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-Pareço um docinho de chocolate e merengue -disse Kady, fazendo-lhe uma careta a seu reflexo no alto espelho de três corpos. Com seu cabelo escuro e sua pele de marfim luzindo sobre o espumoso vestido de casamentos, tinha o aspecto do chocolate com claras batidas a ponto de neve. Ladeando a cabeça, corrigiu-: Ou, melhor, buñuelos de frango. Não sei.
A suas costas, Debbie, que tinha sido parceira de Kady na Cole de cozinha, riu quedamente, mas Jane não.
-Não quero ouvir uma só palavra mais nesse sentido -disse Jane com severidade-. Ouviste-me, Kady Long? ¡Nem uma só palavra mais! Estás esplêndida, e tu o sabes muito bem.
-Efetivamente, Gregory o sabe -disse Debbie, olhando a Kady no espelho com os olhos dilatados.
Como era uma das damas de honra da noiva, tinha voado a Virginia desde o norte de California a noite anterior, e tinha conhecido ao noivo de Kady essa manhã. Ainda estava aturdida pela experiência. Gregory Norman era um homem de extraordinária postura: tanto a cara como o corpo era todo ângulo e planos, tinha cabelo negro e olhos que olhavam às mulheres como dizendo que teria grande prazer em fazer-lhes amor. Quando se levou a seus lábios bem esculpidos os dedos de Debbie e os beijou, o lábio superior da moça se perló de suor.
-Como vou avançar pelo corredor da igreja com este aspecto? -perguntou Kady, levantando o que pareciam ser quase cinquenta metros de gordo cetim-. E com estas mangas: são mais longas do que eu. ¡E a saia!
Com expressão de horror, baixou a vista para os metros de cetim branco que se desparramaban ao redor e aos dezoito centímetros do ribete incrustado de pérolas.
-Qualquer destes vestidos se pode modificar -disse a vendedora alta e delgada.
Com sua postura rígida, indicava a Kady que não lhe agradava demasiado que se criticassem as criações que oferecia em seu salão.
Kady não tinha querido ofendê-la:- Não é o vestido: sou eu. Por que o corpo humano não será como a massa de pão, para que uma pudesse dar-lhe a forma que quisesse? Agregar um pouco aqui, tirar um pouco lá...
-Kady -lhe advertiu Jane.Conheciam-se e se queriam de toda a vida, e não podia suportar que Kady dissesse coisas denigrantes de si mesma: øqueria-a demasiado para tolerá-lo.Debbie, em mudança, riu com dissimulo.-Ou que se pudesse esticar como a massa da pizza -disse, olhando à amiga no espelho-. Assim, poderíamos alongar o que é curto, e deixar avultado o que queremos avolumar.
Kady riu, e Debbie se sentiu muito comprazida consigo mesma. Tinham ido juntas à Cole culinária de Nova York, mas Debbie sempre tinha adolhado a Kady. Enquanto os outros alunos tratavam de aprender as técnicas, de aprender a misturar sabores, dava a impressão de que Kady já o sabia. Bastava-lhe olhar uma receita para saber que sabor teria; comia uma só vez algo que não tivesse preparado ela, e depois podia recreá-lo com exatidão. Enquanto os demais discípulos falsificavam receitas e tentavam recordar entre doces e bolachas, Kady jogava ingredientes numa cumbuca, punha a mistura numa placa, metia-a no forno, e saía sensacional. Não é necessário aclarar que era a preferida dos professores e a inveja de todos os alunos. Debbie se sentiu afagada além de toda medida quando Kady lhe perguntou a ela se queria ir ao cinema, e desse modo tinha começado a amizade.
E agora, cinco anos mais tarde, as duas tinham trinta anos. Debbie se tinha casado, tinha um par de filhos, e seus talentos culinários se limitavam a untar. Emparedados com manteiga de amendoim e assar costelas na grelha os fins de semana. Ao terminar a Cole, Kady tinha surpreendido -e horrorizado-a todos seus colegas de estudos e a seus maestros ao aceitar um emprego num ruinoso restaurante que se especializava em bistecs: Onions, em Alexandría, no Estado de Virginia. Os professores tentaram convencê-la de que aceitasse uma das numerosas ofertas de trabalho que recebia de os luxuosos restaurantes de Nova York, Los Angeles, São Francisco e inclusive Paris, mas ela as recusava de plano. E todos comentavam que era uma lástima que uma pessoa com o talento de Kady se desperdiçasse num insignificante restaurante de bistecs.
Mas Kady foi quem riu a última, porque converteu Onions num restaurante de três estrelas. A gente ia de todas partes do mundo para comer ali. Se um diplomata, um membro da jet-set, ou inclusive um turista que estivesse ao tanto, ia à costa este, nunca deixava de visitar o Local de Kady, como se o chamava carinhosamente.
E o que mais provocava as invejas no mundo culinário era do que Kady o tinha feito a seu modo. Estava resolvida a atrair à gente para sua comida, não ao restaurante em si mesmo. Na atualidade, Onions ainda precisava ser remodelado: era pequeno e só cabiam vinte e cinco pessoas, e não admitiam reservas. Também não tinha menu. Os clientes iam, formavam fila, e esperavam até que se desocupasse uma mesa para comer o que Kady tivesse decidido cozinhar essa noite.Debbie jamais esqueceria as imagens aparecidas nas notícias das seis da tarde, que tanto divertissem a Peter Jennings. Via-se ao presidente Clinton esperando na fila, ante a porta de Onions, conversando com o rei de certo país africano, rodeado de turistas famintos e de gente do lugar, sob a olhada desorbitada dos membros do Serviço Secreto, que temiam algum perigo.Nesse momento, observando a Kady com o vestido de noiva, Debbie só via a sua bela e inteligente amiga. Além de ser uma cozinheira extraordinária, Kady tinha um dos rostos mais belos que tivesse visto jamais.
Até onde sabia, Kady não tinha idéia de como se aplicar máscara para pestanas, pois para que precisava sabê-lo, com essas pestanas tão espessas e negras?. E o cabelo longo e gordo, tão brilhante que quase se podia usar de espelho. "É a boa dieta" explicava sempre Kady, cada vez que alguém lhe dizia que era bela, pondo a língua contra a bochecha.Conquanto tinha um rosto notavelmente belo, Kady tinha o que as revistas de moda qualificavam como um "problema de silhueta". Media um metro e cinquenta e sete centímetros, tinha uma talha ampla na parte de acima e de abaixo, e uma cintura minúscula.
Na Cole levava sempre o avental de cozinheiro e uma jaqueta cruzada que lhe chegava quase aos joelhos, ocultando-lhe a cintura, e que lhe dava a aparência de uma cara formosa colocada sobre um burrito. Só quando na Cole se celebrou a festa de Halloween, Kady assistiu em roupa de rua, e todos puderam ver sua, figura de ampulheta. A partir dessa noite, vários estudantes varões lhe fizeram insinuações, mas, mais adiante, quando lhes corrigiu os soufflés e os crepes, deixaram-na em paz.
-Sempre dá resultado -lhe murmurou Kady a Debbie, e agregou que estava esperando a um homem ao que amasse tanto como amava cozinhar. E o tinha encontrado. Gregory Norman era o bonito filho da viúva proprietária de Onions, a mulher que tinha tido a sabedoria de contratar a Kady. Se rumoreava que quando Kady se negou a permitir que o presidente de Estados Unidos entrasse no restaurante antes que uma família de turistas procedentes de Iowa, a senhora Norman precisou aspirar sais para voltar em si. Mas depois, quando a senhora Norman recebeu uma nota manuscrita do presidente na que lhes dava a graça a ela e a Kady por essa comida tão maravilhosa, o modo em que a dona, a sua vez, tinha dado as graças a Kady consistiu em pagar, sem, protestar e sem um só comentário irônico, a desgrenhada conta das trufas brancas que a cozinheira tinha encarregado. Dizia-se que à senhora Norman lhe tinha custado cinco anos de sua vida manter a boca fechada.
- O que é seguro é que não podes pôr-te esse vestido -disse Jane com tom prático-. Em realidade, não podes deixar-te ver com nenhum desses. -Enquanto falava, olhava com atitude à vendedora, como a desafiando a fazer um comentário-. Vamos, tira-te isso e vamos tomar café da manhã.
- Ouvi falar de um lugar novo, que está a pouco mais de trinta quilômetros... -começou a dizer Debbie, mas Jane a cortou.
-Nem o tentes. Nossa Kady não comeria em nenhum lugar que não fosse um American Deli. Ninguém é capaz de cozinhar algo o bastante bom para ela, não é assim, señorita exigente? Enquanto forcejeaba para tirar-se o volumoso vestido, Kady riu.-¡Ja! O que passa é que não te agrada como cozinha ninguém. Vêem, vamo-nos.
A Debbie a escandalizava a atitude autoritária de Jane para Kady, pois, para ela, era quase uma celebridade, ao menos no que se referia ao mundo da cozinha, pois tinha sido mencionada nessas maravilhosas revistas de cozinha, "Pornografia culinária" -como as chamava Kady-. Pecaminosamente rica, demasiado deliciosa para nossa sociedade, tão preocupada pelo peso.
Vinte minutos mais tarde, as três mulheres estavam sentadas às minúsculas mesas de um frenético deli, comendo emparedados de peito de peru.
-¡Bueno! -disse Jane-. Sinto-me um pouco culpado por ter chegado uns dias antes, assim que por que não lhe contas a Debbie um pouco de teu noivo? Em realidade, eu esqueci toda a parte romântica.
Isso fez que Kady pusesse os olhos em alvo. Jane era contável e durante dois dias suas principais preocupações tinham sido as finanças do restaurante e a conta bancária de Kady.
-Sim, conta-me -a animou Debbie-. Conta-me coisas sobre Gregory. Kady, para valer, é o mais guapo dos homens. É modelo?
-Mais importante do que isso -disse Jane, com expressão misteriosa-, como está com um véu no rosto?
-Que? -perguntou Debbie, inclinando-se para diante, intrigada.
-Desde que era menina, Kady... -Jane se interrompeu e olhou a sua amiga-. Abandona essa expressão de gato que se comeu ao canário, e conta-nos tudo. Foi amor a primeira vista?
-Mais bem, amor ao "primeira mordida" -disse Kady sorrindo com olhos sonhadores, como sempre que pensava no homem que amava-, Como sabeis, Gregory é o único filho da senhora Norman, mas ele vive em Los Angeles, onde tem negócios imobiliários muito importantes. Ocupa-se da compra e venda dessas casas de cinco milhões de dólares para as estrelas de cinema, assim que está muito ocupado. Voltou a Virginia só uma vez nos cinco anos que eu levo aqui.
-Ao dizer isto olhou a Jane para cerciorarse de que a tinha escutado, porque a solvência econômica era para Jane o rasgo mais importante de um homem-. A única vez que esteve aqui, ademais, foi a semana que eu fui a Ohio a visitar a meus pais, e por isso não o conheci.
Recordando-o, Kady sorriu.
-Faz seis meses, um domingo pela manhã, temporão, eu estava no restaurante com minhas facas e...Ao ouví-la, Jane replicou de riso, e Debbie riu entre dentes: Kady nunca, jamais, permitia que ninguém tocasse suas preciosas facas. TINHA-OS tão afiados que eram capazes de cortar um cabelo no ar, e que o céu amparasse àquele que tomasse um e o usasse para fazer algo como, por exemplo, raspar uma tabela de cortar.-Está bem -disse Kady sorrindo, e se dirigiu a Debbie-. Faz anos que minha querida amiga, aqui presente, tenta convencer-me de que existe uma vida fora da cozinha. E eu lhe disse que devido a uma coisa chamada fome, a vida vai à cozinha.-Olhou de novo a Jane-. E foi. Apareceu na forma de Gregory Norman.-E daí forma -disse Debbie com um suspiro, fazendo sorrir a Kady.
-Faz seis meses, um domingo pela manhã, temporão, eu estava no restaurante com minhas facas e...
Ao ouví-la, Jane replicou de riso, e Debbie riu entre dentes: Kady nunca, jamais, permitia que ninguém tocasse suas preciosas facas. Tinha-os tão afiados que eram capazes de cortar um cabelo no ar, e que o céu amparasse àquele que tomasse um e o usasse para fazer algo como, por exemplo, raspar uma tabela de cortar.
-Está bem -disse Kady sorrindo, e se dirigiu a Debbie-. Faz anos que minha querida amiga, aqui presente, tenta convencer-me de que existe uma vida fora da cozinha. E eu lhe disse que devido a uma coisa chamada fome, a vida vai à cozinha.-Olhou de novo a Jane-. E foi. Apareceu na forma de Gregory Norman.-E daí forma -disse Debbie com um suspiro, fazendo sorrir a Kady.
-Pobre homem -disse Jane, seria-. Não teve salvação. -Se inclinou para diante-. Kady querida compreendo que se tenha apaixonado de ti, mas tu estás apaixonada dele? Não te casarás com ele porque elogia efusivamente tua comida?-Não aceitei casar-me com os outros que depois de ter provado minha comida me pediram em casal, verdade?Debbie riu:-Tantos teve? Contestou Jane:-Segundo a senhora Norman, há um por noite, e provem de todo mundo. Que foi o que te ofereceu aquele sultão?-Rubis. Em opinião da senhora Norman, ainda bem que não me ofereceu uma horta de ervas porque temia que nesse caso me tivesse ido com ele.-Que te ofereceu Gregory?
-Só a si mesmo -respondeu Kady-. Por favor, Jane, deixa de preocupar-te. Amoo muito a Gregory. -Fechou um instante os olhos-. Os últimos seis meses foram os melhores de minha vida. Gregory me cortejou como numa novela, com flores, bombons, e atendimentos. Presta atendimento a todas minhas idéias com respeito a Onions, e lhe disse, a sua mãe que me dê carta branca no que se refere à compra de ingredientes. Ainda que não se o disse a ninguém, nos meses anteriores ao regresso de Gregory estive pensando em ir-me de Onions e abrir meu próprio restaurante.-E agora, ficas. Isso significa que Gregory vai marchar-se de Los Angeles e viver aqui, contigo? -perguntou Jane.-Si. Compramos uma casa em Alexandria, uma dessas belas casas de três plantas, com jardim, e Gregory vai ocupar-se de negócios imobiliários aqui em Virginia. Não ganhará tanto como em Los Angeles, mas...-É amor -afirmou Debbie-. Planes de ter filhos?
-Quanto seja possível -disse Kady com tom terno, ruborizándose e fincando a vista em sua salada de couve, que tinha demasiado funcho.-E como lhe fica o véu? -insistiu Jane.-Tens que dizer-me -disse Debbie, vendo que Kady não respondia de imediato-. De que se trata isso do véu na cara?-Posso? -perguntou Jane, e quando Kady assentiu, continuou-: A mãe de Kady, que era viúva, teve diversos empregos, assim que Kady vivia conosco boa parte do dia, era um membro mais da família. Costumava ter...
-Olhou a Kady com uma sobrancelha levantada-. Ainda os tens? -Kady assentiu-. Kady teve toda a vida um sonho com um príncipe árabe.
-Não sei quem é -contou Kady, olhando a Debbie-É só um sonho. Não é nada.
-¡Nada, ja! Sabes o que fazia durante todos esses anos? Colocava véu tampando a metade inferior das caras, nas fotos de qualquer homem que via. Meu pai costumava ameaçá-la de morte, quase, porque quando abria a revista Time ou Fortune, se Kady a tinha lido antes, encontrava-se com que estava tampada a metade inferior do rosto de todos os homens. Levava consigo os hidrocores negros a onde quer que fosse. -Jane se inclinou para Debbie-. Quando foi maior, levava os hidrocores no estojo das facas.
-Ainda os leva -disse Debbie-. Na Cole, todos nos perguntávamos para que seriam esses hidrocores negros. Uma vez, Darryl disse...Jogando-lhe uma olhada a Kady, interrompeu-se.
-Segue -disse Kady-. Posso suportá-lo. Cada vez que me ouvia dizer que não sabia nem fritar um frango, Darryl não se sentia demasiado amigo meu. Que dizia de meus hidrocores?
-Que os usavas para escrever-lhe cartas ao diabo, porque esse era o único modo em que podias cozinhar como o fazias.
Kady e Jane riram.
-Conta-me do homem do rosto velado -a instou Debbie, e esta vez Jane fez um gesto impulsionando a Kady a contar sua própria história.
-Não é real. De adolescente, estava obsedada por encontrar a este homem. -Olhou a Jane-. E agora creio que o tenho. Gregory se parece muito a ele.
-A quem? -disse Debbie, frustrada-. ¡Se não me contas, te farei comer queijo processado!
-Nunca pensei que tivesses semelhante veia de crueldade -disse Kady, secamente-. Está bem, está bem. Tive esse sonho recorrente, sempre igual. Estou no meio de um deserto, e está esse homem num cavalo branco, um desses formosos cavalos árabes. O homem leva uma túnica de lã negra. Está olhando-me, mas eu só posso ver-lhe os olhos, porque tem a metade inferior da cara coberta com uma tela negra.
Por um momento, a voz de Kady se voltou muito fica, ao pensar no homem de seu sonho que tinha formado uma parte tão forte de sua vida.
-Têm olhos almendoados, invulgares, e as pálpebras superiores mal entornados, que lhe dão um ar de tristeza, como se ele tivesse visto mais dor do que uma pessoa pudesse suportar. Kady voltou com brusquedad ao presente, e lhe sorriu a Debbie.
-Ele nunca diz nada, mas estou segura de que quer um pouco de mim, de que espera que diga algo. Sempre me frustra não saber que quer. Depois de um momento, estende-me a mão. Uma mão bela, forte, de longos dedos e pele bronzeada. Pese a si mesma, contando a história Kady sentiu a força do sonho. Se o tivesse sonhado só uma ou duas vezes, teria podido esquecê-lo, mas, desde que tinha nove anos, nunca tinha passado uma semana sem que tivesse o sonho. Sempre era exatamente igual, sem a mais mínima variação.
A voz de Kady se voltou tão fica que Jane e Debbie tiveram que se inclinar para ela para ouví-la.-Sempre trato de tomar sua mão. O que mais quero no mundo é saltar sobre esse cavalo e marchar-me com ele. Estou disposta a ir a onde quer que ele vá, de estar com ele para sempre, mas não posso. Não atinjo sua mão. Tento-o, mas há demasiada distância entre nós. Ao cabo de um momento, nos olhos dele aparece uma tristeza infinita, retira a mão e se afasta com o cavalo. Galopa como se fizesse parte do cavalo. Depois de um, momento longo, detém o cavalo, volta-se um segundo, e me olha como se ainda esperasse que eu mudasse de opinião e me fosse com ele. Cada vez, eu lhe grito que não me deixe, mas nunca me ouve. Sua expressão se volta mais triste ainda, e então se dá à volta e se vai.Kady se reclinou na cadeira.
-E assim termina o sonho.
-Oh, Kady -disse Debbie-, põe-me nervosa. E crês que Gregory será teu príncipe árabe da vida real?
-É moreno como ele e, desde o primeiro momento nos sentimos mutuamente atraídos, e desde que me propôs casamento tive o sonho todas as noites. Parece-me um sinal, não crês?
-O que me parece é que se trata de um sinal para que abandones tua vida de comida e homens montados em sementais alvos nos sonhos, e te integres ao mundo real -disse Jane.
-Nunca olhei -replicou Kady.
-Que?Nunca olhei a parte de abaixo do cavalo para saber se era um semental ou não. Poderia ser uma égua. Ou um castrado. E como saberia que foi castrado?
-Estou segura de que, se estivéssemos vezeiros a comer carne de cavalo, o saberias -disse Jane, fazendo-as rir.Debbie lançou um grande suspiro.
-Kady, parece-me a história mais romântica que ouvi jamais. Estou convicta de que deverias casar-te com teu príncipe árabe.
-O que quero saber é que vais fazer-lhe levar ao pobre Gregory para o casamento. Uma túnica negra? Kady e Debbie riram, E depois a primeira disse:
-Meu querido Gregory pode usar tanto ou tão pouco como queira para o casamento. O não pesa quase quatorze quilos a mais.
-E tu também não -lhe espetó Jane. -Díselo à vendedora de vestidos de noiva. Jane ia replicar, mas nesse momento um empregado se pôs a limpar a mesa, insinuando, sem muita discrição, que a precisavam e que teriam que a deixar. Em poucos minutos, as três mulheres estavam de volta nas ruas de Alexandria. Jane olhou o relógio.
-Debbie e eu temos que fazer umas compras em Tyson's Corner, assim que, se te parece, encontramo-nos outra vez contigo em Onions, às cinco.
-De acordo -disse Kady vacilante, e fez uma careta. Tenho uma pronta de coisas que se supõe, teria que comprar para a casa nova. Coisas que não vão à cozinha.-Te referes a lençóis, toalhas, e essas coisas?
-Sim -disse Kady com suavidade, esperando que Jane e Debbie se oferecessem a ajudá-la com essa tarefa incompreensível. Mas a sorte não estava com ela.
-Debbie e eu temos que unir nossos fundos e conseguir algo bonito para teu presente de casamento, e não podemos fazê-lo contigo perto. Vamos, não te ponhas tão triste. Amanhã te ajudaremos a eleger lençóis.
-Não há aqui, em Alexandria, uma boa loja de utensílios de cozinha? -perguntou Debbie, convicta de que sua amiga preferia ir comprar esse tipo de coisas com Kady que ir eleger o presente junto com Jane.
-Creio que sim há -disse Kady, rindo-. Nunca o pensei. Talvez possa encontrar o modo de manter-me ocupada.Era evidente que estava caçoando e que, desde o princípio, tinha intenções de visitar a loja de utensílios de cozinha.
-Vêem -disse Jane, tomando do braço a Debbie-. Estou segura de que o pobre Gregory dormirá sobre lençóis de bolacha e se secará com papel encerado.
-Papel pergaminho -disse ao uníssono Debbie e Kady, brincadeira interna dos chefs que fez gemer a Jane, ao mesmo tempo em que arrastava a Debbie. Sorrindo, Kady viu como as amigas se iam, e exalou um suspiro de alívio. Fazia anos que não via a Jane, e tinha esquecido a autoritária que era. E também como a adorava Debbie. Contemplando a seu arredor a bela posta do sol, por um momento não soube que fazer consigo mesma. Dispunha de horas de liberdade. E essa liberdade se a tinha concedido seu querido, queridísimo Gregory. Bem como Gregory era um céu, amável e considerado, a mãe era intratable.Como a senhora Norman nunca se tomava uma tarde livre, não se lhe ocorria que Kady precisasse esse tempo.
Ainda que, a dizer verdade, Kady não tinha demasiado coisas que lhe interessassem fora da cozinha. Os domingos e as segundas-feiras, quando Onions estava fechado, Kady ficava na cozinha experimentando e aperfeiçoando receitas para o livro de cozinha que estava escrevendo. Por isso, ainda que já fazia cinco anos que vivia em Alexandria, não conhecia muito bem a cidade. Por suposto, sabia onde estava a melhor loja de utensílios de cozinha, onde comprar toda matéria prima imaginável, e quem era o melhor açougueiro, mas onde se compravam lençóis? Mais, onde se compravam todas as coisas que Gregory dizia que precisavam para a casa? Disse que isso o deixaria por conta dela, porque sabia o importantes que eram essas coisas para uma mulher, e Kady lhe tinha dito:- Graças. -E não lhe aclarou que não tinha idéia de onde comprar cortinas e tapetes.
Com tudo, tinha passado certo tempo desenhando de novo a cozinha da casa nova, convertendo-a numa obra de arte de dois ambientes, com uma área para hornear e outra para "queimar ossos", como, chamavam os cozinheiros pasteleiros ao trabalho dos chefs especializados em entradas. Os dois recintos, um em forma de L e outro em Ou, tinham a ambos lados grandes mesas com tampas de granito, onde Kady podia aporrear a massa dos brioches sem danar nada. Tinha móveis abertos e fechados para armazenar, e...Interrompeu o fio de seus pensamentos e suspirou. Tinha que deixar de pensar em cozinhar e em cozinhas, e pensar nos problemas que tinha que resolver. Que diabos se poria para o casamento? Estava muito bem isso de estar apaixonada de um homem tão bonito, mas não queria ouvir dizer: -Que viu um pedaço de homem como esse numa garota regordeta como ela?
Ainda que tivessem que regressar seis semanas depois para o casamento mesmo, Debbie e Jane tinham tido a generosidade de voar até Virginia para acompanhá-la a provar-se vestidos de noiva e ajudá-la a eleger. Ainda assim, entre as três não tinham chegado a nada. Ao ver-se essa manhã no espelho, Kady teve vontade de abandonar tudo. Talvez não podia casar-se com a jaqueta de cozinheira? Era branca.Enquanto pensava, as pernas a levaram a certa loja de utensílios que nunca lhe falhava: sempre tinha algo que Kady podia utilizar. Uma hora depois, saiu com um molde para torta francesa em forma de maçã. Conquanto não era um véu de noiva, duraria mais, disse-se, enquanto se dirigia ao estacionamento onde tinha deixado o automóvel. Ainda era temporão, mas sempre tinha algo que fazer no restaurante, e ademais, talvez estivesse Gregory.
Sorrindo, pôs-se a caminhar, mas se deteve ante uma loja de antigüidades. Na vitrine tinha um velho molde de cobre em forma de rosa. Como hipnotizada, abriu a porta, fazendo tintinear a campainha. Passando ante uma antiga mesa e um gato de ferro forjado, sacou o molde da vitrine, e vendo que era algo que podia pagar, procurou a algum empregado que lhe cobrasse.Não tinha ninguém na loja. E se fosse ladra? Pensou. Então ouviu vozes no fundo e passou ao outro lado de uma cortina, ao armazém. Através de uma porta aberta que dava a um pátio, ouviu uma voz de mulher, aguda de enfado e frustração:- Que vou fazer com tudo isto? Sabes bem que não tenho espaço nem para a metade destas coisas.
-Cri que iam agradar-te, nada mais -repôs uma voz de homem-. Pensei que estava fazendo-te um favor.
-Poderias ter-me chamado e conferido.
-Não tinha tempo, já to disse. Oh, ao diabo -disse o homem, e se ouviu o som do cascalho que crujía sob seus pés.
Kady ficou imóvel no armazém, esperando que entrasse alguém, mas, como ninguém entrou, assomou-se pela porta. No pátio tinha uma caminhonete carregada até o topo com velhos baús sujos e caixas fechadas com fita adesiva. A porta traseira da caixa estava baixa, e no solo tinha meia dúzia mais de caixas metálicas e gavetas de madeira. O conjunto dava a impressão de ter estado armazenado durante um par de séculos em algum galpón com goteras.
-Desculpe -disse Kady-. Quisesse saber se posso comprar uma coisa.
A mulher se deu à volta e olhou a Kady, mas não respondeu:- ¡Homens! -disse baixo-. Meu esposo ia a uma ferretería, e viu um cartaz -que dizia "Leilão", assim que se deteve e, ao ver que o lote número três dois sete era "Miscelânea de baús sem abrir", comprou-o tudo. Tudo. Nem olhou, nem perguntou para saber quantas tinha, limitou-se a levantar a mão e comprar tudo por cento vinte e três dólares. E agora, que vou fazer eu com tudo isto? E pelo aspecto que tem, a maior parte é lixo. Não tenho espaço nem tempo para guardar a metade destas coisas para protegê-las da chuva.
Kady não sabia que lhe responder, e estava de acordo em que as pilhas de canastros e baús não pareciam muito promissores. Quiçá "Miscelânea de baús sem abrir" insinuasse a idéia de um tesouro escondido, mas era difícil imaginar-se um tesouro escondido em qualquer desses baús. -Quer que a ajude a metê-los dentro?
-Oh, não, ele voltará e o fará. -Com um suspiro, a mulher se voltou para Kady-O sinto. Você é uma cliente. Já viu o alterado que me pus, como para deixar sem fechar a porta principal. Em que poderia ajudá-la?
Enquanto a mulher falava, Kady tinha estado observando os baús. Sobre a caixa da caminhonete, sob três canastros cobertos de telas de aranha, tinha uma velha caixa metálica que em outro tempo contivesse farinha. Em algumas partes estava enferrujada, e a lenda quase não se via, mas ainda assim tinha bom aspecto, num estilo rústico. Se a imaginou sobre o teto de alguma dos armários de sua cozinha nova.-Quanto me pede pela caixa? -perguntou, assinalando-a.
-Essa enferrujada que está abaixo de tudo? -perguntou a mulher, evidentemente convencida de que Kady era idiota.-Tenho visão de raios X, e vejo que a caixa contém um tesouro pirata. -Então terá que a carregar você. Dez dólares.-Fato -disse Kady, sacando trinta dólares da billetera, dez pela caixa e vinte pelo molde em forma de rosa.Enquanto a mulher se metia o dinheiro no bolso, Kady sacou a caixa do caminhão e a sacudiu.-Em verdade, há algo dentro.
-Todas têm algo dentro -replicou a mulher, exasperada-. Fora quem fosse o dono destas coisas, jamais atirou um papel. E as visitaram os ratos a quase todas, além do mofo e de asquerosas criaturas reptantes. Adiante, leve-se à caixa. Se tiver algo valioso dentro, é seu. Eu creio que ainda está cheia de farinha.
-Se assim fora, poderia fazer pão antigo -disse Kady, fazendo sorrir à mulher, que sujeitou a caixa de um lado para ajudá-la a levantá-la. -Pode com ela? Poderia comunicar-me com meu esposo pára...
-Não, graças -respondeu Kady com os antebraços sob a caixa, que era maior do que lhe tinha parecido; quase não podia olhar por em cima-. Viria-me bem que me enganchasse o molde na bolsa.
Enquanto o fazia, olhou a Kady com ar reflexivo.
-Sabe? Creio que farei uma venda do tesouro o sábado. Farei-lhes uma boa limpeza a estas coisas e as venderei como "Conteúdo desconhecido". A dez dólares cada uma, ainda poderia sacar-lhes algum proveito.
-Se o faz, seu marido ficará com todo o mérito -disse Kady, sorrindo acima da caixa.-E jamais voltará a passar ante outro leilão sem comprar o que está à vista. Terei que o reconsiderar -disse rindo, enquanto acompanhava a Kady pela loja, até o beco-. Por aí, todo direito, está a rua. Está segura de que não lhe pesa demasiado? É quase tão grande como você. Quiçá teria que trazer o automóvel até aqui.
-Não, está bem -disse Kady, porque tinha braços fortes graças a anos de alçar botes de cobre cheios de matéria prima e de amassar montanhas de massa de pão. Mas, por forte que fosse, depois de ter caminhado as três ruas até o automóvel e posto a caixa metálica no porta-malas, doíam-lhe os braços. Contemplando a velha caixa enferrujada, perguntou-se que diabos a tinha impulsionado a comprá-la. Ainda que Gregory transladaria parte dos móveis de sua casa de Los Angeles a Alexandria, tinha-lhe dito que, para ele, na casa nova faziam defeituosa móveis para valer, não os grandes sofás e, cadeiras de campo que ele tinha, de maneira que pensava vender quase tudo. Fechou o porta-malas e suspirou.
-Móveis para valer -disse, para ninguém em particular-. Onde está Dolley Madison quando um a precisa?Enquanto se acomodava ao volante, se lhe ocorreu que poderia provar com coelho em vinho tinto para o jantar da noite seguinte, algo próprio do século dezoito.
CAPÍTULO 2
Eram as onze da noite, e quando entrou em seu pequeno e aborrecido apartamento mobiliado, Kady estava em extremo cansada. Tinha escolhido esse lugar porque estava perto de Onions, e porque não precisava comprar móveis.Ainda que lhe fosse a vida em isso, não imaginava que era o que lhe passava essa noite. Em teoria, tudo tinha saído bem. Gregory tinha estado encantador como nunca, e Kady valorizou o esforço que fez para receber a suas amigas; a tal ponto era assim que até Jane estava impressionada, e lhe comentou que nem seu próprio marido se sentia obrigado a conversar com suas amigas e o que para era esconder-se por trás do jornal. No que se referia a Debbie, estava tão deslumbrada por ter comido a comida de Kady e pelo atendimento de um homem com a aparência de Gregory que quase não podia falar.
-Estás cansada -disse Gregory de repente, ao ver que Kady continha o quinto bocejo durante o jantar-. Tens estado de pé todo o dia. Tens que ir a tua casa a descansar.
-Creio que a liberdade não me senta bem -disse Kady, sorrindo, soñolienta-. Teria que ter passado o dia na cozinha.Gregory fixou os olhos escuros nas outras duas mulheres.-Poderíeis fazer algo com ela? Jamais vi a ninguém trabalhar tanto como ela. Nunca se toma tempo livre, nunca faz outra coisa que não seja trabalhar. Enquanto falava, tomou a mão de Kady e a acariciou, olhando-a de um modo capaz de fazê-la derreter-se.Mas quando Kady voltou a bocejar, Gregory riu:- Vêem, meu amor, ou vais estragar minha reputação de devorador de mulheres. Que vão pensar de mim Debbie e Jane?Kady riu, como sempre lhe passava com Gregory. Voltou-se para suas amigas e sorriu:
-É o melhor homem do mundo. É muito excitante, e tudo isso; o problema sou eu. Não seja o que me passa esta noite. Tenho a sensação de ter-me ficado sem energias.-É provável que seja por ter tido que eleger móveis -disse Gregory pondo-se de pé e içando o corpo lasso de Kady da cadeira. Era bastante mais alto do que ela, e bem como o rosto de Kady era toda curva suave, o dele era tudo planos bem cincelados. Gregory olhou sorrindo às outras duas mulheres:
-A levarei à casa, e depois voltarei a gozar da sobremesa que tenha feito Kady, qualquer que seja. -Framboesas com kirsch, e... - Ao ouvir que os outros três riam, se ruborizó e guardou silêncio.
-Está bem, só estou cansada, não morta.Pendurando-se do forte braço de, Gregory, Kady saiu da casa nova e foram caminhando até onde ela vivia, sem falar, simplesmente com o braço dele rodeando-a, protetor. Ante a porta, abraçou-a e lhe deu o beijo de boas noites, mas não lhe pediu que lhe permitisse passar a noite com ela,
-Como vejo que estás exausta, te deixarei. -Jogando-se para trás, olhou-a-. Ainda queres casar-te comigo?
-Sim -contestou, sorrindo, e apoiou a cabeça no peito duro-. Tenho muitas vontades. -O olhou-. Gregory, a verdade é que sou um desastre para comprar móveis. Não tenho idéia no que se refere a cortinas e lençóis, e...Interrompeu-se quando a beijou.-Contrataremos a alguém. Não percas um minuto mais pensando em isso. Tenho um negócio em marcha em Los Angeles, e quanto esteja fechado, poderemos permitimos qualquer coisa. -Lhe beijou a ponta do nariz. Todas as panelas de cobre que queiras.Rodeando-lhe a cintura com os braços, abraçou-o estreitamente.
-Não sei o que fiz para merecer a um homem como tu. Sinto muita culpa de que deixes teu emprego em Los Angeles para viver: aqui, comigo. -O olho-. Estás seguro de que não preferirias que eu me mudasse lá? Poderia abrir um restaurante, e...
-Minha mãe não deixaria Onions, tu o sabes. Esse negócio o levantou junto com meu pai, e está cheio de recordações para ela. Está envelhecendo. Talvez pareça que tem a energia de uma adolescente, mas dissimula muito. Para mim é mais fácil mudar-me aqui, e assim estaremos os três juntos. -Fez uma pausa-. A não ser que te sentas azarada aqui, e queiras marchar-te. É isso?Kady voltou a apoiar a cabeça no peito dele.-Não, estarei feliz onde quer que estejas tu. Ficaremos aqui, nos ocuparemos de Onions. Escreverei livros de cozinha, e teremos uma dúzia de filhos.Gregory riu.
- Sem dúvida, serão uns comilões bem alimentados. -Pondo-lhe a mão sobre os ombros, apartou-a-. Vê-te à cama. Dorme um pouco. Amanhã tuas amigas te levarão a uma loja de tapetes para eleger algumas para a casa.-
¡Oh, não! -disse Kady, apertando-se o estômago-. Sinto que está a ponto de atacar-me a peste bubónica. Creio que amanhã terei que me ficar na cozinha e preparar-me um remédio de ervas.Rindo, Gregory abriu a porta do apartamento com sua própria chave e a empurrou dentro.-Se não te comportas como é devido, contratarei a uma "assessora de noivas" para que te "organize" Terás que responder a perguntas sobre cubos de lixo e cubreasientos de escusado com monograma.Riu mais forte ao ver do que Kady palidecía de só pensar em semelhante horror. Ainda rindo, fechou a porta com chave e a deixou para que pudesse dormir.
Kady estava com as costas contra a porta, e passeava a vista pelo ambiente, bonito, mas sem personalidade. Em verdade, agradecia que Gregory entendesse sua falta total de aptidão para eleger mobiliário. Não se tratava de que não quisesse viver num lugar agradável; o que ocorria era que não tinha idéia -também não interesse, era verdadeiro-sobre escolher cadeiras e essas coisas.
-Sou a mulher mais afortunada do mundo -disse em voz alta, recordando que esse dia se tinha encontrado duas vezes com Gregory. Mas, coisa estranha, quanto se afastou da porta, pareceu que recuperava a energia. Ao sentir que o cansaço a abandonava, pensou que poderia preparar-se um pouco de cacau e ler um livro, ou ver se tinha alguma película na televisão. No entanto, ainda pensando-o, sua olhada se posou na grande caixa de metal que estava instalada no centro da sala. Ainda que quase não podia admití-lo, a verdade era que a velha caixa enferrujada tinha estado o tempo todo no fundo de seus pensamentos. Enquanto fundia o glaseado de uma asadera, pensava: Que terá dentro dessa caixa?
Negava-se de plano a pensar que o cansaço tinha sido uma desculpa para afastar-se dos outros e voltar a onde estava a caixa, com seu tesouro escondido.
-É provável que tenha um ninho de ratas dentro -disse em voz alta, ao mesmo tempo em que ia à minúscula cozinha a procurar numa gaveta uma espátula forte e curta e uma punção para gelo.Sabia que lhe custaria certo trabalho tirar a tampa da enferrujada caixa.Meia hora depois tinha conseguido raspar parte do óxido e levantar a tampa o suficiente para meter os dedos. No forçamento se fez dano, e se sentiu bastante desagradada consigo mesma por seus desesperados empellones e rasqueteos. Afinal de contas, como tinha dito a mulher da loja, seguramente o único tesouro que teria dentro seria farinha, cheia de gorgojos mortos.
Metendo os dedos sob o borde da tampa, Kady deu um puxão tão forte que saiu projetada para trás, enquanto a tampa caía ao solo com estrépito. Endereçou-se, inclinou-se sobre a caixa e, ao espionar dentro, viu papel tisú amarelado.Em cima tinha um pequeno ramalhete de azahares secos, que sem dúvida tinha posto ali uma mão amorosa, e que ninguém tinha tocado durante anos.
Kady soube de imediato que o que tinha sob o papel era algo muito especial. E muito privado. Em cuclillas sobre os calcanhares, comprovou que as flores estavam sujeitas ao papel porque todos seus esforços por abrir a tampa não as tinham deslocado, ficou longo momento vacilando. Uma parte de seu ser lhe gritava que voltasse a fechar a caixa e não voltasse a abrí-la nunca mais... Que a pusesse sobre o armário da cozinha, olhasse-a por fora e se esquecesse do interior. Ou melhor, ainda, que se desfizesse da caixa e esquecesse que alguma vez a tinha visto.
-És ridícula, Kady Long -disse-. Quem quer que tenha posto isto aqui morreu faz muito, muito tempo.
Com lentidão, desagradada ao ver que lhe tremiam um pouco as mãos, despegou as flores, deixou-as a um lado, e apartou o papel tisú. Soube de imediato que era o que estava olhando. Pregueado com esmero, protegido durante muitos anos da luz e o ar, tinha um vestido de noiva: cetim branco perfeito, com profundo decote quadrado bordeado de volantes da mesma tela. Os botões de pedras falsas pareceram fazer-lhe piscadas.Ainda tinha certa sensação que a impulsionava a voltar a colocar a tampa e fechá-la para sempre. Mas a desagradável experiência desse mesmo dia, com a infrutuosa busca do vestido de noiva, e ver depois que levada por um impulso, tinha comprado uma velha caixa de farinha que continha um vestido de noiva, se lhe ocorreu que era demasiado extraordinário para deixá-lo passar. Quase com amor, passou as mãos sob os ombros do vestido, e o levantou.
Pesava muito, parecia ter muitos metros de belo cetim branco, que os anos tinham tornado da cor creme, mas perfeito. O corpiño terminava embaixo da cintura, e a saia era lisa e reta por diante, seguida por metros de tela levada para trás, numa fila muito franzida que devia de estender-se como dez metros por trás da noiva. Embelezava a saia e a parte superior da fila uma orla de franjas anudados a mão. Embaixo, tinha um pouco vinco e um adorável rosa feito à mão.
Sustentando o vestido à luz, Kady se maravilhou. Esse mesmo dia se tinha provado como seis vestidos de noiva, mas não viu nada semelhante. Comparado com este, os vestidos modernos pareciam roupas de camponesa, sem enfeites, sem um desenho pensado: era produção em massa frente a uma criação única.
Kady não podia apartar a vista do vestido. As longas mangas terminavam em punhos abotonados, com diminutos bieses nos bordes; e terminava no que seria, sem dúvida, encaixe feito à mão.
Sujeitando o vestido, Kady olhou dentro da caixa e conteve o alento:
- Um véu -exalou.
Com reverência, estendeu o vestido sobre o sofá e se ajoelhou junto à caixa.
Se fosse possível converter um suspiro em tela, isso seria o que estava olhando. Esticou a mão para o tênue encaixe e a retirou, quase temerosa de tocar uma coisa tão encantadora; depois, fazendo uma inspiração profunda, deslizou as mãos sob o encaixe. Era tão leviano que parecia ingrávido, sem substância, como se estivesse fato de luz e de ar. Pôs-se de pé e deixou pendurar o encaixe sobre os braços, sentindo essa excelsa suavidade sobre a pele. Não fazia falta conhecer a história do vestido para saber que esse encaixe tinha sido feito a mão, e que o desenho de flores e enredaderas tinha sido realizado com agulhas diminutas, e se não se equivocava, com amor.
Com grande cuidado, estendeu o véu sobre o sofá, convicta de que era quase um sacrilegio deixar que essa tela fabulosa tocasse o moderno tapizado sintético.Voltando-se para a caixa, pôs-se a esvaziá-la com cuidado e lentidão do conteúdo. Foi como se soubesse exatamente o que encontraria dentro: sapatos, luvas, corpete, enaguas de algodão fino, calzones com unes bordadas. Um abotonador. Mais flores secas. Com gestos reverentes, foi depositando cada artigo, para depois voltar à caixa e olhar o resto dos tesouros. No fundo tinha um estojo de cetim que tinha costurada uma fita branca formando um laço. Quando levantou, lhe martilleaba o coração porque, por verdadeiro, instinto, soube que dentro dele devia de estar a clave, a causa pela que esse belo vestido tinha estado tanto tempo numa caixa de lata tão ordinária. Ao levantar o estojo, comprovou que o que tinha pesava.
Apoiando as costas contra o sofá, pôs o estojo sobre o regaço e atirou com lentidão de um extremo da fita para desatá-la; depois, com mais lentidão ainda levantou não a lapela superior do estojo, meteu a mão e sacou uma antiga fotografia. Era o ferrotipo de um homem, uma mulher e dois meninos: todos loiros, de doces rostos com expressões felizes, que formavam uma família muito formosa.
Kady não pôde conter o sorriso. O homem tinha ar muito severo, como se o alto pescoço rígido o incomodasse. A sua esquerda, com a mão dele no ombro, tinha uma mulher bela e miúda, com um brilho travesso nos olhos, como se a idéia mesma da foto lhe resultasse uma grande brincadeira. De pé, à direita, adiante do homem, via-se ao menino alto e bonito, de uns dez ou onze anos, com um pouco de a severidade do pai, e também da expressão alegre da mãe. Sobre o regaço da mulher tinha uma menina de uns sete anos, uma verdadeira beleza em ciernes. Sem dúvida, ao crescer destroçaria uns quantos corações.
Ao dar volta à foto, viu que no dorso estava escrita uma única palavra: Jordan. Kady deixou a foto a um lado e, metendo a mão no estojo, sacou um pesado relógio de homem, de ouro. Era tão grande que ocupava toda a palma de Kady. Sobre a gastada tampa também se lia Jordan e, num dos bordas, acima dos goznes, tinha uma funda melladura, como se o relógio tivesse caído sobre algo muito duro.
-Ou recebido um disparo -disse Kady, perguntando-se por que tinha dito isso-. Demasiadas películas do Oeste por televisão -murmurou, passando o polegar pela fenda, que tinha estrias como se em verdade tivesse recebido um balaço.
Essa profunda muesca fazia difícil abrir o relógio, mas com persistência, conseguiu fazer funcionar os goznes. Ao abrí-lo, comprovou que a esfera do relógio era bela, com ornamentados números romanos e complicadas manecillas. À esquerda da caixa tinha outra foto, da mulher só. Era impossível confundí-la, com seus chispeantes olhos e sua expressão feliz. Até na foto se notava que parecia uma mulher apaixonada e feliz.
Kady sorriu ao fechar o relógio. Perguntou-se que foi o que a tinha posto nervosa. Não cabia dúvida de que esse era o vestido de uma mulher que tinha sido muito feliz: um esposo que a amava e dois belos filhos.
Ainda sorrindo, Kady pôs o relógio junto à foto e se, tinha algo mais dentro do estojo. Sacou um par de brincos de amatista, e as pedras violáceas reluziram a luz artificial.
Apoiou com cuidado os brincos sobre o estojo de seda, reclinou-se contra o sofá, e contemplou tudo. Num impulso, ou quiçá por costume, levantou a foto e colocou o borde da mão sobre a metade inferior do homem. Não, nenhum loiro podia ser o príncipe árabe.
Gregory o era, pensou, olhando a roupa estendida ao redor e sorrindo, e depois pensou: Que vou fazer com tudo isto? Não teria que o levar a um museu?
Num momento se perguntava que faria com tudo isso; ao seguinte, imaginou-se caminhando pela nave, em seu próprio casamento, vestida com esse atavio maravilhoso. Com energias renovadas, levantou-se de um salto e recolheu o vestido, sustentando-o com os braços esticados.
Esse era diferente dos vestidos modernos: não o tinham feito para uma mulher de um metro setenta de estatura, de pernas kilométricas, sem quadris, sem peitos, e com a cintura de um moço. Esse pensamento a fez sorrir. Em sua vida tinha conhecido vários homens que fizeram comentários muito prazenteiros sobre sua silhueta de ampulheta.-Este me ficará bem -disse Kady, dando a volta ao vestido e sujeitando-o contra o corpo, para comprovar que, efetivamente, o longo era perfeito.
Em seguida soube que o único sensato que podia fazer era ir-se à cama; ao dia seguinte falaria do vestido com Debbie e com Jane. Que sorte que estivessem ali e pudessem dar-lhe suas opiniões sobre algo tão importante como a opção entre um vestido de noiva de cem anos de Antigüidade e um moderno. Kady não tinha idéia a respeito dessas coisas.
Que se fazia? Ririam-se dela na igreja?Enquanto repassava esses pensamentos tão sensatos, dirigiu-se para o banho, meteu-se no chuveiro e se lavou o cabelo. Enquanto se aplicava acondicionador, disse-se que não podia usar um vestido com polisón para seu casamento. Era demasiado escandaloso para pensá-lo sequer.
De pé ante o espelho, em bata, começou a arrumar-se o cabelo. No restaurante, apartava-o da cara e o sujeitava num laço para que não caísse sobre a comida. Nunca era demasiado audaz com o cabelo e, a dizer verdade, com sua aparência em general, mas nesse momento desejou estar o melhor possível. Com um pente, uma escova redonda e como um quilo e meio de forquilhas, conseguiu recolher-se o cabelo espesso e ondeado num alto laço, apartá-lo da cara, deixando cair longos cachos escuros pelas costas.
Quando terminou se olhou no espelho e esboçou um breve sorriso.-Nada mal -se disse, dando-se um toque de maquiagem aos olhos e os lábios.Depois de ter feito o melhor do que pôde com sua cabeça, foi à sala e começou a tratar de deduzir como usar o enxoval. Pareceu-lhe que tinha uma quantidade escandalosa de prendas interiores, e lhe custava resolver em que ordem iam.
Sobre a pele se pôs uma enagua bonita, mas relatório, junto com um par de enormes calzones longos. Agachando-se, esticou as calças feitas de fina seda tecida e se as ajustou acima dos joelhos, com unes bordadas de botões de rosa. Se lhe ocorreu que era conveniente calçar-se nesse momento, pois supôs que quanto se embutisse no longo corpete não poderia inclinar-se.
Sentindo-se como Cinderela, meteu os pés nos sapatos de cabrito de cor creme, altos até o tornozelo, que lhe ficavam perfeitos, e usou o abotonador para ajustar os pequenos botões de pérolas que tinha na parte dianteira.Depois de ter-se engenhado para abotoar-se o corpete com baleias, para o qual foi preciso conter o alento, olhou-se no espelho que estava junto à porta principal.
-Deus meu -exclamou.
O corpete lhe empurrava os peitos quase até o queixo, e ao olhar-se teve que admitir que essas prendas tinham suas vantagens.Tinha um par de médias enaguas de algodão, depois uma pequena camisa que, ao que parece, ia a cima do corpete.
Quando lhe tocou o turno ao vestido, Kady tinha posta mais roupa que quando nevava.Uma vez posto o vestido, teve cuidado de não se olhar no espelho até estar completamente pronta. Depois de colocar os brincos, levantou o véu de encaixe com ademanes reverentes e se o sujeitou na cabeça. O encaixe era leviano, como um soufflé, e lhe chegava quase até os joelhos ocultando o longo cabelo negro que lhe caía pelas costas, mas ao mesmo tempo expondo-o O último foram as luvas.
Ao terminar de vestir-se por completo, voltou-se e deu uns passos até o espelho de corpo inteiro. Enquanto o fazia, assombro-se de comprovar que nem o vestido nem as numerosas prendas que iam embaixo lhe provocavam estranheza. Ainda que o peso da roupa deveria fazê-la sentir-se recarregada ou, ao menos, constreñida, não era assim, por alguma razão, o vestido parecia estar no lugar justo.
Os ombros jogados para atrás, a cabeça erguida, e manipulando a fila como se tivesse nascido usando-a, Kady caminhou até deter-se ante o espelho.Por uns instantes, contemplou-se em silêncio, sem sorrir, sem pensar, em realidade olhando, simplesmente não era a mesma pessoa que via sempre. Nem era uma mulher do século vinte jogando a vestir-se com roupa antiga Era como se tivesse o aspecto que estava destinada a ter.
-Sim -sussurrou-. Isto é o que me porei para meu casamento. Não precisava pedir-lhe permissão a ninguém, porque sabia sem lugar a dúvidas, que este era o vestido que tinha que usar para casar-se.
Sorrindo um pouco, caminhou até o sofá e levantou a foto da família Jordan.-Obrigado -disse com voz fica à mulher da foto. Sabia que esse devia de ser o vestido dela, que sem dúvida o teria amado e guardando com cuidado para que nenhuma mulher, em nenhuma época, usasse-o. Com a foto numa mão, Kady levantou o relógio e abriu a tampa para poder ver a outra foto da mulher:- Muitas, muito obrigado -disse, sorrindo-lhe a toda a família-.
Graças, senhora Jordan.Com ambos objetos nas mãos, ao pronunciar o sobrenome Jordan, de repente se sentiu mareada.
-Deve de ser o corpete -disse, deixando-se cair pesadamente no sofá, foto e relógio esquecidos sobre o regaço-. Teria que me tirar este vestido. Teria que...Foi-se perdendo a voz ao mesmo tempo em que sentia que a energia a abandonava, como se se tivesse ficado dormida, mas, ao mesmo tempo, a debilidade lhe dava uma sensação diferente: de que esse aturdimento não era algo ao que quisesse entregar-se. Pensou que, a toda costa, tinha que lutar contra ele.¡Tinha que abrir os olhos!
-Eu digo que penduremos a esse canalha -ouviu dizer a um homem. -Si. Livremo-nos dele de uma vez por todas.-O ouves, Jordan? Faz as pazes com tua criador, porque são teus últimos minutos de vida.
-Não -sussurrou Kady, sem forças-. Não lhe façam dano a Jordan. É um vestido tão bonito. Não têm que fazer dano a nenhum deles.Por um momento, quase conseguiu abrir os olhos e incorporar-se, mas então ouviu outra voz, uma voz masculina.
-Ajuda-me, Kady. Ajuda-me. O único que via depois das pálpebras fechadas era escuridão, mas soube que se falasse o príncipe árabe, o, homem que tinha visto milhares de vezes em sonhos, -essa seria sua voz.
-Sim -disse, e deixou de esforçar-se para incorporar-se-. Sim, te ajudarei. Um segundo depois, caía sobre o sofá, sem saber onde estava nem quem era. A mão caiu, lassa, a um custado, e se entregou à intensa sensação de estar metida num redemoinho que a transportava.
CAPÍTULO 3
Ao abrir o olho, Kady ficou cega pela luz do sol, e se sujeitou para não se cair quando a inundou outra onda de tontura.-¡Ai! -disse, protegendo-se os olhos do resplendor. Olhou-se a palma, onde tinha um rasguño que sangrava, por ter-se caído contra uma rocha coberta com um arbusto espinhoso. Mareada e débil, reclinou-se contra o que creu que era o sofá e em realidade era pedra.
Passaram vários minutos até que deixou de sentir que a cabeça e o corpo lhe davam voltas e, entrecerrando os olhos, tratou de ver onde estava. Fazia uns instantes, era de noite e estava em seu apartamento, mas ao que parece agora estava de pé ante um montículo de enormes penhascos, com achaparrados carvalhos que tratavam de crescer entre as gretas, e era pleno dia.
Apoiando o dorso da mão sobre a testa, Kady se pôs à sombra, e se sintou sobre a rocha menor.-Se fecho os olhos e conto até dez, acordarei -disse.E contou, mas, quando abriu os olhos, as pedras seguiam ali, o sol também, e não estava em seu apartamento. Ao redor, tinha álamos que lhe impediam observar ao longe, e viu um caminho estreito, rochoso, que sem dúvida descia o que não podia ser outra coisa que uma montanha.
Não fazia falta ser experiente em botânica para advertir que essa não era a viçosa vegetação de Virginia. Estava no alto de uma montanha desértica. Quando ouviu ao longe o grito agudo de um pássaro que voava pelo céu, alçou a cabeça.
-Tenho estado trabalhando demasiado -disse Kady, alisando a saia do vestido de noiva que ainda levava-. E como trabalhei demasiado, estou sonhando.
Quando tentou pôr-se de pé, se mareó outra vez e teve que se afirmar num penhasco. ¡Sem dúvida, as rochas pareciam reais!-Muito reais -disse em voz alta-. Sim, desde depois é o sonho mais vívido e reapronta que sonhou alguém, e se tivesse um ápice de sentido comum, o desfrutaria, o que faria seria...
-Olhou ao arredor-. Sim, observaria tudo, e assim poderia contar-lhe a Gregory uma história maravilhosa.Não era fácil concentrar-se, porque a tontura lhe chegava em ondas, e lhe custava respirar fundo com o corpete apertado. Pensou em afrouxar as baleias, mas teve medo de não poder manter-se erguida se o fazia. Nesse momento, tinha a sensação de que as baleias eram o único que a sustentava de pé.-Não me assustarei -se reconvino com severidade-. Leste é um sonho e, portanto, não sofrerei nenhum dano. Não sofrerei dano verdadeiro, genuíno, real -precisou, Ao observar as rochas, viu que sob uma pequena enredadera rala que pendurava de lado sobre uma pedra arenisca tinha algo e apartou a enredadera.
-Petroglifos -disse, passando o dedo enfundado na luva de encaixe pelos antigos símbolos.Figuras de homens feitas com traços simples, com arcos e flechas, caçavam o que parecia ser um alce. Um homem estava caído, e os outros três perseguiam aos animais que fugiam.
Quando tocou as figuras, foi como se, de repente, no meio das rochas, aparecesse uma entrada e através dela pudesse ver seu próprio apartamento. Aí estava o sofá, as calças de vaqueiros e a jaqueta de cozinheira sobre ele e, no solo, a velha caixa de metal onde tinha estado o vestido.
Kady não tinha visto jamais uma visão tão tentadora como seu próprio apartamento. Sem molestar-se em pendurar a fila do vestido sobre o braço, deu os dois passos que a separavam dessa entrada. Mas, ao chegar ao umbral, seu pé se deteve no ar; ouviu o que parecia um disparo, forte e claro no ar límpido. Ao voltar-se e olhar para as árvores, não viu nada e se dirigiu outra vez para a entrada que a levava a seu apartamento.
No entanto, esta vez, ali estava ele. O árabe sobre o cavalo branco, com a cara e o corpo ocultos depois de grandes vincos negros. Kady fez uma brusca inspiração.
Conquanto tinha visto a esse homem muitas vezes ao longo de sua vida, cada aparição era uma surpresa. E ao vê-lo, sempre sentia o anseio de algo que era incapaz de descrever nem de explicar.
Esta vez foi diferente, porque o via mais claro, mais real, como se não, fosse um sonho neblinoso senão um homem para valer, presente ante ela.
-Quem és? -sussurrou-. Que queres de mim? Oolhou-a acima do manto escuro que lhe cobria a metade inferior do rosto, com uns olhos carregados de tristeza.-Estou esperando-te -sussurrou.Era a primeira vez que Kady lhe ouvia a voz, que lhe produziu arrepios nas costas, e nervosa nos braços.
-Como? -lhe perguntou, inclinando-se para ele, dizendo-o tudo com uma só palavra.Não duvidava se devia ir-se com ele ou não, senão só perguntava como encontrá-lo.
Alçando o braço, o homem a assinalou com um dedo longo, e depois levantou mais o braço, assinalando acima de sua cabeça. Kady se apressou a voltar a cabeça e olhar outra vez para as árvores, mas também não viu nada.Quando olhou de novo o homem estava ainda ali; depois dele via seu apartamento vazio, como uma grande fotografia de fundo.
Nesse momento soube que o que o homem pretendia dela era que baixasse pelo estreito caminho e lhe desse as costas a tudo o que representava seu apartamento. Nesse instante, Gregory apareceu fugazmente ante seus olhos, e evoco o modo em que lhe sorria, em como se sentia quando ele a abraçava. Pensou em Onions, nos clientes, e na mãe de Gregory. E no casamento, em Debbie e em Jane.
-Não -disse sem vacilar-. Não, graças. -E deu um passo para o apartamento.
Nessa fração de segundo, tudo desapareceu o apartamento, o árabe a cavalo, tudo. Em seu lugar só ficava a rocha de superfície desigual e Kady achatada contra ela, como se tivesse querido atravessá-la.
-¡Não, não, não, não! -disse, girando a cara e apoiando-se contra a pedra. Este sonho era demasiado real, e se era real, era uma situação que ela não desejava-. Quero ir a minha casa -disse, com expressão teimosa nos lábios. ¡Não me irei de aqui!Cruzou os braços sobre o peito encorsetado, e decidiu que não se moveria, passasse o que passasse. Ainda assim, enquanto o dizia, algo dentro dela a impulsionava a baixar pelo caminho. Uma vez mais, a tontura quase a dominou até o ponto de que temeu perder a consciência. Afirmando-se contra a rocha para não perder o equilibro, esperou a que passasse a compulsão, mas só perdeu um pouco de intensidade, sem abandoná-la do tudo.
Pareceu-lhe ouvir umas vozes masculinas acercadas pelo vento, e alçou a cabeça. Tentou resistir a sensação, mas tinha uma força externa que lhe dizia que tinha que baixar esse caminho, que não podia ficar-se onde estava. E tinha que ir nesse mesmo momento. Ainda aturdida, e cada vez mais à medida que decorria o tempo, deu um passo para o caminho e se deteve, porque seu pé topou com algo.
No solo tinha um envelope de cetim pulcramente atado, com, um vulto que revelava a presença do relógio. Quando se agachou para recolhê-lo, esteve a ponto de desmaiar-se, e demorou uns momentos em poder incorporar-se.Ouviu outro disparo, e esta vez foi como se seus pés tivessem vontade própria e a arrastassem dando os tombos pelo caminho.
O caminho se bifurcava duas vezes, e ainda que sua mente estivesse desordenada e confusa, seus pés pareciam saber aonde ir. Apertando com força o envelope, com a fila jogada sobre o braço, avançou depressa. Duas vezes creu que se desmaiaria, e em ambas abriu os olhos e se encontrou ainda correndo montanha abaixo. Uma vez, saiu-se do caminho e avançou a tropeções sobre rochas e lenhas caídas até que encontrou outro caminho que baixava a montanha. De repente, saiu da sombra das árvores à luz brilhante do sol.. Cambaleando-se, reclinou-se sobre um penhasco e tentou aclarar-se a visão.
Uns metros mais abaixo, viu uma cena que parecia de película. A cavalo, as mãos atadas às costas, com a cabeça caída de lado como se estivesse inconsciente, tinha um homem com uma soga em torno do pescoço, e esta soga, estava atada ao longo ramo de uma árvore. Mais dez segundos, e o homem seria enforcado.
Cerca dele tinha três homens a cavalo, com as pistolas sujeitas aos quadris por meio de correias, e nos semblantes, caretas de regozijo. Kady não sabia quem tinha razão, quem eram os bons e os maus, mas as caras desses sujeitos não lhe agradavam.
Desesperada, olhou ao redor procurando um modo de deter o horrível fato que estava a ponto de ocorrer antes que o pobre homem a cavalo ficasse pendurando.Passaram-lhe mil pensamentos pela cabeça, e nenhum deles lhe pareceu digno de ser levado à prática. Por alguma razão, não cria poder acercar-se aos homens e pedir-lhes, por favor, que detivessem sua ação. Também não estava convencida de que lhes prometendo docinhos e budines de chocolate os fizesse desistir de enforcar ao homem inconsciente. Titubeou um segundo e depois quase saltou fora do corpete ao ouvir um breve riso odioso embaixo dela, à esquerda. Ao voltar-se, viu a um homem de pé, com o rifle entre os braços cruzados, que ria por antecipado ante o sangrento espetáculo que estava a ponto de produzir-se.
Talvez fossem os milhares de programas de televisão que Kady tinha visto, ou as películas violentas, o verdadeiro é que não pensou em absoluto. Por puro instinto, deslizou-se depois do homem, levantou uma pedra grande e a abateu sobre a cabeça do sujeito.O homem se derrubou silenciosamente, e Kady lhe arrebatou o rifle.
E agora, que? Pensou, olhando o objeto. Como o disparo? Que tenho que...? Não pensou mais, porque, ao que parece, o rifle se disparou só e a reação empurrou a Kady para trás, a uma greta profunda entre duas rochas, e o homem ao que tinha golpeado ficou a seus pés. Sem soltar o rifle, com os olhos dilatados, atônitos, cuspiu por entre as matas aos homens que estavam a uns metros.
Uma árvore se interpunha entre ela, e os homens, e compreendeu que, graças ao ângulo, eles não podiam vê-la, ainda que o ruído e a confusão lhe indicaram que tinha conseguido, distraí-los, sujeitando o rifle contra o estômago coberto com o corpete, Kady atirou outra vez do gatilho, mas não passou nada., Amartíllalo soou uma voz dentro de sua cabeça, e recordou que, quando via películas de televisão, os homens atiravam de um pasador na parte superior do rifle, e depois apertavam o gatilho.
Depois de várias manobras torpes, conseguiu fazê-lo e disparou de novo. Esta vez ouviu-se um grito de dor e, para seu horror, soube que lhe tinha acertado a alguém.O ruído dos capacetes dos cavalos e três tiros dirigidos para o lugar em que ela se encontrava a obrigaram a saltar depois das rochas e arrastar-se para uma pequena gruta formada por árvores caídas e pequenos arbustos. Contendo o alento pelo medo, Kady ouviu que os cavalos galopavam para ela.
-E daí o que fazemos com ele? -gritou um dos homens, tão cerca de Kady que podia sentir o calor dos cavalos.
Entendeu que "ele" era o pobre homem que tinham estado a ponto de enforcar.-Dispara-lhe ao cavalo para que se caia e larguemo-nos de aqui, por todos os diabos. Kady teve dificuldades para não gritar "¡Não!", mas seu instinto de autoconservación a fez ficar-se onde estava, fazendo-se o menor que podia, sustentando a fila do vestido bem cerca do corpo para que não a vissem. Ouviu-se outro tiro a seguir, para seu horror, viu o envelope de cetim no caminho e rogou que os homens não o vissem. Mas, quanto puderam jogar sobre um cavalo ao homem que ela tinha abatido, marcharam-se. Uma parte de Kady queria correr fora do esconderijo, mas outra queria ficar até que alguém fosse resgatá-la. No entanto, a preocupação pelo homem ao que quase tinham enforcado dominou seu medo. Desenredou-se dos matorrais, pendurou-se a fila do vestido sobre o braço, agarrou o envelope, e jogou a correr para onde estava o homem.
Quanto saiu ao sol, viu que o homem estava ainda sobre o cavalo, ainda com o laço ao pescoço. Era evidente que o disparo tinha assustado ao animal, que se tinha movido deixando ao homem tão esticado como seu corpo o permitia.
Quando Kady chegou junto a ele, compreendeu que não podia perder tempo. Falou-lhe com suavidade ao cavalo, acariciando-lhe o nariz, instando-o a retroceder uns passos, para aliviar parte da pressão no pescoço do sujeito. Uma vez conseguido, apoiou uma mão na perna do homem e alçou a vista para ele.
-Cavalheiro? -disse, mas viu que estava inconsciente, à margem de tudo.Perguntou-se como faria para baixá-lo. Era um homem grande, de um metro oitenta pelo menos, e devia de pesar uns quantos quilos. Tinha as mãos atadas, e estava como morto em vida, e se não lhe tirava cedo a gorda corda que lhe rodeava o pescoço, cedo estaria morto do tudo.
-Senhor -o chamou, sacudindo-o pela pantorrilha.O homem não respondeu, mas o cavalo voltou a cabeça, girou os olhos para ela e avançou um passo. Se se impacientava e se lhe ocorria afastar-se, deixaria pendurando ao ginete, e Kady soube que devia atuar de imediato.Tirou-se o mais rápido que pôde a pesada saia com sua fila, todas as médias enaguas, o adorável véu e as luvas de encaixe, e só ficou com os calzones, longos e as unes, e as elegantes botas, que entraram sem dificuldades no estribo, junto à bota do homem.Dando um grande impulso, alçou-se para a parte de atrás do arreio, por trás do desmaiado.-Estupendo -disse, quanto se acomodou. A corda ainda ficava a mais de trinta centímetros sobre sua cabeça, e ainda que tivesse tido uma faca, era tão gorda que lhe levaria uma hora cortá-la. O que precisava era um par de cortantes afiados-. Ou um serrucho para pão -disse, olhando a corda.
-Não poderás acordar-te e ajudar-me com isto, verdade? -lhe disse ao homem, apoiando-lhe a cabeça nas costas, mas não recebeu resposta. Assomando-se depois das largas costas, olhou ao cavalo-. Olha, vou pôr-me de pé sobre este arreio, e preciso que fiques muito, muito quieto. O entendeste? Como não sou acróbata de circo, peço-te que não saias a perseguir coelhos. Ou o que seja que persigam os cavalos. De acordo?O cavalo voltou a cabeça para olhá-la, e isso pôs um pouco nervosa a Kady. Utilizando o corpo do homem a modo de escada, incorporou-se com cuidado, sem apressar-se, até ficar de pé sobre a cadeira por trás dele, apoiando a maior parte de seu peso contra o homem, para sujeitar-se enquanto esticava a mão para a corda.O cavalo se removeu, e se Kady não se tivesse sujeitado rodeando com os braços o pescoço do homem, se teria caído.
-¡Quieto! -lhe ordenou entre dentes ao animal, que teve o bom tino de obedecê-la. Não foi fácil afrouxar o traicionero laço que rodeava o pescoço do homem. Dava a impressão de que a corda se lhe tinha incrustado na pele, e precisou tironear e jalar muito para poder, por fim, sacar-se.
Quanto ficou solto, caiu-se sobre as pernas de Kady, que esteve a ponto de cair-se do cavalo, a sua vez se agachou e o estreitou com força, reclinado contra ela, e sujeitando-o lhe pareceu que estava suportando a metade de seu peso, que deviam de ser uns noventa quilos. Se as engenhou, com grande, dificuldade, para não se cair ela nem deixá-lo cair a ele, e se acomodou outra vez, sentada sobre o arreio, por trás do homem. A cabeça do homem estava jogada para trás, ao lado da de Kady, os olhos fechados, a respiração imperceptível.
-Acorda -lhe disse, levantando uma mão e dando-lhe uma forte palmada na bochecha. Não se atreveu a esbofeteá-lo, ainda que, a dizer verdade, não cria, que uma bofetada o acordasse.
-Como te levo a ver a um médico? -perguntou ao desmaiado que tinha nos braços. Em vez de seguir tentando reanimá-lo, apartou-lhe o gordo cabelo dos olhos. Era loiro escuro, a pele algo bronzeado e pela primeira vez, notou que era um homem muito bonito.
-Não do tipo de Gregory -disse em voz alta-, mas não está nada mau para uma mulher.-Basta -se xingou-. Há assuntos mais urgentes do que resolver do que certo sujeito ao que lhe agrada passar os dias jogando aos vaqueiros.Com um esforço sobrehumano, Kady empurrou ao homem para diante até que ficou apoiado sobre o pescoço do cavalo, e se dispôs a forcejear com a corda que lhe amarrava as mãos. Como não tinha faca e teve que desfazer o apertado nodo, levou-lhe mais tempo do necessário.
Por fim, conseguiu desatá-lo; então, lentamente, sujeitando-o com os braços para que não se caísse, desceu-se do cavalo, baixando ao solo. Quanto esteve abaixo e olhou para acima, pareceu-lhe tão alto como a montanha, e mais ou menos do mesmo largo.Agora o único que lhe faltava fazer era recuperar o rifle, por se regressavam aqueles horríveis sujeitos, e também a saia, voltar a montar o cavalo e cavalgar até o povo mais próximo, em procura de um hospital. Simples.Mas, quanto foi procurar o rifle, ouviu um ruído a suas costas, olhou, e viu com horror que o robusto sujeito caía diretamente sobre ela.
Conquanto não teve muito tempo, preparou-se o melhor do que pôde para o impacto. Separando bem os pés, pôs-se firme. Mas não tinha firmeza que pudesse prepará-la para o choque desse corpo pesado que caiu sobre ela. Abateu-se com força, fazendo-a cair despatarrada sobre um leito de folhas e cascalho que se lhe fincou nas pernas, cobertas pelas delgadas médias.
Por um momento, ficou como estava, piscando com a vista no entoldado que formavam as folhas dos álamos, mas a necessidade de respirar a alertou sobre a urgência da situação. Tinha cada grama do peso do homem jogado sobre ela como um grande cobertor morno, tão pesada que não a deixava respirar. Ao ver que não conseguia movê-lo empurrando-o pelos ombros, soube que assim não resolveria nada. Usando a força que lhe ficava, fez tudo o possível por sair de embaixo dele retorcendo-se; quando conseguiu sacar a metade superior de seu corpo, fêz uma pausa para fazer várias inalações profundas, deliciosas, e, por fim, conseguiu sacar também a metade inferior do corpo.
-E agora que farei contigo? -se perguntou em voz alta, olhando ao homem que dormia com a inocência de um menino."Alimentar-te", respondeu-se com vivacidade.Levantou-se e começou a fiscal os bolsos da cadeira em procura de algo para cozinhar.
CAPÍTULO 4
Uma hora mais tarde, Kady estava convencida de que tinha feito tudo o que podia para salvar a esse homem. Aparentemente respirava bem, mas não tinha recuperado a consciência. Como não tinha modo de que pudesse subí-lo outra vez ao cavalo para levá-lo ao hospital, dispôs-se a acampar para passar a noite.
Tinha mexido nos bolsos do arreio em procura de algo para cozinhar, mas só encontrou carne bovina seca, uma cantimplora com água e uma xícara de hojalata. Cobriu ao homem com o único cobertor e preparou o fogo, coisa que fazia com bastante habilidade porque tinha cozinhado bastante com freqüência ao ar livre.
Nuns minutos tinha preparado um caldo de carne seca com mostarda silvestre e algumas plantas verdes que tinha encontrado perto, depois de entibiar o caldo para que não o queimasse, pôs a cabeça do homem sobre seu regaço e se dispôs a tentar fazer passar o líquido pela garganta magoada. Forcejeó com ela até que lhe falou com severidade e lhe disse que lhe ataria as mãos se não bebia o caldo e se comportava como era devido.
Ao que parece, a voz severa tocou ao menino pequeno que tinha nele, porque fez uma careta, mas bebeu.Depois o deixou dormir e foi sentar-se sobre um penhasco, a poucos metros, tratando de reflexionar sobre o que lhe tinha passado nas últimas horas.Estava segura de que já não se encontrava em Virginia, mas não sabia onde estava nem como tinha chegado ali.
Abriu outra vez o estojo de cetim E contemplou a fotografia, porque o instinto lhe dizia que tinha algo que ver com o que lhe tinha sucedido.Não lhe custou muito deduzir que o homem ferido que jazia no solo, ante ela, era o menino da fotografia. Até com os olhos fechados, uns anos maior, era o mesmo. Uma vez, enquanto Kady tentava fazê-lo beber, abriu os olhos e ela viu que eram de cor azul escuro como safiras.
Claro, era impossível que esse homem fosse o menino da foto porque essa foto tinha cem anos de Antigüidade. Se o fosse, isso significaria que, ao passar através da rocha, Kady tinha manipulado um pouco o tempo. E isso, desde depois, era impossível.
Depois de um momento, acercou-se ao homem e lhe revisou os bolsos da calça. Encontrou meia dúzia de moedas, todas datadas na década de 1870, e nenhum bilhete.
Na bolsa do arreio tinha uma carta datada em julho de 1873, onde dizia que Cole Jordan devia vinte dólares de gado. As iniciais do arreio eram C.J."Impossível -pensou, voltando a guardar os objetos-. Será melhor do que deixe de pensar em isto."O sol estava baixando, estava refrescando, e Kady tremeu, coberta só com o corpete e os calzones.
Quando se acercou a remover o fogo, o homem começou a agitar-se e a farfullar algo. Ao menos tratou de dizer algo, mas tinha a garganta demasiado magoada para produzir demasiado ruído.
Kady se inclinou e lhe passou a mão pela testa.
-Está bem -lhe disse em voz suave-. Estou aqui, encontra-se a salvo. Ninguém vai voltar a fazer-lhe dano.Não entendeu como podia tranqüilizá-lo, se, em verdade, ela mesma estava tão assustada.
-E se regressavam os sujeitos que tinham tratado de pendurá-lo? E se eram bons moços e este homem era um assassino, e por isso queriam enforcá-lo? Talvez tivesse feito algo horrível para que esses homens tratassem de pendurado sem juízo.Mas, quando acariciou a testa do homem loiro, este se jogou a tremer e, ainda que o arropó melhor no cobertor, seguiu tremendo.
Então fez o único que se lhe ocorreu fazer: se acostó a seu lado.De imediato, os braços fortes a rodearam, acercando-a a ele, e lhe passou uma de suas grandes pernas acima das dela, bem menores.
Ao princípio, Kady protestou, mas depois a dominou a fadiga: já fazia vinte e quatro horas que estava desperta. E ainda assim, começou a empurrar ao homem por costume, porque não lhe agradava dormir com ninguém cerca. Nas raras ocasiões em que Gregory passava a noite com ela, cada um se mantinha em seu lado da cama. Kady sempre dizia coisas tais como:- Se rodasse sobre ti, te achataria.Mas não tinha o menor perigo de do que achatasse nenhuma parte do corpo desse homem. Mais ainda, se lhe ocorreu que muito bem podia dormir embaixo do cavalo.
Esse pensamento a fez rir-se, e o homem, com a cara e o alento morno cerca dela, sorriu em sonhos. Ele disse algo, mas não lhe entendeu bem. Soava parecido a "Ángel". Fora o que fosse, Kady apoiou a cabeça no músculo do braço, e se dormiu.Acordou lentamente, sentindo que alguém a beijava com suavidade nos lábios e, sem acordar do tudo, sorriu e retribuiu o beijo. A mão do homem subia pela coxa da mulher, passava pela cintura, e se posava no peito.
Sonolenta, moveu a perna de maneira, que a coxa dele estivesse entre os dela; adiantou-se para estar mais cerca. Os beijos dele eram muito prazeirozos, não eram urgentes nem frenéticos, como se quisesse terminar rápido para ir trabalhar, senão como se dispusesse do tempo todo do mundo.
Os lábios se posaram no pescoço de Kady e ela se arqueó para ele, que lhe pôs a cara entre os peitos, levantados pelo corpete.
-Oh, sim -murmurou a mulher, tratando de acercar-se, mas o cavalo lançou um ruído que a fez abrir os olhos um instante, e depois fechá-los. Um segundo depois, abriu-os de novo, sobressaltada.
Desde depois, isso não era seu dormitório, e as árvores com as montanhas nevadas ao fundo não faziam parte da paisagem de Virginia.E se esse não era seu dormitório, e não estava em Virginia, o mais provável era do que o homem que tinha a cara afundada entre seus peitos não fosse Gregory.
Arqueando as costas numa tentativa por apartar-se, empurrou-o pelos ombros, mas a cara do homem estava colada a seus peitos, que por alguma razão, estavam quase ao descoberto, e...
A recordação regressou a ela:-¡Tire-me as mãos de em cima! -gritou, quase, sobre a cabeça loira.Ele deixou de beijá-la ao instante, mas demorou em levantar a cabeça para olhá-la.
Então Kady viu a um homem com a olhada mais inocente que tivesse conhecido. É um menino cantor, pensou. Um enorme e muito bonito menino cantor, fresco como um manancial Mas que perigoso, advertiu-se a si mesma, ao recordar os lábios sobre sua pele.
-És preciosa -lhe disse, fazendo uma careta pela dor de garganta.Kady se alegrou de que a careta lhe impedisse ver sua expressão de alarme, porque a voz tinha o mesmo timbre rico e profundo que tinha ouvido a noite anterior, no príncipe árabe. Não podiam existir mais dois homens diferentes, mas sem dúvida as vozes eram similares.
-Poderia soltar-me, por favor? -disse, empurrando-o pelos ombros, porque as mãos dele ainda estavam sobre seu corpo.
-Sim -ofegou-. Desculpe-me. Pensei que estava... -Enguliu com dor-. Pensei que era você meu sonho convertido em realidade.Dedicou-lhe uma desses sorrisos de lado, que quase a impulsionou a voltar a seus braços.Mas se controlou, e se apartou rodando, para pôr-se de pé com os braços em jarras olhando-o. A expressão do homem a fez olhar-se a si mesma e tomar consciência de seu estado de semidesnudez. Se um homem estava acostumado a ver mulheres que só usavam longos vestidos como os das avós e, de repente, via a uma levando um bikini, seguramente teria uma expressão como a do homem.
De acordo com as normas de finais do século vinte, Kady estava completamente coberta, com exceção dos peitos que extravasavam o decote do corpete. Mas também não isso tivesse impressionado a um homem moderno.
Por que terei pensado isso? Perguntou-se. Por que não o terei considerado um homem moderno?Apressou-se a recolher as enaguas e a pôr-se, depois o pesado corpiño e a saia de cetim, sob a olhada fixa do homem. Para seu pesar, a bela saia estava suja em algumas partes, e até tinha um rasgo num custado, de quando tinha tido que saltar entre os penhascos.
Quando já estava coberta, o homem seguia olhando-a com expressão maravillada, e Kady se convenceu de que nunca tinha visto a um homem tão atraente como esse. Nesse momento, soube que tinha que voltar ao lar. À segurança... e a Gregory.
Terminou de vestir-se, endereçou os ombros e olhou ao homem, esforçando-se por parecer o mais severa e prática possível.-Agora que já sei que está você bem, me irei -disse e girando sobre os calcanhares, empreendeu a marcha para as pedras.
Bastava com que encontrasse a rocha com os petroglifos e passasse através dela, para seu apartamento. Como já tinha feito tudo o que supunha que devia fazer para salvar a vida do homem, estava segura de que poderia regressar.
Só tinha andado uns metros, quando ele a tomou do braço: não o tinha ouvido chegar desde atrás. -Não posso deixá-la ir -lhe disse-. Quem a cuidaria?-Eu posso cuidar-me só. Solta-me, por favor? O homem se levou a mão à garganta, com a testa contraída, esforçando-se por falar.
-Teria que fazer que um médico lhe revise a garganta -lhe disse, fazendo o gesto de rodeá-lo.-Não pode ir-se -pronunciou, com a voz áspera-. Onde vive? Eu a levarei, a sua casa.
-Aí -respondeu, assinalando as rochas-. A pouca distância de aqui.O homem olhou a onde assinalava, e depois a ela, com uma expressão que parecia dizer: Está louca?
-Por aí não há mais do que montanhas, não há ranchos, nem granjas, nada mais que rochas e víboras -a tomou outra vez do braço-. A levarei a onde você vive, seja onde seja.
-Vivo ali -repetiu, com ênfase-. De qualquer modo, não é assunto seu onde vivo. E agora, por favor, aparte-se.Interpôs-se em seu caminho.-Talvez pretende dizer que arriscou a vida para salvar-me, ficou comigo toda a noite para assegurar-se de que estivesse a salvo, e agora eu me irei e a deixarei a você só na montanha, sem pensar mais em você O entendi bem?
-O entendeu à perfeição.Tentou passar junto a ele outra vez.Mas ele a levantou em braços e a carregou outra vez até o acampamento, sem que os forçamentos de Kady o fizessem vacilar. -Solte-me ou gritarei.
-E crê que a ouvirá alguém? Deixou-a sobre um penhasco, o mesmo onde se tinha sentado o dia anterior para tratar de entender o que lhe tinha sucedido. Acalma-te, disse-se. Tinha que se afastar desse homem e encontrar a entrada na rocha por onde tinha chegado a este lugar tão estranho.
Parte de Kady sabia que estava só com esse homem no meio de um lugar desconhecido, e que o dia anterior alguém tinha tentado enforcá-lo. Era provável que fosse violador, assassino louco escapado, ou qualquer coisa pelo estilo, e a ela lhe convinha ser prudente. No entanto, certo instinto lhe dizia que ele seria incapaz de fazer-lhe dano e que se era necessário, a protegeria com sua vida.
Mas, fora o que fosse, quem fosse, não importava. A única preocupação de Kady era a necessidade de afastar-se dele e de voltar à abertura. Olhou ao redor procurando algo com que o distrair para que não seguisse ali de pé, olhando-a, carrancudo.
-Tenho bastante fome. E você? Se encontrar algo para comer, eu o prepararei...Sorrindo-lhe como sorriem os homens quando crêem que ganharam uma discussão, disse:- É uma excelente, idéia. Encontrarei um par de coelhos para nós.
Kady lhe sorriu com doçura.
-Muito bem. -Como lhe tinha mexido no arreio e os bolsos da calça, sabia que não tinha nenhuma arma de fogo-. Aí há um rifle.Para sua surpresa, o homem empalideceu e com a velocidade de um raio, pegou o rifle que estava apoiado contra uma árvore e, antes que Kady pudesse tomar alento, despedaçou-o contra uma pedra fazendo-o pedaços.
-Que faz? -quase gritou-. E se regressam os homens que queriam matá-lo?Quando viu o rifle feito pedaços no solo, o homem soltou o bocado de canhão que lhe ficava nas mãos como se fosse algo repugnante.
-Não me agradam as armas -sussurrou, rouco.
-É evidente. -Quando o olhou, pareceu-lhe que se cambaleava-. Está bem?-Sim -respondeu.Mas fechou os olhos um instante, e Kady se pôs de pé, empurrou-o à sombra de um álamo e, ainda que se resistiu, fê-lo sentar-se no solo.
Afligida, ajoelhou-se junto a ele com a cara perto, e quando lhe apalpou a testa para saber se tinha febre, comprovou que não. Sorriu-lhe.
-Crio, que não lhe faz bem pendurar das árvores, por isso, penso que não deveria voltar a tentá-lo.Olhou-a, com expressão intensa nos olhos escuros.
-Quem é você, e daí faz aqui, cerca da Árvore do Enforcado, a quilômetros do povo, vestida de noiva?-Eu... eh... estava... em meu apartamento, provando-me o vestido porque vou casar-me dentro de poucas semanas; então ouvi algo e.. eh...Olhou-o.
-Não sabe mentir.
-Por sorte, não tive muitos motivos para aprender a mentir. -Levantou a olhada e observou as rochas que tinha ao pé da montanha, para o lugar onde tinha baixado pelo caminho-. Você não saberá onde há um petroglifo, não é verdadeiro?
-Esse quem é? Seu... -titubeou, e seus lábios perfeitos adotaram uma careta desdeñosa-. O homem com o que pensava casar-se?
-Os petroglifos são desenhos talhados na rocha. Neste caso, trata-se de hombrecillos de traços simples, caçando um alce. E o homem com o que vou casar-me se chama Gregory Norman. Depois desta explicação, e para seu horror, Kady estourou em lágrimas.Ao instante, os fortes braços a rodearam, e ela apóio a cabeça contra o peito duro e amplo.
-O sinto -disse-. Não solo...-Shhh, carinho, chore tudo o que queira -disse, tranqüilizando-a, enquanto lhe acariciava o cabelo.
Kady chorou, mas não durante muito tempo; quando acabou e tentou apartá-lo, ele seguiu abraçando-a. Não precisou demasiada pressão para convencê-la de que ficasse em seus braços, pois, ao que parece, agora que tinha passado o perigo imediato, assustou-se pelo que tinha sucedido.
-Quer contar-me a desgraça que se abateu sobre você? Sei escutar.-Não o sei -disse Kady, com a cabeça contra o peito do homem-. Em realidade não sei o que me sucedeu nem onde estou. E não sê por que esses homens queriam enforcá-lo. É você bom, ou mau? Acompanhou a pergunta olhando-o com expressão interrogante.
-Que? -lhe perguntou, com uma sobrancelha arqueada; então sorriu e lhe apoiou outra vez a cabeça contra seu peito. Sou dos bons. Diácono da Igreja. Inclusive canto no coro todos os domingos. Levantou a perna, recolheu-se a pernera da calça e saco da bota o que parecia ser uma pequena faca de caça. Incrustado no cabo, tinha um pequeno medalhão.
Entregou-lhe a faca a Kady, que contemplou o medalhão.-Um ano -leu, e viu que tinha, uma cruz no centro-. Um ano de que?-Um ano de serviço à igreja, sem faltar nem uma vez. -Lhe dedicou de novo esse sorriso ladeado-. Inclusive uma vez fui com varicela e contagiei a quase todos os meninos da Cole dominical.Kady riu ao ver que, por costume, passava a mão pela folha da faca, perguntando-se se o teria afiado ele mesmo.
Não estava muito bem, ela podia fazê-lo melhor, mas se tivesse sentido pior.-E se é um modelo de virtudes, por que esses sujetos se queriam pendurá-lo?
-Ouviu falar da cobiça?
-Creio que sim -respondeu, sorrindo-. Cobiçam algo que você possui?
-Umas cabeças de gado e um bocado de terra.-Ah, um desses. Milhões de cabeças e milhões de hectares?
O homem riu.-Não tanto. O último que soube é que as Rochosas de Colorado não são as melhores terras de pastoreio.Levantando a cabeça, Kady olhou ao redor.
-Aí é onde estou? Em Colorado?Quando o olhou de novo, viu que em seus olhos tinha uma expressão intensa.
-Quer contar-me o que está passando? Por que está aqui? Quem a abandonou? Talvez esse Gregory...?-Replicou com desdém-. A deixou plantada?-¡Desde depois que não! -exclamou, iniciando o movimento de levantar-se, mas ele a fez sentar-se outra vez.
-Está bem, desculpe-me. É que não é frequente ver a uma mulher vagando pelas montanhas, só, ataviada com um vestido de noiva de seda. -Baixou um pouco a vista, e sua voz se pôs um pouco rouca-. Sobretudo, se é tão bela como você.Kady se sonrojó.
-Não sou bela. Peso como quatorze quilos a mais, e jamais presto atendimento a meu aspecto. Pelo geral, levo postos umas calças abolsados e um guardapolvo sujo. Tenho um só par de sapatos de noite, e meia dúzia de pares de sapatilhas. Eu...Interrompeu-se ao ver que o homem se ria dela.
-Talvez minha situação lhe parece divertida? -lhe perguntou, com certa irritação.
-Que classe de homem conhece que não esteja convicto de que você é a mais bela das mulheres? Jamais vi a uma mulher tão formosa como você. Seu rosto e seu... -A percorreu com a vista, e quando alçou outra vez a olhada tinha uma expressão de embeleso-. Tudo em você é perfeito. Não existe um homem tão cego que não veja em você a Afrodite que é. Por um momento ficou olhando-o com olhos engrandecidos, e a boca desenhando uma pequena Ou. -Já entendo -conseguiu dizer ao fim-. Assim que... -Se apartou um pouco-. Crio, que será melhor do que me vá.
O homem se pôs de pé ao instante, oferecendo-lhe a mão para ajudá-la a incorporar-se.-Tem que me dizer aonde quer ir, e eu a levarei.
Olhando esses olhos azuis, Kady sentiu que se inclinava para ele, mas se obrigou a permanecer direita. ¡Controla-te. Disse-se. Que é o que te passa? Estás comprometida com um homem sonhas com outro e, agora, parece que estivesses pensando em arrancar-lhe a roupa a um terceiro.
-Há ônibus por aqui? Ou um aeroporto?Não tinha nem uma moeda, e não podia preocupar-se por como ia pagar, mas, em certo modo, a expressão confundida do homem não a surpreendeu.
-Que é um aeroporto? -lhe perguntou.Por um motivo que não podia definir, a pergunta voltou a provocar-lhe tonturas.
-Não, não me toque -disse, ao ver que fazia o gesto de acercar-se. Tinha que controlar a situação-. Olhe, apreço toda seu cavalheirosidad à antiga, e lhe agradeço que me tenha prestado o ombro para chorar, mas agora devo marchar-me. Em realidade, quero voltar a meu lar.
E não me envolver aqui pensou. Nem quero averiguar por que ignora o que é um aeroporto.Com toda a dignidade que pôde reunir, pendurou-se a fila do vestido no braço e jogou a andar para as rochas onde sabia que estava o caminho que a levava à entrada para Virginia... de regresso a Gregory.
CAPÍTULO 5
- Não a seguiu, e Kady não soube se isso a alegrava ou a aterrorizava. E se não encontrava a abertura? E se o vaqueiro a deixava só nessas montanhas, e não podia encontrar nunca o lugar por onde sair? Nesse momento, não estava disposta a deixar-se dominar pelas emoções.
Mas lhe passou pela cabeça a pergunta: "Por que a mim?" Por que lhe tinha sucedido algo sobrenatural a ela? Era uma pessoa muito comum, e o único que queria era o que já tinha: a cozinha, o casal com Gregory e quiçá um par de filhos. Como era evidente que o vaqueiro que tinha salvado era o homem da foto, soube que o que tinha passado tinha o propósito de evitar que fosse enforcado.
