calculou acertadamente que aquela gufa nunca era utilizada na época do ano em que o caudal do Eufrates aumentava, como era o que acontecia naquela ocasião. Decorridos poucos minutos, as suas suposições foram confirmadas, quando reparou que a vara já não conseguia tocar no leito do rio, por muito que Chislon se inclinasse para baixo, mas este continuava a olhá-lo com um sorriso confiante.

 

A gufa começou a navegar com mais velocidade. Dobkin sabia que teriam de desembarcar na margem oposta, dois quilómetros mais abaixo, caso contrário ultrapassariam o extremo sul da Babilónia, o que o obrigaria a regressar a pé, e não se sentia com forças suficientes para percorrer esse trajecto. Retribuiu o sorriso ao jovem, que se esforçava por manter uma aparência de muita calma, o que não impedia o general de constatar que ele estava amedrontado.

 

Uma outra probabilidade que não lhe saía do pensamento: ir até Hilla, pois era possível que a população da cidade fosse em auxílio dos sitiados. Poderia falar directamente com o comandante da guarnição militar, pondo-o ao corrente da situação e este, por seu turno, entraria em contacto com Bagdade. Contudo, certamente que as autoridades locais ou a guarnição já se teriam apercebido da situação que ocorria na Babilónia e, sendo assim, por que motivo ainda não tinham ido averiguar? Ficou a pensar naquilo. Os judeus nunca confiavam inteiramente em nenhum outro povo, não acreditando que se mostrassem generosos ou dispostos a ir em seu auxílio, estavam sempre à espera de traições, e poucas vezes se enganavam-não iria a Hilla, em vez disso, dirigir-se-ia ao museu ou à casa de Impedes, onde tentaria encontrar um telefone que lhe permitisse ligar para Israel, pois era daí que poderia receber ajuda, era lá que viviam pessoas que se importavam com o destino dele e dos seus companheiros, e na realidade, interessavam-se e muito.

 

As rajadas do sherji sopravam por cima das águas e o que lhe faltava em areia era compensado pela velocidade. A gufa oscilava e adernava ora a bombordo, ora a estibordo, ao sabor das ondas, vindas de todas as direcções. A embarcação redonda começou a rodopiar sobre si mesma, fazendo com que Dobkin sentisse náuseas, além de dores nas virilhas e da sensação de que a coxa estava em brasa. Colocou a cabeça por cima do rebordo e vomitou a última refeição, composta de chá de limão bem quente e de um peixe, que não fora capaz de identificar, mas que dava pelo nome de masgouf.

 

Depois de ter vomitado ficou um pouco melhor e, debruçando-se, lavou o rosto no rio, não lhe passando despercebido que Chislon também não estava com muito bom aspecto. A seguir Dobkin avistou umas luzes esparsas na margem mais afastada, indicando-as ao seu companheiro de viagem.

 

E Kweirish elucidou Chislon.

 

Naquele momento não restava a mínima dúvida a Dobkin de que o rapaz estava nitidamente preocupado com as condições atmosféricas. Os turistas ocidentais depositavam sempre uma fé desmedida em todos os guias nativos, mas, se a verdade fosse dita, constatar-se-ia que estes só muito raramente se dedicavam àquilo que os amantes de aventuras esperavam que eles fizessem como parte da sua rotina diária. Era inquestionável que Chislon nunca tivera antes de atravessar o Eufrates quando as cheias se encontravam no seu nível mais elevado, a horas tardias e numa noite em que o sherji dava largas à sua fúria.

 

Dobkin observava as duas margens enquanto continuavam a navegar a grande velocidade. Na oriental, a terra era obscurecida por grandes maciços de poeira, bloqueando a Lua, o que lhe deu a saber que o último acto começaria a ser representado na colina antes que aquela se pusesse.

 

Mais abaixo, depois de terem passado por Kweirish, o curso do rio afunilava-se, fazendo com que a gufa ganhasse mais velocidade, e a embarcação foi apanhada em águas extremamente rápidas, entre margens agora estreitas, enquanto Chislon continuava a procurar o fundo com a sua vara, adernando o barco ao ponto de este quase ter metido água.

 

Dobkin tentava estimar a distância que faltaria até que conseguissem atingir a margem mais afastada. À frente, o rio descrevia uma curva para ocidente e, caso a gufa não se afundasse antes disso, era possível que lograssem desembarcar aí, o que o colocaria nas proximidades da muralha mais a sul da cidade. Teria então de retroceder pelo menos dois quilómetros até à Porta de Istar, onde ficava situada a casa de hóspedes, e perguntava-se o que faria caso fosse capaz de chegar lá.

 

Os desastres e as vitórias têm uma afinidade muito estreita. Observava Hausner.

 

Burg calcou umas quantas pontas de cigarro no fornilho do cachimbo chegando-lhe um fósforo como só os viciados em nicotina conseguem fa zer no meio da ventania.

 

Os dois homens tinham procurado abrigo no que restava de uma trincheira na encosta oriental. A areia continuava a acumular-se na vala rasgada no solo, fazendo com que, lenta mas inexoravelmente, esta fosse ficando ao mesmo nível do terreno que a circundava.

 

Que é feito do Kaplan? perguntou Burg pela segunda vez. Como é que chegara Burg à conclusão de que Kaplan desaparecera era um enigma que teria de ser deixado à imaginação de qualquer pessoa, pensava Hausner, mas talvez Naomi Haber lhe tivesse dito. Burg tinha os seus informadores.

 

Não sei se sabe, mas não muito longe daqui, num sítio de nome Kut, um exército britânico ficou sitiado pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial disse Hausner acendendo um cigarro. A força expedicionária britânica partiu da índia e desembarcou no golfo Pérsico, na foz do Tigre e do Eufrates para se apoderar da antiga Mesopotamia, na altura na posse dos otomanos. As populações árabes... os que viviam nos desertos e nos terrenos pantanosos, eram como abutres e, no rescaldo dos confrontos entre os dois exércitos, despojaram os mortos de tudo o que possuíam, acabando com a vida dos feridos. Não concediam paz a nenhum dos contendores, matando os soldados que se deixavam ficar para trás, a fim de se apoderarem dos seus uniformes e equipamento militar. Podemos extrair uma lição deste episódio, que é: não nos devemos aventurar por terras pantanosas. Se o fizermos e os ashbals não nos apanharem, então serão os saqueadores árabes que se encarregarão dessa tarefa.

 

Burg puxou a ponta de um lenço de forma a proteger-lhe melhor o rosto, meteu a haste do cachimbo por uma dobra e, continuando a fumar, fitou Hausner.

 

Nesse ponto estou inteiramente de acordo consigo. Mais tarde, não nos podemos esquecer de contar essa história ao nosso ministro dos Negócios Estrangeiros. Entretanto, o que é feito do Kaplan?

 

Voltando à história, tem outra parte e outra lição a tirar, Isaac. O fumo saiu da boca de Burg, misturado com um suspiro de resignação.

 

De acordo, conte lá.

 

Pois bem, depois da prolongada batalha, os britânicos foram obrigados a procurar refúgio nessa povoação de que lhe falei há pouco, em Kut. Os mantimentos estavam quase a esgotar-se, os turcos sitiaram a cidade e o cerco prolongou-se por vários meses. As tropas britânicas que vieram ajudar os camaradas chegaram a estar a um quilómetro de Kut, mas os turcos não permitiram que se aproximassem mais, rechaçando-os inúmeras vezes. Finalmente, aos britânicos encurralados não restou outra alternativa que não fosse a rendição quando as provisões chegaram ao fim, e uma das críticas mais severas do general britânico... que consta do relatório arquivado no Ministério da Defesa, acentuava a falta de incursões e sortidas por parte das tropas sitiadas, as quais, na sua opinião, deviam ter investido contra as fileiras dos turcos. Este relatório recomendava a abolição das estratégias militares de defesa estática, e a adopção de tácticas móveis e fluidas. Nada de muralhas, mas poder de fogo e espaço de manobra. Hoje em dia, a ciência militar aceitou este conceito. Porque se recusa a aceitá-lo?

 

Confesso que não sou capaz de ver o paralelo que possa existir entre a sua parábola e a nossa situação retorquiu Burg com um sorriso forçado. Onde está o Kaplan? Lá em baixo?

 

De facto, há um paralelo: as boas tácticas de defesa são válidas quer seja na Babilónia, em Kut ou em Cartum. E falando de Cartum, Burg, não se esqueça de que as tropas britânicas que iam render as outras chegaram lá apenas com um dia de atraso, mas isso não impediu que o general Gordon, os seus homens e os civis já estivessem mortos. Se não recebermos ajuda do exterior dentro das próximas horas, sofreremos o mesmo destino. Enquanto estivermos aqui e não aparecer ninguém que tente esquartejar-nos, mantemo-nos na ilusão proporcionada por um falso sentimento de segurança, mas quando esta encosta fervilhar de vida, pejada de ashbals aos berros e sequiosos de sangue, então com certeza que nos perguntaremos: «Porque não experimentámos isto?” ou «Porque não tentámos aquilo?” Pois bem, Burg, estou a dizer-lhe agora que qualquer método, por muito desesperado que possa parecer, que nos permita ganhar algum tempo, valerá bem o risco.

 

Aonde foi ele? À Porta de Istar?

 

Não, foi só até à muralha exterior da cidade. Será por esse caminho que eles virão.

 

Como é que pode ter tanta certeza?

 

Todos os problemas no campo de batalha têm somente um número finito de soluções.

 

Vou ver se lhe arranjo um emprego na Academia Militar quando regressarmos a Israel.

 

Hausner recostou-se à parede interna da trincheira, fechando os olhos enquanto fumava.

 

Quando será o julgamento da Bernstein e da Aronson? Antes ou depois do seu? perguntou Burg.

 

Hausner já sofrera a sua quota-parte de humilhação, a que se aliava uma atitude de deferência da sua parte, conduta que não se ajustava à sua maneira de ser. Não lhe agradava partilhar o que quer que fosse, e muito menos a sua autoridade. Assim, num movimento rápido, sentou-se a direito, espetando um dedo contra o peito de Burg.

 

Não me force a atitudes menos agradáveis, Isaac, ou será você quem acabará por se sentar no banco dos réus e não eu. Se a questão for posta à votação, pode crer que eles optarão pelo sacana genuíno que os tirara da situação de apuro em que se encontram, e não por um calculista como você, nem tão-pouco pelo estadista que é o Weizman. Sabem que podem confiar num verdadeiro filho da mãe para os levar daqui para fora e também que não devem depositar confiança em si nem no Weizman para tomarem decisões que não sejam populares, nem sequer para as implementar. Portanto, pare de me chatear. Pode crer que sairei do seu caminho, e da sua vida, dentro de pouco tempo.

 

Burg baixou o olhar para o fornilho incandescente do seu cachimbo.

 

Não confio em si, Jacob. Uma pessoa que pensa que as vitórias e os desastres mantêm uma relação estreita é o tipo de homem que pedirá outra carta quando já ganhou vinte pontos na mesa de black-jack. Essa não é a maneira como jogamos nos serviços secretos, onde estamos dispostos a aceitar ganhos mínimos para que as nossas perdas sejam igualmente mínimas. Sempre que existe uma hipótese de o prejuízo ser maximizado, nunca nos abalançamos às grandes vitórias. É nestes moldes que os serviços secretos de todos os exércitos, assim como os Ministérios dos Negócios Estrangeiros, actuam hoje em dia. Você é o último dos grandes jogadores, mas não lhe é permitido arriscar a vida dos outros. Até mesmo a de um único homem, concretamente, a de Moshe Kaplan, um tipo corajoso, não devia estar em jogo da forma que você a colocou, como se fosse algo que pudesse ser desperdiçado com base na hipótese muito remota de que isso pode contribuir, ainda que minimamente, para o bem de todos.

 

Você sabe bem de mais que a possível perda de uma vida é considerada um risco menor. De acordo com as regras que regem a porra da sua teoria, a morte de Kaplan seria aceitável, tendo em vista a possibilidade de um ganho acrescido.

 

Suponho que tudo isso seja muito subjectivo. Não considero que a perda de qualquer vida possa ser considerada despicienda.

 

Você é um raio de um hipócrita, Burg. Ao longo da sua vida profissional já teve ocasião de fazer coisas muito piores do que isto, e não me venha com fingimentos de que não ficou satisfeito por eu ter pedido ao Dobkin que fosse procurar ajuda. Essa missão representa uma morte quase certa, do que você tem bem a noção, mas não me pareceu ter ficado muito preocupado.

 

Era uma situação diferente, Dobkin é um militar de carreira e sabe que poderá sempre chegar uma altura como esta pelo menos uma vez na sua vida.

 

O que não torna a situação dele mais fácil, tal como não facilitou em nada eu ter de lhe pedir que arriscasse a vida. Passar-lhe-á pela cabeça que senti algum prazer em enviar quer um, quer o outro para uma morte quase certa?

 

Eu nunca disse isso, e baixe o tom de voz. Limito-me a desempenhar o papel do advogado do diabo.

 

Pois fique ciente de que eu não necessito de mais demónios nem dos seus advogados, Burg. Cinjo-me apenas a fazer aquilo que considero ser a minha obrigação. E, por Deus, só espero que os políticos e os generais, em Jerusalém e em Telavive, se esqueçam das suas teorias, porque, se estiverem dispostos a arriscar as nossas vidas, quando nos conseguirem descobrir, se forem capazes disso, já estaremos todos irremediavelmente mortos.

 

Burg pôs-se a observar a encosta até ao sopé, imprimindo ao seu timbre de voz um certo distanciamento.

 

Ora bem, é preferível morrer do que sermos a razão do deflagrar de outra guerra, ou que qualquer missão de resgate, para nos salvar, ponha em risco a conferência de paz.

 

Naquele momento, Hausner abarcou introspectivamente toda a situação. Burg não teria pejo algum em sacrificar os seus companheiros em nome daquilo que, na sua perspectiva, considerava ser um bem maior. Preferia que morressem todos com bravura de preferência sem grande alarido do que serem responsáveis por colocar Israel numa posição melindrosa. Caso se reflectisse um pouco sobre o assunto, concluir-se-ia que era tudo uma questão de escala de riscos. Ele, Hausner, estava na disposição de sacrificar a vida de Kaplan, a sua ou a de qualquer outra pessoa em nome de objectivos maiores. Mas onde estaria o limite desse espírito de sacrifício? Caso o território israelita fosse invadido, recusariam os militares o recurso às suas bombas atómicas «em nome da humanidade e do bem maior»? Assistiria a alguém, a alguma nação ou cidadão, o direito de dizer: «O bem maior é o meu olho do cu. Eu mereço viver e estou na disposição de matar quem tente pôr fim à minha vida?”

 

Contudo, era incontestável que as pessoas se sacrificavam por objectivos mais elevados, e Kaplan estava a fazer isso naquele preciso momento, estendido no escuro, sozinho e desamparado, certamente a contar os minutos de vida que lhe restavam. Quanto a Burg, parecia disposto a permitir que todos incluindo ele próprio perecessem ao invés de forçar Israel a tomar uma decisão que poderia ter consequências adversas.

 

Hausner ficou a reflectir naquilo. Não lhe custaria nada arriscar a vida, mas isso apenas porque o destino o colocara numa posição em que sobreviver talvez fosse pior do que morrer, e pusera Kaplan precisamente na mesma posição, pois este jamais conseguiria continuar a levar uma existência despreocupada, caso tivesse recusado o tipo de convite que Hausner lhe fizera. No entanto, não eram as vidas nem as mortes que o apoquentavam, compreendeu Hausner, o que estava em jogo era o princípio da intervenção agressiva os israelitas não podiam deixar-se cair nesse papel passivo que fora a causa da morte da judiaria europeia.

Ia contra a personalidade de Hausner aceitar os argumentos de Burg e, se o primeiro-ministro lhe perguntasse directamente, não hesitaria em dizer: «Quero que venham cá, à força se for preciso, para nos levarem daqui para fora. Por que raio estão a demorar tanto tempo?” Certamente que Burg também acreditava nisso, mas este mais não fazia do que desempenhar de novo o papel de advogado do diabo. Discorria como se fosse o ministro dos Negócios Estrangeiros e como Míriam, nas mesmas circunstâncias. Burg, o espião, tinha muitas personalidades e falava em muitas línguas, mas se efectivamente acreditasse nas suas próprias palavras, então estaria redondamente enganado. Ele teria de ser mantido debaixo de olho e era possível que Hausner se visse obrigado a neutralizá-lo.

 

Ficou sentado na trincheira, a sós consigo mesmo. A terra e a poeira não cessavam de entrar pela abertura, começando a cobrir-lhe as pernas. O sítio onde Burg estivera sentado defronte de si já tinha sido tapado. Não faltaria muito para que todas as defesas que os sitiados haviam erigido no cume da colina desaparecessem. E o Concorde também não escaparia, não tardaria o dia em que ficasse completamente coberto, dele restariam apenas uns contornos vagamente delineados. Os ossos dos que ali se encontravam ficariam também enterrados, e tudo o que restaria deles e dos seus feitos seria mais um registo escrito, testemunho do sofrimento e martírio por que passaram, destinado à biblioteca municipal de Jerusalém. Agarrou um punhado de terra e lançou-a ao vento. A Babilónia. Hausner odiava aquele lugar, odiava cada centímetro quadrado da sua poeira e da terra argilosa. A Babilónia, que corrompia os homens, a assassina de almas. Ali, haviam sido cometidos milhares de actos de devassidão moral, massacres, escravidão, fornicação fruto do adultério, sacrifícios de sangue. Como podia o seu amor por Miriam ter florescido num lugar como aquele?

 

Dera ordem para que ela viesse ter consigo, mas nada lhe garantia que fosse obedecido. Sentia o coração bater-lhe pesadamente no peito e a boca, já ressequida, tornou-se pegajosa, enquanto as mãos lhe tremiam. «Miriam, vem depressa.” A espera tornou-se-lhe insuportável, olhou para o relógio e viu que haviam passado cinco minutos desde que Burg se fora embora, três desde que enviara um mensageiro ao Concorde. Queria levantar-se e afastar-se dali, mas estava incapaz de se deslocar do lugar onde ela iria ao seu encontro.

 

Ouviu o som de duas vozes, a que correspondiam duas silhuetas e uma delas apontou, virou costas e afastou-se, enquanto a outra continuou a caminhar na direcção dele. Humedeceu os lábios esforçando-se por falar numa voz segura.

 

Estou aqui.

 

Miriam entrou na trincheira, ajoelhando-se ao seu lado em cima da poeira.

 

O que se passa, Jacob?

 

Eu... só queria falar contigo.

 

Fui posta em liberdade?

 

Não, não, não posso fazer isso. O Burg...

 

Tu aqui podes fazer o que bem te apetecer, és o rei da Babilónia.

 

Pára com isso!

 

Uma pequena parte de ti está inteiramente de acordo com o Burg acrescentou Miriam, inclinando-se para ele, está a dizer: «Ponham a cabra atrás das grades e mantenham-na presa. Eu sou Jacob Hausner, sou eu quem toma as decisões mais difíceis e não me afasto um milímetro delas.”

 

Miriam, não faças...

 

Não me interpretes mal. Estou preocupada comigo mesma... e, já agora, com a Esther e também contigo, pois a outra parte de ti morrerá se deixares que esta farsa continue. Por cada minuto que a sustentes sem lhe pores cobro, tornas-te cada vez mais desumano. Ao menos uma vez na vida, assume uma posição de generosidade e compaixão, não receies que toda a gente possa ver o Jacob Hausner que eu conheço.

 

Não posso replicou Hausner. Tenho medo, receio que as coisas entrem num descalabro, se mostrar piedade.

 

Pensou em Moshe Kaplan. Como arranjara coragem para fazer uma coisa daquelas a um homem? Pensou em outros Moshe Kaplan com quem se cruzara ao longo dos anos e recordou-se de Miriam quando esta recitara a oração de Revensbruck.

 

Não quero ser uma das tuas vítimas atalhou ela como se lhe tivesse lido os pensamentos, o teu pesadelo, o teu fantasma em sobressalto. Quero ser a pessoa que te ajuda.

 

Hausner flectiu as pernas e apoiou a cabeça nos joelhos, uma postura que não voltara a assumir desde a sua infância e sentiu que estava a perder o domínio de si próprio.

 

Vai-te embora.

 

As coisas não são assim tão fáceis, Jacob.

 

Não, de facto não são concordou ele, erguendo a cabeça e fitando-a por entre a escuridão.

 

Porque me mandaste chamar? perguntou Miriam, verificando que a aparência dele reflectia desânimo e solidão.

 

Não sei respondeu Hausner numa voz tremida, sacudindo a cabeça.

 

Querias dizer-me que me amas?

 

Estou para aqui a tremer que nem um colegial no seu primeiro encontro com uma rapariga, e a minha voz soa uma oitava mais acima do normal.

 

Miriam estendeu a mão, passando-a num gesto carinhoso pelas têmporas e pelos cabelos de Hausner, que a agarrou, levando-a aos lábios. Desejava beijá-la, acariciá-la, mas em vez disso tomou-a nos braços e apertou-a com força. Pouco depois, afastou-a com suavidade, ajoelhou-se e levou a mão à algibeira da camisa, donde tirou qualquer coisa, que colocou sobre a palma da mão aberta: uma estrela de David, de prata. Fora feita a partir de dois triângulos separados, que posteriormente haviam sido ligados, e aparentemente alguns dos cravos tinham-se desprendido, deslocando um dos triângulos. Tentou imprimir à voz uma entoação de desinteresse.

 

Comprei-a em Nova Iorque, na Tiffany’s, durante a minha última viagem. Agradeço-te se a mandares arranjar numa ourivesaria. Importas-te? E entregou-a a Miriam.

 

O primeiro presente que me ofereces, Jacob retorquiu ela com um sorriso, mas sentes necessidade de fingir que não se trata de uma oferta. Mesmo assim, obrigada.

 

Subitamente, Míriam com uma expressão grave no rosto, ajoelhou-se no fundo da trincheira, olhando fixamente para a estrela de prata na sua mão aberta.

 

Oh, Jacob murmurou, por favor, não desperdices a tua vida. Cerrou o punho, fechando a mão, que levou ao peito. As pontas aguçadas da estrela penetraram-lhe na pele, que começou a sangrar. Baixou a cabeça, esforçando-se por conter as lágrimas ao ponto de todo o seu corpo estremecer. Raios partam isto! Maldita situação! gritou, batendo com os punhos no chão. Raios partam isto, não permitirei que morras aqui.

 

Hausner não respondeu, mas os seus olhos também estavam marejados de lágrimas.

 

Com mãos pouco firmes, Miriam tirou do pescoço um fio de prata, onde, gravadas na malha do fio, se liam as letras hebraicas que formavam a palavra «Vida». Fechou o fecho do fio à volta do pescoço de Hausner e puxou-lhe a cabeça, que encostou aos seios.

 

Vida acrescentou por entre uma voz entrecortada pelo choro. Vida, Jacob!

 

Moshe Kaplan estava deitado numa pequena ravina, perscrutando tudo o que se encontrava em seu redor através da mira com visão nocturna. A luz do luar era fraca e as nuvens de poeira cerradas, mas não teve dificuldade em avistar a fila de ashbals, com os camuflados característicos dos «gatos-monteses», que avançavam, pois as suas silhuetas recortavam-se contra a muralha baixa, a menos de vinte metros de distância. A presença daqueles homens fez com que lhe ocorresse à mente uma gravura do século XIX a que fora dado o nome de O Ajuntamento dos Lobisomens. Representava seres grotescos, semi-humanos, agrupados contra a parede do adro de uma igreja, paredes meias com um cemitério iluminado pelo luar. Era um quadro que inspirava temor, embora fosse bastante menos assustador do que o de tons esverdeados enquadrado na mira telescópica.

 

Continuando a observar, Kaplan deu-se conta de que, de repente, a imagem ficou desfocada as baterias estavam prestes a esgotar-se. Focou a mira uma última vez até que o visor escureceu gradualmente, fazendo recuar o gatilho.

 

Lá em cima, na colina, todos se deram conta de que chegara o tão receado momento.

 

Dobkin empurrou Chislon, que só à força voltou a entrar na gufa, após o que empurrou a embarcação, para que esta se afastasse da margem. Só com uma pessoa flutuava melhor, pelo que o jovem tinha mais hipóteses de se sair bem na sua luta com as águas do Eufrates do que se tivesse de partilhar o que Dobkin tinha de enfrentar. Além do mais, Chislon era o único contacto com a aldeia de Ummah, pormenor que o general não queria que fosse do conhecimento de Rish, caso viessem a ser descobertos. Ficou a acompanhar com o olhar a gufa que navegava rio abaixo, em direcção a Hilla, até que acabou por perdê-la de vista.

 

Dobkin estava completamente desorientado, sem saber onde se encontrava em relação à Porta de Istar, além de ter de arrostar com a tempestade de areia, que não o deixava ver nada à sua frente, obrigando-o a tomar cuidados redobrados com o caminho que pisava. Por todo o lado havia escavações não assinaladas, e quase caiu em algumas. Do mal o menos, a presença daqueles obstáculos confirmava que se encontrava na Babilónia. Tentou orientar-se por aquele terreno nitroso e esbranquiçado, bastante peculiar, o que se devia às construções muito antigas que haviam destruído a vegetação, ao ponto de esta ter definhado por completo, fazendo com que aquela região fosse de uma esterilidade nua e horrível.

 

Depois de ter percorrido cerca de trezentos metros, subiu para uma elevação e, começando a examinar o terreno em redor, presumiu que a casa de hóspedes devia ter algumas luzes acesas, mas não avistou nenhuma.

 

Ouviu um barulho atrás de si e girou rapidamente sobre os calcanhares, avistando algo que se deslocava a coberto da escuridão, e foi então que avistou os olhos em forma de fenda de um amarelo que cintilava no escuro.

 

O chacal tinha-se empoleirado nos escombros de um muro, mantendo os quartos traseiros contra o vento e o focinho na direcção de Dobkin. De olhos semiabertos, o animal assumira uma postura estática como que aceitando as agruras da situação em que se encontrava, e, inesperadamente, o general sentiu uma certa empatia com aquele predador da noite.

 

Não sei de que andarás à procura por aqui, velho caçador, mas espero sinceramente que encontres o que pretendes... desde que não seja a minha pessoa.

 

O chacal caminhou em movimentos lentos ao longo do muro, aproximando-se do ponto onde Dobkin parara. Então, depois de ter avaliado o homem, imobilizou-se, ergueu o focinho e começou a uivar, mas da sua alcateia não veio qualquer resposta, o que o levou a dar um salto, desaparecendo nas trevas.

 

Dobkin também desceu do montículo de terra, abrigando-se temporariamente numa casa antiga semiescavada, em cujos cantos, mergulhados em sombras, se ouvia o piar das corujas ao pressentirem a sua presença. Depois, sentou-se no chão, tentando lutar contra a fadiga e as dores entorpecedoras que o ameaçavam. Deixou que as pálpebras se cerrassem, sentia-se prestes a perder a consciência.

 

A Babilónia, um lugar tão inacreditavelmente desolador e sem vida. Aquela cidade tentava aniquilá-lo para acrescentar os seus ossos à terra esbranquiçada. «E a Babilónia tornar-se-á num amontoado de escombros, um local de habitação para os dragões, um autêntico assombro entre silvares onde não existem habitantes.” A profecia de Jeremias, mais ou menos nestes termos, tinha sido tão precisa quanto a de Isaías.

 

No século IV, recordou-se Dobkin, um rei persa transformara a cidade numa coutada. As suas magníficas muralhas, por vezes indicadas como sendo a segunda grande maravilha do mundo em lugar dos Jardins Suspensos, continuavam a existir nos tempos modernos, se bem que a maior parte das trezentas e sessenta torres de vigia, distribuídas ao longo das fortificações, tivesse ruído. Aquele destino grotesco, a transformação da maior cidade da Antiguidade num local onde reinavam os animais selvagens na realidade, uma espécie de jardim zoológico, trazia-lhe ao pensamento, de maneira ainda mais dramática, as profecias um local de habitação para as bestas.

 

Em princípios do século V, o rio Eufrates mudara o seu curso, e o resultado foi a Babilónia ter-se transformado num vasto pantanal, cumprindo-se assim as profecias finais de Isaías e Jeremias, quando, como este escreveu oitocentos anos antes: «As águas invadiram a Babilónia e desde então ela ficou coberta por um vasto lençol líquido e ondulado.”

 

Dobkin, apercebendo-se de que estava quase a perder os sentidos, pôs-se de pé num movimento brusco e, com um pouco da água que trouxera num odre de pele de cabra, lavou os olhos. Tinha de reconhecer que fora como que catapultado para um mundo deveras estranho e desconfiava que tudo aquilo teria um significado oculto, mas não era capaz de vislumbrar minimamente qual seria.

 

Saiu da casa parcialmente soterrada e começou a percorrer um trilho aberto entre as ruínas, dirigindo-se para norte, cautelosamente, ao longo da margem aluviada do Eufrates. Caminhou durante quase um quilómetro sem se deter, mantendo o corpo curvado para melhor resistir à força do vento, sempre com o rosto envolto no kheffiyah.

 

As rajadas de vento amainaram temporariamente e Dobkin, julgando ter ouvido qualquer coisa, ergueu a cabeça. Era olhado com fixidez por um árabe que se encontrava no vão da ombreira de uma porta e foi então que se deu conta de que chegara a Kweirish. Retribuiu o olhar e aproximou-se.

 

A casa de hóspedes? perguntou no que esperava ter sido em árabe com sotaque palestiniano.

 

O homem acreditou estar a falar com um ashbal que se tivesse perdido na escuridão e, embora tivesse muito pouco apreço por aqueles palestinianos, eles pareciam ser a autoridade local de momento. Nunca tinha visto nenhum que não estivesse armado, o que o levou a interrogar-se, pensando que havia qualquer coisa de estranho naquele homem. Saiu do vão da porta e, passando por Dobkin, examinou-o atentamente quando roçou por ele.

 

O general seguiu-o, levando a mão ao cinto, donde tirou uma navalha que os judeus de Ummah lhe tinham dado. Subiram por uma viela tortuosa durante alguns minutos, após o que o homem se sumiu num beco entre duas casas.

 

Dobkin continuou na peugada do árabe, embora com mais precaução, e com o olhar percorreu o beco, mas o outro tinha desaparecido. Colocou-se de costas para a parede à sua direita, entrando de lado pela ombreira de uma porta e empunhando a faca, a postos para entrar em acção.

 

Subitamente, o homem saiu de uma reentrância na parede oposta e estendeu uma mão.

 

O caminho é por aqui.

 

Dobkin tinha a certeza de que era o mesmo caminho de cabras por onde Hamadi o levara juntamente com Hausner, o qual ia dar à Porta de Istar. Acenou com a cabeça, afivelando uma expressão apropriada de gratidão e acrescentando uma ligeira acção de graças. Compreendeu que, para poder passar, teria de se aproximar bastante do árabe, por isso apertou o cabo da navalha com mais força enquanto caminhava, mantendo o ombro direito ligeiramente adiantado ao resto do corpo até se encontrar ombro a ombro com o outro.

 

O árabe empunhava a sua própria adaga e a sua intenção era assassinar o suposto ashbal para se apoderar das suas roupas e botas, ao que acrescentaria o que encontrasse nos bolsos. Os companheiros dele jamais lhe descobririam o rasto em Kweirish.

 

Dobkin passou a um metro do árabe, encarando-o com fixidez, olhos nos olhos.

 

Só então é que este se apercebeu de que a corpulência do pretenso ashbal infundia respeito, para além de constatar que ele se mantinha em estado de alerta. De facto, começou a perguntar a si mesmo se o outro não estaria, por seu turno, a planear assassiná-lo. Baixou o olhar e, de relance, avistou a navalha: deveria tomar a iniciativa e atacá-lo, ou aguardar, rezando a Alá para que o homem não tivesse desígnios criminosos de que a sua pessoa seria alvo? Com certeza que não iria matá-lo só para se apoderar da sua modesta gellebiah e das sandálias velhas!

 

Que Alá te acompanhe disse por fim o árabe, baixando a cabeça e decidido a colocar-se à mercê do desconhecido.

 

Dobkin hesitou, e todos os motivos que justificariam que assassinasse o árabe, bem como aqueles por que não deveria fazê-lo, desfilaram rapidamente pelo seu pensamento.

 

E a ti também replicou, e logo o outro passou por ele, esgueirando-se por entre as casas.

 

Uma vez mais, Dobkin ficou com a sensação de que tudo o que o rodeava lhe era familiar enquanto entrava mais no centro da aldeia. Sabia que o seu estado de espírito se devia a uma combinação de fadiga física e tensão psicológica, fruto do estranho ambiente que o rodeava, ruínas e escavações, mas ainda assim sentia-se invadido por um sentimento de assombração. Supunha que, a exemplo de grande parte dos judeus na eventualidade de as histórias que se contavam sobre o exílio corresponderem substancialmente à verdade, antepassados seus tinham vivido naquele lugar, todavia os seus ancestrais não se haviam atardado depois de Ciro lhes dizer que partissem. Assim fizeram, para logo serem dispersados pelos romanos, uma vez mais, alguns séculos mais tarde, e desde então até

1948 não tinham passado de um povo sem pátria. De uma maneira ou de outra, a família de Dobkin, depois de dois milénios em que errara pelo mundo, acabara por se estabelecer na Rússia, regressava à Palestina ou melhor, a Israel e de lá Benjamin Dobkin voltou à Babilónia. Agora restava saber se conseguiria retornar a Jerusalém.

 

Dobkin encontrou o antigo leito do Eufrates e a partir daí seria fácil seguir até à área do palácio. Assim, passado um quarto de hora, deu consigo a admirar os leões vitrificados nas torres da Porta de Istar e, atravessando-a, seguiu pela antiga via sagrada até avistar as luzes da casa de hóspedes. À primeira vista, não deu por nenhuma sentinela à porta, viu apenas que no lado oposto fora instalado um acampamento constituído por tendas, avistando também, a alguma distância, o pequeno museu. Ao que tudo indicava, os ashbals tinham partido, certamente para atacar os israelitas uma vez mais, e Dobkin parou, sustendo a respiração, ao ouvir uma rajada de AK-47, vinda, ao que lhe parecia, da colina, a que se seguiu um prolongado silêncio. Perguntou a si mesmo quem teria disparado e calculou que o fogo fora feito de alguma posição avançada outro mártir a acrescer a uma lista já muito longa.

 

Por breves instantes, Dobkin ainda pensou em procurar o doutor Al-Thanni, no museu, mas optou por não o fazer. Naquele momento, o tempo era uma questão crucial e, além do mais, poderia ele depositar confiança em Al-Thanni? E, se fosse esse o caso, quereria ele envolver-se naquele assunto? Deu-se conta de que não elaborara quaisquer planos específicos, além de ter de efectuar um telefonema muitíssimo importante, mas, na verdade, não desejava despender muito tempo com isso. Toda aquela operação, que se revestia de alguns aspectos inacreditáveis, só poderia resultar de um acto de temeridade e com alguma sorte, que até ao momento era forçado a admitir que o bafejara. Encontrara a aldeia de Ummah, onde arranjara um camuflado usado pelos «gatos-monteses», conseguira encontrar a casa de hóspedes e, ao que tudo indicava, os ashbals não estavam nas suas tendas. Agora só teria de entrar e neutralizar o homem de serviço à recepção, ou qualquer outro que tivesse ficado de sentinela. No entanto, o mais certo seria os feridos terem sido alojados naquela casa de hóspedes, o que também implicaria a presença de pessoal de enfermagem, que talvez fosse em grande número.

 

Encaminhou-se para o alpendre da frente, abriu a porta que dava acesso a um pequeno vestíbulo e pestanejou para adaptar os olhos à luminosidade do interior. Um jovem árabe, que usava um camuflado dos «gatos-monteses», estava sentado por detrás do balcão da recepção lendo um jornal, num ambiente de tanta normalidade que Dobkin ficou surpreendido. O jovem levantou os olhos e o general apercebeu-se de que ele fazia um esforço enorme para conseguir identificá-lo, as suas feições crispadas traíam-no.

 

Sim...? disse Kassim, o recepcionista acabara de decidir que lhe apetecia violar, uma vez mais, a judia... se é que a mulher ainda não morrera, mas agora surgia aquela interrupção. Sim...? repetiu.

 

Qualquer coisa não batia certo no recém-chegado... o camuflado não lhe assentava bem, estava molhado e a poeira agarrara-se ao tecido como se fosse uma pasta, com manchas escurecidas, parecia de sangue. Não vinha armado, trazia apenas um odre de pele de cabra, além de que havia qualquer coisa de estranho em relação ao kheffiyah, que também não lhe assentava bem. Kassim levantou-se, mas, num passo rápido, Dobkin abeirou-se do balcão e estendeu a mão esquerda com a qual agarrou o jovem pelos cabelos, enquanto com a direita lhe espetava a ponta da navalha na laringe, contorcendo várias vezes a lâmina, após o que, lentamente, deixou cair o corpo. Limpou o sangue que lhe manchara a mão e em seguida ensopou o que caíra sobre o tampo, e só então atirou o jornal para trás do balcão. Depois, virou-se e dirigiu-se para uma porta onde se lia, em árabe, «Gabinete do Gerente», abrindo-a.

 

A divisão, pouco espaçosa, era iluminada por um único candeeiro de pé, e no chão, banhada pela luz desse candeeiro, estava uma mulher completamente nua ou uma rapariga deitada de costas, com o corpo todo ensanguentado, dando a impressão de estar morta, ou quase. Dobkin percebeu, pela cor da pele e pelo corte do cabelo, que não se tratava de uma camponesa da localidade raptada, por razões que eram por de mais óbvias. Num passo rápido, abeirou-se do corpo, virando-o e, apesar de desfigurado, tais os maus tratos a que fora sujeito, aquele rosto não lhe era desconhecido. O pior receio de Dobkin de que ela fosse sua compatriota concretizou-se quando a pouco e pouco começou a reconhecer a secretária de Yigael Tekoah, embora o nome dela não lhe tivesse ocorrido à mente. Ajoelhou-se, chegou o ouvido ao coração da jovem e verificou que ainda estava viva, embora desse a impressão de que havia sido ferozmente atacada por qualquer animal selvagem.

 

Dobkin pegou-lhe, levantou-a do chão e deitou-a num divã encostado a uma parede. Atrás da porta havia uma gellebiah comprida de lã, pendurada num cabide, com que a tapou, em cima de um aparador estava um jarro meio de água com a qual espargiu as faces da jovem, que reagiu, agitando-se ligeiramente. Contudo, não podia despender nem mais um segundo a socorrer a rapariga, cujo sofrimento era evidente. Aproximou-se então de uma mesa onde estava o telefone, e o gesto tão comum de levantaro auscultador provocou-lhe uma sensação de estranheza, o mesmo que sentira durante a campanha do Sinai, numa ocasião em que encontrara um telefone ainda a funcionar numa vila totalmente arrasada. Nessa altura, ligara para a aldeia mais próxima ainda em poder dos egípcios anunciando a sua chegada iminente, mas isso poderia ser considerada como uma brincadeira, ao contrário da situação presente. Esperou impacientemente pelo sinal que lhe indicaria ter linha. No andar de cima, ouvia passos e gemidos o pessoal de enfermagem e os feridos em combate e do outro lado de uma das paredes, vozes de homens que conversavam, enquanto, no exterior, o vento agitava as venezianas, fazendo com que as vidraças estremecessem. Dobkin perguntou-se se o telefone estaria a funcionar e examinou o aparelho pela primeira vez. Não tinha marcador de dígitos, pelo que só através de um telefonista se poderiam receber ou efectuar chamadas, mas como poderia entrar em contacto com esse telefonista? Começou a bater intermitentemente no descanso pelo que lhe pareceu ser uma eternidade.

 

De repente, ouviu uma voz desabrida que não ocultava a irritação.

 

Sim? Central telefónica de Hilla! Está?

 

Hilla, ligue-me ao serviço internacional em Bagdade, por favor disse Dobkin, depois de respirar fundo.

 

Bagdade...?

 

Sim, Bagdade.

