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Um dia, nos cais, um título de um livro reteve a minha atenção, Le Temps des rencontres. Para mim também houve um tempo dos encontros, num passado longínquo. Nessa época, tinha frequentemente medo do vazio. Não sentia essa vertigem quando estava só, mas sim com algumas pessoas que, justamente, acabara de encontrar. Dizia-me, para me tranquilizar: em breve surgirá, por certo, uma oportunidade de me raspar. Não sabias até onde algumas dessas pessoas poderiam levar-te. A encosta era escorregadia.
Em primeiro lugar, poderia evocar os inícios da noite de domingo. Causavam-me apreensão, como a todos aqueles que conheceram os regressos ao colégio interno, no inverno, ao fim da tarde, à hora em que o dia termina. Subsequentemente, isso persegue-os nos sonhos, por vezes durante toda a vida. Ao domingo à noite, algumas pessoas reuniam-se no apartamento de Martine Hayward e eu contava-me entre elas. Tinha vinte anos e não me sentia inteiramente no meu lugar. Invadia-me de novo um sentimento de culpa, como se ainda fosse um colegial: em vez de regressar ao colégio interno, fizera gazeta.
Deverei falar realmente, de imediato, de Martine Hayward e de alguns indivíduos díspares que a rodeavam, nessas noites? Ou então seguir a ordem cronológica? Já não sei.
Cerca dos catorze anos, habituara-me a deambular sozinho pelas ruas, nos dias de férias, quando o autocarro do colégio nos deixava na Porte d’Orléans. Os meus pais estavam ausentes, o meu pai ocupado com os seus negócios, enquanto a minha mãe representava uma peça num teatro de Pigalle. Descobri nesse ano – 1959 – esse bairro de Pigalle, nas noites de sábado, enquanto a minha mãe estava em cena, e voltei lá, amiúde, durante os dez anos seguintes. Darei mais pormenores sobre isso, se tiver coragem para o fazer.
De início, tinha medo de passear sozinho, mas, para me tranquilizar, seguia sempre o mesmo itinerário: rue Fontaine, place Blanche, place Pigalle, rue Frochot e rue Victor-Massé até à Boulangerie, na esquina da rue Pigalle, um local engraçado que ficava aberto toda a noite e onde comprava um croissant.
Nesse mesmo ano e nesse mesmo inverno, nos sábados em que não estava no colégio, ficava à espreita na rue Spontini diante do prédio onde vivia aquela cujo nome próprio esqueci e a quem chamarei «a filha de Stioppa». Não a conhecia, soubera a sua morada através do próprio Stioppa, durante um desses passeios para que me levavam, o meu pai e Stioppa, aos domingos, no bois de Boulogne. Stioppa era um russo, amigo do meu pai, com quem este se encontrava amiúde. Alto, com cabelo castanho e brilhante. Vestia um velho sobretudo com uma gola de pele. Sofrera reveses de fortuna. Acompanhávamo-lo, cerca das seis da tarde, até uma casa de hóspedes onde vivia. Dissera-me que a filha tinha a minha idade e que eu poderia entrar em contacto com ela. Aparentemente, ele já não a via, porque ela vivia com a mãe e o novo marido desta.
Nas tardes de sábado desse inverno, antes de ir ter com a minha mãe a Pigalle, ao seu camarim de teatro, colocava-me diante do prédio da rue Spontini à espera de que a porta-cocheira envidraçada e com ferros negros se abrisse e aparecesse uma rapariga da minha idade, «a filha de Stioppa». Tinha a certeza de que estaria sozinha, avançaria na minha direção e seria fácil abordá-la. Mas ela nunca saiu do prédio.
Stioppa dera-me o seu número de telefone. Atenderam. Disse: «Queria falar com a filha de Stioppa.» Um silêncio. Apresentei-me como «o filho de um amigo de Stioppa». A sua voz era límpida e amiga, como se nos conhecêssemos há muito. «Telefona-me na próxima semana», disse-me. «Marcaremos um encontro. É complicado... Não vivo em casa do meu pai... Explicar-te-ei tudo.» Mas, na semana seguinte e nas outras semanas daquele inverno, o toque do telefone prolongou-se sem que ninguém respondesse. Duas ou três vezes, ao sábado, antes de apanhar o metro para Pigalle, voltei a ficar à espreita diante do prédio da rue Spontini. Debalde. Podia ter tocado à porta do apartamento, mas tinha a certeza de que, tal como no caso do telefone, ninguém responderia. E depois, a partir dessa primavera, nunca mais houve passeios no bois de Boulogne com Stioppa. Nem com o meu pai.
Durante muito tempo, estive convencido de que só se podiam ter verdadeiros encontros na rua. Eis a razão pela qual esperava a filha de Stioppa no passeio, diante do seu prédio, sem a conhecer. «Explicar-te-ei tudo», dissera-me ao telefone. Durante mais alguns dias, uma voz cada vez mais longínqua proferia essa frase nos meus sonhos. Sim, se quis encontrá-la foi porque esperava que me desse «explicações», que talvez me ajudassem a compreender melhor o meu pai, um desconhecido que caminhava em silêncio a meu lado, ao longo das alamedas do Bois de Boulogne. Ela, a filha de Stioppa, e eu, o filho do amigo de Stioppa, tínhamos certamente pontos comuns. E tinha a certeza de que ela sabia um pouco mais do que eu.
Na mesma época, por detrás da porta aberta do seu escritório, o meu pai falava ao telefone. Algumas palavras que me haviam intrigado: «a quadrilha dos russos do mercado negro». Quase quarenta anos depois, deparou-se-me uma lista de nomes russos, os de grandes traficantes de mercado negro, em Paris, durante a ocupação alemã. Schaposchnikoff, Kourilo, Stamoglou, barão Wolf, Metchersky, Djaparizé... Stioppa encontrava-se entre eles? E o meu pai, sob uma falsa identidade russa? Fiz-me uma vez mais essas perguntas antes de se perderem, sem respostas, na noite dos tempos.
Perto dos dezassete anos, encontrei uma mulher, Mireille Ourousov, que tinha, também, um nome russo, o do seu marido, Eddie Ourousov, apodado «o Cônsul», com quem vivia em Espanha, perto de Torremolinos. Era francesa, originária das Landes. As dunas, os pinheiros, as praias desertas do Atlântico, num dia soalheiro de setembro... No entanto, conhecera-a em Paris, no inverno de 1962. Deixara o meu colégio na Haute-Savoie com trinta e nove graus de febre, apanhara um comboio para Paris e dera à costa, cerca da meia-noite, no apartamento da minha mãe, que estava ausente e confiara a chave a Mireille Ourousov, que vivia lá durante umas semanas, antes de regressar a Espanha. Quando toquei à porta, fora ela quem abrira. O apartamento parecia abandonado. Já não havia móveis, exceptuando uma mesa de bridge e duas cadeiras de jardim na entrada, uma grande cama no meio do quarto que dava para o cais e, no quarto ao lado onde dormia no tempo da minha infância, uma mesa, retalhos de tecido e um manequim de costureira, vestidos e roupas diversas dependuradas em cabides. O lustre espalhava uma luz velada, porque a maior parte das lâmpadas estava fundida.
Um estranho mês de fevereiro com aquela luz velada no apartamento e os atentados da OAS. Mireille Ourousov regressara dos desportos de inverno e mostrava-me fotografias suas e dos seus amigos na varanda de um chalé. Numa delas, estava acompanhada por um ator chamado Gérard Blain. Disse-me que ele entrara em filmes desde os doze anos, sem autorização dos pais, porque era uma criança entregue a si mesma. Mais tarde, quando o vi em determinados filmes, parecia-me que nunca deixara de caminhar, de mãos nos bolsos, a cabeça ligeiramente enterrada nos ombros, como se quisesse proteger-se da chuva. Eu passava a maior parte dos dias com Mireille Ourousov. Não era frequente tomarmos as refeições no apartamento. O gás estava cortado e era preciso cozinhar com um fogareiro a álcool. Não havia aquecimento, mas ainda restavam algumas achas na lareira do quarto. Numa manhã, fomos ao lado do Odéon pagar uma conta de eletricidade para não termos de nos iluminar com velas durante os dias futuros. Saíamos quase todas as noites. Ela levava-me, cerca da meia-noite, perto do apartamento, a um cabaré da rue des Saints-Pères, quando o espetáculo já terminara havia muito. Restavam alguns clientes no bar do rés do chão que pareciam conhecer-se todos e falavam entre si em voz baixa. Encontrávamo-nos lá com um amigo dela, um tal Jacques de Bavière (ou Debavière), um louro de aspeto desportivo que ela me dissera que era «jornalista» e «estava sempre entre Paris e Argel». Suponho que, quando por vezes se ausentava durante a noite, era para ir ter com Jacques de Bavière (ou Debavière), que vivia num estúdio na avenue Paul-Doumer. Acompanhara-a até lá numa tarde, porque ela esquecera nesse estúdio o seu relógio de pulso. Jacques de Bavière estava ausente. Ele convidara-nos, duas ou três vezes, para irmos a um restaurante dos Champs-Élysées, na rue Washington, La Rose des Sables. Muito mais tarde, vim a saber que o cabaré da rue des Saints-Pères e La Rose des Sables eram frequentados, nessa época, por membros de uma polícia paralela ligada à guerra da Argélia, e perguntei-me, por causa dessa coincidência, se Jacques de Bavière (ou Debavière) não faria parte dessa organização. Num outro inverno, nos anos setenta, perto das seis da tarde, vi sair do acesso ao metro George-V, no momento em que nele entrava, um homem em quem julguei reconhecer, um pouco envelhecido, Jacques de Bavière. Dei meia-volta e fui andando atrás dele, dizendo para comigo que tinha de o abordar para saber o que acontecera a Mireille Ourousov. Ainda vivia em Torremolinos com o marido, Eddie, «o Cônsul»? Descia em direção ao Rond-Point e coxeava ligeiramente. Parei ao chegar à esplanada do Café Marignan e segui-o com o olhar até se perder na multidão. Por que razão não o abordei? E ter-me-ia reconhecido? Não posso responder a estas perguntas. Paris, para mim, está juncada de fantasmas, tão numerosos como as estações de metro e todos os seus pontos luminosos, quando carregávamos nos botões do painel de correspondências.
Apanhávamos o metro com frequência, Mireille Ourousov e eu, na estação Louvre, para nos deslocarmos aos bairros de oeste onde ela ia visitar amigos cujos rostos esqueci. O que continua a ser preciso na minha recordação é a travessia da Pont des Arts que fazia com ela, em seguida a praça diante da igreja de Saint-Germain-l’Auxerrois, e por vezes a travessia do pátio do Louvre com, lá ao fundo, a luz da esquadra de polícia, aquela mesma luz velada que iluminava o apartamento. No meu antigo quarto, uns livros nas prateleiras, perto da janela da direita, e pergunto-me hoje por que milagre haviam ficado ali, esquecidos, quando tudo desaparecera. Livros que a minha mãe lia quando chegara a Paris em 1942: romances de Hans Fallada, livros em flamengo, e também volumes da Bibliothèque Verte que haviam sido meus – Le Cargo du mystère, O Visconde de Bragelonne...
Lá, na Haute-Savoie, tinham acabado por se preocupar com a minha ausência. Numa manhã, tocou o telefone e foi Mireille Ourousov que atendeu. O cónego Janin, o diretor do colégio, queria que lhe dessem notícias minhas, porque havia uma quinzena que não as tinha.
Ela disse-lhe que «eu estava adoentado» – uma forte gripe – e que o manteria ao corrente da data exata em que «faria o meu regresso». Perguntei-lhe francamente: será que poderia ir com ela para Espanha? Era necessária uma autorização por escrito dos pais para atravessar as fronteiras, quando se era menor. E o facto de eu ainda não ter atingido a maioridade parecia, de súbito, preocupar muito Mireille Ourousov, ao ponto de se propor pedir conselho a Jacques de Bavière quanto a isso.
O momento do dia que preferia era, em Paris e no inverno, entre as seis e as oito e meia da manhã, quando ainda era noite. Um pequeno descanso antes do nascer do dia. O tempo ficava suspenso e sentíamo-nos mais leves do que habitualmente.
Frequentei diversos cafés de Paris à hora em que abriam as portas aos primeiros clientes. No inverno de 1964, num desses cafés da alvorada – como lhes chamava –, onde todas as esperanças eram permitidas enquanto ainda fosse noite, conheci uma tal Geneviève Dalame.
O café ocupava o rés do chão de uma dessas casas baixas, perto do final do boulevard de la Gare, no treizième arrondissement. Hoje, o boulevard mudou de nome e as casas e os pequenos prédios, do lado dos números ímpares, antes da place d’Italie, foram destruídos. De quando em quando, parece-me que o café se chamava Le Bar Vert, noutros momentos essa recordação esfuma-se, como as palavras que acabamos de ouvir num sonho e nos fogem ao despertar.
Geneviève Dalame era sempre a primeira a chegar e, quando eu entrava no café, via-a sentada à mesma mesa, a do fundo, com a cabeça inclinada sobre um livro aberto. Dissera-me que só dormia quatro horas por noite. Trabalhava como secretária nos Studios Polydor, um pouco mais abaixo no boulevard, e era por isso que nos encontrávamos nesse café, antes de ela ir para o escritório. Conhecera-a numa livraria de ciências ocultas da rue Geoffroy-Saint-Hilaire. Ela interessava-se muito por essas ciências. Eu também. E não era para me submeter a uma doutrina ou tornar-me discípulo de um guru, mas simplesmente por gosto pelo mistério.
À saída da livraria, a noite caíra e a essa hora, no inverno, havia a mesma sensação de leveza que de manhã muito cedo quando ainda era noite. A partir de então, o cinquième arrondissement, em todas as suas diferentes zonas e a sua periferia longínqua do boulevard de la Gare, ficaria ligado para mim a Geneviève Dalame.