Mas agora que estava a salvo, por que não regressava de imediato a Virginia, a Gregory?Ia ascendendo o caminho que serpenteaba, cada vez mais alto na montanha, mas lhe bastaram uns minutos para saber que não tinha idéia de onde estavam os petroglifos. Quando baixou a montanha, sentia-se confusa e mareada. E agora não estava muito melhor, porque fazia muitas horas que não comia.
-Batatas assadas -disse, em voz alta às rochas que a rodeavam-. Milho com manteiga e frango picado sobre torradas. Bisteca; salmão escocês. Torta de morangos. Trufas de chocolate.Preparar um menu imaginário enquanto avança trabajosamente pelo caminho que se bifurcava em diversas direções ao mesmo tempo a fez sentir-se pior.
O belo vestido se enredava nos arbustos, e ela se tomava o tempo necessário para desenganchar a tela, pois conservava a esperança de usá-lo para o casamento com Gregory. Talvez constituísse um ato de desafio usá-lo, ter-se visto obrigada a ir onde não queria por ter-se posto.
Não soube quanto tempo tinha caminhado, mas a cada passo perdia a esperança. Jamais encontraria a entrada de regresso ao lar. Morreria de fome, ou congelada ou devorada pelo animal desconhecido que acabava ouvir gritar. Ou quiçá regressassem os sujeitos que tinham tratado de enforcar ao vaqueiro, e... e...Sentou-se sobre uma rocha, sentindo-se completa e absolutamente só. Quiçá este fosse o castigo por ter gozado de uma vida tão maravilhosa e feliz. Trinta anos, e nenhum problema demasiado sério.
Nem uma infância disfuncional, ninguém que tivesse tentado sufocar sua carreira, e tinha o amor de um homem bonito que a tratava como a uma princesa.Num arranque de energia, levantou-se e martelou rocha com os punhos, furiosa.-¡Não, não, não, não! -gritou-.
-Não cederei. ¡Não o farei! Ouvem-me? ¡Não me renderei!Claro que ninguém lhe respondeu, nem a ouviu sequer, depois de um momento se deixou cair sobre a rocha, abatida, com a cabeça entre as mãos, e rompeu a chorar. Quiçá tinha sabido apreciar o suficiente sua vida em Virginia, por isso a tinha perdido.Em poucos minutos, se lhe esgotou a energia e reclinando-se contra as rochas, fechou os olhos. Quiçá, se concentrava, a força de vontade a levaria de volta ao apartamento, aos braços de Gregory. Quiçá, se... Ficou dormida.
Acordou lentamente, mais consciente do estômago que de nenhuma outra parte do corpo. O que cheirava era carne assada? Sorriu, com os olhos ainda fechados. Frango? Não, claro que não. Era a fragancia inconfundível do coelho. Coelho cozido em vinho, ou em docinho, ou talher com puré de batatas passado duas vezes. Ervilhas frescas. Tomilho, e muita pimenta.
-¡Oh! -exclamou, a ponto de cair-se da rocha.Uma mão grande lhe impediu cair. Quando abriu os olhos, ao princípio se desorientou, não soube onde estava, até que viu os olhos azuis do vaqueiro.
-Tem fome? -lhe perguntou, oferecendo-lhe o chapéu.
Estava recoberto por dentro com folhas de carvalho ainda por cima, bocados de coelho.
Kady tinha tanta fome que agarro um bocado de pata e coxa e começou a comer, quase sem fixar-se em que a carne não estava bem cozida: tinha-se usado um fogo demasiado alto e a carne estava seca por fora e quase crua por dentro. Passaram vários minutos até que pôde alçar a vista do osso, que tinha deixado limpo.
Com um sorriso, o homem lhe ofereceu outro bocado e a cantimplora cheia de água. -Encontrou o que estava procurando? -lhe perguntou, enquanto ela ia pela terceira porção.
Estava sentado sobre uma pedra, defronte dela, reclinado em pose lánguida, as longas pernas tão extendidas que suas botas quase tocavam a saia de Kady.-Não -respondeu, sem querer olhá-lo aos olhos.
Não queria aceitar ajuda dele, não queria estar em dívida. Para ser sincera, não queria meter-se em embrulhos com ele porque era demasiado atrativo.-Se deixou uma coisa -lhe disse o homem, tendendo-lhe o estojo de cetim.Kady não respondeu, e se concentrou no coelho.
-Quereria explicar-me por que leva consigo uma foto de minha família e o relógio de meu pai?
-Não -contestou, sem olhá-lo, sentindo a olhai do homem sobre ela.-Quem é você e onde vive? -lhe perguntou com suavidade. Quando teve terminado a terceira porção, Kady alçou a vista.
-Elizabeth Kady Long -contestou-. Mas a gente me chama Kady. Olhou ao redor, em procura de algo com que se limpar as mãos grasientas. O vaqueiro sacou do bolso um lenço, humedeceu-o com o conteúdo da cantimplora, e inclinando-se para ela lhe tomou uma mão e se dedicou a limpar-se. Kady tratou de apartar-se, mas ele não a soltou.
-Posso fazê-lo só -lhe disse e ele não lhe fez caso das duas uma: ou ela precisava fortalecer sua confiança em si mesma, ou este homem precisava um curso que lhe ensinasse a acreditar em a autonomia das mulheres.Quando as mãos estiveram limpas, o homem se jogou atrás, e Kady fez ademanes de levantar-se.-Poderia ser que tivesse que se ficar, pois não tem aonde ir. Aqui só há montanhas por três lados; Lenda está nessa direção, e Denver está a dois dias a cavalo, além. -Então será muito melhor do que comece a caminhar -disse, levantando-se, mas a perna do homem lhe bloqueou o passo.
-¡Aparte-se de meu caminho! -lhe exigiu.
-Não o farei, até que me dê algumas respostas. Escute, señorita Long, você me salvou a vida, e me sinto em dívida com você. É minha responsabilidade cuidá-la e tentar que esteja a salvo.-Como posso estar a salvo com um homem que está a ponto de ser enforcado? Pode que voltem esses homens e nos pendurem aos dois.
-É possível, e é um dos motivos pelos que me agradaria muito marchar-me deste lugar e regressar ao povo. Mas não vou deixá-la. Se me dissesse quem cuida de você, eu a levaria com sumo prazer, mas não penso montar e deixá-la aqui só. Não é capaz de alimentar-se sequer.Ao ouví-lo, os olhos de Kady se engrandeceram.
O último que esperava ouvir respecto de si mesma era que não podia alimentar-se. A acusação era tão absurda que lhe arrancou um sorriso e uma fugaz gargalhada.-Assim está melhor -disse o homem-. E agora por que não se senta e me conta que desgraça a obrigou a vagar pelas Rochosas, vestida de noiva?
Kady se sentiu tentada. Muito tentada. No entanto, sabia que não lhe convinha contar-lhe seus problemas a este homem. Um sexto sentido lhe impedia contar-lhe nada, porque não queria que sua vida se visse entrelazada com a dele. O único que queria era regressar a seu lar, e não voltar a vê-lo mais.
-É você o menino da foto? -perguntou, tratamdo de distraí-lo.Quiçá, sim pudesse obter algumas respostas, dêscobriria por que estava ali.
-Sim -lhe disse; com a mandíbula tensa, como se não quisesse falar disso.Essa atitude acordou a curiosidade de Kady.
-É este o vestido de casamento de sua mãe? -lhe perguntou com suavidade.
-Não o sei. Não estive no casamento.Kady riu, apesar da situação, e o homem sorriu.
-Estou segura de que sua irmã se converteu numa verdadeira beleza. O guardou silêncio durante uns instantes, e sacou lentamente a foto do envelope.
-Ninguém o saberá. MATARAM-NA quando tinha sete anos. Kady conteve, uma exclamação.-O sinto. Eu... -Se olhou o vestido, e recordou que a mulher da foto lhe tinha parecido muito feliz. Sua mãe...-Também está morta -disse o homem com frialdade, e olhou a Kady com olhada dura, ainda cheia de infortúnio depois de tantos anos. Esta é a última fotografia que se tomou. Poucos dias depois, teve um roubo num banco, em Lenda, e quando os ladrões fugiam do povo, os bons cidadãos abriram fogo.
Kady viu como seus lábios se curvavam numa careta-Quando se despejou a fumaça, minha irmã e meu melhor amigo estavam mortos. Meu pai e meu avô salieron a perseguir aos ladrões, e dois dias depois eles também estavam mortos. Minha mãe morreu de pena ao ano seguinte.
Por um momento, Kady só atinó a olhá-lo em selencio, atônita.-O sinto muito -sussurrou-. Por isso odeia as armas, não é verdadeiro?O homem fez um breve gesto de consentimento. Kady soube que essa tragédia tinha algo que ver com o fato de que ela estivesse ali. Mas essa mesma idéia a convenceu mais de regressar a seu apartamento, de passar pela rocha e sair desse embrulho, qualquer fosse.
Pôs-se de pé, caminhou até o borde do caminho, e se voltou para olhá-lo.-Preciso encontrar os petroglifos -disse com suavidade-. Sabe onde estão?-Há montões de talhas índias nestas montanhas -respondeu-. Poderia procurá-los o resto de sua vida e não os encontrar.
-¡Mas tenho que os encontrar! -disse, veemente-. Não o entende. Você não entende nada.-Estou disposto a tratar de entender, se me explica qual é a importância de umas talhas índias.Kady empunhou as mãos aos lados. Não ia chorar outra vez.
-Eu nasci em mil novecentos sessenta e seis -disse, feroz.
-Mas, se assim fosse, teria sete anos, nada mais -replicou ele, confundido.
-Não em mil oitocentos sessenta e seis senão em mil novecentos sessenta e seis. Kady observou como passavam por esse rosto bonito, torrado pelo sol e por anos de estar ao ar livre, diversas emoções.
-Já vejo -disse, ao fim. -Eu vejo que não me criei -disse Kady, com a boca apertada-. Também não o esperava. -O olhou, ceñuda-. Que está pensando? Que escapei de um manicômio? Está pensando em encerrar-me para que não possa fazer dano a ninguém? Está...
-Não é muito hábil para ler os pensamentos, eh? Estava pensando que, sem importar quando nasceu, neste momento o que precisa é alguém que cuide de você. Precisa alimento e refúgio e outra roupa que se pôr. Creio que teria que se casar comigo, e assim eu...Isso fez rir a Kady.
-Os homens sempre são iguais não é verdadeiro! Solucionam tudo convidando a acostarse com eles. Uma noite de sexo estupendo fará desaparecer os problemas de uma mulher.O homem estava carrancudo, a expressão quase furiosa.-Se o único que me importasse fosse o sexo, já poderia tê-lo obtido com você. Por aqui não há ninguém o bastante forte para impedir-me.Essa afirmação apagou o sorriso de Kady. Deu-lhe a costa, e deu um passo pelo caminho. Mas não tinha ido muito longe quando a voz do homem a deteve.-A levarei ao povo-lhe disse, num tom que revelou seus sentimentos feridos.
A mãe lhe tinha dito a Kady que jamais se risse de uma proposta de casal, por absurda que lhe parecesse. Voltou-se. O homem seguia repantigado sobre a rocha, os olhos no relógio do pai, dando-lhe sensata, comportando-se como se nada tivesse sucedido, e, no entanto, Kady via que estava ofendido.
-Desculpe-me -lhe disse, acercando-se a ele-. Não teve mais do que bondades para comigo, e me sinto em dívida com você. O que sucede é que...De repente, o homem se pôs de pé e sua estatura fez que Kady se calasse. Superava-a muito em altura e ademais, o vestido armado sobre o corpete a para sentirse especialmente feminina.
-Não, señorita, Long, sou eu o que está em dívida com você. -Não a olhou enquanto falava-. Minha consciência não me permitiria deixá-la aqui, só, nas montanhas, de maneira que a levarei A Lenda. Estou seguro de que ali encontrará lugar onde viver e poderá voltar aqui a procurar seus desenhos índios quanto seja possível lhe parece aceitável?
-Sim -disse vacilante.Era perfeito e, no entanto, a sugestão a fez sentir-se como se tivesse perdido algo. Um amigo talvez? -Teria a amabilidade de seguir-me, señorita Long? -lhe perguntou com frialdade, fazendo-a crisparse.Tinha muitos desejos de compensá-lo por ter sido tão depreciativa com a proposta de casal, ainda que tivesse sido formulada por um sentido do dever.
-Senhor Jordan... -começou a dizer, e se interrumpió ao ver que ele a olhava com suspicácia, compreendendo que não lhe tinha perguntado o nome-. O nome Cole Jordan está escrito, em... quero dizer...
Não quis que soubesse que tinha estado revisando seus pertences. Olhou-a de um modo que a fez sonrojar, e se semtió uma anã.-A vantagem de você é que ao que parece, sabe muito de mim, e eu, em mudança, só sei seu nome. -A boca esboçou um leve sorriso-. E sua data de nascimento, claro. Esse sorriso petulante evaporou a culpa de Kady
-Como lhe salvei, a vida, suponho que, pelo menos me deve a cortesia de levar-me ao povo.
-Fez uma inspiração, profunda e o olhou-. Olhe, senhor Jordan, creio que temos que deixar as coisas claras entre nós. Não importa se crê que sou de outro tempo ou não. A verdade é que estou comprometida para casar-me com um homem ao que quero muito e não vou casar-me com outro só porque preciso ter um teto sobre minha cabeça.
As mulheres se cuidam sós em meu país e de fato, resulta que sou cozinheira, assim que posso conseguir emprego onde seja. Em qualquer momento. Assim que, por favor, perdoe-me; não quis ofendê-lo e me agradaria conservar sua amizade. Mas nada mais.
Enquanto ela lhe espetaba esse discurso, ele a observaba, com expressão inescrutável, mas depois, com um lento sorriso, persuadiu-a de que devia afastar-se o mais possível dele. Conquanto estava comprometida, também era humana.-Está bem, señorita Long, seremos amigos -lhe disse, oferecendo-lhe a mão para que a estreitasse.
Num instante, passou de estar exageradamente preocupado a ser o que ela queria: um amigo. Em silêncio, seguiu-a montanha abaixo, onde tinham acampado, coisa que lhe deu a Kady tempo para pensar. É preferível que não remexa no horrível da situação, e que o veja como uma aventura, disse-se. Como ao que parece pelo momento não podia regressar a seu lar, faria o que ele lhe tinha sugerido, e conseguiria emprego, lugar onde viver e como Cole... eh, o senhor Jordan tinha dito, passaria os fins de semana procurando os petroglifos que lhe indicariam a abertura na rocha.
E enquanto procurava, não se relacionaria seriamente com ninguém, porque não cabia dúvida de que tinha algum motivo para que ela tivesse sido enviada ali. O que sucedia era que não lhe importava averiguar qual era esse motivo, e não tinha intenções de misturar-se em isso
.Quando chegaram ao acampamento se sentia muito melhor ¡Não deixaria do que esta situação a derrotasse!-Talvez queira montar a cavalo só -lhe disse Cole, cortês-. Não quereria inmiscuirme em sua independência.Quando se deu a volta, Kady lhe fez uma careta às costas do homem e depois, voltou-se para o cavalo. Já tinha trepado ao lombo do cavalo quando lhe salvasse a vida a esse homem ingrato, incapaz de apreciar, insuportável, etcétera. Mas, naquela ocasião, levava vários quilos menos de roupa. Montar a cavalo com quatro quilos e meio de cetim em cima, além da fila, era coisa para experientes, e Kady não o era.
Enquanto ela se afanava por impulsionar-se para arriba, e caía uma e outra vez ao solo, Cole se atarefava destruindo as impressões do acampamento. Quando terminou, apoiou-se contra o tronco de um álamo, sacou uma faca e começou a recortar-se as unhas.-Está bem -concedeu Kady, sem olhá-lo-. Precisaria um pouco de ajuda. -Não quisesse interferir. Não há pressa.Kady se voltou e o olhou, com os olhos entornados.
-Por que queriam pendurá-lo esses homens?Viu que Cole tratava de conter o sorriso; depois sem pressa, como se tivesse o tempo todo do mundo, este voltou a guardar a faca na bainha do cinto e foi caminhando lentamente para ela. Por uns momentos ficou olhando-a, intrigado.-Não quisesse presumir de nossa amizade; poderia tocá-la?
Kady o olhou ceñuda e alçou os braços para que ele a levantasse. Fê-lo, depositando-a sobre o arreio com tal força que lhe fez rechinar os dentes. Kady se aferró ao pomo do arreio para sujeitar-se enquanto ele montava detrás. Estava na incômoda posição de custado no arreio, e tinha a sensação de que em qualquer momento podia cair-se.
Se a volumosa saia não lhe tivesse retido as pernas, teria podido passar uma delas sobre o pescoço do cavalo.Depois de ter-se acomodado depois dela, Cole a rodeou com os braços e tomou as rédeas, mas manteve os braços a respeitosa distância. No entanto, seu corpo grande e forte estava apertado contra o dela, e Kady sentiu vontades de reclinar-se contra ele. Para distrair-se se lhe ocorreu falar.
-Como é esse povo de Lenda?-Como qualquer outro povoo mineiro.-Nunca vi um povo mineiro.
-Ah, por um momento o esqueci. Você só viu... Que é o que viu em...? Que ano é agora em seu mundo? -Mil novecentos noventa e seis -disse entre dentes-. Agradeceria-lhe que não se risse de mim. Um menino cantor como você não sobreviveria em meu mundo.
-Menino cantor? -lhe perguntou, com ar divertido-. Alô, talvez no futuro se inventaram outros crimes além do assassinato e da guerra?
-Não, simplesmente os refinaram. Em minha época, temos drogas ilegais, bombas atômicas e críticos culinários. Temos automóveis que viajam a velocidades fantásticas e chocam entre si, assassinos em série e contaminação do ar. E temos homens que... -Se interrompeu, porque não queria pensar nas coisas das que se inteirava todos os dias nos noticiários-. Meu mundo é muito veloz.
-E quer voltar a ele? Salvo por uns ladrões de cavalos, meu mundo é um lugar muito aborrecedor.-Verdadeiro. Vocês só têm bandas de linchamento. E varíola, febre tifoidea e cólera. E tubagens externas.
-Parece que sabe bastante disto.
-Vi muita televisão.-E daí é televisão?Enquanto andavam, Kady se tinha reclinado contra ele e se sentia muito cômoda.
Olhando as incríveis montanhas de Colorado tão belas que cortavam o alento, teve a sensação de que não recordava que coisa era a televisão. Até então não tinha visto as Rochosas, e ignorava que fossem tão belas. Talvez ela e Gregory poderiam abrir ali um restaurante.
Quiçá poderiam convencer à mãe dele de que deixasse, Onions e viesse aqui. -Bonito verdade? -disse ele, corno se lhe tivesse lido o pensamento.
-Precioso -respondeu Kady-. Eu me criei em Ohio, fui a Cole em Nova York, e trabalhei em Virginia. Nunca tinha visto isto.
Ainda que Cole não lhe respondeu, percebeu que o comprazia que a ela lhe agradasse a paisagem.
-Para valer: por que queriam enforcá-lo esses homens?O movimento do cavalo e a força do homem que a sujeitava a faziam sentir-se tão segura que começava a sentir sonho.-Trataram de levar-se parte de meu gado, e eu protestei.
-Tem muitas vacas?Titubeou antes de responder-lhe:- Muito poucas. Já lhe disse que as Rochosas não são boas terras de pastoreio.
-Então trabalha numa mina?-Não. É um desses vaqueiros, parcos em palavras, pensou, suspirando para suas adentros, e sentiu falta a Gregory. O sempre estava disposto a falar de seus negócios e de escutar as histórias de Kady a respeito do que tinha sucedido no restaurante.
-Como é esse Grover? -disse Cole, com um tom claramente depreciativo. Conquanto Kady sabia que não era psicologicamente correcto o desejo de provocar-lhe ciúmes a um homem, foi uma sensação muito grata. Sempre tinha estado demasiado ocupada aprendendo a cozinhar e não tinha passado muito tempo com homens. Antes de Gregory, era assombrosa a escassa quantidade de citações que tinha tido.
-Não conheço a ninguém chamado Grover -disse com exagerada inocência-. Não imagino a quem se refere.-Esse com o que pensa casar-se.-Aaaah, Gregory. Bueno, é muito bonito, com cabelo renegrido, olhos escuros, pele da cor do mel, e...
-Tem cérebro? -perguntou Cole, rígido.
Licenciou-se na Universidade de Virginia... em economia, para o qual é muito bom. Compra e vende terras em California. Em realidade, é quase rico e me comprou uma casa de três andares nas afueras em Alexandria.
¡Oh! -exclamou, quando o cavalo pisou um buraco e quase se caiu.Mas os braços de Cole a sujeitaram... e assim permaneceram.
-E daí me diz de você? -perguntou com doçura-. Tem esposa ou noiva? Ou uma noiva?
-Nenhuma -disse-. Somos só Manuel, meu velho cozinheiro, e eu.-E é muito bom cozinheiro?-Sim, se a um lhe agradam as ervilhas e o chile tão quentes que lhe façam ampolas a língua. A você não lhe agradaria trabalhar para mim, não? Poderia pagar-lhe...
-Se interrompeu-. Não, você quer ser independente, ter seu próprio emprego. Alô, todas as mulheres dentro de cem anos serão como você?Era evidente que estava burlando-se dela, e que não cria que tivesse visto alguma vez o século vinte.-A maioria. Desenvolvemos carreiras, e ganhamos tanto dinheiro como os homens. As mulheres podem fazer qualquer coisa, sabe? Isso o fez lançar um gemido.
-Então quem cuida aos meninos? Kady abriu a boca para responder, mas ao pensar numa discussão sobre creches de dia e niñeras, duvidou que fossem argumentos valederos.-Ter filhos é uma escolha e se os cuida.
Por desgraça, passaram pelos olhos de sua mente verdadeira horrível imagens de abuso a meninos que tinha visto nos noticiários das seis da tarde.
-Mas, se as mulheres trabalham durante todo o dia, quem...?
-Esse é o povo de Lenda? -perguntou, mudando de tema.
-Não, é uma formação rochosa.
-Não é assombroso que pareça igual que...?
-Não é que o crê, mas se é de outro tempo, por que está aqui? De onde sacou a foto de minha família e o relógio de meu pai? SUPÚNHAMO-LOS perdidos.
-Por que o plural?
-Minha avó e eu. É a única parenta que tenho. -Mudou de posição os braços, apertando-a um pouco mais-. Tem você uma habilidade assombrosa para mudar de tema. Que fazia com a foto de minha família?
-Comprei uma antiga caixa de farinha e quando a abri, dentro estava este vestido e nele fundo tinha um estojo com a foto e o relógio.Como não agregou nada mais, Cole perguntou:- Que passou depois?
-Não o sei -disse Kady com voz fica.Não queria pensar nesses horríveis momentos em que tinha oscilado entre dois mundos. Ainda esperava acordar em qualquer momento e encontrar-se no apartamento. Fora a hora que fosse, chamaria a Gregory, lhe diria que o amava e...-Siga -disse Cole com suavidade-, não se acobarde agora. Não esqueça, que você é a pequena Señorita Independente, e pode fazer tudo só. Tem medo de contar-me o que sucedeu?
Pelo tom, soube que estava burlando-se.-¡Posso cuidar de mim mesma, se a isso se refere! -disse, enfadada.Rindo, Cole lhe disse:
- Isso, assim está melhor.Passaram uns momentos em silêncio.
-Por que me pediu que me casasse com você? -lhe perguntou Kady.Não lhe contestou em seguida.
-Para protegê-la. Porque estou em dívida com você. Neste momento não estaria vivo se não fora por você. Parece-me que o velho Harwood a creu um fantasma, vindo das montanhas com esse vestido branco sabe?
-¡Cri que estava inconsciente! Como pôde ver algo?
-Estava poupando forças.Girando para ele sobre o arreio, olhou-o com expressão severa.-¡Se estava, consciente, poderia ter-me ajudado a salvá-lo!
-Maltrata -foi o único que disse e Kady viu o sorriso que tratava de dissimular.Voltou-se outra vez.-Quando se caiu do cavalo, poderia ter-me achatado.
Em lugar de responder-lhe, ele lhe apartou um cacho da cara e se o meteu por trás da orelha.Em certo modo, o simples gesto de pôr-lhe o cabelo por trás das orelhas foi mais íntimo do que nenhuma das coisas que tinha feito e Kady franziu o entrecejo.
Sim, não cabia dúvida de que tinha que, afastar-se desse homem.
CAPÍTULO 6
O povo de Lenda não era o que tinha imaginado. Talvez por desconfiança inata, esperava ver mugre e cantinas. Conquanto de menina tinha acreditado em os belos palcos das películas onde apareciam pequenas casas com cercas de estacas brancas, ao crescer compreendeu que as mulheres dessas películas de vaqueiros tinham passado três horas submetidas a cabeleireiros e maquilladores. E que o pessoal varria as ruas todos os dias.Mas quando entrou no povoado a cavalo adiante de Cole, teve que mudar de opinião, pois Lenda parecia um lugar criado por Walt Disney. Era limpo e pulcro, a, gente ia bem vestida e circulava sorridente.Andaram por uma rua que como lhe informou Cole, chamava-se Eternity Road, e depois giraram à esquerda, por uma larga rua bem cuidada, chamada avenida Kendal.
Passaram diante de lojas limpas e bem arrumadas, um hotel, o armazém de mercadorias, um estábulo para cavalos de diligência e uma grande heladería que parecia saída de uma película de Judy Garland. Viu uma só taberna, com o aspecto de um lugar ao que um poderia levar aos meninos um sábado pela noite.
Entre os edifícios tinha terrenos vazios, muitos deles bem parcelados.O que mais a assombrou foi do que não viu uma só arma de fogo por nenhum lado. Nem um só homem levava armas. De fato, em sua maioria pareciam limpos, prósperos e muito aprazíveis. Talvez a história que lhe tinha contado Cole sobre as mortes na família a fez imaginar Lenda como um pouco... um pouco mais perigoso.
-Caramba com o Selvagem Oeste -murmurou, e recordou ter ouvido que era um mito.Se for verdadeira Lenda era a prova desse mito.
-Onde quer que a deixe? -lhe perguntou Cole.-Em qualquer lugar onde precisem uma cozinheira -lhe respondeu.
Ao passo deles dois, todos os vizinhos tinham interrompido o que estavam fazendo para olhá-los. Seria pelo cegador vestido alvo, ou os impressionava ver a uma mulher e a um homem tão juntos num lugar público? Pela aparência desse povoado de película, o único pecado nesse lugar devia de ser ficar-se levantado depois das nove da noite.
-Que lhe parece o Palace Hotel? -lhe perguntou Cole.Pesarosa, notou que as palavras de Cole lhe provocaram uma onda de pânico que a percorreu inteira. Ia ficar só. Só num povo desconhecido, numa época desconhecida, por acréscimo. Não sabia nada, nada em realidade; como ia arrumar-se, pois? Por um segundo, esteve a ponto de arrojar os braços ao pescoço de Cole e rogar-lhe que não a deixasse só.Sei forte, Kady, disse-se.-Isso estará bem -lhe respondeu, inspirando fundo para que não lhe tremesse a voz.
Cole se deteve ante um hotel de tabelas, de duas plantas, que talvez fosse o edifício maior do povo. E como os outros, seu aspecto era limpo e pulcro, com cortinas de encaixe nas janelas.Depois de desmontar, Cole alçou os braços para ajudar a Kady a descer-se, e ficou um momento olhando-a.-Está segura de que não quer mudar de idéia? Eu poderia cuidá-la.Durante uns instantes, Kady se sentiu inclinada para ele, mas confiava demasiado em si mesma para ceder a seus impulsos. Sempre se as tinha arrumado só, e não podia começar agora, aos trinta, a depender de um homem para que a cuidasse. -Estou segura.
-Endireitou as costas e lhe tendeu a mão-. Senhor Jordan, graças por tudo o que fez por mim, e agradeço sua preocupação.Cole aceitou a mão que lhe oferecia e a estreitou com solenidade. Estava sério.
-Eu jamais fiz nada semelhante a isto. Você é uma mulher sob meu cuidado, e não posso deixá-la sem nenhuma proteção. Que passa se não consegue trabalho?Kady sorriu com autosuficiência... Tinha uma confiança completa em que lhe bastaria com cozinhar para alguém para que a contratassem.
-Não disse que este é um povo mineiro? Deve de ter muitos homens sós e seguramente, alguns deles quererão uma cozinheira. E agora, por favor, vá-se -disse, sentindo que recuperava a confiança.Como não ia encontrar emprego?-Está bem -disse, não muito convencido-, mas quero que me faça um favor.Precavida, perguntou:- De que se trata?
-Amanhã, às duas, quero que se encontre comigo frente à igreja. É por aí, cerca do final da rua: não pode equivocar-se. Quero que vá ali amanhã e me assegure que tudo está bem, de modo que eu possa ficar-me calmo. De acordo?
Kady lhe sorriu.-De acordo, é um trato. Estarei ali as duas em ponto, e lhe falar de meu maravilhoso emprego novo, e quiçá até tenha encontrado a alguém que saiba onde estão os petroglifos.-Boa idéia -disse Cole, com um sorriso-Por -aqui há vários antigos procuradores de minas que conhecem as montanhas como a palma de sua mão. Pode ser que eles recordem o lugar.
-Ainda retendo sua mão, deu-lhe um apertão-. E agora, porte-se bem, e lhe desejo toda a sorte do mundo.Com um leve puxão à asa do chapéu, deu-se a volta e se afastou pela calçada bem varrida.Seria difícil descrever a profundeza do esvaziamento que sentiu Kady quando viu as costas de Cole Jordan. Fazia só um dia que o conhecia, mas era a única pessoa que conhecia nesse lugar.
-A única pessoa que conheço neste século -disse, vendo-o deter-se juntou a um grupo de meninos.Estavam jogando aos berlindes na terra, e Cole os interrompeu para dar-lhes algo que sacou do bolso. Como sabia o que tinha nos bolsos, estava segura de que não lhes tinha dado caramelos. Então que estava dando-lhes?
Pensou que podia ser dinheiro ao ver que os garotos se olhavam as palmas e saíam correndo em direção à heladería, que ela sabia que estava à volta do caminho-Menino cantor -se disse.
Jogou-se a fila do vestido sobre o braço, e entrou no hotel. Quiçá teria que lhe ter pedido a Cole que lhe comprasse um vestido novo. Mas não, era melhor um corte limpo.O interior do hotel era como o tinha imaginado: coincidido, mas calmo, cheio de homens e mulheres bem vestidos, do braço, falando em tons baixos. Por uma entrada viu uma zona cheia de móveis tapizados de cabelo de cavalo, e um enorme tapete persa no solo.
À esquerda tinha um alto balcão, com classificadores para o correio a costas de um agradável jovem que escrevia num enorme registo.Sorrindo, dirigiu-se ao empregado.-Poderia ver ao gerente? Ou ao encarregado de pessoal? -perguntou com cortesia.
O homem observou o vestido de seda branca, e alçou uma sobrancelha. Pensaria que a tinham abandonado em seu casamento? Perguntou-se Kady, incômoda. A prioridade em sua pronta era comprar-se um vestido novo. Talvez conseguisse um progresso de salário.
*****
"A uma", pensou Kady, alçando a vista para o relógio da torre, em o alto do quartel de bombeiros. Faltava uma hora para o encontro com Cole e, desde onde estava, podia ver a igreja.Que ia dizer-lhe? Teria, que se pôr de joelhos e suplicar-lhe que lhe pagasse uma comida? Ante a só idéia da comida, rosnava-lhe o estômago. Por causa do pouco que tinha comido desde que passasse através da rocha, podia cingir-se o corpete uns centímetros.
Pondo-se de costas -ao quartel de bombeiros, jogou a andar para a. igreja, mas teve que se deter. "Não tão rápido -se disse-, poupa energias." Tratando de manter os ombros erguidos e o orgulho intacto, caminhou com lentidão pela rua polvorenta, fazendo tudo o possível por ignorar aos vizinhos do povo que passavam junto a ela.
Kady estava segura de que, a essas alturas todos saberiam quem era, com quanta arrogância lhe tinha dito ao gerente do hotel que era melhor cozinheira do que qualquer do que tivesse tido no hotel, Com a mesma arrogância, -o gerente lhe disse que não queria mulheres na cozinha, pois eram capazes de incitar aos homens quem sabia a que. Não se deteve a considerar, sequer, a possibilidade de dar-lhe um emprego a Kady."Vá com a igualdade de direitos", disse-se, enquanto saía do hotel. RECUSARAM-NA no primeiro lugar no que tinha provado. E daí? Tinha todo um povo cheio de oportunidades de emprego, e encontraria algo em algum lado.Mas, à medida que se acercava a noite e via que ainda não tinha um lugar onde dormir, começou a perder a esperança de que alguém lhe desse trabalho, e o desânimo foi crescendo.
Quando começou a fria noite de Colorado, recordou com grande saudade como a tinha abraçado o corpo cálido de Cole durante a noite anterior.
Para o anoitecer, já tinha provado em todas as lojas do povo. Inclusive tinha chegado até a mina Tarik e pedido trabalho ali. Para sua grande humilhação, quando o administrador da mina lhe disse que uma mulher com seu aspecto provocaria rinhas entre os homens, tinha estourado em lágrimas.
Por um momento, olhou-a como se estivesse a ponto de ceder, mas jogou uma olhada a outro homem, que negou com a cabeça, e o administrador a recusou. No entanto, disse-lhe que podia voltar ao povo numa das carretas cheias de mineral metalífero.
Enquanto caminhava para a carreta com os dois homens, viu uma carpa aberta instalada sob as árvores, dentro da qual tinha mesas de cavalete cobertas de comida. Pelo cheiro, tudo tinha sido fritado na mesma gordura que usavam para lubricar as rodas da carreta, mas nesse momento a Kady se lhe fazia água a boca pelo cheiro de qualquer comida.
Pôs de lado o orgulho:- Poderiam dar-me um pouco de comer? -perguntou, e pela olhada do administrador, supôs que ia dizer que si.Mas o outro, o capataz, seu bruxo mau, como o considerava Kady, tomou-a com firmeza do braço e lhe disse que o acampamento mineiro não era lugar para uma dama.
Antes que pudesse pensar uma resposta o bastante malvada, o sujeito quase a levantou até o duro assinto da carreta e indicou ao motorista que arrancasse.Em poucos minutos esteve no povo, e o carreteiro a deixou no armazém, onde se pesaria o mineral antes de transportá-lo montanha abaixo.
Defronte estava a lavandaria, e Kady entrou a perguntar se precisavam ajuda. Não se surpreendeu no mais mínimo quando lhe disseram do que não.Ao outro lado da rua, por trás da heladería, tinha um grande parque com grandes álamos e prados de erva. Num extremo, tinha algo que parecia um campo desportivo, com graderías.
Quando chegou ao campo, tinha caído à noite, e Kady estava tremendo. AO luar pôde ver o que parecia uma perfeita Cole, com um campanário no cume do edifício e um pequeno alpendre na parte dianteira. Cambaleando-se de fome e de esgotamento, Kady se dirigiu para o edifício, e quando encontrou sem chave a porta principal, pronunciou uma prece de agradecimento e entrou. Comparado com a temperatura de afora, o interior da Cole era um paraíso de indiferença.
No pequeno armário encontrou uns casacos enferrujados e um cobertor de cavalo, estendeu-os no solo, se acostó em cima, envolveu-se nelas e se dormiu.À manhã seguinte, quando acordou, o sol estava alto e lhe levou certo tempo recordar onde estava. Quando o recordou, não quis deixar-se levar pela autocompaixão. Sua mãe lhe tinha dito que a autocompasión era um poço sem fundo e que, quando alguém caía dentro, seguia caindo para sempre.
-Como não ouviu meninos clamando por entrar, Kady supôs que seria sábado, ou quiçá domingo. Se não podia saber qual era o ano, muitas mãos o dia da semana.
Dedicou certo tempo a registrar a Cole, em pos de algo para pôr-se. Quiçá o vestido, tão implacavelmente branco, fosse o motivo que lhe impedia conseguir trabalho. Ou não lhe davam ocasião sequer, para que demonstrasse que podia realizar o trabalho, reflexiono com amargura.
Quando estava a ponto de sair da Cole, viu um espelho na parede mais afastada e ao acercar-se para olhar-se quase gritou de horror. Essa era a mulher à que o administrador da mina tinha dito que poderia provocar problemas entre os homens?Seu cabelo, que costumava levar limpo e bem recolhido, estava sujo e enredado como confitura de cabelo de anjo que se tivesse esfriado.
Tinha uma mancha negra numa bochecha.-Quanto fará que a tenho? -perguntou em voz alta, esfregando-se a sujeira.
No que se referia ao vestido, parecia-se pouco à bela criação que tinha sacado da lata de farinha. A costura de um ombro estava rompida, de quando se lhe tinha enganchado ao fugir rapidamente do aserradero. Todo um custado da saia, onde se tinha roçado com uma estufa manchada de hollín no escritório do jornal, estava negra.
Um jovem, com um lápis atrás da orelha, tinha-lhe perguntado em tom agressivo sobre as razões de sua presença no povoado e sua relação com Cole Jordan, o lugar onde vivia, se sabia algo com respeito aos recentes roubos, por que fazia perguntas pelo povo, e se era membro da banda, quem a tinha abandonado no casamento, se o noivo tinha descoberto sua vinculação com os ladrões, onde tinham enterrado o botim, e que...Kady tinha fugido tão rápido do escritório que quase volcou a estufa.
Graças ao céu, não estava acendida, pois, caso contrário, ela se teria preso fogo.-Ao menos, poderia ter cozinhado algo -murmurou, avançando pesadamente pela rua.
Depois da fria noite na Cole, não melhorou sua sorte a manhã do segundo dia. Começou a chamar muito próximo das casas. Numa ocasião, olhando aos olhos a uma mulher de cabelos cinzas, pediu-lhe algo para comer. O semblante da mulher refletiu piedade, e Kady sentiu que estava a ponto de falar, mas apareceu o marido junto a ela, olhou, a Kady com o cenho franzido e disse:
- Não nos caem bem os mendigos no povo. -E lhe fechou a porta na cara.Agora, Kady caminhava para a igreja para encontrar-se com Cole. Que atitude deveria adotar? Dizer-lhe que tudo estava bem e que não precisava ajuda? Deveria preservar seu orgulho a toda costa?Era notável como desaparecia o orgulho quando se tratava do estômago.
Quando voltasse ao século vinte, poderia escrever um livro titulado: Viagem no tempo: O novo método para baixar, de importância.
"Dignidade", disse-se enquanto caminhava pela rua, tinha que manter a dignidade. Por trás do quartel de bombeiros tinha uma grande colina atravessada no caminho, com uma cerca-viva curta que percorria a lomba.
Enquanto Kady subia a colina e passava esse borde, o povo parecia diferente. À parte de Lenda que tinha visto era formosa, mas ao outro lado dessa cerca-viva dava a impressão de que o povoado lhe convertia num paraíso. O caminho se bifurcava à esquerda e direita, e a igreja ficava à esquerda.
À direita, tinha um edifício perfeito com um grande alpendre, e janelas findam em arco. Diante, um cartaz indicava que se tratava da Biblioteca de Lenda.
À direita da biblioteca tinha um longo caminho de terra que subia uma colina baixa, e o que Kady viu ao final do caminho a fez piscar. Amenos que se equivocasse, o belo edifício branco com a cúpula característica era uma mesquita.
¡Jamais tinha ouvido falar de uma mesquita no Velho Oeste! Voltou-se para a igreja. A um custado do caminho, que estava cuidado à perfeição, tinha flores, e o prado da igreja era um cobertor de diminutos botões azuis no meio da erva lujuriosa. Era evidente que, se Lenda podia dar-se o luxo de manter em estado seus edifícios públicos, as minas deviam de resultar prósperas.À medida que se acercava à igreja, ouviu cantar, e sorriu.
Quiçá a gente da igreja tivesse mais compaixão de sua situação. Quiçá pudesse falar com o pastor, e ele a ajudasse a conseguir emprego. Como não se lhe tinha ocorrido antes?Subiu lentamente os degraus da igreja e se sintou pesadamente à sombra do alpendre do alpendre, a esperar a Cole. Pensou que, sem dúvida, ele lhe pagaria uma comida, e sorriu ante a perspectiva.Não teve que esperar demasiado, pois o viu chegar a cavalo uns minutos depois, e ao vê-lo sentiu alívio. Era seu amigo; a ajudaria.
-Chego tarde? -lhe perguntou, ansioso-. Pensei que devíamos encontramos às duas.
-Não -respondeu Kady, sorrindo, desejando de todo coração ter o cabelo limpo ou outra coisa que esse vestido de noiva sujo e rasgado-. Eu cheguei temporão. Cole não se deu pressa para desmontar, subiu lentamente a escada, e titubeou, como se lhe custasse decidir que fazer.
-Tenho que ensaiar meu só para o serviço de manhã. O pastor se marcha do povo por um par de semanas, assim que precisamos música para ocupar o tempo. Depois de que eu cante um par de canções, rezassem para que ele volte.Sorria-lhe, como se não tivesse a mais mínima preocupação, como se não visse que ela estava feita um desastre.Deu um passo fazia a porta, depois se voltou e se sintou no degrau, junto a Kady.
-Está bem?Uma parte de Kady quis dizer que sim, que tudo ia magnificamente, mas seu estômago protestou e não a deixou mentir.
-Não, não estou bem.Tomou a mão suja de Kady na sua, morna e limpa.
-Quer contar-me? Como vai o novo emprego?
-¡Não tenho nenhum emprego! -exclamou com veemência, mas ao ver que Cole jogava uma olhada para a porta aberta da igreja baixou a voz-. Ninguém me dá emprego. Ninguém, em nenhum lugar, nem numa cozinha pública nem privada. Até me apresentei na lavandaria, e também me recusaram.
-Propriedade familiar -lhe disse ele, provocando em Kady uma olhada interrogante-. A lavandaria é do senhor Simmons e como tem seis filhas, não quer pagar a um desconhecido.Kady o olhou com dureza. Talvez não a entenderia? -Não pude encontrar emprego -disse sem alterar-se-. Ninguém quis-Procurou nas minas?
Kady piscou, e disse com tom lento e firme, como se lhe falasse a um idiota:-Provei na mina Tarik, mas não fui a outras porque estavam muito longe. Vou a pé. E com vestido é um pouco difícil mover-se.-Ah, sim. Seguro que o administrador foi amável, mas o capataz a recusou.
-Sim -respondeu, olhando-a assombrada ao ver seguia sem entender qual era o problema dela. -O mês passado, a noiva do capataz se casou com outro homem e, bom, ele está um pouco sentido com as mulheres neste momento. Não quer ver a nenhuma. -Cole lhe pôs a mão sobre o regaço-. Má sorte que tenha provado primeiro em Tarik.
Estou seguro de que em Lily ou em Amaryllis precisam cozinheira-. E no cárcere? Está a uns quilômetros do povo, caminho a Denver, mas quiçá precisem a alguém. -Olhou para a porta da igreja-. Ah tenho que me ir. Graças por vir, e me alegro de que está bem.
Por um momento, Kady ficou muda, perplexa Não podia ser que a deixasse assim, verdadeiro?
-¡Cole! -disse, fazendo-o dar-se a volta quando já tinha médio corpo dentro da igreja.
-Que, señorita Long? -sussurrou, para não molestar à gente que cantava na igreja.-Não estou bem -lhe disse-. Não estou bem em absoluto.
Para seu desgosto, jogou-se a chorar. Voltou a cara para que ele não a visse, e olhou para atrás quando ele lhe atingiu um lenço limpo. Tinha-se sentado junto a ela e estava com o entrecejo um pouco franzido. Sem dúvida, de estar enfadado com ela por fazê-lo perder-se o ensaio do coro.
¡Ela estava em perigo de morrer de fome, e a ele o preocupava chegar tarde ao ensaio!-Não quisesse retê-lo aqui, mas... Preciso ajuda -disse, com palavras que lhe resultavam estranhas.Inclusive na cozinha se negava a pedir aos homens a ajudassem a levantar as grandes panelas de cobre; agradava-lhe fazer as coisas por si mesma.
-Em que posso ajudá-la?, -lhe perguntou com suavidade.
-Não posso encontrar trabalho -repetiu-. Ninguém precisa cozinheira; ninguém me dá a oportunidade de demonstrar que sei cozinhar.O homem guardou silêncio.Kady se limpou o nariz.-Não vai dizer nada?
-Não sê que dizer. Você deixou bem em claro que não queria que eu a protegesse, assim que nada posso fazer, não posso obrigar a ninguém lhe dar um emprego, não é verdadeiro? Afinal de contas, não sou o dono do povoado.
O pensamento o fez rir. -Mas poderia recomendar-me...-Se fizesse isso, depois você me odiaria. Pensaria que me inmiscuí em algo que não me correspondia, e me detestaria, señorita Long. Valorizo demasiado sua amizade para fazer algo que a ponha em risco. Palmeou-lhe a mão, olhou para a porta da igreja, e se dispôs a marchar-se outra vez. Kady o agarrou do braço.
-Não o odiaria por nada. Você viveu aqui toda sua vida, e..-Em realidade, vim aqui quando tinha quatro anos.-¡Não importa! -ofegou. Tomou ar para acalmar-se-. O único que lhe peço é que fale com algumas pessoas. OLHOU-A com simpatia.
-O problema é que há dez aspirantes para cada emprego. Quando precisávamos uma nova maestra, todas as esposas e a metade das filhas dos habitantes do povo queriam o posto. O conselho teve grandes dificuldades para eleger a uma. É pela prata, entende? Lenda é bastante rica em prata, e todos querem instalar-se aqui, com a esperança de fazerem-se ricos.
-Se lhe alumiou a cara-. Poderia levá-la A Denver. Quiçá ali poderia encontrar...-¡Não! Não posso ir-me de aqui, porque devo encontrar as rochas por onde entrei. Se quero voltar alguma vez, esse é o modo.Dando-se a volta, Cole olhou o formoso prado que tinha frente à igreja.
-Ah, sim, Gilford.-Gregory -disse Kady-. O nome do homem que amoo é Gregory.
Cole manteve a cara para o outro lado, mas Kady viu o leve sorriso que brincou nas comissuras de seus lábios, como si o que ela dizia fosse uma grande brincadeira mas, para Kady, nada disso era divertido, e outra vez afundou a cara entre as mãos.-Tem que me ajudar. Tenho fome. Não comi nada desde faz...Interrompeu-se, porque Cole soltou um sonoro arroto-Lhe rogo que me perdoe -disse, levando-se mão à boca-. São as favas. É o único que Manuel sabe cozinhar. Favas para o café da manhã, o almoço o jantar. Favas e...
-Eu sei cozinhar outras coisas, além de favas -disse Kady, animada, olhando-o com olhos suplicantes- Posso cozinhar qualquer coisa.Cole a olhou com a expressão de alguém que deve explicar os conceitos mais simples da vida.
-Você é uma mulher independente, que se mantém a si mesma, e eu o respeito. Sei que extrai um grande orgulho do fato de ser capaz de manter-se sem ajuda de ninguém sobre a terra, assim que como poderia...?
-¡Basta! -o cortou-. Não tem por que me humilhar. Tinha você razão. Pelo menos nesta época e neste lugar, estava no verdadeiro.
-É essa uma desculpa? Uma desculpa completa ou a médias?
-É a única que vai obter, assim que deveria agradecê-la.Cole lhe sorriu.-Deixe de mostrar-se tão condescendente, e pague-me a comida maior que seja capaz de oferecer este povo. Será minha última comida antes que me converta em sua escrava cozinheira. Cole arqueou uma sobrancelha
.-Ao invés de que outra classe de escrava?
-Simplesmente, dê-me de comer e vayámonos. Mas Cole não se moveu, e a expressão divertida se esfumou de sua cara.-Kady, não posso dar-lhe emprego.
-Porque disse que ... ? Tomou-a das mãos e a olhou aos olhos:
-Talvez tenha notado que Lenda não é como outros povos mineiros. Não, verdade que você disse que nunca tem estado num povo mineiro e, portanto, terá que me crer quando lhe digo que é diferente. Em outros povos, não há legislação com respeito a coisas que nós não permitimos em Lenda. Não entendeu:
- É ilegal que eu cozinhe para você?-Não, desde depois que não. O problema é o lugar onde vivo.Ao escutar isso, Kady o olhou. Cole estava limpa e sua camisa de algodão azul estava tão almidonada que lhe ficava separada do corpo. Em certo modo, era incapaz de imaginá-lo vivendo numa choupana.
-Vivo num lugar que está longe do povo, para lá -disse, assinalando para o este-. Cerca da dá não há outras casas e, bom, señorita Long, não séria correto que vivêssemos sós com a única companhia do velho Manuel e uns poucos peões.
-Em seus olhos apareceu uma expressão triste-. Depois do ensaio do coro, a levarei a comer, e em realidade, não sei que outra coisa pode fazer. Não posso obrigar a ninguém a contratar uma cozinheira que não precisam. Daria-lhe todo o dinheiro que possuo, mas, nesse caso, todo o povo o saberia ao instante, e sua reputação ficaria danada. -Baixou a voz-, este povoado está cheio de homens, e se aceitasse dinheiro de mim, poderiam considerá-la uma mulher diferente do que em realidade é.Kady teve uma visão de vaqueiros bêbados, muito ébrios depois de ter feito uma ronda, que jogavam abaixo a porta de seu quarto num hotel barato, e...
Sacudiu a cabeça para dissipar essa imagem.-Demasiadas películas, Elizabeth Kady -ouviu a voz de sua mãe na cabeça.Cole lhe apertou a mão.-Em realidade, não sê como ajudá-la. -Olhou para a porta da igreja-. Agora tenho que me ir. Quando termine o ensaio, poderemos seguir falando. Quiçá possa convencer a alguém de que a tome. No povo há pessoas que me devem favores assim que, talvez...Kady fez uma careta que o interrompeu.
-Caridade -disse baixo, imaginando o incômodo que seria viver como hóspede não desejada em casa de desconhecidos.Foi nesse momento quando Kady mudou de atitude. Situações extraordinárias exigiam soluções extraordinárias. Vendo relampaguear ante seus olhos o rosto bonito de Gregory, pensou no contraste que tinha entre o colorido escuro de seu noivo e o de Cole, loiro e de olhos azuis, com seu rosto aberto e inocente. Amava a Gregory, amava-o muito, mas ele não estava aí. Não tinha nascido sequer, e não estaria fazendo-lhe nenhum favor se por orgulho, morria-se de fome antes de poder voltar a ele.
Inalou uma funda baforada de ar para dar-se coragem, ergueu os ombros e olhou os olhos azuis de Cole.-Segue em pé a proposta de casamento? -lhe perguntou, vendo a expressão perplexa que aparecia de imediato em seu rosto.
-Está comprometida para casar-se com outro.
-Os momentos desesperados exigem medidas desesperadas.Cole lhe jogou uma olhada que queria dizer: Muito obrigado.
-Você sabe o que quero dizer. Cole lhe olhou as mãos, que ainda repousavam nas suas.-Eu lhe ofereci casal ao calor do momento. Estava agradecido de que me tivesse salvado a vida, mas agora me pergunto que diria a gente. Temo-me que ...
-¡Pedaço de canalha, mentiroso, rastrero! -gritou, apartando as mãos-. Eu estou morrendo-me de fome, ¡morrendo-me, ouça bem!, e o único que se lhe ocorre é pensar no que diria seu atildado povo. Senhor Jordan deixe-me dizer-lhe que este povo não vale nem um pensamento, se é capaz de deixar morrer de fome uma mulher antes de manchar sua prístina reputação.
Estava tão furiosa que esqueceu a fome e a fadiga se pôs de pé, coisa que lhe permitiu olhá-lo para abaixo.
-Neste momento desejaria não ter salvado seu pescoço musculoso. ¡E quando me encontrem morta em algum beco, minha morte cairá sobre sua cabeça!Depois desse imponente discurso, aferró a fila do vestido, se a jogou ao braço e começou a baixar os degraus. Por desgraça para sua autoestima, tropeçou sobre o enorme pé de Cole e caiu para diante.
Mas ele atrapou em seus braços e a fez sentar-se sobre seu regaço.Kady estava tão enfadada que não o olhou, e se manteve tão rígida como pôde.
-Suponho que lhe devo um favor.
-Ninguém tem por que me fazer o favor de casar-se comigo -disse, com os dentes apertados-. E baixe-me antes que algum de seus santos "Lendários" nos vejam juntos.
O jogo de palavras com o nome do povoado fez sorrir.
-Demasiado tarde -repôs ele, alargando o sorriso.Kady girou a cabeça e viu ao coro completo de Lenda, Colorado, amontoando-se na entrada para olhá-los a ela e A Cole com franca fascinação.
-Me temo que agora não terei mais alternativa que me casar com você -lhe disse-. Agora que tenho...-Que Deus o ajude se diz que jogou a perder minha reputação: sou capaz de vomitar.
Por um instante, Cole a olhou, meio divertido, meio escandalizado. Depois olhou ao coro, que seguia observando-os como se fossem nativos vendo o primeiro espetáculo escabroso.
-Se nos desculpam, a señorita Long e eu devemos discutir certos assuntos em privado.
Quando se foram os curiosos, Cole olhou a Kady, moveu a boca para falar, mas ficou contemplando-a. Pelo modo em que estava localizada em seus braços, a parte superior dos peitos assomava fora do vestido, a ponto de sair-se pelo decote. E o ajustado vestido delineava cada curva da silhueta voluptuosa da mulher. Ainda que a fins do século vinte se a considerasse uma mulher com "problemas de importância", o tempo que levava este século lhe permitia saber que as mulheres tinham que ter aspecto de sê-lo.
-Se me toca, mato-o -disse, com o nariz a uns milímetros da dele.Por um momento, Cole se limitou a olhá-la; depois, com um suspiro de resignação, deixou-a sobre o degrau do alpendre, junto a ele.
-Tem razão -disse, ao cabo de uns instantes-. Estou em dívida. Devo-lhe minha vida, e é verdadeiro que lhe propus casal, de maneira que devo...Interrompeu-se ao ver os lábios apertados e o cenho franzido de Kady.
-Me honraria casar-me com você -disse com solenidade-. Honraria-me e me comprazeria. E quero que saiba que respeito sua insólita situação e por isso considero que não tem obrigação de cumprir seus deveres conjugais. A não ser que queira, por suposto -agregou.
Em realidade, Kady não tinha pensado até esse ponto. Nesse momento, o que queria era uma comida, um banho e uma cama, nessa ordem. A raiva para esse homem estava consumindo-lhe as últimas energias.
Fez uma inspiração profunda, mas, por muito que se esforçava por acalmar-se, a voz soou com um tremor nervoso.
-Sim -disse, com voz débil.
-Como diz? Não a ouço.Olhou-o, furiosa. -Não sei definir que é, mas há algo em você que me desagrada. Só o medo de morrer de fome faz casar-me com você.Cole lhe dedicou um breve sorriso de complacência.-Quiçá possa encontrar a outro homem que ocupe de você. Estou seguro de que alguém, em alguma parte, quererá casar-se com você.
Kady ignorou o malicioso comentário, e não pensar no que poderia suceder-lhe se se casava com homem que não tivesse uma insígnia por sua constante assistência à igreja.
-Quero recordar-lhe que está em dívida comigo -disse com acalma-. Salvei-lhe a vida, e quanto a deveres conjugais, se trata dê obrigar-me a fazer a que não quero, eu...INTERROMPEU-A com voz colérica.
-Eu não obrigo às mulheres nem as dano de maneira alguma -disse, com a mandíbula tensa-. Caso-me com você como um modo indispensável de protegê-la. Como você diz, estou em dívida. E agora, se tem termina de desacreditar-me, quer entrar na igreja e casar-se, ou não? -lhe perguntou-. Se não quer casar-se comigo, é livre de ir-se.
Kady compreendeu que a tinha posto em seu lugar. Quiçá estivesse engrandecendo a situação. Ele lhe disse que a considerava formosa, mas isso não o lançou a uma luxúria incontrolável. Como ele disse, podia tê-la forçado quando estavam junto à Árvore do Enforcado, e não o tinha feito.
Uma onda de culpa a extravasou.
-O casamento é muito sério, e deve saber que eu voltarei a minha casa no mesmo instante em que possa -lhe disse-. Não está comprometido com alguma garota com a que preferiria casar-se? Pode ser que alguma mulher se ponha furiosa ao descobrir que o homem que considerava seu se tem...
-A maioria das mulheres do povo estão apaixonadas de mim -disse, solene-. Até as casadas quisessem enviudar para poder casar-se comigo. As mulheres me seguem pela rua como patitos a sua mãe. Tenho que mudar o lugar em que durmo todas as noites para impedir-lhes encontrar-me porque todas querem seduzir-me...
Kady lhe agarrou o braço.-Cale-se, e terminemos com isto. Quanto antes o faça, antes poderei comer.-Depois de você -disse Cole, sorrindo e rindo para a porta da igreja-, senhora Jordan -disse pelo baixo.
CAPÍTULO 7
Kady acordou porque lhe picava desesperadamente a cabeça e algo lhe dificultavam a respiração. Quando abriu os olhos, levou-lhe um tempo enfocar o teto, fatos com postes postos um junto a outro. Tratou de recordar quando o dono lhe tinha mudado a decoração, e por que se lhe ocorresse dar-lhe estilo rústico a um apartamento na cidade de Alexandria, Virginia.
Ao voltar a cabeça, observou o lugar enquanto se esfregava os olhos e tratava de despejar-se das toneladas de sonho que os pegoteaban. "Uma choupana -pensou-, uma choupana na montanha." Uma só habitação, muito limpa, todos os móveis feitos em casa, cortinas de percal azul nas janelas.Incorporou-se inesperadamente, quando a memória voltou a ela.
Já não estava em Virginia senão nas montanhas de Colorado, e era o ano 1873.Afundou por um instante a cara nas mãos e recordou tudo o que lhe tinha sucedido nos últimos dias, sobretudo o anterior.
Cole Jordan, um homem que quase não conhecia, tinha entrado com ela na igreja, que estava quase achatada sob o peso das flores que a enfeitavam. Quando olhou os lírios, as rosas e as grandes guirnaldas de flores silvestres que penduravam de toda superfície imaginável, se lhe engrandeceram os olhos.-Mais tarde há um casamento -lhe tinha dita Cole, sorrindo, contemplando a cara suja de Kady-. Ou o melhor as flores são para nós.-Nesse caso, deveriam de estar todas mortas -disse-com voz fica, sem querer que ele a ouvisse.
Mas a ouviu e se sentiu mal ao ver a ofensa reflete no rosto de Cole. Em verdade, era amável por sua vez que a ajudasse dessa forma; o que passava era que Kady não esperava isso para seu casal. Teria querido que estivessem presentes suas amigas Jane e Debbie, e queria estar guapa, não como se tivesse pernoitado numa carbonera.
Enquanto avançava pelo corredor, levanto a vista para Cole, viu o modo em que o sol se refletia em seu cabelo loiro, e esteve a ponto de sair correndo da igreja. Queria caminhar pelo corredor com Gregory, com o homem que amava e não com este desconhecido. Frente ao altar, sob um encantador arco de vegetação e diminutas flores brancas, e estava o ministro tivesse sido o casamento de outra pessoa, Kady se teria maravillado, com o formoso que estava tudo.
O coro cantava, mas quase não podia ouví-lo. Para o casamento com Gregory, tinha pensado em levar a uma soprano da Companhia de ópera de Nova York.Como não soube quando tinha começado o ministro com a cerimônia, também não soube quando terminou. O único que sentiu foi a olhada de todos os presentes sobre ela.
Sujeitando-a ainda do braço com tanta força como se tivesse medo de que fugisse se a soltava, Cole lhe entregou um lenço. Não tinha idéia de quando tinha começado a chorar, nem dos ruidosos soluços que sentia dentro do corpo, só das lágrimas quentes que lhe baixavam pelas bochechas numa corrente contínua.
-Não me, faça caso, sempre, choro nos casamentos -lhe disse ao ministro, que, depois de uma senha afirmativa de Cole, seguiu adiante.Em algum momento, durante a breve cerimônia, Kady disse o que se esperava dela e, no momento oportuno, ouviu as palavras que a declaravam casada com esse homem. Fez acopio de valor, esperando que a beijasse: tinha direito, não?
Mas Cole não a beijou. O que sim fez foi receber felicitações dos membros do coro, sem soltar em nenhum momento o braço de Kady e pouco depois, este a levou fora da igreja, ao alpendre. Ali lhes arrojaram arroz, desejaram-lhes a Cole e à noiva a melhor das sortes e felicidade eterna.
Também que tivessem centos de filhos. Entre os risos dos amigos, ninguém notou que Kady não dizia uma palavra.Cole a ajudou a montar a cavalo e depois, eludindo ainda a chuva de arroz, guiou ao animal afastando-se da igreja, girou à direita e seguiu uma profunda hondonada até chegar a um racimo de construções de troncos.
À direita, tinha uma grande abertura na ladera da montanha que só podia ser uma das minas de prata de Lenda.-A mina Lily -disse Cole.
Eram as primeiras palavras que lhe dirigia desde o "casal"... se a essa cerimônia despojada de amor podia chamar-se assim. Cole desmontou, falou um instante com um par de homens, e depois se deu a volta para ajudar a Kady a descer-se. CONDUZIU-A a uma estreita loja branca, dentro da qual tinha uma mesa pequena coberta com uma toalha de mesa branca, no centro um vaso de cerâmica rompido e voltado a colar, com flores silvestres.
-Num mínimo lhe traremos de comer -disse um dos homens, que tinha entrado depois deles-. Você só diga que é o que precisa, senhora Jordan, e faremos o possível por conseguí-lo. Foi o sobrenome o que quase a venceu -. Tinha sentido ansiedade de ouvir-se chamar senhora Norman e ao ouvir, em mudança, que a nomeavam por esse sobrenome estranho, disse:
- Graças. -Mas as lágrimas que lhe corriam pelas bochechas aumentaram de volume.
-Bueno, eh, sim, os deixarei sós -disse o homem, saindo de costas da loja, nervoso.Quando Cole lhe atingiu uma cadeira, Kady quase se caiu sobre ela. Sentia-se capaz de vender-se por um prato de gachas, pensou, com a cabeça entre as mãos. Cole estendeu o braço sobre a mesa e lhe tomou uma mão.
-Não sou tão mau como você pensa -disse com suavidade-. Em sério.
Kady sorriu um pouco, a inapetência-O sei. Sei que sou ingrata, e lhe peço desculpas. Se você tivesse aparecido em minha época, não sei se eu teria tomado a peito sua situação do modo que você o fez com a minha. Eu não teria feito o mesmo sacrifício pessoal que você. Se o agradeço.
-Bem -disse ele, sorrindo-. Que quer como presente de casamentos? -Sabão -disse, sem vacilar-. E um banho quente.-Sábia eleição -lhe respondeu, sério, provocando em Kady um pequeno sorriso.- Kady estava a ponto de dizer algo mais, -mas se abriu a porta da loja e entrou a comida em enormes quantidades, que foi depositada sobre a mesa até fazê-la quase se romper sob o peso.
Kady não perdeu tempo em pesquisar, metendo o garfo em cada fonte, nem se molestou em pô-lo no prato desportillado que lhe tinham posto diante. Cole também comeu, mas lhe interessava mais observar a Kady.-Lhe agrada a comida de Colorado? -perguntou.
-Me agradaria ver a sertã desse homem -disse, com a boca cheia.-A sertã?-Me imagino que o cozinheiro tem uma o bastante grande para fritar uma ovelha inteira, com cabeça, capacetes e tudo e que encheu o recipiente com a gordura do toucinho e que cozinhou toda esta comida nessa gordura.
Cole a olhou, piscando.-Que outra coisa cozinha você? Kady tinha a cabeça tão cheia de informação, que não soube como dizê-lo. Limitou-se a seguir comendo, uma verdura, uma carne impossível de distinguir da outra. Até as bolachas feitas com pó de hornear estavam fritadas em gordura. Mas, nesse momento, tinha tanta fome que deixaria para depois a preocupação por suas artérias.
Quando teve comido tudo o que era capaz de reter, Kady se sentiu dominada pela sonolência. Bocejando, disse:- A que distância está sua casa?
-Perto -disse, de um modo que teria irritado a Kady se não tivesse estado tão cansada.Disse-o como seu a localização da casa fosse um segredo, um mistério.Não o olhou aos olhos porque não queria ver o que já se imaginava.
A Cole envergonhada por ser um pobre vaqueiro que talvez tivesse um só cavalo e meia dúzia de vacas de sua propriedade. Apesar da roupa limpa, perguntou-se se viveria num lugar algo melhor do que uma choça.-Está bem -disse com suavidade-. Não importa onde viva. De todos modos, não ficarei muito tempo aqui.Cole lhe sorriu, pôs-lhe um cacho por trás da orelha.
-Onde vivamos nós -disse, apartando a mão quando Kady se jogou atrás, com expressão de temor. Antes que Cole se afastasse, Kady lhe viu a expressão ferida. "Não pensará que o nosso será um verdadeiro casal, não?", pensou. Depois das coisas que ela lhe tinha dito, não era possível. Depois...
-Pronta para ir-nos? -lhe perguntou, apartando a cadeira.Seguindo-o para o cavalo, se lhe ocorreu que, pelo menos, tinha modais agradáveis. Afora se viam as estrelas, a noite era bastante fresca e quando montou adiante dele a posição lhe resultou quase familiar. Parecia-lhe bastante natural reclinar-se contra esse corpo sólido e sentindo os braços fortes ao redor ficou dormida.
Isso foi o último que recordava antes de acordar essa manhã na cama e olhar o teto da choupana, Quando recordou, apartou a pilha de cobertores e viu que estava com a roupa interior, como estava a primeira vez que viu a Cole. Não era necessário um grande detetive para ver que o espaço junto a ela, o que ficava entre ela e a porta, estava marcado por um corpo grande e pesado que tinha dormido ali.
Saindo da cama, Kady soube que tinha que deixar de olhar para o passado, ao que podia ter sido, e começar a olhar para o futuro. Tinha que fazer tudo o possível para regressar a seu lar.Pendurado sobre o respaldo de uma cadeira de pinheiro estava o vestido de noiva que lhe tinha arcado tantos problemas e por um momento, tomou a prenda rasgada e suja e levantou a mão para arrojá-la ao lar de pedra, onde ardia alegremente um pequeno fogo.
Mas algo a conteve. Talvez fosse a convicção de que se tratava do vestido da mãe de Cole. Nem a mãe nem ele mereciam que fosse tão irrespetuosa com esse vestido que tinha sido feito pensando na felicidade.Contra uma parede tinha um baú de madeira e Kady se acercou a ele e levantou a tampa, com a intenção de guardar ali o vestido, fora da vista.
Mas quando o deixava num extremo do baú, viu algo que pareciam roupas de menino: camisas, calças gastadas, roupa interior, e inclusive botas e calcetines. Estava segura de que nada no mundo a tivesse posto tão contente como ver essa roupa limpa e suave. E se agora pudesse encontrar uma barra de sabão e um ribeiro, estaria limpa pela primeira vez em vários dias.
Mas por mais do que procurou, não encontrou sabão. Sim achou um interessante conjunto de alimentos que pensava explorar depois, conquanto o sabão, que era o que mais queria, não aparecia por nenhum lado.
-Vá com o presente de casamentos -disse, indo para a porta da choupana vestida com a roupa interior e com a que encontrou no baú sobre o braço.Por um segundo, com a mão no pasador, pensou que quiçá a porta estivesse fechada com chave. Mas ao ver que o trinco se levantava com facilidade, se conteve pelo ridículo de seus temores.
Cole Jordan era um homem muito agradável, que cantava no coro da igreja, não um monstro que mantinha prisioneiras às mulheres.
No fundo estava o escusado, sobre uma pequena colina ou mais precisamente, um pouco mais aporta na saia da montanha. Dentro, intrigou-a ver uma corda unida a uma parede, com um grande laço de percal azul. A corda passava por um buraco na parte de atrás da pequena e sólida construção.Quando saiu do escusado, rodeou a parte de atrás e viu que a corda passava entre as árvores e cada poucos metros, tinha laços azuis sujeitos a ela.
Curiosa, Kady seguiu a linha, perguntando-se aonde lhe levaria. Cole teria planejado uma emboscada? Quiçá uma citação amorosa no bosque? A cada passo que dava, aumentava sua curiosidade, vacilando de vez em quando, jogando olhadas ao redor por se ele saía de atrás de uma árvore.
Como agora estavam casados, pensaria que tinha todo o direito de fazer com ela o que quisesse, verdade?Quando chegou ao final da corda, deteve-se e olhou com a boca aberta, sem crer o que via. Sempre tinha ouvido dizer que em Colorado tinha fontes de água quente e sem dúvida, esse delicioso estanque que via ante si era uma delas. Do água morna brotava vapor.
Ao redor das pedras que formavam os custados do estanque tinha ramilletes de flores silvestres e o que deviam de ser...- ¡Oh, delícia!- pelo menos seis barras de sabão. E tinha três toalhas azuis empilhadas sobre uma pedra, junto ao estanque.
A Kady se lhe encheram os olhos de lágrimas. ¡Em verdade, Cole Jordan era o homem mais agradável!, Pensou, quase se arrancando com as mãos os broches da roupa que levava posta. Passou-lhe pela cabeça que talvez ele estivesse espionando-a, mas nesse momento não lhe importava.
Quando se desenganchou o corpete e caiu a seus pés, exalou um grande suspiro de alívio, e aspirou tantas baforadas do ar de montanha que se sentiu mareada.Rapidamente se despojou do resto da roupa e já nua, meteu com cautela um pé no estanque. ¡A temperatura da água era perfeita! Kady jamais tinha desfrutado tanto um banho como gozava com este. Alimentava o estanque uma fonte subterrânea, que o enchia constantemente. Ensaboou-se o corpo e a cabeça, metendo-se sob o água para enxugar-se.
Passou ao menos uma hora no estanque, até que a pele se lhe enrugou e seu cabelo estava tão limpo que chirriaba. Saiu com inapetência, e tomou uma toalha para envolver-se o corpo nu.
Quando caiu um pente da primeira toalha, não a surpreendeu no mais mínimo, pois ao que parece Cole tinha pensado em tudo.Quando voltou à choupana, era uma mulher nova. As roupas de menino lhe ficavam bastante bem, se ajustava o cinto bem apertado para que não se lhe caíssem e se enrolava os baixos para que não se arrastassem pelo solo.
Ainda que seu busto era demasiado grande para andar sem sustento, não estava disposta a voltar a pôr-se o corpete.Em parte, esperava que Cole estivesse na choupana, mas não tinha sinais dele, assim que Kady se dispôs a organizar os alimentos. Não tinha muita variedade: farinha, favas, toucinho, batatas, frutas desecadas, ervilhas secas.
-Como vou fazer pão sem fermento? -perguntou em voz alta, e lançou uma exclamação de deleite ao sacar a espita de um pequeno barril e descobrir que continha cerveja-
¡Biga,! -exclamou, dando-lhe o nome italiano à mistura de fermento que poderia usar para fazer pão.Também poderia usar as batatas para fazer o fermento, mas com a cerveja seria mais rápido. Sob os sacos de farinha tinha uma caçarola com manteiga e um cesto com ovos.Em poucos minutos, tinha a comida em marcha. Com a cerveja e a farinha fez uma mistura que formaria fermento, refregó a cafeteira esmaltada com areia e a usou para clarificar a manteiga, que assim duraria mais.
Depois de sacar água de um grande barril que tinha num rincão, pôs a remojar as ervilhas numa caçarola de ferro. Tinha que fabricar seu próprio pó de hornear com soda e crémor tártaro, para poder depois preparar uma tanda de bolachas. Subindo-se à cama, sacou de uma prateleira que estava alto na parede uma vasilha índia e se alegrou ao ver que tinha o interior vidriado.
Pôs em remojo as frutas secas dentro desse recipiente.Depois de fazer tudo isso, preparou-se uma omeleta. Não tinha cozinhado muito numa fogueira ao ar livre, mas sempre lhe agradava provar novos utensílios e novos alimentos, e desfrutou de sentir o calor na cara. Tinha um trébede, uma espécie de forno holandês com patas, oxidándose a um custado do lar e depois de limpá-lo e untarlo com gordura, Kady pôs as bolachas a hornear no rescoldo. Quando estiveram feitas, sacou-as e fez uma sobremesa com as frutas secas.
Já tinham passado horas, e Cole ainda não tinha regressado. Kady não tinha relógio, mas, pelo modo em que entrava o sol pelas janelas, soube que eram as últimas horas da tarde. "Não me terá instalado nesta choupana para depois se ir e deixar-me, não?", pensou, e se disse que não era possível.
Passou meia hora mais, e como ainda não tinha sinais de Cole, sacou os ovos do cesto e o encheu com o que tinha cozinhado até esse momento. Encontrou uma garrafa de vinagre, de maneira que, se achava algo para converter em escabeche, poderia preparar guarnições para qualquer carne de caça com que se topasse.
Com o cesto ao braço, um cobertor sobre os ombros, e com certa sensação de Caperucita Vermelha, introduziu-se no bosque para procurar ao Lobo Mau. A idéia a fez lançar uma pequena gargalhada, mas se disse que essa atitude não era correta. Teve que recordar que seu principal propósito na vida era sair desse lugar. Não tinha tempo de fazer pão e escabeches.
Não tinha tempo de vagabundear pelo bosque cheirando o ar limpo e puro que jamais tinha conhecido as emanações de um motor diesel.Não lhe foi difícil encontrar a Cole. A poucos metros da choupana, baixando uma custa abrupta, tinha um ribeiro largo e profundo. Ali estava ele de pé, nu até a cintura, com uma cana de pescar na mão, concentrado no que fazia.
Ao vê-lo, Kady quase perdeu o alento: ¡era um homem formoso! Os músculos pareciam esculpidos no torso, os ombros e o peito eram largos e o corpo se afinava para a cintura, que não devia de medir mais de oitenta centímetros.
-Pescou alguma vez? -lhe perguntou baixinho, sem voltar-se, demonstrando-lhe a Kady que sabia desde o princípio de sua presença ali.-Estou mais familiarizada com o que se faz com os pescados depois -disse, tentando dissimular o efeito que lhe provocava esse homem.
Apartando a vista, baixou a custa e detendo-se num pedaço de terreno plano, talher de ervas, junto ao ribeiro, estendeu o cobertor e apoiou o cesto.Quando olhou outra vez a Cole, não pôde conter uma exclamação involuntária. O que não pôde ver desde o cume foi que tinha não menos em media dúzia de horríveis cicatrizes redondas no torso, que pareciam ter sido causadas por balas.
Como se não soubesse que era o que tinha provocado a exclamação de Kady, Cole se olhou o peito, e depois a ela.-Atinja-me a camisa e me a porei -disse, olhando-a com expressão interrogante.-Não, está bem. Não era minha intenção observá-lo- disse, voltando-se. Mas não pôde conter-se e se deu outra vez a volta de repente-. Quem lhe fez isso? Os mesmos que trataram de enforcá-lo?
Cole estava olhando a água, atirando do sedal, mas o leve sorriso indicou a Kady que o comprazia a preocupação dela.-Não, sucedeu quando eu era menino. Quando lhes dispararam a minha irmã e a meu amigo, também me dispararam a mim.
-Titubeou- Eu me salvei; eles, não -disse com suavidade.Olhando as cicatrizes, Kady não quis imaginar a dor que deveu de ter sofrido para sanar de semelhantes feridas.-Me disseram que os beijos curam todas as feridas -lhe disse Cole, e quando o olhou viu que estava caçoando e que lhe brilhavam os olhos.
-Me dá a impressão de que até agora não deram demasiado resultado -replicou, dando-lhe as costas.-Suponho que nunca me os deu a mulher adequada - Tinha saído da água e caminhava depois dela. Que há no cesto? Como estava demasiado perto, Kady se apartou.
-Só toucinho, bolachas e... -Baixou a voz-. Uma sobremesa de frutas.
-Ah, sim? -Se acercou outra vez a ela-. Lavou-se o cabelo, eh? Agradou-lhe o sabão que lhe consegui?
-Muito agradável. -Se voltou para ele, com o entrecejo franzido-. Ponha-se desse lado do cobertor, e não se me acerque.Por certa razão, a declaração o fez rir, enquanto se acercava ao ribeiro e sacava um longo cordel com trutas ensartadas."As defumarei", pensou Kady, e depois se corrigiu, como ia marchar-se a sua casa, não teria tempo de defumar pescado.
-Prepare o fogo; eu irei procurar a sertã e umas cebolas silvestres que vi, e almoçaremos.
-Sim, senhora -o ouviu dizer, enquanto subia correndo a colina, recolhendo ao passo as cebolas."Que desafio culinário", pensou, enquanto corria. Aqui não tinha todos os ingredientes conhecidos em seu mundo ao alcance da mão, como em Virginia. Nem yerbaluisa, nem anís despedaçado, nem sequer azeite de oliva.
"Me pergunto se poderia fazer ... ", pensou, e se interrompeu. Não ia estar o tempo suficiente para fazer nada."Sei firme, Kady -se disse-. Tens que lhe exigir a Cole que amanhã te leve às rochas. E, se se nega, terás que ir por ti mesma." Ao mesmo tempo em que o pensava, compreendeu que, se não conhecia o caminho de regresso ao povo, muito menos o que ia até um amontonamiento de rochas talhadas. Para quando voltou com a sertã, Cole já tinha acendido o fogo e holgazaneaba sobre o cobertor comendo a terceira bolacha com manteiga.
De imediato advertiu que não se tinha tomado a moléstia de limpar o pescado, mas não importava, pois Kady tinha seu próprio método para limpar e despinar trutas.
-Que precisa? -lhe perguntou Cole uns minutos depois, quando ela tinha o pescado na mão e alçava a vista para a choupana da colina, como incomodada de ter que trepar outra vez.
-Uma faca. -Que classe de folha?A pergunta a fez sorrir. Tendo em conta a preguiça com que descansava, era muito gentil de sua parte oferecer-se a voltar à choupana a procurar uma faca, conquanto ela não tinha visto nada mais que uma velha e enferrujada faca de mondar.
Uma faca de deshuesar, de oito polegadas, de folha longa e fina -disse, sorrindo com petulância.¡A ver se o encontrava!Um segundo depois, uma faca de folha longa e fina oscilava, fincado no solo, a milímetros da mão de Kady. Sobressaltada, olhou ao homem, perguntando-lhe com a expressão de onde o tinha sacado.Cole apartou a vista, e o sorriso lhe indicou que esperava essa pergunta. Mas Kady preferia morrer antes que rogar informação.
-Obrigado -disse, e se dispôs a limpar o pescado e a rebanar as batatas.
O trabalho de tantos anos no restaurante lhe tinha ensinado a ser rápida e eficiente. Em matéria de minutos, pôs adiante de Cole uma sertã cheia de batatas salteadas, enriquecidas com cebolas silvestres, e trutas perfeitamente cozinhadas, com uma salpicadura de vinagre e de passas de uvas.
A olhada que lhe dirigiu Cole depois de provar o primeiro bocado de pescado foi todo o elogio que Kady precisava. Sentada sobre o cobertor, o mais longe dele que podia, flexionou os joelhos junto ao peito e as abraçou, Uma coisa era cozinhar para o presidente, acostumado à comida excelente, e outra cozinhar para um homem que estava habituado a uma dieta monótona, insossa.
Cole contemplava sua comida como se fosse ambrosía, só digna de deuses.Kady permaneceu em silêncio, contemplando a água clara, sem contaminar, enquanto Cole rendia um último tributo à cozinheira, ao limpar o prato.Quando a sertã ficou vazia, Cole a deixou no solo, e contemplou o perfil da mulher.
Kady lhe sorriu e empurrou o cesto para ele.-Lhe fica espaço para o docinho de frutas? Cole se tomou seu tempo para dar conta da sobremesa e quando terminou, apoiou-se sobre os cotovelos e fincou a vista no água.-Se não estivesse já casado com você, agora lhe pediria sua mão -disse, tão sério que fez rir a Kady. Enquanto Kady se atarefava limpando a sertã e atingindo-lhe a Cole uma jarra cheia de água cristalina do ribeiro, disse-lhe:
-A que hora sairemos amanhã pela manhã para encontrar a rocha pela que vim?Como não lhe respondeu, Kady apertou os lábios e se sintou no cobertor, junto a ele, preparando-se para brigar. Sem que se o dissesse em palavras, sabia que ele não queria que se marchasse.
-Kady -começou-, você me agrada. Nunca conheci outra mulher cuja companhia desfrutasse tanto como a de você. Tem um sentido do humor maravilhoso, é inteligente, é bela. E.. e isto...
-Fez um ademanes para o cesto, como se seu talento culinário fosse indescritível - Nunca conheci a ninguém como você. Por favor, passe comigo uns dias. Depois a ajudarei a regressar. Juro-lhe que farei tudo o que possa para ajudá-la a ir a onde você quer. Moverei céu e terra para fazê-la regressar. Só lhe peço uns dias. Três. Isso é tudo o que lhe peço.
Kady sabia que não podia fazer isso. Para qualquer mulher era demasiado tentador um homem ao que lhe agradava o sentido do humor de uma, que afirmava que uma era inteligente. Amava a Gregory, mas a cada hora que passava, sentia-o mais longe. Não queria ficar nesta época sem serviços médicos, sem quartos balneares, sem... Sem Gregory.
-Nunca provei algo como isto -lhe disse com o assombro refletido na voz.-Não posso -disse com suavidade - Gregory pode estar procurando-me.-Não lhe consta que esteja fazendo-o. Poderia ser que você ficasse aqui seis meses, dez anos, ou inclusive uma vida, e depois, trasponer essa rocha e aparecer em sua casa com esse vestido branco, sem que tivesse passado um só momento.
A Kady lhe resultou estranho que não lhe fizesse muitas perguntas com respeito a sua afirmação de que provia de outra época. Nunca tinha procurado verificação, e ela não tinha idéia de se lhe cria ou não.
O que sim cria, ao que parece, era que se encontrava a rocha, desapareceria.-Mas não o sei, verdade? Pelo que sei, é provável que Gregory esteja procurando-me, desesperado. Pode que tenha polícia procurando-me.-Então, quando regresse, estará duplamente contente de vê-la.-ja! -exclamou Kady-.
A essas alturas, poderia ter trezentas mulheres ocupando meu lugar. Você não viu a Gregory. Até Debbie, minha dama de companhia, que está casada e tem três filhos, apaixonou-se dele. Senta-se aí, e o olha fixamente.-E você?-Eu não me sinto e o olho fixamente, se a isso se refere.
- Tenho a impressão de que, em certa medida o faz. Tem-lhe medo?- Medo de Gregory? -exclamou-Que absurdo. Gregory não mataria uma mosca. É amável, bondoso, e... E sexy.
-Olhou a Cole: tinha a camisa pendurada dos ombros, mas mostrava o estômago, no duro como uma tabela de lavar, e se o via muito atraente-. Sim -disse com veemência-. Gregory é muito, muito sexy, e estou louca por ele. -Fez um esforço para acalmar-se - Não quero passar três dias a sós com você nem com nenhum outro homem, quero voltar a meu lar, com Gregory.
Cole demorou um momento em responder.-Está bem, a levarei de regresso pela manhã -lhe disse com lentidão, inclinando-se para tirar-lhe uma folha que lhe tinha caído no cabelo.
Mas, quando se lhe acercou, Kady saltou como se fora a golpeá-la.-Não me imagino que posso ter feito para que não possa ter-me confiança -lhe espetó.-O único modo em que confiaria em você seria se fosse eunuco -murmurou Kady, tirando-se a folha do cabelo.
Por um momento, Cole não reagiu ao comentário, mas depois, para sua profunda surpresa, viu que se lhe dilatavam os olhos e que se tinha posto pálido.-Como o descobriu? Quem se o disse?
Kady se sentiu confundida.-Que quem me o disse? Não sei a que se refere.Cole não disse nada, pôs-se a recolher com rapidez e com movimentos irados os elementos de cozinha. Kady não entendeu que era o que passava.-O sinto -disse, observando-o- Não sê que disse que o alterou tanto. Que é o que tem que me ter dito?Cole voltou a sentar-se sobre o cobertor.-Não é por você, é por mim -disse - É que não posso suportá-lo quando uma mulher o descobre.
Sei que lhe parecerá horrível de minha parte, mas quando uma mulher formosa como você se aparta de mim, temerosa do que poderia procurar nela, agrada-me. Ódio que as moças do povo se sentam tão a salvo comigo. Tratam-me como se fosse outra amiga.
Kady já não podia abrir mais os olhos.-Não sei de que está falando. Como pode sentir-se a salvo uma mulher com um homem tão bonito como você?-Que ironia, verdade? -disse, girando um pouco a cabeça para ela e alçando uma sobrancelha - Uma pequena brincadeira do Senhor. Fez-me crescer ao tamanho de um homem, mas me arrebatou minha virilidade.-Seu... ? Seu... ?Ainda que o tentou, não pôde evitar olhar-lhe a união das pernas.Cole apartou a vista dela.-As balas... Esta -disse, assinalando as cinco feridas que estragavam a parte superior de seu corpo-. Também me acertaram na metade inferior do corpo -disse, com voz fica.Kady se deixou cair sobre o cobertor.-Ou seja que não pode ... ?
Cole se voltou para que ela não lhe visse a expressão.-Se não posso conceber filhos? Não, não posso. Por isso tenho trinta e três anos e não me casei. As mulheres que me conhecem não me aceitam, e as que não, bom, não seria justo para elas, verdade? As mulheres querem ter filhos.
-Não todas as mulheres em meu mundo querem ter filhos.Cole se voltou e a olhou com severidade.-Bueno, pois neste mundo, todas o desejam.Kady vacilou. Por suposto que tinha lido artigos que aconselhavam que fazer se um homem é impotente: ser compreensiva, bondosa e amável encabeçavam a pronta.
-É só infértil, ou também... Impotente? Cruzou o rosto de Cole uma fugaz expressão de confusão, mas depois disse:- Tudo -e inalou uma profunda baforada-. Kady, sei que quando a traje a esta choupana fiz algo muito malvado, e estou seguro de que serei castigado no além, mas não pude evitá-lo.
Tinha a esperança de convencê-la para passar três dias comigo. Sós. Nós, sem ninguém mais. Pode que isto faça que me odeie, mas tinha pensado vários argumentos para tratar de convencê-la. Ainda que demorasse mais três dias em voltar, estaria tão mal que o homem que a amoa se volte louco de preocupação? Não seria mais doce o recebimento se o fizesse esperar?
Você é minha única oportunidade de ter uma lua de mel, entende? Poderia encontrar a uma mulher que se casasse comigo, mas me odiaria quanto descobrisse a verdade. Com você, em mudança, graças a suas circunstâncias, pensei que você e eu poderíamos, bom, fingir por uns dias que estamos apaixonados. Uma falsa lua de mel, por assim dizer. Você não estaria furiosa comigo pelo futuro, e não dependeria de mim que tivesse filhos ou não. Ao final da lua de mel, poderia regressar junto ao homem que ama, e ninguém sairia prejudicado.
Kady o olhou, e viu a tristeza em seus olhos, Por isso tinha sido transportada ao passado? Para brindar-lhe a este homem solitário três dias de amor? Para dar-lhe algo que de outro modo não poderia ter? A quem faria dano se ficava?, isso lhe tinha perguntado. Voltava-se junto a Gregory, Cole levaria morto mais de cem anos. Ademais, se regressava a Virginia e dizia que tinha tido um idilio com um vaqueiro impotente, quem lhe criria?
Não sabia se era verdade o que Cole tinha dito: que podia regressar através das rochas dez anos depois e não teria passado o tempo, mas no fundo pensava que lhe faria bem a Gregory se não sabia onde encontrá-la durante três dias. Numa ocasião, risonho, Gregory lhes tinha dito a umas pessoas, num jantar, que ele sempre sabia onde estava Kady: na cozinha, em Onions Que passaria se passava três dias só com este homem inofensivo? Poderiam falar sobre seus respectivos mundos. Quiçá algumas das coisas que ele ou ela soubessem poderiam ajudar ao mundo do outro.
Tinha que ter uma razão para que ela tivesse retrocedido no tempo; então não deveria, ao menos, fazer um esforço por descobrir de que se tratava, antes de regressar?Fez uma profunda inspiração.-Três dias -disse - Três dias, e na manhã do quarto, me levará e me ajudará a encontrar essas rochas.
Pareceu que mil expressões ao mesmo tempo cruzavam o rosto bonito de Cole, e que cada uma delas era uma forma de êxtase.-Oh, Kady -sussurrou-, fez-me o homem mais feliz do mundo.
Antes que pudesse reagir, tinha-a rodeado com os braços; estreitou-a contra seu peito e derramo uma chuva de beijos sobre a coronilla da mulher.A sensação que percorreu a Kady foi tão forte que o empurrou com mais veemência da necessária.-O sinto. Não queria fazer isso -lhe disse ele soltando-a.
Kady sentiu que o coração lhe batia na garganta. Parte dela lhe dizia que não tinha que o beijar, mas outra parte lhe recordava que na vida real, estava comprometida, não casada. Ao que parece, o resto de Norteamérica se acostaba com três homens diferentes por noite, e se era assim, por que não podia beijar a outro antes de casar-se? Ademais, era só por três dias, e a situação de Cole fazia impossível que lhe fosse infiel a Gregory verdade?
Decidida, Kady pôs a mão depois da cabeça de Cole, e apertou os lábios contra os dele. Não era um grande beijo, pois apesar de ser uma mulher moderna e estar comprometida, em realidade não tinha muita experiência em beijos.-Estamos de lua de mel, recordas?
Com um belo e terno sorriso, Cole lhe passou uma mecha por trás da orelha.-Sabe, senhora Jordan? Creio que poderia apaixonar-me de você.Kady lhe pôs um dedo nos lábios.-Não digas isso. Não digas nem faças nada que me faça sentir culpado quando te deixe. Se pensar que meu afastamento te fará dano, terei que me ir agora.-Não -disse, atraindo-a para si-. Três dias, é o único que peço.
CAPÍTULO 8
Cole se levantou temporão; acendeu o fogo no lar, e acercou uma cadeira para poder sentar-se a contemplar a Kady enquanto dormia. Estava estupefato pelo muito que a amava. Mais ainda, não podia recordar o que tinha sido sua vida antes de conhecê-la, e quando jogava uma olhada ao passado, tinha a impressão de que tudo tinha sido esperar a Kady.
Qualquer coisa que tivesse feito, quem queira que tivesse conhecido, tudo foi em preparação para esse dia em que ela tinha saltado de entre os penhascos e despedaçado uma pedra na cabeça de um dos homens de Harwood.
Naquele momento, Cole estava atada à árvore, com o pescoço esticado quase até romper-se, mas estava o bastante conciente para vê-la. Como um anjo no meio de uma nuvem de seda branca, saltou, achatou a rocha contra a cabeça do homem, e ficou ali durante uns segundos intermináveis, tratando de deduzir como disparar o rifle. Quando tocou o gatilho por acaso, a bala zumbiu tão cerca da orelha de Cole que sentiu seu calor.
