Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LENINGRADO p.2
LENINGRADO p.2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 LENINGRADO / Parte II

 

 

 

 

 

2

Certa noite, uma semana depois, Tatiana acordou sentindo que afagavam o seu rosto. Ela queria abrir os olhos, mas parecia tanto com um sonho, ela se sentia tão drogada e cansada que manteve os olhos fechados. Um homem com mãos grandes e hálito de vodca acariciava o seu rosto. Ela só conhecia um único homem de mãos grandes. Olhos ainda fechados, ela sabia que seu ritmo respiratório mudara de alentos sonolentos para sons superficiais, irritantes. Ele parou de tocá-la.

– Tatia.

Ela queria tanto que a ilusão continuasse. A ilusão de ser tocada por Alexander numa noite de agosto. Tatiana abriu os olhos.

Era Alexander. Ele não trazia o seu quepe. De novo aqueles seus olhos adocicados; até no escuro ela podia identificá-los.

– Acordei você? – Ele sorriu.

Ela se sentou.

– Sim. Eu acho. – Ela se esticou e tocou o seu braço. – Parece que estamos no meio da noite.

– Estamos – ele disse. – Ele olhou o cobertor, e ela olhou o alto de sua cabeça negra. – São três da manhã.

Eles falavam num sussurro.

– O que aconteceu? Você está bem?

– Estou bem. Só queria ver se você estava bem. Fico pensando... em você aqui sozinha. Está triste? Solitária?

– Sim, sim – Tatiana disse. – Ela sentiu o bafo de vodca. – Você anda bebendo?

– Hmm.

Seus olhos errantes estavam algo fora de foco.

– Pela primeira vez, em muito tempo. Em muito tempo. Tirei uma folga hoje à noite. Marazov e eu saímos, bebemos um pouco. – Ele parou. – Tatia...

O coração disparado, ela esperou sem fôlego. As mãos dele estavam no cobertor. As pernas dela debaixo do cobertor.

– Shura – ela disse.

De repente, por um instante, sentiu-se feliz. Da mesma forma que se sentia ao sair da fábrica em Kirov, virar a cabeça e ver o sorriso dele. Mais feliz.

Alexander disse:

– Não encontro as palavras certas. Eu pensei que depois de alguns drinques...

– Você está dizendo as palavras certas – Tatiana disse a ele.

– O quê?

Alexander pegou as mãos de Tatiana e as colocou em seu próprio peito. A sua cabeça continuou curvada, ele nada disse.

O que fazer? Tatiana era uma criança. Qualquer outra menina saberia o que fazer. Ela não sabia nem o que podia ser a coisa certa.

Sou como uma recém-nascida. Como eu gostaria de saber o que fazer neste momento com ele. Na minha cama de hospital, minhas costelas enfaixadas, minha perna engessada, sim, mas sozinha com ele.

O rosto de Dasha apareceu entre eles, como se a consciência de Tatiana não permitisse que o seu coração tivesse nem mesmo um momento de felicidade roubada. Devia ser assim, ela disse a si própria, querendo desesperadamente levantar a cabeça e beijá-lo. De repente evaporou-se o rosto de Dasha. Tatiana inclinou-se em sua direção e beijou-lhe o cabelo. Cheirava a sabonete e fumaça. Alexander levantou os olhos, estavam a poucos centímetros um do outro; ela cheirou o seu delicioso hálito de vodca, o hálito delicioso de Alexander.

– Estou tão feliz por você ter vindo me ver, Shura – ela sussurrou, sentindo uma dolorosa pontada na parte inferior do corpo.

Alexander inclinou a cabeça e a beijou com força nos lábios. Ele soltou as mãos dela, e Tatiana passou os braços ao redor do seu pescoço, pressionando o seu corpo contra o dele. Febris, eles se beijaram... eles se beijaram como se os seus corpos perdessem fôlego.

A dor na barriga ficou difícil de aguentar. Tatiana abriu a boca e gemeu. Alexander tomou o seu rosto nas mãos.

– Você, doce criatura – ele murmurou. – Você é a coisa mais doce, não sei o que fazer, Tania.

Ele beijou seus lábios e os lambeu, beijou seus olhos, suas faces e seu pescoço. Tatiana gemeu outra vez, ainda segurando nele; ela sentia se queimar por dentro. Os lábios dele eram tão insistentes e famintos que Tatiana, de repente, não podendo respirar ou sentar, começou a escorregar para baixo na cama. Alexander a manteve no alto. Tatiana sentia suas mãos, que se mexiam suavemente para cima e para baixo em suas costas quase expostas, onde a camisola se abria. Devagar ela desamarrou os laços da camisola. Alexander estava todo vestido, sentado na cama, beijando-a enquanto tirava a roupa dela. Tatiana respirava ofegante, trêmula.

Ele se afastou de seu rosto, ainda segurando-a, ainda sussurrando. Seus olhos ardiam.

– Tania, você é muito para mim... não posso tê-la, nem em pequenas doses, nem em grandes doses, não aqui, não na rua, em lugar algum.

Suas mãos se mexiam ao redor para mantê-la bem acima de suas costelas enfaixadas.

– Shura – ela sussurrou, na voz toda a sua dolorida fraqueza. – O que acontece comigo? O que é isto?

Alexander colocou as mãos em forma de concha nos seios de Tatiana e os acariciou. Ele abriu as palmas das mãos e massageou seus mamilos em círculos. Tatiana gemia. Ele massageou ainda mais forte. Afastou-se um pouco dela e, olhando os seus seios, ele murmurou:

– Oh, meu Deus... Olhe só para você... – Tatiana observava ele inclinar-se ao seu seio, pôr um mamilo na boca, sugá-lo, enquanto massageava o outro mamilo com os seus dedos. Ele então sugou o outro mamilo. Só de olhar e sentir os lábios de Alexander em seus mamilos, quase enlouquecia Tatiana. Com as mãos agarradas à cabeça dele, ela gemia tão alto que ele afastou-se e de leve colocou a sua mão na boca dela.

– Shh – ele sussurrou. – Vão ouvir você lá fora. – A mão direita de Alexander não parava. Abrindo-a mais, com o polegar e o dedo mindinho ele friccionava os mamilos. Tatiana ainda gemia alto. Com a mão esquerda, ele apertou um pouco mais a sua boca.

– Shh – ele disse, sorrindo sem folego.

– Shura, eu vou morrer.

– Não, Tatia.

– Me deixe sentir sua respiração...

Ele respirou na boca de Tatiana, ela o beijou ardentemente, as mãos nos cabelos dele. Ela delirava com a fricção e a pressão dos dedos de Alexander em seus seios. Gemia com tal abandono que ele se afastou. Sentada sob a luz azul, Tatiana, seios à mostra, nua até a cintura, o olhava, resfolegante. Suas mãos seguravam com firmeza o lençol hospitalar.

– Tania – Alexander disse, olhando-a com admiração e desejo. – Como você pode ser tão inocente nestes tempos e na sua idade? Como você pode ser tão inocente?

– Sinto muito – ela disse. – Eu gostaria de saber mais.

Ruborizado como ela, ele a trouxe para mais perto.

– Saber mais?

– Ter mais experiência. Eu só...

– Você está brincando, não? – Alexander sussurrou. – Você não me entende? É a sua inocência que me deixa louco! Você não percebe isso?

Com as mãos, ele a acariciava.

– Não gema – ele disse. – Serei preso.

Tatiana queria que ele... mas não tinha coragem de dizer. Ela puxou suavemente a cabeça dele para baixo. A única coisa que ela conseguiu dizer num sussurro afetado foi:

– Por favor...

Sorridente, ele foi fechar a porta do quarto. A porta não fechava. Ele pegou o rifle e o colocou contra o trinco.

Ele voltou à Tatiana, a endireitou na cama, cobriu a sua boca, curvou-se aos seus seios e sugou os seus mamilos até que ela quase desmaiasse, trêmula o tempo todo, gemendo na palma da mão dele.

– Meu Deus, tem mais? – ela sussurrou, ofegante.

– Você já teve mais, alguma vez? – Alexander perguntou, também ofegante.

Tatiana olhou-o direto em seu rosto. Contar-lhe a verdade? Ele era um homem. Como ela podia contar a ele? Não queria mentir. Não disse nada. Ele sentou-se, sentando-a também.

– Houve alguma vez? Me diga a verdade. Por favor. Eu preciso saber. Houve alguma vez?

Ela não queria mentir a ele.

– Não – ela disse. – Não houve.

Com os olhos brilhando de admiração, desgosto, e desejo, Alexander abaixou a cabeça e disse:

– Oh, Tania, o que vamos fazer?

– Shura... – Tatiana sussurrou, esquecendo tudo mais do universo. Ela tomou as mãos dele e as colocou em seus seios.

– Por favor, Shura, por favor.

Alexander, com cuidado, passou suas mãos dos seios para as pernas dela.

– Aqui não podemos.

– Onde então?

Ele nem mesmo podia olhar para ela.

Tatiana percebeu que ele não tinha uma resposta.

– E você? – ela disse, quase chorando. – Você não quer mais? Não precisa de alguma coisa?

– Meu Deus, como eu quero. – Sua voz era rouca.

– O que é? O que eu posso fazer?

Ele sorriu de leve e sussurrou:

– O que você oferece?

– Não tenho ideia.

Timidamente, Tatiana tocou a coxa de Alexander.

– Mas eu faço qualquer coisa. – Ela beijou-lhe o pescoço. – Qualquer coisa – ela sussurrou. – Você me diz e eu faço.

Ela mexeu a mão um pouco mais para cima. Seus dedos tremiam. Agora era Alexander que gemia. Ele pegou-lhe a mão e disse:

– Tania, espere.Você quer assim?

– Eu não sei. – Ela gemeu de volta lambendo os seus lábios. – Eu quero de qualquer...

De repente a porta mexeu e a luz entrou no quarto. Ouvia-se do lado de fora a voz de uma enfermeira.

– Tatiana, você está bem? O que há com esta porta?

Tatiana rápida, cobriu-se com a sua camisola, Alexander foi pegar o seu rifle, acendeu a luz do quarto e abriu a porta.

– Está tudo bem – ele disse todo formal. – Só vim dar boa noite a Tatiana.

– Boa noite? – A enfermeira gritou. – Você é idiota? São quatro da manhã. Não é hora de visitas.

– Enfermeira! Você está fora de si – disse Alexander, levantando a voz. – Sou um Tenente do Exercito Vermelho.

Bem mais calma, a enfermeira disse:

– Eu ouvi gritos, pensei que ela estava sofrendo.

– Estou bem – disse Tatiana, a voz toda gutural. – Estávamos rindo.

– E eu já ia embora – Alexander disse.

– Você vai acordar os meus outros pacientes – a enfermeira disse.

– Boa noite, Tatiana – Alexander disse, olhos fixados nela. – Espero que sua perna melhore.

– Obrigada, Tenente – Tatiana disse. – Volte logo.

– Mas não às quatro da manhã – a enfermeira balbuciou, indo examinar Tatiana.

Pelas costas da enfermeira, Alexander com os dedos nos lábios mandou um beijo à Tatiana. E foi embora.

Não dava mais para dormir naquela noite, ou na manhã seguinte. Tatiana pediu a Vera que lhe desse dois banhos, e, de forma obsessiva, passou o dia escovando os dentes e a língua para ter o hálito limpo. Não havia comido nada. Só bebera água, embora à tarde tenha beliscado um pouco de pão do almoço.

Tatiana havia pensado que seria invadida pela culpa, que a força da consciência a deixaria incapaz de enfrentar a si mesma e os seus pensamentos. Mas isso não aconteceu. A única coisa que ela continuava revivendo eram os minutos daquela noite com Alexander sobre seus seios, sobre seus lábios.

Nada na vida anterior de Tatiana a tinha preparado para Alexander.

Havia escola, e havia Quinta Soviet, e havia Luga. Em Luga, Tatiana tivera muitos amigos e muitos intermináveis verões de bobas aventuras. Em Luga, nada houvera, só a despreocupação da infância, e em cada passo daquele período havia Pasha, nos jogos e nos dias de Tatiana.

Não que Tatiana não percebesse às vezes, de forma passageira, que um ou outro amigo de Pasha a olhava com certa insistência ou dela se aproximava muito. É que ela própria nunca havia se fixado em ninguém. Até Alexander aparecer.

Ele era novo. Transcendentalmente novo. E memorialmente novo. Desde o princípio, ela pensou que a instantânea familiaridade entre os dois se baseava nas coisas que ela entendia: compaixão, empatia, afeto, amizade. Dois que se juntam ruidosamente. Que precisavam sentar um perto do outro no bonde, encontrar-se, fazer o outro rir. Precisavam um do outro. Precisavam de felicidade. Precisavam da juventude.

Agora, porém, Tatiana não podia acreditar no extraordinário desejo que sentia por ele. A sufocante necessidade que tinha dele. Simplesmente não podia compreender aquilo. As pontadas no baixo ventre não cessaram ao longo do dia, enquanto ela tomava banho e escovava os dentes e escovava os cabelos.

Naquela noite, antes que Vera fosse embora, Tatiana pediu-lhe um batom.

Quando Dasha, Alexander e Dimitri foram visitá-la, Dasha deu uma olhada à Tatiana e disse:

– Tania, eu nunca vi você de batom. Olhe só os seus lábios.

Dasha disse isso como se percebesse pela primeira vez que Tatiana, de fato, tinha lábios.

Dimitri aproximou-se, sentou-se na cama, e disse sorrindo:

– Sim, olhem só.

Só Alexander ficou em silêncio. Tatiana não podia interpretar a sua expressão porque não podia ela própria levantar os olhos. Ela entendeu que a consequência da noite passada seria sua completa incapacidade de jamais olhar para Alexander em público outra vez.

Ficara ali pouco tempo. Alexander levantou-se e disse que tinha que ir embora. Tatiana, sentada na cama, catatônica, ouviu uma batida na porta e, em seguida, Alexander entrou, fechando-a. Ela se endireitou. Ele se aproximou a passos largos, sentou-se na beira da cama e, num gesto terno, possessivo, tirou o batom dos lábios de Tatiana.

– O que é isso? – ele perguntou.

– Todas as outras meninas usam batom – Tatiana disse, rapidamente limpando a boca, sem fôlego diante dele –, incluindo a Dasha.

– Bem, eu não quero que você ponha qualquer coisa nesse seu rosto encantador – ele disse acariciando suas faces. – Só Deus sabe, você não precisa disso.

– Tudo bem – ela disse, limpando a boca. Com a cabeça no travesseiro, ela ergueu seus olhos, e seus lábios aguardavam expectantes e sinceros para ele.

Alexander estava calado.

– Tania – ele por fim disse com um grande suspiro –, sobre a noite passada...

Ela gemeu.

– Tudo bem – ela disse em voz rouca.

Segurando na manga de Alexander, ela esticou-se e com os dedos contornou os lábios dele.

– Shura...

Alexander desviou o rosto e levantou-se. Já não brilhavam os seus olhos. Tatiana olhou para ele aturdida.

– Sinto muito sobre a noite passada – ele disse friamente. – Eu bebi demais. Eu me aproveitei de você

– Não – ela disse – sacudindo a cabeça.

Ele assentiu.

– Sim. Foi um erro terrível, não devia ter vindo aqui. Você sabe disso melhor do que eu.

Tatiana, sem palavras, sacudiu a cabeça.

– Meu Deus, eu sei, Tania – disse Alexander, seu rosto contrito. – Mas vivemos uma vida impossível, onde podemos...

– Aqui mesmo – ela sussurrou, muito vermelha, não olhando para ele.

A enfermeira entrou para checar Tatiana, olhando de soslaio para Alexander. Os dois ficaram em silêncio até ela sair do quarto.

– Aqui? – Alexander disse – Com as enfermeiras lá fora? Quinze minutos aqui é o que você quer?

Tatiana não respondeu. Ela se sentia como se tivesse ficado cinco minutos com as enfermeiras dentro do quarto. Seus olhos permaneceram baixos.

– Muito bem, e depois, o que acontecerá? – Alexander disse dando um pesado suspiro. – Como fica para nós? – fez uma pausa. – Como fica para você?

– Eu não sei – ela disse, mordendo o lábio para não chorar. – E como fica para todos nós?

– Todos transam nos becos, apoiados na parede! – Alexander exclamou. – E nos bancos de jardim, nas barracas militares, em apartamentos comunitários, os pais deitados no sofá! Ninguém mais divide a cama com Dasha. Tampouco com Dimitri. – Ele desviou o olhar. – Todos não são você, Tatiana.

Ela se virou de lado afastando-se dele.

– Você merece mais que isso.

Ela não queria que a visse chorando.

– Eu vim aqui me desculpar com você e dizer que isso não acontecerá outra vez.

Ela fechou os olhos evitando tremer cega por um momento.

– Tudo bem.

Alexander deu a volta ao redor da cama para ficar na frente dela. Ele não soltara o seu rifle. Tatiana limpou o rosto.

– Tania, por favor não chore – ele disse emocionado. – Ontem à noite eu vim aqui pronto para sacrificar tudo, incluindo você, para satisfazer o desejo que me consome desde o dia em que nós conhecemos. Mas Deus estava olhando por você e Ele nos deteve, e, mais importante ainda, ele me deteve, e eu, no cinzento da manhã estou menos confuso... – Alexander fez uma pausa. – Embora ainda mais desesperado por você. – Ele respirou fundo, olhando o seu rifle.

Tatiana ficara sem voz. Alexander disse:

– Você e eu... – então interrompeu sacudindo a cabeça. – Não é a hora certa para nós.

Ela ficou de costas outra vez, colocando o braço sob o rosto.

A hora, o lugar, a vida.

– Você não poderia ter pensado nisso antes de ter vindo aqui? – ela disse. – Você não poderia ter tido esta conversa consigo mesmo na noite passada?

– Não posso ficar longe de você. Ontem à noite eu estava bêbado, mas esta noite estou sóbrio e sinto muito.

Lágrimas asfixiavam a sua garganta, Tatiana nada disse.

Alexander foi embora sem tocá-la.

3

Luga fora queimada, Tolmachevo caíra, os soldados do general alemão Von Leeb haviam cortado a linha ferroviária de Kingisepp-Catchina e, apesar dos esforços de centenas de milhares de voluntários cavando trincheiras sob fogo de morteiro, nenhuma das linhas de frente aguentaria muito tempo. As ordens eram para não entregar a ferrovia, mas a ferrovia foi entregue. E Tatiana continuava no hospital incapaz de andar, incapaz de segurar as muletas, incapaz de ficar em pé com a sua tíbia quebrada, incapaz de fechar os olhos e não ver nada, só Alexander.

Tatiana não conseguia livrar-se da dor interior. Não conseguia apagar a chama íntima.

Em meados de agosto, poucos dias antes de Tatiana voltar para casa, Deda e Babushka foram visitá-la para lhe contar que estavam deixando Leningrado.

Babushka disse:

– Tanechka, somos muito velhos para ficar na cidade durante a guerra. Jamais sobreviveríamos aos bombardeios ou aos combates, ou a um cerco. Seu pai quer que deixemos a cidade e ele tem razão, precisamos ir embora. Estaremos melhor em Molotov. Seu avô foi designado a um bom posto de professor e durante o verão ficaremos em...

– E a Dasha? – Tatiana interrompeu esperançosa. – Ela vai com vocês, não?

Deda disse que Dasha não deixaria Tatiana abandonada.

Não é a mim que ela não pode abandonar, pensou Tatiana.

Deda disse que quando Tatiana tirasse o gesso da perna, ela, Dasha e talvez a prima Marina iriam para Molotov.

– Tirar você daqui agora fica muito difícil com uma perna quebrada – concluiu Deda.

Sim, Tatiana pensou, sem Alexander para me carregar, fica difícil mesmo.

– A Marina então fica em Leningrado também?

– Sim – Deda respondeu. – Sua tia Rita está muito doente, e o tio Boris está em Ichorsk. Perguntamos se ela queria vir conosco, mas ela disse que não podia deixar a mãe no hospital e o pai, enquanto ele se prepara para combater os alemães.

O pai de Marina, Boris Razin, era um engenheiro em Ichorsk, uma fábrica bem parecida com a de Kirov, e enquanto os alemães dela se aproximavam, os trabalhadores, nos intervalos da fabricação de tanques e projéteis de artilharia e lançadores de foguetes, se preparavam para a batalha.

– A Marina devia ir com vocês – disse Tatiana. – Ela... – Tatiana tentou pensar uma descrição leve. – Ela não reage bem sob pressão.

– Nós sabemos – Deda disse. – Mas como sempre são os laços e elos de amor e família que impedem as pessoas de se salvarem a si próprias. Sorte a nossa, sua avó e eu somos os nossos próprios elos. Eu não diria só elo, mas correntes. – Ele sorriu a Babushka.

– Agora, lembre-se, Tanechka – disse Babushka acariciando o cobertor – Deda e eu amamos muito você. Você sabe disso, não sabe?

– Claro, Babushka – disse Tatiana.

– Quando você vier a Molotov, vou lhe apresentar a minha boa amiga, Dusa. Ela é velha, muito religiosa e vai logo aprumar você.

– Ótimo – murmurou Tatiana com um sorriso cansado.

Deda beijou-a na testa.

– Dias difíceis virão para todos nós, particularmente para você, Tania. Você e Dasha. Agora que o Pasha não está aqui, seus pais precisam de você mais do que nunca. Sua coragem será testada, assim como a de todos os demais. Haverá um único critério, o critério de sobrevivência a qualquer custo, cabendo a você dizer o preço dessa sobrevivência. Mantenha a cabeça no alto, e se você vai sucumbir, que seja sabendo que não comprometeu a sua alma de forma alguma.

Babushka puxou o marido pelo braço.

– Chega. Tania, faça o que for preciso para sobreviver e dane-se a sua alma. Esperamos ver você em Molotov o mês que vem.

– Nunca comprometa o que o seu coração diz ser correto, minha neta – Deda disse levantando-se e abraçando-a. – Me ouviu?

– Alto e claro, Deda – Tatiana disse abraçando-o também.

Tarde da noite, quando Dasha veio com Alexander e Dimitri, Tatiana mencionou que Deda havia pedido às meninas que se juntassem a eles quando Tatiana tirasse o gesso em setembro. Alexander disse:

– Isso não será possível, não haverá trens em setembro.

Ele normalmente evitava dirigir-se a Tatiana, mantendo cuidadosa e silenciosa distância.

Tatiana teria gostado de falar com ele, mas seus sentimentos continuavam numa agitação indômita, e ela não confiava no seu rosto para ocultar o tremor na voz ou a doçura nos olhos quando olhasse para ele. Como de costume, então, não disse nada, e não olhou para ele. Dimitri estava sentado ao seu lado.

– O que significa isso? – Dasha falou.

– Significa que não haverá trens. – Alexander repetiu – Havia trens em junho, quando vocês, meninas, poderiam ter ido embora, e havia trens em julho, mas Tatiana quebrou a perna. Em setembro, quando a sua perna estiver curada, não haverá um único trem saindo de Leningrado, a não ser que aconteça um milagre entre agora e o momento em que os alemães chegarem a Mga.

– Que tipo de milagre? – perguntou Dasha esperançosa.

– Rendição incondicional dos alemães – respondeu Alexander secamente. – Com a perda de Luga, nosso destino estava traçado. Com toda certeza vamos tentar deter os alemães em Mga, ponto central de viagens ferroviá­rias para o resto da União Soviética. Na verdade, a ordem é que sob nenhuma circunstância entreguemos Mga aos alemães. É ilegal agora entregar ferrovias aos nazistas. – Alexander sorrriu. – Mas eu tenho uma estranha habilidade de ver o futuro, a lei será infringida, e não haverá trens em setembro.

Tatiana ouviu a mensagem implícita na voz neutra de Alexander:Tania, eu lhe disse para sair desta maldita cidade, você não me ouviu, e agora com uma perna quebrada não pode ir a lugar algum.

4

A vida de Tatiana no hospital era positivamente alegre quando comparada com o que ela encontrou ao voltar para casa em meados de agosto.

Quando voltou, por fim, a andar mal de muletas, Tatiana encontrou Dasha preparando o jantar para Alexander, e ele sentado à mesa comendo todo feliz, brincando com Mamãe, falando de política com Papai, fumando descontraído, não indo embora e não indo embora.

E não indo embora. Morosa, Tatiana, sentada, mordiscava a sua comida como um rato estufado.

Quando ele ia embora? Estava ficando tão tarde. Ele não tinha escutas?

– Dimitri, a que horas vocês têm escutas?

– Às onze – Dimitri respondeu. – Mas Alexander tem folga hoje à noite.

– Tania, você ouviu? Mamãe e Papai agora dormem no quarto de Deda e Babushka – Dasha disse, sorrindo. – Eu e você agora temos um quarto só para nós. Dá para acreditar?

Algo havia na voz de Dasha, que Tatiana não gostou.

– Não – disse Tatiana. Quando Alexander ia embora?

Dimitri voltou às barracas.

Antes das onze, Mamãe e Papai estavam prontos para dormir. Mamãe inclinou-se a Dasha e sussurrou:

– Ele não pode passar a noite, você ouviu? Seu pai sobe às paredes. Ele nos mata.

– Eu ouço, Mamãe – Dasha sussurrou. – Ele vai embora logo, eu prometo.

Não tão logo, Tatiana pensou.

Quando os seus pais foram para a cama, Dasha puxou Tatiana de lado e sussurrou:

– Tania, você pode ir para o telhado e brincar com o Anton? Por favor? Eu só quero uma hora sozinha com Alexander, no quarto, Tania!

Tatiana deixou Dasha sozinha com Alexander. Em seu quarto.

Ela foi para a cozinha e vomitou na pia. O barulho nauseante na sua cabeça continuou até mesmo depois que ela subiu ao telhado e sentou-se com Anton, de plantão naquela noite. Anton não era um bom observador dos céus. Ele dormia. Felizmente o céu estava tranquilo. Nem mesmo de longe vinham sons de guerra. Tatiana remexeu a areia no balde e chorou sob a noite sem lua.

Eu causei isso, ela pensou. A culpa é toda minha. Toda trêmula, ela riu alto. Anton se contorceu. Eu fiz isso a mim mesma, e não tenho a quem mais culpar. Se ela não tivesse decidido trazer Pasha de volta, sozinha, se não tivesse se juntado aos voluntários e ido sabe lá Deus para onde, soterrada numa explosão e a perna quebrada, ela e Dasha teriam ido embora com Deda e Babushka para Molotov. E o impensável não estaria acontecendo em seu quarto agora.

Ela ficou sentada até que Dasha apareceu mais tarde, fez-lhe um sinal para descer e ir para a cama.

Na noite seguinte, Mamãe disse a Tatiana que agora que ela estava em casa o dia inteiro, com a perna quebrada e sem fazer nada, teria que começar a preparar o jantar para a família.

Até agora, na vida de Tatiana, Babushka Anna, que não trabalhava, tinha cozinhado. Nos finais de semana a mãe de Tatiana cozinhava. Às vezes Dasha cozinhava. Nos feriados, como do Ano Novo, todo mundo cozinhava.Todo mundo, exceto Tatiana, que arrumava tudo.

– Eu gostaria muito, Mamãe – disse Tatiana. – Se eu soubesse como.

Desdenhosa, Dasha disse:

– Não tem nenhum segredo.

– Sim, Tania – disse Alexander, sorrindo. – Nenhum segredo. Faça alguma coisa deliciosa. Uma torta de repolho, alguma coisa.

Por que não? Tatiana pensou. Enquanto a sua perna sarava, ela precisava ocupar suas mãos ociosas.

Ela faria uma tentativa. Não podia continuar sentada no quarto, lendo o dia inteiro, mesmo que fosse um livro de frases em russo – inglês. Mesmo que estivesse relendo Guerra e Paz, de Tolstoi. Não podia continuar sentada em seu quarto pensando em Alexander.

As muletas machucavam as suas costelas, por isso ela parou de usá-las. Mancando, ia ao armazém com a perna engessada. A primeira coisa que cozinharia em sua vida seria uma torta de repolho. Gostaria também de fazer uma torta de cogumelos, mas não os encontrou no armazém.

Três tentativas fez Tatiana com a massa de levedura, cinco horas no total. Ela fez um pouco de canja para acompanhar a torta.

Alexander veio para jantar junto com Dimitri. Muita nervosa porque Alexander ia experimentar a sua comida, Tatiana sugeriu que os dois soldados talvez quisessem voltar e jantar nas barracas.

– O quê? E perder a sua primeira torta? – Alexander disse provocativo.

Dimitri sorriu.

Eles comeram, beberam, falaram sobre o dia, sobre a guerra, e sobre evacuação, sobre as esperanças de achar o Pasha, e então Papai disse:

– Tania, está um pouco salgado.

– Não – mamãe disse –, ela não deixou que a massa crescesse o suficiente. E tem muitas cebolas. Por que você não tentou conseguir alguma coisa além do repolho?

– Tania – Dasha disse –, na próxima vez, cozinhe as cenouras um pouco mais na sopa e coloque uma folha de louro. Você esqueceu a folha de louro.

– Nada mal para uma primeira vez, Tania – Dimitri disse, sorridente.

Alexander passou o seu prato à Tatiana e disse:

– Está ótimo. Posso pedir, por favor, um pouco mais da torta? E aqui está minha tigelinha para sopa.

Depois do jantar, Dasha chamou novamente Tatiana de lado e sussurrou, em sua voz suplicante:

– Você e o Dimitri podem ficar no telhado um pouco? Hoje não vai demorar muito. Ele tem que voltar. Por favor?

Os garotos do prédio estavam sempre no telhado. Dimitri e Tatiana não estavam sozinhos.

Mas Dasha e Alexander estavam sozinhos. O que Tatiana precisava era não ver a irmã e a ele: ele, por toda uma vida; ela, por duas semanas. Em duas semanas, quando o verão terminaria, a paixonite de Dasha com certeza também terminaria. Nada poderia sobreviver ao inverno de Leningrado.

Mas como podia Tatiana não ver Alexander? Talvez ela pudesse mentir a todo mundo, mas não para si própria. Ela prendeu a respiração o dia inteiro, até a primeira hora da noite, quando finalmente ela o via caminhar pelo corredor. Nas duas últimas noites, ele parou na porta, sorriu:

– Oi, Tania.

– Oi, Alexander – ela respondeu, vermelha, os olhos nas botas dele. Ela não podia olhar para ele sem um tremor em alguma parte do corpo.

Ela então serviu-lhe o jantar. Dasha então levou Tatiana de lado e sussurrou.

Tatiana estava pronta, dentes cerrados e tudo, para deixar Alexander de lado. Ela sempre soubera que era a coisa certa a fazer e para isso estava preparada.

Mas porque, noite após noite, jogavam-lhe na cara a coisa certa.

Os dias corriam, e Tatiana percebia que era muito jovem para esconder bem o que ia no seu coração, mas velha o suficiente para saber que o seu coração estava em seus olhos.

Ela temia que a maneira como olhava Alexander chamasse a atenção de Dimitri, alguma coisa que o levaria a pensar: espere aí, por que ela está olhando assim para ele? Ou pior, o que é aquilo nos olhos dela? Ou pior ainda, porque ela desvia o olhar? Por que ela não pode olhar para ele como todo mundo? Como eu olho para Dasha, ou como a Dasha olha para mim?

Ao olhar para Alexander, Tatiana condenava-se, mas não olhar, igualmente, a traía, talvez até mais.

E Dimitri parecia haver captado tudo. Cada desviada de olhar, cada olhar direto, os olhos atentos de Dimitri estavam sobre Alexander, sobre Tatiana.

Alexander era mais velho. Ele podia ocultar melhor.

Em boa parte do tempo, ele a tratava como se não a conhecesse até a noite de ontem, ou a de hoje, uma hora atrás, talvez na hora das bruxas, talvez na hora da embriaguez, certamente na hora do cigarro. Mas, de alguma maneira, ele conseguia comportar-se em relação a ela como se não existisse para ele. Como se ele não fosse nada para ela.

Mas como?

Como ele conseguiu esconder os seus passeios em Kirov, os dois abraçados, como conseguiu esconder a sua vida que ele a ela revelara, como escondeu as mãos imparáveis em seus seios, e seus lábios nela, e todas as coisas que dissera a ela? Como ele escondeu Luga de todos eles? Luga, quando ele largou seu corpo ensanguentado? Quando ela estava deitada, nua, e ele beijava o seu cabelo e lhe assegurava com os seus ternos braços, enquanto o coração dele batia loucamente em seu peito. Como ele escondeu seus próprios olhos? Quando estavam sozinhos Alexander olhava Tatiana como se não houvesse ninguém mais no mundo, só ela.

Era aquilo mentira? Era isto mentira?

Talvez fosse o que os adultos faziam. Eles beijavam seus seios e depois fingiam que isso nada significava, e se eles pudessem fingir realmente bem, isso significava que eram realmente adultos.

Ou talvez eles beijassem os seus seios e isso realmente não era nada.

Como era possível isso? Tocar outro ser humano dessa maneira e achar que nada significa?

Mas talvez se você podia fazer isso, significava que você era realmente adulto.

Tatiana não sabia, mas estava perplexa e humilhada por aquilo: imaginando-se nas mãos de Alexander quando ele mal se empenhava em chamá-la pelo nome.

Tatiana abaixava a cabeça e desejava que todos desaparecessem. Mas de vez em quando, quando Alexander estava sentado à mesa, e ela na sala, todos falando enquanto ela se mexia ou pegava os pratos, ela percebia o seu olhar, e numa centelha ela via os seus verdadeiros olhos.

Tudo o que Tatiana recebia de Alexander eram gestos sem significado.Ele abria a porta para ela, e, ao passar perto dele, ele esbarrava em seu corpo, e isso a nutria por um dia; ou quando ela fazia chá para ele e passava-lhe a xícara, a ponta dos dedos dele – acidentalmente? – tocavam as pontas dos dedos dela, e isso dava-lhe força para outro dia. Até a próxima vez que ela o visse. Até a próxima vez que uma parte dele roçasse numa parte dela. Até a próxima vez que ele dissesse: oi, Tania.

Mas certa ocasião, quando Dimitri já entrara e Dasha estava em algum outro lugar, Alexander, com um enorme sorriso no rosto disse: oi, Tania! cheguei! E ela riu, embora não quisesse. E quando ela olhou para ele, Alexander ria também silenciosamente.

Certa noite, quando Alexander experimentou a blimchiki de queijo, ele disse:

– Tania, é o melhor que você fez até hoje.

E aquilo levantou seu ânimo, até que Dasha o beijou e disse:

– Tanechka, você é para todos nós uma enviada de Deus.

Tatiana não sorriu, então pegou o Dimitri observando-a, também sem sorrir, então ela sorriu, mas sabia que não era suficiente. Mais tarde, quando Dasha e Alexander estavam sentados no sofá, Dimitri disse:

– Dasha, devo dizer que nunca vi Alexander tão feliz com alguém como com você.

E todo mundo sorriu, incluindo Alexander, que não olhou para Tatiana, que não sorria. Sim, e devemos agradecer por isso, ela pensou com tristeza, captando os olhos de Dimitri.

Ela continuava aprendendo a cozinhar novos pratos, como fazer tortas doces, porque viu que Alexander as apreciava, comendo-as em uma garfada e depois tomando o seu chá e fumando os seus cigarros.

– Sabe do que mais eu gosto? – ele disse uma vez.

O coração de Tatiana parou por um momento.

– Panquecas de batata.

– Eu não sei como se faz isso.

Onde estava todo mundo? Mamãe e Papai estavam no outro quarto, Dasha no banheiro, Dimitri não estava lá. Alexander sorriu junto ao rosto de Tatiana, um sorriso contagiante só para ela.

– Batatas, farinha de trigo, algumas cebolas, sal.

– Isso é de...

Dasha voltou.

No dia seguinte, Tatiana fez panquecas de batata cobertas com nata, e a família inteira devorou tudo, dizendo que nunca tinham saboreado uma coisa tão deliciosa.

– Onde você aprendeu a fazer isso? – perguntou Dasha.

O único pequeno prazer que Tatiana tinha, durante os seus longos dias, era de servir Alexander. O prazer era mais intenso e menos afetado pelo desgosto, nas horas que antecediam a volta da família para casa, quando ela preparava comida, ansiando ver o seu rosto.

Durante o jantar, as emoções já eram nuvens que se formavam; e logo depois, duas coisas aconteciam: ou Alexander ia embora de volta às barracas, o que já era ruim, ou Dasha pedia para ficar sozinha com ele, o que era pior.

Onde eles haviam ido antes de ter um quarto só para eles? Tatiana não podia entender as coisas que Alexander lhe dissera no hospital sobre becos e bancos. Dasha, sempre a irmã mais velha protetora, certamente nunca falou com Tatiana sobre aquelas coisas. Não falo com Tatiana sobre coisa alguma. Ninguém falava com Tatiana coisa alguma.

Tatiana nunca viu Alexander sozinho. Ele escondia tudo.Uma noite, depois do jantar, quando todos subiram ao telhado, Anton perguntou a Tatiana se ela queria jogar de novo aquele jogo geográfico que dava tonturas. Tatiana disse que teria problemas em girar sob uma perna.

– Vamos tentar – disse Anton. – Eu seguro você.

– Tudo bem – Tatiana disse, querendo um pouco de vertigem. Ela girou e girou ao redor sob a sua perna boa, mantendo os olhos fechados. As mãos amigáveis de Anton estavam em seus braços e ele ria histericamente enquanto ela errava todos os países do mundo.Quando abriu os olhos, viu que Alexander a observava com uma expressão tão sombria que quase a impedia de respirar, como se as suas costelas fossem de novo quebrar. Ela endireitou-se e foi sentar ao lado de Dimitri, pensando que nem mesmo adultos podiam esconder tudo.

– Esse é um jogo divertido – disse Dimitri abraçando-a.

– Sim, Tania – disse Dasha. – Quando você vai crescer?

Alexander não disse nada.

Tatiana sentia-se muito agradecida por todas as pequenas mercês recebidas, mas a que ela mais agradecia era a da perna quebrada, que a impedia de fazer passeios solitários com Dimitri. Ela era grata também pelo movimento constante de gente no apartamento que não a deixava sozinha com Dimitri. Mas naquela noite, porém, quando desceram do telhado, Tatiana, em pânico, viu que seus pais tinham saído para caminhar na cálida noite de agosto, deixando os dois casais sozinhos. Tatiana percebeu o sorriso insinuante de Dimitri e sentiu a sua proximidade insinuante. Dasha sorriu para Alexander e perguntou:

– Está cansado?

Tatiana mal podia continuar de pé em uma perna. Alexander veio resgatá-la.

– Não, Dasha – ele disse. – Tenho que ir embora agora à noite. Vamos, Dimitri.

Dimitri disse que não tinha que ir embora, sem tirar os olhos de Tatiana.

– Sim, você precisa, Dima – Alexander disse. – O Tenente Marazov necessita falar com você hoje mais à noite, antes das escutas.

Tatiana estava grata a Alexander. Embora fosse um pouco como se os alemães cortassem as suas pernas e quisessem que você lhes agradecesse por não matá-la.

Quando Mamãe e Papai voltaram do seu passeio, Tatiana, baixinho, pediu a eles que não saíssem do apartamento de novo à noite nem mesmo por um copo de cerveja gelada numa cálida noite de agosto.

Durante o dia, Tatiana saía para fazer lentas caminhadas ao redor do quarteirão e visitar os armazéns locais à procura de qualquer alimento. Ela já observava a ausência de carne bovina e suína. Ela não conseguia nem mesmo encontrar os 250 gramas de carne semanal por pessoa, que lhes eram distribuídos. Só às vezes ela encontrava frango.

Tatiana ainda encontrava o sempre presente repolho, maçãs, batatas, cebolas, cenouras, a manteiga; contudo, era mais escassa. Teria que usá-la menos na massa do fermento. As tortas já tinham um gosto ruim, embora Alexander ainda as comesse alegremente. Ela encontrava farinha de trigo, ovos, leite, não podia comprar muito; não podia carregar muito. Comprava o suficiente para fazer uma torta para o jantar, tirava uma soneca à tarde e estudava inglês antes de ligar o rádio.

Tatiana ouvia o rádio todas as tardes porque a segunda coisa que o seu pai dizia quando chegava em casa era: alguma notícia do front? Ou, alguma notícia? Omitindo o indizível: alguma notícia de Pasha?

Assim, Tatiana sentia-se obrigada a ouvir o rádio para saber o mínimo sobre a posição do Exército Vermelho, ou sobre os avanços das tropas de Von Leeb. Ela não queria ouvir isso. Às vezes, sim, ouvir os relatórios sombrios do front servia para levantar o seu ânimo. Até mesmo a derrota nas mãos dos homens de Hitler era melhor do que aquilo que ela tinha que suportar dentro de si todo dia. Ligava o rádio na esperança de que notícias desesperançosas de outros lados viessem animá-la.

Ela sabia que, se o locutor começasse a listar frequências abertas de rádio, então nada de extraordinário acontecera naquele dia. Normalmente, havia algumas notícias. Mas, antes que o locutor falasse, havia uma série de perturbadores e pequenos ruídos e pausas, como o rat-ta-tat-tat de uma máquina de escrever. O boletim de informação no rádio durava alguns segundos. Talvez três curtas sentenças sobre o front finlandês-russo.

– O Exército finlandês recupera rapidamente todo o território perdido na guerra de 1940.

– Os finlandeses se aproximam mais de Leningrado.

– Os finlandeses estão em Lisiy Nos, somente a vinte quilômetros dos limites da cidade.

Vinham então algumas poucas sentenças sobre o avanço alemão. O locutor lia devagar, esticando o boletim vazio de notícias, para criar um significado que não existia ali, e depois que ele citava cidades ao sul de Leningrado sob controle alemão, Tatiana tinha que consultar um mapa.

Quando descobriu que Tsarskoye Selo estava na mão dos alemães, ficou chocada e até mesmo esqueceu-se de Alexander por um momento, quando precisou recompor-se.

Tsarskoye Selo, como Peterhof, era um palácio de verão dos velhos czares, era também o retiro de verão, onde Alexander Pushkin escrevia, mas o pior de tudo era que Tsarskoye Selo estava somente a dez quilômetros ao sudeste da fábrica de Kirov, localizada nos limites de Leningrado. Estavam os alemães a dez quilômetros de Leningrado?

– Sim – Alexander disse naquela noite. – Os alemães estão muito próximos.

A cidade mudara durante o mês que Tatiana passou em Luga e no hospital. As torres douradas do Almirantado e da Catedral de Pedro e Paulo estavam pintadas de cinza. Soldados andavam por todas as ruas, e a milícia da NKVD, com os seus uniformes azul-escuros, eram mais visíveis que os soldados. Cada janela na cidade estava tapada contra explosões. As pessoas na rua andavam rápido e com um objetivo. Tatiana, às vezes, sentava num banco perto da igreja do outro lado da rua e as observava. No céu flutuavam ubíquos dirigíveis, alguns redondos, outros ovais. As rações se tornaram-se mais restritas, mas Tatiana ainda conseguia ­suficiente farinha de trigo para fazer tortas de batata, tortas de cogumelos e tortas de repolho.

Alexander, com frequência, trazia as suas rações. Havia suficiente frango para fazer canja com cenouras bem cozidas. Acabara a folha de louro.

Dimitri levou Tatiana para o telhado, enquanto Dasha e Alexander ficaram sozinhos no quarto de Tatiana. Dimitri a abraçou e disse:

– Tania, por favor, estou tão triste. Quanto tempo vou esperar? Só um pouco mais esta noite?

Tatiana colocou a mão no braço dele e perguntou:

– Qual é o problema?

– Eu só preciso de um pouco de seu consolo – ele disse, abraçando-a, beijando o seu rosto, tentando beijá-la na boca. Havia alguma coisa quase anormal quando Dimitri a tocava. Ela não conseguia entender.

– Dima, por favor – ela sussurrou afastando-se um pouco dele e fazendo um sinal para Anton, que veio para perto e conversou com eles, até que Dimitri se cansou e foi embora. – Obrigado, Anton – disse Tatiana.

– Sempre às ordens – ele respondeu. – Por que você não diz a ele que a deixe em paz?

– Anton, acredite, quanto mais eu falo isso mais ele chega perto – disse Tatiana.

– Homens mais velhos são todos assim – disse Anton, com autoridade, como se soubesse essas coisas. – Você não entende nada? Tem que ceder. Ele então deixa você em paz! – Ele riu, Tatiana também riu.

– Acho que você tem razão, é assim que homens mais velhos se comportam.

Ela continuou a ocupar Dimitri com cartas e livros, com piadas, com vodca. A vodca em particular era boa, Dimitri gostava de beber um pouco demais e depois caía adormecido no pequeno sofá do corredor. Tatiana pegava o cardigã da avó e subia ao telhado sozinha, sentava com Anton, pensava em Pasha e pensava em Alexander. Ela passou o tempo com Anton, contou piadas, leu Zoshckenko e Guerra e Paz. Olhou o céu de Leningrado, perguntando-se em quanto tempo os alemães chegariam à cidade.

E quanto mais tempo para tudo.

E depois que os outros meninos foram dormir, Tatiana continuou sentada no teto, ao lado da lâmpada de querosene, pronunciando pequenas palavras em inglês, que lia no dicionário e no livro de frases. Ela aprendeu a dizer pen, table, love, The United States of America, potatoes, pancakes. Ela gostaria de ficar sozinha com Alexander por dois minutos para contar a ele sobre algumas frases engraçadas que aprendera.

Certa noite, em fins de agosto, Anton dormindo ao seu lado, Tatiana tentou pensar numa maneira de endireitar a sua vida.

Vida que já fora certa. Tão certa como podia ser. De repente, depois de 22 de junho, houve tantos estragos, constantes, desanimadores e intermináveis. Todavia nem tudo era desanimador; Tatiana sentia falta da hora da noite com Alexander em Kirov muito mais do que podia admitir. Noite quando sentavam separados e juntos percorriam as ruas vazias, quando conversavam e ficavam em silêncio, e o silêncio fluía às suas palavras como o lago Ladoga fluía ao rio Neva, que fluía ao golfo da Finlândia, que fluía ao mar Báltico. Noite quando eles sorriam e o branco dos seus dentes cegava os olhos de Tatiana, quando ele ria e o seu riso fluía aos pulmões dela, quando ela nunca tirava os olhos dele e só ele percebia isso, e tudo bem para ele.

A noite em Kirov quando estavam sozinhos.

O que fazer? Como consertar isso? De alguma forma ela tinha que se corrigir por dentro. Para o seu próprio bem, para o de sua irmã, para o de Alexander.

Eram duas da manhã. Tatiana sentia frio, pois só trazia no corpo um vestido velho leve, por cima o cardigã. Ela imaginava que passaria o resto de sua vida no telhado, mais do que embaixo, com Mamãe e Papai e sua desesperança com Pasha, ou com o sussurro suplicante de Dasha...Tania vai embora para que eu possa ficar sozinha com ele.

Tatiana pensava sobre a guerra. Talvez se os aviões alemães viessem zumbindo e jogassem uma bomba no nosso edifício, eu poderia salvar todo mundo, mas morreria fazendo isso. Eles ficariam de luto por mim? Chorariam? Alexander teria desejado que as coisas fossem diferentes?

Diferentes como?

Diferentes quando?

Ela sabia que Alexander já queria que as coisas fossem diferentes. Que houvessem sido diferentes desde o início.

Mas, mesmo no início, ainda no ônibus, juntos, só os dois se tocando, haveria um lugar onde Tania e Shura pudessem ir quando quisessem ficar sozinhos por dois minutos para trocar frases em inglês um com o outro? Além da caminhada rumo a casa?

Tatiana não conhecia tal lugar.

Conheceria Alexander?

Eram perguntas sem sentido, destinadas somente a machucá-la ainda mais. Como se ela precisasse disso.

Tudo o que eu quero é algum alívio, Tatiana pensou. Será pedir muito?

Nada lhe trouxe alívio. Nem a indiferença de Alexander, nem suas explosões ocasionais com Dasha, nem sua melancolia, nem o fato de ele sempre ganhar no carteado, nada diminuía o sentimento de Tatiana por ele ou sua carência. Ele não tinha muitas noites de folga. Normalmente tinha que voltar para as escutas, enquanto outras noites fazia patrulhamento aéreo em Santo Isaac. Ele tinha somente uma ou duas noites de folga a cada semana, mas isso já era demais. Esta noite era uma daquelas folgas. Por favor, Tania, por favor, vá embora para que eu fique sozinha com ele.

Ela ouviu um estrondo a distância. No céu, os dirigíveis flutuavam.

Horas noturnas e matinais, e horas do dia antes do cair da noite, de novo as horas. Algo tinha que ser feito. Mas o quê?

Tatiana desceu. Ela fez um pouco de chá para aquecer as suas mãos frias e, exausta, sentou-se no parapeito da janela da cozinha, olhando o pátio escuro, quando de revés viu Alexander entrar. Ouviu os seus passos mais lentos e então retroceder. Ele parou na soleira da porta. Por um momento não se falaram.

– O que você está fazendo? – ele perguntou baixinho.

– Esperando você ir embora para que eu possa dormir – ela respondeu fria e corajosamente.

Alexander tentou entrar na cozinha.

Ela o olhou.

Ele se aproximou.

Só de pensar em poder cheirá-lo, o coração de Tatiana já amolecia. Ele parou ali mesmo.

– Quase nunca fico até tarde – ele disse.

– Bom para você.

Agora que ninguém observava, Tatiana, sem piscar, olhava-o fixamente.

Alexander, com remorso e compreensão, disse:

– Tatiasha, tem sido muito duro para você, eu sei. Eu sinto muito. O erro é meu. Eu me culpo. O que eu lhe disse, eu nunca deveria ter entrado naquele seu quarto de hospital naquela noite.

– Oh, porque antes era suportável.

– Era melhor que agora.

– Você tem razão, era.

Tatiana queria descer do peitoril e ir a ele. Queria andar de bonde, sentar no banco, dormir numa tenda com ele. Queria senti-lo junto dela outra vez. Sobre ela. Mas o que ela disse foi:

– Me diga, você deu um jeito para que o Dima fique em Leningrado todas as noites? Porque toda noite que ele vem aqui, ele tenta certas liberdades comigo.

Os olhos de Alexander brilharam de raiva.

– Ele me disse que havia se atrevido um pouco.

– É mesmo? – Seria por isso que Alexander estava tão frio? – O que o Dima disse?

Tatiana estava muito cansada para ficar brava com Dimitri. Alexander chegou mais perto. Só mais um pouco, ela pensou, e eu posso cheirar você.

– Deixe isso para lá – disse Alexander parecendo incomodado.

– E você achou que ele dizia a verdade?

– Diga-me você.

– Alexander, sabe de uma coisa? – Ela tirou as pernas do peitoril e colocou a xícara na mesa.

Alexander chegou ainda mais perto.

– Não, o quê, Tatia? – ele disse suavemente.

Tatiana cheirou sua masculinidade, seu xampu, seu sabonete. Ela sorriu levemente. E o sorriso então sumiu.

– Por favor – ela disse. – Me faça um favor e fique longe de mim. Entendeu?

– Estou fazendo o melhor possível – ele disse, dando um passo atrás.

– Não – Tatiana disse, e interrompeu: – Por que você vem aqui? – Ela sussurrou. – Não continue com a Dasha. – Ela suspirou fundo. – Como depois de Kirov. Vá em frente. Vá fazer a sua guerra e leve o Dimitri. Ele não aceita não como resposta, e eu já estou cansada de tudo isso. – Cansada de todos vocês, ela queria dizer, mas não disse. – Logo eu vou me cansar de dizer não a ele. – Tatiana acrescentou, para causar forte impressão.

– Pare – Alexander disse. – Não posso ir embora agora. Os alemães estão muito perto. Sua família vai precisar de mim. – Ele fez uma pausa. – Você vai precisar de mim.

– Não vou. Estarei bem. Por favor... Alexander, é muito difícil para mim. Você não vê isso? Diga adeus a Dasha, me diga adeus e leve o seu Dimitri com você. – Ela fez uma pausa. – Por favor, por favor, vá embora.

– Tania – Alexander disse quase inaudível. – Como não posso vir e ver você?

Ela piscou.

– Quem vai cozinhar para mim, Tania?

Tatiana piscou outra vez.

– Bem, isso é bom – ela disse muito irritada. – Eu faço o jantar para você e namoro o seu melhor amigo, enquanto você seduz a minha irmã. Usei as palavras certas desta vez? Isso está perfeito, não?

Alexander deu a meia-volta e foi embora.

A primeira coisa que Tatiana fez ao acordar na manhã seguinte foi falar com a enfermeira Vera no hospital Grechesky. Enquanto Vera examinava as suas costelas, Tatiana perguntou:

– Vera, tem alguma coisa que eu possa fazer aqui? Talvez algum emprego no hospital?

O rosto bondoso de Vera estudou Tatiana.

– Qual é o problema? Você parece tão triste. É por causa da perna?

– Não, eu... – A bondade de Vera comoveu Tania, que quase abriu a boca para despejar o seu desgosto sobre a cabeça branqueada e insuspeita da enfermeira. Quase, ela se recompôs. – Estou bem. Só não posso ir a lugar algum. É um tédio. Fico no telhado a noite inteira, à espera de bombas. Me diga, tem alguma coisa para eu fazer aqui?

Vera permaneceu pensativa.

– Qualquer ajuda é bem-vinda.

Tatiana então animou-se:

– Fazendo o quê?

– Há tanta coisa para fazer. Você pode sentar atrás de uma mesa e cuidar da papelada, ou pode servir comida no refeitório, ou pode enfaixar ferimentos ou medir febres, ou, quando melhorar, talvez fazer o curso de enfermagem.

Tatiana sorriu feliz.

– Isso é fantástico, Vera! – Ela então franziu a testa – E o que eu faço com Kirov? Assim que eu tirar o gesso devo voltar lá e fabricar tanques. A propósito, quando tiro este gesso?

– Tatiana! O front está em Kirov – exclamou Vera. – Você não vai para Kirov. Você não é tão corajosa. Lá, eles lhe dão um rifle e lhe dão treino de combate antes que você continue trabalhando. Você saiu na hora certa, sabia. Mas aqui sempre falta gente para ajudar. Muitas pessoas são voluntárias, e boa parte delas não volta. – Ela sorriu. – Nem todo mundo tem a sua sorte, com um oficial tirando-a de sob os escombros.

Se Tatiana pudesse ter evitado ir para casa, assim teria feito.

Naquela noite, na hora do jantar, mal contendo o seu entusiasmo, Tatiana contou à família que encontrara um emprego perto de casa.

– Muito bem! Vá trabalhar – disse Papai. – Finalmente! Você pode almoçar lá em vez de vir comer aqui?

– Tania ainda não pode ir – disse Alexander. – Desse jeito sua perna nunca vai sarar, e ela vai mancar para o resto da vida.

– Bem, ela não pode continuar sem fazer nada e se tornar dependente do racionamento. Não podemos alimentá-la. Ouvi dizer que vão diminuir as rações outra vez. Vai ficar ainda mais difícil.

– Vou trabalhar, Papai – disse ainda animada. – E vou comer menos, está bem?

Alexander lançou-lhe um olhar do outro lado da mesa, e enfiou o garfo no purê de batata.

Papai jogou o garfo na mesa.

– Tania, é tudo sua culpa! Você devia ter ido embora com os seus avós! Seria melhor para você se alimentar, e você não estaria em perigo ficando em Leningrado. – Ele balançou a cabeça. – Você devia ter ido embora com eles.

– Papai, do que o senhor está falando? – perguntou Tatiana, nada animada, e num tom um pouco mais alto do que jamais falou com o seu pai. – O senhor sabe que eu não poderia ter ido embora com o Deda por causa de minha perna. – Ela franziu a testa.

– Tudo bem, Tania – disse Dasha pondo a mão no braço de Tatiana. – Pare.

Mamãe também jogou o seu garfo na mesa.

– Tania! Em primeiro lugar, se você não tivesse ido embora e feito uma coisa tão idiota, não teria agora uma perna quebrada!

Tatiana livrou-se do braço de Dasha e virou-se para a mãe.

– Mamãe! Talvez se a senhora não tivesse dito que preferia que eu morresse no lugar de Pasha, eu não teria ido embora para tentar achá-lo para a senhora!

Mamãe e Papai, mudos, olhavam a Tatiana enquanto os demais no aposento também se calaram.

– Eu nunca disse isso! – Mamãe chorou, levantando-se da mesa. – Nunca!

– Mamãe! Eu ouvi a senhora.

– Nunca!

– Eu ouvi a senhora! “Por que Deus não levou Tania em vez de Pasha?” Lembra-se disso, Mamãe? Lembra, Papai?

– Tania, calma – disse Dasha numa voz trêmula. – Eles não queriam dizer isso.

– Calma, Tanechka – disse Dimitri pondo a sua mão em Tatiana. – Calma.

– Tatiana! – gritou Papai. – Não se atreva a falar assim conosco quando a culpa de todo o problema é sua!

Tatiana tentou respirar fundo, mas não podia, não podia se acalmar.

– Culpa minha? – ela gritou ao pai. – A culpa é sua! O senhor foi quem mandou o Pasha para a morte e depois sentou e nada fez para trazê-lo de volta...

Papai levantou-se e tão forte a esbofeteou que ela caiu da cadeira.

Alexander levantou-se e afastou o pai de Tatiana.

– Não – ele disse. – Não.

– Saia daqui! – gritou Papai – Este é um assunto de família. Saia daqui!

Alexander ajudou Tatiana a se levantar. Eles ficaram entre o sofá e a mesa de jantar, perto de Dasha, que segurava a cabeça nas mãos. Ela não levantava. Ela e Dimitri continuavam sentados. Papai e Mamãe, bem juntos um do outro em pé, viam-se ofegantes.

Sangrava o nariz de Tatiana. Mas agora Alexander se postava entre ela e o pai. Pressionando-se contra o corpo de Alexander e segurando a sua manga, Tatiana gritou:

– Papai, o senhor pode me bater o quanto quiser. Pode me matar também, se quiser! Isso não vai trazer o Pasha de volta. E ninguém vai embora porque não há para onde ir!

Aos gritos, Papai foi para cima dela outra vez, mas não conseguiu passar Alexander.

– Não – Alexander disse sacudindo a cabeça, um dos braços estendidos por trás, segurando Tatiana; o outro braço em frente de Papai.

Aos prantos, Dasha por fim levantou-se e correu ao pai agarrando os seus braços.

– Papochka, Papochka, por favor, não. – Virando-se para Tatiana, Dasha gritou – Olha só o que você fez! – e tentou contornar Alexander, que a deteve.

– O que você está fazendo? – ele perguntou baixinho.

Sem entender, Dasha olhou para ele:

– O quê? Você ainda a defende? Olha só o que ela fez!

Mamãe chorava. Papai ainda gritava, vermelho de raiva. Dimitri não tirava os olhos do prato. Tatiana estava atrás de Alexander, quando ele e Dasha se encararam.

– Pare – ele disse. – Ela não fez nada. Todos vocês parem. Talvez se vocês a tivessem ouvido em junho, quando podiam resgatar o Pasha, vocês não estariam aqui brigando entre si, e seu filho e irmão podia estar vivo ainda. Agora é muito tarde. Mas agora tirem as mãos de cima de Tatiana.

Virando-se para Tatiana, Alexander perguntou:

– Você está bem?

Ele pegou um guardanapo da mesa, deu a ela, e disse:

– Segure a ponta do seu nariz para estancar o sangue, vamos. Rápido.

Ele então enfrentou o pai de Tatiana.

– Georgi Vasilievick – disse Alexander –, eu sei que o senhor tentava salvar o seu filho. – Fez uma pausa. – Acredite, eu sei o que o senhor estava fazendo. Mas não desconte em cima da Tania.

Papai colocou com força na mesa um copo de vodca, xingou e, trôpego, enfiou-se no outro quarto. Mamãe foi atrás dele, batendo a porta atrás dela. Tatiana ouviu os soluços de Mamãe.

– É sempre assim – ela disse algo abalada. – Ela chora, e lá vai alguém se desculpar, geralmente sou eu.

Dasha ainda estava em pé olhando fixamente Alexander.

– Não posso acreditar – ela disse. – Que você ficou ao lado dela, contra mim.

– Não diga merda, Dasha – ele respondeu a ela, em voz alta. – Acha que eu fiquei contra você porque eu não lhe permitiria agredir a sua irmã menor? Que tem a perna quebrada? Por que você não pega alguém do seu tamanho? Ou, porque você não me acerta? Eu sei porque – Alexander continuou bravo. – Porque só poderia fazer isso uma vez.

– Você tem razão – Dasha disse, e tentou dar-lhe um tapa.

Ele segurou a sua mão, afastando-a com força.

– Você perdeu o controle, Dasha – ele disse. – E eu vou embora.

Dimitri, que não dissera uma palavra, suspirou, levantou-se e saiu com Alexander.

Tão logo eles saíram, Dasha foi para cima de Tatiana, que não podia ficar em pé, e por isso caiu na mesa do jantar, sobre o purê de batatas que fizera uma hora atrás.

– Agora, veja o que você aprontou! – Dasha gritou. – Olhe só o que você fez!

Abriu-se a porta, e Alexander entrou. Pegou Dasha pelo braço e a afastou de Tatiana, dizendo:

– Tania, pode nos dar um minuto, por favor?

Tatiana saiu fechando a porta ainda segurando o guardanapo no nariz. Ela ouviu Alexander gritando e depois Dasha gritando. Tatiana e Dimitri, de pé no corredor, olhavam-se meio abobados. Dimitri deu de ombros e disse:

– Ele é assim. Tem um gênio revoltado.

Tatiana queria dizer que nunca vira Alexander descontrolar-se, mas ficou quieta, tentando ouvir. Dimitri disse:

– Ele precisa ficar fora disso e deixar que a família resolva os seus próprios problemas, você não acha? Amanhã tudo estará melhor.

– Isso me faz lembrar da velha piada – Tatiana disse: – “Vasili, por que você me bate o tempo todo? Eu não fiz nada errado.” E Vasili responde: “Você devia agradecer. Se eu soubesse o que você estava fazendo eu matava você.”

Dimitri riu como se fosse a coisa mais engraçada que ouvira durante o dia, ela ouviu a voz de Alexander dentro do quarto:

– Você não vê? – ele gritava com Dasha. – Ela não está me afastando, você está, com o seu comportamento. Como você acha que vou ficar do seu lado, quando você agride a sua irmã?

Dasha resmungou alguma coisa.

– Dasha, não me venha com suas desculpas idiotas. Eu não preciso delas. – Pausa. – Não posso continuar, não.

De dentro da porta, Tatiana ouviu um soluçar histérico.

– Por favor, Alex, por favor, não vá embora, por favor, eu sinto muito, você tem razão, meu amor, você tem razão. Por favor, não vá embora. O que eu posso fazer, quer que eu me desculpe com ela?

– Dasha, se você puser as mãos na sua irmã outra vez, eu termino tudo na hora. – Tatiana ouviu Alexander dizer. – Entendeu?

– Eu nunca mais vou agredi-la – Dasha prometeu.

Silêncio no quarto. Tatiana estava estupefata.

Sem saber para onde olhar, ela limpou o nariz ainda sangrando e olhou para Dimitri, dando de ombros.

– Não posso ter um momento sozinha, nem para brigar – ela disse. – Bem, pelo menos aquilo funcionou. – Seu corpo começou a escorregar.

Dimitri segurou-a, sentou-a no sofá do corredor e limpou seu rosto, acariciando as suas costas.

– Você está bem? – ele dizia.

Os Sarkovs bateram na parede do hall, querendo saber se estava tudo bem. Uma briga no apartamento comunitário e todo mundo ficava sabendo. Todo mundo ouvia tudo.

– Maravilha – disse Tatiana. – Só uma pequena discussão. Está tudo bem.