Perto das oito e meia, caminhávamos até ao seu escritório, ao longo do terrapleno, onde passa o metro aéreo. Fazia-lhe perguntas sobre os Studios Polydor. Acabara de passar um exame como «autor de letras», na Sociedade de Autores, Compositores e Editores de Música, e precisava de um «padrinho» para me inscrever lá. Um tal Emil Stern, autor de canções, diretor de orquestra e pianista, aceitara desempenhar esse papel. Dirigira as primeiras gravações de Édith Piaf, vinte e cinco anos antes, nos Studios Polydor. Perguntei a Geneviève Dalame se, nos arquivos do estúdio, se conservariam quaisquer vestígios disso. Uma manhã, no café, entregou-me um sobrescrito que continha as antigas fichas de gravação de Édith Piaf, dirigidas pelo meu «padrinho», Emil Stern. Parecia bastante perturbada por ter cometido aquele roubo para mim.
Inicialmente, hesitou quanto a dizer-me qual o local preciso onde vivia. Quando lhe fizera a pergunta, respondera-me: «No hotel.» Conhecíamo-nos havia duas semanas e, numa tarde em que lhe oferecera o Dictionnaire pratique des sciences occultes, de Mariannne de Verneuil, e um romance que se relacionava com o esoterismo, À la mémoire d’un Ange, propôs-me que a acompanhasse até esse hotel.
Ficava no final da rue Monge, na divisa entre os Gobelins e o treizième arrondissement. Já passou cerca de meio século e, em Paris, as pessoas já não moram em quartos de hotel, como se fazia muito no pós-guerra e até aos anos sessenta. Geneviève Dalame terá sido a última pessoa que conheci que vivia num quarto de hotel. Parece-me também que, durante esses anos 1963, 1964, o velho mundo sustinha, pela última vez, a respiração, antes de se desmoronar, como todas essas casas e todos esses imóveis dos bairros tradicionais e da periferia que estavam prestes a ser destruídos. Foi-nos concedido, a nós que éramos muito jovens, viver ainda alguns meses nos cenários antigos. No hotel da rue Monge, lembro-me do interruptor em forma de pera, na mesa-de-cabeceira, e de um cortinado preto que Geneviève Dalame corria com um gesto brusco, um cortinado de defesa passiva que não fora substituído desde a guerra.
Algumas semanas depois de nos termos conhecido, apresentou-me o irmão, um irmão de quem me não falara até então. Em duas ou três ocasiões, tentara saber mais sobre a sua família, mas sentira nela uma resistência a responder-me, e não insistira.
Uma manhã, entrei no café do boulevard de la Gare e ela encontrava-se na mesa habitual, acompanhada por um moreno da nossa idade, que estava sentado à sua frente. Sentei-me no banco, a seu lado. Ele usava um blusão com um fecho éclair, acolchoado nos ombros e que, dir-se-ia, era de pele de leopardo. Sorriu-me e encomendou um grogue, com uma voz estridente, como se fosse cliente habitual do local.
Geneviève Dalame disse-me: «É o meu irmão», e compreendi, pelo seu ar pouco à-vontade, que viera encontrar-se com ela sem prevenir.
Perguntou-me «o que fazia na vida» e respondi-lhe de uma forma evasiva. Depois, como se essa informação pudesse ser-lhe útil, fez-me uma pergunta que me surpreendeu: «Vive em Paris?» Pensei que ele não vivera sempre em Paris. Geneviève Dalame dissera-me que nascera numa cidade dos Vosges, que já não sei se era Épinal ou Saint-Dié. Imaginava-o, a ele, perto das onze da noite, à mesa de um café de uma dessas duas cidades, um café perto da estação ferroviária, o único ainda aberto. Vestia, sem dúvida, o mesmo blusão demasiado grande, a imitar pele de leopardo, e esse blusão, perfeitamente anódino numa rua parisiense, devia, lá, atrair todas as atenções sobre ele. Estava sentado sozinho, diante de uma caneca de cerveja, enquanto se jogava a última partida de bilhar.
Quis acompanhar Geneviève Dalame ao escritório e percorremos o terrapleno do boulevard. Ela parecia cada vez mais constrangida na sua presença, com ar de querer livrar-se dele. A minha impressão confirmou-se quando ele lhe perguntou se continuava a viver no hotel da rue Monge. «Vou-me embora na próxima semana», disse-lhe. «Encontrei outro hotel, para os lados de Auteil.» Ele insistiu em ter a morada. Geneviève deu-lhe um número, na rue Michel-Ange, como se tivesse previsto que lhe faria essa pergunta. Ele tirou do bolso interior do blusão um bloco com capa de couro negro e anotou o endereço. E depois ela deixou-nos diante da porta dos Studios Polydor, dizendo-me: «Até logo», com um leve movimento da cabeça, em sinal de conivência.
Então, fiquei sozinho com aquele indivíduo com o blusão de leopardo. «Quer vir tomar um copo?», inquiriu, com um tom perentório. A neve começara a cair em flocos muito molhados, quase umas gotas de chuva. «Não tenho tempo», respondi. «Tenho de ir a uma entrevista.» Mas ele continuava a caminhar a meu lado e tive vontade de me distanciar, correndo para a entrada do metro de Chevaleret, a algumas centenas de metros. «Conhece a Geneviève há muito tempo? Não o maça muito com as suas histórias de magia e de mesas que giram?» «De modo nenhum.» Perguntou-me se eu morava no bairro e tive a certeza de que procurava saber a minha morada para a anotar no seu bloco preto. «Fora de Paris», retruquei. E tive um pouco de vergonha dessa mentira. «Em Saint-Cloud.» Puxou do bloco preto. Tive de inventar uma morada, uma avenida Anatole-France ou Romain-Rolland. «E tem telefone?» Hesitei durante um instante quanto ao indicativo e decidi-me por «Val-d’Or» seguido de quatro algarismos. Anotou-o escrupulosamente. «Quero inscrever-me num curso de arte dramática. Conhece algum?» Fixava em mim um olhar insistente. «Disseram-me que tinha físico para isso.» Era grande, com as feições bastante regulares, caracóis negros. «Sabe», respondi-lhe, «em Paris, os cursos de arte dramática são às pazadas.» Pareceu surpreendido, sem dúvida por causa da expressão «às pazadas». Correu o fecho éclair do seu blusão de imitação de leopardo, até ao pescoço, e levantou a gola para se proteger da neve que caía com mais força. Chegara finalmente junto à entrada da estação do metro. Temi que me seguisse e de já não ser capaz de me livrar dele. Desci a escada sem me despedir e sem olhar para trás e esgueirei-me para o cais da estação no preciso momento em que a cancela se fechava.
Geneviève Dalame não se espantou com a atitude que eu tivera com o seu irmão. No final de contas, ela não lhe tinha dado, também, uma morada de hotel falsa? Contou-me que ele viera ao café para lhe pedir dinheiro. Claro que ele conhecia o café que frequentávamos de manhã bem cedo e o seu local de trabalho, mas ela disse-me que nos livramos facilmente das pessoas. Não partilhava o seu otimismo. Acrescentou, com uma voz muito calma, que o seu irmão acabaria por regressar aos Vosges e viveria lá de «pequenos expedientes» – foi a expressão que utilizou – como sempre fizera. Os dias passaram sem que tivéssemos notícias dele. Sim, talvez tivesse regressado aos Vosges.
Durante algum tempo, imaginei esse irmão de Geneviève Dalame a entrar numa cabina telefónica e marcar o número Val-d’Or e quatro algarismos, sem que ninguém respondesse. Ou então a ouvir a frase: «Marcou o número errado, meu caro senhor», que caía como um cutelo. E via-o a apanhar o metro, e depois a atravessar o Sena até Saint-Cloud, vestido com o seu blusão de imitação de leopardo. O inverno fora bastante agreste nesse ano e, com a gola levantada, caminhava à procura de uma avenida que não existia. Até à eternidade.
Geneviève Dalame visitava regularmente uma mulher que considerava uma amiga e que, segundo ela, conhecia muito bem as ciências ocultas. Falara-lhe do nosso encontro e dissera que eu lhe oferecera o Dictionnaire de Marianne Verneuil e o romance intitulado À la mémoire d’un Ange. Um dia, propôs-me que a acompanhasse a casa dessa Madeleine Péraud, de cujo nome tive alguma dificuldade em me lembrar. Mas, com um pouco de boa vontade, voltam-nos à memória esses nomes que se encontravam no nosso espírito sob uma fina camada de neve e esquecimento. Sim, Madeleine Péraud. Mas talvez esteja enganado quanto ao nome próprio.
Morava no início da rue du Val-de-Grâce, no número 9. De então para cá, passei amiúde diante do portão que dá acesso a um jardim rodeado por três fachadas de prédios com grandes janelas. Fui lá parar, por acaso, há quinze dias, e foi à hora em que transpusemos o portão, Geneviève Dalame e eu. Às cinco horas de uma tarde de inverno, quando a noite caía e já se via luz nas janelas. Tive a certeza de que regressara ao passado mediante um fenómeno a que poderíamos chamar o eterno retorno ou, simplesmente, que, para mim, o tempo se detivera num determinado período da minha vida.
Madeleine Péraud era uma morena de cerca de quarenta anos, com o cabelo a formar um carrapito, olhos claros, o porte de cabeça e a maneira de andar de uma antiga bailarina. Como a conhecera Geneviève Dalame? Penso que começara por ir a sua casa para ter lições de ioga, mas tenho também a recordação de que, antes de me ter levado a conhecê-la, Geneviève Dalame me falava dela como a «doutora Péraud». Exerceria a medicina? Tudo isso se passou há uma cinquentena de anos e devo dizer que, durante esse meio século, nunca me fiz muitas perguntas sobre todas essas pessoas com que me cruzara. Encontros breves.
A partir do dia em que ma apresentou, acompanhei-a várias vezes a casa de Madeleine Péraud, às cinco horas da tarde – e à quinta-feira. Conduzia-nos em silêncio pelo corredor, até à sala. As duas grandes janelas davam para o jardim e sentávamo-nos, Geneviève Dalame e eu, no sofá vermelho, diante das janelas, Madeleine Péraud, num pufe, com as pernas cruzadas e as costas muito direitas. No nosso primeiro encontro, perguntou-me com a sua voz baixa, quase rouca, se estava a estudar, e disse-lhe a verdade: «Não, não estudo.» Só me inscrevera na Sorbonne para adiar a minha incorporação no exército, mas nunca ia às aulas. Era um aluno fantasma. Quis saber se tinha um trabalho e disse-lhe que ganhava mais ou menos a vida trabalhando para alguns livreiros, dedicando-me àquilo a que poderiam chamar, embora essa designação comercial não me agrade muito, «corretagem de livros». E era membro da Sociedade de Autores, Compositores e Editores de Música com o objetivo de escrever letras de canções. E era tudo. «E os seus pais?» Apercebi-me subitamente de que, na minha idade, poderia ter uns pais que me prestassem uma ajuda moral, afetiva ou material. Mas não, não tinha pais. Esta resposta foi tão lacónica que ela não quis saber mais nada sobre um eventual círculo familiar. Era a primeira vez que respondia de uma forma espontânea a perguntas a meu respeito. Até então, evitava-as, porque sentia uma desconfiança natural em relação a todas as formas de interrogatório. Talvez me tivesse deixado arrastar, nessa tarde, por causa do olhar e da voz de Madeleine Péraud, que te comunicavam uma espécie de calma, uma sensação de que alguém te ouvia, algo a que não estava habituado. Fazia as perguntas certas, tal como um acupuntor conhece os pontos precisos onde há que inserir as agulhas. E, ademais, Geneviève Dalame não lhe chamara várias vezes «doutora Péraud»? E, depois, havia também a calma daquela sala, as duas grandes janelas que davam para o jardim, a iluminação do lustre entre as janelas, que deixava zonas de penumbra. Por causa do silêncio, perguntavas-te se estarias realmente em Paris. Passava a maior parte dos meus dias no exterior, nas ruas e nos locais públicos, cafés, metro, quartos de hotel, salas de cinema. E o apartamento da «doutora Péraud» contrastava com tudo isso, sobretudo no inverno, nos invernos do início dos anos sessenta, que me parecem ter sido muito mais rigorosos do que os de hoje. Confesso que, na minha primeira visita a casa da «doutora Péraud», disse para comigo que seria tranquilizador estar abrigado do frio e do inverno no seu apartamento e responder às perguntas que me fizesse com uma voz tão grave e tão calma.
Em casa de Madeleine Péraud, permiti-me lançar um olhar aos livros que ocupavam as prateleiras de uma estante baixa, ao fundo da sala. Disse-lhe que não queria ser indiscreto, mas que era, da minha parte, uma curiosidade de ordem «profissional». «Se encontrar livros que lhe interessem, leve-os.» Encorajava-me com um sorriso. Tratavam-se de obras dedicadas às ciências ocultas. Entre elas, o romance que eu oferecera a Geneviève Dalame e que datava de há quinze anos: À la mémoire d’un Ange. «Fiquei surpreendida por você conhecer o romance», disse-me Madeleine Péraud, como se aquele livro lhe lembrasse algo preciso, mais do que uma leitura, alguma coisa ligada à sua vida.
Tirara-o da estante e abrira-o maquinalmente. Na página de guarda, uma dedicatória: «Para ti. Em recordação dos anjos. Megève. Le Mauvais Pas. Irène», com uma caligrafia grande em tinta azul. Apercebeu-se de que eu lera a dedicatória e pareceu constrangida. «Um belo romance», disse-me. «Mas tenho outros livros para vos dar a ler aos dois». Proferira esta última frase com um tom autoritário. Uma tarde, poisou em cima do sofá, entre Geneviève Dalame e eu, uma obra cujo título era Rencontres avec des hommes remarquables. Hoje, mais de cinquenta anos depois, esse título e essa palavra, «encontros», fazem-me pensar bruscamente num pormenor que, até então, não me viera ao espírito. Nunca procurei, como muitas pessoas da minha idade, encontrar-me com os quatro ou cinco mestres do pensamento que, nesse tempo, reinavam nos estrados universitários, e tornar-me discípulo de um deles. Porquê? Na minha qualidade de estudante fantasma, teria sido natural que me virasse para um guia, porque vivia uma certa solidão e uma certa desordem. Lembro-me apenas de um desses mestres e só por me ter cruzado com ele uma vez, a altas horas da noite, na rue du Colisée. Teria julgado, pelo contrário, que o encontraria no bairro das Escolas. Fiquei impressionado com o seu andar titubeante, a tristeza e inquietação do seu olhar. Dava-me a impressão de ser ter perdido. Tomei-o pelo braço e conduzi-o, tal como me pediu, à praça de táxis mais próxima.