Cole dava graças de que seu cavalo tivesse recordado o que lhe tinha ensinado e de que ficasse imóvel. Se o animal se tivesse movido uns milímetros, Cole teria morrido.Os disparos da mulher impulsionaram ao caos a Harwood e seus homens, ao mesmo tempo em que tratavam de descobrir quem estava disparando-lhes. Como a reação do primeiro disparo a tinha empurrado para trás, nenhum dos assassinos pôde vê-la.
Cole, em mudança, sabia aonde olhar. Mal estava o bastante consciente para abrir os olhos como meras ranhuras, e viu como a mulher tentava voltar a disparar o rifle. Amartíllalo, amartíllalo, amartíllalo, tinha repetido mentalmente muitas vezes.Inundado de dita viu que ela o amartillaba e disparava outra vez. Nessa ocasião, deu-lhe ao próprio Harwood e num instante, todos os homens disparavam na direção geral das rochas. Cole fechou os olhos e rezou para que não descobrissem à mulher nem a atingisse uma bala perdida. Preferia que terminassem de enforcá-lo e não que a descobrissem.
Mas Harwood e seus secuaces não tinham idéia de quantas pessoas estavam espionando-os, e dispararam em direção ao cavalo de Cole, sem apontar, e depois se afastaram. Uma vez mais, Para dita de Cole, o cavalo ficou quieto, sem encolher-se sequer, quando uma bala lhe roçou o pescoço. "Esta noite, ração de aveia extra para ti, moço", pensou.
Nos minutos que seguiram, Cole tinha perdido e recuperado a consciência várias vezes, e cada vez que regressava ao mundo real, via coisas incríveis. Na primeira, viu que a mulher estava desvestindo-se, tirando-se o vestido branco. A seguinte, quando voltou em si, ela estava sobre o cavalo, por trás dele, com os peitos apertados contra suas costas. Essa foi à ocasião em que creu que tinha morrido e que estava no céu, com este anjo.
Quando acordou a vez seguinte, estava no solo, e ela, embaixo dele. Sorrindo, inundado de uma dita perfeita, permitiu-se cair de novo na inconsciência.Ao voltar em si, depois, estava dormindo com a mulher em seus braços.
-És um anjo -tratou de dizer, mas lhe doía tanto a garganta que não pôde pronunciar as palavras.O sol o acordou de novo, e descobriu que a mulher não era um sonho senão uma realidade e, como era natural, começou a beijá-la.
Minutos depois, ela o tinha apartado de si e lhe contava uma história absurda segundo a qual vinha do futuro e ia casar-se com outro homem, e toda classe de informação extravagante.O único do que podia estar seguro era de que não sabia onde vivia, e de que certo homem tinha sido o bastante estúpido para perdê-la de vista por cinco minutos. No que a Cole concernia, o que encontrava, guardava.
Se tivesse sido por ele, nesse mesmo momento a tivesse levado a casar-se com ela, retendo-a para sempre, mas a pequena Elizabeth Kady Long tinha outras opiniões. Em princípio, cria estar apaixonada de outro homem.
Cole tinha a suficiente sensatez para saber que quando a uma mulher se lhe metia na cabeça que estava apaixonada de um homem, ninguém podia fazê-la mudar. Não sem uma boa quantidade de tempo e esforço... Coisas ambas que estava disposto a dedicar a esse projeto. Quiçá, quando a viu pela primeira vez, Cole estava numa incômoda posição, com essa soga apertando-lhe o pescoço de maneira que quase não podia respirar, mas, ainda assim, desde esse momento soube o que sentia. Kady era valente e boa; tinha arriscado a vida para salvar a um homem ao que não conhecia. Como lhe disse ela mesma, não sabia se era bom ou mau, mas, de todos modos, tinha-o salvado e cuidado.
Sorrindo, pensou na maneira em que falava, com essa construção rara, palavras estranhas, e até conceitos estranhos. A tal ponto que bastava para convencê-lo de que provia do futuro, como ela dizia. Quase bastava.Qualquer que fosse o lugar de onde vinha, não era nenhum que Cole conhecesse, do mesmo modo que estava seguro de que não tinha outra mulher como Kady no Estado de Colorado.
Num momento, era feroz e forte e, ao seguinte, suave e inocente.Como fora, mantinha-se encerrada dentro de uma bainha protetora. Era como se vivesse só no mundo, porque sempre queria assegurar-se de que ninguém lhe pagasse nada nem a cuidasse. Ao que parece, pensava que tinha que existir sem ajuda de ninguém no mundo.
E fazia questão de falar a respeito desse... desse homem chamado Gregory. Com só pensar nesse nome, Cole sentia desprezo. Kady não amava a esse homem. Era possível que Cole não fosse experiente em amor, pois acabava de descobrí-lo, mas sabia o suficiente para notar que quando ela pronunciava esse nome, sua voz não ressoava com o mesmo sentimento que ele albergava por ela. Em realidade, mais bem parecia do que estivesse falando com um sócio de negócios, e não com o homem com o que ia casar-se.
Essa mulher era dele. Sua para o tempo todo. Minutos antes que ele morresse, tinha-lhe sido enviada para salvá-lo. Salvá-lo da morte, da solidão. Salvá-lo de uma vida que cada vez tinha menos sentido para ele. Desde que tinha nove anos, desde aquele dia infernal em que se produziu o roubo ao banco e os habitantes de Lenda abriram fogo, Cole não deixava de perguntar-se por que se tinha salvado. Precisamente ele, e ninguém mais. Em dois dias, tinha perdido a sua irmã, a seu amigo, a seu pai e a seu avô. Ao ano seguinte, tinha morrido sua mãe.
Como a avó dizia que não suportava a vista de Lenda, tinha-se mudado a Denver. Cole lhe tinha rogado a sua avó, seu única parente viva, que lhe permitisse ficar no povo da montanha; não podia viver na cidade. A avó Ruth tinha um coração terno, e por isso tinha permitido a seu neto ficar-se em seu bienamado Lenda, com pessoas nas que confiava.Por mais do que as pessoas com as que ficou tinham sido boas com ele, o esvaziamento que sentiu ao perder a sua família não se tinha enchido jamais.Sorrindo, olhou a Kady, dormindo como o anjo que era, meio afundada sob a pilha de cobertores, sobre o duro leito. Era inocente, tão inocente como ela o cria a ele. E, até onde sabia, ela cria tudo o que ele lhe tinha dito. Por difícil que fosse admití-lo, tinha-se crido isso de que era eunuco.
A mentira foi uma inspiração do momento. A palavra desatou recordações da infância, dos dias em que, depois de ter recebido os disparos, ninguém sabia se viveria ou não e, então, ele se aproveitava da preocupação que via nos olhos de todos para obter respostas relacionadas com todos os segredos das pessoas maiores e do que ele e Tarik tinham tentado adivinhar por si mesmos. Uma de suas perguntas foi: que é um eunuco?
A avó lhe tinha dito que era um homem que não podia conceber filhos, e que nenhuma mulher queria casar-se com semelhante indivíduo. Por isso, tantos anos depois, quando Kady mencionou a palavra em brincadeira, Cole se apropriou dela para urdir uma história mais bem fantástica.¡E Kady lhe tinha crido! Creu-lhe, e aceitou ficar com ele. Assombrado, Cole viu como se lhe suavizava a olhada, e percebeu que se lhe derretia o coração.
Conquanto podia sentir-se culpado por dizer-lhe uma mentira tão flagrante, faria qualquer coisa para ganhar tempo com Kady. Até tinha pensado em atirar-se desde um alcantilado, com a esperança de romper-se um osso e que ela ficasse a cuidá-lo. Quiçá, se estava ferido, e ela o cria impotente, não saltaria cada vez que ele se lhe acercava.
Perguntou-se que ia fazer com esse tempo. Por meio de mentiras e triquiñuelas, mais mentiras das que ela podia imaginar, tinha-a feito aceitar ficar três dias só com ele, também tinha conseguido que se casasse com ele. Pensando em isso, sorriu: planejar a estratégia que levou a esse casal lhe tinha custado certo trabalho. ¡Mas tinha valido a pena! Kady já era sua, ainda que ainda não o soubesse.
O único que tinha que fazer agora era apagar da mente dela todo pensamento a respeito desse homem que cria amar, e demonstrar-lhe que em realidade amava a Cole e a nenhum outro.Só tinha que imaginar como fazê-lo. Uma vez, tinha ouvido dizer a um homem que bastava com sussurrar-lhe a uma mulher umas palavras doces ao ouvido, beijá-la no pescoço, no ponto exato, e lhe pertencia a um.
Mas Kady tinha esse escudo ao redor que o deixava a ele fora, e não cria que todos os beijos no pescoço fossem fazer que se apaixonasse dele.Nesse momento, contemplando-a, perguntou-se que teria feito esse Gregory para traspassar esse escudo. De repente, se lhe alumiou o rosto. E se esse Gregory não tivesse traspassado o escudo de Kady? Que passaria se isso era o que a ela lhe agradava tanto dele? Quiçá esse Gregory não lhe pedia nada mais que cozinhar algumas comidas, esse Gregory não lhe pedia nada mais que cozinhar algumas comidas, sorrir-lhes aos amigos dele, e era provável que também quisesse que ela o deixasse em paz. Ainda que não estava seguro, Cole adivinhava que Kady não devia de ser a classe de esposa que insistisse demasiado perguntando onde tinha estado o marido a noite anterior.
Se tudo isso era verdade, que outra coisa quereria o velho Gregory de Kady mais do que seu caráter dócil? Se o único que queria o tipo era não ser interrogado, por que lhe tinha pedido a Kady que se casasse com ele? Cole não imaginava a resposta, mas sim sabia que faria tudo o possível por averiguá-lo nos próximos dias.E faria o que fizesse falta para ganhar intimidade com ela.
Mentiria tudo o que fosse necessário. Seguiria dizendo-lhe que não tinha idéia de onde estavam esses petroglifos; lhe diria que não recordava sequer a árvore onde tinham tentado pendurá-lo, se fazia falta. Lhe diria o que fora para retê-la junto a ele, até que lhe dissesse que já não queria marchar-se.
Em silêncio, acercou-se à cama e se ajoelhou junto a ela, acariciando-lhe com doçura o cabelo até que começou a acordar-se. A noite anterior, enquanto ela se preparava para acostarse, ele se tinha ficado afora, dando-lhe tempo para que se dormisse. Quando regressou, na escuridão, despiu-se até ficar com a roupa interior e se deslizou na cama, junto a ela.
Kady se tinha acurrucado contra ele como um cachorro morno, e ele a tinha acercado a si, com um sorriso no rosto.-Te amo, Kady -sussurrou, antes de dormir-se. Amo-te, e te esperei desde sempre.Kady acordou lentamente, sorrindo por algum sonho que não recordava, e quando viu o belo rosto de Cole, com esses formosos lábios, seu sorriso se alargou, mas ainda. Estava sentado no solo, junto à cama, e talvez tivesse devido sentir-se incômoda por sua cercania, mas, em mudança, sentiu-se a gosto.-Bom dia -murmurou, fechando outra vez os olhos.
Não sabia bem onde estava, mas cheirava tão bem como pão recém horneado. E os cobertores eram tão abrigados que a tentavam a ficar para sempre.Precisamente quando estava a ponto de voltar a dormir-se, ouviu que o homem dizia:
- Alguma vez montaste um poney manchado quando era menina? Deu-se a volta para olhá-lo e sorriu de novo; tinha passado tanto tempo pensando no encantadoras que eram as longas pestanas de Cole que passou um momento antes de responder à franca pergunta:-Minha mãe e eu não tínhamos tempo nem dinheiro para um passatempo tão frívolo... Começou a dizer-lhe, mas se interrompeu - Em realidade, sim montei num pony moteado. Quando tinha cinco anos, um dos meninos que viviam perto deu uma festa de aniversário com um pony alugado. Todos os meninos montam o pony, e nos sacamos fotografias sobre ele.
-Levavas posto um vestido vermelho -disse Cole com suavidade, jogando com os cachos de Kady, enroscando-os em seus longos dedos.-Sim -respondeu Kady-. Como o adivinhaste?-Não o adivinhei, sabia-o. -Alçando os olhos, olhou-a e, quando falou, ela sentiu seu alento morno na bochecha-. Quando era menino, até que tive nove anos, costumava sonhar com uma menina pequena com um vestido vermelho, que cavalgava num pony com manchas brancas e negras. Nunca dizia nada, mas sempre estava rindo-se e eu sentia que era minha amiga.
-Qu... que lhe passou? -perguntou Kady, já completamente desperta, com a mente cheia por seu próprio sonho recorrente.-Nada. Desapareceu depois dos disparos, quando eu era menino. Ao menos, assim me o pareceu. Recordação que eu delirava de febre e lhe dizia a minha mãe que a menina se tinha ido. Mas agora penso que o fim do sonho esteve relacionado com todas as pessoas que morreram aquele dia.Como viu que Kady se tinha posto muito triste, sorriu-lhe e lhe beijou o nariz.
-Isso foi faz muitos anos. Vinte e quatro, para ser precisos, mas ainda recordação à pequena que me sorria. Teu me a recordas e como, efetivamente, montaste um pony manchado, estou seguro de que em realidade tu eras essa menina.Kady teve que se morder a língua para não lhe contar seu próprio sonho recorrente. Tivesse querido dizer-lhe que Gregory era o homem que tinha visto tantas vezes em sonhos, mas tinha a impressão de que Cole advertiria a mentira em seus olhos.
Ao menos, Gregory se parecia mais ao homem de seus sonhos do que este homem loiro, de olhos azuis.
Cole se pôs de pé, sacou sua mão de embaixo dos cobertores e tironeó dela.-Vamos, acima, holgazana -lhe disse-. Temos coisas que fazer.Kady se permitiu o luxo de fechar uma vez mais os olhos, e depois sacou um pé de embaixo do cobertor.-Dime se estou cerca do solo -disse.
-Vêem, e fritarei umas hojuelas para ti. -Com gordura de toucinho? -perguntou, inocente. -Com gordura de urso.
-Ah, si? E daí fará com o resto do urso? Cole tinha estado olhando-a, calado e calmo, mas ao segundo seguinte, baixando o tom, gruñó:
-Me comi seu espírito e me transformei nele.Pondo as mãos em forma de garras, Cole saltou sobre Kady, tratando de morder-lhe o pescoço com os dentes.
Kady gritava de riso, lutando com ele, dizendo-lhe que saísse, enquanto as mãos em posição de garras a aferraban sujeitavam-na e depois a soltavam.
-Ah, que bem, aqui, aqui há um saboroso bocado de sua carne -gruñó, aferrando com firmeza um peito.
-¡Cole! -gritou, empurrando-o, ainda que sem demasiada força.Mas quando Cole abriu a boca e baixou a cabeça, soube aonde apontava. Tantos anos de manipular asaderas a mais de dez quilos e caçarolas de cobre os bastantes grandes para cozinhar uma sopa com um tonel lhe tinham dado força a Kady. Impulsionando os quadris para acima, tomou-o de surpresa e o fez rodar e aterrizar contra a parede, com ruído surdo.A expressão de surpresa na cara de Cole foi algo grandioso, e Kady lhe atirou o cobertor em cima e deu um salto para liberar-se. Mas ele a agarrou do braço, atirou-a de novo sobre a cama, reteve-a com uma perna e um braço, e baixou a cara como para beijá-la.
Com outro grande impulso para acima, e um giro, Kady saiu de embaixo dele e caiu ao solo, junto à cabeceira da cama. Rodou sobre si e se pôs de pé, correndo para o lar, onde tomou um atizador e o blandió como uma espada.-Se me toca outra vez, Senhor Ouso, lhe arrancarei a pele e o usarei de tapete.
Sentando-se, Cole compôs uma expressão atormentada apertou as mãos sobre o coração e caiu de costas sobre a cama.-Estou morto. Você me assassinou. Não existo mais.Kady pôs de novo o atizador no suporte, ao custado do lar.
-Oh, bem -disse em voz alta- Se meu urso está morto, terei mais bolos para mim. -Cole não se moveu-. Feitas com manteiga.
-Seguiu sem mover-se-. Com maçãs e canela por em cima.Cole abriu um olho.-Creio que meu coração começou a bater de novo. Devo de ser imortal para ter sobrevivido a semelhante matança.Incorporou-se sobre um cotovelo e a olhou.-Os imortais não comem.
-Então não cabe dúvida de que estou sobre a terra -respondeu, levantando-se da cama e enfilando para Kady, que o eludiu.-Sal a procurar lenha, e assim eu poderei cozinhar -disse, com toda a severidade que pôde, porque Cole se tinha tirado a camisa para pôr-se a roupa interior de lã.
Esperou a que saísse da choupana, e só então soltou o alento que tinha estado contendo."Que estranho", pensou, recordando a brincalhona batalha com Cole. Por mais do que ele dissesse do que não podia fazer amor, não lhe deu a impressão de um homem que tivesse sido emasculado, ainda que não sabia como seria um homem nessa situação. Mais bem, era como se Cole precisasse... A idéia a fez rir em voz alta. "Uma maestra", pensou. Era como se Cole precisasse uma maestra.
Estás pondo-te fantasiosa, Kady, disse-se, e se concentrou na rotina conhecida de cozinhar; foi olhar a biga, viu que efervecia bem, e então se pôs a planejar o que faria esse dia. Passearia pela montanha para refrescar seus conhecimentos sobre plantas silvestres comestíveis. Depois...
-Que estás fazendo? -lhe perguntou a Cole, que tinha voltado a entrar na choupana com um ônus de lenha e estava enchendo um saco de lona com coisas como fósforos, e uma lona encerada.
-Se me ocorreu que poderíamos ir visitar umas ruínas índias, a uns quilômetros de aqui -lhe disse. Nos levará um dia de ida e um dia de volta.-Vamos acampar?A pergunta lhe resultou divertida.
-Sim, a acampar. Sob as estrelas, tu e eu sós. Queres levar alguma coisa em particular?-Algo como carabina?Cole lhe sorriu de lado, fazendo-a dar-se a volta para o fogo para ocultar seu nervosismo."É inofensivo", disse-se, tentando recordar a horrível história que lhe tinha contado o dia anterior. Ademais, três dias depois estaria de volta com Gregory a salvo. Ao que parece, tudo esteve pronto para a viagem nuns minutos. Como não tinha que empacotar lojas de nailon nem cozinhas de gás cabia tudo num pesado saco de lona que Cole carregou sobre suas costas fortes. Para assombro de Kady já se tinha pendurado um arco e um carcaj com flechas de um ombro.
-Faca -disse Kady, quando saíam ao alpendre, com um pequeno embrulho às costas e uma canastra sujeita a ele.
-Não precisas desses enferrujados que há na choupana -lhe disse, fazendo-se eco dos sentimentos da própria Kady no que se referia às facas - Levo comigo. Pronta?Quando Kady fechou a porta da choupana, procurou uma fechadura e depois se voltou para Cole e lhe sorriu:
-Nada de fechaduras.-Não, nada de fechaduras -disse, divertido ante a só idéia de fechar com chave a porta de uma choupana nas montanhas.Cole precedeu a marcha por uma impressão serpenteante que segundo disse, tinha sido feita por um alce. Depois de uma hora, deteve-se, disse-lhe que ficasse calada, sacou o arco das costas, colocou uma flecha e se dispôs a disparar-lhe a um belo veado. Depois de uns segundos de incredulidade, Kady saltou sobre ele, fazendo que a flecha se elevasse entre as árvores.
-Por que diabos fizeste isso? -perguntou Cole - Me fizeste errar. Poderíamos ter comido durante semanas com esse veado.Com uma catarata de eloquência, Kady lhe explicou que, em sua época, não ficavam muitos veados porque os caçadores tinham matado demasiados durante séculos.Cole a escutou em silêncio, e voltou a pendurar-se do ombro o atado e o arco.
-Não sei se me agradaria muito tua época -o ouviu dizer, jogando a andar outra vez.Poucas horas depois, deteve-se e lhe pediu permissão para matar a um coelho.-Não matastes muitos coelhos, verdade?
A Kady não lhe agradou a insinuação de que ela, em pessoa, tivesse despojado ao mundo de gamos, mas lhe disse que com os coelhos não tinha problema. Nuns segundos, Cole tinha disparado duas flechas e abatido dois coelhos.
Quando recuperou as flechas, Kady lhe pediu que lhe desse uma faca; num abrir e fechar de olhos despellejó os coelhos. Como Cole fez questão de que ele os cozinharia, Kady foi para um pequeno ribeiro, afirmando que se tentaria ingredientes para fazer uma salada.Uns minutos depois, voltou com um cesto cheio de agriões, azedinha silvestre, alface espinhosa e um par de violetas. Sem azeite, o melhor do que podia fazer para temperar era cortar uns frutos de capulí, para jogar por em cima.
Quando apresintou a Cole essa encantadora salada, com seus diversos verdes, suas folhas de diferentes tamanhos, salpicada com as diminutas violetas roxas e os frutos vermelhos, sentiu-se muito orgulhosa de si mesma.Mas Cole não quis nem tocá-la. Reagiu como se qualquer outra coisa que não fosse carne pudesse destruir-lhe os órgãos. Depois de fazer uns comentários sobre o imaturo de seus gostos, Kady comeu a salada ela só, muito contente.
Cole não lhe permitiu ajudá-lo a cozinhar.-Não sabes, talvez, que o homem tem que atender à esposa durante a lua de mel? -lhe perguntou, enquanto lhe oferecia um delicioso quarto de coelho assado.
-Não estou acostumada a que me atendam, para nada -respondeu Kady-. Ninguém.-E daí passa com Garvin? Não te leva presentes, não derrama sobre ti todas as guloseimas que uma mulher pudesse desejar?
-Claro que o faz -replicou - Gregory me comprou uma casa em Alexandria, mais todos os móveis. É rico e generoso.
-Deve de ter poucos defeitos. Tudo bom é nas mesas de jogo?Kady sorriu com doçura.-Gregory não participa em jogos de casualidade, nem bebe nem toma drogas. É trabalhador, leva uma vida limpa e me quer muito.
-Como é possível que um homem não te queira? Só queria estar seguro de que minha esposa estaria cuidada, isso é tudo. Dime, como ganhou esse homem todo seu dinheiro? Não sou tua esposa. Em realidade, não o sou. Gregory ganha dinheiro comprando e vendendo terras. E com o restaurante -disse-. Às pessoas lhes agrada como cozinho, e pagam por isso.
-Talvez pensa retirar-se e viver a tua custa? -lhe perguntou, com uma olhada carregada de falsa inocência.-Naturalmente que não. Está pensando em apresentar-se como candidato a prefeito de Alexandria e em seu momento, a governador. Depois, quem sabe? Quiçá até presidente.
-Cole abriu a boca para voltar a falar, mas Kady o interrompeu - Por que não falamos de ti? Como fizeste tua fortuna? Por que há uma mesquita em Lenda? Estás seguro de que esses homens queriam pendurar-te por umas poucas vacas? Quiçá lhes disseste algo horrível a esses homens tão agradáveis, como para merecer que te enforcavam.Cole girou a cabeça, mas Kady atingiu a ver o sorriso que curvou a boca, e não pôde evitar sorrir ela também.
-Estás pronta para ir-nos? -lhe perguntou, pondo-se de pé e jogando terra com o pé sobre o fogo.Enquanto a ajudava a carregar o pequeno embrulho, deu-lhe um beijo na bochecha.-Estou um pouco zeloso desse Guwain.
-Ah, sim? Não o tinha notado.Com olhos chispeantes, disse-lhe:
- Quisesse que não te fosses nunca, Kady. Nunca.
Kady lhe deu as costas, com o entrecejo franzido. Não teria que ter aceitado ficar esses dias, pois, conquanto seu corpo estava a salvo com ele, seu coração não o estava. Esse homem tinha algo tão antiquado e protetor que fazia surgir nela costures que ignorava que tivesse dentro.
Era como um menino crescido, como alguém que ainda não tivesse sido golpeado pelo mundo."Basta, Kady", disse-se. Sua mãe lhe tinha dito: "Se permitem a um homem entrar em tua vida, escolha-o com cuidado." Gregory era esse homem escolhido, perfeito em todos seus aspectos. E Cole Jordan era o mais imperfeito que podia ser um homem, e ela não o tinha escolhido: tinha sido o destino.
CAPÍTULO 9
Talvez fosse porque Kady ia tão concentrada em sua vida que não prestou atendimento aos pés. Tinha-se detido para beber um trago de água da cantimplora, e se dizia que devia apartar a vista das diversas partes da extraordinária anatomia de Cole, que caminhava adiante dela.
Quando começou a caminhar outra vez, escorregou-se um pouco e, de imediato, começou a deslizar-se pela ladera da montanha, de costas, fazendo voar as rochas ao redor, levantando os braços para proteger-se a cara.
Quando chegou ao fundo, ficou onde estava, tratando de avaliar se tinha algo rompido. Mas, ao que parece, estava inteira, só um pouco arranhada. Quando alçou a cabeça, olhou para a montanha e a impressionou comprovar o longe que se tinha deslizado. Lá acima, via a silhueta de Cole, pequena, com o sol do crepúsculo detrás. Levantou o braço para fazer-lhe senhas de que estava bem, mas o deixou cair outra vez ao sentir uma aguda dor que lhe subia pelo cotovelo.
Suspirou e olhou para acima. Agora teria que voltar a trepar por essa costa tão empinada. Ao segundo seguinte, girou sobre sim ao ouvir que Cole baixava a montanha. Nunca tinha visto a ninguém se mover como ele. Não fazia o menor caso a sua própria segurança, e corria diretamente para abaixo, mantendo-se sobre os pés inclusive quando as rochas e os arbustos espinhosos o magoavam.
Kady quis gritar-lhe que se ele escorregava como ela a ele lhe iria melhor, mas viu que não a escutava.Pareceu-lhe que tinha chegado a ela em segundos, e a alçou em braços com a ferocidade do urso que tinha imitado. Pelo branco que estava, Kady soube que estava assustado; sentia-o tremer.-Estou bem -lhe disse - Não me rompi nada.
Passou-lhe a mão pelo corpo de um modo prático, para comprovar se tinha ossos rompidos, e para ver se tinha sangue. Salvo uma zona em carne viva no cotovelo, e um par de lugares inflamados na coxa direito, estava indemne.
Deveu de ter-se deslizado sobre o pacote e, desse modo, a distância entre seu corpo e o pedregullo a tinha protegido.Mas a Cole não o tinha protegido nada. Tinha um rasguño ensangüentado na bochecha, um corte no braço, as calças rasgadas.
-Passa quieta -lhe disse baixinho, carregada de medo-. Eu te levarei acima. Depois te levarei correndo a ver ao médico, e..-¡Cole! -disse com voz mais enérgica-. Estou bem, não me fiz dano.Pela expressão de Cole, soube que não tinha ouvido uma palavra, e então o apartou e se pôs de pé no solo. Como seguia com expressão preocupada, saltou várias vezes. Isso fez que lhe doesse um pouco a perna golpeada, mas estava disposta a morrer antes que deixar-se entrever.
Cole não disse uma palavra, senão que se deteve, jogou a Kady sobre seu ombro esquerdo, com pacote e tudo, e começou a longa ascensão até a cume.Depois de uns minutos de carregá-la, Kady não se molestou em conseguir que Cole escutasse sua afirmação de que estava bem.
E quando chegou a cume e viu o pálido que estava, o único que sugeriu foi que acampassem e passassem a noite no lugar em que se encontravam. Cole não protestou.Também não protestou quando Kady encheu a cantimplora e lhe disse que se tirasse a camisa para poder lavar-lhe as feridas.
Talvez porque ao ver as costas largas e musculosas lhe tremeram as mãos, pôs-se lhe falar de seu mundo. Enquanto o limpava, tirando com cuidados pequenos calhaus das feridas nos braços e as costas de Cole, falou-lhe de Onions, e de que o presidente ia comer ali. Também lhe falou de Gregory e de sua mãe. Quando lhe pediu que tirasse as calças para poder curar-lhe uma parte da coxa de onde lhe saía sangue, falou-lhe das maravilhas do século vinte. Podia ser que recordava todas as invenções milagrosas que o século vinte dava por sentadas, recordaria por que sentia tal desespero por regressar.
-Já está -disse ao fim, estrujando o lenço vermelho de Cole que tinha usado para limpá-lo-. Ainda que não me parece que tenhas feridas fatais, amanhã estarás dolorido. Foi uma verdadeira estupidez baixar assim a montanha. Fiz-te senhas, e te disse que estava bem. Por que não... ? Interrompeu-se ao ver que Cole punha a cabeça entre as mãos, como se estivesse chorando.
Sem pensá-lo, acercou-se a ele e o abraçou. Estava nu da cintura para acima, e só levava postos uns rasgados calzones longos, na parte de abaixo. De repente, Cole se tombou para trás, caindo sobre um retalho de ervas, arrastando a Kady com ele, estreitando-a muito cerca de seu corpo nu.
-Perdi a tanta gente -disse Cole, com acento rasgado-. Tenho medo de querer a alguém porque tudo o que se me acerca morre. É como se trouxesse má sorte à gente que amoo.
-Shh -o acalmou a mulher, acariciando-lhe o cabelo.
-Só sobreviveu minha avó, graças a que foi viver a Denver. Lenda está maldita para os Jordan, suas grandes mãos se afundaram no cabelo de Kady, e a atraíram para ele o mais cerca do que podia, sem rompê-la.
-Tenho medo de que, se te amo, te passará algo horrível a ti também. Kady tratou de apartar-se, mas ele a sujeitava com demasiada força e não podia mover-se.
-Não me sucederá nada, porque não sou de aqui -lhe disse, e até a ela mesma lhe soou estúpido-. Cole, tu não me amas. E eu não te amo. Vou casar-me com outro, recordas? Nem sequer vou ficar-me aqui. Tu vais ajudar-me a regressar, não é assim?Foi como se não tivesse falado, porque ele seguiu abraçando-a de um modo que a fazia sentir-se segura, como em família.
Kady se sentiu muito soñolienta, quiçá pelo desusado exercício do dia. Claro que podia levantar-se, acender fogo e preparar um caldo com os ossos do coelho que tinha reservado e ademais, teria que interpor um par de cobertores entre eles e o solo frio e duro. Mas nenhuma dessas coisas lhe pareceu importante sentindo o corpo de Cole junto ao seu. Sabia que deveria recordar a Gregory e seu compromisso com ele, e, no entanto, nesse momento, o único em que podia pensar era a calidez de Cole e o maravilhoso que era estar em seus braços.
Deixando vagar a mente, compreendeu que uma das coisas que mais lhe agradavam de estar com Cole era do que com ele não se sentia gorda. Estando no século vinte, a cada minuto do dia era consciente do que a sociedade denominava "excesso de gordura". Talvez se sentisse miúda porque Cole era muito grande não como os homens modernos, com tão pouca carne sobre os ossos que seus pómulos pareciam navalhas. Ou quiçá fosse porque à gente do século dezenove não lhe agradavam as mulheres com corpos em forma de bonecas limpiachimeneas.
Qualquer que fosse a razão, Cole a fazia sentir-se bela, voluptuosa e muito, mas muito desejável. -Fala-me -lhe sussurrou, com os lábios colados à pele morna do pescoço. Se não se distraía com algo, começaria a beijá-lo.Teve a impressão de que a Cole não lhe molestava o frio do solo enquanto lhe acariciava o cabelo e as costas, e colocava uma de suas grandes pernas sobre as dela.
-Três anos depois da morte de meu amigo Tarik, seu pai se fez rico com uma mina de prata. Usou o dinheiro para construir a mesquita em honra de seu filho. Desde a morte do pai, a mesquita não se usou muito, mas eu a cuido. Tenho chave, e quando voltemos A Lenda, se queres, ta mostrarei por dentro. É um lugar muito belo, sereno e cheio de orações. As últimas palavras se perderam, porque Cole ficou dormido, com os braços ao redor de Kady.
Tratou de apartar-se, mas não pôde afrouxar os braços. Tinha fome, e precisava fazer algumas coisas, mas o calor de Cole e a quietude da noite cedo a conduziram ao sonho.Acordou-a o cheiro do pescado frito. Sorrindo, ainda com os olhos fechados, bocejou e se espreguiçou, pensando que estava no paraíso. Quando Cole a beijou suavemente, foi do mais normal rodear-lhe o pescoço com os braços e devolver-lhe o beijo sobre esses doces lábios fechados.
-Bom dia, senhora Jordan -disse, sobre os 1abios dela - Me encantou dormir contigo em meus braços. Nunca desfrutei tanto uma noite.
Kady seguiu sorrindo sem abrir os olhos, com as mãos aferradas ao pescoço de Cole. Quando a mão do homem lhe tocou o quadril e começou a subir, exalou um pequeno suspiro contra os lábios dele.
Foi Cole o que se apartou, olhando-a carrancudo.-¡Oh! -exclamou Kady, olhando-o. Sem dúvida, tinha-lhe feito recordar o que não podia fazer. Recordou-lhe que...
-O café da manhã está pronto -disse Cole, voltando-se, já sem cenho, e com o bom humor recuperado.-Tens o aspecto de uma mulher que está desfrutando sua lua de mel -lhe disse, entregando-lhe duas trutas fritas à perfeição. Kady esteve a ponto de dizer que, efetivamente, estava desfrutando-a, mas isso teria sido uma traição para Gregory.
Como não tinham instalado um verdadeiro acampamento, não lhes levou muito tempo recolher tudo antes de iniciar a marcha para as ruínas sobre as que Cole ainda tinha que lhe contar.
Não tinham caminhado mais do que um par de horas, quando os céus se abriram e se derramou sobre eles uma gelada chuva de montanha. Levou-lhes um minuto estender a lona encerada enquanto Cole gritava ordens para fazer-se ouvir acima do estrépito da chuva, e ainda assim, quando se meteram embaixo já estavam empapados. Molhados e frios, se acurrucaron sob a lona, envolvendo-se num cobertor.
-Tenho fome -disse Cole.Como se essa fosse um telefonema de clarín para Kady -e o era-, apartou o cobertor e se preparou para sair à chuva, a recolher verduras. Sem fogo, não poderia cozinhar bolachas nem assar nada. Cole a reteve pelo braço, carrancudo:
-Não espera demasiado dos homens, verdade? -disse, com tom colérico-. Eu sou o provedor. Eu conseguirei o alimento. Depois do qual tomou o arco e as flechas e saiu.
-E onde vais fazer fogo? -perguntou Kady vendo a chuva arreciar ao redor dela. Nuns minutos Cole tinha voltado com um par de coelhos, e preparou fogo sob a lona. Kady assinalou que a fumaça boiaria para eles e os sufocaria, mas Cole, com grande paciência, explicou-lhe que se um era um bom homem dos bosques, sabia como preparar o fogo de maneira que a fumaça saísse.
A teoria funcionou à perfeição durante uns quinze minutos; depois, mudou o vento e a fumaça viró para eles. Para proteger-se dele, jogaram-se o cobertor sobre as cabeças e se meteram embaixo.
Quando Kady começou a dizer-lhe: "Eu to tinha dito", Cole se pôs a beijá-la até que caíram de costas, com os corpos entrelazados.
Tratando de recordar onde estava e com quem, Kady tentou apartá-lo e manteve o corpo rígido.Tratando de recordar onde estava e com quem, Kady tentou apartá-lo e manteve o corpo rígido.
Ao ver que seus beijos não conseguiam relaxá-la, Cole apartou o cobertor e se apartou de Kady com as mãos fechadas aos custados.-Que posso fazer para que esqueças a esse homem? Kady, tanto o ama que não podes ver a nenhum outro homem? Que fez para conquistar cada partícula de teu amor?
Kady abriu a boca para falar e depois a fechou. Conquanto não era justo comparar a Cole com Gregory, em verdade nunca tinha tempo suficiente com este último. Sempre soavam os telefones, sempre tinha gente que chamava à porta. Ademais, ela sempre estava tão cansada de estar de pé todo o dia que, a maior parte do tempo, não lhe interessava o romance.
Bastava-lhe que Gregory lhe desse um beijo no pescoço enquanto ela estava cozinhando.
-Está bem -disse Cole-, não me respondas.Kady viu que ainda estava enfadado, pois se sintou se dispôs a ocupar-se do fogo. O vento tinha mudado outra vez, e a fumaça soprava em direção contrária a eles. Pese a si mesma, Kady pensou: "Se acabou isso de acurrucarse sob um cobertor."
Contemplando as largas costas de Cole dobrada sobre o fogo, preparando comida para os dois, Kady se sentiu mal pela forma em que estava tratando-o. Tinha sido muito bom com ela, cuidando-a, inclusive casando-se com ela quando não encontrasse modo de sustentar-se por si mesma. Se não tivesse sido por ele, teria morrido de fome nesse povo egoísta. Por sua mente passaram a toda velocidade todas as coisas gratas que tinha feito por ela: dispôs um banho na fonte, estava sempre a protegendo, arriscando sua vida quando a creu ferida.
Ademais, como ele tinha dito, essa era a única lua de mel da qual desfrutaria.-Me agradas muito -disse com suavidade, a costas dele - Jamais nenhum homem me tinha prestado tanto atendimento como tu. Malcrías-me, e me temo que isso me agrade.
Por um momento, creu que não a tinha ouvido, mas, quando se deu a volta, com um bocado de coelho na mão, estava sorrindo como se Kady lhe tivesse dedicado o maior elogio de sua vida. Envergonhada, Kady baixou a vista ao regaço, para não o olhar. Por que tinha que ser tão guapo?
Quando teve sua própria comida, Cole se esticou sob a lona, apoiou-se num braço, e suas longas pernas rodearam a Kady; depois alçou a vista para ela com um leve sorriso.-Quero que me contes tudo sobre ti. A afirmação fez rir a Kady, mas, ao olhar o rosto do homem, viu que estava sério.-Tive uma vida bastante aborrecedora e é provável que o relato te faça dormir.
-Não se me ocorre nada que possas dizer que vá aborrecer-me. Quero sabê-lo tudo a respeito de ti e quero escutar.Poderia ser a sinceridade de Cole, ou que Kady queria pôr em ordem seus pensamentos e tratar de entender por que lhe tinha sucedido tudo isso, a questão é que começou a falar e a contar-lhe sua vida.
Contou-lhe que sempre tinha sabido cozinhar, que tinha estudado os alimentos em lugar de outras matérias na Cole. Podia não saber quem eram. os reis e as rainhas, mas conhecia os alimentos de cada época, e os nomes dos chefs famosos. Tinha ido à universidade para estudar os alimentos e depois a Nova York, com uma bolsa para a Cole de Cozinha de Peter Kump.
Disse-lhe a Cole que tinha o propósito de abrir um pequeno restaurante para experimentar com a comida e que queria viajar e escrever livros de cozinha. Quando tinha vinte e cinco anos, a mãe de Gregory a tinha abordado na Cole e lhe falou do restaurante de bistecs que pertencia à família, e que estava em Alexandria, Virginia. A senhora Norman lhe explicou que o restaurante era como um dinossauro do mundo culinário e que precisava a alguém para modificar essa situação.
Isso é o que atraiu a Kady e se fixou a meta de trabalhar durante três anos em Onions e até assinou um contrato por três anos.-E funcionou -lhe contou a Cole - Levou um tempo, mas ao fim, a gente começou a ir a Onions por minha comida.-Foi agradável trabalhar para a senhora Norman -perguntou Cole com suavidade.Kady vacilou antes de responder.
-A dizer verdade, foi difícil -disse, e começou a explicar-lhe. Pese a que a senhora Norman afirmava querer modernizar o restaurante, em realidade não queria fazer nenhuma mudança, e punha objeções a tudo o que Kady pretendia fazer. Ademais, era uma verdadeira avara, como se negava a comprar nova equipe, Kady teve que se arrumar com uma grelha que a metade do tempo não funcionava e uma cozinha de segunda mão comprada em 1962.
-Kady -lhe disse Cole-, tu eras todo o restaurante. Por que não ameaçaste com ir-te se não te comprava equipe nova?Kady suspirou e olhou para acima.-Por que será que todos pensam que sou inútil? E tonta?
-Eu não penso que...-Sim, pensa-lo, e o mesmo pensaram todos em Cole quando aceitei a oferta da senhora Norman, mas eu sabia exatamente o que estava fazendo, ofereceram-me empregos em todos lados, mas sabia que se trabalhava com alguém como Jean-Louis, o resto de minha vida se diria que tinha estudado com um maestro, e me comparariam com ele.
Aceitei o trabalho em Onions por pura vaidade. Pura e clássica vaidade. Sabia que se era capaz de mudar um restaurante horrível e velho como esse o mérito seria só meu. E depois poderia conseguir emprego em qualquer parte, não como ajudante senão como chefa de cozinha, ou poderia obter financiamento para abrir meu próprio restaurante.A modo de reconhecimento de sua inteligência e capacidade de planejamento, Cole lhe sorriu.-Que passou depois? -lhe perguntou.-Nada. Fiz o que me propunha fazer-.
-Sorriu - E, na negociação, fiquei com o filho da patrona.
-Não disseste que tinha estado ali cinco anos? Quando terminou o contrato de três anos, conseguiste uma cozinha nova?Kady riu.
-Ainda não, mas estou trabalhando em isso. Não creio que a senhora Norman possa negar-lhe uma grelha a sua nora, verdade?Quis dar-lhe um ar ligeiro a suas palavras, mas Cole não sorria.
-Kady, quem é o dono desse restaurante onde trabalha?
-Não me olhes assim, porque sei bem aonde apontas, Depois de casar-me com Gregory, como esposa dele possuirei a metade de seus bens.
-Te pediu em casamento antes ou depois de ter terminado teu contrato?
Kady teve vontade de sorrir, ao notar a insistência de Cole em não pronunciar o nome de Gregory.-Depois. Mas não tentes fazer que pareça que Gregory só quer casar-se comigo para que siga cozinhando para ele.As insinuações de Cole começavam a irritá-la, e fez uma inspiração profunda.
-Não entendes o que passa entre Gregory e eu. Somos uma equipe. Gregory me dá liberdade para que me concentre na comida. Desde que nos conhecemos, trabalhou no duro para Onions. Escreve aos críticos culinários e corteja a jornais e revistas para que nos concedam notas. Oferece comida grátis a pessoas influentes para que corram as vozes.
-Suponho que se todos meus rendimentos dependessem de uma mulher eu também faria qualquer coisa por conservá-la.
-¡Mas seus rendimentos não dependem só de mim! Ocupa-se de negócios imobiliários. Ademais, ele e sua mãe poderiam substituir-me num minuto.
-Ah, sim? Quantas cozinheiras tentou contratar sua mãe até que tu aceitaste o emprego? Uma parte de Kady sabia que não devia contestar-lhe, mas por que devia ocultar-se? Por mais do que Cole dissesse o que se lhe antojase, o que Kady sabia que era verdadeiro não mudaria.
-Dezessete.-Que? Não te ouço. -¡Dezessete! Isso é o que queres ouvir? A senhora Norman foi a três Coles de cozinha e entrevistou a dezessete graduados, mas nenhum queria aceitar o desafio que significava esse restaurante. Isso se deveu a que não tinham visão. Todos queriam trabalhar para Wolfgan, Puck ou para algum outro personagem famoso.
-Talvez será porque se deram conta de que Gregory e sua querida mãe tentariam fazer-lhes o que ti fizeram a ti.
-¡Ninguém tratou de fazer-me nada! Sou muito feliz Gregory e eu vamos casar-nos porque nos queremos. Não sabes o maravilhoso que é ele. Cortejou-me como nas novelas, com rosas, champaña, concertos, obras de teatro...-Mas não sacou dinheiro para comprar uma cozinha nova, não é verdadeiro? Que classe de carruagem usa?
-Não creio que o conheças, mas usa um Porsche vermelho que comprou o ano passado.
-E como é o teu?
- Um Ford Escort de dez anos. Basta! Não trabalho em cozinha para ganhar dinheiro. Estás dizendo que nenhum homem poderia amar-me por mim mesma, que se ele me ama deve de ser por outra razão que não tem que ver com o amor?
- O que digo é que esse homem que crês amar está ganhando dinheiro por causa de ti, e se te casa com ele ficará varada por trás dessa cozinha estragada o resto de tua vida. O será a grande figura do restaurante, o que vista bem, o que receba cordialmente a todos, e tu estarás no fundo, fazendo o trabalho. E já me disseste que tem ambições políticas. Bonito a que teu talento lhe permitirá conhecer a pessoas bastante importantes.
-Basta -sussurrou Kady - Não quero ouvir isso.Mas Cole não podia deter-se.-Dime, no contrato de casamento se inclui tua metade do negócio? Kady o olhou, furiosa.
-Meu contrato de casamento diz que prometemos amar-nos para sempre.Cole fez como que não a tinha ouvido. -Me parece que ele tem tudo pensado com tanta astúcia que se te vais, ninguém conhecerá teu nome. Não forjaste um nome próprio senão para o restaurante. E fizeste tão grande esse lugar nestes cinco anos que, a meu juízo, se te fosses, ele poderia conseguir outro chef que se fizesse cargo do que tu deixasses. Isso, sempre que compre uma cozinha nova. E ficarás sem dinheiro para abrir teu próprio local e o único que te ficará será conseguir um posto trabalhando para outro cozinheiro, coisa dura depois de ter sido um seu próprio patrão.
-¡Estás equivocado! Gregory e eu vamos casar-nos. Serei dona da metade de tudo!
-Ah, sim? Opino que qualquer homem sensato faria o que eu fiz e te poria uma aliança no dedo em matéria de segundos. Ou talvez se aferra a sua liberdade porque já tem tudo o que poderia desejar? Pelo preço de uma aliança de compromisso, pode reter-te. ¡nem sequer exiges uma cozinha nova!
-¡Basta ¡Basta! -exclamou Kady.Talvez a ira que sentia não guardava proporção com as perguntas de Cole, mas tinha dado demasiado cerca do alvo e Kady não podia esquecer o que lhe tinha dito sua amiga Jane. Por ser contável, Jane se crê com direito à fazer-lhe perguntas sobre suas finanças a todo mundo. Acabava de baixar do avião quando lhe perguntou a Kady quais eram os ganhos do restaurante, e qual era a percentagem de Kady.
Ficou estupefata quando soube que Kady recebia o que a seu juízo, era um salário inapropriado, que não era sócia, que não compartilhava economicamente o sucesso que sua cozinha estava brindando-lhe a Onions e que, em realidade, não tinha nem idéia do bem que lhe ia a Onions.
Kady tinha restado interesse aos comentários de Jane com uma gargalhada, dizendo-lhe que quando se casasse com o filho da dona o teria tudo.
-Kady, não quisesse parecer desconfiada -lhe tinha dito Jane-, mas se vos divorciásseis, tu poderias ficar-te sem nada. Terias dedicado anos de trabalho no restaurante e, no entanto, tua casa, com tudo o que contivesse, ficaria a nome dele porque tudo que comprou antes do casamento. Se tivesse divórcio, ficarias sem nada em absoluto. Receberias o que levaste ao casal, ou seja, nada.Ainda que Kady não deu importância às palavras de sua amiga, Jane tinha semeado a dúvida em sua cabeça.
-¡Basta! -lhe repetiu Kady a Cole, esta vez num sussurro, ocultando a cara entre as mãos - Não quero voltar a ouvir dizer a ninguém que deveria pôr-lhe preço a meu amor por Gregory. Com expressão contrita, Cole se acercou e a rodeou com um braço.
-É minha esposa e eu quero cuidar-te, proteger-te. Em tua época os maridos não fazem isso?Kady se tirou o braço dele dos ombros.
-¡Não é meu marido!
-Sim, sou-o -repôs, com calma, atraindo-a outra vez a seus braços, ainda que esta vez não lhe permitiu apartar-se-. Pode que eu não esteja quando regresses a esse homem; para então estarei morto, mas, desde depois, agora sou teu marido. Estreitou-a contra si.
-Kady, não posso fazer-te entender que te amo? Não compreendes, talvez, que ódio a esse homem que dizes amar? Direi e farei qualquer coisa para desacreditá-lo. Estou seguro de que tens razão, de que ele te ama com todo seu coração: como poderia não te amar? Mas, ao menos, posso tentar fazer-te desagradável?
¡Por favor!Durante uns momentos, na cabeça de Kady se arremolinaron pensamentos e emoções.
Nunca tinha sido uma dessas garotas às que os homens tratam de impressionar, pelas que se brigam para convidá-las a sair. Sempre foi regordeta e tímida e tinha tido bastante pouco contato com os homens fora de uma cozinha.-Sim, ama-me -disse baixinho, com a cabeça apoiada no forte peito de Cole-. Teria-me comprado uma cozinha nova se eu tivesse insistido, mas como estamos gastando muito dinheiro na casa nova...-A nome de quem está a casa?
Kady não pôde conter uma gargalhada. -És perverso, odioso -lhe disse. Cole levantou a cara de Kady para que o olhasse.
-Não, sou um homem apaixonado de uma mulher que ama a outro. -A beijou com muita doçura e gentileza. Terias que agradecer que tua Gaylard não esteja aqui, pois, caso contrário, temo que qualquer noite o atacaria, acabaria com ele.
-Então te pendurariam -disse Kady, olhando-o, sentindo seu alento suave sobre os lábios. Nesse preciso momento, não podia recordar quem era Gregory.
Foi esse pensamento o que a impulsionou a empurrar Cole pelos braços.-Bem -disse, com vivacidade-. Deixou de chover, assim que poderíamos ir-nos. E eu, que estava desfrutando tanto...Cole riu, e se lançou a aferrar o braço de Kady, mas ela o eludiu e saiu a gatas de embaixo da lona.-Podemos ir-nos, por favor? -perguntou, olhando a Cole, com os braços em jarras.
-Sim, claro -respondeu, ele inocente, enquanto começava a guardar tudo - Vivo só para satisfazer todos teus desejos. Minutos depois estava tudo empacotado, e estavam prontos para caminhar, mas quando Cole se inclinou para jogar-se o embrulho ao ombro, Kady creu ouvir que dizia "covarde".
Pensou em defender-se, mas preferiu levantar o nariz e contemplar a paisagem como se Cole Jordan existisse em nenhum ponto do planeta.
CAPÍTULO 10
Kady caminhava por trás dele, obrigando-o a atrasar-se porque se detinha com freqüência a recolher plantas, examiná-las e procurar em sua memória para recordar o que tinha aprendido na Cole sobre as plantas silvestres. Enquanto estudava para chef durante o dia, tinha tomado cursos sobre botânica na universidade da região pela noite. Sempre lhe tinham fascinado as origens dos alimentos e as comidas "que saem da terra".Também abrigava a profunda convicção de que tinha uma cura para cada doença sobre a terra; que bastava com procurar a fonte dessa cura.De repente, deteve-se e observou umas plantas que estavam a um lado do caminho: altas, de pouco menos de dois metros, com formosas folhas delgadas.
-¡Céus! -disse, baixo, piscando e sacudindo um par de vezes a cabeça para aclarar-se.
-Que é o que estás olhando assim? -lhe perguntou Cole, detendo-se por trás dela, sem ver outra coisa que as mesmas mazelas de sempre. - Uns vinte anos numa prisão turca -lhe respondeu, com os olhos engrandecidos. Como a olhou, interrogante, voltou-se para ele-. Maconha -disse - Cannabis. -Sorriu-. Alguma vez ouviste falar da maconha?
-Não posso dizê-lo. Essa é outra das ervas que pensas fazer-me comer?
-Não, creio que esta a deixarei aparte. Cole jogou a andar outra vez, e Kady o seguiu.
-Por que não me falas dessa cannabis tua? -lhe disse sobre o ombro - E para que serve.Rindo, Kady falou enquanto andavam por um caminho flanqueado pelas altas plantas, contando-lhe a Cole mais do que desejava saber sobre os problemas do século vinte.Inclinando-se, Cole lhe sussurrou:
-As ruínas estão adiante de nós, mas há gente ali. Quero que fiques aqui e me esperes, enquanto vou ver quem é. Sem vacilar, Kady obedeceu, metendo-se nas sombras por trás de uns penhascos, com os dois atados a seus pés.Cole se acomodou o carcaj com flechas às costas, e tomou o arco com a mão esquerda.-Fica-te aqui e não saias até que eu regresse -lhe disse.
-E se são os que queriam pendurar-te?
-Se sou tão estúpido como para que me atrapem por segunda vez, mereço que me pendurem. -Ao ver que Kady o olhava como lhe expressando o que pensava dessa idéia, mostrou um sorriso tão largo que se viram seus dentes brancos na escuridão - Me dás um beijo de despedida? -lhe perguntou.
-Só com os dedos cruzados a repôs docemente, devolvendo-lhe o sorriso.Cole riu entre dentes, passou-lhe o braço pela cintura e a atraiu para si. Quando a beijou, com os lábios macios, mal separados, Kady sentiu que se derretia contra ele.
-A quem lhe importa quem são esses homens? -murmurou, com a boca colada à dela, e a acercou mais-. Sentirás-me falta?
-Desfrutarei da tranqüilidade.Ouviu-o rir, ao mesmo tempo em que se afundava em ia escuridão. Quanto Cole se teve ido, Kady olhou ao redor, ouviu os sons noturnos que não conhecia, e tomou consciência de que, sem ele, tinha medo. E se algo lhe sucedia? E se aqueles tipos voltavam? E se...? Saindo de por trás dos penhascos o mais silenciosamente do que pôde, andou pelo caminho de puntillas, tropeçando de vez em quando com pedras e buracos. Depois de uns minutos, viu uma luz que saía de uma curva e quando se acercou o suficiente, ficou atônita com o que viu.
Ao outro lado de uma pequena hondonada tinha uma montanha de rocha pelada que se elevava para o céu escuro. Ao pé da rocha, no mesmo nível que estava Kady, tinha um profundo corte e, dentro do buraco natural, viam-se os restos de antigas moradias de barro. Frente a uma delas ardia uma fogueira, e ao redor se sentavam três homens com jarras de hojalata nas mãos.
Agachando-se, Kady vasculhou a escuridão observando aos homens. Estava pensando que não pareciam muito perigosos quando Viu algo que a horrorizou: pendurando de uma parede, por trás deles, o esqueleto de um águia. Quando saiu de por trás de uma árvore para ver melhor, comprovou que tinha meia dúzia de esqueletos de águia estendidos, com as grandes asas sem vida.
Não pensou no que fazia. Pôs-se de pé com os braços em jarras e gritou:-
¡Águilas! -fazendo alçar a vista aos homens e dirigir a vista à escuridão, para onde ela estava. Ao instante, uma mão lhe tampou a boca, e algo a empurrou para a escuridão mais densa. Não teve a menor dúvida de do que o homem que a retinha era Cole.
-Por que não me obedeceste e ficaste onde te disse? -lhe gruñó ao ouvido-. Não, agora que o penso, não te molestes em contestar-me. Vêem, vamos. São só caçadores não fazem dano a ninguém. Kady não se moveu.
-Como que não fazem dano a ninguém? -lhe disse, num sussurro-, E daí me dizes das águias?Disse-o com grande sentimento, mas, até na escuridão, pôde ver a expressão perplexa de Cole.
-Tens razão, são caçadores, e não há que confiar nos homens sós. Se não estivesses comigo, é provável que me juntasse com eles, mas não quero nenhum homem cerca de ti.Ignorando o elogio, Kady o olhou com severidade.-Vais afastar-te assim deste açougue?Na semipenumbra pôde ver as emoções que passavam pelo rosto de Cole, que tratava de entender. Por fim, refletiu-se nele o entendimento e depois a incredulidade.
-Não me digas que tens algo na contramão dos que matam a uma bandada de refeitórios de carroña.Kady tomou alento.
- A águia é o símbolo de Estados Unidos. Esse pássaro...
-Que? -exclamou Cole, inclinando-se tanto que seu nariz tocou a da mulher - Um águia simboliza nossa grande nação? Estás louca? Essas aves comem carne podre. Não são muito melhores que os abutres. E para os rancheros são uma grande ameaça. Há que as matar.Girando bruscamente sobre os calcanhares, Kady jogou a andar pelo caminho.
Tinha que ter um modo de cruzar a hondonada e chegar às ruínas. Não tinha idéia do que ia fazer ou dizer a esses homens quando chegasse, mas já se lhe ocorreria algo para deter essa matança.Cole a aferró pela cintura e a acercou a ele.-Se não me soltas, gritarei -lhe disse entre dentes, forcejeando inutilmente com o forte braço.
-Se te acalmas, te soltarei. -Quando ela se afrouxou, soltou-a e a fez voltar-se para ele - ¡Muito bem, de maneira que não aprovas que se matem águias, e então...
-Por que o fazem? Que proveitos sacam de matar a essas aves magníficas? Nem sequer eu sou capaz de cozinhar um águia.
-Me alegra sabê-lo -disse Cole, e quando viu que Kady começava a voltar-se, sujeitou-a do braço - Muito bem, já está fato. Ninguém pode devolver a vida a esses pássaros. Os homens venderão as plumas e sacarão um pouco de dinheiro; já está.-Ah, e manhã? Amanhã se levantarão e matarão mais águias? -Inspirou fundo-. Cole, o que sucede é que não sabes o que lhes sucedeu aos pássaros e restantes animais em minha época. Construíram-se casas em quase todos os espaços abertos, e por isso já não têm onde anidar; usam armas automáticas contra as pobres criaturas; lhes...
-Me o imagino, mas que posso fazer eu? Quererias que lhes pague altos preços pelas plumas, para que já não tenham motivos para caçá-las?-Quanto mais alto seja o preço, mais pássaros matarão. Sei que não podes impedir a todos os caçadores, em todas partes, que matem aves, mas não podes deter o açougue destes homens? Destes três nada mais?Olhando os grandes olhos suplicantes de Kady, Cole se convenceu de que talvez não pudesse deter a esses homens, mas que era capaz de morrer na tentativa. Sua cabeça ferveu de planos para detê-los. Arrojar-lhes algumas flechas? Ameaçá-los com que se alguma vez matavam a outro desses malditos pássaros, ele mesmo, Cole Jordan, os procuraria e os mataria?
Enquanto se lhe ocorria, compreendeu que faria falta algo mais do que um homem para inspirar um temor duradouro a esses caçadores, O dinheiro, em certo modo, fazia que os homens se atrevessem a qualquer coisa.Quando se lhe ocorreu outra idéia, Cole começou a sorrir; sorria de tal modo que Kady soube que pensava fazer algo não precisamente justo e correto. Inclusive é provável que fosse ilegal.
-Não pensarás em fazer dano a ninguém, verdade? -sussurrou - Não pensarás usar essas flechas pára...-Quero que me jures que vais sentar-te aqui mesmo, calada, e a observar. Nada mais. Não te meterás. Noivo?-Não posso fazer uma promessa semelhante. E se esses tipos tratam de matar-te?Passou-lhe um cacho por trás da orelha.-Te importaria?
-Claro que si. Se te morresses, quem me ajudaria a encontrar os petroglifos para que pudesse voltar junto ao homem que amoo?Kady era consciente de que se esforçava por recordar seu grande amor porque nesse preciso momento não podia recordar nenhum outro mundo que não fora este. E quiçá também não pudesse recordar a nenhum homem, salvo a este.Cole franziu um pouco o cenho, tomou-lhe as mãos e se as oprimiu.
-Recorda que me precisas. Por favor, recorda que, se fazes qualquer ruído ou um movimento repentino, esses sujeitos me dispararão. Se eu morresse, quem estaria aqui para proteger-te?
-Oh -disse Kady, com os olhos engrandecidos. Mas ao observar a expressão de Cole, pensou que talvez estivesse caçoando. Ou quiçá tinha medo porque tinha visto demasiadas películas do Oeste, onde todos se tiroteavam com todos - Que vais fazer?
-Algo estupendo -lhe contestou, com os olhos brilhantes.Kady o olhou um momento, consternada, até que recordou sua extensa conferência sobre as origens das drogas ilegais em Norteamérica. Era provável que se tivesse desviado um pouco falando do slang, das botas brancas, do craque e do rap.
Mas antes que pudesse responder, ele lhe deu um rápido e doce beijo na boca e se deslizou em silêncio para a escuridão.Instalou-se como se fosse parte do público de um anfiteatro, e observou aos homens que estavam ao outro lado da hondonada, preparando-se para passar a noite.
Bocejando, Kady não pôde menos que os invejar, desejando poder acurrucarse junto a Cole e.. ¡Não! O que queria era estar outra vez em sua própria cama, em Virginia, e ao dia seguinte, ver a Gregory. Não queria cobijarse num saco de dormir com seu marido... com Cole, corrigiu-se. Queria a Gregory, não a Cole.
Atrapou seu atendimento um movimento no acampamento, e se sentou erguida. Mas o que viu a fez esfregar os olhos: um homem quase nu, com a mesma cor do barro das choças que tinha detrás, movia-se em silêncio ante os homens, já dormidos, e arrojava ao fogo um punhado de ervas. Depois, descolgando das paredes um par de asas de águia, começou apantallar as chamas, fazendo que a fumaça envolvesse aos adormecidos.Kady olhava com os olhos engrandecidos, sabendo que as ervas que ardiam na fogueira eram maconha silvestre. Desde depois, aprende rápido, pensou, com não pouco desgosto.
Enquanto as volutas de fumaça boiavam atravessando a hondonada, Kady se tendeu de bruços e viu como Cole se movia na luz. O único que levava posto era um taparrabo, e seu grande torso musculoso estava nu: só o cobria o barro que se lhe secava sobre a pele lhe agradasse ou não, quisesse estar com ele ou não, não podia menos do que adolhar sua beleza. ¡É meu esposo! Pensou de repente, e tratou de sacar-se a idéia da cabeça. Só marido por conveniência. Seu verdadeiro marido era Gregory... ou o seria cedo.
-Que será o que está fazendo? -sussurrou, vendo que Cole baixava as asas e os corpos das pobres águias mortas e desaparecia depois dos velhos muros de barro.
Teve a sensação de que tinha desaparecido durante horas e, por um momento, observou aos homens que dormiam envolvidos na nuvem de fumaça da droga, até que ela também se adormiló. Era provável que a ela também lhe chegasse a fumaça.Um grito fantasmagórico a acordou, e se levantou tão depressa que se golpeou a cabeça contra o ramo baixo de uma árvore; olhou para onde tinha luz. De entre as velhas ruínas tinha saltado uma aparição e, por um instante, a Kady lhe bateu com tanta força o coração que não advertiu que essa criatura era Cole.
Um fantasma, com uma vadia semelhança com um homem, mas escuro como a sombra, precipitou-se para os homens que dormiam, com o corpo coberto de partes das águias, o que lhe dava a aparência de um pássaro de noventa quilos, pronto para atacar.
Tinha-se atado umas asas aos braços, outras às pernas. Sua cara estava convertida no bico do pássaro de presa, e as características plumas brancas lhe cobriam a cabeça e o pescoço. Parecia o espírito vingador das mortes de suas irmãs.Como se seu aspecto não bastasse, adicionava-lhe o grito, o grito penetrante de um águia, mas, mais forte, mais selvagem, que cortava o ar como um das facas de Cole.
Os três caçadores, sumidos no estupor da maconha, incorporaram-se lentamente e olhavam ao águia gigantesca que se cernía sobre eles, e pareceu que passava uma eternidade até que recobraram o sentido o suficiente para ter medo.
Ao que parece, Cole desfrutava desse papel que lhe permitia aterrorizar aos caçadores. Estendeu as asas e as agitou sobre a cabeça de um deles de tal modo que Kady teve pena do homem. Os outros dois não precisaram tão direta persuasão, pois se levantaram de um salto, chocando com as paredes na desorientação e o terror que os dominava. Quando trataram de apoderar-se de seus rifles e pistolas, os gritos de Cole se tornaram quase dementes, como se o águia fosse fazê-los pedaços.
Em poucos minutos, com as botas sob os braços, os caçadores deixaram tudo o demais e empreenderam a louca carreira montanha abaixo, pelo caminho. E Cole foi depois deles com os longos braços estendidos, como si o águia que representava fosse envolver e a devorar aos que corriam.Depois da fugida dos caçadores, Kady ficou completamente imóvel longo momento, com a vista fincada na luz que ardia frente às ruínas, olhando o acampamento vazio.
Sabia que devia levantar-se, ir em procura de Cole e dizer-lhe que sua atuação tinha sido magnífica. Que devia dar-lhe as graças por aterrorizar aos caçadores, porque estava segura de que jamais voltariam a matar um águia. Mas ficou sentada. Na atuação de Cole tinha algo tão pavorosa que, em verdade, tinha-a assustado. Foi como se realmente representasse o espírito das águias mortas. Foi como se tivesse lançado um feitiço e as almas das águias tivessem entrado em seu corpo guiando seus movimentos. Até o grito era o mais parecido imaginável ao das aves.
Kady esperava que Cole cruzasse a hondonada para onde ela se encontrava, mas não o fez. Teve a impressão de estar escutando com cada átomo do corpo o caminho que tinha a suas costas, mas ele não se acercou.
Quando lhe pareceu que tinham passado horas, pôs-se de pé e escutou, mas não ouviu nenhum ruído proveniente dos três caçadores nem de Cole. O mais silenciosamente do que pôde, começou a caminhar para o final da hondonada e encontrou uma pequena ponte de terra que levava às ruínas.Estava no limite das ruínas, olhando o fogo fumegante e notando que a fumaça boiava em direção a ela, quando de entre as árvores escuras emergiu Cole e se lançou gritando sobre ela. Tinha uma faca entre os dentes, e cada parte da pele que não estava coberta com plumas tinha barro seco e cuarteado. Era um espetáculo formidável e, sem querer, Kady retrocedeu. Nesse momento, não era um menino cantor. Mais bem parecia saído do pior pesadelo do que alguém pudesse ter.
Dando outro passo atrás, Kady quase se caiu no fogo fumegante. Não conheço em absoluto a este homem, pensou, e quando se lhe acercou mais, levantou o braço para proteger-se.Mas Cole, rindo, tomou-a nos fortes braços, levantou-a e a fez girar.
Quando Kady forcejeó com ele, afundou-lhe a cara no pescoço, com plumas, bico e tudo, e lhe disse:- Confia em mim, pequena esposa minha. Dá-me tua vida e confia em mim.Kady seguia, rígida, em braços dele, asqueada pelas plumas e pelo que representavam, mas talvez a fumaça a tivesse afetado, porque quando Cole começou a fazê-la girar, dando voltas e voltas, mantendo-a apertada, começou a relaxar-se.
-Deixa-te levar, Kady, meu amor -lhe sussurrou - Deixa que outro cuide de ti. Entrega-te a mim.
-Não posso -respondeu, ainda que sentia que seu corpo se tornava mais dócil nos braços dele-. Minha vida está em outro lugar, em outro tempo.
Ainda que quis dizê-lo com convicção, começou a retribuir o abraço, a sentir que sua cara se acomodava à perfeição na curva do pescoço dele. Começava a sentir que estava bem que esse homem estivesse ataviado com as magníficas plumas, porque quase sentiu que podia voar junto com ele.
-Não tens por que ser a melhor menina do mundo -lhe disse-. Não tens que ser perfeita. Não tens que fazer nada para estar segura de que a gente te ama. Eu te amo tal como és.
-Tal como sou -disse, sentindo que os ônus da vida a abandonavam.Tinha demasiado para pensar... que não tinha que ser a melhor cozinheira, a melhor filha, a melhor tudo no mundo. Quiçá poderia ser... Qual era essa palavra que tinha ouvido, mas quase não entendia? Diversão. Sim, essa era: poderia ser divertido...
Jogando a cabeça atrás, Kady olhou um momento a Cole, com a cabeça do águia sobre a dele, as plumas pardas do pobre animal sujeitas sob seu queixo de maneira que só se lhe via a metade inferior da cara. O homem moreno dos sonhos de Kady sempre tinha a metade inferior da cara coberta, mas estava segura de que, se lhe tivesse visto a boca, teria uns lábios como os de Cole.Pareceu-lhe o mais natural do mundo posar sua boca na dele e beijá-lo.As sensações que lhe percorriam o corpo a mareavam. Poderia ser a fumaça, o ar da montanha, ou esse belo homem com seu grande corpo musculoso, o que fazia a Kady reagir com tal sensualidade. Foi natural que ele lhe pusesse as mãos sob o traseiro e a alçasse de maneira que suas pernas lhe rodeassem a cintura.
-Kady, amo-te, amo-te -murmurou uma e outra vez, enquanto ela jogava a cabeça atrás, brindando-lhe acesso a seu pescoço.
Nesse momento, Kady soube que nunca tinha desejado a um homem tanto como desejava a Cole Jordan. Talvez não estivesse apaixonada dele, quiçá as nuvens de maconha a fizessem reagir desse modo, impróprio dela. O único que sabia era que desejava, desesperadamente, que ele lhe fizesse amor.
-Não é verdade, não? -lhe murmurou, afundando a cara no pescoço dele-. Não é eunuco, verdade?
-Sempre crê tudo o que te dizem? -lhe perguntou, estreitando-a contra si.
-Quase tudo -contestou, rindo, e depois o beijou outra vez.Desde que se conheceram, tinham-se beijado várias vezes, mas tinham sido beijos castos, de lábios fechados, que satisfaziam a Kady porque não desejava nada mais. Mas nesse momento abriu a boca sobre a dele, desejando outra coisa que não era castidade.
Mas Cole não respondeu. Não retribuiu o beijo. Em mudança, deixou-a no solo E disse:- Queres pôr-te umas plumas de águia? Kady tinha a cabeça demasiado cheia de fumaça -e quiçá, também de luxúria - para responder-lhe. -Eu.... eh... não, não quero pôr-me plumas de águia.Ia dizer algo mais, mas Cole se pôs a mano na testa, cambaleou-se, e Kady se acercou de imediato a ele, preocupada.
-Creio que não me agrada a fumaça de maconha -disse, sentando-se no solo, com as costas contra a parede das ruínas. Sorrindo, Kady jogou terra na fogueira com o pé para sufocar as últimas ascuas e, quando voltou, Cole se tinha acostado no solo e dormia com a inocência de um menino. Sem vacilar, tendeu-se junto a ele e ele a acomodou contra si como se ela fosse um urso de boneco de pelúcia.
Sorrindo, a mulher se dormiu.
CAPÍTULO 11
A Kady a acordou o cheiro da fritura, mas o esgotamento emocional pelo vivido os últimos dias era tão intenso que nem tentou adivinhar que estava tratando de cozinhar Cole. Sem falar, ele lhe entregou um quadrado gordo e branco, que era uma mistura entre bolo e bolacha, com quase médio quilo de toucinho. Comeu um pouco, não muito.
Notou que Cole devia de estar levantado fazia momento, porque se tinha limpado o barro e estava vestido. Não se via uma pluma de águia por nenhum lado.Depois de um momento, Cole apagou o fogo envolveu as provisões que tinham deixado os caçadores e as guardou com cuidado numa das casas em ruínas; depois empacotou os pertences de Kady e dele, e se jogou o vulto ao ombro.
-Pronta? Foi o único que disse. Kady assentiu e se levantou para seguí-lo.Não teve que perguntar por que Cole estava tão calado, porque já o sabia: era hora de que ela voltasse a casa.
-Cole... -começou a dizer, mas ele não a olhou.
-Sou homem de palavra -disse-, e os três dias se terminaram.Por um momento, os olhos de Cole arderam nos seus:- A não ser que queiras ficar-te -disse.Mas Kady negou com a cabeça: queria voltar ao lar, ontem à noite fiz algo que te desagradou -disse com suavidade Cole.
-Não, nada -mentiu a mulher.-Não era minha intenção ficar-me dormido, mas a fumaça...-Não, foi melhor do que te dormisses -repôs, eludindo a olhada dele, ainda que vendo que franzia o cenho e seu semblante expressava desconcerto.Que poderia ter dito? Que estava decepcionada de que não lhe tivesse feito amor, sendo que, em realidade, não o queria, e talvez não estava em condições físicas de fazê-lo? "Kady, nestas montanhas, teu cérebro está recebendo pouco oxigênio", disse-se.
No trajeto montanha abaixo, por parte de Cole, não teve chanzas nem tentativas de fazer-lhe crer que Gregory procurava outra coisa que não fosse a mesma Kady.
Caminhava adiante dela e, conquanto lhe via os ombros um pouco caídos, caminhava com o passo de um homem com uma meta.Como chegoram muito rápido à choupana, Kady compreendeu que na ascensão a tinha conduzido por um caminho indirecto que levou mais tempo do necessário, dando-lhe só meia hora para recolher as coisas na choupana, alçou-a sobre o arreio do cavalo, montou depois dela, e partiram.
Já em braços de Cole, reclinada contra seu peito forte, Kady começou a pensar que não voltaria a vê-lo mais.
-Não é que não me agrades e que não queira ser tua esposa -disse-. Sobretudo depois de ter-te conhecido nestes últimos dias.
Também não é imprescindível estar apaixonada de um homem para acostarse com ele. Em meu mundo, algumas mulheres crêem que sair com um homem significa ir-se à cama com ele. O que sucede é que eu sou diferente, e acredito em a fidelidade. Estou segura de que se tu e eu nos tivéssemos conhecido em diferentes circunstâncias, neste momento estaria loucamente apaixonada de ti. Mas estou comprometida com outro homem, e por isso não pode ser. É que não quero que te sentes mal por nada que eu possa ter dito...
-Kady, cala-te.Assentiu, fechou a boca, e fez o que pôde por concentrar-se em Gregory. Mas a segurança dos braços de Cole e o passo suave do cavalo cedo a arrulharam, e se dormiu.
-Chegamos -lhe disse Cole baixinho, no ouvido.Kady abriu lentamente os olhos e viu ante si um amontonamiento de rochas pelada que lhe resultava familiar. A luz do dia se desvanecia, e ainda que Kady tinha dificuldade para ver, ali, quase escondidos sob umas enredaderas, estavam os petroglifos.Cole a ajudou a desmontar; depois se acercou junto a ela.
-Isto era o que querias? -lhe perguntou com suavidade.Kady não quis ouvir a dor que soava na voz do homem. Tratou de convencer-se de que não era possível que estivesse apaixonado dela. O que sucedia era que ela lhe resultava exótica, e aos homens lhes encantava o insólito. Sentiu vontades de rir ante a idéia de ser exótica. Um pouco vacilante, caminhou para as rochas, detendo-se uma vez para olhar a Cole sobre o ombro, mas ele, a sua vez, olhava algo que estava sobre a cabeça de Kady. Quando se voltou, viu que a rocha parecia esfumar-se, convertendo-se numa imagem fantasmagórica. Como tinha visto tantas horas de televisão, quiçá para ela não fosse tão aterrorizador o que via como para esse homem que jamais tinha visto um aeroplano. Mas inclusive com sua experiência, teve que reunir valor quando as rochas se apagaram e em seu lugar apareceu... Apareceu...
-É meu apartamento -disse em voz alta, voltando-se para Cole, com a dita no semblante-. ¡Esse é! Posso voltar. Posso...
Ao ver a expressão sombria de Cole, interrompeu-se, compadecida. Disse-se que não o amava, porque estava apaixonada de outro homem e, portanto, não tinha por que lhe importar a expressão de Cole. Não importava que...Sem pensá-lo, correu para ele, arrojou-lhe os braços ao pescoço, apoiou os lábios nos dele e o beijou.
-Sempre... me lembrarei de ti -sussurro- Toda minha vida. Foste muito bom comigo, e sempre te recordarei. Agradaria-me...-Que? -quis saber ele, estreitando-a com tanta força como para quebrar-lhe as costelas - Que te agradaria?-Que tivesse dois como eu -disse.
- Me agradaria poder ficar-me, e também me ir. Poder viver ambas vidas.-Não te v... -começou -a dizer, mas Kady o interrompeu com outro repentino beijo. Depois, com um firme empurrão, apartou-se dos braços dele. Quando seus pés se posaram no solo, começou a correr para transpor os degraus primeiramente através da rocha porque temia que, se não se ia nesse mesmo instante, não se iria nunca.
Ante Kady estava o apartamento alugado, com seus móveis ordinários. Via no solo a caixa de metal na que tinha estado o vestido de noiva, e a jaqueta de cozinheira descansando sobre o sofá. No contestador telefônico piscava a luz: poderia ser que tivesse chamado Gregory.
Pelo que Kady sabia, fazia vários dias que tinha desaparecido, e a polícia devia de estar procurando-a. Com a mão estendida, levantou o pé para dar um passo para o apartamento.Mas, de repente, apareceu ali o homem moreno sobre o cavalo branco, e o pensamento involuntário: "Este é o homem", apareceu em sua cabeça. Não era o loiro Cole nem a Gregory, parecido a ele, a quem ela amava senão a este homem que estava com ela quase desde que tinha memória.
Como sempre, levava. a metade inferior do rosto coberta. Nos sonhos de Kady, os olhos eram tão expressivos que ela o entendia sem que tivesse que pronunciar as palavras. Mas agora não entendia o que tratava de comunicar-lhe. Estava frente a ela, e dava a impressão de que podia tocá-lo, mas quando de maneira instintiva estendeu a mão pára fazê-lo, a distância entre ambos aumentou até deixá-lo fora de seu alcance.Tinha a olhada triste, como se tivesse medo de estar vendo o fim de algo, como se temesse perder a Kady. Esta não vacilou ao dar um passo para ele, como sempre, desejando ir com ele, estar com ele. Mas a distância recresceu.
-Como posso chegar a ti? -sussurrou, e viu que o homem levantava uma mão como convidando-a-. Estaremos juntos alguma vez? -lhe perguntou, estendendo a mão, tratando de atingí-lo. Terá um tempo para nós? O homem escuro não contestou, mas lhe sorriu com os olhos, e neles tinha tanto amor que Kady conteve o alento e, quando tratou de sorrir-lhe a sua vez, se lhe ficou na garganta. O que mais queria era saltar sobre esse cavalo e ir-se cavalgando com ele a onde fosse.
Mas Cole a deteve. Dando uma zancada, atrapou-a em seus braços e a apartou da entrada.A abertura na rocha desapareceu com a mesma velocidade com que se tinha movido Cole.
Num momento tinha uma entrada para que Kady regressasse a seu tempo e, ao seguinte, só tinha rocha sólida.Ao princípio, não pôde crer o que tinha passado.-Não -murmurou, tratando de soltar-se de Cole, mas ele a retinha com força.-¡Não, não, não! -gritou, e começou a golpeá-lo no peito com os punhos-. Não quero ficar-me aqui. Quero voltar a meu tempo. Tu... -gritou.Começou a lançar-lhe uma série de improperios que Cole jamais tinha ouvido pronunciar a uma mulher. Pela expressão de seu rosto, via-se que não conhecia alguns dos termos.Cole afrouxou o abraço.-Kady - sinto, não queria...
Apartando-o de um empurrão, acercou-se à rocha e passou as mãos sobre a superfície dura, impenetrável. Se abriria só a certas horas do dia? Ou só em certos dias? Qual era a clave para voltar a abrir a rocha?
-Olha, Kady -disse Cole, com os olhos baixos, o semblante de alguém que está verdadeiramente arrependido do que fez. Sinto-o. O que passa é que não pude suportar que te marchasses.
-Ladeando a cabeça, olhou-a através das espessas pestanas-. Não podes culpar a um homem apaixonado, verdade?
-Se me amasses, me terias ajudado a fazer o que eu quero fazer. Cole Jordan, tu és uma pessoa muito egoísta.-Se te referes a que quero que fiques comigo, e que farei tudo o que esteja em meu poder para conservar a minha esposa junto a mim, então sim, sou egoísta. No que a ti se refere, señorita Long, posso ser o homem mais egoísta dos que estão vivos.-Crês que essa será a clave?-Que clave? -perguntou, confundido.
-Que estejas vivo. Pensas que sim fincasse um de tuas facas em teu pequeno coração egoísta talvez se abrisse à rocha e eu pudesse voltar a mim lar, ao homem que amo? Quase disse "Homens... "-Poderias tentá-lo -disse Cole, em bom tom.Kady levantou as mãos, em ademanes exasperado.
-E agora que vou fazer? -disse, mais para si mesma do que para ele.
-Viver para sempre feliz comigo? -sugeriu Cole, Kady o olhou.-Entendo. Queres voltar a tentá-lo amanhã? -Não me deixas mais alternativas. -Kady deu um passo para o cavalo e depois se voltou-. Quero que faças um voto solene, sagrado. Deve jurar-me que me ajudarás a chegar a minha casa.Os olhos de Cole se alumiaram.-Oh, sim, claro. Ajudarei-te a chegar a teu lar.Tinha acedido com demasiada facilidade:- Que te trazes entre mãos?
-Kady, minha encantadora esposa, é tarde, e deves de estar cansada. Que te parece dar um banho numa banheira de cobre e dormir num colchão de plumas, com lençóis brancos limpas?
Kady abriu a boca para dizer-lhe o que podia fazer com seus lençóis brancos limpas, mas os músculos doloridos ameaçavam com fazê-la arrepender-se de tais palavras, e só pôde dizer, com voz débil:- Com toalhas? -Te odeio -murmuro.
Cole riu.-Já vejo. Depois do qual a tomou em braços, arrojou-a sobre o arreio, montou depois dela e empreendeu a marcha por um caminho que Kady não tinha visto jamais.E conquanto estava furiosa com ele, enquanto baixavam lhe perguntou:- O veste? -Como não lhe respondeu, agregou-: Na entrada, veste ao homem a cavalo?A expressão de Cole bastou para que Kady soubesse que não tinha visto a ninguém.Com um suspiro, voltou-se de novo para o caminho.
CAPÍTULO 12
Com inapetência, Kady acordou ouvindo vozes; mais concretamente, vozes de mulheres enfadadas. Por um momento, creu que ainda dormia porque se sentia envolvida num botão de indiferença.-Senhora Jordan -ouviu uma voz de homem-. Senhora Jordan vieram vê-la.Enquanto tentava sair do refúgio, advertiu que estava rodeada por um colchão de plumas de uma profundeza incrível, que a envolvia como se quisesse engulir-se. Ao arrojar dois travesseiros sobre a cabeça e comprovar que eram tão levianas que não faziam ruído ao cair ao solo, fez tudo o possível por incorporar-se. Mas não era nada fácil, pois com cada movimento se afundava mais nessa suavidade como de nuvem.
-Já vou -disse em voz alta ao que a chamava, quem quer que fosse.Sujeitou-se do custado da cabeceira de caoba profusamente talhada e se levantou. Mas, inclusive sentada, como só media pouco mais de um metro e meio, quase não podia olhar acima do acolchoado, que devia de ter uma espessura de quase um metro:
- Devem de ter dado sua vida quando menos uma espécie inteira de gansos para fazer esta cama -farfulló, e olhou ao redor, para ver quem lhe falava.Aí estava, de pé, um ancião de rosto enrugado pelos anos e a intempérie, que observava a Kady com os olhos chuviscando, divertidos.
-Si? -disse Kady-. De que se trata? Entre as duas perguntas, golpeou com o punho o acolchoado, que se inflava como massa de pão levando num forno quente.O velho riu, vendo-a lutar com as plumas endemoninhadas.-As damas do povo vieram falar-lhe do garoto.-O...? -O esforço de falar tinha feito que Kady se deslizasse dentro do colchão, de maneira que teve que se endereçar e tentar recuperar a dignidade. Em verdade, não recordava muito da noite anterior.
Cole lhe tinha prometido um banho e uma cama, e recordava vagamente a água morna, e ter caído nesse macio colchão - O garoto? -perguntou.-Cole Jordan -respondeu o homem - Você é a senhora Jordan?
-Sim, suponho que sim -disse, sorrindo pelo modo em que o homem chamava a Cole "o garoto"- E suponho que você será Manuel.
Deu ao inflado acolchoado um par de golpes fortes com os punhos e passeou a vista pelo dormitório. Essa não era a casa de um homem pobre. Esse quarto somente era tão grande como todo seu apartamento, e o pesado mobiliário de caoba deveu de ter custado uma fortuna.
As paredes estavam forradas de damasco azul claro que, salvo que Kady se equivocasse, era de seda, e sobre o toucador tinha um espelho emoldurado que parecia digno da Opera de Paris.No instante em que Kady abria a boca tratando de responder a Manuel, a porta que tinha depois dele se encheu de mulheres que tagarelavam e que se tironeaban e empurravam para ser as primeiras em entrar no quarto.
Ainda que estavam falando-lhe, por um momento não pôde ouví-las, porque estava contemplando as roupas. Por provir de uma época em que, ao que parece, as mulheres não usavam mais do que negro, e o único enfeite consistia em colares e brincos de bom gosto, estas mulheres resultavam deslumbrantes. Tinham franjas nos vestidos, galões resplandecientes, botões de pedras brilhantes, chapéus com plumas que se lhes encrespavam sobre as caras; tinha telas escocesas, estampadas e lisas das cores mais insólitas.
Kady piscava, sem poder tirar-lhes a vista de em cima às cinco.-E cremos que tinha que saber com que classe de homem está casada -concluiu uma das mulheres.Kady compreendeu que se tinha perdido todo o discurso, e o lamentou, porque lhe teria agradado saber que classe de homem era Cole Jordan.
-Me parece que estou um pouco desorientada -disse-Talvez pudessem começar de novo, e contar-me tudo em detalhe.As mulheres, todas jovens e atraentes, um par delas formosas, sorriram-lhe, levantaram as longas e pesadas saias e se encaramaron à cama com ela. O efeito foi levantá-la um pouco mais, mas as plumas absorveram o peso agregado, e cedo o colchão e o cobertor reptaban sobre as saias de vivas cores.
-Seria conveniente que nos apresentássemos. Sou Martha -disse a mais bonita, tendendo-lhe a Kady a mão enfundada numa luva de pele de cabra, para que lhe estreitasse a ponta dos dedos, Kady tratou de não pensar no estranho que era receber convidados na cama, mas estas jovens não pareciam tomá-lo a mau.
As outras se apresentaram como Mable, Margaret, Myrtle e Mavis. No terceiro M, Kady já estava perdida.-Pensamos que é nosso dever cristão falar-lhe do homem com o que se casou -disse Martha, fazendo sorrir a Kady.
Diriam-lhe que Cole Jordan era mentiroso e manipulador? Já o sabia. Também sabia cuán encantador podia ser, e cuán doce, e.
-Jamais crerá o que obrigou a todo o povo a fazer-lhe a você -disse M Três, atraindo o atendimento de Kady.Como as cinco M falavam ao mesmo tempo, demorou quase uma hora em conhecer a história completa; finalmente entrou Manuel com café e umas extraordinárias sopaipillas chorreantes de mel. Sentada na cama, Kady comia e escutava, cada vez mais enfadada e desagradada. Ao que parece, Lenda, povo de Colorado, não era, em realidade, um povo mineiro; era um povoado que pertencia a um só homem, e esse era Cole Jordan. Era dono de todas as minas, todas as lojas, de cada centímetro de terra. E todos os habitantes do povo trabalhavam para Cole ou, segundo as M, eram "escravos obrigados".-Todo lhe obedecer-nos, pois, se não o fazemos, joga-nos.-Meu pai dirigiu a Reeves Mercantile durante dez anos, mas não possui um cêntimo dela -disse M Dois-Cole é dono de tudo. De tudo. De maneira que já entende por que tivemos que lhe fazer o que lhe fizemos.
O que lhe fizeram, sob ordens de Cole, foi negar-se lhe dar trabalho ou comida sequer, naqueles dois dias horríveis em que passou procurando qualquer das duas coisas. Voltando a evocá-lo, recordou que Cole lhes tinha dado algo a uns meninos que jogavam a um lado do caminho.
Sem dúvida, devia de ter-lhes dado umas moedas para que corressem por todo o povo e lhes dissessem a todos que qualquer que alimentasse ou ajudasse a Kady de qualquer forma seria jogado do povo.-E o fez enquanto organizava o casamento dele, de vocês. Fez decorar toda a igreja e obrigou a todos os membros do coro a apresentar-se para cantar em seu casamento. Esse dia, a mãe de Betty estava enferma, mas sabia que não lhe convinha contradizer a Cole, porque cada bocado que come a família depende dele.
-Lhe tendeu a você uma armadilha para casar-se com você -disse M Uno, levando-se o lenço aos olhos-. E odiamos ver a alguém de nosso sexo tão maltratado por um homem como Cole Jordan.
-Sabe como é, em realidade, o homem com o que se casou? -disse Martha, a única à que Kady podia atribuir um nome completo.
-Creio que não sei quase nada dele -respondeu-. Quiçá vocês possam informar-me de algo mais. Poderiam dizer-me por que alguém tratava de enforcá-lo.
-Ah, isso -disse M Quatro -A metade do país quer assassinar a Cole. Não quer vender-lhe nada a ninguém, Quanto decide que algo lhe pertence, conserva-o, sem importar-lhe o que tenha que fazer, incluso conservar o dinheiro. Mas se agora mesmo, com os quase trinta milhões que tem... Se sente bem? -lhe perguntou a Kady, ao ver que quase se afogava com um bocado de sopaipilla.
-Trinta milhões de que? -perguntou Kady quando se recuperou.-Dólares, por suposto. A maior parte, em ouro e prata. Talvez não escutou? Possuem três minas de prata muito lucrativas, mais todos os negócios do povo; por isso a gente trata de tirar-lhe esse dinheiro. Como não quer vender-lhes nada, sentem-se tão frustrados que, em compensação, decidem matá-lo.
-Entendo o raciocínio -disse Kady. E por que não contrata guarda-costas, homens armados que o protejam? -A afirmação fez que as mulheres se jogassem atrás, como se tivesse dito algo escandaloso-.Disse algo mau?Um segundo lhe bastou a Kady para compreender que só se tinham jogado atrás para encher os pulmões de oxigênio e poder seguir com a seguidilla de frases descritivas de Cole.
-¡Proteção Cole Jordan? -se horrorizaram, e procederam a contar-lhe os que Kady já tinha visto.Cole levava em cima tantas facas escondidas em cada prenda que uma vez tinha passado junto a uns meninos que jogavam com imans, e os imans tinham voado das mãos dos meninos e se tinham colado a seu corpo, -Viu você o chicote que leva às costas? -perguntou M Dois-. Conquanto não comunga com as armas de fogo, compensa-o com as outras armas.
-Pensar que o cri um menino cantor -musito Kady, fazendo rir às visitantes.Mas o modo em que riam a fez olhá-las, pensativa. Por que tinham ido contar-lhe isso? Se era verdade que tudo o que tinham, no presente, era propriedade de Cole, por que arriscar-se a sofrer sua ira? Olhou-as aos olhos.
-Quantas de vocês tentaram casar-se com ele?M Três não titubeou:- Todas, desde depois. Que mulher jovem não tentaria conquistar a um homem bonito, que vale trinta milhões de dólares? As cinco, sentadas na cama, olharam a Kady como se esperassem que lhes contestasse a pergunta, mas a ela não se lhe ocorreu nenhuma resposta.Martha sorriu.
-Já vejo que a surpreendemos. Faz dois anos, as cinco perseguiam a Cole com tal vigor que nos odiávamos entre nós. ¡E ele, esse canalha, jogava a pôr-nos umas na contramão de outras! A cada uma lhe dizia o que tinha feito a outra para conquistá-lo, de modo que essa tentasse superá-la. Vestíamo-nos para Cole, cozinhávamos para ele, imaginávamos maneiras de entretê-lo. ¡Nossa vida era um inferno!-¡Martha! -disse M Três, escandalizada pela linguagem, mas as outras assentiram, com ar grave.
-Foi minha mãe -disse M Quatro - a que nos fez uma triquiñuela para que nos reuníssemos as cinco porque, como imaginará, para então éramos inimigas declaradas, e nos ajudou a ver que estávamos fazendo o papel de tontas por um homem fatal.
