Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Lerry e o Lobo Batráquio / K. H. Scheer
Lerry e o Lobo Batráquio / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Lerry e o Lobo Batráquio

 

Estamos no ano 2.326 do calendário terrano. Grandes modificações se verificaram nos setores da Via Láctea explorados pelos terranos, desde que se desenrolaram os acontecimentos descritos no volume 149.

A partir de 1o de janeiro de 2.115, data em que Atlan renunciou, o Império Solar e o Império de Árcon deixaram de existir. Em seu lugar surgiu o Império Unido, governado por Perry Rhodan, que exerce as funções de Administrador Geral. O arcônida Atlan passa a exercer as funções de chefe da USO, cujos especialistas são chamados de bombeiros galácticos.

Sempre que surge um problema ou um perigo que não seja de âmbito estritamente planetário, estendendo seus efeitos por toda a Galáxia, a USO, criada de dirigida pelo Lorde-Almirante Atlan, entra em ação.

A fuga precipitada do Ser espiritual de Peregrino e a distribuição da vida eterna multiplicada por 25, sob a forma dos ativadores celulares, criaram tumultos entre todos os povos da Galáxia. As espaçonaves correm de um planeta para outro. Geralmente são os tripulantes das naves terranas que conseguem êxito na busca da imortalidade relativa. Afinal, a frota do Grande Império é a maior da Galáxia conhecida...

Já foram encontrados 19 ativadores celulares, mas para a mutante Anne Sloane, que possui o 19o ativador, a fonte da vida se transforma no anjo da morte. Um especialista rebelde da USO, pertencente ao povo dos antis, assassina a mutante, rouba o ativador e deserta. Os especialistas mais competentes da USO grudam-se nos calcanhares do assassino. Dessa forma verifica-se o grande encontro entre Lemy e o Lobo-Batráquio...

 

                                                

 

Meu nome é Lemy Danger. Sou especialista e major da USO, a polícia galáctica.

Peço que me desculpem por voltar a apresentar-me. Acontece que Melbar Kasom, um supergigante adaptado ao ambiente, manifestou a opinião de que nosso relato não seria prejudicado se, mais uma vez, explicássemos aos leitores terranos desta série quem somos, de onde viemos e o que pretendemos fazer no interesse dos povos amantes da paz que habitam a Galáxia.

No momento encontro-me a bordo de um supercouraçado terrano. Os corredores e compartimentos da nave são tão extensos que me perdi nos mesmos. Foi Perry Rhodan em pessoa que me levou ao camarote especialmente instalado para mim, onde finalmente encontrei objetos adaptados ao tamanho do meu corpo.

O camarote fica no centro de computação da nave. Pelo que sei, antes de minha chegada servia para guardar medicamento. Ainda há uma garrafa com comprimidos verdes num canto. Receio que caia por ocasião da próxima manobra de correção de rota e me machuque.

A Eric Manoli, nome que o administrador geral deu à nave ultramoderna em homenagem a um amigo falecido, não foi preparada para receber siganeses. Por isso tenho de contentar-me com a gaveta embutida na parede, pois, do contrário, correria perigo de ser pisado pelos gigantes distraídos.

A ventilação de meu camarote é deficiente. Não quero chegar ao ponto de dizer que essa ventilação não existe, mas não fugirei às regras da discrição se disser que o fluxo de ar que penetra pela rótula entreaberta não é nada refrescante.

Minha escrivaninha consiste no revestimento de um telefone queimado... Um oficial terrano pegou um alicate e abriu um buraco na chapa de plástico, para que eu possa abrigar as pernas. De início achei isso bastante deprimente, mas já me acostumei.

A cadeira não é tão ruim assim. Foi-feita com uma caixa de plástico que servia para guardar um pó desinfetante. Um técnico teve a idéia de aquecer o material para amolecê-lo e transformá-lo numa cadeira de encosto. Mas o cheiro penetrante do desinfetante não desapareceu por completo. Constantemente tenho que tossir ou espirrar. Naturalmente esforço-me para não deixar que os gigantes terranos percebam, pois não quero transformar-me mais uma vez no alvo de suas piadas.

Afinal, a vida não é nada fácil para uma criatura que tem apenas 22,21cm de altura; ou, mais precisamente, 222,11 mm.

Tenho certeza de que haveria manifestações de protesto em meu mundo natal — Siga, o segundo planeta da estrela Glador — se soubessem como fui acomodado a bordo da espaçonave. Por isso prefiro ficar calado e deixar de lado meu orgulho másculo, pois sei perfeitamente que os terranos não querem ofender-me.

Além disso fui convocado ao quartel-general terrano para apresentar um relato, e isso me deixou muito contente. Pelo que sei sou o primeiro especialista siganês que teve permissão para dirigir a palavra ao personagem mais importante do Império Unido. Faço votos de que ninguém ria de mim ou pense, de modo zombeteiro, onde pode estar o cérebro numa cabecinha como a minha...

Bem, minha cabeça realmente não é grande. Como explicar a essas pessoas, sem praticar discriminação contra mim mesmo, que a cada geração os indivíduos de meu povo ficam mais baixos, sem que ninguém saiba por quê?

Pelo que dizem, isso acontece por causa das condições do meio ambiente. Meus antepassados eram homens perfeitamente normais, que se fixaram no planeta Siga há cerca de trezentos anos do calendário terrano.

Acontece que as pessoas nascidas no planeta foram ficando cada vez menores, sem que isso acarretasse qualquer tipo de degenerescência. Pelo contrário. Hoje em dia os siganeses são os melhores microtécnicos da Galáxia. Já alcançamos mesmo o nível de desempenho dos homens-pepino, os swoons, que há cento e cinqüenta anos ainda eram inigualáveis em sua especialidade.

Fabricamos objetos tão pequenos que um homem só consegue localizá-los por meio do microscópio. Produzimos, por exemplo, rolamentos destinados a dispositivos de mira ótica ou positrônica, que são tão pequenos que até mesmo um técnico siganês tem de usar óculos microscópicos para trabalhar com eles.

Foi graças ao nosso trabalho que se tornou possível a precisão fantástica do tiro das grandes naves de guerra terrana e as incríveis manobras realizadas em viagem e durante as batalhas. Para nós, uma tolerância de um milionésimo de milímetro já é excessiva. O leitor poderá imaginar a precisão desses aparelhos. Mas, nos vôos realizados à velocidade da luz e diante das distâncias imensas do espaço, toda precisão é pouca.

Menciono isso apenas para deixar claro que o volume dos nossos cérebros não tem nenhuma relação com a exatidão dos nossos processos mentais. Acontece que em nossos corpos tudo encolheu. No entanto, por estranho que possa parecer, o número das células nervosas de nosso cérebro é um pouco superior ao do cérebro humano normal. Parece que os siganeses são parte de um plano fenomenal da Criação. Deve ter havido um motivo para ficarmos tão pequenos.

Tomara que consiga provar aos chefes do Governo Imperial que meu cérebro funciona muito bem. O que mais me martiriza é a idéia de que alguém possa duvidar de minha condição humana. Pelo que sei a meu respeito, isso me fará perder o autocontrole.

Surpreendo a mim mesmo rangendo os dentes e comprimindo o estilete de escrever com tamanha força que o corante sai na parte de cima. Trata-se de um pesado estilete de 12 mm de comprimento.

Faço uma autocensura e lanço um olhar para minhas mãos. Um desportista amigo disse que eram patas. Eu o pus nocaute no segundo round. Essa vitória me deu o título de campeão siganês de peso pesado do ano 2.326.

É bem verdade que neste ponto não posso deixar de mencionar meu peso enorme de nada menos de 852,18 g meus 30 anos de treinamento na Academia da USO e minha condição juvenil, pois tenho apenas 92 anos de idade. É claro que tenho certa superioridade sobre os outros siganeses. Por isso ficarei modestamente afastado da próxima olimpíada galáctica, a fim de não privar meus irmãos das condecorações a que fazem jus.

Prefiro não dizer mais nada a meu respeito. Conforme já ressaltei, só fiz esta apresentação porque Melbar Kasom acha que o leitor ainda não está bem informado a nosso respeito.

Mas, ao refletir sobre as idéias de Melbar Kasom, noto que ele me enganou. Naturalmente fez questão de ficar em evidência. Logo ele, que é apenas um montão de carne, vindo do superplaneta Ertrus.

É bom que o leitor saiba que o tamanho dos ertrusos chega em média a 2,40 m e que pesam cerca de 700 kg. Estão acostumados a uma gravitação de 3,4 G, o que os obriga a usar microgravitadores quando se encontram num mundo normal. Sem isso ficariam saltando que nem uma bola de borracha. A altura de Melbar chega a 2,51 m e seu peso é de 815 kg. O leitor poderá imaginar que isso o deixa muito convencido.

Só neste momento compreendo como foi traiçoeiro ao convencer-me a escrever, mais uma vez, algumas palavras a título de apresentação. Sabe perfeitamente que, quando começo uma coisa, costumo concluí-la.

Meu orgulho de homem não me permite atirar à cesta de papéis o relato que acabo de iniciar. Além disso, em meu camarote não existe nenhuma cesta de papéis. Os terranos se esqueceram desse detalhe, da mesma forma que esqueceram as instalações sanitárias com o respectivo lavatório.

Olho para trás, furioso, cerro o punho e caminho em direção à porta da gaveta embutida. Ao agir assim, penso no ertruso que naquele momento deve divertir-se à minha custa.

Provavelmente está fazendo malabarismo com terranos adultos, para dar-lhes uma demonstração de sua força. Gosta de atirar ao ar quatro homens de uma vez, para pegá-los um por um...

Vou para onde está minha bagagem e pego o relatório conjunto da ação que realizei juntamente com Melbar, no planeta Haknor. Esse moleque, que certa vez me fez dançar e tocar tambor durante duas horas, disfarçado em macaco, chega a afirmar que fui engolido por um peixe, juntamente com o traje espacial...

Trata-se de uma mentira desavergonhada, manchando minha dignidade, pois só representa uma meia verdade. Entrei de propósito na boca aberta do peixe, para evitar que o inimigo me localizasse com suas sondas submarinas. Foi isso mesmo! Lemy Danger nunca será engolido por um peixe contra sua vontade, mesmo que se trate de um monstro de quase um metro.

Estou revoltado e vou concluir a apresentação. Infelizmente este trabalho me faz vir à lembrança um “montão de músculos ertruso”, que nunca será capaz de compreender a beleza harmônica de minha figura bem treinada.

Da penúltima vez que nos encontramos em ação me transformei num pássaro, mais precisamente, num kubu haknorense. Os nativos fizeram de mim um animal sagrado, até que descobriram o logro, e por isso até hoje tenho que padecer com o sarcasmo de Melbar. Nunca mais entrarei numa máquina-pássaro na presença dele para executar meu difícil trabalho. Melbar nem desconfia de que, para um homem de 63,32 mm de largura nos ombros, é muito difícil dominar uma máquina-pássaro.

A raiva abala todo o meu ser. É bom que não apareça ninguém para dizer uma insolência. Quando alguém o quer fazer de bobo, um siganês pode tornar-se muito sensível.

Ouço um ruído às minhas costas. Viro-me abruptamente, saio da poltrona improvisada e lanço um olhar para a porta.

A rótula abre-se e o rosto do terrano aparece na mesma. É tão grande que não lhe vejo o queixo. Franzo a testa, procuro desviar-me do hálito do homem e grito em tom furioso:

— Dê o fora, seu demônio, senão não respondo mais por mim!

O terrano estremece, assustado. Naturalmente notou minha postura e as divisas de meu uniforme.

Volto à escrivaninha para concluir meu relatório. O melhor meio de castigar esses gigantes é ignorá-los.

Acontece que o sem-vergonha ri tão alto que meus ouvidos começam a doer. Atreve-se a enfiar a mão no meu camarote para pegar a gigantesca garrafa com os comprimidos verdes. Dou um salto para colocar-me fora de seu alcance.

— Perdão, sir — diz a voz retumbante do homem. — Precisamos deste frasco, que contém veneno para ratos.

Empalideço e começo a berrar:

— O senhor quer insinuar que sou um rato?

— Sir, nunca me atreveria a tanto. Apenas esquecemos de tirar o veneno do armariozinho embutido.

— Retire-se — disse em tom reservado. — Afinal, este é meu camarote. Já preparou minha refeição?

— Cozinhei dez grãos de arroz terrano, sir. Quer que eu os parta? Ou prefere dançar sobre os mesmos?

Pego minha arma e faço o terrano olhar para a abertura do cano. Ele implora que não atire e retira seu rosto da rótula.

Presto atenção ao rugido dos propulsores. Dentro de dez minutos, aproximadamente, a Eric Manoli iniciará o vôo a velocidade superior à da luz.

Está na hora de concluir minha apresentação, pois pretendo contar a ação que acabo de realizar. Por enquanto ninguém sabe o que andei fazendo contra minha vontade. Na verdade, o ato em si tornou-se conhecido, mas não há como prever as conseqüências que dele resultarão...

Não quero que o leitor acredite que fiz uma coisa condenável ou vergonhosa. Um especialista siganês nunca seria capaz de uma coisa dessas. Ainda ajustarei contas com Melbar Kasom, por causa de sua insolência, embora os siganeses sejam pessoas alegres, respeitosas e pacatas, que só se tornam furiosas quando alguém as ofende sem motivo.

Peço sua compreensão e assino

atenciosamente,

Lemy Danger.


Relatório de Lemy Danger

O Pastor Inkon, capelão do cruzador siganês Namano, conclui o culto com uma advertência: o poderio técnico não deve ser confundido com a maturidade espiritual.

Lanço os olhos para a tela na qual cintilam as estrelas da Galáxia, dando testemunho da majestade do Criador. Equipamos a capela de bordo com essa tela, para que sempre tivéssemos em mente a grandeza infinita do Universo e a pequenez do ser humano.

Noto que meus irmãos também olham para lá. Depois disso levantamo-nos e dirigimo-nos à eclusa de ar da capela. Dali a dez minutos, a Namano voltaria a penetrar no espaço linear, para num último vôo ultraluz alcançar o destino.

Este ficava a 39.834 anos-luz da Terra. O sol verde Eyciteo já pertencia às estrelas centrais, embora tivesse sido descoberto apenas há alguns meses.

Eyciteo possuía quatro planetas. O de número dois era um pujante mundo de oxigênio de nome Eysal.

Os habitantes inteligentes desse planeta haviam regredido para a barbárie. Eram descendentes de antigos colonos arcônidas que, pelos dados de que dispúnhamos, deviam ter colonizado o sistema de Eyciteo há cerca de quatro mil anos.

As influências do meio ambiente haviam causado uma mutação nos descendentes desses colonos. O fato em si não tinha nada de extraordinário, pois as modificações positivas ou negativas verificam-se sempre que um grupo de seres inteligentes abandona seu habitat primitivo, para conquistar um novo mundo escolhido pelo grupo.

Para os siganeses, isso representava uma lei de Deus, pois também estávamos pagando nosso preço, pelo fato de nossos antepassados terem abandonado seu mundo natal para fixar-se em Siga.

Não era isso que me levava a embarcar no cruzador mais poderoso de nossa frota planetária independente, para dirigir-me a áreas desconhecidas da Via Láctea.

O arcônida Atlan, que era meu chefe supremo e comandante da USO, transmitira uma hipermensagem urgentíssima para pedir minha presença.

O lorde-almirante, título que Atlan usava desde a fundação da USO, ocorrida no ano de 2.115, estava em dificuldades. Coisas incríveis tinham acontecido no segundo planeta do sol anão Eyciteo.

Um dos nossos especialistas, o Tenente Ebrolo, ex-membro do povo dos antis, esquecera Deus, a lei e seu juramento ao deixar-se arrastar a um ato de loucura como o assassinato de uma mutante.

Ainda não sabíamos como uma coisa dessas pôde acontecer. Só sabíamos que as antifaculdades de Ebrolo deviam ter sido suficientes para provocar uma paralisia parapsicológica na telecineta Anne Sloane e cometer o ato repugnante.

Ao receber a notícia, transmitida em forma de um derradeiro pedido de socorro da mutante, Atlan passara a sofrer com as pesadas auto-recriminações, pois afinal fora ele quem enviara Ebrolo para apoiar a ação de Anne Sloane em Eysal. Acontecera justamente o contrário, pois Ebrolo cometera o crime mais repugnante que se possa imaginar: destruiu a vida de outro ser humano. Evidentemente era necessário encontrá-lo e puni-lo. O fato de ser um anti tornava as coisas mais difíceis. Não se poderia recorrer aos mutantes, pois suas emanações mentais neutralizavam as faculdades dos psi de Rhodan.

De resto, cabia a nós prender o especialista da USO, o malfeitor saído de nossas fileiras, para entregá-lo ao juiz.

Sendo o menor ser humano existente nas fileiras dos especialistas da USO, nunca me atreveria a condenar Ebrolo. Isso não era da minha competência, e sabia perfeitamente que Ebrolo não escaparia ao castigo merecido.

Fazia quase um mês que Atlan e Melbar Kasom se encontravam em Eysal, onde estavam preparando a ação a ser realizada.

Precisávamos ter muito cuidado. O último relatório de Anne Sloane provava que a Segurança Galáctica, comandada pelo Marechal Solar Allan D. Mercant, cometera um engano...

A nave exploradora constatara a presença de irradiações de energia no segundo planeta de Eyciteo. As mesmas só poderiam provir de máquinas atômicas. Evidentemente o fato era alarmante, pois os bárbaros que habitavam o planeta não sabiam mais que essas máquinas existiam.

A mutante fora enviada ao planeta para verificar o que estava acontecendo. Se os homens da Segurança soubessem que os criminosos sacerdotes do culto pagão de Baalol desenvolviam sua ação condenável justamente em Eysal, onde dominavam os nativos e deles se aproveitavam, nunca se teria cogitado da utilização de um mutante. Os especialistas da USO estariam em melhores condições para cuidar disso, pois nenhum deles possuía dons parapsicológicos.

Naturalmente Anne Sloane lançara mão de suas faculdades, e dessa forma se colocou numa situação muito perigosa.

Os baalols a reconheceram. Apesar disso conseguiu chegar a um esconderijo seguro, de onde enviou sua mensagem de hiper-rádio.

Foi justamente o fato de nosso especialista Ebrolo também ser um anti que levou Atlan a destacá-lo, para dar ajuda à nossa colega do Exército de Mutantes e prosseguir nas investigações.

Mas Ebrolo deixou-se dominar pela ânsia de alcançar a imortalidade biológica relativa e assassinou a possuidora de um ativador celular.

Anne trazia consigo o décimo nono dos aparelhos espalhados pelo Ser fictício de Peregrino. Esse aparelho extraordinário detinha o processo de degenerescência das células, provocava uma regeneração ininterrupta e dessa forma evitava o envelhecimento natural. Mas era bastante duvidoso que se pudesse falar em imortalidade. O portador de um ativador celular não morreria de velhice ou doença, mas podia ser morto da mesma forma que qualquer outra criatura viva. Também não estavam livres de acidentes. Isso provava que o pequeno aparelho oval era apenas o produto de uma superciência. Não era de origem divina, e isso me deixava conformado com o fato de ter cumprido meu dever, entregando o primeiro aparelho desse tipo, encontrado em Haknor.

Além do mais, os siganeses de minha geração costumavam alcançar 800 ou 900 anos de idade, e para mim isso era mais que suficiente. Se durante todo esse tempo conseguisse cumprir meu dever da melhor maneira possível e servir à Humanidade, não acompanharia a mania que se vinha espalhando pela Galáxia.

Todo mundo esforçava-se para conseguir um ativador, a fim de prolongar a miserável existência. A ganância e a malquerença, a violência e a traição passavam a dominar criaturas que até então tinham levado uma vida honesta, tranqüila.

Por vezes toda essa história parecia ser uma grande prova. Sentia-me orgulhoso por tê-la enfrentado com êxito. Até mesmo Melbar Kasom conformou-se em entregar o aparelho que havíamos encontrado.

Ao contrário de todos nós, o Tenente Ebrolo esquecera suas obrigações. Matara a possuidora do ativador e desaparecera. Sabíamos que ainda se encontrava em Eysal. Por isso Atlan interviera pessoalmente no assunto, pois o terrível caso poderia desacreditar a USO, prejudicando seu bom nome. Além disso a prisão do criminoso representava um dever perante a Humanidade.

São estes os antecedentes de minha viagem apressada. Atlan me chamara. Convocara a mim, o especialista Lemy Danger, embora devesse saber que no planeta recém-descoberto não poderia usar nenhum disfarce de animal.

Ainda não sabíamos como era a fauna de Eysal. Por isso seria impossível apresentar-me como pássaro, o que teria facilitado bastante o cumprimento de minha missão.

Estava decidido a provar que um homenzinho como eu não pode ser subestimado, nem mesmo não estando em condições de voar pelos ares sem ser reconhecido, sob o disfarce de um pássaro nativo.

Meus irmãos deram-me todo o apoio. O governo fraternal siganês enviara o cruzador Namano. Embarquei juntamente com os especialistas de meu povo em Quinto Center, o porto espacial central da USO. Depois disso, a nave partiu em direção ao centro da Galáxia.

Neste ponto quero ressaltar que uma pessoa de meu tamanho só pode ficar aos cuidados de gente igual a mim. Nenhum gigante terrano seria capaz de fabricar o equipamento de que precisava, ou de acondicioná-lo de forma a poder ser facilmente encontrado. Afinal, a maior parte dos objetos usados em minhas operações eram tão pequenos que um terrano não conseguiria enxergá-los sem uma lente.

Por isso o leitor há de compreender que tenho necessidade de uma equipe de técnicos e cientistas siganeses que passaram por um treinamento especial. Sem isso não posso entrar em ação.

A Namano era uma nave gigantesca de 35 m de diâmetro.

Suas máquinas e aparelhos de rastreamento eram os produtos mais avançados da microtécnica siganesa. Posso asseverar que a potência de um reator catalítico de fusão da Namano chega a mil megawatts.

É verdade que os gigantes terranos costumam dizer, em tom de desprezo, que uma coisa destas pode ser carregada na mão, mas quando lhes falamos qual é a capacidade de uma coisa dessas, geralmente perdem toda a arrogância.

Bem, não quero escarnecer dos meus amigos. Afinal, não são culpados de uma grandeza primitiva. Gosto muito deles e nem penso em acusá-los por causa de sua pele áspera com os poros enormes, ou por causa de suas maneiras rudes. Um siganês não costuma agir assim, pois isso contraria as regras da decência e as Leis de Deus. Não se deve condenar nenhum ser por causa da forma do corpo, da cor da pele ou da crença que professa. Isso seria injusto e indigno de um ser humano.

Os siganeses sentiram-se profundamente atingidos pelo “Caso Ebrolo”. Éramos incapazes de compreender que uma criatura inteligente fosse capaz de matar outro ser para alcançar uma vantagem.

No meu belo mundo natal, denominado Siga, não houvera sequer um furto em trezentos anos de História. Os contratos escritos são desconhecidos. Os negócios são selados com um aperto de mão. Recusamo-nos a sacramentar nossa participação na Aliança Galáctica por meio de nosso carimbo e assinatura. Para um homem decente não há necessidade dessas coisas. O Administrador Geral Perry Rhodan acabou por reconhecer isso. Somos o único povo pertencente ao Império sem qualquer vínculo contratual.

Demos nossa palavra, e é claro que isso vale muito mais que cem mil assinaturas e carimbos.

Por isso o leitor poderá imaginar que ficamos apavorados quando soubemos o que havia acontecido em Eysal.

Cabia-me fazer tudo para cumprir minha tarefa conforme dispunha a lei e ordenava minha consciência.

Quando entrei na sala de comando juntamente com meus irmãos, sabia que tinha pela frente uma ação muito difícil.

O especialista Ebrolo não se deixaria prender sem mais aquela. Conhecia a USO e sabia como costumávamos agir.

Dali a três minutos a Namano penetrou no espaço linear. Ouvi o ruído ensurdecedor do conversor kalupiano, que nos protegia contra as influências energéticas do Universo einsteiniano e do espaço de cinco dimensões. Deslocávamos num semi-espaço instável situado entre dois universos, onde as leis de um e de outro não prevaleciam.

Uma concentração de estrelas cintilava na tela-destino. Um dos pontos luminosos que apareciam nessa tela era o sol Eyciteo.

 

O Coronel Tilta, comandante do cruzador Namano, pilotava pessoalmente o destróier. Meu irmão Tilta fez questão de deixar-me em Eyciteo II, pois achava que o “Caso Ebrolo” era muito importante. Além disso Tilta e eu éramos amigos, motivo por que era apenas natural que ele se preocupasse comigo.

Tilta tinha apenas 19,11 cm de altura, mas naturalmente nunca permiti que ele sentisse que eu era um gigante. Na opinião de Tilta não havia necessidade de um veículo maior. O destróier de 1,90 m era suficiente. Mas, mesmo para mim, era apertado. Meu equipamento especial era muito volumoso.

Os cientistas que cuidavam do equipamento não haviam atendido integralmente aos meus desejos. Por exemplo, na minha opinião o desajeitado defletor de campo visual, que permitia que seu portador se tornasse invisível, não era necessário. Afinal, Lemy Danger só é visto por alguém quando ele o deseja! Apesar disso o irmão Boltre insistira em que eu levasse o defletor.

Tilta penetrou em alta velocidade na atmosfera cada vez mais densa do planeta bárbaro. Gritava ininterruptamente certas instruções. Como sou um homem educado, prometi guiar-me pelas mesmas.

Dali a alguns minutos, a cidade mais importante desse mundo apareceu nas telas.

Colhera informações detalhadas e passara por um treinamento hipnótico, que me deixou familiarizado com o arcônida antigo falado pelos habitantes de Eysal.

Todos descendiam dos mesmos colonos, mas no curso dos tempos formara-se uma tribo que, há 300 anos, desempenhava um papel decisivo em Eysal.

Os eysalenses pertencentes a essa tribo costumavam ser chamados de salonenses. Nossos cientistas comparavam os salonenses com os antigos romanos de “nosso” planeta Terra. Haviam construído um grande império, subjugado ou escravizado as outras tribos e estavam prestes a conquistar novas áreas.

Sua capital, chamada de Malkino, era o centro cultural e espiritual do planeta. As outras cidades salonenses não eram tão importantes. E as povoações dos outros nativos, que chamávamos de eysalenses, para nós não tinham a menor importância.

O Império Salonense era governado por um chefe chamado de Masho. Tratava-se de um senhor absoluto, que tinha o direito de designar seus sucessores. Estes eram os pontos mais importantes, que eu havia guardado na memória.

Os verdadeiros governantes de Eysal eram os sacerdotes de Baalol, que conseguiram obrigar todo o povo a venerar sua divindade pagã.

Isso acontecia por causa dos truques técnicos dos antis, que dispunham de inúmeros meios que faziam tremer o queixo dos bárbaros!

Sabíamos perfeitamente qual era o jogo em Eyciteo II. Tudo dependia de que conseguíssemos neutralizar o domínio absoluto dos antis e encontrar Ebrolo. Apertei os cintos e olhei para o traçador de contornos, que naquele momento começava a mostrar o oceano central.

Malkino, a capital, ficava na zona sub-tropical do hemisfério norte. Fazia bastante calor no segundo planeta do sol verde. Tal sol possuía um total de quatro satélites.

— Localização — disse Tilta de repente e apontou para o aparelho de ecossonda. — Alguém está trabalhando com impulsos ultracurtos. Será que nos descobrirão?

Fiz um gesto negativo.

— Irmão, você está superestimando o tamanho deste destróier. Nenhum anti acreditará que o objeto que aparece em sua tela é uma espaçonave. Fique tranqüilo.

— De qualquer maneira ficarei por perto com a Namano — disse o coronel, contrariado.

Acenei com a cabeça e refleti sobre a eficiência do armamento da nave. Nossos canhões térmicos tinham aproximadamente o mesmo empenho das armas de impulsos pesadas de um robô terrano. Tive de confessar a mim mesmo que eles não nos serviriam para muita coisa.

Porém, se iniciássemos um bombardeio de mísseis, o planeta estaria irremediavelmente perdido. As coisas não deveriam chegar a este ponto. Aliás, nem nos competia ativar uma intervenção militar em Eysal. Foi exatamente por isso que Atlan preferiu não realizar nenhuma manobra de desembarque. Não teríamos nada a ganhar com a mesma.

As leis do Império Unido não permitiam qualquer tipo de ação bélica. A morte de Anne Sloane e o roubo do ativador celular representavam casos que eram da competência dos serviços secretos.

Se conseguíssemos provar que os antis se haviam intrometido nos assuntos internos de outro mundo, aí as coisas seriam diferentes. Nesse caso, a intervenção da Frota da USO se justificaria.

Por enquanto não dispúnhamos das provas necessárias. Teríamos de agir com muita cautela, para não melindrar os nossos aliados galácticos. Por várias vezes já havíamos sido acusados de visar aos interesses da Humanidade e do Império, em vez de agir como uma tropa policial destinada a proteger todos indistintamente...

Não tivemos outra alternativa senão renunciar ao emprego de uma frota. Teríamos de realizar um trabalho minucioso e estafante, para desvendar os fatos que havia atrás do “Caso Ebrolo”. Antes disso não poderíamos desenvolver nenhuma ação oficial.

Fitei as telas e me pus a refletir sobre os seres que deviam viver nas gigantescas matas do planeta. Para mim, os animais desconhecidos representavam um grande perigo. E os seres racionais daquele mundo nunca compreenderiam que a criatura que se encontrava à sua frente era um homem adulto do planeta Siga! Se explicasse-lhes tudo o que sei, demoraria vários dias.

Comecei a sentir certa antipatia por Eyciteo II. Dali a alguns minutos atingimos o continente do noroeste. Tilta reduziu a velocidade. Atravessamos o ar em vôo livre, com as asas bem abertas.

A cidade de Malkino entrou na área de alcance do dispositivo ótico. Liguei a ampliação e percebi imediatamente que se tratava de uma área povoada muito extensa. Pelo que se dizia, Malkino possuía cerca de dois milhões de habitantes. Era um número bastante respeitável para um povo bárbaro, se bem que este, segundo as informações disponíveis, acreditava ser muito progressista.

Tilta fez a nave pousar numa área coberta de mata virgem, cortada por uma estrada larga, que levava às fortificações.

Desembarquei a poucos metros de um conjunto de bombas movidas por vento.

— Fique quieto. O que é isso? — cochichou Tilta.

Peguei minha arma e pus-me a escutar. A faixa poeirenta da estrada estremeceu sob os passos de numerosos pés que estavam marchando. Abrigamo-nos atrás do destróier e esperamos que o exército passasse. O tilintar das lanças e espadas ainda não havia cessado quando surgiu outro grupo de guerreiros, cujas armaduras brilhavam ao sol.

Animais quadrúpedes puxavam um veículo sobre o qual estava montada uma espécie de bomba contra incêndio.

— É um lança-chamas — explicou Tilta. — Bastante primitivo, mas muito eficiente. Por aqui existe um óleo leve, que se volatiliza rapidamente ao calor. Colocado sob pressão, é soprado e incendiado. Os salonenses usam este aparelho para expulsar os selvagens de suas fortalezas. Que coisa horrível! — disse Tilta, em tom de repugnância. — Tenta...

Interrompeu-se no meio da frase e deu um enorme salto para abrigar-se sob o corpo da nave. Segui seu exemplo. Desviei-me de um réptil espinhento e pus a mão na arma térmica.

Dois pés gigantescos envoltos por correias de couro e protegidos por uma sola grossa saíram da mata. Prendemos a respiração e pusemo-nos a escutar. Ouvia-se o ruído da água e um rumorejar tão alto que meu ouvido sensível começou a doer...

Um bárbaro estava bebendo o líquido do barril coletor da bomba!

O gigante usava um balde de madeira de dimensões tão gigantescas que Tilta mais uma vez ficou perplexo. Afinal, ele ainda não tinha tido muito contato com as pessoas gigantes de outros mundos.

Dali a pouco o salonense despejou o resto de água no recipiente, arrotou e foi-se afastando. Sorte sua!

Sacudi meu corpo e segui o selvagem com um olhar enfurecido. O compartimento de carga do destróier estava encharcado e meu precioso equipamento também fora afetado.

Apesar de tudo resolvi instalar meu esconderijo nas proximidades da bomba. Ao que parecia, por ali passava um tráfego bastante intenso. Talvez aquilo fosse uma das principais vias de ataque das legiões salonenses.

Tilta ergueu-se, todo compenetrado, enxugou o cabelo e ajudou-me a guardar os objetos que compunham meu equipamento especial.

Liguei o radiador de vaporização e abri um buraco no chão. Tinha 40 cm de profundidade e 80 cm de largura.

Usei o elevador antigravitacional para colocar a chapa de sustentação enrolada no abismo e inflei-a por meio de ar comprimido. O buraco ficou na medida exata. Sob a pressão de dez atu, o teto do abrigo subterrâneo ficou tão firme que se podia pisar nele e camuflá-lo com terra.

Uma vez concluído este trabalho, colocamos os equipamentos menores no abrigo. Os objetos pesados foram transportados através da escotilha de carga superior, por meio de um guindaste antigravitacional.

O trabalho durou duas horas. Meu irmão Tilta despediu-se com as seguintes palavras:

— Tenha cuidado. Vi monstros terríveis. Alguns deles têm o seu tamanho. Se não prestar atenção, poderá perder a vida.

Confirmei com um gesto e reprimi a observação que trazia na ponta da língua. Um especialista da USO sempre conta com estas coisas.

O destróier levantou vôo. Ergueu-se acima da vegetação e acelerou. Subiu ao céu com um rugido. Finalmente estava só.

Abaixei-me para passar pelo buraco. Fechei-o e pus-me a arrumar o equipamento. Depois disso montei o hipertransmissor, coloquei a fita com os pedidos de socorro condensados e pus em funcionamento o reator.

O rugido do banco conversor sacudiu meu alojamento. O medidor de corrente mostrava que o reator podia ser posto a funcionar a toda capacidade.

Coloquei a cadeira e a mesa dobrável junto à entrada. Armei minha cama entre duas caixas que continham microbombas. Estas eram tão perigosas que seria uma temeridade dormir entre elas.

Saí para buscar água. Comi uma refeição farta e coloquei o traje: a mochila antigravitacional. A grande mochila deste traje continha um microgerador, um neutralizador gravitacional e um defletor de alta capacidade. Era, também, uma mochila de combate... Um modelo pesado e desajeitado de quase 300 g! Mas tinha de carregá-lo; não havia alternativa, pois precisava ter a capacidade de voar e de evitar que alguém me visse.

Examinei cuidadosamente minhas armas. A pistola térmica estava em ordem. Os projéteis nucleares de meu microlançador de mísseis seriam capazes de reduzir a cinzas todas as fortificações do Império Salonense.

Devidamente equipado, saí do abrigo em que guardava os suprimentos, fechei a porta e a camuflei. O dispositivo automático fez um ajuste muito mais preciso do neutralizador gravitacional do que qualquer homem seria capaz. Liberado do peso de meu corpo, empurrei-me com o pé, fiz o balanceamento para colocar-me em posição de vôo e liguei o jato-propulsor que passou a funcionar com o meio existente, que era o ar. O princípio de pulsação era antiqüíssimo, mas tornava-se mais eficiente num planeta que possuísse um envoltório atmosférico.

A turbina aspirava o ar, condensava-o e o comprimia na câmara de expansão, onde era submetido a um processo de aquecimento nuclear e expelido com uma pressão extremamente elevada.

O jato giratório arrastou-me para o alto. Numa viagem vertiginosa subi além das copas das árvores. Procurei orientar-me e segui em direção às fortificações de Malkino.

Parei muito acima das muralhas ciclópicas e espiei para baixo. O funcionamento do meu propulsor era quase completamente silencioso e o campo de deflexão tornava-me invisível.

Desci cautelosamente e voei em torno do rosto de um guerreiro que cochilava à sombra. Encostado à parede, apoiava os braços num aparelho que disparava setas e, assim, descansara a cabeça sobre as mãos. Que sentinela!

Fiquei zangado com esse tipo de relaxamento em serviço, se bem que isso não me dizia respeito. Segurei a coronha do disparador de setas e liguei meu propulsor para a potência máxima.

Puxei o aparelho para o lado. O dorminhoco perdeu o apoio e caiu.

Levantou-se furioso, olhou em torno com uma expressão colérica e levantou a arma. Outro salonense soltou uma estrondosa gargalhada.

Prestei atenção ao diálogo que se seguiu e convenci-me de que dominava perfeitamente a língua desse povo. Fiquei satisfeito com a peça que consegui pregar no guerreiro. Voltei a subir e procurei abranger a cidade com a vista.

Atrás da primeira muralha havia outra. Os salonenses bem que sabiam construir fortalezas.

Pessoas de vestes coloridas andavam pelas ruas. Os nobres montavam gigantescos pássaros que, segundo parecia, nunca tiveram a capacidade de voar. Em compensação possuíam pernas longas e robustas, que certamente lhes permitiam desenvolver grande velocidade.

Outros salonenses eram transportados em liteiras. Guardas armadas abriam passagem a pancadas em meio à multidão, que não se afastava com suficiente rapidez diante dos poderosos.

Lancei um olhar furioso para baixo. Não gostava desses métodos, embora soubesse que, em Eysal, a escravidão e a opressão eram consideradas perfeitamente naturais.

Desci um pouco e examinei um dos homens montados num pássaro. Exibia uma armadura muito bem trabalhada no peito, perneiras de couro e uma espada longa. Qualquer pessoa que não cumprimentasse esse salonense com uma expressão de veneração era chicoteada pelos dois guardas que o acompanhavam, ou até espetada com as lanças de arremesso. Eram costumes bárbaros.

Os salonenses possuíam aspecto humano, com a única diferença de que a pele era esverdeada e as orelhas eram compridas e móveis, e terminavam em ponta. Não havia outros sinais de mutação, a não ser que o esqueleto e os órgãos também fossem diferentes do tipo arcônida normal.

Os corpos das mulheres e dos homens eram altos e musculosos. Pelos meus cálculos, a altura média das pessoas era de 1,95 m. Por certo a robustez física era conseqüência da gravitação reinante em Eysal, que chegava a 1,14 G.

Neste mundo, Atlan dificilmente despertaria a atenção de alguém. Seu corpo era alto e robusto, e isso lhe dava condições de desempenhar sem dificuldades o papel de um salonense. Com Melbar Kasom, as coisas eram diferentes, pois sua figura provocaria uma verdadeira sensação. Ao lado dele até mesmo os salonenses pareceriam ser criaturas “quebradiças”.

Sobrevoei os arrabaldes da cidade com suas casas baixas e vi os palácios da área central. Mais à direita estendiam-se as fortificações de um porto, cujas dimensões me surpreenderam.

Meu ouvido supersensível percebeu um rugido. Levei algum tempo para perceber que tal rugido era formado pelos gritos de milhares de salonenses, que enchiam completamente as arquibancadas de uma arena.

Comecei a desconfiar do papel que Melbar Kasom estaria desempenhando neste mundo bárbaro... Sem dúvida voltara a fazer-se de gladiador, ocupação a que já se dedicara em outros planetas, cujos habitantes também adotavam costumes brutais!

Melbar era um lutador nato. Ainda não conheci qualquer ser vivo que estivesse em condições de enfrentar o ertruso adaptado ao ambiente. Era bem verdade que eu mesmo sabia amansar esse montão de músculos. Tinha meus métodos para isso.

Não fiquei nada satisfeito em saber que mais uma vez Melbar se encontrava numa arena, onde tinha de travar lutas de vida e morte. Provavelmente recebera ordens para isso.

Sobrevoei lentamente a arena e procurei fixar todos os detalhes. Liguei o radiofone. Era a primeira vez, depois de ter pousado no planeta. Atlan esperava minha chegada. Provavelmente seu microrrádio siganês de ouvido sempre estaria em recepção. Melbar também trazia um testemunho de nossa engenharia sofisticada sobre o corpo.

Pairei sobre a área em que se desenvolvia a luta e procurei esquecer a multidão delirante. Lá embaixo quatro homens investiam uns contra os outros. Provavelmente essa gente nunca compreenderia que seu comportamento era perverso e repugnante.

Coloquei o aparelho de pulso junto aos lábios e chamei Atlan.

— Peteca chamando rede. Peteca chamando rede. Favor indicar posição.

Estas palavras representavam o código previamente fixado. Eu era a peteca, o lorde-almirante era a rede. A Melbar fora reservado o nome de batedor.

Não esperei muito tempo. Meu aparelho emitiu um estalo. Atlan respondeu ao chamado.

— Entendido, peteca. Posição: ponto quatorze. Suspenda transmissão. Desligo.

Não sabia por quê, mas estava decepcionado. Provavelmente era porque no meu íntimo contara com uma recepção mais amável.

Bastante preocupado, pus-me a refletir sobre onde ficaria o “ponto quatorze”. Atlan dera ordem para que as diversas posições fossem fixadas pela central numa lista codificada, que tive que decorar.

Gostaria de saber até onde chegava o perigo de escuta pelos antis. Ligado na potência mínima, meu micro transmissor possuía um alcance de dois quilômetros. Achava pouco provável que, justamente no momento de meu primeiro contato, um dos sacerdotes pagãos se encontrasse nesse raio com um aparelho ajustado para nossa faixa secreta de ondas.

Acontece que o acaso já custara a vida de mais de um especialista da USO. O ponto quatorze ficava junto à entrada principal da arena. Estava a apenas algumas centenas de metros do meu chefe, mas isso não me surpreendeu.

Aquele arcônida pertencente a uma velha família de nobres não recuara diante da idéia de usar o disfarce de mendigo cego, que lhe permitiria mover-se à vontade. Cheguei a ver retratos de Atlan que me deixaram assustado. Não se via o menor sinal dos traços nítidos de seu rosto. Este desaparecera sob a cobertura de tecido sintético aplicado por meios biomédicos, que o transformara numa caricatura.

Preparei-me prevendo um quadro ainda mais repugnante. Aqui, em pleno centro do Império Salonense, o chefe deveria ter um aspecto ainda mais desleixado que o do homem retratado nas fotografias.

Passei lentamente sobre as arquibancadas superlotadas do estádio. Segui a linha oval ampla do muro e logo descobri a entrada principal. Gigantescas colunas de pedra sustentavam um telhado saliente, por baixo do qual vários degraus largos subiam para as diversas fileiras.

A única coisa que se via em toda parte eram os mendigos. Em Eysal, estes formavam uma corporação misteriosa, cuja influência era bem maior do que se poderia ser levado a supor. Atlan soubera introduzir-se nessa comunidade. Por ali obtinha informações mais valiosas que nos palácios do Masho.

Voei pelas fileiras de figuras tristes. Constantemente descobria pessoas que apenas se fingiam de aleijadas. Alguns cegos que acreditavam que ninguém os estivesse observando conferiam a féria, enquanto outro, que fingia não ter pernas, gemia e massageava as barrigas das pernas, que pareciam ter adormecido com a torção exigida para provocar o disfarce.

Levei alguns minutos para descobrir o lorde-almirante. Quando isso aconteceu, assustei-me de verdade. Nossos biomédicos haviam feito um trabalho genial. Qualquer pessoa que não fosse um cientista bem informado da USO acreditaria que a cicatriz comprida que passava por sobre os olhos de Atlan fosse verdadeira. Até parecia que essa parte do rosto fora desfigurada por um golpe de espada. Outra cicatriz, em cujo interior pulsava o tecido artificial vermelho, dividia os lábios, o nariz e a testa em duas partes. Os cacos de dente que apareciam na boca entreaberta eram tão repugnantes que senti náuseas.

Levei alguns minutos para recuperar-me do susto. Aproximei-me e procurei descobrir os olhos de Atlan embaixo da cicatriz. Por mais que procurasse, não os encontrei. Já me haviam ensinado que Atlan estava olhando através de uma finíssima pele artificial. Fora preparada de maneira a só ser transparente para quem olhasse de dentro para fora.

Circulei devagar em torno da cabeça daquele homem sentado na poeira. A única peça de roupa de Atlan consistia numa tanga esfarrapada. Sua figura alta e musculosa levava a acreditar que talvez já tivesse sido um ótimo guerreiro. Sua pele mostrava o brilho verde dos salonenses, e o prolongamento biomédico das orelhas era tão perfeito que conseguia mover sem dificuldades as pontas de dez centímetros de comprimento.

Estava encostado ao muro do estádio e olhava fixamente na mesma direção, como costumam fazer os cegos. Vez por outra levantava a cabeça, para escutar melhor.

Segurava um recipiente amassado entre as pernas abertas. Nesse recipiente encontrei algumas moedas, dois pregos enferrujados e um pedaço de carne escura.

Parei perto de seu rosto. Estava curioso para ver se o chefe realmente ouvia bem. Mexeu as orelhas, cujas conchas ficaram viradas para a frente.

A boca abriu-se, e dela saiu o grito triste:

— Uma esmola, minha gente nobre, uma pequena esmola para Umbarth, o soprador do fogo que, quando a serviço do divino Masho, queimou a fortaleza zelutense de Llahakal. Uma esmola para Umbarth, gente nobre.

Estas palavras pareciam tão sinceras que me fizeram estremecer. Mas logo voltei a assustar-me.

— Danger, é o senhor? — acrescentou ele, em voz baixa. — Cuidado! Meu vizinho tem os ouvidos muito aguçados. Pouse sobre meu ombro.

Obedeci. Aproximei-me mais de Atlan. Meus pés tocaram seu ombro robusto. Finalmente acomodei-me e deixei que minhas pernas balançassem à frente de seu peito.

Antes que pudesse dizer qualquer coisa, senti vontade de tossir. Não devo criticar meu chefe supremo, mas o fato é que o lorde-almirante exalava um fedor tão forte que quase não consegui respirar.

Atlan soltou uma risadinha, enquanto eu continuava a engolir em seco.

— Quando um mendigo unta o corpo com óleo, este certamente está rançoso — cochichou sem mover os lábios.

Agarrei-me à corda que Atlan trazia presa nas costas, que servia para segurar a sacola onde guardava seus pertences. Levei algum tempo para vencer a repugnância e voltar a respirar sem dificuldade.

— Perdão, sir — disse com a voz ofegante. — O senhor não exala o perfume das rosas terranas. O especialista Danger está presente, sir.

— Talvez você ache graça, mas o fato é que já percebi. Qual foi o idiota que lhe deu ordem para me chamar pelo rádio? Se alguém ouviu os impulsos, a esta hora os antis já sabem que suas maravilhas técnicas não são as únicas que funcionam em Eysal.

— A ordem foi dada pelo chefe do estado-maior, sir — respondi, enfatizando as palavras.

— Está bem. Façamos votos de que ninguém nos ouviu. Daqui por diante, a utilização do rádio fica proibida. Suas funções consistirão principalmente em transmitir mensagens entre mim e o Tenente Kasom. Já o viu? Hoje terá de lutar contra um lobo-batráquio zelutense. Alguém tem interesse em matar Kasom. Receio que ele seja derrotado pelo monstro.

Empertiguei-me e soltei a corda.

— Um lobo-batráquio, sir? O que vem a ser isso?

— É um sáurio blindado que vive nas florestas habitadas pelos zelutenses. Estes continuam a resistir aos salonenses. Quando vim a saber que Kasom terá de enfrentar o monstro, já era tarde. Ainda bem que você chegou, miúdo. Preciso de você.

Tossi delicadamente. Achava que, naquela situação, o fato de ser chamado de “miúdo” não representava nenhuma ofensa à minha honra. Afinal, sempre depende de quem pronuncia as palavras. Além disso venerava Atlan a tal ponto que não conseguiria zangar-me com ele por uma bagatela desse tipo.

— Diga uma coisa. Será que está usando uma mochila antigravitacional? — cochichou o lorde-almirante.

— Estou, sim. Pensei que o senhor...

— Vá embora, vá embora imediatamente — ordenou o chefe. — Será que você está com o juízo perfeito, Danger? Mesmo que as radiações produzidas por seu micro-equipamento sejam muito fracas, você poderá ser localizado a qualquer momento. Tem outro equipamento de vôo?

— Uma hélice movida por bateria, sir — respondi um tanto abatido. — Meu defletor é...

— Pode ficar com o defletor — voltou a interromper Atlan. — A única coisa que pode tornar-se perigosa são os impulsos gravitacionais. Mas convém ligar o defletor somente quando se encontrar perto de algum salonense. Saia voando imediatamente, troque de equipamento e ajude o Tenente Kasom. A luta será iniciada dentro de trinta minutos, aproximadamente. Será a última luta de hoje. Apresse-se. Esperarei por você aqui mesmo.

Não respondi nada. Liguei meu propulsor e precipitei-me pelos ares. A repreensão fora tão inesperada que quase não consegui raciocinar mais. Ninguém contara com tamanha atividade dos antis. Será que Ebrolo havia despertado sua atenção? Talvez soubessem o que esse sujeito infame havia feito. Em caso afirmativo, Ebrolo estaria sendo caçado não apenas por nós, mas também pelos chefes secretos de Eysal!

As poucas palavras pronunciadas por Atlan bastaram para que compreendesse tudo. Havíamos entrado numa casa de marimbondos cósmicos. E, ao que parecia, Melbar Kasom seria a primeira vítima...

Voei à velocidade máxima por cima das muralhas da fortaleza. Se quisesse chegar à arena em tempo, teria de andar depressa!


Relatório de Melbar Kasom

 

Sou um gladiador zelutense a serviço do nobre Voszogam e em minha testa não se vê a marca de fogo que assinala os escravos. Por isso sou um homem cuja chama da vida pode ser extinta a qualquer momento.

Eu, o Tenente Melbar Kasom, especialista da USO e engenheiro especializado em armas de guerra energéticas, fora obrigado, desde o momento em que entrara na nave, a esquecer meu treinamento científico.

A única chance de sobrevivência consistia na destreza com que manejava as armas primitivas, na capacidade de avaliar o inimigo e na habilidade de ser mais competente na área da Psicologia que na da Engenharia.

Em Eysal, meus conhecimentos sobre os segredos do átomo não me adiantavam nada. Tudo dependia de que conseguisse satisfazer os espectadores e alcançasse as boas graças dos poderosos. A escolha dos meus adversários era feita por pessoas que só conhecia pelo nome. Não tive outra alternativa senão colocar-me a serviço de um homem cuja posição social e condições de nascimento lhe davam o privilégio de explorar os gladiadores. Por isso transformei-me numa vítima da paixão generalizada pelas apostas.

Voszogam era considerado o maior chefe guerreiro do Império Salonense. Além disso era comandante das tropas de elite estacionadas em Malkino, cuja tarefa consistia em proteger a cúpula do Império.

Até este ponto tudo estava em ordem, na medida em que isso era possível face aos nossos planos de ação. Na verdade, o Lorde-Almirante Atlan assumira um grande risco ao enviar um supergigante do meu tipo a um mundo em que um ertruso não poderia deixar de chamar a atenção, embora os homens altos não fossem nenhuma raridade.

Tenho 2,51 m de altura, a largura dos meus ombros é de 2,31 m e, à gravitação de 1 G, meu peso chega a 815 kg. Estou acostumado a uma gravitação de 3,4 G, e por isso, sempre que me encontro num mundo mais leve, tenho de usar um microgravitador, que dá ao meu corpo a carga a que este está habituado.

No segundo planeta do sol Eyciteo não podia usar o aparelho, pois suas emanações seriam interceptadas imediatamente pelos antimutantes.

Poderia parecer que esse fato só me ajudaria nas lutas na arena, pois a gravitação reduzida do planeta me permitia executar saltos de até 20 m.

Mas aconteceu exatamente o contrário. Tinha que cuidar-me constantemente para não demonstrar muito claramente as minhas capacidades, pois nenhum nativo possuía tamanha força física, nem mesmo um selvagem vindo das matas virgens dos zelutenses.

Era claro que não existia nenhum inimigo que representasse um perigo real para mim. Os ertrusenses ou ertrusos adaptados ao seu ambiente são as pessoas mais fortes do Universo conhecido. Porém eu precisava ter cuidado para não esmagar os outros gladiadores...

Assim sendo, Atlan — conforme já ressaltei — poderia mandar que eu entrasse em ação sob o disfarce de um nativo. Mas teve motivos plausíveis para não agir assim, de maneira que há cerca de trinta dias, tempo padrão, abandonei a nave nas matas virgens do ocidente.

Dali a dois dias encontrei um grupo de salonenses ávidos de conquistas. Menti a eles, dizendo que estava a caminho de Malkino.

Depois de um ensaio de luta contra os três homens mais robustos da tropa de choque, o comandante convenceu-se de que eu representava uma boa presa.

Fui levado à capital. Uma vez lá, o comandante do grupo vendeu-me ao nobre Voszogam. Dali em diante tinha de ir à arena todos os dias, pois esperava que minha presença fizesse com que Ebrolo saísse do seu esconderijo.

Atlan me usava por assim dizer como isca. Esperava que Ebrolo se sentisse tentado a fazer alguma coisa contra mim, pois era claro que perceberia imediatamente que eu não era nenhum nativo.

Ebrolo recebera seu treinamento na Academia da USO. Sabia perfeitamente quais eram os homens de que a organização podia dispor. E conhecia muito bem os ertrusos, respeitados em toda a Galáxia. Além disso não poderia ignorar que, nas fileiras dessa organização de defesa galáctica, existisse um sujeito formidável que, além de ser um especialista de primeira ordem, era campeão em várias modalidades de esportes no gigantesco planeta Ertrus.

Neste ponto quero desviar-me do assunto — para o que conto com a compreensão do leitor — e assim, com a modéstia que me é peculiar, mencionar que o campeão ertrusense de peso pesado ao qual acabo de aludir não é outro senão eu mesmo, Melbar Kasom.

Durante quase trinta dias, os resultados do plano de Atlan foram quase totalmente negativos. Tive de fazer um grande esforço para não praticar malabarismo com certos selvagens, e Ebrolo não dera sinal de vida.

Se não tivesse sido tão bem preparado pelos nossos especialistas, nós o teríamos encontrado em poucos dias. Acontece que Ebrolo recebera uma máscara especial, que o fazia passar por salonense. Afinal, fora enviado ao planeta para apoiar a mutante Anne Sloane.

Não conseguimos encontrar sua base de operações. Ebrolo fora bastante inteligente para, depois do crime, desfazer o depósito e guardar seu equipamento em outro lugar.

Não havia mais possibilidade de realizar a localização goniométrica do ativador celular, e por isso tivemos de recorrer às técnicas antiqüíssimas da investigação criminal. Se Ebrolo não caísse na cilada que lhe armáramos, nunca o descobriríamos.

Havia indícios de que se encontrava em Malkino. Além do mais, isso resultava do psicograma elaborado com base nos traços de caráter de Ebrolo.

Um homem ávido de gozar a vida — e ele o era — não seria capaz de viver na solidão da selva. Ebrolo precisava de outras pessoas, não podia dispensar a atmosfera de uma grande cidade, que lhe proporcionava emoções e distrações de todo tipo.

Além de tudo possuía um aparelho que impedia o envelhecimento das células e matava os germes de tudo quanto era doença, proporcionando uma vida eterna relativa.

Nestas condições, Ebrolo não teria capacidade de autocontrole suficiente para fugir à sociedade e passar alguns anos na selva. Dessa conclusão vinham nossas chances de sucesso.

O quadro do assassino Ebrolo, que nos era bastante favorável, era completado pelo fato de ser ele um anti que desenvolvera ao máximo as faculdades inatas de seu povo por meio de um treinamento especial.

Os mutantes do Império Unido seriam impotentes diante de Ebrolo. Ele não reagia aos telepatas, e era totalmente impossível utilizar quaisquer forças parapsicológicas perto dele.

Atlan tinha certeza de que logo após o assassínio de Anne Sloane, Ebrolo conseguira insinuar-se na sociedade salonense, onde estaria utilizando seus conhecimentos com o objetivo exclusivo de enriquecer. Provavelmente estava à procura de uma possibilidade de abandonar o planeta bárbaro. Para isso precisaria de uma nave espacial dos antis, que há séculos eram os verdadeiros donos do planeta.

Até mesmo os salonenses das castas dirigentes, que não eram nada tolos, deixaram-se enganar pelos antis.

O deus chamado de Kulan, que não passava do produto de um culto pagão criado pelos antis, era venerado e temido por todos. Realmente, para um grupo de criaturas primitivas cuja tecnologia mal chegara ao uso da pedra e dos metais, o fato de a estátua da divindade Kulan falar ou fazer desabar uma trovoada devia ser algo de medonho.

Kulan deixara bem para trás os outros deuses pagãos, ainda mais que os antis, numa ação bem dosada, faziam com que certos desejos fossem cumpridos e provocavam alguns milagres.

Esse culto idiota deixava as coisas ainda mais complicadas para mim, pois, em hipótese alguma, devia dar mostras de que desaprovava aquilo. Tinha de fazer um grande esforço para, ao entrar na arena, dobrar os joelhos e implorar as boas graças de Kulan.

O que se tornava ainda mais difícil era esquecer que nos camarotes havia antis, que deliberavam com uma meticulosidade científica sobre se esta ou aquela luta deveria ou não ser fomentada no âmbito de sua política.

Entre os numerosos gladiadores vindos de todas as partes do Império e dos continentes bárbaros, eu era o único que sabia perfeitamente que nunca se deveria agir contra os interesses dos verdadeiros chefes. Quem se atrevesse a isso, estaria assinando sua própria sentença de morte.

A sentença de morte. A expressão sacudiu minha mente e me fez lembrar que desagradara a alguém.

Dali a trinta minutos teria de enfrentar um monstro que ainda não fora derrotado por nenhum gladiador. Entre os que travavam as lutas de vida e morte, não era nenhum segredo que o confronto com um lobo-batráquio só era determinado em circunstâncias especiais. Os grandes senhores não gostavam de perder um gladiador de primeira classe. Ainda mais eu, que já rendera muito dinheiro ao nobre Voszogam. Além do mais, este podia gabar-se de que o homem mais forte do planeta estava a seu serviço.

O fato de obrigar-me a enfrentar um monstro só podia representar uma sentença de morte. Algum inimigo desconhecido devia ter encontrado um meio de convencer meu dono a conceder a permissão para a luta, ou obrigá-lo a isso. Em Eysal as intrigas eram uma constante e, talvez por isso, Voszogam achara preferível sacrificar-me.

Só soube da luta há oito horas. Com seu disfarce de cego, Atlan nunca entrara na arena, e eu não podia sair de lá... Por isso arrisquei um chamado pelo rádio. Queria que o chefe ao menos estivesse informado.

Confessei a mim mesmo que diante de um lobo-batráquio minhas chances eram praticamente nulas. Provavelmente conseguiria derrotá-lo, se pudesse dar-me ao luxo de lançar mão de todas as minhas faculdades.

Porém não poderia arriscar-me a dar saltos gigantescos ou arremessar grandes blocos de pedra. E teria de resistir à tentação de procurar golpear o adversário com a coluna de ferro que pesava pouco mais de cem quilos. Se agisse assim, seria reconhecido pelos antis, que sem dúvida ainda não sabiam que o planeta Eysal fora descoberto por uma nave exploradora do Império Unido.

Ebrolo nem pensaria em informar seus irmãos de raça a respeito de tal descoberta. Só estava interessado em sua vantagem.

Talvez os antis desconfiassem de que eu não vinha deste mundo. Era possível que a utilização do lobo-batráquio fosse um teste. Se me deixasse arrastar a supersaltos e a outros atos que revelassem que as condições gravitacionais a que estava acostumado eram outras, os antis teriam a prova que procuravam. E isso representaria um risco para o êxito de nossa missão. E de qualquer maneira eu perderia a vida.

Há várias horas estava refletindo sobre a maneira de colocar o sáurio das florestas fora de ação, sem trair minha condição. Não havia nenhuma possibilidade. Não procurei enganar a mim mesmo. Se a língua revestida de córnea arranhasse minha pele, ou se ele me alcançasse com uma patada, estaria perdido.

Apesar dessas preocupações martirizantes, consegui comer muito bem e dormir algumas horas. A única pessoa que poderia ajudar-me era Atlan. No entanto, não tinha a menor idéia de quais eram os meios de que quisesse ou pudesse lançar mão.

A missão chamariz que estava desempenhando já me deixara isolado do mundo externo há mais de vinte dias. Só tinha um conhecimento bastante superficial daquilo que o chefe descobrira nesse tempo. Estávamos aguardando o especialista Lemy Danger, cuja presença fora solicitada pelo lorde-almirante. Não sabia se o baixinho já tinha chegado a Eysal. Há poucos dias o homem que servia de elemento de ligação entre mim e Atlan fora morto em luta. Dali em diante fiquei sem notícias.

Devo confessar que nunca desejei tanto a presença do anão siganês como naquelas horas. Geralmente ele me deixa nervoso, o que o leitor há de compreender diante do fato de que Lemy gosta de ressaltar sua qualidade de superior hierárquico e costuma fazer chicanas comigo.

Afinal, a mania de ser grande de que são possuídos os anões de Siga é muito conhecida. É claro que o baixinho sabe contar histórias muito bem, enquanto eu não tenho muita habilidade nesse terreno. Por mais que me esforce, de vez em quando deixo escapar uma palavra que o baixinho não seria capaz de usar.

Se o leitor pudesse ver o sorriso de deboche que Lemy costuma exibir nessas oportunidades, haveria de compreender por que não me sinto muito bem quando penso no major. Para mim, uma criatura que se deixa devorar pelos peixes, usa o disfarce de cachorrinho de madame e cai sobre os robôs para provocar um curto-circuito nos mesmos não é um homem. E Lemy ainda se orgulha das peças que vive pregando nos mais diversos planetas.

É claro que, quando as coisas não dão certo, o culpado sempre sou eu. Às vezes, no momento decisivo não consigo conter o riso, ou então o baixinho assume certos riscos que, em virtude do meu tamanho, não posso suportar.

Neste ponto e face a face com a morte, só quero dizer que eu, Melbar Kasom, campeão no mundo gigante chamado Ertrus, perdôo tudo que Lemy me fez.

Até lhe perdôo por me ter culpado em diversas oportunidades do fracasso de certas missões, embora a culpa realmente não fosse minha. Quero ver alguém manter a seriedade, quando Lemy se disfarça de macaco, faz acrobacias em trilhas de cortinas ou ameaça um grupo de mercenários fortemente armados com suas granadas de mão atômicas.

Bem, não quero falar muito no baixinho. Se estivesse aqui neste momento, ao menos poderia mandá-lo para junto de Atlan, a fim de saber o que o chefe pretendia fazer por mim. Naturalmente o lorde-almirante não permitiria que eu morresse na arena... Quanto a isso não tinha a menor dúvida.

Consolado por esses pensamentos, dirigi-me à porta de tábuas grossas do meu aposento e saí para o corredor. Aqui embaixo, o berreiro dos espectadores soava como o ruído de uma cachoeira.

Dois membros da guarda pessoal fitaram-me com uma expressão de desconfiança. Seguraram suas lanças de arremesso numa posição que lhes permitiria atacar-me a qualquer momento.

De propósito pisei fortemente e aproximei-me deles. Akussa, diretor da Escola de Gladiadores de Malkino, apareceu mais ao longe. Parei à frente de um dos guardas, apoiei as mãos nos quadris e fitei-o de alto a baixo. Minha coxa direita era mais grossa que o corpo desse fracote, que apenas tinha quase dois metros de altura. Minha vestimenta consistia unicamente numa tanga, pois Akussa pretendia equipar-me pessoalmente.

— E daí...? — perguntei em voz alta, fazendo com que o guarda recuasse dois passos.

A ponta de sua lança estava apontada para meu estômago. Fiz tremer a musculatura e mostrei-a dizendo:

— Isto não deixará penetrar seu ferro. Já pensou o que farei com seu pescoço depois?

Passei pelos guardas com um sorriso de deboche e lancei um olhar curioso para as celas dispostas de ambos os lados, nas quais estavam trancados alguns zelutenses. Aqueles homens altos, que pensavam que eu era um dos seus, cumprimentaram-me com um sinal. Sabiam que teria de enfrentar um lobo-batráquio.

Akussa esperava-me na porta em arco do depósito de equipamentos. Três gladiadores que haviam escapado com vida nas últimas lutas, estavam sendo tratados pelo médico da arena.

Todos eles haviam recebido ferimentos mais ou menos graves. O médico de campanha, com muita força e pouca habilidade, os queimava, costurava ou cobria de emplastros.

Fiz como se não ouvisse os gritos de dor. O quadro que se oferecia nos calabouços situados atrás dos muros da arena sempre era o mesmo. Ali embaixo ninguém possuía amigos. Se alguém procurasse fingir um sentimento de simpatia, isso acontecia apenas para descobrir as fraquezas do futuro adversário.

Akussa era um homem alto e robusto. Nunca havia visto um corpo tão cheio de cicatrizes como o seu. Seu rosto era anguloso e seu senso de humor parecia marcado por uma vida de lutas. Era um dos poucos homens que conseguiram sobreviver durante dez anos. Era bem verdade que tivera a sorte de nunca lutar contra um lobo-batráquio.

Empurrei o auxiliar do médico para fora do meu caminho e sentei no banco em que costumava ser colocado o equipamento. Akussa aproximou-se e pôs-se a massagear os músculos das minhas costas.

— Estão duros; ótimo — disse no tom bonachão que lhe era peculiar. — Você aí! Se voltar a atirar o médico contra a parede, ficarei aborrecido.

Um homem robusto, vindo do sul do Império Salonense, praguejava terrivelmente. Chegou mesmo a insultar a segunda divindade do país, o que fez com que o médico, que estava deitado no chão e gemia, se levantasse de um salto, todo apavorado.

— Com isso você arranjará uma infecção de suas feridas — afirmou em tom odiento.

Os auxiliares de Akussa trouxeram meu equipamento, que consistia numa couraça de ferro forjado, com as ombreiras engatadas. As trilhas para os braços e as pernas, feitas com o mesmo material, completavam o traje de combate.

— Quer um capacete fechado? — perguntou Akussa.

Sacudi a cabeça.

— Prefiro um aberto.

— Muito bem. Acho que você deveria dispensar também o protetor do pescoço. Se uma das garras do animal ficar presa nas correntes entrelaçadas, ficará sem cabeça... Apenas quero dar-lhe um bom conselho.

Fitei prolongadamente aquele salonense experimentado. Seu rosto parecia indiferente como sempre.

— De repente você começou a ficar muito preocupado comigo — observei, esticando as palavras.

— Jamais gostei que eles pusessem um homem a lutar sozinho com um lobo-batráquio. Não franza a testa, zelutense. Quando falo com um morto, costumo ser sincero.

Um dos feridos soltou uma estrondosa gargalhada. O médico soltou uma risada de bode, virou a cabeça para mim e por engano encostou o ferro incandescente no ombro sadio do ferido. Dali a um segundo estava novamente colado à parede. Desta vez perdeu os sentidos.

Os costumes ásperos que prevaleciam nos alojamentos dos gladiadores não me esquentavam. Há alguns dias ainda tive o cuidado de ser cortês para com os funcionários. Essa gente podia preparar o inferno para um ferido.

O auxiliar do médico acidentado passou pomada na nova ferida do gladiador. Peguei meu capacete. Tratava-se de um modelo especial, pois os tamanhos comuns não cabiam em minha cabeça. A couraça e os trilhos das pernas e dos braços também haviam sido feitos sob medida.

Em média, a espessura do material era dois milímetros maior que a das chapas geralmente usadas. Akussa colocou o capacete em minha cabeça e apertou a correia embaixo do queixo.

— De que parte do país você veio, zelutense? — perguntou como que por acaso.

Desconfiei imediatamente.

— Por que faz essa pergunta?

A esta altura isto não importa mais.

O diretor da Escola de Gladiadores de Malkino preferiu não responder. Examinou cuidadosamente meu equipamento o pôs-se a prestar atenção aos sons vindos do lado de fora. Falando ainda mais baixo, recomendou:

— Preste atenção, Akwor. Você poupou a vida de meu filho. Aqui não se costuma fazer isso. Não me esqueci. Foi sua luta inaugural.

— Meu adversário era seu filho?

O diretor fez que sim e enfiou mais um acolchoado de couro sob a blindagem que cobria meus ombros.

— Posso garantir que já assisti a muitas lutas contra lobos-batráquios. Nenhum gladiador escapou vivo das mesmas, mas nenhum deles era tão forte como você. Posso revelar os pontos vulneráveis do monstro, mas preciso que você me diga que tipo de arma vai escolher. Já decidiu? O gongo já vai soar.

Olhei para as prateleiras. Sim, já havia decidido. Para isso tivera necessidade de certas reflexões científicas.

O lobo-batráquio era um grosso revestimento de chitina. Era um material muito duro, que também era bastante quebradiço.

Se embaixo desse revestimento não houvesse uma camada de tecido elástico de pelo menos seis centímetros de espessura, uma clava esférica de alto poder de impacto causaria sua morte, pois com ela poderia quebrar a espinha do animal.

Acontece que o tecido elástico evitava que a força do impacto fosse transmitida a algum órgão vital. Concluí que as clavas de todos os tipos estavam fora de cogitação.

Uma espada seria inútil. O revestimento do lobo-batráquio não poderia ser despedaçado nem perfurado com a mesma. Além disso nunca conseguiria atingir as partes moles, junto a boca e as enormes ventas, pois o monstro poderia rechaçar qualquer ataque frontal com sua ágil língua em lança.

A arma ideal, que reunia a elevada força de percussão à pequena área de impacto e ao grande poder perfurante, era um machado de grande peso, com uma lâmina de 40 cm de comprimento e apenas 3 cm de largura. Além disso devia ter um cabo bem comprido, a fim de que, num golpe em círculo de grande raio, a força do impacto fosse multiplicada por três.

Não havia outra possibilidade de romper o revestimento e, no mesmo golpe, perfurar o tecido elástico, a fim de desferir um golpe decisivo contra uma parte vital do corpo.

Akussa fitou-me com uma expressão tensa. Possuía um grande arsenal de experiências, mas não havia dúvida de que era incapaz de formular reflexões baseadas em elementos técnicos. Resolvi dizer com um sorriso de gratidão:

— Dê-me o machado-cunha mais pesado que tiver, juntamente com um escudo redondo com uma cova para a mão, na qual deverá ser colocado um punhal. Com o braço que segura o escudo ainda pegarei uma rede de malhas finas feita de tecido de guldir, que talvez me permita aprisionar a língua do monstro.

O diretor fitou-me prolongadamente, e, franzindo a testa, mexeu nervosamente as orelhas pontudas.

— Um machado? — repetiu em tom de incredulidade. — Tem certeza de que quer mesmo um machado? Se eu fosse você, pegaria uma lança com lâmina cortante. Bateria com a mesma, depois a arremessaria e a seguir atacaria com uma clava esférica de pontas.

— O primeiro golpe com a lança seria meu fim. E não adiantaria arremessar a lança. Um lobo-batráquio costuma proteger a boca. Esse monstro tem algo de inteligente. Dê-me o equipamento que acabo de pedir.

Dali a dez minutos as armas estavam em minhas mãos. O machado era do tipo que devia ser seguro com ambas as mãos. Só podia ser usado por lutadores muito fortes, que quisessem usar ambos os braços.

Para meu gosto o machado que pesava cerca de 40 kg era muito leve. Acontece que era o modelo mais pesado.

No momento em que peguei o escudo e o machado, Akussa disse em tom de advertência:

— Não pense em fugir. Todas as saídas estão sendo vigiadas. Colocaram dois sopra-fogo. Antes que você chegue à grade, eles o transformarão em bife. Está preparado, zelutense? Boa sorte e bons golpes. Se eu fosse você, me concentraria exclusivamente em dois pontos: o crânio, e a parte da coluna vertebral, que fica logo atrás da cabeça. Você terá de saltar. Entendeu? Procure desviar-se da língua. O lobo-batráquio leva algum tempo para encolhê-la. E, enquanto está fazendo isso, não pode fazer nenhum movimento rápido. Use a língua como trampolim, salte com ambos os pés sobre a crista e golpeie forte. É sua única chance. Na escolha das armas, você seguiu seu caminho. Mas é bom que pelo menos adote a tática de ataque que lhe estou ensinando.

Bati suavemente em seu ombro e Akussa quase caiu... Mais uma vez fitou-me atentamente, o que não me deixou muito à vontade.

Quando estávamos saindo e a escolta enfileirou-se de ambos os lados, Akussa ainda cochichou:

— Obrigaram Voszogam a entregar você.

— Quem foi? — cochichei de volta. — Algum sacerdote de Kulan?

— Não. Foi um desconhecido vindo de Oszala. Dizem que é um homem muito poderoso.

— Há quanto tempo está aqui?

— Falam em três ectadas. Possui muitos navios. Você machucou o pescoço dele ou de algum dos seus amigos?

Pus-me a refletir. No linguajar dos gladiadores, a expressão “machucar o pescoço” significava causar incômodos ou, como se costuma dizer no planeta Terra, pisar os calos de alguém.

Passei a desconfiar de que aquilo era obra de Ebrolo. Sem dúvida examinara o ambiente em Malkino e descobrira imediatamente que eu não era nenhum nativo.

Quer dizer que os antis não estavam envolvidos naquilo. Sem que ninguém desconfiasse, meu ex-colega encontrara um meio excelente de me pôr fora de ação. Provavelmente estava esperando para ver se me atreveria a demonstrar minhas superfaculdades ertrusas, diante dos antis que assistiam ao espetáculo. Estava brincando com fogo, mas Ebrolo tinha todos os trunfos. De uma forma ou de outra, eu estaria liquidado.

Parei à frente da grade, que separava o labirinto subterrâneo da arena. Lá fora a penúltima luta acabara de terminar.

Os cadáveres foram arrastados para fora da área. O chão revolto foi coberto com areia fresca vinda das praias.

Ouviu-se o som das fanfarras. A guarda pessoal do Masho marchou diante da assistência. Akussa deu-me uma palmadinha no ombro. Era uma despedida sem palavras. Depois disso a grade foi levantada. Saí.

Flanqueado por dez guerreiros suntuosamente trajados, dirigi-me ao camarote do soberano. Acima de mim erguia-se a estátua de bronze do deus Kulan. Era impossível abrangê-la totalmente com a vista, pois dominava toda a área de combate. Mostrava um guerreiro armado com cabeça de um lobo-batráquio.

A multidão começou a aplaudir. Gritos roucos atingiram meu ouvido. Meu nome, que nas últimas semanas se transformara num símbolo para os salonenses, soava cada vez mais nítido.

Como sempre, o espetáculo me fascinava. Os ertrusos são lutadores natos, que nunca fogem do perigo. Quando vi a multidão colorida levantar-se, passei a acreditar que a luta com o lobo-batráquio fosse menos perigosa do que realmente era. Senti-me arrebatado pelo entusiasmo da multidão.

Logo que percebi o nervosismo dos nobres, a confiança na vitória tornou-se ainda mais forte. No segundo planeta do sol Eyciteo acontecia a mesma coisa que em outros mundos: sempre que o homem do povo manifesta seus sentimentos em altas vozes, a minoria dominante fica nervosa.

O Masho até condescendeu em erguer-se do seu leito majestoso e estender as mãos. Ao lado dele estavam sentados dois sacerdotes de Kulan, trajando mantas vermelho-sangue, feitas de finíssima penugem.

A cor de sua pele era de um marrom leve. Não eram deste mundo, mas nem os salonenses nem os outros povos haviam percebido isso. Afinal, os sacerdotes de Kulan não eram verdes como os eysalenses comuns.

Vi os geradores de campos protetores que os verdadeiros governantes de Eysal usavam abertamente... Traziam os aparelhos pendurados nos cintos largos. Tive certeza de que, naquele momento, os dois antis preferiram ativar seus campos defensivos e reforçá-los por meio de suas emanações mentais. Dessa forma se tornavam invulneráveis diante das armas usadas em Eysal.

Os membros da guarda pararam. Abri os braços. Dobrei o joelho direito e, de olhos fitos na estátua de Kulan, pronunciei as palavras do ritual, que prefiro não reproduzir aqui, porque são ridículas e representam uma blasfêmia. Acontece que tinha de adaptar-me ao uso geral, para não colocar em risco a missão que estava desempenhando.

O Masho concedeu permissão para a luta. Depois disso, ainda tinha de aguardar o pronunciamento de um anti, que era considerado o servo principal e a mão direita do deus Kulan.

O nome do sujeito era Mahana-Kul. Utilizava seu poder da maneira peculiar aos antis. Quando se levantou e sacudiu em minha direção o penacho que trazia na mão, eu poderia tê-lo matado, se tivesse uma arma energética. Sem dúvida seu campo energético individual fora regulado para os objetos materialmente estáveis. E a polarização unilateral fazia com que, naquele momento, o campo defensivo pudesse ser atravessado pelas radiações energéticas. Infelizmente não tinha nenhuma arma de impulsos. De resto, um ataque ao anti não me serviria para nada.

— O braço de Kulan será seu, desde que você mereça — gritou o patife em direção à arena.

Agradeci, batendo com o punho cerrado contra o peito. Além disso tomei a liberdade de apresentar um pequeno número extra, que os espectadores receberam com uma manifestação de entusiasmo delirante, enquanto os nobres e os ricos se mostraram assustados.

Num movimento muito rápido, abri os braços. E, segurando o cinto de cada um dos guardas que me ladeavam, elevei os dois acima de minha cabeça.

— Dedico esta carne e este sangue a Kulan, e peço-lhe que me conceda estes guardas como servos, caso não sucumba na luta.

Os guardas debatiam-se furiosamente. Atirei-os ao chão. Ficaram inconscientes. Aguardei a reação dos antis. Fui a única pessoa que viu Mahana-Kul colocar um minúsculo radiotransmissor à frente dos lábios. Dali a um segundo ouviu-se uma voz saída do enorme alto-falante que, é claro, achava-se embutido na boca da divindade. O anti estava aceitando meu jogo, pois sabia perfeitamente o que o povo esperava de seu deus.

O rugido era enervante. Devia atemorizar aquela população primitiva. Pelos meus cálculos, a potência do alto-falante era de duzentos watts. O berreiro saído da boca do deus justificava tamanho desempenho técnico.

— Ouvi seu pedido, gladiador. Eles serão seus, desde que você subsista diante dos meus olhos.

Seguiu-se um momento de silêncio. Depois os espectadores voltaram a gritar furiosamente. Todos os bons desejos me favoreciam. Até mesmo o Masho exibiu um sorriso bondoso. O anti foi o único que me fitou com uma expressão pensativa. Será que eu arriscara demais?

O oficial do grupo de guardas aproximou-se e cochichou ao meu ouvido:

— Se você não vencer, minha lança atravessará seu peito.

Não consegui dissimular um sorriso. Provavelmente um dos soldados que eu acabara de pedir ao deus era amigo do oficial. Minha morte seria o fim do guarda. Aproveitei imediatamente a chance e cochichei de volta:

— Certo... Para retribuir, você pode espalhar tempero kulkat em pó junto à grade atrás da qual está o lobo-batráquio. Como de costume, ele passará as patas pelos olhos.

— Vou tentar. Meus bons desejos o acompanham. Preciso de um pouco de tempo. Atravesse a arena.

O oficial retirou-se apressadamente.

Contornei a arena. As fanfarras voltaram a soar. No mesmo instante passou a reinar um silêncio absoluto. A própria Natureza parecia prender a respiração. A coisa começava a ficar séria.

Saltei de volta para a pista de luta e segurei firmemente o escudo. No centro deste fora montado um punhal de cinqüenta centímetros de comprimento. Segurava a rede com a mesma mão que prendia o escudo. Uma forte correia prendia o machado ao pulso direito.

O oficial não conseguiu espalhar o tempero, que era semelhante à pimenta-do-reino. Atrasou-se em alguns segundos.

“Pronto!”, pensei com a mente fria. “Terei de lutar contra um monstro não enfraquecido...”

As barras de ferro da grade, que tinham a grossura de um braço humano, foram levantadas. O lobo-batráquio não se apressou. Já estava ali há alguns anos e sabia perfeitamente o que esperavam ele.

No início vi apenas o crânio com a boca, que tinha um metro de largura e era encimada por um par de gigantes ventas. Os olhos eram relativamente pequenos. Jaziam no fundo de órbitas, protegidas por córneas. Seria extremamente difícil atingi-los. Nenhum gladiador conseguira realizar a façanha.

O crânio do sáurio era semelhante ao de um sapo terrano, com a diferença de que tinha pelo menos 4 m de largura e 3m de altura.

O sáurio arrastou lentamente o corpo, como se quisesse sondar a situação. Em comparação com o crânio, o tronco do animal era bastante fino, mas sempre media seus 3 m de espessura.

O traço mais característico do animal eram as gigantescas pernas traseiras, que também tinham certa semelhança com as do sapo. Mostravam duas dobras e o monstro as usava para arremessar o corpo para a frente. Um lobo-batráquio era capaz de percorrer 20 m num salto.

As pernas dianteiras eram muito mais curtas e bem retas. No entanto, teria de prestar muita atenção às mesmas. As patas eram mais largas que meu peito.

O comprimento do sáurio devia chegar a cerca de 10 m. Aproximou-se como se fosse um desajeitado veículo blindado. Seus movimentos pareciam pesados, mas isso era apenas uma ilusão. O andar saltitante resultava das pernas traseiras, feitas para pular. Ai do lutador que se iludisse sobre a verdadeira capacidade do monstro...

Parei no centro da arena. O lobo-batráquio também parou. Abriu as ventas, transformando-as em buracos de mais de 50 cm de diâmetro, e farejou o ar. O único som que emitiu foi um rugido surdo. O lobo-batráquio era um dos animais mais inteligentes do planeta. Muita gente chegava a afirmar que o animal era capaz de pensar.

Pus-me a refletir. Mas minhas reflexões giravam em torno de Atlan, que devia ter recebido meu chamado desesperado pelo rádio e dessa forma sabia com quem me defrontava naquele momento.

Minha arrogância já tinha desaparecido. Parecia enfeitiçado diante do inimigo implacável, que abriu ligeiramente a boca blindada e mostrou a ponta de sua língua saltadora. Sabia que era capaz de atirá-la a uma distância de cerca de 5 m. A ponta endurecida de chitina tinha um canal cheio de veneno, que se esvaziava ao atingir o alvo.

O sáurio voltou a emitir o rugido e deu um salto. Caiu na areia a uns 30 m do lugar em que me encontrava. Uma nuvem de pó levantou-se. Vi que suas pernas traseiras voltaram a entesar-se. Teria que desviar-me daquela massa imensa. Por quanto tempo agüentaria?

Enrijeci o corpo para saltar e constatei que pensava mais no Lorde-Almirante Atlan que na luta. Era um erro. Não devia permitir que nada distraísse minha atenção.

No momento em que o corpo do sáurio se abaixou ainda mais e o animal fez sair a ponta da língua, ouvi um estalo no meu receptor de ouvido. A mensagem de Atlan era formada por três palavras:

— Auxílio chegando. Agüente.


Relatório de Lemy Danger

Atlan interrompeu seus pedidos de esmolas e virou a cabeça para ouvir melhor. Acabara de pousar em seu ombro. O zumbido do micromotor elétrico cessou. O mesmo movia as duas hélices que giravam em sentido contrário. Todo o conjunto estava preso às minhas costas. Seu desempenho era satisfatório, se bem que preferisse o equipamento antigravitacional de jato-propulsão.

— Já está com o novo equipamento, Danger?

— Sim, senhor.

— Pois saia voando. A julgar pela gritaria, a luta com o lobo-batráquio acaba de começar. Transmiti uma mensagem de três palavras para Kasom. Procure matar o sáurio por meio de um disparo de radiações que atinja seu cérebro. Evite de toda maneira que alguém veja a descarga.

Falar era fácil. Como atirar, se ninguém devia perceber? Afinal de contas, uma arma energética tinha a mania de produzir uma luminosidade por ocasião do disparo.

E as coisas ainda ficaram piores!

— Trate também de evitar que alguém ouça o tiro. Apesar do tamanho reduzido, sua arma energética é bastante barulhenta. Procure encontrar um meio, Lemy. Confio no senhor. Do lugar em que me encontro não posso avaliar a situação. Vá embora.

Liguei o aparelho. Minha mão esquerda segurou o manche destinado a mudar a posição das lâminas. Subi na vertical. A energia da microbateria era suficiente para dez horas de vôo. Era pouco, ainda mais que em Eysal não existe nenhum ponto de recarregamento. Se a energia acabasse durante a viagem, não teria outra alternativa senão caminhar até o abrigo subterrâneo em que estavam guardadas minhas provisões.

O helicóptero individual arrastou-me por cima das altas muralhas. Baixei os olhos para a arena e vi Melbar Kasom que, naquele momento, estava dando dois saltos gigantescos para a esquerda a fim de evitar o impacto de uma enorme massa de dentes, garras e carne.

O lobo-batráquio notou que errara o salto. Caiu na areia com um forte rugido, mas logo virou o corpo e sua pata procurou atingir o ertruso.

Soltei um grito apavorado.

— Melbar...!

Mais uma vez o ertruso se desviou. Num movimento rapidíssimo atirou o braço para trás. Um objeto reluzente cruzou o ar e penetrou no flanco blindado do monstro. Vi que se tratava de um machado estreito e comprido em forma de cunha.

O berro do lobo-batráquio abafou os gritos dos espectadores. Kasom deu uma demonstração de força. Retirou a lâmina que havia penetrado até o cabo, quebrando um pedaço do revestimento do animal. Saltou sobre as costas do sáurio, que se sacudiu com um movimento rápido.

Melbar pulou e saiu correndo. A língua venenosa precipitou-se para fora da boca do animal e passou a alguns milímetros do ertruso. Esperava ver um dos saltos gigantescos de Melbar, mas não houve nenhum. Não andava muito mais depressa que um salonense normal. Em compensação podia desferir seus golpes com a força de um ertruso, que dificilmente poderia ser comprovada por alguém. Compreendi que Melbar preferia não brincar com a gravidade do planeta.

Até então duvidara de que o ertruso fosse derrotado na luta, mas comecei a compreender que, na situação em que se encontrava, estaria perdido. Não conseguiria agüentar o sáurio por muito tempo.

Um animal menor certamente teria sido morto pelo golpe de machado. O lobo-batráquio não demonstrou a menor reação. Só se alguém lhe rachasse o crânio e atingisse o cérebro, sucumbiria.

Melbar correu para afastar-se do muro, cuja proximidade era bastante perigosa. O sáurio deu um enorme salto atrás dele e foi cair na areia pouco atrás dos pés de Kasom.

— Vá para a esquerda — gritei, sem compreender que meus gritos eram inúteis.

Melbar atirou o corpo para o lado. A língua do animal avançou num golpe e roçou o escudo. Desviou-se para o lado e passou tão próxima do rosto de Melbar, que executei uma manobra errada que quase provocou minha queda.

Consegui controlar o vôo pouco acima do solo. Passei ao vôo rápido para a frente e aproximei-me do monstro.

Tinha certeza absoluta de que ninguém me via. Meu defletor funcionava perfeitamente. Além disso não poderia ser localizado por meio de instrumentos.

A segunda ordem de Atlan, segundo a qual meu tiro não deveria ser ouvido, poderia ser cumprida sem que eu contribuísse para isso. O berreiro dos dez mil salonenses era tão forte que abafaria até mesmo um tiro de canhão.

Ainda desta vez, Kasom conseguiu pôr-se a salvo. Voltou a golpear com o machado. Atingiu a perna, pouco acima da pata esquerda. O lobo-batráquio estremeceu e recuou um pouco, dando tempo a Melbar para colocar-se fora do alcance da língua venenosa.

Foi quando cheguei perto da cabeça de Kasom. Bati na parte da armadura que lhe cobria o ombro, segurei-me numa corrente e gritei a plenos pulmões para o grandalhão:

— Sou eu, Lemy. Assim que o monstro se preparar para o próximo salto, vou atacá-lo.

Melbar entendeu.

— Pegue as narinas, baixinho — gritou e atirou-se para o lado.

Saí voando e virei a cabeça em direção ao monstro, que parecia refletir. A pata esquerda descansava na areia tingida de vermelho.

Comecei a desconfiar de que Melbar não resistiria à próxima investida. Se o lobo-batráquio era um animal semi-inteligente, aquele exemplar mudaria de tática. Kasom, por ser muito forte, fazia com que seus golpes desabassem com a velocidade de um raio. O instinto do animal deveria ter compreendido isso. Eu teria de agir imediatamente, pois, do contrário, não poderia fazer mais nada por Kasom.

Voei em direção ao lobo-batráquio, desenvolvendo a velocidade máxima. Quando cheguei acima de sua cabeça, desacelerei e entrei mergulhando em direção às narinas do sáurio, que naquele instante deu um salto.

Fui atingido de raspão pela parte superior do corpo do animal e atirado para o alto. Perdi o controle do vôo. Dali a um segundo, caí na areia, afundei e mal consegui tirar a cabeça para não morrer sufocado.

Perdi a paciência. Ameacei o sáurio com um gesto furioso, peguei a arma e voltei a levantar vôo.

Cego de raiva, desci sobre o lobo-batráquio, que se aproximava de Kasom aos saltinhos, para encurralá-lo de vez.

Avancei pelo ar, gritando tamanhas ameaças que o monstro provavelmente teria recuado de medo, se o berreiro dos espectadores não abafasse minhas palavras.

Pousei de pernas para a frente sobre a córnea, entre os olhos e as narinas. Desliguei os rotores, arranquei o punhal e enfiei-o com tremenda fúria num ponto mole das narinas. O lobo-batráquio soltou um grunhido.

Quando as narinas do gigante se abriram, dei uma pisada no cabo do punhal.

Pretendia, agora, inclinar-me para a frente, de arma em punho, a fim de atirar no cérebro, fazendo o raio passar pelos condutos respiratórios, porém o animal malvado aspirou fortemente o ar. Fui atingido pela força de sucção...

Antes que compreendesse direito o que estava acontecendo, vi-me a caminho dos pulmões desse animal grosseiro, que provavelmente acreditava ser capaz de inspirar um especialista da USO!

Vi-me cercado por mucosas que exalavam um cheiro repugnante. Uma réstia de luz provava que eu não penetrara mais de 60 cm nas narinas do sáurio.

Vi-me encurralado de todos os lados. Um borbulhar e chiar mostravam que o monstro lutava contra a vontade de espirrar. Comecei a sentir certa falta de ar. Apesar disso liguei meus rotores. As lâminas cortantes de metal leve dilaceraram as mucosas do nariz do monstro.

Ouviu-se um terrível rugido. Mas, no estado de justa indignação em que me encontrava, isso não me impunha o menor respeito.

Pus a arma de impulsos acima da minha cabeça e puxei o gatilho. Percebi o rugido da arma energética num estado de semiconsciência. Os fluxos energéticos ultraluminosos romperam as membranas e coberturas ósseas, para “transmitir” sua energia ao cérebro que ficava atrás delas.

Ainda estava atirando, quando o animal moribundo me expeliu com tamanha violência, que o dispositivo de vôo e o defletor foram arrancados das minhas costas.

Quando recuperei os sentidos, depois do impacto no solo, e a visão começou a clarear, vi que tinha perdido todo o equipamento. Só a arma energética continuava na minha mão.

Enterrei-me apressadamente na areia, pus a cabeça para fora e fitei o fanfarrão do Melbar Kasom, que estava sentado sobre a nuca do animal, despedaçando-lhe o crânio com o machado. O lobo-batráquio fazia os últimos movimentos convulsivos. Evidentemente a única pessoa a que o ertruso devia agradecer por isso era eu.

Recuperei o auto-respeito e pus-me a limpar minhas vestes. Nenhum dos espectadores que vibravam de entusiasmo notou minha presença. Aos olhos daquela gente ávida de sensações, provavelmente não passava de uma escama perdida pelo lobo-batráquio.

Kasom continuou a golpear o crânio, até que o monstro ficasse completamente imóvel. Sob o aspecto tático, era uma medida acertada. Provavelmente Melbar queria remover os sinais de queimadura produzidos por minha arma.

Corri para junto de algumas pedras, que me davam certo abrigo. Dali podia observar tudo. O muro alto, atrás do qual se localizavam os camarotes dos nobres, ficava a pouco menos de 30 m. Notei que os homens que os ocupavam estavam perplexos e fascinados. Melbar soltou gritos de vitória, que quase podiam comparar-se com os berros saídos do alto-falante instalado na boca do deus Kulan.

Minha hombridade não permitiria que continuasse escondido. Um homem que conseguiu derrotar o lobo-batráquio não tinha necessidade de esconder-se.

Empertiguei-me e comecei a cruzar o “deserto”. Peço encarecidamente ao leitor que não sorria diante da expressão ou veja nela um motivo para fazer observações irônicas. Para mim, a arena era um deserto de areia.

Fiquei sentido ao constatar que ninguém me via. Cheguei sem problemas ao lugar em que estava Kasom, que naturalmente se encontrava de pé sobre o cadáver do monstro, onde desempenhava seu papel de herói. Achei esse procedimento bastante condenável.

Escalei o animal, saltei sobre o pé de Kasom e lhe dei uma pisada fulminante sobre o dedão.

O montão de músculos nem chegou a estremecer, mas me viu. Quando os guardas pessoais se aproximaram para verificar se o sáurio realmente havia morrido, o ertruso abaixou-se e colocou-me na palma da mão. Sem dizer uma palavra, o moleque enfiou-me sob a couraça do peito, onde tive de segurar-me numa correia para não precipitar-me nas profundezas.

Belisquei a barriga de Kasom, mas acabei por resignar-me. No momento eu não podia fazer nada com o ertruso. Ao que parecia, notara que não estava mais em condições de tornar-me invisível. Dali surgia um problema. Não sabia como faria para sair da arena. No meu depósito havia outros aparelhos voadores. Mas, quando pensava na marcha prolongada que teria de realizar antes de chegar lá, desanimava. Alguém teria de levar-me.

Melbar passou muito tempo deliciando-se com seu triunfo. Enquanto isso durava, subi pelo forro da couraça e fiz a cabeça passar pela abertura existente entre o pescoço de Kasom e a parte superior da couraça.

O pomo-de-adão de Melbar tremia acima de minha cabeça. Toda vez que o ertruso soltava um berro, tinha de tapar os ouvidos e procurar um apoio.

A estátua do deus Kulan voltou a falar, e o soberano também gritou algumas palavras em direção à arena. Parecia que Kasom estava sendo levado à saída sob os aplausos da multidão.

Finalmente chegou o momento em que meu subordinado julgou necessário informar o superior sobre a situação. Inclinou a cabeça e disse em voz baixa:

— Veja o terceiro camarote à direita do leito do Masho. O velho de rosto magro é Voszogam, meu senhor. Ao lado dele está sentado um jovem salonense com uma manta de penas verde-azuladas. Seu cabelo é comprido e está preso por correntes junto às orelhas. Está vendo?

Melbar fez um movimento discreto do corpo. Voszogam e o jovem estavam conversando. Pareciam nervosos. O velho deu uma risada, e o jovem parecia contrariado.

— Reconheci — disse em voz alta, para que o gigante ertruso pudesse entender-me. — Quem é aquele homem?

— Tenho noventa por cento de certeza de que é o homem que estamos procurando. Está em Malkino há cerca de trinta dias. Pelo que se diz, veio da segunda cidade do Império Salonense e possui muitos navios de carga.

— É Ebrolo? — perguntei, muito curioso.

Num movimento instintivo pus a mão na arma.

— É o que suponho. Ainda não sei qual é o nome que está usando, mas acho que não será difícil descobrir. Você terá de ir imediatamente para onde está Atlan.

— Como? Minhas hélices estão jogadas na areia.

— Eu as vi. Pisei nelas e transformei-as em pó. Estavam inutilizadas. Ninguém mais conseguirá identificá-las. Encontre uma maneira de ir para junto do chefe. Conseguiu salvar seu rádio?

— Está no meu pulso. Mas não devo usá-lo.

— Pois eu usei o meu quando comecei a golpear o lobo-batráquio. Atlan já foi informado. Precisa de você. No momento não posso levá-lo para fora da arena.

— Conseguirá sair mais tarde?

— Dentro de algumas horas. A vitória alcançada contra o monstro modificou completamente a situação a meu favor. Solicitarei uma licença. Precisamos prender Ebrolo.

Encolhi a cabeça. Um salonense dirigiu-se a Kasom para felicitá-lo. Seu nome era Akussa. Só mais tarde fiquei sabendo que era o chefe dos gladiadores independentes. Os lutadores escravos só lhe estavam submetidos nos dias de luta.

— Vou tomar um banho — disse Kasom.

Era um sinal de que deveria abandonar meu esconderijo.

Dali a pouco, Melbar tirou a armadura. Saí da couraça e corri para junto de uma tina de madeira, atrás da qual me abriguei. Na sala havia várias banheiras embutidas no chão. Os escravos encheram uma delas com água quente.

O ertruso deixou que o servissem como se fosse um dos poderosos desse mundo. Dali a pouco aconteceu aquilo que eu esperara. Seria de admirar que o senhor de Kasom não aparecesse nos calabouços para felicitar o melhor dos seus gladiadores...

O velho salonense entrou!

Dois guardas armados deram pancadas nos escravos que não se atiraram logo no chão. Aqueles homens pareciam não compreender que não tinham nenhum direito de bater em outros seres pensantes. Tive de fazer um grande esforço para não ceder ao desejo de aplicar um castigo exemplar. O comportamento desses malfeitores era incrível.

Melbar contemplou a cena com uma expressão que quase chegava a ser de tédio e cumprimentou seu senhor.

Voszogam acomodou-se numa poltrona trazida às pressas e sorriu na direção da banheira.

— Foi uma boa luta, Akwor. Nosso contrato vencerá dentro de alguns dias. Quer ficar comigo?

O velho que, segundo se dizia, era um grande chefe guerreiro, ainda estava sorrindo. Kasom agiu com cautela. A pergunta podia ser mais importante do que nos convinha.

— Ficarei com meu senhor — disse a voz retumbante de Kasom. — Só peço que me dê liberdade de movimentos por uma ectada.

— Por quê?

Kasom sorriu e fez um gesto cujo sentido não compreendi. Os dois guardas riram, e o sorriso de Voszogam tornou-se menos impessoal.

— Compreendo. Os prazeres de Malkino o atraem. Concedo-lhe liberdade de movimentos, mas é bom que não se esqueça de que fico à sua espera.

— Voltarei, meu senhor. Não há nada que me atraia para as matas em que vive minha tribo.

— Está bem. Acho que você está interessado em saber por que permiti esta luta.

— Acho que esse ponto deveria ser esclarecido ao menos entre nós, senhor — respondeu Kasom, com a maior calma.

Até parecia que Voszogam não agira criminosamente, mas apenas praticara um ato decente.

— O nobre chamado Magontin, que é um poderoso dono de navios e comerciante de Oszala, manifestou dúvida quanto às suas qualidades. Queria vê-lo junto à boca de um lobo-batráquio.

— Será que machuquei o pescoço desse homem, senhor?

Voszogam hesitou um pouco.

— Não acredito. Acontece que fiz uma aposta com o Masho, que também tem uma opinião muito boa a seu respeito. Por isso não pude deixar de concordar.

Acenei com a cabeça. Estava zangado. Então as coisas se haviam passado dessa forma! O estranho nobre e armador de navios, da segunda cidade portuária salonense, usara o Masho para colocar Voszogam diante de uma série de fatos consumados!

O chefe guerreiro trocou mais algumas palavras com seu gladiador e mandou que chamassem sua liteira.

Quatro escravos entraram rastejando na sala de banhos. Os guardas ajudaram seu senhor a subir ao leito coberto por um quebra-sol. Kasom pigarreou. Não haveria necessidade disso, pois eu já havia compreendido que aquela liteira representava uma boa oportunidade de deixar a arena rapidamente e sem correr maiores riscos.

Kasom fez uma observação para desviar a atenção dos guardas. Saí correndo de trás da tina e saltei para cima do estofamento. Imediatamente me escondi embaixo do mesmo.

Dali a pouco Voszogam deitou. Tive de rastejar para a cabeceira, por baixo da almofada, pois do contrário seria esmagado. Kasom viu minha mão que acenava para ele.

— Daqui a três horas a cidade será minha — disse, e eu o compreendi.

Não me interessei em observar os detalhes do caminho que levava através dos corredores largos do estádio. Os guardas abriam alas. Consegui sair do labirinto sem que ninguém observasse minha presença.

Antes que passássemos pelo portão principal, percebi um monstro. Afastei cuidadosamente um pedaço da fronha do travesseiro e dei uma olhada. Vi um gigantesco pássaro sobre o qual estava montado um homem. Tratava-se do salonense que, segundo supunha Kasom, era Ebrolo.

Gravei o rosto do homem. Provavelmente o malfeitor fizera tudo para modificar sua máscara de serviço, para que não pudesse ser reconhecido com base em retratos.

— Meus cumprimentos, Voszogam! — disse o desconhecido num dialeto que ainda não havia ouvido.

Provavelmente era o linguajar dos habitantes do litoral.

— Meus cumprimentos, Magontin — respondeu o chefe guerreiro. — Mandar-lhe-ei uma garra do lobo-batráquio. As lembranças de uma aposta perdida sempre são muito importantes, pois levam-nos a ser cautelosos.

O homem que cavalgava o pássaro soltou uma gargalhada. Desempenhava muito bem o papel de perdedor.

— O que decidiu seu gladiador? Você o cederá a mim?

Voszogam soltou um suspiro.

— Só os deuses sabem o que prende estes selvagens à minha pessoa. Para mim, essa simpatia é algo de estranho.

— Então ele não quer?

— Prefiro dizer que dá mais valor à prudência que à cortesia. Para ser justo, tive de informá-lo de que a luta não foi exclusivamente um ato de minha vontade. Para mim seu desejo é uma ordem, nobre Magontin...

O homem que montava o pássaro fez um gesto de tristeza e despediu-se. Soltou um grito estridente para pôr o pássaro a correr. Já havíamos saído do estádio. Atlan estava apoiado num grosso bastão de madeira tosca. Encostado ao muro do estádio, soltava seus gritos tristes.

— Umbarth, o sopra-fogo, servo fiel do grande Voszogam de Llahakal, pede uma dádiva — lamentou-se o chefe. — Nobres senhores, não se esqueçam de Umbarth, o sopra-fogo, que sacrificou a vista pelo Império.

Voszogam ouviu estas palavras. Fez a liteira passar perto do mendigo e atirou uma moeda na panela.

Aproveitei a oportunidade e saltei de um metro de altura. O impacto foi muito forte, mas é sabido que os siganeses agüentam muito mais do que seu físico faria supor.

Escondi-me atrás da perna de Atlan e esperei que ele me levantasse com um movimento rapidíssimo e me colocasse na sacola que trazia a tiracolo. Uma vez lá, gritei o mais alto que pude:

— Cuidado, sir. Parece que esse sujeito que está montando o pássaro é Ebrolo.

— Já foi filmado — cochichou o lorde-almirante.

Estas palavras me deixaram perplexo, embora para um especialista da USO não devesse ser nenhum segredo, que Atlan possuía um excelente instinto para tudo quanto era perigo. Durante sua longa vida, acumulara um tesouro de experiências que nenhuma outra criatura inteligente da Galáxia poderia possuir.

Só depois de algum tempo, tive a idéia de examinar melhor o bastão tosco de Atlan. Pus a cabeça para fora do saco malcheiroso, e só então comecei a imaginar o que os especialistas siganeses haviam instalado no interior daquele pedaço de pau! Devia ser muito mais que uma simples filmadora. Era provável que, se necessário, Atlan pudesse desenvolver a força combativa de cinco exércitos eysalenses. Essa idéia me consolava.

— Perdi meu equipamento de vôo e meu defletor, sir — anunciei.

Atlan esperou que as multidões saídas do estádio se espalhassem. Os numerosos mendigos afastaram-se mais ou menos depressa.

Atlan esvaziou a panela para dentro do saco e começou a andar às apalpadelas.

— Vamos ao lugar em que está instalada minha base — observou em voz baixa. — Quando virá Kasom?

— Pelo que diz, em três horas.

— Muito bem. Você teve um excelente desempenho, Lemy. Muito obrigado. O senhor nos salvou de um fracasso doloroso.

Fiquei vermelho de tão alegre e embaraçado pelas palavras de elogio do chefe. Ainda bem que ele não podia ver. Mas logo me assustei.

Teria que contar ao chefe que o animal me havia inalado? Não seria suficiente dizer que atirei pelas narinas, motivo por que a descarga não foi vista por ninguém, conforme era seu desejo?

Fiquei zangado comigo mesmo. Meu orgulho de homem não permitia que confessasse em que situação embaraçosa e indigna eu me vira. Mas, por outro lado, não deveria esquecer que o lobo-batráquio era uma criatura ignorante, que não compreendera a ofensa praticada contra minha pessoa.

No fim, minha educação levou a melhor.

Resolvi contar tudo. Um siganês não mente. No entanto, pretendia pedir ao venerável chefe que não revelasse minha desdita àquele ertruso convencido. Imagine o leitor como Kasom se teria aproveitado disso. Nem era bom pensar.

Atlan caminhava com uma rapidez surpreendente. Parecia saber até onde podia ir sem pôr em perigo a credibilidade de seu disfarce.

Passou por vielas angulosas da cidade velha, que se estendia junto à margem de um grande rio, que ficava atrás do estádio. Era ali que viviam os pobres de Malkino.

Geralmente as casas eram baixas e tinham janelas muito pequenas. As ruas estreitas estavam cobertas de imundícies de toda espécie. Levamos uma hora para chegar ao destino. Tratava-se de uma casa maior que as outras, cercada por um muro alto. A casa ficava um pouco afastada da rua.

Ouvi um martelar e tilintar. Mais uma vez pus a cabeça para fora do saco. Um escravo com avental de couro abriu o portão de ferro. Atrás dele havia um pátio, onde dois homens estavam aquecendo a ponta de uma lança para torná-la incandescente.

Compreendi que Atlan escolhera uma fábrica de armas para servir-lhe de base de operações. Andou às apalpadelas pelo pátio e gritou um cumprimento para os homens.

— A féria foi boa? — perguntou um salonense idoso.

Atlan riu e brandiu o bastão.

— O nobre Voszogam atirou uma importância considerável na minha panela — respondeu. — Ainda não sei se já percebeu que nessa oportunidade ficou sem a bolsa de dinheiro, o que naturalmente é um acaso bastante lamentável. Nos próximos dias não sairei de casa. Metade da importância arrecadada é sua, Tromur.

Fiquei apavorado. Será que o lorde-almirante realmente se rebaixara a ponto de praticar um furto?

Atlan caminhou em direção a um anexo da casa, tateou para encontrar a fechadura e abriu a porta. Quando ninguém mais podia ouvir-nos, perguntei em tom hesitante pela origem do saco de dinheiro.

O chefe soltou uma risadinha.

— Ora, meu amiguinho! Enquanto estiver em Eysal, você deve abandonar os padrões éticos siganeses. É claro que peguei o saco de dinheiro. Preciso reabilitar-me diante do fabricante de armas. O povo de Eysal acha que aliviar os ricos de seu dinheiro é um esporte.

— Seja o que o senhor quiser, sir — respondi, desolado. — Posso sair da sacola? Sinto falta de ar.

Atlan colocou-me no chão. Procurei um lugar em que a sujeira não era tão grossa. Depois disso tive de espiar pelas frestas das portas, para ver se vinha alguém.

Mais tarde o fabricante de armas entrou, cobrou sua participação e garantiu ao “velho companheiro de lutas” que poderia morar em sua casa o tempo que quisesse.

Finalmente ficamos a sós. Atlan afastou sua cama e abriu uma porta-alçapão. Parte do equipamento especial estava guardada no subterrâneo.

— Ainda hoje Tromur remeterá armas reparadas e afiadas ao posto de vigilância de Timo. É a fortificação que protege a via de ataque do oeste. Você disse que instalou seu abrigo subterrâneo junto à bomba de água? Muito bem. Vá na carroça. Passará pelo ponto de aguada. Quando chegar lá, salte, pegue novo equipamento e volte. Espero-o juntamente com Kasom. Trouxe alguma novidade do quartel-general?

Não tinha muita coisa a contar. Relatei meu pouso no planeta e confessei ter sido “inalado” pelo sáurio. Um tanto assustado, observei o rosto de Atlan, mas esse arcônida formidável não fez pouco de mim. Disse em tom objetivo:

— Excelente, major. Não poderia ter encontrado uma posição mais discreta para fazer o disparo.

Senti-me aliviado. Ajudei Atlan a retirar o filme já revelado da câmera. A mesma fora instalada na protuberância superior do bastão.

As fotografias coloridas eram bastante nítidas e apresentavam-se em três dimensões. Enfiamo-las no rastreador eletrônico de um aparelho de reconhecimento ajustado aos dados do Tenente Ebrolo.

Dali a cinco minutos tivemos certeza de que Ebrolo e o nobre Magontin eram a mesma pessoa.

— Pois então!— disse o lorde-almirante, em tom tranqüilo e enfático.

Sua voz me fez sentir um calafrio.

Antes de passar sorrateiramente pelo pátio e subir para a carroça que estava de partida, Atlan deu-me mais algumas instruções. Ainda não sabia se diante da nova situação seria recomendável abandonar a base que instalara na casa do fabricante de armas.

— Caso não esteja mais aqui quando você voltar, vá ao porto. O Ogolam, um navio a vela de dois mastros, pertence a mim. Apresente-se a bordo. Sou considerado o comandante e proprietário desse navio de cabotagem. Meu nome é Fennetra.

Espantei-me de que o chefe já tivesse feito tanta coisa desde que chegara a Eysal. A bordo do Ogolam havia um grande depósito com armas, aparelhos de comunicação e equipamento especial do tipo criado para a defesa contra os antis.

O fabricante de armas partiu pouco antes do pôr do sol. Ouviu-o reclamar em altos brados contra a exigência de percorrer de noite aqueles caminhos inseguros. Para mim isso era indiferente. Procurei um lugarzinho e adormeci imediatamente. Sem dúvida acordaria por ocasião do controle realizado junto às muralhas da fortaleza. Isso não me preocupava.

Sonhei com um monstro que cuspia fogo e queria devorar-me. O sonho deixou-me tão agitado que acordei com meus próprios gritos de guerra.

Assustado, procurei ouvir o que estava acontecendo lá fora. A carroça estava passando ruidosamente por cima de uma ponte levadiça de madeira. O controle foi bastante superficial. Não tive de esconder-me.

Só dali a uma hora, a região começou a parecer familiar. Eyciteo II não possuía lua. Em compensação, a luminosidade do anel de hidrogênio que envolvia o centro da Galáxia era tão forte que consegui reconhecer toda a vegetação.

Quando chegamos à bomba, saltei da carroça. Tirei a arma de impulsos e olhei em torno, à procura de animais perigosos. Uma lagarta quis engolir-me e uma ave noturna desceu com um grito estridente, o que me obrigou a procurar abrigo embaixo das tábuas podres da tina de água.

Para uma pessoa pequena como eu, a vida é um martírio. Esperei uns dez minutos e perdi a paciência. Se a ave não quisesse ir embora por bem, teria que ser obrigada a isso.

Atirei uma pedra em sua cabeça, urrei que nem um tigre terrano e exibi minha vigorosa dentadura. Não foi preciso mais nada!

Cheguei são e salvo ao meu abrigo subterrâneo, onde finalmente voltei a ter consciência de que era um homem civilizado.

Comi uma conserva fresca, engoli dois comprimidos de alimentos concentrados e procurei reunir meu equipamento. Atlan dera ordens terminantes para que não utilizasse qualquer dispositivo antigravitacional. Por isso tinha de contentar-me novamente com as pás giratórias presas às minhas costas.

Desta vez preferi usar um microrreator para garantir o suprimento de energia. Dessa forma não dependeria da potência reduzida da bateria. Olhei para o relógio e constatei que já tinha perdido muito tempo. Os animais que puxaram a carroça carregada de armas não eram muito rápidos.


Relatório do Lorde-Almirante Atlan

O rastreador gravitacional voltou a zumbir. Interrompi meu trabalho. Era a quarta localização de quinta dimensão que recebera no espaço de uma hora.

Mais rapidamente do que pretendia, arranquei do rosto o tecido vivo artificial e esfreguei o solvente no mesmo. Os restos da máscara desmancharam-se e puderam ser afastados rapidamente. Meu papel de mendigo chegara ao fim.

Encontrava-me no compartimento de carga do Ogolam. Adquirira o navio pouco depois de ter chegado a Eysal. Os seis tripulantes estavam em terra há dois dias. Ninguém me perturbaria.

O zumbido do rastreador deixou-me cada vez mais preocupado. Vesti uma roupa de marinheiro e amarrei o cinto com a espada em torno do casaco que chegava até o joelho.

Olhei atentamente meu reflexo no espelho feito de chapa de cobre polida.

Então Atlan, o antigo imperador dos arcônidas, se transformara naquilo que estava à minha frente: um marujo de pele verde, coberto de cicatrizes, que trabalhava num mundo bárbaro, colonizado há milênios por meus antepassados.

As batidas do ativador celular fizeram com que me lembrasse de que não dormia há vinte e quatro horas. O aparelho trabalhava mais intensamente que de costume, para estimular meu metabolismo celular.

Os últimos dias foram muito cansativos, mas afinal havíamos encontrado Ebrolo. Arrependi-me amargamente de ter acolhido um anti na USO e lhe ter dispensado o treinamento da Academia. Os baalols, que eram descendentes dos acônidas atingidos por um processo de mutação, não mereciam confiança. Estava na hora de tomar outras decisões, em conjunto com Perry Rhodan.

A lembrança do terrano, que se encontrava em seu mundo, de onde planejava as operações de busca dos ativadores celulares restantes, fez com que voltasse a pensar na minha tarefa. Seria inútil fomentar as chances perdidas e entreter-me com reflexões políticas relativas aos antis, enquanto Ebrolo não fosse preso.

Nunca deveria ter confiado uma missão a esse homem, nunca lhe deveria ter dado a incumbência de ajudar uma mutante em dificuldades...

Provavelmente Ebrolo teria falhado, mesmo que Anne Sloane não possuísse um dos vinte e cinco ativadores celulares que o Ser fictício de Peregrino havia espalhado pelos mundos da Via Láctea.

Rhodan e eu não iríamos correr atrás desses aparelhos, pois tínhamos outros problemas. Os povos dos sistemas conhecidos estavam em efervescência. As medidas políticas de Rhodan haviam restabelecido a ordem por algum tempo, mas já estava acontecendo aquilo que eu esperara.

Os terranos eram competentes, previdentes e, se necessário, sabiam tomar medidas duras, quando não viam outra saída. A sugestão dirigida a Perry, de extinguir os eternos focos de desordem segundo o modelo dos conquistadores arcônidas, não encontrara boa acolhida. No entanto, continuava convencido de que o administrador geral não demoraria a compreender que os habitantes dos mundos coloniais, que haviam adquirido a autonomia, compreendiam muito melhor a linguagem dos canhões energéticos que a dos diplomatas terranos.

Vez por outra perguntava a mim mesmo, bastante preocupado, se agira acertadamente ao abdicar para entregar a Rhodan o governo de todo o Império. Era um estadista e estrategista muito competente, mas o fato de que ultimamente se deixava dominar por um espírito humanitário cada vez mais exagerado preocupava-me bastante. Dessa forma não seria possível conquistar e manter um império estelar. Meus colaboradores ressaltaram que Rhodan estava passando por uma crise passageira. Procurava resistir à voz da inteligência, que lhe dizia constantemente que, pelo menos uma vez, deveria atirar o poderio das frotas do Império Unido nos pratos da balança com tamanha força, que alcançasse pelo menos uma pausa para respirar.

Eu mesmo tomara todas as providências para, se necessário, poder utilizar todos os recursos da USO, uma organização criada por mim. Rhodan não compreendia muito bem para que fim eu usava os bilhões tirados do tesouro do Império de Árcon.

Meus estaleiros fabricavam diariamente naves espaciais dos tipos mais modernos. Velhas espaçonaves arcônidas, equipadas com os antiquados propulsores à base de transição, que estavam reduzidas a sucata, saíam dos portos espaciais com os propulsores lineares e um armamento que só costumava ser encontrado nas naves dos pos-bis.

Renunciara ao meu Império a favor dos terranos, por acreditar que estes seriam os herdeiros naturais de meu povo, que perdera toda vitalidade. Ainda continuava a acreditar, mas não conseguia livrar-me da impressão de que um belo dia teria de voltar a intervir pessoalmente nos acontecimentos, a fim de reforçar a espinha dorsal dos humanos. Foi o que sempre fiz durante milhares de anos. Para mim não era nenhuma novidade.

Foi justamente numa época de tensões internas como esta que um dos meus homens sofreu um deslize psicológico. Estava com as mãos atadas, por causa da política do Império. Não poderia arriscar-me a lançar um ataque aberto contra o mundo bárbaro situado na periferia do setor conhecido da Via Láctea, a fim de prender Ebrolo.

As atividades dos baalols, por aqui desenvolvidas, ainda não eram bastante conhecidas para que pudesse transformá-las num caso a ser oficialmente tratado pela USO. Por isso tive de realizar uma ação de comando com os dois elementos mais competentes de minha equipe de especialistas. E esta ação poderia custar-me o pescoço.

Os mutantes de Rhodan haviam fracassado. Ultimamente seus fracassos tornavam-se cada vez mais freqüentes, porque o inimigo havia aprendido alguma coisa e sua área de atuação se tornara mais ampla. Até mesmo Reginald Bell, o defensor mais apaixonado da atividade dos mutantes, acabou reconhecendo que os poucos homens e mulheres que compunham o respectivo grupo não poderiam estar em toda parte ao mesmo tempo.

Só as expedições de minhas naves exploradoras exigiriam três a quatro mil mutantes dotados das mais variadas faculdades parapsicológicas, se quisesse usá-los para controlar todos os vôos.

A situação político-militar do ano 2.326 exigia que as pessoas dotadas de faculdades parapsicológicas permanecessem num lugar do qual pudessem ser enviadas aos centros dos acontecimentos. Acontece que o número dos focos de perigo era maior que o dos mutantes.

Estava na hora de Rhodan reconhecer que, tal qual meus antepassados, teria de operar com homens e armas normais, para não pôr em risco os êxitos já alcançados. Os mutantes já não eram nenhuma panacéia, embora não se pudesse deixar de reconhecer que a construção do Império Solar foi devida principalmente aos psi.

Tirei os dados da fenda do processador e examinei-os.

Os impulsos gravitacionais que haviam sido registrados vinham de objetos voadores. Em todos os casos, a intensidade era inferior a oitenta mil merobins. Tratava-se de um unidade arcônida, destinada à medição da intensidade dos campos da quinta dimensão.

A freqüência com que apareciam as radiações provava que um grupo de seres, tecnicamente bastante evoluídos, estava usando pequenas máquinas voadoras equipadas com neutralizadores gravitacionais. O que significa isso? Será que alguém havia notado a presença de Ebrolo? Ou será que Melbar Kasom se traíra?

Saí do compartimento de carga, passei pela escotilha e subi ao convés. Olhei em torno. O Ogolam era um barco a vela. Estava ancorado num braço de mar, num velho porto. Dizia a todo mundo que estava aguardando uma oportunidade de fazer um reparo barato do cordame. Recusara as ofertas feitas pelos estaleiros, a fim de ter um motivo para continuar nesse lugar.

Mais à direita ficavam as fortificações da nova bacia do porto. Era onde atracavam os grandes veleiros. Um deles pertencia a Ebrolo. Ao que parecia, este tivera o cuidado de esconder seu equipamento USO em diversos lugares.

Descobrira o navio de três mastros por meio de localização energética, antes mesmo que meu rastreador energético registrasse a presença das inquietantes ondas gravitacionais.

Ao que parecia, a vitória de Melbar Kasom na luta contra o lobo-batráquio colocara o antigo especialista da USO em estado de alarma. Quando resolvi abandonar minha base na fábrica de armas, que não servia para mais nada, segui Ebrolo e encontrei-o na casa de hóspedes do nobre Voszogam. Antes que resolvesse se devia ou não atacar o anti sozinho, este se pôs a salvo, dirigindo-se à mata virgem numa máquina voadora e procurando apagar as pistas.

Esvaziei calmamente meu depósito, deixei um defletor para o Tenente Kasom perto do estádio e dirigi-me ao Ogolam. Conforme esperara, Ebrolo apareceu no porto em que deixara seu navio.

Meus vôos de reconhecimento foram bem-sucedidos. Já não havia a menor dúvida de que Ebrolo deixara, nesse barco a vela, uma parte considerável de seu equipamento especial.

Restava saber se acreditava não ter sido descoberto e se sentisse numa segurança relativa, ou se já estivesse preparando a mudança do depósito instalado a bordo do veleiro. Por enquanto não havia constatado nenhuma atividade de veículos transportadores.

Se Ebrolo fosse um homem igual a qualquer outro, sua prisão não representaria nenhum problema. Voltei a chamar-me de idiota por ter oferecido justamente a um indivíduo bem-dotado pela natureza, como o anti, a possibilidade de aperfeiçoar seus dons e conferir-lhe um grau de desempenho que nos causava grandes dificuldades.

Subi ao castelo de popa e movi lentamente o leme, por sinal muito simples. Olhei para o cais. No momento não havia ninguém por lá.

Mais ao leste soou a trombeta de uma embarcação de patrulhamento do porto. Os habitantes do Império Salonense sempre estavam preparados para um ataque. As tribos bárbaras das florestas e dos planaltos do oeste eram inimigos que não podiam ser subestimados.

Um sopra-fogo iluminou as muralhas das fortificações que protegiam a cidade. A luz vermelha rompeu a escuridão. Um animal soltou um grito. Ouvi vozes confusas. As tropas de vigilância de Malkino nunca dormiam... Esperava-se uma revolta dos zelutenses, um povo muito belicoso, que descobrira recentemente o segredo dos canhões de óleo volátil.

Passei a olhar em direção ao céu estrelado desse mundo estranho. Lá em cima, uma esquadra de guerra da USO mantinha-se em posição de espera a alguns meses-luz do sol verde. Ainda não poderia arriscar-me a chamar minhas naves. Se os sacerdotes de Baalol conseguissem provar que já se encontravam em Eyciteo II há alguns séculos, nem se poderia cogitar de uma intervenção nos assuntos internos de uma população planetária. Isso nunca poderia representar um caso para a USO.

“Ataque de qualquer maneira!”, disse meu cérebro suplementar. “Sempre se encontra um motivo.”

Sem querer, franzi a testa. O setor lógico de minha mente, ativado há alguns milênios, também se rebelava contra a política muito macia do Império. Até parecia que os terranos estavam ficando assustados com a própria coragem.

O cordame do navio rangeu ao vento. Apesar disso ouvi o ruído que surgia sempre que o especialista Lemy Danger pousava em algum objeto, com as pernas estendidas para a frente. Quem o conhecesse, sabia o que significava esse clique.

Afastei-me da amurada e esforcei-me para não sorrir. Aquele homem de 22 cm possuía um código de princípios que não devia ser violado. Aliás, os siganeses eram um povinho esquisito. Podia dar-me por feliz por ter angariado a simpatia desses homens adaptados ao ambiente.

Entre os terranos normais, o aparecimento de Lemy Danger costumava provocar uma tempestade de gargalhadas. Quanto a mim, achava necessário não ferir o orgulho dessa gente pequena e sim dar-lhe o tratamento que mereciam. Não tenho a menor dúvida em confessar que nunca encontrei criaturas tão honradas e sérias como os homens e mulheres de Siga.

— Lemy, viu Melbar Kasom? — perguntei em voz baixa.

Quando ouvi o suspiro de surpresa, ri interiormente.

— Oh, sir, o senhor me ouviu?

A voz de Lemy parecia triste. Por si já era uma voz fina e difícil de entender. O tom em que estava falando revelava que mais uma vez o especialista siganês se sentia deprimido porque eu percebera sua presença.

Procurei acalmá-lo.

— Não, Lemy, não o ouvi. Acontece que pelos meus cálculos você deveria chegar a esta hora.

O baixinho pigarreou. Descobrira meu estratagema.

— Muito obrigado, sir. O senhor é muito bondoso. Posso desligar meu defletor?

Fiz que sim. O Major Danger tornou-se visível. Sentado sobre o corrimão, lutava para conservar o equilíbrio e queixava-se do terrível peso de seu equipamento de vôo.

Continuei sério e confirmei com um gesto, embora não conseguisse imaginar que alguém pudesse ter dificuldades por causa de um peso de 200 g.

— Lemy, estou preocupado por causa de Kasom. Deixei um defletor no lugar combinado, perto do estádio. Se o Tenente Kasom conseguiu sair de lá na hora prevista, deve tê-lo encontrado. Você acha que alguma coisa o possa ter detido no caminho? Prendi um bilhete ao defletor. É necessário que Melbar saiba que não estou mais naquela casa. Ele conhece o caminho que leva ao porto.

— Ninguém consegue deter Melbar, sir — respondeu o baixinho em tom enfático.

Conhecia sua rivalidade íntima com o super-homem ertruso. Por isso mesmo achei admirável que Lemy nunca fizesse uma tentativa séria de prejudicar Kasom. Sabia perfeitamente quanto aquela criatura pequena se sentia deprimida diante da robustez física do ertruso. O relatório da luta com o lobo-batráquio mais uma vez confirmara o psicograma dos traços do caráter do siganês.

Naquele momento os sentimentos de Lemy balançavam que nem um junco ao vento. Provavelmente estava refletindo sobre um meio de convencer o ertruso de que entrara, por sua livre e espontânea vontade e com a cabeça fria, na narina do monstro.

Não perdi muito tempo em reflexões. Era necessário prender o Tenente Ebrolo ou pô-lo fora de combate ainda naquela noite. Não podíamos permitir que voltasse a colocar-se em segurança.

— Major Danger, faça o favor de sair voando e procure localizar Melbar Kasom. Já deveria ter chegado. Esperarei mais uma hora. Depois atacarei. Avise Kasom de que captei várias localizações gravitacionais.

— Localizações gravitacionais, sir!? — disse o baixinho, em tom assustado.

Apressei-me em segurá-lo, para que não caísse na água.

— Sir, isso só pode significar uma coisa: os antis também estão na pista de Ebrolo.

— É o que receio, se bem que não tenho a menor idéia de como podem ter descoberto a pista. As máquinas voadoras estão patrulhando a área portuária. Desliguei todas as máquinas. Tenha cuidado. É possível que Kasom saiba mais que nós. Vá logo.

Lemy empertigou-se e verificou as armas. Estava ardendo de entusiasmo.

— Na escuridão posso dispensar o campo defletor, sir — disse em tom enfático. — Mas é possível que por ali haja muitos animais noturnos que talvez me veja obrigado a matar.

Pigarreou, para não rir. “Talvez me veja obrigado a matar!” Gomo estas palavras soavam em sua boquinha. As situações de anão em que Lemy se metia costumavam deixar um homem normal descontrolado. Tive de fazer um grande esforço para imaginar como se sentiria um homenzinho das dimensões de Lemy, quando, de repente, se deparasse com os olhos chamejantes de uma coruja. Na verdade, esse homenzinho vivia mais intensamente as ações que qualquer outro agente da USO. No caso de Lemy, as situações de perigo sucediam-se ininterruptamente, e nós outros não percebíamos nada. Quantas vezes teria escondido uma situação de perigo para evitar que zombassem dele?

Resolvi nunca fazer-lhe perguntas sobre isso. Só lhe recomendaria que tivesse muito cuidado.

— Está bem, major. Mate os animais, se isso for indispensável — disse com a maior calma. — Se tiver de atirar, tome cuidado para que o lampejo energético não seja visto.

— Provavelmente pensarão que sou uma estrela cadente, sir — disse Lemy, em tom pensativo. — Caso o senhor se veja numa situação perigosa, eu o livrarei da mesma. Basta um chamado pelo rádio, e Lemy Danger logo estará presente.

— Naturalmente, meu caro. Se isso acontecer, avisarei imediatamente.

Passei o dedo por seu cabelo sedoso. Lemy fez continência com tanta rigidez, que perdeu o equilíbrio e caiu de costas por cima do corrimão.

O siganês inabalável respondeu ao meu grito de pavor:

— Desculpe a decolagem-relâmpago, sir. Tenho uma missão urgente a cumprir.

Cobri os lábios com a mão e acenei com a cabeça. Mais uma vez Lemy dera prova de sua enorme capacidade de reação. Conseguira ligar os rotores durante a queda. Naturalmente encontrou uma desculpa para a má sorte. Seu orgulho não permitia que voltasse a mencionar o peso enorme da mochila que trazia nas costas.

O hábil especialista da USO desapareceu com um zumbido. O ruído de seu microaparelho de vôo cessou dali a alguns segundos.

Lancei um olhar preocupado para o alto, onde seres invisíveis vasculhavam a cidade e o porto com seus aparelhos antigravitacionais. O que teria atraído os antis para fora de seus esconderijos?

Quando pretendia descer para colocar o traje de combate, voltei a ouvir o zumbido da máquina de Lemy. Alguma coisa bateu nas minhas costas, e um par de mãos minúsculas agarrou o tecido de minha blusa.

— O que houve, Lemy? Você... Ouvi um grito estridente e procurei abrigar-me. No mesmo instante tentei golpear o objeto que, de repente, adquiriu um peso tão elevado que me fez desconfiar.

Enquanto me atirava sobre as tábuas do convés, ouvi o chiado de uma microarma. Um lampejo ofuscante doeu nos meus olhos. Alguma coisa explodiu depois de um estalo. Senti que fora ferido por um tiro de radiações. Minhas costas ardiam como fogo. Virei-me abruptamente e vi o objeto que acabara de pousar nas minhas costas. Lemy Danger estava parado na escada que levava ao castelo de popa, de arma em punho. Olhava para o objeto jogado perto de mim, que esvoaçava inutilmente com quatro asas transparentes.

Abaixei-me, dei um salto para o lado, peguei uma ripa e bati no objeto até que o mesmo ficasse imóvel.

Levantei-me. Estava ofegante. Lemy e o atacante destruído apareciam perfeitamente à luz das estrelas.

— Infelizmente tive de atirar, sir — disse o siganês. — Este inseto enorme é um robô. Vários deles estão voando por aí. Vi-o assim que decolei e fui atrás dele. Quando o divisei pousado em suas costas, achei que seria mais prudente atacá-lo. Sinto muito, sir, mas...

Interrompi-o com um gesto e inclinei-me para examinar o inseto que media uns 30 cm de comprimento. Era feito de plástico e metal leve. Possuía um complicado mecanismo voador e um microcérebro robotizado acoplado a um rastreador individual.

— Não é possível! — exclamei, estupefato. — Será que isso é um produto siganês, Lemy?

Danger examinou o inseto. Curvado, de joelhos, esforcei-me para acompanhar os movimentos rapidíssimos da mão daquela criatura pequena. Lemy ligou o farol de seu capacete e enfiou a parte superior do corpo no ventre do microrrobô.

Estava ansioso para conhecer o resultado. Danger levantou-se e deu um pontapé no terrível inimigo.

— Isso não foi feito em Siga, sir — asseverou. — O mecanismo é tosco e primário. Meu povo se envergonharia de fazer uma coisa dessas. Este robô não pertence ao equipamento de Ebrolo.

Confirmei com um gesto e levantei-me do chão. Danger apontou para a extremidade mais volumosa do objeto voador.

— Nesta parte colocaram um ferrão venenoso, sir. Provavelmente este robô foi ajustado para Ebrolo. Se não fosse assim, ele o teria picado imediatamente. Se conferirmos a regulagem do rastreador individual, provavelmente verificaremos que a mesma corresponde aos dados pessoais de Ebrolo. Trata-se de um infame instrumento assassino dos antis, sir. Agora já compreendo por que estes insetos são considerados mensageiros do deus Kulan. Os antis construíram este tipo de aparelho para eliminar facilmente os nativos que lhes dêem trabalho. Tenho certeza de que os rastreadores podem ser ajustados a qualquer tipo de freqüência individual.

Pus o baixinho nos braços e apertei-o suavemente contra minha face. Lemy soltou uma risadinha e beliscou minha orelha. Falou em tom embaraçado:

— Sir, eu lhe agradeço se não falar em gratidão. Sua vez logo chegará. Além disso não tenho certeza de que o robô realmente o teria picado. Naturalmente teria notado que o senhor não é Ebrolo.

Bem, para mim isso não era tão natural assim. Minhas vibrações individuais eram bem diferentes das dos eysalenses. Bastaria um pequeno erro de cálculo do analisador de dados, e eu seria um homem morto. Provavelmente Lemy atirara no momento exato.

Lembrei-me da queimadura nas costas.

— Posso ajudar em alguma coisa, chefe? — perguntou Lemy.

O tom de sua voz revelava que isso o deixava muito abatido.

— Não. Saberei cuidar disso. Vá procurar Kasom. Tomara que não tenha sido vítima de um microrrobô. Traga-o para cá. Atacaremos imediatamente.

Danger saiu voando. Subi às pressas. Passei um spray de bioplástico na ferida e coloquei um traje de combate do último tipo. Armei-me com uma arma versátil, construída especialmente para combater os antis.

Aquela arma pesada, que tinha mais de meio metro de comprimento, funcionava com dois sistemas de disparo completamente diferentes. Um conversor direcional irradiava energias termonucleares e um cano-guia expelia minifoguetes de plástico. Sabia-se que os campos defensivos individuais dos antis, sustentados por energias psicomentais, só atuavam num setor de cada vez. Absorviam as radiações energéticas de todos os tipos, ou então evitavam a penetração de objetos materialmente estáveis.

A novidade mais recente criada pelos antis consistia em inverter as cargas do campo com tamanha rapidez, que eram capazes de defender-se tanto contra as armas energéticas como contra as de projéteis.

As experiências já realizadas provavam que era inútil disparar simultaneamente projéteis materiais e raios energéticos.

O período de estabilização do campo durava um décimo milésimo de segundo. Seria inútil tentar aproveitar este tempo minúsculo numa operação manual. Se disparássemos microfoguetes, estes seriam repelidos na inversão seguinte. A mesma coisa aconteceria com os raios energéticos.

As armas múltiplas estavam acopladas a um microcomputador positrônico. Determinada a distância do tiro, o computador calculava o tempo de percurso do raio energético e do projétil e transmitia os dados ao comando sincronizado.

Quando a arma múltipla era disparada, o foguete saía em primeiro lugar. O raio energético, muito mais rápido, saía com a diferença de tempo resultante do cálculo efetuado com base na distância.

Face a essa interpretação extremamente precisa, os dois tiros atingiam o alvo no mesmo instante... e o anti não teria a menor chance! Seu campo energético estaria ajustado para repelir a matéria ou para absorver a energia. E a arma múltipla trabalhava com uma precisão de um décimo milésimo de segundo.

Pesei na mão a arma desajeitada. O jogo de Ebrolo chegara ao fim...!


Relatório de Melbar Kasom

Bati com a ponta do dedo na cabeça do guarda e deixei que caísse lentamente ao chão. Estava inconsciente.

Vi as pranchas do portão na parte final do muro. Este fechava a saída dos fundos da arena, que só era usada por pessoas que tinham algo a fazer na área de luta.

Fiz mais uma tentativa para calcular a hora com base na posição das estrelas, mas ainda desta vez não consegui. Nessa parte da Galáxia era impossível reconhecer as diversas estrelas. O céu estava salpicado de bilhões de sóis, que formavam uma faixa luminosa que se estendia até a linha do horizonte.

Face aos acontecimentos mais recentes, não poderia arriscar-me a usar o rádio. Surpreendentemente, os antis resolveram examinar o cadáver do lobo-batráquio, e depois disso começaram a desconfiar de mim.

Fugira da prisão há dez minutos. Akussa me ajudara, mas pedira que o deixasse inconsciente. Foi o que fiz. O único amigo que tinha naquela fortaleza do ódio estava estendido atrás da primeira grade do labirinto. Provavelmente, já fora encontrado.

Voltei a aguçar o ouvido e corri para junto do portão. Os ferrolhos primitivos não constituíam nenhum problema. Levantei a tranca e empurrei o portão. Vi à minha frente o caminho usado pelos fornecedores.

Mais atrás, a uns dez metros, estava a imagem de um deus pagão caído em desgraça. Havíamos combinado que Atlan deixaria o defletor naquele lugar.

Agachei-me para saltar. De repente dois holofotes acenderam-se e os feixes luminosos atingiram-me em cheio. Fiquei imóvel.

— Vejo que você é um homem razoável, superpesado — disse alguém num intercosmo impecável, que diferia bastante do arcônida antigo falado pelos eysalenses.

Não me arrisquei a fazer o menor movimento. Naquele planeta só os antis possuíam holofotes. Seria inútil saltar para fora do foco. Será que tinham encontrado meu gerador?

— Levante-se devagar, e dê dois passos para a frente — disse a mesma voz.

Continuei na mesma posição. A ordem foi repetida. Finalmente o desconhecido disse em tom contrariado:

— Deixe de representar, superpesado. Você domina a língua que estou usando. Esperarei três segundos. Se até lá não vier, farei surgir um pequeno vulcão entre seus pés.

Esperei dois segundos e endireitei o corpo. Caminhei lentamente para a frente e parei. O portão rangeu às minhas costas. Havia mais alguém por lá.

Os holofotes apagaram-se. Meus olhos voltaram a habituar-se à luz das estrelas e vi dois sacerdotes de Kulan. Os mesmos seriam totalmente inofensivos, se não fossem as pesadas armas térmicas que seguravam.

Preferi ficar calado. Refleti sobre a situação. Devia deixar que me prendessem? Será que estavam interessados nisso? Quando o anti muito alto começou a falar, compreendi que minha vida estava por um fio.

Já haviam cometido um erro; na verdade, dois. Estavam confundindo minha bela figura com o corpo grosseiro de um superpesado pertencente a algum dos clãs dos mercadores galácticos. Isso não era nada inteligente. Um ertruso não pode ser comparado a um verme, que na melhor das hipóteses está acostumado a uma gravidade de 2,4 G.

Além disso essa gente não deveria ter dispensado o efeito ofuscante dos holofotes. Naturalmente não queriam que todo mundo notasse sua presença.

Tudo dependia de como avaliassem meus dotes mentais. Melbar Kasom só fica impressionado com um par de armas térmicas caso estas se encontrem nas mãos de lutadores experimentados.

Os adversários que tinha pela frente não eram lutadores. Não passavam de parasitas amolecidos, que engordavam à custa dos eysalenses.

Os fatos levaram-me a desistir do jogo de esconder. Precisava iniciar o duelo psicológico antes que esses sujeitos resolvessem matar-me.

— Pediram-me que, se fosse descoberto, lhes transmitisse os cumprimentos de meu patriarca e lhes dissesse que trezentas naves de guerra estão esperando a poucas horas-luz daqui, anti — disse, enfatizando as palavras. — Achamos que este mundo se presta muito bem à instalação de uma base que fique próxima ao centro. Ofereço-lhes a sociedade ou a morte. A escolha é sua.

— Sua fala é arrogante, superpesado — disse o porta-voz do grupo.

Quanto a mim, mexia constantemente com as mãos. Será que essa gente tinha conhecimento da intervenção da USO? Pelo que revelavam nossas investigações, não desconfiavam de nada.

— É só o que tenho a dizer. Quem é o chefe de vocês? Quero falar com ele, antes que façam alguma tolice.

— Quantos homens de seu patriarca desembarcaram neste planeta?

Lembrei-me da troca de mensagens com Atlan. Teria de confessar alguma coisa.

— Mais alguns além de mim, mas os outros não são superpesados. Tenho um interesse todo pessoal em saber a quem devo agradecer pela oportunidade de lutar com o lobo-batráquio. Quem estava interessado em eliminar-me? Foram vocês?

— Não somos burros. Foi alguém que acreditava que você o estivesse perseguindo. Este homem arranjou a luta.

Não sabiam nada a nosso respeito! Seria mesmo de admirar se soubessem. Continuei no meu papel de mercador galáctico. Minha estatura permitia que me fizesse passar por saltador.

— Alguém que acreditava que eu o estivesse perseguindo?! — repeti em tom de perplexidade. — Neste mundo marginal e primitivo?! Não temos o menor interesse pelos criminosos que vivem por aqui. Vim para cá por ordem de meu patriarca, a fim de sondar a situação. É só. Acho que vocês deveriam tirar o dedo do gatilho. Se não interrompo meu transmissor automático a intervalos regulares de dez horas, e o mesmo expedirá um pedido de socorro pela faixa de hiperondas. Os dados que colhi também serão transmitidos num impulso condensado.

“Acho que vocês deveriam chegar a um acordo comigo. Meu nome é Melbar Kasom. Sou o chefe do clã de Barus, que obedece ao comando supremo do patriarca Katzotel. Queremos ganhar dinheiro, anti, mas isso fora da área de influência do Império. Minha permanência na arena valeu a pena. Por lá costumam conversar muito. Não vemos por que vocês devem ficar sozinhos nos negócios. Como é? Posso falar com seu chefe ou não posso?”

O anti fitou-me prolongadamente. O outro manteve-se em silêncio.

— Quem deu o tiro no lobo-batráquio, superpesado? — perguntou.

Soltei uma gargalhada e refleti.

— O tiro foi disparado das arquibancadas. Consegui desviar-me em tempo. Meus homens não costumam dormir. Quem quis matar-me? Acho que é importante eu ser informado sobre isso.

— Alguém que acreditava que você o perseguia. Já disse.

— Quem é esse alguém? Estou preocupado.

— Foi um agente da Segurança galáctica, enviado para cá a fim de ajudar uma colega. Ele a matou. Há algum tempo nós o mantemos sob observação.

— Da Segurança Galáctica?! — perguntei, estupefato. — Como é que essa gente veio parar aqui? Será que estão atrás de vocês?

— É o que queremos saber de você, superpesado. Nós o reconhecemos na primeira apresentação, mas achamos preferível esperar um pouco.

— Vocês não podem permitir que esse agente ande por aí! — observei em tom exaltado. — Basta um chamado pelo rádio, e a intervenção do Império será inevitável.

— Por enquanto não há perigo. Magontin será eliminado hoje de noite. Você virá conosco. O planador está parado atrás destes arbustos.

Fez um sinal com a arma de radiações. Saí caminhando cautelosamente. Os dois antis ficaram atrás de mim.

As mentiras que eu acabara de contar tinham pernas curtas. Quanto a isso não tinha a menor dúvida. No entanto, descobrira tudo que desejava.

Sabiam do crime de Ebrolo, e por isso achavam pouco provável que ele fosse pedir socorro pelo rádio. Os antis resolveram esperar para ver quais seriam as conseqüências do assassinato de Anne Sloane.

Pouco depois me descobriram, e ficaram sem saber se estava atrás de Ebrolo ou não. Até este ponto as conclusões dos antis tinham sido corretas. Provavelmente, se desconfiassem de que Ebrolo tinha um ativador, teriam agido de forma muito diferente.

Não havia dúvida de que os baalols não se sentiam ameaçados pelos Império. Ninguém podia provar que eram culpados de interferências desonestas nos assuntos de outros povos. Minha ameaça de um ataque ilegal por parte de uma frota dos saltadores pesava muito mais. Para esse tipo de gente não importava que a colonização de um planeta fosse permitida ou não. Chegavam mesmo a duvidar da legitimidade das leis do Império.

Parece que segui a trilha correta para salvar minha vida, pois até haviam resolvido levar-me ao templo de Kulan! O que se devia concluir disso?

— Dentro de três horas saberemos se você realmente é um enviado do patriarca Katzotel, ou se é um oficial do Império — disse o anti muito alto num tom irônico, que até fazia desconfiar de que sabia ler meus pensamentos. — Na primeira hipótese, conversaremos. Se a outra hipótese for a verdadeira, você voltará a enfrentar um lobo-batráquio, com a diferença de que desta vez ninguém poderá atirar das arquibancadas. Se a Segurança Galáctica realizar uma investigação, diremos que lamentamos muito não termos tido conhecimento de sua missão, pois, do contrário, naturalmente impediríamos a luta exigida pelos Masho. Não acha que somos inteligentes, superpesado?

— E meus colaboradores? Estão por perto. Será que você se esqueceu deles? — perguntei em tom ainda mais irônico.

— Não os procuraremos. Por outro lado, nunca saberão o que conversamos com você. Afinal, você é um gladiador, não é mesmo? Por isso ninguém se admirará de que alguém exija que você lute.

— Sou o superpesado Melbar — respondi em tom furioso.

— O inquérito com detector dirá o que você é ou não é. Para a direita, gladiador.

A situação começava a tornar-se desagradável. Os antis ainda não sabiam a quantas andavam. Se conseguissem levar-me ao templo, tudo estaria perdido. Além disso Ebrolo, ou Magontin, seria morto naquela noite.

Será que tal acontecimento não interferiria nos planos de Atlan? Talvez também tivesse descoberto Ebrolo, Não sabia qual era sua decisão. Fugira tarde demais, e além disso me haviam agarrado. Naturalmente os antis me observavam, pois, do contrário, os dois não teriam esperado atrás do portão.

Os antis encaravam com a maior tranqüilidade a possibilidade de uma investigação da USO. Não tinham outra alternativa senão preparar-se para a mesma. A chegada de Anne Sloane e Ebrolo constituíam a melhor prova de que esse mundo não pertencia mais à classe dos planetas desconhecidos.

Pelo que sabia dos antis, estes encontrariam um meio de interpretar as leis do Império a seu favor. Estava na hora de agir.

Descobri uma rocha que ficava à esquerda. Tinha uns dez metros de altura por vinte de largura. Olhei para trás e notei que os antis não eram tão inexperientes como esperara.

Nenhum deles foi leviano a ponto de baixar o cano da arma. Poderia abater um deles, mas não teria tempo para fazer a mesma coisa com o outro. A distância entre os dois, superior a três metros, era muita para poder agarrá-los ao mesmo tempo.

Nem pensei em abrigar-me atrás de um deles. Conhecia os antis. Qualquer um deles atiraria no outro para matar-me.

Só me restava a fuga... a fuga rapidíssima de um ertruso cujos músculos estavam sendo subestimados.

Vi um planador antigravitacional à nossa frente. Desviei-me um pouco para a esquerda, praguejei por causa de uma trepadeira, tropecei para a frente e aproveitei o embalo para saltar.

Uma coisa com a qual os antis nunca teriam contado transformou-se em realidade. Subi na vertical, empurrei-me na rocha e cheguei ao topo da mesma antes que os antis se recuperassem da surpresa causada pela minha força.

Não me deixei cair do outro lado da rocha. Dei outro salto em direção a um barranco e fui bater nele com as mãos e os pés.

Só agora ouvi um estalo atrás das minhas costas. Lampejos azuis iluminaram a noite. O rugido das armas energéticas abafou o ruído dos meus saltos, que me levaram a um lugar seguro. Cada um desses saltos me fazia percorrer uns vinte metros.

Nem cheguei a ouvir os gritos daqueles idiotas. Talvez já tivessem compreendido o que se encontrava diante de suas armas.

Depois disso fiz outra coisa, com a qual provavelmente também não contavam. A área oferecia excelentes abrigos. São e salvo, apenas perturbado vez por outra por alguns tiros energéticos disparados ao acaso, cheguei à imagem do deus. O defletor estava escondido num buraco que ficava na base da estátua.

Saltei pelo portão, que só estava encostado, e voltei à arena. Uma vez lá dentro, liguei o aparelho.

Ninguém me via. Corri em direção à saída principal, que ficava do lado oposto do estádio e esperei que um grupo de soldados da guarda abrisse o portão.

Haviam sido enviados para procurar-me. Passei por eles sem que ninguém me visse.

Os antis não me interessavam mais. Uma vez do lado de fora, estudei a mensagem que Atlan escrevera numa folha de papel. Abandonara sua base na casa do fabricante de armas e fora ao barco a vela.

Não sabia que horas eram. Saí correndo. Tinha de atravessar a cidade, ultrapassar as muralhas da fortaleza e avançar até o litoral. Com a velocidade de um ertruso, a viagem demoraria aproximadamente uma hora.

De vez em quando ouvia o chiado de um planador antigravitacional, mas meu aparelho, muito bem protegido, não foi localizado.

Quando alcancei o velho cais, o dia já estava raiando. Ainda cheguei em tempo para assistir ao fogo de artifício que se desenvolvia sobre as águas do porto novo.

O rugido das armas energéticas falava por si. Dali a pouco ouvi o matraquear de uma arma mecânica, cujos microprojéteis atômicos transformaram as muralhas da fortaleza num monte de destroços.

Os antis estavam atacando um grande navio a vela. Não acreditava que Atlan ou o baixinho fossem capazes de uma tolice dessas. Pretendíamos prender Ebrolo sem alarde e suspender nossa missão.

Permaneci muito tempo no mesmo lugar e vi os salonenses saírem correndo, apavorados. Sem dúvida, os antis apontariam a raiva do deus Kulan como causa da devastação.

Ao que parecia, Ebrolo se defendera com todos os meios ao seu alcance. Devia encontrar-se no navio a vela. A essa hora estava morto, a não ser que tivesse acontecido um milagre.

Saltei para a água e nadei para o navio de Atlan. Quando subi pelo costado, ouvi o clique de uma arma que estava sendo destravada.

— Sou eu, sir, Melbar Kasom — disse em voz baixa.

Atlan apareceu diante dos meus olhos.

Encontrava-se junto à escada que descia ao compartimento de carga e fez um sinal.

Uma vez lá embaixo, informei-o sobre o motivo de meu atraso.

— Bem, perdemos nossa chance — disse o chefe, com a voz controlada.

Tive vontade de esbofetear-me, de tão zangado que estava com o fracasso.

— Fique tranqüilo, Kasom. Ebrolo era um lutador muito bem treinado, que também sabia lidar com suas armas naturais. Provavelmente os antis não contavam com uma resistência tão encarniçada. Talvez o uso das armas não estivesse planejado. Gostaria de saber como explicarão o assalto diante de uma comissão de inquérito do Império.

— Ora, não se preocupe, sir — respondi com uma risada amarga. — Essa gente sempre encontra uma explicação, e uma explicação tão boa que ainda seremos obrigados a pedir desculpas. O que poderemos fazer se esses patifes afirmarem que apenas pretendiam prender um rebelde perigoso, que pretendia subjugar a população com sua tecnologia superior?

O lorde-almirante largou a arma e aproximou-se de uma vigia. Refletiu por algum tempo e disse em tom pensativo:

— E o ativador celular? O que terá acontecido com ele? Será que foi destruído pela explosão? Quem sabe se não o encontraram?

Atlan virou-se. Preferi não responder. Dirigi-me a uma caixa de mantimentos. Peguei uma “latinha” de dez quilos de carne fresca e um “saquinho” com dois quilos de biscoitos. Não fiquei satisfeito, mas paciência! A gente tem de aprender a sentir fome durante uma operação desse tipo.

— Infelizmente não posso oferecer-lhe um boi eysalense, tenente! — disse o chefe.

Engoli o último quilinho de carne e lancei-lhe um olhar recriminador.

Pretendia explicar ao lorde-almirante que meu corpo quase quadrado correspondia quase exatamente às medidas ideais, além do que continha um espaço estomacal muito grande. Mas Atlan não deixou que tomasse a palavra. Vivia olhando para seu relógio especial.

Nuvens de fumaça negra subiram na área portuária. Ao que parecia, vários navios haviam pegado fogo.

— Onde está o Major Danger? — perguntou depois de algum tempo. — Não o encontrou, pois, do contrário, o senhor teria mencionado o fato. Onde poderá estar neste momento? Recebeu algum pedido de socorro?

Fiz um gesto negativo. Não vira nem ouvira nada do baixinho. Teria sido devorado por uma coruja ou outra criatura? A idéia deixou-me assustado. Quem sabe se meu companheiro de lutas não corria algum perigo?

Dali em diante não disse muita coisa, porque isso não corresponderia ao caráter de um ertruso “ambientado”. Atravessei o compartimento de carga e abri a caixa onde estava guardado meu equipamento de combate. Dali a dez minutos envergava meu traje de batalha.

Quando examinei minha arma superpesada e enfiei no cano duplo um magazine redondo com trezentos microfoguetes, já comecei a sentir-me melhor.

Os microfoguetes atômicos, as bombas de gás e a mochila energética completavam meu equipamento.

— Pronto, sir — disse com a maior naturalidade. — Trago nos bolsos um total de vinte megatons de TNT. O que é isso que está voando por aí?

— Tire essa roupa — disse o arcônida, com um sorriso irônico. — De dia não faremos nada, a não ser que Danger tenha descoberto alguma coisa. Sairei à sua procura.

— E eu, sir?

— Sem o neutralizador gravitacional, seus rotores fazem muito barulho. Só quando houver necessidade absoluta, você irá voar.

Sem dizer uma palavra, dirigi-me ao lugar em que estavam guardados os mantimentos. O lorde-almirante ficaria espantado.

Esvaziei um “barrilzinho” de vinho eysalense. Depois disso deitei no colchão pneumático.

— Se, quando o senhor voltar do seu vôo de patrulhamento, ouvir um trovejar sacudindo as muralhas da fortaleza, não pense que é uma explosão. Acontece que, quando estou cansado, costumo roncar muito.

Satisfeito com a explicação que acabara de dar, virei de lado. Neste momento exato meu receptor de ouvido entrou em funcionamento. Os pios de Lemy fizeram cócegas no meu ouvido.

— Peteca para rede e batedor. Alcancei primeiro estágio. Ativador em poder do sumo sacerdote. Encontra-se no planador aéreo que se dirige ao templo principal. Das palestras deduzi que existem instalações subterrâneas. Suspeito de que sejam laboratórios secretos. Acho que a utilização da Frota seria justificada. Voltarei a chamar. Desligo.

Levantei-me. O “primeiro estágio” representava uma situação de perigo extremo. Quando Atlan pegou seu radiofone, meu coração começou a bater mais forte. Lemy usara o velho inglês terrano, que nenhum anti entendia. Uma eventual tradução demoraria vários dias. Até lá a mensagem estaria superada pelos acontecimentos.

Atlan sabia perfeitamente que era uma leviandade transmitir uma mensagem de bordo. Se alguém fizesse a localização goniométrica do Ogolam, seríamos alvo do mesmo fogo de artifício que Ebrolo. Tomei todas as providências para estender uma abóbada energética por cima do veleiro. Nesse estágio dos acontecimentos, já não se poderia esconder muita coisa. Era para valer...

Atlan arriscou duas palavras:

— Onde está?

— Embaixo do revestimento de um rastreador individual portátil. O aparelho foi usado para encontrar Ebrolo. O sumo sacerdote está pousando na área do templo. Descerei com ele. Por enquanto permanecerei no interior do aparelho. Cuidado: o templo possui uma barreira energética. Está sendo ativada. Vou...

A transmissão tornou-se pouco nítida. Seguiram-se alguns estalos e o baixinho desligou. Era a interferência típica causada por um forte campo defensivo.

— Prepare-se, Kasom — disse Atlan.

Seu rosto não revelava a menor emoção. Só os olhos vermelho-dourados do arcônida revelavam um pouco do que ia em sua mente.

— O sumo sacerdote?! — exclamei em tom de surpresa. — É o tal do Mahana-Kul, sir. Se não me engano, os antis acabarão por matar-se uns aos outros. Todos eles sabem que um ativador celular representa a promessa da vida eterna.

— “Promessa”! É isso mesmo. Atrevo-me a profetizar que nenhum dos possuidores de um ativador desfrutará a chamada vida eterna por mais que alguns séculos, inclusive os mutantes de Rhodan. Anne Sloane não teria morrido se não tivesse possuído um ativador. Faço votos de que minhas previsões sejam pessimistas demais. Ligue o grande reator para o controle remoto. Abandonaremos a nave e iremos separados até o acampamento central. Você sairá voando; seguirá na frente. Tenha cuidado para que ninguém ouça o ruído dos rotores. O neutralizador gravitacional não deverá ser usado em hipótese alguma. Pronto?

Saí correndo para mover os controles. Se possível, o Ogolam seria conservado, mesmo que resolvêssemos abandoná-lo. O equipamento especial valia milhões. Atlan preferia não perdê-lo.

Liguei os rotores e voei para o alto-mar, onde ninguém poderia ouvir os estalos produzidos pelos rotores.

Bem ao longe surgiram as velas de uma frota salonense. Regressavam de uma campanha contra os zelutenses. Esses descendentes bárbaros dos arcônidas nem desconfiavam de que lá em cima um homem invisível cruzava os ares.

Atlan chegou meia hora depois às encostas íngremes do litoral, onde havíamos instalado nosso depósito central numa caverna aberta pela ação das águas. Para isso um cruzador da USO desembarcara um submarino. O chefe usara o mesmo para localizar o esconderijo e transportar as provisões.

Por aqui havia coisas com as quais os antis nem se atreveriam a sonhar. Afinal, contávamos com o apoio do Império, com todas as possibilidades técnicas e científicas que o mesmo oferecia...


Relatório de Lemy Danger

Até onde não chegava a insensibilidade dessa gente! O anti que carregava o rastreador individual me causou situações de perigo mortal. Enfim, o que estava pensando esse sujeito? Sacudia o aparelho com tanta força que me fazia escorregar de um canto para outro.

A situação era bastante séria, e por isso peço ao leitor que se abstenha de fazer comentários...

Bem à frente do meu rosto ficava o setor de alta freqüência do aparelho. Não se pode brincar com uma corrente de quarenta mil volts. Não tinha o menor interesse em ser transformado num gafanhoto grelhado. Não é que eu costume recuar diante do perigo, mas a perspectiva de uma morte como esta deixou-me deprimido.

Gostaria de estraçalhar o anti, se pudesse sair daquela caixa.

Meus nervos estavam sendo forçados há várias horas. Primeiro foi o ataque dos robôs contra Atlan. Depois disso recebi ordem para procurar esse ertruso estúpido, que provavelmente dormira durante a metade do tempo em que desenvolvíamos a operação, ou então estava à procura de alimentos.

Naturalmente não o encontrei. Pouco antes do nascer do sol cansei-me de sobrevoar Malkino, colocando minha vida em perigo. Sabe lá que tipos de monstros voavam por aqueles ares? Não quero passar por fanfarrão, mas vi-me obrigado a matar dois pássaros e “estrangular” uma cobra voadora. Não pude evitar isso, pois a mesma resolveu atacar-me justamente em cima do portão principal, onde por certo o lampejo de minha arma energética seria notado.

Bastante estropiado pela luta aérea, cheguei ao lugar em que se encontrava o veleiro de Ebrolo. Ainda estava escuro. Como não conseguira localizar Kasom, resolvi desenvolver uma ação individual.

Um especialista siganês do meu tamanho — afinal, tenho 22,21 cm de altura — pode perfeitamente subjugar um mau elemento como Ebrolo. Pretendia aplicar umas boas bofetadas no patife, deixá-lo inconsciente e apoderar-me do ativador celular.

Tudo teria corrido segundo o plano, se não fosse o ataque dos antis. Foi desfechado no momento exato em que me introduzi no camarote de Ebrolo e me dispunha a saltar sobre o traidor, que estava examinando suas armas.

Ebrolo localizou os antis e logo abriu fogo. Sem que ele o percebesse, agarrei-me ao seu cinto de marinheiro.

Apesar de todas as precauções, Ebrolo tombou. Cinco antis absorveram suas energias mentais e o abateram a tiros. Mal e mal consegui escapar, e isso mesmo apenas porque me arrisquei a desligar o defletor. Dessa forma ninguém pôde localizar as emanações do gerador. A uma distância tão reduzida isso provavelmente teria sido possível.

Quando os antis revistaram o camarote, abriguei-me atrás do cadáver de Ebrolo e procurei esconder o ativador, que continuava intacto. O peso do aparelho era enorme. Mal consegui levantá-lo. Depois disso meus rotores entraram em pane.

Afinal, as micro-hélices tinham de sustentar o peso de meu corpo, que era de nada menos que 852,18 g! A capacidade de sustentação não fora suficiente para, além desse peso, levantar o ativador.

Dali a cinco minutos, o navio foi destruído por uma bomba-relógio. Segui os antis, que fugiram apressadamente. Escondi-me embaixo da chapa de revestimento de um rastreador individual. Dessa forma pude ouvir suas conversas. Mas, por outro lado, não tinha nenhuma possibilidade de abandonar meu esconderijo.

Levaram-me a um planador antigravitacional. O Sumo Sacerdote Mahana-Kul também se acomodou no interior do mesmo. E assim os antis me levaram para dentro do templo como passageiro clandestino.

No início aquilo me divertira. Mas, depois de algum tempo, alguém teve a idéia de balançar o aparelho portátil de um lado para outro. Dali em diante não achei mais nenhuma graça e o espírito de luta acendeu-se em meu interior.

Ainda bem que Atlan ao menos havia recebido minhas mensagens. Ebrolo estava morto, porque os antis acharam preferível eliminar o forasteiro incômodo.

Pelas conversas que ouvi, também fiquei sabendo que Melbar Kasom fora preso... mas por pouco tempo. Naquele momento, os sacerdotes de Baalol estavam fazendo conjeturas sobre se Kasom era um superpesado pertencente a um clã dos saltadores ou um agente da Segurança Galáctica.

Àquela altura eu, o especialista Lemy Danger, campeão de todos os pesos em Siga, teria de enfrentar valentemente o perigo e lutar contra cerca de duzentos antis.

Meu armamento não era adequado para isso. Apenas possuía uma arma térmica, que não produziria o menor efeito se Mahana-Kul resolvesse ativar seu campo defensivo individual. Este só poderia ser rompido com uma arma especial.

Mesmo que conseguisse matar esse homem, não seria capaz de transportar o ativador celular.

Por enquanto seria inútil preocupar-me com esses problemas. No momento meu problema era o balanço do aparelho, em cujo interior me encontrava.

Apoiei firmemente os pés de encontro ao suporte de uma tubulação e comprimi as costas contra os isoladores de um condutor de 50 A, que pareciam bastante frágeis. Não tive medo, mas não pude evitar que minhas pernas tremessem.

Nesta posição consegui resistir à viagem, até que resolvessem descansar o aparelho. Quando tudo ficou em silêncio, afastei a chapa de plástico e pus a cabeça para fora.

Eu, o Major Lemy Danger, fora deixado num depósito, no qual havia, além de outros equipamentos, cerca de cinqüenta robôs.

Os monstros eram de um tipo de que eu não gostava nem um pouco. Os antis pareciam saber o que os esperava, caso fossem atacados. Por isso haviam arranjado as máquinas de guerra. Qualquer uma delas seria capaz de enfrentar os exércitos dos salonenses.

Liguei meus rotores e voei para cima do ombro de um robô. Ergui-me e pude ver perfeitamente a chapa de programação que ficava em cima da nuca metálica.

Abri o fecho magnético e examinei os controles. As máquinas de guerra que se encontravam ali haviam sido construídas pelos saltadores e estavam equipadas com cérebros de comando positrônicos.

Em quinze segundos reprogramei o robô de tal forma que, ao receber o impulso destinado a ativá-lo, se desmanchasse em fogo. Para um robô, um curto-circuito é a mesma coisa que uma apoplexia para um homem.

Indignado pelo tratamento descortês que me fora dispensado durante o transporte, resolvi gastar meia hora para inutilizar as máquinas. Quem sabe se isso não seria útil para alguma coisa?

Muito constrangido, devo confessar que, durante o trabalho, sorri que nem um moleque que faz uma arte. Paciência, a gente precisa divertir-se de vez em quando...

Ouvi vozes de homens. Pareciam estar na sala contígua. Davam mostras de nervosismo. Discutiam para saber quem ficaria com o ativador celular de que se haviam apoderado. No momento, o tal ovo estava pendurado ao peito do Sumo Sacerdote Mahana-Kul, que protestava energicamente contra a idéia de desfazer-se da preciosidade, afirmando que o ativador podia ser usado em benefício da coletividade.

Isso não me interessava. Queria mais que os antis quebrassem as cabeças uns dos outros. Por enquanto estava ocupado exclusivamente com os robôs. Depois de algum tempo ouvi um tiro. Alguém logo começou a gemer. Compreendi que um anti é sempre mais inescrupuloso que qualquer outra pessoa...

Aquilo estava começando muito bem! Se as coisas continuassem assim, não precisaria fazer nenhum esforço mental. Resolvi aguardar os acontecimentos...

 

Meu trabalho, que se revestia de grande importância estratégica, foi interrompido de repente. Quando se abriu uma porta secreta, o último robô que estava sendo “preparado” ameaçou escapar de minhas mãos.

Uma forte luminosidade rompeu o crepúsculo do depósito. Só agora percebi que o tal depósito ficava junto à nave central do templo. Por lá costumavam ser recebidos os idiotas que acreditavam em Kulan.

Dois antis aproximaram-se da porta. Um deles era Mahana-Kul. Não tive tempo para sair voando, ainda mais que preferi não ligar o defletor.

Escorreguei rapidamente pelo ombro do robô, agarrei-me às soldas grosseiras do revestimento do peito e, com o pé, abri a portinhola de reparos, que ficava mais ou menos no lugar em que se encontram os rins de um ser humano.

Antes de desaparecer em seu interior, ouvi outro tiro. Preferi não olhar para trás. O ruído de um corpo que tombava falava por si. Ao mesmo tempo ouvi o zumbido de máquinas que entravam em funcionamento.

Mahana-Kul parecia um homem que, se necessário, estava disposto a jogar todos os trunfos numa só cartada. Pouco lhe importava que com isso infringisse todas as normas éticas. Imaginei que acabara de matar seu companheiro.

Liguei o farol de capacete e fechei a portinhola de reparos. Conhecia perfeitamente o interior do corpo de um robô. Não era a primeira vez que usava uma máquina desse tipo como esconderijo ou meio de transporte.

Segurei-me nas travessas metálicas e fitei o bloco do minirreator que forneceria energia ao robô. Por enquanto os mecanismos continuavam imóveis, mas eu estava certo de que, quando chegasse o momento, tudo sairia conforme previra.

Não tive necessidade de refletir sobre as intenções de Mahana-Kul. Antes que pudesse encontrar um bom apoio, ouvi os estalos dos relês. O robô estava despertando para a vida.

Depois foi um verdadeiro inferno. Os estalos e estrondos quase me fizeram perder os sentidos. O anti parecia ter ativado todas as máquinas de guerra. Acontece que só meu robô se dera bem com o controle remoto, pois a reação dos outros de forma alguma correspondia à sua programação.

Um terrível fedor entrou-me pelas narinas. Senti o cheiro de isoladores fundidos e plásticos queimados. O rugido foi diminuindo e voltei a ouvir.

Faço questão de ressaltar que compreendo perfeitamente um homem reclamar de alguma coisa e, nessa oportunidade, usar expressões que não devem ser proferidas num ambiente social. Mas, quando alguém pragueja da forma como fez o sumo sacerdote, costumo tapar os ouvidos.

Quando aquele sujeito furioso se acalmou um pouco, percebi que ele se abrigara atrás de meu robô. Parece que durante o caos vários objetos voaram pelos ares.

Mas não tive tempo de alegrar-me com a desgraça bem merecida desse mau elemento, pois, dali a um segundo, estava lutando pela vida.

Eu me enganara. Só isso. No modelo de robô, em cujo interior me encontrava, o estabilizador giratório ficava na altura do estômago. Nos outros robôs as massas de aço ficavam nas proximidades da bacia, lugar em que deveriam ser instaladas segundo as leis da Estética.

Aqui as coisas eram diferentes. Em virtude disso, as lâminas giratórias impelidas por campos magnéticos ameaçaram minha vida.

É só imaginar que uma parte do corpo, cujo nome prefiro não citar, por uma questão de decência, esteja pendurada à frente de massas cortantes que descrevem quarenta mil rotações por minuto. Além de tudo o robô começou a movimentar-se. Agarrei-me à travessa superior, ao qual estavam presos o reator, o conversor e um seguimento de controle da memória positrônica.

Meus pés estavam apoiados sobre o rolamento traseiro do elemento giratório vertical, cujo eixo de aço parecia querer agarrar minhas botas. Ao primeiro contato seria arrastado e despedaçado. Todo mundo sabe que as peças fabricadas pelos saltadores são muito toscas. Se essa gente fala que alguma coisa é bem polida, um siganês constata que, na verdade, é torta e possui saliências e reentrâncias da grossura de um dedo humano...

Não conseguiria agüentar-me por muito tempo nessa posição. O robô zumbia e rumorejava como se quisesse explodir. Ao meu ouvido, esses ruídos soavam dez vezes mais forte que ao ouvido de um gigante terrano.

Quando cheguei a uma situação em que não sabia mais o que fazer, dei uma pancada no fecho instantâneo de minha mochila, que caiu juntamente com o elemento energético e os rotores.

O tilintar que ouvi me fez concluir que o elemento giratório transportara meu equipamento para algum canto do corpo do robô. Mas não aconteceu nada.

Livre do peso, consegui puxar o corpo para cima e, dançando perigosamente na corda bamba, atravessei uma barra horizontal. Esgueirei-me entre o reator e o conversor; escorreguei para a frente, por cima de um condutor de alta tensão e finalmente cheguei à parte lateral do peito.

Exausto, procurei apoio. Levei um minuto para que meu corpo enrijecido pelas práticas esportivas ficasse novamente em condições. Antes de mais nada precisava enxergar! Arrisquei-me a encostar o cano de minha arma energética contra o revestimento do peito do robô e puxar o gatilho.

O raio pouco intenso derreteu um furo no revestimento. Esperei que os contornos das bordas liquefeitas se estabilizassem e olhei para fora. Minha vigia ficava pouco abaixo do pescoço do robô.

Este nem percebera que alguém lhe queimara a pele.

Marchava como se nada tivesse acontecido, apontava os braços armados para tudo quanto era alvo e seguia o anti, ou melhor, Mahana-Kul.

Ao que parecia, esse cavalheiro estava fugindo dos companheiros. Achei que a causa disso era o ativador celular, que continuava pendurado ao peito do baalol.

Tive a impressão de que descemos num elevador. Meu campo de visão era bastante limitado, pois não podia encostar o rosto à abertura resultante do tiro, que ainda estava muito quente.

Assim mesmo percebi que provavelmente nos encontrávamos muito abaixo do templo. O robô estava com o círculo giratório dos braços armados apontado para trás. Devia ter recebido ordens para cobrir a fuga.

Provavelmente Mahana-Kul pretendia levar todos os robôs de guerra. De repente compreendi por que aquele malfeitor fazia tanta questão de acalmar os colegas.

Consegui ouvir parte da discussão violenta. Mahana-Kul soubera acalmar por pouco tempo o ânimo dos outros representantes do culto de Baalol. A seguir agira imediatamente...

O homem que matara a tiros provavelmente era um elemento de confiança. O chefe do estabelecimento de Eysal tivera sua primeira pane com os robôs de guerra. Mas nem por isso desanimara. Resolveu dirigir-se às profundezas situadas embaixo do templo, com as quais provavelmente estaria muito bem familiarizado, graças ao posto importante que ocupava.

Acreditava mesmo que Mahana-Kul era a única pessoa a possuir as chaves eletrônicas das respectivas portas. Mas gostaria de saber por que tinha tanta pressa em retirar-se da superfície do planeta. O que teria a ganhar se ficasse escondido aqui embaixo? Nem por isso o ativador estaria em segurança.

Procurei levar o raciocínio até o fim. Só havia uma explicação lógica: Mahana-Kul devia ter calculado uma chance. Se conseguisse sair de Eyciteo II, encontraria um meio de ficar com o aparelho.

Acontece que na situação em que se encontrava, a idéia da fuga forçosamente estaria ligada à de uma nave espacial. Preparei-me para inutilizar os comandos, a fim de transformar o patife num prisioneiro dos subterrâneos de Eysal.

O robô parou. Arrisquei-me a aproximar o rosto do buraco aberto pelo tiro, cujas bordas já estavam esfriando.

Uma escotilha sextavada de aço fechava nosso caminho. Era feita de um metal brilhante avermelhado, cujas propriedades não conhecia.

O sacerdote pagão ficou escutando atentamente por algum tempo. Finalmente resolveu encostar a chave eletrônica em bastão contra a fechadura invisível. O que estaria acontecendo aqui embaixo? Quem teria sido o construtor da cidade subterrânea?

A tecnologia ali empregada era notável. Os elevadores que ligavam o templo ao lugar em que me encontrava bastaram para despertar meu interesse profissional.

Acredito que, na modéstia, que é uma das minhas qualidades inatas, ainda não mencionei que qualquer especialista da USO possui um estudo completo.

Basta dizer que sou engenheiro diplomado em Microtecnologia, na área especial da Construção de Máquinas Ultra-energéticas.

As construções aqui existentes haviam consumido bilhões. Só o trabalho de escavação, de revestimento das galerias e de instalação das centrais de abastecimento deviam ter custado uma fortuna. Haveria um povo que pudesse dar-se ao luxo de realizar obras tão dispendiosas num mundo bárbaro? E, o que era mais importante, qual seria a finalidade disso? Ninguém constrói uma cidade subterrânea sem que tenha em vista um objetivo definido. Comecei a desconfiar.

A escotilha sextavada abriu-se. Vi uma eclusa de ar. Entramos. A escotilha pela qual acabávamos de passar fechou-se, e a que ficava à frente abriu-se.

O quadro que vi à minha frente me fez prender a respiração. Já vira muita coisa na execução das minhas tarefas e conhecia as gigantescas fábricas robotizadas dos terranos e dos arcônidas, mas não esperava ver aquilo que se encontrava à minha frente.

O tamanho do pavilhão não me impressionava tanto. O que mais me surpreendeu foram as máquinas instaladas ali.

Não consegui descobrir sua natureza e finalidade, por mais que me esforçasse. Eram figuras irreais de formatos diferentes. De vez em quando via um cabo fosforescente, que tinha certa semelhança com os condutores arcônidas de alta-tensão. Mas era possível que fossem mangueiras flexíveis ou condutos transportadores de corpos alongados.

O que mais me deprimia era o silêncio reinante nesses recintos enormes. Se aqueles aparelhos eram geradores ou conversores, só podiam estar parados. No entanto, esperara ouvir o zumbido de algum aparelho secundário.

Aproximei o rosto ainda mais do furo aberto a tiro. Meu campo de visão ampliou-se. Mahana-Kul hesitava. Agia como um homem que só penetra numa área proibida porque não tem outra alternativa. “Meu” robô agia normalmente, conforme era de esperar de uma máquina desalmada.

Naquele momento convenci-me de que me encontrava na presença de um caso a ser tratado pela USO, segundo as leis do Império Unido. Se além de tudo encontrasse uma espaçonave que tornasse possível a ligação entre os baalols e os povos estranhos, não poderia haver a menor dúvida.

Já fizera meu plano. Poria Mahana-Kul fora de ação na primeira oportunidade, e logo a seguir procuraria levar o ativador a um lugar seguro. Mas aquilo que estava vendo agora me fez hesitar...

Senti-me fascinado pelo gigantismo e pelo caráter surpreendente do pavilhão de máquinas em cujo interior me encontrava. Mais adiante vi uma abertura na parede, atrás da qual havia outros conjuntos. A iluminação era escassa. Mas depois que os olhos se acostumassem, enxergava-se muito bem...

Mais uma vez meus pensamentos esbarraram numa série de perguntas. Quem construíra aquilo? Qual era a finalidade dessas máquinas? Não acreditava mais que esse labirinto fosse obra dos baalols. Seria um remanescente da colonização arcônida?

Voltei a olhar em torno, na medida em que pude fazê-lo através do buraco aberto a tiro. Não, aquilo ali não fora construído pelos arcônidas. Quem teria escolhido este planeta solitário para construir alguma coisa que, segundo parecia, não estava sendo usada mais?

Travei minha arma de radiações e voltei a guardá-la no cinto. Mahana-Kul nem desconfiara de que sua vida estivera por um fio.

Olhando muito assustado para os lados, o anti continuava a avançar apressadamente. Atingiu o pavilhão seguinte. Mais uma vez descobri instalações técnicas. Desta vez tive a impressão de que se tratava da unidade de geradores.

Um reator atômico sempre é semelhante ao outro, seja qual for a civilização que o criou. Uma máquina desse tipo é ligada à sua finalidade e vinculada às leis físicas que prevalecem em toda parte, motivo por que nunca pode opor-se ao fim para o qual foi criada.

Era uma central energética, uma gigantesca central energética. Não me atreveria a avaliar sua potência, mas tinha certeza de que era capaz de gerar alguns milhões de mega watts.

Fiquei tonto. Será que Mahana-Kul sabia no que ele se metera? Se os técnicos da USO, da Segurança Galáctica entrassem nesses pavilhões, o destino do planeta estaria selado. Fossem quais fossem as circunstâncias, uma central energética como esta era regida pelas leis de guerra e de emergência do Império. Ninguém, nem mesmo um homem tolerante e generoso como Perry Rhodan, poderia dar-se ao luxo de não dar a devida atenção a uma coisa como esta. Haveria necessidade de lançar mão de todos os recursos militares, a fim de esclarecer o mistério. Quem sabe se um dia essa central energética não seria utilizada contra o Império?

Resolvi transmitir uma mensagem. Pouco me importava que alguém me localizasse. Tirei meu potente transmissor do bolso que trazia no peito e ajustei-o para a transmissão de sinais Morse. Era o único meio de romper a camada de rocha que se amontoava sobre minha cabeça e esperar que o destinatário tivesse uma boa recepção.

Transmiti o sinal de emergência de primeiro grau e acrescentei o código QXRR-TETRA. Dessa forma estava fazendo uso dos meus extraordinários poderes e liberava a área para o ataque.

O Lorde-Almirante Atlan não hesitaria um segundo. Alarmaria a Frota que se mantinha de prontidão. Se um especialista transmitia o código QXRR-TETRA não havia dúvida de que a intervenção militar era urgente e indispensável.

Dali a cinco segundos recebi o impulso que confirmava a recepção de minha mensagem. Dali a menos de um minuto meu comunicador chamou. O hiper-receptor revelou que Atlan havia transmitido a ordem de ataque para o espaço. Mahana-Kul não percebera nada. Estava ocupado exclusivamente com seus problemas pessoais. Quanto a mim, sabia que naquele momento as máquinas dos couraçados da USO estavam sendo aceleradas ao máximo. A esquadra estava de prontidão, preparada para a partida-relâmpago.

Isso significava um avanço muito rápido pelo espaço linear. E também significava a chegada da Frota em apenas trinta minutos. Uma vez que também transmitira o código TETRA, a Frota informaria os quartéis-generais do Império, situados na Terra e em Árcon II.

Assim que o administrador geral recebesse a mensagem — e com a organização minuciosa dos serviços terranos, isso levaria apenas alguns minutos — um grupo de cruzadores e couraçados ligeiros chegaria a Eysal, para dar cobertura à operação.

Lembrei-me dos salonenses que ainda acreditavam serem as criaturas mais desenvolvidas do Universo. Bem, todos os povos galácticos já acreditaram a mesma coisa. Os salonenses não manteriam essa crença por muito tempo. Já não pensariam que seus canhões primitivos de óleo volátil fossem a invenção mais formidável de toda a História. Tinha tanta certeza disso quanto da existência da Galáxia.

 

O reator de fusão do robô trabalhava a toda força. Supria a energia das armas térmicas, além do que fornecia a corrente para o mecanismo de deslocamento e para o campo defensivo.

O aparelho de arejamento do gerador magento-hidrodinâmico começou a assobiar. Era um equipamento antiquado. Ainda funcionava com base em ímãs hiper-condutores que transformavam a energia térmica produzida pelo reator de função em corrente contínua. A conversão em corrente alternada, que era indispensável ao funcionamento das armas, exigia um desempenho técnico que me fez sacudir a cabeça de espanto.

Ao que parecia, para os construtores dessas máquinas, a refrigeração das máquinas era o problema número um. Em todos os pontos havia aberturas de sucção. Meus pés estavam encostados ao revestimento de plástico de uma turbina muito gasta, cuja tarefa consistia em fornecer o ar de um refrigerador de óleo.

O ar quente era expelido acima de minha cabeça. O rugido e o matraquear dos inúmeros aparelhos auxiliares quase me deixou surdo. Estava na hora de abandonar esse alojamento desconfortável. Mas com isso começava nova série de problemas.

O robô estava lutando com vários antis, que de repente haviam saído de algumas portas laterais.

Mahana-Kul se abrigara mais à direita. Seus companheiros haviam agido mais depressa do que esperara. O ataque tivera início quando chegamos a um pequeno hangar, em cujo interior havia uma pequena espaçonave.

O veículo espacial descansava sobre as aletas de popa. Não havia dúvida de que se tratava de um modelo construído pelos antis. A escotilha de popa estava aberta. No momento parecia que o sumo sacerdote ainda conseguiria entrar na nave. O robô fazia um excelente trabalho. Desconfiei de que seu campo defensivo energético estava sendo reforçado por meio de um fluxo de energia mental.

Deixara passar a possibilidade de dominar Mahana-Kul sem correr o menor perigo. Em compensação acabara de descobrir que aqui embaixo realmente havia uma espaçonave. Ao que tudo indicava, fora colocada num poço de decolagem não construído pelos antis. Pertencia às instalações misteriosas situadas sob a superfície do planeta de Eyciteo.

Foi tudo que consegui descobrir. Só tive um interesse secundário pela batalha travada com os outros antis. Acreditei ter encontrado a solução de todas as indagações. A única coisa que me interessava naquele momento era impedir a decolagem da espaçonave e prender o sumo sacerdote.

O robô libertou a área para o traidor e foi avançando. Teria de apressar-me. Abri a portinhola de reparos, preparei-me para o salto e avaliei a altura. Era de aproximadamente um metro e meio. Seria um salto bastante arriscado.

Vi o tremeluzir do campo defensivo energético de alta potência à minha frente. Para atravessá-lo, teria de inutilizar o projeto, da máquina.

Levantei a arma, fiz pontaria e puxei o gatilho. Um lampejo deu sinal da força destrutiva do raio energético. No mesmo instante, uma onda de pressão atirou-me para fora do robô.

Bati com toda força no chão. Fiz um rolamento para diminuir o impacto e corri em direção à eclusa atrás da qual ficava o hangar e em cujo interior estava guardada a nave.

O robô lutou para conservar o equilíbrio. Conseguiu estabilizar-se, e em alguns segundos seu gerador de emergência entrou em funcionamento.

Afastou-se, disparando ininterruptamente. Cheguei à escotilha externa da eclusa. Estava sufocado e meu rosto e mãos estavam cobertos por bolhas produzidas pelas queimaduras. Embora já não pudesse tornar-me invisível, Mahana-Kul não notou minha presença.

Antes que se retirasse, entrei no hangar e coloquei-me na subida que levava à escotilha de popa.

As aberturas das válvulas de escapamento do dispositivo de regulagem de pressão proporcionaram-me um apoio seguro. Após isso subi pelos tubos pressurizados do dispositivo hidráulico de pouso. Pouco antes de chegar à escotilha, segurei-me no corrimão da escada e entrei na nave.

Antes que alcançasse a sala de comando, que ficava dez metros para cima, o rugido vindo de fora cessou. Parecia que até mesmo o sumo sacerdote estava fugindo do ar quente.

Passou apressadamente pela eclusa, fechou a escotilha interna e subiu correndo pela escada de metal leve. Esperei-o de arma em punho bem atrás da porta.

Quando sua cabeça apareceu à minha frente, percebi que o anti desligara seu campo energético. Achava que só poderia ter agido assim. Um homem sensato não entra numa espaçonave pequena, sem antes assegurar a liberdade de movimentos...

Mahana-Kul deu mais um passo e seu quadril apareceu acima de minha cabeça. Não o preveni. Num instante fiz pontaria para o gerador do campo defensivo preso ao cinto e atirei.

O aparelho desfez-se numa chama azul. Mahana-Kul ergueu os braços, como se estivesse procurando apoio, soltou um grito e caiu pela escada. Dei alguns saltos para a frente e coloquei-me na borda da escotilha de popa.

O anti levantou-se. Gemia e olhava em minha direção com uma expressão de perplexidade. Quase não estava ferido. Reunindo toda a força dos pulmões, gritei:

— Mahana-Kul, o senhor está preso em nome do Império. Levante os braços e fique com o rosto virado para a parede. É bom que saiba que não deve subestimar o efeito de minha arma.

Só agora o sacerdote me descobriu.

— Como...?! — perguntou e arregalou os olhos.

Parecia lutar para conservar o autocontrole. De repente o sem-vergonha começou a rir como se não acabasse de escapar da morte. Fiquei com raiva.

— Levante-se e ponha as mãos para o alto! — berrei e fiz pontaria sobre seu peito. — Sou o especialista Lemy Danger, Major da USO, e tenho poderes para prendê-lo. Volto a preveni-lo...!

Mahana-Kul ainda estava rindo. Deu um salto para o lado e pegou a arma. Esperei até o último instante antes de puxar o gatilho.

O corpo do anti foi atingido pelo hálito incandescente de minha arma térmica.

Uma luz azul envolveu-o. No início pensei que seu campo defensivo estivesse funcionando de novo. Mas quando a estranha luminosidade se tornou ainda mais intensa e emitiu um uivo, percebi o que acabara de fazer. Devia ter atingido o ativador celular com toda a capacidade energética de minha arma!

O uivo tornou-se mais forte. Mahana-Kul estava morto, mas o aparelho estava despertando para uma atividade que me deixou apavorado.

De repente o objeto oval pareceu transformar-se numa estrutura diferente. Inchou, transformando-se numa esfera energética azul. Emitia radiações que fizeram com que me retirasse às pressas para o interior da nave.

Um fluxo invisível martirizava meu corpo. Tive a impressão de que tal fluxo produzia a dissolução das moléculas e a cisão dos grupos atômicos.

Finalmente houve uma detonação que quase me deixou inconsciente. Quando recuperei os sentidos, a luminosidade se apagara e os uivos haviam cessado.

Levantei-me gemendo e fui rastejando para a frente. O corpo de Mahana-Kul encolhera. Estava reduzido a uma fração de seu tamanho anterior. Não se via o menor sinal do ativador celular.

Desci pela escada e esforcei-me para atingir o botão do mecanismo automático que abria a porta. Ficava quase a dois metros acima do chão. Não consegui chegar lá.

Sentei-me e resolvi aguardar os acontecimentos. Dali a uns dez minutos ouvi os berros de Melbar Kasom. Gritava meu nome. Gritei de volta. É claro que ninguém me ouviu. Aguardei por algum tempo, depois disparei um tiro com minha potente arma. O disparo levou Kasom a finalmente abrir a eclusa.

Parecia um monstro primitivo parado na câmara pressurizada. Estava com a arma múltipla apontada para a frente. Seu campo defensivo superpotente emitia uma fosforescência esverdeada.

Ouvi o chamado de outros homens, vindo de muito longe. Eram terranos. Concluí que a Frota chegara conforme previra, e as tropas de desembarque haviam restaurado a ordem.

Kasom desligou seu campo defensivo, colocou-me na mão e enfiou-me brutalmente no bolso externo da calça. Depois disso, só senti que o ertruso estava correndo. Aquele bruto nem parecia perceber que com isso me expunha a uma tremenda força de inércia. Os movimentos de suas pernas atiraram-me para a frente e para trás com tamanha força que perdi os sentidos. Era mais ou menos como se um homem normal ficasse exposto a uma aceleração de 10 G!

 

Quando acordei, o planeta estava estremecendo. Um terrível rugido subia das profundezas. O templo de Kulan desabara. Atrás dos destroços, as montanhas se abriram, e gigantescas antenas subiram por poços de cuja existência nem se desconfiara.

Alguém me havia enrolado num pano. Senti-me ofendido por estar embrulhado daquela forma e pus-me a gritar com toda força. Alguém veio e me desembrulhou. Vi o rosto de Atlan acima de minha cabeça.

— O especialista Danger está presente, sir — disse em tom marcial.

A resposta de Atlan deixou-me deprimido.

— O que andou fazendo lá embaixo, seu azarado? Vamos. Fale logo! O que aconteceu?

Kasom também apareceu. Fitava-me com um sorriso desavergonhado. Iniciei meu relatório. Quando concluí, o rugido subterrâneo cessou.

Atlan começou a falar em tom enfático:

— Já sabe que todos os rastreadores estruturais da Galáxia estão queimados? O ativador destruído pelo senhor parece ter funcionado como transmissor de impulsos. De repente as máquinas desconhecidas entraram em funcionamento. Trata-se da maior estação de hiper-rádio que já vi. O rugido foi causado pela transmissão de ondas de quinta dimensão, cuja potência não pôde ser medida. Já sabia disso, major?

Cobri o rosto com as mãos e sacudi a cabeça. Atlan colocou-me no chão. Estávamos fora do templo. Mais à direita vi o vulto gigantesco de um couraçado da USO. As tropas robotizadas estavam vasculhando a área. Não se via nenhum sinal dos salonenses.

Dali a três dias apareceu Perry Rhodan com o supercouraçado terrano Eric Manoli. As equipes científicas desceram até a cidade subterrânea, cujas máquinas já haviam silenciado. Nada fora destruído; os abalos apenas fizeram desmoronar o templo de Kulan.

Os antis que haviam sobrevivido ao ataque das tropas da USO continuavam a afirmar que nada sabiam sobre as finalidades das máquinas subterrâneas. Disseram que haviam chegado a Eysal há trezentos anos, quando criaram um estabelecimento no planeta. Acrescentaram que a cidade subterrânea fora descoberta por acaso, mas as máquinas nunca chegaram a ser usadas.

Bem, já sabíamos disso. Perry Rhodan mandou prender os sacerdotes pagãos. Teriam de enfrentar um tribunal do Império.

Dali a alguns dias um físico terrano criou o conceito de gerador energético-gravitacional de impulsão.

Rhodan em pessoa explicou-me que não havia dúvida de que os maquinismos haviam sido colocados em funcionamento pelos impulsos do ativador celular destruído. As suspeitas de Atlan foram corretas.

— Mas, sir, o que poderemos conseguir com isso? — perguntei em tom de desespero. — Sinto muito ter atingido o ativador. Quero ser punido, sir.

O grande terrano sorriu e perguntou em tom delicado se podia pegar-me na mão.

Podia, sim. Fitei os olhos cinzentos do grande administrador com uma expressão radiante. Rhodan continuava a sorrir e disse:

— Major, não costumamos punir um ótimo oficial que arriscou tudo no desempenho de uma missão. O senhor preveniu o anti e atirou em legítima defesa. Não foi isso mesmo?

— Foi sim, senhor! — disse, ficando em posição de sentido.

Enfrentei um terrível martírio, pois receava cair a qualquer momento da mão de meu chefe supremo.

— Pois bem, nesse caso não se fala mais nisso. O senhor não atingiu o aparelho de propósito. Ainda descobriremos o que significa esse estranho choque gravitacional. Ao que parece, ninguém foi prejudicado pelo mesmo.

Continuamos a conversar amistosamente por mais algum tempo. Finalmente Rhodan sugeriu — de forma alguma ordenou — que voasse à Terra e relatasse minhas experiências a um grêmio ilustrado.

É claro que Melbar Kasom ficou com inveja. Quando embarquei na Eric Manoli, onde pretendia iniciar imediatamente meu relatório escrito, o ertruso gritou atrás de mim:

— Major, tome cuidado para não ser aspirado pelos aparelhos de ar condicionado.

Pálido de susto, olhei para aquele sem-vergonha, que saiu marchando com uma pose exagerada. Estufou o peito como se tivesse sido ele que matou o lobo-batráquio.

Ao concluir, quero ressaltar expressamente que, evidentemente, entrei conscientemente e de minha livre vontade na narina do monstro.

Não quero que ninguém se atreva a afirmar que Lemy Danger foi inalado... contra a vontade. É bom não se esquecer disso...

 

                                                                                            K. H. Scheer  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades