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LEGIÃO / Simon Scarrow
LEGIÃO / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A Vigésima Segunda Legião era composta por cerca de cinco mil e quinhentos homens. A unidade básica era a centúria, com oitenta homens comandados por um centurião, coadjuvado por um optio. A centúria dividia-se em secções de oito homens, os quais partilhavam um quarto numa caserna e uma tenda quando em campanha. Seis centúrias compunham uma coorte, e dez coortes constituíam uma legião, embora a primeira coorte tivesse o dobro do efetivo das outras. Cada legião era acompanhada por uma unidade de cavalaria com cento e vinte homens divididos por quatro esquadrões, que serviam como batedores e mensageiros. Em ordem decrescente de importância, as principais patentes na legião eram as seguintes:
O legado era um homem de uma família da classe equestre; nas legiões estacionadas fora do Egito, este posto era ocupado por alguém da classe senatorial, mais elevada. Um legado passava vários anos no comando de uma legião, esforçando-se por ganhar notoriedade, de forma a criar bases fortes para uma carreira política subsequente.
O prefeito do campo era um veterano que atingia o topo da carreira de um soldado profissional; teria previamente passado pelo posto de centurião-mor da legião.
Seis tribunos faziam as vezes de oficiais do estado-maior. Seriam homens de vinte e poucos anos, cumprindo um primeiro período de vida militar de forma a adquirirem alguma experiência de gestão, antes de ocuparem posições menores na administração civil. O tribuno-mor tinha outro estatuto. O seu destino era um elevado cargo político, e mais tarde o comando de uma legião.
Sessenta centuriões forneciam à legião uma verdadeira espinha dorsal, encarregando-se do treino e da disciplina dos homens. Eram escolhidos a dedo pelas suas capacidades de comando. O mais antigo destes centuriões comandava a Primeira Centúria da Primeira Coorte.
Os quatro decuriões da legião lideravam os esquadrões de cavalaria; para progredirem na carreira, tentavam a promoção ao comando de uma unidade de cavalaria auxiliar.
Cada centurião era assistido por um optio, que agia como um ordenança, com algumas responsabilidades de comando. Estes homens aguardavam que surgisse uma vaga no centurionato para poderem ser promovidos.
Abaixo dos optios ficavam os legionários, homens que se tinham alistado por um período de vinte e cinco anos. Em teoria, só os cidadãos romanos se podiam alistar, mas o recrutamento de populações nativas era crescente; nesse caso, esses homens viam ser-lhes atribuída a cidadania romana no preciso momento de entrada nas legiões.
Com um estatuto inferior aos legionários, havia os homens das coortes auxiliares. Estes eram recrutados nas províncias e forneciam ao Império Romano a cavalaria, infantaria ligeira e outras especialidades militares. A cidadania romana também lhes era outorgada, mas somente ao fim de vinte e cinco anos de serviço.

A Marinha Imperial Romana
Os romanos iniciaram-se no combate naval tardiamente, e só criaram uma marinha permanente durante o reinado de Augusto (27 a.C. - 14 d.C.). A força principal estava dividida em duas esquadras, baseadas em Miseno e Ravena; havia frotas menores colocadas em Alexandria e noutros portos importantes ao longo do Mediterrâneo. Além de manter a ordem romana no mar alto, era à marinha que competia patrulhar os grandes rios do Império, tais como o Reno, o Danúbio e, evidentemente, o Nilo.
Cada esquadra era comandada por um prefeito. Não lhe era exigida prévia experiência naval, e o posto tinha um caráter principalmente administrativo.
Nas patentes inferiores da marinha imperial era evidente a grande influência da prática naval grega. Os comandantes de esquadrão eram designados por navarcas, e cada um deles regia dez navios. Tal como os centuriões na legião, eram os oficiais de carreira da marinha. Se assim o desejassem, podiam pedir transferência para as legiões, onde seriam integrados com a patente de centurião. O mais velho dos navarcas de uma esquadra era conhecido como o Navarchus Princeps, e funcionava como o centurião mais antigo de uma legião, dando aconselhamento técnico ao prefeito sempre que tal lhe fosse pedido.
Cada um dos navios era comandado por um trierarca. Eram homens que, tal como os navarcas, provinham das fileiras, e eram responsáveis pelo funcionamento regular da sua embarcação.
Porém, o seu papel não correspondia ao de um moderno capitão de um navio militar. Encarregavam-se de tudo o que dizia respeito à navegação, mas, em combate, o oficial mais importante a bordo era quem estivesse à frente do contingente de fuzileiros do navio.
Quanto aos navios, o tipo mais vulgar era uma galera de pequenas dimensões, adequada a patrulhas de curta duração, normalmente designada por liburna. Eram propulsionadas por velas ou remos, e levavam a bordo um número reduzido de fuzileiros. Na mesma classe estava a birreme, ligeiramente maior e com maior capacidade de combate. Os navios mais pesados, trirremes, quadrirremes e quinquerremes, eram já raros na época em que se desenrola a ação deste livro, pouco mais do que relíquias de um tempo em que os combates navais tinham assumido outra importância.

 

 

 

 

 

 

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O comandante da base de abastecimentos de Epichos tomava a refeição matinal quando o optio de serviço no turno da alvorada lhe veio fazer um relatório. Caía um chuvisco - a primeira chuva em muitos meses - desde o nascer do dia, e a capa do optio estava coberta de gotículas que faziam lembrar pequenas contas de vidro.
- Sétimo, o que se passa? - indagou o trierarca Filipe com ar enfadado, enquanto mergulhava um naco de pão na tigela de garô que tinha à frente. Era hábito fazer uma ronda
matutina ao pequeno forte e depois regressar aos seus aposentos para tomar o pequeno-almoço, que detestava ver interrompido.
- Senhor, peço licença para anunciar que foi avistado um navio. Bordeja a costa, e dirige-se para aqui.
- Ora então, um navio? A passar por uma das vias marítimas mais frequentadas em todo o Império. - Respirou fundo para tentar disfarçar a impaciência. - E o vigia achou o caso
invulgar?
- Senhor, é uma nave de guerra. E dirige-se à entrada da baía. - O optio escolheu ignorar o sarcasmo e continuou a falar no mesmo tom monocórdico que usava desde que o trierarca
tinha assumido aquele posto, havia quase dois anos. A princípio Filipe tinha ficado maravilhado com aquela promoção. Passara anteriormente um longo período ao comando de uma
esguia liburna, parte da frota de Alexandria, e acabara por ficar mais do que farto da absoluta falta de oportunidades que se deparavam a um oficial de baixa patente no comando
de uma embarcação ligeira que raramente se aventurava para lá da entrada do porto oriental da cidade. A nomeação para a pequena base naval de Epichos dera-lhe independência,
e no início Filipe tinha feito um real esforço para a transformar num modelo de eficiência. Mas quando os meses se começaram a acumular, sempre iguais, sem qualquer sinal
de atividade, começou a tornar-se-lhe óbvio que tudo o que era pedido aos homens daquela base era que aprovisionassem as galeras ou outros navios imperiais que por vezes se
dirigiam ao pequeno porto enquanto percorriam a costa do Egito. A outra única função que Filipe tinha de desempenhar era o envio regular de patrulhas pelo delta
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do Nilo, para relembrar aos nativos que viviam sob o olhar atento dos seus
senhores romanos.
E assim Filipe gastava os seus dias a comandar meia centúria de fuzileiros, e outros tantos marinheiros, que tripulavam uma velha birreme - o Anúbis - que em tempos fizera
parte da frota que Cleópatra equipara para apoiar o seu amante Marco António na guerra que este travava contra Octaviano. Depois da derrota de António em Áccio, a birreme
tinha passado a integrar a marinha romana, como parte da esquadra de Alexandria, até que fora decidido enviá-la para Epichos, para apodrecer na praia em frente ao fortim de
tijolos de lama que dominava a baía.
Era um local desanimador, refletiu Filipe. A linha de costa do delta do Nilo era baixa e anónima, e a maior parte da baía era ladeada por mangals repletos de crocodilos, que
se deixavam ficar a flutuar como troncos caídos até que uma presa distraída se aproximasse o suficiente para ser atacada num repente. O trierarca vivia na ânsia de uma aventura.
Todavia, concluiu, o mais próximo que estaria dela naquele dia cinzento seria quando supervisionasse o embarque de biscoitos, água e das quantidades de cordame, vela ou madeiras
necessárias ao navio que se aproximava. E era por isso que lhe tinham vindo interromper o pequeno-almoço.
- Um navio de guerra, então? - Filipe deu uma dentada no pão e mastigou. - Ora, provavelmente anda em patrulha.
- Não me parece, senhor - retorquiu o optio Sétimo. - Fui ver ao livro de registos da base, e não há nenhum navio esperado em Epichos durante pelo menos mais um mês.
- Bom, então terá sido enviado nalguma missão especial - prosseguiu Filipe, despreocupado. - E o capitão resolveu vir a terra para recolher água e rações.
- Senhor, não será melhor dar ordens para os homens se equiparem?
Filipe olhou-o espantado.
- Porquê? Para que raio?
- Senhor, são as normas. O avistamento de um navio desconhecido implica que a guarnição seja colocada em estado de alerta.
- Não é um navio desconhecido, pois não? É uma galera militar. Ninguém mais possui uma marinha de guerra no Mediterrâneo Oriental. Portanto, trata-se de um navio dos nossos,
não desconhecido, logo não há qualquer necessidade de incomodar a guarnição, optio.
Sétimo não desistiu.
- Senhor, de acordo com os regulamentos, se o navio avistado não tem chegada prevista, é designado como desconhecido.
- Os regulamentos? - Filipe encheu as bochechas de ar. - Olha, optio, se for notado qualquer sinal de hostilidade, podes ir chamar a guarnição.
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Mas entretanto vai é informar o chefe da messe que se aproxima uma visita, e que ele e a sua equipa se devem preparar para a reabastecer. E agora, se me permites, vou mas
é terminar o meu pequeno-almoço. Ala.
- Sim, senhor. - O optio colocou-se em sentido, fez a saudação e rodou sobre os calcanhares, percorrendo a curta arcada que levava à saída dos aposentos do comandante. Filipe
suspirou. Sentia-se culpado pelo desdém com que tratara o homem. Sétimo era um bom oficial subalterno, eficiente, embora evidenciasse uma certa falta de criatividade. Tinha
tido toda a razão em citar as normas de execução permanente, as regras que o próprio Filipe tinha redigido com toda a atenção ao detalhe nos primeiros tempos depois de nomeado
para aquele posto, quando o entusiasmo pelo comando que lhe fora atribuído ainda lhe governava as ações.
Acabou com as últimas migalhas de pão, sorveu até ao fim o vinho diluído e levantou-se, para se dirigir ao quarto. Parou junto aos cabides na parede, e resolveu levar a placa
peitoral e o capacete. Podia muito bem apresentar cumprimentos formais ao comandante do navio, e garantir que os abastecimentos lhe eram entregues de forma eficiente, para
que ao menos chegasse ao comando da esquadra em Alexandria uma impressão favorável da sua atividade. Se mantivesse uma folha de serviços exemplar, havia sempre a possibilidade
de se ver promovido para uma posição de maior prestígio, e deixar Epichos para sempre.
Apertou as tiras sob o queixo e ajustou o capacete, passou o cinto da espada à bandoleira e deixou os aposentos. O forte era pequeno, mal tinha cinquenta passos de lado. As
muralhas de adobe tinham cerca de três metros de altura, e não constituiriam obstáculo de monta para um inimigo que decidisse atacar a base. E de qualquer maneira as próprias
paredes estavam cheias de fendas e zonas a esboroarem-se, e facilmente seriam derrubadas. A realidade, porém, era que não havia qualquer ameaça, considerou Filipe. A marinha
romana dominava os mares, e por terra o perigo mais próximo provinha do reino da Núbia, a centenas de quilómetros a sul; fora isso, só os bandos de salteadores árabes que
surgiam de vez em quando para saquear as povoações mais isoladas do Alto Nilo.
Os aposentos do trierarca situavam-se numa das extremidades do forte, entre o celeiro e o armazém de materiais de reparação naval. Seis blocos de casernas ladeavam a via que
percorria o centro do fortim e desembocava no portão fortificado. Um par de sentinelas colocou-se preguiçosamente em sentido quando ele se aproximou, e lá lhe fizeram o favor
de apresentar armas quando passou por entre elas, saindo do forte. O céu estava agora limpo, mas havia uma fina bruma na baía que se tornava mais espessa junto ao mangal,
dando ao emaranhado de canas, palmeiras e arbustos um aspeto vagamente fantasmagórico que perturbara Filipe nos primeiros tempos
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no novo posto. Mas desde então tinha muitas vezes acompanhado as patrulhas fluviais, e tinha-se acostumado aos habituais nevoeiros matinais do delta do Nilo.
No exterior do forte estendia-se uma longa faixa arenosa que orlava a margem da baía até ao mangal. Na direção oposta, a praia era substituída por um terreno pedregoso que
se projetava numa curva para o oceano, criando um esplêndido porto natural. Mesmo à frente do forte, a seco, jazia a birreme, a embarcação que pertencia à base. O carpinteiro-chefe
da guarnição tinha-lhe dedicado muitos meses, e ele e os seus homens tinham substituído tábuas gastas e apodrecidas, aplicado piche no casco, e reparado mastros e cordame.
O costado fora pintado, incluindo um elaborado desenho de olhos na proa. O navio estava agora pronto a regressar ao mar, mas Filipe duvidava sinceramente que aquele veterano
de Áccio pudesse voltar a enfrentar um combate. A curta distância do Anúbis erguia-se um pontão de madeira que entrava uns quarenta passos pela água dentro, para permitir
aos navios visitantes a acostagem junto ao forte.
Embora o Sol ainda não se tivesse erguido acima da neblina, o ar já estava quente, e Filipe planeou despachar rapidamente as formalidades ligadas à chegada daquele navio,
para poder remover a placa e o capacete. Virou-se e seguiu pelo caminho poeirento que levava ao posto de vigia. Era uma torre de pequenas dimensões, edificada sobre um dos
afloramentos rochosos no promontório que servia de quebra-mar. Na ponta deste existia outra torre, mais sólida, que guardava a entrada do porto. Tinha quatro balistas montadas
sobre as muralhas, e no centro um braseiro, de modo que qualquer navio inimigo que tentasse penetrar no canal de acesso ao ancoradouro se veria a braços com um bombardeamento
de projéteis incendiários.
Quando chegou ao posto de vigia, Filipe entrou no abrigo térreo e deparou-se com três dos seus fuzileiros sentados num banco, a conversar com toda a calma enquanto comiam
pão e peixe seco. Assim que o viram, ergueram-se e fizeram a saudação.
- À vontade, rapazes. - Filipe sorriu. - Quem foi o primeiro a avistar o navio?
- Eu, senhor - respondeu um dos fuzileiros.
- Muito bem, então, Hório, seguimos-te.
O homem largou o pão no prato de estanho, atravessou o interior da torre e subiu a escada que dava acesso à plataforma superior. O trierarca seguiu-o e emergiu junto a uma
pilha de lenha, preparada para ser acesa a qualquer momento. Parte do espaço era protegido por um telheiro de ramagens de palmeira entrelaçadas. A sentinela que tinha tomado
o lugar de Hório estava encostada ao corrimão de madeira gasta, e perscrutava o oceano. Filipe juntou-se aos dois homens e avaliou a embarcação que se
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aproximava da entrada da baía. A tripulação estava entretida a recolher a vela, feita de peles de cabra tingidas de escarlate e decorada com as asas abertas de uma águia.
Assim que a vela foi presa, viram-se os remos a ser projetados do costado e a mergulhar na ondulação fraca. Depois de uma curta pausa, percebeu-se que tinha sido dada a ordem
para estabelecer uma cadência, e então os remos subiram, avançaram e mergulharam, forçando a água para trás e fazendo avançar o navio.
Filipe virou-se para Hório.
- De que direção vinha, antes de aproar a terra?
- Do ocidente, senhor.
O trierarca anuiu para si mesmo. Vinha portanto do lado de Alexandria. O que não deixava de ser estranho, uma vez que nenhuma galera tinha passagem prevista pelo posto durante
pelo menos mais um mês, para deixar despachos e ordens, bem como a arca com o pagamento dos homens. Observou a embarcação a passar junto à torre de guarda à entrada do porto
e a vogar sobre as águas calmas, a caminho do pontão. Conseguia perfeitamente ver os marinheiros e fuzileiros encostados à amurada, a apreciarem a vista da baía. Na torre
de madeira na proa do navio avistava-se uma figura de elevada estatura com um capacete emplumado, de mãos apoiadas no parapeito enquanto perscrutava o pontão e o forte por
trás dele.
Um movimento junto ao forte captou-lhe a atenção; avistou Sétimo e o chefe da messe, com uma pequena escolta de marinheiros, a dirigirem-se para o pontão.
- Bom, será melhor juntar-me à comissão de receção - comentou para si mesmo. Deitou uma última olhadela à embarcação que cruzava a baía, uma imagem de graciosidade eficiente
contra o fundo tranquilo do mangal distante. Virou-se por fim para descer as escadas.
Quando chegou à extremidade do pontão, já o navio tinha abrandado e a ordem para interromper a remada foi distintamente escutada pelos três oficiais e pelos marinheiros que
se preparavam para acolher os visitantes. Os remadores mantiveram as pás mergulhadas, e a resistência da água depressa fez desaparecer o impulso que animava o navio para a
frente.
- Recolher remos!
As madeiras entrechocaram-se com um som surdo, e os remos desapareceram através das aberturas no costado da liburna, que continuou a vogar, rodando de forma a alinhar-se com
o pontão, graças ao esforço dos homens ao leme. Filipe conseguia agora distinguir claramente o oficial à proa: alto e de ombros largos, e mais novo do que ele esperava. Manteve-se
impassível enquanto o seu trierarca dava ordens para os marinheiros prepararem os cabos de amarração. Enquanto o navio se aproximava do pontão, os cabos foram lançados por
homens à proa, serpenteando
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pelo ar até serem apanhados pelos homens de Filipe, que depois os usaram para puxar o navio, até que o costado se encostou a chiar aos molhos de canas entrelaçadas que protegiam
dos embates os suportes do pontão. Outro cabo foi lançado à popa, e pouco depois o navio estava atracado em segurança.
O oficial desceu da torre e atravessou o convés enquanto os marinheiros abriam uma portinhola a bombordo e faziam descer uma prancha até ao pontão. Um destacamento de fuzileiros
do navio tinha formado no convés, e o oficial acenou-lhes enquanto descia para o pontão. Filipe avançou para o saudar, estendendo a mão.
- Sou o comandante desta base, trierarca Filipe.
O oficial pegou-lhe na mão num aperto poderoso e acolheu a apresentação sem entusiasmo.
- Centurião Macro, destacado para a frota de Alexandria. Temos de falar, no teu quartel-general.
Filipe não evitou arregalar os olhos de surpresa, e deu conta dos olhares preocupados trocados entre os seus subordinados, ali mesmo ao lado.
- Falar? Aconteceu alguma coisa?
- As minhas ordens são para só discutir o assunto em privado. - O oficial acenou na direção dos outros homens no pontão. - Não em frente de outros. Indica o caminho, por favor.
Filipe ficou surpreso perante os modos bruscos do oficial mais jovem. O homem devia ter chegado de Roma havia pouco tempo, sem dúvida, e portanto estava ainda inclinado a
tratar os militares locais com a arrogância típica da sua laia.
- Muito bem, centurião, por aqui.
Virou-se e começou a afastar-se ao longo do pontão.
- Um momento - pediu o centurião Macro. Voltou-se para os fuzileiros que esperavam no convés. - Venham comigo!
Desceram a prancha e formaram por trás do centurião; eram vinte fuzileiros bem armados, todos eles maciços e musculados. Filipe franziu o sobrolho. Tinha esperado limitar-se
a trocar algumas amabilidades e notícias antes de dar ordens para o chefe da messe tratar de suprir as necessidades do navio. Não imaginara um encontro tão tenso. O que teria
aquele oficial a comunicar-lhe de tão importante que tinha de ser dito em privado? Com uma pontada de ansiedade, perguntou-se se teria sido falsamente implicado nalgum crime
ou conspiração. Fez um gesto para o oficial, para que o seguisse, e a pequena coluna dirigiu-se para terra firme. Filipe atrasou o passo até ficar ao lado do centurião e perguntou-lhe
em voz baixa:
- Pode dizer-me a que se deve tudo isto?
- Sim, muito em breve. - O oficial olhou-o e soltou um ligeiro sorriso.
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- Nada que te deva preocupar, trierarca. Só preciso de te fazer algumas perguntas.
Filipe ficou longe de se sentir sossegado perante tal resposta, e manteve-se em silêncio até chegarem ao fim do pontão e continuarem em direção aos portões do forte. As sentinelas
aprumaram-se quando os oficiais e fuzileiros se aproximaram.
- Calculo que não recebam muitas visitas aqui por estas bandas - comentou o centurião Macro.
- De facto, não - retorquiu Filipe, com alguma esperança de que aquele comentário começasse a revelar um aspeto mais conversador da personalidade aparentemente distante do
interlocutor. - Uma patrulha naval de vez em quando, correios imperiais. Para lá disso, algumas embarcações danificadas em tempestades de inverno, e pronto. Epichos tem vindo
a cair no esquecimento. Não me surpreenderia que o governador lá em Alexandria resolvesse reduzir a dimensão desta base.
O centurião lançou-lhe um olhar.
- Estás a ver se pescas alguma razão para a minha presença?
Filipe olhou para ele e encolheu os ombros.
- Evidentemente.
Tinham entrado no forte, e o centurião Macro deteve-se e olhou em redor. A base estava em completo sossego. A maior parte dos homens estava nas casernas. As sentinelas que
tinham feito os turnos noturnos estavam a acabar a sua refeição matinal, para depois irem descansar. Outros homens estavam sentados por ali, a jogar aos dados ou a conversar
calmamente. Os olhos atentos do centurião Macro absorveram todos os detalhes.
- Tens aqui um belo posto, calmo e tranquilo, Filipe. Bem escondido, também. Mas imagino que tenhas boas reservas de mantimentos.
Filipe assentiu.
- Sim, temos uma boa quantidade de cereais e todos os materiais que podem ser necessários a bordo. Não tem havido grande procura nos últimos tempos.
- Perfeito - murmurou o centurião Macro. Yirou-se e acenou ligeiramente ao optio que comandava o grupo de fuzileiros que tinha desembarcado. - Karim, chegou o momento.
O optio assentiu e falou aos seus homens.
- Tratem deles.
Perante o olhar abismado de Filipe, quatro dos fuzileiros brandiram repentinamente as suas espadas e avançaram sobre as sentinelas do portão. Estas mal tiveram tempo de se
voltar quando escutaram o ruído feito pelos homens que se aproximavam, e logo foram abatidas numa fúria de golpes selváticos; não tiveram sequer hipótese de gritar um aviso.
Filipe olhou
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horrorizado enquanto os corpos se abatiam sobre o solo de ambos os lados do portão. Virou-se para o centurião Macro, incrédulo.
O outro sorriu-lhe. Ouviu um raspar metálico, adivinhou um movimento relampejante, e sentiu uma dor súbita no estômago, como se lhe tivessem dado um potente murro. Outro golpe
deixou o trierarca em agonia. Olhou para baixo e viu a mão do outro homem cerrada no punho de uma adaga. À vista estava apenas um pequeno pedaço da lâmina, o resto desaparecia
nas dobras da sua própria túnica, mesmo por baixo da placa peitoral. Uma mancha vermelha espalhava-se já pelo tecido, embora Filipe continuasse sem perceber bem o que se estava
a passar. O centurião retorceu a lâmina, lacerando órgãos vitais. Filipe tentou respirar e agarrou o braço do outro com as duas mãos.
- O que é isto? O que está a fazer?
O centurião extraiu a faca, e Filipe sentiu o afluxo de sangue quente a jorrar da ferida. Largou o braço do outro quando sentiu as pernas a fraquejar, e tombou de joelhos,
continuando a olhar para o centurião com um horror que o deixava mudo. Pelo portão avistava ainda os corpos das sentinelas e, para além deles, surgiu-lhe à vista um dos fuzileiros;
à frente da entrada do forte, ergueu a espada três vezes no ar. Devia ser um sinal pré-combinado, percebeu Filipe, já que no momento seguinte um clamor vindo da liburna revelou
que havia homens que tinham estado escondidos no convés, e que agora saltavam para o pontão. Filipe viu o chefe da messe tentar empunhar a espada mas ser subjugado e abatido
num rápido faiscar de lâminas, e o optio e os marinheiros mais próximos depressa sofreram o mesmo destino. Estavam mortos antes mesmo de conseguirem desembainhar as suas armas.
A massa de atacantes corria já pelo pontão e dirigia-se à entrada do forte.
Filipe deixou-se abater contra a parede da casa da guarda e desapertou a placa peitoral. Deixou o metal cair e fez pressão com as mãos sobre a ferida, enquanto soltava um
gemido de dor. O oficial que o ferira mantinha-se por perto. Tinha guardado a adaga e gritava ordens aos homens que invadiam o forte, derrubando qualquer oposição. Moribundo,
Filipe nada mais podia fazer do que contemplar os acontecimentos. Os seus homens, fuzileiros ou marinheiros, eram massacrados à frente dos seus olhos. Os que tinham estado
a jogar dados junto às casernas, e outros que tinham vindo para o exterior ao primeiro sinal de confusão, estavam já mortos. Havia gritos abafados e imprecações no interior
das casernas, sinal de que mais soldados estavam a ser mortos lá dentro. Ao fim da rua, um punhado de homens que tinha conseguido pegar em armas tentou deter os atacantes,
mas não foram capazes de oferecer resistência de nota aos experientes adversários, que facilmente lhes ampararam os golpes e os aniquilaram.
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O centurião olhou em redor do forte e anuiu para si mesmo, satisfeito, antes de se voltar e contemplar mais uma vez Filipe.
O trierarca limpou a garganta.
- Quem és tu?
- O que é que isso te importa? - O outro encolheu os ombros. - Estarás morto daqui a pouco. Pensa é nisso.
Filipe sacudiu a cabeça, tentando clarear a visão, cujos cantos já eram afetados por filamentos escuros que a escureciam, como uma teia que começasse a cobri-lo. Sentia-se
zonzo, e tinha as mãos cobertas de sangue enquanto tentava de forma infrutífera estancar a hemorragia que lhe drenava as forças. Humedeceu os lábios.
- Quem és?
O homem desapertou as correias do capacete e tirou-o, antes de se agachar ao lado de Filipe. Tinha o cabelo escuro e encaracolado, e a fina linha de uma antiga cicatriz atravessava-lhe
a testa e a face. Ostentava um físico poderoso, e mostrava-se perfeitamente equilibrado enquanto se sentava sobre os calcanhares. Fixou o olhar nos olhos do centurião sem
vacilar.
- Se de alguma forma te conforta dares um nome à morte, fica então a saber que foi Ajax, filho de Telémaco, o responsável pelo teu fim e pela destruição dos teus homens.
- Ajax - repetiu Filipe. Engoliu em seco e sussurrou uma pergunta:
- Porquê?
- Porque tu és meu inimigo. Roma é minha inimiga. Hei de matar romanos até ser morto. Assim são as coisas. Prepara-te, chegou a tua hora.
Ergueu-se e brandiu a espada. Os olhos de Filipe esbugalharam-se de terror. Lançou para cima uma mão ensanguentada.
- Não!
Ajax franziu o sobrolho.
- Já estás morto. Tenta enfrentar o fim com alguma dignidade.
Depois de um momento de imobilidade, Filipe baixou a mão e virou a
cabeça de lado, expondo a garganta. Cerrou os olhos com força. Ajax puxou atrás o braço, assestou a ponta da espada na cova da clavícula do trierarca, e empurrou a lâmina
com toda a força. Arrancou-a de imediato, fazendo saltar um jato de líquido escarlate. Os olhos de Filipe abriram-se num repente, a boca descaiu e ele tentou dizer algo antes
de se esvair em sangue, os membros a tremer, até se imobilizar por completo. Ajax usou a manga da túnica do morto para limpar a espada, e voltou a colocá-la na bainha com
um estalido metálico.
- Karim!
Um dos homens, um oriental de tez escura, apresentou-se em passo de corrida.
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- Senhor?
- Leva cinco homens e passa o edifício a pente fino. Liquida os feridos e outros quaisquer que possam ter escapado. Levem os corpos para o outro lado da baía e despejem-nos
no mangal. Os crocodilos encarregar-se-ão de os fazer desaparecer.
Karim anuiu, mas ao olhar por cima da cabeça do seu líder, esticou um braço, apontando.
- Olha!
Ajax virou-se e avistou uma fina coluna de fumo que subia para o céu límpido, para lá da muralha do forte.
- É a torre de vigia. Acenderam o sinal. - Olhou rapidamente em redor e chamou dois dos seus lugares-tenente. Dirigiu-se primeiro a um núbio alto e musculado. - Hépito, leva
o teu grupo até lá, e depressa. Liquida-os e apaga imediatamente o fogo. Canto, ocupa-te da torre à entrada da baía.
Hépito assentiu e desatou a correr para o portão enquanto berrava ordens aos seus homens para que o seguissem. O outro homem, Canto, tinha tez morena e fora em tempos um ator
em Roma, antes de se ver condenado à arena por ter seduzido a esposa de um proeminente e vingativo senador. Sorriu a Ajax e acenou ao seu grupo para o acompanhar. Ajax desviou-se
ligeiramente para os deixar passar, antes de se dirigir aos degraus de madeira que davam acesso à muralha, pelo interior do torreão. Emergiu rapidamente na plataforma sobre
o portão. Avaliou a base, notando a posição do forte em relação à baía, e as pequenas embarcações para patrulhas fluviais puxadas para a praia junto ao começo do mangal, onde
um braço de rio dava acesso ao interior. Olhou para o outro lado a tempo de ver Hépito e os seus homens a irromperem pelo posto de vigia e a extinguirem o sinal. A coluna
de fumo que manchava o céu começou de imediato a desvanecer-se.
Ajax coçou os pelos que lhe cresciam no queixo, enquanto ponderava a situação. Havia meses que ele e os seus homens fugiam dos romanos que os perseguiam. Tinham-se visto obrigados
a procurar enseadas isoladas na costa e a perscrutar constantemente o horizonte, sempre atentos a qualquer sinal do inimigo. Quando os víveres escasseavam, o navio fazia rápidas
surtidas para capturar navios mercantes isolados, e para atacar pequenas povoações costeiras. Em duas ocasiões tinham avistado navios da marinha romana. Da primeira vez os
romanos tinham virado de bordo para os perseguir e tinham-nos seguido mesmo depois de cair a noite, até que os fugitivos tinham mudado de rota, voltando para trás e acabando
por despistar os perseguidores já nascia a alvorada. Na ocasião seguinte, Ajax tinha-se visto obrigado a manter vigilância numa ilhota rochosa enquanto duas naves de
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guerra passavam pela enseada escondida onde a sua embarcação tinha sido ocultada, com o mastro disfarçado por ramagens de palmeira a ele atadas.
A tensão de passar tanto tempo em fuga tinha-se feito sentir entre os seus seguidores. Ainda lhe eram leais, e obedeciam às ordens sem as questionar, mas Ajax tinha consciência
de que alguns começavam a perder a esperança. Não se podia esperar que aguentassem eternamente o medo, quotidianamente renovado, de serem capturados e crucificados. Precisavam
de um novo propósito, como o que tinham tido em mente quando o tinham seguido durante a revolta de escravos em Creta. Olhou em redor para a base e anuiu para si mesmo, satisfeito.
Tinha agora uma segunda embarcação, e reservas de alimentos e equipamento que dariam para muitos meses. E aquele posto era uma base perfeita para prosseguir a sua luta contra
o Império Romano. A sua expressão endureceu ao recordar todo o sofrimento que Roma lhe tinha infligido, bem como aos seus seguidores. Anos de escravidão, os perigos da vida
como gladiador. Mais uma vez decidiu que Roma tinha de pagar por tudo o que fizera. E enquanto os seus homens estivessem decididos a segui-lo, não daria descanso aos seus
inimigos.
- Por agora, perfeito - disse a si mesmo em tom calmo, enquanto continuava a contemplar a base romana. - Isto vai servir mesmo muito bem.
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2

O centurião Macro lançou as pernas sobre a borda do estrado e espreguiçou-se enquanto lançava um grunhido, antes de se pôr cautelosamente em pé. Apesar de ser baixo e entroncado,
tinha de andar de pescoço dobrado, para não bater com a cabeça nas pesadas tábuas do convés que ali faziam a vez de teto. A cabina, alojada no canto da popa de um navio de
guerra, era acanhada. Pouco mais cabia nela do que a cama, uma pequena mesa com uma arca por baixo, e uns cabides para a túnica, armadura, capacete e espada. Coçou o traseiro
através do tecido da tanga e bocejou.
- Merda de galeras - resmungou. - Quem é que, no seu perfeito juízo, alguma vez se ofereceria para a marinha?
Havia já mais de dois meses que estava a bordo, e começava a duvidar de que a pequena força que tinha sido enviada em perseguição do gladiador e dos seus seguidores sobreviventes
alguma vez viesse a descobri-los. Já passara mais de um mês desde a última vez que o navio de Ajax fora avistado, ao largo do Egito. Tinham-no seguido, e num dado momento
tinham mesmo descortinado uma vela no horizonte, mas durante a noite que se seguira tinham perdido o contacto. E desde então a busca tinha-se revelado infrutífera. Os dois
navios romanos tinham varrido a costa africana, chegando a Lepcis Magna antes de inverterem o rumo e seguirem para leste, sempre atentos ao mais pequeno sinal de Ajax e dos
seus homens. Dois dias antes tinham passado ao largo de Alexandria, com as provisões quase gastas, mas Cato - o prefeito que comandava a missão - continuava decidido a levar
os homens até ao limite antes de interromper a perseguição para reaprovisionar os navios. E por isso ali estava o centurião Macro, esfomeado, frustrado e completamente farto
daquela história sem fim à vista.
Enfiou a túnica pela cabeça e subiu as estreitas escadas de acesso ao convés. Ia descalço, já que rapidamente tinha compreendido que havia inúmeras desvantagens no uso de
botas militares a bordo. As tábuas polidas do convés revelavam-se extremamente escorregadias quando molhadas, pelo que Macro e os outros soldados se viam aflitos para manter
o equilíbrio em cima de solas cardadas. Tinham sido colocadas a bordo duas centúrias de legionários, para reforçar os contingentes de fuzileiros; uma medida necessária,
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já que Ajax e os seus homens, muitos dos quais antigos gladiadores, como o seu líder, já tinham mostrado que estavam perfeitamente ao nível dos melhores soldados do exército
romano.
Assim que avistou Macro a sair para o convés, o trierarca aproximou-se e lançou-lhe uma saudação.
- Senhor, está uma bela manhã.
- Ah, sim? - resmungou Macro. - Aqui estou eu, num navio minúsculo e a abarrotar de gente, rodeado por esta maldita sopa salgada, nem um jarrito de vinho para me fazer companhia.
Não vejo nada de belo na situação.
O trierarca, Polemo, cerrou os lábios e olhou em redor. O céu estava praticamente limpo, à exceção de uns brilhantes farrapos de nuvens que vogavam no zénite. Soprava uma
brisa constante e agradável, que mantinha a vela perfeitamente enfunada, com uma curva como a barriga de um conviva satisfeito depois de um banquete, e a ondulação era gentil,
mantendo o navio num ritmo de sobe-e-desce constante e confortável. A direita estendia-se uma pachorrenta fita castanha, a costa distante. Do outro lado, o horizonte estava
desimpedido. Um quarto de milha à frente seguia o outro navio, que deixava uma esteira de água esbranquiçada. Feitas as contas, pouco mais podia um marinheiro desejar, considerou
o trierarca.
- Alguma novidade? - indagou Macro.
- Sim, senhor. Abrimos hoje a última barrica de carne de borrego salgada. O biscoito acaba amanhã, e as rações de água foram já reduzidas a metade. - O trierarca evitou cuidadosamente
qualquer sugestão quanto à difícil situação das provisões. A decisão sobre o caminho a seguir não lhe cabia, nem sequer a Macro. Era ao prefeito apenas que competia dar as
ordens para se dirigirem ao porto mais próximo e embarcarem os produtos necessários para prosseguir viagem.
- Hmmm. - Macro franziu o sobrolho. Os dois homens lançaram um olhar simultâneo à outra embarcação, como se tentassem ler a mente do prefeito Cato. O prefeito tinha conduzido
a perseguição como um homem obcecado, que nada mais via nem considerava. Macro entendia perfeitamente essa obsessão. Já servia com Cato havia alguns anos, e até muito recentemente
fora seu superior hierárquico. A promoção de Cato tinha sido merecida, e Macro aceitava o facto sem problemas, mas ainda sentia alguma estranheza na inversão da relação entre
ambos. Cato ainda andava pelos vinte e poucos anos, e era uma figura magra e seca que não revelava a dureza e coragem do espírito que a habitava. Além disso, tinha miolos,
miolos que em muitas ocasiões lhes tinham permitido esgueirar-se por entre os muitos perigos que tinham enfrentado nos últimos anos. Se
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Macro se visse um dia forçado a escolher um homem a quem seguir, seria por certo alguém como Cato. O veterano tinha passado quase quinze anos na legião antes de ser promovido
a centurião, e tinha acumulado experiência suficiente para lhe permitir reconhecer o potencial de outros homens; e ainda assim tinha-se equivocado acerca de Cato, reconheceu
com um sorriso triste. Quando o jovem surgira no forte ocupado pela Segunda Legião na fronteira do Reno, Macro tinha considerado que aquele miúdo magricela poucas hipóteses
tinha de sobreviver ao treino que o esperava. Mas Cato desmentira-o categoricamente. Tinha revelado determinação, inteligência e, acima de tudo, coragem, e tinha-lhe salvo
a vida logo na primeira escaramuça em que se vira envolvido, frente a uma tribo germânica que resolvera atravessar o grande rio que marcava a fronteira do Império. Desde então,
Cato tinha provado uma vez e outra que era um soldado de primeira classe, bem como o maior e mais próximo amigo que Macro alguma vez tivera. E agora tinha chegado a prefeito,
e era pela primeira vez superior hierárquico de Macro. Era uma situação nova, com que os dois homens continuavam a debater-se.
A determinação que o prefeito mostrava na caça a Ajax era tanto motivada pelo desejo de vingança como pela necessidade de cumprir as ordens que recebera. Apesar de lhe ter
sido pedido que, se possível, capturasse Ajax vivo e o levasse acorrentado para Roma, Cato não se mostrava muito inclinado para aceder a essa pretensão. Durante a revolta
dos escravos em Creta, Ajax tinha capturado a mulher que estava prometida ao jovem prefeito. Júlia tinha sido mantida numa jaula, no meio da sua própria imundície, coberta
apenas por trapos, enquanto Ajax a atormentava com promessas de tortura e morte. Macro fora capturado na mesma ocasião e partilhara a jaula com a jovem, e o seu desejo de
vingança era quase tão grande como o do seu superior.
O trierarca pigarreou.
- Senhor, acha que será hoje que teremos ordens para aproarmos a terra e recolhermos mantimentos?
- Quem sabe? - Macro encolheu os ombros. - Depois do pequeno incidente de ontem, já não tenho certezas.
O trierarca assentiu. Ao fim do dia anterior, as duas embarcações tinham-se dirigido a uma pequena aldeia costeira, com o objetivo de ancorar para passar a noite. Ao aproximarem-se
da costa, tinham observado com espanto a forma como os habitantes das míseras cabanas de adobe fugiam, levando tudo o que tinham de valor e a maior quantidade de mantimentos
que conseguiam carregar. Um grupo de legionários tinha vasculhado cuidadosamente a aldeia, e tinha regressado ao navio de mãos a abanar. Ninguém ficara para trás, e se havia
comida, tinha sido escondida
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com todo o cuidado. O único sinal de algo extraordinário na aldeia eram várias sepulturas recentes, bem como as ruínas calcinadas de alguns edifícios. Sem ninguém a quem interrogar,
os legionários tinham regressado aos navios, que durante a noite tinham sido atacados com fundas. Macro avistara apenas alguns vultos escuros recortados contra o fundo mais
claro da praia. Os impactos de projéteis nos cascos e sobre as cobertas e os mergulhos da metralha no mar tinham prosseguido durante toda a noite. Dois dos fuzileiros tinham
sofrido ferimentos antes de terem sido dadas ordens para os homens se protegerem. O ataque terminara antes da madrugada, e os dois navios tinham largado o pano ao alvorecer
para prosseguir a sua busca.
- Ó do convés! - gritou o vigia no cimo do mastro. - O Sobek está a deixar passar o vento!
O trierarca e Macro olharam para a frente ao mesmo tempo. A vela do outro navio dançava ao vento, depois de a tripulação a ter soltado, fazendo diminuir a velocidade da embarcação.
- Ao que parece, o prefeito quer conferenciar - sugeriu o trierarca.
- Depressa o saberemos. Coloca-nos a par com eles - ordenou Macro. Depois virou-se e regressou à cabina para apanhar a espada e a vareta, bem como calçar as botas, de forma
a surgir mais apresentável à frente do superior. Quando regressou ao convés, já o seu navio, o íbis, se aproximava da amurada do outro. Avistou Cato à ré, a colocar as mãos
em concha e a chamar.
- Centurião Macro! Venha a bordo!
- Sim, senhor! - respondeu Macro, e acenou ao trierarca. - Polemo, vou precisar do bote.
- Sim, senhor. - O oficial virou-se para os tripulantes, dando ordens para retirar o bote do recanto no convés onde estava preso. Vários marinheiros puxaram uma corda que
passava por uma roldana, enquanto outros ajeitavam a pequena embarcação de forma a passar sobre a amurada e a descer para a superfície da água. Seis homens desceram e pegaram
nos remos, e só então Macro desceu pela escada de corda, encaminhando-se cuidadosamente para a popa e sentando-se de imediato. No momento seguinte o bote pôs-se em andamento
e os marinheiros esforçaram-se aos remos, dirigindo-o para o Sobek. Ao aproximarem-se, um dos homens baixou o remo, pegou num gancho e puxou o laço da corda dependurada da
amurada. Macro pôs-se de pé, tentou estabilizar-se e esperou que o bote subisse com a ondulação para se atirar para a escada de corda estendida no costado do Sobek. Subiu
rapidamente, antes que a vaga seguinte o pudesse alcançar. Cato esperava-o.
- Venha comigo.
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Dirigiram-se para a proa, onde Cato deu uma ordem seca a dois marinheiros para se retirarem, de forma a que os dois oficiais pudessem conversar sem serem escutados. Macro
sentiu-se preocupado ao reparar no aspeto emaciado do amigo. Tinham passado alguns dias desde a última vez que tinham estado cara a cara, e Macro voltou a reparar nas olheiras
que o jovem exibia. Cato inclinou-se para a frente, descansando um cotovelo na espessa viga de uma antepara, enquanto se virava para Macro.
- Como estão de mantimentos no íbis?
- Ainda aguentamos uns dois dias, se reduzir a ração de água dos homens para um quarto. Depois disso, mesmo que encontremos o Ajax, os homens já não estarão em condições de
combater, senhor.
Um traço de irritação atravessou o rosto de Cato quando ouviu Macro tratá-lo como superior hierárquico. Tossicou.
- Ouça, Macro, pode muito bem esquecer o "senhor" quando ninguém nos está a ouvir. Conhecemo-nos suficientemente bem para isso.
Macro olhou em redor, avaliando a presença dos homens espalhados pelo convés, e virou-se para o jovem.
- Bem, meu caro, a verdade é que agora és um prefeito, e os homens esperam que eu te trate como tal.
- Sem dúvida. Mas quando precisar de falar consigo com toda a franqueza, em privado, é como amigos que conversamos, está bem?
- Isso é uma ordem? - retorquiu Macro em tom austero, mas os lábios não conseguiram manter-se firmes e traíram a sua verdadeira e divertida disposição. Cato rebolou os olhos.
- Ora, poupe-me aos sentimentos feridos de um antigo colega centurião, sim?
Macro anuiu e sorriu.
- Muito bem então. Qual é o plano?
Embora esgotado, Cato fez um esforço de concentração.
- A pista do Ajax arrefeceu. E os homens precisam de descanso.
- E não são os únicos. Devias olhar para ti.
Cato ignorou o comentário e prosseguiu.
- Ambos os navios estão praticamente sem mantimentos. Vamos virar de bordo e rumar para Alexandria. Estamos a uns três dias do porto, portanto temos de encontrar algum lugar
onde possamos obter água e rações. Só espero não ter a mesma receção de ontem. - Franziu o cenho e abanou a cabeça. - Aquilo foi muito estranho.
- Talvez tenham pensado que éramos coletores de impostos. - Macro encolheu os ombros. - Não posso dizer que a hospitalidade dos nativos me impressione por aí além. Espero
bem que nos deem melhor tratamento em Alexandria. Se todos os monhés forem tão amigáveis como aquele
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bando, ficarei bem contente quando esta perseguição terminar e pudermos voltar para Roma.
- Isso pode ainda estar bem distante, Macro. As ordens que recebemos são claras. Temos de destruir o Ajax, a qualquer preço, leve o tempo que levar. E será isso que tentaremos
fazer, pelo menos até recebermos novas ordens. Nenhuma província romana, nem sequer o Imperador Cláudio, se podem permitir descansar enquanto o Ajax e os seus homens estiverem
livres. Viu de perto como ele é capaz de inspirar os que o seguem. Se ele voltasse a erguer o estandarte da revolta algures no Império, os escravos depressa se lhe juntariam,
e em massa. Enquanto ele viver, será uma tremenda ameaça para o Império. Se Roma cair, será o caos, e todos os que viveram até hoje sob a proteção das legiões, homens livres
e escravos, sofrerão às mãos de invasores bárbaros. E é por isso que temos de o encontrar e aniquilar. Além disso, temos contas pessoais a ajustar com ele, eu e você.
- Seja, tens razão. Mas, e se ele conseguiu enganar-nos? O Ajax pode estar em qualquer lado. Pode estar na outra ponta do Mediterrâneo, ou lá para cima, para o Mar Negro.
Até pode ter abandonado o navio e ter-se introduzido por África dentro. E nesse caso temos tantas hipóteses de o encontrarmos como as de darmos com um advogado honesto na
Subura lá em Roma. E por falar nisso, tu tens uma bela razão para querer regressar o mais depressa possível. - Macro baixou o tom de voz. - Depois de tudo o que sucedeu, a
Júlia precisa de te ter ao seu lado.
Cato olhou para longe, para as profundezas azuis do oceano.
- Macro, a Júlia tem estado no meu pensamento quase todos os dias. Penso nela, e depois lembro-me dela naquela jaula imunda em que o Ajax vos manteve aos dois. Imaginar o
que ela passou atormenta-me o espírito.
- Passei pela mesma coisa - relembrou Macro em tom calmo. - E ainda aqui estou. O mesmo Macro de sempre.
Cato encarou-o com intensidade, de forma quase feroz.
- Será? Às vezes...
- O que queres dizer com isso?
- Macro, conheço-o bem, sou capaz de ver o azedume que o preenche.
- Azedume? E porque não? Depois de tudo o que aquele cabrão nos fez passar.
- E o que é que ele vos fez passar? Exatamente? Nunca me contou grande coisa. E a Júlia também não, antes de deixarmos Creta.
Macro observou o amigo com atenção.
- E perguntaste-lhe?
- Não... Não a quis obrigar a reviver aquele terror.
- Ou será que foste tu quem não quis de facto saber? - Macro abanou
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a cabeça com pesar. - Não perguntaste, e eis-te agora forçado a imaginar. Não é isso?
Cato aguentou-lhe o olhar, mas acabou por anuir.
- Sim, é mais ou menos isso; isso e o facto de não ter feito nada para vos ajudar.
- Não havia nada a fazer. Nada. - Macro descansou os cotovelos sobre a amurada. - Cato, não te culpes. Isso não vai levar a nada. Não te vai ajudar a apanhar o Ajax. Além
disso, tudo o que precisas de saber é que a Júlia é uma mulher forte. Por muito que tenha passado, dá-lhe algum tempo e ela há de superar isso.
- Como você?
- Eu resolverei isto à minha própria maneira - ripostou Macro com firmeza. - Se aos deuses aprouver colocar o Ajax no meu caminho, hei de cortá-los rentes e fazê-lo engolir
os próprios tomates antes de acabar com ele. Juro-o, por todos os deuses a que alguma vez ofereci uma prece.
Cato arqueou as sobrancelhas e soltou uma risada seca.
- Bem, ao que parece conseguiu mesmo mandar o assunto para trás das costas.
Macro fez uma careta.
- Hei de conseguir, quando esta história estiver terminada.
- E até lá?
- Não descansamos até cumprirmos as ordens recebidas.
- Ótimo. Está decidido então. - Cato espreguiçou-se. - Será melhor dar as ordens para virarmos e seguirmos para Alexandria.
Macro colocou-se em sentido e fez uma continência.
- Sim, senhor.
O momento de companheirismo acabara, percebeu Cato com tristeza. Voltavam a ser prefeito e centurião. Acenou a Macro e ergueu a voz, como se fosse um ator a declamar em frente
de uma audiência.
- Muito bem, centurião. Regresse ao seu navio e siga o Sobek.
Regressaram para o convés principal e estavam quase junto à base do
mastro quando escutaram a voz do vigia.
- Vela à vista!
Cato estacou e inclinou a cabeça para trás.
- De que direção?
O vigia apontou na direção da proa e a bombordo para o horizonte azul.
- Além, senhor. Um casco baixo. A umas oito, talvez dez milhas.
Cato virou-se para Macro com a excitação no olhar.
- Esperemos que seja o nosso homem.
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- Duvido - retorquiu Macro. - Mas quem quer que seja pode ter avistado ou ouvido falar do Ajax.
- Para mim isso basta. Regresse ao seu navio e mande içar todo o pano. Eu aproximo-me dele pelo lado do mar, e vocês pelo lado da costa. Não terá para onde escapar, seja ele
quem for.
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O navio não esboçou nenhuma tentativa de evitar as duas naves de guerra; parecia estar à deriva no mar, sem qualquer rumo definido. Enquanto a tripulação recolhia as velas
e usava os remos para fazer a manobra de aproximação, Cato percebeu que a vela do outro barco estava solta e dançava ao sabor do vento. Os cabos deviam ter sido cortados ou
tinham-se partido, considerou. O navio era bojudo e tinha a popa alta, o que o identificava como um cargueiro, e Cato sentiu-se um tanto defraudado por mais uma vez não ter
encontrado a sua presa. Não havia sinal de vida no convés, e o leme oscilava para um lado e para o outro conforme as ondas que batiam no casco.
O navio de Macro, do lado de terra, usava da melhor forma a brisa para se aproximar velozmente antes de também passar a usar os remos; ainda assim, uma vez que tinha percorrido
maior distância, ia alcançar o navio mercante um tanto depois do Sobek.
- Senhor, quer que mande formar os meus rapazes? - perguntou o centurião Próculo, o comandante dos legionários destacados no navio do prefeito.
- Não. Vou usar os fuzileiros. Estão mais habituados a ações de abordagem.
Próculo respirou fundo, ofendido por ter sido preterido em relação a homens que considerava inferiores. Cato ignorou-o, já habituado às tensões existentes entre as duas armas.
Além disso, a decisão pertencia-lhe. Virou-se para o decurião que comandava o contingente de trinta fuzileiros a bordo.
- Deodoro, forma os teus homens e preparem-se para a abordagem.
- Sim, senhor. Quer que ponha o corvo a postos? - Acenou na direção do engenho preso ao convés à frente do mastro. O corvo era basicamente uma prancha de embarque, que era
levantada e descida graças a um sistema de roldanas. Um pino de madeira numa das pontas permitia girá-lo, de forma a projetar-se para lá do bordo da embarcação onde estava
montado. Na outra ponta havia um gancho de ferro, que fazia lembrar um bico de corvo. Quando o dispositivo estava em posição sobre o convés do
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alvo, era solto e o bico descia com toda a força, cravando-se no convés e prendendo os navios um ao outro com firmeza, enquanto os fuzileiros atravessavam a prancha e se lançavam
em ação. Embora não avistasse qualquer sinal de movimento, Cato resolveu seguir a tática habitual, para o caso de haver alguma emboscada preparada.
- Sim, usa o corvo. Se precisares de reforços, enviamos os legionários para resolver a questão.
Próculo inchou o peito.
- Senhor, se for preciso ir salvar os fuzileiros, cá estaremos. Pode contar connosco.
- Que bom saber disso - resmungou Deodoro, enquanto se afastava para dar as suas ordens.
À medida que o Sobek se aproximava do cargueiro, o convés ia-se enchendo de homens armados que se apressavam a ocupar as suas posições. Quando tudo ficou pronto, os soldados
permaneceram imóveis, à espera da ordem para entrarem em ação. O trierarca foi reduzindo a cadência da remada, de forma a aproximar-se a pouco e pouco do navio à deriva, pela
popa. Quando calculou que a velocidade era adequada para se porem ao lado do cargueiro, deu ordens para que os remos fossem recolhidos.
Cato tinha posto a armadura completa e subira à torre de vante para observar o outro navio enquanto o Sobek se encostava a ele. Havia manchas escuras de um líquido a escorrer
pelo casco, mas que se dissipavam junto à linha de água. Compreendeu de súbito que só podia ser sangue. No momento seguinte avistou o primeiro corpo, um homem esparramado
sobre a amurada. Outros corpos estavam dispersos pelo convés.
- Preparem o corvo! - berrou Deodoro, e em resposta ouviu-se o ranger da prancha a projetar-se sobre o vazio e a rodar até se sobrepor ao outro convés.
- Libertem-no!
A prancha desceu, com a ponta de ferro a ganhar velocidade até se abater sobre a madeira, cravando-se nela e estilhaçando as tábuas.
- Fuzileiros, avançar! - gritou Deodoro, brandindo a espada no ar enquanto trepava para a prancha e corria até ao convés da outra embarcação. Os seus homens seguiram-no, as
botas de couro grosseiro a martelar as tábuas da passagem. Os fuzileiros atravessaram a ponte rapidamente e começaram a espalhar-se pelo convés do cargueiro.
Cato desceu da torre e chamou o centurião Próculo.
- Tu e os teus homens esperam aqui. Se vos chamar, venham de imediato.
- Sim, senhor.
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Não havia qualquer som de combate, nenhum grito ou brado de alarme provinha do cargueiro, pelo que Cato deixou a espada na bainha enquanto atravessava a prancha, lançando
um rápido olhar à água que se agitava no espaço entre os dois cascos. Apesar de ter passado a maior parte dos dois meses anteriores a bordo, ainda temia e odiava o mar; mais
uma excelente razão para pedir aos deuses que a busca que conduzia tivesse sucesso o mais depressa possível. Quando chegou à outra extremidade da prancha, saltou para o convés
e olhou em volta devagar. Havia corpos espalhados por todo o lado, e viam-se grandes manchas de sangue seco. As escotilhas de acesso ao porão tinham sido abertas e a carga
estava toda em alvoroço: ânforas partidas, fardos de tecido desmanchados, sacas de arroz e especiarias rasgadas. Deodoro estava agachado ao pé de um dos cadáveres, e Cato
juntou-se a ele.
- Não há grandes sinais de putrefação. - O decurião cheirou e depois tocou com os dedos no sangue que rodeava o corpo. - Ainda está pegajoso. Foram mortos há um dia ou coisa
parecida. De certeza que há menos de dois dias.
- Se isto foi obra do Ajax, então estamos mais próximos dele do que eu pensava - considerou Cato, enquanto se punha de pé.
- Talvez, senhor. Mas também pode ter sido obra de quaisquer vulgares piratas.
- Achas? Nesse caso, porquê levar tão pouca coisa do porão, se é que alguma coisa foi levada? Só em especiarias, está lá em baixo uma verdadeira fortuna. Se o navio foi tomado
por piratas, não faz sentido que tenham deixado tudo isso a bordo.
- Senhor! - gritou alguém. - Este ainda está vivo!
Cato e Deodoro correram na direção de um fuzileiro que aguardava junto ao mastro. O soldado deu um passo ao lado, revelando uma figura magra e queimada pelo sol, nua à exceção
de uma tanga imunda. A princípio Cato julgou que o homem tinha lançado os braços para o alto ao avistá-los, mas então reparou na cabeça larga e escura do prego metálico que
lhe tinha sido cravado nas palmas das mãos, pregando-o à madeira naquela posição e a uma altura que não lhe permitia pôr-se completamente de pé no convés, e o forçava a suportar
o peso do corpo nos dedos e na ponta dos pés. O homem soltou um gemido fraco mas prolongado; a respiração era fraca e ofegante.
- Libertem-no! - ordenou Cato. Virou-se para o Sobek e gritou: - Mandem o médico para este lado!
Enquanto dois dos fuzileiros suportavam o peso do homem, um terceiro começou a tentar libertá-lo do prego. O homem grunhiu e gritou de dor. Os olhos, vermelhos e quase apagados,
abriram-se. Pareceu levar uma
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eternidade a soltar o prego da madeira, mas por fim o homem desabou nos braços dos soldados.
- Deitem-no. - Cato fez um gesto para os fuzileiros. - Dá-me o teu cantil. E depois tu e os outros passem o barco a pente fino; vejam se há mais sobreviventes.
Debruçou-se sobre o homem enquanto tirava a rolha do cantil, impressionado com o estado em que o outro tinha os lábios, gretados e sangrentos. Colocou uma mão por trás da
cabeça do homem, suportando-a, e deitou-lhe água sobre o rosto. Os lábios do homem moveram-se ao sentir a água, e um grunhido de alívio assinalou a entrada do líquido naquela
boca completamente seca. Cato deixou-o sorver mais alguns goles, e parou quando o homem se engasgou e quase deitou fora a água, enquanto tentava rodar a cabeça.
- Muito... obrigado - soltou, num murmúrio.
- O que é que sucedeu aqui? - indagou Cato. - Quem é que vos atacou?
A língua inchada do homem lambeu os lábios gretados, e ele estremeceu de dor antes de conseguir responder.
- Romanos...
Cato trocou um olhar com Deodoro.
- Romanos? Tens a certeza?
Uma sombra passou sobre o convés, e Cato ergueu a vista; era o mastro do íbis, o navio de Macro, que se punha ao lado do cargueiro. No momento seguinte um embate surdo assinalou
o encosto entre as duas embarcações. Logo se seguiu o som de botas a pisar o convés. Cato olhou para cima e viu o amigo.
- Macro, aqui!
Macro foi ter com ele, enquanto olhava em torno do convés.
- Pelo que se vê, foi uma batalha e tanto.
- Foi mais um massacre, parece-me, mas encontrámos este ainda vivo. - Cato apontou para a carne dilacerada das mãos do homem. - Pregado ao mastro.
Macro assobiou baixinho.
- Caramba. Por que raio fizeram isso?
- Deixe-me adivinhar. Queriam deixar uma testemunha. Alguém que conseguisse sobreviver para contar o que aconteceu.
O médico do navio de Cato chegou a correr, com a sua sacola de ligaduras e unguentos. Ajoelhou-se junto ao sobrevivente e examinou-o rapidamente, sentindo-lhe o pulso.
- Senhor, ele está em mau estado. Duvido que possa fazer muito por
ele.
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- Muito bem. Nesse caso preciso de descobrir tudo o que puder antes que seja demasiado tarde. - Cato inclinou-se sobre o homem e falou-lhe ao ouvido com gentileza. - Diz-me
o teu nome, marujo.
- Mene... Menelau - respondeu uma voz em profunda agonia.
- Escuta-me, Menelau. Estás gravemente ferido. É bem possível que não sobrevivas. Se morreres, queres com certeza que alguém vingue a tua morte. Portanto, diz-me: quem fez
isto? Disseste que foram romanos. O que é que querias dizer? Piratas romanos?
- Não... - sussurrou o homem, e depois acrescentou qualquer coisa, uma palavra que Cato não conseguiu reconhecer de imediato.
- O quê?
- Parece ter falado em terra - sugeriu Macro. - Não faz sentido. Terra?
Cato sentiu um arrepio gelado ao compreender o que queria dizer o marinheiro moribundo.
- Guerra; era um navio de guerra, não era? Foram atacados por um navio militar?
O outro anuiu e humedeceu os lábios.
- Ordenou-nos que amainássemos as velas... Disseram que queriam verificar a carga... Começaram a matar... Sem piedade. - A testa do homem franziu-se perante a memória. - Ele
poupou-me... Disse que queria que eu recordasse o nome... Depois empurraram-me contra o mastro e puseram-me os braços para cima. - Uma lágrima rebrilhou ao canto do olho do
homem, rolou pela face e precipitou-se da ponta da orelha.
- O nome? - pediu Cato gentilmente. - Diz-me o nome.
O marinheiro fez um esforço para voltar a mover os lábios.
- Cent... Centurião Macro.
Cato sentou-se e olhou para o amigo. Macro abanava a cabeça, siderado.
- Foda-se, o que é que ele está para aí a dizer?
Cato não pôde fazer mais do que encolher os ombros, antes de voltar a atenção de novo para o marinheiro.
- Tens a certeza? Estás seguro de que ele disse que se chamava Macro?
O homem assentiu.
- Macro... Sim, era esse o nome daquele cabrão... Fez-me repeti-lo para ter a certeza de que o fixava. Centurião Macro - murmurou, antes de o rosto se contorcer de dores.
- Senhor - interveio o médico. - Tenho de o tirar do sol. Levá-lo para a coberta do Sobek. Será o melhor sítio para lhe tratar das feridas.
- Muito bem. Faz por ele tudo o que puderes. - Cato deitou a
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cabeça do marinheiro e levantou-se. O médico chamou quatro fuzileiros e ordenou-lhes que levantassem o corpo com cuidado. Cato ficou a vê-los enquanto se dirigiam para a prancha,
e por fim virou-se para Macro. - Estranho, não lhe parece?
- Tenho um álibi - respondeu o centurião, com humor negro. - Estava ocupado a perseguir escravos foragidos. - Esticou o dedo na direção do marinheiro que os fuzileiros carregavam.
- O que raio vem a ser esta história, foi o centurião Macro?
- É o Ajax. Só pode ser ele.
- Porquê?
- Quem mais iria usar o seu nome?
- Não faço ideia. Mas se é mesmo o Ajax, porquê?
- Talvez seja a ideia que ele tem de uma brincadeira. Ou então algo diferente.
- O quê, por exemplo?
Cato abanou ligeiramente a cabeça.
- Não estou certo. Mas há aqui muito mais do que salta à vista.
- Bem, se foram mesmo o Ajax e os seus homens, estamos de volta à pista.
- Sim, estamos. - Cato encheu de ar as bochechas. - Mas a ocasião não é propriamente a melhor.
- O que queres dizer?
- Estamos quase sem mantimentos. A água também se está a acabar. Não podemos continuar a perseguição até nos reabastecermos. Vamos recolher o que pudermos deste navio, e depois
rumaremos a Alexandria.
Macro encarou-o.
- Não está a falar a sério... Senhor.
- Macro, pense nisto. Se ele tem um dia de avanço, ou mais, pode estar já a mais de cem milhas daqui. Quanto tempo acha que levaremos a descobri-lo? Quantos dias? E se tentarmos
segui-lo, corremos o risco de não estar em condições de o confrontar, ou de ficarmos de tal forma debilitados que nem consigamos regressar ao porto. Não tenho escolha. Vamos
para Alexandria. Abastecemo-nos, e tentamos obter reforços suficientes para vasculharmos esta área de alto a baixo.
Macro estava prestes a recomeçar os seus protestos quando o decurião Deodoro se aproximou para apresentar o relatório.
- Senhor, os meus homens revistaram o navio. Não há nenhum outro sobrevivente.
- Muito bem. Diz aos teus homens para recolherem tudo o que seja comida e água e trazerem tudo para o convés, de forma a dividir os mantimentos pelos nossos dois navios.
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- Sim, senhor. - Deodoro saudou e regressou para junto dos fuzileiros que revistavam o porão.
- Ora bem, seus madraços! Espadas embainhadas e escudos depostos. Há muito trabalho a fazer.
Macro olhava para Cato com intensidade. Coçou o nariz.
- O que é agora? - inquiriu Cato, fatigado.
- Estava a pensar. Será melhor que tenhas razão quanto a isto. Se o Ajax volta a despistar-nos enquanto nós regressamos a Alexandria, sabem os deuses como e onde voltaremos
a encontrar-lhe a pista. Há um mês que não tínhamos notícias dele.
- Eu sei. - Cato fez um gesto de impotência com as mãos. - Mas não temos escolha. Temos mesmo de voltar para trás.
Macro premiu os lábios.
- É a sua escolha, senhor. A sua prerrogativa.
- Sim. Assim é.
Três dias depois, o Sobek aproximava-se da entrada do grande porto de Alexandria. A enorme estrutura do farol construído sobre os rochedos da ilha de Pharos por ordem de Ptolomeu
II erguia-se sobre as duas naves de guerra. Todos os homens a bordo, que tinham sido requisitados para esmagar a rebelião dos escravos em Creta, provinham das forças romanas
estacionadas em Alexandria, pelo que estavam habituados à extraordinária visão daquela construção. Também Cato a tinha visto antes, mas ainda assim viu-se compelido a interromper
o seu contínuo passaricar preocupado pelo convés para mais uma vez se maravilhai perante a escala da ambição de Ptolomeu. Além do farol, havia o vasto complexo da Grande Biblioteca,
o túmulo de Alexandre, o Grande, e a ampla avenida de Canopus, que atravessava todo o coração da cidade. Tudo nela tinha sido planeado para impressionar o visitante e encorajar
nos seus habitantes um sentimento de superioridade.
O dia estava praticamente a meio, e o Sol obrigou Cato a semicerrar a vista enquanto contemplava o farol. Uma coluna de fumo subia sem interrupção do fogo que ardia permanentemente
no cimo da torre, anunciando a posição da cidade aos navios no distante mar alto ou espalhados ao longo da costa egípcia.
Cato voltou a olhar para baixo enquanto entrelaçava as mãos por trás das costas, e retomava as passadas pelo convés principal do navio. Aquele passeio tinha-se tornado um
hábito desde o início da perseguição a Ajax. Ver-se preso numa pequena embarcação era um verdadeiro anátema para o irrequieto espírito do jovem, e a rotina que adotara de
percorrer o convés para cima e para baixo permitia-lhe realizar uma pequena parte do exercício
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pelo qual o corpo ansiava, enquanto lhe fornecia ao mesmo tempo um período para pensar.
Sentia-se profundamente frustrado perante mais aquele atraso forçado na caça a Ajax. Porém, não havia alternativa. Mesmo tendo em conta a água e os mantimentos que tinham
recuperado do cargueiro, os homens andavam esfomeados e com as gargantas permanentemente secas. Não estavam em condições de enfrentar o desesperado bando de fugitivos de Ajax,
muitos dos quais tinham sido gladiadores. Homens que tinham passado anos a treinar com o fito único de combater e matar na arena. Os corpos a bordo do cargueiro tinham sido
presos a pesos e lançados às profundezas; o mesmo sucedera ao marinheiro que tinha sido pregado ao mastro e que expirara poucas horas depois de ser levado para bordo do Sobek.
Uma diminuta tripulação tinha sido deixada no outro navio, com ordens para se dirigir a Alexandria a toda a velocidade, que não seria muita. Os navios militares tinham avançado
imediatamente, impelidos pelo desejo do prefeito de regressar à perseguição o mais depressa possível.
- Recolher a vela! - ordenou o trierarca, Phermon, a partir da ré. - Preparar remos!
O Sobek prosseguiu a caminho do porto militar, junto aos palácios reais, que em tempos tinham sido a morada dos faraós, mas que agora eram ocupados pelo governador romano
e pelo seu pessoal. Os remos subiram, avançaram e desceram, mantendo um ritmo constante que fez a embarcação progredir facilmente sobre as calmas águas, aproximando-se do
pontão rochoso onde estava atracada grande parte da esquadra de Alexandria. Cato avistou uma sentinela que corria, deixando a torre de vigia à entrada do porto para avisar
da aproximação dos dois navios.
Dirigiu-se para a popa e desceu para a sua cabina. Era uma cabeça mais alto do que Macro, e por isso via-se forçado a dobrar-se de forma extremamente incómoda enquanto mudava
de túnica, passando a trajar a menos suja das duas que tinha trazido de Creta. Lutou para se meter dentro da cota de malha, mas lá conseguiu fechar o arnês por cima da veste
metálica. Nele ostentava as condecorações, discos de prata que lhe tinham sido atribuídos durante o tempo em que estivera na Segunda Legião. A unidade tinha feito parte do
exército que invadira a Britânia havia já alguns anos, quando Cato tinha demonstrado todas as suas capacidades de soldado e tinha sido promovido até ao centurionato. Mas naquele
momento era prefeito, um oficial já em preparação para um comando importante.
No entanto, tal só sucederia quando a sua promoção fosse confirmada pelo Imperador, refletiu. O que dificilmente sucederia se falhasse na missão de encontrar e destruir Ajax,
o rebelde sanguinário que tudo tinha feito para destruir a província de Creta. Tinha além disso conseguido capturar a
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frota que levava cereais do Egito para Roma quando esta aportara em Creta para reparações, e dessa forma ameaçara diretamente a população da capital do Império, sujeitando-a
à ameaça de fome. Durante o mais breve dos momentos, Cato não conseguiu suprimir alguma admiração pelo inimigo. Ajax era o tipo de homem que compreendia perfeitamente todas
as forças em jogo, e que estabelecia os seus planos de acordo com a situação. Era de facto um adversário dos mais perigosos que Cato enfrentara, e representava uma verdadeira
ameaça à própria Roma. Um perigo cuja existência não podia de forma alguma ser tolerada, pelo que, se Cato fracassasse na captura ou morte de Ajax, o Imperador nunca lhe perdoaria.
E nesse caso, a recusa de confirmação da sua promoção a prefeito seria a menor das suas preocupações. O mais provável seria a sua despromoção, seguida da colocação vitalícia
nalgum posto fronteiriço esquecido no mais insalubre dos confins do Império. Seria o fim da sua carreira militar - mas traria consigo um preço muito mais elevado. Seria forçado
a abdicar de qualquer pretensão a Júlia.
Não se podia esperar que a filha de um senador suportasse as agruras da vida num posto fronteiriço. Ela ficaria em Roma e encontraria um candidato a marido mais adequado.
O pensamento dilacerava o coração de Cato, mas não conseguia culpar Júlia se viesse a ser esse o desenvolvimento da situação. Os sentimentos que nutria por ela não o impediam
de reconhecer, racionalmente, que até o amor tinha os seus limites. A ideia de a obrigar a segui-lo para o que não passaria de um exílio, e que ela começasse a detestá-lo
por isso agoniava-o. Seria preferível ir sozinho, com doces memórias para o confortar, em vez de empilhar um azedume crescente em cima do falhanço absoluto da sua carreira.
Ajustou o arnês, pegou no cinto com a espada e colocou-o sobre a cabeça, à bandoleira. Por fim abriu o pequeno cofre aos pés do catre e tirou o estojo de couro que continha
o pergaminho onde constavam as ordens que recebera do pai de Júlia, o senador Semprónio, e que lhe mandavam perseguir Ajax até ao fim. Um outro documento testemunhava que
tinha sido promovido a prefeito, embora ainda sem a confirmação imperial. Com os dois documentos, Cato esperava reunir autoridade suficiente para garantir a assistência do
governador para a continuação da sua missão.
Não ia ao encontro do governador com qualquer espécie de entusiasmo. No seu último encontro, Cato tinha vindo de Creta, a pedido do senador Semprónio, para solicitar reforços
para abafar a rebelião dos escravos. Não tinha sido uma conversa fácil, e fora necessária uma pouco velada ameaça de incluir o governador do Egito no lote dos que partilhariam
as responsabilidades pela queda de Creta para o convencer a ceder, de má cara, os homens e navios necessários para derrotar Ajax.
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Pegou no elmo, respirou fundo e deixou o ar escoar-se lentamente dos pulmões; finalmente resolveu-se, e subiu as escadas para o convés, para acabar de se compor sem ter de
estar agachado para evitar esmagar a crista do capacete. À medida que atava as tiras por baixo do queixo, observava o trierarca e os seus homens que completavam as manobras
de aproximação ao pontão de atracagem. Os cabos já tinham sido lançados para a equipagem de terra, e o Sobek estava a ser colocado em posição, fazendo gemer os amortecedores
do cais, feitos de feixes de canas.
Virou-se para o trierarca.
- Quero que vás a terra e procures o chefe da messe. Quero os dois navios reabastecidos o mais depressa possível. Não há licenças para os homens, para ninguém. É minha intenção
zarpar assim que tiver apresentado o relatório ao governador e que haja a bordo água e mantimentos.
O trierarca encheu as bochechas de ar e respondeu em tom cauteloso.
- Senhor, os homens estão exaustos. Há meses que não veem as famílias. Um dia ou dois de licença em terra dar-lhes-á um novo ânimo.
- Ficarão a bordo - retorquiu Cato com toda a firmeza. - Todo e qualquer homem que tentar ir a terra será considerado um desertor. Compreendido?
- Sim, senhor.
- Ótimo. - Cato virou-se e reparou que o íbis atracava à popa. A prancha de acesso ao cais já tinha sido colocada e Macro tinha saltado para terra, avançando já ao longo do
Sobek à espera de Cato.
- Lembra-te do que te disse. - Cato achou por bem deixar mais um aviso ao trierarca, antes de sair da embarcação. Assim que pisou o solo pedregoso, enfrentou a sensação de
que a terra se movia debaixo das suas botas. Lutou para restabelecer o equilíbrio, enquanto Macro lhe piscava o olho.
- É uma sensação realmente estranha.
- De facto - concordou Cato. - Vamos.
Seguiram pelo molhe, sentindo o calor do Sol a abater-se sobre eles. À distância, no portão que dava acesso à zona dos palácios, aguardava-os um grupo de legionários, liderado
por um centurião, de vara aperrada sobre a perna enquanto os esperava a pé firme.
- Não lhes levou muito tempo a prepararem uma comissão de receção - notou Macro. - Alguém se despachou a organizar uma guarda de honra.
- Assim parece. - Cato franziu o sobrolho. - Mas quem é que lhes disse quem se aproximava?
- Talvez não sejas o único com olho de águia - sugeriu Macro,
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despreocupado. - Seja como for, hei de dar os meus parabéns ao oficial de piquete.
Prosseguiram, com a dignidade e a confiança que lhes eram permitidas pela sensação de ainda se encontrarem sobre as águas, aproximando-se dos soldados. Quando já estavam perto
do portão, o centurião adiantou-se e interpelou-os, erguendo a mão direita em saudação.
- Senhor, é o prefeito Quinto Licínio Cato?
- Sim.
- E tu, o centurião Lúcio Cornélio Macro?
Macro anuiu.
- Calculo que estejas aqui para nos escoltares até à presença do teu comandante?
O centurião pareceu surpreso ao escutar aquelas palavras.
Cato abanou a cabeça.
- Não temos tempo para formalidades. Tenho de falar com o governador, imediatamente.
- Formalidades? - O centurião fez um gesto na direção dos seus homens. - Senhor, acho que não está a perceber a situação. Não nos mandaram para lhe prestar qualquer honra
militar. Foi-me ordenado que os colocasse sob detenção. Aos dois.
- Detenção? - Macro espantou-se. - Que porra é esta? Agora vamos presos?
- Espere! - Cato ergueu a mão. - De quem vieram essas ordens?
- Diretamente do governador, senhor. Assim que soube que os navios se dirigiam ao porto. Serão conduzidos à sala do piquete e lá mantidos sob vigilância até surgirem novas
ordens. Senhor, queira seguir-me.
- Porquê? - Cato não se moveu. - Quais são as acusações?
O centurião encarou-os.
- Senhor, são óbvias, pelo menos para mim. Assassínio, e pirataria.
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Foram deixados sós, na sala do piquete. A porta ficou aberta, mas lá fora tinham sido colocados quatro homens para os vigiar. O compartimento era bem proporcionado, com um
teto alto e boa ventilação, granjeada por grandes janelas ao cimo das paredes. Os distantes sons da cidade no exterior do palácio misturavam-se para produzir uma espécie de
zumbido baixo e constante.
Cato estava sentado à mesa, a beber água de um púcaro e a saborear o facto de já não ter de se limitar a uma ração minúscula.
Macro deitou uma olhadela aos guardas, atravessou a sala e foi sentar-se num banco em frente ao amigo.
- Porra, o que é que se está a passar? Porque é que estamos detidos?
- Ouviu-o. Assassínio e pirataria.
- Pois, mas que merda vem a ser essa? - Macro estava a ponto de explodir. - Somos oficiais do exército romano. Caramba, tu és um prefeito.
- Obrigadinho por ter reparado.
- Como é que se atrevem a tratar-te desta forma? Pelos deuses, algum cabeçudo vai pagar por isto, e há de pagá-lo bem.
- Macro, é óbvio que está a ser cometido um erro. Depressa será corrigido. Não vale a pena exaltar-se, é um desperdício de energia. - Cato encheu outra vez o púcaro e empurrou-o
pela mesa na direção do amigo.
- Tome. Beba.
Macro rangeu os dentes, enquanto tentava controlar a ira. Acabou por pegar no recipiente e emborcar o líquido de uma vez, batendo depois na mesa.
- Outra.
Desta vez bebeu mais devagar e pousou o púcaro com calma.
- Assim é melhor. Tinha a porra da língua tão seca que parecia uma tira de couro saída de umas botas.
- Sei perfeitamente o que quer dizer - assentiu Cato. - Espero bem que tenham levado água aos homens nos barcos. Ainda estão a torrar ao sol.
Macro fez uma careta.
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- A mim parece-me que te devias concentrar nos nossos problemas, deixa lá os homens.
- Porquê? Não passou o tempo a dizer-me que um bom oficial deve pensar no bem-estar dos seus homens antes de se preocupar com ele mesmo? Quando eu era o seu optio, estava
sempre a esfregar-me essa ideia na cabeça.
- Era? - resmungou Macro. - De muito te serviu, pelo que se vê.
- Pelo menos serve para me afastar o pensamento do facto de estar aqui fechado com um casmurro que se passeia pela sala como se fosse um touro enjaulado.
A face tisnada e repleta de cicatrizes do veterano amaciou-se num sorriso.
- Desculpa. É que não aprecio particularmente ser considerado um pirata assassino. Saquear, matar, até aí tudo bem. Faz parte do trabalho.
- Para algumas mentes essa distinção seria apenas de grau e não de categoria, Macro - retorquiu Cato, a seco.
- A sério? - Macro arqueou as sobrancelhas. - Pois então que se fodam, digo eu. Não sou nenhum assassino.
Habituado como estava à rude e irascível natureza da filosofia militar de Macro, Cato limitou-se a encolher os ombros.
A conversa foi interrompida pelo som de botas no corredor, e no momento seguinte os guardas afastaram-se para dar passagem ao centurião que comandava o grupo de detenção,
bem como ao governador da província e a um escriba. O centurião deu um passo ao lado e dobrou o pescoço enquanto fazia um anúncio.
- Sua Excelência, Gaio Petrónio, governador de Alexandria e da província do Egito, e legado do Imperador.
Cato e Macro ergueram-se e inclinaram também as cabeças, enquanto Petrónio avançava para o centro da sala e parava de mãos na cintura e uma expressão lúgubre na face. Estalou
os dedos e apontou para o canto do compartimento. O escriba apressou-se a ocupar a posição indicada; sentou-se de pernas cruzadas e retirou da sacola uma tábua encerada e
um estilete.
Petrónio virou-se para Cato.
- Permiti que levasses forças minhas para Creta para esmagar uma rebelião, e não para que a espalhasses pelo Oriente. Vocês os dois têm muito que explicar. - Petrónio encarou-os
com má cara. - Conseguiram pôr toda a região do delta em pé de guerra, e mais ainda. As guildas de mercadores e comerciantes aqui da cidade exigem as vossas cabeças. Estou
seriamente tentado a esquecer os devidos procedimentos legais e deixar que a turba vos faça em pedaços, antes que a situação degenere em revolta aberta.
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- Cruzou os braços. - Portanto, por favor e em nome de todos os deuses, digam-me lá que raio pensam vocês os dois que andam a inventar?
- A inventar, senhor? - Cato abanou a cabeça. - Não compreendo.
- Uma porra! Há quase um mês que se acumulam relatórios que referem que vocês andam a aterrorizar as aldeias costeiras. Desembarcam, exigem mantimentos e liquidam todos os
que se recusam a cooperar. Até me chegou aos ouvidos que abordaram embarcações, torturaram as tripulações para obter informações e depois mataram quase toda a gente a bordo,
antes de seguirem para o próximo objetivo.
Macro e Cato trocaram um olhar rápido.
- Oh, não se atrevam sequer a negá-lo! - explodiu o governador.
- Os relatórios explicitam os vossos nomes. Além das afirmações do punhado de testemunhas que acharam por bem poupar. Há provas mais do que suficientes para vos ter pregados
a cruzes ainda antes que a tarde caia.
- Obrigou-se a controlar a fúria antes de prosseguir. - Portanto, volto a perguntar-vos, que jogo é esse que vocês têm vindo a praticar? Segundo o último despacho que recebi
de Creta, vocês foram enviados em missão para perseguir um escravo renegado. E não para fomentar uma nova revolta aqui no Egito. Não sei bem quem é que representa uma maior
ameaça à paz no Império: um gladiador fugitivo, ou os dois imbecis sem cérebro que foram mandados atrás dele. E para cúmulo, para me insultarem pessoalmente, sem dúvida, são
os meus homens e os meus navios que empregam nesse vosso trabalho sujo. Não pensem que esse pequeno pormenor escapou à atenção da turba. Ainda ontem uma das minhas patrulhas
foi apedrejada ao percorrer as ruas. Perdi um optio e um outro homem. Tudo isto graças a vocês e à vossa brutal e idiota forma de perseguir essa personagem, o tal Ajax.
- Mas, senhor, nós não fizemos nada - protestou Macro. - Não há pinga de verdade nessa história.
- Diz isso às testemunhas.
- Mentem. Alguém as convenceu a isso.
- Veremos. Os meus procuradores têm andado a recolher depoimentos e a reunir indícios. Darei todos os passos necessários para que o vosso julgamento decorra no mais breve
espaço de tempo possível. A que se seguirá a execução pública. Isso deverá ser suficiente para satisfazer a populaça e para acalmar as coisas aqui pelo Egito.
Macro fungou com desprezo.
- Estão a gozar comigo! Toda essa história não passa de trampa.
- Centurião, acredita no que te digo, será precisamente assim que as coisas se vão passar. E mais, o Imperador, e aquela víbora do seu secretário, o Narciso, não hesitarão
um momento antes de aprovar a minha decisão.
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Cato tinha-se mantido em silêncio enquanto assistia àquela troca acalorada. Agora, que começava a perceber tudo, deixou transparecer um sorriso seco.
- Por Hades, do que é que tu estás a rir? - indagou o governador. - Não vejo qualquer razão para esse divertimento.
- É o Ajax, senhor. O responsável por tudo isto.
- Ajax?
- Claro. Tem andado a ver se apaga os seus traços. Aliás, melhor ainda, tem andado a agitar os nativos e a deixar a confusão por onde passa.
- O que é que queres dizer com isso?
- Há uns dias, encontrámos uma embarcação à deriva. A tripulação tinha sido massacrada, à exceção de um homem, que nos garantiu que aquilo fora obra do centurião Macro.
Macro fungou.
- O que, para mim, foi uma autêntica surpresa, como pode imaginar.
- Isto também explica porque é que os nativos fugiram da aldeia quando desembarcámos, na véspera - prosseguiu Cato. - O nosso gladiador tem andado ocupado.
- Presumo que podem provar tudo isso? - indagou o governador. - Esse vosso sobrevivente é capaz de testemunhar que o homem que atacou o seu navio não era o Macro?
- Infelizmente não, senhor. Morreu pouco depois.
- Muito conveniente.
- Para nós, ao que parece, nem por isso. Mas pode convocar todas as suas testemunhas e ver se alguma delas identifica um de nós como o seu atacante. Deve chegar para provar
a nossa inocência.
O governador fez um curto silêncio, e depois assentiu.
- Muito bem. Tens razão nesse ponto. - Dirigiu-se à porta e estalou os dedos, chamando um dos guardas que esperavam no exterior. - Tu, vai buscar aquele sacerdote, o Hamedes.
Está detido nas casernas do palácio. Tragam-no aqui imediatamente. Não lhe digas nada sobre estes dois oficiais. Entendido?
O guarda saudou e afastou-se a passos largos pelo corredor. Petrónio regressou para junto de Macro e Cato.
- Depressa saberei se me estão a dizer a verdade. Um dos templos no delta foi atacado há uns dez dias. Os sacerdotes foram massacrados, e o cofre do templo foi levado. Só
uma pessoa foi poupada. Apareceu ontem aos portões da cidade, a arengar contra os soldados romanos que tinham atacado o seu templo. Foi colocado sob custódia para lhe serem
tratadas as feridas e para ser alimentado e descansar antes de prestar declarações oficiais. Veremos o que diz quando se deparar convosco. - Fez uma pausa
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e contemplou os dois oficiais por um instante, antes de prosseguir. - Todavia, se realmente estão inocentes e tudo isto for obra desse Ajax, terei de admitir que estamos a
lidar com um inimigo muito mais perigoso e astucioso do que imaginava.
Cato assentiu.
- Oh, tudo isso e mais ainda. Implacável, cruel. O que eu acho é que ele tem a ambição de provocar uma revolta aqui no Egito. É a única ideia que faz sentido.
- Mas porquê? - interrompeu Macro. - Porque é que ele não se limita a fugir para longe? Encontrar um sítio onde se possa esconder até nós desistirmos de o perseguir; depois
ele e os seus seguidores poderiam perfeitamente retomar vidas normais como homens livres.
- Não; serão sempre fugitivos. O Ajax sabe isso perfeitamente. Para ele nunca haverá paz. Vá para onde for, Roma nunca desistirá de o perseguir. Portanto, tudo o que lhe resta
a fazer é lutar, lutar sempre. E ele está disposto a isso. De uma forma ou doutra, será sempre nosso inimigo. Até ser encontrado e aniquilado.
- Quanto mais cedo, melhor - juntou Petrónio, com fervor.- Já tenho problemas que me cheguem com a situação no Alto Nilo, não preciso desta confusão aqui na costa. - Fez uma
pausa e atravessou a sala até à mesa, pegou num banco e sentou-se, indicando a Cato e Macro que podiam imitá-lo. O escriba continuou no seu canto, tirando notas com toda a
discrição. Cato deitou-lhe uma olhadela, e lembrou-se que tinha de escolher cuidadosamente as palavras, uma vez que Petrónio ficaria nos seus arquivos com o registo de tudo
o que era dito.
O governador serviu-se de uma bebida antes de continuar.
- Nesta altura, a província parece estar sob uma confluência de ameaças, mesmo antes de este vosso gladiador aparecer em cena - partindo do princípio de que de facto não são
vocês os responsáveis pelas ações que provocaram a agitação.
Macro começou a protestar, mas Cato fez-lhe um sinal com o dedo para o sossegar. Petrónio não reparou; tinha a taça segura nas duas mãos e contemplava a superfície do líquido
nela contido.
- Nos últimos três meses, os núbios têm lançado ataques contra a nossa fronteira do Sul - começou. - Em cada ocasião avançam mais um pouco ao longo do Nilo, mas retiram sempre
antes que possamos reunir forças suficientes para os encurralar e destruir. Na minha opinião estão a testar as nossas defesas, e a reconhecer o terreno enquanto preparam uma
invasão em larga escala. Há uns dias tive a confirmação dessa ideia num relatório que recebi do estratego do nomes junto à fronteira com a Núbia.
Macro olhou para Cato e arregalou um olho. Limpou a garganta.
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- Perdão, senhor. O que quer dizer quando refere esse, hum, nomes?
Petrónio olhou para ele com irritação e encolheu os ombros.
- Devia saber que vocês não conhecem a estrutura das coisas por aqui. É uma chatice que ficou dos tempos antes de Roma transformar o Egito numa província. Os nomes são distritos
administrativos. Cada um é governado por um estratego e por um conselho local. Faziam um bom trabalho na cobrança de impostos e na resolução de conflitos locais, portanto
Roma não viu razão para alterar as coisas.
Macro grunhiu.
- Bom, ao menos os gregos acertaram nalguma coisa.
- Na realidade, os gregos adotaram o sistema que já existia por cá.
- O quê? Foram os monhés que criaram esse sistema?
Petrónio sorriu.
- Não fazes mesmo ideia nenhuma, pois não?
- Sobre o quê, senhor?
- Sobre esta província. Em tempos o Egito foi uma grande potência. Muito antes de Roma ser sequer uma aldeola de agricultores que escarafunchavam a terra para sobreviver nas
margens do Tibre.
- Uma porra. - Macro indicou o coração da cidade com o polegar.
- Esta malta?
- É verdade, garanto-to... Mas sugiro que não peças a um dos nativos que te explique a história, a não ser que tenhas uns anos que possas dispensar.
Cato tossicou.
- Senhor? Quanto aos núbios?
- Ah, sim. - Petrónio voltou a concentrar-se. - O estratego de Siena. Bom, o homem mandou vários espiões para o outro lado da fronteira, para tentar obter informações. A maior
parte deles nunca mais deu notícias, mas por fim lá recebeu um relatório. Um dos seus homens tinha avistado colunas de guerreiros núbios a concentrarem-se a uns cento e cinquenta
quilómetros das cataratas. Eram conduzidas pelo príncipe Talmis. É o mais velho dos filhos do rei da Núbia. Já expandiu os domínios do pai para as bandas da Etiópia, e tem
uma grande reputação como general. E ao que parece quer melhorá-la, atacando esta província. Estou certo disso.
- Mas porquê? - indagou Cato. - Os núbios foram provocados, de alguma forma?
- De certa maneira, sim - admitiu Petrónio. - Há um ano, o Imperador deu-me ordens para enviar pessoal para cartografar o Nilo até à sua origem. Avisei que uma expedição desse
género nos causaria problemas com os núbios. Eles são um bocado suscetíveis.
- Não duvido. Calculo que tenham imaginado que essa expedição era
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um prelúdio de uma invasão. Que outro motivo teria Cláudio para querer ver a área mapeada?
- O secretário imperial assegurou-me firmemente que não existiam planos para invadir a Núbia. O propósito da expedição seria puramente científico.
Macro coçou o rosto.
- Hum, senhor, e acreditou no Narciso?
- Quer se acredite ou não no Narciso, uma vez a ordem imperial dada, não há nada a fazer. Portanto, enviei uma equipa de cartógrafos pelo Nilo acima, com uma pequena escolta
e uma mensagem de boa vontade.- Interrompeu-se.
- O que é que aconteceu? - indagou Macro.
- O príncipe Talmis enviou-nos as cabeças; com uma mensagem de aviso para não metermos os narizes no território da Núbia.
Cato debruçou-se para a frente.
- E, naturalmente, foi enviada uma coluna punitiva.
- Claro. Que mais podia eu fazer? Roma não está nunca preparada para sofrer uma afronta desse calibre à sua autoridade. Os nossos homens queimaram várias povoações, escravizaram
mais de um milhar de pessoas e destruíram todas as estruturas de irrigação que encontraram pelo caminho. Desde então temos sofrido estes ataques, e tive mesmo de enviar reforços
para o Sul, para consolidar as nossas defesas ao longo da fronteira. Em circunstâncias normais, a guarnição do Egito é perfeitamente capaz de defender a província e manter
a ordem. Temos duas legiões, a Terceira, que está baseada aqui em Alexandria, e a Vigésima Segunda, que está em Heliópolis. E há ainda nove coortes de auxiliares, dispostas
em fortes espalhados pelo delta e ao longo do Nilo. Porém, como sabem perfeitamente, tive de emprestar ao meu bom amigo, o senador Semprónio, três mil homens da Terceira Legião
e duas coortes de auxiliares, para estancar a revolta em Creta. Ele ainda não me devolveu a maior parte desses homens. Neste momento só disponho de duas coortes de legionários
para aguentar Alexandria. Um milhar de homens para controlar mais de meio milhão. Nada fácil, mesmo em tempos de calma. Mas desde que esta história do Ajax começou - se é
que vocês me estão a contar a verdade -, os marinheiros e mercadores não se calam com exigências de proteção. Mais um problema, para lá das habituais querelas entre judeus
e gregos. E depois ainda temos os fellahin, os camponeses que habitam ao longo da costa, à beira da revolta graças a estes ataques às aldeias e ao saque do templo. Ah, e ainda
há outra coisa - juntou, em tom amargo. - As últimas leituras dos nilómetros sugerem que vamos ter uma colheita fraca.
- Pouca água? - inquiriu Cato.
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Petrónio abanou a cabeça.
- Não, demasiada. A enchente do Nilo este ano vai ser maior do que é costume, o que quer dizer que vai levar mais tempo para a água recuar, e portanto a sementeira terá de
ser feita mais tarde. Os fellahin vão passar fome, e a cobrança de impostos vai cair. Tenho homens suficientes para tratar do primeiro problema, mas tão certo como Vulcano
trabalhar na forja, isto vai cair-me em cima do pescoço assim que o tesouro imperial detetar uma queda nas receitas fiscais do Egito. - Petrónio ergueu as mãos, desalentado.
- Portanto, como veem, o vosso amigo Ajax entrou em cena no pior momento possível.
Os olhos de Macro semicerraram-se perigosamente.
- O Ajax é tudo menos meu amigo, senhor.
- Uma figura de estilo, nada mais - desculpou-se Petrónio, sem dar importância ao assunto.
Foram interrompidos por um batucar de dedos na porta. Viraram-se os três para o guarda que entrava na sala.
- Senhor, trouxe o monhé do templo, está lá fora.
Petrónio agitou-se, exasperado.
- Soldado, apreciaria sobremaneira que tu e os teus companheiros escolhessem um termo menos pejorativo para se referirem aos cidadãos desta nossa província.
O homem piscou os olhos.
- Senhor?
- Egípcios, e não monhés, está bem?
- Sim, senhor.
- Muito bem, trá-lo cá para dentro.
Cato olhou para Macro e respirou fundo enquanto esperavam pela aparição do sobrevivente do ataque ao templo, e pela história que tinha para contar.
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5

Hamedes era alto e de constituição sólida. O crânio, ferido, tinha sido rapado, mas vários dias sem atenção tinham-lhe providenciado uma penugem escura. Era ligeiramente mais
novo que Cato, e tinha olhos encovados que ladeavam um nariz largo e curvo, típico dos nativos daquela região. Envergava uma túnica vermelha militar sem adornos, que Cato
adivinhou que lhe devia ter sido emprestada. Colocou-se à frente deles de pés nus, sem mostrar quaisquer sinais de submissão. Falava num grego fluente.
- Senhor, mandou-me chamar - anunciou, fazendo soar a primeira palavra como um favor.
- Mandei, de facto - concordou o governador. - Gostaria que contasses a tua história a estes dois oficiais.
- Porquê? Já fiz um depoimento completo que foi recolhido por um escriba. Não me parece portanto necessário repeti-lo, seria apenas uma perda de tempo.
- Não é preciso agir com toda essa altivez - instou Macro, lançando uma careta que teria enervado qualquer homem menos confiante que Hamedes. - Porta-te bem e conta-nos os
detalhes.
O sacerdote contemplou Macro de alto a baixo.
- E a quem me dirijo agora, se posso saber?
Macro inchou o peito antes de ripostar.
- Centurião...
- Basta! - interrompeu Cato. - Estás aqui para responder às nossas perguntas, e não para colocar as tuas.
- A sério? Supunha que a razão para a minha presença era o facto de ser testemunha da agressão romana contra o templo de ísis em Keirkut. Templo esse agora reduzido a ruínas,
e os seus servidores a nada mais do que carne para satisfazer o apetite dos abutres. Estou aqui para garantir que justiça lhes será feita, senhor. - Fez uma curta pausa. -
Isso, claro, se aqueles que vieram de Roma possuírem alguma familiaridade com este conceito. Entretanto, e ao que parece, não passo de um prisioneiro.
Macro deitou uma olhadela a Cato e falou calmamente.
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- Este é mesmo convencido, não é? Se ele quer mesmo brincar, terei todo o prazer em interrogá-lo a sério.
- Ainda não - contrapôs Cato. - Vamos ver o que conseguimos por meios menos agressivos, sim?
Voltou-se para Hamedes.
- O governador solicitou-nos que colaborássemos na sua investigação sobre o incidente que referes. Podíamos de facto ler o teu depoimento, mas preferia ouvir o relato diretamente
dos teus lábios. Seria de grande importância para nos permitir procurar a justiça que solicitas.
O jovem sacerdote encarou-o, e acabou por anuir.
- Muito bem. Estou pronto a colaborar para esse fim.
- És muito gentil - resmungou Macro, e Cato lançou-lhe um olhar de aviso.
- Conta-lhes o que me contaste, Hamedes - pediu Petrónio. - Por favor.
- Muito bem. - Cerrou os olhos por momentos, como que para compor os pensamentos. - Surgiram na última hora do dia. O sumo sacerdote tinha já dado início à cerimónia que marca
a entrada de Rá no submundo. Os altos sacerdotes estavam junto ao altar, perto do cais. Nós, os outros, ajoelhávamos na margem do rio, em volta da barca sagrada. Foi nessa
altura que reparei na vela. Uma nave de guerra romana tinha começado a subir o rio, e dirigia-se para a margem leste. O sumo sacerdote não pareceu dar-lhe qualquer atenção,
e prosseguiu com a cerimónia, enquanto preparava o molho de trigo que ia ser queimado como oferta a Rá, o mais sábio e piedoso. - Hamedes juntou as mãos e baixou a cabeça
por breves instantes. - O navio continuou a aproximar-se. No último instante recolheram a vela e viraram de bordo para acostar aos degraus que desciam para o Nilo. De imediato
lançaram uma prancha e começaram a desembarcar.
- Vinham de uniforme? - indagou Cato. - Como eu, por exemplo?
- Tinham túnicas como a tua, mas brancas. Empunhavam espadas, escudos e capacetes como os que são usados pelos vossos auxiliares.
- Fuzileiros, portanto - comentou Macro. - Bate certo com o que sabemos.
Cato assentiu.
- Continua. O que se passou depois?
- Cercaram-nos e obrigaram-nos a juntarmo-nos em torno da barca de Rá, o mais sábio e piedoso. - Hamedes repetiu o gesto anterior. - Todos, exceto o sumo sacerdote. Separaram-no
para ser interrogado pelo comandante. Que foi o último a vir a terra.
- És capaz de o descrever? - indagou Cato, fazendo por ignorar o olhar que Petrónio lhe lançou.
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Hamedes franziu o sobrolho.
- Alto, musculado. Olhos castanhos. Com aparência mais de grego que de romano, como seria de esperar aqui no Egito. Envergava uma armadura de placas, um capacete com plumas
e um manto azul. E trazia uma espada, do tipo que vocês romanos usam.
- Viste-o de perto, portanto?
- Sim, estava próximo quando ele interrogou o sumo sacerdote.
- Portanto serias capaz de o reconhecer, se voltasses a encontrá-lo?
- Com toda a certeza.
- Ótimo. - Cato fez um gesto com a mão. - Prossegue, por favor.
Hamedes assentiu.
- Disse ao sacerdote que estava a agir por ordem do governador de Alexandria. Anunciou que tinha sido proclamado um édito, pelo qual todo o ouro e prata existente nos templos
era confiscado. Exigiu que o sumo sacerdote lhe indicasse a localização do nosso cofre. O que foi recusado. O sacerdote, furioso, fez notar que o templo era solo sagrado,
e que os romanos o estavam a profanar. Ordenou-lhe que pegasse nos seus homens e se fosse. Mas o oficial deu ordens para que lhe fosse trazido um dos sacerdotes menores. Desembainhou
a espada e decapitou-o. Perguntou outra vez ao sumo sacerdote onde era o cofre, e quando não obteve resposta, executou outro homem. Continuou a matar-nos, um a um, até que
por fim o sumo sacerdote cedeu. Amaldiçoou o romano, e levou-o até ao cofre. Os romanos obrigaram quatro de nós a levar as arcas repletas de moedas de ouro e prata até ao
navio. Então, quando tudo estava terminado, começou a executar os que ainda viviam, a começar pelo sumo sacerdote. - Hamedes fez uma pausa, e quando retomou o relato, tinha
um tremor na voz. - Vi o sangue a correr pelos degraus e a misturar-se com a água do Nilo...
- Tentaste escapar? - quis saber Cato. - Escondeste-te, talvez?
- Não. Estava demasiado aterrorizado para me conseguir mover. Como estávamos todos, acho. Antes que me apercebesse, era já o único sobrevivente. Ele aproximou-se de mim, mais
perto ainda do que estamos agora, e encarou-me em silêncio durante algum tempo. Estava certo que me ia liquidar, portanto virei-me para o poente para oferecer uma última prece
a Rá, o mais sábio e piedoso...
- Sim, sim, obrigado - interrompeu Macro. - Acho que já conhecemos essa parte. Segue lá com a história.
Hamedes olhou-o com irritação.
- Orei, mas ele agarrou-me pelo ombro e fez-me rodar para o olhar de frente. Disse que Roma já estava farta da insolência dos nossos sacerdotes. Disse que o Imperador decretara
que era tempo de as antigas religiões
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serem obliteradas. Disse-me ainda que fora poupado para poder espalhar a mensagem. Por fim, disse que eu devia recordar o seu nome, e que ele agia de acordo com as ordens
do vosso Imperador, Cláudio.
- O mais sábio e piedoso - murmurou Macro, e abanou a cabeça à laia de desculpa quando Cato lhe franziu o cenho.
Cato virou-se e olhou o sacerdote nos olhos, sem vacilar.
- E como se chamava esse oficial?
- Como já disse ao escriba - respondeu Hamedes dirigindo-se a Petrónio, e acenando na direção do canto da sala. - Ele disse que era um prefeito. O prefeito Quinto Licínio
Cato.
- Estás certo disso?
- Sim. Ele obrigou-me a repetir o nome.
- E depois?
- Atingiu-me na cabeça com a guarda da espada. Perdi os sentidos. Quando acordei, jazia misturado com os corpos dos outros sacerdotes, as minhas vestes ensopadas no seu sangue.
Os romanos tinham desaparecido. Tinham deitado fogo às acomodações dos sacerdotes, e tinham enchido o templo de madeira, folhas de palmeira e óleo, ateando o fogo também lá.
As pinturas nas paredes, os sagrados registos do templo, ardeu tudo. O incêndio lavrou toda a noite, e de manhã tudo o que restava era uma casca calcinada. - Hamedes estremeceu
ao recordar. - Estava só. O templo já não existia. Tudo o que me restava era vir até aqui e reclamar justiça. Isso, ou vingança. Por todos os deuses do meu povo, juro que
hei de encontrar e matar esse romano, esse tal prefeito Cato.
- O homem que atacou o teu templo não é nenhum romano - afirmou Cato com firmeza. - Não passa de um escravo, um fugitivo, que se faz passar por romano. Tem andado pela costa
do Egito no último mês, e tem passado o tempo a matar o teu povo.
- Era um romano, sim - ripostou Hamedes com veemência. - Queres que acredite que não o era? Os seus homens, também estavam a fingir? O navio, uma imitação de um navio romano?
Por quem me tomas, por um idiota?
- O navio era verdadeiro. E ele e os seus homens também envergavam verdadeiros uniformes romanos. O nome desse homem é Ajax. Capturou o navio, e assassinou a tripulação. Há
meses que o perseguimos.
Hamedes enfrentou Cato sem esconder a suspeita.
- Não acredito no que dizes.
Petrónio designou Cato com um gesto.
- Alguma vez viste este oficial antes? Ou o que está sentado ao seu lado?
- Não.
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- Estás certo disso?
- Absolutamente. Até há pouco, nunca os tinha encontrado.
- Então ficarás certamente surpreso se eu te disser que este homem é o prefeito Cato, e que o seu companheiro é o centurião Macro.
Hamedes abanou a cabeça.
- Que embuste é este?
- Não é embuste nenhum - assegurou o governador. - Ou melhor, não é nosso, nem aqui, nem agora. Este homem é o prefeito Cato, e tudo o que afirma é verdade. O assassino que
atacou o templo e massacrou os teus companheiros é um impostor. O seu intento é o de provocar o teu povo e levá-lo à revolta. Quer encher os seus corações com o desejo de
vingança. E tem tido um admirável sucesso. Agora sabes toda a verdade. Preciso que nos auxilies, Hamedes.
O egípcio ainda parecia aturdido, e Petrónio adotou um tom mais suave na voz.
- És um sacerdote. O teu povo respeita-te, a tua palavra é aceite como boa. Preciso que lhes contes a verdade. Não apenas a eles, mas a toda a gente em Alexandria.
- Senhor, o que me está a propor?
- Vou convocar os chefes das guildas de mercadores e armadores. Conceder-lhes-ei uma audiência no palácio, e nessa altura poder-lhes-ás contar aquilo que hoje ficaste a saber.
- E porque hão de eles acreditar na minha palavra? Sabe bem a forma como os habitantes de Alexandria olham para nós, egípcios. Porque hão de aceitar a palavra de um deles?
- Porque suspeito bem que os egípcios comuns desprezam os romanos ainda mais do que são eles mesmos desprezados pelos gregos. Se surgires ao nosso lado, isso dará aos gregos
matéria para ponderar. Será bem melhor que sejas tu a revelar a verdade sobre Ajax, e não nós, romanos.
Hamedes anuiu.
- Compreendo. Só espero que acreditem em mim.
Nessa noite, o governador Petrónio estava sentado num cadeirão ornamentado e formal, num estrado elevado ao fundo do salão de audiências. De um lado estavam Cato e Macro,
de pé, do outro um par de escribas sentados em tapetes, um encarregado de registar as palavras do governador, o outro para anotar os comentários dos seus convidados. Como
era seu costume, Petrónio queria assegurar-se de que ficava com um registo da reunião, que seria fundamental para uma futura defesa num hipotético julgamento em Roma, caso
viesse alguma vez a ser acusado de corrupção ou incompetência.
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O salão de audiências era ladeado por altas colunas, cujos capitéis exibiam o desenho característico do Egito, uma flor de lótus. Era precisamente o mesmo salão a partir do
qual os Ptolomeus tinham anunciado os seus decretos a todo o reino. A última da dinastia, Cleópatra, tinha ali recebido primeiro Gaio Júlio César, e depois Marco António,
sentada na mesma posição que agora era ocupada pelo governador. Contudo, o brilho cerimonial e os solenes discursos de amizade entre duas grandes potências há muito tinham
sido engolidos pela História. Em vez disso, havia uma multidão de alexandrinos ansiosos e irritados, mantidos no lugar por uma linha de soldados romanos de faces austeras.
Hamedes tinha acabado de lhes relatar as suas experiências, e tinha confirmado que o homem que dissera ser o prefeito Cato não era o mesmo que estava de pé ao lado do governador.
Outras testemunhas poupadas por Ajax tinham sido chamadas para confirmar o anúncio feito pelo governador de que os atacantes eram impostores.
A princípio tinham-se erguido apenas uma ou duas vozes para denunciar o governador, acusando-o de acolher renegados no seio das forças romanas que ocupavam o Egito. Petrónio
escutou os argumentos com toda a paciência durante alguns minutos, até que demasiadas vozes se lançaram em brados apaixonados, que impediam mesmo que se percebesse o que estava
a ser dito. Nessa altura, inclinou-se ligeiramente para Macro.
- Centurião, faz-me um favor e pede-lhes para se calarem.
- Sim, senhor. - Macro respirou fundo. Colocou as mãos em concha em torno da boca e soltou um único grito. - SILÊNCIO!
O salão tinha sido desenhado de forma a que as ordens vindas do trono ecoassem com clareza, mas em todo o caso a voz de Macro, habituada às paradas, era bem capaz de fazer
imobilizar imediatamente um recruta, mesmo que a algumas centenas de passos de distância. As línguas dos alexandrinos ficaram de súbito presas, e quando o silêncio voltou
a imperar, Petrónio tomou a palavra.
- Asseguro-vos que os homens que têm andado a atacar as povoações costeiras e a abordar os vossos navios não são romanos. O paradeiro de todos os navios da esquadra de Alexandria
é perfeitamente conhecido. Os responsáveis por esta vaga de terror são outros, e o seu líder já foi identificado: trata-se de um escravo fugitivo, Ajax. - Fez uma pausa. -
Tendo isso em mente, confio em que posso esperar que regressem às vossas comunidades e ajudem a extinguir os rumores que correm por todos os cantos da cidade. É a única medida
responsável a tomar. Se for descoberto que alguém dos aqui presentes ajudou a espalhar a mentira de que forças romanas estiveram envolvidas nestes ataques, não terei escolha
a não ser acusá-los de sedição. E os que forem considerados culpados enfrentarão o confisco dos bens e o exílio, ou a morte.
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Um burburinho elevou-se da multidão, até que um homem se adiantou e ergueu uma mão.
- Senhor, posso falar?
Petrónio anuiu.
- Uma coisa é descobrir a verdade por trás dos ataques, outra e muito diferente é pôr-lhes fim. Esse fugitivo e o seu bando andam ainda à solta por aí. O que se propõe fazer
quanto a esta ameaça às nossas atividades comerciais? Posso assegurar-lhe de que nas províncias vizinhas já se fala das perdas que temos sofrido. Os armadores começam a recusar-se
a enviar os seus navios de e para Alexandria, e os que o fazem cobram preços ruinosos. Estou certo de que falo por todos os mercadores aqui presentes quando afirmo que pago
todos os meus impostos, e que em retorno espero que os meus negócios sejam ativamente protegidos.
- Evidentemente! - ripostou Petrónio em voz bem alta. - E eu por mim estou também certo de que todos estão fortemente empenhados na proteção das vidas dos tripulantes dos
navios que transportam os vossos bens.
O mercador agitou-se, desconfortável, mas anuiu.
- Naturalmente. Nem é preciso dizer que o bem-estar dos nossos funcionários e das tripulações dos navios fretados é caro aos nossos corações.
- Primeiro é preciso assumir que têm corações - comentou Macro em surdina.
- Uma assunção e peras - retorquiu Cato no mesmo tom.
Petrónio olhou-os de relance e voltou de novo a sua atenção para o
porta-voz dos alexandrinos, que prosseguia.
- Senhor, a pergunta que lhe pus continua por responder. O que tenciona fazer quanto a esse renegado?
- Estamos a tratar do assunto. O prefeito Cato vai conduzir uma força especial com ordens para encontrar e destruir este escravo renegado.
- Ao que parece, o prefeito não tem tido muita sorte até aqui! - proclamou uma voz no meio do grupo. De imediato se elevou um irado coro de assentimento, até que Petrónio
levantou as mãos e solicitou que o escutassem.
- Tenho a maior confiança no prefeito Cato. É o homem indicado para este trabalho, e creio que será uma questão de dias até ele completar a missão.
- Quantos dias? - inquiriu outro dos mercadores. - Já passou mais de um mês desde que começaram os problemas. Outro mês assim e estarei arruinado.
Mais gritos se soltaram, sobrepondo-se ao tom geral de contestação.
- Calados! - exigiu o prefeito, um tanto ansioso. - Calados, já disse!
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O prefeito Cato vai ter ao seu dispor todos os recursos militares de Alexandria, de forma a que a captura ou destruição de Ajax ocorra sem mais demoras.
Macro deu um toque em Cato.
- Esta é novidade para mim.
- E para mim. - Cato sorriu sem vontade. - Enfim, não deixam de ser boas notícias. Finalmente.
- Que mais podia eu dizer? - começou Petrónio, irritado, quando teve ocasião de conversar com os dois oficiais, nos seus aposentos privados, depois da audiência. - Vocês ouviram-nos.
Estavam praticamente em revolta aberta. Alguns deles têm contactos influentes em Roma. E como se isso não fosse suficientemente mau, os dois últimos Imperadores distribuíram
aos seus favoritos propriedades no Egito como se fossem biscoitos. Até o Narciso é dono de algumas parcelas de terra no delta. O comércio de cereais e de outros produtos dessas
propriedades está a ser posto em causa pelo Ajax. O Narciso é o tipo de homem influente a quem eu preferia não causar azia. Portanto, é vital que ele e os seus amigos saibam
que estou a fazer tudo o que posso para acalmar as tensões aqui em Alexandria.
- Mas na realidade não nos vai pôr nas mãos tudo aquilo de que precisamos para terminar este trabalho, pois não, senhor? - questionou Macro.
- Não. Não posso. Já vos disse, as nossas forças já estão esticadas ao máximo. Não me posso permitir empenhá-las numa espécie de caça aos gambuzinos.
- Não seria nenhuma caça aos gambuzinos se tivéssemos mais homens e navios - persistiu Macro. - Poderíamos percorrer o terreno muito mais rapidamente, e quando encontrássemos
o Ajax, teríamos uma esmagadora superioridade em número de combatentes.
- Se o encontrarem.
- Havemos de o encontrar - afirmou Cato com firmeza. - Tem a minha palavra quanto a isso.
- E se ele deixar o delta? - interrogou Petrónio. - E se ele navegar para norte, ou para ocidente? E então? Vão gastar tempo e material a perseguir uma sombra.
- Ele não vai deixar esta área. Porque o faria? Está a ter um extraordinário sucesso no acirrar dos sentimentos dos nativos contra Roma. Vai ficar por aqui enquanto achar
que está a prejudicar os nossos interesses no Egito. Dê-nos uma frota decente e havemos de o encontrar e encurralar em pouco tempo.
- Uma frota? - Petrónio sorriu, a zombar da ideia. - Já estou no
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ponto em que tenho de usar os fuzileiros para assegurar todas as patrulhas na cidade. Além disso, todos os homens são necessários para conter os nú-bios.
- Preciso da frota - insistiu Cato.
Petrónio respirou fundo, irritado, e considerou o pedido por momentos.
- Dou-te mais seis navios. Mas só por um mês. Não posso dispensá-los nem mais um dia.
Cato pesou a oferta. Oito navios deviam chegar para tratar de Ajax e dos seus homens, mas o limite temporal era um problema.
- Um mês poderá não chegar.
- Mas é tudo o que tens. Depois disso, quero que tu e os teus homens se juntem à Vigésima Segunda, em Diospolis Magna. Portanto, prefeito, sugiro que te ponhas a mexer.
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6