Cole não tinha intenções de casar-se com nenhuma de nós.-Sim, era demasiado feliz para casar-se com alguma de nós, porque isso teria feito que deixássemos de cortejá-lo. Nunca se pode fazer mudar a um homem feliz.
-Eu... Suponho que não -disse Kady, a quem jamais se lhe tinha ocorrido M Dois se inclinou fazia diante, muito séria.
-Que fez você para obrigá-lo a fazer semelhante esforço para que se casasse com você?Kady não o sabia bem.
-Me pediu que me casasse com ele, e o recusei. Disse-lhe que ia casar-me com outro.-¡Ahhh! -disseram ao uníssono, e olharam a Kady como se a cressem uma estrategista brilhante.-Não, vocês não o entendem. Eu não quero casar-me com ele. Ao menos, não queria, e, efetivamente, amo a outro homem."Ou quiçá a dois", pensou, mas não o disse.
-Se é alguém que vive neste povoado, Cole o despedirá e o jogará do povo.-Não, o homem que amoo vive em Virginia."E em meus sonhos."
Ao ouví-la, as mulheres se olharam entre si, e depois outra vez a Kady, como lhe perguntando: Então "que está fazendo em Colorado?" -Olhem -disse Kady - Posso resolver isto. Conhecem a alguém que saiba onde estão as rochas talhadas? O desenho é algo assim -disse, usando um pedaço de pão para desenhar um alce no mel do prato.Como as mulheres -não disseram nada, Kady alçou a vista e viu que não tinham olhado sequer o prato.
-Que passa? -disse, em voz tênue.Martha olhou às outras enquanto falava.-Conviria que o saiba, senhora Jordan...-Kady, por favor.-Kady...-Martha inalou uma profunda baforada de ar-, Cole saiu esta manhã temporão, e se foi por uns dias, só o céu sabe aonde, pois há vezes em que se faz o misterioso, e deixou dito que você não pode ir-se do povo.Kady sentiu que o coração começava a golpear-lhe.
-Não quero ir-me do povo; só quero sair a passear, isso é tudo. Ontem vi essas rochas, e me pareceu que poderia ser um lugar agradável para um picnic. Poderíamos ir todas.M Três moveu a cabeça.
-Cole disse que não. Você não deve ir-se do rancho. Pôs guardas em todo o perímetro do rancho, para que não possa sair.-E também se levou o cavalo.-Pode fazer vir a qualquer do povo a vê-la, mas não pode ir a Lenda sequer.-Tem medo de que roube um cavalo e vá cavalgando montanha abaixo, até Denver.Kady não compreendia o que estava ouvindo.
-Talvez estão dizendo-me que sou uma prisioneira?-Exato.-Não séria, mas prisioneira se estivesse depois das grades.Kady ficou piscando uns instantes.
-Um momento, isto segue sendo Estados Unidos, não? Não sou uma delinquente, e ele não tem direito a reter-me prisioneira. Sou uma pessoa livre, e.
-É sufragista? -perguntou M Três.-Sou um ser humano, com todos os direitos e privilégios que isso significa.-Em Virginia, pode ser, mas aqui em Lenda, não. Aqui está você submetida, como todos nós.-Ah, sim?-disse Kady, alçando uma sobrancelha-. Já veremos. Penso que Cole tem estado tratando com mulheres que não conhecem os truques que eu sei. Vocês cinco me ajudariam?As mulheres se olharam entre si, e depois a Kady.-Não -disse Martha - O sentimos muito, mas temos demasiado que perder. Nossos pais nos matariam se perdessem seus empregos.-Mas somos irmãs -disse Kady, e até a ela lhe soou estúpido.
Não conhecia a essas mulheres; por que, então, iam-se a arriscar por ela?-Então o farei só -disse, com toda a força que pôde reunir-. Sairei de aqui, já o verão.As cinco mulheres ficaram sentadas sobre a cama, olhando-a com compaixão. Suas caras lhe diziam a Kady que cedo descobriria o que já sabia.Dois dias, pensou Kady, com os punhos apertados aos lados.
Dois dias sem fazer absolutamente nada. Um dia mais assim, e estava segura de que se voltaria louca.Essa manhã, depois de que as cinco M se marcharam, Kady estava tão extravasada de indignação que tinha resolvido encontrar os petroglifos e, sair desse período para sempre. O único que queria no mundo era regressar a Virginia e A Gregory.
Mas, depois de um dia e meio de tratar de escapar, tinha fracassado tão estrondosamente como quando tentasse conseguir trabalho em Lenda. Desde depois devia reconhecer que quando Cole dava uma ordem e obedeciam. Depois da partida das M, encontrou no toucador uma nota na que Cole lhe dizia que o lamentava muito, mas que tinha tido que se marchar e que não voltaria a vê-la até dez dias depois. Não fazia intenção de sua prisão durante esse período, e também não tinha a cortesia de explicar-lhe aonde se tinha ido e por que.
Durante todo o primeiro dia, Kady tinha tentado escapar, mas, a dizer verdade, aonde podia ir? As pessoas às que lhe perguntava pelas pedras talhadas a olhavam com expressão perplexa, de maneira que, ainda que conseguisse roubar um cavalo e montá-lo, não saberia aonde ir. A última noite se tinha sentido tão frustrada que lhe escreveu à avó de Cole, rogando-lhe que fosse a Lenda para ajudá-la a escapar.
Nesse momento, a tarde do segundo dia, Kady se sentava à escrivaninha do que devia de ser o escritório de Cole, e se perguntou: "Por que a mim?" Por que ela tinha sido a eleita para essa absurda confusão de tempos? Para começar, Kady não estava feita da matéria das heroínas. Não tinha em sua vida grandes tragédias que precisassem reparação e, quanto a isso, também não na de Cole. Então por que estava ela ali?Ao redor da uma desse dia, deixou de lutar. Já tinha suplicado ajuda a cada pessoa que via no rancho, e todos a olhavam como se estivesse louca. Como era possível que se queixasse, sendo a senhora de tantas propriedades? E Kady tinha que admitir que Cole era dono de muitas coisas.
A casa se erigia no terreno mais belo do que ela tivesse visto, e a casa mesma era tão formosa que tirava o alento. Devia de ter umas vinte habitações, cada uma delas mobiliada a todo luxo, num estilo acolhedor e cômodo. Era da casa que Kady sempre tinha sonhado e nunca soube como adquirir.
Seu quarto favorito, a cozinha, era um sonho: uma enorme cozinha com fogo de lenha, uma gigantesca mesa de trabalho de carvalho, quatro fornos empotrados nas paredes de tijolo, e um armário o bastante grande para conter um armazém de víveres. Lamentavelmente os utensílios de cozinha consistiam em quatro peças de ferro fundido, muito grasientas, e umas colheres de madeira.
-Se as coisas fossem diferentes -murmurou Kady, sentada na biblioteca escritório, rabiscando num papel com um lápis gordo.Evocando tempos passados, recordou como tinha feito para dar começo ao cultivo de fermento na choupana, e que tinha pensado em fazer escabeches e confituras.
"Kady é uma moça muito colaboradora." Ressoou em sua mente a frase que lhe tinha ouvido dizer milhares de vezes à mãe de Jane. Quando ela era menina, sua mãe tinha tido que trabalhar em dois empregos, e quando os pais de Jane lhe ofereceram cuidar da filha, aceitou sem vacilar. Nunca soube que a família de Jane não tinha tratado a Kady muito melhor do que a uma criada sem salário.Que foi o que tinha dita Cole?:-Não tens que ser a melhor menina do mundo. Não tens que ser perfeita. Não tens que fazer nada para assegurar-te de que a gente te ame. Eu te amo tal como és.
-Tal como és -repetiu Kady em voz alta. Ser aceite tal como um é, não é uma espécie de liberdade? No fundo, sabia que Cole lhe tinha dito a verdade. Podia ficar-se nessa formosa casa os próximos oito dias ou oito anos, o mesmo dava, e não fazer absolutamente nada, se não queria, e ele estaria igual de comprazido.
Conquanto não estava segura de como o sabia, estava segura de que com Cole não tinha que ganhar seu amor. Não tinha que limpar quartos balneares, como tinha feito para a mãe de Jane, não tinha que cozinhar sem gastar demasiado, como exigia a senhora Norman. Não tinha que manter a boca fechada sequer e não se queixar, como teve que fazer com sua própria mãe.
-Posso fazer o que se me antoje -disse, levantando a vista e fincando-a ante si, nos estantes cheios de volumes encuadernados de couro. Inesperadamente, empurrou a cadeira para trás e se pôs de pé - Quiçá não possa ir-me de aqui, mas posso trazer qualquer coisa que o Colorado de 1873 tenha para oferecer-me. -De pé ante a janela, contemplando a paisagem de montanhas e vales, murmurou-: Que é o que quero mais do que nada no mundo, pois?
Enquanto olhava pela janela, pensou em sua película preferida: O banquete de Babette. A protagonista era uma grande chef que, por razões políticas, tinha que se ocultar numa aldeia remota, com duas irmãs pobres. Quando herdou um pouco de dinheiro, bastante para permitir-lhe deixar o emprego, em vez de ser "sensata", gastou até o último centavo em ingredientes para preparar um banquete como ninguém tinha comido até então.
Kady tinha a fita de vídeo da película, e a tinha visto centos de vezes. Cada vez que a via, sua imaginação se extravasava pensando em como séria cozinhar sem restrições de dinheiro, nem a obrigação de "comprazer ao público".
"Primeiro teria que fazer um inventário -pensou - Teria que ver que há aqui e daí pode comprar. Não poderei ir a Denver, mas posso mandar a outros. Depois farei cavar valas, construir fornos ao ar livre e começar a encurtir verduras. Precisarei ajuda para recolher cogumelos, verduras de folha e ervas. E precisarei... "Ao mesmo tempo em que pensava isto último, já estava na escrivaninha fazendo notas.-Convidarei a todo o povo -disse em voz alta-. Durante três dias, comerão a expensas de Cole.
-Mordeu a ponta do lápis-. Se vocês o comem, eu o cozinharei -escreveu-. Não prepararei nada formoso nem que esteja em perigo -escreveu - Nada de tartarugas, mapaches nem pumas. ¡E nenhum inseto!Levando consigo o caderno, saiu da biblioteca rumo à cozinha. E à medida que sua mente voava, seus pés corriam, e entrou na cozinha como uma tromba. Manuel e Dolores, a esposa, cortava verduras com parcimônia, para as enchiladas do jantar.
-Vocês sabem onde posso contratar pessoas que conheçam as montanhas e possam recolher cogumelos para meu? E que possam ajudar-me a carnear e limpar pescados?Manuel e sua esposa se olharam entre si, e o homem disse:- Em nosso povo de Socorro pode encontrar pessoas assim.
-Quanta gente vive ali?-Trinta e seis pessoas.Kady sorriu:- Poderei contratá-los a todos?Manuel ficou mudo, mas Dolores falou:
-Para que? Ninguém matará ao senhor Jordan por você.-Juan poderia fazê-lo -disse Manuel, com tom prático.-É isso o que quer? -perguntou Dolores, olhando a Kady com intensidade.Kady piscou, sopesando a possibilidade, e depois sacudiu a cabeça:
-Não, não quero matar a Cole ainda que se o mereça. Quero dar um banquete. Um banquete como ninguém sonhou. Quero experimentar. Quero criar novas receitas e, chegado o caso, escrever um livro de cozinha, Quero provar todos os pratos que vi, e inteirar-me de que sabor tem. Quero envolver pescado em papel, sal, barro e folhas molhadas. Quero marinar carne em ervas que ninguém tenha utilizado ainda. Quero cometer erros e ter alguns triunfos. Quero... Quero.
Sorriu, olhando aos dois anciãos, de rostos inescrutáveis Quero liberdade.Viu que Manuel não entendia isso, e que estava ponto de dizer-lhe que não podia abandonar o rancho.-Quero gastar o dinheiro de Cole. Muito. Ajudarão-me vocês?-Com gosto -disse Manuel, rindo.-Muito bem; então vingam comigo e comecemos a traçar planos. Ah, e mandem a alguém a procurar aos habitantes de Socorro. Digam-lhes que lhes pagarei a todos dez dólares a hora.
Ao ouví-la, Manuel sujeitou a sua esposa para que não se desmaiasse. Ainda que Kady não estava segura, deduziu que o salário médio de 1873 devia de ser como de um dólar por semana, de modo que dez dólares a hora era uma cifra maior do que eles podiam compreender.
-E os meninos? -perguntou Dolores, sem alento, sustentada pelos braços do marido.
-Tragam-nos também, e lhes pagarei como provadores. Encantaria-me escrever um livro de cozinha para pequenos. Vamos, estamos perdendo tempo.Em estado de comoção, Manuel e a esposa seguiram a Kady à biblioteca.
CAPÍTULO 13
Quando entrou a cavalo em Lenda, no Estado de Colorado, convenceu-se de que, em decorrência dos dez dias que estivesse ausente, tinha-se convertido num povo fantasma. O primeiro que se lhe ocorreu foi que tinha regressado a banda de Harwood e matado a todos, mas, se isso tivesse sucedido, teria tido evidências de semelhante açougue.
Quando olhou pelas janelas do hotel e não viu a ninguém, pensou que quiçá todos tinham passado através da rocha junto com Kady. Mas isso não era possível, porque ele tinha dado ordens, e sabia que ninguém se teria atrevido a desobedecer.Se não era a violência, então tinha sido a varíola a que os tinha varrido a todos. Ou quiçá...Não se lhe ocorreu que outra coisa poderia ter-lhes passado a todos, e a estranha sensação que lhe causava o povo vazio estava pondo-o nervoso. Algo horrível tinha sucedido; tinha que ser assim. No entanto, não via signos de desastre: nem casas incendiadas, ninguém vagando por aí com expressão trágica.
Singelamente, o povo estava abandonado, e não tinha rastos que lhe indicassem que lhe tinha passado a todo mundo.
-Há alguém aqui? -gritou, mas sua voz retumbou nos edifícios vazios e voltou a ele.Desmontou, atou o cavalo e entrou na loja do povo, onde sua impressão se fez mais forte ainda. Os dois terços das prateleiras estavam vazias. Ficavam roupas penduradas dos cabideiros, e botas para vender, como sempre, mas à parte de armazém da loja estava completamente limpa, - não ficava nem um bote. Inclusive tinham desaparecido as batas "mistério", essas que tinham caído ao rio e se lhes despegaram as etiquetas.
Nem sequer ficavam barris de bolachas e de escabeches por trás do balcão.Cole voltou a sair e jogou a andar. A lavandaria estava vazia, nos cadeirões da barbearia não tinha clientes; frente ao depósito de ônus tinha uma carreta carregada com mineral, mas não tinha cavalos enganchados nela nem um motorista no assinto.
Quanto mais via, mais ansioso se punha, e jogou a correr. No estábulo não tinha cavalos; a pensão estava vazia. Não tinha ninguém no escritório do jornal nem na de telégrafos. Na heladería não tinha gente, nem nada para comer. Na fábrica de gelo, no fundo, não tinha leite nem nata; mais ainda, não tinha gelo.Correu passando a Linha Jordan, até Paradise Lane, mas viu que a igreja e a biblioteca estavam tão vazias como o resto do povo.
-Kady -sussurrou, sentindo que o medo se apoderava dele.Fora o que fosse o que lhe tinha passado à gente do povo, também lhe tinha passado a Kady. Voltou-se de repente e começou a correr pela rua, para onde tinha deixado o cavalo. ¡Tinha que salvar a Kady!Estava tão cego de pânico que não viu a Ned Wallace e chocou com ele, de tal modo que caíram os dois, o barrilete de cerveja que Ned levava ao ombro se despedaçou e seu conteúdo se derramou sobre a calçada.
-¡Olha o que fizeste! -lhe gritou Ned-. Kady a precisava, e agora que vou dizer-lhe? ¡Maldição! Creio que não há mais barris cheios.Cole se tinha golpeado com força contra o poste de atar os cavalos, e somado às diversas feridas que tinha sofrido os últimos dias, levou-lhe um tempo recuperar a consciência. Para quando se lhe aclarou a cabeça, Ned vai tinha voltado a entrar na taberna.Cole abriu com brusquedad as portas de vaivém, mas não viu a Ned por nenhum lado.
-Que diabos está passando? -bramou.Não recebeu resposta, ainda que ouviu ruídos no fundo.No fundo do salão tinha um quarto que, pelo geral, estava cheio de garrafas e barris, mas agora estavam todos os estantes vazios. Estava aberta uma portinhola que ele ignorava que existisse, e no fundo viu luz. Sem perder tempo, baixou pela escada e viu a Ned arrojando gavetas vazias arredor, cada vez mais irritado.
-Esse era o último -disse Ned, encolerizado-. E agora que vai fazer Kady? Hoje é dia de massa, e ela queria fazer um molho com cerveja e creme. Como diabos vai fazê-la agora?Deixou de vociferar para olhar a Cole com expressão furiosa, como se tivesse cometido um pecado imperdoável-Suponho que terei que se dizer eu -disse Ned, desagradado, e passou junto a Cole para a escada.Cole, demasiado desconcertado para mover-se, fincou a vista na escada.-Que diabos é "massa"? -disse pelo baixo.Recolheu o lustre que Ned tinha deixado e subiu a escada.Atrapou a Ned no preciso momento em que saía pela porta do fundo do salão.- Wallace, por Deus; se não me dizes o que está passando, te...
-Me que? -repôs Ned, feroz - ¡Me farás perder meu dia de massa! Hoje a mesquita esta pronta, e eu somos responsáveis de acaramelar as violetas, e Juan dizem que é minha tarefa a segunda lavagem dos brioches, e. Interrompeu-se, porque Cole o tinha achatado contra a parede e lhe apoiava uma faca na garganta.
-Não irás a nenhuma parte. Vais sentar-te e me contarás tudo. Entendes-me? Se quer rever a esse tal Massa, terás que fazer o que eu te diga.
Ned olhou a Cole com incomodo e murmurou algo em relação com que a massa não era uma pessoa e que, sem dúvida, Cole não era capaz de distinguir a massa bomba da de strudel, mas voltou à taberna vazia e se sintou. Sacou um grande relógio do bolso e o abriu sobre a mesa.-Dez minutos, é o tempo todo que eu posso perder.
-Podes perder o tempo todo que seja necessário. Quero saber tudo o que está passando e, para começar, me dirás onde estão todos.Ned fez ademanes de levantar-se.-Por que não vamos ao Local de Kady, e o vê com teus próprios olhos? Assim não me farás perder mais tempo.Cole teve que contar até dez antes de contestar:- E onde está esse Local de Kady?-No Rancho Jordan, sabe? É...
-Se interrompeu ao advertir pela primeira vez com quem estava falando. Sintou-se de novo e deu um longo suspiro. Nos dias que tens estado ausente sucederam algumas coisas.
-O soube uns dois minutos depois de ter entrado no povo, sabes? Então, por que não me contas que é o que sucedeu? Em opinião de Cole, se Kady estava em perigo, ele precisava saber de que natureza era esse perigo para poder salvá-la. Desde que tinha chegado ao povoado, preparou-se para qualquer coisa, já fosse um desastre natural, doenças, massacres ou inclusive a repetição das pragas de Egito. Para o que não estava preparado era para a história que começou a relatar-lhe Ned Wallace.
Sem muitas vontades ao princípio, e depois cada vez com mais agrado vendo o semblante de Cole, os olhos que se engrandeciam, a mandíbula que caía mais a cada palavra que Ned pronunciava.Não era muito bom narrador, porque começava ao meio do relato, ia numa direção, depois retrocedia e avançava em outra. Como se tratasse de desenhar uma aranha, pensou Cole, enquanto tentava ordenar o que Ned lhe contava.Pelo visto, Kady tinha decidido manter-se ocupada em ausência de seu esposo, cozinhando para todo o povo.
Ao princípio, quando Cole o ouviu, sorriu com indulgência, mas à medida que se desenvolvia a história ia deixando de agradar-lhe.-A quem beijou? -perguntou.
-A Howie Alento de Porco -disse Ned, que a essas alturas tinha acendido o cachimbo e lhe dava fundas chupadas.Cole estava atônita.-¡Mas ele tinha oferecido duzentos dólares a qualquer das garotas de lhes que o beijasse, e nenhuma delas o fez! Sabe-se que o alento desse homem é capaz de tombar a um cavalo.
-A Kady não lhe molestou, nem também não quando ele apartou a lona da carreta e ela viu as panelas e as sertãs.
Segundo o relato, três dias depois da partida de Cole, Kady tinha contratado a quatro carreteiros com suas carretas para que fossem a Denver a comprar elementos de cozinha.
-Coisas das que ninguém ouviu falar -disse Ned, como se Kady tivesse comprado ingredientes para o brebaje de uma bruxa-. Agora todos sabemos o que são, pausa, para cerciorarse de que contava com o atendimento de Cole- Queria coisas tais como semolín, azeite de oliva e anís despedaçado.Cole se acercou mais a Ned, com os olhos entrecerrados.
-Estás afirmando que minha esposa a beijado a Howie Alento de Porco?
-Agora chego a isso, não me apresses, -Ned deu outra longa chupada ao cachimbo: ter a seu graças ao dono do povo era um sonho feito realidade-. Kady ordenou aos carreteiros que lhe levassem toda classe de alimentos dos que jamais tivessem ouvido falar. Disse-lhes do que se viam a uma família italiana, chinesa, ou de qualquer outra cor ou religião, o que fosse, deviam pagar preços mais altos por...-Por que muito altos? -o interrompeu.-Disse que, se compartilhavas a riqueza com outras pessoas em lugar de guardá-la, contribuías à economia nacional -disse Ned, com os olhos brilhantes.-Segue -disse Cole, solene.
-Kady disse que os motoristas tinham que comprar qualquer alimento que lhes soasse estranho, qualquer coisa que não tivessem ouvido mencionar. Ademais, a cada um lhe deu uma pronta das coisas que queria em quantidade, como azeite de oliva e enorme barris de farinha. Sabes que a farinha integral, à que não se lhe tirou a casca, é melhor para as pessoas do que a branca?Cole o olhou, carrancudo.
-Está bem, tem paciência, queres? Kady encarregou a Alento de Porco a tarefa de encontrar uma baterista de cozinha em boas condições, ¡e deverias vê-lo! Alguns de nós quisemos advertir-lhe que não confiasse em Alento, mas não nos fez caso. Pôs-lhe na mão um saco com ouro e lhe disse que dependia dele. Cremos que Alento ia desaparecer e estávamos seguros de que nunca mais voltaríamos a vê-lo.Ned deu outra longa chupada.
-Mas nos enganou a todos. Chegou ao dia seguinte, com uma história incrível. Ao que parece, um homem de Denver decidiu que queria abrir um restaurante francês, contratou a três chefs diretamente em Paris, e eles chegaram com caixas cheias de panelas de cobre, -Olhou a Cole com gravidade-. O cobre conduz o calor mais rápido e regular do que qualquer outro metal, exceto a prata. O sabias?
-Segue -disse Cole, sem humor.-Chegaram os chefs com toda sua equipe (Kady o chama batterie de cuisine), mas dois dias depois os cozinheiros desertaram para ir procurar metais preciosos, deixando todos os cacharros. Alento os comprou todos, e quando apareceu no rancho com uma carreta carregada de sertãs e moldes e fonte de gratinar, Kady estava tão entusiasmada que o beijou. Na boca.
Ned esperou a reação de Cole ao que, em sua opinião, era uma história maravilhosa, mas Cole não deu sinais de tê-lo ouvido.
-Quem é Juan? -foi o único que perguntou.-Barela -disse Ned, em tom de falsa inocência-. Tens que o ter ouvido nomear.Por um momento, Cole não atinó a outra coisa que a piscar; depois, levantou-se, e constatou que estivessem em seu lugar todas as facas que levava em cima. Juan Barela era um assassino, tão capaz de matar a um homem como de olhá-lo. Ninguém podia saber de quanta violência era responsável, e também não tinha ninguém o bastante tonto para ir a Socorro a pesquisar, pese à grande recompensa que tinha pela cabeça do homem.Ned tomou a Cole do braço e o fez sentar-se de novo.
-Não tens por que te preocupar: Kady o tem comendo de sua mão. É a pura verdade. Juan é o que dirige todo o espetáculo, mantém a ordem entre os trabalhadores e a gente que vai comer. E está fazendo um trabalho estupendo, porque só teve que lhes disparar a um par de pessoas.
-Disparar... -disse Cole, e começou a levantar-se.-Só se trata do velho Lindstrum -aclarou Ned, fazendo sentar a Cole.
De todos os que conheciam a Lindstrum, não tinha ninguém que não quisesse matá-lo. Se um anjo do céu se acercasse a Lindstrum, ele teria um pouco de que se queixar.-Como Lindstrum não queria comer salada de verduras verdes e dizia que não eram mais do que malezas, Juan lhe disparou. Só o magoou um pouco no antebraço; depois Dolores lhe envolveu o braço num lenço, e Lindstrum comeu suas verduras.
-Entendo -disse Cole - Que opinou minha esposa de que lhe tivessem disparado a um homem por não comer a salada?
-Kady lhe disse a Juan que não o fizesse mais mas do que, a julgar pelos dentes do tipo, alguém teria que o ter obrigado a comer verduras muito tempo atrás. Ela e Juan são grandes amigos.A voz de Cole foi muito baixa:
-Minha esposa é amiga de um dos assassinos mais famosos do país? Do homem que impõe o medo nos corações de todos os que o ouvem mencionar?
-Kady assegura que Juan só trata de manter a todo o povo de Socorro, e a seus filhos. Que seus métodos são maus, mas seus motivos bons. -Ned fez uma pausa e em seu rosto apareceu um sorriso sonhador-. Não cabe dúvida de que Kady é uma maravilha. Aquele primeiro dia Juan baixou da montanha com os demais pobladores de Socorro. Nenhum de nós o tinha visto a ele, mas ele disse que estava disposto a recolher cogumelos se se pagavam dez dólares a hora, assim que...
-Que? -exclamou Cole - Dez dólares por uma hora?
-É o que Kady paga a tudo o que a ajuda -disse, tratando de ocultar um sorriso, e sem conseguí-lo. Fazia seis anos que tentava comprar-lhe a Cole a taberna, mas este não queria nem pensá-lo, nem também não formar uma sociedade-. Queres inteirar-te do de Juan ou não?-Sim, dime -resmungou Cole-. Mas espera um minuto, estás seguro de que não há whisky aqui? Em verdade preciso um trago.-Nem uma gota -respondeu Ned, alegre- Kady o precisa tudo. Bueno, com respeito a Juan. Apareceu (foi a primeira vez em dez anos que estava do lado da lei), e todos ficamos olhando-o porque era como ver a uma lenda. Devo dizer que é um tipo bonito. Kady diz que é um "pedaço de homem".-¡Segue! -explodiu Cole.
-Aquele dia, a população completa de Socorro baixou das montanhas, e como na traseira da carreta tinha um menino que era a viva imagem de Juan, Kady o felicitou por ter um filho tão guapo. Então um sujeito velho, com um nariz como uma batata, pôs-se a resmungar e disse que o menino era dele. Kady se desculpou, mas, depois de ter ajudado a baixar da carreta ao quinto menino idêntico a Juan, jogou-se a rir, olhou a Juan, e ele também riu.Cole se inclinou sobre a mesa.-Por que não te limitas aos fatos? Kady está bem?-Mais do que bem, diria eu. ¡Oh, senhor, essa mulher sim que sabe fazer trabalhar à gente! Fez-nos cavar valas e fabricar espetones, Pôs ao ferreiro a preparar massa bomba, e as garotas de Lhes têm estado esticando massa de strudel. Sabes como é essa coisa que há que esticar tão fina como para que se possa ler o jornal através dela, não? - Fez uma pausa para rir entre dentes - Não há coisa que essa garota não saiba cozinhar, sabes? Deu-lhes a uns caçadores uma pronta das coisas que não podiam caçar, como pumas, e essas coisas, assim que ao vício Ernie se lhe ocorreu a brilhante idéia de trazer-lhe um saco cheio de serpentes. Creu que seria uma boa brincadeira.-Permitiste que alguém lhe dessas serpentes a minha esposa? -disse Cole entre dentes.-Não te preocupes; Juan lhes arrancou as cabeças a tiros, logo Kady as limpou num periquete, marinó a carne em leite durante meio dia e depois a fritou. Estavam boas, se se me permite dizê-lo.-Comeste serpente?
Ned se jogou para diante, com o semblante muito sério:- Diabos, comi caracóis. -Depois de fazer uma pausa para que Cole tivesse tempo de assimilar suas palavras agregou-: Kady os mistura com alho e salsa silvestre, e não estão nada mal.
-Caracóis? -sussurrou.
-Se não os comias, Juan te disparava -arguyó Ned, em seu defesa-. Ademais, todos aprendemos a confiar em Kady. Terias que provar o que é capaz de fazer com uma pomba. As recheadas com arroz e depois as cozinham sobre carvão... Garson fez o carvão. Como seja, essas pombas ficam crocantes por fora, e com a carne tão terna que até Dão Sem Dentes pode comê-la.
Durante um longo momento, Cole guardou silêncio, olhando-se as mãos apertadas adiante de se.-Que mais? -pergunto com tom suave, e como Ned não lhe contestou, olhou-o - Que mais? -perguntou, em voz mais alta.-Bueno, no povo todos sabem como enganaste a Kady para que se casasse contigo. FÊ-LOS sentir-se muito mal recusá-la quando tinha fome, e por isso... Bueno, eles...-¡Vamos, disse!-Todos os homens lhe propuseram casal. Já sabes que é a garota mais guapa que veio nunca a este povo, e se quisesse abrir um restaurante, viriam pessoas de longe só para comer o que ela prepara, e, portanto não precisa teu dinheiro. Como seja, todos os homens lhe propuseram casal.
-E tu também? -perguntou Cole, com maldade.
-Eu fui um dos primeiros -disse Ned, com a mandíbula tensa, preparando-se para ouvir que estava despedido do emprego e que se fosse do povo.Mas Cole não disse nada. Deu-se a volta e olhou pela janela.-Não os culpo -disse, depois de um momento-. É formosa, e tem algo que faz sentir-se bem a um homem. Ela ignora a valiosa que é, sabes? E esse é um de seus maiores encantos.-Sim, todos o sabemos -rio Ned, entredientes-. Kady se considera gorda.Os dois se olharam, com os olhos acendidos de riso.
-Gorda -disse Cole, e rompeu a rir, pensando em tudo o que tinha feito Kady. Talvez teria tido que se enfadar de que tivesse alimentado a todo o povo a expensas dele, mas não podia conter o riso-. Alento de Porco? -disse, fazendo rir mais ainda a Ned.
-Estava seguro de que ia cair-se morto ali mesmo. ¡E deverias ter visto a Juan! Kady diz que tem a mão mais leviana para pastelaria do que ela tenha visto. Trata de convencê-lo de que abra uma padaria e faça algo chamado cruasants. Mais manteiga do que pão, mas são muito saborosos.Por um momento, Cole ficou olhando ao nada. Que lhe importava o dinheiro? Desde os assassinatos, tinha tido medo de gastar qualquer coisa. Era como se toda sua família tivesse morrido tratando de proteger o dinheiro, e por isso ele tinha o dever de resguardá-lo.
Mas Kady o tinha usado para ajudar a gente que o precisava e para brindar alegria. Não duvidava de que todo o povo de Socorro poderia viver os seguintes dois anos com o que ela lhes tinha pagado esses poucos dias.
-Estás pronto para regressar? -perguntou a Ned-. Ao que parece, estou com muita fome.
-Isso é algo que Kady pode solucionar. -Penso que, talvez, Kady poderia resolver tudo o que está mal em mim.-E quiçá em todo o povo - disse Ned pelo baixo, para que Cole não o ouvisse. Cole possuía todo o povo, mas nos últimos dias Kady tinha expressado sua opinião do que denominava o "obsessivo monopólio" de Cole. Dizia que acreditava em a "livre empresa". E era evidente que Kady fazia de acordo com suas convicções.
-Estou pronto -disse Ned, seguindo a Cole fora da taberna.
CAPÍTULO 14
O que viu Cole quando entrou no rancho foi um caos controlado. Primeiro pensou que era mais o caos do que o controle, até que ouviu gritos e um par de tiros disparados ao ar. Pelo que ouvia, tinha sido esquecida sua proibição de armas dentro dos limites da cidade.
-Te disse que voltes à fila -disse uma voz de homem.A seguir, arrebataram-lhe as rédeas e uma mão de homem se lhe posou na perna.
-Queres soltar? -disse Cole, com acalma, olhando ao homem que punha a mão sobre sua pantorrilha.
-Oh, perdoe, senhor Cole -disse o homem-, mas Juan ordenou...-Já sê o que te ordenaram -respondeu Cole, desmontando e arrojando-lhe as rédeas a um menino que estava perto.
Quase teve que se abrir passo a empurrões no meio da gente que enchia sua própria casa. Até onde podia ver, Kady dava de comer a certa quantidade de pessoas cada vez, e os que não comiam ficavam afora e esperavam o seguinte turno em que se servisse. Para que não, desmaiassem-se de fome entre turnos, se lhes serviam bandejas cheias de algo que, ao que parece, chamavam-se orsderves.Por um momento, Cole pensou que ia ter que matar a alguém para que o deixassem passar pela porta principal, porque Juan tinha ordenado que não deixassem entrar a ninguém. Mas, depois de certo intercâmbio de palavras, Manuel foi convocado para verificar a identidade de Cole.
-Que diabos fizeram em minha casa? -perguntou Cole, já dentro, com as costas contra a porta e olhando em torno.
Em todos os quartos do térreo tinham corrido para um custado os móveis e os tapetes e os tinham coberto com lençóis, para poder utilizá-los como cozinhas improvisadas. Dava a impressão de que tinha pessoas e farinha por todas partes.-Preparam a comida aqui, hornean o que podem, e o resto o levam a hornear afora -disse Manuel-. Kady diz...Cole levantou uma sobrancelha.-Estou seguro de que é Kady ou Juan -disse, com intenso sarcasmo - Onde está ela?Manuel lhe jogou uma olhada que parecia dizer: "Talvez precisa perguntá-lo?"
A grandes zancadas, Cole foi à cozinha, deteve-se na entrada, e ficou observando até que alguma das pessoas que corriam de um quarto a outro o empurrou. Qualquer general de exército se teria sentido orgulhoso de gozar da autoridade que Kady despregava para manejar umas cinquenta pessoas ou mais do que se movia a toda pressa pela cozinha, entrando e saindo por três portas.
Cole estava adolhada de ver que o lugar estava abarrotado e, no entanto não tentavam matar-se mutuamente. Surpreendeu-se ainda mais ao reconhecer a três homens que eram reclamados pela justiça.Entrou Juan Barela pela porta que dava ao exterior, levando três bandejas vazias. Deteve-se inesperadamente, voltou-se e viu a Cole de pé a um custado da entrada.
Os instintos lhe funcionam à perfeição, pensou Cole, e, olhando os olhos escuros de Juan, soube que se estava perguntando se Cole ia causar alguma dificuldade. O entregaria ao comissário?Com o entrecejo franzido, Cole indicou um montão de enroladinhos em forma em media lua que estavam numa canastra, sobre uma mesa, junto à parede.Com um pequeno sorriso, Juan agarrou um, se o arrojou a Cole, e depois foi para os fornos, sob a olhada atenciosa do dono de casa que observava ao "assassino encallecido" que sacava três grandes bandejas de metal cobertas de bolachas.
Cada um dos que estavam na cozinha começaram a percatarse da presença de Cole de pé a um lado da entrada, e em todos os rostos se refletia a dúvida: que faria? Deixaria que se alimentasse a todo o povo grátis? Se Poria tão furioso que faria algo horrível, como jogar a todos do povo que lhe pertencia?
No entanto, a olhada de Cole se posava numa só pessoa, e essa pessoa era Kady, com o cabelo caindo-lhe pelas costas, e uma das camisas do marido cobrindo a maior parte de seu encantador corpo. O calor da cozinha dava resplendor a sua pele; ele jamais a tinha visto tão formosa.- ¡Os queimarás! -disse, agarrando uma asadera de cobre quase tão grande como ela e deslizando-a sobre o lado frio das ventilações do forno - Vigia...
Interrompeu-se ao ver quem era a pessoa encarregada da asadera e notar que não olhava a cozinha.Quando Kady se deu a volta e viu a Cole ali de pé, o coração lhe deu um tombo porque ele percebeu na olhada dela que se alegrava de vê-lo. Talvez não fosse o amor que ele queria ver, mas não estava enfadada com ele e, desde depois, não o odiava.
A Kady lhe levou vários segundos controlar suas emoções para poder olhá-lo na forma em que ela cria que devia olhá-lo, coisa que fez sorrir a Cole. Sua pequena Kady dos Deveria, pensou, sempre fazendo o devido.-Não queres unir-te a nós? -lhe perguntou com doçura-. Vamos comer algo. Espero que tenhas tempo de compartilhar uma comida conosco.Depois da afirmação, teve uma onda de risos contidos.
Nos últimos dias, todos tinham opinado que Cole era um idiota por deixar a Kady só, ainda que só fossem segundos. A opinião geral era que qualquer homem em seu são juízo reservaria o tempo todo do mundo para uma mulher como ela.A Cole -que em realidade não estava muito ao tanto dos costumes das mulheres - lhe agradou o tom de Kady. Quiçá agora as coisas andassem bem.
Kady já tinha comprovado que Lenda não era um lugar tão mau, e como já tinha podido apreciar as vantagens de ser a esposa dele em lugar de regressar junto a esse Garvin, estava seguro de que se avendría.Ainda sorrindo-lhe a Cole, Kady disse umas palavras a Juan, e este saiu.
-Temos uma mesa especial, só para ti -disse Kady-, e vou preparar tua comida com minhas próprias mãos. Não permitirei que ninguém mais a toque.
Em dois passos, Cole atravessou o recinto para onde estava sua esposa. Tinha a intenção de tomá-la em seus braços, mas ela retrocedeu, de maneira que o beijo de Cole foi dar à bochecha.
-Agora tens que te ir, pois, caso contrário, nunca terminará de preparar nada -disse, agitando as pestanas.Cole quis levá-la acima, à cama, mas tinha centos de pares de olhos observando-os, assim que se limitou a assentir e saiu. Já teria tempo para intimidades mais tarde.Sob os álamos ao fundo da casa, tinha umas vinte e cinco mesas já tendidas, de diferentes tamanhos, carregados com comida de aspecto delicioso.
Cole se dirigiu para a maior, mas um dos primos de Cole apartou uma cadeira junto a uma mesa solitária, posta à sombra da árvore maior.
Quando se teve acomodado, advertiu que estava só nessa mesa, só sob a árvore, e que era o centro de atendimento de todas as olhadas. Martha e Mavis serviam a comida, e de vez em quando lhe jogavam uma olhada, mas quando ele as via apartavam a vista. No trajeto até o rancho, Ned tinha feito rir a Cole contando-lhe que Kady as chamava as cinco M.Kady, pensou. Em só dez dias tinha transformado o interesse do povo pela prata em interesse pela comida... e por ela mesma. Ainda se lhe arrepiava o cabelo ao recordar o que lhe tinha dito Ned com respeito às propostas matrimoniais que tinha recebido. Que criam que faria ela com o esposo que já tinha?
Ao cabo em media hora, Kady saiu levando uma fonte coberta com um grande guardanapo, e se fez um grande silêncio entre a participação. A essas alturas, todos os que estavam na frente da casa tinham ido ao fundo para poder ver o que sucedia. Que ia servir-lhe Kady ao marido?Sentindo-se orgulhoso, Cole olhou a fonte que Kady punha ante ele, tomou-lhe a mão e se a beijou, enquanto ela o observava apartar o guardanapo.
Ao princípio, quando o guardanapo revelou o que cobria, Cole não atinó a fazer outra coisa que olhar boquiabierto. Na fonte tinha batatas, cenouras, rabanadas de pão com manteiga... e uma rata. Uma grande rata negra, rebozada em migalhas de pão e frita, mas que conservava a cabeça e a fila intacta, de maneira que não tivesse modo de confundí-la.
Enquanto Cole olhava, incrédulo, a monstruosidade que tinha ante si, a gente que tinha a seu arredor começou a rir. E rir. E rir. Era como se tivessem estado esperando anos para gastar-lhe essa brincadeira, e só então os risos acumulados pudessem liberar-se.Levantou lentamente a vista para Kady e viu que lhe sorria como se ele fosse o que acabava de servir-lhe: uma rata para outra rata, por assim dizê-lo.Foi nesse momento quando Cole mudou. Por que tratava de obrigar a uma mulher a que o amasse? A ficar ali, contra sua vontade? Que esperava conseguir de uma mulher que não queria ser sua esposa?
Com um só movimento se levantou da cadeira, jogou-se a Kady ao ombro e jogou a andar para os estábulos. Por uma fração de segundo, Juan se interpôs em seu caminho, mas a expressão que lhe dirigiu Cole o fez apartar-se. Por muito que fosse um feroz bandido, não queria meter-se entre um homem e sua esposa.
Enquanto Cole andava entre a gente, apartavam-se para deixar-lhe passar, sem deixar de rir, mas agora o tom do riso tinha mudado: já não se riam tanto dele como com ele.
-Baixa-me -lhe disse Kady entredientes, mas Cole a ignorou, e ela o pellizcó num custado.Em retribuição, Cole lhe deu uma boa palmada no traseiro, que de maneira tão tentadora tinha apertado contra sua orelha direita.Por uma vez, Cole se alegrou de ver que ninguém lhe tinha prestado o menor atendimento a seu fatigado cavalo, e o pobre animal estava pastando, esquecido, entre as flores que tinha no jardim da frente. Cole arrojou a Kady sobre o arreio e depois montou depois dela.
-Pensei que era capaz de tolerar uma brincadeira -lhe disse a mulher quando ele se acomodou por trás dela, e guiou ao cavalo afastando-se da casa - Não era mais do que isso, uma brincadeira. É que não fazes sentido do humor?Cole não respondeu e, depois de um momento, Kady deixou de tentar travar conversa com ele. Pensou que, se queria zangar-se, o deixaria. Cruzou os braços sobre o peito e decidiu que dois podiam jogar o jogo do silêncio tão bem como um. Só tinham andado uns minutos quando Kady compreendeu aonde se dirigiam: estava levando-a de novo aos petroglifos. A-A devolver a seu tempo!
Quanto soube aonde a levava, foi como se a mente de Kady tivesse iniciado uma guerra consigo mesma. Claro que queria voltar A Gregory, a Onions e a todas as pessoas que conhecia e amava ali. Bueno, a dizer verdade, aparte de Gregory e a mãe, não tinha muitas pessoas que conhecesse demasiado bem.
Mais ainda, tinha-lhe resultado difícil encontrar damas de honra para o casamento. ¡Mas era o lugar ao que ela pertencia!No entanto, em Lenda tinha feito amigos novos. Muitos amigos. Nos últimos dias tinha conhecido pessoas. Tinha passado todo um dia sentado com mulheres, pelando e cortando verduras. Não tinha menino nem adulto de Socorro ao que não conhecesse por seu nome, e eles valorizavam que lhes tivesse ensinado a cozinhar as coisas que cresciam sós nas montanhas.Ademais, estava a própria Lenda, um povo que tinha intenções de ajudar, quanto se livrasse da tutela de Cole.
- Chegamos aqui -disse Cole com frialdade, desmontando e depois baixando a Kady e deixando-a junto a ele.Como de costume, tinha tomado um atalho e já estavam ante os petroglifos. Como Kady não rodeou ao cavalo para poder ver a rocha, tomou-a da mão e a levou.
Ante Kady se encontrava a abertura, esse estranho efeito como se a rocha se esfumasse e além, penumbroso e cinza, via o apartamento tal como o tinha deixado, com a caixa de farinha no solo. Que diferente lhe parecia visto desde o sol de Colorado que dava brilho a tudo.
-Adiante -lhe disse Cole, dando-lhe um leve empurrão - É o que querias, não?-Sim -disse, titubeando, mas não se moveu, e o olhou - Deixei uns budines cozinhando-se sobre o queimador de atrás, e não saquei o pão do forno. Penso que será melhor do que regresse, e. Cole lhe pôs as mãos sobre os ombros e a fez voltar-se para a cena que tinham diante.
-É aí a onde pertence. Não aqui.-Estás enfadado pelo dinheiro que gastei, não é verdadeiro? E pela rata. Olha, sinto-o. Te prepararei um jantar que te fará saltar as lágrimas, vai lados.
Cole a fez voltar-se para a abertura e a empurro sem pressa mas com firmeza para ela.Quando o pé de Kady traspuso a abertura, viu que sua perna já estava no apartamento. As mãos de Cole a empurravam pelos ombros Para que não pudesse retroceder. "Quiçá apareça o homem moreno a cavalo", pensou Kady, mas não tinha sinais dele, e Cole seguia empurrando-a. Ao fim, já estava no apartamento; as mãos de Cole já não estavam em seus ombros, e se voltou para olhá-lo. Por um momento, se lhe cortou o alento por temor a não ver mais do que a parede, mas ali estava ele, olhando-a, e o sol fazia brilhar seu cabelo loiro.
Sob a olhada de Kady, a passagem através do tempo ia fazendo-se cada vez menor, e Cole parecia afastar-se. De repente, foi como se mil imagens passassem pela cabeça da mulher, e o recordou disfarçado de águia. Recordou a fita que tinha atado à choupana e como lhe tinha preparado o banho na fonte de água quente. Que tinha baixado correndo a ladera de um promontório quando creu que ela estava ferida.Vendo como se estreitava a abertura, olhou-o aos olhos, mas não pôde ler nada neles. Por que não lhe tendia a mão?
Por que não lhe dizia que a amava? Por que não lhe dizia que a precisava e a queria como ninguém no mundo se o tinha dito nunca?Olhando-o, viu uma mancha no ombro esquerdo da camisa de Cole. A mancha se fazia cada vez maior e escura ante seus próprios olhos e, de repente, compreendeu. Durante esses dez dias que esteve ausente, tinha tratado de mantê-la a salvo. Tinha ordenado que não saísse do rancho, mas não porque fosse um monstro senão porque queria protegê-la de qualquer problema que pudesse surgir.
Inclusive, protegê-la se se dava o caso de que ele não regressasse. Como um cachorro que saltasse através de um aro em chamas, lançou-se através do círculo que ficava na parede e se precipitou em braços de Cole.-Kady -foi o único que Cole atinó a dizer, abraçando-a com tal força que lhe fez crujir as costelas.
-Estás segura? Estás segura?-Não o sei -disse, sincera-. Tenho a impressão de que já não conheço as respostas. -O beijava na cara-. Estás ferido, estás sangrando, e...Apartou-a dele.
-Regressaste para ser minha enfermeira?Kady o olhou aos olhos.-Em realidade, não sê por que regressei. Ainda amoo...Para impedir-lhe falar, beijou-a.-Pode ser que mudes de idéia depois, mas agora aproveitarei o tempo que tenhamos. Dizemos-lhe que desapareça?Ainda em braços de Cole, Kady se voltou e viu que o buraco se tinha engrandecido. Ali estava seu apartamento, a roupa atirada sobre o sofá, a luz acendida em sua secretária eletrônica.-Ainda podes ir-te -disse Cole baixinho-. Não te obrigarei a ficar-te.Aferrándose a ele com mais força, apoiou-lhe a cabeça no pescoço.-Não, creio que ficarei -disse-. Pelo menos até que me aborreça contigo.
Isso o fez rir, -Enquanto tenha dinheiro, creio que poderás manter-te ocupada.-Isso é o que pensas? Que só me interessa teu dinheiro?-Por suposto. Talvez não é isso o que as todas as mulheres lhes agrada de mim?-¡Não a esta mulher! A mim me agrada como cuidas às pessoas, e que antepões as necessidades dos demais às tuas. E me agrada o modo em que...
Interrompeu-se, porque o sentiu rir com dissimulo.-És uma rata -lhe disse, beijando-o no pescoço.-Vamos, voltemos a casa, que tenho fome.-Ah, sim? E quem crê que te dará de comer?-Martha, Mavis, Myrtle e...Não disse mais, porque Kady o beijava e o empurrava para o solo.Depois deles, a abertura na rocha se fechou.
CAPÍTULO 15
-Mm -murmurou Kady, sobre a xícara de café. Estava ela e Cole só na cozinha, e acabavam de terminar o café da manhã. Tinham passado momentos deliciosos durante os três dias desde que Kady decidisse ficar, ao menos até que a força sobrenatural que a tinha levado a afastasse outra vez. Tinham cavalgado juntos, conversado, e Cole a tinha levado por tudo Lenda e seus arredores.
Nunca tinha passado tão bons momentos, ao estilo antigo, com nenhuma outra pessoa.E daí se Cole nunca tratava de fazer-lhe amor? E daí se, quando se beijavam, jamais passavam da etapa de bocas fechadas? Era isso o que queria ela, não? Afinal de contas, ainda estava comprometida para casar-se com Gregory, ainda que estivesse casada com Cole. Ou algo assim.
-Parece pecaminoso estar aqui, sentados -disse, olhando pela janela as belas montanhas de Colorado.
Alçando a cabeça de sua xícara, Cole a olhou:- Que outra coisa teria que estar fazendo?
-Não se me ocorre nada -disse Kady, super feliz, pensando que o mundo moderno estava controlado pelo relógio e o calendário.Não sabia que hora era, nem que dia da semana.
-Seguro? -lhe perguntou Cole, caçoando - Poderíamos ir cavalgar.
-Não -disse Kady, ao mesmo tempo em que se levantavam para voltar a encher as xícaras.-Poderias cozinhar algo e nos iríamos de picnic.Isso a fez rir:
- Creio que o povo te odeia.-Sim, estou seguro de que me odeiam -respondeu, sorvendo o café e contemplando a Kady com olhos de adoração.
Três dias atrás, quando Kady decidisse ficar com ele, tinham regressado ao rancho Jordan, e Cole tinha jogado a todos da propriedade. Nesse momento, foi o homem mais odiado do país, até que Juan se adiantou e ameaçou com disparar-lhe a qualquer que se queixasse de que Cole quisesse reter a Kady para si.
-Que homem não o invejaria? -tinha perguntado Juan, fazendo a Cole pôr os olhos em alvo e alegrar-se de que Kady não tivesse ouvido o comentário.Juan se ocupou de terminar de cozinhar o que estava em preparação, Manuel se fez cargo da limpeza, e todos se foram à casa com todo o alimento que puderam carregar, de maneira que, afinal de contas, os vizinhos do povo estavam bastante satisfeitos.
-Poderíamos... -disse Cole, alçando a vista, a olhada divertida-. Poderíamos procurar a mina Lost Maiden. Vale milhões de dólares em ouro, e está muito cerca de aqui.-Já a encontraram -murmurou, olhando pela janela.
-Que? -perguntou Cole, olhando-a com vivacidade - Encontraste a mina Lost Maiden?-Eu não, outra gente.Cole a olhou fixo:
- Como que "outra gente"?-Foi achada em mil novecentos oitenta e dois, e saiu em todos os jornais e revistas. Durante um tempo, todo o país foi invadido pela Febre Maiden, como se dizia.Como não agregou nada mais, Cole lhe agarrou a mão e a sustentou apertada, olhando-a aos olhos.
-Esta bem, está bem -disse Kady. Em realidade, não recordação muita ao respecto. Uns procuradores encontraram ouro numa pequena gruta cerca de uma rocha que parece a cara de um velho. E não te atrevas a perguntar-me onde é, porque não tenho idéia. Pensei que a mina tinha sido achada em Arizona. Cole lançou um resoplido de desgosto.
-O antigo procurador que disse que tinha encontrado a mina costumava ir ao salão de Lenda quando eu era menino. -Que fazias num salão sendo menino?-Embebedar-me e fazer coisas más com as garotas. Conta-me mais a respeito do tesouro.-Não sei grande coisa, salvo... -Se voltou a olhá-lo, com vontades de perguntar-lhe quais eram essas "coisas más"-. Esse procurador tinha um olho de cristal? -Grande e feio, por que?
-A gente cria que ele devia de tê-la encontrado, mas como não ficava ninguém vivo que o tivesse visto, não estavam seguros de que tivesse sido ele o que acharam na gruta.Kady não disse nada mais, e Cole, com um só movimento fluído, levantou-a de sua cadeira e a sentou sobre seu próprio regaço. Com a cabeça apoiada no ombro dele e os grandes braços ao redor, Kady suspirou, sonhadora:
- Foi uma história muito romântica. Tinha uma lenda segundo a qual esse ancião tinha encontrado uma mina custodiada pelo espírito de uma bela donzela índia, mas ninguém lhe creu.Kady o olhou, inquisitiva, e Cole resmungou:
-Era bêbado, fazia armadilhas com os naipes, além de ser um ladrão e um mentiroso. Era lógico que ninguém lhe cresse. O jornal editou a história porque a precisavam para encher o espaço.-É óbvio que não sempre mentia, e tu deverias aprender a crer mais nas pessoas.
-Tu cries tudo o que qualquer te diz, por isso é o bastante ingênua pelos dois. Dime que tinha de romântico e quanto podia ter.-Deixo por tua conta o de pensar no dinheiro. Como seja, um par de procuradores viram a um morcego meter-se voando numas rochas e, quando começaram a pesquisar, encontraram uma pequena gruta. Dentro tinha dois esqueletos, um de uma mulher jovem que tinha os restos de um vestido bordado com contas, e outro de um velho com jaqueta de couro.
Tinha um olho de cristal e... -Levantou a vista para Cole - Ainda que com as provas de carbono se demonstrou que o esqueleto da mulher devia de ter uns cem anos mais do que o homem, se os encontrou com as mãos unidas.
-E isso te parece romântico? Dois mortos? Os esqueletos são românticos? A vida é romântica.-O problema é que tu és homem.-E quando começaste a queixar-te disso?Quando Kady sorriu, Cole a beijou com suavidade, e ela já tinha aprendido a não pôr paixão nos beijos. A paixão o fazia jogar-se atrás.-Vamos procurá-la. A mina. Vamos encontrar a mina.
-Mas é... -Ia dizer-lhe que a mina já tinha sido achada, mas em 1873 isso não era verdadeiro - Para que queres o dinheiro? Não tens bastante?-Não se trata do dinheiro; o que quero é a emoção. Encontrar um tesouro. ¡Isso seria maravilhoso! Espera, que fizeram com o dinheiro as pessoas que a encontraram em 1982? Fizeram algumas de tuas boas obras?Kady fez uma careta.-Brigaram por ele. O homem e a mulher que o acharam estavam comprometidos para casar-se, mas depois de encontrar o tesouro passaram dez anos nos tribunais, brigando por decidir quem tinha visto antes o interior da gruta e, em conseqüência, quem ficaria com a parte do leão. Ao final, os advogados ficaram com quase tudo. Penso que de um total de treze milhões os procuradores ficaram com vinte mil cada um. E suas vidas ficaram destroçadas, por suposto.A mulher alçou a cabeça e o olho.
-E tu que farias com mais milhões dos que já tens?Cole guardou silêncio um momento e depois falou com voz suave:- Os sepultaria sob a mesquita. Aí não vai ninguém exceto eu, de maneira que seria seguro; então, se tu voltas a teu tempo, poderás voltar aqui e saber onde procurá-lo. Tu serias o bastante astuta para não permitir que os advogados fiquem com quase tudo.Por um momento, Kady ficou muda porque sabia que ele falava em sério.
-Me ama, Kady? -sussurrou, beijando-lhe a coronilla.O rosto de Gregory relampagueó ante seus olhos, e vacilou antes de falar. Então também lhe pareceu ver ao homem de seus sonhos, o homem do rosto velado que a tinha perseguido quase toda a vida.-Eu... -começou a dizer, mas Cole lhe pôs um dedo nos lábios e lhe alçou o queixo para que o olhasse nos olhos.
-Algum dia, quero ver amor em teus olhos quando me olhes.Kady ia refutar a afirmação, mas Cole não a deixou falar.-Talvez não seja experiente em amor, mas sei que, quando uno amoa a alguém, sabe-o. Não vacilas nem tens que o pensar. Também não surge nenhum outro em tua mente quando pensas no amor. Beijou-a com ternura.
-Quando te olho aos olhos, sempre sê o que há em teu coração.Foi tão sincero que a Kady se lhe encheram os olhos de lágrimas, e afundou a cabeça no peito dele para que não as visse.-Talvez é por mim por quem derramas essas lágrimas? -perguntou Cole, gozoso, fazendo-lhe levantar a cabeça para que o olhasse - Creio que até agora nenhuma garota chorou por mim.
Isso fez rir a Kady.-Até onde sei, fizeste chorar a todas as mulheres deste povo.-Eu? -perguntou ansioso, com ar inocente-Eu jamais tenho...-Senhora Jordan -se ouviu a voz de Manuel desde afora.
-¡Vê-te! -lhe gritou Cole - Não queremos ver a ninguém, -Faz já três dias que não vemos a ninguém -lhe recordou a moça-. E se a casa está incendiando-se?-Que chamem à brigada contra incêndios -respondeu Cole, beijando-a no pescoço.
-Que há, Manuel? -perguntou Kady, alçando a voz.
-A senhora Ruth Jordan quer encontrar-se com você dentro de uma hora, na Árvore do Enforcado.
A Kady lhe levou certo tempo digerir a informação. Para começar, quem era Ruth Jordan? Por que queria encontrar-se com Kady? Ao olhar a Cole, viu que sorria como se lhe tivesse lido a mente.-Dile que não irás -a instou. Sem fazer-lhe caso, tratou de resolver o enigma:- ¡Tua avó! -disse, refletindo-se em seu semblante o orgulho de tê-lo recordado sem ajuda dele-. Esqueci que lhe tinha enviado uma carta suplicando-lhe ajuda. Oh, céus, terei que lhe dar algumas explicações.
A Árvore do Enforcado é onde te vi pela primeira vez verdade?-Correto, em todas as deduções -lhe respondeu, ainda sorrindo-lhe, comendo-se com os olhos como se quisesse memorizar cada cacho de sua cabeleira, cada curva de seu rosto.
-Vou de imediato -lhe gritou Kady a Manuel, e ouviu que o ancião se afastava pelo corredor.-Kady -disse Cole, e ela soube que ia tratar de dissuadí-la de que ficasse com ele.
-Por que não vem tua avó aqui, ao rancho? Por que quer que me encontre com ela tão longe do povo? -Se nega a pôr um pé em Lenda: odeia este lugar.Ainda que o disse sem assomo de ira, Kady compreendeu que devia doer-lhe que sua única parenta viva se negasse a ter algo que ver com o povo que pertencia a Cole. Um povo que Cole amava, ela o sabia. Beijou-o sob o queixo.
-Tratarei de convencê-la de que vinga aqui, a casa, para jantar.-Casa -sussurrou Cole, fazendo levantar a Kady de seu regaço e indo até a janela, dando-lhe as costas enquanto olhava para fora, sem ver-. Para ela, este não é seu lar, e por isso deixa que o percorram os espíritos de pessoas mortas faz já muito tempo.Apesar da indiferença do ambiente, essas palavras fizeram tremer a Kady.
-Tens que vir comigo -lhe disse - Não posso ir conhecer a tua avó eu só. Quanto faz que não vos veis?Por um momento, Cole se voltou para ela com uma expressão de funda melancolia; depois a expressão mudou, e sorriu.-Por que não vais só a vê-la, e depois a trazes aqui? Poderias fazer algo maravilhoso para o jantar. Agradasse-lhe ter uma neta política que saiba cozinhar.
Deu a impressão de que a tristeza de Cole tinha desaparecido quando cruzou a cozinha e se deteve ante Kady sorrindo-lhe com calidez, e metendo-lhe um cacho por trás da orelha.-Te amará, Kady. E se sentirá muito ditosa de que seu desviado neto tenha encontrado, ao fim, uma mulher à que amar por toda a eternidade.Kady teve outra vez a sensação de que algo mal sucedia.
-Creio que não irei -disse, tomando uma das mãos grandes entre as suas - Mandarei a Manuel a dizer-lhe que tem que vir aqui, a visitar-nos aos dois.Rindo, Cole a empurrou e se inclinou para olhá-la.-Tu és a mulher que se lhe resistiu a Juan Barela, e agora tens medo de encontrar-te a sós com meu doce abuelita?
-Mas...-Mas nada. Quer ver-te primeiro a ti porque quer contar-te todas meus maus costumes. Quer assegurar-se de que és apropriada para um pilho malcriado como eu. E quererá falar-te de dinheiro.-Dinheiro?-Oh, sim, minha avó tem a convicção de que uma mulher deve ter seu próprio dinheiro, assim que quererá estabelecer um fundo para ti. Ademais, se conheço a minha avó, se apresentará com um picnic para senhoras.
-Fez uma careta de desgosto-. Xícaras tão pequenas que se romperiam se tratasses de sustentar quatro numa mão.
-O sabes por experiência, verdade? -lhe perguntou, rindo-se.-Demasiado bem. Minha avó dizia que eu era capaz de romper a loza com só olhá-la. E não deve de ter nenhuma comida que valha a pena, aparte de pequenos emparedados e docinhos diminutos. Um pode meter-se toda a comida de uma só vez na boca.
-E isso também o sabe de primeira mão? Os olhos de Kady bailoteaban de deleite ante as recordações de Cole, que eram os de um menino.
-Sim, já o crio. Tarik e eu provamos e pudemos fazê-lo.Kady riu ao imaginar um elegante chá para damas que um par de meninos vorazes faziam desaparecer para comprovar se podiam meter-se toda a comida na boca de uma vez.
-Creio que irei. Contarei-lhe tudo a respeito das cinco M e de como rivalizavam entre si, e lhe direi que te preparei uma rata para o jantar.De repente, Cole a tomou e a abraçou.-E daí mais vai dizer-lhe? Que coisa boa lhe contará com respeito a meu caráter?Alçando a vista para ele, acariciou-lhe a bochecha com a barba crescida.
-Lhe contarei como salvou as águias e que fizeste tudo o possível para fazer-me sentir boas vindas. -Como ele não se moveu, compreendeu que esperava, mas-. E lhe direi que me amas.Sorrindo, Cole a beijou, mas, quando ela lhe rodeou o pescoço com os braços indicando que queria mais, apartou-a.
-Minha avó é muito pontual. Será melhor do que saias para lá.Os olhos de Kady se engrandeceram.
-Poderia pôr-me o vestido novo que me presenteaste -disse, olhando-se a longa saia polvorenta e manchada de comida, como toda sua roupa.-Kady, queria minha, poderia ir nua e sendo a mulher melhor vestida do mundo.Kady te sorriu, super feliz, porque sabia que o dizia de coração. Cada vez que se acostaba com Gregory tentava ser recatada e sempre se cobria, convicta de que seu corpo rollizo era pouco atraente. Era assombroso o modo em que o peso de uma pessoa governava toda sua vida em Estados Unidos. Com Cole, em mudança, sentia-se formosa. De fato, o povo inteiro de Lenda a fazia sentir-se bela, desejável e merecedora de tudo. Com sorriso provocante, tomou a mão de Cole entre as suas e o conduziu escadas acima. Quiçá antes de tentar seduzí-la esperasse um pouco de ela, por exemplo, que lhe dissesse que o amava. Mas quiçá esperasse um sinal por parte dela.
-Por que não te sentas? -lhe disse, imitando a voz de Mae West, enquanto ia ao armário e sacava a multidão de prendas que devia usar uma mulher do século dezenove.Com os olhos engrandecidos como se estivesse olhando um striptease Cole se esticou sobre a cama, colocou travesseiros sob a cabeça e viu como Kady se vestia. Por sua vez, Kady se tomou um tempo desusado para pôr-se à roupa que Cole lhe tinha comprado.
Inclusive pôs cada perna sobre uma cadeira e se enfundó lentamente as médias que deixavam ao nu a parte superior das coxas.Quando terminou de vestir-se, caminhou para Cole, que nesse momento a olhava de maneira estranha. E quando ele lhe fez baixar a cabeça para dar-lhe um beijo profundo -pela primeira vez-, Kady soube que expressava o semblante dele. Sorrindo satisfeita, teve que apelar a toda sua vontade para apartar-se.
-Retém esse pensamento -lhe disse, sem alento pela paixão que tinha sentido nele- Eu... eh... Voltarei o antes possível.Cole a olhava com expressão tão apaixonada que não estava segura de poder escapar a ele. Precisou bastante força para ir para a porta e fechar o trinco depois dela.
-Kady -lhe disse Cole enquanto abria a porta-, recorda que te amo. -O disse de um modo que fez bater o coração da mulher - E tu não me esquecerás? Isso a fez sorrir.
-Não creio -lhe respondeu, sorrindo a sua vez. Não é um homem que uma mulher possa esquecer.
Enquanto trasponía a porta, gritou-lhe:
- Recorda que a verdade está nos olhos de uma pessoa.-Sim -disse Kady, e se apressou a fechar a porta do dormitório. Se ficar um minuto mais, já não ia poder sair, pois se lançaria sobre a cama junto a ele e não sairia mais.Fora, Manuel tinha ensillado um cavalo bom e dócil para ela e, para sua surpresa, Kady descobriu que iria só à Árvore do Enforcado, sem um só acompanhante. Parecia-lhe estranho depois de tantos dias de não gozar de tanta liberdade, mas Manuel se limitou a indicar-lhe onde estava a rua principal de Lenda, e lhe disse que girasse à esquerda em Eternity Road: a Árvore do Enforcado estava ao final dela.
Depois de dar-lhe a indicação, o ancião se deu a volta e subiu os degraus do alpendre; quando Kady olhou atrás, viu que ele e Dolores estavam ali de pé, com o rosto desbordante de tristeza. Quando montou, sorriu-lhes porque imaginou que deviam de estar preocupados de que ela não regressasse nunca. Mas Kady sabia como voltar a seu próprio tempo, e também sabia que não ia tornar esse caminho, pois Cole estava esperando-a.
Ainda que não tinha demasiado experiência com cavalos, o animal parecia saber aonde ia, assim que se limitou a tomar as rédeas. Afastando-se, voltou-se e saudou a Manuel e Dores com a mão, e A Cole, para a janela da planta alta. Parte dos peões do rancho tinham saído dos estábulos e eles também a viam afastar-se.
Quando dobrou a esquina e ficou fora da vista deles, olhou o caminho que tinha diante.-Que gente tão triste -disse.Pensou no grato que era gozar de liberdade, ao fim. Passou ante a biblioteca e atravessou com a vista o curto caminho que ia para a bela mesquita, pensando no que tinha dita Cole com respeito a que sepultaria ali o tesouro da mina Lost Maiden.
Tinha um breve trajeto até Paradise Lane, depois uma viragem à esquerda para o carril principal de Kendal Avenue, outro à esquerda para Eternity Road. Passou ante o quartel de bombeiros, o escritório de telégrafos, e um dos numerosos acampamentos que albergavam aos mineiros. Passou ante a mina Amaryllis, e seguiu pela rota, afastando-se de toda habitação humana, para as montanhas.
AO longo de todo o caminho, as pessoas deixavam o que estavam fazendo e a saudavam com a mão-, Kady lhes sorria e respondia às saudações.-Creio que sou famosa -disse, rindo - Seguramente por ser a mulher que deu de comer ao povo.Enquanto avançava, perguntou-se se algum dia o contaria num desses folhetos para turistas que se compram nos povos fantasmas.
Mas não lhe agradava pensar em Lenda como povo morto e, apartando a idéia da mente, concentrou-se na paisagem.Quando deixou atrás o povo, viu ao longe uma carruagem, um veículo encantador, com teto, e viu a um homem desenganchando os cavalos.
No solo, sentada sobre uma toalha de mesa branca, tinha uma mulher de elegante aparência, rodeada por todos os elementos de um antiquado chá da tarde. Tinha uma chaleira de prata e xícaras tão finas que até desde longe podia ver brilhar o sol através delas.Desmontou a certa distância do picnic, atou o cavalo à sombra, cerca de um lugar herboso, e se adiantou para conhecer a sua avó política.
CAPÍTULO 16
Quaisquer que tivessem sido os temores que Kady pôde sentir com respeito a conhecer à única parente viva do homem ao que tinha chegado a querer tanto se desvaneceram cedo quando Ruth Jordan lhe tendeu uma mão cálida e amistosa. Era uma mulher alta e delgada, que levava um extraordinário vestido branco com grandes mangas e uma saia estreita, macia, e Kady compreendeu o passadas de moda que eram as amplas saias de Lenda. Quando a anciã sorriu, viu que seus olhos se pareciam aos de Cole. O que achou nesses olhos foi dor, e recordou a horrível tragédia que se tinha abatido sobre a família de Cole. Em pouco tempo, essa mulher encantadora tinha perdido tudo e, por sua expressão, ainda não se tinha recuperado das perdas.
-Vêem, querida minha, deves sentar-te e contar-me tudo o que tenha que contar com respeito a ti e a meu neto. Quero sabê-lo tudo -disse com graça, indicando a toalha de mesa.Uma vez que Kady se sintou e Ruth serviu o chá, por uns momentos se fez um incômodo silêncio entre as duas. Depois, ao levantar a xícara, Kady sorriu.
-Te diverte minha eleição de louça? -perguntou Ruth, envarada.-Não, claro que não -se apressou a responder a jovem - Estava pensando no que me contou Cole com respeito a que ele e Tarik se metiam todos os emparedados e os docinhos de uma vez na boca. Para valer era um menino tão horrível? Observando a Ruth -por alguma razão, não podia pensar nela como a senhora Jordan-, viu que se punha pálida como se estivesse a ponto de desmaiar-se.
Kady se apressou a deixar a xícara e estendeu a mão, mas Ruth a apartou:
- Está você bem?-Sim -respondeu a anciã em voz fica, olhando a Kady da mesma maneira intensa em que o fazia Cole-. Meu neto deve de amar-te muito se te nomeou a seu amigo. Pelo geral, não fala de... de Tarik.-A dizer verdade, Cole e eu conversamos muito, Tem muito que dizer a respeito de tudo.Ruth apoiou a mão sobre a da jovem.-Sou uma mulher maior, e faz muitos anos que não vejo a meu neto, assim que, por favor, conta-me tudo, Desde o princípio.
Kady riu ao ouví-la.-Não me creria se se o dissesse.Os olhos da mulher eram tão intensos como os daquelas águias que Cole tinha salvado.-Sim, o entenderei -replicou - Tens que confiar em que nada do que me digas me espantará nem me levará a descreer de ti. Tenho que o saber tudo.Kady tinha na ponta da língua dizer que se queria saber mais a respeito de seu neto devia engulir-se o orgulho e visitá-lo. Ou, melhor ainda, viver com ele. Conosco, corrigiu-se.No entanto, ao olhar à mulher aos olhos, não pôde decidir-se lhe dar esse conselho. Ademais, quem era ela para julgar a uma mulher que tinha passado por tudo o que passasse esta?Respirou profundamente.
-Nasci em mil novecentos sessenta e seis.Ao dizê-lo, observou à mulher para ver se ia refutá-la, mas nem sequer piscou, e Kady sentiu como se se abrisse um dique dentro dela. Não tinha consciência do muito que desejava falar com alguém do que lhe tinha sucedido.Uma vez que começou, creu que não poderia deter-se, e deveu seguir falando durante horas.
Ruth era a melhor ouvinte do mundo, enchia de novo a xícara cada vez que a esvaziava, sem perder em nenhum momento a expressão interessada, tão intensa que parecia consumí-la. De vez em quando, formulava alguma pergunta cortês como:- Mavis Bensons? -e sorria ante a resposta.Teve que conter o riso quando Kady lhe falou de Juan Barela, como se soubesse algo que a jovem ignorava.
Quando, por fim, Kady chegou ao final do relato, já tinha passado a tarde e, ao olhar os pratos vazios, sentiu-se envergonhada.
-Ao que parece, comi-me tudo e ocupei todo seu tempo, sem percatarme de que deve de estar ansiosa por ver a Cole.Disse-o como se não soubesse que Ruth Jordan tinha prometido não voltar a pisar Lenda.
Ruth não se moveu e permaneceu sentada sobre a toalha de mesa de damasco branco, com as mãos pregueadas sobre o regaço, a cabeça baixa, os olhos ocultos à olhada de Kady. Quando alçou a vista, esses olhos continham tanta angústia que Kady, por instinto, jogou-se para trás.
-Te creio -disse Ruth, depois de um momento.Kady sorriu.
-Não sê como pode crer-me. Viajar através do tempo não é algo que costume passar-lhe a uma pessoa, mas esta vez foi assim. Ruth agitou uma mão eliminando a explicação, E suas alianças chuviscaram ao sol.
-A viagem através do tempo é à parte fácil de crer. O difícil é aceitar que conheceste a meu neto.Por que é difícil de entender? Ah, já entendo. É difícil de crer que, de todos os personagens da história que poderia ter conhecido, cheguei a seu neto. -Se inclinou para Ruth - Eu também me o perguntei, Por Cole? Jamais conheci a ninguém que me precise menos. É rico, bonito, e montões de mulheres morrem por ele. Depois de tudo, é fácil de amar.
-E tu o amas? Kady se olhou às mãos.
-É possível amar a dois homens? -Baixou a voz Três, inclusive? Como Ruth não contestou, Kady a olhou e viu que sorria.
-Oh, sim, posso assegurar-te -disse Ruth com os olhos brilhantes - Eu sou a prova vivente de que uma mulher pode amar a mais de um homem.Durante longo momento, Ruth olhou ao fundo dos olhos de Kady.
-É muito jovem, querida. Muito jovem e inocente. Quando te olho aos olhos, não vejo dor. Nada nem ninguém te feriu tão profundamente que tua alma tenha ficado danada.Franzindo o entrecejo, Kady disse:- Perdi a meus pais e... Ruth a interrompeu:- De morte natural. Não te arrebataram a ninguém que não devesses ter perdido.
-Se isto é um concurso, espero perder -respondeu Kady, ainda ceñuda.Ruth guardou silêncio uns momentos, depois se voltou e disse em voz, mas alta:
- ¡Joseph! -Das sombras de umas árvores próximas saiu um homem alto, de têmporas encanecidas, com um uniforme plateado-. O conhaque, por favor, Joseph em poucos segundos, apareceram em mãos de Ruth um frasco de prata e duas xícaras diminutas. Encheu uma e se a deu a Kady.-Não, graças -disse Kady - Beber pela tarde me faz dormir ou me dá dor de cabeça.
-Quero que bebas, porque vais precisá-lo.Kady se pôs alerta.-Lhe passou algo a Cole? Não, claro que não. Acabo de deixá-lo, e ninguém veio dizer-nos nada.-Quero que bebas isto -disse Ruth, firme.Kady se inclinou para ela.
-Que está passando? Eu lhe contei tudo a respeito de mim, e por isso penso que me deve a cortesia de contar-me o que seja, sem pensar que vou precisar um trago de conhaque para suportá-lo.Como tomando coragem, Ruth fez umas inalações profundas e depois falou:- Agora estamos no ano mil oitocentos noventa e sete. Meu neto morreu quando tinha nove anos, em mil oitocentos setenta e três.
-Dirigiu a Kady uma olhada dura-. Faz vinte e quatro anos que está morto. Primeiro Kady se sentiu perplexa, depois sorriu, e por último se jogou a rir.-Isso é muito raro. Parece-me que quem quer lhe tenha dito que seu neto morreu lhe disse uma flagrante mentira. Deixei a seu neto faz umas três horas, e posso assegurar-lhe que estava bem vivo.
Por um momento, Ruth permaneceu sentada, com a copa de conhaque na mão, e depois o bebeu de um trago. -Está bem, querida minha, nos vamos?-Aonde? -perguntou Kady.-A visitar a meu neto, desde depois. O convite a jantar segue em pé, não é verdadeiro?Kady vacilou, não muito convencida de ir a nenhum lado.Pondo-se de pé, Ruth lhe tendeu a mão A Kady.
-Vêem, querida minha, iremos visitar a meu neto.Kady se pôs de pé, mas se apartou de Ruth Jordan. Quiçá as tragédias ocorridas anos atrás a tinham deixado demente. De repente, o único que lhe pareceu importante foi voltar junto a Cole. A Cole o homem, não o menino de nove anos.
Por um momento, Ruth permaneceu sentada, com a copa de conhaque na mou, e depois ou bebeu de um trago. -Está bem, querida minha, vamo-nos?-Aonde? -perguntou Kady.-A visitar a meu neto, desde depois. Ou convite a jantar segue em pé, nou é verdadeiro?
Kady vacilou, nou muito convicta de ir a nenhum lado.Pondo-se de pé, Ruth lhe tendeu a mou A Kady.-Vêem, querida minha, iremos visitar a meu neto.Kady se pôs de pé, mas se apartou de Ruth Jordan. Quiçá as tragédias ocorridas ânus atrás a tinham deixado demente. De repente, ou único que lhe pareceu importante foi voltar junto a Cole. A Cole ou homem, nou ou menino de nove anos.
O primeiro lugar ante o qual passaram foi a mina Amaryllis, que agora estava afundada e fechada com tabelas, com um cartaz rompido no que dizia: "A mina 930."-¡Mas essa é a Amaryllis! -exclamou Kady.-Amaryllis se chamava à irmã menor de Cole, que foi assassinada do mesmo modo que ele -disse Ruth com suavidade.Ruth ordenou ao cochero que percorresse um beco depois de outro, e Kady viu que tudo era diferente no povoado. Cada rua, cada casa, cada edifício tinha mudado. O que mais abundava no povo eram tabernas e, sobre elas, inconfundíveis bordéis.
A Cole não era o agradável edifício que Kady tinha visto senão um beiral ruinoso. Não estavam os campos de esporte nem a heladería. O encantador Mace Hotel era uma choça de tabelas que, a juízo de Kady, jamais tinha tido cristais nas janelas.
Não tinha calçadas nem espaços vazios, pois cada centímetro da rua estava coberto por casas de iniqüidade, uma depois de outra. Pelo que permitiam adivinhar os cartazes desteñidos, o jogo de casualidade era a maior indústria de Lenda.Demasiado atônita para falar, Kady permanecia sentada no carro e olhava, com a mente demasiado carregada para compreender o que tinha ouvido e o que estava vendo.Ao final do povo, sobre um caminho que tinha conhecido como Paradise Lane, mas que agora tinha um letreiro que o assinalava como Damnation Avenue, tinha uma parede semiderruida de pedra que, ao que parece, separava essa seção do povo da outra que tinham percorrido. Fazia poucas horas, ali tinha um pulcro cerco.
-A linha Jordan -disse Ruth baixinho.Tocou o ombro de Joseph e lhe disse que a partir de ali caminhariam. Dava a impressão de que Ruth sabia que Kady tinha sofrido um impacto demasiado grande para falar, mas que, pese a isso, precisava consolo, pois, uma vez que se desceram, tomou o braço da jovem no seu.
-Lenda era um lugar horrível -disse Ruth-. Pior do que possas imaginar-te. Em 1867, meu esposo e meu único filho, o pai de Cole, encontraram prata aqui. Eram homens bons e estavam resolvidos a não deixar que lhe ocorresse a este lugar o mesmo que a outros povos de minas de prata de Colorado. Não queriam um antro de corrupção, cheio de bordéis e tabernas; queriam que tivesse famílias, igrejas e Coles.-Ideaprontas -murmurou Kady, aferrándose do braço de Ruth como se pudesse cair-se se não o fazia.Frente a ela devia ter uma biblioteca, uma igreja à esquerda, mas, em mudança, tinha um par de construções improvisadas e terrenos.
-Eram bastante ideaprontas, e pensando que seriam ricos, creram poder levar a cabo seus planos. Bastaria com que se negassem a vender a terra ou as minas, e assim teriam o controle. -Ruth fez uma pausa e jogou uma olhada em torno do povo vazio e decadente-. Quando os mineiros rebatizaram o povo como Lenda, devemos adivinhar que nada resultaria. Meu esposo lhe tinha posto Acrópolis, mas algum piadista disse que devia chamar-se Sumidero, Colorado, e outro disse que a glória do lugar era uma lenda na mente de Adam Jordan, mas em nenhum outro lado. E Lenda ficou.
-Nunca sucedeu -disse Kady em voz fica, esforçando-se por compreender o que estava vendo e ouvindo.Em certo modo, podia aceitar que tinha retrocedido no tempo, e agora tinha que entender que tinha regressado a um sonho, a um lugar que jamais existisse. Tinha conhecido a um homem que nunca cresceu até chegar a uma idade viril.
Ruth a olhava com atendimento.
-Me parece que será melhor do que te sentes. Eu tive anos para assimilar isto, mas tu, querida minha, não tiveste tempo de recuperar-te nem de compreendê-lo sequer.Apoiando-se pesadamente no braço forte de Ruth, Kady se deixou levar por um caminho que, em outro tempo, chegava à mesquita. Mas não teve necessidade de perguntar para saber que não se tinha construído nenhuma mesquita em memória do amigo morto de Cole. Em seu lugar tinha uma casa antiga que sem dúvida era a estrutura mais sólida do povo. Em outro tempo tinha sido uma bela casa, com um grande alpendre, janelas e...-Vocês viveram aqui, não é verdadeiro? -lhe perguntou a Ruth.-Sim, toda minha família vivia aqui. O muro da linha Jordan separava essa parte da cidade desta, e Lily eu fizemos tudo o possível por manter aos meninos afastados dessa parte do povoado.
Tínhamos nossa própria igreja e nossa Cole, e esse pequeno edifício de lá, que nos agradava chamar biblioteca. Cole e nós passamos horas sonhando com o que seria Lenda algum dia. Íamos convertê-lo num centro de ensino, um lugar ao que iria gente desde quilômetros à redonda para ler, descansar e para desfrutar das fontes quentes. Era um menino com grandes planos para o futuro.
-E queria uma casa grande com um alpendre profundos e móveis de São Francisco -disse Kady.Ruth fez uma inspiração profunda.-Conseguiu ter essa casa?Kady passeou a olhada pelo caminho que tinha a sua esquerda, cujo final não podia ver.-Construiu uma bela casa por lá.Ruth guardou silêncio um momento e depois tomou a Kady do braço:- Vamos ver a localização?Uns minutos mais tarde, quando as duas deram a volta a uma curva do caminho coberto de ervas, a Kady não a surpreendeu ver que a localização da casa de Cole era um cemitério. Quando a avó de Cole quis fazê-la avançar no meio das lápides, fincou os calcanhares e não se moveu.
-Não quero ver onde está sepultado-disse Kady-. Não quero pensar em que nunca viveu até os trinta e três anos, e que nunca... nunca...Ruth não a pressionou.-Voltemos à casa e conversemos. Kady há uma razão para o que nos passou a ti e a mim, e temos que nos unir para deduzir qual é essa razão.Kady não pôde fazer outra coisa que assentir, e se encaminharam outra vez para a casa que em outro tempo Ruth Jordan tinha compartilhado com a família.
Quando subiam os degraus, Kady disse:- Por que se riu quando mencionei a Juan Barela?Ruth sorriu:- Estava tão fora da lei como tu ou como eu, Era um guapo moço de cabelo escuro, e seu pai trabalhava para nós nos estábulos, mas suspeito que teve um desacordo entre ele e Cole, e por isso meu neto juro que era um delinquente em ciernes.
Aqui entre nós, eu creio que alguma garota preferiu a Juan em lugar da Cole.Kady sorriu pela primeira vez desde que Ruth lhe tinha contado tudo.-E as cinco M?-Todas elas trabalhavam nos ... eh, salões, eram moças muito bonitas, jovens e inocentes, e se burlavam sem piedade de Cole e de Tarik. A pobre Cole se ruborizaba furiosamente cada vez que via a alguma delas.No alpendre da velha casa Joseph tinha posto lustres e cadeiras, com cobertores para cobrir as pernas já preparadas para proteger às duas mulheres do ar frio da montanha. Enquanto se acomodavam, tocou-lhe o turno a Ruth, e lhe expôs a Kady tudo o que tinha sacado em conclusão ouvindo Ia história de Kady.
Uns minutos depois, Ruth lhe falava a Kady a respeito dos amigos da infância de Cole, que eram adultos quando Kady os conheceu, ainda que eram vistos através da ótica de um menino. O dono da lavandaria, do que Cole dizia que tinha seis filhas, era em realidade um alcoólico que gastava em prostitutas cada centavo que sacava das minas e dormia na porta da lavandaria porque ali não fazia frio. Alento de Porco era um carreteiro chamado John Howard, ao que lhe encantavam as cebolas cruas.
O pai de Ned dirigia uma das tabernas, e Cole o invejava porque tinha permissão para beber cerveja.Ruth falou e falou, em voz leve e entretida, com episódios que as vezes faziam sorrir a Kady, mas quando o sol já se punha, Kady percebeu uma corrente subterrânea na voz de Ruth. Ou bem calava algo, ou ia acercando-se a algo terrível.
Pouco depois da queda do sol, um silencioso Joseph, quase invisível, serviu-lhes frango frio e salada, Kady disse baixinho:- Que é o que está ocultando-me?-Não tenho idéia... -começou a dizer Ruth, mas se interrompeu ao ver a cara de Kady-. Deduzo que não tenho tempo de fingir que tudo está bem, não é verdadeiro?-Não, eu diria que não. Eu creio que já é muito tarde para ocultar-me nada. Seja qual for a razão pela que resultei eleita, já estou metida até o pescoço.
Quando Ruth voltou a falar, sua voz tinha mudado. Já não tentava ser entretida. Contou-lhe a fúria e a dor que tinha sentido quando recebesse a carta de Kady, porque suspeitou que se tratava de uma nova tentativa de sacar-lhe dinheiro.-Mas tua carta foi diferente. Falavas de Cole como se quisesse retorcer-lhe o pescoço.Kady sorriu.
-Sim, com freqüência. Tem algo que provoca esse desejo, Não pergunta, senão que lhe diz a uma que fazer. -Conteve o alento - Ou, mais bem, dizia-lhes às pessoas.Ruth prosseguiu:- Durante anos, teve notícia de que Lenda está enfeitiçada. A alma das pessoas que alguma vez viveram ali, ao que parece, segue viva. Pelo menos, em certo modo.
-Que lhe passou ao povo de Lenda depois de que morreram Cole e sua família?Como Ruth não respondeu de imediato, Kady a olhou fixamente e viu que estava tão comocionada que parecia ter envelhecido dez anos nuns minutos. Ou Kady se equivocava, ou Ruth ocultava grandes segredos, e ao ver que não lhe contestava diretamente, soube que estava no verdadeiro.
-Ignorava que Cole soubesse que sua família tinha morrido -disse Ruth, em voz fica - Aquele dia horrível tratamos de ocultar-lhe a verdade. À irmã e ao amigo, Tarik, mataram-nos de imediato, mas Cole durou três dias. Dissemos-lhe que eles estavam bem, e que não podiam visitá-lo porque tinham que ir a Cole.
Conquanto era uma pobre desculpa, no meio dessa situação parecia viável, e Lily e eu cremos que Cole a tinha aceitado. Durante esses três dias, não me apartei um minuto de Cole. A mãe se ocupava do corpo de sua filha, e depois de...Titubeando, olhou a Kady.
-Lily se ocupou de sua filha e, depois preparou o de seu esposo e o do meu quando os trouxeram, assassinados pelos homens que tinham roubado o banco. -O formoso rosto de Ruth adquiriu uma expressão amarga e sua boca se torceu numa careta - Não foram os delinquentes os que mataram aos meninos senão os "bons" vizinhos de Lenda.
Por uns momentos, Ruth ocultou seu rosto a Kady, fixando a vista na escuridão da noite. Quando voltou a olhá-la, tinha-se recuperado o suficiente para sorrir-lhe.
-Essa noite perdi a todos. Três dias depois do tiroteio, a única que ficava viva era Lily, a mãe de Cole, e eu via em seus olhos que estava retraindo-se. Não podia defrontar ao que lhe tinha sucedido a toda a gente que amava.
Ruth guardou silêncio outra vez, mas Kady soube que tinha mais do que contar, quiçá bem mais, ainda que sem dúvida lhe resultava difícil encontrar as palavras. Kady ficou calada e esperou; o único que se ouvia era o vento entre as árvores e um coyote ao longe.
-Não posso descrever esses dias de horror -começou a dizer Ruth lentamente e em voz tão baixa que Kady quase não podia ouví-la-. Agora mal posso recordá-los. Meu marido, meu único filho, meus dois netos, todos mortos. Depois da morte de Cole, Lily se tornou catatónica. Não fazia mais do que ficar sentada na mexedora, sem querer comer, nem chorar sequer. Olhava pela janela de um modo que dava a impressão de que ela também poderia estar morta.Tomou alento.
-A única pessoa que ficava viva era o pai de Tarik, que trabalhava para nós -disse, e se lhe suavizou a expressão-. ¡Oh, que homem tão bonito era! Tão moreno como loira minha família. Corria o rumor de que tinha seduzido à metade das mulheres de Lenda; se o fez, tinha sido muito discreto. Era um homem silencioso, muito devoto de meu esposo e sempre amável, sempre cortês.
-Essa semana infernal, depois de que todos morreram, Gamal (esse era seu nome) seguia vivo. Quando soaram os primeiros disparos, de um salto se pôs adiante dos meninos, mas recebeu meia dúzia de balas na perna esquerda e ficou imobilizado. Uns dias depois, lhe amputaram a perna e por um tempo, cremos que viveria, mas depois seus olhos começaram a arder de febre e então soube que ele também ia morrer.
Os olhos de Ruth que olhavam a Kady ardiam de tal modo como se ela também tivesse febre. -Era o último laço com minha família. Bastava-me com olhar a Lily para saber que só seria questão de tempo que ela se matasse. Ruth a olhava como lhe suplicando entendimento, mas Kady seguia sem poder entender o que tratava de dizer-lhe.
Salvando a curta distância que as separava, apertou a mão de Ruth. Quando falou, a mulher o fez em tom quase desafiante. -Quando Gamal me abriu os braços, eu fui para ele e passamos a noite fazendo amor. À manhã seguinte, ele ardia de febre e já nunca recobrou a lucidez.
Dois dias depois, estava morto. Ruth manteve o perfil para Kady, como esperando censura, mas a jovem se limitou a apertar-lhe a mão mais forte, dando-lhe ânimos para continuar.
-Essa noite concebemos um filho.Ruth ficou imóvel, como se esperasse o juízo de Kady sobre sua pessoa, mas uma mulher do século vinte via as coisas desde uma perspectiva muito diferente que uma do século dezenove.
-Varão ou menina? -perguntou Kady.Um sorriso quase imperceptível demonstrou que Ruth agradecia o fato de que Kady não a julgasse, e afrouxou a tensão dos ombros como se se tivesse tirado de em cima um pesado ônus.
-Naquele momento, nem pensei na gravidez. Eu tinha quarenta e oito anos, e já tinha tido faltas durante dois meses. Depois dos funerais, mudei-me com Lily a Denver a ver se podia achar a um médico que pudesse voltá-la à vida. Em parte a invejava; eu também tivesse querido apartar-me do mundo. Como podia pensar na vida depois de toda a morte que tinha visto?
-Quanto aos sintomas de gravidez, parecia-me normal sentir-me tão mau. E como fazia trinta e dois anos de minha última preñez, não recordava bem os sintomas. Passava todo o dia cuidando a Lily, e por isso poucas vezes vestia outra coisa que a bata.Por fim, voltou-se para olhar a Kady, que a contemplava com os olhos muito abertos, fascinada pela história. Aonde iria parar?Ao ver o rosto de Kady, Ruth se relaxou um pouco mais.