 

Dobkin sabia que teria de tratar aquele assunto com paciência e cuidado como se quisesse construir um castelo de cartas. Um único deslize e a comunicação seria imediatamente interrompida.

 

Quem quer falar com Bagdade? perguntou o telefonista. Uma vez mais, Dobkin compreendeu que nunca dava o devido apreço à sua pátria, o que só acontecia quando tinha de se deslocar a um país onde a sociedade era controlada pelo Estado. Hesitou um pouco antes de recomeçar a falar.

 

Fala o doutor Al-Thanni. Errado, certamente que o telefonista de Hilla reconheceria a voz do curador do museu local. Um erro grave. Isto é, melhor dizendo, sou o doutor Ornar Sabbah, um convidado do doutor Al-Thanni, do museu. Agradeço que me ligue a Bagdade.

 

Espere respondeu secamente o outro após uma breve pausa.

 

Dobkin perguntava a si mesmo se Al-Thanni naquela altura se encontraria nos seus aposentos na casa de hóspedes, ou se estaria alojado no próprio museu, ou ainda, em sua casa, em Bagdade. Manteve o auscultador junto do ouvido enquanto aguardava, olhando para um relógio de parede, que, com o seu tiquetaquear, lhe dava conta da passagem dos minutos. Viu então, junto do divã, uma bacia com água ensanguentada, o que o fez desviar o olhar. Sentia um ardor intenso nos olhos, enquanto o seu corpo vacilava. Levou o telefone para o outro extremo da sala, ajoelhando-se ao lado de Deborah Gideon e, com umas gotas de água, que verteu do seu odre, molhou-lhe os lábios, deixando que algumas entrassem na boca da jovem. Apalpou-lhe a testa, para ver se tinha febre, verificou a pulsação e, em seguida, levantou-lhe uma das pálpebras. A rapariga encontrava-se em estado de choque, mas ainda era muito nova e tinha um aspecto suficientemente robusto para se poder deduzir que acabaria por recuperar. Tocou em alguns dos ferimentos que ela sofrera, examinando-os mais de perto, e quase deixou de sentir remorsos por ter assassinado o homem de serviço na recepção.

 

Prestou a Deborah os poucos cuidados que estavam ao seu alcance, enquanto esperava que a ligação fosse estabelecida, mantendo sempre o auscultador preso entre a orelha e o ombro. O relógio indicava que, entretanto, tinham decorrido quinze minutos e as vozes provenientes do outro lado da parede subiram de tom os homens jogavam às cartas. No andar de cima, ouviu um estrondo abafado de algo a embater no chão um ferido que devia ter caído da cama, ou que morrera, ou ainda que fora arremessado para cima de uma maca.

 

Kassim! gritou alguém que acabara de chegar ao vestíbulo. Kassim! Onde te meteste?

 

Provavelmente, aquele seria o nome do homem da recepção, deduziu Dobkin. Ocorreria a algum dos outros debruçar-se por cima do balcão, descobrindo o corpo?

 

Começou a ouvir passos que se aproximavam da porta e a maçaneta girou. Dobkin, que continuava com o auscultador junto do ouvido, estendeu a mão e desligou o candeeiro. A porta abriu-se, dando passagem a um feixe de luz que vinha do vestíbulo, e que incidiu a um metro de si, iluminando o sítio onde Deborah estivera inconsciente, mas que revelou apenas os pés descalços da jovem, que pendiam da beira do divã.

 

Kassim! Onde te meteste, meu filho da mãe?

 

Babilónia? Babilónia? começou a chamar o telefonista da central de Hilla. Já tenho Bagdade em linha. Babilónia, continua em comunicação? Está ainda em linha?

 

Dobkin permanecia completamente imóvel, sem sequer se atrever a respirar.

 

Já não tenho a Babilónia em linha disse o telefonista de Hilla, falando com o seu colega da central de Bagdade.

 

Entretanto, a porta fechou-se e o gabinete ficou mergulhado na escuridão.

 

Daqui Babilónia apressou-se Dobkin a responder numa voz que pouco mais era do que um sussurro.

 

O que disse? Fale mais alto, tem de falar mais alto!

 

Daqui Babilónia repetiu Dobkin.

 

Bagdade, consegue ouvir a Babilónia?

 

- Estou a ouvir replicou a telefonista ao seu colega de Hilla.

 

Dobkin pensou que os iraquianos estavam muito modernizados, até já tinham funcionários do sexo feminino.

 

Pode falar, Babilónia prosseguiu a telefonista do serviço internacional em Bagdade.

 

Dobkin voltou a considerar a hipótese de pedir que o ligassem a uma autoridade governamental ou então explicar quem era e o que queria, mas, se qualquer destas alternativas se concretizasse, a telefonista do serviço internacional teria de o pôr em ligação com as comunicações nacionais. E estaria alguma instituição governamental a funcionar àquela hora da noite? E qual seria a reacção da telefonista ao ouvir a sua história? Pela sua mente passaram vários cenários hipotéticos, mas todos eles terminavam num corte da comunicação telefónica.

 

Pode continuar, Babilónia.

 

Ligue-me a...

 

Dobkin interrompeu-se. Não havia maneira de um telefonema com origem no país do islão chegar a Israel. Podia talvez encaminhar a chamada para Istambul, que o poria em contacto com Telavive, mas acontecia que Dobkin não sabia falar turco, pelo que seria obrigado a pedir que o pusessem em contacto com um telefonista que falasse árabe. E caso Bagdade, ou outra central telefónica iraquiana, mantivesse a ligação sob escuta, ficariam com fortes suspeitas quando ele pedisse para falar com Telavive.

 

Babilónia, continua em linha?

 

Sim. Quero Atenas, ligue-me para lá.

 

Por que motivo pretende Atenas? Quem é o senhor? Grande cabra.

 

Sou o doutor Ornar Sabbah, minha jovem, e desejo falar com um colega de profissão que vive em Atenas. Agradeço-lhe que faça o que eu peço sem mais demoras.

 

Do outro lado da linha fez-se um silêncio, que se prolongou por alguns momentos.

 

A ligação levará algum tempo, senhor doutor informou a telefonista por fim. Quando conseguir estabelecê-la voltarei a chamá-lo.

 

Não retorquiu Dobkin sabendo de antemão qual seria a pergunta seguinte.

 

E porque não?

 

A campainha do meu aparelho não funciona como deve ser. Nunca sei quando telefonam para o meu número.

 

Outro momento de silêncio.

 

Ouviu o que lhe disse, Bagdade?

 

Sim, ouvi. Aguarde em linha, vou estabelecer a sua ligação e, sendo assim, fique à espera em linha.

 

Muito obrigado agradeceu Dobkin, preparando-se para aguardar.

 

Ouviu a telefonista em Bagdade falar com um colega de Damasco, que, por seu turno, entrou em comunicação com outro em Beirute, onde se situava a maior central telefónica do Médio Oriente. Não demorou a entrar em contacto com Istambul. Em tempos na verdade isso continuava a ser possível em determinados dias, Beirute teria feito a ligação com Telavive, uma cidade situada a somente duzentos quilómetros na linha costeira, mas hoje talvez não fosse um desses dias e ele não queria arriscar-se. A língua árabe, falada fluentemente, deu lugar a um turco entrecortado quando os telefonistas do serviço internacional de Beirute e de Istambul começaram a travar um diálogo. O relógio continuava a assinalar a passagem dos minutos e Dobkin nem queria acreditar que conseguira chegar tão longe. Esperava a qualquer instante que a ligação fosse interrompida, ou que a porta se abrisse de rompante, sentia o suor escorrer-lhe das faces, desconforto a que se juntava a boca ressequida, e ouvia o bater do seu coração no escuro. O jogo de cartas que decorria na sala adjacente estava prestes a terminar. Ouviu-se outro grito a chamar pelo recepcionista, a que fizeram coro alguns gritos soltados pelos feridos, e teve a impressão de ouvir o som de disparos de armas automáticas, a norte. A rapariga deitada no divã gritou no seu sono, obrigando-o a conter a respiração. Entretanto, Istambul entrou em comunicação com Atenas e a telefonista desta cidade falava melhor turco do que o seu colega de Istambul, grego. Este ligou para Beirute, que, por seu turno, contornou Damasco, contactando directamente a capital iraquiana. O telefonista de Hilla já saíra de linha, pelo que Bagdade ligou logo para a Babilónia.

 

Tem Atenas em linha.

 

Obrigado agradeceu Dobkin.

 

A última telefonista de Atenas expressava-se em turco, mas automaticamente puseram-no em contacto com um operador que falava árabe.

 

O número que deseja contactar, por favor?

 

Devia continuar alguém do islão em linha, por isso Dobkin, que pensara pedir um telefonista que falasse inglês, desistiu, porque não desejava provocar a mínima confusão. Empatou o prosseguimento da ligação, a fim de dar tempo a todos os intervenientes para saírem daquela confusão em que participavam vários telefonistas, pois estes eram tipicamente abelhudos, sempre dispostos a escutar até receberem a chamada seguinte ou até se sentirem aborrecidos com a conversa.

 

Estou a falar com Atenas? perguntou Dobkin, em árabe.

 

Sim, senhor. O número, por favor.

 

Há possibilidade de me descobrir um número?

 

Certamente, senhor. Com quem deseja contactar?

 

Com o doutor Adamandios Stathatos respondeu Dobkin depois de ter feito uma pequena pausa em que lhe ocorreu o nome de um seu conhecido dos trabalhos de arqueologia. Ele vive no distrito de Kipseli acrescentou, soletrando o nome pausadamente.

 

Aguarde um momento, por favor.

 

Dobkin tinha quase a certeza de que naquela altura os telefonistas árabes já teriam desligado, todavia a possibilidade de estar um homem dos serviços de segurança algures em linha ainda não desaparecera. As comunicações telefónicas internacionais não eram uma coisa muito comum naquela região do mundo, especialmente àquela hora da noite. Até mesmo em Israel, as chamadas de âmbito internacional eram monitorizados aleatoriamente pelo Shin Beth.

 

Já tenho o número do doutor Stathatos, em Kipseli. Está a tocar informou a telefonista, regressando à linha.

 

Interrompa a comunicação instruiu Dobkin.

 

Desculpe, não estou a entender?!

 

Não estabeleça essa ligação, pois acabei de me lembrar de que preciso de fazer outro telefonema mais urgente.

 

Poderia ter falado com o doutor Stathatos, obtendo talvez os resultados que desejava, mas naquele momento, mais do que qualquer outra coisa no mundo, desejava comunicar directamente para Telavive, e estava tão próximo de o poder fazer!

 

Cancele a ligação insistiu.

 

Sim, senhor anuiu a telefonista de Atenas, apesar de ser óbvio que ficara irritada.

 

Ligue-me... para Telavive.

 

Telavive?!

 

Fez-se uma breve pausa. Não era a primeira vez que aquilo lhe acontecia, embora não fosse assunto que lhe dissesse respeito. A Grécia e Israel mantinham um bom relacionamento, e na opinião da telefonista, as questões de natureza política eram um disparate. Contudo, seria bom que aquele homem tivesse muito cuidado, não era muito bom para ele ligar do Iraque para Telavive.

 

Aguarde um momento, por favor.

 

Seguiu-se outra substituição de operadores telefónicos, com mais cliques e zunidos acompanhados de sons imperceptíveis, até que do outro lado da linha se ouviu o tocar do telefone.

 

Já tenho Telavive em linha, senhor informou outra voz. Passados escassos momentos, Dobkin ouviu uma telefonista, que falava em hebraico de forma expedita e eficiente, ainda que num timbre de voz muito fraco.

 

O número que deseja, por favor perguntou.

 

Dobkin sentia o coração a bater-lhe desenfreadamente no peito, só lhe apetecia gritar através do bocal, pondo a interlocutora ao corrente de tudo o que tinha a dizer.

 

O número, por favor.

 

Espere um pouco replicou Dobkin tentando controlar a sua voz. Podia pedir que o ligassem, por exemplo, ao de sua casa, mas sabia que a mulher estaria junto de um dos seus inúmeros familiares. Por outro lado, dispunha de muitos números de telefone amigos, oficiais do exército, como ele próprio, e políticos, mas, se optasse por falar com alguém que forçosamente teria de servir de intermediário, gerar-se-ia uma confusão desnecessária até que essa pessoa acabasse por conseguir chegar à fala com algum membro do governo.

 

Desculpe, senhor, mas... interveio a telefonista.

 

Ligue-me ao gabinete do primeiro-ministro, em Telavive.

 

Dobkin não podia indicar o número secreto através de uma linha telefónica internacional, pelo que seria obrigado a falar com a telefonista de serviço no gabinete do primeiro-ministro. Perguntou a si mesmo se o governo estaria reunido em Telavive ou em Jerusalém. No mínimo dos mínimos, seria possível falar com um funcionário superior do governo que tivesse ficado em Telavive. Dobkin voltou a ouvir barulhos que vinham do vestíbulo da casa de hóspedes e sabia que os árabes depressa chegariam à conclusão de que Kassim desaparecera, seria apenas uma questão de tempo. Ouvia um telefone a tocar do outro lado da linha.

 

Gabinete do primeiro-ministro informou uma telefonista.

 

Estou. Os membros do Comité de Segurança reuniram-se aí ou em Jerusalém?

 

Decorreram uns segundos, mas, como aquela informação fora publicada em todos os jornais, a telefonista não via razão para não responder ao seu interlocutor. Mesmo assim...

 

Quem fala, por favor?

 

Fala o general... Dobkin não sabia qual seria a reacção da telefonista ao ouvir o seu nome o general Cohen.

 

Vou pedir ao operador de Telavive que o ponha em comunicação com a central de Jerusalém... senhor general informou ela depois de outra pequena pausa.

 

Estou-lhe muito agradecido.

 

Ouviu o sinal de interrompido, pois, apesar do adiantado da hora, toda a gente em Israel devia querer ligar para o gabinete do primeiro-ministro, o que faziam com o intuito de lhe dar conselhos e apresentar as suas queixas, um procedimento normal durante as crises. Todos os residentes em território israelita estavam convencidos de que serviam para primeiros-ministros.

 

Neste momento não há linhas telefónicas livres para Jerusalém, senhor general.

 

Estou a ligar do estrangeiro por causa de um assunto do governo. Tome nota do que lhe vou indicar disse Dobkin, dando-lhe um número secreto em Jerusalém.

 

O telefone começou a tocar quase imediatamente.

 

Sim...? atendeu uma voz masculina que deixava adivinhar cansaço, mas não se identificou nem indicou o gabinete a que pertencia. Quem fala?

 

Dobkin ouvia os barulhos de fundo das telefonistas a atenderem simultaneamente várias chamadas. Em Jerusalém, aquela era uma noite muito dramática para todos e a constatação desse facto inspirou-lhe um certo conforto.

 

Ouça com atenção o que lhe vou dizer e não pense em desligar.

 

Não, senhor.

 

Nessa mesma noite, o homem já atendera um grande número de telefonemas, sendo muito escassos os que haviam sido agradáveis, mas, não obstante essa realidade, nunca lhe passaria pela cabeça desligar na cara de alguém que comunicasse através daquela linha tão importante.

 

Sou o general Benjamin Dobkin anunciou, passando a indicar o seu número e nome de código.

 

Sim, senhor.

 

O homem apressou-se a carregar num botão, e um dos homens de Chaim Mazar, o chefe dos Shin Beth, atendeu numa outra sala.

 

Estou a falar da Babilónia, no Iraque, da zona onde obrigaram o Concorde a aterrar.

 

Sim, senhor.

 

Já verificou a legitimidade do meu código?

 

Já, sim, senhor.

 

Mas não acredita que eu seja o general Dobkin, certo?

 

Não, senhor.

 

Não o censuro, meu rapaz, mas agora ouça o que lhe digo. Preciso de falar urgentemente com alguém que conheça a minha voz, uma pessoa que possa comprovar a minha identidade.

 

Sim, senhor.

 

Dobkin continuou a falar, articulando as palavras espaçada e claramente, sem elevar demasiado o tom de voz.

 

Tome nota do nome dos generais que vou passar a indicar-lhe. Se por acaso algum deles estiver aí, chame-o para que possa identificar a minha voz.

 

Sim, senhor.

 

Dobkin começou a desfiar o nome de uma dúzia de generais do Exército e da Força Aérea.

 

Se um deles vier ao telefone, será capaz de reconhecer a minha voz. Perguntava-se se aquela comunicação poderia ser cortada algures. Seria possível que o telefonista árabe regressasse à linha apenas para confirmar se ele continuava em comunicação, ouvindo-o a falar em hebreu? O que faria qualquer operador naquelas circunstâncias?

 

Estamos entendidos, meu rapaz? insistiu.

 

Sim, senhor.

 

O homem dos serviços de segurança interna falou através do intercomunicador com um dos assessores do primeiro-ministro que se encontravam na sala de conferências, enquanto este se mantinha atento àquela interrupção. Com rapidez, o assessor começou a escrever uma nota, que passou ao primeiro-ministro.

 

Entretanto, Teddy Laskov abria a sua pasta, donde tirou seis fotografias obtidas a grande altitude por um avião de reconhecimento, mostrando todas, em grande plano, uma estrela de David desfocada, a qual fora ali colocada por um especialista em retoques. Sentia-se estranhamente entorpecido e indiferente perante o que se aprontava para fazer. De uma maneira ou de outra, como era evidente, o embuste acabaria por ser descoberto, mais cedo ou mais tarde, e embora a sua carreira já tivesse terminado, quando a sua acção passasse ao domínio público o seu bom nome ficaria desacreditado, não podendo pôr de parte a possibilidade de ser preso. Todavia, desde que a forma como ludibriara os outros apenas fosse descoberta depois de a operação de resgate estar concluída, as consequências eram-lhe indiferentes. Mas chegariam eles a dar pelo engano, ou acreditariam que as fotografias não passavam de uma ilusão fortuita de óptica, ou mesmo de um milagre? Em certa medida, era precisamente disso que se tratava a maneira inesperada como lhe ocorrera que os seus compatriotas estariam na Babilónia e a convicção com que continuava a acreditar nisso. Sentia-se tão seguro que estava disposto a arriscar-se a ir parar à prisão, com o opróbrio que daí adviria, para que todos acreditassem na sua teoria. Pegou na pilha de fotografias que colocara sobre a mesa, e começou a alinhá-las umas em cima das outras. O olhar de Talman, de pé no outro extremo da sala, cruzou-se com o de Laskov, que ficou com a sensação de que o outro parecia comprometido. Tristeza, receio, sentimentos de culpa e confusão apesar desta amálgama de emoções, Talman fitou-o, obrigando-se a sorrir-lhe.

 

Entretanto, o primeiro-ministro pôs de lado a nota que o seu assessor lhe passara sem a ter lido.

 

Muito bem, general, o que tem aí? Fotografias a cor e um mapa com as coordenadas do Concorde entregues a Teddy Laskov por Gabriel a mando de Deus? Vamos lá ver o que nos trouxe.

 

Laskov dava a impressão de não ter ouvido as palavras do primeiro-ministro, cujo assessor batia insistentemente com a ponta do dedo na mensagem, até que finalmente o chefe do governo lhe lançou um olhar, pegou na folha de papel e começou a lê-la.

 

Benjamin Dobkin ouvia a voz dos homens que continuavam a chamar por Kassim. A rapariga gritou outra vez e um dos árabes que se encontravam na sala contígua ouviu-o e fez um comentário obsceno, acompanhado de risos. O ruído de disparos sucessivos sobrepôs-se ao barulho do vento, dando a entender a Dobkin que não lhe restava muito mais tempo. Ouviu um ruído na linha.

 

Jerusalém? Jerusalém? Continua em linha?

 

A cilada que Kaplan preparara aos árabes era mortífera, mas, mais importante do que isso, servia para avisar os israelitas no cume da colina de que os seus inimigos se aproximavam.

 

Os ashbals por pouco não romperam fileiras quando ficaram sob aquele fogo arrasador, mas os poucos comandantes que lhes restavam, incluindo Rish e Hamadi, mantiveram os seus efectivos agrupados, obrigando-os a ripostar.

 

Kaplan talvez ainda tivesse possibilidades de bater em retirada, mas sentiu-se como que assolado por uma loucura momentânea, enquanto disparava pente de bala, atrás de pente de bala que introduzia sucessivamente na AK-47, cujo cano já escaldava. O som, o cheiro a pólvora e a vibração combinavam-se com os clarões intermitentes, vermelho-alaranjados, que saíam do cano da arma, estonteando-o completamente. À média de aproximadamente duzentas por minuto, ele disparou quase mil balas contra os seus inimigos, dispersando os ashbals em todas as direcções. Hausner não se mostrara forreta com respeito às munições e Kaplan tencionava utilizá-las até à última.

 

Rish, Hamadi e mais uns quantos tiveram a frieza de espírito suficiente para se aperceberem de que estavam a ser alvejados apenas por um atirador, e assim adoptaram a estratégia de o contornar, aproximando-se por detrás de Kaplan. Avançaram a coberto dos disparos da arma do israelita, a que se associava o silvar do vento, e caíram sobre ele pelas costas.

 

Os israelitas, no cimo da colina, ouviram os gritos do companheiro, que se sobrepunham ao ruído do vento, com tanta clareza como se ele estivesse numa trincheira próxima. Parecia demorar um tempo interminável a morrer, e os seus gritos excruciantes tinham um efeito duplo de acordo com o que costuma suceder habitualmente, o de reforçar a determinação dos mais resolutos e temerários, ao mesmo tempo que abalava a força de espírito dos menos corajosos.

 

Hausner pegou no microfone do sistema de altifalantes, começou a gritar e a sua voz, sobrepondo-se ao silvar das rajadas de vento, chegou até ao sopé na colina.

 

Rish! Hamadi. Sois uns animais! Pertenceis a uma espécie de sub-humanos!

 

Rish, podes crer que te arrancarei os tomates quando chegar ao pé de ti!

 

Os berros de Hausner eram muito agudos, adquirindo uma entoação de grande frenesim, e quase não se distinguiam dos gritos agonizantes que Moshe Kaplan soltava no seu sofrimento, assemelhando-se ao ulular selvático dos chacais, os quais se faziam ouvir de novo ao fundo da encosta. Todos os israelitas, tanto homens como mulheres, evitavam entreolhar-se, enquanto Hausner continuava a soltar uns berros desumanos, em que os sons mais primitivos se misturavam com as ameaças mais obscenas e grosseiras, a par de todo o tipo de invectivas que o ser humano é capaz de conceber. Era óbvio que ele perdera completamente as estribeiras.

 

Alguém pareceu ter sido Burg, tirou-lhe o microfone das mãos, começando a gritar palavras de conforto e encorajamento dirigidas a Kaplan, que de pouco lhe serviam, pois o desgraçado continuava a ser vítima de uma horrível morte lenta.

 

Os israelitas começaram a disparar ao acaso e os poucos cocktails molotov que lhes restavam foram arremessados por entre as trevas, numa tentativa de iluminar a encosta, mas o vento e a poeira extinguiram as chamas.

 

Os últimos ashbals, cerca de quarenta, começaram a subir a encosta aos pares, bastante distanciados uns dos outros. O vento empurrava-os pelas costas, impulsionando-os para a frente, e a areia e a poeira encobriam-lhes os movimentos, ao mesmo tempo que o silvar do vento abafava o ruído dos seus passos. Até mesmo o clarão dos disparos que saía do cano das suas armas não podia ser visto distintamente devido às nuvens de poeira que cegavam.

 

Entretanto, os israelitas, enquanto tentavam retirar a areia que se acumulara nas suas defesas semidestruídas, começaram a ripostar ao fogo inimigo, mas logo algumas AK-47 se encravaram. Então, equipas especialmente treinadas para o efeito espalharam-se pelo cordão defensivo, desmontando as espingardas avariadas e oleando-as com lubrificantes que haviam trazido do Concorde, mas mesmo assim a areia cobrava o seu preço, embora mais acentuadamente entre os defensores, a quem faltavam os meios necessários de limpeza e protecção de armamento de que os ashbals dispunham.

 

Naquele confronto bélico, as hipóteses de vitória estavam bem equilibradas entre as partes, mas Hausner e Burg, assim como quase todos os outros, sabiam que o sherji seria o fim dos israelitas. Além do mais, as defesas estavam cada vez mais enfraquecidas, já haviam recorrido a todas as artimanhas e para agravar ainda mais a situação, as munições já eram escassas. A fome, aliada à desidratação, completava a tarefa de reduzir a eficácia de combate por parte dos israelitas e, para cúmulo, parecia haver uma crise de chefia, sentimento que se propagava até ao último homem e mulher.

 

Além disso, muitos acreditavam, entre eles Ariel Weizman, que a porta das traseiras se mantinha aberta a vertente ocidental e a margem do Eufrates continuavam sem vigilância por parte dos árabes, mas a verdade é que Hamadi havia destacado um grupo até então na vertente oriental, incumbindo-o de ir até à margem do rio, o que aconteceu poucos minutos depois de terem perdido contacto via rádio com Sayid Talib. Assim os ashbals que se encontravam no sopé da encosta virada a ocidente esperavam ansiosamente por uma tentativa de retirada por aquela vertente a pique. Os árabes gastavam munições como se estas fossem grãos de areia, disparando rajadas constantes contra as posições israelitas e avançando alguns metros em direcção ao cume de cada vez que davam uma corrida lateral.

 

Hausner encontrava-se na elevação que lhe servia de posto de comando, juntamente com Burg. Já se acalmara consideravelmente, levando este último a concluir que o outro voltara ao seu estado normal, mas, para grande irritação e desconforto de Burg, ele pedira a Miriam Bernstein que lhe servisse de mensageira especial e de assistente. Tecnicamente, ela e Esther Aronson continuavam sob prisão preventiva, mas ninguém apresentou qualquer objecção quando Hausner anulou todas as restrições aos movimentos das duas mulheres. Miriam não aludiu a Kaplan, nem tão-pouco ao incidente que ocorrera com o microfone.

 

Quando as munições estiverem quase a acabar gritou Hausner para se fazer ouvir acima do barulho do vento, alguns dos nossos tentarão pôr-se em fuga pela encosta ocidental.

 

E tenho a certeza de que estarão lá alguns ashbals precisamente à espera que isso aconteça retorquiu Burg com um gesto de assentimento. Temos de repetir as nossas ordens no sentido de que ninguém abandone as suas posições, lutando corpo a corpo, se tal for necessário.

 

Não estamos a falar de soldados recordou-lhe Hausner. E as pessoas agirão de acordo com o que os seus instintos lhes ditarem na altura acrescentou baixando a voz, que mal se conseguia ouvir. Algumas formaram pactos de suicídio colectivo e temos de reconhecer que, depois do que aconteceu a Kaplan, esta solução até tem os seus atractivos... Não as posso censurar...

 

No pequeno cômoro fez-se um silêncio que pareceu arrastar-se indefinidamente. O estandarte improvisado continuava desfraldado ao vento, embora a poeira acastanhada tivesse obscurecido as suas cores garridas, enquanto o pau de bandeira, também improvisado com uma estaca de alumínio, cada vez se inclinava mais em direcção ao solo.

 

Miriam começou a dizer qualquer coisa, mas interrompeu-se abruptamente.

 

O que ias dizer? perguntou-lhe Hausner.

 

Bem... decidiu-se ela enquanto ainda tivermos munições e os ashbals continuarem a alguma distância de nós, no sopé da encosta oriental, talvez não fosse má ideia batermos rapidamente em retirada, atravessando o cume da colina e descendo pela vertente ocidental... em força e de maneira disciplinada, e não precipitada e desorganizadamente. Devemos ser capazes de ultrapassar as linhas do pequeno destacamento que devem ter colocado na margem do rio, entrar na água e flutuar ao abrigo da escuridão.

 

Hausner e Burg trocaram olhares, após o que a fitaram durante alguns segundos. Foi Hausner quem falou.

 

Não estarás a esquecer-te dos feridos em combate?

 

As suas vidas estarão perdidas quer no caso de uma retirada ordeira, quer no de uma fuga precipitada. O nosso sentido de responsabilidade deverá ser para com a maioria.

 

Já percorremos um longo caminho juntos adiantou Burg e juntos devemos ficar.

 

Porque parece estranha esta sugestão? E por ser eu a dá-la? replicou ela, como se fizesse uma pergunta de retórica. E contudo, é isso, não é verdade? acrescentou Miriam, fazendo uma pequena pausa. Seja como for, é claro que estou pronta a ficar para trás com outros voluntários que se ofereçam para cuidar dos feridos. Em termos práticos, e em qualquer dos casos, a sentença de morte já pesa sobre a minha cabeça, não é verdade?

 

Até mesmo quando tens de tomar uma decisão difícil replicou Hausner consegues, não sei como, fazer com que isso pareça simples. Mas a dura realidade é que se optarmos por bater em retirada, quer esta se faça ordeira quer desordeiramente, ou se formos vencidos e tivermos de recorrer à luta corpo a corpo, a primeira coisa é abater os feridos. Hausner ergueu a mão cortando a palavra a Miriam. Não sejas louca, ouviste bem o que eles fizeram a Kaplan e só Deus sabe o que aconteceu a Deborah Gideon.

 

Mas... eles querem fazer reféns.

 

Talvez sim interveio Burg, mas também é possível que esse já não seja o caso, agora provavelmente só desejam vingar-se. Seja como for, se Rish e Hamadi... isto é, se qualquer um deles continuar vivo e conseguissem impedir que nos massacrassem, então, o melhor que poderíamos esperar seria sermos submetidos a um método de tortura mais refinado e lento, até acabarmos por revelar quaisquer segredos de estado de que possamos ter conhecimento. Não, não vamos deixar feridos nem pessoal de enfermagem, se abandonarmos a colina, e também não vamos fazer qualquer tentativa para nos deslocarmos durante a noite. Até mesmo os exércitos mais treinados não gostam de manobras no escuro. Se tentássemos levar isso avante, estou convencido de que seria um autêntico desastre.

 

Face a essa situação, quais as opções que nos restam? perguntou Miriam Bernstein. Tu recusas-te a ordenar a retirada ou a rendição, e também não tencionas encorajar o suicídio em massa. Então, que destino nos estará reservado?

 

Não sei respondeu Hausner virando-lhe costas. O melhor fim que posso prever para nós, na ausência de uma operação de resgate, é que morramos a combater. Claro que isso acontecerá, uma vez que haverá quem se renda e quem seja capturado, a que podemos acrescentar os suicídios e os assassínios. Talvez alguns de nós consigam passar despercebidos a coberto da noite, o que lhes permitirá escapar. A nossa situação tem muitas semelhanças com qualquer outro cerco quando os sitiantes romperem as nossas linhas de defesa.

 

Ninguém proferiu palavra, e os sons característicos de um confronto bélico tornaram-se mais intensos. As duas facções beligerantes estavam cansadas, e ambas pressentiam que aquele seria o combate final. Todos se deslocavam mecanicamente, como se executassem um estranho bailado padronizado um ritual cujo fim chegaria a uma hora previamente estabelecida, independentemente daquilo que ambas as partes pudessem fazer para o apressar.

 

Os ashbals mantinham-se a uma distância respeitadora, entre trezentos a quatrocentos metros, utilizando principalmente uma táctica de avanço lateral, tentando abalar os israelitas, enquanto simultaneamente procuravam os sectores mais enfraquecidos.

 

Ainda restavam três horas até ao alvorecer, mas os primeiros raios da luz só se revelariam um pouco mais tarde, a menos que as nuvens de poeira assentassem, caso o vento amainasse.

 

Aquele seria um combate táctico de desgaste, para não mencionar que os ashbals continuavam a gozar de vantagem em número de efectivos e armamento, além de uma vastíssima superioridade em munições, provisões, água e equipamento médico. Precisavam apenas de dispor estrategicamente as suas forças, atraindo o fogo dos israelitas até terem a certeza que estes estariam prestes a esgotar as munições, e apostavam que, até mesmo seguindo o princípio de uma disciplina restrita de fogo, as balas dos judeus não durariam até ao raiar do dia.

 

Burg tentava formular vários planos, que ia estruturando na sua mente. Deveriam fugir agora? Contra-atacar? Esperar até ao fim e travar uma luta corpo a corpo? Matar os feridos? Aniquilar Hausner? Poderiam contar com uma missão de resgate no último momento? Era pouco plausível.

 

O que terá sucedido a Dobkin? perguntou Burg por fim. Hausner virou-se para ocidente, observando o ponto onde, supostamente, se situaria a aldeia de Ummah. Olhava fixamente, como se tentasse estabelecer contacto visual com Dobkin. Depois, deu meia volta, desta feita ficando voltado para sul, na direcção da Porta de Istar.

 

Tenho um pressentimento de que está bem.

 

Miriam, que se apoiava no braço dele, mostrando abertamente a Burg o tipo de relação existente entre os dois, interveio:

 

Pergunto a mim mesma se ele terá conseguido entrar em contacto com alguém que nos possa ajudar.

 

Pois bem replicou Burg, posso dizer-lhe uma coisa: mesmo que, por milagre, ele esteja neste preciso momento a falar com uma autoridade desta região, não acredito que qualquer tipo de ajuda conseguisse chegar a tempo de nos salvar.

 

Olhou para Hausner, como se esperasse que este confirmasse as suas palavras, mas o que na realidade mais desejava ouvir era uma das contradições tão habituais nele. De facto, Hausner virou-se de costas para o vento, olhando para ocidente, e apontou para uma linha de horizonte invisível.

 

Não sou capaz de me impedir de pensar que o Teddy Laskov cumprirá a sua palavra... Acredito que neste momento estará algures com a sua esquadrilha de caças, à nossa procura, cada vez mais próximo...

 

Burg encarou calmamente Hausner e apontou em direcção ao firmamento.

 

Essa é uma declaração bastante optimista vinda da sua boca, Jacob

- disse ele com precaução. Só espero que a razão esteja do seu lado.

 

Sabe, Burg replicou Hausner, cruzando os braços à frente do peito, tenho a impressão de que sou incapaz de aceitar que todos aqueles tipos muito inteligentes, em Telavive e em Jerusalém, continuem sentados à volta de uma mesa com o dedo enfiado pelo cu acima sem fazerem nada. Tenho de admitir que esperava mais deles. Terá isto a ver com um sentido de patriotismo? Suponho que sim. Ora bem, talvez eu os tenha sobreavaliado. Ao fim e ao cabo, eu também fazia parte desses fulanos inteligentes e veja como deixei que as coisas dessem para o torto, Isaac. Imagino que eles também tenham o direito de conceder alguns dias de folga à sua capacidade dedutiva.

 

Mas hoje não replicou Burg, sem conseguir evitar uma gargalhada. Sempre que começava a duvidar da clareza de raciocínio de Hausner,

 

este mostrava-lhe logo um rasgo de discernimento. Naquele momento, aproximava-se uma mensageira, e Burg foi ao seu encontro.

 

Miriam, que entretanto se mantivera a alguns metros de distância, escutando em silêncio a conversa que os dois homens travavam, abeirou-se de Hausner e apertou-lhe o braço com força, num gesto de afecto. Pensava em Teddy Laskov, mas ultimamente eram menos as vezes em que a imagem dele lhe ocorria à mente. Depois de se terem despenhado, imaginou-o a fazer exactamente o que Hausner dissera um voo a pique no seu avião de combate de aço reluzente, para a salvar... para os resgatar a todos, mas, na realidade, adivinhava que ele, muito provavelmente, teria caído em desgraça, sabendo bem no seu íntimo que era, em parte, responsável por isso. Os outros que haviam atravessado a sua vida conformavam-se com a concepção que ela tinha do mundo, com o objectivo de a lisonjear ou por uma questão de cortesia, eram os desse tipo que ela costumava atrair. Indivíduos magros, que usavam óculos e que se sentavam ao seu lado em seminários ou reuniões de comités, e que tinham por hábito expressar-se através dos lugares-comuns tão do agrado do partido, repetindo os mesmos chavões entediantes como se os houvessem inventado nessa mesma manhã.

 

No entanto, Laskov sempre se portara de modo diferente da maior parte dos homens que conhecera, o que também se aplicava ao marido. Até certo ponto, os dois tinham afinidades na maneira de ser e ela caracterizava-os como sendo indivíduos nobres e um tanto rudes. Quanto a Jacob Hausner, era outra variante do mesmo género, ainda que mais extremado nas suas atitudes. Miriam podia ter vivido toda aquela experiência na Babilónia sem nunca alterar, em moldes muito drásticos, as percepções que tinha do mundo, mas Hausner forçara os seus olhos a abrirem-se. Não lhe agradava o que via, mas agora estava em condições de poder sopesar, com objectividade, os prós e os contras de uma sugestão para que se abatessem os feridos sem que se entregasse a crises de indignação moral. Seria essa mudança de carácter boa ou má? Não era uma coisa nem outra, ocorrera, pura e simplesmente.

 

Conheces bem o Teddy Laskov? perguntou Miriam a Hausner.

 

Não muito bem. Os nossos caminhos cruzam-se de quando em vez.

 

Simpatizas com ele? insistiu ela alguns segundos depois, manifestando uma certa hesitação.

 

Quem? perguntou ele, deixando que o silêncio se arrastasse. Oh, estás a referir-te ao Laskov, suponho. É mais fácil lidar com ele do que com os teus amigos da política.

 

Quando penso nele, lembro-me de ti retorquiu ela pouco depois com um sorriso mais para si própria, uma vez que, devido à escuridão, ele não o viu.

 

Quem? O Laskov? De verdade?

 

Miriam apertou-lhe o braço com mais força. Os amigos da sua idade, que não se haviam esquecido dos campos de concentração, eram pessoas amargas, sem quaisquer ilusões na espécie humana, e muitos sofriam de problemas de natureza psicológica. Contudo, Miriam firmemente determinada a não ficar com cicatrizes, accionara um mecanismo psíquico que pecava por excesso era uma mulher mentalmente bem ajustada e optimista, ao ponto de um psiquiatra amigo ter classificado, na brincadeira, essa sua faceta como uma neurose, mas evidentemente que ficara com cicatrizes. As pessoas costumavam dizer que liam isso na expressão do seu olhar, com o que ela concordava quando via a sua imagem reflectida no espelho.

 

Tenho a certeza de que Teddy pensa que esta tragédia é culpa dele acrescentou ela, interrompendo os seus devaneios.

 

Sendo assim, devo dizer que temos algo em comum.

 

Tanto tu como ele são egocêntricos, ambos convencidos de que todo o bem, assim como todo o mal, que acontece à vossa volta é o resultado directo das vossas acções.

 

E não é? inquiriu Hausner.

 

O Teddy Laskov e eu fomos amantes confessou Miriam inopinadamente.

 

Sem tal intenção, Burg ouviu as palavras dela quando regressava à pequena elevação de terreno. Continuava a sentir-se irritado com a presença da mulher e agora fora forçado a ouvir aquilo. Na verdade, era de mais. Virou-lhes as costas e começou a afastar-se.

 

E hão-de voltar a ser concluiu Hausner.

 

Não me parece.

 

Neste momento, essa questão não tem a mínima relevância, Míriam retorquiu ele, com mostras de impaciência.

 

Não te sentes...?

 

De maneira nenhuma. Ouve uma coisa, vai até ao Concorde para veres como o Becker se está a sair com os radiotransmissores. Caso não haja novidade nenhuma... e estou certo de que não, deixa-te ficar por lá.

 

Porquê?

 

Raios te partam, faz como te digo! Não tenho de dar explicações a ninguém quanto às ordens que dou, pelo que não estou disposto a justificá-las perante ti.

 

Não voltarei a ver-te, pois não? perguntou ela, embora fosse mais uma afirmação, virando-se para trás, pois já dera alguns passos.

 

Hás-de ver-me, sim. Prometo.

 

Sei que não é verdade insistiu ela, olhando-o fixamente. Hausner não sabia o que dizer, mas Míriam aproximou-se de novo, estendeu as mãos, agarrando-o pela cabeça, que baixou contra si, e beijou-o.

 

Não saias do avião repetiu ele numa voz cheia de ternura, soltando-se das mãos dela. Aconteça o que acontecer. Prometes-me?

 

Ver-te-ei outra vez?

 

Sim.

 

Durante algum tempo, ficaram a olhar um para o outro, até que num movimento lento, Miriam ergueu a mão, aflorando-lhe a face, para logo depois dar meia volta, desaparecendo num passo apressado por entre as trevas.