Descobri muito rapidamente que a «doutora Péraud» tinha um ascendente sobre Geneviève Dalame. Uma noite em que saíamos de casa dela, depois de termos atravessado o jardim, disse-me que Madeleine Péraud pertencia a um «grupo» – uma espécie de sociedade secreta – onde se praticava a «magia». Não podia dizer-me mais, porque não compreendia muito bem. Madeleine Péraud aludia a esse grupo, mas sempre de uma forma vaga, sem dúvida para observar as reações dela, Geneviève Dalame, antes de se adentrar no cerne do tema. Mas parecia que Geneviève Dalame sabia mais do que queria dizer-me, sobretudo quando fez, bruscamente, esta reflexão: «Podias falar-lhe nisso.» Seguíamos ao longo da muralha, antes da igreja de Saint-Jacques du Haut-Pas. «Sim, devias falar-lhe nisso.» Fiquei surpreendido com a sua insistência. «Conhece-la há muito tempo?», perguntei. «Não muito. Conhecia-a uma tarde, num café, muito perto da sua casa, diante do Val-de-Grâce.» Estava prestes a dar-me outros pormenores, mas permaneceu em silêncio. Tínhamos chegado a essa rua muito larga que segue ao lado dos edifícios modernos da École Normale Supérieure e da École de Physique et Chimie e nos dá a impressão de estarmos perdidos numa cidade estrangeira – Berlim, Lausanne, ou mesmo Roma, no bairro Parioli – ao ponto de nos perguntarmos se não estaremos a caminhar num sonho e acabarmos por duvidar da nossa própria identidade. «Tens mesmo de falar com ela», repetiu Geneviève Dalame, com uma voz inquieta, como se estivesse a fazer-me um pedido de ajuda. «Ela pôr-te-á ao corrente...» Estive prestes a perguntar-lhe: «Ao corrente de quê?», mas tive a sensação de que uma pergunta tão espontânea iria aumentar ainda mais o seu constrangimento e de que ela estava verdadeiramente sob o domínio da «doutora Péraud». «Claro que falo com ela», e esforcei-me por assumir um tom calmo e descontraído. «Na próxima quinta-feira, quando formos visitá-la. Aquela mulher interessa-me muito. Parece ser muito inteligente. Tenho curiosidade de saber mais.»
Tínhamos chegado à porta do seu hotel. Parecia aliviada. Sorriu-me. Creio que me estava grata por lhe ter respondido que ansiava por saber mais. Estava a ser realmente sincero ao proferir essas palavras. Desde a infância e a adolescência, sentia uma viva curiosidade e uma atração especial por tudo o que se relacionava com os mistérios de Paris.
Mas não esperei pela quinta-feira seguinte para «saber mais». Uma manhã em que acompanhara Geneviève Dalame do seu hotel até aos Studios Polydor, meti-me de novo no metro em sentido inverso e, depois de sair da estação Censier-Daubenton, caminhei até ao Val-de-Grâce.
Cheguei diante do portão e, sem hesitar, atravessei o jardim. No momento de transpor a porta do prédio, pensei que deveria ter telefonado a Madeleine Péraud para lhe perguntar se poderia receber-me.
Fiquei surpreendido com o timbre da campainha, de que me não apercebera quando estava naquele patamar na companhia de Geneviève Dalame: umas notas fracas, quase abafadas, que ameaçavam continuamente extinguir-se, ao ponto de ter deixado o dedo a premir o botão, um tilintar que não tinha a certeza de que Madeleine Péraud pudesse ouvir, caso se encontrasse na divisão do fundo.
A porta entreabriu-se sem que tenha ouvido o menor ruído de passos. Manter-se-ia atrás da porta à espera de um eventual visitante? Não pareceu espantada por me ver. Como sempre fazia, conduziu-me, em silêncio, ao longo do corredor. Era a primeira vez que entrava na sala sob a luz do dia. Havia manchas de sol no soalho. Pela janela, via o jardim sob uma leve camada de neve. Sentia-me ainda mais longe de Paris do que nos finais de tarde em que aqui vinha com Geneviève Dalame.
Sentou-se à minha esquerda, no sofá, no lugar onde costumava ficar Geneviève Dalame. Fixou em mim o seu olhar.
– A Geneviève acabou de me telefonar para me dizer que queria vir ver-me. Estava à sua espera.
Então, esta visita fora decidida sem eu saber. Talvez as duas me tivessem posto, sem que me desse conta, num estado de hipnose.
– Ela telefonou-lhe?
Parecia-me que já vivera esta cena num sonho. Um raio de sol iluminava a estante encostada à parede do fundo. Houve um minuto de silêncio entre nós. Cabia-me a mim quebrá-lo.
– Li o livro que me emprestou... Rencontres avec des hommes remarquables... já ouvira falar dele...
Foi durante os anos que passara na Haute-Savoie, num colégio. Um dos meus colegas, Pierre Andrieux, confiara-me que os seus pais eram discípulos do autor desse livro, Georges Ivanovitch Gurdjieff, um «mestre espiritual». A sua mãe levara-nos de carro, num dia feriado, a Pierre Andrieux e a mim, ao planalto de Assy, para visitarmos uma amiga sua, farmacêutica, também ela adepta de Gurdjieff. Ouvira fragmentos da sua conversa. Tratava-se dos «grupos» que esse homem criara à sua volta para melhor difundir os seus «ensinamentos». E o termo «grupos» intrigara-me.
– Ah, sim... Tinha ouvido falar dele? Em que circunstâncias?
Tinha uma expressão simultaneamente inquieta e interessada, como se temesse que eu estivesse ao corrente de determinados segredos.
– Fiquei muito tempo na Haute-Savoie. Havia lá alguns discípulos de Georges Ivanovitch Gurdjieff...
Dissera esta frase lentamente, aguentando o seu olhar.
– Na Haute-Savoie?
Aparentemente, não esperara que lhe desse essa informação. Eu tinha o ar de um polícia que, mediante um efeito de surpresa, procura obter uma confissão. Mas não era um polícia. Apenas um bom jovem.
– Sim... Na Haute-Savoie... do lado do planalto de Assy... não muito longe de Megève...
Lembrava-me da dedicatória que figurava no romance À la mémoire d’un Ange e que lhe era, sem dúvida, dirigida: «Para ti... Megève... Le Mauvais Pas...»
– E conheceu discípulos de Gurdjieff... na Haute-Savoie?
– Sim, alguns...
Tive a impressão de que esperava, com um certo nervosismo, que lhe citasse alguns nomes.
– A mãe de um colega de colégio... Levara-nos a visitar uma amiga que era, também, discípula de Gurdjieff... uma farmacêutica... no planalto de Assy.
Li o espanto no seu olhar.
– Mas eu conheci-a, há muito tempo... a essa farmacêutica do planalto de Assy... Também se chamava Geneviève, Geneviève Lief...
– Ignorava o seu nome – retruquei.
Inclinou a cabeça, como se tentasse lembrar-se, de uma forma mais precisa, dessa mulher. E talvez, também, de outros pormenores de um período da sua vida.
– Fui visitá-la várias vezes ao planalto de Assy...
Esquecera a minha presença. Calei-me porque não queria distraí-la dos seus pensamentos. Passado um momento, virou-se para mim.
– Não poderia ter imaginado que me iria fazer recordar todas essas coisas.
Parecia tão perturbada que me perguntei se não deveria mudar o tema da conversa.
– A Geneviève disse-me que dava aulas de ioga. Gostaria muito de ter aulas de ioga consigo.
Não me ouvira. Com a cabeça novamente inclinada, tentava sem dúvida reunir as poucas recordações que lhe restavam dessa farmacêutica do planalto de Assy.
Aproximou-se de mim. Os nossos rostos quase se tocavam. Disse-me, em voz baixa:
– Era muito jovem... devia ter a sua idade... tinha uma amiga que se chamava Irène... Foi ela que me levou às reuniões em casa de Gurdjieff... em Paris, rue des Colonels-Renard... Havia lá todo um grupo de discípulos à sua volta...
Falava depressa, de uma forma entrecortada, como se se dirigisse a um confessor. Deixava-me um pouco constrangido. Não tinha idade nem experiência para desempenhar o papel de confessor.
– E depois fui com a minha amiga Irène para a Haute-Savoie... para Megève e o planalto de Assy... Ela tinha de ir tratar-se para um sanatório do planalto de Assy...
Estava disposta a contar-me a sua vida. Muitas pessoas de todos os tipos o fizeram nos anos subsequentes e perguntei-me amiúde porquê. Devia inspirar confiança. Gostava de ouvir as pessoas e de lhes fazer perguntas. Acontecia-me amiúde captar fragmentos de conversas de desconhecidos, nos cafés. Anotava-os o mais discretamente possível. Pelo menos, essas palavras não ficavam perdidas para sempre. Enchem cinco cadernos, com datas e reticências.
– Irène, foi ela que lhe escreveu a dedicatória em À la mémoire d’un Ange? – perguntei-lhe.
– Exactamente.
– No final da dedicatória, está escrito «Le Mauvais Pas». Conheço bem Le Mauvais Pas.
Franziu o sobrolho e deu-me a impressão de estar a fazer um esforço para se recordar.
– Era uma espécie de clube noturno aonde ia com a Irène.
Eu ainda não esquecera aquele edifício em ruínas na estrada do monte d’Arbois com uma parte que mostrava os vestígios de um incêndio. Na fachada, pendia um painel de madeira clara onde estava escrito em letras vermelhas «Le Mauvais Pas». Passara vários meses numa residência de férias para crianças, a algumas centenas de metros, um pouco mais acima.
– Nunca mais voltei à Haute-Savoie, desde esse tempo – disse-me, com uma voz seca, como se quisesse interromper a nossa conversa.
– Depois de ter conhecido Gurdjieff, fez parte desses «grupos»?
Pareceu surpreendida com a minha pergunta.
– Pergunto-lhe isto porque a mãe do meu amigo e a farmacêutica do planalto de Assy utilizavam muito essa palavra...
– Era uma palavra que Gurdjieff usava – respondeu-me –, grupos de trabalho... o «trabalho sobre si»...
Mas creio que não tinha vontade de me dar explicações mais precisas relativamente à doutrina de Georges Ivanovitch Gurdjieff.
– A sua amiga Geneviève... – disse-me bruscamente. – É uma loucura como se parece com a Irène... Quando a vi pela primeira vez naquele café, em frente ao Val-de-Grâce, tive um choque... Julguei que fosse a Irène...
Não fiquei de modo algum desconcertado com o que acabara de me confiar. Desde a infância, surpreendera tantas afirmações estranhas atrás de portas entreabertas, paredes demasiado finas de quartos de hotel, em cafés, salas de espera, comboios noturnos...
– Preocupo-me muito com a Geneviève... Era disso que queria falar-lhe...
– Preocupa-se muito, por que motivo?
– Tem uma maneira estranha de viver... como se, de tempos a tempos, estivesse ausente da sua vida... Não acha?
–Não.
– É curioso que não se dê conta disso... Por vezes, temos a impressão de que ela caminha ao lado da sua vida... Nunca se apercebeu? Ela nunca o fez pensar numa sonâmbula?
Essa palavra lembrava-me o título de um bailado que vira em criança e que me deixara uma bela recordação. Tentei encontrar a semelhança que poderia existir entre Geneviève Dalame e aquela bailarina que subia lentamente, de braços estendidos, uma escada.
– Uma sonâmbula... talvez tenha razão – disse-lhe.
Não queria contrariá-la.
– A Irène era exatamente como ela... exatamente... Tinha momentos de ausência... Tentava lutar contra isso...
– E que pensava disso Gurdjieff?
Lamentei de imediato ter feito aquela pergunta. Nessa época, acontecia-me fazer perguntas incongruentes como aquela. Queria pôr termo àquilo. À força de ouvir as pessoas enquanto lhes testemunhava o máximo de atenção possível, sentia por vezes um sentimento brusco de lassidão e o desejo súbito de cortar as pontes.
– Gurdjieff teve uma boa influência sobre ela. E sobre mim também. Encorajei sempre a Irène a seguir os seus ensinamentos.
Virou-se para mim e fixou-me longamente com o olhar. Intimidava-me.
– Temos de ajudar a Geneviève.
O tom que assumira era tão grave que acabara por me convencer de que Geneviève Dalame corria um perigo iminente. E, no entanto, por mais que pensasse nisso, não via de que perigo poderia tratar-se.
– Deveria convencê-la a vir morar aqui.
Fiquei espantado por me confiar tal missão.
– É muito mau para a Geneviève viver no hotel. A Irène era exatamente como ela... Conheço bem o problema... Levei três a anos a convencê-la a sair daquele hotel horrível da rue d’Armaillé. Felizmente que as reuniões em casa de Gurdjieff eram no bairro... senão, a Irène não teria deixado o quarto durante todo o dia...
Decididamente, aquela Irène contara muito na sua vida.
– O hotel onde ela vivia era muito perto da casa de Gurdjieff? – perguntei.
– A uns cinquenta metros... A Irène arranjara um quarto nesse hotel para ficar o mais perto possível da casa de Gurdjieff.
É assim que basta cruzarmo-nos com uma pessoa ou encontrarmo-la duas ou três vezes, ou ouvi-la falar num café ou no corredor de um comboio, para captarmos fragmentos do seu passado. Os meus cadernos estão cheios de pedaços de frases proferidos por vozes anónimas. E hoje, numa página semelhante às outras, tento transcrever algumas palavras trocadas há quase cinquenta anos com uma tal Madeleine Péraud, de cujo nome próprio nem sequer estou certo. Irène, o planalto de Assy, Gurdjieff, um hotel na rue d’Armaillé...
– Deveria convencer a Geneviève a vir morar aqui...