-Finalmente fui ver a um médico quando o menino começou a dar pontapés. Deixou vagar a olhada ao longe, com ar sonhador.-Esse foi o dia mais estranho de minha vida. Fui ao médico sabendo que dentro de meu ventre algo andava mal e, ainda que sei que é pecado, rogava que fosse algo terminal, pois queria reunir-me com minha família no céu.Voltou-se outra vez para Kady.
-Mas saí do consultório com idéias de vida. Tinha esquecido que Deus dá além de tirar.Kady seguiu calada, porque compreendia que aí não acabava a história. Se Ruth tivesse dado a luz a um menino e depois todos tivessem vivido felizes, Kady não teria passado através do tempo para aterrizar no meio de semelhante situação.
-Cometi muitos erros na vida -disse Ruth com suavidade-, mas nenhum lamento tanto como o que fiz quando soube que ia ter um menino.Aferró com tanta força a mão de Kady que quase a fez gritar de dor.
-Depois da morte de minha família, estava insensível, não me importava se vivia ou morria. Não tinha nada dentro de mim: nem ódio, nem amor e em realidade, também não idéias de vingança.Soltando de repente a mão de Kady, Ruth fincou a vista na noite. Estava ascendendo a lua e se fazia tarde, mas Kady jamais se tinha sentido tão despabilada na vida.
Ruth prosseguiu:- Quando soube que uma vida crescia dentro de mim, o único que pude pensar foi em proteger a esse menino. Sem importar o que custasse em dinheiro, sangue ou lágrimas, ia proteger a este menino de tudo mau.Apertou os lábios.-O primeiro que fiz foi converter minha casa de Denver numa fortaleza. Jamais teve prisão mais segura do que minha casa e meu jardim. Guardas armados com cachorros patrulhavam os campos noite e dia.
Não se permitia entrar na propriedade a nenhum provedor, e os serventes que entravam e saíam eram minuciosamente registrados.Por um momento se interrompeu como se rememorasse o passado; quando falou sua voz foi fica, funda de emoção.
-Já passaram muitos anos, assim que é difícil explicar por que meu ódio tomou essa direção. Talvez deveria ter odiado aos que roubaram o banco, mas não os odiei. Eles não dispararam um só tiro no povo. Não, foram os cidadãos de Lenda, com seu exagerado zelo, os que dispararam. Uns tinham armas de fogo, a metade deles não as tinham usado jamais, mas aquele dia, quando viram que se lhes ia a prata, abriram fogo. Esse dia mataram a três meninos, E a três adultos nos dias seguintes. Tudo por conservar essa prata sangrenta.Os olhos que voltou para Kady ardiam.
-Podes entender o ódio que sentia? Eu levava a um menino dentro, e não cabia a mais mínima dúvida de do que esse menino seria a única família que teria o resto de minha vida. Tinha que o proteger do povo de Lenda.
-Mas você estava em Denver -repôs Kady, com suavidade.
-Assim é. -Ruth se voltou e deixou perder a olhada na noite. Não trates de encontrar-lhe sentido, porque não o tem. Eu estava enlouquecida, não estava em meu são juízo.Conquanto Kady esperava não ter que aprender nunca da experiência, era fácil adivinhar que uma dor muito funda podia impulsionar a uma pessoa a cometer atos irracionais.
-Que fez?
-Fechei Lenda. Como meu esposo e meu filho se tinham aferrado a cada centímetro de terra na esperança de criar uma Utopia, eu possuía tudo Lenda. Fiz estourar as minas de maneira que não pudessem explodí-las, Contratei guardas com cachorros para patrulhar o povo vazio. Não permiti nem a um vagabundo viver ali.
A Kady lhe levou uns momentos digerir a informação.-E daí passou com a gente que vivia em Lenda?Por uns instantes, Ruth olhou a lua e demorou em responder.-Por suposto, marcharam-se, odiando-me tanto como eu a eles. Oh, claro que os donos das tabernas e as garotas, ou inclusive os mineiros, podiam conseguir emprego em qualquer parte; mas meu marido e meu filho tinham trabalhado no duro para levar A Lenda a famílias decentes, e naquele tempo tinham variado vivendo ali. Tinham feito jardins e arrumado as casas; tinham fundado lares para eles e suas famílias.Quieta, na escuridão, Kady tratou de imaginar-se a raiva que deviam de ter provocado os desalojos de Ruth.
Uma versão em pequeno da Impressão Cherokee das Lágrimas.Ruth falou em voz muito baixa.
-Esse inverno teve uma epidemia de cólera e morreram muitos dos primeiros residentes de Lenda, entre eles alguns amigos de Cole. Os pais me enviaram fotos de seus filhos mortos. Eles...Interrompeu-se para tomar alento.-Me amaldiçoaram. Uma anciã me cuspiu na rua e me desejou que meu neto morto me perseguisse para sempre. E que meu novo filho chegasse a odiar-me.
Kady se esfregou os braços, sentindo que se lhe fazia pele de galinha. Ainda que não era católica, desejou persignarse ao ouvir falar de tanta maldade.
-Tudo se cumpriu -disse Ruth-. Cole ronda por este povo, desesperado por crescer, amar, ter seus próprios filhos. E meu filho vivo...Kady escutou o relato de Ruth de como tinha mantido prisioneiro a seu filho menor, sem permitir-lhe sair da propriedade. Quando o menino tinha três anos, recebeu uma ameaça de seqüestro de uma pessoa que tinha vivido em Lenda, e por isso Ruth redobrou seus esforços por mantê-lo a salvo.
Quando se deteve como se não fosse falar mais, Kady, perguntou:
- Que lhe passou a seu filho menor? -e se preparou para ouvir outra tragédia.
-Quando tinha dezesseis, saltou a perto e fugiu. -Se tomou tempo para voltar a falar-. Deixou uma carta na que me dizia que meu ódio para Lenda era mais forte do que meu amor por ele. Que eu tinha permitido que a pena pelos mortos superasse meu amor pelos vivos.
Olhou a Kady.
-Ao princípio estava furiosa e, como de costume, culpei ou Lenda por arrebatar-me outro ser amado, mas à medida que passavam os meses, e depois os anos, cheguei a compreender que meu filho tinha razão. Era eu a que tinha perdido ao único filho que ficava. Não podia culpar a nenhuma outra pessoa desta tragédia.
-Teve notícias dele?
-Si. Durante anos não soube nada e, então, faz seis meses, escreveu-me uma carta. Está em Nova York, tratando de construir sua vida, Não quer ajuda de minha parte; a dizer verdade, não quer nenhum contato comigo. Está...
-Furioso -disse Kady, tratando de imaginar-se a um menino que tivesse crescido prisioneiro de uma mulher obsedada pelo ódio.
-Sim -disse Ruth com suavidade-, meu filho está muito, muito furioso.Quando Ruth se voltou para olhá-la, Kady soube de maneira instintiva o que ia dizer. E o que mais queria no mundo era não a ouvir. Ruth Jordan ia pedir-lhe ajuda. Ia pedir-lhe que a ajudasse com o povo de Lenda, e que a ajudasse com seu enfurecido filho menor.Mas antes que Ruth pudesse falar, Kady levantou a mão.
-Creio que devo falar-lhe de mim. Penso que há coisas que deve conhecer a respeito de mim. Não queria vir aqui, não quero estar aqui, e tenho intenções de voltar, de imediato, a meu próprio mundo, junto ao homem que amoo.
Pensou que, ao fim, tinha-o dito. Apartando o cobertor que lhe cobria as pernas, pôs-se de pé e começou a caminhar pelo alpendre. Já era muito tarde e não faltava muito para o amanhecer. Quando começou a falar, tratou de evocar a imagem de Gregory e de Onions. Queria recordar um mundo cheio de automóveis, aviões e computadoras. Nesse momento, a parafernália atômica lhe parecia segura comparada com as disputas sangrentas nas que figuravam maldições e fantasmas.Em decorrência dos acontecimentos, Kady nunca conseguiu entender por que tinha sido ela a eleita para retroceder no tempo, e agora sabia que tinha ido conhecer a um homem que jamais cresceu para chegar a sê-lo. Nesse momento, não queria pensar em Cole porque, quando o fazia, recordava demasiadas coisas dele que tinha chegado a amar. ¡Não!
¡Não! Corrigiu-se, não tinha ido para amar a Cole. Estava apaixonada do agradável e seguro Gregory, um homem que tinha vivido seus trinta e um anos como humano, não como fantasma, um homem a cuja mãe ninguém tinha lançado uma maldição (exceto alguns provedores do restaurante).
-Tem você muito dinheiro? -perguntou Kady.
-Muitíssimo.-E por que não reconstrói Lenda? Poderia convertê-lo no lugar que sonhava Cole. Talvez tenha sido por isso pelo que fui enviada a este lugar, para averiguar que queria Cole e transmitir-se a você.Ruth arqueó uma sobrancelha.
-Quem quereria viver nas montanhas de Colorado?Isso fez sorrir a Kady.-Quiçá deveria falar-lhe do esquí que se pratica montanha abaixo.
-Entendo, e crês que se convertesse o povo de Lenda num pequeno povo turístico, isso emendaria todos os males?
-Não sei se se podem emendar os males -se apressou a replicar Kady, rogando para seus adentros que Ruth não lhe pedisse que ficasse.Nesse preciso momento, o único que queria no mundo era voltar a seu próprio tempo e lugar e estar com pessoas que lhe resultassem familiares.Enquanto Kady se passeava, nervosa, Ruth a observava.
-Querida, por favor, senta-te. Se te moves assim, inquieta, Joseph não pode dormir.Kady não tinha visto ao ancião tendido sobre um par de cobertores no extremo mais afastado do alpendre, que nesse momento se incorporava sobre o cotovelo e olhava, sonolento, às duas mulheres. Voltou a sentar-se na cadeira.
Ruth lhe tomou a mão e se a oprimiu.-Não vou pedir-te que fiques. Para que? Que poderias fazer agora que não tenhas feito já? Deste-lhe o meu neto uma possibilidade de viver por um tempo. Deste-lhe a oportunidade de vingar-se.
-De vingar-se? -repetiu Kady, alarmada.-Quando chegou tua carta dizendo-me que eras minha neta política e o cabezón de meu neto te retinha prisioneira, atirei a carta ao lixo. Durante anos, acostumei-me a essas odiosas jugarretas, e sempre as ignorava. Mas, ao dia seguinte, Joseph me levou um recorte de jornal.Do interior de um bolso, astutamente escondido na manga do vestido, Ruth sacou um bocado de jornal e se o deu a Kady, mas quando o acercou à luz para ler, Ruth falou:
-Diz que foi emendado um grande mau. Nunca foram atrapados os homens que roubaram o banco de Lenda faz tantos anos. Meu filho e meu esposo resultaram mortos perseguindo aos três ladrões, que pareceram desvanecer-se na montanha. Não se acharam rastos deles. -Anos depois, apareceu em Denver um homem com uma enorme quantidade de prata (foi muita a que sacaram do banco de Lenda), e se rumoreaba que era um dos ladrões, e que tinha assassinado a seus secuaces. Ninguém pôde provar nada, e o sujeito foi hábil para comprar o silêncio dos pesquisadores.Ruth olhou a Kady.
-Faz três dias, encontrou-se a um homem morto em seu estudo, com uma faca atravessada no coração. A pessoa que o matou não disparou um só tiro. Passou em silêncio sobre um muro alto, lutou com vários guardas e entrou no estudo, Sobre a escrivaninha do homem se encontrou uma confissão assinada da participação no assalto a Lenda faz tantos anos.Os olhos de Ruth sondaram a Kady.
-A faca achada no peito do homem tinha uma medalha no cabo, uma dessas que entregavam por um ano completo de assistência à Cole dominical.
-Fez uma profunda inspiração-. Pedi-lhe ao comissário que me mostrasse à faca: era a medalha de Cole, e eu... Tinha-me cerciorado de que o enterrassem com ela.
Apartando a cara para não ver a dor de Ruth, Kady recordou o aspecto que tinha Cole quando regressou depois dos dez dias de ausência: sangrava-lhe o ombro de um corte profundo e tinha muitas magulladuras na cara e o pescoço. Pensando-o nesse momento, se lhe revolveu o estômago ao pensar na inutilidade da vingança. Matar a esse homem não tinha devolvido a ninguém à vida.Ruth continuou:- Junto com a confissão tinha um testamento, testemunhado e legal, por meio do qual o homem deixava seus milhões para construir orfanatorios em tudo Colorado.
De repente, Kady sentiu que era demasiado e, pondo a cabeça nas mãos, rompeu a chorar. Pensou que Cole tinha sido a melhor pessoa que tinha conhecido, a de coração mais puro. Ainda que estivesse mal matar por vingança, tinha podido usar para fazer o bem esse dinheiro que tanto sangue tinha custado.Ruth permaneceu em silêncio longo momento, deixando que Kady chorasse com o rosto oculto nas mãos, deixando-a em paz; só a interrompeu para oferecer-lhe um lenço.
Quando lhe pareceu que a moça podia recuperar o controle, disse:-Agora quererás voltar a teu tempo.
-Sim -disse Kady com voz suave-. Quero voltar a casa. Penso que já fiz o que tinha que fazer aqui. Cole teve sua oportunidade de... de viver."Mas não de amar", pensou. Em isso, tinha-o defraudado. Mas como podia amá-lo se seu coração pertencia a Gregory?De repente, Ruth disse:
-Quem pôs o vestido de casamento na velha caixa de farinha?-Como diz?-Estava pensando em tua versão de que encontraste o vestido de noiva e o relógio de meu filho dentro de uma velha caixa de farinha. Quem os pôs aí?-Não tenho idéia. Supus que seria o vestido da mãe de Cole, mas... -Ao recordá-lo, sorriu - Mas Cole me contestou que não tinha estado no casamento, assim que não sabia o que se tinha posto sua mãe.Ao recordar a brincadeira de Cole, esteve a ponto de chorar de novo.-Descreve-me o vestido.
A Kady se lhe ocorreu que não era momento para falar de modas, mas, como lhe pareceu que era importante para Ruth, começou a descrever o encantador vestido com as mãos.Não tinha dito três frases, quando Ruth disse:
-Não é essa saia. A saia não corresponde. Minha nora se casou em mil oitocentos sessenta e três, e nessa época as saias eram muito amplas, com aros, mas teu vestido tinha um polisón. Teu vestido de noiva era do estilo de mil oitocentos setenta e três.-E se não foi feito para a mãe de Cole, para quem, pois?Ruth a olhou enarcando uma sobrancelha.
-Oh, não, não crerá que foi feito para meu. Sei que me vai, mas quem podia saber que eu era... Quero dizer, quem pôde adivinhar que... ? -Eu -repus Ruth com singeleza-. Eu pude ter encarregado o vestido e tê-lo posto numa caixa de hojalata.Kady abriu várias vezes à boca para falar, e voltou a fechá-la outra tanta. Por fim, deixou-se cair contra o respaldo da cadeira.
-Isto não faz sentido. Parece um desses assuntos de saber que está primeiro, se o ovo ou a galinha. Eu encontrei o vestido antes de conhecê-la a você.
-Sim, mas segundo tu mesma admitiste, agora estamos quase cem anos antes que encontres o vestido. Que me impediria encarregar o vestido e pô-lo nessa caixa?-Isso significa que tudo vai voltar a suceder? Que vou encontrar a caixa e regressar a Lenda, preparar um banquete, e...?Interrompeu-se, ante essas recordações tão frescas e dolorosas.
Por um momento, tratou de aclarar-se os pensamentos e pensar no que estava passando.
-Que é o que quer de mim? -lhe perguntou a Ruth com cautela-. Aonde quer chegar?-Quisesse que trouxesses à vida a Cole. Quisesse que detivesses as mortes em minha família, e inclusive.
-Enguliu-. Inclusive quisesse que Lenda pudesse viver. Mas não me imagino como poderia conseguir-se isso, Kady -disse, sorrindo-. Estou agradecida pelo que lhe deste à meu neto. Oxalá tivesse podido vê-lo como homem, mas sei que, de ter vivido, teria tido o aspecto que descreveste e atuado tal como disseste.
Kady esperava que caísse o outro sapato, porque estava segura de que Ruth ia a pos de algo.-Que é o que quer de mim? -repetiu.-Quando voltes a teu próprio tempo, quero que comproves se tive descendente. Quero que os encontres.Kady sorriu.-E daí lhes direi, que conheci a seu tataratatarabuela em 1897? Ou que tive uma grande aventura com sua tataraprimo... ou como se diga, de adulto ainda que, em realidade, ele morreu quando tinha nove anos? E que tudo sucedeu faz mais de cem anos?Ruth riu.
-Soa um pouco estrafalario, não?-E daí me diz com respeito a Gregory? -perguntou Kady - Não se ofenda, mas vocês, os Jordan, tendem a esquecer-se do homem que amoo. O homem com o que vou casar-me. Por alguma razão, não creio que ele vá entender nada disto.
-Vais contar-se? -perguntou Ruth, incrédula.-Contar-lhe que passei os últimos dias anteriores a meu casamento com outro homem? Impossível.-Está bem, entendo. Não vou pedir-te que prometas nada. Já fizeste mais do que suficiente por minha família, por todos nós, tanto vivos como mortos, mas promete-me que, se se apresenta a oportunidade, visitarás a meus descendentes. Se sou tão afortunada como para tê-los, quero dizer.
-Está bem, prometo-o -disse Kady, e bocejou.O céu começava a sonrosarse, e nesse momento o único que desejava era acostarse. Falou-lhe a Ruth dos petroglifos, e Ruth lhe contou que todos os habitantes de Lenda sabiam onde estavam: outra das pequenas brincadeiras de Cole.
-Está pronta para ir-te a casa, querida?-Sim -respondeu Kady, sincera.Já tinha tido suficiente de viagens pelo tempo e bruxarias. Agora o único que queria era dormir umas horas e depois ir ver a Gregory. Desde esse momento, só queria uma vida normal. Normal e aborrecedora.
-Joseph! -exclamou Ruth com vivacidade, e o homem apareceu ao instante junto a sua cadeira, para ajudá-la a levantar-se.
Kady teve a impressão de que Ruth parecia bem mais jovem quando a visse pela primeira vez. Nesse momento, percebia-se que não lhe ficava muito tempo sobre a terra.Foram no carro até além da Árvore do Enforcado, e quando saiu o sol, Kady distinguiu os vadios contornos do povo abandonado. A onde olhasse, parecia-lhe poder ouvir vozes que lhe gritavam:
-Oi, Kady.-Graças, Kady.-Excelente comida, Kady.Foi um alívio que Ruth a distraísse com perguntas. Enquanto viajavam, Ruth anotou num pequeno caderno dados da vida de Kady no século vinte: onde tinha nascido, o sobrenome da mãe, do pai, a direção em Alejandria.
Rindo, Kady lhe deu também seu número da segurança social.
-Oxalá soubesse também o número de meu passaporte.Ruth não sorriu sequer.-Em que data te encontraste com Cole? -lhe perguntou, e, quando se o disse, continuou-: Te darei seis semanas a partir de então. Se para essa data não te puseste em contato com meus descendentes, ficará claro que já não vais encontrá-los.
-Me parece justo -respondeu Kady, quando o carro se deteve junto à base das rochas que tinha chegado a conhecer bastante bem nas últimas semanas.-Estás segura de que se abrirá? -perguntou Ruth, como se esperasse que Kady tivesse que se ficar no século dezenove para sempre.
-Penso que é como as sandálias de rubi de Dorothy, e sempre pude regressar a minha casa.Ao ver a expressão intrigada de Ruth, sorriu e, obedecendo a um impulso, abraçou à anciã e estreitou seu corpo frágil.
-Graças, Kady -sussurrou Ruth - Obrigado pelo que fizeste por meu neto. -Apartando-se, olhou a Kady e, igual que o neto, passou-lhe um cacho negro por trás da orelha-. Graças pelo que fizeste por mim. Vou fazer o que possa para consertar o dano que tenha causado a meu filho menor. E quiçá, se posso, farei algo com respeito a Lenda. -Baixou a voz-. Se me fica tempo. Kady não quis pensar no que isso significava. Quando regressasse a Virginia, Ruth estaria morta desde muitos anos atrás.
Quando Kady fez ademanes de descer-se, Ruth lhe disse a Joseph que fosse com ela, mas Kady disse que não, que queria ir só. Pela olhada de Ruth, soube que compreendia que ela queria dizer adeus a Cole, porque cada centímetro do caminho que subia a montanha lhe recordava o tempo passado com ele.
Depois de um último apertão de mãos, Kady se voltou e correu para o caminho da montanha com toda a pressa que pôde. Tinha terminado seu tempo no passado, e era preferível deixá-lo atrás. Agora tinha que olhar para o futuro, para o futuro e para Gregory... o homem que amava.Quando chegou aos petroglifos, não a surpreendeu encontrar-se com um quadro familiar: a abertura na rocha, através da qual podia ver seu apartamento com a caixa de farinha no solo, o sujo avental de cozinheira atirado sobre o sofá. Sem permitir-se uma olhada atrás, traspuso de um salto a abertura e, num instante, o buraco se fechou depois dela.
Por um momento, só no apartamento, olhou ao redor. Fazia mais de duas semanas que não estava ali, e não tinha idéia do tempo que tinha decorrido no século vinte. Desorientada, tomou o controle remoto do televisor e, depois de olhar o instrumento como se provisse de outro planeta, acendeu o aparelho, pôs o Canal Dois, e viu que eram as duas da madrugada do dia em que se tinha ido.
Não tinha passado nada de tempo.Ainda incômoda, pulsou o botão da secretária eletrônica; o único que ouviu foi uma voz de computador tratando de vender-lhe papel de alumínio. A seus pés, sobre o tapete barato, manchado, do apartamento, estava a caixa de farinha, vazia. Não estava o vestido de noiva nem o relógio de Jordan, e também não a fotografia de uma família antanho feliz. Tudo isso tinha ficado em Lenda. O que tinha era a roupa que levava posta: uma longa saia camponesa, blusa de algodão e um largo cinto de couro. Nada demasiado notável; nem sequer tinham aspecto antiquado. Não tinha absolutamente nada que demonstrasse que acabava de regressar de uma aventura extraordinária.
Por um momento, a solidão a abrumó de tal maneira que creu que ia derrubar-se sobre o solo a chorar, mas não ia permitir-se. Não ia permitir-se chorar por um homem que jamais tinha vivido para transformar-se no homem que conheceu. Ia pensar em tudo como o fazia Ruth: que lhe tinha dado a Cole algo que de outro modo, não tivesse tido.Sorrindo, pensou em Scarlett:
- Amanhã pensarei em isso. Se o penso agora, me voltarei louca.Ainda sorrindo, foi ao dormitório e se atirou sobre a cama. Dormiu-se de imediato.
CAPÍTULO 17
O primeiro que pensou Kady ao acordar foi: "Onde está Cole e por que a casa está tão silêncio?" Decorreu um minuto até que compreendeu que estava em seu lar de Virginia, em sua própria época. E, o mais importante, em casa com Gregory.
Sorrindo, baixou-se da cama sentindo-se um pouco endurecida e dolorida pelo esforço dos últimos dias.-Será melhor não pensar em isso -disse em voz alta, enquanto se dirigia ao banho e, por um instante, permaneceu ali maravillándose pelo quarto balnear moderno.¡Água corrente! ¡Inodoro com cisterna! ¡Água quente!Deu-se um chuveiro tão longo que quase a despellejó, e depois dedicou meia hora a masajearse o corpo com uma loção.
Pelo geral, tinha tanta pressa por chegar ao trabalho a seu devido tempo que não lhe ficava tempo para fazer algo tão hedonístico, mas esse dia...Enche de pânico, olhou o relógio e viu que era as dez da manhã, mas, quando se acalmou, recordou que era domingo, e que Onions estava fechado. Ainda assim, pelo comum a essa hora do domingo já estava metendo algo no forno. A Gregory e a sua mãe lhes agradavam sentar-se a comer uma comida ligeira a isso das duas, e Kady se orgulhava da que lhes preparava.
-Tudo bom se hoje lhes preparo serpente? -murmurou, rindo.Foi para o armário. Era um pequeno armário ao que podia entrar, que por sua modéstia ressaltava mais ainda a escassez da vestimenta de Kady. Franzindo o entrecejo, apartou os cabides e avaliou as prendas para as partes superiores do corpo, enorme e ordinária. Podia ouvir o reproche de Jane:
-Talvez não tens nada menor que uma loja de circo? De onde sacas essa roupa?Kady nunca tinha contestado a sua amiga; limitava-se a ficar com os lábios apertados, pensando que para Jane estava muito bem usar roupa cingida, tendo em conta que ela tinha uma talha pequena, mas o que Kady queria era ocultar o melhor possível o vulto de seu corpo. Esse dia, enquanto revisava suas escassas roupas, Kady se sentia diferente. Talvez fosse porque todos os homens de Colorado lhe tinham proposto casal, ou pelo incessante atendimento de Cole. Kady saiu do armário, foi para a enorme cômoda do dormitório e se pôs a registrá-la.
O Natal anterior Jane lhe tinha presenteado uma blusa vermelha, e anos atrás uns brincos. Oxalá pudesse encontrá-los.Uma hora depois, Kady entrou em Onions, e o primeiro que viu foi a Gregory sentado ante uma das mesas, com um jornal adiante da cara e uma xícara de café na mão. Ao voltar uma página, alçou a vista um segundo para Kady e depois se concentrou de novo no jornal.
Ao vê-lo, a Kady se lhe cortou o alento. Fazia muito que não o via e, desde então, tinha passado muito tempo com outro homem. O saberia ele? Perceberia a culpa em seu rosto? Sentiria que tinha nela algo diferente?
-Mamãe fez café -disse Gregory sem olhá-la-. Poderia morrer-me por isso, mas creio que o resistirei.Sorrindo, Kady foi para a cozinha.-Já vem o café."Nada mudou", pensou com alívio. Para Gregory fazia só umas horas que não a via. Não tinha idéia de que Kady tinha estado ausente durante dias, nem de que tinha...
Ao passar junto a ele, jogou-lhe uma olhada ao perfil e pensou, por millonésima vez, no bonito que era. Quase tão guapo como Cole, pensou depois, e para sacar-se essa idéia da cabeça lhe tirou o jornal das mãos e se sintou em seu regaço. Tomou-lhe a cabeça com as mãos, posou os lábios sobre os dele e o beijou mais profundamente e com mais paixão que nunca.
-Eh, que é isto? -perguntou Gregory com tom de desaprobación, sujeitando-lhe as bonecas e apartando a cara-. Antes do café da manhã?-Te senti -disse Kady, deslizando-lhe os braços pelo pescoço e abraçando-o.
-Bueno, eu também te senti -lhe respondeu, mas a apartou outra vez, e em seu rosto bonito apareceu uma expressão ceñuda-. Kady -disse com severidade-, creio que há uma hora e um lugar para tudo, e um domingo pela manhã, no meio de Onions, não é essa hora nem esse lugar.Kady começava a sentir-se incômoda, mas tratou de tomá-lo com ligeireza.
-E se vamos à minha casa? -disse, com o que supunha uma expressão lasciva.Jogando-se para trás, Gregory a observou um instante.
-Que raios te sucede hoje? O que vestis-te hoje?
-Te agrada? -perguntou, olhando-se-. Tem lycra. Jane disse que se ela tivesse... Bom, se estivesse tão dotada como eu, se exibiria, e por isso me a presenteou.
-Olhando a Gregory -agitou as pestanas - Te parece que me destaca?O cenho de Gregory se tinha feito mais sombrio ainda.-Se a perguntas é se me agrada ver como te extravasa da roupa, a resposta é não.
A Kady se lhe alumiou o rosto:- Zeloso?-Não muito -disse, como se a idéia o divertisse-. Mas não é muito saudável, e assim, com tua parte de acima nua, poderias queimar-te na cozinha. Kady, querida, ainda que esta postura é muito prazenteira, se me dorolham as duas pernas. Não és leviana como uma pluma, verdade?
Kady se levantou inesperadamente.-Não, claro que não -se apressou a confirmar-. Prepararei-te café e me porei a preparar o almoço do domingo.
Deu-se à volta, rígida, mas Gregory a reteve do braço.
-Kady, meu céu, tens um aspecto estupendo. Em sério, mas preferiria que te exibisses para mim e não para todo mundo.Deu-lhe um beijo no dorso da mão, e Kady saiu do salão, sorrindo, sentindo que se alegrava de estar em casa.
-A ti te sucedeu algo -disse Jane com voz suave-, e penso averiguar de que se trata. Estavam numa mueblería, em Tyson's Corner Mall, e Kady vistoriava cada uma das peças do enorme salão de exposição.-Por isso ainda estás aqui? -lhe perguntou Kady, enquanto olhava a etiqueta do preço de um sofá de veludo verde - Como ficará isto com os lustres lacadas que comprei no leilão? E com o tapete novo?-¡Tapete novo, sofá novo, lustres novos! ¡Disso, precisamente, estou falando. Que te sucedeu?
-A gente está olhando-nos -disse Kady com acalma, porque Jane tinha levantado a voz.-Vão olhar mais quando eu agarre um cordão dessas cortinas tão caras, amarre-te a essa cama de ferro, e te deixe aí até que me contestes.
-Não sabia que eras tão irritable -repôs, mas ao ver que Jane não sorria, suspirou - Já te disse centos de vezes que não me passa nada. Sucede que vou casar-me e estou elendao coisas para minha casa. E lhe envio as faturas a Gregory. Não te parece bem?-Faz quatro dias, dava-te medo comprar um lençol, e agora entras nas lojas e dizes: "Quero isso e aquilo", como se tivesses nascido para comprar. E pechinchaste de um modo com esse pobre vendedor de tapetes que quase me deu lástima.
-Em sério? -lhe perguntou Kady, sorrindo.
-E essa é outra coisa, señorita Kady Long: não deixas de coquetear com os homens.-Vou casar-me, não a ser executada. Que há de mal em flirtear um pouco?À mente de Jane foram tantas palavras que não pôde falar. A Kady que tinha conhecido toda a vida fugia quando um homem a olhava.
Mas três dias antes Kady tinha passado uma hora e meia bebendo chá de menta com um vendedor de tapetes e discutindo o preço de um tapete. Jane e Debbie creram que se desmaiariam de chatisse, e Kady, em mudança, desfrutou-o imensamente. Quando saíram da loja, disse:- Me pediu que seja sua segunda esposa. Mas com meu próprio apartamento. As três tinham rido pela absurda proposta, enquanto levavam A Debbie ao aeroporto para que pudesse regressar à casa.-Está bem -disse Kady, sabendo que já não podia postergar o inevitável.
A uma parte dela lhe agradava que Jane a visse diferente, mas outra desejava que sua amiga se comportasse como Gregory e sua mãe, que não tinham notado nada.Dez minutos depois, estavam refugiadas na cafeteria de Nordstrom's, e como era temporão, o restaurante estava calmo.
-Que está passando-te? -perguntou Jane outra vez. Por um momento, Kady pensou em mentir-lhe de novo e repetir que nada tinha mudado, mas Jane era demasiado perspicaz para isso. Kady não tinha o menor interesse em falar-lhe de Cole e do povo de Lenda, nem da incrível história de Ruth. E, para ser sincera, cada dia que passava lhe parecia, que a história se desvanecia de sua mente até o ponto que às vezes duvidava de tê-la vivido em realidade.
A única recordação claro que tinha era de quando tinha cozinhado para os que precisavam saber o que ela ensinava. Essa recordação se fazia cada dia mais forte.Brincou com a pajita da limonada.
-Penso que quero fazer algo com minha vida como, por exemplo, construir orfanatos em Colorado. De repente, preparar comidas fabulosas para pessoas que comeram muitas desse tipo me resulta algo frívolo em que investir a vida.-Orfanatos? -perguntou Jane, com os olhos dilatados - Que tem que ver com cozinhar?-É mais gratificante cozinhar para gente que não tem muito. E é uma boa sensação ensinar como combinar ingredientes macios de diversas formas.
-Kady, de que diabos estás falando?-Mães que recebem ajuda de beneficência -disse, olhando o rosto atônito de Jane - Sabias que os norteamericanos preparam estofados com batatas fritas? Isso não tem o menor valor nutritivo. Em outros países, à gente se lhe ensina a cozinhar, mas aos garotos norte-americanos se os educa na idéia de que McDonald é boa comida.
-Isso é o que queres fazer? Abrir uma Cole de cozinha?-Não o sei. -Kady pensou nos meninos de Lenda, e em como os tinha convencido de que comessem verduras - Sei que todos pensam que os males do mundo são conseqüência das drogas, mas quiçá os meninos não seriam tão letárgicos se estivessem mais bem alimentados.
-Que idéia tens? -perguntou Jane, olhando perplexa a sua amiga.Desde que conhecia a Kady, jamais lhe tinha ouvido expressar semelhantes idéias.-Em realidade, nenhuma. É algo que está tomando forma em minha cabeça. Classes de cozinha para mulheres que recebem subsídios sociais.-Classes de cozinha? Subsídios sociais? -disse Jane, sorrindo com uma petulância que exasperou a Kady.-¡Si! Classes de cozinha. ¡A gente pobre tem tanta necessidade de autoestima como a rica! Não todos os que recebem subsídios são vagabundos demasiado preguiçosos para trabalhar. Imagina quanto melhor se sentiriam se soubessem preparar comidas singelas e nutritivas para os filhos. E as mulheres poderiam adquirir uma habilidade que quiçá as sacasse dessa situação.
Por um momento, Jane não atinó a outra coisa que a olhá-la. Nunca a tinha visto demonstrar semelhante veemência. Claro, todos sabiam que lhe encantava cozinhar e que tratava a suas facas como se fossem seus filhos, mas Kady jamais tinha sido da classe de pessoa capaz de lutar por uma causa. Se tiver um protesto, o mais provável era que dissesse:- Vou preparar o almoço -e depois desaparecesse dentro da cozinha mais próxima.
-Algo te sucedeu -disse Jane com voz fica.
-Não, nada -lhe replicou Kady.-Se trata de Gregory não é verdadeiro?-Com Gregory tudo é perfeito. Por que todas as mulheres supõem que a causa do problema de qualquer outra mulher é um homem? Terá a culpa a história?Ao ver que Kady sorria, Jane lhe oprimiu a mão.
-Te conheço de toda a vida, e nunca foste uma cruzada. Sempre te conformas com permanecer em segundo plano e deixar que os outros te avasallen.
Afogando uma exclamação, Kady retirou a mão.-Que horrível é isso que me dizes. Eu não permito que a gente me avasalle.-¡Ja! Essa sogra que tens...Kady endereçou as costas.-Me parece que isto chegou demasiado longe. Creio que preferiria ir-me agora. Jane se inclinou para sua amiga.
-Não foi minha intenção ofender-te. Quero ajudar-te, e...A boca de Kady se converteu numa linha delgada.
-Quisesse recordar-te que não és meu terapeuta nem meu assessora de negócios. Se quiser ajudar-me, saca o nariz de meus assuntos. Estás pronta para ir-te?
-Sim, desde depois -contestou Jane, com a mesma rigidez-. Penso que é hora de que me vá a casa.
Esse era o verdadeiro problema. Não sabia que era o que em realidade queria, e isso a voltava louca. Tinha-lhe dito a Jane que queria começar a dar classes de cozinha, e quiçá o fizesse, Mas isso não era tudo. Tinha algo mais profundo que almejava, e não tinha idéia de que se tratava.Por começar, os sonhos recorrentes em que aparecia o árabe estavam começando a molestá-la. No passado, os sonhos tinham sido uma curiosidade, mas agora estavam tingidos de uma urgência que a perseguia inclusive nas horas de vigília. Com os olhos lhe pedia algo; talvez até lhe suplicava.Não foi difícil imaginar que o homem escuro tinha certa relação com Lenda; sua aparição na abertura da rocha se o tinha demonstrado a Kady.
E enquanto esteve em Lenda, não teve sonhos. Ademais, no mais profundo de si sabia do que o homem do sonho se parecia a Cole. Aquela noite das águias compreendeu o parecido que eram os dois. Estava relacionado com Cole e com Ruth, e com todas as pessoas que ela queria desalojar de sua cabeça, e por isso tratou de dizer-lhe ao homem velado que se afastasse dela.
Não queria voltar a passar pela experiência de retroceder no tempo e também não se apaixonar de um homem que nunca tinha passado dos nove anos. Kady sabia que o único que queria era um lar e um par de filhos e que, aos trinta, não podia esperar bem mais. Não tinha tempo nem inclinação para jogar a viajar no tempo, ou o que fosse que fizesse falta para descobrir por que certo homem seguia aparecendo-se em sonhos. Mas se sabia o que queria na vida, por que estava tão inquieta? Com Gregory tudo era perfeito. Era tudo o que uma mulher podia querer de um homem: amável, cortês, de bom caráter. Kady o tinha tudo: um lar, o restaurante, Virginia era encantadora.
E conquanto sua vida era perfeita, sabia que, se não recuperava a sensatez e deixava de encontrar deficiências em cada coisa, por insignificante que fosse, o perderia tudo.
À longa, que importância tinha que Gregory lhe fizesse amor muito de vez em quando? Nessas semanas desde que tinha voltado, só teve uma breve refriega na cama de Kady. E daí importava que, depois, quando Kady se acercava a ele, Gregory saísse da cama e se vestisse? ¡A vida era bem mais do que sexo! Mas Kady não podia deixar de pensar que nunca antes tinha advertido a falta de interesse sexual de Gregory porque não tinha tido com quem compará-lo. Por mais do que, em realidade, não se tivesse acostado com Cole, seguia recordando o modo em que ele a olhava. Era grato caçoar com ele, rir, que a perseguisse pelo quarto. Inclusive sem consumação, quando a olhava, fazia-a sentir-se tão formosa, tão desejável...Gregory, em mudança, fazia-a sentir-se segura, e isso era bom, não? Que importava se não a provocava, nem lhe mordisqueaba o pescoço, nem tentava que esquecesse a cozinha e se fosse à cama com ele? Gregory a amava até o ponto de ter-lhe proposto casal. Que melhor prova de amor do que essa precisava? Ademais, que outra coisa tinha ela que ele pudesse querer? Como Kady não era uma grande herdeira e ele não ia a pos de seu dinheiro, era por amor pelo que lhe tinha pedido casamento.Mas, apesar das tentativas de raciocinar, o dia anterior lhe tinha perguntado a Gregory, quase enfadada:- Por que queres casar-te comigo?Gregory lhe tinha sonreído.-Essa é uma dessas perguntas enganadoras que, conteste o que conteste, estará mau? Quero casar-me contigo porque te amo.Isso deveria de ter-lhe bastado, mas insistiu:- Sim, mas preciso razões lógicas. Além de que se cozinhar.-Penso que será fácil a convivência contigo.Kady tratou de dissimular seu horror: a que mulher podia agradar-lhe ser "fácil" para conviver?
-Que bem -disse - E daí mais?-És calma, não exiges... e que posso dizer? Não pedes muito a um homem, e isso me agrada.-E daí passaria se te pedisse muito? -Como que?Estava no escritório do restaurante, revisando uma pilha de papéis e, em realidade, não estava prestando-lhe atendimento... Coisa que irritou ainda mais a Kady.-Me agradaria possuir a metade de Onions e que a casa que compraste estivesse a nome meu também, também me agradaria que meu próprio contador revisasse os livros do restaurante e visse quanto se está fazendo, e compartilhar os ganhos.
Por um momento, Gregory a olhou com os olhos engrandecidos e depois jogou a cabeça atrás e riu:
-Kady, querida minha, por um momento me recordaste a essa horrível amiga tua, Jane. -Sorrindo e mexendo a cabeça, voltou a concentrar-se nos papéis - Se queres comprar algo, só dímelo a mim ou a minha mãe, e cuidaremos de que contes com os fundos. Penso que dirigir a cozinha é mais do que suficiente para ti. Não tens por que converter-te em contabipronta também.
-Ainda muito divertido, olhou-a - Tu limita-te a fritar ovos, e deixa que eu me ocupe do resto.Nesse momento, Kady soube que se lhe apresentava uma alternativa: ou iniciava uma ardorosa discussão, ou o deixava passar. Começava-se a briga, sabia que teria que empunhar as armas, e não estava segura de querer isso, Em última instância, por que queria possuir a metade do restaurante? Só porque Jane e Cole lhe tinham feito crer que era o que correspondia? Que tinha passado com sua convicção de que seria proprietária da metade do restaurante quando estivesse casada com Gregory.
Saiu em silêncio do escritório de Gregory e preparou o jantar essa noite, como sempre. Mas esse dia tinha estado inquieta até o ponto da cólera. Não lhe tinha caído nada bem o comentário de Gregory de que se limitasse a fritar ovos. Assim era como via seu talento culinário? Como se ela fosse uma freidora de ovos? Depois do jantar, despediu aos quatro jovens que a ajudavam na cozinha e limpou ela mesma. Nada melhor para dissipar a cólera do que uma montanha de panelas sujas para fregar.Acabava de terminar e estava secando-se as mãos, quando Gregory irrompeu na cozinha.
-Que estás fazendo aqui tão tarde?
-Como só sou boa para fritar ovos, por que não teria de limpar também?
-Que tenhas discutido com tua amiga não é motivo para que ta tomes comigo -repôs Gregory com frialdade.
Kady soube que estava outra vez frente a uma alternativa.Podia dizer-lhe que Jane não era a causadora de seu mau humor, ou aceitar o argumento dele. Em conjunto, era preferível estar em paz com o homem que uma amava. -O sinto -disse - Jane e eu tivemos uma discussão.
-Gregory guardou silêncio, e Kady pensou: "Cole me teria perguntado qual foi o motivo da discussão"-. Não queres saber por que discutimos? -lhe espetó, e de imediato lamentou seu tom. Mas Gregory se limitou a sorrir.
-Se não o pergunto, serei chamado de homem insensível?Kady também sorriu.-O tens gravado na testa.-Nesse caso, dime. Mas antes posso comer um desses?Kady lhe serviu um dos budines de pão que tinha feito essa noite, e lhe contou sua idéia de dar classes aos beneficiários do seguro social. Quando acabou, Gregory guardou silêncio longo momento.
-De onde sacarás fundos para esse projeto? -lhe perguntou com acalma, ao mesmo tempo em que lhe passava os utensílios sujos.-Fundos? Não pretendo fazer nada a escala nacional. Pelo menos, ainda não. Estava pensando em algo individual. Eu só, uma tarde por semana. Lições de cozinha grátis, não para donas de casa ricas que queiram aprender a técnica para preparar foccacia, senão para mulheres que queiram aprender maneiras baratas e saudáveis de alimentar a suas famílias.-Entendo. E onde darias essas classes?
-Aqui, em Onions. Os domingos, ou as segundas-feiras, quando o restaurante está fechado. Há muito espaço e equipe.
-E os ingredientes? Quem os pagará?Kady se ergueu:
- Eu.Sorrindo-lhe como se fosse uma menina pequena, Gregory lhe rodeou os ombros com um braço.
-Penso que é a idéia mais nobre que ouvi jamais. No entanto, não creio que os do seguro aprovem a presença de estranhos aqui.-Todos os que entram pela porta principal são estranhos -repôs, incrédula.-Me parece que deveríamos falar disto em outro momento, quando não estejas tão alterada.Kady se livrou do braço.-Não te referes a estranhos senão a ladrões, não? Pensas que todos os pobres são ladrões. Tu odiarias a todos os habitantes de Lenda.Era a primeira vez que Kady dizia em voz alta esse nome no século vinte, e o som pareceu soltar algo dentro dela.Derrubando-se sobre um banquinho, pôs a cabeça entre as mãos e rompeu a chorar. Quando Gregory a rodeou com os braços e a abraçou, se aferrou a ele.
-Por suposto que podes usar o restaurante para o que queira -disse, com suavidade - Por favor, Kady, por que não me dizes que é o que te passa? Faz um par de semanas que te comportas de um modo estranho.
-Não sei -disse, sincera - de repente, parece-me que minha vida não tem significado nem direção.
-Que te faz dizer isso? Sucedeu algo que eu não saiba?Como podia dizer-lhe que, às vezes, quando o olhava, via uma cara de olhos azuis que lhe piscavam? Como podia explicar-lhe o que ela mesma não entendia?Kady não disse nada, e Gregory, beijando-lhe o cabelo, disse:
- Por que não te vais a tua casa? Trabalhaste demasiado. Vê-te a casa, passa um par de dias em casa, vendo a televisão. Não faças nada durante um tempo. Descansa. Volta a terça-feira, e serás uma pessoa nova.
"Descanso -pensou-, isso é exatamente o que preciso.
-Sim -lhe disse a Gregory. Levantou-se e ele a beijou em ambas bochechas-. Creio que me irei a minha casa. Ajudou-a juntar suas coisas e lhe abriu a porta principal, mas não se ofereceu para acompanhá-la até seu apartamento, e não disse que iria vê-la nos dois dias seguintes. Kady pensou: "Deveria estar agradecida de que não me diga que tenho que voltar a cozinhar o jantar do domingo para ele e sua mãe", mas achatou esse pensamento. O único que precisava era um pouco de descanso. Uns dias de descanso, e estaria bem.
CAPÍTULO 18
Mas Kady não descansou durante esses dois dias. Quando chegou ao apartamento, estava completamente desperta. Às vezes, tinha a impressão de que estar cerca de Gregory e de sua mãe a despojava de sua energia.Apesar de que era a uma da manhã, decidiu anotar receitas. Escreveria com respeito à comida com a que tinha experimentado em Lenda.
Deu-se um chuveiro, pôs-se a bata de noite e se instalou comodamente na cama, provista de uma tablilla com sujetapapeles, e começou a escrever. Mas, em lugar de anotar receitas, dedicou-se a escrever a história de Lenda, no estado de Colorado. Anotou fatos, datas, nomes de pessoas; traçou mapas. Quiçá, se o escrevia, lhe encontraria algum sentido.Mas, à medida que passavam as horas e se acumulavam as páginas, advertia que nada disso fazia sentido. Tinha sido enviada ao passado só para dar-lhe a Cole uma oportunidade de viver como adulto? Ou para permitir-lhe vingar as mortes de sua família?
Saiu o sol e seguiu escrevendo, mas ficou dormida a meia manhã e, como passava sempre desde que tinha voltado, sonhou com o homem do véu. Era exatamente o mesmo sonho, sem que tivesse mudado um só gesto. Estendia-lhe a mão em gesto de convite e, por muito que o tentasse, Kady não podia atingir essa mão.
Acordou soluçando; pela primeira vez desde o regresso se permitiu pensar no muito que sentia falta à gente de Lenda. Não só a Cole: a todos.
-Me faziam sentir-me importante -disse em voz alta-. Faziam-me sentir-me útil e precisada. Esforçou-se muito por não comparar aquela vida com o que era a sua nesse momento, e ainda assim, compreendeu que Gregory se comportava como se lhe fizesse um favor casando-se com ela. Com um sobressalto quase de repugnância, Kady recordou que antes de ter estado em Lenda ela aprovava essa idéia.
Antes de Lenda, perguntava se centos de vezes ao dia por que um homem tão bonito como Gregory quereria casar-se com uma gorda aborrecedora como ela. Claro que Kady sabia que tinha um belo rosto, mas isso era um cliché: "Uma cara tão formosa... Que lástima que não cuide mais sua figura... "
Passou o fim de semana no apartamento, recordando como costumava sentir-se, como se sentia agora, tratando de chegar a uma solução do dilema. Tinha-se apaixonado de Cole? Estava apaixonada de Gregory, agora? E, o mais importante, que queria fazer com sua vida? Teve um momento em que os objetivos de sua vida estavam clarísimos para ela.
Mas, em algum momento, cerca de seu aniversário número trinta, algo nela mudou e começou a desejar um lar e filhos. Começou a pensar que devia de ter uma vida fora da cozinha.Para a tarde da terça-feira ainda não tinha aportado a nenhuma decisão, a nenhuma conclusão. Arrastou-se, quase, para Onions como se nada tivesse mudado e, no entanto, em seu interior sabia que tudo tinha mudado. O que sucedia era que ainda não sabia de que modo iam manifestar-se essas mudanças.
O primeiro que sucedeu em Onions foi algo relacionado com a tendência à tacañería da senhora Norman.Como de costume, enquanto Kady preparava o jantar, a senhora Norman lhe rondava ao redor.-Tens que usar esse azeite de oliva virgem tão caro? Por que usas bainhas de vainilla? O extrato não te satisfaz? É bem mais barato, sabes? Não, não comeces a envolver o pescado em papel porque é para uma loja de pescado e batatas fritas.Era uma noite muito ajetreada, e os clientes formavam uma fila tríplice ao outro lado da porta; Kady sabia que essa não era uma noite para estalidos emocionais, mas tinha chegado ao limite.
-¡Fora, fora! -lhe gritou à senhora Norman-. ¡Saia de minha cozinha!Durante uns momentos, a senhora Norman, atônita, olhou a Kady e começou a dizer algo, mas, ao ver que o semblante da jovem não se suavizava, girou sobre os calcanhares e saiu da cozinha no meio de bufidos coléricos.
Quando a pequena mulher se retirou da cozinha, fez-se um silêncio ensordecedor. Depois uno dos ajudantes de Kady disse:- Três hurras por Kady -e gritaram três vezes-: Hip hurra!A seguir, alguém começou a cantar O Hino de Batalha da República (afinal de contas, estavam em Virginia); dois membros do pessoal de cozinha se agarraram dos braços e se puseram a dançar, enquanto outro golpeava tampas de panelas e seguia um ritmo sobre os balcões de aço inoxidável.
Por um instante, Kady ficou demasiado estupefata para mover-se; depois rompeu a rir e, alguém a tomou do braço para valsear pela cozinha. Para somar-se à hilaridade geral, explodiu uma cortiça de champaña, e alguém repartiu copas cheias.Era a primeira vez que Kady ria, em realidade, desde que tinha partido de Lenda.
-Que demônios está sucedendo aqui? -bramou Gregory acima do ruído, entrando na cozinha com um forte impulso à porta.Toda diversão cessou de imediato, e todos, menos Kady, voltaram encolhidos a seus respectivos lugares de trabalho.Ficou só no meio da cozinha, com uma copa de champaña alta e fina. As sobrancelhas escuras de Gregory se uniram numa só linha negra sobre a testa.
-Minha mãe está em meu escritório, chorando -disse, baixinho e ameaçador-. Temos o local cheio, uma fila de duas maçãs de longo de gente esperando e tu estás aqui, bebendo-te o champaña dos clientes e... E dançando.Alçando a copa, Kady contemplou as borbulhas.
-Te direi o que podes fazer, querido Gregory: se alguém se queixa, dispara-lhe. Não muito, só um pouco. O suficiente para ensinar-lhe bons modais.Gregory ficou mudo, e os outros cozinheiros se paralisaram no que estavam fazendo. Uma coisa era gritar-lhe à mortífera senhora Norman, e outra muito diferente desafiar ao filho da dona.
O pessoal tinha cabal consciência de que Kady era uma empregada, igual que eles, e a julgar pela expressão de Gregory, nesse momento o compromisso do casal não valia grande coisa.O semblante de Gregory não se amaciou
-Vais cozinhar ou a beber? -perguntou com frialdade-. Agradaria-me sabê-lo, para poder dizer-se a nossos convidados.Disse-o como se Kady tivesse um problema com a bebida e estivesse rogando-lhe que deixasse o álcool só por essa noite.
Kady não se amilanó: depois de ter-se enfrentado a uma partida de linchamento, um noivo enojado não parecia demasiado perigoso.
-Talvez faça ambas costures -disse, sem tirar a vista de em cima de Gregory.Ao ouví-la, Gregory se retraiu, se lhe suavizou o semblante e deu um passo para ela, mas Kady lhe deu as costas.
-Quiçá conviria que fosses com tua mãe, ao escritório, e me deixes a cozinha a mim -lhe disse sobre o ombro.Por um momento, deu a impressão de que Gregory, ia ter uma birra, mas, depois de jogar uma olhada aos empregados, que olhavam sem dissimulo, encolheu-se de ombros.
-Claro, carinho, como queiras.Dirigiu uma piscada de cumplicidade a um par de homens, como dizendo ¡Mulheres!, e saiu da cozinha.
Depois que Gregory saiu, por uns momentos Kady se sentiu trémula e assustada. Sentiu a abrumadora urgência de correr depois dele e desculpar-se, mas depois essa sensação foi substituída por uma classe de euforia que jamais tinha sentido.
-Quem quer rebanar três batatas, -disse, no meio do silêncio da cozinha.-¡Eu! -disse um dos homens em voz alta.
-¡Não, eu! -gritou outro.A seguir, os três, em excelente imitação dos Três Chiflados, chocaram entre si, e Kady riu até que se lhe saltaram as lágrimas. Depois disso, a alimentação dos paroquianos foi mais veloz e fluída e, sem dúvida, bem mais agradável do que jamais tinha experimentado em Onions. Durante a noite, um dos ajudantes lhe deu um beijo na bochecha e lhe sussurrou:- Graças.
Não foi necessário que aclarasse por que lhe dava as graças. A ausência da senhora Norman, com suas queixas permanentes era como música celestial.Depois de ter servido a última comida, um dos garçons gritou que "o padrão" estava esperando a Kady,
-Com isso de "o padrão" te referes ao senhor Norman? -perguntou um dos cozinheiros-. Parece-me que quiçá esta noite tenha mudado a guarda. Aqui estás vendo ao "padrão" -disse, assinalando a Kady com ambas mãos.O garçom bufou.
-Sim, claro -disse, e voltou ao refeitório."Talvez todos me vêem como uma llorona? -se perguntou Kady - Ninguém crê que posso defrontar-lhe a alguém?" Em Lenda, ninguém opinava assim dela.-E era a mesma que sou agora -sussurro para se, enquanto enfilaba para o escritório de Gregory.
Bastou-lhe uma olhada à cara dele para saber que não ia deixá-la escapar depois de um par de frases. Sintou-se em silêncio na cadeira que lhe indicou e se preparou para um Discurso Sério.
-Kady -disse, com voz carregada de decepção e "sentido do dever"-, teu comportamento me resulta intolerável. Posso suportar o modo em que me humilhaste adiante dos empregados, mas não posso permitir que lhe fales a minha mãe do modo em que o fizeste. Neste momento, está na planta alta, acostada. Tive que lhe dar um sedativo para acalmá-la. Estava de pé, com as mãos unidas às costas, e se inclinou sobre a escrivaninha para Kady:- Estava chorando.Kady sabia que a clave consistia em dizer que o lamentava, mas não pôde abrir a boca ainda que lhe custasse a vida. Permaneceu sentada olhando-o, esperando que continuasse.
-Minha mãe e eu fomos bons contigo, demos-te rédea solta neste restaurante. Minha mãe (que não é uma mulher forte) trabalhou muito duro para recuperar a glória de antanho para Onions, coisa difícil de conseguir sem um marido. Mas, de algum modo, conseguiu-o, e te incluiu a ti em todos os aspectos do renascimento deste restaurante.A afirmação era tão absurda que Kady teve vontade de rir. Era ela, Kady Long, a responsável do renascimento do ruinoso de bistecs, e o que tinha feito o conseguiu apesar da constante interferência da senhora Norman.Ao que parece, Gregory esperava a desculpa de Kady, mas, como esta seguiu olhando-o, lançou um pesado suspiro e saco uma gorda pasta de arquivo de uma gaveta aberta da escrivaninha.
-Queria que isto fora uma surpresa. -Lhe lançou uma olhada de reproche - Uma surpresa para nossa noite de casamentos, mas tua conduta desta noite me obriga a privar-me dessa encantadora surpresa.Isso provocou em Kady um vislumbre de culpa. Que seria? Jóias? As chaves de um automóvel novo? Talvez tivesse posto a casa a nome dela. Ou lhe cedia um terço do restaurante que ela tinha convertido em sucesso.Com gesto de desgosto, arrojou-lhe a pasta na saia e ainda que a abriu, a dizer verdade os papéis que tinha não significavam nada para ela. Ao que parece, Gregory e sua mãe participavam na compra de algo junto com muita outra gente. Mas, por muito que olhasse, Kady não via seu nome em nenhuma parte desses papéis.
-Kady -disse Gregory com voz densa-, nunca to tinha dito, mas tenho grandes planos para nós quando estejamos casados. Faz pouco, burlaste-te de mim quando me contaste teu plano com respeito à beneficência, e eu vacilei. Supuseste que eu era um esnob e um prejuicioso, mas jamais me perguntaste se o motivo pelo qual vacilava era porque tinha outros planos para nós.Fazendo uma pausa, assinalou a pasta que Kady tinha na saia.
-Vou selecionar algumas de tuas melhores receitas, sobretudo às que preparaste para o presidente, e as produzirei em massa.Kady o olhou piscando, sem entender em absoluto o que lhe dizia.
-Produzir em massa minhas receitas?-Sim, mas estragaste a surpresa -disse, incapaz de resistir outro comentário mordaz-. Tenho estado trabalhando com investidores que comeram aqui e que estão dispostos a pôr muito dinheiro em Norman House Restaurants, que se abrirão em todo o país. A surpresa que pensava dar-te em nossa noite de casamentos era dizer-te que ia permitir-te desenvolver receitas que possa produzir-se em grande escala, a muito baixo custo.Kady demorou um momento em digerir a informação.-Estavas pensando em dar-me uma franquia?Ao que parece, Gregory não advertiu o horror na voz da mulher.
-Em toda Norteamérica, as mulheres se queixam de que os homens só as vêem como a pessoa que fica em casa a cuidar dos meninos, mas eu nunca te considerei desse modo -disse, orgulhoso-. Para mim, és... -Se lhe alumiou a cara - Grandes negócios. Sim, tu representas grandes negócios para mim.Disse-o corno se fosse o mais elevado elogio que lhe tivesse dirigido jamais a alguém.
-Nunca me amou, verdade? -disse Kady com voz suave.Gregory pôs os olhos em alvo, como querendo dizer que isso não tinha importância, e disse com tom aborrecedor de todo o assunto:
- Claro que si. Sim te amo. Amo o que vamos fazer juntos, o que podemos conseguir juntos.
-E daí há da paixão? E o sexo?-¡Vamos, Kady! Por se ainda não te desta conta, sou um homem sumamente prático. Oh sei que as mulheres tendem a ver-me como a uma figura romântica por minha extraordinária aparência, mas te asseguro que por trás destes olhos há um cérebro. E, sejamos reaprontas, Kady, se tivesse querido uma esposa para paixão e sexo, teria escolhido a uma mulher menos...Olhou-a de acima abaixo.
-Gorda? Esse era o termo que procuravas?-Não creio que seja necessário meter-nos em isso nem agora nem em nenhum momento do futuro, em realidade. Os casais baseados na paixão terminam em recriminações e em custosos divórcios. Nosso casal terá uma base concreta.
Conquanto supunha que devia estar desolada pelo que Gregory estava dizendo-lhe, de repente Kady sentiu como se lhe tivessem tirado um enorme peso de em cima. Afinal de contas, o que ouvia era que o homem ao que amava, o homem com o que pensava casar-se, em realidade nunca a tinha amado. O único que queria era vinculá-la através de um contrato, para poder obrigá-la a que o ajudasse a meter mais alimentos grasientos, não nutritivos, nos gaznates do povo norte-americano. E o chamaria Norman House Restaurants. "Pensaria dar-me ao menos uma fatia disso?", perguntou-se.
No entanto, não se sentia desolada. Mais bem, jamais se tinha sentido mais leviana... nem mais feliz em sua vida. ¡Não teria que passar pelo casal com Gregory! Quiçá tinha sabido desde o princípio que não resultaria, desde aquele dia em que entrou no restaurante, tão contente de vê-lo, e ele lhe disse que não o beijasse. Quiçá, inclusive soube quando estava em Lenda que não amava a Gregory. Talvez se dizer que estava apaixonada de outro homem a convencesse de que não podia amar a Cole.
Sacou o chaveiro do bolso, tirou dele as duas chaves do restaurante e as deixou sobre a escrivaninha de Gregory.-Adeus, Gregory -disse, girando sobre os calcanhares e enfilando para a porta. Tomou-a do braço antes que chegasse à porta.
,-Que é o que vais fazer? -lhe perguntou, mas ao ver-lhe a expressão lhe soltou o braço e se lhe suavizou o semblante-. Kady, eu te amo. Pedi-te que te casasses comigo porque te amo. De todas as mulheres que pude ter tido, eu...No rosto de Kady se refletiu a diversão.-Me elegeste a mim. Tu, com tua extraordinária aparência eescolheste à gorda aborrecedora, à pequena Kady, a pobre ratoncita que estava tão agradecida de receber o atendimento de alguém como tu, que não pedia nada a mudança. Não tinhas por que me enviar flores, nem me levar a feiras ou picnics. Não tinhas por que me comprar um anel de compromisso. Não tinhas que me levar a jantar sequer.
-Kady, não é o que parece. Olha, acabo de comprar duas entradas para ir ao espetáculo sobre gelo, para a quinta-feira à noite -lhe disse, sacando as entradas do bolso do casaco e pondo-se na mão.
-Trabalho as quintas-feiras pela noite, não o recordas? -lhe disse, olhando as entradas.No dorso de uma delas, alguém tinha escrito: "Estou impaciente por ver-te, Greggy. Toneladas de amor, Bambi." Os pontos sobre as íes eram pequenos corações.
Kady olhou a Gregory e riu.-Saúda a Bambi de minha parte -disse, enquanto saía pela porta e Gregory ficava atrás, furioso.
CAPÍTULO 19
¡Pronto! -disse Kady com um sorriso, e olhando o montão de envelopes pulcramente selados e com as direções escritas.Trinta e um prontos para enviar a restaurantes e hotéis de toda Norteamérica.Tinham passado três dias desde que saísse de Onions deixando a Gregory ali de pé, com suas entradas e sua Bambi. Essa noite tinha-se sentido livre e disposta a apropriar-se do mundo, mas à manhã seguinte já estava pensando: "Que fiz?" Tinha 6.212,32 dólares no banco, e isso não era muito para viver até que encontrasse um emprego. Ademais, como se fazia para encontrar emprego? Ao menos, uno que Kady quisesse. Tinha sido seu próprio chefe demasiado tempo como para tentar trabalhar como segunda de algum chefe de cozinha de mau talante.
No entanto, era como se a experiência vivida em Lenda lhe tivesse dado coragem, porque não perdeu tempo em afligir-se com respeito ao futuro desconhecido. O que fez foi fazer uns telefonemas a antigos colegas de classe formular-lhes certas perguntas e depois tratou de fazer uma pronta dos lugares nos que cria poder trabalhar. Tinha-lhe levado um pouco de tempo preparar um resumo, fazê-lo copiar, e depois encontrar as direções de hotéis e restaurantes.
Mas já tinha tudo pronto e, com um sorriso confiado, meteu as cartas numa pequena bolsa de compras para levá-las à caixa postal.Como todos os dias, junto à porta tinha flores enviadas por Gregory. Saiu, recolheu-as, meteu-as na casa, tomou o cartão e fechou a porta com chave.
-Que me dirá hoje? -murmurou, abrindo o cartão enquanto saía do edifício, sorrindo enquanto lia a nota - "Te amo... sinto-te... vens visitar-me?... Enviei a minha mãe a Florida..."Sorrindo mais ainda, Kady arrojou a nota ao cubo de lixo, ao passar. Os ruegos e os juramentos de amor de Gregory não a tentavam, nem o fato de que enviasse a sua mãe a Florida. Quiçá a tentaria se lhe mandasse o título de propriedade de Onions, ou quiçá não.Quando chegou à caixa postal, ia quase saltando, e lhe pareceu que o expositor que tinha dentro da vitrine de uma livraria ante a qual passava teria que estar forrado com lamé dourado, como parte de sua euforia. Há uma mina de ouro em seu futuro? Dizia num cartaz que atravessava a vitrine, sobre os livros dispostos embaixo.
Pensando em Lenda, Kady se acercou e se pôs a ler as descrições que tinha nas cobertas dos livros. "Encontre a mina Flying Dutchman", lia-se numa. "Nova informação sobre a mina Tríplice Star", "A mina Lost Maiden poderia ser sua", dizia outro.
-A mina Lost Maiden? -disse em voz alta. ¡Caramba, esses livros estão atrasados!Afastando-se da vitrine, seguiu caminhando pela rua para a caixa postal, mas se deteve ao chegar à porta da livraria. Entrou, obedecendo a um impulso. Cerca da porta tinha uma mesa de exibição, com vinte livros diferentes, pelo menos. Tinh-a-os sobre minas, povos fantasma, barcos afundados, maldições, feitiços; a variedade era infinita.
A esmo, como se não significasse nada para ela, Kady tomou um livro que falava de minas perdidas no Oeste de Estados Unidos e procurou a Lost Maiden. Esperando voltar a ler um relato do que tinha sido achado na mina, em 1982, surpreendeu-a descobrir que, segundo todos os livros da mesa, a mina ainda não tinha sido achada.
Não era possível que todos estivessem atrasados, verdade?Deteve a um empregado e lhe perguntou onde podia encontrar livros referidos à mina Lost Maiden só. Recordava que, quando se encontrou a mina, as mesas estavam cobertas desses livros feitos de urgência, abordando todos os aspectos imagináveis da mina. Impaciente, o empregado lhe disse:- O que temos está sobre essa mesa.
-E seguiu seu caminho, demasiado atarefado para molestar-se com algo tão insignificante como um cliente.
Ainda intrigada Kady regressou ao apartamento. Pensou que quiçá aqueles livros a respeito da mina tivessem tido curta vida e só conservassem interesse por uns meses, e por isso não tinha mais volumes. Sem advertir que não tinha enviado as cartas, deixou a bolsa no solo, junto à porta, pôs as flores de Gregory junto aos outros seis ramos, sobre a mesa do refeitório, e chamou a Jane.
Era a primeira vez que Kady chamava a sua amiga desde que se tinham separado num clima de tanta frialdade entre elas, poucas semanas atrás. Sabia que deveria de tê-la chamado antes para contar-lhe que tinha rompido com Gregory, mas o tinha posposto porque sabia o que sabe qualquer mulher que rompe com o noivo: teria que ouvir dizer o horrível que era ele.O discurso de Jane durou como quinze minutos, mas a Kady lhe pareceu que se tinha livrado a baixo custo.
-¡Terias que ter visto como abordou a Debbie, aquela noite, quando foste a acostarte! É demasiado bonito para seu próprio bem, e nunca me inspirou confiança. Mais ainda...
-Jane -disse Kady com brusquedad-, que é o que recordas da mina Lost Maiden?-Que há que recordar? Creio que ouvi falar dela, mas não recordação grande coisa. Kady, que é o que vais fazer agora? Conheço a Gregory, e se que sua mãe nunca te pagou demasiado, de maneira que não deves de ter muito com que viver, e...-Não recordas quando a mina Lost Maiden foi achada, e todo o país enlouqueceu com a aventura, o caso nos tribunais e tudo o demais? A resposta de Jane foi um silêncio.-Não sei de que estás falando -disse por fim Jane, suspicaz-, mas me agradaria saber que está passando.
Ao ouvir isso, Kady se apressou a cortar a comunicação. Não tinha ninguém mais perceptivo do que Jane sobre a terra, e Kady não estava disposta a falar, e a mencionar coisas que não queria contar-lhe a ninguém.Com o telefone ainda na mão, Kady girou para olhar as flores que tinha sobre a mesa. Se a mina Lost Maiden jamais tinha sido achada, isso significava que talvez Cole a tivesse encontrado. E se assim era, foi porque ela lhe tinha dito onde estava. E se Kady lhe disse onde estava, isso significava que Cole tinha vivido depois dos nove anos.Tomando suas chaves, Kady saiu correndo do apartamento, rumo à biblioteca mais próxima.Respaldando-se contra o feio sofá do apartamento, Kady se esfregou os olhos. Que hora era? As três? Voltou-se e viu que no relógio eram às cinco: cedo seria de dia.
Fazia uma semana que tinha saído para a caixa postal com essas cartas, e ainda estavam aí, na pequena bolsa das compras, no solo junto à porta. As flores que tinham coberto a mesa do refeitório estavam no solo morrendo-se, secando-se sem atendimento. A mesa, ao igual que toda outra superfície do apartamento, estava coberta de livros, folhas de fax, xerox e páginas cheias da escritura de Kady durante uma semana tinha estado pesquisando o sucedido em Lenda, Colorado.
O primeiro que fez foi pesquisar a mina Lost Maiden. Tinha revisado três anos de números atrasados da revista Time, porque recordava com clareza ter visto a mina na coberta da revista. Mas não se mencionava o achado da mina, nem nessa revista nem em nenhuma outra. Também não estava em nenhum jornal, nem na memória de nenhuma das pessoas às que Kady interrogou.
Até onde sabia, ela era a única na face da terra que recordava algo que tinha varrido Norteamérica como um tornado. A idéia de fazer-se rapidamente rico era algo que sempre atraía aos norteamericanos, e um dos contos de fadas nacionais era encontrar milhões em ouro aí atirados, ao alcance de qualquer que quisesse tomá-los.
Tinham aparecido roupas de Maiden, sapatos, penteados. E a televisão estava cheia de programas especiais de uma, duas e até quatro horas de postas em cena da romântica história de um homem que amou a um fantasma e que morreu tomado da mão dessa mulher fantasma.
Um ano depois, quando o idilio se tinha esgotado, pareceu outra classe de espetáculo dos que encantavam aos norteamericanos: a exploração de mitos. Não era o amor o que tinha feito que o mineiro ficasse junto ao esqueleto da mulher; tinha as pernas achatadas pelo ouro que lhe caiu em cima, atrapando-o.
E quanto ao fato de que sujeitasse a mão do esqueleto, especulava-se com que o mineiro moribundo tinha tentado tomar a faca que estava ao lado do esqueleto. Que ia fazer com a faca? Matar-se, para acabar com sua desgraça? Tinha demorado dias em morrer de sede, rodeado de ouro que valia milhões. Como com todas as histórias desse tipo, chegava-se à conclusão de que o ouro estava maldito e se demonstrava por meio da má sorte que tiveram todos quanto entraram em contato com o dinheiro:
- Causado pela cobiça -tinha dito Kady em seu momento, e seguia crendo-o.Quando Kady comprovou que a mina Lost Maiden não tinha sido achada, começou a examinar o que podia a respeito do mesmo Lenda. Isto resultou mais difícil e teve que se deslocar até a capital para procurar na Biblioteca do Congresso, revisando quilômetros de microfilmes de jornais.Tudo o que encontrava lhe demonstrava que Ruth lhe tinha dito a verdade. Tinha um artigo breve, mas comovedor que relatava a tragédia de Lenda que tinha causado tantos mortos entre adultos e meninos.
No entanto, não se dizia que os assassinos tivessem sido os habitantes de Lenda, e não os ladrões.Mais adiante tinha uma breve nota onde constava do que a senhora Jordan e sua nora viúva se tinham mudado a Denver, e oito meses e meio depois, que a senhora Jordan tinha dado a luz a um varão a mais de quatro quilos, que foi chamada Cole Tarik Jordan.
Kady repassou três anos de microfilmes enrugados de jornais, até que encontrou a menção de uma tentativa de seqüestro na pessoa do filho menor da senhora Ruth Jordan. O jornapronta, que sem dúvida estava de parte dos habitantes de Lenda, quase eliminava o seqüestro que tinha estado à beira do sucesso, como se estivesse justificado pelo que Ruth lhe tinha feito à gente de Lenda. A Kady se lhe revolveu o estômago lendo o que o jornapronta seguia dizendo sobre Ruth, e sobre como tinha feito voar as minas e jogado à gente de suas casas no meio da tormenta (era verão, mas, ao que parece, isso não tinha importância para ele).
Prosseguia insinuando que, em certo modo, Ruth tinha provocado o ataque de cólera que matou a tantas das pessoas que em outro tempo viveram em Lenda.Passavam os dias e Kady revisava arquivos, sem poder encontrar nada mais sobre a família Jordan. Até que, em 1897, encontrou o artigo que Ruth lhe tinha mostrado, onde dizia que se tinha encontrado assassinado ao senhor Smith em sua casa de Denver e que tinha legado todos seus bens para que se usassem na construção de orfanatos.
Esse era o homem ao que segundo Ruth, Cole tinha assassinado enquanto Kady cozinhava.No ano seguinte, 1898, encontrou a notícia necrológica de Ruth Jordan. Dizia-se que a tinha sobrevivido um filho, C. T. Jordan da cidade de Nova York, mas, por desgraça, assuntos urgentes tinham impedido que o senhor Jordan assistisse ao funeral.Quando leu isso, Kady teve que apartar a cara porque se lhe encheram os olhos de lágrimas. Ao que parece, Ruth não tinha tido tempo de reconciliarse com seu filho antes de morrer.
Seguiu lendo que a participação ao funeral tinha sido "escassa" e que se produziram fatos desagradáveis, relacionados com algo que tinha sucedido muito tempo atrás.Depois da necrológica de Ruth, Kady encontrou só pequenas menções à família Jordan. A mansão Jordan foi vendida por meio de advogados e demolida em 1926. Procurou em antigas prontas telefônicas de Nova York, mas não pôde encontrar nada relacionado com C. T. Jordan nem Cole Jordan, e ficou pensando que teria sido do filho de Ruth, que tinha estado tão cheio de ira.
Depois dos jornais, Kady começou a procurar em livros e encontrou o que tivesse preferido não ver. Num livro sobre povos fantasma, encontrou um capítulo titulado: "Um povo destruído pelo ódio", que relatava com grande dramaticidade como Ruth tinha fechado Lenda. Quando voltou a página, lançou uma exclamação ao ver um desenho de uma velha arpía macilenta, de cabelos ensortijados, rindo com maldade enquanto os meninos de Lenda morriam de cólera.
"Tu te levaste a minha família, e agora eu me levo a tua", rezava o epígrafe.Kady jamais teve desejos de destroçar um livro, mas quis romper este, tão cheio de mentiras e de veneno. Fechou-o com tanta força, que o homem que estava frente a ela franziu o entrecejo.Agora, sentada em seu apartamento, faltando pouco para que saísse o sol, Kady não soube que fazer a seguir. Até onde sabia, sua aventura em Lenda tinha terminado. O que tinha que fazer nesse momento era ir-se à cama e dormir umas horas, e ao dia seguinte mandaria o correio que quase tinha esquecido e tentaria começar uma nova vida.Mas não podia reunir a energia suficiente para ir até o dormitório, e se limitou a sacar do sofá uma meia dúzia de páginas com anotações, e se esticou sobre ele. Dormiu-se ao instante.
Quanto fechou os olhos, começou a sonhar. Ao princípio era o mesmo. O homem do véu lhe tendia a mão e Kady tratava de tomá-la, mas esta vez tinha algo diferente. Esta vez afastava-se dele e, pela expressão de seus olhos, soube que estava enfadado com ela.
-Agora -disse o homem, deixando-a ouvir sua voz pela primeira vez.Era profunda, com uma estranha qualidade, como se o fundo estivesse tapizado de folhas secas.-Tens que vir agora -lhe disse. Parecia uma ordem e, ao mesmo tempo, um rogo - Se não vens agora, não poderei voltar.Com essas palavras, desapareceu num instante e Kady ficou só, num lugar seco, arenoso, fantasmal e desolado.
-Onde estás? -gritou, e começava a dar-se a volta procurando-o, em pos de alguma clave que lhe indicasse aonde ir- Como posso ir a ti se não sê onde estás?Gritava e se dava a volta, desesperada, procurando algo que lhe indicasse onde estava.Acordou sobressaltada, com o rosto apoiado num lugar molhado do sofá: tinha estado chorando em sonhos. Por um momento, não recordou o sonho, mas depois o evocou em toda sua frustração. Aonde tinha que ir? Como ia ir, tendo tão pouco dinheiro?.Precisava trabalho, precisava retomar sua vida real.
Seguindo um impulso, foi para a parede que uma vez se tinha aberto para Lenda. Agora não era mais do que uma parede.
-¡Malditos sejam todos! -disse, dando-se a voltado e apoiando-se contra a parede - Querem que faça algo, mas não me dão nenhuma ajuda.Foi nesse momento quando ouviu a voz de Ruth Jordan dentro de sua cabeça:
- Te darei seis semanas. Se para então não te comunicaste com os descendentes de meu filho, ficará claro que não vais fazê-lo.Seis semanas? Pensou Kady, lançando-se para o sofá para procurar a agenda e passar as páginas com urgência. O coração lhe batia com tanta força que quase não podia pensar. Quanto tempo lhe ficava? E ainda que contasse com o tempo todo do mundo, como faria para encontrar aos descendentes de Ruth? Como se chamavam? Onde viviam?
-Três dias -disse em voz alta, olhando o calendário - Me ficam três dias.Mas onde? Pensou, percorrendo o quarto com a vista como se pudesse ver algo escrito na parede.Kady levantou a vista para o teto.
-¡Maldita sejas, Ruth Jordan! ¡Ajuda-me! Onde procuro?Mal acabava de pronunciar as palavras quando lhe pareceu voltar a ouvir a voz de Ruth, o que lhe tinha dito aquela noite, no alpendre:- Está em Nova York, tratando de forjar-se uma vida. Não quer ajuda de minha parte, mais ainda, não quer nenhum contato comigo.
-Nova York -disse Kady, e correu ao dormitório a preparar uma bolsa.Um trem poderia deixá-la na cidade em três horas.Vinte minutos depois abriu a porta do apartamento, com uma bolsa de viagem na mão, e se topou com Gregory.
-Oh, Kady, querida minha -lhe disse, fazendo o possível por estreitá-la em seus braços - Não sabes quanto te senti. Te, perdoo tudo, e te peço que me perdoes, e espero que possamos...
-Podes deixar-me passar, por favor? Tenho que tomar o trem a Nova York.-Trem? Não pensarás deixar-me. Se o fazes, eu...Kady soube que não se livraria dele tão facilmente.
-Se te deixo, perderás os poucos clientes que tiveste esta semana -lhe disse com satisfação.Desagradava-a a sua própria vaidade, mas cada noite tentava acercar-se o bastante a Onions para ver que a rua já não estava cheia de paroquianos. Poucos minutos depois de que ela se afastou, algum crítico culinário difundiu a notícia de que o local de Kady já não era mais do que uma casa de bistecs. Inclusive especulava aonde iria cozinhar Kady depois, coisa que, sem dúvida, a ajudaria a conseguir emprego.
-Está bem -disse Gregory com desagrado, apartando-se dela mas bloqueando-lhe o caminho para as escadas-. Ganhaste. Que queres? O dez por cento do negócio?-Se a pergunta é se quero o dez por cento de Norman House Restaurants, a resposta é não. Agora, por favor, podes apartar-te para que possa marchar-me?
-Quinze por cento, e é minha última oferta.-¡Bem! A rejeição, assim que podes ir-te. Tratou de apartá-lo, mas não se moveu.-Que é o que queres de mim? -lhe perguntou, como se ela fosse uma arpía exigente.Kady deixou a bolsa no solo e o olhou aos olhos.
-Não quero nada de ti. Absolutamente nada. Para dizer-te a verdade, não quero voltar a ver-te jamais.-Não porque tenhamos tido uma briga de amantes há motivo pára...-Aaaaah! -gruñó Kady.Deu-lhe um bom pontapé na espinilla que o fez saltar a um custado da escada e, tomando a bolsa, baixou correndo.
Antes que ele pudesse atrapá-la, já estava no metro, enfilando para a Union Station.
CAPÍTULO 20
Quando chegou a Nova York, Kady soube que seus magros seis mil não durariam muito. Entre a falta de tempo e a falta de dinheiro, teria que se apressar a encontrar aos descendentes de Ruth Jordan. Tomou uma habitação num duvidoso hotel junto a Madison Square Garden, e perdeu um dia entre a biblioteca e o telefone, chamando a pessoas de sobrenome Jordan.
Cedo descobriu que as pessoas da cidade de Nova York não sabiam quem eram suas tatarabuelas e, em sua maioria, não queriam que se as molestasse.Para o final da tarde, estava disposta a dar-se por vencida. Sentada numa deli de Nova York, comendo rabanadas de peru com pão, com o caderno aberto ante si, perguntava-se onde poderia procurar a seguir, quando notou a faca que tinha na mão o homem da mesa que estava frente à dela.
Olhando seu próprio prato, recordou que Cole levava facas ocultas na roupa e que era uma das poucas pessoas que conhecia que sabiam afiar bem uma faca.Distraída, tomou a pluma e começou a rabiscar e quando terminou, viu que tinha desenhado uma espada de folha longa, de empunhadura redonda, que parecia saída de uma película de piratas.Enquanto mastigava e contemplava o que tinha desenhado, pergunto-se se o gosto a algo podia passar de uma geração a outra. Cole amava as facas.
Seria possível que um descendente também fosse aficionado a facas e espadas?Tomou o emparedado e jogou a andar em direção ao hotel para procurar vendedores de antigüidades nas Páginas Amarelas, e quando teve umas quantas direções saiu a percorrer de novo as ruas.
Só conseguiu certo sucesso a meia manhã do terceiro dia, o último. Tinham-lhe dado a direção de uma pequena loja no centro, da classe que apestaba a dinheiro, e quando o viu soube que só um conhecedor estaria disposto a entrar ali. As vitrines não se limpavam desde que a loja tinha sido construída, muitos anos atrás, e no mugriento vitrine de exibição não tinha outra coisa que moscas mortas e capas de pó. A porta de cristal estava pintada de negro e a única indicação de que estava no lugar correto era o sobrenome Anderson, pintado de dourado deslucido junto à porta, tinha um timbre e um intercomunicador.Sem muita esperança de ter sucesso, Kady pulsou o timbre e depois de vários minutos, ouviu uma voz de homem altanera.
-Si?Kady tomou alento.-Me envia o senhor Jordan -disse, no intercomunicador.
Como não se lhe formularam perguntas e não teve nenhuma vacilação antes que soasse o timbre e a deixassem passar, Kady só atinó a olhar fixamente a porta durante uns segundos preciosos, para depois empurrá-la e entrar.
Dentro da minúscula loja, as sujas paredes estavam cobertas de espadas, dessas que só se encontram nos museus: de folhas curvas, finas, de folhas enferrujadas e manchadas, algumas com aspecto de flamejantes, e outras, como se tivessem estado enterradas durante séculos. Tinha vitrinas cheias de facas de todos os tamanhos, com cabos de tudo material concebivel. Olhando ao redor, maravillada, ficou boquiabierta.
-Que procura hoje o senhor Jordan? -disse um homem depois dela.Ao dar-se a volta, Kady viu a um homem ancião, alto e delgado, as têmporas cinzas; pela expressão de sua cara, podia-se ver que era o melhor em seu ramo. Estava tão pulcramente arrumado como sujo estava o local.-Em realidade, estava pensando num presente.
No rosto do homem apareceu um mínimo sorriso, ao mesmo tempo em que observava a roupa ordinária e barata de Kady. Esta advertiu que as espadas não tinham etiquetas com os preços pendurando delas.
-Penso que seria conveniente que procure uma linda gravata em Bloomingdale's,Olhou sem dissimulo para a porta.Desesperada, Kady tratou de pensar em algo para impedir que a jogasse.
-Tentava fazer-me uma idéia do que lhe agradaria a Cole, e...Não soube o que dizia mas, sem nenhuma dúvida, algo tinha acertado no interesse do homem porque, por uma fração de segundo, suas sobrancelhas quase tocaram a linha do cabelo.
-Já vejo -disse enquanto tentava recuperar o controle de sua cara, mas antes que pudesse dizer nada se ouviu um barulho no fundo do armazém, e uma porta que se abria e se fechava - Se me desculpa, por favor -disse o homem, desaparecendo no fundo, e deixou a Kady só para que percorresse a loja.
Mas estava mais interessada no que estava sucedendo no fundo que nas espadas, pois se sucedia uma discussão em furiosos susurros.Minutos depois, um bonito jovem loiro entrou na loja desde o fundo, com os braços cheios de pacotes, olhou a Kady um momento e sussurrou:- Ele faria qualquer coisa com tal de descobrir que significa o T -E desapareceu outra vez no depósito.Atônita, durante vários minutos Kady não entendeu de que lhe falava o jovem loiro, mas depois, quase se desmaiou de felicidade.
Tinha encontrado ao descendente de Ruth, o senhor C. T. Jordan. Agora, bastava com que negociasse a informação com o proprietário, porque ela sabia bem a que correspondia esse T quinze minutos depois, saía da loja com uma direção apertada na mão e um sorriso no rosto.
CAPÍTULO 21
-Já lhe disse várias vezes -lhe disse a recepcionista, hosca-, que o senhor Jordan não vê a ninguém sem uma citação.-Mas você não entende: tenho que o ver hoje. ¡É o último dia!Kady já tinha tentado duas vezes explicar-lhe por que tinha que ver ao senhor Jordan esse dia, mas que podia dizer? Que seu tatarabuela, que fazia noventa e oito anos que estava morta, tinha-lhe dito a ela que tinha seis semanas para pôr-se em contato com um homem que ainda não tinha nascido? Por mais do que dissesse do que esse era o último dia, era inútil porque não podia responder a uma pergunta: o último dia de que?
A mulher se limitou a olhá-la, ceñuda, e Kady voltou a sentar-se na elegante sala de espera onde tinha estado esperando durante uma hora e meia.
Nas últimas horas, não só não tinha conseguido quebrar a reserva da recepcionista senão que também não conseguiu sacar-lhe nenhuma informação. O escritório de C. T Jordan ocupava todo o andar superior de um luxuoso edifício revestido em mármore, e quando ingressou no térreo e lhe disse ao guarda a quem queria ver, riu-se dela. Pensando a toda velocidade, mostrou-lhe o cartão do vendedor de espadas. Por sorte, o guarda fez um telefonema e Kady pôde entrar no elevador privado que a levou ao último andar.Mas aí se topou com a oposição, na forma de uma mulher grande e azeda que, ao princípio, quis fazê-la jogar. Mas soou um telefone, atendeu-o, escutou, pendurou e lhe disse a Kady que não podia ver ao senhor Jordan.
A Kady lhe levou um momento compreender que tinha mudado no tom da mulher: já não lhe dizia que os guardas a sacariam à força. Podia ficar-se no local, mas não ver a C. T. Jordan.
-Ficarei aqui e esperarei -aventurou Kady, mas a mulher se limitou a encolher-se de ombros e se deu a volta.Enquanto permanecia ali sentada, os seguintes noventa minutos, cada vez estava mais confundida. Por que lhe permitiam ficar-se? Alguém estaria falando com o vendedor de espadas e depois a sacariam gritando de ali? Por que a recepcionista não respondia a nenhuma das perguntas de Kady, como, por exemplo, como era o senhor Jordan, a que se dedicava a companhia, se tinha família?
A mulher lhe tinha dito que não tinha intenção de cometer indiscreciones a respeito de seu padrão. Sua atitude indicava que não entendia como tinham deixado ficar ali a uma mulher tão pobremente vestida.Cedendo a um impulso, Kady tomou uma folha de papel de uma escrivaninha antiga que tinha num rincão e escreveu uma nota: Estimado senhor Jordan: Você não me conhece, mas me agradaria falar com você com respeito a sua avó Ruth, e ao que sucedeu em Lenda.
Embaixo anotou sua direção do hotel de Nova York, pregueou a nota e com olhada suplicante, pediu-lhe à recepcionista que, por favor, ocupasse-se de que a recebesse o senhor Jordan.-Se enfadará muito se não se a entrega -disse, da maneira mais ameaçadora que pôde.Ao que parece, a triquiñuela teve sucesso, pois a mulher tomou a nota e saiu.Quando Kady voltou, viu que tinha um homem sentado na sala de espera, com um portafolios aberto sobre o regaço e, quando alçou a vista e viu a Kady, em sua cara se refletiu o interesse que lhe acordava a jovem. Poucas semanas atrás, Jane lhe disse que se tinha convertido numa coqueta desavergonhada e pensou que quiçá pudesse aproveitar um pouco do que tinha aprendido em Lenda em seu benefício.Kady se sintou defronte do homem.-Se apresenta para um posto? -lhe perguntou, com ar inocente.
O homem percorreu a Kady com a vista de acima abaixo e deu a impressão de que o que via lhe agradava, porque sorriu e assentiu.Kady lançou um suspiro que significava que se alegrava de ter um amigo.
-Eu também aspiro a um posto. Talvez, se você consegue seu emprego, eu seja sua secretária -disse, agitando as pestanas e inclinando-se um pouco para ele - Você deve de saber como é ele. C. T. Jordan quero dizer.O homem se enguliu o anzol. Com ademanes pretensamente viris, adotou uma expressão perspicaz.-Discreto. Jordan é um homem muito discreto. Rara vez se deixa ver em público.
-A agência me enviou aqui e não se sequer a que se dedica esta empresa.-Compra e vende. Apodera-se de coisas tais como Estados da União, sabe? Esse tipo de coisas.Kady desenhou uma Ou com a boca.
-¡Deus meu! é rico?
-Você não lê a revista Forbes, não? -disse o homem, rindo.-Eu prefiro mais bem o Cooks Ilustrated.-Digamos, somente, que o esquivo senhor Jordan é um homem muito rico.
-¡Deus meu! ¡Não me diga! E como se faz para vê-lo?-Só por convite. Ninguém sabe quando está aqui e quando não. Só trata com uns poucos que trabalharam com ele durante anos... e, desde depois, com sua secretária privada.Nesse momento, voltou a recepcionista, jogou a Kady outra olhada hostil e lhe disse ao homem que o senhor Caulden estava pronto para vê-lo. Quando o homem saiu da sala de espera, a recepcionista se voltou para Kady com um sorriso petulante.-O senhor Jordan se foi pelo resto do dia, de maneira que não poderá vê-la.Kady sentiu que se lhe ia o coração aos pés.
-Lhe deu minha mensagem?-Sim, diz que não conhece a nenhuma Ruth Jordan, e que jamais ouviu falar de Lenda, Colorado.Bueno, isso é tudo, pensou Kady, e perguntou se podia usar o toucador, e até em isso a recepcionista se mostrou pétrea.
-Por que não me dá um respiro? -explodiu Kady, provocando-lhe um mínimo de culpa e fazendo que lhe indicasse a direção pelo corredor.Minutos depois, Kady estava lavando-se as mãos quando alçou a vista para o espelho e se deteve. Na nota tinha posto Lenda, não Lenda, Colorado.
-Está aqui, e sabe -disse em voz alta.Ainda que ignorava o que sabia o senhor C. T. Jordan, bastava-lhe que lhe tivesse permitido ficar na sala de espera e que se negasse a vê-la,
Tomando com violência uma toalha de papel, secou rapidamente as mãos e a estrujó, colérica. Ruth lhe tinha dado seis semanas para tomar contato com seus descendentes e Kady faria qualquer coisa que tivesse que fazer para brindar-lhe paz a essa dama tão encantadora.Escabulléndose do toucador, em lugar de dobrar à esquerda, para a mesa da recepcionista, torceu à direita, para os despachos. Eram passadas as cinco e os despachos que viu pareciam vazios.
Mais ainda: todo o lugar parecia abandonado. Em cada porta tinha placas de bronze com nomes, e todos eles soavam a Harvard e A Yale; depois de alguns sobrenomes, tinha números romanos.Ao final do longo corredor, antes de dobrar para ir para a mesa da recepcionista, tinha umas portas duplas sem nenhuma placa.