 

Hausner ficou com os olhos presos nela até que deixou de a ver, depois tossiu para soltar a poeira que sentia na garganta e limpou os olhos lacrimosos. Caso houvesse algum significado divino, ou mensagem oculta, naquela tragédia sem o mínimo sentido, se existisse alguma lição secular a tirar de toda aquela situação, era forçado a admitir que não era capaz de a vislumbrar. Tudo aquilo se resumia ao velho circo humano, sempre os mesmos actos de bravura e cobardia, egoísmo e altruísmo, a mesma generosidade e crueldade, inteligência e estupidez só os palhaços eram diferentes. Quantas vezes mais teria aquele espectáculo de ser levado à cena, para que assistissem às representações? E por que motivo aquela tragédia não terminava rapidamente? Por que razão Deus lhes concedia a inteligência e força para prolongar o seu próprio sofrimento, quando o fim já fora previamente determinado? Uma vez mais, Hausner sentiu-se invadido pela mesma antiga sensação de mal-estar não passava de uma piada cósmica, de grandes proporções, que se destinava exclusivamente a ele.

 

Esta é a maneira que Deus encontrou para me punir por não ter deixado de fumar, tal como prometi ao meu pai gritou ele, dirigindo-se a Burg e soltando uma gargalhada que se perdeu no vento. Este levou a mão à algibeira das calças e apalpou a pequena pistola com que se precavera.

 

Continua em linha, Jerusalém?

 

Continuo, senhor general. Por favor, aguarde mais um pouco disse o telefonista de serviço.

 

O primeiro-ministro tamborilava repetidamente com a ponta do lápis sobre a mesa, relendo a mensagem antes de erguer o olhar.

 

Presumo que muitos dos presentes não teriam dificuldade em reconhecer a voz do general Dobkin, se a ouvissem anunciou, tentando dominar o entusiasmo que trespassava da sua voz.

 

Ouviu-se uma explosão de perguntas e exclamações em voz alta, com todos a levantarem-se das cadeiras. O primeiro-ministro bateu na mesa para que se calassem e acalmassem.

 

Vamos lá a serenar e a ouvir atentamente.

 

Fez um sinal ao responsável pelas comunicações, sentado a um canto, e logo se começou a ouvir, através dos vários altifalantes espalhados pela sala, uma série de sons precipitados. O primeiro-ministro premiu um botão na consola à sua frente e falou para um microfone aí acoplado.

 

Queira fazer o favor de se identificar.

 

Dobkin reconheceu imediatamente aquela voz um tanto trocista e ficou em alvoroço por uma fracção de segundos, mas fez um esforço para se acalmar, engolindo em seco.

 

Fala o general Benjamin Dobkin, senhor primeiro-ministro. Fez uma pausa. Reconhece a minha voz?

 

Não respondeu o outro, categórico, embora constatasse que algumas pessoas na sala acreditavam ter identificado o general.

 

Dobkin esforçou-se por falar numa voz o mais normal possível, tentando exprimir-se com a maior naturalidade, o que era difícil naquelas circunstâncias.

 

Está aí alguém que possa reconhecer a minha voz, senhor primeiro-ministro?

 

Para seu próprio bem é melhor que sim retorquiu o chefe do governo, observando os que se sentavam em seu redor, alguns dos quais acenaram afirmativamente, ainda que um pouco a medo.

 

Ou então trata-se de uma imitação muito boa adiantou um general que, quando coronel, servira sob as ordens de Dobkin.

 

Continue, senhor general pediu o primeiro-ministro, ainda não inteiramente convencido, se bem que não conseguisse ocultar o empolgamento que sentia. Donde nos está a telefonar?

 

Entretanto, Teddy Laskov apoderara-se das fotografias falsificadas que colocara sobre a mesa, e lentamente começou a guardá-las na pasta.

 

Da Babilónia respondeu a voz, que se ouvia claramente através dos altifalantes.

 

Surgiu outra explosão de exclamações por toda a sala e a maior parte dos olhares focaram-se em Laskov e Talman. O primeiro-ministro teve de voltar a bater na mesa num pedido de silêncio, mas não foi capaz de fazer calar completamente os circunstantes.

 

Donde está a ligar, general? repetiu o primeiro-ministro ao microfone, em voz alta. Refiro-me ao local exacto! Encontra-se em liberdade?

 

Sim, estou a telefonar de uma casa de hóspedes desta região, senhor primeiro-ministro, próximo de um museu.

 

Dobkin tentava controlar a entoação da sua voz, mas esta vacilava ligeiramente e o chefe do governo também procurava expressar-se num timbre que não traísse as suas emoções, mas a sua voz tremia.

 

De acordo, estou a perceber. Pode informar-nos de qual é a situação aí, senhor general? Que diabo aconteceu por aí?

 

Dobkin sabia que todo o gabinete e a maior parte dos chefes mais importantes da hierarquia militar ouviam atentamente as suas palavras, por isso reuniu os seus pensamentos, apresentando uma recapitulação concisa e clara de tudo aquilo por que haviam passado desde que o avião onde viajavam se perdera, sobre o Mediterrâneo.

 

Meia dúzia de assessores, num passo apressado, saíam e entravam constantemente na sala de conferências, trazendo vários mapas da Babilónia, relatórios que incluíam tempos de voo até àquela região, acidentes geográficos, condições meteorológicas, a hora da primeira luz do dia e a última antes do pôr do Sol, além de muitos outros dados já coligidos a partir do momento em que Laskov sugerira a Babilónia pela primeira vez. Todas aquelas informações teriam de ser submetidas a uma avaliação pormenorizada antes de se poder tomar qualquer decisão de carácter operacional.

 

Enquanto Dobkin continuava a falar, não se abstraía totalmente do barulho que vários homens e mulheres faziam ao atravessar o vestíbulo, passando pela porta do gabinete onde se encontrava, e que deviam ser os feridos em condições de andar pelo seu próprio pé. Percebeu o ruído de uma porta que se abriu e fechou no vestíbulo e na sala onde o jogo de cartas terminara há pouco começou a ouvir o som de um rádio que acabara de ser ligado, a voz enrouquecida de uma mulher que entoava uma daquelas intermináveis canções árabes, que alguns ashbals acompanharam em coro. O barulho abafava a voz de Dobkin, mas também impedia que ouvisse se alguém se aproximasse da porta.

 

O que é que nos sugere?

 

Sugerir...? replicou Dobkin tendo reconhecido a voz do general Gur. Sugiro, general Gur, que venham de imediato até cá para nos tirarem deste lugar infernal!

 

Em que estado é que se encontram esses terrenos pantanosos na margem ocidental? perguntou o general Katzir, da Força Aérea.

 

Continuam alagados respondeu Dobkin, sem fugir à verdade -, mas os mais afastados do rio parecem quase secos.

 

Essa estrada onde deviam ter aterrado prosseguiu Katzir., acha que consegue aguentar com um C-13CR

 

Não posso responder a essa pergunta, general, mas estou em crer que a destruímos parcialmente.

 

É possível que tenhamos de recorrer aos helicópteros interveio uma voz, que Dobkin não foi capaz de identificar.

 

Não redarguiu Dobkin. Não dispomos de tempo para isso. Neste preciso momento, os que ficaram na colina estão a ser atacados.

 

Houve outra voz que alvitrou o envio de uma esquadrilha de caças que faria um primeiro reconhecimento à área e agora Dobkin ouvia várias vozes transmitidas através do microfone, e até um que mencionou o nome de Teddy Laskov. Convencera-se de que naquela altura este já estaria a gozar a sua aposentação, mas, ao que tudo indicava, também participava naquela reunião. Por fim, respondeu a mais algumas perguntas, apercebendo-se de que a discussão estava a ficar cada vez mais acalorada.

 

Senhor primeiro-ministro interrompeu Dobkin em voz alta, tenho de lhe dizer que preciso de sair daqui quanto antes. No sítio onde me encontro também estão alguns cavalheiros armados, e quando se aperceberem do que sucedeu, certamente que desejarão que eu dê este telefonema por concluído.

 

Em Jerusalém, ouviram o barulho do que lhes pareceu ser um confronto físico, seguido de um estrépito rápido, talvez o disparo de uma arma de fogo ou qualquer coisa que tivesse sido quebrada, e pouco depois a ligação foi cortada.

 

Miriam Bernstein sentara-se no assento do co-piloto ao lado de David Becker.

 

Então, acha que ninguém escutou o SOS que tentou enviar?

 

Não confirmou o piloto, reduzindo o volume do som do rádio, embora não o tivesse baixado ao ponto de não poder monitorizá-lo. O Lear continua a sobrevoar-nos, mas estou desconfiado de que está com problemas.

 

Porque diz isso?

 

Porquê? O facto de Hausner ter enviado uma mensageira para se inteirar de alguma novidade que ele pudesse ter, em vez de vir ele próprio, era um indicador claro da pouca fé que todos depositavam naquela parte das operações. No entanto, havia que reconhecer que Miriam Bernstein era a chefe de gabinete do Ministério dos Transportes e consequentemente, em termos hierárquicos, o seu cargo era superior ao de Hausner e ao de Becker. Contudo, agora isso parecia completamente irrelevante. Porquê? Porque não consegue aterrar com esta poeirada e por isso terá de o fazer algures para se reabastecer num local onde as nuvens de pó não sejam tão cerradas. Nessa altura, talvez consiga entrar em comunicação via rádio com alguém. Becker lançou a Miriam um olhar de esguelha. Não seria má ideia passar a informação que acabei de lhe dar, não lhe parece? De momento, é tudo o que lhe posso dizer.

 

Mais tarde disse ela, mantendo o olhar fixo no pára-brisas estilhaçado. Tem medo de morrer? perguntou de súbito.

 

Becker virou-se para ela, fitando-a à luz pouco intensa que irradiava do painel de instrumentos. Nunca esperara uma pergunta daquelas da parte de uma mulher tão reservada como ela.

 

Não, não me parece que sinta receio da morte. Tenho... isso sim, medo de voltar a voar., mas não de vir a morrer. Engraçado... Becker não sabia o que o levara a permitir aquele tipo de intimidade. E você?

 

Quase todos os que me eram mais chegados estão mortos. Que opinião tem sobre o Jacob Hausner? perguntou ela por sua vez, querendo manifestamente mudar de assunto.

 

Becker afastou o olhar do diário de bordo onde começara a escrever. Desconfiava de que Hausner e Bernstein haviam estabelecido uma relação afectiva muito chegada, mas tal facto não alterava em nada a sua opinião pessoal acerca do visado.

 

É um nazi.

 

E no entanto, ele simpatiza consigo.

 

Becker não compreendia onde Míriam pretendia chegar com aquela conversa, ou o que é que a levara a abordá-la. Aparentemente, ela estava esgotada e certamente só lhe apeteceria conversar. As pessoas tinham reacções curiosas quando obrigadas a olhar a morte bem de frente. Ele próprio acabara de admitir que sentia medo de voar, coisa que jamais revelaria, nem numa conversa com o seu psiquiatra.

 

Não me interprete mal, senhora Bernstein. Sinto-me muito satisfeito por Hausner ter feito esta viagem connosco, muito provavelmente sem ele há muito que tudo teria terminado para nós.

 

Becker continuava com os olhos presos nela, que não apresentava o aspecto de quem se sentisse esgotada, dando antes a impressão de estar... feliz, empolgada. O piloto baixou o olhar, recomeçando a escrever no seu diário.

 

Estou apaixonada por ele.

 

Oh!... limitou-se a exclamar Becker, partindo o bico do lápis.

 

As rajadas pareceram intensificar-se e ele soergueu o olhar. A noite vista através do vidro estilhaçado da carlinga tinha um aspecto mais assustador, mais hediondo, nada augurando de bom, do que quando observada do exterior. Tudo o que vira susceptível de lhe instilar temor tinha sido através de um bocado de plexiglas, o que cada vez mais o levava a associar tudo o que representasse perigo com um pedaço desse material a morte acompanhada de plexiglas. Sempre que olhava através do pára-brisas de um automóvel, ou até mesmo pela janela de uma casa, sentia o estômago às voltas, e nunca, até àquele momento, tivera uma percepção consciente do motivo por que tal lhe acontecia. Era uma descoberta bastante interessante, mas surgia um pouco tarde de mais.

 

O que tem estado a escrever... David? Permite-me que o trate assim?

 

Sim, claro que sim apressou-se Becker a responder, fechando o bloco de apontamentos. É o diário, o diário de bordo.

 

Um diário de bordo? repetiu, inclinando-se para ele. Quer dizer que registou tudo o que nos tem vindo a suceder?

 

Bem... sim, mas apenas de uma maneira muito concisa, num estilo oficial.

 

Permite-me que o leia? perguntou Míriam estendendo a mão para o diário, que Becker lhe entregou.

 

Recostou-se antes de o abrir, começou a folheá-lo e leu uma entrada ao acaso. «Dezasseis horas e dois minutos: mudar para a frequência táctica alternativa. General Laskov transmitiu a última mensagem: E-2D acompanhará a nossa posição pelo radar e o general deixou ao nosso critério a decisão de recorrermos ao Phoenix. A esquadrilha regressou à base.” Miriam voltou mais algumas páginas. «Dezoito horas e trinta e um minutos: o co-piloto Hess faleceu devido a fractura do crânio provocada por um tijolo que perfurou o pára-brisas aquando da tentativa de aterragem. Devia ter activado atempadamente o visor supersónico, como precaução para uma aterragem de emergência, o que poderia ter evitado a sua morte.” Miriam ficou a olhar para aquela entrada durante alguns segundos, após o que fechou o diário, erguendo o olhar e esboçando um sorriso forçado.

 

Chamam-nos o Povo do Livro e, de facto, gostamos de livros, desde a Diaspora que a palavra escrita nos tem mantido unidos. É um pouco estranho que mais ninguém tenha pensado em registar tudo o que fizemos e nos aconteceu neste lugar.

 

Bem... começou Becker, procurando a ponta de um cigarro, que encontrou e acendeu. Não se pode dizer que isto seja uma crónica completa, senhora Bernstein...

 

Miriam.

 

Miriam emendou Becker após alguma hesitação, faz parte das minhas funções reg...

 

Mas é precisamente aí que está a questão, David. Sempre fez parte das funções de alguém que se dedique às letras, de um escrivão, por exemplo, manter os livros actualizados. Ao longo de toda a história têm existido sempre pessoas a quem cabe registar por escrito todos os acontecimentos relevantes, produzindo, por vezes, documentos poderosos e esclarecedores. Ezra foi um escrivão, tendo sido ele quem nos deixou o único testemunho em letra de forma referente à repatriação dos exilados que abandonaram a Babilónia. Em circunstâncias modernas, o comandante de um avião poderá ser incumbido dessa tarefa concluiu Miriam, sorrindo-lhe.

 

Suponho que sim.

 

Estou a ver que não consigo convencê-lo da importância deste diário acrescentou Miriam, inclinando-se mais para Becker, mas acha que sou capaz de persuadi-lo a arranjar maneira de o esconder?

 

Suponho que seja boa ideia.

 

Míriam fez menção de lho devolver, mas hesitou.

 

Importar-se-ia se eu ficasse aqui sentada algum tempo e registasse a minha perspectiva do que aqui se passou? Tentarei não utilizar muito espaço.

 

Ocupe todo aquele de que necessitar retorquiu Becker, com uma gargalhada forçada. Acabei de fazer o que julgo ter sido a minha última entrada.

 

Fico-lhe muito agradecida. Por acaso, tem papel químico? Gostaria de fazer uma segunda via daquilo que vou anotar. Assim, poderemos enterrar o diário e deixar a cópia do que eu escrevi pelo meu punho no aparelho.

 

Becker descobriu uma folha de papel químico no seu estojo de voo.

 

O diário de bordo não deve sair do avião, mas podemos enterrar a sua cópia.

 

De acordo anuiu Miriam, agarrando no papel químico. Obrigada.

 

Não sei se sabe que ninguém tomará conhecimento quer do original, quer da cópia.

 

A Oração de Ravensbruck foi escrita num pedaço de papel, David realçou ela, erguendo o olhar e fitando-o.

 

Pelos vistos, essa oração tem um grande significado para si.

 

Costumava ter confirmou Miriam, de olhar perdido num ponto para lá do pára-brisas da carlinga. Não sei se sabe que não foi assinada por ninguém, mas, como foi encontrada num campo de concentração predominantemente feminino, talvez isso nos possa dar alguma indicação quanto à sua autoria. Passou uma mão pelo rosto. Disseram-me que... que a minha mãe faleceu em Ravensbruck, por isso gosto de pensar que talvez tenha sido ela quem a escreveu. Miriam baixou o tom de voz que mal se ouvia acima do barulho exterior. Em tempos, as palavras dessa oração possuíram mais significado para mim, mas o que ainda me diz qualquer coisa é o facto de o ser humano que as escreveu ter tido muita fé, fé em que essa oração acabasse por ser encontrada. Contudo, mais importante ainda, depositava fé em que continuaria a haver gente no mundo depois desse período terrível de obscurantismo, alguém que vislumbraria alguma coisa de valor nessas palavras, e foi assim que essa oração ficou para a posteridade num simples pedaço de papel, embora a sua autora, muito provavelmente, não lhe tenha sobrevivido. É um acontecimento que veio a reproduzir-se um milhão de vezes, tal como também sobreviverá ao próximo holocausto. Míriam voltou a sorrir a Becker. O livro do Génesis foi originalmente escrito num papiro, David, e se esse primeiro escriba tivesse dado ouvidos a alguém como você, jamais teríamos tido conhecimento da forma como o mundo começou.

 

Estou convencido admitiu David, forçando um sorriso.

 

Esplêndido.

 

Miriam aceitou o lápis que ele lhe oferecia, debruçou-se sobre o diário de bordo e começou a escrever em caracteres hebraicos, de forma rápida e fluida. De súbito, ergueu a cabeça e Becker viu que ela tinha os olhos marejados de lágrimas.

 

Essa oração significava muito para mim, porque era uma prece que invocava o perdão, um pedido para que oferecêssemos a outra face. A pessoa que a escreveu foi posta à prova em condições extremas, podendo concluir-se que não lhe faltava abnegação. Desde que aqui estamos que também o fui, não da forma que essas provações adquiriram em Ravensbruck, mas em mim deixou de existir um espírito de perdão. A verdade é que me sinto feliz com o modo como a situação acabou por se desenrolar e ansiosa por disparar contra o primeiro inimigo que se atreva a enfiar a cabeça aqui dentro. Se por minha causa houver viúvas e órfãos, progenitores sem filhos e amigos que sofrerão o desgosto de perder alguém querido, antes de eu própria morrer, lamentarei a infelicidade dessas pessoas. Consegue compreender o que pretendo dizer? Acha que é terrível?

 

Olho por olho... citou Becker abanando a cabeça.

 

Sim, e dente por dente e Miriam virou uma página do diário de bordo, continuando a escrever.

 

Hausner sentia, sem olhar para o relógio, que não faltava muito para o nascer do dia. A batalha estava prestes a chegar ao fim, e do cimo da colina eram disparados apenas alguns tiros de quando em vez, por parte dos israelitas.

 

Embora avançassem cautelosamente, os ashbals faziam-no com algum à-vontade, rindo-se e gritando uns aos outros por entre as nuvens de poeira levantadas pelo vento. Nem sequer se davam conta de que aquela falta aparente de munições dos israelitas poderia ser outra artimanha e que, se fosse esse o caso, estariam a correr um grande risco. De facto, um dos pelotões avançados já atravessara a linha de defesa do extremo sul, deparando-se-lhe as trincheiras desertas.

 

Os palestinianos deslocavam-se com lentidão no escuro e por entre as rajadas de vento. Naquele momento sentiam que a matança não tardaria, saboreando com antecipação esse momento. Atravessaram as paliçadas destruídas, passando por cima dos parapeitos defensivos, e com alguma curiosidade detiveram-se junto das trincheiras, para pouco depois passarem por cima delas. Experimentavam aquela estranha exaltação reprimida que anda de mãos dadas com a violação do covil do inimigo, o que durante tanto tempo lhes fora proibido.

 

Ocasionalmente, um ou outro disparo das armas israelitas fazia com que se dispersassem, o que lhes retardava os movimentos, mas de uma maneira geral, exceptuando o vento constante, a que já ninguém prestava a mínima atenção, no cume da colina reinava um silêncio fantasmagórico.

 

Em termos militares, a resistência era fraca e esporádica. Os ashbals

tinham tudo a seu favor, porém, continuava a ser necessário ter paciência e cuidado. Depois de conseguirem chegar tão longe, nenhum dos sobreviventes desejava morrer a escassos minutos da vitória final.

 

Os árabes refreavam-se para não ripostar ao fogo ocasional dos israelitas, receando que estes por seu turno, retribuíssem os disparos, sendo eles o alvo. Em silêncio, e a coberto das trevas, enviavam sinais uns aos outros, tentando agrupar-se a fim de estabelecer um único cordão que inspeccionaria o planalto, procurando os inimigos. Não queriam que ninguém conseguisse furar as suas linhas avançadas, pois os ashbals que formavam a linha da frente já conseguiam distinguir os contornos do Concorde, sempre que havia uma aberta nas nuvens de poeira.

 

Devagar e em silêncio, os israelitas retrocediam, fazendo apenas o fogo suficiente para manter os árabes à distância, tentando atrasar o avanço destes. Não haviam estabelecido qualquer plano final, não se ouvindo quaisquer ordens de última hora vindas do posto de comando, porém a retirada fazia-se de maneira ordeira. Cerca de metade dos judeus optara por tentar pôr-se em fuga através da encosta virada a poente, enquanto a outra metade decidira permanecer no cimo da colina, esperando aí o destino que a sorte lhes reservara.

 

Os feridos foram trazidos da antiga cabana de pastores e colocados a bordo do Concorde, onde, era do consenso geral, se acreditava que teriam mais oportunidades de sobreviver ao massacre, uma vez que, pelo menos temporariamente, estariam afastados do ponto onde a luta seria mais acesa. Contudo, corriam rumores persistentes de que todos seriam abatidos antes que os ashbals lhes pudessem chegar, embora se tivesse estabelecido alguma confusão quanto a estes boatos.

 

Os israelitas que tinham ido para a vertente ocidental dispararam em direcção ao Eufrates, tentando determinar se os árabes estariam posicionados na margem, e Ahmed Rish comunicou através do seu rádio, ordenando à pequena força que destacara para essa área que ripostasse ao fogo inimigo. Não queria que os sitiados corressem inadvertidamente para um massacre no sopé da colina, desejava que ficassem todos à sua mercê no cimo da colina.

 

Os ashbals posicionados na margem do rio começaram então a disparar na direcção do cume da colina e os potenciais fugitivos sentiram o coração cair-lhes aos pés ao constatarem aquilo de que sempre tinham tido a percepção não lhes restava qualquer caminho por onde pudessem pôr-se em fuga. Muitos dos que haviam contado poder escapar por aquela encosta começaram a chorar.

 

Hamadi respondeu a uma comunicação via rádio por parte do responsável pela retaguarda, Al-Bakr.

 

Aqui, Hamadi. O quê? Quem é o tipo? De que estás à espera? Descobre! Chegou a completar a ligação? O telefonista de Bagdade confirma isso? O que disse o homem? Sim, sei que não sabes hebreu, porra, mas tenho a certeza de que o tipo fala árabe. Depois de lhe teres arrancado o primeiro olho, podes ter a certeza de que começará a cantar. Sim, mantém-me informado.

 

shHamadi devolveu o telefone ao seu operador de rádio e olhou para

Rish.

- Ahmed - chamou.

 

Compreendi o suficiente da conversa, mas o caso não tem a mínima importância - comentou Rish, voltando-se para o seu lugar-tenente enquanto avançava lentamente entre as rajadas de poeira

 

Mas se ele conseguiu passar...

 

Já te disse que não tem importância!

 

Hamadi virou-lhe as costas, afastando-se, com um pressentimento cada vez maior de que o destino deles já fora escrito. O cerco aproximava-se de todas as direcções, forças sobre as quais não exerciam o mínimo controlo Caso decidisse dar meia volta e afastar-se, acobertado pela noite, viveria para ver os primeiros raios solares que surgiriam do lado da Pérsia, mas tal como não estava na sua mão matar Rish, também não podia tomar essa atitude.

 

John MeClure observava os clarões verdes das balas tracejantes que descreviam trajectórias em arco, com início na encosta da colina passando em frente da sua trincheira individual.

 

Ora bem, podemos ter a certeza de que não conseguiremos descer por esta encosta - comentou, inserindo as duas últimas balas no revólver Então, coronel, já aprendeu a dizer: «Levem-me até ao embaixador norte-americano?”

 

Meticulosamente, Richardson vestiu a jaqueta azul do seu uniforme e abotoou-a.

- Durante os próximos minutos teremos de ter muito cuidado, McClure. As nossas vidas poderão depender de uma palavra ou gesto mal interpretados. O que o levou a uma acção dessas, Tom?

 

Richardson endireitou a gravata e, num gesto fútil, sacudiu umas particulas de poeira dos ombros.

 

Perguntei-lhe por que motivo fez isso? - insistiu McClure. O coronel fitou-o do extremo oposto da pequena trincheira.

 

A fazer o quê?

 

McClure fez o tambor do revólver girar para a esquerda, de maneira a que uma das balas ficasse pronta a ser disparada, enquanto Richardson, que encontrara o seu quépi e despejara a areia que se acumulara no seu interior, baixava o olhar para o cano da arma, de grande diâmetro.

 

Por dinheiro, tenho uma fraqueza por coisas caras

 

Por quanto se vendeu, Tom?

 

Por um belo milhão de dólares.

 

Nada mau retorquiu McClure, soltando um curto assobio de admiração.

 

Não, e devo acrescentar, depositado com toda a segurança numa conta na Suíça. Era suposto receber outro milhão depois de o trabalho estar concluído, mas agora não me parece que isso se concretize.

 

Talvez eles cumpram o combinado, Tom. Esses tipos ganham montes de dinheiro.

 

Tem toda a razão, John, estão cheios de petrodólares... e não sabem o que fazer com eles. Os países ocidentais sofrem hemorragias de dinheiro, pelo que necessitam de transfusões de petróleo.

 

Uma figura de retórica interessante, Tom, mas agora não estamos a falar sobre esse assunto, nem tão-pouco acerca de Israel, mas de si... um coronel da Força Aérea dos Estados Unidos que se vendeu a uma potência estrangeira. É uma acção que continua a ser contra a lei... até mesmo no nosso país.

 

Richardson ajeitou o quépi, ajustando-o à cabeça.

 

Bem... há já algum tempo que não vou a casa, portanto, não posso atestar isso, John, mas costumava não haver problemas com a publicação de documentos secretos do Pentágono. Tem a certeza de que continua a ser uma infracção à lei alguém vender-se a uma potência estrangeira?

 

Não procure ganhar tempo, Tom.

 

De acordo. Ora bem, estou disposto a aceitar o castigo que me aplicarem quando chegar lá. Quem me dera que baixasse essa coisa. Não tenciono pôr-me em fuga.

 

As pessoas falam com mais fluência quando estão em frente do cano de uma arma, Tom retorquiu McClure cuspindo um fósforo. Eu tinha a impressão de que você gostava desta gente.

 

Nos dias que correm, não está muito em moda ser abertamente anti-semita.

 

Estou a ver.

 

A fisionomia de Richardson passou por uma transformação notável, a sua boca endureceu e os olhos semicerraram-se em fendas estreitas.

 

As coisas passaram-se assim: em mil novecentos e sessenta e sete, participei numa festa no Clube dos Oficiais da base do Travis juntamente com os pilotos israelitas que lá recebiam instrução e também me solidarizei com eles quando, em mil novecentos e setenta e três, sofreram um forte revés. Quando dei por mim, constatei que alguém dissera uma palavra a meu favor, e como resultado fui destacado para esta região. Assim, pude passar informações, mas ao saber desta missão, pouco faltou para que vomitasse.

 

McClure não lhe deu réplica, e decorridos alguns segundos, que se prolongaram por bastante tempo, Richardson ergueu o olhar para o rosto do seu interlocutor.

 

De qualquer maneira, a verdade é que não era suposto que ninguém saísse magoado acrescentou em voz baixa.

 

Mas não é disso que estamos a falar, Tom. É possível que eu também não goste deles, mas nem sob tortura seria capaz de os atraiçoar. E quer saber porquê? Porque o Tio Sam diz que é isso que tenho de fazer, que é para isso que sou pago...

 

Richardson ignorou todos aqueles argumentos, mas as suas feições suavizaram-se.

 

Acabou de me ocorrer uma coisa, John acrescentou com uma expressão radiante. Acha que existe alguma possibilidade de eu comprar o seu silêncio por cem mil?

 

Lamento, mas a resposta é não.

 

Meio milhão?

 

Nem mesmo por essa maquia respondeu McClure, que encontrara o seu último fósforo.

 

Mais o segundo milhão, caso venha a recebê-lo?

 

McClure, que pareceu não prestar atenção ao que o outro lhe dissera, mordiscou o fósforo e respondeu prontamente.

 

Você afirmou que supunha que ninguém saísse magoado, mas muitas pessoas perderam a vida e muitas outras ficaram gravemente feridas, Tom. Isto foi a sério.

 

Eu sei, e lamento tudo o que se passou, John. Nada disto deveria ter acontecido. Mas quem poderia prever este desfecho? É o que lamento profundamente, todas estas baixas e ficou a olhar fixamente para as nuvens de poeira.

 

A ser verdade o que diz, que ninguém devia ficar magoado, por que razão optou por viajar a bordo do zero dois?

 

Bem... você tem razão concordou Richardson, humedecendo os lábios secos, se acontecesse algum problema, então, era o zero um que estava destinado a servir de... demonstração. Sabíamos que se algo corresse mal, seria por causa de Avidar e não de Becker.

 

Sabiam? retorquiu McClure soltando uma gargalhada seca. Como se pode ter a certeza de uma coisa dessas? Suponhamos que, contra tudo o que sabemos sobre a natureza humana relativamente a esse género de reacções, tinha sido Becker a tomar uma atitude, enquanto Avidar jogava de acordo com as vossas regras? Isso deixá-lo-ia a flutuar no céu a milhares de metros de altitude, meu rapaz.

 

Um risco calculado, John. Bem vê, eu também não me furto a arriscar a minha própria vida, não sou nenhum cobarde. Richardson continuava com o olhar perdido na poeira que se levantava do solo. Estou a ouvir vozes. Acha que devemos tomar a iniciativa de nos rendermos, ou optamos por ficar aqui à espera de que eles cheguem?

 

Vejo que está muito ansioso por se render a estes jovens gerbos, ou o que quer que estes cabrões chamem a si mesmos, Tom. Acredita que o vão receber com boas-vindas de herói? Vão, isso sim, assassiná-lo, meu grande estúpido, filho de uma puta, e depois não hesitarão em me matar também, garantindo assim que ninguém venha a ter conhecimento da sua traição.

 

Não, eles não me matarão replicou Richardson com um sorriso. O Rish tem um chefe e eu e esse chefe arquitectámos um esquema que garante a minha segurança. Previmos que talvez viéssemos a ter problemas com o Rish e, no caso de me matarem, será aberta uma carta, que deixei no cofre da embaixada, onde são indicados alguns nomes de terroristas árabes que actuam em Israel, incluindo os meus contactos, além de outros.

 

Costumo pensar com antecipação, John continuou Richardson fazendo uma pausa. E também não permitirei que lhe façam mal.

 

Obrigado, Tom, você é melhor do que o embaixador dos Estados Unidos. Pois bem, pergunto-me se o Rish terá pulso para dominar os seus homens... ou se é capaz de se controlar a si próprio, e não posso deixar de pensar que estão de tal maneira enfurecidos que são capazes de o fazer em picado... Mas talvez não cheguem tão longe... McClure pareceu ter ficado embrenhado nos seus pensamentos. Sabe, Tom, a justiça americana, nos dias que correm, é muito tolerante, e é por isso que não se sente muito incomodado se eu o levar de regresso a casa. Na maior parte dos países, ninguém hesitaria em o pendurar pelo colhão esquerdo numa qualquer masmorra, após o que se esqueceriam completamente da sua existência, mas no nosso, com os seus brandos costumes, qualquer conselho de guerra, ou julgamento num tribunal federal, valer-lhe-á uma sentença de dez a vinte anos de cadeia... isto é, supondo que viesse a ser condenado, o que lhe permitiria sair em liberdade ao fim de seis... ou ainda menos. Nada o impediria então de seguir direitinho para a Suíça, para não mencionar que o governo dos Estados Unidos nunca o extraditaria para Israel depois de cumprida a pena, porque isso daria origem a uma grande salgalhada.

 

Não sou eu quem estipula as regras adiantou Richardson, mostrando uma expressão de desconfiança.

 

Não, mas estipulo eu, por vezes, quando tenho razões para isso. Fez uma pequena pausa. Você disse que, caso viesse a morrer, seria tornada pública a identidade de muitos terroristas?

 

Espere aí! Não há necessidade de falar assim, John. Existe um grande número de coisas a levar em consideração numa situação destas.

 

Sim, de facto existe, e se dispuséssemos de mais tempo, talvez conseguíssemos arranjar uma solução a contento dos dois, mas isso é coisa de que não dispomos.

 

Acalme-se! instintivamente Richardson estendeu os braços. Posso garantir a sua segurança. Esta gente...

 

McClure, com um gesto brusco, colocou o seu enorme revólver entre as mãos de Richardson, disparando a escassos centímetros do seu coração. O impacte impulsionou a cabeça do coronel para trás e o seu quépi voou, sendo arrastado pelo vento em direcção a ocidente.

 

David Becker descia apressadamente pela rampa de terra batida, levando na mão uma lata que continha a cópia da crónica abreviada escrita por Miriam Bernstein, a qual enrolara em bocados de desperdício e de plástico. Escolheu um local no extremo da rampa e escavou rapidamente um buraco com um pedaço de alumínio. Pensava que era pura perda de tempo, mas Miriam parecera-lhe tão empenhada que decidiu fazer-lhe a vontade. Ela dava a impressão de encarar a morte com coragem, sem manifestar quaisquer indícios de histeria, apesar de mostrar alguma irracionalidade quanto ao destino daquele registo escrito, o que o levara a pensar que seria preferível ceder ao seu desejo. Colocou a lata dentro do buraco cobrindo-a apressadamente com terra, e em relação ao diário de bordo que continha o original da crónica de Míriam, fora colocado debaixo de uma placa na carlinga, pois havia a hipótese de Israel conseguir um dia a devolução do Concorde, sendo possível que alguém que posteriormente trabalhasse no aparelho acabasse por encontrá-lo. Todavia, no respeitante à cópia enterrada, Becker perguntava a si mesmo se alguma vez seria descoberta, mas talvez fosse. Ao fim e ao cabo, não tinha ele desenterrado o Pazuzu?

 

Endireitou-se, limpou as mãos e ouviu dois árabes, que gritavam entre si, para que as suas vozes se sobrepusessem ao barulho do vento, os quais não se encontravam a mais de duzentos metros. Um israelita arriscou um tiro na direcção das vozes, provocando um grito de dor. «Não», pensou Becker, «quando chegarem aqui, o seu estado de espírito não será dos melhores», e, contudo, nem sequer por um instante se arrependeu de terem decidido fazer frente aos árabes; aliás, também não ouvira qualquer dos seus companheiros queixar-se dessa decisão.

 

Aproximou-se da roda do trem de aterragem dianteiro, e dirigiu-se a Peter Kahn, que continuava a tentar reparar a unidade auxiliar de energia.

 

Deixa-te disso, Peter, é um pouco tarde de mais. Sobe para a carlinga.

 

E porque raio hei-de ir? perguntou Kahn, suspendendo por instantes o trabalho. Olha uma coisa: quando eles chegarem aqui, quero que me vejam a trabalhar que nem um mouro nesta filha da puta da unidade auxiliar. Talvez tenham pena de mim e me ofereçam um bilhete de regresso a Lod.

 

Muito bem... Falamos mais tarde retorquiu Becker com um sorriso.

 

De acordo assentiu Kahn, olhando-o atentamente. Vimo-nos por aí, comandante.

 

Num passo vagaroso, Becker voltou-se para a rampa, que começou a subir, abstraído dos projécteis que assobiavam em seu redor.

 

Caminhou por cima da asa até chegar à cabina de passageiros, que atravessou cuidadosamente para não pisar nenhum dos feridos, e entrou na carlinga, onde reocupou o seu lugar, ao lado de Miriam.

 

Já está feito.

 

Obrigada.

 

Ambos se remeteram a um mutismo que só passado algum tempo foi quebrado por Becker.

 

Eu sempre tive o pressentimento de que haveria de morrer dentro desta coisa.

 

Estou convicta de que você é o homem mais corajoso que conheci até hoje redarguiu ela, estendendo uma mão que pousou no braço do piloto.

 

Becker baixou o olhar, observando o painel de instrumentos. Sentia que tinha a obrigação de fazer qualquer coisa, mas as ordens que Hausner lhe dera haviam sido para que se mantivesse na carlinga, acontecesse o que acontecesse. Aumentou o volume do som do rádio, e tentou sintonizar uma frequência, o que continuaria a fazer até que alguém lhe disparasse uma bala nas costas. Lamentava a sorte de Míriam na verdade, de todas as mulheres, pois sabia que os ashbals lhes reservariam um destino nada auspicioso. Deseja continuar aqui? Quer dizer...

 

Também estou a cumprir ordens adiantou ela, com um sorriso. Becker olhou através do pára-brisas.

 

Há algumas pessoas que começaram a reunir-se na cabana. Parece-me que tencionam...

 

Sim, estou a vê-los, mas, se não se importa, prefiro ficar junto de si. Becker hesitou, mas depois estendeu a mão, apertando a de Miriam.

 

O grupo de israelitas que optara pelo suicídio colectivo reunira-se no antigo casebre de pastores, cujo interior fedia a sangue coagulado, que se juntara em poças depois de os feridos serem transferidos para o avião.

 

Os árabes, como povo, não tinham por hábito acabar com as próprias vidas, mas nenhum dos que se encontravam na cabana manifestou surpresa quando Abdel Majid Jabari e Ibrahim Arif entraram, pois todos compreendiam tacitamente que aqueles dois, mais do que qualquer dos outros, estariam melhor mortos do que vivos quando os ashbals chegassem.

 

O interior da cabana permanecia totalmente às escuras, o que tornava as coisas mais fáceis para todos. Trocavam-se poucas palavras, apenas algumas frases soltas, murmuradas, que ficavam a pairar no ar quando alguém entrava.

 

Decorridos alguns minutos, tornou-se evidente que mais ninguém se associaria ao que pretendiam levar a cabo, se bem que nenhum dos presentes tivesse uma noção específica do que fazer a seguir, e sobre a cabana abateu-se uma quietude feita de estranheza.

 

Ao todo, eram onze homens e mulheres, que se dividiam por três pequenos grupos, cada um reunido a seu canto, e num deles incluía-se Joshua Rubin, o grande impulsionador daquele pacto de suicídio colectivo. Deitado no chão perto dele estava Yigael Tekoah, que sentia um grande azedume por não ter sido atingido mortalmente pelas balas dos árabes quando, na sua posição avançada, deu o grito de alerta, pois agora via-se obrigado a enfrentar uma vez mais a morte. Com Rubin e Tekoah encontravam-se também quatro jovens assessores do Knesset, dois homens e duas mulheres, todos membros da Liga de Defesa da Masada.

 

A um outro canto, agrupavam-se o comissário de bordo Yaakov Leiber, acompanhado pelas duas hospedeiras, Beth Abrams e Rachel Baum. A primeira passara os dois últimos dias a cuidar dos feridos, forçada a vê-los sofrer e a sua atitude mudara muito: de rapariga feliz transformara-se numa mulher desanimada num espaço de tempo muito curto. Rachel Baum estava deitada no chão entre Leiber e Abrams e, a exemplo de Tekoah, recusara-se a ser transferida para o Concorde com o resto dos feridos. Os ferimentos que sofrera causavam-lhe dores atrozes, pelo que, do seu ponto de vista, não fazia sentido ir para o avião, prolongando assim o seu sofrimento. Fora ela quem cuidara de Kaplan, para depois ouvir os seus gritos de morte às mãos dos árabes, e sentia-se de tal maneira atemorizada que aquela parecia-lhe a melhor maneira de acabar com tudo.

 

Por seu lado, Yaakov Leiber ainda pensara nos seus três filhos antes de tomar aquela decisão, todavia, Rubin conseguira convencê-lo de que ninguém escaparia com vida ao que os ashbals lhes tinham reservado. Mesmo assim, ainda não estava inteiramente decidido e percebia que as duas assistentes de bordo precisavam do seu apoio moral. No escuro, começou a falar-lhes num tom suave, enquanto Beth Abrams chorava de mansinho e Rachel Baum se mantinha em silêncio. Depois, ajoelhou-se junto desta, pegando-lhe numa mão, e Beth imitou-o, dando a mão aos dois.

 

No terceiro canto, Abdel Jabari e Ibrahim Arif mantinham-se agachados. Há mais de trinta anos que viviam em solidão entre os israelitas e agora o seu destino era partilhar da mesma morte, se bem que junto deles continuassem sozinhos como sempre tinham estado.

 

Sabes, Ibrahim começou Jabari a dizer numa voz sussurrada e levando aos lábios o seu último cigarro, tive sempre um pressentimento de que não morreria de morte natural.

 

Arif estava muito pálido, todo ele tremia, e também acendeu um cigarro naquele espaço mergulhado em sombras, inspirando profundamente o fumo. Tentou dizer uma piada.

 

Ainda sou muito capaz de vir a morrer de um ataque do coração acrescentou continuando a fumar o seu cigarro. Como vamos fazer isto?

 

Estou em crer que há umas duas ou três pistolas, serão passadas a todos à vez.

 

As mãos de Arif tremiam de tal maneira que mal conseguia manter o cigarro entre os dedos, e não estava a ver como conseguiria empunhar uma pistola.

 

Não me parece que seja capaz de levar isto avante, Abdel admitiu, pondo-se de pé.

 

Jabari agarrou-o por um braço, puxando-o violentamente mais para o canto.

 

Não te comportes como um idiota ripostou numa voz sibilada.

 

Não ouviste o que eles fizeram ao pobre do Moshe Kaplan? És capaz de conceber a tortura a que te sujeitarão? Meu velho amigo, poupa-te a esse martírio.

 

Arif começou a chorar e Jabari apressou-se a reconfortá-lo. A única coisa que este último lamentava era não ter tido oportunidade de se despedir de Míriam e, verdade fosse dita, ele mal lhe pusera a vista em cima durante os últimos dois dias. Não quisera perturbá-la com a sua companhia, mas agora arrependia-se de não ter feito um esforço por passar mais tempo junto dela. Contudo, desconfiava que a sua amiga estava apaixonada por Jacob Hausner, o que o levara a sentir-se apreensivo com essa escolha amorosa. Jabari admitia convictamente que existia um lugar chamado paraíso celeste, tal como se encontrava tão bem descrito no Alcorão, acreditando sem qualquer dúvida que era para onde iria, mas custava-lhe aceitar que Miriam Bernstein não fizesse a mesma viagem.

 

Vamos lá, Arif, tens de te acalmar. No Além existe um mundo melhor. Jardins frescos, fontes, vinho que jorra sem parar e muitas virgens. Parece-te que estas sejam razões para estares com choros?

 

Yigael Tekoah, que sentia aversão pelos árabes e a quem nunca agradara o facto de eles terem integrado a missão de paz, falou em voz baixa do outro extremo da sala.

 

Abdel e Ibrahim, é preciso coragem.

 

Nós estamos bem, Yigael respondeu-lhe Jabari, obrigado. Este continuava perturbado perante a perspectiva de não ver Miriam uma última vez antes de morrer e sentiu-se tentado a sair da cabana para a procurar, mas, por outro lado, não lhe agradava a ideia de deixar Arif sozinho. Os ashbals já se encontravam demasiado perto e queria ter a certeza de que privaria Rish de uns momentos de satisfação, embora aquela espera não fizesse bem a ninguém. Finalmente, decidiu quebrar o silêncio generalizado, perguntando aos outros qual era o procedimento mais adequado numa situação daquelas, só que ninguém lhe respondeu.

 

Os disparos faziam-se ouvir cada vez mais próximo e os israelitas que continuavam a ripostar ao fogo inimigo ocuparam posições não muito distanciadas da cabana. Entretanto, uma das paredes foi atingida por uma rajada de projécteis, o que actuou como factor catalisador, levando os sitiados a agir. Rubin caminhou até ao centro da cabana.

 

Temos de agir sem mais demoras declarou, depois de ter pigarreado para aclarar a garganta, e ficou a aguardar que alguém falasse. Se acharem que será mais fácil, estou pronto a fazê-lo por vocês, pois sou eu que tenho as duas pistolas.

 

Em movimentos rápidos, Jabari levantou-se, dirigindo-se para o centro da cabana.

 

Se não se importar, mas depressa.

 

Rubin não lhe deu réplica, empunhou antes uma das pistolas, cujo cano posicionou entre os dois pontos de luz que sabia serem os olhos de Jabari, e mantendo o cano ligeiramente afastado do alvo, disparou uma única bala, que atingiu o árabe em cheio na testa.

 

O estrépito da percussão começou a dissipar-se, dando lugar ao som de vozes em oração, acompanhadas de choros convulsivos.

 

Rubin, encharcado em suor, que instintivamente limpou das faces e braços, começou a tremer que nem varas verdes, duvidando já da sua capacidade para agir, sem saber quem se seguiria. A determinação que sentira até ao momento e que o levara a acreditar ser capaz de fazer pelos outros o que estes não conseguiam por si próprios, abandonou-o. Então, invertendo a posição do cano da pistola, acabou com a sua própria vida, com um tiro certeiro no coração, tombando desamparado para trás e indo cair no meio dos quatro jovens assessores, que se haviam refugiado num canto.

 

Uma das raparigas começou a gritar e desmaiou, enquanto os outros três se estendiam ao comprido no chão. Os dois jovens recuperaram as pistolas e trocaram algumas palavras apressadas entre si, após o que se puseram de pé, abeirando-se do canto onde Leiber, Abrams e Baum se tinham juntado. Acenderam os isqueiros, fizeram pontaria e em seguida apagaram-nos e começaram a puxar os gatilhos. Beth Abrams soltou um soluço de pranto e Leiber arremessou-se para a frente, caindo entre as duas raparigas e os homens. Um destes disparou, embora o tiro, à primeira vista, parecesse não ter atingido ninguém, e o outro voltou a acender o isqueiro, corrigindo a pontaria.

 

Mas foi então que o rabino Levin entrou de rompante no casebre, e ainda teve tempo de ver tudo antes que a chama se apagasse. Agarrou os dois jovens pelo colarinho, atirou-os bruscamente para o chão e começou a gritar e a praguejar, enquanto desferia pontapés e murros a torto e a direito, na escuridão.

 

Ter-lhes-á passado pela cabeça que são mais espertos do que eu? Mas consegui encontrá-los não é verdade? Eu sabia o que andavam a preparar! Fora! Ponham-se já daqui para fora! Rua! Já para a rua! O rabino corria pela pequena cabana como se estivesse possesso, continuando a dar pontapés e murros às cegas, possuído de um grande frenesim, tropeçando por várias vezes nos cadáveres de Uri Rubin e de Abdel Jabari e dando-lhes repetidos pontapés até se aperceber de que estavam mortos. Fora! Rua! Ponham-se já daqui para fora! Como é que se atreveram! Como ousaram cometer uma acção destas! Levem imediatamente todos os feridos para dentro do avião. Rua! continuou a vociferar.

 

Assim que o rabino entrou no casebre, a sua presença quebrara aquele ambiente opressivo que pairava, e todos os que estavam em condições de se mexer puseram-se prontamente dali para fora.

 

O rabino Levin ficou a sós consigo mesmo no centro da cabana, o seu corpo tremia incontrolavelmente e as lágrimas não paravam de lhe correr pelas faces. Fizera o que lhe incumbia, mas nem por isso se sentia mais seguro de que a razão estava do seu lado, e que os outros estivessem enganados. Interrogou-se a si mesmo como conseguiria dar sepultura aos dois corpos, dado o pouco tempo que lhes restava, e perguntou-se quem seriam.

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ariel Weizman, reuniu um pequeno grupo armado com algumas armas ligeiras no extremo ocidental do perímetro defensivo, próximo da trincheira individual de McClure e viu o corpo de Richardson caído no fundo da pequena escavação sobre o qual já se acumulara uma camada de poeira e terra, que cobrira o uniforme azul. Não obstante a estranheza da situação, não tinha tempo para estar com especulações quanto ao significado daquele corpo, nem sobre a ausência de McClure.

 

Ariel Weizman estava firmemente determinado a conduzir aquele grupo até ao sopé da colina, descendo rapidamente a encosta íngreme, quase a pique, e saltando para o rio da mesma maneira que Dobkin fizera. Assim, sem os feridos, que lhes atrasariam a fuga, teriam mais possibilidades de êxito. Desejava que Miriam Bernstein reconsiderasse e decidisse juntar-se-lhes, mas a influência que Hausner exercia sobre ela era enorme, o que a levava a recusar-se a dar um passo fora do Concorde. O ministro alinhou o seu grupo composto por homens e mulheres, todos munidos de coletes salva-vidas cor de laranja que haviam retirado do avião, e depois agachou-se, assumindo a posição de um atleta na pista e instruindo os companheiros para que fizessem o mesmo.

 

Depois de eu contar até três, partimos todos ao mesmo tempo. Em posição, esperem pela contagem.

 

Eram muito poucas as ordens que vinham do posto de comando, e os mensageiros que ainda continuavam em actividade só levavam más notícias a Hausner e a Burg, partindo sem serem portadores de novas ordens, apenas palavras de encorajamento e sugestões.

 

Ambos tinham conseguido chegar a um consenso: naquela altura as melhores ordens eram precisamente a sua ausência, permitindo assim que os instintos de cada civil os inspirasse a acções individuais com vista à sua sobrevivência.

 

Gostaria de assumir o comando por inteiro a partir de agora, Isaac?

 

perguntou Hausner virando-se para Burg. Estou pronto a abdicar de qualquer posição de chefia.

 

Não, mas obrigado respondeu Burg, olhando-o de esguelha com um sorriso enigmático.

 

Acredita que havia alguma coisa que eu pudesse ter feito mas que não fiz?

 

Não replicou Burg após reflectir por uns instantes. Com toda a franqueza, sou forçado a admitir que fez um trabalho excelente. Podia ter sido um tudo-nada mais diplomático... mas talvez isso não fosse possível. Pôs-se a escutar o som dos tiros que eram disparados contra eles.

 

A nossa gente também se comportou de forma exemplar, foram magníficos.

 

Sim, é uma verdade.

 

Os últimos dois homens de Hausner que ainda se mantinham em acção, Marcus e Alpern, aproximaram-se do posto de comando e o primeiro esboçou um simulacro de continência.

 

Que devemos fazer agora, chefe? perguntou dirigindo-se a Hausner.

 

O interpelado não sabia o que responder, sentia-se obrigado a dizer qualquer coisa, todavia, não lhe ocorria nenhuma ordem que lhes pudesse dar, nem como exprimir a gratidão de que os dois homens eram inteiramente merecedores.

 

Só lhes posso dizer que tentem levar tantos sacanas quantos lhes for possível. Fez uma pausa. E quero agradecer-lhes, foram a espinha dorsal e o coração desta linha defensiva. Tiveram uma actuação exemplar e nenhum dos que conseguirem sobreviver esquecerá jamais o vosso contributo.

 

Os dois homens assentiram com um gesto de cabeça e desapareceram nas trevas.

 

Está a parecer-me que será melhor você ir já para o Concorde antes que o caminho seja cortado sugeriu Burg a Hausner, pousando-lhe uma mão no ombro. Prometeu a Míriam e ela ficou à sua espera. Eu mantenho-me por aqui, tentando fazer o que estiver ao meu alcance.

 

Não retorquiu Hausner. Não quero ver o que lhe farão, tal como ela não quererá presenciar o que me fizerem. Míriam conhece a minha maneira de pensar, portanto, não esperará por mim.

 

Estou a ver, você tenciona... sabe o que quero dizer.

 

Não, não sou desse género de pessoa contradisse Hausner. Ainda tenho umas quantas coisas que pretendo dizer ao Ahmed Rish antes de morrer.

 

A fisionomia de Burg foi atravessada por um esgar sorridente.

 

Fizemos um trabalho e pêras, não lhe parece?

 

Sim, sem dúvida nenhuma... Ouça!

 

O quê?

 

Não está a ouvir...?

 

Sim, sim!

 

Hausner ergueu o olhar, observou o céu e julgou ter visto um clarão de fugida. Aos ouvidos chegava-lhe o barulho inconfundível dos motores a jacto, se bem que à distância.

 

Eles descobriram-nos, Isaac! gritou, sem conseguir conter o entusiasmo. Eles conseguiram encontrar-nos, cos diabos!

 

Aqui! gritou Burg começando a gesticular freneticamente. Estamos aqui!

 

Chegaram tarde de mais para nos salvar, mas ainda a tempo de destruir Rish e o que resta do seu bando adiantou Hausner, forçando um sorriso. Voltou-se para o outro. A fé que eu tinha nos serviços secretos de Israel acabou de ser restaurada.

 

Burg sentia-se de tal maneira empolgado que mal conseguia entender o que Hausner lhe dizia, mas então compreendeu. A Força Aérea chegara israelita ou iraquiana, mas demasiado tarde. Burg acalmou-se e o seu corpo pareceu assumir uma postura de abandono.

 

Espero sinceramente que Dobkin tenha conseguido escapar com vida observou com um meneio de cabeça, não lhe ocorrendo mais nada que pudesse dizer.

 

Hausner e Burg mantinham agora o olhar fixo no céu, observando o rasto incandescente de um míssil que atravessava o firmamento.

 

A primeira coisa que Laskov fez foi a última que tinha prometido a Becker. Posicionou o Lear no ecrã do seu radar e preparou-se para disparar um míssil Phoenix de longo alcance contra o alvo, a cento e sessenta quilómetros de distância.

 

O piloto do Lear bocejava olhando com uma expressão de sonolência através do pára-brisas do seu aparelho, que se mantinha num voo circular constante de inclinação lateral para a esquerda, e estava prestes a atingir o ponto em que aquilo se lhe tornaria insuportável, parecendo-lhe até que já sentia vertigens. Abaixo de si, o solo continuava quase oculto por um manto de poeira, mas àquela altitude o firmamento encontrava-se completamente limpo. Começava a amanhecer para os lados da Pérsia, parecendo que no dia prestes a nascer haveria condições ideais para se voar. Dentro em pouco era possível que fosse obrigado a rumar até à sua base, no planalto de Chamiyé, onde o aparelho seria rapidamente reabastecido, regressando depois ao ponto de partida a menos que aqueles mentecaptos conseguissem resolver o assunto lá em baixo de uma vez por todas. Voltou a bocejar.

 

Olhou de relance pela janela do seu lado esquerdo, reparou numa chama que percorria o céu, e um segundo depois apercebeu-se, atónito, que a luz vinha na sua direcção. Bateu imediatamente no ombro do co-piloto adormecido e ambos ficaram a olhar embasbacados para aquela coisa luminosa que mudava de curso, perseguindo-os enquanto descreviam o seu voo circular. O piloto soltou um grito agudo, que parecia interminável, quando identificou o objecto um Phoenix, que entrou em combustão, dando a impressão de se manter suspenso do lado de fora da carlinga. Os israelitas haviam pintado uma imagem da belíssima fénix mitológica no seu homónimo devastador e o magnífico pássaro parecia sorrir sob os primeiros raios solares, até o olho que fora pintado na ogiva deu a impressão de ter piscado aos dois pilotos árabes, naquela fracção de segundos antes de se consumir juntamente com a sua presa, transformando-se numa terrível bola de fogo alaranjado. No entanto, ao contrário do seu homónimo, não tinha a mínima hipótese de ressurgir das próprias cinzas.

 

Orientando-se por meio do radar, Laskov conduzira a sua esquadrilha até àquela área. O sistema computorizado de bordo permitira ao piloto automático efectuar a totalidade do voo nocturno a uma altitude que rasava o solo, sem que os aparelhos tivessem sido detectados pelos sistemas de radar da Jordânia e do Iraque. Contudo, não haviam disposto de muito tempo para se familiarizarem com as características geográficas do terreno, embora as informações de que cada piloto necessitava, ainda indisponíveis aquando das últimas instruções de voo que antecederam a partida, pudessem ser compensadas pela perícia e grande vontade de levar aquela missão a bom termo. O voo, que se fizera à velocidade de Mach dois, ao longo do espaço aéreo da Jordânia e da região oriental do Iraque, num percurso de mil quilómetros, demorara menos de quarenta e cinco minutos, e exceptuando o aparelho de Laskov, artilhado com dois mísseis Phoenix, os outros dispunham apenas de material de alcance ar-terra.

 

Assim que o Lear desapareceu do seu radar, Laskov começou a tentar entrar em comunicação via rádio com o Concorde 02.

 

Aqui Gabriel trinta e dois. Estão a ouvir-me?

 

Miriam Bernstein apercebeu-se da explosão acima da sua cabeça quando estava sozinha na cabina de pilotagem, mas não compreendeu o que se estava a passar, até porque também não se sentia muito interessada.

 

Concorde zero dois, aqui Gabriel. Consegue ouvir-me?

 

No seu subconsciente, ela ficou com a impressão de que uma voz à distância lhe soava vagamente familiar.

 

Concorde zero dois, Concorde zero dois, está a ouvir-me? Miriam baixou então o olhar para o rádio, como se fosse a primeira vez que via um aparelho daqueles.

 

Concorde zero dois, aqui Gabriel trinta e dois. Estão a ouvir-me? Passo à escuta.

 

Miriam começou a mexer nos botões do volume de som e no microfone, mas a verdade é que como não sabia como o rádio funcionava limitou-se a gritar na direcção da consola.

 

Teddy! Teddy! Estou a ouvir-te! Sentindo uma grande frustração, deixou cair o microfone, saiu da carlinga e correu aos gritos para a cabina de passageiros cheia de feridos e de pessoas que os tratavam. Já chegaram! A Força Aérea! A Força Aérea! Ouviu-se uma explosão de alegria na cabina e, durante um segundo, Miriam ficou como que paralisada. Atrás de si, ouvia a voz de Teddy Laskov, como se fosse um sonho.

 

Concorde zero dois, aqui Gabriel trinta e dois. Estão a ouvir-me? Miriam continuou a correr até à asa do aparelho e chamou:

 

David! Capitão Becker!

 

O piloto descera outra vez da aeronave para tentar convencer Kahn a juntar-se-lhe na carlinga, disposto, caso a sua tentativa não fosse bem-sucedida, a despedir-se como devia ser. Por isso, ouvira o som do míssil em pleno voo e a explosão que se seguiu, apercebendo-se imediatamente do que se passava, e já se encontrava a meio caminho da rampa de terra batida quando Miriam apareceu. Passou por ela que nem uma flecha, entrou de rompante na cabina de passageiros e percorreu a coxia, tentando não pisar ninguém enquanto se dirigia para a carlinga.

 

Concorde zero dois, aqui Gabriel trinta e dois. Concorde zero dois, Concorde zero dois. Passo à escuta.

 

Becker agarrou o microfone com uma mão que tremia e premiu o botão, enquanto com a outra ajustava os mostradores. Depois, carregou com tanta força no botão que abria a frequência que ficou com receio de que o tivesse danificado.

 

Ouço-o com toda a clareza, Gabriel. A nossa situação é crítica! Repito, crítica! Os árabes entraram no nosso perímetro defensivo! Está a ouvir-me, Gabriel.

 

Também com toda a clareza! respondeu Laskov com tanto entusiasmo que quase saltou do assento. Compreendido, a situação é crítica, zero dois. Aguentem. Aguentem. Charlie a caminho com uma companhia de comandos. Conseguem resistir?

 

Sim respondeu Becker numa voz que tremia descontroladamente. Não, não sei. Podem dar-nos apoio?

 

Ainda estou um pouco longe e tenho de reduzir a velocidade para me colocar por cima da vossa posição. Chegarei lá dentro de... quatro minutos. Conseguem assinalar a vossa localização?

 

Sim! Vou ligar as minhas luzes de aterragem.

 

Recebido e entendido. E quanto à zona de combate?

 

Sim, sim. Temos alguns cocktails molotov e vamos assinalar com chamas a linha limítrofe das nossas posições. E, Gabriel, fique atento às balas tracejantes, o fogo deles é muito cerrado... o nosso é muito esporádico.

 

Recebido e entendido.

 

Vários homens e mulheres, com ferimentos apenas ligeiros, acotovelavam-se já na carlinga, por detrás de Becker, até que um dos homens de Hausner, ferido mas capaz de andar, furou por entre os outros e saiu do avião, começando a gritar no meio da tempestade de areia.

 

A Força Aérea está a chegar! A Força Aérea está a chegar! Marquem as vossas posições com querosene! Onde está o Hausner? Alguém sabe do Burg? Aguentem as posições! Os nossos estão a chegar!

 

Esther Aronson imitou-o, mas saltou directamente da asa para o chão. Desequilibrou-se, caiu, levantou-se imediatamente e começou a correr em direcção ao extremo ocidental do cume, numa tentativa para impedir que o ministro dos Negócios Estrangeiros e o seu grupo se pusessem em fuga pela encosta quase a pique.

 

Ouviam-se muitos gritos no cimo da colina e, no espaço de escassos minutos, os ashbals, assim como os israelitas, ficaram ao corrente dos últimos acontecimentos.

 

Rish e Hamadi aguilhoavam verbalmente os homens que ainda lhes restavam, incentivando-os para que continuassem a convergir para o Concorde, enquanto os israelitas retrocediam para junto do aparelho. Os poucos cocktails molotov que ainda restavam a estes últimos foram arremessados e também começaram a disparar as derradeiras balas, as quais haviam sido poupadas para um confronto final e, consequentemente, o fogo intensificou-se.

 

Os ashbals, que já haviam sofrido um grande número de baixas, entre mortos e feridos, continuavam a avançar com alguma relutância, por entre uma ladainha de queixumes e obscenidades, divididos por sentimentos contraditórios, mas compreensíveis: o desejo de se lançarem sobre as forças inimigas, ou de se deixarem ficar para trás, na esperança de que o confronto se resolvesse por si próprio, sem que para isso tivessem de correr o risco de ser abatidos, o que automaticamente lhes cercearia o direito à violação e ao massacre dos inimigos. Contudo, agora, com a chegada da aviação israelita, a situação alterara-se drasticamente. No mínimo, era forçoso que capturassem alguns dos sitiados, o que teriam de fazer com a maior brevidade possível, se é que pretendiam ficar de posse de reféns que lhes serviriam como moeda de troca.

 

Logo que as luzes de aterragem foram ligadas, começaram a disparar contra o Concorde, mas Rish não queria que o aparelho explodisse devido à combustão do carburante, o que mataria todos os israelitas e, para que tal não viesse a acontecer, ordenou que alvejassem apenas a carlinga. Com os primeiros raios do Sol, os contornos da enorme aeronave eram visíveis sempre que o vento amainava, deixando assentar a poeira.

 

Depois da explosão do Lear, alguns dos destroços haviam caído perto dos ashbals dando-lhes a saber que já não dispunham de muito mais tempo. Por ironia do destino, quando os caças se aproximassem, o lugar mais seguro seria o mais próximo possível dos israelitas, de preferência no interior do Concorde, depois de estes terem sido feitos reféns. Estava a desenhar-se uma situação em que o espaço de manobra seria bastante reduzido, uns simples minutos, para qualquer dos lados, decidiriam o conflito.

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros conduzira o seu grupo de regresso ao Concorde, trazendo o corpo do coronel Thomas Richardson, da Força Aérea dos Estados Unidos. Tinham procurado McClure, mas não conseguiram descobrir o seu paradeiro. O ministro conversava agora com o rabino Levin, que lhe relatava o sucedido na cabana, e, de comum acordo, decidiram que o procedimento mais adequado a adoptar seria dar voz de prisão aos homens e mulheres que haviam participado naquele episódio macabro. Assim, os sete que não tinham tido oportunidade de atentar contra a própria vida, incluindo Leiber, receberam ordens para se manter confinados ao compartimento de bagagens, na retaguarda do aparelho.

 

O cadáver de Uri Rubin foi arrastado para fora da cabana por dois homens que pertenciam à Liga de Defesa da Masada, tendo sido colocado numa trincheira agora desocupada.

 

Quanto ao corpo de Abdel Jabari foi levado ao colo por Ibrahim Arif como se fosse uma criança. O árabe cambaleava devido ao peso do amigo, caminhando sem ver por onde andava, tantas as lágrimas que lhe enchiam os olhos, e recusava-se a permitir que o sepultassem.

 

Miriam Bernstein, agachada em cima da asa do aparelho, viu o corpo do homem que fora seu amigo nos braços de Arif e ficou com os olhos marejados de lágrimas. Observava a cena enquanto os outros discutiam quanto ao destino a dar ao cadáver.

 

Arif! gritou ela.

 

O homem, deteve-se e soergueu o olhar.

 

Arif, eu sentia tanta amizade por ele como tu, mas agora está morto e temos de o enterrar. Tanto a tua religião como a minha tornam isso imperativo. Por favor, sê compreensivo, cada vez há menos tempo. Por favor, faz o que eles dizem.

 

Arif ficou a olhar para Míriam, esforçando-se por falar, mas nenhum som lhe saía da garganta. Finalmente, respirou fundo, gritando-lhe:

 

Ele gostava muito de si...

 

Num movimento rápido, virou costas e começou a correr, apesar do peso do corpo que transportava. Chegou à beira da trincheira onde o cadáver de Uri Rubin fora colocado e encarou os olhos abertos de Jabari.

 

Então, meu velho companheiro... vou ter de te dizer adeus. Com a maior das ternuras, baixou o corpo do amigo, depositando-o

 

em cima do de Uri Rubin, após o que atirou um punhado de terra para cima dos cadáveres. Precisamente nessa altura, dois israelitas armados com espingardas aproximaram-se a correr, saltando para dentro da cova a muito custo devido à exiguidade do espaço. Primeiro sentiram e só depois viram os corpos debaixo dos pés, mas, apesar do macabro da situação, não queriam abdicar do único sítio que lhes oferecia alguma segurança nas redondezas. Tomaram posição e começaram a disparar contra as nuvens de terra e poeira. Um deles voltou-se para Arif.

 

Se não está armado, o melhor é ir-se embora. Eles já estão muito perto.

 

Arif fez que sim com a cabeça e encaminhou-se de novo para o Concorde. A vida, reflectia ele, era composta por partes iguais de imbecilidade, medo, ironia e desgosto. Invejava os jardins frescos, os manjares e as virgens de que Abdel, certamente, estaria a desfrutar.

 

O lugar-tenente de Laskov, Danny Lavon, foi o primeiro a avistar os sinais de localização. Os pequenos pontos de luz formavam uma figura mais ou menos geométrica, de formato oblongo, que circundavam os focos dos faróis de aterragem do Concorde. As torrentes esverdeadas de balas tracejantes atravessavam o firmamento em trajectórias de oriente para ocidente, em direcção ao aparelho, mas no sentido oposto o poder de fogo era bastante menor e, de tempos a tempos, uma nuvem de poeira particularmente cerrada obscurecia os pontos de iluminação no solo. À altitude a que sobrevoava a área, Laskov conseguia ver o Sol, que se erguia acima das montanhas de Zagros, se bem que ainda não incidisse directamente sobre a Babilónia. Os raios refractados já deviam ter levado àquela zona a primeira luz do dia, mas o manto de areia e poeira era demasiado espesso para poder ser penetrado. Lavon chamou Laskov pelo microfone incorporado nos auscultadores.

 

Os sinais estão na posição dos ponteiros do relógio à uma hora, comandante. Vamos sobrevoá-los dentro em pouco.

 

Recebido e entendido. Estou a ver.

 

Laskov ordenou então à sua esquadrilha que fizesse um voo rasante em direcção ao alvo e os doze F-14 começaram a descer em fila indiana dos céus, investindo a grande velocidade, como as aves de rapina que, no sentido metafórico, de facto eram. Acompanhados do rugir dos seus potentes motores, e já a baixa altitude, surgiram do deserto a oriente, descrevendo uma curva acentuada para a direita. Laskov, que encabeçava a esquadrilha, deixou que o seu computador de bordo estabelecesse a primeira aproximação ao solo, não querendo correr o risco de conduzir a sua esquadrilha para uma área de terreno envolta em trevas. Sobrevoou o cume da colina a uma altura de cerca de vinte metros e passou por cima do Concorde a uma altitude ainda inferior. O barulho atroador dos motores dos F-14 ao aproximarem-se, um atrás do outro, além de ensurdecedor era muito assustador, e a poeirada que as rajadas de vento levantavam formou nuvens ainda maiores, enquanto o solo estremecia.

 

À vez, todos os caças efectuaram o mesmo voo rasante, com os computadores de bordo e dispositivos electrónicos sensoriais a sondarem as características do terreno, mantendo aqueles extraordinários aparelhos a pouca altura do solo. Instintivamente, todos os que se encontravam no cimo da colina se atiraram imediatamente para o chão, ou procuraram abrigo, quando os aviões lhes bloquearam por inteiro os sentidos visual e auditivo.

 

Depois desta passagem rasante, Laskov ordenou a metade dos pilotos da sua esquadrilha que se dirigissem para sul, onde se deveriam manter, preparando-se para dar cobertura aos C-130 e às pistas improvisadas de aterragem e, caso fosse necessário, para abrir fogo sobre os inimigos. Duvidava de que houvesse ashbals na área, no entanto o regulamento dizia que esse era o procedimento a seguir.

 

Hausner apoiou-se sobre um joelho e ajudou Burg a levantar-se.

 

Eles quase conseguiram arrancar-lhe o cachimbo da boca, Isaac. Muito bem, é nesta altura que temos de nos separar, meu amigo. Você vai regressar, passando a ser responsável pela aeronave e pelas pessoas que estão a bordo. Quanto a mim, vou assumir a tarefa de retardar o último ataque.

 

Se eu dispusesse de tempo para discutir consigo, era o que faria. Adeus, Jacob, que a sorte esteja consigo e dando uma palmada amigável nas costas de Hausner afastou-se num passo apressado.

 

Hausner ouvia os ashbals que se aproximavam da pequena elevação que fora o seu posto de comando, vindos de oriente, e também sentia ruídos do lado sul, o que indicava que os árabes avançavam numa linha semicircular. Empunhou a sua pistola de calibre vinte e dois, ajoelhou-se e ficou à espera.

 

Saídos das sombras, apareceram Marcus e Alperne. Hausner chamou os dois homens, que começaram a correr na sua direcção.

 

Arranjem-me uma AK-47 e todas as munições que puderem. Deste ponto, que me dá protecção, serei capaz de atrasar o avanço deles. Depois regressem imediatamente ao Concorde para ajudarem a organizar a defesa dos que lá estão. Sirvam-se da malha blindada e façam da rampa de terra batida e da cabana as principais posições defensivas. Devíamos ter cavado trincheiras secundárias à volta do aparelho, mas agora não vale a pena pensar nisso. Muito bem... Devem acatar as ordens de Burg e nada de objecções. Mãos à obra!

 

Entregaram-lhe uma espingarda, juntamente com dois pentes de balas quase cheios, e Hausner desenterrou o pau de bandeira improvisado onde continuava hasteada a T-shirt que reproduzia uma paisagem da zona ribeirinha de Telavive e passou-o para as mãos de Alpern.

 

Uma recordação, Sam. Sempre que contar esta história aos seus netos não se esqueça de a usar. Vão pensar que você é um idiota chapado.

 

Alpern sorriu, aceitou aquele simulacro de bandeira e os dois homens afastaram-se com um vago aceno, à guisa de despedida, mas sem qualquer outra manifestação.

 

Hausner colocou-se em posição por detrás do pequeno outeiro artificial e disparou umas quantas balas para experimentar a sua linha de tiro, atraindo logo sobre si o fogo inimigo.

 

Em toda a sua vida, Hausner nunca se sentira tão feliz como quando avistou o caça de Laskov e o resto da esquadrilha, mas era-lhe impossível fugir à realidade: era demasiado tarde. Jaffe informara-o da chegada iminente dos C-130 e das companhias de comandos, mas ainda que aterrassem naquele preciso momento já não vinham a tempo. Teriam de pousar nos terrenos pantanosos, descarregar o equipamento, insuflar os barcos de borracha e fazer a travessia do Eufrates, e, se, ao invés desse ponto de aterragem, optassem pela estrada, acontecer-lhes-ia o mesmo que ao Concorde, faltar-lhes-ia pista para completarem a manobra, ou seja, parariam a quase um quilómetro de distância, para não mencionar que até ao momento ainda não ouvira o ruído dos motores dos aparelhos.

 

Os pára-quedistas talvez pudessem tê-los resgatado, mas seria uma missão quase suicida devido à escuridão e às nuvens de poeira, além de que as condições do terreno se mostravam extremamente adversas, o que faria com que metade dos soldados caísse nas águas do rio. Não... na verdade, aquilo era uma boa demonstração de força, mas não alteraria por aí além a situação em que se encontravam, de facto, só servia para a agravar ainda mais. Na realidade, antes da chegada dos meios aéreos, os ashbals estavam firmemente determinados a proceder a um massacre, o que, do mal o menos, teria posto fim à tragédia, mas agora, para salvarem a pele, seriam obrigados a arranjar reféns e, cumprido esse objectivo, toda a questão recomeçaria da estaca zero. Hausner só esperava que Laskov tivesse discernimento suficiente para prever aquele desfecho, apercebendo-se de que não haveria nada a fazer e optando por arrasar, sem qualquer hesitação, todo o cume da colina com bombas incendiárias. Desse modo, ainda que aquela tentativa de resgate não produzisse nenhum outro resultado positivo, pelo menos teria o mérito de aniquilar Rish... e Hamadi. Hausner estava convencido de que este último, caso sobrevivesse, seria um adversário bastante mais temível num futuro próximo.

 

Em pensamento, despediu-se demoradamente de Miriam, sentindo-se dolorosamente dividido, sem saber se deveria regressar ao Concorde para lhe dizer adeus pessoalmente, ou se permaneceria ali, onde as suas emoções, ainda que só isso, estariam a salvo.

 

Do local onde se encontrava, por baixo do trem de aterragem dianteiro, Peter Kahn prestara a máxima atenção a tudo o que se passava perto de si, enquanto continuava a trabalhar na unidade auxiliar de energia, e ouvira os gritos e os passos apressados dos que corriam em direcção à aeronave. Avistou algumas pessoas desarmadas, que subiam pela rampa de terra batida para cima das asas do Concorde, e à distância via outros que se mantinham ajoelhados enquanto disparavam contra os clarões que saíam dos canos das armas dos ashbals. Nas paredes da cabana, feitas de tijolos de lama, haviam sido abertos orifícios por onde se podia fazer fogo. Alguns homens e mulheres ocupavam posições de tiro em redor da rampa, e uma rapariga optou até por procurar protecção por detrás da pequena plataforma de terra que Kahn fizera. De uma maneira ou de outra, o fim aproximava-se velozmente, mas apesar disso ele não desistia de trabalhar na unidade auxiliar de energia.

 

De súbito, Kahn rebolou por cima do pequeno montículo de terra que estava à frente do compartimento de recolha do trem de aterragem, limpando o rosto e as mãos. Num passo rápido, dirigiu-se para a rampa que começou a subir juntamente com algumas pessoas, que aparentavam grande fadiga e desânimo. Já em cima da asa, Miriam Bernstein agarrou-o pelo braço.

 

Por acaso viu o Jacob Hausner?

 

Não, senhora Bernstein. Tenho estado sempre por baixo do trem de aterragem e, na verdade, eu próprio ando à procura dele.

 

Kahn constatou que parte da malha blindada que fora levada para o perímetro defensivo estava a ser removida para o interior da aeronave e aplicada sobre os vidros das pequenas janelas. Agradava-lhe ver o espírito inventivo das pessoas, aliado a um raciocínio sólido, até ao último minuto se não resultasse, pelo menos era uma bela tentativa. Voltou-se para Miriam:

 

Ouça o que lhe digo, senhora Bernstein, acho melhor que vá para dentro do avião, pois estamos a ser alvejados.

 

Soltou o braço que ela continuava a segurar e aproximou-se de Burg, que se encontrava no ponto mais afastado do extremo da asa a estibordo, rodeado por meia dúzia de homens e mulheres que, deitados ao comprido, disparavam, tendo aparentemente as trevas por alvo.

 

Tornara-se por de mais evidente a Burg, e a outros, que os ashbals não queriam fazer fogo contra a asa, evitando assim o risco de verem o aparelho ser pasto das chamas, provocando a morte de possíveis reféns, consequentemente, aquela posição tornara-se relativamente segura, donde se podia fazer fogo.

 

Peço desculpa por interromper disse Kahn, tocando no ombro de Burg, que rodou sobre os calcanhares.

 

Olá, Kahn. Foi boa ideia a sua tentar reparar a unidade auxiliar de energia, meu rapaz.

 

Obrigado, mas é precisamente por causa disso que quero falar consigo... ou com o senhor Hausner...

 

Pode falar comigo, o Hausner continua longe daqui replicou Burg, apontando para um ponto indefinido.

 

Sim, senhor. Ora bem, acho que consegui repará-la.

 

Repará-la...? Repentinamente, Burg desatou a rir às gargalhadas, sem conseguir conter-se. O quê? Mas haverá alguém interessado nisso, meu rapaz? Entre para o aparelho e mantenha a cabeça baixa.

 

Não me parece que esteja a entender insistiu Kahn, determinado, não desistiria com facilidade. Eles não conseguirão chegar junto de nós a tempo. Podemos...

 

Naquele momento ouviu-se uma violenta explosão, que fez com que perdessem o equilíbrio, e foram sobrevoados por um F-14 a grande velocidade. Logo depois surgiu outro, com o seu canhão de vinte milímetros a disparar rajadas, e pouco depois outro ainda, vindo do Eufrates que lançou mísseis ar-terra por cima do Concorde, os quais deixavam atrás de si um rasto de chamas antes de deflagrar nas trincheiras defensivas agora vazias. Entretanto, mais um F-14 lançou uma Smart, orientada a laser, que detonou na encosta ocidental, arrasando a camada superior daquela terra milenar e fazendo com que os tijolos de tempos muito antigos voassem em todas as direcções, além de provocar o desprendimento de toneladas de terra, que rolou pela encosta íngreme, estendendo-se até à margem e caindo nas águas do Eufrates, ao mesmo tempo que arrastava à sua frente alguns ashbal.

 

Os F-14, pondo em acção todo o seu poder de fogo, faziam a terra tremer e estalar devido às ondas de choque que provocavam, destruindo também o que restava da antiga cidadela, a qual há mais de mil anos que não era atacada.

 

A crosta terrestre estremeceu, abrindo fendas e expelindo areia e terra argilosa, que se elevavam a alguns metros do solo. As colunas de fumo e as labaredas alaranjadas incineravam a poeira e a areia, enquanto as ondas de choque, agora obra do homem, colidiam com o sherji de eras imemoriais. Os rastos avermelhados dos mísseis percorriam o firmamento, qual cauda das estrelas candentes que tanto haviam fascinado os astrólogos da Antiguidade na Babilónia. Os F-14 levaram à cena nos céus um espectáculo como a Babilónia jamais tivera oportunidade de ver, mas não passava disso mesmo, uma montagem feérica. Laskov não se atrevia a alvejar a zona que rodeava o Concorde, mas apesar de tudo os projécteis obrigavam atacantes e sitiados a manterem a cabeça baixa, retardando o desenrolar do confronto. A ideia subjacente àquela acção pouco eficaz era ganhar tempo, para que os comandos chegassem. Tudo se resumia a isso: tempo.

 

Burg ficara deitado onde caíra.

 

O quê? gritou ele, mal se fazendo ouvir por causa do barulho das explosões. O quê? repetiu.

 

Acho que a unidade auxiliar de energia está em condições de funcionar, o que nos permitirá pôr os motores em marcha gritou Kahn.