- É como andar à procura de um grão de areia numa saca de sal - protestou Macro, enquanto seguia Cato e Hamedes pela faixa arenosa, para junto dos barcos de pesca puxados
para terra. - O cabrão do Ajax é praticamente invisível.
- Havemos de o encontrar - retorquiu Cato, calmamente. - Custe o que custar.
- Não é o que vai custar, é quando. O mês está quase no fim, Cato. Se não o encontrarmos nos próximos cinco dias, teremos de desistir.
- Estou perfeitamente ciente disso, centurião.
Macro cerrou os lábios até estes formarem uma fina linha. O falhanço na tentativa de localizar Ajax pesava fortemente no espírito do amigo, e Cato tinha desenvolvido recentemente
a estratégia de se referir à patente inferior do veterano sempre que estava farto de uma conversa ou não se queria ver contradito. Portanto, prosseguiram em silêncio, descendo
a praia para junto dos pescadores, concentrados na tarefa de recolher os agitados peixes prateados das redes e lançá-los para cestas. Hamedes ia à frente, pronto para se dirigir
aos nativos na sua própria língua, para lhes garantir que o trio não constituía qualquer tipo de ameaça. O sacerdote tinha-se voluntariado para se juntar à caça quando Cato
lhe pedira para atuar como guia e intérprete. O templo de Keirkut tinha sido a sua vida. Fora recrutado para as fileiras sacerdotais praticamente ainda uma criança, e os outros
homens no templo tinham sido a única família que conhecera; o desejo de vingança ardia-lhe nas veias.
Cato e Macro usavam apenas as túnicas e cintos, com as bainhas em que levavam as adagas por trás das costas, fora de vista. Hamedes usava as vestes largas e flutuantes de
um camponês. Os botes de pesca tinham sido avistados por um dos esquifes que Cato enviara para patrulhar a foz do Nilo, enquanto o resto da flotilha se mantinha ancorada numa
pequena enseada próxima. Cato e os companheiros tinham desembarcado sem serem avistados pelos pescadores, e tinham removido as armaduras antes de tentarem aquela aproximação.
Depois das depredações de Ajax, tinha-se tornado muito difícil recolher
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qualquer informação nas pequenas aldeias egípcias ao longo da costa. À primeira vista de uma vela romana ou de homens em uniformes das legiões, os aldeãos fugiam sem pensar
em mais nada. As únicas notícias que Cato tinha conseguido dos locais tinham saído de ocasionais interceções das raras embarcações que se atreviam ainda a fazer-se ao mar,
e das poucas vezes em que tinham conseguido aproximar-se dos habitantes locais sem lhes provocar a fuga, como naquela ocasião.
- Já nos viram - murmurou Macro, quando um dos pescadores levantou a vista, estando eles já a menos de cem passos. O homem chamou imediatamente os seus companheiros, e todos
largaram as redes, passando a empunhar bastões e facas de amanhar. Estavam claramente divididos entre a vontade de abandonar a pescaria e fugir, ou ficar e confrontar os três
homens que se aproximavam. Eram doze, contou Macro, portanto quatro para cada um deles, se houvesse confusão. Os pescadores eram tipos magros e ossudos, e não eram de todo
combatentes profissionais. Ainda assim, a esmagadora vantagem numérica emprestava-lhes coragem suficiente para tentarem enfrentar os três homens que observavam a aproximarem-se,
sem disfarçarem a desconfiança.
- Diz-lhes que não lhes faremos mal - indicou Cato a Hamedes. - Queremos comprar-lhes a pescaria, e conversar.
Hamedes assentiu e lançou uma saudação amigável. O mais próximo dos pescadores respondeu de forma algo ríspida, enquanto fazia um gesto claro com a mão, indicando-lhes que
se detivessem. Seguiu-se uma rápida troca de palavras, e por fim Hamedes virou-se para Cato.
- Disse-lhes quem éramos. O que falou é o chefe da aldeia. Quis saber se estávamos sozinhos. Disse-lhe que sim.
Cato anuiu, desconfiado, e esperando que os fuzileiros que tinha deixado junto ao esquife se mantivessem escondidos, como lhes fora ordenado.
- Pergunta-lhe se viram outros romanos por aqui nos últimos tempos.
A troca de palavras foi longa, e o chefe local agitou as mãos várias vezes, apontando ao longo do rio. Por fim, o sacerdote dirigiu-se de novo a Cato.
- Um navio de guerra entrou pela boca do rio há alguns dias. Ficou aqui toda a noite, e de manhã seguiu viagem.
- Em que direção?
- Ocidente.
- Para o nosso lado? - Macro franziu o sobrolho. - Não o vimos.
- Deve ter-se esgueirado no meio da escuridão - concluiu Cato.
- Ou podem ter-nos avistado primeiro e dado meia-volta, ou terem-se escondido na costa. Supondo, claro, que se tratava do Ajax. - Pesou a situação.
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- Só pode ser ele. Não é suposto haver outras forças navais em ação no delta.
Cato fez um gesto a designar os barcos, pequenas embarcações feitas de feixes de papiros, amarrados em conjunto.
- Pergunta-lhe se podemos comprar parte do peixe que apanharam.
Hamedes traduziu, e o outro homem acenou-lhes para se aproximarem, embora continuasse a não esconder a sua desconfiança. Cato manteve as mãos sempre à vista, e avançou. Os
olhos escuros dos pescadores mantinham-se presos nele, e eles recuaram, formando um semicírculo, enquanto Cato e os companheiros se aproximavam das cestas. Dúzias e dúzias
de peixes ainda se agitavam lá dentro, aos pulos, enquanto outros abriam e fechavam as bocas ossudas, como se tentassem respirar. Nas redes havia ainda mais peixes a debaterem-se.
Cato apontou-os.
- Diz-lhe que não era nossa intenção interromper a faina. Podem continuar a trabalhar enquanto conversamos.
Os homens não pararam de lançar olhares desconfiados aos visitantes, mas recomeçaram a recolher os peixes da malha das redes com dedos hábeis, enquanto o chefe continuava
a falar com Hamedes.
- Ele quer saber quanto é que queres comprar.
- Uma cesta chega. - Cato tirou a bolsa do cinto e extraiu algumas das moedas de prata que Petrónio lhe tinha entregue para obter abastecimentos para a flotilha. - Ora aqui
estão dez óbolos.
Os olhos do chefe faiscaram, e a sua face rapidamente assumiu uma expressão de desdém.
- Ele quer vinte. Diz que tem muitas bocas para alimentar na aldeia. Se vender a pescaria, muita gente passará fome esta noite.
- Ora, o que ele quer é regatear - resmungou Macro.
- Doze - propôs Cato. - É um preço justo. Diz-lhe isso.
O chefe voltou a abanar a cabeça.
- Quinze. Diz que se está a prejudicar. Mas percebeu que és um homem bom, e portanto oferece-te este preço especial.
- Quinze óbolos. - Macro bufou, exasperado. - Ele julga que somos alguns idiotas chapados?
- Chhh - instou Cato. - Seja, quinze.
Contou as moedas e passou-as para as mãos do outro. O chefe dos pescadores agarrou-as com avidez e enfiou-as rapidamente numa sacola imunda a bordo do mais próximo dos barcos.
- Diz-lhe que há mais cinco óbolos à espera dele se nos puder informar se ouviu alguma coisa sobre a localização dos homens que têm vindo a realizar os ataques ao longo da
costa. Pergunta-lhe se tem alguma ideia do sítio onde possam estar escondidos.
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O homem fez menção de considerar a proposta.
- Ele diz que te contará tudo o que sabe se lhe deres dez óbolos.
- O descaramento deste sacaninha de merda! - explodiu Macro. - Cato, queres que o convença a fazer-nos um desconto?
- Não. Precisamos de todo o apoio local. A última coisa que queremos, centurião, é fazer o jogo do Ajax, entendido?
- Sim, senhor.
Cato entregou mais algumas moedas, e esperou que Hamedes traduzisse.
- Diz ele que uma aldeia foi atacada há dois dias, na ria mais próxima a ocidente. A maior parte dos aldeãos escapou e fugiu para a aldeia destes. Por isso é que agora tem
tantas bocas para alimentar.
- Escapou-nos qualquer coisa - comentou Macro. - Se calhar, não passou mesmo por nós. Senhor, acho que devíamos voltar para trás e investigar a região a oeste.
Cato guardou silêncio por momentos. Os navios que comandava tinham varrido a costa entre Alexandria e aquela área mais oriental da foz do Nilo. Todas as baías e rias tinham
sido exploradas. E para lá da ocasional evidência de um dos ataques do Ajax, não tinha sido encontrado qualquer traço dos fugitivos. Era possível até que tivessem afundado
o navio e se tivessem introduzido no delta, mas Cato estava convencido de que o inimigo não se arriscaria a abandonar o navio, que era a única forma de poder escapar para
o oceano. Se as informações do chefe daqueles homens fossem corretas, havia duas possibilidades. Ou Ajax abandonara o delta e velejara para o Norte do Mediterrâneo, ou tinha
escondido o seu navio tão bem que este passara despercebido à flotilha de Cato.
- O melhor é regressarmos aos navios. Hamedes, oferece-lhe os meus agradecimentos, e afiança-lhe que não descansaremos enquanto não tivermos destruído o Ajax. Nessa altura,
ele e o seu povo poderão viver livremente e em paz.
O homem encolheu os ombros.
- Ele afirma que entre os perigos do Ajax e a brutal carga das taxas romanas, pouca paz pode um homem esperar. Não há liberdade, não para os mais pobres.
- Não há muito que possamos fazer quanto a isso - comentou Macro, afastando o assunto. - Olha, dá-me aqui uma ajuda com esta cesta.
Hamedes fez as despedidas do grupo e pegou numa das asas, enquanto Macro agarrava na outra. Depois, seguidos por Cato, perdido nos seus pensamentos, seguiram pela estreita
faixa de praia até à ponta pedregosa onde se escondiam o esquife e os fuzileiros.
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- Pelo menos esta noite vamos ter comida fresca - reconheceu Macro com ar feliz ao contemplar os peixes.
- Sim, darão uma bela refeição - concordou Hamedes, enquanto ajustava o peso com um grunhido.
- Espero bem que sim. Quase que aposto que este peixe é o mais caro que foi alguma vez apanhado no Egito - concluiu o centurião, pesaroso.
Nessa noite a tripulação do Sobek jantou carpa do Nilo frita, enquanto os homens dos outros navios na praia ruminavam as suas rações de biscoito rijo. Cato e Macro jantavam
nos seus pratos de estanho à luz de uma bela fogueira de troncos de palmeira. Hamedes estava sentado de pernas cruzadas do outro lado do fogo, embrenhado na leitura de um
rolo de preces que tinha trazido de um templo de Alexandria. O peixe, assado nas brasas, estava delicioso, refletiu Macro com satisfação enquanto pousava o prato e lambia
os dedos. Deitou uma olhadela a Cato e viu o rosto do jovem de perfil, envolto num brilho avermelhado, profundamente concentrado. Macro deu uma palmada no peito e arrotou.
- Perdão.
- Hmmm? - Cato olhou em redor, com ar ausente.
- Ah, afinal ainda estás connosco.
- Sim. Evidentemente. - Cato baixou o prato de estanho e Macro apercebeu-se de que ainda lhe restava meio peixe. Fez um gesto na direção do alimento.
- Já acabaste?
Cato assentiu.
- Então não te importas se, hum...
- Sirva-se.
Macro agradeceu com um aceno rápido e atirou-se ao que restava de peixe.
- Há qualquer coisa que não bate certo no que os pescadores nos contaram - anunciou Cato calmamente. - Tenho a certeza que vasculhámos a costa a pente fino, e não encontrámos
traços do Ajax ou do seu navio.
- Como é óbvio, não procurámos com toda a atenção - comentou Macro entre dentadas ávidas.
- É possível. Mas se eu estivesse no lugar dele, escolhia uma base o mais a leste possível de Alexandria, bem longe da sede da esquadra.
- Se fosses o Ajax, decerto que não querias estar a uma distância demasiado grande das rotas da navegação comercial.
- O que eu não quereria era estar perto de Alexandria. Quereria estar algures bem afastado das rotas mais frequentadas, longe de quaisquer povoações e com uma boa saída para
o mar alto, se fosse preciso escapar de
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repente. Algures bem a leste de Alexandria. Portanto, amanhã não vamos voltar para trás. Vamos prosseguir para oriente.
Macro engoliu num repente e pousou o prato.
- Porquê? Ouviste o que descobrimos hoje. O último ataque ocorreu a oeste daqui, e foi nessa direção que viram o navio a afastar-se.
- É verdade, e não quero duvidar do que eles julgam que viram, mas não me consigo convencer de que o Ajax se esconde para essas bandas. Não faz sentido. Oiça, Macro, você
conhece-o melhor do que eu.
- Obrigadinho por mo recordares.
- O Ajax é esperto como uma raposa. E está claramente determinado em causar-nos o máximo de danos possível. A mim e a si em particular, dado que ainda nos culpa pela morte
do pai. Usar os nossos nomes foi uma bonita forma de nos lembrar disso.
- Portanto vocês conhecem-no? - interrompeu Hamedes, baixando o rolo de preces. - E conheciam o pai dele? Como?
Macro sorriu.
- O nosso homem, este Ajax, nem sempre foi um gladiador. Na sua vida anterior era um pirata, como o pai, Telémaco. O prefeito e eu fazíamos parte da expedição enviada para
o destruir. Cumprimos a missão. O chefe dos piratas foi crucificado e o filho vendido como escravo, bem como todos os prisioneiros que capturámos. Mas logo por azar foi escolhido
para receber treino de gladiador, e depois um idiota qualquer comprou-o para lhe servir de guarda-costas e levou-o para Creta. Neste momento, o que mais gostava era que tivéssemos
pregado o filho ao lado do pai. Tínhamo-nos poupado a toda esta chatice, e a esta hora estaríamos descansados em Roma.
- Mas não o fizemos - interrompeu Cato. - E agora temos de acabar o trabalho que começámos há tanto tempo. Como já disse, o Ajax é esperto, e é alimentado pelo ódio. Mas duvido
que renunciasse à vida só para conseguir uma vingança espetacular. Portanto, acho que ele deve ter um plano para abandonar o delta do Nilo se se sentir ameaçado de ficar aqui
encurralado. É por isso que penso que ele está mais a leste. - Cato desenrolou a enxerga de vime e deitou-se, puxando o manto para se cobrir. - De manhã zarpamos para Cásio,
e depois então regressamos a Alexandria.
No dia seguinte a flotilha fez-se de novo ao mar e rumou a leste com as velas enfunadas. Soprava uma brisa persistente, e o trierarca do Sobek aconselhou Cato a dar ordens
para recolher algum do pano, de forma a reduzir a tensão nas velas, no mastro e no cordame. Estavam já próximos do limite do prazo que Petrónio lhes impusera para terminar
a busca, e Cato estava
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decidido a aproveitar o pouco tempo de que ainda dispunha. Ordenou ao trierarca que mantivesse todo o pano e comunicasse essas instruções aos outros navios.
Quando o Sol já se recolhia no horizonte, chegaram ao pequeno porto de Cásio, e passaram a noite a receber provisões e água. Pela alvorada voltaram a zarpar, de regresso a
Alexandria. A intenção de Cato era vistoriar a linha de costa com todo o pormenor. Se Ajax estivesse escondido algures, seria por certo naquela extensão de costa. Estava certo
disso.
O Sobek deixou o pontão no preciso momento em que o Sol surgia sobre o horizonte oriental. Hamedes pôs-se de joelhos de frente para o Sol e esticou os braços, mantendo os
olhos fechados enquanto murmurava uma prece. Não era o único a realizar tais ações. Os membros da tripulação que partilhavam a fé do sacerdote imitaram-no, e cumpriram o ritual
rapidamente, de forma a poderem retomar as suas tarefas. As velas foram ajustadas, todos os cabos foram verificados e presos. O sacerdote, cujos rituais eram mais elaborados,
continuou a executá-los durante mais uns minutos, até que por fim se pôs de pé e libertou a tensão nos ombros. Percebeu que Cato o observava, e depois de uma curtíssima mas
evidente hesitação, sorriu, à laia de saudação.
- Ofereci a ísis algumas preces, para que possa ser hoje o dia em que encontrará o que procura.
- Obrigado - agradeceu Cato. - Parece-me que bem preciso de ajuda.
- Vela à vista! - gritou o vigia lá de cima do mastro.
- Em que direção? - indagou o trierarca.
- Mesmo em frente, senhor!
Cato apressou-se a tomar lugar à proa, seguido por Macro, e logo depois pelo trierarca e por Hamedes. O horizonte ocidental estava vazio. Durante alguns momentos todos esforçaram
a vista, até que Cato esticou o braço e apontou.
- Além!
Os outros seguiram a direção indicada e quando o Sobek galgou uma onda, avistaram uma pequena mancha branca que logo voltou a desaparecer. O trierarca virou-se e olhou para
cima, para o vigia.
- Consegues identificá-la? É uma embarcação de guerra?
Depois de uma longa pausa, veio a resposta.
- Não, senhor. É demasiado pequena para isso. Parece mais uma embarcação de recreio, uma coisa veloz. Sim, senhor. Estou certo disso. Alterou o rumo, e vem direita a nós.
- Veloz? - Macro coçou o queixo. - Pergunto-me quem poderá ter tanta pressa em nos encontrar.
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- E mais importante, porquê? - adicionou Cato. - Trierarca, altera a rota para nos encontrarmos com aquela embarcação.
- Sim, senhor.
Rumaram de encontro a ela, e os dois navios aproximaram-se rapidamente. Menos de uma hora depois, um jovem oficial romano, que Cato reconheceu como um dos tribunos ao serviço
de Petrónio, subia ao convés do Sobek e dirigia-se a Cato com passos firmes.
- Senhor, um despacho urgente do governador. - O tribuno apresentou um tubo de couro com o selo do governador bem evidente no fecho. Cato pegou-lhe, quebrou o selo e extraiu
um rolo de papiro. Afastou-se para a amurada, desenrolou-o e leu rapidamente; repetiu a leitura para se assegurar de que entendia todo o conteúdo da mensagem. Enrolou-o de
novo e acenou ao amigo.
- Macro, junte-se a mim, por favor.
- O que se passa, senhor? - perguntou o centurião em surdina, quando se aproximou de Cato.
- Os núbios atravessaram a fronteira. Invadiram o Egito. Petrónio ordenou à Vigésima Segunda que avançasse ao longo do Nilo até Diospolis Magna. Tenciona concentrar ali todas
as forças que tem disponíveis antes de enfrentar os núbios.
- O que quer dizer que nos quer de volta a Alexandria imediatamente, imagino.
- Pois. - Cato cerrou o punho em torno do rolo, esmagando-o. - Ao que parece, somos obrigados a abandonar a perseguição ao Ajax.
O coração de Macro pareceu ficar de chumbo por via do desapontamento, e, ao olhar para o amigo, percebeu claramente que Cato partilhava do mesmo azedume. Macro limpou a garganta
antes de falar.
- Senhor, é uma coisa momentânea. Assim que tratarmos dos núbios, voltaremos à busca. Não se preocupe, havemos de apanhar aquele cabrão. Há de pagar por tudo o que me fez,
bem como à Júlia. Pela minha vida o juro.
Cato encarou-o e concordou.
- Como eu o faço.
Respirou fundo e atravessou o convés para falar ao tribuno.
- Diz ao governador que navegamos a todo o pano, e que depressa regressaremos a Alexandria.
- Sim, senhor. - O tribuno saudou-o, e depois hesitou. - Há alguma coisa que lhe deva relatar, senhor? Algum progresso na localização do renegado?
- Não. Não há nenhum progresso - admitiu Cato. - Agora despacha-te.
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O tribuno foi até à amurada e desceu a escada de corda para o convés da esguia embarcação. A respetiva tripulação tratou de imediato de o afastar do costado da galera, e fez
subir a vela triangular. O vento enfimou-a com um estalo, e a embarcação de recreio adornou ligeiramente enquanto ganhava velocidade e se afastava do Sobek, fazendo rumo a
oeste.
Cato virou-se para o trierarca.
- Traça a rota para Alexandria. Sinaliza aos outros navios para que nos sigam.
- Sim, senhor.
Enquanto a galera se fazia ao caminho de regresso, Cato manteve-se encostado à amurada, contemplando a linha de costa. Ajax estava por ali, algures, e livre para poder prosseguir
na senda da destruição por todo o delta, sem enfrentar a punição que merecia. Era uma dose difícil de engolir, mas a verdade é que não havia nada que pudesse ser feito.
O vento aumentou de intensidade ao longo do dia, e o mar engrossou, obrigando os navios a abrir caminho por entre as vagas, soltando grandes explosões de espuma sempre que
um dos pesados aríetes de bronze das proas das galeras embatia na ondulação. O cordame estava todo ele esticado até ao limite e gemia enquanto vibrava; a base do mastro quase
se dobrava perante a pressão na vela, e o trierarca lançava olhares ansiosos em todas as direções, temendo pelo seu navio. Então, a meio da tarde, ouviu-se um estalido, e,
ao virar-se, Cato avistou um dos outros navios, o Thoth, a adornar perigosamente. A verga tinha-se estilhaçado, e a vela tombara ainda agarrada às pontas quebradas da grande
peça de madeira.
- Amainem as velas! - ordenou o trierarca. - Passem a ordem aos outros navios!
Cato refreou a frustração enquanto a flotilha se imobilizava, dançando lentamente nas ondas. O trierarca apressou-se a ir à cabina consultar cartas e tabelas, mas depressa
regressou para apresentar o relatório a Cato.
- Senhor, existe uma pequena base naval aqui perto na costa, junto à entrada do canal de Tanis. O Thoth pode dirigir-se para lá a remos, para instalar uma nova verga, e ainda
nos apanhará esta noite. É o navio mais rápido da flotilha. Não lhe deve levar muito tempo a alcançar-nos.
- Muito bem, passa então essas ordens para o trierarca do Thoth. E assim que isso estiver feito, continuemos a caminho.
O trierarca anuiu e dirigiu-se à popa do navio, onde pegou num megafone e gritou as instruções para o íbis, que depois as passou para o Thoth. Pouco depois, os remos emergiram
do flanco do navio e começaram a impulsioná-lo através das ondas, a caminho da costa, enquanto alguns
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tripulantes se encarregavam de limpar o convés, cortando cabos e madeiras. Os outros navios voltaram a subir as velas e retomaram a rota para ocidente.
A flotilha acostou numa praia muito antes do pôr-do-sol, de forma a permitir que o Thoth recuperasse o terreno perdido ainda antes do anoitecer. As tripulações entretiveram-se
a preparar as suas fogueiras para a longa noite, e a cozinharem parte das rações frescas que tinham embarcado em Cásio. O Sol mergulhou no horizonte, e quando tocou as copas
das palmeiras num promontório distante, Cato foi dar com Hamedes a perscrutar a imensidão azul.
- Julguei que estarias a orar. - Cato sorriu enquanto assinalava o Sol poente com o polegar esticado.
O sacerdote sorriu com ar culpado.
- Estou preocupado com o outro navio. Ainda não apareceu. Ainda nem sequer foi avistado.
- Pois não. Provavelmente as reparações levaram mais tempo do que o previsto. Imagino que uma pequena base não receba muitas visitas, para lá de... - Cato interrompeu-se.
Uma sensação fria espalhou-se subitamente pelas suas entranhas. Virou-se e correu pela praia na direção do seu navio, à procura do trierarca.
- Essa base para onde mandaste o navio. Diz-me tudo o que sabes sobre ela.
- Já lá aportei algumas vezes ao longo dos anos. Não há muito a dizer.
- O trierarca cerrou os lábios, concentrado. - Têm em armazém materiais e mantimentos. Há uma pequena equipa de carpinteiros para reparações de emergência. A guarnição vigia
a entrada do canal de Tanis e faz patrulhas pelo delta. Antigamente tinha mais movimento, mas depois começou a assorear e os mangais invadiram o canal.
- Mostra-me onde fica no mapa - ordenou Cato.
Enquanto o trierarca se dirigia ao interior do navio, Macro aproximou-se.
- Estás com ar de quem engoliu uma bosta. O que se passa?
- Não sei bem - retorquiu Cato, tentando manter a ansiedade em níveis controláveis. - É um palpite. Uma possibilidade.
O trierarca regressou, trazendo nos braços um mapa enrolado. Ajoelhou-se sobre a areia, no círculo iluminado pela fogueira mais próxima, e abriu a carta. Com o dedo foi percorrendo
a linha de costa até se deter.
- É aqui, senhor. É aqui que fica a tal base de abastecimento. Epichos.
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7

As velas tinham sido retiradas das vergas, e estas puxadas para o convés, para reduzir as possibilidades de deteção a partir de terra enquanto se aproximavam. Os remos estavam
em ação, e os navios avançavam muito lentamente para a costa. Cato encontrava-se na torre da proa, e esforçava a vista para divisar a silhueta distante de uma torre de vigia,
que mal se distinguia contra o céu noturno. Macro tinha desembarcado duas horas antes com um punhado de legionários. Pouco depois tinha enviado um bote de regresso ao Sobek,
para relatar que havia três navios na praia em frente à base, e que um deles era o Thoth. Não havia sinal de movimento a bordo. Para Cato isso constituía uma prova mais do
que suficiente, e dera ordens para que o assalto que tinha planeado com Macro se efetuasse assim que a primeira réstea de luz surgisse a oriente.
Macro atacaria primeiro, de forma a tomar a torre de vigia no promontório, bem como o posto avançado, antes que os sentinelas conseguissem detetar os navios em aproximação
e dessem o alarme. Tinha levado Hamedes com ele, para o caso de serem interpelados. Se tal sucedesse, o sacerdote daria a desculpa de que um rombo no seu pequeno barco de
pesca o tinha forçado a rumar a terra. Talvez esse embuste lhes permitisse ganhar alguns momentos, os suficientes para aproveitar o efeito de surpresa. Assim que as torres
estivessem nas mãos de Macro, daria sinal de ataque aos navios. Encurralados, impossibilitados de escapar para o mar alto, Ajax e os seus homens ficariam encurralados no forte.
Teriam de se render, embora o mais provável seria que decidissem lutar até ao último homem. De uma forma ou de outra, o seu fim era certo, e estava próximo, animou-se Cato.
Ouviu a escada a ranger, e logo a seguir o trierarca aproximou-se.
- Ainda é demasiado cedo para o centurião Macro entrar em ação, calculo.
- Sim, mas já deve faltar pouco. - Cato contemplou o horizonte, e julgou distinguir um ténue traço luminoso a separar o mar e o céu. - Quando virmos o sinal, quero que o navio
entre na baía o mais depressa possível. Não podemos deixar o Ajax escapar.
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- Fá-lo-emos a tempo, senhor. O Sobek terá passado a ponta muito antes de o inimigo poder zarpar. Tem a minha palavra.
- Lembrar-me-ei disso.
Os dois homens mantiveram-se em silêncio por momentos, até que o trierarca arriscou uma questão.
- Senhor, acha que há alguma possibilidade de que alguns dos homens do Thoth tenham sido feitos prisioneiros?
- Duvido. Se bem conheço o Ajax, ele não os terá poupado. E talvez seja melhor assim.
- Senhor?
- Os prisioneiros que ele capturou durante a revolta em Creta foram em várias ocasiões mantidos vivos apenas para poderem enfrentar um destino bem pior do que uma morte rápida.
- O tom de voz de Cato endureceu. - Os teus camaradas estão mortos. Pensa apenas em vingá-los.
- Sim, senhor.
Cato virou-se e contemplou as massas escuras dos outros navios. Não provinha deles qualquer som, embora centenas de fuzileiros e legionários aguardassem em prontidão no convés
de cada um deles, e centenas de outros homens manejassem os remos. Para lá do marulhar da água contra os cascos e do mergulhar dos remos, as embarcações pareciam nada mais
do que sombras que se encaminhavam para a costa.
- Além, senhor - indicou o trierarca. - A alvorada desponta.
Cato seguiu a indicação. No horizonte notava-se um brilho. Voltou-se
de novo para a torre. Ainda nada. Sussurrou para si mesmo:
- Vá, Macro. Tudo depende de si.
Macro estava deitado no solo, junto a um afloramento rochoso. A uns vinte passos erguia-se a massa bojuda do posto avançado, recortando-se contra o céu sobre o promontório.
Já havia uma luminosidade que lhe permitia aperceber-se de alguns detalhes do terreno à sua volta. O seu grupo tinha eliminado as sentinelas da torre de vigia e estava a preparar-se
para avançar para o segundo objetivo quando surgira de repente um grupo de homens, vindos da direção do forte. Mal tinham tido tempo para se esconderem antes de os recém-chegados
passarem por eles. Tinham sido trocadas algumas palavras com a torre, mas o ruído das ondas a chocarem contra as rochas não tinha permitido perceber o diálogo travado.
Se aquele grupo não partisse rapidamente, teria de arriscar um ataque contra números muito superiores. Tinha apenas dez legionários consigo, mais Hamedes. Dez homens contra
a meia dúzia que tinha chegado, e talvez mais uns quatro ou cinco lá dentro. Dez romanos e um sacerdote, corrigiu-se. Ainda assim, Hamedes parecia um tipo sólido, e podia
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revelar-se útil se a situação apertasse. Dois botes com as respetivas tripulações esperavam numa pequena enseada a meio do promontório, a postos para proceder a uma evacuação
rápida se por algum motivo falhasse a tomada das torres e fosse preciso retirar.
Macro levou a mão atrás e desembainhou lentamente a espada, irritando-se por não conseguir evitar um raspar metálico quando a ponta emergiu da bainha. Segurou-a com todo o
cuidado enquanto levantava a cabeça cuidadosamente, para tentar ter uma vista melhor para a torre. Ao seu lado, Hamedes respirou fundo e sussurrou:
- Centurião, devíamos recuar. Eles são muitos. Vão dar cabo de nós.
- Calado - instou Macro. - E não te mexas, ou sou eu mesmo quem te estripa.
Voltou a atenção para a torre, perfeitamente recortada contra o horizonte. Não faltaria muito para que as sentinelas avistassem os navios que se aproximavam e dessem o alarme.
Por fim os homens vindos do forte deixaram a torre e regressaram pelo caminho por onde tinham vindo, ao longo do promontório. Ao passarem pelo esconderijo de Macro, o coração
do centurião acelerou, já que reconheceu quem os liderava.
- Ajax - murmurou para si mesmo, com os dentes cerrados. Sentiu os músculos tensos como aço enquanto uma raiva gelada lhe tomava conta do ser; foi preciso recorrer a todo
o seu autocontrolo para não saltar do esconderijo e desfazer o gladiador com uns golpes bem assentes. No solo, a tremer de fúria, as visões, os cheiros e as emoções preencheram-lhe
a mente com uma crua intensidade ao recordar o vergonhoso tormento a que fora sujeito por Ajax. Torturas que tinha tentado suprimir da memória e olvidar. Coisas que nunca
tinha confessado, nem ao seu maior amigo, Cato, e que nunca lhe revelaria. Fechou os olhos, apagando da visão o vulto de Ajax, já quase impercetível. Respirou fundo, combatendo
as memórias que ameaçavam dominá-lo. Quando voltou a abrir os olhos, o gladiador e os seus companheiros já tinham desaparecido pelo caminho que levava à praia na parte interior
do promontório.
Semiergueu-se e virou-se para os vultos silenciosos que esperavam no solo junto a ele.
- Venham - ordenou em surdina.
Avançou, mantendo-se agachado, e escutou o restolhar da erva seca quando os homens o seguiram. Aproveitando as zonas de sombra projetadas pelos rochedos, esgueirou-se até
junto à torre. Conseguia ver que a pesada porta na base estava aberta. Lá em cima, na plataforma, escutavam-se vozes na conversa, sobre o ruído das ramagens de palmeira de
que era feito o toldo, e que oscilavam com a brisa. Macro correu pelo espaço aberto em frente à torre, dirigindo-se diretamente à porta. Nesse
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preciso momento surgiu um vulto no umbral, que estacou, surpreso. Macro acelerou, enquanto baixava a ponta da espada. No último instante lançou a lâmina para a frente, rasgando
o ventre do homem um momento antes de o atingir com o ombro no peito. Lançou o adversário através da porta, e pelo interior da torre, até chocar contra um dos postes que suportavam
o piso de cima. O homem grunhiu, sem fôlego para mais, e saliva e sangue salpicaram o rosto de Macro. O centurião colocou a mão livre sobre a boca do outro, e empurrou a espada
para cima, dilacerando os órgãos vitais. O homem lutou com desespero, mas de repente sucumbiu, desfalecendo sobre Macro. Este recuou, libertou a espada e deixou o corpo escorregar
para o solo. Os seus homens já se acotovelavam no exíguo interior da torre.
- Que se passa aí em baixo? - quis saber uma voz, através das escadas de madeira que levavam à plataforma superior. - Pórcio?
Uma luz alaranjada e bruxuleante vinha de lá de cima, iluminando os degraus mais altos.
- Vamos a isto - rosnou Macro, correndo pelas escadas acima até ao primeiro nível da torre. Quando o alcançou, avistou um quarto com várias enxergas espalhadas junto às paredes,
uma mesa rodeada por bancos e um armário para guardar as armas. Dois homens ocupavam o compartimento. Um estava deitado, soerguido e apoiado no cotovelo, acabado de despertar.
O outro estava junto ao cimo das escadas, e perto das armas. Era mais rápido a apreender uma situação do que o seu companheiro que jazia no piso térreo, e pegou imediatamente
numa lança cuja ponta orientou na direção de Macro e dos homens que o seguiam. A acerada ponta avançou e Macro desviou-se, chocando contra um banco e caindo desamparado no
solo. O legionário que o seguia não se apercebeu do perigo até ser demasiado tarde, e a ponta da lança atingiu-o no ombro. O impacto fê-lo rodar e tombar para o lado. O homem
seguinte conseguiu evitar a estocada e desferiu de imediato um potente golpe no pescoço do inimigo, quase o decepando. O renegado soltou um grito e tombou, enquanto largava
o cabo da lança. O homem que estava ainda deitado tentou levantar-se, mas foi abatido antes de o conseguir.
- Ao telhado! - gritou Macro enquanto tentava recolocar-se de pé.
- Despachem-se!
Os primeiros homens reagiram depressa, trepando o último lanço de escadas. Macro seguiu-os. Ouviu um grito de surpresa que rapidamente foi cortado. Ao sair para o telhado,
o centurião olhou em redor. Em torno da plataforma havia um pequeno muro encimado por um corrimão de madeira. A um dos cantos ficava o toldo de folhas de palmeira. No canto
oposto, o braseiro para sinalização. Havia ainda quatro balistas. De um pequeno
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nicho na parede soltava-se um brilho tímido. Era uma lamparina, pronta para ser usada no acendimento do braseiro.
- Vocês os dois! - Macro apontou para os mais próximos dos seus homens. - Vão lá abaixo e selem a porta. Construam uma barricada decente com tudo o que encontrarem à mão.
Aproximou-se do parapeito e perscrutou o forte distante. Junto ao portão ardiam várias tochas, e, graças a elas, avistava duas sentinelas a guardar a entrada, aparentemente
despreocupadas. As silhuetas escuras de três navios distinguiam-se sobre a areia à frente do forte. Não havia sinais de qualquer alarme.
- Excelente - assentiu para si mesmo. Virou-se e dirigiu-se para junto do braseiro, pegando nalgum material para fazer uma acendalha. Pegou cuidadosamente na lamparina e desceu
as escadas, saindo da torre. Pousou a lamparina, fez uma pilha com a acendalha junto à parede da torre virada para o mar, e aproximou-lhe a chama. A pálida labareda lambeu
os ramos secos e a poalha de palmeira. Soltou-se uma pequena nuvem de fumo quando a chama pegou e se começou a espalhar pela pilha. A parede iluminou-se com um brilho em tom
amarelo-vivo, e Macro recuou e olhou para o mar, esforçando-se até encontrar as distantes silhuetas dos navios.
Ouviu-se um grito no interior da torre, e Macro levantou o olhar; havia uma luz tremeluzente a escapar-se por uma pequena janela a meio da parede. O brilho cresceu rapidamente,
e começou a escutar o crepitar de chamas.
- Mas que raio? - Apressou-se para a porta no preciso momento em que o primeiro dos seus homens saía esbaforido.
Agarrou o legionário com brusquidão.
- O que se passa?
- Senhor, declarou-se um incêndio na sala das sentinelas! A lamparina de óleo deve ter tombado e pegou fogo a uma das enxergas.
- Foda-se. - Macro rangeu os dentes. - Temos de o apagar, e depressa.
Correu pelas escadas acima. O ar já estava cheio de fumo e as chamas lambiam as paredes, iluminando o compartimento com uma luz infernal, avermelhada. Ouviam-se gritos vindos
de cima, à medida que as labaredas avançavam para as escadas. Macro olhou em volta, desesperado, e avistou uma ânfora encostada a um canto. Precipitou-se na sua direção, pegou-lhe,
arrancou a tampa e reparou de imediato no evidente cheiro a vinho. Aproximou-se das chamas, sentindo o calor que o atingiu como um chicote, e lançou o conteúdo sobre o fogo.
O vinho saiu em golfadas, amainando algumas das chamas, mas incapaz de controlar a sua progressão.
- Porra para isto - soltou, enquanto recuava. Pegou na ânfora com as
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duas mãos, apontou à parede na zona onde as chamas eram mais alterosas, e atirou-a. O recipiente de barro explodiu, e o vinho espalhou-se pelo estuque e ensopou o colchão
que estava no solo. Macro tinha já apanhado uma capa que estava em cima da mesa, e começou a bater as chamas.
Olhou sobre o ombro e avistou Hamedes.
- Dá aqui uma ajuda, gaita!
O sacerdote hesitou um momento, os olhos arregalados de medo, mas depois pegou noutra capa presa num gancho na parede e juntou-se a Macro, tentando abafar as chamas. Quando
a última labareda se apagou, o centurião acenou-lhe um agradecimento. Olhou em torno do quarto, ainda repleto de fumo. Um cheiro acre tomou-lhe conta da garganta, e viu-se
obrigado a tossir. Largou a capa, dirigiu-se às escadas, empurrando o sacerdote à sua frente, e subiu até ao telhado. Aproximou-se do parapeito de madeira e respirou fundo
para tentar limpar os pulmões. A alvorada aproximava-se rapidamente; já se via uma faixa de luz pálida que crescia no horizonte. Graças a essa luminosidade, Macro conseguia
distinguir toda a extensão da baía, desde o mangal ainda nas trevas até ao forte, passando pelas águas escuras. Vários vultos tinham surgido no exterior do fortim e olhavam
diretamente para a torre. Mais gente surgiu nas muralhas, e depressa se escutou o som de uma trombeta.
- Maldição, viram o fogo. - Macro agarrou o parapeito com força. De imediato avistou um grupo numeroso a deixar os portões do forte. Traziam escudos e armas sortidas - espadas,
lanças, machados e arcos. Alguns traziam tochas que rebrilharam quando se lançaram em corrida. Percorriam rapidamente o caminho que levava ao promontório. Macro soprou.
- Agora é que estamos mesmo feitos.
Cato dera ordens para que o Sobek entrasse na baía a toda a velocidade, pelo que o tambor na coberta tinha aumentado de ritmo, fazendo com que o ciclo dos remos acelerasse,
para a frente, para baixo e para trás, impelindo o navio pelas vagas. Na escuridão que ainda prevalecia, o sinal de Macro tinha-se destacado com clareza. Mas depois outras
chamas tinham surgido, erguendo-se acima da torre e iluminando os rochedos em redor.
- Que raio de brincadeira é esta? - comentou o trierarca. - Assim vai dar cabo da surpresa.
- Alguma coisa correu mal - sugeriu Cato, ansioso. - Quanto tempo falta para chegarmos à entrada da baía?
O trierarca semicerrou os olhos para estimar a distância à costa.
- Uma meia hora, se mantivermos esta velocidade.
- Tanto tempo? - Cato manteve o olhar fixo no promontório. Obrigou-se a afastar a preocupação com o que poderia estar a acontecer a Macro,
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e concentrou-se nas questões do tempo. Pela experiência que tinha adquirido nos últimos dois meses, sabia que uma embarcação bem governada se podia libertar duma praia em
muito menos tempo. Se Ajax se mexesse depressa, conseguiria colocar os homens a bordo e escapulir-se para o mar aberto antes que a armadilha se fechasse. Não podia permitir
que tal sucedesse, resolveu Cato. Virou-se para o trierarca.
- O navio não pode ir mais depressa?
- Pode, senhor. Os homens estão treinados para atingir a velocidade de colisão. Mas não conseguem mantê-la por muito tempo.
- Dá ordem para acelerar.
- Senhor, isso deixará os homens exaustos. E vão precisar de todas as forças quando avançarmos para o combate.
- Se não chegarmos à baía a tempo, não haverá qualquer batalha. É preciso que os teus homens deem tudo o que têm. Percebido?
- Sim, senhor.
- Nesse caso, dá a ordem. E fá-la chegar aos outros navios. Vai!
O trierarca desceu as escadas de um salto e correu pelo convés até chegar à escotilha, de onde podia dar ordens ao marcador do ritmo. Cato escutou como o tambor aumentava
a cadência, e o convés estremeceu debaixo das suas botas quando o Sobek aumentou de velocidade. A leste, para bombordo, o céu começava a tornar-se róseo, pintando as faces
inferiores das nuvens dispersas num tom delicado mas quente. Cato fez força para que a embarcação se movesse ainda mais depressa. As chamas na torre pareciam ter morrido,
e não podia deixar de pensar no que teria acontecido a Macro e aos seus homens. Se ainda estavam vivos, estavam por sua própria conta até que os navios entrassem na baía.
Enquanto os seus pensamentos se dirigiam ao amigo, começou a avistar um ponto de luz a dançar pelo promontório acima, depois outro, e outro ainda, e percebeu, desalentado,
que Ajax e os seus homens já tinham partido em perseguição de Macro e do seu pequeno grupo.
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- Senhor! - avisou uma voz. - Vêm aí!
Macro correu até à borda da torre e avistou figuras a emergirem dum ponto entre dois rochedos, a uns quatrocentos metros dali. Vinham a correr, e o veterano rapidamente percebeu
que ele e os seus homens enfrentavam uma desproporção pesada, de três para um.
- O que vai fazer? - indagou Hamedes. - Eles são muitos, demasiados. Devíamos fugir enquanto podemos. Ou rendermo-nos.
- Render-me? Àquele filho da puta? Nunca! - rosnou Macro em resposta.
- Então será melhor fugir.
- Fugir? Para onde? Estamos numa língua de terra, porra. Não há nenhum sítio para onde possamos fugir, cretino. Cala-te, e dá-me aqui uma ajuda. - Macro correu para uma das
balistas e rodou-a de forma a apontar na direção dos atacantes. - Abre aí a caixa de munições - indicou, enquanto apontava para uma arca de aspeto gasto, junto à parede. Enquanto
Hamedes pegava num molho de projéteis, pesados, com mais de meio metro de comprimento, de madeira densa e com aceradas pontas de ferro, Macro rodava o manípulo, retesando
o espesso cabo que se esticava entre os dois braços da peça. Quando tudo estava preparado, Macro pegou no primeiro projétil das mãos do sacerdote e colocou-o na calha que
se estendia na passagem entre as caixas que continham os cordões de torção. O primeiro dos renegados estava a pouco mais de duzentos passos da torre, e Macro tirou o pino
que governava a elevação da arma e grunhiu de esforço quando ergueu a plataforma, apontou ao homem e voltou a colocar o pino em posição. Endireitou-se.
- Afasta-te!
Olhou em redor e pegou no manipulo que libertava a roda de torção. Puxou-o de forma brusca e os braços da arma foram projetados para a frente, embatendo contra os amortecedores
de couro com um estalido agudo. Macro apressou-se a espreitar, apreciando a forma como o projétil esguio e escuro rasgava o ar da alvorada, aproximando-se dos atacantes. Passou
sobre a cabeça do mais adiantado sem que ele se desse conta do perigo,
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prosseguiu sobre outro homem antes de atingir o solo, espalhando uma chuva de gravilha e ressaltando até atingir a perna de um dos renegados, rasgando-a e atirando-o ao ar
em desalinho, levando-o a chocar com o grupo que o seguia de perto, derrubando-os a todos.
- Ah! - lançou Macro, satisfeito, enquanto preparava apressadamente um novo disparo. - Passa-me mais uma! - Estendeu o braço, mas Hamedes atrapalhou-se momentaneamente, deixando
cair o projétil. Teve de se agachar para o procurar, enquanto Macro lhe lançava imprecações. Ao verificar a situação, Macro notou que os assaltantes se tinham espalhado e
avançavam agora com mais cautela. Melhor. Tudo o que importava era conseguir tempo suficiente para que os navios de Cato chegassem à entrada da baía. Três dos homens de Ajax
rastejavam junto às rochas onde o grupo de Macro estivera escondido; o centurião rodou a arma e disparou. Ouviu-se outro estalo e o projétil silvou pelo ar. Desta vez apanhou
o inimigo em pleno peito, lançando-o contra um penedo para cuja base o homem caiu como uma rodilha, de onde sobressaía a haste do projétil que o abatera.
Assim que Macro começou a recarregar a arma, ouviu-se um berro, e os atacantes lançaram-se em corrida, aproveitando o período de preparação do disparo. Macro mal teve tempo
de baixar a mira e disparar uma última vez, fazendo o projétil passar sobre as cabeças dos inimigos.
- E pronto. - Afastou-se da balista. - Agora é corpo a corpo.
O mais afoito dos atacantes alcançou a porta e sacudiu-a com força. Pouco resultado conseguiu, uma vez que estava fechada com uma pesada tranca e fortificada com várias sacas
empilhadas. Pela altura em que Macro tinha descido e se tinha reunido aos seus homens, que entretanto tinham recolhido os escudos dos rebeldes abatidos na torre, já os primeiros
golpes de machado se abatiam sobre as envelhecidas tábuas da porta. No instante seguinte, um golpe mais forte fez estalar uma madeira que se soltou da face interna da porta.
Logo outras lascas se seguiram. A madeira estava a estilhaçar-se, e depressa se abriu uma fenda por onde passou a ponta de um machado. Quando este foi libertado, deixou uma
abertura por onde Macro, à pálida luz da madrugada, conseguiu avistar os atacantes agrupados no exterior. Mais golpes se abateram sobre a madeira enfraquecida, e já havia
mãos a arrancarem pedaços das tábuas.
- Rapazes, não se preocupem - lançou Macro em tom calmo. - Só há uma forma de aqui entrarem. Tudo o que temos a fazer é mantê-los do lado de fora até chegar o prefeito.
Olhou em redor, avaliando os homens que aguardavam na penumbra do interior da torre. Alguns tinham expressões lúgubres nas faces, mas exibiam também uma determinação fria,
enquanto outros, mais jovens, revelavam angústia e receio. Era dever de um centurião estar sempre na
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linha da frente de uma refrega, de forma a inspirar os seus homens, pelo que Macro abriu caminho até junto da porta, de espada bem aperrada na mão direita. Sacou da adaga
e empunhou-a com a outra mão. Um estrondo anunciou que uma secção da porta acabava de ser destruída, e em poucos instantes tudo o que dela restava era uma moldura em ruínas.
Os renegados avançaram, concentrando-se junto à porta. Um deles deu um passo e aplicou um pontapé na barreira improvisada com sacas de comida. Empunhava uma lança que apontou
a Macro antes de dar uma estocada, com um grunhido. A lâmina em forma de folha dirigiu-se contra ele, e o centurião viu-se obrigado a desviar o golpe enquanto dava um passo
para a esquerda. Recuperou o equilíbrio de imediato e ripostou, obrigando o outro a recuar para longe da porta.
- Formem dos dois lados da porta! - gritou Macro. - Abatam-nos de lado à medida que forem entrando.
Enquanto os homens iam ocupando posições em resposta às instruções, o lanceiro voltou a atacar, com a arma bem agarrada e as pernas afastadas, firmando-se na posição. Desta
vez dirigiu toda a sua atenção para o centurião, como se estivessem envolvidos num duelo singular. Avaliou Macro com um olhar experimentado, e fez uma finta. Macro fingiu
segui-la, apenas para se rir do adversário.
- Não sou assim tão fácil de enganar. Tenta outra vez.
Desta vez a estocada veio sem fintas, e com toda a força. Macro golpeou com a espada o braço do adversário, forçando a ponta da lança a dirigir-se para o solo. A mão que empunhava
a adaga deslocou-se, veloz como o raio, e golpeou o antebraço do outro. Este gritou e soltou o cabo, o que permitiu a Macro pisá-lo e prendê-lo contra o chão, enquanto desequilibrava
o adversário, forçando-o a cambalear e atravessar a porta num passo quase de corrida, enquanto tentava recuperar o equilíbrio. Mas logo um dos legionários avançou e mergulhou
a espada nas costas do oponente, empurrando-o para o lado. Caiu de joelhos e tombou para o solo com um gemido, enquanto o legionário libertava a lâmina com um puxão.
- Rapazes, fomos nós a fazer o primeiro sangue! - anunciou Macro, antes de convidar os rostos que o observavam do exterior. - Venham! Quem é o próximo?
Houve apenas um ínfimo instante de hesitação, mas logo um homem corpulento e armado com uma espada engoliu em seco, nervoso, e fez menção de avançar. Mas antes que alcançasse
a entrada, ouviu-se novo grito.
- Afastem-se! Deixem-me passar!
Macro reconheceu de imediato a voz, e um arrepio frio percorreu-lhe a espinha. Os homens à sua frente afastaram-se, criando um pequeno espaço
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junto à entrada. Foi aí que surgiu um indivíduo alto e poderoso, de vinte e poucos anos, o cabelo escuro a cair-lhe pelos ombros. Numa das mãos empunhava uma espada curta,
na outra um pequeno escudo redondo. O corpo era protegido por uma couraça de cor negra, decorada com floreados prateados. Os lábios do jovem retorceram-se num sorriso frio.
- Centurião Macro. Ora, que agradável surpresa. Devia ter adivinhado que andava atrás de mim.
- E agora que te encontrei, vou matar-te - ripostou Macro, por entre dentes.
- A sério? - Ajax aproximou-se, mantendo o olhar fixo em Macro.
- Nesse caso, porque é que não vem até aqui fora? Vamos acabar com isto, homem a homem.
Macro sentia uma vontade ardente de enfrentar o gladiador. O desejo de sangue corria-lhe pelas veias e ameaçava toldar-lhe o julgamento. Cerrou os dentes e encarou o homem
que o tinha atormentado das formas mais cruéis, havia apenas três meses.
- Então, o que se passa? - gozou Ajax. - Se calhar, não é homem suficiente para me enfrentar?
Macro deu meio passo, quase atravessando a ombreira, mas conteve-se a tempo.
- Olha, tenho outra ideia melhor - disse, em tom neutro. - Porque não vens tu cá para dentro, e resolvemos o assunto aqui?
Ajax soltou uma gargalhada gelada.
- Ora bem, parece que estamos num impasse. Uma pena, ia apreciar a oportunidade de o humilhar à frente dos seus homens. - Baixou a espada.
- Vamos lá então resolver isto à bruta. - Recuou um passo e virou-se para os seus seguidores. - Escudos à frente!
Em resposta, uma meia dúzia de renegados avançou. Três deles juntaram-se, sobrepondo os escudos. Os outros colocaram-se de forma a proteger os flancos; Ajax chamou mais homens
e começaram a aproximar-se da porta.
Macro percebeu que tinha terminado o período para a brincadeira. A refrega ia tornar-se uma competição de força bruta, e Ajax e os seus homens eram dos mais poderosos e rijos
adversários que alguma vez enfrentara.
- Legionários, comigo! - gritou, enquanto pegava num escudo. - E depressa, porra!
Os homens apressaram-se a rodeá-lo, criando uma formação com os escudos emparelhados e as espadas em riste, como tinham sido treinados para fazer num combate corpo a corpo.
- Preparar! - Macro deu a ordem e começou a marcar o passo enquanto avançava para a porta. - Um... Dois....
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Os dois lados encontraram-se no lado de dentro da ombreira, e Macro lançou de imediato todo o seu peso por trás do escudo, enquanto firmava as botas contra as sacas de cereais
que se tinham espalhado pelo chão. Os seus homens pressionavam também, e o centurião ouvia perfeitamente as respirações pesadas e os grunhidos de esforço que o rodeavam enquanto
romanos e rebeldes faziam força, tentando empurrar os inimigos. Os que estavam nas primeiras linhas estavam aprisionados entre os escudos e os homens que empurravam por trás.
Macro estava consciente de que aquele era um embate entre a força bruta dos renegados e a técnica das legiões. Durante alguns momentos, ambos os lados empurraram com todas
as suas forças, e então Macro sentiu que a saca onde apoiava o pé direito começava a ceder. Tentou reajustar a posição do pé, mas a saca rompera-se e os grãos soltos ofereciam
pouca tração. Pouco a pouco foi sendo empurrado, e uma brecha começou a surgir entre o seu escudo e o do homem à sua esquerda. De imediato uma ponta de espada irrompeu pela
abertura, mas por felicidade atingiu apenas o ar antes de ser puxada para trás.
- Cuidado! - avisou Macro. - Cerrar fileiras.
Os legionários esforçaram-se para avançar, pressionando o inimigo.
- Força! - gritou Ajax do outro lado. - Empurrem! Vamos, rapazes, destrocem-nos. E depois matem-nos a todos.
Mais uma vez os corpos se encaixaram uns contra os outros na estreita passagem. Macro virou-se para um dos legionários ainda fora da formação.
- Tu! Ataca-lhes as pernas, vá! Corta-os!
O legionário compreendeu a ideia e põs-se a rodear o magote, procurando uma aberta e apontando cuidadosamente até que a ocasião se propiciou; lançou a ponta da espada para
a frente e acertou na perna de um inimigo. O outro soltou um urro de dor e recuou quase por instinto, criando uma brecha na muralha de escudos que se oferecia aos romanos.
Macro aproveitou para forçar a passagem por entre dois dos inimigos, lançando a espada em ângulo contra o dorso do homem à sua direita. Não foi um golpe letal, mas rasgou-lhe
a carne e lacerou-lhe as costelas, e o tipo caiu, gemendo.
Enquanto os romanos lutavam para afastar da porta o último dos inimigos, ouviu-se um grito por trás da força rebelde.
- General! General Ajax!
Ajax, na terceira fila dos seus homens, olhou para trás e viu alguém a aproximar-se em corrida, dirigindo-se para junto do grupo envolvido na escaramuça.
- Aqui!
Saiu da confusão e esperou pelo mensageiro, o peito a arfar devido ao esforço.
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- O que se passa?
- Senhor, aproximam-se navios de guerra. Uma série deles. Dirigem-se diretamente para a entrada do porto.
- A que distância estão?
- Uma milha, talvez menos.
Ajax virou-se, tentando localizar Macro enquanto franzia o rosto, frustrado.
- Maldição! Não temos tempo para isto - rosnou. Olhou para o centurião com ódio cego, antes de recuperar a compostura. - Rapazes, recuem. Recuem. Regressem aos navios. Depressa!
Temos de sair daqui!
Os homens de Ajax recuaram em desalinho, e Macro sentiu a pressão sobre o escudo a desvanecer-se, forçando-o a dar alguns passos em frente para se reequilibrar. Agachou-se,
de escudo erguido e espada a postos, respirando com dificuldade. Os seus olhos cruzaram-se com os de Ajax, a pouco mais de três metros de distância. O gladiador esticou o
braço, apontando diretamente para ele.
- Ainda não acabou! Zeus é minha testemunha, a sua cabeça será separada do seu corpo pela minha espada.
Virou-se então e juntou-se aos homens que abandonavam as proximidades da torre, afastando-se lentamente até ter espaço para se virar e correr. Macro ficou a vê-lo afastar-se,
de coração pesado. Se Cato e os seus navios conseguissem alcançar a entrada da baía a tempo de impedir a fuga de Ajax, o momento de resolver definitivamente aquela contenda
estava muito próximo, refletiu. Esperou até que o último dos rebeldes se afastasse ao longo do caminho para se voltar a endireitar, baixar o escudo e soltar a tensão dos músculos.
Virou-se para o mar e avistou com nitidez os navios da frota de Alexandria a vogarem rapidamente para a costa, à força de remos.
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Quando o Sobek se aproximou da extremidade do promontório, já o Sol tocava o horizonte. A costa era banhada por uma luz amarelada e quente que se derramava sobre as velas
escarlates dos navios, intensificando-lhes a cor. O trierarca debruçava-se sobre a proa do navio, tentando descortinar quaisquer baixios que pudessem pôr a embarcação em perigo.
O mar estava calmo, e só uma quase impercetível ondulação molhava os rochedos da costa. Cato tinha posto a armadura, e usava a capa vermelha e o capacete emplumado, já preparado
para a batalha que se avizinhava. Subiu à torre no castelo da proa e contemplou a costa. As ultimas centenas de metros do promontório eram muito baixas, e da sua posição elevada
Cato conseguia ver as copas das palmeiras do outro lado da baía. Tinha visto o inimigo a retirar da torre de vigia, e temera pela sorte de Macro e dos seus homens. Mas pouco
depois a sua vista apurada distinguira a crista transversal de um capacete no cimo da torre, e tivera a certeza que o amigo tinha sobrevivido.
- Senhor! - gritou o vigia da sua posição lá no alto, empoleirado na verga. Apontou para trás do promontório. - Eles estão a movimentar-se!
Cato olhou na direção indicada, mas se não estivesse concentrado nas formas do navio inimigo, facilmente teria perdido a cena. Uma minúscula faixa sombria contra a neblina
que permanecia sobre a costa. Um mastro. Depois reparou noutro, a curta distância do primeiro. Ajax estava a tentar a fuga. Ao olhar em frente, Cato percebeu que o promontório
fazia uma curva e calculou, exasperado, que o gladiador era bem capaz de chegar à entrada da baía antes do Sobek.
- Acelera! - gritou ao trierarca. Phermon olhou para cima e abanou a cabeça.
- Senhor, os homens passaram a última hora a remar a toda a velocidade. Estão derreados.
- Quero lá saber disso. Dá ordens para aumentarem o ritmo.
- Não podem - retorquiu o trierarca com firmeza. - Senhor, as suas determinações fizeram com que eles agora estejam completamente esgotados.
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Cato rangeu os dentes, furioso. O trierarca tinha razão. Tão desesperado estivera para alcançar a baía o mais depressa possível que agora, quando a situação se tornava crítica,
os remadores já não dispunham de qualquer reserva de força. Os homens de Ajax, em contrapartida, estavam frescos; ao avaliar as posições dos mastros dos navios inimigos, tornava-se
evidente que estavam a ganhar terreno. Para aumentar a sua frustração, eram eles que tinham a vantagem de fazer a curva por dentro enquanto cruzavam a baía a caminho da ponta
do promontório. Aplicou um murro na amurada, frustrado. Respirou fundo, e quando falou de novo ao trierarca, fê-lo num tom controlado.
- Pede aos teus homens que deem tudo o que for possível. Tudo o que lhes peço é um derradeiro esforço.
- Sim, senhor. - O trierarca fez uma saudação rápida e dirigiu-se para a escotilha principal, para descer à coberta e incentivar os seus homens.
Cato dedicou de novo atenção aos dois mastros que se adiantavam ao Sobek, do outro lado do promontório. Daí a pouco passariam ao lado da torre de vigia, bem perto de alcançarem
mar aberto e de novo escaparem. Os navios romanos tentariam a perseguição, claro, mas só um milagre poderia impedir a fuga de Ajax e dos seus homens, concluiu Cato com amargura.
Um leve movimento atraiu-lhe o olhar, e reparou numa fina coluna de fumo sobre a torre de vigia. Primeiro parecia um turbilhão, mas depressa se transformou num penacho estável,
que se erguia no ar claro da manhã. Cato franziu o sobrolho perante este novo desenvolvimento, mas Macro e os seus homens deviam estar em completa segurança, agora que o inimigo
só pensava na fuga. Podiam permitir-se deixar a torre arder de alto a baixo. Mas enquanto esses pensamentos lhe percorriam a mente, reparava que o fumo era localizado, e não
provinha de um incêndio generalizado. Pouco depois avistou um clarão, e um rasto de fumo descreveu um arco que começou no cimo da torre e se dirigiu para os dois navios que
se aproximavam pelo interior da baía. Depressa se lhe juntou outro rasto, e só então Cato percebeu o que se estava a passar.
- Balistas. - Sorriu para si mesmo. - O Macro está a usar projéteis incendiários. Sacana espertalhaço.
Macro manteve uma barragem de projéteis em chamas dirigida aos dois navios inimigos; daí a pouco começou a espalhar-se algum fumo negro, e Cato verificou que os navios tinham
mudado de rumo, já que se viam obrigados a afastar-se da margem para evitar os disparos provenientes da torre. Mas o fumo denunciava o facto de que um dos navios já tinha
sido atingido. Cato agarrou com toda a força a balaustrada da torre e continuou
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a observar. Por baixo dos pés detetou alguma oscilação, resultado do último esforço dos remadores. Quando o trierarca regressou à proa, já a ponta rochosa se divisava com
clareza, e Cato percebeu que a competição tinha terminado. Forçados a desviar-se pelo ataque congeminado por Macro, Ajax e os seus navios já não conseguiriam alcançar o mar
aberto com vantagem suficiente para conseguirem escapar.
- Vamos apanhá-los, senhor. - O trierarca sorriu.
- Assim parece - assentiu Cato, com toda a calma que conseguiu reunir. - Os fuzileiros que se preparem.
O promontório ia ficando mais raso à medida que avançava pelo mar dentro, e terminava numa ponta arenosa quase insignificante que o Sobek deixou para trás antes que o trierarca
desse ordens ao timoneiro para virar de bordo e entrar na baía. Da torre, Cato avistava perfeitamente os dois navios que vinham contra o seu, agora já a menos de um quarto
de milha. À direita seguia a embarcação que Ajax capturara quando da sua fuga de Creta. A outra era o Thoth, e era deste que se soltavam rolos de fumo com origem no fogo que
lavrava no convés. Homens atarefavam-se a recolher água do mar em baldes, para a lançarem sobre o incêndio que ameaçava devorar o navio. Ainda assim, a tripulação ocupava
os seus lugares aos remos, e o navio vogava a boa velocidade, rasgando a água com o aríete e fazendo-a deslizar ao longo do costado. Cato esforçou a vista, tentando detetar
a presença de Ajax num dos navios. Havia demasiado fumo e demasiados vultos a mexerem-se no convés do Thoth para que fosse possível identificar ou até fixar um deles com a
vista, pelo que se concentrou no outro navio. Na torre da frente seguia um punhado de arqueiros, e no convés aguardavam mais homens armados. Então, à medida que a distância
entre os navios diminuía, Cato avistou uma figura a abrir caminho até à proa; era um homem alto e poderoso, que envergava uma couraça negra decorada, e um elmo fortemente
polido com uma crista de vistosas penas negras.
- Ajax - murmurou Cato para si mesmo. O seu coração endureceu e esqueceu qualquer resquício de misericórdia ao contemplar o escravo rebelde que tanta morte e sofrimento causara.
Pensou em Júlia, e nas humilhações que ela sofrera às mãos do gladiador. Os punhos do jovem cerraram-se com toda a força, e deu uma rápida ordem a Phermon.
- Atacamos a embarcação que segue à direita. A outra está já em chamas, deixemo-la arder.
- Sim, senhor. - O trierarca levou a mão em concha à boca. - Timoneiro! Ruma ao navio a estibordo!
O homem colocou o seu peso sobre o timão, e o navio começou a virar de bordo até se fixar na rota pretendida, diretamente aproada à embarcação inimiga. Cato contemplou Ajax
e levou a mão ao punho da espada. Era
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uma pena que Macro não estivesse ali ao seu lado para partilhar a tão esperada vingança, pensou. Poucas dúvidas tinha de que Ajax e os seus seguidores prefeririam morrer em
combate a serem capturados e virem a sofrer uma morte humilhante e penosa na cruz.
- Senhor, desculpe - disse uma voz, e Cato regressou à realidade, reparando num fuzileiro que tinha subido à torre, com um arco e uma aljava repleta de setas. Outros dois
homens se lhe juntaram, e Cato desviou-se para um canto para lhes dar espaço. Viu que no navio inimigo os arqueiros também preparavam as armas e assestavam os arcos para dispararem
em curvas pronunciadas, considerando a trajetória convergente dos dois navios pela tranquila superfície das águas na baía. Dispararam uma primeira salva e Cato observou impassivelmente
as pequenas hastes negras subirem bem alto, pairarem uns breves instantes e mergulharem na direção do Sobek. A maior parte tombou na água, a uns vinte passos à frente da proa,
fazendo um som característico enquanto levantavam um minúsculo cachão de água. Uma atingiu a frente do navio com estrondo, fazendo estremecer a madeira. A rajada seguinte
atingi-los-ia em cheio, compreendeu Cato.
- Senhor, quer que ripostemos? - perguntou um dos fuzileiros.
- Não. Poupem as munições até ao momento em que não possam falhar. - Cato inclinou-se sobre a amurada e dirigiu-se aos legionários que se amontoavam na base da torre. - Homens!
Escudos ao alto!
Olhou sobre o ombro. O navio romano mais próximo estava naquela altura a rondar o promontório e os outros seguiam-no, mas nenhum conseguia acompanhar o Sobek. Entretanto,
a tripulação do navio inimigo em chamas tinha compreendido que a fuga era impossível e invertera o rumo, afastando-se das galeras e atravessando a baía no que parecia uma
tentativa fútil de evitar a perseguição.
Uma série de estalidos obrigou Cato a redirigir a atenção para o navio de Ajax. A segunda rajada de flechas tinha chegado ao seu destino, caindo sobre a proa e sobre os escudos
mantidos em posição pelos legionários. Felizmente ninguém tinha ainda sido morto ou ferido. O navio inimigo estava agora a não mais de cem passos de distância, e Cato avistava
claramente Ajax e os seus homens a prepararem as armas para o combate.
- Vamos apanhá-los por estibordo! - gritou o trierarca ao timoneiro, que procedeu a um pequeno ajustamento no rumo, o suficiente para afastar o Sobek da ponta do aríete do
outro navio. - Preparem-se para a colisão!
Cato agarrou-se à balaustrada e firmou os pés no convés. Em redor, os membros da tripulação apressavam-se a fazer os preparativos para o choque iminente. Uma última rajada
de setas vindas do navio inimigo provocou
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um grito de dor, quando uma ponta metálica trespassou o pescoço de um dos homens na torre. Cato deitou-lhe uma olhadela, vendo-o tombar para o chão, o sangue a esguichar
de uma artéria rasgada. Nada podia ser feito por ele, e Cato concentrou-se no que via à sua frente.
- Recolher remos! - berrou Phermon, e seguiu-se um frenético coro de pancadas e rangeres, à medida que a tripulação recolhia as pás para o interior do casco.
A ponta do aríete do Sobek acertou na proa do navio inimigo, e o choque violento fez os homens cambalearem. Os dois aríetes tinham conseguido apenas golpes rasantes, e as
duas embarcações começavam agora a deslizar uma pela outra. O comandante inimigo não tinha dado ordem para recolher os remos, pelo que as hastes de madeira começaram a ser
esmagadas e a estilhaçarem-se, à medida que o Sobek avançava.
- Baixem o corvo! - gritou Cato ao decurião dos fuzileiros. - Depressa, homem!
Os fuzileiros apressaram-se a recuperar o equilíbrio, e começaram a manobrar a prancha para fora, por cima do navio inimigo. O comandante dos rebeldes alertou os seus arqueiros
para o perigo, e estes depressa começaram a alvejar os fuzileiros. Os soldados não se podiam defender enquanto manejavam o corvo, e a sua vulnerabilidade ficou bem à vista
quando dois deles tombaram rapidamente, abatidos pelos projéteis inimigos que choviam sobre o convés. Logo a seguir outro homem gritou de dor quando viu o braço trespassado
por uma seta inimiga.
- Soltem-no! - berrou o decurião, assim que aponta metálica do engenho foi posicionada sobre o convés do navio inimigo. Os homens deixaram correr a corda, que passou velozmente
pela roldana enquanto a prancha mergulhava com estrondo. Os rebeldes saltaram para todos os lados, tentando evitar o esmagamento ou mesmo serem empalados pelo gancho metálico,
que rasgou o convés e se cravou profundamente no coração da embarcação. Houve uma sacudidela, seguida do gemer da madeira quando a maciça base do corvo recebeu e amorteceu
toda a tensão devida ao movimento relativo dos dois navios.
- Grupo de abordagem, avançar! - gritou o decurião, enquanto empunhava a espada e corria pela prancha, a caminho do convés inimigo. Os seus homens seguiram-no, de escudos
erguidos e espadas em riste. Os arqueiros inimigos lançaram mais algumas rajadas, mas a maior parte das flechas foi detida pela paliçada lateral que protegia a prancha do
corvo. Outras falharam por completo o alvo, arqueando sobre o Sobek e caindo inofensivas no mar.
Cato virou-se para os arqueiros na torre e apontou-lhes os adversários.
- Abatam aqueles homens!
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Os fuzileiros assestaram rapidamente os arcos, apontando, sustendo a respiração e soltando os seus projéteis a silvar pelo ar contra os homens de Ajax. Cato viu com satisfação
quase selvagem a forma como um dos arqueiros inimigos era atingido por duas setas e tombava de costas sem remissão.
- Bom trabalho! - Deu um murro na amurada. - Continuem.
Deixou-os no seu trabalho, saltou para o convés e pegou no escudo
oval de fuzileiro que tinha arranjado nos armazéns de material do Sobek. Virou-se para os legionários que aguardavam, formados no convés principal.
- Sigam-me. Se for possível, façam prisioneiros.
Subiu para a prancha do corvo e avançou. Na outra ponta ainda estavam alguns fuzileiros, à espera de terem espaço no convés para se juntarem à refrega. O ar estava repleto
de choques metálicos e do ranger das lâminas, bem como dos sons de embates de lanças e espadas contra a madeira dos escudos. Alguns homens, mais excitados, gritavam desafios.
Cato estremeceu quando uma ponta de ferro de uma seta trespassou uma tábua lateral do corvo, mas prosseguiu sem hesitar, de cabeça baixa para reduzir o tamanho do alvo que
pudesse tentar algum arqueiro inimigo ainda ativo. Embateu nas costas de um fuzileiro, e espreitou para verificar se havia algum inimigo ao seu alcance. O convés do outro
navio estava apinhado de homens envolvidos num caos sanguinolento.
- Mexe-te! - ordenou Cato. - Avança para o combate!
O homem olhou de relance para trás e anuiu sem esconder os nervos, antes de saltar da prancha e se envolver na confusão. Cato deu um passo e estacou, para avaliar bem a situação.
Os seus olhos percorreram a massa ondulante de homens, capacetes e espadas rebrilhantes, e manchas de sangue. Avistou então a crista negra do capacete de Ajax ao pé do mastro,
onde o gladiador desferia golpes incessantes no escudo de um fuzileiro. O ataque obrigou o homem a recuar, até que Ajax desviou o escudo do outro com um pontapé e lhe espetou
a espada no rosto.
Um estremeção frio de receio percorreu-lhe a espinha, mas Cato obrigou-se a avançar para o convés, e começou a abrir caminho para junto do mastro.
- Legionários, comigo!
Os soldados romanos começaram a rodeá-lo enquanto passava sobre corpos derrubados, até que um espaço se abriu à sua frente. Um oriental encorpado, com o longo cabelo apanhado
por trás da nuca, enfrentou-o, com um machado ensanguentado numa mão e uma adaga curva na outra. Assim que os seus olhos se fixaram em Cato, saltou para a frente com um rugido
enquanto erguia o machado. Cato levantou o escudo e amparou o
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golpe com a orla superior. O impacto rasgou o metal, levando o machado a enterrar-se profundamente na madeira da parte central. O choque fez-se sentir no ombro esquerdo do
jovem. Antes que pudesse reagir, o outro libertou o machado e, ao mesmo tempo, rodou a mão esquerda, tentando atingir o lado desprotegido de Cato. A lâmina atingiu a armadura
e escorregou para baixo, rasgando uma dobra da túnica.
- É a minha vez - reclamou Cato por entre dentes, usando o escudo para empurrar o outro. A bossa atingiu as costelas do homem, fazendo-o soltar o ar dos pulmões. Cato insistiu
com um golpe de espada. Mesmo sem fôlego, o renegado evitou o golpe com agilidade e recuperou a posição, de machado e faca a postos, enquanto tentava voltar a respirar normalmente.
Nesse momento outro dos rebeldes cambaleou e veio chocar contra o camarada, fazendo-o perder o equilíbrio. Enquanto ele se esforçava por se firmar de novo, Cato carregou,
atingindo-o de novo com o escudo e empurrando, obrigando-o a recuar, até que o homem tropeçou num cadáver e se estatelou no convés. Cato aproveitou para lhe rasgar o ventre,
e usou a borda inferior do escudo para lhe apertar a garganta, esmagando a traqueia.
Libertou a lâmina e prosseguiu. Olhou rapidamente para os lados e percebeu que os legionários avançavam ao seu lado. Muitos dos homens de Ajax eram realmente duros, mas não
tinham o treino de combate dos legionários, e não estavam à sua altura. Os atacantes já tinham varrido a popa do navio e o combate estendia-se numa linha pouco definida que
atravessava o convés. Passo a passo, Ajax e os seus homens estavam a ser empurrados para a estreita proa. Cato notou que nem um de entre eles tinha baixado as armas e se tinha
rendido.
Avistou de novo a crista negra, a pouco mais de três metros do ponto onde se encontrava, e avançou, aparando um golpe com o escudo. O adversário recolheu a espada e voltou
a golpear, mas o legionário à esquerda de Cato empurrou-lhe a lâmina para o convés com a sua arma. Continuando com o movimento, ergueu a ponta e atingiu o outro no estômago,
dilacerando-lhe órgãos vitais.
Não havia tempo para mais do que acenar em agradecimento, já que Cato se viu obrigado a empurrar de novo com o escudo para desviar um oponente, e então viu-se finalmente face
a face com Ajax. O gladiador usava um capacete romano com grandes guardas laterais que lhe obscureciam grande parte do rosto. No queixo tinha uma penugem escura, e os grandes
olhos escuros arregalaram-se quando avançou para atacar o oficial romano. O gume da espada desceu na direção da cabeça de Cato, que elevou o escudo para bloquear a cutilada.
O gladiador esperava isso mesmo. A espada mudou de direção na descida, descrevendo um arco e atingindo Cato no
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ombro. O desvio tinha-lhe tirado alguma potência, mas ainda assim Cato sentiu o golpe e perdeu o equilíbrio, enquanto o braço e os dedos perdiam a sensibilidade e quase deixavam
escapar o escudo.
- Merda... - Agachou-se e avançou, pondo o ombro atingido à frente; encostou-se ao escudo, forçando-o contra o gladiador. O outro era forte e poderoso, e deixou-se empurrar,
absorvendo o impacto. Ripostou usando o pequeno escudo para enganchar no de Cato e o afastar com um puxão. Cato mal teve tempo para recuperar e recuar um passo, fazendo a
espada do outro passar-lhe a um palmo do rosto. Por um momento apenas, o braço direito de Ajax foi levado pelo ímpeto do golpe, e Cato aproveitou a ocasião, golpeando o ombro
do outro e abrindo-lhe uma ferida com muitos centímetros de extensão nos músculos. Ajax rugiu de dor e fúria, e tentou apanhar Cato com um movimento inverso da espada. Cato
abaixou-se num repente e voltou a atacar, desta vez ao joelho do inimigo, estilhaçando ossos e rasgando ligamentos. Ajax cambaleou para o lado, e um dos legionários saltou
para a frente e cravou-lhe a espada profundamente no sovaco. Cato ouviu uma costela a estalar, e um grunhido saltou dos lábios de Ajax quando a lâmina lhe perfurou os pulmões
e depois o coração. O corpo ficou imóvel de repente, antes de tombar como um saco, com o rosto na madeira do convés. O legionário colocou uma bota nas costas da couraça do
gladiador e puxou a espada, olhando de imediato em redor em busca de novo adversário.
Cato parou e contemplou o cadáver, ainda atónito. O seu arqui-inimigo estava morto. A perseguição terminara. Mas não completamente. Forçou-se a sair do aturdimento e olhou
em volta. Havia corpos espalhados sobre as pranchas do convés, e poças e espirros de sangue manchavam a madeira. Restava apenas um punhado de rebeldes, empilhados no espaço
cada vez mais apertado da proa, a combater como maníacos, sem parar de lançar desafios na face dos fuzileiros e legionários.
Cato abriu a boca para falar, mas estava com a garganta completamente seca, e a voz falhou-lhe. Engoliu em seco, lambeu os lábios e tentou novamente.
- Recuar! Romanos, recuar!
A maior parte dos fuzileiros e legionários ouviram a ordem e obedeceram, afastando-se do inimigo. Um punhado de homens, empolgados, prosseguiu, sendo obrigados a recuar pelos
camaradas. O decurião teve de dar com a folha da espada no capacete do último dos seus homens para lhe chamar a atenção. Ouviu-se um derradeiro entrechoque de espada e escudo,
e depois reinou apenas o som das respirações ofegantes, e os gemidos e gritos dos feridos.
- Abram caminho! - gritou Cato, e os homens que estavam entre ele
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e os sobreviventes da tripulação rebelde afastaram-se. Apontou o corpo de Ajax com a espada. - O vosso chefe está morto. Larguem as vossas armas e rendam-se!
Deu-se uma breve pausa até que um dos renegados soltou uma gargalhada e brandiu a espada contra o céu.
- Viva Ajax! Morte a Roma!
Os companheiros pegaram no grito e imitaram-no. Cato observou-os com toda a calma, esperando que o silêncio regressasse. Mas eles continuaram a gritar, e acabou por olhar
para o decurião.
- Acabem-lhes com a raça!
O decurião anuiu, ajustou a pega do escudo e da espada, e lançou um brado.
- Fuzileiros! Avançar!
Os homens voltaram a cerrar fileiras, com expressões determinadas e impiedosas, e avançaram sobre os últimos dos renegados. Estes abandonaram as suas aclamações e prepararam-se
para enfrentar o fim, decididos a matar todos os romanos que pudessem antes de serem abatidos.
Depressa a refrega terminou, já que os fuzileiros avançaram em formação cerrada, escudos sobre escudos, de espadas aperradas e prontas a trespassar qualquer inimigo próximo.
Os rebeldes tentaram ripostar, lançando golpes desesperados sobre a muralha de escudos, mas depressa os sons dos seus golpes foram substituídos pelos gritos dos feridos, até
que se ouviu um último brado de "Viva Ajax, agora e sempre!", e por fim o silêncio imperou. Os fuzileiros, salpicados de sangue, olharam em volta para o amontoado de corpos
na proa do navio, confirmando que já não existia nenhum adversário vivo. Cato suspirou, fatigado, enquanto tirava o capacete e enxugava a testa. A revolta dos escravos, que
começara em Creta, tinha finalmente terminado. Não havia pontas soltas, apenas uma última tarefa, a de tomar o outro navio, que ainda ardia enquanto se dirigia para o mangal
do outro lado da baía. Não tinham qualquer possibilidade de escapar para o oceano, e não tinham fuga possível assim que os outros navios romanos os encurralassem contra o
mangal.
O braço esquerdo doía-lhe tremendamente, já que a dormência estava a passar, e Cato remexeu os dedos com tremendo esforço, tentando recuperar alguma sensação no membro. Embainhou
a espada e avançou por cima dos cadáveres, até junto de Ajax. Ajoelhou-se, pegou no ombro do homem e fê-lo virar-se. A cabeça, ainda presa no capacete, rebolou sem vida, escondendo-se
de Cato enquanto o corpo amolecido se moldava ao convés. O jovem soltou as tiras que prendiam o elmo e por fim, agarrando na crista negra, puxou-o, pondo a descoberto o rosto
do inimigo abatido.
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- Não... - Franziu o sobrolho quando contemplou aquela face, os olhos abertos que já não o viam, a boca ligeiramente aberta. - Não... NÃO!
Furioso, Cato lançou um último olhar ao cadáver, atirou o capacete para o lado e levantou-se. À sua volta, legionários e fuzileiros olhavam-no sem entender o que se passava
com o prefeito. Cato levou a mão à testa e esfregou-a, frustrado, enquanto voltava a olhar para baixo. O morto tinha uma constituição física semelhante à de Ajax, tinha também
o cabelo escuro, mas toda a parecença acabava aí. Cato respirou fundo e virou-se para contemplar amargamente o outro navio que se dirigia ao outro lado da baía, fazendo revolutear
o fumo. Tinha sido enganado. Ajax ainda vivia.
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Cato ordenou ao decurião que deixasse um punhado de fuzileiros a tomar conta do navio e levou os outros de volta para bordo do Sobek. Assim que o corvo foi levantado, libertando-se
do convés da outra embarcação, o trierarca deu ordens para se afastarem e lançarem os remos à água. O navio começou a avançar, navegando em perseguição do Thoth. Ajax já quase
alcançara o outro lado da baía, mas não dispunha de uma rota aberta para o mar alto. Dois navios romanos tinham-se colocado de forma a bloquear-lhe a passagem. Outros três,
para além do Sobek, perseguiam-no, e um outro vaso tinha acostado à face interna do promontório para embarcar Macro e o grupo de homens que o acompanhara. Ajax estava apanhado.
Toda a sua argúcia tinha apenas conseguido adiar a captura, ou morte, considerou Cato enquanto regressava à torre do navio para melhor seguir os eventos. Pouco depois, Phermon
juntou-se a ele.
- Já não escapa, senhor.
- Espero bem que não - assentiu Cato, sem emoção. - Se isso acontecesse, ia ser muito difícil de engolir.
O trierarca semicerrou os olhos ao encarar o Sol nascente, e colocou a mão em pala para apreciar o curso dos acontecimentos.
- Ainda estão a arder. Por que raio é que não apagaram o fogo?
- Provavelmente precisam de toda a gente nos remos - sugeriu Cato.
- Hummmm.
Observaram em silêncio por mais alguns momentos, até que o trierarca abanou a cabeça.
- Pelos deuses, o que estará aquele idiota a pensar? Encaminha-se a toda a velocidade para o mangal. Vai encalhar com toda a certeza.
Cato anuiu.
- Portanto é esse o plano dele.
- Fugir pelo mangal? - O trierarca voltou a abanar a cabeça. - Impossível.
- Porquê? - indagou Cato, virando-se para ele.
- Senhor, tenho patrulhado o delta desde que entrei para a marinha. Conheço bem toda a zona, e garanto-lhe que não há terreno mais duro
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que um mangal. Abrir caminho por entre raízes e canaviais já é difícil, mas depois há a lama que nos prende os movimentos, e o ar pesado e a cheirar a podre. E se isso não
chegar, ainda temos as nuvens de insetos e as sanguessugas, sem falar dos crocodilos. Tentar uma fuga por ali é um suicídio.
- Mas se não o tentar, é a morte certa. - Cato voltou a olhar para o navio, a cerca de uma milha de distância. - Se fosse ao Ajax, aceitava esse risco. Não tem nada a perder.
Se escapar, poderá continuar a atormentar Roma. E é essa ideia que o anima.
Enquanto os remadores na coberta se afadigavam a puxar pelos remos, fazendo o Sobek avançar pela baía com toda a celeridade, Cato contemplou com crescente ansiedade as manobras
do navio inimigo. Apesar das palavras de Phermon, Ajax era determinado e bem capaz de se desembaraçar no mangal e de abrir caminho, por muito densa que fosse a vegetação.
- Olhe! - O trierarca esticou o braço.
O mastro da outra embarcação estremeceu e depois, repentinamente, inclinou-se para a frente, descaindo para bombordo e arrastando as velas e todo o cordame. Alguns dos remos
quebraram-se e outros emaranharam-se nas raízes, de tal forma que, de longe, o navio fazia lembrar um estranho inseto monstruoso; a proa penetrou uma curta distância por entre
os caniçais e as árvores mais baixas do mangal, antes de se imobilizar. Aves espalharam-se pelos ares, assustadas, e a poeira e areia que cobriam as folhas soltaram-se, formando
uma espécie de neblina em torno da cena da colisão. O fogo pareceu avivar-se, mas depressa amainou e manteve a mesma intensidade, lançando uma fina coluna de fumo para o alto.
Enquanto Cato observava, as diminutas figuras que correspondiam à tripulação levantaram-se do convés, para onde tinham tombado quando do choque. Pouco depois, já tinham lançado
uma prancha que lhes permitiu desembarcar, e já alguns se aventuravam pelos baixios, de espada numa mão e trouxa noutra.
- Estão a escapar - concluiu Cato, o coração pesado e repleto de desespero, enquanto via a tripulação a abandonar o navio em chamas e a desaparecer pelo meio da confusão de
árvores e canaviais. - Phermon, não podemos permitir que fujam, percebes?
- Sim, senhor. - O homem fez um gesto na direção do convés. - Os rapazes estão a dar o seu melhor.
Cato olhou para além do casco do navio, observando a forma como os remos se moviam, para a frente sobre a água, mergulhando e empurrando, subindo e movendo-se de novo para
a frente, num ritmo rápido. Desceu para o convés e dirigiu-se aos legionários que ali se agrupavam, à espera de entrar em ação.
- Oiçam! - Esperou um momento até que todos se aquietaram e
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lhe deram total atenção. - Quero cinquenta homens para perseguir comigo o inimigo pelo mangal. - Apontou para o navio inimigo. - Vocês estiveram comigo em Creta. Sabem bem
o que Ajax e os seus seguidores fizeram. Viram as atrocidades por eles cometidas com os vossos próprios olhos. Temos de o capturar ou matar, pôr fim às suas nefastas atividades.
- Virou-se para o comandante dos legionários, o centurião Rufo. - Quero apenas voluntários. Nada de homens feridos ou lesionados. Não duvido da coragem dos teus homens, mas
vai ser uma tarefa complicada, e qualquer ferida depressa infetaria naqueles pântanos. Os que me seguirem terão de deixar para trás as suas armaduras. Trarão apenas escudos
e capacetes, além das espadas, claro. E rações e água para três dias. - Contemplou os homens por momentos e assentiu para si mesmo. - É tudo. Quem vier comigo, prepare-se
para seguir assim que chegarmos ao outro lado da baía. Destroçar!
Virou-se e dirigiu-se para a proa, para seguir de perto a aproximação dos navios à embarcação em chamas, profundamente enredada no caos de raízes e na lama do mangal. O trierarca
olhou para o exterior do Sobek e deu ordens para reduzir a velocidade e depois para inverter a remada, de forma a suprimir o ímpeto do navio quando este se aproximou da margem.
Os outros navios tinham-no imitado e deram-lhe passagem, permitindo a aproximação da galera ao mangal, junto ao navio encalhado. O rugir das labaredas era acompanhado pelo
estalar de madeiras. O incêndio lavrava agora com maior intensidade, e Cato percebeu que Ajax devia ter dado ordens para que as chamas fossem alimentadas antes de abandonar
o navio com os seus homens.
- Phermon! - Cato viu-se obrigado a gritar para se fazer ouvir acima do ruído do incêndio. - Manda alguns homens para bordo. Tentem apagar o fogo.
- Sim, senhor.
Por baixo dos pés de Cato sentiu-se o mais leve dos estremeções quando o Sobek avançou sobre a areia. De imediato os fuzileiros no convés dianteiro baixaram a prancha de desembarque
para a água, lamacenta devido ao impacto do aríete.
- Tu. - Cato chamou o mais próximo dos legionários. - Ajuda-me aqui com a couraça.
Ergueu os braços e o soldado tirou-lhe a armadura dos ombros e depositou-a no convés. Cato agradeceu-lhe com um aceno e equipou-se com um cantil, um odre e uma sacola repleta
de pão duro e algumas tiras de carne seca. Passou a tira pelo ombro e pegou num escudo, antes de se virar para o centurião Rufo.
- Quantos homens se apresentaram?
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- Cinquenta, senhor. Tal como pediu.
- Todos voluntários, está-se mesmo a ver... - Cato não pôde evitar um tom ligeiramente trocista.
- Senhor, sabe como são estas coisas. Quando um oficial pede voluntários, ai dos que acharem que é só mesmo isso que ele quer. - Rufo sorriu.
- Isto dito, são todos homens capazes. Escolhi os melhores.
- Então vamos.
Enquanto o corpulento centurião levava a primeira secção pela prancha de desembarque, Cato virou-se uma última vez para o trierarca.
- Quando o Macro e os seus homens atravessarem a baía, diz-lhe para nos seguir. Parece-me que não será muito difícil identificar os rastos que vamos deixar.
- Sim, senhor.
Cato pensou um momento antes de continuar.
- Depois leva a firota de volta a Alexandria e apresenta o teu relatório ao governador. Informa-o de que tenciono perseguir o Ajax até o encurralar e pôr fim aos seus dias.
Nessa altura regressarei a Alexandria. Percebido?
Phermon assentiu.
- Dir-lhe-ei tudo isso. E que os deuses o protejam, senhor. Farei as minhas preces para que Fortuna o favoreça.
- Esperemos que o faça. Tem-se revelado uma bela cabra caprichosa desde que começámos a perseguir o Ajax. - Cato interrompeu-se e olhou para o trierarca com gratidão. - Faz
boa viagem de regresso a casa.
Virou-se e tomou o seu lugar na fila de soldados que aguardavam vez para descer para terra. As tábuas rangiam sob as botas dos homens, e quando foi a sua vez, Cato teve de
se equilibrar cuidadosamente para não tombar. Na base da prancha saltou para a água turva, que lhe chegou a meio das pernas, e caminhou às apalpadelas para a margem. Árvores
mirradas projetavam-se de amontoados de raízes que desapareciam sob a água, e no ar pairava um cheiro a vegetação podre. Os legionários à sua frente chapinharam até um pequeno
montículo de terra emersa, onde as canas eram mais altas que um homem. Ouviu-se uma imprecação quando um dos homens tropeçou numas raízes e caiu para a frente com estardalhaço.
Ergueu-se ensopado e irritado, pegou nas suas coisas e continuou a caminho dos caniçais. Cato avançou com todo o cuidado e acabou por sair da água enlameada. O centurião Rufo
acenou-lhe e logo se entreteve a incentivar os retardatários.
- Vá lá, seus mandriões de merda! Toca a acelerar! - Virou-se para Cato. - Senhor, já enviei a primeira secção à frente. Ordenei-lhes que tentassem manter-se em contacto com
os homens de Ajax, mas que não provocassem qualquer combate.
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- Ótimo - aprovou Cato. - E vê se a secção da retaguarda deixa marcas evidentes do caminho que tomarmos. O centurião Macro seguir-nos-á.
- Olhou em redor, analisando a vegetação densa e a extensão de água rasa que se estendia à sua frente. - Além disso, não é impossível que tenhamos de regressar pelo mesmo
caminho.
- É verdade; detestaria perder-me nestas paragens.
- É impossível perceber até onde é que se estende este terreno. Temos de apanhar o Ajax antes que ele encontre algum trilho e se consiga escapulir. - Ajeitou a mochila com
as rações e o cantil nas costas e pegou no escudo. O ar que o rodeava era quente e parado, e enxames de insetos volteavam nos feixes de luz solar que eram filtrados pela folhagem
densa das copas. - Bom, vamos a isto.
Fez sinal a Rufo para que o centurião se lhe juntasse e tomou lugar à frente da longa fila de legionários que se estendia pela ilhota. A erva alta tinha sido pisoteada e mais
adiante via-se um trilho bem marcado de canas cortadas, indicando o caminho seguido por Ajax.
Respirou fundo, e as narinas foram atingidas por um odor a plantas putrefactas e água estagnada.
- Coluna, em marcha!
Avançou pelos baixios, empurrando para o lado as canas que pareciam querer fechar-se sobre ele. Quem tinha passado por ali antes tinha esmagado algumas e cortado outras, de
forma que a passagem dos fugitivos estava bem marcada. Cato esperava que o facto de Ajax ter de abrir caminho o atrasasse e esgotasse os seus homens, e permitisse aos perseguidores
alcançarem-nos. Quando os romanos se aproximassem, os renegados ver-se-iam obrigados a virar-se para combater, ou a renderem-se. Havia contudo a sempre presente possibilidade
de tentarem montar uma emboscada aos legionários. A secção avançada que o centurião Rufo enviara teria de ser capaz de prevenir essa hipótese.
O progresso era difícil, e à medida que o Sol subia no firmamento, o calor aumentava, castigando os soldados que lutavam para abrir caminho. A ausência de qualquer traço de
movimento do ar aumentava o desconforto, e depressa o suor escorria pelo escalpe de Cato, obrigando-o a limpar a testa a intervalos curtos, enquanto tentava não tropeçar.
Por fim não aguentou mais sentir a cabeça apertada e cozida dentro do capacete, pelo que o tirou e prendeu ao cinto pela fivela. Disse a Rufo que permitisse aos homens seguirem-lhe
o exemplo, e que passassem palavra ao longo da coluna antes de prosseguirem. O centurião percorreu a linha, tentando afastar a nuvem fluida de insetos que pairava sobre os
homens e dedicando-lhes coloridas imprecações.
- Faz menos barulho - recomendou Cato, em surdina.
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- Desculpe, senhor. Estes cabrõezinhos estão a comer-me vivo. Pergunto-me do que se alimentarão quando não têm um romano a jeito. - Fez uma tentativa de apanhar um mosquito
de considerável envergadura que lhe pairava à frente dos olhos. - Já trato de ti, meu grande filho da puta.
Entretanto, Cato imobilizou-se, contemplando algo que se via ao lado do trilho.
- Centurião, aí está a resposta à tua pergunta.
Rufo avançou até ao lado do jovem, para ver o que o tinha feito estacar. Um corpo jazia na água, caído de costas sobre as hastes dos canaviais. Os olhos abertos enfrentavam
o Sol sem o ver, e havia uma linha de sangue seco a sair da boca aberta do homem, sujando-lhe o queixo. O zumbido dos insetos que se banqueteavam no suor e no sangue do cadáver
era bem audível.
- Um dos deles, parece-me - notou Cato, reparando nas feições claras do cadáver.
- Excelente. Isto quer dizer que os rapazes da primeira secção começaram a apanhar os atrasados.
Os lábios de Cato torceram-se de nojo quando avistou um enorme mosquito a pousar num dos olhos do morto.
- Agarra-me aqui no escudo.
Passou-o a Rufo e debruçou-se para examinar o cadáver de forma mais pormenorizada. A água era escura e turva, e mal conseguia distinguir o que se escondia debaixo da superfície.
Meteu a mão na água e sentiu os dedos a roçarem por uma lâmina; seguiu-a até encontrar o respetivo punho. Esforçou-se por levantar a espada, mas o corpo ergueu-se com ela,
rompendo a quietude da superfície do pântano e lançando ondulações oleosas para todos os lados. A ponta da espada e uma boa porção da lâmina tinham perfurado o estômago do
homem, num ângulo que apontava para cima.
O centurião Rufo premiu os lábios.
- Suicídio?
- Ou isso, ou os camaradas deste resolveram evitar que ele fosse capturado.
- Porquê, senhor?
- Olha para ali. - Cato apontou com a mão livre, enquanto fazia rolar o corpo ligeiramente. Havia uma enorme ferida no flanco do homem, como uma boca aberta. A água já tinha
levado a maior parte do sangue, e agora só se espalhavam uns fios finos de tom avermelhado que saíam da carne exposta. - Estava ferido. Ia atrasá-los, com toda a certeza.
Cato soltou o punho da espada e deixou que o cadáver voltasse a
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afundar-se no pântano. Rufo devolveu-lhe o escudo e os dois oficiais regressaram ao estreito trilho aberto por entre as canas. Os homens tinham aproveitado para fazer alto,
e aguardavam com água fedorenta pelos joelhos e apoiados nos escudos. Rufo esticou o braço num gesto acusatório quando viu um dos homens pegar no cantil e fazer menção de
lhe tirar a tampa.
- Legionário Polónio, foda-se, mas que é isso? Por acaso dei-te autorização para beberes?
- Não, senhor.
- Ora bem, portanto toca a largar o cantil e nem pensar em meter-lhe um dedo em cima até eu o autorizar. Se começas a beber dessa maneira, daqui a bocado já não tens uma gota.
E depois, morres à sede.
O legionário apressou-se a obedecer e voltou a passar a correia que segurava o cantil por cima do pescoço.
- Assim é melhor. - Rufo dirigiu-se aos homens. - Não sabemos quanto tempo nos vai levar até apanharmos o inimigo. Essa água nos cantis é toda a de que cada um de vocês dispõe.
Se tentarem beber uma gota que seja desta merda líquida em que andamos a chapinhar, garanto-vos que vão passar pelo menos um mês sem conseguirem segurar uma caganita. Isto
se sobreviverem, claro. Portanto, bebemos só do cantil, e só quando eu disser. Percebido?
Os homens anuíram.
- Então toca a pegar nos escudos e vamos embora.
Cato olhou para o centurião com ar de aprovação. Rufo era claramente um tipo da velha escola, apesar da colocação no Egito, onde havia muito tempo que as legiões não participavam
numa campanha a sério. O tom de voz, a postura e as cicatrizes nos braços e rosto identificavam-no claramente como um soldado profissional, muito à semelhança de Macro, decidiu
Cato.
Notou um movimento brusco nos canaviais próximos, seguido de um estardalhaço de água, e algo de grande porte se lançou contra ele. Virou-se enquanto se agachava e desembainhava
a espada, ao mesmo tempo que erguia o escudo. Uma massa negra e monstruosa, com o costado molhado a rebrilhar, saltou do meio das canas, abrindo uma mandíbula longa e pejada
de dentes que se fechou no ombro do cadáver próximo. Cato imobilizou-se, e antes que pudesse reagir, o animal recuou com brusquidão, arrastando o corpo. Depois de um último
movimento que agitou a perna inanimada, o monstro e o cadáver desapareceram. Só ficou a água em agitação, canas a remexerem e o som que se afastava de algo a abrir caminho
pelo pântano.
Cato engoliu em seco e virou-se para Rufo de olhos arregalados.
- Porra, o que era aquilo? - lançou.
- Crocodilo - retorquiu o centurião, observando com toda a atenção
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o ponto em que a criatura tinha desaparecido, como se pudesse regressar a qualquer momento.
- Crocodilo? - Cato tinha sido avisado quanto aos perigosos animais, mas aquele fora o primeiro que vira de perto.
Rufo anuiu.
- Vivem no Nilo, mas chegam aqui ao delta.
- Já me tinham dito. - Cato endireitou-se devagar. - Não são muito numerosos, espero eu.
Rufo deu uma palmada na própria face.
- Não tanto como a merda dos insetos... Mas são os suficientes para serem um problema. Os nativos normalmente mantêm-se a uma boa distância deles.
- Não me surpreende nada.
- Mesmo assim, os crocodilos lá apanham um camponês de vez em quando, ou umas mulas.
- E não os caçam?
Rufo sorriu sem vontade.
- Quem é que se abalançava a isso? Além disso, são animais sagrados para os locais.
- Sagrados?
Rufo pareceu surpreso.
- Senhor, passou dois meses a bordo do Sobek e não se apercebeu?
- O que é que queres dizer? - ripostou Cato, irritado.
- Senhor, Sobek é o nome do deus-crocodilo desta gente.
Cato franziu o sobrolho, aborrecido por não ter associado os dois factos.
- Bem, se algum deles voltar a aproximar-se de mim desta maneira, parece-me que cometerei um pequeno sacrilégio.
- Senhor, duvido que consiga cumprir essa intenção. Podem ter uma aparência desajeitada, mas garanto-lhe que correm mais do que um homem em terra, e na água então não há comparação.
O melhor mesmo é ficar longe deles, senhor. Deles e das cobras.
- Cobras? E venenosas, imagino.
- Mortais. Sobretudo as najas, senhor. Embora essas prefiram um terreno mais seco.
- Que grande consolo. Bom, temos de seguir. - Cato virou-se para os outros homens e reparou que muitos deles ainda olhavam nervosamente na direção dos sons que se afastavam.
- A coluna tem de seguir!
Virou-se, levantou o escudo com um grunhido de esforço e avançou, olhando atentamente para um lado e outro enquanto abria caminho pela água. A ideia de dar de caras com outro
crocodilo deixava-o nervoso, mas
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sabia que não podiam perder mais tempo. Ajax tinha de ser apanhado a qualquer custo . Cato empurrou a ideia para o pensamento. Era isso tudo o que importava. Tinha de dar
o exemplo na liderança dos homens, pelo que se forçou a prosseguir pelo caminho das canas cortadas, sem pensar muito no que poderia esconder-se entre elas.
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11