Rapidamente, Dasha saiu do quarto e, toda emburrada, desculpou-se com Tatiana. Voltou ao quarto para ficar com Alexander e fechou a porta. Tatiana disse a Dimitri que fosse embora e então, mancando, subiu as escadas para o telhado, onde sentou e rezou para que caísse uma bomba.

Ela viu Alexander surgindo na porta das escadas, vindo em sua direção. Tatiana, sentada, conversava com Anton e, embora o seu coração tivesse vacilado, ela não olhou para Alexander. Suas mãos estavam nas mãos de Anton. Ele a cutucou e parou de falar. Tatiana suspirou e virou-se para Alexander.

– O quê? – ela disse, infeliz.

– Me dê a sua mão – ele sussurrou.

– Não.

– Me dê a sua mão.

– Anton – ela disse alto –, lembra do Alexander, apertem-se as mãos, apertem.

Anton soltou Tatiana e trocou um aperto de mão com Alexander, que disse:

– Você nos dá licença por um minuto?

Relutante, Anton deu uma corridinha, ainda assim, ficando perto o suficiente para escutar.

– Vamos nos afastar dele – Alexander disse a Tatiana.

– É difícil ficar me mexendo muito, estou bem aqui.

Sem mais discussão, Alexander levantou Tatiana, caminhou alguns passos e sentou-a no canto do telhado, onde não havia Anton nem Mariska, a menina de sete anos que praticamente vivia no telhado porque os pais estavam embriagados no segundo andar.

– Me dê as suas mãos, Tania.

Tatiana não queria, mas concordou. Suas mãos tremiam.

– Você está bem? – ele perguntou baixinho. – Isso acontece muito?

– Estou bem. Acontece às vezes. – Ela balançou a cabeça. – Por quê?

– Eu nunca deixarei que alguém magoe você.

– De que adianta isso? Agora eles estão todos bravos comigo. Você acaba de ter só uma pequena amostra de Dasha, você vai embora, mas eu ainda estou aqui, naquela cama, naquele quarto, naquele corredor. Eu ainda sou o lixo.

O rosto de Alexander era todo compaixão e sentimento.

– O que Dasha fez a mim não me afetou. Eu não deixarei que eles magoem você. Não me importa nada se a Dasha descobrir sobre nós, ou se Dimitri... – ele interrompeu. Tatiana esforçou-se para ouvir. – Eu não me importo em revelar ao mundo tudo sobre nós dois. E não deixarei que ninguém magoe você. – Ele fez uma pausa, fitando o rosto dela. – E você sabe disso. E se você não quer que eu me enforque, ou arruíne os seus planos só para poupar a Dasha da verdade, sugiro que seja mais cuidadosa ao redor de gente que possa atingi-la.

– De onde você vem? – ela perguntou. – Não fazem isso na sua América? Aqui na Rússia os pais batem nos seus filhos e os filhos aceitam isso. Irmãs maiores agridem suas irmãs menores, e as irmãs menores aceitam isso. Assim são as coisas aqui.

– Eu entendo – Alexander disse. – Mas você é muito pequena para deixar alguém agredi-la. Além do mais, ele está bebendo muito. O álcool o torna mais explosivo. Você deve ter mais cuidado perto dele.

As mãos dele eram reconfortantes e cálidas. Tatiana meio que fechou os olhos, imaginando uma única coisa. A boca semiaberta num gemido silencioso.

– Amor, não faça isso – Alexander disse, com suas mãos segurando-a mais apertado.

– Shura, eu me sinto perdida – disse Tatiana. – Não sei o que fazer. Estou completamente perdida.

Ele, de repente, soltou-lhe as mãos e com os olhos fez um sinal por trás. Dasha, descendo as escadas, vinha na direção deles.

Ela parou perto dos dois e disse:

– Vim ver a minha irmã. – Ela olhou de Alexander a Tatiana. – Eu não sabia que você ainda estava aqui. Disse que tinha que ir embora.

– Eu tinha que ir embora – Alexander disse, levantando-se. Ele deu em Dasha um beijinho. – Vejo você depois. E quanto a você, Tania, vá ao médico examinar o seu nariz. Terá certeza de que não quebrou.

Tatiana mal pôde assentir com a cabeça. Depois que ele foi embora, Dasha sentou-se ao lado da irmã.

– O que ele queria?

– Nada. Ele queria saber se eu estava bem.

Naquele instante algo diferente tomou conta de Tatiana, e antes que ela abrisse a boca e dissesse a Dasha toda a verdade, ela falou:

– Sabe de uma coisa, Dasha, você é a minha irmã mais velha, e eu amo você, e eu vou estar bem amanhã, mas agora você é a última pessoa com quem eu quero conversar. Eu percebo que faço com muita frequência o que você quer. Eu cedo quando você quer conversar comigo, ou quer que eu vá embora, seja lá o que for. Bem, amanhã eu de novo farei a sua vontade, mas neste instante eu não quero falar com você. Só quero sentar aqui e pensar.

Tatiana fez uma pausa e disse com firmeza:

– Por favor, Dasha, vá embora.

Dasha não se mexeu.

– Olhe, eu sinto muito, Tania, sinto mesmo. Mas você não deveria ter dito o que disse ao Papai e a Mamãe. Você sabe como eles estão desolados por causa do Pasha. Você sabe que eles se sentem culpados.

– Dasha, não quero ouvir a sua desculpa falsa.

– O que deu em você? – perguntou Dasha. – Você nunca falou assim. Com ninguém.

– Por favor, Dasha, por favor. Vá embora.

Tatiana ficou sentada no telhado até o amanhecer, enrolada no velho cardigã, as pernas frias, o rosto frio.

Ela estava espantada pela constante intimidade com Alexander. Embora não tivessem falado muito, embora ele tivesse sido frio com ela. Embora as últimas palavras trocadas entre eles houvessem sido amargas, ela não duvidava, enquanto estivesse entre o pai e a mãe, se precisasse ser defendida, o homem que fora resgatá-la em Luga estaria pronto para isso.

Foi essa convicção que lhe deu forças para gritar com Papai, para insultá-lo, não interessando se era verdade ou não. E não importava também o quanto ela quis dizer tudo aquilo, o fato é que nunca teria se atrevido a fazê-lo se não sentisse a força de Alexander.

E quando Tatiana ficou atrás dele, ela se sentiu ainda mais corajosa, sem importar-se com seu nariz sangrando, com suas costelas doloridas. Ela sabia que ele não permitiria que Dasha a machucasse; ela sabia disso também como conhecia o seu próprio coração. A constatação disso, no escuro da noite, de repente, trouxe-lhe paz consigo mesma, paz com a sua vida, e paz até mesmo com Dasha.

Dimitri, com todos os seus anunciados sentimentos por Tatiana, nada fizera, como ela sabia que ele não faria. Em nada mudara a opinião que tinha de Dimitri. Ele era um homem soviético. Ela não culpava Dimitri por causa disso, por ser fiel à sua natureza.

Ainda assim, ela usava toda a sua força para negar a sua própria natureza, Tatiana sabia que, de forma irrevogável, pertencia a Alexander.

Ela pensava que podia libertar-se dele, que, de algum modo, podia continuar a sua vida, e ele com a sua vida também.

Era tudo uma vergonha.

Não era essa a maneira de superar uma fugaz paixonite pelo pretendente de sua irmã mais velha. Essa era a lua de Júpiter e o sol de Vênus que se alinhavam no céu sobre a cabeça de Tatiana.

5

Quando Alexander entrou em seus aposentos, Dimitri estava deitado no beliche de cima.

– O que há? – disse Alexander cansado.

– Me diz você – disse Dimitri.

– Vejamos. Não acabei de ver você? Vou dormir. Preciso acordar às cinco da manhã.

– Então, vou direto ao assunto – Dimitri disse saindo do beliche. – Eu quero que você pare de brincar com a minha garota.

– De que você está falando?

– Não posso ter alguma coisa só para mim? Você já tem uma vida boa, não tem? Pense sobre todas as coisas que você tem e você quer. Você é um Tenente do Exército Vermelho. Tem uma Companhia de homens que o obedecem em tudo. Eu não estou na sua Companhia...

– Não, mas você está na minha, soldado – disse Anatoly Marazov pulando do beliche do lado de Alexander. – Já é tarde e todos temos dias longos pela frente. Você não devia estar aqui levantando a voz. Está aqui por um privilégio. – Dimitri bateu-lhe continência. Alexander permaneceu calado.

– Em forma, Soldado – Marazov disse aproximando-se de Dimitri. – Pensei que você tinha vindo aqui só para relaxar e esperar por seu amigo.

– É só um pequeno assunto entre mim e meu Tenente, senhor – disse Dimitri.

– É só um assunto pequeno, Soldado, quando não sou acordado no meio de um sono tão necessitado. Mas se me acordam, deixa de ser um pequeno assunto e vira uma coisa totalmente diferente. Agora, descansar.

Marazov, que estava de ceroulas, deu a volta ao redor de Dimitri, que estava fardado, e disse-lhe:

– Esse assuntinho não pode esperar até de manhã?

Alexander interveio.

– Tenente, pode nos dar uns minutos?

Contendo o sorriso, Marazov fez um sinal com a cabeça.

– Como o senhor quiser, Tenente.

– Vamos discutir no hall.

Eles saíram para o corredor; Alexander fechou a porta.

– Dima, qual é o problema? Não se meta em confusão com o seu Comandante.

– Corte esse papo furado, me diga, quando será suficiente para você? – Mantendo uma distância de Alexander, Dimitri sussurrou: – Você pode ter qualquer garota no mundo, por que quer a minha?

Alexander precisou de toda a sua força para não fazer a mesma pergunta a Dimitri.

– Não tenho ideia do que você está falando. Eles a machucavam. Eu a ajudei.

Dimitri continuou:

– Eu não passo de um resmungão. Tenho que obedecer ordens de todo mundo e engolir os sapos de todo mundo. Ela é a única pessoa que me trata como ser humano.

Ela não pode evitar. Trata todo mundo assim.

– Mas Dima – Alexander disse –, você também tem a sua vida. Pense em todas as coisas que você não tem ou que não quer. Você não foi enviado ao sul, onde homens estão caindo nas máquinas de moer carne de Hitler. A unidade de Marazov fica aqui até que o front venha para Leningrado. Eu cuidei disso para ajudar você. – Fez uma pausa. – Porque eu sou o seu amigo. – Ele foi na direção de Dimitri. – Eu tenho sido muito bom para você ao longo dos anos.O que aconteceu à nossa amizade?

– Aconteceu o amor – disparou Dimitri. – Ela é mais importante para mim agora. Eu quero sobreviver a esta porra de guerra por ela.

– Oh – disse Alexander, e depois silenciou. – Então sobreviva... por ela. Quem está impedindo você?

– Seja lá o que for – Dimitri sussurrou –, a tola paixonite dela não é real. Como poderia ser? Ela não sabe quem você é. – Dimitri fez uma pausa. – Ou sabe?

O coração de Alexander bateu errático antes que ele respondesse. A lâmpada perto deles estava quebrada. A outra, no corredor, acendia e apagava. De alguns quartos ouviam-se risadas de soldados. A água corria e mesmo assim estavam em silêncio um na frente do outro. Alexander imaginava a que se referia Dimitri. Seu passado indiscreto? América? Ele olhou para Dimitri.

– Claro que ela não sabe – ele disse por fim. – Ela não sabe absolutamente nada.

– Porque se ela soubesse, Alexander, a situação ficaria muito perigosa, você não acha? Para nós.

Alexander deu um passo na direção de Dimitri, que abriu as palmas das mãos e recuou até a parede.

– Dimitri – disse Alexander. – Não se meta comigo. Eu disse a você, ela não sabe nada.

– Eu não quero magoar ninguém – Dimitri disse baixinho, as mãos para cima. – Só quero a minha chance com a Tania.

Dentes cerrados, Alexander virou-se e voltou aos seus aposentos.

Deitado na cama, os braços atrás da cabeça, Marazov disse casualmente:

– Alexander, quer que eu cuide do Chernenko? Ele está lhe dando alguma mão de obra?

Alexander balançou a cabeça.

– Não se preocupe, eu posso lidar com ele.

– Poderíamos transferi-lo.

– Ele já foi transferido quatro vezes.

– Oh, ninguém o quer, e então você o manda para mim?

– A você não, ao Kashnikov.

– Sim, e o Kashnikov é meu.

O Marazov pegou um cantil e tomou um gole de vodca, depois, passando-o para Alexander, disse:

– Nós não temos homens suficientes para jogar na frente dos tanques de Hitler e segurar Leningrado. Vamos ter que nos render, não é?

– Não se eu puder evitar isso – disse Alexander. – Vamos combater nas ruas com pedras, se for preciso. – Ele sorriu.

Marazov bateu-lhe continência e caiu em seu travesseiro.

– Tenente Belov, eu não tenho visto muito você nas folgas. Você não acreditaria se visse algumas das meninas que têm vindo ao clube. – Ele sorriu.

Alexander sorriu e balançou a cabeça.

– Para mim chega.

Surpreso, Marazov levantou a cabeça.

– Não entendo as palavras que saem agora de sua boca, Tenente. Eu ouço você. Acho que você está falando russo, mas simplesmente não posso acreditar no que estou ouvindo. Que porra está acontecendo?

Quando Alexander não respondeu, Marazov disse:

– Espere, você não está... oh, não! – ele riu com gosto. – Agora eu sei que você tem merda na cabeça. O que aconteceu com você? Você não está morrendo, está?

– Não estou dormindo. Com toda certeza, porra! – disse Alexander.

– A quem posso acordar? Não aguento guardar este segredo.

Ele se inclinou e, com um cobertor, acertou o soldado que dormia no beliche de baixo.

– Grinkov, acorde.Você não vai acreditar quando eu lhe contar...

– Vai se foder – Grinkov disse, jogando o travesseiro no chão e se virando no beliche.

Alexander riu.

– Pare com isso, seu porra-louca – ele disse a Marazov. – Pare com isso, antes que eu transfira você.

– Que é isso?

– Não sei do que você está falando – disse Alexander, cobrindo a cara com um travesseiro.

– Espere, é a garota cujo nome você fala enquanto sonha.

Alexander tirou o travesseiro do rosto e, surpreso, disse:

– Eu não falo dormindo.

– Oh, fala sim – disse Marazov. – E como! Grinkov, o que o Belov fala quando está dormindo?

– Vai se foder – Grinkov disse outra vez virando-se para a parede.

– Não, não é isso. É o nome de alguma garota é... Alexander, você é um craque para esconder isso dos seus colegas oficias.

– Sim, porque não confio em vocês – disse Alexander, virando-se de lado.

Marazov bateu palmas.

– Esta eu quero conhecer – ele disse. – Preciso conhecer a garota que roubou tudo do nosso errante Alexander.

Mais tarde, com um peso no peito, sem poder dormir, Alexander sabia que não era fácil, com um passeio no campo, reconstruir o seu coração. Se a sua vida na União Soviética lhe ensinara algo, teria sido isso. Mas ele ia tentar, depois que falasse com ela, tudo seria mais fácil de levar adiante depois que ele tivesse falado com ela.

Alexander sabia que, antes de haver luz ao invés de escuridão, ele tinha que merecer luz ao invés de escuridão. Obviamente ainda não chegara a sua hora. Ele ainda tinha que ganhar as suas estrelas.

6

Pela manhã, Mamãe perguntou a Tatiana se ela estava contente consigo própria.

– Não – Tatiana respondeu –, não particularmente.

Depois que todos saíram, ela começou a se preparar para ir ao hospital. Ouviu uma batida na porta e, quando abriu, ali estava Alexander em pé, do lado de fora.

– Não posso deixar você entrar – Tatiana disse apontando a Zhanna Sarkova, que saiu de seu quarto e ficou no corredor com um olhar desconfiado.

Por dentro, Tatiana sentiu uma mistura de ansiedade e excitação. Ela não podia deixá-lo entrar, não podia fechar a porta, não com Sarkova observando-os, mesmo assim...

– Não se preocupe – Alexander disse, passos largos. – Eu tenho uma unidade inteira esperando por mim lá embaixo. Vamos barricar as ruas ao sudeste. – Fez uma pausa. – Notícias terríveis. Mga caiu nas mãos dos alemães ontem.

– Oh, não, Mga não. – Tatiana lembrou-se das palavras de Alexander sobre os trens. – O que isso significa para nós?

Alexander balançou a cabeça.

– É o fim. Só queria ter certeza de que você estava bem depois de ontem. E... – Ele disse bem firme. – Que não iria trabalhar hoje.

– Mas eu vou.

– Tatia, não.

– Shura, eu vou.

– Não – ele levantou a voz.

Olhando por trás dele, Tatiana, disse:

– Quero que você saiba que aquela mulher alguma coisa vai dizer à minha família sobre esta sua visita, eu garanto isso.

– É por isso que você vai me dar o meu quepe que eu deixei aqui ontem. Fui multado na inspeção desta manhã. Preciso do meu quepe.

Tatiana deixou a porta aberta enquanto Alexander foi para o quarto pegar o seu quepe.

– Por favor, não vá para o hospital – ele disse saindo para o corredor.

– Alexander, estou ficando louca. Todo dia, cada dia. No hospital pelo menos eu vejo algum sofrimento real. Isso vai me animar.

– Sua perna nunca vai sarar se você ficar em pé o dia todo. Você precisar de mais umas duas semanas para tirar o gesso. Depois disso vá trabalhar.

– Não vou ficar por outras duas semanas. O único hospital onde eles vão me colocar em duas semanas será um hospício.

– Eu gostaria que Kirov não fosse na linha de frente – Alexander disse baixinho. – Você então poderia voltar para trabalhar lá. Eu veria você todos os dias. – Fez uma pausa. – Como eu costumava fazer, lembra?

Se ela lembrava?

O coração de Tatiana batia forte. Mas ali estava Sarkova, observando-os pela sua porta aberta.

– É isso. Estou cheio – Alexander murmurou, e fechou a porta.

Tatiana abriu a boca e depois a fechou de novo.

– Oh, não – ela disse. – Estamos cada vez mais encrencados.

Ele chegou mais perto dela. Ela se afastou dele. Alexander deu outro passo na direção dela.

– E o nariz?

– Está bem. Não quebrou.

– Como você sabe isso? – Ele chegou mais perto. Ela abriu as palmas das mãos. – Shura, por favor.

Ouviu-se uma batida forte na porta.

– Tanechka, você está bem?

– Bem, obrigada – Tatiana gritou. A maçaneta girou e Sarkova abriu a porta.

– Eu só queria saber se quer que eu faça alguma coisa para você comer?

– Não, obrigada, Zhanna – disse Tatiana. Pondo uma cara séria.

Sarkova olhou para Alexander, que se virou para Tatiana e rolou os olhos. Tatiana quase caiu na risada.

– Nós já estávamos indo embora.

– Oh, aonde vocês vão?

– Eu vou trabalhar.

– Você não vai trabalhar – Alexander sussurrou.

– E o Tenente Belov vai construir barricadas.

Alexander virou-se para Zhanna.

– Barricadas, Camarada Sarkova – ele disse, indo na direção dela. – Você sabe o que é isso? Estruturas de quase três metros de altura e quatro metros de espessura alongando-se por vinte quilômetros.

Sarkova recuou até o hall.

– E cada barricada é municiada com oito pontos de metralhadora, dez posições antitanques, treze posições de morteiros e 46 pontos de metralhadora.

– É assim que protegemos a cidade que amamos, batendo a porta.

Tatiana permaneceu atrás dele balançando a cabeça, no rosto um sorriso de satisfação.

– Foi suficiente. – Ela pegou a bolsa. – Vamos embora, seu construtor de barricadas.

Eles saíram trancando a porta e deixando Sarkova na cozinha comunitária, resmungando e tomando chá.

Quando a ajudava a descer as escadas, Alexander pegou na mão dela. Tatiana tentou desvencilhar-se.

– Alexander!

– Não.

Ele a trouxe para mais perto no final da escada.

Tatiana sentiu por dentro o barulho, o barulho de madeira crepitando na fogueira.

– Olhe – ela disse –, vou pedir a Vera que me coloque no refeitório do hospital, talvez você possa vir almoçar? – ela sorriu. – Eu sirvo você.

Alexander balançou a cabeça.

– Embora poucas coisas me deem mais prazer que você me servindo – ele sorriu –, estaremos muito longe, ao sul, não terei como voltar a tempo para o almoço.

– Shura, me solta. Estamos num patamar no meu edifício...

Ele não soltou as mãos de Tatiana. Ela intuiu alguma coisa e perguntou:

– Está tudo bem?

Alexander hesitou, e seus olhos chocolate derreteram-se em tristeza sobre Tatiana.

– Oh, Tania, preciso falar com você. – Ele suspirou. – Preciso falar com você sobre o Dimitri.

– O que tem ele?

– Não posso agora. Preciso conversar sério com você e sozinho. Venha ao meu encontro hoje à noite em Santo Isaac.

O turbulento coração de Tatiana martelava no seu peito. Santo Isaac!

– Alexander, eu mal posso andar ao hospital a três quarteirões. Como vou chegar na Santo Isaac?

Mas Tatiana sabia: se ela tivesse que rastejar arrastando uma perna, ela chegaria à Catedral.

– Eu sei. Eu não quero que você ande tudo aquilo sem nenhuma ajuda. As ruas são seguras, mas você... – Ele afagou o seu rosto. – Você tem um amigo que pode levá-la lá? – ele perguntou. – Não o Anton, uma amiga em quem você confie, que possa ajudá-la e deixá-la perto? Então você pode andar um quarteirão ou dois sozinha.

Tatiana estava calada.

– E como vou voltar para casa? – ela perguntou.

Alexander sorriu, trazendo-a para mais perto dele.

– Como sempre – ele disse. – Eu mesmo levo você para casa.

Ela fixou os olhos nos botões da farda dele.

– Tania, precisamos desperadamente ter um minuto. E você sabe disso.

Ela sabia.

– Isso não está direito.

– É a única coisa direita.

– Muito bem. Vá.

– Você vem?

– Vou tentar. Agora, vá.

– Levante seu...

Antes que ele parasse de falar, Tatiana levantou o rosto para ele. Beijaram-se com paixão.

– Você tem alguma ideia do que eu sinto? – Alexander sussurrou suas mãos no cabelo de Tatiana.

– Não – Tatiana respondeu, nele se segurando, as pernas entorpecidas. – Eu só tenho ideia do que eu sinto.

Um milagre aconteceu naquela noite: funcionava o telefone da prima de Tatiana, Marina. Tatiana suplicou a Marina que a visitasse, e Marina veio por volta das oito. Tatiana não parava de abraçá-la.

– Marinka, você é a prova viva de que de fato existe um Deus no céu. Eu precisava tanto de você – ela disse. – Onde você tem andado?

– Deus não existe, você sabe disso. Onde tenho andado? – Marina disse rindo. – Me solta. Onde você tem andado? Ouvi falar de todas as suas aventuras em Luga. – Ela piscou. – Sinto muito sobre o nosso Pasha. – Um pouco mais animada, ela disse: – Por que você está parecendo com um menino?

– Eu tenho tanto para lhe contar.

– Obviamente.

Marina sentou-se à mesa, no quarto onde no dia anterior, à noite, Tatiana ficara atrás de Alexander.

– Tem alguma coisa de comer? Estou faminta.

Marina era uma menina de olhos escuros e cabelos negros e curtos, tinha quadris grandes, seios pequenos, e marcas de nascimento no rosto. Estava com dezenove anos e cursava seu segundo ano da universidade de Leningrado. Marina era a melhor amiga e confidente de Tatiana. Marina, Tatiana e Pasha haviam passado muitos dias de verão brincando ao redor de Luga e da vizinha Novgorod. Só há um ano e pouco ficara aparente a diferença de idade entre elas. Tatiana simplesmente não pertencia mais à turma de Marina.

Tatiana, rápida, deu a Marina um pouco de pão, queijo, um pouco de chá e disse:

– Marina, coma logo, porque eu preciso sair para andar, tudo bem? Você está bonita nesse vestido. Como foi o seu verão?

– Não podemos sair para dar um passeio. Você não pode andar. Olhe só você. Fale comigo aqui.

Mamãe e Papai estavam no outro quarto com Dasha ouvindo rádio. Tatiana e Marina estavam sozinhas no quarto. Ninguém da família falava com Tatiana depois do acontecido no dia anterior.

Marina mastigava e olhava Tatiana.

– Comece pelo o cabelo. O que aconteceu com o seu cabelo? E por que essa saia tão comprida?

– Cortei o meu cabelo, e a saia esconde o gesso. Levante-se, precisamos ir. – Tatiana puxou Marina pelo braço. Estava apressada. Alexander lhe dissera para aparecer depois das dez, e agora já eram quase nove, e ela ainda estava na Quinta Soviet. Estava preparada para contar tudo a Marina e conseguir a sua ajuda? Ela de novo segurou-se no braço roliço de Marina. – Vamos embora, chega de comer.

– Como você vai andar? Mal pode mancar. E por que precisar ir a algum lugar? Quando você tira esse gesso aí?

– Então vamos mancar um pouco. Às vezes, parece que nunca vou tirar o gesso. Como estou?

Marina parou de comer e olhou Tatiana.

– O que você disse?

– Eu disse vamos.

– Tudo bem – Marina disse, limpando a boca e levantando-se. – O que está acontecendo?

– Nada, por quê?

– Tatiana Metanov! Eu sei que tem alguma coisa muito errada.

– Do que você está falando?

– Tania! Eu conheço você há dezessete anos e você nunca me perguntou sobre a sua aparência.

– Talvez se o seu telefone funcionasse mais vezes, eu teria perguntado. Você vai me responder, ou simplesmente vamos sair?

– Seu cabelo está muito curto, sua saia muito longa, sua blusa é branca e justa. Que diabos está acontecendo?

Por fim Tatiana conseguiu levar Marina para fora. Devagar, elas desceram a Rua Grechesky, rumo à Praça da Insurreição, onde pegaram um bonde na Avenida Nevsky, na direção do Almirantado. Tatiana caminhava apoiada no braço de Marina. Tinha alguma dificuldade para andar e falar ao mesmo tempo. O andar consumia quase toda a sua energia.

– Tania, me diga, por que pulou de um trem em movimento? Foi assim que você quebrou a perna?

– Não foi assim que eu quebrei a minha perna. E eu pulei de um trem em movimento porque isso era o que eu tinha que fazer.

– Então aquele monte de tijolos caiu em cima de você porque também tinha que ser assim? – Marina perguntou com uma risada. – Foi assim que você quebrou a sua perna?

– Sim, quer parar com isso?

Marina riu.

– Eu sinto muito sobre o Pasha, Tanechka – ela disse, mais baixinho. – Ele era um ótimo menino.

– Sim – disse Tatiana. – Eu queria muito tê-lo encontrado.

– Eu sei. – Marina fez uma pausa. – Este verão não tem sido dos melhores. Eu não vejo você desde que a guerra começou.

Tatiana assentiu.

– Você quase me viu. Eu estava a ponto de vir visitar você no dia em que a guerra começou.

– E por que não veio?

Tatiana queria poder contar tudo a Marina: sua emoção e sua consciência, seu medo e confusão. Em vez disso, ela contou a Marina sobre a Dasha e o Alexander, e ela própria e o Dimitri, ela própria e Luga, e a busca de Alexander por ela. Tatiana apenas não contou a Marina a verdade.

Tatiana mal podia confiar em si mesma para não escorregar diante de Dasha em meio ao gelo das mentiras constantes sobre as quais ela patinava.

Como ela podia confiar em Marina que nada tinha em jogo. Tatiana não contou nada à sua prima, intuindo que a verdade abriria um abismo entre ela e todos os que ela amava. Como é possível isso?, Tatiana pensou, quando chegaram aos Jardins do Almirantado e sentaram-se num banco. Como era possível que engano, e traição, e segredo a ligassem a outros seres humanos, em vez de verdade, e confiança, e honestidade? Como era possível ela não poder confiar a um membro de sua própria família um assunto pessoal? Parece que esta vida só gera desprezo por outros seres humanos.

Os Jardins do Almirantado estendiam-se pelas margens do rio Neva, entre a Ponte do Palácio e a Catedral de Santo Isaac. Tatiana não estava longe de Alexander. Se ela se esforçasse, até poderia ouvi-lo respirar. Ela sorriu. Como nos Jardins de Verão, aqui também os altos e frondosos olmos pairavam sobre as veredas e os bancos. A diferença era que, nos Jardins de Verão, Tatiana sentara e andara com ele.

– Tania – Marina disse. – Tem algum motivo para estarmos aqui?

– Não, Marina – disse Tatiana. – Só vamos sentar e conversar. – Ela queria muito ter um relógio. Que horas seriam?

– Eu costumava vir a este parque – Marina disse. – Certa vez eu trouxe você comigo, lembra?

Tatiana ruborizada, disse:

– Sim... eu lembro.

– Eu tive algumas boas épocas na minha vida – Marina disse. – Não parecem tão distantes. Você acha que vamos tê-las de novo?

– Com certeza, Marinka. Estou apostando nisso. Eu ainda não tive boas épocas na minha vida. – Ela sorriu à prima.

Marina riu.

– Nem mesmo com o Dima?

– Claro que não! – Tatiana disse e nada mais falou.

Marina abraçou Tatiana.

– Não fique triste, Tania. De alguma maneira você vai sair desta cidade.

Tatiana balançou a cabeça.

– Não, não tem mais trens, Marinka. Mga caiu.

Marina ficou em silêncio.

– Há três dias, não sabemos do Papai – ela disse – Ele está combatendo em Izhorsk, é perto de Mga, não é?

– Sim – Tatiana disse levemente. – É.

Marina abraçou mais forte Tatiana. – Eu acho que ninguém está saindo desta cidade – ela disse. – Mamãe está tão doente, Papai está...

– Eu sei – disse Tatiana dando um tapinha na perna da prima. – Conseguiremos, Marina. Só precisamos ser fortes.

– Sim, especialmente você – Marina disse, sacudindo a cabeça afugentando seu maus pensamentos. – Você vai me dizer por que me trouxe aqui?

– Não.

– Tania...

– Não. Não tenho nada para contar.

Marina fez cócegas no braço de Tatiana.

– Tania, me conte sobre o Dimitri.

– Não há nada para contar.

Marina deu uma risadinha.

– Não posso acreditar que você, além de tudo, esteja saindo com um soldado! – ela olhou desconfiada para Tatiana. – Oh, não.Você não vai encontrá-lo aqui mais tarde, vai?

– Não! – Tatiana gritou. – O Dima e eu somos só amigos.

– Sim, claro, os soldados só têm uma maneira de fazer amizade, Tania.

Agora era Tania que a olhava desconfiada.

– Ao que você se refere?

– Lembra que no ano passado eu sai com um soldado – Marina fez um barulhinho desdenhoso com a língua. – Vi como ele vivia e disse a mim mesma: esqueça, não quero fazer parte disso. Mas neste verão eu andei saindo com alguém muito legal, outro estudante. Ele se alistou e foi embora para Fornosovo. – Ela parou. – Desde então nada sei dele.

– Como assim? – disse Tatiana. – De que você não quer fazer parte na vida de soldados? É por causa da guerra?

– Tania, não é a guerra. São as mulheres.

– Mulheres? – ela disse baixinho.

– Mulheres. Garotas festeiras, garotas de programa, namoradeiras de guarnição, prostitutas. Mulheres de todo tipo que frequentam os bares, clubes e barracas, se oferecendo aos soldados, e eles topam. Todos eles. Simplesmente fazem isso. Como fumar. Quando não estão em serviço, quando têm folga no fim de semana, quando conseguem uma licença. – Marina balançou a cabeça. – Não sei como você mantém o Dimitri à distância. Mulheres fáceis, mulheres difíceis, jovens garotas como você, é tudo a mesma coisa para os soldados, é só uma grande conquista para eles.

Com uma voz menor, horrorizada, Tatiana, disse:

– Marinka, do que você está falando? Não em Leningrado. Isso é só no Ocidente. Na América.

Marina caiu na risada.

– Eu amo você – ela disse abraçando a prima. – Amo você de verdade. Você é tão...

– Alexander não é assim – balbuciou Tatiana, abalada.

– Quem? Oh, o rapaz da Dasha. Não? Pergunte a Dasha. Como você acha que ele a conheceu?

– Dasha conheceu Alexander no Sadko. Você não está dizendo...?

– Pergunte a Dasha, Tania.

– Você não sabe do que está falando!

Tatiana já se arrependera de haver chamado a prima.

Como Tatiana ficou em silêncio, Marina continuou:

– Olhe, o que estou afirmando é que você deve ser cuidadosa com um soldado como o Dimitri, especialmente você. Eles esperam certas coisas. E quando não as conseguem, eles as tomam de algum modo. Você entende?

Tatiana continuou em silêncio.

Como diabos começaram a falar desse assunto?

– Você ainda tem amizade com o Anton Iglenko? Ele é um rapaz legal, realmente gosta de você.

– Marina! – Tatiana balançou a cabeça. – O Anton é meu amigo. – Sentada, ela respirava pesado, mantendo as mãos firmes no colo. – Ele não gosta de mim.

Marina sorriu, despenteando o cabelo de Tatiana.

– Você é adorável. E, como sempre, cega, lembra do Misha? Lembra como ele ficou vidrado em você?

– Quem? – Tatiana esforçou-se para lembrar. – O Misha lá de Luga?

Marina concordou.

– Ao longo de três verões. O Pasha não conseguia mantê-lo longe de você.

– Você é louca.

Tatiana e Misha costumavam pendurar-se juntos nas árvores. Ela o ensinou a dar cambalhotas, e o Pasha, também.

– Você alguma vez já falou com Dasha sobre essas coisas? – Marina perguntou.

– Meu Deus, não! – Tatiana exclamou tentando se levantar. Ela sentiu como se fosse apunhalada repetidas vezes com um utensílio contundente de cozinha.

Marina a ajudou a levantar-se.

– Bem, sugiro que fale. Ela é a sua irmã mais velha. Deve ajudar você. Mas seja cuidadosa com o Dimitri, Tania. Você não vai querer ser mais uma da lista de um soldado qualquer.

Tatiana tentou pensar em Alexander da maneira como ela o conhecia. Ela nada sabia dessa parte da vida dele. Apareceu-lhe então uma visão da cabeça dele, suavemente beijando o seu seio quando ela estava deitada na tenda dele. Ela balançou a cabeça. O que Marina descrevia não era o seu Alexander.

Tatiana então lembrou-se do comentário de Dimitri sobre as atividades extracurriculares de Alexander. Sentiu-se mal.

– Vamos para casa – ela disse, desanimada, e devagar caminhara até a parada do bonde na Rua Nevsky. Tatiana disse a Marina que ela não precisava acompanhá-la até em casa.

– Vou estar bem. Posso caminhar da Praça da Insurreição até em casa. Honestamente. Olhe, seu ônibus chega a qualquer minuto. Não se preocupe comigo nem por um segundo.

Marina disse que não podia deixar Tatiana sozinha à noite no meio da cidade. Tatiana não se preocupava ainda com o medo de alguma coisa.

– O Alexander nos disse que o crime violento caiu de forma dramática desde o começo da guerra. Quase acabou.

– Oh, bem, se o Alexander lhes disse isso... – Marina disse olhando bem no rosto de Tatiana. – Você está bem?

– Estou ótima, vá embora – Tatiana disse, e então sentiu uma triste relutância em Marina, que não percebera antes, tão envolvida estava em sua própria névoa de perturbação.

Mais atenta, estudou Marina por um momento. Ela alcançou Marina e tocou-lhe a face, Marina piscou. Tatiana viu.

– Quem está em casa, Marina? – Tatiana perguntou baixinho. – Você vai para casa para ficar com quem?

– Ninguém – Marina respondeu também baixinho. – Mamãe está no hospital. E o Papai na guerra. No fim do corredor, a família Lublins.

– Marinka – Tatiana disse carinhosa. – Não fique sozinha. Venha morar com a gente. Temos espaço, agora o Deda e a Babushka foram embora. Você não quer ficar sozinha. Venha. Dorme comigo e com a Dasha.

– De verdade? – Marina disse.

– De verdade – Tatiana assentiu.

– Você perguntou aos seus pais sobre isso?

– Não preciso perguntar. Pegue as suas coisas e venha. Sua mãe é irmã do meu pai. Ele não vai dizer não. Venha, tudo bem?

Marina deu um abraço em Tatiana.

– Obrigada – ela sussurrou. – Eu tenho me sentido tão sozinha naqueles quartos sem a Mamãe e o Papai.

Tatiana acariciou Marina e disse:

– Eu sei. Olhe! O seu ônibus!

Acenando para Tatiana, Marina cruzou a Rua Nevsky para pegar o seu ônibus, e Tatiana sentou-se no banco e esperou o seu bonde de volta para casa. Ela se sentiu enjoada. O bonde chegou; as portas se abriram. O condutor a olhou. Tatiana balançou a cabeça. O bonde foi embora.

Como ela não iria vê-lo? Ela não podia ficar longe dele. Tatiana levantou-se e, mancando, passou os Jardins do Almirantado rumo à Catedral de Santo Isaac.

Dois soldados vinham em sua direção. Pararam na frente de Tatiana, bateram no pavimento e perguntaram aonde ela ia. Ela lhes disse.

Um soldado disse que àquela hora a igreja estava fechada. Tatiana disse que sabia, mas ela procurava um certo Tenente Belov. Eles o conheciam e seus rostos sérios se descontraíram. O outro soldado disse:

– Eu lhe disse, Viktor, que deveríamos ter-nos matriculado na escola de oficiais e você não acreditou em mim.

– Pensei que isso seria mais trabalho, só isso – ele olhou para Tatiana e interrompeu – E você quem é?

– Uma prima dele de Krasnodar.

– Oh! Prima – disse Viktor. – Bem, venha conosco. Nós levamos você até ele. Não sei como você vai chegar até a arcada de observação. São aproximadamente duzentos degraus de uma escada em espiral.

– Eu chego lá – Tatiana disse.

A igreja de Santo Isaac nunca pareceu tão longe da Rua Nevsky, embora estivesse a menos de um quilômetro. Quando chegaram à Catedral, ela estava ofegante e sua perna latejava. Em frente à Catedral, às margens do rio Neva, Tatiana viu as formas da estátua de Pedro, O Grande, em seu corcel, O Cavaleiro de Bronze, uma pálida silhueta coberta com uma tábua de madeira forrada com lonas e areia. O Cavaleiro de Bronze foi construído por Catarina, A Grande, como um tributo a Pedro, O Grande, por haver construído Leningrado.

Naquela noite, nada podia ser visto do cavalo negro, ou de seu majestoso cavaleiro, ou sua mão estendida; apenas os sacos de areia para proteger a estátua dos alemães.

– Amanhã eles vão decretar um toque de recolher na cidade inteira – Viktor disse. – Acabaram os passeios noturnos. Por isso é bom aproveitar ao máximo o seu encontro com o Tenente Belov, prima.

Eles a levaram para dentro do cavernoso hall de granito. Ela ouviu a leve batida do pêndulo colocado pelos comunistas dentro da Catedral para converter o lugar de culto em um museu de ciências.

O guarda na estreita entrada da escadaria perguntou se Tatiana estava limpa.

– Bem, eu acho que sim. Ela não está carregando nenhuma bomba.

– Você a revistou?

– Com licença – disse Viktor. Ele passou as mãos sobre as costelas de Tatiana, e ela fez uma careta. Sentia uma crescente ansiedade. Estar ali sozinha com três soldados num edifício escuro, ominoso, Alexander lá no alto, sem poder ouvi-la, fazia Tatiana temer coisas que não podia imaginar. Era um medo irracional, ela admitia enquanto as mãos de Viktor desciam para os seus quadris. Ele a segurou com mais firmeza, de repente seu medo a despertou.

– Talvez um de vocês possa – ela disse, tentando livrar-se – informar ao Tenente que eu estou aqui. – Ela respirou fundo. – Querem saber de uma coisa, eu vou embora. Vocês podem dizer a ele que eu passei por aqui.

Ouviu-se uma voz vinda da escadaria que disse:

– Soltem a moça – era Alexander que apareceu na porta com o seu rifle. Tatiana respirou aliviada. Viktor soltou-a rápido.

– Nenhum problema, Tenente, nós a revistávamos à procura de armas. Ela diz que é a sua prima de...

– Soldado! – Alexander aproximou-se de Viktor, numa posição mais alta. – Nós temos critérios, Soldado, até mesmo no Exército Vermelho. Esses critérios não nos permitem ameaçar meninas. A não ser que você queira sofrer alguma punição, eu sugiro que não me deixe pegá-lo fazendo isso outra vez. – Ele colocou as mãos nas costas de Tatiana. – Vocês dois voltem à rua, que é o seu lugar. Cabo, você fica aqui até ser liberado por Petrenko e Kapov – disse aos seus homens.

– Sim senhor – os três disseram em uníssono. O cabo ocupou o seu lugar na soleira da porta.

Alexander tentava não sorrir.

– É uma bela subida – ele disse, a mão nas costas dela levando-a para a escadaria. – Vamos. – Quando estavam ao redor de uma coluna, longe de olhos alheios, Alexander sorriu amplamente.

– Tania – ele disse –, estou muito feliz porque você veio me ver. – Tatiana, suspirando, derretendo-se, aquecendo-se, disse suavemente:

– Eu também.

– Eles assustaram você? São inofensivos – ele disse, afagando o seu cabelo.

– Se eles são tão inofensivos, por que você desceu?

– Ouvi a sua voz e as deles. São inofensivos, mas você parecia assustada.

Ele olhava para ela tão...

– O que foi? – Tatiana disse timidamente.

– Nada.

Alexander se agachou na frente dela.

– Vamos. Segure o meu pescoço. Lembra como fazer isso?

– Você vai me carregar duzentos degraus acima?

– É o mínimo que eu posso fazer depois de você ter vindo até aqui.Pode segurar o meu rifle?

Apoiado no corrimão, ele propeliu-se para cima, as mãos de Tatiana no seu pescoço. Esperando que ele não percebesse, Tatiana beijou em silêncio as costas de sua farda.

Alexander a levou a uma arcada circular de vidro com cinco colunas, que parcialmente obstruíam a vista do horizonte e do céu. Ele sentou-a, pegou o seu rifle de volta e o colocou na parede do domo dourado.

– Temos que sair ao balcão para uma vista mais clara. Você aguenta? – Ele sorriu. – Estamos numa grande altura. Você não tem medo de altura, tem?

– Eu não tenho medo de altura, não – disse olhando para ele.

Eles entraram numa plataforma com varanda externa, estreita, circulando a arcada acima da rotunda.

Um curto corrimão de ferro estendia-se ao redor da plataforma. A vista aqui de cima seria mais impressionante ainda, Tatiana pensou, se Leningrado não estivesse preparada para a guerra.

Todas as luzes apagadas, ela não podia, no negro da noite, nem mesmo ver os dirigíveis brancos flutuando silenciosamente no céu escuro. O ar estava frio e cheirava a água fresca.

– O que você acha? É legal aqui em cima? – Alexander disse, chegando mais perto dela.

Ainda que quisesse, ela não podia se mexer, estava entre ele e a grade.

– Mmm – ela disse, espreitando a noite, temerosa de olhar para ele, temerosa de que ele visse o seu coração. – O que você faz aqui sozinho, noite após noite?

– Nada. Sento no chão. Fumo. Penso.

Alexander enroscou os seus braços ao redor da cintura de Tatiana e fechou as mãos sobre a sua barriga, trazendo-a para mais perto dele. Em seu pescoço, Tania sentiu os lábios dele sussurrarem:

– Oh, Tatia...

Como foi instantâneo o desejo. Foi como uma bomba explodindo, fragmentando-se e inflamando todas suas terminações nervosas. Não era desejo. Era desejo ardente por Alexander.

Tatiana tentou mexer-se de lado, mas ele a segurou mais apertado ainda. Tudo o que ela queria era afundar-se no chão. Por que isso? Por que, cada vez que ele a tocava, ela queria deitar-se?

– Shura, espere – ela disse, não reconhecendo a sua própria voz, que, espessa de ansiedade, disse: – Venha aqui, venha, venha. – Tatiana fechou os olhos balbuciando. – Não vejo nenhum avião.

– Eu tampouco.

– Eles estão vindo? – Ela gemeu suavemente.

– Sim. O anúncio por fim está correto. O inimigo está nos portões. – Ele continuou a beijá-la nos cabelos.

– Você acha que temos alguma chance de sair daqui?

– Nenhuma. Você está aprisionada nesta cidade.

Tatiana tremia toda ao sentir em seu pescoço o hálito quente e os lábios úmidos de Alexander.

– Como será?

Ele não respondeu.

– Você disse que queria falar comigo... – Tatiana disse rouca.

– Falar? – Alexander disse, apertando a sua barriga contra a dela.

– Sim, falar... Comigo... Sobre. – Ela não podia lembrar do que era. – Dimitri.

Ele tirou a blusa dela e beijou seu ombro.

– Eu gosto de sua blusa – ele sussurrou, sua boca na pele dela.

– Pare com isso, Shura, por favor.

– Não – ele disse, acariciando-a nas costas –, não posso parar. – Ele respirou nos seus cabelos. – Como também não posso parar de respirar.

Alexander pousou as mãos sobre os seios de Tatiana. Suas costelas, ainda frágeis, ao toque dele, machucavam-na leve e delicadamente e Tatiana não podia evitar, ela gemia.

Apertando-a mais forte ainda, ele a virou; com sua boca na garganta dela, ele sussurrou:

– Não, você não pode dar um pio. Tudo vai para baixo. Você não pode deixá-los ouvir.

– Então tire as suas mãos de mim – Tatiana sussurrou de volta. – Ou cubra a minha boca.

– Cubro a sua boca, tudo bem – ele disse beijando-a com fervor.

Depois de três segundos, Tatiana estava a ponto de desmaiar.

– Shura – ela gemeu, se segurando nele. – Meu Deus, você deve parar. Como paramos?

As pontadas no seu estômago haviam piorado.

– Não paramos.

– Paramos.

– Não paramos – ele repetiu. Seus lábios nela.

– Não quero dizer... Digo, isto? Como conseguimos alívio disto? Não posso viver os meus dias desta maneira, pensando em você. Como conseguimos alívio?

Alexander parou de beijá-la.

– A única coisa que eu quero em toda minha vida – ele sussurrou ardentemente – é mostrar a você como conseguimos alívio, Tania.

Com as mãos em forma de viseira, ele segurou-a mais perto.

Tania lembrava das palavras de Marina, você não passa de mais uma conquista de um soldado.E não obstante ela própria, não obstante a certeza inabalável nas coisas que acreditava verdadeiras, não obstante os luminosos momentos com Alexander no topo da Sagrada Catedral sob o céu de Leningrado, Tatiana deixou-se levar pelo pior. Desconfiada de seus próprios instintos, assustada e duvidosa, ela empurrou Alexander.

– O que foi? – ele disse. – O que foi?

Tatiana nutriu-se de coragem, batalhou pelas palavras certas, temerosa de perguntar, temerosa de ouvir a resposta dele, temerosa de fazê-lo bravo ou chateado. Ele não merecia isso e, no fim, ela confiava e acreditava tanto nele que não daria crédito algum à cínica Marina e às suas palavras mal escolhidas. Contudo, as palavras continuavam em seu peito e se revolviam em seu ansioso e dolorido estômago.

Tatiana não queria sobrecarregar Alexander. Ela sabia que ele já carregava muito. Ao mesmo tempo ela não podia deixar que ele a tocasse. Suas mãos acariciavam Tatiana ternamente, desde seus quadris até seus cabelos e de novo para baixo.

– O que há? – Alexander sussurrou. – Tania, me diga, o quê?

– Espere – ela disse. – Shura, você pode... – ela se afastou dele mancando de lado. – Espere, pare, entendeu?

Ele não foi atrás dela e ela estava a dois metros na arcada, quando sentou-se no chão e juntou os joelhos ao peito.

– Me fale sobre o Dimitri – ela disse, sentindo-se algo enfraquecida.

– Não – Alexander disse ainda em pé. Ele cruzou os braços. – Não até que me conte o que está incomodando você. – Tatiana sacudiu a cabeça. Ela simplesmente não podia ter essa conversa com ele.

– Estou bem, verdade. – Ela sorriu. Teria ela conseguido um bom sorriso? Não, não a julgar pela cara dele.

– Simplesmente, não é nada.

– Mais um motivo para me contar. – Ela olhou sua longa saia marrom, os dedos do pé saindo do gesso, respirou fundo algumas vezes e disse: – Shura, isto está muito, muito difícil para mim.

– Eu sei – ele disse agachando-se onde ela estava, com seus braços nos joelhos.

– Eu não sei como dizer isso a você – ela disse sem levantar a cabeça.

– Abra a boca e fale comigo como sempre.

Tatiana não podia arrumar coragem.

– Alexander, há muito mais coisas importantes para resolver entre nós, para discutir.

Tatiana deu-lhe uma rápida olhada. Ele a observava curioso e preocupado.

– Não posso acreditar que estamos desperdiçando nossos minutos com isso.

Ela parou.

– Mas...

Ele nada disse.

– Eu estou... eu estou?

Era tudo tão idiota. O que sabia ela dessas coisas? – Ela suspirou.

– Ouça, você sabe quem me ajudou a sair hoje à noite? Minha prima Marina.

Alexander assentiu, sem sorrir.

– Bom. O que tem ela a ver com a gente? Vou conhecer essa menina algum dia?

– Talvez você não queira depois de eu lhe contar o que ela me disse... – Tania fez uma pausa. – Sobre os soldados. – Ela levantou os olhos. O rosto de Alexander subitamente consciente e incomodado encheu-se de contrariedade e culpa.

Não era o que ela queria ver.

– Ela me disse algumas coisas interessantes.

– Eu aposto que sim.

– Ela não falou de você.

– Que alívio.

– Ela tentava me advertir sobre o Dimitri, mas disse que para os soldados todas as meninas não passam de conquistas de festas.

Tatiana parou de falar. Ela achou que era muita coragem ter chegado a este ponto.

Lentamente, Alexander chegou mais perto dela. Ele não a tocou; só ficou ao seu lado, em silêncio, e finalmente disse:

– Você quer me perguntar alguma coisa?

– Você quer uma pergunta?

– Não.

– Então não vou perguntar nada.

– Eu não disse que não responderia, eu disse que não queria a pergunta.

Tatiana queria poder olhar no rosto de Alexander. Ela não queria ver nele de novo a culpa. Então, ela pensou: e se depois do nosso verão, depois de Kirov, depois de Luga, depois de todas as coisas inimagináveis e sufocantes que senti, e se depois de tudo eu descubro agora que Marina tinha razão sobre Alexander também?

Tatiana não podia perguntar. De todo modo, tanta coisa construída em cima de uma mentira... como não perguntar?

– Qual é a sua pergunta? – Alexander repetiu, tão suavemente, tão pacientemente, tão tudo que ele tinha sido para ela, que Tatiana, fortalecida por ele, abriu a boca e em sua voz pequena, disse:

– Shura, é isso o que eu sou... só mais uma conquista para você? Só um pouco mais difícil? Sou também mais uma parada difícil na sua vida?

Ela levantou seus olhos inseguros, vulneráveis, para ele.

Alexander abraçou Tatiana inteira, como se ela fosse um pequeno pacote. Ele a beijou na cabeça e sussurrou:

– Não sei o que vou fazer com você. – Afastando-se ele pegou o rosto de Tatiana nas mãos. Seus olhos brilharam. – Tatiacha – ele disse suplicante. – Do que você está falando? Esqueceu o hospital? Conquista? Você esqueceu que se eu quisesse, naquela noite, ou na noite seguinte, em qualquer outra noite, eu poderia ter conseguido o que quisesse de você em pé? – Ele olhou para ela e disse, ainda mais baixinho: – E você teria me dado em pé. Você esqueceu que fui eu quem segurou aquele nosso desespero sem sentido.

Tatiana fechou os olhos.

Alexander segurava seu rosto com firmeza.

– Então abra os olhos e olhe para mim, Tania.

Ela abriu seus olhos mortificados e emocionados e descobriu que Alexander a observava com uma ternura incessante.

– Tania, por favor, você não é minha conquista, você não é uma mais da minha lista. Eu sei como é difícil, o que você está sentindo. Eu gostaria que você não se preocupasse por um segundo com coisas que sabe que não são verdadeiras. – Ele beijou-a com paixão. – Você sente os meus lábios? – Alexander sussurrou. – Quando eu beijo você – ele a beijou ternamente –, você não sente os meus lábios? O que eles lhe dizem? O que lhe dizem as minhas mãos?

Tatiana fechou os olhos e gemeu. Por que ela se sentia tão indefesa perto dele? Por quê?

Ocorreu-lhe que ele não somente tinha razão, não somente ela teria dado para ele então, como daria para ele agora, no frio e duro piso da rotunda dourada. Quando ela abriu os olhos, Alexander a olhava e sorria levemente.

– Talvez – ele disse baixinho – em vez de me perguntar se você não passa de mais uma de minha lista, você devesse perguntar por que você não é mais uma de minha lista.

Tremiam as mãos de Tatiana quando ela segurava as mangas de Alexander.

– Muito bem – ela sussurrou. – Por quê?

Alexander riu.

Tatiana pigarreou.

– Sabe o que mais Marina me disse?

– Oh, essa Marina – disse Alexander, suspirando e se afastando. – O que mais a Marina disse a você?

Tatiana curvou-se sobre os seus joelhos.

– A Marina me disse que todos os soldados transam sem parar com putinhas de guarnição e nunca dizem não.

– Ora, ora – disse Alexander sacudindo a cabeça. – Essa Marina é um problema. Que bom que você não desceu do ônibus para ir vê-la naquele domingo de junho.

– Eu concordo – disse Tatiana, seu rosto todo derretido na lembrança daquele ônibus, e o rosto dele também derreteu-se.

O que pensava? O que fazia? Tatiana sacudiu a cabeça chateada consigo própria.

– Agora, me ouça. Eu não queria contar a você nada disso... mas... – Alexander respirou fundo. – Quando entrei no Exército, eu percebi que seria muito difícil ter ligações genuínas com mulheres por causa da natureza do confinamento militar – ele deu de ombros. – E as realidades da vida soviética. Nada de quartos, apartamentos, nem hotéis para os casais soviéticos. Você quer a verdade de mim? Aqui está ela. Não quero que você tenha medo disso ou medo de mim por causa disso. Nas nossas folgas de fim de semana, é verdade, nós saímos para tomar uma cerveja e, com frequência, encontramos todo tipo de jovens mulheres, muito a fim de... transar com soldados sem nenhum compromisso.

– E você entrou nessa? – Tatiana segurou a sua respiração. – Transou?

– Uma ou duas vezes – Alexander respondeu, ele não olhou para ela. – Não se chateie com isso.

– Não estou chateada – Tatiana disse. Ela ficou chocada, sim. Dilacerada pela suas próprias dúvidas, sim. Fascinada por ele, sim, outra vez.

– Eram só diversões típicas da juventude. Eu me mantive muito desligado de tudo. Eu odiava envolvimentos.

– E a Dasha?

– O que há com ela? – Alexander disse cansado.

– A Dasha era...? – Tatiana não conseguia articular as palavras.

– Tatia, por favor – disse Alexander balançando a cabeça. – Não pense sobre essas coisas. Perguntar que tipo de garota era a Dasha. Não sou eu quem pode lhe dizer isso.

– Alexander, mas a Dasha é um envolvimento! – Tatiana exclamou. – A Dasha tem os seus envolvimentos. Ela tem coração.

– Não – ele disse. – Ela tem você.

Tatiana deu um suspiro pesado. Era muito difícil para ela falar sobre Alexander e sua própria irmã. Era mais fácil ouvir sobre garotas insignificantes do que sobre uma Dasha. Tatiana estava sentada com as mãos ao redor dos joelhos. Ela queria perguntar-lhe sobre o tempo presente, mas não conseguia articular as palavras. Não queria perguntar-lhe coisa alguma. Ela queria voltar ao que era antes da noite do hospital, antes que a lamentável confusão do seu corpo a deixasse cega para a verdade sobre ele.

Alexander massageou as coxas de Tatiana.

– Posso sentir o seu medo. – Baixinho, ele acrescentou: – Tania, eu lhe suplico, não deixe a estupidez nos separar.

– Tudo bem – ela disse com remorso.

– Não deixe que esse papo furado que nada tem a ver conosco nos separe. Muitas coisas já nos separam. – Ele fez uma pausa. – Tudo.

– Tudo bem, Alexander.

– Deixe que tudo desapareça, Tatiana. Do que você tem medo?

– Meu medo é de estar errada a seu respeito – ela sussurrou.

– Tania, como poderia você, justo você, estar errada a meu respeito? – Frustrado, Alexander cerrou os punhos. – Você não percebe? – ele disse. – É exatamente por causa de quem eu fui que eu vim a você? Qual é o problema? – ele perguntou. – Você não podia ver a minha solidão?

– Mal e mal – Tatiana respondeu fechando as mãos sobre o peito. – Através da minha própria solidão. – Com as costas na grade, Tatiana disse: – Shura, estou rodeada de meias verdades e insinuações. Você e eu não temos mais um momento para conversar, como fazíamos antes, um momento para estarmos sozinhos.

– Um momento de privacidade – disse Alexander, pronunciando em inglês a última palavra, privacy.

– Do quê? – ela não conhecia aquela palavra. Teria que consultar o dicionário quando chegasse em casa. – E agora? Além de Dasha, você ainda?

– Tatiana – disse Alexander. – Todas as coisas que preocupam você já não fazem parte da minha vida. Sabe por quê? Porque quando conheci você, eu sabia que se eu continuasse e uma boa menina como você me perguntasse sobre elas, eu não seria capaz de olhar o seu rosto e contar a verdade. Eu teria que olhar em seu rosto e mentir. – Ele olhava o rosto de Tatiana. A verdade sem palavras estava em seus olhos.

Tatiana sorriu para ele e exalou, e com isso se dissolvia em seu estômago aquela sensação apertada e enjoada. Ela queria que ele a abraçasse.

– Eu sinto muito, Alexander – ela suspirou. – Eu sinto muito pela minha dúvida, eu sou muito jovem.

– Você é muito de tudo. Meu Deus! – ele exclamou. – Que loucura isto, nunca ter tempo para desabafar, nunca ter um minuto.

Tivemos um minuto, Tatiana pensou. Tivemos nossos minutos no ônibus. E em Kirov. Tivemos nossos minutos em Luga. E no Jardim de Verão. Arquejantes minutos tivemos. O que nós queremos, ela pensou, evitando fluir, é a eternidade.

– Eu sinto muito, Shura – Tatiana disse, pegando as mãos dele. – Eu não queria aborrecer você.

– Tania, se pudéssemos ter um momento de privacidade – de novo, falando a última palavra em inglês –, você nunca duvidaria de mim outra vez.

– O que é privacidade? – ela repetiu.

Alexander sorriu com tristeza.

– Estar isolado da vista ou da presença de outros seres humanos. Quando precisamos estar sozinhos, juntos para ter intimidade, isso é impossível em dois quartos com seis outras pessoas – ele explicou em russo. – Nós dissemos, queremos alguma privacidade.

– Oh! – Tatiana ficou vermelha. Essa então era a palavra que vinha procurando desde que o conheceu! – Não existe em russo nenhuma palavra como essa.

– Eu sei – ele disse.

– E tem essa palavra na América?

– Sim – disse Alexander. – Privacidade.

Tatiana permaneceu em silêncio. Alexander chegou mais perto, colocando as suas pernas ao redor dela.

– Tania, quando teremos um momento a sós? – ele perguntou, espreitando os seus olhos.

– Estamos a sós – ela disse.

– Quando poderei beijar você?

– Me beije agora – ela sussurrou.

Mas Alexander não o fez.

– Sabe que pode ser nunca? – ele disse sombrio. – Os alemães estão aqui. Sabe o que isso significa? A vida como você a conhecia acabou.

– E este verão? – ela perguntou. – Nada tem sido igual desde 22 de junho.

– Não, não tem sido – ele concordou. – Mas antes de hoje nós simplesmente nos amávamos. Agora é a guerra. Leningrado será o campo de batalha para nossa liberdade. No final, quantos de nós estaremos em pé? Quantos de nós estarão livres?

– Oh, meu Deus. É por isso que você vem sempre que pode, mesmo arrastando o Dimitri com você? – Tatiana perguntou.

Com um pequeno aceno de cabeça e um longo suspiro, Alexander disse:

– Eu sempre tenho medo de que seja a última vez que vou ver o seu rosto.

Tatiana engoliu em seco, debruçada sobre seus joelhos.

– Por que... você sempre o arrasta junto? – ela perguntou. – Não pode pedir para ele me deixar em paz? Ele não me ouve. O que faço com ele?

Alexander não respondeu, e Tatiana, muito ansiosa, investigava o seu olhar.

– Me conte sobre o Dimitri, Shura – ela disse baixinho. – O que você deve a ele?

Alexander olhou os seus cigarros.

– Você deve a ele... eu. – Tatiana disse vagamente.

– Tatiana – Alexander disse – O Dimitri sabe quem eu sou.

– Pare – ela disse quase de forma inaudível.

– Se eu lhe contar, você não vai acreditar – Alexander disse. – É só eu lhe contar e não haverá retorno para nós.

– Não há retorno para nós agora – Tatiana disse, querendo fazer uma oração.

– Eu não sei o que fazer com ele – Alexander disse.

– Eu ajudo você – retrucou Tatiana. Seu coração assombrado e envaidecido. – Me conte.

Alexander moveu-se no estreito balcão para sentar-se diagonalmente em frente dela, esticando as pernas em direção a ela e contra a parede. Tatiana continuava sentada apoiada na grade. Ela sentia que ele não a queria muito perto. Tatiana tirou um sapato e esticou o seu pé nu na direção das botas de Alexander. O pé dela era a metade do pé dele. Tremendo como se fosse repelir um animal, Alexander começou.

– Quando a minha mãe foi presa – ele disse sem fitar Tatiana –, a NKVD veio me pegar também, e não pude nem me despedir dela. – Alexander desviou o olhar. – Eu não gosto de falar da minha mãe, como você pode imaginar. Fui acusado de distribuir propaganda capitalista quando tinha catorze anos, ainda em Moscou, e de comparecer a reuniões do Partido Comunista com o meu pai. Assim, aos dezessete, em Leningrado, fui preso e levado direto para Kresty, a prisão dentro da cidade para criminosos não políticos. Eles não tinham lugar para mim em Chpalerka, a grande casa, o centro de detenção política. Eu fui condenado à porta fechada em aproximadamente três horas. – Alexander disse com desdém. – Eles nem se deram ao trabalho de fazer um interrogatório. Eu acho que os interrogadores estavam cuidando de prisioneiros mais importantes. Peguei dez anos em Vladivostok. Pode imaginar?

– Não – disse Tatiana.

– Sabe quantos de nós finalmente embarcaram naquele trem rumo a Vladivostok? Mil. Um homem me disse “Oh, acabo de sair, e agora isso de novo”. Ele me disse que o campo de prisioneiros para onde íamos tinha oitenta mil pessoas. Oitenta mil, Tania! Um campo. Eu disse a ele que não acreditava. Eu acabava de completar dezessete anos. – Alexander olhou para ela. – Como você agora. – Então continuou: – O que eu podia fazer? Não podia passar dez anos da minha juventude na prisão, podia?

– Não – ela disse.

– Eu sempre acreditei, veja você, que estava destinado a viver uma boa vida. Minha mãe e meu pai acreditavam em mim, eu acreditava em mim. – Ele interrompeu. – Prisão nunca constou dos meus planos. Nunca roubei, nunca quebrei janelas, nunca assustei velhinhas. Nada fiz de errado. Eu não ia para a prisão. Íamos atravessando o rio Volka, perto de Kazan, trinta metros acima de um precipício – ele disse, então. – Eu sabia que era aquela a hora ou eu iria para Vladivostok, me parecia, para o resto da minha vida. Eu tinha muita esperança por mim mesmo. Assim, pulei direto no rio. – Alexander riu. – Eles nem mesmo pararam o trem. Acharam que eu havia morrido na queda.