Falara-me novamente em voz baixa e aproximara o seu rosto do meu. Fixava-me diretamente os olhos e aquele olhar provocava em mim um entorpecimento, como naqueles sonhos em que tentamos fugir, mas ficamos pregados ao chão.
Deve ter transcorrido um tempo bastante longo, algumas horas de que tenho dificuldade em lembrar-me, aquilo a que se chama uma falha de memória. A noite caía, a sala estava na penumbra e ainda me encontrava no sofá vermelho, com ela.
Levantou-se e acendeu o lustre entre as duas janelas. Dirigiu-se à estante e escolheu dois livros nas prateleiras.
– Tome... pode levar outros quando quiser...
Esses dois livros eram finos e tinham mais o aspeto de brochuras: Essais sur le boudhisme zen, de Suzuki, segundo volume, das Éditions Adrien Maisonneuve, e Le Rite sacré de l’amour magique, de Maria de Naglowska. Ainda os tenho desde há cinquenta anos e pergunto-me por que razão determinados livros e determinados objetos se obstinam em seguir no nosso encalce durante toda a vida, sem que o saibamos, enquanto perdemos outros, que eram preciosos para nós.
No vestíbulo, preparava-me para abrir a porta do apartamento para sair quando ela pousou a mão no meu braço.
– Vai ter com a Geneviève?
Senti-me pouco à-vontade para lhe responder, uma vez que parecia invejar-me tanto.
– Queria dizer-lhe... pode viver aqui com ela... ficaria muito feliz por vos acolher...
Seis anos depois, percorria a rue Geoffroy-Saint-Hilaire junto à Mesquita e ao muro do Jardin des Plantes. Uma mulher caminhava à minha frente, levando um rapazinho pela mão. O seu andar descontraído lembrava-me alguém. Não podia evitar manter os olhos fixos nela.
Estuguei o passo e fiquei ao lado daquela mulher e daquele rapazinho. Virei-me para ela. Geneviève Dalame. Não nos tínhamos voltado a ver durante esses seis anos. Sorriu-me como se nos tivéssemos separado na véspera.
– Mora no bairro?
Não sei porque a não tratei por tu. Sem dúvida por causa da presença daquele rapazinho. Sim, morava muito perto daqui. Tentei meter conversa, mas ela parecia achar natural que caminhássemos lado a lado em silêncio.
Entrámos no Jardin des Plantes e seguimos por uma alameda até às jaulas das feras. O rapazinho distanciava-se de nós, correndo, e depois dava meia-volta e vinha ao nosso encontro. Imaginava que tinha de fugir de perseguidores invisíveis e, por instantes, escondia-se atrás do tronco de uma árvore. Perguntei-lhe se era seu filho. Sim. Casara-se? Não. Vivia sozinha com o filho. Em suma, tínhamo-nos reencontrado, seis anos depois, na mesma rua onde nos conhecêramos, mas não tinha a impressão de que o tempo tivesse passado. Pelo contrário, parara e o nosso primeiro encontro repetia-se com uma variante: a presença daquela criança. Haveria outros encontros com ela, na mesma rua, como os ponteiros de um relógio que se encontram todos os dias ao meio-dia e à meia-noite. Aliás, no dia em que a encontrara pela primeira vez, na livraria de ciências ocultas da rue de Geoffroy-Saint-Hilaire, eu comprara um livro cujo título me chamara a atenção: L’Éternel Retour du même.
Tínhamos chegado às jaulas de exposição dos animais, que estavam vazias nesse dia, salvo a maior onde tinham encerrado uma pantera. O rapazinho parara e observava-a através das grades. Geneviève Dalame e eu tínhamo-nos instalado num banco, recuados.
– Trago-o a ver os animais por causa do Livro da Selva. Quer que lho leiam todos os dias.
Lembrei-me então das poucas prateleiras junto da grande janela, no apartamento vazio da minha mãe, nos cais. Tinha a certeza de que, entre os romances de Hans Fallada e O Visconde de Bragelonne, havia ainda os dois volumes do Livro da Selva, numa edição ilustrada. Precisava de ter coragem de lá voltar para confirmar se não me enganava.
Hesitava quanto a interrogá-la sobre o seu desaparecimento brusco. Uma tarde, no hotel da rue Monge, haviam-me dito que deixara o seu quarto «definitivamente». No dia seguinte, nos Studios Polydor, um dos seus colegas anunciara-me, com uma voz seca, que ela tirara «umas férias», sem me dar mais pormenores. Em casa de Madeleine Péraud, na rue du Val-de-Grâce, a campainha já não respondia. E eu que estava habituado desde a infância aos desaparecimentos, confesso que o de Geneviève Dalame não me surpreendera verdadeiramente.
– Então, partiste sem deixar uma morada?
Encolheu os ombros, mas eu não precisava de explicações. O rapazinho dirigiu-se a nós declarando que ia abrir a porta da jaula e passear com a pantera, a que chamava Bagheera, a pantera do Livro da Selva. Em seguida, colocou-se de novo diante das grades à espera de que a Bagheera se aproximasse dele.
– Tens tido notícias da doutora Péraud?
Com um tom desprendido, como falaria de uma vaga conhecida, explicou-me que a doutora Péraud já não morava na rue du Val-de-Grâce, mas no quinzième arrondissement. Quando se trata dessas pessoas em relação às quais nos perguntamos o que lhes terá acontecido e cujo desaparecimento está envolto em mistério, um mistério que nunca conseguiríamos esclarecer, pois bem, ficamos surpreendidos ao saber que, pura e simplesmente, mudaram de bairro.
– E já não trabalhas nos Studios Polydor?
Sim, continuava a trabalhar lá. Mas, tal como Madeleine Péraud, já não estavam na mesma morada. Do boulevard de la Gare, os Studios Polydor haviam-se mudado agora para os lados da place de Clichy.
Pensei de novo naqueles quadros junto aos guichês do metro. A cada estação correspondia um botão no teclado e precisávamos de o premir para saber onde deveríamos mudar de linha. Os trajetos inscreviam-se na planta em traços luminosos de cores diferentes. Tinha a certeza de que, no futuro, bastaria inscrever no ecrã o nome de uma pessoa com quem nos tivéssemos cruzado outrora e um ponto vermelho indicaria o local de Paris onde poderíamos encontrá-la.
– Um dia – disse-lhe – encontrei o teu irmão.
Ela nunca mais tivera notícias dele desde a manhã em que viera pedir-lhe dinheiro. E quando o encontrara? Havia dois ou três anos. Ia a descer o boulevard Saint-Michel e chegara junto a La Source, um grande café onde sempre hesitara em entrar, sem saber bem porquê. Reconheci-o de imediato por causa do seu blusão de imitação de leopardo. Estava sentado a uma mesa atrás da fachada envidraçada, na companhia de um rapaz da sua idade. Levantara-se e batia com os dois punhos na vidraça para chamar a minha atenção. Ia ter comigo ao passeio e antecipei-me empurrando a porta do café, como enfrentamos um perigo num sonho, com a certeza de que podemos acordar a qualquer momento. Sentei-me à mesa deles. O mal-estar que sentia sempre que passava diante do La Source explicou-se: tive a impressão de que, naquele estabelecimento, estávamos sob a ameaça de uma rusga.
Tirou o bloco preto do bolso do casaco e, depois de o ter consultado, dirigiu-me um sorriso irónico.
– Tentei falar consigo no Val-d’Or 14-14, há uns anos, mas aparentemente não estava lá.
Estava ali, à sua frente, na esperança de que me desse novas de Geneviève Dalame, e talvez as razões do seu desaparecimento.
Apresentou-me o amigo. O nome ficou-me na memória: Alain Parquenne, por o ter lido, dez anos depois, na tabuleta de uma loja minúscula de aparelhos fotográficos em segunda mão de que ele era certamente o recetador, na avenue Wagram. Sentira a tentação de entrar na loja para me lembrar da boa recordação desse fantasma.
– A Geneviève? Há três anos que não a vê? Nem eu... Deve estar mergulhada nos tarots e nas bolas de cristal, como de costume...
O seu blusão de imitação de leopardo pareceu-me mais gasto do que no nosso primeiro encontro. Reparei num rasgão num dos punhos e numa nódoa numa manga. Quanto a Alain Parquenne, tinha a tez pálida e o rosto de uma criança precocemente envelhecida – um rosto de antigo groom ou jockey.
– É fotógrafo – disse-me o irmão de Geneviève Dalame. – Fez-me um book para eu poder mostrar aos agentes... quero fazer cinema...
O outro observava-me fumando um cigarro e os seus olhos de um negro pegajoso incomodavam-me. O irmão de Geneviève Dalame disse-lhe, bruscamente: «Já vão sendo horas de lhes ires telefonar para os prevenir.» Então, Alain Parquenne levantou-se e dirigiu-se ao fundo da sala.
– Tenho a certeza de que poderia ajudar-me, você... – afirmou o irmão de Geneviève Dalame, fixando em mim um olhar que me causou um calafrio nas costas, o olhar ávido daqueles que estão dispostos a despojar os cadáveres após um bombardeamento.
– Quer ajudar-me? – As feições do seu rosto estavam crispadas e traíam uma certa amargura. O outro regressava à nossa mesa.
– Então, preveniste-os? – inquiriu o irmão de Geneviève Dalame.
O outro fez um aceno afirmativo com a cabeça e sentou-se à mesa. Fui tomado por um acesso de pânico que tive dificuldade em dominar. A que pessoas telefonara? E para as prevenir de quê? Tinha a sensação de me encontrar numa ratoeira e de que estava iminente uma rusga da polícia.
– Perguntei-lhe se nos podia ajudar – disse ele, apontando para mim.
– Sim, tens de nos ajudar – afirmou o outro, com um sorriso mau. – De qualquer modo, já não te deixamos...
Levantei-me. Dirigia-me para a saída do café. O irmão de Geneviève Dalame acertou o passo comigo e bloqueava-me a passagem. O outro, atrás de mim, apertava-me, como se quisesse impedir-me de fazer marcha atrás. Pensei, tenho de sair daqui antes da rusga da polícia. E, com uma pancada seca com o joelho e o ombro, empurrei o irmão de Geneviève Dalame. Em seguida, dei um soco na cara do outro. Estava, finalmente, ao ar livre. Desci o boulevard a correr. Os dois corriam atrás de mim. Consegui despistá-los perto do Café de Cluny.
*
– Nunca devias ter dirigido a palavra ao meu irmão. Para mim, ele já não existe. É capaz de tudo. Já esteve na cadeia, em Épinal.
Dissera estas palavras numa voz muito baixa, como se não quisesse que o rapazinho as ouvisse, mas ele continuava de pé diante das grades da jaula, a observar a pantera.
– Como se chama? – perguntei-lhe.
– Pierre.
Era o momento de ficar a saber o que tinha sido a sua vida, durante esses seis últimos anos. Hoje, 1 de fevereiro de 2017, lamento não lhe ter feito perguntas precisas. Mas, nesse tempo, tinha a certeza de que não me responderia ou então de que as suas respostas seriam evasivas. «Ela caminha ao lado da sua vida», dissera-me, outrora, Madeleine Péraud. E utilizara a palavra «sonâmbula», que fazia lembrar esse bailado que eu vira na minha infância e de que guardava, na memória, o nome da intérprete, Maria Tallchief. Geneviève Dalame talvez caminhasse «ao lado da sua vida», mas fazia-o com um passo leve e suave, como uma bailarina.
– Já anda na escola? – perguntei-lhe, apontando para Pierre.
– Numa escola do outro lado do Jardin des Plantes.
Não valia a pena falar-lhe do passado. Se aludisse a alguns pormenores que datavam de havia seis anos: o café do boulevard de la Gare, o hotel da rue Monge, o punhado de pessoas que a «doutora Péraud» nos dera a conhecer e as situações um pouco obscuras para onde nos arrastara, teria ficado muito surpreendida. Esquecera tudo, certamente. Ou então, via tudo isso de longe – cada vez mais longe, à medida que os anos se sucediam. Vivia no presente.
– Tens tempo para nos acompanhar a casa? – perguntou-me.
Tomou Pierre pela mão e ele virou-se para lançar um último olhar às grades da jaula, atrás das quais Bagheera continuava a sua eterna volta ao mundo.
*
Passámos diante da livraria das ciências ocultas onde nos tínhamos encontrado pela primeira vez. Um cartaz dizia que abria às duas horas. Olhámos para as obras expostas na montra: Les Puissances du dedans, Les Maîtres et le sentier, Les Aventuriers du Mystère...
– Talvez pudéssemos vir cá, logo à tarde, para escolher alguns livros – propus a Geneviève Dalame. Encontro às seis horas, a mesma hora que há seis anos. Fora nessa livraria, afinal, que encontrara esse livro que me fizera refletir muito: L’Éternel Retour du même. A cada página, dizia para comigo: pudéssemos reviver às mesmas horas, nos mesmos locais e nas mesmas circunstâncias o que já tínhamos vivido, mas vivê-lo muito melhor do que na primeira vez, sem os erros, as complicações e os tempos mortos... seria como passar de novo a limpo um manuscrito coberto de rasuras... Havíamos chegado os três a uma zona que atravessara amiúde com ela, entre Monge, a Mesquita e o Puits-de-l’Ermite.
Parou junto de um edifício mais massivo do que os outros, com varandas.
– É aqui que moro.
Pierre empurrou sozinho a porta-cocheira. Entrei atrás deles. Pareceu-me que já aqui viera numa vida anterior visitar alguém.
– Hoje à tarde, às seis horas, na livraria – disse-me Geneviève Dalame. – E depois, podes vir cá jantar...
Deixaram-me à entrada do prédio. Fiquei ao fundo das escadas. De vez em quando, Pierre metia a cabeça por cima do corrimão, como se quisesses verificar se eu ainda ali estava. E, de cada vez, acenava-lhe com o braço. Depois, ficou a observar-me, com o queixo sobre o corrimão, enquanto Geneviève Dalame devia estar a abrir a porta do apartamento. Ouvi a porta fechar-se atrás deles e senti um aperto no coração. Mas, ao sair do imóvel, já não via verdadeiramente qual a razão de estar triste. Durante mais alguns meses ou, quem sabe?, alguns anos, apesar da passagem do tempo e dos desaparecimentos sucessivos das pessoas e das coisas, havia um ponto fixo: Geneviève Dalame. Rue des Quatrefages. No número 5.