A coluna progrediu a custo pelo pântano enquanto o Sol subia no céu e
azia incidir todo o seu fulgor nos soldados. O ar, parado e aprisionado pela vegetação, aquecia a cada hora que passava, e a boca de Cato começou a secar, até que uma sede
desesperada lhe tomou conta da garganta. Se estivesse só, não teria hesitado em recorrer ao cantil para se refrescar, mas naquelas circunstâncias preferia que fosse Rufo a
dar ordem aos homens para se dessedentarem. Não podia de forma alguma parecer, aos olhos dos homens, menos coriáceo que o centurião. Assim sendo, aguentou a sede mais um bom
bocado, até que começou a pensar se Rufo se estaria a recusar a dar ordem de alto aos homens e a permitir-lhes beber precisamente pela mesma razão. Deitou uma espreitadela
por cima do ombro. Rufo seguia a uns três metros atrás dele, suando profusamente, a face cheia de rugas a rebrilhar, mas também a ostentar uma expressão fixa que nada revelava
do que lhe ia na alma.
Por volta do meio-dia, os canaviais deram lugar a uma ilhota coberta por erva alta, e Cato aproveitou a ocasião para permitir algum descanso aos homens. Ao saírem da água
para a terra firme, adiantou-se alguns passos e pousou o escudo, deixando-se depois descair até apoiar os braços na orla do metal e assim ficar a recuperar o fôlego. Um a
um, os legionários foram-se libertando das canas, cambaleando pela ligeira subida e deixando-se cair na erva dos dois lados do trilho.
- Parece-me que os homens precisam de água, senhor - lembrou Rufo, enquanto limpava a testa com as costas do antebraço. - Pelo menos eu preciso.
- Seja - assentiu Cato. - Deixa-os beber então. Mas que não exagerem, um trago e chega.
- Sim, senhor.
Enquanto os homens se deleitavam com a sua magra ração de líquido, vigiados de perto por Rufo, Cato pegou também no cantil e permitiu-se molhar os lábios, sorvendo um pequeno
gole que usou para humedecer todos os recantos da boca antes de engolir. Voltou a guardar o cantil e dirigiu-se ao ponto mais elevado da ilhota, tentando descortinar qualquer
sinal
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de vida a sul, na direção que Ajax parecia ter tomado naquela manhã. Ali perto via-se um maciço de tamareiras, e um conjunto de troncos caídos destacava-se no meio de velhas
ramagens acastanhadas. Foi para lá que se dirigiu, e trepou para um dos troncos. Desse ponto mais elevado, tudo o que conseguia avistar era uma extensão ininterrupta de caniçais,
aqui e ali semeada de grupos de árvores e arbustos. E nem um sinal de movimento. A calma da paisagem deprimiu-o. Tinha tido esperanças de conseguir avançar com velocidade
suficiente para alcançar Ajax e os seus homens. Estava também preocupado. Não houvera notícias da secção de legionários que Rufo tinha enviado à frente para se manter em contacto
com o inimigo. Podiam estar muito lá à frente, mas também se podiam ter perdido. Cato voltou-se para contemplar o caminho que tinham seguido até ali. Calculava que não teriam
percorrido mais de uns oito quilómetros por aquele terreno tão penoso, mas também não havia qualquer sinal de vida naquela direção. O horizonte estava vazio, e nada se movia
nos caniçais que tinham atravessado.
Depois de mais uma breve espreitadela, regressou para junto da coluna e voltou a pegar no escudo.
- Centurião, o descanso está acabado. Trata de pôr os homens em ordem de marcha.
Um breve lampejo de surpresa atravessou o rosto de Rufo, mas de imediato o homem anuiu e se virou para os seus homens, de mãos nas ilhargas.
- Meninas, toca a levantar!
Respondeu-lhe um coro de lamentos e protestos resmungados, o que fez com que Rufo pigarreasse e erguesse a voz.
- Silêncio! Dei-vos uma ordem, caralho. De pé. Chegou o momento de justificarem o que vos pagam. É para isso que serve a prata do Imperador, e ele recompensa-vos principescamente.
Portanto, fechem essas cloacas e peguem no equipamento, imediatamente!
Os homens lá se foram levantando e preparando para seguir a marcha. Rufo virou-se para Cato.
- Senhor, às suas ordens.
- Obrigado. Vamos seguir.
Rufo ergueu o braço e deixou-o cair na direção do trilho que mal se adivinhava.
- Coluna! Em frente!
Cato tomou de novo a cabeça da fila; embrenharam-se pelas ervas altas até ao outro lado da ilhota, para logo se voltarem a enfiar na água lamacenta e parada que a rodeava.
A tarde era a parte mais quente do dia, e o calor martelava a coluna de soldados que se esticava pelo pântano; muitos optaram por ensopar a proteção de feltro antes de a colocar
na cabeça, sob
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o capacete, para conseguirem algum alívio. A meio da tarde deram de caras com outro cadáver, preso nas retorcidas raízes de uma árvore. Tal como no outro caso, ostentava feridas
resultantes do combate da manhã, e tinha sido despachado com um golpe de espada. Cato examinou-o rapidamente, e prosseguiu.
Continuava a não haver notícias da secção avançada, e o jovem já não tinha dúvidas de que os homens tinham tido problemas com os renegados, ou então se tinham perdido. Ordenou
nova breve paragem para os soldados se refrescarem e recuperarem o fôlego, enquanto ele conversava com o centurião.
- Passa-se algo de errado. Os teus homens já deviam ter-nos mandado um relatório há muito tempo.
- Eu sei, senhor. - Rufo desfez o nó do pano que levava ao pescoço e passou-o pela face. - Quer que envie alguém à frente da coluna para os tentar encontrar?
Cato pesou a sugestão por momentos.
- Não. Não vale a pena arriscar mais homens. Se ainda estiverem a seguir o Ajax, hão de parar para passar a noite, quando ele o fizer. Nessa altura hão de dar notícias. Pelo
menos é o que espero.
- E se não derem?
- Nesse caso, continuaremos a seguir este trilho até darmos com eles, ou com Ajax e os seus homens. É tudo.
- E quanto ao centurião Macro, senhor?
- O Macro há de alcançar-nos a seu tempo. Disso podemos ter a certeza. - Cato sorriu. - Ele não há de querer perder uma boa zaragata. - O sorriso esvaiu-se. - Neste caso,
ele quer participar do combate mais do que qualquer outro homem vivo... Exceto eu mesmo.
Rufo anuiu. Tinha estado envolvido nos combates em Creta, e sabia do tempo que Macro passara cativo, junto com Júlia, a noiva do prefeito.
- Nesse caso, talvez devêssemos acampar cedo, e dar ao Macro uma hipótese de juntar as suas forças à nossa.
Cato pensou na ideia, e acabou por abanar a cabeça.
- Cada vez que paramos para descansar, leva mais tempo para os homens retomarem a marcha. O melhor é aguentar até que a noite comece a cair e só parar nessa altura. - Humedeceu
os lábios. - Vamos prosseguir.
Apesar de o Sol ter iniciado a descida do zénite, o calor não dava sinais de abrandar com o avanço da tarde. A coluna seguiu caminho, atormentada pela sede e assoberbada pelo
peso dos escudos que os homens carregavam. Quando por fim o Sol mergulhou na bruma que manchava o horizonte, o brilho ofuscante desapareceu e as canas começaram a oferecer
a sua sombra aos exaustos soldados romanos, ofegantes depois daquele dia de pesadelo.
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Cato nunca se tinha sentido tão esgotado. Nem mesmo quando se juntara à legião e enfrentara dias e dias de marchas de treino, despertado pela alvorada, caminhando com o equipamento
completo durante uns vinte e cinco quilómetros antes de arrear a carga e se dedicar à construção do campo e das suas defesas, em seguida montar as tendas, fazer fogueiras
para cozinhar, e só depois descansar, até chegar o seu turno de sentinela. Essa rotina fora extenuante, recordou, mas tinha tido lugar sob o clima temperado da fronteira do
Norte, na Germânia. Ali, o calor, o cheiro, os insetos, as raízes e outros obstáculos escondidos pela água que pareciam divertir-se a fazer tropeçar os incautos, tudo se combinava
para criar um ambiente insuportável, que sugava o vigor de qualquer homem. Só a vontade de prosseguir fazia com que continuasse a avançar, passo após passo.
As sombras alongavam-se quando a coluna voltou a emergir do pântano para uma zona de terreno sólido, e ali o trilho criado pelos fugitivos juntava-se a um caminho bem marcado,
que bifurcava um pouco à frente. Cato estacou e olhou em ambas as direções.
- Senhor, o que acha? - inquiriu Rufo, com a respiração pesada. - Para a esquerda ou para a direita?
Cato limpou o suor dos olhos e considerou as suas opções.
- A da esquerda parece seguir para norte, para a costa. Se eu fosse o Ajax, ia para sul, afastava-me do mar e das nossas galeras. Vamos pela direita.
Baixou o escudo e atravessou o caminho até um maciço de palmeiras onde colheu algumas ramagens caídas e mortas, que jaziam no solo. Pegou na adaga e rapidamente as despiu
de folhagem; depois colocou as hastes cinzentas e nuas numa forma de seta, para indicar o caminho que decidira seguir.
- É um sinal para o Macro - anunciou, antes de pegar de novo no escudo e levar a coluna para a direita, internando-se no delta. Embora o trilho fosse estreito e muitas vezes
encaixado entre as ervas altas e as palmeiras, era uma agradável mudança em relação ao lodaçal mal-cheiroso do pântano. Tinham percorrido já cerca de um quilómetro e meio
quando Cato avistou por cima da erva os contornos de edifícios, a não mais de umas centenas de metros de distância. Voltou-se para Rufo e falou em tom baixo, enquanto as apontava.
- O primeiro sinal de vida que temos em todo o dia.
- Talvez os locais tenham visto alguma coisa, senhor.
- Espero bem que sim.
Ainda estava preocupado com a secção desaparecida. Se não se tinham perdido pelo pântano, o mais provável era que tivessem mesmo deparado com Ajax e o seu bando. E nesse caso,
poucas hipóteses teriam tido.
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Enquanto se aproximavam dos edifícios, Cato verificou que eram cerca de uma vintena, espalhados em torno de uma rua central e larga. Já estavam suficientemente perto para
repararem em quaisquer sinais de vida, mas a verdade é que não se escutava qualquer som, à parte o balir de algumas cabras; e também não havia indícios de movimento. Quando
o caminho fez uma curva e desembocou numa clareira a alguma distância das mais próximas edificações, começou a sentir-se pouco confortável com a situação. Deteve a coluna.
As casas eram típicas da região: feitas de tijolos de lama seca e cobertas por armações leves onde se apoiavam folhas de palmeira, que davam sombra e em simultâneo permitiam
a passagem do ar, de forma a manter o interior a uma temperatura suportável. Cato perscrutou toda a extensão da aldeia, e limpou a garganta.
- Todos de capacete posto, e de espadas na mão - ordenou. - Diz aos homens que cerrem fileiras. Mas sem fazer barulho.
- Sim, senhor. - Rufo anuiu e recuou para dar as instruções ao longo da coluna. Os legionários, embora cansados, apressaram-se a pôr os capacetes e a apertar as tiras que
os mantinham em posição, antes de desembainharem as espadas e colocarem os escudos em posição. Rufo regressou para junto de Cato.
- Estão todos prontos, senhor.
- Ótimo. - Colocou também o capacete e respirou fundo. - Vamos lá.
Avançaram, de olhos e ouvidos atentos a qualquer ameaça, enquanto se dirigiam aos primeiros edifícios. Não se viam muitos sinais de que a aldeia fosse habitada. Um cão mirrado
pareceu acordar; levantou a cabeça para os observar por momentos, coçou-se com uma pata e voltou a deitar-se, ofegante. Cato fez uma curta paragem para espreitar pela porta
de um edifício, mas encontrou-o vazio. O mesmo sucedia no seguinte, pelo que seguiram pela rua acima, em direção ao centro da aldeia. Nesse momento, Rufo assinalou algo.
- Senhor, ali, à esquerda, junto à porta.
Cato olhou na direção indicada e avistou a mancha escura que se espalhara pelos tijolos. Sangue.
- Parece que o Ajax sempre passou por aqui.
Rufo aproximou-se da porta e passou a espada para a outra mão enquanto examinava a mancha.
- Se foi ele, foi há pelo menos uma hora. O sangue já está seco. A questão é, onde estão os corpos?
- Talvez a maior parte dos habitantes tenha fugido quando o Ajax apareceu.
- Espero bem que sim, senhor. - Rufo voltou a pegar na espada e
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olhou em redor. A aldeia estava silenciosa, à exceção do zumbido dos insetos, e foi então que Cato se apercebeu de que o som vinha dali perto, de onde se via um muro com a
altura do ombro de um homem, provavelmente construído para guardar o gado dos aldeãos. Engoliu em seco, nervoso, enquanto se dirigia para o redil e espreitava por cima do
muro. O interior estava na sombra, uma vez que o Sol já tinha descido para o horizonte. Mas a carnificina era bem percetível: os corpos dos aldeãos estavam lá, empilhados.
Velhos, jovens, homens e mulheres - ninguém fora poupado.
- Porque é que fizeram isto? - indagou Rufo, indignado, ao juntar-se a Cato. - Se era de comida que precisavam, porque não se limitaram a levá-la, e deixaram esta gente viva?
- O Ajax continua a querer marcar bem a sua posição - retorquiu Cato em tom mórbido. - Quer que os habitantes da província percebam que nós não os podemos proteger. A notícia
deste massacre vai espalhar-se, e o governador ver-se-á confrontado com pedidos de tropas para proteger do Ajax e do seu bando todas as povoações.
Rufo pensou por momentos e abanou a cabeça.
- Não estou tão certo, senhor. Não parece ter lógica. Este sítio é demasiado isolado para servir esse propósito.
- Então porquê?
- Para os calar. Para os impedir de nos fornecer informações sobre quantos são os homens, em que estado se encontram, em que direção seguiram quando deixaram a aldeia.
Cato refletiu um instante e assentiu.
- Sim, ele fá-lo-ia por esses motivos, sem hesitar.
- Senhor! - gritou uma voz, e Cato e Rufo voltaram-se em simultâneo; avistaram um legionário que os chamava de um ponto entre dois estábulos ocupados por mulas, no outro lado
da rua. - Aqui!
Correram para lá, passando por entre os estábulos onde um punhado de mulas aguardava, contemplando as manjedouras vazias, e saíram para um espaço aberto, coberto de excrementos.
Os cadáveres dos homens da secção avançada estavam ali, espalhados pelo chão para onde tinham sido arrastados e abandonados.
- Merda - comentou Rufo. - Está tudo explicado.
Cato ajoelhou-se e examinou os corpos de perto.
- Feridas de flechas. Dir-se-ia que foram emboscados. - Ao dizer aquelas palavras, sentiu um punho de aço a apertar-lhe o coração. Lançou um olhar desesperado a Rufo. - Por
isso é que os locais foram mortos.
Antes que o centurião pudesse responder, ouviu-se um aviso vindo algures da rua que atravessava a aldeia, logo seguido por um silvar e um grito de dor. Os dois oficiais apressaram-se
a regressar para o centro da aldeia, de
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escudo bem erguido e olhar atento ao que se passava. Um soldado estava no solo, apoiado nos cotovelos e a olhar espantado para a haste de uma flecha, que lhe saía do peito.
Outro arrastava-se, enquanto tentava apanhar a flecha que o atingira nas costas e lhe trespassara a omoplata. Havia mais setas a assobiar pelo ar, e Cato viu outro homem ser
atingido no braço que empunhava a espada, que foi pregado ao corpo pelo projétil.
Encheu os pulmões e soltou um brado.
- EMBOSCADA! Escudos erguidos. Legionários! Comigo!
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Enquanto Rufo e os seus homens cerravam fileiras e formavam uma elipse de escudos, Cato avistou o inimigo. Numerosos vultos tinham abandonado os esconderijos e concentravam-se
na saída da aldeia, assestando os arcos na direção dos romanos. Ao olhar para trás, Cato reparou que havia outros homens a bloquear a via por onde tinham penetrado na aldeia.
Ajax tinha-os apanhado numa zona de fogo cruzado. Mas Cato notou de imediato que podia com relativa facilidade levar os seus homens a romperem o bloqueio em qualquer das extremidades
da rua. Foi então que se apercebeu de outros vultos que se movimentavam por entre as cabanas dos dois lados. No instante seguinte irrompeu uma chama alterosa a partir de uma
das casas, quando o telhado de folhas de palmeira foi incendiado. Depressa outras labaredas se manifestaram, iluminando claramente os romanos, rodeados pelos edifícios. Ouviu-se
um grunhido quando mais um homem foi atingido no ombro, junto a Cato; logo a seguir escutou um impacto surdo, e um estilhaço atingiu-o no pescoço, enquanto a ponta de uma
flecha irrompia pela face do escudo que empunhava.
- Temos de sair daqui! - Rufo fez um gesto na direção de onde tinham vindo.
- Não. Temos aquilo que queríamos, uma oportunidade de enfrentar o Ajax. - Cato pensou rapidamente. - Leva metade dos homens e volta para a entrada da aldeia. Trata daqueles
arqueiros e depois atravessa a aldeia e limpa as casas, uma a uma se for preciso.
- E quanto a si, senhor?
- Levo o resto dos homens e vou ocupar a outra ponta da aldeia. - Antes que Rufo pudesse manifestar qualquer oposição à divisão das forças, Cato empurrou-o com o escudo enquanto
berrava: - Vai!
- As três secções da retaguarda! - bramiu Rufo, fazendo-se ouvir acima do crepitar das chamas. - Comigo!
O centurião recuou com todo o cuidado e agrupou os homens que o iam acompanhar; a coluna separou-se em duas, já que o grupo na retaguarda se movimentou para a entrada da aldeia,
apresentando ao inimigo uma
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muralha de escudos. Cato agarrou a espada com toda a força e apelou ao resto dos homens.
- Sigam-me!
Uma vintena de homens avançou com ele numa formação cerrada, enfrentando a persistente chuva de flechas que sobre eles caía, vinda do fim da rua. As hastes chocavam contra
os escudos, mas sofreram apenas mais uma baixa enquanto se aproximavam dos arqueiros - uma flecha alojou-se na canela desprotegida de um homem posicionado à esquerda na fileira
da frente. Este vacilou e parou, gemendo enquanto se agachava por trás do escudo. Um dos seus camaradas aprestou-se a ajudá-lo, mas Cato impediu-o com um berro.
- Deixa-o! Mantém-te na formação!
Já não estavam a mais de vinte passos dos arqueiros, e as chamas iluminavam-nos, recortando-os contra a escuridão crescente no exterior da aldeia, onde imperava a vegetação
sombria.
- Carreguem! - gritou Cato. - A eles!
Os legionários soltaram um grito rouco e lançaram-se em corrida, mantendo-se baixos e protegidos pelos pesados escudos. Perante o assalto, os arqueiros lançaram uma última
revoada de flechas e tentaram a fuga.
- Já fogem! - gritou um legionário. - Atrás deles. Deem cabo desses sacanas!
Enquanto os romanos avançavam, os arqueiros fugiam pela trilha no meio da erva. Então um movimento lateral atraiu a atenção de Cato, e ele avistou vultos a correr por entre
os edifícios dos dois lados da rua. Eram mais homens de Ajax, armados com lanças e escudos. Não houve tempo para soltar um grito de aviso antes de os renegados saírem para
o espaço aberto e atacarem a força romana pelos dois flancos. Soltando gritos selvagens enquanto avançavam, usaram as lanças contra os corpos desprotegidos dos legionários.
Três destes foram imediatamente abatidos, empalados pelas lanças e empurrados ao longo de toda a largura da rua pelo ímpeto da carga selvagem dos atacantes. Enquanto os rebeldes
se infiltravam entre eles, os romanos começavam a reagir. Não tinham tempo para se preparar e avaliar os oponentes. Era uma escaramuça caótica, frenética, que decorria sob
o brilho oscilante das chamas que devoravam a aldeia.
Um rugido ao pé do seu ouvido fez com que Cato rodopiasse, fazendo com que o escudo defletisse a estocada de uma lança com um baque surdo; no momento seguinte foi o próprio
adversário que lançou o corpo contra o escudo, empurrando o jovem prefeito, que se esforçou por manter o equilíbrio e não se estatelar no solo. Firmou as botas bem afastadas
no chão e fez a espada rodar em torno da orla do escudo, sentindo-a atingir o alvo com um estremeção, enquanto um grunhido se soltava dos lábios do inimigo.
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Cato recuperou a lâmina e agachou-se, avaliando a situação ao seu redor. Os seus homens e os de Ajax misturavam-se num vendaval de movimentos que enchia o ar de choques metálicos
de espadas e de impactos de lanças contra escudos. Os lanceiros de Ajax tinham iniciado o ataque, mas agora outros homens com espadas já se tinham juntado à confusão; eram
homens possantes - gladiadores - treinados para a mais mortífera forma de combate na arena. Porém, naquela situação, na confinada rua que atravessava a aldeia, o treino quer
de uns quer de outros dos oponentes não tinha grande ocasião para se expressar, e a contenda limitava-se a uma troca de estocadas desesperadas, murros, pontapés e cabeçadas.
Cato aparou outro golpe, lançou uma série de estocadas contra o adversário e depois recuou até à parede de uma das habitações, enquanto tentava localizar Ajax. O brilho lúgubre
das chamas mal permitia distinguir um homem de outro, e só o facto de os legionários usarem a farda regulamentar ajudava cada um dos lados a perceber quem era amigo e quem
era inimigo.
- Ajax! - gritou Cato a plenos pulmões. - Ajax! Enfrenta-me! Combate comigo, se te atreves!
Ouviu uma gargalhada vinda da sua esquerda e virou-se nessa direção, de espada aperrada e pronta a desferir uma estocada, mas não avistou o líder dos gladiadores. Deparou-se
ao invés com um homem entroncado, que envergava uma túnica leve coberta por uma couraça espessa. A pele do homem era escura, quase negra, e os dentes rebrilharam quando ele
os cerrou e avançou para Cato, empunhando uma pesada espada de cavalaria numa das mãos e um pequeno escudo redondo na outra.
- Se é o Ajax que queres, romano, vais ter de me matar primeiro. - O homem cuspiu com desprezo enquanto abria os braços, expondo o peito, na tentativa de atrair um golpe apressado
de Cato.
- Se é isso que é preciso, assim será - retorquiu o jovem num tom gélido.
Fez uma finta na direção do estômago do outro, obrigando-o a proteger-se. Mas o gladiador não era parvo, e facilmente bloqueou o golpe antes de lançar por sua vez uma estocada
contra Cato, dirigindo-a diretamente aos olhos do romano. Cato desviou a cabeça por instinto ao mesmo tempo que erguia o escudo, o que o fez perder por momentos a noção da
posição do adversário. Um erro, como compreendeu assim que a razão recuperou o comando das suas reações. A orla do escudo do outro forçou a passagem sob o seu próprio escudo;
o gladiador soltou um berro e desviou-o com brusquidão, enquanto apontava a espada ao peito de Cato. Este tropeçou para trás, batendo com força contra a parede irregular a
que se acoitara. O golpe do outro atingiu a extensão máxima, e a ponta da espada rasgou a
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túnica de Cato e perfurou-lhe a carne e os músculos do peito até ser parada pelas costelas. O impacto e a dor aguda fizeram-no perder o fôlego.
- Aha! - Os lábios do gladiador formaram um sorriso de triunfo, e ele avançou um passo, enquanto puxava a espada atrás para desferir novo golpe, que adivinhava ser o de misericórdia.
Enquanto a lâmina avançava, refulgindo com as cores do incêndio em volta, Cato rodou sobre o flanco. Ouviu claramente o ruído do metal a desfazer os tijolos de lama, e deixou
que o ímpeto do seu movimento o fizesse continuar a rodar, até que pôde brandir a espada e desferir um golpe em arco com a ponta virada para baixo, atingindo o outro no antebraço
e rasgando-lhe a carne dos músculos até ao osso. Os dentes do gladiador cerraram-se numa máscara de dor, e ele encolheu o braço enquanto tentava voltar a atingir Cato. Desta
vez o golpe foi menos impetuoso, e facilmente desviado pelo escudo; Cato aproveitou para atacar a coxa do outro, rasgando-lhe os poderosos músculos. O homem percebeu que persistir
naquele embate seria demasiado perigoso para si, e recuou, a sangrar. Cato manteve-o sob vigilância até ficar a uma distância segura, e só então arriscou outra olhadela à
forma como os seus homens se estavam a haver na refrega. Dois jaziam no solo ali perto, um imóvel, o outro a gritar enquanto agarrava o coto do pulso, onde a mão lhe fora
decepada. Contudo, o inimigo também já sofrera baixas, e havia vários a abandonar o combate, recuando para as profundas sombras que reinavam entre os edifícios que ainda não
ardiam.
- Estão a fugir! - gritou um dos legionários com ar triunfal, enquanto erguia a espada no ar.
- Boca calada, e luta! - repreendeu-o Cato, enquanto avançava para junto dos homens ainda envolvidos em combates. Avistou um tipo magro e seco, com cabelo longo e sujo, de
pé sobre um legionário que fora forçado a cair de joelhos. Quando a espada do gladiador se aprestava a descer sobre o homem indefeso, Cato interpôs a sua lâmina, bloqueando
o golpe com um retinir metálico e desviando-o, de forma a apenas roçar pelo ombro do legionário, onde a ponta da lâmina se prendeu numa dobra da túnica. Enquanto o gladiador
tentava libertar a espada, Cato atingiu-o de lado com o escudo, roubando-lhe o fôlego e fazendo-o cambalear até se estatelar no chão. O legionário lançou-se de imediato sobre
ele, apertando-lhe as mãos em torno do pescoço e esmagando-lhe a traqueia com os polegares.
- Recuar! - gritou uma voz da entrada da aldeia. Cato reconheceu-a de imediato e virou-se para lá.
- Gladiadores! Recuar!
De imediato os renegados começaram a obedecer, deixando os combates individuais que estavam a travar e recuando para longe do alcance das espadas romanas. Deu-se uma pausa
inopinada, enquanto os legionários
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se viam abandonados e tentavam recuperar o fôlego. No momento em que o último dos inimigos desapareceu por entre as casas, a luz das labaredas iluminou uma nova revoada de
flechas que atravessava o ar. Desta vez os arqueiros disparavam das sombras sob as palmeiras, quase invisíveis na escuridão. Pelo contrário, os legionários eram claramente
visíveis sob o brilho das chamas. Dois homens foram atingidos na primeira salva, um na perna e outro com o pescoço trespassado.
- Escudos acima! - ordenou Cato, e os homens retomaram a formação. - Atenção aos flancos!
Olhou rapidamente sobre o ombro. Rufo e os seus homens pareciam já ter desimpedido a entrada da aldeia, e expulso os arqueiros daquela zona. Durante uma brevíssima fração
de segundo, Cato sentiu-se tentado a lançar uma nova carga, para tentar destroçar Ajax e os seus homens, mas adivinhou que na escuridão que rapidamente tomava conta do cenário
depressa perderia o controlo dos legionários; e quem poderia adivinhar as artimanhas de Ajax, e o que teria preparado para eles se os romanos se atrevessem a persegui-lo nas
trevas? Já os tinha enganado uma vez, com aquela alternância entre os disparos dos arqueiros e a carga repentina dos gladiadores. Só havia uma ação sensata a empreender, refletiu
com amargura. Tinha de recuar e planear um novo ataque em forma.
- Retirar! - ordenou. - Mantenham a formação e recuem à minha voz. Um... Dois...
O magote de legionários recuou a passo, mantendo a cadência enquanto as flechas se esmagavam contra as superfícies curvas dos seus escudos. Algumas faziam ricochete e penetravam
na formação, atingindo os homens, mas a sua força já estava gasta e limitavam-se a provocar arranhões ou feridas pouco importantes. Os feridos tinham sido recuperados, e seguiam
no centro da formação, apoiados em camaradas e a mancar penosamente. Na rua tinham ficado apenas os mortos.
O grupo de homens continuou a dirigir-se para o limite da aldeia. De ambos os lados lavravam as chamas, consumindo ferozmente os telhados de folhas de palmeira secas, e depois
as estruturas de madeira e os parcos móveis no interior das casas. Em certos pontos o calor era intenso, e Cato sentia-o a queimar-lhe os braços e o pescoço enquanto passava
com os homens, com as flechas cravadas nos escudos a dar a impressão de que a formação era um grotesco animal gigantesco e espinhoso. A pouco e pouco os arqueiros inimigos
foram amainando a sua fúria, até para poupar munições, e os homens de Cato por fim atingiram a segurança da posição que Rufo tinha assegurado à entrada da aldeia. Os feridos
foram levados para a retaguarda, para serem tratados o melhor possível, ou seja, terem os ferimentos ligados com trapos mais ou menos limpos, retirados das casas que
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tinham escapado ao fogo. A ferida que Cato recebera era pouco profunda, e ele limitou-se a passar uma faixa de pano sobre o peito, amarrando-a firmemente. A tarde deu lugar
à noite, e Cato e Rufo, agachados na escuridão, consideraram as opções que se lhes ofereciam.
- Não podemos fazer um ataque frontal, pela rua fora - decidiu Cato. - Seríamos alvos perfeitos para os arqueiros, e eles ainda podiam voltar a atacar-nos pelos flancos enquanto
progredíssemos.
Rufo anuiu, e logo sugeriu outra hipótese.
- Eu podia talvez rodear a aldeia e atacar-lhes o flanco e a retaguarda, enquanto os mantinha entretidos por aqui, senhor.
Cato considerou a ideia e assentiu.
- Não podemos fazer outra coisa. O problema é que o Ajax deve estar precisamente à espera que o façamos.
- Só se se mantiver na mesma posição, senhor. Se eu estivesse no lugar dele, ordenava uma retirada. Já conseguiu toda a vantagem que podia obter desta emboscada. Sabe perfeitamente
que seremos forçados a uma abordagem mais indireta. Portanto, para quê ficar ali sentado à espera? A opção mais sensata seria a de deixar uma pequena retaguarda, de forma
a que nós pensássemos que toda a força dele ainda estava no mesmo sítio, enquanto ele prosseguia a fuga, de forma a pôr a maior distância possível entre ele e nós antes da
alvorada. Com alguma sorte, talvez até consiga adiantar-se o suficiente para nos fazer perder o rasto quando nos lançarmos outra vez na perseguição.
- Tens razão - concordou Cato. Não podiam permitir que Ajax se esgueirasse, não quando o tinham finalmente ao seu alcance, o mais perto desde que o gladiador se tinha escapulido
em Creta. Acenou a Rufo. - Ali à direita há demasiado mato rasteiro e arbustos; eles ouvir-te-iam chegar, com toda a certeza. Leva metade dos homens e segue para a zona esquerda
da aldeia, pela erva. Lembro-me de ver um dique ao lado da aldeia quando estávamos a chegar, a uns cem passos dos edifícios, portanto não poderás fazer um grande rodeio. O
melhor será esperar que as chamas acalmem um bocado antes de atacar, para escapares à deteção.
- Sim, senhor. E quando chegar o momento, o que fará aqui?
- Vou tentar outro ataque pela rua. - Cato sorriu com desalento. - O que me falta em imaginação será compensado com o maior estrépito possível. Bom, passa então palavra aos
homens. E diz-lhes que podem beber à vontade. Quando isto estiver terminado, voltaremos a encher os cantis nos reservatórios da aldeia.
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- Quantos homens perdemos? - perguntou Ajax, enquanto observava as distantes figuras dos romanos no outro lado da povoação.
Carim, o mais próximo dos seus seguidores, levantou o olhar da ferida que estava a ligar no braço de Hépito.
- Dois mortos. Outro que vai a caminho, e quatro feridos. Mas esses estão em condições de combater, se necessário.
Ajax pesou o resultado da emboscada. Tinha perdido dois homens, mas matado ou ferido pelo menos dez romanos. Um saldo bastante aceitável, embora tivesse tido esperança de
os aniquilar por completo, ou pelo menos de os fazer dispersar e impedir assim que continuassem a perseguição. Alguns dos seus homens tinham chegado à aldeia, ao entardecer,
em muito má condição. Tinha sido obrigado a recorrer a toda a sua autoridade pessoal para os convencer a preparar uma armadilha para os romanos. Os outros, os seus camaradas
dos tempos de gladiador, tinham-se mostrado felizes pela possibilidade de enfrentar os perseguidores, ao invés de continuar a lutar para abrir caminho pelo mangal. A vitória,
embora curta, tinha contribuído para restaurar a confiança no líder. Como sabia que aconteceria.
Tinha uma clara compreensão da mentalidade dos gladiadores que o seguiam, graças aos anos que tinha vivido entre eles e combatido ao seu lado. Viviam para lutar. Depois de
passarem anos a serem forçados a arriscar a vida às ordens dos seus amos, conheciam bem o valor da liberdade, e estavam dispostos a sofrer todas as agruras e todos os perigos,
desde que estes lhes permitissem evitar o regresso à escravidão ou escapar a uma execução sumária. Felizmente, os gladiadores respeitavam uma hierarquia baseada na competência,
ponderou; a não ser assim, a sua liderança já teria por certo sido contestada e desafiada desde a fuga de Creta. Mas enquanto fosse inquestionavelmente reconhecido como o
melhor combatente do grupo, continuariam a respeitá-lo e a segui-lo, e a obedecer às suas ordens. Apesar dos seus erros de julgamento. Amaldiçoou-se mais uma vez pela complacência
que demonstrara. A base de abastecimento tinha constituído um covil ideal para lançar as suas surtidas contra os romanos. Tinham
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comido bem e descansado durante quase dois meses, embora tivessem sempre presente a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, teriam de abandonar a baía.
E deviam tê-lo feito muito antes, compreendeu Ajax com amargura. Tinham-se habituado demasiado ao conforto. Tinham cometido um erro que só os mais inexperientes dos gladiadores
cometiam - tinham baixado a guarda. Os vigias tinham-se esquecido dos seus deveres. Sentiu a raiva a correr-lhe pelas veias durante alguns segundos. Esses idiotas tinham custado
um preço bem caro aos seus camaradas. Durante os meses que tinham passado na base de abastecimento, tinha aproveitado para engrossar as fileiras dos seus seguidores, graças
aos escravos que seguiam a bordo dos navios que tinham apresado. No momento do ataque romano, o grupo original, composto por trinta dos seus mais próximos seguidores durante
a revolta e pelo que tinha sobrado da sua guarda pessoal, tinha já aumentado para mais de trezentos homens, os suficientes para tripular os dois navios ancorados na baía,
e até para compor uma equipagem para a galera danificada que lhe tinha caído inesperadamente nas mãos, pouco antes do assalto.
Franziu o cenho enquanto voltava a recriminar-se. Era inevitável que alguém desse pela falta daquela galera, mas a coisa não devia ter acontecido de forma tão célere. Assim
que se apercebera de que os romanos tinham descoberto o seu esconderijo, Ajax espantara-se com a rapidez com que o inimigo adivinhara o destino da embarcação e avançara para
o atacar. A base, os navios e todos menos cinquenta dos seus homens tinham sido perdidos no confronto.
Era evidente que os romanos deviam estar a ser liderados por um oficial com extraordinárias capacidades. E agora sabia-o. Tinha reconhecido a voz que o desafiara no centro
da aldeia. O prefeito, Cato, aquele que tinha levado a revolta em Creta a uma derrota estrepitosa, precisamente no momento em que Ajax estava seguro de deter todas as vantagens.
A rebelião falhara. Mas haveria outra, já tinha decidido. Um dia, ele e os seus homens enquadrariam outro exército de escravos que se ergueria para desafiar os seus senhores
romanos. Os camponeses do Egito tinham sofrido pesadamente sob a bota de Roma, e o embuste que Ajax concebera tinha exacerbado o seu descontentamento. Muitos estariam a ponto
de apoiar uma rebelião aberta. Muitos, sim, mas não todos, pensou, enquanto contemplava a aldeia em chamas.
Quando Ajax surgira do pântano com os seus derreados homens e entrara na aldeia, o chefe local tinha-os recebido com evidente nervosismo. Prudentemente, oferecera à coluna
de homens armados comida e água. Enquanto os seus homens sorviam com avidez toda a água que os aldeãos
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lhes tinham oferecido, Ajax reparara no fantástico potencial do local para uma emboscada. Limitada de um lado pelo dique e pelos caniçais, e pelo mangal de outro, a aldeia
constituía um estrangulamento natural. Sabia que estava a ser seguido de perto por um grupo de romanos com equipamento muito ligeiro, e viu ali a oportunidade de se ver livre
deles. Vinte dos seus homens ficaram para trás, escondidos, enquanto o resto fingiu seguir caminho. Os romanos tinham seguido a pista e passado pelo esconderijo, e nesse momento
a armadilha fechara-se sobre eles. Encurralados entre os homens que tinham ficado escondidos e Ajax que voltara para trás com o grosso das forças e correra de regresso à aldeia,
os legionários tinham sido rapidamente derrotados.
O sucesso da emboscada convencera Ajax de que era possível repeti-la em maior escala, contra a coluna principal de romanos que com toda a certeza seguia os seus batedores.
Mas nessa altura o chefe da aldeia exigira que eles abandonassem a povoação, receoso das represálias que os romanos não deixariam de exercer se viessem a descobrir os corpos
dos camaradas. Ajax odenara então que os aldeãos fossem reunidos e detidos no redil das cabras, para evitar que algum deles pensasse em escapulir-se e avisar os romanos. Nessa
altura, porém, os locais tinham começado a lamentar-se e a gemer, e tinham ignorado o seu aviso para se manterem em silêncio, até mesmo quando os ameaçara com o uso de violência.
Não tinha portanto havido alternativa, disse a si mesmo. Não tinha desejado o sangue dos aldeãos nas suas mãos, mas a segurança dos seus homens era mais importante. Os romanos
não podiam ser alertados para o que os esperava. Assim, tinha dado ordens aos homens em quem mais confiava, e eles tinham-se dirigido ao redil e tinham massacrado os aldeãos
a sangue-frio. Anos de treino em escolas de gladiadores romanas tinham-nos habituado a obedecer imediatamente a ordens, e tinham-nos também tornado imunes ao sofrimento de
outros. O assunto foi arrumado rapidamente, e quando o último dos gritos se apagou, a aldeia mergulhou no silêncio e na quietude absoluta, enquanto aguardava a chegada da
coluna romana.
Karim acabou de apertar o nó da ligadura em torno do braço do núbio, e fez-lhe um sinal subtil para que se retirasse. Limpou o sangue dos dedos na bainha da túnica imunda
que envergava, e que cheirava a suor e à putridão do pântano.
- E agora, general?
Ajax olhou para ele, tentando perceber se o homem estava a gozar com ele. Os seus seguidores sempre se lhe tinham referido como general, e por fim Ajax habituara-se ao título
e insistira no seu uso. Karim usava-o à frente dos outros homens, mas quando estavam sós, era usual que falasse com franqueza e sem deferências especiais.
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- Esperamos que eles voltem a atacar.
- O que te faz pensar que eles o farão?
- Que outra opção têm? - retorquiu Ajax simplesmente. - Estão cá para nos destruir. Tem de atacar, e depressa.
- Porquê?
- Porque receiam que lhes escapemos de novo.
Karim molhou os lábios no cantil e pigarreou.
- Nesse caso, porque não escapamos mesmo? Agora, enquanto eles hesitam.
- Porque as forças estão equilibradas. Não têm mais homens do que nós. Podemos perfeitamente liquidar estes romanos e deixar-lhes as ossadas a apodrecer neste pântano. Os
preparativos estão completos?
Karim assentiu.
- O Canto já escondeu as estacas na erva, e os seus homens estão a postos.
- Então, os romanos que ataquem. - Ajax sorriu com desprezo enquanto contemplava o inimigo.
Karim observou-o cuidadosamente antes de voltar a falar.
- Há outra razão para escolheres ficar e lutar, não há?
Ajax anuiu.
- Também o ouviste, portanto?
- Assim foi.
- Sabes então porque é que não posso contemplar um recuo, porque é que tenho de aproveitar esta ocasião para matar aquele oficial romano. Infelizmente não avistei o outro.
- O centurião Macro.
Ajax anuiu e cerrou os punhos.
- Pensar que tive o Macro à minha mercê durante tantos e tantos dias em Creta. Podia tê-lo liquidado a qualquer momento. Fui um tolo, Karim. Devia ter aceite a oportunidade
de fazer justiça quando ela se me ofereceu, em vez de ceder ao desejo de atormentar o meu inimigo.
Karim encolheu os ombros.
- É sempre mais fácil ser sábio depois dos acontecimentos, general.
Ajax franziu brevemente o sobrolho.
- É bem verdade... Mais uma razão para me ser difícil aceitar a perda desta oportunidade de conseguir a minha vingança. Por ter sido vendido como escravo, e pela morte do
meu pai. - O tom de Ajax era gelado. - Enquanto o prefeito Cato e o centurião Macro viverem, não terei descanso, nem verdadeira satisfação.
- Nunca terás nenhuma dessas coisas enquanto existir uma Roma - retorquiu Karim, com ar cansado. - O que esperas realmente conseguir,
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meu amigo? Estás realmente decidido a matar todos os romanos que habitam este mundo?
- Se tal fosse possível, sim.
- Mas não o é.
Ajax virou-se para ele e ofereceu-lhe um sorriso.
- Dá-me o tempo suficiente para o conseguir, e veremos. Além disso, achas que estamos sós no ódio que votamos a Roma? Lembras-te da informação que arrancámos àquele capitão
gordo, o do último cargueiro que capturámos? Que os núbios estão prontos a invadir o Sul da província.
- Lembro-me, sim.
- Talvez devêssemos pensar em juntarmo-nos aos núbios.
- Talvez. Mas os núbios são uma incógnita - refletiu Karim. - Pode muito bem revelar-se pouco prudente aliarmo-nos a eles, por muito que odeiem Roma tanto como nós. Não tomaria
uma decisão dessas de ânimo leve.
- Nem eu o faria.
Karim abanou a cabeça, como que lamentando alguma coisa.
- O desejo de vingança pesa-te nos ombros, meu general. E cega-te às responsabilidades que tens para com os outros. Para comigo, e para com todos os que te seguem. E ainda
para com todos os que um dia poderiam ter-te seguido, se conseguisses pôr de lado essa necessidade pessoal de vingança. Tens de colocar a razão antes do sentimento. É isso
que significa ser um verdadeiro líder.
Ajax encolheu os ombros.
- Karim, sou um homem, tanto quanto um líder. Não posso ignorar o que me dita o coração. Nem por ti nem por qualquer outro que decida seguir-me. Preciso de obter a minha vingança.
Se os deuses assim o permitirem, tê-la-ei aqui nesta aldeia, esta noite mesmo. Liquidarei aqueles soldados romanos. Cortarei a cabeça ao prefeito Cato. Mas se por acaso o
conseguir capturar vivo, então dar-lhe-ei o mesmo destino que ele ofereceu ao meu pai: pregá-lo-ei numa cruz, e sentar-me-ei a vê-lo morrer, queimado pelo sol, a suplicar
por água ou pelo alívio de uma morte rápida. Nenhum dos desejos lhe será concedido - concluiu em tom duro.
Ambos ficaram calados por momentos, até que Ajax se remexeu e olhou com atenção para a entrada da aldeia, onde os legionários davam sinal de vida. Enquanto ele perscrutava
a escuridão, os romanos formaram uma linha, apresentando os escudos ao fulgor das chamas moribundas. No centro da formação sobressaía uma figura alta e magra, com um capacete
emplumado. Quando os soldados ficaram a postos, ele ergueu a espada e lançou-a para a frente, colocando os legionários em movimento
Ajax levou a mão em concha à boca e chamou os seus homens.
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- Aí vêm eles! Arqueiros, preparem-se! Gladiadores, comigo! Enquanto os vultos dos seus homens se erguiam nas sombras, Ajax
virou-se de novo para Karim com um sorriso determinado.
- Reza para que os deuses sejam generosos, meu amigo, e para que isto acabe esta noite mesmo.
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O centurião Rufo e os seus homens tinham-se introduzido pela erva alta que ladeava o dique pouco antes, e deviam estar já a aproximar-se do inimigo, calculou Cato enquanto
espreitava por uma abertura entre duas casas à esquerda. Não havia ali nada para ver, apenas as trevas reforçadas pela noite que entretanto caíra. Os fogos tinham rapidamente
consumido todos os materiais inflamáveis das casas, e agora restavam apenas pequenas labaredas aqui e ali, a lamberem lentamente vigas já queimadas, embora fornecessem uma
réstea de iluminação à rua e às traseiras das estruturas calcinadas que antes tinham sido habitações. Rufo e o seu grupo deviam ser capazes de avançar paralelamente à rua
sem serem vistos, decidiu Cato.
À sua frente via vultos a reunirem-se na outra extremidade da rua, e ofereceu uma rápida prece a Fortuna para que Ajax se contasse entre eles. Reparou que havia também rebeldes
a disporem-se nos flancos do grupo principal que os aguardava, e pouco depois escutou o primeiro inimitável silvo de uma flecha a passar-lhe por cima da cabeça.
- Estão a disparar! - avisou Cato. - Rapazes, escudos acima!
Os homens nas fileiras mais recuadas colocaram os escudos na horizontal por cima das cabeças, para proteger a formação das setas mergulhantes. Mais projéteis se precipitaram
sobre eles, aparentemente vindos do meio das estrelas que brilhavam no firmamento, mas limitaram-se a embater com estrondo nos escudos ou a fazerem saltar torrões de terra
ao chocarem com o solo; a linha romana, com seis homens de largura e quatro de profundidade, avançou, por trás das curvas reforçadas e das bossas de latão dos escudos. Os
arqueiros não desistiram, mantendo uma chuva constante de setas enquanto os legionários marchavam pela rua acima. Os grupos de gladiadores que os aguardavam permaneceram imóveis
e em silêncio, esperando apenas pela ordem de Ajax para se lançarem ao ataque.
- Atenção aos flancos! - lembrou Cato, preocupado com a possibilidade de a formação se desfazer perante uma repetição da carga dos lanceiros. As flechas pararam quando os
romanos se aproximaram dos gladiadores,
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e Cato agarrou com fervor a espada e o escudo. Quando os dois lados já não estavam a mais de dez passos, ouviu-se um grito de dor algures à esquerda, e de pronto a voz do
centurião Rufo rasgou a escuridão.
- Em frente! À carga! Pela Vigésima Segunda!
Os seus homens ecoaram o fervor do brado, mas logo se ouviu outro grito, e outro, seguidos por gemidos.
- Foda-se, o que é que se passa para aquelas bandas? - indagou um dos homens atrás de Cato.
- Silêncio! - gritou o prefeito. - Continuem a avançar!
Ajax sorriu ao escutar os gritos de dor que vinham da base do dique. Tinha sido correta a suspeita de que os romanos tentariam flanquear a sua posição. Por isso tinha ordenado
aos seus homens que espetassem estacas afiadas no meio da erva alta, pouco depois de despacharem os batedores inimigos. Agora, ao que tudo indicava, o ataque romano tinha
sofrido contratempos e, melhor ainda, tinha-se lançado em corrida para cima da armadilha preparada. Virou-se para Karim.
- Leva os teus arqueiros para lá e acaba com eles. - Desembainhou a espada. - Eu trato do outro grupo.
Karim assentiu e correu para o flanco direito, chamando os seus homens para que o seguissem. Ajax perdeu uns momentos a imaginar deliciado a situação com que Karim se ia deparar.
Os romanos tinham descoberto as estacas da pior forma possível, e vários estavam feridos, pelos ruídos que emitiam. Enquanto tentavam libertar-se, sofreriam uma chuva de setas.
E se entrassem em pânico, o mais provável seria empalarem-se noutra estaca qualquer. Mesmo que aguentassem os nervos e se libertassem dos obstáculos, não deixariam de constituir
um alvo fácil para os arqueiros. Fosse como fosse, sofreriam um pesado castigo. Sorriu, satisfeito, enquanto avançava para se juntar aos homens que se preparavam para enfrentar
os legionários que avançavam ainda pela rua.
- General, o escudo. - Um dos seus guardas pessoais estendeu-lho; ele passou a mão pela correia, ajustou a pega e tomou lugar na fileira da frente.
- Vamos lá dar uma lição a estes filhos da puta de romanos! - Ergueu no ar o braço com que empunhava a espada, tal como aprendera a fazer na escola de gladiadores de Cápua.
- Lutar ou morrer!
- Lutar ou morrer! - repetiram em coro aqueles homens, que escolhera pessoalmente. Logo se agacharam e avaliaram o inimigo, a linha de legionários que avançava a passo firme,
as botas a marcar a cadência.
Ajax sentiu a familiar excitação tomar-lhe conta do corpo, mas ainda assim a sua mente manteve-se calma e fria, enquanto focava a atenção no líder da pequena formação, o homem
que tanta dor lhe causara nos anos
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desde o seu primeiro encontro e choque numa batalha naval, ao largo da costa da Ilíria.
- Prefeito Cato! - O grito saiu-lhe das profundezas do peito. - Esta é a noite em que morres!
Carregou, levando os seus homens a ladeá-lo, soltando os seus gritos de guerra enquanto as faces se distorciam e se tornavam máscaras selváticas de ódio e fúria. Anos de treino
impiedoso tinham transformado o corpo de Ajax numa máquina poderosa, e ele lançou o seu peso por trás do escudo quando chocou contra o do prefeito. Viu o capacete emplumado
de Cato a oscilar para trás quando a linha romana sentiu o impacto da carga inimiga. Manteve o escudo em contacto com o do oponente e continuou a empurrar, sentindo a resistência
a aumentar quando o adversário tentou conseguir tração, fincando as botas no chão pedregoso. Conseguia ouvi-lo a grunhir de esforço para manter a posição. Ajax tomou de novo
impulso e lançou um poderoso empurrão com o ombro, quebrando o contacto enquanto rodava e levava a espada para a frente e para cima, apontando-a ao rosto do inimigo. As chamas
moribundas ainda davam luz suficiente para iluminar o conflito, e Ajax conseguiu ver a face magra do prefeito, a sua expressão concentrada e os olhos muito abertos a fixarem-no.
Ajax voltou a tentar atingir-lhe o rosto, mas o romano depressa bloqueou o golpe e ripostou, obrigando-o a usar o escudo para desviar a lâmina. Os ruídos dos outros duelos
à sua volta preencheram-lhe os ouvidos, mas não permitiu que o distraíssem, mantendo-se focado com mente, corpo e técnica na derrota de Cato. Voltou a empurrar com o escudo,
fazendo retinir as bossas no embate, e lançou novo golpe, desta vez uma cutilada que fez a lâmina descer em direção ao ombro do romano. Cato mudou de posição instantaneamente,
apoiando-se no pé direito e fazendo a espada que almejava lacerar-lhe a omoplata cortar apenas o ar. Ao mesmo tempo, o prefeito lançou uma estocada ao braço de Ajax, esticado
para a frente. O gladiador mal teve tempo para rodar o pulso e absorver o impacto na folha da lâmina. Fagulhas saltaram pelo ar, e Ajax recuou um passo e acenou em aprovação.
- És rápido, romano. Mas na arena não duravas muito.
- E tu falas de mais! - ripostou Cato, enquanto golpeava a orla do escudo de Ajax com toda a força, fazendo-o descer o suficiente para lhe expor a garganta. Era um ataque
desesperado, notou Ajax com toda a calma, enquanto o enfrentava com facilidade, forçando o escudo para cima sob o braço esticado do inimigo e obrigando a ponta da espada a
apontar para o céu. Viu uma oportunidade: enganchou a orla do escudo na guarda da espada de Cato, e puxou-a bruscamente para si. Os dedos do outro resistiram
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por um momento, mas depois a espada foi-lhe arrancada das mãos e voou para trás de Ajax, aterrando com estrépito.
O gladiador soltou uma gargalhada cruel enquanto voltava a baixar o escudo e o lançava contra o do prefeito, uma e outra vez, forçando-o a recuar. Alternou os golpes, usando
o escudo e depois a espada, mantendo a pressão sobre a defesa de Cato e obrigando-o a recuar, sem lhe dar oportunidade de retomar a iniciativa. Um vulto, um dos seus homens,
interpôs-se entre eles, com o sangue a jorrar de uma profunda ferida no crânio, e a gritar sem sentido a altos berros. Um espasmo propagou-se pelos dedos do homem, que largou
a espada; esta caiu de ponta no solo e espetou-se. Cato pegou de imediato no punho e recolheu-a para trás do escudo.
- Sai do meu caminho! - urrou Ajax, empurrando o homem para o lado com o escudo. Ergueu a espada para voltar a atacar Cato. O prefeito aparou o golpe sem problemas, e Ajax
fez uma pausa para soltar uma gargalhada eufórica. - Pelos deuses, era capaz de passar a noite toda nisto.
Voltou a levantar a arma, e Cato aproveitou para saltar em frente, escudo contra escudo, enquanto fazia a espada descrever um curto arco. A ponta da lâmina encostou-se à couraça
de Ajax, escorregou pelo flanco e encontrou a fenda entre as placas frontal e dorsal, aí se alojando; a força com que o golpe tinha sido desferido permitiu-lhe ainda rasgar
profundamente a carne. A princípio Ajax ficou atordoado pelo golpe, e soltou um grito explosivo, até que um rosnar ultrajado lhe levou o resto do fôlego.
- O general está ferido! - gritou uma voz. - Ajax foi atingido!
De imediato um dos seus homens se interpôs entre ele e Cato, lançando um ataque selvático contra o romano e obrigando-o a recuar.
- Tirem daqui o general!
- Não! - exigiu Ajax, mas logo fez uma careta. - Não...
Vários pares de mãos lhe agarraram os braços e o puxaram para longe da frente da escaramuça, levando-o pela rua até ao fim da aldeia. Tentou protestar, mas teve de cerrar
os dentes para combater a dor que lhe dilacerava o flanco. Percebeu que os seus homens se tinham imposto aos romanos. Havia vários legionários abatidos ao longo da rua, contra
apenas dois dos seus seguidores. Mas ainda assim eram os gladiadores que recuavam, deixando os legionários sobreviventes surpresos a observarem o comportamento do inimigo.
- O que estão vocês a fazer? - rosnou Ajax. - Acabem com èles.
Karim surgiu à sua frente, com uma expressão de ansiedade no rosto.
- General, o homem que pusemos a vigiar o caminho avisou que vêm aí muitos mais romanos. Temos de retirar. São demasiados.
- Não. - Ajax abanou a cabeça. - Tinha aquele sacana onde queria. Estava à minha mercê.
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A raiva fazia-o sentir-se doente, traído pelo destino que lhe negara a vingança. Nesse momento, a dor irrompeu de novo. Mas sabia que a podia aguentar. Durante o treino, tinha
aprendido a suportar muito mais.
- Deixem-me voltar para lá. Quero enfrentá-lo.
Karim abanou a cabeça.
- Não. Não te deixarei morrer esta noite, meu genreal. - Virou-se e acenou aos homens que rodeavam Ajax. - Levem-no daqui para fora. Sigam pelo trilho que vai dar ao rio.
Conhecem o caminho. Vão.
Deixando a aldeia, dois homens pegaram em Ajax pelos braços e levaram-no em peso aos ombros, impotente e a ranger os dentes de raiva. Quando o líder estava a salvo, Karim
chamou os arqueiros para que recuassem e formassem junto dele. Vieram das trevas e formaram uma linha descontínua na rua, lançando projéteis sobre o inimigo e obrigando-o
a procurar refúgio por entre as ruínas fumegantes. Na outra ponta da aldeia já surgiam os primeiros reforços romanos, e Karim falou aos seus homens.
- Chega! Já basta. Temos de ir.
O último dos rebeldes rapidamente desapareceu da área iluminada pelas últimas labaredas e fundiu-se na escuridão que envolvia o caminho que partia da aldeia. Para lá do ocasional
estalo de uma madeira ainda a arder, e do distante ruído dos insetos no pântano por trás do dique, os únicos sons que ficaram a pairar no cenário eram os gritos e gemidos
dos feridos.
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- Porra, o que é que se passou aqui? - indagou Macro, enquanto olhava em redor e apreendia as casas em ruínas e os corpos espalhados, caminhando para ao pé de Cato. - Ao que
parece, o combate foi renhido.
Cato recuperara a sua espada e embainhou-a ao mesmo tempo que acenava a Macro à laia de saudação. Reparou que ainda tinha a mão a tremer, e teve de fazer um esforço consciente
de autocontrolo para conseguir enfiar a lâmina na bainha sem a deixar tombar pelo solo. A verdade era que ainda estava assustado, concluiu, cheio de desdém por si mesmo. Quando
Ajax lhe tinha arrancado a espada das mãos e o forçara a recuar debaixo daquela chuva de golpes poderosos, tinha ficado convencido de que chegara a sua hora. Nada se poderia
interpor entre o gladiador e o seu desejo de vingança. Ajax agira como uma força da natureza à solta, implacável. Tinha estado a momentos da morte, e só o acaso, na forma
daquele renegado mortalmente ferido que tombara no espaço entre os dois, o tinha salvo. Relembrando a cena horrorizado, Cato percebeu que tinha estado mesmo por um fio. Olhou
para o amigo com uma expressão abatida, antes de piscar os olhos e assentir.
- Sim... Uma luta e peras.
- O que é que aconteceu? Quando estávamos a chegar, vi uns homens a fugir. Ajax?
Cato anuiu.
- Ainda está vivo. Consegui feri-lo. Quando souberam da sua chegada com reforços, os homens dele levaram-no embora.
Macro lançou uma olhadela pela rua.
- Nesse caso, do que é que estamos à espera? Vamos atrás daquele sacana antes que se escape outra vez.
- Não - respondeu Cato, com firmeza. - Agora não.
- Foda-se, porque não? - O sobrolho de Macro franziu-se. - Estamos mais perto dele do que alguma vez estivemos nos últimos meses.
- Esperamos pela luz do dia - manteve Cato.
- O quê?
- É uma ordem. - Cato irritou-se. - Já perdi demasiados homens
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nas emboscadas deles, só me faltava agora avançar na escuridão, às apalpadelas. Não sacrificarei mais vidas romanas ao Ajax, não se o puder evitar. Esta noite ficamos aqui
e descansamos. Há que tratar dos feridos e permitir aos homens que matem a sede. Ajax e o seu bando estão tão fatigados como nós, e também têm feridos para cuidar. Não irão
muito longe na escuridão. Quando alvorecer, retomaremos a perseguição.
- Isso é um disparate - concluiu Macro.
Cato empertigou-se e respirou fundo, tentando acalmar-se.
- Centurião, ponha-se no seu lugar.
- Senhor, as minhas desculpas - respondeu Macro por entre os dentes cerrados. - Mas é fundamental que continuemos a perseguição.
- Não. A minha decisão está tomada. Primeiro vamos cuidar dos nossos homens. Os seus legionários que recolham os feridos. Estão espalhados pela aldeia e por aquela área. -
Cato apontou para o dique, para a zona por onde Rufo e os seus homens tinham tentado flanquear os renegados. Fosse qual fosse o problema que tinham encontrado, não se via
sinal dos homens, embora os feridos se fizessem ouvir de forma bem audível. Cato estremeceu ao escutar os sons de agonia. - Trate disso, imediatamente.
- Sim, senhor. Suponho que o nosso amigo Hamedes, sendo um sacerdote, terá algum jeito para as artes curativas. Vou pô-lo a trabalhar. - Macro contemplou com ansiedade o amigo.
- Senhor. Está tudo bem?
- Tudo. Estou bem. - Cato engoliu em seco. - Só preciso de um gole de água. Agora, vá tratar dos homens, por favor.
Macro assentiu e afastou-se, para distribuir ordens à sua força mista de legionários e fuzileiros. Tal como os homens de Cato, estavam exaustos e ressequidos, e equipados
apenas com o essencial. Mas o descanso e a satisfação da sede teriam de esperar, resmungou o veterano, frustrado, enquanto convocava duas secções e dispunha sentinelas em
torno do trilho que deixava a aldeia, para o caso de Ajax decidir armar ainda mais confusão. Era pouco provável. O gladiador era demasiado astuto para isso. Era um tipo que
sabia muito bem em que circunstâncias devia travar uma batalha, considerou Macro. Só atacava quando possuía vantagem, e quando não a tinha, mantinha-se na defensiva. Contudo,
quando avançava para o combate, fazia-o com extrema ferocidade e desprezo pela vida. Não fosse a eterna mancha deixada pela forma bárbara como o tratara, Macro até poderia
ser capaz de admirar o inimigo. Noutra vida, Ajax poderia ter sido um excelente legionário.
- Uma pena que só tenha uma vida - murmurou para si mesmo. - E a essa serei eu quem vai pôr fim.
- Senhor? - Um dos homens olhou para ele, curioso.
- O que foi?
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- Senhor, não consegui ouvir a ordem.
Macro limpou a garganta seca.
- Eu disse para estares atento, se não quiseres que aqueles cabrões te cortem as goelas antes que dês por eles.
Virou-se e dirigiu-se de novo para o centro da aldeia.
Cato sentou-se à beira de uma vala, enquanto via os feridos a serem trazidos do dique. A maior parte deles tinha-se espetado nas estacas escondidas quando Rufo dera ordem
de atacar. Alguns tinham também sido atingidos por flechas, e Cato apercebeu-se de que a emboscada tinha custado aos romanos um preço elevado. O centurião Rufo aproximou-se
a coxear, com a mão a pressionar a perna. O sangue escorria-lhe por entre os dedos. Verificou que os seus homens estavam a receber os cuidados necessários, e dirigiu-se para
junto do prefeito, para apresentar o relatório.
Cato levantou-se e deu um passo para o lado, para permitir que Hamedes se agachasse e examinasse a ferida do centurião. O sacerdote pegou no cantil e lavou a ferida; depois
agarrou num pedaço de pano limpo que tirou da sacola.
- O que é que se passou? - quis saber Cato.
- Aqueles cabrões plantaram estacas bem aguçadas numa linha entre o dique e a aldeia - começou Rufo. - No meio da erva alta, não se viam. Só as descobrimos quando um dos nossos
pisou uma. O idiota não conseguiu manter a boca calada, e eu estava demasiado longe para perceber o que se tinha passado, por isso dei a ordem de ataque, enquanto ainda tínhamos
alguma hipótese de os conseguir surpreender. - Estremeceu. - Fomos mesmo de encontro à merda das estacas. Feri-me na perna quase logo a seguir. Quando os homens finalmente
conseguiram parar, praticamente todos já tinham sido feridos. E foi nessa altura que os arqueiros deles entraram em ação. - Rufo fez uma breve pausa e abanou a cabeça. - Não
pudemos fazer nada, senhor. Alguns dos homens tentaram sair do alcance das flechas, mas só conseguiram encontrar mais estacas. Disse aos rapazes para se agacharem e aguentarem
firmes, protegendo-se com os escudos o melhor possível. Calculei que a nossa melhor hipótese era esperar que o inimigo cessasse o ataque e depois tentarmos esgueirar-nos por
entre as estacas.
Cato fez uma careta, furioso consigo mesmo por ter subestimado Ajax. Rufo interpretou erradamente a expressão no rosto do seu superior.
- Senhor, lamento, mas não pude fazer mais nada. Juro-o.
- Eu sei. - Cato passou rapidamente a mão pelos caracóis ensopados em suor. - Quantas baixas tivemos?
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- Oito mortos, dezasseis feridos. Destes, três não passam desta noite. Oito homens conseguem andar. Mas os outros terão de ser transportados.
Cato contemplou as botas de forma a esconder o rosto. Tinha conduzido os seus homens a uma armadilha. Tinha-se deixado possuir pelo desejo de enfrentar o inimigo. Por sua
causa, pela sua imprudência, homens tinham morrido, e sentia-se envergonhado perante a vã perda de vidas.
- Muito bem - concluiu, enquanto se recompunha e levantava o olhar. - Vê se tratas dessa ferida na perna. Depois vasculha a aldeia para tentar encontrar comida e água. Os
homens que se alimentem e descansem. Assim que o dia nascer, retomaremos a perseguição.
- Sim, senhor. E quanto aos feridos? Não os podemos deixar aqui.
- Vou destacar alguns homens para nos seguirem com eles. O Hamedes talvez possa ajudar. Por agora é tudo, Rufo.
Era uma despedida brusca, e Cato apercebeu-se do ressentimento do centurião enquanto ele fazia a saudação formal e regressava a coxear para junto dos homens. Cato virou-se
para Hamedes.
- O Ajax chacinou os habitantes da aldeia. Há algum rito que tenhas de cumprir pelos mortos?
Hamedes olhou-o sem compreender.
- Senhor?
- És um sacerdote. Faz por eles o que for necessário. Depois de acabares de tratar os feridos.
- Sim, senhor. - Hamedes baixou a cabeça. - Oferecerei as preces exigidas. Não há tempo para cumprir todos os ritos funerários. Mas temos de cremar os falecidos.
- Pensava que o teu povo preferia um enterro.
Hamedes lançou um sorriso incerto antes de responder.
- Depende do tempo que houver disponível.
- Muito bem, pede ao Macro alguns homens para te ajudarem nessa tarefa.
Hamedes anuiu e voltou-se para seguir pelo mesmo caminho que Rufo tomara, dirigindo-se aos feridos que ainda jaziam pela rua.
Ao olhar para os legionários, Cato tentou imaginar quantos já teriam percebido que a culpa daquele desastre era dele. Quantos o culpariam, e quantos hesitariam em segui-lo
quando a próxima batalha se apresentasse?
Virou-se ao escutar passos e reparou na inconfundível e entroncada silhueta de Macro, que saía das trevas em redor.
- Senhor, as sentinelas estão nos seus postos. Lembrei-lhes a necessidade de muita atenção. Não queremos que alguém nos apanhe de surpresa. Os rapazes estão derreados, pelo
que haverá várias mudanças de turno durante a noite.
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Cato forçou-se a sorrir.
- Portanto, não terá grande descanso.
- Calculo que não. - Macro encolheu os ombros. - Nada a que não esteja habituado.
- E, se bem me lembro, também não dormiu nada a noite passada.
- É verdade, mas já aguentei pior. E muitas vezes. - Fez um gesto na direção de Cato. - Tal como o senhor.
- Não me parece que esta noite vá conseguir dormir muito, também.
- Será melhor que o faça - comentou Macro. - Sentir-me-ia muito melhor sabendo que amanhã, quando retomarmos a perseguição, a sua mente está fresca.
- Porquê? - quis saber Cato, com azedume na voz. - Para poder conduzir os homens a outra armadilha?
- O que é isso? - Macro franziu o sobrolho e pôs as mãos na cintura.
- Não me vai dizer que se culpa por isto?
Cato encarou-o, sem esconder as emoções.
- Macro, a culpa foi minha. Devia ter imaginado que o Ajax ia perceber que o íamos tentar flanquear... Fiz uma grandessíssima asneira. Estava demasiado focado na ideia de
acabar com ele, e ataquei sem pensar. - Abanou a cabeça ao recordar a escaramuça. - Ele estava à nossa espera. Já tinha tudo planeado.
- Bem, o que esperava? Ele não é parvo. - Macro olhou para o amigo e tentou oferecer-lhe uma réstea de conforto. - Ainda assim, se estivesse na sua posição, teria muito provavelmente
feito exatamente o mesmo.
- Duvido.
- Posso sentar-me?
- Claro.
Macro desapertou as correias por baixo do queixo e removeu o pesado capacete, com um suspiro de alívio. Deixou-se quase cair na borda da vala ao lado de Cato e inclinou-se
para a frente, descansando o grosso antebraço sobre os joelhos. Durante alguns momentos manteve-se em silêncio, e depois mordeu os lábios antes de começar a falar em tom de
surdina, de forma a que não fossem ouvidos.
- És capaz de escutar um pequeno conselho? De um amigo?
Cato encarou-o.
- Claro, de um amigo, sempre.
- Bom... Cato, olha, agora és um prefeito, porra. Não podes permitir-te ter pena de ti mesmo.
- Pena de mim mesmo? Não, não percebeu. Não é nada disso. É uma questão de erro de julgamento. Não liderei estes homens como eles merecem.
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- E então? Queres ser punido por isso?
- Bem o mereço - concordou Cato.
- Uma porra. Achas que és o primeiro oficial a meter água?
- Meter água não é propriamente o termo adequado. - Acenou com a mão na direção dos feridos e mortos. - Um banho de sangue, isso sim.
- Sangue derramado, o que mais há na vida de um soldado? - ripostou Macro. - Quando se entra em combate, há homens que são feridos e mortos. É assim que as coisas são.
- Mas se os homens tombam sem necessidade, o seu comandante deve ser responsabilizado por isso.
Macro encheu as bochechas, frustrado.
- Foda-se, Cato, já vi descalabros muito piores. E tu também. Às vezes um combate cai para o nosso lado, outras vezes não. O inimigo prevalece sobre qualquer um, por vezes,
mesmo sobre os melhores. Tens de aceitar isso.
- Concorda portanto que falhei perante os homens.
- Claro, fizeste asneira - respondeu Macro com toda a franqueza.
- Muito obrigado...
- Cato, respeito-te, e por isso te respondo com a verdade. Se não é isso que queres ouvir, avisa.
- Desculpe. Continue.
- Muito bem. - Macro ponderou as palavras. - A verdade é que és um excelente oficial. Tão bom como os melhores que conheci. Vi-te ascender de optio a centurião e agora a prefeito.
Estava capaz de apostar que não vais ficar por aqui. Tens o cérebro e os tomates para isso, e embora pareças pouco mais do que um palito, és rijo como um par de botas bem
calejadas. Mas falta-te qualquer coisa. - Macro fez uma careta enquanto tentava encontrar forma de clarificar a sua opinião. - Não é a experiência; disso já tens a suficiente,
sem qualquer dúvida. Não, é outra coisa... Perspetiva, talvez. Um sentido que um soldado desenvolve depois de servir tempo suficiente para ver chegar e partir alguns generais.
Talvez tenhas tido demasiado sucesso até aqui. Conseguiste promoções antes de teres desenvolvido o temperamento adequado ao posto que ocupas, se percebes o que quero dizer.
Tens de aprender a aceitar que cometer erros de vez em quando - falhar - faz parte do trabalho. E a forma como um soldado lida com o insucesso é tão importante como a forma
como lida com o triunfo. - Macro sorriu com saudade. - Lembras-te do centurião Bestia?
Cato assentiu, enquanto recordava o veterano repleto de cicatrizes que estava encarregue de treinar os recrutas no tempo em que ele se tinha juntado à Segunda Legião, havia
quase sete anos. Bestia falecera durante a invasão da Britânia, depois de sofrer uma ferida fatal numa emboscada.
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- Era um gajo rijo, e tinha servido em todos os cantos do Império. Quando fui promovido a centurião, tive uma longa sessão de copos com ele na messe. Emborcou valentemente
e, como é habitual nos soldados quando estão na companhia dos seus irmãos de armas, acabou a falar dos bons velhos tempos. Bom, se bem me lembro, a história mais impressionante
que ele me contou nessa altura foi a de uma campanha na Panónia que correu mesmo mal. Algumas das tribos da montanha resolveram que estavam fartas dos coletores de impostos
romanos, e portanto revoltaram-se. A Segunda foi enviada para sufocar a revolta. Mas o governador não tinha a mais pequena ideia de quantos eram os revoltosos, nem sabia nada
das condições nas montanhas durante o inverno. E assim o comandante da legião caiu numa emboscada, perdeu um quarto dos homens e viu-se forçado a recuar umas centenas de quilómetros
até à cidade fortificada mais próxima. A retirada levou-lhes uns vinte dias e custou-lhes quase metade dos homens. Mas, segundo o Bestia, foi quando o legado se mostrou mais
capaz. Conduziu os seus homens até um lugar seguro. E é esse o busílis, Cato. O verdadeiro teste a um comandante é a forma como lida com a adversidade.
- Macro olhou para o amigo e assentiu, reforçando a questão. - É a mais pura das verdades. Portanto, vê se te acalmas e recuperas, sim?
- Sim. Compreendido. - Cato forçou-se a sorrir fracamente. - E obrigado.
- Não foi nada. - Macro deu-lhe um soco amigável no ombro. - Prefiro mil vezes que sejas tu a comandar e a meter água, quando for o caso.
- Oh, fantástico...
Macro ergueu o cantil e sorveu avidamente a água, antes de o largar.
- Ahh! Assim é melhor. - Resolveu mudar de assunto, e deitou uma olhadela rápida à aldeia em ruínas. - E então, qual é a história por aqui? Onde é que param os habitantes?
- Mortos. - Cato apontou para o redil, ali perto. - O Ajax liquidou-os a todos.
- Porquê? Por que carga de água é que ele fez isso?
- Talvez se tenham recusado a auxiliá-lo. Ou então ele continua a tentar desestabilizar a província. Não faço ideia. - Cato recolheu uma pedra e rolou-a por entre os dedos
antes de a lançar para a escuridão. - Seja como for, estão mortos. Todos, sem faltar nenhum. E é por isso que temos de apanhar aquele grandessíssimo cabrão e acabar-lhe com
a saúde.
- Ora bem. É assim mesmo. Põe este dia para trás das costas, e concentra-te no que há a fazer amanhã.
Cato anuiu. Macro ergueu-se, sentindo os membros rígidos.
- Tenho de ir falar com o Rufo e com os optios para combinar os turnos das sentinelas. Senhor, será melhor ir descansar.
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- Vou tentar.
Macro deu uma estalada em si mesmo quando ouviu um zumbido agudo junto ao ouvido.
- Se consegues aguentar-te com estes sacaninhas, és um tipo bem mais capaz do que eu.
Abaixou-se para pegar no capacete e virou-se para se juntar aos outros centuriões, que estavam sentados, de costas apoiadas num muro. Cato olhou-o com amizade, levantou-se
e entrou no edifício mais próximo. Fez uma rápida busca nos compartimentos que menos tinham sofrido com o fogo, e encontrou um colchão enrolado a um canto. Levou-o para o
exterior, onde o cheiro a queimado era menos intenso, desenrolou-o e deitou-se de lado, tentando ignorar os insetos que pululavam no ar noturno. Durante algum tempo não conseguiu
afastar os pensamentos de Ajax, e daquele instante em que a sua própria morte lhe parecera inevitável. Por fim, a tremenda fadiga provocada pela caminhada pelo mangal e pântano
tomou conta do seu ser e conduziu-o a um sono profundo.
Cato despertou pouco antes da alvorada, e de imediato se sentiu culpado por ter passado tantas horas a dormir enquanto Macro se tivera de preocupar com a rotação das sentinelas.
Os meses passados a bordo tinham-no deixado em lamentável condição para marchas difíceis, e as pernas doíam-lhe horrivelmente. Pôs-se de pé com um grunhido de dor e coçou
as costas enquanto sentia as articulações a estalar.
- Merda - resmungou, antes de esfregar os olhos e olhar à volta. Alguns dos homens já se remexiam, e um punhado já se ocupava mesmo a construir liteiras para transportar os
feridos, com madeira que tinham recuperado nas ruínas. O ar estava agradavelmente fresco, e em torno da aldeia, nas áreas mais baixas, pairava uma fina neblina. Ao vê-la,
todavia, Cato ficou imediatamente nervoso. Mais uma cobertura para as ações de Ajax, o que queria dizer que os seus homens não estariam em segurança até que o calor matinal
fizesse dissipar a névoa. Cato dirigiu-se para junto dos feridos e localizou o centurião Rufo. Este acenou-lhe, apontando para a perna ligada.
- Como te sentes?
- Dói. Mas não o suficiente para me impedir de me reunir à coluna.
- Não; preciso que te encarregues dos feridos - indicou Cato com firmeza. - Preciso de alguém em quem confie para os conduzir até um local seguro.
Um breve assombro de desapontamento passou pela face do centurião, mas este acabou por assentir.
- Como desejar, senhor.
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- Assim que os feridos estiverem a salvo, podes voltar a juntar-te a nós. - Cato olhou em volta. - Onde anda o Macro?
- Foi já há um bocado verificar a linha das sentinelas, senhor.
Cato agradeceu e seguiu pela rua fora, até à extremidade da aldeia. Ao passar pelo redil notou que este tinha ardido de alto a baixo durante a noite, e que no seu interior
só restava uma grande pilha de restos calcinados. O ar em redor ainda estava quente e pleno do odor adocicado da carne queimada. Acelerou o passo e deixou a aldeia. A pouca
distância ao longo do caminho, avistou um par de homens a vigiar as redondezas. Ao escutar o som das suas botas, um deles virou-se para o interpelar.
- Quem vem lá?
- O prefeito Cato. Onde está o centurião Macro?
- A passar em revista o perímetro de segurança, senhor. Foi para a direita, deve estar de volta a qualquer momento.
- Algum sinal do inimigo durante o teu turno?
- Não, senhor. Nada. Isto tem estado tão calmo como um túmulo.
Cato contemplou a forma como a neblina disfarçava a silhueta das palmeiras que cresciam ali perto, à borda do caminho. As ramagens curvas e longas das árvores faziam-nas parecer
gigantes, debruçadas sobre qualquer coisa para a qual esticavam os braços. Nos ouvidos surgiu-lhe o som de botas a calcarem as ervas na borda do caminho, e Macro emergiu do
manto branco.
- Bom-dia, senhor. Descansou?
- Sim, obrigado. Alguma coisa a relatar?
Macro abanou a cabeça.
- Nada. Os renegados nem se atreveram a meter a cabeça de fora. Ou eles se conseguem manter silenciosos como espectros, ou resolveram colocar alguma distância entre nós antes
de pararem para passar a noite. Dei ordens aos optios para despertarem os homens assim que começasse a clarear. Está quase.
- Muito bem.
- Ah, outra coisa, o Hamedes levou uma jarra cheia de cinzas até lá abaixo ao dique. Ao que parece, tinha de as lançar numa vala de irrigação, de forma a que possam um dia
alcançar o Nilo. Disse que tinha a sua permissão.
- É verdade, desde que não fosse para muito longe, dado que os homens do Ajax andam por aí.
- Ele disse que tomaria todas as precauções, senhor.
- O funeral é dele - retorquiu Cato, antes de abanar a cabeça. - Não era bem isso que eu queria dizer.
Macro soltou uma gargalhada antes de responder.
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- Não é preciso preocupar-se com ele. Ontem de manhã não virou a cara à luta, e manteve-se a par connosco na travessia do pântano. Para um padreco, não está nada mal. Nada
que se pareça com aqueles mandriões lá de Roma, ou com os que oficiam nas legiões. Não, o Hamedes é cá dos meus. Ainda o hei de transformar num soldado.
- Não sei se será isso que ele tem em mente.
- Está enganado, senhor. Depois do que o Ajax fez ao templo, o miúdo não terá descanso enquanto não conseguir vingar-se.
- Vingança? - Cato suspirou. - Parece que é a única coisa que a todos motiva. Ao Hamedes, ao Ajax, a mim e a si.
Os olhos de Macro semicerraram-se.
- Se está a pensar que lá no fundo somos todos iguais, deixe-me dizer-lhe que está enganado. Completamente enganado. Executámos o pai do Ajax porque não passava de um filho
da puta de um pirata sanguinário. Que foi aliás exatamente a mesma razão pela qual o Ajax foi condenado à escravidão. E digo-lhe mais, aquele cabrão merece tudo o que está
para lhe acontecer, e mais ainda. A única questão é saber qual de nós é que vai ter ocasião de lhe acabar com a raça. Eu, o senhor, ou até o Hamedes.
Ouviu-se um tossicar, e os dois viraram-se ao mesmo tempo. Era Hamedes que os observava a curta distância. Cato não sabia o que tinha o sacerdote escutado, e limpou a garganta,
encavacado.
- Já concluíste os teus ritos, então?
- Sim, fiz o que era possível nestas circunstâncias. Rogo aos deuses que lhes permitam a entrada na outra vida.
- Hummm, sim, bom, estou certo de que procedeste da melhor forma. - Cato ergueu o olhar e notou que a neblina começava a apresentar laivos acinzentados. - Daqui a pouco vai
nascer o dia. Será melhor prepararmos os homens para a marcha.
A coluna prosseguiu pelo trilho à luz pálida da alvorada. Cato e Macro adiantaram-se para abrir caminho com Hamedes e duas secções de legionários. Ainda assim, mantiveram-se
em contacto com a vanguarda da coluna principal, para o caso de toda a força ser necessária numa emergência. O centurião Rufo fechava a procissão, com os feridos e uma escolta
de fuzileiros.
Tinha-se levantado uma ligeira brisa, que fazia murmurar as ramagens das palmeiras que cresciam em maciços ao longo do caminho. Daí a pouco o mangal deu lugar a faixas de
caniçais de ambos os lados, mas não havia sinal de que Ajax e os seus seguidores tivessem abandonado o trilho, e Cato mandou a coluna prosseguir, sempre atento a qualquer
sinal de perigo. Quando o Sol nasceu e começou a subir no céu ainda acinzentado, o nevoeiro
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começou a desaparecer, e cerca de uma hora depois os caniçais deram lugar a áreas abertas ocupadas por searas de trigo, que eram irrigadas por valas. À distância adivinhava-se
o brilho de um vasto lençol de água.
- É um dos braços do Nilo - explicou Hamedes. - Daqui a pouco devemos chegar a uma povoação na margem.
- Como aquela, além? - Macro apontou, e Hamedes e Cato avistaram uma coluna de fumo a subir para o céu. O centurião franziu o sobrolho. - Aquilo não é fumo de alguém a cozinhar.
É um incêndio.
Cato sentiu o coração pesado ao adivinhar mais uma aldeia destruída por Ajax e os seus homens.
- Vamos, temos de acelerar - ordenou, e o grupo avançado estugou o passo; o trilho mudava de direção por entre a erva alta e as tamareiras, seguindo a direito para onde se
via a nuvem de fumo. Ao passarem junto a novas searas, avistaram os telhados de casas, mas também ouviram o crepitar das chamas seguido de gritos e apelos; Cato sentiu as
entranhas retorcerem-se de ódio pelo gladiador. Ao aproximarem-se da entrada da aldeia, o caminho alargou, permitindo a passagem de carroças; era outro conjunto de casas de
adobe, algumas com muros adjacentes para guardar burros, cabras, gado e galinhas. Na viela estreita que serpenteava pela aldeia via-se um grupo de pessoas que, assim que detetaram
a aproximação dos romanos pelo som das pesadas botas, se apressaram a refugiar-se nas casas.
- Bom sítio para outra emboscada - comentou Macro ao notar a estreita via em que desembocavam algumas ruelas laterais.
- Se o Ajax ainda aqui estivesse, aquela gente não estaria de certeza - realçou Cato.
O caminho desembocou num espaço aberto onde se viam algumas bancas de mercado. Por trás havia uma faixa de terra nua que descia para o rio. Os restos de alguns barcos de papiro
fumegavam ainda na margem, e um magote de locais observava a cena, lamentando e chorando. Cato levou os seus homens para o cimo da margem e deteve-os, seguindo apenas com
Macro e Hamedes até junto dos aldeãos. O grupo abriu-se à sua aproximação, e Cato avistou vários corpos no solo, em poças de sangue que ainda jorrava das feridas que os retalhavam.
Havia mulheres de joelhos, debruçadas sobre os homens e a chorar convulsivamente.
- Cheira-me a obra do Ajax - comentou Macro.
- Hamedes - chamou Cato, enquanto apontava a turba. - Pergunta-lhes o que se passou.
O sacerdote aproximou-se dos aldeãos, de mãos abertas, e trocou com eles algumas palavras antes de se voltar para Cato.
- Os habitantes dizem que logo pela manhã surgiu uma coluna de
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homens armados que tomou os barcos que quis e queimou os outros. Estes homens tentaram detê-los, e foram mortos.
- Só pode ter sido o Ajax - decidiu Cato. - Pergunta-lhes para que lado é que eles seguiram.
Hamedes voltou-se e conversou de novo, antes de apontar rio acima.
- Por ali, senhor. Ainda se conseguem avistar.
Cato virou-se rapidamente para perscrutar o rio. Aquele braço do Nilo serpenteava calmamente para sul; e ao longe, talvez a uns três quilómetros, conseguia avistar um punhado
de pequenos barcos de pesca na superfície da água, prestes a desaparecer de vista por causa de uma curva do rio.
- Pergunta-lhes se há por aqui outros barcos.
- Nenhum - traduziu Hamedes.
- E há alguma outra aldeia por perto?
- Há uma, a meio dia de marcha, a jusante.
- Na direção errada - resmungou Macro. - O filho de uma cabra escapou-se-nos outra vez.
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A situação está longe de ser satisfatória, não te parece, prefeito? - O governador Petrónio tamborilou um dedo sobre o relatório que tinha exigido a Cato assim que a reduzida
coluna regressara a Alexandria. Apesar de Cato ter rapidamente conseguido embarcações para encetar a perseguição a Ajax pelo delta acima, a verdade é que lhe tinha perdido
o rasto. Tinham parado em todas as povoações para interrogar os habitantes, e tinham mesmo descoberto várias embarcações de papiro abandonadas, cerca de sessenta e cinco quilómetros
a norte de Mênfis, mas esse fora o último indício que tinham recolhido acerca da direção que Ajax e o seu bando tinham tomado. Cato prosseguira até Mênfis, onde os habitantes
estavam apavorados pelo avanço núbio mais a montante do rio. Na cidade, o prefeito requisitara um dos veleiros largos e de fundo chato que percorriam o grande rio e regressara
a Alexandria para prestar contas ao governador.
Agora ali estava, de pé à frente da secretária onde Petrónio se sentava, a ponderar a melhor forma de ripostar àquela pergunta nada mais que retórica.
- Senhor, o facto é que descobrimos a base de onde Ajax operava e conseguimos neutralizá-la. Tomámos-lhe os navios e liquidámos mais de duzentos dos seus homens. Está reduzido
a cerca de quarenta ou cinquenta seguidores. Considero porém que ele ainda constitui de facto uma ameaça considerável para o Império. Portanto, continuarei a persegui-lo,
mas necessito de um documento que confirme a sua autoridade, de forma a assegurar a cooperação dos oficiais provinciais ao longo do Nilo. Além disso, preciso de homens para
concluir esta tarefa. Uma coorte montada será suficiente.
Petrónio soltou uma gargalhada amarga.
- Uma coorte montada, dizes tu? Um pedido modesto, deves estar a pensar. Mas diz-me cá, depois de teres perdido uma das minhas galeras e toda a sua tripulação, além de trinta
dos meus legionários, o que é que te leva a pensar que te vou confiar mais homens? Então?
- Senhor, não se pode dar ao luxo de não aceder ao meu pedido.
- Olha, eu acho que sim. Sobretudo quando as minhas forças já estão
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tão sobrecarregadas. Os núbios já avançaram até à primeira catarata. Aquele cretino do legado Cândido enviou três coortes auxiliares para intercetar a vanguarda núbia. Foram
esmagados. Ao que oiço, só cerca de metade dos homens conseguiu escapar.
- Foi o que soube em Mênfis, senhor.
- Nesse caso, compreenderás a minha reticência em emprestar-te mais tropas. Caçar esse gladiador já não é propriamente uma prioridade. Tenho é de concentrar as minhas forças
e avançar contra os núbios, e expulsá-los da província.
- Senhor, compreendo, mas se não destruirmos Ajax, pode estar certo de que ele prosseguirá a sua guerra privada contra Roma. Quase já custou ao Imperador a província de Creta,
para lá das perturbações no comércio marítimo do Mediterrâneo Oriental. Não lhe pode ser permitido que continue a prejudicar o Império.
- Não lho será, depois de os núbios serem repelidos. Nessa altura, e só então, pensarei na possibilidade de te conceder mais recursos para perseguir esse criminoso. Entendido?
- Sim, senhor. Limito-me a discordar.
- Ora aí está um privilégio que um mero subordinado não pode exercer, prefeito - disparou Petrónio. - Aqui no Egito sou eu o poder supremo. Ajo em nome do Imperador, e enquanto
estiveres nesta minha província, farás o que eu te indicar. Assunto encerrado. - Fez uma pausa e lançou um sorriso gelado. - Ou melhor, não de todo.
Cato aguardou, imóvel e em silêncio, à espera que o governador prosseguisse.
Petrónio levantou-se e atravessou o gabinete até à parede oposta, onde fora pintado um comprido mapa do Nilo, do delta até ao Sul do Egito. Para lá da linha que marcava a
fronteira, havia poucos detalhes inscritos. Bateu com a mão na parede.
- O Cândido está a concentrar as suas forças em Diospolis Magna. Além da Vigésima Segunda Legião, tem duas coortes de infantaria auxiliar e duas coortes de cavalaria. É tudo
o que lhe posso dispensar. Andei a recolher homens por todo o lado para reforçar o exército. Mas agora, ao que parece, o Cândido está com falta de oficiais. O tribuno mais
antigo estava no comando da força auxiliar derrotada pelos núbios. Foi morto no confronto. Além disso, o Cândido também está com falta de centuriões. Muitos deles estavam
destacados em postos fronteiriços, onde agiam como magistrados. Quando os núbios atravessaram a fronteira, trataram-lhes da saúde. - Petrónio virou-se para encarar Cato. -
Portanto, a minha decisão é de que tu e o centurião Macro serão destacados para a Vigésima Segunda Legião durante a corrente emergência.
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Cato tinha-se apercebido das intenções do governador, e já tinha preparado a resposta.
- Senhor, perdão, mas recebi ordens diretas do governador Semprónio. Devo perseguir e eliminar o escravo Ajax e os seus seguidores. Até que essa tarefa esteja concluída, não
tenho permissão para seguir quaisquer outras ordens.
A expressão de Petrónio endureceu.
- Como te atreves a dirigires-te a mim dessa forma altaneira, pequenote convencido? Quem pensas tu que és? Nada mais do que um oficial merdoso que foi promovido muito para
além das suas capacidades. Não tens nas veias uma única gota de sangue nobre. Não tens família nem relações em Roma, nada que valha um sestércio furado. Não passas da mascote
do Semprónio. Seria bom que te lembrasses disso.
- Senhor, neste momento sou prefeito interino.
- Oh sim, tens essa patente, por agora, mas o teu protetor não te vai safar de fazeres alguma asneira das grossas um dia destes. E nessa altura vais outra vez parar a um lugar
mais apropriado à tua falta de anos e de experiência.
- Pode ser que sim, mas por agora estou sob as ordens do senador Semprónio.
- Prefeito, mais uma vez esqueces a quem deves de facto obediência.
- Petrónio sorriu. - No Egito, ajo em nome do Imperador. Não há por cá mais alta autoridade. Se te dou uma ordem, é como se a recebesses diretamente de Cláudio. Não é verdade?
Cato cerrou os lábios. O governador tinha razão. Até Cato regressar a Roma, Petrónio tinha a autoridade de fazer o que bem lhe apetecesse. Podia perfeitamente sobrepor-se
às ordens de Semprónio, se tal lhe aprouvesse, e Cato nada podia fazer.
- Sim, senhor. É como diz.
Petrónio assentiu, satisfeito.
- Está portanto decidido. Tu e o centurião Macro partirão imediatamente para Diospolis Magna. O meu chefe do pessoal já preparou as vossas credenciais. Podes levá-las ao sair.
Alguma questão?
- Sim, senhor. Posso partir do princípio de que, quando a campanha contra os núbios estiver concluída, terei a sua autorização para retomar a perseguição a Ajax?
- Como queiras. - Petrónio encolheu os ombros. - Suspeito porém de que se vão passar uns meses largos até conseguirmos tratar dos núbios. O gladiador já terá deixado a província
por essa altura, a não ser que seja um perfeito idiota. Se ainda por cá estiver, terei por certo em consideração qualquer pedido que me faças. Para já, prefeito, estás dispensado.
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- Então, que tal correu? - perguntou Macro enquanto empurrava uma taça sobre a mesa, na direção de Cato, e a enchia de vinho. Tinha ficado à espera numa taberna mesmo ao pé
dos portões do palácio, na Via Canópica, a avenida com cerca de uns sessenta metros de largura que rasgava o coração da urbe. Lá fora, sob o Sol do meio-dia, dezenas de milhar
de alexandrinos tratavam dos seus assuntos ou conversavam com amigos, lutando por se fazer ouvir acima do clamor dos vendilhões e dos gritos dos mercadores que anunciavam
os seus produtos aos passantes. Cato abrira caminho entre eles, ignorando todas as solicitações para apreciar as recordações baratas e as supostas antiguidades que vendiam.
Os comerciantes perseguiram-no com promessas, só tinha de olhar e não mais seria importunado. Promessas que valiam tanto como a mercadoria que tentavam impingir, e só quando
Cato, de má catadura, os avisou que era realmente melhor deixarem-no em paz, é que eles procuraram nova vítima.
O jovem deixou-se cair num banco do outro lado da mesa relativamente a Macro e Hamedes, e esvaziou a taça de um trago. Deitou uma olhadela ao sacerdote.
- Não devias estar à procura de uma vaga nalgum templo?
Hamedes fungou, mostrando desdém pela sugestão.
- Aqui, em Alexandria?
- Porque não?- Cato fez um gesto indicando a Via Canópica. - Não me parece haver falta de templos nesta cidade.
- Os templos locais são dirigidos por parasitas gregos. Chupam dinheiro aos crédulos só para encher as próprias bolsas. Eu sou sacerdote de um verdadeiro templo egípcio. Não
vou manchar a minha consagração aos deuses ocupando um posto num templo de Alexandria. - Hamedes serviu-se de vinho. - Além disso, um posto de sacerdote em Alexandria, como
disse, representa um belo pecúlio, e não me parece que haja vagas. - Encolheu os ombros.
- Um padre é um padre, e nunca passará disso - resmungou Macro em voz baixa, enquanto pegava na asa do jarro de vinho e puxava o recipiente de volta para o seu lado da mesa.
- Bom, afinal, como é que correu a coisa com o governador?
- Digamos apenas que ele não ficou propriamente entusiasmado com a notícia de que o Ajax se escapuliu.
- E portanto vai ceder-nos os homens de que precisamos para continuar a perseguir esse cabrão?
- Ceder-nos homens? - Cato soltou uma gargalhada seca. - Nem pensar. Pelo contrário, nós os dois é que nos vamos juntar às forças que combatem os núbios. - Cato tirou de dentro
da túnica o rolo com as ordens
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que recebera e lançou-o sobre a mesa, na direção de Macro. - Leia, se quiser.
Macro empurrou o papiro para longe, quase com delicadeza.
- Mas o que pensa o Petrónio que está a fazer? Ele sabe muito bem o perigo que o Ajax representa.
- Aparentemente trata-se de uma questão de prioridades.
- Prioridades? - Macro franziu o sobrolho. - E desde quando é que a captura do líder de uma rebelião de escravos deixou de ser prioritária?
- Ah, boa pergunta... Para a qual não tenho resposta. - Cato deu um estalo com a língua. - Foi precisamente o que eu disse ao governador. Mas ele foi inflexível, e insistiu
que primeiro é preciso tratar dos núbios. Provavelmente até tem razão - admitiu. - Portanto, estamos de volta ao exército. O que, bem vistas as coisas, até pode acabar por
servir o nosso propósito. - Cato debruçou-se para a frente e apoiou os cotovelos na mesa.
- A última notícia que tivemos do Ajax é que ele estava a subir o Nilo. Está em fuga. Não lhe restam muitos homens. A questão é, o que faria se estivesse no lugar dele?
Macro coçou o pescoço.
- Tentaria encontrar uma base segura, de onde pudesse lançar operações. Procuraria novos aliados... - Olhou para Cato e arqueou uma sobrancelha. - Os núbios?
- Foi o que eu pensei.
Macro não estava tão convencido como o amigo.
- É uma possibilidade, mas nada de seguro. Porque faria ele isso? Porque não limitar-se a sair da província por uma rota pouco frequentada e procurar um canto escondido do
Império onde possa causar mais problemas?
- Porque os núbios lhe dão a melhor hipótese de continuar a prejudicar Roma.
- E porque hão de os núbios de o acolher?
- Não o faria? Já viu do que são capazes Ajax e os seus homens. Dariam um certo jeito a qualquer exército.
- Pode ser que sim - retorquiu Macro, perdido nos seus pensamentos. - Embora me pareça que ao Ajax não agradará particularmente receber ordens, em vez de ser ele a dá-las.
Cato, acredita, tive ocasião de o observar durante um bom bocado de tempo. Está decidido a não ter outro senhor que não ele mesmo.
- Todos temos de engolir o orgulho, por vezes. - Cato recostou-se.
- Posso estar enganado. Pode ser que a esta hora ele já esteja a sair da província. Mas duvido. Ele não fará isso enquanto souber que nós estamos
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aqui. - De repente, surgiu-lhe uma ideia nova. - Aliás, não ficaria nada espantado se ele antecipasse a ideia de que nós acabaríamos por nos juntar ao exército enviado para
combater os núbios. E portanto, aí estaria mais uma razão para ele se juntar a eles.
- Odiar-nos-á assim tanto?
Cato recordou a raiva insana que Ajax ostentara na face, na noite em que se tinham enfrentado pessoalmente na aldeia, e um arrepio de um frio familiar percorreu-lhe a espinha
de alto a baixo.
- Sim. Oh sim, odeia-nos. Tenho a certeza absoluta. E é essa a única vantagem que possuímos neste momento.
Hamedes pigarreou.
- Senhor, posso então saber quando tenciona partir para o Alto Nilo?
- Amanhã. Há um comboio militar a ser carregado no cais do lago Mareotis. Foram-nos atribuídos lugares numa das barcas. Partimos de madrugada.
- Tão cedo? - Macro pensou um momento e acabou por encolher os ombros. - Bem, realmente, porque não? Se o Ajax está à nossa espera por essas bandas, quanto mais cedo lhe tratarmos
da saúde, melhor. - Virou-se para Hamedes. - Ao que parece, vamos então separar-nos. À tua, portanto. - Ergueu a taça. - Para monhé não estás nada mal.
Hamedes olhou para Cato.
- Senhor, devo considerar isto como um cumprimento?
- Vindo dele? Podes apostar. - Cato ergueu por sua vez a taça. - Obrigado pelo auxílio que nos prestaste.
Hamedes parecia algo perturbado.
- Senhor, a verdade é que gostaria de tentar encontrar colocação num dos templos mais antigos, que mantêm a velha fé. Não quero ficar aqui no meio destes charlatães. Quero
voltar ao Alto Nilo, onde cresci. - Os olhos do homem rebrilhavam. - E ainda vos será necessário alguém que fale a língua local para encontrar o gladiador e os seus seguidores.
Ainda vos posso prestar bons serviços por algum tempo, antes de reentrar no sacerdócio. E como sabem, tenho tão boas razões para o encontrar como vocês. O sangue dos meus
irmãos sacerdotes clama por justiça.
- Sim. - Cato notou a intensidade do olhar de Hamedes e percebeu a força dos sentimentos que lhe enchiam o coração e o pensamento, e que alimentavam o desejo de vingança.
Assentiu. - Muito bem, podes vir connosco. Vou alistar-te como batedor. Ao menos receberás alguma coisa pelos teus esforços.
O sacerdote sorriu.
- Senhor, fico em dívida para consigo.
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As barcas do Nilo estavam pesadamente carregadas com abastecimentos para a campanha militar que se aproximava: cestas de flechas, os projéteis pesados para as balistas, lâminas
de espada acabadinhas de forjar, peças para bossas e orlas de escudos, pregos e botas. Havia inúmeros legionários e oficiais que tinham estado de licença ou destacados noutros
postos e que agora regressavam às suas unidades, acompanhados por alguns recrutas frescos. Cato, Macro e Hamedes, carregados com os seus apetrechos, recuperados da esquadra
de Alexandria, subiram a bordo de uma das últimas embarcações a zarpar, onde foram convidados a arrumarem-se no pequeno castelo da proa, de forma a não atrapalharem a manobra
enquanto a tripulação afastava o navio do cais e içava uma vela triangular de grandes dimensões. O porão estava repleto, e no convés empilhavam-se sacas de cereais e ânforas
de azeite e vinho.
- É difícil de acreditar que esta banheira flutua - considerou Macro enquanto pousava o equipamento e se instalava com o máximo conforto possível debaixo do toldo que cobria
aquela área do navio.
Cato assentiu. Não havia mais de uns trinta centímetros entre a superfície da água e o convés, e tentou imaginar o que aconteceria se a barca fosse atingida por um golpe de
vento brusco. Com toda aquela carga a bordo, o mais provável era que se afundasse como uma pedra, e o jovem tinha muito pouca vontade de experimentar as águas do Nilo. Não
era tanto a perspetiva de ter de nadar até à margem, por muito que isso lhe desagradasse; o problema tinha mais a ver com os crocodilos que estariam muito provavelmente escondidos
entre os papiros, à espera para abocanhar qualquer presa desprevenida.
- Não se preocupe, centurião. - Hamedes sorriu. - As águas do Nilo são calmas, e o vento é constante. Não há motivo para alarme. Além disso, trouxe uma oferenda para os deuses
do Nilo, um jarro de azeite. - Deu uma palmada na sacola. - Eles proteger-nos-ão.
- Preocupado, eu? Foda-se, nem por sombras - resmungou Macro.
- Limito-me a notar que esta casca de noz me parece sobrecarregada.
Hamedes assentiu com ar de quem percebia perfeitamente, e esticou-se sobre as tábuas do convés, apoiando a cabeça cuidadosamente na sacola que trouxera para bordo, e preparando-se
para passar pelas brasas. Os dois romanos ficaram a ver a paisagem de Alexandria a recortar-se no céu e a diminuir de tamanho enquanto partilhavam um odre de vinho que Macro
tinha adquirido num dos mercados da Via Canópica. Por fim, Macro tossicou e virou-se para o amigo.
- Achas mesmo que o Ajax está lá para baixo com os núbios?
- Quanto mais penso nisso, mais certo fico - retorquiu Cato. - É lá que tem as melhores condições para prosseguir a sua guerra contra Roma.
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- E nós?
- Porque não? Temos toda a possibilidade de matar dois coelhos com uma só cajadada. Onde haveríamos nós de estar quando o governador requisita todos os soldados que consegue
reunir para repelir esta invasão?
- Bem, tu podes até nem te importar, mas a mim não me agrada particularmente fazer parte da maralha reunida à pressa. - Macro lançou um sorriso. - Mas percebo-te. E se tiveres
razão, encontrar o Ajax pode tornar-se uma tarefa bem mais fácil. Mas pronto, o dever antes de tudo, não é? Derrotemos os núbios, e depois logo tratamos do Ajax.
- Derrotar os núbios é que pode ser um bocado mais complicado do que está a pensar.
- E porquê?
- Troquei algumas impressões com um dos oficiais do estado-maior do Petrónio antes de deixar o palácio. Queria informações sobre as tropas à disposição do Cândido. As duas
coortes de infantaria parecem-me boas unidades, embora a cavalaria não tenha o efetivo recomendável. O que me preocupa mesmo, porém, é a Vigésima Segunda.
- São legionários. Serão capazes de aguentar tudo o que os núbios enviarem contra eles.
- Espero bem que sim. - Cato esfregou o queixo e desejou ardentemente ter tido a oportunidade de se barbear em Alexandria, antes de embarcar. - O facto é que a Vigésima Segunda
tem um percurso um tanto estranho.
- Oh? Então qual é a história?
- A legião foi criada por Marco António. As fileiras foram preenchidas com homens vindos do exército de Cleópatra. Quando Octávio derrotou António, a Vigésima Segunda foi
incorporada no exército e desde então tem estado estacionada no Nilo. É formada por uma mistura de gregos e egípcios das cidades ao longo do rio.
- E achas que isso faz deles uns moles?
- É possível. Desde a guerra civil que não participam em nenhuma campanha de relevo. Para a maior parte deles, será a primeira vez que entram em ação. Só espero que tenham
recebido o treino necessário para fazerem o seu trabalho em condições.
Macro abanou a cabeça.
- Cato, mesmo que a qualidade dos homens seja suspeita, ainda assim são comandados por centuriões, e os centuriões, meu amigo, são o mesmo em todo o lado. Tipos rijos e exigentes,
como eles não há outros.
- Nem todos. Já demos com bastantes oficiais de má qualidade ao longo das nossas aventuras.
- Ora, umas maçãs podres aqui e além. Nada mais - ripostou Macro,
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tenso, e pouco disposto a aceitar uma depreciação geral da irmandade de que se sentia, com toda a honra, parte integrante. - O centurionato tem uma ilustre tradição. Há sempre
exceções, claro.
- Esperemos então não encontrar muitas delas na Vigésima Segunda.
- Preciso de descansar um bocado - anunciou Macro de súbito. Tirou a armadura de dentro da mochila e amontoou túnicas, capa e botas, de forma a conseguir uma espécie de almofada
onde pousou a cabeça, virando as costas ao amigo. Cato sorriu perante a suscetibilidade assim revelada pelo veterano, antes de se apoiar num cotovelo enquanto a barcaça seguia
pelo canal que ligava o lago ao Nilo. Ambas as margens eram ocupadas por maciços de canaviais, aqui e ali interrompidos por grupos de palmeiras, que rodeavam pequenos aglomerados
de cabanas de adobe. As mulheres ocupavam-se, aproveitando a temperatura mais amena da manhã para lavar roupas nas águas plácidas, enquanto as crianças se divertiam em zonas
mais profundas, chapinhando e salpicando-se umas às outras, gritando de alegria de forma bem audível. À medida que os navios passavam, paravam a brincadeira e ficavam a acenar,
e Cato sorriu enquanto dizia adeus em resposta.
Tinha-se habituado tão rapidamente às exigências e à tensão permanente de uma posição de comando que tinha esquecido alguns dos prazeres mais simples da vida, concluiu para
si mesmo com tristeza. A sua própria infância parecia-lhe, naquele momento, um instante fugidio que desaparecera demasiado depressa. Afastou tais pensamentos, irritado por
se ter permitido um momento de indolência, que ainda por cima só lhe trouxera amargura. Apercebeu-se de que teria, nos dias que se aproximavam, tempo de sobra para refletir,
e decidiu que focaria os seus pensamentos em temas mais úteis e agradáveis, como por exemplo no futuro que planeava partilhar com Júlia, depois de regressar a Roma. E assim
passou o resto da manhã, contemplando o lento deslizar da paisagem do Egito, à medida que o comboio naval subia o rio e se aproximava de Diospolis Magna. De vez em quando
Macro e Hamedes remexiam-se e trocavam breves palavras, antes de voltarem a cerrar os olhos. À tarde, a coluna deixou o canal e entrou no rio. O sol batia com força nas barcaças,
e uma brisa constante e quente varria o convés, como que vinda de uma fornalha nas proximidades.
Ao entardecer, os navios aproaram à margem e acostaram numa zona relvada. Foram acendidas fogueiras e distribuídas rações, e os insetos começaram a formar enxames que volteavam
em nuvens ruidosas de pontos negros contra a luminosidade das chamas. Depois de ter esgotado a sua ração de vinho, Hamedes anunciou que ia dormir no meio dos marinheiros.
- Como queiras - ripostou Macro. - Por mim, não me apetece nada deitar-me aqui e deixar-me picar até à morte.
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Macro chamou alguns legionários e deu ordens para que fosse erigida a tenda que partilharia com Cato.
- E isso depressa, rapazes! - incitou Macro, enquanto enxotava mosquitos. - Antes que estes sacaninhas me chupem o sangue todo.
Assim que a tenda ficou pronta, Macro saltou para o interior e depositou a sua enxerga no solo. Cato juntou-se-lhe, depois de mais uma olhadela às estrelas que brilhavam de
forma intensa no firmamento. A luz das fogueiras iluminava as finas paredes da tenda, e de vez em quando a sombra passageira de um dos homens percorria o pano, fazendo lembrar
os perfis das pinturas que tinha visto nos templos típicos daquela província, decidiu Cato. Não havia qualquer corrente de ar, e estava muito quente dentro da tenda. Cato
removeu a túnica e deixou-se ficar só de tanga, banhado no próprio suor. Do outro lado da tenda, Macro tinha adormecido rapidamente, apesar de ter passado a maior parte do
dia a descansar, e os seus sonoros roncos rivalizavam com o burburinho dos homens a conversar e a rir junto às fogueiras. Cato sorriu e cerrou os olhos. Podia-se bem dar ao
luxo de aproveitar da melhor forma possível aquele pequeno interlúdio nas suas atribulações.
Acordou de sopetão, sem se mexer, de olhos muito abertos e fixos no teto da tenda. Não tinha a certeza do motivo que lhe interrompera o sono, e preparava-se para se mexer
quando escutou um leve ruído de movimento no exterior da tenda. O som desvaneceu-se, e ele soltou um suspiro e virou-se para o lado, antes de fechar de novo os olhos. De imediato
voltou o ruído, baixo mas prolongado, como se alguém soltasse o ar que prendera nos pulmões durante algum tempo. Os olhos de Cato voltaram a abrir-se, e o jovem apercebeu-se
de que não estava sozinho com Macro na tenda. Rolou lentamente sobre si mesmo até poder elevar ligeiramente a cabeça e espreitar em redor. As fogueiras ardiam ainda e enchiam
a tenda com uma luz mortiça e rósea. A curta distância, aos pés da enxerga onde repousava Macro, uma silhueta esguia ergueu-se do solo e baloiçou lentamente.
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O Alto Nilo
NA REGIÃO DE DIOSPOLIS MAGNA
D [OS POLIS Magna (Tebas)
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Cato sentiu o sangue a gelar-lhe nas veias. Sentou-se e escutou de novo o mesmo som enquanto avistava a bizarra forma esguia a movimentar-se estranhamente entre as duas enxergas.
- Oh, merda - sussurrou. Manteve-se o mais imóvel possível, com os olhos pregados na evolução da cobra. Por trás do animal avistava o poste que suportava a tenda, onde estavam
penduradas a sua espada e a de Macro. O ritmo cardíaco do jovem acelerou fortemente enquanto ele pensava a toda a velocidade. Se voltasse a mexer-se, era quase certo que a
serpente atacaria. Optou portanto por humedecer os lábios e sussurrar, no tom mais elevado a que se atreveu.
- Macro... Macro... Acorde.
O ressonar esmoreceu, e ouviu-se um resmungo arrastado e incoerente vindo do outro lado da tenda.
- Macro.
- Humrr... Que porra é que se passa? - resmungou Macro, remexendo-se para se virar e encarar Cato.
- Não se mexa! - avisou-o Cato.
- O quê? - A cabeça do veterano ergueu-se. - Mas o que se passa?
A serpente silvou de novo, em tom mais elevado, e a parte cimeira do
corpo começou a expandir-se. Os anéis espalhados pelo solo agitaram-se quando o animal avançou.
- Merda - murmurou Macro. - Estamos lixados, miúdo. Como é que saímos desta?
Cato encarou a cobra. Estava tão próxima que já conseguia contar as escamas uma a uma, e reparar no brilho vítreo de um dos olhos. Um faiscar repentino indicou a posição da
boca, enquanto a cabeça da serpente se erguia acima do nível dos dois homens.
- Mantenha... Se... Imóvel - indicou Cato, em surdina.
- Com toda a certeza.
Cato tinha apreciado o espetáculo de vários encantadores de serpentes no mercado em Alexandria, e tinha perfeita consciência da rapidez com que a cobra atacava. Não havia
qualquer hipótese de conseguir pular sobre
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ela e pegar numa das espadas. Se algum deles o tentassse, seria a morte. Muito lentamente, foi levando a mão esquerda até à túnica que tinha ficado no chão junto ao colchão,
toda amarrotada. Os dedos percorreram a terra na direção do tecido, até que se fecharam sobre uma dobra da peça.
- Macro, vou tentar distraí-la. Quando eu fizer um movimento, pegue numa das espadas. Percebido?
- Que género de distração?
- Pouco importa, o que é preciso é que esteja pronto a agir. Aos três.
Os ruídos perturbaram a serpente, que voltou a silvar, ainda mais alto,
e puxou a cabeça para trás, como que se aprestando para o ataque.
Cato humedeceu os lábios e disse, com toda a calma que conseguiu reunir:
- Um... Dois... Três!
Agarrou na túnica e amassou-a num trapo enquanto se punha de pé de um salto; no mesmo movimento lançou a túnica a meia altura contra a cobra. A criatura reagiu de imediato,
ferrando o pano com a rapidez do relâmpago antes de inverter o movimento e voltar a silvar. Macro tinha aproveitado para também se levantar e dado um passo para junto do poste
central da tenda; a cobra deslizou veloz e fez menção de o atacar. O veterano deu um pulo para trás, regressando à posição inicial.
- Foda-se, que esta passou perto.
- Vou tentar outra vez - avisou Cato. Enrolou a túnica em volta do punho e tentou atrair a cobra com o resto da vestimenta, pendurado. A cobra voltou de imediato a cabeça
na sua direção, os olhos a arderem como rubis. Cato moveu a túnica para a direita e agitou-a. O réptil atacou, e Cato puxou rapidamente o pano para trás. As presas, enredadas
nos grossos fios de lã, vieram atrás, e Cato não conseguiu evitar um grito de horror ao ver o corpo do animal a vir na sua direção. Atirou a túnica para cima da cabeça do
réptil e usou a mão livre para lhe pegar no pescoço, mesmo por baixo do capelo. A pele da cobra era seca e áspera, e ela começou a agitar-se, fazendo anéis com o corpo que
dançavam de forma frenética, obrigando Cato a uma luta tremenda para a manter presa, enquanto com a outra mão voltava a enrolar a túnica na cabeça do animal.
Macro saltou para a frente, alcançou o poste e empunhou a sua espada. Virou-se e lançou um golpe dirigido ao corpo ondulante, mas em vez da cobra acertou no solo.
- Macro! - gritou Cato enquanto a cabeça do réptil se agitava no interior da túnica. - Porra, mate lá esta coisa!
Macro voltou a tentar, e desta vez acertou a meio do corpo da cobra. Lançou novo golpe, e conseguiu cortá-la ao meio. Metade dos anéis tombaram pelo solo, onde continuaram
a agitar-se, e Macro despachou-os para o
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canto com um pontapé. Mas a outra metade parecia ter ganho nova vida, e Cato viu-se obrigado a usar todas as suas forças para a atirar para o fundo da tenda, onde chocou contra
a pele de cabra com um baque surdo e deslizou para o chão, agitando-se freneticamente, mas incapaz de se deslocar enquanto se esvaía em sangue.
O coração de Cato batia desalmadamente, o peito estava frio e suado, e todo ele tremia. Virou-se para Macro e notou que o amigo estava também abalado. Macro lambeu os lábios
e contemplou a serpente moribunda enquanto dizia, numa voz baixa, controlada mas cheia de fúria:
- Estou a começar a odiar realmente esta província...
- És tu o encarregado do turno de vigia, não és? - inquiriu Macro com ar de poucos amigos, enquanto o optio se apressava a erguer-se do meio dos homens sentados em torno do
fogo.
- Sim, senhor - respondeu o jovem soldado.
- Então és tu o responsável por esta coisa ter conseguido entrar para a porra da nossa tenda. - Macro sacudiu a túnica, e as duas metades do longilíneo corpo da serpente rolaram
pelo solo. O optio deu um passo atrás, por instinto, sem esconder o horror que lhe causava o animal. Escutaram-se murmúrios de surpresa dos outros homens, que esticavam os
pescoços para ver melhor o que se passava.
Macro virou-se e apontou para a tenda.
- O prefeito está lá dentro. É suposto haver um homem a patrulhar as imediações para garantir que nada lhe acontece, não é? Nenhum inimigo, nenhuma ameaça de qualquer espécie
poderá passar. Quer dizer, suponho que mesmo aqui no Egito essas instruções façam parte das normas permanentes.
- Sim, senhor.
- Então onde está a sentinela? - Macro teatralizou a sua busca, procurando com o olhar em todos os recantos até desistir e levantar as mãos num gesto de desânimo. - Então?
- Peço desculpa, senhor. - O optio engoliu em seco. - Pus um homem em cada ponta do acampamento. Não pensei que fossem necessários mais.
- Dois homens? - Macro abanou a cabeça. - A província está em estado de guerra, e antes que me venhas com essa, quero lá saber a que distância estão os núbios. Não é desculpa
para tanta falta de jeito para dispor sentinelas à volta de um acampamento. Deixa-me adivinhar. Fazes parte da Vigésima Segunda Legião?
O optio assentiu em silêncio.
- Fantástico... - Macro avançou um passo e colocou o dedo a
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poucos centímetros da cara do optio. - Quero sentinelas como deve ser, à volta de todo o campo, todas as noites. Cabia-te o dever de proteger o acampamento e os oficiais superiores,
meu filho, e a verdade é que fizeste merda da grossa. O facto é que eu, o prefeito, ou até ambos, podíamos ter sido mortos, e a culpa seria tua.
- Mas, senhor. Mesmo que houvesse uma sentinela ao lado da tenda, a cobra podia muito bem ter entrado sem ninguém dar por nada.
- Pouco barulho! Sabes qual é o teu dever. Sugiro que o cumpras, se não queres que eu dê pessoalmente cabo da tua noite, com um pontapé no cu capaz de te fazer saltar os dentes.
- Macro recuou e agitou o corpo da serpente com a ponta do pé. - E agora vê se tratas de te veres livre disso.
Preparava-se para voltar à tenda quando o comandante da barca se agachou junto ao réptil e abanou a cabeça.
- Normalmente não nos dão problemas quando montamos acampamento. Se calhar a tenda está em cima de um ninho.
- Queres tu dizer que pode haver mais desses bichos por aqui? - explodiu Macro.
- Não. São criaturas solitárias. A não ser que haja crias a saírem dos ovos, claro.
- Bem, obrigadinho pela novidade. Está-se mesmo a ver que vou ter uma noite sossegada, não é? - Voltou-se de novo para o optio. - Trata de pôr duas sentinelas à volta da tenda.
- Sim, senhor.
Macro virou-se e regressou à tenda, fechando a aba atrás de si. Atirou a túnica a Cato enquanto se encaminhava para a enxerga e se deixava cair sobre ela.
- O sacripanta do optio é da Vigésima Segunda. Parece que tinhas razão para desconfiar desses tipos.
Cato estava sentado no seu colchão, de pernas cruzadas, perdido em pensamentos. Sacudiu a cabeça e olhou à volta.
- Desculpe?
- Disse eu que tinhas razão quanto à Vigésima Segunda, são uns desleixados.
- Ah, sim.
- Cato, olá? - Macro remexeu a mão no ar. - Ainda aqui estás?
- Estava só a pensar. - Cato passou a mão pelo cabelo. - Na cobra. Se há coisa que não suporto, são cobras.
- Porquê tão esquisito? São tal e qual as outras coisas todas desta província: crocodilos, mosquitos e cobras; nunca satisfeitos, a não ser que estejam a cravar os dentes
nalguém. Que se fodam. Vou mas é tentar voltar a dormir. - Deitou uma olhadela a Cato e prosseguiu em tom mais gentil:
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- E tu devias fazer o mesmo. O melhor é descansar o mais possível antes de chegarmos a Diospolis Magna.
- Sim, tem toda a razão. - Cato deitou-se e ficou imóvel, contemplando o teto da tenda. Pouco depois fechou os olhos e deixou-se ficar, focando-se apenas nos sons noturnos.
Macro estava também imóvel e silencioso, mas não ressonava, e Cato percebeu que o amigo estava tão perturbado como ele próprio.
Macro piscou os olhos, e franziu momentaneamente o sobrolho. A última coisa de que se lembrava era de ser incapaz de adormecer, e de estar deitado e imóvel pelo que lhe tinham
parecido horas. Bom, no fim de contas o sono tinha chegado, concluiu. Lá fora rompia a alvorada, e um feixe de luz entrava na tenda pela aba aberta. Rebolou na cama e verificou
que a enxerga de Cato estava vazia.
Sentou-se e espreguiçou-se, lançando um longo bocejo antes de molhar os lábios na própria saliva. Levantou-se e de imediato avistou uma mancha escura e seca no solo claro
à frente do poste de suporte da tenda; recordou de pronto o episódio da noite anterior, quando tinha decepado a cobra, e mordeu os lábios, azedo. Ao sair da tenda avistou
o amigo sentado num tronco de palmeira ali perto. Olhava absorto para lá do rio envolto em neblina, com a tampa de uma ânfora na mão. No chão, a uns passos de distância, viam-se
os cacos de uma ânfora partida.
- Levantaste-te cedo, ou não conseguiste dormir? - começou, enquanto se juntava a Cato.
- Não há grandes possibilidades de alguém conseguir dormir quando uma certa pessoa começa a ressonar. - Enquanto falava, Cato atirou a tampa para o meio da relva. - Ao menos
não houve mais nada a dar-nos dores de cabeça ontem à noite. Aí está um facto que podemos agradecer aos deuses.
Ao longo da margem, os outros passageiros e tripulantes dos diversos navios começavam a acordar e a recolher as suas enxergas, para prosseguirem a viagem pelo rio acima. Hamedes
aproximou-se, com uma sacola ao ombro.
- Bom-dia, senhores. Ouvi dizer que tiveram uma noite animada.
- Bem podes dizê-lo - ripostou Macro.
Hamedes pousou a sacola e agachou-se em frente a eles.
- O optio contou-me da cobra há bocadinho. Ao que parece, escaparam por pouco. O veneno da naja do Nilo é capaz de matar um homem em menos de uma hora. Senhor, pode dizer
que teve muita sorte.
- Essa é boa, eu estava era capaz de lamentar a minha sorte por isto ter acontecido.
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O sacerdote inclinou a cabeça para um lado.
- Talvez tenha sido um presságio. Uma mensagem dos deuses. Um aviso, até.
- Por outro lado, se calhar era só uma puta duma cobra que se enganou no caminho. - Macro ergueu-se e apontou para dois dos legionários que se aqueciam junto da fogueira mais
próxima. - Tu, e tu. Desmontem a tenda e arrumem-na. E vejam lá se as enxergas seguem no mesmo barco que a tenda.
Ao fim de uns momentos, Cato virou-se para Hamedes e falou.
- Uma mensagem? Acho que és capaz de ter razão.
- Oh? - Uma expressão de espanto faiscou brevemente no rosto do outro.
- Sim - prosseguiu Cato. - Desde que começámos a caçar o Ajax aqui no Egito que parece que somos perseguidos pelo azar. Começo a perguntar-me se por acaso teremos ofendido
algum dos deuses locais. Hamedes, és tu o especialista nessa área. Como é que aplacamos os teus deuses? A quem é que devemos oferecer as nossas preces? Que sacrifício devemos
realizar?
Macro deitou-lhe uma olhadela.
- Desde quando é que deste em religioso?
- Nos últimos meses houve diversas ocasiões em que a fortuna nos foi madrasta, Macro. Pode ter sido uma mera coincidência, mas duvido. Uma ou duas vezes, ainda vá, mas com
a constância do nosso azar, um homem tem razões para suspeitar que os deuses, ou outras entidades, estão a intervir nos acontecimentos.
Macro encheu de ar as bochechas, sem saber bem como responder.
- Senhor, acha mesmo que uma oferenda se torna necessária?
- Pelo menos dava-me paz de espírito - admitiu Cato. - Hamedes, és capaz de tratar disso, em nosso nome?
- Claro, senhor.
- Tão cedo quanto possível.
- Farei tudo o que puder. Os ritos associados à boa sorte e ao afastamento da má fortuna estavam acima das minhas capacidades, senhor. A mim eram apenas confiadas oferendas
mais básicas. Mas quando chegarmos a Diospolis Magna, vou informar-me junto dos sacerdotes da cidade.
Cato olhou para o egípcio e assentiu.
- Muito bem, isso terá de ser suficiente. - Respirou fundo e pôs-se de pé. - Entretanto, vamos pôr a coluna em marcha. Quanto mais cedo chegarmos ao nosso destino, melhor.
A coluna prosseguiu rio acima, deixando o delta para trás e singrando pela tira de água que percorria o coração do grande deserto que se estendia desde
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o Mar Eritreu a leste, atravessando o continente e formando a fronteira meridional do Império. Do rio, Cato avistava as escarpas rochosas que se erguiam no limite da estreita
faixa de terra cultivada que ladeava ambas as margens do Nilo. Por entre extensões de papiros e palmeiras, viam-se inúmeros terrenos a serem tratados pelos camponeses, lavrados
por pesados arados puxados por bois e que reviravam o solo escuro e lamacento que era a verdadeira fundação da grande riqueza da província. Em tempos anteriores à cobiça romana
pelos férteis campos egípcios, essa riqueza tinha servido de alicerce às ambições dos Ptolomeus, e, muito antes deles, às da antiga linhagem de faraós cuja origem vinha de
um tempo já esquecido.
Embora esquecidos, tinham existido numa época de maravilhas, considerou Cato enquanto a coluna passava em frente ao trio de pirâmides guardado por uma esfinge gigantesca,
a curta distância a jusante de Mênfis. Embora já as tivesse visto alguns dias antes, quando regressava a Alexandria para apresentar o relatório a Petrónio, Cato ainda as contemplava
com assombro; naquele momento, na proa do navio, era obrigado a colocar as mãos em pala sobre os olhos para se proteger do brilho do Sol e as conseguir distinguir. Eram edificações
à escala de uma montanha, ou pelo menos assim pareciam, embora alcançassem uma perfeição geométrica que escapava à natureza. As faces pareciam lisas como vidro, e havia manchas
que pareciam ser folheadas a ouro, já que refletiam a luz solar com verdadeiro esplendor ofuscante; Cato admitiu que, quando novas e em perfeitas condições, as pirâmides podiam
ter sido de facto impossíveis de contemplar.
- Uma vista e tanto - comentou Macro, juntando-se a Cato à proa do navio. Continuou a olhar mais algum tempo e acabou por abanar a cabeça.
- É difícil de acreditar que isto foi obra destes monhés, não achas?
- Esse comentário é um tanto injusto. - Cato apontou para uma aldeola na margem. - Esta gente vive na sombra dos feitos dos seus antepassados. Não são as mesmas pessoas. -
Fez uma pausa, enquanto meditava. - Talvez um dia venham a dizer o mesmo dos nossos antepassados, quando Roma não passar de uma curiosidade. Quando os nossos grandes monumentos
não passarem de ruínas a esboroar-se.
- Pfff! Cato, às vezes não dizes mesmo nada de jeito. - Macro deu-lhe um toque com o ombro. - Sabes bem que é a verdade. - Tossicou e pôs-se a imitar o tom morno e reverencial
que o amigo tantas vezes usava.
- Roma é a amada dos deuses, trazida ao mundo para brilhar como um farol, exemplificando tudo o que é grande e especial. No futuro distante, as gentes hão de estar às portas
de Roma e contemplar maravilhadas os nossos grandes cometimentos, e hão de desesperar por não poderem igualá-los...
- Já acabou? - perguntou Cato, irritado.
Macro fungou.
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- Dá-me mais um momento, tenho a certeza que consigo encontrar mais umas palavras pretensiosas para prosseguir a minha oração.
- Ora, vá-se foder.
- Boa, dito como um verdadeiro soldado. Conciso e direto ao assunto. Vá, esquece lá essas pilhas de pedras poeirentas e vamos mas é para a sombra antes que o sol te torre
ainda mais a mioleira, sim?
Macro esgueirou-se para debaixo do toldo e sentou-se. Cato continuou a admirar as pirâmides ainda por algum tempo, mas as palavras do veterano tinham quebrado o encanto, e
com um suspiro lá se resolveu a juntar-se a Macro e Hamedes à sombra.
Dez dias depois de a coluna ter partido de Alexandria, as barcas descreveram a última curva do rio antes de Diospolis Magna, exatamente quando o Sol se escondia por trás das
áridas montanhas da margem oeste. Na margem oposta erguiam-se majestosos obeliscos, parte do maior templo que Cato alguma vez vira. Grandes mastros de madeira estavam fixos
em encaixes nas paredes esculpidas, e deles pendiam gigantescos estandartes já rasgados e desbotados que esvoaçavam à brisa do entardecer. Em redor do templo erguia-se uma
alta muralha de adobe que lhe dava o aspeto de uma vasta fortaleza. A alguma distância da margem, em terra firme, via-se um antigo cais de pedra, agora inútil; mais abaixo,
um longo cais de madeira, muito mais recente, permitia a acostagem das embarcações que percorriam o curso do rio.
- Karnak - anunciou Hamedes com reverência, antes de apontar ao longo do rio para outro complexo, mais longínquo e muito menor. - E ali fica o templo de Amon. A cidade fica
por trás dele.
O capitão da barca empunhou o timão e foi-o empurrando com firmeza, de forma a levar a barca para junto do cais. Ao longo deste, bem como em torres erigidas por trás da muralha,
encontravam-se soldados de guarda. Enquanto a flotilha se aproximava, um grupo deles deixou a plataforma de pedra ornada e desceu a rampa que levava ao cais de madeira, preparando-se
para ajudar à amarração das barcas. As tripulações lançaram os cabos pelo ar, e, uma a uma, as barcas foram puxadas e os cabos presos a pilares já bem gastos ao longo do cais.
Os dois oficiais romanos e o sacerdote reuniram os seus pertences e saltaram para terra. Cato interpelou o optio que comandava o grupo de ajudantes.
- Onde fica o quartel-general do exército?
- Quem quer saber?
Macro avançou de imediato para esfolar vivo o optio pela impertinência, mas Cato ergueu uma mão para o deter. Envergavam apenas as indistintas túnicas militares. As armaduras
e insígnias vinham na bagagem.
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- Prefeito Quinto Licínio Cato e centurião Macro, que se apresentam ao serviço na Vigésima Segunda - anunciou Cato, e apontou depois para Hamedes. - Este é o nosso batedor
pessoal.
- Ah, senhor, as minhas desculpas. - O optio pôs-se imediatamente em sentido. - Senhor, deve dirigir-se aos aposentos dos sacerdotes. - O optio virou-se e apontou para a parte
oriental do complexo. - Além. Um dos meus homens indicar-lhe-á o caminho.
Cato anuiu, enquanto avaliava o optio e os seus homens. Muitos tinham a pele escura como os nativos. Outros, menos numerosos, mostravam os tons claros de gregos e romanos.
- Muito bem.
Pouco depois subiam a rampa de acesso à praça cerimonial, de onde se podia apreciar todo o interior do complexo do templo. Dentro da muralha estavam acampados milhares de
homens, as tendas alinhadas em filas perfeitas que cobriam todo o espaço. À distância, nas traseiras do complexo, ficavam os estábulos, onde eram mantidos os cavalos das coortes
auxiliares e dos quatro esquadrões montados de legionários, debaixo de toldos feitos de folhagens de palmeira para permitir aos animais escapar ao castigo do impacto direto
do sol. A curta distância, mas já fora das muralhas, entre o complexo e a cidade, via-se o campo desordenado dos acompanhantes civis. Era ali que os soldados podiam encontrar
bebida, petiscos e conforto de outro tipo nos braços das mulheres pertencentes a um dos grupos de prostitutas geridos por mercadores gregos de dúbia integridade.
- Impressionante - comentou Hamedes. - Nunca vi um exército tão poderoso. Os núbios vão por certo tremer quando o avistarem. Nem consigo imaginar o número de homens aqui presente.
- O número é menos impressionante do que pensas - retorquiu Macro. - Uma legião tem mais de cinco mil homens alistados, quando está na sua máxima força. Mas a verdade é que
nunca o está. As unidades auxiliares têm para aí uns três mil homens. Portanto, no melhor dos casos, o Cândido tem cerca de oito mil homens para enfrentar os núbios.
- Mas, senhor, os soldados romanos são seguramente os melhores do mundo. De que outra forma poderiam ter conquistado um tão vasto Império?
- Há soldados e soldados - ripostou Cato de forma enigmática mas tranquila.
O legionário designado para os escoltar até ao quartel-general levou-os por uma curta avenida ladeada por esfinges, e pelo meio do primeiro conjunto de obeliscos, por um pátio
e por entre duas enormes estátuas, para um espaço repleto de grandes colunas. Ao fim deste, viraram para a direita, na direção de outro grupo de obeliscos que se estendia
para sul. Os pátios
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nesta área estavam atulhados de carros com abastecimentos, incluindo milhares de sacas de cereais para alimentar o exército quando marchasse para sul ao encontro dos núbios.
Os preparativos de um exército para a guerra surgiam como novidade a Hamedes, e ele não parava de olhar para todo o lado com indisfarçável curiosidade.
- Ei. - Macro chamou a atenção do legionário. - Já sabem alguma coisa do inimigo?
O homem olhou para trás e abanou a cabeça.
- Há dias que nada sabemos, senhor. A última história que ouvi é que as tropas montadas deles tinham sido avistadas já muito a norte, perto de Ombos.
- Onde é que isso fica?
- Uns cento e cinquenta quilómetros a montante do rio.
Macro virou-se para Cato.
- Bem, não me parece que estejam a avançar como um raio que devasta a província, pois não? E a verdade é que o Cândido também não parece ter pressa nenhuma em correr com eles.
Cato encolheu os ombros.
- Estou certo de que o legado tem as suas razões.
- Gostava bem de as ouvir.
Dirigiram-se ao último par de obeliscos e depararam com outra avenida de esfinges, que conduzia ao templo de Arnon, a mais de quilómetro e meio de distância. Mais perto avistava-se
um edifício baixo mas vasto, rodeado por outra muralha de adobe. Ao portão, uma secção de legionários fazia a guarda.
- Por aqui, senhor. - O guia chamou Cato. O optio que comandava a secção ao portão ergueu a mão ao vê-los chegar.
- Alto! Digam ao que vêm.
- Oficiais acabados de chegar à legião - explicou o legionário, e deu um passo ao lado enquanto Cato metia a mão no interior da túnica e retirava as ordens, entregando-as
ao optio para inspeção. O homem passou os olhos pelo papiro e fez a saudação regulamentar.
- Senhor, seja bem-vindo aos Chacais.
- Chacais?
O optio virou-se e apontou para o estandarte que esvoaçava sobre o portão que dava acesso aos aposentos sacerdotais. Por cima do número da legião via-se uma imagem de uma
cabeça canina dourada, sobressaindo contra o pano vermelho em que estava implantada. Cato e Macro examinaram rapidamente o estandarte e trocaram um olhar conhecedor: não havia
nele um único sinal distintivo de qualquer honra conquistada .em batalha.
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- Presumo que isto é suficiente para ser incorporado no efetivo, senhor.
Cato anuiu.
- Sim, mas primeiro queria avistar-me com o legado.
- Não está cá, senhor. Terá de falar antes com o prefeito do campo. Caio Aurélio.
- Onde está então o legado?
- Deixou o exército há alguns dias, senhor. Ouvi dizer que anda a inspecionar os fortes ao longo do Nilo, para se certificar de que estão bem preparados para resistir aos
núbios.
- Quando é que é esperado de volta?
- Não faço ideia, senhor. Será melhor perguntar ao prefeito do campo.
- Onde é que o posso encontrar então?
- É passar os portões e seguir em frente, senhor. Os gabinetes da administração ficam logo a seguir ao lago.
- Lago? - Macro sorria enquanto atravessavam os portões. - Parece-me uma colocação janota, esta.
Em evidente contraste com o aspeto exterior da muralha que ladeava as acomodações sacerdotais, o interior oferecia alguns confortos, pelo menos à primeira vista. Palmeiras
davam sombra aos caminhos empedrados que rodeavam o edifício, canteiros de flores eram regados por canos que percorriam todo o jardim. Mas havia poucas plantas que ainda resistissem,
e essas mostravam todos os sinais de uma prolongada negligência, com as folhas cobertas por uma fina camada de poeira seca. Da entrada, o caminho levava por uma fila dupla
de colunas e abria para um átrio lajeado rodeado por celas arejadas. Um vasto toldo cobria o pátio, e era à sua sombra que o pessoal burocrático do estado-maior tinha instalado
as suas mesas portáteis. Os escribas ocupavam-se a limpar utensílios e a arrumar o trabalho, enquanto aguardavam pela refeição vespertina. Na outra ponta do pátio havia nova
fila de colunas e por trás delas adivinhava-se o brilho espelhado de uma superfície líquida. As celas deste segundo pátio tinham sido atribuídas aos oficiais superiores do
exército, e em cada uma fora instalada uma cama de campanha, além de uma secretária à entrada. Havia vários oficiais ainda a trabalhar, e Cato perguntou a um ordenança onde
estava o prefeito do campo.
- Além, senhor. Na extremidade do lago. - Apontou para uma figura indistinta com cabelo escuro e encaracolado, debruçado sobre uma grande mesa enquanto examinava um documento.
Cato conduziu o seu pequeno grupo em torno do lago. Ao aproximar-se, o prefeito do campo ergueu o olhar. Tinha um ar fatigado e ansioso.
- Sim?
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- Sou o prefeito Cato, senhor. Fui enviado por Alexandria para ocupar o lugar de chefe dos tribunos. As minhas ordens. - Entregou o documento. - Este é o centurião Macro,
também colocado na legião.
- E ele? - Acenou na direção de Hamedes.
- O nosso batedor, senhor.
Aurélio passou rapidamente os olhos pelas ordens e empurrou-as para o lado.
- É bom tê-los aqui connosco. Recebemos ontem um tribuno júnior, mas ainda estamos longe de ter o quadro de oficiais completo, especialmente na Primeira Coorte. Os nossos
melhores oficiais são muitas vezes chamados a agir como magistrados por toda a província. Dois dos nossos centuriões estavam deslocados a sul de Ombos, e nunca mais tivemos
notícias deles. O mesmo sucedeu com o primeira lança. Estava a supervisionar a construção de um novo forte em Pselchis. Para falar com franqueza, temo que o pior tenha ocorrido.
- Lamento ouvi-lo, senhor - disse Macro.
- Bem, talvez a ausência de notícias queira apenas dizer que não há novidades - retorquiu Aurélio, sem dar ideia de acreditar nas suas próprias palavras. - Entretanto, prefeito
Cato, és nomeado tribuno-mor interino. O centurião Macro fica com o comando da Primeira Centúria. - Bateu com os dedos nos rolos que recebera. - Vêm com as melhores recomendações,
e precisamos bem de oficiais experientes. Como devem saber, esta legião há muito que não enfrenta combates sérios. Na maior parte do tempo apenas temos desempenhado ações
de vigilância. Bom, a oposição também não passa dum bando de salteadores montados. Ou foi o que nos disseram, pelo menos.
Enquanto o homem falava, com uma voz fina e uma cadência quase de cantiga, a subir e a descer, os receios que Cato expressara a propósito da prontidão da legião para o combate
pareceram ganhar justificação. Aurélio era claramente um homem que se sentia muito mais à vontade com um estilete do que com um gládio. Tudo o que se podia esperar era que
o legado fosse alguém com alguma experiência militar relevante.
- Senhor, se me permite, gostaria de me apresentar ao legado Cândido na primeira oportunidade disponível depois do seu regresso. Preciso de falar com ele sobre a possibilidade
de uma nova ameaça a esta região.
- Estou certo de que gostarias de falar com Cândido - notou o prefeito do campo. - Tu e eu. O facto é que nos garantiu que estaria de volta há três dias. Enviei patrulhas
para o procurar, mas não há sinais dele na estrada de Ombos. Só os deuses sabem onde é que ele anda.
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O exército núbio estava acampado cerca de trinta e poucos quilómetros
a norte de Ombos, junto a uma curva pouco profunda do Nilo, onde as montadas, cavalos e camelos, podiam saciar a sede; o mesmo sucedia com as provisões vivas, constituídas
por rebanhos de cabras. Não havia grande ordem na disposição das tropas, nada de semelhante ao que Ajax vira no campo romano em Diospolis Magna. O gladiador deteve a sua coluna
montada num afloramento rochoso a quilómetro e meio do acampamento. As forças do príncipe Talmis espalhavam-se pelo que tinham sido campos de trigo, agora arrasados. Ajax
calculou que o exército núbio devia ter um efetivo de pelo menos trinta mil homens. Havia tendas aqui e ali, mas muitos dos homens tinham construído abrigos temporários feitos
de folhas de palmeira. A maior parte do exército era constituída pelo que pareciam ser guerreiros núbios, mas existia também um contingente de árabes, envoltos nas suas largas
vestes negras. No centro do acampamento avistava-se um grupo de tendas de maiores dimensões, em redor das quais se avistava um círculo de guardas armados que mantinha um perímetro
de segurança.
- Parece-me que é ali que poderemos encontrar o príncipe Talmis.
Karim assentiu.
- General, espero bem que não estejas enganado quanto a isto.
- Confia em mim. Ele vai receber-nos de braços abertos. Sobretudo quando lhe oferecermos alguns símbolos da nossa amizade. - Ajax sorriu enquanto afagava os alforges que o
cavalo transportava. - Tem calma, Karim, se há alguma coisa de que podemos estar certos neste mundo, é que aquele princípio que diz que os inimigos do meu inimigo são meus
amigos se aplica por todo o lado.
A ferida superficial que recebera de Cato ainda estava a cicatrizar, pelo que rodou cuidadosamente na sela para inspecionar os seus homens. Restavam-lhe nada mais que vinte
e oito seguidores. Alguns tinham sucumbido numa escaramuça com os romanos havia apenas cinco dias, outros quando tinham caído no ataque a um posto de cavalaria para se apoderarem
dos cavalos que montavam. Apesar disso, a maior parte dos gladiadores que
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tinham formado a sua guarda pessoal durante a revolta em Creta tinha sobrevivido, bem como os mais fortes dos escravos que libertara dos navios que capturara. Manejavam as
armas com algum jeito e muito empenho, e não lhes faltava coragem nem lealdade; a seu tempo acabariam por se colocar no mesmo patamar de eficiência dos gladiadores.
- Quando nos aproximarmos do campo, mantenham as mãos longe dos punhos das armas. Aconteça o que acontecer, ninguém faz nada a não ser que eu dê ordens para isso. Percebido?
Os homens anuíram.
Ajax acenou ao alto gladiador núbio que montava um cavalo de pelo tão escuro como a sua pele.
- Hépito, chega-te à frente!
- Sim, general. - O núbio deu um estalo com a língua e fez avançar o cavalo.
- São do teu povo. Farás de tradutor. Diz apenas aquilo que eu te disser, e relata-me tudo o que for dito pelos que nos falarem.
Hépito assentiu.
Ajax voltou a contemplar o campo que se oferecia à vista. A uns oitocentos metros da base do afloramento rochoso, uma vintena de guerreiros montados em camelos patrulhava
lentamente o acesso ao campo pelo norte. Ajax apontou-os a Karim e Hépito.
- Vamos dirigir-nos ao encontro daqueles homens. Se houver problemas , teremos tempo e espaço para escapar sem dificuldade.
- Pensei que tinhas dito que íamos seguramente ser bem acolhidos - comentou Karim.
Ajax sorriu.
- Não custa nada estarmos preparados para o caso de o acolhimento ser demasiado quente, meu amigo. - Agitou as rédeas. - Vamos.
A pequena coluna de cavaleiros começou a descer das rochas. Havia um trilho estreito que serpenteava pela encosta até chegar à planície fluvial, e os cascos dos cavalos depressa
levantaram uma nuvem de poeira que não podia deixar de ser vista pela patrulha núbia. De facto, Ajax viu-os fazer uma paragem, e logo um dos camelos rodou e se lançou num
galope oscilante a caminho do campo. Os restantes homens formaram em linha e viraram-se para ir ao encontro dos cavaleiros. Enquanto se aproximavam, Ajax reparou que empunhavam
dardos ligeiros que tinham retirado das longas aljavas penduradas das selas. Voltou-se para relembrar os seus homens.
- Lembrem-se bem. Mantenham as mãos longe das armas a não ser que vos diga outra coisa.
O espaço entre as duas formações diminuía rapidamente, e quando já
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não estavam a mais de cem passos de distância da linha de camelos, Ajax levantou o braço e refreou a montada.
- Alto!
A coluna imobilizou-se, e os homens mantiveram-se calmos e imóveis nas selas, com ambas as mãos a segurar as rédeas. Os camelos continuaram a aproximar-se, e só quando já
estavam a uma distância suficiente para poderem usar os dardos, é que o líder deu uma ordem que os levou a reduzir o andamento e depois a parar. Os cameleiros envergavam vestes
escuras e turbantes, e mantinham as armas em posição, os braços ao lado e prontos a lançar assim que recebessem a ordem para tal.
Ajax limpou a garganta e ergueu uma mão em saudação.
- Chegamos como amigos. Desejo falar com o príncipe Talmis. - Acenou a Hépito, e o núbio repetiu as palavras ao líder da patrulha, antes de se virar para Ajax.
- Ele quer saber quem és.
- Diz-lhe que sou Ajax, o gladiador, líder da revolta contra Roma na ilha de Creta, e que vim oferecer os meus préstimos ao príncipe Talmis, para que possamos enfrentar lado
a lado o nosso inimigo comum.
Hépito traduziu e deu-se uma curta pausa até que o chefe da patrulha voltou a falar.
- Ele pede que entreguemos as nossas armas aos seus homens. Só depois nos escoltará até ao acampamento.
Karim fez avançar o cavalo e falou rapidamente.
- General, seria pouco prudente avançar para o seio de forças tão numerosas sem meios para nos defendermos.
Ajax respirou fundo e abanou a cabeça.
- Faremos como ele pede. Espadas para fora!
Seguiu-se um coro de sons metálicos enquanto os homens tiravam as espadas das bainhas e as apresentavam. Os núbios agitaram-se, e vários deles aprontaram os dardos.
- Atirem-nas para o chão! - ordenou Ajax, enquanto lançava a sua para o lado. Os homens imitaram-no, à exceção de Karim, que avaliava os núbios com atenção.
- Faz o que eu te digo - sussurrou Ajax, irritado. - Imediatamente.
Karim deixou o braço descair enquanto largava a espada, fazendo com que ela se cravasse com força no solo, junto à sua bota. O comandante da patrulha berrou uma ordem e quatro
dos seus homens fizeram os seus camelos ajoelhar-se antes de deslizarem das selas e correrem para os cavaleiros, para recolher as armas. Apressaram-se a regressar e a colocá-las
nas aljavas das selas antes de voltarem a montar e fazerem os camelos retomar
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a postura normal. Os animais soltaram uma breve série de bramidos, até que tudo voltou a acalmar-se. O líder da patrulha fez um gesto, convidando Ajax a segui-lo, e fez a
sua montada voltear, dirigindo-se ao campo. Metade dos seus homens seguiu-o de imediato, e os restantes esperaram que os cavaleiros seguissem antes de ocupar a retaguarda.
Ao entrarem no campo, foram alvo da curiosidade dos núbios mais próximos, que se levantaram para melhor os observar. Um odor a estrume e fumo das fogueiras recheava o ar,
e Ajax lançou um olhar de profissional sobre os guerreiros do príncipe Talmis. Os que ocupavam a orla do campo exibiam armamento ligeiro, e davam a ideia de não passar de
elementos tribais, apenas equipados com as suas lanças de caça e escudos de pele. Alguns tinham arcos, outros dardos. Mas o que lhes faltava em equipamento era compensado
pelo número. Numa estimativa rápida, Ajax calculou que seriam pelo menos uns quinze mil. A secção seguinte era ocupada por homens com espadas e armaduras. Muitos tinham placas
peitorais sobre as vestes longas, e elmos de bronze com tiras de linho para dar sombra ao rosto e ao pescoço. Havia também alguns milhares destes guerreiros couraçados, e
Ajax sentiu o coração alegrar-se ao imaginar o que poderia suceder quando aquela horda se lançasse sobre o muito menos numeroso exército romano acampado a jusante.
Adiante avistou o espaço aberto que rodeava o conjunto de tendas pertencente ao príncipe Talmis e aos seus generais, calculou. À direita, na curva do rio, havia milhares de
cavalos e camelos a pastar nas searas dos camponeses egípcios, ou a beber na margem.
O líder da patrulha fez alto assim que se aproximaram vários guardas armados de lanças, que faziam a sentinela ao perímetro das tendas. Foram trocadas algumas palavras, e
o comandante dos lanceiros olhou desconfiado para a coluna antes de lhe dar permissão de avançar, enquanto apontava para um grupo de postes onde as montadas podiam ser amarradas,
a curta distância das tendas. Os homens de Ajax foram escoltados pelos cameleiros e pelas sentinelas e quando chegaram junto aos postes, Ajax deu ordens para que todos desmontassem
e aguardassem junto aos cavalos. Um dos lanceiros correu para a tenda mais próxima, e pouco depois surgiu um oficial, de vestes esvoaçantes e ornadas, cobertas por uma armadura
brilhante. Avançou até junto de Ajax e avaliou-o de alto a baixo com olhos profundos e escuros.
- Foi-me dito que desejas avistar-te com o meu príncipe - disse o homem, expressando-se num grego fluente.
- Assim é - anuiu Ajax. - Tenciono oferecer-lhe os meus préstimos, bem como os dos meus guerreiros.
O oficial virou o olhar para os homens de Ajax, apreciando os
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físicos poderosos, bem como as cicatrizes que muitos ostentavam nas faces e membros.
- E o que são vocês, desertores?
- Somos gladiadores.
- Escravos, portanto - desdenhou o homem.
- Nunca mais. Com as nossas próprias mãos, tomámos a nossa liberdade, e desde então que enfrentamos Roma. Roma é o nosso inimigo, e o vosso. É por essa razão que nos pomos
ao dispor do vosso príncipe.
- E o que podem vocês oferecer-lhe que os seus próprios homens não consigam, pergunto-me?
- Isto. - Ajax sorriu e fez menção de se dirigir às sacas que trazia à garupa do cavalo. Pegou nelas e deixou-as cair pesadamente no solo, aos pés do oficial núbio. As sentinelas
reagiram imediatamente, preparando as lanças para qualquer eventualidade. Ajax agachou-se para desapertar as fitas que fechavam as sacas, e pôs a mão na primeira. Trouxe para
fora um fardo de pano vermelho, e atirou-o ao oficial. Este não se deixou impressionar, e agarrou-o sem hesitar; desdobrou-o para revelar um estandarte vermelho, cortado do
suporte. Trazia escrito "Legado" em letras douradas, e por baixo, manchado por sangue seco, "Cândido".
O oficial sorriu.
- Bem, escravo, conseguiste portanto roubar o estandarte pessoal de um general romano? Impressionante, sem dúvida, mas o meu príncipe precisa de guerreiros, não de vulgares
ladrões.
- Meu amigo, fizemos muito mais do que roubar-lhe o estandarte.
- Ajax procurou no fundo da saca, e agarrou com ambas as mãos numa cabeça decepada. Ergueu-a no ar, segura pelos cabelos, mostrando-a em redor. A pele estava arrepelada, e
as pálpebras semicerradas, deixando ver os olhos mortos. A mandíbula sem força mostrava os dentes arreganhados por trás dos lábios enegrecidos. O ar quente encheu-se do aroma
fétido da decomposição de carne humana, e o oficial torceu o nariz. Deu um passo atrás.
- Apresento-te o legado Caio Cândido, em tempos não muito recuados comandante do exército romano acampado em Diospolis Magna. Tenho na saca também a mão com o anel, uma outra
prova da sua identidade. Na outra saca temos as cabeças dos oficiais que o acompanhavam quando eu e os meus homens atacámos o legado e a sua escolta, há cinco dias.
O interior da tenda do príncipe era espaçoso, e o solo estava coberto por tapetes e almofadas. A luz penetrava por várias aberturas no teto, que era suportado por robustos
postes. Ajax estava de pé a meio da tenda, iluminado de cima, o que criava uma espécie de halo luminoso em torno do seu corpo
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enquanto enfrentava o príncipe. Talmis estava refastelado num cadeirão, ao fundo da sala. Vestia roupas ligeiras, brancas, e exibia vários anéis de ouro nos dedos escuros.
Tal como Ajax, era de constituição sólida, e membros poderosamente musculados adivinhavam-se sob as dobras das suas vestes. A face do príncipe núbio era larga, e mostrava
uma barba finamente aparada que acompanhava a curva do maxilar.
Numa grande salva entre os dois homens viam-se as cabeças dos oficiais romanos, bem como a mão direita de Cândido. Talmis contemplou-as por momentos antes de permitir que
o seu olhar se detivesse no gladiador que aguardava, flanqueado por dois homens da guarda pessoal do príncipe, atentos ao menor dos seus movimentos.
- É costume que os visitantes se ajoelhem perante mim. - Talmis, tal como muitos dos membros mais educados da corte do seu pai, falava grego. O tom que empregava era neutro,
mas Ajax apercebeu-se facilmente da ameaça implícita nas palavras que proferira. Ainda assim, optou por se manter de pé e em silêncio, por forma a obrigar o príncipe a prosseguir
no uso da palavra.
- Gladiador, porque é que não te ajoelhas? Mal posso crer que os teus senhores em Roma não te ensinaram a deferência exigida a um escravo.
- Alteza, há muito que já deixei de ser um escravo - ripostou Ajax com firmeza. - E o mesmo sucede com os meus seguidores. Somos homens livres, pela força das armas. Não reconhecemos
nenhum senhor, e a nenhum Estado somos leais. Eis porque não nos ajoelhamos perante nenhum homem.
- Estou a ver - retorquiu Talmis lentamente, enquanto os seus lábios formavam um ténue sorriso. - Tanta arrogância revela grande destemor, especialmente se tivermos em conta
que se encontram no meu acampamento, desarmados e rodeados pelo meu exército. Se me apetecesse, podia ordenar que te reduzissem a estatura, uma vez que te recusas a ajoelhar
perante mim. E o que faria um homem sem as suas pernas?
- Se me ferissem, teriam de matar também todos os meus homens. E tal ação privar-vos-ia de um útil aliado na vossa luta contra Roma. Sem esquecer os homens que perderiam em
combate, antes de nos destruírem.
- Gladiador, parece-me bem que subestimas a minha guarda pessoal.
- A sério? - Ajax sorriu. Depois, antes que os homens que o rodeavam pudessem reagir, rodou e arrebatou a lança das mãos do da direita, colocando o cabo entre as pernas do
homem e manejando-o de forma a fazer o núbio cair pesadamente de costas. Rodou de novo, a lança segura nas duas mãos, bloqueou o golpe que o outro guarda lhe dirigia ao peito
e no mesmo movimento atingiu-o com a ponta da haste no rosto. Surpreso, o homem permitiu que os seus dedos largassem a lança, que caiu para o
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solo. Ajax colocou o pé por trás da bota do outro e mais uma vez usou o cabo para o derrubar. Fez rodopiar a lança e ficou imóvel sobre o guarda, mantendo a ponta acerada
a dois dedos da garganta do homem. Deixou que tudo se acalmasse, e por fim baixou a lança, pegou na mão do guarda e puxou-o para cima, antes de devolver a lança ao primeiro
dos homens, que mal acabava de se levantar também.
- E a mim, alteza, parece-me que são os gladiadores que são subestimados. - Ajax retomou a posição inicial entre os dois guardas ainda atordoados, que o olhavam agora com
respeito e receio mal disfarçados.
Talmis tinha-se soerguido rapidamente quando vira Ajax desarmar os seus guardas, e a mão crispava-se ainda no punho ornado de uma adaga. Libertou a tensão e soltou uma risada.
- Não devia ter duvidado de ti, de facto. Já tinha ouvido dizer que os escravos guerreiros de Roma eram homens a ter em conta. Vejo agora que tais rumores eram verdadeiros.
- Alteza, já não somos escravos de Roma - insistiu Ajax, em tom calmo mas intenso. - Somos nós a decidir a quem oferecemos os nossos serviços. E neste momento escolhemos servir-vos,
já que a Núbia leva a guerra até às forças romanas.
Talmis contemplou-o em silêncio, antes de assentir.
- Nesse caso, tu e os teus homens são bem-vindos. Ao meu lado haverá sempre lugar para combatentes valorosos. - Fez um gesto largo na direção das cabeças sobre as salvas.
- Conta-me agora como é que encontraste estas... Oferendas. Acho difícil de acreditar que foi apenas um acaso.
- Não o foi, efetivamente - respondeu Ajax. - Eu e os meus homens fomos forçados a escapar pelo Nilo depois de um ataque de surpresa ao nosso acampamento. A nossa presença
tornara-se conhecida, e tivemos de nos manter em constante movimento. Um dos meus homens é núbio, e conhece bem a área do Alto Nilo. Revelou-me que havia por aqui poucas povoações
romanas, e que teríamos melhores hipóteses de escapar aos nossos perseguidores se continuássemos para sul. Ao passarmos por Diospolis Magna, seguindo pelas colinas a leste,
avistámos o exército romano que lá se concentrava. Soube que estava para rebentar a guerra entre Roma e a Núbia e calculei que podia ser acolhido como aliado se vos trouxesse
informações importantes, alteza. Portanto mantivemos o campo romano sob vigilância durante alguns dias, tomando nota do efetivo e do equipamento que têm consigo. Foi então
que a fortuna nos sorriu. Avistámos o comandante romano a deixar o campo na companhia de dois ajudantes, escoltados apenas por um esquadrão de cavalaria. Tomaram a estrada
para sul ao longo do Nilo, e nós seguimo-los. Quando acamparam nessa noite,
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os meus gladiadores atacaram. Matei o legado com as minhas próprias mãos.
- Não pensaste em fazê-lo refém, e exigir um resgate?
- Não. Tive uma experiência pouco feliz com os meus dois últimos cativos romanos. Escaparam-se, pelo que resolvi não fazer mais reféns.
- Nesse caso, o Cândido não te deu sequer oportunidade de o tomar como prisioneiro?
- Eu é que não lhe dei oportunidade de pôr essa possibilidade.
- Estou a ver. - Talmis cofiou o queixo por momentos, enquanto considerava o homem à sua frente. Ajax devolveu-lhe o olhar sem vacilar, sem mostrar quaisquer sinais de nervosismo
ou insegurança. Por fim o príncipe deixou de passar a mão pelo queixo e abriu-a.
- Antes de fazer um pacto com qualquer homem, faço sempre questão de compreender precisamente o que é que o impele a propor-me essa alinça.
- Uma sábia precaução, alteza.
- Também me parece - assentiu Talmis. - A questão que te coloco é: a que se deve esse tamanho ódio a Roma, que de forma tão evidente te percorre cada fibra do corpo?
- Não basta que de facto os odeie profundamente?
- Não. Tenho de saber. - Talmis sorriu ligeiramente. - Concede-me esta graça.
Ajax manteve-se em silêncio por momentos, antes de começar.
- Fui capturado, escravizado e vendido a uma escola de gladiadores. Fui tratado como um brutamontes sem espírito, treinado para matar homens às ordens do meu senhor, para
entreter a turba. Alteza, nunca aceitei essa condição. Nasci livre e livre hei de morrer, e nunca voltarei a ser um escravo.
- Lutas portanto contra a escravatura? Nesse caso serei por certo também teu inimigo, uma vez que tenho milhares de escravos.
- O meu inimigo não é a escravatura - contrapôs Ajax. - Roma, sim, é a minha inimiga.
- O que te torna um homem deveras ambicioso. - Talmis sorriu. - Gladiador, os teus sonhos excedem em muito os teus meios. Não podes ter um inimigo dessa envergadura. Esse
privilégio pertence a reis e príncipes
- não a escravos, a gladiadores ou a meros homens, por livres que sejam.
- Porém, alteza, ainda assim escolho fazer de Roma a minha inimiga. Se um homem não tem a liberdade de escolher os seus inimigos, então não é de todo livre.
Talmis arqueou as sobrancelhas.
- Essa é uma definição de liberdade particularmente extremada...
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Suspeito que existe um motivo bem menos abstrato para o teu ódio a Roma, ou talvez o teu ódio a alguns romanos em particular. Não estou certo?
Ajax manteve-se imóvel um instante, e por fim anuiu.
- Diz-me então o que realmente motiva o teu ódio.
- Alteza, preferia não o fazer - retorquiu Ajax, derrotado. - As feridas são profundas. Não é suficiente que jure servir-vos lealmente, seja qual for a razão que me leva a
tal?
- Não, não é suficiente para mim - ripostou o príncipe com firmeza. - Em troca de te aceitar ao meu serviço, exijo que não me escondas qualquer segredo, e se alguma vez me
traíres, far-te-ei arrancar o coração.
- Fez uma pequena pausa para permitir que a ameaça fosse compreendida. - Diz-me portanto, gladiador, o que te levou de facto a oferecer-me os teus serviços?
Ajax respirou fundo e suspirou.
- Muito bem. Ficai então ciente de que, antes de ser escravizado, eu era um pirata. Uma ocupação ignóbil e digna apenas de um parasita, dirão alguns.
- E com toda a razão.
Ajax cerrou os lábios, e prosseguiu.
- A verdade é que éramos uma irmandade, unida por laços de lealdade e motivada pelo desejo de saquear. Muitos tinham mulheres e filhos. Ligavam-nos os mesmos laços que unem
pessoas noutras quaisquer circunstâncias. A vida corria-nos de feição. Tirávamos a outros tudo aquilo de que necessitávamos, por vezes tirávamos mais do que necessitávamos.
Até que veio o dia em que os romanos decidiram dar-nos caça e exterminar-nos como fariam a uma qualquer praga.
- Como eu o faria, se por acaso fosse o meu reino o alvo das vossas depredações.
Ajax aparentava sentir-se derrotado.
- Sei-o bem, e aceito que é essa a ordem das coisas. Mas seja qual for a opinião que se tenha acerca de mim e dos meus irmãos, ainda assim eram a minha família, os meus amigos,
eram tudo o que eu alguma vez conhecera. E os romanos a tudo destruíram. Queimaram os nossos navios, saquearam a nossa aldeia, massacraram os homens, as mulheres e as crianças.
- Ajax engoliu em seco. - O meu pai foi pregado a uma cruz e deixado à morte. Eu e os outros sobreviventes fomos escravizados.
- E culpas Roma por tudo isso?
- Roma em geral, e em particular os oficiais romanos que executaram o meu pai: Macro e Cato. Tive anos para remoer o meu ódio, até que o destino achou por bem voltar a juntar-nos
durante a recente revolta de escravos em Creta. - Ajax rangeu os dentes. - De novo frustraram os
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meus planos. Sufocaram a rebelião e desde então têm-me perseguido sem descanso, a mim e ao punhado de homens que é tudo o que resta do exército de escravos que liderei contra
Roma.
- É então por isso que aqui estás? Queres que te ofereça refúgio, que te esconda daqueles que te perseguem? - Os lábios do príncipe Talmis distorceram-se em ar de desprezo.
- Ao invés de me ofereceres qualquer benefício com os teus serviços, buscas apenas a minha proteção.
- Não, alteza. Tudo o que procuro é a vingança. Pouco me importa como a alcance, apenas quero viver para a poder gozar, ou morrer livre em busca dela.
- Nesse caso, parece-me que farias melhor em perseguir esses dois oficiais romanos que tanto odeias, em vez de te juntares à minha causa. O que preciso é de soldados, não
de ressabiados que querem apenas usar o meu exército como escudo protetor.
- Alteza, não procuro qualquer refúgio. Servir-vos-ei, e tudo farei pelo bem da vossa causa. Por agora, peço apenas que me seja confiado o comando de uma coluna dos vossos
homens, com que levarei a morte e a destruição ao nosso inimigo comum. Sei combater, e sei liderar homens. Confiai em mim, e prová-lo-ei mil vezes. Além disso, tenho mais
para oferecer, além de mim e dos homens que trouxe até ao vosso campo. Algo que pode muito bem dar-vos uma vantagem na guerra contra Roma.
- E o que poderá isso ser? - quis saber Talmis, com um sorriso divertido. Debruçou-se para a frente. - Que vantagem poderá um escravo fugitivo oferecer-me?
Ajax resistiu à compulsão de sorrir. Tinha um trunfo para aquela negociação, e estava certo de que assim que o príncipe Talmis o conhecesse, aceitaria a aliança de bom grado.
- Tenho um espião no exército romano. Consegui infiltrar nele um dos meus homens, e ele dir-nos-á tudo o que precisamos de saber acerca da força do exército de Roma, e da
disposição que tomará no terreno.
O príncipe Talmis assentiu com vagar.
- Isso é bom. Muito bom, de facto. Muito bem, Ajax, ao que parece, sempre temos alguma utilidade um para o outro. Vou nomear-te como um dos meus oficiais, e dar-te homens
para comandar. Já tinha em mente dar uma lição prévia aos romanos, e tu serás o homem ideal para a oferecer.
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- Hummm. - Macro abanou a cabeça. - Não é propriamente a mais agradável das visões.
Os corpos sem cabeça do legado e de dois dos tribunos jaziam na parte de trás da carroça. Por cima dos cadáveres inchados zumbia uma nuvem de insetos que satisfaziam o apetite
nas excrescências enegrecidas de tendões e ossos que sobressaíam dos golpes que tinham decepado as cabeças, bem como a mão direita de Cândido. Um decurião segurava a cobertura
de pele de cabra e mantinha-se de lado enquanto os seus superiores examinavam o conteúdo da caixa do carro. Cato e Macro estavam a discutir as suas novas tarefas com Aurélio
quando um escriba tinha interrompido, para anunciar que a patrulha enviada em busca do legado tinha encontrado o corpo, bem como os dos homens da escolta.
Cato apertou as narinas e afastou-se do vagão, enojado.
- Onde é que os encontraram?
O decurião fez um gesto vago na direção do sul.
- Numa ravina, a uns cinquenta quilómetros daqui, na estrada para Ombos, senhor. Os homens da escolta estavam todos mortos menos um, mas não tinham sido mutilados. Só os oficiais
superiores é que sofreram tal destino. O sobrevivente está ao cuidado do médico. Está muito maltratado. Cortaram-lhe os tendões das pernas, e passou quase três dias sem pinga
de água.
- Ele disse quem é que os atacou? - quis saber Macro.
O decurião abanou a cabeça.
- Senhor, o homem palrava como uma criança. Não lhe saía uma palavra que se percebesse. Mas o mais provável é que tenham sido árabes. De vez em quando lançam uns ataques a
partir do deserto. Aproveitam bem o tempo que leva a organizar uma coluna para os expulsar para as areias. Mas, isto dito, é estranho que tenham escolhido um alvo como o legado
e a escolta. Um combate renhido, e pouco saque.
- Depreendo que não encontraste outros corpos que não fossem os dos nossos homens?
- Não, senhor. Mas os árabes nunca deixam os seus mortos para trás,
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a não ser que seja de todo impossível levá-los. Ajuda a manter os nativos nervosos, julgam que os árabes são uns espíritos malignos que surgem do nada, matam e voltam a desaparecer
à sua vontade.
- Nesse caso, não poderão ter sido os núbios? - sugeriu Cato.
- É possível, senhor. Mas segundo o último relatório a que tive acesso, ainda estavam acampados perto da catarata. É verdade que podem ter levantado o acampamento sem darmos
por isso, ou podem ter enviado uma coluna avançada para colher informações e flagelar os nossos postos. Mas ainda acho que os árabes são os mais prováveis culpados. - Fez
uma pausa. - Podem ter levado as cabeças e a mão com o anel aos núbios, para comprovar o feito e recolher alguma recompensa. Ou pode ser até que o príncipe Talmis tenha recrutado
alguns mercenários árabes para o seu exército.
- Seja, então, os árabes - interveio Aurélio. - Assim que acabarmos de tratar dos núbios, enviaremos contra eles uma expedição punitiva. Que nada poupará. - Fez um gesto para
o decurião. - Cobre-os. Leva-os para os aposentos do legado. Recolhe os seus objetos pessoais para os enviar às famílias, e depois diz ao pessoal médico que prepare os corpos
para a cremação.
- Sim, senhor. - O decurião puxou o couro para cima dos cadáveres e trepou para o banco do condutor. Deu um estalo com a língua e um puxão nas rédeas, incitando as mulas a
começarem a andar, fazendo o vagão mover-se pesadamente, e saindo pelo portão do recinto dos sacerdotes.
Aurélio ficou a vê-lo afastar-se. Os dedos da sua mão esquerda estremeceram involuntariamente antes de ele se virar para Cato e Macro com uma expressão ansiosa.
- Bem, isto explica o desaparecimento do legado.
Era uma observação pouco feliz, e ele apercebeu-se disso de imediato, franzindo o sobrolho. Cato entendeu perfeitamente o choque que a morte do legado tinha causado no mais
próximo dos seus subordinados.
- Conhecia bem o legado?
Aurélio assentiu.
- Há oito anos que servíamos juntos.
- Há tanto tempo? - Macro espantou-se. - Desculpe, senhor, é só porque nunca soube de um legado que tenha passado tanto tempo numa mesma legião.
- Sim, pois, as coisas são um tanto diferentes aqui no Egito - respondeu o prefeito do campo, na defensiva. - O Cândido foi nomeado pelo Imperador Tibério, no fim do reinado.
Os comandantes das legiões do Egito e o governador são escolhidos na classe equestre. Não é permitido aos senadores ocuparem aqui postos tão elevados. Aliás, nem sequer lhes
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permitido entrarem na província sem autorização expressa do Imperador. Por isso, as nomeações no Egito tendem a ser duradouras.
- E no seu caso, senhor? Não foi com certeza prefeito do campo durante todo esse tempo.
- De facto, não fui. Tenho este posto há três anos. Antes disso, era centurião; primeira lança, claro.
Macro deitou uma olhadela a Cato, sem esconder o choque que sentia. O centurião mais antigo de uma legião era, por tradição, o mais corajoso, o mais duro, o mais experiente
dos oficiais. A figura magra e diminuta de Aurélio estava envolta numa fina túnica, e a couraça tinha entalhes de ouro e prata. Mas, ao contrário do que acontecia com Macro
e Cato, ele não ostentava um arnês de cabedal onde aplicar as medalhas recebidas por demonstrações de coragem e batalhas vencidas. Em qualquer das legiões em que Macro tinha
servido, quer o prefeito do campo quer o primeira lança eram combatentes experimentados, cujos peitos estavam cobertos de medalhas.
- Senhor, foi primeira lança?
- Fui, sim. - Aurélio franziu o sobrolho. - Já sirvo há muito tempo, sabes?
Macro preparava-se para retorquir quando Cato tossiu de forma audível, avisando o amigo para se manter calado. Antes que o veterano resolvesse ignorar a chamada de atenção,
Cato tomou a palavra.
- Senhor, quais são agora as suas intenções?
- As minhas intenções?
- Sim, senhor. É o seguinte na cadeia de comando. Com Cândido morto, passa a ser o comandante das forças reunidas aqui em Diospolis Magna.
- Evidentemente que sim - ripostou Aurélio. - Sei-o perfeitamente.
Manteve-se imóvel por instantes, contemplando as próprias botas, e
acabou por assentir para si mesmo.
- Vou convocar os oficiais superiores. Têm de ser informados da morte de Cândido. E depois vamos tratar dos núbios. - Ergueu o olhar, empertigou-se e limpou a garganta. -
Meus senhores, encontrar-nos-emos aqui no quartel-general, ao meio-dia. - E com este anúncio virou-se e marchou para a entrada do complexo dos sacerdotes.
Cato ficou a vê-lo ir-se e não resistiu a comentar, quase em surdina.
- O que acha então do nosso novo legado?
Macro passou a mão pela testa encharcada em suor.
- Bom, tenho de dizer que não me sinto particularmente encorajado. Parece-me que o homem passou toda a carreira a dar à pena. Nunca vi nada como esta Vigésima Segunda. Deve
ser a unidade mais descansada de todo
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o exército de Roma. Pavoneando-se pelo Nilo, enquanto os oficiais ficam de papo para o ar à espera de vez para serem primeira lança ou prefeitos do campo. Deuses! - Abanou
a cabeça, frustrado. - Só espero que o resto dos oficiais não seja igual. Nem os homens. Digo-te já, Cato, não me agrada nada marchar para o combate contra os núbios apenas
com um bando de burocratas indolentes por companhia.
Cato anuiu enquanto o olhar se lhe perdia na paisagem, e Macro lançou um suspiro, resignado.
- Ora muito bem, o que se passa?
- Desculpe? - Cato pareceu regressar de longe, olhando para o amigo quase sem reparar nele.
- Conheço esse olhar. O corpo está aqui, mas o pensamento está algures, perdido, levado pelas musas. Vá, no que é que estavas a pensar?
- Devíamos ir falar com o sobrevivente da emboscada.
- Porquê?
- Há qualquer coisa de estranho nesta história. - Cato mordeu o lábio. - O decurião pareceu-me um tipo competente, e não dava nada a sensação de estar convencido de que tivessem
sido os árabes ou os núbios os responsáveis pela morte do legado. Vamos, Macro.
O hospital tinha sido instalado num pavilhão grande e arejado, nas traseiras do complexo do templo. O médico da legião fazia a ronda pelos homens que constavam da lista de
doentes quando Cato e Macro o localizaram. Como muitos dos que ocupavam aquela posição nas legiões espalhadas pelo Império, o médico era um oriental. A face escura era orlada
por pelos grisalhos e curtos, no cabelo e na barba. As rugas da pele denunciavam os longos anos que levava de profissão. Olhou para os dois oficiais com pouca simpatia, enquanto
ouvia o pedido de Cato para ver o ferido que tinha sido levado para o hospital havia pouco tempo.
- Está a descansar. O homem está exausto, e não deve ser incomodado.
- Não lhe tomaremos muito tempo. Só preciso de saber uma coisa. Depois pode descansar o que for preciso.
- Não - retorquiu o médico com firmeza. - Quando ele estiver em condições de falar, enviar-lhe-ei uma mensagem. - Fez uma pausa para o avaliar com mais cuidado. - Não vos
reconheço. Devem ter sido colocados nos Chacais há pouco tempo.
Cato assentiu.
- Tribuno-mor Cato e centurião Macro, Primeira Lança.
- Tribuno-mor? - O médico não escondeu a surpresa, mas apressou-se a baixar a cabeça. - Senhor, as minhas desculpas. Pensei que se tratava de um oficial de mais baixa patente.
Macro suprimiu a custo um sorriso.
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Cato ignorou-o, dirigindo-se ao médico.
- Etués...?
- Archaelus, senhor, médico-chefe.
- Bem, Archaelus, tenho mesmo de falar com o teu paciente. Com urgência.
- Compreendo, senhor, mas, na minha opinião profissional, submeter o homem a novas tensões será francamente prejudicial à sua recuperação, talvez mesmo à sua sobrevivência.
Cato sentiu que se lhe tinha esgotado a boa vontade, e resolveu endurecer o tom.
- Não tenho tempo para discutir essas questões. Ordeno-te que me conduzas até ao paciente. E já.
Sendo médico-chefe, Archaelus tinha uma patente equiparada a um centurião, pelo que era subordinado do tribuno-mor da legião. Tinha-lhe sido dada uma ordem direta, e não podia
fazer outra coisa senão obedecer. Embora com relutância, baixou a cabeça e indicou.
- Se me quiser seguir, senhor.
Virou-se e conduziu-os por entre as colunas do pavilhão, até à parte mais recatada da estrutura, onde os sacerdotes organizavam os seus banquetes nos tempos em que Karnak
estivera no auge da influência. Ao contrário de muito do resto do complexo, ali as paredes estavam cobertas com símbolos pintados. O teto era azul-escuro e coberto de estrelas
de cinco pontas, amarelas, representando o firmamento. Tinham sido colocadas cortinas em torno dos homens em estado mais desesperado, de forma a manter à distância o vento
quente e a poeira.
- Aqui está o vosso homem. - Archaelus indicou um soldado deitado, nu à exceção de uma tanga, numa enxerga que se situava em pleno salão de banquetes. Ao lado estava sentado
um dos enfermeiros, que lhe ia colocando um unguento na pele queimada pelo sol. Viam-se bolhas na face do legionário. A pele do homem era mais clara que a da maior parte dos
outros, e Cato adivinhou que ele devia ser de Alexandria. Para lá das queimaduras no rosto e nos membros, as coxas estavam envoltas em ligaduras, e tinha um penso num dos
lados do peito. Por baixo das bolhas e do unguento, era evidente que o soldado era esbelto, com uma perfeita estrutura de rosto.
- Como é que ele se chama? - quis saber Cato.
- Optio Caráusio.
Cato olhou em volta, viu um banco e puxou-o para o lado da enxerga. Sentou-se e debruçou-se sobre o optio. A respiração do homem era ténue e ofegante, e o cenho estava franzido.
O suor orlava-lhe a testa, e o cabelo escuro estava colado ao crânio em caracóis espessos.
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- Está com febre - observou Cato.
- Sim, senhor. As feridas não foram limpas até ele chegar ao hospital. Temo que estejam pútridas. Mas pode ser que ele ainda recupere.
- Isso é provável? - indagou Macro.
O médico encolheu os ombros.
- Fizemos tudo o que podíamos por ele. A vida do optio está nas mãos dos deuses. Fiz uma pequena oferenda a Serápis em seu nome. Se for aceite, talvez ele viva. Mas mesmo
que isso suceda, será um aleijado para o resto da vida. - Archaelus indicou as pernas envoltas em ligaduras. - Os atacantes cortaram-lhe os tendões, de forma a que não pudessse
abandonar o local da emboscada. Parece que queriam que ele sobrevivesse e fosse encontrado.
Cato olhou para Macro.
- Já encontrámos esse tipo de atuação antes.
Macro franziu o sobrolho. Mas a sua expressão mudou rapidamente quando percebeu a ideia do amigo.
- Estás a dizer que foi ele, o Ajax? Foi ele que fez isto?
- Pode muito bem ter sido. Seguimo-lo pelo rio acima até Mênfis, onde a pista desapareceu. Ele pode muito bem ter prosseguido pelo Nilo acima até chegar aqui. E é certamente
ousado o suficiente para se atrever a atacar o legado e o seu grupo, e capaz de prevalecer. Até deixou alguém para contar a história.
- Só que desta vez não nos pode mandar as culpas para cima - rosnou Macro. - Mas para quê levar as cabeças? Ele é um sacana cruel e alucinado, já sei, mas não fez uma desta
antes.
- Talvez o decurião tenha acertado quando falou dos árabes. Não é impossível que o Ajax tenha levado as cabeças como prova do que fez, para as oferecer aos núbios.
Cato voltou-se de novo para o optio e inclinou-se mais sobre ele. Falou com suavidade.
- Caráusio... Ouves-me?
O soldado não deu sinal de vida, pelo que Cato lhe colocou com toda a gentileza uma mão no ombro antes de voltar a interpelá-lo.
- Caráusio... Tens de me dizer quem vos atacou.
Com um gemido fraco, o homem virou a cabeça para longe de Cato e soltou um murmúrio.
- O quê? - Macro deu a volta à enxerga e debruçou-se também. - O que é que disseste? Repete lá.
Archaelus interveio.
- Centurião, não exagere.
Cato ignorou o médico, e sacudiu levemente os ombros do optio.
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- Diz-nos. Quem é que vos atacou?
Os olhos do optio entreabriram-se, cerraram-se e voltaram a abrir-se, dardejando em volta enquanto o homem tentava falar com os lábios ressequidos.
- Não tivemos... Hipótese - sussurrou. - Eles... Eram como... Demónios. Foi ao escurecer. - A voz soçobrou em murmúrios incompreensíveis.
Cato aguardou um instante e voltou a tentar.
- Quem?
O legionário rolou a cabeça lentamente até encarar Cato, e lambeu os lábios.
- Não deu nome. Só disse que era um gladiador. - Fez uma pausa, estremecendo perante uma vaga de dor. Depois de ela passar, voltou a focar o olhar. - Um gladiador...
- Que mais? - insistiu Cato. - Vá. Faz um esforço.
- Disse-me para garantir que... Cato e Macro ficavam a saber que... Era ele.
- Caráusio, agradecemos-te. Descansa. - Cato endireitou-se e encarou Macro. - Pronto, já sabemos.
Macro assentiu.
- E manda-nos um desafio direto. Pensemos dele o que quisermos, temos de admitir que o sacana tem tomates de aço.
Archaelus pigarreou para se fazer notar.
- Ao que parece, já têm a informação que procuravam. Importam-se de prosseguir a discussão noutro local?
Cato ergueu-se e fez sinal a Macro, e os dois deixaram o salão e saíram do pavilhão para o brilho ofuscante do Sol. A luz agressiva obrigou-os a semicerrar a vista até que
os olhos se ajustassem.
- Vendo isto pelo lado bom, ao menos sabemos que ele anda por perto - começou Macro.
- É verdade, mas não me consola por aí além. E se ele se juntou aos núbios, temo bem que a nossa posição se tenha de repente tornado bem mais difícil.
Os prefeitos das quatro coortes auxiliares, bem como os centuriões da Vigésima Segunda Legião e os tribunos que ainda restavam, sentavam-se em bancos corridos sob as arcadas
numa das extremidades do lago no quartel-general do exército. A notícia da morte de Cândido tinha-se espalhado pelo acampamento, e os homens trocavam impressões em vozes baixas
e cheias de ansiedade. Cato e Macro sentavam-se ligeiramente à parte, e o último avaliava os outros oficiais com um olho crítico.
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- Demasiados velhos e demasiada gente mole, sem qualquer capacidade física.
Cato não comentou, embora soubesse que o amigo tinha razão. Os longos anos de trabalho de guarnição sem enfrentar problemas sérios tinham amolecido os homens da Vigésima Segunda.
Muitos dos oficiais estavam a ficar gordos - havia um espaço evidente entre as placas frontais e dorsais das suas couraças, e estas mal conseguiam acomodar os ventres proeminentes.
Os queixos anafados e os narizes avermelhados traíam o seu apetite pelo vinho. Outros havia que lembravam mais a Cato os centuriões que estava acostumado a encontrar noutras
legiões em que tinha servido desde que entrara para o exército. Homens de físico poderoso, que aparentavam a solidez e os modos imperturbáveis do centurionato. Esses pelo
menos pareciam capazes de desempenhar o seu papel quando a campanha começasse. Ainda assim, Macro tinha razão quando fazia notar que demasiados pareciam estar já próximos
da fase final das suas carreiras. Era triste ver como a prontidão de uma legião para o combate podia ser tão francamente erodida pelos benefícios de uma paz prolongada.
Ouviu-se um estrondoso bater de botas quando as sentinelas à entrada das arcadas se puseram em sentido, e um optio berrou.
- Comandante na sala!
Os oficiais levantaram-se e puseram-se em sentido, enquanto Aurélio percorria o comprimento do lago, o reflexo a oscilar na superfície da água que ondulava devido a uma ligeiríssima
brisa quente. Tomou lugar por trás de uma mesa de campanha e percorreu com o olhar os oficiais, de forma teatral, como se os visse pela primeira vez.
- Senhores, sentem-se.
Os oficiais voltaram a sentar-se e aquietaram-se, à espera do início do discurso. Aurélio levava uma tábua encerada na mão, que colocou na mesa à sua frente; deitou uma olhadela
às notas que tinha rabiscado na cera. Macro assistiu a tudo aquilo com ar pouco satisfeito. Preferia comandantes capazes de se dirigir aos seus homens sem recurso a notas,
como se as palavras lhes viessem do coração. Aurélio tinha-se revelado um daqueles oficiais que não acreditavam na sua própria autoridade, e que precisavam de ajudas para
os fazer ultrapassar aquelas ocasiões de afirmação. Não era de todo bom sinal, concluiu.
Aurélio ergueu o olhar e tossicou.
- Como todos já ouviram com toda a certeza, o legado está morto. Ele e a sua escolta foram atacados há poucos dias, quando seguiam a caminho de Ombos. Todos foram massacrados.
Se isto ocorreu às mãos de bandoleiros árabes ou de uma patrulha núbia, não sabemos ainda... - Fez uma pausa e engoliu em seco. - Como prefeito do campo da Vigésima Segunda
Legião,
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e portanto o mais antigo dos oficiais presentes, o comando do exército compete-me. É assim meu dever conduzir as nossas forças contra os núbios e terminar a tarefa começada
pelo legado Cândido: expulsar o inimigo da nossa província, de forma rápida e definitiva.
Cato reparou que havia vários oficiais a acenar com a cabeça à laia de concordância com as intenções do comandante, mas a maior parte não se manifestava. Alguns pareciam apreensivos,
e outros trocavam impressões com os vizinhos, em surdina.
Aurélio prosseguia.
- Para tal, vou rever e finalizar os planos para a campanha com o meu estado-maior, logo a seguir a esta reunião. As ordens para os oficiais superiores serão distribuídas
amanhã pela alvorada. Por falar em oficiais, é com prazer que vos apresento os mais recém-chegados à legião. Primeiro, o meu novo tribuno-mor. - Fez sinal a Cato para se pôr
de pé. - O Cato acaba de chegar de Alexandria; foi o próprio governador que o colocou na Vigésima Segunda pelo tempo que durarem as hostilidades. Apesar da sua tenra idade,
o governador assegura-me que o nosso novo tribuno tem uma excelente folha de serviços. Tal como sucede com o meu novo primeira lança. Por favor, centurião Macro.
- Não sou nenhum fantoche para subir e descer à vontade - resmungou Macro para si mesmo enquanto se levantava e encarava os outros oficiais, sem mexer os lábios.
- Podem sentar-se - anunciou Aurélio, magnânimo. Quando Macro e Cato voltaram a instalar-se, o novo comandante olhou para o conjunto dos seus oficiais mais uma vez e assentiu.
- Senhores, estamos perante um tremendo desafio. Já muito tempo passou desde que a legião e as coortes auxiliares da província foram chamadas a demonstrar o seu valor. Haverá
por certo quem considere que nos tornámos moles, que os soldados desta província não se podem comparar com os que zelam pelos interesses de Roma no resto do Império. - Fez
uma pausa, que aproveitou para consultar a sua tábua. - A esses digo: estão enganados. O nosso dia chegou, e vamos mostrar ao resto do Império tudo de que os soldados da província
do Egito são capazes. Ouvi dizer que o inimigo nos supera em número. Melhor ainda. Maior glória se coloca ao nosso alcance. - De novo deitou uma olhadela à tábua, e sorriu.
- Os olhos do Imperador estão sobre nós, meus amigos. O Império Romano contempla-nos com a respiração suspensa. Depois de termos alcançado a grande vitória que nos espera,
nunca mais o Império nos esquecerá, e todos os homens aqui presentes viverão banhados em glória até ao dia da sua morte!
Aurélio ergueu o punho no ar. Um pequeno número de oficiais imitou-o de imediato, no que foram seguidos por mais alguns, ansiosos por
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obter os favores do novo comandante. Os mais experimentados e de ar mais profissional limitaram-se a acenar ou a aplaudir sem entusiasmo. Outros ainda, notou Cato, mantiveram-se
sentados e impassíveis. Quando Aurélio concluiu que já tinha recolhido toda a aclamação que podia esperar, ergueu as duas mãos e pediu silêncio.
- Senhores, é tudo, por agora. Estão dispensados.
Os homens começaram a levantar-se e a dirigir-se para a saída num burburinho crescente, passando por entre as colunas. Macro virou-se para Cato.
- Um orador e peras, o nosso prefeito do campo - disse, em ar de gozo. - Nem um olho ficou seco na sala, embora por mim isso se tenha devido ao embaraço. Que pileca.
- Acho que foi sentido. Todas as palavras que o homem disse.
- Não estás a falar a sério?
- Oh sim. Ele sabe que, como mais um oficial anónimo, o seu nome nunca ficará para a posteridade, por muito competente que possa ser. Esta é a sua oportunidade para alcançar
algum renome. Isto tem todo o potencial para se tornar uma situação perigosa, Macro.
- A sério? E eu a pensar que o facto de estarmos em inferioridade numérica, de os nossos soldados serem de qualidade questionável, e de que é agora muito provável que o Ajax
se tenha juntado aos núbios já queria dizer que a coisa estava perigosa.
Cato franziu-lhe o cenho.
- Seja, então ainda se pode tornar mais perigosa. Contente? Venha, temos de falar com o Aurélio.
- Sobre?
- Temos de o convencer a amainar a sua sede de glória. - Cato rodeou a ponta do lago e dirigiu-se para a mesa onde Aurélio ainda conversava com um grupo de oficiais, alguns
dos quais já tinha visto no quartel-general desde que tinha chegado. Aurélio virou-se para os dois amigos quando eles se aproximaram, e sorriu calorosamente.
- O que acharam da minha pequena intervenção?
- Inspiradora - respondeu Cato, sem se descair.
- De facto. Estava à espera de poder fazer um discurso destes há muito tempo - prosseguiu Aurélio, em tom satisfeito. - Confesso que fui muito influenciado por um livro que
li na Grande Biblioteca há uns meses. Discursos de batalha dos grandes comandantes militares da História. Um trabalho menor de Lívio, mas muito bem escrito. Mesmo o que era
preciso para agitar o sangue dos homens, hein? - Deu umas palmadinhas no peito de Cato.
- Não tive ocasião de o ler, senhor - confessou o jovem. - Talvez o
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faça quando a campanha terminar. Por falar nisso, gostaria de ter oportunidade de conhecer os seus planos para ela. Suponho que seguirá os procedimentos normais e que portanto
me consultará a mim e ao primeira lança na redação das ordens para o exército, senhor.
Um breve olhar de irritação perturbou a expressão facial de Aurélio.
- Não há necessidade de tal, tribuno Cato. Os planos foram estabelecidos pelo legado e pelos seus mais próximos colaboradores. Agora estão todos mortos. De todos aqueles em
que Cândido confiou quando elaborou a sua estratégia para derrotar os núbios, resto apenas eu. - Fez uma curta pausa. - Claro que posso julgar necessário fazer alguns ajustamentos,
mas já tenho os meus conselheiros. - Indicou os quatro homens que aguardavam de pé junto à mesa. - Portanto, não será necessário incomodar-vos com pedidos de aconselhamento.
- Não incomoda de todo, senhor. Ficaríamos contentes se tivéssemos ocasião de lhe oferecer os benefícios da nosssa considerável experiência.
- Considerável experiência? - Aurélio sorriu sem vontade. - Tribuno, muito provavelmente estes homens e eu já servíamos o Imperador quando não passavas de uma criança a mamar
no peito da tua mãe. Acho que a experiência que acumulámos entre nós é capaz de ser suficiente. Mas agradeço o teu empenho, de qualquer forma. - Os olhos rebrilharam quando
outro pensamento lhe passou pela ideia. - Ainda assim, tenho toda a vontade de aproveitar as tuas capacidades, bem como as do centurião Macro. Apreciaria sobremaneira que
se encarregassem do regime de treino da legião. Os homens são já excelentes soldados, mas um pouco de exercício e prática com as armas vai afinar-lhes o ânimo, creio bem.
Aqui o Macro tem o aspeto severo de um bom instrutor e calculo que também tenha a voz adequada. Permitam portanto que a Vigésima Segunda beneficie assim da vossa experiência,
sim? Deixem o planeamento das operações para os que têm servido no Egito e conhecem perfeitamente o terreno.
- Senhor, não é assim tão simples - ripostou Macro. - Temos boas razões para acreditar que o escravo fugitivo que o prefeito... o tribuno Cato e eu perseguíamos antes de termos
sido colocados na legião se juntou aos núbios.
- Ah sim? E como vos chegou ao conhecimento essa informação?
- Interrogámos o sobrevivente da emboscada, senhor. Ele disse-nos que o ataque que os vitimou foi conduzido por um gladiador, e que só o deixaram vivo para que pudesse contar
a história.
- Disparate - contrariou Aurélio com firmeza. - O homem delira. Ouviram o decurião dizê-lo esta manhã.
- Senhor, quando falámos com ele, estava suficientemente lúcido - interpôs Cato. - E se o Ajax se aliou aos núbios, julgo que é vital que nós,
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que já o combatemos anteriormente e lhe conhecemos os métodos, estejamos envolvidos no traçar dos planos para a campanha.
Aurélio abanou a cabeça.
- A mim parece-me que o facto de vocês não terem conseguido seguir e capturar esse homem é um testemunho eloquente do vosso falhanço na compreensão dos seus métodos, tribuno.
Talvez seja este o momento de uma mente fresca se entregar a tal tarefa. Entretanto, gostaria que tu e o centurião Macro se encarregassem do treino. Quero um relatório completo
sobre o esquema que pensam utilizar, e uma projeção exata do número de homens que estarão em condições de marchar quando a campanha se iniciar. Gostaria de ver esse relatório
na minha secretária o mais cedo possível.
- Ofereceu-lhes um sorriso fugidio. - Penso que depressa compreenderão que temos o inimigo bem estudado, sem precisão dos conselhos que tão prodigamente se dispuseram a prestar-nos.
É tudo, senhores.
- Sim, senhor. - Cato fez a saudação, no que foi seguido por Macro, depois de uma breve hesitação. Rodaram sobre os calcanhares e afastaram-se rapidamente de Aurélio e dos
seus ajudantes.
- Por que raio não disse mais nada, senhor? - quis saber Macro, em surdina.
- Disse, caso não tenha reparado.
- Como é que ele se atreve a despachar-nos desta forma? - explodiu Macro. - Em particular no seu caso. Nenhum comandante das legiões se lembraria de ignorar os conselhos do
seu tribuno-mor e do primeira lança. A não ser que não valha nada como comandante.
- Macro, trata-se apenas de um costume. Ele não tem nenhuma obrigação regulamentar de nos consultar.
Macro manteve-se em silêncio, até olhar para o amigo.
- Foda-se, senhor, tinha toda a razão.
- Tinha? Sobre?
- A situação tornou-se mesmo mais perigosa.
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20