 

E o que tem isso? Que diabo de diferença pode fazer? Não pretendemos ligar o ar condicionado, Kahn.

 

Mas podemos pôr-nos a andar daqui para fora! A diferença é essa!

 

Você endoideceu?

 

Do céu caiu um míssil, que deflagrou perto, rasgando o solo já próximo da cauda do avião e projectando nuvens de terra e estilhaços na sua direcção.

 

Não, não endoideci replicou Kahn, soerguendo a cabeça. Podemos deslocar este pássaro.

 

Para onde?

 

O que interessa? Só para o levarmos daqui para fora, que diabo! Para qualquer lugar, não interessa qual.

 

Burg olhou por cima do ombro, esperando ver Hausner a subir pela rampa de terra batida com aquela sua atitude já famosa misto de ameaça e indiferença, porém só avistou Miriam Bernstein, que olhava fixamente, como se tentasse ver qualquer coisa na noite em chamas. Queria gritar-lhe, mas, compreendendo que ela não conseguiria ouvir as suas palavras, virou-se para Kahn.

 

Diga ao comandante que tente pôr os motores em funcionamento. Antes que Burg tivesse tempo de impor qualquer restrição à sua ordem,

 

Kahn, de um salto, pôs-se de pé e correu que nem uma flecha para a saída de emergência, quase embatendo na fuselagem. Entrou e dirigiu-se com alguma dificuldade, por causa dos feridos, para a carlinga.

 

David!

 

Becker tirara um curso na Força Aérea dos Estados Unidos, cuja matéria havia sido o enquadramento das linhas de tiro de fogo aéreo, o que estava a provar ser-lhe muito útil. Da carlinga não podia observar grande coisa, mas isso não o impedia de tentar ser útil, além de que, era forçado a admitir, a tarefa proporcionava-lhe muita satisfação.

 

Muito bem, Gabriel, se ainda lhe restarem algumas Smart, é agora a altura de as lançar. Efectue uma trajectória ao longo da margem do rio, acompanhando o sopé da colina, para o caso de ter escapado alguém lá em baixo. É possível que tentemos fugir por esse caminho e quero que na margem não haja inimigos. Lance outra à minha frente, para a direita, a cerca de duzentos metros. Vou começar a piscar as minhas luzes de aterragem.

 

Recebido e entendido, zero dois, mas negativo quanto à proximidade do seu avião, é demasiado arriscado.

 

Kahn sacudia Becker pelo ombro, gritando em inglês, a língua materna dos dois.

 

Não ouviste o que te disse, meu estupor? A porra da unidade auxiliar está reparada. Gostava do inglês que os norte-americanos falavam, cujos termos não era capaz de reproduzir em hebraico. Põe os motores deste pássaro a funcionar, e vamo-nos embora, temos de sair desta situação de merda sem mais demoras!

 

Durante uma fracção de segundos, Becker ficou sem fala.

 

Arranjada?!

 

Arranjada, arranjada! «Talvez», pensou Kahn.

 

Os dedos de Becker estenderam-se para o interruptor da ignição da unidade auxiliar, mas não acreditava que tivesse carga suficiente nas baterias para accionar o motor de arranque, embora não perdesse nada em tentar. Ligou o interruptor e olhou para o painel de instrumentos, esforçando-se por isolar o som do motor do barulho do vento e das detonações, cujo ruído entrava na carlinga através do pára-brisas perfurado e estilhaçado. Não lhe restaram dúvidas, o motor da unidade auxiliar queria arrancar, mas não entrava em ignição e Becker desligou as luzes do aparelho. Teriam as baterias carga que chegasse para fornecer energia ao motor até que o combustível entrasse em combustão? Sem trocarem uma única palavra, ambos observavam o ponteiro do indicador de temperatura da unidade auxiliar, procurando ver o mínimo indício de movimento no ponteiro, o que indicaria o início de um arranque eficaz, só que este continuava imobilizado revelando que a temperatura não subia rigorosamente nada. Becker tentou a costumeira: «Só desta vez, meu Deus, só desta vez», mas nada aconteceu.

 

Os dois gigantescos C-130, aviões de transporte de tropas e de material, surgiram a baixa altitude acima do deserto, vindos de ocidente. Tinham descolado de Israel bastante antes dos F-14, mas, à velocidade máxima de apenas cerca de seiscentos quilómetros horários, o voo demorara quase duas horas.

 

O rei da Jordânia não levantara qualquer objecção, tendo dado autorização para que utilizassem o corredor norte até à fronteira com o Iraque, mas o governo de Bagdade só quando se viu perante um facto consumado, com os F-14 já a voarem no seu espaço aéreo e os C-130 a aproximarem-se da fronteira, é que, embora com relutância, concordou em dar autorização às aeronaves de transporte de tropas e material, uma vez que não estavam equipadas com qualquer tipo de armamento. A alternativa teria sido recusar essa autorização e ordenar a saída dos F-14, o que exigiria uma explicação embaraçosa para justificar o facto de estes últimos aparelhos já se encontrarem no espaço aéreo iraquiano.

 

Depois de muitas discussões entre os militares de ambas as partes, através de milhares de quilómetros de linhas telefónicas, Bagdade acabara por concordar com Jerusalém em realizar uma operação conjunta, pelo que o primeiro-ministro israelita e o presidente iraquiano tinham preparado um comunicado à imprensa, elaborado por ambos, que dava conta da situação. A acreditar no conteúdo desse comunicado, Bagdade enviara uma pequena unidade anfíbia do Exército iraquiano, estacionada em Hashimiyah, com destino ao rio Eufrates, para além de ter ordenado à guarnição militar de Hilla que se mantivesse em alerta, embora os dois governos soubessem que essas tropas eram pouco fiáveis para participar em qualquer acção. Muito pelo contrário, desconfiava-se de que parte desses efectivos se encontravam a soldo de Ahmed Rish, razão por que os oficiais iraquianos haviam recebido ordens para manter uma vigilância apertada sobre eles. Tanto o governo iraquiano como o israelita sabiam que a unidade anfíbia de Hashimiyah não conseguiria chegar à Babilónia a tempo de participar na operação, contudo o gesto de apoio era importante.

 

Entretanto, em Hilla, um outro grupo de oficiais do Exército iraquiano, num esforço conjunto com as autoridades civis e funcionários do pequeno aeródromo da cidade, formaram uma coluna automóvel que se dirigiu para norte, em direcção à Babilónia. Chegados a um ponto algures a sul do local onde o Concorde aterrara, colocaram-se em posição na estrada Hilla-Bagdade, dispondo sinalização luminosa com o objectivo de a assinalarem naquele amanhecer encoberto pelas nuvens de poeira. Ao mesmo tempo, um outro contingente atravessava o Eufrates a bordo de lanchas a motor, com a missão de demarcar uma zona improvisada de aterragem nos terrenos pantanosos, também com sinalização luminosa. Nenhuma daquelas iniciativas era absolutamente indispensável para que os C-130 pudessem aterrar, embora reduzissem consideravelmente os riscos de aproximação ao solo.

 

Os iraquianos haviam dado o seu contributo, o que permitia ao governo de Bagdade aguardar calmamente o desfecho da situação. Qualquer desaire militar por parte dos israelitas seria considerado como da responsabilidade destes, enquanto, por outro lado, uma operação coroada de êxito resultaria obviamente da participação dos iraquianos. Em qualquer dos casos, Bagdade nunca sairia a perder, havia apenas a probabilidade de vir a ser objecto de censuras por parte de grupos palestinianos e até mesmo, talvez, de alguns países árabes, mas nos tempos que corriam, ao contrário do que sucedia num passado ainda recente, muitos dos governos de nações muçulmanas não hesitariam, a título oficial, em aplaudir a operação, dada a sua natureza humanitária, acrescentando-se ainda que Bagdade seria merecedora da boa vontade dos países ocidentais a qual se transformaria em algo mais concreto numa fase posterior. Levando em linha de conta os prós e os contras, aquela parecia ser a melhor atitude a tomar especialmente se se considerasse o facto de Israel já ter tomado medidas irreversíveis.

 

O capitão Ishmael Bloch e o tenente Ephraim Herzel, aos comandos do primeiro dos dois C-130, ao avistarem a sinalização luminosa ao longo da estrada de Hilla efectuaram uma manobra circular para a esquerda, ao mesmo tempo que desaceleravam os motores. Três dos F-14 destacados para darem cobertura aos dois aparelhos de transporte durante as manobras de aterragem passaram junto de ambos, começando um voo picado ao longo do trajecto estabelecido para a aproximação ao solo.

 

O primeiro C-130, que mais parecia uma fortaleza voadora, desceu rapidamente, tal como era suposto fazer numa situação de combate.

 

No interior da cabina, viajavam cinquenta comandos israelitas, que apertaram os cintos, preparando-se para o violento solavanco que acompanhava as aterragens antecedentes a um ataque. Verificaram e apertaram as correias que imobilizavam os dois jipes. Um dos veículos todo-o-terreno estava equipado com uma metralhadora de cento e seis milímetros, que não dava coice, enquanto o outro exibia também uma metralhadora, mas de cano duplo, de calibre cinquenta.

 

Por seu lado, os médicos e enfermeiras, uma vez mais, certificaram-se de que a unidade operatória móvel e os instrumentos de cirurgia estavam bem fixos.

 

O capitão Bloch imprimiu nova desaceleração aos motores da aeronave, observou a descida do ponteiro no mostrador do velocímetro e virou-se para o tenente Herzel.

 

Quando lançámos a moeda para ver a quem tocava a aterragem no terreno pantanoso ou na estrada e eu ganhei porque não disseste nada?

 

O gigantesco aparelho dava a impressão de se manter suspenso a escassos metros acima da estrada varrida por fortes rajadas. Bloch tentava manobrar o avião, cujos motores estavam quase parados, de forma a manter-se alinhado entre os pontos de sinalização luminosa, mas a violência dos ventos cruzados arrastava o aparelho para a esquerda e, quando Bloch tentou corrigir a posição, aquele guinou acentuadamente.

 

Pensei que tinhas escolhido a estrada por saberes que constituía um desafio maior à tua perícia replicou Herzel, que não afastava os olhos dos instrumentos de bordo.

 

Por breves instantes, Bloch pensou que teria de voltar a ganhar altitude antes de se fazer de novo à pista, mas entretanto o vento amainou durante alguns segundos, permitindo-lhe alinhar a aeronave com a estrada, pelo que efectuou por fim a aterragem, embora nada suave.

 

Os pneus, cuja pressão era inferior à recomendada, embateram no asfalto, que começou a deteriorar-se, desprendendo secções enormes de alcatrão, as quais se espalharam em todas as direcções. A força do vento empurrou de novo o aparelho para a esquerda, mas Bloch compensou o desvio e o C-130 derrapou de rabo, fazendo com que a estrada fosse literalmente tragada enquanto deslizava para norte, deixando na sua esteira um rasto de terra no que fora um piso alcatroado.

 

A minha mulher é que é um desafio e a minha namorada também. Por que motivo haveria eu de querer outro? observou Bloch.

 

Depois, desacelerou ainda mais os motores e aplicou os travões a fundo, provocando um ruído ensurdecedor, que obrigou os ocupantes no interior da cabina a levarem as mãos aos ouvidos.

 

Herzel olhou através do vidro da pequena janela lateral quando o aparelho descreveu uma ligeira curva para acompanhar o traçado da estrada.

 

Vê lá se deixas um bocado de alcatroado para podermos descolar, Izzy! gritou ele.

 

Descolar, uma porra. Depois de tratarmos deste assunto, tenciono seguir até Bagdade por terra e a bordo deste avião.

 

No exterior, com a ajuda das luzes de aterragem e da sinalização luminosa, avistaram alguns veículos iraquianos estacionados nas bermas bastante distanciados uns dos outros, e alguns dos homens que estavam nessas viaturas acenaram-lhes quando o pesado C-130 passou por eles, tendo Bloch e Herzel retribuído a saudação.

 

Será que os iraquianos se mostrarão amigáveis? perguntou Herzel.

 

Enquanto tivermos a companhia dos cinquenta comandos que vêm lá atrás, podes crer que sim.

 

A grande aeronave continuou a rolar até que parou quase no mesmo ponto onde o Concorde tocara em terra pela primeira vez. Graças à iluminação proporcionada pelas luzes de aterragem, Bloch conseguia ver o sítio onde o aparelho supersónico começara a arrancar o asfalto da estrada. O C-130 fora concebido para circunstâncias como aquelas, enquanto o Concorde havia sido construído para grandes extensões de pista de piso liso. por isso, não pôde deixar de sentir admiração pelo piloto que, numa manifestação de grande coragem, tentara uma aterragem naquelas condições. Bloch ergueu o olhar, avistando à distância o recorte dos montes elevados da Babilónia, que se destacavam contra o firmamento, o qual começara a clarear.

 

A Babilónia.

 

Herzel, que observava através do pára-brisas da carlinga, repetiu:

 

Babilónia... Babilónia.

 

A porta traseira, que servia de plataforma de desembarque, já fora descida antes mesmo de o aparelho se imobilizar por completo e os comandos já tinham começado a saltar, tomando posições em ambas as bermas da estrada. Um grupo de oficiais iraquianos e funcionários do governo, observavam-nos com curiosidade do cimo de um pequeno outeiro, onde estavam agrupados vários veículos verde-azeitona. Os comandos mostravam-se um tudo-nada enervados, o mesmo acontecendo com os iraquianos, e as duas partes passaram algum tempo a trocar acenos indicativos de que ninguém estava ali com intenções hostis.

 

Os dois jipes rolaram para fora do C-130, aproveitando o espaço exíguo que restava de alcatroado, e passaram por baixo das grandes asas, enquanto um pelotão de comandos formava um perímetro de protecção à volta da aeronave e o pessoal médico dava início aos preparativos para receber os eventuais feridos.

 

Outros três pelotões, cada um sob o comando directo de um tenente e coordenados pelo major Seth Arnon, dispersaram-se pelos dois lados da estrada, em passo de corrida, de forma a manterem-se ao lado dos dois jipes, dirigindo-se para os seus primeiros objectivos a Porta de Istar, a casa de hóspedes e o museu.

 

O capitão Bloch observava os movimentos dos soldados do alto da carlinga do C-130.

 

Não deve ser nada divertido pertencer à infantaria.

 

O tenente Herzel desviou os olhos do manifesto de desembarque, que continha o nome das pessoas e material a bordo.

 

Eles vieram a dormir durante toda a viagem, e farão o mesmo no regresso. Para variar, vê se tens pena do teu co-piloto.

 

O capitão Bloch continuava a observar tudo da carlinga, focando a sua atenção na área da antiga cidadela envolta em labaredas cor de laranja, amarelas, vermelhas e brancas. Os estrépitos, semelhantes aos de uma forte trovoada, desciam até à estrada.

 

É daqueles desgraçados ali em cima que sinto muita pena. Sabes, Eph, na sexta-feira à tarde, eu disse para mim mesmo: «A sorte destes filhos da mãe. Vão para Nova Iorque com todas as despesas pagas, e ficarão lá o tempo suficiente para trazerem para casa um bocado de papel que diga paz.” Herzel levantou o olhar até ao cimo da colina, observando os clarões dos disparos e as balas que lá se cruzavam.

 

Afinal não deve ter graça nenhuma participar numa missão de paz comentou.

 

O capitão Baruch Géis e o tenente Yosef Stern não vislumbravam qualquer vestígio da sinalização luminosa que os iraquianos supostamente deveriam ter colocado na extensa planície pantanosa, e os três F-14 destacados para lhes darem cobertura também não as avistavam.

 

Géis ainda pensou esperar que o Sol as mostrasse por cima das montanhas, à distância, mas ao escutar a voz de David Becker a comunicar via rádio com o general Laskov, ao mesmo tempo que se apercebia da gravidade da situação que ambos discutiam, teve a certeza de que àquela gente não restava muito tempo. Na realidade, até talvez já fosse tarde de mais, embora, de qualquer modo, estivesse determinado a cumprir a quota-parte que lhe coubera daquela missão.

 

O capitão Géis queria aproximar-se o mais possível da zona onde se combatia, sem contudo ficar ao alcance das armas de fogo de pequeno calibre que eram disparadas no cimo da colina. Por isso desistiu de procurar a sinalização luminosa e escolheu uma área que ficava a cerca de um quilómetro a sul do campo de batalha um ponto que no seu mapa vinha indicado como sendo Ummah. Estranho, pensava Géis, o idioma árabe era algo semelhante ao hebraico. Ummah: comunidade. Resolveu então entrar em comunicação através do rádio com o comandante dos três F-14 que o escoltavam.

 

Quero aterrar perto da localidade assinalada no mapa com o nome de Ummah. Acha que consegue orientar-me com as suas luzes?

 

O piloto do caça, o tenente Herman Shafran, respondeu-lhe.

 

Recebido e entendido, vou proceder à sinalização. Termino.

 

O F-14 seguiu uma rota de voo num eixo oeste-este e lançou um foguete com a capacidade de iluminação de setecentas e cinquenta mil velas, acoplado a um pára-quedas, o qual banhou o céu e a terra com uma luz feérica, um tanto espectral.

 

Géis apontou o nariz da aeronave directamente na direcção das fortes rajadas do sherji e deu mais aceleração aos motores. À sua frente começou a distinguir os contornos das habitações de Ummah, sob a luminosidade artificial, e, posicionando o aparelho de forma a colocar-se à esquerda da aldeia, desceu o trem de aterragem. O vento acrescentava um impulso tremendo à aeronave, no sentido ascendente, a qual dava a sensação de ter ficado a pairar acima dos terrenos alagados.

 

O tenente Stern olhou para a sua direita através da janela lateral e pareceu-lhe ver várias fogueiras, provavelmente onde os habitantes cozinhavam alimentos, entre as casas de Ummah. O sherji arrastou o foguete luminoso para ocidente, fazendo-o oscilar como se fosse um pêndulo, abaixo do pára-quedas, projectando sombras distorcidas sobre a superfície do terreno e acabando por passar sobre a carlinga do C-130, obrigando Géis e Stern a desviarem o olhar, dada a intensidade. O F-14 lançou outro foguete com as mesmas características acima do rio, o qual também começou a flutuar rumo a oeste, na direcção da aeronave.

 

Na cabina de passageiros, o grupo constituído por cinquenta comandos ouvia o soprar do vento e o ruído monocórdico dos motores. Em lugar dos jipes transportados pelo outro aparelho, traziam doze barcos de borracha insufláveis, e todos tinham a percepção de que o avião se mantinha suspenso em pleno ar, como se flutuasse, sem avançar rigorosamente nada. Os músculos contraíram-se-lhes quando o foguete iluminou as janelas da cabina numa explosão de luz, permitindo que se visse o brilho das gotículas de suor nos rostos camuflados.

 

Os médicos e as enfermeiras falavam entre si em vozes sussurradas. Os dois C-130 estavam preparados para prestar cuidados médicos a vinte e cinco feridos, mas como lidariam com a situação se já houvesse esse número entre os membros da delegação de paz? Com certeza que entre as tropas dos comandos ocorreriam algumas baixas, e existiriam prisioneiros também feridos?

 

Finalmente, o capitão Géis conseguiu forçar o C-130 a descer, mantendo-o em posição, e o aparelho ficou logo semicoberto por milhares de metros cúbicos de lama, que se levantaram do solo, quando investiu pelo atoleiro em direcção à aldeia. O primeiro foguete luminoso começou a perder intensidade, escurecendo o terreno, e algumas das habitações da aldeia, construídas de tijolos de lama, pareciam agigantar-se imersas numa fraca luminosidade. Por detrás da aldeia, Géis avistava já as águas do Eufrates, por isso inverteu a aceleração dos motores, aplicou travões a fundo e a gigantesca aeronave deteve-se, dando um solavanco para trás, a menos de cem metros da cabana mais próxima.

 

A rampa de descarga, que também servia de porta, foi descida, dando saída aos três pelotões de comandos, que começaram a caminhar num passo vigoroso, em fileira, rumo à aldeia, enquanto um quarto pelotão se dispersava num raio de um quilómetro, circundando o C-130 e começando de imediato a escavar trincheiras individuais no solo lamacento.

 

O major Samuel Bartok disparou a sua Uzi para o ar, ninguém ripostou, mas mais a norte, do outro lado do rio, ele ouvia os sons do confronto bélico acompanhados pelos clarões dos disparos. Consultou o seu mapa e verificou que, caso não se lhes deparasse resistência por parte dos habitantes daquela aldeia, e se conseguissem subir o rio até à base da colina onde decorria o combate, precisariam de pelo menos vinte minutos para se colocar em posição, de maneira a iniciarem um ataque eficaz contra os árabes. Contudo, ainda que essas previsões se concretizassem, não podia garantir que os impediria de continuarem a avançar sobre o Concorde, caso fosse forçado a responder a uma acção ofensiva dirigida à sua retaguarda. Quantos palestinianos se encontrariam ali? De acordo com as informações do piloto do Concorde, não restariam muito mais de trinta de um total de cento e cinquenta, o que parecia um feito de armas extraordinário por parte de uma missão de paz. O major Bartok esboçou um sorriso austero não, isso não era possível, tinha de se preparar para se defrontar com qualquer número superior de inimigos.

 

A fileira formada pelos comandos ficou desalinhada quando contornaram a aldeia. Para norte, o primeiro pelotão chegou ao Eufrates e o soldado que encabeçava a fila, o primeiro a chegar à margem do rio, chamado Irving Feld, urinou nas suas águas.

 

Alguns minutos mais tarde, o terceiro pelotão também informou via rádio que já atingira o rio a sul da aldeia, e quanto ao segundo, comandado pelo major Bartok, avançou pelo meio dos outros dois, dirigindo-se para as primeiras cabanas.

 

Ao caminho estreito de piso irregular surgiu-lhes um homem idoso, que lentamente se abeirava deles e cujo olhar, passando por cima das cabeças dos soldados, se fixou, ao longe, na aeronave imobilizada naquelas terras estéreis e pantanosas e na estrela de David azul onde se reflectiam os primeiros raios de Sol do amanhecer. O ancião ergueu a sua mão direita.

 

Shalom alekhem.

 

Salaam retribuiu o major Bartok, em árabe.

 

Shalom repetiu enfaticamente o idoso.

 

O major Bartok mostrou-se apenas ligeiramente surpreendido, pois já havia sido informado de que talvez existisse uma comunidade judaica algures nas proximidades da Babilónia. Se tivesse mais tempo, ficaria a falar com o ancião, mas como não podia perder nem um minuto, limitou-se a acenar-lhe com a mão.

 

Alekhem shalom.

 

A julgar pelo número de cabanas de lama, estimou que o número de habitantes daquela aldeia não seria superior a cinquenta, e então por cima do ombro gritou ao operador de rádio enquanto conduzia o seu pelotão através do povoado:

 

Entre em contacto com Jerusalém e diga-lhes que encontrámos uma aldeia judaica. Consultou o mapa. Chama-se Ummah, e pergunte-lhes também se podemos levá-los para casa. Ainda que não consigamos chegar ao Concorde a tempo, do mal o menos, podemos fazer isso.

 

O capitão Géis, a bordo do C-130, recebeu a mensagem que o operador de rádio lhe transmitiu e, por seu turno, passou-a a Jerusalém.

 

O primeiro-ministro ouviu a mensagem que estava a ser transmitida pelo capitão Géis e pensou: «Que ironia, judeus em terras da Babilónia.» Contudo, a verdade é que eram cidadãos iraquianos e raptá-los não poderia ser considerado um gesto amigável. Além disso, se desse autorização via rádio, Bagdade ficaria inteirada, o que poderia prejudicar o desenrolar da operação. Apesar desses considerandos, a Lei do Retorno estipulava que qualquer judeu que decidisse ir para Israel não seria impedido de o fazer. Por vezes, necessitavam de uma pequena ajuda para que essa viagem se concretizasse e existiam precedentes em situações como aquela. Observou todos os que enchiam a sala e alguns acenaram num gesto de assentimento. Muitos daqueles rostos revelavam o dilema excruciante que todos sentiam, mas a decisão final cabia ao primeiro-ministro, pois não havia tempo para debaterem aquele assunto. Começou a falar através do microfone.

 

Têm espaço nos aviões?

 

Então não haveríamos de ter espaço para os levar? retorquiu o capitão Géis com um sorriso nos lábios.

 

Bem... bem, se eles quiserem vir para casa, tragam-nos. Recostou-se na cadeira. Era a história a ser feita, a tragédia a acontecer,

 

talvez, mas sentia que já tinha ido tão longe que, a partir de determinada altura, passara a ser-lhe fácil ignorar as consequências de qualquer decisão potencialmente perigosa. Depois de se ter dado o primeiro mergulho, tudo o mais se tornava mais fácil. Pediu que lhe trouxessem outra chávena de café.

 

Laskov observava o Sol, que projectava os seus primeiros raios por cima das montanhas, iluminando já as superfícies planas na base destas. Conseguiu ver a Babilónia de fugida, ao sobrevoar a área, perguntando-se qual seria a sensação que se teria lá em baixo. Tinha a mesma ânsia de aterrar que experimentara ao sobrevoar as pirâmides do Egipto, mas o seu destino era observar o terreno a partir daquela espécie de ninho de ave de rapina que era o seu assento de couro, sentindo nas narinas o cheiro a óleo dos sistemas hidráulicos. Passara um período de tempo excessivo da sua vida dentro de um avião, sobre um mundo fervilhante de vida, e antecipava com bastante ansiedade o momento em que deixasse de voar, o que previa que acontecesse depois daquela última missão.

 

Recebeu as transmissões provenientes dos outros caças que escoltavam os dois C-130.

 

Recebido e entendido. Agora troquem de missão comigo e façam fogo sobre a colina, mas com cuidado.

 

Procedeu a um último ataque cerrado, a baixa altitude. O firmamento estava claro, só que no solo a tempestade de areia continuava a manter a visibilidade reduzida a uns escassos metros.

 

Carregou num botão e o canhão de vinte milímetros disparou numa trajectória de oriente para ocidente, começando por atingir a muralha exterior da antiga cidadela e chegando até à vertente virada a oriente. Num gesto rápido, soltou o botão quando as rajadas atingiram as trincheiras desertas abertas pelos israelitas, pois continuava a não haver visibilidade suficiente para que o fogo fosse eficaz contra os árabes, que ainda avançavam, sem correr o risco de atingir os seus compatriotas.

 

Entretanto, e repentinamente, o Concorde agigantou-se à sua frente, obrigando-o a ganhar altitude e a afastar-se bruscamente do aparelho pousado. Durante essa fracção de segundos, avistou uma mulher sobre uma das asas, imaginando que seria Miriam, a qual dava a impressão de chamar por alguém.

 

Laskov sentia uma vontade quase irresistível de perguntar a Becker por Miriam, mas não se atrevia a fazê-lo, e isso quase lhe provocava uma dor física. Contudo, compreendia que centenas de pessoas em Israel também ansiavam por saber dos seus entes queridos, o que o obrigaria a esperar até ao momento em que se inteiraria da situação de todos os sitiados ao mesmo tempo que os demais interessados.

 

Guinou acentuadamente no sentido lateral ao passar por cima do Eufrates, rumando a sul acompanhado dos seus cinco F-14, preparando-se para passar a missão à outra metade da sua esquadrilha e dando assim aos restantes seis aparelhos a oportunidade de se aliviarem da carga de munições que transportavam. Olhou para os indicadores do nível de combustível e verificou que, à velocidade máxima de voo, já tinha queimado muito carburante e que as manobras de combate também estavam a exigir um consumo excessivo. O que lhe restava seria à justa para a viagem de regresso, por isso carregou no botão do rádio que o ligava com os outros pilotos dos caças.

 

Ao fundo desta rua não viram um posto de abastecimento de combustível?

 

Correcto respondeu-lhe Danny Lavon. Tem de virar à esquerda aqui mesmo, percorrer mil quilómetros até ao próximo semáforo e parar em Lod. Lá aceitam-se os cartões de crédito de maior circulação.

 

Laskov esboçou um sorriso, conseguira alertar o colega para que se mantivesse atento aos indicadores dos níveis de combustível sem lho dizer directamente. Porque seria que os pilotos tinham o hábito de falar através de circunlóquios e piadas de mau gosto? Até mesmo a aviação da URSS pusera em prática tal idiotice, mas os americanos é que eram mestres nessa prática. Muito provavelmente, teriam sido os seus inventores e estava em crer que actualmente seria uma linguagem internacional.

 

Quando Laskov passou por cima do C-130 que aterrara nos terrenos pantanosos, avistando os comandos que naquele momento lançavam os seus botes de borracha à água a partir do pequeno molhe de uma aldeola com casas de lama, olhou para o seu relógio de pulso. Tinham decorrido sete minutos desde que o avião se imobilizara e estavam a fazer um tempo bastante bom. Entrou em contacto com o capitão Géis via rádio.

 

Aqui Gabriel trinta e dois, neste momento por cima de si. Bela aterragem, mas continuo sem ver a sinalização luminosa. Vou manter-me atento, não vão eles preparar alguma surpresa desagradável.

 

Recebido e entendido, trinta e dois. Bom desempenho dos caças. Como estão eles lá em cima?

 

Devem estar por pouco. Termino.

 

Um dos F-14 saiu de formação, descrevendo um voo circular em redor do C-130, enquanto outros dois vigiavam a zona do rio onde avançavam os botes insufláveis.

 

Pouco depois, Laskov, agora já sobre a margem oriental do rio, sobrevoou o outro C-130 pousado na estrada de Hilla, o qual, apesar do seu tamanho e peso, oscilava sob as fortes rajadas, e apercebeu-se de que o piloto não desligara os motores, o que lhe permitia controlar a posição do aparelho.

 

Laskov conseguiu distinguir a casa de hóspedes e o museu, assim como as torres da Porta de Istar. O seu primeiro impulso foi largar a sua última Smart em cima da hospedaria, mas os de Jerusalém tinham proibido essa acção, pois alimentavam a esperança de que talvez Dobkin continuasse vivo, embora ele tivesse sérias dúvidas quanto a essa possibilidade. Além disso, uma das transmissões de Becker também havia provocado muitas especulações, a par do que Dobkin informara, em relação à existência de uma mulher, ainda com vida, que talvez tivesse sido feita prisioneira pelos árabes. Não obstante, continuava a manter muitas reservas quanto a isso, se bem que não faltasse muito tempo para esclarecerem o assunto. Avistava a fila de comandos e os jipes que se aproximavam da área que sobrevoava e sabia que o local seria cenário de um confronto, mas caso os israelitas se vissem impedidos de avançar durante mais de dez minutos, sem possibilidades de contornarem a área, então receberia autorização para atacar aqueles objectivos, uma vez que essa acção passaria a ser necessária. Se de facto no interior estivessem prisioneiros israelitas, estes seriam os primeiros a compreender a situação, e o mesmo sucederia com ele próprio, caso as posições estivessem invertidas. Não lhe agradaria, mas entenderia a necessidade dessa acção, o que também aconteceria com Dobkin, um militar de carreira.

 

David Becker voltou a accionar o interruptor da unidade auxiliar de energia e o motor de arranque deu sinais de querer funcionar desta feita com mais lentidão. As baterias estavam a ficar rapidamente sem carga e continuava a não haver vestígios de ignição ou indicação de subida da temperatura. Olhou para Kahn, sentado no assento do co-piloto.

 

Lamento muito, Peter.

 

Naquele instante, uma bala perdida atravessou a carlinga, obrigando ambos a baixarem-se, e quase de imediato Becker sentiu o cheiro a gasolina, o que lhe indicou que um dos depósitos de combustível ou um dos tubos do sistema de alimentação havia sido perfurado.

 

Experimenta outra vez, David insistiu Kahn. Não temos nada a perder.

 

Temos tudo gritou Becker, para que o outro o ouvisse no meio do fragor que os rodeava. Não te cheira a gasolina?

 

Além do chumbo quente, não consigo cheirar nada. Experimenta a ignição!

 

Vou precisar do que resta de carga das baterias para transmitir através do rádio!

 

Por amor de Deus, tenta só mais uma vez!

 

Becker não estava habituado àquele tipo de comportamento por parte de Kahn, um indivíduo lacónico e sempre muito cortês, o que o deixou bastante surpreendido. Baixou o olhar para o interruptor, depois para o pára-brisas estilhaçado e avistou três ou quatro ashbals, que atravessavam o planalto a menos de cem metros do Concorde, mas alguém, pareceu-lhe ter sido Marcus, apontou-lhes a sua AK-47, e disparou um único tiro. Os atacantes lançaram-se ao chão de imediato e começaram a arrastar-se, procurando desesperadamente algo que lhes oferecesse protecção naquele terreno plano. Os primeiros raios solares tentavam agora atravessar o manto de poeira levantada pela tempestade de areia, permitindo que naquele momento a visibilidade fosse um pouco melhor, e o piloto até conseguiu distinguir algumas silhuetas pouco nítidas que se deslocavam à distância, semiencobertas por aquele alvorecer acinzentado e poeirento, o que o levou a perguntar a si mesmo quem seriam.

 

Becker ouviu a aproximação de um F-14 a baixa altitude, tão baixo que o Concorde estremeceu, sendo atingido por espessas nuvens de areia, que o envolveram no que se assemelhava a uma mortalha, e, sem que fosse motivado por um pensamento consciente, accionou o interruptor da unidade auxiliar de energia, voltando-se num movimento lento de frente para Kahn.

 

Estarei eu a ouvir coisas?

 

Kahn nada ouvia, mas, ao sentir a vibração que lhe agitava o traseiro, gritou, sobrepondo a sua voz à explosão de um míssil.

 

Temos ignição! Consegui arranjar o cabrão do motor apenas com uma chave de parafusos e uma chave-inglesa! Consegui repará-lo! O Hausner que se foda!

 

Então, à mente de Becker ocorreu um pensamento fugaz: a Kahn era inteiramente indiferente o que pudesse acontecer a seguir tinha reparado o motor e, do seu ponto de vista, nada mais lhe interessava, a partir de agora, estava tudo nas suas mãos. Deixou que a unidade auxiliar continuasse a funcionar durante um minuto, sempre à espera de que o motor fizesse com que os vapores do querosene espesso entrassem em combustão, enviando-os a todos desta para melhor, mas, ao que tudo indicava, o vento dispersava os fumos para longe. Relaxou-se um pouco. A energia de emergência permitiu que o gerador começasse a carregar as baterias, dando origem a que o sistema primário voltasse a cumprir as suas funções. As luzes na carlinga brilharam com mais intensidade e os indicadores luminosos de todos os instrumentos do painel adquiriram nova vida.

 

Becker limpou o suor do rosto, secando as mãos na parte da frente da camisa e apressou-se a proceder à tentativa inicial de pôr a trabalhar o motor situado mais a estibordo, que começou a funcionar com a mesma eficiência, como se tivesse acabado de sair das oficinas de manutenção da El Al. Lançou um olhar de relance a Kahn, que lhe fez o sinal de polegares ao alto, e olhou para os indicadores dos níveis de combustível: os ponteiros nem sequer oscilavam, não se deslocavam do vermelho, mantendo-se colados à marca de zero. O turborreactor queimava uma enorme quantidade de carburante que, em princípio, não poderia existir. Becker não compreendia aquele fenómeno, era forçoso que se devesse a avaria num dos sensores. Algures naquele aparelho, tinha a certeza absoluta de que um dos depósitos de combustível transbordava gasolina. Accionou o botão do motor situado mais a bombordo, o qual começou a funcionar normalmente escassos segundos depois expelindo uma pequena nuvem de fumo branco pelo sistema de exaustão. Em seguida, Becker accionou o botão do turborreactor a estibordo mais próximo da carlinga, que fraquejou, obrigando-o a fazer várias tentativas para que arrancasse.

 

Kahn levantou-se do assento do co-piloto e foi para o seu lugar, em frente do painel dos instrumentos do engenheiro de voo, onde o seu contributo poderia ser mais útil. Examinou um a um os aparelhos de aferição do funcionamento e detectou várias anomalias nos sistemas múltiplos, concluindo que o Concorde 02 jamais voltaria a voar, embora, com um pouco de sorte, pudesse efectuar o seu último rolar em pista.

 

Vamos lá, meu velho abutre!

 

O motor a estibordo mais próximo da carlinga funcionava, mas o som não era muito animador, e Becker accionou por fim o botão do último dos motores, a bombordo, sem obter qualquer resposta. Tentou outra vez, mas nada, era o mesmo que girar a chave na ignição de um automóvel sem bateria.

 

Esse motor não recebe energia explicou Kahn. Os cabos de alimentação devem estar cortados. É melhor esqueceres-te dele.

 

Certo.

 

Becker bloqueou os travões e deu aceleração aos três motores, que continuavam a funcionar, mas a areia que entrava dentro deles poderia fazer com que se fossem abaixo numa questão de apenas alguns segundos, não falando já numa previsível falta de combustível, capaz de ocorrer a qualquer momento. Contudo, Becker não queria correr o risco de soltar os travões prematuramente antes de conseguir obter toda a capacidade de propulsão que os motores pudessem proporcionar.

 

Diz a toda a gente que entre imediatamente para o aparelho! gritou ao seu companheiro.

 

Kahn abriu de rompante a porta da carlinga e entrou na cabina de passageiros, onde os feridos haviam sido deitados nos lugares antes ocupados pelos assentos removidos, ou sentavam-se nos restantes, caso estivessem em condições de o fazer, mantendo as secções de malha blindada de náilon contra a parede interior da fuselagem. As pessoas que cuidavam dos feridos deslocavam-se agachadas e uns quantos homens e mulheres armados com espingardas apontavam-nas através dos vidros perfurados das pequenas janelas, aguardando o derradeiro ataque dos ashbals.

 

Kahn correu, saiu pela porta de emergência e saltou para a asa direita que vibrava com a força dos dois motores, e onde estava pelo menos uma dúzia de homens e mulheres ajoelhados ou deitados de bruços sobre a ampla superfície de alumínio, disparando em direcção às nuvens de poeira. Alguns dos elementos deste grupo recorriam ao velho truque das tropas de infantaria em desespero de causa, simulando sofrer o coice dos falsos disparos a fim de obrigarem os árabes que se aproximavam a manter a cabeça baixa. Algumas cassetes com gravação de fogo real continuavam a reproduzir estes sons, embora isso e o simulacro referido fossem as únicas artimanhas que lhes restavam. Kahn avistou Burg no mesmo sítio onde o deixara aquando da última vez que falara com ele, na extremidade da asa, e correu na sua direcção gritando:

 

Vamos deslocar o avião! Diga a toda a gente que entre imediatamente para a carlinga!

 

Burg acenou-lhe, dando-lhe a entender que compreendera, tentava não perder o conto a ninguém. Do grupo que acompanhara o ministro dos Negócios Estrangeiros, estavam todos ali e os sobreviventes também, aliás encontravam-se em relativa segurança, sob vigilância, no compartimento das bagagens de mão. Dado que os feridos tinham sido levados para bordo, ficou bastante seguro de que os restantes estariam em cima da asa, por baixo do aparelho ou a disparar da cabana. Todos, isto é, com a excepção de Hausner e John McClure, que não eram vistos há já algum tempo. Da sua posição em cima da asa, Burg começou a gritar, mas escusava de se ter incomodado, pois toda a gente, incluindo os ashbals, já se dera conta do que ia acontecer.

 

Os últimos homens e mulheres munidos de armas começaram a subir pela rampa de terra batida, subindo alguns para cima da fuselagem, e colocando-se em posição de fogo sobre a asa de bombordo, enquanto outros optavam por se estender na asa a estibordo, e dois se posicionavam no cimo da fuselagem. Alpern surgiu a correr pela rampa, carregando o corpo inerte de Marcus, com os restantes cinco homens e mulheres destacados para retardar o avanço dos inimigos logo atrás. Com um olhar rápido, Burg consultou uma vez mais a sua lista de nomes e, à primeira vista, pareceu-lhe estar correcta. Os comandos encarregar-se-iam de exumar o corpo dos mortos que haviam sido sepultados e por certo que também encontrariam o cadáver de Kaplan, assim como também, talvez, os de Deborah Gideon e de Ben Dobkin. Burg acreditava saber do paradeiro de toda a gente, à excepção de Hausner e McClure, embora não tivesse a certeza absoluta. Tomou alguns apontamentos rápidos no seu pequeno bloco-notas, descalçou um sapato, meteu o caderninho lá dentro e arremessou-o para longe. Caso o Concorde explodisse, os comandos achariam pelo menos os seus apontamentos quando passassem o planalto a pente fino, ficando com uma ideia de como elaborar uma listagem dos mortos.