Tento pôr ordem nas minhas recordações. Cada uma delas é uma peça de puzzle, mas faltam muitas, de modo que a maior parte fica isolada. Por vezes, consigo juntar três ou quatro, mas não mais. Então, anoto os fragmentos que vêm ter comigo na desordem, listas de nomes ou de frases muito breves. Desejo que esses nomes, quais ímanes, atraiam outros novos à superfície e que esses pedaços de frases acabem por formar parágrafos e capítulos que se encadeiem. Entretanto, passo os dias num desses grandes hangares que parecem as garagens de outrora, à procura de pessoas e de objetos perdidos.
Djorie Bruss
Emmanuel Brucken (fotógrafo)
Jean Meyer (Jean dos olhos azuis)
Gaelle e Guy Vincent
Annie Caisley, rue des Marroniers, 11
Van der Mervenne
Joseph Nasch, avenue Montaigne, 33
J. de Fleury (livreiro), rue Baste, 2, 19e
Olga Ordinaire, rue Duranton, 9, 15e
Ariane Pathé, rue Quentin-Bauchart, 3
Douglas Eyben
Anna Seidner
Marie Molitor
Pierrot 43...
No decurso desse trabalho que é feito às cegas, alguns nomes brilham intermitentemente como sinais que nos dariam acesso a um caminho oculto.
Assim, «Madame Hubersen», que eu escrevera ao acaso, seguido de um ponto de interrogação, despertou inicialmente em mim uma vaga recordação. Tentava associar «Madame Hubersen» a outros nomes que figuravam na minha lista. Esperava que entre eles e «Madame Hubersen» aparecesse uma linha luminosa como aquela – verde, vermelha ou azul – que indicava as estações e as correspondências se quiséssemos ir de Corvisart a Michel-Ange-Auteil ou de Jasmin a Filles-du-Calvaire. Já chegara quase ao fim da lista e tinha a impressão de ser um amnésico, procurando desesperadamente perfurar uma camada de gelo e esquecimento. E, de súbito, tive a certeza de que o nome «Madame Hubersen» estava ligado ao de Madeleine Péraud. De facto, ela levara-nos, a Geneviève Dalame e a mim, várias vezes, a casa dessa Madame Hubersen, que morava num apartamento numa das grandes avenidas dos bairros ocidentais – uma avenida cujo nome hesito escrever hoje, como se esse pormenor demasiado preciso ainda pudesse prejudicar-me, quase cinquenta anos depois, e provocar aquilo a que chamam «uma investigação complementar» relacionada com um «caso» em que estivesse envolvido.
Quanto a essa Madame Hubersen, talvez tivesse querido, até hoje, apagá-la da minha memória, juntamente com outras pessoas com as quais me cruzei nesse tempo – digamos, entre os dezassete e os vinte e dois anos.
Mas, ao fim de meio século, as poucas pessoas que foram testemunhas dos teus primórdios de vida acabaram por desaparecer – e, ademais, pergunto-me se a maior parte delas faria a ligação entre aquilo em que te tornaste e a imagem esbatida que conservam de um jovem cujo nome não poderiam dizer sequer.
A minha recordação da Madame Hubersen também é bastante esbatida. Uma morena de cerca de trinta anos, com feições regulares e cabelo curto. Levava-nos a jantar perto de sua casa, numa dessas ruas perpendiculares à avenue Foch – do lado esquerdo da avenida, quando estamos de costas voltadas para o Arco de Triunfo. E eis que já não tenho medo algum de revelar estes pormenores topográficos. Digo para comigo que se trata de um passado tão longínquo que está abrangido por aquilo a que, em direito, se chama amnistia. De sua casa até ao restaurante, íamos a pé, no inverno desse ano, um inverno tão rude como os dos anos anteriores, junto dos quais os invernos de hoje me parecem clementes, um inverno como aqueles que eu conhecera na Haute-Savoie, onde, à noite, se respirava um ar gelado e límpido e tão inebriante como o éter. Madame Hubersen vestia um casaco de peles de corte bastante clássico. Vivera, provavelmente, uma vida mais burguesa do que a que então era a sua, a fiar-nos na desordem do seu apartamento, que ficava no último andar de um edifício moderno, duas ou três divisões a abarrotar de quadros, de máscaras de África e da Oceânia, de tecidos indianos.
Não sei muito sobre esta Madame Hubersen, a não ser o que Madeleine Péraud nos confiara sobre ela, na primeira noite em que a fôramos visitar. Vivia sozinha e fora mulher de um americano, de quem estava divorciada. Aparentemente, conhecia muita gente no meio da dança. Levara-nos uma noite, muito longe, perto do Bassin de la Villette, a casa de um homem que, segundo ela nos disse, organizava, todos os anos na mesma data, uma festa em honra dos bailarinos e das bailarinas. Ficara espantado ao ver reunidas ali, num minúsculo apartamento, essas estrelas dos bailados que admirava na época, entre as quais uma jovem bailarina da Ópera que, mais tarde, se tornou carmelita. Ainda hoje é viva e provavelmente é a única que poderia dizer-me quem era precisamente aquele misterioso amante de bailados.
Encontrei nos meus cadernos uma anotação que escrevi há mais de dez anos, com data do 1.° de maio de 2006: «O homem de nome turco que, nos anos sessenta, todos os anos, dava uma festa em sua casa para as bailarinas e os bailarinos (Nureyev, Béjart, Babilée, Yvette Chauviré, etc.). Morava num dos cais da bassin de la Villette ou do canal de l’Ourcq.» E para me certificar de que essa recordação era bem real, procurara numa lista telefónica o nome e endereço desse homem, uma vez que estava escrito a esferográfica azul:
11, quai de la Gironde (19e arrondissement)
Amram R. Combat 73.14
Mouyal Matathias Combat 82.06 (lista telefónica 1964)
Este endereço e estes dois nomes estão antecedidos de pontos de interrogação, com a mesma tinta azul.
Viria a ver Madame Hubersen uma última vez, no mês de agosto de 1967.
Mas antes de evocar esse encontro, gostaria de deixar claro o seguinte: aconteceu cruzar-me várias vezes com as mesmas pessoas, nas ruas de Paris, pessoas que não conhecia. À força de as encontrar no meu caminho, os seus rostos tornavam-se familiares. Creio que me ignoravam e que eu era o único a reparar nesses encontros fortuitos. Caso contrário, ter-nos-íamos cumprimentado ou entabulado uma conversa. O mais perturbador é que me cruzava amiúde com a mesma pessoa, mas em bairros diferentes e afastados entre si, como se o destino – ou o acaso – insistissem em que nos conhecêssemos. E, a cada vez, sentia remorsos por a deixar passar sem nada lhe dizer. Do ponto de encontro partiam inúmeros caminhos e eu ignorara um deles que talvez fosse o bom. Para me consolar, anotava escrupulosamente, nos meus cadernos, os encontros sem futuro, precisando o local exato e o aspeto físico desses anónimos. Paris está constelada assim de pontos nevrálgicos e das múltiplas formas que as nossas vidas poderiam ter tomado.
Quanto a Madame Hubersen, cruzara-me, portanto, com ela uma última vez nesse mês de agosto, quando eu morava num quartinho num grupo de imóveis – uma praceta que dava para o boulevard Gouvion-Saint-Cyr. Nesse verão, fazia muito calor e o bairro estava deserto. As pessoas já nem tinham coragem de apanhar o metro à procura de um pouco de animação no centro de Paris. Deixavam-se vencer pelo torpor. O único restaurante aberto do boulevard Gouvion-Saint-Cyr tinha um nome engraçado: La Passée. Temia não ser muito bem-recebido nesse estabelecimento. Imaginava alguns clientes duvidosos, reunidos para uma partida de póquer, mas, nessa noite, decidi empurrar a porta,
A decoração de La Passée era a de uma estalagem de província. Um bar à entrada e duas salas seguidas, sendo que a última dava para um jardinzinho. De súbito, a sensação de estranheza que tinha na Paris do mês de agosto agravou-se de tal modo que desejei fazer marcha-atrás e regressar o mais rapidamente possível ao passeio do boulevard Gouvion-Saint-Cyr e ao ruído dos muito raros automóveis que rodavam em direção à Porte Maillot. Mas uma senhora conduzia-me à sala do fundo e apontava para uma mesa na orla do jardim.
Sentei-me e tive a sensação de estar imerso num sonho. Provavelmente, essa sensação devia-se aos dias intermináveis em que não falara com ninguém. Nunca a expressão «afastado do mundo» me parecera tão justa. Nenhum cliente, para além de uma mulher só, instalada ao fundo da sala. Vestia um casaco de peles, o que me espantou em pleno mês de agosto, e parecia não se ter apercebido da minha presença. Reconheci Madame Hubersen. Não mudara e o seu casaco de peles era o mesmo que envergava três anos antes.
Após um instante de hesitação, dirigi-me a ela.
– Madame Hubersen?
Ergueu os olhos para mim e não pareceu ter-me reconhecido.
– Vimo-nos várias vezes há três anos... com Madeleine Péraud...
Continuava a fixar-me com o olhar e perguntei-me se me teria ouvido.
– Mas sim... claro... – disse bruscamente, como se tivesse tido uma breve falha de memória. – Com Madeleine Péraud... E tem notícias de Madeleine Péraud?
Via bem que tentava recuperar o pé. Acabara de a despertar, de uma forma muito abrupta, de um sonho profundo.
– Não, nenhumas notícias.
Fez um sorriso constrangido. Procurava as palavras.
– Lembra-se? – prossegui. – Levou-nos a uma festa... com todos os bailarinos...
– Sim... sim... claro... Não sei se ainda continua a realizar-se essa festa, todos os anos.
Poderíamos pensar que aludia a um acontecimento muito longínquo, que datava de há apenas três anos, mas que para ela pertencia a uma outra vida. E devo dizer que tinha a mesma sensação quando me lembrava de todos aqueles convidados sentados no chão nas duas divisões do pequeno apartamento, e da lua cheia, nessa noite de inverno, sobre a Bassin de la Villette ou o canal de l’Ourcq.
– Ainda vive na mesmo morada?
Talvez lhe tivesse feito esta pergunta para obter uma resposta precisa e deixar de ter a sensação de me encontrar diante de um fantasma.
– Sempre na mesma morada...
Deu uma pequena risada que me deixou grato. Já não parecia um fantasma.
– Você faz perguntas estranhas... E você também continua a viver na mesma morada?
Parecia troçar delicadamente de mim.
– Sente-se. Se quiser mandar vir qualquer coisa... Eu acabei de jantar...
Sentei-me à sua frente. Tencionava despedir-me ao fim de alguns instantes, pretextando que tinha de telefonar. Mas, depois de sentado, senti que seria difícil para mim levantar-me e atravessar a sala em direção à saída. Fui invadido por um entorpecimento.
– Não ligue a este casaco de peles – disse-me. – Pu-lo esta noite porque julguei que havia uma descida de temperatura. Enganei-me.
Mas eu não precisava de explicação. Temos de aceitar as pessoas como são, com ou sem casaco de peles. Se for necessário, fazer-lhes algumas perguntas discretas, suavemente, sem suscitar a sua desconfiança, para as compreendermos melhor. E, ao fim de contas, só me encontrara três ou quatro vezes com Madame Hubersen e nunca teria imaginado que iria revê-la ao fim de três anos. Uns encontros tão breves que poderiam ter caído muito rapidamente no esquecimento.
– E como conheceu este local? – perguntei-lhe. – La Passée?
– Foi um amigo que me trouxe cá várias vezes. Mas foi de férias...
Falava com uma voz firme e clara e o que acabara de me dizer era perfeitamente coerente. Ficamos muitas vezes sós em Paris, no mês de agosto e em locais incertos, à imagem desta estação do ano em que temos a impressão de que o tempo parou – locais que desaparecem mal a vida retoma o seu curso e a cidade o seu aspeto habitual.
– Não janta? Quer beber alguma coisa?
Pegou numa garrafinha que estava sobre a mesa e serviu-me, num grande copo, o que julgava ser água, mas cujo gosto me surpreendeu quando engoli um gole: uma bebida alcoólica muito forte. E, de seguida, serviu-se. Não bebeu um gole, mas sim metade do copo, de um trago, com um leve movimento de cabeça.
– Não bebe? – Parecia desiludida e um pouco constrangida, como se a tivesse devolvido à sua solidão. Então, esvaziei também o meu copo.
– Vê – disse-me –, as pessoas precisam, mesmo assim, de se aquecer apesar do calor.
Senti que queria acrescentar qualquer coisa, mas hesitava e procurava as palavras.
– Vou fazer-lhe uma confidência...
Pousou a sua mão estendida sobre a minha, para ganhar coragem.
– Por mais calor que faça, se soubesse até que ponto tenho sempre frio...
Lançou-me um olhar simultaneamente tímido e inquiridor, esperando uma resposta, ou melhor, um diagnóstico que pudesse acalmá-la.
*
Saímos de La Passée. Ela apoiava-se no meu braço, enquanto percorríamos o boulevard Gouvion-Saint-Cyr. Soprava uma brisa, a primeira desde há quinze dias.
– No fundo, teve razão em vestir o seu casaco de peles – disse-lhe.
Talvez quisesse regressar a casa a pé, mas, nesse caso, não estávamos a seguir na direção certa. Chamei-lhe a atenção para isso.
– Apetece-me andar um pouco a pé, até à primeira praça de táxis.
A essa hora tardia e naquela estação do ano, já não havia trânsito no boulevard Gouvion-Saint-Cyr. É estranho, quando escrevo isso hoje, ouço o eco dos nossos passos – ou melhor, dos seus – no passeio deserto. Tínhamos chegado junto à praceta onde eu vivia. Por um instante, senti vontade de me despedir dizendo-lhe que alguém me aguardava no meu quarto – um quarto de mansarda e tão pequeno que, depois de entrar, tinha de me inclinar sobre a cama para não bater com a testa na viga. E, ao pensar nisso, não consegui reprimir uma gargalhada. Apoiou-se com mais força no meu braço.