Cinco dias mais tarde, Cato e Macro estavam ao lado da parada improvisada à saída do complexo do templo. A tarde já ia avançada, e a habitual brisa do deserto fazia rodopiar
a poeira levantada pela Primeira Coorte da legião, que percorria o circuito com o equipamento completo e ainda as trouxas pessoais. Alguns dos homens já tinham ficado pelo
solo, exaustos, e tinham tido de ser levados para recuperarem à sombra da muralha exterior de Karnak. Os atrasados eram incentivados pelos centuriões e optios que Macro tinha
selecionado para servirem de instrutores. Alguns tinham servido noutras legiões e ainda preservavam os valores de dureza e rusticidade que neles tinham sido instilados antes
de serem colocados no Egito. Berravam insultos e ameaças aos ouvidos dos legionários, e não se acanhavam no uso das varetas para forçar os homens a continuar.
Macro contemplava a cena embevecido.
- Até parecem os bons velhos tempos. Não há nada que eu mais goste do que preparar homens para a batalha.
- Nada? - indagou Cato com uma expressão de zombo.
- Ora, pronto, também há o vinho e as mulheres. Não sou assim tão esquisito. Arranjem-me uma amazona beligerante e amiga da pinga, e morrerei feliz.
Cato soltou uma gargalhada e voltou a sua atenção para os homens extenuados, quando estes passaram junto aos dois oficiais.
- Em que condição está a Primeira Coorte?
Macro coçou o queixo.
- A maior parte dos homens está em razoável forma. Passaram um mau bocado nos dois primeiros dias, mas redescobriram para que servem as botas. Estão prontos para a campanha.
O treino de combate é que é mais complicado.
- Oh?
- A técnica está lá. Pelo menos tiveram treino básico com as armas. O problema é que algumas formações estão pouco sólidas. Quando pus cada centúria a formar um testudo, havia
buracos tão grandes que se podia enfiar um aríete por eles. Porra, aquilo parecia mais um passador de pernas
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para o ar do que uma tartaruga. Estão a melhorar, claro, agora que pus os oficiais mais capazes a tratar do caso.
- E quanto aos outros? - quis saber Cato. - Ainda há oficiais a pedir escusa dos seus deveres?
Macro anuiu, com ar sombrio.
- Quando lhes disse para se juntarem aos homens esta manhã, recusaram. Dei-lhes uma ordem, e aquele gordo imprestável, o Esquer, foi logo ter com o Aurélio, a solicitar que
ele e os outros fossem dispensados.
- Macro apontou discretamente para os oficiais sentados à sombra de um pequeno santuário, na outra ponta da parada. - Voltaram logo com uma permissão escrita.
Um escravo mantinha-se de pé junto ao grupo, refrescando os homens graças a um leque de grandes dimensões, feito de folhas de palmeira entrelaçadas, que abanava sem descanso;
ao colo dos oficiais podiam ver-se mulheres, que soltavam risadas em resposta aos afagos dos homens. Macro fungou com desprezo.
- Filhos da puta descarados.
- De facto - concordou Cato. - Não faz bem nenhum aos homens verem os seus oficiais a mandriar desta maneira. E nós também. Macro, acho que temos de dar o exemplo.
- Senhor, o que tem em vista?
- Amanhã de manhã manda distribuir equipamento de marcha a todos os oficiais, estejam ou não dispensados do treino. Eu e você incluídos. E já agora, procure o Hamedes, ele
que venha connosco.
- O Hamedes? - Macro sorriu. - Há dias que não lhe ponho a vista em cima. Olha que sacaninha, também anda a baldar-se ao treino.
- Pediu-me licença para visitar os templos desta área. Disse que conhecia alguns sacerdotes por aqui, e queria ver se encontrava uma posição para quando a campanha terminasse.
- E está a fazer essa prospeção enquanto recebe como batedor, imagino.
- Claro.
- Bom, então terá de justificar o salário. Amanhã de manhã, sou eu mesmo quem o traz para a parada. - Macro esfregou as mãos, imaginando a cena. - Que tipo de atividade tem
em mente?
- Uma marcha de treino ao longo do Nilo para a Primeira Coorte. A cabeça da coluna seguirão os oficiais mais antigos, e o Hamedes, onde os homens os possam ver; e os instrutores
vão ter indicações para não pouparem os oficiais.
Macro olhou para o amigo com uma expressão de assombro.
- O que pensa conseguir com isso?
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- Pense nisto como uma experiência de separação. Veremos se conseguimos separar o trigo do joio. - Cruzou os braços e voltou a prestar atenção aos homens da coorte. - E quanto
às outras coortes?
- O cenário é similar. As que são lideradas por bons oficiais hão de estar prontas, ao fim de mais uns dias de treino duro. As unidades problemáticas são a Sétima e a Nona
Coortes. São comandadas por uns comparsas do Aurélio.
- Coloque-as na lista para a marcha de amanhã. As outras coortes podem fazer o exercício nos dias seguintes.
- Sim, senhor. - Macro sorriu brevemente. - E quanto às unidades auxiliares?
Macro tinha sido colocado à frente do treino da legião, mas Aurélio tinha-lhe ordenado que deixasse o treino das coortes auxiliares nas mãos dos respetivos prefeitos. Cato
tinha, no entanto, a supervisão de todo o processo. Respirou fundo.
- As duas coortes de infantaria estão numa condição razoável. Os prefeitos andam a ver se arranjam maneira de provar o seu valor e conseguir uma promoção. Portanto, mantiveram
os homens em prontidão. A coorte montada síria é de primeira categoria. Sabem cuidar dos cavalos e manobram bem. Já a alexandrina é um caso diferente. Têm a mania que são
melhores que os outros, e o prefeito parece que julga que os seus homens descendem diretamente dos Companheiros de Alexandre. Bebem como uns desalmados, e a disciplina é questionável.
Porém, não lhes falta empenho. Só espero que mostrem alguma coisa quando o exército se puser em andamento. Nessa altura terão inúmeras oportunidades para se revelarem tão
bons como se julgam.
- Ou então descobrem que não passam de um magote de vermes sem coluna vertebral, e pisgam-se do campo de batalha.
Cato encolheu os ombros, incomodado. Os dois homens mantiveram-se em silêncio, até Macro voltar a falar.
- Na questão do planeamento, alguma sorte com o novo legado?
- Não. Continua a recusar-se a consultar-me. Perguntei-lhe quando tenciona sair com o exército, e ele limitou-se a responder-me que o exército avançará para o terreno quando
a situação for propícia.
- Propícia? - Macro admirou-se.
- Recusou-se a clarificar o termo, quando eu lhe pus a questão. O problema é que será bem melhor que ele dê essa ordem depressa, a não ser que queira que o inimigo tenha os
movimentos livres por toda a província, daqui à catarata. Já avançaram sobre Ombos. O último relatório da guarnição anunciava que os núbios se preparavam para cercar a cidade.
E mesmo assim, o Aurélio recusou mexer-se.
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- Parece-me que o nosso comandante, tão sedento de glória há tão poucos dias, está a perder a audácia.
- Talvez. - Cato não se sentia bem a criticar o comandante da força. A realidade era que, nos últimos dias, se tinha começado a aperceber da vulnerabilidade da sua posição.
A promoção tinha-o elevado a um posto em que devia partilhar alguma da responsabilidade na forma como decorria uma campanha. Antes da supressão da revolta em Creta, ele e
Macro não passavam de oficiais subalternos, a quem era indicado onde ir e quem combater. A estratégia era fundamentalmente determinada por homens em posições mais elevadas
na hierarquia, e oficiais como os dois amigos só tinham de executar as ordens. Agora, Cato tinha não apenas a patente, mas também a experiência de comando, o que não impedia
que continuasse a ser olhado como um novato ou, pior ainda, como um tipo ultra-ambicioso. De que outra forma poderia alguém da sua idade ter chegado àquela patente, a não
ser que não permitisse que nada se pusesse no caminho da sua ambição? Essa era a pergunta que não deixariam de se colocar todos os que o viam como um rival, e que serviria
de base para lhe negarem toda e qualquer cooperação. Era um fardo que pesava duplamente, considerou Cato, especialmente porque nunca tinha procurado a promoção até àquele
posto. Tinha-lhe sido outorgado por homens que tinham apreciado os seus feitos no passado. A inveja de homens como Aurélio só serviria para evitar que ele prestasse o melhor
serviço possível aos interesses de Roma; e ao mesmo tempo, gente daquele género não hesitaria em denegri-lo para manter o seu próprio prestígio.
Depois da morte de Cândido, era Aurélio o mais poderoso homem no Nilo a sul de Mênfis. Se Aurélio se lhe opunha, a única saída era apresentar uma queixa ao governador Petrónio,
em Alexandria. Cato não tinha patronos na província. O seu mais próximo amigo com alguma influência era o senador Semprónio, mas estava em Creta - partindo do princípio de
que o senador não tinha já renunciado ao posto temporário, e não ia a caminho de Roma. Estava portanto por sua própria conta, concluiu. Se queria realmente ter alguma influência
na forma como a campanha era planeada, tinha de encontrar forma de contornar a má-vontade de Aurélio. Talvez fosse aquele o verdadeiro teste a quem era promovido aos mais
altos escalões. Já não seria julgado apenas pela sua aptidão para desempenhar o papel de um instrumento de guerra. Tinha chegado o momento em que o talento para a política
assumia uma importância similar e vital.
- Ah, eis o chefe dos meus oficiais! - Aurélio acolheu Cato quando este se aproximou da secretária instalada junto à ponta do lago. Tochas ardiam em argolas nas colunas, iluminando
o espaço com um tom dourado. Lá fora,
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o Sol tinha acabado de se pôr, e o céu avermelhado refletia-se na superfície da água. Cato formulou votos de que tal não constituísse um mau presságio para a campanha, enquanto
se mantinha ereto em frente à mesa do legado.
- O que posso fazer por ti, tribuno? - Aurélio recostou-se na cadeira.
- Senhor, trata-se de uma questão sobre o treino. Se se recorda, afirmou que eu teria autoridade completa quanto às questões da preparação dos homens para a campanha que se
avizinha.
- Sim, disse isso - retorquiu Aurélio, cuidadoso. - Sujeita à minha aprovação final, claro.
- Com certeza, senhor.
- Então? Como vão as coisas?
- Os soldados melhoram a cada dia que passa, e a seu tempo estarão em excelente forma para o começo da campanha. Daria uma ajuda saber quando é que tenciona colocar o exército
em movimento, senhor.
- Claro - anuiu Aurélio, e fez um gesto abarcando as folhas de papiro sobre a mesa. - Como podes ver, as questões relativas à preparação dos homens não são as únicas considerações
que afetam a minha decisão. Há relatórios contraditórios sobre a localização do inimigo. Os boatos proliferam. Alguns dizem que o príncipe Talmis está a não mais de oitenta
quilómetros daqui. Outros afirmam que ele continua acampado em frente a Ombos, mantendo o cerco. Há demasiada incerteza neste cenário, tribuno.
Cato não se mostrou surpreendido. Desde que a coluna do anterior legado tinha sido emboscada, Aurélio tinha reduzido o alcance das suas patrulhas: não se deviam afastar mais
de meio dia de marcha da base do exército em Diospolis Magna. Informações sobre as movimentações do inimigo fora dessa área só podiam ser obtidas graças a interrogatórios
a viajantes ocasionais, ou a refugiados que fugiam dos núbios, e a verdade tinha de ser extraída por entre todos os boatos e rumores absurdos.
- Ao que parece, o inimigo tem ao seu dispor uma força muito mais numerosa do que eu julgava - prosseguiu Aurélio. - Portanto, enviei ao governador um pedido de reforços,
e aguardo a sua chegada antes de movimentar o exército.
- Reforços? - Cato arregalou os olhos. - Senhor, quando falei com o governador pela última vez, ele foi bem claro: todos os homens que podiam ser dispensados já tinham sido
enviados para cá.
- Há sempre forma de arranjar mais homens - ripostou Aurélio, sem dar grande importância à afirmação de Cato. - De qualquer forma, não estou a solicitar que me entreguem uma
hoste tão numerosa que consiga simplesmente sufocar o inimigo, só quero tropas suficientes para fazer o trabalho como deve ser. Até esse momento, seria imprudente avançar,
apesar de mal conseguir conter a vontade de me bater contra esses núbios.
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Cato gastou um segundo a tentar perceber se alguma vez tinha encontrado um tão vil espécime de cobarde. Afastou o pensamento e voltou à carga.
- Senhor, é bem possível que também o inimigo esteja a aproveitar este tempo para receber reforços. Seja como for, quanto mais tempo passarem em solo romano, maiores serão
os danos que causarão à província. Não agradará com toda a certeza aos nativos sentir que foram abandonados à mercê dos invasores.
- Uma pena, mas são contingências da guerra.
Cato percebeu que aquela linha argumentativa não ia obter resultados, e resolveu mudar de tática. Anuiu pensativamente antes de prosseguir.
- Senhor, ocorreu-me um pensamento.
- Ah, sim?
- Compreendo perfeitamente a prudência de que dá mostras ao adiar o começo da campanha, mas suspeito que outros homens, muito mais distantes do teatro de operações, se perguntarão
sobre as razões do atraso.
- Somente porque lhes falta a compreensão total das circunstâncias
- contrariou Aurélio.
- Sim, senhor. Mas não será isso que os impedirá de murmurarem. O meu maior medo é que o governador Petrónio antecipe essas reclamações e se preocupe com a possibilidade de
ser considerado o responsável pela inação, ou pelo que pode ser visto como tal por esses homens. Quando lhe chegar o pedido de reforços, temo que o governador possa ser levado
a pensar que a campanha não está a decorrer com a rapidez e a tenacidade necessárias. A ansiedade sempre foi inimiga do bom julgamento, senhor. E se ocorrer ao governador
a ideia de o substituir por outro comandante menos dado à prudência? Algum exaltado que se lembre de conduzir o exército numa arrancada selvagem direita ao inimigo, sem pensar
nas circunstâncias.
Aurélio encarou diretamente Cato.
- Isso poderia muito bem conduzir-nos ao desastre. Percebo o que queres dizer. E não há falta de homens ambiciosos em Alexandria, que me olham com inveja agora que os fados
me concederam a ascensão ao comando do exército. - Anuiu para si mesmo. - Homens como aquele fanfarrão do Décio Fúlvio. Sempre me olhou com desprezo. Pensar que esse idiota
pode acabar a comandar esta campanha assusta-me.
- Sim, senhor. É seu dever garantir que o governador não tenha nenhuma desculpa para atribuir o comando do exército a um homem desse calibre. - Cato achou melhor não referir
a forte probabilidade de que Fúlvio ainda estivesse com a força destacada em Creta.
- Sim... Sim, é esse o meu dever - concordou Aurélio, convencido.
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- Bolas, nunca devia ter enviado aquele pedido. Mas agora é demasiado tarde. - Fechou os olhos e fez um cálculo rápido. - Ainda levará pelo menos dois dias até que a mensagem
chegue. Talvez um dia para o governador reagir, mais cinco dias para enviar uma resposta. - Piscou os olhos.
- Tenho de agir depressa. O exército tem de estar em movimento antes que qualquer resposta tenha tempo de chegar a Diospolis Magna. Ou seja, nos próximos sete dias. Tenho
de consultar o meu estado-maior. - Aurélio fez uma pausa, e voltou a olhar para Cato. - Tenho de te pedir desculpa. Se bem me lembro, estavas aqui para discutir uma questão
qualquer sobre treino.
- Sim, senhor. É acerca dos oficiais de algumas das coortes. Tem-se esquivado aos exercícios e treinos das suas unidades.
- É certo. Têm outras tarefas com que se ocupar. Dei-lhes permissão para isso.
- Tal como eles disseram. Porém, quando a campanha se iniciar, todo e qualquer legionário ou oficial tem de ser capaz de se manter na coluna. Não nos podemos permitir levar
homens que nos vão atrasar, senhor. E isso inclui os oficiais. Como acaba de apontar, a legião tem de marchar em breve, e desferir um golpe decisivo. Não pode permitir que
estes oficiais, doentes ou fora de forma, nos atrasem.
- Tens razão - concordou Aurélio, pensativo. - Têm de se preparar para a campanha. Tem de se juntar aos homens nos treinos. A partir de hoje não lhes vou autorizar mais dispensas.
Tribuno, está claro? Todos os oficiais devem treinar com os homens.
Cato anuiu.
- Mais alguma coisa?
- Não, senhor. É tudo.
Aurélio olhou-o por momentos, antes de prosseguir.
- Obrigado, tribuno Cato. És verdadeiramente um útil conselheiro. Ao que parece, há mais em ti do que salta à vista.
Era claro que a entrevista tinha terminado, e Cato baixou a cabeça e virou-se para deixar a presença do legado. Só depois de ter passado a entrada e seguir junto às colunas,
onde alguns escribas se afadigavam ainda às suas secretárias, é que se permitiu um pequeno sorriso satisfeito.
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21