 

Burg correu depois na direcção de Alpern, que empurrava o corpo de Marcus através da porta de emergência.

 

E o Hausner?

 

Alpern encolheu os ombros, continuando a empurrar o colega para o interior da carlinga de passageiros.

 

Você sabe bem que ele não virá.

 

Burg fez que sim com um acenar de cabeça e o seu olhar cruzou-se com o de Míriam, que, ao ouvir estas palavras, correu imediatamente para a extremidade da asa, preparando-se para saltar, mas Burg conseguiu agarrá-la por um braço, puxando-a para trás. Ela começou a esbracejar, tentando dar-lhe pontapés, mas continuava bem segura. Miriam começou então a gritar-lhe, pedindo-lhe que a largasse, mas ele arrastou-a, com a ajuda de outra mulher, em direcção à porta de emergência.

 

Os ashbals, que tinham a percepção de que os comandos lhes estavam a fechar a retaguarda, encontravam-se nos limites da sua coragem, e muitos já a haviam excedido. O seu grau de exaustão era tal que se sentiam entorpecidos, mal se apercebendo do local onde estavam e cada passo que davam em frente era uma autêntica tortura. A boca, as orelhas e as narinas de todos estavam bloqueadas com poeira e também mal viam, tanta a areia acumulada nos olhos. Pensavam não nos israelitas que fugiam à sua frente, mas sim nos que se aproximavam pela retaguarda, e começaram a arquitectar uma maneira de fugir, cada um por si, na eventualidade de não conseguirem fazer reféns antes que os comandos os obrigassem a render-se.

 

Mas, apesar de tudo, continuavam a avançar, motivados apenas pela convicção de que era forçoso apoderarem-se de alguns israelitas, o garante da sua sobrevivência, sem falar nos gritos e ameaças proferidas por Ahmed Rish e Salem Hamadi. Os ashbals eram ainda uma força perigosa, mesmo no estado em que se encontravam, e comportavam-se como tigres, que, apesar de feridos, inspiram respeito.

 

Rish alcançou duas raparigas, irmãs, que avançavam na direcção errada. Elas suplicaram-lhe, alegando que se tinham desorientado devido aos disparos que ouviam atrás delas, à fadiga, à poeira e à escuridão, mas ele, aproveitando aquela oportunidade para impor a disciplina, obrigou as duas jovens a ajoelharem-se, após o que disparou sobre elas com a sua pistola.

 

Por momentos, Hamadi perguntou-se se aquela seria a última gota de água que faria transbordar o copo, todavia, aquelas execuções sumárias haviam surtido o efeito desejado por Rish. O pequeno grupo, que naquele momento não deveria exceder as duas dúzias de ashbals, aproximou-se com mais rapidez do Concorde, cujos motores continuavam a troar, deixando Hamadi estupefacto ao constatar até que ponto suportavam aquele tipo de tirania em vez de se rebelarem. Do que se passara ali podia tirar uma lição, que aproveitaria caso tivesse mais alguma oportunidade de chefiar pessoas.

 

Hausner sentira-se inicialmente surpreendido ao ouvir os motores do Concorde a funcionar, mas foi então que se recordou da determinação de Kahn, que nunca esmorecera, o que o levou a sorrir. Duvidava muito que Becker fosse capaz de obter a impulsão suficiente para deslocar a aeronave danificada, com o seu longo nariz pontiagudo enterrado na terra, além de ter os pneus principais furados, mas mesmo assim não deixava de ser uma tentativa meritória. Ainda que os comandos avançassem com rapidez, nunca o fariam com a prontidão que a situação exigia. Se o Concorde conseguisse ir ao seu encontro, na encosta oriental, talvez isso alterasse o desfecho da iniciativa, o que deixaria toda a gente surpreendida, incluindo, desconfiava Hausner, o próprio David Becker. Kahn acreditara sempre que conseguiria reparar a unidade auxiliar de energia, sem nunca ter duvidado de que seria possível deslocar o aparelho do lugar onde aterrara.

 

Hausner ajoelhou-se, disparou e retrocedeu, acção que repetiu sucessivamente, mas algumas das balas vindas do Concorde tinham-lhe passado perto, o que era inevitável, embora o fogo dos israelitas, que se tornara bastante reduzido, passasse pouco depois a ser quase inexistente. Bruscamente, ouviu um troar mais forte dos motores e, apercebendo-se de que Becker estaria prestes a soltar os travões, lançou um olhar por cima do ombro, avistando o clarão avermelhado que saía dos turborreactores. Deu meia volta, viu uma fila de ashbals que surgia das nuvens de poeira, correndo aos tropeções na sua direcção, e ouviu a voz inconfundível de Ahmed Rish, que se sobrepunha ao ruído dos motores dos F-14, sobrepondo-se ao som dos disparos das AK-47 e até mesmo dos reactores do Concorde.

 

Rápido! Mais depressa! Este é o último assalto! É agora ou nunca! Vamos lá, meus «gatos-monteses», sigam-me para a matança!

 

Naquele momento, Hausner compreendeu o motivo por que as pessoas não hesitavam em seguir Rish.

 

A entoação e o timbre de voz eram-lhe familiares, e se em vez do árabe, tivesse sido o alemão, ele não teria a mínima dificuldade em imprimir-lhe a paixão que mais se adequasse aos seus objectivos. Havia homens que nasciam dotados com uma capacidade de comando extraordinária, e quando a mente destes indivíduos excepcionais se tornava malévola o resultado era inevitavelmente fatal.

 

Hausner retrocedeu até ao ponto onde sabia que estaria a trincheira funerária, encontrou-a e desceu para o interior, sentindo os corpos por baixo dos pés. Perguntando-se quem teriam sido as pessoas cuja vida terminara daquela maneira, agachou-se e, na semiescuridão, ficou à espera de Ahmed Rish.

 

O pelotão de comandos do tenente Joshua Giddel ficou no pequeno museu, enquanto os outros dois, um deles com um jipe, começaram a subir pela via processional.

 

Os dez homens de Giddel ocuparam as suas posições rodeando o jipe onde estavam montadas, cinco de cada lado, as metralhadoras de cento e seis milímetros, e avançaram pelo terreno empoeirado e plano que separava o museu da casa de hóspedes.

 

No jipe, além do tenente Giddel, seguiam o motorista, dois comandos e o doutor Al-Thanni, o curador do museu, que o tenente tinha descoberto no seu escritório, no local de trabalho. O arqueólogo, na altura, verificava as suas listagens de inventário para a Primavera, como se nada de anormal se passasse do lado de fora da janela do museu. O que trouxe à mente de Giddel a história de Arquimedes, o qual, embrenhado num problema de matemática, nem deu pelos sitiantes romanos entrarem na sua cidade. O inventor grego recusara-se a permitir que eventos alheios ao seu trabalho interrompessem a sua linha de raciocínio, levando a que um soldado romano, furioso com a sua atitude, o assassinasse. E foi assim que Arquimedes, pensava Giddel, se tornou instantaneamente um herói e mártir para todos os intelectuais, enquanto os militares, uma vez mais, ficaram mal vistos. Contudo, Giddel conseguiu ultrapassar o sentido de urgência a que o soldado romano sucumbira contentando-se em lançar para o chão as listas do inventário.

 

Naquele momento, o curador seguia no jipe, aos solavancos, percorrendo os escassos cem metros que separavam os israelitas do seu próximo objectivo.

 

Quantos ashbals calcula que estão na casa de hóspedes? perguntou Giddel a Al-Thanni, gritando para que o outro o ouvisse apesar do ruído do motor do veículo.

 

O curador, que tinha os seus aposentos nessa casa, começara a dormir num divã no museu, mas continuava a fazer lá as suas refeições, servindo-se das instalações sanitárias para a sua higiene pessoal.

 

Eles não confiam em mim, meu rapaz respondeu, ajeitando os óculos, enquanto Giddel o mimoseava com um olhar cheio de significado. No entanto, com base nas minhas estimativas, eu diria que são pelo menos uns cinquenta, com ferimentos de vários graus de gravidade, e dez ou mais auxiliares de enfermagem chefiados por um médico, além de umas quantas sentinelas e do oficial de serviço.

 

O edifício tem cave?

 

Não respondeu o curador, lacónico.

 

É todo construído de cimento?

 

Sim.

 

Nesta altura há algum hóspede? Pessoal de hotelaria?

 

Não, a época turística ainda não começou.

 

Há civis ou funcionários governamentais?

 

Às vezes passam por lá algumas raparigas da aldeia. Está a perceber, não é verdade?

 

Sabe se têm um radiotransmissor? Costumam comunicar com os ashbals que estão em campanha?

 

Sim, há um no vestíbulo, por detrás do balcão da recepção onde costuma ficar o soldado de serviço.

 

Os feridos estão armados?

 

Sim confirmou Al-Thanni.

 

Têm algum armamento pesado? Metralhadoras? Lança-mísseis portáteis? Morteiros? Granadas de mão?

 

Nunca vi nada disso.

 

Onde eles manteriam um prisioneiro?

 

Eles tinham um, aliás, uma rapariga. Puseram-na no gabinete do gerente.

 

Sabe se era israelita?

 

Giddel tivera conhecimento da existência dessa prisioneira através das informações que o general Dobkin dera a Jerusalém.

 

Estou em crer que sim.

 

E quanto ao general?

 

Giddel já pusera o curador ao corrente de tudo o que sabia a respeito do general Dobkin, mas não lhe passou despercebido que Al-Thanni se mostrara muito céptico quanto à veracidade daquela informação, acreditando que provavelmente os israelitas queriam tirar partido da velha amizade que o ligava ao general.

 

Não o viu? insistiu o tenente.

 

Já lhe disse que não.

 

Nem ouviu nada sobre ele?

 

Se soubesse alguma coisa, já lhe teria dito.

 

Em que outro sítio poderiam manter um prisioneiro? continuou Giddel.

 

Não sei, mas certamente que não seria em nenhum dos quartos, pois estão todos ocupados pelos feridos. Na cozinha também não me parece, e quanto à sala de jantar, é utilizada para as refeições. Há ainda uma sala de estar, mas também usada, por isso na minha opinião, o gabinete do gerente é o lugar mais plausível. Desde a altura em que diz terem recebido o telefonema do general que não vou à casa de hóspedes, portanto é muito possível que ele esteja lá e eu não saiba.

 

Giddel lançou um olhar rápido ao edifício, que tinha luzes em algumas janelas.

 

Onde fica o gabinete do gerente?

 

Quando se entra no vestíbulo, é logo à esquerda e as janelas abrem para a fachada principal do prédio.

 

Quem é o graduado de patente mais elevada?

 

É um tipo chamado Al-Bakr.

 

Parece-lhe que é um tipo razoável?

 

O doutor Al-Thanni permitiu-se uma pequena gargalhada.

 

O que quis dizer foi se acha que ele estaria disposto a entrar em negociações para que os seus feridos não fossem apanhados no fogo cruzado de uma acção militar explicitou o tenente.

 

Terá de lhe fazer essa pergunta.

 

Giddel observou o edifício de três pisos, inacreditavelmente sem que ninguém parecesse ter reparado na sua presença. O jipe mantinha uma velocidade constante de dez quilómetros horários, acompanhado pelos comandos em passo de corrida, que o ladeavam. Agora, a casa já era claramente visível e Giddel inspeccionou o que o rodeava com o seu binóculo de campanha equipado com visão nocturna. Avistou algumas tendas caídas à frente do prédio e, em redor, uns quantos eucaliptos, os quais bloqueavam parcialmente a vista das varandas. À esquerda da fachada estavam alguns veículos estacionados e, além das luzes em várias janelas, também saía fumo das chaminés. Era a hora do pequeno-almoço e viam-se alguns homens sentados nas varandas de todos os andares. Até ao momento, ninguém parecia ter dado conta deles. Giddel voltou-se então para Al-Thanni.

 

Mas parece-lhe que Al-Bakr ouviria a voz da razão? O doutor exerce alguma influência sobre ele?

 

Eu...? Eu sou... ou, melhor dizendo, fui prisioneiro deles. Não comece a tirar ilações erradas face à situação actual, eu não tenho nada a ver com esta gente.

 

Giddel voltou a concentrar toda a sua atenção na casa e, um pouco a medo, Al-Thanni pousou a mão no ombro do tenente israelita.

 

Meu rapaz, se eu soubesse que o meu amigo Dobkin se encontrava ali dentro, e vivo, pode acreditar que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para o tirar de lá, mas nada do que eu possa dizer fará a mínima diferença perante aquela gente. Eu tive ocasião de ver como trataram a outra prisioneira. Acredite no que lhe digo... Se o general foi capturado, a esta hora já morreu e, se assim não for, seria um acto de misericórdia acabar-lhe com o sofrimento. Não perca o seu tempo nem arrisque a vida dos seus homens numa situação desesperada como esta. Giddel voltou a focar o binóculo de campanha e viu vários homens que olhavam atentamente por cima do corrimão do gradeamento das varandas laterais. Usavam batas brancas e conseguiu distinguir ligaduras em muitos deles. Olhavam atentamente na direcção da colina, onde se desenrolava uma espécie de espectáculo de luz e som que lhes despertara a curiosidade, mas não davam a impressão de ter reparado nele. Contudo, foi então que avistou alguns, numa varanda do último piso, que não despregavam o olhar do ponto onde os israelitas se encontravam. Então sem deixar de observar os seus movimentos, Giddel disse a Al-Thanni:

 

Agradeço a sua cooperação, doutor, mas, por favor, saia imediatamente do jipe, a menos que nos queira acompanhar no ataque.

 

Não, muito obrigado, só lhe desejo muita sorte e com estas palavras, saltou do veículo em andamento, rebolando pelo solo.

 

O tenente apercebeu-se então de que vários homens entravam a correr no edifício. Aumentar a velocidade ordenou, e o jipe acelerou, enquanto os comandos passaram de uma corrida lenta a uma marcha rápida. Preparar projécteis que perfurem cimento acrescentou. A metralhadora de cento e seis milímetros foi carregada e a mira ajustada, mas, subitamente, da casa começaram a ser disparadas rajadas de balas tracejantes, que passaram por cima dos alvos.

 

Face àquele ataque súbito, o tenente Giddel abandonou a ideia de entabular negociações, até porque a intensidade do fogo inimigo aumentou e a pontaria dos ashbals ia melhorando, o que obrigou os israelitas a procurarem protecção atrás do jipe.

 

O motorista passou um radiofone a Giddel.

 

É a cobertura aérea.

 

Daqui margem oriental dois-seis informou o tenente.

 

Recebido e entendido. Aqui Gabriel trinta e dois. Querem que faça desaparecer essa casa?

 

Negativo, Gabriel. Possivelmente alguns dos nossos estarão no interior. Tencionamos tomá-la da maneira mais difícil.

 

Recebido e entendido. Se mudarem de ideias, digam-nos alguma coisa.

 

Recebido e entendido. Obrigado. Giddel voltou-se para os seus homens. Não alvejem o lado esquerdo da fachada do piso térreo e comecem a fazer fogo.

 

Dois comandos ajustaram a mira da espingarda acoplada ao cano da metralhadora e dispararam um projéctil tracejante de calibre cinquenta

destinado a assinalar o alvo, o qual acertou no segundo piso do edifício, acima da porta da frente, a que se seguiu uma rajada completa. Os projécteis, agora de cento e seis milímetros, acertaram no edifício, a um metro do primeiro, provocando uma explosão ensurdecedora e abrindo um buraco na parede. A mistura de chamas, fumo e estilhaços foi violentamente expelida pelas janelas mais próximas, e de imediato apagaram-se todas as luzes no interior do prédio. O tenente ordenou então ao seu motorista que aumentasse ainda mais a velocidade do jipe e os comandos começaram a disparar com os seus lança-granadas M-79, com as metralhadoras portáteis Uzi e com as espingardas automáticas M-16, que empunhavam junto à anca, fazendo fogo sem interromper a corrida. Os soldados encarregados da metralhadora voltaram a usá-la e os projécteis destruíram totalmente as portas da frente indo detonar no vestíbulo. Os comandos pararam de correr, colocando-se em posição de tiro e alvejaram o prédio com longas rajadas sucessivas.

 

Tanto o jipe como os comandos já se encontravam a duzentos metros da casa quando o fogo dos ashbals cessou, logo após terem sido atingidos por mais projécteis da metralhadora, um dos quais entrou através do vidro quebrado de uma janela à direita das portas da frente, explodindo no interior. O lado direito do edifício começou a ceder e chamas e fumo saíam por todas as janelas, enquanto as varandas da frente do segundo piso ruíram, caindo em cima das que lhes ficavam por baixo. Em seguida, pessoas de batas brancas começaram a saltar pelas janelas, correndo para os veículos estacionados, e logo as munições das M-60 foram trocadas, passando estas a disparar balas incendiárias, cujos alvos eram as viaturas dos árabes, as quais, uma a uma, explodiram, obrigando os que corriam para eles a fugir, desaparecendo nas trevas.

 

Ao tenente agradava muito fazer fogo contra um edifício que albergava feridos, embora também fosse o local onde, de acordo com o que o doutor Al-Thanni e o general haviam dito, estavam os prisioneiros israelitas, além de ser o quartel-general dos ashbals. Para mais, estes é que tinham dado início às hostilidades, infringindo um princípio sagrado: nunca se misturavam instalações militares com hospitais de campanha e agora pagariam por essa infracção.

 

A uma distância de cinquenta metros, a metralhadora disparou outro projéctil que entrou por onde haviam estado as portas da frente e foi explodir outra vez no vestíbulo, desta feita acompanhado por gás lacrimogéneo CS.

 

A fachada do edifício estava completamente esburacada pelas balas e o interior era já pasto das chamas. De todas as janelas saíam colunas de fumo, sentia-se um cheiro intenso a cordite e ouviam-se gritos.

 

O jipe passou por cima das tendas, subiu pelos degraus da entrada e rolou sobre os escombros das varandas antes de entrar no vestíbulo, enquanto o motorista ligava os máximos e os comandos entravam pelas janelas.

 

No interior, os mortos e os moribundos jaziam por entre os escombros

e parte do soalho do andar de cima cedera, tendo as camas, com os respectivos doentes, caído pelo buraco. Os israelitas protegeram-se com máscaras e lançaram mais gás lacrimogéneo através das portas que davam para o vestíbulo e também para as escadas e em direcção ao buraco no tecto. Dois correram logo para a porta das traseiras, que dava para um terraço, a tempo de verem uma dúzia de homens e mulheres, de batas brancas ou uniformes, desaparecerem no lusco-fusco do alvorecer, mas deixaram-nos fugir.

 

No vestíbulo, ouviam-se gritos e gemidos que vinham do piso de cima e pelas escadas começaram a descer pessoas de ambos os sexos, com camisas de noite e pijamas manchados de sangue e chamuscados, obviamente em estado de choque, com as mãos na cabeça, tossindo e vomitando, sem verem nada à sua frente devido ao gás lacrimogéneo.

 

O tenente Giddel entrou de rompante no gabinete do gerente, que não sofrera grandes danos, apenas algumas fendas no estuque das paredes, o que seria de esperar. A poeira cobria tudo o que se encontrava à vista, havendo ainda alguma que se filtrava através das fendas no tecto. A primeira pessoa que Giddel avistou foi a rapariga e, ao correr imediatamente para ela, tropeçou num corpo caído no chão, um homem estendido de bruços com as mãos e pés amarrados. Pela altura e corpulência, o tenente reconheceu Dobkin e, com todo o cuidado, virou-o, vendo que o general tinha o rosto ensanguentado e que um dos olhos lhe havia sido arrancado o globo ocular pendia do nervo óptico. Giddel fez um esforço tremendo para se acalmar, desviando a vista por uns instantes, e respirou fundo antes de voltar a concentrar-se no general. Aparentemente, o carrasco ficara a meio da macabra tarefa quando os primeiros disparos da metralhadora atingiram o edifício. O tenente não sabia dizer se o homem estava morto ou vivo, até que viu as bolhas ensanguentadas que se formavam à volta do nariz fracturado e dos lábios inchados. Entretanto, o paramédico do pelotão surgiu a correr dirigindo-se imediatamente para a rapariga.

 

Ela ainda respira, embora em estado de choque. Deu meia volta e ajoelhou-se junto de Dobkin, a quem examinou rapidamente. Quanto ao general, está a apagar-se. Olhou para as roupas todas ensanguentadas e em farrapos. Só Deus saberá as lesões que lhe infligiram. Temos de os levar sem mais perdas de tempo para o jipe e transportá-los imediatamente para bordo do C-130.

 

De acordo disse Giddel, assomando de imediato a uma janela e chamou o motorista, a quem ordenou:

 

Envie instruções para bordo do C-130 e diga-lhes que estejam preparados para receber dois feridos, um em estado de choque e o outro tem hemorragias graves. Eles que se ponham em contacto via rádio com Jerusalém. Encontrámos os nossos dois primeiros cativos na Babilónia... ainda com vida... Virou-se para o paramédico. Desejo ardentemente que os outros estejam em melhores condições do que estes dois. Ficou a olhar para o homem e mulher, mais mortos do que vivos, que eram transportados para o jipe, e disse ainda ao motorista: Informe também que temos alguns palestinianos.

 

Dos ashbals que se encontravam na base da colina, junto ao rio, dois haviam sobrevivido e mantiveram-se no seu posto. Por isso, depressa avistaram os israelitas, que subiam o rio a bordo dos botes de borracha. Eram pelo menos trinta, mas não obstante a superioridade numérica, o alvo que ofereciam era irresistível para qualquer soldado bem treinado. Os dois árabes procuraram cobertura por detrás de uma elevação de terreno e começaram a disparar contra o bote, completamente exposto, que transportava as metralhadoras automáticas. A água agitou-se em redor das embarcações, três foram imediatamente perfuradas e vários dos militares feridos. Com rapidez, os demais israelitas ripostaram ao fogo mas, em termos tácticos, a sua posição não podia ser pior, pelo que o major Bartok deu ordens para que o seu bote acostasse à margem oriental.

 

Os comandos saltaram de imediato para terra, e deslocaram-se em fila indiana ao longo da margem alagada do Eufrates. Ainda se encontravam a cerca de meio quilómetro do ponto onde a encosta íngreme começava, e o major Bartok tinha sérias reservas quanto a ser capaz de desalojar os ashbals, que continuavam a disparar sobre os seus homens, em menos de dez minutos. Para encurtar esse período de tempo teriam de contornar a posição dos árabes, após o que se dirigiriam para o caminho estreito que lhes permitiria aproximarem-se pelo lado sul da base da colina. Se tudo lhes corresse de feição, dentro de quinze minutos teriam o Concorde à sua frente, e enquanto Bartok corria seguido pelos seus homens, que continuavam a formar uma longa fila indiana, tirou o radiofone da mão do operador de rádio e estabeleceu ligação com o major Arnon.

 

Margem Oriental seis, aqui Margem Ocidental seis. Qual é a situação por aí, Yoni?

 

Árnon estava nitidamente sem fôlego, o que levou Bartok a concluir que o seu colega também seguiria em passo de corrida. Este começou a responder-lhe em frases curtas e intercaladas.

 

Passámos pela muralha exterior da cidade... Encontrámos um «morto em combate» dos nossos... Mutilado... Três inimigos também mortos... Aparentemente, houve uma emboscada... Seguimos em direcção à encosta oriental... Falta meio quilómetro até ao cimo... Espera. Fez uma pausa, parando de correr. Estou a ouvir qualquer coisa que se assemelha ao barulho de motores a jacto. Será possível que tenham conseguido ligar os turborreactores do Concorde.

 

Aguarda um pouco. E Bartok mudou de frequência, passando a escutar aquela em que Laskov e Becker comunicavam, ou seja, a da El Al, mas logo regressou à primeira. Recebido e compreendido. Afirmativo, disseram que os motores estão em funcionamento. Não sei que raio é o plano deles, mas mantém-te atento.

 

Recebido e compreendido. Termino.

 

Laskov foi chamado através do rádio por um dos seus pilotos que o informou do desenrolar da situação do Concorde, e logo falou irritadamente pelo microfone acoplado aos auscultadores.

 

O que pensa que está a fazer, zero dois?

 

Becker colocara na cabeça o quépi do seu uniforme de piloto, o que lhe proporcionava uma sensação de grande bem-estar.

 

Estamos a pôr-nos daqui para fora!

 

Não faça isso! Vai fazer com que todos acabem por morrer!

 

Pus agora mesmo essa questão ao meu maravilhoso computador, ao que ele me respondeu: «Faz o que te apetecer, estúpido. Só quero que não me envolvas no assunto.” Portanto, decidi aceitar o conselho. Lamento muito, Gabriel.

 

Raios o partam, vai matar toda a gente! vociferou Laskov, prestes a perder o domínio sobre si próprio. Baixou o tom de voz. David... ouça o que lhe digo...

 

Becker interrompeu-o sem apelo nem agravo, Laskov retirou a mão do botão que lhe permitia a comunicação e a voz do piloto voltou a ouvir-se.

 

Em qualquer dos casos, já estamos todos mortos. É-lhe muito difícil entender isso? Chegaram tarde de mais para nos poderem ajudar, demasiado tarde.

 

Não, eu...

 

Laskov voltou a ser interrompido sem a mínima consideração e, uma vez mais, largou o botão.

 

Tenho muita pena, general prosseguiu Becker em voz baixa. Vocês fizeram um trabalho excelente, de verdade. Só lhe resta desejar aos pobres desgraçados que nós somos um pouco de sorte. Termino.

 

Boa sorte. Termino.

 

David Becker aliviou a pressão que mantinha sobre os travões e aguardou, mas nada. Observou os instrumentos de bordo, à procura de indícios da explosão iminente de um dos motores, pois para além disso, não havia rigorosamente medida nenhuma que pudesse tomar, o desfecho estava fora das suas mãos. A aeronave deu a impressão de se esforçar por avançar, começando a vibrar de maneira a não augurar nada de bom, e o piloto lançou um olhar de relance por cima do ombro a Kahn, que desviou o olhar da sua consola com os instrumentos de bordo.

 

Não desligues os motores, David. Espera mais um pouco. Becker concordou. De qualquer das maneiras, o aparelho acabaria por se partir aos bocados, pois ainda que conseguissem fazer com que rolasse até à encosta oriental, impulsionado apenas pela força dos três turborreactores que continuavam a funcionar, a queda quase na vertical, muito plausivelmente, faria com que se seccionasse durante o percurso, ou, se isso não se verificasse, desfazer-se-ia em mil bocados quando atingisse o sopé da colina. Até a vibração sentida na aeronave ainda imobilizada, que tantos maus tratos já sofrera, poderia provocar-lhe danos estruturais impossíveis de remediar mesmo antes de avançar um centímetro que fosse. O pior ou talvez o melhor seria o combustível que vertia entrar em combustão espontânea, o que daria origem a uma explosão que acabaria com a vida de todos de uma vez. Até certo ponto, Becker desejava que o combustível acabasse ou que se inflamasse, não conseguindo compreender por que razão não se verificava uma destas duas possibilidades.

 

Com uma estranha calma, o piloto olhou através do pára-brisas, e verificou que conseguia ver os ashbals que disparavam contra o Concorde. As balas entravam na carlinga, até que o som acentuado do estralejar de faíscas lhe indicou que o painel de instrumentos fora atingido, enquanto o aparelho continuava sem se mexer.

 

Kahn tentou decifrar uma mensagem num dos seus mostradores mas estes estavam de tal forma danificados que não foi capaz de destrinçar se dizia respeito aos instrumentos ou aos sistemas. Dois motores, um em cada asa, estavam a dar o seu rendimento máximo, mas o de estibordo mal operava a metade da sua capacidade. Kahn experimentou tudo o que lhe ocorreu ao pensamento para conseguir obter mais rendimento desse turborreactor. Se ao menos pudessem superar aquela inércia inicial «os objectos quando imobilizados têm tendência para manter essa inércia» ou seja, logo que a aeronave começasse a deslocar-se, e a situação se invertesse, a partir daí não haveria mais problemas. «Vamos lá, meu grande filho da puta.” Subitamente, Kahn chamou Becker.

 

Desacelera o motor de bombordo.

 

Becker compreendeu a linha de raciocínio do colega, pois uma vez que o avião se mostrava relutante em avançar, talvez conseguissem fazer com que guinasse para a esquerda. Puxou para trás a manete do turborreactor em questão e os dois motores de estibordo começaram a protestar, mas vagarosamente, de maneira quase imperceptível a princípio, a asa direita avançou.

 

O Concorde guinou para a esquerda, com o nariz articulado ainda semienterrado a deslocar-se num movimento circular e a asa direita roçou pelo topo da antiga cabana de pastores, arrancando-lhe a açoteia depois de descrita a curva. Todo o sistema do trem de aterragem embateu na rampa de terra batida e o aparelho esteve prestes a imobilizar-se, mas a força que o impulsionava não permitiu que isso acontecesse e o obstáculo acabou por ser ultrapassado.

 

Uma vez vencida a inércia inicial, Becker aumentou o fluxo de combustível que alimentava o motor de bombordo e a aeronave avançou ligeiramente, embora continuasse a deslizar no sentido lateral, para a esquerda, à medida que se deslocava. Instintivamente, o piloto accionou os pedais dos lemes de direcção, assim como a roda do trem de aterragem, de forma a endireitar o mais possível o avião, mas foi então que se recordou com alguma pena de que não possuía secção da cauda nem uma das rodas da frente.

 

Um belo truque, David, se conseguires pô-lo em prática observou Kahn, adivinhando as intenções do colega.

 

Tenho de o deixar seguir de frente para ver até onde nos leva retorquiu Becker forçando um sorriso. Quero aproveitar para te felicitar, caso mais tarde não haja oportunidade para o fazer. Por cima do ombro, olhou fugazmente para o engenheiro de voo. Aconteça o que acontecer... mas o corpo de Kahn caíra para a frente, dobrado sobre si mesmo, com a cabeça contra o painel de instrumentos, e sua camisa branca estava empapada em sangue.

 

Oh, meu Deus!

 

Jacob Hausner corria atrás do Concorde, mantendo-se muito perto do aparelho, que se arrastava pesadamente, enquanto disparava rajadas curtas em todas as direcções, procurando a cobertura que lhe era proporcionada pelas nuvens de poeira que os turborreactores levantavam do solo. Não conseguira apanhar Rish durante o tempo em que se ocultara na trincheira, pois o árabe não era nada estúpido, deslocava-se no meio da formação em losango composta por seis ou sete dos seus homens, e ainda que Hausner o visse passar, não tivera possibilidades de o atacar pela retaguarda. Teria podido eliminar Hamadi, se essa fosse a sua intenção, contudo, não queria desperdiçar a sua vida para abater um simples lugar-tenente. Assim fora forçado a retroceder até um sítio que lhe oferecesse cobertura, a cabana, mas isso quase lhe custara a vida quando os inimigos quase a cercaram. Agora corria uma vez mais, protegendo o Concorde, ao mesmo tempo que procurava outro sítio para se abrigar até conseguir chegar suficientemente perto de Ahmed Rish para lhe encher as entranhas com chumbo, bem quente, que o rasgasse todo por dentro.

 

Ao mesmo tempo que o Concorde ia adquirindo alguma velocidade, rolando pelo cume da colina aos solavancos, alguns atiradores faziam fogo freneticamente por onde lhes era possível. Um deles, Alpern, agarrara-se à estrutura danificada da secção da cauda, disparando em direcção dos ashbals, tentando acertar-lhes por entre as quase impenetráveis nuvens de poeira que o aparelho levantava à sua passagem.

 

Várias das pessoas posicionadas perto da porta gritavam a Hausner que se despachasse antes que o avião ganhasse mais velocidade, mas este parecia não ouvir o que lhe diziam. Depois, ataram camisolas de algodão umas nas outras, improvisando uma corda, que lançaram pela abertura da cauda, para que ele se agarrasse, mas ficaram com a impressão de que Hausner não estava muito interessado em saltar para a aeronave.

 

No compartimento das bagagens, na parte traseira do Concorde, os que tinham tentado cometer suicídio continuavam agrupados, mais por conveniência do que como forma de castigo. Miriam Bernstein, num estado de histeria levado ao máximo, fora colocada junto deles, enquanto Beth Abrams se esforçava por acalmá-la, agarrando-a por um braço, ao mesmo tempo que a cauda do aparelho era sacudida e ressaltava descontroladamente.

 

Ibrahim Arif espalmara-se contra a abertura da antepara de pressurização quase feita em duas, observando o solo que deslizava abaixo do que restava da cauda, quando avistou um homem a correr, envolto nas nuvens de poeira que se levantavam atrás da aeronave. Então chamou por um jovem intérprete, Ezekiel Rabbath, incumbido de vigiar os suicidas falhados, que com alguma dificuldade conseguiu chegar à antepara, metendo a cabeça pela abertura e colocando a AK-47 em posição de fogo, de molde a que as balas não atingissem nenhuma das escoras de alumínio. Quando se aprontava para disparar, reconheceu o homem que corria descalço, com a roupa em farrapos e coberto de poeira da cabeça aos pés.

 

É o Jacob Hausner!

 

Às cotoveladas e aos empurrões, única maneira de furar por entre as pessoas amontoadas, Miriam Bernstein passou por Arif e Rabbath, e com uma rapidez inacreditável rastejou através do rombo na antepara antes que alguém tivesse tempo de reagir. Esteve prestes a saltar do aparelho, mas Yaakov Leiber conseguiu agarrá-la por uma perna, e conjugados os esforços de três homens tentaram puxá-la para o interior.

 

Deixem-na ir! vociferava Beth Abrams, que se atirara aos três, aproximando-se deles por detrás. Se ela quer ir, deixem-na!

 

A confusão instalou-se, enquanto Beth Abrams era afastada à força e Miriam conseguia agarrar-se a duas escoras entrecruzadas que saíam da secção da cauda e que tinham servido de apoio a um depósito de combustível longitudinal, mantendo-se firme. Gritava e esperneava como se estivesse possessa, mas eles não lhe soltavam as pernas e embora não fossem capazes de puxá-la para dentro, tão-pouco ela lograva saltar para o solo, enquanto com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces gritava até enrouquecer:

 

Jacob! Jacob!

 

Entretanto, o Concorde começou a rolar com mais velocidade, afastando-se cada vez mais, e Hausner, quando se virou para trás para disparar contra um ashbal que se aproximava caiu por terra. Ficou envolto em poeira, voltando a cabeça para o Concorde branco e azul que desaparecia entre a areia soprada pelo vento, e fez um gesto de despedida na sua direcção. Miriam Bernstein convenceu-se de que ele a tinha visto e retribuiu-lhe com outro acenar de despedida.

 

Jacob! Jacob! foi repetindo ela vezes sem conto numa voz entrecortada por um choro convulsivo.

 

De cada vez que Becker tentava controlar o andamento da aeronave, desacelerando um dos motores, a velocidade abrandava ameaçadoramente, obrigando-o a aumentar uma vez mais o fluxo de combustível e o resultado era o Concorde desligar meio a rodopiar e meio a derrapar para a esquerda. O piloto perguntava a si mesmo se o trem de aterragem acabaria por se avariar, dada a forma errática como o aparelho avançava, e de vez em quando olhava por cima do ombro para ver se detectava qualquer sinal de vida em Kahn, mas nada lhe confirmava que ele não estivesse morto.

 

Ocasionalmente, via um árabe que aparecia fugazmente saindo das colunas de poeira e terra, para quase logo de seguida desaparecer do seu ângulo de visão quando o aparelho guinava, deslocando-se precisamente na direcção contrária à vertente para onde ele desejava ir.

 

Becker sabia que na cabina de passageiros mais pessoas haviam sido atingidas recentemente e tinha o pressentimento de que quando a aeronave parasse talvez estivesse repleta de cadáveres. Na sua mente, via imagens em que o sangue corria pelas fendas abertas na estrutura de alumínio, e em seguida, sem qualquer razão aparente, ocorria-lhe a visão de todos a saírem, num passo cambaleante, e descerem pela rampa de terra batida, todos, sem excepção, cobertos de sangue, com as órbitas vazias e negras e o cérebro irremediavelmente danificado. Becker sentia o suor a escorrer-lhe por dentro do colarinho e as mãos a tremerem-lhe descontroladamente. Era forçoso que, desse por onde desse, levasse o aparelho até à extremidade do planalto, pois a perspectiva de morrer no sopé da colina era melhor do que no lugar onde se encontravam.

 

Através do pára-brisas do lado esquerdo, avistou a saliência superior da encosta virada a poente e perguntou-se o que sucederia se se despenhasse por essa vertente que ia dar ao rio. A aeronave quebrar-se-ia em duas durante a queda ou submergir-se-ia rapidamente no rio, afogando toda a gente? Só havia uma maneira de ter a certeza do que poderia vir a acontecer e decidiu arriscar, cortando o fluxo de combustível que alimentava o turborreactor de bombordo. A asa direita descreveu imediatamente um movimento circular e então deu toda a aceleração possível ao mesmo motor, cortando simultaneamente o abastecimento ao de estibordo mais próximo da fuselagem, o que funcionava mal. Naquele momento, as duas asas eram impulsionadas pela mesma força dinâmica, e a manobra de Becker posicionara o Concorde precisamente na extremidade do planalto. O impulso dado ao aparelho fez com que rolasse em frente e os dois turborreactores em funcionamento emitiam um som que parecia indicar que já tinham digerido a areia que podiam aguentar, tendo começado a fazer uns barulhos matraqueados, denunciadores de que não tardariam a parar.

 

Entretanto, o Concorde aproximou-se da beira da encosta a alguns metros do sítio onde McClure e Richardson tinham cavado a trincheira que lhes servira de posição defensiva, e Becker começou a rezar para que uma das rodas não ficasse presa num dos outros abrigos individuais, que os sitiados tinham escavado. A sua direita, avistou a pequena elevação de terreno que assinalava a sepultura de Moses Hess, cuja localização, escolhida pelo próprio Becker, ficava sobranceira ao Eufrates.

 

Todos para dentro da cabina! gritou Becker aos que ainda se mantinham nas asas. Adoptar posições de protecção em caso de colisão! Almofadas, todos no chão! Cabeças para baixo!

 

Contudo, já tinham começado a entrar, e, no interior da cabina, sentaram-se ou estenderam-se no chão, voltados para a traseira do aparelho. Almofadas e cobertores foram colocados de forma a amortecerem o choque dos corpos contra a fuselagem ou contra as anteparas de pressurização e tentavam imobilizar os feridos da melhor forma possível.

 

O extenso nariz do Concorde, muito danificado, parecia espreitar à beira da encosta e Becker imaginava que a aeronave deveria ter o aspecto de uma qualquer criatura vinda de um mundo de fantasia ou de pesadelo ajoelhada na extremidade de um precipício, com as suas asas ou manto completamente abertas, pronta para saltar, iniciando o seu voo pelos céus.

 

Becker ligou o motor que funcionava defeituosamente, imprimindo mais força motriz ao aparelho, enquanto o Concorde dava a impressão de se manter suspenso, como se fosse incapaz de tomar uma atitude ou talvez fosse apenas um reflexo da indecisão do seu piloto, que olhou por cima da dianteira cónica, observando a vastidão do Eufrates abaixo de si. A luminosidade de tons pardacentos do amanhecer acentuava os reflexos iridescentes na ondulação das águas do rio, encapeladas pelo vento forte.

 

Becker baixou o olhar até à sua consola e viu que os instrumentos lhe indicavam que o turborreactor mais a estibordo estava prestes a ir-se abaixo de facto, pouco depois, percebeu pelos ruídos que não faltaria muito para tal acontecer. Se isso se devia à falta de combustível ou ao excesso de areia no seu interior, era um pormenor irrelevante a realidade é que estava a parar. Mas então, subitamente o motor de estibordo, até aí a funcionar mal, inflamou-se, começando a cuspir fumo negro desde que Becker o ligara dera apenas metade do seu rendimento e o Concorde ficou com metade da fuselagem suspensa no ar.