– Que é que o faz rir?
Não sabia o que responder. Esperaria realmente uma resposta? Com a mão livre, erguera a gola do casaco de peles, como se a brisa a tivesse arrefecido subitamente.
– Ainda tem as máscaras de África e da Oceânia no seu apartamento? – perguntei-lhe, para quebrar o silêncio.
Parou e olhou-me fixamente, com um ar surpreendido.
– Você tem boa memória...
– Sim, muito boa... Mas também tenho memória de pormenores da minha vida, de pessoas que me esforcei por esquecer. Julgava tê-lo conseguido e, sem que o esperasse, após dezenas de anos, voltam à superfície, como afogados, ao virar da esquina de uma rua, a determinadas horas do dia.
Estávamos na Porte de Champerret. Havia um único táxi à espera na praça, diante do grupo de prédios com fachadas de tijolo.
– Pode acompanhar-me? – perguntou-me Madame Hubersen.
De novo, estive prestes a dizer-lhe que uma pessoa me esperava no meu quarto, mas senti, bruscamente, uns certos escrúpulos em relação a mentir-lhe. Tantas mentiras, já, para me livrar das pessoas, tantos prédios com saídas duplas para as abandonar num passeio, tantos encontros a que não comparecia...
Entrei no táxi com ela. Pensei que o trajeto seria muito breve até sua casa e que regressaria a pé.
– Para Versalhes, boulevard de la Reine – disse ela ao motorista.
Fiquei em silêncio. Esperava que me desse uma explicação.
– Tenho medo de voltar a casa. Todas aquelas máscaras de que falou há pouco... Observam-me e não têm boas intenções em relação a mim...
Dissera-o num tom tão grave que me deixara confuso. E, então, recuperei a minha voz.
– Penso que está enganada. Aquelas máscaras não são tão malvadas como pensa...
Mas dei-me conta de que ela não tinha o menor desejo de rir. O táxi avançara pelo boulevard Gouvion-Saint-Cyr, no sentido inverso àquele que havíamos seguido havia pouco. Estávamos diante da praceta onde vivia.
– Tenho de ir para casa – disse-lhe. – É precisamente aqui, à direita...
– Faça a gentileza de me acompanhar até Versalhes.
O tom não admitia réplica, como se se tratasse de uma obrigação moral da minha parte. O táxi parara num sinal vermelho diante do grande quartel dos bombeiros. Senti-me tentado a abrir a porta e despedir-me com uma breve fórmula de cortesia. Mas disse para comigo que tinha mais que tempo de o fazer durante o percurso até Versalhes. Pensei naquela obra que lera, Les Rêves et les moyens de les diriger, onde se afirma que podemos interrompê-los a qualquer momento e até desviar-lhes o percurso. Assim, bastava que me concentrasse um pouco para que o motorista do táxi nos deixasse, pouco depois, diante da casa de Madame Hubersen, e esquecesse que devíamos ir até Versalhes. Madame Hubersen também.
– Tem a certeza de que não quer ir para sua casa? – perguntei-lhe, em voz baixa.
Aproximou o rosto do meu e, por sua vez, disse-me em voz baixa:
– Não pode saber o que é regressar todas as noites àquele apartamento... e ver-se sozinha com aquelas máscaras... E depois, de há algum tempo para cá, tenho medo de subir no elevador...
Ainda era demasiado jovem para conhecer a angústia que ela sentia ao regressar sozinha a casa. Para mim, não tinha a menor importância tomar o elevador e, depois, subir a escadinha e percorrer o corredor que levava àquela mansarda onde não podia estar de pé. E hoje, que tenho quase mais quarenta anos do que Madame Hubersen naquele tempo, digo para comigo que era estranho, na sua idade, deixar-se invadir por uma tal ansiedade. Mas talvez não devamos dar crédito a certas ideias, como «a despreocupação da juventude».
Parámos noutro sinal vermelho muito perto do restaurante La Passée. Ao longo do trajeto – disse para comigo –, outros sinais vermelhos permitir-me-iam deixar aquele automóvel. Não seria a primeira vez em que me entregaria a tal experiência: por duas vezes, fugira de um carro que me levava, ao domingo à noite, de volta ao colégio e, mais tarde, perto dos vinte anos, quando me encontrei, muito tarde, em companhia de várias pessoas num Chevrolet cujo condutor estava bêbedo. Por sorte, estava sentado do lado da porta.
– Não quer, realmente, ir para casa? – perguntei, uma vez mais, a Madame Hubersen.
– Agora não. Amanhã, quando for dia.
Tínhamos chegado ao limite do Bois de Boulogne, e Madame Hubersen fechara os olhos. Verifiquei se a porta não estava trancada do interior, como acontece algumas vezes, de noite, nos táxis. Não. Ainda tinha um pouco de tempo à minha frente para me decidir.
Na Porte d’Auteuil, a cabeça de Madame Hubersen poisou no meu ombro. Adormecera. Se eu saísse do carro, teria de o fazer sem encontrões, deslizando pelo assento e sem bater com a porta. A sua cabeça, tão leve sobre o meu ombro, era uma marca de confiança da sua parte e tinha relutância em trair essa confiança. Porte de Saint-Cloud. Íamos atravessar o Sena, entrar no túnel e, em seguida, na autoestrada do oeste. E já não haveria sinais vermelhos.
Durante esse período da minha vida, e desde os onze anos de idade, as fugas desempenharam um grande papel. Fugas dos internatos, fuga de Paris num comboio noturno no dia em que devia assentar praça no quartel de Reuilly para o meu serviço militar, encontros a que não comparecia, ou frases rituais para me esquivar. «Espere, vou buscar cigarros...», e essa promessa que devo ter feito dezenas e dezenas de vezes, sem nunca a cumprir: «Volto já.»
Hoje, sinto remorsos. Embora não seja muito dotado para a introspeção, gostaria de perceber porque é que a fuga era, de alguma forma, o meu modo de vida. E isso durou bastante tempo, diria que até aos vinte e dois anos. Seria comparável a essas doenças da infância que têm nomes estranhos: tosse convulsa, varicela, escarlatina? Para além do meu caso pessoal, sempre sonhei escrever um tratado da fuga à maneira daqueles moralistas e daqueles memorialistas franceses, cujo estilo tanto admiro desde a minha adolescência: o cardeal de Retz, La Bruyère, La Rochefoucauld, Vauvenargues... Mas a única coisa que posso relatar são pormenores concretos, locais e momentos precisos. Em especial, aquela tarde do verão de 65 em que me encontrava diante do balcão de um café estreito, no início do boulevard Saint-Michel, que contrastava nitidamente com todos os cafés do bairro. Não tinha clientela estudantil. Um bar ao comprimento como os de Pigalle ou de Saint-Lazare. Compreendi, nessa tarde, que me deixara desviar do rumo e que, se não reagisse de imediato, a corrente me arrastaria. Estava convencido de que não corria qualquer risco e beneficiava de uma espécie de imunidade na minha qualidade de espectador noturno – o apodo que se autoatribuíra um escritor do século XVIII que explorava os mistérios das noites parisienses. Mas, nesse momento, a minha curiosidade levara-me um pouco longe de mais. Senti aquilo a que chamam «o sopro da morte». Tinha de desaparecer o mais rapidamente possível se não quisesse ter dissabores. Seria, para mim, uma fuga muito mais importante do que as outras. Batera no fundo e só me restava bater com força com os pés para voltar à superfície.
Na véspera, passara-se um acontecimento a que aludi vinte anos depois, em 1985, num capítulo de um romance. Era uma maneira de me livrar de um peso, de pôr preto no branco uma espécie de meia confissão. Mas vinte anos eram um lapso de tempo muito curto para determinadas testemunhas terem desaparecido e ignorava qual o prazo ao fim do qual a justiça renuncia a proceder judicialmente contra os culpados ou os cúmplices e deita sobre eles, definitivamente, o véu da amnistia e do esquecimento.
*
Aquela que encontrara pela primeira vez algumas semanas antes e cujo nome hesito dizer – ainda tenho cuidado, cinquenta anos passados, relativamente a pormenores demasiado precisos que poderiam permitir identificá-la – telefonara-me a altas horas da noite, nesse mês de junho de 1965, para me dizer que ocorrera um «acidente» no apartamento de Martine Hayward, na avenue Rodin, n.º 2, onde nos tínhamos conhecido e onde se reuniam, nas noites de domingo, todas as pessoas díspares às quais essa Martine Hayward chamava «os notívagos». Rogou-me que fosse ter com ela.
Na sala do apartamento, jazia, no tapete, o corpo de Ludo F., a personagem mais obscura desse bando de «notívagos». Ela matara-o «por acidente», disse-me, brandindo um revólver que tinha «encontrado numa das prateleiras da estante». Estendia-me essa arma que colocara novamente no seu coldre de camurça. Mas porque estava ela, nessa noite, sozinha com Ludo F., no apartamento? Explicar-me-ia tudo isso «mal estivéssemos longe dali, ao ar livre».
Sem ligar o temporizador da iluminação da escada, agarrei-a pelo braço e ajudei-a a descer na escuridão, em vez de usar o ascensor. No rés do chão, havia luz atrás da porta envidraçada do porteiro. Arrastei-a em direção à porta-cocheira e, no momento em que passávamos diante do cubículo, saiu de lá um homem moreno, de baixa estatura e cabelo à escovinha. Observava-nos na penumbra enquanto eu tentava abrir, às cegas, a porta-cocheira, que estava bloqueada. Passado um momento – e esse momento parecia-me interminável –, descobri, na parede, o botão que comandava a abertura da porta. Ouvi o clique e abri-a. Fazia todos os meus gestos em câmara lenta para lhes dar o máximo de precisão possível e não afastava o olhar do homenzinho de cabelo à escovinha como se quisesse desafiá-lo e permitir-lhe gravar bem as feições do meu rosto. Ela estava impaciente e deixei-a sair à minha frente, e então, antes de a seguir, fiquei imóvel durante alguns segundos na ombreira da porta, com os olhos fixos no porteiro. Esperava que se dirigisse a mim, mas também ele se mantinha imóvel a observar-me. O tempo parara. Ela ia uma dezena de metros à minha frente e já não sabia se poderia apanhá-la, de tal modo era lento o meu passo, cada vez mais lento, com aquela sensação de flutuar e decompor o menor dos meus movimentos.
*
Chegámos à place du Trocadéro. Cerca das duas horas da manhã. Os cafés estavam fechados. Sentia-me cada vez mais calmo e respirava de uma forma cada vez mais profunda, sem nenhum desses esforços de concentração que costumamos fazer durante os exercícios de ioga. Donde vinha essa tranquilidade? Do silêncio e do ar límpido da place du Trocadéro? Aquele ar parecia-me tão doce e gelado como o das encostas da Haute-Savoie. Estava a sofrer, certamente, a influência da obra que andava a ler há alguns dias, Les Rêves et les moyens de les diriger, de Hervey de Saint-Denys, e que continuaria a ser, durante todo esse período, um dos meus livros de cabeceira. Tinha a impressão de que lhe transmitira a minha calma e que agora caminhava ao mesmo ritmo que eu. Era verdadeiramente tarde de mais para regressarmos a Montmartre, ao Hotel Alsina, ou a casa dela, em Saint-Maur-des-Fossés. Avistei o reclame de um hotel, logo no início de uma das avenidas que desembocavam na place du Trocadéro. Mas metera num bolso do meu casaco o revólver no coldre de camurça. Procurei uma boca de esgoto onde o pudesse deixar cair. Como o levava na mão, ela lançava-me olhares inquietos. Tentei acalmá-la. Estávamos sós na praça. E se, por acaso, alguém nos observava da janela escura de um prédio, isso não tinha qualquer importância. Não poderia fazer-nos nada. Bastava desviar o sonho, seguindo os conselhos de Hervey de Saint-Denys, como se dá um pequeno toque de volante. E o automóvel rolaria sem entraves, um dos automóveis americanos desse tempo, dos quais poderia dizer-se que deslizavam sobre a água, em silêncio.
*
Demos a volta à praça e acabei por deitar o revólver para o fundo de um caixote de lixo, diante do Museu da Marinha. Em seguida, avançámos pela avenida onde se encontrava o hotelzinho cujo reclame avistara. Hotel Malakoff. De então para cá, passei algumas vezes diante dele, por acaso, e, no final de uma tarde de há cinco anos, em que fazia tanto calor como nessa noite de junho de 1965, parei à porta, com a ideia de ficar lá num quarto, talvez o mesmo que dessa outra vez. Serviria de pretexto, dizia para comigo, para folhear os registos e verificar se o meu nome ainda figurava neles com a data de 28 de junho de 1965. Mas eles guardariam os antigos registos que eram consultados, de vez em quando, pelos que faziam parte da brigada a que chamavam des Garnis?1 Nessa noite de há cinquenta anos, no escritório da receção, só estava presente o guarda-noturno, devido ao adiantado da hora. Ela manteve-se afastada e fui eu que escrevi, no registo, os meus apelidos, nome próprio e data de nascimento, sendo que o guarda-noturno não exigiu nada de nós, nem um documento de identificação. Tinha a certeza de que Hervey de Saint-Denys, que conhecia tão bem os sonhos e a maneira de os controlar, teria aprovado os meus cuidados. Enquanto traçava as letras – e teria querido desenhar os traços grossos e os finos, mas a esferográfica não o permitia – sentia uma calma e um apaziguamento que nunca conhecera até então. Indiquei inclusive como morada a avenue Rodin, n.º 2, onde Ludo F., estendido sobre o tapete, dormia o seu último sono.
*
Nos dias seguintes, a angústia que me invadira naquele café e tabacaria do início do boulevard Saint-Michel já não estava tão viva. Talvez tivesse tido como causa a proximidade do Palácio de Justiça e da prefeitura de polícia que víamos, perto, do outro lado da ponte. Sabia que os inspetores frequentavam alguns cafés da place Saint-Michel. Agora, ficávamos em Montmartre, e penso que nos sentíamos mais seguros lá e que acabávamos por nos perguntar se os acontecimentos da outra noite seriam verdadeiramente reais.