A luz pálida da alvorada espalhava-se pelo céu nublado quando os escuros vultos de legionários e oficiais começaram a sair do complexo do templo e a formar as fileiras. À
retaguarda dispunha-se uma pequena coluna de vagões, pronta para recolher os que não conseguissem completar a marcha. Macro e Cato tinham recolhido equipamentos completos
de legionários dos armazéns da legião, e a única marca que denunciava as suas patentes eram as cristas que lhes ornavam os capacetes. Já tinha passado algum tempo desde a
última vez em que qualquer um deles tinha participado num treino formal de marcha. Cato relembrou os conselhos que lhe tinham sido dados quando não passava de um recruta acabado
de chegar às legiões, e colocou pedaços de lã por baixo dos pés no interior das botas. Além disso, dobrou a capa por cima do ombro, para ter um melhor apoio para o bordão
onde seguia a trouxa. O escudo, estojo de refeições e objetos pessoais seguiam assim dependurados na ponta do bordão, enquanto no ombro oposto se apoiava um dardo. Um cantil
cheio e um odre completavam a carga, e ele remexeu-se à procura da melhor posição para toda aquela tralha enquanto tomava lugar à cabeça da coluna, junto a Macro.
Alguns dos oficiais já tinham ocupado as suas posições. Os mais anafados ou idosos olhavam para Macro com ar vingativo, enquanto os mais profissionais dos seus pares se esforçavam
por não deixar transparecer a hilaridade que lhes causava aquele desconforto evidente.
- Ora aqui está um bando de gente com ar feliz, hã? - Macro riu. - Veremos que aspeto têm daqui a uns bons quilómetros.
- Esqueça-os - resmungou Cato. - Preocupe-se antes comigo. Se eu não conseguir chegar ao fim, o fito deste exercício será completamente perdido.
- Vai conseguir. Rijo como um velho par de botas, isso sim, graças a tudo o que lhe ensinei.
- Pois, detestaria desapontá-lo.
- E eu detestaria ver-me forçado a usar a vareta nas suas costas se começar a atrasar-se. - Macro olhou para a vareta curta e nodosa que levava em vez do dardo, tal como os
outros instrutores que iam acompanhar
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a coluna. - Foram as suas ordens, senhor. Não há qualquer tratamento especial para os oficiais.
Cato assentiu.
- Embora no meu caso, talvez possa considerar a utilização de menor entusiasmo, se de todo for possível.
- Ah, se assim fosse, sentir-me-ia obrigado a agir da mesma forma com pelo menos alguns daqueles gorduchos merdosos ali alinhados. - Macro fez um gesto na direção dos oficiais
que se incorporavam na coluna.
- E por falar em preguiçosos, onde é que se meteu o Hamedes?
Cato virou-se e olhou para o templo.
- Lá está ele.
O sacerdote encaminhou-se rapidamente para junto deles, e estacou com um sorriso nervoso.
- Senhor, os romanos, quando marcham, vão sempre carregados como mulas?
- Vais é manter-te calado, a não ser que alguém te dirija a palavra - ripostou Macro com rispidez. - Agora estás no exército, rapazote. Até isto terminar, bem podes esquecer
a tua carreira de sacerdote.
Hamedes tinha também recebido um equipamento completo, e Macro passou algum tempo a verificar que tudo estava no seu devido lugar e corretamente apertado.
- Não está mal - admitiu a contragosto. - A armadura assenta-te bem. Alguém te ajudou a pô-la?
Hamedes hesitou um pouco antes de assentir.
- Um dos homens da secção de material mostrou-me como fazer, senhor.
- Muito bem. Junta-te ao grupo dos oficiais, onde possa manter-te debaixo de olho.
- Sim, senhor. - Hamedes sorriu, antes de reconsiderar e virar-se para se afastar, para tomar posição a uma distância respeitosa por trás dos oficiais romanos.
Cato acenou na direção do egípcio.
- Para sacerdote, parece não se dar mal com os costumes militares.
- É bem verdade - concordou Macro. - E nos dias que se aproximam, essa disposição vai ser bem posta à prova.
Os últimos legionários aproximavam-se em passo de corrida para se juntarem às respetivas centúrias, e quando todos tinham tomado o seu lugar, Macro pôs a sua carga ao ombro
e percorreu a coluna. Respirou fundo e começou a arengar-lhes.
- O passeio de hoje vai levar-nos uns doze quilómetros para jusante ao longo do Nilo, e volta. Nada mais do que um saltinho sem importância
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para os verdadeiros soldados. Estou deliciado por ver que hoje temos a companhia dos meus irmãos do centurionato.
Alguns dos homens nas fileiras soltaram gargalhadas, e um comentário jocoso foi lançado antes que um dos optios que ladeavam a coluna tivesse tempo para se virar e tentar
identificar o responsável. Não conseguiu, o que o fez lançar uma ameaça.
- Toca a fechar essas cloacas, se não querem um castigo coletivo.
Macro aguardou que o silêncio absoluto regressasse.
- Tanto os homens como os oficiais das legiões devem ser capazes de efetuar marchas em campanha. É um requisito básico que se aplica a todos, qualquer que seja a sua patente.
Não há razão para que qualquer um dos homens aqui presentes seja incapaz de concluir esta marcha. - Fez uma pausa e regressou para a frente da coluna, alguma distância à frente
de Cato e dos outros oficiais. - Coluna! Preparar para a marcha... Em frente!
Começou a andar, e todos o seguiram, em fileiras com quatro homens. Levou-os pela parada e pela estrada mal conservada que se juntava à estrada do Nilo. Mesmo àquela precoce
hora, os agricultores e mercadores que se dirigiam a Diospolis Magna para vender os seus bens já estavam a caminho, e entupiam a estrada. Assim que davam pela presença da
coluna romana, refugiavam-se apressadamente nas bermas; os legionários viraram à direita e começaram a dirigir-se para norte, seguindo pela estrada que acompanhava o percurso
do Nilo.
Havia já algumas embarcações espalhadas pelo rio, os esquifes de pescadores que remavam pela corrente enquanto inspecionavam as redes, e os barcos de boca larga que transportavam
mercadorias e outros bens ao longo do grande rio. Na margem distante via-se uma estreita faixa de vegetação verde, que logo era substituída pela massa rochosa das estéreis
montanhas que se erguiam no deserto.
Uma hora depois de a coluna se ter colocado em marcha, já o Sol se erguera acima do horizonte; o disco de um amarelo ainda pálido tentava rasgar a neblina como se fosse um
olho a vigiar a fita de água e as colheitas que serpenteavam pelo meio do grande deserto do Norte de África. Cato tinha adotado um ritmo fácil; uma pequena dor que despontara
ao fundo das costas acabara por se desvanecer, e começava a sentir-se bem capaz de levar a marcha até ao fim. O suor brotava-lhe do escalpe e picava-o, saturando a proteção
de feltro no interior do capacete, e de vez em quando uma gota escapava-se e rolava pela testa até às sobrancelhas, fazendo-o piscar várias vezes os olhos até ela desaparecer,
o que era preferível a estar sempre a mudar o dardo para a outra mão para poder enxugar a testa.
Ao olhar em redor, verificou que alguns dos oficiais já lutavam para se
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manter em contacto com o grupo. O mais próximo deles, um centurião da Primeira Coorte, respirava já esbaforido, arfando debaixo do peso de todo o equipamento. Um dos optios
escolhidos por Macro colòcou-se ao lado do homem.
- Vamos lá, senhor. Faça um esforço, porra! Já vi velhos a marchar melhor do que isso.
O centurião cerrou os lábios e prosseguiu. Cato continuou a olhá-lo, sentindo-se um tanto culpado pelo que gizara para quebrar a resistência de homens como aquele. Todavia,
se ele conseguisse resistir todo o dia, seria a prova de que era muito mais duro do que aparentava - embora, considerando o rotundo abdómen que exibia, lhe parecesse muito
difícil que o homem viesse a completar o desafio, concluiu Cato com humor. Mais à frente, Macro liderava, avançando a passo firme pela estrada, sem revelar o menor indício
de cansaço.
O calor do Sol a subir no céu começou a fazer dissipar a neblina e nevoeiro, afastando-os das margens do Nilo, e os homens começaram a sofrer a ação direta dos raios do astro-rei.
A temperatura subiu rapidamente, juntando-se ao desconforto provocado pela poeira levantada pela passagem de milhares de botas cardadas. De vez em quando a estrada cruzava
pequenas aldeias, e bandos de crianças juntavam-se à coluna, correndo para cima e para baixo, pedindo dinheiro em vozes esganiçadas, e afastando-se rapidamente dos soldados
que reagiam com imprecações ou tentavam aplicar-lhes pontapés. Cato limitou-se a ignorá-las, concentrando-se em pôr uma bota à frente da outra e em seguir os passos de Macro.
À medida que o Sol subia mais e mais, o calor tornava-se cada vez mais intenso, fazendo crepitar a paisagem debaixo do seu clarão ofuscante. Cato sentiu o suor nas costas
a ensopar-lhe a túnica e a colar-lha à pele. Ocasionalmente, uma gota mais fresca escorria-lhe dos sovacos e descia pelas costelas até ser capturada numa dobra da túnica.
Tinha a boca seca, e era cada vez mais difícil resistir ao impulso de chamar Macro e sugerir que ele permitisse um pequeno descanso a todos, incluindo a possibilidade de beber
uma pequena quantidade de água.
Ao fim da segunda hora de marcha, ouviu-se um grunhido seguido de um estrondo. Ao olhar, Cato descobriu que um dos oficiais acabara de desfalecer no meio da estrada. Um companheiro
parou e ajoelhou-se para o ajudar, mas depressa um optio se precipitou sobre eles, fazendo descer a vareta sobre o escudo do oficial com toda a força.
- Mas que porra é esta? Nada de parar, senhor! É para continuar!
- Não podemos deixá-lo ali - protestou o centurião.
- Toca a mexer! - berrou o optio na cara do outro, enquanto erguia a vareta.
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O centurião apressou-se a pôr-se de pé e a continuar a marcha. O optio manteve-se junto ao oficial caído, indicando aos legionários que deviam passar pelos lados.
- Continuem! Nada de parar e ficar a olhar embasbacados! Não me digam que nunca tinham visto um oficial dar com os burrinhos na água? Sigam!
A coluna rodeou o homem prostrado no solo, prosseguindo o avanço sem diminuir a marcha. Macro tinha reduzido o passo, e estava mesmo à frente de Cato; murmurou com satisfação:
- Lá foi o primeiro. Não vai demorar muito a acontecer a outros. Nem imagino quantos vão desistir.
Cato lambeu os lábios.
- Desde que eu não seja um deles.
- Não se preocupe. Já disse e repito, não deixarei que isso aconteça.
- Obrigado, amigão.
- Não há necessidade de sarcasmo, senhor. A ideia foi sua, se se recorda.
- Da próxima vez que eu tiver uma dessas ideias brilhantes, lembre-me para me meter na minha vida, sim?
Macro sorriu, mas ripostou.
- Bico calado, toca é a poupar o fôlego.
Ao fim da manhã, a coluna passava por um bosque de altas tamareiras quando Macro lhe ordenou que fizesse alto, e permitiu que os homens tirassem os pesos dos ombros. Cato
deu uns passos para a beira da estrada e deixou o fardo que carregava escorregar para o solo relvado. Inclinou-se para a frente, as mãos apoiadas nos joelhos, e tentou regularizar
a respiração acelerada. Macro, a suar por todos os poros e também com a respiração ofegante, mas sem deixar que isso lhe alterasse a disposição, abanou a cabeça como se tomado
por uma imensa pena.
- Estás a ficar mole. É o que as promoções fazem a um homem.
- O caralho - ripostou Cato, antes de pegar no cantil, lhe tirar a tampa e o levar aos lábios.
- Duas goladas. - Macro apontou-lhe um dedo enquanto se afastava para trocar algumas palavras com os instrutores. - Nem mais uma gota.
Cato assentiu, e bebeu a quantidade permitida, deixando que a segunda dose lhe percorresse todos os recantos da boca antes de a engolir. Olhou ao longo da coluna. Dúzias e
dúzias de homens tinham-se deixado cair de costas e ofegavam, exaustos. Reparou nalgumas ausências entre os oficiais, notando que não via os rostos de alguns dos homens que
pensara não serem capazes de concluir a marcha. Os restantes aparentavam determinação e capacidade.
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Ao regressar à frente da coluna, Macro parou junto a Cato e bebeu um trago do cantil.
- Até agora já perdemos quatro oficiais e dezoito homens. Nada mau, se tivermos em conta o calor. Mas é verdade que pelo menos a isso eles têm obrigação de estar habituados.
Pelos meus cálculos, já fizemos uns doze quilómetros. Altura para um pequeno descanso, e depois de volta ao acampamento. - Manteve-se em silêncio por um curto momento antes
de erguer a mão para proteger os olhos e avaliar a posição do Sol; depois sorveu um pouco de água do cantil e rolhou-o. - Este é que vai ser o verdadeiro teste. À tarde o
calor vai ser sufocante. Não posso dizer que me sinta animado com a perspetiva. Senhor, que tal vai isso?
- Cá me vou aguentando. - O facto é que tinha os pés a latejar de dor devido à prolongada marcha naquela superfície áspera, e que se sentia ligeiramente tonto depois de todo
aquele exercício debaixo do sol. Mas obrigou-se a empertigar-se e a enfrentar o olhar de Macro.
- E você?
- Sem problemas - ripostou o veterano enquanto avaliava a face pálida do amigo. - Se fosse a si, sentava-me a descansar as pernas enquanto pudesse.
- Não o farei antes de o ver fazer o mesmo.
Macro abanou a cabeça.
- Como queira.
Percorreu lentamente a coluna, avaliando os oficiais e os soldados da Primeira Coorte. Na sua maior parte provinham do cruzamento das raças grega e egípcia, e tinham feições
escuras, embora não tanto como os nativos do Alto Nilo. Em geral, tinham um físico mais ligeiro do que os legionários da fronteira setentrional do Império, onde Macro servira
durante a maior parte da carreira. Ainda assim, tinham um ar duro e pelo menos até ali tinham aguentado. Mas era o seu dever, refletiu Macro. A Primeira Coorte devia ser a
melhor de cada legião. Tinha o dobro do efetivo das outras coortes, e cabia-lhe a defesa do flanco direito sempre que a legião entrava em combate. De qualquer forma, ia ser
interessante ver quantos resistiriam na coluna quando chegassem ao acampamento. Os homens da Sétima e Nona Coortes tinham-se aguentado tão bem como os seus camaradas, e só
tinham perdido um punhado de homens. E Cato tinha tido razão na insistência para incluir os oficiais, compreendeu Macro. Pelo menos tinha acicatado os homens - um bónus muito
apreciado, para lá da oportunidade de riscar todos os que não estavam em condições de comandar homens em combate.
Enquanto se dirigia para o pequeno grupo de oficiais que descansava à beira da estrada, reparou em Hamedes, sozinho. Sempre fora da opinião
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que os sacerdotes não passavam de um bando de preguiçosos e aproveitadores, e ficou surpreso ao verificar que Hamedes se mantivera a par da coluna.
- Como estão os teus pés?
O homem ergueu-se ao reparar que lhe era dirigida a palavra e sorriu com ar de gozo.
- Senhor, tem sido uma excursão verdadeiramente interessante. Embora não consiga deixar de me interrogar como é que homens que têm de carregar tanto peso às costas ainda conseguem
ter força suficiente para conquistar e manter um império.
Macro sorriu de volta e deu-lhe uma leve palmada no peito.
- É esse o segredo do nosso sucesso - respondeu em tom de conspiração. - É por termos ainda essa força que vencemos. - Deu um passo atrás e contemplou o outro. - Tens-te portado
bem, rapaz. Ainda faço de ti um legionário.
A face do jovem não revelou emoção, mas acabou por se abrir num sorriso.
- Uma honra, indubitavelmente. Porém, as minhas ambições são mais do campo espiritual do que do marcial. Assim que a campanha terminar, nada mais pretendo do que regressar
ao sacerdócio.
- Veremos. O meu instinto diz-me que começas a apreciar seriamente esta vida. Terás outra razão para nos aturares? - Deu-lhe uma palmada no ombro e regressou à cabeça da coluna.
Pegou no bastão de carga e apoiou-o no ombro com um grunhido, antes de voltar a enfrentar a coluna.
- O descanso terminou! Todos de pé!
Ouviu-se um coro de grunhidos e imprecações que levou um sorriso à face do veterano; pouco a pouco os homens lá se foram erguendo e colocando as cargas aos ombros, encorajados
pelos optios que percorriam a coluna e insultavam profusamente os mais demorados no cumprimento da ordem. As centúrias formaram e aguardaram, à espera da ordem de marcha.
Macro aguentou até que todos estivessem imóveis e silenciosos, e por fim gritou para que todos o ouvissem.
- Coluna! Avançar!
Retomaram o passo, aumentando gradualmente o ritmo. Macro levou-os pela estrada até deixarem para trás o bosque, e então deixou a estrada para contornar um pequeno santuário
e retomar a direção do campo, cruzando a retaguarda da coluna e as carroças cobertas que iam recolhendo os que não aguentavam o percurso. O meio-dia passou e a brisa da tarde
foi aumentando, trazendo consigo do deserto uma poeira fina. O pó metia-se nas bocas e olhos dos homens, aumentando o desconforto provocado pelo calor que os martelava sem
descanso. Pior, a temperatura elevada fazia com
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que a paisagem tremesse, como se à sua frente se estendesse uma imensidão de água que não parava de recuar, atormentando-os com a imaginada possibilidade de saciarem a sede
que neles crescia.
Mais homens abandonaram as fileiras, e desta vez muito poucos foram convencidos a retomarem os seus lugares, mesmo com o poder das invetivas e corretivos administrados pelos
optios; foram deixados para serem recolhidos pelas carroças. Cato tinha reduzido o passo, e seguia agora no meio dos outros oficiais, pouco atrás de Macro. A maior parte dos
centuriões estava a aguentar sem problemas a dureza da marcha; alguns davam sinais de cansaço, e o mais atrasado dos que tinham passado o tempo a evitar os treinos depressa
cedeu e deixou-se cair à beira da estrada para esperar por uma carroça.
Nunca Cato enfrentara tamanho calor, nem sequer quando tinha atravessado o deserto sírio com Macro, a caminho de Palmira. A túnica, presa debaixo da armadura, apertava-o,
prejudicando-lhe a respiração, enquanto ele lutava com o peso da carga e do escudo dependurados do bastão. Sentia as pernas e pés pesados como chumbo, e cada passo era um
esforço de imposição da vontade do cérebro sobre o corpo. Passaram de novo pelas povoações próximas a Diospolis Magna, voltando a chamar a atenção dos bandos de crianças,
que desta vez foram praticamente ignorados pelos soldados; só o silêncio lhes respondeu, já que os homens não se sentiam com vontade de desperdiçar o fôlego a afugentá-las.
A meio da tarde Cato ergueu o olhar e avistou as colunas e estandartes de Karnak a esvoaçarem à distância. O seu coração alegrou-se perante tal visão, mas cerrou os dentes
e prosseguiu, pondo o olhar no solo, concentrando-se sempre no passo seguinte, não se atrevendo a voltar a olhar para concluir que os templos ainda estavam tão longe como
da última vez que olhara.
- Rapazes, vamos a acelerar! - lançou Macro, animado. - Estamos quase em casa. Vamos lá mostrar às outras coortes como marcham os verdadeiros soldados!
Só o silêncio lhe respondeu, pelo que interrompeu o passo e se virou para confrontar a coluna.
- O que se passa? Não me digam que não estão contentes?
Os centuriões que tinham servido em tempos nas legiões do Norte, bem como Cato, responderam-lhe em uníssono:
- Foda-se, então não?
Macro riu-se e voltou-se para os conduzir nos últimos quilómetros de volta à parada exterior ao complexo do templo. Os optios apressaram-se a compor as fileiras e a garantir
que os homens se apresentavam com garbo quando saíram da estrada e a coluna se foi dispondo no espaço aberto,
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tomando as posições que tinham ocupado antes de se porem a caminho pela alvorada.
- Coluna! Sentido! - O berro de Macro ecoou contra as paredes de adobe. Pousou a carga, pegou no cantil e sorveu longamente antes de voltar a rolhá-lo. Só então começou a
percorrer lentamente as fileiras de homens ofegantes e suados, analisando o comportamento de cada um. Mais um homem tombou, esgotado, enquanto esperava que fosse permitido
à coluna dispersar. Macro ignorou o acontecimento. Pôs as mãos na cintura e dirigiu-se aos homens exaustos.
- Isto foi só uma amostra do que nos espera a todos, assim que a campanha começar. Sei perfeitamente que os Chacais estão ansiosos por demonstrar todo o seu valor enfrentando
os núbios. Não vos falta o espírito dos verdadeiros soldados, mas é necessário que tenham também o seu físico. É o exército que enfrenta as mais duras marchas o que combate
com mais dureza e por isso triunfa.
As palavras de Macro ficaram a pairar, sublinhadas pela brisa do fim de tarde. Passou os olhos pela coluna mais uns momentos, e por fim soltou a ordem que todos esperavam.
- Coluna!... Dispersar!
Assim que a ordem soou, os homens pareceram incapazes de aguentar mais um momento que fosse o peso das suas cargas, dobrando-se e agachando-se; por fim, em pares e grupinhos,
lá se começaram a arrastar dali para fora, atravessando a parada a caminho do portão norte de Karnak. Macro ficou a vê-los, antes de avistar Hamedes e lhe lançar uma saudação.
- Muito bem, rapaz! Ao que me parece, estás em tão boa forma como os melhores.
Hamedes inchou o peito.
- Senhor, parece-me bem que não vou aceitar essa oferta de uma posição nas legiões.
- Ah! - Macro apontou o portão com o polegar. - Vai lá para dentro e trata de descansar esta noite. Quando chegar a manhã, nem te lembras do que é que te queixavas hoje. Nessa
altura vais tentar levantar-te, e sentir-te-ás como um aleijado.
- Muito obrigado, senhor - comentou Hamedes, e afastou-se lentamente.
Cato estava a acabar com as últimas gotas que ainda tinha no cantil quando Macro se aproximou.
- Sempre aguentaste a distância toda.
- A sério? - Os pés do jovem prefeito ardiam tanto que era um verdadeiro esforço manter-se de pé. - É assim portanto que se sente um morto em pé...
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- Ah, deixa-te de pieguices. - O veterano apontou as carroças que percorriam ainda a parada. - Tu ao menos aguentaste. Muitos não o conseguiram. Pedi a um dos optios que fizesse
uma lista dos que desistiram.
- Pegou no fio que tinha ao pescoço e exibiu uma tábua encerada. - Ora aqui está.
- Obrigado.- Cato deitou uma olhadela à sua carga. - Imagino que não caísse lá muito bem se pedisse a uma das sentinelas para levar isto à secção de material.
- Cairia muito mal mesmo.
- Merda... Bom, perdido por cem, perdido por mil. - Pegou no pesado fardo e pô-lo de novo ao ombro enquanto acompanhava Macro na direção do portão. - Vou entregar isto, comer,
beber e descansar uns momentos. Depois tenho mais uma coisa para fazer ainda hoje, antes de dar o dia por terminado.
Aurélio contemplou a lista à luz de uma lamparina de óleo e abanou a cabeça.
- São todos bons homens. Conheço-os há anos. Não os vais remover dos seus postos.
- Senhor, eles não conseguiram concluir o treino de marcha. Não estão em condições. Alguns estão tão obesos que já nem conseguem caber nas armaduras. São um risco pesado para
os homens que comandam. Quando conduzir este exército ao embate com o inimigo, esses oficiais não vão conseguir manter-se a par das suas unidades, tal como hoje não conseguiram
manter-se integrados na coluna. Nessa altura, quem é que comandará os homens? Faltar-lhes-á um oficial no preciso momento em que mais vão precisar dele. - Fez uma pausa. -
O melhor é tirá-los da ordem de batalha.
O legado soltou um longo suspiro.
- Pode ser que de facto não estejam no auge das suas capacidades físicas, mas possuem outras qualidades.
- Tais como?
- Bem, hum, experiência. Passaram muitos anos a subir nas fileiras, como eu fiz. Não há muita coisa na vida militar que eles desconheçam.
- Senhor, que experiência de campanhas têm ao certo?
Aurélio franziu o sobrolho e baixou a lista. Encarou Cato.
- Não vais desistir desta ideia, pois não?
- Não, senhor. Designou-me para, em conjunto com o centurião Macro, me ocupar do treino dos homens. Na minha opinião profissional, estes oficiais não estão em condições de
se manterem em serviço ativo. Seria evidentemente uma vergonha humilhá-los ao impor-lhes uma despromoção
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ou mesmo expulsão das legiões. Portanto, porque não recolocá-los no pessoal do quartel-general ou deixá-los aqui no comando da guarnição? Dessa forma não prejudicarão os homens,
e a sua experiência poderá ser útil.
- E quem os substituirá na campanha?
- O centurião Macro já identificou uma série de optios que reúnem todos os predicados para serem promovidos ao centurionato.
- Estou a ver. - Aurélio fixou Cato com uma expressão gélida. - Já resolveste tudo, não é?
- Senhor, cumpro o meu dever e sirvo Roma da melhor forma possível. É tudo - retorquiu Cato, sem se deixar levar pela emoção. - De qualquer maneira, disse-me que queria que
a legião estivesse pronta a marchar o mais depressa possível. Quanto mais cedo estes homens forem substituídos, mais depressa pode iniciar a guerra aos núbios.
- Pois. No fundo, és capaz de ter razão. - Aurélio voltou a pegar na tábua encerada. - Vou tratar da recolocação destes oficiais de imediato. Envia-me uma lista dos que tu
e o Macro selecionaram para os substituir, e depressa.
Cato assentiu.
- É tudo? - quis saber Aurélio.
O tom em que a pergunta foi formulada apanhou Cato de surpresa. Teve a sensação de que as posições respetivas tinham sido invertidas, e que o legado lhe estava a pedir autorização
para dar por concluída a reunião. Por momentos, Cato sentiu pena do homem. As responsabilidades que lhe tinham caído em cima excediam em muito as suas capacidades, mas ainda
assim era orgulhoso e determinado o bastante para insistir em manter o comando da legião e das coortes auxiliares que compunham o seu modesto exército. Isso poderia acabar
por se tornar um problema, decidiu Cato. Se queriam derrotar os núbios, Aurélio teria de ser manipulado com todos os cuidados. Tinha de ser tratado com uma mistura delicada
de deferência e orientação discreta.
- Sim, senhor. Com a sua permissão, vou tratar de outros assuntos.
- Claro. - Aurélio agitou os dedos na direção da extremidade do lago. - Podes ir.
Cato baixou a cabeça e virou-se para marchar empertigado dali para fora. Tinha acabado de passar pelas colunas e chegara ao primeiro pátio quando um dos tribunos subalternos
surgiu a correr pela entrada, ofegante. A legião era a primeira posição ocupada por Caio Júnio, que tinha chegado na véspera da aparição de Cato e Macro. Era um jovem típico,
com a compleição pouco pesada de um romano. Júnio era ansioso, sempre pronto a agradar. Dirigiu-se a Cato assim que o avistou.
- Júnio, que se passa? - indagou Cato.
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O oficial lutou para recuperar o fôlego.
- Homem, desembucha! - Cato irritou-se, impaciente.
- Senhor, o inimigo... Estão aqui.
Cato sentiu um frio súbito na espinha.
- O que é que queres dizer com isso?
- Na outra margem, senhor. - Júnio esforçou-se por engolir mais uma golfada de ar. - Atacaram um dos nossos postos avançados, senhor.
Cato deitou uma olhadela ao pátio interior.
- Vai dizer isso ao legado. E depois convoca os oficiais superiores para o quartel-general, imediatamente. Tu não. Estás de piquete, não é?
- Sim, senhor.
- Então, assim que informares o legado e convocares todos os oficiais, faz soar o toque a reunir. Todos os legionários e auxiliares devem estar prontos a entrar em ação o
mais depressa possível. Vai.
À medida que as botas do tribuno se afastavam, batendo ruidosamente nas lajes do pavimento, Cato assumia um ar preocupado. Como é que os núbios se tinham arranjado para se
mexerem tão depressa?
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- É uma fortificação, tão boa como outra qualquer - decidiu Ajax, dando uma palmada no parapeito de pedra que encimava o pilar. - Vai servir-nos perfeitamente.
Karim dedicou alguma atenção às espessas paredes do templo lá em baixo, e às muralhas exteriores, altas e feitas de adobe. Tinha olho para avaliar posições defensivas, algo
que lhe ficara dos anos em que tinha servido o seu senhor na Pártia, muito antes de ter sido capturado, vendido como escravo e encontrado o gladiador. O templo era compacto,
o suficiente para ser defendido pelos homens de Ajax e pelo diminuto grupo de guerreiros árabes que o príncipe Talmis tinha colocado sob comando do trácio. Era também pouco
habitual pelos padrões usuais dos templos, já que apresentava uma única entrada na parede, ainda por cima protegida por aquele portal que era quase um torreão fortificado.
Quase como se tivesse sido desenhado com um fim militar em vista, considerou. Ainda bem, portanto, que a coluna o tinha encontrado desocupado quando ali chegara ao entardecer
- a não ser por um punhado de sacerdotes, cujos corpos tinham sido lançados para uma das salas de oração.
- É bem assim, meu general. O nosso espião Canto escolheu bem o sítio. Os cães romanos vão-se ver aflitos para o tomar. Ou até para daqui nos expulsar.
Ajax reparou no tom apreensivo na voz do companheiro, e sorriu.
- Tem calma, Karim. Estamos aqui para criar uma diversão que possa ajudar o príncipe. Não tenho qualquer intenção de ficar aqui e lutar até ao fim. Quando chegar o momento,
trataremos de nos escapulir. Entretanto, as nossas ordens são para entretermos os romanos e os fixarmos aqui o máximo de tempo possível.
Karim manteve-se silencioso por momentos, mas acabou por perguntar:
- Confias nele?
- No príncipe Talmis? Então não... Mas auxiliá-lo serve os nossos propósitos, por agora.
- E talvez sirva os dele sacrificar-nos, não?
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Ajax virou-se e sorriu abertamente ao companheiro.
- Tens assim tão pouca fé em mim? Achas que sou cego aos perigos que corremos ao servir os núbios?
Karim dobrou o pescoço.
- General, as minhas desculpas. Não tenho qualquer dúvida em relação a ti. Mas muito desconfio da palavra do príncipe.
- Ora, o que há para desconfiar? Ele não nos prometeu nada a não ser a possibilidade de fazer guerra a Roma, e de ficarmos com tudo o que quisermos como saque. A isso pouca
importância dou, embora esteja certo de que a maior parte dos homens acolherá de bom grado a possibilidade de se apossar de algum ouro ou de alguma bugiganga que apreciem
particularmente. Não duvido de que o Talmis pense que conseguiu os nossos serviços por um preço muito em conta, mas, por mim, todo o tesouro que persigo é a possibilidade
de desferir um golpe profundo contra os romanos. Antes, não passávamos de vinte fugitivos. Agora, o príncipe atribuiu-me estes quinhentos homens. - Ajax fez um gesto abarcando
o pátio exterior do templo, onde os guerreiros de vestes largas e negras prendiam os camelos antes que a escuridão se tornasse completa. Os grunhidos nasalados dos animais
chegavam facilmente ao cimo do pilar, quase abafando os gritos de dois homens que discutiam a posse das vestes ricamente ornadas de um sacerdote, que tinham sido pilhadas
algures no templo.
Karim contemplou-os por momentos.
- Esperemos que, quando chegar o momento de enfrentar o inimigo, mostrem mais disciplina.
- Esse teste acontecerá esta noite mesmo - anunciou Ajax. Virou-se e olhou na direção do Nilo. À distância, a cerca de três quilómetros e no cimo de uma pequena elevação,
adivinhava-se a silhueta de um fortim com uma torre de aviso. Não havia qualquer sinal de que a guarnição tivesse avistado Ajax e os seus homens, que se tinham aproximado
vindos de ocidente, do deserto. Na margem oposta, a pouca distância a jusante, o exército romano ainda não sabia da sua presença, e mesmo quando o alarme fosse dado, passariam
algumas horas até que a legião fosse capaz de colocar naquela margem uma força significativa. Ajax sorriu. O espião de que dispunha no campo inimigo já tinha provado a sua
utilidade. Ajax dispunha de informações detalhadas sobre a força do exército romano e, melhor ainda, de dados acerca dos oficiais mais importantes. Era excelente saber que
os dois oficiais que odiava com todo o coração estavam ali à mão de semear. Tinha feito apenas um pedido ao seu aliado núbio: se Macro e Cato fossem, por acaso, capturados
com vida, ser-lhe-iam entregues. Tinha resolvido crucificá-los - como eles tinham feito ao seu pai. A perspetiva enchia-lhe o coração de alegria. Deixou-se contagiar pelo
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sentimento durante alguns momentos, mas depressa afastou o pensamento. A satisfação da vingança planeada tinha de ceder lugar à necessidade de ação, e decisiva, recordou a
si mesmo.
- Karim, vou deixar-te aqui com trezentos homens. Preciso que concluas as fortificações do templo e que disponhas patrulhas na direção do rio. - Apontou para uma pequena povoação,
ao alcance de um disparo de arco longo. - E depois de vasculhares a aldeola à procura de comida, destrói-a.
O parto anuiu.
- Pronto, tens as tuas ordens. Devo estar de volta com o resto dos homens pela terceira ou quarta hora da noite. Assegura-te de que as sentinelas e patrulhas se lembram disso.
Não quero ser abatido por uma seta disparada pelos meus próprios homens.
- Isso seria verdadeiramente lamentável - concordou Karim, sem ironia.
Ajax soltou uma gargalhada e deu-lhe uma palmada no braço.
- Até mais tarde, meu amigo.
A noite caíra e o ar quente enchera-se das canções das cigarras, que subiam e desciam de tom segundo os caprichos do momento. Os últimos sopros da brisa da tarde ainda agitavam
as ramagens das palmeiras, produzindo um marulhar constante que servia para disfarçar o som dos passos, à medida que Ajax e os seus homens se aproximavam cautelosamente do
forte. As muralhas erguiam-se acima deles, negras contra o azul profundo da noite estrelada. O gladiador decidira liderar o ataque com os homens da sua guarda pessoal. Teriam
de penetrar no forte e abrir os portões para o resto da força de assalto, que se escondia por entre as pequenas searas e as valas de irrigação que rodeavam o montículo. Os
moradores mais próximos do forte já tinham sido aniquilados, portanto ninguém poderia dar o alarme.
Ajax sentiu o habitual acelerar do coração, lançando o sangue velozmente pelas veias, e preparou-se para a ação. Empunhou silenciosamente a espada e virou-se para os seus
homens, soltando um murmúrio:
- Vamos.
Levantou-se ligeiramente e progrediu pelo declive semiagachado, aproximando-se do forte. No alto conseguia divisar o pequeno afloramento rochoso que servia de alicerce a uma
secção da muralha. Naquela área, esta não tinha mais de três metros de altura, tal como o espião lhe afiançara. Manteve-se agachado e continuou a aproximar-se. Avistou então
um movimento nas muralhas: uma sentinela, cujo capacete e lança tinham refletido brevemente o cintilar das estrelas, passou lentamente, cumprindo a ronda. O gladiador mergulhou
para o solo, assinalando aos seus homens que o
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imitassem. Observou com atenção redobrada até que a sentinela desapareceu ao canto do forte, e só então prosseguiu. Ao alcançar a base da muralha, esperou que os homens se
lhe juntassem e seguiu até encontrar rocha sólida. Apalpando o terreno, trepou pelas rochas até ao ponto onde um pedregulho extenso e plano servia de apoio à muralha. Um a
um, os seus homens seguiram-no e espalharam-se à sua volta. Quando todos estavam presentes, Ajax chamou o maior e mais forte deles, um celta de nome Ortorix, que em tempos
tinha combatido como mirmilhão couraçado nas arenas do Leste do Império. Ortorix colocou-se de costas contra a parede, de joelhos fletidos, e juntou as mãos num apoio. Ajax
colocou a bota nas mãos do celta, esticou os braços ao longo da muralha e sussurrou:
- Pronto.
Soltando um grunhido surdo, Ortorix empurrou-o para cima, e quando a bota de Ajax atingiu o nível do seu ombro, rangeu os dentes e redobrou de esforços para o propulsionar
ainda mais para cima. Ajax manteve o peso apoiado sobre a áspera superfície da muralha de tijolos de lama seca, e tentou encontrar o parapeito com os dedos. Quando o localizou
e os dedos se curvaram sobre o topo, deixou que Ortorix o elevasse mais uns centímetros, até que conseguiu lançar um braço para se prender ao cimo da muralha. Sentiu que alguns
fragmentos desta se soltavam, e rezou para que aguentasse até conseguir um apoio sólido. Lançou então a perna sobre o parapeito, e rebolou para o passadiço do outro lado.
Colocou-se de imediato em posição de combate, agachado, enquanto olhava para o interior do forte. Tinha a forma aproximada de um quadrado. Do lado oposto ao portão erguia-se
a torre sinaleira. Havia vários pequenos blocos de acomodações construídos junto à muralha. À semelhança das habitações dos camponeses, tinham telhados simples de ramagens
de palmeira sobrepostas, que forneciam sombra e permitiam ao mesmo tempo a circulação do ar. Numa delas ardia uma pequena fogueira para cozinhar, e de lá espalhava-se o aroma
de carne a tostar; à sua volta, um punhado de soldados conversava no tom despreocupado comum a homens que se julgam ao abrigo de qualquer ameaça. Havia vozes que provinham
de outros blocos, e ali perto alguém ressonava. A sentinela que patrulhava a muralha tinha acabado de passar pelo portão e continuava a afastar-se de Ajax. A silhueta de outra
sentinela recortava-se no cimo da torre, mas o homem olhava para os lados do Nilo.
Convencido de não ter sido detetado, Ajax debruçou-se sobre a muralha e acenou aos homens lá em baixo. Ortorix ajudou um primeiro a subir, e Ajax pegou-lhe nas mãos e puxou-o
para cima da muralha.
- Avança até ao portão. Mantém-te escondido.
O homem assentiu e progrediu agachado ao longo do passadiço. Ajax
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preparou-se para ajudar outros homens a subir, e já tinha dez homens ao seu lado quando a sentinela se aproximou do canto para virar para a mesma extensão de muralha em que
se encontravam.
- Esperem - sussurrou Ajax. - Deixem-se ficar escondidos até eu voltar.
Deitou uma olhadela à base da muralha e reparou num monte de palha e numa mula presa a um poste. A descansar sobre o feno estava um auxiliar, gordo, de mãos cruzadas sobre
o proeminente ventre. Ao seu lado distinguia-se a forma escura de uma jarra de vinho. Ao olhar de novo para cima, Ajax viu a sentinela a chegar ao canto. Não havia tempo para
tentar encontrar outro esconderijo, pelo que se dependurou do passadiço e saltou para a palha. Não conseguiu evitar fazer barulho, e a mula assustada soltou um bramido.
- Hummm... - O auxiliar agitou-se e lambeu os lábios. - Quéque-sepassa?
Começou a levantar-se apoiado no cotovelo, pelo que Ajax desembainhou a espada e saltou sobre ele, colocando a mão esquerda sobre a boca do homem. Empurrou a espada contra
o estômago do outro, fazendo a ponta penetrar por entre as costelas. O homem soltou um grito abafado e arqueou as costas, quase atirando Ajax pelo ar. Enquanto torcia e retorcia
a lâmina de um lado para o outro, Ajax deu-lhe também uma cabeçada no queixo. O homem ficou inerte de repente, desabando sobre a palha. Ajax forçou a lâmina na direção do
coração mais uma vez, para garantir a morte do adversário, e só então libertou a espada com um puxão. Já ouvia os passos da sentinela que se aproximava. Apressou-se a recolocar
o corpo numa posição de repouso, cobrindo as manchas de sangue com palha. Escondeu-se ao lado do cadáver, tapando-se e permanecendo imóvel. A sentinela continuou a aproximar-se,
e por fim o som dos seus passos interrompeu-se.
- Ora, Mínimo, não me digas que já não dormes?
Ajax, com o coração aos saltos, inspirou e soltou um resmungo, antes de lançar um suspiro misturado com um fungar tão parecido com o do gordo quanto lhe foi possível. A sentinela
soltou uma gargalhada e prosseguiu, enquanto Ajax imitava o ressonar do outro até deixar de lhe ouvir os passos. Nessa altura emergiu da palha, voltou a trepar para o passadiço
e recomeçou a ajudar os seus homens a saltarem para o interior do fortim. Ortorix foi o último, puxado por Ajax e outros dois homens, de dentes cerrados para não grunhir com
o tremendo esforço de içar o gigante. Com o celta e os outros ao seu lado, Ajax correu pelo passadiço até junto ao portão. A sentinela ainda não tinha reaparecido num novo
circuito, e assim que entraram na torre, deram com o corpo derrubado no solo.
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- Assim que conseguirmos abrir o portão, avancem e façam todo o barulho de que forem capazes - ordenou Ajax. - Percebido?
Os homens anuíram o seu acordo na escuridão, e ele dirigiu-se às estreitas escadas que desciam para o piso térreo do forte. Ao sair da torre, acenou a Ortorix para que o ajudasse,
e juntos tentaram retirar a tranca do portão e arrumá-la na fenda da muralha que existia com esse fim. Entretanto, a sentinela na torre resolveu mudar de vista, e virou as
costas ao Nilo para espreitar para o interior do forte. Parecia estar a olhar diretamente para o portão, e Ajax percebeu que devia estar à procura do outro soldado que estava
de serviço. Amaldiçoou-se por não se ter lembrado de colocar um dos seus homens a fazer de sentinela, continuando a ronda. Era tarde de mais para isso, pensou com amargura.
- Vão descobrir-nos a qualquer momento - comunicou ao celta, sem erguer a voz.- Vamos lá abrir esta merda.
Empurraram a tranca para a fenda, pegaram nos pesados anéis de ferro e puxaram as portadas para dentro. As dobradiças gemeram de forma bem audível, e a sentinela lá em cima
na torre debruçou-se na direção deles, antes de levar a mão em concha à boca.
- Às armas! Às armas! - A voz ressoou pelo interior do forte. - Estamos a ser atacados!
Ajax brandiu a espada, acenando com ela na direção dos blocos de casernas.
- Avancem! Matem-nos! Liquidem todos!
O gladiador e os seus homens lançaram-se em corrida enquanto soltavam um brado ensurdecedor. Na escuridão atrás deles levantou-se outro grito, quando centenas de vultos abandonaram
os seus esconderijos e correram pela encosta acima, na direção dos portões escancarados.
Ajax corria à frente dos seus homens, dirigindo-se à fila de pequenos edifícios à direita. Os defensores já começavam a sair para a escuridão, apanhando a primeira arma que
lhes vinha à mão, numa mistura de espadas e lanças. Nenhum deles envergava armadura ou capacete, reparou, notando que isso lhes retirava qualquer vantagem que pudessem ter
em relação aos atacantes. Um vulto saiu de uma porta próxima, direito a ele, e os dois chocaram. Por instinto, o gladiador assestou a lâmina em ângulo, de modo a perfurar
o peito do homem, e o soldado tombou com um grito de surpresa e medo; Ajax passou-lhe por cima e prosseguiu. Recuperou o equilíbrio no momento preciso para aparar uma estocada
de lança que outro auxiliar lhe lançara à garganta depois de ouvir o grito do camarada entretanto abatido. O romano fez rodopiar a lança, tentando atingir Ajax com a ponta
do cabo; conseguiu atingir-lhe o lado da cabeça, provocando-lhe um rasgão no escalpe. A dor enfureceu o gladiador, e ele carregou, entrando na
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zona de alcance do lanceiro; dirigiu a mão esquerda à garganta do homem, apertando-lhe a traqueia com toda a força. O auxiliar deixou cair a lança e tentou afastar a mão de
Ajax, mas entrou em espasmos quando a lâmina do gladiador se espetou repetidamente nas suas entranhas. Ajax lançou o inimigo vencido para o lado e olhou em redor; verificou
com agrado que os seus guardas estavam a dizimar os defensores no interior do forte. Apanhados de surpresa e atacados por homens que eram os melhores assassinos treinados
do Império, não tinham grandes hipóteses. Ouviu-se então o restolhar de pés calçados por sandálias, e os árabes entraram também no forte, juntando-se à já desigual refrega.
- Desistimos! - gritou um vulto perto de Ajax. - Rendemo-nos! Homens, deponham as armas!
Os que não estavam ainda envolvidos na escaramuça e que acabavam de sair das acomodações começaram a deixar cair as armas. Ouviu-se um último choque de lâminas, um grunhido,
e fez-se uma pausa na refrega.
- Não lhes deem quartel! - gritou Ajax no silêncio repentino. Saltou em frente, derrubando um veterano magro como um palito. O auxiliar, mortalmente ferido, tombou para o
solo, e Ajax avançou para o comandante do forte, um tipo atarracado, com cabelo ralo. O centurião esquivou-se à estocada e brandiu a espada, rodando para tentar acertar em
Ajax quando este passasse por ele. Mas o golpe falhou, e Ajax rodou, firmou os pés e enfrentou o romano.
- Morre! - berrou, e de imediato lançou uma sequência frenética de golpes. O centurião defendeu-se desesperadamente, fazendo subir a lâmina para desviar uma estocada de Ajax
à sua cabeça. No último instante, Ajax alterou o ângulo do golpe, e o gume bem afiado da sua espada apanhou o pulso do centurião e prosseguiu, enterrando-se até ao ombro do
homem. A espada retiniu no solo, ainda na mão do centurião, que caiu com um uivo de agonia. Ajax avançou sobre ele, com uma máscara de triunfo na face, e debruçou-se para
lhe rasgar a garganta, deixando o adversário a tremer no chão, vendo o seu próprio sangue brotar das artérias dilaceradas e empapar o solo à sua volta.
Ajax olhou para cima e compreendeu que o forte já estava nas suas mãos. Nem um dos romanos se aguentava ainda de pé, e só via os seus homens triunfantes sobre os cadáveres
inimigos, ainda arquejantes e a recuperar da fúria da batalha. Ortorix riu, nervoso.
- Rapazes, conseguimos. - Ergueu a espada para o céu noturno, e soltou o grito de guerra dos seus antepassados gauleses. Os outros imitaram-no, e por fim um deles gritou o
nome de Ajax, e todos os companheiros o imitaram no grito. Em redor, os árabes revistavam os corpos dos
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romanos e precipitavam-se para o interior das casernas, em busca de algo para saquear.
Ajax acenou aos seus homens, satisfeito.
- Excelente trabalho! Agora, vamos terminá-lo. Incendeiem isto!
À medida que a coluna se afastava do forte, dirigindo-se de volta ao templo, Ajax fez uma paragem para avaliar o seu trabalho. Chamas alterosas brotavam do interior das paredes,
iluminando a pequena elevação onde se situava o forte destruído, e lançando um brilho ondulante sobre os campos e palmeiras em volta. A estrutura de madeira da torre sinaleira
era também consumida pelas chamas; nesse preciso momento deu-se uma pequena explosão, quando o telhado de folhas pegou fogo e ardeu numa tão feroz quanto curta glória. Logo
a seguir foi um dos postes da torre que cedeu, fazendo a estrutura tombar para o lado e depois precipitar-se lentamente para o coração do forte, lançando uma explosão de fagulhas.
O som da derrocada chegou aos ouvidos de Ajax no momento seguinte.
- Uma bela visão - comentou Ortorix, ao seu lado. - Aquece o coração, ora se aquece.
Ajax não conseguiu evitar um sorriso perante o comentário, e deu uma palmada amigável no ombro do gigante.
- Dificilmente isto não será visto da outra margem do Nilo - avançou Ortorix.
- Sim. Acho que posso afirmar com segurança que anunciámos claramente a nossa chegada. Veremos agora o que fazem os romanos quanto a isso.
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23

À luz dos archotes empunhados pela escolta, o legado e os seus oficiais
superiores atravessaram o campo, até ao cais à frente do complexo do templo. Em redor, os homens da Vigésima Segunda e das coortes auxiliares começavam a sair das tendas,
de armadura colocada e armas nas mãos. Os primeiros a despacharem-se apressaram-se a dirigir-se à formatura e esperaram por ordens.
Enquanto subiam a rampa por entre o alinhamento de esfinges, Cato avistava claramente as chamas que se elevavam alterosas à distância, um pouco acima dos reflexo ondulantes
que dançavam na superfície do Nilo.
- Aquilo é o posto? - perguntou ao tribuno Júnio.
- Sim, senhor.
- Diz-me tudo o que sabes sobre ele - exigiu Cato.
Júnio olhou-o surpreendido.
- Olha, só aqui cheguei há uns dias - explicou Cato. - Não tive ainda ocasião para me familiarizar com a área.
- Desculpe, senhor. Também não sei muito. Pouco mais é que um fortim. A guarnição é composta por meia centúria de auxiliares. O objetivo da sua existência é vigiar a rota
comercial que percorre a outra margem. Ou melhor, era, antes de os núbios chegarem.
Macro, de pé no cais, esforçou a vista na direção do incêndio distante.
- E como é que sabes que aquilo é obra do inimigo, não me dizes? Podem ser assaltantes vindos do deserto, ou até algum imbecil que deitou fogo ao celeiro sem querer. O comandante
da guarnição enviou alguma mensagem?
- Não, senhor.
- Hummm. - Macro acariciou o lábio. - Bom, não podemos ter certezas. Se estiveres enganado, tribuno, lançaste o alarme e despertaste todo o exército por nada. Não serás propriamente
popular entre a soldadesca. Ah, e já agora, não tens nada que me chamar "senhor", mesmo sendo eu o primeira lança desta legião.
- Desculpe. - Júnio parecia envergonhado, e Cato decidiu dar-lhe uma ajuda.
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- Tomaste a decisão mais correta. Pode ser que seja um acidente. Mas a verdade é que estamos em pé de guerra, e aquilo pode ter sido o resultado de uma ação inimiga. É difícil
dizer, uma vez que agora não mandamos patrulhas para lá dos quinze quilómetros de distância.
O comentário não escapou aos atentos ouvidos de Aurélio, e ele remexeu-se mas absteve-se de falar, preferindo continuar a contemplar a cena. Por fim virou-se para o seu chefe
do estado-maior.
- Gémino, há mais alguma notícia de movimentações inimigas na área?
- Nenhuma, senhor. Nenhum dos vigias avistou o que quer que fosse, e as patrulhas também não referiram nada de extraordinário.
- Bem, é evidente que alguma coisa se passa neste preciso momento. Pode ter sido um acidente, é verdade. Se não recebermos notícias do posto na próxima hora, envia alguém
à outra margem para investigar.
- Sim, senhor. - Gémino limpou a garganta. - E quanto aos homens, senhor?
- O que há com eles? - indagou Aurélio, virando-se para o interlocutor.
- Continuam de prevenção?
Aurélio voltou a contemplar o incêndio e ponderou antes de responder.
- Sim. Pelo menos até sabermos ao certo o que se está a passar além.
Macro deitou uma olhadela a Cato e franziu ligeiramente o sobrolho.
Cato pareceu não lhe dar atenção, preso também à visão das chamas. Estas estavam claramente a aumentar de intensidade, e pareciam agora capazes de consumir todo o fortim.
Decidiu-se por fim e deu um passo para junto de Aurélio.
- Senhor, julgo que não devemos esperar por um relatório. É forçoso enviar alguém à outra margem para investigar o que se passa. Se for realmente um ataque inimigo, temos
de o saber com segurança, e imediatamente. E mesmo que não passe de um acidente, temos de saber se a guarnição precisa de auxílio.
- Tribuno, estás a oferecer-te para conduzir uma ação de reconhecimento na outra margem? - lançou Aurélio, com ar de gozo. - Ou não estarás, de forma pouco subtil, aliás,
a voluntariar um oficial menos graduado?
- Senhor, eu irei - ripostou Cato. Sentia-se furioso perante a insinuação. - É melhor que vá alguém com alguma experiência.
- Nesse caso... - interrompeu Macro. - Senhor, será melhor que eu também vá.
Cato virou-se para ele.
- Não é necessário. Posso muito bem tratar disto sozinho.
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Macro fez menção de falar, mas lembrou-se que os dias dos conselhos dispensados a um jovem amigo tinham já terminado. Manteve a boca fechada, mas lançou a Cato um olhar, implorando
a cedência. Cato abanou a cabeça.
- Desta vez, não.
- E porque não? - atirou Aurélio. - Dois pares de olhos veem mais do que um, não é verdade? E por certo a legião pode passar sem vocês um par de horas. Leva o Macro. - Olhou
para Cato e fingiu uma expressão solícita. - Para eu não ter de me preocupar, sim? Ah, e já agora leva também o Júnio, uma vez que ele se mostrou tão apressado a fazer soar
o alarme. Se se revelar um incidente sem importância, talvez uma noite passada a chafurdar no meio da escuridão o ensine a, no futuro, pensar duas vezes antes de reagir de
forma tão precipitada.
- Senhor, é uma ordem? - quis saber Cato, pouco animado.
- É, de facto. Assim que regressares, vem fazer-me o teu relatório. - Aurélio ergueu o braço para chamar a atenção dos outros oficiais. - Já vi o bastante. Vamos, de volta
ao quartel-general. Gémino, passa palavra a todas as formações para que se mantenham de prontidão até novas ordens.
- Sim, senhor.
O legado deu a discussão por terminada e afastou-se com o seu séquito de ajudantes, na direção da entrada do complexo do templo. Cato abanou a cabeça.
- Senhor, lamento imenso - começou Júnio. - Não quis causar qualquer problema. Acha que os homens vão mesmo considerar-me responsável? Vão-se pôr contra mim?
- Olha, rapaz - respondeu Macro com um sorriso. - És um tribuno, graças sem qualquer dúvida às relações da tua família, como a maior parte dos que têm o teu posto. Não tens
nenhuma experiência militar e, quando acabares o teu período de serviço nas legiões, regressas a Roma para um trabalho simpático. Acredita no que te digo, a soldadesca vai
estar sempre de pé atrás contigo.
- Oh, caramba. - Júnio parecia abatido. - Tinha alguma esperança de conseguir ganhar o respeito dos homens, pelo menos.
- Isso ainda podes conseguir - incitou Macro. - Quando chegar o momento de enfrentarmos os núbios.
Cato fez um gesto na direção do fogo.
- Isso é capaz de acontecer bem mais depressa do que julga.
- Ou não. Por que carga de água é que eles iam atacar ali? - indagou Macro. - Não faz qualquer sentido. Se nos queriam surpreender, porque é que não atacaram diretamente o
campo? Para quê eliminar um posto avançado e alertar-nos dessa forma para a sua presença? Na minha
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opinião é um falso alarme, e quando puser as mãos em cima do idiota que provocou aquele incêndio, podem ter a certeza que ele é que vai ficar num assado.
Uma figura emergiu da rampa e apressou-se até junto de Cato. Era Hamedes.
- Senhor, não pude deixar de escutar a conversa com o legado - anunciou à laia de desculpa. - Gostaria de o acompanhar. Se acontecer algum imprevisto, combaterei ao seu lado.
Se me der essa oportunidade.
- Não. Não és necessário. Já tenho homens suficientes. Regressa ao acampamento e espera por nós lá.
Hamedes sentiu-se rejeitado.
- Senhor, fiz uma promessa a Osíris: combater ao seu lado até que alcance a vitória.
- Tenho a certeza que Osíris compreende - ripostou Cato, tentando acalmar a situação. - Por agora, regressa ao acampamento. É uma ordem.
Hamedes fez uma careta de desagrado, virou-se e regressou para a escuridão.
- Bem, não há dúvidas, o rapaz está cheinho de vontade - comentou Macro em tom divertido. - Mesmo depois de um dia de marcha dura.
- Não tenho problemas com a atitude dele, pelo menos enquanto não começar a tornar-se irritante. - Cato dirigiu-se às escadas que desciam para o cais de madeira. - Bom, a
caminho. Vamos lá tratar disto.
Macro encolheu os ombros.
- Decididamente, não há maneira de agradar a certas pessoas.
Cato destacou uma secção de legionários da Primeira Coorte e saltou para a barca mais próxima, acordando a tripulação que dormia no convés. O capitão deu ordens aos dois tripulantes
para afastarem a embarcação da margem e a dirigirem para a corrente. Preparava-se para içar a vela, mas Cato impediu-o.
- Não. Existe uma forte possibilidade de a vela ser notada. Usem os remos.
- A travessia levará mais tempo - protestou o outro. - E será cansativa.
- Seja como for, vais usar os remos - instou Cato, e foi sentar-se mesmo à frente do mastro. Macro e Júnio juntaram-se a ele, enquanto os legionários se espalhavam pelo convés,
tentando não atrapalhar os dois marinheiros que colocavam em posição os longos remos e começavam a levar a barca para as águas negras do Nilo. Atravessaram a corrente e reduziram
a velocidade quando se aproximaram da margem oposta. O fogo começava
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a amainar, e o que restava das paredes do fortim, escuras e maciças, surgia em silhueta contra o brilho bruxuleante das labaredas.
Cato virou-se e deu ordens ao capitão em tom quase de surdina.
- Aproxima o navio o mais que possas. Se tivermos de retirar à pressa, não quero ter de correr mais do que o necessário.
O outro resmungou uma resposta pouco amigável, mas manobrou a barca ao longo da margem. Passaram por algumas casas onde os habitantes dormiam, ignorantes do que se passava.
Quando a embarcação ficou ao nível do fortim, Cato ordenou que se aproximassem, apontando a uma pequena faixa arenosa na margem. Depois de ter visto um crocodilo atacar de
repente, escondido pelos canaviais, não lhe apetecia repetir a experiência. O navio acostou suavemente, fazendo cambalear os soldados de pé. Cato ergueu-se, removeu o cinto
com a espada, e tirou também o capacete e a armadura.
Macro olhou-o com espanto.
- Senhor, o que é que está a fazer?
- Não vamos combater, só investigar. - Cato pegou de novo no cinto da espada e pô-lo à bandoleira. - Está à espera de quê, exatamente?
Macro soltou um suspiro e imitou-o, no que foi seguido por Júnio. Cato, no entanto, virou-se para este.
- Tu não.
Júnio interrompeu as suas preparações.
- Senhor?
- Tu ficas aqui.
- Senhor, foi-me ordenado que o acompanhasse.
- E eu estou a ordenar-te que fiques aqui. Ficas encarregue do navio. Trata de assegurar que o capitão não se lembra de repente de que tem assuntos a tratar na outra banda.
Se voltarmos para trás a correr, quero um grupo de homens pronto a defender a margem até podermos todos voltar para bordo. Entendido?
- Sim, senhor.
Cato saltou sobre a borda e aterrou na água, que lhe dava pelo meio da barriga das pernas. Dirigiu-se para a margem e subiu até à orla da zona onde crescia a erva alta. Macro
juntou-se a ele e começaram a andar na direção do fortim, que ficava a umas escassas centenas de metros. Chegaram à orla de um campo de trigo e prosseguiram pelo meio da plantação,
até encontrarem ,uma larga vala de irrigação, ladeada por canaviais. Cato estacou e pôs-se à escuta.
- O que se passa? - murmurou Macro.
- Eu... Não é nada. Vamos. - Cato preparava-se para descer para o meio das canas quando se ouviu o som de alguma coisa grande a chapinhar
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na água e a deslizar pelo meio dos canaviais, a curta distância à esquerda. Macro empunhou de imediato a espada. Os dois homens ficaram imóveis por momentos.
- O que foi isto? - indagou Macro.
- Sem ver, era capaz de apostar que foi um crocodilo. Parece-me que era melhor ver se conseguimos rodear a vala.
- Crocodilo? - Macro guardou a espada sem fazer ruído, antes de concordar. - Sim, é boa ideia.
Seguiram a vala ao longo de uns trezentos metros, sem lhe encontrarem o fim, nem qualquer forma de a atravessar a seco. Cato exasperou-se perante o tempo perdido, e resolveu
retroceder. A suar profusamente no ar quente, seguiram na direção contrária, até que encontraram uma estreita e frágil ponte de tábuas apoiada em dois tripés de madeira de
aspeto duvidoso.
- Senhor, faça favor - indicou Macro.
- Obrigadinho. - Cato testou a resistência da prancha e reparou que ela abaulava ligeiramente. Avançou com toda a cautela e atravessou, esperando por Macro antes de prosseguir
a caminho do forte. Já estavam suficientemente perto para ouvir o crepitar das chamas moribundas. Cato estacou de novo.
- Não oiço vozes.
Macro esforçou os ouvidos.
- Pois não. Nada. Começo a pensar que me enganei quanto a ser um acidente.
- Mas se o forte foi tomado pelo inimigo, onde é que ele se meteu?
- Pode ter sido só para destruir e retirar - sugeriu Macro.
Cato assentiu.
- Talvez. Vamos lá descobrir.
Tinham chegado à base da pequena elevação onde assentava a fortificação, e começaram a subir. O cheiro acre a queimado enchia o ar, mas quando se aproximaram do portão, outro
odor começou a dominar-lhes os sentidos: o inconfundível fedor a carne queimada. A estrutura do portão tinha desabado, e os dois oficiais espreitaram com todo o cuidado à
volta do arruinado arco da entrada. Cato estremeceu quando o calor lhe atingiu o rosto e o obrigou a cerrar os olhos. O interior do fortim tinha sido destruído pelo incêndio,
mas à luz dos focos que ainda lavravam aqui e ali, eram visíveis as formas retorcidas e enegrecidas de vários cadáveres.
- Para mim é prova mais do que suficiente - começou Macro. - Foram atacados. E nenhum grupo de guerrilha se teria atrevido a assaltar um fortim destas dimensões. Era pequeno,
sim, mas ainda assim seria um desafio demasiado grande.
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- Concordo. O melhor será voltarmos e apresentarmos o relatório ao legado.
Nesse momento ouviu-se um grito distante. Uma voz lançava um ulular que crescia de intensidade. Prosseguiu por momentos e depois calou-se.
- Veio da direção do barco - afirmou Cato. - Vamos.
Apressaram-se a descer a colina e meteram pela plantação que tinham
atravessado momentos antes, seguindo o trilho de trigo pisoteado que tinham deixado. Um novo grito se elevou na escuridão, mas desta vez por trás deles, a alguma distância
do forte que tinham deixado.
- Merda - protestou Macro. - Seja quem for, são mais do que um.
Alcançaram a outra orla da plantação e seguiram pelas ervas. Ali era
impossível perceber que caminho tinham seguido antes. Cato avaliou a posição das colinas distantes e enevoadas que se viam à esquerda, e estimou a direção que deviam tomar,
avançando rapidamente. Novo grito se ouviu, mais próximo e à frente deles, que rapidamente foi respondido por outro vindo de trás, e logo outro, desta vez à esquerda.
- Bom, agora começo a ficar preocupado - comentou Macro em surdina. - Será melhor começarmos a mexer-nos, antes que apareçam mais foliões.
Mas Cato manteve-se imóvel.
- Não podem andar atrás de nós.
- Porque não?
- Como é que podiam sequer saber que estamos aqui?
- Talvez nos tenham visto junto ao forte. Mas podemos pensar nisso mais tarde, não? - Macro pegou no braço do amigo, incitando-o a andar.
Cato anuiu e seguiram, estugando o passo, sempre de olhos e ouvidos atentos ao menor sinal do inimigo, ou de quem quer que estivesse a produzir os estranhos sons que os rodeavam.
Atravessaram de novo a vala de irrigação e seguiam pelo meio dos campos cultivados na direção das ervas na margem e do rio quando Cato ouviu um grunhido estranho à esquerda,
acompanhado pelo som de passos como que abafados. Uma voz gritou:
- Huthut!
- Camelos? - sugeriu Macro.
Cato aumentou o passo para uma corrida ligeira, atravessando rapidamente o que restava de plantação e entrando de novo na zona de erva alta. Quase de imediato esbarraram num
vulto acocorado. Macro sacou da lâmina e saltou em frente, derrubando o homem. Estava prestes a desferir um golpe letal quando uma voz familiar o deteve.
- Senhor! Sou eu, o Júnio!
- Júnio... - Macro levantou-se, baixando devagar a espada. - Porra. Estive mesmo quase a despachar-te.
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Assim que recuperou da surpresa, Cato deu largas à fúria.
- Porra, o que é que estás aqui a fazer? Mandei-te ficar na embarcação.
- Desculpe, senhor. Há um bocado ouvi alguém a chamar. Pensei que seria melhor investigar.
- Tu não tens de pensar. Tens é de seguir as ordens que recebes.
O som dos camelos crescia, e já se ouviam as vozes dos condutores a conversarem uns com os outos.
- Estão quase em cima de nós - resmungou Macro. Empurrou Júnio.
- Toca a andar. De volta ao barco.
Os três oficiais correram pelo meio das ervas, dirigindo-se para o rio com Júnio na liderança, a tropeçar, seguido por Macro, de espada aperrada e pronta, e por fim Cato,
que lançava olhares constantes sobre o ombro em busca de sinais dos camelos e de quem os conduzia e os procurava. Por fim emergiram da erva, e a negra e larga extensão do
Nilo impediu-lhes
o avanço. Macro olhou para os dois lados e depressa apontou para o lado esquerdo.
- Lá está o barco. Vamos!
Cato saiu da erva e viu a embarcação, a uns duzentos passos de distância. Lançaram-se em corrida pela margem, quando se escutou o som das ervas a serem afastadas pelos corpanzis
dos camelos, e se tornou óbvia a aproximação dos perseguidores. Tinham percorrido metade da distância quando Júnio voltou a tropeçar e se espalhou ao comprido, soltando um
grito de susto.
Macro agachou-se, agarrou na bainha da túnica e pôs o jovem latagão de pé com brusquidão.
- Isso, mostra-lhes onde estamos, já agora. Cretino.
- Desculpe.
Macro manteve o punho cerrado no tecido da túnica do outro e apressou-o. Cato vinha na retaguarda. O grito do tribuno tinha alertado os perseguidores, que lançaram brados
de triunfo ao avistarem as suas presas a correrem pela margem. Ao olhar para a esquerda, Cato avistou vários a cavalgarem pela erva, com a clara intenção de lhes cortar o
caminho e os derrubar.
Percebeu que já não havia nada a ganhar com o silêncio, pelo que lançou um grito na direção da barca.
- Legionários! A mim!
Os soldados pegaram nos escudos e saltaram da embarcação, começando a subir a margem inclinada, no preciso instante em que Macro e Júnio chegavam ao cimo da rampa e a desciam,
meio a correr e meio a deslizar. Cato seguia-os a curta distância quando um camelo se lhe atravessou no caminho. Esquivou-se, esgueirou-se por baixo da longa curva
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do pescoço do animal e continuou a correr. O cameleiro soltou um grito e desembainhou a espada. Mas tinha reagido tarde de mais, e Cato já estava a escorregar para o barco,
seguido pelos legionários, que ofereciam os escudos aos outros cameleiros que tinham surgido ao cimo da margem. Um deles saltou da sela, aterrou pesadamente e correu pelo
declive, esbarrando num escudo de um legionário. Soltou um grunhido de dor quando o romano lançou a espada e lhe trespassou o ventre, puxando-a de seguida de sopetão. Entretanto,
Macro já tinha atirado Júnio para bordo, e tinha-se lançado a si mesmo para o convés, rebolando sobre a madeira. Cato subiu também para a embarcação e indicou aos legionários
para o seguirem. O capitão e os seus homens já se afadigavam a afastar a barca da margem com um dos grandes remos. Os legionários chapinharam na água pouco profunda, subindo
em desalinho para o barco.
Ouviu-se um estalido no convés, junto a Cato, e o jovem encolheu-se por instinto, antes de recuperar suficiente presença de espírito e gritar um aviso.
- Cuidado!
Outra flecha silvou pelo ar junto à sua cabeça. O navio tinha-se entretanto libertado do fundo lamacento e estava agora à mercê da corrente, começando a deslizar pelo curso
do rio. Os tripulantes apressaram-se a colocar os remos de novo em posição e esforçaram-se por conseguir pôr maior distância em relação à margem. Uma flecha tombou na água,
e depois outra alcançou a barca. Logo a seguir, escutou-se um som abafado e um dos legionários soltou um grito enquanto tombava sobre o convés, e o escudo, solto, ressaltava
na madeira e se precipitava para a água. Cato avistou a haste saliente de uma flecha, mesmo por baixo do pescoço do homem. O soldado agarrou-a com ambas as mãos enquanto produzia
um horrível som borbulhante na garganta. A bota do homem sacudiu-se no convés até que a sua luta diminuiu e terminou, deixando-o imóvel no meio da mancha escura e crescente
do seu próprio sangue. Mais flechas mergulharam na água, até que o inimigo percebeu que o alvo que visava já estava demasiado longe, e interrompeu a barragem.
Macro soltou um suspiro de alívio e voltou-se para Júnio.
- Da próxima vez que o tribuno te der uma ordem, vais obedecer até à última letra. Compreendido, meu anormal de merda?
- S-sim. Farei como diz.
- Ótimo. - Macro virou-se para Cato. - Tudo bem?
- Estou bem, sim. - Cato voltou-se para contemplar a margem ocidental. - Bom, já não há quaisquer dúvidas. Parece-me que alguém resolveu poupar trabalho ao legado. Os núbios
decidiram vir ao nosso encontro.
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- Isto vai ser complicado - considerou Macro, de pé na proa de uma feluca na manhã seguinte, junto a Cato, enquanto esquadrinhavam a margem ocidental do Nilo. Na margem oposta,
o inimigo tinha colocado várias patrulhas que vigiavam todos os movimentos dos romanos. - Vão controlar a nossa travessia, e estarão prontos a fazer-nos pagá-la caro, onde
quer que desembarquemos.
Cato assentiu. O inimigo parecia perfeitamente capaz de fazer lograr qualquer tentativa de atravessar o rio. O problema era exacerbado pela falta de barcos em que se pudesse
realizar a travessia. Assim que os habitantes de Diospolis Magna tinham tomado conhecimento da presença do inimigo às portas da sua cidade, a maior parte tinha optado pela
fuga. Os mais abastados tinham alugado toda e qualquer embarcação disponível e partido pelo rio abaixo, com a parte da sua fortuna que era de natureza portátil. Quando por
fim Aurélio resolvera tomar medidas para impedir a fuga maciça, já só restavam poucas barcas e algumas felucas. A capacidade de transporte estava assim limitada a quinhentos
homens de cada vez. Os oficiais romanos a bordo da feluca já se tinham apercebido de que havia na margem ocidental pelo menos esse número de homens do inimigo à sua espera.
Qualquer força que tentasse o desembarque teria de enfrentar um inimigo superior em número. Os primeiros homens a atravessar teriam de aguentar a posição enquanto os barcos
faziam outra viagem para lhes levar reforços. Sim, seria verdadeiramente complicado, concluiu Cato, soltando um sorriso amargo perante a expressão de Macro.
- Complicado ou não, tem de ser feito - anunciou Aurélio, sentado num banco acolchoado no convés da embarcação. Um dos escravos do quartel-general estava de pé por trás dele,
segurando um para-sol sobre o legado. Um punhado de oficiais faziam-lhe companhia, mas esses apanhavam o sol em cheio e suavam profusamente. Soprava uma brisa, mas o ar quente
que transportava limitava-se a contribuir para aumentar o desconforto. Aurélio pareceu ponderar antes de prosseguir. - Antes que o exército possa avançar, temos de eliminar
a ameaça que esta coluna inimiga representa.
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Macro observou cuidadosamente a mais próxima das patrulhas árabes: seis homens de camelo, mantendo-se a par do navio enquanto este vogava lentamente contra a corrente, e fora
do alcance de um arco. Sentia-se frustrado perante a recusa do legado em enfrentar o inimigo. A sua paciência, que já não era muita em circunstâncias normais, estava a sofrer
um duro teste perante o vacilar do comandante.
- Senhor, não sabemos exatamente quantos deles estão ali. Até pode ser uma força relativamente pequena. Devíamos centrar a nossa atenção no corpo principal do exército núbio.
Na minha opinião, é perigoso continuarmos a ceder-lhes assim a iniciativa. Devíamos avançar sem receio e tratar do príncipe Talmis de uma vez, senhor.
Cato olhou de relance para Aurélio, mas o legado achou por bem não se sentir ofendido com aquele desafio à sua autoridade. Inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos
nos joelhos, mirando as tábuas do convés enquanto se perdia em pensamentos.
- Não estou assim tão certo sobre a sensatez dessa ideia. Seria perigoso, sim, abandonar a nossa base aqui em Diospolis Magna quando o inimigo ronda por perto. E se eles decidem
atravessar o Nilo e atacar? Podiam perfeitamente destruir a cidade, arrasar os nossos armazéns e depois avançar sobre a nossa retaguarda. Ficaríamos encurralados entre duas
forças inimigas. Se formos derrotados, nada mais impedirá o caminho dos núbios até ao delta. O governador Petrónio será incapaz de lhes travar o avanço. - Aurélio olhou por
fim para Macro. - Se perdermos o controlo sobre o Nilo, o fornecimento de trigo será interrompido. Alexandria passaria fome, isto sem falar das turbas que em Roma dependem
dos cereais do Egito. Não, o risco é demasiado grande. Temos de enfrentar as forças inimigas, sim, mas uma de cada vez. - Acenou na direção dos árabes. - A começar por estes.
Macro mostrou-se agitado e pronto a renovar os protestos, mas Cato acalmou-o num sussurro.
- Ele tem razão. Primeiro temos de garantir a segurança do nosso flanco.
Macro mordeu os lábios, mas não se impediu de ripostar.
- A este passo, a campanha vai arrastar-se por muitos meses. E o Ajax? Vamos dar-lhe tempo para se esgueirar de novo? É isso que queres?
- Claro que não. Mas temos de enfrentar uma ameaça de cada vez.
Macro ficou calado por momentos, mas logo prosseguiu, irritado.
- Então será melhor despachar isto, não?
O legado tossicou.
- Se vocês os dois já terminaram...
Cato e Macro olharam para ele, e Aurélio contemplou-os irritado durante Uns segundos, antes de começar.
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- Temos de colocar homens suficientes na outra margem para lidar com o inimigo. Parece-me evidente que a melhor ideia é atravessar o rio mais a jusante e seguir pela margem
até os encontrar. A Primeira Coorte deve ser suficiente para tratar disto. - Acenou a Macro. - É a mais poderosa unidade da legião, deverá ser capaz de derrotar a coluna inimiga
sem grandes problemas. Assim que o centurião Macro tiver afugentado o inimigo, colocarei a coorte de cavalaria síria no flanco para nos proteger enquanto marcharmos ao encontro
do príncipe Talmis. - Fez uma pausa.
- Há perguntas?
Os oficiais que o rodeavam permaneceram em silêncio. Cato olhou de novo para a patrulha árabe que os acompanhava a passo, e virou-se para confrontar o legado, procurando um
modo de responder da forma mais diplomática possível.
- Senhor, embora concorde com o plano que propõe, há um aspeto que me causa algum desconforto.
Macro franziu o sobrolho.
- Desconforto?
- Oh! - Aurélio arqueou uma sobrancelha. - E que aspeto será esse que tanto te incomoda, tribuno?
Cato apontou para a patrulha inimiga.
- Seguem-nos e observam todas as nossas ações. O inimigo estará pronto a enfrentar o desembarque, onde quer que o centurião Macro e os seus homens tentem cruzar o rio.
- Posso bem tratar disso - avançou Macro com firmeza, sem tirar os olhos do legado. - Tem a minha palavra, senhor.
Aurélio lançou um fino sorriso e virou o olhar para Cato.
- O teu amigo não parece nada perturbado pela perspetiva de um combate. Portanto, parece-me que o teu desconforto está como que deslocado. Entendo, evidentemente, que um oficial
de tão tenra idade se sinta um tanto nervoso perante uma travessia de rio algo delicada.
Cato não desviou o olhar do seu superior, enquanto tentava por todos os meios manter uma expressão que não revelasse a fúria que sentia perante a acusação do legado. Engoliu
em seco e respondeu no tom de voz mais neutro que encontrou.
- Asseguro-lhe, senhor, que estou perfeitamente ciente dos riscos envolvidos numa operação de desembarque num rio tão largo como o Nilo. De facto, tomei parte numa ação muito
similar durante a invasão da Britânia. - Imagens desse longínquo desembarque lampejaram-lhe na mente - o lento fluir do Tamisa enquanto aguardava com os homens da sua centúria
na barcaça sobrelotada, contemplando a horda exaltada de guerreiros celtas que os esperavam na margem. Sim, conhecia bem o género de
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perigos que a Primeira Coorte ia enfrentar, refletiu. Limpou a garganta e continuou a dirigir-se ao legado.
- Mas não era essa a minha questão, senhor. O que me passou pela cabeça foi que, uma vez que o inimigo se oporá à Primeira Coorte da mesma forma em qualquer ponto em que seja
tentada a travessia, o centurião Macro pode perfeitamente atravessar o Nilo aqui mesmo. Poupar-se-á tempo, embora nada mais do que isso.
- Estou a ver. - Aurélio cofiou o queixo enquanto contemplava a margem detida pelo inimigo, e a patrulha árabe se detinha e o observava com igual atenção. - Tens razão, tribuno.
- Voltou-se de novo para Cato.
- Mas pergunto-me se farias tal proposta se ela implicasse colocares a tua própria vida em risco.
- Evidentemente, senhor. Sentir-me-ia honrado se pudesse juntar-me à Primeira Coorte no assalto à outra margem.
Os lábios de Aurélio arquearam-se num sorriso mordaz.
- Muito bem, tal desejo ser-te-á concedido.
Macro olhou em redor, confrontando os outros centuriões da Primeira Coorte. A maior parte eram homens valorosos, de acordo com as folhas de serviço e a avaliação que deles
fizera nos dias desde que assumira o comando. Dois eram promoções recentes, antigos optios que tinham substituído oficiais que não tinham conseguido concluir o exercício de
marcha. Podiam ser novos na patente, mas eram de facto veteranos tesos, empenhados em demonstrar que mereciam fazer parte do centurionato das legiões.
- Sei bem que este tipo de ação é novo para todos vós - começou Macro. - Pode ser que tenham prestado serviço ao longo do Nilo ou no delta desde que se juntaram às legiões,
mas deixem-me avisar-vos: até nas melhores condições, uma operação anfíbia é uma grande salganhada. Está longe de fazer parte dos procedimentos padronizados do nosso exército,
e quer eu quer o tribuno não tomámos parte em mais do que um punhado de ações deste género.
Um bom exemplo de exagero, considerou Cato, em pensamento. Macro olhou para ele, pelo que Cato anuiu silenciosamente para confirmar as palavras do comandante da Primeira Coorte,
que prosseguiu.
- Não entraremos em ação como uma coorte. Nem sequer como centúrias. Até conseguirmos estabelecer uma testa de ponte na margem, será cada um por si. Quando chegarmos a terra
firme, então sim, será vital que os homens formem em volta dos estandartes o mais depressa possível. Assegurem-se de que os vossos chefes de secção estão conscientes dessa
necessidade. Será deles a responsabilidade de zelar pelos homens e de tentar mantê-los juntos. Quanto mais depressa conseguirmos formar as centúrias
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e depois a coorte, maiores serão as nossas hipóteses de conseguir sobreviver até que uma nova vaga de homens consiga atravessar o rio. - Macro fez uma breve pausa e apontou
para a estreita ilha, pouco mais do que uma faixa de lama amparada por caniçais, que ficava a cerca de duzentos passos da margem. - Resolvi fazer a travessia ali, junto à
ilha.
Os homens de uma das outras coortes já estavam na ilha, a manejar dez das balistas da legião.
- Vamos colocar ali a vaga de reforço antes de as três primeiras centúrias atravessarem o canal. Assim vamos ter um máximo de homens na margem de lá, no mais curto espaço
de tempo possível. As balistas vão cobrir-nos os flancos, depois de acabarem de flagelar o inimigo antes da travessia da primeira vaga.
Era um plano perfeitamente aceitável, refletiu Cato. Macro tinha feito tudo o que podia para dar aos seus homens as melhores hipóteses. Mesmo assim, a primeira vaga ia enfrentar
um combate desigual. Assim que saltassem das embarcações que os iam transportar, não teriam qualquer refúgio, nem poderiam recuar. Teriam de abrir caminho para terra firme,
ou morrer à beira da margem. Eram essas as únicas opções disponíveis, e os homens sabiam-no. Os dados seriam lançados no momento em que pusessem o pé a bordo e começassem
a atravessar o Nilo.
Macro olhou em volta para os seus oficiais, e respirou fundo.
- Não vou sequer tentar fingir que isto vai ser outra coisa; vai ser mesmo um combate brutal. Vamos provavelmente sofrer pesadas baixas, mas é para isto que treinamos, é para
isto que nos pagam.
Alguns dos homens sorriram ao ouvir o último comentário, e Macro aproveitou a ocasião para aliviar ao máximo a tensão crescente.
- Digam aos vossos homens que há que avançar à bruta, e desfazer aqueles cabrões. Ninguém para, seja por que motivo for, antes de chegar ao cimo da margem. Nessa altura, que
procurem os respetivos estandartes. Entendido? Ora bem, há alguma questão?
Aguardou um momento, mas os oficiais mantiveram-se em silêncio, pelo que anuiu para si mesmo.
- É tudo, então. Regressem às vossas unidades e preparem os vossos homens. Eles que formem e se preparem para embarcar assim que o legado der sinal de avançar. Boa sorte.
Os oficiais murmuraram uma resposta com iguais votos, e começaram a dispersar, saindo da sombra das tamareiras e regressando às suas centúrias, espalhadas pela margem do rio,
onde quer que se encontrasse uma sombra. Macro ficou a vê-los afastarem-se, antes de se voltar para Cato.
- O que achas?
- Parecem-me capazes de conseguir - retorquiu Cato. - De qualquer
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maneira, assim que o ataque começar, será tudo ou nada. E a perspetiva de viver ou morrer parece ter um efeito particularmente motivador nos homens.
- É bem verdade. - Macro olhou para o jovem amigo. - E tu? Pronto para isto?
- Mais pronto não podia estar.
- Não era preciso teres-te oferecido como voluntário.
- Não. Mas porque é que lhe havia de deixar toda a glória?
Macro abanou a cabeça.
- Hás de dizer-me quando é que alguma vez fizeste alguma coisa por causa da glória? Tens sempre uma qualquer razão prática como a porra para te ofereceres para alguma coisa.
- Ah sim? - Cato cerrou os lábios. - Então digamos apenas que será bom para os homens verem um dos oficiais superiores a lutar ao seu lado. Isso, e também é verdade que tenho
de me assegurar de que nada de mal lhe acontece a si. Não serei eu o homem que levará más notícias à sua mãe. Para isso será necessário alguém dotado de uma extraordinária
coragem, além de inconsciência. E esse não sou de todo eu.
Macro soltou uma gargalhada e deu uma palmada no ombro de Cato.
- Nesse caso, para teu bem, farei o possível por me manter vivo, está certo?
O Sol já tinha descido do zénite quando a flotilha de pequenas embarcações zarpou da margem oriental do Nilo. Metade dos homens da Primeira Coorte seguiam a bordo, de pé ou
sentados, observando nervosos a forma como as tripulações soltavam as velas e punham os navios em andamento. Ao contemplá-los, Cato percebia bem a sua disposição. Vergados
ao peso das armaduras, os homens afundar-se-iam facilmente se tombassem para a água. O temor do afogamento encheu-lhe de repente o espírito, enquanto imaginava como se estivesse
a vivê-lo, o desespero, a impotência, o pesado equipamento a impedi-lo de se libertar do túmulo de água, o fôlego a esgotar-se e os pulmões a arder, e por fim o sorver que
lhe encheria a garganta de água, e o agitar inútil dos membros, antes da morte. Libertou-se de tal imagem e observou Hamedes, sentado numa tábua central, oposta àquela onde
ele próprio se encontrava. Era difícil acreditar que o homem fora um sacerdote, pensou. O egípcio envergava uma armadura de placas, um elmo de bronze e apoiava um largo escudo
contra os joelhos. No rosto lia-se uma determinação fria, enquanto contemplava o solo. Tinha toda a aparência de um soldado, e Cato tentou adivinhar se ele pensaria em alistar-se
quando a campanha terminasse. Uma vez que não possuía cidadania romana, o legado recusara-se a integrá-lo oficialmente na legião, pelo que tinha sido
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alistado como um batedor, e fora nessa base de tropa irregular que lhe fora temporariamente atribuído o equipamento.
Hamedes olhou para cima de repente e o seu olhar cruzou-se com o de Cato; sorriu, inseguro.
- Senhor, será sempre assim? Esta sensação de agonia no estômago antes de entrar em combate?
- Sempre - confirmou Cato. - Acredita, todos os homens a sentem, à exceção do Macro. Para ele é uma festa.
- É este o meu trabalho - confirmou Macro, encolhendo os ombros.
- Acontece que sou bom nisto, e orgulho-me do facto.
Hamedes examinou o centurião de alto a baixo antes de voltar a falar.
- E nunca sente medo, senhor?
- Não foi isso que eu disse. O truque é não te deixares levar pela imaginação. Se o conseguires e te mantiveres focado no que tens a fazer, consegues passar por tudo sem te
deixares dominar pelo medo. Claro que nada disto te vai fazer invulnerável. Uma boa estocada é tão capaz de matar um herói como um cobarde. - Macro piscou o olho. - Portanto,
aplica um bom pontapé nas partes baixas da tua imaginação e lança umas preces a qualquer deus que te deva um favor. É esse o meu conselho, miúdo.
Hamedes não pareceu confortado pela tirada, e lançou uma olhadela a Cato, mas este limitou-se a sorrir e depois a empertigar-se quando o barco começou a ultrapassar a ilha.
As equipagens das balistas estavam junto às suas peças, que tinham as plataformas de lançamento inclinadas e apontadas à margem distante. Pouco atrás da artilharia estavam
os homens das três coortes, à espera de vez para se lançarem no assalto. À medida que os barcos passavam, o centurião da Quarta Centúria ergueu o punho no ar e lançou um incentivo.
- Deem-lhes bem, Chacais!
Os outros homens pegaram no grito, e incentivaram os seus camaradas num coro caótico. Alguns dos homens nos barcos responderam com os seus próprios gritos, mas a maior parte
manteve um silêncio sombrio, enquanto os navios saíam de detrás da ilha e se dirigiam para a margem. A feluca que transportava Macro e Cato estava a curta distância das duas
embarcações mais adiantadas, e Macro levantou-se e levou a mão em concha à boca.
- Vocês aí à frente! Lembrem-se das ordens, porra! Avançamos todos ao mesmo tempo! Reduzam a velocidade!
Os oficiais ao comando das embarcações apressaram-se a dar ordens às tripulações para reduzir o pano, e a pouco e pouco o navio de Macro foi-se colocando a par dos outros
dois. O resto da flotilha tomou as suas posições nos flancos, e a linha de combate aproximou-se da margem de
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uma forma mais organizada. Cato via o inimigo à espera ali mesmo à frente. Eram centenas de homens. Metade deles tinha desmontado e aguardava em pequenos grupos, armados com
escudos arredondados e espadas curvas que rebrilhavam ao colher os raios do Sol. Pelo meio dos homens a pé, havia mais árabes montados em camelos. Empunhavam arcos, e começavam
já a preparar as flechas enquanto assistiam à aproximação dos navios.
Soou uma bucina, e, no instante que se seguiu, ouviram-se os braços das balistas a avançarem e embaterem com estrondo contra os amortecedores, projetando assim os longos e
pesados projéteis com pontas de ferro de forma a sobrevoarem a água e passarem à frente da flotilha. Macro abriu caminho até à proa da feluca para ver o destino do disparo,
e cerrou o punho num gesto vitorioso quando viu o projétil atingir um grupo de árabes e derrubar três homens de uma vez. Outro atingiu o flanco de um camelo, e o animal soltou
um urro de terror e dor antes de tombar e lançar o homem que o montava para o meio das ervas. Um homem a cavalo surgiu a percorrer a margem a galope, esbracejando e soltando
ordens, e depressa os árabes dispersaram, de forma a oferecer às balistas alvos menos apetecíveis.
- Grande porra - sussurrou Macro enquanto fixava o homem. Franziu o olhar e sentiu um arrepio a percorrê-lo quando o reconheceu. - É ele... Cato! Senhor! É ele, é o Ajax.
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Cato levantou-se e chegou-se à proa. Pôs as mãos em pala e esforçou a vista, tentando ultrapassar o brilho ofuscante do rio e identificar o cavaleiro. Não havia dúvidas: o
físico poderoso e a indesmentível aura de comando que o gladiador ostentava, como se de uma segunda pele se tratasse.
- Tem razão.
- Quem me dera estar neste preciso momento ao comando das balistas - rosnou Macro. - Punha todas a disparar contra aquele filho da puta.
Cato assentiu sem prestar verdadeira atenção, enquanto continuava a observar Ajax. Algumas das equipagens na ilha tinham-se apercebido da relevância daquela figura montada,
e já havia alguns dos elegantes projéteis a sobrevoar o rio, descrevendo um arco pouco pronunciado e precipitando-se sobre o alvo. O primeiro errou e o mesmo sucedeu ao segundo;
o terceiro atingiu um elemento do pequeno grupo de cavaleiros que aguardavam por trás do líder. Um outro parecia ter a trajetória correta, mas Ajax agitou as rédeas e mudou
de posição no último instante, fazendo o projétil perder-se na erva alta, perto da posição onde o gladiador estivera.
Macro tinha estado a acompanhar os disparos.
- Aquele tipo tem mesmo muita sorte.
- Nem por isso - ripostou Cato. - Vendo bem, já teve uma boa dose de dor e sofrimento.
Macro olhou para o amigo, espantado.
- O quê? Agora tens pena dele?
- Nada de tão desprezível. É só que, noutras circunstâncias, o Ajax podia ter sido um homem a quem gostaríamos de chamar amigo, e que teríamos orgulho em ter ao nosso lado
num combate.
Macro fungou com desprezo.
- Foda-se, e eu podia ter sido Imperador. Cato, a vida corre ao longo de uma única estrada. Somos aquilo que somos, e nunca aquilo que poderíamos ter sido. E quanto ao que
viremos a ser, bem, aquele filho da puta há de acabar morto. - Cuspiu com violência para o rio. - Tem nas mãos o sangue de milhares. E só espero que, quando o momento dele
chegar, seja
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a minha lâmina a acabar-lhe com a existência. E desafio todos os deuses a tentarem deter-me.
Vindas de um homem dado à superstição, eram palavras poderosas, e Cato olhou para o veterano surpreendido. Mas antes de poder responder, ouviu-se outro toque da bucina, e
os estalidos típcos das balistas dissiparam-se quando a bateria deixou de disparar e começou a reorientar as armas para os flancos. Os árabes responderam de imediato, voltando
a aglomerar-se, e Ajax e os seus homens pegaram nos escudos e empunharam as espadas.
- Dirige-te para junto daqueles homens! - berrou Macro ao timoneiro. - Para ali! - Esticou o braço para a margem.
O homem olhou em torno, avaliando as posições das outras barcas à esquerda da sua, e abanou a cabeça.
- Não posso, senhor. Teríamos de cortar o caminho aos outros. Correríamos um sério risco de colisão.
- Trata disso, e pouco barulho!
- Não! - interveio Cato. - Macro, temos de manter o rumo. Se chocarmos contra outro navio, vamos perder homens.
Macro rangeu os dentes e assentiu, embora a frustração o fizesse ferver por dentro.
As embarcações continuaram a aproximar-se da margem, provocando pequenas ondas na calma superfície do Nilo. Os árabes começaram a preparar a resistência ao desembarque. Centenas
deles tinham desmontado e formavam grupos, todos armados de escudos arredondados e espadas curvas. Viam-se alguns de capacetes cónicos e armaduras articuladas. Por trás, muitos
ainda se mantinham sobre os camelos, e preparavam-se para lançar projéteis sobre os romanos, setas e dardos.
- Preparar para bombardeamento! - gritou Macro para os outros barcos.
Os legionários colocaram de imediato os escudos em posição, com as bossas viradas para a margem, e agacharam-se por trás deles. Cato e Macro recuaram, deixando a proa, e pegaram
também nos seus escudos, espreitando sobre as orlas à medida que a margem se aproximava.
- Aí vêm elas! - gritou uma voz quando a primeira rajada de flechas se ergueu no ar, descrevendo as típicas trajetórias parabólicas que as levavam a subir, dar a sensação
de pairar por instantes no ponto mais alto do arco, e depois mergulhar velozmente na direção dos alvos, neste caso os navios que seguiam alinhados para a margem. O inimigo
tinha esperado que os romanos estivessem bem ao seu alcance, de forma a não desperdiçar munições. Ouviu-se um silvo que depressa foi seguido pelo embater de uma flecha no
convés, e depois pelo estrondo das pontas metálicas a colidir
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contra as superfícies curvas dos escudos dos legionários, e ainda pelo mergulhar das flechas que erravam as embarcações e caíam sobre as águas. Cato contemplou os homens que
o rodeavam na embarcação. Não tinha havido ainda baixas. Os dois tripulantes, porém, estavam aterrorizados. E tinham razão para isso, considerou o jovem. Vestiam apenas túnicas
e panos enrolados em torno da cabeça, e não tinham a menor proteção contra as flechas.
A segunda revoada cruzou o Nilo; era menos densa, já que os arqueiros mais velozes tinham preparado e disparado uma segunda seta antes dos seus camaradas menos eficientes.
Por fim, os projéteis transformaram-se numa chuva contínua, e o ar encheu-se dos sons de pontas metálicas a rachar madeira ou a cravar-se no couro dos escudos. Inevitavelmente,
algumas das flechas encontraram caminho através das barreiras, ou foram desviadas por elas e conseguiram atingir alguns homens. O porta-estandarte da coorte, agachado a meio
do barco junto a Cato e Macro, soltou um grito estridente quando uma seta lhe trespassou o braço e ele não conseguiu manter o estandarte agarrado. Começou a tombar, mas um
dos legionários, receando a vergonha que cairia sobre a unidade se perdesse o próprio estandarte levado pelas águas, largou o escudo e pegou na haste mesmo a tempo de evitar
que caísse para fora da feluca.
- Bom trabalho! - incitou Macro. - Toma o lugar dele.
- Sim, senhor. - O legionário voltou a erguer o estandarte e passou o escudo ao camarada ferido, antes de voltar a atenção para o inimigo.
- Cuidado! - O homem que estava ao lado de Cato apontou para a margem. - Dardos!
Cato seguiu a indicação e percebeu que alguns dos cameleiros tinham desmontado e se preparavam para arremessar os seus projéteis. O primeiro correu alguns passos e atirou
o dardo. Este subiu no ar, mais lentamente do que as flechas. O gesto foi rapidamente imitado, e quando o primeiro projétil se começava a precipitar sobre o barco à direita
do de Cato, já muitos outros estavam no ar. O dardo embateu num escudo e rasgou as tiras de madeira entrecruzadas que o formavam, acabando por atingir o antebraço do homem
que o segurava. Este soltou um grito, mas pegou na borda do escudo e arrancou a ponta do dardo da própria carne, com um urro de dor e fúria. Um estrondo chamou a atenção de
Cato, e só então reparou no cabo de um dardo ainda a estremecer depois de se cravar nas madeiras da proa.
- Este caiu perto - comentou Macro.
Ouviu-se um gemido vindo da ré da feluca; ao espreitar por cima do ombro, Cato viu que o timoneiro tinha sido atingido por uma flecha a meio do corpo. Olhava para baixo, incrédulo,
até que o sangue começou a empapar as roupas sujas em torno da haste do projétil. Largou o timão e agarrou na flecha, tentando arracá-la; gritou de dor e desmaiou. A embarcação
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começou imediatamente a alinhar-se com o vento, e a aproximar-se perigosamente do navio que seguia à sua esquerda.
- Merda... - murmurou Cato, apercebendo-se do perigo. Virou-se para Macro rapidamente. - Pegue aqui no meu escudo!
Usando a mão livre, o centurião fez o que lhe era pedido, e Cato abriu apressadamente caminho por entre os legionários apinhados no convés, fazendo por ignorar a contínua
barragem de flechas e dardos. A vela triangular começava já a tremelicar, sinal de que a embarcação derivava para a direção do vento. O outro tripulante estava sentado no
chão da embarcação, agarrado a um legionário, o rosto uma máscara de terror enquanto mantinha nas mãos sem dar por isso o cabo que segurava a ponta da vela, como se isso lhe
pudesse valer na aflição. Cato ignorou-o e continuou. Agarrou na ponta do timão e forçou-o a virar, de forma a evitar a colisão iminente. Por momentos pensou que tinha conseguido,
mas a feluca virava de bordo com demasiada lentidão. No convés da outra embarcação havia faces apreensivas perante aquela nova ameaça contra a qual nada podiam; a proa da
feluca embateu no casco. As duas velas estremeceram, e os homens foram lançados uns contra os outros. Um optio que estava agachado mesmo à proa da outra embarcação, pronto
para conduzir os seus homens ao assalto da margem assim que a tocassem, perdeu o equilíbrio, caiu de lado e escorregou para a água com estardalhaço, não voltando à superfície.
Muitos outros homens tinham tombado numa confusão de pernas e imprecações.
A feluca retrocedeu depois do impacto, e uma nova brisa enfunou a vela, permitindo a Cato recolocar a embarcação no rumo certo, a caminho da margem. Não havia qualquer possibilidade
de ajudar os homens na outra embarcação, nem valia a pena perder tempo a pensar neles. A pouco mais de dez metros da margem, o outro tripulante, mais calmo, largou o cabo,
e a vela triangular perdeu a capacidade de recolher o vento. O ímpeto da feluca levou-a a percorrer a distância que faltava e quando chegou à margem, quase não tinha perdido
velocidade, pelo que se enfiou pela lama até se deter bruscamente, com a proa enfiada num maciço de canas. Desta vez os legionários esperavam o impacto, e só alguns chocaram
contra os camaradas, levando a que se levantasse um coro de grunhidos e protestos que Macro tratou de acalmar.
- Bicos calados! Escudos a postos, espadas na mão, e sigam-me!
Subiu para a proa, agachando-se ligeiramente por trás do escudo, e saltou agilmente para a água. Aterrou espalhando a água em redor e amassando as canas. A água chegava-lhe
a meio das coxas, e a lama do fundo tentava sugar-lhe as botas. Cerrou os dentes e progrediu, abrindo caminho por entre a água agitada e afastando as canas com o escudo. Ouviu
mais homens a saltarem do barco atrás dele, e uma olhadela rápida em redor mostrou-lhe
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que o resto da primeira vaga de desembarque começava a dirigir-se para a beira da água. O ar no meio dos caniçais era sufocante, e os ouvidos de Macro encheram-se com o som
da água remexida e os grunhidos dos homens que tentavam alcançar terra firme. Avistou, ao espreitar por cima do escudo, um bando de árabes próximo; preparavam-se para o atacar,
soltando gritos de guerra e erguendo no ar as suas lâminas curvas, antes de se lançarem em corrida pelo pequeno declive relvado.
Macro soltou-se finalmente da lama e verificou a sua posição. Os seus homens saíam do meio das canas de ambos os lados, e logo a seguir surgiu Cato ao seu lado, ofegante e
de olhos arregalados por baixo do capacete, enquanto fincava os pés no chão e erguia a ponta da espada contra os inimigos que chegavam em corrida. Os romanos dispunham-se
numa linha de batalha desordenada ao longo da margem; no instante seguinte os árabes estavam entre eles, e o ar encheu-se com os embates de escudos e os choques metálicos
das lâminas.
Mantendo o escudo elevado, Macro recebeu os primeiros golpes sem se preocupar em ripostar, enquanto preparava a espada, certificando-se de que estava bem presa e recuando-a
de forma a poder aplicar uma estocada a qualquer momento. Ouviu o grunhido dum inimigo do outro lado do escudo, e cheirou o aroma acre a camelo que lhe impregnara as roupas.
Esperou pelo próximo golpe, uma cutilada sobre a orla metálica do seu escudo, e empurrou de repente, dando um passo rápido e outro empurrão que acertou em cheio no corpo do
árabe. O homem fungou quando o ar lhe foi expulso dos pulmões. Macro rodou o escudo e atacou imediatamente com a espada. O árabe não tinha qualquer espécie de armadura, e
a ponta cortou-lhe as roupas sem perder o ímpeto, antes de lhe atingir as costelas. Quando Macro tentou recuperar a lâmina, o árabe torceu-se para o lado, prendendo a espada
e quase a arrancando das mãos do centurião.
- Nem penses nisso! - rugiu Macro, tentando puxar pela arma. - Merda de trapos que esta gente usa. Foda-se, não é justo.
A lâmina libertou-se finalmente, rasgando as roupagens do outro, que cambaleou para trás, sem fôlego e a sangrar. Olhou para Macro pleno de raiva, ergueu a espada e o escudo
e esforçou-se por recuperar a respiração para um ritmo normal. Voltou a atacar. Macro desviou o golpe com o escudo, atacou o pulso do homem e trespassou-lhe a garganta. O
inimigo tombou de joelhos, largando a espada e apertando o próprio pescoço, tentando em vão interromper o fluxo de sangue que se escapava da ferida letal. Macro recuou um
passo para avaliar a situação.
À sua direita, Cato enfrentava um árabe alto com uma couraça rebrilhante. Uma espada curva e pesada, mais larga na ponta, embateu no escudo de Cato, obrigando-o a recuar até
que um dos legionários atacou
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a perna do árabe, cortando-lhe músculos e tendões. A perna do homem cedeu, fazendo-o cair para trás, e Cato avançou e desferiu um potente golpe no capacete do homem, deixando-o
desacordado.
Macro concluiu que os seus homens avançavam lenta mas seguramente ao longo de toda a margem, ganhando terreno e afastando-se dos caniçais. Mais acima, a uns cinquenta passos
para a esquerda, Ajax aguardava sentado na sela, incentivando os seus homens a resistir aos romanos, empunhando ao alto a sua espada. Macro virou-se para um grupo de homens
que tinham vindo no mesmo barco.
- Vocês, comigo! Formem à minha volta!
Os legionários apressaram-se a formar uma cunha por trás do centurião e Cato, ao avistá-los, correu a juntar-se a ela.
- Vamos! - incitou Macro, atravessando a subida junto à beira da água na diagonal, aproximando-se de Ajax. Apenas um punhado de inimigos os separava do alvo, e alguns deles
apressaram-se a sair do caminho da formação romana, optando por enfrentar adversários isolados junto à borda da água. Outros, mais corajosos, lançaram-se contra a pequena
mas coesa formação e pagaram o preço pela sua busca de glória individual. Quando a cunha já se aproximava do fim da subida, o gladiador virou-se e apercebeu-se do perigo.
Gritou uma ordem ao grupo mais próximo de arqueiros montados a camelo que esperava, armas a postos, já que não as podia usar contra a confusão do combate sem correr o risco
de atingir os seus próprios camaradas. Ajax apontou Macro e os outros com a espada, e deu uma ordem em grego.
- Abatam-nos! Matem-nos!
O significado era claro e dispensava tradução. Os arqueiros ergueram os arcos, apontaram e soltaram as flechas quase à queima-roupa. Cato estremeceu quando uma ponta acerada
lhe rasgou o escudo e se deteve a poucos centímetros da face. À sua direita um homem gritou quando uma flecha se lhe cravou na perna, lascando ossos e cortando os músculos
por baixo do joelho. Cambaleou até se deter e agachou-se, impotente, incapaz de continuar a avançar ou de se proteger por trás do escudo e tratar da ferida ao mesmo tempo.
- Tira-a! - gritou-lhe Cato. - Tira-a e mexe-te, ou fica aí e morre!
A pequena formação cerrou fileiras e prosseguiu, enfrentando a chuva
de flechas, deixando o homem para trás. Os impactos e as perfurações da madeira enchiam os ouvidos de Cato com uma cacofonia ensurdecedora enquanto marchava perto do ombro
de Macro, encolhido por trás do escudo, de forma a proteger as pernas o melhor possível. Porém, sendo alto, o capacete e a respetiva crista sobressaíam acima do escudo, e
uma flecha atravessou a crista, fazendo tremer o capacete, e logo outra embateu
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no cimo deste, desviando-se mas fazendo-o abanar a cabeça e deixando-o zonzo. Cato sacudiu a cabeça e prosseguiu, temendo vacilar, cair e ficar à mercê dos arqueiros inimigos.
A tontura lá passou e ele firmou os maxilares e seguiu Macro na subida do declive relvado.
Os inimigos lançaram uma última rajada de setas antes de prenderem os arcos às selas e desembainharem as espadas. Pegaram nas rédeas e incitaram os camelos a carregar sobre
os romanos. Os animais soltaram bramidos curtos e profundos enquanto avançavam com um passo muito característico.
- Aguentem! - gritou Macro, fincando os pés bem afastados e empurrando o escudo para a frente, para absorver o choque da carga. Cato e os outros imitaram-no e agacharam-se,
de espadas aperradas, a suar debaixo do peso das armaduras e do esforço de invadir a margem e subir aquela encosta. O pescoço do camelo mais adiantado surgiu por cima do escudo
de Macro mesmo antes de o peito da pesada besta lhe acertar de raspão. O homem que o montava esticou-se todo para a frente, golpeando com a espada curva e conseguindo rasgar
a orla do escudo, deixando a ponta a poucos centímetros da cabeça de Macro. O árabe não podia esticar-se mais, e Macro ergueu-se e atacou o pescoço do camelo ao invés do homem.
A queixada do animal abriu-se e a língua surgiu enquanto soava um bramido de agonia; a montada tentou esquivar-se, fugindo do grupo de romanos e atravessando-se no caminho
dos outros camelos, antes de cambalear e cair de joelhos. Outro tropeçou nele, quase cuspindo o seu cavaleiro. Os outros pararam de repente ou desviaram-se, dispersando-se.
Os cameleiros gritaram furiosos, tentando recuperar o controlo das montadas, enquanto a poeira redemoinhava em volta das finas pernas dos animais.
Macro mediu a situação num instante.
- Chacais! A eles!
Correu em torno do camelo atingido, enquanto o cameleiro tentava recuperar o equilíbrio, e lançou-se para a confusão de homens e animais. Mantendo o escudo bem elevado, golpeou
a pele escura de uma perna que lhe apareceu à frente. Quando o homem urrou de dor e dirigiu a sua montada para longe, Macro virou-se e avistou outro adversário que se lançava
sobre ele, uma silhueta negra contra o Sol brilhante. Ofuscado, não conseguia ver a lâmina que sabia que se estava a precipitar sobre ele, e nada mais podia fazer do que tentar
amparar o golpe com a sua própria espada. Ouviu um fragor metálico e o impacto propagou-se pelo seu braço abaixo, torcendo-lhe os pulsos e os poderosos músculos dos ombros
e cotovelos. A lâmina do árabe cruzou a crista transversal do capacete do centurião e rasgou o bronze, mas foi detida pelos reforços de ferro que se cruzavam no cimo do capacete.
O golpe tê-lo-ia matado se não tivesse conseguido
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opor-lhe alguma resistência, mas ainda assim o choque deixou-o atordoado, fazendo-o ver clarões. Cambaleou, mal se tendo nas pernas, mas nunca largou o escudo, embora a espada
lhe pendesse inútil das mãos. Uma onda de náusea ameaçou apossar-se dele, e Macro temeu estar prestes a desmaiar.
- Foda-se, mas é que nem pensar - grunhiu para si mesmo.
Abanou a cabeça, e a visão começou a clarear. Um novo golpe embateu-lhe no escudo, e depois ouviu alguém a manifestar surpresa e dor. Olhou para o lado e viu Cato, que se
tinha colocado entre ele e o camelo, e tinha cravado a espada nas entranhas do cameleiro. O árabe fez a montada afastar-se enquanto tentava fechar a ferida com uma mão, abandonando
a refrega. Um dos legionários tinha tombado, com um rasgão no braço que atravessava músculos e chegava ao osso. Mas o inimigo tinha perdido dois elementos, imóveis no meio
da poeira, e outros estavam já feridos e começavam a recuar perante o assalto dos romanos com o seu equipamento pesado. Dois legionários fizeram menção de os perseguir, mas
Macro chamou-os imediatamente, furioso, antes de dedicar a sua atenção a Ajax.
O gladiador tentava reagrupar os arqueiros montados, mas a verdade é que na margem a situação começava a tornar-se definitiva. Os legionários ganhavam terreno, e já tinham
feito alguns avanços para as searas próximas da margem, em terreno plano. Ajax dava largas à sua fúria, tentando forçar os seus homens a manter as posições e a dar luta aos
romanos. Apesar das dificuldades linguísticas, não havia forma de duvidar da sua vontade, mas os árabes mal olhavam para ele enquanto corriam pelos campos, abandonando a contenda.
- Vamos a ele. - Cato respirava pesadamente. - Enquanto podemos.
Macro virou-se para os outros homens.
- Venham!
Os dois oficiais levaram o pequeno grupo de legionários na direção do gladiador e do punhado de homens montados que ainda o rodeavam. Ajax contemplava com azedume a fuga dos
seus aliados, e só acordou para o perigo quando um dos seus homens o chamou e lhe apontou os romanos que se aproximavam rapidamente. Virou-se na sela e contemplou a possibilidade
de novo embate. Mas depressa a sua expressão se transformou na de alguém atormentado pela frustração. A mão dirigiu-se para a espada e por lá se manteve por momentos, mas
acabou por pegar nas rédeas e levar o seu cavalo para longe da margem.
Cato sentiu o coração pesado perante a perspetiva de nova fuga de Ajax, e lançou um desafio aos cavaleiros.
- Fiquem aí e lutem, cobardes! Enfrentem-nos!
O cavalo de Ajax empinou-se enquanto o seu cavaleiro cruzava o olhar
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com o de Cato, mas logo o gladiador cravou os calcanhares no flanco do animal, fazendo-o afastar-se a galope pelo campo, por entre as figuras em fuga dos seus aliados árabes.
Cato correu atrás deles com toda a velocidade, esmagando o trigo já derrubado, mas não tinha qualquer possibilidade de evitar a fuga, e acabou por se deter, ofegante, enquanto
os via a dirigirem-se para a segurança de um templo distante, murado.
- Filho da puta - mal conseguiu Macro dizer enquanto se detinha ao lado do amigo. - O cabrão não teve tomates para ficar... Para nos enfrentar.
Cato lambeu os lábios secos enquanto tentava recuperar o fôlego. A armadura parecia um torno a apertar-lhe o corpo, esmagando-o com o peso e o calor que fazia lembrar um forno
em plena atividade. Respirou fundo e tentou engolir. Fechou os olhos e falou por entre os dentes.
- Ele cansa-nos... Leva-nos ao limite da resistência.
Abriu os olhos. Endireitou-se, e olhou ao longo da margem, onde os legionários se iam agrupando em torno dos respetivos estandartes. Soltou o ar dos pulmões, impaciente.
- Bem, será melhor avisarmos o legado. Dizer-lhe que conquistámos a margem.
- Vou tratar disso - assegurou Macro.
- E ponha o resto dos seus homens e da artilharia na margem o mais depressa possível. - Cato fez um gesto na direção do templo e prosseguiu, irritado: - Se eles pensam que
estão seguros ali dentro, vão ter uma grande surpresa. Estão é apanhados. Encurralados. Desta vez não têm fuga possível.
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26