 

Incitados pelos gritos de um Ahmed Rish meio demente, os ashbals que ainda restavam continuavam obstinadamente a perseguir o Concorde, enquanto este avançava aos solavancos, qual pássaro gigantesco ferido de morte. A luz que vinha do aparelho era muito reduzida, filtrando-se através de uma ou duas das pequenas janelas, mas foi suficiente para que pudessem ver um homem agarrado à secção da cauda extremamente danificada. Não entrara para a cabina de passageiros juntamente com todos os outros, e do ponto elevado onde se posicionara disparava com uma pontaria extraordinariamente certeira. Rish ordenou que todas as armas fossem apontadas para ele, e as balas tracejantes começaram de imediato a atravessar a média luz do alvorecer, direccionadas para a cauda. Apesar de parecer que o homem fora atingido várias vezes, ele continuava a fazer fogo.

 

Os ashbals recorreram às suas últimas reservas de energia encetando uma corrida acelerada e, chefiados por Salem Hamadi, aproximaram-se mais do aparelho, que continuava a avançar aos solavancos. Ahmed Rish corria atrás dos seus homens, alternando entre os tiros que disparava para o solo poeirento perto dos pés deles e as pancadas que lhes dava nas costas e nádegas com a coronha da espingarda. Assim conduzidos por um chefe quase em estado de loucura e outro a quem poderia ser atestada demência sem margem para dúvidas, os menos de vinte desgraçados, homens e mulheres ainda jovens, tropeçavam e arrastavam-se, continuando sempre em frente.

 

Do ponto de vista de qualquer pessoa que tivesse conhecimento do mito de Caronte, aquela situação por certo lhe lembraria uma cena do barqueiro do Inferno a espancar as almas malditas com o seu remo, enquanto as levava para a outra margem do rio Estige. Tudo começara sob os melhores auspícios, mas agora uma orgulhosa unidade de combate, formada por mais de cento e cinquenta efectivos, estava reduzida a menos de duas dúzias de seres humanos aterrorizados e humilhados, mais parecidos com chacais do que com gatos-monteses.

 

Rish abateu um que não foi capaz de se levantar com a rapidez suficiente após ter caído, e apesar de já ouvir perto de si os disparos dos comandos, que se aproximavam, isso não fez com que desistisse de perseguir o Concorde.

 

Do ar, Laskov, que observava tudo o que se desenrolava cá em baixo, queria eliminar os ashbals, agora visíveis, ainda que só de vez em quando, mas estes mantinham-se demasiado próximos da aeronave, além de que, por sua vez, os comandos estavam cada vez mais próximos. A velocidade a que o F-14 voava era excessiva para lhe permitir um ângulo eficaz de ataque, mas fora precisamente por essa característica, além da autonomia de voo, que aqueles caças haviam sido escolhidos para levarem aquela missão a bom termo. Tentar lançar com precisão uma bomba ou um foguetão sobre a colina, cujo cume tinha a configuração de uma pista de corridas, à primeira luz do amanhecer e com ventos muito fortes a que acresciam as nuvens de poeira que obscureciam tudo e uma velocidade mínima de cento e noventa quilómetros horários estava completamente fora de questão, uma vez que o risco de atingir os que queria resgatar e as tropas israelitas era muito grande. Laskov ainda pensou em pedir aos comandos que retrocedessem, mas, em última análise, era a eles que cabia a operação de resgate, dos sitiados.

 

Dada a situação, optou então por continuar a metralhar os inimigos a baixa altitude, usando a táctica de rajadas cerradas mas sem atingir as proximidades do Concorde, o qual naquele momento se encontrava no extremo superior da vertente ocidental, nem os comandos, que se aproximavam, convergindo de sul e oriente. Assim, Laskov conduziu os seus cinco caças num derradeiro ataque cerrado, esgotando as últimas munições do canhão de duzentos milímetros.

 

Hausner estendera-se ao comprido numa depressão de terreno pouco funda, coberto de poeira, enquanto as balas dos F-14 choviam em seu redor. Os ashbals não se tinham apercebido de que caíra da aeronave, o que se devia às nuvens de poeira, e passaram por ele a correr.

 

Continuando a manter-se no mesmo sítio, onde estava a coberto do fogo dos inimigos, Hausner ouviu os motores do Concorde irem-se abaixo um após outro, e com muito cuidado, ergueu um pouco a cabeça para ver o que se passava. A aeronave mantinha-se meio suspensa, numa posição bastante precária, na beira do planalto e, à luminosidade fraca dos primeiros raios solares, verificou que as chamas se extinguiam nos turborreactores de grande potência, enquanto os ashbals cada vez apertavam mais o cerco aos aparelhos vindos de oriente, ouvia os disparos das armas dos comandos que continuavam a subir a encosta, e então Hausner semiergueu-se para inspeccionar o mecanismo da sua AK-47, voltando a carregá-la. Olhou em redor e, ao aperceber-se de que estava na mesma depressão onde tinha feito amor com Miriam, passou a mão pela terra cálida e poeirenta que lhes servira de leito.

 

Voltou a erguer o olhar até ao Concorde enquanto acabava de carregar a AK-47. O seu plano era matar Rish, embora soubesse de antemão que ele próprio acabaria por morrer, quer conseguisse ou não o seu objectivo, mas naquele momento, contrariando essa perspectiva, as suas hipóteses de sobrevivência pareciam maiores, enquanto os outros pereceriam, porque, ainda que Rish não lograsse aprisioná-los, massacrando-os impiedosamente, ou levando-os como reféns, aquela tentativa temerária de fazer com que o avião deslizasse até à margem do rio certamente os mataria a todos. Agora Hausner só teria de esperar até que os comandos chegassem, o que lhe permitiria regressar a casa, mas não iria fazer isso, do que estava bem ciente. Pôs-se de pé e começou a encaminhar-se para o Concorde.

 

Becker não era capaz de decidir se queria fazer com que a aeronave se despenhasse pela encosta ou não, pois quanto mais olhava para o rio, mais distante este lhe parecia, mas que outra opção lhe restava?

 

Burg entrara na carlinga e prendera Kahn com o cinto de segurança ao seu assento. O ferido ainda respirava, mas um ferimento aberto no tórax, por onde o ar se perdia, fazia com que essa função se tornasse cada vez mais difícil. Burg olhou à sua volta e viu um mapa com o qual tapou o orifício, que borbulhava ensanguentado, e os sons de sucção pararam quase por completo.

 

Becker ficou a olhar para o seu engenheiro de voo por uns instantes, após o que gritou a Burg.

 

Diga para virem alguns para a dianteira do avião.

 

Burg assentiu com um acenar de cabeça e, saindo a correr da carlinga, transmitiu a ordem numa voz surda, sendo prontamente obedecido.

 

Uma dúzia de pessoas, que não estavam feridas ou que ainda podiam andar, levantou-se rapidamente, apinhando-se junto à porta da carlinga. O Concorde ficou um grau de inclinação mais acentuado, começou a deslizar, e Burg correu a sentar-se no lugar do co-piloto, apertando o cinto de segurança.

 

Salem Hamadi, já bastante à frente dos outros ashbals que se tinham dispersado, corria paralelamente à asa de estibordo, num ângulo bastante inclinado no sentido ascendente, até que chegou a cerca de dois metros da berma do planalto e, um segundo antes do momento em que se teria despenhado, caso não parasse, colocou a espingarda à tiracolo e saltou.

 

Hamadi caiu ao comprido em cima da asa com as pernas e os braços abertos, momento em que o solo onde a parte inferior da carlinga assentava cedeu e o Concorde se inclinou ainda mais para baixo, deslizando alguns metros para a frente. Precipitadamente, o árabe levantou-se, tentando descobrir um ponto onde se pudesse firmar, e um dos pés encontrou uma amolgadela provocada por uma rajada de balas, o que lhe permitiu elevar o corpo e agarrar-se à ombreira da saída da porta de emergência, que ficara aberta. Ao que tudo indicava, na altura nenhum dos que estavam no interior olhava para a porta ou pelas janelas, e Hamadi impulsionou o corpo em direcção à entrada.

 

O solo debaixo do aparelho cedeu ainda mais, o Concorde pareceu elevar-se, o solo esboroava-se sob o seu peso, e deslizou pela encosta íngreme em direcção ao Eufrates. Ao olhar dos pilotos que sobrevoavam a área apresentava um aspecto extremamente gracioso.

 

Salem Hamadi observou a cabina de passageiros através da porta aberta, constatando que todos se mantinham na posição de colisão iminente, com a cabeça entre as pernas e almofadas e cobertores em volta da cabeça. Deixou-se cair no interior quase às escuras, largou a ombreira da porta e a deslocação da aeronave, que deslizava a pique, impulsionou-o em direcção à porta da carlinga, onde foi embater. Firmou as costas contra a porta de aço e aguardou o impacte da colisão, sem ser capaz de imaginar qual o destino que lhe estaria reservado afogar-se, ser alvejado ou capturado, mas de uma coisa estava seguro: não desejava ficar perto de Ahmed Rish quando o fim chegasse.

 

Becker avistou a fileira de mamoneiras queimadas, que davam a impressão de se aproximar a grande velocidade, viu dois ashbals feridos a arrastarem-se em direcções opostas ao longo da margem do rio e percebeu que as rodas principais davam de si, fazendo com que o Concorde deslizasse de bojo com mais velocidade. O nariz cónico rasgava o solo, e então a aeronave elevou-se ligeiramente, como se tivesse de passar por cima de uma pequena elevação, e pelas águas do Eufrates. Becker ouviu o ruído do impacte ao mesmo tempo que o sentia e viu as águas do rio que se elevaram até ao pára-brisas, entrando pelo orifício nele existente e fazendo com que estilhaços de plexiglas, juntamente com jactos de água, se abatessem sobre ele e Burg. Em seguida, tudo à sua volta ficou mergulhado numa profunda escuridão.

 

Dos motores Olympus elevavam-se grossas colunas de vapor a ferver, vaporizando milhares de litros de água do Eufrates e dentro da aeronave ouvia-se um ruído de algo que entrava de rompante no interior do aparelho, enquanto batia no fundo do rio. Depois, reinou uma grande quietude quando o avião, ressaltando, chegou a um nível em que ficou a flutuar, e os passageiros começaram a erguer a cabeça.

 

Com rapidez, Salem Hamadi transpôs a porta da carlinga e mergulhou numa semiobscuridade. A primeira pessoa que se lhe deparou foi um membro da tripulação, que, preso pelo cinto de segurança ao assento do engenheiro de voo, sangrava, colorindo de vermelho a água que já invadia o compartimento. No lugar do piloto sentava-se outro membro da tripulação, tombado sobre a coluna dos comandos, e ao lado dele, no assento do co-piloto, estava um homem à civil também inconsciente, ambos semicobertos por estilhaços cintilantes de plexiglas. Hamadi, após observar atentamente tudo o que o rodeava, reparou nos instrumentos de bordo, cujos mostradores começavam a enfraquecer, ao que se seguiram as luzes de emergência, que se apagaram completamente. Então, sacou da sua longa faca-de-mato e, sabendo instintivamente que o homem à civil era uma pessoa importante, decidiu ocupar-se dele em primeiro lugar.

 

Jacob Hausner deteve-se a pouca distância dos ashbals, observando-os a dispararem sobre a margem do rio tendo por alvo o Concorde, que flutuava lentamente rio abaixo. Apontou a sua espingarda, tentando descortinar Rish, mas concluiu que todos tinham a mesma aparência, com os rostos totalmente cobertos por uma camada de poeira esbranquiçada.

 

Mais acima, os F-14 de Laskov descreviam voos circulares a uma velocidade moderada sobre a zona pantanosa, mas, repentinamente, encetaram um voo picado em direcção ao cume da colina onde estavam os ashbals. Laskov dera instruções ao major Arnon para que não continuasse a avançar e procurasse um local para se abrigar com os seus homens até novas ordens. Quanto aos soldados do major Bartok haviam mudado de direcção, regressando a toda a velocidade pelo caminho que tinham percorrido ao longo da margem do rio e dirigindo-se para os seus botes de borracha, numa tentativa para interceptarem o Concorde.

 

Entretanto, o firmamento clareava acentuadamente e o vento começava a amainar. Os ashbals, que há tantas horas lutavam tenazmente no meio de tanta poeira e escuridão, aperceberam-se de repente que estavam completamente à mercê dos aviões inimigos. Os F-14 lançaram então os últimos quatro mísseis ar-terra, para logo a seguir se elevarem vertiginosamente, e o grupo de ashbals, no cumo da colina, desapareceu num inferno de chamas cor de laranja misturadas com estilhaços.

 

O impacte da deflagração derrubou Hausner, que, quando se conseguiu erguer, avistou Rish, sozinho e bastante afastado do local onde os corpos desmembrados dos seus últimos homens ardiam em fogo lento. O cheiro a carne e cabelos queimados pairou no ar até que o vento o afastou para longe.

 

Hausner olhou em volta, verificando que ele e Rish eram os únicos com vida no cume da colina, pelo menos, tanto quanto lhe era dado observar, mas o árabe dava a impressão de procurar o caminho mais seguro por onde pudesse escapar, pois, de costas voltadas, nem se apercebeu da aproximação do inimigo.

 

Ora viva, Ahmed.

 

Olá, Jacob Hausner retribuiu Rish, sem se virar para trás.

 

Ganhámos.

 

Não inteiramente retorquiu o árabe. O Hamadi está dentro daquele aparelho, para já não mencionar que ainda é muito possível que ele se afunde. Além de que tenho a certeza absoluta de que a conferência de paz não se realizará e, por favor, não se esqueça de todos os seus mortos e feridos. Acha que podemos chamar-lhe um empate?

 

Atire a espingarda e a pistola para o chão ordenou Hausner empunhando a AK-47 com maior firmeza. Devagar, comece a dar meia volta, meu grande filho da puta, e ponha as mãos sobre a cabeça.

 

Rish fez como Hausner lhe dizia, brindando-o com um sorriso.

 

Está com um aspecto horrível. Apetece-lhe tomar uma bebida? e inclinou a cabeça, indicando um cantil que levava preso no cinto.

 

Cale a porra dessa boca! ripostou Hausner com as mãos a tremer, fazendo o cano da arma descrever movimentos curtos e rápidos e dando a impressão de não saber que atitude tomar a seguir.

 

Não sei se sabe, mas tudo isto aconteceu por culpa sua acrescentou Rish com um sorriso. Nada do que sucedeu teria sido possível se não fosse a sua incompetência. Nunca saberá quantas as noites, ao longo do último ano, em que acordei banhado em suor, a sonhar que acabaria por lhe ocorrer que seria melhor fazer uma inspecção rigorosa, de uma ponta à outra, aos seus Concordes. O famoso Jacob Hausner, o génio responsável pelos serviços de segurança da El AL Jamais saberá as preocupações que nos causou, para acabarmos por concluir que gozava de uma fama exagerada em termos de competência. Rish soltou uma gargalhada de escárnio. Ninguém nos disse que Jacob Hausner não passava de uma invenção dos serviços de relações públicas de Israel. O verdadeiro Hausner não tem mais miolos do que uma galinha e numa atitude desdenhosa, o árabe cuspiu para o chão. É possível que você continue vivo e que eu morra, no entanto nada faria com que eu quisesse estar no seu lugar concluiu o árabe, rindo-se.

 

Hausner, enquanto limpava a poeira que se lhe acumulara nos olhos e na boca, percebia que Rish tentava instigá-lo a puxar o gatilho.

 

Já acabou? perguntou.

 

Sim, já disse tudo o que tinha a dizer-lhe. Agora mate-me, e depressa.

 

Receio ter de o informar de que não é isso que tenho em mente e Rish pareceu empalidecer por baixo da camada de poeira que lhe cobria a pele. Capturou o general Dobkin? E quanto à rapariga que estava na posição avançada? São seus prisioneiros? Vamos lá, Rish, deixe-se de coisas, responda-me com verdade e prometo que o mato com uma bala na cabeça, com limpeza e rapidez. Caso contrário...

 

Sim, é verdade que capturámos os dois replicou Rish dando de ombros. A última vez que os vi, ambos estavam vivos. No entanto, recebi há pouco uma mensagem via rádio da casa de hóspedes em que me disseram que os soldados israelitas estão a destruir o edifício e a metralhar os feridos acrescentou Rish com outro encolher de ombros. Portanto, nestas circunstâncias quem poderá dizer se estão vivos ou mortos?

 

Hospitais e quartéis-generais não combinam muito bem, Rish, por isso não tente impingir-me tretas de merda e Hausner tossiu, cuspindo alguma da areia que sentia na garganta.

 

Quer água?

 

Cale a boca!

 

Rish seria a sorte grande para os serviços secretos de qualquer país, por isso, em termos racionais, Hausner reconhecia que devia entregá-lo vivo. O árabe poderia responder a um grande número de questões que já há algum tempo preocupavam os serviços secretos de Israel, e o próprio Hausner gostaria de saber a resposta para algumas delas.

 

Quem lhe passou as informações relativas ao plano de voo? perguntou por fim.

 

O coronel Richardson.

 

Hausner assentiu com um gesto de cabeça antes de inquirir repentinamente:

 

É o marido de Miriam Bernstein? E quanto aos outros? O que lhes aconteceu?

 

Rish limitou-se a esboçar um sorriso.

 

Responda-me, seu grande filho da puta!

 

Está a parecer-me que prefiro levar essa informação comigo para a campa.

 

Hausner sentiu que o dedo no gatilho ficava mais tenso. Caso decidisse entregar Rish vivo, este passaria o resto da vida a olhar para o vazio através do arame farpado da penitenciária de Ramalá, e a prisão perpétua seria uma forma mais dura de justiça do que uma bala na cabeça. Contudo, seguindo uma linha de raciocínio mais primitiva, Hausner queria aplicar a velha lei do olho por olho, sentia-se assolado por todas as paixões primárias e sentimentos de ódio que faziam parte da natureza humana e ansiava derramar o sangue de Rish, um homem de uma perversidade inqualificável que até mesmo o arame farpado não garantia que a sua maldade inata fosse contida. Enquanto continuasse a viver e a respirar, era tão perigoso e ameaçador como um surto epidémico.

 

Nós matámos a sua amante, não é verdade? O que para si foi um golpe redobrado, porque era sua irmã, certo?

 

O perfil psicológico que conhecia do árabe era um tanto vago a esse respeito, mas agora Hausner sabia que esses dados correspondiam à verdade.

 

Rish não lhe deu resposta, mas os seus lábios repuxados num esgar feroz tiveram o condão de fazer com que a espinha dorsal de Hausner fosse percorrida por um calafrio. Ali, de pé, açoitado pelo vento daquele amanhecer, com as mãos abertas, o rosto e as roupas da cor da terra estéril, com o Sol que se erguia no firmamento mostrando uma luminosidade que se reflectia nos seus olhos malignos, Rish era Pazuzu, o Vento do Levante, o arauto da peste e da morte, e Hausner sentia que todo o seu corpo tremia de exaustão e emoção. Baixou o cano da carabina e disparou.

 

A rótula de Rish ficou despedaçada, os bocados de osso caíram na terra e o árabe uivou de dor.

 

Uma bala rápida! Foi o que prometeu!

 

Inexplicavelmente para si próprio, Hausner sentiu-se aliviado ao ver o sangue que jorrava do joelho do inimigo, ao ver as lascas do osso despedaçado e ao ouvir os gritos lancinantes que ele soltava. Irracionalmente, tinha pensado que não haveria dores nem sangue.

 

Você prometeu!

 

Desde quando, entre nós, as promessas são para cumprir? perguntou Hausner, disparando sobre a outra rótula.

 

Rish, uivando como um animal ferido de morte, bateu violentamente com os punhos fechados na terra seca, mordendo a língua e os lábios com tanta força que começou a sangrar.

 

Por amor de Alá! Por amor de Deus, Hausner!

 

Os seus antepassados não eram oriundos da Babilónia, Rish? E os meus não fizeram parte do exílio? É por isso que tantos séculos depois estamos aqui, juntos, nesta terra poeirenta? Era esse o seu objectivo? e disparou mais duas balas estraçalhando o pulso e cotovelo direitos de Rish.

 

Misericórdia! Misericórdia, por favor implorou Rish caindo com o rosto contra o solo e chorando desabadamente.

 

Misericórdia? Nós, os semitas, nunca mostrámos piedade uns pelos outros. Tive alguma para com o Moshe Kaplan? E, já agora, ele manifestou alguma por si? Desde que as águas do Dilúvio baixaram, e talvez mesmo antes, que a nossa gente tem vindo a chacinar-se entre si sem dó nem piedade. As terras entre o Tigre e o Mediterrâneo são o maior cemitério à face da Terra, e fomos nós que demos origem a isso. Se os mortos se erguerem no Dia do Juízo Final, não haverá espaço para que todos possam ficar de pé.

 

Hausner disparou mais uma rajada, que atingiu Rish no antebraço esquerdo, seccionando-o parcialmente e fazendo-o perder a consciência. Depois abeirou-se dele, alvejou-o com uma única bala na nuca e deu um violento pontapé no corpo inerte, que rolou pela encosta quase a pique, indo cair nas águas do Eufrates.

 

Enquanto observava o cadáver que se afundava a pouco e pouco, reparou em dois ashbals, que, no sopé da colina disparavam contra o Concorde, o qual se mantinha a flutuar, e a julgar pela trajectória das balas tracejantes, estavam a acertar-lhe. Então Hausner fez pontaria, assestando a mira sobre os dois, e ajustou o mecanismo da arma para fogo automático, enquanto pelo canto do olho avistou o F-14 que descia a pique na sua direcção, surgindo do céu que entretanto clareara totalmente. Pensou que, se largasse a espingarda e começasse a acenar com os braços, talvez o piloto decidisse não disparar, ainda hesitou por uns momentos, mas acabou por alvejar os dois árabes com uma rajada lenta e impiedosa.

 

Teddy Laskov conteve-se por uma fracção de segundos, mas logo a seguir carregou no botão que accionaria o lançamento do seu último míssil.

 

Da espingarda de Hausner soltou-se o som metálico do carregador sem munições, mas do sopé da colina não partiram mais disparos sobre o Concorde. Depois ele ouviu o silvar do míssil prestes a atingi-lo e logo a seguir viu o F-14, que já sobrevoava de novo o Eufrates. Estava ciente de que todas as suas acções, e não apenas as dos últimos dias, tinham sido autodestrutivas. Deus o perverso, e não o benevolente esperara só até ao momento em que Hausner começara a imaginar ter algo por que viver para lhe pregar uma rasteira. Contudo, sempre soubera que isso haveria de acontecer mais cedo ou mais tarde, pelo que não sentia amargura nem desgosto, se lamentava alguma coisa, era apenas perder Miriam.

 

A última coisa que viu foi o número inscrito na cauda do caça, trinta e dois, depois sentiu-se envolvido por uma luz que o cegou e mergulhou numa calidez de uma tonalidade dourada, enquanto lhe passava pelo pensamento uma imagem de Miriam, muito serena, numa sala iluminada pelos raios solares.

 

Laskov ergueu o olhar e contemplou o cume da colina, envolto em labaredas alaranjadas.

 

Salem Hamadi tentara movimentar-se com rapidez, mas os assentos de costas altas não lhe permitiam um ângulo de visão sem obstruções, pelo que perguntou a si mesmo, por breves instantes, qual seria a maneira mais adequada de agir. Aproximou-se de Burg, agarrando-o pelos cabelos ralos já encanecidos, e puxou-lhe a cabeça para trás, expondo-lhe a garganta. Observou as feições do homem, e ao reconhecer de imediato o director do odiado Mivtzan Elohim, as mãos começaram a tremer-lhe, era como se tivesse o próprio Satanás à mercê da sua faca de lâmina comprida. O gume aproximou-se, cortando a região lateral do pescoço de Burg, e estava prestes a golpear a jugular e a traqueia quando se apercebeu, pelo canto do olho, de um movimento à sua esquerda: Becker, que entretanto recuperara a consciência, encarava-o com fixidez, e o que lia no seu rosto reflectia um acentuado sentimento de desprezo e nojo, nem o mais pequeno vestígio de temor. As mãos de Hamadi recomeçaram a tremer enquanto os olhos e os lábios eram percorridos por trejeitos de nervosismo. Fitou o rosto de Burg e então ocorreu-lhe que tirar a vida àquele homem não faria a mínima diferença quanto ao desenrolar da situação, embora, se não o matasse, talvez isso viesse a ser relevante no que respeitava à sua própria vida, além de ser a primeira vez que, tendo um inimigo à sua mercê, não o matava quando a oportunidade se lhe deparava. Perguntou-se se seria capaz de agir dessa maneira e afastou a faca da garganta de Burg.

 

Becker apontou então para o pára-brisas estilhaçado e Hamadi, esboçando um aceno de compreensão, começou a falar num hebraico muito lento.

 

Diz-lhes que Salem Hamadi poupou uma vida e não te esqueças de informar Isaac Burg de que está em dívida para comigo talvez um dia pudesse cobrar essa dívida, talvez... nunca se sabia, pois a maior parte dos agentes de ambos os lados jamais se esquecia deste tipo de favores, como se fossem um seguro de vida. Salem Hamadi, um favor,

 

A custo, atravessou o espaço entre Becker e Burg, passou por cima do painel de instrumentos e esgueirou-se pela brecha do pára-brisas, saltando para cima do nariz cónico do aparelho. Lançou-se então até à água, começou a nadar e desapareceu da vista de Becker.

 

Este último, que já recuperara completamente a consciência, sabia que o que acabara de presenciar não fora fruto de um sonho porque via o golpe ensanguentado no pescoço de Burg. Tudo aquilo fora demasiado irreal para lhe suscitar reflexões naquele momento, fora um incidente estranho numa terra estranha. Hamadi, Salem Hamadi. Se voltasse a ver Jerusalém, tinha intenção de relatar aquele episódio.

 

Becker começou a gritar, dirigindo-se aos que permaneciam na cabina de passageiros, e depois olhou para Kahn, chamando-o.

 

Peter!

 

Contudo, não obteve resposta e do seu lugar não conseguia ver espuma no ferimento do colega, o que só poderia significar uma de duas hipóteses: ou ele falecera ou o sangue estancara.

 

O Concorde flutuava em grande parte como consequência da extensa superfície das asas em forma de delta, mas Becker sabia que estas não os manteriam à tona de água por muito mais tempo. Olhou então através da diminuta janela lateral, e deu-se conta das pequenas ondas que se desfaziam contra a fuselagem. A água que inundava o porão por baixo da carlinga arrastava o aparelho para o leito do rio, enquanto o peso dos motores fazia com que o que restava da secção da cauda ficasse parcialmente submersa, e sentia o nariz articulado do aparelho elevar-se à medida que a cauda mergulhava cada vez mais.

 

A porta que dava acesso à cabina de passageiros abriu-se e Yaakov Leiber entrou de rompante.

 

Comandante, o compartimento de bagagens na cauda do... mas nesse momento reparou em Kahn e Burg, inertes nos respectivos assentos.

 

Becker apercebeu-se de que Leiber parecia de posse de todas as suas faculdades mentais, agora que as suas capacidades profissionais eram uma vez mais necessárias.

 

Prossiga, senhor comissário, apresente o seu relatório incentivou Becker.

 

Sim, senhor. O compartimento de bagagem e a zona posterior estão inundados, pelo que tomei a iniciativa de evacuar... os possíveis suicidas, pois consegue-se ver a água através do pavimento, por cima dos porões de carga. Também tenho a informar que não sabemos do paradeiro de Alpern. Estou em crer que ele se encontrava na cauda quando nos despenhámos pela vertente.

 

Estou a ver disse Becker. Agradeço-lhe que peça a Beth Abrams e a outra pessoa com conhecimentos de enfermagem que venham até aqui para tratar dos senhores Kahn e Burg. Em seguida, dê instruções a toda a gente para que vistam os coletes salva-vidas que ainda nos restarem, se é que ainda não tomaram essa precaução. Também lhe agradeço que faça uma avaliação pormenorizada dos danos sofridos.

 

- Muito bem, comandante.

 

Leiber voltou num passo apressado à cabina de passageiros. Os ferimentos resultantes da queda da aeronave eram de somenos importância, mas todos mantinham os olhos pregados nas seis saídas do avião, mostrando expressões de ansiedade, e começaram a apinhar-se perto delas. Leiber encontrou Beth Abrams sentada junto de Miriam Bernstein e segredou-lhe ao ouvido, após o que se afastou, aproximando-se de Esther Aronson e do ministro dos Negócios Estrangeiros.

 

Beth Abrams, Esther Aronson e Ariel Weizman dirigiram-se apressadamente para a carlinga e, sem perderem tempo, as duas mulheres desapertaram os cintos de segurança que prendiam os dois feridos e levaram-nos, um de cada vez, para a cabina de passageiros. O ministro inclinou-se sobre o ombro de Becker.

 

Estamos a afundar-nos? perguntou em voz baixa. Becker esperou que as duas mulheres saíssem, levando Burg.

 

Sim, estamos, e se ficarmos no avião morreremos todos afogados. Talvez seja melhor ordenar a evacuação de imediato.

 

Mas, e os feridos...?

 

Ponham-lhes os coletes salva-vidas, senhor ministro. Não podem ficar dentro do aparelho.

 

Não é capaz de nos levar até à margem?

 

Becker olhou através das janelas laterais. À sua esquerda, avistou as elevações da Babilónia, que pareciam deslizar pela margem do rio, virando-se para trás, para observar a colina onde pensara que a morte iria ao seu encontro. Distinguia alguns comandos no planalto, assim como outros da margem lhe acenavam amistosamente, e alguns já tinham lançado uns quantos botes de borracha ao rio, seguindo no encalço do Concorde. Mais à frente, na margem ocidental, avistava à distância um molhe de terra batida, perto de uma pequena aldeia, e ficou com a impressão de que também havia alguns comandos nessa área. À volta deles só via gente pronta a socorrê-los, mas o resultado teria sido o mesmo se todos estivessem em Jerusalém, ao invés de se encontrarem ali. As correntes das águas do Eufrates haviam apanhado o Concorde a meio do rio e Becker não via maneira de o levar para terra. Ninguém poderia dizer que ele não previra aquela situação quando fez com que o aparelho se despenhasse pela vertente, de facto pensara naquela possibilidade, mas dez minutos antes isso parecera-lhe uma questão de tal forma irrelevante que a pusera de lado. Becker olhou pela janela do lado direito, pensando que, se conseguisse manter-se a flutuar durante mais algum tempo, a aeronave até poderia chegar pelos seus próprios meios a terra, mas naquelas circunstâncias essa hipótese não era viável.

 

Conseguimos chegar tão perto! comentou com desânimo.

 

E continuamos muito perto contrapôs Ariel Weizman. Não nos esforçámos por chegar até aqui para nos afogarmos como ratos neste rio amaldiçoado e ficou a olhar para as águas turvas que os rodeavam.

 

O Hausner veio para bordo? perguntou Becker.

 

Não, optou por ficar na colina.

 

Como está a Miriam... quer dizer, a senhora Bernstein? perguntou Becker.

 

Ela há-de recuperar, comandante respondeu Weizman, lançando um olhar de esguelha ao piloto e adoptando uma atitude formal.

 

Becker voltou-se para trás quando as duas mulheres levaram Kahn, reparando na água ensanguentada que correu para a cabina de passageiros quando a dianteira da aeronave se elevou. Voltou a sentar-se.

 

O Salem Hamadi esteve aqui.

 

Disse alguma coisa?

 

Nada, senhor ministro. Só estava a pensar em voz alta. Quedou-se a observar as duas margens que ladeavam o aparelho, que

 

já se deslocava com mais lentidão, dado que cada vez metia mais água. Alguém os comandos, os pilotos dos caças ou ele próprio teria de pensar rapidamente numa solução para aquela situação delicada.

 

Becker reclinou-se no seu assento, pensando que conseguira finalmente acostumar-se a estar sentado numa cabina de pilotagem com um grau de inclinação acentuadamente elevado era estranho como aqueles pormenores, tão insignificantes, pareciam atormentar as pessoas em momentos de crise. Experimentou ligar o radiotransmissor apenas para cumprir as normas que impunham fazê-lo, constatando que estava tão morto como todo o restante sistema eléctrico. Recomeçou a conversar com o ministro, que se sentara no lugar do co-piloto.

 

Eu sou o comandante desta aeronave, pelo que me assiste o direito de a mandar evacuar, caso prefira que seja eu a fazê-lo, senhor ministro.

 

Ariel Weizman manteve a cabeça e o olhar bem em frente.

 

Parece-lhe que podemos detectar algum indício que nos indique quando o aparelho está prestes a afundar-se?

 

Neste momento, isso já está a acontecer, senhor ministro replicou Becker, virando-se e encarando Weizman. É apenas uma questão da celeridade com que o faz. Se continuar a afundar-se devagar, podemos continuar a flutuar durante mais algum tempo, caso contrário será o nosso fim.

 

O ministro examinou o molhe de terra batida, ainda longe, para depois olhar através da pequena janela lateral, observando os botes de borracha que ganhavam terreno.

 

Vamos aguardar decidiu por fim com alguma hesitação.

 

Óptimo.

 

Becker recostou-se, olhando pela janela para admirar o novo dia. Tinham feito algumas coisas notáveis a bordo do Concorde 02, mas agora o espírito inventivo e a inteligência haviam-se esgotado. Apesar das linhas que lhe emprestavam o aspecto de um pássaro marinho majestoso, o avião não conseguiria flutuar muito mais.

 

Miriam Bernstein olhava por uma das janelas para as águas do Eufrates e para a margem oriental, de aspecto desolador. Tinha a visão desfocava por causa das lágrimas, a que se aliava o vidro fendido, que lhe distorcia as imagens, embora soubesse que continuava a ver paisagens da Babilónia. Naquele momento, avistou uma aldeia, com casas construídas de tijolos de lama, cujos habitantes se deslocavam pela margem do rio, enquanto outros se mantinham imóveis, olhando especados para a aeronave. O efeito prismático provocado pela rede de fissuras no vidro emprestava aos gellebiahs negros e às cabanas castanho-acinzentadas matizes do arco-íris, assim como aos tijolos de cor garrida das ruínas da Babilónia. Miriam pensou que conseguia sentir, pressentir, quase ver, os judeus do exílio enquanto trabalhavam nas margens do rio, com as suas harpas penduradas nos ramos dos salgueiros fantasmagóricos. Suspirou, encostando a testa ao vidro, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. Sabia que Hausner estava morto, que tivera aquele encontro com Ahmed Rish que o destino predestinara há muito ou com alguém como ele e só esperava que ele tivesse conseguido encontrar um pouco de paz no fim da vida.

 

Danny Lavon comunicou via rádio.

 

O combustível, general.

 

Laskov olhou para os indicadores de nível, verificando que as manobras exigidas pelo combate aéreo haviam queimado mais carburante do que ele calculara.

 

Recebido e entendido. Mande todos de regresso à base. Nós temos de ficar por aqui mais algum tempo.

 

Recebido e entendido.

 

Lavon comunicou com os outros pilotos da esquadrilha, que, adoptando uma formação em V, sobrevoaram o rio a baixa altitude e, em simultâneo, inclinaram as asas, descrevendo um arco, após o que rumaram para ocidente, a caminho de casa.

 

Laskov olhava através do pára-brisas da sua carlinga, observando as manobras dos outros pilotos. O Sol encontrava-se acima do pico mais elevado do Irão, e os seus raios projectavam-se em direcção à Mesopotamia, conferindo à terra cinzenta matizes dourados. O vento amainara, apenas algumas nuvens de poeira varriam ocasionalmente a planície pantanosa e Laskov baixou o olhar, contemplando os dois C-130, a casa de hóspedes envolta em fumo, as ruínas da Babilónia e a aldeia dos árabes situada no meio destas. Em seguida, avistou a dos judeus localizada na margem oposta, e as grandes asas brancas em delta do Concorde, que flutuava em direcção ao pequeno molhe.

 

Incrível comentou através do seu rádio.

 

De facto, é incrível concordou Danny Lavon.

 

Laskov perguntava a si mesmo se Miriam estaria a bordo daquele aparelho, apercebendo-se de que os contornos das asas não estavam bem definidos, sinal de que estas se encontravam parcialmente submersas. Não dava à aeronave mais dois minutos à tona de água, por isso voltou a tentar comunicar através da frequência da El Al.

 

Concorde zero dois, aqui Gabriel trinta e dois. Abandonem o avião, cos diabos! Estão a ouvir-me?

 

Não recebeu qualquer resposta, mas via cinco botes de borracha aproximarem-se do Concorde. Interrogava-se: teria Becker dado pela presença deles? Não eram muitos, mas pelo menos alguns dos feridos teriam lá lugar. Quanto aos outros, com coletes salva-vidas, poderiam nadar ou flutuar. Por que diabo não abandonavam o aparelho? Laskov comunicou com os chefes de dois dos pelotões de comandos, assim como com os comandantes dos dois C-130, e todos tinham ideias, embora não soubessem concretamente que medida deveria ser tomada. Existiam planos de contingência para quase todas as situações possíveis e imaginárias, mas ninguém, nem sequer os grupos de trabalho que se dedicavam a esse tipo de coisas em Telavive, previra uma situação com aquelas características. O major Bartok, responsável pelos botes, parecia ser o que estava em melhores condições de os salvar e os seus comandos, em Ummah, apressaram-se a recrutar os aldeãos, pelo que muitos deles já se haviam feito ao rio a bordo das suas gufas, impulsionando-se por meio das varas rio acima, ao encontro do aparelho, que se aproximava.

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros meneava a cabeça.

 

Perder-se-ão algumas vidas, mas que outra alternativa nos resta? Temos de iniciar a evacuação.

 

Espere um minuto interpôs Becker.

 

O piloto observava Laskov, que guinava acentuadamente de molde a acompanhar do ar o percurso da aeronave no rio, dando uma curva apertada para a direita. Depois, baixou o olhar para os seus instrumentos de bordo, que não davam sinais de vida, e levou as mãos ao interruptor do mecanismo de energia de emergência, ligando-o. Nada, como já esperava. Contudo, precisava desesperadamente de energia, mas os motores não funcionavam, logo, o gerador também não, pois as baterias estavam dentro de água. A garrafa de nitrogénio ficara no planalto e as bombas principais do sistema hidráulico encontravam-se submersas ou danificadas. Todavia, ainda lhe restava uma fonte de energia e Becker não conseguia compreender por que razão isso não lhe ocorrera mais cedo. Sem perder mais tempo, levou a mão abaixo do seu assento, puxou uma manete que jamais pensara vir a utilizar, e que nunca quisera ser forçado a accionar em pleno voo, e, de imediato, a bomba hidráulica, que não funcionava a electricidade, arrancou pelos seus próprios meios, abrindo o alçapão no fundo do Concorde e dando saída a um pequeno gerador.

 

Imediatamente, Becker constatou que alguns dos instrumentos de bordo readquiriram vida quando o propulsor começou a funcionar debaixo de água, activando o gerador, e viu que tinha pressão de novo em alguns dos sistemas. O Concorde recebia energia através de uma roda hidráulica. Se Kahn estivesse sentado no seu lugar de engenheiro de voo, diria que tudo corria pelo melhor.

 

Becker tinha noção de que só dispunha de alguns minutos até a água danificar aquele sistema de emergência, pois as luzes dos componentes electrónicos do painel de instrumentos já haviam começado a tremeluzir.

 

Apesar disso, a pressão hidráulica continuava a aguentar-se e ele manobrou os comandos, fazendo o enorme aileron de estibordo deslocar-se no sentido descendente, enquanto o de bombordo se elevou, ou seja, a asa direita arrastava-se pela água enquanto a esquerda descrevia uma trajectória em arco.

 

David! Eu tinha-lhe dito que... atalhou o ministro dos Negócios Estrangeiros, abanando-o por um ombro.

 

Espere!