As portas em si eram impressionantes, com antiga madeira de teca talhada com dragões e árvores entrelazadas em forma horizontal. Sem a menor dúvida, Kady soube que esse era o despacho de C. T. Jordan.
Não pensou o que estava fazendo; singelamente, aferró os picaportes das portas e as abriu.Tinha um homem de pé cerca da porta, na zona de recepção luxuosamente mobiliada do despacho. Estava todo vestido de negro, como para uma classe de artes marciais, com amplas calças de algodão, uma camiseta negra, e estava tirando-se um rompevientos da mesma cor.
Quando Kady irrompeu, deixou de sacar-se o rompevientos pela cabeça, deixando-o a metade de caminho, de maneira que só se lhe viam os olhos. Tinha a metade inferior da cara coberta... Quase como se tivesse um véu.Kady ficou imóvel, quase sem poder respirar, e o olhou fixamente. Poderia reconhecer esses olhos em qualquer parte: era o homem do véu.
Manteve a vista fincada nele por um lapso que pareceu interminável, enquanto enchiam sua cabeça os centos de vezes que o tinha visto, durante toda sua infância. Cada vez que estava alterada ou preocupada, ele ia a ela, serenava-a e sempre aliviava sua sensação de solidão.Ainda contendo o alento, viu que terminava de pôr-se a prenda e lhe viu a cara pela primeira vez.Era todo ângulo, com nítidos pómulos que arrematavam num queixo de ponta quadrada, com um breve hoyuelo. O nariz era reto e fino, com fossas que se abriam para os custados: um nariz aristocrático. O único suave nesse rosto era a boca cheia e Kady não pôde menos do que pensar do que era macia como a de um menino.No entanto, o que viu nesses olhos era dor, uma dor tão funda que, talvez, ele não soubesse de onde vinha. Mas Kady sim o sabia.
Recordou que, numa ocasião, tinha pensado que Gregory se parecia a este homem. Não, pensou, Gregory não se parecia a este homem. Ninguém na terra se parecia a ele.-Suponho que você é a señorita Long -disse, e a voz foi como a do sonho, muito profunda, e com uma verdadeira aspereza no fundo, quase corno um rosnado.Kady pensou que era conveniente que se sentasse, porque corria o risco de cair-se.
Sem tirar-lhe os olhos de em cima, apoiou-se no braço mullido de uma grande cadeira forrada de veludo borgoña, e quase caiu nela,-Agora que irrompeu aqui, que é o que quer de mim?Kady não tivesse podido contestar ainda que lhe fosse em isso a vida. O único que atinaba a fazer era olhá-lo, sentindo-se eufórica e assustada ao mesmo tempo, pois era muito estranho ver a este homem em carne e osso.
Franzindo o entrecejo, C. T. Jordan contemplou à mulher, desejando que não fosse tão bela. Tinha uma longa cabeleira negra e sedosa, sujeita numa trança tão gorda como seu próprio braço, e que caía sobre o veludo da cadeira. Pestanas espessas que rodeavam belos olhos escuros, sobre um nariz pequeno, e lábios de um rosado escuro que não estavam ocultos pelos cosméticos. ¡E o corpo...!
Inclusive escondido depois de metros de tela ordinária, podia ver as viçosas curvas que de só contemplá-las, faziam-lhe suar as mãos. Se o acusava de atavismo, pois lhe agradavam as mulheres que pareciam sê-lo, não o que constituía a moda atual: essas mulheres com corpos de moços de doze anos, coroados por grandes peitos artificiais."Lascivia, Jordan -se disse-. És demasiado maior para permitir do que te domine a luxúria." Sabia por que estava ali a mulher, e daí queria. Talvez não tinha sabido toda a vida que esse dia chegaria?
"Tenho que deixar de olhá-lo aos olhos", disse-se Kady. Tinha que recuperar o uso de sua mente, pensar em sua missão, recordar quem era, onde estava. Quiçá pudesse concentrar-se se recitava a receita do brioche.Apartando os olhos dele, começou a pensar...Mas nenhuma receita foi a sua mente, porque por trás do homem tinha uma vitrina de cristal alumiada, que ia do solo ao teto, suspendida por arames invisíveis, onde se viam espadas de extraordinária manufatura, de todas partes do mundo, de todos os períodos históricos.
Eram da classe de espada que se vê em lustrosas revistas de leilões de arte, e das que depois um se inteirava que tinham sido adjudicadas a um "comprador anônimo" por um quarto de milhão de dólares.Voltando-se para olhar ao homem, viu que não tinha movido um músculo e que a olhava fixamente. Observou que sob a roupa devia de ser delgado e fibroso, e teve a impressão de que sabia como usar cada uma dessas espadas, se fosse necessário.-Eu... Conheci a sua avó -pôde dizer.
-Minha avó morreu quando eu tinha três anos, e duvido de que você tivesse nascido então, sequer.-Não... Conheci à que morreu muito antes que você nascesse.Inclusive a ela lhe parecia estúpido, como o comentário de algum guru da New Age.O sorriso de superioridade lhe indicou que ele opinava o mesmo.
-Ah, já vejo. Acerto se deduzo que se refere à que a meu avô -quando estava vivo, quero dizer-, agradava-lhe chamar Ruth a Implacável?Kady se crispó.-Ruth Jordan era uma dama encantadora e o único que fazia era tentar proteger...
Interrompeu-se ao ver que ele sorria de uma maneira tão petulante que não pôde continuar. Por alguma razão, sentiu que a ira crescia dentro dela, coisa que não fazia sentido porque ela tinha invadido o escritório dele e não tinha direito a enfadar-se. O que sucedia era que a imagem desse homem tinha feito parte da vida de Kady.
Ele -ou seu clone - se lhe tinha aparecido centos de vezes. Não deveria reconhecê-la? Ou ao menos, sentir certo sobressalto ao vê-la? Em mudança, olhava-a como se fosse uma grande moléstia e como se esperasse que ela fizesse algo previsível.-Começo a entender -disse o homem, lentamente - Você se considera clarividente, e veio aqui a dar-me... que coisa? Uma mensagem do passado? Alô, quanto terei que lhe pagar por essa informação? Centos? Ou talvez pretende milhares? Espero que não seja mais.Kady apertou os lábios e franziu a testa.
-Não quero nenhum dinheiro de você.-Ah não? Olhou-a de acima a abaixo e, quando voltou a olhá-la aos olhos, Kady sentiu que todo seu corpo se cobria de uma fina película de transpiração. O fogo e a intensidade desses olhos a fizeram sentir-se como se fossem consumí-la...
Uma parte de Kady quis correr para ele, mas outra estava assustada e queria correr para a porta. Olharia a todas as mulheres como a olhava a ela?Paciente, mas com uma sobrancelha alçada em gesto de incredulidade, ficou esperando que ela continuasse."¡Por Ruth!", recordou-se, e se sintou mais erguida.-Ruth estava arrependida do que lhe tinha feito a seu filho e queria compensá-lo, mas morreu demasiado cedo. O filho não assistiu ao funeral.
-Até para ela carecia de sentido o que dizia. Fez uma profunda inspiração, tentando sossegar os nervos-. Pediu-me que encontrasse a seus descendentes e... bom, que me pusesse em contato com eles, isso é tudo. E eu queria dizer-lhe que...Os lábios do homem se curvaram num sorriso cético.
-Talvez está pedindo-me que creia que conheceu a minha avó morta faz tanto tempo, e que ela lhe pediu que viesse ver-me? Só para saudar-me?Kady lhe sorriu com doçura.
-Não só conheci a sua avó. Ademais, casei-me com o neto de Ruth, que morreu quando tinha nove anos."Que entenda isso", pensou.O único que queria Kady era apagar essa expressão suficiente do rosto dele. Sem dúvida, devia de estar acostumado a que a gente se amilanase ante ele e que saltasse a sua mínima exigência, mas ela não estava preparada para que a olhasse com tanta ira que quase a assustou, no entanto, algo tinha nessa ira que lhe fez bater o coração selvagemente. "Está zeloso", pensou, dizendo-se depois que isso era ridículo. Com longas zancadas, o homem foi para um gabinete que tinha na parede oposta, abriu umas portas que revelaram uma variedade de licores, serviu-se whisky de malta numa copa de cristal talhado e a esvaziou de um trago. Ao ver que não se inmutaba, Kady pensou que devia de ser um alcoólico em ciernes, ou bem algo o tinha alterado muito. Era consciente de que não lhe tinha oferecido nada a ela.Voltou-se para ela.
-Señorita Long, não tenho tempo para isto, E posso assegurar-lhe que não vou dar-lhe nenhum dinheiro, por absurda que seja sua história.Atônita, Kady permaneceu imóvel. Esse homem era odioso, tão apaixonado de seu dinheiro que cria que todos os demais também o estavam, e ainda, assim, algo a obrigava a ficar ali, com ele. Era um desconhecido e ao mesmo tempo era como se tivesse passado muitas noites de sua vida com este homem. Olhava-a carrancudo, matutando.
Com o coração palpitante, levantou-se e, dando-lhe as costas, foi até a parede que estava depois dela. Igual que na vitrina da parede, aqui também tinha uma exibição de facas, bem menores, e muito similares aos que Cole tinha levado com freqüência entre suas roupas.
Como Kady tinha passado boa parte de sua vida com uma faca na mão, para ela era fácil tomar um de maneira subrepticia, voltar-se e arrojá-lo.Com a rapidez de um relâmpago, o homem atrapou a faca no ar pelo cabo.Foi nesse momento quando Kady viu a Cole.
Por um segundo, o homem moreno e carrancudo que tinha diante desapareceu e viu a Cole com seus risonhos olhos azuis, o sol sobre o cabelo dourado. A imagem desapareceu com a mesma velocidade com que tinha aparecido e ficou só na habitação com o homem que tinha visto centos de vezes, sempre lhe tendendo a mão, sempre a instando a ir-se com ele.
Mas este, em mudança, limitava-se a olhá-la com seus olhos ardentes e sua expressão cética.-Se está pensando em desmaiar-se, devo dizer-lhe que já o tentaram antes outras mulheres, e lhe asseguro que os desmaios não têm efeito sobre mim.
-Olhou a faca que tinha na mão - No entanto, nenhuma mulher tinha tratado de arrojar-me uma faca.-Que lástima -replicou Kady, dando-se a volta para ele; pendurou-se a bolsa do ombro- Já lhe dei minha mensagem, assim que me vou.
-Está segura? Como vê, tenho outras armas que poderia arrojar-me.Girou para ele.
-Senhor Jordan, seus ancestrais eram as pessoas, mas agradáveis e bondosas que conheci jamais. Cole Jordan era um homem que sabia como amar a uma mulher, até o ponto de criar um mundo inteiro para ela. E o que fez Ruth Jordan foi porque tinha amado muito e ficou muito ferida criando perdeu esse amor. Olhou-o, ceñuda - É desagradável comprovar que essas pessoas tão adoráveis tenham dado origem a alguém como você, alguém que só pensa no dinheiro. Detendo-se um momento, olhou-o com desdém.
-E pensar que passei tantos anos procurando-o -disse com suavidade, para depois se encaminhar para a porta.FÊ-LA deter-se quando já tinha a mão sobre o picaporte, pondo-se a um custado, muito perto mas sem tocá-la.-Quem foi o amante de Ruth? -lhe perguntou em voz fica.
Kady estava furiosa, mas quando se voltou e o olhou, não estava preparada para o impacto que lhe provocaria a cercania do homem. Quiçá creu que tinha sentido amor, desejo, luxúria ou outras emoções por outros homens, mas nada a preparou para o que sentiu junto a este. Com a vista fincada nos olhos negros, sentiu que cada átomo de seu corpo vibrava e teve a sensação de cair num poço sem fundo, de cair mais, mais, mais.
Como si ela fosse venenosa, ele se apartou e essa atitude conseguiu que Kady recuperasse a sensatez. Sabia que ele estava provando-a. Existia a crença de que o pai do filho menor de Ruth era seu esposo.-Um egípcio, o pai de Tarik, o amigo de Cole -conseguiu dizer, num sussurro rouco-. Por isso você leva seu nome. E por isso é moreno, quando os restos dos Jordan são loiros. Com mão trémula, abriu a porta e saiu do despacho.
Quando saiu dos luxuosos escritórios de C. T Jordan, não regressou de imediato ao hotel senão que vagou pelas ruas da cidade. Sentia-se a ponto de sofrer um choque. Tinha-o reconhecido e ele, em mudança, não tinha sentido nada por ela, salvo, bom... Era possível que tivesse visto luxúria nos olhos dele, mas isso não importava. O importante era que ela se o tinha dito e aí se terminava tudo.
Mas se não lhe agradava, por que a perspectiva de não voltar a vê-lo jamais lhe doía mais do que lhe tinha doido perder a Cole ou a Gregory? Enquanto esteve com Cole, sempre soube que não era real, que o que tinha entre eles não duraria. E quando estava com Gregory, era mais gratidão do que amor o que sentia, gratidão de que um homem como ele se tivesse interessado por ela.
Mas com o árabe, o homem com o que sempre tinha sonhado, estava convencida de que, ao encontrá-lo, teria achado o Verdadeiro Amor.No entanto, a vida não imita aos contos de fadas. Tinha-o encontrado e ele não sentia nada. Certamente, isso não era amor a primeira vista.Então, que? Perguntou-se. Agora que a aventura de Lenda estava oficialmente finda, que faria com sua vida? Conseguir emprego, tratar de poupar dinheiro para abrir seu próprio restaurante, ou uma Cole de cozinha, ou... De repente, sentiu-se muito só. Nesse momento, sua vida estava na mesma situação que quando acabava de terminar a Cole de cozinha, com a diferença de que então tinha o mundo por diante. Agora, anos depois, estava mais abaixo do fundo. Já não era a graduada requerida, a...
"¡Não!", se reconvino. Não se permitiria perder-se na autocompasión. Tinha feito tudo o possível por ajudar a Ruth, a Cole e A Lenda, e já era hora de suplicar um emprego. Correção: era hora de começar uma nova vida, com novas aventuras, com...Deu-se a volta e regressou ao hotel, tratando de reanimar-se sem demasiado sucesso.
Quando abriu a porta do quarto, o primeiro que viu foi a piscada da luz da secretária eletrônica do telefone e se perguntou quem a teria chamado. Por uma millonésima de segundo pensou que poderia ser Tarik Jordan, mas quando o averiguou, disseram-lhe que tinha um pacote para ela e lhe perguntaram se podiam subir-se nesse momento.Uns minutos mais tarde, Kady recebia um grande pacote expresso proveniente de Virginia e o coração se lhe foi aos pés. Como demônios teria feito Gregory para averiguar onde estava?
Atirou o pacote sobre a cama, deu-se um chuveiro, lavou-se o cabelo, acendeu o televisor e só então advertiu que era o nome de Jane o que estava na constância de despacho aéreo.Curiosa, abriu o pacote. Dentro tinha dois envelopes de tamanho legal, um gordo, o outro delgado, e duas cartas.
A primeira era de um dos jovens que tinham trabalhado com ela em Onions, e à medida que lia o coração de Kady ia aliviando-se. Dizia-lhe que, desde que ela se marchou, os negócios iam tão mau que todos os cozinheiros treinados por ela procuravam emprego em outros lugares. Prosseguia dizendo o muito que tinha aprendido de Kady e dando-lhe as graças por tê-los livrado da horrível senhora Norman.
Sorrindo, Kady chamou ao serviço de habitações, pediu uma malga de sopa de cebolas e uma salada de frutas, e seguiu lendo. O moço lhe dizia que, como todos eles obteriam melhores empregos antepondo o nome de Kady em suas solicitações, sentiam-se em dívida com ela e tinham encontrado o modo de compensá-la, em certa medida.Isto fez lançar a Kady uma gargalhada, pois, ao que parece, o modo que encontraram de dar-lhe as graças foi husmear, espionar e fazer de detetives aficionados.
Primeiro, tinham vigiado o escritório de Gregory e não permitiram que saísse nada de ali que eles não tivessem vistoriado antes.-O envelope gordo é o resultado das primeiras semanas -lhe escrevia. Depois disso, voltamo-nos mais audazes.
Com os olhos engrandecidos de curiosidade, abriu o envelope mais gordo, e sacou meia dúzia de cartas, pelo menos. A maioria levava o membrete de famosos restaurantes ou hotéis, e rogavam a Kady que fosse trabalhar para eles. Algumas, de pessoas que queriam abrir um restaurante e lhe suplicavam que o administrasse.Por um momento, não pôde crer o que estava vendo. Os termos, "por favor," e "lhe suplicamos", e as ofertas de dinheiro, alojamento e "lhe daremos via livre", apareciam em todas as cartas. Dois delas estavam feitas pedaços, mas alguma pessoa amorosa se tinha tomado o trabalho de reconstruí-las com fita adesiva.
Quando compreendeu o que estava vendo, pôs-se a dançar pela habitação; depois chamou ao serviço de habitações e pediu uma garrafa do melhor champaña que tivessem.-Nada de entrevistas de emprego -disse-. Nada de suplicar um emprego. Nada de...Não se lhe ocorreu que mais, e quando chegou a comida e a bebida, deu-lhe ao homem uma gorjeta de dez dólares, abriu o vinho, serviu uma copa e brindou por si mesma.
Era assombroso como podia mudar o mundo em tão pouco tempo, pensou, olhando as cartas que estavam sobre a cama. Num momento, não tinha aonde ir e, ao seguinte, tinha alternativas em todas partes do mundo, pois uma das cartas provia de Londres, e outra, de Paris.
"Como me encontraram?", perguntou-se de repente, e voltando à cama abriu a segunda carta. Quando viu que provia de Jane, quase se lhe deteve o coração. Talvez a sempre sensata Jane ia xingá-la por fazer algo tão estúpido como abandonar um emprego antes de ter outro? Terminou a primeira copa e encheu outra antes de abrir a carta de Jane. A primeira média página lhe contava em detalhe o trabalho que tinha tido Jane pára encontraria, chamando a quase todos os hotéis de Nova York.
Para averiguar que estava em Nova York, insinuou-lhe a Gregory que trataria de reconciliarlos. "Por verdadeiro, esse homem está convicto de que todas as mulheres se morrem por ele, eh? ", escrevia Jane, fazendo sorrir a Kady."Te invejo -lhe escrevia-. Inspiraste um grande amor nas pessoas que trabalhavam para ti. Arriscaram muito revolvendo o lixo de Gregory e, quando me chamaram, sabiam que eu faria tudo o necessário para encontrar-te."
Kady comeu um pouco de sopa, e terminou a carta de Jane: "Kady, quiçá não me tenha feito entender com clareza, ultimamente -escrevia a amiga - Sei que solo ser mandona, o céu é testemunha de que muitas pessoas sentiram a tentação de dizer-me, mas espero que saibas o muito que te quero. O único que Gregory tinha a seu favor era sua aparência.
Tratava-te como a uma criada de baixa estofa... do mesmo modo que costumava tratar-te minha família. Tive que chegar a adulta para compreendê-lo. Quero dizer-te que te considero a pessoa mais bondosa, mais generosa que conheci em minha vida, e me sinto em dívida contigo por passados maus tratos. Por isso, quando te vejo com um homem que não é digno de comer a tua mesa, me perdoarás se to digo. Faças o que faças com tua vida, recorda aceitar o que se te oferece e não entregar nada a mudança. Quando conheças a outro homem, assegura-te de que te dê algo. ¡To mereces!"
Poderia ser o champaña o que fez que os olhos de Kady se humedecessem e se enjugó as lágrimas com a manga da bata balnear. Releu a carta de Jane um par de vezes, se a meteu no bolso e se concentrou na comida. O que tinha sido um dia arruinado estava convertendo-se em algo extraordinariamente bom.
Só quando teve terminado de comer e de beber outra copa de champaña, recordou que ainda não tinha aberto o envelope delgado. Secando-se as mãos, procurou embaixo das encantadoras cartas das pessoas, mas encantadoras ainda que lhe ofereciam emprego e sacou o envelope. Era branco, de papel de excelente qualidade e o remetente era uma assinatura de advogados de Nova York. Nos sessenta de Madison Avenue, nada menos.-Deus santo -exclamou, usando a faca para abrir o envelope - Desde depois, sinto-me honrada.
Quando Kady viu que estava dirigida à senhora de Cole Jordan, por pouco se afogou com o vinho.A carta em si era muito breve. O senhor W. Hartford FowIer lV pedia à senhora Jordan que o chamasse o antes possível, por assuntos urgentes. Seguia uma longa pronta de números telefônicos com frases descritivas tais como "o sítio", "a choupana", "o celular", "a embarcação", e também quatro números de um escritório, "Não posso expressar-lhe o urgente que é, senhora Jordan -escrevia - Deve pôr-se em contato comigo de imediato, se quer cumprir com a data disposta por Ruth Jordan.
Chame-me a qualquer hora. Chame-me por cobrança revertida. A onde seja, quando seja. Mas faça-o cedo." Kady leu a carta três vezes, até que advertiu que estava datada de um mês atrás, o qual significava que Gregory a tinha recebido antes que ela se marchasse. E também significava que alguém tinha husmeado nos gabinetes de arquivo para encontrá-la. Mais ainda, viu que o envelope tinha sido enviado a seu apartamento, do que se deduzia que Gregory tinha estado vigiando o correio privado de Kady.
-Lhe terá pagado a meu porteiro para receber antes que eu meu correio? -disse, com a boca apertada numa fina linha.Por um momento, perguntou-se quantas outras ofertas de emprego teria recebido enquanto esteve em Onions, que Gregory tivesse interceptado. Tudo em nome dos Norman House Restaurants, por suposto.Como era inútil perder tempo em isso, levantou o telefone e começou a marcar os números da carta do advogado.
Depois de ter dado com um contestador nos números do escritório, deixou uma mensagem, subiu o volume do televisor e tratou de olhar, mas quando leu de novo a carta do advogado, apagou o televisor e seguiu insistindo com os números de telefone.Achou-o no celular e, quanto se apresintou, ouviu o rechinar dos pneumáticos de um carro que era bruscamente frenagem.
-Kady Jordan? -lhe perguntou, incrédulo-, Está segura?Riu, segura de que esse homem não devia de perder com freqüência a compostura como lhe sucedia nesse momento.
-Que é hoje? -perguntou, quase frenético-. São as dez da noite, não? Lhe enviarei um helicóptero; pode chegar de Virginia a Nova York em duas horas? Ainda podemos conseguí-lo?
-Já estou em Nova York. Poderia dizer-me de que se trata isto? Que sabe a respeito de Ruth Jordan?-Menos do que você, estou seguro -se apressou a replicar - Olhe, senhora Jordan...-Lhe agradeceria que me deixasse de chamar-me assim. Sou Kady Long. Kady, por favor.O homem não deu sinais de ouví-la.
-Está bem, está em Nova York, eu estou em Conneticut e ele está em... Onde diabos está? Kady começava a irritar-se.
-Onde está quem? -disse, com acento feroz.Jordan. C. T. Jordan. Tem que o ver antes da meia-noite. Se não, o testamento perderá validez.-Não sei de que testamento está falando, mas hoje vi ao senhor Jordan. Tive que escabullirme em seu escritório, mas...Interrompeu-se, porque o homem ria. Não, não gritava, Em realidade, até onde Kady podia sabê-lo, dava saltos, cantava e aullaba a todo pulmão, e o telefone celular se sacudia em suas mãos.
-Senhor Fowler -gritava Kady no telefone, mas o homem não a ouvia.Com o telefone do hotel sobre o ombro, Kady levantou sua copa e esperou que esse louco se acalmasse o suficiente para explicar-lhe que estava passando. Teve que esperar bastante, e quando o homem voltou a falar, pareceu-lhe que estava chorando. Chorando do modo em que choram os homens quando ganham as 500 de Indianapolis.-Kady -disse, tratando de controlar seu ritmo respiratório errático-, hoje a viu alguém no escritório de Jordan? Qualquer?
-Várias pessoas. A recepcionista, um homem que solicitava um emprego, o guarda no térreo, meia dúzia de empregados, pelo menos, e... Que Deus me ajude, senhor Fowler, se começa a uivar outra vez, vou cortar.Isso fez rir ao homem e se esforçou por recuperar o controle.
-Posso vê-la amanhã? -lhe perguntou, cortês-.Temos... eh, certos assuntos que tratar.
-Seria muito pedir que me diga que assuntos?O homem demorou um momento em contestar.-Kady, teve você sonhos em sua vida?
-Claro que sim -lhe espetó, jogando uma olhada ao telefone.Estaria louco esse sujeito?-Qual é seu sonho mais louco?Não era assunto dele, mas, olhando as cartas sobre a cama, sorriu.-Me agradaria ter meu próprio restaurante.Por alguma razão, isto pareceu acender de novo a hilaridade de bêbado do sujeito e Kady teve que voltar a esperar.
-Terá seu restaurante. Conseguirá tudo o que queira, mas tem que vir ver-me amanhã.-A que hora?O homem começou a rir outra vez.
-Vinga a qualquer hora, quando esteja pronta, Kady. Quando chegue, estarei esperando-a. E terá um carro esperando-a em seu... que o céu me ajude, mas não sei sequer onde está alojada.
Kady vacilou; preferia pensá-lo duas vezes antes que lhe contar a este homem qualquer coisa a respeito de si mesma.
-Não preciso automóvel; irei a seu escritório amanhã, às dez da manhã. É demasiado temporão?
-Não -disse, divertido - Qualquer hora que seja conveniente para você. Estaremos esperando-a.
-Então, até depois -disse, e curto."Que homem tão raro", pensou, olhando o telefone perplexa, e eliminando-o, voltou às ofertas de trabalho. "Com qual ficarei? -pensou-. Poderia ser agradável viver em Seattle."Media hora depois, ficou dormida entre as cartas e não acordou até quinze minutos antes das dez, coisa que motivou que chegasse tarde ao encontro com o senhor FowIer. Mas, como lhe disse ele, não tinha importância, porque estavam todos a esperando.
CAPÍTULO 22
A elegância de velho mundo dos escritórios de FowIer e Tate fez que Kady se sentisse mais consciente de sua vestimenta velha e gastada. "Este lugar está fato para Chanel", pensou, cruzando o vestíbulo de mármore. Não tinha visto nunca a Chanel fora de uma revista, mas tinha imaginação.
-Sou Kady Lon... -disse à recepcionista, que não a deixou terminar a frase e se desfez em atendimentos.
-Sim, por favor, passe por aqui, o senhor Fowler está esperando-a. Lhe agradaria um pouco de café? Ou chá, quiçá? Agradaria-lhe que lhe fizesse trazer algo? Kady quase não teve tempo de recusar os oferecimentos quando se abriram as grandes portas duplas com incrustaciones de bronze e saiu um homem alto, bonito, de cabelos cinzas, ataviado com um impressionante traje de três peças.
-Kady -disse, exalando a palavra como se tivesse esperado toda a vida para pronunciá-la.
Você é o senhor Fowler? -perguntou, incrédula.Não podia reconciliar a imagem desse homem tão elegante com o tipo que uivava no telefone a noite anterior. Este homem poderia protagonizar uma dessas películas sofisticadas de 1930, nas que atuava Cary Grant.
-Bill -replicou, colocando-lhe a mão na cintura e guiando-a ao interior do despacho.O ambiente fez lançar a Kady uma exclamação involuntária. Era como a biblioteca de um sítio inglês, onde predominavam o verde escuro e o borgoña, com paredes recobertas de painéis de madeira, talhados. Tinha um quadro na parede que parecia um original de Van Gogh.-Posso trazer-lhe algo? O que seja.
Kady se sentiu tão fora de lugar, que tentou caçoar:
- Sapatos novos? -disse, sorrindo, enquanto se sentava sobre um formoso sofá verde escuro e o homem lhe devolvia o sorriso com calidez. Quando se sintou, contemplou ao homem. Era impossível que alguma vez pudesse chamá-lo Bill.
-Poderia dizer-me de que se trata tudo isto?Por um momento, ficou de pé, impondo-se a ela; depois, sintou-se numa cadeira frente a Kady, e indicou com a cabeça uma pulcra pilha de papéis sobre uma antiga mesa de café.-Devo admitir que jamais um cliente me provocou tanta curiosidade como você. Não sei nada a respeito de sua vinculação com uma mulher que leva morta quase cem anos. O único que sei é que você esteve casada com seu neto, mas se isso em realidade fosse verdadeiro, você teria uns cem anos.Riu entre dentes e lhe dirigiu uma dessa olhadas que pareciam dizer: "Pode confiar em mim."
Kady lhe sorriu, mas não tinha a menor intenção de contar-lhe o que lhe tinha passado.-Bueno, está bem, não indagarei. -Voltou a rir-. Não, o mais provável é do que indague bastante, mas tenho a sensação de que não vou chegar a nada. Se for você a metade de discreta que o resto dos Jordan, não averiguarei nada.Kady começou a dizer-lhe que não era Jordan, mas se conteve.
Quanto menos dissesse, antes sairia de ali e poderia voltar ao quarto do hotel e começar a contestar as ofertas de emprego. Algumas eram de três meses de Antigüidade, e isso significava que Gregory as tinha recebido fazia um tempo, e não sabia se seguiriam vigentes.-Suponho que devemos começar por isto -disse o homem, entregando-lhe um envelope amarelado pela idade, atado com uma fita e selado com lacre.
Antes de tocá-lo, Kady soube que provia de Ruth e teve que piscar para conter as lágrimas. A idéia de que a mulher que tinha conhecido fazia umas semanas agora estivesse morta desde tanto tempo atrás era dolorosa. Às vezes, tinha a sensação de que abriria uma porta e se a encontraria aí. Em ocasiões, pensava: "Tenho que lhe contar isto a Ruth", para depois sentir a pena de compreender que a mulher à que tinha chegado a querer tanto não vivia.
Kady se pôs o envelope no regaço e olhou ao homem que tinha defronte.-Não precisa uma identificação para assegurar-se de que eu sou quem afirmo ser?Sorrindo-lhe, o homem sacou um feixe de papéis de uma valise de couro que tinha no solo, junto à mesa..., e se os entregou.
Kady viu que as folhas amareladas estavam cobertas com desenhos de lápis e tinta dela e Ruth, cenas da tarde e a noite que tinham passado juntas. Se as via caminhando juntas, conversando, rindo, sentadas à sombra, no picnic, em cadeiras, no alpendre.
-A outra é Ruth Jordan? -perguntou o advogado com suavidade, ao ver a ternura com que Kady roçava os papéis.
-Sim -murmurou, ao ver o nome de Joseph escrito ao pé.Era o nome do paciente criado que as tinha servido e atendido enquanto conversavam. Quanto teria ouvido essa noite?-Desde depois, ela tem um aspecto muito diferente da imagem que se mostra em "Um povo destruído pelo ódio", não é verdadeiro?-Era encantadora, realmente encantadora -foi o único que conseguiu dizer Kady.
Quando o senhor Fowler se reclinou na cadeira com expressão satisfeita, Kady soube que tinha dito demasiado. Era evidente que o advogado queria saber se, em verdade, Kady tinha conhecido a Ruth Jordan, e agora já o sabia.-Desculpe-me -disse, levantando-se-. Creio que talvez quererá ler a sós a carta de Ruth. Quando tenha terminado, bastará com que pressione o botão que está nessa mesa, junto a você, e regressarei. Estarei esperando-a,
Dito o qual, saiu, deixando a Kady só no escritório.Por um momento, titubeou antes de abrir o envelope amarelado, porque sabia que seu conteúdo a enlaçaria outra vez com a família Jordan e com Lenda, Colorado. Uma parte dela desejava atirar a carta, voltar ao hotel e começar a procurar um novo emprego. Mas a maior parte dela estava enfeitiçada pelos olhos de C. T. Jordan.
Deu-se pressa, antes de arrepender-se, e usou o abrecartas de prata que tão astutamente o senhor FowIer lhe tinha deixado e abriu o envelope.Meu queridísima Kady:Se estás lendo isto, significa que trataste de encontrar a meus descendentes, e que o conseguiste. Dei-te um limite de tempo para convencer-me de teu interesse.
Se tivesses postergado a busca mais de seis semanas, eu teria tido a certeza de que não tinha esperança de que eras capaz do amor e a paixão necessárias para ajudar-nos. Pareceu-me que seis semanas bastavam para que compreendesses que não podias estar apaixonada de Gregory. Se o estivesses, não nos terias sido enviada.
Se estiveres lendo isto e te puseste em contato com minha família dentro do limite de tempo, agora tens o controle absoluto de toda a riqueza de minha família. Kady exalou um suspiro. Mas não, não podia ser correto o que estava lendo. Olhou outra vez a carta.Pode ser que não te tenha deixado nada. Pelo que sei, dentro de noventa e oito anos minha família poderia ser pobre, mas, se meus descendentes se parecem a meu filho Cole Tarik, duvido-o. Bonito a que neste momento és uma jovem muito rica.Por que te dei tanto e depositei uma confiança tão completa em ti? Kady, tu podes resolvê-lo. Podes remediar um horrível mau, não só o que lhe passou a minha família senão a todos os habitantes de Lenda. Porque o sucedido nessa semana fatal em que minha família foi assassinada arcou o sofrimento de centos de pessoas, ao longo de gerações.
Não sê como podes fazer o que te peço, nem sim é possível fazê-lo, sequer, mas te rogo que o tentes. As pessoas que conheceste em Lenda nunca tiveram oportunidade de viver. Nunca tiveram a possibilidade de crescer, de ter filhos, de envelhecer.Os erros são nossos, Kady, não teus. Em tudo isto, tu foste um peão, mas tua bondade e tua generosidade foram tão grandes que foram capazes de levantar aos mortos. Por um tempo, diste-nos esperança; diste-nos vida.E agora, peço-te que encontres a maneira de fazê-lo outra vez. Fiz tudo o possível por ajudar-te. Dei-te o poder que confere o dinheiro; tenho deserdado aos de meu próprio sangue em teu favor, ainda que sejas uma mulher com a que só passei umas horas. Mas confio em ti porque foste levada a nós. Podes usar o dinheiro para qualquer propósito que queiras, é teu, sem condições. Constrói uma mansão, compra uma dúzia de carros que gotejem ouro: dei-te esse direito.
Mas não te imagino fazendo algo assim. Por favor, rogo-te, Kady, por favor, ajuda-nos. Precisamos-te. Todos nós te precisamos muito.Tua, com amor e esperança, Ruth Jordan quando deixou a carta, pareceu-lhe que se tinha ficado sem alento. "Por um tempo, diste-nos esperança; diste-nos vida -leu outra vez - Tua bondade e tua generosidade." Eram as mesmas palavras que tinha usado Jane."Como?", pensou. Como podia conseguir o que lhe pedia Ruth? A cabeça lhe dava voltadas tão vertiginosamente que não podia pensar nada, não podia pergeñar nenhum plano. Pulsou o botão da mesa e o senhor Fowler reapareceu de imediato.Quando se sintou, Kady lhe entregou a carta de Ruth.
-C. T. Jordan está inteirado disto? -lhe perguntou Kady.
-De que? -lhe perguntou, com os olhos chispeantes.Não era mais do que um ardil de advogado, tratando de averiguar que era o que sabia ela.-Sabe que, desde que me viu ontem, tudo é meu?O senhor Fowler lhe sorriu.
-Sim, sabe-o."Agora entendo por que não queria receber-me", pensou. E por isso não quis que a jogassem do escritório. Afinal de contas, desde o momento em que entrou pela porta principal, era a dona do edifício.A mente de Kady se tropeçava com milhares de pensamentos e o mais preponderante era do que fazer agora?"
"Tarik tem que me ajudar", pensou. Ao instante teve consciência do raro que era que o mencionasse assim, tendo em conta que todos se referiam a ele como C. T... ou mais bem, senhor Jordan. Talvez fosse porque lhe tinha ouvido mencionar esse nome a Cole tantas vezes, ou porque tinha passado a vida vendo a C. T. Jordan com atuendo árabe, e esse nome árabe lhe sentava bem.
Qualquer que fosse o nome soube que teria que a ajudar. Era o único que sabia com segurança, porque em certo modo, sob o exterior escuro, era Cole, A dor e a dureza que tinha em seus olhos se deviam ao que lhe tinha sucedido a Cole, e pelo que lhe tinham feito ao filho menor de Ruth.
Cole tinha conseguido eludir o ódio fingindo que não sucedeu. Ou, quiçá, estava tão ditoso de ter tido uma oportunidade para viver como adulto que tinha enchido sua estadia na terra com amor. E de vingança, -adicionou para si, recordando que, naqueles dez dias em que esteve ausente, tinha livrado ao mundo do homem que provocou a morte de sua família.
No entanto, não estava convencida de que a vingança fosse o único motivo de que Cole tivesse uma segunda oportunidade na vida, ainda que fosse tão breve.E agora, Ruth tinha feito o possível para que Kady pudesse dar-lhes a Cole e a todos os demais habitantes de Lenda uma oportunidade verdadeira de viver.
"Tarik deve ajudar", pensou outra vez; e o evocou nas formas em que o tinha visto: nos sonhos e, o dia anterior, no escritório, com seus desdeñosos comentários. Não estaria disposto a ajudá-la só porque se o pedisse.
-Que é o que me pertence? -lhe perguntou ao senhor FowIer.
-Em essência, tudo. Todas as propriedades que Ruth Jordan possuía no momento de sua morte, e tudo o que renderam essas propriedades nos anos que seguiram, foram colocadas a nome de você, para ser administrada pelos descendentes do filho menor. Tinha outra estipulação, segundo a qual todos os filhos maiores de cada geração deviam chamar-se Cole Tarik Jordan.
-Os olhos do senhor Fowler chuviscaram, e a Kady se lhe ocorreu que talvez não tivesse feito nunca nada que lhe desse tanto prazer como dizer-lhe a alguém que possuía tudo o que tinha sido de C. T. Jordan. Claro que, ao longo dos anos, esse nome passou de moda, e é um segredo bem custodiado o que significam as iniciais.
Kady assentiu, pois já tinha descoberto o segredo.
-Me pertence a roupa que ele leva posta, ou algo assim? -perguntou, sincera.O senhor Fowler franziu o entrecejo e Kady compreendeu que a considerava cobiçosa, vingativa, ou alguma outra qualidade igualmente desagradável. Ou talvez estivesse preocupado porque lhe fizesse juízos relacionados com o que tinha feito ou deixado de fazer.Inclinou-se para diante.
-Senhor Fowler -lhe disse-, é evidente que você é o advogado que representa uma parte, ao menos, da riqueza que até agora pertencia a C. T. Jordan e, já que agora me pertence a mim, posso deduzir que você será agora meu advogado? Posso falar-lhe com confiança?
-Sim, desde depois -lhe respondeu, e Kady advertiu que se sentia tão aliviado como curioso.Kady sustentou a carta.
-Ruth Jordan me pediu que faça algo por ela. Não posso revelar de que se trata, mas creio que vou precisar a ajuda de Tarik... eh... de C. T. Jordan. Você o conhece, eu o conheci, e penso que não nos equivocamos se supomos que se negará a ajudar-me, salvo que encontre um modo de chantageá-lo. Quero saber tudo o que me pertence, sobretudo o que seja pessoal como essas espadas, por exemplo, e que talvez me sirvam para obrigá-lo a ajudar-me.
E quero que comece a redigir um contrato onde se determine que, se me ajuda a minha inteira satisfação, lhe será devolvido tudo. Até o último centavo. Eu não quero nada.O senhor Fowler sorriu com indulgência.-Isso me parece muito nobre de sua parte, mas creio que você não tem idéia do muito que estaria cedendo. Poderia conservar uns milhões e ele não os sentiria falta.
Kady piscou ao ouví-lo e o primeiro que pensou foi que desejava muito abrir um restaurante em Seattle, por exemplo, com salas de aula adicionadas, e fundos para toda a vida para poder dar classes grátis. Tinha na ponta da língua dizê-lo, mas não o fez. Não era o dinheiro dela e não tinha direito a ele.
-Não ficarei com nada mais que o que precise para cumprir a tarefa.-Creio que você não compreende...
-Não, senhor Fowler creio que é você o que não compreende de que se trata isto. Se Ruth não me tivesse pedido isto, eu assinaria para entregar tudo a seus descendentes neste mesmo instante, mas não posso. Como ela disse, preciso o poder, e o dinheiro me o dá!. E agora, pode dizer-me o que preciso saber?Durante uns instantes, o advogado permaneceu sentado, sorrindo, e Kady sabia o que estaria pensando. Quiçá cresse que podia renunciar a todo direito sobre o dinheiro, mas, quando chegasse o momento, seria capaz de fazê-lo? O que ele não sabia era que Kady já tinha podido comprovar o dano que podia causar o dinheiro.
Os tiros disparados pelos habitantes de Lenda tentando proteger suas riquezas tinham causado cem anos de infortúnios. Não, não queria nada do dinheiro de Ruth.-Está bem -disse, ao ver que Kady seguia calada-, Começamos a revisar os papéis? Levará tempo.-Penso dedicar-lhe cada minuto de meu tempo, até que isto fique findo -disse.
A nobreza de suas próprias palavras poderia tê-la feito estourar em lágrimas. Uns meses mais adiante, ainda seguiriam vigentes as ofertas de trabalho? Dentro de um ano? Quiçá fosse uma estrela da cozinha nesse momento, mas a gente tinha pouca memória. Seis meses depois, poderia suceder que perguntassem: "Kady que?"Fez uma profunda inspiração:
-Começamos?
CAPÍTULO 23
Girando o volante do pesado e poderoso Range Rover, Kady se concentrou em permanecer fora da hondonada central do velho caminho de terra que subia diretamente pela ladera da montanha.Já tinham passado vários dias desde o confronto com Tarik Jordan no escritório e durante todos esses dias Kady se amaldiçoou a si mesma por pensar, sequer, que ele a ajudaria. Que a tinha induzido a pensar que esse homem faria qualquer coisa por ajudar a alguém? Quando o veículo caiu na hondonada, e tudo o que tinha na caixa saiu disparado para acima, Kady enguliu com força.
-Não vou chorar -disse, aferrándose com todas suas forças ao volante - Não o farei, não o farei, não o farei.Mas foi quase impossível conter as lágrimas. Jogando uma olhada ao céu, perguntou-se se Ruth Jordan estaria olhando-a, desagradada. Tinha direito, porque Kady tinha fracassado em todas suas tentativas por ajudar a emendar o mau que tinha ocorrido no passado.
Era assombroso que uma pessoa pudesse cometer tantos erros em tão pouco tempo: nos dias desde que soube que lhe pertencia toda a fortuna Jordan. De fato, ainda, pensando-o bem, tinha feito alguma coisa bem, por pequena que fosse? Não, agora que o pensava, tudo o que tinha tentado se tinha vindo abaixo. E não um pouco, senão de maneira evidente.Primeiro, tinha sido o senhor Fowler. Que foi o que se disse a si mesma, a primeira hora do primeiro dia? Era algo assim: sabia o mau que podia causar o dinheiro, e não queria verse tentada pela fortuna dos Jordan, por muito que a atraísse."¡Que pouco nos conhecemos a nós mesmos!" pensou, desagradada, enquanto girava com força o volante.Aquele dia, no escritório de FowIer, sentiu-se seduzida, tão seduzida... Era muito prazenteiro passar de ser Ninguém a ser Alguém. Durante todo o dia, viu-se festejada, convidada e agasajada de tal maneira, que aquilo bem poderia fazê-la esquecer todos seus nobres pensamentos.
Teve que conceder que FowIer não tinha esquecido nada. O chef privado da empresa de advogados tinha deixado a cozinha e foi conhecer a Kady. Pediu-lhe, com humildade, que lhe ensinasse a fazer o frango com molho de groselhas que lhe tinham contado e que nunca tinha conseguido reproduzir. Sob a vista e o aplauso de todos, Kady tinha demonstrado que sabia o que era mover-se dentro de uma cozinha, usando suas próprias facas que, por acaso, tinha levado consigo.
Como conseqüência dos elogios sem limite, tinha feito algo insuspeito: usurpar a cozinha de outro cozinheiro. Mas o chef devia de estar bem preparado (e bem pago), porque não emitiu nem um vislumbre de protesto, e Kady tinha saído como caminhando entre nuvens, sentindo-se a cozinheira maior da terra.Todo o dia tinha sido assim. Se lhe pediu conselho, se a escutou, se a conferiu. Dava a impressão de que tudo o que dizia era sábio e digno de ser tido em conta,
Enquanto lhe mostrava lentamente a propriedade que agora lhe pertencia, o senhor Fowler, como ao passar, e como se não tivesse importância, contou-lhe coisas de Tarik, ou do senhor Jordan, como o chamavam todos.
Só Kady pensava nele como Tarik.C. T. Jordan era um homem muito discreto. Até com os advogados que tinham atendido os assuntos da família durante duas gerações guardou uma reserva excepcional.
-Não confia em ninguém -lhe disse o senhor Fowler, dando-lhe a entender a Kady que o jovem precisava ajuda profissional-. Conquanto o conheço desde que tinha nove anos, sei muito pouco dele.Kady não queria perguntar por um homem que tinha sido tão grosseiro com ela, mas se convenceu de que se queria contar com a ajuda de Tarik tinha que saber o que tivesse que saber a respeito dele, verdade?
Tarik Jordan tinha um apartamento em Nova York, que agora era de Kady, e uma granja em Connecticut, que era de sua propriedade privada.
-Está casado? -perguntou, tratando de fazer crer que a resposta não significava nada para ela.
-Não... -disse o advogado, vacilando.-Ah -disse Kady, num tom que pretendia ser mundano-. Mulheres.O senhor Fowler sorriu.-Em realidade, não. Não do modo ao que você alude. Quando era mais jovem, teve unas quantas estrellitas, mas desde então, foi de uma numa.Como Kady não voltou a olhar os papéis, o senhor FowIer continuou:
-Que mais posso dizer-lhe dele? Sua única extravagância são essas espadas, e que é mestre em todas as formas de artes marciais. De menino, ganhou quase todos os concursos nos que interveio. -Baixou a voz-. Mas tem um amor insano pelos instrumentos cortantes.-E daí me diz de sua vida familiar? A mãe?-Só a vi umas poucas vezes. É elegante, bela e tão gélida como o pai. Até onde sei, depois de ter dado a luz a seu filho, ficou livre para viver sua própria vida, enquanto não gerasse escândalo. Vive em Europa, e o marido em Nova York, quando não está em seu avião privado. O filho, C. T. terceiro, foi criado por serventes na casa de Connecticut.Durante um instante, o coração de Kady se oprimiu, mas se negou a permitir que a solidão sofrida por esse homem em sua infância se lhe interpusesse no caminho.
Que era uma infância solitária comparada com uma carência total de infância?Em certo momento do dia, Kady lhe perguntou ao senhor FowIer por que se manifestava tão contente de que ela tivesse recebido o dinheiro.Posou uma mão sobre a de Kady e sorriu como o tivesse feito um tio.
-Digamos, simplesmente, que me agradaria ver como uma pessoa boa como você conta com uma oportunidade de fazer bem com muita riqueza.Kady lhe devolveu o sorriso e recordou que Cole tinha feito construir orfanatos com seu dinheiro, e pensou que faria ela.
Se fosse o dinheiro dela, que não o era, e por isso se sacou a idéia da cabeça.À medida que avançava o dia, mostraram-lhe a Kady uns arquivos depois de outro de papéis onde se registravam outras propriedades "de ela", e começou a pedir-lhe conselho ao senhor Fowler a respeito de como tratar com Tarik. Ao princípio, o advogado se mostrou renuente, mas ante a insistência de Kady cedeu, reclinou-se na cadeira e começou a expressar seus verdadeiros pensamentos.-Não tenho modo de saber que é o que quer você dele.
-Aí fez uma pausa para que Kady se o expressasse, mas ela não disse nada-. O que sim sei é que tem de ser dura com ele. Está habituado a tratar com os grandes e não com uma pequena cozinheira de Virginia. Perdoe-me que se o diga, mas penso que é preferível que saiba como a olhará, seguramente.Kady assentiu e lhe assegurou que lhe agradecia o conselho.O advogado continuou:
-Tem que lhe apresentar suas demandas com clareza. Não creio que resulte se lhe prepara um docinho de chocolate -concluiu, com seu sorriso de tio.Kady não retribuiu o sorriso. Quiçá para o senhor FowIer fosse uma brincadeira, mas para ela era muito sério.Essa noite, quando saiu dos escritórios, levavam-na numa longa e estreita limousine negra, e Kady nunca em sua vida tinha visto algo tão luxuoso. Com tudo o que tinha visto esse dia, não a surpreendeu em absoluto que a limousine a deixasse no Hotel Plaza e que um jovem a aguardasse para levá-la à suite. Também não se surpreendeu demasiado quando olhou no roupeiro e viu que estava cheio de roupa de assinatura, justo de sua talha.
Evocando o dia, recordou que tinha entrado um homem no despacho e a tinha olhado de acima -abaixo, como se estivesse medindo-a para um ataúde. Não era para um ataúde senão para roupa de Versace e de Chanel, pensou nesse momento. Tinha sapatos fazendo jogo sobre uma ventilação no andar do armário, bolsas nos estantes. Nas gavetas, montões de roupa interior de seda.Enquanto se dirigia ao chuveiro, disse-se que não devia aceitar nada disso.
Por muito que possuísse todo o dinheiro desde um ponto de vista legal, não tinha direito moral sobre ele. No entanto, ante um camisón de seda vermelha, sua força de vontade flaqueó: jamais tinha dormido com um pouco de seda.
-Se tivesse prestado atendimento a meu ser superior -se dizia agora, enquanto conduzia o todo terreno pela velha e imprecisa rota de montanha, rumo a Lenda.Se tivesse mantido em alto a moral, não teria que ter suportado essa cena no apartamento de Tarik, uma cena que lhe revolvia o estômago cada vez que pensava nela.
Ainda a fazia crisparse ao recordar sua própria atitude quando entrou no edifício de apartamentos onde lhe disseram que provavelmente vivia Tarik Jordan. Ia preparada para a batalha; tinha-se preparado para brigar como os grandes, não como uma cozinheira de Virginia. "Assim é como me vê", pensou com desagrado.O senhor Fowler tinha chamado de antemão para que ela não tivesse problemas com os encarregados de segurança, mas quando o elevador se deteve no andar, ia tocar a campainha.
"Por que deveria fazê-lo? -se perguntou - É meu apartamento, verdade?" Ademais, duvidava muito de que ele estivesse realmente ali. Por mais do que o senhor Fowler assegurasse o contrário, Kady supunha que um homem como Tarik devia de ter muitas mulheres. Muitas, muitas, muitas mulheres.Desde o momento em que abriu a porta, Kady odiou o apartamento. Até ela podia ver que estava decorado com o que algum desenhista denominaria "classe", sem dúvida. Tinha falsos vasos orientais, copos Steuben, e muito cromo e couro negro.
Isso seria o que a Tarik Jordan lhe agradava?Percorreu o apartamento rumo à cozinha. Talvez não soubesse muito de decoração, mas se sabia de cozinhas, e esta lhe pareceu inútil, a noção que devia de ter um decorador do que era uma cozinha. Completamente inútil, pensou, contemplando as superfícies de vidro negro que teriam um aspecto horrível depois ter-se preparado a primeira comida.O dormitório era como o resto do apartamento, decorado em borgoña e negro, e não duvidava de que se apartava o custoso cubrecama, encontraria lençóis de seda negra embaixo.
De um empurrão abriu a porta do banho e viu metros quadrados de mármore branco, ferragens de bronze e espelhos por todos lados.Não soube quanto tempo esteve ali de pé, olhando em torno, até que compreendeu que, de pé junto ao chuveiro com fechamento de cristal, estava Tarik Jordan, que interrompeu a tarefa de secar-se para olhá-la, sem poder crer o que via.-Oh -exclamou Kady, sobressaltada, mas sem poder deixar de olhar esse corpo que a toalha só cobria em sua metade inferior.
Isso seria o que a Tarik Jordan lhe agradava?Percorreu o apartamento rumo à cozinha. Talvez não soubesse muito de decoração, mas se sabia de cozinhas, e esta lhe pareceu inútil, a noção que devia de ter um decorador do que era uma cozinha. Completamente inútil, pensou, contemplando as superfícies de vidro negro que teriam um aspecto horrível depois se ter preparado a primeira comida.O dormitório era como o resto do apartamento, decorado em borgoña e negro, e não duvidava de que se apartava o custoso cubrecama, encontraria lençóis de seda negra embaixo.
De um empurrão abriu a porta do banho e viu metros quadrados de mármore branco, ferragens de bronze e espelhos por todos lados.Não soube quanto tempo esteve ali de pé, olhando em torno, até que compreendeu que, de pé junto ao chuveiro com fechamento de cristal, estava Tarik Jordan, que interrompeu a tarefa de secar-se para olhá-la, sem poder crer o que via.
-Oh -exclamou Kady, sobressaltada, mas sem poder deixar de olhar esse corpo que a toalha só cobria em sua metade inferior.
Quando Tarik regressou à habitação, ia vestido com roupa informal, mas cara e era tão semelhante ao homem de seus sonhos que a Kady se lhe afrouxaram os joelhos. Enquanto ele ia para o gabinete onde se guardavam os licores e se servia um trago, Kady teve que se sustentar do respaldo de uma cadeira para afirmar-se.
-Já que, ao que parece, não veio com propósitos ilícitos, que é o que quer? -lhe perguntou, voltando-se para ela.Kady fez uma funda inspiração; resultava-lhe difícil pensar quando tinha a este homem perto.
-Preciso sua ajuda.-Ah, sim? E para que precisaria minha ajuda uma mulher tão rica como você? Pode comprar qualquer coisa que deseje. Não se o disse Fowler? -A olhou de acima abaixo com uma sobrancelha levantada - Lindo traje. Não perdeu tempo em começar a gastar o dinheiro que ganhou minha família, não é assim?Kady se viu invadida por uma breve onda de culpa, mas a eliminou. Erguendo os ombros, olhou-o aos olhos.
-Não vim aqui para que me xingue.-Então, será melhor do que se marche. Mas, que estou dizendo? Este apartamento é seu. Tudo é seu, não é verdadeiro?Kady estava disposta a fazer tudo o possível por não se meter numa discussão com ele.
-Tenho uma proposição que lhe fazer. Um trato de negócios, por assim dizê-lo. Olhou o copo que ele tinha na mão-. Não lhe importa se me sirvo um pouco de licor?-Sirva-se. É seu.-Em realidade, é você o homem mais grosseiro que conheci jamais -disse, enquanto se servia gim com tónica.
-Por que não diz o que veio dizer e terminamos de uma vez? Ou talvez veio jogar-me à rua?-¡Basta! -Tomou alento-. Devolverei-lhe tudo com a única condição de que faça o que lhe peça.Tarik ficou olhando-a longo momento.
-Essa é uma condição bastante grande, não? -Voltou a encher o copo com escocês de malta puro. Quando um sabe que, por mais do que trabalhe em sua vida, tudo será entregue a uma desconhecida proveniente de Ohio, a um se lhe acorda a curiosidade com respeito a ela.Kady piscou, confundida, e ele lhe sorriu com esse ar petulante que tinha.
-A conheço desde sempre. Meu pai sabia de sua existência, e antes, o pai dele. Depois de tudo, faz quase cem anos que o testamento de Ruth está vigente. Todos os homens Jordan sabiam que o dinheiro, as empresas, tudo era deles até que uma señorita Elizabeth Kady Long nascesse num pequeno hospital de Ohio, em 1966.
-Teve plena consciência do impacto sofrido pela mulher-. E bem, que é o que quer de mim? Além do que já tem, quero dizer.
Com tanta informação amontoando-se em seu cérebro, a Kady lhe custava trabalho pensar. A rica e poderosa família Jordan tinha tido notícias dela toda sua vida. Voltou-se e o olhou. Teria visto fotos dela? Esse era o motivo de que sonhasse com ele? Teria certo tipo de laço psíquico entre os dois por causa do testamento de Ruth? Esse testamento estava cumprindo-se muito antes que ela conhecesse a Cole, ou à mesma Ruth, só que Kady o ignorava.
-E bem, alô que é o que planejaram você e Fowler. -Apoiou o copo vazio-, Por fascinante que seja esta conversa, penso que deve dizer-me o que quer de mim.Kady enguliu com dificuldade.
-Quero que venha a Colorado comigo, a procurar um caminho de regresso à Lenda de mil oitocentos setenta e três, e...Interrompeu-se, porque Tarik estava rindo-se do mesmo modo em que Ricky se ria de Lucy, como se ela fosse encantadora, mas estivesse chiflada.
-Viagem no tempo? -lhe perguntou - Isso é o que insinua, Isso é o que crê que sucedeu, e que por isso Ruth a Implacável lhe deixou todo seu dinheiro a você?Kady não se molestou em contestar-lhe senão que o olhou em silêncio, enquanto ele dava uns passos para ela e se detinha muito perto, ainda rindo-se.
-Quer que regresse a um povo fantasma e trate de retroceder no tempo, e.. e daí mais? Mudar a história? A isso aponta? Sabe? Muitíssimas mulheres trataram de meter-se em minha conta bancária por diversos meios, mas este é novo.Baixando a voz, olhou-a com ar sedutor.
-Alô, señorita Long, leu demasiado a H. G. Wells? Kady não sabia quando tinha odiado mais intensamente a alguém como detestava a este indivíduo. Com um gesto repentino, arrojou-lhe a bebida à cara.Tarik retrocedeu e se limpou com uma mão.
-Primeiro, uma faca, agora um trago. Que virá depois? Um de seus soufflés?Pondo-se de pé, Kady avançou para ele.
-Permita-me ser clara, senhor Jordan: eu nunca quis nada disto, não pedi nada disto. Se se tivesse posto em contato comigo faz três meses, com gosto teria assinado para devolver-lhe todo seu dinheiro, porque não é meu e não o quero.-¡Ja!Ignorou-o.
-Mas, nos últimos meses, minha vida mudou de maneira drástica e isso se deve a sua família. Não à minha. ¡A sua! Prometi-lhe a uma mulher muito agradável que tentaria achar a seus descendentes, e o fiz. Depois, enviou-me uma carta desde a tumba, suplicando-me que a ajudasse. E como se tomou tanto trabalho para dar-me o poder de ajudá-la, vou tentá-lo. Este é o trato, senhor Meças: se você me ajuda, devolvo-lhe seu dinheiro, até o último centavo. Se não me ajuda, retenho-o. Tudo. Tome-o ou deixe-o.
Tarik ficou ali, olhando-a, e por uma fração de segundo Kady lhe teve medo. Mas não porque cresse, que era capaz de fazer-lhe dano adrede. Não, o que a assustava era que a intensidade desses ardentes olhos escuros pudesse consumí-la.Kady sentiu que o coração se lhe subia à garganta e, por um segundo, pensou que ia beijá-la. Mas passou o instante e Tarik retrocedeu, meteu a mão no bolso, sacou um manojo de chaves e o pôs sobre a superfície de cristal de uma mesa.
-É seu -disse - Tudo é seu. Desejo-lhe o melhor, señorita Long.Depois de dizê-lo, saiu pela porta, deixando a Kady só no luxuoso e frio apartamento.Quando saiu, foi como se toda a energia se tivesse esfumado do quarto e do corpo de Kady. Derrubando-se no sofá, ficou sentada meia hora, em atônito silêncio.Enquanto estava sentada, começou a recuperar o sentido. Tarik Jordan tinha motivos para estar furioso com ela. Sólidos motivos. Era o dinheiro da família dele, e Kady não tinha direito a uma só moeda. Mais ainda, não tinha direito a tratar de chantageá-lo.
Ruth lhe tinha pedido ajuda a Kady, a ninguém mais.Recolheu suas coisas e saiu do apartamento.Quando voltou ao hotel, chamou ao senhor FowIer e lhe disse que queria devolver-lhe tudo a C. T. Jordan, ¡e que queria fazê-lo de imediato! O único que queria conservar era a propriedade do povo de Lenda, em Colorado, e vinte e cinco mil em efetivo para solver os gastos. Não tinha a menor idéia de aonde iria quando chegasse a Lenda, mas se esforçaria ao máximo por ajudar de algum modo.
Disse-lhe ao advogado que precisava os papéis às oito da manhã seguinte e o único que ele respondeu foi:- Si.Sorrindo enquanto pendurava, Kady soube que ia sentir falta alguma coisa do fato de ser rica.Tal como lhe tinham prometido, um mensageiro levou os papéis às oito.
Minutos depois, enquanto os lia, chamaram à porta da habitação do hotel e, quando abriu, viu-se frente a um jovem que lhe disse que era notificador. Entregou-lhe um gordo feixe de papéis. Não precisou ler muito para ver que C. T. Jordan a demandava judicialmente por tudo o que, segundo ele, ela lhe tinha "roubado".Chamou sem tardança ao senhor Fowler e ele lhe disse que não se preocupasse por nada, que a empresa se encarregaria disso.
Desde depois, ele era advogado e para ele os juízos eram coisa de todos os dias. Em mudança, não para Kady; para ela, Tarik Jordan não tinha perdido tempo para atacá-la. Perguntou-lhe ao senhor FowIer se podia apresentar-lhe os papéis ao homem em pessoa.
Resultou ser que Jordan possuía mais de um apartamento em Nova York, e até que assinou os documentos que credenciavam que lhe devolvia a propriedade de tudo, Kady foi a proprietária de ambos edifícios.No momento em que terminou de vestir-se, o senhor Fowler lhe tinha enviado um acompanhante que a ajudaria a traspassar a segurança do edifício.
Agora, dias depois, viajando entre as montanhas de Lenda no Range Rover, Kady franziu o entrecejo, recordando o episódio. Tinha ido ao apartamento, outro apartamento no último andar, pôs o dedo na campainha e o deixou aí. Vários minutos mais tarde, a porta se abria bruscamente, e ante ela aparecia o semblante sombrio de Tarik.-Que demônios é ... ? -começou a dizer, mas depois a expressão passou a ser de perplexidade- Que quer hoje de mim? -perguntou, divertido- Viajar pelo espaço? Ou quer que tentemos averiguar que lhe passo à princesa da torre?
Tinha uma notável habilidade parar fazer sentir-se a Kady como uma idiota. Observando-o, viu que só levava posta uma bata balnear; dava a impressão de que não se tinha barbeado desde fazia uma semana, e se alegrou de ver que, sem dúvida, tinha-o acordado. Olhando depois dele, viu que tinha uma mesa do século dezoito sobre o solo de mármore do vestíbulo, e inclusive com seus limitados conhecimentos de antigüidades, soube que era autêntica. Este apartamento era bastante diferente do outro, e se perguntou, sem muito sentido, qual deles o representava a ele.
-Queria devolver-lhe isto -lhe disse, ceñuda, resistindo-se à onda de atracção que sentia para ele.Sem dúvida, ele a cria uma excêntrica.
-Que papéis são esses? -lhe perguntou, sem tomá-los-. Vamos, señorita Long, não estará demandando-me, verdade?
-Demandando-lhe? -exclamou-. É você o que...Interrompeu-se, porque ele lhe sorria, com esse sorriso que tinha o estranho poder de provocar-lhe vontades de arrojar-se a seus braços e de pateá-lo, ao mesmo tempo.
Com a boca apertada numa linha fina, olhou-o, furiosa.-Alguma vez lhe dá a alguém tempo de explicar-se?-Pelo geral, não -contestou ele, com os olhos chispeantes - É uma de minhas triquiñuelas de negócios. Agradam-me as películas. As apresentações de vídeo.Estava burlando-se abertamente dela, e nos ouvidos de Kady ressoou a expressão, "pequena cozinheira de Ohio". Mas, por muito que dissesse ou se burlasse dela, era Kady a que tinha a verdade. Era ele o que tinha posto uma demanda judicial contra ela, sem pedir-lhe sequer que lhe devolvesse o dinheiro.Como Tarik obstruía a porta de maneira que ela não pudesse entrar, Kady arrojou ao solo toda a pilha de papéis relacionados com o juízo, mas ele nem sequer os olhou.
A seguir, estendeu-lhe as escassas folhas que o senhor FowIer e seus ajudantes tinham passado a noite redigindo.-Se tivesse tido a cortesia de chamar-me, lhe teriam informado que ontem decidi devolver-lhe tudo. Sem ataduras, sem chantagem e, sobretudo, sem pedir-lhe nenhuma ajuda.
Manteve os papéis estendidos para ele, mas ele não os tomou. Seguiu olhando-a, em silêncio. E Kady não pôde menos do que conceder do que tinha uma expressão de completa inocência. Quase podia convencer-se de que ele não sabia a que juízo se referia. Também teria jurado que sentia uma atracção irresistível para ela. Uma coisa era que uns solitários mineiros tivessem inclinações lujuriosas para ela e outra era que um homem como C. T Jordan, que podia ter a qualquer mulher da terra, pudesse...-C. T., carinho -chegou um ronroneo desde atrás.Kady olhou depois dos largos ombros de Tarik e viu a uma mulher ali, de pé. Era alta e delgada; só sofrendo fome permanente uma pessoa podia ser tão delgada. Também era muito, muito bela, com esse estilo loiro, elegante, que apestaba a dinheiro. Levava posta uma bata de seda marfim que, a juízo de Kady, devia de custar mais do que ela ganhava num mês.
-Não há nenhum problema? -disse a mulher, com uma voz cuidada que soava como se tivesse sido educada num internado.-Está tudo bem -disse Jordan, em tom quase brusco.No entanto, não se moveu e seguiu olhando a Kady.
A mulher se deslizou ante Tarik e a bata se apartou, revelando umas pernas longas e delgadas, e enlaçou seu braço no dele, apertando-o com força.-Querido -ronroneó-. É esta a pequena cozinheira da que me falaste?Kady conteve uma exclamação. Não era coisa de sua incumbencia o que Tarik falava com seu amante, mas quiçá, por tê-lo visto tantas vezes em sua vida, a "traição" lhe doeu.-Me alegra ter-lhe dado motivo de diversão -disse com suavidade, entregando-lhe os papéis, e girou sobre os calcanhares para pulsar o botão do elevador.
-Kady -creu ouvir a suas costas, mas os tons da mulher afogaram tudo o que suspeitou que ele pudesse ter dito.-Poderíamos contratá-la -dizia a mulher em voz alta-. Como ajudante de chef de Jean-Pierre. Estou segura de que lhe viria bem um pouco de ajuda na cozinha.Pronunciou a palavra como se fosse um eufemismo por "cubo de lixo". Disse-se algo mais, Kady não a ouviu porque chegou o elevador e ela o abordou, dando as costas a Tarik e a sua magra amante.Já no elevador, longe da presença subyugante de Tarik, Kady lutou por controlar sua ira. Que tinha feito? Como diabos faria agora para cumprir o rogo de Ruth de ajudar a Lenda? Teria que encontrar o modo de retroceder no tempo? Se não sabia como o tinha feito, como poderia repetí-lo, e como ia fazê-lo só?
Quando chegou ao hotel, tinha um envio do senhor FowIer esperando-a. Como lhe tinha falado de sua intenção de ir a Lenda, ele lhe tinha enviado um bilhete de avião de primeira classe, uma reserva de hotel já paga e uma carta onde dizia que contaria com um veículo e pertrechos de acampamento esperando-a a sua chegada, ademais, desejava-lhe sorte em qualquer coisa que quisesse empreender.Ao dia seguinte, Kady voou a Denver, onde a esperavam um sedán e um motorista para levá-la ao hotel. O empregado do hotel lhe entregou as chaves de um Range Rover flamejante, cheio de equipe de acampamento de primeira qualidade, para que ficasse no povo fantasma de Lenda.-Não deixei nada de comida -lhe escrevia o senhor FowIer, e quase podia ouví-lo rir-se- Por alguma razão, pensei que preferiria comprá-la você mesma. Quisesse agregar, señorita Long, que a minha alma lhe fez bem conhecer a uma pessoa como você. Renovou minha fé na humanidade.Kady fez uma careta. Oxalá sua própria fé na humanidade tivesse sido renovada.
Depois de um dia em Denver, Kady se levantou temporão e iniciou a longa ascensão pelas montanhas Rochosas, procurando o que ficava de Lenda. Segundo os folhetos que pôde conseguir, e de um livro sobre povos fantasmas, estava abandonado, destruído e, em linhas gerais, era perigoso tratar de explorar, sequer. Ademais, era propriedade privada, e estava estritamente proibido passar, como advertiam os cartazes em todo o contorno do lugar aos possíveis exploradores.
Mas como Kady era proprietária do povo, não seria uma intrusa.O caminho que subia a montanha era horrível, com desníveis a mais de trinta centímetros de profundidade no meio, e por isso tratou de manter-se num custado, evitando que as rodas se metessem nos poços. Para ela era difícil porque só tinha experiência conduzindo pelas ruas da cidade. ¡E pensar que costumava queixar-se dos abaixamentos!
Agora, segundo o mapa, estava a menos de cinco quilômetros de Lenda, mas não podia ver nada e, se isso fosse possível, o caminho piorava. Até então, tinha visto três sinais de advertência aos intrusos que indicavam que se tratava de uma propriedade privada, mas não tinha fato muito caso dos sinais. Afinal de contas, a propriedade era dela. Essa idéia a fez sorrir, zombadora. O senhor FowIer lhe tinha dito:
-Kady, está cedendo direitos por milhões, e o único que pede é o título de um povo fantasma sem valor? Não estará pensando em explodir as minas de prata, não?Kady sorriu e negou com a cabeça. Não, não pensava tentar nada tão sensato.
-Bem -continuou o advogado-, porque isso já se tentou faz trinta anos. Existia a crença de que Ruth, a Implacável, tinha selado minas que estavam produzindo milhões, assim que o pai de C. T. reabriu-as. Comprovou-se que as minas já quase não tinham prata. Perguntei-me com freqüência se o marido e o filho de Ruth o saberiam e por isso não queriam vender a terra aos que queriam estabelecer-se. Não queriam enganar a gente, pois que fariam com a terra se não tinha mais mineral de prata?
-Não -disse Kady com suavidade-, não vou em pos da prata.Pensou em todo o ódio que tinham provocado umas minas quase vazias. Se Ruth tivesse permitido que os homens seguissem, em lugar de fazer voar as entradas à mina, quiçá o povo de Lenda não os teria odiado a ela e a seu filho menor...Kady não queria pensar em nada que tivesse podido ser, mas não foi. Mais bem, tentou concentrar-se em subir a montanha com o todoterreno e entrar em Lenda. A dizer verdade, não queria pensar no que iria tentar uma vez que chegasse.
Quiçá fosse porque pensava tão intensamente nas últimas semanas, e fazia tanto esforço por sacar-se da cabeça a perfidia de Tarik Jordan, que não viu um buraco grande, profundo, de contornos difusos, que tinha diante. Em realidade, foi como si o tivessem cavado adrede, para impedir que a gente se acercasse. Num momento, Kady ia conduzindo, pensando na chegada a Lenda, e ao seguinte, estava atrapada.
-Maldição, maldição, maldição -exclamou, golpeando com os punhos o volante.¡Estava a quase vinte quilômetros de qualquer parte, e atrapada!Por um momento, conteve o desejo de apoiar a cabeça no volante e jogar-se a chorar e, depois, com inapetência, abriu a porta e saiu. Talvez, se observava as rodas, se lhe ocorresse um modo de sair da armadilha.
-Só se pudesse aproveitar uma receita de soufflé -murmurou.Pensar no soufflé lhe recordou a C. T. Jordan e seu odioso comentário e, quando saiu, pateou uma pedra. Por suposto, magoou-se o pé, e se pôs a saltar ao redor; irritada, deu de pontapés aos pneumáticos do veículo e se magoou ainda mais.
"E agora, que vou fazer?", pensou, mas não teve tempo de pensá-lo porque, quando se agachou para ver se tinha o pé rompido, soou um disparo sobre sua cabeça. O instinto a fez erguer-se e olhar ao redor, e recebeu um segundo disparo.Por um instante teve a impressão de que já tinha traspassado a urdidura do tempo e que em qualquer momento ia ver a Cole, que correria a seus braços e que ele a abraçaria... Mas se tivesse retrocedido no tempo, não estaria olhando um automóvel.O terceiro tiro passou tão cerca que lhe cortou a manga do gordo cardigan de lã, e então soube que alguém lhe disparava diretamente a ela.
Saltou para a traseira do carro, enfilando para o bosque que tinha ao outro lado, mas quando chegou um tiro também desde ali o medo a paralisou. Imóvel, ficou onde estava, no meio do caminho, piscando, sem saber aonde correr, pois lhe disparavam desde duas direções.
Nesse momento ouviu capacetes de cavalos que se aproximavam a ela e, ainda imobilizada pelo temor, levantou a vista e viu a um homem num cavalo branco que galopava para ela a toda velocidade. Tinha posto algo negro, um echarpe sobre a parte inferior da cara, resultava-lhe tão familiar como sua própria mão.Ouviram-se mais disparos, mas esta vez apontava ao ginete. O homem não lhes fez caso e seguiu avançando para ela e, quando chegou, inclinou-se, tendeu-lhe a mão e ela a aferró. Graças às muitas vezes que tinha ela tinha cavalgado com Cole, sabia como pôr o pé no estribo que ele tinha deixado livre e montar por trás do homem.Quando esteve sobre o cavalo, rodeou com os braços a cintura do homem e se aferró com todas seus fosses, ao mesmo tempo em que ele espoleaba ao cavalo, fazendo-o galopar montanha abaixo. Pareceu-lhe que, um par de vezes, saltavam sobre troncos e profundos abultamientos o caminho, mas afundou a cara nas costas dele e não olhou.
Depois de um momento, minorou a marcha do cavalo o fez girar, mas em lugar de seguir baixando da montanha, começaram a subir. Kady abriu os olhos o tempo suficiente para ver que tinham saído do caminho iam por um caminho da montanha, mas os fechou outra vez e apoiou a cabeça contra as costas do homem. Desde depois, sabia quem era e recordava que ele não lhe agradava em absoluto, mas nesse momento era agradável entregar-se ao cuidado, ao resgate, a...
Não quis pensar mais, limitou-se a fechar os olhos e a sujeitar-se.Sua paz não durou muito, porque o homem cedo freou o cavalo e se desceu. Depois, com o entrecejo franzido, tendeu-lhe os braços e, depois de fazê-la posar-se no solo, voltou-se para ela.-¡Nunca conheci a uma mulher que cause mais problemas do que você! -começou - É que não faz sentido comum? Se dá conta de que, se eu não tivesse chegado quando o fiz, a esta hora estaria morta?
¡Morta! O velho Hannibal lhe tivesse disparado e ninguém teria encontrado o cadáver. Quem a procuraria? Fowler? Esse noivo seu que quer abrir uma corrente de hamburgueserías em seu nome? Ou talvez pensou... ? Por que sempre tinha que a fazer sentir-se incompetente?-Por que veio aqui? Está enfadado porque me fiquei com um pouco de o que Ruth me deixou? O queria tudo?O homem se acercou mais, impondo-se a ela.
-Vim salvar-lhe a vida. Eu sabia o que ia suceder. Talvez não viu os cartazes de "Não passar"? Ou só sabe ler livros de cozinha? Se chegar a fazer um só comentário depreciativo mais com respeito a sua cozinha, ia atirar-lhe uma pedra à cabeça. Ou quiçá podia aceitar a sugestão dele e atirar-lhe um soufflé... sem sacá-lo da marinita de barro.
-Como este lugar é meu, que me importam os sinais? E quem é Hannibal?Tarik lhe dedicou um sorriso que a fez pensar que lhe tinha lido a mente.
-Dá a casualidade de que é o homem que tem um arrendo sobre este lugar por noventa e nove anos. Possua você o povo ou não, não tem direito a entrar, pelo menos até dentro de oitenta e dois anos.
-O sorriso se engrandeceu e na bochecha apareceu um hoyuelo - Mas, claro, esqueci-o. Você viaja no tempo e se assoma como um coelho que vai de um buraco a outro. Assim que oitenta e bico de anos não devem de ser nada para você.Com a boca apertada e os punhos fechados aos lados, Kady se voltou e começou a caminhar montanha abaixo. Atingiu-a aos dois passos.
-Lhe molestaria dizer-me aonde pensa ir?
-O mais longe do que possa de você. Você é o homem mais desagradável, irracional e horrível que conheci, e não quero estar nem no mesmo Estado que você, e muito menos na mesma montanha. Ainda sem tirar a mão do braço dela, Kady viu que suas palavras o tinham sobressaltado. Não cabia dúvida de que, entre sua aparência e seu dinheiro, jamais tinha ouvido uma palavra brusca de lábios de uma mulher. Perguntou-se se alguma de suas mulheres o chamaria de outro modo do que senhor Jordan.
Quando a tocou, Kady tratou de livrar seu braço, mas não a soltou.-Não pode ir-se -lhe disse, sujeitando-a com força.-Me está fazendo dano -lhe disse, e ele lhe soltou o braço, mas quando empreendeu outra vez a marcha, se lhe pôs diante.-Talvez pensa tomar-me prisioneira?
-Sim, sim é necessário. Não pode merodear por estas montanhas. Não creio que distinga o este do oeste.
-Se me as arrumei para chegar até aqui, poderei baixar.-Você -lhe disse, ameaçador-, ficou atrapada com um Range Rover. Não pode conduzir, e muito menos caminhar, de maneira que não lhe permitirei...Foi a palavra "permitirei" a que o desencadeou:
-Sou uma cidadã livre e não tem direito a reter-me aqui -lhe gritou, e inspirou fundo-. Tenho uma tarefa que fazer, e vou fazê-la. E que Deus me ajude se você se interpõe em meu caminho. Lutarei com você a cada...-Bem -disse, fazendo-se a um lado - Vá. Por favor, não permita que me interponha em seu caminho. Só alô uma coisa.-Que? -lhe espetó.
-Onde está seu testamento, assim cuidarei de que seus herdeiros recebam o que você deixe.
Comprovar que estava rindo-se dela a convenceu mais de fazer o que tinha do que fazer, mas só. Alçando o nariz, fez o possível por passar junto a ele, enquanto empreendia a marcha pelo caminho que ia para o caminho.Uma hora depois, chegou por fim ao automóvel. Estava cansada, sudorosa e, como o sol começava a pôr-se, sentia frio e fome. Quando olhou seu resplandeciente e flamejante veículo, viu que lhe tinham tirado os pneumáticos e o tinham despojado por completo de toda a equipe de acampamento, como também os sacos de comida que tinha comprado.
Sentou-se a um custado do caminho e pôs a cabeça entre as mãos.-Pronta para desistir e voltar à civilização? -chegou uma voz de baixo desde atrás: não precisava levantar a vista para saber quem era.-Não posso voltar -disse, cansada, percebendo as lágrimas em sua própria voz.
¡Mas preferia condenar-se antes que lhe deixar ver a ele que chorava! O mais provável seria do que ele se risse de suas lágrimas.Mas não se riu. Sintou-se a seu lado, perto, mas sem tocá-la, e por uns instantes guardou silêncio.
-Tanto o amava? -disse em voz suave.O primeiro impulso de Kady foi perguntar: "A quem?", mas o conteve. Por alguma razão, recordou à esplendorosa loira do apartamento.
-Sim, amava-o muito, muito.Para ser sincera consigo mesma, não sabia se se referia a Cole ou a Gregory. Mas, que importava?
-Olhe, instalei um acampamento a uns quilômetros de aqui, baixando a montanha. Que lhe parece se vamos ali e vemos se podemos pensar algo juntos?
Kady se voltou e o olhou, na escuridão crescente. Estava pedindo-lhe que passasse a noite a sós com ele? Talvez, compartilhar o saco de dormir?
-Não tem por que olhar-me desse modo. Pese à má opinião que tem de mim, não sou um violador. Ademais, se tocasse a outra mulher, Leonie me arrancaria a pele.
-A loira? -perguntou Kady.Claro que não tinha nada contra ela, salvo alguns comentários pouco amáveis que tinha pronunciado sobre a vida profissional de Kady. Mas se a ele lhe agradava esse saco de ossos sem forma, quem era ela para criticá-lo?
-Sim, a loira -lhe respondeu, com esse breve sorriso que a fazia sentir-se transparente.Como Kady não respondeu, Tarik mudou de expressão.
-Olhe, não pretendo seu corpo, por muito tentador que seja. Tenho um importante assunto de negócios que tratar com você.
-Que é? -disse Kady, com os olhos entornados, desconfiada.-Olhe, está escurecendo, e como a vista do tio Hannibal não é muito boa, no melhor dos casos poderia não me reconhecer e começar a disparar outra vez. Por que não seguimos com isto no acampamento?Kady sabia que em realidade não tinha alternativa. Não podia baixar a montanha na escuridão e ademais estava muito cansada e faminta. Pese a sua incomodidade, titubeou.-Que assunto?
Tarik olhou para o bosque, cada vez mais escuro, como se esperasse que alguém saltasse de ali em qualquer momento.-A velha Ruth, a Implacável, deixou um codicilo do testamento.
-¡Deixe de chamá-la assim! -exclamou Kady - Era uma pessoa muito agradável e quero ajudá-la.-Oh, sim, sempre esquecimento que a conheceu, que você tem cem anos, e..-Que tem para comer?Não pensava suportar outro sermão.
-Truta. Eu mesmo a prepararei."Como Cole", pensou, sem querer.-A não ser que prefira cozinhá-la você. Disseram-me do que é uma cozinheira pasable.¡Outra vez estava burlando-se de ela!
-Não, eu não -disse, pondo-se de pé e jogando-se a andar-. Só sei fazer soufflés, e não preparar comida para valer, como pescado frito. E meus soufflés são tão pesados que se lhe arrojasse um, talvez lhe romperia os ossos.Deixou de caminhar, voltou-se para ele, e viu que os olhos lhe chisporroteaban mais do que as estrelas que titilaban sobre eles.O cavalo de Tarik não estava longe, e esta vez Kady montou depois dele a inapetência, e como ninguém lhes disparava, em lugar de aferrarse a ele se apartou.
Pouco depois tinham chegado ao acampamento, que tinha uma loja, um veículo todoterreno e um reboque para cavalos. Ante um fogo preparado perto tinha uma mesa e cadeiras.-Vejo que viaja ligeiro -disse ao desmontar, com todo o desprezo que pôde - Quase esperaria um mordomo e um par de donzelas.
-Até os Jordan temos que ser espartanos, às vezes.
Kady teve que se morder a língua para não dizer nada mais, porque, ao que parece, ele se divertia com tudo o que dizia. Uma parte dela lhe dizia que devia dar-lhe as graças por salvar-lhe a vida, por ir a seu resgate, mas, por alguma razão, não podia pronunciar as palavras. Quiçá se devesse a que tinha visto a esse homem tantas vezes ao longo de sua vida. Sentando-se numa das cadeiras e observando-o enquanto preparava o pescado, se lhe ocorreu que cada movimento de suas mãos lhe resultava familiar.
Tarik lhe serviu um copo de vinho -de excelente colheita, por suposto-, e à medida que o vinho circulava por suas veias e a caldeaba se ia agudizando sua percepção da escuridão cada vez maior, e da beleza viril e escura do homem.-Que diz esse codicilo? -perguntou, e inclusive a ela sua voz lhe soou nervosa.
Tarik serviu duas trutas para cada um deles e umas batatas assadas moteadas de trocitos de lenha queimada, com sabor a fumaça, e se sintou defronte dela.-Em realidade, não tem muito sentido. Dizia que, se Cole Jordan, nascido em 1864, morria aos nove anos de idade, nenhum Jordan podia aceitar a devolução do dinheiro de parte de você, durante três anos a partir de mil novecentos noventa e seis.
Olhou a Kady e a luz das chamas bailoteó sobre suas facções, enquanto esperava que ela dissesse algo, mas ela se concentrou na comida.-Pesquisei um pouco a história de minha família, e teve uma Cole Jordan nascido em mil oitocentos sessenta e quatro que efetivamente, morreu quando tinha nove anos de idade.
Kady manteve a cabeça baixa. Que esperava? Que tivesse ido salvá-la porque se tinha apaixonado loucamente dela? Porque não podia estar longe dela? Que lhe dissesse tinha sonhado com ela toda a vida?-Que sabe você ao respecto? -lhe perguntou, impaciente, ao ver que Kady guardava silêncio.
-Estou segura de que minhas histórias não seriam interessantes para um homem de negócios como você. Que disse você, que eu aparecia através do tempo como um coelho saindo do buraco? Como, pois, poderia uma idiota como eu dizer algo que lhe interessasse a alguém corno você?
-Está disposta a fazer-me trabalhar, verdade?Kady bebeu outro sorvo de vinho e lhe sorriu:- Tenho algum motivo para ser amável com você? Custou-lhe muito me demandar judicialmente? O tinha tudo preparados meses antes que eu me apresentasse?
A réplica não o irritou e lhe dirigiu um sorriso que, em opinião de Kady, devia de ter derretido muitos corações.-Tudo foi feito antes que eu a conhecesse. Mas se tivesse sabido que pessoa tão encantadora e bondosa é você, então...
-Se me pesquisou desde que nasci, deve de ter averiguado muito a respeito de mim, de maneira que lhe pediria que deixasse de tratar-me como a uma estúpida. Que quer que faça para ajudá-lo a recuperar seu precioso dinheiro?
Tarik se reclinou na cadeira e o sorriso desapareceu.-Está bem, que seja uma questão de negócios. Não tinha idéia da que se referia à velha Ruth em sua carta e, mais ainda, não me importa. O que sucedeu faz cem anos e não me interessa em absoluto.
-O sei. Você só quer o dinheiro.Isso o fez levantar uma sobrancelha.
-Sim, claro, vendi minha alma ao diabo e o único que me importa é o dinheiro. Você, em mudança, é tão nobre que pode permitir-se receber milhões e cedê-los. No entanto, há uma coisa que acorda minha curiosidade: que lhes sucederá aos milhares de pessoas que recebem dinheiro Jordan, se não há ninguém que maneje a companhia durante os próximos três anos? Os bancos deixassem em reprovado as hipotecas dos empregados? Os filhos deixarão de comer durante três anos? Talvez... ?
-Está bem, deixou seu argumento em claro. É você um santo, e só quer ajudar a outras pessoas.-Não importam quais sejam meus interesses pessoais, verdade? O que sucede é que, ao que parece, você e eu queremos o mesmo, e por isso pensei que talvez pudéssemos pomos de acordo.
-Não preciso nenhuma ajuda -dilo Kady, com a mandíbula rígida.
Olhando-o ao luar, se lhe ocorreu que quanto menos tempo passasse com ele, melhor. Não era doce como Cole, nem comum, como Gregory. Este homem era... era diferente.Tarik voltou a encher-lhe o copo de vinho.-Oxalá deixasse de olhar-me desse modo. Ao invés do que você pensa de mim, não sou um monstro. Kady não levantou o copo.
-Que quer de mim?-Uma vez me pediu ajuda, e agora lhe digo que estou disposto a ajudá-la. Por que não começa por contar-me tudo o que sucedeu entre você e meu... eh tataratataratatarabuela?
Kady se pôs de pé, apoiou as mãos sobre a mesa e se inclinou para ele.
-Não lhe direi nada -disse com doçura, sorrindo mal - Você não me agrada, não lhe tenho confiança e não quero passar um minuto mais em sua companhia.Depois do qual se jogou a andar, afastando-se na escuridão, ainda que não tinha idéia do caminho de volta A Denver.Silencioso como o vento, ele se lhe pôs diante.
-Olhe, señorita Long... -Suavizou a voz - Señorita Long, você e eu começamos com o pé mudado. Desculpo-me, e convém que saiba que seu nome era para meu algo odiado desde que fui menino.Isso fez que Kady lançasse uma exclamação.
-Faz muitos anos, meu pai me falou a sós do testamento e de você. Cresci ouvindo falar de você e. -Esticou a mão para ela - Não poderíamos começar de novo? Não poderíamos ajudar-nos mutuamente? Creio que você está convicta de que tem que fazer algo em Lenda, mas nunca poderá entrar aí sem minha ajuda. Meu tio me conhece e, se vem comigo, não lhe disparasse.Kady sabia que ele tinha razão, e lhe parecia justo que um Jordan a ajudasse na ímproba tarefa que Ruth lhe tinha imposto. Ladeando a cabeça, disse:
- Por acaso, não saberá você onde há uns petroglifos?-Além do cemitério? Cerca da Árvore do Enforcado? Esses petroglifos? Kady não pôde conter um sorriso.
-Sim, esses petroglifos.
Quando Tarik lhe devolveu o sorriso, Kady sentiu que se debilitava e pelo modo em que sorriu, soube que ele também o sabia.-Quando tinha quinze anos, meti-me em problemas e meu pai me mandou ao tio Hannibal, com a intenção de... Baixar-me a crista... creio que foi bem como o disse.
-E resultou?-No mais mínimo -disse, rindo; ofereceu-lhe o braço-. Tenho fruta fresca de sobremesa. Apetece-lhe?
-Sim -respondeu, e se deixou acompanhar de volta junto à fogueira. No entanto, uma hora depois, quando se sentia sonolenta, enquanto o observava remover as ascuas, prometeu-se que de jeito nenhum se permitiria acercar-se a ele. Cada um de seus movimentos era engraçado e não duvidava de que fosse maestro em todas as formas de artes marciais.-Por que devolveu o dinheiro? -lhe perguntou, sacando-a de seus próprios pensamentos.-Por que me demandou você? -replicou ela.
-Jamais se me passou pela cabeça do que você poderia ceder pacificamente o dinheiro -contestou, sorrindo-lhe.Kady não quis pensar no calor que lhe provocava esse sorriso. Faria levado dois sacos de dormir ou um?
-Se seu Leonie estivesse em minha situação, lhe teria devolvido o dinheiro?As palavras surgiram com mais força da que tivesse querido.Mas Tarik não pareceu inmutarse.
-Leonie o teria gastado tudo em quatro dias.Kady esperava protestos em defesa da perfeição dessa mulher à que, talvez, amasse.
-Em que? -perguntou, com os olhos muito abertos.Como fazia alguém para gastar tanto em tão pouco tempo?-Jóias, um iate, um ou dois aviões, casas em todo mundo -disse, agachando-se junto ao fogo para reavivá-lo.
-Ainda bem que você segue sendo rico, não? Quiçá ela não estivesse tão impaciente por casar-se com você se fosse pobre. Kady era consciente de que estava tanteando para saber se estava comprometido e tivesse querido abofetearse por querer sabê-lo.
-Se diz isso para impressionar-me, ou para fazer-me reconsiderar o casal com Leonie, não resultasse. Ela e eu encaixamos. Eu trabalho o tempo todo e me ausinto com freqüência, e por isso não poderia ter uma esposa que passasse o dia incomodando-me porque não estou nunca em casa.-Então, para que se casar?
-Filhos. Quisesse ter alguns.
-E crê que Leonie será boa mãe?-Creio que ficará bem indo de meu braço, e o amoroso casal que me criou a mim criará a meus filhos.
-Ah, já vejo, e você resultou muito bem.A ironia o fez rir-se entre dentes.
-Deixe-me adivinhar: você se reserva para um homem que a ame até a morte, e que lhe dê três filhos perfeitos. E também quer ter uma carreira; não um simples emprego senão uma verdadeira carreira, que a satisfaça. Ainda que não lhe contestou, o silêncio de Kady se o disse tudo.
-Quem crê que é o sonhador, você ou eu? Eu tento o que posso conseguir; você vai depois do sonho que todos almejam e ninguém consegue.
Conquanto suas palavras deveriam molestá-la, não foi assim.