Tenho uma certa aversão a evocar esses dias. São os dias mais memoráveis e os últimos de uma parte da minha juventude. Em seguida, nada mais teria precisamente as mesmas cores. Será que a morte desse Ludo F., um homem que mal conhecíamos, desempenhou o papel de uma espécie de chamada à ordem? Durante ainda algum tempo após esse acontecimento, era acordado amiúde, em sobressalto, por tiros e, ao fim de um momento, dava-me conta de que esses tiros não haviam sido disparados na vida real, mas no meu sonho. Todos os dias, à saída do Hotel Alsina, ia comprar os jornais numa lojinha da rue Caulaincourt – France-Soir, L’Aurore, aqueles onde se podia encontrar os casos de polícia –, e lia-os sem que ela soubesse, para não a inquietar. Nada sobre Ludo F. Aparentemente, não tinha interesse para ninguém. Ou, então, os membros do seu círculo próximo haviam conseguido ocultar a sua morte, sem dúvida para evitar serem envolvidos. Um pouco mais acima, na rue Caulaincourt, na esplanada do Rêve, escrevi na margem de um dos jornais os nomes das pessoas de que me lembrava por ter assistido aos seus «serões» das noites de domingo, naquele lugar onde a conhecera.
E hoje, cinquenta anos depois, não posso impedir-me, de novo, de escrever alguns desses nomes nesta folha branca. Martine e Phillipe Hayward, Jean Terrail, Andrée Karvé, Guy Lavigne, Roger Favart e a sua mulher de sardas e olhos cinzentos... e outros...
Nenhum deles me deu notícias suas, nestes últimos cinquenta anos. Deveria ser invisível para eles, nessa época. Ou então, pura e simplesmente, vivemos à mercê de determinados silêncios.
1 Brigada de repressão do proxenetismo, ou brigada de Costumes. (N. do T.)
Junho. Julho de 1965. Os dias passaram nesse verão, em Montmartre, todos semelhantes, com as suas manhãs e tardes de sol. Bastava deixarmo-nos deslizar na sua corrente tranquila e boiar. Acabaríamos por esquecer esse morto de quem ela própria parecia não saber muito, exceto que o conhecera quando trabalhava na perfumaria da rue de Ponthieu. Ele entrara para lhe falar e ela tornara a dar de caras com ele no café ao lado da perfumaria, onde costumava almoçar uma sanduíche. Levara-a várias vezes àqueles serões de domingo à noite que Martine Hayward organizava, na avenue Rodin, onde nos tínhamos conhecido. Aí está, era tudo. E o que lá acontecera, na outra noite, fora um «acidente». E não queria dizer mais nada sobre isso.
*
Quando penso nesse verão, tenho a impressão de que se separou do resto da minha vida. Um parênteses, ou melhor, umas reticências.
Alguns anos depois, vivi em Montmartre, no número 9 da rue de l’Orient, com a mulher que amava. O bairro já não era o mesmo. Eu também não. Tanto um como o outro tínhamos reencontrado a nossa inocência. Uma tarde, parei diante do Hotel Alsina, que fora dividido em apartamentos. O Montmartre do verão de 1965, tal como julgava vê-lo na minha lembrança, pareceu-me de súbito um Montmartre imaginário. E já não tinha nada a temer.
Raramente transpúnhamos a fronteira do lado sul, a delimitada pelo terrapleno do boulevard de Clichy. Ficávamos num setor bastante estreito onde subia a rue Caulaincourt. Nesse mês de julho, estávamos sozinhos na esplanada do Rêve e, de tarde, sozinhos também, um pouco mais acima, a meia encosta das escadas de Lamarck-Caulaincourt. Os nossos gestos eram sempre os mesmos, nos mesmos locais, às mesmas horas e sob o mesmo sol. Tenho a recordação das ruas desertas, nos dias de canícula. No entanto, havia uma ameaça no ar. Aquele cadáver no tapete, no apartamento que havíamos deixado sem apagar a luz... As janelas ficariam iluminadas em pleno dia, como um sinal de alarme. Tentava compreender porque ficara tanto tempo imóvel na presença do porteiro. E que ideia bizarra ter escrito na ficha do Hotel Malakoff o meu apelido e o meu nome e o endereço do apartamento, avenue Rodin, n.º 2... Iriam aperceber-se de que fora cometido um «homicídio», nessa mesma noite, nessa morada. Quando estava a preencher a ficha, que vertigem me assaltara? A menos que a obra de Hervey de Saint-Denys, que estava a ler no momento em que ela me telefonara para me suplicar que fosse ter com ela, me tivesse perturbado o espírito: tinha a certeza de estar a viver um sonho mau. Não corria qualquer risco, podia «controlar» aquele sonho como queria e, se quisesse, despertar de um momento para o outro.
Ao início de uma tarde, subíamos a encosta da rue Caulaincourt, deserta sob o sol, e tínhamos a sensação de sermos os únicos habitantes de Montmartre. Disse-lhe, para me acalmar, que nos encontrávamos num pequeno porto do Mediterrâneo à hora da sesta. Ninguém no San Cristobal. Sentámo-nos a uma mesa perto dos vidros de cor que deixavam a sala na penumbra. Estava fresco, como no fundo de um aquário. «É um sonho mau. Nada mais do que um sonho mau...» Mal me dei conta de que estava a dizê-lo em voz alta. O corpo de Ludo F. em cima do tapete e a luz que não tínhamos apagado no apartamento... Ela poisou a mão na minha. «Não penses mais nisso», disse-me, em voz baixa. Até então, tivera a impressão de que ela própria queria evitar pensar nisso e, nos primeiros dias, não ousava confessar-lhe que, todas as manhãs, lia os jornais, temendo encontrar neles uma notícia breve onde estivesse impresso o nome de Ludo F. Mas ela partilhava a mesma inquietação que eu. Não precisávamos de no-lo dizer, bastava trocarmos um olhar. À noite, por exemplo, quando regressávamos à avenue Junot, ao Hotel Alsina, no momento de entrarmos no elevador. Era um elevador de madeira clara com dois batentes envidraçados, como ainda havia nessa época. Subia com uma tal lentidão que ameaçava ficar parado entre dois andares. Temia que um polícia estivesse à nossa espera diante da porta do quarto, enquanto um outro se colocava lá em baixo, na receção do hotel. Eram iguais àqueles que frequentavam os cafés da place Saint-Michel. Conseguira identificá-los surpreendendo fragmentos de conversas. Era a mim que vinham procurar, porque conheciam o meu nome. Ela não tinha nada a temer. Tinha vontade de lhe dizer, ali, no elevador, mas tínhamos chegado ao nosso andar. Ninguém diante da porta. Nem no quarto. Ficaria para outra vez. Conseguira de novo, por pouco, desviar o sonho, segundo os conselhos de Hervey de Saint-Denys.
À noite, íamos a dois restaurantes: um, à esquina da rue Constance com a rue Joseph-de-Maistre, o outro, mesmo no final da rue Caulaincourt, aos pés de uma escada. Muitas pessoas em cada um dos restaurantes e isso contrastava com as ruas desertas durante o dia. Passávamos despercebidos entre toda aquela gente e o bruaá das suas conversas protegia-nos. Vinham clientes até à meia-noite e instalavam-se mesas no passeio. Ficávamos por lá até ao mais tarde possível entre todas aquelas pessoas que jantavam e que pareciam veraneantes. Afinal, também estávamos de férias. Perto da uma hora da manhã, no momento de regressar ao Hotel Alsina, os nossos olhares cruzavam-se. Era necessário subir a avenue Junot deserta, transpor o átrio do hotel sem saber quem se encontrava diante da mesa da receção. Àquela hora, evitávamos tomar o elevador. Nos primeiros momentos, não nos sentíamos muito tranquilos no silêncio do quarto. Mantinha-me atrás da porta à espera de ouvir o ruído de passos ao longo do corredor. Em suma, era quando havia muita gente à nossa volta, à noite, nos dois restaurantes, que nos sentíamos mais à vontade, como dois veraneantes entre tantos que tivessem passado todo o dia na praia de Pampelonne. Até podíamos falar do tema delicado que nos preocupava. As nossas vozes perdiam-se no ruído das outras vozes, e tínhamos o cuidado de evitar as palavras demasiado precisas e de nos expressar por subentendidos de modo que os nossos vizinhos de mesa não compreendessem quase nada do que dizíamos se, por acaso, tivessem sido indiscretos e prestado atenção à nossa conversa. Falávamos saltando determinadas palavras, com reticências. Teria gostado de que ela me tivesse dado esclarecimentos suplementares em relação a Ludo F., porque estava convencido de que sabia mais sobre ele do que queria dizer. O seu primeiro encontro na perfumaria da rue de Ponthieu não me parecia corresponder de modo algum à realidade. Faltavam, tinha a certeza, alguns pormenores, mas sentia uma reticência da sua parte quanto a responder-me. Com efeito, o que me preocupava era que estabelecessem uma ligação entre ela e aquele a quem chamávamos «o morto». Havia uma prova tangível de que ela se relacionara com «o morto»? Uma carta? O seu nome e o seu endereço que ele tivesse anotado numa agenda? Que depoimentos fariam os outros se os interrogassem sobre ela e as suas relações com «o morto»? A cada uma das minhas perguntas, contentava-se com um encolher de ombros. Não parecia conhecer muito bem aqueles que frequentavam os serões de domingo à noite, na avenue Rodin n.º 2, em casa de Martine Hayward. À medida que lhe citava nomes – Andrée Karvé, Guy Lavigne, Roger Favart e a sua mulher, Vincent Berlen, Marion Le Phat-Vinh, aqueles poucos nomes que garatujara na margem de uma página de jornal e que retiro pela última vez do nada –, fazia-me, a cada vez, um sinal de negação com a cabeça. Ademais, disse-me, todas essas pessoas não sabiam nada dela e não podiam prestar qualquer depoimento a seu respeito. Inclinou-se para mim como se quisesse acrescentar alguma coisa em voz baixa, mas era uma precaução inútil: os nossos vizinhos falavam muito alto e, nesse momento, a voz do guitarrista que vinha todas as noites, à mesma hora, interpretar, diante do restaurante da rue Caulaincourt, uma canção napolitana de Robert Murolo, Anema’e core, misturava-se com o bruaá das conversas. Sussurrou-me: «Não devias ter escrito o teu nome na ficha do hotel.»
Tento recordar qual era o meu estado de espírito, nesse momento. No dia seguinte, quando estava sozinho num café do boulevard Saint-Michel, fora invadido pelo pânico, mas não durara muito. Depois de ter batido no fundo, voltava à superfície. Dizia para comigo: Agora vai ser, para mim, o início de outra vida. E aquela que vivera até então aparecia-me como um sonho confuso de que acabara de acordar. Compreendia, bruscamente, o sentido desta expressão: «O futuro abre-se à tua frente.» Sim, acabei por me convencer de que, do alto do futuro, já não tinha nada a temer e que, daí em diante, estava imunizado por uma vacina e protegido por um passaporte diplomático.
– Já não corro mais nenhum risco – disse-lhe. – Mais nenhum. E o meu tom deve ter sido tão incisivo que o nosso vizinho de mesa mais próximo, um louro de uns quarenta anos, que poderia ter sido um dos polícias que avistara nos cafés da place Saint-Michel, me olhou com insistência. Aguentei o seu olhar e sorri-lhe.
Uma tarde, ela quis ir buscar umas «coisas» a sua casa, em Saint-Maur. Foi o único dia desse verão em que saímos de Montmartre. Estávamos à espera do comboio no cais da estação de la Bastille.
– Achas que não é demasiado arriscado irmos lá? –, perguntou-me ela. – Talvez tenham encontrado a minha morada.
Nesse momento, não tinha qualquer medo especial.
– Não te identificaram. É impossível que saibam a morada de uma desconhecida.
Abanou a cabeça como se o que eu acabara de dizer lhe parecesse, de repente, uma evidência. Repetiu duas ou três vezes para consigo «uma desconhecida», sem dúvida para se convencer bem de que não corria qualquer risco e continuaria a ser uma desconhecida até ao fim.
No compartimento, estávamos sós. Um dia de semana, uma hora morta da tarde, em pleno verão. Na noite em que nos tínhamos encontrado no apartamento de Martine Hayward, havíamos caminhado, perto das duas da manhã, até à place de l’Alma. Ela tomara um táxi para regressar a casa, em Saint-Maur, e marcara-me um encontro no dia seguinte, lá, escrevendo o seu endereço num pedaço de papel: avenue du Nord, n.º 35. E, no dia seguinte, dera comigo no mesmo comboio, à mesma hora da tarde, no mesmo percurso que agora: Bastille. Saint-Mandé. O bois de Vincennes. Nogent-sur-Marne. Saint-Maur.
*
Tínhamos seguido a avenue du Nord, ladeada de árvores cuja folhagem formava uma abóbada. Estava deserta, nessa tarde, como as ruas de Montmartre. Manchas de sol e a sombra das árvores no passeio e no pavimento. Na primeira vez em que aqui viera, quinze dias antes, ela esperava-me à porta de sua casa. Tínhamos caminhado até a La Varenne-Saint-Hilaire e à esplanada de um hotel, à beira do Marne, que se chamava Le Petit Ritz.
Desta vez, hesitou um instante antes de abrir o portão e lançou-me um olhar inquieto. Sentia a mesma apreensão passageira que se apoderava de nós, à noite, em Montmartre, quando regressávamos ao Hotel Alsina. Um relvado abandonado. A erva invadira a álea que descia até à entrada da casa. O relvado formava como que um pequeno vale e a casa erguia-se a um nível inferior, a meia encosta, ao ponto de não distinguirmos de imediato o rés do chão. Esta casa ocupava uma posição precária e parecia à mercê de um deslizamento de terras. Parecia, simultaneamente, uma vivenda e um pavilhão do subúrbio.