– Eles não sabiam com quem estavam lidando – disse Tatiana, querendo abraçá-lo, mas ele estava muito longe. – Foi quando você pulou que descobriu que podia de fato nadar? – ela sorriu.

Alexander retribuiu o sorriso, a solas de suas botas tocavam as solas do pé de Tatiana.

– Eu podia nadar um pouquinho.

– Você levava alguma coisa?

– Nada.

– Papéis? Dinheiro?

– Nada.

Tatiana achou que Alexander queria contar a ela alguma coisa a mais, mas ele continuou:

– Era o verão de 1936. Depois que fugi, fui rumo ao sul, no rio Volka, em barcos de pesca, andando, no fundo de carroças. Eu pesquei, trabalhei um pouco em fazendas, e continuei indo para o sul. De Kazan a Ulyanovky, onde Lênin nasceu, cidade interessante, como um santuário. Daí a Saratov, rio Volka abaixo, pescando, colhendo, indo em frente. Acabei em Krasnodar, perto do mar Negro. Continuei indo ao sul, até a Geórgia, e depois a Turquia. Eu esperava cruzar a fronteira em algum ponto nas montanhas do Cáucaso.

– Mas você não tinha nenhum dinheiro.

– Nada – Alexander disse. – Mas fiz algum ao longo do caminho e pensava que meu inglês, assim que eu entrasse na Turquia, me ajudaria. Em Krasnodar, porém, o destino interveio. – Ele olhou para ela – Como sempre. Era um inverno brutal, e a família com a qual eu estava, os Belov...

– Os Belov?! – exclamou Tatiana.

Alexander assentiu.

– Uma boa família de agricultores. Pai, mãe, quatro filhos, uma filha. – Ele pigarreou. – Eu. Todos pegamos tifo. O vilarejo inteiro de Belyiyar, 360 habitantes, caíram doentes. Oito décimos da população pereceram, incluindo os Belov, a filha primeiro. O conselho local de Krasnodar, com a ajuda da polícia, veio e queimou o povoado com medo de que a epidemia se espalhasse pela cidade mais próxima. Queimaram todas as minhas roupas e eu fiquei de quarentena até que morresse ou melhorasse. Melhorei. O conselheiro soviético local veio e me deu novos papéis. Sem nenhum momento de hesitação, eu disse que era Alexander Belov. E como eles haviam queimado o povoado inteiro... – Alexander levantou as sobrancelhas. – Só na União Soviética. De todo modo, como eles haviam queimado o povoado, o conselheiro não podia confirmar ou negar a minha afirmação, de que eu era Alexander Belov. Alexander Belov, o menor dos meninos Belov.

Tatiana fechou a boca.

– Assim ganhei um passaporte doméstico novinho e uma identidade novinha. E eu era Alexander Nikolaevich Belov, nascido em Krasnodar, órfão aos dezessete. – Ele desviou o olhar.

– Como era o seu nome americano completo? – Ela perguntou de leve.

– Anthony Alexander Barrington.

– Anthony?! – ela exclamou.

Alexander confirmou.

– Anthony era pelo pai de minha mãe. Eu sempre fui Alexander. – Ele acendeu um cigarro. – Você se importa? – Tatiana negou com a cabeça. – De todo modo – ele disse –, voltei a Leningrado e fui morar com parentes dos Belov. Eu precisava estar de volta em Leningrado... – Alexander hesitou. – Eu lhe digo em um minuto. Fiquei com a minha tia, Mira Belov, e sua família. Eles moravam do lado de Vyvorg, há dez anos não viam os seus sobrinhos; eu era como um estranho para eles. – Ele sorriu. – Mas me deixaram ficar, terminei a escola e foi nessa escola que conheci o Dimitri.

– Oh, Alexander – disse Tatiana. – Mal posso acreditar no que você sofreu ainda tão jovem.

– Falta muito para que eu termine. O Dimitri era um dos garotos com os quais eu brincava na escola. Ele era muito alto, impopular, pouco divertido. Na hora do recreio, quando brincávamos de guerra, ele era sempre o prisioneiro. Dimitri PG Chernenko, assim o chamávamos, nós dizíamos que só por ele a União Soviética deveria ter assinado a Convenção de Genebra de 1929, porque ele saía ferido ou terminava como o prisioneiro, conseguindo ser capturado de alguma maneira sem ajuda de ninguém.

– Por favor, continue.

– Mas aí eu descobri que o pai dele era um guarda de prisão em Ehpalerka. – Alexander parou.

Tatiana segurou a respiração.

– Seus pais ainda estavam vivos?

– Eu não sabia – Alexander disse. – Assim, eu escolhi ficar íntimo de Dimitri. Na esperança de que talvez ele pudesse me ajudar a ver a minha mãe e meu pai. Eu sabia que, se eles estivessem vivos, estariam se torturando de preocupação por minha causa. Eu queria avisá-los de que eu estava bem. Minha mãe particularmente – ele disse a voz contida. – Havíamos sido muito próximos um do outro.

Encheram-se de lágrimas os olhos de Tatiana.

– E o seu pai?

Alexander deu de ombros.

– Ele era o meu pai. Tivemos alguns conflitos nos últimos anos, ele achava que sabia tudo. E eu pensava que sabia tudo. E assim foi.

Tatiana não piscou enquanto olhava para Alexander, paralisada.

– Shura, eles devem ter amado muito você. – Ela engoliu em seco.

– Sim – Alexander disse dando uma funda tragada no cigarro. – Eles me amaram algum dia.

O coração de Tatiana sangrava por Alexander.

– Pouco a pouco – ele continuou –, ganhei a confiança de Dimitri, nos tornamos melhores amigos. O Dima realmente gostava do fato que eu o escolhera entre tantos para ser o meu amigo mais próximo.

– Oh, Shura – disse Tatiana. Ela entendia. Arrastando-se até ele, o abraçou. – Você tinha que confiar no Dimitri.

Com um braço ele abraçou as suas costas; com o outro, segurava o cigarro.

– Sim, eu tinha que dizer a ele quem eu era. Não tinha escolha, só confiar nele. Deixar que meus pais morressem, ou confiar nele.

– Você confiou no Dimitri – Tatiana repetiu incrédula, soltando-se dele e sentando ao seu lado.

– Sim. – Alexander olhou as suas próprias mãos, grandes, como se nelas tentasse encontrar uma resposta para a sua vida. – Eu não queria confiar nele. Meu pai, bom comunista que era, ensinou-me a não confiar em ninguém; embora isso não fosse fácil, aprendi bem a lição. Mas é uma maneira dura de viver, e eu queria confiar numa única pessoa na minha vida, uma só. Eu realmente precisava da ajuda do Dimitri. Além do mais, eu era seu amigo. Eu dizia a mim mesmo, se ele fizesse isso por mim, e eu pudesse ver minha mãe e o meu pai, eu seria o seu amigo para o resto da vida. E isso foi exatamente o que eu falei para ele: “Dima”, eu disse, ”Serei seu amigo para o resto da vida, ajudarei você em tudo o que eu puder”. – Alexander acendeu outro cigarro, Tatiana esperou, a dor em seu peito aumentava.

– O pai de Dimitri constatou que era já muito tarde para ver a minha mãe. – A voz de Alexander quebrou. – Ele me contou o que acontecera a ela. Mas meu pai ainda estava vivo, embora pelo jeito não por muito tempo. Ele já estava havia um ano na prisão. Chernenko levou Dimitri e a mim para dentro de Shpalerk, e então tivemos cinco minutos com o infiltrado estrangeiro Harold Barrington. Eu, meu pai, o Dimitri, o pai dele e outro guarda. Nenhuma privacidade para mim e meu pai.

Tatiana pegou a mão de Alexander.

– Como foi?

Alexander olhou direto para frente.

– Bem como você pode imaginar – ele disse, mantendo a voz neutra. – E amargamente curto.

Na pequena cela de concreto cinza Alexander olhou para seu pai, e Harold Barrington fitou Alexander. Harold não se moveu na cama.

Dimitri estava em pé no centro da pequena cela, Alexander ao seu lado. O guarda e o pai de Dimitri atrás deles. Uma única lâmpada pendia do teto.

Em russo, Dimitri disse a Harold:

– Estamos aqui somente por um minuto, Camarada. Entendeu? Só por um minuto.

– Muito bem – Harold respondeu em russo, contendo as lágrimas. – Obrigado por me visitar. Fico contente em ver dois rapazes soviéticos. Seu nome, filho? – Ele perguntou a Dimitri.

– Dimitri Chernenko.

– E o seu nome, filho? – Com o corpo todo trêmulo, Harold olhou para Alexander.

– Alexander Belov – disse Alexander.

Harold assentiu.

– Muito bem, chega de bajulação com o prisioneiro – o guarda disse. – Vamos embora.

– Espere! – Dimitri disse. – Queremos que o Camarada saiba que apesar do crime dele contra a nossa sociedade proletária, ele não será esquecido.

Alexander nada disse, tinha os olhos em seu pai.

– É por causa do crime dele contra a nossa sociedade que ele não será esquecido – disse o guarda.

Mordendo os lábios, Harold olhou para Dimitri e Alexander, cujas costas estavam para o guarda, mas o rosto virado para o seu pai.

– Popov, posso apertar as mãos deles? – Harold perguntou ao guarda.

O guarda deu de ombros e deu um passo à frente.

– Estarei de olho enquanto você faz isso. Seja rápido.

– Eu nunca ouvi inglês antes, Camarada Barrington – Alexander disse –, pode nos dizer alguma coisa em inglês?

Harold aproximou-se de Dimitri e apertou as suas mãos.

– Obrigado – ele disse em inglês.

Depois, aproximou-se de Alexander e tomou a sua mão, segurando-a com força. Alexander balançou a cabeça levemente, tentando animar seu pai para que ficasse calmo.

– Teria morrido por ti, o Absalom, meu filho, meu filho! – em inglês, Harold sussurrou.

– Pare! – Alexander disse.

Harold soltou a mão de Alexander e afastou-se um pouco, lutando para não chorar e desmoronar.

– Eu lhes digo alguma coisa em inglês – ele disse em russo. – Umas poucas linhas corrompidas de Kipling.

– Chega – disse o guarda. – Não tenho tempo...

– “Se você pode suportar ouvir a verdade que acaba de dizer” – Harold disse alto, em inglês –, “Torcido por patifes para fazer uma armadilha para tolos...” – lágrimas rolaram em seu rosto. – “Ou vejas as coisas pelas quais você deu a vida, quebradas...” – ele estava reduzido a um sussurro. – “Filho! Curve-se e os construa com ferramentas gastas.” – Harold deu um passo atrás e fez um pequeno sinal da cruz em Alexander.

O guarda gritou:

– Vamos embora!

– Eu amo você, Papai – Alexander disse ao seu pai em inglês.

E foram embora.

Tatiana chorava. Alexander a abraçou.

– Oh, Tania... – Alexander disse. Ele limpou o rosto dela. – Por causa do esforço para permanecer firme – ele disse – quebrei um dente lateral. Vê? – Ele mostrou-lhe um pré-molar superior. – Agora você pode parar de me perguntar sobre isso. Assim consegui ver meu pai uma vez antes que ele morresse, e nunca teria podido fazer isso sem o Dimitri. – Com um suspiro pesado, ele soltou o seu braço.

– Alexander – disse Tatiana, agachando-se ao lado dele. – Você fez uma coisa incrível pelo seu pai – tremiam-lhe os lábios. – Você o confortou antes de sua morte.

Muito tímida, embora sobrecarregada pela emoção de seu palpitante coração transbordando por ele, ela pegou a mão de Alexander, abaixou a cabeça e a beijou. Vermelha, pigarreando, ela o soltou e levantou os olhos.

– Tania – ele disse com sentimento –, quem é você?

– Eu sou Tatiana – ela respondeu. E deu-lhe sua mão. Depois sentou-se em silêncio.

– Tem mais.

Ela assentiu.

– O resto eu sei.

Tatiana pegou o maço de cigarros de Alexander e tirou um. Ela precisava de apenas uma pequena verdade para ver o conjunto. Ela sabia o resto do ponto em que Alexander lhe contara que dera a Dimitri alguma coisa que ele, Dimitri, nunca tivera. Não era amizade, não era companheirismo, não era fraternidade. As mãos de Tatiana tremiam ao colocar o cigarro na boca de Alexander e procurar o seu isqueiro. Aceso o cigarro, quando ele tragou, ela beijou-lhe o rosto e extinguiu a luz.

– Obrigado – Alexander disse, fumando metade do cigarro antes de continuar. Ele a beijou. – Você não curte muito o hálito de fumantes?

– Eu fico com o seu hálito, seja ele qual for, Shura – retrucou Tania, de novo vermelha. Ela então falou: – Me deixe contar o resto. Você e o Dimitri foram para a faculdade. Você e o Dimitri se incorporaram ao Exército. Você e o Dimitri foram juntos para a escola de oficiais, então o Dimitri não conseguiu. – Ela abaixou a cabeça. – A princípio ele ia bem, vocês continuaram bons amigos, ele sabia que você faria qualquer coisa por ele. – Ela fez uma pausa. – E então – Tatiana disse, levantando os olhos. – Ele começou a pedir.

– Entendo – disse Alexander. – Então você sabe tudo.

– O que ele pede a você, Shura?

– Qualquer coisa.

Eles não se olharam.

– Ele pede que você o transfira aqui. Que abra exceções para ele lá, ele pede privilégios especiais e tratamento especial.

– Sim.

– Alguma coisa a mais?

Alexander ficou mudo durante alguns minutos. Tão longa foi essa pausa que Tatiana achou que ele esquecera a pergunta. Ela esperou com impaciência. Finalmente Alexander disse, a voz cheia de alguma coisa:

– Muito de vez em quando, garotas. Você poderia pensar que havia muitas para todo mundo, mas às vezes eu estava com uma garota que Dimitri queria, ele me pedia e eu cedia. Eu ia embora e procurava outra menina, e tudo continuava como antes.

Tatiana olhava para frente, seus olhos do mais límpido verde mar.

– Alexander, me diga uma coisa, quando Dimitri pedia a você alguma menina, ele pedia uma da qual você gostava, não é?

– O que você quer dizer?

– Ele não queria só uma das suas garotas. Ele pedia a você meninas que ele via que você gostava. Era quando ele pedia, certo?

Alexander ficou pensativo.

– Acho que sim.

– Então – devagar Tania disse –, quando ele me pediu a você, você simplesmente cedeu.

– Errado. O que eu fiz foi mostrar a ele uma cara indiferente esperando que se ele pensasse que você nada significava para mim, ele a deixaria em paz. Infelizmente, isso não deu certo. – Tatiana assentiu, depois sacudiu a cabeça, e, em seguida, começou a chorar.

– Sim, a cara que você fez não funcionou muito bem, Shura. Ele não me deixa em paz.

– Por favor. – Alexander trouxe-a para seus braços. – Eu disse a você que isso era uma bela confusão. Ele não está nem aí se eu cedo agora, porque agora o Dimitri está louco por você e quer tê-la toda para ele. – Ele parou.

Tatiana estudou Alexander por alguns momentos e então pressionou o seu corpo junto ao dele.

– Shura – ela disse baixinho. – Vou lhe contar uma coisa agora, tudo bem? Está ouvindo?

– Sim.

– Não segure a respiração assim. – Ela ensaiou um sorriso. – O que você acha que eu vou dizer?

– Não sei. Não tenho como adivinhar no momento. Talvez que você tenha um filho pequeno morando com uma tia distante?

Tatiana riu levemente

– Não – fez uma pausa. – Mas você está pronto?

– Sim.

– O Dimitri não está apaixonado por mim – Tatiana disse.

Alexander soltou-se dela.

Ela balançou a cabeça.

– De jeito nenhum. Nem mesmo remotamente. Acredite em mim.

– Como você sabe?

– Eu sei.

– Então o que ele quer com você? Nem mesmo sugira.

– Não por mim. Tudo o que o Dimitri quer, ouça com cuidado, tudo o que ele almeja, tudo o que ele deseja, tudo o que ele ambiciona é poder. A única coisa importante para ele é o amor de sua vida: o poder.

– Poder sobre você?

– Não, Alexander, poder sobre você. Eu sou um meio para o fim. Sou apenas munição.

Quando ele lançou um olhar cético em sua direção, ela continuou:

– O Dimitri não tem nenhum poder, você tem todo o poder. Tudo o que ele tem advém de você. É toda a vida dele. – Ela balançou a cabeça. – Que tristeza.

Tatiana não falou por um momento.

– Shura, olhe para você. E olhe para ele. O Dimitri precisa de você, ele se alimenta, se abriga, cresce levado por você, se você ficar mais forte, ele também se fortalece. Ele sabe disso e depende cegamente de você para muitas coisas que você proporciona com alegria. E mesmo assim... quanto mais você tem, mais ele odeia você. A autopreservação pode ser a força impulsora dele, mas de todo modo, cada vez que você recebe uma promoção, sobe na hierarquia, ganha uma nova medalha, arruma uma nova namorada, cada vez que ri contente no corredor esfumaçado, isso o diminui e o rebaixa. E é por isso que quanto mais poderoso você se torna, mais ele quer de você.

– Finalmente – disse Alexander, olhando para Tatiana –, ele vai querer de mim alguma coisa que eu não posso dar. E como fica então?

– Cobiçar o que você tem de melhor, finalmente, o levará para o inferno.

– Sim, e a mim à morte. – Alexander sacudiu a cabeça. – Implícito por trás de todos os seus pedidos e solicitações, há o aviso de que uma palavra dele sobre o meu passado americano ao General da NKVD na guarnição, uma vaga acusação, e eu desapareço instantaneamente no bucho da justiça soviética.

– Eu sei disso – Tatiana concordou, com um triste aceno de cabeça – Mas talvez se tivesse mais, ele não desejaria mais.

– Você está errada, Tania, eu tenho um mau pressentimento sobre o Dimitri. Sinto que ele vai querer mais e mais de mim. Até – Alexander disse – que ele tenha tudo.

– Não, você está errado, Shura. O Dimitri nunca vai tomar tudo de você. – Ele jamais terá todo esse poder. Ele pode querer. Ele simplesmente não sabe com quem está lidando, Tatiana pensou levantando os seus olhos veneradores para Alexander. – Além do mais, todos sabemos o que acontece ao parasita quando alguma coisa acontece ao hospedeiro – ela sussurrou.

Alexander olhou para ela.

– Sim. Ele encontra um novo hospedeiro. Me deixe perguntar a você. – Ele finalmente disse – O que você acha que ele mais quer de mim?

– O que você mais quer?

– Tania – disse Alexander intensamente –, você é o que eu mais quero.

Tatiana olhou em seu rosto.

– Sim, Shura – ela disse. – E ele sabe disso. Como eu disse desde o princípio, o Dimitri não está apaixonado por mim nada, tudo o que ele quer é machucar você.

Alexander ficou em silêncio por toda a eternidade debaixo do céu de agosto.

– Onde está sua expressão brava e indiferente? – Tatiana sussurrou. – Coloque-a e ele vai recuar e pedir a você que dê a ele o que você mais quer antes de mim.

Alexander não se mexeu nem falou.

– Antes de mim. – Por que ele estava tão silencioso? – Shura... – Ela achou tê-lo sentido tremer.

– Tania, pare, eu não posso mais falar sobre isso com você.

Ela não conseguia firmar as mãos.

– Tudo isso. Tudo isso entre nós, e a minha Dasha também, agora e sempre, e mesmo assim você vem a mim sempre que pode.

– Eu já lhe disse, não posso ficar longe de você – disse Alexander.

– Meu Deus – triste e vacilante, Tatiana disse –, precisamos esquecer um do outro Shura. Não posso acreditar que não podemos ser aquilo para que estamos destinados.

– Não me diga! – Alexander sorriu. – Eu aposto o meu rifle que o fato de você acabar sentada naquele banco há dois meses foi a parte menos esperada do seu dia.

Ele tinha razão. Mais que isso, Tatiana lembrava-se do ônibus que ela decidira não tomar e assim poderia comprar um sorvete.

– E como você sabia disso?

– Porque – disse Alexander – passar por aquele banco era o que eu menos esperava fazer. – Ele assentiu. – Todas estas arestas entre nós – e quando fazemos o nosso melhor, e cerramos nossos dentes, e nos separamos, tentando nos reconstruir, o destino intervém outra vez, e tijolos caem do céu, que eu removo do seu corpo vivo e quebrado. Isso tampouco não estava destinado a nós, talvez?

Tatiana conteve um soluço.

– Muito bem – ela disse bem suave. – Não podemos esquecer que eu devo a minha vida a você. – Ela olhou para ele. – Não podemos esquecer que eu pertenço a você.

– Eu gosto de ouvir isso – Alexander disse abraçando-a com mais força.

– Retire-se, Shura – Tatiana sussurrou. – Retire-se e leve as suas armas. Livre-me dele. – Ela fez uma pausa. – Ele só precisa acreditar que você não se importa comigo e aí ele perde todo o interesse, você vai ver. Ele irá embora, irá para o front. Todos nós temos que passar pela guerra antes de chegar do outro lado, você faz isso para mim?

– Farei o melhor possível.

– Vai deixar de vir? – ela perguntou trêmula.

– Não – disse Alexander. – Não posso me retirar tanto assim. Apenas fique longe de mim.

– Tudo bem. – O coração de Tatiana vacilava. Ela se agarrou nele.

– E me perdoe desde já pela minha cara fria. Posso confiar em você?

Tatiana assentiu e esfregou o queixo no braço dele, encostando a cabeça em Alexander.

– Confie em mim – ela sussurrou. – Confie em mim, Alexander Barrington, eu nunca vou trair você.

– Sim, mas alguma vez vai me negar? – ele perguntou ternamente.

– Somente na frente de minha Dasha – ela respondeu. – E do nosso Dimitri.

Ele levantou-lhe o rosto e com um sorriso irônico disse:

– Você não está contente agora que Deus nos deteve no hospital?

Tatiana sorriu levemente.

– Não. – Ela estava sentada enrolada nos braços dele. Os dois se olhavam. Ela abriu a palma de sua mão para ele. Ele colocou a palma de sua mão na dela.

– Olhe – ela disse baixinho. – As pontas de meus dedos mal alcançam o seu segundo dedo.

– Estou olhando – ele sussurrou, enfiando os seus dedos nos dela e apertando a sua mão tão forte que Tatiana gemeu e depois ficou vermelha.

Ele levou o rosto junto ao de Tatiana e beijou a pele perto do seu nariz.

– Alguma vez eu lhe disse que eu adoro as suas sardas? – ele murmurou. – Elas são muito sedutoras. – Ela ronronou. Seus dedos continuavam enroscados enquanto eles se beijavam.

– Tatiasha... – Alexander sussurrou. – Você tem lábios incríveis. – Ele parou e afastou-se. – Você está... – relutante, ela abriu os olhos para ele. – Você está alheia a si mesma. Essa é uma das mais queridas e mais irritantes de suas qualidades...

– Não sei o que você quer dizer... – Ela já não pensava mais. – Shura, como é possível que não haja neste mundo um único lugar para irmos? – Sua voz quebrou. – Que vida é esta?

– A vida comunista – Alexander respondeu.

Juntos, eles se encolheram ainda mais.

– Homem louco, você – ela disse carinhosamente. – O que você fazia brigando comigo lá em Kirov, sabendo que tudo isto já nos espreitava.

– Vociferando contra a minha fé – disse Alexander. – É a única porra de coisa que eu faço, simplesmente me recuso a ser derrotado.

Eu amo você, Alexander, Tatiana queria dizer a ele, mas não podia. Eu amo você. Ela abaixou a cabeça.

– Meu coração é muito jovem ainda – ela sussurrou.

Alexander a envolveu toda com os seus braços.

– Tatia – ele sussurrou. – Você tem o coração jovem. – Ele a tocou nas costas e a beijou entre os seios dela. – Eu queria, de todo o meu coração, não ser forçado a passar por isso.

De repente ele se mexeu e ficou em pé. Tatiana ouviu um barulho atrás deles, na arcada. O Sargento Petrenko enfiou a cabeça no balcão e disse que já era hora de uma mudança de turno.

Alexander carregou Tatiana nas costas, e desceu. Depois, a abraçando, eles mancaram pelas ruas da cidade, de volta à Quinta Soviet. Passava das duas da manhã. O dia começaria para eles às seis, e aqui ainda estavam eles agarrados um no outro nas derradeiras horas da noite. Ele a carregava nos seus braços descendo a Avenida Nevsky. Ela carregava o rifle dele. Ele a carregava nas costas. Eles estavam muito sozinhos enquanto caminhavam pela escura Leningrado.

7

Na noite seguinte, depois do expediente, Tatiana encontrou a mãe gemendo no quarto, e Dasha sentada no corredor, chorando, ao seu lado uma xícara de chá. Os Metanovs acabavam de receber um telegrama do há muito extinto comando de Novgorod, informando-os de que, em 13 de julho de 1941, o trem que transportava um Pavel Metanov e centenas de outros jovens voluntários fora explodido pelos alemães. Não havia sobreviventes.

Uma semana antes fui à procura dele, pensou Tatiana, andando, em passos monótonos pelos quartos. O que fazia eu no dia em que o trem de meu irmão explodiu? Eu trabalhava, ia no bonde? Pensava uma vez pelo menos no meu irmão? Penso nele desde então. Sinto que já não esteja aqui. Querido Pasha, ela pensou. Perdemos você e nem sabíamos disso. É a perda mais triste de todas, ir em frente por algumas semanas, poucos dias, uma noite, um minuto, e achar que tudo está bem quando já ruiu a estrutura das nossas vidas. Devíamos haver guardado luto por você, mas ao invés disso fizemos planos, fomos trabalhar, sonhamos, amamos, sem saber que você já ficara para trás.

Como não podíamos saber?

Não houve um sinal? Sua relutância em partir? A mala feita? Não saber nada de você?

Alguma coisa que pudéssemos indicar, de forma que na próxima vez possamos dizer, esperem, aqui está o sinal. Na próxima vez saberemos. E guardaremos luto desde o começo.

Podíamos haver mantido você conosco mais tempo? Podíamos, todos nós, ficar mais apegados a você, e abraçá-lo mais forte, brincar no parque uma vez mais com você, assim afugentando o destino inexorável de mais alguns dias, mais alguns domingos, mais algumas tardes? Teria valido a pena tê-lo mais um mês antes que você fosse levado, antes que perdêssemos você? Conhecendo seu inevitável futuro, teria valido a pena ver seu rosto outro dia, outra hora, outro minuto antes de você cintilar e ir embora? Sim.

Sim, teria valido a pena, para você e para nós.

Papai estava bêbado, espalhado no sofá; Mamãe limpava o sofá chorando no balde de água. Tatiana se dispôs a limpar tudo. Mamãe a empurrou. Dasha estava na cozinha, chorando, enquanto fazia o jantar. Tatiana estava tomada por um forte sentido de finalidade, uma aguda ansiedade pelos dias à frente. Qualquer coisa podia acontecer num futuro forjado pelo incompreensível presente no qual seu irmão gêmeo não mais vivia.

– Dasha – Tatiana disse enquanto faziam o jantar –, há um mês você me perguntou se eu achava que o Pasha ainda estava vivo, e eu disse...

– Como se eu prestasse atenção em você, Tania – fulminou Dasha.

– Por que você me perguntou? – Tatiana questionou, surpresa.

– Achei que você ia me dar alguma resposta reconfortante, conveniente. Ouça, eu não quero falar sobre isso. Você pode não estar chocada, mas nós todos estamos.

Quando veio para jantar, Alexander fez com a testa um sinal para Tatiana, que então lhe contou sobre o telegrama.

Ninguém comeu o repolho com um pouco de presunto em lata que Dasha havia preparado, exceto Alexander e Tatiana, que, apesar de uma tênue esperança, vinha vivendo a perda de Pasha desde Luga.

Papai permaneceu no sofá; Mamãe, sentada ao seu lado, ouvia o tic-tac, tic-tac do metrônomo do rádio.

Dasha foi aquecer o samovar, e Alexander e Tatiana ficaram sozinhos. Ele não disse nada, só abaixou a cabeça um pouco e olhou no rosto dela. Por um momento, os dois se olharam. – Coragem, Alexander – ela sussurrou.

– Coragem, Tatiana.

Ela se levantou e subiu ao telhado à procura de bombas, na fria noite de Leningrado. O verão acabava. O inverno não estava longe.

 

 

Atormentados e sitiados

1

O que custou à alma mentir? A cada passo, cada exalação, cada relatório do Departamento de Informação Soviético, cada lista de baixas, cada carnê de ração mensal?

Do momento em que Tatiana acordava até a hora em que caía num sono turvo, ela mentia.

Ela gostaria que Alexander não mais viesse à sua casa. Mentiras.

Ela gostaria que ele terminasse com Dasha. Ai de mim. Mais mentiras.

Nenhuma ida mais à Catedral de Santo Isaac. Isso era boa notícia. Mentiras.

Não mais viagens de bonde, não mais canais, não mais Jardim de Verão, não mais Luga, não mais lábios ou olhos ou alentos palpitantes. Bom. Bom. Bom. Mais mentiras.

Ele era frio. Tinha uma inquietante habilidade para agir como se nada houvesse por trás de seu rosto sorridente, ou suas mãos firmes, ou seu cigarro queimado. Nenhuma contração em seu rosto para Tatiana. Isso era bom. Mentiras.

No começo de setembro, entrou em vigor o toque de recolher em Leningrado. De novo, reduziram-se as rações. Alexander deixou de vir todos os dias, isso era bom. Mais mentiras.

Quando Alexander vinha, ele se mostrava muito afetuoso com Dasha, na frente de Tatiana e Dimitri. Isso era bom. Mentiras.

Tatiana punha sua própria cara corajosa, virava e sorria a Dimitri, apertando o coração com um punho fechado. Ela podia fazer isso, também. Mais mentiras.

Verter o chá. Uma coisa tão simples, ainda assim prenhe de engano. Verter o chá, para alguém mais diante dele. As mãos de Tatiana tremiam com o esforço.

Tatiana queria livrar-se do encantamento de Leningrado no começo de setembro, sair do círculo de sofrimento e amor que a sitiava.

Ela amava Alexander. Ah, finalmente. Alguma coisa verdadeira à qual se agarrar.

Depois das notícias sobre Pasha, Papai trabalhava de forma esporádica, com frequência muito alcoolizado. Sua presença em casa dificultava a vida de Tatiana, que cozinhava, limpava, rodava pelos quartos, lia. Mais mentiras. Isso não era o difícil. Era o que fazia tudo desagradável. Sentar-se no telhado era a única paz que restava para Tatiana, e mesmo assim uma paz relativa. Não havia paz dentro dela.

Quando estava no telhado, fechava os olhos e imaginava-se caminhando, sem gesso e sem mancar, com Alexander. Eles percorriam a Rua Nevsky, na direção da Praça do Palácio, descendo as margens do rio, ao redor do Campo de Marte. Vagavam além da Ponte Fontanka, através dos Jardins de Verão, e de volta às margens do rio, depois para Smolny e, em seguida, passando o Parque Tauride, para Avenida Saltykov-Schedrin, e daí para Suvorosky, até em casa. Enquanto andava com ele, ela sentia como se estivesse andando na direção do resto de sua vida.

Em sua imaginação, eles haviam caminhado ao longo das ruas de seu verão enquanto ela, sentada no telhado, ouvia o eco de armas de fogo e explosões. Escasso consolo era pensar que o fogo das armas não estava tão perto como em Luga. Alexander tampouco estava perto como em Luga.

As próprias visitas de Alexander tornaram-se tão escassas como as rações de Tatiana. Ele racionava a si próprio da mesma maneira que o Conselho de Leningrado racionava os alimentos. Tatiana sentia a falta dele, desejando, por um segundo, um momento a sós com ele outra vez, só para se lembrar de que o verão de 1941 não fora uma ilusão, que houve de fato uma época quando ela andava ao longo do muro do canal, segurando seu rifle, enquanto ele a olhava e ria.

Pouco havia para rir nos dias de hoje.

– Os alemães ainda não estão aqui, certo, Alexander? – perguntou Dasha durante o chá, o maldito chá. – Quando eles chegarem, poderemos repelir von Leeb?

– Sim – Alexander respondeu. Tatiana sabia. Mais mentiras.

Tatiana, olhar sombrio, observava Dasha aninhando-se em Alexander. Ela desviava o olhar e dizia a Dimitri:

– Ei, quer ouvir uma piada?

– O quê, Tania? Não, não quero. Me desculpe, estou um pouco preocupado.

– Isso é bom – ela dizia, vendo Alexander sorrir para Dasha. – Mentiras, mentiras, e mentiras.

Não era suficiente tudo o que Alexander fazia. Dimitri não deixava Tatiana em paz.

Enquanto isso, Tatiana nada sabia de Marina e sua vinda para morar com a família; no hospital, Vera, com as outras enfermeiras, andava aflita por causa da guerra. A própria Tatiana sentia que a guerra não era mais alguma coisa no rio Luga, alguma coisa que engolira a Pasha, alguma coisa que era combatida pelos ucranianos muito longe, em seus vilarejos fumegantes, ou pelos britânicos em sua distante e característica Londres. Já estava chegando aqui.

Bem, que alguma coisa melhor venha aqui, Tatiana pensou, porque não posso imaginar como continuar assim.

A cidade parecia segurar sua respiração coletiva. Tatiana certamente segurava a sua.

Durante quatro noites seguidas, Tatiana fez repolho frito para o jantar, cada dia com cada vez menos azeite.

– Que diabos você está cozinhando para nós, Tania? – perguntou Mamãe.

– Você chama isto de cozinhar? – Papai comentou.

– Eu não posso nem molhar o pão no azeite. Onde está o azeite?

– Não achei nenhum – disse Tatiana.

O rádio transmitia somente as notícias mais deprimentes. Tatiana achava que os locutores, de forma deliberada, esperavam até que a performance soviética no front fosse muito ruim, e aí então eles começavam a ler os boletins. Depois que Mga caiu, no final de agosto, Tatiana ouviu que Dubrovka era agora atacada – sua avó, mãe de sua mãe, Babushka Maya, vivia em Dubrovka, um povoado rural do outro lado do rio, fora do perímetro urbano.

Então Dubrovka caiu em 6 de setembro.

De repente, Tatiana recebeu inesperadas boas notícias, e boas notícias eram agora tão escassas como o azeite. Babushka Maya vinha morar com eles na Quinta Soviet! O triste é que Mikhail, o padrasto de Mamãe, morrera de tuberculose alguns dias antes, e quando os alemães queimaram Dubrovka, Babushka Maya fugiu para a cidade.

Quando Babushka chegou, ocupou um quarto, e Mamãe e Papai foram para o outro, com Dasha e Tatiana. Chega, por favor, Tania, vá embora.

Babushka Maya vivera toda sua longa existência em Leningrado e disse que nunca havia pensado em evacuação.

– Minha vida, minha morte, tudo aqui – ela disse a Tatiana enquanto desfazia as malas.

Ela tivera seu primeiro marido na virada do século, quando nasceu a mãe de Tatiana. Depois que o marido desapareceu, na guerra de 1905, ela nunca mais se casou, embora tivesse vivido trinta anos com o coitado do tuberculoso tio Mikhail. Certa ocasião, Tatiana perguntou-lhe por que ela nunca se casara com Mikhail, e Babushka respondeu:

– E se o meu Fedor volta, Tanechka? Eu ficaria na maior saia justa então.

Babushka pintava e estudava arte; suas pinturas eram exibidas em galerias antes da revolução, mas depois de 1917 ela se sustentou ilustrando material de propaganda para os bolcheviques. Em todos os cantos da casa em Dubrovka, Tatiana encontrava cadernos de esboços cheios de desenhos de cadeiras, alimentos, flores.

Depois que chegou, Babushka contou a Tatiana que não teve tempo de tirar nada da casa antes do incêndio.

– Não se preocupe, Tanechka, eu desenho para você uma nova e bonita cadeira.

– Talvez a senhora possa desenhar uma bonita torta de maçã, ao invés de uma cadeira – Tatiana disse. – É a temporada delas.

Na noite seguinte, 7 de setembro, Marina finalmente chegou, bem antes do jantar. O pai de Marina morrera no combate ao redor de Izhorsk, morreu na condição de artilheiro-assistente, sem treinamento, num tanque que ele mesma fabricara. Os Metanovs adoravam o tio Boris, e sua morte teria sido um golpe terrível, se a família não estivesse ainda inconsolável com seu próprio pesadelo, a perda de Pasha.

A mãe de Marina permanecia hospitalizada; nada a ver com a guerra, ela morria lentamente de falência renal. Tatiana surpreendia-se com sua própria ingenuidade. Como podia alguma coisa acontecer naqueles dias e não ter nenhuma relação com a guerra? Primeiro a tia Misha, agora a tia Rita. Havia algo universalmente injusto em tudo aquilo de gente morrendo de causas não ligadas às trincheiras que Alexander vinha cavando.

Papai olhou a mala de Marina. Mamãe olhou a mala de Marina. Dasha olhou a mala de Marina.

– Marinka, me deixe ajudá-la – Tatiana disse.

Papai perguntou se Marina ia ficar por um tempo.

– Acho que sim – Tatiana disse.

– Você acha que sim?

– Papai, o pai dela morreu e a mãe, sua irmã, está morrendo. Marina pode ficar um pouco aqui, não?

– Tania – Marina disse –, você não contou ao tio Georg que me convidou? Não se preocupe, tio Georg, eu trouxe meu carnê de racionamento.

Papai olhou feio para Tatiana, Mamãe olhou feio para Tatiana, Dasha olhou feio para Tatiana.

– Vamos esvaziar sua mala, Marina – Tatiana disse.

Naquela noite houve um pequeno problema com o jantar. As meninas haviam deixado a comida no fogão, por um instante, e quando voltaram à cozinha constataram que as batatas fritas, as cebolas e um pequeno tomate fresco haviam sumido. A frigideira fora deixada vazia e suja. Fiapos de batata estavam grudados no fundo, e lá ficaram, incrustados e cobertos com um pouco de azeite. Dasha e Tatiana olharam ao redor da cozinha, incrédulas e sem ação, e voltaram à sala, pensando que talvez tivessem colocado o jantar na mesa e dele simplesmente se esquecido.

As batatas desapareceram.

Dasha, bem ao seu estilo, arrastou Tatiana com ela, batendo em cada porta do apartamento, perguntando sobre as batatas.

Zhanna Sarkova abriu a porta, descuidada e abatida, quase como se fosse, de alguma forma, ligada ao louco Slavin.

– Está tudo bem? – Tatiana perguntou.

– Muito bem! – vociferou Zhanna. – Batatas? Meu marido desapareceu, vocês não o viram na Rua Grechesky, viram?

Tatiana balançou a cabeça.

– Talvez esteja ferido em algum lugar.

– Ferido onde? – Tatiana perguntou suavemente.

– Sei lá eu! E não, não vi suas estúpidas batatas. – Ela bateu a porta.

Slavin, deitado no chão, balbuciava. Seu pequeno quarto cheirava a tudo, menos a batatas fritas.

– Como ele se alimenta? – Tatiana perguntou ao passar por ele.

– Não é problema nosso – disse Dasha.

Os Iglenkos nem estavam em casa. Depois da perda de Volodya, na mesma época de Pasha, Petr Iglenko passava seus dias e noites na fábrica que derretia sucata de metal para fazer munição. A família acabava de receber mais más notícias. Petka, o filho mais velho, fora morto em Pulkovo. Só sobraram os dois menores, Anton e Kirill.

– Coitada da Nina – disse Tatiana, quando voltavam aos seus quartos.

– Coitada coisa nenhuma! – exclamou Dasha. – De que diabos você está falando, Tania? Ela ainda tem dois filhos. Sortuda a Nina.

Quando voltaram à porta que levava ao seu corredor, Dasha disse:

– Estão todos mentindo.

– Todos dizem a verdade – falou Tatiana. – Batatas fritas com cebolas não são fáceis de esconder.

Os Metanovs naquela noite tiveram de jantar pão e manteiga, e queixaram-se o tempo todo. Papai gritava com as meninas porque ficou sem seu jantar. Tatiana permaneceu quieta, lembrando-se da advertência de Alexander de que ela deveria ter cuidado com gente que podia agredi-la.

Contudo, depois do jantar, a família decidiu não arriscar mais. Mamãe e Babushka juntaram as latas de comida, os cereais e os grãos, sabão, sal e vodca, escondendo tudo nos cantos e no corredor atrás do sofá.

– Que sorte temos de ter a porta extra dividindo nosso corredor do resto dos animais – Mamãe disse. – De outra forma, nunca poderíamos guardar a nossa comida. Percebo isso agora.

Tarde naquela noite, quando Alexander chegou, e soube das batatas, ele aconselhou os Metanovs a manter fechada a entrada traseira da cozinha.

Dasha apresentou Alexander a Marina. Eles cuprimentaram-se com um aperto de mãos e olharam-se mais tempo do que era apropriado. Marina, embaraçada, saiu de lado, desviando o olhar. Alexander sorriu abraçando Dasha.

– Dasha – ele disse –, esta então é a sua prima Marina? – Tatiana quis fazer a ele um sinal de cabeça, enquanto uma perplexa Marina permanecia sem palavras.

Mais tarde na cozinha, Marina perguntou à Tatiana:

– Tania, por que o Alexander me olhou como se me conhecesse?

– Não faço ideia.

– Ele é encantador.

– Você acha? – disse Dasha, que passava por elas a caminho do banheiro, deixando Alexander no corredor. – Bem, não ponha suas mãos nele – ela acrescentou animada. – Ele é meu.

– Você não acha? – Marina sussurrou a Tatiana.

– Ele é legal – disse Tatiana. – Me ajude aqui a lavar esta frigideira, sim?

O encantador Alexander estava em pé na soleira da porta, fumando e sorrindo para Tatiana.

Papai continuou a resmungar sobre a chegada de Marina. As rações estudantis de sua sobrinha pouco ajudariam a família e alimentar outra boca só esgotaria ainda mais os seus recursos.

– Ela veio aqui só para comer o presunto em lata do meu pai – ele disse para Mamãe, olhando as latas. Tatiana não sabia se Papai queria comer as latas ou beijá-las.

– Ela é sua sobrinha, Papai – Tatiana sussurrou para que Marina não a ouvisse. – Ela é a única filha da sua única irmã.

2

No dia seguinte, 8 de setembro, havia agitação na cidade desde manhã cedo. O rádio anunciava: “Ataque aéreo, ataque aéreo!”

No hospital, Vera pegou a mão de Tatiana e exclamou:

– Você ouviu esse barulho?

Foram juntas para a entrada do hospital na Avenida Ligovsky, e Tatiana ouviu pesados e distantes estrondos que não vinham para mais perto, só cresciam em frequência.

– Verochka – Tatiana disse calmamente –, são os morteiros. Fazem esse som quando eles soltam as bombas.

– Bombas?

– Sim. Eles colocam essa máquina no chão, não sei bem como funciona, mas ela dispara bombas grandes, bombas pequenas, bombas explosivas, de pavio curto, pavio longo. As piores são as bombas de fragmentação – disse Tatiana. – Eles têm também essas pequenas bombas antipessoais. Disparam cem de uma vez. São letais.

Vera olhou a Tatiana, que deu de ombros.

– Luga. Eu não devia ter ido lá. Mas... ouça, você pode cortar fora a minha perna?

Voltaram para dentro.

– E se eu tirar agora o seu gesso? – Vera disse. – Acho um pouco drástico cortar fora sua perna.

Era a primeira vez que Tatiana via sua perna ao longo de seis semanas. Ela quisera ter mais tempo para contemplar seu membro estranho, murcho, sem o gesso. Mas enquanto mancava ao redor, ouviu uma comoção no final do corredor, no setor de enfermagem. Todas as enfermeiras subiam as escadas, Tatiana foi mancando atrás delas. Doía-lhe a perna quando nela punha seu peso.

Do telhado, viu duas formações de oito aviões voando sobre sua cabeça.

Uma explosão, seguida de fogo e fumaça negra, atingira metade da cidade, bem ao longe.

Está realmente acontecendo, ela pensou. Os alemães bombardeiam Leningrado. Pensei que tinha deixado tudo isso para trás, lá em Luga. Pensei que lá havia visto o pior que jamais veria. Pelo menos, pude deixar Luga e voltar à paz. Aonde posso ir agora?

Tatiana sentiu um cheiro pungente de ácido e pensou: o que é isso?

– Vou para casa – Tatiana disse para Vera – ficar com minha família. – Mas ela só pensava naquele cheiro.

À tarde, eles souberam que os armazéns de depósito de Badayev, que supriam Leningrado de alimentos, haviam sido bombardeados pelos alemães e agora eram ruínas flamejantes.

O cheiro pungente era de açúcar queimado.

– Papai – perguntou Tatiana, enquanto sentavam, solenes, à mesa do jantar. – O que vai acontecer a Leningrado?

Papai não tinha resposta.

– O que aconteceu ao Pasha, eu suspeito.

Mamãe começou a chorar.

– Não fale assim! – ela exclamou. – Você assusta as crianças.

Dasha, Tatiana e Marina se olharam.

O bombardeio continuou até o fim da tarde.

Anton chamou Tatiana e os dois subiram ao telhado. Podia parecer estranho andar sem o gesso, mas não havia nada mais estranho que a visão dos fragmentos negros e esfumaçados no céu de Leningrado.

Alexander tinha razão, ela pensou. Ele tinha razão a respeito de tudo. Tudo o que ele me disse que aconteceria, está acontecendo.

O coração de Tatiana encheu-se de respeito e afeto e ela fez uma anotação mental, prometendo ouvir cada palavra que ele dissesse de agora em diante, mas então sentiu-se atravessada por uma ponta de medo.

Não lhe dissera Alexander que haveria uma batalha mortal nas ruas da cidade?

Dimitri com sua arma, Alexander com sua granada e Tatiana com sua pedra.

Não lhe dissera Alexander que comprasse comida como se ela nunca mais fosse disponível? Talvez ele exagerasse um pouco, ela pensou, algo aliviada. Não havia ele insistido que saísse da cidade, quando ele vinha ao seu encontro em Kirov?

Enquanto a fumaça negra pairava como um monumento celestial sobre Leningrado, Tatiana tinha um pressentimento, como uma leve e penosa escuridão, ao pensar sobre o futuro da família.

Anton, olhos expectantes, examinava o céu.

– Tania! – ele exclamou. – Eu já consegui. Uma bomba caiu, uma incendiária, e eu a desarmei com isto! – ele apontou para o pedaço de pau em sua mão, cuja extremidade final estava ligada a um meio círculo de concreto que parecia um capacete de soldado. Pulando para cima e para baixo e acenando ao céu com o seu punho, Anton gritava: – Estou pronto pra vocês, venham, venham outra vez!

– Anton – disse Tatiana rindo –, você é tão louco quanto o Slavin.

– Oh, muito mais louco – disse Anton, todo contente. – Ele não está no telhado, está?

Tatiana podia ver incêndios na direção de Nevsky, na direção do rio.

De repente, a cabeça de Mamãe surgiu na porta da escadaria, ela não se atrevia sair de corpo inteiro ao telhado. Ela gritava:

– Tatiana Giorgievna! Você está louca? Desça já!

– Não posso, Mamãe, estou de plantão.

– Eu disse, venha! Venha já!

– Eu desço em mais uma hora, Mamochka. Vá, desça.

Mamãe, brava, resmungou e desceu, mas voltou dez minutos depois, com Alexander e Dimitri.

Tatiana, bem no alto do telhado, sacudiu a cabeça.

– O que você está fazendo, Mamãe? Trazendo reforços?

– Tatiana – Alexander disse, indo em sua direção –, desça conosco.

Dimitri permaneceu perto da plataforma com Mamãe.

Como Tatiana não se mexeu, Alexander, franzindo o rosto, disse:

– Imediatamente, Tania.

– Não posso deixar o Anton sozinho aqui, não é? – ela disse suspirando.

– Vou estar bem, Tania – Anton gritou, brandindo aos céus o pedaço de pau. – Estou pronto para eles.

– Soldado, ponha o capacete na cabeça. – Alexander disse para Anton ao sair de lá.

Lá embaixo, no quarto, Dimitri disse:

– Tania, querida, você não devia ir ao telhado durante um ataque aéreo.

– Bem, não faz muito sentido subir no telhado em outras ocasiões – ela respondeu levemente. – A não ser que você queira pegar um bronzeado. – Ela se afastou dele.

– Você mora na cidade errada para pegar um bronzeado – fulminou Alexander. – Mas honestamente, Tania, o que você está pensando? Dimitri tem razão, sua mãe tem razão, você quer que sua família perca dois dos seus três filhos? Nem todas as bombas são incendiárias; elas não aterrissam aos seus pés sem fazer estragos, como pombas abatidas. Você se esqueceu de Luga? O que acha que acontece quando uma bomba explode no ar? A onda explosiva destroça vidro, madeira, plástico. Por que tapamos todas as janelas na cidade? O que acha que aconteceria se essa onda atingisse você?

– Talvez – Tatiana disse secamente – vocês possam me tapar, talvez com uma pequena palmeira.

– Deixe de brincadeiras bobas! – disse Dasha. – Não arrume mais confusão. Não quero que os nossos bravos rapazes desenterrem você outra vez. – Ela apertou Alexander.

– Nessa eu não levo nenhum crédito – disse Dimitri, olhos flamejantes. – Ou levo, Alexander?

– Tania, sabe de uma coisa? – disse Mamãe. – Por que não vai fazer o jantar e nos deixa, os adultos, conversar um pouco? Marina, ajude Tania com o jantar.

Tatiana fez batatas, com um toque de manteiga, e um pouco de feijão e cenouras. Isso não é comida suficiente para todos, ela pensou; então fritou presunto de lata do estoque de Deda, prato de que ninguém gostou.

– Tania, seus pais ainda não gostam de falar na sua frente, não é? – disse Marina.

– Não, de fato não.

– Os soldados protegem muito você, especialmente o Alexander – Marina afirmou.

– Ele protege a todos – disse Tatiana. – Você pode me trazer um pouco mais de manteiga? Acho que esta aqui não é suficiente.

Foi um jantar sombrio naquela noite. Alexander e Dimitri estavam de saída para o front, e todos tinham medo de mencionar o indizível – alemães no meio de sua cidade e Alexander e Dimitri indo para o front. Tatiana sabia que, ao contrário de Dimitri, Alexander não ia para a batalha na linha de frente, mas isso pouco a consolava, imaginando-o no comando de sua companhia de artilharia.

Ainda assim foi ela que conseguiu perguntar animada:

– Bem, e agora? – Todos bebiam chá preto.

– Todos vocês usem o abrigo de bombas lá embaixo – Alexander disse. – Vocês têm a sorte de contar com um desses. Muitos edifícios não têm. Usem-no todos os dias. E você, Dasha, assegure-se de que a sua irmã não suba ao telhado. Diga a ela que deixe os rapazes cuidarem das bombas. Você me ouviu, Dasha?

– Ouvi, querido.

Tatiana o ouviu alto e claro.

– Alexander, havia muito alimento nos armazéns queimados? – ela perguntou.

Alexander deu de ombros.

– Havia açúcar, um pouco de farinha de trigo. Suprimentos para dois dias, talvez. Mas não devemos nos preocupar com os armazéns Badayev. Nossa preocupação deve ser com os alemães, agora sitiando a cidade.

– Oh, Alexander, não posso acreditar que estejam aqui em Leningrado! – Dasha disse. – Durante todo o verão, eles pareciam tão longe.

– Agora estão aqui. O círculo ao redor de Leningrado está quase completo.

– Quase um círculo – resmungou Tatiana.

– Quem diabos é você para discutir com um Tenente do Exército? – gritou o seu pai, embriagado.

Alexander levantou a mão e disse calmamente:

– Seu pai está certo, Tania. Não discuta comigo. Mesmo que você tenha razão.

Tatiana conteve um sorriso.

Alexander continuou, tampouco sorrindo.

– Infelizmente, os alemães têm a geografia do seu lado. Temos muita água ao redor da cidade. – Ele então sorriu. – Eu retifico o que disse. Com o golfo, o lago Ladoga, o rio Neva e os finlandeses ao norte, o círculo ao redor de Leningrado está quase completo. – Ele olhou para Tatiana e perguntou – Fica melhor assim?

Ela resmungou alguma coisa ininteligível e acidentalmente pegou o olhar de Marina.

Dimitri sentava bem junto de Tatiana, seu braço ao redor dela, afagando-lhe os cabelos.

– Seu cabelo está crescendo, Tanechka – ele disse. – Deixe-o crescer por inteiro, sim? Eu gostava dele longo.

Seja lá o que Alexander estiver fazendo, Tatiana pensou, não é suficiente. Seja lá o que estivermos fazendo, não é suficiente. Por quanto tempo podemos continuar? Precisamos parar de conversar na frente do Dima, da Dasha e do resto da minha família. Ou logo haverá problemas. Como se lesse a mente de Tatiana, Alexander colocou sua cadeira mais perto de Dasha.

– Alexander – perguntou Dasha – Os alemães ainda não ocuparam o Neva inteiro, não é mesmo?

– Ao redor da cidade, sim. Rio acima até o lago Ladoga, para Shlisselburg.

Shlisselburg era uma pequena cidade construída na ponta do lago Ladoga, onde o Neva saía do lago e serpenteava setenta quilômetros rumo a Leningrado, desaguando no golfo da Finlândia.

– Shlisselburg está sob controle alemão? – Dasha perguntou.

– Não – Alexander disse, suspirando. – Mas amanhã estará.

– E aí então?

– Então lutamos para manter os alemães fora de Leningrado.

– Agora que os armazéns queimaram, como os alimentos vão chegar à cidade? – a mãe de Tatiana perguntou.

– Não só alimentos, mas querosene, gasolina, munições – Dimitri disse.

– Primeiro – Alexander argumentou –, impedimos os alemães de entrar na cidade, depois nos preocupamos com o resto.

Dimitri riu de um jeito desagradável.

– Eles podem entrar se quiserem. Cada grande edifício de Leningrado está minado. Cada fábrica, cada museu, cada catedral, cada ponte. Se o Hitler entrar na cidade, ele vai morrer em suas ruínas. Não deteremos Hitler, a não ser com a sua morte.

– Não, Dimitri, vamos deter o Hitler – disse Alexander –, antes que os alemães entrem na cidade.

– Leningrado agora então é terra arrasada, também? – perguntou Tatiana. – E nós?

Ninguém respondeu.

Alexander balançou a cabeça e finalmente disse:

– O Dimitri e eu vamos para Dubrovka amanhã. Vamos deter os alemães – se pudermos.

– Mas por que eu e você devemos ficar entre os alemães e esta cidade? – Dimitri exclamou. – Por que não podemos simplesmente entregar Leningrado? Minsky cedeu. Kiev cedeu, Tallinn cedeu, depois de incendiada. A Crimeia inteira cedeu. A Ucrânia entregou-se toda contente! – Ele caía numa terrível agitação. – Que diabos estamos fazendo, matando todos nossos homens para impedir que o Hitler venha aqui? Que venha.

– Mas, Dimochka – disse Mamãe –, sua Tania está aqui. E o Alexander da Dasha também.

– Oh, não se esqueçam de mim – disse Marina. – Embora eu não pertença a ninguém, estou aqui também.

– É isso mesmo, Dima – disse Alexander. – Você quer sair do caminho do Hitler para que assim ele chegue até sua namorada?

– Sim, Dima! – exclamou Dasha – Você não ouviu falar sobre o que os alemães fazem com todas aquelas mulheres ucranianas?

– Não ouvi falar. O que eles fazem? – perguntou Tatiana.

– Nada, Tania – Alexander disse amavelmente. – Posso, por favor, tomar mais um pouco de chá?

Tatiana levantou-se.

Dimitri olhou sua xícara vazia.

– Eu pego mais chá para você também, Dima – disse Tatiana.

– Meu pobre Papai não pôde detê-los. – Marina disse, olhando sua xícara vazia. – Eles parecem invencíveis, vocês não acham?

Alexander nada disse.

– Eles são invencíveis. – Dimitri exclamou. – Nós temos três patéticas divisões de Exército. Não será suficiente, mesmo que morra o último homem e o último tanque seja destruído!

Alexander levantou-se da mesa e cumprimentou a todos.

– Dito isso – ele falou –, devemos ir, esqueça o meu chá, Tania. – Virou-se para Dimitri e ordenou: – Em pé, Soldado, vamos embora. Sua vida está entre os Metanovs e o Hitler. – Ele não olhou para Tatiana.

– É exatamente disso que eu tenho medo – balbuciou Dimitri.

Quando saíam, Dasha gritou, agarrando-se a Alexander:

– Me promete que vai voltar vivo?

– Farei o possível. – E aí então ele olhou para Tatiana.

Tatiana não chorou e nem arrancou a mesma promessa de Dimitri. Depois que eles foram embora, ela comeu um pedaço de biscoito doce, dele cuidando como a um ferimento.

– Eu gosto de verdade do seu Dima, Tania – Marina disse. – Ele é mais honesto que alguém que conheço. Gosto de ver isso num soldado.

Intrigada, Tatiana olhou para sua prima.

– Que tipo de soldado não quer ir à guerra e lutar? Pode ficar com ele, Marina.

3

Na manhã seguinte, enquanto se vestiam, os Metanovs ouviram no rádio que uma bomba incendiária caíra no teto de um edifício na Rua Sadovaya e a patrulha do telhado não conseguira desativá-la a tempo. A bomba explodiu, matando todo mundo lá, nove pessoas, todas com menos de vinte anos.

Meu irmão tinha menos de vinte, Tatiana pensou, calçando os sapatos. Sua tíbia latejava.

– Viu só? O que eu lhe disse? – falou Mamãe. – É perigoso ficar no telhado.

– Estamos no meio de uma cidade sitiada, Mamãe – Tatiana disse. – É perigoso ficar em qualquer lugar.

O bombardeio começou precisamente às oito da manhã. Tatiana ainda não havia nem saído para pegar suas rações. A família inteira se amontoou no abrigo antiaéreo, na parte debaixo do edifício. Indócil, Tatiana mordeu as unhas bem rápido e batucou e batucou uma canção nos joelhos, mas nada disso ajudou. Sentaram-se ali durante uma hora.

Mais tarde, Papai deu a Tatiana seu carnê de racionamento e pediu-lhe que pegasse suas provisões.

– Tanechka – Mamãe disse –, pode pegar as minhas também? Preciso costurar tudo isto antes de ir para o trabalho. Estou fazendo uniformes extras para o Exército. – Ela sorriu. – Um uniforme para o nosso Alexander, dez rublos para mim.

Tatiana pediu a Marina que a acompanhasse ao armazém. Marina declinou, dizendo que ia ajudar Babushka a se vestir. Dasha estava na cozinha lavando roupas na pia de ferro fundido.

Tatiana foi sozinha. Ela encontrou um grande armazém no Canal Fontanka, perto do Teatro de Drama e Comédia. O teatro iria apresentar a obra Noite de Reis, de Shakespeare, às sete daquela noite. A fila do armazém se alongava até as margens do rio.

Ela se aqueceu logo da peça quando, ao chegar no balcão, constatou que, depois do incêndio nos depósitos Badayev, no dia anterior, a ração fora ainda mais reduzida.

Papai recebeu, por conta do seu carnê de trabalhador, meio quilo de pão, mas os demais receberam, cada um, só 350 gramas, Marina e Babushka só 250 gramas. Juntando tudo, eles tinham ao redor de dois quilos de pão para o dia. Além do pão, Tatiana conseguiu comprar algumas cenouras, feijão de soja e três maçãs. Comprou também cem gramas de manteiga e meio litro de leite.

Depois de correr de volta para casa, Tatiana contou à família sobre as rações reduzidas. Eles não estavam preocupados.

– Dois quilos de pão? – Mamãe disse, deixando a costura de lado. – É mais do que suficiente, é bastante. Não precisamos nos entupir como porcos em tempos de guerra. Podemos apertar um pouco nossos cintos. Além do mais, temos toda aquela comida extra, se for preciso. Estaremos bem.

Tatiana dividiu o pão em duas pilhas – uma para o café da manhã, outra para o jantar – e então dividiu cada uma delas em seis porções. Coube a Papai mais pão. E ela ficou com menos.

No hospital, Tatiana perdeu a pretensão de treinar enfermagem com Vera. Ficou limitada a limpar os banheiros, dar banhos nos pacientes e depois lavar as suas roupas de cama sujas. Ela servia o almoço e aproveitava para comer. Às vezes, soldados apareciam para comer. Na hora de servi-los, sempre lhes perguntava se estavam estacionados nas Barracas Pavlov.

O bombardeio intermitente continuou durante o dia.

Naquela noite, Tatiana teve tempo de fazer o jantar e limpar a cozinha antes do toque da sirene, às nove, alertando sobre ataque aéreo. De volta ao abrigo antiaéreo, ela se sentou, sentou e sentou. Só passaram dois dias, pensou. Quanto tempo vai durar esta situação? Na próxima vez em que eu vir Alexander, vou lhe pedir que me conte a verdade sobre quanto tempo isto tudo vai continuar.

O abrigo era comprido e estreito, pintado de cinza, duas lâmpadas de querosene para mais ou menos sessenta pessoas, que se sentavam em bancos, ficavam em pé ou apoiavam-se nas paredes.

– Papai – Tatiana perguntou –, quanto tempo o senhor acha?

– Isto acaba em poucas horas – ele disse, abatido.

Tatiana sentiu o cheiro, forte, de vodca em seu hálito.

– Papai – Tatiana disse numa voz cansada. – Eu quis dizer... o combate, a guerra. Quanto tempo mais?

– E como posso saber? – ele disse, tentando se levantar. – Até que estejamos todos mortos?

– Mamãe, o que há com Papai? – Tatiana perguntou.

– Oh, Tanechka, você não pode ser tão cega. Pasha é o problema com Papai.

– Não sou cega – sussurrou Tatiana afastando-se. – Mas a família precisa dele.

Tatiana, ao chegar mais perto de Dasha e Marina, perguntou:

– Dash, a Marinka aqui me contou que o Misha lá em Luga curtia uma paixonite por mim. Eu disse que ela estava louca. O que você acha?

– Ela é louca.

– Obrigada.

Marina olhou para Tatiana e Dasha.

– Vocês duas são as loucas – ela disse. – E você, Dasha, algum dia vai comer suas próprias palavras.

– Aí está, Tania – disse Dasha, sem mesmo olhar para a irmã. – Talvez seja do Misha que você precise, não do Dimitri. – Ela suspirou.

No dia seguinte a mesma coisa. Desta vez, Tatiana levou consigo um exemplar do livro Memórias do Subsolo, de Dostoiévski.

No dia seguinte Tatiana disse a si mesma: eu não posso mais fazer isto. Não posso sentar e batucar minha vida nos joelhos.

Assim, enquanto a sua família descia para o abrigo, Tatiana ficou um pouco atrás e então correu de volta ao apartamento e subiu as escadas traseiras para o telhado, onde Anton, Mariska e Kirill e mais algumas pessoas que ela não conhecia vigiavam o céu. Tatiana pensou que com um pouco de sorte sua família talvez nem notasse sua ausência.

Eram de dar medo a explosão e o ruído sibilante do bombardeio ouvidos do telhado. Tatiana ficou ali duas horas. Nenhuma bomba caiu perto deles, todos ficaram decepcionados.

Tatiana tivera razão. Ninguém percebeu que ela não fora para o abrigo.

– Onde você se sentou, Tanechka? – perguntou sua mãe. – Do outro lado perto da lâmpada?

– Sim, Mamãe.

Nenhum sinal de Alexander ou Dimitri. As meninas estavam fora de si. Mal podiam falar uma com a outra, e muito menos com alguém mais. Só Babushka Maya, inquebrantável, ficava tranquila e continuava pintando.

– Babushka, de onde a senhora tira sua paz de espírito? – perguntou Tatiana uma noite, escovando os longos cabelos da avó, já grisalhos.