-Sem esperança, um se morre -lhe disse, sorrindo-lhe, e ele lhe retribuiu o sorriso.-Por exemplo, a esperança de que poderá fazer viver a um homem morto?-Ao que parece, Ruth crê que posso e, sem dúvida, vou tentá-lo.Tarik se pôs de pé e se esticou, como um escuro animal à luz da fogueira. Tomando um ramo ardendo, acendeu o lustre e a pôs cerca dela.
-Pode dizer-me que pensa fazer, exatamente?Se Kady fosse sincera, lhe teria dito que não tinha nenhum plano, mas não cria que um homem de negócios entendesse semelhante estratégia. Era como não saber o que uma ia cozinhar até ter visto que alimentos frescos se conseguiam esse dia no mercado.-Creio que, por um tempo, me reservarei meus planos -lhe disse, tratando de parecer misteriosa.
Mas, pelo modo em que ele sorriu, supôs que sabia o que tinha em sua cabeça... ou, mais precisamente, o que não tinha.Pondo-se de pé, olhou a loja com certa aprensión e outra gargalhada a fez dar-se volta.
-Não tem por que estar tão assustada. Poderá conservar a virgindade outra noite mais.
-Não sou... -começou a dizer, e se interrompeu ao advertir que estava burlando-se dela-. Que fazia para divertir-se antes de conhecer-me? -lhe perguntou.
-Trabalhava dezoito horas ao dia. Pode ficar-se na loja, e eu dormirei no carro.
-Está seguro de que não preferiria alojar-se com seu cavalo?
-Isso é o que teria feita Cole? -lhe perguntou, repentinamente sério.-Que sabe dele?
-Se você pode guardar segredos, eu também. Boas noites, señorita Long -lhe disse, escabulléndose na escuridão, onde já não podia vê-lo.Recolhendo a lanterna, Kady entrou na loja e foi para o saco de dormir. Ao princípio, pensou que poderia meter-se vestida entre as capas de plumón, mas compreendeu que era ridículo.
Tarik lhe tinha assegurado que não tinha intenções de fazer-lhe dano, e fosse o que fosse o que pensava dele, sabia que estava segura com ele. Tão segura que se estivesse em perigo, onde quer que esteja, ele apareceria para protegê-la. Talvez não tinha aparecido em seus sonhos toda sua vida? E não tinha aparecido em Colorado, quando ela o supunha a milhares de quilômetros?Enquanto ficava dormida, creu ouvir:
- Boas noites, Kady. -Mas não estava segura. Fosse o vento ou não, dormiu-se sorrindo.
CAPÍTULO 24
-Que? Que quer que faça, que coisa? -perguntou Kady, com uma xícara de café quente na mão, olhando fixamente a Tarik Jordan.Era pela manhã, temporão, e estavam sós no meio da beleza silvestre.
-Que faça novillos -lhe disse, sorrindo-. Que falte a classes. Que se tome o dia livre.
-Não posso fazer isso -disse Kady, horrorizada-. Você não tem idéia do que está em jogo aqui. Há pessoas que dependem de mim. Levam esperando-me toda sua vida, e tenho que...-Esperaram mais de cem anos, que importa um dia mais, pois? -Fez uma pausa-. Señorita Long, você nunca se diverte?A só idéia de semelhante coisa fez passar mil cenas ao mesmo tempo pela mente de Kady: regressar a casa desde a Cole para ajudar à mãe de Jane com as tarefas domésticas, cozinhar para várias pessoas todo o fim de semana, a Cole de dia e mais cursos durante a noite, enquanto preparava comida para festas para ajudar-se a pagar a Cole. Depois, foram Onions e Gregory. A noção que ele tinha da "diversão" era fazer que Kady cozinhasse para vinte e cinco pessoas que, segundo afirmava, algum dia o ajudariam em sua futura carreira política.
Depois, vinho Lenda e, as vezes, o que mais recordava dessa época era a angústia de pensar do que nunca poderia voltar a sua casa. Depois, a preocupação por conseguir trabalho, e agora...O riso de Tarik - interrompeu seus pensamentos, e o olhou piscando os olhos.
-Repassando sua vida para suas adentros? -lhe perguntou, e quando viu que Kady se assombrava, sorriu-. Señorita Long, se tem à impressão de que posso ler-lhe a mente é porque assim é. Meu pai cria que a infância era uma preparação para o esforço de ser adulto, e como eu, um dia, ia ser responsável de milhões, tentou que passasse minha vida na Cole. E depois, tive sobre mim a responsabilidade da Companhia Jordan, Crê que minha vida deve de ter sido tão divertida como a sua. Que lhe parece se nos tomamos o dia livre?-Que está tratando de conseguir de mim? -perguntou, suspicaz.
-Todos seus bens materiais -respondeu com um sorriso, e Kady não teve mais remédio que se rir.-Poderia ter tudo o que possuo numa só mão -disse-. Tenho trinta anos e não possuo nada, não tenho nada. Neste momento, não tenho um emprego sequer, lançou uma exclamação cética.
-Talvez trata de fazer-me crer que uma chef de sua reputação não recebe centos de ofertas de emprego?
-Umas poucas -disse Kady com modéstia, olhando a xícara de café.Tarik tinha moido os grãos a mão e não lhe permitiu tocar nada enquanto fazia bolos de trigo sarraceno,-Vinga -lhe disse, tendendo-lhe a mão-. Concedamo-nos o dia livre.Quando Kady o olhou, um arrepio lhe percorreu as costas, pois era o mesmo gesto que tinha visto milhares de vezes em seus sonhos. Nesse momento, a sombra lhe escurecia a parte inferior da cara, mas um raio de sol que se filtrava entre as folhas destacava seus olhos.
-Vêem, habibi -lhe sussurrou, e Kady compreendeu que era uma palavra carinhosa em outro idioma-. Esta vez pode atingir-me.
O coração e o sentido comum de Kady lutaram entre si, mas recordava todas as vezes que em sonhos tinha tentado tomar-lhe a mão e não pôde atingí-la. Agora, estendeu a mão, insegura ao princípio; depois, à medida que acercava os dedos, sorriu-lhe e deslizou sua mão na de Tarik. Este lançou uma gargalhada e, cedendo a um impulso, levantou a Kady, fê-la girar e riram junto um momento, enquanto o cabelo da mulher girava ao redor.Foi Kady a primeira em recuperar a sensatez e começou a empurrá-lo.-Senhor Jordan -disse-, penso que deveríamos...
Ainda sorrindo, ele a apoiou no solo mas sem retirar as mãos de seus ombros.-Creio que, por hoje, poderíamos deixar-nos de pensar -lhe disse, sorrindo-lhe com calidez.Kady queria conservar a animosidad para o homem, mas se lhe fazia difícil. "Recorda que é um tipo desabrido -se disse-. Recorda que vai casar-se com outra. Que é rico e famoso, e que para ele tu és um meio de recuperar seu dinheiro, e nada mais. "
-Penso que deveríamos ir a Lenda -disse-. Tenho coisas que fazer ali, e também assuntos que atender. Ademais, preciso um emprego e os possíveis empregadores não esperarão para sempre.Enquanto falava retrocedia.
-¡Ao diabo os empregadores! Comprarei-te um restaurante, e poderás...-Isso é o que crê que persigo? Crê que quero que me compre algo? Talvez... ?-Quero passar o dia com uma moça bonita -replicou ele com suavidade-. Quero passar um dia sem negócios, longe das tragédias da família e de qualquer outra preocupação. Agradaria-me mostrar-te um lugar que encontrei quando era menino. Nunca se o mostrei a pessoa alguma, e sim me agradaria que o visses tu.
-Por que? -perguntou, suspicaz.-Porque nunca em minha vida conheci a alguém como tu, por isso -disse, com expressão irritada-. E pode que queira causar-te uma melhor impressão. Não sou o que tu pensas que sou, e me agradaria que o soubesses antes que... antes de que nos separemos.
-Outra vez lhe tendeu a mão-. Virás comigo?
Kady ia protestar, ia dizer que não, mas pensou: "Que diabos? Por que não?" Talvez poderia passar-lhe algo mais estranho ou pior que o que já lhe tinha passado?-Está bem -disse, sorrindo, e tomou a mão dele-. Mas com uma condição.
-Qual?
-Não falaremos de dinheiro e não tratarás de fazer-me contar o que passou em Lenda. Quisesse desfrutar de um dia sem pensar no passado.
-¡Trato feito! Só falaremos de nós.
-Magnífico. E, depois, venderei a história do rico e evasivo C. T Jordan aos tabloides, e ganharei suficiente para abrir meu restaurante.Sem titubeos, tomou-lhe a mão e a beijou no dorso.
-Nenhuma mulher capaz de devolver uma fortuna como a que tu devolves seria capaz de fazer algo tão baixo e repugnante como isso.Já fora pela confiança nela, ou pela mão grande do homem que sujeitava a sua quando o olhou, Kady sentiu que seu coração se livrava da pesadez, das últimas semanas.
O termo tensa resultava pálido para descrever as últimas semanas de sua vida.-Talvez queres dizer que sou aborrecedora? Que sou demasiado boa para cometer uma traição?
-Não, claro que não. Que era o que dizia Alice Toklas dos ovos?
Kady riu.
-Que preferia revolver os ovos de um homem antes que lhe fazer uma omeleta, porque requeria menos manteiga e ele seria capaz de reconhecer o insulto. Sim, eu poderia fazer isso.
-Mas, o fizeste? Soltou-lhe a mão e com movimentos rápidos e eficientes começou a sacar elementos do acampamento, sob a olhada de Kady. "Não cabe dúvida de que é auto-suficiente", pensou.
-O fizeste?-Que coisa?Estava inclinado apagando o fogo, e se voltou para olhá-la.-Lhe fizeste algo muito perverso a outro ser humano?-Lhe gritei à senhora Norman -disse, em tom de culpa - É a...
-A abelhuda mãe de Gregory. Pelo que me disseram dela, é um milagre que não a atacasses com a faca de açougueiro.
-É raro, mas nunca me tinha molestado até que conheci a Cole. Depois de conhecê-lo, algo mudou dentro de mim.Tarik metia coisas numa mochila com armação de alumínio.
-Talvez tenhas começado a cobrar consciência do muito que vales.-Cri que não íamos falar de dinheiro.Tarik riu entre dentes, enquanto sacava garrafas de água do automóvel.-Não estou falando de dinheiro. Talvez não diz a Bíblia que uma mulher virtuosa vale seu peso em pérolas? Ou algo assim.
-Eu não sou virtuosa -disse Kady, fazendo uma careta-. Em toda minha vida, três homens me declararam seu amor: Cole, Gregory e um garoto do colégio, e me acosté com dois deles. Parece que me acuesto com a maioria dos homens que me declaram seu amor.Ao ouví-la, inclinou-se para ela até que os narizes quase se tocavam:
- Sim é assim, amo-te, amo-te, amo-te, amo-te, Kady.
-¡Longe de aqui! -lhe disse, rindo e empurrando-o pelo peito.
Tarik se apartou, mas seguiu olhando-a com expressão tão provocante que a fez sonrojarse.
-Se não deixas de fazer isso, não irei contigo.Mas até ela pôde perceber a mentira em sua própria voz. Seria maravilhoso passar um dia livre de preocupações e ansiedades. Passar um dia sem fantasmas que dirigissem sua vida.
-Estás segura de que não queres tratar de ir a Lenda só? -lhe perguntou com fingido horror em seu rosto moreno e bonito-. Poderia tentar passar a vigilância do tio Hannibal por tua conta. Depois disso, tremeu tão exageradamente que fez sorrir a Kady - Tu não o viste. Esse homem dá medo. Quando eu era menino, estava convencido de que era Barbanegra.
-¡É um ladrão! -exclamou Kady. Destruiu o adorável Range Rover que me comprou o senhor Fowler. -Ejem -carraspeó Tarik, enquanto se jogava a mochila às costas e passava as correias pelo peito.
-Ah, suponho que me o compraste tu. Estava assegurado?
-Nada de falar de dinheiro, recordas? Pronta para marchar? Como estão teus pés? Há que caminhar bastante.
-Meus pés estão bem -disse, olhando o calçado desportivo que levava.Como passava boa parte do dia de pé, punha-se inquieta se tinha que estar sentada muito tempo.
-Então, vêem, habibi, segue-me.
-Que significa isso? -lhe perguntou, enquanto andava depois dele através da maleza. Em poucos minutos, chegaram a um estreito caminho que ascendia-. Que idioma é?
-Árabe, o idioma do amante de Ruth. Não sabes por que se foi à cama com ele, não? Além da luxúria, claro. Não dedicou um minuto a chorar ao marido morto?
-¡Não foi nada de isso! -exclamou Kady com veemência-. Foi porque Ruth sofria muito, e tinha tanta pena que se voltou para Gamal e... -Se interrompeu-. Muito astuto. Mas não resultará. Disseste que este era nosso dia livre, e assim será. ¡Não mais Jordan!
-Tarde -disse, olhando-a sobre o ombro, por trás da grande mochila.Kady não teve mais remédio do que rir, porque tinha esquecido por um momento que ele era Jordan.
Ainda seguia rindo quando Tarik voltou ao caminho e começaram a longa e lenta ascensão. Cedo, Kady comprovou que caminhar ida e volta entre balcões na cozinha de um restaurante não era o mesmo que trepar por uma montanha a mais de duas mil setecentos metros de altitude. Se lhe torciam com freqüência os tornozelos e sentia como ia formando-se uma ampola no dedo pequeno.Mas não se queixou. Já de menina tinha aprendido a não se queixar de nada, a aceitar sua sorte e seguir adiante com a vida o melhor do que pudesse. Por isso, quando Tarik lhe perguntava como ia, Kady sempre respondia que bem.
E era verdadeiro, exceto pelos pés. O ar era fresco e vivo, e comprovou que realmente podia esquecer o passado, e também o futuro incerto. Em decorrência desse dia não queria pensar em outra coisa que no sol, as ervas que recolhia e guardava em sua pequena mochila.
O mais duro da caminhada depois de Tarik era não pensar nele. Era difícil não o olhar e sorrir quando se dava à volta para dizer-lhe algo. Dava a impressão de que conhecia o bosque tão bem como manipular suas espadas.
-Quando começaste a ter interesse pelas facas? -lhe perguntou, e quis abofetearse, porque isso era uma referência indirecta a Cole.Com expressão perspicaz, Tarik a olhou.
-Talvez herdei meu gosto de alguém?-Se te colam os imans?
-Às vezes -respondeu, rindo-. Sabe uma coisa, señorita Long? Passei boa parte de minha vida perguntando-me como serias.
-E eu jamais soube da existência de tua família -comentou Kady com exagerada indiferença.Tivesse preferido entregar suas sertãs antes de contar-lhe que sonhava com ele. De repente, se lhe ocorreu pensar qual seria a reação de Jane se a chamasse para dizer-lhe que tinha encontrado ao homem do véu. Sem dúvida, Jane diria que Kady devia casar-se com ele de imediato porque, sob esse aparenta coração de calculadora, sua amiga era uma romântica.
-Eu si que sei coisas de ti. Meu pai tinha contratado a um detetive privado que duas vezes ao ano lhe apresentava um relatório, com fotografias e tudo. Por acaso, encontrei a combinação da caixa de segurança que meu pai tinha em casa, e a usei para abrí-la e ler esses relatórios.
Conquanto Kady sabia que deveria estar horrorizada por isso, em realidade estava fascinada.
-Que podiam dizer esses relatórios sobre mim? Levei uma vida muito aborrecedora e carente de interesse.
Tarik demorou tanto em responder que Kady pensou que não ia fazê-lo, mas se deteve à sombra de uma grande árvore e sacou uma garrafa com água de um gancho ao custado da mochila, ao mesmo tempo em que Kady se sentava sobre uma rocha e o olhava. Deu-lhe a garrafa a ela primeiro e lhe pareceu perfeitamente natural que ele bebesse depois dela.
-Tua vida nunca me pareceu carente de interesse -disse em tom suave, olhando por entre as árvores como se não suportasse olhá-la a ela - Não duvido de que Fowler te disse tudo o que pôde a respeito de mim, Não lhe caia bem desde que lhe saquei boa parte de meus assuntos.
-Não, não me contou grande coisa -disse Kady.Sobre eles penduravam ramos baixos das árvores e no bosque reinava uma grande quietude.
-Não se me permitiu ter demasiado companhia de menino e sempre pendia a ameaça de um rapto, de maneira que tive que me arrumar com o que pude para isso.
-Depois de uma pausa, olhou-a - O fato de saber que tinha outra pessoa neste planeta que tinha que trabalhar para viver me fazia sentir-me melhor com respeito a minha sorte na vida.Kady sorriu, tratando de aliviar a situação, pois viu que se lhe tinham formado linhas brancas de amargura ao redor da boca.
-Eu imaginava que um garoto rico como tu teria todos os brinquedos imagináveis. Se quereres colegas de jogo, teu pai não poderia ter-te comprado?Tarik lançou um resoplido desdeñoso.
-Meu pai cria que tinha que obter algo a mudança de cada centavo que gastava. Comprou-me um cavalo, e então esperava encher as paredes com prêmios ganhados cavalgando. Para ele, as artes marciais eram outra forma de obter crédito pelo que eu tinha conseguido.-E o conseguiste? Sobressaiu em tudo o que tentavas?
Por uns instantes, os olhos escuros de Tarik se perderam na evocação, mas depois a olhou de novo e sorriu.
-¡Já o creio que sim! Tu não? Se tivesses que cozinhar para tua mãe e para a família com a que vivias, não te converterias na melhor cozinheira do mundo?
-Sim -disse Kady, com os olhos engrandecidos pela descoberta-. Nunca se me ocorreu pensá-lo desse modo. Eu pensei que estudava cozinha por necessidade. E por pobreza. A gente precisa comida.-E também precisa dinheiro. Precisam empregos, e quando meu pai os criou, pareceu-me que estava fazendo algo bom. Mas, às vezes, eu desejava que me permitisse falhar em algo e ainda assim seguisse querendo-me.
Kady o olhou piscando. O que ele dizia era similar ao que Jane tinha dito com respeito a que sua família se tinha aproveitado de Kady e que por isso ela se sentia em dívida com a amiga.
-Te fazia sentir-te menos só? -lhe perguntou a moça com suavidade.
-Sim -respondeu ele sorrindo, desaparecida já a sombria introspecção - Li todos esses relatórios e examinei as fotos até que tive a sensação de que te conhecia. -Pendurou outra vez a garrafa do cinto-. Por isso, señorita Long, se às vezes pareço ter demasiado confiança com você, rogo-lhe que me perdoe. É que sinto como se te conhecesse de toda a vida.
-Desde que tinha nove anos -sussurrou.
-Sim -disse com vivacidade, oferecendo-lhe a mão para ajudá-la a pôr-se de pé - Mas não recordação ter-te dito.
-Devia de ter-me dito, pois se não fosse assim, como o saberia eu?
-Claro -disse, olhando-a aos olhos, e Kady advertiu que não lhe cria.
-Não crês que deverias chamar-me Kady? -lhe disse, e vacilou - E eu... como teria que te chamar?
-Senhor Jordan, como todo mundo -lhe disse, com olhos chispeantes.
-¡És uma rata! -lhe disse, lançando-se para colar-lhe, mas ele se ladeó e, quando Kady se cambaleou, atrapou-a em seus braços.
-Mmmmm, Kady -lhe disse, acercando-a a ele e afundando a cara no cabelo dela-. Que chacoalhada foste para mim.
Kady se esforçou ao máximo por conservar o sentido, porque lhe tivesse sido fácil derreter-se contra ele, mas o apartou.
-Se me conheces tanto, como pude sacudir-te?
-A luxúria sempre é uma chacoalhada.
-Oh -disse Kady, com as sobrancelhas alçadas quase até o nascimento do cabelo.
-Pronta para ir-nos? Parece que vai chover, e creio que deveríamos guarecernos antes que isso suceda.mO único que atinou a fazer Kady foi assentir e recolher sua mochila. "Luxúria -pensou - Não é verdade que a vida dá giros muito interessantes? "Caminharam durante o que pareceram horas, e a cada momento que passava Kady se relaxava mais.
No entanto, seguia perguntando-se quem seria o verdadeiro Tarik Jordan. O que tinha conhecido em Nova York, ou o que a resgatou das balas e agora a fazia rir?Pela tarde se detiveram a comer queijo e pão, e Kady lhe perguntou por que não quis vê-la quando ela foi a seu escritório. Tarik demorou em responder.
-Me imaginava que livraria uma longa briga para recuperar o controle do que tinha criado minha família. Se pudersse evitar ver-te até que passasse o dia posterior ao marcado no testamento, não teria que ter recorrido aos juízos.
-Nesse caso, por que não te ocultaste nessas últimas semanas? Ou inclusive esse último dia? Fizeste-me esperar-te fora do despacho durante horas. Então, por que não desapareceste, singelamente, quanto soubeste que estava ali?
-Suponho que foi por curiosidade. Queria ver como eras em carne e osso, por assim dizer.
-Poderias ter-me conhecido ao dia seguinte -disse, exasperada, irritada de que eludisse a questão adrede.Com isso fez rir a Tarik, que pôs a comida restante na mochila grande.
-Poderia, mas não pude ir-me. Quiçá queria ver se insistias. Suspeitei que não sabias o referido ao testamento, mas também pensei que tinha algo mais do que te impulsionava a exigir ver-me. Claire disse que te mostravas muito obstinada.
-Se Claire é essa cachorra de recepcionista, me agradaria conservar o controle de tua empresa o tempo suficiente para poder despedí-la. Em verdade, foi muito odiosa. Uma poderia pensar que era a dona da empresa, que... A olhada que lhe dirigia fez interromper-se a Kady.
-Oh, tinha intenções para contigo. Sonhava com ser a Senhora Patrona.
-Tens um modo particular de dizer as coisas. Estás pronta? Pondo-se de pé, Kady levantou sua pequena mochila.
-Quantas são as mulheres que trabalham para ti e que pensam que têm uma possibilidade de casar-se contigo? -Uma ou duas. Zelosa? -Más ou menos como tu o estás dos homens de minha vida.
-Então, deve ser algo que te persegue todos os dias -lhe disse, com tanta suavidade que Kady quase não o ouviu.Mas sim o ouviu, e ainda que sabia que não devia crer-lhe, fê-la sentir-se bem.
A chuva começou ao redor das quatro e Tarik se deteve sob uma árvore para sacar da mochila uns longos ponchos amarelos, com um dos quais tampou a Kady de acima abaixo, colocou-lhe a capucha e se o atou com firmeza sob o queixo.
-Está bem? -lhe perguntou, nariz com nariz, e ela assentiu. Quando se pôs seu próprio poncho, estava empapado, mas não deu sinais de notá-lo e retomou a marcha montanha acima, até que uma hora depois se detiveram ante uma rocha coberta de enredaderas. Kady se fez a um lado, açoitada pela chuva, enquanto Tarik apartava as enredaderas e deixava à vista o que parecia ser uma pequena gruta. Sustentando os ramos para um lado, fez-lhe senhas de que entrasse.
A gruta era pequena e estava demasiado escura para ver grande coisa, mas em poucos minutos Tarik tinha acendido o fogo, pois, pelo visto, tinha lenha seca guardada ali. Esfregando-se os braços para entrar em calor, Kady olhou ao redor, esperando ver pinturas de cavernícolas, mas só eram muros de pedra arenisca e solo arenoso. Junto a uma parede tinha um banco rompido e uma cópia barata de livros enmohecidos junto a eles tinha uma faca enferrujada. Passas bastante tempo aqui, não é verdadeiro? -lhe perguntou, sorrindo, enquanto se tirava o poncho molhado e depois a mochila.Jogando uma olhada à faca, Tarik lhe devolveu o sorriso enquanto apantallaba as chamas.
-Tudo o que posso. Lá, junto a essa parede, há uma pequena prateleira, e sobre ele uma caixa de madeira. Olha dentro.
Ao fazê-lo, viu fotografias dela dentro da caixa, coisa que em certo modo não a surpreendeu. A essas alturas, já nada a surpreendia nem a impressionava. Tinha fotos de grão muito aberto tomadas com teleobjetivo, onde se a via de menina.
-Esta é mim preferida -disse Tarik, acercando-se a ela por detrás.Esticando a mão acima do ombro de Kady, sacou uma foto do montão. Nela se via a Kady aos treze anos, no pátio da Cole, com meninos ao redor, ainda que ela estava apoiada contra a parede, lendo um livro.
-O mais provável é do que fosse um livro de cozinha -lhe disse, sorridente, e cometeu o, erro de voltar-se para ele e encontrar sua cara a poucos centímetros.Por um momento, Kady esteve segura de que a beijaria, mas ele se deu a volta deixando-a aliviada e, ao mesmo tempo, enfadada. Mas, que era o que esperava? Estava comprometido para casar-se com outra mulher.Sem querer, pensou: "Tal como tu estavas comprometida com Gregory, ainda que não o amasses."
-Fala-me de Leonie -lhe disse, enquanto voltava para o fogo.Tarik não respondeu a sua petição.
-Senta-te aqui. Quero ver-te os pés. Kady não creu necessário perguntar-lhe como sabia que tinha algum problema nos pés, pois, ao que parece, ele sabia muitas coisas sobre ela. Sentada sobre uma rocha que sem dúvida estava destinada a servir de assinto, começou a desanudarse os cordões, mas Tarik lhe apartou as mãos. Bastaram-lhe uns segundos para tirar-lhe o sapato e a meia.
-Talvez tens idéia do perigosa que é uma ampola assim? -perguntou, enfadado - ¡Olha isto! Tens duas ampolas neste pé, e quantas no outro?Sem esperar resposta, tirou-lhe o outro sapato e a olhou com ar de reproche ao ver as três ampolas que tinha nesse pé. Uma delas tinha arrebentado e o sangue tinha colado a meia à pele. Se o tirou com cuidado.
Depois de sacar medicamentos da mochila, começou a curar-lhe o pé, pondo-lhe ungüento para prevenir a infecção.
-Tu cuidas de todo mundo, mas ninguém te cuida a ti, verdade? -lhe perguntou, com o pequeno pé bem sujeito entre suas mãos grandes.
Conquanto Kady não queria admití-lo, algo na intimidade do terno cuidado que lhe brindava a seus pés a fazia sentir-se mais cerca dele do que se tinha sentido com nenhum outro homem. Ainda que se tinha acostado com Gregory, nunca o conheceu. Tinha estado com Cole, mas jamais se sentiu parte dele do modo que começava a sentir-se parte deste homem. Ainda que lhe resultasse desconcertante saber que ele a conhecia de toda a vida, reconhecia que ela também o conhecia a ele.
-A que jogavas quando estavas aqui? Vinha só? -lhe perguntou.
-Sempre -lhe contestou, enquanto lhe vendava o pé com gaze.
-Jogavas a que era vaqueiro? Ou querias ser explorador do espaço?
-Nenhuma das duas coisas -lhe disse, enquanto tomava o outro pé e começava a esquentá-lo entre as mãos-. Jogava às Mil e Uma Noites. A que eu era um príncipe berebere, e andava por aí com uma capa de lã, cobrindo-me a cara. Como um véu, suponho, para proteger-me das areias do deserto. Olhou-a e lhe brilhavam os olhos.
-Tive que abandonar o jogo quando me brotou um sarpullido por culpa da lã.Kady o olhou sem sorrir.
-Que quiseste dizer quando disseste: "Esta vez sim poderá atingir-me"?
-Não o recordo. Quando foi isso? Isso é, assim está melhor? -lhe perguntou, referindo-se ao pé de Kady. Parece-me que hoje seria melhor do que não apóies os pés. Terminaram-se as ascensões para ti. Amanhã, poderia levar-te em braços para baixar, -Não farás semelhante coisa. Que quiseste dizer?-Com respeito a que? Olhou-o com os olhos entornados.
-Ah, com respeito a atingir-me? Não tenho idéia. Não recordação tê-lo dito. Os olhos dele lhe confirmaram que não mentia. Ninguém podia fingir uma expressão tão vacua.
-Pensavas em mim quando usavas a túnica de lã negra? -lhe espetou, com expressão veemente.
-Como sabes que era negra? Kady não respondeu e ficou esperando sua resposta. Pareceu que pensava nessa resposta enquanto sacava a comida da mochila.
-Creio que sempre pensei em ti -lhe disse em voz fica - Fizeste parte de minha infância.
-Te imaginavas cavalgando num cavalo branco pelo deserto e pedindo-me que fosse contigo? -lhe perguntou com suavidade.
-Exato -lhe contestou, com sorriso feiticeira-. Que jantaremos? Tenho lombo Stroganoff desidratado, frango a king desidratado, e...
-É uma brincadeira, verdade? Não esperarás que eu coma essas coisas... Não podia nomear os alimentos, como se o só fato de dizê-lo lhe revolvesse o estômago.-Se te ocorre alguma sugestão?
-Dá-me a mochila e deixa-me ver que há -disse e, com um sorriso, Tarik lhe indicou que olhasse dentro.
Meia hora depois, Kady tinha preparado um refogado de arroz sazonado e talher de queijo e, como sobremesa, tinha feito pudim de pão com essa mistura para viagem e leite em pó.
-Nada mau -disse Tarik depois de comer-se três porções e limpar as cumbucas-. Nada mau, em absoluto.Kady não teve mais remédio que se rir, pois, de repente, viu os comentários de Tarik sobre sua maneira de cozinhar como o que eram: brincadeiras.
A chuva seguia caindo, mas dentro da pequena gruta o ambiente era acolhedor e morno e, à medida que escurecia, Kady olhava nervosa para fora. Que passaria agora? Supunha-se que ia meter-se no saco de dormir junto com ele? Por instinto sabia que o sexo com esse homem seria diferente de tudo o que tivesse experimentado até o momento. O sexo com Tarik, ou fazer amor, como sabia que seria com ele, lhe mudaria a vida.
O pior era que lhe fazia desejá-lo, ainda sabendo que não era para ela. Tarik se casaria com uma mulher como Leonie, com uma voz que soasse a dinheiro e a Coles da lvy League. Os homens como Tarik Jordan não levava a sua casa a cozinheiras de Ohio, para apresentar-se a sua mãe. Sobretudo a uma mãe que se dedicava a conservar sua beleza. Que podia pensar de Kady, que era incapaz de recordar pintar os lábios, e muito menos tudo o demais?
-Que está passando por essa mente? -lhe perguntou Tarik, enquanto colocava uma palangana com água de chuva junto ao fogo e começava a lavar os pratos.
-Que jamais te tivesse imaginado capaz de lavar a louça.
-E eu nunca pensei que fosses mentirosa. Que é o que estás pensando, para valer?
-Em tua mãe. Adora a tua Leonie?
-São da mesma classe. Minha mãe a eescolheu para mim.
-Como um jogo de pratos, queres dizer?
-Exato -respondeu. -E teu pai? Conheceu a teu... a teu... antes de morrer?Titubeou antes de nomear ao pai porque o senhor Fowler lhe tinha dito que fazia só seis meses que o pai de Tarik tinha morrido num acidente de avião. E não pôde pronunciar a palavra noiva. Com suma cortesia, Tarik, fingiu não ter advertido o problema de linguagem de Kady.
-Oh, sim: disse que era uma idiota. Que era preferível que me casasse com a filha da senhora da limpeza em vez de uma das amigas de minha mãe. Entre meus pais já não tinha amor.
-E por que, então, permaneceram casados tantos anos?
-Se meu pai se tivesse divorciado, teria que ter renunciado a parte de sua riqueza, e por isso preferiu ter uma amante depois de outra. E minha mãe, até onde sei, não praticou o sexo desde que eu fui concebido, porque estraga a maquiagem, sabes?
Isso fez rir a Kady.
-Leonie é como tua mãe?
-Vêem aqui -lhe disse, sentando-se sobre uma rocha com os joelhos separados-. Não, não me olhes assim, como se fora a arrebatar-te a virtude. Quero que te sente aqui para poder escovar-te o cabelo. Tens tantos raminhos enredados que tenho medo de que o guarda florestal te prenda por roubar propriedade nacional.
Sorrindo, Kady se acercou e se sintou no solo, entre as pernas dele, e Tarik se dedicou a desenredar com delicadeza os nodos do cabelo, sacando de vez em quando um raminho, que caía no regaço dela. Kady guardava silêncio enquanto ele trabalhava, sentindo a sensualidade das mãos dele em seu cabelo. O ambiente da gruta era cálido e a luz do fogo era um deleite. Ainda que estava cansada, não queria ir-se a dormir para que esse dia não terminasse jamais.
-Não há mais perguntas? -disse Tarik em voz suave, com o cabelo de Kady entre as mãos.
-Não -disse ela-, nenhuma e fez uma pausa. Mas posso escutar. Agradá-la-me escutar, se queres contar-me algo.
-A história de minha vida, talvez? -perguntou, sorrindo - Isso é o que tenho estado fazendo, não? Como tivemos um mau começo, quis compensar-te.
-Por que? Que importa? Estás sendo amável comigo pelo codicilo de Ruth? Durante uns momentos, foi como se seu cabelo tivesse sentimentos, porque pôde perceber a onda de ira e, no entanto, não pensava desculpar-se. Ao cabo de uns instantes, Tarik se acalmou e retomou o escovado.
-Sou discreto e elusivo porque não quero estar rodeado de pessoas que não querem outra coisa de mim que o dinheiro. Tenho uma vida muito privada, em meu lar.
-Ah, em teu apartamento de Nova York? Dos dois que eu vi, em qual vives?
Isso fez rir a Tarik entre dentes.
-Em nenhum dos dois. O de plástico... -Lhe jogou uma olhada chispeante - Aquele onde irrompeste em meu chuveiro, é para receber clientes, e o outro é o apartamento de Leonie.
-Entendo: o departamento dela, o edifício teu. -Zelosa? -disse, com tom esperançoso. Kady não lhe fez caso.
-Então, onde vives?
-Tenho uma propriedade grande em Connecticut, com vários hectares de terreno e uma casa enorme.
-Como é a cozinha?Tarik riu:
-Horrível. É necessário remodelá-la por completo. Mas não encontro a ninguém que queira fazê-lo. ¡Eh, quiçá tu saibas um pouco de cozinhas, e.!
-Segue -o cortou, interrompendo o sarcasmo-. Fala-me de tua casa e de ti. Tu o sabes tudo de mim, mas eu não conheço nada de ti.Quando começou a falar, Kady compreendeu que se identificava com ele.
Conquanto durante as respectivas infâncias teve grandes diferenças desde o ponto de vista econômico, quando mais ouvia falar da vida de Tarik mais se convencia de do que se assemelhava à sua. Por causa do dinheiro, os dois tinham sido criados por estranhos.
-A casa de Connecticut é onde vais viver com Leonie? -lhe perguntou em voz suave, enquanto ele lhe trenzaba o cabelo.
-De todos modos, viverei ali com nossos filhos. Ela pode ir a onde queira, não me importa.
-¡Isso é horrível! -disse Kady, dirigindo-lhe uma olhada de reproche - Os meninos precisam uma mãe. Não porque tua mãe se tenha ido, como a minha, isso significa que os meninos devam ser criados assim. Teriam que...Interrompeu-se, ao ver que estava rindo-se dela... Outra vez.-¡Maldito seja! -gritou, quase-. ¡És quase tão mau como Cole! Sempre se burlava de mim e me fazia armadilhas.
-Ah, sim? E daí armadilhas te fazia Cole?Tinha os olhos baixos enquanto limpava a escova e sua voz era a expressão mesma da inocência. Tanto, que Kady não soube o que estava fazendo.Tinha dito que não pensava falar do sucedido em Lenda, mas, com o seguinte alento, estava contando-lhe tudo sobre Cole e sobre como a tinha enganado para que se casasse com ele.
-Para quando apareci, estava tão seguro de que eu morreria por casar-me com ele, que até tinha feito enfeitar a igreja -disse-. Imaginas-te? Fez-me morrer de fome para convencer-me.
-Dá a impressão de que tu lhe propuseste casal, e não ao inverso.Kady, que estava inclinada sobre o fogo para reavivá-lo, girou para olhá-lo por em cima.
-Te pões de seu lado? Afirmas que o que me fez esteve bem?
-O que digo é que não o culpo por fazer qualquer coisa com tal de não te perder -disse com suavidade. Kady apartou a vista ao perceber o tom, porque tudo: o limitado espaço da gruta, o resplendor do fogo, e esse homem que conhecia e não conhecia ao mesmo tempo... Tudo excitava seus sentidos.
-Me parece que estou cansada -disse, e lhe jogou uma olhada nervosa, perguntando-se de novo como se acomodariam para dormir.Tarik não fez o menor gesto para ela senão que tomou um saco de dormir do fundo da mochila, sacou outro do interior desse e Kady lançou um suspiro de alívio. Tarik lhe dedicou um sorriso ladeado.
-Esse suspiro é de alívio ou de lamento?
-Alívio -respondeu de imediato mas, pelo modo em que Tarik riu, soube que não lhe cria, e voltou a cara para que não lhe lesse os olhos.Quando girou outra vez a cara, Tarik tinha estendido os dois sacos a ambos lados do fogo, e teve que apartar outra vez a vista para não o observar enquanto se tirava a camisa e os vaqueiros. Quando ficou só com as cuecas, pôs-se uma camisa de franela, deixando ao descoberto suas fortes pernas musculosas, e Kady teve que se esforçar por não olhar.
Quanto a ela mesma, teve que obrigar a seus dedos a desabotonar a camisa, e por um instante lhe cruzou a mente a idéia de dormir vestida. Mas quando jogou uma olhada a Tarik, viu que já estava metido em seu saco de dormir, o que estava mais cerca da entrada, e que fincava a vista no teto sem olhar em direção a ela. Fingindo que não tinha a menor preocupação, Kady se desvestiu até ficar só com sua ajustada roupa interior e se meteu em seu próprio saco, defronte dele. Ainda que entre os dois tinha um espaço e estava o fogo, sentiu-se muito cerca dele, e esse sentimento a exasperou, porque sabia que a relação seria passageira.
-Por que me dizes essas coisas, como que estás zeloso dos homens de minha vida? -disse, sem pensar que pode importar-te minha vida? Somos estranhos o um para o outro.
-Isso não é verdadeiro, eh? Eu tenho a sensação de ter-te conhecido desde sempre... e tu também o sentes, não é assim?
-Em absoluto -disse, tratando de ser convincente - Lhe pertences a Leonie.
-E tu a quem pertences, Kady?
-A... a mim mesma, por suposto -disse, e inclusive a ela lhe soou a afirmação de uma pessoa desolada.
Tarik guardou silêncio um momento e quando voltou a falar o tema era completamente diferente.
-A cozinha de minha casa de Connecticut é a parte mais antiga da casa, e junto a ela há um pequeno estudo, muito bonito, que dá a uma horta de verduras e de ervas, encerrada entre paredes. Junto à parede sul há enredaderas e damascos apartados. Faz anos que ninguém cuida a horta, mas com um pouco de trabalho se poderia recuperar. No estudo há duas paredes cobertas de velhas prateleiras de pinheiro que poderiam albergar mil livros ou mais, e até poderiam ser livros de cozinha. E como disse antes, a cozinha não foi remodelada, de maneira que há uma despensa de armazenado, um quarto de serviço de mesa e um terceiro quarto de gordas paredes de tijolo. Não sabemos para que se usava esse terceiro quarto, mas...
-É um armazém caseiro.
-Um que?
-Um armazém caseiro, que se usa para manter fria a carne. Tem uma drenagem no solo?-Sim o tem, e há um porão...
-Um poço -disse Kady com saudade-. Sob esse quarto corre um surtidor e a água o mantém frio.
-Leonie quer jogar abaixo os quartos auxiliares e converter tudo numa cozinha moderna, grande, com armários de cristal negro e...
- Não! -exclamou Kady, com veemência-. Não podes fazer isso. Esses quartos pequenos têm um propósito, e... -Conteve o alento - Claro que não é assunto meu. -Fez uma inspiração para acalmar-se-. Que quer fazer com o jardim fechado?
-Instalar um jacuzzi. Quer fazer levar rochas e criar uma paisagem natural. -As árvores de damasco são naturais.
-Por suposto, as árvores terão que ser sacrificados. Leonie diz que as folhas obstruiriam o sistema de filtrado.Kady permaneceu tendida de costas, contemplando a piscada da luz sobre o teto da gruta e imaginando o horror de destruir semelhante beleza.
-Que é o hisopo? -perguntou Tarik.-Uma erva. Usa-se para dar sabor aos pescados gordurosos, e ademais, com ela se faz o Chartreuse. Por que?
-Oh, nada. Alguém disse que crescia na horta, mas como fazia espirrar a Leonie, sacamo-lo. E tu? Kady estava tão concentrada na destruição da antiga horta, que não lhe entendeu.
-Eu?-perguntou, perplexa.
-Si. Há algo que te faz espirrar?
-Te asseguro que nenhuma erva -disse, com a mandíbula tensa - E agora, quisesse dormir -disse, porque não suportava ouvir outra palavra mais a respeito dos planos de destruição de Leonie do que, seguramente, seria um belo lugar.
-Oh, claro -disse Tarik. E Kady o ouviu dar-se à volta dentro do saco, de costas a ela, mas um minuto depois ouviu-: Tijolos. Como não perguntou a que se referia porque já o sabia, Tarik aclarou:
As paredes da horta são de tijolos velhos, mas Leonie as odeia porque estão cobertas de líquenes e musgo verde. Quer jogá-las abaixo e pôr algo moderno e pulcro. A Leonie lhe agradam as coisas modernas.-¡Como tu! -disse, veemente.-Crês que sou moderno?
-Vives em Nova York, e...
-Trabalho em Nova York. Vivo numa casa de duzentos anos de Antigüidade, em Connecticut. -E -se interrompeu porque, em realidade, não encontrava mais coisas más nele. Salvo que a voltava louca, claro. De repente, ria-se dela e ao minuto seguinte a resgatava, para depois lavar os pratos-. Agradaria-me dormir, agora -repetiu, para comunicar-lhe que não queria seguir falando.Ainda que falasse de temas tão inocentes como sua casa, conseguia irritá-la. Que lhe importava a ela o que fizesse a esposa dele a casa e à horta deles? Não era assunto dela, verdadeiro?
-Sim, claro, habibi -o respondeu com suavidade-. Que tenhas os sonhos mais formosos.
-O mesmo para ti -disse, atirando do saco de dormir recheado para acomodar-se melhor - Assim chamas a Leonie? -perguntou, desejando com toda a alma retirar a pergunta.
Para sua surpresa, Tarik não se riu dela. Ao invés, disse-lhe com voz terna:- Não, jamais usei essa palavra carinhosa com ninguém. É só para ti.Pese a suas boas intenções, essas palavras a fizeram sentir-se bem e se dormiu sorrindo.Mas à manhã seguinte, o sol secava a chuva e Kady teve a sensação de que podia ver a vida com mais clareza: Tarik Jordan lhe prestava atendimento só pelo codicilo do testamento de Ruth.Quando se levantou, ele tinha saído da gruta, e quando voltou, com um ônus de lenha úmida nos braços, Kady estava segura de que conseguiria controlar suas emoções. Prometeu-se não se deixar seduzir por ele, ainda que lhe falasse do modo mais provocante. Riria-se com os amigos, dizendo que Kady não era mais do que uma cozinheira sem emprego, e que ele podia seduzí-la para que fizesse o que a ele se lhe antojase?
-Que fiz para ganhar-me essa expressão de animosidad? -lhe perguntou sem hostilidade, ao mesmo tempo em que deixava a lenha formando uma pilha que poderia usar-se a vez seguinte que fosse à gruta.
-Nada. Estás pronto para ir-nos? Se sairmos cedo, talvez podamos chegar a Lenda antes do anoitecer.-Impaciente por conhecer ao tio Hannibal, verdade? -Só quero... sair de aqui -disse, com mais ferocidade da que tentava.Tarik apagou o fogo sem falar, cuidando de que todas as brasas ficassem apagadas, e quando a olhou outra vez, seu rosto tinha uma expressão fria e dura, a mesma que ela tinha visto quando o conheceu, mas que, desde então, não tinha voltado a ter.-Queres dizer-me que é o que fiz para ofender-te?
Kady desejou ter uma pronta de queixas contra ele, mas não a tinha. O único que podia dizer era que tinha sido demasiado bondoso, colaborador e amável, e divertido, e...
-Não tens por que forcejear -lhe disse com frialdade-. Não vou a onde não me querem. Estás pronta? Kady abriu a boca para explicar, mas chegou à conclusão de que era preferível não dizer nada. Era melhor do que fossem a Lenda, fizessem o que fosse para ajudar a Ruth e que depois ela se afastasse desse homem para sempre.¡Enquanto baixavam a montanha, não falaram demasiado e avançaram rápido, Kady por trás de Tarik.
Duas vezes, ele se voltou para perguntar-lhe como estavam seus pés, mas, apartes disso, não falaram.Quando chegaram ao pé, o acampamento estava tal como o tinham deixado, o todoterreno estacionado embaixo das árvores, o cavalo pastando, feliz, num pátio cercado que, a juízo de Kady, tinha sido feito especialmente para os cavalos dos Jordan.
Enquanto levantavam juntos o acampamento trabalhando lado a lado, como se o tivessem feito toda a vida, de repente Tarik arrojou um par de estacas da carpa com tanta força que se fincaram verticais no solo.
-Que demônios passa? -gritou-. Que fiz?
-Não fizeste nada -lhe respondeu, gritando-. Pertences à outra. Pertences a outro mundo. Por um momento, várias emoções percorreram o rosto escuro de Tarik, e depois riu, mostrando seus fortes dentes brancos.
-Ah, já vejo, o sistema de classes. Bueno têm razão. Os homens de minha classe usam às moças como tu e depois as descartam. Casamo-nos com mulheres que praticam o hipismo, como Leonie. Disso se trata? Uma vez que ele o disse em voz alta, as queixas de Kady pareceram victorianas.
-Tua mãe... -disse em voz fica, mas não terminou a frase.
Que podia dizer? Que a mãe não quereria que ele se casasse com uma cozinheira?
-Ah, sim, a rainha -o disse, e Kady advertiu que estava rindo-se dela-. Seu filho, o príncipe, tem que se casar com uma princesa, não?-Neste momento, não me agradas demasiado -repôs, entre dentes.
-Kady meu amor, penso que só tu me vês como a um príncipe. Posso assegurar-te que minha mãe não. Depois do qual se voltou para o cavalo, ainda que Kady o ouviu rir-se. Pensou que era preferível manter-se longe dele, dissesse o que dissesse. Era mais guapo, ainda, que Gregory, e ela sabia por experiência que os homens guapos só arcavam problemas.
-Preparada para conhecer a meu tio? -te perguntou Tarik uns momentos depois, enquanto voltava ao acampamento levando consigo o cavalo.
Kady se ergueu em toda sua estatura e, ainda assim, seus olhos ficavam à altura do peito de Tarik.
-Opino que deveríamos mantemos em termos de negócios. Não creio que devamos relacionar-nos de maneira mais pessoal. Nada de férias, nada de acampamentos de toda uma noite, nada de...Interrompeu-se, porque Tarik se inclinou e lhe deu um doce beijo na boca.
-O que tu digas, habibi -lhe disse, e lhe indicou o cavalo com um gesto.Piscando, Kady se subiu ao cavalo.
CAPÍTULO 25
-É minha esposa -disse Tarik Jordan, rodeando apretadamente os ombros de Kady. - Tua... -começou a dizer ela, mas como ele a estreitou com mais força, fê-la exclamar-: ¡Ai! -e fechar a boca.
-Neste momento está um pouco ofendida comigo, assim que não faças caso de nada do que diga, tio Hannibal.
-Não sou sua esposa -lhe disse Kady ao homem alto e delgado que estava frente a ela.Desde que tinham desarmado o acampamento, Tarik conduziu o cavalo, mas não pelo caminho senão por um caminho serpenteante que devia de ser o caminho a Lenda.
A Kady não lhe levou muito tempo deduzir que ele tentava escabullirse no povo abandonado antes que ninguém o visse.-Pensei que teu tio te considerava da família -disse, sentada por trás dele sobre o cavalo, sujeitando-se a Tarik.
-Há familiares e familiares -repôs ele, misterioso.
-Entendo. Que lhe fizeste para temer que possa disparar-te a ti e a uma desconhecida como eu?Dando-se à volta, sorriu-lhe:
-Tens cérebro dentro dessa formosa cabeça, eh?-Só para recordar receitas e para descobrir aos mentirosos.
-Disso não estou seguro. Não me cabe dúvida de que te deixas enganar pelos homens. Desde depois, Gilford te enganou.
-Gregory -o corrigiu, e se lhe pôs nervosa ao recordar que Cole sempre fingia não poder reter o nome de Gregory-. Eu, ao menos, afastei-me de um homem que queria de mim algo que não era amor -disse, sarcástica.Tarik não deixou passar o sarcasmo.
-Com umas pernas como as de Leonie, a quem lhe importa se me ama ou não?
-És desagradável.
Tarik riu entre dentes e, com a mão livre, sujeitou a de Kady que estava apoiada sobre seu ventre plano.
-Sabes, Kady? Jamais imaginei do que andar a cavalo poderia ser tão prazenteiro. -Enquanto o dizia, jogou-se um pouco para trás de maneira que os abundantes peitos da mulher se incrustassem mais ainda contra ele, e quando Kady, interpretando o gesto, tratou de apartar-se, o cavalo deu um passo ao custado e quase a fez cair-se. Para sujeitar-se, teve que se apertar mais ainda a Tarik, e isso a fizeram rir - Meu bom amigo, esta noite te ganhaste uma ração extra de aveia -lhe disse ao cavalo. Se as circunstâncias fossem diferentes, Kady se teria rido também, mas não podia dar-se esse luxo. Não podia acercar-se mais a esse homem do que já estava.
Mas agora, ante o tio Hannibal que, com seus olhos ardentes e sua longa barba hirsuta, parecia um profeta do Antigo Testamento, tinha vontade de abandonar por completo o propósito de tratar de ajudar a pessoas mortas.
-Em sua licença de conduzir diz que seu sobrenome é Long -disse o imponente ancião, olhando a Kady desde por trás de seu longo nariz, como se ela fosse mentirosa e pecadora, e devesse ser erradicada da terra. Claro que o único motivo pelo que tinha visto a licença de conduzir era porque lhe tinha roubado a bolsa do automóvel. Talvez em seu livro dizia que roubar e disparar a pessoas inocentes estava bem? Quando Kady abriu a boca para perguntar-se, Tarik disse:
-Estamos casados e tenho um documento que o prova.
-Solta-me, por favor -sussurrou Kady, tratando de apartar-se dele sem conseguí-lo, pois a retinha com um abraço de aço.Assombrada, viu que Tarik se sacava do suéter uma folha de papel e se a entregava ao ancião.
-Por suposto, é uma cópia -lhe disse Tarik a Hannibal Jordan, que Já revisava minuciosamente - Mas diz que a señorita Kady Long está casada com Cole Jordan que, como sabes, é meu nome. Já vês que está tudo devidamente assinado por testemunhas.
-Deixe-me ver isso -disse Kady, arrebatando o papel de mãos do velho. Efetivamente, era uma cópia de seu certificado de casal com Cole. Olhou a Tarik-: Está datado em 1873.
-Assim é -disse Tarik, como se já tivesse visto a data, e lhe sorriu ao tio-. Sem dúvida, é um erro do computador. Já sabes como são essas máquinas.
-Não sei, nem quero saber -replicou Hannibal - As máquinas estão destruindo nossa nação, que em outro tempo foi grande. Com um feroz puxão, Kady se soltou de Tarik.
-Esse certificado foi escrito à mão, muito antes que se inventassem os computadores. Não estou casada com esta Cole Jordan.
-Malhumorada -lhe disse Tarik ao tio, com ar cúmplice, golpeteándo-se o custado da cabeça - Mas é minha esposa, que posso fazer? Estás pronta para seguir, querida? O tio Hannibal nos permitirá ficar-nos na velha casa paterna dos Jordan, junto com ele e com o resto da família. -Dirigiu a Kady uma severa olhada de advertência - E não poderíamos ficamos se não estivéssemos casados, porque o tio Hannibal não aceita o pecado.Não fazia falta um título de espião para entender o que estava dizendo, mas Kady vacilou e depois lhe fez a Tarik uma queda de olhos.
-Mas, querido, estamos de lua de mel. Não poderíamos instalar-nos numa casa separada.
Baixando os olhos, tratou de parecer recatada. Numa casa separada poderia ter seu próprio quarto, no possível, com uma porta que pudesse fechar com chave.
-Os frutos do pecado... -disse o ancião e, para horror de Kady, avançou para ela. Mas Tarik se interpôs.
-Perdoa-a, tio, não tem idéia do que está dizendo.
-Passou uma mão pelos ombros de Kady e a sustentou contra ele-. Nos encantará ficar-nos contigo e com teus filhos. Será um grande prazer. O único que peço é poder levar a minha noiva a explorar. Ajudaremos-te a vigiar.Por um momento, Kady pensou que o homem ia levantar o braço e a dizer-lhe que se fosse da montanha ou quiçá que morreria de maneira bíblica, mas, em mudança, deu-lhes as costas e se afastou, farfullando para si.Quanto esteve fora do alcance de suas palavras, Kady se voltou para Tarik, ceñuda.
-Por que não me disseste que estava louco?-Creste que um homem sensato te tivesse disparado? Ou que escolheria para viver este lugar esquecido? Que idéias têm da loucura?
-Bueno, mas, por que não me advertiste que lhe dirias que estávamos casados? É óbvio que o planejaste, pois, caso contrário, não teria tão a mão uma cópia de meu certificado de casal com Cole. Ademais, de onde o sacaste?Sem responder-lhe, Tarik se voltou e olhou para o povo.
-Faz anos que não venho aqui e, ainda que seja difícil de crer, está pior do que quando vim a vez anterior. O tio Hannibal não está sob atendimento. Dime, Kady, esposa minha, de que lado da cama dorme?
-Se me tocas, morrerás lamentando-o. Tarik se deu a volta e a olhou, assombrado.-Se te acuestas com outros homens, por que comigo não?
-Alguém te disse alguma vez que és desprezível?
-Nenhuma mulher, não, não poderia assegurar que alguma me o tenha dito.Kady passou junto a ele e jogou a andar pelo caminho, na direção onde sabia que estava o lar dos Jordan.Enquanto caminhava, olhava ao redor. Tinha visto Lenda sob duas aparências diferentes. A primeira, quando conheceu e amou o povo sonhado por Cole, com belas casas, uma Cole com um grande pátio de jogos e sem sinais das maldades da vida. Depois, tinha visto o povo com Ruth. Esse estava abandonado desde fazia anos e os edifícios já começavam a derrubar-se. Agora, no entanto, o povo era um triste espetáculo. Poucos edifícios conservavam os tetos e muitos já não eram outra coisa que um montículo de tabelas caídas no solo.Caminhando, sentiu que a tristeza a invadia enquanto pensava no que poderia ter sido aquele lugar e o que tinha sucedido para impedir que fosse grandioso.
-Como era quando estiveste aqui? -lhe perguntou Tarik, que ia a seu lado e, por uma vez, soube que não estava burlando-se. Primeiro Kady pensou em não lhe responder, pois não queria ouvir, mas comentários sarcásticos a respeito de viagens pelo tempo, mas a melancolia das recordações estava abrumándola.
-Por esse caminho estava a Cole, com um grande campo de esportes. Creio que Cole o sonhou porque o lugar de jogos devia de ser importante para um garoto de nove anos. Tinha um armazém de mercadorias e, por aí, a heladería maior que tenhas visto.
Começou a apertar o passo enquanto lhe assinalava cada edifício. Igual que Cole, ignorava que a maioria dos edifícios pareciam ter estado destinados a tabernas e preferiu recordar o que tinham sido quando esteve com Cole.
-Essa era a Linha Jordan, mas quando estive aqui só era uma bonita perto -disse, contemplando os restos de um muro de pedra que em outro tempo tinha separado as partes "boas" e "más" da cidade entre si-. A isto se o chamava Paradise Lane, e a igreja era grande e formosa, e isso era uma grande biblioteca.Girando à direita, deteve-se ante um pequeno caminho que, segundo sabia, levava ao lar dos Jordan.-Por aí, Cole construiu uma mesquita. -Se voltou para olhar a Tarik. Era em memória de seu melhor amigo, que foi assassinado com ele. -Baixou a voz - Se chamava Tarik, como tu.
A densidade desse lugar começava a pesar-lhe, e Tarik lhe tomou a mão e se a levou aos lábios.Ao ver que os olhos dele estavam cheios de compaixão, apartou-se de um salto.-Não me crês, assim que não finjas.Tarik a olhou, carrancudo.
-Não sê por que opinas que sou um monstro sem sentimentos, mas o fato de que te cria ou não que conheceste a pessoas que viveram faz cem anos não tem a menor importância. O que sim sei é que este lugar te perturba. Queres marchar-te e voltar a Denver? Ou a Nova York? -E que há do codicilo de Ruth? Estás disposto a não poder usar o dinheiro durante três anos? -Poderias voltar a Nova York comigo, e nos próximos três anos eu tomaria todas as decisões, e tu assinarias todos os papéis.
Kady o olhou, piscando.
-Trabalhar contigo? Todos os dias durante três anos? Tarik lhe dirigiu seu sorriso ladeado.
-A mim me agrada a idéia. Kady começou a caminhar outra vez.
- E daí opinaria disso tua encantadora Leonie? -Não é zelosa e, ademais, de que poderia estar zelosa? Não é que tu e eu...
-Está bem -disse, sobre o ombro-, não teria nada entre tu e eu. De fato... -Detendo-se, voltou-se para ele - Por que não te marchas? Já lhe disseste a teu tio que sou da família, de maneira que já não me disparará: já não te preciso.
Pese a suas palavras, o coração de Kady esteve a ponto de deter-se. Uma parte dela quis rodeá-lo com os braços e rogar-lhe que não a deixasse com esse homem que a atemorizava. Mas outra parte queria que ele se fosse e não voltar a vê-lo nunca mais.Tarik não se molestou em responder-lhe.-A árvore do enforcado está aí. Queres vê-lo?-Já o vi, graças -repôs, deixando escapar o alento que tinha contido e jogando a andar outra vez.
No entanto, tinha esquecido que também o cemitério ficava nessa direção. Quando esteve com Ruth, negou-se a entrar, mas agora, à luz radiante do sol, deteve-se ante a perto queda e contemplou, em hipnótica fascinação, as pedras envelhecidas pela intempérie.-Vêem -disse Tarik com doçura, tomando-a da mão.-Não -murmurou-. Não quero ver.Mas ele insistiu.-Vêem, tens que o fazer.
-¡Não! -repetiu, com mais veemência, tratando de apartar-se dele.Mas como Tarik não lhe soltou a mão, quando Kady atirou com mais força, atraiu-a a seus braços.-Kady, por favor -disse, abraçando-a e acariciando-lhe o cabelo-. Quero que confies em mim. Talvez não tenho estado sempre contigo? Kady assentiu, com a cara afundada no peito dele. Fazia-lhe bem a indiferença de Tarik e a aspereza do suéter de lã ressaltava sua masculinidade. Nenhum outro homem que a tivesse tocado até então a fazia sentir-se como ele. Sentia-o seguro e perigoso ao mesmo tempo. Sentia-o amigo e inimigo, protetor e depredador.
-Olha ao redor -lhe disse Tarik em voz suave, apartando-lhe o rosto de seu peito-. É um cemitério, e toda a gente que está aqui morreu faz muito tempo.Quando pôde abrir os olhos, a primeira lápide que viu Kady foi a de Juan Barela e voltou a esconder a cara no peito de Tarik.
-Não -sussurrou, e tratou de ir-se, mas ele não se o permitiu-. Por que me fazes isto? -lhe perguntou, olhando-o.
-Quero que reconheças a diferença entre os vivos e os mortos jamais estiveste casada com Cole Jordan, porque morreu faz muitos anos. Kady se apartou dele e correu fazia o portão primeiramente; desde ali se deu a volta e o olhou, furiosa.
-Não sabes nada de nada. Pensas que tudo aquilo que não pode pôr-se dentro de um computador não existe. Pensas... Oh, que importa o que pensas?
-Não te preciso nem te quero, e quero que me deixes em paz. Voltou-se e começou a correr para a Árvore do Enforcado, o lugar onde viu a Cole pela primeira vez, mas Tarik a atrapou entre seus braços. Forcejou, e ele a sujeitou com mais força até do que, ao fim, ficar quieta e rompeu a soluçar, apoiada nele.
-Kady, sei que disseste que eu não te agrado -disse com suavidade-, e talvez tenhas motivos, mas não vou deixar-te aqui só. E não tem importância se crio tua história ou não. Vou fazer o que possa por ajudar-te. Apartou-a de si e, como não o olhava, pôs-lhe a mão sob o queixo e lhe alçou a cara.
-Somos sócios, recordas? Olhando-se nesses olhos escuros, Kady viu ao homem com o que tinha sonhado toda a vida. Recordou que de menina desenhava véus em todas as fotos que via, procurando esses olhos que agora a olhavam. Soube que se ele seguia sendo bondoso com ela, se apaixonaria dele, profundamente.Isso era impossível. Proviam de mundos diferentes e o único que ele queria dela era que o ajudasse a recuperar os negócios da família. Se Ruth não tivesse agregado isso ao testamento, jamais teria voltado a vê-la. E quanto terminasse com essa tarefa, se afastaria da vida de Kady com a mesma facilidade com que tinha entrado nela.Apartando-se dele, secou os olhos.
-É verdadeiro -disse-. Somos sócios de negócios e quisesse manter as coisas assim. Por favor, tira-me a mão de em cima. -Levantou o queixo - E termina com toda essa palestra psicológica para obrigar-me a olhar lápides. O que eu faça ou deixe de fazer não é assunto teu. E agora, se não te importa, preferiria estar só. A parrafada de Kady fez mudar a expressão de Tarik, que passou da preocupação à arrogância e a burla.
-Por suposto -disse-. Desculpo-me por querer impor-me a ti. Estou seguro de que conheces o caminho de regresso à casa e, como deixaste bem claro, não me precisas. -Um custado da boca se alçou num fugaz sorriso-. Se chegares a tropeçar com o passado, saúda a meus parentes de minha parte.
Depois do qual girou sobre os calcanhares e se dirigiu de regresso a Lenda.Sentindo-se muito só, Kady jogou a andar em direção às montanhas. Estava bem segura de que poderia encontrar os petroglifos por sua conta e, quando o fizesse, acharia a entrada. Que encontraria quando a traspusiera? Poderia ter um erro no tempo e chegaria à Lenda de 1917. Ou talvez a rocha se fechasse em torno dela ao passar e ficaria atrapada.De repente, desejou que Tarik estivesse com ela e depois se reprochou o estúpido da idéia. Por que a atraía tanto um homem como ele? Por que não recordava cada minuto dos que tinha passado com Cole e não almejava voltar a ele? Por que este homem escuro tinha bloqueado as recordações de qualquer outro homem?
-Não significa absolutamente nada para mim -disse, alçando o mentón e continuando a marcha, sem advertir que se referia a Tarik.
O caminho que subia a montanha tinha mudado desde a última vez que esteve ali, cem anos antes. Algumas das rochas se tinham erosionado e as árvores não eram os mesmos. Um grande choupo velho já não estava e em seu lugar tinha vários surtos novos. Mas os antigos pinheiros não pareciam ter crescido nem um centímetro.
Quando ao fim chegou à superfície de pedra pelada, teve que apartar retorcidas enredaderas para ver os petroglifos, que já não se viam com tanta clareza como fazia tantos anos, ainda que ainda se viam.Kady retrocedeu e contemplou a rocha, esperando que se abrisse. Como não sucedeu nada, acercou-se e passou as mãos pela superfície, como se estivesse procurando o trinco.
-Prova com "Abre-te, Gergelim" -ouviu uma voz a suas costas.Ao voltar-se, Kady viu a Tarik ali de pé, com essa careta já familiar em sua bonito rosto, mas que mudou a expressão ao vê-la. Baixou-se de um salto do penhasco onde estava de pé, rodeou-a com os braços e a atraiu para ele.
-Kady, tesouro, está tremendo como uma folha. Vêem, senta-te.Sem soltá-la, conduziu-a até uma rocha baixa e a fez sentar-se com cuidado. Depois lhe deu a beber água de uma garrafa que levava pendurada do cinto.
-Estás melhor? -lhe perguntou, sentando-se a seu lado, ainda rodeando-a com os braços.-Não sou teu tesouro. Que estás fazendo aqui?
-Cuidando de minha esposa. Ou preferes que te diga habibi?
-Não me agrada nenhuma palavra carinhosa que prova de ti e não sou tua esposa. Suas palavras teriam sido mais convincentes se não tivesse estado ainda refugiada no abraço, e sim não tivesse posto a cabeça no ombro de Tarik deixando que ele lhe apartasse o cabelo dos olhos com as gemas dos dedos.
-Como é que sabes tanto? -lhe perguntou em voz fica, apoiando-se nele.
-Sei muito pouco, mas sou bom ouvinte. Queres contar-me tudo? Queria compartilhar com alguém o que lhe tinha sucedido -não, não com qualquer, com ele-, e ao mesmo tempo tinha medo de permitir-se esses sentimentos pois não podiam levá-la a nenhum lado.
-Não -disse, apartando-se dele e sentando-se erguida.-¡Maldição! Que é o que não te agrada de mim?-¡A demanda judicial! -exclamou-. E... e...-Essa demanda estava preparada desde anos antes que eu te conhecesse. Fowler recebeu instruções de chamar a outra assinatura jurídica se aparecias e a demanda foi enviada de modo automático.
-Isso é para que te perdoe? Tentou apartar-se, mas Tarik a tomou dos ombros e a obrigou a olhá-lo.-Sim -disse com suavidade-. Quero que me perdoes. Quero... Oh, Kady, quero-te a ti. Antes que Kady pudesse esboçar um protesto, atraiu-a a seus braços, beijou-a e soube que ninguém a tinha beijado assim até então. Não como a beijava este homem. Gregory a beijava com reservas e cautela. Os beijos de Cole estavam cheios do humor e a excitação de um menino. Este homem, em mudança, beijava-a de um modo que a fazia desejar fazer parte dele.
Fazendo girar a cabeça da mulher em sua mão, moveu a boca para poder aceder a partes às que nenhum outro tinha chegado. A língua de Tarik tocou a dela e Kady se sentiu tão lánguida que lhe pareceu que seu corpo se fundia com o, dele, o seu tão suave, o dele, tão duro.As mãos do homem passearam por suas costas, enredou-se em seu cabelo, desfazendo a gorda trança. Sua boca cobriu a dela, as mãos a acariciaram, os dedos encontraram sem dificuldades os peitos e os abarcaram.
-Kady, eu... -disse, apartando a boca e estreitando à mulher contra si.O abraço era tão estreito que a achatava, quase não podia respirar, mas, nesse momento, pareceu-lhe bem.
-Sim -sussurrou, animando-o a falar.Mas, que iria dizer? Que ele também não se tinha sentido nunca assim? Que nenhuma mulher o tinha feito sentir assim? ¡Impossível!
Tarik a tinha abraçado, sabendo que não poderia deixar de fazer-lhe amor ali mesmo, naquele instante, e pensando: "De maneira que assim é estar apaixonado", quando alçou a vista para a rocha e o que viu lhe congelou os pensamentos.Foi como se a superfície sólida da rocha se convertesse numa tela de cinema de tamanho natural e através dela pôde ver o que, sem dúvida, era a Lenda de fazia muito tempo.
Tinha um salão com quatro mulheres de roupas gritonas, sentadas na sacada; cavalos amarrados aos postes, que espantavam as moscas com a fila, e dois homens com aspecto de não se ter banhado nunca que caminhavam pelas ruas de barro. Tal foi o impacto da visão, que por um instante Tarik esqueceu que, ao fim, tinha conseguido a meta de ter a Kady entre seus braços. Estes se estreitaram em torno ela, mas não levados pela paixão senão pelo instinto de proteção. Até esse momento não lhe creu uma palavra do que tinha conseguido entender sobre a história que Kady contava, relacionada com a família Jordan.
Anos atrás, tinha pesquisado tudo o que pôde encontrar da história familiar, tratando de entender por que sua antecessora, Ruth Jordan, tinha-lhe deixado todo o dinheiro da família a uma desconhecida que ainda não tinha nascido.
Tinha encontrado boa parte da história, mas nenhuma explicação.Nesse momento, com a vista fincada na cena viva que tinha diante, soube que tudo o que Kady afirmava que lhe tinha sucedido era verdadeiro. Abriram-se as portas do salão e ouviu a música de um piano desafinado que vinha do interior. E cheirou o barro, o esterco de cavalo e os corpos sem lavar.
-Que foi isso? -perguntou Kady, mas quando tentou dar-se à volta, ele a reteve.
-Nada, carinho -sussurrou, apoiando outra vez a cabeça dela em seu ombro e sujeitando-a.
Nunca até então se tinha sentido assim com uma mulher, como se quisesse envolvê-la em seda e protegê-la de todo dano.
-¡Não! -gritou de súbito Kady, empurrando-o com força e olhando para a rocha.Para estupefacción de Tarik, quanto Kady girou a cabeça, a rocha se fechou e, por uns momentos, os dois olharam em silêncio a rocha comum e silvestre.-Estava aberta, não é assim?
-Aberta? -perguntou Tarik, fazendo o possível por fingir ignorância. Mas o que viu o tinha deixado impressionado e lhe custava ocultar essa impressão-. Que estava aberta? -A olhou com paixão-. Tu abre para mim.Conquanto sabia que estava comportando-se como um velho obsceno, queria fazê-la enfadar até o ponto de que Kady se desse a volta e corresse montanha abaixo, o mais longe do que pudesse desse lugar. Se essa rocha malvada voltava a "abrir-se", se levantaria de um salto e correria a passar pela abertura?
-Aparta-te de mim -lhe disse, empurrando-o - E, em adiante, te agradeceria que não me pusesses as mãos em cima.
-Como vou fazer, se há tantas partes de ti que quisesse tocar?
Conquanto Tarik tinha querido enfadá-la, obteve mais do que tivesse querido.Levantando-se de um salto, Kady pôs os braços em jarras e o olhou, furiosa:- De maneira que pensas que estou gorda, eh?
-Gorda? -se estranhou Tarik.A afirmação o deixou tão estupefato que se esqueceu da rocha. Que teria dito para fazê-la pensar que a considerava gorda? Ainda que sabia que não era tão delgada como impunha a moda, Kady lhe parecia à mulher mais apetecível que tivesse visto em sua vida. Cada segundo que devia conter-se de não a tocar lhe provocava autêntica dor.
-Quero que te mantenhas afastado de mim -lhe disse a mulher entre dentes.
Voltando-se, começou a baixar a montanha, enquanto Tarik ficava mudo, atônito, sentado sobre a rocha.Mas, quanto ela dobrou a curva, a rocha se abriu outra vez e viu a Lenda em todo sua cenagoso esplendor.
Como hipnotizado, levantou-se e foi deter-se junto à abertura. Bastaria-lhe dar um só passo para estar em outro tempo e em outro lugar.Mas retrocedeu, olhando a abertura. Sabia que seus antepassados tinham vivido nesse povo, mas se passava talvez nunca pudesse voltar a esse dia e hora. E se não voltava, perderia a Kady. Perderia a mulher que tinha esperado toda a vida. Deu-se à volta e começou a correr montanha abaixo, para ela, mas Kady ia a tal velocidade que já estava quase na Árvore do Enforcado quando a atingiu. Estava tão furiosa com ele que não se deu por inteirada de sua presença.
O resto da oração ficou afogado pelo ensordecedor estrépito de uma motocicleta, que chegava por trás de Kady. Os braços de Tarik se estreitaram mais em torno dela, em gesto protetor, e ela tento girar para ver quem chegava - Por algum motivo, não podia imaginar-se ao tio Hannibal montado numa motocicleta.
-¡Maldição! -resmungou Tarik pelo baixo, e olhou a Kady - Lamento o que vai suceder -lhe disse, com grande tristeza na olhada -Lamentar que...? -começou a dizer, mas Tarik a apartou e lhe disse que se refugiasse sob a Árvore do Enforcado.Kady se escabulló depois dele, sem a menor intenção de titubear. Já desde o refúgio sob a árvore, voltou-se e viu que se acercava uma grande motocicleta conduzida por alguém enfundado em couro negro, com um capacete que lhe ocultava a cara.¡Enquanto a grande máquina rugia acercando-se a Tarik, Kady se aproximou mais à árvore, num movimento instintivo, mas Tarik, em mudança, permaneceu a céu aberto, sem mover-se sequer, enquanto o veículo enfilaba diretamente para ele.
-¡Cuidado! -lhe gritou, quase sem poder ouvir sua própria voz sobre a fragor da máquina. Mas Tarik lhe fez um ademanes indicando-lhe que ficasse onde estava. Tinha uma expressão de fundo desgosto.Kady observou como a motocicleta traçava uma curva fechada arredor de Tarik, levantando pedregullo, mas ele não se inmutó. Por fim, deteve-se frente a ele no meio de um redemoinho de pó e Tarik, com as mãos nos bolsos, seguiu sem mover-se Kady, a um par de metros, tossia por culpa do pó, vendo como o motocicpronta se sacava às luvas de couro negro, revelando mãos de mulher.
Ao minuto seguinte, saco-se o capacete e soltou uma cascata de cabelo avermelhado de um metro. Balançando uma perna incrivelmente longa, desmontou do veículo e se parou adiante de Tarik, tão cerca que seus peitos quase lhe tocavam.Claro que, se se tivesse parado a trinta centímetros, seguiria sendo assim, pensou Kady, ao ver à mulher, Media mais de um metro oitenta de estatura, pelo menos, de figura estatuaria, de aparência corpulenta e forte. Com os olhos ao nível dos de Tarik, pôs-lhe uma mão depois da cabeça e o beijou, enquanto ele seguia imóvel, sem tocá-la.
No entanto, apertando as mãos aos lados, Kady notou que também não se apartava. Recordou-se que isso não era de seu incumbencia e soube que tinha que voltar à casa. Ou, talvez... Bueno, a qualquer outro lugar que não fora esse. Pese a seus sensatos pensamentos, ficou como colada onde estava, fincando a vista na mulher que estava beijando a seu marido.Ao instante recordou que o senhor C. T. Jordan não tinha nenhuma relação oficial com ela; nem sequer eram amigos.
-Querido, sabia que virias procurar-me -disse a mulher, em voz rouca, e A Kady se lhe ocorreu que nenhum homem deixaria de excitar-se ao ouví-la-. Quanto te enviei esse fax, sabia que virias resgatar-me.
Tarik não respondeu e deu um passo atrás para livrar-se da mulher.Como se tivesse um sexto sentido, a mulher girou para Kady a olhada de uns olhos de uma incrível cor verde esmeralda. "Lentes de contato?", pensou Kady.
-Quem é tua pequena amiga? -perguntou a mulher.Ao voltar a olhada para Kady, Tarik tinha a expressão do que sabe que vai ter problemas e que não tem modo de impedí-los.-Eh, Wendell, esta é Kady Long. Kady, esta é minha prima, Wendell Jordan.Wendell olhou a Kady de acima abaixo.-Tarik, querido, não é teu tipo, para nada. Ou é que teus padrões estão baixando?
Com ademanes possessivo, passou-lhe uma mão pelos ombros: Tarik só era mal mais alto do que ela. A Kady de uns meses atrás lhe teria intimidado uma pessoa tão magnífica como Wendell Jordan, mas depois do que tinha passado, não tinha muitas coisas que pudessem intimidá-la.-Como estás? -disse, adiantando-se e sorrindo-lhe com doçura, para depois lançar uma pequena gargalhada divertida-. Penso que meu marido está um pouco confundido. Sou Kady Jordan, não Long, e estamos de lua de mel. Deu-me Lenda como presente de casamentos. Não é encantador? Kady teve a dita de ver que seu anúncio alarmava à mulher até o ponto de deixá-la muda, e quando se acercou a Tarik, pôs-se de puntillas e lhe deu um beijo próprio de uma esposa, na bochecha.-Quando termines de recuperar o tempo perdido com tua prima, vêem, querido, pois quero que me ajudes a lavar-me o cabelo. Sê quanto te agrada escovar-me.
Depois disso, deu-se a volta e se afastou.Ouviu a Wendell dizer, a suas costas:- Não te terás casado com ela, para valer, não, querido?Ouviu que Tarik respondia com um riso dissimulado, e compreendeu que o tinha surpreendido a ele também, e quiçá, até comprazido. Canturreando para si, como se tivesse matado ao dragão, Kady voltou para a casa.
-Quem cozinha aqui? -disse em voz alta, entrando no alpendre.
-O primeiro que tenha fome -disse uma voz que quase fez que Kady se desmaiasse do susto. Descolando-se do teto do alpendre tinha um belo jovem. Conquanto não era do calibre de Tarik, parecia saído da historieta do Pequeno Abner. Levava um macaco de granjeiro, sem camisa embaixo, que revelava seus músculos jovens, e os olhos azuis chuviscavam sob uma mata de cabelo loiro escuro. Kady o tivesse reconhecido em qualquer parte como parente de Cole.
-Compartilhamos a brincadeira? -lhe perguntou, com sorriso contagioso.
-Viste alguma vez uma película do Pequeno Abner?-Creio que sim. Recordo-te a alguém? Era evidente o orgulho por si mesmo. -Ao Pequeno Abner, por suposto. E a mulher da motocicleta é Moonbeam, McSwine. -Riu, mas, ao tomar consciência, sentiu-se incômoda-. ¡Oh, deve de ser teu...!
-Minha irmã. Minha irmã muito, muito maior, e nunca ouvi uma descrição tão precisa dela. Sou Luke Jordan, e tu quem és?Avançou para ela.
-Minha esposa -disse alguém desde o prado de grama que tinha frente à casa, e os dois se voltaram e viram a Tarik ali, de pé, com os olhos convertidos num par de ascuas de fúria-. E se voltas a olhá-la desse modo, farei que o lamentes. Não tinha um ápice de humor em sua voz nem em seus gestos.Ao instante, o loiro saltou acima do travessão do alpendre, com a evidente intenção de aterrizar diretamente sobre Tarik, mas este deu um passo ao custado e o jovem caiu escorregando pela terra.
-Cries, talvez, que podes atrapar-me, pequeno? -disse Tarik, adotando a pose característica dos que estudaram artes marciais.
-Quero a tua mulher. Tu não me importas. Para horror de Kady, os dois homens começaram a lutar como jamais tinha visto lutar num ring. O jovem caiu com força ao solo quando Tarik fez um movimento de custado com seu corpo esbelto, para eludir ao outro que queria dominá-lo por meio da força bruta.Por uns momentos, Kady permaneceu no alpendre, observando com horrorizada fascinação. Nunca tinha visto a ninguém brigar com a facilidade e a graça com que o fazia Tarik, sem perder jamais seu sorriso petulante. Era muito melhor do que o jovem, que não representava rival para ele, em poucos minutos, ao loiro lhe sangrava o nariz e tinha um arranhão ensangüentado no custado, de quando tinha aterrizado sobre o cascalho.
-¡Basta! -gritou Kady, mas nenhum dos dois lhe prestou o menor atendimento, e o mais jovem seguiram lançando-se contra o maior, e este eludindo-o, e depois fazendo cair ao rival.
-¡Basta! -voltou a vociferar.
Baixou correndo os degraus e, sem pensar em sua própria segurança, pôs-se de um salto entre os dois homens. Por desgraça, seu salto foi tão mal calculado que se deteve embaixo do loiro enquanto este estava no ar. Tinha tentado aterrizar em cima de Tarik para que o corpo deste protegesse sua queda, mas Tarik aferró a Kady e a fez girar de custado, de maneira que o jovem caiu de bruços sobre uma zona mal coberta de grama e se lhe encheu a boca de terra.Soltando-se de Tarik, Kady foi para o jovem.
-Olha o que fizeste. Magoaste-o.
-Sim, primo, fizeste-me dano -disse, sentando-se e enjugándose o sangue do nariz.Até esse momento, Kady estava segura de que a briga era real mas, então, olhando de um a outro, compreendeu que era uma dessas rinhas de moços, incompreensíveis para as mulheres. Arrependida de ter desperdiçado um momento de preocupação por qualquer dos dois, pôs-se de pé.
-Podeis vendar-vos vocês mesmos as feridas -disse, jogando a Tarik uma olhada furiosa e vendo que lhe corria sangue por uma comissura da boca.Enquanto subia os degraus e entrava na casa, ouviu as gargalhadas dos dois homens e, quando a porta se fechou depois dela, fez uma careta. "¡Homens!", pensou, e se pôs a procurar a cozinha.
CAPÍTULO 26
A cozinha da velha casa era muito similar à da casa de fantasia de Cole, com uma grande cozinha de ferro fundido e uma enorme mesa de trabalho de carvalho, no meio do recinto. Cerca da cozinha tinha uma despensa atiborrada até o teto de todo alimento embalado concebivel, e grandes sacos de farinha e de arroz. Fora da janela tinha um retalho de ervas que lutavam por sobreviver, pese a anos de descuido. Recolhendo da despensa tomates embalados e uma bolsa com maçãs, Kady os levou à cozinha.
-Tarik, querido -se burlou em voz alta, enquanto agarrava uma maçã e uma faca de pelar sem fio-. És demasiado divino para descrever-te com palavras.Tarik riu entre dentes, desde a porta.
-Não deixes que Wendell te perturbe. Sempre foi assim, desde pequena.
-Que quer dizer isso? Alta, bela e malvada?-Digamos, simplesmente, que não tem muitas amigas. Que estás fazendo? Olhou-o como se fosse incuravelmente estúpido. Estava furiosa com ele porque não cria que se abrisse a rocha, e depois essa horrível mulher, o susto da fingida briga com Luke, que quase não podia falar.
-Que te parece que estou fazendo?
-Se pensas preparar o jantar, e isso espero que estejas fazendo, crio conveniente advertir-te que o tio Hannibal não é nenhum gourmet. Não lhe agrada a massa com calamares em sua tinta, nem nada temperado com tempero balsámico; ademais, o único que tens para cozinhar é isso -disse, indicando com um gesto a cozinha de ferro Viste alguma vez uma dessas?
Kady o olhou como para advertir-lhe, mas foi inútil.-Vi algumas em livros de história.Tarik se apoderou de uma das maçãs que ela acabava de pelar.
-Quiçá possas conseguir que o tio Hannibal te mostre como se usa esta cozinha.-Ou quiçá possa mostrar-me Luke -disse com doçura.
-Estás tratando de dar-me ciúmes?-Tratando de melhorar minha vida sexual -repôs, sem pensar.
-Oh -exclamou Tarik, interessado, dando um passo para ela-. Eu poderia...-Se dás um passo mais para mim, perderás algumas partes de teu corpo. Sorrindo, Tarik se apartou.
-Então, te deixarei calma, e esperarei o jantar com impaciência. Mas recorda: nada extravagante. Algo simples, como... Como....-Que te parece espagueti e docinho de maçã, Ou talvez os espaguetis são algo demasiado estranho para uma família tão convencional? -perguntou inocentemente. Hannibal e seus "garotos" eram tudo menos convencionais.
-Não, não, isso está bem -lhe disse, sorrindo, desfrutando de irritá-la - Se me precisas, estarei afora. Quero ver essa Harley que montava Wendell. Boa máquina, não?
-Me temo que jamais fui o bastante marimacho para aprender coisas sobre motocicletas. Dime, também mastiga fumo e joga ao futebol com os homens?
Ao mesmo tempo em que mordia a maçã, Tarik lhe lançou uma olhada que quase lhe abrasou o cabelo.
-Wendell faz o que lhe dá a vontade, quando se lhe antoja, com quem lhe apetece.-Sim, e vejo que isso a converteu numa magnífica pessoa.Enquanto Tarik saía, rindo entre dentes e fechando a porta, Kady lhe arrojou um punhado de mondaduras de maçã.Depois que se foi, Kady pensava na mortífera ruiva, quando:
- Posso ajudar? -disse Luke, tímido, desde a porta - Em realidade, sabes cozinhar?Luke tinha uma doçura que lhe fazia recordar a Cole. Sorriu-lhe e lhe indicou com um ademanes que se reunisse com ela.-Vêem e fala-me enquanto cozinho. Conta-me tudo a respeito de tua família.Luke se serviu uma fatia de maçã.
-A respeito dos Jordan, ou de meu primo Tarik em particular?-Não tenho nenhum interesse particular nele. Nenhum. É livre de fazer o que se lhe antoje. Pode...Interrompeu-se ao ver que Luke se ria.
-Está bem. Mas o modo em que vos olhais os dois poderia incendiar o celeiro. Por onde queres que comece? Com sua mãe, seu pai ou suas garotas? Kady fixou a vista nas maçãs que estava pelando e não o olhou. Luke baixou a voz:
- Ou preferirias que te falasse de seus sonhos? -Que sonhos? -perguntou com vivacidade.
-De uma menina montada num pony. Uma pequena de grande melena negra numa trança gorda, caindo pelas costas. Em verdade, tinha uma trança muito similar à tua. Interessa-te?
-Pode ser -disse, como se não quisesse escutar até a última sílaba.-Oh, bom, nesse caso será melhor do que saia e ajude a minha irmã a afinar o carburador.-¡Senta-te! -lhe ordenou Kady, apontando-o com a faca.
-Que obterei se traio a alguém de meu próprio sangue?
-A melhor comida do que tenhas comido em tua vida -respondeu, séria.Com os olhos engrandecidos, Luke a olhou:
-¡Alexandria, Virginia! ¡Onions! Kady, com essa és tu.Kady não pôde conter um sorriso de satisfação.-Exato. De maneira que te senta e conta-me enquanto preparo o jantar.
-Sim, senhora -disse Luke, sentando-se ao outro lado da mesa, onde Kady o pôs a pelar o resto das maçãs. Enquanto Kady trabalhava, rápida e eficiente, Luke falava. Repetiu o que Kady já sabia sobre o abandono a que os pais de Tarik o submeteram, e teve que baixar a vista quando Luke disse que nunca tinha visto a seu primo tão descontraído e sorridente.
-Tu lhe fizeste algo -disse Luke-. Não me fizeram falta mais do que dois minutos para advertir do que não está como de costume, calado e misterioso. Quando eu era menino, ele costumava vir de visita, mas desaparecia durante dias e ninguém sabia aonde ia. Wendell e eu tentávamos seguí-lo, mas não tinha dificuldade em desorientar-nos. Mas, hoje...Contigo...Kady não quis atribuir nenhum peso às palavras de Luke.
-Estou segurísima de que se trouxesse a uma garota aqui, ele...
-O fez uma vez, quando Wendell não estava, por suposto. A garota estava tão assustada dos aullidos dos coyotes, que Tarik a levou ao povo de volta ao dia seguinte.
-Tarik -disse Kady em voz suave - Sabias que em Nova York não o conhecem por esse nome?Luke lhe dirigiu um sorriso ladeado, tão parecido à de Tarik, que Kady teve que voltar a cabeça.
-Tipo discreto. Demasiado discreto. Fala-me de ti, Kady. Por que te casaste com meu taciturno primo?Kady não queria falar de se mesma, queria escutar.
-Vêem afora a recolher ervas comigo e te contarei o referido a esse sonho.
Sorrindo, Luke saiu depois dela e, enquanto Kady recolhia ervas, explicou-lhe que toda a vida Tarik tinha sonhado com uma menina sobre um poni. Quando era menino, costumava dizer que essa menina era sua melhor amiga e que iria viver com ele. Suas fantasias com respeito à menina eram uma brincadeira familiar.
Quando regressaram a casa, Kady escutava com atendimento, enquanto blandía o pau de amassar. Estava fazendo fazzoletto, lenços de massa: folhas de ervas inteiras se amassavam entre capas transparentes de massa, depois se cortavam em lâminas para mostrar a beleza do desenho Como não tinha tempo de fazer o vezeiro molho de tomate de três horas, utilizou tomates enlatados, cebolas e ervas.
Como sobremesa preparou uma tarte tatin, um dos pratos mais extraordinários jamais criados: manteiga caramelizada e açúcar, coberta com uma dúzia de maçãs cortadas em rabanadas finas como papel, cozidas na parte de acima do forno, e depois, uma capa de massa em flocos em cima, horneada até ficar de um marrom dourado e, por último, todo o conjunto se investia sobre uma fonte.
Era quase tão bela como deliciosa. A isso das sete da noite, começaram a aparecer todos, atraídos pelos aromas que saíam pela janela aberta.Hannibal tinha um aspecto tal que parecia ter estado trabalhando nas minas, com a roupa manchada de pó de rocha.
Wendell seguia vestida de couro negro, mas se tinha posto mais maquiagem ainda e Kady se perguntou como faria para levantar as pestanas, com o que deviam de pesar-lhe.
Quanto a Tarik, foi o último em chegar, e pelas olhadas de incomodo que lhe dirigiu Wendell, Kady compreendeu que não tinham passado os tarde juntos, em absoluto. Claro que isso não lhe importava, mas se deu à volta e sorriu. Depois, começou a tratar de imaginar onde teria estado Tarik, que vinha muito sujo, com barro nos sapatos e uma mancha na bochecha. Comprovou, comprazida, que sua comida foi um grande sucesso com todos os parentes de Tarik. Até Wendell pareceu impressionada. Contendo o alento, Kady aguardou a opinião do tio Hannibal: quiçá, algo tão especial como os fazzoletto não fossem adequados para ele. Mas comeu sem fazer comentários.
Depois do jantar, todos saíram ao alpendre a sentar-se em cadeiras e, a desfrutar do ar fresco da noite. Quando Tarik, sintou-se sobre o travessão, de imediato Wendell transladou a cadeira para estar sentada quase aos pés de seu primo.
Quanto a Kady, colocou uma cadeira no extremo mais afastado do alpendre.O tio Hannibal se reclinou na mexedora, mondándose os dentes com um palito.-Kady, moça, se não estivesses já casada, depois de uma comida assim, eu mesmo pediria tua mão.Kady precisou um momento para advertir que estava caçoando... ou não?
Sorrindo-lhe, respondeu que, consideraria com muita seriedade a proposta. Wendell comentou que Kady já tinha esposo e que também tinha o povo.
-Não é suficiente para uma mulher?
-Nada foi nunca suficiente para ti, irmã maior -disse Luke. Isso tivesse bastado para iniciar uma discussão, mas Tarik a cortou dizendo-lhes que, efetivamente, Kady já tinha marido, e que séria conveniente que não o esquecessem.
-Luke, tu que és advogado -disse Kady, pensas que um certificado de casal datado faz cento vinte anos hoje tem validez? Luke passou a vista de Tarik a Kady.
-Não, não o crio. Por que? Talvez no teu se cometeu um erro assim?-Erro do computador -disse Hannibal, como se fosse programador e conhecesse desses temas.
-Está escrita a mão -disse Kady.
-Hoje em dia, são surpreendentes os tipos de letra que trazem os computadores -disse Tarik, sorrindo.
-Agora que o mencionas -disse Luke, olhando ao primo-, perguntava-me como teríeis feito para casar-vos em segredo. Eu imaginava que tua mãe organizaria um casamento do tamanho de Alaska.
-Sim, moço, agora que o penso, por que não fomos convidados ao casamento? -perguntou o tio Hannibal, outra vez com esse semblante de profeta.Todos os olhos se posaram em Tarik, sobretudo os de Kady. Se o tio Hannibal descobria que não estavam casados, os jogaria de Lenda? Se isso sucedia, teria ocasião de ajudar a Ruth alguma vez?Como se a conversa não lhe interessasse no, mas mínimo, Tarik se levantou e se esticou.
-Nenhum de vocês vai tê-la, de maneira que podeis deixar de procurar defeitos. Está casada comigo e não importa o que diz esse papel. -Sorrindo, olho a Kady. Ademais, se não estivéssemos casados, não teria motivo algum para que fiquemos aqui e tratemos de passar por nenhuma entrada, não te parece? Tios Hannibal ocupam o dormitório azul?
-Sempre é teu -respondeu Hannibal, sorrindo a Kady com benevolência.-Que entrada? -perguntou Luke, curioso.Tarik rodeou a Kady com um braço.
-Uma que não é assunto de meninos pequenos como tu.Luke riu, confiado. Talvez seja um menino para ti, primo Tarik, mas não para as damas.
-Tarik, meu amor -ronronou Wendell-, não podes ir a acostarte já. A noite está recém começada. Estou segura de que tua pequena... Amiga, deve de estar cansado depois de tanto cortar e pelar, mas tu e eu... Bueno recordará que a esta hora do dia pelo geral começávamos.Quando Wendell agitou as pesadas pestanas, Kady temeu que a brisa -arrancasse as telhas do alpendre.
-Sim, querido -disse, sarcástica-, por que não ficas e ajudas a Wendell com um... Com um ventilador a pedal, ou algo assim? Sem dúvida, os dois terão muitas coisas varoniis que fazer junto. Quanto a mim, tenho bastante para tecer e fazer crochet para manter-me entretida em minha mexedora. Boas noites a todos.Abriu a porta e se meteu na casa.Tarik a seguiu, mas se deteve ao pé das escadas, olhando para acima, e por seu rosto passou uma expressão de dor.-Crio... Creio que ficarei um momento abaixo. Kady alçou o nariz. Não lhe importava o que ele fizesse, mas quando olhou para abaixo, Viu que Wendell escutava com avidez. Sobre a boca pintarrajeada, os olhos da moça tinham tal expressão de astúcia, que o coração de Kady se fez um apertado nodo.
-Como queiras -disse Kady, e começou a subir a escada, mas Tarik lhe sujeitou a mão contra o balaústre.
-Olha, não é o que pensas -disse em voz fica, para que os outros não pudessem escutar-. Tenho que me ocupar de uma coisa. Voltarei quanto possa.
-Talvez tens a impressão de que eu quero compartilhar o dormitório contigo? -siseó, olhando-o. Fez como se não a tivesse ouvido. -Nada desejo mais do que passar a noite contigo, mas tenho que...-¡És demasiado vaidoso para expressá-lo com palavras! Vê a ficar-te com tua prima. Ou talvez Leonie voará para vir visitar-te? Não há nada entre nós, exceto...¡Não disse, mas, porque Tarik saltou sobre o balaústre, tomou-a em seus braços e a beijou até deixá-la lassa.
-Não te parece de que já seria hora de que deixássemos de jogar? Tu sabes tão bem como eu que estamos feitos o um para o outro. Pelo destino, se queres. Desde aquele primeiro dia em que te olhei aos olhos, eu...
Interrompeu-se e lhe apartou o cabelo da cara, enganchando um cacho por trás da orelha.-Tu que? -lhe perguntou, olhando-o. Quando a tocava, não podia pensar com clareza.
-Desde aquele primeiro dia, soube que te amo.-¡Isso não é verdade! -disse, tratando de apartar-se.Dois homens tinham dito que a amavam, e nos dois casos foi mentira. Gregory queria usá-la para fazer dinheiro e Cole era...-É verdade -disse, abraçando-a, sem permitir-lhe que se movesse - Faz muito tempo que nos amamos. Penso que talvez nos tenhamos amado inclusive antes de conhecer-nos.
-Que absurdo. Isso é ridículo.Outra vez tentou soltar-se, mas ele não a deixou.-Agora não tens que me dizer que me amas -disse. Primeiro, quero ganhar tua confiança.
-Na cama de que mulher? -lhe espetou - E daí me diz de teu compromisso com a magra Leonie?-O rompi o dia que me arrojaste os papéis ao solo. Está fora de minha vida.
-Não te crio -te disse, tratando de não o olhar, porque não podia suportar essa olhada- Quase não nos conhecemos, e só vieste aqui pelo codicilo de Ruth, e ..-Não existe tal codicilo -repôs, baixinho.-E tu vives num mundo diferente do meu, e... Como é isso de que não existe tal codicilo?-Assim está melhor -disse, sorrindo porque Kady tinha deixado de debater-se para apartar-se dele e o olhava, incrédula - O inventei tudo. Sou bom ator.-Não é ator, é um mentiroso!
-Chama-me como queiras. ¡Mmm, que bom sabor tens! -Estava mordisqueándole o pescoço - Foi muito divertido quando disseste que prepararias espaguetis e docinho de maçã. É como comparar um Ferrari com um ônibus. Como recordas todos os ingredientes? Levas um livro de cozinha contigo?
-Tenho talento para recordar os ingredientes de uma receita. Não posso pensar quando fazes isso.
-Essa é a intenção.Kady fez o que pôde por apartar o pescoço da boca dele. Tinha que conservar a sensatez. Com força surpreendente, conseguiu separá-lo um pouco, mas as mãos de Tarik seguiam aferradas por trás de suas costas.
-Como que não há codicilo? Que dizia a carta de Ruth? De fato, por que estás aqui?Suspirando, Tarik lhe tirou as mãos de em cima. Seguia-se a tocando, não poderia responder a nenhuma pergunta.
-Minha antepassada, Ruth Jordan, deixou-me uma carta onde se referia a que te tinha encarregado a tarefa de conseguir que seu neto Cole vivesse depois dos nove anos. Pedia-me que te ajudasse a cumprir com essa encomenda.-Mas tu não crês que possa fazê-lo.-Não quero que o tentes.
-Por que não? -perguntou, suspicaz.-Porque meu antepassado morreu num tiroteio. Se tu impedisses que lhe disparassem, poderia suceder que te disparassem a ti.-Oh, não tinha pensado em isso.
-Me parece que Ruth e tu não tivestes em conta muitas coisas. Como, por exemplo, que um testamento como o dela não se sustentaria num tribunal. Ademais, faz muitos anos que minha família está inteirada desse testamento e tomamos nossas precauções.
Kady piscou, esforçando-se por entender que estava dizendo-lhe.-Talvez estás tratando de dizer-me que isto foi tudo planejado?-Más ou menos.
-O senhor FowIer...?-Não sabe nada. Pensou que tu serias a dona de tudo, e que a petição tua, me o devolveria a mim. -Ao ver-lhe a cara, soube que lhe tinha dito muitas coisas, demasiado cedo - Olha, meu amor, por que não falamos disto depois? Agora, de pé nas escadas, não é um lugar para falar de...-Falar de que te riste de mim, mentiste-me e, em general, manipulaste-me?-Bueno, sim, fí-lo, mas foi por uma boa causa.-Qual? -disse, entre dentes apertados.-Desde o primeiro momento em que te vi, soube que te amava, mas quis saber se tu também me amavas.
-Eu não te amo -disse, enfadada - ¡Não posso suportar-te! Ridicularizaste-me, riste-te de mim, burlaste-te de minha cozinha, e. E não quero voltar a ver-te nunca -disse, enquanto passava junto a ele para seguir subindo.
-Kady, meu amor, querida, carinho, não falas em sério. Tinha que fazer tudo isso. Depois do que te fez o canalha de Gregory, não me crerias se te dissesse que te amo desde aquele primeiro dia em meu despacho.
-Não te crio agora, assim que importa?
-Sim, cries-me -repôs, com absoluta confiança-. Teus olhos o dizem, dí-lo o modo em que te moves.
-Nesse caso, deverias fazer um curso para interpretar, porque não te amo e nunca te amarei. Nem sequer me agradas.
-Sim, agrado-te, e se tivesse tempo, agora te levaria acima e te demonstraria o muito que te agrado. Mas não tenho tempo. Luke e eu...Se Kady tinha crido que Gregory era vaidoso, este homem se levava o prêmio.Não está escutando-me, verdade? Não quero saber nada de ti. Vê a passar a noite com Luke, ou com o macho de Wendell, ou com teu anoréxica Leonie, pelo que a mim me importa. Não me importa no mais mínimo.
-Kady, meu amor, em realidade, não queres dizer isso, e se tivesse tempo... ¡Ai! Por que me colas?-Porque não tenho uma faca à mão.
-Não o dizes em sério -disse Tarik, mas pelo tom Kady compreendeu que estava impressionado.-O digo muito em sério. Vê a dormir num dos bordéis, se isso te vem bem.Dito isto, passou empurrando-o e subiu a escada rumo ao dormitório azul.
Luke mexeu a cabeça, dubitativo. -Que é o que te passa? As maiorias dos homens adoram a Wendell.-
Eu não, e precisamente por isso me quer. E não tenho intenção de ofender a tua irmã, mas não tenho energias suficientes para ela. Bueno, dime como posso livrar-me dela e se estás disposto a passar a noite ajudando-me.
-Eu? Um menino como eu? -disse Luke, com gordo sarcasmo.Tarik lhe dirigiu um sorriso torto.-Se voltas a tocar a Kady, talvez te faça demonstrar teu hombría. Luke riu.-¡Não me digas que estava dizendo-lhe a verdade a Kady? Não é possível que o duro Jordan se tenha apaixonado de uma pequena mulher como Kady. Pensei que te agradavam as pirañas como Leonie e minha querida irmã motoqueira.
-Algum dia, quando cresças, te contarei os fatos da vida, mas ainda não. Queres ajudar-me, ou não? -Seria muito pedir saber que queres que faça? Será o bastante interessante para perder uma noite de sonho por isso?-E se te dissesse que encontrei um buraco através do tempo, e que se passamos por aí, poderemos entrar no passado?Luke o olhou uns momentos, com ar especulativo.
A história era absurda, mas tinha fé em seu primo.-Neste momento, poderias estar acima, tratando de meter-te na cama com Kady... não cri nem por um minuto essa patraña do casamento... e queres passar a noite caçando fantasmas? -perguntou baixinho.
Tarik não fez outra coisa que o olhar fixo.-Se é tão importante, então de repente sofri um ataque de insônia.-E daí o que fazemos com tua irmã?
-Deixa-me a mim. Aprendi algumas coisas na faculdade de Direito.
-Sabia que seria proveitoso todo o dinheiro que gastei em tua educação. -Em realidade, inteirei-me de que há um bar no centro, e posso assegurar-te que não tem nada que ver com a Faculdade de Direito. -E daí que estás esperando? Assegura-te de que Wendell não nos siga; depois, nos encontraremos junto à Árvore do Enforcado dentro de uma hora.
-Não deverias passar uns dez minutos com Kady? -perguntou Luke, malicioso, insinuando que era o tempo todo que precisava seu ancião primo para estar com uma mulher.Tarik não sorriu e jogou uma olhada à janela do dormitório azul.
-Se voltasse a essa habitação, não me iria nunca durante dias -disse, com pranto na voz.
-Isto deve ser verdadeiramente importante -disse Luke em voz fica. -O é. Estou evitando que Kady arrisque a vida. E agora, vamos, faz o que tenhas que fazer, para poder encontrar-te comigo dentro de uma hora.
-Sim, meu capitão.
CAPÍTULO 27
"Vá com o amor", disse-se Kady enquanto caminhava pelo velho caminho que ascendia, serpenteando, a montanha. Que lhe importava a ela que Tarik, esse homem que lhe disse que a amava, não tivesse voltado em toda à noite? Eles não estavam realmente casados, como também não estava casada com Cole. Depois de tudo, uma não podia casar-se com um fantasma, verdade?Andando pelo caminho, detinha-se cada tanto a recolher ervas e flores silvestres, e as punha num cesto que levava.
Essa manhã, quando o sol estava assomando, Tarik tinha entrado a tropeções no dormitório "dos dois", e se tinha jogado na cama junto a ela. Estava sujo, com barro seco incrustado e cheirava debilmente a esterco, mas, sem tirar-se a roupa suja, atirou-se sobre a cama. Quando Kady se acordou e o olhou, disse-lhe:- Oi, querida. -E ficou dormido ao instante.
Kady lhe jogou uma olhada furiosa e se levantou da cama. Teria que o ter deixado onde estava, como estava, mas lhe sacou os sapatos e forcejeó para tirar-lhe a jaqueta de algodão. Tinha-se acordado o tempo necessário para dizer-lhe que ela cheirava bem e que se alegrava de vê-la, e tinha voltado a dormir-se. Kady o tampou e baixou para preparar o café da manhã.Depois empacotou vários almoços e, levando-se um para ela, enfiló para as montanhas, pois queria passar um momento longe e pensar em sua vida que até onde podia ver, era um embrulho.
Tarik lhe tinha dito que a amava, mas, claro, isso era mentira. Como era possível que uma pessoa amasse a outra que só conhecia desde fazia dias? Ainda que todos os livros estivessem cheios de histórias como essa, não podia ocorrer na realidade, não? E daí a sentia por ele?
-Nada -disse em voz alta, olhando ao céu e vendo as nuvens escuras.Sentia tanto por ele como ele por ela, ou seja, nada.Depois de resolver o problema de Lenda, coisa que não tinha idéia de quando ocorreria, porque essa manhã a rocha também não se abriu, conseguiria emprego como cozinheira em algum lugar e não reveria a Tarik Jordan. Ele voltaria a suas Leonies e a seus Wendell, e Kady não o veria mais. Agora, olhando ao redor, se lhe ocorreu que sentiria falta Lenda. Se Tarik lhe dizia a verdade -a verdade a respeito de sua mentira-, Kady não era dona de Lenda porque jamais tinha possuído as propriedades dele e, portanto, não podia possuir o povo. Esta vez, quando se marchasse, não veria nunca mais esse lugar.
As primeiras gotas frias de chuva lhe caíram na cara e soube que tinha que procurar refúgio. Tinha saído sem equipe para a chuva e nas montanhas se corria perigo de hipotermia.Minutos depois a chuva arreció e Kady jogou a correr. Talvez pudesse encontrar um saledizo na pedra, ou...Interrompeu seus pensamentos, de pé no meio do caminho, e olhou adiante. Piscou para aclarar-se a visão, pois não podia crer o que via: adiante dela estava o que parecia uma choupana.
-A choupana de Cole -disse, incrédula.A choupana onde tinha estado com ele, onde Cole tinha rosnado como um urso, caçoado, onde a tinha feito rir.Sem fazer caso do barro e dos charcos, começou a correr e em poucos minutos tinha chegado à choupana, ao alpendre, que estava seco. Contendo o alento, apoiou a mão contra a porta desejando que estivesse aberta, porque a choupana era um excelente refúgio. Era evidente que alguém a cuidava bem.
Os goznes bem azeitados se moveram com facilidade quando se abriu e Kady conteve o alento ao olhar dentro. Era muito bela, com cortinas vermelhas, verdes e douradas, tapetes turcos, um sofá verde escuro, e uma cama com um cobertor da mesma tela que as cortinas. Encontrar, no meio do nada, uma choupana que parecia feita por um decorador profissional era como entrar numa fantasia.A grande chaminé de pedra tinha o mesmo aspecto que quando essa era a choupana de Cole e tinha lenha preparada para acender fogo.
Tremendo, com a roupa molhada, Kady acercou um fósforo ao papel e as lascas, e em poucos minutos o grande quarto se tinha caldeado.Junto à cama tinha um baú de madeira talhada que lhe recordou à caixa de Cole, onde ela tinha encontrado roupa. Quando abriu este baú de fino talhado, não a surpreendeu encontrar roupa, e poucos minutos depois se tinha tirado as prendas molhadas e se tinha posto calças de ginástica secos e abrigados, um suéter gordo e grandes calcetines de lã.
Sorrindo, sentindo-se muito melhor, foi a um rincão da habitação para olhar nos armários da cozinha e encontrou, ocultos à vista, um forno de microondas e uma processadora de alimentos, o qual significava que a choupana tinha instalação elétrica.-Luke -disse, pensando no jovem com seu título de advogado. Agora que voltava a pensá-lo, compreendeu que não lhe tinha perguntado a Luke nada sobre si mesmo, a respeito de como tinha ido dar a Lenda e, ainda assim, fazer a carreira de Direito.
A choupana também tinha água corrente e tinha uma porta cerca da cama que antes não estava; para seu deleite, ao abrí-la se encontrou com um banho em bom funcionamento.De repente, abriu-se a porta e irrompeu um Tarik muito empapado e enfadado.
-Que diabos é isso de desaparecer assim? Ninguém sabia onde estavas. Desde agora, nunca sairás de minha presença sem dizer-lhe a alguém aonde vais.Essas palavras mataram a primeira reação de euforia ao vê-lo.-Teu "presença"? Como quando se fala da presença de Sua Alteza Real?
O semblante escuro estava carrancudo e a água lhe gotejava pelo nariz, sobre o suéter. Kady teve que se esforçar para ficar-se onde estava, para não correr para ele e rodear-lhe a cintura com os braços.O que fez foi dar-se à volta e olhar o fogo.-Já tens visto que estou perfeitamente, assim que podes ir-te -disse baixinho. Depois dela, não se ouviu nada. Tarik não se apartou da entrada, nem fez ademanes algum de tirar-se a roupa molhada.Kady manteve a cara volta o tempo todo que pôde, até que ao fim girou para ele.
Olhava-a com tal intensidade que se lhe pôs nervosa em todo o corpo. Podia sentir essa olhada. Olhando-o aos olhos, viu ao homem que tinha visto centos de vezes nos sonhos, o homem que tinha procurado e com o que tinha sonhado desperta. O que tinha comparado com todos os demais homens, encontrando-os em desvantagem.
Agora, como no sonho, ele lhe tendia a mão. Não montava a cavalo, mas já o tinha feito quando saiu do bosque para resgatá-la dos disparos. Não tinha a parte inferior da cara coberta por um véu, mas assim estava a primeira vez que o Viu. Não tinha um deserto interminável por trás dele, só a porta de uma choupana e a chuva caindo afora.No entanto, pese às diferenças com o sonho de Kady, era o mesmo. Era o mesmo homem, com os mesmos olhos escuros e intensos, e a mesma expressão que lhe dizia que a cuidaria para sempre, a expressão que tinha em seu sonho. E sabia que podia confiar nele.
Quaisquer que tivessem sido as discussões menores que tiveram, ao final sabia que ele era capaz de cuidá-la a risco de sua própria vida.Só vacilou um minuto. Em seus sonhos, tratava de chegar à mão estendida, mas não podia. Algo a retinha sempre. Agora, não tinha nada entre os dois, salvo seu próprio temperamento obstinado.
Em lugar de tomar-lhe a mão, correu para ele com os braços abertos e caiu sobre seu peito, enquanto ele a estreitava com força.
-Oh, Kady -disse, com a boca apoiada no cabelo dela - Te amo tanto... Não sabes o feliz que sou de ver que já não estás enfadada comigo. Lamento o da demanda, mas o decidiu meu pai. Eu nem sequer o recordava. Lamento ter-te mentido com respeito ao codicilo de Ruth, mas tinha medo de que me despedisses com caixas destempladas se não tinhas um motivo para ficar-te comigo.
-O tivesse tido -repôs Kady, com a cabeça contra a roupa úmida de Tarik.-E o casal... Tal qual era meu sonho. Eu queria viver com uma garota que tivesse uma longa trança escura. Não tem um poney moteado, verdade?Era o mesmo sonho que tinha tido Cole, o que lhe tinha contado nessa mesma choupana.Apartando-se um pouco dela, levantou-lhe o queixo para que as olhadas de ambos se encontrassem.
-Me perdoas por ter-te dito uns quantos embustes? O único que queria era estar cerca de ti e fazer que me amasses. Ao ouvir isso, Kady se apartou dele, dando-lhe as costas. O amava? Não estava segura e, a dizer verdade, não estava segura de seus sentimentos para nenhum homem. O tempo todo que esteve com Cole, tinha-lhe dito, e também a si mesma, que amava a Gregory. Depois descobriu como era Gregory em realidade e começou a recordar a Cole como se tivesse sido um santo.
Claro que podia fazer isso, pois ele estava morto e nunca tinha chegado a ser adulto.
-Não o sei... -começou a dizer, mas ele lhe cortou a frase com um suave beijo.-Não sabes se me amas ou não -lhe disse, com expressão divertida nos olhos-. Sou paciente, e posso esperar a que o descubras: é só questão de tempo. Levou-a à cama e começou a tirar-lhe lentamente a roupa, sem deixar de beijar a pele que ia descobrindo.
Kady, eu... -começou, como se tivesse algo muito importante que lhe dizer, mas alçou a cabeça, olhou-a aos olhos e o que Kady viu neles era uma paixão ao vermelho vivo - Ao diabo com a delicadeza -disse, com um esboço de sorriso e ao minuto seguinte a roupa de Kady voava.
Kady se sentiu impulsionada a um frenesi de desejo diferente de qualquer que tivesse sentido antes. Arrancou-lhe a roupa empapada, querendo pôr as mãos e a boca sobre a pele dele, desejando saboreá-lo, tocá-lo, como ele estava fazendo com ela.Dava a impressão de que as mãos e a boca de Tarik estavam em todas partes ao mesmo tempo, e, quando esteve nu, esticou-se sobre a cama e pôs a Kady em cima dele, a boca sobre seus peitos, as mãos nos quadris, os dois frenéticos, excitados, beijando-se, provando.
Quando Kady já não pôde suportá-lo, Tarik a pôs de costas e a penetrou com força arrasadora. Kady arqueó os quadris para ir-lhe ao encontro e quase gritou ao primeiro contato. Este era o homem que tinha estado esperando, o homem que tinha querido toda a vida.
Bastaram segundos para que atingissem ambos a cume do êxtase e Tarik, lasso, afrouxasse-se sobre ela, abraçando-a estreitamente. Por uns momentos, Kady ficou quieta, tratando de normalizar sua respiração, mas depois Tarik começou a beijar-lhe o pescoço, sua mão foi baixando e começaram outra vez. Sentada no solo, com as costas apoiadas na cama, Kady podia sentir seu coração batendo sob os peitos nus. Ainda que pensava que deveria levantar-se e pôr-se um pouco de roupa, estava demasiado fatigada, demasiado saciada para mover-se. Em realidade, estava demasiado feliz para que lhe importassem insignificancias como a roupa.O quarto era um embrulho. Em algum momento do dia, Tarik a tinha arrojado sobre a mesa e, em sua exuberancia, tinha volcado enfeites e posto colchonetes sobre o solo. Tinham deixado de fazer amor o tempo suficiente para que Kady preparasse um pouco de comer; depois, comeram-no de seus respectivos corpos nus.
Nesse momento, quando se abriu a porta do banho, alçou a vista, olhou-o e começou a atirar do cubrecama que tinha no solo, embaixo dela, para cobrir-se o corpo.-Não -lhe disse Tarik sorrindo, e ela lhe retribuiu o sorriso.Estava nu, e ela soube que nunca tinha visto um corpo mais belo. Tinha ombros largos, com uma grande mata de pêlo negro no peito e tinha músculos formados por anos de manipular armas manuais.
Nas últimas horas, teve ocasião de saber o flexível e forte que era em realidade. E, no entanto, tinha hematomas em quase todo o corpo, e quando Kady lhe perguntou a que se deviam, contestou-lhe, com seu sorriso ladeada:
- Me os fiz treinando-me.Agora, sintou-se no solo junto a ela e atraiu a cabeça da mulher sobre seu ombro.
-Queres tomar um banho comigo?-Muito quente, e com borbulhas? -murmurou.
-Muito quente com montões de borbulhas -disse, pondo-se de pé e cobrindo-lhe os ombros com o cobertor - Põe-te um pouco de roupa, mas não muita -agregou, com sorriso lascivo. Kady ia perguntar-lhe por que lhe pedia que se pusesse roupa para ir ao quarto balnear, mas em seguida soube o que tinha em mente: a fonte surgente de Cole, o lugar onde ela se tinha lavado o cabelo fazia muito tempo. Meia hora depois, os dois estavam submergidos até o pescoço numa fonte quente natural, a mesma que Kady tinha usado antes. Mas tinha muitas mudanças, como uma gruta de aparência natural, construída com formosas pedras e helechos que penduravam sobre eles.
-Tu fizeste isto? -lhe perguntou, com a cabeça para trás, os olhos fechados - Tu arrumaste a choupana?-Sim -lhe disse com suavidade, observando-a.-Por que? Se Hannibal dispara à gente por entrar, então... -Abriu os olhos para olhá-lo-. Costuma disparar à gente que vem a Lenda?Tarik lhe dedicou o sorriso ladeado.-Não sempre.
A primeira reação de Kady foi a raiva por tê-lo descoberto em outra mentira mais. Se lhe ocorreu acusá-lo de obrigar a Hannibal a participar de seus... mas o enfado se dissipou e se afrouxou. Pensou que por conquistá-la Tarik tinha fato grandes esforços para estar cerca dela e essa era uma boa sensação. Recordando a relação com Gregory, confirmou que, efetivamente, era uma muito, muito boa sensação que um homem chegasse a tais extremos por conquistá-la.-Kady -lhe disse com suavidade - Quero que me digas tudo. Quero saber tudo o que sucedeu entre tu e Ruth.Olhando-o, suspirou.-Jamais me crerias. De fato, quanto mais tempo passa, não se se eu mesma creio que me sucedeu.-O crias ou não, quisesse ouví-lo.Por um momento, titubeou. O dia anterior, jamais teria considerado dizer-lhe a ele nem a nenhum outro o que tinha suportado, mas hoje ele já não era um estranho. Conhecia o corpo de Tarik como jamais tinha conhecido o de ninguém. E para ser sincera consigo mesma, ele jamais tinha sido um estranho para ela.
Inspirou fundo.-Cedendo a um impulso, comprei uma antiga caixa de farinha. Pensava pô-la em minha nova cozinha, na casa onde ia viver com Gregory. Dentro da caixa tinha um vestido de noiva, um relógio e uma fotografia...Falou durante uma hora. Depois de um momento sem interrompê-la, Tarik saiu do estanque e depois a ajudou a sair, secou-a e se vestiram. Estava escurecendo quando voltavam caminhando à choupana e Kady seguia falando. Tarik não fez nenhum comentário, mas ela quase podia sentir o atendimento com que a escutava. Foi como se estivesse escutando-a com o alma.Só uma vez falou e foi para fazer-lhe uma pergunta:
- O amavas?
-A Cole? -lhe perguntou, sabendo que era a ele a quem Tarik se referia-. Não o sei. Em certo modo, sim, mas suponho que sabia que não duraria e por isso me retraí.-És boa em isso -disse pelo baixo, e lhe pediu que continuasse com a história.
Para quando regressaram à choupana, Kady lhe tinha contado tudo o concerniente ao mesmo tempo em que passou em Lenda com Cole.Kady a conduziu até a mesa redonda de carvalho onde poucas horas antes tinham feito amor.
-Não me cries -lhe disse, enquanto se sentava na cadeira que ele lhe oferecia.-Crio absolutamente tudo o que me contaste -lhe respondeu - Agora, dime, que queres sobre tua omeleta?-É o que alguém quer dentro da omeleta, não sobre ela -lhe disse, sem estar convicta de que lhe cria. Quem podia crer uma história como essa?
-Deixa-me fazer isso -lhe disse, enquanto fazia o gesto de ir para o balcão da cozinha.-Kady, meu amor -repôs Tarik, pondo-lhe as mãos nos ombros e guiando-a de novo até a mesa - Não me apaixonei de ti porque precise uma cozinheira. É minha convidada e eu me ocuparei de ti. Talvez não seja capaz de preparar uma comida como a tua, mas te asseguro que sei fazer uma omeleta.
Kady lhe sorriu: ninguém, em nenhum lugar, jamais, tinha-se oferecido a cozinhar para ela. Salva Cole. Salvo Tarik.-Tudo -disse-. Quero tudo o que tenhas sobre a omeleta e dentro dela. Arrasta-a pelo jardim.-Sai uma omeleta embarrada -disse, voltando-se para a cozinha-. E agora, fala-me de... -Vacilou, como se a palavra fosse difícil para ele - De Gregory.Kady riu.
-Não, até que tenha ouvido falar de Leonie, de Wendell e de todas as demais.Tarik se voltou e lhe dirigiu um sorriso que quase lhe tirou o alento.-Há tantas mulheres em meu passado que me levaria o resto de minha vida falar-te de todas elas. Penso que, pelo momento, nos concentraremos em teus homens. São menos.-Ja, ja. Resulta que há muitos homens em minha vida.-Dime seus nomes, para que possa assassiná-los.
Kady riu e, contemplando as costas de Tarik, de repente compreendeu que nesse momento, pela primeira vez em sua vida, era feliz. Toda sua vida parecia ser à busca de algo, conquanto nunca soube que era. Nunca se tinha sentido satisfeita com o que estava fazendo. Quando era chef em Onions, sonhava com casar-se com Gregory e ter filhos.
Quando esteve na velha Lenda, tivesse querido estar em qualquer outro lugar. Depois, quando voltou a sua vida real, tudo o que encontrou a fez compreender que queria afastar-se dela.Mas agora estava onde tinha que estar, fazendo o que devia fazer, com o homem com quem era justo que estivesse.
-Queres compartilhar isso comigo? -lhe perguntou Tarik com suavidade, observando-a. -Alguma vez desejaste cristalizar um momento? Alguma vez te disseste: "Quero que isto dure para sempre"? Deixando a faca de picar, ajoelhou-se ante ela e lhe tomou as mãos.
-Desde a primeira vez que te vi em meu escritório me senti assim.-¡Ja! Quando fui a teu apartamento estavas com outra mulher. E antes foste grosseiro e malvado, e...
-Não disse que me agradasse esse sentimento -replicou, com os olhos chispeantes - Desde o primeiro momento em que te olhei aos olhos, soube que estava vendo o fim de minha liberdade. Basta de festas loucas. Basta de supermodelos. Basta de...-O único que ouvia dizer era que eras um tipo muito discreto. De fato, a gente não conhece sequer teu nome. Não podes ter teus segredos e, ao mesmo tempo, dar festas e ter infinidade de mulheres.Tarik voltou sorrindo junto à tabela de picar.-Alguém te disse alguma vez que as mulheres inteligentes são um incomodo?
-Gregory.-Me imagino. Suponho que terá encontrado a mulher de seus sonhos, capaz de cozinhar e de manter a boca bem fechada. Bonito a que o deixaste de uma peça quando lhe disseste que nunca voltarias, não é verdadeiro?De pé por trás dele, sorriu porque sabia o motivo dessa pergunta: queria estar seguro de que em verdade tinha deixado a Gregory.
-Tens razão: não podia crê-lo. -Fez uma pausa-. Suponho que Leonie se enfadou um pouco quando a plantaste.
Dando-se à volta, Tarik a olhou confuso. -Ignorava que as damas conhecessem semelhantes termos: usou algum que eu jamais tinha ouvido.Kady ainda ria quando Tarik pôs frente a ela uma enorme omeleta fumegante; depois, pôs sua cadeira junto a ela e comeram do mesmo prato e beberam vinho da mesma copa.
-Quero saber coisas de ti -lhe disse com voz suave Kady, olhando-o por envelope o borde da copa - Já te contei tudo sobre mim, mas não sei nada de ti. Que é o que faz, exatamente, tua empresa?-Dinheiro. Os Jordan somos eficazes para fazer dinheiro. Somos maus nas relações pessoais, mas talvez essa seja a maldição imposta pelo povo de Lenda, pelo que criam que lhes tinha feito Ruth. Ou quiçá seja meu tataratatarabuelo, o filho menor de Ruth, o que nos amaldiçoou a todos. Pode que seja minha culpa, mas me parece que isso é bastante improvável.
Por um momento fugaz, Kady viu sob a aparência risonha, confiada, o sorriso ladeado, a solidão na olhada dele. Também viu a dor. O senhor Fowler lhe tinha dito que C. T. Jordan tinha trinta e quatro anos, mas que jamais se tinha casado e agora se perguntava por que.
-Para valer pensavas casar-te com Leonie? Só para ter filhos?
-Sim, para valer, porque tinha perdido toda esperança de encontrar-te, sabes?Ia perguntar-lhe que queria dizer com isso, mas em realidade o sabia. Pôs a mão sobre a dele e o olhou aos olhos.-Tenho que voltar sabe-lo, não é assim? Quanto a rocha se abra de novo, tenho que voltar A Lenda.Ao instante, os olhos de Tarik arderam de fúria.
-E daí pode fazer ali? Podes mudar o que já passou? Queres voltar à vida a teu santo Cole, para poder voltar com ele?-Não, claro que não. Só quero fazer o que possa pára... Pára...Pondo-se de pé, olhou-a, colérico.
-Não tens idéia do que queres fazer, nem do que poderás fazer. A única maneira de impedir a tragédia de Lenda é impedir que matem a Cole. Como pensas fazê-lo? Pondo teu corpo adiante do seu? Em verdade, Kady não tinha ido tão longe em seu pensamento.
-Não sei o que posso fazer. Talvez possa encontrar a Ruth antes do roubo ao banco, e prevení-la.-E como vais passar a Linha Jordan? Olhou-o perplexa, sem compreendê-lo. Tinha um caminho aberto através do muro que era a Linha Jordan. O único que tinha que fazer era atravessá-lo.Tarik se pôs de joelhos adiante dela e lhe sustentou as mãos, olhando-a com olhos suplicantes.
-A linha Jordan é um muro de pedra que separa o povo: a um lado, os charutos, intocáveis Jordan, a muralha ao outro. Disse-te Ruth que o muro está patrulhado por guardas armados as vinte e quatro horas do dia? Disse-te que disparam contra qualquer desconhecido que tente entrar na torre de marfim dos Jordan? Os estranhos não podem acercar-se aos régios Jordan e falar com eles, simplesmente.
-Por que falas em presente? Não terias que o dizer em passado?Tarik se levantou e se afastou dela, para acercar-se ao lar.
-Claro que sim -disse com suavidade-. Disseste que tinhas medo de contar-lhe a alguém tua história porque ninguém te creria, mas eu sim, e vejo o perigo que implica.Não podes voltar, Kady. Ainda que se abra a porta na rocha, não podes ir.
-Devo fazê-lo -replicou com singeleza.
-¡Não! -gritou ele, golpeando o punho contra a estante da chaminé-. Não posso permití-lo.Talvez tivesse devido ofender-se pela imposição, mas não foi assim, porque viu em seus olhos a preocupação e quis acalmá-lo.
-Não creio que se me dê a oportunidade, porque todas as vezes que olhei a porta estava fechada.Ao ouví-la, dirigiu-lhe um cálido e amistoso sorriso, e se acercou para abraçá-la.-Que bem, espero que fique fechada para sempre. -Apartando-a, olhou-a aos olhos-. Queres casar-te comigo, Kady? -lhe perguntou baixinho.
Kady titubeou. Isso era o que queria, não? Mas algo a retinha. Talvez fosse que nos últimos meses tinha tido três homens em sua vida e estava um pouco confundida.Quando abriu a boca para falar, ele se a tampou com um beijo.-A oferta estará sempre aberta -lhe disse-, de modo que te toma tempo, Toma-te o tempo todo que precises.Kady o abraçou pela cintura e o estreitou com força contra si.-Vêem -lhe disse Tarik, cordial-, vamos à cama e durmamos um pouco.
-Como?-perguntou Kady, com as sobrancelhas levantadas.-Se tu podes dormir estando na mesma cama comigo, eu também posso -lhe disse, como se fosse um desafio.Duas horas depois, depois de ter feito amor, Kady se dormiu em seus braços.Mas quando acordou à manhã seguinte, Tarik se tinha ido. Crendo que tinha saído afora, vestiu-se e saiu, mas por muito que procurou não pôde encontrarou. A primeira hora da tarde, abandonou a esperança de que fosse aparecer a cavalo, com alguma desculpa razoável por tê-la deixado só, e começou a baixar a montanha.Para quando chegou a Lenda, tinha decidido que odiava a todos os homens em todas partes, em especial os de sobrenome Jordan, que desapareciam constantemente sem uma explicação. Talvez para ele teria sido só um jogo, só para ver se podia levá-la à cama, para depois abandoná-la? Pelo que sabia, poderia tê-lo recolhido um helicóptero e ter voltado A Nova York. Depois de tudo, em Lenda nada o retinha, pois Kady não possuía nada e jamais o tinha possuído.
Não tinha ninguém à vista quando entrou no povo e se alegrou, porque tinha decidido preparar suas bolsas e marchar-se. Enquanto subia correndo a escada da casa dos Jordan e agarrava sua mala, pensou que Tarik tinha tido razão. Que podia fazer se regressava a Lenda? Ademais, por que quereria fazê-lo? Que significavam os Jordan para ela? Meses atrás, não tinha ouvido sequer falar deles, e...Interrompeu o que estava fazendo, com uma prenda na mão, ao ver que Luke entrava cambaleando-se na habitação... a que ia compartilhar com um homem que agora não queria rever. Estava tão furiosa que demorou um momento em ver bem a Luke e, quando o fez, ficou imóvel com a vista fixa nele.Tinha a camisa suja e rasgada, e sangrava num custado. Tinha outro lugar ensangüentado na cabeça, uma marca vermelha no pescoço e ofegava.
Kady traspuso correndo a breve distância que os separava, rodeou-lhe o peito com os braços e o ajudou a sentar-se num custado da cama. Quando notou que não estava em condições de ficar sentado, ajudou-o a acostarse sobre a cama.-Que sucedeu? -lhe perguntou, atemorizada-. Afundou-se uma mina? Hannibal está atrapado? Que passou com...? -Os olhos se lhe engrandeceram de medo - Tarik? -sussurrou, esquecendo qualquer animosidad. Quando viu a expressão de Luke, soube que isso era o que tinha ido dizer-lhe. Pôs-se de pé e o olhou - Teve um acidente, não é assim? Há telefone aqui? Posso pedir ajuda? Como faço pára...?
-Não -conseguiu dizer Luke, com voz rouca-. Não teve nenhum acidente. Tarik e eu...Fez uma pausa, levou-se a mão à garganta, e fez um gesto para uma garrafa de água que tinha sobre a cômoda.
Com mãos trémulas, Kady serviu água num copo e se o deu. Tratou de concentrar-se em como atender as feridas de Luke porque não suportava pensar em que a expressão de sua cara significasse que Tarik não estava vivo.Pareceu-lhe que decorria uma eternidade até que Luke terminou de beber e lhe entregou o copo.
-Passamos pela porta -disse, levando-se a mão à garganta - Perdoa-me, mas os jogos de enforcar são malísimos para a garganta de um homem.Ouvindo-o, Kady se sintou sobre a cama e o olhou:-
O penduraram? -conseguiu dizer.
-Ainda não o tinham feito quando eu me marchei, mas não sê quanto tempo lhe fica.
-A olhou. Poderiam ter-lhe disparado.Kady creu que ia desmaiar-se e isso deveu de refletir-se em seu semblante, porque Luke a aferró pelos ombros para que não se caísse.-Por que? Como? Quanto tempo? -sussurrou. -Amanhã ao amanhecer, mas quem sabe quanto é isso nesse lugar?De repente, a Kady se lhe aclarou a cabeça e enfilo para a porta, mas Luke a deteve antes que chegasse às escadas.
-Onde... ? -foi tudo o que conseguiu dizer.-Irei procurá-lo, por suposto.-Disse que não, que não fosses procurá-lo.Nos olhos de Luke tinha lágrimas de dor, pois as palavras lhe faziam dano na garganta e Kady sabia que estava perdendo rapidamente as energias.
Antes de voltar A Lenda, sempre que pudesse passar pela entrada, tinha que saber o que tinha sucedido e com que poderia topar-se.Acompanhou com cuidado a Luke de volta ao dormitório e foi ao quarto balnear a procurar uma palangana com água quente e um pano limpo.
Enquanto lhe limpava a ferida da cabeça, se as engenhou para sacar-lhe a maior parte da história.Ao que parece, o dia em que ele e Kady chegaram a Lenda, Tarik tinha visto a porta abrir-se para ele, mas não para Kady, e, portanto, essa noite lhe pediu a Luke que o acompanhasse.
Quando os dois chegaram, descobriram que estavam no dia anterior ao do tiroteio a Cole e à família.Kady escutou o entrecortado relato de Luke de como ele e Tarik tinham feito o possível por advertir à família Jordan de que deviam manter-se longe do banco ao dia seguinte.
-Mas não nos fizeram caso -disse Luke - Tentamos tudo. Tarik se meteu numa sangrenta briga com uns homens, junto à Linha Jordan.
Kady interrompeu a limpeza das feridas de Luke.-Com uma faca?-Uma faca, uma espada que pendurava da parede e os punhos.Não era de estranhar que, à manhã seguinte, tivesse caído na cama junto a ela e se dormisse de imediato. Teria que ter ido ao hospital e que lhe tomassem uma radiografia.
-Que passou ontem à noite? -lhe perguntou, enquanto começava a lavar-lhe a ferida do pescoço.Foi fácil sacar-lhe a camisa, que lhe pendurava em jirones.-Tarik disse que, como não podia deter aos Jordan, sim poderia parar aos ladrões de banco, assim que esperamos todo o dia no banco.Kady quase adivinhou o que ia dizer Luke a seguir.-Éramos estranhos no povo, e eles...Levou-se a mão à garganta e fechou os olhos, dolorido.
-Creram que vocês estáveis em combinação com os ladrões -terminou Kady. Os olhos de Luke se engrandeceram,
-Si. Creram que éramos cúmplices dos ladrões. Riu-se de mim quando lhes disse que tínhamos salvado a toda a família Jordan da morte e mais ainda, que tínhamos salvado a todo o maldito povo. Disseram que...-Shhh. Não tens que falar mais. Descansa.
-Não -repôs - Tenho que regressar. Iam a lincharnos, mas Tarik lutou com todos e os conteve o tempo suficiente para que eu voltasse a trasponer a porta. Mas estavam disparando. Kady não se permitiu compreender a fundo o que moço dizia. Nesse momento, precisava manter a salvo a sensatez.
-Assim que não sabes se está vivo ou não?-Não -disse Luke, caindo sobre a cama-. Tenho que ir por ele.-Sim, desde depois. Mas agora quero que descanses enquanto eu preparo comida para que ta leves. E quero que tomes um par de aspirinas. Farás isso?
Com os olhos fechados, Luke lhe sorriu e Kady soube o que estava pensando: que ela era uma mulher tonta, que só pensava em comida, inclusive em momentos de crises.Mas Kady tinha seus próprios planos. Quinze minutos depois, tinha-lhe dado a Luke um par de pílulas para dormir que tinha encontrado num armário da cozinha, e quando viu que dormia profundamente, dispôs-se a regressar à velha Lenda. Saiu da habitação, vestida com a roupa com a que tinha voltado da temporada com Cole.Mas já quando baixava a escada se sentiu indefesa. Como evitaria que Tarik fosse enforcado? Ninguém no povo a conheceria e não teria influência sobre eles. Não podia ir a cavalo até o cárcere, sacar um revólver e obrigá-los a devolver a Tarik.
Poderia fazê-lo?Afora estava Wendell, enfundada em roupa de couro negro que parecia pintada sobre ela e a expressão "transporte veloz" ressoou na cabeça de Kady.-Se pode subir à montanha com isso? -perguntou Kady, enfilando para Wendell.Wendell adotou uma expressão como se algo desagradável se lhe tivesse posto sob o nariz.
-Segundo quem conduza -disse, petulante - Suponho que o entenderias se te dissesse que é uma cozinha capaz de cozinhar só.Kady conteve as vontades de fazer uma réplica sarcástica.-Então, por que crês que Tarik te disse que pensavas que era capaz de montar uma motocicleta, mas, em realidade, não sabias nem como fazer bem as mudanças? À alta ruiva lhe levou um momento recuperar-se o suficiente para falar. -Onde está ele? Kady lhe sorriu com doçura. -Justamente, ia vê-lo. -Sobe -lhe disse Wendell, passando uma perna sobre o veículo e pisando com força o arranque.Arrancou rugindo para a Árvore do Enforcado, antes que Kady pudesse pôr os pés sobre os apoios.
CAPÍTULO 28
Só mais tarde Kady advertiria do que Wendell montava uma moto que não era a grande Harley-Davidson. Esta tinha pneumáticos com dentes de borracha de cinco centímetros que se fincaram na montanha, subindo, quanto ela pronunciou "Petroglifos", e o único que atinó a fazer foi pendurar-se da fila do veículo enquanto ascendiam.No redemoinho de pedregullo que voava não teve muito tempo para pensar, mas, quando o fez, o único que cruzou sua cabeça foi: "E se a porta não está aberta?"
Mas quando chegaram à grande parede de rocha pura, ali estava, aberta ante elas, e através da entrada pôde ver o cemitério, com muitas menos lápides do que o da época de Ruth. E viu que já tinha passado o entardecer. Luke tinha dito que Tarik seria pendurado ao amanhecer. Era o amanhecer do dia seguinte ou o deste? Já estaria morto?-Muitíssimo obrigado -lhe disse a Wendell enquanto se descia da moto-. To agradeço. Eu... eh, cozinharei algo rico para ti quando volte.
Passou quase correndo pela abertura e, ao instante, encontrou-se em Lenda.Depois, para seu horror, descobriu que Wendell ia depois dela, guiando sua grande máquina, e seguindo a Kady que corria para o povo. Detendo-se, pôs os braços em Jarras.
-¡Não podes vir comigo! Tens que regressar a Lenda.
-A mim me parece que isto é Lenda -disse Wendell, olhando ao redor-. Um pouco mudado, mas aí está o cemitério. Vi-o toda minha vida.-Agora não preciso isto -disse Kady, com os punhos apertados aos custados, vendo que Wendell avançava para ela-.
Tenho que fazer algo muito importante e não preciso nenhum entrometimiento.Alçando uma sobrancelha, Wendell a olhou.
-Que é o que está passando contigo, meu irmão e meu atraente primo? E se insistes com essa mentira de que estais casados, farei tudo o que possa para causar dificuldades. Crie-me, sou capaz de causar muitas dificuldades.
-Olha, em realidade não tenho tempo para isto. Poderíamos deixar esta briga de gatas para mais tarde.
Tenho que ver se Tarik está vivo, e... -Pela expressão interessada de Wendell soube que tinha seguido uma tática equivocada-. Tens que regressar. Retorna esse caminho, e...-O único modo de que me vá é se alguém me leva em braços. Crês que tens o tamanho suficiente?
-Nem com dois elefantes de ônus -disse Kady, com seu sorriso mais doce.Deu-se à volta e começou a caminhar depressa para o povo, enquanto Wendell levava a moto junto a ela.
-Por que pode ser que meu primo não esteja vivo? -lhe perguntou.
A Kady se lhe ocorreu que bem poderia dizer-lhe a verdade, pois não tinha tempo para pensar uma mentira plausível.-É provável que o tenham pendurado por roubo a um banco. -Entendo. Kady apertou os lábios. -Podes deixar esse ar de superioridade, porque sê muito bem que não entendes nada. -Vejo que não tens nenhum arma nem um exército de apoio. Diabos, não tens informação, sequer, e assim, como poderás salvar a ninguém de nada?
Kady apertou o passo.-Que vais fazer? Cozinhar algo tão maravilhoso que os maus te entreguem a Tarik como presente de agradecimento?-Não, vou mudá-lo por ti -disse, com todo o desprezo que pôde, desejando castigar-se por ter-lhe pedido a esta mulher que a trouxesse em seu veículo.
-Não é má idéia -disse Wendell baixinho.Kady quase deteve a marcha para olhar a Wendell que, a sua vez, olhava adiante, com os olhos engrandecidos.
-Sem dúvida provocarias uma distração -disse, e a outra sorriu.-Olha, cocinerilla, temos que elaborar um plano.
-Está bem, Spike, eu vou elaborar um plano.Wendell replicou de riso e seguiu andando junto a Kady, com a enorme motocicleta negra ao custado e as massas de cabelo avermelhado boiando ao redor.-Não é que me agradem muito as mulheres, mas tu quase me agradas.
-Se é um elogio, te agradeço. Tenho aqui o plano. -Kady não se molestou com os preliminares de pedir-lhe opinião a Wendell, nem em informá-la de como se tinha chegado à situação presente-. Quero que te ocultes. Quero que te mantenhas fora da vista enquanto vou ao povo e...
-¡Nem o sonhes! Eu...-¡Farás que todos se fixem em ti! -gritou Kady-. E eu o desejo tanto como tu, mas o farás quando eu diga que tem que fazê-lo.Wendell esboçou um sorriso e Kady inspirou fundo.
-Irei só ao povoado, averiguarei onde está Tarik e daí esta passando. Ninguém me prestará atendimento a mim. Tu esperarás aqui e eu virei procurar-te.
-Ficar fora da vista, eh? -perguntou Wendell, com uma careta como se isso fosse impossível. Observando a calça de couro tão cingido, Kady negou com a cabeça.
-No mundo real, como te ganhas a vida?-Não faço nada. Casei-me com um velho rico, que morreu três dias depois do casamento. Deixou-me tudo a mim -disse Wendell, com expressão desafiante, como se reptasse a Kady a que emitisse alguma opinião.
-Deve de ser uma mulher bastante solitária -disse, surpreendendo de tal modo a Wendell que a careta abandonou seu belo rosto. Mas se recuperou rapidamente e replicou:
-Continua. Jogarei-me uma sesta. Tive uma noite ajetreada.Kady se deteve o tempo suficiente para ver como Wendell metia o veículo à sombra de uns álamos e depois saiu quase correndo. Como sabia por ter visto o povo com Ruth, essa era a avenida Damnation e à esquerda estava a Linha Jordan, o qual significava que estava no lado Jordan em situação ilegal. Disparariam-lhe os guardas armados por passar? À direita, passou o caminho de terra que levava à casa dos Jordan, onde estava instalada no século vinte com Hannibal. Vacilou um instante enquanto se recuperava. O povoado era tão diferente cada vez que o visto que lhe custava encontrar o caminho, e nesse momento, com a luz que ia desvanecendo-se, era quase impossível. Além do caminho que conduzia à casa dos Jordan estava o que Cole tinha chamado a biblioteca.
Em seu mundo de sonhos tinha sido grande e bela, mas na realidade era só um pequeno e simples edifício de madeira que precisava uma mão de pintura. Além viu a igreja, da metade do tamanho que no povoao de Cole.
Entre a biblioteca e a igreja, o caminho girava à esquerda e tinha um grande círculo que podia usar-se para fazer girar as carretas maiores de maneira que ninguém tivesse desculpa para entrar em terras de Jordan. Além da parede de pedra que impedia o acesso da classe baixa, estava o povoado de Lenda, e inclusive ao longe Kady pôde ver o motivo da existência dessa parede. Além das tabernas, teria alguma outra coisa em Lenda? Até onde atingia a vista, não via mais do que atraentes cartazes de propaganda de jogos de casualidade e moças: moças francesas, bonitas, selvagens. Os anúncios seguiam e seguiam.-Não me estranha nada que Ruth odiasse este lugar -murmurou.
Voltou-se e começou a caminhar pela rua, pensando que tivesse convindo trazer um par de pistolas de seis tiros, e...Deteve-se ao ouvir o inconfundível som de aço contra aço, como o que tinha ouvido em centos de películas de espadachines.
-¡Tarik! -disse pelo baixo.Ficou quieta e escutou. Quando voltou a ouvir o som, sem duvidar se recolheu as saias e jogou a correr sobre a erva e a grama, para a parte de atrás da biblioteca.
Quando chegou ao lugar de onde partiam os sons, deteve-se horrorizada uns segundos antes de saltar. Um homem sujeitava a Tarik rodeando-lhe o pescoço com um braço e empunhava uma grande espada de folha curva, a ponto de cortar-lhe a cabeça. Como tinha assinalado Wendell, Kady não tinha arma, de maneira que levantou uma pedra do sonho e saltou sobre as costas do homem, descarregando a pedra sobre sua cabeça e derrubando-o ao instante.
-Que dia... ? -disse Tarik quando o homem o soltou de repente.-Estás bem? -lhe perguntou Kady, rodeando-lhe a cintura com os braços-. Fez-te dano? Vão pendurar-te? Luke saiu e queria voltar por ti, mas...Interrompeu-se ao sentir a Tarik rir entre dentes. Rir. Como com gargalhadas.Lentamente, a mulher se apartou dele e lhe olhou a cara, que extravasava de alegria.
-Te peço perdão -disse, com ar rígido, e se voltou para afastar-se, mas ele a atrapou do braço e a reteve, -Kady, meu amor, habibi -lhe disse, ainda que a duras penas podia conter a hilaridade-. Num minuto te explicarei tudo, mas primeiro creio que será melhor procurar a meu avô.
Por muita curiosidade que lhe provocasse, Kady se negou a olhá-lo. Durante as últimas horas, tinha estado agoniada por ele, como Luke, e aí estava ele, rindo como se não tivesse uma só preocupação na vida. A dizer verdade, não queria voltar a vê-lo, e por isso, quando lhe soltou o braço para olhar ao homem que estava atirado no solo, Kady seguiu caminhando, regressaria à Lenda de Hannibal e esqueceria tudo o sucedido. Melhor ainda, esqueceria a existência mesma dos Jordan.
-Não, não o farás -disse Tarik, e, passou-lhe um braço firme pelos ombros, levando-a de novo até o homem caído, que começava a voltar em si-. Estás bem? -lhe perguntou Tarik, olhando-o.
Nesse momento, compreendendo que se apoiar espadas nos pescoços era um desses jogos que aos moços e aos homens lhes encantavam, Kady não quis olhar a nenhum dos dois. Mas quando o homem a olhou, quase lançou uma exclamação porque era uma versão mais velha de Tarik: os mesmos olhos escuros, os mesmos lábios, a mesma olhada sensual que sempre tinha afrouxado os joelhos de Kady. Sua primeira reação foi acercar-se ao homem e pedir-lhe perdão por tê-lo golpeado, mas se manteve em seus treze. Em lugar de olhá-lo, deixou perder a olhada no espaço e não lhe falou a nenhum dos dois.
-Esta é Kady? -perguntou o homem, com um acento que ela não reconheceu-. É mais bela ainda do que me tinhas dito.Tarik apertou mais forte o ombro de Kady:
- E é valente, sincera, honesta, e...
-Não vou perdoar-te -lhe disse entre dentes, golpeando-lhe as costelas com o cotovelo, tentando que a soltasse-. Por que não lhe comunicaste a Luke que estavas bem?Ainda retendo-a junto a si, alisou-lhe o cabelo -apartando-o da testa e se a beijou.-Meu amor, Luke se foi de aqui faz três dias. Se me tivessem enforcado, teria sucedido muito antes que viesses salvar-me.
Pela primeira vez o olhou e, quando o fez, a ira a abandonou. Que importava o enfado se ele estava vivo e indemne? E, no entanto...Lendo-lhe a expressão dos olhos, Tarik a abraçou mais forte.
-Que te parece se comemos algo?
-Não tenho fome, mas estou segura de que a gente de Lenda sim. Teria que voltar à casa para dar-lhes de comer. O ancião já estava de pé e Kady viu que estava formando-se um vulto no custado da testa, coisa que lhe provocou culpa. Por que não se teria detido a olhar a cara do homem antes de golpeá-lo?
-Não é nada -disse o homem, inclinando-se para tomar a mão de Kady e beijar o ar em cima dela. Tal como eu não sou digno de beijar a uma mulher tão bela como tu.Kady olhou a Tarik como perguntando, "este homem é real?", mas Tarik franzia o entrecejo de um modo que lhe comunicava que estava zeloso... coisa que comprazia enormemente a Kady. Com um rápido giro, livrou-se do abraço de Tarik e enlaçou o braço no do homem maior.
-Você deve de ser Gamal.-Tenho essa honra -repôs, pondo sua mão sobre a dela, e os dois jogaram a andar junto.
Mas Tarik a aferró, e quando a acercou a ele, Gamal se escusou cortesmente com expressão divertida. Sabia que tinha que deixar sós aos apaixonados.
-Me dirás por que não te penduraram? -disse Kady, quanto estivermos sós - Salvaste a Cole?Já tinha escurecido por completo e os rodeavam os sons da noite. Kady quase não via por onde iam, mas, ao que parece, Tarik tinha olhos de gato, porque em nenhum momento tropeçou.
-Sim -disse, sorrindo - Pude impedir que se produzisse o roubo do banco, mas parece que os bons cidadãos de Lenda creram que eu estava na tentativa. São uma gente cobiçosa - Não me estranho que Ruth fechasse o povoado.
-Como escapaste deles?
Não teria que estar dirigindo-lhe a palavra. Se Tarik tivesse alguma preocupação pelos sentimentos alheios, teria voltado a dizer-lhes que estava bem.
-Gamal -disse Tarik baixinho-. Depois que Luke se foi, os cidadãos estavam um pouco furiosos Em nossa época temos as películas e os programas de televisão onde se vêem enforcamentos e assassinatos, mas aqui os têm em realidade, sabes? A gente preparava comida campestre para levá-la consigo quando ia ver como nos penduravam a Luke e a mim.Ao pensar no real que tinha sido e no cerca que esteve de perder a vida, Kady apertou com mais força seu braço e, ao sentí-lo, Tarik se voltou e a atraiu a seus braços beijando-a com uma ternura que a fez perdoar-lhe tudo -Que fez para salvar-te? Os conteve a ponta de espada? -Lhes disse que eu era parente dele e que tinha sido contratado pelos Jordan para custodiar o banco. Bastava que nos olhassem aos dois para ver que estava dizendo a verdade com respeito a nosso parentesco.
Abraçando-a, apoiou-lhe a bochecha na coronilla.-Lamento ter-te causado um instante, sequer de preocupação. Mas quando vi que Luke não regressava de imediato acompanhado de um exército, supus que se teria produzido certa mistura de tempos. Queria voltar a ti de imediato, mas como tinha salvado a vida de meus ingratos antepassados, pensei que a rocha não voltaria a abrir-se nunca, e queria aproveitar a oportunidade de... Bom, de conhecer um pouco. E de travar relação com minha tataratatarabuelo.
Com os braços de Tarik ao redor, Kady apoiou a cabeça no peito dele, ouvindo os latidos de seu coração, sentindo seu calor. Sentindo a vida nele.
-Sabe de onde vens?-Não. Até agora não lhe disse nada, mas é bastante inteligente, e creio que já se imaginou uma parte. Mas não me sonda.-E o resto da família? Os viste?
-Só ao passar. Reservam-se. Até onde sei, não se molestam por coisas insignificantes como os enforcamentos.Isto último foi dito em tom amargo.Com as mãos sobre os ombros de Kady, manteve-a apartada.-Kady meu amor, tens fome? Meu pai, que assim o chamo, está cozinhando algo na fogueira do acampamento.-Ah, sim? -perguntou, de um modo que o fez rir.
-Talvez possas aprender algo -lhe disse, provocando-a - O não tem sertãs de cobre nem cozinhas a gás. O único que tem são uns ramos e um par de marmitas de ferro forjado, e...-Talvez insinuas que eu não sou capaz de cozinhar num fogo de acampamento? -disse, olhando-o ceñuda, até que advertiu que estava caçoando - Já me as pagarás por isso -disse pelo baixo enquanto se acercavam à fogueira, quando viu um cordeiro inteiro fincado numa estaca de ferro, esqueceu as provocações de Tarik.
-Cordeiro assado -disse, olhando o prato esmaltado que estava junto ao fogo - E kebabs, e.. Isso é baba ghanouj? -Quando Gamal lhe ofereceu um bocado de carne cortado do cordeiro, exclamou-: Ohhh, em que marinha a carne? Não, não me o diga. É...Tarik riu.
-Cri que vinha resgatar-me e não a trocar receitas.-Teria que ter deixado que te pendurassem.-Me terias sentido falta. Quem alumiaria tua vida se eu não estivesse cerca? -Olhou a Gamal - É formosa, verdadeira?
-Sim, é-o. E sabe cozinhar?-De maravilha.-Quantos filhos lhe deste?-Ainda nenhum.-Ah, isso é o que sucede quando se dilui o sangue árabe. Saem homens que não são homens.Isso fez rir a Kady e A Tarik.
Era uma atitude tipicamente antiquada julgar a um homem pelos filhos que era capaz de conceber.Por um momento, Gamal os observou em silêncio, depois se dirigiu a Tarik:-Dizes que és meu filho mas não posso recordar quem é tua mãe.Antes de que Tarik pudesse responder, Kady, com os olhos dilatados, exclamou:
-Então, é verdade: muitas mulheres poderiam ser as mães de teus filhos.Gamal estava servindo abundantes pratos para eles. Quando sorriu, as comissuras de seus olhos se enrugaram.
-Ruth Jordan -disse Tarik depois de um momento.-Mas eu nunca tenho... -disse Gamal, e sorriu-. Ainda que o desejei. É uma bela mulher, mas se és filho dela, então não é meu filho.Tarik olhou o prato que lhe entregava.
-Em realidade, não sou teu filho senão teu tataratataranieto, e se não fazes algo com Ruth, poderia deixar de existir.
-Entendo -disse Gamal, divertido - És um fabulador. Um urdidor de sonhos.
-Oh, sim -disse Kady-, É como Scheherazade. Teria que ter ouvido a mentira que me contou a respeito de um codicilo no testamento de Ruth.
O tom ligeiro estava destinado a cobrir o fato de que as palavras de Tarik a perturbavam, pois era algo no que não tinha pensado. Se Tarik tinha impedido a tragédia da família Jordan, que mudanças provocaria isso nos Jordan do século vinte? Se Ruth não tinha enviudado e se não se acostaba com Gamal, concebendo a um filho ao redor dos quarenta anos, de que modo afetaria isso a Tarik no século vinte?
Tarik a olhava como se estivesse lendo-lhe a mente.-Penso que alguém que vive em Lenda neste momento deve conhecer toda a história, porque é necessário que algumas coisas sucedam este ano -disse Kady, com força.Tarik olhou a Gamal acima do prato.
-Crês que poderia persuadir-te de que seduzas a Ruth Jordan?
-Depende.
-De que?
-De quanto queres que te pague. Sou pobre.Os dois homens riram, cúmplices, e Kady olhou a Tarik e disse:
- Não cabe dúvida de que é teu avô.Enquanto comiam, Tarik começou a relatar toda a história, desde o começo, e A Kady a maravilló comprovar que recordava cada palavra das que ela te tinha dito. Devia reconhecer, ademais, que não tinha deixado de mencionar tudo o relacionado com sua relação com Cole. Gamal moeu grãos de café e o preparou com a apaga dentro: era muito forte, era delicioso.Como a capacidade de Gamal para escutar parecia ilimitada, o relato de Tarik prosseguiu depois de findo o café.
Quando Kady bocejou, Tarik a fez apoiar a cabeça em seu regaço, Gamal estendeu um cobertor velho sobre ela e se dormiu.
Enquanto cochilava à luz do fogo, ouvindo as duas vozes gordas desses dois homens tão parecidos, sentiu-se bem. Num momento Tarik lhe fazia a Gamal perguntas com respeito a todos seus parentes e antepassados, como se também o fossem dele. Sorrindo, deu-se a volta, apartando a cara do fogo, acurrucándose contra o ventre morno e duro de Tarik, enquanto ele lhe acariciava o cabelo por trás da orelha e lhe passava as mãos pelas costas.
Uma vez mais, sentiu que estava onde tinha que estar, e sorriu compreendendo que a data e o lugar não tinham importância. Se um estava com a pessoa justa, estava no lugar correto.-Te amo -murmurou, tão sob que quase não pôde ouvir-se ela mesma.
Mas Tarik sim a ouviu, porque interrompeu um segundo as carícias, e Kady sentiram sob a bochecha como se tensionavam e depois se relaxavam os músculos do estômago. No entanto, não deu nenhum sinal que Gamal pudesse ver, e isso fez sorrir outra vez a Kady. "Disciplina", pensou, fechando os olhos. Durante anos, tinha-se disciplinado a si mesmo para ocultar seus verdadeiros sentimentos. Sorrindo, deixou-se afundar no sonho.
CAPÍTULO 29
Enquanto Kady dormia, Tarik e Gamal falaram toda a noite, e só quando amanheceu Kady se acordou, sintou-se e se esticou. E quando terminou de bocejar, viu que Tarik estava olhando-a com olhos tão ardentes que de repente, sua roupa lhe pareceu demasiado ajustada.Talvez Gamal também o viu, porque se escusou em silêncio, e quando ficaram sós Tarik a atraiu a seus braços e a beijou.Quando se apartou, olhou-a aos olhos com tanto amor que Kady se maravilló. Nenhum homem a tinha olhado assim, mas quiçá os olhos dele fossem um reflexo dos dela.-Arriscaste tua vida para proteger-me -sussurrou a mulher.
-Claro. Que outra coisa podia ter feito?-Voltar a trabalhar e deixar que me as arrumasse.
-E perder a uma mulher como tu? Capaz de ceder milhões porque não estava convencida de que lhe correspondessem?-Falando desse dinheiro teu, casemo-nos em condição de propriedade comum.Tarik riu.
-Ah, sim? Então queres casar-te comigo?Em resposta, beijou-o no pescoço.Mas Tarik a apartou para olhá-la, sério.
-Kady, está segura? E daí passa com tua Cole? E Gregory?
-Estou segura -respondeu - ame a Gregory. Só que tinha medo de não ter jamais a ninguém. Quanto a Cole...As mãos lhe apertaram os ombros.-Que passa com Cole?
Kady esteve a ponto de fazer um comentário engenhoso, mas os olhos do homem eram demasiado intensos.
-Cole poderia ter amado a qualquer mulher entre muitas e todas lhe teriam correspondido. Mas tu me fazes sentir como se eu fora à única à que podes amar. Penso que poderias compartilhar comigo costures que não compartilhas com nenhuma outra pessoa da terra.
Tarik começou a sorrir paulatinamente.-Sim, fazes-me sentir isso, como se te tivesse conhecido desde sempre e fizesses parte de mim. -Ainda sorrindo, jogou-se atrás para olhá-la - Não sou a pessoa mais fácil para conviver.
-Em sério? E eu que pensei que o eras... Tens um caráter tão regular, é tão fácil de conhecer, tão...
-Está bem, tenho algumas arestas ásperas.
-Eu as talharei, mais ou menos como quando talho algo formoso numa cebola.
Rindo, beijou-a de novo e depois lançou um grande bocejo.-Penso que tenho que acostarme. Não quererás vir comigo, não?
-Mmmm -disse, como si estivesse pensando-o. Poderia...-Que diabos é isso? -disse, alçando a cabeça e escutando.-Eu não ouço nada.-Parece um motor. Mais precisamente, um de dois cilindros. Kady olhou ao redor, para a casa dos Jordan que se via ao longe, as construções exteriores e o beiral. Eram novas, como deviam de sê-lo em 1873. -Não teremos sido transportados outra vez, verdade? -perguntou, um pouco em brincadeira, e de repente abriu grandes os olhos-:
¡Wendell! -sussurrou.Tarik se pôs alerta de imediato.-Que passa com ela?
-Eu... eh, esqueci dizer-te.Tarik a aferró dos ombros.
-Como é isso de que te esqueceste de dizer-me? Não quererás dizer que Wendell está aqui, verdade? Por favor, dime que não queres dizer isso.-Bueeno... -disse Kady, dando um passo atrás.
-Com a motocicleta? -perguntou Tarik, com os olhos como ascuas.Kady pôs os braços em jarras.-Eu tinha pressa, e ela me trouxe pela montanha e passou pela entrada por trás de mim. Talvez esperavas que detivesse a essa mole? Talvez tu possas enfrentar-te a mulheres como ela, mas o único que posso fazer eu, salvo assá-la, é dizer-lhe que me espere. E o fez, mas me esqueci dela e, te tens acostado com ela, com tua própria prima?Por um momento, Tarik olhou a Kady consternado, esforçando-se por entender sua lógica, mas se deu por vencido aos três segundos.
-Fica-te aqui -lhe ordenou-. Não te movas de aqui, me entendes?Quando se voltou para os estábulos, Kady o seguiu e teve que correr para atingí-lo.
-Que vais fazer? Talvez seria preferível que não atraias o atendimento sobre ti mesmo, porque poderiam pensar outra vez em enforcar-te. Quiçá deveria ir eu em teu lugar, e...Tarik se deteve e se voltou para ela.
-Ias dizer que conviria que eu fique aqui e espere, enquanto tu vais a um lugar onde os homens usam pistolas sujeitas com cintos aos quadris? Não crês que deveria deixar que tu acalmasses a minha corpulenta e enfurecida prima?Para Tarik era uma pergunta retórica, porque jogou a andar antes que Kady pudesse responder.
-Como sabes que está enfurecida? -pergunto Kady correndo junto a ele. Em realidade, sentia-se culpada por ter esquecido a Wendell.-Minha prima está sempre furiosa. Desde que nasceu. -Quando chegou aos estábulos, olhou-a - Como pudeste esquecer a Wendell? É como se um general esquecesse levar a seu exército consigo.
-Ou como se o dono do circo esquecesse às feras -musitó, enquanto Tarik começava a colocar o arreio a um grande cavalo negro, que fazia girar os olhos.Prudente, não entrou com ele no presépio.
-Quanto tempo levas montando cavalos? -lhe perguntou.-Não mudes de tema. Quero que me esperes aqui e que não te metas em nenhum embrulho enquanto me ausinto. Quando regresse com Wendell, voltaremos todos a Lenda.
-Se deteve um instante - Não terás trazido também a Luke e ao tio Hannibal, verdade?
-Não -respondeu, com doce sorriso-. Droguei a Luke e lhe deixei ao tio Hannibal comida no refrigerador. Não creio que tenha advertido nossa ausência.- a olhou para abaixo,
-Bem -disse Tarik montando, olhou-a para abaixo, com expressão severa-. Levo montando toda minha vida, Kady -lhe disse-, não te vás de aqui, por favor. Voltarei o antes que possa, mas Wendell não é fácil de manejar.
-O cavalo bailoteó um pouco e demorou uns momentos em controlá-lo-. Ah, e nunca me tenho acostado com Wendell -disse, e se marchou, em direção a Lenda, desde onde chegava o rugido da motocicleta de Wendell, que até Kady podia ouvir.Quanto traspuso a Linha Jordan, Kady se deu a volta para olhar aos cavalos.
-Procuras algo para montar?A voz que provia de atrás a sobressaltou. Deu-se a volta e viu a Gamal de pé nas sombras, com seus fortes braços cruzados sobre o peito. O primeiro pensamento de Kady foi que tinha ouvido as ordens de Tarik e que lhe iria com o conto.
-Não sei montar -disse, inocente-, e só estava olhando os animais.Gamal lhe sorriu e Kady soube que estava vendo uma imagem de como seria Tarik a essa idade: "nada mau", pensou.-Nesse caso, devo pensar que és a única mulher no mundo que faz o que lhe ordenam?
Kady lhe sorriu.-Que cavalo teria que me levar? Não posso deixá-lo ir-se só. Só o céu sabe o que lhe sucederia no povo.-Esta Wendell é bela?-Despampanante.Ainda que Gamal nunca tivesse ouvido o termo, entendeu seu significado.-Nesse caso, posso sugerir que cavalguemos juntos? Meu cavalo já está ensillado e pronto.
Pouco tempo depois, Kady estava montada por trás de Gamal.-Se te sujeitas forte, penso que porei muito zeloso ao jovem Tarik.
-Ah, sim? -disse Kady, rindo-. Assim?Apertou os braços em torno do homem e seus peitos se lhe apertaram contra as costas.
-Sim, assim mesmo -repôs ele sorrindo.Ao minuto seguinte avançavam pelo caminho.
CAPÍTULO 30
Mas Kady jamais chegou ao centro do povo onde, a julgar pelo ruído, Wendell estava dando uma demonstração do que podia fazer uma motocicleta do século vinte. Pediu-lhe a Gamal que a deixasse descer-se quando viu a dois meninos pequenos que caminhavam para o cemitério, com canas de pescar ao ombro.
-¡Aqui! -exclamou, com exagerado brío - Quero baixar-me aqui.Gamal deteve o cavalo de imediato; voltou-se com um sorriso em seu bonito rosto e manteve o braço rígido, para que Kady pudesse sustentar-se e baixar. Os meninos se tinham detido no caminho e contemplavam às duas pessoas a cavalo. Gamal disse algo em árabe ao menino moreno que, sem dúvida, era seu filho; depois, depois de uma cortês inclinação de cabeça e um sorriso a Kady, afastou-se.
Kady permaneceu um momento no custado do caminho oposto àquele em que se achavam os meninos e os três não fizeram mais que se observar. O jovem Tarik passou a olhada de seu amigo, Cole aos nove anos, a Kady, e outra vez a seu amigo, porque Cole e Kady se olhavam com grande intensidade.Passou entre eles um homem a cavalo e olhou a Kady com sorriso insinuante, mas, como ela não lhe fez caso, encolheu-se de ombros e se afastou.
Quando se foi, Kady cruzou a calçada, sem apartar a vista do menino loiro, que estava calado e imóvel, junto ao amigo de cabelo escuro.Com seus nove anos, Cole era um menino alto, e mostrava signos do homem que seria ao crescer, e os grandes olhos azuis e o cabelo aclarado pelo sol já indicavam o arrasadoramente guapo que seria.
Por um momento, Kady se limitou a contemplar ao menino, que era quase tão alto como ela. "Vai viver", pensou. Graças ao feito por Tarik, Cole e toda sua família viveria. E Cole poderia construir sua elegante casa e fazer o que pudesse para ajudar ao povo de Lenda.-Oi -disse, ao fim, sem tirar a vista de Cole, que se limitava a olhá-la como, se até então, nunca tivesse visto a uma mulher-. Ides pescar? Cole seguiu contemplando-a, em silêncio, e Tarik falou:- Por que estava cavalgando com meu pai?
Kady se voltou a olhá-lo e viu que era muito parecido a seu pai. Seu Tarik tinha a pele mais clara e quiçá suas facções não fossem tão redondas como as do menino, mas se via que estavam emparentados.-Estou aqui com um parente teu, que também se chama Tarik.O moço entornó o olho, suspicaz.
-Nós não temos parentes no país. Meu pai e eu estamos sós.-És a mulher mais guapa que vi jamais -disse Cole, rompendo o silêncio, por fim, e Kady se voltou a ele com um sorriso.
-Quem és? Para quem trabalhas? -lhe perguntou Cole.-Trabalhar? -perguntou, e fez uma pausa-. Ah, já entendo -disse, sabendo que se referia às casas de prostituição, tão numerosas depois da Linha Jordan. Era horrível que o garoto imaginasse que qualquer mulher desconhecida trabalhava numa dessas casas-. Não trabalho para ninguém. Sou cozinheira.Era uma tolice pensar que o menino pudesse recordar algo que ainda não tinha sucedido, mas uma parte dela esperava que...
-Não cozinhaste para mim -disse Cole, projetando para fora o lábio inferior, do modo que o tinha visto fazer de adulto.
-Sim, fí-lo -repôs, rindo-. Cozinhei-te uma rata.Ao ouví-la, Cole sofreu um ataque de riso e Kady o imitou, enquanto Tarik guardava silêncio e os olhava como se estivessem loucos.Cedendo a um impulso, Kady estreitou a Cole contra si e, nesse momento, toda indecisão desapareceu. Até esse momento, tinha-se perguntado se seu amor por Cole podia interpor-se em seu amor por Tarik. Se, tivesse tido a oportunidade, teria voltado a Cole. Mas sempre tinha sabido que não era mais do que um menino. Ainda que tivesse feito parte do sonho dele, no que era adulto, teve nele algo que não terminava de ser adulto.
Kady se apartou de Cole e o manteve a um braço de distância. AO longe, o ruído da motocicleta tinha cessado de repente e soube que cedo chegaria Tarik.-Escuta-me -disse, olhando a Cole aos olhos-. Não tenho muito tempo e preciso dizer-te algumas coisas. Tens a responsabilidade de cuidar este povo. Entendes-me?
Cole assentiu, sério, os olhos muito abertos.
-Lenda te pertence, e tens que o cuidar passe o que passe. Estas pessoas irão a ti, suas vidas dependem de ti. Nunca permitas que nada, nem ninguém te impeça cuidar deste povo. O-me prometes? Palavra de honra?
Cole assentiu de novo.
-Que mais? -disse Kady em voz alta, fazendo memória.Por que não se tinha preparado para este encontro? A sua esquerda ouvia o retumbar dos capacetes dos cavalos, E sabia, sem lugar a dúvidas, que era Tarik que vinha levar-se de volta a seu próprio tempo.-Sei feliz -se apressou a dizer - To mereces, e cuida a tua família, e saúda a tua avó Ruth de minha parte, e...Ao girar, olhou pelo caminho e o que viu a fez piscar. Tarik cavalgava para ela e, atirado na parte de adiante do arreio, ia o corpo inconfundível de Wendell.
Pelo modo em que pendurava, soube que estava inconsciente... se não morta.-Tenho que me ir -disse Kady, acercando-se a Tarik.Inclusive desde essa distância, soube que estava furioso.-Cole, casa-te com uma mulher que saiba cozinhar, e... e dá um banquete.
O banquete maior que tenha conhecido Colorado. E constrói uma mesquita para Tarik e seu pai, e...Interrompeu-se, correu a abraçar outra vez a Cole e o sentiu aferrarse a ela.
-Espero ter um filho igual a ti -lhe murmurou, depois o beijou na bochecha, olhou-o aos olhos, e recordou que o senhor Fowler lhe tinha dito que as minas estavam quase esgotadas-. Se precisares dinheiro -lhe disse, vasculhando-lhe os olhos-, procura a cara do velho.Quando viu que assentia como se tivesse compreendido, soltou-o e impulsivamente também abraçou a Tarik.
-Sei bom com Ruth -lhe sussurrou-. Será uma maravilhosa esposa para teu pai.Beijou-o também a ele, soltou-o e jogou a correr para o cavalo que se aproximava rapidamente.
Quando Tarik a atingiu, quase não minorou a marcha do cavalo, mas se esticou para abaixo com a mão tendida para ela. Kady a aferró pôs um pé no estribo, e balançando-se para acima, subiu-se por trás dele.
-O filho de teu avô -lhe disse a Tarik no ouvido, enquanto lhe rodeava a cintura com os braços e indicava com um gesto aos dois meninos parados ao custado do caminho, os dois olhando-os boquiabiertos.
Tarik só jogou uma olhada aos meninos e espoleó ao cavalo. Enquanto se afastavam, Kady girou para ver aos meninos e, alçando uma mão, soprou-lhes um beijo com as pontas dos dedos.-Vos quero -lhes gritou, sem estar segura de se a ouviriam, mas seguiu saudando com a mão até que o caminho fez uma curva e já não pôde vê-los.
Apertando os braços ao redor de Tarik, apoiou a cabeça nas costas dele e se manteve assim enquanto passavam ante o cemitério, pelo caminho que levava à Árvore do Enforcado. Queria perguntar-lhe por Wendell, estendida sobre o pescoço do cavalo, ainda inconsciente, ao que parece, mas iam demasiado rápido para falar.
Quando chegaram ao pé da montanha, o cavalo estava sentindo o esforço de levar a três pessoas sobre o lombo e um pouco custa acima, e Tarik desmontou, levando ao animal à reata, avançando o mais rápido possível.
-Ela está bem? -lhe perguntou Kady, um pouco preocupada porque Wendell ainda não se tinha movido.A enorme mulher jazia de bruços sobre o arreio, coisa que devia ser melhor do que ter o pomo contra o estômago, e Kady ia à grupa.
-Está bem -disse Tarik, pareo, atirando das rédeas para fazer que o cavalo passasse sobre uma rocha solta.
-Teve um acidente?-Sim, encontrou-se com meu punho -disse Tarik com o queixo rígido.
-Oh -disse Kady, e o olhou fazendo uma careta-. Vais obrigar-me a arrancar-te cada palavra? Que sucedeu?
-O que sucedeu é que Wendell queria ficar-se. Agrada-lhe uma época na que os homens levam revólveres de seis tiros. Disse que esses eram homens para valer, e não como os corredores de bolsa e os banqueiros, que não eram nada autênticos.-Então, golpeaste-a -disse Kady em voz fica.
-¡Não me olhes assim! -exclamou Tarik. Dar-lhe um golpe foi o único modo que se me ocorreu para fazê-la voltar. Por experiência, sei que nunca atende razões, de maneira que não fazia sentido raciocinar com ela, por isso tive que o fazer.Kady não imaginava que algo ia provocar-lhe simpatia por Wendell, mas assim foi. Ela sabia muito bem o que era querer estar em algum lugar onde um não podia estar.
Quando chegaram à rocha com os petroglifos, estava à vista a abertura de regresso à Lenda do século vinte. Sem deter-se, Tarik fez passar ao cavalo com todos eles pela abertura e saíram exatamente ao lugar pelo que tinham entrado, só que cem anos depois.
Tarik ajudou a Kady a desmontar, depois baixou do arreio o corpo de Wendell. Estava voltando em si e quando viu a Tarik se pôs a forcejear.-¡Maldito seja! -gritou - Me agradava estar aqui. Acho-me a gosto com esta gente. Eu...-Não é teu lugar -disse Tarik com acalma, sujeitando-a com firmeza pela cintura e movendo a cabeça a um lado quando ela tentou arranhá-lo-. Não sabes que classe de dano poderia causar à história se ficasses. E há doenças, mas não há hospitais, e...-Cala-te -lhe gritou-. Cala-te.
Depois disso, Wendell pareceu perder toda a energia; inclinou-se adiante e se jogou a chorar Tarik a soltou e foi para o cavalo.
Kady tinha estado observando tão atenciosamente a Wendell que não tinha advertido que a porta ao passado seguia aberta, mas Tarik sim e deu uma palmada à grupa do cavalo, enviando ao animal de volta a seu dono.
-Estais prontas para ir-nos?Mais tarde, Kady não soube por que fez o que fez, mas aprendeu que essa porta tinha vontade própria. Quando lhe tocava passar a ela, abriu-se. Depois, quando tinha que passar Tarik, só se abriu para ele. Agora que tinham regressado, o cavalo voltou a seu próprio tempo e, com todo motivo, a porta devia fechar-se. No entanto, manteve-se aberta de par em par, como uma boca aberta, como se quisesse algo mais... a alguém mas.
Tarik se tinha interposto entre a desolada Wendell e a entrada e, sem dúvida, esperava que as duas mulheres começassem a baixar, para seguir depois delas. Kady sabia que Tarik não moveria uma pestana até que Wendell se tivesse afastado da entrada.Voltando-se, Kady começou a baixar, mas ao fazê-lo passou junto a Wendell e, com dissimulo, deu-lhe um forte puxão de cabelo.
Não pôde menos que a adolhar porque não gritou para do que Tarik se inteirasse do que tinha feito Kady. O que fez foi olhá-la com ar interrogativo e ao segundo seguinte Kady se tropeçou de tal modo que caiu rodando pelo caminho. Como esperava, Tarik foi correndo depois dela, e quando a atingiu, os dois viram que Wendell se zambullía pela abertura. Quanto passou, a porta se fechou com um golpe contundente.
Ao instante, Tarik soube que Kady tinha ajudado a Wendell a escapar e se voltou a ela com uma expressão como se fosse gritar-lhe. Mas quando viu o ar de desafio de Kady, passou seu enfado e sacudiu a cabeça, exasperado. Vais desafiar-me em todo momento?-Por suposto.-Bem -disse, e rodeando-a com os braços, beijou-a - Sucedeu para valer? -sussurrou - Ou o imaginei tudo?
-Não o sei. Penso que teremos que ir ver como está Lenda para saber se mudou algo.
-Não, não me refiro a isso -disse em voz suave-. Referia-me a nós. Segues querendo casar-te comigo?-Sim, com todo meu coração.
-Sem pensar-te melhor? Nem sequer com respecto... a ... ?Não podia pronunciar as palavras, mas ela soube a quem se referia.-A Cole? Primeiro a beijou e depois assentiu.
-Me alegro de tê-lo visto como menino, pois assim é como o recordarei sempre. -Com os braços em torno do pescoço de Tarik, apoiou-lhe a cabeça no ombro-. Agora estou segura. Estou segura de que és o homem ao que quero, o que amei durante tantos anos.
Não lhe perguntou o que queria dizer com isso porque sabia que já o averiguaria, porque desde esse momento tinham toda uma vida para compartilhar.
-Vêem, habibi -lhe disse - Vamos a casa.-Sim -respondeu Kady, tomando-lhe a mão, e começaram a baixar junto à montanha.
EPÍLOGO
Nem Kady nem Tarik estavam preparados para o recebimento que lhes brindou Lenda enquanto caminhavam entre as árvores. As casas destruídas tinham sido consertadas e, em lugar do povo abandonado do que tinham saído o dia anterior, tinha um pequeno e bonito povo de turistas, com restaurantes e lojas de presentes.
Cada edifício tinha sido renovado num estilo muito similar ao que tivesse tido em 1873 e, até onde podiam ver, tinha-se feito uma tentativa de recrear o povo dos sonhos de Cole.Tomados da mão, Kady e Tarik entraram ao povo em silêncio, com os olhos engrandecidos olhando todas as coisas que tinham mudado.
O letreiro sobre o que em outro tempo foi um arruinado e velho edifício, ao que Cole considerava a biblioteca, agora dizia que se tratava da Sociedade Histórica. A igreja tinha belos vitrais nas janelas e o solar dos Jordan estava convertido em museu. Na encruzilhada tinha três hotéis que tinham sido feitos sobre a base de vários edifícios.Por todas partes tinha turistas, sobretudo famílias com meninos, que exclamavam:- Vêem a ver isto. Olha isto. ¡Papai! ¡Não vais poder crê-lo!
-É um povo museu -disse Kady, maravillada, contemplando a reprodução de uma loja.Junto a ela tinha um salão para jogos de casualidade, e afora, um homem com colete de cetim.
-Um museu de fantasia -disse Tarik, divertido, pois esse povo era uma fantasia tanto como o era o de Cole. Não tinha ruas bordeadas de bordéis nem mineiros bêbados cambaleando-se por aí, nem ruas cheias de barro e de esterco de cavalo.
-Me pergunto se aqui saberão o que lhe sucedeu à família de Cole -disse Kady, jogando uma olhada para o edifício da Sociedade Histórica. -E eu me pergunto qual será minha situação financeira -disse Tarik, com o entrecejo tão franzido que Kady riu.
-Se a história dos Jordan mudou tanto, talvez já não sejas rico. Quiçá tenhas que conseguir um emprego, como todos os demais.Tarik não riu.-Creio que farei uns telefonemas. Nos encontraremos aqui, dentro de uma hora. Deu-lhe um rápido beijo na bochecha e se encaminhou ao primeiro hotel. De imediato, Kady foi para o antigo edifício da biblioteca, mas quando viu que tinha um passeio ao lar dos Jordan cada quinze minutos, foi pelo caminho para a casa.
Uma hora depois, quando se encontrou com Tarik, tinha muito que lhe contar: que Cole se tinha casado com uma tal señorita Kathryn de Long, uma das maiores chefas de cozinha do século dezenove, e que ela tinha dado um banquete do que ainda se falava, cem anos depois.
Sentando-se frente a Tarik a uma mesa com toalha de mesa a quadros vermelhos e brancos, estendeu uma meia dúzia de folhetos que tinha comprado, referidos à Lenda atual.-Mas isto pode esperar -disse-. Dime, ainda és rico? Tarik lhe dedicou um sorriso torto.
-Nos vai bastante bem, graças. Que descobriste?-Prefiro ouvir o que descobriste tu. Que lhe passou a Wendell?-O tio Hannibal ainda vive aqui. Ao que parece é dono da metade das atracções e as pessoas que trabalham aqui o estimam. Tem um filho, Luke, que trabalha como advogado em Denver e se ocupa dos assuntos legais de Lenda.
-Tarik se inclinou para ela-. Mas não tem filha, e nunca a teve. -se reclinou-. Toca-te a ti.Contou-lhe o relacionado com Kathryn Long e seu sucesso como cozinheira.-E... -disse, esticando as palavras para a pausa dramática-, espera a que te conte o resto sobre tua família Jordan. -Empurrou para ele uno dos folhetos, que tinha por título Jordan, na tampa-No dorso há uma árvore genealógica. Depois de ler um momento, Tarik levantou a vista para ela:
-Interessante.-Sim, muito. Mas... -Interrompendo-se, voltou-se para a família sentada ante a mesa vizinha-. Poderia dizer-me se foi achada a mina Lost Maiden?
-Não, que eu saiba -disse o homem, e olhou à esposa - E tu, carinho? Formularam-lhe à pergunta à metade dos presentes no pequeno restaurante, a todo o pessoal, e todos disseram que não tinha sido achada, e então Kady se voltou para Tarik.
-Penso que a encontrou Cole -lhe sussurrou.
-Que sabes a respeito da Lost Maiden que não me tenhas contado?-Antes de ir a Lenda pela primeira vez, tinha-se descoberto junto a uma formação rochosa que parecia a cara de um ancião, e...
-¡Que?! -gritou Tarik, e depois se acalmou - Por que não me o disseste?-Não tens suficiente dinheiro? -repôs, desagradada.Tarik não fez caso da pergunta
.-Que crês que estava tratando de encontrar o tio Hannibal aqui?-Não tenho idéia. Estaria procurando...?
Interrompeu-se, ao ver que Tarik passava com gestos furiosos as páginas das guias e se detinha numa referida às minas. Dando a volta ao folheto, empurro-o para Kady. Ali, com o fundo de uma foto da mina Amaryllis (obviamente rebatizada por Cole), tinha uma formação rochosa que tinha a forma da cara de um velho.Tarik se reclinou na cadeira e bebeu um bom trago de água do copo que tinha diante.
-Suponho que tu lhe disseste a Cole onde encontrar a mina-disse, e Kady assentiram.-Lhe disse que, se tinha problema, tinha que procurar cerca dessa pedra.Esperou a ver que dizia Tarik ao respecto. Por muito que o amasse, tinha faceta de sua personalidade que não conhecia. Enfadaria-se de que ela, tendo um segredo tão grande, se o tivesse dado a outro?
Mas Tarik esticou a mão sobre a mesa e tomou a de Kady.-Não creio que tudo isto estivesse aqui de não ser por ti. Não me refiro somente a que impediste que Ruth fechasse o povoado, senão também ao dinheiro. Teu Cole deveu de precisar dinheiro, e pelo que me diz minha gente em Nova York, e pelo que vejo aqui, usou-o com sagacidade.
-Sim, creio que assim foi. E creio que foi feliz. Num dos livros diz que o nome Lenda se deve a que é um lugar de beleza lendária. Melhor do que a verdade, não te parece?-Quiçá. Mas prefiro a verdade. Nos casamos neste povoado? Parece que ainda me pertence boa parte dele.Kady riu.-Sim, casemo-nos aqui.-Que queres como presente de casamentos? -lhe perguntou, com expressão zombadora.
-Mão livre com a cozinha e o jardim de tua casa de Connecticut, um par de meninos, uma lua de mel em Paris com uma viagem a Dehillerin para comprar panelas de cobre, e. Tarik ria.-Teus desejos são ordens, habibi. E agora, que queres para almoçar?Obediente, olhou o menu, ainda que não o via. "Graças, Ruth -pensou - Graças a ti e a Cole, e a todo o povo de Lenda. Eu não estaria onde estou hoje se não fora por vocês. Graças."
Jude Deveraux
O melhor da literatura para todos os gostos e idades