Escutou-se um embate surdo quando um projétil de balista atingiu os tijolos de adobe da muralha exterior, e uma nuvem de pó se espalhou pelo ar. Ajax esforçou a vista do alto
do pilar e à luz que morria viu que a face interna da parede estava rachada e começava a esboroar-se. O Sol já se tinha posto e o céu estava de um violeta profundo, onde só
sobressaía o brilho frio das primeiras estrelas. Os romanos já acendiam fogueiras em torno de todo o perímetro do templo, para se assegurarem de que havia luz suficiente para
detetarem qualquer tentativa de fuga por parte dos defensores. Depois de terem conseguido estabelecer o domínio sobre a margem do Nilo, tinham trazido para aquela banda mais
três coortes de legionários e alguma cavalaria, bem como a bateria de balistas que antes tinham instalado na ilha a meio do rio.
Tinha ficado supreendido pela rapidez com que os romanos se tinham movimentado para estabelecer o cerco ao complexo do templo; a primeira balista tinha começado a disparar
assim que tinha sido instalada em frente à parede exterior. Depois, à medida que os vagões tinham trazido mais máquinas, o bombardeamento tinha-se intensificado, mantendo-se
ao longo de toda a tarde e prometendo continuar pela noite que se iniciava.
Mais dois projéteis foram embater nos tijolos de lama.
- Vão conseguir fazer uma brecha na muralha externa antes que passe a primeira hora da noite - anunciou Karim. - E nessa altura tudo o que terão pela frente serão as barricadas
que montámos nas entradas do templo.
- Sim, estamos longe da fortaleza que imaginámos - concordou Ajax.
As pesadas madeiras do portão principal entre o par de pilares à entrada do templo tinham sido reforçadas com troncos de palmeira obtidos das árvores que tinham crescido ali
perto. As estreitas entradas laterais também tinham sido bloqueadas com paliçadas improvisadas, e havia grupos de guerreiros árabes equipados com espadas e lanças a postos
junto a cada uma delas, firmemente determinados a manter os romanos no exterior até isso se tornar impossível. No fim de contas, refletiu Ajax, tinha sido esse o propósito
daquele avanço ao longo da margem ocidental do Nilo. Atrasar o
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avanço do inimigo, e dar ao príncipe Talmis mão livre para devastar a província na região do Alto Nilo. Ajax e a sua coluna deviam obrigar os romanos a ficar naquela área
por mais uns dias, mas o inimigo tinha respondido de forma muito mais rápida e decidida do que Ajax antecipara. Naquele momento, a sua posição tinha um ar decididamente perigoso.
Deu-se outro impacto na parede, perto da zona mais enfraquecida, e desta vez o projétil penetrou todo o muro antes de ir embater contra a pedra sólida da parede do próprio
templo.
- Talvez devêssemos tentar uma surtida antes que seja tarde de mais, general - sugeriu Karim, cautelosamente.
Ajax sorriu.
- Meu amigo, pensas que foi uma má decisão enfrentá-los neste local.
Karim cerrou os lábios.
- Não me cabe decidir tal coisa. Tu comandas, eu sigo.
- De facto. Tenho as minhas razões para nos mantermos aqui. - Ajax apontou para um grupo de oficiais romanos que observavam as manobras em cima de um montículo. - Estão além
os dois homens que mais desejo matar neste mundo.
- Estás certo de que são eles?
- Vi-os com os meus próprios olhos. Ouvi-os gritar o meu nome.
- Ajax rangeu os dentes. - Tivesse tido uma ocasião de os enfrentar individualmente e teria corrido sem olhar a mais nada. - Contemplou as distantes figuras dos oficiais inimigos,
as cristas dos capacetes e as placas peitorais polidas a rebrilhar à luz de uma fogueira próxima, alimentada por ramagens secas de palmeira.
- Podes ter a certeza que, quando os romanos atacarem, aqueles dois virão à frente dos seus homens. E eu estarei à espera deles. - Voltou-se para Karim. - Talvez seja melhor
que estejamos aqui aprisionados. Não há para nós qualquer hipótese de retirada. Aguentaremos o que pudermos, e a ocasião de enfrentar os meus inimigos acabará por chegar.
E encontrarão a morte na ponta da minha espada. Os dois.
- E nós morreremos com eles - acrescentou Karim, calmamente. - Eu, tu, todos os que te seguiram desde o início da revolta, os nossos aliados árabes. General, será essa a melhor
forma de desafiar Roma?
Ajax passou a mão com toda a calma pelos espessos caracóis que lhe cobriam o escalpe. O cabelo tinha-lhe crescido para além do que apreciava. Preferia um corte mais curto,
apenas o bastante para absorver o suor de forma a que não lhe escorresse pela face quando estivesse envolvido num combate. Suspirou.
- Começo a estar cansado de desafiar Roma. De ser forçado a fugir, sempre a olhar sobre o ombro para saber se me perseguem. Chega um
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momento em que a presa tem de se voltar e enfrentar quem a caça. E aí encontra uma última oportunidade de dar um propósito à sua morte, de recuperar alguma dignidade. Talvez
tenha chegado esse tempo. Se assim for, matarei tantos romanos quantos conseguir enquanto houver em mim um sopro de vida. Se os deuses me concederem tal favor, matarei também
o Macro e o Cato. - Ajax olhou para o amigo e agarrou-lhe o braço. - Será este um fim tão terrível? Morrer de pé, de espada nas mãos, com os teus camaradas - e amigos - ao
teu lado?
Karim anuiu solenemente.
- Antes tal sorte a viver como um escravo, meu general.
- Isso não é viver - retorquiu Ajax. - É meramente existir.
Ouviu-se outra série de estrondos; as balistas inimigas continuavam a
demolir sistematicamente a parede de adobe, e uma secção completa acabava de ruir para o interior do templo, levantando uma enorme nuvem de pó. Seguiu-se uma curta pausa,
e logo se escutaram notas sopradas nas linhas romanas. As balistas pararam de disparar, o sinal voltou a fazer-se ouvir, e uma coluna de legionários formou rapidamente, para
lá do alcance dos arqueiros no templo. Eram oito homens por fileira, com pelo menos vinte de profundidade. Era a Primeira Coorte da legião, como Ajax bem sabia. A unidade
mais poderosa ao dispor do comandante do exército romano. Um punhado de oficiais separou-se do grupo que tinha estado a examinar as defesas do templo e juntou-se à coluna.
Graças ao espião de que dispunha no exército romano, Ajax sabia que Macro era o comandante da Primeira Coorte, e deu por si a pedir fervorosamente aos deuses que Cato se juntasse
ao amigo no assalto ao templo.
Ajax voltou-se para Karim.
- Passa palavra. A brecha está aberta, e os romanos vão avançar. Os arqueiros que se preparem para os receber de forma calorosa.
Karim assentiu.
- Sim, meu general.
Enquanto Karim se apressava a descer do cimo do portal, Ajax chamou os árabes que aguardavam a uma distância respeitosa do seu líder, ao fundo da plataforma. Aproximaram-se,
e ele apontou para a coluna romana. O comandante acenou em concordância, os lábios a abrirem-se para revelar dentes brilhantes. Logo a seguir, chegou-lhe a voz de Karim, e
logo se ouviram mais gritos, quando as ordens começaram a ser transmitidas aos árabes pelos oficiais núbios que também falavam grego e árabe. As bucinas inimigas voltaram
a fazer-se ouvir, e a coluna romana começou a marchar, saindo das sombras e dirigindo-se à brecha na muralha. Ajax olhou para baixo e viu que os seus homens já trepavam pelas
escadas improvisadas que os levavam ao telhado do templo. No cimo dos outros
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pilares avistou chamas, sinal de que se estavam a acender as pilhas de madeira e folhas de palmeira secas. As labaredas cresceram e iluminaram os arqueiros que as rodeavam
e que já manejavam as primeiras flechas tiradas das aljavas. Pedaços de pano ensopados em óleo e piche tinham sido amarrados em volta das hastes, por trás das pontas metálicas,
prontos para serem ateados assim que a ordem fosse dada. Karim surgiu a correr pelas escadas, com a respiração pesada. Engoliu em seco e apresentou o relatório.
- Os homens estão a postos, general.
Ajax assentiu, e os dois homens viraram-se para apreciar o avanço dos legionários para a brecha. Os arqueiros perto deles na plataforma estavam a acender o seu fogo. Uma acendalha
foi ateada com uma pederneira, e passada para o braseiro já preparado, onde as chamas cresceram.
- Já estão ao alcance - anunciou Karim. - Dou a ordem?
- Ainda não. - Ajax esforçou a vista para escrutinar a frente da coluna inimiga. Avistou dois capacetes com cristas. Oficiais. - Vamos esperar até que eles cheguem ao pé da
parede. Quero que a primeira descarga provoque o máximo de danos possível.
Karim assentiu em concordância, e esperaram em silêncio, observando a forma como os romanos atravessavam as areias, progredindo para a abertura da parede; a massa negra e
alongada fazia lembrar uma centopeia gigantesca couraçada que avançava pela escuridão crescente. Quando se aproximaram, ouviu-se uma ordem e a fileira da frente dispôs os
escudos de forma a criar uma parede ininterrupta, capaz de proteger os homens. Reduziram o passo quando chegaram à zona ocupada pelos destroços, e começaram a escalá-los.
Assim que os primeiros homens assomaram ao espaço aberto do buraco na parede, Ajax preparou-se.
- Agora.
Karim pôs as duas mãos em concha e gritou:
- Arqueiros! Ateiem as flechas!
A ordem foi passada de imediato aos árabes amontoados em torno dos braseiros, que atearam os trapos presos às flechas. Karim inspirou profundamente.
- Atirem à vontade!
A primeira flecha subiu num arco pouco pronunciado a partir do telhado do templo, e precipitou-se sobre a brecha da parede. Muitas se lhe seguiram, cortando a escuridão e
convergindo para o mesmo ponto, como se aquele espaço as atraísse. As flechas incendiárias caíam sobre a vanguarda da coluna romana. Algumas tombaram no solo inofensivamente,
as chamas a morrerem na areia. Outras "xplodiam em fagulhas quando embatiam nos tijolos de lama ou raspavam nos escudos e armaduras dos
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legionários. Ainda outras passavam por minúsculas fendas na parede de escudos e atingiam a pele dos homens.
O fluxo luminoso prosseguiu, iluminando a brecha numa luz intermitente. Ajax ouviu de novo a mesma voz a dar ordens, e a centúria da frente da coluna fez alto e formou em
tartaruga. Alguns escudos foram postos sobre as cabeças dos legionários, criando um telhado para os proteger da barragem de flechas incendiárias que chovia sobre eles.
Escutou-se um estrondo por baixo da plataforma, e Ajax espreitou a tempo de ver uma haste comprida a tombar para o solo. As balistas romanas tinham recomeçado a disparar,
tentando agora perturbar a ação dos arqueiros no templo. Outros embates acertaram nos pilares, mas alguns tiveram sucesso e arrancaram homens das plataformas de tiro, atirando-os
para o solo, fazendo-os cair ao longo das imagens esculpidas dos antigos deuses do Egito.
Os romanos tentavam atravessar a brecha, e já deixavam algumas baixas no terreno. Cerravam fileiras, mas os homens na vanguarda enfrentavam a difícil tarefa de progredir pela
estreita abertura, onde o solo era muito irregular. Tentavam alcançar a barricada instalada à entrada do templo que levava ao primeiro átrio colunado do interior. Ajax observou
com toda a atenção a centúria da frente, mas não avistou sinais dos dois oficiais romanos.
- Continuem a disparar - ordenou ao árabe que comandava os arqueiros. Virou-se para as escadas que desciam pelo interior do pilar. - Karim, vamos.
Desceram à pressa as íngremes escadas, iluminadas apenas por pequenas lamparinas nalguns patamares. Os sons de combate começavam a fazer-se ouvir, e Ajax estugou o passo.
Ao emergir na base do pilar, avistou os seus homens concentrados junto às colunas da esquerda . Desembainhou a espada e correu para se juntar a eles.
- Afastem-se! - gritou. - Deixem passar!
Os árabes olharam em redor e afastaram-se para lhe dar passagem até à entrada barricada. O espaço entre a parede exterior e o templo não tinha mais de dois metros e meio de
largura, e tinha sido preenchido com blocos de pedra extraídos do pátio mais pequeno à frente dos pilares, de forma a conseguir criar um parapeito de proteção aos combatentes.
Alguns dos gladiadores de Ajax estavam lá, prontos a abater qualquer romano que tentasse trepar. De ambos os lados, no cimo do templo, os arqueiros árabes continuavam a empregar
os arcos, disparando sem cessar sobre a coluna romana que se infiltrava pela brecha. À luz das flechas incendiárias, os legionários representavam um alvo evidente, e viam-se
obrigados a avançar agachados e escondidos por trás dos escudos, enquanto esperavam que a
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vanguarda conseguisse superar a barricada e lhes permitisse entrar pelo templo dentro.
Ajax e Karim treparam para o parapeito e puseram-se ao lado dos homens que o defendiam. Havia alguns cadáveres no espaço vazio, e a cabeça da coluna romana parecia hesitar
a alguns metros de distância, mais preocupada em utilizar os escudos para se proteger da incessante chuva de projéteis. De vez em quando um dos soldados arriscava uma aberta
para lançar um dardo contra os defensores. Pouco tempo tinham para apontar, e rapidamente se voltavam a recolher à proteção da muralha de escudos.
- Do que é que eles estão à espera? - perguntou-se Ajax.
Mal tinha acabado de falar quando se apercebeu de um movimento no centro da coluna romana. Reparou então que havia mais homens a avançar para o espaço entre a brecha e as
paredes do templo. Tinham os capacetes cónicos e a armadura de placas dos arqueiros auxiliares, e traziam consigo painéis de proteção. Estes foram rapidamente colocados em
posição, e os arqueiros lançaram-se ao trabalho, visando os árabes expostos nos pilares e no telhado do templo. Ajax não lhes deu grande atenção, já que estava mais preocupado
com a atividade que ocorria no seio da coluna de legionários. A muralha de escudos na face da formação abriu-se de repente, e um pequeno grupo de homens correu com uma rampa
feita de troncos de palmeira amarrados a uma escada de assalto. Outro grupo com uma segunda rampa seguiu o primeiro, dirigindo-se diretamente para a barricada.
- Abatam-nos! - gritou Ajax, enquanto apontava para os romanos. Alguns dos arqueiros no telhado viraram-se para lá, apontaram e dispararam. Dois dos homens tombaram de imediato,
um deles agarrado à haste da flecha que lhe rasgara a perna, o outro com o pescoço trespassado. Mas os portadores continuaram a avançar. Quando chegaram à parede, o par de
homens da frente lançou o topo da rampa para cima, fazendo-o embater com estrondo no cimo da barricada. Os soldados na formação desfizeram-na de imediato e lançaram-se ao
assalto, trepando pelas rampas antes que os defensores as conseguissem afastar. Ajax empurrou a ponta da segunda rampa antes que algum legionário a conseguisse subir, e o
engenho escorregou e caiu para o lado. As botas cardadas do mais adiantado dos romanos escorregaram nos toros de palmeira, mas o homem tentou ainda assim projetar-se sobre
os defensores. Ajax avistou o escudo e a lâmina a subir, refulgindo à luz de um dos braseiros. Lançou um golpe na horizontal, por baixo da orla do escudo, e a sua espada apanhou
as canelas do romano por cima do tornozelo, cortando pele e músculo antes de esmagar ossos. O homem soltou um grito estridente quando a perna cedeu e ele caiu por cima do
legionário que o seguia. Este desequilibrou-se e caiu
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da rampa quase abraçado ao camarada ferido, e ambos tombaram com estrondo sobre o solo.
Mais um homem subiu a rampa ainda em posição. Este era mais cauteloso, e manteve o escudo em posição enquanto progredia para cima do parapeito. Ajax aguardou-o e tentou arrancar-lhe
o escudo com um puxão súbito. Conseguiu desviá-lo ligeiramente, o suficiente para expor o flanco e a perna do legionário. O gladiador à esquerda de Ajax empunhava uma lança
e aproveitou imediatamente a oportunidade para aplicar uma estocada ao romano. O golpe, porém, não teve força suficiente para lhe provocar uma ferida séria. Ainda assim, o
legionário grunhiu e hesitou. Ao perceber que não podia recuar, já que os camaradas o forçavam a avançar, atacou, lançando o escudo contra Ajax. O gladiador nada pôde fazer
para evitar o impacto, pelo que se deixou levar e caiu do parapeito, sobre os árabes no interior do templo. Dois deles ampararam-lhe a queda, embora não se conseguissem aguentar
de pé sob o tremendo peso do gladiador. A queda expulsou-lhe o ar dos pulmões, e por momentos deixou-se ficar atordoado, em cima dos dois árabes que se remexiam. Pôs-se finalmente
de pé e olhou para cima; o outro gladiador tinha voltado a atacar com a lança e desta vez acertara na virilha do legionário, que se dobrou e deixou cair o escudo. Karim tinha
tomado o lugar de Ajax no parapeito, e deu cabo do homem com um golpe profundo no pescoço desprotegido. O romano caiu em cima da rampa e deslizou até aos pés do legionário
que o seguia.
A ponta da segunda rampa voltou a surgir no cimo do parapeito, e Ajax gritou aos seus homens:
- Empurrem! Não os deixem chegar à barricada!
A cabeça e ombros do primeiro legionário a correr pela segunda rampa surgiram à vista, enquanto o único defensor naquela zona tentava destruir a rampa com uma pesada falcata.
A madeira estilhaçava-se, e Karim atacou o legionário que se aproximava. A estrutura cedeu de repente e atirou com o romano para ao pé da outra rampa, caindo sobre um camarada
que mal teve tempo de travar para evitar ser derrubado.
- Não parem! Avancem! Em frente! - berrou a voz de Macro, do outro lado da parede exterior. Ajax sentiu o coração endurecer, e agarrou-se à beira do parapeito. Puxou-se para
cima, e empurrou um dos seus homens para o lado.
- Recua.
O homem recolheu ao interior do templo, e Ajax contemplou o panorama dos soldados inimigos agrupados à sua frente, até avistar a crista transversal do capacete de Macro. O
centurião estava de lado, incitando os homens, e junto a ele via-se outro oficial, mais alto e magro - o amigo, o agora prefeito Cato. Ajax embainhou a espada e virou-se para
arrancar
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a lança das mãos de outro dos seus homens. Teria sido muito mais gratificante poupar o inimigo até lhe poder dar uma morte lenta e dolorosa, mas Ajax compreendeu que tinha
de aproveitar aquela oportunidade, antes que se desvanecesse. Ao lado, Karim lutava contra outro legionário que tentava chegar à barricada. Ajax ignorou o embate da espada
do companheiro no escudo do romano, e sopesou a lança, elevando-a. Colocou-a sobre a cabeça e puxou o braço atrás, apontando aos dois oficiais. Uma satisfação cruel preencheu-lhe
a mente, ao recordar uma situação similar em Creta, quando era Macro que defendia uma muralha e tinha lançado um projétil que tinha custado a vida a um dos seus mais próximos
seguidores.
Inspirou profundamente e depois deixou o ar sair lentamente, acalmando-se; atirou o braço para a frente enquanto soltava a lança. O arremesso fora perfeito, e o projétil dirigiu-se
a direito para os dois homens.
- Macro! Cuidado! - O prefeito empurrou o amigo para o lado, um momento antes de a lança o atingir em pleno peito. Assim, atingiu o prefeito no ombro esquerdo, e o impacto
atirou-o por terra, no espaço desprotegido à frente da parede do templo.
- Ah! - deixou escapar Ajax por entre os dentes, a face presa numa expressão selvática de triunfo. Mal teve tempo de deitar um último olhar aos dois oficiais, reparando que
Macro se agachava sobre o amigo, e depois teve de puxar de novo da espada e juntar-se à refrega que o rodeava. Karim ainda travava um duelo com o mesmo romano, trocando golpes
que ecoavam com estrondos metálicos. Mas o legionário via-se agora forçado a enfrentar dois adversários, e quando ele aparou outro golpe, Ajax enganchou a lâmina na orla do
escudo do homem e atingiu-o no braço, rasgando-lhe os músculos. O escudo tombou das mãos do romano, que recuou um passo por instinto, tentando sair do alcance das espadas
inimigas. De imediato duas setas se cravaram nele, trespassando-lhe o braço que empunhava a espada. O homem uivou de dor e cambaleou para o lado, escorregou e caiu da rampa,
sobre os cadáveres que já se empilhavam no solo.
Os atacantes na base da rampa hesitaram, e nesse momento um deles foi atingido no rosto por outra flecha; pareceu empertigar-se todo, entrou em convulsões e tombou para o
solo. Em redor da centúria que comandava o assalto havia já muitos corpos, em que se misturavam alguns árabes, entretanto derrubados do telhado do templo.
- Recuar! - gritou uma voz. - Recuar!
Deu-se uma breve hesitação, mas logo Ajax viu os legionários começarem a afastar-se da entrada da única rampa ainda em posição. Outras vozes se juntaram ao grito, e a centúria
começou a desagregar-se enquanto recuava para a brecha da parede exterior.
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- Parem! - berrou Macro. - Mantenham a posição! Malditos! Não se acobardem!
Ajax viu-o erguer-se enquanto amaldiçoava os homens, antes de olhar para a figura imóvel que jazia aos seus pés. O centurião pareceu dilacerado e incapaz de ação, mas depressa
se debruçou e pegou no amigo, colocando-o ao ombro e seguindo a cambalear debaixo daquele fardo, ao lado dos homens. Ajax sentiu-se defraudado ao constatar que os seus inimigos
iam conseguir escapar, até que avistou uma revoada de setas a aterrar na areia junto a Macro.
- Disparem sobre os oficiais! - gritou, apontando-os com a espada.
- Abatam aqueles cabrões!
No meio da confusão do ataque, só os mais próximos dos homens é que escutaram a ordem e tiveram a presença de espírito para visar os dois oficiais romanos. Ajax observou ansioso
a forma como os projéteis atravessavam o ar, iluminados pela feérica luz das flechas que ainda ardiam nos locais onde se tinham cravado. Macro acelerou, afastando-se o mais
depressa que podia, ziguezagueando para dificultar o trabalho aos arqueiros inimigos. Uma seta atingiu-lhe a armadura de raspão, e outra passou-lhe a centímetros do capacete,
e o centurião apressou-se a procurar refúgio por trás de um dos abrigos preparados pelos arqueiros romanos. Macro largou Cato de qualquer maneira por trás do painel e deixou-se
cair de joelhos ao lado do prefeito.
- Merda - resmungou Ajax, furioso, enquanto cerrava o punho. Continuou a observar o abrigo onde Macro se esforçava por arrastar o amigo para fora do alcance dos arqueiros
árabes, cujas setas continuavam a cravar-se no abrigo ou no solo poeirento ali perto. A maior parte dos homens da Primeira Centúria já tinham alcançado a segurança da brecha,
ou abrigavam-se também por trás das proteções dos arqueiros. Enquanto Ajax contemplava o cenário, os romanos continuaram a retirar, e os arqueiros pegaram nos seus abrigos
portáteis e usaram-nos para proteger o prefeito que era levado em ombros por Macro e mais alguns homens. Quando o último dos romanos passou para o lado exterior da brecha,
Ajax rangeu os dentes de raiva.
- Senhor, devíamos poupar as setas - avisou Karim.
Ajax sacudiu a raiva que o possuía e assentiu.
- Dá a ordem.
- Parem de disparar! - gritou Karim para os dois lados da linha. - Cessar fogo!
Os árabes interromperam a barragem e desceram do telhado do templo, deixando apenas alguns elementos para vigiar as ações do inimigo. O último dos arqueiros auxiliares retirou
para o outro lado da brecha, e pouco
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depois as balistas interromperam também os disparos. O ar noturno só era perturbado pela brisa e pelos gritos dos feridos, romanos e árabes, que juntavam as suas vozes num
coro de agonia. Algumas das flechas incendiárias ainda ardiam, tal como os braseiros no pilar e no cimo do templo, lançando uma luz alaranjada pela cena do primeiro assalto
romano. Tinham perdido mais de vinte homens, calculou Ajax. Mas muito pior, tinham sofrido um tremendo abalo no moral. Da próxima vez que tentassem o assalto, fá-lo-iam com
a certeza de que enfrentariam uma chuva de projéteis e uma defesa determinada da barricada. Teriam de avançar sobre os corpos dos seus camaradas caídos, ignorando os apelos
de ajuda dos feridos. O comandante romano teria de pensar duas vezes antes de tentar um segundo assalto frontal.
- E agora? - especulou Karim. - Achas que eles voltarão a tentar ainda esta noite?
Ajax ponderou a sugestão por momentos.
- Se estivesse no lugar deles, fá-lo-ia, sem dúvida. Cada hora de atraso aqui corresponde a uma hora de ganho para o príncipe Talmis... Sim, voltarão a atacar.
- Nesse caso, general, o que fazemos?
- Fazer? - Ajax sorriu sem vontade. - Nada. Duvido que até o nosso espião nos possa ajudar agora.
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27

- Como está ele? - Macro debruçava-se sobre o amigo, enquanto o médico da legião inspecionava cuidadosamente o ombro de Cato à luz de uma lamparina que um dos seus assistentes
segurava.
O médico inspirou, irritado. Falou sem levantar a vista.
- Senhor, talvez lho possa dizer, se tiver a suprema gentileza de não se pôr entre a luz e o meu paciente.
Macro deu um passo atrás.
- Muito obrigado. - O homem inclinou-se sobre Cato e examinou o ombro do prefeito. Assim que tinha retirado do complexo do templo, Macro dera ordens a dois dos seus homens
para levarem Cato para junto das balistas e requerira a presença imediata do médico. Cato tinha embatido com a cabeça no solo depois de o impacto da lança o ter feito desequilibrar-se.
Tinha perdido os sentidos, e só acordara quando Macro e Hamedes o levavam para longe da muralha. Ainda estava zonzo, mas já consciente da dor no ombro, o bastante para soltar
imprecações e resmungar de forma incoerente. Macro tinha-lhe tirado o capacete, o arnês e a armadura antes da chegada do médico, e naquele momento Cato jazia num monte de
palha ao canto de um diminuto estábulo, onde o ar era perfumado pelo cheiro a estrume. Macro tinha dito a Hamedes para esperar no exterior, de forma a não congestionar o espaço.
O médico removeu a túnica com cautela e observou atentamente a carne pálida do ombro de Cato.
- Não há nenhuma ferida aberta. Isso é bom. Diz que ele foi atingido por uma lança?
- Sim. Deu a sensação de lhe acertar em cheio.
- Hummm. - O médico apalpou a carne com toda a gentileza, e percorreu com os dedos o traço da clavícula. - Ao que parece, nada partido. Mas tenho de ver o ombro. Vai doer.
Preciso que o segure bem.
Macro ajoelhou-se e agarrou no braço são de Cato com toda a firmeza, usando uma mão; com a outra, segurou-lhe o peito, empurrando-o para baixo.
- Pronto.
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O médico debruçou-se e pegou gentilmente no ombro de Cato com ambas as mãos. Apalpou cuidadosamente, à procura de sinais de ossos partidos ou da moleza típica dos músculos
rasgados. Os olhos do jovem rebolaram, e ele gemeu de agonia. Satisfeito com o exame superficial, o médico resolveu proceder a uma avaliação mais profunda da condição do ombro.
- Foda-se! - gritou Cato, enquanto se tentava sentar num espasmo. Os olhos arregalados fixavam o médico com ódio. - Filho da puta! - Aplicou uma cabeçada nas maçãs do rosto
do homem.
Macro forçou-o a deitar-se novamente.
- Calma, miúdo! Ele está a tratar de ti.
Cato virou-se para Macro com um ar ausente. Anuiu enquanto rangia os dentes.
- Seja. Continuem, então.
O médico esfregou o rosto, e voltou a concentrar-se no ombro de Cato. Fez pressão com os dedos na zona em que a carne tinha perdido a cor, e Macro sentiu o amigo ficar tenso
como uma tábua, enquanto olhava fixamente para o teto, tentando combater a agonia que aquele exame estava a representar. O médico examinou demoradamente o ombro, e por fim
voltou a endireitar-se, anuindo para si mesmo com ar satisfeito.
- Uns fortes hematomas, mas nada de ossos partidos. Vai doer horrivelmente durante alguns dias, e será forçoso manter o braço imobilizado, mas não deve haver efeitos duradouros.
Ao que sei, também sofreu uma pancada na cabeça.
Cato franziu o sobrolho, tentando recordar-se.
- É comum que o incidente não seja lembrado. Como se sente?
- Não muito bem. - Cato engoliu em seco e estremeceu. - Dói-me a cabeça. Ainda me sinto meio tonto... Lembro-me do ataque. Depois, uma lança pelo ar. E depois mais nada.
- Bom, isso chega - concluiu o médico, dando-lhe uma palmada amigável na mão. - Pelo menos, não me parece que o seu cérebro tenha ficado muito afetado.
Macro encolheu os ombros.
- Duvido que se notasse uma grande diferença.
O médico ergueu-se.
- Recomendo muito descanso. Até passar essa sensação de tontura. Depois pode pôr-se de pé. O ombro vai doer durante alguns dias, e vai parecer rígido. O melhor é pô-lo ao
peito, preso. Se não há mais nada, senhor, diria apenas que escapou de boa. Mas tente não se pôr no caminho de dardos, lanças e flechas daqui para a frente, sim?
Macro olhou-o com ar de incompreensão, mas assim que o médico deixou o estábulo, voltou a prestar atenção ao amigo. Por momentos nenhum
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dos homens quebrou o silêncio, até que Macro pigarreou ostensivamente.
- Bem, acho que te devo um agradecimento.
- Agradecimento?
Macro franziu o sobrolho.
- Claro. Salvaste-me da lança.
- Salvei?
- Não te lembras de todo?
Cato fechou os olhos por um instante e abanou a cabeça.
- Pois bem - concluiu Macro apressado. - Esquece então. Tenho de ir. O legado deve estar a tentar adivinhar o que fazer a seguir. Fica aqui e descansa, sim?
Virou-se e atravessou o compartimento, preparando-se para sair.
- Macro... - chamou Cato, em voz sumida.
O centurião voltou-se e olhou para ele.
- Seja lá o que for que eu tenha feito, estou certo de que faria o mesmo por mim - disse o jovem. - Se estivesse na minha posição.
- É verdade, só que eu não acabaria aqui. - Macro sorriu. - Não sou tão alto. Se tivesse sido eu a empurrar-te para o lado, a porra da lança tinha-me falhado por quilómetros.
Agora, faz o que o médico mandou e descansa. - Deixou o estábulo e acenou a Hamedes para o acompanhar.
Quando Macro o encontrou, o legado estava sentado a uma mesa de aspeto rústico, no exterior das ruínas de uma cabana de camponeses. Os oficiais do estado-maior, os centuriões
da coorte de Macro e os auxiliares aglomeravam-se em redor, à fraca luz de uma única lamparina, e todos aguardavam. Outro dos médicos da legião tinha acabado de suturar um
rasgão no antebraço do legado e começava a aplicar-lhe uma ligadura; Aurélio dirigiu-se a Macro por cima do ombro do médico.
- Fico feliz por teres finalmente decidido juntar-te a nós.
- Senhor, estive a cuidar do tribuno-mor - ripostou o centurião com um travo de azedume. - Foi atingido por uma lança durante o ataque.
- A ferida é grave? - quis Aurélio saber, sem esconder alguma apreensão.
- Teve sorte, senhor. Está um bocado atarantado, mas há de recuperar.
- Ótimo, precisamos de todos os homens. - Aurélio indicou a ligadura que lhe estava a ser atada à volta do braço. - Eu próprio também fui ferido. Uma flecha rasgou-me o braço.
O médico ergueu o olhar com uma expressão de surpresa e abanou a cabeça, enquanto atava as pontas da ligadura. Endireitou-se e recuou até uma distância respeitosa.
252

- Senhor, é apenas uma ferida superficial. De qualquer maneira, aconselho-o a manter a área limpa.
Aurélio anuiu e fez sinal ao homem para ir aos seus afazeres. Sorriu calorosamente a Macro.
- Foi uma carnificina, aquele primeiro assalto, hã? Avancei para ver que tal estavas a progredir a partir da brecha. Foi nessa altura que sofri este ferimento.
Apontou orgulhosamente a ligadura com a outra mão. A Macro não escapou o tom entusiasta da voz do legado - a alegria de um homem que recebera finalmente o primeiro ferimento,
depois de anos e anos de serviço sem uma única ocasião de demonstrar o seu valor enquanto soldado. Prosseguiu.
- Bom, foi apenas um pequeno contratempo. No próximo ataque conquistamos o templo. Estou seguro disso.
Macro avaliou o superior, pensativo. Aurélio estava numa disposição perigosa, repleta de entusiasmo. Servia há tempo suficiente nas legiões para reconhecer os sintomas. Depois
de sobreviver a um ferimento, mesmo que não passasse de um arranhão provocado por uma seta de raspão, o legado achava-se invulnerável. Já não tinha nada a provar aos seus
homens. Tinha derramado o seu sangue no campo de batalha, e assim ganhara o direito de lhes ordenar que continuassem a combater a qualquer custo. O efeito passaria dentro
de algumas horas, Macro sabia-o. Era aquele o resultado normal de sobreviver a um momento perigoso. A racionalidade fria depressa trataria de moderar o súbito zelo do legado
pelo combate. O importante era conseguir acalmar o seu desejo de uma refrega até que pudessem ser tomadas as medidas necessárias para renovar o assalto ao templo.
- Sim, senhor, tomaremos o templo - concordou Macro. - Assim que completarmos todos os preparativos.
- Preparativos?
- Claro, senhor. Temos de fazer avançar as balistas, para dar cobertura de proximidade ao assalto. Se abrirmos alguns buracos na parede interior, as balistas facilmente destruirão
os arqueiros inimigos, sem pôr sequer em risco as equipagens. Além disso, devíamos tratar de ter as possíveis rotas de fuga controladas. - Macro acenou na direção de Hamedes.
- Aqui este rapaz era sacerdote. Conhece a planta do templo. Visitou-o ainda há poucos dias. Não é assim?
Hamedes, nervoso por estar à frente dos oficiais superiores da legião, assentiu.
- Sim, senhor.
- Então diz-nos o que sabes - continuou Macro. - Quantas saídas existem?
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Hamedes pensou um bocado antes de replicar.
- Há a entrada principal, no portal. As portas são enormes, senhor. Vários centímetros de espessura. E depois dessas, há um pequeno pátio, e outro portão. Para lá desta entrada
principal, há uma entrada de cada lado do templo. A que já atacámos, e outra no lado oposto. Com certeza que também fortificaram essa, senhor.
- Bom, só há uma forma de termos a certeza - replicou Aurélio, ainda animado. - Quero que vás lá e descubras isso tudo. Quando regressares, apresenta um relatório ao centurião
Macro.
Hamedes lançou um olhar a Macro, que anuiu subtilmente. O sacerdote engoliu em seco e baixou a cabeça.
- Será feito como ordena, senhor.
Avançou hesitante na direção do templo, e depressa desapareceu na escuridão. Aurélio voltou-se de novo para Macro.
- Enquanto o Cato estiver fora de combate, és tu o meu adjunto. Dada a tua indesmentível experiência de combate, faremos como dizes. Manda avançar as balistas. Faz o que for
preciso para que o próximo ataque tenha êxito. Compreendido?
- Sim, senhor - anuiu Macro.
- E trata de assegurar que não haverá forma do inimigo escapar. Quero todos mortos ou capturados. - Levou uma mão à testa. - Bom, agora tenho de descansar. O ferimento deixou-me
fraco. Acorda-me no momento em que estivermos prontos para lançar o segundo assalto.
À medida que a noite avançava e a Lua se erguia do horizonte, o som das preparações dos romanos chegava claramente aos ouvidos dos defensores do templo: as persistentes batidas
na parede exterior enquanto os legionários abriam buracos nos tijolos de lama, o serrar de madeira e o cravar de pregos, tudo realizado à luz de fogueiras feitas atrás duma
elevação a uns duzentos metros por trás da parede exterior. Do cimo do portal, Ajax mal adivinhava o labor dos soldados, e calculava que deviam estar a fabricar novas rampas
de assalto e, muito provavelmente, também um aríete. Se as primeiras falhassem, o segundo derrubaria por certo a barricada improvisada. E quando isso acontecesse, nada mais
poderia deter a entrada dos romanos no templo e o consequente esmagamento dos defensores.
Já tinha considerado a possibilidade de encetar uma tentativa de fuga, mas antes do anoitecer tinha visto os legionários a patrulharem à volta do templo, bem como os grupos
de homens que distribuíam metodicamente obstáculos pelo solo. Estrepes, calculou o gladiador. Quatro espigões de ferro, forjados de maneira a que, como quer que fossem atirados
para o solo,
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ficavam sempre com uma ponta acerada a apontar para cima, pronta para empalar o pé ou casco de quem ou do que quer que tentasse carregar por um campo recheado deles. Para
lá das patrulhas a pé, também tinha ouvido o som de cavalaria; cascos e o resfolegar ocasional dos animais que patrulhavam para lá do alcance da vista.
A meia-noite chegou e passou, mas a Lua manteve-se baixa no firmamento, avançando junto ao horizonte e lançando um reflexo tremeluzente nas águas do Nilo, até que acabou por
desaparecer por trás das colinas na outra margem do rio. Ajax tinha perfeita consciência de que estava encurralado. Os sobreviventes dos homens que tinham feito a revolta
em Creta, e os guerreiros árabes que o príncipe Talmis lhe confiara, estavam condenados. O sentimento que lhe enchia o coração não era o medo, nem o falhanço, apenas uma profunda
frustração por não ter sido capaz de provocar mais danos aos interesses de Roma, durante a sua curta vida. Esperava que a lança que arremessara tivesse ferido de morte o prefeito,
e desesperava por saber que Macro vivia ainda, e que muito provavelmente viria a sobreviver ao assalto final ao templo. A ideia de morrer sem ter satisfeito plenamente a sua
sede de vingança afligia-o. Não o deixava transparecer para os homens, claro; a esses parecia tão destemido e resoluto como sempre, e o seu exemplo inspirava-os.
Uma hora depois da meia-noite ouviu o som de sandálias a subir pela escada interna do pilar; um momento depois, a figura escura e ofegante de Karim surgiu ao seu lado.
- O que se passa?
- General, segue-me. Agora.
Ajax apercebeu-se do tom urgente na voz do outro e virou-se para ele.
- O que se passa?
- Será mais simples se me seguires, senhor. - Karim lançou um olhar cheio de significado sobre os outros homens no cimo do pilar. Alguns dos árabes e o seu oficial estavam
a uma distância que lhes permitiria escutar a conversa.
- Muito bem. - Ajax anuiu e seguiu o companheiro pelas escadas abaixo. Assim que tinham descido os três primeiros lanços, interrogou-o em tom baixo. - O que é que aconteceu?
Karim olhou por cima do ombro.
- General, é o nosso homem. Está aqui no templo.
- Canto? - Ajax estava surpreso. Não via razão para o espião ter corrido o risco de entrar no templo, e suprimiu um acesso de raiva. O homem já tinha fornecido importante
informação sobre o exército romano e os seus oficiais superiores, que tinha sido entregue aos batedores do príncipe Talmis, a aguardar nos arredores de Diospolis Magna. A
sua identidade
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tinha de ser mantida em segredo. Fossem quais fossem as razões que tivera para atravessar as linhas, tinham de ser muito prementes.
Karim assentiu.
- Veio pela barricada norte. Diz que tem de falar contigo.
- Onde está ele?
- Levei-o para uma das câmaras menores, para o manter escondido.
- Bem feito - aprovou Ajax. Mesmo que o templo fosse conquistado, Canto ainda poderia dar alguma vantagem ao príncipe Talmis, desde que a sua identidade fosse mantida em segredo.
Atravessaram o pátio e entraram no salão das colunas que levava ao santuário. Estava escuro lá dentro, e só a pequena lamparina que ardia ao fundo lhes iluminava o caminho.
De cada lado do santuário que albergava a barca sagrada, existia uma pequena câmara. Há muito tempo já que os sacerdotes do templo tinham deixado de receber as ricas oferendas
aos deuses que noutros tempos tinham sido usuais. Agora quer o salão quer as câmaras laterais tinham um ar abandonado e cheiravam a mofo.
Um vulto escuro surgiu à entrada da câmara à esquerda do santuário.
- General? - indagou uma voz em surdina.
- Canto. - Ajax aproximou-se do homem com uma expressão dura.
- O que estás aqui a fazer?
- General, tens de sair desta armadilha enquanto ainda o podes fazer. Se ficares, a morte é certa.
- Se é essa a vontade dos deuses, então mostrarei a estes romanos como morre um verdadeiro homem, com dignidade e honra.
O silêncio imperou por momentos, mas Karim quebrou-o.
- Eles não o permitirão. Só te executarão quando estiveres destruído, quando puderes ser tratado da mais humilhante forma possível. E será essa a imagem que deixarás a todos
os escravos do Império, meu general.
Ajax compreendeu que as palavras do amigo eram verdadeiras, e assentiu, fatigado.
- Nesse caso, não poderei arriscar-me a ser capturado com vida. Aqui morrerei, se não por uma espada romana, então pela minha própria mão, ou pela tua, meu amigo.
- Não - interrompeu Karim. - Enquanto existir a mais pequena possibilidade de continuares a luta contra Roma, tens de sobreviver. Com Ajax livre, nenhum romano dormirá descansado.
E é isso que importa. Só isso pode dar alguma esperança aos que ainda carregam o peso das correntes, general. Tens de viver. Tens de escapar.
- Ele tem toda a razão - confirmou Canto. - E só eu te posso conduzir através das linhas romanas até à liberdade. Há um caminho, e se formos confrontados, eles reconhecer-me-ão.
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-Fugir?-Ajax abanou a cabeça. - Por vossa vontade, cobrir-me-iam de vergonha.
- Há muito mais em jogo do que o teu orgulho - insistiu Karim.
- Por vezes, um homem transforma-se em algo mais do que ele mesmo. Torna-se uma inspiração. O seu nome passa a ser uma arma nos corações dos que o seguem, e uma ameaça aos
ouvidos dos inimigos.
- Nada disso muda se esse homem morrer - contrariou Ajax.
- Se morreres, tudo o que ainda poderias vir a conseguir, tudo aquilo que o teu nome poderia vir a representar, será perdido.
Ajax baixou a cabeça e pensou durante alguns momentos. Nessa mesma noite tinha decidido que seria ali, naquele templo obscuro na orla de uma vastidão desolada e ignorada,
que encontraria a morte. Estava farto de fugir de Roma. Porém, como dissera Karim, havia muito mais em jogo naquela situação. Olhou de novo para o vulto escuro de Canto.
- Qual é o teu plano?
Ainda faltava cerca de uma hora para a alvorada quando o pequeno bando se esgueirou pelo espaço vazio entre o templo e a parede exterior. Escutavam perfeitamente o clamor
provocado pelo ataque que Hépito conduzia no outro lado do templo com uma força numerosa, numa tentativa de afastar os romanos da brecha e de eliminar as equipagens das balistas.
O núbio tinha-se oferecido para ficar para trás e cobrir a fuga do seu líder, e Ajax fizera uma promessa silenciosa de honrar a memória do companheiro com as vidas de dez
romanos, tão cedo quanto possível.
As cordas que Canto tinha usado para escalar a muralha ainda estavam no sítio, e, um a um, o punhado de gladiadores e os melhores dos guerreiros árabes, que Ajax escolhera
para o acompanhar, treparam cuidadosamente pela parede de tijolos, mantendo-se espalmados quando passaram pelo cimo e depois descendo silenciosamente para o solo, já no exterior
do complexo. Quando o último dos homens saltou para as sombras, Ajax puxou pela manga da túnica romana que Canto envergava.
- E agora?
- Há uma vala de irrigação seca a meio daquele campo. - Canto apontou para uma seara cujos limites mal se descortinavam, embora a curta distância da muralha. - Sigam-me, e
mantenham-se agachados. Há postos romanos dos dois lados da vala, a uns cem passos. Depois de os ultrapassarmos, a vala dá para um canal mais largo. Esse tem água, por isso
teremos de ir mais devagar. A umas centenas de metros está um piquete de cavalaria. Quando passei por eles a caminho do templo, estavam a dormir. Os cavalos estão perto do
canal, e há três sentinelas. Se nos interpelarem, eu trato de responder. Sei qual é a senha para esta noite. Antes que percebam
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o que se está a passar, estaremos em cima deles. Nessa altura é só pegar nos cavalos e seguir, senhor.
- Não vens connosco?
Canto abanou a cabeça.
- Desde que volte ao outro lado do templo antes que deem pela minha falta, não haverá problemas. A minha história funcionou perfeitamente até aqui. Não há razões para supor
que vão descobrir a minha verdadeira identidade. Posso ainda vir a prestar-te muitos serviços, bem como aos nossos aliados. - O homem sorriu, mostrando os dentes. - Esta tem
sido a melhor atuação da minha vida. Quem me dera que os outros atores em Roma me pudessem ver, e reconhecer o meu trabalho.
- Reconhecer? Dá graças aos deuses por eles não estarem por aqui.
- Ajax sorriu também, e aplicou um murro amigável no ombro do espião.
- Vamos, então.
Canto conduziu-os, e a fila de homens avançou em posição agachada até ao limite da seara próxima. Por trás deles, os sons de combate que vinham do outro lado do templo esmoreciam,
uma vez que Hépito fora forçado a fazer recuar os homens e a recolher-se no interior do templo. Já no campo cultivado, Ajax movia-se furtivamente, para evitar roçar pelas
espigas de trigo. Avançavam com uma lentidão exasperante, e Ajax começou a recear que a aurora surgisse antes de ficarem longe das linhas romanas. Por fim, Canto desceu para
a vala seca, e começaram a progredir mais rapidamente. O som de vozes fez deter Ajax, mas logo se ouviu uma gargalhada e a conversa prosseguiu num tom baixo e despreocupado;
o gladiador descontraiu-se e prosseguiu. A vala ia-se tornando mais profunda, e acabou por desembocar num canal com água, que se estendia à frente do grupo. Canto desceu primeiro,
deixando-se entrar na água e progredindo sem chapinhar. Os outros seguiram-no, mantendo-se próximos das canas que cresciam na orla do canal.
De repente, Canto ergueu a mão, fazendo sinal para todos se deterem. Pequenas ondículas vieram bater nas canas e morreram, e tudo se acalmou de novo, à exceção do bater dos
cascos de um cavalo e de um breve resfolegar. Ajax virou-se e chamou Karim com um gesto; os dois aproximaram-se de Canto.
- Cá estamos - disse o espião.
- Ótimo. - Ajax empunhou a espada. - Vamos tratar das sentinelas. Assim que forem eliminadas, os homens tratarão dos que ainda dormem. Entendido?
Os outros anuíram; empunharam as armas e Ajax conduziu-os para fora da água, atravessando a cortina de canas. Parou para examinar o terreno. Os cavalos estavam à direita;
estavam amarrados a um cabo
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esticado entre duas palmeiras. Duas das sentinelas conversavam animadamente junto às montadas, enquanto os vultos dos seus camaradas se espalhavam pelo solo ali perto. Alguns
dos homens ressonavam. Por trás deles, um vulto solitário andava lentamente para trás e para a frente. Ajax indicou-o.
- Karim, aquele é contigo. Rodeia o acampamento até chegares ao pé dele e cala-o. Vou contar até cem antes de atacarmos os outros dois.
Karim assentiu, agachou-se e avançou lentamente por entre os romanos adormecidos, dirigindo-se às sombras projetadas por um grupo de tamareiras, onde se confundiu e desapareceu
de vista. Ajax continuou a contar pausadamente e depois fez um sinal a Canto.
- Vem.
Saíram do meio das canas e viram-se numa estrada esburacada que corria paralelamente ao canal. Ajax endireitou-se e começou a dirigir-se para as sentinelas junto aos cavalos.
Ainda estavam a conversar, e não se aperceberam da presença de estranhos até quase ao último momento. O primeiro deles girou sobre os calcanhares e apontou a lança aos dois
vultos que surgiam da escuridão.
- Alto! Quem vem lá?
- Amigos! - retorquiu Canto.
- Muito bem, então quero a senha.
- Vivam os azuis - declamou Canto, e prosseguiu, com a mão já fechada sobre o punho da espada.
- Pode passar, amigo! - respondeu o romano.
Ajax manteve-se a par de Canto enquanto este avançava pelo caminho. Estavam já muito próximos dos homens; a túnica de Canto era indesmentivelmente do tipo militar, mas Ajax
não se parecia de todo com um soldado romano. Os dois homens prosseguiram. Por fim, uma das sentinelas esticou o pescoço e esforçou a vista na escuridão.
- Mas quem são vocês?
Ajax não reduziu o passo quando se aproximou do romano. No último momento saltou em frente, puxando da espada. A ponta mergulhou no torso da sentinela, que caiu com um grunhido.
O outro homem, tolhido pela surpresa, não reagiu de imediato, e quando tentou baixar a lança para uma posição de ameaça, Canto desviou-a e golpeou-lhe a garganta. O homem
tombou de joelhos e sangrou abundantemente até cair de lado. Ajax tinha entretanto dado o golpe de misericórdia no seu adversário e olhava na direção da última sentinela.
Esta tinha ouvido os ruídos e empunhara de imediato a lança, embora estivesse do outro lado do pequeno acampamento. Antes que pudesse soltar um brado de aviso, uma sombra
saltou do solo por trás dele e abateu-o quase em silêncio. Ajax assistiu, preparado
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para correr se Karim precisasse de ajuda, mas o parto ergueu-se e levantou a espada.
- Está feito. - Canto respirou fundo, aliviado. Virou-se para o canal e assobiou brevemente. De imediato surgiram das canas cerca de vinte sombras que avançaram para eles.
Depois de se juntarem em torno de Ajax, este apontou as formas dos homens que dormiam no solo, afastados das tamareiras para evitar que durante a noite lhes caísse em cima
alguma cobra ou escorpião.
- Liquidem-nos, mas sem fazer barulho - ordenou Ajax. - Vão.
Os homens espalharam-se por entre os romanos adormecidos, ajoelhando-se para lhes tapar as bocas com uma mão enquanto com a outra lhes cortavam as gargantas. Aqui e ali uma
das vítimas dava alguma luta, e uma delas chegou mesmo a conseguir soltar um grito abafado antes de ser silenciada. Depois de o último dos romanos ter sido morto, Ajax levou
os seus homens até junto dos cavalos. As selas estavam dispostas a um dos lados, e pouco tempo gastaram a aprontar as montadas. Pouco depois de a matança ter começado, Ajax
e os seus homens estavam a cavalo, e só Canto estava apeado.
- Estás certo de que queres ficar para trás? - indagou Ajax mais uma
vez.
- Sim, general.
- Se descobrirem que és um espião, o que acontecerá mais cedo ou mais tarde, não poderás esperar qualquer piedade.
- Serei cuidadoso. Além disso, estou a gostar deste jogo de enganos. Nunca desempenhei um papel assim. - O sorriso de Canto desvaneceu-se, e ele acenou para leste, onde o
primeiro traço de um novo dia começava a surgir, aclarando a neblina que pairava sobre o Nilo. - Será melhor que partam. - Adiantou-se e apertou a mão a Ajax. - Meu general,
que Fortuna te acompanhe.
Ajax acenou um agradecimento, largou a mão do outro, pegou nas rédeas e dirigiu a montada para as colinas a ocidente, com a intenção de seguir para áreas mais desoladas e
afastadas das forças romanas que cercavam o templo. Só depois começaria a subir o rio até descobrir um local onde o pudesse atravessar para se reunir ao príncipe Talmis e
ao seu exército.
Tinha feito aquilo que o príncipe lhe pedira. A coluna tinha atraído a atenção do inimigo, e tinha-lhe causado importantes baixas. Com alguma sorte, agora os romanos estariam
preocupados com uma possível ameaça nas duas margens, e ver-se-iam obrigados a dividir as suas já escassas forças. Contudo, a verdade é que perdera todos os homens que lhe
tinham sido confiados, e por isso esperava que a receção do seu aliado fosse um tanto fria.
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Calcou os calcanhares no flanco do animal, pô-lo a trote e deixou para trás o seu espião, cercado pelos cadáveres do esquadrão de cavalaria romano. Canto viu-os a afastarem-se,
depois virou-se e apressou-se a regressar à zona do templo, para se juntar à força romana antes que alguém desse pela sua falta.
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A pequena coluna montada tinha percorrido ainda menos de um quilómetro através dos campos cultivados quando de repente deparou com uma extensa área arenosa e vazia, onde o
sistema de irrigação dos nativos desaparecia por completo. Não havia ali qualquer cobertura, e Ajax imobilizou a montada enquanto examinava com toda a cautela o espaço que
se abria à sua frente. À direita, as falésias de arenito cresciam até se tornarem montanhas, formando uma barreira que de um dos lados se estendia para o deserto, enquanto
do outro bordejava uma secção do Nilo. Os mais altos dos penhascos já brilhavam, iluminados pelos primeiros raios do Sol nascente, e pela paisagem ainda presa do negrume da
noite espalhava-se uma ténue luminosidade.
Ajax deu um estalo com a língua e acenou aos homens para que o seguissem enquanto penetrava no deserto. Sentiu-se imediatamente exposto. Não havia qualquer lugar onde se pudesse
esconder, e era imperioso que usassem da melhor forma a pouca escuridão que ainda restava. Aumentou o passo da montada para um ligeiro trote e os seus homens imitaram-no,
fazendo subir uma pequena nuvem de pó enquanto se internavam pela areia.
- General, isto não me agrada - começou Karim, enquanto deitava uma olhadela à forma escura do templo, que se erguia sobre as manchas cinzentas dos campos e as formas espectrais
dos maciços de palmeiras. - Vão com toda a certeza avistar-nos a qualquer momento.
- E se o fizerem, vão pensar que somos uma das suas patrulhas de cavalaria.
- Mas se isso não suceder?
Ajax encolheu os ombros.
- Nesse caso, veremos se estes cavalos são mesmo tão bons como os pintam.
A luz crescia, e espalhava o seu calor pela desolação arenosa. Ouviram uma trombeta romana a soar à esquerda, e pouco depois uma série de estalos distantes anunciou-lhes o
começo do segundo assalto ao templo. Ajax sentiu O peso da culpa por ter deixado para trás Hépito e os seus homens
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para defenderem o templo, embora o seu sacrifício lhe permitisse ganhar tempo e prosseguir a sua campanha contra Roma. Com sorte, venderiam caras as suas vidas. E a seu tempo
seriam vingados como mereciam.
Karim refreou o cavalo e apontou para a distância. A uns quatrocentos metros tinham surgido três cavaleiros de trás de uma duna, e encaminhavam-se diretamente para Ajax e
os seus homens.
- O que é que fazemos?
- Nada - retorquiu Ajax, calmamente. - É muito provável que nos tomem por camaradas.
Karim olhou de relance para as vestes negras dos oito árabes que os acompanhavam.
- Pois, mas só ao longe.
Ajax orientou o cavalo de forma a passar mais longe do trio, mas depressa reparou que os cavaleiros inimigos também tinham mudado de direção e tencionavam mesmo cruzar-se
com ele.
- Merda.
- Temos de fazer qualquer coisa - instou Karim. - Não podemos deixar que eles deem o alarme.
Ajax pensou rapidamente e virou-se para dar as suas ordens.
- Os árabes que tenham os arcos a postos. Se tivermos oportunidade, abatemo-los antes que tenham tempo de reagir.
Karim assentiu e refreou o cavalo, colocando-se a par dos árabes para passar as ordens ao comandante dos oito homens.
À medida que os dois grupos se aproximavam, Ajax ia calculando as hipóteses de conseguir escapar daquela. Ainda faltava pelo menos um quilómetro e meio antes de as falésias
se abrirem para o deserto profundo. Se os romanos reagissem de pronto, podiam cortar-lhe o acesso ao Alto Nilo. Os três cavaleiros aproximavam-se sem dar sinais de desconfiança.
O seu líder ergueu a mão num gesto de saudação quando estavam a uns cinquenta passos; a luz era fraca e podia ajudar no disfarce, mas de súbito o outro refreou o cavalo e
lançou uma questão imperiosa.
- Quem são vocês?
- Cavalaria auxiliar! - ripostou Ajax, incitando o cavalo a prosseguir. Adivinhava a hesitação do romano e a conversa rápida com os outros dois que o acompanhavam. Iam chegar
à verdade a qualquer momento.
- Karim! - gritou. - Agora!
Uma ordem foi dada e um silvar cruzou o ar, denunciando as setas que descreviam um arco pouco pronunciado na direção dos três romanos. O comandante foi atingido no peito,
e o seu cavalo recebeu um impacto no pescoço, o que o fez empinar-se e lançar o cavaleiro ao solo. Outra seta atingiu um dos homens na perna, mas a maioria errou o alvo. O
terceiro romano
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fez rodopiar o animal e de imediato lhe cravou os calcanhares no flanco, lançando-se a galope na direção do templo, a escassas centenas de passos. O ferido tentava desesperadamente
arrancar a seta, o que deu tempo aos arqueiros para prepararem uma segunda rajada. Desta feita foi atingido no peito e no rosto, e mergulhou para o solo fazendo levantar poeira.
- Apanhem aquele! - gritou Karim, enquanto apontava para o homem que se encolhia na sela, colando-se ao pescoço do cavalo que galopava a toda a brida para a segurança. Setas
voaram na sua direção, mas o alvo deslocava-se rapidamente e a distância aumentava a cada passo. Karim desembainhou a espada e incitou o cavalo, pronto a lançar-se na perseguição.
- Deixa-o - ordenou Ajax. - É tarde de mais. Temos de ir.
Com evidente relutância, Karim voltou a embainhar a espada e ordenou aos arqueiros que cessassem de disparar; a coluna lançou-se então a galope, na direção da abertura entre
as montanhas e as terras cultivadas. Enquanto galopavam, Ajax lançava frequentes olhares na direção do templo, e apercebeu-se de que o cavaleiro inimigo que escapara tinha
já alcançado um posto romano. Naquele momento fazia um relatório e gesticulava freneticamente. A nota estridente de uma trombeta propagou-se pelo ar fresco da manhã, e logo
outra lhe respondeu. Ainda estavam a algumas centenas de metros do deserto aberto quando Karim o avisou e apontou para o Nilo. Dois esquadrões da cavalaria inimiga tinham
deixado as linhas romanas e galopavam a toda a velocidade. Um deles dirigia-se diretamente para o grupo de Ajax, enquanto o outro fazia uma curva, tentando cortar-lhes o caminho
antes de alcançarem o deserto.
Ajax demorou um instante apenas a compreender que não conseguiriam alcançar a segurança das areias, pelo que ergueu o braço, dando indicação aos seus homens para se deterem.
Os cavalos estacaram numa nuvem de poeira. Ajax olhou em redor. Só havia uma direção em que podiam seguir: para norte.
- Sigam-me! - Puxou selvaticamente as rédeas e fez a montada rodopiar para tentar escapar à armadilha que os dois esquadrões romanos planeavam fechar. O resto dos gladiadores
e dos árabes mudaram também de direção e galoparam atrás dele, levantando a areia, por entre as falésias iluminadas pelo sol à esquerda e a neblina agora alaranjada à direita;
através desta já se adivinhava a curva dourada do Sol, um pouco acima do horizonte. Ajax debruçou-se sobre a crina do cavalo, sentindo-a a açoitá-lo enquanto o animal corria,
com todo o corpo em extensão. Sentiu a amargura a pesar-lhe no coração ao contemplar a possibilidade de ser perseguido e forçado a um combate desigual, ou mesmo à rendição.
Os seus inimigos romanos não se esqueceriam de contar ao mundo a forma como tinha abandonado os seus homens e tentado salvar a vida. A única forma de evitar
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tal desfecho era fugir e continuar a lutar. Era apenas isso que importava naquele momento.
O segundo esquadrão romano abandonou a tentativa de lhes cortar o caminho e mudou de direção para se juntar à caça; eram agora sessenta homens contra os seus vinte. Não podia
sequer pensar em parar e enfrentá-los, percebeu. Seria a derrota certa. Enquanto percorriam a alta velocidade o terreno árido que ladeava as escarpas, Ajax notou um desfiladeiro
que serpenteava na direção das colinas à esquerda. Se desse acesso ao cimo do planalto rochoso, ainda havia uma possibilidade de conseguir rodear os romanos e reunir-se ao
príncipe Talmis. Se não, pelo menos daria ao seu grupo uma oportunidade de combater numa frente estreita, e assim equilibrar de alguma forma a diferença numérica.
Indicou a entrada do desfiladeiro e gritou a Karim:
- Por ali!
O grupo de cavaleiros dirigiu-se para o declive. À frente surgiu-lhes um trilho poeirento, e Ajax considerou-o um sinal positivo. Todos os caminhos levavam a algures, e havia
assim uma real possibilidade de haver uma saída do outro lado. Ao olhar sobre o ombro, notou com pesar que o esquadrão inimigo mais próximo já estava a menos de quinhentos
metros de distância, e que continuava a aproximar-se. O trilho levava a uma zona pedregosa, e os cascos das montadas ecoavam nas paredes rochosas. O caminho tinha muitas curvas,
pelo que os perseguidores deixaram de estar sempre à vista, e Ajax tentou perceber se haveria alguma possibilidade de deixar o trilho e conseguir despistá-los. Porém, depressa
verificou que os pequenos caminhos que deixavam aquele trilho eram demasiado estreitos e íngremes para os cavalos.
Então, quando tinham percorrido cerca de quilómetro e meio do que era agora uma garganta apertada, o trilho desembocou num espaço aberto, cercado por escarpas alterosas e
por montes de penedos. Aqui e ali, Ajax reparou em aberturas na rocha, como se fossem grutas. O trilho pareceu terminar abruptamente na base de uma alta arriba. Não havia
sinais de vida. Nada se movia por ali, e um profundo ar de calmaria e mau presságio parecia preencher o ar quente aprisionado naquele anfiteatro natural.
- Que lugar é este? - lançou Karim. - Aquelas grutas não são naturais. Alguém as abriu na rocha. Olha para ali.
Apontou para uma abertura mais larga, meio escondida por trás de um penedo. O interior escuro estava enquadrado por pedras claramente trabalhadas por mão humana, cobertas
de pequenos símbolos esculpidos, como os que Ajax vira no templo. Fez o cavalo aproximar-se e espreitou para a escuridão. As paredes estavam pintadas, e seguiam para o interior
da montanha, perdendo-se de vista. Antes de poder examinar a caverna com
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maior detalhe, um dos seus homens lançou um aviso, enquanto apontava para o trilho. Ajax e os outros escutaram com atenção e depressa ouviram o constante eco dos cascos dos
cavalos dos perseguidores.
- Karim! Pega nos arqueiros e sobe àquela falésia! - Indicou um monte de rochas que formava a última curva da estrada. - Espera que eles estejam ao pé de ti antes de disparares.
Karim assentiu e desmontou rapidamente para dar ordens aos árabes. Ajax virou-se para o resto dos homens, os que restavam do grupo que o tinha seguido desde o início em Creta.
- O trilho por trás da falésia é estreito. Podemos defendê-lo sem problemas. Cada um de nós vale pelo menos três romanos, sejam quais forem as circunstâncias, e ao que parece
há imensos túmulos para escolher. - Fez um gesto indicando as aberturas nas paredes rochosas em volta, e os seus camaradas riram com vontade. - Vamos tratar de os encher com
romanos.
Ajax tomou posição ao centro da estrada, e os seus homens formaram de ambos os lados, criando uma linha cerrada de homens e cavalos. Empunharam as espadas e aprontaram os
escudos que haviam tirado aos homens que tinham abatido anteriormente. O som de cascos ecoou nas escarpas e nos penedos que os rodeavam, criando um clamor caótico, até que
a voz de Karim se ergueu acima da confusão.
- Aí vêm! Preparem-se!
Ajax firmou a pega da espada e apertou as pernas contra os flancos da montada. Os primeiros romanos surgiram a rodear a falésia; eram o decurião que comandava o esquadrão,
e o seu porta-estandarte. Assim que avistou os cavaleiros em posição de combate, a menos de cem passos de distância, o oficial ergueu o braço e fez estacar o cavalo. O resto
do esquadrão deteve-se também, e o decurião fê-los avançar a passo, enquanto distribuía ordens para que os homens se preparassem para carregar. Aprestaram as lanças e pegaram
nos escudos que seguiam dependurados das selas, usando as mãos esquerdas para os segurar e também para pegar nas rédeas. Entretanto, Ajax observava Karim e o seu grupo de
arqueiros enquanto preparavam as flechas, assestavam os arcos, apontavam e aguardavam a ordem de disparar. Karim concentrava-se no que se passava na estrada, avaliando a progressão
do inimigo, e só quando os romanos ficaram ao alcance, ergueu o braço; manteve-o ao alto por um instante e depois deixou-o cair.
- Lançar!
Alguns dos romanos levantaram as cabeças ao escutar o grito, mas logo as flechas se precipitaram sobre eles, cravando-se na carne dos cavalos e raspando em escudos e armaduras
com ruídos metálicos; uma delas acertou na perna do porta-estandarte, prendendo-o à sela. Os árabes prepararam imediatamente mais setas para as fazer chover sobre os romanos,
e as
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paredes rochosas ribombaram com o relinchar aterrorizado dos cavalos, os gritos dos seus cavaleiros e o impacto das flechas. Ajax observou a forma como vários romanos já se
retorciam no solo e os restantes rodopiavam na maior confusão, tentando proteger-se a si e às montadas dos projéteis mortíferos. Era altura de atacar, decidiu, inspirando
profundamente.
- Avançar! - Calcou os flancos do seu cavalo, que lhe obedeceu de pronto. Os seus homens puseram-se em movimento nos dois flancos, e Ajax aumentou o passo para trote. Não
havia necessidade de carregar sobre os romanos a toda a velocidade. Queria que os seus homens os atingissem numa vaga única e poderosa, que maximizaria o efeito. As flechas
continuavam a fazer o seu trabalho, aumentando a confusão nas linhas inimigas, e por momentos Ajax temeu que os árabes se deixassem levar pelo entusiasmo ao verem o resultado
do seu esforço, e continuassem a disparar mesmo quando ele e os seus homens se envolvessem na refrega. Contudo, no último momento, Karim ordenou-lhes que parassem, e eles
obedeceram, largando os arcos.
Os gladiadores entraram pela formação romana adentro, aproveitando a desordem, usando os escudos para atingir os oponentes e empregando as espadas, mais ágeis naquele espaço
escasso do que as lanças dos auxiliares. Ajax lançou uma cutilada ao ombro do primeiro homem que lhe surgiu ao caminho. A lâmina não conseguiu romper a cota de malha, mas
a força do golpe partiu alguns ossos, e o outro gritou enquanto oscilava na sela. Ajax incitou a montada, e com um golpe para trás tentou acertar no pescoço do outro. Mesmo
sem grande força, a lâmina ultrapassou a tímida defesa do oponente e cortou-lhe carne e espinha. O cavaleiro tombou para a frente enquanto Ajax recuperava a posição da espada
e orientava o cavalo na direção do decurião que se mantinha na sela, próximo do porta-estandarte e tentando protegê-lo. O ar estava já cheio de poeira e do som dos embates
entre os homens e as suas armas, insultos, imprecações e gritos de dor. Uma avaliação rápida permitiu-lhe concluir que os seus homens estavam a levar a melhor. Apenas um dos
gladiadores tinha sido ferido, trespassado por uma lança no flanco, mas isso parecia apenas tê-lo enraivecido, e o homem continuava a golpear os romanos que o rodeavam com
uma fúria selvagem.
Um relampejar súbito alertou-o para o perigo, e ergueu o escudo mesmo a tempo de bloquear o avanço de uma lança empunhada por um romano. A ponta ressaltou, falhando por pouco
o cimo da cabeça do gladiador. Ao mesmo tempo, Ajax torceu-se na sela e fez um movimento em arco, com toda a força. A lâmina cortou o pulso do adversário e a lança caiu por
terra, acompanhada pela mão decepada que ressaltou na poeira.
- Recuem! - gritou o decurião. - Para trás!
Um a um, os romanos que não estavam empenhados num combate
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viraram as montadas e galoparam pelo desfiladeiro. Os outros tentaram libertar-se e segui-los. O decurião ordenou ao porta-estandarte para fugir e manteve-se firme na tentativa
de proteger a retirada dos seus homens. Um gesto corajoso, admitiu Ajax, mas que lhe ia custar caro. Dois gladiadores aproximaram-se, um de cada lado. O oficial aparou o primeiro
ataque com
o escudo, e de imediato desviou o golpe que vinha do lado oposto. Enquanto rodava na sela para voltar a enfrentar o primeiro atacante, este levantou a espada e atacou-lhe
diretamente a face. O sangue espirrou do interior do capacete e o decurião fez girar os braços numa tentativa de manter o equilíbrio, mas acabou por tombar sobre a sela.
Os arqueiros de Karim lançaram mais umas tantas revoadas de flechas sobre os romanos em fuga, até estes desaparecerem de vista depois da curva da garganta. Ajax respirava
pesadamente. Olhou em volta. Metade do esquadrão romano tinha sido morto ou ferido, sobretudo por flechas. Um dos gladiadores jazia morto no meio deles, com uma lança cravada
no peito. Dois homens tinham sido feridos, um deles também trespassado por uma lança. A fúria da batalha começava a dissipar-se no rosto do homem, e ele acabou por olhar para
baixo e ver o rasgão na couraça, bem como o sangue que se espalhava rapidamente pelas dobras da túnica que envergava sob o couro. Assim que viu a ferida, tornou-se óbvio para
Ajax que era fatal. O outro ferido tinha sido atingido na perna, e tinha um comprido rasgão na parte de trás da coxa que lhe apanhara os tendões, praticamente impedindo-o
de se mexer.
- Ajudem-nos a descer dos cavalos - ordenou Ajax aos mais próximos dos seus homens. - Levem-nos para a sombra, para a entrada daquele túmulo ali. Os outros, acabem com os
romanos feridos.
Karim veio a escorregar pelo declive rochoso junto à escarpa e chegou à base no meio de uma avalanche de pequenos calhaus. Sorriu a Ajax, animado.
- Isto acabou com a perseguição!
- Por agora. - Ajax embainhou a espada e prendeu o escudo à sela antes de desmontar. - Os sobreviventes não voltarão a carregar às cegas pelo trilho acima. Disso podemos estar
certos. Não, o que vão fazer é manter-nos sob vigilância e solicitar reforços.
- Então será melhor tentarmos encontrar forma de sair daqui.
Ajax fez um gesto que abarcava as escarpas que os rodeavam.
- Se conseguires, força. A única forma de sair daqui é trepar a pé. Teríamos de abandonar os cavalos. Mas sem eles, não temos qualquer hipótese de fuga. - Olhou para as múltiplas
aberturas na rocha e sorriu sem vontade. - Se aqui morrermos, meu amigo, morreremos na companhia de reis. Pensa nisso.
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Karim mordeu o lábio.
- General, essa ideia pouco conforto me oferece. Francamente, morrer por morrer, preferia que isso sucedesse num local menos ermo. Se a morrer sou realmente obrigado.
Ajax ignorou-o. Voltou a contemplar as entradas dos túmulos.
- Quando vierem tentar acabar connosco, ainda lhes poderemos oferecer uma boa luta. Vem, vamos lá ver isto.
Dirigiu-se à entrada do túmulo que avistara antes e, depois de uma breve hesitação, Karim juntou-se a ele, embora não apreciasse a ideia de se introduzir nas trevas que mergulhavam
na montanha. Parecia-lhe um evidente mau presságio estar encurralado num vale só habitado pelos mortos.
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29

- Deram luta, e de que maneira - comentou Macro, enquanto avaliava o cenário, no maior dos dois pátios do templo. Cato, de braço esquerdo ao peito, anuiu enquanto contemplava
os cadáveres espalhados pelo solo. A manhã ia avançada, e o ar já parecia um forno. O odor acre do sangue ajudava ao desconforto da cena. Alguns legionários percorriam o pátio,
procurando camaradas feridos que pudessem ser levados para o salão onde o médico-chefe tinha instalado o hospital de campanha. Qualquer inimigo que fosse encontrado com vida
era despachado com celeridade, pondo termo ao seu sofrimento.
- Que luta - repetiu Macro, de mãos na cintura. - Mas agora vem a parte divertida. Encontrar o corpo do Ajax. Ainda não dei por ele. Terei de mandar fazer uma busca mais atenta.
- Isso é partir do princípio de que ele ficou para lutar até ao fim.
- Ainda achas que ele tinha alguma coisa a ver com aqueles cavaleiros que foram avistados pela alvorada?
- É muito possível.
Macro abanou a cabeça.
- Acho que as nossas patrulhas teriam dado por isso se ele se tivesse raspado. E não é o estilo dele. Pelo menos do que me lembro dele. - A expressão de Macro toldou-se quando
recordou o período que passara cativo.
- O Ajax preferia por certo lutar até ao fim em vez de se escapar e deixar os seus homens condenados à morte. Acredita em mim, ele está por aí. Só temos de o encontrar. -
Deu um toque com a bota num antebraço decepado no chão. - Ou o que resta dele.
Olhou de novo em redor do pátio e abanou a cabeça.
- Não há dúvida, esta malta lutou até à última gota de sangue. Nem um prisioneiro. Se o resto do exército núbio for parecido com estes, quando nos encontrarmos, vamos ter
um combate a sério.
Cato cerrou os lábios. Apesar das palavras de Macro, os legionários não tinham tido grandes dificuldades para controlar a surtida que o inimigo tinha tentado, uma hora antes
do alvorecer. Tinham avançado até à brecha, mas aí tinham sido detidos, até à chegada de reforços que os tinham obrigado
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a retirar de novo para o interior do templo. Nenhuma das balistas sofrera qualquer dano. Ao nascer do dia, o legado tinha lançado pessoalmente o segundo assalto. De pé na
brecha, de armadura completa, escondido atrás de um escudo, dera a ordem para as balistas e arqueiros lançarem um bombardeamento incessante sobre as paredes do templo. Desta
vez os projéteis eram lançados de perto, e os legionários não tinham qualquer dificuldade em eliminar algum árabe que se atrevesse a mostrar-se sobre as paredes ou no cimo
de um dos pilares.
A salvo do perigo dos arqueiros inimigos, Macro conduziu a Primeira Coorte de novo ao ataque. Uma secção de arqueiros auxiliares avançou com eles, a postos para abater qualquer
defensor que se mostrasse por trás da barricada para tentar afastar as rampas de assalto. Os legionários correram por elas acima e caíram sobre os defensores, abrindo caminho
entre eles até chegarem ao pátio. Depois disso, fora apenas uma questão de localizar e desbaratar o pequeno grupo de sobreviventes que decidira lutar até ao fim nas câmaras
mais pequenas e mais fáceis de defender. O último grupo, liderado por um dos gladiadores de Ajax, um africano, aguentou mais de uma hora num dos pilares, forçado a pouco e
pouco a subir as escadas estreitas até à plataforma superior. Por fim, o gladiador, mortalmente ferido, escolhera atirar-se de lá de cima, em vez de se deixar capturar.
- Uma pena que tenhas perdido isto. - Macro olhou de perto para o amigo. Cato ainda não tinha estado em condições de se juntar ao ataque, e Macro pedira a Hamedes para cuidar
do prefeito enquanto ele estivesse ocupado. O sacerdote egípcio tinha ajudado Cato a apoiar-se no tronco de uma palmeira para assistir de longe ao assalto. Depois de as náuseas
se dissiparem e de um ajudante do médico lhe ter ligado o braço ao peito, Cato tinha dispensado Hamedes e tinha-se dirigido para o interior do templo, à procura de Macro.
Este prosseguiu, num tom tão delicado quanto possível.
- Sei perfeitamente que querias estar presente quando acabássemos com o cão raivoso do Ajax. - Fez uma pausa. - É engraçado, sempre pensei que isto ia acabar num combate singular
entre ele e um de nós. Nunca imaginei que ele fosse abatido numa escaramuça sangrenta como esta. Nada mais do que um dos mortos anónimos.
- Ainda não encontrámos o corpo dele - lembrou Cato. - Até que isso aconteça, pensar que isto está mesmo terminado é, a meu ver, tentar o destino.
Macro fungou.
- Tens sempre de ver o lado negro das coisas.
Foram interrompidos por uma série de notas que ecoaram pelo pátio, e ambos os oficiais se viraram e esticaram os pescoços para olhar para o cimo do portal de entrada no templo.
Três bucinas soavam. Por trás delas,
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o estandarte da Vigésima Segunda Legião, com a cabeça de chacal debruada a ouro, esvoaçava sobre o pilar. Ao lado, quatro homens esforçavam-se para erigir um troféu feito
das armas e equipamento retirados aos inimigos mortos. Aurélio lá estava, de pé, a olhar para a cena sem disfarçar o orgulho.
- Bom, pelo menos aquele está feliz. - Macro coçou o queixo eriçado de pelos. - Agora tem a sua grande vitória, para ir a par com a sua ferida de batalha. Nada o pode parar.
O homem julga-se um Alexandre, o Grande, moderno.
Cato olhou para o legado em silêncio, antes de se pronunciar.
- Nesse caso, esperemos que essa ideia não dure muito. Tomar este templo foi uma coisa. Derrotar o príncipe Talmis será outra, bem diferente. A última coisa de que precisamos
é de um comandante que subestima o inimigo.
Macro anuiu.
As bucinas voltaram a fazer-se ouvir, e o legado aproximou-se da borda da plataforma ao cimo do pilar e ergueu os braços para atrair a atenção dos homens lá em baixo. Deu-se
uma pausa expectante antes de ele começar a falar, esforçando a voz para ter a certeza que era ouvido em todo o templo.
- Homens da Vigésima Segunda! Chacais como eu! Camaradas! Hoje triunfámos na primeira batalha contra o príncipe núbio que se atreve a profanar pela sua presença a província
romana do Egito. São os seus homens que jazem mortos a nossos pés. São as suas armas que nos servem de troféus. - Aurélio fez um gesto extravagante indicando o estranho arranjo
que se erguia para o céu. - Uma pálida amostra da riqueza e da glória que nos aguardam quando esmagarmos o corpo principal do exército inimigo. Enquanto existirem soldados
romanos no Egito, os homens da Vigésima Segunda e o nome do seu comandante serão lembrados com orgulho e honra. Pensem nisso, mantenham essa ideia nos vossos corações quando
marcharmos ao encontro do invasor para o enfrentarmos em combate! - Deu um murro no ar e fez-se silêncio, até que um dos tribunos que estavam na plataforma empunhou a espada
e a ergueu no ar, enquanto entoava um cântico.
- Aurélio!... Aurélio!... Aurélio!
Os restantes oficiais juntaram-lhe as suas vozes e por fim o clamor contagiou os homens que ocupavam os pátios do templo.
Macro virou-se para Cato.
- Não é exatamente o melhor orador que já ouvi, mas ao menos tem o precioso dom da brevidade. Graças aos deuses.
Cato sorriu.
- É uma pena que o mesmo não possa ser dito acerca da maior parte
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dos políticos que vi em Roma. - O sorriso apagou-se. - Temos é de nos assegurar de que ele não cai na tentação de pôr a posteridade à frente do bom senso.
- Deixarei essa preocupação a seu cargo, senhor - retorquiu Macro.
- Acho que será melhor que ele oiça tal recomendação da boca do seu tribuno-mor, ainda que interino, do que da do seu primeira lança, por sinal também interino.
Cato deitou-lhe um olhar azedo.
- Obrigado.
- É o fardo da patente. - Macro encolheu os ombros. - Além disso, não sou eu quem tem jeito para a conversa fiada. Era capaz de apostar uma boa maquia em como conseguias convencer
uma puta do Aventino a dar-te uma borla e depois a gratificar-te pela excelência do serviço prestado.
Cato franziu o sobrolho.
- Não sei bem se ambiciono alcançar tamanha proeza de retórica.
- Ainda a história mal começou... Mas enfim, há trabalho para fazer.
- Macro virou-se para uma secção de homens que tinha acabado de dar vivas ao legado. - Vocês aí. Aqui, e em corrida.
Os homens correram e Macro fez-lhes uma descrição tão detalhada quanto possível de Ajax, antes de os mandar procurar o corpo. Prometeu ainda um jarro de vinho ao homem que
encontrasse o gladiador, e mandou-os ao trabalho. Enquanto os homens se atarefavam, assim motivados para aquela dura tarefa por entre o fedor crescente dos corpos espalhados
pelo templo, um dos ordenanças do quartel-general aproximou-se de Cato e fez a saudação.
- Senhor, o legado apresenta os seus cumprimentos, e solicita a sua presença com o centurião Macro nos aposentos sacerdotais, na frente do templo.
Cato trocou um rápido olhar de surpresa com Macro.
- E disse porquê?
- Não, senhor. Sei apenas que está a convocar todos os oficiais superiores. O mais depressa possível - vincou, antes de voltar a saudar e se afastar em corrida.
Macro baixou a cabeça e aplicou um pontapé numa pequena pedra.
- O que será agora?
As acomodações dos sacerdotes daquele templo tinham em tempos sido algo digno de nota, mas séculos de negligência tinham-nas reduzido a uma pálida lembrança do esplendor passado.
O céu pintado no teto ainda mantinha algum brilho, mas as câmaras em torno do pátio eram nuas e desgastadas pela areia do deserto. O lago central tinha em tempos refletido
tudo
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em redor, mas a água desaparecera há muito, e uma camada de lama seca quase escondia os mosaicos decorativos do fundo. Quando Macro e Cato se juntaram aos outros oficiais,
o legado estava numa das extremidades do lago, fazendo um desenho na lama com a ponta da espada. Os subordinados aguardaram em silêncio que ele terminasse a tarefa. Aurélio
endireitou-se, embainhou a espada enquanto contemplava os oficiais reunidos e sorriu abertamente.
- Senhores, não há tempo a perder em formalidades e gentilezas, portanto vou direto ao assunto. O inimigo está em debandada. A vitória que hoje alcançámos muito fortaleceu
o espírito da legião, e deixará os nossos inimigos desalentados quando dela souberem. É o momento de aproveitar a vantagem, da forma que o inimigo menos espera. - Olhou para
o mais próximo dos centuriões e estalou os dedos. - Empresta-me a tua vareta.
O oficial apressou-se a passá-la para a mão do comandante, e Aurélio apontou para o diagrama que tinha preparado. Os oficiais aproximaram-se para ver melhor.
- Isto é o Nilo, de Diospolis Magna à primeira catarata. O plano dos núbios já se tornou evidente. Dividiram as suas forças de forma a poderem enviar esta coluna e tentarem
atacar o meu exército pela frente e pela retaguarda. Destruímos esse esquema, e agora temos a oportunidade de lhes devolver o favor. - Apontou para Diospolis Magna. - Conduzirei
a nossa força principal ao longo do Nilo, para confrontar o príncipe Tal-mis. Uma vez que ele tem ao seu dispor um efetivo mais numeroso, estou seguro de que ele nos aguardará
na posição que detém, especialmente se conseguirmos aproximar-nos dele antes que lhe cheguem notícias de que esmagámos a coluna que ele entregou ao comando do gladiador rebelde.
O inimigo ficará assim convencido de que estamos a cair na sua armadilha.
- O legado fez uma pausa e sorriu com ar arguto, enquanto desenhava os movimentos no diagrama criado na lama. - Seremos nós, porém, quem estará a montar a verdadeira armadilha.
Ao mesmo tempo que eu estarei a conduzir o avanço pela margem oriental, o tribuno Cato levará as unidades auxiliares e marchará pela margem ocidental, atravessará o rio por
trás dos núbios e atacará a sua retaguarda. Aprisionados entre as nossas duas forças, serão aniquilados. - Levantou a vista, os olhos arregalados de excitação.
- Um plano tão elegante como simples. Estou certo de que todos o compreendem.
Fez nova pausa, como se estivesse disposto a aceitar cumprimentos, ou talvez como se desafiasse algum dos oficiais a contradizê-lo, considerou Cato. Adiantou-se, estremecendo
de dor quando o braço ferido roçou por Júnio.
- Senhor, peço permissão para falar.
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- Claro, tribuno, fala.
Cato contemplou o mapa desenhado na areia enquanto ordenava os pensamentos. O entusiasmo do legado pelo plano que traçara era evidente. Seria precisa muita cautela para o
conseguir contrariar. Cato ergueu o olhar e cruzou-o com o do comandante.
- Senhor, o seu plano tem a virtude de inverter os papéis que o inimigo planeava. Isso é bem claro. Noutras circunstâncias, conduziria por certo ao resultado desejado. Contudo,
a verdade é que o inimigo nos supera em número numa proporção superior a três para um. Sugiro respeitosamente que mantenhamos o exército concentrado numa única coluna, se
queremos ter uma hipótese real de conseguir uma vitória decisiva. Se dividirmos as nossas forças, cada uma das colunas será menos do que a subtração das partes, para ser claro.
- Cato deu outro passo, aproximando-se do diagrama e apontando. - Além disso, senhor, onde poderia eu atravessar de novo o rio para a margem oriental? Mal temos embarcações
para transferir quinhentos homens de cada vez. Todos vimos como foi difícil desembarcar perante uma força bem menor do que aquela que presumivelmente terei de enfrentar nessa
ocasião. Não temos homens suficientes para podermos dividir este exército. A nossa melhor possibilidade é lançar um golpe audacioso pela margem oriental. Localizar o exército
núbio e forçá-lo a dar-nos batalha. Aí sim, a qualidade das nossas tropas pode dar-nos a vantagem. Poderemos destruir o espírito combatente do inimigo antes que ele possa
aproveitar a sua grande vantagem numérica - concluiu Cato. Tinha-se instalado um silêncio tenso, e o jovem engoliu em seco. - É este o meu conselho, senhor.
- Tomei dele nota - ripostou o legado, enfadado. Encarou Cato por momentos, antes de prosseguir. - Agrada-me que partilhes a confiança que tenho nos nossos homens. Os Chacais
e os auxiliares provaram que estão ao nível de qualquer outra legião. Não há mais questões quanto ao seu espírito combativo. E é precisamente por isso que podemos dividir
o exército. Cada uma das colunas será mais do que capaz de se haver sozinha. Além disso, o inimigo não pensará nem por um momento que nos atrevemos de facto a dividir a nossa
força. Sabem bem que têm uma forte vantagem numérica, e por isso esperam que nos ponhamos na defensiva e lhes deixemos a inciativa. - Aurélio interrompeu-se quando lhe ocorreu
uma nova ideia. Sorriu ligeiramente enquanto recomeçava. - E é precisamente isso que quero que eles pensem. O príncipe Talmis caiu na minha armadilha. E por isso cometeu o
erro de enviar esta coluna pela margem ocidental. Nunca esperou que respondêssemos de forma tão rápida, ou tão eficaz.
Cato tossiu.
- Nesse caso, senhor, talvez devêssemos aprender com o erro dele.
275

Aurélio abanou a cabeça.
- Parece-me que não consegues entender... A subtileza da situação, tribuno.
Cato arregalou os olhos.
- Subtileza, senhor?
- Estou sempre disposto a permitir que os meus subordinados aprendam com a minha experiência - retorquiu Aurélio com graciosidade. - O nosso inimigo foi levado a pensar que
somos demasiado cautelosos para empreender uma ação decidida. Acha agora que pode ditar quando e onde nos dará batalha. E portanto tornou-se complacente. Será isso que vamos
explorar. A última coisa que os núbios esperam de nós neste momento é que lancemos um ataque em duas frentes. A surpresa estará do nosso lado, e reforçará a vantagem que já
possuímos, dada a qualidade e o moral dos nossos homens. - Aurélio fez uma pausa e sorriu a Cato. - E agora, tribuno, já entendes a minha estratégia?
Cato encarou-o, atónito perante a quantidade de riscos que o legado parecia preparado para assumir. A coluna de auxiliares seria detetada muito antes de voltar a cruzar o
rio para a margem oriental. O príncipe Talmis teria todo o tempo de que precisasse para decidir qual das colunas romanas destruiria em primeiro lugar. Além disso, os núbios
tinham forças equipadas de forma mais ligeira, que podiam marchar mais depressa que as dos seus oponentes. Qualquer uma das colunas podia ser derrotada muito antes de poder
fechar a armadilha. E havia ainda outra questão, refletiu Cato. Menos de um quarto do exército tinha estado envolvido no assalto ao templo. O resto ainda estava no acampamento,
na outra margem. Como não tinham participado naquele combate, ainda estariam verdes como a erva quando enfrentassem o inimigo pela primeira vez. E sabia muito bem como era
difícil prever o comportamento de homens que participavam pela primeira vez numa batalha em larga escala. Alguns bater-se-iam como heróis. A maior parte limitar-se-ia a tentar
pôr em prática o treino; estariam nervosos, mas seguiriam as ordens recebidas e, mais importante, o exemplo que estivesse à frente dos seus olhos. Ainda outros aguardariam
em formação, os corações a palpitar de terror, e por fim os nervos não aguentariam, a coragem desapareceria, e eles fugiriam. Se muitos o fizessem, contagiariam os camaradas
com a velocidade de um incêndio, e o exército estaria perdido. Respirou fundo.
- Senhor, na minha opinião muito ponderada, os riscos de tal estratégia são muito superiores às vantagens. Com um exército experiente, as coisas poderiam ser diferentes. Peço
encarecidamente que esse plano seja revisto.
O legado olhou-o com curiosidade.
276

- Tribuno Cato, já estiveste envolvido em algumas campanhas, não
foi?
- Sim, senhor.
- Não te peço que nos maces com os detalhes, mas se bem me lembro, já enfrentaste celtas, germanos, piratas, partos, e gladiadores rebeldes. Nãoé?
- Sim, senhor.
- Nesse caso, porquê tanta hesitação quando se trata dos núbios? Não são com certeza os mais coriáceos dos muitos inimigos que combateste. Porquê receá-los tanto?
Cato sentiu o pulso a acelerar. Mais uma vez o confronto entre os dois tomava um rumo perigoso. O comandante acabara, sem o dizer abertamente, de o acusar de cobardia. Se
estivessem em privado, face a face, Cato não teria hesitado em enfrentar de frente tamanha acusação, mas estava perfeitamente ciente da tensão que se tinha acumulado no grupo
de oficiais que rodeava o legado. Se o confrontasse naquelas circunstâncias, o homem seria obrigado ou a pedir-lhe desculpa ou a demiti-lo. Um pedido de desculpas traria danos
irreparáveis à autoridade do legado, pelo que só lhe restaria a outra hipótese: livrar-se de Cato, enviando-o de volta a Alexandria. O que destruiria qualquer possibilidade
de lhe alterar a ideia que tinha para a campanha. Tal como estava, só podia redundar num desastre, disso estava Cato praticamente certo. Sabia portanto que tinha de engolir
o orgulho, para bem do exército, do seu amigo Macro, e do destino da província.
- Senhor, não temo os núbios - respondeu, sem se deixar levar pelas emoções. - Limito-me a oferecer a minha opinião profissional. Baseada nos meus anos de serviço a Roma.
- E quantos são, já agora?
Cato sentiu-se furioso consigo próprio. Tinha acabado de se meter numa armadilha que ele próprio armara. Cretino, insultou-se em pensamento.
- Sete anos, senhor.
- Sete - reforçou Aurélio, com um meio sorriso. - Servi eu dez anos nas fileiras antes de chegar a centurião. Mais doze anos a adquirir a antiguidade necessária para chegar
a primeira lança, e finalmente prefeito do campo. Parece-me bem que tenho toda a experiência necessária para comandar este exército da forma que me aprouver. Sete anos. -
Abanou a cabeça e rodou o braço, abarcando todos os oficiais no movimento. - Pergunto-me se haverá aqui algum outro homem com menos experiência do que tu, tribuno. .. O que
me dizem?
Os oficiais não se manifestaram, e o legado virou-se de novo para Cato com uma expressão de triunfo.
277

- Parece-me que isto põe o teu conselho no contexto apropriado... Não concordas?
Cato não ripostou. Se dissesse alguma coisa, fosse o que fosse, seria pior. Estava bem consciente de que os outros homens o observavam com toda a atenção, à espera da sua
resposta. Limpou a garganta.
- Senhor, ofereci-lhe os meus conselhos. É o meu dever profissional. O comando deste exército é seu. É a si que compete dar as ordens para o desenrolar da campanha.
- Isso mesmo. A decisão está tomada e o período para consultas ou discordâncias já terminou. Entendido?
- Sim, senhor. Perfeitamente.
- Espero portanto que, de agora em diante, tu, e qualquer outro dos meus oficiais, obedeçam às minhas ordens sem levantar qualquer questão.
Cato assentiu.
O legado fez uma pausa, mas continuou.
- Muito bem. Todos vocês receberão as vossas intruções assim que o pessoal do quartel-general em Karnak as tenha prontas. Entretanto, tratem de garantir que os vossos homens
estarão a postos para avançar assim que eu der a ordem.
Os oficiais anuíram e estavam já à espera de serem dispensados quando um auxiliar de cavalaria entrou na sala e se dirigiu ao prefeito da coorte montada alexandrina, apresentando-lhe
um breve relatório. Os outros oficiais não esconderam a curiosidade, enquanto o prefeito fazia algumas perguntas ao homem e depois o dispensava.
- Tens alguma coisa a dizer-nos? - inquiriu Aurélio.
- Sim, senhor. Ao que parece, alguns dos defensores conseguiram escapar-nos, senhor. Um dos meus esquadrões foi apanhado de surpresa ontem à noite. Faziam parte do dispositivo
que estabelecemos em volta do templo. Foram mortos onde dormiam. Uma das sentinelas ainda estava viva quando foram encontrados esta manhã. Antes de morrer, disse que um dos
homens que o atacaram envergava um uniforme romano e usou a senha de ontem para se aproximar e poder surpreender as sentinelas.
- Como raio soube ele a senha? - quis saber Macro.
Júnio cerrou os lábios.
- Talvez tenha ouvido alguns dos nossos homens a usá-la em volta do templo.
O prefeito da cavalaria concordou.
- É possível. Seja como for, estes atacantes devem ser o mesmo grupo montado que vimos hoje pela alvorada. Enviei dois dos meus esquadrões em sua perseguição. Fugiram para
o norte, para as colinas. Acabo de saber que se enfiaram num desfiladeiro sem saída. Temo-los na mão.
278

Macro virou-se para Cato e sussurrou:
- Pode bem ser o Ajax, acho eu.
- É mais do que provável - concordou Cato. - Pelos deuses, este tipo é como um fantasma. Um filho da puta de um fantasma.
- A que distância estão? - perguntou Aurélio ao prefeito da cavalaria.
- A não mais de seis quilómetros. Os meus homens mantêm-nos sob vigilância. O primeiro esquadrão sofreu o pior do embate. O oficial que o comanda pediu reforços antes de voltar
a tentar desalojá-los.
Cato deu um passo em frente e interveio.
- Senhor, peço desculpa, mas é muito possível que o Ajax esteja entre eles. Pode ter escapado do templo com o que resta do seu bando de rebeldes.
- E então?
- Eu e o centurião Macro fomos especificamente encarregues de perseguir o Ajax. Peço permissão para me encarregar da sua captura, senhor.
Aurélio considerou o pedido por alguns momentos.
- Não. Eu próprio conduzirei a operação, uma vez que estou aqui. Posso muito bem acabar aquilo que comecei. Levarei a cavalaria auxiliar e os arqueiros, já que de qualquer
forma eles ficarão deste lado do rio. O resto dos homens pode regressar a Karnak. Não tenciono porém privar-te do prazer de assistires ao fim desse teu inimigo, tribuno. Nem
a ti, centurião Macro.
- Muito obrigado, senhor - respondeu Cato, forçando-se mais uma vez a não exteriorizar tudo o que sentia.
- Bom, então não vamos perder mais tempo. - O legado bateu as palmas. - Chegou o momento de pôr fim a esse rebelde, o tal Ajax. Às armas!
279