– Estou muito velha para me importar com qualquer coisa, meu raio de sol – respondeu Babushka. – Não sou jovem como você. – Ela sorriu. – Não quero viver muito mais. – Olhou por cima do ombro e tocou o rosto de Tatiana.

– Babushka, não diga isso. – Ela deu a volta e abraçou a avó. – E se o Fedor volta?

Babushka afagou a cabeça de Tatiana e falou:

– Eu não disse que não quero viver. Eu disse que não muito mais.

Tatiana estava um pouco preocupada com Marina. Ela ficava fora do apartamento desde cedo até a noite, ia à universidade de Leningrado e depois sem falta, visitava a mãe no hospital.

À noite Mamãe costurava. À noite Papai bebia, gritava e dormia. À noite Dasha e Tatiana ouviam as notícias do rádio. À noite havia bombardeio, e Tatiana dava uma fugidinha para o telhado.

E durante o dia ela ouvia os sons de guerra. Nunca havia silêncio em Leningrado. O fogo de artilharia vinha em dois sons, distante e próximo, parava um pouco no almoço, e depois, na hora de dormir, à noite.

Tatiana trabalhava, comprava pão, sarava a perna e agia como se sua vida não estivesse em ponto morto, como o bonde perto do Canal Obvodnoy.

Babushka Maya tinha um quarto só para ela. Mamãe dormia sozinha no sofá, Papai dormia sozinho no catre de Pasha. Tatiana, Marina e Dasha dormiam na mesma cama.

Tatiana estava quase agradecida pelo amortecedor entre ela e Dasha, amortecedor que lhe permitia enfrentar a crise dos bombardeios desviando os olhos da crise com a irmã, que tinha o direito durante a guerra de amar Alexander.

Apesar do amortecedor, Dasha certa noite pulou sobre Marina e colocou os seus braços ao redor de Tatiana.

– Tania, querida, está dormindo?

– Não, qual é o problema?

– Você pensa neles morrendo? – Dasha perguntou no escuro.

– Garotas, eu tenho escola amanhã – disse Marina. – Durmam.

– Claro.

Tatiana ouviu Dasha choramingando baixinho.

– Você acha que eles estão mortos agora? – perguntou Dasha, segurando Tatiana.

Com uma respiração dolorida, Tatiana suspirou por Alexander.

– Não – ela disse. – Não acho. – Ela não queria conversar com Dasha sobre Alexander. Não agora. Nunca. – Dasha, preocupe-se com você, olhe as condições em que vivemos. Você vê isso? No hospital me perguntaram se eu me importava em deixar a cozinha e subir para ajudá-los com as vítimas de bombas. Concordei, mas depois vi o que sobrava delas. – Tatiana fez uma pausa. – Você viu que hoje, lá em Ligovsky, desmoronou um edifício inteiro?

– Não vi.

– Uma menina, dezessete...

– Como você. – Dasha a apertou.

– Sim, estava debaixo dos escombros. O pai tentava ajudar os bombeiros a resgatá-la. Passaram o dia cavando. Às seis da tarde, quando saí do hospital, eles haviam terminado o serviço. E ela já estava morta. Um buraco na testa.

Dasha não disse nada.

– Tania – Marina disse –, você acaba de dizer que saiu do hospital às seis? Mas havia bombardeio a essa hora. Você não foi para o abrigo?

– Marinka – disse Dasha –, não fale desse assunto com sua prima. – Ela sussurrou no cabelo de Tatiana. – Se não for para o abrigo, vou dedurar você.

Naquela noite as sirenes os acordaram às três da manhã. Os alemães obviamente queriam divertir-se um pouco. Tatiana virou-se para a parede e teria continuado a dormir se a família não a tivesse arrastado para fora da cama. E eles se amontoaram na plataforma atrás das escadas, e Tatiana pensou: pior que isto não pode ficar.

4

Alexander e Dimitri retornaram na noite de 12 de setembro, a primeira do dia em que não houve bombardeio algum. Eles voltavam de Dubrovka só por uma noite – para recrutar mais homens da guarnição e se municiar com mais armas de artilharia.

Alexander apareceu, para o alívio choroso de Dasha, que não o soltava por um segundo, recusando-se até a ajudar no jantar.

Dimitri pendurava-se em Tatiana da mesma forma que Dasha fazia com Alexander, mas enquanto este podia abraçar Dasha, Tatiana permanecia como uma ave esfolada, olhando impotente ao redor do quarto.

– Tudo bem, agora, tudo bem – ela se disse, falhando ao tentar com árduo esforço não olhar o cabelo negro de Alexander e seu corpanzil.

Já seria bem reconfortante ter diante de seus olhos as formas do corpo de Alexander. Ela teria, porém, que se conformar sem os braços dele ao seu redor.

Quando Dimitri foi lavar as mãos, e Dasha correu para fazer o chá, Marina disse:

– Sabe, Tania, você podia mostrar um pouco mais de interesse no homem que luta por você no front.

Estou mostrando muito interesse, pensou Tatiana, mal conseguindo tirar os olhos de Alexander.

– Sua prima tem razão, Tania – disse Alexander, sorrindo para ela. – Você podia pelo menos mostrar o mesmo interesse da Zhanna Sarkova, que, quando passamos por sua porta ligeiramente aberta, estava deitada na cama como se tivesse uma parede de vidro ali.

– É mesmo?

Alexander levantou a voz, pegou seu rifle e com ele bateu duro na parede uma vez, dizendo em voz alta:

– Conhece esta piada? Um homem mostra o seu apartamento a um amigo. O visitante perguntou: “Para que serve essa base grande de bronze?”. E o homem respondeu: “É o relógio falante”, e desferiu um golpe estremecedor com o martelo.

Alexander bateu duro na parede outra vez. De repente, uma voz do outro lado da parede gritou:

– São duas da manhã, seu f.d.p.!

Tão alto riu Tatiana que Alexander colocou o rifle no chão e a acariciou de leve nas costas.

– Obrigado, Tania – ele disse sorrindo. – Estou morrendo de fome, o que tem aí pra jantar?

A caminho da cozinha, Tatiana tinha que passar pelos olhos de Marina.

Tatiana fritou dois presuntos de lata com um pouco do arroz que Alexander trouxera, e um pouco de caldo claro, agora sem fiapos de frangos. Enquanto ela cozinhava, Alexander foi lavar as mãos. Tatiana segurou a respiração. Ele se aproximou do fogão e levantou todas as tampas de panelas.

– O que temos? Presunto – ele disse. – Arroz. O que é isso? Água? Não me dê nada disso.

– Não é água, é sopa – disse Tatiana baixinho. – A cabeça inclinada de Alexander estava muito perto do braço dela. Se ela se mexesse três centímetros, poderia tocá-lo.

Ela segurou a respiração e moveu-se três centímetros.

– Tenho tanta fome, Tania – Alexander disse, levantando os olhos para ela, mas antes que pudesse dizer outra palavra, Marina entrou na cozinha e disse:

– A Dasha me pediu que lhe desse uma toalha. Você esqueceu.

– Obrigado, Marina – disse Alexander, pegando a toalha e sumindo.

Tatiana olhou sua sopa clara talvez à procura de um reflexo.

Marina chegou perto do fogão, olhou dentro da panela.

– Alguma coisa interessante aqui? – ela perguntou.

– Não, nada – Tatiana endireitou-se.

– Mmm – disse Marina, afastando-se. – Porque tem muita coisa interessante fora daí.

No jantar, Dasha perguntou:

– A luta está terrível?

Alexander, comendo vorazmente, todo feliz, respondeu:

– Você sabe, estranhamente, não. Foi terrível nos dois primeiros dias, certo, Dima? Ele sabe, pois ficou nas trincheiras dois dias. Os alemães obviamente tentavam ver se nós nos dobraríamos. E quando não o fizemos, eles pararam de atacar, e o nosso pessoal de reconhecimento dizia que pelo jeito os alemães construíam trincheiras permanentes, trincheiras de concreto e bunkers.

– Permanente, o que significa isso? – perguntou Dasha.

– Significa que eles provavelmente não vão invadir Leningrado – Alexander respondeu devagar.

A família vibrou com isso. Todos, menos Papai, parcialmente adormecido no sofá, e Tatiana, que viu no rosto de Alexander uma luminosa hesitação, certa relutância em contar a verdade.

Tatiana mordeu os lábios e perguntou com todo cuidado:

– Você está contente com isso?

– Sim – Dimitri respondeu em cima, como se ela falasse com ele.

– Não, não estou – Alexander respondeu lentamente. – Pensei que íamos combater – ele afirmou. – Combater como homens...

– E morrer como homens! – interrompeu Dimitri, batendo na mesa.

– E morrendo como homens, se assim fosse preciso.

– Bem, fale por você. Eu preferia que os alemães ficassem sentados em seus bunkers por dois anos e matassem Leningrado de fome, a aguentar o fogo deles.

– Oh, pare com isso! – Alexander disse, colocando garfo e faca na mesa e olhando fixamente para Dimitri. – Essas nossas perdas nas trincheiras, você não acha isso indecoroso? É quase uma covardia! – Ele deu a Dimitri mais um olhar frio, limpou a boca e procurou a vodca. Tatiana empurrou-lhe a garrafa do outro lado da mesa.

– Nenhuma covardia – Dimitri declarou. – É esperteza. Você senta e espera. Quando o inimigo se enfraquece, você ataca. Isso se chama estratégia.

Mamãe, mexendo nervosamente no seu prato com presunto, disse:

– Dimochka, você com certeza não quer dizer matar Leningrado de fome? Não no sentido literal, certo?

– Certo, certo – disse Dimitri. – Falei de forma figurativa.

Tatiana estudava Alexander, que permanecia em silêncio.

– Tem mais vodca aí? – Dimitri perguntou, levantando a garrafa quase vazia. – Hoje eu quero ficar de porre.

Todos olharam para Papai e desviaram o olhar.

– Alexander – Tatiana disse em sua voz animada. Ela gostava de pronunciar o nome dele em voz alta. – Nina Iglenko hoje veio nos pedir um pouco de farinha de trigo e algum presunto. Temos bastante, e eu dei-lhe um pouco. Ela disse que gostaria de haver sido tão previdente quanto fomos nós.

– Tania – Alexander interrompeu, e ela se ajeitou pesadamente na cadeira. Sua intuição fora correta. Ele sabia demais. E não estava contando nada. – Não dê um grama de sua comida, seja qual for a razão, entendeu? Nem mesmo se a Nina Iglenko parecer mais esfomeada do que você.

– Não estamos tão esfomeados assim – disse Tatiana.

– Sim, Alexander – disse Dasha – Já tivemos racionamentos antes. Onde estava você durante a campanha finlandesa do ano passado?

– Combatendo os finlandeses – ele respondeu num tom áspero. Tatiana se perguntava por que Dasha sempre usava eufemismos para falar da guerra, coisas do tipo uma campanha, um conflito. Ela andava escrevendo propaganda para o rádio?

– Dasha, todos vocês, me ouçam. Segurem sua comida como se ela fosse a última coisa entre vocês e a morte, entenderam? – Alexander disse.

– Precisa ser tão sério? – Dasha perguntou amuada. – Onde está o seu famoso senso de humor? Não vamos morrer de fome. O Conselho de Leningrado de alguma forma conseguirá nos suprir de comida, certo? Não estamos completamente rodeados pelos alemães, estamos?

Alexander acendeu um cigarro.

– Dasha, me faça um favor, guarde a sua comida.

– Tudo bem, querido. Dou-lhe a minha palavra. – Ela o beijou.

Alexander virou-se para Tatiana.

– Você também, Tania.

– Tudo bem, querido. Dou-lhe a minha palavra. – Ela não o beijou.

– Alexander, durante quanto tempo Londres foi bombardeada no verão de 1940? – perguntou Dasha.

– Quarenta dias e noites.

– Você acha que aqui vai demorar tanto assim?

Essa era a pergunta que Tatiana queria fazer e nem precisou.

– Mais ainda – disse Alexander. – O bombardeio vai continuar até que Leningrado se renda ou caia, ou nós repelimos os alemães.

– Nós vamos nos render? – perguntou Dasha. – Eu combato os nazistas nas ruas de Leningrado, se de mim precisarem.

Tatiana achou aquela uma atitude corajosa de Dasha, a menina que toda noite sentava dentro do abrigo antiaéreo.

Alexander balançou a cabeça e disse:

– Você não vai querer combatê-los, Dasha. Uma guerra de rua é devastadora, não só para os sitiados como para os atacantes. É enorme a perda de vidas. E enquanto o nosso amado grande líder não demonstra muita preocupação pela vida de seus próprios homens, Hitler mantém um surpreendente e saudável interesse nas vidas da raça ariana. Não acho que ele vai arriscar a vida de seus homens por Leningrado. – Ele olhou para Tatiana. – Acho que o Dima terá por fim o seu desejo realizado – Alexander terminou, mal escondendo seu desdém.

Tatiana olhou para Dimitri jogado no sofá, ou dormindo ou bêbado, ao lado de Papai, e foi pegar xícaras para o chá.

– Vai ser como Londres? – Dasha disse, jogando para trás o seu cabelo encaracolado, os olhos brilhando. – Londres foi bombardeada, mas as pessoas ainda assim continuaram tocando suas vidas, e havia clubes, e gente jovem dançando. Nós vimos fotografias. Parecia tudo tão alegre. – Ela sorriu para Alexander, afagando sua perna.

– Dasha, onde você está vivendo? Londres? – Alexander esbravejou, afastando-se dela. – Para você, Londres fica tão longe quanto Marte. Não temos salões de baile em Leningrado agora.Você acha que vão construí-los só para o bloqueio?

O rosto de Dasha azedou.

– Bloqueio?

– Dasha! Londres não foi bloqueada. Você entende a diferença?

– Estamos bloqueados? – perguntou Dasha.

Alexander não respondeu.

Mamãe, Dasha, Marina e Babushka apertavam-se ao redor da mesa, todas devorando Alexander com os olhos, menos Tatiana, em pé na soleira da porta, as mãos cheias de xícaras e pires.

Ela não olhou para ele quando disse:

– Estamos de fato bloqueados. É por isso que os alemães se entrincheiraram. Não vão perder os seus homens. Eles vão nos matar de fome, não é, Alexander?

– Chega de perguntas por uma noite – Alexander disse. – Simplesmente não abram mão de sua comida.

Mamãe perguntou, incrédula:

– Alexander, ouvi falar que os alemães estão no Palácio Peterhof. Isso é verdade?

– Lembra, querido, que nós fomos a Peterhof – Dasha murmurou, segurando-lhe as mãos. – Oh, Alexander, foi a maior felicidade! Foi o nosso último dia jovem e descontraído. Você lembra?

– Eu lembro – Alexander disse, sem olhar para Tatiana.

– Nada mais foi igual depois daquele dia maravilhoso – Dasha disse com tristeza.

Virando-se para Mamãe, Alexander disse:

– Irina Federovna, Peterhof está de fato em mãos alemãs. Os nazistas arrancaram os tapetes do Palácio e com eles estão forrando as trincheiras.

– Querido – disse Dasha, bebendo chá –, Dimitri talvez tivesse razão. Ainda há três milhões de pessoas em Leningrado. É muita gente para ser sacrificada, não acha? – Ela fez uma pausa. – O comando de Leningrado não considerou a rendição?

Alexander estudou Dasha. Tatiana tentava entender o que diziam os olhos dele.

– Quero dizer – Dasha continuou –, se nós nos rendemos...

– Render-se e depois o quê? – Alexander exclamou. – Dasha, não somos úteis para os alemães. Com certeza, não terão como usar você. – Ele fez uma pausa. – Você leu sobre o que eles fizeram no campo ucraniano?

– Eu tento não ler – disse Dasha.

– Mas eu li – disse Tatiana baixinho.

Alexander continuou:

– Dimitri chegou a pensar que podia ser uma boa ideia virar prisioneiro em um campo alemão. Até que soube como os nazistas fuzilam os prisioneiros, saqueiam e queimam os povoados, abatem o gado, arrasam os silos, matam todos os judeus e depois as mulheres e crianças também.

– Não antes de estuprar todas as mulheres – Tatiana disse.

Dasha e Alexander olharam para ela boquiabertos.

– Tania – disse Dasha –, me passe a geleia de mirtilo, sim?

– Sim, e pare de ler tanto, Tania – disse Alexander baixinho. Ele olhava sua xícara de chá.

Depois de enfiar na boca uma colherada de geleia, Dasha perguntou:

– Bem, se estamos bloqueados, como a comida vai entrar em Leningrado?

– Temos o bastante – Mamãe disse. – Guardamos muito.

– Não sei, Mamãe – Dasha disse com firmeza. – Nisso acho que concordo com Dimitri. Penso que deveríamos nos entregar...

Com um olhar desolado para Tatiana, Alexander balançou a cabeça.

– Não – ele disse. – Certo, Tania? – Não vamos tombar ou esmorecer. Vamos até o fim... Vamos lutar nos mares e oceanos... No ar, vamos defender a nossa ilha a qualquer custo.

– Vamos lutar nas praias – continuou Tatiana bravamente. Seus olhos em cima de Alexander. – Vamos lutar nos campos e nas ruas. Vamos lutar nas montanhas. – Ela engoliu um caroço na garganta. – “Nunca vamos nos render” – ela terminou, percebendo que as suas mãos tremiam. – Churchill.

Frustrada, Dasha levantou-se e disse:

– Churchill? Você pode fazer mais um pouco de chá?

Marina foi à cozinha ajudar Tatiana a limpar tudo e sussurrou:

– Tania, eu nunca vi na minha vida uma pessoa tão idiota e boba como sua irmã.

– Não sei do que você está falando – Tatiana disse, pálida e imóvel.

Poucos dias depois, Tatiana e Dasha fizeram um balanço das provisões da casa, boa parte delas compradas com a ajuda de Alexander no primeiro dia de guerra.

Seu efêmero primeiro dia de guerra.

Aquele dia parecia tão longe, como se pertencesse a outra vida, a outro tempo. Dois meses atrás, e já tão irremediavelmente no passado.

No momento, os Metanovs tinham quarenta e três quilos de latas de presunto. Tinham nove latas de tomates cozidos e sete garrafas de vodka. Chocada, Tatiana constatou que eles tinham, oito dias atrás, onze garrafas de vodka, quando os armazéns Badayev se incendiaram. Papai devia estar bebendo mais do que eles imaginavam, ela pensou.

Tinham dois quilos de café, quatro quilos de chá e uma bolsa de açúcar, tudo dividido em trinta sacos plásticos. Tatiana contou também quinze latas pequenas de sardinhas defumadas. Dispunham ainda de uma bolsa de cevada de quatro quilos, seis quilos de cereais e uma bolsa de farinha de trigo de dez quilos.

– Parece bastante, não? – disse Dasha. – Quanto tempo pode demorar o cerco?

– Segundo Alexander, até o fim – disse Tatiana.

Tinham sete caixas com duzentos e cinquenta fósforos cada uma.

Mamãe disse que tinham também novecentos rublos em dinheiro, o suficiente para comprar comida no mercado negro.

– Mamãe, vamos então comprar alguma coisa – disse Tatiana. – Agora mesmo.

As duas irmãs foram com a mãe a uma loja comercial, aberta em agosto na rua Oktabrisky Rayon, perto da Catedral de São Nicolau. Tardou-lhes mais de uma hora chegar até lá e ficaram espantadas com os preços dos poucos produtos nas gôndolas. Havia ovos, queijo, manteiga, presunto e até mesmo caviar. Mas o açúcar custava dezessete rublos o quilo. Mamãe riu, já indo rumo à saída, mas Tatiana a segurou pelo braço e disse:

– Mamãe, não seja mesquinha. Compre a comida.

– Me solta, sua idiota – disse Mamãe de forma grosseira. – Você acha que eu sou boba? Comprar açúcar por dezessete rublos o quilo? Olhe só o queijo, dez rublos por cem gramas. Estão brincando? – Ela gritou ao balconista. – Você está brincando? Por isso não fazem fila na porta desta loja, como nos outros estabelecimentos russos! Quem vai comprar comida por esses preços?

O jovem balconista deu um sorriso malicioso e balançou a cabeça.

– Meninas, meninas, comprem ou saiam da loja.

– Estamos saindo – disse Mamãe. – Vamos embora.

Tatiana não se mexeu.

– Mamãe, a senhora lembra o que o Alexander nos disse?

Ela tirou da bolsa os rublos que economizara em seu trabalho na fábrica de Kirov e no hospital. Não era muito. Ganhava só vinte rublos por semana, e dez entregava aos pais, mas conseguira poupar cem rublos, e com esse dinheiro comprou uma bolsa de farinha de cinco quilos pelo indignante preço de quarenta rublos (para quê necessitamos de mais farinha?), quatro pacotes de fermento por dez rublos, uma bolsa de açúcar por dezessete, e um quilo de presunto em lata por trinta. Sobraram-lhe três rublos e ela perguntou o que mais podia comprar. O balconista informou: uma caixa de fósforos, quinhentos gramas de chá ou um pouco de pão amanhecido que ela podia tostar e fazer bolachas. Tatiana pensou bem e ficou com o pão.

Ela passou o resto do sábado cortando o pão em pequenos pedaços e tostando-o no forno, enquanto Mamãe, Papai e até mesmo Dasha riam dela.

– Gastou três rublos em pão velho, que agora está tostando, ela acha que vamos comer isso!

Tatiana os ignorou, pensando somente nas palavras de Alexander na loja Voentorg. Compre a comida como se você nunca mais fosse vê-la.

Naquela noite, depois de ouvir o episódio, Alexander disse:

– Irina Federovna, a senhora deveria ter gastado até o último kopeck dos seus novecentos rublos comprando aquele pão amanhecido. – Ele fez uma pausa. – Como Tania.

Obrigada, Alexander, pensou Tatiana. Ela estava do outro lado do quarto, cheio de gente. Não tocava nele havia dias. Fazia um esforço para ficar longe de Alexander, como ele mesmo lhe pedira.

Mamãe fez-lhe um gesto negativo.

– Eu não fui educada para gastar dezessete rublos em açúcar. Certo, Georgi?

Georgi já dormia no sofá. De novo, ele bebera além da conta.

– Certo, Mamãe?

Babushka Maya pintava.

– Acho que sim, Irina – ela disse. – Mas e se o Alexander tiver razão?

5

Os alemães eram virtuosamente pontuais. Todos os dias, às cinco da tarde, soavam as sirenes de ataque aéreo e o metrônomo do rádio batia a duzentos toques por minuto.

A assustadora monotonia dos projéteis caindo sobre Leningrado era superada somente pela assustadora monotonia das mentiras que Tatiana guardava consigo, e o incessante medo pela vida de Alexander, e a frustração com Papai, que de tal forma abandonara a família que já nem mesmo sabia que ainda era setembro.

– Isso é impossível – ele disse certa noite quando a sirene tocou. – Parece que eles estão nos bombardeando faz mil dias.

– Não, Papai, são só onze dias – disse Tatiana baixinho. – Só onze.

Tatiana não se sentia frustrada apenas com Papai. Mamãe se isolara em seu trabalho. Babushka pintava como se não houvesse uma guerra. Marina andava muito aflita por causa da mãe doente e, além disso, Tatiana não queria conversar muito com Marina. E Dasha... bem, estava toda envolvida com Alexander.

Deda e Babushka estavam bem seguros em Molotov. Tatiana acabava de receber uma carta deles. Pasha fora embora.

Dimitri, pensativo e infeliz, bebia mais e mais nas poucas vezes que vinha de visita. Certa noite ele chegara a empurrar Tatiana contra a parede perto da janela da cozinha, e se Dasha não tivesse entrado, Tatiana não sabia como aquilo acabaria.

Tatiana só se sentia bem com os seus amigos no telhado e Alexander.

Quando subia ao telhado, via a Mariska, como de costume, dando pulinhos à espera de mais aviões, mais bombas. A menina de sete anos, semiabandonada, corria ao redor toda contente, acenando às formações de avião.

– Aqui, aqui! – Ela continuava gritando, seu cabelo cacheado balançando.

Anton estava pronto para extinguir as bombas incendiárias com o seu porrete com ponta de cimento.

– Mas, Anton – Tatiana disse tirando uma bolacha da jarra –, e se a bomba cair na sua cabeça? Você está segurando esse porrete estúpido, mas e se a bomba cair na sua cabeça, o que você vai fazer então? Por que não põe agora mesmo um capacete na cabeça e senta aqui do meu lado?

Ele não sentava, continuava falando, todo agitado, sobre as bombas de fragmentação, que podem fatiar alguém antes mesmo que levantasse a cabeça para ver o que estava pela frente. Tatiana podia jurar que Anton queria ver alguém fatiado.

Tatiana observava Mariska, seu corpinho impossivelmente pequeno, ela observava Mariska, enquanto comia bolacha, entediada.

Mariska correu para Tatiana e disse:

– Oi, Tanechka, o que você está comendo?

– É só uma bolacha de pão – respondeu Tatiana, enfiando a mão no bolso. – Quer uma?

Mariska aceitou com vontade e então arrebatou a bolacha da mão da Tatiana, e antes que esta pudesse dizer: “Não pega!”, a menininha engoliu a bolacha inteira e disse:

– Tem mais?

De repente, Tatiana viu alguma coisa em Mariska que não percebera antes. Ela se levantou e pegou a menina pela mão.

– Onde estão sua mamãe e seu papai? – ela perguntou, indo com a garotinha para as escadas.

Mariska deu de ombros e disse:

– Dormindo, eu acho.

Anton advertiu Tatiana:

– Não, Tania. Deixe-a.

Tatiana levou Mariska ao quarto da menina.

– Mamãe, Papochka, olhem só, tem alguém aqui que quer vê-los – a menina disse.

Mamãe e Papochka não se mexeram da cama no quarto. Os dois tinham as caras enfiadas nos travesseiros imundos. O quarto fedia como o banheiro comunitário de Tatiana.

– Suba comigo, Mariska – ela disse. – Eu lhe dou alguma coisa para comer.

Na manhã seguinte, às seis e meia, Tatiana, já lavada e vestida, estava em pé ao lado de sua irmã adormecida.

– Dashenka – disse Tatiana –, posso sugerir que você não use a sirene do ataque aéreo das oito como seu despertador pessoal? Levante-se já e venha comigo ao armazém.

Dasha mal se mexeu.

– Por quê, Tania? – Ela disse – Você está fazendo tudo muito bem sozinha.

– Vamos – Tatiana disse, puxando os cobertores de Marina e Dasha. – Acordem e vejam a primeira função.

As meninas não se mexeram.

– Ou – disse Tatiana, cobrindo-as de novo –, vocês podem pegar o show principal prontamente às cinco. – Dasha e Marina não abriram os olhos. – Se vocês perdem isso, então tentem a última sessão da noite – Tatiana disse saindo do quarto. – Às nove em ponto.

Talvez Alexander esteja em Leningrado, Tatiana pensou. Talvez ele venha à noite e fale comigo como se estivesse ainda vivo. Como se eu estivesse viva. Alguém pode falar comigo? Ninguém sente mais minha presença por perto; eles desapareceram dentro de si próprios, como se eu não estivesse mais aqui. Venha, Alexander, Tatiana pensou enquanto abotoava o casaco e caminhava com vigor pela Rua Nekrasov, rumo ao armazém de racionamento. Venha e me faça lembrar que eu ainda estou viva. Naquela noite, entre ataques aéreos, Alexander apareceu, trazendo suas rações e com ele um taciturno Dimitri.

Como sempre, o quarto estava cheio de gente. Tatiana foi para a cozinha fazer um jantar de feijão e arroz. Alexander foi atrás e o coração dela pulsou mais rápido, mas então Zhanna Sarkova entrou na cozinha e Petr Petrovi, depois Dasha e Marina. Então, Alexander saiu da cozinha.

Durante o jantar, a família inteira estava ao redor da mesa, salvo Papai, embriagado no outro quarto. Tatiana podia falar com Alexander, mas não podia olhar para ele, com todos aqueles olhos, com todos aqueles rostos. Ela olhava para seu prato, ou para a Mamãe. Não podia olhar para Dasha, ou para Marina, ou Babushka, que pareciam ter um sexto sentido para tudo.

Enquanto descrevia aos presentes a má preparação do Exército Vermelho no combate aos alemães, sobretudo na defesa do Neva, Alexander contava:

– Há dois dias, meu batalhão subiu o Neva, do lado de Shlisselburg, para cavar algumas trincheiras, conseguimos disparar alguns morteiros, mas nada funcionava. Até mesmo a... – ele abaixou um pouco a voz – a ubíqua NKVD pouco marcou presença lá.

– Eles não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo – disse Tatiana. – Têm demasiadas funções. Tropas de fronteira, guardas na fábrica de Kirov, milícia urbana...

– A Gestapo – concluiu Alexander. – Oh, e não vamos nos esquecer dos ministros de todos os assuntos internos e os guardiões da segurança interior.

Eles sorriram de leve e ela continuou comendo. Tatiana precisava tocar-lhe a mão para livrá-lo do seu passado e trazê-lo ao presente de ambos. Ela não podia tocá-lo: sua família estava ao redor da mesa, bem como Dimitri. Mas Alexander precisava ser tocado. Em um momento, ela ia se levantar para dar-lhe o que ele precisava, e pouco importassem todos os demais, que nada precisavam dela.

Em pé, ela começou a retirar a mesa. Ao dar a volta para pegar o prato dele, pressionou o quadril no cotovelo de Alexander, num movimento lento, e em seguida afastou-se rápido.

– Tania, você sabe, se os alemães tivessem atacado de forma adequada nas primeiras duas semanas de setembro – Alexander continuou –, eu acho que eles teriam tido êxito. Nós não tínhamos tanques nem canhões no local. Os únicos exércitos que nós tínhamos do outro lado do rio, em Shlisselburg, eram sobras das tropas de Karelia, alguns Voluntários do Povo mal armados. – Ele parou. – O que você achou do treinamento dos Voluntários do Povo em Luga, Tania? Como sabemos, nem todo mundo tem a presença de espírito da Tania durante um bombardeio.

Dasha interrompeu:

– Para que você fala de guerra com ela? Tatiana não tem o menor interesse nisso. Fale com ela sobre Pushkin, ou alguma outra coisa. Talvez culinária. Ela agora gosta de cozinhar. Nem pensa que há uma guerra em andamento.

Com uma cara séria, Alexander disse:

– Muito bem, Tania. Você gostaria de falar sobre Pushkin?

Ruborizada, Tatiana disse:

– Espere, falando de cozinha, de comida, onde tem um armazém seguro aonde eu possa ir? Em qualquer lugar que eu vá pegar as minhas rações, fico debaixo de bombas, é... inconveniente – ela terminou, e Alexander riu.

– Por assim dizer – ele falou. – Não vá a nenhum lado. Fique no abrigo durante o bombardeio.

Ninguém disse nenhuma palavra.

– Minha pergunta é – Tatiana continuou rápido, de forma a não deixar Dasha dizer uma única palavra – De onde eles atiram em mim?

– Pulkovo Heights – respondeu Alexander. – Eles não precisam nem dos aviões. Já notaram como há menos aviões no ar?

– Bem, não. Havia pelo menos uns cem ontem à noite.

– Sim, à noite, porque fica mais difícil para nós acertarmos os aviões alemães. Mas eles não querem desperdiçar seu precioso poder aéreo. Estão sentados, com todo o conforto, em Pulkovo Heights, e suas bombas chegam até Smolny. Você sabe onde fica Pulkovo, não sabe, Tania? É bem perto de Kirov.

Ruborizada, ela disfarçou com os pratos sujos que carregava. Ele tinha que parar com aquilo, não, não pare. Eu preciso disso para continuar respirando. Quando ela voltou da cozinha, Mamãe disse:

– Bom, Tanechka, graças a Deus você não trabalha mais lá longe em Kirov.

Alexander sugeriu que Tatiana não fosse à rua Suvorosky pegar suas rações. Tatiana disse a ele que não ia.

– Vou a uma loja na Fontanka com a Nekrasov – ela disse com firmeza. – Estou lá todas as manhãs, às sete em ponto, não é, Dasha?

– Não posso saber – Dasha disse – Eu nunca vou.

– Se você puder evitar, não ande por nenhuma rua na direção norte-sul – Alexander repetiu, olhando para Tatiana.

Dasha riu.

– Mas, querido! Metade das ruas de Leningrado estão assim!

– Como você sabe? – perguntou Tatiana de um jeito suave. – Você só sai lá fora quando cessa o bombardeio.

Agarrada no pescoço de Alexander, Dasha mostrou a língua para Tatiana.

– É porque eu tenho bom-senso.

– E você, Tania, tem? – Alexander perguntou baixinho, tirando os braços de Dasha de seu rosto. – Você sai lá fora só quando param os bombardeios?

– Você está brincando? – Dasha disse. – De bom-senso ela não tem nada. Pergunte com que frequência vai para os abrigos.

Silêncio no quarto cheio. Brilharam os olhos de Alexander.

– Oh, olhe – Tatiana disse incômoda. – Eu vou aos abrigos. – Ela deu de ombros. – Ontem, eu sentei debaixo das estrelas.

– Sim, por três minutos, Alex, ela não pode ficar quieta nem sentada.

– Ela não tem subido no telhado, tem?

Ninguém disse nada. Para evitar o olhar de Alexander, Tatiana ocupou-se com a máquina de costura.

– Posso ir na Avenida Nevsky? – ela perguntou, sem levantar os olhos.

– Jamais. O bombardeio mais pesado é daquele lado. Mas eles têm o maior cuidado em não atingir o Hotel Astoria. Você sabe onde é o Astoria, Tania? Está bem ao lado da Catedral de Santo Isaac.

O rosto de Tatiana ficou todo vermelho.

Alexander continuou apressado:

– Não importa. Hitler reservou o Astoria para a festa da vitória, depois que ele desfilar com sua bandeira ao longo da Nevsky. Fique longe da Nevsky. E nunca ande no lado norte de uma rua, na direção leste-oeste. Todos entenderam?

Tatiana estava silenciosa.

– Quando é essa festa no Astoria? – ela perguntou finalmente.

– Outubro – disse Alexander. – Ele acredita que o povo de Leningrado vai abandonar a cidade em outubro. Mas eu lhes digo que o Hitler vai chegar tarde.

– O que nós faríamos sem você, Alexander? – Marina disse.

Dasha aproximou-se dele abraçando-o com força e dizendo a Marina:

– Pare com isso. Vá paquerar o soldado da Tania.

– Sim, Marina, vá em frente – murmurou Tatiana, olhando o Dimitri, semiconsciente no sofá.

Marina, contudo, disse:

– O que você acha, Tania, devo paquerar o seu soldado?

Não muito longe de uma retirada, Alexander, Tatiana pensou, não longe o suficiente.

Enquanto ela limpava a mesa depois do chá, Dimitri acordou e, num estupor, puxou Tatiana para cima dele.

– Tanechka – ele murmurou... – Tanechka...

Tatiana lutou para se safar, mas ele a segurava firme.

– Tania – ele sussurrou. – Quando, quando?

Seu hálito fedia.

– Não posso esperar mais.

– Dima, me solte – Tatiana disse começando a respirar com dificuldade. – Tenho um trapo molhado nas minhas mãos.

– É demais, Dima – disse Mamãe. – Tania, acho que ele anda bebendo muito.

Tatiana sentiu Alexander bem atrás dela. Ouviu a voz de Alexander bem atrás dela.

– Sim – ele disse, tirando os braços de Dimitri de cima de Tatiana, ajudando-a a se levantar. – Ele anda mesmo bebendo muito. – Sua mão nela ficou o suficiente para que ele lhe apertasse o braço e a soltasse.

– O que há com ele, Tania? – perguntou Mamãe. – Ele parece estranho ultimamente. Amuado. Pouco falador. E não tão legal com você.

Ofegante, Tatiana observou Dimitri por um momento.

– Ele tem menos interesse em mim – ela disse à mãe –, à medida que sente a sua própria morte.

Ela se virou e foi para a cozinha sem olhar para Alexander, mas, sem escapar aos olhares de Marina e Babushka. Dasha estava no outro quarto cuidando de Papai.

6

Tatiana pensou que podia aguentar, que podia aguentar tudo. Porém, uma noite, duas semanas depois do incêndio dos armazéns Badayev, quando todos voltaram do trabalho para casa e, em vez de prontos para jantar, estavam sentados no abrigo antiaéreo esfomeados e cansados, Dasha recostou-se ao lado de Tatiana e numa voz excitada exclamou:

– Adivinhem, todos vocês? Alexander e eu vamos nos casar!

As lâmpadas de querosene refletiam muita luz para esconder a explosão dentro de Tatiana. Marina engasgou. Mas Dasha, cheia de júbilo, continuou a sorrir enquanto as bombas caiam lá fora, completamente alheia aos sentimentos de Tatiana.

Marina disse:

– Isso é ótimo, Dasha. Parabéns!

Mamãe disse:

– Dashenka, finalmente, uma das minhas filhas vai ter sua própria família. Quando?

Papai, sentado ao lado de Mamãe, balbuciou alguma coisa.

– Tania, você me ouviu? – perguntou Dasha. – Estou me casando.

– Ouvi você, Dasha – Tatiana disse. Virou-se, e deu com um olhar compreensivo, penalizado de Marina. Tatiana não sabia o que era pior. Virou-se de volta para sua sorridente irmã. – Parabéns. Você deve estar muito feliz.

– Feliz? Estou delirante, pode imaginar? Eu vou ser Dasha Belova. – Ela deu uma risadinha. – Tão logo ele consiga uns dois dias de folga, vamos ao cartório civil.

– Você não está preocupada?

– Eu não estou preocupada – disse Dasha, com um aceno de seu saudável braço. – Preocupada com o quê? Alexander não está preocupado. Vamos fazer tudo funcionar.

– Fico contente que você esteja tão segura.

– Qual é o problema? – Dasha abraçou Tatiana, que não sabia como ainda estava sentada. – Não vou chutar você fora de sua cama. Babushka nos emprestará o quarto dela por um par de dias.

Dasha a beijou.

– Casada, Tania? Dá para acreditar?

– Eu não posso acreditar.

– Eu sei! – Dasha exclamou excitada. – Eu mesma mal posso acreditar.

– É guerra, ele pode morrer, Dasha.

– Eu sei disso. Você acha que eu não sei? Não faça piada sobre a morte dele.

– Não estou fazendo... – disse Tatiana, trêmula – piada sobre a morte dele. – Ela fechou os olhos.

– Graças a Deus, ele finalmente saiu daquela horrível Dubrovka e subiu para Shlisselburg. Lá é mais tranquilo. – Dasha sorriu. – Você sabe, isso é o que eu faço agora, fecho meus olhos e penso nele lá longe em algum lugar, e sei que ainda está vivo. – E acrescentou, toda orgulhosa: – Eu tenho um sexto sentido, você sabe.

Marina tossiu alto. Tatiana abriu os olhos com uma expressão que na hora abafou a tosse de Marina.

– O que você quer, Dasha? – Ela suspirou. – Quer ser uma viúva, em vez de simplesmente a namorada de um soldado morto?

– Tania!

Tatiana nada disse. De onde viria alívio? Não da noite, não de Mamãe e Papai, não de Deda e Babushka, tão distantes, não de Babushka Maya, muito velha para se importar, não de Marina, que muito sabia sem saber nada, nem de Dimitri, atolado em seu próprio inferno, e certamente não de Alexander, o impossível, enlouquecedor, imperdoável Alexander.

Tão constrangedora era a ausência de conforto que Tatiana não podia continuar sentada. Ela saiu do abrigo no meio do ataque aéreo, só ouvindo a voz intrigada de Dasha:

– O que ela tem?

Como ela passou a noite junto à parede, ao lado de Marina, ao lado de Dasha? Como fez isso? Não sabia. Foi a pior noite da vida de Tatiana.

Na manhã seguinte, ela se levantou tarde e em vez de ir ao armazém de costume, na Fontanka e Nekrasov, foi a um outro, na velha Nevsky, perto de sua antiga escola. Ouvira dizer que lá havia bom pão. Soou a sirene de ataque aéreo. Ela nem mesmo procurou cobertura.

Tatiana caminhava com os olhos no chão. As bombas sibilantes, os guinchos penetrantes levados pelo vento seguidos pelo som de tijolos explodindo, em meio aos distantes gritos humanos, em nada eram comparados com a dor lancinante dentro dela.

Tatiana percebeu que a guerra não mais a assustava. Isso era novidade para ela, a constatação da ausência de medo. Pasha é quem fora sempre intrépido. Dasha era confiante, Deda era brutalmente honesto, Papai era estrito e bêbado, Mamãe era mandona e Babushka Anna, arrogante. Em seus frágeis ombros Tatiana carregava as ocultas inseguranças de todos eles. Inseguranças, sim. Timidez, sim. Seus temores, sim de novo. Mas não seus próprios temores. Ela não tinha medo de guerra aleatória. Era como ser atingida por um raio, mesmo que o raio caísse mil vezes por dia. Não, não era a guerra que apavorava Tatiana. Era o caos absoluto do seu coração despedaçado.

Ela foi para o trabalho, e quando deu cinco da tarde, ela continuou no trabalho, e quando deu seis, ela continuou no trabalho, e quando deu sete, ela continuou no trabalho. Às oito da noite, ela lavava o piso do setor de enfermagem quando viu Marina surgir na porta, em sua direção. Tatiana não queria ver Marina.

– Tania, o que você está fazendo? – Marina disse. – Todos estão doentes de preocupação com você. Eles pensam que você morreu.

– Eu não morri – Tatiana disse. – Estou aqui, lavando o chão.

– Faz três horas que terminou o expediente. Por que você não foi para casa?

– Estou lavando o chão, Marina, você não vê? Saia do caminho. Seus sapatos vão se molhar. – Tatiana não tirou os olhos do esfregão.

– Tania, estão todos à sua espera. Dimitri está lá, Alexander está lá. Não seja egoísta. A família não pode comemorar o noivado de Dasha porque está muito preocupada com você.

– Tudo bem – Tatiana disse entre dentes, enquanto empurrava o esfregão para trás e para frente. – Você me achou. Estou aqui. Diga-lhes que não se preocupem e continuem com a festa. Tenho trabalho para fazer. Estou dobrando o meu turno. Chego em casa mais tarde.

– Tania – disse Marina –, vamos, querida. Eu sei que é duro. Mas você deve ir para casa e levantar um brinde à sua irmã. O que você está pensando?

– Estou trabalhando! – Tatiana gritou. – Pode me deixar em paz, por favor? – E ela, cega por suas próprias lágrimas, olhou o esfregão cheio de sabão.

– Tania, por favor.

– Me deixe em paz! – repetiu Tatiana. – Por favor.

Relutante, Marina foi embora.

Tatiana limpou o setor de enfermagem, o corredor mais próximo, os banheiros e alguns quartos de pacientes. Um médico pediu-lhe que ajudasse a colocar ataduras em cinco vítimas de bomba, e Tatiana o acompanhou. Quatro das vítimas morreram dentro de uma hora. Tatiana sentou com a última delas, um homem de uns oitenta anos, até ele morrer também. Ele morreu segurando a sua mão e, antes de morrer, virou-se para ela e sorriu.

Quando ela chegou em casa, todos dormiam, e Dimitri e Alexander haviam ido embora. Tatiana dormiu no pequeno sofá no hall, acordou antes da família, lavou-se e de novo foi pegar as suas rações na Nevsky.

Quando ela chegou em casa depois do expediente, Papai estava atacado. A princípio, Tatiana não conseguia entender o que o deixava tão irritado, na verdade ela nem queria saber. Assim que ele entrou no quarto, ainda gritando, Tatiana concluiu que a bronca era com ela.

– O que eu fiz agora? – ela disse de um jeito cansado. Mas não estava nem um pouco preocupada.

Ele enrolava as palavras, mas Mamãe, que também estava furiosa, porém sóbria, entrou e disse a Tatiana que na noite anterior, sabe Deus onde ela estava, enquanto a família festejava o casamento eminente de Dasha, uma menininha chamada Mariska apareceu e pediu alguma comida.

– Mariska disse que alguém chamada Tania vinha alimentado-a há uma semana! – Mamãe gritou. – Uma semana com a nossa comida!

– Oh – Tatiana olhou os seus pais. – Sim. Os pais de Mariska são dois alcoólatras e não dão de comer à menina. Ela precisava de algum alimento. Eu dei-lhe um pouco, Mamãe, pensei que tínhamos o suficiente.

Ela foi para a cozinha pegar uma faca, Papai e Mamãe foram atrás ainda gritando e gritando e gritando.

Na noite seguinte, Alexander e Dimitri apareceram depois do jantar para levar as meninas a um curto passeio antes do ataque aéreo e do toque de recolher. Tatiana mal levantou os olhos para Dimitri, nem para Dasha e muito menos para Alexander.

– O que aconteceu com você ontem? – Dimitri perguntou. – Esperamos muito tempo por você.

– Ontem eu estava trabalhando – disse Tatiana, pegando o seu casaco do cabide na parede e passando-o por Alexander, os seus olhos no chão.

Leningrado estava calma naquela noite. Os quatro caminharam em paz, descendo a Suvorosky, rumo ao Parque Tauride. Paz relativa, pois na Oitava Soviet, um edifício de esquina foi estilhaçado, e vidros se espalhavam como gelo fraturado pela rua.

Dimitri e Tatiana andavam na frente de Alexander e Dasha. Dimitri perguntou porque Tatiana continuava olhando para o chão. Tatiana deu de ombros e nada disse, seu cabelo loiro, de novo crescendo, cobria metade do seu rosto.

– Não é fantástico isso do Alexander e Dasha? – Dimitri perguntou, abraçando Tatiana.

– Sim – disse Tatiana friamente e bem alto. – É fantástico isso do Alexander e Dasha. – Ela não levantou os olhos, nem olhou para trás. Podia sentir os olhos de Alexander, e simplesmente não sabia como ia continuar andando em linha reta.

Dasha riu, e disse:

– Mandei uma carta a Deda e Babushka, em Molotov. Eles ficarão tão felizes. Sempre gostaram de você, Alexander.

Tatiana ouviu risadinhas, e tropeçou na curva. Dimitri pegou-a pelo braço.

– Tania anda um pouco tristonha ultimamente, Dima – Dasha disse. – Acho que ela espera seu pedido, também.

Dimitri apertou o braço de Tatiana e disse:

– Devo pedi-la, Tanechka? O que você acha? Devo pedir você em casamento?

Tatiana não respondeu. Eles pararam num cruzamento para deixar um bonde passar e ela perguntou:

– Querem ouvir uma piada? – ela continuou antes que alguém falasse. – “Querida, quando nós casarmos, ao seu lado estarei para dividir problemas e tristezas”, diz o homem. A mulher responde: “Mas eu não tenho nada disso, meu amor”. Diz, então, o homem: “Eu disse quando nós casarmos”.

– Oh, legal, Tania – disse Dasha.

Tatiana riu, sem nenhuma garra, e quando riu, seu cabelo foi para trás revelando um hematoma, escuro e inchado, em cima de sua sobrancelha.

Dimitri engasgou. Tatiana abaixou a cabeça, cobrindo de novo o rosto com os cabelos. Alexander disse: – Qual é o problema, Dima?

Dimitri não respondeu, mas Alexander deu a volta e postou-se na frente de Tatiana. Ela olhava o pavimento.

– Não é nada – ela balbuciou.

– Levante o rosto, por favor? – Alexander exigiu.

Tatiana queria levantar os olhos e gritar. Mas Dasha estava de um lado dela, Dimitri do outro, e assim ela não podia ela não podia olhar o rosto que amava. Simplesmente não podia. O máximo que podia fazer era repetir baixinho que nada acontecia.

– Ah, Tania – disse Alexander, tentando, com esforço, manter o controle. – Ah, Tania.

– A culpa é toda dela – disse Dasha, pegando o braço de Alexander. – Ela sabia muito bem que Papai estava bêbado. Mesmo assim, foi malcriada com ele. Ele gritou um pouco com ela por haver alimentado uma criança abandonada...

– Ele gritou comigo por causa de Mariska, mas me bateu por não haver lavado os seus lençóis. Tarefa que era sua.

– Como ele fez esse corte na sua sobrancelha? – Dimitri perguntou preocupado.

– Isso foi culpa minha – Tatiana disse. – Perdi o equilíbrio e cai. A gaveta da cozinha estava aberta. Não é grande coisa.

– Ah, Tania – Alexander repetiu.

– O que é? – disse Tatiana, levantando para ele seus olhos lívidos, quebrados.

Ele abaixou os olhos.

– Espere, ouça – Dasha disse se defendendo. – Eu não queria nem saber o que ele dizia. Estava bêbado. Eu não ia me meter numa briga com ele a propósito de nada.

– Você quer dizer a propósito de mim? – Tatiana disse. – Que você não ia dar um passo à frente e dizer: “Papai, eu deveria ter lavado os seus lençóis, me desculpe que não o fiz?”.

– Para quê? Ele estava bêbado!

– Ele está sempre bêbado! – gritou Tatiana. – Sempre. E é tempo de guerra, Dasha! Já não temos suficientes problemas? – ficou ofegante. – Acredite, já temos problemas suficientes. – Ela olhou fixo para a sua irmã. – Esqueça. Vamos atravessar.

Enquanto atravessavam a rua, Tatiana podia ouvir a respiração fervilhante de Alexander.

– Dasha, vamos – ele disse, de repente, puxando-a rápido pelo braço, rua abaixo longe de Tatiana. Ele começou a correr com Dasha a seu lado.

Dimitri e Tatiana ficaram para trás, na Suvorosky, e Tatiana disse, tentando sorrir:

– Então, Dima, como vai você? Ouvi dizer que os alemães estão completamente entrincheirados. Parou o combate?

– Tania, você não quer conversar sobre o combate – disse Dimitri.

– Quero sim, quero. Me diga, é verdade que Hitler determinou às suas tropas que apaguem Leningrado da face da Terra?

Dimitri deu de ombros e disse:

– Pergunte isso ao Alexander.

– Ouvi falar... – Mas então Tatiana parou e se deu conta de algo. – Sabe de uma coisa, Dima, acho que devemos ir direto para casa.

– Sabe de uma coisa – ele disse. – Acho que devo ir direto para as barracas. Você não se importa, sim? Tenho coisas para fazer, tudo bem?

– Claro, Dima – disse Tatiana, olhando-o, parado ali ao seu lado, numa proximidade impotente, distante, sem sentido. Alguém mais poderia tê-lo interessado menos? Tatiana achava que não.

– Não sei quando eu volto de novo – Dimitri disse. – Dizem que o meu pelotão vai ser enviado ao rio. Apareço quando voltar. Se voltar. Se puder, escreva.

– Claro. – Tatiana despediu-se de Dimitri na esquina da rua, observando-o afastar-se dela. Ela não achava que ia vê-lo de novo em breve. Foi para casa sozinha, e quando estava perto do edifício, viu Alexander sair pela porta da frente. Ela estava talvez a dez metros dele. Ele permaneceu ali em pé, tentando recuperar o fôlego, e então viu que ela parou de vez no pavimento. Tão frágil era o autocontrole de Tatiana que ela sabia que não podia encará-lo.

Deu meia-volta e começou a andar rápido na direção oposta.

– Tania! – ela o ouviu gritar.

Em questões de segundos, ele estava diante dela. Tatiana foi para trás e levantou os braços.

– Me deixe em paz – ela disse numa voz fraca. – Só me deixe em paz.

– Onde você tem andando? – Alexander perguntou baixinho. – Há três manhãs venho à sua procura na loja de Fontanka e Nekrasov.

– Bem, já me achou, e daí – disse Tatiana.

– Tania, olhe só você, como pôde deixar ele lhe fazer isso?

– Eu me pergunto isso mais e mais – Tatiana disse. – Não só sobre ele.

Alexander piscou.

– Tania...

– Eu não quero falar com você agora! – Tatiana gritou. E, então, dando outro passo para trás, os lábio trêmulos e os olhos cheios de lágrimas ela disse, bem mais baixinho: – Não quero falar com você nunca mais.

– Tania, posso explicar?

– Não.

– Você pode por um segundo...

– Não!

– Tania...

– NÃO! – ela se aproximou dele, os dentes cerrados e não podia acreditar em si mesma: queria agredi-lo. Fechou os punhos. Queria agredir Alexander.

Ele olhou os punhos de Tatiana, olhou para ela, e disse na mais indignada incredulidade:

– Você prometeu que me perdoaria...

– Perdoar você? – Tatiana sussurrou entre os dentes, lágrimas rolando pelo seu rosto. – Perdoar você pela sua face corajosa e indiferente, Alexander! – ela gemeu, dolorida. – Não por seu coração corajoso e indiferente.

Antes que ele pudesse responder ou detê-la, Tatiana correu, passou pelas portas, voando três lances de escadas até o seu apartamento.

Em casa, Papai estava deitado no chão do hall de entrada, ainda bêbado, mas também inconsciente. Mamãe e Dasha choravam no quarto. Meus Deus, pensou Tatiana, limpando o seu próprio rosto. Isso nunca vai acabar?

– Tania – Marina sussurrou a Tatiana –, a maior confusão! Você não vai acreditar nas coisas que Alexander disse quando ele entrou aqui hoje. Veja o que ele fez na parede!

Emocionada, ela mostrou o estuque quebrado no hall.

– Alexander disse que por causa da bebida Papai deu as costas à família justo quando mais dele precisava. Que ele falhou em suas responsabilidades com as pessoas que devia proteger e não prejudicar. Alexander estava como um tanque rosnante! – Marina disse, bastante impressionada. – Ele disse: “Onde ela pode ir se lá fora a estão bombardeando, e dentro de casa o seu próprio pai tenta matá-la?” Tania, ninguém
conseguiria pará-lo! – Marina exclamou. – Ele disse à sua mãe que internasse o seu pai no hospital. Ele disse: “A senhora é mãe, pelo amor de Deus, salve as suas filhas!”.

Tatiana não encarou Marina.

– Seu pai estava muito embriagado – Marina continuou – e tentou agredi-lo, quando Alexander o agarrou pelos ombros e o empurrou contra a parede, xingando e gritando, depois saindo como entrara. Juro que não sei como ele não matou o seu Papai. Dá para acreditar nisso?

– Acredito – Tatiana sussurrou.

Alexander carregava o seu próprio pai com ele onde quer que fosse. Ele carregava o seu próprio pai, sua própria mãe, seu próprio eu. Tatiana era a única pessoa no mundo em que ele acreditava, e assim ela dividia com ele um pouco dessa cruz. Não muito, só o suficiente para lembrar dele nessa hora. Por um momento... era tudo de que ela precisava. Tatiana parou de pensar em si mesma e pensou em Alexander, e quando ela fez isso, ficou menos furiosa com ele.

– Ele só desmaiou? – Tatiana disse, sentada no sofá olhando o seu pai.

– Não, acho que ele caiu de medo. Tania, você me ouviu? Alexander parecia pronto para matá-lo!

– Ouvi você – disse Tatiana.

– Oh, Tania – disse Marina sussurrando no hall, dois metros de um quarto, três metros do outro. – Tania, o que você vai fazer?

– Não sei do que você está falando – Tatiana disse. – Quanto a mim, vou tentar ajudar Papai.

Papai seguia inconsciente, e os Metanovs ficaram preocupados. Mamãe sugeriu que talvez deviam mesmo internar Papai por alguns dias, para desintoxicá-lo. Tatiana achou uma boa ideia. Fazia dias que Papai não andava sóbrio.

Tatiana pediu a Petr Petrovi, no final do corredor, ajuda para levar Papai ao pavilhão de alcoólatras no Hospital Suvorosky. No Grechesky, onde Tatiana trabalhava, não havia camas disponíveis.

As meninas e Petr carregaram Papai ao hospital, do lado norte de uma rua leste-oeste, onde ele foi internado e colocado num grande quarto, com quatro outros homens bêbados. Tatiana pediu uma esponja e um pouco de água e lavou o rosto do pai, depois sentou-se ao lado dele por alguns minutos, segurando sua flácida mão.

– Eu sinto muito, Papai – ela disse. Ela sentava ao lado dele, segurava a sua mão e a apertava de vez em quando dizendo: – Papai, pode me ouvir?

Finalmente ele gemeu de um jeito que dizia que podia ouvi-la. Ele abriu os seus olhos desfocados.

– Aqui, Papai – ela dizia. – Aqui estou. Olhe para mim.

A cabeça de Papai balançava no travesseiro; ela continuou segurando a sua mão.

– O senhor está no hospital, só por alguns dias até ficar sóbrio. Depois volta para casa. E tudo ficará bem então. – Tatiana sentiu que ele apertava a sua mão. – Eu sinto muito por não ter sido capaz de trazer Pasha de volta para o senhor. Mas, o senhor sabe, nós ainda estamos todos aqui.

Ela viu lágrimas em seus olhos. Abriu-se a boca de Papai e, de novo, ele apertou as mãos dela, sussurrando roucamente:

– É tudo culpa minha...

Tatiana beijou-o na cabeça e disse:

– Não, querido Papai. A culpa não é sua. É a guerra. Mas o senhor precisa ficar sóbrio.

Ele fechou os olhos e Tatiana voltou para casa.

Em casa, Dasha estava indignada com Tatiana e gritava com ela enquanto Marina meditava. Sentada no sofá no quarto, Tatiana ficou quieta, imaginando-se sentada calmamente entre Deda e Babushka. A certa altura, Dasha ficou tão agitada que se inclinou para agredir Tatiana, mas foi puxada por Marina, que disse:

– Dasha, isso é ridículo. Pare! – Dasha virou-se para Marina, mas esta exclamou:

– Pare. Ela já está muito magoada! Você não percebe o quanto?

Tatiana observava Marina com olhos suaves e Dasha com olhos duros. Levantou-se, então, abatida, e passou por elas indo ao outro quarto. Precisava deitar-se e nunca mais ter um dia como este. Ou como o último. Ou como o anterior. Dasha a agarrou. Tatiana safou-se, levantou o rosto para a irmã e disse:

– Dasha, em um minuto vou perder a minha paciência. Pare, me deixe em paz. Você pode fazer isso?

Os olhos de Tatiana, fixos na irmã, não piscaram. Dasha a deixou em paz. Mais tarde, naquela noite, na cama, Marina acariciou as costas de Tatiana e sussurrou:

– Está tudo bem, Tania, vai ficar tudo bem.

– E você sabe como? – Tatiana sussurrou. – Somos bombardeados todos os dias, estamos bloqueados, logo não vai haver mais comida, Papai não consegue parar de beber.

– Não é disso que estou falando – sussurrou Marina.

– Então não sei do que você está falando – Tatiana sussurrou. – Mas antes que você me diga, pare de falar.

Dasha não estava na cama.

Tatiana dormiu com a cara virada para a parede, a mão sobre o livro de Alexander, O Cavaleiro de Bronze, a sobrancelha latejando. Mas pela manhã estava um pouco melhor. Ela passou um pouco de iodo diluído no corte e foi para o trabalho, o rosto descolorido por causa do antisséptico avermelhado.

Na sua hora de almoço, ela saiu do hospital e caminhou devagar rumo ao Campo de Marte. A área estava irreconhecível devido às trincheiras cavadas ao redor e aos blocos de concreto para armas de artilharia levantada ali no perímetro. O próprio campo estava minado; ela não podia caminhar lá. Todos os bancos haviam sido removidos.

A única coisa que Tatiana podia fazer era ficar a várias centenas de metros da arcada que levava às Barracas Pavlov e observar soldados fumando, rindo, desabafando ruidosamente.

Ela ficou ali meia hora. Depois, voltou ao hospital, pensando: nem bombas, nem meu coração partido podem tirar da minha lembrança o caminhar ao seu lado, descalça, naquele junho perfumado de jasmim, através do Campo de Marte.

7

Naquela noite, durante o bombardeio depois do jantar, o Hospital Suvorosky, onde estava Papai, foi atingido.

Três bombas caíram sobre o hospital, que pegou fogo e queimou dentro da noite, apesar dos esforços dos bombeiros. O hospital não era construído com tijolos que resistiam ao fogo, mas de uma estrutura de madeira coberta com adobe, material do começo do século XVIII com o qual grande parte de Leningrado fora construída. O edifício inteiro desmoronou, depois explodiu em chamas. Aqueles poucos que podiam se mexer pularam das janelas gritando ao cair.

Papai, aos quarenta e três anos, nascido no século anterior, consumido pelo remorso, incapaz de ficar sóbrio, nunca se levantou de sua cama.

Dasha, Tatiana, Marina e Mamãe correram a Suvorosky e observaram, impotentes e horrorizadas, como aquele inferno vencia os bombeiros, as mangueiras, o edifício, a noite.

As meninas ajudaram a jogar inúteis baldes de água nas janelas do térreo. Pegaram areia dos telhados de edifícios próximos, mas tudo isso eram iniciativas sem sentido, pioradas pela inércia. Tatiana enrolou corpos carbonizados em lençóis molhados fornecidos pelo próprio Hospital Grechesky. Ela ficou ali até de manhã. Dasha e Marina voltaram para casa com Mamãe.

Somente algumas pessoas conseguiram sair vivas. Os bombeiros nem mesmo acharam o corpo de Papai, nem se desculparam por isso, enquanto apagavam as últimas chamas. Eles não estavam tirando os corpos daquele hospital.

– Olhe só o edifício, garotinha – disse um bombeiro. – Você acha que podemos tirar alguma coisa lá de dentro? Virou tudo brasa. Assim que esfriar, você poderá tocar a brasa e ver como ela se transforma em cinza negra.

Meio distraído, ele a tocou no ombro.

– É hora de ir. Seu pai, não é? Porra de alemães. O Camarada Stálin tem razão. Não sei como, mas vamos trazê-los todos de volta para casa, para suas famílias.

Ao caminhar lentamente de volta para casa, de madrugada, Tatiana lembrou-se de como ficou enterrada na estação de Luga, sentindo como a vida se esvaia das três pessoas por cima dela. Sua esperança era que Papai nunca acordara, nunca sofrera.

Em casa, em silêncio, ela pegou os carnês de racionamento da família, menos o do Papai, e foi pegar o pão.

Se a vida nos quartos comunitários fora antes difícil, isso agora, depois da morte de seu pai, se tornara quase impossível para Tatiana.

Mamãe estava inconsolável e não falava com Tatiana.

Dasha estava zangada e não falava com Tatiana.

Tatiana não tinha certeza se Dasha estava brava por causa de Papai ou por causa de Alexander. Dasha nada dizia. Ela não falava com Tatiana.

Marina visitava a sua mãe todos os dias em Vyborg e continuava pousando seus olhos solidários sobre Tatiana.

Babushka Anna pintava. Ela pintou uma torta de maçã, que Tatiana disse que até dava vontade de comer.

Dias depois da morte de Papai, Dasha pediu a Tatiana que fosse com ela até as barracas para contar a Alexander o que havia acontecido. Tatiana arrastou Marina consigo, só para se sentir mais forte. Ela queria vê-lo, e ainda assim... Havia tão pouco a dizer. Ou havia muito a dizer? Tatiana não tinha certeza, não podia saber sem a ajuda de Alexander e temia encará-lo.

Alexander não estava nas barracas, tampouco Dimitri. Anatole Marazov veio à entrada e se apresentou.

Tatiana o conhecia bem, por meio do que lhe contava Alexander.

– O Dimitri não está sob o seu comando? – ela perguntou.

– Não, ele está sob o comando do Sargento Kashnikov, que tem uma das unidades sob o meu comando, mas todos, por ordem superiores às minhas, foram enviados a Tikhvin.

– Tikhvin? Do outro lado do rio? – disse Tatiana.

– Sim, num barco no lago Ladoga. Não há homens suficientes em Tikhvin.

– Alexander também? – Tatiana perguntou ofegante.

– Não, ele está em Karelia – Marazov respondeu olhando Tatiana de uma forma simpática. – Então você é a garota? – Marazov sorriu. – A garota pela qual ele deixou todas as outras?

– Ela não – Dasha disse grosseiramente, aproximando-se de Tatiana. – Eu. Sou Dasha. Não lembra? Nos conhecemos no Sadko, no começo de junho passado.