Pediu-me que esperasse no rés do chão enquanto ela reunia as suas coisas. Uma grande divisão. O único móvel era um sofá. As janelas davam, de um lado, para a encosta do relvado que tapava o horizonte e, do outro, para uma espécie de terreno vago ao final dessa encosta. Tínhamos realmente a sensação de que a casa se mantinha num equilíbrio frágil e corria o perigo de tombar de um momento para o outro. E, depois, o silêncio era tão profundo que, ao fim de um quarto de hora, temi que me tivesse abandonado ali sem me prevenir, como eu próprio fizera tantas vezes, dizendo: «Espere, volto já», quando chegava junto de um prédio com saída dupla, o da place Saint-Michel onde se podia fugir pela rue de l’Hirondelle, e o número 1 da rue Lord-Byron que nos levava, através de um dédalo de corredores e elevadores, à avenue des Champs-Élysées.
Veio ter comigo no momento em que tive a certeza de que desaparecera e me preparava para verificar se assim era, subindo ao primeiro andar. Trazia uma mala de couro negro. Sentou-se a meu lado, no sofá. E, de súbito, senti que um mesmo pensamento nos atravessava o espírito: o corpo de Ludo F. no apartamento da avenue Rodin.
*
Pegara na mala, que pesava bastante, e seguíamos de novo pela avenue du Nord. Ela estava aliviada por ter deixado aquela casa. Eu também. Há lugares de que não desconfiamos à primeira vista por causa do seu aspeto banal e que nos transmitem, ao fim de alguns instantes, más ondas. E eu sempre fora sensível àquilo a que chamam «o espírito dos lugares», ao ponto de os abandonar muito rapidamente se sentisse a menor dúvida, como naquela tarde de inverno no café La Source, quando estava acompanhado pelo irmão de Geneviève Dalame e o seu amigo com cara de velho groom. Aliás, quis aprofundar a questão fazendo uma lista, nos meus cadernos, de todos aqueles locais e endereços precisos onde decidira não me demorar. Trata-se de um dom especial, um sexto sentido que possuem, por exemplo, os cães trufeiros, e que lembra também determinados aparelhos, como os detetores de minas. No decurso dos anos seguintes, apercebi-me de que não me enganara em relação à maior parte desses locais e desses endereços. As razões pelas quais lá flutuavam más ondas, conheci-as graças a testemunhos fortuitos, comparações, antigas crónicas de polícia, amiúde vinte ou trinta anos depois, e por vezes bastavam apenas algumas palavras no decurso de uma conversa que surpreendera num café.
*
Enquanto percorríamos a avenue do Nord, parava de vez em quando e pousava a mala no passeio. Era bem pesada, aquela mala. Acabei por lhe perguntar se não metera lá o corpo de Ludo F. Ficou impassível, mas não pareceu gostar da piada. Uma piada? Por vezes, nos meus sonhos, e mesmo no preciso momento em que escrevo, sinto na minha mão direita o peso dessa mala, como um velho ferimento cicatrizado, mas cuja dor ainda lateja no inverno ou nos dias de chuva. Um remorso antigo? Perseguiu-me sem que possa precisar qual era a causa. Um dia, tive a intuição de que essa causa datava de antes do meu nascimento e de que o remorso se propagara ao longo de um rastilho Bickford. A minha intuição foi tão fugaz, um fósforo cuja chama minúscula brilha durante alguns segundos na escuridão, antes de se apagar...
O caminho ainda era longo até à estação de La Varenne, aonde chegara, vindo de Paris, no dia do nosso primeiro encontro. Propus-lhe que passássemos o fim do dia e a noite no Petit Ritz, algo que tínhamos feito duas semanas antes. Mas ela lembrou-me que eu preenchera a ficha do Petit Ritz indicando o meu nome, como na outra noite no Hotel Malakoff. E, além disso, os patrões do Petit Ritz conheciam-na de vista. Era melhor deixar que nos esquecessem.
Pergunto-me se a recordação longínqua e confusa de uma tarde passada em Saint-Maur não me fez escrever, quarenta e seis anos depois, num caderno, com a data de 26 de dezembro de 2011, estas poucas linhas:
«Sonho. Estou na presença de um comissário de polícia que me apresenta uma convocatória num papel amarelecido. A primeira frase refere um crime sobre o qual tenho de testemunhar. Não quero ler essas páginas. Perco-as. Subsequentemente, fico a saber que se trata de uma rapariga de Saint-Maur-des-Fossés que matou um homem mais velho do que ela em Marly-le-Roi (?). Ignoro a que título sou testemunha.
Isto corresponde a um sonho recorrente: já prenderam certas pessoas e não me identificaram. E vivo sob a ameaça de ser preso, também eu, quando perceberem que tenho ligações com os “culpados”. Mas culpados de quê?»
No ano passado, no fundo de um grande sobrescrito, entre passaportes de cartão azul-marinho expirados e cadernetas de uma residência de férias para crianças e de um colégio da Haute-Savoie onde estivera internado, encontrei algumas folhas dactilografadas.
Num primeiro momento, hesitei em reler essas poucas páginas de papel de seda presas por um clipe enferrujado. Quis livrar-me delas de imediato, mas pareceu-me impossível, como aqueles resíduos radioativos que é inútil enterrar a cem metros de profundidade.
A única forma de desarmar definitivamente aquele processo fino é copiar alguns extratos dele e misturá-los com as páginas de um romance, como fiz há trinta anos. Assim, não se saberá se pertencem à realidade ou ao domínio do sonho. Hoje, 10 de março de 2017, abri de novo a pasta verde-clara, tirei o clipe que deixou uma mancha de ferrugem na primeira folha e, antes de rasgar tudo e de não deixar qualquer vestígio material da sua existência, copio algumas frases e terei terminado.
Na primeira folha: 29 de junho de 1965.
Polícia judiciária. Brigada de costumes.
Cota 29: Posição dos cartuchos.
Os três cartuchos correspondentes às três balas disparadas foram encontrados...
Relativamente às hipóteses que podem ser elaboradas quanto à forma como se desenrolou o homicídio do Sr. Ludovic F...
Na segunda folha: 5 de julho de 1965
Polícia judiciária. Brigada de costumes.
O pretenso Ludovic F. utilizava este nome falso havia uma vintena de anos. Tratar-se-ia, na verdade, de um tal Aksel B., alcunhado Bowels. Nascido a 20 de fevereiro de 1916 em Frederiksberg (Dinamarca). Sem profissão. Em fuga desde abril de 1949 e tendo residido em Paris (16e). Último domicílio conhecido: rue des Belles-Feuilles, n.º 48.
Na quarta folha: 5 de julho de 1965
Polícia judiciária
Brigada de costumes.
Jean D.
Nascido a 25 de julho de 1945 em Boulogne-Billancourt (Seine)... Foram encontradas duas fichas de hotel com o nome de Jean D., preenchidas por ele no passado mês de junho:
A 7 de junho de 1965: Hotel-restaurante Le Petit Ritz, avenue du 11-Novembre, n.º 68, em La Varenne-Saint-Hilaire (Seine-et-Marne).
A 28 de junho de 1965: Hotel Malakoff, avenue Raymond-Poincaré, n.º 3, Paris 16e, onde indicou como sendo o endereço do seu domicílio avenue Rodin, n.º 2 (16e).
Tanto no Petit Ritz como no Hotel Malakoff era acompanhado por uma jovem de cerca de vinte anos, estatura média, morena, olhos claros, cuja descrição corresponde à feita, no seu depoimento, por M. R., porteiro, avenue Rodin, n.º 2, Paris 16e.
Até à presente data, esta jovem não pôde ser identificada.
Embora nunca tenha sido identificada, encontrei o seu rasto vinte anos depois. O seu nome figurava na lista telefónica de Paris desse ano, um apelido e um nome próprio que só podiam ser os seus. Boulevard Sérurier, n.º 76, 19e arrondissement. 208.76.68.
Foi no mês de agosto. Ninguém atendia o telefone. Várias vezes, ao final da tarde, coloquei-me diante do edifício de tijolo por detrás do qual se estende a praceta de la Butte-du-Chapeau-Rouge. Não conhecia aquele bairro. São os outros que nos dão a conhecer uma cidade nas suas zonas mais secretas e mais distantes, marcando-nos encontros neste ou naquele endereço. Quando desaparecem, levam-nos na sua peugada. Ao final da tarde, ao fundo da encosta do boulevard Sérurier, tinha a impressão de que o tempo parara. O sol e o silêncio, o azul do céu, a cor ocre do prédio, o verde das árvores do parque... tudo isso fazia um contraste, na minha memória, com a Bassin de la Villette ou o canal de l’Ourcq, um pouco mais acima no mesmo bairro e que eu descobrira numa noite de dezembro, graças a Madame Hubersen.
Nada mudara para mim. Nesse verão, esperava diante da porta de um prédio, como esperara no passeio, vinte e cinco anos antes, no inverno, a filha de Stioppa. Se me tivessem perguntado: «E tudo isso, para quê?», creio que teria respondido simplesmente: «Para tentar resolver os mistérios de Paris.»
Numa tarde desse final do mês de agosto, reconheci a sua silhueta ao longe, ao cimo do boulevard Sérurier. Não me surpreendeu. Basta um pouco de paciência. Lembrava-me dos meus livros de cabeceira na época em que nos conhecêramos: L’Éternité par les astres e L’Éternel Retour du même... Descia a encosta com uma mala na mão, mas já não era aquela, de couro negro, que eu levara até à estação de La Varenne. Uma mala de folha de Flandres, que captava os raios de sol. Fui ter com ela a meio do boulevard Sérurier.
Agarrei-lhe na mala. Não precisávamos de falar. Tínhamos saído a pé de Saint-Maur, do n.º 35 da avenue du Nord, e havíamos levado vinte anos a chegar ao n.º 76 do boulevard Sérurier. A mala parecia-me muito mais leve do que a outra. Tão leve que me perguntava se não estaria vazia. À medida que os anos passam, acabamos provavelmente por nos livrar de todos os pesos que arrastávamos atrás de nós e de todos os remorsos.
Reparei que uma cicatriz lhe atravessava a fronte. Um acidente de automóvel, disse-me. Um desses acidentes que te fazem perder a memória. E, no entanto, reconhecera-me. Mas parecia não se lembrar dos acontecimentos do verão de 1965.
Regressava do Midi e propôs-me que a acompanhasse a casa. Poderíamos ter caminhado pelo meio do boulevard, nessa tarde, porque estava deserto, como outrora as ruas de Montmartre, à mesma hora e na mesma estação do ano. E, para mim, esses dois verões misturavam-se.
Entre as páginas de um romance, descobri a folha de uma agenda que tem a data de quarta-feira, 20 de abril, e a menção «Santa Odete», mas sem o número do ano. O título do romance é Tempo di Roma e parece-me que o li no final dos anos sessenta. Na época, devo ter-me servido desta folha para marcar as páginas. Ou então, tinha comprado esse livro em segunda mão, nos cais, e a folha já lá se encontrava. Nela, um itinerário escrito a tinta, daquele azul a que chamavam «floride»:
Autoestrada do Sul ou Nacional 7
Ou gare de Lyon
Nemours. Moret
Sair em Nemours
Deixar Nemours à direita
Estrada de Sens, durante 10 km
Virar à direita
Remauville
Última casa da aldeia, à direita em frente à igreja
Portão verde
525.66.31
432.56.01
Já ninguém atendia nos dois números. De cada vez que os marcava, ouvia vozes muito distantes que faziam apelos ou então prosseguiam uma conversa de que não se compreendia uma palavra sequer. Penso que essas vozes pertenciam à misteriosa «rede» de pessoas que, outrora, aproveitavam o vazio das linhas telefónicas desligadas para comunicarem entre si.
A caligrafia irregular a tinta azul poderia ter sido a minha, mas então teria anotado aquele itinerário à pressa, seguindo as indicações precipitadas de alguém que mal tivera tempo para mas transmitir ou o teria feito em voz baixa para não atrair sobre nós as atenções.
Queria, desde há alguns meses, saber de que se tratava, mas adiava o projeto de me deslocar ao local. E, ademais, esse local deveria ter mudado, ou desaparecido, ou ter ficado inacessível se não se consultassem os velhos mapas militares.
Hoje, está decidido, vou seguir esse itinerário até ao fim. Ao longo destes últimos meses, perguntei-me se não o fizera já no passado porque a palavra «Nemours» recordava-me algo. Talvez não tivesse prosseguido o meu caminho para além de Nemours. Ou então um duplo meu fora até à última casa da aldeia e ao portão verde. Um duplo ou um sósia daqueles que são evocados em L’Éternité par les astres, um dos meus livros de cabeceira. Milhares e milhares de sósias de nós próprios aventuram-se por caminhos que não seguimos nas encruzilhadas das nossas vidas e, nós, nós julgámos que havia apenas um só.
Entre os antigos mapas militares que comprara havia quase cinquenta anos, encontrei o dos arredores de Nemours. Indicava estradas, caminhos, aldeias que já não aparecem no mapa Michelin atual da mesma região. Mas era preciso que seguisse o primeiro mapa se quisesse chegar à meta.
Preferi partir perto das cinco da tarde. Estávamos no início de setembro e ainda anoitecia tarde. Para não correr o risco de me perder, completei o trajeto que figurava naquela folha da agenda, consultando o antigo mapa militar. Previa alguns desvios para conhecer melhor o terreno e levar a cabo, assim, abordagens sucessivas.
Nemours. Moret
Passar por Veneux-les-Sablons (N 6)
Depois de Moret, tomar o vale de l’Orvanne
Atravessar Lorrez-le-Boccage (D 218)
Villecerf (D 218)
Dormelles
Depois regressar a Nemours
Deixar Nemours à direita
Passar por Laversanne
Estrada de Sens, durante 10 km
Cortar por Bazoches-sur-le-Betz e a quinta Baslins
Regresso por Égreville e Chaintreaux
Remauville
Última casa da aldeia, à direita, em frente à igreja
Encosta do Vieux Lavoir até ao portão verde
Álea. Castelo da Bela Adormecida
A minha escrita era muito mais firme do que aquela em tinta azul na folha da agenda. À medida que especificava o itinerário, era como se já o tivesse seguido e já nem sequer precisasse de consultar o velho mapa militar. Mas era realmente o bom caminho? Nas nossas recordações misturam-se imagens de estradas que seguimos e que já não sabemos que províncias atravessavam.
DOI 20182220
Source 07179.10
Patrick Modiano
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