30

Cato e Macro aguardavam, sentados à sombra de um penedo. Os cavalos da coorte de cavalaria auxiliar amontoavam-se nas poucas zonas abrigadas que tinham encontrado, enquanto
os seus cavaleiros se sentavam no chão, com as capas espetadas em paus de forma a obterem alguma proteção dos raios do Sol da tarde. Estavam à espera dos arqueiros, que viajavam
com Aurélio e os seus ajudantes, para todos se reunirem antes de tentarem um ataque a Ajax e ao seu bando. Dois esquadrões tinham sido enviados para tentar encontrar outro
caminho para o cimo do planalto que dominava a garganta rochosa, para garantir que nenhum elemento inimigo conseguia escapar.
Mesmo à sombra, Cato sentia perfeitamente o peso do sol ofuscante a roubar-lhe a humidade do corpo. O ar preso naquele desfiladeiro era abrasador, e ficava ainda pior devido
às rochas de cor clara que o delimitavam e refletiam a luz inclemente. De tal forma que Cato se via obrigado a semicerrar os olhos sempre que tentava observar as escarpas
rochosas que dominavam a paisagem.
- Que lugar infernal - resmungou Macro, de mau humor, enquanto limpava a testa com o lenço que tinha ao pescoço. Estava ainda mais chateado pelo falhanço dos seus homens,
já que não tinham conseguido encontrar o corpo de Ajax no meio dos cadáveres do templo. Era evidente que o gladiador tinha escapado com os outros cavaleiros que estavam naquele
momento encurralados a montante daquela garganta. - Porra, nunca tive tanto calor na minha vida. Parece que este calor me quer sugar a vida, foda-se.
Virou-se para Hamedes que estava ali perto, agachado, as mãos a envolver os joelhos e a cabeça baixa.
- Como é que disseste que este lugar se chamava?
O sacerdote não lhe deu resposta, pelo que Macro pegou num pequeno calhau e lançou-o na direção do outro. A pedra atingiu-o no braço e rolou pelo solo. O homem agitou-se e
olhou em volta, abstraído.
- Desculpe, senhor. O que é que perguntou?
- Perguntei-te sobre esta garganta - repetiu Macro. - Disseste que estava cheia de túmulos.
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Hamedes anuiu.
- Túmulos dos antigos reis, e dos seus sumos sacerdotes.
- Portanto já cá estiveste antes?
- Há uns dias, quando andei a visitar os templos da margem ocidental.
- Já me lembro - assentiu Macro. - Pareceu-me uma altura bem escolhida para ir ver as vistas, caralho. Bom, quanto a esses túmulos. O que é que nos podes dizer? Se forem como
os templos que por aqui há como calhaus, devem ser umas coisas de espantar.
- Não, senhor - retorquiu Hamedes. - Não há praticamente nada para ver, pelo menos do exterior. Não passam de buracos na rocha, na sua maior parte. Parecem mais aberturas
de grutas do que outra coisa.
- Grutas? - Macro fungou. - Achas que vou engolir essa? Não me parece que vocês espetassem com os vossos reis em buracos no chão depois de mortos. Uma gaita. Enfiaram-nos
foi lá bem no meio daquelas pirâmides por onde passámos ao pé de Mênfis. Tu mesmo mo disseste.
- Alguns, sim, senhor. Muitos outros foram enterrados aqui, junto com os seus tesouros.
- Tesouros? - Os olhos de Macro como que se alumiaram.
Hamedes confirmou com um gesto da cabeça.
- Tudo aquilo de que necessitariam na outra vida, mas feito de ouro e adornado com pedras preciosas. Claro que os túmulos já foram pilhados por ladrões ao longo do tempo.
Limpos de todo o ouro.
- Oh. - A expressão de Macro transformou-se numa de evidente desapontamento.
- Como são então esses túmulos? - quis saber Cato. - Serão fáceis de defender?
- Defender? - Hamedes mordeu os lábios. - Não passam de túneis, senhor. Escavados na rocha. Dúzias e dúzias deles. Alguns pouco mais são do que salões na rocha, abertos ao
fim de curtos túneis. Outros foram escavados de forma profunda, e incluem vastas câmaras suportadas por colunas. Entrei nalguns com tochas, e avancei até onde me atrevi. Os
homens do Ajax podem realmente tentar esconder-se num deles, como último refúgio.
- Hmmmm. - Cato molhou os lábios no cantil enquanto pesava as informações fornecidas. Tentou colocar-se na posição de Ajax. O gladiador e os seus homens tinham uma quantidade
muito limitada de água. Se abandonassem os cavalos e tentassem escalar as paredes do desfiladeiro, teriam de enfrentar uma longa caminhada pelo planalto antes de poderem descer
para o deserto e tentarem alcançar o Nilo. Mesmo que conseguissem evitar as forças romanas daquele lado do rio, era muito provável que o calor e a sede reclamassem as suas
vidas muito antes de atingirem uma zona que
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pudessem considerar segura. Por outro lado, se se escondessem nas profundezas de um túmulo, estariam abrigados do sol e poderiam sobreviver vários dias antes de se verem obrigados
a sair. E se o fizessem a coberto da noite, poderiam bem conseguir esgueirar-se por entre os soldados que ainda andassem a vasculhar a área à sua procura. Quanto mais pensava
no assunto, mais evidente parecia a Cato que o inimigo ia mesmo usar os túmulos.
- Se eles realmente se tentarem esconder, podemos levar muito tempo a identificar em que túmulo estão, e depois ainda teremos de os arrancar de lá de dentro. Duvido muito
que a perspetiva de passar tanto tempo a caçá-los agrade ao legado, especialmente agora que parece ter-se decidido a acabar de vez e depressa com os núbios.
Macro ergueu o olhar.
- Acha que ele vai abandonar esta perseguição? Logo agora, quando os temos encurralados, até ao último homem e incluindo o Ajax com toda a certeza?
- Ouviu o que o Aurélio disse. Quer pôr o exército em marcha o mais depressa possível. Não me parece que queira desperdiçar tempo a perseguir um punhado de fugitivos.
- Não vou permitir que o Ajax se escape de novo - ripostou Macro.
- Desta vez, nem pensar. Quero lá saber se leva pouco ou muito tempo. Nem que tenha de vasculhar estes túmulos de merda um a um até descobrir onde está esse cabrão escondido.
Tal desejo era ardentemente partilhado por Cato. Porém, era evidente que nem se punha a hipótese de Aurélio lhes dar permissão para passar alguns dias à procura do rebelde.
O jovem virou-se para o sacerdote e observou-o, pensativo. Podia bem ser também aquela a oportunidade de resolver algo que o perturbava desde que tinha sabido da fuga de Ajax,
algumas horas antes.
- Hamedes.
- Senhor?
- Tenho um trabalho para ti. Preciso que alguém avance e descubra as posições do inimigo. Se eles tencionam esconder-se quando atacarmos, tenho de saber a que túmulo pensam
recolher-se. E uma vez que conheces o terreno, és a escolha óbvia.
- Sim, senhor.
- Terás de fazer uma aproximação indireta. - Cato olhou para as falésias e afloramentos rochosos que constituíam as paredes do desfiladeiro.
- Vai ser difícil e, se fores descoberto, muito perigoso. Ofereces-te como voluntário?
Hamedes anuiu de imediato.
- Sim, senhor. Também eu tenho uma dívida a saldar com Ajax.
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- Claro. - Cato sorriu sem vontade. - Poucas dúvidas tinha de que ias aceitar. - Virou-se para Macro. - Centurião, gostaria que o acompanhasse.
Macro arregalou os olhos de espanto.
-Eu?
- Dois pares de olhos são melhores do que um. O Hamedes conhece o terreno. Você sabe como o usar da melhor forma. Vá com ele e assim que descobrirem em que túmulo se aloja
o inimigo, regressem. O trabalho será duro, e quente. Podem ambos deixar a armadura cá. Levem apenas as espadas.
Macro abriu a boca para esboçar um protesto, mas acabou por se limitar a inflar as bochechas e assentir.
- Será feito como ordena.
Depois de os dois homens se terem desenvencilhado das cotas de malha e terem colocado os cintos com as espadas sobre os ombros, Cato mandou Hamedes recolher alguns cantis
de um dos esquadrões de cavalaria. Quando o sacerdote se afastou, dirigiu-se a Macro em surdina.
- Iria eu mesmo, se não tivesse o ombro aleijado.
- Eu sei.
- Macro, tenha cuidado. Não corra quaisquer riscos... E tenha atenção ao Hamedes.
Este último aviso apanhou Macro de surpresa, o que o fez virar-se para o amigo com uma expressão assombrada.
- O quê?
Cato olhou de relance para o sacerdote, que explicava ao decurião de cavalaria as ordens que tinha recebido. Voltou-se de novo para Macro.
- Não sei bem até que ponto é que confio nele.
- No Hamedes? - Macro abanou a cabeça. - Que raio de ideia é essa? Tem-nos servido com toda a lealdade nos últimos meses. Além disso, conheces bem a história dele. O Hamedes
sonha com a vingança, tanto como nós.
- Essa é a história dele - confirmou Cato, sem levantar a voz.
Macro soltou o ar dos pulmões com ar exasperado.
- Importas-te de me dizer o que povocou esta súbita desconfiança?
Entretanto, Hamedes tinha recolhido dois cantis cheios, e regressava
para junto deles.
- Agora não posso explicar. Faça como lhe digo. Vá com ele, descubra tudo o que puder sobre a posição do Ajax, e observe o Hamedes com atenção. Posso estar a imaginar coisas.
Não sei, por isso lhe peço que o observe.
- Como queiras. Mas digo-te já, o Hamedes é dos nossos. Sinto-o cá bem no fundo. Não é nenhum traidor.
283

Macro calou-se, já que o outro se aproximava e lhe passava um dos cantis. Acenou em agradecimento e colocou a correia sobre o ombro, ajustou o cinto e olhou para o sacerdote.
- Pronto?
- Sim, senhor.
- Então, vamos embora. - Macro observou as paredes da garganta até descobrir uma estreita ravina que parecia permitir uma íngreme escalada até ao cimo. - Por ali.
Preparava-se para avançar quando o som de cascos ecoou pelo desfiladeiro. No instante seguinte surgiram à vista o legado e o seu estado-maior, ocupando todo o espaço do caminho.
Refrearam as montadas junto a Cato e aos outros, numa nuvem de poeira, e desmontaram. Aurélio entregou as rédeas a uma das suas ordenanças e dirigiu-se aos três homens, que
se tinham posto em sentido.
- Os arqueiros vêm aí, umas centenas de metros atrás - anunciou. - Vamos acabar com esta história em menos de uma hora.
- Não estou tão certo disso, senhor - replicou Cato, e explicou as suas intenções de fazer avançar os dois batedores. O legado afastou a ideia com um rápido abanar da cabeça.
- Nem pensar nisso, não há tempo para essas coisas.
- Mas, senhor, no instante em que avançarmos em força, o inimigo acoitar-se-á. Se não soubermos em que túmulo se escondem, podemos levar dias a encontrá-los. Não será melhor
perder agora uma hora e não arriscar ficar nessa situação?
Aurélio suava em bica depois da cavalgada pela autêntica fornalha que era aquela garganta, e tal como a maior parte dos oficiais, pouco tinha dormido nos últimos dias.
- Tribuno Cato, presumes de mais. Como já te fiz ver, sou eu quem está à frente desta operação. Não és tu. Não tens qualquer direito de dar ordens aos homens para manterem
as posições enquanto envias estes dois numa missão de espionagem completamente inútil.
- Senhor, dei essa ordem porque aguardávamos a sua chegada a esta garganta. Fi-lo apenas para poupar tempo. Deixou bem claro que devemos concluir esta fase da operação o mais
cedo possível, para podermos marchar ao encontro do príncipe Talmis. Quando dei essa ordem, tinha bem presentes as prioridades que estabeleceu.
Aurélio respirou fundo, acalmando-se, mas franziu o sobrolho. Cato adivinhava a luta que se travava no seu íntimo entre concordar com a opção do seu subordinado e vincar a
sua autoridade. Por fim, o legado acenou em concordância.
- Muito bem, vamos então tentar obter informações. Mas o Macro
284

não vai. Foi uma imprudência da tua parte envolver um dos meus melhores e mais experientes oficiais numa tarefa tão arriscada. Quando chegar o momento de enfrentar os núbios,
vou precisar do Macro à frente da Primeira Coorte.
- Senhor, foi exatamente por causa dessa experiência que designei o Macro para esta missão.
- Terás simplesmente de designar outro. Ou melhor, eu mesmo o farei. - Virou-se para os seus oficiais. - Preciso de um voluntário para uma missão de observação.
O tribuno Júnio deu um passo em frente.
- Reclamo essa honra.
- Seja! Bravo, rapaz. - Aurélio voltou-se de novo para Cato. - É muito melhor permitir que um jovem recém-chegado ao serviço ganhe as suas esporas do que atirar novos fardos
para cima dos ombros daqueles que já provaram o seu valor. Vês? É assim que um bom comandante desempenha o seu trabalho... Tribuno Júnio!
- Senhor?
- Remove a tua armadura e segue com este homem. - Fez um gesto na direção de Hamedes. - Ele explicar-te-á os detalhes da missão ao longo do caminho.
- Sim, senhor.
O legado olhou para o céu.
- Temos para aí ainda umas quatro horas de dia. Dou-vos duas horas para regressar. Nessa altura, darei a ordem para invadir o vale.
Durante mais de uma hora, os dois homens treparam pelas rochas que se erguiam sobre o desfiladeiro. Avançaram cautelosamente, aproximando-se do pequeno vale onde desembocava
a estrada, evitando deslocar qualquer pedra que pudesse inciar uma avalanche e denunciar a sua posição. O tribuno Júnio seguia à frente, pedindo de vez em quando indicações
a Hamedes. Por cima deles, o Sol avançava lentamente na direção dos picos recortados que limitavam o vale, e o calor embrulhava-se em redor dos dois homens como um torno cada
vez mais apertado, fazendo de cada inspiração uma tortura e transformando até a mais ligeira brisa num castigo em vez de um alívio. Depressa as túnicas de linho que vestiam
ficaram ensopadas de suor, e coladas às peles.
De súbito, quando ultrapassavam uma crista que descia quase a pique para a estrada, Júnio estacou e agachou-se rapidamente, colando-se às rochas.
- Senhor, o que se passa? - inquiriu Hamedes em voz baixa.
- Estou a vê-los - sussurrou Júnio, enquanto fazia gestos frenéticos para que o sacerdote se aproximasse.
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Hamedes avançou e espreitou sobre as rochas, para o chão do vale. Sobre a última curva da estrada sobressaía uma cornija rochosa, e quatro homens de vestes negras abrigavam-se
sob ela, sentados entre as pedras soltas enquanto vigiavam o caminho. Por trás deles, a estrada desembocava num espaço aberto, onde aguardavam os cavalos. Espalhadas pelas
falésias viam-se aberturas de dimensões variadas. Dois homens de escudos às costas e lanças nas mãos surgiram de trás de outros penedos um pouco mais distantes, dirigindo-se
para junto dos cavalos.
Júnio e Hamedes observaram a cena por mais alguns momentos, até que o tribuno assinalou uma faixa rochosa a uns cem passos, mais para o interior do vale.
- Vem comigo.
Os dois atravessaram a crista tão furtivamente quanto possível, sempre atentos à reação dos vigilantes mais abaixo, para terem a certeza que não eram detetados. Contudo, a
atenção dos árabes estava firmemente centrada na estrada, e nem uma vez se lembraram de olhar para cima e verificar se havia algo de estranho nas falésias. Os dois homens
treparam com todo o cuidado, testando cada ponto de apoio antes de prosseguir. Era uma tarefa exaustiva, e quando por fim atingiram a nova posição, viram-se obrigados a parar
para recuperar forças. Beberam alguma água dos cantis e prosseguiram, rastejando até se verem sobre uma plataforma rochosa que se projetava em ângulo reto sobre a escarpa.
A queda seria a pique, e Hamedes sentiu uma ligeira vertigem quando olhou diretamente para baixo, para o fundo do vale. Os dois soldados inimigos tinham chegado ao pé dos
cavalos e estavam agora sentados à sombra, assumindo uma estranha forma atarracada para quem os observava de cima. Não havia sinais de outras presenças, e nenhuma pista sobre
o local de acantonamento do resto do bando de Ajax.
Júnio coçou o queixo, preocupado.
- Temos de nos aproximar mais. Até um sítio de onde possamos ver distintamente as entradas dos túmulos.
O companheiro olhou pela falésia abaixo e depois apontou para outro afloramento junto ao ponto onde o vale se dividia, lançando um braço que pouco mais era que uma ravina
na direção dos rochedos a norte.
- Além, senhor. Dali devemos conseguir.
Júnio seguiu a indicação com o olhar, pensou por momentos e assentiu.
- Certo.
Já estavam a descer a parede rochosa quando outra figura emergiu de entre os rochedos, e se dirigiu também para os cavalos. Júnio abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas
interrompeu-se e virou-se para Hamedes.
- Reconhece-lo?
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Hamedes esforçou a vista para se assegurar do que estava a ver, e anuiu.
- Ajax.
O gladiador parou num ponto de onde tinha uma visão clara sobre os cavalos e os vigias espalhados por entre os penedos. Levou as mãos em concha à boca e lançou uma pergunta.
- Algum sinal de movimento?
Um dos árabes virou-se e respondeu num grego com forte pronúncia:
- Nada, senhor.
Ajax manteve-se imóvel, a pensar, e depois fez nova pergunta:
- Eles hão de vir. Mais cedo, e não mais tarde. Nesse momento deem o alarme, e assegurem-se de que cada flecha conta.
O árabe remexeu a mão em sinal de assentimento e voltou-se de novo para a estrada. Ajax prosseguiu até junto dos homens que aguardavam ao pé dos cavalos. Trocaram algumas
palavras em surdina, e o gladiador afastou-se de novo pelo caminho por onde tinha chegado. Enquanto ele se afastava, os dois homens aproximaram-se dos cavalos. O primeiro
pegou nas rédeas e afagou o flanco de um dos animais, como que a acalmá-lo, enquanto o companheiro dava a volta até ao outro lado, empunhava a espada e cortava as goelas ao
animal. Este saltou para trás enquanto lançava um aterrado guincho, interrompido quando o som se transformou num borbulhar estrangulado devido ao sangue que se escapava da
ferida, salpicando a poeira e o cascalho que se agitavam sob os cascos. O animal aguentou-se de pé mais um instante, mas depressa as pernas lhe começaram a tremer, até que
cederam e ele caiu no chão. Os homens dirigiram-se ao cavalo seguinte, que bateu com os cascos no solo e tentou escapar; não conseguiu ir longe, já que estava preso por uma
corda. O odor a sangue e o resfolegar aterrorizado do primeiro cavalo a ser abatido tinha assustado os outros, que agora tentavam afastar-se, o que dificultou o sangrento
trabalho dos dois rebeldes.
- Porque é que estão a fazer aquilo? - admirou-se Hamedes.
- É óbvio. O Ajax já não tem uso para os cavalos. Não quer que eles caiam em mãos romanas. Olha? Onde é que ele se meteu?
Ajax tinha desaparecido por trás de um enorme penedo que separava o vale da ravina. Esperaram um momento, mas não voltaram a avistar o líder inimigo. O tribuno tamborilou
com os dedos na rocha à sua frente e virou-se para Hamedes.
- Espera aqui. Vou avançar para ver de perto o que se passa. Temos de saber para onde é que ele foi.
Hamedes anuiu.
- Vê se te manténs fora de vista - prosseguiu Júnio em tom calmo, embora se notasse um toque de ansiedade na voz. - Dá-me até o Sol
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chegar ao cimo daquelas rochas; se eu ainda não tiver voltado nessa altura, regressa para junto da coluna e informa o legado. Percebido?
- Sim, senhor.
Júnio, de gatas, esgueirou-se por entre os calhaus soltos, até desaparecer. Hamedes tentou segui-lo com o olhar, mas não viu qualquer sinal do tribuno. Lá em baixo, os dois
homens tinham executado o último dos cavalos e apressavam-se a regressar para a sombra, deixando os cadáveres no meio de poças e manchas de sangue escuro que as moscas e outros
insetos rapidamente localizaram e onde começaram a alimentar-se.
Hamedes deitou outra olhadela na direção em que Júnio tinha seguido, e depois começou a descer com todas as cautelas pela encosta abrupta, aproximando-se dos homens de Ajax.
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- Tens a certeza absoluta? - perguntou o legado a Hamedes, diretamente.
- Sim, senhor. - O sacerdote acenou com a cabeça, reforçando a afirmação. - Vi-os a entrar no túmulo. O Ajax e alguns dos seus homens.
- E quanto a ti? - Aurélio virou-se para o tribuno Júnio. - Podes confirmar esta informação?
Júnio abanou a cabeça.
- Senhor, eu segui noutra direção. Para lá do ponto em que se situa o túmulo que o sacerdote refere. Fui até ao fim da ravina que sai do vale principal. Pelos vistos, passei
por ele sem dar por nada - confessou, com uma ponta de vergonha na voz. - Mas ainda bem que ele o localizou, senhor, ou nunca os teríamos encontrado.
- Bem, no fim de contas, bom trabalho. Bravo a ambos! - O legado sorriu a Hamedes. - Tratarei de te ver recompensado quando a campanha terminar.
Hamedes abanou a cabeça e ripostou com uma firme intensidade:
- Senhor, a vingança encerra a sua própria recompensa.
Cato interveio.
- És capaz de descrever com precisão a localização desse túmulo?
- Claro, senhor. - Hamedes agachou-se junto à estrada, aproveitando uma cova onde se tinha acumulado areia solta. Suavizou a superfície e desenhou um mapa simplificado do
terreno com o dedo, enquanto explicava. - Aqui fica a última curva da estrada. Logo a seguir começa o vale. Há muitos túmulos espalhados pelos penhascos, mas não vi ninguém
a entrar ou sair de nenhum deles. Aqui ficam uma série de grandes penedos. A ravina de que falou o tribuno sai aqui do vale e sobe para as colinas. Seguindo por ela, a cerca
de quatrocentos metros, aparece um trilho estreito e muito inclinado, que leva à base da escarpa. Aí há uma entrada escavada na rocha, com degraus que dão acesso a um túmulo.
É fácil passar por ela sem dar por isso, senhor. Não me espanta que o tribuno tenha passado perto sem a notar. Só a encontrei porque vi o Ajax e dois dos seus homens a subirem
os degraus.
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- E tens a certeza que és capaz de voltar a encontrá-la? - inquiriu Cato.
- Sim, senhor.
- Quantos homens viste?
Hamedes pensou por momentos.
- Seis árabes no total, e quatro homens de grande arcaboiço, como o Ajax, provavelmente também gladiadores. Pode haver outros que eu não tenha visto.
O legado fungou, em ar de desprezo.
- Dez homens, ou pouco mais. Ao que parece, trouxe um malho para partir uma noz. Muito bem, agora que sabemos onde estão, vamos lá apanhá-los sem demoras. - Olhou para o céu.
O vale já mergulhava nas sombras. - Temos uma hora ou perto disso antes que anoiteça. Eu mesmo comandarei o ataque. Levaremos tochas para entrar no túmulo e os perseguir até
onde for preciso. Dois esquadrões de cavalaria devem chegar, mais meia centúria de arqueiros para tratar da saúde aos vigias. O tribuno Júnio levará o resto dos homens de
volta ao acampamento.
Júnio baixou a cabeça, respeitosamente.
- Sim, senhor.
Aurélio bateu palmas.
- Meus senhores, vamos lá então tratar de arrumar esta história!
Quando o contingente alcançou a entrada do túmulo indicado por Hamedes, já estava escuro. Os árabes tinham provocado um atraso mínimo na entrada do vale, tendo conseguido
derrubar dois dos arqueiros auxiliares antes de serem obrigados a proteger-se de uma barragem contínua de flechas; nessa altura, outro grupo de arqueiros da legião trepou
até um ponto mais vantajoso, a partir do qual foi fácil visá-los e abatê-los sem mais delongas. Aurélio conduziu a coluna, ignorando os túmulos vazios da maior parte do vale,
até que deixaram os cavalos à guarda de um dos esquadrões de cavalaria e prosseguiram a pé. O sacerdote guiou-os ao longo do trilho serpenteante, passando por outras aberturas
na rocha e depois pela curta subida que levava aos degraus da entrada do túmulo que lhes interessava. Ao aproximarem-se, os romanos divisaram um vulto mesmo à entrada. Este
gritou um aviso aos seus camaradas e escapuliu-se pelo túnel que penetrava profundamente sob a falésia. A secção de auxiliares que seguia na frente fez menção de se precipitar
pelas escadas abaixo, mas Macro lançou um berro, obrigando-os a deterem-se.
- Que raio pensam vocês que estão a fazer? Está escuro como breu lá em baixo. Avançam à corrida pelo túnel, e o primeiro a dar um trambolhão parte a merda do pescoço, e os
outros tropeçam nele e seguem pelo mesmo
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caminho. Façam mas é uma fogueira e preparem umas tochas.
Virou-se para Cato com ar de desgosto. - Cambada de idiotas.
- Tens toda a razão. - O legado concordou, enquanto espreitava para as trevas. - Vamos precisar de luz. E muita.
Os últimos resquícios da luz do dia desapareciam no firmamento enquanto os soldados arrebanhavam ramos secos da pobre vegetação que tentava medrar entre as fendas rochosas.
Um dos arqueiros usou uma pederneira até conseguir uma faísca que inflamasse uma acendalha. Assim que a chama lambeu a madeira seca, cresceu de intensidade, e depressa toda
a falésia por cima da entrada estava iluminada pela luz proveniente da fogueira próxima.
- Vinte homens devem chegar - decidiu Aurélio. - E vou levar também uma secção de arqueiros. Se os túneis forem a direito, deve ser possível usar as armas, se para isso houver
ocasião. Macro, assegura-te de que temos tochas suficientes.
- Sim, senhor. - Assinalou com um gesto os fardos de ramos e ervas secas atados e prontos para serem levados. - Já tratei disso.
- Bom trabalho. - Aurélio assentiu com satisfação, o olhar fixo na entrada do túmulo. Macro compreendeu que o legado estava rapidamente a perder o entusiasmo para liderar
o grupo, agora que se defrontava com um buraco negro no interior do qual se acoitava um pequeno grupo de fugitivos desesperados e letais.
- Senhor, se assim o desejar, eu comandarei os homens - sugeriu o veterano, calmamente. - Não há necessidade de se envolver pessoalmente.
O legado afastou por fim o olhar do túmulo e franziu a testa.
- Essa agora. Um legado deve partilhar os perigos a que sujeita os seus homens. Senão, não serve para os comandar.
- Sim, senhor. Podemos então avançar?
- Sim... Sim, evidentemente. - Aurélio dirigiu-se ao molho de tochas e pegou numa. Baixou-a até ao fogo e ateou-a, para depois se aproximar dos degraus que levavam à entrada
do túmulo. Macro acendeu outra tocha e destacou dois arqueiros para avançarem, um com uma tocha e outro com um arco pronto a disparar. Macro preparava-se para os seguir quando
Cato avançou para pegar numa tocha também.
- Senhor, será melhor que fique aqui - disse Macro com firmeza.
Cato abanou a cabeça.
- Também vou.
- Com esse braço ao ombro, nem pensar. Os primeiros metros do túnel parecem-me muito inclinados. Todos teremos de usar uma mão para nos segurarmos. Senhor, só conseguirá atrapalhar-nos.
Complicará mais
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do que ajudará. - Macro tentou dar às suas palavras um tom de preocupação e cuidado, mas Cato deitou-lhe um olhar amargo.
- Obrigado pela preocupação. Mas se pensa que vou ficar aqui quietinho enquanto outros enfrentam o Ajax, está doido.
- O centurião tem razão - interrompeu Aurélio. - Ficas aqui com o resto dos homens até isto estar terminado. É uma ordem.
Os lábios de Cato cerraram-se de raiva numa fina linha, mas por fim ele limitou-se a responder quase sem abrir a boca.
- Sim, senhor.
Recuou e sentou-se numa rocha sobranceira aos degraus talhados na falésia. Ficou a observar de mau humor enquanto os arqueiros se aventuravam no túmulo, e Macro descia as
escadas, logo seguido por Hamedes. Cato tossiu e lançou um aviso.
- Macro, tenha cuidado... Atenção às costas.
Macro lançou-lhe um derradeiro olhar, sorriu e desapareceu na escuridão. O legado seguiu Hamedes para o interior do túmulo, seguindo-se depois todos os auxiliares e arqueiros,
muitos deles empunhando tochas acesas. O último homem, com um rolo de corda ao ombro, entrou no túnel; o brilho da tocha que empunhava esmoreceu rapidamente, e a partir daí
só o longínquo som das botas cardadas e de palavras trocadas entre os elementos da coluna se deixou ouvir, até também desaparecer. Cato manteve-se sentado, preocupado e atormentado
pelos seus receios e suspeitas. Depois olhou irritado para o seu próprio braço, preso ao peito, e a pouco e pouco libertou-o e tentou dobrá-lo. De imediato o corpo respondeu-lhe
com uma dor lancinante, como se o ombro estivesse a ser queimado, que o fez gemer e voltar a imobilizar o braço. Quando a dor amainou, atou-o de novo ao peito e voltou a concentrar-se
na entrada do túnel, escura como breu. Não podia fazer nada quanto ao que se passava lá dentro. Sem que desse por isso, o seu pé esquerdo começou a agitar-se num ritmo que
traía a ansiedade que o dominava enquanto se encostava ao rochedo e esperava o regresso de Macro e dos outros.
A passagem era suficientemente larga para dois homens poderem progredir lado a lado, mas era também muito inclinada, e Macro percebeu que tinha de dar passos cuidadosos e
apoiar-se bem nas rugosidades do solo para evitar escorregar por ali abaixo. A luz bruxuleante das tochas que ele e o homem à sua frente levavam, via que as paredes estavam
ornamentadas com representações dos deuses e reis nativos. Por vezes os reis, que envergavam as coroas combinadas dos reinos do Alto e do Baixo Nilo, faziam oferendas aos
deuses. Noutras imagens conduziam os seus exércitos para a guerra. As imagens estavam misturadas com a escrita incompreensível
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mas estranhamente bela dos antigos, que Macro se habituara a ver nos edifícios religiosos espalhados por toda a província. O ar no túnel era quente e húmido, e quanto mais
se embrenhavam na montanha, mais as paredes e o teto pareciam fechar-se sobre ele. Tentou convencer-se de que era apenas uma ilusão. Nunca tinha apreciado espaços confinados,
e o facto de Ajax e os seus homens estarem algures mais à frente, acoitados e à espera deles, contribuía para aumentar a apreensão que começava a dominá-lo.
Já tinham percorrido mais de cem passos quando o piso diminuiu acentuadamente de inclinação, permitindo um progresso menos laborioso. Macro olhou para trás, para se assegurar
de que a coluna não seguia em magote, e deu ordem de alto. O eco dos passos esmoreceu e por fim o túnel ficou em silêncio.
- O que se passa? - inquiriu Aurélio, num murmúrio. - Porque é que paraste?
- Para ouvir, senhor. - Macro levou um dedo aos lábios e depois inclinou a cabeça e imobilizou-se, esforçando os ouvidos para tentar detetar qualquer som de movimento vindo
das profundezas, para lá do som da sua própria respiração. A princípio não notou nada, mas depois percebeu um som de arrastar e murmúrios que lhe fizeram eriçar os pelos da
nuca. Avançou, ultrapassando o arqueiro que mantinha o arco pronto a disparar. O homem que liderava a coluna tinha a tocha empunhada ao alto e tentava perscrutar a continuação
do túnel. A luz projetada pela tocha imóvel iluminava uns vinte passos adiante. No limiar da escuridão adivinhava-se uma outra negridão, como se o túnel abrisse para um espaço
mais vasto.
- Viste alguma coisa a mexer-se lá em baixo? - inquiriu Macro, num murmúrio.
- Pareceu-me que sim, senhor.
- Pareceu-te? - rosnou Macro. - Ou viste, ou não viste. Então?
O homem engoliu em seco.
- Eu... Eu... Vi, sim, senhor. Estou certo disso.
Macro assentiu e recuou para trás do segundo arqueiro.
- Prepara-te para disparar assim que vires algum deles.
Enquanto regressava ao seu lugar original na fila, Macro foi dando a
ordem para desembainhar as espadas e preparar para a ação; lançou um silvo para que o homem da frente prosseguisse o avanço. A fila de homens aproximou-se cautelosamente da
abertura. O brilho das tochas revelou que o caminho continuava a descer, mas que, onde a câmara se abria, havia um buraco de cada um dos lados, mergulhado na escuridão. Quando
Macro emergiu no novo espaço, ergueu a tocha bem alto e olhou em volta. Os construtores daquele túmulo tinham escavado um cubo, com uns doze metros
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de lado, que era atravessado por uma espécie de rampa, onde se situava o caminho que seguiam. A precisão dos ângulos e das dimensões parecia perfeita e arrepiante. Dos dois
lados da rampa havia uma queda de cerca de seis metros, e à luz da tocha Macro reparou no lixo e porcaria que sucessivas vagas de ladrões e curiosos para ali tinham atirado
ao longo dos séculos, nas suas tentativas de exploração.
- Cuidado! - gritou o homem da frente, enquanto se abaixava. Uma flecha assobiou-lhe sobre a cabeça e foi-se cravar no braço direito do homem que o seguia. Este soltou um
grito e soltou a corda do arco, o que fez com que a flecha que tinha preparada caísse e escorregasse pelo solo inclinado. Cambaleou para trás, e os homens que o seguiam agacharam-se
ou desviaram-se por instinto, à espera de novo disparo inimigo.
- Cuidado, idiota! - gritou a voz de Aurélio, atrás de Macro. Quando este se virou, escutou o som de botas a escorregar e logo um grito desesperado de pânico.
Avistou o legado mesmo à beira da rampa, os braços a girar, a tocha a dançar loucamente; e então o oficial caiu no precipício, a luz da tocha a iluminar a vertiginosa descida,
até que se ouviu um impacto pesado que abafou qualquer grito que tivesse soltado.
- Merda! - soltou Macro, enquanto firmava os pés e espreitava pela borda da rampa. À luz da tocha que ia esmorecendo junto ao corpo, avistou Aurélio de costas no solo, braços
e pernas abertos. A boca estava aberta num grito mudo, e os olhos piscavam rapidamente enquanto o sangue, escuro como a noite, se espalhava sob a sua cabeça.
Outra flecha rasgou o ar, falhando por pouco os dois arqueiros e acabando por atingir o escudo de Macro, que a fez ressaltar para cima num ângulo abrupto, indo terminar a
sua trajetória contra a parede da câmara. Macro avançou, ultrapassando o arqueiro ferido e colocando o escudo num ângulo que lhe desse proteção. No momento seguinte um forte
estalo, amplificado pelas paredes de pedra, revelou que uma segunda flecha lhe tinha atingido em cheio o escudo, trespassando as camadas de cabedal e madeira e alojando-se
nele. Pegou na tocha do arqueiro da frente.
- Abriga-te atrás do meu escudo, e responde-lhes!
O homem anuiu e pegou numa flecha da aljava, assestou-a, retesou o arco e pôs a cabeça de fora só pelo tempo necessário para disparar o projétil pelo túnel.
- Continua! - ordenou Macro, e virou-se para ver o que se passava na rampa atrás de si. O arqueiro ferido progredia lentamente ao longo da fila de homens agachados ou apoiados
nas paredes, ainda no túnel. A curta distância avistou Hamedes.
- O que é que aconteceu ao legado? - quis Macro saber.
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- Não faço ideia, senhor. Estava mesmo à minha frente, tropeçou e deve ter-se desequilibrado.
- Pois; bom, temos de o tirar daqui. - Macro ergueu a voz e lançou um apelo ao longo da linha. - Passem a corda para a frente!
Seguiu-se uma breve espera, durante a qual outras três flechas saíram das profundezas do túmulo, duas para chocar contra o escudo de Macro e a terceira para passar pelos romanos
e se ir despedaçar contra a rocha ao lado da abertura do túnel que levava à saída. Por fim lá surgiu o rolo de corda, passado de homem para homem até chegar às mãos de Hamedes.
Macro já tinha chegado à conclusão de que não havia ali nada a que se pudesse atar a ponta, pelo que gritou para os homens ao longo do túnel.
- Descubram um tipo pesado a quem se possa atar a corda à volta da cintura, e depois quero outros quatro homens a aguentarem a pressão na corda.
- Sim, senhor. Permita-me descer para recuperar o legado.
- Não. Fica com o meu escudo. Eu vou lá - decidiu Macro.
Hamedes avançou, passando entre o arqueiro e Macro, e empunhou
a pega do escudo. Macro apertou-lhe o ombro enquanto lhe dava ordens.
- Vai avançando, devagarinho, com todo o cuidado. Só faltam uns dez passos para entrarmos na continuação do túnel. O arqueiro vai contigo. Continuem a flagelar quem quer que
seja que está para lá a atirar flechas ao acaso. Percebido?
Hamedes e o homem anuíram.
- Sigam então.
Assim que a corda ficou pronta, Macro fez um laço na ponta e enfiou lá a bota. Deixou-se ir escorregando sobre a orla, agarrado à corda com as duas mãos, enquanto os homens
lhe aguentavam o peso e o desciam devagar para a fossa. Assim que a bota tocou o chão, Macro soltou a corda e escorregou pelo cascalho até junto do legado. Os olhos de Aurélio
estavam fechados, e a respiração era ofegante e ligeira. Macro examinou o corpo: sentiu um inchaço na perna e notou o ângulo bizarro do braço esquerdo. A nuca do oficial estava
assente numa poça de sangue, e parecia mole ao toque, em vez de mostrar a solidez do osso. Aurélio soltou um longo gemido, e Macro afastou as mãos.
- Pois é, rapaz, não estás nada fino. - Macro abanou a cabeça, triste.
- O melhor será tirar-te daqui, e depressa. - Puxou a corda, pediu para lhe darem uma folga e atou-a em torno do peito do legado, por baixo dos braços.
- Puxem-no, com cuidado, devagar!
A corda rangeu com o peso, enquanto Macro guiava a ascensão do corpo do legado. A meio do caminho, o oficial começou a estremecer de
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forma incontrolável, enquanto soltava gemidos ofegantes. Por fim alcançou a rampa, e os auxiliares levaram-no rapidamente pelo túnel acima, enquanto a ponta da corda era lançada
de volta a Macro. Quando trepou até um ponto seguro, o centurião respirou fundo e deu ordens rápidas.
- Levem o legado e o ferido lá para fora. O tribuno Cato que os envie depressa para o acampamento. Entretanto, vamos lá tratar deste assunto.
Macro avançou pelo túnel até junto de Hamedes. O arqueiro estava agachado junto ao sacerdote, sem se preocupar em disparar para as trevas.
- Por que raio é que paraste de disparar? - exigiu saber Macro.
- Senhor, há já um bom bocado que não vem nada daquelas bandas
- explicou o homem.
- Está bem. - Macro aceitou a explicação. - Vamos prosseguir. Hamedes, encarrega-te da tocha, mantém-na tão alto quanto possas.
Macro mantinha o escudo à frente, a tocha seguia ao lado e bem ao alto, e por seu lado o arqueiro mantinha uma flecha pronta a soltar; os três homens avançaram lentamente
pelo túnel, seguidos pelo resto da pequena força. Daí a pouco Macro começou a discernir outra câmara que se abria à sua frente. Desta vez todo o espaço estava iluminado, já
que os defensores também tinham acendido as suas próprias tochas. Uma nova flecha cruzou o túnel na direção da coluna mas, mal orientada, desviou-se para a parede e tombou
para o solo, inofensiva. Macro continuou a avançar. Já conseguia ouvir claramente vozes. Prosseguiu até ao limiar da nova câmara, e à luz de uma tocha que alguém tinha deixado
a arder no solo, apercebeu-se de que era maior do que a que tinham atravessado anteriormente, mas que tinha um piso sólido e colunas quadradas cortadas da própria rocha.
Não havia sinal dos defensores. Macro aguardou que o resto dos seus homens o alcançasse e se preparasse para invadir a câmara assim que ele desse a ordem. Um movimento junto
a uma das colunas à esquerda atraiu-lhe a atenção, no preciso momento em que um dos inimigos soltava uma flecha. Atingiu a parede junto à cabeça do centurião, que sentiu um
estilhaço de pedra a cortar-lhe a pele do queixo.
Rosnou, enquanto se virava para o adversário.
Soltou um rugido e correu pela câmara, enquanto o outro se precipitava a tentar preparar novo disparo. Mal teve tempo para erguer o arco, puxar a corda e soltar o projétil,
sem apontar. A flecha passou junto à orelha de Macro, mas este já estava em cima do inimigo, e atingiu-o com o escudo, lançando-o para trás. O homem embateu no solo com aparato.
Macro olhou para os dois lados, mas não notou qualquer outro movimento, além do dos auxiliares que se precipitavam para o interior da câmara. À luz das tochas, percebeu que
o homem que derrubara tinha uma grande ligadura na perna, manchada de sangue. Ao pé dele, no chão do compartimento,
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via-se uma espécie de bengala improvisada a partir de uma lança de cavalaria. O homem tinha recuperado do golpe que sofrera, e já tentava alcançar de novo o arco. Macro avançou
e deu-lhe um pontapé. O outro empunhou a adaga que levava no cinto e tentou cortar a perna do centurião. Macro aparou o golpe e recuou para fora do alcance da lâmina.
- Larga-a!
O gladiador recuou até se encostar à parede da câmara, e então voltou a brandir a adaga, preparado para lançar um novo ataque.
- Disse para a largares.
- Vai-te foder, romano! - disparou o rebelde. - Se a queres mesmo, vem cá buscá-la!
Brandiu a faca, desafiando Macro. Este soltou um suspiro de impaciência, avançou, aparou a estocada do outro com a orla do escudo, prendendo-lhe a lâmina, e espetou-lhe a
espada no peito. O homem soltou o ar dos pulmões e tombou para o solo quando Macro soltou a lâmina e se virou para o lado, já esquecido daquele breve combate.
- Há mais algum deles por aí?
Nenhum dos seus homens lhe respondeu, e Macro franziu a testa enquanto embainhava a espada.
- Onde é que se meteram todos, com um raio? Onde está o Ajax?
- Senhor! Aqui!
Macro encontrou um dos seus homens, que apontava para uma pequena abertura na ponta mais funda da câmara. Havia ali um pequeno declive que ia ainda dar a outro salão. O centurião
agachou-se e pôs a cabeça de lado para tentar ver melhor. Não havia traço algum de movimento. Tentou ouvir qualquer coisa, mas os passos e os murmúrios dos seus homens enchiam
o ar.
- Tudo calado! - gritou.
Quando o último eco se dissipou, pôs-se de novo à escuta. Não se ouvia nenhum som vindo da câmara. Nada de nada. Por fim lá ouviu o mais tímido dos sons, como um cão a ofegar
à distância.
- Ajax!... Ajax, estás encurralado. Vou dar-te uma oportunidade para te renderes, depois entramos aí e damos cabo de ti e dos teus homens... Ajax, ouves-me?
Tal como esperava, não obteve resposta. Pôs-se outra vez à escuta, e por fim resmungou.
- Maldição. - Virou-se para os homens. - Vou descer. Se precisar de ajuda, chamo-vos. Se houver confusão, avancem em massa e não façam prisioneiros. Percebido?
Embainhou a espada e pegou numa das tochas que os homens levavam; inspecionou a passagem com todo o cuidado. Era mais íngreme que
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as outras que tinham percorrido, mas tinha apenas uns seis metros de comprimento. Depois via-se o chão plano de outra câmara. Testou a tração das botas no cimo da rampa, mas
rapidamente percebeu que nunca se conseguiria manter equilibrado se tentasse descer em pé. Ao invés, agachou-se, empurrou o escudo num ângulo fechado à sua frente e manteve
a tocha em cima, usando a mão que empunhava a espada.
- Senhor, tenha cuidado - recomendou Hamedes.
Macro sorriu-lhe.
- Cá vou eu.
Usando o peso, deixou-se escorregar pelo túnel, as botas a servir de travão contra a rocha. A corrente de ar fez a tocha rebrilhar, iluminando claramente a estreita passagem.
Entrou na câmara e deu meio passo em frente para se equilibrar quando alcançou o piso plano. Virou-se para um lado e depois outro, rapidamente e agitando a tocha à sua frente.
A câmara era muito menor que a anterior, e tinha apenas quatro colunas. Havia uma escada mal amanhada, algumas capas e odres pelo chão, mas nem sinal de qualquer ocupante,
nem qualquer outra abertura nas paredes.
Ouviu então um arranhar vindo de um dos cantos opostos da sala. Ergueu a tocha e avistou um homem sentado, amparado pela parede. Não vestia mais do que uma tanga, e estava
ferido, como o seu camarada no piso superior; tinha uma ligadura a proteger o estômago. Nas mãos empunhava uma adaga, mas nem se preocupou em brandi-la contra o centurião.
Macro aproximou-se cuidadosamente dele, e a luz da tocha revelou o suor que lhe cobria a pele e pingava da testa. O peito arfava em ritmo aflitivo, enquanto o homem lutava
para respirar. Cerrou os olhos por um momento e depois piscou, tentando focar a visão em Macro.
- Onde estão eles? - inquiriu Macro. - Onde estão o Ajax e os outros?
- Foram-se. - Foi tudo o que respondeu o homem, antes de lamber os lábios e sorrir fracamente enquanto repetia. - Foram-se...
- Para onde? - perguntou Macro, sem paciência. - Estavam nesta gruta. Onde é que se meteram?
O outro abanou a cabeça.
- És o centurião Macro? - O homem lutava para pronunciar cada palavra.
- E se for?
- Ele, o Ajax, disse-me para te dar uma mensagem. - O homem sorriu de novo. - Pediu-me para te dizer que já te fodeu antes, te fodeu agora outra vez e, no futuro, enquanto
viver, te há de foder as vezes que quiser.
Macro encarou o moribundo enquanto deixava a raiva tomar-lhe conta do coração e do pensamento. A tocha tombou-lhe das mãos, substituída
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pela espada, antes mesmo que se apercebesse do que estava a fazer. Soltou um uivo de ódio e ira que lhe arranhou a garganta, levantou a espada e precipitou-a sobre a cabeça
do inimigo com tanta brutalidade que a pele, o osso e o cérebro explodiram numa massa única e nojenta assim que o gume rasgou o crânio do homem e se cravou até à mandíbula.
Macro soltou a espada com um puxão e preparou-se para desferir novo golpe, com os lábios arrepelados num esgar selvagem; mas o homem já estava para lá de morto.
Deixou pender a espada sobre o cadáver, o sangue a escorrer ao longo da lâmina. Inspirou e expirou pelo nariz, de narinas escancaradas. A pouco e pouco a razão começou a regressar,
e deu uns passos, afastando-se do cadáver. Olhou em volta da gruta, esperando encontrar qualquer coisa, um indício que revelasse a presença de Ajax, mas nada havia. Virou-se
por fim para a entrada da câmara e chamou Hamedes.
- Atirem-me a corda. Acabou. Aqui já está tudo arrumado.
- E o Ajax?
- Ajax? - Abanou a cabeça, embora ninguém o pudesse ver. - Não está cá. Parece que se evaporou...
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Vai sobreviver? - quis saber Cato.
O médico não respondeu de imediato; limitou-se a considerar o estado do paciente, sentado no banco ao lado da cama. Lá fora rompia a alvorada, e os homens no acampamento de
Karnak estavam a ser acordados ao som das bucinas. Macro e Cato estavam de pé ao lado do médico, as faces sujas de areia e pó. Tinham regressado da outra margem do rio de
madrugada, trazendo as duas baixas romanas. Aurélio tinha sido levado até ao rio numa maca improvisada com duas lanças de cavalaria e algumas capas. Assim que o barco chegara
ao cais, o legado tinha sido levado para a enfermaria, enquanto o arqueiro ia tratar de limpar e ligar a sua ferida.
Tinha levado uma hora até o médico conseguir recompor os membros partidos do legado, e depois lhes aplicar talas. O ferimento na cabeça era coisa mais séria, e tinha sido
necessário lavar muito bem a área, afastando todo o sangue, até se poder examinar a ferida com atenção. Aurélio estava deitado de lado, o corpo bem preso, de forma a que não
se pudesse mover. A respiração era entrecortada, e Cato via bem que a parte de trás do crânio estava deformada, por baixo de uma fina ligadura já empapada, que não conseguia
estancar totalmente o sangue.
- Sobreviver? - O médico levantou por fim o olhar. - Duvido. Perdeu muito sangue, e perdeu partes do cérebro. Algumas delas quando eu estava a remover os fragmentos ósseos.
Coloquei uma placa de latão no buraco e cosi o escalpe. Mas não alimento grandes esperanças. Seja como for, mesmo que consiga sobreviver, o cérebro sofreu danos irreparáveis.
Passaria o resto dos seus dias como um vegetal. A morte seria misericordiosa para ele, neste estado.
Cato anuiu.
- Compreendo. Peço-te que coloques as tuas conclusões por escrito e que dês entrada delas no registo oficial da legião.
O médico ergueu-se e encarou Cato.
- Senhor, tenho um hospital repleto de homens feridos, depois dos combates dos últimos dias. É a eles que tenho de dar atenção, antes de me ocupar de relatórios e registos.
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- Sei-o bem - retorquiu Cato com gentileza. - Porém, tenho de te pedir que faças o que te digo. O legado, embora vivo, não está em condições de desempenhar as suas funções.
Portanto, a autoridade sobre a legião, e o resto do exército, passa para o oficial que o segue na cadeia de comando.
- Ou seja, senhor, a sua pessoa.
- Precisamente. Não podem ficar quaisquer dúvidas de que segui os protocolos corretos ao assumir o comando. Não me posso permitir que exista qualquer desafio à minha autoridade.
Para bem dos homens.
- E para ter as costas quentes, para o caso de a campanha não terminar bem para Roma, com toda a certeza.
- Pensa o que quiseres. Mas a verdade é que preciso dessa tua declaração nos registos oficiais. - Cato falou em tom firme. - Imediatamente, se não te importares.
O médico pareceu hesitar.
- E se eu me importar?
- Imediatamente, na mesma. É uma ordem.
- Sim, senhor.
Cato virou-se para Macro.
- Centurião, siga-me, temos de falar.
Voltou-se e saiu do quarto reservado para o legado. Macro imitou-o, colocando-se a par do jovem quando saíram do hospital. Atravessaram o complexo do templo, dirigindo-se
à entrada sul e ao quartel-general.
- É um passo arriscado - comentou Macro. - Não tenho a certeza que o governador veja com muito bons olhos o facto de tomares o comando do exército. Nada mais se interpõe entre
o príncipe Talmis e o Baixo Nilo.
- O governador está bem longe do palco de operações - respondeu Cato. - Não está em posição de alvitrar sobre o rumo a tomar. De qualquer forma, os últimos relatórios indicam
que os núbios não estão a mais de um dia de marcha daqui. O que quer que eu faça? Que lhe envie uma mensagem a solicitar indicações sobre como proceder, acomodar o traseiro
e esperar sentado pela resposta? Quando chegasse a resposta, já o príncipe Talmis nos teria varrido da face deste mundo e estaria a caminho de Mênfis e do delta. Enfim, seria
a derrocada, como muito bem sabe.
- Claro que sei. - Macro sorriu. - Mas felizmente não sou eu quem está a assumir o comando do exército. Se para nada mais servisse, seria a demonstração de que tens uns tomates
de ferro sólido, meu caro.
- Oh? - Cato virou-se para o amigo. - Não pense nem por um momento que sou o único a esticar o pescoço. Sim, sou eu quem vai assumir o comando do exército, mas o meu primeiro
ato será o de o nomear prefeito do campo. Portanto, será melhor que lance as suas preces para que saiamos
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disto cobertos de glória, já que a alternativa não terá um cheiro tão agradável.
- O que me deixa realmente baralhado é como é que o sacana do Ajax conseguiu escapar - começou Macro, enquanto se sentava num dos confortáveis bancos nos aposentos do legado.
- Estávamos no sítio certo. Os homens dele tinham estado naquele túmulo e até deixaram para trás dois feridos. Não nos passou despercebida nenhuma passagem lateral nem nenhuma
saída. Portanto, deve ter-se escapulido antes de fecharmos a armadilha.
- Obviamente.
- Mas, nesse caso, como é que ele saiu do vale? Não podia ter escalado as escarpas, pelo menos sem ser visto, e não podia ter passado por nós.
Cato manteve-se silencioso por momentos.
- E não passou. Nós é que passámos por ele.
Macro franziu o cenho.
- O que é que estás para aí a dizer?
- Macro, pense bem. Assim que soubemos em que túmulo é que ele se encontrava, fomos direitos a ele. Marchámos para o vale e tomámos por aquele caminho que levava ao túmulo
que você vasculhou. Portanto, o que é que acha que aconteceu?
Macro pensou um instante e respirou fundo.
- Não pode ter sido assim tão simples...?
Cato encolheu os ombros.
- Se não foi assim que escapou, então como? Deve ter-nos ouvido a passar. Pelos deuses, não ficaria espantado se ele tivesse tido a ousadia de ficar a espreitar a partir de
um daqueles túmulos à entrada do vale. Assim que desaparecemos de vista, ele e os seus homens saíram, esgueiraram-se pelo caminho de regresso ao Nilo e escaparam.
- A esta hora pode estar em qualquer sítio - refletiu Macro.
- Precisamente.
Macro abanou a cabeça, assombrado.
- Este Ajax é de certeza o cabrão mais ardiloso que já enfrentámos, tirando aquele merdoso do Narciso lá em Roma. Deve ter calculado que íamos tentar perceber onde era o esconderijo,
e deixou que os nossos batedores vissem só o suficiente para os convencer, antes de mudar os seus homens para outro sítio. Esperto.
- Sim, muito esperto. Ou talvez exista outra razão para ele nos ter escapado de novo.
- Queres dizer, a sorte? Resolveu mudar de esconderijo no momento certo, só por acaso? Pouco provável.
- Muito pouco provável. - Cato juntou as mãos e debruçou-se sobre
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a mesa do legado, para se concentrar. - Estou a falar de algo completamente diferente. Estou a dizer que me parece que o Ajax foi avisado. Alguém lhe disse que tínhamos enviado
batedores para tentar saber onde ele se escondia. Por isso é que mudou de local e conseguiu enganar-nos.
- Avisado? Por quem?
Cato não respondeu. Manteve-se calado enquanto a sua mente fatigada tentava reordenar os pensamentos. Por fim recostou-se e dirigiu-se ao amigo em tom normal.
- Não lhe parece que o Ajax tem tido um assinalável quinhão de favores da fortuna, desde que o começámos a perseguir pelo Egito acima e abaixo?
- Favores? - Macro cerrou os lábios. - O que é que queres dizer ao certo com essa?
- Comecemos pelos eventos mais recentes. A fuga do templo. Lembra-se do relatório do prefeito da cavalaria sobre o massacre de uma das suas patrulhas. Ele mencionou que os
atacantes tinham usado uma palavra-passe para se aproximarem sem causarem alarme. Ora bem, como é que a conseguiram?
- Não poderão ter simplesmente escutado alguém a usá-la? Como sugeriu o Júnio?
- Pode ter sido, mas a verdade é que os homens são muito cuidadosos quando usam essas palavras, e nunca as berram. E além disso o homem que usou a palavra estava equipado
à romana.
- Bem, podem ter simplesmente despido um dos corpos dos homens que perdemos no primeiro recontro.
Cato assentiu.
- Foi o que eu pensei. Portanto, verifiquei junto de um dos optios, antes de deixarmos o templo para nos dirigirmos ao vale dos túmulos. Não faltava nenhum corpo, nem qualquer
peça de equipamento.
Macro encarou-o com curiosidade.
- Isto não é portanto algo que te passou agora pela cabeça, pois não?
- Tinha as minhas suspeitas. E quando chegámos ao vale, houve aquela história de identificar o túmulo errado, e depois a queda do legado na rampa.
Macro abanou a cabeça.
- Isso foi um acidente.
- Viu o que aconteceu?
Exausto, Macro viu-se obrigado a concentrar-se a fundo para recordar os detalhes do que sucedera no túmulo.
- Estávamos na rampa... Foi disparada uma seta contra nós. Ouvi um grito... Virei-me e vi o legado a cair. Sim, foi um acidente.
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- Diga-me, quem é que estava mais próximo do legado quando isso sucedeu?
- Era o Hamedes - retorquiu Macro, e olhou intensamente para Cato.
- Hamedes. - Cato assentiu. - Precisamente.
Macro manteve-se em silêncio enquanto tentava aceitar a sugestão.
- Estás a dizer que ele é um traidor?
- Essa ideia implica que ele nos tenha traído. O que eu penso é que ele nunca esteve realmente do nosso lado. Macro, lembre-se. Qual é a história dele? Foi o único sobrevivente
do ataque do Ajax ao templo em que oficiava.
- Sim, mas foi poupado pelo Ajax para que todos soubessem quem supostamente tinha sido o autor do ataque. Como sucedeu noutras ocasiões.
- É verdade - admitiu Cato. - É mais uma razão para nos predispor a acreditar nessa história.
Macro abanou a cabeça.
- Cato, essa ideia parece-me mirabolante. Se há por aí um traidor, duvido que seja o Hamedes. Conheço-o o suficiente. Ele sempre nos foi leal. Aliás, enfrentou ao nosso lado
todos os perigos. Essas outras coisas que mencionas são apenas coincidências.
- Como a cobra na nossa tenda? Alguma vez tentou perceber de onde é que ela pode ter vindo? Reparou que, quando entrou na barca em Alexandria, o Hamedes tinha uma sacola bem
pesada? Quando desembarcou, era bem menos volumosa. E ao pé da tenda estavam cacos de um frasco. Gostava de saber o que terá contido esse recipiente, e de onde é que terá
vindo. Só coincidências? Diga-me, nunca teve nenhum motivo para duvidar dele?
Macro recordou o tempo que passara ao lado do jovem sacerdote. Lembrou-se do ataque à base de Ajax, e do incêndio na torre que tinha revelado a sua presença aos rebeldes.
Hamedes podia facilmente ter ateado o fogo enquanto os outros se ocupavam em verificar que todos os inimigos tinham sido aniquilados. As sementes de suspeita que Cato tinha
plantado foram facilmente alimentadas pela memória desse evento.
Ouviu-se uma batida na porta, e um optio entrou na sala.
Cato olhou para o homem.
- Sim?
- Senhor, trago-lhe o sacerdote. Conforme me foi ordenado.
Cato deitou uma olhadela a Macro.
- Vamos lá ver o que tem o Hamedes a dizer em sua defesa. Fá-lo entrar, e fica aqui connosco.
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- Sim, senhor. - O optio acenou para lá da porta. - Tu, rapaz, avança. Direito, vá!
Hamedes entrou na sala, envergando uma túnica. Tinha um ar atarantado, como se tivesse sido acordado havia pouco. Sorriu ao avistar Macro e Cato.
- Senhores. Em que posso ajudar-vos?
Cato encarou-o com uma expressão fechada, sem trair o que lhe ia na alma, e sentou-se na cadeira.
- Para começar, podes dizer-me qual é o teu verdadeiro nome.
O sorriso de Hamedes apagou-se.
- Desculpe? Como disse, senhor?
- Ouviste-me. Quero saber o teu verdadeiro nome.
Hamedes abriu a boca, fechou-a, e olhou para Macro, desamparado.
- Não compreendo.
Cato bufou, irritado.
- Vamos tentar outro caminho. Há quanto tempo conheces o Ajax? Fizeste parte da revolta em Creta, ou foste recrutado de entre os escravos dos navios que ele atacou?
Hamedes engoliu em seco, ansioso.
- Senhor, sou apenas um humilde sacerdote. Tenho todas as razões para odiar o Ajax. Ele massacrou os meus irmãos de fé e saqueou o nosso templo sagrado. Chamo-me Hamedes.
Senhor, tem de acreditar em mim... Por favor. Juro-lhe, por tudo o que me é sagrado, não sou um espião. Acredite.
Cato sorriu-lhe friamente.
- Pelos deuses, darias um ator magnífico. Foi sem dúvida por isso que o Ajax te escolheu para esta missão. Uma boa escolha, de facto. Afinal, foste tu quem o salvou do templo,
e depois do túmulo. E foste tu quem empurrou
o legado para a fossa.
- Não! - Hamedes abanou a cabeça. - Não fiz tal coisa. Foi um acidente. Centurião, você estava lá. Viu-o cair.
- Vi-o cair - concordou Macro, sem emoção. - Mas ele pode muito bem ter sido empurrado.
Hamedes olhou para ele com uma expressão de horror.
- E acha que fui eu quem o empurrou?
- Eu... Não sei. - Macro abanou devagar a cabeça. - Foda-se, não sei mesmo.
- Pois bem, eu sei - afirmou Cato. - Há indícios mais do que suficientes para apontar a culpa deste homem. Depois de o Ajax ter conseguido fugir do túmulo, sabemos que há
de certeza alguém no exército que o tem ajudado. Foi essa escapadela que confirmou as minhas suspeitas. Este é o
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espião. - Cato fez uma pausa. - E existe apenas uma punição adequada a um espião.
Os olhos de Hamedes arregalaram-se de terror.
- Nada disso é verdade! Estou inocente. Juro-o, pelos deuses!
Cato ignorou-o e virou-se para o optio.
- Leva-o.
- O que lhe vais fazer? - quis saber Macro.
- Será crucificado ao alvorecer, e a sua cabeça será enviada ao inimigo. Se o Ajax voltou para junto do príncipe Talmis, ficará a saber o destino que o aguarda, bem como a
todos os seus homens.
O optio avançou e pegou em Hamedes pelo braço.
- Vamos, rapaz.
Hamedes resistiu, pelo que o optio lhe deu um puxão violento, orientando-o para a porta para o levar pelo corredor.
- Estão a cometer um erro! - suplicou Hamedes. - Não sou nenhum espião. Estou inocente!
Macro e Cato ouviram os sons do optio a arrastar o sacerdote. Seguiu-se um grito.
- Oh, meu cabrão! Para!
Macro saltou da cadeira e correu para a porta. Avistou Hamedes a correr ao longo das colunas, dirigindo-se para o portão. O optio tinha sido derrubado, mas depressa recuperou
e, enquanto se punha de pé, empunhou a adaga. Com um gesto preciso que denunciava muito treino, fê-la rodopiar na mão, segurando-a pela lâmina; apontou rapidamente, puxou
o braço atrás e lançou a pequena faca com toda a força. Macro viu a lâmina a cruzar o ar antes de atingir Hamedes mesmo por baixo do pescoço. As pernas do egípcio sucumbiram
de imediato, e ele rebolou pelo solo como se fosse um boneco, imobilizando-se.
- O que aconteceu? - perguntou Cato ao sair da sala atrás de Macro. -Oh...
O optio correu a debruçar-se sobre o corpo. Colocou uma bota sobre a cabeça de Hamedes e soltou a adaga. Olhou para os dois oficiais.
- Está despachado, senhor.
Cato assentiu.
Macro limpou a garganta, e concluiu:
- Bem, suponho que foi um fim melhor do que o que ele merecia. Tivemos sorte, senhor. Se não o tivesse descoberto agora, sabe-se lá os danos que ele ainda poderia vir a provocar-nos.
- Macro franziu o sobrolho e admitiu por fim: - Nunca suspeitei dele... Nunca.
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Cato esperou até que o último dos oficiais se tivesse sentado nos bancos instalados no pátio central dos aposentos dos sacerdotes. Macro estava ao seu lado, um pouco à direita,
firme, pés bem plantados no solo, sólido como um touro. Os oficiais olhavam para Cato, expectantes, até que ele se ergueu e limpou a garganta.
- O legado interino Aurélio faleceu pouco depois do meio-dia, em consequência dos ferimentos sofridos. Eu já tinha assumido o comando, dado o seu estado de incapacidade, atestado
pelo médico-chefe da legião. Seja como for, tudo isso é agora académico. Como novo comandante, já alterei as ordens para a continuação da campanha contra os núbios. O exército
não será dividido. Todas as forças se concentrarão aqui, em Diospolis Magna, e seguirão depois ao encontro dos núbios, para travar batalha na primeira ocasião. - Cato olhou
em volta. - Senhores, alguma pergunta?
A brevidade do discurso deixara a maior parte dos oficiais espantados. Passou um momento até que um dos centuriões mais antigos, que Cato reconheceu como um dos apaniguados
do falecido Aurélio, se levantasse. O centurião Ésquer olhou friamente para Cato e lançou um sorriso sem qualquer indício de sinceridade.
- Senhor, creio que falo pela maior parte dos presentes quando lamento profundamente a perda do legado interino. É um golpe muito duro, já que se segue à morte do legado e
à descoberta do espião que inadvertidamente trouxe para o nosso seio.
Cato tentou esconder a surpresa e desagrado que sentiu ao saber que as notícias sobre a traição de Hamedes já se tinham espalhado pela legião. O oficial prosseguiu.
- É difícil não acreditar que os Chacais foram de facto amaldiçoados. Ambos os comandantes perdidos eram homens de imensa experiência. Ambos conheciam perfeitamente a legião
e os seus homens. Portanto, senhor, compreenderá que diga que penso ser do melhor interesse da legião, do exército e de Roma que seja enviado um pedido ao governador em Alexandria
para que seja nomeado um novo e permanente comandante para esta legião. Não se trata de forma alguma de um julgamento à sua
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competência, senhor. É sim uma mera reflexão sobre o deplorável estado moral dos homens. Prefeririam com toda a certeza ser comandados por um homem de reconhecida experiência
e antiguidade - concluiu o centurião, voltando a sentar-se.
- Muito obrigado pela tua contribuição - comentou Cato. - Mais alguém deseja falar?
Olhou em volta, mas os oficiais mantiveram-se em silêncio, aguardando a sua resposta aos comentários do centurião. Cato anuiu.
- Muito bem, então. Os teus comentários serão tidos em conta. Agora, escutem-me bem. - Olhou em redor. - Não será feito qualquer pedido ao governador. Não há tempo para que
seja ele a decidir. Assumi legalmente o comando e não tolerarei qualquer tentativa de desafio à minha autoridade. Senhores, a situação é demasiado grave para perdermos tempo
em jogos de poder. A província enfrenta uma grave ameaça. Temos de a enfrentar de forma rápida e decisiva. Depois de derrotarmos os núbios, poderão apresentar todos os protestos
que desejarem.
O centurião voltou a levantar-se.
- Senhor, posso indagar o que havia de errado com o plano original? O legado Aurélio...
- Legado interino Aurélio - interrompeu Macro. - Aliás, anterior legado interino Aurélio.
O centurião lançou um olhar hostil a Macro antes de prosseguir.
- O plano do anterior comandante parecia-me perfeito. O seu plano parece bastante menos subtil, e muito menos capaz de nos levar a encurralar e destruir os núbios... Senhor.
- A sério? - ripostou Cato, sem se deixar irritar. - Perdoem-me, mas pensava que era uma máxima bem estabelecida da estratégia militar não dividir uma força quando se enfrenta
um exército mais poderoso. Ou aqui no Egito vocês fazem as coisas de outra maneira?
O tom sarcástico da pergunta não escapou ao centurião e restantes oficiais. Cato ignorou o breve coro de resmungos e continuou.
- O plano do Aurélio conduzir-nos-ia ao desastre. As nossas forças seriam derrotadas em sequência, e o príncipe Talmis ficaria livre para devastar toda a província até que
o Imperador conseguisse reunir um exército suficientemente poderoso para expulsar os núbios. Entretanto, seriam precisos anos para a província recuperar dos danos causados
à produção de trigo e da destruição das cidades ao longo do Nilo. O mesmo destino espera o Egito se nos limitarmos a ficar sentados à espera que nos seja enviado um novo comandante.
O único curso de ação que garante alguma possibilidade de salvar este exército e a província é este: atacar o inimigo imediatamente, com todos os homens que conseguirmos reunir.
- Cato fez uma pausa e
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contemplou os rostos dos oficiais, dos homens que precisava de conquistar para ter a mais ínfima hipótese de sucesso. Moderou o tom e prosseguiu.
- Não preciso de me explicar perante vós, meus senhores. Agi em pleno respeito pelos regulamentos estabelecidos pelo gabinete imperial do exército, em nome do Imperador Cláudio.
Em circunstâncias normais, seria mais do que suficiente. Aceito que a situação presente é algo irregular, mas desde quando é que uma guerra é um assunto limpo e bem organizado?
Até há poucos dias, a Vigésima Segunda Legião era uma unidade de guarnição. A única ação que a maior parte de vocês e dos vossos homens alguma vez enfrentaram foi para aí
uma escaramuça numa ação de vigilância ou uma expedição punitiva contra alguns salteadores. Com toda a franqueza, em comparação com as outras legiões em que o centurião Macro
e eu tivemos a honra de servir, os Chacais são de segunda classe. É certo que os homens estão treinados e cumprem todos os exercícios regulamentares, mas falta-lhes experiência
de combate. E é esse o único real teste ao valor de um soldado. E esse não é fácil de demonstrar. Ora bem, alguns dos homens tiveram ocasião de provar o seu valor no assalto
ao templo, e demonstraram-no convincentemente, mas a maioria dos homens e oficiais ainda não enfrentou um teste comparável. E isso inclui-te a ti, centurião Ésquer. Não o
digo por ter qualquer desejo de te derrubar, mas porque é um facto. O outro facto indesmentível é que tanto o centurião Macro como eu temos muito maior experiência de campanhas
e de batalhas. Na verdade, o que deviam sentir era gratidão por sermos nós a conduzir-vos para o combate. Não consigo imaginar um maior exemplo de coragem que o centurião
Macro, e sei que ele consegue de facto inspirar os homens que o seguem.
Macro remexeu-se, pouco confortável com os elogios do amigo, mas depressa recompôs uma expressão austera e manteve-a, enquanto se imobilizava com toda a rigidez.
- Os Chacais têm potencial para se tornarem excelentes soldados - prosseguiu Cato. - E a vitória sobre os núbios permitir-lhes-á cobrir de glória o estandarte da águia. Mas
não vos vou iludir sobre a escala da tarefa que nos aguarda. Há que entender, e fazer com que todos os homens entendam, este facto simples: há na nossa frente apenas duas
vias quando marcharmos ao encontro do inimigo - uma leva à vitória, a outra à morte certa. Agora que eu e o centurião Macro estamos no comando, as nossas hipóteses melhoraram.
O resto é convosco. Esqueçam o passado. Esqueçam os vossos planos para o futuro. Pensem apenas na forma de matar o vosso inimigo. É tudo o que importa neste momento. Senhores,
é uma filosofia simples, e tem-nos servido bem, a mim e ao centurião Macro, ao longo de todos os anos em que servimos em conjunto. Não é assim?
- Sim, senhor! - troou Macro.
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Cato respirou fundo e olhou em volta para os seus oficiais, apreciando os sinais de uma nova determinação a nascer-lhes nas expressões. Era bom que assim fosse, refletiu.
Ao menos algumas das palavras que proferira tinham tido efeito. Tinha feito tudo o que podia para instilar o mais adequado estado de espírito nos oficiais e para lhes fortalecer
a resolução em face do grande teste que os esperava.
- O exército marcha de Karnak amanhã à primeira luz. Têm o resto do dia para preparar os vossos homens, equipamento e mantimentos. Estão dispensados!
Os oficiais levantaram-se e começaram a dispersar, saindo do pátio em grupos que discutiam em voz baixa. Macro manteve-se hirto até à saída do último retardatário, e por fim
deixou os ombros descair um pouco enquanto soltava um longo e fatigado suspiro.
- O que achou? - quis saber Cato.
- Oh, miúdo, estás em forma. Tenho de dizer que já ouvi essa história da vitória ou morte mais do que uma vez. Tal como tu. É uma frase batida, mas a verdade, garanto-te,
é que bate sempre fundo.
- Hummm. O que queria saber é o que acha dos nossos oficiais.
Macro fez um gesto com o polegar na direção da entrada do pátio.
- Aquela cambada? Não são os melhores que já vi, mas possivelmente também não serão os piores.
- Isso não é lá muito encorajador.
- Oh, eles hão de combater quando chegar o momento. - Macro encolheu os ombros, pouco preocoupado. - Afinal, que escolha têm?
- Nenhuma, no ponto em que estão as coisas. Recebi um relatório de uma patrulha mesmo antes de começar a reunião. O exército núbio ainda está acampado a um dia de marcha a
sul. Está no mesmo sítio há dois dias. Parece que o príncipe Talmis nos desafia a avançar e enfrentá-lo.
- Também podíamos esperar aqui por ele e contê-lo.
- Não. Se fizermos isso, ele cercar-nos-á, e levará o tempo que for preciso até nos forçar à rendição pela fome. Em qualquer dos casos, a vantagem está do lado dele.
Macro olhou para o seu jovem amigo e viu claramente a exaustão que lhe marcava o rosto, os olhos raiados de sangue. Cato tinha removido o lenço que lhe segurava o braço esquerdo
antes da chegada dos oficiais, e agora pegava-lhe com a mão livre. Macro sentiu-se invadir por uma preocupação quase paternal.
- Olha, por agora não há mais nada a fazer. Os oficiais encarregar-se-ão dos preparativos e eu vou tê-los debaixo de olho para ter a certeza que fazem um trabalho decente.
Devias descansar. Deixa esse braço recuperar. Vamos precisar de ti em forma amanhã. Não nos podemos permitir
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que o cansaço te tolde o pensamento. Não quando as vidas de todos nós vão estar em jogo.
Cato olhou para o veterano e sorriu.
- Obrigado. Se tiver tempo, descansarei. Mas primeiro tenho de pensar na forma de alcançar o triunfo nesta campanha. As palavras bonitas são uma coisa, mas nunca ganharam
uma batalha. E depois daquela história com o Hamedes, percebo perfeitamente que ponham em causa o meu julgamento.
- O caralho. O Hamedes era um espião. E essa cepa supostamente tem jeito para conquistar a confiança dos outros. De qualquer maneira, no fim de contas ele não te conseguiu
enganar. Percebeste o jogo dele, e puseste-lhe fim à carreira - concluiu Macro, sem esconder um traço de amargura na voz.
Cato olhou para ele e percebeu que o amigo lutava para esconder os seus verdadeiros sentimentos.
- A traição dele custou-lhe muito, não foi?
- Sim... Gostava mesmo do miúdo. Quando ele avançou pelo vale à procura do covil do Ajax, pensei que tinha mesmo sido um gesto de coragem. Agora sei que não passou de um estratagema.
O sacana enganou-me, e bem.
Cato sentiu que o amigo necessitava de uma palavra de conforto.
- Seja como for, acho que ele o admirava realmente, apesar de ser inimigo.
- Mesmo que seja verdade, o que é que isso importa? O Hamedes era leal ao Ajax. Se o tivesse sabido, tê-lo-ia liquidado com as mãos nuas e sem hesitação. Cato, a verdade é
que me sinto um idiota. É tudo o que há a dizer sobre o assunto. Despachámo-lo, e pronto.
- Sim, claro - assentiu Cato, consciente de que o melhor era mesmo deixar de lado aquele tema. - Macro, preciso da sua ajuda. Temo que estejamos a poucos dias da mais dura
batalha que já travámos.
Os primeiros raios do Sol nascente jorravam sobre as baixas colinas do leste quando os romanos deixaram o campo de Karnak. A cavalaria auxiliar tomou a vanguarda, com os vários
esquadrões a espalharem-se por uma vasta área, de modo a cobrir o avanço do exército. À frente da coluna principal seguia uma coorte de infantaria auxiliar. A seguir vinham
os legionários, sobrecarregados com armaduras e todo o material pessoal que transportavam. Os capacetes vinham pendurados nos cintos, e os homens usavam leves lenços de algodão
nas cabeças para se protegerem do impacto direto dos raios solares e para não deixarem o suor dos escalpes escorrer incomodativamente.
A poeira levantada pela longa coluna pairava no ar e servia de pano
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de fundo para as sombras projetadas pelo Sol ainda baixo; Cato e Macro lideravam o diminuto gurpo de oficiais do estado-maior, e viam os homens à sua frente como meros vultos
no meio de uma nuvem alaranjada. Atrás da legião seguia o comboio das bagagens, bem como os vagões onde iam as balistas. Levavam rações para sete dias, e se por acaso os núbios
resolvessem recuar, Cato sabia que não os poderia perseguir até muito longe. O príncipe Talmis não se esqueceria de deixar aos romanos apenas terreno vazio, sem qualquer fonte
de abastecimentos.
O tribuno Júnio fez avançar a sua montada até se ver a par do novo comandante do exército. Manteve-se em silêncio por momentos, até que tossicou.
- O que há, tribuno? - indagou Cato.
- Senhor, estava a tentar perceber os seus planos para a batalha que se avizinha.
- Derrotar o inimigo.
- Sim, senhor, claro. Nem é preciso dizê-lo.
Macro virou-se para observar o tribuno com uma expressão curiosa.
- Portanto, o que mais há a dizer?
Júnio não parecia disposto a desistir tão facilmente, e continuou a dirigir-se a Cato.
- Senhor, com todo o respeito, sou agora o mais antigo tribuno desta legião. No caso de lhe suceder alguma coisa, e ao centurião Macro, o comando ficará nas minhas mãos. Devia
portanto ser conhecedor das suas intenções, para o bem do exército.
Cato avaliou o interlocutor. Tinham passado apenas uns curtos meses desde que Júnio fora nomeado tribuno, mas o jovem já assumia muito maiores responsabilidades do que os
seus pares de outras legiões espalhadas pelo Império. Eram essas as exigências da guerra, admitiu Cato. Era verdade que Júnio era o terceiro na cadeia de comando, teoricamente,
mas apesar de os centuriões terem acabado por aceitar que ele mesmo assumisse o lugar de legado, duvidava muito que aceitassem algum dia ter de obedecer àquele miúdo convencido,
que tinha tanta experiência militar como o mais verde dos recrutas. Cato abanou a cabeça.
- A seu tempo ficarás a saber as minhas intenções, tribuno. Quanto à possibilidade de ver o comando deste exército cair-te no lombo, o meu conselho é que tenhas cuidado com
aquilo que desejas. Conheces com certeza o ditado?
- Sim, senhor. Mas tenho de estar preparado, para o caso de alguma infelicidade lhe suceder, bem como ao Macro.
- Infelicidade? Aí está um belo eufemismo. - Cato riu secamente.
- Júnio, aprende tudo o que puderes. Escuta os veteranos e aproveita a
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sua experiência. Nessa altura poderás começar a pensar em comandos. Por agora, pensa nisto como um estágio. Nada mais. Não estás pronto para tamanha responsabilidade. Se eu
tombar, será o Macro a assumir o comando. Se também ele cair, outro homem terá de tomar o comando, não tu. Apesar dos regulamentos.
- Oh... - Uma expressão de amargo desapontamento toldou o rosto do tribuno. - Senhor, tudo o que almejo é servir Roma. Com toda a devoção de que for capaz.
- Devoção? - Foi a vez de Macro soltar uma risada. - Isto é o exército, miúdo, não é nenhum culto religioso. Significa muito mais do que uns rituais, umas cerimónias e muita
conversa fiada. Aqui não andamos a brincar. Para nós é viver ou morrer, e isso quer dizer que temos de ter a certeza que os homens são liderados por alguém que saiba o que
está a fazer. Percebes?
Júnio olhou com irritação para Macro, mas por fim engoliu em seco e assentiu com um gesto de cabeça. Com um último aceno aos seus dois superiores, fez estacar o cavalo e deixou-se
alcançar pelo resto do contingente de oficiais montados.
- Empenhado, não lhe parece? - Cato sorriu. - Faz-me lembrar de mim quando me juntei à legião.
- Oh não, tu eras muito mais enfezado do que ele.
Os olhos de Cato semicerraram-se.
- Enfezado?
- Vá lá, sabes muito bem que sim. Um trinca-espinhas, e ainda por cima desajeitado. E ainda assim lá sobreviveste e mais, querias logo comandar homens em combate, só porque
tinhas lido umas coisas sobre história militar. - Macro sorriu perante a memória. - Foi o exército que fez de ti um homem, e sabe-lo perfeitamente.
Cato olhou em redor para ter a certeza que os outros oficiais não tinham ouvido aquela avaliação tão franca dos seus primeiros dias ao serviço de Roma, e depois voltou-se
de novo para Macro.
- É verdade que a princípio eu talvez não fosse o material ideal para a Segunda Legião... Mas aprendi depressa. Claro que tive a sorte de ter um excelente instrutor.
- Lá isso é verdade - concordou Macro, sem falsas modéstias.
Cato acenou na direção dos outros.
- A seu tempo, o Júnio há de tornar-se também um excelente oficial. Melhor ainda do que eu, uma vez que vem de uma família senatorial. Talvez devêssemos ter mais cuidado na
forma como nos dirigimos a ele - considerou Cato. - Um dia será nosso superior e talvez não se sinta inclinado a esquecer momentos de demasiada familiaridade.
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- Se este diálogo ainda lhe pesar no coração daqui a uns anos, muito francamente não me parece que ele mereça subir tão alto. Cato, já vi muitos generais chegarem e partirem,
e os mais mesquinhos nunca duraram muito. É uma das vantagens de ter um Imperador, acho eu. - Coçou a orelha. - O Cláudio pode demitir qualquer homem que não esteja à altura
do posto para que foi designado. Pode permitir-se escolher apenas os melhores. O Imperador não tem de se preocupar com o satisfazer de fações políticas, nem de agir de acordo
com as expectativas dos outros.
- Vejam só, quem é que está a mostrar-se inocente? - Cato riu. - Acha mesmo que os imperadores estão acima da política? Porque é que acha que os maiores exércitos são sempre
entregues a gente próxima da família imperial? E porque é que os imperadores vigiam atentamente os seus generais? Lembre-se que foi por isso mesmo que fomos enviados para
o Oriente do Império, para vigiar o governador Longino na Síria. A política não fica de fora dos acampamentos militares. O Imperador Cláudio até percebe isso melhor do que
os seus antecessores. Foi o exército que o colocou no trono, e desde então ele tem feito grandes donativos às legiões, para se certificar de que todos sabem que ele não se
esqueceu do favor. A política... - Cato suspirou. - É algo que temos de suportar ao longo de todas as nossas vidas.
- Um esgoto, portanto - concluiu Macro com um sorriso, a que Cato respondeu na mesma moeda. Seguiram em silêncio até que Cato voltou a falar.
- O Júnio vai acabar por dar um bom oficial, acho eu.
- A ver vamos.
- Duvida dele?
Macro mordeu os lábios.
- Não sei bem. Acho que ele se esforça um bocadito de mais para agradar. Tenta provar o seu valor, mas exagera. E isso pode ser perigoso
- para ele mesmo, mas sobretudo para os homens que um dia comandar.
- Partindo do princípio que sobrevive até lá - lembrou Cato. - Resistir aos próximos dias pode vir a revelar-se um verdadeiro desafio.
O exército fez alto uma hora antes do meio-dia, e os homens dispersaram, largando as trouxas e procurando abrigo onde o encontrassem. Os que não arranjaram lugar viram-se
forçados a improvisar proteções com as capas espetadas na ponta dos dardos. Enquanto o solo em redor assava durante a parte mais quente do dia, os homens tentavam descansar.
Cato e os oficiais repousavam à sombra de umas tamareiras quando surgiu um cavaleiro solitário pela estrada, cruzando toda a coluna e deixando um rasto de poeira. Os poucos
soldados ainda na estrada afastaram-se e contemplaram-no, tentando imaginar o que quereria dizer toda aquela
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correria. O homem refreou o cavalo e desceu da sela pela garupa, e correu para o optio que comandava a guarda do estado-maior para lhe fazer um relatório. O optio mandou-o
passar, e pouco depois ele estava à frente de Cato, em sentido, com o peito a arfar.
- Senhor, peço licença para avisar que o exército núbio foi avistado.
Os outros oficiais agitaram-se e puseram-se de pé, enquanto Cato indagava.
- Onde?
O cavaleiro fez uma estimativa rápida.
- A cerca de doze quilómetros daqui, senhor.
- Estão em movimento?
- Sim, senhor. Os núbios avançam na nossa direção.
- Doze quilómetros? - comentou Macro. - Estão suficientemente perto para travarmos batalha hoje mesmo, senhor.
- Não, hoje não. - Cato olhou para a paisagem circundante. A curta distância por trás das tamareiras, estendia-se uma área de terra arável, que ia desde a margem do rio até
um alinhamento de colinas pedregosas que entrava pelo deserto; a área tinha menos de quilómetro e meio de largura. Apontou-a a Macro e aos outros. - Será aqui que os aguardaremos.
O solo é fácil de trabalhar, podemos estabelecer um acampamento de campanha. Macro, dê imediatamente ordens para os trabalhos avançarem. Quero os nossos homens protegidos
pelas defesas de um fortim antes que os núbios nos alcancem.
- Sim, senhor. - Macro fez a saudação e correu à procura do chefe dos agrimensores e dos seus ajudantes. Pouco depois, os homens puseram-se ao trabalho, conduzindo uma série
de mulas carregadas com estacas e equipamento de medição.
Cato observou-os por instantes e virou-se para os outros oficiais.
- Ponham os vossos homens a trabalhar. Quero-os a começar a construção do acampamento fortificado assim que o perímetro estiver definido e marcado.
A nuvem de pó que tomou conta do horizonte entre o rio e o deserto assinalou a aproximação da hoste núbia, muito antes que o primeiro dos seus homens ficasse à vista do fortim
romano. Os legionários ainda estavam a construir a paliçada e as torres de vigia quando surgiram as primeiras patrulhas núbias, pequenos grupos de homens montados em camelos
que se detiveram antes de entrar em contacto com os piquetes avançados romanos e esperaram que o resto do exército se lhes juntasse. O Sol desceu para o horizonte a ocidente,
banhando a paisagem num tom avermelhado, fazendo realçar as armaduras, o armamento e os estandartes do inimigo
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que marchava na base da nuvem de pó, cada vez mais próxima da posição dos romanos. Os soldados redobraram esforços para concluir as defesas do acampamento. Para lá dos fossos
e da paliçada, tinham escavado pequenas trincheiras alinhadas com as faces do campo, onde tinham espalhado estacas aguçadas. Em cada canto da paliçada tinha sido criada uma
plataforma com folhas de palmeira e terra calcada, onde tinham sido montadas as balistas.
Quando as defesas principais ficaram concluídas, Cato deu ordens para que as patrulhas recuassem, e os cavaleiros auxiliares viraram costas ao inimigo e regressaram para o
acampamento; em seguida, os portões foram cerrados. O exército formou em disposição de combate, para o caso de o príncipe Talmis decidir atacar assim que chegasse junto à
posição romana. Os homens e oficiais esperaram a pé firme a chegada do inimigo. A coluna principal dos núbios começou a dividir-se em três, e depressa a extensão de terra
entre o Nilo e as colinas ficou enxameada de infantaria inimiga, intercalada com colunas de guerreiros montados em cavalos ou camelos.
Cato estava numa das torres a observar, e não lhe passou despercebida a ansiedade com que os soldados na paliçada assistiam à progressão do exército inimigo. Os homens da
Vigésima Segunda e os auxiliares nunca tinham enfrentado uma ameaça daquele género, e a maior parte deles nem sequer tomara alguma vez parte numa batalha. Esperava sinceramente
que o treino e a disciplina fossem suficientes para assegurar que não cederiam quando chegasse o momento de enfrentar os núbios em combate.
- Uma vista impressionante - comentou Macro, ao seu lado. - Mas os números não são tudo neste negócio, não é?
Cato não respondeu, já que estava concentrado na avaliação das densas colunas do inimigo. Na maior parte, pareciam forças com equipamento ligeiro, mas existiam algumas unidades
formadas por soldados que marchavam com garbo e levavam grandes escudos ovais, além de possuírem capacetes e armamento muito variado. Havia também unidades numerosas de homens
que carregavam dardos em profusão. Poucos dos núbios pareciam, estar equipados com arcos, e Cato sentiu algum alívio perante essa certeza. Ouviu-se um som distante, e os núbios
detiveram-se. A nuvem que pairava por cima deles começou lentamente a dirigir-se para o Nilo, empurrada pela brisa da tarde.
- Senhor, o que acha que eles farão agora? - lançou Júnio. - Acha que vão atacar?
- Duvido, tribuno - respondeu Cato. - Estamos numa boa posição, e um ataque a este campo custaria pesadas baixas ao príncipe Talmis. O exército dele é muito numeroso, mas
tem poucos soldados treinados. Se
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falhar o primeiro assalto e perder muitos homens, o espírito das suas tropas sofrerá uma tremenda quebra.
Macro apontou.
- Além. Depressa saberemos quais são as intenções dos núbios.
Cato e Júnio viraram-se e avistaram um grupo de cavaleiros a sair da
massa do exército núbio, seguindo pela estrada poeirenta que acompanhava a margem do Nilo. Aproximaram-se sem pressa, atravessando lentamente o espaço que separava os dois
exércitos.
- Não quero que vejam de perto as nossas defesas - decidiu Cato.
- Macro, peça um esquadrão de cavalaria. Vamos sair ao encontro destes visitantes.
- Sim, senhor. - Macro dirigiu-se à escada e desceu da torre. Cato continuou a observar o grupo que se aproximava e por fim desceu para se juntar à delegação romana. O amigo
segurava-lhe as rédeas de um cavalo. Cato saltou para a sela e ajeitou-se, pegou nas rédeas e tentou ignorar a dor que lhe afligia o ombro.
- Vamos lá ver o que querem eles.
Os legionários no portão virado para o inimigo abriram-no rapidamente, deixando passar Cato e a sua escolta, que seguiram pelo caminho improvisado na seara que ia dar à estrada.
Ali detiveram os cavalos e aguardaram; a escolta formou uma linha por trás dos oficiais, pronta a carregar se para tal recebesse ordem de Cato. Os núbios estavam a apenas
algumas centenas de passos, e mantinham o mesmo ritmo lento. Eram oito, e traziam um estandarte que representava um leão, de goelas abertas num rugido mudo. O líder envergava
um fato largo de seda negra e um turbante que cobria um capacete cónico e quase lhe cobria toda a face, e seguia ligeiramente à frente dos outros homens. Reduziu o andamento
do cavalo para um passo lento ao aproximar-se de Cato, e deteve-o quando já não estava a mais de dez passos. Os olhos escuros avaliaram os romanos e por fim ergueu a mão e
afastou o tecido do rosto.
- Quero falar com o general romano - disse, em grego. - Com o legado Aurélio.
- Aurélio faleceu. Sou eu o comandante deste exército - ripostou Cato.
- Tu? - Por momentos o núbio hesitou, mas depois encolheu os ombros. - Seja isso verdade ou não, não afeta o que tenho para dizer. Portanto, romano, escuta-me. Sou Talmis,
príncipe da Núbia, leão do deserto e comandante do exército que vês à tua frente. - Fez um gesto com o braço para indicar as inúmeras fileiras de homens que ocupavam a paisagem.
- Suportei durante demasiado tempo as interferências romanas nas nossas terras. Chegou o tempo do acerto de contas. Não voltarei a embainhar a
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minha espada até refazer a minha honra, ou até que ela tenha provado o sangue de muitos romanos.
Macro tossiu e fez um gesto casual, indicando a bainha do príncipe e o punho ricamente decorado da espada.
- Hum, se é essa a espada em questão, parece-me digno de nota que ela já esteja embainhada.
- Macro - murmurou Cato por entre os dentes. - Esteja calado!
O príncipe fez avançar a montada, que ergueu os joelhos a cada passo enquanto se aproximava de Macro e quase permitia ao príncipe encostar a sua face à do centurião. Macro
limitou-se a arquear as sobrancelhas, como que querendo saber a que vinha o outro.
- Legado, será este o teu cómico de serviço? Vou gostar de o ver a gargalhar enquanto os meus homens o estiverem a estripar.
- O centurião Macro tem uma tendência para dizer o que lhe vai na mente, mais do que lhe é propício - retorquiu Cato, pouco impressionado. - Porém, ele não fala por Roma.
Eu, sim. Portanto, príncipe, o que me queres dizer?
Talmis continuou a olhar para Macro antes de fungar em desprezo e se virar para Cato.
- Venho oferecer-te os termos da minha paz. Roma cederá à Núbia todo o território a sul de Ombos. Além disso, exijo metade da colheita deste ano de toda a província. E dez
talentos em ouro. - Os olhos do homem semicerraram-se. - Da medida romana, não da egípcia. Estes termos não estão sujeitos a negociação. Se recusares, prosseguirei o avanço
ao longo do Nilo, saquearei as vossas cidades e queimarei todas as searas. Daqui a Alexandria.
Macro soltou uma gargalhada.
- Duvido que Roma to permita. Se chegares a cento e cinquenta quilómetros de Alexandria, o Imperador enviará para o Egito tantas legiões que tu e o teu exército passarão à
história como meras recordações.
O príncipe Talmis encolheu os ombros.
- Romano, a Núbia é muito grande. O bastante para me permitir recuar até onde as tuas legiões morreriam de exaustão ou sede. Roma não me assusta. Então?
- Os teus termos não são aceitáveis - respondeu Cato, com toda a calma. - As negociações terminaram.
Puxou pelas rédeas e fez o cavalo rodopiar, afastando-se a passo. A escolta seguiu-o, não sem lançar olhares preocupados por cima dos ombros.
A princípio o príncipe Talmis manteve-se silencioso, os punhos fechados- de raiva. Por fim espetou um dedo para as costas dos cavaleiros romanos.
- Assim seja! Daqui a poucos dias, os abutres estarão a acabar de limpar
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os vossos ossos! - Empunhou as rédeas, obrigando o cavalo a voltear e esporeou-o, regressando a galope para o seu acampamento, com as vestes a esvoaçarem como se fossem as
asas de um corvo, enquanto os seus seguidores se esforçavam por o acompanhar.
Macro observou-o, antes de fazer o seu cavalo aproximar-se do de Cato.
- Foi uma conversa ríspida. Em que pensas?
Cato respondeu com ar resignado:
- O que mais poderia eu dizer? Não tenho autoridade para aceitar aqueles termos. E mesmo que o fizesse, o Imperador nunca os aceitaria. Portanto, teremos a nossa batalha.
- Quando?
- Amanhã. Ao alvorecer.
O príncipe Talmis e os seus oficiais superiores acabavam de completar os seus planos para a disposição do exército núbio, e entretinham-se com um repasto de carne de ovelha
fortemente condimentada quando a refeição foi interrompida. O capitão da guarda pessoal do príncipe, um guerreiro alto e coberto de cicatrizes, afastou a aba e entrou na tenda
do príncipe. Seguiam-no quatro dos seus homens, rodeando um homem alto que vestia uma túnica andrajosa coberta por uma armadura articulada. A pele e o cabelo estavam pastosos
de suor e poeira, e o príncipe gastou alguns momentos a tentar reconhecer a figura.
- Ajax...
Os oficiais pararam de comer e voltaram-se para apreciar o aspeto do gladiador. As conversas morreram, e um silêncio desconfortável apossou-se da tenda. O príncipe Talmis
limpou a gordura dos dedos com a ponta das suas vestes e recostou-se, afastando a travessa de prata resplandecente onde tinha estado a comer. Cofiou o queixo enquanto contemplava
Ajax.
- É mesmo este o homem que proclamou para que todos ouvíssemos que seria um aliado valioso na luta contra Roma? - inquiriu com sarcasmo na voz. - Pelo aspeto que apresentas,
diria que estiveste envolvido num combate aguerrido. Foi assim?
- Sim, alteza - confirmou Ajax, dobrando o pescoço.
- E concluo que levaste a pior.
- Sim.
- Estou a ver. Diz-me então, conseguiste alcançar o objetivo que te solicitei?
Ajax, apesar de esgotado, empertigou-se, dominando com a sua estatura os guardas pessoais do príncipe que o rodeavam.
- Os meus homens mataram e feriram inúmeros romanos, como nos
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foi solicitado, alteza. Conquistámos um dos seus fortes, liquidámos a guarnição e lançámos-lhe fogo. Ardeu por completo.
- E as nossas baixas?
Ajax hesitou brevemente antes de responder.
- Lamento informar que eu e alguns dos meus seguidores somos tudo o que resta. Os outros foram perdidos.
Os olhos do príncipe Talmis abriram-se desmesuradamente, e os oficiais trocaram olhares ansiosos, à espera de uma explosão de fúria. Os lábios do príncipe tremiam.
- Perdidos? Explica-me lá isso.
- Depois da destruição do forte, os romanos enviaram uma força através do Nilo para enfrentar a minha coluna, alteza. Mantivemos o controlo da nossa margem o máximo de tempo
que pudemos, e depois recuámos para um templo que tinha sido fortificado por ordens minhas. Enfrentámo-los nessa posição.
- Todos menos tu, ao que parece.
- Fiz tudo o que me foi possível. A minha morte não permitiria alterar o resultado do combate. Ter sobrevivido, por outro lado, garante que continuo a ser uma ameaça para
os romanos. O que serve os interesses de todos nós, alteza.
- Como é que escapaste?
- O meu espião conseguiu arranjar forma de eu e mais uns tantos escaparmos.
Talmis assentiu lentamente e manteve-se em silêncio por momentos, antes de responder.
- Custaste-me portanto quinhentos homens. Era assim que planeavas ser-me útil? Tu, os teus homens e o teu espião desiludiram-me - concluiu, num tom de desdém.
- Alteza, matámos inúmeros romanos. E consegui deter o avanço do exército durante dois dias. Conforme os seus desejos.
- Assim foi. Mas não considero a perda de quinhentos dos meus homens um sucesso. De qualquer maneira, agora tenho o inimigo na posição que quero, portanto a utilidade que
tinhas para mim esgotou-se, gladiador.
Os olhos de Ajax estreitaram-se, e ele retorquiu em tom baixo e aparentemente calmo.
- Alteza, o que significam essas palavras?
- Amanhã os romanos serão esmagados, logo não precisarei mais dos teus serviços. Se fosses um dos meus oficiais, a esta hora já teria a tua cabeça por teres perdido desnecessariamente
um número considerável dos meus homens.
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- Alteza, a perda foi inevitável para cumprir as suas ordens.
- Tenho as minhas dúvidas.
- E eu não sou um dos seus oficiais - prosseguiu Ajax. - Sou Ajax, comandante da revolta dos escravos em Creta. Enquanto eu viver, Roma tremerá perante o meu nome - explodiu.
- Se ordenares a minha morte, apenas servirás os interesses de Roma.
- Talvez - admitiu Talmis. - Porém, a tua execução fornecerá aos meus homens um excelente exemplo do preço a pagar quando alguém me desilude.
- Não falhei os objetivos que me foram pedidos.
- Discordo. É bem possível que a tua morte sirva os meus interesses bastante mais do que a continuação dos teus serviços.
Ajax encarou-o com azedume.
- Chamaste-me aliado.
- Um príncipe não tem aliados. Apenas servos e inimigos. E é dele a decisão sobre a forma como trata os seus servidores.
O gladiador cuspiu no chão com desprezo. De imediato, o capitão da guarda virou-se e atingiu-o na têmpora. Em seguida aguardou, de punhos cerrados, desafiando o gladiador
a insultar de novo o seu príncipe. Ajax abanou a cabeça para se tentar livrar da tontura provocada pelo golpe. Olhou para o príncipe e falou em voz baixa.
- Alteza, estás a cometer um erro. Mata-me, e matarás ao mesmo tempo a esperança de todos os escravos que se desejam rebelar contra Roma.
- Silêncio, gladiador! - ordenou o príncipe. - Mais uma palavra e a tua vida acaba. - Cerrou os lábios numa linha fina e cruel, enquanto contemplava o cativo. Os outros homens
na tenda mal se atreviam a mexer-se enquanto aguardavam que o seu senhor prosseguisse. Por fim, o príncipe espetou um dedo e apontou-o ao gladiador. - A decisão sobre o teu
destino está nas minhas mãos. Até pode ser verdade que tenha mais a ganhar em manter-te vivo e permitir que espalhes o teu veneno pelos domínios do Imperador. Vou pensar nessa
possibilidade. Por agora, és meu prisioneiro. Tenho de ponderar bem o destino que te vou dar. - Estalou os dedos, chamando o capitão da guarda. - Leva daqui este escravo.
Mantém-no sob apertada vigilância, num sítio seguro. Não quero que seja molestado. Muito menos que escape. Se tal acontecer, responderás com a tua própria vida. Vai.
O capitão da guarda fez uma profunda vénia e deu indicações aos seus homens para escoltarem Ajax para fora da tenda. Seguiu-os, ainda dobrado e sem virar as costas ao príncipe,
até voltar a colocar a aba sobre a entrada da tenda.
O príncipe Talmis olhou em redor, para os seus oficiais. Nenhum
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manifestou vontade de lhe enfrentar o olhar. Sorriu com uma satisfação fria perante tal sinal de submissão e pegou no cálice de vinho.
- Senhores, um brinde! - Ergueu-o, e de imediato os outros homens se precipitaram para os respetivos cálices, imitando o seu senhor.
- Morte a Roma! - pronunciou Talmis.
Os oficiais ecoaram as suas palavras num grito uníssono; lá fora, os soldados que ouviram o brinde sorriram e contemplaram as fogueiras do campo romano, tão pouco numerosas
em comparação com os fogos do exército núbio que se espalhavam pela paisagem na escuridão.
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Na hora que antecedia o alvorecer, Cato enviou a cavalaria auxiliar para flagelar os postos avançados do inimigo, de forma a distrair-lhe a atenção enquanto o resto do exército
romano deixava o acampamento de campanha. À tímida luz das estrelas, passaram pelas linhas defensivas e tomaram as suas posições na faixa de terreno aberto, a curta distância
do ponto onde a zona entre as colinas e o denso maciço de palmeiras e caniçais que bordejavam o rio era mais estreita. A pouco mais de um quilómetro dali, as fogueiras do
inimigo iam esmorecendo, semeando a paisagem ainda envolta nas trevas de manchas de brasas avermelhadas e moribundas.
No centro da linha romana estava a Primeira Coorte de Macro, com quatro fileiras de profundidade. De ambos os lados, mas ligeiramente atrás, ficavam as duas coortes de infantaria
auxiliar, e mais atrás outras duas coortes de legionários. Por trás deste crescente orientado para o inimigo ficava uma linha esparsa de arqueiros, preparados para soltar
os seus projéteis sobre as fileiras dos seus camaradas assim que a batalha se iniciasse. Em reserva estava uma única coorte de legionários, enquanto as outras seis aguardavam
em colunas densas nas duas pontas de trás do crescente, como que a proteger os flancos do exército. As balistas tinham sido trazidas para a frente, formando duas baterias
capazes de varrer o terreno à frente dos esquadrões de cavalaria.
Assim que a infantaria ficou em posição, Cato deu ordens para que as duas coortes de cavalaria regressassem, e tomassem posição nos flancos do dispositivo. Na habitual confusão
dos combates de cavalaria, com correrias para a frente e para trás, depressa ficariam em clara desvantagem perante os muito superiores números inimigos, em cavalos e camelos.
Assim, tinham ordens estritas para não se envolverem em qualquer carga, antes para manterem a posição e protegerem os flancos da linha romana.
A medida que o céu começava a clarear sobre a escura massa das colinas a leste, Cato avançou para ocupar a sua posição por trás da Primeira Coorte. Macro já tinha desmontado
e enviado o seu cavalo para a retaguarda. Cato reconheceu o corpulento vulto do amigo, de pé a curta distância
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do estandarte da coorte. Macro virou-se ao escutar o som de cascos e ergueu uma mão em saudação.
- Centurião, os seus homens estão prontos? - indagou Cato num tom bem alto, para que todos o ouvissem.
- Mais que prontos, senhor - retorquiu Macro, aparentemente despreocupado. - Cheinhos de vontade de mostrar àquela gente uma ou duas coisas!
- Ótimo! Quando o dia terminar, estou certo de que todos os estandartes desta legião terão novas condecorações! - Cato refreou o cavalo, lançou uma perna sobre a sela e desmontou,
entregando as rédeas a Júnio. Deu uma palmada no ombro de Macro e sussurrou-lhe: - Uma palavrinha a sós.
Quando estavam fora do alcance de ouvidos indiscretos, Cato relembrou o amigo.
- Hoje tudo depende de a Primeira Coorte aguentar a posição e o resto da legião manobrar no momento certo. Percebido?
Macro virou-se para o jovem, mal conseguindo vislumbrar na escuridão ainda reinante a expressão de tensão no rosto dele. Cato tinha-lhe dado todas as indicações sobre o plano
de batalha na noite anterior, numa reunião com todos os oficiais, e tinha-o relembrado de todos os detalhes mesmo antes de deixarem o campo. Mas qualquer traço de irritação
que Macro pudesse ter sentido por estar de novo a ser lembrado do seu dever desapareceu quando o veterano reconheceu a ansiedade que dilacerava o seu jovem companheiro de
tantas batalhas. Macro estacou e encarou o seu superior hierárquico.
- Senhor, sei o que há a fazer. Os meus homens sabem-no também. Não se preocupe quanto a isso. O plano está em marcha. Tudo o que nos resta fazer é aguardar pelo inimigo.
- E quando os núbios avançarem?
- Os homens cumprirão o seu dever. Foi para isso que treinaram. Quando o combate começar, será o treino que lhes comandará as ações.
Cato olhou para o amigo. Apesar da confiança de Macro, não conseguia suprimir o receio quanto ao resultado da batalha próxima. Não era por si mesmo que temia. Não, corrigiu-se,
havia realmente o eterno medo de uma ferida que o incapacitasse, de uma longa agonia à espera da morte por entre a carnificina do campo de batalha. Ou pior, de uma mutilação
que lhe permitisse sobreviver apenas para se tornar um ridículo objeto de piedade. Eram possibilidades que o atormentavam antes de qualquer combate, mas Cato sempre se forçara
a carregar junto dos seus camaradas, ou a manter uma posição, apesar delas, pela simples razão de que havia algo que temia ainda mais: a vergonha. Esse facto sempre fora um
peso, uma sombra, na
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sua amizade com Macro, reconhecia-o; nunca se arriscara a trair a confiança que o amigo lhe demonstrava. Mas agora, que era ele o responsável pelas vidas de milhares de homens,
o peso tinha aumentado. Era para ele, Cato, que Macro e os outros homens olhavam, esperando que os conduzisse à vitória. Ou que morresse ao seu lado.
Cato não se considerava particularmente corajoso. Já sentia um frio no estômago, a barriga a andar às voltas, o suor frio a escorrer-lhe pela espinha. Questionava-se porque
ainda não se habituara àquilo, depois de tantos anos a combater. O que havia nele que lhe corroía o espírito, que lhe projetava na mente terríveis imagens de batalhas de antanho
e vívidas cenas imaginadas mas não menos medonhas? Parecia-lhe que existiam dois lados no seu ser, entrelaçados numa luta constante. O Cato que ele queria ser - corajoso,
audaz e respeitado, impermeável à dúvida
- e o outro, mais real - temeroso, ansioso, e tremendamente sensível à opinião que os outros tinham dele. E este, por real que fosse, nada mais conseguiria do que fingir que
era o primeiro, conseguindo o aplauso do momento antes de se retirar para os confins esquálidos da sua verdadeira natureza. Estes pensamentos levaram-no à beira da náusea,
e só quando Macro limpou a garganta e recomeçou a falar, é que a sua atenção regressou ao mundo real.
- Este teu plano...
- Sim?
- Parece-me um tanto estranho. Importas-te que queira saber donde é que ele saiu?
- A ideia não é minha - admitiu Cato. - Lembrei-me de algo que tinha lido do Lívio.
- O historiador?
- Precisamente.
Macro coçou a testa.
- Hum, portanto achas que estamos a travar de novo uma velha batalha? Algo da História. Que encontraste num livro.
- Mais ou menos. A situação é similar, sob vários aspetos. Uma força muito inferior em termos numéricos que enfrenta e esmaga um inimigo - explicou Cato. - Suponho que conhece
a batalha de Canas?
- Sim, obviamente - retorquiu Macro pacientemente. - Mas, se bem me lembro, não correu lá muito bem para o nosso lado.
Antes que Cato pudesse responder, ouviu-se uma solitária nota soprada num corno a sul. O som foi repetido por outros cornos e depressa o primeiro dos tambores inimigos se
juntou ao alarido. Uma luz azulada espalhava-se pelo ar, enquanto sobre a superfície do Nilo se avistava a mais ténue das neblinas, como se fosse um véu de seda.
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Macro contemplou a hoste núbia que começava a movimentar-se e lançou uma indagação sem alvo.
- Veremos então se o príncipe Talmis se atreve a oferecer-nos uma batalha nos nossos próprios termos. - Lançou uma olhadela a Cato. - Esperemos que ele nunca tenha lido Lívio,
hein?
Cato não respondeu; deixou-se estar de pé, hirto, deixando o olhar espraiar-se sobre os seus homens, até ao campo inimigo. Não levou muito tempo a localizar a densa massa
de homens e cavalos que se formava em frente às linhas romanas. O som dos cornos, tambores e címbalos cresceu, e o exército núbio pôs-se em movimento, deixando o campo e bloqueando
a vista para as inúmeras fogueiras que eram deixadas para trás.
- Ao que parece, morderam o isco - comentou Cato, denunciando o alívio que sentia com um curto movimento da cabeça. - O primeiro ponto é nosso, portanto. Bem, o melhor será
regressar ao posto de comando. - Virou-se e lançou um sorriso. - Não se preocupe, não me preparo para lhe relembrar o plano.
- Como se eu me pudesse esquecer. - Macro bateu no próprio capacete. - O crânio pode ser duro como carvalho, mas o cérebro ainda trabalha.
Apertaram os braços um do outro, e Cato dirigiu-se rapidamente para o cavalo e trepou para a sela. Acenou mais uma vez a Macro, colocou o animal a trote e orientou-o para
o grupo de oficiais montados que aguardava ao pé da coorte de reserva. Macro observou-o por momentos, e depois dedicou-se à familiar rotina de verificar cada nó e cada fecho
na armadura e nas armas. Satisfeito por tudo estar no seu lugar, passou a vareta a um dos enfermeiros que passava ali perto com um saco cheio de ligaduras para as futuras
feridas.
- Guarda-me aí a vareta - indicou. - Depois da batalha, hei de querê-la de volta. Se lhe acontecer alguma coisa, garanto que hei de usar o que sobrar para te dar cabo do canastro.
O outro pegou na vareta com evidente relutância e seguiu caminho, segurando a peça de madeira à distância, como se o fosse morder a qualquer momento. Macro riu perante tal
visão; depois respirou fundo e dirigiu-se ao optio da Primeira Coorte, que tinha ficado com o seu escudo. Enfiou o braço pela pega e ergueu-o. Abriu caminho por entre duas
centúrias e avançou uns dez passos para a frente da linha romana. Olhou em frente, deixando o olhar percorrer lentamente todo o dispositivo das forças inimigas que contra
eles avançavam. A poeira levantada pelos núbios já começava a turvar o ar por cima deles. Macro virou-lhes as costas e dedicou-se a examinar os homens da Primeira Coorte.
Todos tinham sido escolhidos individualmente, os melhores da legião, e seriam a primeira unidade de
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infantaria a entrar em contacto com o inimigo. Macro respirou fundo e começou a falar-lhes.
- É precisamente neste momento que muitos de vocês estarão a lamentar a decisão de seguir a carreira militar.
O comentário provocou alguns sorrisos tensos nos homens que via com maior clareza à pálida luz da alvorada. Alguns chegaram a soltar risadas. Mas alguns, reparou, mantiveram
expressões fechadas.
- A esses, prometo que tomarei em conta os vossos pedidos de passagem à disponibilidade, assim que sair de serviço. Para ser honesto, devo dizer-vos que, ao fim do dia, depois
de travada a vossa primeira verdadeira batalha, com uns copos de vinho no estômago, alguns artigos de saque bem guardados nos vossos sacos, vocês vão sentir-se uns verdadeiros
heróis... E porra, a ideia de deixar as legiões será a última coisa que vos passará pela cabeça! - Fez uma pausa. - Vocês escolheram juntar-se aos Chacais. A legião deu-vos
o melhor treino que um soldado pode ter. Têm o melhor equipamento que é possível pôr à disposição de um exército; e agora, graças aos deuses, têm finalmente a oportunidade
de pôr em prática tudo aquilo que aprenderam. Homens, aproveitem este momento! Este é o maior teste das vossas vidas. Hoje ficarão a saber o que significa realmente ser um
legionário, e tomarão o vosso lugar nas fileiras da melhor irmandade de guerreiros deste mundo! - Esticou o polegar na direção do inimigo. - Aqueles ali acham que nos vão
comer ao pequeno-almoço. Sabem que são muitos mais que nós, e até imaginam que aquela música de merda nos vai fazer tremer os joelhos. - Macro torceu os lábios em desprezo.
Antes de prosseguir, endureceu o tom de voz. - Digo-vos eu agora, não há nada mais perigoso que uma espada romana empunhada por um homem bem treinado na sua utilização. -
Empunhou a espada e ergueu-a ao alto. - Portanto, mostrem-lhes quem estão a enfrentar. Mostrem-lhes quem os vai levar à destruição. Mostrem-lhes, para que os poucos que vão
sobreviver e fugir deste campo de batalha quando o dia for nosso possam espalhar a palavra: foram legionários romanos que nos derrotaram! Vivam os Chacais! - gritou Macro,
golpeando o ar com o gládio. - Vivam os Chacais!
Os homens repetiram o grito, a maior parte com genuíno entusiasmo, os outros limitando-se a princípio a imitá-los, até que toda a excitação do momento os contagiou e se deixaram
levar pela febre da batalha próxima, sentindo os corações a acelerar e as almas a crescer.
O entusiasmo espalhou-se pelo resto da legião, e até as coortes auxiliares da Vigésima Segunda se juntaram ao coro de gritos. O urro coletivo desafiou em intensidade o ruído
dos instrumentos e os brados da hoste que marchava contra eles. Macro voltou a olhar brevemente para os núbios e
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abriu caminho por entre as fileiras, juntando-se ao grupo que defendia as cores da Coorte.
Cato deitou-lhe um olhar, e sentiu-se reconfortado pela ideia de que podia confiar em Macro para inspirar os homens que conduzia e para lhes dar um exemplo de valentia. Era
vital que a Primeira Coorte não vergasse perante o peso do ataque inimigo. A vitória dependia de a manobra decisiva ser feita no momento exato. Não apenas a vitória, considerou,
mas a sua própria sobrevivência e a da província do Egito. O horizonte à esquerda estava agora tingido de laranja, já que o Sol se preparava para irromper na paisagem e anunciar
o nascimento de um novo dia. Para muitos dos homens de ambos os lados da contenda, seria o último de vida, e Cato sentiu um tremor frio a percorrer-lhe o escalpe; contrapôs-lhe
uma prece para que aquela não fosse uma premonição da sua própria morte. A imagem de Júlia preencheu-lhe o pensamento por um instante, e sentiu um profundo desejo por ela,
como não experimentava desde a última vez que tocara a sua sedosa pele.
- Senhor! - gritou uma voz, e Cato virou-se, avistando um tribuno a apontar para o inimigo, já a menos de quatrocentos metros de distância.
- Já devem estar ao alcance das balistas. Senhor, acha que dê ordens para tentarem atingi-los?
Cato preparava-se para lhe dar uma reprimenda pela presunção quando reparou que o homem dissera a verdade. Uma unidade de cameleiros, armados com dardos, tinha-se adiantado
ao resto do exército núbio e avançava contra a cavalaria disposta à esquerda da linha romana. Calculou a distância rapidamente e anuiu.
- Muito bem, diz ao comandante da bateria que lance alguns projéteis para avaliar o alcance, antes de começar a barragem. Não vale a pena desperdiçar munições.
O tribuno fez uma saudação rápida e galopou para junto do comandante da bateria, um centurião dos auxiliares que Cato nomeara para liderar as balistas instaladas naquele flanco.
Pouco depois ouviu o inconfundível som dos braços da balista a serem libertados e a chocarem contra os amortecedores. Apesar de ainda não haver muita luz, Cato conseguiu seguir
a trajetória do projétil com facilidade; descreveu um arco pouco pronunciado e aterrou com uma explosão de poeira e cascalho mesmo à frente dos camelos mais adiantados, fazendo
um deles estacar de repente. O comandante da bateria deu uma ordem ao resto das suas equipagens, que se puseram ao trabalho, puxando atrás os braços das armas com as manivelas
e colocando os projéteis com pontas de ferro nos canais centrais dos engenhos. Quando todos ficaram prontos, o centurião ergueu o braço e avisou.
- Preparar para disparar, ao meu sinal!
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Os homens aguardaram, tensos, um em cada balista, a segurar a alavanca que libertaria a tensão acumulada nas cordas torcidas. O centurião esperou até ter a certeza que as
fileiras da frente dos cameleiros núbios já tinham passado pelo ponto onde o primeiro projétil atingira o solo. Tomado pela impaciência, Cato mal podia esperar enquanto o
centurião mantinha o braço no ar e permitia a contínua aproximação do inimigo.
- Despacha-te lá, homem - murmurou, exasperado.
- Soltar! - gritou de súbito o centurião, deixando cair o braço. Os estalos saltaram das balistas quase em uníssono, como se alguém partisse um molho de paus. Trinta projéteis
assobiaram pelo ar dirigindo-se à unidade de cameleiros núbios, que deviam ser à volta de quinhentos ou seiscentos, calculou Cato. O centurião tinha calculado perfeitamente
o momento da rajada, e nem um dos projéteis caiu antes de alcançar a formação; as pontas metálicas rasgaram as peles pardas dos camelos e as vestes dos homens que os montavam.
Os animais atingidos tombaram sem remissão quando as suas finas pernas cederam, obrigando os que os seguiam a mudar repentinamente de direção, chocando com os flancos dos
que os ladeavam, perturbando a carga contra os romanos. Por momentos o avanço pareceu perder ímpeto, mas enquanto os romanos rearmavam os engenhos, os árabes ladearam as baixas
e retomaram velocidade. A segunda rajada partiu de trás das linhas romanas e atingiu o alvo, matando e ferindo mais alguns. Vários cameleiros resolveram que era pouco prudente
liderar a carga e deixaram-se ficar ligeiramente para trás, tentando sem dúvida escapar à atenção das equipagens da artilharia romana. A terceira e depois a quarta rajadas
detiveram por completo os inimigos, que deixaram a confusão instalar-se, volteando enquanto os projéteis caíam entre eles; a quinta quebrou-lhes definitivamente o entusiasmo.
O comandante da unidade mudou de direção e dirigiu-se para o flanco, acenando aos seus homens para o seguirem.
Uma aclamação ergueu-se das linhas romanas, e alguns dos homens não resistiram a erguer os dardos e espadas ao alto. Em termos da escala que a batalha próxima ia alcançar,
era um dado quase sem significado, notou Cato, mas ainda assim apreciou o entusiasmo dos homens. Era excelente para o moral romano, e quebrava algum do espírito inimigo. Mas
enquanto o coração sentia aquele momento caloroso, Cato reparou numa nova e muito maior ameaça. A poeira nos flancos da linha inimiga adensava-se, e foi nesse momento que
viu as massas de cavaleiros inimigos a estugar o passo para um trote enquanto se dirigiam contra as coortes romanas de cavalaria, que ladeavam a infantaria. Ia ser o primeiro
verdadeiro teste daquele dia, percebeu. Se os seus homens não conseguissem aguentar a carga núbia, o inimigo conseguiria cercar a legião e os auxiliares, e atacar pela retaguarda.
Se tal sucedesse, Cato e os seus homens seriam completamente
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aniquilados. Pegou nas rédeas e fez sinal aos seus oficiais para que o seguissem enquanto percorria as traseiras das linhas romanas, até junto do comandante da cavalaria
síria, colocada no flanco esquerdo.
O prefeito Herófilo acenou uma saudação quando notou que o comandante do exército se aproximava.
- Os teus homens vão entrar em ação daqui a pouco. - Cato apontou para a massa escura de cavaleiros que se aproximava, o ruído dos cascos a sobrepor-se nitidamente à cacofonia
dos instrumentos núbios. - Estão prontos para cumprir o vosso dever?
Era uma pergunta de retórica, mas deu ao prefeito a oportunidade de falar por todos os seus homens.
- Senhor, os rapazes serão firmes como uma rocha. Pode ter a certeza.
- Sei-o bem. Se não te importares, vou ficar aqui convosco um bocado, e ver como lutam os teus homens.
Herófilo baixou a cabeça.
- Senhor, será uma honra.
Os dois oficiais viraram-se para observar o inimigo. Cato tentou perceber quantos seriam, uma vez que a poeira levantada pelos da frente obscurecia a visão do conjunto.
- Devem ser milhares - comentou um dos decuriões.
- Pouco barulho! - lançou o prefeito, irritado.
O inimigo avançou até uns oitocentos metros de distância, e Cato escutou o clack-clack-clack das manivelas das balistas, sinal de que os homens se preparavam para alvejar
a cavalaria núbia. Alguns dos cavaleiros romanos, distraídos pelo espetáculo da força inimiga, permitiram que as suas montadas saíssem da posição designada, até que Herófilo
levou a mão à boca e berrou.
- Porra, toca a manter a linha! Decuriões! Anotem o nome de qualquer homem que não consiga controlar o seu cavalo!
O som de cascos a martelar o solo encheu o ar, e Cato começou a sentir a vibração do chão por baixo do seu cavalo. À direita ouviu o oficial que comandava os arqueiros dizer
aos seus homens para se prepararem. Houve um último momento de calma que envolveu o flanco esquerdo da linha romana quando todos se prepararam para a ação e para tentar aguentar
a posição. Nesse momento, o Sol ergueu-se finalmente acima das colinas a oriente, e os seus raios inundaram o campo de batalha, fazendo rebrilhar como fogo armaduras polidas
e espadas desembainhadas.
A luminosidade nascente foi subitamente rasgada pelas sombrias hastes dos projéteis lançados pelas balistas, um momento antes de os familiares estalidos chegarem aos ouvidos
de Cato. Observou o impacto, e reparou num cavaleiro arrancado da montada e empalado contra o solo. Outros
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homens e animais tombaram, mas foram engolidos pelas vagas de núbios que continuavam a progredir. Mais projéteis atingiram a massa humana, e os arqueiros juntaram-se à barragem,
lançando as flechas para o ar numa trajetória muito mais pronunciada. Dúzias de núbios foram atingidos, mas o facto parecia não provocar qualquer redução nos seus números
ou quebrar o ímpeto da carga.
Cato empunhou a espada, e os oficiais imitaram-no. Herófilo meteu a mão esquerda pela pega do escudo e segurou bem nas rédeas enquanto gritava ordens aos seus homens, a voz
esganiçada pelo esforço de se fazer ouvir acima do ensurdecedor ruído da carga inimiga.
- Cerrem fileiras! Escudos à frente! Aprontem as lanças e preparem-se para o embate!
Um relampejar indicou que as pontas das lanças tinham sido orientadas para baixo, para receber os núbios. Os cavaleiros auxiliares aperraram os escudos, tentando proteger
a maior parte dos seus corpos. Alguns dos cavalos agitaram-se, nervosos, até que os seus cavaleiros os sossegaram com palavras ou ligeiros movimentos das pernas. Os inimigos
já estavam apenas a cerca de cem passos, e Cato já conseguia distinguir pormenores. Os animais corriam com os corpos em plena extensão. A formação tinha perdido coesão por
causa da elevada velocidade e pela perda dos que tinham sido atingidos por projéteis ou flechas. A barragem continuava, mas para evitar o risco de atingir as próprias linhas,
os projéteis abatiam-se apenas sobre os núbios que ocupavam as últimas fileiras da massa atacante.
- Aqui vêm eles! - berrou Herófilo, de olhos arregalados.
No momento seguinte, os primeiros elementos inimigos atingiram a linha romana. Os cavalos recusaram-se de repente a avançar, ao depararem-se com a linha de homens montados
e as letais pontas das suas lanças, e o ímpeto da carga quebrou-se numa tremenda confusão ao longo da linha. O prefeito e os seus oficiais fizeram avançar as montadas, juntando-se
aos homens no combate, seguidos pelo porta-estandarte da coorte, que mantinha o símbolo bem elevado para que todos o vissem. Cato avançou até ficar atrás da segunda fileira
de cavaleiros romanos. A sua frente estendia-se um agitado mar de lâminas a refulgir, membros em movimento, as crinas dos cavalos a esvoaçar junto às orelhas cujas formas
lembravam adagas, tudo acompanhado pelo clamor do choque das armas, e pelos gritos de fúria e dor, além do resfolegar e relinchar aflito dos aterrorizados animais, alguns
já feridos.
- Não vamos conseguir segurá-los - disse Júnio. - Não vamos aguentar.
- Temos de o conseguir - retorquiu Cato, muito claramente. - Se não, morremos todos.
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Mas enquanto falava, mais e mais inimigos se amontoavam, pressionando sem cessar e obrigando a linha romana a recuar.
- Sigam-me! - ordenou Cato, incitando o cavalo. Juntou-se à refrega, pelo meio dos soldados. Estes olharam-no, surpresos, antes de se voltarem a concentrar no inimigo. Cato
ergueu a espada e segurou as rédeas com toda a força na mão esquerda. Tinha perfeita consciência de que não possuía um escudo, mas era tarde de mais para se preocupar com
isso. Estava já envolvido no combate, e tinha de se manter junto aos homens; se recuasse naquele momento, daria ideia de ser um cobarde. Reparou que Júnio lutava à direita
para se manter a par dele, mas um outro cavaleiro interpôs-se, afastando o tribuno e impedindo-o de manter a cobertura ao flanco exposto de Cato.
Abriu-se uma brecha entre dois auxiliares mesmo à sua frente, e Cato fez avançar o cavalo, ocupando-a e enfrentando o mais próximo dos núbios, um tipo esguio com uma face
cor de ébano, cortada pelo branco brilhante dos dentes que arreganhou. Avistou Cato e incitou o cavalo, enquanto levantava uma pesada espada curva acima da cabeça. Cato ergueu
o braço com a espada para bloquear o golpe, e a espada do outro deslizou, morrendo o golpe contra o escudo do auxiliar que seguia à direita de Cato. O homem virou-se na sela
e dirigiu a lança que empunhava contra o núbio, atingindo-o no peito. As dobras da sua vestimenta, bem como a espécie de armadura que usava por baixo delas, impediram a ponta
de lhe rasgar a pele, mas o impacto quase o fez cair da sela. Cato aproveitou o momento de desequilíbrio do outro para lhe atacar o braço, rasgando-lhe a articulação do cotovelo.
A mão do homem entrou em espasmos e deixou cair a espada, que tombou por entre os flancos dos cavalos e se perdeu de vista no solo. O núbio urrou de dor enquanto recuperava
a posição sobre a sela e pegava nas rédeas, tentando escapar. Conseguiu fazer o cavalo rodar, mas ficou preso nessa posição entre as linhas de combatentes, o que o deixou
exposto a uma segunda estocada de lança, que lhe penetrou o flanco por baixo do braço, cravando-se profundamente. O auxiliar responsável pelo golpe deu um puxão para recuperar
a arma, o que provocou uma torrente de sangue, e o núbio enfraquecido acabou por cair por entre a poeira e os cascos que se agitavam.
Cato aproveitou para olhar em redor, e viu Júnio a despachar um inimigo com um golpe selvagem à cabeça. A linha parecia ter deixado de ceder terreno, e o facto de os romanos
possuírem melhor equipamento dava-lhes vantagem nos duelos individuais. Além disso, o ímpeto do inimigo parecia ter-se esgotado. Tinham sido detidos e combatidos passo a passo,
e era agora a sua vez de cederem. A razão para tal tornou-se evidente. Sobre as cabeças dos homens à sua frente, Cato avistou a chuva de
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flechas romanas que se abatia ainda sobre a massa de cavaleiros inimigos ali amontoados. Os núbios tentavam desesperadamente esconder-se por trás dos pequenos escudos redondos
de pele, tudo o que a maior parte empunhava, mas que não constituíam proteção adequada contra as pontas de ferro dos projéteis. Vários homens e animais eram atingidos a cada
rajada, e os cavalos feridos empinavam-se perante a dor recebida, tornando-se impossíveis de controlar.
- Empurrem-nos! - instou Cato, fazendo avançar a montada, encostando-se ao cavalo agora sem cavaleiro que tinha pela frente e fazendo-o mexer-se. Um núbio passou-lhe à frente,
mas fora do alcance da espada, e Cato atingiu apenas a montada do homem. O cavalo soltou um relincho de dor e deu um coice, quase acertando na perna de Cato, mas atingindo
ao invés o flanco do seu cavalo, com tanta força que Cato ouviu nitidamente uma costela a estalar por baixo da carne. Os dois animais empinaram-se repentinamente, e o núbio
foi atirado contra Cato; o jovem tinha lançado o peso para a frente e agarrado ferozmente as rédeas para evitar ser cuspido. As mãos agitadas do outro apanharam a túnica de
Cato acima do joelho, e os dedos fecharam-se sobre ela. Cato sentiu-se puxado para o lado, e a terrível possibilidade de cair para o solo e ser pisoteado invadiu-lhe a mente.
Amaldiçoou o outro por entre os dentes e tentou cortar-lhe a mão com a espada. Mas não tinha espaço suficiente para desferir uma cutilada, e o gume limitou-se a cravar-se
na carne do núbio, sem lhe decepar a mão. Cato voltou a tentar, pleno de desespero, fazendo um movimento para serrar os ossos do inimigo, dado que não dispunha de espaço para
outra alternativa, e o núbio gritou e acabou por lhe largar a túnica, caindo para baixo do cavalo de Cato, onde os seus gritos foram rapidamente abafados.
Ao levantar o olhar através da poeira, Cato viu que as últimas fileiras da cavalaria núbia recuavam, tentando escapar às flechas que continuavam a chover sobre elas. O medo
espalhou-se rapidamente pelo inimigo e, quando os últimos fizeram rodar os cavalos e se afastaram a galope, Cato passou o olhar pela linha romana. Por momentos, os auxiliares
ficaram a ver os núbios retirar em silêncio, ainda surpreendidos e com o sangue a correr a toda a força pelas veias, sem compreender que de facto tinham batido o inimigo.
Então o prefeito Herófilo ergueu a sua ensanguentada lâmina no ar e soltou um brado triunfal, que os seus homens ecoaram de imediato, enquanto continuavam a gozar a fuga dos
oponentes. No solo havia corpos de homens e cavalos, alguns ainda vivos, por entre as inúmeras hastes de flechas ali cravadas.
A medida que os gritos de vitória começavam a amainar, Cato tomava consciência dos sons da batalha que ainda se travava no flanco oposto, onde o inimigo voltara a carregar,
num esforço de romper a resistência da
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cavalaria romana. Esforçou a vista para tentar apreender os detalhes da situação. A cavalaria alexandrina parecia estar a aguentar-se, e os arqueiros e as balistas no flanco
esquerdo também desempenhavam bem o seu papel, provocando inúmeras baixas aos núbios.
Embainhou a espada e levou o cavalo a passo até junto de Herófilo.
- Excelente trabalho! Os teus homens estiveram realmente à altura. Forma-os de novo e prepara-os para a próxima carga.
- Sim, senhor!
Cato fez sinal a Júnio e aos outros e regressou a trote ao centro da linha. Fez uma estimativa rápida das perdas sofridas pela coorte. Menos de um décimo da cavalaria no primeiro
embate, mas os núbios regressariam à carga com toda a certeza. E de cada vez que o fizessem, o poder da coorte montada diminuiria. O exército núbio tinha de ser desbaratado
antes que aquele atrito constante aniquilasse a cavalaria romana.
O pequeno grupo de oficiais seguiu por trás das linhas romanas, regressando ao centro. Macro olhou para trás e acenou, aliviado por verificar que Cato ainda estava vivo, e
voltou a concentrar-se na frente da batalha. Por cima dos capacetes da Primeira Coorte, Cato avistou a massa principal do exército inimigo a dirigir-se diretamente para ali;
a escassas centenas de metros avançavam densos blocos de infantaria, com as unidades mais pesadas ao centro da linha, junto ao estandarte do príncipe Talmis. Cato tentou adivinhar
se Ajax estaria ali, com os últimos sobreviventes dos seus seguidores de Creta. Por momentos desejou ardentemente que o destino lhe permitisse, ou a Macro, a possibilidade
de enfrentar uma última vez o gladiador, para pôr fim ao ódio que os consumia e que os tinha por fim conduzido àquele campo de batalha na orla do Império.
Afastou os pensamentos sobre Ajax e virou-se para um dos ordenanças.
- Diz aos comandantes das duas baterias de balistas para alvejar a infantaria inimiga assim que estiver ao alcance. As mesmas ordens para os arqueiros. Vai.
O homem anuiu em compreensão, fez rodopiar a montada e partiu a galope. Cato voltou a concentrar-se nos núbios. Era impossível avaliar-lhes os números no meio da nuvem de
poeira que se levantava logo atrás das primeiras filas. Se aquele fosse o ataque principal do príncipe Talmis, podia haver mais de vinte mil homens a calcarem o solo enquanto
se dirigiam para a linha romana, ou seja, três por cada um dos soldados ao dispor de Cato. O peso dos números constituía uma certeza de que o pequeno exército romano se veria
obrigado a recuar, mas isso era precisamente o que Cato imaginara que sucederia e que era aliás parte importante do seu plano.
O ritmo constante dos tambores e címbalos inimigos, os sons soprados pelos cornos, tudo aumentava de volume enquanto a horda avançava.
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Quando os centuriões romanos se sentiram satisfeitos com a firmeza das linhas dos seus homens, tomaram as posições que lhes cabiam, à direita das suas unidades, e aguardaram
em silêncio. Os núbios já estavam suficientemente perto para Cato conseguir avistar os oficiais a incentivar os seus homens, mandando-os avançar com movimentos repetidos das
espadas brilhantes. Houve um momento em que se sentiu compelido a dizer qualquer coisa, algo que desse algum alento aos homens que o rodeavam, mas apercebeu-se de que se falasse
naquela altura, não conseguiria evitar trair a ansiedade que lhe tolhia as entranhas. Era preferível manter o silêncio e dar uma aparência de calma, como se estivesse imperturbável
face à aproximação de um verdadeiro mar de inimigos.
As equipagens das balistas nos dois flancos romanos começaram a preparar as suas máquinas, acumulando tensão nos mecanismos de lançamento com ruídos metálicos. Os pesados
projéteis com pontas de ferro, compridos como o braço de um homem, foram carregados, e depois de uma breve pausa, ouviu-se uma ordem.
- Lançar!
O breve coro de estalidos afogou o som dos instrumentos inimigos, e um véu de projéteis pareceu cobrir o solo antes de desaparecer por entre as fileiras da infantaria núbia.
Cato imaginava facilmente os danos que uma rajada daquelas era capaz de provocar em formações densas, mas o inimigo pareceu nem a notar, e prosseguiu no avanço sem hesitação
ou diminuição do fervor com que soltava os seus gritos de guerra. Era como se aquela horda se tivesse limitado a absorver os projéteis, sem perder dúzias e dúzias de homens,
muitos sem dúvida trespassados e lançados contra os seus camaradas pela força dos impactos. Uma segunda rajada caiu sobre o inimigo, e desta vez alguns dos homens que lideravam
a carga foram atingidos, sendo despedaçados aos dois e três de cada vez. Mas depressa os mortos e feridos ficaram escondidos, tragados pela vaga sem fim, que os pisou ou rodeou
e continuou a avançar.
Quando o inimigo estava a pouco mais de duzentos passos, os arqueiros romanos soltaram as primeiras revoadas, que fizeram um som como se o vento se tivesse levantado e abanasse
as ramagens de uma árvore imensa. Os projéteis subiram e precipitaram-se sobre o inimigo, mas de novo este continuou a avançar sem se deter, alterando apenas a posição dos
escudos e preparando as armas para o embate contra os romanos que os aguardavam a pé firme.
- Primeira fila! - gritou Macro. Preparar dardos!
A primeira fila de legionários empunhou os dardos sobre as cabeças e avançou dois passos, tomando posição e esperando a ordem para lançar as armas.
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A cerca de cem passos da linha romana, os núbios interromperam o avanço. Continuaram ainda assim a lançar os seus gritos e desafios, e a agitar as armas para provocar o inimigo.
- Do que é que estão eles agora à espera? - perguntou um dos tribunos. - Porque é que não se lançam ao ataque?
Cato sabia bem porquê, e respirou fundo antes de lançar um aviso.
- Preparem-se para um bombardeamento!
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Enquanto a ordem era passada apressadamente por toda a linha, uma nuvem de metralha e flechas passou sobre as cabeças dos núbios nas primeiras filas. Estavam a disparar às
cegas, percebeu Cato com algum alívio. Mesmo assim, alguns dos projéteis acabariam por acertar em alguém. Virou-se para os oficiais.
- Senhores, será melhor desmontarmos. Abriguem-se onde puderem.
Enquanto deslizava da sela, pediu por gestos a um dos ordenanças do
estado-maior que lhe trouxesse um escudo, e abrigou-se atrás dele precisamente no momento em que os projéteis começaram a tombar, batendo no solo arenoso. As flechas e metralha
embatiam com estrondo nos escudos dos legionários em redor. Alguns dos projéteis romperam as camadas de couro e alojaram-se na madeira laminada, e alguns atingiram mesmo os
alvos humanos. Um optio junto a Cato não se cobriu convenientemente, e um pedaço de metralha embateu-lhe no crânio, esmagando-o e fazendo-lhe a cabeça saltar para trás; o
homem caiu para o chão e não se mexeu mais. Outros homens foram atingidos no meio das fileiras; a maior parte apenas feridos, mas alguns foram mortos. A coorte de Macro, sendo
a mais numerosa e a que mais próximo estava do inimigo, sofreu a maior parte das baixas. Enquanto vigiava o céu em busca de mais projéteis, Cato verificou que os homens se
apressavam a colmatar as brechas na formação sempre que um dos seus camaradas caía.
A troca de projéteis prosseguiu sem pausa, mas por menos tempo do que aquilo que pareceu aos intervenientes. Cato perguntava-se já quanto mais podiam os homens aguentar antes
de as fileiras ficarem reduzidas ao mínimo e serem desbaratadas pela primeira carga do inimigo. Já tinham tombado mais de cem homens, calculou, e a cada segundo mais eram
feridos. Por fim, a barragem inimiga começou a diminuir de intensidade e esgotou-se, presumivelmente ao mesmo tempo que as munições disponíveis. Ouviram-se sons de cornos
soprados, e os núbios responderam ao sinal com um coro de gritos de guerra e avançaram, cobrindo rapidamente a faixa de terreno que os separava ainda dos romanos.
- Dardos! - gritou Macro, e a fileira da frente preparou os arremessos,
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deixando a proteção dos escudos e assumindo a posição para lançar os projéteis. Os mais velozes dos núbios já estavam ao alcance dos ligeiros dardos. Macro inspirou mais
uma vez e gritou:
- Lançar!
Os legionários atiraram os braços direitos para a frente, e os dardos saltaram para o ar. Embora fossem dos projéteis com menor alcance de entre todos os que os romanos empregavam,
eram quase tão letais como as balistas, e Macro observou com fria satisfação quando muitos dos núbios que lideravam a carga foram trespassados e tombaram. De imediato a segunda
linha de legionários passou novos dardos aos camaradas da frente, e nova rajada se abateu sobre o inimigo, as hastes a penetrar por escudos e carne e ossos com sons surdos.
Só houve tempo para uma terceira rajada antes de os homens terem de empunhar os gládios, compor as fileiras, e apresentar os escudos ao embate com o inimigo.
Macro tomou o seu lugar ao centro da coorte, na segunda fileira, pronto a entrar em combate assim que surgisse a ocasião. Os núbios, depois de tantas baixas sofridas, tinham
perdido algum do ímpeto quando chocaram com a linha romana, não em massa, mas sim em pequenos grupos ou mesmo individualmente e com equipamento ligeiro. Anos de treino tinham
preparado os legionários para combate de proximidade, e os núbios foram derrubados por estocadas laterais sempre que tentaram entrar em duelo com o homem que estava à sua
frente. A vantagem romana não durou muito tempo, já que o número de inimigos engrossou rapidamente. À medida que os guerreiros inimigos se amontoavam e faziam pressão sobre
a linha de escudos romanos, Macro nem conseguia avistar o fim das colunas inimigas, já que a nuvem de poeira se espessava a cada segundo.
- Aguentem, rapazes! - gritou com toda a força. - Aguentem a linha!
Os legionários alternavam entre estocadas rápidas com as ágeis espadas curtas e os empurrões com os grandes escudos retangulares. As pesadas cotas de malha e armaduras articuladas,
bem como os capacetes resistentes, davam-lhes muito melhor proteção do que a que estava ao dispor dos homens que os enfrentavam. O príncipe Talmis tinha poucos soldados regulares
ao seu serviço, e para lá de alguns mercenários vindos do Oriente e dos árabes, a maior parte da sua força era constituída por guerreiros tribais. Estes empunhavam uma mistura
de lanças, espadas e cajados, e tinham apenas finos escudos feitos de peles de animais. Assim, morriam em catadupa quando se aproximavam de mais dos homens da Primeira Coorte
e dos auxiliares que os flanqueavam.
O homem à frente de Macro arriscou uma estocada e urrou de dor ao recolher o braço. Uma espadeirada quase lhe tinha decepado a mão, e
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os dedos agora inúteis agitaram-se e largaram a espada. Macro avançou para o seu lugar, enquanto o legionário gemia e tentava proteger o membro mutilado, de onde o sangue
escorria manchando a armadura. Macro agachou-se ligeiramente, pondo o peso nas almofadas dos pés, pronto a mover-se a toda a velocidade. Manteve o escudo elevado para lhe
proteger a face, e espreitou sobre a orla para verificar a posição dos inimigos à sua frente, enquanto preparava a espada.
Um enorme núbio com uma couraça espessa segurava numa pesada espada acima da cabeça, com as duas mãos. Os olhos do homem cruzaram-se com os de Macro, e ele sorriu selvaticamente
enquanto esticava o braço para lançar um golpe poderoso. Lançou a espada num arco descendente. Macro percebeu que aquele golpe lhe ia rachar o escudo ao meio, e arrancar-lhe
também o braço esquerdo. Saltou para a frente, para o interior do arco da maciça lâmina, e atirou o escudo contra o peito e a cabeça do homem. Os braços do núbio embateram
na orla do escudo e a espada saltou-lhe das mãos, cravando-se na areia por trás de Macro. Este golpeou o flanco do outro com o gládio, rasgando-o uma e outra vez, antes de
recuar para a linha de legionários. O núbio cambaleou e foi perder-se pelo meio dos trapos esvoaçantes de dois árabes com lanças, que enfrentaram o centurião. Tentaram de
imediato atingi-lo, mas os seus movimentos foram facilmente neutralizados pelo escudo, e Macro não fez qualquer tentativa de se adiantar e lhes dar combate. Os golpes inúteis
do par continuaram a embater na superfície do escudo, até que a pressão dos seus camaradas atrás deles os forçou a ficarem demasiado próximos da linha romana.
Aquele era o tipo de combate para o qual o equipamento dos romanos tinha sido desenhado, e no qual os soldados de Roma melhor desempenho tinham; ao longo de toda a linha,
os núbios viram-se confrontados com uma ininterrupta parede de escudos pesados, atrás dos quais homens bem protegidos aguentavam a posição, desferindo golpes assassinos contra
os corpos desprotegidos que se amontoavam do outro lado. Os núbios mortos e feridos tombavam à frente da linha romana, e os gritos aflitos dos que ainda viviam eram rapidamente
apagados quando os seus camaradas se viam forçados a pisoteá-los para tentar alcançar os legionários. Muitos deles eram levados pela coragem, pelo ódio a Roma ou pela esperança
de poderem saquear uma província tão rica. Outros, até os cobardes, não tinham escolha, já que não havia forma de escapar à batalha quando eram levados na densa massa de corpos
que continuava a querer avançar. Os que estavam mais atrás, ainda na zona onde choviam flechas romanas, não tinham espaço sequer para se protegerem das pontas metálicas, e
apenas podiam pedir proteção aos seus deuses.
Ainda assim, escapavam ao efeito das balistas, já que Cato ordenara às
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baterias que não gastassem mais munições a atirar às cegas sobre a nuvem de poeira que tudo obscurecia, poucos metros para lá da frente de batalha. Assim, as equipagens usavam
os trens de mulas para transportar os carros em que as armas estavam montadas para a segunda posição escolhida por Cato na tarde anterior.
A pouco e pouco os tremendos números do inimigo começaram a prevalecer, e a Primeira Coorte começou a ver-se obrigada a recuar, passo a passo. Homens tombavam, apanhados por
golpes de lança através de brechas na muralha de escudos, ou por vezes derrubados quando um dos núbios conseguia afastar um escudo por tempo suficiente para que um dos seus
camaradas atacasse o legionário momentaneamente desprotegido. Embora as baixas dos núbios fossem muito superiores, Cato via que a linha romana, a princípio com quatro homens
de profundidade, já estava reduzida a três numa grande extensão da zona atribuída à Primeira Coorte. A formação, calculada de forma a ter uma convexidade virada para o inimigo,
já tinha sido aplanada, e depressa começou a ganhar uma concavidade, já que as unidades que a ladeavam, sofrendo menos pressão, aguentavam melhor a posição do que a Primeira
Coorte. Nos flancos, as coortes de cavalaria estavam a enfrentar uma segunda carga dos cavaleiros inimigos, esta com menor ímpeto. A batalha desenrolava-se de acordo com o
que Cato previra, e ele prometeu uma generosa oferta a Fortuna se a sorte continuasse a pender para o lado romano, já que o combate estava prestes a entrar na fase decisiva.
Tudo dependia de Macro e da Primeira Coorte, e de que fossem capazes de manter a formação, mesmo se obrigados a recuar ligeiramente.
- Senhor?
Cato voltou-se e avistou um optio ao lado do seu cavalo.
- Sim?
- Senhor, uma mensagem do prefeito Cilo. Comunica que os seus arqueiros estão a ficar sem munição.
- Muito bem. Diz ao prefeito que guarde as flechas que ainda lhe sobram, e que forme os seus homens por trás das reservas.
- Sim, senhor. - O optio fez uma saudação rápida e voltou em corrida para junto da sua unidade.
A medida que a chuva de flechas se interrompia, os tambores inimigos soaram com renovada energia, e os outros instrumentos juntaram-se-lhes, numa tentativa de encorajar ainda
mais os guerreiros núbios. A pressão voltou a aumentar, e o centro da linha romana começou a ser empurrado perante o vigor do inimigo, já esquecido dos seus mortos, que juncavam
o solo mesmo por baixo dos seus pés. O corpo de infantaria pesada do príncipe Talmis tinha aberto caminho pelas fileiras, e lançava-se agora sobre os homens já cansados da
Primeira Coorte. Eram soldados bem treinados
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e equipados, e conseguiam por isso enfrentar os romanos em condições mais similares, o que custou mais baixas aos homens de Macro. Enquanto Cato observava, a linha romana
começou a tornar-se perigosamente fina. Porém, não se atrevia a dar ordem para que a armadilha se fechasse antes de ter a certeza que chegara o momento certo.
- Senhor! - gritou Júnio, esticando o braço. - Eles vão romper as nossas linhas!
Cato virou-se e percebeu de imediato o perigo. A curta distância, à direita de Macro, já só restava uma fila de legionários a tentar aguentar a pressão inimiga. Lançavam os
escudos para a frente, e as botas cardadas fincavam-se na areia e cascalho enquanto os homens tentavam desesperadamente manter as posições. Mas era como tentar deter uma inundação
com um monte de paus mal atados. Um dos legionários escorregou e pousou um joelho no solo. De imediato dois núbios se precipitaram sobre ele, empurrando-lhe o escudo e derrubando-o
por completo. Foi trespassado por uma lança ainda antes de se conseguir sequer apoiar num cotovelo. Mais inimigos se lançaram para a repentina brecha, combatendo os romanos
que a ladeavam, numa tentativa evidente de a alargar.
- Merda - murmurou Cato. Tinha chegado o momento crucial da batalha. Um clamor triunfal ergueu-se das fileiras núbias mais próximas, que já sentiam o sabor da vitória. Havia
uma última e única possibilidade, compreendeu Cato, enquanto fazia rodopiar o cavalo para encarar os homens da coorte de reserva. Os legionários aguardavam em sentido, os
escudos apoiados no solo e os dardos mantidos ao alto.
- O destino deste exército está nas vossas mãos! - gritou-lhes Cato enquanto desembainhava a espada. - É forçoso salvar os vossos camaradas da Primeira Coorte e fechar a brecha
da nossa linha! Pelos Chacais!
Os centuriões lideraram os homens num grito comum que soou inquestionavelmente pouco entusiasmado. Naquele momento, Cato não podia tolerar que a reserva falhasse, e, depois
de uma ínfima hesitação, passou a perna sobre a sela e saltou para o solo.
- Sigam-me!
Avançou diretamente para o grupo de núbios que progrediam pela brecha nas linhas da Primeira Coorte. O centurião que comandava as reservas deu ordem para avançar em corrida,
e os legionários atacaram, de rostos fechados e dardos apontados ao inimigo enquanto percorriam o solo seco e gretado. Cato ainda estava uns vinte passos à frente deles quando
alcançou a brecha nas fileiras. Alguns dos núbios tinham-se detido ao aperceberem-se de que uma nova unidade romana se preparava para os enfrentar. Cato escolheu o mais próximo
deles, um tipo com cabelo desgrenhado e que empunhava apenas um cajado, e lançou-se em corrida, debruçado para a
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frente e com a espada de lado, pronta a desferir um golpe. O ombro esquerdo ardia-lhe ainda de dor do golpe que tinha recebido no assalto ao templo, e teve de cerrar os dentes
quando se desviou do contragolpe desajeitado do outro e lhe lançou a palma da mão esquerda à cara, empurrando-o para o chão. Não se deteve para acabar com o inimigo, virando-se
antes para o lado, onde um árabe de vestes escuras brandia uma lança. A ponta acerada veio na sua direção, apontada à garganta. Afastou o golpe com a espada e agarrou no cabo
da lança com a outra mão. O árabe grunhiu uma imprecação enquanto tentava recuperar o controlo da arma. Cato golpeou-o no braço, uma e outra vez, até que o outro soltou a
lança. Enquanto lutava, a coorte de reserva chegou em corrida; a primeira fileira de homens apresentava uma frente de dardos em riste que ameaçava colher todos os homens que
tinham conseguido irromper por entre as linhas da Primeira Coorte. Passaram por Cato, de um lado e de outro; um dos homens interrompeu a corrida para dar um empurrão com o
escudo ao árabe que enfrentava Cato, atirando-o ao solo. Um rápido movimento do dardo pôs-lhe fim à vida, e o legionário prosseguiu, mal dando pelos agradecimentos de Cato.
A repentina chegada de mais quatrocentos homens selou o rombo na linha e ajudou os homens da Primeira Coorte a recuperarem algum do fôlego. Cato afastou-se da primeira linha
de combate e regressou para junto do cavalo. Júnio contemplava-o como se o julgasse louco por ter liderado a carga, mas Cato ignorou-o e virou-se para tentar perceber o que
se passava no campo de batalha. O grosso do exército do príncipe Talmis tinha sido atraído ao centro da linha romana, tal como Cato tinha esperado que sucedesse, tentando
forçar a passagem no ponto em que os romanos pareciam menos fortes. Nos flancos, a maior parte das forças da legião ainda se mantinha em colunas bem ordenadas, praticamente
intocadas pelos projéteis inimigos. Tinha chegado o momento, percebeu Cato. Era altura de fechar a armadilha, agora, enquanto o centro da linha ainda se aguentava.
Acenou a Júnio.
- Dá a ordem.
O tribuno hesitou.
- Senhor, eu...
- Dá a ordem!
Os soldados que empunhavam as bucinas ouviram a troca de palavras e não esperaram que a ordem lhes chegasse da boca de oficiais menores. Colocaram os lábios nos bocais dos
instrumentos e sopraram. Três estridentes notas soaram por todo o campo de batalha. O sinal foi repetido, e antes que a última das notas se dissipasse, as duas colunas de
legionários puseram-se em movimento, combatendo enquanto progrediam ao longo dos flancos da horda núbia, espalhando-se muito para lá do local onde as
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unidades romanas mais esforçadas tentavam ainda aguentar o centro da formação. E por trás delas avançaram as coortes de cavalaria, cobrindo os flancos do exército romano e
progredindo sem oposição.
A princípio os núbios não pareceram incomodados pelo avanço das colunas de legionários em seu redor. Os que combatiam no centro sentiam ainda que a vitória estava próxima;
lutavam como leões para voltar a romper as linhas romanas. Cato avistou um estandarte de seda a esvoaçar sobre
o centro das fileiras núbias, e percebeu que o príncipe Talmis se tinha integrado pessoalmente no ataque para encorajar as suas tropas a destruir a diminuta força que tentava
contrariá-las.
As coortes que flanqueavam o inimigo avançaram até que só as últimas centúrias ficaram em contacto com a linha central onde decorria o combate mais renhido. Nesse momento,
pararam. Uma ordem foi passada pelas fileiras e cada coorte virou-se para o interior, enfrentando a parte lateral da massa de guerreiros do exército núbio. Outra ordem soou
pelas alas assim dispostas, e os legionários formaram uma verdadeira parede com os escudos sobrepostos. E então começaram a avançar, empurrando o inimigo à sua frente e derrubando
todos os que ficavam ao alcance das espadas curtas.
Enquanto os legionários fechavam a armadilha, a cavalaria auxiliar carregava, soltando altos berros enquanto avançava sobre a cavalaria inimiga ainda formada por trás da sua
infantaria. Se os nervos dos cavaleiros inimigos aguentassem, não seria o barulho ou a coragem que salvaria o muito menor número de auxiliares da derrota certa. Cato tinha
calculado que o seu sacrifício permitiria ao exército romano ganhar o tempo necessário para derrotar o resto do exército núbio. Porém, enquanto olhava, reparou que os cavaleiros
e cameleiros núbios começavam a abandonar as formações, a princípio individualmente, mas depois em pequenos grupos, escapulindo-se pela paisagem e fugindo para sul.
- Olha que porra - exclamou Júnio com algum azedume. - Que raio estão eles a fazer? Cobardes de merda!
Cato anuiu. Só um punhado de núbios tentava ainda aguentar a posição, e esses foram rapidamente varridos pelos auxiliares montados. A incrível facilidade da sua vitória subiu
às cabeças de alguns dos cavaleiros romanos, que se lançaram numa perseguição insana antes que os seus oficiais os pudessem controlar. Porém, a maior parte acabou por refrear
o seu entusiasmo e recuou para formar junto ao estandarte da sua unidade; a cavalaria fez então meia-volta para criar uma linha por trás da retaguarda da massa de infantaria
núbia que ainda tentava quebrar o centro da linha romana.
Mas a maré da batalha virara definitivamente. Os flancos núbios, confrontados por legionários romanos frescos, viram-se forçados a recuar sem cessar, aumentando a pressão
sobre os que combatiam no centro. Não havia
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para onde escapar, e depressa os núbios ficaram até sem espaço para se movimentar no torno em que se convertera a posição ladeada pelas forças romanas em progressão. O bater
dos tambores foi esmorecendo, no que foi imitado pelos gritos ululantes e exclamações guerreiras, e à medida que os romanos avançavam por entre as linhas núbias, surgiram
os primeiros gritos de pânico, e o terror cego começou a apossar-se dos homens tão apertados uns contra os outros que mal se podiam mover, sem que conseguissem sequer ver
ou perceber as razões daquele aperto.
À medida que a incerteza e o medo se espalhavam até chegar aos homens que combatiam ainda contra a unidade de Macro, os núbios começaram a recuar, espreitando por cima dos
ombros até se colocarem fora do alcance das espadas e lanças romanas, e por fim virando-se e tentando abrir caminho por entre a turba aprisionada. Os legionários e auxiliares
fizeram uma pausa, de respirações ofegantes e de braços caídos depois de todo aquele esforço.
- Foda-se, estão aí especados para quê? - indagou Macro no tom mais alto de voz que conseguiu. - Avancem! Deem cabo deles!
Sem esperar pelos seus homens, Macro soltou um brado incoerente e carregou, espetando e golpeando os homens à sua frente. Os soldados romanos aperceberam-se então realmente
da proximidade da vitória e seguiram-no, massacrando os inimigos sem qualquer piedade ou misericórdia. A areia sob as botas dos legionários depressa escureceu com o sangue
derramado, e os corpos acumulavam-se de forma tão rápida que os romanos se viam forçados a trepar sobre eles para alcançarem o inimigo. Os lamentos e gritos desesperados de
angústia dos núbios erguiam-se no ar quente que o sol não deixava de fazer sentir, aumentando o tormento dos homens ainda presos na armadilha fatal. Cato reparou que o estandarte
do príncipe Talmis ainda se erguia sobre aquele mar de gente de pele escura e conseguia mesmo avistar o anel de capacetes cintilantes que correspondia à guarda pessoal do
príncipe, que lutava para conseguir extraí-lo da zona do massacre.
- Devíamos oferecer-lhes termos de rendição - sugeriu Júnio, e Cato olhou-o de lado, notando a expressão agoniada na face do tribuno. - Senhor, os termos. Isto... Isto é um
banho de sangue.
Cato compreendia a reação do outro, mas nada podia fazer para parar a carnificina. Os romanos estavam em inferioridade numérica. Se interrompessem o seu tétrico trabalho,
perderiam a iniciativa, e a seguir a própria batalha. Não tinham outra escolha que não fosse prosseguir na matança. Cato abanou a cabeça.
- Tribuno, isto é a guerra. É este o rosto da batalha, e será melhor que a ele te habitues.
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Alguns dos núbios tentaram render-se, largando armas e estendendo as mãos vazias enquanto suplicavam pelas suas vidas na sua própria língua. Mas não tinham sucesso. Morriam
ao lado dos outros que lutavam até ao fim, asfixiados pela massa densa de homens que tornava impossível até mesmo o correto manejo das armas.
Tudo continuou assim por mais de uma hora, enquanto o cordão romano se apertava inexoravelmente em torno dos homens ainda aprisionados, incluindo o príncipe Talmis. A cavalaria
auxiliar continuava a bloquear-lhes a fuga, e quase todos os que tentavam escapar eram passados a fio de lança. Por vezes alguns grupos conseguiam forçar a passagem, e era-lhes
permitido escapar, de forma que a paisagem a sul estava semeada de gente que fugia para salvar a vida. Ao aproximar-se o meio-dia, a matança começou a amainar, devido sobretudo
ao cansaço dos romanos que lhes refreou o apetite pela destruição do inimigo. Alguns núbios aproveitaram a ocasião e esgueiraram-se por entre os romanos, que nada fizeram
para os deter. Cato avançou, embora o cavalo tivesse de escolher cuidadosamente o caminho por entre os cadáveres ao percorrer o terreno da carnificina.
- Parem! Centuriões, chamem os vossos homens para junto dos estandartes!
Avistou Macro, salpicado e besuntado de manchas avermelhadas, apoiado no escudo, o peito a arfar enquanto tentava recuperar algum fôlego.
- Centuriões! Permitam a passagem aos homens do inimigo. A todos, exceto ao príncipe e à sua guarda pessoal. E aos gladiadores. Nenhum deles pode escapar. Entendido?
Macro anuiu, enquanto tentava afastar o suor que lhe escorria pelas sobrancelhas. Endireitou-se e pegou no escudo, virando-se para falar aos homens.
- Formar fileiras!
Os homens da Primeira Coorte regressaram penosamente para junto dos seus estandartes e esperaram por novas ordens. Cato sentiu um terrível peso no coração ao verificar que
menos de metade dos homens estava ainda de pé. A coorte de reserva que tinha avançado para tapar a brecha tinha sofrido uma proporção semelhante de baixas. Macro esperou que
o último dos seus homens ficasse em posição e ordenou então que avançassem sobre
o estandarte do príncipe Talmis. O cavalo de Cato recusou-se a avançar perante as pilhas de corpos que lhe ocupavam o caminho, pelo que ele se viu obrigado a desmontar e seguir
a pé até junto de Macro.
- Bom, o plano funcionou. - Macro sorriu, fatigado. - Nunca pensei que um dia estaria grato ao Aníbal.
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- Ainda não acabou. - Cato apontou para o grupo de guardas que defendiam o estandarte do príncipe.
Macro encolheu os ombros.
- Para aqueles, de uma forma ou de outra, está terminado. Quer morra ou se renda, o Talmis já é nosso.
Os romanos abriram as fileiras para deixar passar os últimos dos guerreiros núbios e árabes com equipamento ligeiro, e depois aproximaram-se dos guardas. Estes eram todos
homens grandes, com armaduras completas e capacetes cónicos. Empunhavam escudos ovais e lanças pesadas, e aguardavam, ombro com ombro, enquanto os romanos avançavam.
Cato ergueu o braço quando já não estavam a mais de vinte passos do estandarte.
- Alto!
Os homens detiveram-se, mantendo o inimigo sob vigilância. Cato avançou e limpou a garganta antes de falar.
- O príncipe Talmis ainda vive?
- Vive, sim. - Uma figura imponente abriu caminho até à primeira fila dos guardas. Talmis envergava uma couraça negra sobre vestes também negras, e o capacete e os ombros
estavam cobertos por peles de leão. A sua expressão era fria e amarga enquanto contemplava as pilhas de cadáveres que juncavam o campo de batalha. Os olhos do príncipe fixaram-se
em Cato.
- O que me queres, legado? A minha rendição?
- Sim.
- Para que possa ser exibido em Roma, como um troféu do teu Imperador, por certo.
- Cabe ao Imperador decidir se assim será - respondeu Cato. - A oferta que te faço é simples. Tu e os teus homens rendem-se, ou serei forçado a ordenar que vos abatam aí mesmo.
- Não me parece que me vá render - disse Talmis lentamente, e os seus escuros lábios formaram um sorriso calculista. - Legado, acho que me vais deixar voltar à Núbia em liberdade.
Cato franziu o sobrolho.
- E porque faria eu isso?
- Porque eu tenho aquilo que tu queres. Ajax está em meu poder. E dar-to-ei, em troca de salvo-conduto para a fronteira da Núbia.
Cato sentiu o coração a acelerar.
- O Ajax está aqui? Contigo?
- Não. Mantive-o em segurança enquanto decidia o que havia de fazer a um homem que não me serviu convenientemente. A vida dele em troca da minha. Essa é a minha proposta.
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Cato virou-se para Macro, e por momentos imperou um silêncio tenso enquanto os dois trocavam olhares. Macro engoliu em seco, mas conseguiu evitar manifestar qualquer emoção
que pudesse influenciar a decisão que cabia ao amigo. Não havia dúvidas de que seria preciso enfrentar a fúria do palácio imperial se fosse permitido ao príncipe núbio escapar
impune. Mas a verdade é que os núbios tinham acabado de ser esmagados. Muitos anos teriam de passar até que se atrevessem a de novo desafiar Roma. Ajax, por outro lado, se
por acaso conseguisse escapar do Egito, constituiria uma ameaça muito mais imediata ao Império. Já tinha desencadeado uma rebelião que quase levara Roma a cair de joelhos.
Quem sabia de que seria ainda capaz o gladiador? Além disso, e para começar, era ele a principal razão da sua presença na província do Egito. Tinha sido a incessante perseguição
a Ajax que lhes consumira meses das vidas. Havia uma necessidade imperiosa de pôr ponto final naquele assunto que os atormentava desde a rebelião em Creta. Cato voltou-se
de novo para o príncipe núbio.
- Bem? - Talmis ergueu o queixo. - Qual é a tua decisão?
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Ao fim dessa mesma tarde, o príncipe Talmis seguia pela margem do Nilo, à frente de uma pequena coluna montada. Tanto ele como os seus guarda-costas tinham sido desarmados,
e eram escoltados por Cato, Macro, o tribuno Júnio e um esquadrão de cavalaria auxiliar. Talmis apontou para o meio do rio, para uma pequena ilha a uns duzentos passos da
margem. Tal como a maior parte das ilhotas que Cato tinha visto no Nilo, era baixa e rodeada por canaviais. Todavia, na extremidade desta, a montante, via-se uma larga plataforma
rochosa na qual tinha sido erigido um pequeno santuário, com cinco colunas de um lado e quatro de outro. Na orla do afloramento rochoso cresciam maciços de tamareiras, e havia
um pequeno cais a curta distância, ao pé do início da grande concentração de canas que bordejava quase toda a ilha. Estava ali preso um bote, e à entrada do santuário avistava-se
um vulto solitário que os observava.
- Tenho-os bem vigiados ali no santuário - indicou Talmis.
- Os? - Macro arqueou uma sobrancelha. - Mas quantos homens restam ainda ao Ajax?
- De facto trata-se apenas do Ajax e de outro homem, um tipo chamado Karim. Os outros foram executados por minha ordem quando o gladiador regressou ao meu acampamento e reconheceu
que fracassara. A ele, estava a guardá-lo para mais tarde, quer dizer, se não conseguisse do vosso Imperador um bom preço pela peça.
- Sinto-me bem contente por não ser seu aliado - comentou Macro.
- Ajax nunca foi meu aliado. Ele é que se ofereceu para me servir. Era suposto distrair-vos, incomodar-vos, mas não envolver-se em batalhas de grande dimensão. Simplesmente,
ele só queria matar romanos, quaisquer que fossem as consequências para aqueles que liderava. - O príncipe Talmis voltou-se para encarar Macro e Cato. - O que me impressiona
verdadeiramente é que um homem vos possa odiar com tanta intensidade como ele faz.
Macro mordeu os lábios.
- Núbio, o sentimento é recíproco. Temos as nossas próprias razões para lhe devolver o opróbio.
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- A sério? - Talmis afastou um inseto da face. No mesmo gesto, solicitou a Macro que prosseguisse.
- Basta - interrompeu Cato. - Em breve ficará escuro. Quero tratar do Ajax antes que o dia acabe. - Virou-se para o príncipe. - Quantos dos teus homens estão na ilha?
- Seis dos meus melhores homens. Enviar-lhes-ei o seu capitão para explicar a situação e os trazer de volta. Nessa altura, o gladiador e o amigo serão vossos. E devolver-me-ão
a liberdade, a mim e aos meus homens.
- Apenas quando tiver o Ajax em meu poder - realçou Cato com firmeza. Diz aos teus homens que tragam o barco. Eu vou lá com o teu capitão e alguns dos meus soldados para tomar
posse dos cativos. Os teus homens regressarão e nessa altura poderás partir.
- Estou a ver. - Talmis assentiu e olhou para ele com uma expressão calculista. - Legado, pensas que a tua vitória pôs fim à minha ambição de dominar o curso superior do Nilo?
- Não. Mas sei que levarás algum tempo a conseguir reunir outro exército. Quando o tiveres conseguido, já Roma terá enviado mais tropas para a província e também reforçado
as defesas das cidades e dos fortes ao longo do Nilo. Terás assim ainda menos hipóteses de triunfo do que desta vez. - Cato aguentou-lhe o olhar sem receio. - Parece-me que
Roma pouco terá a temer da Núbia durante bastante tempo. O teu poder está gasto. Por outro lado, o do Ajax não está. É essa a razão porque estou disposto a trocar a tua vida
pela dele.
Uma careta atravessou a face do príncipe.
- É isso que pensas? Romano, acho que me subestimas. Mas havemos de tirar isso a limpo, talvez mais cedo do que pensas. - O príncipe Talmis virou-se para o capitão da sua
guarda e deu-se uma breve troca de palavras; por fim, o capitão desmontou e desceu a margem até à beira da água. Levou um pequeno corno aos lábios e soprou quatro notas. Dois
vultos saíram do santuário em corrida, saltaram para o esquife e começaram a atravessar a corrente.
Cato chamou o comandante da escolta montada e falou-lhe em tom discreto.
- Não confio no príncipe. Quero que os teus dois melhores homens me acompanhem. Quando estivermos na ilha e tivermos os prisioneiros em nosso poder, darei sinal para libertares
o príncipe e os seus homens.
- Sim, senhor. E como será esse sinal?
Cato pensou rapidamente.
- Levantarei a minha espada ao alto e fá-la-ei balançar de um lado para o outro. Creio que será fácil ver daqui.
- Sim, senhor.
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Cato deitou uma olhadela ao príncipe e aos seus homens.
- Se fizerem alguma tentativa de fuga antes de o sinal ser dado, liquida os soldados. Tenta manter o príncipe vivo, se possível.
Macro aproximou-se e sussurrou:
- O que é que nos impede de nos livrarmos dele na mesma? Depois de termos o Ajax?
Cato abanou a cabeça.
- Talmis é uma ameaça menor. Acho que esta derrota o vai enfraquecer. Vai ter muito trabalho a manter os seus seguidores na ordem. Se o matarmos, estaremos apenas a dar aos
núbios um motivo para procurarem
a vingança com todo o fervor.
Macro encolheu os ombros.
- Se assim o diz. A mim, francamente, mais um núbio morto vinha mesmo a calhar.
Cato acenou ao decurião.
- Tens as tuas ordens.
O homem virou-se na sela e lançou uma ordem na direção do seu esquadrão.
- Castor! Décio! Desmontem e acompanhem o legado!
Dois homens de aspeto duro deslizaram das selas e passaram as rédeas aos camaradas, antes de pegarem nos escudos e correrem para junto dos oficiais. Cato desmontou também
e fez-lhes sinal para o seguirem.
- Macro, venha também. E tu, Júnio.
Levou o grupo até junto do capitão núbio, que esperava o bote à beira da água. Os dois homens que levavam o barco lutavam arduamente contra
a corrente. Enquanto esperavam, Cato afastou-se alguns passos e chamou:
- Macro, chegue aqui.
Saíram do alcance dos ouvidos dos outros e Cato virou-se para o amigo com uma expressão austera.
- Quando tivermos o Ajax nas nossas mãos, a minha intenção é a de o levar para Roma vivo. Entendido?
Macro manteve-se em silêncio por momentos enquanto a sua expressão endurecia; por fim, falou por entre dentes cerrados:
- Depois de tudo o que aquele filho da puta fez? Cato, não podes ter -squecido tudo o que sucedeu em Creta. Sim, não foste tu quem esteve cativo naquela jaula imunda. Fui
eu, eu e a Júlia.
- Sei-o muito bem.
- O caralho. Acho que devíamos era liquidá-lo, atirar o corpo ao Nilo : esquecer o assunto.
- Não foram essas as ordens que recebemos.
- Ordens? - Macro inclinou-se para a frente, aproximando a face
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da de Cato. - Que se fodam as ordens... Foda-se para isto. Que se foda o Semprónio, o Narciso, o Imperador. Que se fodam todos. Quero lá saber. O Ajax deve-me umas coisas,
e vai pagá-las. Quero vingar-me, sim. - Fez uma pausa e assumiu um tom mais amigável. - Cato, ouve, miúdo, preciso de me vingar de tudo aquilo, e tu também, pela Júlia.
- Não posso falar por ela.
Macro espetou-lhe um dedo no peito.
- Ela vai ser a tua esposa. Achas que vais conseguir viver em paz com essa tua preciosa consciência, sabendo o que ele lhe fez, e sabendo que o deixaste viver um instante,
um único, para lá do que ele merecia?
- Ajax morrerá - retorquiu Cato com toda a firmeza. - O Imperador condená-lo-á e ele será crucificado. Sabe-lo muito bem.
- Oh, claro que será condenado, mas e se o Cláudio resolver enviá-lo para a arena? Sabes perfeitamente que ele é um excelente combatente. Se alguém pode conquistar o coração
da turba, é ele. E nessa altura? Imagina que o Cláudio resolve poupá-lo para não desagradar à populaça? Ou mesmo que morra, será lembrado como um herói. Ou na arena, com uma
espada na mão e a cuspir desafios, ou a berrar ódio a Roma, mesmo cravado na cruz. Se for crucificado, será um mártir, como Espártaco antes dele.
- Teremos de enfrentar essa realidade quando ou se a encontrarmos.
- Cato pegou no braço do amigo. - Macro. Não temos escolha. Temos as nossas ordens, e eu tenciono cumpri-las. E o mesmo fará você. Dê-me a sua palavra de que assim será, ou
não terei outra hipótese senão mandá-lo regressar ao acampamento.
O rosto de Macro contorcia-se com o esforço de reprimir a fúria assassina que Ajax lhe plantara no coração muitos meses antes. Por fim inspirou profundamente por entre os
dentes cerrados e a ranger.
- Às suas ordens... Senhor.
- Obrigado. - Cato inclinou ligeiramente a cabeça em sinal de gratidão, antes de voltar a olhar para o rio.
- Já cá está o barco. Vamos.
Regressaram para junto dos outros precisamente quando o bote tocava a margem. Um dos homens a bordo saltou para a água pouco funda e ajudou a proa a entrar pela areia. O capitão
subiu a bordo e tomou lugar à popa antes que os outros ocupassem os seus lugares. Macro e Cato ficaram na proa, seguidos pelos dois auxiliares e Júnio, que ocupavam o pequeno
convés triangular na frente da embarcação. O núbio empurrou o barco para a água, e o homem aos remos fê-lo girar e começou a propulsioná-lo através da superfície calma como
um espelho, na direção do cais na ilha. Um dos legionários debruçou-se para contemplar a água, e o barco de imediato começou a adornar.
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- Senta-te! - exigiu Macro. - Não te mexas mais.
- Desculpe, senhor.
O bote estava pesado e difícil de manobrar, e o remador tinha de se esforçar a fundo para o manter no rumo. O Sol começava a desaparecer por entre uma neblina alaranjada e
turva no ocidente, e as silhuetas escuras das aves singravam sobre a água, enquanto caçavam insetos. Não eram os únicos a alimentar-se, percebeu Cato quando o esquife se aproximou
do cais de desembarque. Deu-se um movimento à esquerda por entre os caniçais, e um longo e húmido focinho surgiu brevemente à superfície por entre as ervas flutuantes, para
logo desaparecer por entre um remoinho e um agitar dos cimos das canas.
O barco aproximou-se do cais, feito de pedra, nos longínquos e esquecidos tempos em que os sacerdotes iam ocasionalmente até ao santuário para fazer oferendas. A pedra apresentava-se
agora gasta e salpicada de excrementos de pássaros. O homem aos remos lançou um grito sobre o ombro, na direção de Júnio, e apontou para a corda enrolada ao lado do tribuno.
Júnio acenou para assinalar que tinha compreendido e pegou nela, apontando à argola de ferro fixa na pedra do cais. Uma última remada pô-la ao alcance, e o tribuno agarrou-a
e puxou o barco para terra. Assim que conseguiu, fez passar a ponta da corda pelo anel e puxou-a para trás, forçando o bote a aproximar-se mais ainda. Depois de a embarcação
ficar presa com segurança, Júnio trepou para fora e ajudou os outros a saírem do barco. Quando todos se viram em solo firme, Macro virou-se para o capitão núbio.
- Falas grego?
- Pouco.
- Bom, nada de truques, entendido? - Macro deu uma palmada na bainha da espada. - Senão...
O capitão anuiu a sua compreensão e conduziu-os por um caminho pavimentado e ladeado por palmeiras. Depois de uma curta subida, viram-se junto à entrada do santuário. Cato
virou-se e viu ao longe as figuras que os observavam da margem do rio. Dirigiu-se então à entrada com o resto do cortejo, o coração aos pulos enquanto antecipava o encontro
com Ajax. Macro mantinha uma expressão fechada no rosto, os lábios comprimidos. Os dois auxiliares seguiam-no, e Cato e Júnio fechavam a coluna. A sentinela ao portão saudou
o capitão núbio e trocou com ele algumas palavras, até que o oficial deu entrada ao grupo.
O interior era rodeado por uma muralha com cerca de três metros de altura, onde hieróglifos tinham sido gravados, de forma a que as sombras realçassem cada um dos símbolos.
Dois homens sentavam-se de costas contra a parede do fundo, guardados por outros dois homens com lanças,
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que os vigiavam a uns cinco metros de distância. Ajax ergueu o olhar quando deu pela chegada do grupo. Por momentos a face do gladiador não revelou qualquer expressão, mas
depois o seu olhar apurado discerniu as armas que os romanos empunhavam, e ele sorriu fracamente.
- Portanto o príncipe Talmis foi derrotado. Interrogava-me sobre o futuro. Sei agora que serei vítima de Roma e não de Talmis.
Cato encarou o gladiador, o ódio a percorrer-lhe a mente, sempre mantido sob a firme determinação de lembrar as ordens recebidas. Mas havia algo mais, que mal notava mas estava
a crescer nele: uma sensação de desapontamento pelo fim da longa perseguição.
- Nós vamos - anunciou o capitão núbio.
- O quê? - Cato virou-se para ele. O homem fez gestos indicando os seus homens e apontou na direção do esquife. Cato assentiu sem mais delongas.
O capitão chamou os seus homens, que se afastaram cuidadosamente dos prisioneiros, pegaram nas suas sacolas e se juntaram ao oficial. Então, com um último aceno na direção
de Cato, o núbio levou os seus homens e deixou o santuário. Cato ficou a ouvir o som dos passos a afastar-se; pouco depois reinava o silêncio, enquanto os prisioneiros e os
romanos se enfrentavam com o olhar.
Foi Ajax quem quebrou o silêncio.
- O que vão fazer comigo?
- Levar-te para Roma - replicou Cato, sem emoção.
- Já percebi. Vão fazer da minha morte um espetáculo? Um aviso a todos os escravos sobre o preço a pagar quando se desafia Roma.
- Suponho que será esse o desejo do Imperador. Francamente, estou-me nas tintas. Eu e o Macro queremos apenas ver-te pagar por todo o sofrimento que causaste.
- E quanto ao sofrimento que vocês me provocaram?
Macro não se conteve.
- O teu pai era um cabrão dum pirata. Mereceu o fim que teve. Como tu mereces tudo o que te acontecer.
Ajax olhou para além dos dois oficiais, e um fino sorriso atravessou-lhe a face. Cato sentiu repentinamente um tremor frio a percorrer-lhe a espinha. Virou-se para seguir
o olhar do gladiador. Atrás dele estavam os dois auxiliares, de lanças aperradas e de olhos fixos nos prisioneiros. Por detrás, Júnio tinha empunhado a espada e estava a baloiçá-la
de um lado para o outro. O sinal combinado para a libertação do príncipe Talmis. Cato sentiu a sua ira a crescer.
- Ainda não dei ordens para...
Júnio avançou e golpeou por trás o pescoço do mais próximo dos
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auxiliares, cortando até à espinha. A boca do homem abriu-se sem som enquanto ele tombava. O outro mal começou a virar-se quando avistou o camarada por terra; o choque foi
tão grande que não conseguiu reagir a tempo de salvar a própria vida. Júnio deu outro passo e cravou-lhe a lâmina na garganta.
- O quê? - Cato, assombrado, não conseguia desviar o olhar do tribuno. Foi Macro que primeiro adivinhou a verdade. Desembainhou a espada e virou-se para Júnio.
- Traidor! - rosnou. - É ele!
- Traidor? - Cato sentiu-se esmagado, como se tivesse sido fulminado. A imagem de Hamedes a jazer no solo em Karnak, morto com uma faca nas costas, saltou-lhe à mente. Sentiu-se
agoniado ao perceber finalmente o terrível erro que cometera. - Não... O Júnio não pode ser.
O tribuno sorriu.
- Duvido que alguma vez encontrem o corpo desse Júnio. Os chacais que rondam a estrada de Mênfis devem ter resolvido esse assunto. Foi nessa zona que o apanhámos, quando se
ia juntar à legião.
Lançou a espada sobre a cabeça de Cato e agachou-se para empunhar uma das lanças dos auxiliares. A espada rolou no solo à frente de Ajax, que a agarrou de imediato e se pôs
em pé de um salto, no que foi imitado pelo outro prisioneiro. Ajax lançou uma gargalhada a plenos pulmões.
- Os meus agradecimentos, Canto. Salvas-me mais uma vez. - O gladiador apontou a espada a Cato. - O legado é meu. Tratem vocês do centurião.
- Canto? - Cato ainda estava incrédulo, mas teve a presença de espírito para desembainhar a espada. Entretanto, o traidor já tinha empunhado a lança, e tentava atingir Macro.
O movimento foi rápido, e o centurião mal teve tempo para saltar para um lado para evitar a estocada. O seu oponente insistiu com outro golpe, tentando mantê-lo desequilibrado,
mas Macro conseguira firmar-se ao aterrar, e facilmente aparou o novo golpe. Os dois homens observaram-se com atenção.
Um corrupio de passos fez com que Cato se voltasse no preciso momento em que Ajax desferia um golpe. A ponta da lâmina silvou no ar e Cato tentou agachar-se. Ao mesmo tempo
lançou a espada para cima em ângulo, tentando alcançar o flanco do oponente. Era um golpe improvisado e apressado, mas ainda assim a lâmina rasgou a túnica imunda do gladiador
e lacerou-lhe os músculos que cobriam as costelas. Ajax rosnou, furibundo, e recuou um passo. Com a mão livre, apalpou a ferida. Por trás dele, Cato avistou Karim, de quem
se lembrou como o fiel companheiro de Ajax desde a primeira hora da revolta em Creta. O tipo rodeava o santuário colado à parede do fundo, tentando aproximar-se de Macro pelas
costas.
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- Macro! Cuidado!
Enquanto Cato lançava o aviso ao amigo, Ajax saltou para o ataque, tentando atingir-lhe o rosto. Cato procurou esquivar-se, mas a ponta da espada do outro apanhou-lhe a testa
e desceu ao longo da sobrancelha, nariz e maçã do rosto, rasgando a pele. Pareceu-lhe que tinha sido atingido na face por um martelo em brasa; a visão turvou-se e uma terrível
dor agonizante bloqueou-lhe a consciência, afastando todo e qualquer outro pensamento. Cato cambaleou e tombou para trás, deixando escapar a espada por entre os dedos. O impacto
com o solo tirou-lhe o fôlego, e o sangue espirrou-lhe para os olhos, deixando-o cego.
Macro tinha ouvido o aviso, e percebeu que o olhar de Canto se desviava para a direita pelo mais ínfimo dos instantes. Avançou de imediato, descarregando toda a fúria num
golpe aos dedos da mão mais próxima. A lâmina fez o que lhe era pedido, e os dedos decepados escorregaram do cabo da lança. Canto rugiu de dor. Macro lançou-se em corrida
e aplicou um potente murro na cara do outro, pondo todo o seu peso por trás do golpe. O homem cambaleou e Macro aproveitou para lhe aplicar um golpe selvagem com a espada
no lado da cabeça, quebrando-lhe o crânio com estrondo. Antes mesmo de Canto cair no solo, já Macro se tinha virado, fincado os pés no chão e colocado a espada em riste. Karim,
em corrida, não conseguiu travar a tempo de evitar a lâmina. A ponta cravou-se-lhe no peito, esmagando-lhe o externo, expulsando-lhe o ar dos pulmões num jato quente que Macro
recebeu em pleno rosto. Ainda assim, o ímpeto da sua carga forçou os dois homens a caírem para o solo, enquanto a ponta da espada de Macro rasgava a pele das costas do rebelde.
Moribundo, com sangue a escorrer-lhe da boca aberta, Karim lançou um derradeiro olhar de ódio ao centurião. As suas mãos moveram-se, procurando desesperadamente fechar-se
em torno da garganta do romano. Macro sentiu-as no pescoço, tentando apertá-lo, e empurrou o homem para o lado enquanto torcia a lâmina.
Num movimento súbito, Ajax veio do outro lado do santuário, carregando sobre ele. Macro usou de novo a espada para tentar atingir os joelhos do gladiador. Mas os reflexos
de Ajax tinham sido treinados na arena, e ele saltou para o ar de forma a evitar a estocada, ultrapassando Macro e o cadáver de Karim, prosseguindo ainda dois passos antes
de se deter, voltar e enfrentar o centurião. Macro tinha rolado para se pôr de pé, e aguardava-o agachado, de espada ao lado e pronta, atento a tudo. Por momentos nenhum dos
homens se mexeu; dentro das antigas muralhas só se escutavam a respiração pesada dos adversários, os últimos estertores de Karim e os gemidos de Cato.
Ajax lambeu os lábios.
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- Devias ter-me matado quando executaste o meu pai.
- Sim, devia - concordou Macro. - Foi um erro... Que tenciono corrigir.
Avançou e atacou. Ajax aparou os golpes e de imediato contra-atacou com uma série veloz de estocadas e cutiladas que puseram à prova as capacidades de Macro, na espada e na
velocidade de reação. Recuou por fim, e os dois homens voltaram a encarar-se à luz moribunda. O sangue corria sem cessar do flanco de Ajax, e ele sentia perfeitamente o fio
de líquido quente que lhe escorria pela perna. Sabia que depressa começaria a enfraquecer. Já sentia um frio a espalhar-se pela pele. Daí a pouco a sua visão começaria a nublar-se.
O instrutor veterano que tinha treinado Ajax para a arena havia já tantos anos tinha martelado nos seus estudantes os sinais de perigo associados às feridas. Assim que um
homem tomasse consciência de que estava a enfraquecer, devia atacar e prevalecer, ou depressa se veria reduzido a pedir a misericórdia da turba. Ajax lançou outro furacão
de golpes, e o choque das lâminas metálicas ecoou com estrondo nas paredes do diminuto templo. Mas não conseguiu encontrar forma de ultrapassar as defesas do romano. Reparou
no frio olhar de satisfação no rosto do centurião.
Macro tinha visto a ferida no flanco do gladiador e o fio de sangue que lhe descia pela perna. O combate estava equilibrado, mas o tempo estava contra Ajax. A perda de sangue
acabaria por o enfraquecer e torná-lo mais lento, até que Macro acabasse por o matar. O sabor da vingança começava a adoçar os lábios do centurião.
Ajax acenou com amargura ao compreender a situação em que se encontrava.
- Romano, pensas que já ganhaste. Mas achas mesmo que me consegues derrotar? Pensas que eu, Ajax, alguma vez o permitiria? - rosnou com desprezo. - Enquanto eu viver, a chama
da rebelião arderá com vigor nos corações dos escravos por todo o Império. E estarei vivo enquanto não puderes provar que estou morto. E por isso, romano, quem perderá hoje,
aqui e agora, serás tu.
Antes que Macro pudesse digerir tudo o que ouvira, Ajax virou-se e correu para a entrada, esgueirando-se para as trevas exteriores.
- Merda! - Macro olhou de relance para Cato, dilacerado pela imperiosa necessidade de ajudar o amigo. E então virou-se e correu atrás de Ajax. O gladiador tinha ignorado o
trilho que levava ao cais e corria pelas lajes partidas à frente do santuário, saltando depois para o meio das ervas altas. Macro perseguiu-o, embora as suas pernas mais curtas
o fizessem perder terreno. A erva agitava-se e chicoteava-o enquanto corria, já mais de quinze metros atrás de Ajax e a ficar mais longe a cada passo. Macro avistou a ponta
da ilha e percebeu que não ficava a mais de cinquenta passos da
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margem ocidental do Nilo: a extensão de água aberta era pequena. Ajax penetrou pelo meio dos caniçais, e as suas botas salpicaram a água rasa e lamacenta por todo o lado.
Quando por fim Macro chegou à orla das canas, já Ajax seguia com água pela cintura, entrando pelo Nilo dentro. Olhou para trás e sorriu ao apreender o espaço que tinha conseguido
ganhar ao centurião. Por fim libertou-se das últimas canas e saltou para a frente, enquanto largava a espada. Começou a nadar, entrando na corrente.
Macro parou com água pelos tornozelos; as ondas agitavam os canaviais, e o centurião preparou-se. Passou o cinto da espada pela cabeça. Os dedos procuraram os fechos do arnês,
que abriu e passou também sobre a cabeça, atirando-o para o lado. Nesse instante ouviu o som de um pesado corpo a arrastar-se sobre as canas ali perto e a mergulhar com estrondo
na água. Um vulto escuro afastou-se velozmente da margem, avançando na diagonal, na direção de Ajax.
No último instante o gladiador virou-se e avistou os olhos fixos do crocodilo, cravados na crista couraçada do crânio. Os olhos do homem viraram-se para Macro.
- Não! NÃO!
Nesse momento a cabeça do gladiador foi projetada para a frente. Os braços agitaram-se, tentando bater no monstro que o prendia nas poderosas mandíbulas repletas de dentes
afiados e dilacerantes. A água espirrou para todos os lados quando o crocodilo emergiu e rodou sobre si mesmo, o ventre de cor clara a rebrilhar aos últimos fulgores da luz
do dia. E então desapareceu. A água ondulou ainda mais uns instantes até que o Nilo voltou a fluir com toda a calma e o entardecer avançou como se nada se tivesse passado.
Macro continuou a observar a cena, para ter a certeza que Ajax tinha desaparecido. Sentia o corpo como que adormecido pelo choque de ver o seu inimigo morrer daquela forma.
E então uma terrível fúria cresceu dentro dele, vinda do mais fundo das suas entranhas, ardendo-lhe no coração até o fazer ranger os dentes, enquanto amaldiçoava os deuses
com toda a ira que lhe ocupava o espírito. Tinha perseguido Ajax durante tanto tempo, por tantas paragens, para tudo dar naquilo. Os punhos do centurião cerraram-se com toda
a força, e todo o seu corpo estremeceu.
- Foda-se... Foda-se... FODA-SE!
As palavras ecoaram levemente na margem longínqua, cedendo depois ao silêncio. Lentamente, Macro virou as costas ao Nilo, pegou nas coisas que deitara fora e chapinhou para
terra firme, apressando-se depois a caminho do santuário para cuidar do seu amigo Cato.
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EPÍLOGO