 

O Concorde começou a deslocar-se descrevendo uma curva acentuada para a direita e efectuando uma manobra que em parte era uma mudança de direcção, em simultâneo com uma derrapagem no sentido da margem ocidental. À sua frente, Becker avistava o pequeno molhe de terra batida de Ummah, o qual entrava pelo rio adentro e a sua ideia era chegar àquele ancoradouro, onde posicionaria a aeronave entre a língua de terra, que lhe ofereceria protecção, e a margem do rio. Se acabasse por acostar mais à frente do molhe, era muito possível que o aparelho não ficasse imobilizado, continuando a deslizar e a rodopiar descontroladamente ao longo da margem, acabando por se desintegrar.

 

Naquele momento, o Concorde seguia rio abaixo à mesma velocidade a que girava a mudança de direcção como que travava o afundamento, mas aumentara a rapidez com que metia água. Becker agarrara-se aos comandos com tanta força que ficou com os nós dos dedos esbranquiçados, e ao mesmo tempo que mantinha alternadamente sob observação os instrumentos do painel e as asas do aparelho, também se apercebia de que as fontes de energia eléctrica e hidráulica começavam a falhar. Os ponteiros nos mostradores oscilavam, enquanto os ailerons mostravam tendência para se endireitar, e pouco depois já haviam readquirido a posição horizontal, sendo arrastados, à superfície das águas, pela força da inércia. O piloto começou a praguejar em inglês, mas mesmo assim o Concorde tinha dado início à viragem e, a exemplo do que aconteceria no seu elemento próprio, a inércia deveria encarregar-se de dar continuidade ao deslocamento lateral.

 

Contudo, um rio com uma forte corrente não era exactamente a mesma coisa que o ar rarefeito, do que Becker teve rapidamente a percepção, pois uma vez mais o Concorde passou a oferecer menor resistência, com o nariz e a cauda alinhados com o curso do rio. Mas do mal o menos, agora encontravam-se mais próximo da margem, num trecho do rio em que a corrente era mais rápida, imprimindo ao aparelho um quase imperceptível poder de flutuação adicional, e o piloto começou a acreditar que chegariam ao molhe.

 

De súbito, ouviram-se manifestações de júbilo e gritos de saudação que vinham da cabina de passageiros, ao mesmo tempo que Yaakov Leiber surgia à porta da carlinga, num passo apressado.

 

Os comandos chegaram em botes de borracha e estão a navegar em paralelo com o avião!

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros voltou-se para trás, observando através da janela do seu lado.

 

Talvez fosse melhor tentar evacuar os feridos.

 

Para já, ninguém sai daqui contrariou-o Becker, e isto é uma ordem, não quero que ninguém se mexa lá atrás. Estamos a cinco graus de nos afundarmos de traseira, a pique, no Eufrates.

 

Com mais precaução, Leiber regressou à cabina de passageiros, transmitindo as ordens de Becker.

 

Este avistou um dos botes de borracha, que se posicionou em paralelo com o seu lado da carlinga. O oficial que ia a bordo, o major Bartok, gritou qualquer coisa com respeito à manobra de evacuação e Becker respondeu-lhe com um sacudir de cabeça e um aceno de mão, dando-lhe a entender que a situação era muito delicada.

 

O major esboçou um gesto que significava ter compreendido, ergueu os polegares, indicando aprovação, e gritou-lhe qualquer coisa no sentido de ele ser um bom piloto.

 

Becker desviou o rosto da pequena janela lateral, concentrando-se no curso do rio defronte de si e no ancoradouro, agora a cerca de cento e cinquenta metros aproximadamente o dobro do comprimento do Concorde. A aeronave avançava entre as gufas que se lhe adiantavam, o que lhe permitia observar aqueles judeus estranhos numas embarcações tão primitivas. Voltou a concentrar-se no que tinha diante de si, não lhe parecendo que o aparelho fosse capaz de interceptar o pequeno molhe, mas tinha a percepção de que, de uma maneira ou de outra, era isso que acabaria por acontecer. Repentinamente, sentiu que as provações por que ele e os companheiros tinham passado estavam prestes a acabar, pelo que os problemas e dificuldades chegariam ao fim. Pela primeira vez, no que lhe pareceu ser uma eternidade, sentiu-se invadido por uma grande calma, a qual lhe permitiu descontrair-se enquanto olhava através do pára-brisas estilhaçado, sentindo a brisa nas faces. Pouco depois, pareceu-lhe que o Concorde deslizava para a direita, ou tratar-se-ia de uma distorção visual provocada pelos reflexos iridescentes na ondulação do rio? Teriam começado a seguir em direcção ao molhe desde o momento em que Becker manobrara o aparelho de forma a virar rumo a terra? Mais tarde, teria de fazer essa pergunta ao general Laskov.

 

Subitamente, a asa direita roçou pela margem, rasgando um sulco entre as cabanas de lama, enquanto o avião continuava a avançar. O atrito com o solo fez com que o Concorde guinasse mais acentuadamente para a direita e, à medida que a margem era mais alta, a asa direita elevava-se, forçando a esquerda a mergulhar mais no rio.

 

O molhe dava a impressão de se aproximar com rapidez, e tanto os comandos como os aldeãos retrocederam ou afastaram-se, embora se mantivessem por perto. O nariz pontiagudo da aeronave foi a primeira parte a embater, mesmo abaixo da linha de água, qual trirreme romana com o seu ariete de proa e o pequeno ancoradouro, de lama e moliço, oscilou, fendendo-se em dois quando foi trespassado. Becker deu consigo a olhar para as botas de alguém que se encontrava do lado de fora do pára-brisas, a um escasso metro, enquanto o Concorde se afundava perceptivelmente, permitindo que ele sentisse o trem de aterragem principal, ou o que restara dele depois da queda pela vertente, a assentar no leito do rio. Naquele momento, o Concorde já havia sido invadido aos sobreviventes juntavam-se os comandos e os habitantes da aldeia, e Becker ouvia-os no tejadilho da fuselagem. Chegavam a vau e subiam para a asa esquerda, para além de entrarem também pelas portas. Tinha uma vaga percepção de pessoas que gritavam e choravam de júbilo, abraçando-se, mas o que a sua mente registou a seguir foi ele próprio ter saído para o pequeno cais, donde saudou o Concorde. Depois, alguém o levou dali.

 

Miriam Bernstein e Ariel Weizman conseguiram encontrar o major Bartok no meio da confusão que reinava no ancoradouro. O ministro dos Negócios Estrangeiros apresentou-se, perguntando de imediato:

 

E quanto à conferência de paz?

 

Os outros participantes continuam em Nova Iorque à espera da delegação israelita.

 

Já a bordo de um dos C-130, um dos tripulantes perguntou a David Becker se não lhes faltara água durante a provação por que tinham passado.

 

Sim, claro respondeu Becker. Não vê como toda a gente está cheia de sede?

 

De facto vejo confirmou o tripulante. Mas pergunto a mim mesmo como conseguiram todos os homens ter a barba feita.

 

Barbeados? Becker passou a mão pela face. Sim, «ele» obrigava-nos a fazer a barba.

 

O rabino Levin interceptara o major Bartok no extremo do molhe e exigira ser levado a bordo de um dos botes até junto do major Arnon, que se encontrava no cume da colina, de forma a poder orientar a localização e exumação dos corpos dos que haviam falecido. Bartok garantiu que não havia necessidade de voltar à colina, mas o religioso encetou uma longa explicação, expondo as razões por que o militar estava redondamente enganado.

 

A aldeia de Ummah nunca vira nada que se assemelhasse àquele cortejo que marchava pela única rua tortuosa da povoação, sendo muito pouco provável que tivesse oportunidade de voltar a assistir a algo parecido. Os aldeãos ajudavam a levar as padiolas, ofereciam comida e vinho a quem queria comer ou beber e ouvia-se um misto de choros e de gritos intercalados por cantares e danças improvisadas. Como que por magia, apareceram as primeiras flautas, que soltaram as suas notas pungentes, as quais ecoavam por toda a aldeia, chegando ao embarcadouro, enquanto os passageiros do Concorde caminhavam num passo vagaroso em direcção ao gigantesco aldeão, um aldeão idoso até ofereceu a Miriam Bernstein um instrumento de palhetas: uma harpa.

 

Na percepção dos sobreviventes, tudo aquilo sucedia com demasiada rapidez, pelo que era muito pouco o que ficaria registado conscientemente nos seus cérebros. Todos tinham perguntas a fazer e respostas a dar, mas quanto mais questões eram postas pelos comandos, maior era o número de interrogações por parte dos sobreviventes do Concorde.

 

O major Bartok comunicou através do seu radiofone com o capitão Géis, que continuava sentado na enorme carlinga do C-130.

 

Comunique a Jerusalém... que eles conseguiram libertar-se por si próprios do Exílio. Vamos levá-los para casa. Seguir-se-á um relatório com o número de baixas e com os pormenores pós-acção militar.

 

Recebido e entendido replicou Géis, passando a transmitir a mensagem do major.

 

O primeiro-ministro recostou-se mais na sua cadeira, limpando os olhos enquanto ouvia a transmissão que era difundida através dos altifalantes. Ficou a pensar no quanto se haviam sentido inseguros das suas próprias capacidades, assolados por um sem-número de dúvidas, mas no fim tinham acabado por dizer zanek avante e isso é que fora importante. Perguntava-se quem teria morrido e quem conseguira sobreviver. Estaria o ministro dos Negócios Estrangeiros vivo? E os delegados? Bernstein? Tekoah? Tamir? Sapir? Jabari? Arif? E quanto a Burg? E Dobkin? Conseguiria ele recuperar? E Hausner? O grande enigma, aquele que tantos problemas criara, durante quanto tempo conseguiria a chefe de gabinete do Ministério dos Transportes Miriam Bernstein impedir o titular dessa pasta de o despedir? Caso tivesse sobrevivido, teria de responder a muitas perguntas e o primeiro-ministro abriu os olhos, observando o que se passava à sua volta.

 

Heróis, mártires, loucos e cobardes. Vamos precisar de pelo menos um mês para conseguirmos apurar quem é o quê.

 

O capitão Ishmael Bloch rolava com o seu C-130 pela estrada de Hilla. A bordo seguiam todos os comandos do major Arnon, catorze cadáveres exumados, ou que ainda não tinham sido sepultados, retirados da colina, incluindo o de Alpern, além de um outro, mutilado, encontrado na base da encosta. Os comandos também haviam achado o sapato de Burg com o seu diário no interior, o que lhes permitiu avançar com rapidez, concluindo depressa uma tarefa tão desagradável.

 

Encontraram ainda outro cadáver, mas de tal forma dilacerado por estilhaços que esteve prestes a ser abandonado, por se ter deduzido que seria de um árabe, mas um soldado de olhar mais arguto reparara nas letras hebraicas intercaladas na malha de um fio grosso que o morto usava. A bordo também seguiam trinta e cinco ashballs feridos, juntamente com meia dúzia de árabes mortos identificados como possíveis terroristas procurados pelos israelitas, mas supunha-se que Ahmed Rish e Salem Hamadi não estariam entre estes últimos.

 

Nas mesas operatórias encontravam-se o general Dobkin e Deborah Gideon e os dois cirurgiões aguardavam que o aparelho descolasse para poderem recomeçar o seu trabalho.

 

O rabino Levin, que conseguira levar a sua avante, e regressara efectivamente ao cume da colina, abeirou-se das mesas operatórias, fitando os cirurgiões. O que operava Deborah Gideon desviou o olhar que mantinha na doente, fazendo um rápido acenar de cabeça e a médica que operava Dobkin baixou a máscara cirúrgica.

 

Nunca tinha visto uma brutalidade destas comentou ela fazendo uma pausa, mas o general conseguirá recuperar. Os seus serviços não são necessários aqui, rabino. E sorriu, voltando a colocar a máscara.

 

O rabino Levin voltou-lhe as costas, dirigindo-se para a traseira da aeronave, onde foi ao encontro do tenente Giddel, com a intenção de retomar a discussão cujo tema era a necessidade de só serem servidas refeições kosher durante as operações militares em pleno combate.

 

A descolagem C-130 estava a ser demorada, fazendo com que o capitão Bloch começasse a dar indícios de impaciência.

 

Eu bem te disse que haveríamos de rolar até Bagdade observou ele.

 

Só espero que a estrada não tenha portagens, Izzy.

 

Finalmente, a aeronave de grande porte iniciou a manobra, e Bloch inclinou-a acentuadamente no sentido lateral para a esquerda, sobrevoando o Eufrates, enquanto olhava para o Concorde, quase directamente por baixo de si.

 

Sabes, Eph, gostaria muito de conhecer o sacana do doido que trouxe o avião até aqui, pondo-o depois a navegar.

 

É o Becker. Tive oportunidade de voar com ele durante os treinos do pessoal na reserva. É um piloto bastante competente respondeu Herzel.

 

Esta foi uma operação militar e pêras, não te parece? comentou Bloch com um sorriso.

 

O major Bartok observava o velho judeu, que montado no burro, seguia ao seu próprio ritmo, atravessando os terrenos alagados. O C-130 já tinha quase todos a bordo e os motores já funcionavam, mas isso não parecia impressionar rigorosamente nada o ancião. Bartok mantinha-se pacientemente à espera junto da plataforma da cauda que servia de porta.

 

Shear-Jashub dava a impressão de não sentir o mínimo receio daquela máquina monstruosa, mostrando uma segurança que se estendia ao seu jumento. O idoso conduziu o animal, que começou a subir pela rampa de embarque, detendo-se quando chegou junto do major, mas não desmontou, limitando-se a perguntar abruptamente:

 

O que aconteceu ao aluf Dobkin?

 

Está a bordo daquele outro avião, rabino explicou Bartok, apontando para o firmamento. Ele vai ficar bom.

 

Importa-se de lhe transmitir uma mensagem da minha parte? perguntou o idoso.

 

Claro que não.

 

Também é a resposta à sua pergunta continuou Shear-Jashub, assumindo uma postura mais erecta em cima do burro. Nós, os habitantes de Ummah, agradecemos muito a vossa generosa oferta, mas não podemos ir para Israel convosco.

 

E porque não? perguntou o major, com um abanar de cabeça que mostrava a frustração que sentia. Aqui não existe qualquer futuro para vocês.

 

Não é o futuro neste mundo que nos preocupa retorquiu Shear-Jashub, dando ênfase às palavras «neste mundo».

 

Venha connosco para Jerusalém, rabino, temos espaço suficiente. Vá imediatamente dizer a todos que entrem no avião, não há motivo para estarem com receios. Despache-se, reúna a sua gente. Se quiserem, podem trazer todos os vossos pertences e animais. Tenho a certeza de que Ummah caberá muito confortavelmente na barriga deste pássaro gigantesco. Despache-se, Shear-Jashub, não perca mais tempo, vá reuni-los. O exílio chegou ao fim, é tempo de abandonarem a Babilónia.

 

O ancião perscrutou o interior cavernoso da aeronave, donde saíam luzes e ruídos estranhos, observando os outros judeus que já se encontravam a bordo os israelitas, os quais andavam de um lado para o outro, partilhando lágrimas que se misturavam com risos. O aldeão não compreendera inteiramente o que se passara perto da sua aldeia, se bem que tivesse percebido o suficiente para saber que aquela gente viera de uma nação poderosa, de que Ummah poderia passar a fazer parte, possibilitando outra qualidade de vida aos seus habitantes e respectivos descendentes.

 

Nós temos muitos amigos e familiares em Hilla e em Bagdade. O que ficariam eles a pensar quando viessem a Ummah e descobrissem que nos fomos embora? Não podemos partir assim sem mais nem menos.

 

Não sou capaz de acreditar que queiram continuar a viver aqui redarguiu o major Bartok com um gesto de impaciência. Este lugar é horrível.

 

É a nossa terra e permita-me que lhe reafirme o que já disse ao aluf. Tem de haver sempre qualquer coisa que perdure, em cada nação é imprescindível que exista gente como nós, os da Diaspora, pois jamais conseguirão subjugar-nos mesmo se tomarem Jerusalém de assalto. Compreende o que estou a tentar dizer-lhe?

 

O major Bartok lançou um longo olhar às planícies pantanosas antes de voltar a concentrar a sua atenção no ancião.

 

Sim, estou a compreender, mas esta terra é diferente, qualquer coisa de maléfico paira sobre ela. Vocês, os que a habitam, vieram para cá como escravos e continuam a ser considerados como tal.

 

Viu que não estava a conseguir fazer valer o seu ponto de vista e suspirou. Entretanto, os últimos feridos foram instalados a bordo e Bartok sabia que não podia esperar muito mais tempo, a sua obrigação principal era para com os sobreviventes. Forçou um sorriso.

 

Rabino, recorde-se disto... Se esta shalom, de que toda a gente fala, correr bem, então todos os judeus à face da Terra poderão ir para Israel, se esse for o seu desejo. Diga às pessoas de Hilla e Bagdade que esperamos por elas e que também aguardamos a vinda dos habitantes de Ummah... e de Shear-Jashub.

 

Não me esquecerei.

 

Quem me dera ter as palavras necessárias para o convencer retorquiu Bartok. Talvez, quem sabe, se o aluf Estivesse aqui... Pois bem, adeus Shear-Jashub. Temos de partir... para Jerusalém.

 

Ao ouvir aquele nome, o idoso rabino esboçou um sorriso.

 

Actualmente, é uma cidade forte e poderosa.

 

Sim, é.

 

Adeus despediu-se Shear-Jashub puxando as rédeas de forma a que o burro desse a volta e começasse a descer a rampa.

 

O major ficou a observá-lo durante alguns segundos, após o que se voltou para o interior da aeronave, fazendo sinal para a cabina de passageiros. A plataforma começou a elevar-se enquanto o major a percorria, e ele dirigiu-se depois ao chefe da tripulação.

 

Agradeço-lhe que faça o favor de dizer aos pilotos que estamos prontos para regressar a casa.

 

Na cabina, ouvia-se um grupo de pessoas que lia o Livro de Jeremias: «Será imensa a multidão que há-de regressar e voltará em lágrimas» (Jer 31, 8-10.)

 

Porque isto diz o Senhor: soltai gritos de júbilo por causa de Jacob. Aclamai a primeira das nações! Fazei ressoar os vossos louvores, exclamando: «O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel.” Eis que os trarei do país do None e congregá-los-ei dos confins da Terra. O cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz virão entre eles. Será imensa a multidão que há-de regressar e voltará em lágrimas. Conduzi-los-ei em grande consolação, por caminhos direitos em que não tropeçarão (...)

 

Nações, ouvi a palavra do Senhor! Levai a notícia às ilhas longínquas e dizei: «Aquele que dispersou Israel o reunirá e o guardará como o pastor guarda o seu rebanho. Porque o Senhor resgatou Jacob e libertou-o das mãos do seu dominador

Jer 31, 7-11.

 

Os dois C-130 rumavam a ocidente, voando em formação acima do deserto iraquiano.

 

Isaac Burg sentara-se num banco de lona, falando em voz baixa com o major Bartok, que entretanto elaborava o seu relatório pós-operação militar. Os braços e o torso nus de Burg estavam manchados com tintura de iodo, e tinha o pescoço ligado, a que levava a mão constantemente com uma expressão interrogativa.

 

Bartok não parava de abanar a cabeça numa atitude de descrença enquanto olhava Burg, que respondia às suas perguntas. Bartok, o militar, fazia os possíveis e os impossíveis para conseguir compreender como pudera uma missão de paz dizimar quase todos os homens de uma companhia de infantaria formada por efectivos bem treinados. Devido a um espírito inquisitivo de natureza profissional, a que se aliava uma curiosidade pessoal, ele tentava descobrir a identidade do elemento, ou elementos, que haviam tornado aquele milagre militar possível.

 

Talvez não fosse má ideia utilizar uns quantos batalhões compostos por delegados de paz no nosso exército disse o major.

 

Estou em crer que foi precisamente por acreditarem tanto na paz que, quando alguns tentaram pôr essa mesma paz em risco, eles sentiram-se de tal maneira encolerizados que reagiram como uma leoa que defendesse a vida das suas crias retorquiu Burg com um sorriso. Sei que isto é um paradoxo, mas é a melhor justificação que lhe posso oferecer.

 

É uma explicação que me parece bastante lógica replicou Bartok. No entanto, vou limitar-me a escrever no meu relatório que se tratou de uma boa combinação de capacidade de chefia, um terreno defensivo com boas condições geográficas e sitiados dotados com um belo espírito inventivo e inovador.

 

Estou plenamente de acordo assentiu Burg, aceitando uma chávena de café que uma das assistentes de bordo lhe oferecia e recostando-se. Se bem que aquele fosse um voo de curta duração, sentia-se como se fosse o mais longo de toda a sua vida.

 

O major começou a ler aquilo a que, de uma maneira eufemística, chamava a sua linha um, linha dois e linha três: mortos em combate, feridos em combate e desaparecidos em combate.

 

Burg examinava o interior da espaçosa cabina. Os ausentes eram tantos, tantos os que mereciam estar ali em vez de serem transportados dentro de grandes sacos de plástico verde, destinados aos cadáveres, e que seguiam a bordo da outra aeronave.

 

Os serviços de segurança sofreram um número de baixas catastrófico constatou Bartok.

 

Burg concordou. Cinco em seis homens haviam morrido: Brin, Kaplan, Rubin, Alpern e Marcus, Jaffe era o único que sobrevivera, mas não sem ter sido ferido. A guarda pretoriana de Hausner, o instrumento a que recorrera para efectuar o seu golpe de Estado. Todos lhe haviam dedicado uma lealdade levada ao extremo, que era recíproca. Que mais podia qualquer homem pedir a outro? Eram profissionais e estes sofriam sempre um número desproporcionado de baixas, mas era assim que devia ser.

 

E as tripulações da El Al também eram profissionais, também tinham sofrido igualmente pesadas baixas, pois consideravam as aeronaves como coisa sua e, quer estivessem em Lod, quer na Babilónia, mostravam grande sentido de responsabilidade para com o bem-estar dos seus passageiros. Tanto Daniel Jacoby como Rachel Baum haviam ficado gravemente feridos e Burg viu que continuavam sobre as mesas operatórias, o que era preferível a estar debaixo do encerado verde-azeitona, na secção da cauda do outro aparelho. A situação clínica de Peter Kahn também era muito grave, embora o seu estado tivesse estabilizado. Já fora operado e o cirurgião mostrara a Burg o mapa todo ensanguentado que este enfiara dentro do ferimento do engenheiro de voo.

 

Foi isso que lhe salvou a vida adiantou o cirurgião. Quando receber alta do hospital, ficará para sempre em dívida para consigo. E, amachucando o mapa numa bola, atirou-o para junto dos desperdícios de cirurgia.

 

Entre as secretárias, intérpretes e assessores também tinham ocorrido baixas os quatro, homens e mulheres, chacinados quando estavam nas posições avançadas, eram aqueles que poderiam falecer antes de o aparelho aterrar em Jerusalém. Contudo, Burg não conhecia todos pessoalmente, pelo que se sentia intimamente agradecido, uma vez que no seu coração não cabia mais sofrimento, pelo menos por agora.

 

E havia ainda os dados como desaparecidos, a estatística mais cruel de todas. Nesta situação, as pessoas chorariam os seus mortos, ou ficariam na esperança de que estivessem caídos algures, sofrendo mas vivos? Rezar-se-ia para que se encontrassem prisioneiros em qualquer campo do inferno dos árabes? Miriam Bernstein achava-se mais bem habilitada para responder a estas perguntas do que qualquer outra pessoa agora desconhecia o paradeiro de dois entes queridos.

 

Naomi Haber também fora dada como desaparecida, e embora Burg na altura do embarque julgasse que localizara todos, aparentemente tal não correspondia à realidade. De facto, ninguém fazia a mais pequena ideia do paradeiro da jovem, apenas foi sugerido que talvez tivesse conseguido esgueirar-se pela encosta, logrando chegar suficientemente perto de Moshe Kaplan para acabar com o sofrimento dele com uma bala na cabeça. Todos tinham ouvido o disparo dessa bala, deduzindo que não era lógico os carrascos de repente, num gesto de misericórdia, porem fim ao seu tormento. Mas onde estaria ela? Os comandos não a haviam encontrado, morta ou viva.

 

E faltava também John McClure, o homem enigmático que desaparecera sem deixar rasto. Burg compreendia bem o mundo do americano, dado que era o mesmo em que ele se movimentava, e tudo era possível, mas desaparecer escapando àqueles que o iriam resgatar era uma atitude um pouco estranha, até mesmo levando em consideração os padrões de comportamento que lhe eram característicos. Teria ele morto Richardson? Burg desconfiava de que fora esse o caso, ignorando, contudo, por que razão tal acontecera. Os médicos que vinham a bordo do outro C-130 haviam informado que a bala que causara a morte do coronel não fora recuperada, pois, disparada à queima-roupa, trespassara-o.

 

Mas onde estaria McClure naquele momento? Muito provavelmente, na Embaixada norte-americana em Bagdade, ou optaria por se dirigir à casa do contacto da CIA em Hilla. Mais cedo ou mais tarde, apareceria disfarçado de arquivista no Serviço de Informações da Biblioteca dos Estados Unidos em Beirute as pessoas como ele acabavam sempre por ressurgir daquela maneira.

 

Foi Hausner quem chefiou as operações de defesa? perguntou o major Bartok, querendo saber se Burg o conhecera bem.

 

Pode dizer-se que sim.

 

Onde estaria Jacob Hausner? Provavelmente, morto, mas alguma vez teriam a certeza disso?

 

Tratava-se de uma personalidade tão complexa que até mesmo a sua morte ou desaparecimento provocava nas pessoas reacções contraditórias. O facto de se ter deixado ficar para trás não se devia simplesmente a apenas a um desejo de vingança pessoal contra Ahmed Rish, embora, sem sombra de dúvida a sua atitude tivesse a ver com esse sentimento. Contudo, algo mais estaria em jogo. Hausner quisera morrer, se bem que paradoxalmente também desejasse viver numa situação destas nunca se saía a perder. Além do mais, ele fora sempre um vencedor e o seu regresso a Jerusalém tê-lo-ia exposto a um certo número de questões a que um homem com um orgulho desmedido como o dele não estaria na disposição de responder. Por conseguinte, optara por ficar na Babilónia.

 

Miriam Bernstein sentara-se na cabina, encostada a uma antepara com as pernas flectidas e a face encostada aos joelhos. O ruído monocórdico dos motores do C-130 embalavam-lhe o corpo entorpecido. O ministro dos Negócios Estrangeiros instalara-se ao seu lado, num banco de lona que fora puxado da parede. A euforia passara, e à volta de Miriam algumas pessoas deixavam que a sonolência se apoderasse delas, embora uns quantos continuassem a sentir-se demasiado frenéticos, falando incessantemente com companheiros de viagem que mal se mantinham conscientes. Até mesmo os soldados davam a impressão de não querer ouvir ou falar, tendo-se segregado a si mesmos na área da cauda do aparelho, pois dentro da cabina cheirava a corpos humanos, a anestésicos e a medicamentos.

 

Miriam olhou para David Becker, sentado a pouca distância, com as costas encostadas à fuselagem e, que, apesar de estar acordado, parecia mergulhado numa solidão e num vazio totais. Conhecia muitos heróis, pensava ela, mas, se existia um único que pudesse distinguir-se dos demais, certamente que esse seria David Becker. Aceitara os elogios profissionais por parte do capitão Géis e do tenente Stern com modéstia, a que se aliara um encanto quase juvenil, a matéria de que os verdadeiros heróis eram feitos. Quando chegasse a Jerusalém, ser-lhe-ia dispensado um tratamento digno da realeza e a sua ascendência americana contribuiria para isso. Miriam deu consigo a olhá-lo com fixidez.

 

Becker despertou dos seus devaneios quando se apercebeu de que Miriam Bernstein tinha os olhos presos nele. Tentou esboçar um sorriso, mas soube imediatamente que este não lhe assomara aos lábios.

 

Perdemos o nosso diário de bordo comentou o piloto, depois de pigarrear.

 

E o mais provável foi a minha crónica ter sido levada pelo impacte da deflagração de uma bomba retorquiu Miriam, sorrindo-lhe.

 

Como escribas não somos grande coisa.

 

Foi a intenção que contou.

 

Sim concordou Becker cerrando os olhos.

 

Miriam viu que ele adormecera e, apetecendo-lhe fazer o mesmo, fechou as pálpebras.

 

O ministro dos Negócios Estrangeiros, inclinou-se para ela, tocando-lhe ao de leve no ombro.

 

Temos de preparar uma declaração conjunta para quando aterrarmos. Acima de tudo, vamos separar o que aconteceu aqui da conferência de paz e recuperar e cimentar o estado de espírito que existia antes deste... fez um gesto vago com a mão antes de tudo isto ter sucedido.

 

Não tenciono ir consigo para Nova Iorque retorquiu Miriam Bernstein, olhando-o de frente.

 

E porque não? perguntou o ministro, bastante desconcertado.

 

Não acredito no processo de paz.

 

Não diga disparates.

 

Ela encolheu os ombros. O que lhe teria aconselhado Jacob Hausner? Desde sempre ele manifestara-se céptico em relação àquela missão de paz, mas talvez tivesse acabado por aconselhá-la a participar, desde que deixasse bem claro à parte contrária que tinha intenção de ser uma negociadora pouco disposta a cedências. Se por acaso os árabes pensassem que ela seria o elemento mais fraco da delegação israelita, então era melhor que revissem a sua posição.

 

Verá que pensará de maneira diferente dentro de um ou dois dias, Miriam.

 

É possível que sim.

 

Não lhe apetecia discutir, ouvia a voz de Esther Aronson, vinda do interior da aeronave, que lia o Livro de Jeremias citando parcialmente o profeta:

 

«Porque, vede, trazê-lo-ei de longe, assim como a sua semente, da terra do cativeiro; e Jacob regressará...»

 

Semente? A sua semente trazida da Babilónia? Talvez e, sem que disso tivesse consciência, Miriam levou a mão ao ventre.

 

O ministro voltou a inclinar-se para ela, tocando-lhe de novo no ombro.

 

Eu estava a dizer que Hausner mostrou uma atitude... verdadeiramente altruísta, sem qualquer resquício de egoísmo, quer dizer... o facto de ter ficado para trás a fim de deter o avanço dos ashbals.

 

Altruísta?! retorquiu Miriam com um sorriso forçado. Jacob Hausner não conhecia o significado dessa palavra. O que o motivou foi, pura e simplesmente, o seu ego, posso garantir-lhe. Ele não queria ter de responder perante um inquérito... não só no que dizia respeito às cargas explosivas nos aviões, mas também em relação ao seu papel de liderança e da usurpação que fez da chefia, pois seria obrigado a responder por todos os que morreram enquanto foi o responsável pelas operações. Preferia morrer, penso eu, a ver-se obrigado a sentar-se no banco dos réus.

 

Miriam tentou esboçar outro sorriso, mas as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces e Ariel Weizman sentiu-se pouco à-vontade perante aquela manifestação de tristeza, limitando-se a dar-lhe uma palmadinha de conforto no braço.

 

Ora, deixe-se disso, talvez ele não tenha morrido.

 

Miriam começou a pensar no seu marido. Era também o que todos não se cansavam de lhe dizer a respeito dele. Na Europa, havia judeus que ainda afixavam mensagens verdadeiramente patéticas em quadros públicos para o efeito, gente que continuava a tentar encontrar os cônjuges, os filhos e as filhas, decorridos todos aqueles anos. Miriam fitou Ariel Weizman e a sua expressão adquiriu uma dureza como ele jamais lhe tinha visto.

 

Raios partam tudo isto, ele está morto! ripostou ela por entre dentes semicerrados. Morto! Maldito seja por ter desbaratado a sua vida e, ocultando a face nos braços, recomeçou a chorar.

 

Ambos tinham morrido e nem sequer lhe restava uma campa onde pudesse dar largas ao desgosto que sentia, tal como não podia visitar a sepultura dos seus progenitores, da irmã ou do padrasto. No seu passado nada havia de palpável, nada para que pudesse estender a mão e tocar, era como se aquelas pessoas nunca tivessem existido na sua vida, o que ainda era agravado por os locais a elas associados se encontrarem tão distantes do mundo em que vivia. Na Europa, na Babilónia. Sentiu-se assolada por um profundo sentimento de perda, por uma tristeza avassaladora. Jacob dissera-lhe que gritasse alto e bom som, que desse a conhecer ao mundo o sofrimento que sentia, mas era-lhe impossível, além de não estar na sua maneira de ser, proceder dessa forma, e ainda que o fizesse, isso não poria fim à dor que a atormentava. Se ao menos Hausner não lhe tivesse dito que a amava, ser-lhe-ia bastante mais fácil relegar as suas emoções para o plano de uma paixão passageira ou sentimento de insegurança, qualquer coisa que não reflectisse o que sentia naquele momento.

 

Miriam despertou das suas divagações com alguém a bater-lhe ao de leve no ombro. Um jovem membro da tripulação olhava-a atentamente, com um sorriso nos lábios, e entregou-lhe uma folha de papel dobrado.

 

Chegou uma mensagem via rádio para si.

 

Miriam ficou a olhar para o papel por uns instantes, após o que o desdobrou lendo a linha rabiscada a lápis: «Amo-te, Teddy.”

 

Tem resposta? perguntou o jovem.

 

Miriam limpou os olhos com as duas mãos, hesitou, mas acabou por abanar a cabeça.

 

Não, muito obrigada.

 

O tripulante, que não ocultava a surpresa, virou costas, afastando-se.

 

Miriam olhou de novo para a mensagem antes de a guardar na algibeira, e os seus dedos tocaram na estrela de prata que Jacob lhe oferecera. Tirou a mão do bolso, pensando que teria de tratar do assunto da semente de Jacob antes de resolver a sua situação com Teddy Laskov.

 

Laskov descreveu um último voo circular sobre a Babilónia. No solo nada dava a impressão de se mexer, excepção feita ao vento e à areia, além de um homem solitário que se dirigia para ocidente atravessando a zona plana de terras alagadas, com o o olhar preso no firmamento. O Concorde azul e branco encontrava-se parcialmente submerso no pequeno cais de Ummah, mas estranhamente não parecia muito desenquadrado naquela paisagem, reflectiu Laskov. A aeronave era o culminar de dois mil e quinhentos anos de desenvolvimento cultural e tecnológico e, contudo, entre ela e a aldeia nada havia em comum.

 

Laskov descreveu uma curva acentuada e rumou a ocidente, afastando-se do berço da civilização e da terra do exílio, sobrevoando o planalto de Chamiyé, sempre para poente com destino a Jerusalém. As asas articuladas do seu avião a jacto, abertas em toda a sua amplitude aquando do combate, tinham-se agora recolhido, semelhantes a uma capa, enquanto ele subia para uma altitude mais elevada, colocando-se, alguns minutos depois, ao lado dos C-130.

 

Miriam não respondera à declaração pública com que expressara o seu amor por ela, o que fazia com que se sentisse um tudo-nada idiota, mas apesar dessa desilusão sentia que era sua obrigação mostrar as cores do seu aparelho aos que seguiam a bordo dos dois C-130, era bom para o moral das pessoas. Passou entre os dois, inclinando as asas e descrevendo uma trajectória circular, enquanto imprimia mais velocidade ao caça. Depois, voltou a passar, acenando da sua carlinga, que se assemelhava a uma bolha de vidro, e de todas as janelas as pessoas retribuíram-lhe a saudação, enquanto circundava um dos aparelhos.

 

Miriam Bernstein levantou-se com alguma hesitação pondo-se ao lado dos outros, e quando o caça passou segunda vez por eles fez-lhe um aceno tardio, após o que deu meia volta, deixando-se cair no chão, onde adormeceu antes mesmo de se estender completamente ao comprido. David Becker tapou-a com um cobertor.

 

Laskov, já farto de tantas acrobacias, decidiu ganhar altitude, afastando-se do ângulo de visão dos pilotos das aeronaves de transporte e seguindo uma rota que o levaria a Jerusalém a uma velocidade superior à do som. Quando os sobreviventes aterrassem, trazendo ainda no corpo a poeira e a terra da Babilónia, já ele estaria à sua espera na pista do aeródromo, depois de ter tomado um duche e de ter vestido roupas de civil. No mundo moderno, as situações alteravam-se com uma celeridade quase inacreditável, tinha-se a impressão de não existir uma referência fixa, como a Estrela Polar, que servisse de orientação à navegação. Perguntava a si mesmo se Miriam teria mudado muito enquanto estivera na Babilónia. Não, nunca a Miriam que ele conhecia, uma mulher com uma maneira de ser estável, quase indiferente. De início, certamente que entre os dois haveria alguma frieza, o que por vezes acontece sempre que dois amantes se reencontram após uma separação, mas esse mal-estar acabaria por se dissipar.

 

Laskov elevou-se na estratosfera sem que para isso houvesse alguma razão, além de desejar ver o contorno curvilíneo da Terra abaixo de si, com as estrelas perpétuas no firmamento negro mais acima. Ali, as perspectivas de qualquer pessoa sofriam alterações. A Babilónia, Jerusalém, Deus, Miriarn Bernstein, Teddy Laskov. No vazio do espaço frio, onde o ar era irrespirável, tudo se resolvia por si próprio e ele compreenderia o significado daquelas componentes da sua vida ao avistar as cúpulas de Jerusalém.

 

Em Nova Iorque eram vinte e duas horas e as delegações árabe e israelita estavam reunidas no edifício das Nações Unidas. De quinze em quinze minutos eram distribuídas circulares vindas de Bagdade e Jerusalém, as quais davam conta da situação política em cada uma dessas cidades, até que os relatórios mais recentes, difundidos pelos teleimpressores, transmitiram finalmente notícias encorajadoras aos delegados das duas partes, e logo alguém abriu uma garrafa de araca, que circulou em volta da mesa.

 

Na sala de reuniões não se falava muito, embora a tensão tivesse ficado mais aliviada, e entre os dois grupos começara a desenvolver-se um sentimento de confiança, até mesmo de cordialidade. Um dos delegados árabes fez um brinde e pouco depois, todos o imitaram, enquanto bebiam vinho doce e araca.

 

Saul Ezer, um dos delegados permanentes da delegação israelita junto das Nações Unidas, comentou que, muito provavelmente, aquele seria o grupo que mais afinidades mostrara durante as conversações preliminares de uma conferência de paz, pelo menos de que ele tivesse conhecimento, por isso os delegados enviados por Israel e pelos países árabes, prestes a chegarem, encontrariam um terreno muito fértil. Levantou-se tranquilamente dirigindo-se à sala adjacente onde havia um telefone, ligou o número de um hotel no centro da cidade e voltou a fazer as reservas de quartos para os delegados da missão de paz israelita.

 

Shear-Jashub perdeu de vista a aeronave, que se afastava, e puxou as rédeas de forma a que o seu burro se dirigisse para oriente, atravessando as terras pantanosas, de regresso a Ummah. Aquele fora um interlúdio estranho no ritmo de vida imutável, que se perdia no tempo, do Eufrates.

 

Uma vez mais, alguns judeus deixavam a Babilónia e, uma vez mais, outros optavam por lá ficar. Shear-Jashub imaginou que haveria grandes celebrações em Jerusalém, mas para Ummah só existiriam incertezas. No entanto, caso a aldeia não conseguisse sobreviver, tal não sucederia às comunidades de Hilla e Bagdade, e ainda que estas viessem a ter o mesmo destino, isso não se verificaria simultaneamente em Jerusalém ou em qualquer outro local. Chegaria o dia em que Deus deixaria de pôr à prova os Seus filhos, e então todos os judeus dispersos poderiam regressar à Terra Prometida, imbuídos da certeza de que eles, os que haviam sido da Diaspora, não eram necessários fora do Sião, o que até então acontecera a fim de garantirem a continuidade do seu sangue.

 

À distância, o Sol erguia-se acima dos montes da Babilónia, e Shear-Jashub ergueu a cabeça bem ao alto, cantando numa voz clara que ecoava pelas planícies desertas e que ressoava através das águas do Eufrates até às ruínas da Babilónia.

 

E reunirei o que restar do meu rebanho, os que se encontram espalhados por todas as nações para onde os empurrei, fazendo com que regressem aos seus redis; e haverão de ser férteis, multiplicando-se; e dar-lhes-ei pastores que os alimentarão; e não mais voltarão a sentir medo, nem desalento, tão-pouco lhes faltará alguma coisa, disse o Senhor. 

 

                                                                  Nelson Demille

 

 

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