– Dasha – balbuciou Marazov.

Tatiana empalideceu, apoiando-se com mais firmeza na parede. Marina a olhava.

Marazov virou-se para Tatiana.

– E qual é o seu nome?

– Tatiana – ela disse.

Os olhos de Marazov se acenderam e depois perderam força. Dasha perguntou:

– Vocês se conhecem?

– Não. Não nos conhecemos – ele disse.

– Ah – disse Dasha. – Por um momento me pareceu que você reconhecia a minha irmã.

Marazov continuou olhando para Tatiana.

– Não, não mesmo – ele disse devagar, porém os seus olhos revelaram uma confusa familiaridade com ela. Ele deu de ombros. – Direi a Alexander que vocês vieram até aqui. Vou estar com ele em Karelia dentro de poucos dias.

– Sim, por favor, diga a ele que nosso pai morreu – Dasha disse. Tatiana deu meia-volta e saiu da entrada, puxando Marina.

A família quebrou-se como terra fendida. Mamãe não podia sair da cama. Babushka dela cuidava. Mamãe não queria nada com Tatiana, tampouco as suas desculpas e muito menos seus pedidos de perdão. Por fim, Tatiana parou de pedir.

Tatiana sentia-se tomada por um forte vazio; pesava-lhe o sentimento de culpa, a âncora da responsabilidade. Não foi culpa minha, não foi culpa minha, ela repetia a si própria, pelas manhãs, enquanto cortava o pão, colocava-o no prato, e comia em silêncio. Trinta segundos era o tempo em que comia sua fatia, incluindo as migalhas, depois ela virava o prato e o sacudia sob a mesa. Tudo isso...Trinta segundos. E trinta segundos de não foi culpa minha, não foi culpa minha.

Depois que Papai faleceu, sua ração diária de pão, meio quilo, foi suspensa. Mamãe finalmente colocou duzentos rublos na mão de Tatiana e disse a ela que fosse comprar mais comida. Ela voltou para casa, depois de gastar o dinheiro na compra de sete batatas, três cebolas, meio quilo de farinha e um quilo de pão branco, produto raro como a carne. Tatiana continuou indo pegar as rações e, às vezes, quando ela estava na fila, pensava um pouco envergonhada que se não tivessem comunicado às autoridades de imediato que Papai falecera, a família ainda teria como receber a ração dele até fins de setembro.

Envergonhada, sim, mas nem por isso deixou de pensar nisso.

Porque quando setembro virou outubro, e a crueza de sua dor diminuiu, embora o vazio permanecesse, Tatiana percebeu que o vazio não era tristeza, mas fome.


A noite desmoronou

1

Mesmo durante os cálidos meses de verão, o ar em Leningrado carregava um tênue frio, como se o Ártico lembrasse sempre a cidade nortista que o inverno e a escuridão estavam a poucas centenas de quilômetros dali. O vento gelava, mesmo nas pálidas noites de julho. Mas agora que outubro estava aqui, agora que a cidade plana e desamparada era bombardeada todos os dias e permanecia estéril e silenciosa à noite, o ar não era só frio, e o vento carregava em seu hálito mais do que o Ártico. Carregava uma clara sensação de desespero, uma afligida desesperança. Tatiana cobriu-se com um casaco cinza e colocou um velho chapéu cinza de Pasha, com protetores de ouvido, no pescoço e na boca enrolou um cachecol marrom, mas não podia proteger o nariz que respirava o gelo cortante como punhal.

A ração de pão de novo fora reduzida: trezentos gramas para Tatiana, Mamãe e Dasha; duzentos gramas para Babushka e Marina. Menos de um quilo e meio para todas. Além do pão, os armazéns não estavam dando ou vendendo nada mais. Não havia ovos, manteiga, pão branco, queijo, carne de qualquer tipo, açúcar, cereal, cevada, fruta, vegetais. Certa ocasião, no começo de outubro, Tatiana comprou três cebolas e fez uma sopa. Bem gostosa. Teria ficado melhor um pouco mais salgada, mas Tatiana era muito cuidadosa com o sal disponível.

A família aferrava-se às suas provisões de comida, mas todas as noites abriam uma lata de presunto com curtas palavras de agradecimento a Deda. Elas não faziam mais a comida na cozinha do lado de fora porque o cheiro do presunto permeava o apartamento comunitário e, com frequência, Sarkova, Slavin e os Petrovi chegavam perto do fogão e diziam a Tatiana:

– Tem um pouquinho para nós aí?

Slavin fazia barulhos como de cacarejo enquanto Dasha mandava todos de volta a seus quartos, e ele ainda repetindo o mesmo ruído com maior prazer.

– É isso mesmo, coma o presunto, menina má. Coma esse presunto. Porque eu acabo de receber o último relatório, direto do próprio Führer. Herr Hitler planeja coincidir com a retirada de suas tropas de Leningrado com a sua última lata de presunto. – Ele riu histericamente. – Ou você não ouviu?

As Metanovs compraram um pequeno fogareiro chamado bourzhuika, com um tubo de exaustão, que Tatiana esticou até uma pequena abertura no vidro da janela. A chapa de ferro plano da bourzhuika servia como um fogão, que necessitava de pouca madeira para ser acesso. O problema era que só aquecia uma pequena área do quarto.

Alexander ainda estava em Karelia; Dimitri, em Tikhvin. Nada se sabia deles.

Na segunda semana de outubro, Anton finalmente realizou o seu desejo. Uma bomba de fragmentação explodiu sobre a Grechesky e um pedaço de metal voou do céu, acertando o menino e cortando a sua perna. Tatiana não estava no telhado. Quando Tatiana soube, ela, às escondidas, levou uma lata de presunto para Anton, ele comeu tudo sozinho, com goles vorazes.

– Anton – Tatiana disse –, e a sua mãe?

– Ela come no trabalho – ele disse. – Ela tem sopa, tem cereal.

– E o seu irmão Kirill?

– O que tem ele, Tania? – Anton fulminou impaciente. – Você trouxe isto para o Kirill ou para mim?

Tatiana não gostava da aparência de Mariska. Seu cabelo crespo começava a cair. Todos os dias, em segredo, Tatiana preparava aveia para Mariska. Entretanto, ela sabia que não podia continuar alimentando-a; sua família já andava muito chateada com ela. A aveia tinha um pouco de sal e açúcar, mas nada de manteiga ou leite. Não era bem aveia. Era uma sopa de aveia. Mariska comia isso como se fosse a sua última refeição. Finalmente, Tatiana levou-a para o pavilhão infantil no Hospital Grechesky, carregando-a no colo no último quarteirão.

***

Quando Tatiana era menina, às vezes se esquecia de comer durante parte do dia. De repente, lembrando, ela dizia:

– Ah, não, estou morrendo de fome. – Um estômago vazio roncando, uma boca salivando. Ela então devorava uma sopa, uma torta ou um purê de batatas. Fartava-se de tudo, afastava-se da mesa, e então não mais morria de fome.

Essa sensação que Tatiana experimentava, mais fraca no final de setembro, mais marcante no começo de outubro, era similar tanto no estômago vazio, que roncava, quanto na boca, que salivava. Ela devorava a sopa e o espesso pão negro, ou o cereal de aveia. Quando terminava, afastava-se da mesa e percebia que ainda morria de fome. Ela comia então um pouco das bolachas que havia tostado. Mas a bolsa de bolacha diminuía de tamanho a cada hora. As noites eram muito longas depois do trabalho. Dasha e Mamãe começaram a levar algumas bolachas nos bolsos de seus casacos a caminho do trabalho. Primeiro duas e depois mais e mais. Babushka beliscava bolachas o dia inteiro enquanto pintava ou lia. Marina levava umas para a universidade e um pouco para sua mãe moribunda.

Depois que compraram a bourzhuika, Mamãe deu a Tatiana o resto do seu dinheiro, quinhentos rublos, numa fria manhã, dizendo-lhe que fosse à loja e comprasse tudo que desse. A loja, perto da Catedral de São Nicolau, ficava longe. Quando Tatiana lá chegou, deparou-se com uma dupla ironia. Não somente a loja fora bombardeada e abandonada como ostentava na vidraça estilhaçada um letreiro com data do dia 18 de setembro: Acabou a comida.

Ela voltou para casa em passos lentos. Em 18 de setembro, há quatro semanas, Papai ainda estava vivo, Dasha planejava se casar.

Casar-se com Alexander.

Em casa, Mamãe não acreditou no que lhe contou Tatiana sobre a loja e, frustrada, foi para cima da filha, mas se conteve a tempo, coisa que Tatiana achou tão milagrosa que aproximou-se da mãe, abraçou-a e disse:

– Mamochka, não se preocupe com nada. Eu cuidarei da senhora. – Tatiana devolveu à mãe o dinheiro, colocou o pão na mesa, pegou um pedaço, engolindo com vontade enquanto caminhava devagar ao hospital. Só pensando na hora do almoço, quando tomava uma sopa e talvez um pouco de aveia, também. Tatiana pouco pensava sobre outras coisas, só em comida. A fome aguda que sentia, desde manhã até a noite, sufocava quase todas as outras sensações em seu corpo. Enquanto caminhava para a Fontanka, ela pensava no pão, enquanto trabalhava pensava no almoço, à tarde pensava no jantar e depois do jantar pensava na bolacha que podia comer antes de ir para a cama.

E na cama Tatiana pensava em Alexander.

Numa ocasião, Marina ofereceu-se para pegar as rações no lugar de Tatiana.

Intrigada, Tatiana deu-lhe os carnês de racionamento.

– Quer a minha companhia?

– Não – Marina disse. – Terei o maior prazer em fazer isso.

Marina voltou à família, que a esperava, e colocou o pão na mesa. Havia ali talvez só meio quilo.

– Marina – disse Tatiana –, onde está o resto do pão?

– Eu sinto muito – disse Marina. – Eu comi.

– Você comeu um quilo do nosso pão?

– Sinto muito, tinha muita fome.

Tatiana olhou para Marina com uma cara de surpresa. Durante seis semanas, Tatiana fora buscar as rações familiares, nunca lhe ocorrendo comer o pão que cinco pessoas esperavam.

E com tudo isso, Tatiana morria de fome.

E com tudo isso, Tatiana sentia falta de Alexander.

2

Certa manhã, em meados de outubro, enquanto Tatiana se aproximava do aterro de Fontanka, tateando no bolso do casaco os carnês de racionamento, ela viu um oficial mais adiante e, por causa de sua sonolência matinal, quis imaginá-lo como se ele fosse Alexander. Ela chegou mais perto. Não podia ser ele, este homem, muito mais velho, tristonho, sua capa e rifle cobertos de lama. Com cuidado, ela deu um passo à frente. Era Alexander.

Quando ela chegou mais perto dele e olhou bem em seu rosto, viu tristeza misturada com um afeto desolador. Tatiana aproximou-se mais ainda. Sua mão enluvada tocou o peito dele.

– Shura, o que aconteceu com você?

– Oh, Tania – ele disse. – Esqueça de mim. Veja como você está magra. Seu rosto, ele está...

– Sempre fui magra. Você está bem?

– Mas o seu encantador rosto redondo – ele disse com a voz quebrada.

– Aquela foi uma vida diferente, Alexander – Tatiana disse. – Como foi?

– Brutal – ele disse. – Olhe só o que eu trouxe para você. – Ele abriu sua mochila negra, de dentro da qual tirou um naco de pão branco e, embrulhado em papel branco, queijo! Queijo e um pedaço de carne de porco fria. Tatiana fixou os olhos nos alimentos, respirando levemente.

– Nossa! – ela disse. – Espere até que elas vejam isso. Vão ficar tão contentes.

– Bem, sim – Alexander disse, dando a ela o pão branco e o queijo. – Mas antes que elas vejam eu quero que você coma.

– Não posso.

– Pode e vai comer.

– O quê?

– Não chore.

– Não estou chorando – disse Tatiana, fazendo força para não chorar. – Só estou muito... comovida. – Ela pegou o pão, o queijo e a carne de porco e engoliu a comida enquanto ele a observava com os seus olhos de cobre derretido, cálidos, cheios de Alexander.

– Shura – ela disse. – Não dá para lhe contar a fome que eu tenho sentido. Nem mesmo sei como explicar isso.

– Tania, eu sei.

– Eles alimentam vocês melhor no Exército?

– Sim. Alimentam de forma adequada as tropas da linha de frente. E um pouco melhor os oficiais. O que eles não me dão eu compro. Temos acesso aos alimentos antes que cheguem a vocês.

– Assim deveria ser – disse Tatiana, boca cheia, toda feliz.

– Shh – ele disse, sorrindo. – Devagar. Desse jeito você vai ter uma terrível dor de barriga.

Ela desacelerou um pouquinho. Retribuindo o sorriso, um pouquinho.

– Para a família eu trouxe um pouco de manteiga, e uma bolsa de farinha de trigo – disse Alexander – e vinte ovos. Quando foi a última vez que você comeu ovos?

Tatiana lembrou.

– Em 15 de setembro. Me dá um pouco de manteiga agora – ela disse. Você pode esperar comigo? Ou tem que ir embora?

– Eu vim ver você – ele disse.

Os dois olhavam-se sem se tocar. Os dois olhavam-se sem conversar. Por fim, Alexander sussurrou:

– Muito para dizer.

– Pouco tempo para dizer – disse Tatiana olhando a longa fila na porta da loja.

Ela parou de comer.

– Eu tenho pensado em você – ela disse mantendo a voz calma.

– Não pense em mim outra vez – disse Alexander num tom resignado.

Tatiana recuou.

– Não se preocupe. Você já deixou isso muito claro, certamente é o que quer.

– Do que você está falando? – Ele olhou para ela confuso. – Você não tem ideia de como são as coisas lá no front.

– Eu só sei como são as coisas aqui – ela disse.

– Estamos todos morrendo. Até mesmo os oficiais. – Alexander fez uma pausa. – Krinkov morreu.

– Oh, não.

– Oh, sim. – Ele suspirou. – Vamos entrar na fila.

Alexander era o único homem ali pegando rações. Eles ficaram juntos quarenta e cinco minutos. Apesar de cheia, a loja era silenciosa; ninguém mais falava e eles não podiam parar. Falavam sobre coisas públicas. O tempo frio, os alemães à espreita, os alimentos. Mas eles não podiam parar.

– Alexander, temos que conseguir mais comida de algum outro lugar. Não falo de mim, falo de Leningrado. De onde virá a comida? Não podem trazê-la de avião?

– Já estão trazendo. Cinquenta toneladas por dia de alimentos, gasolina, munições.

Cinquenta toneladas... Tatiana pensou.

– Isso parece muito.

Como ele não respondeu, ela perguntou:

– É muito?

Ela percebeu que Alexander evitava responder.

– Não é suficiente – ele respondeu, por fim.

– Não suficiente em que medida?

– Oh, eu não sei – ele disse cortante.

– Me diz.

– Eu não sei, Tania.

– Bom – ela disse, meio que na gozação – Acho que deve ser o suficiente. Cinquenta toneladas. É tremendo. Fico contente que você me contou, porque Nina não tem nada para a família...

– Pare! – Alexander exclamou. – O que você está fazendo?

– Nada – Tatiana disse docemente. – Nina não tem...

– Cinquenta toneladas parece muito para você, não é? – ele falou. – Pavlov, nosso encarregado de nutrição urbana, alimenta três milhões de pessoas na base de mil toneladas de farinha por dia. Que tal isso?

– O que eles nos fornece agora chega a mil toneladas? – Tatiana disse, espantada.

– Sim – Alexander respondeu balançando a cabeça e olhando para ela um pouco perplexo.

– E eles trazem somente cinquenta toneladas de avião?

– Sim, outra vez. Cinquenta toneladas não somente de farinha.

– E como chegam aqui as outras 950 toneladas?

– Lago Ladoga. Trinta quilômetros ao norte da linha de bloqueio. Barcos.

– Shura – disse Tatiana –, mas essas mil toneladas, se não tivéssemos nossas próprias provisões, não conseguiríamos seguir em frente. Não poderíamos viver com o que eles nos fornecem.

Alexander não disse nada.

Tatiana olhou fixo para ele e depois virou a cabeça. Queria ir para casa naquele instante e contar quantas latas de presunto ainda tinham.

– Por que não se pode usar mais aviões? – ela perguntou.

– Porque todos os aviões do Exército estão sendo direcionados à Batalha de Moscou.

– E como fica a Batalha de Leningrado? – Tatiana disse num tom vago, não esperando uma resposta e não recebendo nenhuma.

– Você acha que o bloqueio será levantado antes do inverno? – ela perguntou em voz baixa. – No rádio as notícias dizem que estamos tentando estabelecer uma posição firme aqui, avançar lá, estender pontes. O que você acha?

Alexander não respondeu, e Tatiana não olhou mais para ele até que saíram da loja.

– Você vem para casa comigo?

– Sim, Tania – disse Alexander. – Vou com você.

Ela assentiu.

– Vamos então. Com essa manteiga que você me deu eu faço um belo mingau de aveia, quentinho, para o seu café da manhã. Faço ovos também.

– Você ainda tem farinha de aveia?

– Hmm. Devo dizer que está cada vez mais difícil mantê-las longe da aveia entre as refeições. Acho que Babushka e Marina são as maiores culpadas disso. Penso que elas comem aveia crua direto da bolsa.

– E você, Tatia? – Alexander perguntou. – Come aveia crua direto da bolsa?

– Ainda não – respondeu Tatiana, não mencionando o quanto queria fazer isso. Por exemplo, como enfiava a cara dentro da bolsa de aveia e aspirava seu aroma enjoativo e meio bolorento desejando manteiga, açúcar, leite e ovos.

– Você devia – Alexander disse.

Eles caminharam bem devagar ao longo do enevoado Canal de Fontanka. Tatiana lembrava um pouco do Canal de Obvonoy durante seus dias de verão em Kirov.

Doía o seu coração. A três quarteirões de casa, diminuíram o passo, pararam e se apoiaram junto ao frio edifício.

– Eu queria tanto um banco – Tatiana disse baixinho.

Também baixinho Alexander disse:

– Marazov me contou sobre o seu pai.

Como Tatiana não respondeu, ele continuou.

– Eu sinto muito. – Pausa. – Você me perdoa?

– Não há nada a perdoar – ela respondeu.

– É minha incapacidade – Alexander continuou. Os olhos estavam tomados de frustração. – Simplesmente não há nada que eu possa fazer para proteger você. E eu tentei. Tentei desde o começo. Lembra Kirov?

Tatiana lembrava.

– Tudo que eu queria então era que você saísse de Leningrado, eu falhei nisso. Falhei para proteger você e seu pai. – Ele balançou a cabeça. – Como está a sua sobrancelha? – Ele esticou o braço e tocou a ferida já quase curada com a ponta dos dedos.

– Está bem – Tatiana disse afastando-se dele.

Alexander abaixou as mãos, olhando para ela com um jeito de reprimenda.

– E como está Dimitri? – ela perguntou. – Você tem notícias dele?

Alexander balançou a cabeça e disse:

– O que eu posso lhe dizer sobre Dimitri? Quando, a princípio, fomos para Shlisselburg em meados de setembro, eu disse: venha comigo, venha com o meu comando. Ele se recusou. Ele disse que estávamos muito desprotegidos lá. Muito bem, eu disse. Então, eu, de forma voluntária, fui com o batalhão de soldados para Karelia para fazer os finlandeses recuarem um pouco. – Fez outra pausa. – O objetivo era dar espaço aos nossos caminhões que traziam comida de Ladoga para Leningrado. Os finlandeses estavam muito perto. Os choques que explodiam entre eles e as tropas de fronteira da NKVD, sempre de gatilho apressado, acabam resultando na morte de algum coitado e indefeso motorista de caminhão, que só tentava trazer alimentos para a cidade. Eu disse a Dimitri que viesse comigo. Sim, é perigoso, eu disse, atacar o inimigo no seu próprio território, mas se temos êxito...

– Vocês serão heróis – Tatiana disse. – Tiveram êxito?

– Sim – Alexander disse baixinho.

Maravilhada, Tatiana olhou para ele. Ela esperava que não ficasse muito óbvio o que sentia naquele momento.

– Você foi de voluntário nessa?

– Sim.

– Pelo menos promoveram você?

Ele bateu-lhe uma leve continência e disse:

– Agora sou o Capitão Belov. E já viu a minha nova medalha?

– Não, pare com isso! – ela exclamou. A boca derretida num sorriso.

– O quê? – Alexander perguntou, seus olhos percorrendo todo o rosto dela. – O quê? Você está... orgulhosa?

– Hmm – Tatiana disse tentando conter o sorriso.

– Era esse o meu argumento principal com Dima – continuou Alexander. – Se funcionasse, ele seria promovido a cabo. Quanto mais alto você sobe, mais longe fica da linha de frente.

Tatiana concordou e disse:

– Ele não enxerga longe.

– Pior que isso – disse Alexander. – Porque agora ele foi enviado com o Kashnikov para Tikhvin. Marazov foi comigo e tornou-se primeiro-tenente. Mas Dima foi transportado num barco através de Ladoga, e agora faz parte de dezenas de milhares de homens, todos bucha de canhão para Schmidt...

Tatiana ouvira falar da cidade de Tikhvin. Os soviéticos tomaram Tikhvin dos alemães em setembro e agora lutavam ferozmente para mantê-la, garantindo assim uma passagem ferroviária contínua até os barcos de comida no lago Ladoga. Sem o Ladoga nenhum alimento entraria em Leningrado.

Fazia tempo que Tatiana deixara de sorrir. Com cuidado ela disse:

– Eu queria tanto que você tivesse convencido o Dimitri. Uma promoção agora faria muito bem a ele.

– Eu concordo.

– E talvez se ele tivesse virado um herói – Tatiana continuou num tom neutro –, você não precisaria se casar com a minha irmã.

– Oh, Tatia... – Alexander disse com o rosto esmorecido.

– Mas do jeito que está – ela continuou num tom alto, interrompendo-o –, você é um Capitão e ele está em Tikhvin. Você vai ter que casar com Dasha agora, não é? – Ela olhou para ele de forma incessante.

Alexander esfregou os olhos com as suas mãos enegrecidas. Tatiana nunca o vira tão sujo. Ela esquecera dele completamente, tão preocupada andava consigo própria.

– Oh, Shura, o que estou fazendo? – Tatiana disse. – Eu sinto muito, venha para casa. Olhe só para você. Venha. Você vai se lavar – ela disse suavemente. – Você pode tomar um banho quente. Eu fervo a água para você. E faço para você um belo mingau de aveia. Vamos. – Ela queria acrescentar um “querido” mas não se atreveu. Case com Dasha, Tatiana quase quis dizer. Case com ela se isso lhe ajuda a viver.

Alexander não se mexeu da parede.

– Venha, Shura, por favor.

– Espere – ele mordeu o lábio. – Você está aborrecida comigo por causa de seu pai?

Ele não brigou, ele não discutiu, ele não disse que era a sua culpa. Ele simplesmente aceitava a responsabilidade e continuou, como se aquilo agora fosse somente outro fardo a ser carregado em seus ombros. Bem, seus ombros eram largos o suficiente para vários fardos, incluindo alguns de Tatiana e, estranhamente, vendo-o endireitar o seu peito fazia o dela mais leve. O alívio chegou à custa de Alexander, mas de todo modo era um alívio bem-vindo. Ela queria consolo? Ali estava.

– Não, Shura – Tatiana disse. – Ninguém está aborrecido. Elas vão ficar superfelizes por você estar vivo.

Alexander levantou os olhos para ela.

– Eu não perguntei sobre elas. Você está aborrecida comigo?

Tatiana olhou para ele com compaixão. Sob sua armadura de batalha, o homem que comandava um batalhão de outras armaduras precisava dela. Se ele se ferisse, ela podia colocar-lhe ataduras. Se ele tivesse fome, ela poderia alimentá-lo. Se ele quisesse conversar, ali estava ela. Mas agora o seu Alexander estava triste, ela queria lhe dizer que não era por causa de seu pai que estava chateada com ele. Mas não podia, porque tudo o que queria era confortá-lo. Ela não queria vê-lo triste nem por um minuto mais.

Tatiana esticou-se e pegou a mão de Alexander. Nela viam-se unhas sujas e arranhões ensanguentados, mas continuava quente e forte, e com ela apertou a mão de Tatiana, agradecido.

– Não, Shura – ela disse ternamente. – Claro que não, não estou chateada com você.

– Eu só quero que você esteja segura – ele disse, de costas para a parede. – Isso é tudo. Segura de tudo.

Tatiana aninhou-se nos braços de Alexander. – Eu sei. Estarei bem – ela disse, toda encolhida dentro da capa de Alexander, tão feliz de abraçá-lo que ficou com medo de cair. Afastando o cabelo da testa de Tatiana, Alexander pressionou os seus lábios na sobrancelha já quase curada e suspirou:

– Não fuja de mim quando eu toco você.

– Tudo bem – Tatiana murmurou, os olhos fechados e os braços apertados ao redor dele.

3

– Olhem só quem eu encontrei! – Tatiana exclamou enquanto Alexander entrava atrás dela. Dasha deu um gritinho e correu para ele.

Tatiana foi ferver água para o banho de Alexander. Deu-lhe sabonete, toalhas limpas e uma navalha de barba, e Alexander foi tomar o seu banho quente.

– Está bem quente? – ela perguntou para ele da cozinha, fervendo mais água, só por precaução.

A voz sorridente dele veio do banheiro:

– Não, não está, venha, me traga outro jarro. Venha, Tania.

Vermelha e sorridente, Tatiana foi e pediu a Dasha que levasse para Alexander outro jarro de água fervendo.

Ele voltou ao quarto todo limpo e radiante, barba feita, bem aquecido, seu cabelo negro molhado e sedoso, seus dentes tão brancos, sua boca tão úmida que Tatiana não sabia como pôde evitar abraçá-lo. Enquanto ele vestia suas ceroulas e a camisa térmica, Dasha foi lavar o seu uniforme. Marina, Babushka e Tatiana cacarejavam ao redor dele; todas, menos Mamãe, amuada.

Tatiana não contou a Mamãe que trazia ovos. Ela ia contar, mas quando viu que Mamãe não estava preparada para perdoar a Alexander por haver gritado com ela e Papai, Tatiana não estava preparada para dividir ovos com ela. O perdão tinha que vir antes.

Alexander lhes dera um quilo de manteiga. Tatiana escondeu debaixo da bolsa de farinha, no parapeito da janela. Mamãe tomou um chá bem fraco com pão e manteiga, agradeceu a Alexander rispidamente e foi trabalhar.

Babushka pegou alguns talheres, alguns candelabros de prata, algum dinheiro, velhos cobertores da cama, enfiando tudo numa bolsa enquanto ela, também, se preparava para sair.

Tatiana tinha que ir para a cozinha e preparar o café da manhã, mas ela ficou no quarto sentada em silêncio olhando Alexander.

– Aonde ela vai? – Alexander perguntou.

– Oh, vai pela Ponte Aleksander Nevsky até Malaya Ochta – disse Dasha, de volta ao quarto. Na hora, Tatiana baixou os olhos. – Ela tem amigos lá – Dasha continuou – e troca nossas coisas por batatas e cenouras. Ela foi boa com eles quando as coisas estavam bem e agora eles são bons com ela quando as coisas não estão bem. Suas roupas vão demorar um pouco para secar – ela disse para Alexander, sorrindo.

– Está bem – ele disse retribuindo o sorriso. – Não tenho que me apresentar na base por quatro dias. Estarão minhas roupas secas então?

O coração de Tatiana deu pulos de alegria. Quatro dias de Alexander!

– Tania, você vai fazer o café da manhã? – Dasha perguntou saindo de novo. Marina estava no outro quarto se aprontando para ir à faculdade.

Alexander virou-se para Tatiana.

– Tatiacha – ele disse. – Posso tomar mais um pouco de chá?

No mesmo instante, ela se levantou da mesa. O que estava achando ali sentada? Ele devia estar tão cansado, tão faminto.

– Claro.

Ele estava sentado, fumando, suas longas pernas esticadas no chão até o sofá. Não havia espaço para Tatiana passar, e Alexander não mexia as pernas. Tatiana olhou para ele. Ele sorria.

– Com licença, Alexander – Tatiana disse baixinho tentando manter uma cara bem séria.

– Pule por cima – ele disse abaixando a voz. – Só não tropece. Porque então vou ter que levantar você.

Tatiana, vermelha de novo, levantou os olhos e viu Marina observando-a da porta. – Com licença, Alexander – Tatiana repetiu mantendo a sua voz ofegante neutra.

Relutante, Alexander mexeu as pernas.

– Entre, Marina – ele disse com um suspiro. – Deixe-me olhar você. Como está você?

Tatiana trouxe a Alexander uma xícara de chá forte e doce, como ele gostava.

– Obrigado – ele disse, olhando-a.

– Sempre às ordens. – Ela o olhou.

– Minhas pernas ainda atrapalham?

– Sim, você é muito grande para este quarto – Tatiana sussurrou.

Antes que ele pudesse responder, Dasha voltou com alguns lençóis limpos.

– Meninas, como vai a sua Babushka lá do outro lado do Neva? – Alexander perguntou, tomando o chá e desviando os olhos de Tatiana.

Dasha dobrou os lençóis, guardou-os e disse:

– Ontem, ela trouxe cinco nabos e dez batatas. Mas agora todos os pratos do casamento de Mamãe já foram embora. Depois desses candelabros, eu não sei o que ela ainda teria para vender.

– Que tal esses dentes de ouro que você pegou do dentista, Dasha? – Tatiana perguntou. – Será que os agricultores gostariam de um pouco de ouro? – ela se sentou na mesa perto da parede, de costas para Dasha, os olhos em Alexander.

– O que eles poderiam fazer com ouro? O que fariam com candelabros?

– Ah, ter luz – Alexander disse –, ter aquecimento. Usá-los como armas contra os alemães. – Ele se virou para Tatiana. – Tania... – ele sorriu. – Onde está aquela aveia prometida? Onde estão aqueles ovos prometidos?

Ouviu-se uma batida na porta da frente, e Tatiana foi atender. Era Nina Iglenko, que queria saber se elas tinham alguma comida sobrante que ela pudesse dar a Anton. Tatiana sabia que Nina tinha enormes dificuldades para sustentar o filho com uma ração de dependente, depois que ele fora atingido no telhado. Alexander saiu no hall, enorme e imponente, colocando-se ao lado dela, com seu corpo pequeno enrolada em um suéter. Com o seu braço, pressionou o braço de Tatiana e disse:

– Camarada Iglenko, todo mundo recebe a mesma ração dependente, eu sinto muito, não temos nada. – Ele bateu a porta, virando-se para Tatiana. – Você não me contou que Anton se feriu no telhado.

Ele ainda estava muito perto dela. Ela não somente podia cheirá-lo, respirá-lo, aspirá-lo, mas em certo momento o peito dele tocava o seu rosto.

– Ele está bem – Tatiana disse num tom despreocupado, tentando mal respirar fora do ritmo. – É só um arranhão na sua perna. – Ela não queria que Alexander se preocupasse.

– Tania, você sabia que todo mundo recebe a mesma quantidade da ração de dependente? – Alexander disse com firmeza dando um passo à frente e assustando Tatiana, que se encostou na chapeleira.

– Ouvi falar.

– Você não tem mais do que a Nina.

– Eu sei. Me desculpe. Tenho que fazer o seu café da manhã. – Tatiana não podia passar outro segundo ao seu lado no estreito hall enquanto ele estava de ceroulas. Ela saiu e pegou Nina no corredor, dando-lhe um pedaço de manteiga.

– Deus te abençoe, Tanechka – disse Nina. – Deus te abençoe enquanto você viver. Você verá. Ele vai lhe proteger toda a sua vida por seu bondoso coração.

Tatiana voltou à cozinha e preparava ovos e aveia, quando Alexander entrou e inclinou-se contra o fogão, encarando-a.

– Cuidado, você assim queima as costas – disse Tatiana sem olhar para ele.

Ele nada disse a princípio, mas depois emitiu um sussurro feroz.

– Tania, melhor do que ninguém eu sei quem você é. Sei o que você está fazendo.

– O quê? – ela disse. – Estou fazendo aveia e ovos.

Alexander pegou-lhe o queixo e virou o seu rosto para ele.

– Você não pode dar a sua comida assim, entendeu? Não há o suficiente para você e sua família.

Tatiana assentiu, e abriu a boca fazendo de conta que mordia o dedo dele. Alexander deixou os seus dedos no rosto de Tatiana por um momento.

Tatiana fez a aveia com duas colheres de sopa de leite, um pouco de manteiga e algumas colheres de chá de açúcar e água. Ela fez o suficiente para quatro tigelas pequenas, dividindo em quatro partes desiguais, a maior para Alexander, depois para Dasha, em seguida para Marina, e a menor porção para ela. Ele trouxera vinte ovos. Com cinco deles, ela fez um mexido, com manteiga e sal. Era como se estivesse em um banquete.

Alexander olhou a sua tigela e disse que não comeria. Que não ia comer nada. Dasha já terminara a sua aveia quando ele parou de falar. Marina, também. E seus ovos.

Só Tatiana olhou a sua tigela enquanto Alexander olhava a sua.

– O que há com vocês dois? – Dasha disse. – Alex, você precisa se alimentar mais do que ela. Você é um homem. Ela é a menorzinha. De todos nós é a que menos precisa. Agora, coma.

– Sim – disse Tatiana, ainda sem levantar os olhos. – Você é um homem, eu sou a menorzinha, a que menos necessita. Agora, coma.

Alexander trocou a sua tigela com a de Tatiana.

– Agora, você coma – ele disse. – Eu posso conseguir comida nas barracas. Coma.

Tatiana, agradecida, em segundos devorou tudo. E depois acabou com os ovos.

– Oh, Alexander – Dasha disse –, como mudaram as coisas desde a última vez em que você esteve aqui. Está mais duro agora. As pessoas ficaram mais duras. Parece que agora todo mundo só pensa em si próprio. – Ela suspirou, desviando os olhos.

Alexander e Tatiana, silenciosos, olharam para Dasha.

– Agora só conseguimos trezentos gramas de pão por dia – ela continuou. – Quanto mais isso pode piorar?

– Muito mais – disse Tatiana, poupando Alexander de uma resposta. – Isso porque logo vão acabar as nossas provisões.

– Quantas latas de presunto vocês ainda têm? – ele perguntou.

– Doze.

– Sim – disse Tatiana. – Mas há quatro dias tínhamos dezoito. Consumimos seis latas em quatro dias. De noite ficamos com fome.

Ela queria acrescentar que tinham fome a cada minuto do dia, acordadas ou dormindo, mas calou-se.

As meninas tinham que trabalhar. Tatiana observou Dasha chegar perto de Alexander, que colocou as mãos na sua cintura.

– Oh, eu emagreci tanto – Dasha disse. – Você não vai gostar mais de mim, assim tão magrinha, logo vou ficar parecida com Tania. – Ela o beijou. – Você vai ficar bem aqui enquanto estivermos fora? O que você vai fazer?

Alexander sorriu.

– Vou cair na sua cama e só acordar quando vocês voltarem.

Tatiana correu para casa às cinco horas, com ou sem bombardeio.

Estava quente dentro do apartamento. Alexander saiu do quarto sorrindo para ela, todo contente, e Tatiana, retribuindo o sorriso, toda contente, disse:

– Oi, Alexander, cheguei!

Ele riu.

Ela queria beijá-lo.

Ele havia ido ao porão, de onde trouxera uma dúzia de feixes de madeira. Dasha entrou no quarto, vinha da cozinha.

– Está gostoso aqui, não é, Tania? – ela disse abraçando Alexander.

– Meninas – ele disse –, vocês têm que continuar aquecendo estes quartos. Está fazendo muito frio.

– Nós recebemos o aquecimento do sistema central, Alex – respondeu Dasha.

– Dash – ele disse –, o Conselho de Leningrado fornece aos prédios residenciais o máximo de 10 graus centígrados. Você acha que isso é quente o suficiente?

– Não tem sido tão ruim – disse Tatiana tirando o casaco.

Alexander deu um tapinha no braço de Dasha.

– Eu vou lhes trazer mais lenha do porão, e deixá-la aqui para vocês. Aqueçam os seus quartos com o fogão grande, não com o pequeno fogareiro, que não pode aquecer nem um pinguim. Tudo bem, Tania?

Trêmula, de repente, Tatiana não disse nada a princípio.

– Alexander, este fogões a lenha consomem muita madeira – ela disse, e apressada foi preparar-lhe o jantar.

Babushka trouxe sete batatas de Malaya Oshta. Eles comeram mais uma lata de presunto e todas as batatas. Depois do jantar Alexander sugeriu que de agora em diante comessem só meia lata de presunto por dia. Dasha ficou brava. Disse que mal podiam se alimentar com uma lata inteira. Ele nada disse.

Quando soou a sirene de ataque aéreo, ele fez um sinal à família que descesse para o abrigo, todas, incluindo Tatiana. Quando Dasha pediu a ele que as acompanhasse, Alexander, pensativo, olhou para ela e disse:

– Dasha, vá em frente agora, e não se preocupe comigo.

Quando ela insistiu, ele disse de maneira mais firme:

– Que espécie de soldado eu seria se corresse para um abrigo cada vez que houvesse um pequeno bombardeio? Agora, vá. E, Tania, você também. Você não tem subido no telhado, tem?

Ninguém lhe respondeu, nem Tatiana, certamente.

Tarde daquela noite Dasha disse:

– Marinka, você pode dormir com Babushka hoje? Por favor? O quarto dela é quente, não como o nosso. Eu quero que Alexander durma junto de mim. Mamãe, você não se importa, sim? Vamos nos casar.

– Junto de você e Tania? – Marina olhou Tatiana e esta não correspondeu ao olhar.

– Sim. – Dasha sorriu pegando no armário roupa de cama limpa. – Alexander, você não se importa de dormir na mesma cama de Tania?

Ele resmungou.

– Tanechka, me diga – Dasha disse provocando, enquanto fazia a cama. – Devo colocá-lo no meio entre nós duas? – ela riu levemente. – Será bom para Tatiana. Será a primeira vez que ela dorme com um homem. – Divertindo-se com isso, Dasha beliscou o braço de Alexander. – Embora, querido, talvez ela não devesse começar com você.

Sem olhar para Tatiana, Alexander murmurou que ele realmente não se sentiria confortável no meio, e Tatiana, tampouco olhando para ele, murmurou que ele tinha razão.

Dasha disse a ele:

– Relaxa.Você acha que eu ia lhe colocar junto da minha irmã?

Na hora de dormir, Tatiana subiu na cama do lado da parede com Dasha ao lado dela e Alexander encaixado na ponta, em sua roupa térmica. Não havia espaço para se mexer, mas era mais quente e a presença dele tão próxima, ainda que tão longe, um coração inteiro de distância, amaciou os olhos de Tatiana. Em silêncio, eles se deitaram ouvindo Mamãe, que chorava no sofá.

Tatiana então ouviu Dasha sussurrando a Alexander:

– Você disse antes que nos casaríamos. Quando, meu amor, quando?

Ele sussurrou de volta:

– Vamos esperar, Dasha.

– Não – ela disse. – Esperar o quê? Você disse que seria quando tivesse uma licença. Vamos nos casar amanhã. Vamos no registro civil e nos casamos em dez minutos. Tania e Marina podem ser as nossas testemunhas. Vamos, Alexander, não há nada que esperar.

Tatiana virou-se para a parede.

– Dasha, me ouça. A luta tem sido intensa. Você não ouviu? O Camarada Stálin decretou como um crime ser prisioneiro de guerra. Agora é contra a lei cair nas mãos dos alemães. Para evitar que eu, de livre e espontânea vontade, me entregue aos alemães, nosso grande líder decidiu suspender as rações dos familiares dos soldados soviéticos. Assim, se eu cair prisioneiro e nós estivermos casados, você perde as suas rações.Você, Tania, sua mãe, sua avó. Todas vocês. Eu terei que morrer em combate para que vocês continuem a receber o seu pão.

– Oh, Alexander, oh, não.

– Vamos esperar.

– Esperar o quê?

– Por tempos melhores.

– E haverá tempos melhores?

– Sim.

Caíram no silêncio.

Tatiana virou-se da parede para Dasha, e olhou a nuca de Alexander. Ela se lembrava de quando estava deitada em seus braços, nua e ferida, em Luga, o hálito dele em seus cabelos.

No meio da noite, Dasha levantou-se para ir ao banheiro. Tatiana achou que Alexander dormia, mas ele se virou e encarou-a. No escuro, ela vislumbrou seus olhos líquidos. Debaixo do cobertor a perna dele mexeu de lado e tocou a dela; ela usava meias e um pijama de flanela. Quando ela ouviu Dasha no hall externo, fechou os olhos. Alexander tirou a perna.

Na noite seguinte, Tatiana preparou só meia lata de presunto para todos. Dava uma colher de sopa para cada um, mas pelo menos era presunto. Dasha resmungou que não era suficiente.

– Anton está morrendo – disse Tatiana. – Coma o presunto. Nina Iglenko não tem presunto desde agosto.

Depois do jantar Mamãe foi para sua máquina de costura. Desde o começo de setembro, ela vinha trazendo trabalho para casa, o exército necessitava de uniformes de inverno, e a fábrica oferecia a Mamãe um bônus se ela fizesse vinte uniformes por dia em vez de dez. Um bônus de alguns poucos rublos e uma ração extra. Mamãe trabalhava até uma hora da manhã por trezentos gramas de pão e alguns rublos. Nesta noite ela foi para sua máquina, sentou-se, pegou os materiais e disse:

– Onde está a minha máquina de costura?

Ninguém falou.

– Tania, onde está a minha máquina de costura?

– Eu não sei, Mamãe – disse Tatiana.

Babushka, mancando, adiantou-se e disse:

– Irina, eu vendi.

– A senhora o quê?

– Troquei por aqueles feijões de soja e azeite que comemos hoje à noite. Estavam tão gostosos, Ira.

– Mamãe! – Irina gritou. Ela ficou histérica. Por alguns minutos chorou em suas próprias mãos.

Tatiana ficou ali e observou a expressão penosa de Alexander quando ele saiu para o hall.

– Mamãe, como a senhora pôde fazer isso? – Irina chorava. – A senhora sabe que todas as noites eles me oferecem trabalho, e todas as noites eu me mato nisso para fazer alguma coisa útil, para trazer alguma coisa para a minha família, alguma coisa só para nós! A senhora não sabe que eles me garantem que eu podia ganhar um pouco mais de aveia todos os dias também, se eu conseguir vinte uniformes. Oh, Mamãe, o que a senhora fez?

Tatiana também saiu do quarto. Alexander, fumando, sentava no sofá do hall. Ela pegou uma caneta, foi para trás do sofá, ajoelhou-se no chão e começou a levantar a bolsa de aveia para assim marcar o seu nível. A aveia, a farinha, o açúcar continuavam desaparecendo. Por trás, ela ouviu Alexander dizer:

– Vamos, levante-se do chão. É muito duro para você. Me deixe ajudá-la.

Ela saiu do caminho, ele levantou a bolsa enquanto ela olhava dentro e traçava uma linha preta do lado de fora.

– O que você acha, Tatia? – Alexander disse, falando baixinho a palavra Tatia. – Iniciativa privada para a sua mãe? Quem diria!

– Está em todo lugar, contudo – disse Tatiana. – Socialismo em um país parece não funcionar tão bem quando o país está em guerra. – Ela apontou para a bolsa de farinha.

Alexander concordou e acrescentou:

– É como foi durante a guerra civil russa e logo depois. Você já notou que, durante a guerra, para preservar a sua própria vida, o animal desaparece e fica quieto...

– Tempo suficiente para se fortalecer outra vez e mostrar a cabeça. Espere, segure a farinha um pouco mais baixo. – A mão de Tatiana com a caneta tocou a mão dele, que segurava a bolsa. Ela não levantou os olhos.

– O que a sua mãe vai fazer, Tania?

– Eu não sei. O que Babushka vai fazer? Ela não tem mais nada para vender. – Tatiana tirou a mão e foi para a cozinha lavar os pratos do jantar.

Quando ela voltava ao quarto, Alexander entrou na cozinha, estavam sozinhos. Ela tentou passar por ele, e ele se postou na sua frente; ela tentou dar a volta, e ele de novo postou-se na sua frente. Tatiana olhou para ele e viu que seus olhos piscavam.

Os olhos de Tatiana também piscavam, ela ficou imóvel por um momento, então foi para a direita, para a esquerda e ao redor dele. Olhando-o e sorrindo-lhe, Tatiana disse baixinho:

– Shura, você precisar ser mais rápido – riu alto.

Depois de quatro dias Alexander foi embora de volta para a base. Todo mundo sentiu a sua falta.

A boa notícia era que ele ficaria em Leningrado mais uma semana e pouco, fazendo trabalho de patrulha e manutenção na base, construindo barricadas e treinando novos recrutas. Ele não podia mais dormir ali, mas passava a maioria das tardes com elas. E, pelas manhãs, ele vinha às seis e meia e levava Tatiana até Fontanka para pegar as suas rações.

Certa manhã, quando ele veio, disse:

– Ouvi falar que o Dimitri levou um tiro.

– Não!

– Verdade. – Ele fez uma pausa.

– O que aconteceu? Ele caiu em pleno esplendor de glória?

– Ele deu um tiro no pé com a sua arma.

– Oh, eu esqueci – Tatiana disse. – Ele não é você.

Alexander colocou a mão no casaco de Tatiana e contou-lhe que Dimitri estava num hospital de Volkhov, fora de ação por tempo indefinido.

– Além do ferimento no pé, ele tem distrofia.

– O que é isso?

Tatiana sentiu que Alexander quase não queria dizer do que se tratava.

– Distrofia – ele disse devagar. – É uma doença da massa muscular, degenerativa. Causada por aguda desnutrição.

Tatiana deu-lhe um leve tapinha e disse com voz fraca:

– Não se preocupe, Shura, não vou pegar isso. Eu não tenho músculos.

Pacientes, eles esperaram as suas rações.

Alexander continuou olhando-a, tentando fazer com que ela captasse sua expressão expectante. Tatiana intuía que ele queria alguma coisa dela, mas não sabia o que era e nem podia adivinhar.

Não podia? Ou não queria?

As rações de Alexander ajudaram a família a esticar suas provisões de comida por mais um tempo. Ele recebia uma ração de rei, oitocentos gramas em pão por dia! Mais da metade do que elas estavam recebendo entre as cinco. Ele também recebia 150 gramas de carne e 140 de cereais, além de meio quilo de vegetais. Tatiana vibrava quando ele vinha para jantar trazendo a sua própria ração do dia. Estava feliz por vê-lo ou estava feliz por comer melhor?

Alexander entregava-lhe os alimentos dizendo que dividisse tudo em seis porções.

– E, Tania – ele dizia a cada vez. – Seis porções iguais.

A carne da ração de Alexander não era bovina, era um tipo de carne de porco ou às vezes uma perna de frango de pele grossa. Custava Tatiana toda a sua força mental para não dar a ele a porção maior. Ela fazia o que podia e dava a ele o melhor.

Já não havia mais candelabros para trocar e nem mais pratos, exceto as seis peças que as Metanovs usavam e Alexander também. Babushka queria trocar seus velhos cobertores e casacos, mas Mamãe não lhe permitiu.

– Não. O inverno aqui na cidade é muito frio. Vamos precisar dos cobertores e dos casacos.

A temperatura caíra abaixo de zero na terceira semana de outubro. Só havia seis lençóis para três camas, apenas seis toalhas. Babushka queria trocar uma das toalhas, mas Tania tampouco lhe permitiu, lembrando que Alexander precisava de uma toalha também.

Babushka Maya parou de ir para os lados do rio Neva.

4

Tatiana estava na entrada quando ouviu Dasha, Alexander, Marina, Mamãe e Babushka discutindo de forma acalorada dentro do quarto. Ela estava a ponto de abrir a porta e entrar com o chá quando ouviu Alexander dizer:

– Não, não, não. Vocês não podem contar a ela, não é a hora.

E a voz de Dasha atravessou a fresta da porta.

– Mas Alexander, ela vai ter que saber em algum momento...

– Agora não!

– Qual é o problema? – disse Mamãe. – O que importa isso? Contem a ela.

– Concordo com Alexander – Babushka disse. – Por que enfraquecê-la agora quando precisa de toda a sua força?

Tatiana abriu a porta.

– Me contar o quê?

Emudeceram todos.

– Nada, Tanechka – Dasha disse rápido, olhando para Alexander, que abaixou e sentou-se.

Tatiana segurava a bandeja com xícaras, pires, colheres e um pequeno bule de chá.

– Me contar o quê?

O rosto de Dasha cobria-se de lágrimas.

– Oh, Tania – ela disse.

– Oh, Tania, o quê? – disse Tatiana.

Ninguém disse nada. Nem olharam para ela.

Tatiana olhou a sua avó, a mãe, a prima, a irmã e parou em Alexander, que fumava e olhava o seu cigarro. Alguém levante os olhos para mim, Tatiana pensou.

– Alexander, o que você não quer que elas me contem?

Ele levantou os olhos.

– Seu avô morreu, Tania – ele disse. – Em setembro, de pneumonia.

A bandeja com as xícaras caiu das mãos de Tatiana e as xícaras quebraram no chão de madeira. O chá quente derramando-se em suas veias. Tatiana ajoelhou-se no chão e recolheu todos os cacos sem dizer palavra a ninguém, o que era bom, porque ninguém podia dizer-lhe tampouco uma palavra. Ela então colocou todos os cacos na bandeja, e voltou para a cozinha.

Quando ela fechava a porta, ouviu Alexander dizer:

– Contentes agora?

Dasha e Alexander foram à cozinha, onde Tatiana estava em pé junto à janela, atordoada, segurando no peitoril. Dasha aproximou-se de Tatiana e disse:

– Meu bem, eu sinto muito. Venha aqui – ela abraçou Tatiana. – Nós todos adorávamos Deda. Estamos todos arrasados – ela sussurrou.

Tatiana também abraçou a irmã e disse:

– Dasha, é um mal sinal?

– Não, Tanechka, não é.

– É um mal sinal – Tatiana repetiu. – É como se o Deda tivesse morrido por não suportar o que estava para acontecer à sua família.

As duas meninas olharam para Alexander, que ficou ali por perto, observando-as e nada dizendo.

Na manhã seguinte, Alexander e Tatiana caminharam em silêncio até a loja de rações e, em silêncio, esperaram pelo pão.

Quando já estavam perto do Canal Fontanka, Alexander enfiou a mão no bolso do casaco e disse:

– Preciso voltar amanhã, mas olhe o que eu trouxe para você.

Ele segurava uma pequena barra de chocolate. Ela pegou o doce e deu-lhe um fraco sorriso. Os olhos marejados. Alexander pegou a mão de Tatiana e disse suavemente, dando palmadas em seu próprio peito:

– Vem aqui.

Ela ficou ali um bom tempo, com o rosto pressionado contra o peito de Alexander, cujos braços estavam a seu redor, e chorou.

A perna de Anton não melhorava, Anton não melhorava.

Tatiana levou a ele um pedaço do chocolate que Alexander lhe dera. Anton comeu letargicamente.

Ela sentou na beira da cama. Ficaram em silêncio.

– Tania – ele disse –, lembra do verão antes do último? – a voz de Anton era fraca.

– Não – disse Tatiana. Ela só se lembrava do último verão.

– Em agosto, quando você voltou de Luga, eu, você, Volodya, Perka e Pasha jogamos futebol no Parque Tauride. Você queria tanto a bola que chutou a minha tíbia. Acho que foi a mesma perna. – Um débil sorriso passou pelo rosto de Anton.

– Acho que você tem razão – Tatiana disse baixinho. – Shh, Anton. – Ela pegou a mão dele. – Sua perna vai sarar e talvez, no próximo verão, vamos ao Parque Tauride e de novo jogamos futebol.

– Sim – ele disse apertando a mão de Tatiana e fechando os olhos. – Mas não com o seu irmão nem com os meus irmãos.

– Só você e eu – sussurrou Tatiana.

– Nem mesmo eu, Tania – ele sussurrou também.

Eles esperam você, Tatiana queria dizer a ele. Estão esperando para jogar futebol com você outra vez. E comigo.

Tatiana costumava sair de casa às seis e meia para pegar as suas rações – tão pontual quanto um alemão –, de forma que apesar de esperar na fila e ir até a loja de Fontanka, ela podia estar de volta ao redor das oito, quando os aviões de bombardeio voavam sobre a sua cabeça e a sirene de ataque aéreo tocava.

Ela, contudo, notou que ou os ataques estavam começando mais cedo ou ela estava saindo de casa mais tarde, porque em três manhãs seguidas, viu-se no meio do fogo enquanto ainda estava na Nekrasova, já de volta.

Só por causa da promessa que fizera a Alexander, quase um juramento, ela esperou o bombardeio terminar, num abrigo em outro edifício, segurando o seu precioso pão junto ao peito e usando o capacete que ele lhe dera, outra promessa e juramento, para usá-lo quando saísse à rua.

O pão que Tatiana segurava não era delicioso; não era branco, não era macio, não tinha uma crosta dourada, mas ainda assim dele emanava um cheiro. Durante trinta minutos ela sentou enquanto trinta pares de olhos a observavam de todo lado, e finalmente a voz de uma mulher velha disse:

– Vamos, garotinha, divida com a gente, não fique sentada aí segurando essa pilhagem. Nos dê um pedaço.

– É para a minha família – Tatiana disse. – Somos cinco, todas mulheres. Elas me esperam com o pão. Se eu dou a vocês, elas ficaram sem comer hoje.

– Não muito, garotinha – a velha insistiu. – Só um pedaço.

O bombardeio parou, e Tatiana foi a primeira a sair do abrigo. Depois disso, ela se assegurou de que não mais ficaria para trás.

Contudo, apesar de seus maiores esforços, ela não conseguia chegar à loja de rações e voltar para casa antes do bombardeio.

Ir às dez era impossível. Tatiana tinha que estar no trabalho; pessoas dependiam dela lá, também.

Ela se perguntava se Marina podia fazer melhor. Ou talvez Dasha. Talvez elas pudessem se mexer mais rápido que Tatiana. Mamãe costurava uniformes à mão de manha à noite. Tatiana não podia mandar a sua mãe, que agora praticamente não tirava os olhos de suas costuras, tentando terminar alguns uniformes e assim conseguir um pouco de aveia extra.

Dasha disse que não podia ir porque tinha que lavar roupa de manhã. Marina também se recusou, atitude que se explicava. Ela quase deixara de ir à faculdade. Com o seu cartão de racionamento, ela pegava o pão e o comia na hora. À noite, quando voltava para casa, exigia mais comida de Tatiana.

– Marinka, não é justo – Tatiana dizia à prima. – Todos estamos famintos, eu sei como é duro, mas você precisa se controlar.

– Como você se controla?

– Sim – Tatiana disse, sentindo que Marina não falava sobre o pão.

– Você está indo bem – Marina disse. – Muito bem, Tania, continue assim.

Mas Tatiana não sentia que estava indo bem.

Ela sentia que estava pior que antes; entretanto, a família aplaudia seus esforços. Alguma coisa não andava bem no mundo no qual a família achava que Tatiana fazia sucesso com base num tremendo estrago. Não era o fato de ela sentir-se lenta que a incomodava, mas o de sentir que estava desacelerando. Todos os seus esforços para se apressar a uma velocidade deliberada encontravam uma resistência desconhecida – resistência de seu próprio corpo.

Corpo que não se mexia tão rápido como antes, e a prova indiscutível disso estava com os pilotos alemães, que, precisamente às oito da manhã, voavam os seus aviões sobre o centro da cidade, e durante duas horas a chamada do clarinete de morteiro soava para perturbar a hora do rush da manhã. O nascer do sol vinha também às oito horas. Tatiana caminhava até a loja e voltava quase no escuro.

Certa manhã, Tatiana caminhava na Nekrasov e sem pensar muito passou por um homem que andava na mesma direção. Ele era alto, mais velho, magro e usava um chapéu.

Foi somente quando ela passou por ele que lhe ocorreu que fazia um longo tempo que não passava por ninguém. As pessoas andavam em seus próprios passos, mas não era um passo largo. Ou eu estou andando mais rápido, ela pensou, ou ele esta mais lento do que eu. Ela diminuiu o ritmo, depois parou.

Quando virou, viu o homem deslizar como em um paraquedas ao lado do edifício e inclinar-se para o lado. Tatiana caminhou de volta para ele para ajudá-lo a sentar. Ele estava imóvel. Apesar disso, ela tentou endireitá-lo. Levantou o seu chapéu. Seus olhos, que já não piscavam, estavam fixos em Tatiana e permaneceram abertos, como minutos atrás, quando ele caminhava na rua. Agora ele estava morto. Horrorizada, Tatiana largou o homem e seu chapéu e saiu apressada sem olhar para trás. Na volta, com as suas rações, ela decidiu pegar a Ulitza Zhukovskogo para não passar pelo cadáver. O ataque aéreo já começara, mas ela o ignorou e continuou caminhando. Se eles quisessem pegar o meu pão lá no abrigo eu nada poderia fazer para impedi-los, Tatiana pensou, firmando na cabeça o capacete que lhe dera Alexander.

Naquela manhã, ela contou à família que tinha visto um homem morto na rua. Eles mal a escutaram.

– Oh? – disse Marina. – Bom, eu vi um cavalo morto no meio da rua, retalhado, e uma multidão de gente se servia da carne do animal. Essa não é a pior parte. Eu caminhei atrás de alguém e perguntei se tinha sobrado alguma coisa para mim.

O rosto do homem, seu andar, seu bobo chapéu ficaram na cabeça de Tatiana enquanto ela fechava os olhos à noite. Não era só a morte que a atormentava, porque, infelizmente, Tatiana vira a morte antes – em Luga, na ausência abjeta de Pasha, assim como no período em que observava seu pai se consumir –, mas foi o estilo de andar daquele homem que Tatiana viu quando fechou os olhos, porque quando ele morreu, vinha andando, embora andasse mais lento que Tatiana, ele não caminhava muito mais lento que ela.

6

– Quantas latas de presunto ainda temos? – Mamãe perguntou.

– Uma – Tatiana respondeu.

– Não pode ser.

– Mamãe, temos comido presunto todas as noites.

– Mas não pode ser. Tínhamos dez latas há poucos dias.

– Há nove dias.

No dia seguinte, Mamãe perguntou:

– Ainda temos um pouco de farinha?

– Sim, temos mais um quilo. Tenho feito panquecas todas as noites.

– Então é isso? Panquecas? – Dasha disse. – Têm gosto de farinha e água.

– É farinha e água. – Tatiana fez uma pausa. – Alexander chama isso de biscoitos do mar.

– Você pode fazer pão com essa farinha, em vez dessas bobas panquecas? – perguntou Mamãe.

– Mamãe, pão? Com o quê? Não temos leite. Não temos fermento. Não temos manteiga. E com certeza não temos mais ovos.

– Misture a farinha com um pouco de água. Devemos ter um pouco de leite de soja.

– Temos três colheres de sopa.

– Use isso. Ponha algum açúcar.

– Tudo bem, Mamãe. – No jantar, Tatiana fez pão sem fermento com açúcar e o que sobrava de leite. Consumiram a última lata de presunto. Era 31 de outubro.

– O que tem nesse pão? – Tatiana perguntou, quebrando um pedaço da casca negra e olhando dentro. – O que é isto?

Começava novembro. Babushka estava no sofá. Mamãe e Marina já haviam saído. Tatiana protelava, tentando fazer durar a sua última porção. Ela não queria ir para o hospital.

Dasha levantou-se da cadeira e deu de ombros.

– Quem sabe? Quem se importa? Que gosto tem isso?

– Na verdade, asqueroso.

– Coma. Vai ver, talvez você queria comer um pouco de pão branco no lugar desse aí.

Tatiana pegou um pedaço de alguma coisa no pão, mexeu com os dedos, e depois colocou na boca.

– Meu Deus, Dash. Sabe o que é?

– Não me interessa.

– É serragem.

Dasha parou de mastigar, mas só por um segundo.

– Serragem?

– Sim. E isto aqui? – Tatiana apontou para uma mancha marrom entre os seus dedos. – É cartolina. Estamos comendo papel. Trezentos gramas por dia e eles nos dão papel.

Dasha, liquidando a última migalha de sua fatia e olhando, faminta, ao pedaço que Tatiana tinha nas mãos disse:

– Temos sorte em contar com isto. Posso abrir a lata de tomates?

– Não. Só temos mais duas. Além disso, Mamãe e Marina não estão aqui. Se abrirmos essa lata, comemos tudo.

– A ideia é essa.

– Não podemos. Abrimos à noite, no jantar.

– Que jantar vai ser esse? Tomates?

– Se você não tivesse comido toda a sua cartolina de manhã, teria alguma ainda sobrando para o jantar.

– Não posso evitar.

– Eu sei – disse Tatiana, pondo na boca o resto do pão, mastigando-o com os olhos fechados. – Ouça – ela disse quando já engolira com alguma dificuldade –, ainda tenho algumas bolachas. Quer? Três para cada uma?

– Sim. – As meninas olharam para Babushka, que dormia.

Elas comeram sete bolachas cada uma. Do pão tostado sobravam apenas alguns pedaços. Pedaços quebrados, esmigalhados.

– Tania, você ainda menstrua?

– O quê?

– Menstrua?

Havia ansiedade na voz de Dasha, bem como na resposta de Tatiana.

– Não. Por que você pergunta?

– Eu tampouco.

– Oh.

Dasha silenciou. As irmãs respiravam levemente.

– Você está preocupada, Dash? – Tatiana disse, por fim, com grande relutância.

Dasha balançou a cabeça.

– Não estou preocupada com isso. Alexander e eu... – Ela olhou para Tatiana. – Não importa. O que me preocupa é não menstruar. Parou de descer.

– Não se preocupe – disse Tatiana, ao mesmo tempo aliviada e triste por causa da irmã. – Tudo volta ao normal quando começarmos a comer direito outra vez.

Dasha levantou os olhos para Tatiana.

Tatiana desviou o olhar.

– Tania – Dasha sussurrou. – Você não sente uma coisa estranha? Assim como se o seu corpo estivesse se fechando? – Ela começou a chorar. – Se fechando, Tania!

Tatiana abraçou a irmã.

– Querida – ela disse –, meu coração ainda bate. Não estou fechando, Dasha, e você tampouco.

Em silêncio ficaram no quarto frio. Dasha, abraçada a Tatiana, disse:

– Eu quero de volta aquela louca fome. Lembra do mês passado, quando tínhamos vontade de comer o tempo todo?

– Eu lembro.

– Você não sente mais isso, não?

– Não – Tania admitiu sem muita garra.

– Eu quero isso de volta.

– Você terá de volta. Quando começarmos a comer, volta tudo.

Naquela noite, Tatiana voltou para casa com um pote com um líquido claro que serviam no refeitório do hospital. Dentro, flutuava uma batata.

– Canja – Tatiana disse à família. – Com um pouco de presunto.

– Onde está a galinha? Onde está o presunto? – Mamãe perguntou enquanto olhava o pequeno pote.

– Tive sorte em conseguir isto.

– Sim, Tanechka, teve mesmo. Vamos, sirva a gente – Mamãe disse.

Tinha gosto de água quente com uma batata. Nada de sal, nada de azeite. Tatiana dividiu a sopa em cinco porções porque Alexander ainda estava fora.

– Espero que Alexander volte logo e assim podemos contar com um pouco de suas rações. Ele também tem muita sorte de receber uma boa quantidade de comida – disse Dasha.

Eu também espero que Alexander volte logo, pensou Tatiana, preciso pousar os olhos nele.

– Olhem só para nós – disse Mamãe. – Desde o almoço da uma da tarde, esperamos este jantar. Mas alguém precisa ajudar com as bombas, os incêndios, os vidros, os feridos. Não estamos ajudando. Só queremos comer.