Dois meses depois, Cato subia o caminho que levava ao palácio imperial, plantado sobre as falésias na ponta oriental da ilha de Caprae. Tinham tomado lugares em Alexandria,
num navio do correio imperial, e enfrentado o mar bravio do outono para atravessar o Mediterrâneo e subir a costa ocidental da península itálica, rumando ao porto de Óstia,
na foz do Tibre. Quando tinham atracado na base naval de Puteoli, tinham ficado a saber que o Imperador Cláudio e o seu secretário, Narciso, tinham resolvido ir passar o inverno
a Caprae. Desse modo, o capitão do navio invertera a rota e dirigira-se para a pequena e pedregosa ilha que se erguia das águas à saída da baía de Nápoles. Cato deixara Macro
numa das estalagens da pequena aldeia piscatória que se acomodava junto ao porto.
Ao subir, enquanto passava por sucessivos postos de controlo guarnecidos por atentos guardas pretorianos, Cato foi ordenando os pensamentos, de forma a oferecer ao secretário
imperial um relatório claro. A derrota dos núbios e a morte de Ajax tinham posto fim à sua missão no Egito. Depois de a Vigésima Segunda Legião regressar à sua base em Mênfis,
Cato e Macro tinham-na deixado e regressado a Alexandria. Tinham descido o Nilo numa barca, e Cato passara o tempo a descansar debaixo de um toldo enquanto recuperava do seu
ferimento. O médico dos Chacais cosera a ferida, mas tinham sido necessários muitos dias até que a carne se voltasse ajuntar, deixando-lhe uma cicatriz ziguezagueante pela
face.
Em Alexandria o governador tinha escutado de rosto fechado os dois oficiais enquanto eles lhe relatavam a campanha, as tremendas perdas sofridas pelo exército romano e a desolação
que grassava na província na região do Alto Nilo. Petrónio ficara furioso com a decisão que Cato tomara de trocar Talmis por Ajax, sobretudo por não haver um corpo para exibir
publicamente. Mas decidiu não tomar qualquer ação contra o legado interino. Anunciou ao invés que Cato teria de responder pelas suas decisões perante os governantes em Roma,
e seria lá que saberia da punição que lhe seria imposta. O governador tinha depois escrito um apressado e preliminar relatório e tinha-o enviado de imediato para que chegasse
a Narciso, o mais próximo conselheiro do Imperador, antes de Cato.
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Ao longo da viagem de regresso, o humor de Cato piorara sistematicamente. Tudo o que queria era apenas regressar para junto de Júlia. Ela esperava-o na moradia do pai em Roma,
e era-lhe fácil imaginá-la de forma vívida, a recebê-lo de braços abertos no momento em que ele chegasse ao portão. Mas esses pensamentos eram imediatamente estragados quando
se punha a pensar na reação dela à cicatriz que agora ostentava, a cruzar-lhe a sobrancelha e a maçã do rosto.
Outra coisa o perturbava: o terrível erro que cometera ao julgar Hamedes. O seu raciocínio fora erróneo, e custara a vida a um inocente. Macro pouco falara do incidente, embora
lhe tivesse oferecido umas vagas palavras de compreensão, assegurando-lhe que o erro era compreensível no meio do caos e carnificina da campanha. Cato, porém, não se desculpava
assim tão facilmente a si mesmo.
Aproximou-se do portão principal do palácio imperial que encimava o caminho, e deu ao optio de serviço o seu nome e patente, explicando a necessidade de se avistar com Narciso
e lhe apresentar um relatório.
- Senhor, aguarde aqui - instruiu-o o optio, antes de subir sem pressa as escadas de acesso ao interior. Um vento frio corria sobre a ilha, e as nuvens acumulavam-se e ameaçavam
chuva. Para o norte, a encosta mergulhava abruptamente para as falésias que caíam a pique sobre o mar; Cato deixou o olhar percorrer a baía, mal distinguindo o distante promontório
de Puteoli. Uma centena e meia de quilómetros mais a norte ao longo da costa ficava Óstia e, a uma curta distância a cavalo, Roma, e Júlia.
- Prefeito!
Cato virou-se e avistou o optio dos pretorianos a chamá-lo do cimo das escadas. Os guardas ao portão abriram caminho para ele passar. Mas na base das escadas um outro pretoriano
deteve-o, de mão erguida.
- Perdoe-me, senhor. Suponho que entregou a sua espada e quaisquer outras armas aos guardas no porto?
- Sim.
O homem assentiu.
- Excelente. Resta-nos então uma última precaução antes de poder seguir, senhor. Por favor, erga os braços e mantenha-se imóvel.
Cato fez o que lhe era exigido, e o outro rápida e eficientemente revistou-lhe a capa, a túnica, e correu os dedos pelo interior do cinto antes de recuar um passo.
- Pronto, senhor.
Cato avançou e subiu as escadas até junto do optio que o aguardava, e este levou-o, atravessando um pórtico de mármore que dava para o átrio da vila. O espaço era dominado
por uma vasta piscina pouco profunda, cujo fundo era decorado por um mosaico que representava Neptuno
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rodeado por cardumes de peixes. Do outro lado havia uma pequena arcada que abria para um terraço. Grandes portas à direita deixavam ouvir vozes que tagarelavam e davam risadas,
despreocupadas. À esquerda havia uma abertura mais pequena, que dava para as acomodações dos escravos e do pessoal menor.
- Por aqui, senhor. - O optio chamou-o com um gesto, e o jovem seguiu-o, atravessando o átrio e seguindo pelo corredor até ao terraço. O chão era de mármore róseo e estendia-se
à sua frente, terminando de forma abrupta uns cinquenta passos adiante. Em torno do terraço seguia um caminho protegido do sol por uma treliça e ladeado por plantas envasadas;
a vista para o continente distante era espetacular. Cato entendeu perfeitamente a razão de a ilha ser o cenário preferido das férias da família imperial desde havia muitos
anos.
Havia apenas outra pessoa no terraço, sentado num banco, de costas para Cato.
- Cá estamos, senhor. - O optio deteve-se e indicou a figura sentada. - Vê-lo-ei de novo no portão, senhor. Para registar a sua saída. - O homem saudou-o, rodopiou e regressou
ao interior do palácio. Cato atravessou o terraço. A fraca figura de Narciso estava envolta num manto vermelho sem adornos, e o cabelo escuro já apresentava manchas grisalhas.
Olhou para trás quando ouviu os passos de Cato, e ofereceu-lhe um sorriso sem qualquer traço de calor.
- Cato, é bom rever-te, meu rapaz. Senta-te. - Fez um gesto indicando o outro banco, disposto num ângulo em relação àquele que ocupava. À frente dos dois bancos havia uma
pequena mesa, e um fino rasto de vapor erguia-se de um cálice contendo vinho aquecido. Havia apenas uma taça, reparou Cato. Típico de Narciso, pensou, um pequeno truque para
lhe lembrar quem era o subordinado e para o colocar no seu lugar.
Cato sentou-se no lugar que lhe tinha sido indicado e Narciso olhou-o de alto a baixo por um momento antes de falar.
- Foste ferido recentemente. Uma cicatriz e tanto.
Cato encolheu os ombros.
- Já passou algum tempo desde a última vez que conversámos - prosseguiu o liberto.
- Mais de dois anos. Desde que me enviou com o Macro para espiarmos o governador da Síria.
- E muito bem o fizeram; além de desempenharem um importante papel no salvamento de Palmira das garras dos partos. Desde então realizaram também um trabalho magnífico em Creta,
e o Semprónio informou-me de que te tinha enviado em busca do escravo rebelde, o Ajax. - Narciso meteu a mão no interior da capa e retirou um rolo. - E agora o
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governador do Egito, o nosso bom amigo Petrónio, escreve que esse assunto também está resolvido. Bom trabalho. Porém, ele critica-te fortemente por teres permitido a fuga
do príncipe núbio. - Narciso observou-o cuidadosamente. - Queres explicar-me o que te levou a permitir essa ocorrência?
- No meu julgamento, era o gladiador que representava maior ameaça, considerando o quadro global - retorquiu Cato com firmeza.
- Quadro global. - Narciso lançou um leve sorriso. - Parece-me bem que estava certo quanto a ti. Tens uma cabeça capaz de ter em consideração a situação estratégica quando
tomas uma decisão. - Lançou o relatório sobre a mesa, como se não lhe interessasse mais. - O Petrónio é um tolo. A tua decisão foi boa, meu caro jovem, embora tenhas feito
de Petrónio teu inimigo, e pese o facto de muita gente aqui em Roma nunca vir a poder apreciar todas as questões que te punham neste dilema. Seja como for, podes ficar sossegado:
aceito que o que fizeste foi o mais apropriado naquela situação, embora nunca o possa reconhecer em público, e não venha a existir qualquer reconhecimento oficial pelo sucesso
alcançado na caça àquele gladiador dos infernos. - Narciso sorriu à laia de desculpa, antes de continuar. - E temos em seguida o difícil caso da decisão do senador Semprónio
de te atribuir o posto de prefeito. Fê-lo em nome do Imperador, como sabemos. Porém, ele excedeu a sua autoridade. Claro que havia uma emergência que tinha de ser enfrentada,
e tanto eu como o Imperador aprovámos as ações de Semprónio que levaram ao fim da revolta dos escravos em Creta, incluindo enviar-te com o Macro para capturar os cabecilhas.
- Narciso fez um gesto, apontando o relatório. - Agora a crise está ultrapassada, o perigo neutralizado. Apresento-te os meus agradecimentos. A ti e ao teu camarada Macro.
Cato inclinou ligeiramente a cabeça, em reconhecimento.
Narciso prosseguiu.
- Todavia, uma tão rápida progressão nas fileiras vai certamente fazer franzir alguns sobrolhos e provocar alguns enguiços, não te parece? O Imperador Cláudio tem sempre bem
presente a necessidade de não perturbar os militares, alguns dos quais não são tão leais como deviam ser. O assassínio do seu predecessor é disso prova eloquente. O que significa
que representas para ele uma certa dificuldade.
- O que quer dizer?
Narciso encarou-o por um momento, e sorriu.
- Cato, és um tipo inteligente. Sei perfeitamente que não tenho de te explicar tudo até aos mais ínfimos detalhes, mas como sei também que te dará um certo prazer forçares-me
a ser franco, assim seja.
- Seria por certo muito apreciado.
- Não seria prudente confirmar a tua nomeação neste momento,
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particularmente sendo tua intenção regressar a Roma e casar com aquela adorável filha do Semprónio. A tua presença na capital provocaria invejas. Há muitos outros senadores
com protegidos que tentam fazer avançar na escala social.
Cato ouvia tudo enquanto o seu ressentimento aumentava. Era aquela a sua recompensa pelos sacrifícios que fizera ao serviço de Roma e do Imperador. Uma gratidão expressa apenas
em privado, seguida inevitavelmente por uma despromoção para a patente de centurião. E com ela desapareceria a sua elevação automática à classe equestre. E podia perfeitamente
imaginar a relutância de Semprónio em permitir que a filha casasse com alguém tão abaixo dela na escala social. Era verdade que o senador tinha de alguma forma encorajado
a relação dos jovens depois do cerco de Palmira, mas isso sucedera em circunstâncias muito diferentes do habitual mata-e-esfola da vida social e política em Roma. A despromoção
de Cato seria vista como sinal evidente da perda do favor imperial, mesmo que em privado lhe fosse oferecida a gratidão de Narciso e do próprio Imperador Cláudio. Todos os
planos que o jovem tinha feito para um futuro ao lado de Júlia começaram a ruir na sua mente. Tossiu.
- Esses protegidos têm servido Roma tão bem como eu?
- Não, nem por sombras, mas também é verdade que o Semprónio não é tão influente como outros senadores. Vês a difícil posição em que me encontro. Crê-me, não me quero interpor
no teu caminho, negar-te a promoção e a felicidade futura. - Piscou um olho. - Mas há realidades políticas que têm de ser pesadas. É assim o meu trabalho. Não estaria a prestar
um bom serviço ao Imperador se não tivesse em conta o quadro global.
- Portanto, não verei confirmada a minha promoção.
- De momento, não. Talvez quando estiveres a uma distância segura de Roma, e longe do olhar do público.
- Quer dizer que não posso ficar em Roma e ser promovido.
Narciso manteve-se em silêncio por momentos, antes de anuir com
um gesto.
Cato soltou um longo e desanimado suspiro.
- Muito bem, arranje-me então uma posição, algures onde não embarace ninguém, e não muito distante de Roma, nem demasiado desconfortável, algo que não faça com que a Júlia
prefira que eu vá sozinho.
Narciso franzira a testa enquanto Cato falava, e adotou um tom gélido ao responder.
- Jovem, tu não me fazes exigências. Que fique bem claro. Não fosse o teu brilhante registo, serias punido pela forma como falaste. Agora escuta. Antes de o ano terminar,
a tua promoção será confirmada, estejas em Roma ou estacionado algures no Império. Tens a minha palavra quanto a isso. E
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eis a razão para tal - Narciso fez uma pausa e olhou em torno, como que para se assegurar de que ninguém os escutava. Cato não se deixou iludir nem por um momento A segurança
em torno do palácio era tão apertada que nenhum espião poderia de forma alguma penetrar o anel de aço que a
guarda pretoriana formava em torno da residência imperial
Ainda assim, Narciso baixou o tom de voz.
Preciso de ti e do Macro. Com urgência. Recordas-te dos problemas que tivemos com aquele bando de traidores que se intitulam a si mesmos Libertadores?
Cato recordava-se, e perfeitamente. Uma obscura conspiração de aristocratas e respetivos seguidores que queriam ver-se livres do sistema imperial e fazer regressar Roma aos
dias da República, quando era o Senado que detinha o poder supremo. Anuiu, dirigindo-se a Narciso.
- Sim, lembro-me.
- Então ficas a saber que estão outra vez ativos. Os meus espiões ouviram rumores de um novo plano contra o Imperador.
- Os Libertadores tencionam assassiná-lo?
- Não conheço ainda os detalhes, só sei que há alguma coisa no ar. Há muito poucos homens a quem possa contar esta novidade. É por isso que nos estamos a encontrar aqui, a
sós. Preciso de homens em quem possa confiar para investigar esta história a fundo. Capazes de penetrar até ao âmago desta conspiração.
Cato considerou o que lhe estava a ser pedido, e sorriu com amargura.
- É portanto assim. Ou fazemos mais este trabalho para si, ou a minha promoção será negada.
- Sim.
- E o que tem o Macro a ganhar com tudo isto?
- Quando regressarem ao serviço ativo, poderá escolher a legião em que será colocado. Ou então poderá tomar o comando de uma coorte auxiliar.
- E que garantias temos de que cumprirá a sua parte do acordo se aceitarmos esta nova missão?
- Têm a minha palavra.
Cato quase rebentou em gargalhadas, mas conseguiu refrear o ímpeto a tempo. Não ganhava nada em insultar dessa forma o secretário imperial. E, da mesma forma, muito havia
a perder se recusasse a tarefa que lhe era proposta. Olhou Narciso nos olhos.
- Não lhe posso dar agora uma resposta. Tenho de falar com o Macro primeiro.
- Onde está ele?
- Lá em baixo, no porto.
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- Muito bem. Vai então. Espero ver-te de volta aqui antes do fim do dia. Se não vieres, partirei do princípio de que recusam esta missão, e ver-me-ei obrigado a procurar alguém
mais leal a quem a possa confiar. Um homem mais merecedor de uma promoção, se é que me faço entender.
- Perfeitamente. - Cato levantou-se repentinamente. - Despeço-me então.
- Para já, sim - assentiu Narciso. - Cato, não te demores. Estarei aqui à tua espera - acrescentou, com uma tal certeza na voz que Cato não conseguiu libertar-se dela enquanto
atravessava o terraço, deixava o palácio e descia o caminho, longo e íngreme, até ao porto, onde procurou Macro.
- É mesmo uma criatura vil, viscosa, merdosa e traiçoeira, este nosso Narciso. - Macro abanou a cabeça. - Um dia destes hei de convidá-lo para um passeiozito por um beco tranquilo,
e despachá-lo.
- Quem me dera que fosse já hoje - ripostou Cato, deixando-se levar pela emoção. Pegou na taça que Macro lhe enchera e olhou em torno do pequeno estabelecimento. Numa mesa
encostada à parede oposta via-se um punhado de pretorianos, de folga, a jogar dados; o compartimento era iluminado apenas por duas ou três lamparinas penduradas das traves
do teto. Cato baixou a voz, ainda assim. - O que acha?
- Da proposta do Narciso? - Macro encolheu os ombros. - Aceitamos. Que mais podemos nós fazer? O sacana tem-nos presos pelos tomates, e sabe muito bem disso. Além disso, se
ele conseguir meter-me outra vez numa legião, com uma colocação permanente, faço o que ele quiser. E tu também, se tens algum senso. Senão, como é que consegues a confirmação
da tua promoção a prefeito? Mas digo-te, Cato, fazia o que fosse preciso para voltar às fileiras. Se o que é preciso é mais uma missão para o Narciso, vamos a ela.
Cato anuiu, pensativo. O amigo tinha razão. Não havia escolha. A menos que renunciasse ao casamento com Júlia, teria de aceder ao pedido do secretário imperial, para conseguir
a promoção e ser elevado à classe equestre. Só nesse momento é que se poderia apresentar perante o senador Semprónio na qualidade de pretendente aceitável à mão da filha.
Levou a mão livre à cicatriz recente. Sentiu a ansiedade a dilacerar-lhe o coração, enquanto tentava imaginar qual seria a reação da jovem quando o revisse.
Macro reparou no gesto e não se coibiu de soltar uma risada.
Cato franziu o sobrolho.
- O que é?
- Miúdo, acredita em mim. - Macro sorriu enquanto pegava no jarro de vinho e se esticava sobre a mesa para voltar a encher o copo de Cato até ao bordo. - As mulheres adoram
uma cicatriz decente. Faz-te parecer
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um homem a sério, em vez duma daquelas flores de estufa que passeiam pelo fórum em Roma. Portanto, um brinde. Morte aos inimigos do Imperador, e à saúde das merecidas recompensas
que há já tanto tempo deviam ser nossas.
Cato anuiu, enquanto fazia chocar a sua taça com a de Macro.
- Meu amigo, bebo a isso.
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NOTA DO AUTOR

A província romana do Egito era um dos mais importantes ativos do Império. Roma tinha deitado o olhar sobre o Egito muito antes de Octaviano (que mais tarde adotou o título
de Augusto) o anexar na sequência do suicídio de Cleópatra - a última herdeira da dinastia estabelecida por Ptolomeu depois da partilha dos territórios conquistados por Alexandre,
o Grande. Graças às inundações regulares do Nilo, a produção de trigo no país era prodigiosa. Mais ainda, o reino situava-se na encruzilhada do comércio entre as civilizações
mediterrânicas e as orientais. A riqueza acumulada em resultado da produção agrícola e do comércio faziam de Alexandria a mais próspera e populosa cidade do mundo, a seguir
a Roma.
É portanto natural que sucessivos imperadores tenham guardado ciosamente a joia da coroa romana. Ao contrário de outras províncias, o Egito era um domínio pessoal do Imperador,
que nomeava um prefeito para a governar em seu nome. Os membros da classe senatorial, e até os pertencentes à classe imediatamente inferior, os equestres, ou cavaleiros, estavam
estritamente proibidos de entrar no Egito sem a permissão expressa do Imperador. No entanto, a mistura quase febril de diferentes etnias em Alexandria pouco precisava de agentes
externos para explodir em violência. Um dos episódios mais recorrentes na história da província era o frequente rebentar de motins e escaramuças urbanas entre gregos, judeus
e egípcios, que habitavam Alexandria e esgotavam a paciência dos seus governadores romanos.
O governo romano do Egito tinha um propósito bem estabelecido: extrair da província o máximo de riqueza possível. Em consequência, o sistema administrativo funcionava de forma
extremamente eficiente, maximizando os impostos recolhidos, e o povo do Egito via-se submetido a uma pesada carga fiscal. A maior parte deste fardo recaía sobre a classe média
da província - o mais tradicional e fácil alvo dos governantes, no passado como no presente. Por causa disso, os infelizes cidadãos acabavam por se afundar em dívidas, e foi
assim que se iniciou o declínio do Egito.
Os egípcios nativos já tinham resistido à imposição da cultura grega pelos Ptolomeus, e Os romanos nunca os conseguiram convencer a adotar
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os seus costumes. O latim era a língua dos opressores e, fora de Alexandria e das grandes cidades e povoações, a vida prosseguia mais ou menos nos mesmos moldes que no tempo
dos faraós. Ainda hoje, muitos dos que vivem nas margens do Alto Nilo habitam em casas feitas dos mesmos tijolos de lama seca que eram usados pelos seus antepassados, e fazem
as suas colheitas à mão como eles.
Para lá da pesada mão dos seus senhores romanos, os locais sofriam frequentes depredações e pequenas invasões dos núbios e dos etíopes na zona de fronteira, a sul da moderna
Assuão. Os postos romanos nas duas margens da estreita faixa de terra habitável que ladeia o Nilo eram facilmente destruídos ou evitados, e o saque estava facilmente disponível.
As legiões de Roma sempre foram curtas para os milhares de quilómetros das fronteiras em que tentavam defender o Império. No Egito a história não era diferente. As três legiões
que Augusto lá estacionara depressa se viram reduzidas a duas, uma das quais dispersa entre inúmeras posições por toda a província. O grosso das tropas ao dispor do governador
era constituído por coortes auxiliares. Sempre sob o olhar atento do Imperador, o governador tinha de assegurar que o trigo e os impostos continuavam a fluir para Roma, enquanto
geria as suas parcas forças para tentar manter a ordem e defender a fronteira - uma missão deveras pouco invejável.
Como sempre, tratei de percorrer o cenário em que este romance decorre. Posso garantir que os pântanos do delta são verdadeiramente desconfortáveis, e que o calor no Alto
Nilo é absolutamente insuportável! As antigas ruínas valem bem uma visita, e não me pude impedir de ficar assombrado perante uma civilização capaz de erigir tamanhos monumentos
muito antes de uma obscura povoação nas margens do Tibre ter sequer sido fundada. Para os leitores que queiram sentir o Egito por si mesmos, recomendaria com entusiasmo uma
viagem a Luxor (cidade moderna junto à antiga Tebas egípcia, Diospolis Magna para gregos e depois romanos). Muitos dos locais mencionados ao longo do livro ainda lá estão e, com um pouco de imaginação, podem ser vistos exatamente como Macro e Cato os teriam visto.

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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