– É isso exatamente o que os alemães querem – disse Tatiana. – Querem que abandonemos nossa cidade, e nós estamos prontos para isso por causa de uma batata.

– Não posso sair lá fora – disse Mamãe. – Eu tenho de costurar à mão cinco uniformes. – Ela olhou para Babushka, que, sentada e quieta, mastigava o seu pão sem nada dizer.

– Não vamos sair lá fora – disse Tatiana. – Aqui sentamos, trabalhamos e costuramos. Mas não estamos abandonando a nossa Leningrado. Ninguém aqui vai embora.

Ninguém mais falou.

Quando o ataque aéreo começou, elas desceram para o abrigo, até mesmo Tatiana, que tropeçou numa mulher morta, sentada contra a parede, que ninguém se dera o trabalho de remover dali. Tatiana afundou-se em um banco e esperou a escuridão.

7

Dasha escrevia a Alexander todos os dias; a cada dia ela lhe escrevia uma carta breve. Que sorte a dela, Tatiana pensou. Poder escrever a ele, a ele mandando os seus pensamentos, que sortuda.

Elas também escreviam à Babushka, agora viúva, em Molotov.

Ela raras vezes respondia.

Os Correios estavam péssimos.

E aos poucos pararam de vez.

Quando as correspondências pararam de chegar ao edifício, Tatiana começou a ir na loja dos Correios, na velha Nevsky, onde um senhor grisalho sem dentes entregava-lhe as cartas só depois de perguntar se tinha algum alimento para ele. Ela levava ao homem restos de uma pequena bolacha. Finalmente pegou uma carta de Alexander para Dasha.

Minha querida Dasha, e todos os demais,

O único mérito da guerra é que a maioria das mulheres não precisa vê-la, apenas as enfermeiras que nos atendem, e elas são imunes à nossa dor.

Através de Shlisselburg estamos tentando suprir de munições a fortaleza da ilha Oreshik. Um pequeno grupo de soldados defende a ilha desde setembro, apesar do intenso bombardeio alemão, vindo das margens do Lago Ladoga, só a duzentos metros. Você lembra de Oreshik? O irmão de Lênin, Alexander, lá foi enforcado em 1887 por sua participação no plano para assassinar Alexander III.

Agora que a guerra começou, os marinheiros e soldados que guardam a entrada do rio Neva são aplaudidos como heróis da Nova Rússia.

A Rússia depois de Hitler. A todos nós, soldados e oficiais, é dito que depois da nossa vitória tudo será completamente diferente na União Soviética. Será uma vida muito melhor. Eles nos prometem, mas para aquela vida devemos estar preparados para morrer. Entregue a sua vida, eles nos dizem, para que assim seus filhos possam viver.

Tudo bem, nós dizemos. Os combates não cessam, mesmo à noite. Tampouco com a chuva. Há uma semana, dia e noite, estamos molhados. Não conseguimos nos secar. Três de meus homens morreram de pneumonia. Parece uma injustiça cósmica morrer de pneumonia quando Hitler está tão determinado, ele próprio, a nos liquidar. Fico contente por não estar em Moscou justo agora. Você tem ouvido alguma coisa sobre o que acontece em Moscou? Eu acho que é isso que está nos salvando. Salvando vocês. Hitler removeu de Leningrado grande parte de seu Exército, incluindo a maioria dos seus aviões e tanques, para assim atacar Moscou. Se Moscou cair, é o fim para todos nós. Mas, por enquanto, é a nossa única forma de proletar.

Eu estou bem. Não gosto muito de ficar todo molhado. Eles ainda alimentam a nós, os oficiais. Sempre que como carne penso em você. Se cuidem. Diga a Tatiana para andar rente às paredes dos edifícios. Exceto quando as bombas estão caindo; que pare então de andar e espere debaixo de alguma entrada. Diga-lhe que use o capacete que eu lhe dei.

Meninas, sob nenhuma cirscuntância doem o seu pão. Fiquem longe do telhado.

E use o sabonete que eu deixei para você. Lembre-se que sempre nos sentimos melhor quando estamos limpos. Meu pai me disse isso. Acrescento que é impossível manter-se limpo no front de inverno. Porém, por outro lado, tanto frio faz aqui que o inseto nojento que espalha o tifo não sobrevive.

Acredite quando lhe digo que penso em você a cada minuto de cada dia.

Até que eu veja você outra vez, continuo fielmente seu.

Alexander.

Tatiana usava o capacete. Usava o sabonete. Esperava na entrada dos edifícios. Mas por alguma razão ela só pensava numa coisa, com uma dor esquisita e prolongada, tirando as botas de feltro, o chapéu de feltro e o casaco acolchoado, este feito por Mamãe quando ainda havia uma máquina de costura: Alexander molhado, dia e noite, em seu uniforme no gelado Ladoga.


A sombria cidade de Pedro

1

Não havia mais como negar: o que acontecia em Leningrado não era nada parecido com o que elas puderam imaginar um dia.

A mãe de Marina morreu.

Mariska morreu.

Anton morreu.

O tiroteio continuava. O bombardeio continuava. Caíam menos bombas incendiárias. Tatiana disso sabia porque havia menos incêndios pela cidade, e disso ela sabia porque enquanto caminhava rumo a Fontanka, encontrava menos lugares para aquecer as mãos.

Numa manhã de novembro, a caminho da loja de ração, Tatiana viu duas pessoas mortas no meio da rua. Na volta, duas horas depois, já havia sete. Não estavam machucadas, nem feridas. Simplesmente estavam mortas. Fez o sinal da cruz ao passar por eles, parou e pensou, o que acabo de fazer? Fiz o sinal da cruz diante de gente morta? Mas eu vivo na Rússia Comunista. Por que fazia isso? Ela fez o sinal da foice e do martelo enquanto caminhava lentamente.

Não havia lugar para Deus na União Soviética. De fato, Deus ia contra os princípios pelos quais todos os soviéticos viviam: fé no trabalho, no viver coletivo, na proteção ao Estado contra indivíduos rebeldes, no Camarada Stálin. Na escola, nos jornais, no rádio, Tatiana ouvia que Deus era o grande opressor, o tirano infame que impedira o trabalhador russo de realizar todo o seu potencial durante séculos.

Agora, na Rússia pós-bolchevique, Deus era outra barreira no caminho do novo homem soviético. O homem comunista não podia ser fiel a Deus porque isso significaria sua submissão a alguma outra coisa que não fosse o Estado. E nada podia vir antes do Estado. O Estado não só proveria o povo soviético, como também alimentaria seus cidadãos, dando-lhes trabalho e proteção contra o inimigo. Tatiana ouvira isso na pré-escola e ao longo de nove anos, no segundo ciclo e nas aulas dos Jovens Pioneiros, que frequentou quando tinha nove anos. Ela aderiu aos Pioneiros porque não tinha outra escolha, mas quando chegou a hora de integrar-se aos Jovens Comunistas no seu último ano letivo, ela se recusou. Não necessariamente por causa de Deus, mas simplesmente por isso mesmo. Bem dentro dela, Tatiana sempre achou que não daria uma comunista muito boa.

Ela gostava muito, até demais, das histórias de Mikhail Zoshchenko.

Ainda criança em Luga, Tatiana conhecera algumas mulheres religiosas, que sempre tentavam atraí-la, para batizá-la, para ensiná-la, fazendo com que acreditasse. Ela fugia dessas mulheres, escondendo-se atrás da árvore de lilás no jardim do vizinho, e dali observava o grupo se dispersar na estrada do povoado, não antes sem fazer nela o sinal da cruz, com sorrisos benevolentes no rosto, às vezes chamando-a carinhosamente, Tatia, Tatia.

Tatiana fez outro sinal da cruz, desta vez nela própria. Por que esse gesto era tão claramente reconfortante?

É como se eu não estivesse sozinha.

Ela foi à igreja do outro lado da rua onde ficava o seu edifício. Igrejas também são bombardeadas? Ela se perguntava. Bombardearam a Catedral de St. Paul, em Londres? Se os alemães não eram competentes o suficiente para destruir a magnífica St. Paul, tão visível, como iriam achá-la na pequena igreja onde estava? Sentiu-se mais segura.

Ao chegar aos Correios, Tatiana precisou pular por cima de um homem morto para entrar. Ele falecera na porta.

– Há quanto tempo ele está aqui? – ela perguntou ao encarregado.

Todo banguela, ele sorriu.

– Eu troco essa resposta por outra bolacha.

– Não estou assim tão curiosa – ela respondeu. – Mas eu lhe dou outra bolacha.

***

No escuro, ninguém podia ver o que acontecia aos seus corpos. Ninguém tampouco podia enfrentar o que acontecia aos seus corpos. Dasha havia tirado todos os espelhos dos quartos e da cozinha. Não queriam nem mesmo ter um vislumbre acidental delas próprias. Deixaram de olhar uma à outra. Ninguém queria nem mesmo ter um vislumbre acidental de alguém que amavam.

Para esconder seu corpo de si mesma e das demais, Tatiana usava uma camiseta de flanela, uma camisa de flanela, seu suéter de lã, o suéter de lã de Pasha, um par de meias grossas, calças compridas, sobre elas uma saia, e o casaco de inverno acolchoado. Tirava o casaco para dormir.

Dasha mencionou que perdera os seios e Marina disse:

– Seios? Eu perdi minha mãe, e você ainda fala em seios? Você não trocaria seios por sua mãe? Eu trocaria.

Dasha desculpou-se, mas na cozinha caiu no choro e disse:

– Tanechka, eu quero meus seios de volta.

Tatiana acariciou as costas de Dasha.

– Vamos, Dasha, coragem – ela disse. – Não estamos tão mal. Olhe só, ainda temos aveia. Entre. Eu preparo um pouco para você.

Depois que tia Rita morreu, Marina ainda ia à faculdade todas as manhãs, embora os professores nada ensinassem, não houvesse livros nem palestras, ela contou a Tatiana, havia um pouco de aquecimento, e Marina podia sentar-se na biblioteca por poucas horas até ir para o refeitório para tomar uma sopa rala.

– Odeio sopa – Marina disse. – Odeio sopa agora. Não faz sentido.

– Faz sim. É água quente – Tatiana disse, enquanto se agachava junto a sua já minguante bolsa de açúcar. Elas ainda tinham cevada.

– Não toque na cevada – ela disse. – Vai ser o nosso jantar do próximo mês.

– Não dá nem para uma xícara cheia! – Marina exclamou incrédula.

– Que bom que você não pode comer isso cru – Tatiana disse. Mas ela estava enganada. No dia seguinte havia menos cevada na bolsa.

2

Como em Luga, os panfletos caíam sobre Leningrado. Primeiro os panfletos, depois as bombas. A diferença era que outrora havia comida, e o tempo estava quente. A diferença era que outrora Tatiana havia acreditado em muitas coisas. Havia acreditado que encontraria Pasha. Havia acreditado que a guerra logo terminaria. Havia acreditado no Camarada Stálin.

Nos dias de hoje, ela acreditava somente numa coisa frágil, mas imutável.

Num homem imutável.

Agora os panfletos despejados pelos aviões da Luftwaffe proclamavam em russo:

Mulheres! Ponham seus vestidos brancos. Usem seus vestidos brancos para que, enquanto percorrem a Suvorosvky para pegar seus 250 gramas de pão, nós possamos vê-las do alto, e não atirar nem lançar bombas.

Use seu vestido branco e viva, Tatiana! era o que os panfletos gritavam a ela.

Tatiana pegou um panfleto, poucos dias antes do vigésimo quarto aniversário da Revolução Russa, em 7 de novembro. Levou o papel para casa e sem pensar muito o colocou sobre a mesa. Ali ficou até o dia seguinte, quando Alexander voltou mais magro do que duas semanas antes, seu rosto mais desolado. Foi-se o brilho nos olhos, foi-se o perpétuo sorriso, foi-se o charme e a vivacidade. Foi-se.

O que sobrava ali era um homem que abraçou Dasha e até mesmo Mamãe, que também o abraçou e disse:

– Que bom ver você, querido. É bom ver você. Não suportamos pensar em você naquela umidade e frio.

– Está mais seco agora, mas não muito mais confortável do que aqui – disse o homem que abraçou Babushka, esta apoiada na parede de entrada, porque já não conseguia mais ficar de pé sem ajuda, o homem que beliscou Marina no queixo e que, quando virou-se para Tatiana perto da porta, desajeitada, segurando no trinco de latão, não conseguia aproximar-se e tocá-la. Não podia, apesar de os seus olhos escuros nela se demorarem. Ele acenou. Isso já era alguma coisa. Acenou, virou-se e entrou no quarto, colocou o rifle no chão, tirou o pesado casaco, sentou-se e pediu a sopa. As meninas gorjeavam ao redor dele. Dasha trouxe-lhe um pedaço de pão, que ele engoliu inteiro. Marina fixou os olhos no pão antes que ele comesse.

– Amanhã é o dia da Revolução Russa. Vai ter um pouco mais de comida para festejar? – Dasha perguntou.

– Eu trago alguma coisa quando voltar às barracas. Amanhã, tudo bem?

– E agora? Você tem alguma coisa agora?

– Eu vim direto do front, Dasha. Hoje não tenho nada.

Tatiana deu um passo à frente.

– Você quer uma xícara de chá? Eu faço um pouco.

– Sim, por favor.

– Eu faço! – vociferou Dasha e desapareceu.

Alexander tirou um cigarro, acendeu-o e ofereceu a Tatiana.

– Dê uma tragada – ele disse baixinho. – Vá em frente.

Tatiana balançou a cabeça e olhou para ele intrigada.

– Você sabe que eu não fumo.

– Eu sei – Alexander disse. – O cigarro diminui o seu apetite. – Ele fez uma pausa. – O quê? Por que você me olha assim? – Ele sorriu levemente. – Continue olhando – sussurrou.

Ao olhar para ele com seus olhos claros e afetuosos, Tatiana não podia evitar. Colocou sua mão enluvada na parte de trás do uniforme e o acariciou suavemente.

– Shura – ela sussurrou –, você ainda está meses atrás de nós, não é? Não tenho apetite. – Ela tirou a mão. Ele colocou o cigarro na boca.

Em pé, atrás de Alexander, Babushka e Marina observavam-nos. Tatiana não se importava. O rosto dele estava virado para ela. Marina chegou perto e disse:

– Alexander, me dá um cigarro, sim? Para diminuir o meu apetite.

Alexander tirou o cigarro da boca e o passou a Marina, que disse a Tatiana:

– Tem certeza que não quer dar uma tragada? Este cigarro acabou de sair da boca dele, Tania.

Alexander olhou para Marina e desta para Tatiana com uma expressão cansada, algo confusa.

– Marinka – ele disse –, fique com o cigarro e deixe Tatiana em paz.

Ele pegou o panfleto nazista da mesa e disse:

– Para celebrar a gloriosa revolução, o chefe do Partido Comunista em Leningrado, Zhdanov, está tentando conseguir algumas colheres de nata para as crianças. Pode haver...

Ele parou de falar. Leu o panfleto com mais cuidado e disse:

– O que é isto?

– Oh, nada – disse Tatiana, aproximando-se mais da mesa. Marina havia sentado. Babushka continuava apoiada na parede. Tatiana abriu o casaco e mostrou a Alexander o vestido branco com as rosas vermelhas que usava por baixo.

Alexander ficou pálido.

– Esse vestido é seu? – ele perguntou, a voz quebrada.

Somente Tatiana estava na frente dele, e somente Tatiana podia ver do que se enchiam os seus olhos. Ela se afastou dele, balançou a cabeça de forma quase imperceptível, como dizendo, não, pare, esse quarto é muito pequeno para nós, pare.

– Sim, é meu vestido – Tatiana disse, olhando o vestido. Ela fechou o casaco.

Dasha entrou, fechando a porta com o pé.

– Alex, aqui, um pouco de chá. Está fraco, mas chá é uma coisa que ainda temos. Não muito, veja você, não muito... – ela interrompeu. – Qual é o problema?

– Nada. – Alexander olhou de novo o panfleto.

– O que é isto?

Dasha olhou para Marina intrigada, e Marina só deu de ombros como dizendo, eu sei lá!

Tatiana permaneceu em pé.

– Por isso estou usando um vestido branco – ela disse para Alexander. – Para não ser atingida.

Tão rápido levantou-se Alexander da mesa que derramou o chá quente em cima dele mesmo. Com o panfleto na mão, ele deu um soco na mesa.

– Ficou louca? – gritou com Tatiana. – Perdeu o juizo?

Dasha o agarrou pela manga.

– Alexander, você ficou louco? Por que está gritando com ela?

– Tania! – ele gritou outra vez, lançando-se na direção dela. Tatiana não recuou; ela piscou.

Dasha enfiou-se entre eles, afastando Alexander.

– Sente-se, o que há com você? Por que está gritando?

Alexander sentou-se sem nunca tirar os olhos de cima de Tatiana, que pegou detrás do sofá um trapo velho e foi à mesa, para limpar o chá derramado.

– Tania – Dasha disse –, não chegue tão perto dele. Ou ele em um minuto...

– Num minuto eu o quê, Dasha? – Alexander disse.

– Esqueça isso, Dash – Tatiana disse baixinho ao pegar a xícara vazia e caminhar até a porta.

Alexander agarrou o braço de Tatiana.

– Tania, deixe a xícara e venha trocar esse vestido.

Ele não soltou seu braço, mas acrescentou:

– Por favor.

Tatiana colocou a xícara na mesa.

– Tania – disse Alexander, seus olhos postos nela.

Como Tatiana queria que ele parasse de segurar seu braço e de olhar para ela.

– Tania, você sabe o que os alemães fizeram em Luga? Você esteve lá, não viu? Eles lançaram esses panfletos para as mulheres voluntárias, meninas que cavavam trincheiras e batatas. Usem seus vestidos brancos e seus xales brancos, eles disseram, e nós saberemos que são mulheres civis, e assim não atiramos em vocês. As mulheres disseram: oh, muito bem. E contentes puseram seus melhores vestidos brancos. E então os alemães, que voavam a trezentos metros do chão, viram seus vestidos e massacraram a todas ali mesmo, dentro das trincheiras. O alvo ficou muito mais fácil.

Tatiana soltou-se dele.

– Agora, vá e se troque. Vista alguma coisa marrom. E quente. Alexander levantou-se.

– Eu faço o meu chá.

Olhando friamente para Dasha, ele disse:

– E você, me faça um favor: jamais me confunda com alguém que magoaria sua irmã.

– Você pode ficar? – Dasha perguntou.

Ele balançou a cabeça.

– Tenho que me reapresentar na guarnição por volta das nove.

Eles tomaram sopa com um pouco de folhas de repolho. Pão preto pesado como tijolo, algumas colheres de sopa de grãos de trigo e um pouco de chá sem açúcar. Elas deram a Alexander um gole de sua preciosa vodca. Ele desceu ao porão e de lá trouxe madeira para fazer um belo fogo. O quarto ficou mais aquecido. Admirável, Tatiana pensou.

Alexander estava na mesa, Dasha de um lado, Mamãe do outro, e Marina em pé, atrás dele. Babushka permanecia no sofá. E Tatiana estava no canto mais distante, olhando seu chá de cor bege. Todas estavam ao redor de Alexander, menos ela. Não podia nem chegar perto.

– Alexander? – Mamãe perguntou. – Querido, deve ser muito difícil para você lá no front pensar em comida o tempo todo, como nós.

– Irina Federovna – disse Alexander –, vou lhe contar um segredinho. – Ele inclinou a cabeça para ela. – Quando estou no front, não penso em comida.

Mamãe esfregou-lhe o braço e falou outra vez.

– Há algum jeito de você tirar as minhas meninas de Leningrado? Estamos quase sem comida.

Ele balançou a cabeça e tentou desembaraçar-se das mulheres, dizendo:

– É impossível. De todo modo, vocês sabem que não estou no comando de Ladoga. Estou mais abaixo, no Neva, bombardeando as posições dos alemães do outro lado do rio, em Shlisselburg. – Ele estremeceu. – Eles são incansáveis. Mas, além disso, o lago ainda não congelou, e os barcos...Há mais de dois milhões de civis em Leningrado, e só alguns milhares já foram evacuados por barco para fora da cidade, todos eles crianças com as mães.

– Nós também somos crianças com nossas mães – disse Dasha.

– Crianças pequenas com suas mães – Alexander retificou. – Vocês todas trabalham. Quem vai lhes deixar ir embora? A senhora e Dasha fazem uniformes para o Exército – ele disse à Mamãe, tocando-a. – Tania trabalha no hospital. Como vão as coisas por lá, Tania? – Os olhos dele de novo estavam nela.

Tatiana se afastara da mesa de jantar, ficando mais perto da janela. Ela deu de ombros.

– Hoje costurei quarenta e dois sacos. Não foi suficiente, setenta e oito pessoas morreram. Mamãe, como eu gostaria de lhe trazer uma máquina de costura.

Mamãe virou-se e olhou Babushka no sofá, que disse numa voz desanimada:

– Filha, você gostava das batatas que eu trazia. Agora nada tenho para dar a você.

– Amanhã – disse Alexander – eu trago batatas da loja do Exército e também um pouco de farinha de trigo. Trago tudo que puder. Mas não tenho como tirar vocês da cidade. Ouviram falar da canhoneira Konstructor? Ela cruzava o lago Ladoga com mulheres e crianças a bordo rumo à Novaya Ladoga, quando foi atingida. O Capitão evitou uma bomba, a segunda afundou o navio, afogando todas as 250 pessoas.

– Eu prefiro correr os meus riscos aqui em Leningrado a morrer assim, no mar frio – Dasha declarou.

– Como vocês têm aguentado? – Alexander disse. – Marina, você tem resistido bem?

– Mal e mal – Marina disse. – Olhe só para nós todas.

– Vocês já tiveram melhor aspecto – Alexander concordou, olhando para Tatiana, que num tom vazio, sem olhar para ele, disse:

– Anton morreu. Semana passada.

– Sim – disse Dasha. – Talvez agora Nina pare de pedir comida para ele.

– Sinto muito que Anton morreu – Alexander disse. – Vocês não estão dando a sua comida, estão?

Tatiana não respondeu.

– Você tem notícias de Dimitri? – ela perguntou, mudando de assunto. – Nós não sabemos nada dele.

Alexander acendeu um cigarro, balançou a cabeça e disse:

– Dimitri está no hospital Volkhov, lutando por sua vida.Tenho certeza de que ele não tem energia para escrever. – Ele e Tatiana olharam-se.

A sirene de ataque aéreo soou. Alexander olhou ao redor da mesa. Ninguém se mexeu.

– Alguém aqui ainda desce ao abrigo, ou Tania contagiou todos vocês? – ele perguntou enquanto ainda se ouvia o som estridente da sirene.

Dasha enrolou-se mais ainda em seu casaco cardigã e respondeu:

– Marina e eu ainda vamos, às vezes...

– Tania, quando foi a última vez que você procurou abrigo? – interrompeu Alexander.

Tatiana deu de ombros.

– Fui na semana passada – ela disse. – Sentei ao lado de uma mulher que não falava comigo. Tentei puxar conversa três vezes até que percebi que ela estava morta. E morta há um bom tempo. – Tatiana franziu a testa.

– Tania, diga a verdade – disse Dasha. – Você ficou lá cinco segundos, e o bombardeio naquela noite durou três horas. E quando você foi antes dessa vez?

– Setembro – disse Mamãe casualmente, levantando-se para pegar suas costuras.

– Mamãe, sabe de uma coisa? A senhora é ótima de conversa! – exclamou Dasha. – A senhora também não vai ao abrigo desde setembro.

– Tenho trabalho para fazer. Estou tentando ganhar mais dinheiro. Você deveria fazer a mesma coisa.

– Eu faço, Mamãe! Levo as minhas costuras para o abrigo.

– Sim, e eu vi o que você fez naquele uniforme – saiu um braço pelo avesso. Não se pode costurar no escuro, Dasha.

Enquanto as duas se bicavam, Tatiana observava Alexander, e ele a observava.

– Tania – ele perguntou –, por que você não tirou as luvas a noite toda? Está tão quente no quarto. Deixe de ficar em pé na janela, onde faz frio. Venha e sente aqui com a gente.

– Oh, Alexander! – Marina exclamou, colocando o braço ao redor dele. – Você não vai acreditar no que sua Tanechka fez a semana passada.

– O que ela fez? – ele perguntou, virando-se para Marina.

Dasha interveio, dizendo:

– Sua Tanechka? Não, Alexander, queremos dizer, você não vai acreditar mesmo.

– Eu quero contar – Marina disse, petulante.

– Alguém conte então – disse Alexander.

– Tenho que ficar aqui para ouvir isso? – Tatiana resmungou, indo à mesa e recolhendo as xícaras. – Alexander, talvez possa jogar mais lenha no fogo.

Ele se levantou imediatamente e foi para o fogão, dizendo:

– Posso jogar lenha no fogo e ouvir.

Dasha continuou falando por Marina.

– No sábado passado, Marinka e eu voltávamos do refeitório público na Suvorosky. Havíamos deixado Tania no quarto, achando que ela dormia tranquila, mas ao chegar aqui, Kostia, do segundo andar, correu em nossa direção na rua, gritando: rápido, sua irmã pegou fogo! Sua irmã pegou fogo!

Alexander voltou à mesa e sentou-se. Ainda tinha os olhos em Tatiana, mas ela notou que agora irradiavam muito menos calidez.

– Tania, querida, por que você não conta o resto para Alexander? – Dasha disse.

– Acho que seria mais divertido ele ouvir de você. Conte-lhe o que aconteceu.

Tatiana, cabelo curto, olhos fundos, corpo consumido, braços cheios de pratos da família, disse:

– Não aconteceu nada.

– Por que você não me conta, Tatiana? – disse Alexander, olhando para ela.

Tatiana resmungou e deu um olhar de desaprovação a Marina.

– Kostia é muito pequeno para ficar no telhado sozinho. Eu subi para ajudá-lo. Uma bomba incendiária muito pequena explodiu, e ele não podia apagar o fogo sozinho, então eu o ajudei. Foi só isso.

– Você subiu ao telhado? – Alexander perguntou baixinho.

– Só por uma hora – ela disse tentando ser jovial, dando um pouco de ombros, conseguindo sorrir. – Não foi nada realmente. Houve um pequeno incêndio. Eu usei areia e em cinco minutos apaguei o fogo. Kostia é um histérico. – Ela olhou para Marina. – E ele não é o único.

– É mesmo, Tania? – Dasha exclamou. – Pare de olhar feio para Marina. Uma histérica? Por que você não tira as luvas e mostra as mãos para Alexander?

Alexander estava mudo.

Tatiana moveu-se na direção da porta carregada de xícaras.

– Como se ele quisesse ver minhas mãos.

– Sabem de uma coisa? – Alexander disse, levantando-se. – Eu não quero ver nada. Vou embora. Estou atrasado.

Ele pegou seu rifle, seu casaco, sua mochila e passou pela porta sem nem mesmo encostar em Tatiana.

Depois que ele saiu, Dasha olhou para Tatiana, para Marina, para Mamãe, para Babushka.

– O que deu nele? – ela perguntou num tom cansado.

Por um momento, ninguém disse nada.

Babushka, ainda no sofá, disse:

– Muito, muito medo.

– Marinka – disse Tatiana –, por quê? Você sabe que ele se preocupa sem parar com todas nós. Por que preocupá-lo ainda mais com bobagens? Estou bem no telhado, e minhas mãos também estarão bem.

– Tania tem razão! E o que você quis dizer com a sua Tanechka? – Dasha exigiu saber, virando-se para Marina.

– Sim, Marina, o que você quis dizer? – perguntou Tatiana, olhando feio para sua prima, que respondeu se tratar apenas de uma figura de linguagem.

– Sim, uma tola figura de linguagem – disse Dasha.

3

Naquela noite, Tatiana sonhou que não dormiu, que a noite durou o ano inteiro e que no escuro os dedos dele a encontraram.

Bem cedo de manhã, quando ela se levantava, bateram na porta. Era Alexander. Ele lhes trazia dois quilos de pão preto e uma xícara de grãos de trigo. As outras ainda dormiam. Ele esperou por ela na cozinha, braços cruzados, olhos frios, enquanto ela escovava os dentes na pia. Ele mencionou que o toalete fedia pior do que nunca. Tatiana nem notava isso.

Ela já estava vestida. Dormiu vestida.

– Shura – disse Tatiana –, não saia agora. Faz muito frio. Eu posso carregar um quilo de pão, acho que ainda posso fazer isso. Me passe seu carnê de racionamento, eu pego seus alimentos também.

– Oh – Alexander disse –, ainda não chegou o dia em que você se encarregue das minhas rações.

– É mesmo? – ela respondeu em cima, mexendo-se tão rápido em sua direção que ele deu um passo para trás. – Se você pode ir para o front, Alexander...

– Como se eu tivesse alguma escolha.

– Como se eu tivesse alguma escolha. Posso pegar suas rações. Vamos, me dê o seu carnê.

– Não – ele disse. – Me deixe pegar o seu casaco. Como estão suas mãos?

– Estão bem – ela disse, mostrando-as.

Ela queria que ele segurasse suas mãos, que as tocasse, mas ele não fez isso. Ele só olhava para ela com os mesmos olhos frios.

Juntos, saíram no frio cortante, dez graus abaixo de zero. Às sete da manhã o céu ainda estava escuro, e havia um vento de arrepiar que penetrava o casaco de Tatiana e chegava aos seus ouvidos, assobiando o seu lamento ártico ao longo de dez quarteirões até a loja. Dentro da loja era mais confortável e havia só trinta pessoas na frente deles na fila. Dessa vez, podia demorar apenas uns quarenta minutos, Tatiana pensou.

– Incrível, não? – Alexander disse, sua voz mal cobrindo uma raiva contida. – Estamos em novembro e você ainda está fazendo isso sozinha.

Tatiana não respondeu. Estava muito sonolenta para responder. Deu de ombros e apertou ainda mais o cachecol ao redor da cabeça.

– Por que você faz isso? – Alexander perguntou. – Dasha pode perfeitamente pegar as rações. Ela pode pelo menos vir com você. Marina também. Por que continua vindo sozinha?

Tatiana não sabia o que dizer. Primeiro, ela sentia muito frio e seus dentes batiam. Depois de alguns minutos ela esquentou um pouco, mas os dentes ainda batiam, e ela pensou: Por que vou sozinha, durante ataques aéreos, no frio, na escuridão? Por que nunca fazemos um rodízio?

– Porque se Marina vem, ela come as rações no caminho de casa. Porque Mamãe costura todas as manhãs. Porque Dasha lava as roupas. A quem vou mandar no meu lugar? Babushka?

Alexander não respondeu, mas a raiva continuava em seu rosto.

Tatiana tocou no casaco de Alexander. Ele se afastou.

– Por que você está chateado comigo? – ela perguntou. – Por que eu subi ao telhado?

– Porque você... – ele interrompeu. – Porque você não me ouve. – Ele suspirou. – Não estou chateado com você, Tatia. Estou bravo com elas.

– Não fique assim – ela disse. – As coisas aconteceram dessa forma. Eu prefiro estar aqui fora, na rua, a lavar roupa.

– Oh, porque Dasha está lavando roupa com tanta frequência? Você podia dormir até tarde seis dias da semana como ela dorme.

– Ouça, com tudo isso ela também enfrenta uma barra. Eu comecei a ir...

– Você começou a ir por que elas lhe disseram que fizesse isso e você concordou. Elas disseram, oh, você pode cozinhar para nós também, e você concordou, perna quebrada e tudo.

– Alexander, o que tanto chateia você? Que eu faça o que elas me dizem para fazer? Eu também faço o que você me diz para fazer.

Com os dentes cerrados, ele disse:

– Você faz o que eu lhe digo? Não sobe mais na porra do telhado? Vai ao abrigo? Parou de dar sua comida para Nina? Sim, você faz o que eu lhe digo.

– Você acha que eu dou mais ouvido a elas? – Tatiana disse, incrédula. Ainda não era a vez deles. Havia na fila uma dúzia de gente na frente. Uma dúzia de pessoas ouvindo-os. – Achei que você tinha dito que não estava chateado comigo.

– Não estou chateado com isso. Você quer saber o que me chateia?

– Sim – ela disse num tom exausto.

Na verdade, não queria.

– Tudo o que elas pedem a você, você faz.

– E daí?

– Tudo – ele disse. – Elas dizem: vá; você diz: tudo bem. Elas dizem: me dá; você diz: quanto? Elas dizem: vá embora; você diz: bom. Elas agridem você; você as defende. Elas dizem: quero o seu pão, o seu leite, o seu chá, o seu...

De repente, percebendo aonde ele queria chegar, Tatiana tentou detê-lo.

– Não, não – ela disse balançando a cabeça. – Não, não.

Dentes cerrados, tentando manter a voz baixa, Alexander continuou:

– Elas dizem: ele é meu e você diz: tudo bem, tudo bem, ele pertence a vocês, claro, podem levá-lo. Nada me importa. Nem eu, nem minha comida, nem meu pão, nem minha vida, ele tampouco, nada me interessa. – Ele levou o seu rosto bem perto dela e suspirou raivoso: – Eu, Tatiana, luto por nada.

– Oh, Alexander – Tatiana disse, olhando para ele com um jeito de intensa repreensão.

Eles ficaram em silêncio até pegar suas rações. Alexander recebeu batatas, cenouras, pão, leite de soja e manteiga. E nata.

Na rua, ele carregava a bolsa com a comida; ela em silêncio caminhava ao seu lado. Ele andava muito rápido; ela não conseguia acompanhá-lo. Tatiana primeiro diminuiu o passo. Quando viu que ele não diminuiu o seu, ela parou.

Alexander virou-se e vociferou:

– O quê?

– Vá em frente – Tatiana disse. – Vá direto para casa. Não consigo andar tão rápido. Vou indo.

Ele voltou e deu-lhe o braço.

– Vamos – ele disse. – Para comemorar a nossa Revolução Russa, os alemães vão começar a bombardear a qualquer momento, e, marque minhas palavras, só vão parar hoje tarde da noite.

Tatiana pegou no braço dele. Ela queria chorar, ela queria se aguentar, e ela não queria ser fria. A neve infiltrava-se em suas botas rasgadas, amarradas com barbante. A tristeza infiltrava-se em seu coração rasgado e amarrado com barbante.

Eles caminharam através da neve, olhando os próprios pés.

– Eu não dispensei você, Shura – Tatiana disse por fim.

– Não?

Havia tanta amargura em sua voz.

– Como você pode fazer isso? Como pode transformar a coisa certa que eu fiz pela minha irmã num trágico fracasso da minha parte? Você devia se envergonhar.

– Estou envergonhado – ele disse.

Ela apertou-lhe o braço.

– Você deve ser a parte forte de todos nós. Não vejo você lutando por mim.

– Luto por você todos os dias – disse Alexander, de novo andando rápido.

Tatiana puxou-lhe o braço para que diminuísse o passo, riu em silêncio, seu espírito fugindo dela por causa da fraqueza do seu corpo.

– Oh, pedir Dasha em casamento é lutar por mim, é?

Por cima de suas cabeças, Tatiana ouviu a estrondosa explosão seguida de um guincho estridente, mais e mais insistente, mas não tão insistente como as sirenes do seu coração.

– Agora que Dimitri é um distrófico ferido e fora de jogo, você está ficando corajoso! – Tatiana exclamou. – Agora que acha que não precisa se preocupar com ele, você toma todo tipo de liberdades diante da minha família, e ainda fica bravo comigo por causa do que passou. Ora, não vou tolerar isso. Você se sente mal? Vá e case com Dasha. Você vai se sentir melhor.

Alexander parou de caminhar e puxou Tatiana para debaixo de uma entrada.

Eles se viram no meio do aguaceiro. Bombas bombas bombas.

– Eu não pedi Dasha em casamento! Concordei em casar com ela para tirar Dimitri de cima de você! Ou você já esqueceu?

– Oh, então esse era o seu grande plano! – Tatiana gritou. – Você ia casar com Dasha por minha causa! Quanta consideração de sua parte, Alexander, que gesto tão humano!

As palavras lhe saíam furiosas. Eram arremessadas a ele em meio a sua respiração congelada.Tatiana pegou o casaco enquanto se aproximava dele e pressionava o rosto em seu peito.

– Como você pôde fazer isso? – ela gritou. – Como pôde... – ela sussurrou. – Você pediu Dasha em casamento, Alexander... – ela gritou ou sussurrou?

Tatiana o sacudiu, num gesto fraco e patético, e bateu no peito dele com seus punhos pequenos, mas não eram batidas, eram tapinhas. Alexander agarrou Tatiana, abraçando-a tão forte que ela perdeu o fôlego.

– Meu Deus – ela sussurrou. – O que estamos fazendo?

Ele não a soltou. Ela fechou os olhos, os punhos ainda no peito dele.

Enquanto esperavam na entrada de um prédio, ela disse, olhando-o:

– Qual é o problema, Shura? Você sente medo por mim? Sente que estou para morrer?

– Não – ele disse sem olhar para ela.

– Como você me imagina morrendo? – ela perguntou, soltando-se dele e colocando-se do outro lado da porta.

Quando por fim Alexander falou, a voz soluçante revelava sua emoção.

– Quando você morrer, estará usando seu vestido branco com rosas vermelhas, e seu cabelo estará longo e caindo ao redor de seus ombros. Quando eles lhe acertarem com um tiro, seja no maldito telhado ou andando na rua, seu sangue será como outra rosa vermelha no seu vestido, e ninguém vai notar, nem mesmo quando você sangrar pela nossa Mãe Rússia.

Tentando engolir um nó na garganta, Tatiana disse:

– Eu tirei o vestido, não foi?

Alexander olhou a rua.

– Não importa. Pense como isso de fato pouco importa agora.Veja o que está acontecendo. Por que estamos parados aqui em pé? Vamos para casa. Andar de volta, segurando seus trezentos gramas de pão. Vamos.

Tatiana não se mexeu.

Ele não se mexeu.

– Tania, por que ainda estamos fingindo? – ele perguntou. – Por quê? Para benefício de quem? Temos ainda alguns minutos. E não são bons minutos. Todas as camadas da nossa vida são arrancadas agora, e com elas a maioria de nossas pretensões, as minhas incluídas, mesmo assim continuamos com as mentiras. Por quê?

– Eu lhe digo o porquê! Eu lhe digo para benefício de quem! – Tatiana exclamou. – Para benefício dela. Porque ela ama você. Porque você quer confortá-la em seus minutos finais. É por isso.

– E você, Tania? – Alexander perguntou, a voz quebrada. Ele não disse nada mais por um momento, olhando-a como se quisesse que ela dissesse alguma coisa. Ela nada disse.

Por fim ele falou:

– Você não quer consolo nos seus minutos finais?

– Não – ela disse numa voz fraca. – Não se trata mais de mim ou de você. – Ela abaixou a cabeça. – Eu posso aguentar. Ela não pode.

– Eu tampouco posso aguentar – disse Alexander.

Tatiana levantou os olhos e disse, intensamente:

– Você pode aguentar, Alexander Barrington. E mais. Agora, pare com isso.

– Bom – ele disse. – Eu paro.

– Quero que você me prometa uma coisa. – Os olhos dele, cansados, piscaram para ela. – Me prometa que não vai...

– Não vai o quê? – Alexander perguntou do outro lado da porta. – Casar com ela ou partir o coração dela?

Uma pequena lágrima rolou na face da Tatiana. Engolindo em seco e fechando mais o seu casaco, ela sussurrou:

– Partir o coração dela.

Ele olhou para ela perplexo. Ela tampouco podia acreditar no que acabava de dizer.

– Tania, não me torture – Alexander disse.

– Shura, me prometa.

– Uma de suas promessas ou uma das minhas?

– O que quer dizer isso?

– Nada.

– Eu não ouvi uma promessa.

– Bom, eu prometo. Se você me prometer...

– O quê?

– Que nunca mais vai usar seu vestido branco outra vez, nunca mais vai doar seu pão, nunca mais vai subir ao telhado. Se não fizer isso, eu conto tudo a ela no mesmo instante. No ato, você me ouve?

– Ouço – Tatiana murmurou, pensando que aquilo não era muito justo.

– Me prometa – Alexander disse, pegando a mão de Tatiana e trazendo-a para perto dele – que você vai fazer todo o possível para sobreviver.

– Tudo bem – ela disse, olhando, seus olhos derramando pedaços do seu coração sobre Alexander. – Eu prometo.

– Essa é uma das suas promessas ou uma das minhas?

– O que quer dizer isso?

Ele tomou em suas mãos o rosto de Tatiana.

– Se você ficar viva, então eu lhe juro – Alexander sussurrou, apertando-a. – Não partirei o coração de sua irmã.

4

Na manhã seguinte, Tatiana foi à loja sozinha. Ela acabava de receber o quilo de pão da família, leve até para seus braços fracos, quando, na saída, de repente, sentiu um golpe na nuca e outro no ouvido direito. Ela se dobrou e viu, impotente, como um garoto, de quinze anos talvez, pegou o seu pão e, antes que ela pudesse emitir um som, o enfiou em sua boca de hiena, seus olhos selvagens e desesperados. Os outros clientes agrediram o menino com as suas bolsas, mas, mesmo sob golpes, ele continuou a engolir o pão até acabá-lo, até a última mordida. Um dos gerentes da loja apareceu e bateu nele com um pedaço de pau. Tatiana gritou:

– Não!

Mas ele caiu, e seu olhar, mesmo do chão, ainda era selvagem, os olhos de um animal destruído. Com sangue pingando da orelha, na qual ele a atingira, Tatiana agachou-se para ajudá-lo a levantar, mas ele a afastou, levantou-se e saiu correndo pela porta.

A atendente não podia dar mais pão a Tatiana.

– Por favor – ela disse. – Como vou voltar para casa sem nada?

Olhos solidários, a mulher disse:

– Não posso fazer nada. A NKVD me fuzila se eu doar pão. Você nem imagina como é.

– Por favor – ela suplicou. – Para minha família.

– Tanechka, eu lhe daria pão, mas não posso. Outro dia eles fuzilaram três mulheres porque forjaram carnês de racionamento. Fuziladas na rua. E lá deixadas. Vá para casa, meu bem. Volte amanhã.

– Voltar amanhã? – resmungou Tatiana ao sair da loja.

Ela não podia ir para casa. Na verdade, não foi para casa, mas sentou-se no abrigo antiaéreo e depois apresentou-se no hospital para trabalhar. Vera fora embora; o cartão de ponto de Tatiana fora retirado; ninguém se importava. Mas ela dormiu um pouco em um dos quartos frios e, depois, no refeitório, recebeu um pouco de sopa e algumas poucas colheres de mingau, mas não havia alimento extra para levar para casa. Procurou Vera, mas não a encontrou. Sentou-se no setor de enfermagem, depois entrou em um dos quartos e sentou-se ao lado de um soldado moribundo. Ela segurava-lhe a mão, e ele perguntou se ela era uma freira.

– Não – ela disse –, na verdade não, mas você pode me contar qualquer coisa.

– Nada tenho para lhe contar – o homem disse. – Por que você está sangrando?

Ela começou a explicar, mas realmente não havia nada a dizer, salvo:

– Pela mesma razão que você está aqui deitado numa cama de hospital.

Tatiana pensou em Alexander, como ele continuava tentando protegê-la. De Leningrado, de Dimitri, de trabalhar no hospital – lugar brutal, infecto, contagioso. Dos tijolos em Luga. Das bombas alemãs, da fome. Ele não queria que ela fizesse plantão no telhado, não queria que ela fosse sozinha à Fontanka ou sem o absurdo capacete que ele lhe dera, ou dormir sem todas suas roupas. Ele queria que ela se lavasse, mesmo na água fria, queria que ela escovasse os dentes, embora não estivessem sujos de comida. Ele queria só uma coisa.

Queria que ela vivesse.

Isso lhe trouxe um pouco de alívio.

Um pouco de conforto.

Isso teria que ser suficiente.

Quando ela chegou em casa, por volta das sete da noite, encontrou a família frenética de preocupação. Depois que ela lhes contou o que acontecera, elas ficaram bravas porque Tatiana não voltara para casa depois do incidente.

– Nós entenderíamos – disse Mamãe. – Não importa o pão.

Dasha disse que pedira a Alexander para cuidar de Tatiana.

– Pare de fazer isso, Dasha – disse Tatiana com a voz fraca. – Você acaba provocando a morte dele.

Tatiana surpreendia-se ao ver que a família não estava mais chateada com ela. E então descobriu por que: Alexander lhes trouxera um pouco de azeite, feijão de soja e meia cebola. Dasha fez um delicioso ensopado, adicionando uma colher de sopa de farinha e uma pitada de sal.

– Onde está esse ensopado? – Tatiana perguntou.

– Não era muito, Tanechka – disse Dasha.

– Achamos que você comeria onde estivesse – acrescentou Mamãe.

– Você comeu, não? – perguntou Babushka.

– Tínhamos muita fome – disse Marina.

– Sim – Tatiana disse, bem desanimada. – Não se preocupem comigo.

Alexander apareceu por volta das oito. Ele estivera fora durante três horas. A primeira coisa que disse foi:

– O que aconteceu a você? – ele perguntou, e Tatiana contou-lhe tudo. – Onde você andou o dia inteiro? – ele exigiu saber, falando com ela como se não houvesse mais ninguém no quarto.

– Fui para o hospital para ver se eles tinham alguma comida lá.

– Não tinham.

– Não muito. Comi um pouco de aveia. Água branca.

– Muito bem – Alexander disse, tirando o casaco. – Tem um pouco de ensopado.

Gente tossindo, olhos desviando.

Alexander não entendeu. Virou-se para Dasha.

– Eu trouxe feijão de soja, Dasha. Você disse que ia fazer um ensopado.

– Fizemos, Alexander – disse Dasha, acanhada. – Mas era tão pouco. Comemos tudo.

– Vocês não deixaram nada para ela? – Ele ficou vermelho.

– Tudo bem, Alexander – disse Tatiana aflita. – Tampouco sobrou para você.

Nervosa, Dasha riu.

– Você pode comer nas barracas, e ela disse que já comeu, querido.

– Ela é uma mentirosa! – ele gritou.

– Eu comi – Tatiana interveio.

– Você é uma mentirosa! – gritou-lhe Alexander. – Eu proíbo você – ele gritou a Tatiana. – Eu proíbo você de ir pegar os alimentos para elas. Devolva-lhes seus carnês de racionamento e diga-lhes que saiam atrás de sua própria maldita comida. Não quero jamais ver você trazendo-lhes pão se elas não podem nem guardar para você um pouco da comida que eu trago.

Tatiana ficou quieta e tão cheio estava o seu coração que por um momento ela não precisou de pão algum.

Alexander virou-se para Dasha e disse ofegante:

– Quem vai lhes trazer pão se ela morre? Quem vai lhes trazer sopa num balde? Quem vai lhes trazer mingau de aveia?

– Eu trago mingau de aveia da fábrica – Mamãe disse num tom antipático.

– A senhora come metade dele antes de chegar em casa! – gritou Alexander. – O quê? Vocês acham que eu não sei o que acontece aqui? Acham que eu não sei que Marina termina os carnês antes do fim do mês e depois exige mais pão de Tania, que é agredida na rua enquanto vocês dormem?

– Eu não durmo. Eu costuro – disse Mamãe. – Costuro todas as manhãs.

– Tania – Alexander declarou, olhando para ela. – Você não vai mais buscar as rações delas. Entendeu? – De novo, ele falava com ela como se não houvesse ninguém mais presente.

Tatiana resmungou que ia se lavar. Quando ela voltou, Alexander estava sentado à mesa, fumando. Estava mais calmo.

– Venha aqui – ele disse baixinho.

Marina estava no outro quarto com Mamãe. Babushka estava no hall com Nina Iglenko.

– Onde está Dasha? – Tatiana perguntou devagar, chegando-se a ele. Ela viu seus olhos.

– Foi pegar um abridor de lata com a Nina. Chegue mais perto.

Em pé na frente dele, Tatiana disse baixinho:

– Shura, por favor. Onde está sua indiferença? Você me prometeu. – Ele olhou fixamente o suéter de Tatiana. – Não se preocupe – ela sussurrou. – Estarei bem.

– Você faz com que eu me sinta pior – Alexander disse. – Não faça isso. – Ele esticou o braço e colocou a mão na cintura dela. Um gemido angustiado emanou de seu peito. Tatiana inclinou-se e pressionou sua testa na dele.

Por um momento, ficaram imóveis.

Ela se afastou.

Ele tirou a mão.

– Olhe só o que eu tenho para você, Tania.

Ele tirou do bolso do casaco uma pequena lata de metal.

Dasha entrou no quarto, dizendo:

– Aqui está o abridor de lata. Para que você precisa dele?

Alexander usou a peça para abrir a pequena lata e com uma faca cortou o conteúdo em pequenos pedaços. Passou a lata para Tatiana.

– Experimente.

– O que é? – ela perguntou, querendo sorrir.

Era a coisa mais deliciosa que jamais havia saboreado. Não era bem presunto, não era bem mortadela. Não era bem porco, eram as três coisas, cobertas de banha suína e gelatina. A lata era pequena, talvez de cem gramas.

– O que é isso? – ela disse, seus olhos mostrando o prazer que seu corpo, seus lábios não podiam conter.

– Spam.

– Spam? O que é Spam?

– É um tipo de presunto. Em russo se diz tushonka.

– Oh, é muito melhor que presunto.

– Posso experimentar? – perguntou Dasha.

– Não. – Alexander nem se virou para Dasha. – Eu quero que a sua irmã coma tudo. Dasha, você já comeu. Não é possível que queira mais depois de todo aquele ensopado.

– Eu só queria dar uma bicadinha – disse Dasha. – Sentir o gosto.

– Não.

– Tania? – Dasha disse. – Por favor? Eu sinto muito que comemos todo o ensopado. Eu sei que você ficou chateada.

– Não estou chateada, Dasha.

– Mas eu estou – disse Alexander, virando-se para ela. – Você é uma mulher adulta. Espero de você um comportamento melhor.

– Eu já falei que sinto muito – Dasha disse, amoada

Tatiana pegou outro pedaço, e outro, sobrou meia lata.

– Alexander?

– Não, Tatiana.

Ela deu outra garfada. Sobraram dois pedaços. Tatiana lambeu toda a banha suína e a gelatina, depois deu um pedaço para Alexander. Ele balançou a cabeça.

– Por favor – Tatiana disse. – Um para você, outro para Dasha?

Dasha arrebatou o pedaço da mão de Alexander. Tatiana deu-lhe o último pedaço, olhando a iguaria uma vez mais. Ele comeu.

Assentindo, ela lambeu a lata.

– Esta é uma coisa maravilhosa. Onde você conseguiu?

– Americanos, através do esquema lend-lease. Uma caixa de Spam para Leningrado e dois dos seus caminhões militares.

– Eu preferia uma caixa disto.

– Não sei. São bons caminhões. – Alexander sorriu.

Tatiana quis retribuir o sorriso. No entanto, desviou os olhos dele para sua irmã, dizendo:

– Dasha, querida, como Nina está se segurando?

– Terrível.

Minutos depois, Alexander foi embora, de volta às barracas.

Na manhã seguinte, quando Tatiana levantou para ir buscar suas rações, Dasha foi com ela.

Na outra manhã, Dasha ficou na cama, mas, na porta do edifício, um soldado esperava por Tatiana.

– Sargento Petrenko! – ela disse sorrindo. – O que você está fazendo aqui?

– Ordens do Capitão. – Ele bateu continência, com um olhar cálido para ela. – Ele me pediu que leve você à loja.

Na manhã seguinte, Petrenko não estava, mas Alexander esperava Tatiana na Fontanka.

Ele a levou de volta para casa e retornou à base. Na manhã seguinte, ele foi ao apartamento.

No caminho de volta da loja, ele deixara Tatiana um momento para ajudar uma senhora que batalhava com dois trenós, tentando empurrá-los sozinha pela Avenida Nekrasov. Um dos trenós levava um corpo enrolado num lençol branco, e o outro tinha uma bourzhuika. Alexander ia explicar à mulher que ela teria que voltar por um ou por outro. Ele disse a Tatiana que iria sugerir que ela levasse o fogareiro e depois voltasse pelo corpo.

Paciente, sozinha, Tatiana esperava por ele, encostada na parede de um edifício, quando viu três rapazes aproximando-se dela com passos determinados. Ela olhou para Alexander, que estava talvez a uns cem metros, de costas para Tatiana, empurrando um dos trenós para a mulher.

– Alexander! – ela gritou.

Sua voz fraca perdeu-se no vento ruidoso. Ele não ouviu.

Tatiana virou-se para os rapazes. Um deles ela reconheceu como sendo aquele que lhe roubara o pão três dias atrás. A rua estava deserta, muita neve se empilhava metros acima na estrada. Debaixo dessa neve acumulada, estendiam-se cadáveres. Não havia carros, tampouco ônibus. Só Tatiana. Ela suspirou. Pensou em atravessar a rua correndo, mas o esforço, o esforço. Ela não podia se mexer. Ficou ali parada. Quando eles chegaram mais perto, ela deu-lhes o seu pão e o de Alexander sem dizer nada. Dois deles agarraram Tatiana e a empurraram a uma entrada de prédio. Ela lutou, mas não tinha forças para tanto. O terceiro rapaz, a hiena, pegou o pão de Tatiana, depois a encarou com os seus olhos de animal e disse aos outros dois:

– Prontos? Vamos embora.

Brilhou na frente de Tatiana uma lâmina de metal.

Sem piscar ou respirar, Tatiana olhou nos olhos do rapaz e disse:

– Vá embora, enquanto é tempo. Vá agora mesmo. Ele mata você.

O rapaz olhou para ela e disse:

– O que é?

– Vá embora! – Tatiana disse. Mas naquele mesmo instante, o cabo de uma pistola desceu com tudo na cabeça do rapaz e ele caiu na neve. Os outros dois não tiveram nem tempo de soltá-la. Com sua arma, Alexander bateu duro nos dois. Em questão de segundos, os três estavam imóveis no chão.

Alexander tirou Tatiana da soleira da entrada e colocou-a atrás dele, dizendo:

– Afaste-se. – Em seguida empunhou a arma na direção dos assaltantes.

Detrás dele ela colocou a mão na arma.

– Não – ela disse.

Ele empurrou a mão de Tatiana.

– Tatia, por favor. Eles vão se levantar e aterrorizar alguém mais. Fique para trás.

– Shura, por favor. Não. Eu vi os olhos deles. Eles não duram até de manhã. Não deixe que suas mortes fiquem nas suas mãos.

Relutante, Alexander guardou a arma e depois pegou do chão as bolsas de pão, e com seu braço ao redor de Tatiana, ele a levou de volta para casa no frio cortante.

– Você sabe o que lhe teria acontecido se eu não estivesse ali?

– Sim – ela disse, querendo olhar para o seu rosto, mas sem força para olhar qualquer lugar, exceto o chão. – A mesma coisa que me acontece quando você está por perto.

Na manhã seguinte, Alexander levou uma arma para ela. Não sua própria Tokarev, comum, mas uma pistola alemã P-38, automática, que ele comprara perto de Pulkov, dois meses atrás.

– Lembre-se: os rapazes são todos covardes; eles atacam você porque acham que podem. Você não precisa usar a arma. É só mostrar-lhes a peça. Eles não voltam a molestar você.

– Shura, eu nunca usei...

– É guerra, Tania! – ele exclamou. – Lembra quando você brincava de guerra com Pasha? Você jogava para ganhar? Bem, jogue agora, só lembre que aqui os riscos são maiores.

Ele então deu a ela um montão de rublos.

– O que é isto?

– Mil rublos, metade do meu salário. Não há comida, mas você ainda pode conseguir alguma coisa no mercado negro e nem pense nos preços. Compre o que precisar. No Haymarket eles ainda vendem farinha, talvez outras coisas mais. Meu medo é deixar você sozinha, mas preciso ir embora. O Coronel Stepanov quer que eu vá com nossos caminhões e homens para o lago Ladoga.

– Obrigada – ela sussurrou.

O rosto de Alexander estava agoniado.

– Tatia, as meninas devem sempre acompanhar você à loja de rações, por favor, não vá sozinha. Eu volto em uma semana, talvez dez dias. Talvez mais.

O indizível pairava no frio esmagador.

– Não se preocupe comigo. – Fez uma pausa. – A má notícia é que perdemos Tikhvin – ele disse com tristeza. – Dimitri feriu-se bem a tempo. Tikhvin era... – Ele interrompeu. – Não importa.

– Posso imaginar.

Ele assentiu e continuou:

– Não há ferrovia indo para o outro lado do lago. A única maneira de trazer alimentos para Leningrado é via Ladoga. Mas agora não há como levar a comida ao lago. – Fez uma pausa. – O pão que você está obtendo é feito de farinha de reserva. Temos que recuperar Tikhvin e a ferrovia. Sem eles, não temos uma forma realista de trazer alimentos para a cidade.

– Oh, não – ela disse.

– Oh, sim. Enquanto isso, o conselho determinou que devemos construir uma estrada através dos escassamente habitados vilarejos ao norte, perto de Zaborye. Uma estrada que nos leve ao outro lado do lago. Nunca existiu uma estrada lá, mas não temos escolha. Construímos a estrada ou morremos.

– Como vocês conseguem alimentos vindos daquele lado através de um lago escassamente congelado? – Ela se arrepiou.

Os olhos castanhos de Alexander estavam mais tristes que os de um bezerro.

– Se não recuperarmos Tikhvin, não haverá comida na cidade. Não importa o quão congelado esteja o lago. Sem isso, não temos a menor chance – Alexander disse, sem tocar Tatiana. – Nenhuma chance. – Relutante, ele acrescentou: – Segurem as provisões ainda restantes. A ração será reduzida outra vez.

– Não tem muito sobrando, Shura – ela sussurrou.

Ao caminhar até a esquina de Nevsky e Liteyniy, onde ele ia se despedir dela, Alexander disse:

– Ontem você me chamou de Shura na frente de sua família, tenha mais cuidado. Sua irmã pode perceber isso.

– Sim – Tatiana disse pesarosa. – Devo ter mais cuidado.

No Haymarket, Tatiana comprou menos de meio quilo de farinha por quinhentos rublos. 250 rublos uma xícara de farinha. Ela comprou meio quilo de manteiga por trezentos rublos, um pouco de leite de soja e um pequeno pacote de fermento.

Em casa, ainda tinham um pouco de açúcar. Ela fez pão.

Com esses mil rublos as Metanovs fizeram compras, metade do salário de Alexander para defender Leningrado permitiu-lhes comprar um filão de pão, com uma passada de manteiga. Jantar para uma noite. Pelo menos, Alexander lhes conseguira alguma lenha para o fogão e até mesmo um pouco de querosene.

Elas partiram o pão. Tatiana o dividiu em cinco porções, colocou-as em seus pratos, e todas comeram com garfo e faca. Mais tarde, Tatiana não sabia em que pensavam as demais, mas ela agradecia a Deus por lhes mandar Alexander.

5

Era novembro, mês de manhãs escuras. Elas haviam coberto as janelas com cobertores para conter o frio, mas ao fazerem isso também ficaram com pouca luz.

Que luz?, pensou Tatiana enquanto, devagar, ia da cama para a cozinha com a escova de dentes e o peróxido, certa manhã na terceira semana de novembro. Ela costumava ter o peróxido e o bicarbonato de sódio, mas deixara o último no peitoril da cozinha uma noite, e alguém comeu tudo.

Tatiana abriu a torneira, e abriu. E abriu.

Não havia água.

Suspirando, ela voltou para o quarto com a escova e o peróxido e enfiou-se de novo na cama.

Dasha e Marina gemeram um pouco.

– Não tem água – disse Tatiana.

Às nove da manhã, quando havia luz, Tatiana e Dasha foram à repartição local do conselho. Uma mulher emaciada, com lesões no rosto, informou-lhes que dias antes a energia elétrica fora cortada pela companhia de eletricidade porque Leningrado ficara sem combustível.

– O que isso tem a ver com a nossa água? – perguntou Dasha.

– Como se bombeia água? – perguntou a mulher.

Dasha, piscando lentamente, disse:

– Eu desisto. O que é isso aqui? Um teste?

Tatiana puxou a irmã pelo braço.

– Espere, Dasha. – Ela se virou para a mulher. – A energia será restaurada, mas os canos ainda estarão congelados. – Ela falava num tom acusatório. – Não teremos água até o degelo da primavera.

– Não se preocupe – disse a mulher, fixando os olhos na papelada. – Nenhuma de nós estará viva na primavera.

Tatiana perguntou ao redor do seu edifício e descobriu que o primeiro andar tinha água, mas não havia pressão suficiente para bombeá-la até o terceiro andar. Assim, na manhã seguinte, Tatiana desceu à rua e pegou um balde de neve para levar para casa. Ela derreteu a neve no fogareiro e usou aquela água para descarga do banheiro. Voltou então ao primeiro andar e pegou um balde de água limpa e fria para se lavar, deixando um pouco para Dasha, Mamãe, Marina e Babushka.

– Dasha, você pode levantar e vir comigo? – Tatiana disse à irmã certa manhã.

Dasha ainda estava na cama, debaixo dos cobertores.

– Oh, Tania – Dasha balbuciou. – Faz tanto frio. É muito duro sair da cama neste clima.

Tatiana não podia chegar ao hospital antes das dez, às vezes onze, quando terminava de cuidar da água e das rações na loja.

Já não havia mais aveia, só um pouco de farinha, um pouco de chá, e algum resto de vodca.

E trezentos gramas de pão por dia para Tatiana, Dasha, e Mamãe, e duzentos gramas de pão para Marina e Babushka.

– Estou engordando – Dasha disse.

– Sim, eu também – disse Marina. – Meus pés estão três vezes o seu tamanho normal.

– E os meus também – disse Dasha. – Não consigo encaixá-los nas minhas botas. Tania, hoje não posso ir com você.

– Tudo bem, Dasha. Meus pés não estão inchados – disse Tatiana.

– Por que estou inchando? – disse Dasha numa voz desesperada. – O que está acontencendo comigo?

– Com você? – disse Marina. – Por que sempre é com você? Tudo é sempre com você.

– O que significa isso?

– E eu? – exclamou Marina. – E Tania? Esse é o problema com você, Dasha. Você nunca vê outras pessoas ao seu redor.

– E você vê, sua devoradora de pão? Sua devoradora de aveia. Espere até que eu conte à Tania quanta aveia você nos roubou, sua ladra.

– Eu posso ser esfomeada, mas pelo menos não sou cega.

– Que diabos significa isso?

– Meninas, meninas! – exclamou Tatiana, num tom cansado. – Para que tudo isso? Quem está mais inchada? Quem sofre mais? Ambas ganham. Agora, voltem para a cama e esperem até eu voltar. E as duas, fiquem em silêncio, sobretudo você, Marina.

6

– O que vamos fazer? – disse Mamãe uma noite, quando Babushka estava no outro quarto e as meninas na cama.

– A respeito de quê? – perguntou Dasha.

– Babushka – ela disse. – Agora que ela não vai mais lá para os lados do Neva, fica em casa o dia inteiro.

– Sim – disse Marina – e agora que está em casa o dia inteiro, come o que sobra da farinha de Alexander, uma colher cheia a cada vez.

– Marina, cale a boca – disse Tatiana. – Não temos mais farinha. Babushka come o enfarelado do fundo da bolsa.

– Oh? – Marina mudou de assunto. – Tania, você acha que é verdade? Todos os ratos saíram da cidade?

– Não sei, Marina.

– Você tem visto gatos ou cachorros?

– Não sobrou nenhum – Tatiana disse. – Isso eu sei. – Ela olhara.

Mamãe aproximou-se da cama das meninas, agachou-se ao lado, sacudiu a cabeça.

– Me escutem, todas vocês – ela disse. A voz de Mamãe não era mais ruidosa, nem estridente, nem alta. Mal soava como uma voz, certamente não aquela que Tatiana reconhecia como sendo a da sua mãe. Ela ainda usava um lenço na cabeça para prender o cabelo e tirá-lo do rosto. – Estou falando do frio. Ela está aqui o dia todo. Temos lenha suficiente para acender a bourzhuika para ela o dia inteiro?

– Não – disse Dasha, apoiada num cotovelo. – Eu sei que não temos. Precisamos de toda a lenha disponível para aquecer a bourzhuika à noite. E mal dá para isso. Vejam há quanto tempo não aquecemos direito nossos quartos com o fogão grande.

Desde que Alexander esteve aqui a última vez, pensou Tatiana. Ele sempre pega lenha e acende o fogo e aquece o quarto.

Mamãe esfregou as mãos e disse:

– Vamos ter que dizer a ela que mantenha a bourzhuika acesa o dia inteiro.

– Diremos isso a ela, Mamãe – disse Tatiana –, mas logo ficaremos sem lenha.

– Tania, ela está se congelando no apartamento. Já percebeu como se mexe lentamente?

Dasha assentiu.

– Ela costumava ir ao refeitório público e lá ficar o dia inteiro esperando por alguma sopa, um pouco de mingau de aveia. Hoje eu vi que ela não se levantou do sofá nenhuma vez, nem mesmo para jantar com a gente. Tania, você acha que podemos interná-la no seu hospital?

– Podemos tentar – disse Tatiana –, mas não creio que haja cama disponível. As crianças ocupam todas e os feridos também.

– Então amanhã tentamos, está bem? – disse Mamãe. – Pelo menos no hospital ela ficará mais aquecida. Ainda funciona o aquecimento nos hospitais?

– Eles fecharam três alas do hospital – Tatiana respondeu, arrastando-se para fora da cama. – Eles mantêm só uma aberta, e está cheia.

Os cobertores haviam caído e Babushka Maya, deitada no sofá, só tinha por cima o seu próprio casaco. Tania pegou os cobertores e a cobriu bem, até o pescoço, enfiando-os ao redor dela. Ajoelhou-se no chão.

– Babushka – ela sussurrou –, fale comigo.

Babushka gemeu debilmente. Tatiana colocou a mão na cabeça da avó.

– Ainda tem forças? – ela perguntou.

– Não muito...

Tatiana conseguiu sorrir.

– Babushka, eu me lembro, sentada ao seu lado, quando você pintava; os cheiros da pintura eram muito fortes, você sempre coberta de tinta, e eu sentava tão perto de você que também ficava toda coberta de tinta. Lembra disso?

– Eu me lembro, meu raio de sol. Você era uma doce criança. – Ela sorriu.

Tatiana mantinha a mão na cabeça da avó.

– Você me ensinou a desenhar uma banana quando eu tinha quatro anos. Nunca tinha visto uma banana e não podia desenhar uma, lembra?

– Você desenhou uma bela banana – Babushka disse. – Mesmo nunca tendo visto uma. Oh, Tanechka... – Ela interrompeu.

– O que é, Babushka?

– Oh, ser jovem de novo...

– Eu não sei se você notou – Tatiana sussurrou –, mas os jovens também não estão indo muito bem.

– Eles não – Babushka disse, abrindo os olhos brevemente. – Você.

Na manhã seguinte, Tatiana pegou dois baldes de água e então foi buscar as rações. Quando voltou, Babushka estava morta. Deitada no sofá, debaixo dos cobertores e o casaco, imóvel, fria. Marina chorando, disse:

– Eu fui acordá-la, e ela não se mexia.

Tatiana e sua família ficaram em pé diante de Babushka.

Marina, fungando, encolhendo os ombros, virou-se em direção da mesa de jantar:

– Venham, vamos comer.

E Mamãe, assentindo com a cabeça e virando-se também, concordou.

– Sim, vamos comer o pão da manhã. Eu já fiz um pouco de chicória para beber. Sarkova aqueceu o fogão da cozinha para o café da manhã, com sua própria lenha. Sobrou um pouco de aquecimento para nós

Elas sentaram à mesa e Tatiana dividiu a ração em duas partes, só meio quilo para agora, só meio quilo para mais tarde. Dividiu o meio quilo em quatro peças, e elas comeram. Cada uma 125 gramas.

– Marina – Tatiana disse com firmeza –, traga o seu pão para casa, me ouviu?

– E a porção de Babushka? – disse Marina. – Vamos dividi-la e comer agora.

E isso fizeram. E então Marina e Dasha e Mamãe comeram chicória moída, da qual acabavam de extrair um líquido que parecia e cheirava como café. Tatiana não quis a chicória.

Ela disse à mãe que iria ao conselho local para registrar a morte de Babushka afim de que os funcionários encarregados dos enterros viessem e levassem o corpo. Mamãe colocou a mão em Tatiana:

– Espere – ela disse. – Se o conselho vem aqui, vai constatar que ela está morta.

– E?

– E suas rações vão cessar.

Tatiana levantou-se da mesa.

– Mamãe, ainda temos os cupons até o fim do mês. São mais dez dias com o pão da Babushka.

– Sim, e depois, como fica?

Limpando a mesa, Tatiana disse:

– Mamãe, sabe de uma coisa? Eu não estou realmente pensando assim tão na frente.

– Pare de limpar, Tania – disse Dasha. – Não tem água para lavar coisa alguma. Deixe os pratos. Só tem pão neles. À noite usamos de novo.

Virando-se para a mãe, Dasha disse:

– Além disso, Mamãe, se não vier o pessoal do conselho, então quem? Não podemos movê-la por nossa conta. Não podemos deixá-la aqui, podemos? – Ela fez uma pausa. – Não podemos continuar jantando e costurando com nossa avó morta no sofá.

Mamãe fixou os olhos em Babushka.

– É melhor para ela estar aqui que jogada na rua – ela disse num tom débil. Tatiana parou de limpar a mesa e foi pegar um lençol branco na cômoda.

– Mamãe, não podemos deixá-la aqui. Um corpo precisa ser enterrado até mesmo na União Soviética – ela disse tristemente. – Dasha, me ajude aqui, sim? Precisamos enrolar nossa avó antes que eles a levem. Vamos envolvê-la neste lençol.

Dasha tirou o casaco e os cobertores de cima de Babushka e disse:

– Vamos ficar com os cobertores, vamos precisar deles.

Tatiana olhou ao redor do quarto. Ela viu bolsões de desordem: livros fora das estantes, roupas no chão, pratos na mesa. Onde estava o que ela procurava? Ah, ali estava. Ela foi à janela e pegou um pequeno desenho. Era um esboço a carvão, trançado, de uma torta de maçã que Babushka desenhara em setembro. Tatiana pegou o desenho e o colocou carinhosamente sobre o peito de Babushka.

– Muito bem, vamos embora – ela disse.

Depois que as meninas enrolaram Babushka no lençol, Mamãe costurou a parte de cima e a de baixo fazendo um saco. Tatiana fez o sinal da cruz, secou as lágrimas e foi ao conselho.

No fim daquela tarde vieram dois homens do conselho. Mamãe pagou-lhes com dois goles de vodca cada um.

– Não dá para acreditar que ainda tem vodca, Camarada – disse um dos homens. – A senhora é a primeira até esta altura do mês.

– Sabia que a vodca é o item de troca mais importante? – disse o outro homem. – A senhora pode conseguir mais pão bom se tiver mais bebida.

As Metanovs se entreolharam. Tatiana sabia que ainda tinha duas garrafas. Depois que Papai morreu, e Dimitri estava longe, ninguém mais bebia vodca, exceto Alexander, quando vinha, e ele costumava beber pouco.

– Para onde vocês vão leva-lá? – Mamãe perguntou. – Vamos junto com vocês. – Elas não haviam ido trabalhar.

– Temos um caminhão cheio esperando lá fora. Não tem lugar para vocês – os homens do conselho disseram. – Vamos levá-la ao cemitério mais próximo. – Que seria Starorusskaya. – Lá nos encontramos.

– E a sepultura? – Mamãe disse. – E o caixão?

– Caixão? – o homem abriu a boca e riu em silêncio. – Camarada, ainda que a senhora me desse o que resta de sua vodca, eu não teria como lhe conseguir um caixão. Quem vai fazê-los? E do quê?

Tatiana assentiu. Ela preferia pegar um caixão e queimá-lo para ter lenha a usá-lo para enterrar a sua avó. Estremecida, ela abotou o casaco.

– E uma sepultura? – perguntou Mamãe, rosto pálido, voz quebrada.

– Camarada – o conselheiro exclamou –, já viu a neve, o chão congelado? Vamos lá fora conosco e dê uma olhada e enquanto estiver lá olhe também nosso caminhão.

Tatiana deu um passo à frente e colocou a mão no braço do homem.

– Camarada – ela disse baixinho. – Só a leve para baixo. É o mais difícil para nós. Leve-a para baixo e nós cuidamos dela.

Tatiana subiu ao sótão, onde em certa época penduravam a roupa lavada. Não havia nada lavado ali agora, mas ela encontrou o que procurava: seu trenó da infância. Era um trenó pintado de um azul brilhante, com rodas vermelhas. Ela o levou escada abaixo até a rua, com cuidado para não escorregar. O corpo de Babushka, já embaixo, foi deixado no pavimento nevado.

– Vamos, meninas. Um, dois, três. – Tatiana disse para Marina e Dasha. Marina estava muito fraca para ajudar. Tatiana e Dasha levantaram Babushka e colocaram-na no trenó, empurrando-a por três quarteirões até o cemitério de Starorusskaya, Marina e Mamãe indo atrás. Tatiana relutante, olhou de relance a parte traseira do caminhão do conselho. Os corpos se empilhavam a três metros de altura, um em cima do outro.

– Toda essa gente morreu hoje? – ela perguntou ao motorista.

– Não – ele disse. – É só o que recolhemos esta manhã. – Ele se inclinou na direção dela. – Ontem recolhemos mil e quinhentos corpos das ruas. Venda sua vodca, menina, venda e compre um pouco de pão.

Na entrada para o cemitério havia uma barricada com cadáveres, alguns envolvidos em lençóis brancos, outros sem nada por cima.

Tatiana viu uma mãe com uma criança pequena, as duas haviam empurrado o pai morto até o cemitério, quando elas próprias se congelaram na entrada, na neve. Tatiana fechou os olhos, tentando tirar a imagem de sua cabeça. Queria ir para casa.

– Não podemos entrar. Não podemos limpar o caminho. Vamos deixar aqui nossa Babushka – Tatiana disse. – O que mais podemos fazer? – Ela e Dasha pegaram o corpo de Babushka e deitaram-no suavemente na neve, perto dos portões do cemitério. Por uns minutos ficaram em pé diante dela.

Depois voltaram para casa.

Venderam as duas garrafas de vodca e receberam somente dois filões de pão branco no mercado negro. Agora que Tikhvin caíra nas mãos dos alemães, não havia pão nem no mercado negro.

7

Uma semana passou. Tatiana não podia dar a descarga no banheiro. Não podia escovar os dentes. Não podia se lavar. Alexander não ficaria muito contente com aquilo. Não tinham notícias dele. Estaria bem?

– Quando você acha que eles vão consertar os canos? – Dasha perguntou certa manhã.

– Para você convém que não seja logo – disse Tatiana. – Do contrário, você vai ter que começar a lavar roupa outra vez.

Dasha aproximou-se de Tatiana e deu-lhe um abraço.

– Eu amo você. Você ainda faz piadas.

– Não muito boas – disse Tatiana, abraçando a irmã.

Era duro viver com dois pequenos baldes de água. O congelamento dos canos era pior. Mas pior ainda era o derramamento da água que as pessoas carregavam para cima. A água saía dos baldes para as escadas e congelava. Todos os dias, a temperatura ia de cinco a vinte graus abaixo de zero, e as escadas permaneciam sempre cobertas de gelo. Todas as manhãs, para pegar água, Tatiana tinha que segurar o balde com uma das mãos, com a outra o corrimão, deslizando para baixo com a bunda.

O mais duro era carregar escadas acima o balde cheio. Ela caía pelo menos uma vez e tinha que voltar e pegar mais água. Quanto mais água se derramava nas escadas, mais facilmente ela caía e mais espesso se tornava o gelo nas escadas. As escadas traseiras eram ainda mais perigosas. Uma mulher do quarto andar caiu de um lance de escada, quebrou a perna e não podia se levantar. Ela congelou nas escadas, dentro do gelo. Ninguém pôde movê-la antes ou depois.

Tatiana, Marina, Dasha e Mamãe, sentadas no sofá, ouviam o metrônomo do rádio com sua incansável batida através das ondas do ar, sua frequência aberta às vezes era interrompida por uma firme corrente de palavras. Algumas sensatas, como: “Moscou combate o inimigo com sua própria vida”, outras insensatas, do tipo “A ração de pão de novo será reduzida a 125 gramas por dia para dependentes, 200 gramas para trabalhadores”.

Outras palavras às vezes surgiam: “Perdas”, “Danos”, “Churchill”.

Stálin falava em abrir uma segunda frente em Volkhov. Mas não antes que Churchill abrisse também uma segunda frente para distrair os alemães dos países do norte da Europa. Churchill disse que não tinha nem homens nem recursos para abrir uma segunda frente, mas se dizia preparado para cobrir as perdas materiais sofridas por Stálin. Este, mordaz, respondeu que apresentaria essa fatura diretamente ao próprio Führer.

Moscou estava nos estertores, toda sua energia gasta na luta contra Hitler. A cidade era bombardeada como Leningrado.

– Faz um mês que não temos notícia de Babushka Anna – disse Dasha numa noite no final de novembro. – Tania, você tem notícias de Dimitri?

– Claro que não – disse Tatiana. – Eu acho que não terei notícias dele outra vez, Dash. – Ela fez uma pausa. – Tampouco temos notícias de Alexander.

– Eu tenho – disse Dasha. – Faz três dias. Eu esqueci de lhes dizer. Querem que eu leia a carta dele?

Querida Dasha e todas vocês,

Espero que esta carta encontre vocês bem. Vocês me esperam de volta? Eu espero voltar para vocês.

Meu comandante me mandou a Kokkorevo, um povoado de pesca, mas sem nenhum pescador vivo. No lugar onde era o povoado ficou um buraco, aberto pelas bombas. Na prática, não tínhamos caminhões deste lado e muito menos combustível para os que tínhamos. Éramos uns vinte andando por ali com um par de cavalos. Estávamos testando o gelo para ver se aguentava um caminhão com comida e munições, ou pelo menos um cavalo com um trenó cheio de alimentos.

Caminhamos sobre o gelo. É tão frio que vocês pensariam que se formara há pouco, mas não. Era surprendentemente fino em alguns pontos. Logo de cara, perdemos um caminhão e dois cavalos, e ficamos nas margens do lago Ladoga olhando o gelo se espalhar na nossa frente, e aí eu disse: “esqueçam isto, me deem o maldito cavalo!” Nele montei e cavalguei a égua durante quatro horas, em cima do gelo, até Kobona! As temperaturas andavam ao redor de doze graus abaixo de zero. Eu disse: “este gelo será suficiente.”

Tão logo eu voltei, com um trenó cheio de comida, fui colocado no comando do regimento de transporte – outro nome para mil Voluntários do Povo. Ninguém cederia soldados de verdade para isso.

Antes que o gelo ficasse espesso o suficiente para os caminhões, os voluntários tinham que montar nos cavalos e nos trenós e ir até Kobona pegar farinha e outros suprimentos, e voltar cavalgando. Eu vou lhes dizer, sua Babushka teria se saído melhor do que alguns daqueles homens. Eles nunca haviam montado cavalos ou nunca haviam saído no frio, ou ambas as coisas, porque não posso lhes dizer quantos muitos acidentes tivemos, com homens caindo dos cavalos, caindo através do gelo, se afogando. No primeiro dia, perdemos, para começar, um caminhão e uma carga de querosene. Estávamos tentando trazer combustível para Leningrado. A escassez de gasolina é quase tão ruim quanto a escassez de comida. Não há petróleo para acender os fornos para assar o pão.

Dissemos então: vamos esquecer os caminhões por alguns dias, e só usar os cavalos. Pouco a pouco os cavalos de Kobona cobriram os trinta quilômetros até Kokkorevo. Certo dia, trouxemos mais de vinte toneladas de alimentos. Embora não seja suficiente, já é alguma coisa. Estou em Kobona agora, colocando comida nos trenós, olhando, angustiado, a farinha, sabendo que vocês não têm mais. A ração das tropas da linha de frente foram reduzidas a meio quilo de pão por dia. Ouvi dizer que a ração dos dependentes caiu para 125 gramas. Vamos tentar recuperá-las. Nem preciso dizer a vocês que os alemães não estão nada contentes com a nossa pequena estrada de gelo. Sem dó nem piedade eles a bombardeiam dia e noite. À noite, menos. Durante nossa primeira semana perdemos mais de três dúzias de caminhões, e com eles muita comida. Por fim, ficou claro que eu não podia mais dirigir os caminhões; não era a melhor maneira de usar minhas habilidades. Agora estou do lado de Kokkorevo, na função de artilheiro, contra os aviões alemães. Estou atrás de uma arma antiaérea, Zenith. Ela dispara fogo de metralhadora com bombas. Sinto enorme satisfação em saber que explodi um avião que ia afundar um caminhão carregado de comida para vocês.

O gelo está grosso agora, exceto por uns poucos pedaços mais fracos, e nós temos alguns bons caminhões. Eles podem atravessar o lago rapidamente, na base de quarenta quilômetros por hora. Os outros soldados e eu chamamos a estrada de gelo de Estrada da Vida. Soa bem, vocês não acham?

Ainda assim, sem Tikhvin nós não podemos levar muita coisa a Leningrado. Devemos recuperar Tikhvin. O que você acha, Dasha, devo me apresentar como voluntário nessa iniciativa? Atacar os alemães montado na minha esfomeada égua cinzenta, com a minha metralhadora novinha, uma Shpagin, nos meus braços? Estou brincando, eu acho. De todo modo, a Shpagin é uma arma fantástica. Eu não sei quando poderei voltar a Leningrado outra vez, mas quando puder fazê-lo levarei comigo comida, portanto aguentem firme e sigam em frente.

Coragem.

Atenciosamente,

Alexander

Ande, ande, não levante os olhos, Tatiana disse a si própria. Cubra o rosto com o cachecol, coloque-o sobre os olhos se for preciso, simplesmente não olhe para cima. Não veja Leningrado, não veja o seu pátio onde os corpos se empilham, não olhe as ruas onde os corpos são jogados na neve. Levante o pé e passe por cima deles. Ande ao redor dos corpos, não olhe... você não quer ver. Naquela manhã, Tatiana viu um homem há pouco morto no meio da rua sem metade do torso. Não foi uma bomba. Seus quadris haviam sido cortados com uma faca. Ela tocou a arma de Alexander que trazia no bolso do capote, e, sem dizer uma palavra, moveu-se através dos montes de neve, o olhar fixado no chão à sua frente.

Tinha que brandir a arma de Alexander umas duas vezes, sozinha na rua, na escuridão da nascente manhã.

Agradecer a Deus por lhes mandar Alexander.

Em fins de novembro, uma onda explosiva estourou o vidro do quarto onde elas comiam. Cobriram o buraco com os cobertores de Babushka. Não tinham mais nada. A temperatura do quarto caíra em trinta graus, passando de quase congelante para muito mais abaixo disso.

Tatiana e Dasha carregaram a bourzhuika para o seu quarto, colocando-a na frente do sofá de Mamãe, para que ela ficasse aquecida enquanto costurava os uniformes. A fábrica continuava incentivando a iniciativa privada, pagando-lhe vinte rublos para cada uniforme extra que costurasse acima de sua cota. Demorou-lhe todo o mês de novembro para costurar cinco uniformes. Ela então deu a Tatiana cem rublos, dizendo-lhe que fosse à loja e comprasse alguma coisa.

Tatiana voltou com um copo de sujeira negra. Era açúcar derretido de quando os alemães bombardearam os depósitos de Badayev, em setembro. Tão animada quanto possível, Tatiana disse:

– Quando a sujeira descer ao fundo, nosso chá ficará mais doce.

Dê um pulo, não levante os olhos, Tatiana, fique na fila e mantenha seu lugar; se perder seu lugar não haverá nenhum pão para você e então terá que achar outra loja na cidade. Fique aí, não se mexa, alguém virá e limpará tudo isso. Uma bomba caíra na rua, atingindo a fila em que estava Tatiana, bem na Fontanka, estraçalhando meia dúzia de mulheres. O que fazer? Cuidar dos vivos? Ou de sua família? Ou mover os mortos? Não levante os olhos, Tatiana.

Não levante os olhos, Tatiana, mantenha-os grudados na neve e não olhe nada, somente suas botas arrebentadas. Mamãe bem que podia haver feito para você outro par de botas. Mas Mamãe agora não pode mais costurar à mão um uniforme extra, com ou sem ajuda de Dasha, com ou sem a sua ajuda, quando em outubro ela costurava dez uniformes por dia na máquina.

Alexander! Quero manter minha promessa a você. Quero permanecer viva, mas não vejo como, mesmo com minhas mínimas necessidades e meu metabolismo atrofiado, poderei aguentar com duzentos gramas por dia dos quais 25% é celulose comestível – serragem, casca de pinheiro. Pão encharcado com bolo de sementes de algodão, alimento antes considerado venenoso para os humanos – não mais. Pão que não é pão, mas bolacha dura – farinha e água. Biscoito do mar, assim você chamava isso? Pão que é escuro e pesado como pedra.

Não aguento viver com duzentos gramas por dia desse pão.

Tampouco posso sobreviver com uma sopa rasa e nem mesmo com um mingau aguado.

Luba Petrova não podia. Vera não podia. Kirill não podia. Nina Iglenko não podia. Podem Mamãe e Dasha? Pode Marina?

Seja lá o que estiver fazendo, até agora não é suficiente.

Viver exigirá de mim alguma coisa a mais, alguma coisa que não é deste mundo. É preciso alguma outra força que possa ocupar o querer com nada, a fome com nada. O frio com nada.

O desejo de comida deu lugar a uma doença terminal, uma pálida e contagiosa perda de interesse em tudo e em todos. Tatiana ignorava completamente o bombardeio. Não tinha forças para sair correndo, não tinha forças para lançar-se ao chão, não tinha forças para ajudar a mover os corpos ou levantar vítimas. Um torpor penetrante, uma apatia abrangente como uma fortaleza permeavam e cercavam Tatiana, uma fortaleza rompida somente por borrifos de remorsos que pareciam sentimento.

Sua mãe sacudia o seu coração, Dasha agitava os seus afetos. Marina, até mesmo Marina, apesar de sua miserável avidez, tocava de alguma forma o sentimento de Tatiana, que não a julgava mas estava desapontada. Nina Iglenko provocava alguma pena enquanto esperava o seu último filho morrer, antes de ela mesma morrer.

Tatiana tinha que parar de sentir. Ela já tinha os dentes preparados para atravessar o dia. Teria que prepará-los melhor. Porque já não havia comida.

Não vou tremer e não vou desistir da minha curta vida, não vou abaixar a minha cabeça. Encontrarei uma maneira de levantar os meus olhos. Manter tudo do lado de fora. Exceto você, Alexander. Manter você dentro de mim.


Pedaços de fortalezas

1

A outra face das noites brancas, o dezembro de Leningrado. Noites brancas – luz, verão, luz do sol, um céu de tom pastel. Dezembro – escuridão, tempestades, nuvens carregadas, um céu que se encolhe. Um céu opressivo.

Uma luz desoladora apareceu por volta das dez da manhã. Pairou ao redor até mais ou menos as duas. E depois, relutante, sumiu de novo, trazendo escuridão.

Escuridão total. No começo de dezembro desligou-se a eletricidade de Leningrado, não por um dia, mas pelo jeito de forma definitiva. A cidade mergulhou numa noite perpétua e os bondes pararam de circular. Há meses os ônibus não rodavam mais, porque não havia gasolina.

Reduziu-se a semana de trabalho a três dias, depois dois dias, depois um dia. A eletricidade foi por fim restaurada em alguns negócios essenciais para o esforço de guerra: Kirov, a fábrica de pão, a usina de água, a fábrica de Mamãe, a ala no hospital de Tatiana. Contudo, os bondes haviam parado de forma permanente. Não havia eletricidade no apartamento de Tatiana, nada de aquecimento. A água permaneceu somente no primeiro andar, abaixo do gelo escorregadio.

As manhãs desses dias vinham como uma mortalha que arruinava o espírito de Tatiana. Fez-se impossível pensar em qualquer coisa que não fosse sua própria mortalidade – impossível como era.

No começo de dezembro, a América finalmente entrou na guerra. Alguma coisa sobre a ilha do Havaí e os japoneses.

– Ah, talvez agora que a América está do nosso lado... – disse Mamãe costurando.

Dias depois das notícias da América, Tikhvin foi recuperada. Essas eram palavras que Tatiana entendia. Tikhvin! Significava ferrovia, significava estrada de gelo, significava comida. Significava um aumento na ração?

Não, não significava isso.

Cento e vinte cinco gramas de pão.

Quando cortaram a luz, o rádio não funcionava mais, não havia mais metrônomo, não havia mais boletins de notícias. Sem luz, sem água, sem lenha, sem comida. Tic-tac. Tic-tac.

Sentadas, elas se entreolharam. Tatiana sabia o que pensavam.

Quem é a próxima?

– Conte uma piada, Tania.

Suspiro.

– Um freguês pergunta ao açougueiro: “Pode me dar cinco gramas de salsicha, por favor?”. “Cinco gramas?”, o carniceiro repetiu, “está me gozando?”. “De maneira alguma”, disse o freguês. “Se eu estivesse lhe gozando, teria pedido que o senhor fatiasse.”

Mais suspiros.

– Boa piada, filha.

Tatiana voltava aos quartos através do hall, arrastando o seu balde de água. A porta do louco Slavin estava fechada. Ocorreu-lhe que isso já tinha tempo. Mas a porta de Petr Petrovi estava aberta. Ele estava sentado em sua pequena mesa tentando, sem conseguir, enrolar um cigarro.

– O senhor precisa de ajuda? – ela perguntou colocando o balde no chão e entrando.

– Obrigado, Tanechka, sim – ele disse numa voz derrotada. Suas mãos tremiam.

– O que há? Vá trabalhar, lá deve ter alguma coisa de almoço. Eles ainda alimentam vocês em Kirov?

Kirov fora quase destruída pela artilharia alemã, posicionada a poucos quilômetros no sul, em Pulkovo. Os soviéticos, contudo, haviam construído uma fábrica menor por dentro da fachada desmoronada, e até dias atrás Petr Pavlovich pegava o bonde número um, direto para o front.

Tatiana mal se lembrava do bonde número 1.

– O que há? – ela perguntou. – Não quer ir?

Ele balançou a cabeça.

– Não se preocupe comigo, Tanechka, você já tem muito com que se preocupar.

– Me conte. – Ela fez uma pausa. – São as bombas? – Ele balançou a cabeça. – Nem comida nem bombas? – Ela olhou sua cabeça calva e enrugada e fechou a porta do quarto. – O que é? – ela perguntou mais baixinho.

Petr Pavlovich contou-lhe que há pouco fora removido para Kirov para consertar os motores de tanques que haviam quebrado. Não havia remessas, não havia peças novas nem mesmo motores de tanque.

– Encontrei uma forma de que motores de avião servissem nos tanques. Consegui consertar esses motores para usá-los nos tanques e depois consertá-los para os aviões também.

– Isso é muito bom – ela disse. – O senhor então recebe uma ração de trabalhador, certo? – ela acrescentou. – Trezentos e cinquenta gramas de pão.

Ele fez um gesto negativo com a mão e deu uma tragada no cigarro.

– Não é isso. É o filhote de Satanás, a NKVD. – Ele cuspiu de um jeito malicioso. – Estavam prontos para fuzilar os coitados que antes de mim não conseguiram consertar os motores. Quando me convocaram, ficaram em cima de mim com a porra dos seus rifles, para garantir que eu consertasse o equipamento.

Tatiana ouviu o vizinho, a mão nas costas dele, seus próprios ossos gelados, seu coração gelado.

– Mas o senhor consertou tudo, Camarada? – ela perguntou.

– Sim, e se eu não tivesse conseguido? – ele disse – Não são suficientes o frio, a fome, os alemães? Quantas maneiras ainda existem para nos matar?

Tatiana afastou-se um pouco.

– Sinto muito sobre a sua esposa – ela disse, abrindo a porta.

Naquela tarde, quando ela voltava para casa, a porta dele ainda estava aberta. Tatiana olhou dentro. Petr Palovich Petrov ainda estava sentado atrás de sua mesa, nas mãos, um cigarro meio consumido, que Tatiana enrolara para ele. Estava morto. Com dedos trêmulos, Tatiana fez um sinal da cruz e fechou a porta.

Elas se olhavam do sofá, da cama, através do quarto. As quatro. Agora dormiam e comiam em um quarto. Colocavam os pratos em seus colos e comiam o pão noturno. E sentavam diante da bourzhuika e observavam as chamas através da pequena janela do fogão. Era a única luz no quarto. Tinham bastante pavios e tinham fósforos, mas nada tinham para queimar. Se pelo menos tivessem algum...

Nada para queimar. Oh, não, Tatiana lembrou-se.

O óleo de motor. O óleo de motor que Alexander lhe dissera que comprasse naquele domingo de junho, quando ainda havia sorvete, luz do sol e um lampejo de alegria. Ele lhe recomendara; e ela não dera ouvidos.

E olhe agora.

Não havia mais tic-tac, tic-tac.

– Marina, o que você está fazendo? – perguntou Tatiana.

Marina arrancara o papel de parede numa tarde de dezembro. Tirava um pedaço e, no balde de água, umedecia a parte de trás do papel.

– O que você está fazendo? – Tatiana repetiu.

Com uma colher, Marina raspava a massa do papel.

– Hoje uma mulher na minha frente na fila disse que certa quantidade da massa do papel de parede é feita de farinha de batata.

Ela, frenética, raspava o papel.

Com cuidado, Tatiana pegou o papel das mãos de Marina.

– Farinha de batata e cola – Tatiana disse.

Marina arrebatou o papel das mãos de Tatiana.

– Não toque nisso, pegue o seu.

– Farinha de batata e cola – Tatiana repetiu.

– E daí?

– Cola é veneno.

Marina riu em silêncio, raspou um pouco mais da pasta molhada e a enfiou na boca.

– Dasha, o que você está fazendo?

– Estou acendendo a bourzhuika. – De frente para a janelinha do fogão, Dasha jogava livros no fogo.

– Você está queimando livros?

– Por que não? Temos de nos aquecer.

Tatiana agarrou a mão de Dasha.

– Não, Dasha. Pare. Não queime livros, por favor. Ainda não chegamos a esse ponto.

– Tania! Se eu tivesse mais energia, eu matava você, lhe abria em fatias e comia tudo – Dasha disse, jogando outro livro no fogo. – Não me diga...

– Não, Dasha – Tatiana disse, segurando no pulso da irmã. – Livros não.

– Não temos mais lenha – Dasha disse com naturalidade.

Tão rápido quanto possível, Tatiana foi olhar debaixo de sua cama. Seu Zoshchenko, John Stuart Mill, o dicionário de inglês. Lembrou-se que, numa tarde de sábado, depois de ler um pouco de Pushkin, ela, descuidada, deixou o precioso volume no sofá. Virou-se para Dasha, que continuava, incansável, jogando mais livros no fogo.

Horrorizada, Tatiana viu O Cavaleiro de Bronze nas mãos da irmã.

– Dasha, não! – ela gritou e precipitou-se sobre a irmã. De onde tirou tanta força para gritar, para investir assim? Onde achou a força da emoção?

Ela pegou o livro, arrancando-o das mãos de Dasha.

– Não! – Apertou o livro em seu peito. – Oh, meu Deus, Dasha – Tatiana disse trêmula. – Esse livro é meu.

– São todos livros nossos, Tania – Dasha disse apática. – Quem se importa com isso? Ficar quente agora é tudo.

Tatiana, lambendo os lábios, não podia articular uma palavra, tão abalada estava.

– Dasha, por que livros? Temos um conjunto inteiro de sala de jantar. Uma mesa e seis cadeiras. Vai nos durar no inverno se tivermos cuidado.

Ela limpou a boca e olhou a mão. Estava manchada de sangue.

– Você quer serrar a sala de jantar? – Dasha perguntou, jogando no fogo o Manifesto Comunista, de Karl Max. – Fique à vontade!

Algo estranho acontecia com Tatiana. Ela não queria assustar a mãe ou a irmã. Sabia que Marina já não era capaz de sentir medo. Tatiana esperou por Alexander para perguntar a ele o que estava acontecendo com ela. Mas antes que ele voltasse, e ela tivesse uma chance de perguntar-lhe, notou que a boca de Marina também sangrava.

– Vamos, Marina – ela disse. – Vamos para o hospital.

Finalmente um médico apareceu para examiná-las.

– Escorbuto – ele disse terminante. – É escorbuto, meninas. Todo mundo tem isso. Vocês estão sangrando de dentro para fora. Seus vasos capilares ficam mais delgados e arrebentam. Vocês precisam de vitamina C. Vamos ver se lhes consigo uma injeção.

Ambas tomaram a injeção de vitamina C.

Tatiana melhorou.

Marina não.

À noite, na cama, ela sussurrou a Tatiana:

– Tania, está me ouvindo?

– O quê, Marinka?

– Eu não quero morrer – ela suspirou e teria gritado se pudesse. Mal podia emitir um tênue lamento. – Eu não quero morrer, Tania! Se não tivesse ficado aqui com Mamãe, agora eu estaria em Molotov com Babushka, e não morreria.

– Você não vai morrer – disse Tatiana, pondo a mão na cabeça de Marina.

– Eu não quero morrer – sussurrou Marina – sem sentir, pelo menos uma vez, o que você, Tania, sente. – Respirava com muita dificuldade. – Ao menos uma única vez na minha vida, Tania!

De certa distância, a voz de Dasha chegou a elas.

– O que a Tania sente?

Marina não respondeu.

– Tanechka... – ela sussurrou. – Como se sente isso?

– Como se sente o quê? – perguntou Dasha. – Indiferença? Frieza? Definhamento?

Tatiana continuou acariciando a testa de Marina.

– É como – ela suspirou – se você não estivesse sozinha. Agora, vamos, onde está a sua força? Você se lembra da gente com Pasha? Eu remando, você e ele nadando ao lado, tentando me alcançar? Onde está aquela força, Marinka?

Na manhã seguinte, Marina estava morta ao lado de Tatiana.

– Temos as rações dela até o fim do mês – Dasha disse, olhando de relance a prima morta.

Tatiana balançou a cabeça.

– Como você sabe, ela já consumiu tudo. Estamos na metade do mês e não sobrou nada dessas rações para o fim de dezembro.

Tatiana enrolou a prima em um lençol branco, Mamãe costurou em cima e em baixo, e elas deslizaram Marina escada abaixo até a rua.Tentaram colocá-la no trenó, mas não conseguiram levantá-la. Depois que Tatiana fez o sinal da cruz em Marina, elas a deixaram no pavimento nevado.

2

Mais um dia, outra injeção de vitamina C. Outros duzentos gramas de pão enegrecido. Tatiana fingia ir ao trabalho para assim continuar recebendo a ração de trabalhador, mas nada tinha a fazer no hospital, somente sentar ao lado dos moribundos.

Uma semana depois da morte de Marina, numa noite tranquila, Tatiana, Dasha e Mamãe sentavam-se no sofá, diante de uma bourzuihka quase extinta. Já não havia mais livros, salvo os que Tatiana escondera debaixo da cama. As brasas não iluminavam o quarto. Mamãe costurava no escuro.

– O que a senhora costura, Mamãe? – Tatiana perguntou.

– Nada – Mamãe respondeu. – Nada importante. Onde estão as minhas meninas?

– Aqui, Mamãe.

– Dasha, você se lembra de Luga?

Dasha lembrava.

– Dashenka, lembra quando Tania ficou com uma espinha de peixe entalada na garganta, e nós não conseguimos tirá-la?

Dasha lembrava.

– Ela tinha cinco anos.

– Quem tirou a espinha, Mamãe?

– Pasha. Ele tinha mãos tão pequenas. Só enfiou a mão na sua garganta e puxou a espinha para fora.

– Mamãe – Dasha disse –, lembra quando a nossa Tania caiu do barco no lago Ilmen e nós todos pulamos na água, porque pensávamos que não sabia nadar, enquanto ela, nadando cachorrinho, afastou-se do barco?

Mamãe lembrava.

– Tania tinha dois anos.

– Mamãe – Tatiana disse –, lembra como eu cavei aquele enorme buraco no nosso quintal, era uma armadilha para Pasha, depois esqueci de tapá-lo, e a senhora caiu dentro dele?

– Nem me fale – disse Mamãe. – Ainda estou brava por causa disso.

Elas tentaram rir.

– Tania – disse Mamãe, costurando –, quando você e Pasha nasceram, estávamos em Luga e, enquanto a família inteira vibrava ao redor de nosso novo menino, dizendo como era encantador, um belo menino, Dasha aqui, nos seus sete anos, pegou você e disse: “Bom, podem ficar com o preto, eu fico com o branco. Este bebê é meu”. E nós todos brincamos com ela, dizendo: “Ótimo então, Dasha. Você quer a menina? Dê um nome a ela”. – A voz de Mamãe quebrou uma, duas vezes. – E nossa Dasha disse: “Ao meu bebê, dou-lhe o nome de Tatiana“...

Mais um dia, mais uma injeção de vitamina C para Tatiana, cujos dedos gotejavam sangue nos duzentos gramas de pão que ela cortava para a mãe e para a irmã.

Mais um dia, uma bomba incendiária caiu na esquina do telhado da Quinta Soviet. Anton não estava mais ali para apagar a bomba, nem Mariska, nem Kirill, nem Kostia, nem Tatiana. A bomba incendiou-se e ardeu através do quarto andar, que dava para a igreja na Avenida Grechesky. Ninguém apareceu para desativá-la. Ardeu por um dia e aos poucos extinguiu-se.

Era imaginação de Tatiana, ou a cidade estava mais silenciosa? Ou ela estava ficando surda ou havia menos bombardeio. Ainda havia um pouco todos os dias, mas de curta duração, de menor intensidade, quase como se os alemães estivessem entediados com tudo aquilo. E por que não? Quem restava para bombardear?

Bem, Tatiana.

E Dasha.

E Mamãe. Não, Mamãe não.

Suas mãos ainda seguravam o uniforme branco de camuflagem que ela costurava e, debaixo de seu chapéu de lã, ela usava seu cachecol. Diante do tênue fogo da pequena bourzhuika, Mamãe disse:

– Não aguento mais. Não aguento. – Suas mãos pararam de se mexer, a cabeça também. Seus olhos permaneceram abertos. Tatiana podia ver curtos espasmos de fôlego saindo de sua boca, curtos, breves, depois, extintos.

Tatiana e Dasha se ajoelharam ao lado da mãe.

– Eu gostaria de saber uma reza, Dasha.

– Acho que sei um pedaço de alguma coisa chamada Pai Nosso – disse Dasha.

Tatiana, de costas para o fogareiro, sentia-se aquecida, mas de frente estava fria.

– Que trecho você sabe?

– Só a parte que diz: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”.

Tatiana colocou a mão no colo da mãe.

– Vamos enterrar Mamãe com suas costuras.

– Temos que enterrá-la em suas costuras – Dasha disse e sua voz era fraca. – Olhe só, ela costurava um saco para si própria.

– Meu Deus – disse Tatiana, segurando a perna fria da mãe. – “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”... – Ela fez uma pausa. – O que mais, Dasha?

– Eu só sei isso. Dizemos Amém?

– Amém – disse Tatiana.

No jantar, elas cortaram o pão em três pedaços. Tatiana comeu o seu; Dasha, o dela. Deixaram o pedaço da mãe no seu prato.

Naquela noite, Tatiana e Dasha deitaram abraçadas.

– Não me abandone, Tania. Não posso seguir adiante sem você.

– Não vou abandonar você, Dasha. Não vamos deixar uma a outra. Não podemos ficar sozinhas. Você sabe que todos precisamos de outra pessoa. Uma outra pessoa nos lembra que ainda somos humanos, não animais.

– Só ficamos nós duas, Tania – disse Dasha. – Só você e eu.

Tatiana abraçou mais forte a irmã. Você. Eu. E Alexander.

3

Alexander voltou alguns dias depois. As olheiras escuras e a cerrada barba negra davam-lhe o aspecto de um delinquente, mas, quanto ao resto, ele parecia estar aguentando bem. Tatiana sentiu-se mais aquecida por dentro. Na verdade, vê-lo... bem, o que ela podia dizer? Dasha estava na entrada, os braços dele ao seu redor, enquanto Tatiana os observava mais atrás. E ele a observava.

– Como vai você? – ela disse num tom débil.

– Estou bem – ele disse. – E vocês, minhas meninas?

– Não tão bem, Alexander. Não tão bem. Venha, veja nossa mãe. Morreu há cinco dias. A Prefeitura não recolhe mais os corpos. Não podemos removê-la.

Por trás de Dasha, Alexander passou perto de Tatiana e deslizou a mão enluvada em seu rosto.

Ele envolveu Mamãe na capa do uniforme branco de camuflagem e a carregou, cuidando para não escorregar no gelo escadas abaixo, colocou-a no fulgurante trenó vermelho e azul de Tatiana e empurrou-a até o cemitério de Starorusskaia. As duas meninas andando ao lado dele. Removeu os cadáveres congelados no portão de entrada para passar o trenó e levou Mamãe bem lá dentro, onde suavemente a estendeu na neve. Quebrou dois galhos pequenos e os segurou na frente de Tatiana, que, com um pedaço de barbante, os amarrou no formato de uma cruz, colocada em seguida sobre o corpo de Mamãe.

– Você sabe alguma prece, Alexander? – perguntou Tatiana. – para nossa Mamãe?

Alexander olhou Tatiana bem nos olhos e depois balançou a cabeça. Ela o observou fazendo o sinal da cruz e balbuciando algumas poucas palavras debaixo de sua fria respiração.

Quando saíam do cemitério, Tatiana perguntou:

– Você não sabe nenhuma oração?

– Em russo não – ele sussurrou.

De volta ao apartamento ele parecia mais animado.

– Meninas – ele disse –, vocês não vão acreditar nas delícias que eu trouxe. – Fez uma pausa. – Só pra vocês.

Ele levara um saco de batatas, sete laranjas, que encontrou sabe Deus onde, meio quilo de açúcar, um quarto de quilo de cevada, azeite de linhaça, e, sorrindo para Tatiana com todos os dentes, três litros de óleo de motor.

Se fosse possível, Tatiana teria sorrido de volta.

Alexander mostrou-lhe como gerar luz com óleo de motor. Depois de derramar algumas colheres de chá desse óleo entre dois pires, ele colocou um pavio umedecido dentro, deixando a ponta fora, e acendeu o pavio. O óleo iluminou uma área grande o suficiente para costurar ou ler. Ele então saiu e voltou meia hora depois com um pouco de lenha. Disse que encontrou feixes quebrados no porão. Ele buscou-lhes água.

Tatiana queria tocá-lo. Dasha, porém, encarregava-se disso. Não saía do lado dele. Tatiana não podia nem olhar em seus olhos. Ela pegou um pote, fez um pouco de chá e nele colocou açúcar: que maravilha! Cozinhou três batatas e um pouco de cevada. Partiu o pão. Comeram.

Mais tarde, ela esquentou água na bourzhuika, pediu a Alexander um pouco de sabonete e lavou o rosto, o pescoço e as mãos.

– Obrigada, Alexander – disse Tatiana. – Alguma notícia de Dimitri?

– De nada – ele respondeu. – Não, não tenho nenhuma. E vocês?

Tatiana balançou a cabeça.

– Alexander, meu cabelo está caindo – disse Dasha. – Olhe. – Ela arrancou um tufo negro.

– Dash, não faça isso – ele disse, virando-se para Tatiana. – O seu cabelo também está caindo? – Cálido era o seu olhar sobre Tatiana, quase como uma bourzhuika.

– Não – ela murmurou suavemente. – Meu cabelo não pode se dar ao luxo de cair. Estaria careca amanhã. Contudo, estou sangrando. – Ela olhou para ele e limpou a boca. – Uma laranja talvez ajude.

– Coma todas as sete, mas devagar. E, meninas, não saiam à rua à noite. É muito perigoso.

– Não sairemos.

– E tranquem sempre as portas.

– Sempre trancamos.

– Então como entrei aqui tão fácil?

– Foi Tania. Ela deixou a porta aberta.

– Pare de jogar a culpa na sua irmã e tranque as malditas portas.

Depois do jantar, Alexander pegou uma serra na cozinha, então serrou a mesa do jantar e as cadeiras em pequenos pedaços que coubessem na bourzhuika. Enquanto ele trabalhava, Tatiana ficava ao seu lado, em pé. Dasha sentava no sofá, enrolada em cobertores. O quarto estava frio. Elas não entravam mais nesse quarto. Dormiam, e comiam, e sentavam no outro quarto, onde as janelas não estavam quebradas.

– Alexander, quantas toneladas de farinha nos fornecem agora? – perguntou Tatiana, pegando os pedaços serrados e empilhando-os num canto.

– Não sei.

– Alexander!

Suspiro profundo.

– Quinhentas.

– Quinhentas toneladas?

– Sim.

– Quinhentas parece muitíssimo – Dasha disse.

– Alexander?

– Oh, não.

– Quantas toneladas de farinha eles nos deram durante as rações de julho? – Tatiana queria saber.

– O que é? Agora eu sou Pavlov, o secretário de alimentação de Leningrado?

– Responda. Quantas?

Profundo suspiro.

– Setenta e duas.

Tatiana nada disse, olhando Dasha sentada no sofá. Dasha está se retirando, Tatiana pensou. Seus olhos permaneciam focados sem piscar em Alexander. Com uma voz cortante, toda trêmula, Tatiana disse:

– Veja o lado positivo, quinhentas toneladas hoje duram muito mais do que antes...

Na semiescuridão, Alexander e as meninas sentavam amontoados no sofá, em frente da bourzhuika, que irradiava uma ponta de luz através de sua pequena porta de metal. Alexander se acomodava entre Tatiana e Dasha. Tatiana usava seu casaco acolchoado, que Mamãe costurara para ela, e calças acolchoadas. Com o chapéu, cobriu as orelhas e os olhos. De fora, expostos ao ar do quarto, ficavam nariz e boca. Sobre as pernas dos três, um cobertor. A certa altura, Tatiana pensou que ia cair no sono e inclinou a cabeça à direita, em cima de Alexander. A mão dele descansou no colo de Tatiana.

– Dizem por aí – Alexander falou – “Eu gostaria de ser um soldado alemão, com um general russo, armamento britânico e rações americanas.”

– Eu ficaria apenas com as rações americanas – disse Tatiana. – Alexander, agora que os americanos entraram na guerra, vai ficar mais fácil para nós?

– Sim.

– É um fato consumado?

– Totalmente. Agora que os americanos estão na guerra, há esperança.

Tatiana ouviu a voz de Dasha.

– Se nós sairmos dessa, Alexander, eu juro que deixamos Leningrado e vamos para a Ucrânia, ao mar Negro, a algum lugar onde jamais faça frio.

– Não existe um lugar assim na Rússia – ele respondeu.

Por cima de seu uniforme ele usava um casaco cáqui acolchoado, suas orelhas cobertas com um shapka.

À insistência de Dasha, Alexander respondeu:

– Não. Estamos muito ao norte. O inverno é rigoroso na Rússia.

– Existe algum lugar na Terra onde a temperatura não fique abaixo de zero no inverno?

– Arizona.

– Arizona. Isso fica na África?

– Não – ele suspirou suavemente. – Tania, você sabe onde fica o Arizona?

– América – Tatiana respondeu. O pouco de calor do quarto vinha da pequena janela do fogão. E de Alexander. Ela pressionou a cabeça no braço dele.

– Sim. É um estado na América – ele disse. – Perto da Califórnia. É terra de deserto. Quarenta graus no verão. Vinte graus no inverno. Todos os anos. Nunca congela. Nunca tem neve.

– Pare com isso – disse Dasha. – Isso é puro conto de fadas. Conte a Tatiana. Estou muito velha para contos de fadas.

– É a verdade. Nunca.

Com os olhos fechados, Tatiana ouvia o ritmo ressonante da voz de Alexander. Ela queria que ele nunca parasse de falar. Você tem uma boa voz, Alexander, ela pensou. Posso me imaginar flutuando à deriva, só ouvindo sua voz, calma, medida, corajosa, profunda, conduzindo-me ao eterno descanso. Vá, Tatia, vá.

– Isso é impossível – disse Dasha. – O que eles fazem no inverno?

– Usam camisas de mangas compridas.

– Oh, pare com isso – disse Dasha. – Agora eu sei que você está inventando isso.

Tatiana levantou o chapéu e olhou a tremulante luz de cobre do fogão.

– Tatia? – Alexander disse baixinho. – Você sabe que estou dizendo a verdade. Você gostaria de viver no Arizona, a terra da pequena primavera?

– Sim – ela respondeu.

– Como você a chamou? – Dasha perguntou com voz neutra e apática.

– Tatiana – Alexander disse.

Dasha balançou a cabeça.

– Não. O acento estava no lugar errado. Tátia. Nunca ouvi você chamá-la assim.

– Realmente, Alexander – disse Tatiana, de novo cobrindo o rosto com o chapéu. – O que deu em você?

– Não me importa. Chame-a como quiser. – Dasha deu de ombros e levantou-se para ir ao banheiro.

Tatiana continuava sentada ao lado de Alexander, mas sua cabeça não mais repousava nele.

– Tatia, Tatiascha, Tania – ele sussurrou. – Você me ouve?

– Ouço você, Shura.

– Coloque sua cabeça aqui de novo. Continue.

Assim ela fez.

– Como você está se segurando?

– Veja você.

– Estou vendo. – Ele pegou sua mão enluvada e a beijou. – Coragem, Tatiana. Coragem.

Eu amo você, Alexander, pensou Tatiana.

No dia seguinte, Alexander voltou à noite e, muito contente, disse:

– Meninas, sabem que dia é hoje, não sabem?

Elas o olharam sem nada entender. Tatiana havia ido ao hospital por algumas horas. Não se lembrava do que lá fizera. Dasha parecia ainda mais fora de foco. Tentaram um sorriso e não conseguiram.

– Que dia é hoje? – perguntou Dasha.

– Véspera de Ano Novo! – ele exclamou.

Elas o olharam.

– Vamos, olhem, eu trouxe três latas de tushonka. – Ele sorriu. – Uma para cada um. E um pouco de vodca. Mas só um pouco. Não se deve beber muita vodca.

Tatiana e Dasha continuaram olhando para ele em silêncio. Por fim, Tatiana disse:

– Alexander, como vamos saber quando é Ano Novo? Só temos o despertador cujo alarme está atrasado há meses. E o rádio não funciona.

– O meu tempo é militar – disse Alexander apontando para o seu relógio de pulso. – Eu sempre sei, com precisão, que horas são. E vocês duas precisam ficar mais animadas. Esta não é a maneira de se comportar numa comemoração.

Já não havia mais mesa. Colocaram a comida nos pratos, sentaram-se no sofá, na frente da bourzhuika, e fizeram o seu jantar de Ano Novo com tushonka, um pouco de pão branco e uma colher de sopa de manteiga.

Alexander deu a Dasha cigarros, e a Tatiana, com um sorriso, um pequeno pedaço de doce que ela, contente, colocou na boca. Conversavam baixinho, quando Alexander olhou o relógio e serviu um pouco de vodca.

No quarto escurecido, levantaram-se por alguns minutos, antes da meia-noite, e brindaram ao ano de 1942.

Eles contaram os últimos dez segundos, fizeram tim-tim e beberam. Alexander então beijou e abraçou Dasha, e Dasha beijou e abraçou Tatiana, dizendo:

– Continue, Tania, não tenha medo, beije Alexander no Ano Novo. – Voltou a sentar-se no sofá, enquanto Tatiana levantava o rosto para Alexander, que a ela se inclinou e, com todo cuidado e suavemente, a beijou nos lábios. Era a primeira vez que os lábios dele tocavam os lábios dela, desde aquele dia na catedral de Santo Isaac.

– Feliz ano novo, Tania.

– Feliz ano novo, Alexander.

Dasha estava no sofá, olhos fechados, numa mão, um drinque; na outra, um cigarro.

– Viva 1942 – ela disse.

– Viva 1942 – ecoaram Alexander e Tatiana, os dois permitindo-se um olhar antes que ele sentasse ao lado de Dasha.

Mais tarde, deitaram juntos na cama. Tatiana perto da parede, virada para Dasha, virada para Alexander. Restarão ainda algumas camadas?, ela pensou. Pouca vida sobrou, como pode alguma coisa cobrir nossos restos?

***

No dia seguinte ao do ano novo, Alexander e Tatiana, devagar, foram aos Correios. Toda semana Tatiana ainda verificava se havia alguma carta de Babushka, para lhe escrever depois uma nota curta. Depois da morte de Deda, elas só haviam recebido uma carta da avó, contando-lhes que se mudara de Molotov para um vilarejo pesqueiro no poderoso Kama.

As cartas de Tatiana eram breves; ela não conseguia armar mais do que uns poucos parágrafos. Contava a Babushka coisas do hospital, sobre Vera, sobre Nina Iglenko e um pouco sobre o louco Slavin. Ele que, depois de seu inexplicável sumiço, duas semanas atrás, agora passava os dias e as noites como sempre, no chão do corredor, metade do corpo dentro do quarto, a outra metade fora, indiferente ao bombardeio e à fome. Sua única arma contra o inverno era um cobertor sobre o seu corpo consumido. Slavin, Tatiana podia escrever sobre ele. Sobre ela própria, não podia, muito menos sobre a família. Ela deixava isso para Dasha, que sempre conseguia escrever uma sentença mais viva e colocá-la junto a um parágrafo triste de Tatiana. Tatiana não sabia como esconder a Leningrado de outubro, novembro e dezembro de 1941. Dasha, porém, escondia tudo escrevendo de forma constante e animada somente sobre Alexander e os planos de casamento dos dois. Bem, ela era uma adulta. Adultos podiam esconder muito bem.

A carta que Tatiana levava hoje não continha nenhum adendo de Dasha, muita cansada ontem para escrever.

Alexander e Tatiana caminharam como sempre com todo cuidado na neve, rostos para baixo e afastados do vento cortante. A neve penetrava as botas rasgadas de Tatiana e não se derretia. Ela segurava no braço de Alexander enquanto pensava na sua próxima carta. Talvez nela escrevesse sobre Mamãe. E Marina. E Tia Rita. E Babushka Maya.

Os Correios estavam no primeiro andar do velho edifício, na Nevsky. Estivera antes no térreo, mas explosivos estilhaçaram as janelas, e não foi possível substituir o vidro. E assim os serviços foram para o primeiro andar. O problema era com as escadas que dificultavam o acesso. Estavam cobertas de gelo e corpos.

– Está ficando tarde – Alexander disse no pé das escadas. – Preciso ir embora, tenho que me reapresentar ao meio-dia.

– Ainda falta muito para o meio-dia – disse Tatiana.

– Não, na verdade, são onze. Levamos uma hora e meia para chegar até aqui.

Tatiana sentia ainda mais frio.

– Vá, Shura, saia do frio – ela murmurou.

Ele ajeitou o cachecol de Tatiana e disse:

– Não vá a nenhuma loja. Vá direto para casa. Eu já dei a vocês a minha ração. E gastamos todo o meu dinheiro.

– Eu sei. Assim farei.

– Por favor.

– Tudo bem – ela disse. – Você volta hoje à noite?

– Estou indo embora hoje à noite – ele disse balançando a cabeça. – Vou nomear o meu artilheiro substituto...

– Não diga isso.

– Volto logo que puder.

– Tudo bem. Você promete?

– Tatia, vou tentar tirar você e Dasha de Leningrado, em um dos caminhões. Vocês se aguentem até que eu possa fazer isso, certo?

Eles se olharam. Ela queria dizer a ele como se sentia grata por poder olhá-lo no rosto, mas faltou-lhe energia para isso. Assentindo, virou-se para subir as escadas. Alexander permaneceu embaixo. Ela escorregou no segundo degrau e tropeçou para trás. Ele esticou as mãos e segurou-a, endireitando-a. Ela agarrou no corrimão e voltou-se para ele. Um esboço de sorriso surgiu em seu rosto.

– Vou ficar bem sem você – ela disse. – Posso me virar.

– E aqueles rapazes vorazes que seguiram você até em casa?

Tatiana aqueceu os seus olhos de forma que pudesse encará-lo com a verdade que ia dentro dela.

– Eu realmente não vou ficar bem sem você – ela disse. – Não posso me virar sozinha.

– Eu sei – Alexander disse. – Segure no corrimão.

Devagar, Tatiana subiu a escada escorregadia. Ao chegar em cima virou-se para ver se Alexander ainda estava lá. Ele estava, olhando para cima em sua direção.

Ela pressionou sua mão enluvada nos lábios.

Na manhã seguinte à da ida aos Correios, Dasha não conseguia levantar-se da cama.

– Dasha, por favor.

– Não posso. Vá você.

– Claro que eu vou, mas, Dasha, não quero ir sozinha. Alexander não está aqui.

– Não, ele não está.

Tatiana arrumou os cobertores e os casacos em cima da irmã. Mesmo suplicando à Dasha que se levantasse, Tatiana sabia que a irmã não iria a lugar algum. Com olhos fechados, ela estava deitada na mesma posição em que adormecera na noite passada. Dasha também estivera muito quieta a noite passada. Muito quieta, exceto por uma tosse.

– Por favor, levante-se. Você precisa se levantar.

– Eu me levanto mais tarde – disse Dasha. – Agora não posso. – Seus olhos continuavam fechados.

Tatiana foi pegar água na parte de baixo do prédio. Essa operação tomou-lhe uma hora. Com um pé de cadeira, ela acendeu a bourzhuiska, e quando o fogo começou, fez um pouco de chá para Dasha.

Depois de alimentar Dasha com colheres de um líquido algo marrom com um mínimo de açúcar, ela foi à loja de rações. Eram dez da manhã, mas ainda estava escuro. Às onze haveria luz, Tatiana pensou. Quando eu voltar com o pão haverá luz.

– “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” – ela sussurrou. Eu gostaria de ter conhecido essa prece muito antes. Eu poderia ter feito todo dia desde setembro.

Agora é escuro o tempo todo. Era tarde? Era cedo? Era final de tarde ou noite? Ela olhou o despertador. Não podia usar as mãos no escuro.

Não vejo luz. De manhã está escuro, e quando arrasto o balde de água escadas acima está escuro, e quando lavo o rosto de Dasha e vou à loja e as bombas voam, está escuro. Um edifício então explode e brilha em chamas, e eu posso ficar diante dele e me aquecer um pouco. O fogo deixa o meu rosto vermelho, e eu fico ali – por quanto tempo? Bem, hoje fiquei até por volta do meio-dia. Só cheguei ao hospital à uma da tarde. Amanhã talvez eu possa sair e encontrar outro incêndio em algum lugar. Mas em casa está escuro.O óleo e o pavio de Alexander no pires ajudam, posso sentar e olhar um livro, talvez, ou o rosto de Dasha.

– Dasha.

Por que ela me olha desse jeito? Há cinco dias que ela não é a mesma. Nos últimos três dias não saiu da cama. Seus olhos estão mais escuros. O que há neles? Ela me olha como se não soubesse quem eu sou.

– Dasha? O que há com você?

Dasha só olha fixo, não responde. Não se mexe.

– Dasha!

– Por que você grita assim? – Dasha disse baixinho.

– Por que você me olha desse jeito?

– Venha aqui.

Tatiana ajoelhou-se junto ao rosto de Dasha.

– O que é, meu bem? – ela disse. – O que eu posso trazer para você?

– Onde está Alexander?

– Eu não sei. Lá em Ladoga?

– Quando ele volta?

– Não sei. Talvez amanhã.

Dasha continuava olhando a irmã.

– O que há? – Tatiana perguntou.

– Você quer que eu morra?

– O quê? – Até mesmo em sua quase extinta vida, Tatiana estava perplexa. – Claro que não. Você é minha irmã. Todos precisamos de uma segunda pessoa para permanecermos humanos, Dasha, você sabe disso.

– Eu sei.

– Entao qual é o problema?

– Você é a minha segunda pessoa, Tania.

– Sim.

– Mas quem é a sua segunda pessoa? – sussurrou Dasha.

Aí está.

Tatiana piscou.

– Você – ela disse. Inaudível.


Através daquele formidável mar

1

– Eu vi vocês, Tatiana – disse Dasha na escuridão. – Eu vi você e ele juntos.

– Do que está falando? – O coração de Tatiana parou.

– Eu vi vocês. Vocês não sabiam que eu estava observando. Mas eu vi vocês nos Correios, cinco dias atrás.

– Que Correios?

– Vocês foram aos Correios.

Tatiana, ajoelhada junto à cabeça de Dasha, tentou lembrar. Correios, Correios. O que aconteceu nos Correios? Ela não conseguia lembrar.

– Você sabia que nós fomos aos Correios. Eu disse a você.

– Não estou falando disso. Ele acompanha você a todo lado.

– Ele faz isso para nos proteger.

– A nós, não.

– Sim, Dasha, nós. Ele está muito preocupado com a gente. Você sabe por que ele me acompanha. Você se esqueceu da comida que ele nos traz?

– Não estou falando sobre nada disso – Dasha falou.

– Graças a ele ninguém rouba nosso pão, ninguém pega nossos carnês de racionamento. Como acha que eu tenho alimentado você? Ele mantém os canibais longe de mim.

– Não quero falar sobre isso.

Mas Tatiana queria.

– Dasha, ele me traz o pão dos soldados mortos para dá-lo a você e, quando isso não é possível, ele me dá metade de sua própria ração para passá-la a você.

– Tatiana, ele traz o pão para que você o ame.

Boquiaberta, Tatiana disse:

– O quê? – Rápido, ela se recompôs e disse: – Errou de novo. Ele lhe dá o pão para que você viva.

– Oh, Tania.

– Oh, Tania, coisa nenhuma. Por que me seguiu até os Correios?

– Eu me senti culpada por não escrever para Babushka. Ela sempre espera ansiosa minhas cartas. Você é muito depressiva para o gosto dela. Você simplesmente não consegue esconder a verdade como eu. Ou eu pensei assim – Dasha disse. – Escrevi a ela um bilhete animado. Não segui você. Vi você já nos Correios.

– Fomos primeiro à loja de rações.

Tatiana levantou-se e colocou no fogo outro pé de cadeira. O pé de cadeira não ia durar a noite toda, mas tinham que racionar. Quando Alexander serrou a mesa, Tatiana não percebeu o quanto queriam se aquecer. A mesa inteira já fora consumida pelo fogo. Sobravam quatro cadeiras.

Quando Alexander lhes trazia comida, Tatiana não percebeu o quanto queriam comer. Não havia mais batatas. Tampouco laranjas. Só um pouco de cevada.

Quando Tatiana voltou para a cama, de novo cobriu Dasha e ajeitou-se no seu lugar de sempre, querendo virar para a parede. Dessa vez não fez isso.

Não trocaram palavras durante alguns minutos. Devagar, Dasha virou-se para encarar Tatiana.

– Eu quero que ele morra no front – ela sussurrou.

– Não diga isso – falou Tatiana, querendo fazer o sinal da cruz, mas não podendo tirar seu braço frio do cobertor quente. Estava muito fraca para uma inflexão. Logo o fogo se apagaria. De novo mergulhariam no escuro. As duas estavam exauridas. Tatiana pensou que estavam muito fracas para sentir algum desgosto.

Mas, então, Dasha disse:

– Eu vi você e ele, eu vi o jeito que vocês se olhavam. – E Tatiana percebeu que não, elas não estavam tão fracas.

– Daschenka, do que você está falando? Não houve nenhum olhar. Meu chapéu cobria metade da minha cara. Nem mesmo sei o que você quer dizer com isso.

– Ele estava ao pé das escadas. Você, dois degraus acima. Ele evitou que você escorregasse no gelo. Ele lhe disse alguma coisa, você olhou para baixo e assentiu. E então vocês dois se olharam. Você subiu as escadas. Ele ficou ao pé da escada olhando você. Eu vi tudo.

– Dasha, querida, você está se preocupando por nada.

– Estou? Tania, me diga, há quanto tempo estou completamente cega?

Tatiana balançou a cabeça no meio da noite e sussurrou:

– Não.

– Estou cega desde o começo? Desde o dia em que entrei no quarto e vi Alexander diante de você? Desde então e através dos dias que se seguiram? Oh, meu Deus, me diga!

– Você está louca.

– Tania, eu posso ter sido cega, mas não sou idiota. O que você acha? Que eu não sei? Eu nunca havia visto nele aquele olhar. Ele observou você subir as escadas com tal ansiedade, tal ternura, tal sentido de posse, tal amor, que eu me virei para ir embora e teria vomitado na neve se tivesse alguma coisa para vomitar.

Tatiana, enfraquecida, repetiu:

– Você está errada.

– Estou? E quando você olhava para ele nos Correios, o que havia em seus olhos, irmã?

– Eu não sei nada sobre os Correios. Ele me levou até lá. Nos despedimos. Eu subi. O até logo estava nos meus olhos.

– Não era um até logo, Tania.

– Dasha, pare. Eu sou sua irmã.

– Sim, mas ele nada me deve.

– Ele só me protege.

– Não é proteção, Tania. Ele está louco por você, consumido.

– Não.

– Você já dormiu com ele?

– O que você está perguntando?

– Me responda. É uma simples pergunta. Já dormiu com Alexander? Já fizeram amor?

– Dasha, claro que não. Olhe, isso é só...

– Faz tempo que você mente para mim. Está mentindo agora?

– Não estou mentindo.

– Quando? Antes? Agora?

– Nem antes. Nem agora – Tatiana disse, mal podendo articular as palavras.

– Não acredito em você. – Dasha fechou os olhos. – Oh, meu Deus, não aguento isso – ela sussurrou. – Não aguento. Todos aqueles dias, aquelas noites, aquelas horas que passamos juntas, dormindo na mesma cama e comendo do mesmo prato... Como tudo pode ter sido uma mentira? Como?

– Não foi uma mentira! Dasha, ele ama você. Veja como ele beija você, como ele toca você. Ele não fazia amor com você? – Palavras difíceis de pronunciar.

– Ele me beijava, me tocava. Não ficamos juntos desde agosto. Por que será isso?

– Dasha, por favor...

– Não estou bem para ser tocada agora – disse Dasha. – Você tampouco.

– Estes dias logo terminarão.

– Sim, e eu com eles. – Dasha tossiu.

– Não fale assim.

– Tania, o que você vai fazer quando eu morrer? Será mais fácil para você?

– Do que você está falando? Você é minha irmã... – Se pudesse, Tatiana teria chorado. – Não abandonei você, não fui embora! Fiquei aqui com você, não estou em nenhum outro lugar. Não vou deixá-la. E não estamos morrendo. Ele ama você. – Tatiana colocou as mãos no peito para sufocar um persistente gemido.

– Sim – Dasha disse, triste. – Mas o que eu quero é que ele me ame como ama você.

Tatiana não disse nada. Ela ouvia a lenha queimar no fogão de cerâmica, calculando quanto tempo ainda para que a perna da cadeira virasse cinzas, as mãos sobre seu coração.

– Ele não me ama – ela disse numa voz vazia. – Como ele pode me amar e ao mesmo tempo planeja casar-se com você?

– Me diga – Dasha perguntou –, por quanto tempo mais vocês iam esconder isso de mim?

Até o fim.

– Não há nada para esconder de você, Dasha.

– Oh, Tania – Dasha tornou-se mais morosa. – Como é possível que numa hora como esta, no escuro, tão perto do outro mundo, você ainda tenha energia para mentir, e eu ainda tenha energia para ficar furiosa? Eu agora não posso nem me levantar. Mas raiva, sim; mentiras, oh, sim.

– Bom – disse Tatiana. – Você está confortável assim? Sinta isso. Pode me odiar, se for preciso. Pode me odiar com todas as suas forças, se isso lhe ajuda.

– Devo odiar você? – A boca de Dasha mal se mexia. – Existe alguma razão para que eu odeie você?

– Não – disse Tatiana, virando-se para a parede. Mentiras até o fim.

2

No dia seguinte, Dasha ainda não conseguia se levantar. Ela queria sair da cama, mas simplesmente não conseguiu. Tatiana tirou-lhe de cima os cobertores e os casacos. Eram as nove da manhã, e uma vez mais as meninas haviam dormido sem ouvir a sirene de ataque aéreo das oito.

Tatiana finalmente foi sozinha para a loja. Lá chegou por volta do meio-dia, quando já não havia mais pão. Haviam recebido um pequeno carregamento, que terminara às oito da manhã.

– A senhora tem alguma coisa que pode me dar? Alguma coisa que possa fazer para me ajudar? – perguntou Tatiana à mulher por trás do balcão de vidro. A mulher não podia nem responder.

Tatiana saiu da loja e caminhou à procura da única pessoa que podia ajudá-la.

No portão de entrada das barracas ela disse ao sentinela:

– Estou procurando o Capitão Belov. Ele está aqui?

– Belov? – O guarda, que Tatiana não conhecia, consultou seus registros. – Sim, ele está aqui. Mas não tenho ninguém que possa ir chamá-lo.

– Por favor – disse Tatiana. – Por favor. Hoje o pão acabou cedo e minha irmã está...

– O que acha, que o capitão tem pão para você? Ele não tem nenhum pão. Saia daqui.

Tatiana não se mexeu.

– A minha irmã é noiva dele – ela disse.

– Isso é muito bom – ele disse. – Por que você não me conta o resto da história da sua vida?

– Qual é o seu nome? – ela perguntou.

– Cabo Kristoff – ele disse. – Cabo – ele repetiu.

– Muito bom, cabo – Tatiana disse. – Eu sei que você não pode deixar o seu posto. Mas pode me deixar entrar e falar com o capitão?

– Deixar você entrar na base? Você está louca.

– Sim – disse Tatiana, apoiando-se no portão. Ela sentiu como se fosse cair, depois de tanto andar. Mas não ia voltar para casa sem comida para a irmã. – Sim, eu sou louca. Mas olhe para mim, não estou tirando alimento de sua boca. Não estou pedindo nem mesmo que saia daí se não quiser. Tudo o que eu peço é que me deixe ver o Capitão Belov. Por favor, me ajude nisso. Coisa pequena. Não estou pedindo muito, estou? – ela repetiu.

– Ouça, garotinha, já falei tudo com você – Kristoff disse, tirando o rifle de seu ombro. – É melhor você sair daqui. Está me entendendo?

Agarrada no portão, Tatiana queria balançar a cabeça, mas não podia.Só os seus lábios se mexiam.

– Cabo Kristoff, eu vou esperar bem aqui. O Sargento Petrenko, o Tenente Marazov, o Coronel Stepanov, todos eles me conhecem. Vá e diga-lhes que você está mandado embora a irmã da noiva moribunda do capitão Belov.

– Você está me ameaçando? – Kristoff perguntou incrédulo, levantando a arma.

– Cabo! – Um oficial caminhava através do pátio. – O que acontece aqui? Algum problema?

– Estou dizendo a esta menina que suma daqui, senhor – disse Kristoff.

O oficial olhou para Tatiana.

– A quem você procura? – ele perguntou a Tatiana.

– Ao Capitão Belov, senhor – Tatiana disse.

O oficial disse a Kristoff:

– O Capitão Belov está lá em cima.Você já o chamou?

– Abra o portão. – O oficial puxou Tatiana para dentro. – Venha. Qual é o seu nome?

– Sou Tatiana.

– Tatiana... – o oficial disse. – O Kristoff a maltratou?

– Sim, senhor – ela disse.

– Não se preocupe com ele. É só ansioso demais. Eu já volto.

O oficial foi aos aposentos de Alexander. Alexander dormia. Ele estivera de serviço nas barracas a noite inteira.

– Capitão – o oficial disse bem alto. Alexander acordou no ato. – Há uma jovem esperando pelo senhor lá fora – ele disse. – Eu sei que é contra o regulamento, mas posso mandá-la aqui? Uma menina chamada Tatiana.

Antes que ele terminasse, Alexander já estava de pé e se vestia.

– Onde ela está?

– Lá embaixo. Eu a trouxe para dentro, achei que o senhor não se importaria.

– Eu não me importo.

– Aquele f.d.p. do Kristoff estava pronto para atirar na moça. Eu quase...

– Obrigado, Tenente. – Ele já saía pela porta.

Tatiana estava sentada ao pé da escada, cabeça apoiada na parede.

– Tatia? – Ele se postou na frente dela. – O que aconteceu?

– Dasha não consegue se levantar, não havia mais pão na loja. – Ela não podia nem olhar para cima.

– Venha. – Ele estendeu sua mão. Ela a tomou, mas não conseguia se levantar. Ele precisou colocar seus braços ao redor dela para erguê-la. – Você foi para muito longe? – ele perguntou suavemente.

Ela assentiu.

– Venha para o refeitório.

Alexander encontrou para Tatiana um pedaço de pão preto com uma colher de chá de manteiga, meia batata cozida com um pouco de azeite de linhaça e até mesmo café de verdade com um pouco de açúcar. Agradecida, ela comeu e bebeu.

– E a Dasha? – ela perguntou.

– Coma, eu tenho comida para Dasha.

Ele deu-lhe outro pedaço de pão preto, meia batata e um monte de feijões, que ela podia enfiar no bolso do casaco.

– Eu queria muito ir com você – Alexander disse –, mas não posso. Hoje não posso sair da base.

– Está bem – Tatiana disse e pensou: acho que não posso voltar sozinha. Não acho que posso.

O almoço tinha terminado no refeitório, e o local estava silencioso. Só alguns poucos soldados estavam sentados às mesas.

Tatiana queria perguntar a Alexander sobre a sua semana, sobre Petrenko, que ela não via fazia tempo, e sobre Dimitri. Ela queria contar-lhe sobre Kristoff, queria contar-lhe que Zanna Zarkova havia morrido. Já era tempo de voltar aos Correios, mas ela não podia mais ir lá sozinha.

Tatiana queria contar a ele sobre Dasha. Mas o esforço exigido para continuar aquela conversa era enorme, até mesmo na cabeça de Tatiana. Fazer as palavras saírem de sua boca, depois segui-las com mais palavras e mais pensamentos, era algo inimaginável para ela agora, quando já não tinha energia para mastigar o pão de que precisava para viver. Ela não podia pensar além do pão preto na sua frente. Eu conto a ele em outra ocasião.

Ambos permaneceram em profundo silêncio.

Alexander levou-a até o portão. Ela tropeçou no chão plano, quase caiu.

– Oh, meu Deus, Tatia – ele disse.

Ela não respondeu, mas quando ele a chamou de Tatia seu coração bateu mais rápido. Ela queria lhe responder. Endireitou-se, apoiou-se em seu braço e disse:

– Estarei bem, não se preocupe.

– Espere aqui. – Ele a sentou em um banco perto do portão, voltou minutos depois com um trenó e disse: – Venha, eu levo você para casa. Stepanov me deu duas horas. – Ele colocou o braço ao redor dela. – Venha.Você não precisa fazer nada. Eu faço tudo, você só tem que sentar.

Alexander assinou o registro de saída no portão de entrada.

– Eu sinto muito pelo que aconteceu antes – o cabo disse a Tatiana, lançando um olhar temeroso na direção de Alexander. Alexander abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Tatiana o puxou pela manga do casaco. Ela não balançou a cabeça, não disse uma palavra, só puxou. Alexander afastou-a um pouco, fechou a boca, cerrou o punho e desferiu um soco na cara de Kristoff. O cabo foi ao chão.

– Volto em duas horas, Cabo – ele disse –, e então eu cuido de você.

Alexander disse a Tatiana que sentasse. Em vez disso, ela se deitou. Ela pensou: não quero deitar. Ainda não sou um cadáver. Ainda não. Mas não podia evitar isso. Não conseguia manter-se sentada.

Tatiana deitou-se de lado, e Alexander empurrou o trenó através da neve, através das tranquilas e nevadas ruas de Leningrado no meio da tarde. Tatiana pensou: é muito pesado para ele. É sempre ele, quando nos conhecemos, ele carregou minha comida ao longo destas ruas, e agora está me carregando. Ela queria esticar os braços e tocar a ponta de baixo do casaco de Alexander. Em vez disso, dormiu.

Quando abriu os olhos, Tatiana viu Alexander debruçado ao seu lado, a mão dele descoberta e quente em seu rosto descoberto e frio.

– Tatia – ele sussurrou –, venha, estamos em casa.

Eu vou morrer com a mão de Alexander no meu rosto, Tatiana pensou. Não é uma maneira ruim de morrer. Não posso me mexer, não posso me levantar, não posso. Ela fechou os olhos e sentiu-se à deriva.

Através da bruma, à sua frente, ela ouviu a voz de Alexander.

– Tatiana, eu amo você. Você me ouve? Eu amo você como nunca amei alguém em toda minha vida. Agora, levante-se por mim, Tatia. Por mim, por favor. Levante-se e cuide de sua irmã. Vá. E eu cuido de você. – Ele a beijou no rosto.

Ela abriu os olhos. Ele estava muito perto, e seus olhos pareciam sinceros. Ela acabara de ouvi-lo? Ou sonhou aquilo? Muitas noites ela sonhara com ele lhe dizendo de seu amor, palavras que ansiava ouvir desde Kirov. Ou estava ela só desejando de novo o sol das noites brancas?

Tatiana levantou-se. Ele não podia carregá-la nas costas escadas acima, ainda escorregadias. Mas colocou o braço ao redor dela, que, apoiada nele e num corrimão, conseguiu subir. Caminharam através do comprido apartamento, mas na porta de entrada de seus quartos Tatiana parou.

– Entre – ela disse. – Eu espero aqui. Entre e veja se ela... – Tatiana não podia terminar.

Alexander levou-a para dentro e em seguida foi ao quarto.

– Sim, Tania – ela ouviu sua voz. – Dasha está bem.Venha.

Tatiana entrou e ajoelhou-se junto à cama.

– Dasha – ela disse –, olhe só, ele trouxe comida para você.

Dasha, com seus olhos parecendo dois grandes pires marrons, dois grandes pires marrons vazios, mexeu os lábios em silêncio, seu olhar empolado indo do rosto de Tatiana ao de Alexander e de volta outra vez.

– Preciso ir embora – disse Alexander. – Vá amanhã cedo pegar o seu pão. Aqui tem o suficiente para agora. Vocês, meninas, já comeram toda a cevada? – Ele beijou Dasha na cabeça. – Eu trago mais amanhã.

Ela levantou o braço na direção dele.

– Não vá embora – disse Dasha.

– Preciso ir. Você estará bem. Coma suas rações. Volto logo para ver você. Tania, precisa de ajuda? Consegue se levantar do chão?

– Eu consigo me levantar – ela disse.

– Certo – ele respondeu e colocou suas mãos debaixo dos braços dela. – Vamos para cima.

Ela ficou em pé. Queria olhar para ele, mas sabia que Dasha estava observando e então olhou para ela. Era mais fácil; a sua cabeça já estava abaixada.

– Obrigada, Shu... Alexander.

3

Elas deitavam debaixo dos cobertores num estado de semiconsciência. Durante a noite, Tatiana acordou com uma batida na porta. Tardou-lhe muitos minutos livrar-se na cama de casacos e cobertores. Vacilante, caminhou através da entrada escura.

Alexander estava na porta e vestia seu uniforme branco de combate. Trazia sobre as orelhas e cabeça um chapéu acolchoado e nas mãos segurava um cobertor.

– O que aconteceu? – ela perguntou, pondo a mão no peito. Foi só vê-lo e o coração de Tatiana pulsou mais rápido, mesmo no meio da noite. Seus olhos se abriram mais. Ela estava acordada. – O que aconteceu?

– Nada – ele disse. – Você e Dasha se aprontem. Onde está ela? Precisa se aprontar.

– Aonde vamos? Dasha não pode se levantar – Tatiana disse. – Você sabe disso. Ela está tossindo feio.

– Ela vai se levantar – Alexander respondeu. – Vamos. Hoje à noite tem um caminhão de armamentos saindo da guarnição. Eu levo vocês até Ladoga, e de lá vocês vão para Kobona. Tania! Eu vou tirar vocês de Leningrado.

Ele entrou e foi ao quarto. Dasha estava debaixo de cobertores e casacos. Seus lábios não se mexiam, seus olhos não abriam.

– Dasha – Alexander sussurrou. – Dashenka, querida, acorde. Temos de sair daqui. Agora mesmo, temos que ir embora. Rápido.

Sem abrir os olhos, Dasha murmurou:

– Não consigo me levantar.

– Você consegue e vai se levantar – ele disse. – Um caminhão de armamentos está esperando nas barracas. Levo vocês até o lago Ladoga. E depois atravessamos o lago. Hoje à noite. Vocês vão para Kobona, onde tem comida, e depois podem ir para junto de sua Babushka, em Molotov. Mas você tem que se levantar agora mesmo, Dasha. Agora, vamos. – Ele tirou-lhe os cobertores.

– Não posso ir até as barracas – Dasha sussurrou.

– Tania tem um trenó. E olhe! – Ele abriu o casaco e tirou um pedaço de pão branco com casca. Partiu um pedaço da parte interna mais macia e colocou na boca de Dasha. – Pão branco! Coma. Isso vai lhe dar forças.

Dasha abriu a boca. Ela mastigou em silêncio sem abrir os olhos e depois tossiu. Tatiana estava perto, enrolada em seu próprio casaco, um cobertor sobre os ombros, olhando o pedaço de pão de um jeito que um dia olhou para Alexander. Talvez Dasha não coma todo o pão. Talvez sobre um pedaço para mim.

Era um pedaço pequeno. Dasha comeu tudo.

– Tem mais? – ela perguntou.

– Só a casca – Alexander respondeu.

– Como isso também.

– Mas não dá para mastigar.

– Eu engulo inteira.

– Dasha... Talvez sua irmã possa comer este pedaço. – Ele disse com firmeza.

– Ela está aí em pé, não está?

Alexander olhou para Tatiana, que estava ao seu lado. Ela balançou a cabeça e olhando o pão disse:

– Dê o pedaço a ela. Estou em pé.

Alexander respirou fundo e deu a casca para Dasha; depois, levantando-se, disse à Tatiana:

– Vamos indo. O que você precisa para se aprontar? Posso ajudá-la com a mala?

Tatiana observou-o com olhos vazios.

– Não tenho nada. Estou pronta agora. Estou de botas. Com o meu casaco também. Vendemos tudo. E queimamos o que sobrou.

– Tudo? – ele perguntou na escuridão – Uma palavra, transbordante de passado.

– Eu tenho... os livros – ela interrompeu.

– Traga-os – Alexander disse e inclinando-se mais junto dela, continuou: – Leia a contracapa do livro de Pushkin quando você se sentir vítima da má sorte. Onde estão os livros?

Alexander arrastou-se debaixo da cama para pegar os livros, enquanto Tatiana encontrou a velha mochila de Pasha. Ele então levantou Dasha e a forçou a ficar em pé. No escuro, as três silhuetas lutavam em silêncio, só se ouvindo os gemidos intermitentes de Dasha e a tosse que lhe saía do peito, ruídos que quebravam a noite em cacos. Finalmente, Alexander pegou Dasha no colo e a tirou do apartamento, com cuidado deslizaram escada abaixo. Já na rua, na noite cruel, ele deitou Dasha no trenó, cobrindo-a com o cobertor que trouxera. Alexander e Tatiana pegaram as rédeas e devagar empurraram Dasha ao longo das ruas, através da neve, no trenó azul de rodas vermelhas da infância das meninas.

– O que vai acontecer com Dasha? – Tatiana perguntou baixinho.

– Em Kobona tem comida e um hospital. Assim que ela melhorar, vocês vão para Molotov.

– Ela parece mal.

Alexander não disse nada.

– Por que ela tosse desse jeito? – Tatiana perguntou e também tossiu.

Alexander não disse nada.

– Faz tempo que não tenho notícias de Babushka.

– Ela está bem melhor do que você – Alexander disse. – Está difícil para você empurrar? Ande do meu lado. Solte o trenó.

– Não. – O esforço era tremendo. – Me deixe ajudá-lo.

– Economize suas forças. – Ele fez com que ela soltasse a corda. Tatiana soltou e caminhou ao lado dele. – Segure no meu braço – Alexander disse a ela. Ela segurou.

A noite estava tão fria, Tatiana não sentia mais os pés. Leningrado estava parada e silenciosa, quase completamente escura. No céu, as faixas de luzes translucentes da aurora boreal lançavam listras verdes na escuridão. Tatiana virou-se para olhar Dasha, que seguia deitada, imóvel, no trenó.

– Ela parece tão fraca – Tatiana disse.

– Ela está fraca.

– Como você consegue? – ela perguntou numa voz baixa – carregar sua arma, dar plantão, ir lutar no front, e ainda assim ter forças para cuidar de nós todas?

– Eu dou a vocês – disse Alexander, olhando para ela – o que vocês mais precisam de mim.

Em silêncio, eles trilharam através da neve. Alexander ficou mais lento. Tatiana tirou de suas mãos a segunda corda, ele não protestou.

– Eu me sentirei melhor vendo vocês duas fora de Leningrado. Eu me sentirei melhor sabendo que vocês estão seguras – ele disse. – Você não acha que assim será melhor?

Tatiana não respondeu.

Melhor para comer, sim. Melhor para Dasha comer, sim. Mas não era melhor para Alexander, nem melhor para ela. Não era melhor parar de vê-lo. Ela não disse nenhuma dessas coisas. E ouviu então a suave voz dele dizendo:

– Eu sei.

E ela queria chorar, mas sabia que chorar era impossível. Seus olhos, expostos à geada negra, doloridos por causa do vento, meio fechados por causa do frio, estavam secos.

Quando eles finalmente chegaram às barracas, uma hora mais tarde, o caminhão militar estava prestes a sair. Alexander carregou Dasha para dentro do veículo coberto. Seis soldados sentavam no piso e uma jovem mulher que segurava um bebê estava junto a um homem que mal parecia vivo. Ele parece pior que Dasha, Tatiana pensou. Porém, quando ela olhou para Dasha, percebeu que a irmã já não podia nem sentar-se sozinha.

Cada vez que Alexander colocava Dasha sentada, ela pendia para um lado. Tatiana precisava de ajuda para subir no caminhão. Ela não podia pular ou erguer-se com os braços. Precisava de alguém para levantá-la. Os outros ocupantes do caminhão estavam indiferentes a ela, incluindo Alexander, que tentava, ansioso e solícito, fazer com que Dasha abrisse os olhos. Alguém do lado de fora, gritou:

– Vai!

Então, o caminhão, lentamente, começou a se mover para adiante, na neve.

– Shura! – Tatiana gritou.

Alexander arrastou-se no piso do caminhão, agarrando Tatiana pelos braços e puxando-a para dentro.

– Você me esqueceu? – ela perguntou, e viu os olhos abertos de Dasha observando-os.

A porta traseira do caminhão fechou, e o seu interior ficou muito escuro; e, no escuro, apoiada nas mãos e nos joelhos, Tatiana chegou até Dasha.

Em silêncio, eles se dirigiram ao lago Ladoga.

Alexander estava sentado no chão junto de seu rifle. Dasha deitada no piso coberto de serragem, apoiava a cabeça no colo dele. Tatiana levantou os pés da irmã e enfiou-se debaixo deles, mais perto de Alexander. Dasha agora estava quase em cima deles. Alexander tinha sua cabeça; Tatiana, os pés. Alexander apoiou-se na parede da cabine e Tatiana apoiou-se na parede do caminhão. Ela pegou um pedaço de serragem e colocou na boca, tinha gosto de pão. Pegou outro pedaço.

– Não coma isso, Tania – disse Alexander. Como ele podia vê-la? – Isso é sujeira.

As horas correram.

No cintilar ocasional de alguma luz, Tatiana pegava Alexander olhando-a. Seus olhos se encontravam e assim ficavam até que diminuísse a luz de outro veículo que passava. Sem dizer nenhuma palavra, sem se tocarem, eles sentados no piso do caminhão, a cada momento de luz, olhavam-se de novo.

Minutos sem fim passaram.

– Que horas são? – Tatiana perguntou baixinho.

– Duas da manhã. Logo chegaremos lá – Alexander disse.

Tatiana queria comer e não queria mais sentir frio. Queria que a irmã melhorasse, para se levantar. Ao mesmo tempo, ir para Molotov parecia o fim.

Ela esperou por outra luz para que assim pudesse captar o olhar de Alexander por um ou dois segundos. Seus olhos acostumaram-se ao escuro, e ela podia distinguir sua silhueta, sua cabeça e quepe, o formato de seus braços ao redor de Dasha para mantê-la aquecida. Tatiana espremeu as pernas de Dasha primeiro suavemente, depois com mais força. Ela sacudiu as pernas de Dasha e depois com mais força. Dasha se mexeu um pouco e tossiu. Aliviada, Tania fechou os olhos, abrindo-os em seguida outra vez. Não queria fechar os olhos. Logo ela iria através do gelo do lago Ladoga, longe dele. Se eu me esticar, posso tocá-lo, ela pensou.

– Tania? – ela ouviu a voz dele.

– Sim, Alexander?

– Qual é o nome do povoado onde mora sua avó?

– Lazarevo.

Ela esticou sua mão para ele. Ele esticou sua mão para ela.

– Lazarevo.

Uma luz que passa. Alexander e Tatiana tocaram-se. Escuridão de novo.

Alexander dormia. Dasha dormia. Dentro do caminhão todos tinham os olhos fechados, salvo Tatiana, que não podia tirar os olhos de cima de Alexander dormindo. Talvez eu esteja morta, ela pensou. Mortos não podem fechar os olhos. Talvez seja por isso que não possa dormir. Estou morta. Mas ela não podia fechar os olhos. Ela o observava. As duas mãos de Alexander continuavam na cabeça de Dasha.

– Alexander, por que você não comprou um sorvete também?

– Eu não queria.

– Então por que você olha para o meu sorvete com tanta vontade?

– Não estou olhando para o seu sorvete com toda essa vontade.

– Não? Quer experimentar um pouco?

– Tudo bem. – Ele se curvou e deu uma lambida no cremoso sorvete de Tatiana.

– Não é bom?

– Muito bom, Tania.

O caminhão finalmente parou. Alexander abriu os olhos. As outras pessoas se mexeram. A mulher com o bebê levantou-se primeiro e sussurrou ao marido:

– Leonid, vamos, querido, hora da travessia, levante-se, amor.

Alexander saiu debaixo de Dasha, ficou em pé e deu o braço a Tatiana.

– Levante-se, Tania – ele disse suavemente – É hora. – Ele a levantou. Ela oscilava de fraqueza.

– Shura – ela disse. – O que vou fazer com Dasha em Kobona? Ela não consegue andar e eu não sou você, não posso carregá-la.

– Não se preocupe. Lá tem soldados e médicos que podem ajudar você. Olhe só aquela mulher – ele sussurrou. – Ela carrega o bebê, mas o marido mal se aguenta em pé, como Dasha. Ela vai conseguir. Venha, eu ajudo você a descer.

Ele pulou e estendeu os seus braços para Tatiana, que não poderia ter descido sozinha mesmo que quisesse. Alexander levantou-a e trouxe-a para baixo, bem na frente dele. Ele não a soltou.

– Vá pegar Dasha, Shura – Tatiana sussurrou.

– Vamos logo! Mexam-se! – um sargento gritou atrás deles.

Alexander soltou Tatiana e, severo, virou-se ao redor. O sargento logo desculpou-se com o capitão.

Tatiana viu outros quatro caminhões, suas luzes acessas brilhando sobre o campo coberto de neve mais adiante. Percebeu que não era um campo. Era o lago Ladoga. Era a Estrada da Vida.

– Vamos, vamos, camaradas! Caminhem para o lago. Há um caminhão esperando por vocês. Vamos, quanto mais rápido vocês subirem, mais rápido chegaremos. São trinta quilômetros, umas duas horas sobre o gelo, mas tem manteiga lá do outro lado, e talvez um pouco de queijo. Se apressem!

A mulher com o bebê já descia a colina, o marido mancava ao lado dela.

Dasha estava nos braços de Alexander.

– Levante-a, Shura – disse Tatiana. – Vamos fazê-la andar.

Ele colocou Dasha no chão, mas suas pernas se dobraram.

– Vamos, Dasha, – disse Tatiana. – Ande comigo. Tem manteiga lá do outro lado, você não ouviu?

Dasha gemeu.

– Onde estou? – ela sussurrou.

– Você está na Estrada da Vida. Agora, vamos embora. Logo vamos comer e vamos ficar bem. Um médico vai examinar você.

– Você vem com a gente? – Dasha perguntou a Alexander.

Ele a segurou com o braço.

– Não, Dasha, eu fico. Meu tempo fora da base já se esgota. Assim que vocês chegarem a Molotov me escrevam, quando eu tiver uma folga, venho ver vocês.

Alexander disse isso sem olhar para Tatiana, mas Tatiana não podia ouvir isso sem olhar para Alexander.

Dasha andou poucos metros sozinha e então afundou-se na neve.

– Eu não consigo.

– Você consegue, você vai conseguir – disse Tatiana. – Vamos. Mostre a ele que sua vida tem um significado. Mostre-lhe que você pode andar até o caminhão para se salvar. Vamos, Dasha.

Eles a colocaram de novo em pé, então ela caminhou outros poucos metros e parou.

– Não – ela sussurrou.

Com Dasha apoiada neles, Alexander e Tatiana desceram a ladeira rumo ao lago, onde o caminhão militar esperava.

Alexander levantou Dasha e deitou-a no piso do caminhão. Desceu então para ajudar Tatiana, que mal se aguentava em pé. Ela se apoiou na lona, ouviu gritos. O caminhão acelerou o motor.

– Vamos, Tania, eu ajudo você a entrar – Alexander disse. – Você precisa ficar forte para cuidar de sua irmã. – Ele chegou bem perto dela.

Vou ficar forte, ela pensou haver dito.

– Não se preocupe com o bombardeio – Alexander disse. – Usualmente, tudo se acalma à noite.

– Não estou preocupada – Tatiana disse, vindo aos braços dele.

Ele a abraçou.

– Fique forte por mim, Tatiana – Alexander disse rouco. – Salve-se para mim.

– É o que eu faço, Shura – Tatiana disse. – Eu me salvo para você.

Alexander curvou-se para ela, mas Tatiana não podia nem levantar a cabeça. Ele beijou o chapéu dela. Continuaram abraçados por mais alguns segundos.

– É hora! – alguém gritou.

Alexander ajudou Tatiana dentro do caminhão. Ele subiu para deixar as duas meninas confortáveis, colocando a cabeça de Dasha no colo de Tatiana.

– Assim está bem? – ele perguntou. As duas irmãs responderam que sim.

Ele se ajoelhou na frente de Dasha e disse:

– Agora, lembre-se, quando lhe oferecerem comida em Kobona, coma pedaços pequenos. Não engula tudo de uma vez, isso pode arrebentar o seu estômago. Coma pedaços pequenos, e devagar. Você se acostuma com isso, depois poderá comer mais. Tome sopa com colheradas pequenas. Tudo bem?

Dasha pegou-lhe a mão. Ele a beijou na testa.

– Até logo, Dasha. Vejo você em breve.

– Adeus – sussurrou Dasha. – Como a minha irmã chama você? Shura?

Alexander olhou para Tatiana.

– Sim, Shura.

– Adeus, Shura – disse Dasha. – Eu amo você.

Tatiana fechou os olhos para não vê-lo falar. Se pudesse cobrir suas orelhas, teria feito isso.

– Eu amo você também – Alexander disse a Dasha. – Não se esqueça de me escrever.

Depois que ele se levantou, Dasha disse:

– Diga adeus à Tania. Ou vocês já se despediram?

– Adeus Tatiana – ele disse.

– Adeus – ela respondeu, olhando para ele.

– Tão logo vocês cheguem a Molotov, quero notícias suas, prometem?

– Alexander! – Dasha gritou.

– Sim? – Ele se inclinou.

– Me diga, há quanto tempo você ama minha irmã?

Alexander olhou para o rosto de Tatiana e depois para o de Dasha e desta de volta a Tatiana.

Ele abriu a boca para falar e depois a fechou com um tremular de cabeça.

– Há quanto tempo? Me diga. Olhe para todos nós aqui, que segredos ainda podemos ter? Me diga, querido. Me diga.

Queixo firme, Alexander disse enérgico:

– Dasha, eu nunca amei sua irmã. Nunca.Eu amo você. Você sabe disso.

– Você me disse que no próximo verão talvez nos casássemos – disse Dasha, débil. – Era verdade isso?

Ele assentiu e respondeu:

– Claro que era verdade. No próximo verão eu volto e então nos casaremos. Agora, vá.

Ele mandou um beijo a Dasha e desapareceu sem nem mesmo olhar para Tatiana, e ela queria desesperadamente só um pequeno e último olhar, quase no escuro, os olhos suaves dele nela pousados, para que assim pudesse ver um pouco de verdade. Mas ele não olhou para ela. Ela não viu nenhuma verdade. Ele nem passou perto dela. Ela percebeu que Alexander a negava.

Baixaram a lona, o caminhão arrancou, e eles de novo estavam no escuro. Só que agora Alexander não estava entre a escuridão e a luz, não havia luar, só tiroteio, e o som de explosões ao longe, as quais Tatiana mal podia ouvir, tão alto era o som das explosões dentro do seu peito. Finalmente ela fechou os olhos, de forma que Dasha, deitada com os olhos abertos, não podia olhar para cima e ver o que estava tão claro no rosto de Tatiana.

– Tania?

Ela não respondeu. Doía-lhe o nariz por causa do ar gelado que respirava. Abriu os lábios e respirou pela boca.

– Tanechka?

– Sim, Dasha, querida? – ela sussurou por fim. – Você está bem?

– Abra os olhos, irmã.

Não poderia, não abriria.

– Abra-os.

Tatiana abriu os olhos.

– Dasha, estou muito cansada. Você fechou os seus olhos durante horas. Agora é a minha vez. Empurrei o seu trenó e segurei suas pernas, e ainda ajudei você a descer a colina. Agora você está deitada em cima de mim, e eu só quero fechar meus olhos por um segundo, por um minuto. Tudo bem?

Dasha não disse nada, mas olhou para Tatiana com lúcida clareza. Tatiana segurou o rosto da irmã e fechou os olhos, ouvindo a tosse úmida de Dasha.

– Como você se sentiu, Tania, quando ele disse que nunca amou você?

Com o maior esforço, Tatiana evitou um gemido de dor.

– Muito bem – ela disse rouca. – Assim deve ser.

– Então por que seu corpo encolheu como se ele tivesse agredido você?

– Não sei o que quer dizer com isso – Tatiana disse num tom fraco.

– Abra os olhos.

– Não.

– Você o ama desesperadamente, não? – Dasha falou. – Como você conseguiu esconder isso de mim, Tania? Você não poderia amar tanto um homem.

Eu não poderia amar tanto um homem.

– Dasha – disse Tatiana com firmeza e graça –, eu amo mais você. – Ela não abriu os olhos enquanto falava.

– E você não escondeu isso de mim – disse Dasha. – De jeito algum. Você colocou o seu amor por ele numa prateleira, não num armário. Marina tinha razão. Eu estava cega.

Ela fechou os olhos e sua voz repercutiu no caminhão, chegando à mulher com o bebê e o marido, à Tatiana, ao motorista.

– Você deixou esse amor em mil lugares para que eu o visse. Eu agora vejo cada um desses dolorosos lugares. – Ela começou a chorar, rompendo num ataque de tosse. – Mas você era uma criança! Como podia uma criança amar alguém?

Dasha ficou quieta e depois gemeu.

Eu cresci, Dasha, pensou Tatiana. Em algum lugar entre o lago Ilmen e o começo da guerra, a criança crescera.

Do lado de fora ouvia-se o som distante de canhões, fogo de morteiro. Dentro do caminhão havia silêncio.

Tatiana pensava no bebê que a mãe segurava, uma jovem mulher de pele amarelada e com lesões nas faces. O marido apoiava-se em seu ombro; na verdade, ele mais que se apoiava, caía em cima de sua mulher, apesar da força que ela fazia para endireitá-lo, ele não ficava ereto. A mulher começou a chorar. O bebê nunca emitiu um som.

– Posso ajudar a senhora? – Tatiana falou com a mulher.

– Ouça, você tem seus próprios problemas – disse a mulher bruscamente. – O meu marido está muito fraco.

– Eu não sou um problema – Dasha disse. – Me levante, Tania, e me deixe apoiada na parede. O meu peito dói muito para que eu continue deitada. Vá, ajude-a.

Tatiana arrastou-se no piso do caminhão até a mulher e o marido. A mulher segurava o bebê com os dois braços e não o soltava.

Tatiana sacudiu um pouco o homem, puxando-o para cima, mas ele caiu de novo, e dessa vez foi ao chão. Estava pesadamente enrolado num cachecol, seu casaco abotoava-se até o pescoço. Tatiana demorou dez minutos para desabotoá-lo. A mulher não parava de falar com ela.

– Ele não está nada bem, meu marido. E minha filha não está melhor. Não tenho leite para ela. Sabe, ela nasceu em outubro. Que sorte! Uh, que má sorte para um bebê nascer em outubro. Quando fiquei grávida, em fevereiro passado, estávamos tão felizes. Achamos que era um sinal de Deus. Acabávamos de casar em setembro. Estávamos tão excitados. Nosso primeiro bebê! Leonid trabalhava no departamento de transporte público; ele não podia deixar o emprego e sua ração era muito boa, mas aí os bondes pararam, e ele não tinha mais o que fazer... por que você está desabotoando-o?

Sem esperar uma resposta, a mulher continuou:

– Eu sou Nadezhda. Minha filha nasceu e eu não tinha leite para ela. O que dar à menina? Tenho dado leite de soja, mas isso lhe provoca uma terrível diarreia, tive que parar. E meu marido realmente precisava se alimentar. Graças a Deus, finalmente subimos no caminhão. Há muito tempo esperávamos sair de Leningrado. Agora tudo ficará bem. Em Kovona haverá pão e queijo, alguém disse. O que eu não faria para ver um frango, ou alguma coisa quente? Como até carne de cavalo, não me importa. Só alguma coisa para Leonid.

Tatiana tirou seus dois dedos do pescoço do homem e, com muito cuidado, o abotou de novo, enrolando o cachecol ao redor do pescoço dele. Ela o moveu ligeiramente de forma que ele não ficasse em cima das pernas da esposa e voltou a sentar ao lado de Dasha. Dentro do caminhão, um silêncio mortal. Tudo o que Tatiana podia ouvir era a respiração rasa de Dasha, quebrada por surtos de tosse. Isso, e Alexander dizendo que nunca a amou.

As duas irmãs fecharam os olhos para não ver a mulher com sua bebê morta e seu marido morto. Tatiana colocou a mão na cabeça de Dasha. Dasha não a removeu.

Chegaram a Kobona ao raiar do dia – o dia raiando, uma névoa púrpura no horizonte escuro. Os traços do rosto de Dasha tornaram-se opacos ao invés de vagos. Por que Tatiana notava agora, assim de repente, a respiração ruidosa de Dasha?

– Dasha, você pode se levantar? – Tatiana perguntou. – Já chegamos.

– Não consigo – ela disse.

Nadezhda gritava por alguém que fosse ajudá-la e ao marido. Ninguém apareceu. Veio, sim, um soldado, que levantou a lona da traseira do caminhão e resmungou:

– Todo mundo fora. Temos que recarregar e voltar.

Tatiana puxou Dasha.

– Vamos, Dasha, levante-se.

– Vá buscar ajuda, Tania – Dasha disse. – Eu não consigo mais me mexer.

Tatiana puxou a irmã para cima para que ficasse de quatro.

– Você se arrasta até a beirada e eu ajudo na descida.

– Você pode ajudar o meu marido a descer? – disse Nadezhda suplicante. – Ajude-o, por favor. Você é tão forte. Viu que ele está doente?

Tatiana balançou a cabeça.

– Ele é muito grande para mim.

– Oh, vamos. Você está se mexendo. Ajude a gente, sim? Não seja egoísta.

– Espere – disse Tatiana. – Vou ajudar minha irmã a descer, e depois ajudo vocês.

– Deixe-a em paz – Dasha disse a Nadezhda. – Seu marido está morto. Deixe a coitada da minha irmã em paz.

Nadezhda estremeceu.

Dasha arrastou-se, movendo-se como um soldado no piso do caminhão. Na beirada, Tatiana girou Dasha ao redor, baixando-a do caminhão, as pernas primeiro. As pernas de Dasha atingiram o chão, e o resto do seu corpo foi junto e caiu. Ela ficou na neve.

– Dasha, vamos, por favor, não posso levantar você sozinha – disse Tatiana.

O motorista do caminhão chegou perto e, com um movimento, colocou Dasha em pé.

– Aguente firme, camarada. Aguente firme e caminhe até a tenda de campo. Eles lhe darão comida e chá quente. Agora, vá.

De dentro do caminhão, Nadezhda gritou:

– Não se esqueçam de mim aqui!

Tatiana não queria ficar ali para ouvir Nadezhda descobrir a verdade sobre o marido e a filha. Virando-se para Dasha, ela disse:

– Pode me usar como uma muleta. Me coloque debaixo do seu braço e ande comigo. – Ela apontou para uma ladeira rasa. – Olhe só, estamos no rio Kovona.

– Eu não consigo. Não pude caminhar com você e Alexander na descida do outro lado, não posso subir uma colina agora só com você.

– Não é uma colina. É uma encosta. Use toda a raiva que você sente por mim. Use-a, e suba a maldita encosta, Dasha.

– Tão fácil para você, não? – disse Dasha.

– Então é isso? – Tatiana balançou a cabeça.

– Tão fácil. Você só quer viver, e isso é tudo.

– Eu quero viver. Mas isso não é tudo. – Elas iam tropeçando através da neve, Dasha segurando em Tatiana. – E você? Não quer viver?

Dasha não respondeu.

– Vamos em frente – disse Tatiana. – Você está indo muito bem. Não tem ninguém para nos ajudar. – Ela apertou a irmã e sussurrou de forma intensa: – Somos só você e eu, Dasha! Os soldados estão ocupados, as outras pessoas ajudam sua própria gente. Como eu. E você quer viver. No verão, Alexander virá a Molotov e vocês se casarão.

Dasha reuniu força suficiente para rir suavemente.

– Tania, você nunca para, não é?

– Nunca – disse Tatiana.

Dasha caiu na neve e não se levantava.

Desesperada, Tatiana rodopiou ao redor e viu Nadezhda subindo a colina sozinha, sem a filha, sem o marido. Tatiana correu a ela.

– Nadezshda, por favor, me ajude. Me ajude com Dasha, ela caiu na neve.

Nadezshda livrou-se da mão de Tatiana.

– Fique longe de mim. Você não vê que estou sozinha agora?

Tatiana viu.

– Por favor, me ajude.

– Você não me ajudou. E agora estão todos mortos. Me deixe em paz. – Nadezshda afastou-se.

De repente, Tatiana ouviu uma voz familiar:

– Tatiana? Tatiana Metanova?

Ao virar-se na direção da voz, ela viu Dimitri que, mancando, se aproximava, apoiado em seu rifle.

– Dimitri! – Ela caminhou até ele. Ele a abraçou. – Me ajude, Dima, por favor. Minha irmã! Olhe, ela caiu.

Rápido, Dimitri foi a Dasha.

– Vamos – ele disse. – Eu ainda estou ferido. Não posso carregá-la sozinho. Vou chamar outro soldado. – Ele se virou para Tatiana e deu-lhe outro longo abraço. – Não posso acreditar que nos encontramos assim. – Ele sorriu e disse: – Deve ser o destino.

Dimitri conseguiu alguém para levantar Dasha e levá-la à tenda do hospital do campo, enquanto Tatiana ia penosamente atrás deles sob a luz cor de malva do céu.

Na tenda do hospital perto do rio Kobona, um médico examinou Dasha. Ele auscultou seu coração, seus pulmões, tomou-lhe o pulso, abriu sua boca, balançou a cabeça, levantou-se e disse:

– Ela está se consumindo de forma galopante. Esqueçam-se dela.

Tatiana deu um passo na direção do médico.

– Esquecê-la? Do que o senhor está falando? Dê alguma coisa para ela, um pouco de sulfa...

O medico riu.

– Vocês são todos iguais. Todos. Estão achando que eu vou gastar minha preciosa sulfa com um caso terminal? Ficaram loucos? Olhem só para ela. Não tem mais que uma hora de vida. Eu não gastaria um pedaço de pão com ela. Já repararam quanto muco ela está soltando? Já ouviram sua respiração? Tenho certeza que a bactéria da tuberculose já chegou ao fígado. Saiam e tomem um pouco de sopa e mingau na outra tenda. Se vocês comerem alguma coisa, ainda podem resistir.

Tatiana estudou o médico por alguns momentos.

– Estou bem? – ela perguntou. – Pode ouvir os meus pulmões? Eu não me sinto bem.

O médico abriu o casaco de Tatiana e pressionou o estetoscópio em seu peito. Em seguida, ele a virou e a examinou nas costas.

– Você, menina, precisa de um pouco de sulfamilanida. Você tem pneumonia. Uma enfermeira vai cuidar de você. Olga! – Antes de ir embora, ele se virou para Tatiana e disse: – Não chegue perto de sua irmã. A tuberculose é contagiosa.

Tatiana deitava no chão, enquanto Dasha deitava na cama limpa. Pouco depois, ela ficou muito fria. Tatiana se deitava ao lado dela no estreito catre, bem perto da irmã.

– Dasha – ela sussurrou –, toda a minha vida, sempre que eu tinha pesadelos, me aninhava em você, como agora, na nossa cama.

– Eu sei, Tania – sussurrou Dasha. – Você era a mais doce das crianças.

Do lado de fora, a luz fazia-se azulada. Tons de azul escuro no rosto trêmulo de Dasha. Ela ouviu a voz rouca de Dasha.

– Eu não consigo respirar...

Tatiana ajoelhou-se no chão diante da cama, abriu a boca de Dasha, e dentro dela, bem dentro dela, soprou um alento frio, brusco, atrofiado, piedoso. Alento sem solo, sem raízes, sem alimentos. Ela respirou de seus próprios pulmões aos pulmões da irmã. Tatiana tentava respirar fundo, mas não conseguia. Por intermináveis minutos, Tatiana respirou na boca de Dasha, para dentro dos pulmões de Dasha, o raso sussurro de vida.

Uma enfermeira aproximou-se e afastou Tatiana.

– Pare com isso – ela disse numa voz bondosa. – O médico não lhe disse que a deixasse em paz? Você é a doente?

– Sim – sussurrou Tatiana, segurando a mão fria de Dasha.

A enfermeira deu a Tatiana três pílulas brancas, um pouco de água e um pedaço de pão preto.

– Está molhado em água açucarada – ela disse.

– Obrigada – disse Tatiana arfando e respirando dolorosamente.

A enfermeira colocou os braços nas costas de Tatiana.

– Quer vir comigo? Vou tentar achar um lugar para você deitar antes do café da manhã.

Tatiana balançou a cabeça.

– Não dê a ela nada de pão. Coma você – disse a enfermeira.

– Ela precisa mais do que eu – disse Tatiana.

– Não, querida. – A enfermeira respondeu. – Ela não precisa.

Tão logo a enfermeira saiu, Tatiana esmagou os tabletes de sulfa na estrutura da cama, colocou as migalhas na mão e depois na água, tomou um pequeno gole, levantou ligeiramente a cabeça de Dasha do travesseiro e a fez beber o remédio dissolvido.

Tatiana partiu um pedaço do pão e deu a Dasha, que o engoliu com dor e engasgou. Aos borbotões pôs tudo para fora, cobrindo de sangue o lençol branco. Tatiana limpou a boca e o queixo de Dasha e de novo respirou dentro da boca da irmã.

– Tania?

– Sim?

– Isto é morrer? Assim sentimos a morte?

– Não, Dasha – era tudo que Tatiana podia responder.

Ela fixou o olhar nos olhos mudos de Tatiana, que piscavam.

– Tania... querida, você é uma boa irmã – sussurrou Dasha.

Tatiana continuava respirando na boca de Dasha.

Ela não podia ouvir a respiração penosa, difícil da irmã, só sua própria respiração.

Tatiana sentiu nas costas o toque de uma mão cálida, e uma voz por trás dela disse:

– Venha. Você não vai acreditar no que eu tenho para você. É hora do café da manhã. Tenho kasha de trigo sarraceno, pão e uma colher de chá de manteiga. Temos também chá com um pouco de açúcar, e até mesmo um pouco de leite de verdade. Venha. Como é o seu nome?

– Não posso deixar minha irmã – disse Tatiana.

– Venha, minha querida. O meu nome é Olga.Venha, o café da manhã não vai durar para sempre – a enfermeira disse numa voz solidária.

Tatiana sentiu braços que a levantavam. Ficou em pé, mas bastou olhar para Dasha e ela se afundou de novo no piso.

A boca de Dasha continuava aberta como Tatiana a havia deixado. Seus olhos também estavam abertos, olhando para o céu violeta, para além do pano da tenda, além de Tatiana.

Curvada e quebrada, Tatiana beijou e fechou os olhos de Dasha e fez o sinal da cruz em sua testa. Levantou-se com dificuldade, pegou na mão de Olga e saiu.

No refeitório contíguo, ela se sentou numa mesa e olhou no prato vazio. Olga trouxe-lhe um pouco de trigo sarraceno. Tatiana comeu metade da pequena tigela. Quando Olga lhe disse que comesse mais, Tatiana respondeu que não podia, pois estava guardando um pouco para Dasha, e desmaiou.

Tatiana acordou numa cama.

Olga veio e lhe ofereceu um pedaço de pão e um pouco de chá. Tatiana recusou.

– Se não come, você vai morrer – disse Olga.

– Eu não vou morrer – disse Tatiana muito fraca. – Dê o pão e o chá à minha irmã Dasha.

– Sua irmã está morta – disse Olga.

– Não.

– Venha comigo. Eu levo você a ela.

Tatiana foi com Olga até um quarto de fundo, onde viu Dasha estendida no chão junto a três outros corpos.

Tatiana perguntou quem ia enterrá-los. Olga respondeu com uma risada:

– Oh, menina, o que você está achando? Ninguém, claro. Você tomou os remédios que o médico lhe deu?

Tatiana balançou a cabeça e disse:

– Olga, pode me trazer um lençol? É para a minha irmã.

Olga trouxe-lhe um lençol, um pouco mais de remédio, uma xícara de chá preto com açúcar e pão com manteiga. Dessa vez Tatiana tomou os remédios e comeu, sentada numa cadeira de metal baixa, num quarto cheio de cadáveres. Terminada a refeição, estendeu o lençol no chão e rolou Dasha para dentro dele.

Por um longo tempo Tatiana manteve nas mãos a cabeça da irmã.

Depois de enrolar Dasha no lençol bem apertado, arrancando as extremidades estragadas e amarrando as pontas boas, Tatiana saiu da tenda e foi à procura de Dimitri. Em Kobona, pequena cidade praiana, na escuridão de janeiro, Tatiana encontrou muitos soldados, mas não ele. Precisava encontrá-lo. Necessitava de sua ajuda. Ela voltou ao rio Kobona. Parou um oficial e perguntou-lhe onde poderia estar Dimitri Chernenko. Ele não sabia. Ela perguntou a dez soldados, nenhum deles sabia. O décimo primeiro olhou para ela e disse:

– Tania, que diabos acontece com você? Eu sou Dimitri.

Ela não o reconhecera. Sem nenhuma emoção disse:

– Oh, preciso de sua ajuda.

– Você não me reconhece, Tania?

– Sim, claro – ela disse num tom neutro. – Venha comigo.

Mancando, ele foi com ela, seu braço levemente sobre os ombros de Tatiana.

– Você não vai me perguntar sobre a minha perna?

– Daqui a pouco, tudo bem? – Tatiana disse, levando-o ao quarto e mostrando-lhe o corpo de Dasha enrolado num lençol e rodeado de cadáveres descobertos. – Você me ajuda a enterrar Dasha? – ela perguntou, mal conseguindo falar.

Dimitri respirou fundo.

– Oh, Tania – ele disse, balançando a cabeça.

Ela continuou:

– Não posso levá-la comigo, mas tampouco posso deixá-la aqui.

– Tania – ele disse abrindo os braços. Ela afastou-se dele. – Onde vamos enterrá-la? A terra está congelada. Uma escavadeira não poderia limpar toda essa sujeira.

Tatiana continuou em pé e esperou. Pela luz do sol, por uma solução.

– Os nazistas estão bombardeando a Estrada da Vida, sim?

– Sim.

– O gelo no lago se quebra, sim?

– Sim. – O rosto de Dimitri registrava o entendimento gradual.

– Então, vamos embora.

– Tania, eu não posso.

– Sim, você pode. Se eu posso, você pode.

– Você não entende!

– Dima, você não entende. Eu não posso deixá-la jogada naquele quarto agora, posso? Eu não poderei deixá-la, e não poderei salvar a minha própria vida. – Tatiana aproximou-se e ficou na frente dele. – Me diga, Dimitri, quando eu morrer, você pelo menos saberá como costurar um saco para mim? Quando eu morrer, você vai me colocar naquele quarto em cima de outros corpos? O que você vai fazer comigo?

– Oh, Tania – ele disse batendo o rifle no chão.

– Por favor, me ajude.

Ele suspirou e mal balançou a cabeça.

– Eu não posso, olhe para mim. Fiquei no hospital quase três meses. Acabaram de me dar alta, e eles me colocaram no grupo de Kobona e agora tenho que dar voltas durante horas. Meu pé dói, e os alemães bombardeiam o lago o tempo todo, eu não vou para aquele lado. Se o tiroteio começa, eu não posso correr.

– Você me consegue um trenó, então? Pode fazer isso por mim? – ela disse friamente, sentando-se ao lado de Dasha.

– Tania!

– Dimitri, é só um trenó. Com certeza você pode fazer isso, não pode?

Ele voltou mais tarde com um trenó. Tatiana levantou-se do chão.

– Obrigada. Pode ir embora – ela disse.

– Por que você está fazendo isso? – Dimitri exclamou. – Ela está morta. Quem se importa agora? Não se preocupe mais com ela. Esta porra de guerra já não pode machucá-la.

Tatiana levantou os olhos e disse:

– Quem se importa? Eu me importo. Minha irmã não morreu sozinha. Eu ainda estou aqui. E não vou abandoná-la até que possa enterrá-la.

– E depois o que você vai fazer? Você tampouco parece estar muito bem. Vai procurar os seus avós? Onde estão agora? Kazan? Molotov? Você provavelmente não deveria ir, e sabe disso. Eu continuo ouvindo relatos de horror dos evacuados.

– Eu não sei o que vou fazer – ela acrescentou. – Não se preocupe comigo.

Quando ele já ia embora, ela o chamou:

– Dimitri?

Ele se virou.

– Quando encontrar Alexander, conte a ele sobre a minha irmã.

Ele assentiu.

– Claro, eu faço isso, Tanechka. Vou vê-lo na próxima semana. Eu lamento por não ter ajudado mais.

Tatiana afastou-se bem decidida.

Depois que ele foi embora, ela pediu a Olga que a ajudasse a colocar o corpo de Dasha no trenó, depois o empurrou encosta abaixo e caminhou atrás dele. No rio Kobona ela tomou as rédeas e, debaixo do céu silencioso e cinzento, empurrou Dasha, enrolada num lençol branco do hospital, no lago Ladoga. Era o começo da tarde, quase escuro. Não havia aviões alemães pairando. Por volta de um quarto de quilômetro, Tatiana encontrou um buraco de água. Ela ficou cutucando o corpo de Dasha até que escorregasse para baixo do gelo.

Tatiana ajoelhou-se e colocou a mão no lençol branco.

Dasha, você se lembra de quando eu tinha cinco anos, e você doze? Quando me ensinava a mergulhar no lago Ilmen? Você me mostrou como nadar debaixo da água, dizendo que amava a sensação de ter a água toda ao seu redor porque era tão cheia de paz. E depois você me ensinou a ficar debaixo da água mais tempo que Pasha, porque você dizia que as meninas deviam sempre ganhar dos meninos. Bem, você vai nadar debaixo da água agora, Dasha Metanova.

O rosto molhado de Tatiana estava virando gelo no vento do ártico.

– Eu gostaria de saber uma prece – ela sussurrou – Eu preciso de uma prece agora, mas não sei nenhuma. Querido Deus, por favor, deixe a minha única irmã Dasha nadar em paz e nunca sentir frio outra vez, e por favor... deixe que ela tenha todo o pão diário que possa comer, lá em cima no céu...

De joelhos, Tatiana empurrou o corpo de Dasha para dentro do buraco de gelo. Na luz que se esvaía, o saco branco parecia azul. Dasha foi relutante, como se não quisesse deixar a vida, e então desapareceu.

Tatiana continuava ajoelhada no gelo. Depois levantou-se e, tossindo nas luvas, lentamente empurrou o trenó vazio de volta à margem.

 

 

 


Perfume da primavera

1

Alexander tinha esperanças quando voltou a Lazarevo.

Ele não tinha nada além disso. Literalmente: nem uma carta, nem uma única correspondência sequer, nem de Dasha, nem de Tatiana, que indicasse que ambas haviam chegado em segurança a Molotov. Ele tinha sérias dúvidas a respeito de Dasha, mas se até mesmo Slavin sobrevivera ao inverno, tudo era possível. Era a total ausência de cartas de Dasha que mais preocupava Alexander. Durante o tempo em que ela esteve em Leningrado, ela lhe escrevia constantemente. Agora, já haviam se passado janeiro e fevereiro sem que ele tivesse notícias.

Uma semana depois que as garotas se foram, Alexander dirigira um caminhão até Kobona, através do gelo, procurando por elas nas praias da cidade, entre os doentes e os refugiados. Não encontrou nada.

Em março, inquieto e abatido, Alexander escreveu uma carta a Dasha, em Molotov. Também enviou um telegrama ao Soviete local, perguntando se havia informações a respeito de alguma Daria ou Tatiana Metanova, só recebendo sua resposta em maio, e pelo correio comum. A carta recebida do Soviete de Molotov, de apenas uma linha, dizia não haver notícias nem de uma Daria, nem de uma Tatiana Metanova. Ele enviou uma nova mensagem, perguntando se o Soviete da vila de Lazarevo podia receber telegramas. O telegrama que recebeu no dia seguinte tinha apenas duas palavras: NÃO. PONTO.

Sempre que era dispensado, Alexander aproveitava para voltar à Quinta Soviet, entrando no prédio com a chave que Dasha havia lhe deixado. Ele limpava os quartos, varria o chão e passou a lavar as roupas de cama, assim que o conselho da cidade consertou o encanamento, em março. Instalou também novos vidros em um dos quartos. Encontrou um velho álbum de fotografias da família Metanova e começou a olhar para ele, até fechá-lo de repente, deixando-o de lado. Em que ele estava pensando? Era como olhar para uma família de fantasmas.

E era assim que Alexander se sentia. Ele via fantasmas por toda a parte.

Todas as vezes em que Alexander voltava a Leningrado, ia ao posto dos correios na avenida Nevsky para checar se havia alguma correspondência para os Metanovs. O velho funcionário já estava cansado de vê-lo por ali.

Na guarnição, Alexander sempre perguntava ao sargento responsável pelos correios do exército se havia algo dos Metanovs. O sargento responsável pelos correios do exército já estava cansado de vê-lo por ali.

Mas não havia nada para Alexander: sem cartas, sem telegramas e sem notícias. Em abril, o velho funcionário da avenida Nevsky morreu. Ninguém ficou sabendo da morte dele que, aliás, ficou ali, sentado em sua cadeira atrás do balcão, enquanto a correspondência permanecia espalhada pelo chão, pelo balcão, pelas caixas e pelos sacos ainda fechados.

Alexander fumou trinta cigarros enquanto revirava as cartas, à procura de alguma coisa. Nada.

Ele voltou ao lago Ladoga, continuou a proteger a Estrada da Vida, agora um rio, e esperou por sua dispensa, enxergando o fantasma de Tatiana em todo lugar.

Leningrado aos poucos escapava das garras da morte, e o conselho da cidade temia, com razão, que a proliferação de cadáveres pela cidade, os canos entupidos e o esgoto a céu aberto pudessem desencadear uma gigantesca epidemia quando o clima começasse a esquentar. O conselho resolveu dar início a uma investida agressiva na cidade. Todos aqueles que ainda estavam vivos e aptos ao trabalho foram convocados para limpar as ruas dos destroços, resultantes do bombardeio, e dos corpos. As tubulações danificadas foram consertadas, a eletricidade, restaurada. Os bondes e os trólebus voltaram a funcionar. Com as novas mudas de tulipas e repolhos germinando em frente à Catedral de Santo Isaac, Leningrado parecia renascida, temporariamente. Tania gostaria de ver as tulipas na frente da catedral, pensou Alexander. A ração diária destinada à população civil foi elevada para trezentos gramas de pão. Não porque houvesse mais farinha. Mas porque havia menos gente.

No início da guerra, em 22 de junho de 1941, o dia em que Alexander e Tatiana se conheceram, havia três milhões de civis em Leningrado. Quando os alemães deram início ao cerco à cidade, em 8 de setembro de 1941, havia 2,5 milhões.

Na primavera de 1942, apenas um milhão de pessoas permaneciam ali.

Outras quinhentas mil haviam sido evacuadas, até o momento, pela via congelada sobre o lago Ladoga. Essas pessoas eram deixadas em Kobona, e seu destino era incerto.

E o cerco não havia terminado.

Depois que a neve derreteu, Alexander foi responsável por explodir uma série de covas gigantescas no cemitério de Piskarev, onde foram eventualmente sepultados quase meio milhão de corpos, levados para lá em caminhões funerários. Piskarev era apenas um dos sete cemitérios de Leningrado, para os quais os corpos eram transportados como se fossem feixes de lenha.

E o cerco não havia terminado.

Cargas de alimentos, cortesia do programa norte-americano de Lend-Lease, aos poucos galgavam seus caminhos tortuosos até a cidade de Leningrado. Em alguns momentos durante a primavera, os habitantes de Leningrado receberam leite desidratado, sopa desidratada, ovos desidratados. Alexander mesmo pegou alguns destes itens, incluindo um livro de expressões em russo e inglês, comprado de um motorista de um dos caminhões das entregas, em Kobona. Tania iria gostar de um livro de expressões, ele pensou. Ela estava indo tão bem com seu inglês.

A avenida Nevsky foi reconstruída com fachadas falsas, cobrindo os buracos deixados pelas bombas alemãs, e Leningrado entrou devagar, suavemente e em silêncio no verão de 1942.

As bombas e os torpedos alemães continuavam a cair diariamente, sem sinal de trégua.

Janeiro, fevereiro, março, abril, maio.

Quantos meses mais Alexander aguentaria sem saber? Quantos meses mais sem notícias, sem uma palavra sequer, sem um suspiro? Quantos meses mais carregando a esperança em seu coração, mas admitindo para si mesmo que o inevitável e o inimaginável poderiam, sim, ter acontecido, provavelmente teriam acontecido e, finalmente, certamente teriam acontecido? Ele via a face da morte por toda a parte. No front, acima de tudo, mas via a morte sem esperanças nas ruas de Leningrado, também. Ele via corpos mutilados e outros, dilacerados. Via cadáveres congelados e famintos. Ele viu isso tudo. Mas, mesmo assim e apesar de tudo isso, Alexander ainda tinha esperanças.

 

 

                                                                  Paullina Simons

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades