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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LIBERDADE QUERIDA / Berthe Bernage
LIBERDADE QUERIDA / Berthe Bernage

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

NO jardinzinho de Auteuil, Denise Morot-Léandre colhia amores-perfeitos e miosótis, para florir a fotografia do seu irmão Florêncio. E cantava, embora fosse triste pensar em Florêncio prisioneiro. Mas o jardim era tão lindo e há tanta esperança no fundo dum coração de dezassete anos! Uma voz fresca atravessou a verdura: - bom dia, Denise!

Então, Denise correu para o uniforme azulado que avançava pela alameda. Isabel! A querida amiga de todos os Morot-Léandre, a noiva de Florêncio.

- Por que é que vieste tão tarde? São quase horas da minha lição de inglês...

- Demorei-me no Centro Social: tantos sinistrados a alojar, a vestir! E ainda tive que passar por casa para ver se a mãezinha me podia dispensar. Mas ouve, tiveram notícias?

O rosto redondo e infantil da Denise entristeceu.

- Não. Absolutamente nada. Tu também não? Estamos aflitíssimos. Por que razão não escreverá, aquele Florêncio?

Isabel deu-lhe o braço.

- Não devemos assustar-nos já. Pode ser que a carta se tenha perdido.

Mas, no fundo, atormentava-se, como Denise: "Por que razão? Doente, talvez... Morto..." Tudo era possível. Todas as formas desse "possível" haviam sido consideradas durante quatro anos. E agora, que ele não escrevia, supunha-se o pior.

 

 

 

 

Caminharam em torno do canteiro arrelvado. Sem falar. Não são precisas palavras quando se pensa na mesma coisa. Denise tinha um ramo de flores na mão. Mais baixa do que Isabel, erguia a cabeça para a contemplar e admirava-Lhe o delicado perfil, deplorando o seu nariz arrebitado. O Florêncio bastante troçara do seu nariz arrebitado! Mas o que não daria ela para escutar de novo as suas gargalhadas sonoras de traquina incorrigível!

- Estás bonita, Isabel - disse por fim. - O uniforme de assistente social fica-te lindamente. Este azul é a tua cor. E a touca fica-te muito bem. O Florêncio havia de gostar de te ver!

- Nem por isso. Ficaria furioso: a Isabel de uniforme! A Isabel a passar a vida entre misérias de alma e corpo? Tu sabes que, para ele, a Isabel é uma princesa.

- Coitadinho! Talvez se tenha tornado menos exigente. Mas, tens razão, ele adorava ver-te elegante! Oh! Nunca me hei-de esquecer da festa que deram, aqui, pelos dezoito anos da Noelle! Tinhas um vestido até aos pés, de organdi azul pálido. Toda a gente perguntava: "Quem é aquela petiza de azul?" Um sucesso doido, contaram-me as manas.

- E o senhor teu irmão furioso. Queria que eu só dançasse com ele! Mas eu não podia: ainda não estávamos noivos...

- A mim, declararam-me "pequena de mais" para assistir a uma festa à noite. Mandaram-me para a cama. Que zanga! Mas não adormeci: tinha bebido café, às escondidas. De vez em quando ia à janela e ouvia a música de dança. Vi-te passear por esta mesma alameda, ao lado do Florêncio. Estavas linda! Uma fada. Vocês falavam baixinho. E eu pensava: "Gostava de ser uma rapariga crescida, de ter um vestido de baile e de passear com um rapaz."

- Como isso vai longe, meu Deus! - murmurou Isabel.

O coração apertou-se-lhe: a felicidade voltaria? Mas alguém chamou de dentro de casa:

- Denise! Denise!

- Até já. Chegou o meu professor de inglês. Passeia mais um bocadinho, se te apetece.

A mãe deve estar muito atarefada a tentar fazer, dum vestido velho da Solange, um novo para mim. A Solange anda como tu, sempre de uniforme; não precisa de vestidos. Mas o dela é horrível, caqui! Anda a correr estradas, ela... Vê bem: a Noèlle, casada; o Florêncio, prisioneiro; a Solange, motorista de ambulâncias; a Catarina... nunca se vê. Ninguém em casa, tirando eu.

- Mas estás tu. E isso já faz muito, riquinha. A petiza suspirou:

- Eu sei. Tenho que tornar os pais felizes... tanto quanto se pode ser feliz neste momento. Tenho que substituir os outros quatro. Mas é triste não os ouvir correr pela escada, nem cantar, nem rir, nem brigar!... Sinto-me assim uma espécie de gatinho abandonado.

De novo a chamaram.

- Denise! Denise!

- Sim, vou já. Sobes também ou ainda ficas?

- Fico mais um bocadinho. Está-se aqui tão bem!

Denise afastou-se correndo, para depressa voltar:

- Ouve lá... como está o teu irmão?

- O João-Lucas? Vai estudando, mas sem interesse. Sempre esfomeado, pobre rapaz.

- Olha, leva-lhe manteiga... A avòzinha conseguiu mandar-nos. Diz-lhe que... não, nada, não digas nada. Até já.

A saiinha plissada desapareceu.

"Sempre a mesma coisa -murmurou Isabel. - É doida por ele. Pobre Denise! O João-Lucas dá-se com raparigas dum gênero completamente oposto, e, para ele, ela não passa dum bebê. Vai sofrer... como as irmãs. Mas essas tinham almas robustas. Ela? Não resistirá. Oh! Há tanto sofrimento no mundo! Pergunto a mim própria se poderemos voltar a ser felizes?"

Sentou-se no banco de pedra onde, tantas vezes, conversara com Florêncio. E tentou imaginar o seu regresso. Como se lhe lançaria nos braços! Como seria terna, alegre, para lhe fazer esquecer os dias de cativeiro... Depressa se casariam. Já cinco anos de noivado!.

E, depois, de novo a mesma angústia: Se ele não voltasseh! Era preciso afastar esse horrível receio, depô-lo entre as mãos divinas e agir, fazer qualquer coisa. De nada serve estar sentada num jardim primaveril quando uma nuvem pesada de inquietude vem escurecer o azul do sonho. Levantou-se e sacudiu a saia onde pousavam flores caídas de um castanheiro.

"Estou vestida da mesma cor que as Irmãs de Caridade. Se o Florêncio não voltasse, julgo que me iria unir a elas... Não, a mãezinha havia de exigir que ficasse. Mas serei obrigada a sacrificar-lhe tudo? Nem sequer é a minha verdadeira mãe... E tão pouco maternal, pobre Jeanine. A mãezinha do meu coração é aqui que mora. Gosto tanto da mãe do Florêncio!"

A mãezinha de Florêncio, com uma grande tesoura na mão, inclinava-se sobre um tecido coberto de moldes de papel de seda e alfinetes. Ergueu-se para beijar Isabel.

- Até que enfim! Parece-me que consigo fazer o vestido. Ainda bem que a Denise é mais pequena e mais magra que a Solange. Mas achas que este tom vivo lhe fica bem? À Solange ia lindamente...

Puseram-se a falar de modas. Mas quando a senhora Morot-Léandre acabou de cortar os moldes, a rapariga aproximou-se e pousou-lhe a cabeça no ombro. Como se sentia bem ali! Esquecia a terrível guerra, as realidades chocantes e tristes do trabalho social, os caprichos e exigências de Jeanine, a melancolia cruciante do pai, a leviandade da atitude de João-Lucas, as preocupações mesquinhas do racionamento: é apenas uma rapariguinha. E ousa chamar "Mãe" àquela que, pelo seu casamento, se tornaria sua segunda mãe. Trata-a assim quando estão sós. Diante dos outros diz "Minha senhora".

E a mais velha, quando a noiva de Florêncio a chama assim, simplesmente, sente-se invadir por uma onda de ternura maternal.

"Dizer que há sogras ciumentas das noras, que disparate! Ambas amamos o mesmo rapaz, mas com cambiantes tão diferentes! O que ele dá à segunda, não é roubado à que primeiro o amou..."

Isabel, sentindo-o, murmurou, num suspiro:

- Mãezinha.

- Que há, minha querida? Cansada? Um dia difícil?

com Jeanine nunca podia falar do seu trabalho: "Cala-te... isso entristece-me... repugna-me... Essa gente é tão pouco interessante... Que idéia, uma rapariga da tua idade andar a fazer vida de freira. Estragas a saúde, desperdiças os melhores anos da tua vida... Farias melhor se ficasses em casa a vigiar a criada, a receber os amigos, a fazeres-me companhia. No fundo, és uma egoísta... Oh! Não disse isto para te aborrecer: não te ponhas com esse ar infeliz. Não, constatei um facto, eis tudo."

Duro, ouvir tais coisas! O pai, esse parecia compreendê-la. Mas viam-se pouco porque a Jeanine o monopolizava cada vez mais. Andava triste. Pesava-lhe na alma a desgraça da pátria. Desgraça que lhe inspirava versos admiráveis, mas sem esperança. Era um homem do passado, que não se atrevia a prever o futuro.

Aqui, ao menos, Isabel podia desabafar, contar aquelas coisas que apetece contar quando se é novo. A mãezinha do Florêncio - como ele. próprio-interessava-se por tudo, sabia escutar, pedir pormenores, pensar no que lhe era dito, concluir. Sim, era maravilhoso conversar com ela, que possuía o mesmo dom de vida que Florêncio.

Florêncio... como ambas pensavam nele! Porquê tão longo silêncio? A mãe, melhor informada das realidades brutais, temia as terríveis conseqüências duma tentativa de evasão... Os cães... um tiro... a prisão numa fortaleza. E, por outro lado, tinha medo de que seu raPagão desportivo tivesse perdido a saúde e a força entre os arames farpados. Recordava a sua infância: prisioneiro, ele com aquela imperiosa necessidade de ar livre, de desPorto" de gritos, de liberdade? Era de endoidecer, Pensar.

Um passo vivo na escada. uma Porta que se abre bruscamente, Denise com um Papel na mão:

- Então, Denise, a tua lição ?

- Que importa! Olhem, olhem que trouxe o carteiro, um bilhete do Florêncio!

- Dá-mo cá depressa! MoStra!

Chegou atrasado!

Falava da sua saúde: excelente, segundo a fórmula habitual desses rapazes corajosos. Citava algumas das suas leituras' e em meio de recomendações a cada membro da família. esta frase: "Lembrem-se do sótão do tio Jorge."

- Não percebo -disse Isabel.

- O tio Jorge... - respondeu Denise. - Não chegaste a conhecê-lo. Era irmão da avòzinha e morava no campo, perto de Chataigneraie. O Florêncio discutia muito com ele, Mas Por que razão falará do sótão do tio Jorge, mãezinha?

- O sótão do tio Jorge?. - sótão do tio Jorge... -repetia a senhora Morot-Léandre, tentando resolver o enigma. -Ah! Achei! Eras muito pequenina, Denise. Com certeza que não te lembras. Um dia em que almoçámos em casa dele, o Florêncio, numa das suas fúrias, bateu numa das irmãs, parece-me que na Noelle. O tio Jorge, que era muito bom mas nada benévolo, fechou-o no sótão. O miúdo começou a gritar, a chorar, a dar pontapés na porta. O tio ameaçou-o de lá ir com uma bengala... E daí a pouco não se ouvia uma mosca. O senhor esfregou as mãos de contente: "Matei-o; vocês são demasiado indulgentes com este diabrete." "A tarde passou-se. Chamámos os pequenos para irmos para casa: a Noelle, a Catarina, a Solange, tu, Denise, a mais pequenina. Faltava o Florêncio. O tio Jorge tira a chave da algibeira e diz: "Vou eu próprio libertá-lo." Sótão vazio... Procuramo-lo por toda a parte. Chamamo-lo. Nada. Vim para casa da avó aflitíssima...

- Oh! Bem me lembro! - gritou Denise. Quando lá chegámos estava o senhor D. Florêncio estendido na relva com um livro e uma fatia de pão com doce.

- Nunca soubemos como saíra do sótão. Pelo telhado, com certeza. O pai castigou-o severamente, comentando cheio de orgulho: "É esperto, o garoto." E aqui tens, Isabelinha, a história do sótão do tio Jorge.

Denise pôs-se a dançar:

- Mãezinha, ele está-se a preparar para fugir! A senhora Morot-Léandre empalideceu.

- Sim, tens razão... é com certeza esse o significado desta frase. Estás radiante, Denise, mas o risco é grande.

- Ora. - retorquiu Denise. - Ele é esperto, como dizia o paizinho. E temos rezado tanto... Os teus olhos estão cheios de lágrimas, Bebel. É tolice. Eu espero, com todas as minhas forças.

- Esqueceste a lição de inglês - observou a mãe.

- Conta tão pouco uma lição de inglês, ao lado do que se está a passar!

- Tudo conta. Para ti, é grande, uma lição. É o dever. Anda, vai trabalhar.

- E eu - disse Isabel, esforçando-se por sorrir- vou fazer o teu vestido. Onde está a linha de alinhavar?

Ambas inclinadas sobre o tecido cuja cor berrante ia tão bem à Solange, cosiam, conversando ou emudecendo. Os seus corações de mulher batiam de acordo.

 

A senhora Morlainville sentou-se diante do toucador guarnecido de utensílios cintilantes e olhou-se de muito perto naquele espelho que desde há tantos anos reflectia o seu belo rosto.

Contemplou-se como só o fazemos em certos dias - nesses dias, raros, em que preferimos saber a verdade, cruel que seja, a deixarmo-nos iludir com a agradável recordação dum passado feliz. E viu uma testa enrugada, umas pálpebras moles, um queixo que perdera delicadeza, uma boca emoldurada por duas rugas duras. Aquilo, a bela Jeanine? Teve medo, sentiu como que uma dor. Esforçou-se por precisar a data do seu nascimento. Mas, vejamos, impossível que eu já tenha atingido essa idade... Soerguendo a onda que um cabeleireiro de nome emprestara a essa cabeleira, outrora loira, deu conta de madeixas cinzentas.

- Um idiota, aquele Artur. Desta vez a tinta falhou. Se calhar, vê-se... Oh. Eu não quero, não quero ser velha.

Febrilmente, envernizou as unhas. As mãos mantinham-se bonitas. Porque, apesar das dificuldades do serviço, Jeanine não se dedicava a nenhuma tarefa caseira. O que a criada não tinha tempo de fazer, fazia-o a Isabel, de manhãzinha, antes de sair; e a madrasta achava-o muito natural:

- Já que se quer tornar útil...

E Isabel fazia-o com tal simplicidade que Jeanine quase que tinha desculpa em não o notar. Jeanine, não sendo má, não era, no entanto, suficientemente boa, suficientemente inteligente para apreciar no seu devido valor o trabalho ou a dedicação de outrem. Sempre fora tão amada, tão amimada por João, o seu marido!

E entrou, esse João Morlainville, alto e seco

de corpo, rosto de feições duras, contrastando com uns olhos claros e pensativos.

- Estás pronta, minha querida?

- Nem por sombras-replicou Jeanine. - Não há pressa. Para que é que havemos de chegar à missa antes da hora?

- Pelo menos, é preciso chegar à hora.

- À hora... à hora... Exageras tudo. Às vezes, tomas uma mentalidade de monge. Escuta uma coisa: reflectiste na proposta do teu genro?

Acaba de te arranjar - respondeu com impaciência. - O momento parece-me mal escolhido para discutir uma questão tão séria. Toma, aqui tens o teu chapéu.

- Esse, não. Está fora de moda.

- Já? Deve ter um mês de idade.

- Um mês, é a velhice para um chapéu. vou pôr aquele que me trouxeram ontem. Olha, passa-me a carteira encarnada. Não, essas luvas, não. Não percebes nada disto, meu amigo. Agora, olha para mim. Gostas do meu chapéu novo?

- Gosto de ti - respondeu na sua voz lenta, emocionante.

Então ela sorriu e o seu rosto rejuvenesceu.

- Beija-me... Oh! com cautela, com cautela... A minha pintura!

- Quando o Sílvio beija a tua filha Teresa, não tem que pensar na pintura. Um marido feliz!

- A Teresa Tem uma cara de campónia que depressa há-de murchar, perder o brilho, devido aos beijos da sua inúmera prole.

- Não exageremos: só tem três filhos. E os beijos das crianças não gastam o rosto das mãezinhas.

- Gastam... - respondeu, levemente triste.

- A maternidade cansa. Eu também tive três. A propósito, viste o João-Lucas, esta manhã?

- Não. Saiu muito cedo com os amigos.

- Nunca diz o que faz, onde vai... Eu gostava de saber tudo do meu filho, como sei tudo de ti, João.

Os olhos cinzentos quedaram-se nela, melancólicos. Jeanine saberia tudo? Poderia saber "tudo" daquele homem excessivamente rico de alma para que ela o pudesse compreender?

- Vamos? - tornou a perguntar.

- Espera... Um bocadinho de batom. Mas ainda não respondeste à minha pergunta: examinaste seriamente a proposta do Paulo?

Novo frêmito de impaciência:

- Falaremos nisso mais tarde, Jeanine.

- És insuportável. Teimoso, reservado e exigente.

Amuara. Então ele pôs a mão no ombro dessa mulher que adorava, apesar das suas falhas, dos seus defeitos:

- Vamos, querida, não te zangues. Tu sabes que isso te faz mal...

Era verdade. Assusta-se. E depois, o ar aborrecido faz a mulher feia. Deita a cabeça para trás, num movimento gracioso de abandono, e sorri. Sorriso de Jeanine. Sorriso de que João nunca se saciava.

Partiram tranqüilizados para a igreja onde Jeanine se instalou, como de costume, nas últimas filas, naquelas em que seguimos tão de longe o grande drama da missa, que nos esquecemos de participar dele. Naquelas onde uma mulher elegante é mais notada. Fez um sinal da cruz precipitado, murmurou algumas palavras de oração, folheou um pequeno missal pobre de texto, perguntou ao marido: "Qual dos domingos depois do Pentecostes é hoje?", e tentou seguir a liturgia.

Mas pensava no negócio proposto por Paulo Bastien, o marido velho da sua filha Estefânia. Um negócio um tanto desconcertante, em que oferecia uma participação ao sogro. Avultada soma a entregar imediatamente. Sem dúvida, o acordo era um tanto escuro, mas, na época actual, cada um que se arranje... O vencimento de João no ministério era irrisório, os seus direitos de autor haviam baixado devido à guerra... Felizmente uma das peças fora para o cinema. Se não fosse isso, ter-lhes-ia sido forçoso suprimir a criada. Que desastre!

A campainha tocou à Elevação. Jeanine inclinou-se e pediu:

- Meu Deus, fazei que ele aceite. No mesmo instante, João murmura:

- Meu Deus, dai-lhe coragem para recusar.

E, antecipadamente, ele, que conhecia o significado profundo da missa, ofereceu o que sofreria por fazer sofrer a mulher, ofereceu, muito humana, muito simplesmente, o dinheiro que ganharia, se aceitasse.

Quando saíram, o rosto de Jeanine estava mais suave. João julgou ver nele um reflexo de alma e esperou que o pensamento de ambos estivesse de acordo. Deu-lhe o braço. Porém, ela fez-lhe notar os sapatos originais duma elegante. O encanto quebrara. Ah! O que não daria para que ela o acompanhasse a uma missa cedo, onde se vai de facto rezar, unicamente rezar? Subiram lentamente a avenida ensolarada. João comprou o jornal.

- Nada de novo, como de costume? - perguntou Jeanine com indiferença.

- Breve haverá alguma coisa de novo - respondeu ele. - Está-se à espera todos os dias.

- Oh! Há que tempos que andas a dizer isso. O que eu queria era que a guerra acabasse já, de qualquer modo, para que recomeçássemos a viver normalmente.

- E para que o noivo de Isabel regressasse.

- Claro... Ah! Que pena que ela se tenha prendido ao petiz Morot-Léandre! Confessa que o Hugo Lesoir, com a sua situação, a sua família, os seus conhecimentos, seria bem melhor partido.

- A situação? Ora! Isso é secundário. O que é preciso é que se amem, não é verdade? Adoram-se, os dois pequenos!

- Sim, e se ele não voltar? O que é que ela faz? Arma em viúva, sem o ser...

- Por que razão não há-de voltar?

- Há que tempos que estão sem notícias. É assustador, concorda, A família supõe que ele tentou fugir. Fugir! com os arames farpados, as sentinelas, os cães... Acaba sempre mal, a história.

- Também pode acabar lindamente. Jeanine, tu não gostas do Florêncio.

- Não. Detesto os Morot-Léandre. Porquê? Irritam-me, eis tudo. E acho que a tua filha, bonita, rica - e tua filha, homem célebre! podia arranjar melhor marido do que o tal cadete, provido de quatro irmãs originais, de um pai severo e de uma mãe exemplar.

- Mas, Jeanine, são gente óptima, agradável, inteligente, da melhor sociedade.

- Não compreendes nada. A tua "melhor sociedade" não é igual à minha.

Ele pensou no "mundo" condenado pelo Evangelho. Não seria esse o mundo de Jeanine? Um mundo em vias de desaparecer no turbilhão da guerra. O novo mundo, qual seria O dos Morot-Léandre, certamente. E Jeanine...

Ela suspirou e, apoiando-se no braço do marido:

- Ando outra vez com dores nas pernas. Basta que caminhe durante um quarto de hora... Estão inchadas as minhas pernas, não achas?

Como tudo isto era mesquinho! Todavia, aquele homem superior amava-a desde há tanto tempo! Doente, cansada, velha, amá-la-ia sempre. A pouco e pouco, não a conseguiria elevar? Não a elevara já? Conseguira que ela admitisse certas coisas... Compreenderia o que tinha para lhe dizer nessa tarde?

Quando chegaram a casa, ela deitou-se sobre um divã.

- A Isabel já cá está? Ainda não? Vale bem a pena ter uma filha em casa para estar sempre sem ajuda... A criada fica furiosa sempre que está a fazer o almoço e a chamo.

- Eu estou aqui, Jeanine.

- Então dá-me...

E enumerou os seus desejos. Ele serviu-a, atento a satisfazer-lhe os mínimos caprichos. Sabia-a realmente doente. E ela teve, para lhe agradecer, um sorriso fascinante.

- Estou a incomodar-te, João. Tu ainda és o melhor de todos. Senta-te aqui. Vamos conversar.

Ele tomou-lhe a mão onde os anéis brilhavam e apertou-a, tão leve, tão suave, na sua grande mão de homem.

- Meu amor - murmurou.

Ela sentiu-se feliz. Chegara o momento:

- João, quando é que vais falar ao teu genro? Ele está à espera que lhe telefones a marcar o encontro.

- Não há necessidade de falarmos de novo. Estou perfeitamente ao corrente da questão.

- Em todos os pormenores? Então quando entras na sociedade que ele te propôs?

Um momento de silêncio. Uma mão suave afaga a dele, mão querida a que ele nunca resistia.

- Diz. Quando? Sabes o dinheirão que é preciso para governar esta casa...

Pousa no homem fraco o olhar maravilhoso dos seus olhos castanhos. Sobre a mesa, as rosas evolam o seu perfume. Haveria, de facto, guerra pelo mundo João e Jeanine seriam, de facto, um casal que envelhecia? Não seria, realmente, a abundância condição indispensável à felicidade?

João sentia-se fraquejar. Ela notava-o. Já se julgava segura da vitória.

- Escuta, creio que o Paulo tenciona vir cá, à noite. Talvez ainda não tenhas visto bem o negócio... Conversar não compromete. O Paulo é um homem honesto. Evidentemente, um homem de negócios não olha as coisas pelo mesmo prisma que um sonhador como tu. Mas temos de seguir o movimento da época. De contrário, enfileiramos com os falhados. Olha, o teu filho. Tenho a certeza que já o compreendeu há bastante tempo.

Na alma dele ecoava um grito: "Não, não." Mas aquela carícia doce... Resistiu à consciência.

- Já te disse: tudo isso me desagrada. Mas já que tanto o desejas, consinto em ver o Paulo esta tarde. Não me comprometo por isso, como tu própria o disseste.

- Claro que não. Mas, assim, decides com pleno conhecimento de causa. És uma jóia. Dá-me um beijo, querido.

Ele pousou-lhe no ombro a cabeça grisalha e esqueceu tudo, excepto o seu amor, o amor que fora o da sua juventude, como o era da sua velhice.

- Estão a bater à porta. Duas vezes... - exclamou Jeanine, afastando-o. - Será a Isabel ou o João-Lucas?

Ambos. Eram agora da mesma altura, esguios, mas diferentes de fisionomia, cada um se parecendo com a respectiva mãe. Isabel com a pobre criança que João nunca amara, João-Lucas com a soberba Jeanine que o contemplava com orgulho, tão grande, tão louro, tão fresco. Sorriu-lhe.

- Então, meu filho?

E beijou-o repetidas vezes, enquanto Isabel esperava o momento de dar um beijo muito prudente nesse rosto tão bem cuidado.

Jeanine era amiga da enteada, embora a criticasse.

- Hoje tens a tarde livre? Então, peço-te, despe o uniforme. Põe um vestido de gente. Anda, arranja-te para o almoço. Assim vestida, levarias para a mesa um cheiro a sofrimento.

Isabel pensou

"Levo-o no meu coração que nunca pode esquecer, nunca, nunca."

Mas, dócil, trocou a saia azulada, a blusa lisa, por um vestido de Verão, claro e florido. Como Jeanine nessa manhã, olhou-se ao espelho, mas era outro o seu cuidado:

"Ele não me irá achar diferente "

Ele... era o Florêncio, sempre. Florêncio que não conhecia aquele vestido, que escolhera recordando as suas preferências. Florêncio que, quantas vezes, enrolara nos dedos os seus caracóis lustrosos. Florêncio, o impulsivo, que sempre a beijara com tanta pureza. Florêncio que, embora amasse apaixonadamente Liseron, a respeitara sempre. Florêncio... Meu Deus, onde estava o Florêncio? Oh! Não saber onde procurá-lo com o pensamento!... Errante? Perseguido Esfomeado Ferido Tudo era possível. Ou, pelo contrário, livre? De asas, enfim, abertas?

Incerteza. Ignorância de local, de tempo. Florêncio sumia-se na imensidade do desconhecido. Florêncio era um ponto em marcha. Rumo a quê Não se sabia. Mas sobre ele, pobre Florêncio de 1944, unido, pelo sofrimento, à Paixão do próprio Cristo, sobre ele, inclinava-se o Pai.

Não!

-SOU eu, paizinho.

E correu para esse homem que, para a receber, deixara o livro e sorria.

Eram da mesma altura, mas ele chamava-lhe "minha filha pequenina", e ela achava delicioso ser a filha pequenina de alguém, depois de uma semana consagrada a misérias de toda a espécie.

- A mãezinha está a dormir a sesta. E nós vamos conversar. Não te incomodo?

- A Isabel nunca incomoda o pai. Repousas-me, compreendes?

- És muito gentil. Tu também me repousas. Vi coisas feias durante esta semana. Estar de novo junto de uma pessoa como tu, é maravilhoso. Sim, uma pessoa como tu. Se soubesses o que se fala de Romain Villanel, desde que a peça foi filmada! Eu não digo a toda a gente que sou filha do autor, mas, quando o sabem, torno-me também pessoa importante.

Pôs-se a rir:

- Gosto do teu riso - murmurou ele. - Senta-te, minha querida.

Ela sentou-se à beira da mesa.

"Está linda - pensou João -com aquele vestido claro, as pernas compridas, os pés nus nas sandálias."

- Paizinho- repetiu-o filme está a fazer um sucesso enorme.

- E agrada-te?

- Sim... Não... Francamente, prefiro a peça. O filme deturpou metade do teu pensamento. E não acho o ambiente bem escolhido. Devia ser espiritual, mais delicado.

- Portanto, tens pena que eu tenha deixado filmar a peça?

- Sim, paizinho.

- Censuras-me? -perguntou timidamente.

- Oh! Não. Lá tiveste as tuas razões, certamente boas razões.

João baixou os olhos ante aquele olhar puro. As suas razões eram Ganhar dinheiro. Jeanine pedia, pedia... Evocou motivos secundários: exigências da arte moderna, necessidade de se pôr em acordo com o tempo presente...

Ela respondia:

- Sim... Sim. Evidentemente.

E, quando terminou:

- Queria que me lesses os teus últimos poemas.

- Lê-os tu.

- Não. Gosto da tua voz a dizer versos.

Escutou. Versos marcados pelas chagas da França; submetera-os a Jeanine, que declarara hesitante:

- São bons, é claro. Mas gostava mais do teu estilo de antes. Acho isso austero, triste.

A voz de Isabel, voz que a emoção tornava trêmula, exprimiu-se de modo diferente:

- Não se parecem nada com os que dantes escrevias. Dir-se-ia outro poeta. Mas estes versos são mais belos do que os teus mais velhos versos: são grandes, magníficos. Paizinho, tu também vês que não podemos continuar medíocres, num momento destes. A angústia do mundo oprime, atira-nos para a frente, destrói o nosso horrível egoísmo burguês.

Ele calava-se. A sua respiração era mais acelerada. Isabel continuou, procurando as palavras.

- Escuta... Gostaria que escrevesses qualquer coisa para aqueles que tudo perderam. Tudo, compreendes? A casa, o dinheiro, a mobília, as suas coisas, enfim. E, agora, estão nus, em face do futuro. É terrível. Os outros não dão por isso. Nós, que ainda temos tudo, deveríamos condoer-nos do seu sofrimento... e mitigá-lo... Desprender-nos do que possuímos... Estamos tão presos... No fundo, não é necessário tanta coisa.

Olhava à sua volta, como se visse pela primeira vez a saleta do pai, a que ele dera, pouco a pouco, uma elegância requintada. Apenas objectos perfeitos, dispostos por mão de artista. Quem sabe se tudo seria destruído por um bombardeamento? Naqueles dias, a morte pairava incessante sobre Paris.

- Em suma - disse, seguindo o seu pensamento- há só uma coisa que realmente conta.

- Qual, Isabel-filósofa?

- O amor, paizinho.

Então ele perguntou a essa garotinha que tão alto colocava o amor, antes de o possuir em plenitude:

- Houve notícias do Florêncio?

- Não. Tento raciocinar com optimismo. Digo para mim: "O Florêncio é tão inteligente, tão ousado, há-de saber desembaraçar-se." Mas é horrível esta esperança, à força de raciocínio. Sobretudo quando se sente que a razão também pode levar a conclusões diferentes... Ponho a minha confiança em Deus, vês tu... Afundo-me n'Ele. É um oceano de amor... Só n'Ele consigo encontrar o Florêncio. Não posso dizer isto a ninguém. Não compreenderiam. Tu, tu compreendes... A gente compreende-se, tu

e eu.

Um oceano de amor... Estas palavras comoviam-no intensamente. Pela manhã, na igreja, avançara até à beira desse oceano de amor. Depois, Jeanine puxara-o para trás e voltara a ser o mesmo ribeirinho medíocre, à beira do talude, que não ousa fazer-se ao largo. Aproximou-se da filha, que lhe pousou a cabeça no ombro:

- Sim, compreendemo-nos. Mas vales muito mais do que eu, Isabel. Ajuda-me.

- Ajudar-te em quê?

Ele suspirou sem responder. E ela disse baixinho:

- É preciso que nos ajudemos um ao outro. Não é preciso dizer nada, vês? As frases, é curioso, não servem para nada. É preciso olhar como vivemos. Sempre te vi agir bem. Por isso, quando me sinto cobarde, frívola, estúpida, preguiçosa, penso em ti, João Morlainville, em ti, Romain Villanel. É maravilhoso ter um pai que é um grande homem. Um grande homem que é extraordinariamente bom na sua vida de todos os dias... Tenho que me ir. Tenho de escrever um relatório antes que a mãezinha acorde. Se soubesses... uma garotinha a quem quiseram fazer mal. Defendeu-se, mas por fim cedeu. Agora, quis suicidar-se. Nós queremos que ela readquira confiança. É muito minha amiga. Treze anos... faz pena, não é? Quando penso na minha juventude tão diferente, com exemplos como os teus, os da Marieta, da Teresa...

Não falou em Jeanine; ele notou-o.

Quando a filha saiu, apoiou os cotovelos na secretária e escondeu o rosto nas mãos. O ambiente da sala já não era o mesmo.

Às cinco horas chegou Paulo Bastien, tão grisalho como o sogro. Rosto enrugado pelas suas preocupações contínuas de homem de negócios.

Jeanine rejubilou. Dirigindo-se aos dois pequenos, disse:

- O vosso cunhado vem fazer uma proposta óptima ao pai. Não há dúvida de que possui realmente o gênio da especulação. Devias pedir-lhe conselhos, João-Lucas. Há rapazes da tua idade que já se sabem governar.

João-Lucas, que lia um romance, respondeu com um resmonear polido. Jeanine insistiu:

- Nem sequer ouviste o que eu disse. Podes estar certo de que era bom para ti pedir conselho ao Paulo.

Ele atirou com o livro para cima do sofá:

- Não preciso dos conselhos dele para nada. Está velho, A gente nova sabe melhor do que eles vender por preços exorbitantes coisas compradas por dez réis de mel coado ou. roubadas. De resto, a guerra vai recomeçar, e não é nenhuma guerra de notas de banco, é guerra de tiros. E, nessa altura, não é o velho Paulo, esse finório, esse trapaceiro, que nos virá dar conselhos sobre o que há a fazer.

- Endoideceste! - disse Jeanine, encolhendo os ombros. - A guerra, recomeçar? Há que tempos que andam a dizer isso! O que ele diz não é certo, pois não, Isabel?

- Muita gente diz o mesmo - respondeu ela, pensativa. - Mas, quer ela recomece, quer não, o João-Lucas faz bem em recusar unir-se a essas burlas detestáveis.

O rapaz ergueu-se, fora de si:

- Que tens tu com isso? Eu alguma vez disse que recusava tomar parte em transacções inteligentes? Não são contas do teu rosário, virtuosa assistente social, solteirona em germe.

- És muito mau - murmurou Isabel, quase a chorar.

- Acalma-te, João-Lucas-interveio Jeanine.

- E tu, não exageres, Isabel. Ouçam... o Paulo vai-se embora. Corre, Isabel, vai dizer-lhe que fique para tomar chá connosco.

João-Lucas, pessoa de cóleras breves, pôs-se a rir:

- Ainda tens chá, mãezinha? Os meus parabéns. Tu também te sabes arranjar.

Isabel voltou só.

- O Paulo agradece-te, mãezinha, mas está com muita pressa.

- Nem sequer me vem dar notícias da minha filha e dos meus netos! Que homem encantador! Diz ao pai que o espero. E vão-se daqui os dois. Não são cá precisos. Vê lá se consegues matar a fome ao teu irmão, Isabel.

Felizmente, tinha posto em reserva um boião de mel que fez as delícias do guloso.

- É esquisito que o velhote se tenha ido com tanta pressa... Que cara levava!

- Cara de furioso, E o paizinho, um ar glacial. Teria havido coisa?

- Não foram feitos para se entenderem, aqueles dois. Conta-me cá, Isabel, o que é feito das Morot-Léandre? Oh! Não falo da senhora dr. a Noelle nem do bebê da Denise. Mas, as outras duas?

- Já sabes que a Solange anda a aprender a guiar ambulâncias. Quanto à Catarina, é mistério. O Joel Saint-Yvy parece uma alma penada. E a mãe dela, se sabe alguma coisa, não parece interessada em contar.

- Têm sangue na guelra, aquelas duas. Que bom que é este mel! Mas já não tenho pão...

- Toma o meu. Palavra... Eu não como tanto como tu...

- És um amor de mana. Mas apetecia-me chá e, neste momento, estão os pais a despejar o bule. Não percebo por que é que nos puseram fora. Olha... o paizinho.

João Morlainville apareceu com a habitual ruga dos maus dias.

- Podes voltar para o pé da mãe, Isabel. Jeanine passeava, agitada, no quarto:

- Vai-te embora! - gritou. - Vai ter com o teu pai. Tão antiquado é um como o outro. E diz ele que é meu amigo... Bonita maneira de amar! Vai-te embora. Irritas-me.

Desconcertada, foi ter com João-Lucas:

- Não me quer lá. Vai tu.

Quando Jeanine viu o filho, a sua cólera transformou-se em desgosto. João-Lucas era muito amigo da mãe e ficou desolado. Que dizer, que fazer para a acalmar?

- Conta, minha mãezita pequenita. Conta-me o que te pôs nesse estado. Já não sou nenhum miúdo. Compreenderei.

- O teu pai é um egoísta. Um poltrão. Um bota de elástico.

Apossara-se destas palavras e repetia-as entre soluços. Por fim, parou de chorar. E, tomando, inconscientemente, uma pose teatral, declarou:

- O Paulo propôs-lhe um negócio magnífico. Absolutamente ao seu alcance, visto que se tratava de escrever.

João-Lucas franziu as sobrancelhas:

- Fazer um negócio magnífico, a escrever, actualmente é suspeito.

- Tu ainda não conheces a vida. As coisas não são assim, tão absolutas. Era... muito admissível e, graças ao seu nome, o teu pai poderia obter um pagamento régio. Recusou asperamente. Foi-se uma oportunidade de fazer fortuna. E, ainda por cima, ficámos esquerdos com a Fani.

- Isso, duvido. O velho Paulo tem bom estômago. E o paizinho... bem, o paizinho procedeu certamente como devia proceder.

- É claro, também tu te pões ao lado dele. Vivo numa casa de loucos. Não, não me beijes, estúpido, ingrato. Vai ter com a santa Isabel. Fico eu sozinha, como sempre.

João-Lucas adorava a mãe, embora a achasse insuportável. com uma paciência de anjo, e de anjo muito bom, soube ser gentil. Ela escutava-o por instantes, depois a fúria voltava e acabou por ter uma verdadeira crise de nervos. Então ele foi obrigado a chamar Isabel, que lhe prestou o auxílio necessário e suportou, sem um murmúrio, as suas intermináveis recriminações e queixas.

Ouviu coisas duras. Jeanine perdera o domínio de si própria e apenas soltava palavras injustas e chocantes. Por fim, reclamou Teresa:

- A única pessoa boa e sensata da família, a minha verdadeira filha! Telefonem-lhe!

Meia hora depois, chegava Teresa, fresca, roliça, trazendo consigo a paz. Jeanine, certa de que João não cederia, começava a cansar-se de repetir sempre o mesmo. Assim, disse-se doente, muito doente, sem que Isabel a soubesse tratar. Em breve, Teresa mudou de método, recorreu a calmantes inofensivos, apresentando-os como drogas maravilhosas. Contou-lhe anedotas do atelier que soubera pelo marido. Conseguiu assim desanuviar-lhe o espírito. Convenceu-a a tentar dormir e voltou para junto dos irmãos:

- Deixem-na descansar. Eu não posso demorar-me mais. O Sílvio e os miúdos estão à minha espera. Isabel, parece-me que farias bem se não saísses amanhã de manhã.

Isabel fechou-se:

- E o meu serviço?

- Eu compreendo-te, riquinha. É muito aborrecido estar presa entre dois deveres. Mas a mãe precisa que a tratem.

Isabel, recordando aquelas palavras cruéis:

"A Teresa, a única boa e sensata, e verdadeiramente minha filha, ao menos...", respondeu com uma violência rara nela:

- Pois se ela não me quer lá...

- Vamos, sabes bem como, no fundo, é tua amiga. Faz o sacrifício de ficar, Isabel. Já tens feito tantos!

Beijou-a. Como as suas faces permaneciam redondas e macias.

- Maçã - murmurou Isabel. - És tão boa e tão simples. Vês logo o que se deve fazer. Eu, ando sempre aflita...

- Sou simples porque sou feliz - respondeu a mulher. - Aqui tens o segredo. Mais tarde compreenderás.

E a Maçã partiu com o seu casaco velho, o seu chapéu posto de qualquer maneira, a sua frescura e a sua felicidade, direita ao marido e aos filhos, que amava.

João-Lucas voltou ao seu livro esquecido num sofá e instalou-se junto da mãe adormecida. Isabel foi bater à porta do pai.

- Como está ela? - perguntou, ansioso.

- Melhor. Muito melhor. A Teresa acalmou-a. Está a dormir.

Ainda envergonhada da sua ira de há pouco, acrescentou ternamente:

- E tu, paizinho, como estás? Olharam-se. Compreenderam-se.

- Eu - respondeu - um farrapo...

- Um farrapo? Oh! Paizinho, agradecemos-te, o João-Lucas e eu, por teres feito o que fizeste.

Então, uma onda de paz distendeu as rugas do seu rosto endurecido.

 

JEANINE, ainda deitada, folheava um ro mance. Estava linda, na sua grande cama de colcha cor-de-rosa. Mas João não lho dissera, como habitualmente. Ele mantinha-se distante desde a cena de domingo. Privada de homenagens, ela sentia-se infeliz.

Bateram à porta.

- Oh! Fani, tu! Que surpresa... Julguei que a ridícula atitude do meu marido nos tivesse posto de mal.

Olhava com alegria a sua filha preferida, loura e mundana como ela. Frívola, também, mas mais inteligente.

Estefânia parecia agitada:

- Ora, mãezinha! Zangarmo-nos por tão pouco? O Paulo disse: "O meu sogro é tocado." Propôs o negócio a outro, e ninguém pensa mais nisso.

- Tenho medo que ele ainda pense... O teu pai deve ter tomado o seu ar virtuoso, cortante, que fere, e o Paulo é muito susceptível.

- Faço dele o que quero, tu sabes muito bem. De resto, não o magoaste em nada, pelo contrário, e ele lastima-te por sofreres as conseqüências da atitude de um marido intransigente. Foi mesmo da parte dele que vim cá tão cedo.

- Propor outro negócio?

- Isso não. Não é magnânimo a esse ponto. E, além disso, os negócios, minha rica, vão passar a segundo plano durante algum tempo.

- Porquê?

- Então não sabes de nada? Não ouves a rádio?

- Não. Dizem sempre a mesma coisa... Há alguma novidade?

- Ainda não. Mas está para haver. O Paulo está bem informado. É preciso sair de Paris.

- Sair de Paris? Isso é uma loucura! O que é que há a temer?

- Está próximo um desembarque. Ninguém sabe o que acontecerá. Venho pedir-te que partas de automóvel, comigo e com os pequenos.

- Mas para onde vamos, Fani? Assustas-me.

- Para a Normandia, para uma quinta que o Paulo comprou o ano passado. O desembarque não é naquela costa. E vamos comer, mãezinha! Leite, manteiga, ovos, queijo, tudo!

- Coisas que engordam. Não me convém comer muito.

- Quando se emagrece, fica-se feia. Por causa das rugas.

- Achas que tenho muitas? Novas? Onde? Fani teve um gesto de impaciência:

- Escuta, mãezinha, depois trataremos das tuas rugas. Hoje, o que importa é que digas se vais ou não connosco. O Paulo tem muito interesse em que vás.

- Fica em Paris, ele?

- Naturalmente. Não pode abandonar os negócios dum momento para o outro.

- Vamos para lá sozinhas? O melhor é o teu pai pedir licença e vir também.

- O paizinho? Julga-lo capaz de deixar Paris no momento crítico? Ainda não conheces o teu Dom Quixote...

- Então não vou.

- E eu também não. Muito bem. Morremos todos num bombardeamento; é melhor assim.

- Ao menos que vá a Isabel e o João-Lucas.

- Não vão. O João-Lucas por causa dos exames, a Isabel devido ao seu posto de assistente. Mãezinha, sê moderna e convence-te de que a gente nova tem a sua vida à parte, as suas ocupações, os seus interesses, os seus amores. Não exijas que os pequenos se venham enterrar num vilarejo.

- Mas a mim convidas-me tu...

- Porque já não és nova: é preciso dizer-to.

A tua saúde não poderá suportar privações, nem os teus nervos choques violentos. E depois, preciso de ti, confesso. Nunca te pedi nada... Jeanine, confusa, murmurou:

- Quando contas partir?

- Amanhã.

Ela soltou um grito:

- Impossível! Tenho imensas coisas a fazer. O cabeleireiro, por exemplo.

- Oh! Deixa lá o cabeleireiro. Tudo isso é tão secundário quando se tem que salvar a pele...

"A tinta...", pensava Jeanine. Mas nada disse. Procurou outro pretexto:

- O teu pai não me deixa partir tão de repente.

- O pai? Fazes-me rir! Ao seu ídolo consentiria tudo.

- Tudo? - exclamou, enervada. - Estás a brincar. E a recusa de domingo?

- Isso está noutro plano. Não te digo "aprovo a sua atitude", mas compreendo. Acredito realmente que ele, João Morlainville, Romain Villanel, não pudesse agir de outro modo. Desta vez, trata-se de ti, de ti apenas, do teu bem, da tua segurança. bom, até logo. Telefono-te à uma hora para saber a decisão do paizinho. Até à vista, mãezinha. É linda a tua camisa de noite...

Afastou-se, elegante e leve. Jeanine, seguindo-a com o olhar, murmurou:

- Ah! Se ainda fosse daquela idade! Envelhecer, que horror, meu Deus! E envelhecer num tempo destes... Irei? Não irei? Não tenho a quem pedir conselho. Saíram todos. Deixam-me sempre sozinha... Se for, que vestidos hei-de levar? Não tenho nada gênero simples, campestre. De qualquer modo, caso bombardeiem Paris, não me agrada nada perder o que tenho de melhor...

E passou a pensar unicamente nas coisas indispensáveis à sua felicidade, à sua medíocre e pobre felicidade.

João, quando regressou do ministério, achou-a muito agitada. Ela deu-lhe parte da proposta de Fani. Segundo o seu hábito - que exasperava Jeanine - João escutou, mudo, impassível.

- Fala - acabou por gritar-lhe. - Diz qualquer coisa. Que pensas de tudo isto?

- Penso que os Bastien têm razão e que é necessário partir.

- Mas, contigo, não é verdade?

- Eu Não tenho o direito de abandonar o meu posto, querida. E, mesmo que o tivesse, não abandonaria Paris no momento do perigo. Sou um homem de Paris. Fico.

- Então tu preferes Paris, este amontoado de casas, à tua mulher?

Ele olhou-a. Como se mantinha criança, ignorante das grandes realidades humanas... Sentiu invadir-se de uma onda de ternura e respondeu-lhe baixinho:

- Amo-te mais do que a todas as criaturas. Mas não mais do que ao dever. E Paris é mais alguma coisa do que um amontoado de casas. As cidades têm um passado, uma alma. Amo a minha, amo-a mais do que nunca, porque sofre. A sua beleza adquire qualquer coisa de patético.

Os grandes olhos de Jeanine maravilhavam-se. Não conseguia acompanhar o pensamento desse homem. Mas o seu irradiar atingia-a vagamente...

Meio amuada, meio risonha, concluiu:

- Eu devia ter casado com um rapaz simples. A Fani qualificou-te de Dom Quixote: não está mal achado.

- Preferias um Sancho Pança? Então o mau humor desapareceu.

- Gosto de ti como és. Irritante, desconcertante, grande de mais para mim. Se mudasses, creio que me sentiria infeliz. Talvez que no fim da nossa vida consigas fazer da frívola Jeanine uma senhora velha e sensata.

- Tu? Tu nunca serás velha - murmurou. - Ver-te-ei sempre linda, loira, jovem. Parte com os teus filhos. Quero sentir-te ao abrigo de todo o sofrimento, meu amor.

Palavras que nunca esqueceria. Palavras que encantaram Jeanine. Até que enfim, voltara a ser o mesmo homem apaixonado! Estendeu-lhe o rosto para que ele o beijasse.

- Vamos para a mesa. Nem o João-Lucas nem a Isabel vêm almoçar. Só nós dois. Gosto tanto...

Gostava de facto. Secretamente, invejava o laço de afecto e confiança que unia Isabel ao pai: "Compreendiam-se bem de mais."

Mas queria que Isabel estivesse presente para a ajudar a fazer as malas, e, apesar dos telefonemas, a enteada só conseguia voltar à noite. Como era de esperar, Jeanine repreendeu-a pela sua ausência:

- Nunca podes vir quando preciso de ti. Sabes muito bem que detesto fazer malas.

- Estava no arrabalde, mãezinha. Lá não há telefone.

- No arrabalde A fazer o quê?

- A preparar centros de abrigo. Em casa de...

- Que disparate! Não há-de haver nada. Eu vou para agradar à Fani e para comer bem durante algum tempo. Mas não acredito nada nessas histórias de desembarques e batalhas em Paris. Dão-te volta à cabeça, esses teus Morot-Léandre.

com que habilidade Jeanine se referia sempre aos "teus Morot-Léandre"! Mais gentil, continuou:

- Continuas sem notícias? Devias ir connosco para a Normandia. Tomavas conta dos teus sobrinhos e distraías-te.

- Não tenho o direito de abandonar o meu posto. E, mesmo que o tivesse, não abandonaria Paris neste momento. Amo-a demasiado.

Jeanine olhou-a, impávida: exactamente as palavras do pai. Ah! Como aqueles dois se pareciam! Sim, pareciam-se, profundamente. Ela, Jeanine, permanecia estranha às almas de ambos.

Esse pensamento pô-la fora de si; voltou ao seu tom agreste:

- Tolices, tudo isso. Despacha-te, por favor. Dá uma passadela à minha blusa... Arranja-me um livro para a viagem... Penteia-me... E amanhã ficas em casa. Preciso de ti.

Isabel, com os dentes cerrados, penteava a mãe. Quando João Morlainville voltou, a mulher participou-lhe a sua vontade: que Isabel não saísse no dia seguinte.

Isabel voltou-se para o pai:

- Paizinho...

João sentia-se repartido entre dois afectos. Mas um só era tirânico: foi a esse que cedeu:

- Riquinha, peço-te que sacrifiques o dia de amanhã à tua mãe.

- Não - respondeu ela baixinho.

Ele aproximou-se, sentindo-a pronta à revolta:

- Sim - murmurou. - Eu também fico. E, depois - acrescentou mais baixo ainda - faremos tudo o que nos apetecer, Isabel. Não abandones a nossa criança grande.

Jeanine, debaixo do secador eléctrico, não ouviu. Mas observava-os com olhar duro. Que segredariam?

- Isabel! -gritou. -Está quente demais. Vem moderar o aparelho.

Por um instante, a rapariga quedou-se, imóvel. O sacrifício que lhe pediam era dos que contam numa vida de trabalho social, visto que sabia que, no dia seguinte, lhe seria confiado um inquérito particularmente interessante. Poderia renunciar? Seria esse o seu dever? Mas pensou em Florêncio, na sua vida de constante renúncia, e a sua vontade cedeu. Aproximando-se de Jeanine, que a espiava, disse:

- Está combinado, fico. Mas é preciso prevenir o Centro, para que uma das minhas colegas me vá substituir.

Jeanine encolheu os ombros:

- Telefona.

- Já lá não está ninguém a esta hora. João-Lucas, João-Lucas, se quisesses ser uma jóia...

João-Lucas, que enchia a caneta de tinta permanente da mãe, imitou a voz cristalina de Isabel:

- João Lucas, meu querido João-Lucas, se quisesses ser um amor, pegavas na tua bicicleta, amanhã de madrugada, e corrias ao Centro Social. É isto, não é verdade? Consinto. Mas com uma condição: não trato de negócios com velhas solteironas. Só com meninas bonitas. De contrário, não vou.

- Sim, pessoa detestável, dou-te um bilhetinho para uma loira que é um encanto. Vais ficar loucamente apaixonado e sofredor. Bem feito! Regozijo-me antecipadamente. vou ter o prazer de te ver com o coração de luto.

Refrescada pelo sacrifício, ria. E ele ria também. Eram tão novos!

No dia seguinte, o grande automóvel dos Bastien veio buscar Jeanine e a sua bagagem.

- Malas de mais - disse o motorista.

Mas ela teimou em levá-las.

E, quando o carro partiu, levando Jeanine, o seu amor, João sentiu-se de súbito magoado: nas horas de perigo as pessoas que se amam não devem separar-se.

A casa guardava o seu perfume... As suas chinelas haviam sido abandonadas sobre o tapete. E o seu lenço ficara esquecido numa poltrona. E ele, tão frio aparentemente, sentiu que as lágrimas lhe corriam pelas faces como se fora uma criança abandonada. Ou como um pai que procura a sua filhinha Ou como um apaixonado que perdesse a sua amada? Não o sabia. Talvez tudo ao mesmo tempo. Alguma coisa chorava no mais fundo da sua alma. Partir, é sempre morrer um pouco. Sobretudo num tempo em que ela ronda, incessante, a morte.

E a filha, que adivinhava o seu terrível abandono, não ousava aproximar-se. Há desgostos que de princípio pedem solidão. Depois - oh! sim, depois - pode tentar-se pôr amor no vazio deixado por outro amor que se foi. Mas era tão difícil adivinhar o momento propício! Não ousava. Assim, foi-se almoçar, como todos os dias.

Falou-se, como todos os dias. Em silêncio, todos seguiam o trajecto do grande automóvel azul. E, por fim, João-Lucas partiu barulhento, excitado, alegre de mais: também ele escondia o seu desgosto. Desgosto injustificado. Jeanine muitas vezes partira sem João e sem os filhos. Mas a hora era estranha, o futuro velado, as ameaças opressivas.

Quando o irmão saiu, Isabel puxou uma cadeira para o pé do seu pai e pôs-se a tricotar, calada. Estava contente por ter sacrificado a sua manhã e queria que João o sentisse, ele, que testemunhara a sua revolta.

Doçura de se sentirem próximos. Pureza de Isabel. Força e inteligência de João. Pai e filha. O mesmo clima moral,

O relógio bateu horas. Isabel suspirou:

- Tenho que ir. Estava-se tão bem aqui! Ele, beijando-a, disse somente:

- Obrigado.

 

- ACABOU-SE tudo - murmurou uma mulher velha. - Já não tenho nada. Ah!

Porque não morri eu com a minha casa? Isabel, inclinada sobre o banco onde a haviam colocado, ligava-lhe a perna magra e ferida. Ao lado, uma mulher reclamava o filho, entre soluços:

- Alberto!

Uma garotinha gemia:

- Mãezinha...

A velha, lábios cerrados sobre as maxilas sem dentes, repetia:

- A minha casa!

Aquelas chagas. Aqueles lamentos. Isabel recordava ter dito outrora a Marieta, a querida criada da sua infância: "Se há guerra, Marieta, o meu coração quebra-se." Não, não quebrara. É sólido, um coração. Mas quando aquela horrível guerra acabasse, voltaria a encontrar o seu coração fresco, apto a tornar-se um coração feliz de esposa, de mãezinha?

- A minha casa - insistia a mulher. Certamente, é secundária a perda de uma casa, comparada à perda de um filho, de uma mãe, que o bombardeamento esmagou. Mesmo assim... todo um passado que se perde, e a segurança roubada aos últimos dias de vida que restam... Isabel escutava, e a curva da sua boca era tão terna, tão atento o seu olhar, que a velha exclamou:

- Ao menos, a menina compreende... É de admirar. A gente nova nunca sabe entender nada. Se calhar, também sofreu alguma perda?

Isabel evocou a casa familiar, tão confortável, e envergonhou-se dos seus privilégios. E, procurando um motivo de sofrimento que a aproximasse desses infelizes:

- O meu noivo é prisioneiro. Bem vê que sei o que é sofrer.

- Sim - respondeu a ferida, secretamente satisfeita por aquela menina bonita ser também a sua parte. -Vejo-o nos seus olhos. Oh! A minha perna! Não vão cortar-ma, pois não?

Tranqüilizar. Tratar. Lavar. Sorrir. Isabel, livre da tirania elegante de Jeanine, reencontrava o seu meio vital. A sua união espiritual com Florêncio nunca lhe parecera tão estreita como quando assim mergulhava em plena miséria humana.

O dia decorreu extenuante. Chegavam continuamente novas vítimas do bombardeamento da noite, ainda mais atingidas, pois que haviam sido retiradas dos escombros.

Mas era preciso voltar para casa. Quando o pai e o irmão almoçavam sós, Isabel censurava-se por os deixar mergulhar na tristeza, na solidão. Que vazio deixara a exigente Jeanine!

À porta do dispensário, a mão sobre o guiador da bicicleta, deteve-se para saborear o ar perfumado das acácias. As coisas continuavam a viver, felizes, enquanto a humanidade sofria, morria. Por uns momentos, odiou-as.

"O Florêncio verá a Primavera?"

E na esperança de que a Primavera, na sua alegria, o pudesse alcançar, apesar do arame farpado, sentiu-se feliz perante a renovação.

Já pedalava, quando chegou, como uma flecha, uma rapariga cuja saia ampla e clara voava em torno da bicicleta. Um braço nu ergueu-se num sinal:

- Oh! Catarina!

Sim, aquela Catarina que ninguém via e de quem Denise dizia, melancòlicamente: "Não fazemos idéia por onde anda."

Catarina, cabelos ao vento, era mais do que nunca a Cigana.

- Liseron - exclamou - vim buscar-te. Vamos fazer o caminho juntas e conversar, queres?

- Primeiro, quero dar-te um beijo. Demônio de rapariga, tens-nos feito doidos!

- Sabes perfeitamente que sou uma original. Como o meu irmão, teu ilustre noivo. Morot-Léandre, cem por cento. Sempre sem notícias? Que coisa! No lugar dele, já tinha fugido da gaiola.

- E se ele não puder?

- Eu podia, de certeza. Tenho imaginação e audácia. E ele também tem. Não percebo de que está à espera. Ah! O que eu não daria para o ver, pobre rapaz. É uma loucura o que se gosta das pessoas que estão longe Sobretudo se estão em perigo... Mas, diz-me cá, os teus pneus ainda duram?

Isabel duvidava de que Catarina a viesse buscar ao arrabalde unicamente para falar de pneus.

- Tu, que pretendes ser cigana e ler o futuro, devias dizer-nos o que se vai passar.

- Oh! Coisas formidáveis! A guerra avança. Em breve veremos o nosso Flô. Mas, até lá, teremos de sofrer... bastante. Sentes-te com coragem?

- Sinto-me - respondeu alegremente Isabel.

- Apesar de ter sido tão medrosa, em pequena. Lembras-te de certa menina tímida e sensível que chorava por tudo e por nada? As quatro Morot-Léandre excitavam a minha admiração e a minha inveja, com os seus ares desembaraçados.

- A Denise nunca teve ar de desembaraçada na sua vida.

- Lá isso é verdade. Mas a Noêlle, a Solange e tu, que mulheres de armas! Vejo-vos sempre na cerca do recreio do Instituto, vestidas de escocês.

- Tempos que já lá vão. Não digo: "Bons tempos!" Não. Umas miúdas. Não se vivia. Agora, é-se novo, plenamente novo. Pode-se viver. Fazer coisas, coisas... Meu Deus, gosto tanto de ser nova!

- Coisas... Catarina, em que coisas estás a pensar?

Um silêncio.

- Não quero dizer. Sabê-lo-ás mais tarde. Queria só avisar-te. Daqui a dias desapareço. Parto. Talvez seja morta antes de fazer o que quero. Sim, morta, coração frágil. Presentemente a vida humana conta tão pouco! Se eu morrer, promete-me que consolarás os pais. É esta a primeira missão que te confio. E... dizer ao Joel Saint-Yvy que era muito amiga dele. Mas que, decididamente, para a Cigana, "ser muito amiga" não basta. É preciso "amar". Não te esqueces!

- Mas, Catarina, tu... gostas de alguém, amas?

Uma gargalhada sonora.

- Mas que rapariga tão tolinha! Há que tempos que eu "gosto de alguém". E um coração como o meu, nunca muda.

- Mas, tu não sabes onde está o Magloire. Catarina olhou para a amiga:

- Talvez saiba.

- E os teus pais estão ao corrente de tudo isto?

-De tudo, tudo, não. Mas o pai, que me conhece e que é francês, dirá: "Não posso impedir que uma rapariga, como tu, tome parte na actividade patriótica." Sim, minha pintainha, é isto mesmo que vai dizer. Se eu morrer, apesar do desgosto, sentir-se-á orgulhoso de mim. Se viver e tomar alguma decisão que lhe desagrade, fica numa fúria, uma bela fúria Morot-Léandre, como tu hás-de ver muitas quando fores mulher do Florêncio... e acabará por perdoar. Assim prevê o futuro a Cigana. Censuras-me, não, sensata Liseron?

Isabel não respondeu logo.

- Acho que se tem sempre razão em seguir um apelo de alma. Mesmo que pareça loucura.

- Bravo! Soubeste fugir ao bom-senso mesquinho. Isabel, em breve deixarei Paris. É lindo, Paris! Meu Deus, como é lindo! Achas que o mundo poderia continuar a viver se Paris fosse destruído?

- Não... Descansemos um pouco, sim?

Inclinaram-se sobre o Sena e as duas parisienses contemplaram a sua cidade como Genoveva a contemplava no tempo de Atila.

O rio corria calmo, dum azul mareado, os campos a reflectirem nele a folhagem fremente.

- Um dia - disse Catarina - a Solange quis atirar-se daqui. Ah! Não sabias? Voltou de bem longe, a Solange!

- E irá longe...

- É curioso, daqui a pouco estamos todos separados. Não achas triste, esta dispersão das famílias?

- Triste? Não, visto que outras famílias se fundam a prolongar a primeira. Quando vocês todas forem casadas e tiverem filhos, reúnem-se em Auteuil.

- Nunca essa enfiada de genros e noras se entenderá como nós nos entendíamos os cinco.

- Olha lá, a nora sou eu?

Riram com gosto. Era engraçado aquele termo "nora" aplicado a Isabel. Catarina perguntou:

- Casas-te logo que o Florêncio chegue?

- Imediatamente. Já esperámos bastante. E ele há-de ter uma tal ânsia de felicidade...

- E se ele voltar diferente?

- Diferente em quê?

- Não sei... Triste, cansado, amargo.

- Ora, minha filha! Será essa a minha missão, fazê-lo voltar ao que era. Não me aflijo nada. Quando se ama...

- Quando se ama - repetiu Catarina sempre debruçada sobre o Sena. - Isabel, disseste: "Quando se ama..." Pensas então que o amor repara tudo, arranja tudo, justifica tudo?

Isabel olhou-a, de perfil. Os cílios castanhos batiam nas faces, os lábios vermelhos pareciam beber felicidade.

- Catarina, Catarina, tu... tu vais fazer alguma asneira.

- O que é uma asneira? - disse Catarina. - Vamos, anda, são horas de voltar para casa.

Leves, pedalaram através de Paris. No momento de se separarem, Isabel fitou longamente a amiga, que corou e depois se pôs a rir.

- Guarda para ti as minhas semiconfidências. E tenta compreender os loucos, bebê sensato.

Isabel não gostava que lhe chamassem bebê sensato.

- Eu? Se me quisessem tirar o Florêncio seria mais louca do que todos os loucos, asseguro-te!

- Ainda bem. Digo-te adeus. Talvez um "a Deus" em duas palavras. Actualmente nunca podemos saber se nos voltaremos a encontrar neste mundo. Dá-me um abraço. Estamos na rua mas não importa. Escuta... Quando eu me for, a Denise vai chorar. Pobre Denise, um cordeiro entre os terríveis Morot-Léandre. Tu, que és cordeiro como ela, consola-a. Porque tu és cordeiro, mas és forte, lá dentro. E já passaste por tanta coisa! Confio-te a minha irmãzita. Faz por que ela esqueça o teu irmão. Ele não lhe liga nenhuma, e, se aquilo continua, ela acaba por morrer de desgosto.

- Não se morre de desgosto...

- Vegeta-se... o que é pior ainda. E eu não quero que a migalhinha falhe a sua vida. Diz-Lhe mal do João-Lucas. Ou então, diz ao João-Lucas bem da Denise. Arranja-te como quiseres.

- Encarregas-me de cada tarefa!

- Estás à altura delas. Adeus, Liseron querida. Estás linda como a Primavera.

Carregou no pedal, e a blusa branca, a saia de riscas desapareceram entre a maré de bicicletas, enquanto Isabel, pensativa, recordava tudo o que Catarina lhe dissera e o que deixara adivinhar. Rumo a quê, partiria a Cigana nessa Primavera trágica em que o heroísmo e a morte disputavam o destino dos novos?

- Uma rapariga de valor... Eu não fui feita para aventuras.

Achava-se pequena, sem pensar que havia heroísmo no constante esquecimento de si própria para consolar e curar outrem. E mais uma vez se admirou de que Florêncio Morot-Léandre a tivesse preferido a tantas outras raparigas.

"Serei digna dele, quando chegar? Não o irei decepcionar "

E algures, longe, Florêncio, julgando-se diminuído pelo longo suplício do cativeiro, perguntava a si próprio:

"Serei digno dela? "

E quantos franceses, à mesma hora, suspirando pela liberdade, se sentiam, também, abaixo daquilo que quereriam ser. Neles, as virtudes da Força e do Amor esperavam o despertar.

 

- O Pai anda tão nervoso! - exclamou João -Lucas, também nervoso. - No entanto, é triste dizê-lo, mas a ausência da mãe devia repousá-lo. Cada dia se torna mais exigente, pobre mãezinha.

- Pois eu gosto de o sentir nervoso - respondeu Isabel. - Regressa à vida. Não gosto nada dos olhos apáticos que às vezes lhe vejo nem dos seus silêncios que ninguém é capaz de quebrar.

Conversavam a meia voz, na casa de jantar, aguardando a chegada do pai para principiarem a refeição. Isabel pegara no tricô; João-Lucas, irritado, passeava à volta da mesa.

- O que é que estará a fazer? Ele, tão pontual de costume e que se zanga quando me atraso cinco minutos...

- Talvez... versos? Quem me dera que voltasse à poesia do teatro!

- Estou cheio de fome, eu! Dantes, quando se tinha fome, pegava-se numa fatia de pão e comia-se enquanto não vinha o primeiro prato. Agora, olha-se para o pão, mas é proibido tocar-lhe! o racionamento!

- Pobre pequeno! A guerra há-de acabar depressa. A.

- Acreditas? Pois eu julgo que só agora começou. Fala-se muito, por aí... Ainda bem que a mãezinha está fora de Paris não é pessoa para balbúrdias. Tu, se acontecer alguma coisa, vais lá ter?

- Sabes bem que não.

- O Florêncio dir-te-ia que partisses. A sua Isabel, o seu tesouro...

- Não. O Florêncio dir-me-ia que cumprisse o meu dever até à última.

João-Lucas encolheu os ombros:

- Que sorte que tu tens! Sabes onde está o dever... Eu não faço idéia nenhuma. Ah! Que atrocidade horrível!

- Podemos torná-la bela, João-Lucas. Tu já fazes alguma coisa.

- Eu?

Tomou um ar superior para dizer:

- Perde as ilusões. Não passo de um homenzinho sem interesse.

- Vamos, tens sempre que fazer. Depois dos bombardeamentos... E estou certa de que, embora o não digas, pensas noutras coisas além da licenciatura...

- A licenciatura! Quem me dera consegui-la! Depois poderia voltar-me para onde quisesse.

- Explica-te.

- Se a guerra continua, fujo. Se acaba, jornalismo e teatro. Principalmente o jornalismo. Reportagens de longe. Sim, longe. Quero viajar, ganhar experiência, sair deste burguesismo. É que somos terrivelmente burgueses, minha filha, num mundo em que o burguesismo já não pega. Depois hei-de escrever peças, como o pai. Mas de um gênero absolutamente diferente.

Isabel indignou-se:

- Não as achas fantásticas?

- Estupendas. No seu gênero. Mas, repara, há bastantes anos entre o pai e eu. Impossível vermos as coisas sob o mesmo ângulo. Olha, até que enfim, aí vem o paizinho.

João chegou finalmente, alto, magro, rosto pálido e pensativo.

"Mal disposto", pensou Isabel.

Sentaram-se à mesa, diante de uma refeição o mais abundante possível nesse tempo de miséria e renúncia. João-Lucas comia com avidez nunca satisfeita; o seu corpo esfomeado pedia sempre mais do que aquela ração estritamente medida.

João parecia indiferente a tudo. Isabel tentou reanimar a chama. Conhecedora das mínimas cambiantes dessa personalidade complexa, sabia que o pai gostava de ouvir falar; ainda que a conversa fosse insignificante, era sempre uma manifestação de vida pela qual, involuntariamente, se aproximava o escritor, o psicólogo.

Assim, falou do seu passeio com Catarina, a Morot-Léandre por quem o senhor Morlainville mais se interessava. Quanta chama, quanta força naquela Cigana! Catarina agradava também a João-Lucas, sem que este o confessasse. Nunca tentara dizer-lho pois não ignorava a sua paixão por Estêvão Magloire, o grande músico, e a sua amizade por Joel Saint-Yvy, que a adorava. Não havia lugar para ele na vida da Cigana. Resignava-se. Mas a personalidade ardente de Catarina fazia desaparecer na sombra a da pequenina Denise, toda em meias-tintas delicadas. Ao lado da irmã, como parecia pálida. Para esquecer Catarina, João-Lucas, no Bairro Latino, dava-se com um grupo de raparigas cem por cento modernas, nada tipo Denise.

A Catarina, ninguém sabia nada a seu respeito. Fez mil perguntas a Isabel:

- Donde vinha? O que é que faz? Para onde vai E o velho Magloire? E o Saint-Yvy?

- Tinha ciúmes de ambos. A indiferença de Catarina para consigo, vexava-o.

- Queres a minha opinião, Isabel? Aquela rapariga está-se a preparar para um grande disparate. Aquilo ainda acaba mal.

Isabel estava convencida do mesmo. Mas as semiconfidências de Catarina permaneceriam como segredo de ambas. Deixou que João-Lucas repetisse, sorrindo céptico:

- Ai! Acaba, acaba! - reparando num prato que esvaziara cedo de mais.

- E a Solange? - perguntou o senhor Morlainville. - E a Noelle?

Alegria! Interessava-se por qualquer coisa!

- A Solange acaba de ser admitida, depois do estágio, no serviço de ambulâncias do Socorro Nacional; está pronta a ir às regiões mais atingidas pela guerra. Está morta de impaciência, como a Catarina.

- E os pais não se importam?

- Têm medo... Mas se tu julgas fácil governar raparigas como aquelas... Quanto a Noelle, continua em serviço no hospital. O bebê está no campo, em casa dos pais do Rolande. A Denise está sozinha em casa. Não tem uma vida muito divertida, pobre petiza! Tu devias sair com ela, de vez em quando, João-Lucas - acrescentou Isabel lembrando-se do pedido da Cigana.

- Tenho lá tempo! Depois, ela é tão criança...

- Criança? Mas é tão simpática, tão meiga, tão imaginativa! Pergunta ao senhor Morot-Léandre se a não prefere às três terríveis grandes, a sua Denise!

- Talvez. Ele também é terrível. Repousa-o, aquela garotinha loura e sentimental. Por mim, gosto das raparigas modernas. Sei perfeitamente que ela me adora. Mas isso horroriza-me. Devias fazer-lhe compreender isto.

- Como os homens são vaidosos e cruéis! - exclamou Isabel indignada. - Autênticos selvagens.

- É verdade - disse João, a quem o debate divertia. - São bem raros os homens que compreendem a sensibilidade feminina.

- Tu, tu compreende-la-replicou-lhe o filho.

- És um marido estupendo. Eu estou convencido de que hei-de ser um marido odioso.

Uma onda de ternura distendeu os traços rígidos de João. "Um marido estupendo." Que grande mérito: ele amava-a tanto, à sua Jeanine!

Mas Isabel pensou:

"Para a sua primeira mulher, Colette, a minha pobre mãezinha, não foi um marido estupendo."

E outra vez sofreu pelo sofrimento da pequenina senhora Morlainville de outrora que nunca se sentira amada por aquele coração de homem onde permanecia, ardente e tenaz, a recordação de Jeanine.

Depois de jantar, João-Lucas acendeu o rádio, o que sempre aborrecia o pai. Ele sentia-o bem, mas, intransigente, como todos somos naquela idade, dizia para si:

"Tanto pior. Não tem razão nenhuma. É preciso estar-se ao corrente. É ridículo levar a vida com o nariz metido em alfarrábios num tempo como este."

Postos longínquos cantaram, falaram, fanhosos, uns a seguir aos outros, depressa abandonados pelo rapaz que procurava, através das ondas, as notícias por que o mundo inteiro ansiava. Isabel passajava as meias do irmão, pensando na velha sinistrada que tanto amara a sua casa e agora nada possuía. De súbito, João-Lucas, que escutava atento, exclamou:

- Até que enfim! Paizinho, Isabel... Começou o desembarque!

O livro e as peúgas voaram.

- Quando? Onde?

João-Lucas hesitou; engoliu a saliva e disse precipitadamente:

- Lá. Na Normandia.

- Pelo Sena inferior?

- Não. Pela Mancha. No Calvados.

- Estás doido!

- Ouve então tu. Não dizem grande coisa, mas a verdade é esta. Oh! Que formidável!

- Cala-te, idiota-interrompeu, áspero, o pai.

- Deixa-te de entusiasmos vulgares e barulhentos e realiza a verdade, nua, terrível: a tua mãe está na Normandia.

- Não está à beira-mar, pai.

- Avançarão. Meu Deus, pobre pequena! Por que a deixei partir? Na última carta não se referia a nada...

Isabel pensou:

"Referia-se... à sua saia branca, demasiado comprida, e à manteiga normanda."

João Morlainville passeava agitado, uma funda ruga vincada na fronte.

- Não a vou deixar lá. vou buscá-la. Isabel por favor, faz-me a mala. Parto amanhã.

- Sem prevenir no Ministério? - fez notar Isabel.

- Tens razão. Depois de amanhã...

Isabel fez a mala. Mas João não partiu. Só por motivo imperioso era permitido viajar na região ameaçada. Implorou um lugar no camião: ninguém consentiu em levá-lo. Então, roído de dor, inquieto, voltou a ser o homem taciturno, mudo, cuja tristeza projectara tantas sombras na adolescência de Isabel, quando ela não acreditava nem no amor nem na fidelidade de Jeanine. De novo Isabel se sentiu perdida, desolada, diante da espessa barreira que se erguia entre os filhos e ele.

E os acontecimentos militares continuavam a evoluir. Do Calvados não vinham notícias. Que teria acontecido a Jeanine, a Fani e às crianças? Nenhuma das duas era heróica. Debruçados sobre um mapa, seguiam todas as noites o avanço das tropas. Em breve, talvez, a onda engoliria as quatro por que temiam. A menos que lhes tivesse sido possível fugir... Mas para onde?

Erguiam-se duas terríveis interrogações sobre o mapa da Europa: Jeanine? Florêncio? Isabel sofria tanto pelo noivo que realizava agudamente a dor do pai. Ah! teria sabido encorajá-lo, ampará-lo, mas ele preferia desesperar sozinho.

E João-Lucas, que tinha uma paixão pela mãe, embora a julgasse com dureza, João-Lucas, apavorado, só, tornava-se intratável. No rosto do rapaz, Isabel lia mais do que desgosto: não buscaria no prazer baixo o esquecimento? Isabel desejava tanto que ele se mantivesse puro, integralmente puro, sobretudo nesses dias estranhos, trágicos e grandes! Mas, em lugar de subir, ele deixava-se debruçar, afundar. Isabel via, com tristeza, que ele acrescentava mais pecado ao pecado do mundo.

Assim ela, muito pura, fazia por ser mais pura, esquecendo-se de si mesma, renunciando à futilidade que tanto a prendera. Deixou de empoar-se, de avermelhar os lábios, tornou-se assim menos bonita, mais verdadeira e mais tocante. O sacrifício - tão mesquinho que ela achava ridículo - era grande. Porque o seu desejo era grande.

Uma tarde encontrou-se com Saint-Yvy:

- Sabe o que a Catarina anda a projectar? - perguntou-lhe, mal a viu.

Meu Deus, como a adorava!

Ela encorajava-o a abrir-se, pelo olhar e pelo sorriso. Inspirava tanta confiança, Isabel, sobretudo Isabel em uniforme! Uniforme que dá a quem o veste um caracter mais largamente humano... Falou, nervoso.

- A Catarina... Estávamos quase noivos. Eu sabia que ela nunca me amaria como amou a primeira vez... Sim, estou ao corrente. Contou-me tudo. Uma rapariga tão leal... Eu tinha-a aceitado, compreendido. É claro, aquilo representava muito sofrimento, mas quanta alegria! Viver junto dela... Até já andava a pensar no anel do pedido que ela queria diferente de todos. E, de repente, tudo mudou. Disse-me só: "Esqueça-me, Joel. Decididamente não posso casar consigo. Amá-lo-ia cada vez mais, a ele." Respondi: "Espero." Ela encolheu os ombros: "Mas eu é que não sei esperar. Quero ser feliz já. Portanto, vou-me." Mas vai para onde? Quer vê-lo de novo, tenho a certeza.

- Ver quem? O Estêvão Magloire? Mas ele está em África.

- Já não está. Escreveu-me fazendo compreender onde se escondia, à espera de novas. Cometi a imprudência de o dizer a Catarina.

- Magloire. com aquela idade... pronto a combater!

- Oh! É um apaixonado. E com um desgosto no coração, faz-se não importa o quê. Tenho a certeza de que ela vai ter com ele. Tudo acabou para mim. E, no entanto, estou certo de que a faria feliz.

- Não se pode ser feliz por imposição. Pensando noutra pessoa, não podia ser feliz consigo.

- Mas ele é um velho. Podia ser pai dela! E, depois, brusco, com uma vida inteira atrás. E ela tão nova, tão fresca! Uma rosa vermelha a abrir na madrugada...

- Poeta. Quadra-lhe bem, a sua imagem. Mas se a rosa vermelha não quiser florir no seu jardim

- Vai sufocar no dele.

- Vamos. Ela ama-o, encontrará nele o seu sol.

- Você, tão razoável, admite uma loucura dessas

Ela olhou-o com um olhar de mulher:

- Não sou razoável. Detesto que me chamem razoável. Eu amo, também.

E ele sentiu-se vencido. Suspirou:

- Apesar de tudo, confio-lhe a minha causa.

- Também? - respondeu ela, tentando rir. - Vocês vêm, uns a seguir aos outros, pôr os vossos negócios nas minhas mãos.

- Sabemos a quem os entregamos... Escute: se ela voltar desiludida, se reconhecer o seu erro, se aquele amor insensato lhe fugir...

- Sim, dir-lhe-ei: "Catarina, há um coração fiel que te ama e que te espera." Juro-lhe.

E ele afastou-se com lágrimas a bailar nos seus olhos claros de bretão.

 

DEBRUÇADA à janela, Catarina escutava a música do jardim. Para ela tudo se traduzia em música. Tardes de Junho, tão longas... murmúrios, cantos... Todo um pequeno mundo de aves, de insectos, palpita na alegria do Verão.

Catarina escutava o concerto dos humildes. Mais tarde, mais tarde faria dele uma sinfonia? Na sua alma de rapariga havia música, ainda sem ritmo. "Sentia" intensamente, mas não sabia pôr ordem nas suas sensações, nos seus sonhos, de modo a realizar um todo. Todavia, quantos músicos morreram jovens! Invejava-os.

"Eu ainda não soube fazer nada. Será por que o tempo corre duro? Talvez a arte precise de paz... Mas a paz, a paz é monótona. Creio que primeiro é preciso atravessar tempestades. E depois... oh! depois..."

Pensava na Sinfonia Pastoral onde a tempestade é seguida dum rebate de alegria através dos campos.

"Gostaria que a minha vida se parecesse com a Sinfonia Pastoral.

Então virou-se para a sala e, bruscamente, à maneira Morot-Léandre, declarou:

- Preciso de ir ver a avòzinha... É claro que me vão dizer: "Estás maluca... os comboios estão parados, as estradas vedadas, os aviões bombardeiam tudo..." Paciência. Quero partir.

Um silêncio. O pai pousou o livro, tirou os óculos e fixou a rapariga audaciosa cuja silhueta se recortava sobre o fundo dourado do céu. A mãezinha, deixando cair o trabalho, murmurou

- Nova invenção! Catarina prosseguiu:

- Não é preciso afligirem-se. Tenho pneus novos na bicicleta. Então, está combinado.

O senhor Morot-Léandre pôs-se de pé. Catarina avançou para ele.

- Esta menina tem um à-vontade! - murmurou. - Claro que não vais à Châtaigneraie num momento destes.

Catarina ergueu os lindos olhos apaixonados:

- Paizinho, estou neura. Deixa-me partir.

- Ocupa-te. Faz como a Solange que soube tornar-se prestável. Faz como a Isabel. Olha, essa não tem tempo para neuras!

- Oh! A Isabel é diferente de mim.

- Infelizmente.

- De acordo. Ela é benévola, delicada. E nota bem, paizinho - pensa no Florêncio. Também ocupa, esperar o noivo. Eu... uma vida estúpida. Paizinho, deixa-me partir. Acredita que estou neura. Quero ver o campo, os animais, a Châtaigneraie, a avòzinha. E, depois, quando me renovar, fazer como a Solange e a Isabel. Até aqui, nenhum trabalho me agradou. Preciso de reflectir. E de comer, também. Tenho fome.

A mãe olhava-a: pálida, abatida, a sua filha sempre tão forte! O ar puro far-lhe-ia bem. E, caso houvesse alguma coisa em Paris, quanto menos gente, melhor.

- Se não fossem as dificuldades e os perigos da viagem... -murmurou.

- Ora, a viagem Não te inquietes por isso, mãezinha. Levarei o tempo que for preciso. Estamos no Verão, sou desembaraçada e tenho ido acampar tanta vez! Não sou nada esquisita com o comer, como a Isabel, apesar das suas múltiplas perfeições. Sou uma autêntica cigana! Quem me dera viver numa roulotte!

O pai continuou em voz seca:

- Por agora, vai ensinar a lição de piano à tua irmãzita. Nós vamos reflectir.

- A Denise toca que é uma dor de alma. Os meus conselhos não servem de nada. Por que não há-de ela fazer um curso de dona de casa, já que o seu sonho é ter uma dúzia de filhos?

- Ninguém te pediu a opinião. Vai ter com a petiza.

- Não é ocasião de tocar escalas - replicou ainda. - É ocasião de ouvir a música do jardim.

- Vai, Catarina disse ternamente a mãe. - Tu sabes que esta tarde ela não pôde estudar; esteve a ajudar-me a fazer a conserva de tomate para os maus dias que podem vir.

Catarina partiu, balouçando a saia garrida no seu andar de cigana. Denise penava sobre uma balada de Chopin.

- Que mal que tocas - exclamou Catarina.

- Mas então tu não sentes nada?

- Claro que sinto. Mas as minhas mãos não fazem o que eu quero. Julgo que é de serem pequenas.

- Fraco pretexto. Mostra cá as patas. Eu, a Cigana, vou ler nelas o teu destino.

Os olhos brilhavam-lhe de prazer:

- Não, Catarina, - suplicou a criança - é muito indiscreto.

Mas a outra apoderara-se da mão inábil para interpretar Chopin e, com um ar inspirado, declarava

- Tem um aspecto de bebê, bochechinhas redondas, narizito arrebitado...

- Não fales do nariz.

- Narizito arrebitado, cabelos de anjo, conversa ingênua. Todavia, arde de amor. Sim, por um belo loiro.

Muito baixinho e vermelha, Denise perguntou:

- E ele, gosta de mim, senhora Cigana? "Pobre miúda!" - pensou Catarina.

- Por enquanto, não. Talvez que a venha a amar, um dia. Talvez venha a ser uma linda mulher. Mas é preciso pensar noutras coisas... No bacharelato.

- Detesto estudar.

- É um mal necessário, que quer? Precisa também de estudar o seu piano, passajar as meias, beijar muitas vezes o pai de família porque as outras filhas o irritam. Enfim, ser um amor, como a Liseron.

E abandonando-lhe a mão:

- Minha migalhinha de Denise, é muito cedo para amar, acredita. Faz mal, isto de amar.

- Mas é tão lindo - murmurou a irmãzita pousando a cabeça loura e encaracolada no ombro da mais velha, que lhe escutava o bater do coração demasiado sensível.

Por um momento quedaram-se assim, a tal ponto irmãs. Recordá-lo-iam sempre.

Mas Catarina, para sacudir a emoção, disse alegremente:

- A balada de Chopin, sou eu quem a vai tocar. Abre os ouvidos, burrinha querida!

Mas quando, extinto o último acorde, ela se voltou sobre o tamborete para dizer: "Hem, um pouco melhor do que tu", viu Denise em lágrimas. Correu para ela e, erguendo-lhe o rostozinho entre as mãos ainda vibrantes da execução apaixonada, murmurou:

- Não chores. Tira a coragem...

- Então não tornes a tocar Chopin - soluçou Denise. -Vês como o compreendo, como o sinto? Despedaça-me, cá dentro.

- Oh! A tolinha! E isto?

E abandonou-se a tocantes improvisos sobre o tema de "A Marselhesa". Denise escutava e o seu desgosto desvanecia-se, tornava-se pequeno, de segundo plano, em face da esperança imensa e da dor trágica da França. Os combates... os bombardeamentos... a ocupação inimiga... o cativeiro de Florêncio e os seus companheiros... Instintivamente pôs-se de pé. E Catarina, que a observava pelo espelho, ficou contente, De facto, nada como a música para renovar as almas!

- Que tal, agora?

- Oh! Que bem que tocas, Catarina! Invejo-te doidamente, eu, que nunca passarei de uma muLherzinha insignificante.

- Ninguém é insignificante, mosquito. Tu serás tu, como eu serei eu. Ouve, queres fazer-me um favor? O paizinho faz tudo o que lhe pedes. Diz-lhe que me deixe ir à Châtaigneraie.

- À Châtaigneraie? Ver a avòzinha? Oh! Leva-me!

- com certeza que não. Quebravas-te no caminho. Eu sou de talhe a viajar nestes tempos heróicos.

- Mas, então, diz-me... porque é que queres ir à Châtaigneraie?

- Porque quero ir à Châtaigneraie - respondeu altiva a Cigana.

E depois dum último acorde, foi-se embora. Pela casa ouviu-se o estalar das solas de pau ao longo da escada.

"Adoro este barulho-murmurou a Denise. - Se ela também se for, a casa fica tão triste! Ah! Que saudades que eu tenho do tempo em que éramos cinco a fazer barulho!"

E fazendo rodar o banco do piano para o pôr à sua altura, voltou à balada: a sua alma compreendia, mas as mãos, as mãos não iam em acordo com a alma...

E Catarina já vasculhava nas gavetas, preparando a mala.

"O paizinho? Há-de ceder. Desde o cativeiro do Florêncio que cede mais facilmente. E depois, a Denise faz-lhe meiguices e ele não sabe resistir. Que tola, a Denise! Gostar do João-Lucas, tão diferente dela. Se casar com ele, há-de correr o Mundo inteiro, ela que deseja uma vidinha "na sua casa". E ele não há-de ser um bom marido. Vi-o no outro dia, num bar, muito mal acompanhado. A Isabel saberá?... Bem, o que é que hei-de levar? O menos possível. Em casa da avó há de tudo, até cortinas velhas e lindas para fazer vestidos. E depois..." com ar Misterioso "depois"... Catarina sorri. Catarina canta.

"Podem bem deixar-me ir. Em suma, a Solange, que é dezoito meses mais nova do que eu, anda a correr estradas. E a Liseron leva o dia a ver e ouvir horrores. Acabou o tempo das meninas embrulhadas em papel celofane. Queremos viver. Oh! Viver..."

No dia seguinte o pai chamou-a ao escritório, e fez-lhe um interrogatório cerrado. Quanto tempo contava passar em casa da avó? Em que se ocuparia? E depois, que partido tomaria? Não queria tornar a ouvir uma rapariga de vinte anos dizer: "Estou neura", num momento daqueles. Umas férias na Châtaigneraie, fosse. Mas depois, ao trabalho.

"A Denise falou-lhe - pensou Catarina. - O paizinho está doce como açúcar. Querida Denise! vou dar-lhe a minha ração de chocolate."

Olhando o pai de frente, como se olhava em casa dos Morot-Léandre, declarou que contava descansar alguns dias em casa da avó, dormir sem alertas, comer à vontade, passear. Em seguida... pois bem! Não queria vir calafetar-se em Paris. Uma vez renovada, faria como a Solange: alistar-se-ia em qualquer serviço social.

- Como tu disseste, não se pode ter vinte anos e viver de pantufas.

A mãezinha escutava, tricotando, pouco segura. Admitia que a inacção fizesse sofrer uma rapariga tão ardente. Mas o coração... o coração inquietava-a. À queima-roupa perguntou:

- Disseste ao Saint-Yvy que tencionavas partir?

Catarina corou, o que a aborreceu.

- Não. Nem sequer pensei nisso.

- Então telefona-lhe e pede-lhe que te acompanhe até saíres de Paris. Ficarei mais sossegada.

- Como quiseres. Mas eu não preciso de ninguém.

Saint-Yvy, prevenido, aceitou com alegria a incumbência de velar pela partida da sua querida Catarina. Oh! Por que não lhe pedira ela que a acompanhasse até essa Châtaigneraie, paraíso tantas vezes evocado pelas Morot-Léandre e com que ele sonhava!

As duas bicicletas partiram a par. Porém, a dez quilômetros de Paris, Catarina deteve-se:

- A gente vai separar-se. Passe-me a mala. Amarre-a bem. Adeus, Joel. E obrigada.

Ele contemplava-lhe o rosto móbil, emoldurado pelas ondas leves do seu cabelo escuro. Afigurava-se-lhe mais bela do que qualquer outra mulher. Ela sentiu a admiração apaixonada de que era alvo.

- Oh! Joel - disse-lhe a rir, para afastar a emoção que a contagiava - você está morto por me beijar. Ande, dê-me um beijo.

Estendeu-lhe a face. Ele sonhava beijá-la nos lábios, mas esse beijo nunca experimentaria.

Adivinhou que a vontade dela lutava contra uma corrente de sensibilidade. Tanta emoção por ir para casa da avó!

- Catarina - murmurou - minha Catarina pequenina, minha tontinha, faz-me medo vê-la partir. De si, nunca se sabe o que há a esperar.

- Está a aborrecer-me-disse ela amuada.

E depois, sorriu: deslumbramento! Pousou na face de Joel a sua boca vermelha.

- Adeus, rapazinho tonto. E, rápida, afastou-se.

Joel ficou ali, desamparado. Uma última vez, o braço nu ergueu-se num gesto de adeus. Breve, Catarina se tornou apenas um ponto, sempre mais pequeno, até desaparecer.

Aquele arrabalde era feio, cinzento. Sensível ao cenário, como todos os artistas, ele sentiu vibrar dentro de si uma alma de criança abandonada. Então, dirigiu-se à igreja. E, só, diante da trêmula luz vermelha, falou, ao Senhor, da mulher que sonhava fazer sua e que partira sozinha sem que houvesse dito o que buscava.

 

PELA janela mal fechada vinha uma claridade baça. Nevava no campo de concentração, onde, presos pelos corpos, mas livres pelas almas, milhares de franceses, há quatro anos, esperavam a libertação.

Encostados à grande lareira apagada, dois pequenos fornos recebiam ar pela chaminé e enviavam, com um pouco de chama vermelha, uma nuvem espessa de fumo. Fornos? Caixas de conserva engenhosamente transformadas em aparelhos de aquecimento e sobre as quais cozia uma mistura de cheiro apetitoso.

- Eh! Morot-Léandre! - gritou uma voz vinda duma casa tipo beliche - toma conta do meu bolo de casamento.

- Tem confiança, pá - replicou o rapaz alto e esquelético a quem já ninguém chamava Florêncio. - No campo, as minhas irmãs e eu fazíamos maravilhas com esta receita, roubada à agenda da minha avó. É verdade que lhe misturávamos ovos, manteiga, tudo, enfim.

- Gulosas, as tuas irmãs?

- Depende. São quatro, sabes, cada uma no seu gênero.

- E a tua noiva?

- Hum, difícil, até; delicada, só gosta de coisas muito boas, má boca... Tinha uma criada velha que lhe estava sempre a ralhar. Ela respondia-lhe "Não faças de dragão." E a tua noiva, ou antes, a tua mulher?

- Não faço idéia. Pouco nos vimos. Escrevemo-nos, e, hás-de calcular, não gastámos o papel a falar nisso. Havia tanta coisa a dizer! Mas olha que cheira bem essa tua misturada!

- Misturada?... Se ao menos tivesse rum! E o teu creme de chocolate coze, Colin Não o deixes fugir.

Outro rapaz alto se avizinhou do segundo forno para vigiar a caçarola.

- Vai ficar uma maravilha! Se houvesse brioches para acompanhar... Em nossa casa servia-se sempre um brioche muito redondinho com o creme de chocolate. Os meus filhos já não os conheceram.

"Em nossa casa"... Todos cerraram as pálpebras. Oh! Voltar a encontrar "a nossa casa"!.

A "nossa casa" de Florêncio Morot-Léandre... A vivência de Passy, o seu jardim florido de rosas... A Châtaigneraie, reino da avòzinha, o cheiro a maçãs, as cortinas de cassa às ramagens. A casa dos Morlainville, com o quarto branco da noiva... E a casa do futuro, onde ela seria a esposa, a mãezinha... Já quatro anos de felicidade perdidos!

"Estou a tornar-me velho, selvagem, medonho" - disse consigo Florêncio, passando a mão pelo queixo mal barbeado. - "Se ela visse como estou sujo! Até piolhos tive!"

E depois declarou:

- Ouçam: para festejar o casamento do Garnier vamo-nos pôr bonitos. Não vamos jantar assim, de sapatos velhos e camisolas a cair aos bocados.

- Tens razão. É pena não haver noiva, nem damas de honor. É engraçado pensar que foi hoje o teu casamento com a linda Mónica. Sem ti, pobre rapaz! O teu irmão disse o "Sim" em teu lugar... Tens ao menos a certeza que ela te ama?

Um belo sorriso iluminou o rosto escaveirado:

- Adoramo-nos. E é uma rapariga às direitas. Nada no gênero da tua Isabel, Morot-Léandre. Uma desportiva, muito moderna, muito ousada. E ela que quer que eu fuja.

- Como é que tu soubeste?

- Há muitas maneiras de descrever aquilo que se quer sem que eles compreendam. Julgas que vou ficar aqui a apodrecer entre arames farpados, agora que casei?

- Também vou deixar a gaiola - disse Florêncio ajoelhado a provar o seu bolo. - Excelente, bem cozido. com um pouco de compota... É verdade, eu tenho compota caseira... Vocês, depois, dão-me a vossa quando chegar. Céus, não se celebra todos os dias o casamento dum companheiro! Será preciso cantar a "Marcha Nupcial", de Mendelsohn.

- Que idiotas! - disse uma quarta voz vinda de cima. - Casar! É ir ao encontro da desgraça.

- Cala-te, avô. Nem todas as mulheres são como a tua.

- Assim o espero, para vosso bem. A primeira coisa que faço, quando chegar, é pedir o divórcio.

- Não, Baudry - disse Florêncio pondo-se de pé com a caçarola na mão. - Isso não. Se tem erros a tua mulher, também, certamente, tem desculpa. Sozinha, sem filhos. Bonita... Sem religião sólida... Maus exemplos... Tu, que és mais velho, mais sensato, vais ajudá-la.

- Vejam lá o pregador!

- Não estou a pregar. Estou a dizer o que deve dizer quem é cristão. E tu és, Baudry. Podes rir à vontade, o teu baptismo tem-lo na alma, portanto... Quando voltarmos, as pessoas, olhando-nos de perto, perguntarão: "Estes tipos terão aprendido alguma coisa na gaiola? Não lhes faltou tempo para reflectir." Por mim, reflecti. Do que se passa em França pouco sabemos. Mas o que se passa dentro de mim, sei-o bem. A desgraça deve melhorar-nos. A França de amanhã depende de nós. Então tu não terias vergonha se começasses por demolir o teu lar?

- Faz lá o teu bolinho e deixa-me em paz resmungou o outro. - Olha que o forno está a apagar-se.

- Que catástrofe! Não tenho mais lenha.

- Tenho eu. Debaixo da minha tarimba há combustível que delicadamente extraí dos barrotes do tecto. Se esta espelunca for abaixo, paciência. Mais cedo ou mais tarde, se há-de ficar esborrachada num bombardeamento... Pega lá a lenha.

- Obrigado. Vai ficar uma delícia. Que cheirinho, meus filhos!

Todos se inclinaram para aspirar o apetitoso perfume, Mas empalideceram: tinham tanta fome!

- Ouçam lá - exclamou o noivo - têm que fazer uma saúde em honra do meu casamento. Quem é que há-de ser o orador?

- O mais velho, o Baudry.

- Não - declarou ele, secamente. - Um mal casado, até dava azar.

- Então um noivo, o Morot-Léandre.

- Sempre fui nulo em dissertação francesa; não sou o indicado. Tu, Rochebelle, o mais chique, o mais mundano.

- Esse falaria mal, é o único que tem o coração livre.

- Que sabem vocês disso? Este coração... Chantal, Rosa Maria, Isabel... todas o disputam. Disputavam-no... Julgo que agora me abandonaram para namorar qualquer menino bom que por lá ande. Ora, quando voltar, encontrarei outras.

- E se fosse o Colin a falar? Ele, um feliz chefe de família, o homem que é capaz de fazer creme de chocolate bem feito!

- Se isso te agrada... Mas vou chorar como um idiota. Quando penso na minha mulher, nos meus filhos, naquele que ainda não conheço... aí está, começo a chorar. O teu discurso de casamento vai ficar encharcado.

- As tuas lágrimas depressa gelarão, deixa lá. Que frio! Agora vamos ouvir as notícias.

As noticias... Donde poderiam vir, naquele quarto fechado e nu? Florêncio foi vigiar a porta. Baudry e Garnier escondiam com os corpos o vulto de Colin ajoelhado. Este, com um canivete, soergueu suavemente uma tábua do sobrado, depois outra; uma cavidade apareceu donde foi tirado o aparelho. Pô-lo nos ouvidos. E o elegante Rochebelle, pegando no seu bandolim, pôs-se a tocar uma serenata que abafava os ecos do mundo vindos através das ondas.

Momento solene. Cinco corações jovens batem apressadamente. Que irão saber? O país longínquo, tão longínquo, estará a passar por novos agravos, novos sofrimentos e humilhações Ou ter-se-ia reerguido, como certos rumores permitiam esperar? Erguer-se-ia em breve, liberto?

Quando Rolin voltou a colocar a galena no esconderijo, todos os oficiais se aproximaram.

- Então, já houve o desembarque? Não? Nada? Mas de que é que estão à espera? Já passou o Inverno.

- Acabaremos por sair daqui velhos de barba branca.

- Estarei lá daqui a dez anos para casar a minha filha?

- Que idiota! Hás-de assistir à sua primeira comunhão. Talvez até lá estejas antes. Os aliados avançam devagar. Têm razão. De resto, quem te impede de regressar aos campos?

Um silêncio. Essa palavra "campos", só por si, despertava a nostalgia. Um campo de trigo loiro, salpicado de miosótis e papoilas. Um campo onde se estende, muito branca, a flor dos honestos batatais. Um campo de couves, de sombras aveludadas. E a silhueta dum camponês que passa, guiando a charrua puxada por dois bois. Imagens da França.

Colin foi o primeiro a falar.

- Não, não o tento. Aqui vou ganhando a vida da minha família. Se eu for morto a tiro ou devorado pelos cães, quem é que há-de sustentar a minha mulher e os meus filhos? Vamos, já pensei o suficiente para conhecer a questão. Não tenho o direito de me expor. Vocês, é diferente.

Os cinco inseparáveis haviam-se reunido em grupo. E a imagem de Isabel tornou-se tão intensa que Florêncio esmagou uma lágrima com o punho.

Os outros quatro fizeram como se nada tivessem visto. E falou-se então de um lento, muito lento trabalho de toupeira começado há vários meses sob a direcção de um prisioneiro arquitecto, e graças ao qual esperavam evadir-se. Mas Florêncio, de mãos nos bolsos, a assobiar, pensava:

"Sob a terra Não. Não quero. Há-de ser ao ar livre que hei-de partir. As manas diziam tantas vezes "Este Florêncio consegue sempre desembaraçar-se." Ficavam furiosas porque, tirando a Catarina, nenhuma tinha tantos truques como eu. É uma bela ocasião de me desembaraçar. Oh! Sair daqui, estar de novo em França, voltar a ver a mãezinha, a Isabel!"

- Acaba com esse assobio. Estás a irritar-me

- disse Rochebelle.

- Sempre esses nervos, Excelência...

- Sempre. E tu também estás nervoso. Atingimos todos o cúmulo da impaciência.

- Não discutam. Cantem, antes. Oh! não importa o quê. Uma canção de França. Aproximando-se mais uns dos outros, cantaram. À noite comeu-se o creme de chocolate pensando na França. E Rochebelle fez uma saúde que queria ser engraçada, mas a voz estrangulou-se-lhe na garganta porque, julgando rir, chorara.

 

UMA manhã, na Châtaigneraie. Uma manhã - em que nada se passa. Mas sente-se, sabe-se que, além, se passam coisas. E os espíritos esperam, em silêncio.

Inclinada sobre as roseiras, a senhora Honorat rega-as como costuma regá-las todos os dias. Ama as rosas mais do que qualquer outra flor do seu jardim. Ama-as como se ama as pessoas com que as compara.

- Que delicada esta, dum branco levemente rosado: é a Isabel. Esta, vermelha, a Catarina. Aqui está a Solange, dum cor-de-rosa vivo... se bem que digam que se está a tornar tão sensata, a nossa Solange. Aquela além, a minha grande Noelle, aquela rosa-chá que tem um perfume tão são. Quando tornarei a ver as minhas netinhas? Já se passaram cinco anos sobre as suas últimas férias na Châtaigneraie. Devem ter crescido muito. E a minha filha, jà terá cabelos brancos?

E depois pensou no Florêncio, aquele em quem pensava constantemente.

- Um garoto; no dia do seu noivado, aqui, meu Deus, que contente ele estava! Agora, um homem endurecido pela vida de prisioneiro? Usará barba? Deus queira que não. Tem uma boca tão bonita, trocista e sensível, com aquela fileira de dentes brilhantes. Terei feito bem em lhe mandar o que pedia para fugir? Meu Deus, protegei-o! Aceitai a minha vida no lugar da sua. Todavia... ah! não queria morrer sem o tornar a ver. Meu Deus, deixai que viva até esse dia! Queria reuni-los à mesa, uma última vez, e servir-lhes os pratos de que mais gostavam. E uma torta enorme! E creme. A Isabelinha gosta tanto...

Endireita-se. O esforço de pegar no regador magoa-lhe as costas que os anos curvaram. Olhai; ao longe. Que se estará a passar nesse momento? além O tempo está lindo. Uma manhã para se ser feliz, com um vestido de algodão e um chapéu de palha. Mas quem é que é feliz? Pobre gente nova que não pode trabalhar, nem divertir-se, nem amar como outrora! Suspira pensando nos netos. E, depois, sorri pensando na sua vida de esposa. Que bom marido tivera!

Já não se ouvem apitar os comboios. Já não passam. O viaduto que passava sobre o vale fora quebrado em dois por um bombardeamento. Apenas os sinos, três vezes por dia, quebram o silêncio. Repicarão em breve a anunciar a vitória, como em 11 de Novembro de 1918? Já ali vivia e esperava o marido. Espera-se sempre alguém, alguma coisa...

Mas... a campainha duma bicicleta? Não é a hora do correio!...

Presta atenção àquele timbre que parece divertir-se a fazer música. Dantes, os pequenos gostavam de tocar assim a campainha. Mas os pequenos, os pequenos...

O barulho aproxima-se. Estará a sonhar? Uma voz grita:

- Avòzinha! Avòzinha!

É uma voz Morot-Léandre. Qual das netas Já não sabe. Entorna o regador, corre e vê uma rapariga alta e morena.

- Catarina! Minha querida...

Naquele momento parece-lhe que é Catarina a sua preferida. Oh! Abraçar alguém da sua família!

- Donde vens? Assim, sozinha? Onde é que dormiste? Comeste?

Catarina deixa-se cair sobre o banco verde:

- Avòzinha, estou quase morta. Venho de Paris. De bicicleta, pois com certeza. Já não há comboios. E de resto, cada vez que se quer viajar por caminho de ferro é preciso um nunca acabar de autorizações e tem que se andar em bichas, como para comprar as coisas. Onde é que dormi? No feno, bem escondida. Porque, tu sabes... há aldeias a arder, na tua província, e gente fuzilada, enforcada. Avòzinha, estou suja, repugnante, cheia de fome e de sono. Queria água, muita água... Uma grande chávena de leite e uma cama. Oh! Leite! Fartei-me de pensar nele, pelo caminho. Há tanto tempo que o não provamos! E a água... começam a engarrafá-la, em Paris: caso aconteça alguma coisa...

- O teu pai deixou-te partir?

- Oh! Primeiro disse que não, mas desde que o Florêncio foi feito prisioneiro que ele acaba sempre por ceder. A Denise encarregou-se do negócio. Sim, sim, está boa, estão todos bem. Quero dizer, os pais estão magros, a mãezinha tem os olhos muito encovados. A Noelle e o marido fartam-se de trabalhar num dispensário. A Solange? Ninguém a vê; anda a correr a França em carros da "Cruz Vermelha". A Denise continua a estudar sem entusiasmo. Diz que a vida é demasiado agitada para que se possa ter interesse pela história dos Gregos e dos Romanos. E, lá isso, é verdade. Os Gregos e os Romanos? Uns lingrinhas ao lado da gente de agora. A Isabel? Sempre linda, fina, distinta, exactamente ao contrário de nós. Passa o dia junto dos sinistrados e junto da madrasta, quando, à noite, chega a casa. Felizmente que ela se foi com a Fani e os miúdos. Sempre é um grande alívio para a Isabel. A Maçã e o marido? Três garotos. Uma mão-cheia de felicidade, empoleirada em Montmartre, que a senhora Morlainville declara "mesquinha". Vê lá tu, avòzinha, como se a felicidade pudesse alguma vez ser mesquinha E depois bocejou

- Estou cheia de fome. E que sono...

Ao ver a avidez com que a neta bebia o leite, a avòzinha comoveu-se:

- Então, nunca bebem leite em Paris, minha querida? Onde é que queres que te façam a cama?

- No quarto de antigamente! - exclamou Catarina com paixão. - No "quarto das raparigas". Quero reviver o passado, avòzinha.

- O passado! Tu és tão nova!

- Não, sou velha como o judeu errante murmurou pousando a cabeça desgrenhada no ombro da avó; ombro redondo, macio. Oh! como se sentia ali bem!

Mas, numa pobre vozita dolente:

- O meu cabelo está cheio de pó. vou sujar o teu lindo vestido lilás. Estou tão satisfeita por ainda o teres! Ainda bem que não pudeste comprar vestidos novos. Avòzinha, não imaginas como eu precisava de te tornar a ver! A ti e às coisas...

A avòzinha sentia o bater apressado do coração da criança apertada contra si. A mais ardente das quatro irmãs.

- Seria maravilhoso adormecer assim - suspirou Catarina. - Se eu ainda fosse bebê, deitava-me nos teus joelhos. Dá-me os lençóis para ir fazer a cama. Lençóis que cheirem a sol e a prado.

Em breve dormia, a Catarina...

E a avó, a fazer um bolo na cozinha, perguntava a si própria a razão dum tal desejo de "tornar a ver as coisas"...

- Já acordada, riquinha? Estás tão bonita!

- Descobri um vestido que cá tinha deixado, no armário. Aquele de que mais gostava, o meu vestido de Cigana. Eu bem sabia que havia de cá encontrar tudo que precisava. A mãezinha queria que eu trouxesse um monte de coisas. Mas eu disse: "É inútil. Há de tudo na Châtaigneraie. Nem sequer hei-de abrir a mala."

A mala... para ir aonde? A senhora Honorat não o perguntou.

Como se sentiu feliz tendo a seu lado a juventude da neta! Que bom era vê-la em frente de si, à mesa, e ouvi-la contar histórias a respeito da família, dessas histórias de todos os dias, mas a que Catarina dava relevo e cor! Aquela rapariga, que vivacidade possuía!

- Continuas a dedicar-te à música? - perguntou a avó.

- com certeza. É o meu elemento, a música.

- Ainda tens o mesmo professor? Chamava-se... Ah! Sim, Estêvão Magloire.

Um silêncio. Sob a pele mate, a Cigana corou.

- Já não deve ser novo - fez notar a senhora Honorat. - Começou a ser conhecido no fim da outra guerra.

- Há pessoas que se mantêm indefinidamente novas. Artistas, não envelhecem.

E, precipitadamente, falou daqueles que todo o mundo conheceu como eternos jovens.

- E os poetas, gozam do mesmo privilégio?

- perguntou a avó. - O senhor Morlainville mantém-se novo?

- Não. A mulher gasta-o. Ele adora-a e ela gosta dele. Mas isso não é amor. Duvido até que, no fundo, lhe tenha algum amor. Avòzinha, é tão estúpido estragar assim a vida a um homem! Eu acho que a gente se deve sentir orgulhosa de o ajudar a ser plenamente belo. E aquela pateta da Jeanine pensa unicamente na glória, no dinheiro e no renome que possa ter a "linda senhora Morlainville", esposa de Romain Villanel. Partiu furiosa por ele ter recusado participar num negócio um tanto sujote que lhe propôs o genro Bastien, o marido velho da Fani, aquela Fani que vale um pouco mais do que a mãe, mas que nunca chegará aos calcanhares da Maçã ou da Liseron.

- Meu Deus, Catarina, como é que soubeste tudo isso?

- Adivinhei. Sou Cigana. E, além disso, oiço, vejo. Há tanta gente que nada vê, nada ouve! A mim, a vida apaixona-me, a dor dos outros e a minha. Por isso...

À tarde, Catarina deu um passeio de sonho.

Quis voltar a ver tudo. A cor e a alegria das coisas penetrava o seu coração, que se tornara sensível até ao infinito. Deu, sozinha, os passeios que dera com os outros, naquele tempo em que Noelle arrastava um desgosto de amor, em que Solange era uma pestezinha, Denise a boneca das grandes, naquele tempo em que Florêncio se enfurecia, repetindo: "Quero um avião e a Isabel."

Admirou-se ao sentir uma saudade imensa, estranha, invadi-la.

"É sinal de que estou a envelhecer."

Como outrora, cantou a plenos pulmões, no vale verde, aquele vale que sempre lhes lembrava o de Lamartine.

Tomou banho na ribeira. Estendeu-se na erva. Trincou as flores. Contemplou as formigas. Sonhou, de olhos no céu. Chorou, com a cabeça escondida nos braços. Rezou, â sua maneira de Cigana, pedindo que se fizesse, não a vontade do Senhor, mas a sua.

Ouviam-se ruídos inquietantes: o roncar dos aviões... descargas de metralhadoras... detonações.

"A avòzinha disse-me mais de cem vezes para não ir para longe. Deve estar cheia de medo... Eu não estou..."

Tirou da algibeira um bilhete postal, já antigo, com algumas linhas escritas numa caligrafia estranha, incerta e assinada "Estêvão", simplesmente. Linhas curtas, traçadas rapidamente sob o peso duma emoção. A essa Catarina que tanto amara e a quem fugira, enviava uma última mensagem "antes da hora do perigo". E Joel Saint-Yvy revelara à Catarina impaciente, ansiosa, que Magloire regressara ao Sul da França para aí esperar o desembarque das tropas de África. Joel - que estava ao corrente, sem dizer como - hesitava em revelar o que sabia à Catarina.

- Mas você toma-me por espia? - perguntara-lhe ela com os olhos em chama. - Um segredo dele, guardá-lo-ei sempre!

Então, ele revelara o segredo do mestre, mas contra vontade. Oh! Não por receio de indiscrição ou de imprudência, mas porque ia arriscar-se a ver desperto o amor que julgava extinto. Ora, Catarina sempre amara o mestre. Joel atraíra-a um momento, porque era novo, porque a amava e porque ela precisava de amor.

Mas um coração de fogo não se contenta com "porquês"...

Catarina estava cansada de tentar esquecer o mestre. Nunca o conseguiria. Era velho? De caracter difícil? Que importava? O seu gênio musical, as cambiantes do seu pensamento amadurecido pela vida, a sua sensibilidade apaixonada, tudo ela amava. Ela seria a sua juventude, a sua alegria. E, já que deixavam que Solange fosse para os pretos como religiosa, por que motivo a impediriam de seguir a sua vocação?

E quando a Noelle disse: "Quero ser médica", também o pai não gostou. No entanto, é médica. Então?"

Sentou-se, cruzou as mãos em volta dos joelhos, cantarolou algumas partituras de Berlioz, para ganhar heroísmo. E depois, num belo riso:

"Já que o Joel me disse onde ele se escondia, vou lá ter. Velarei por ele, ajudá-lo-ei. E acabará por decidir casar comigo. Nunca serei feliz, nem boa, casada com outro. E quanto a ficar solteira, não, conheço-me bem, não tenho feitio."

A erva era alta, doce, perfumada.

"Afigura-se-me que também eu sou uma planta, e que a juventude da terra me penetra. Como é belo, ser nova! Mas pesado, quando não sabemos o que fazer da nossa juventude. Uma juventude insípida como antigamente, não quero. Enjoa-me. Quero coisas difíceis, perigosas. O Florêncio adorava esta frase de Claudel: "A juventude não é a idade do prazer; é a idade do heroísmo". Eu não compreendia; a Liseron, sim... Agora, compreendo... Demorar-me-ei aqui alguns dias, para descansar. E, sobretudo, rejuvenescer a alma junto do velho coração da avòzinha. E, depois, voltarei à minha bicicleta. Irei... lá onde ele se esconde. Passearei pôr toda a parte a cantar aquela canção de embalar que compôs para mim e só eu conheço. E ele há-de vir e hei-de ajudá-lo. Oh! Não vou fazer nada de mal. Hei-de ser sempre uma Morot-Léandre completamente pura. Por que não? Quero poder dizer aos pais, um dia: "Sou sempre a vossa rapariguinha."

Voltou para casa. A avòzinha esperava-a, sentada no banco verde, a trabalhar. Catarina ajoelhou-se junto dela e, olhando-a bem nos olhos, aqueles olhos que continuavam jovens, sob as pálpebras enrugadas:

- Avòzinha, passei um dia maravilhoso! Vês tu, eu trazia uma tal sede de Châtaigneraie e de ti...

- Sim, filhinha - respondeu com simplicidade a mulher.

Um silêncio. E, depois, Catarina continua, mais baixo:

- Quando tinhas a minha idade, alguma vez sentiste que o quadro habitual da tua vida era demasiado estreito, que sufocavas dentro dele?

- Não... Eu amava a vida de todos os dias, com o meu marido, os meus filhos. Como a Isabel a amará, junto do Florêncio. Vocês, as netas, são terríveis.

- Não é nossa culpa. O nosso coração é assim.

- Rosa vermelha! - disse a avòzinha, abanando a cabeça.

Então, ela pôs-se de pé dum salto e, a rir:

- Olha, conheço uma pessoa que também me chama rosa vermelha. Oh! Posso bem dizer-te quem é: um rapaz que me adora, o Joel Saint-Yvy... Não, eu não gosto dele, avòzita.

Se imaginas que se pode gostar por encomenda... Ele é muito bom, mas...

- Catarina, Catarina - murmurou a senhora Honorat, com tristeza - fazes-me medo.

Ela beijou-a...

Dias mais tarde, Catarina amarra a sua pequena mala ao porta-bagagens. E, olhando em redor de si a paisagem encantadora e calma:

-Até à vista, avòzinha! Até à vista, Châtaigneraie!

- Diz-me aonde vais. Quero sabê-lo. Não és maior. Proibi que partisses...

- Oh! Não fales à moda de senhora dos tempos idos! Vivemos num tempo extraordinário. Toda a gente faz alguma coisa. Eu vou-me embora... De resto, também tu tens um segredo. Vamos, não cores, pobre avòzinha querida. Tu sabes que a Cigana adivinha tudo. Se o Flô voltar, será graças a ti. Dá-me um beijo. E reza por mim.

Já se afastava. Voltou-se uma, duas vezes, e a senhora Honorat viu o braço nu que se recortava sobre a verdura, num gesto de adeus. E a avó, com a mão em viseira sobre os olhos, seguiu por muito tempo aquele ponto escuro que acabou por desaparecer, como desaparecera para Joel Saint-Yvy. A passos lentos regressou à casa cheia do reflexo verde da folhagem.

- Devia tê-la fechado em casa. Mas partiria na mesma... Estes pequenos vivem num tal caos que o bom-senso nenhuma influência tem sobre eles. Que Deus a guarde, à nossa Cigana. A caminho, também ele. Florêncio... onde estás?

Os outros são bem felizes" - pensava Isabel, encostada à balaustrada do terraço. - "Vão para onde têm de ir e caminham a direito. Mas então, eu hei-de ser sempre assim, incerta, repartida "

O crepúsculo era belo. Uma auréola ao cimo da avenida. Um vento ligeiro refrescava-lhe os braços nus.

Soubera-lhe bem, ao voltar do Centro Social, trocar o uniforme azulado por aquele vestido claro, e censurava-se por isso lhe ter dado alegria.

"O meu fato de trabalho? Deveria amá-lo tanto que nunca me apetecesse tirá-lo. Esta repugnância pela sujidade, pela fealdade, pela grosseria, não devia senti-la, visto que sou assistente social. E também não é bom que me agrade voltar a ser uma menina cuidada e elegante, sempre que chego a casa. Faço o que é preciso pelos infelizes e amo-os. Sim, amo-os. Mas não me dou inteiramente, como as Morot-Léandre, que esquecem tudo por qualquer coisa que tenham em mente. Eu penso sempre no resto. Oh! Quando chegará o momento em que, mulher do Florêncio, o meu dever será simples, nascido directamente do meu amor? Se o perdesse, ao Florêncio, certamente não ficaria no mundo. É complicada de mais esta vida! Faria como a Solange."

João-Lucas aproximou-se bruscamente da irmã. Um João-Lucas nervoso, ela sentiu-o.

- Que lindo pôr-de-sol! - disse ela.

- Não está feio. Mas falemos de coisas mais interessantes. Precisas dum vestido novo? Seda natural, minha querida.

- Não preciso; estou sempre de uniforme.

- Excepto de tarde. Dizes que é para dar prazer ao paizinho, mas eu creio que é a ti que dá prazer. Não cores: toda a gente sabe que és vaidosa. E cigarros, queres?

- Não fumo. O tabaco enjoa-me.

- Então, e chá Verdadeiro. Tu, que adoras o chá...

Isabel olhou-o: perfil duro, cerrado.

- Tu, meu velho, tu... andas a fazer mercado negro.

- Como toda a gente. Compro. Vendo. Assim, tenho dinheiro no bolso sem precisar de pedir ao pai. Não tomes esse ar desdenhoso. Tu ganhas, percebes... Sabes a que preço está a manteiga?

- Não há necessidade de a comprar visto que a mãezinha não está. E depois, detesto o mercado negro.

- És uma bota de elástico, minha pobre Isabel. Nunca saberás desembaraçar-te. És bem a digna filha do teu pai, o eterno ingênuo, que toma UnS ares de imperador romano para condenar os astuciosos negócios do genro. Tenho pensado muito nisto, depois que a mãezinha partiu. Falei sobre o caso com gente bem informada. Absurdo, o que ele fez. Fui ter com o velho Paulo. Encantado por ter um rapaz sob as suas ordens, tem-me feito participar em óptimos negócios. Mas eu também o ajudo. Oh! Oh! Aí temos a minha querida mana zangada. Há tempo que não tínhamos ocasião de gozar o espectáculo! Mas quando a menina Isabel Morlainville se zanga, torna-se carmesim até à ponta desse encantador narizito. É de estoirar de riso!

- Há de que me zangar. Repugnas-me! Traficar desse modo num momento em que apenas devias pensar na França, na situação. E na mãezinha...

Silêncio. E depois, um riso, um tanto forçado:

- A mãezinha aprovar-me-ia. Não é uma idiota como tu. Vamos, continua a enternecer-te com o pôr-do-sol. E vai compondo versos, enquanto aí estás. Boa noite.

Ia-se embora. Mas Isabel agarrou-o pelos ombros, olhando-o intensamente:

- João-Lucas, estás a fingir-te mau. Tu sofres. Debates-te contra qualquer coisa, ou contra alguém.

Um instante, as pálpebras do rapaz esconderam esses lindos olhos, iguais aos de Jeanine. Mas, brusco, desprendeu-se:

- Deixa-me em paz. Não armes em assistente social comigo. Não pega.

Voltou à sala. Isabel ouviu a voz do pai que interrogava:

- Uma zanga?

- A Isabel é estúpida. vou sair.

- Onde vais a esta hora?

- vou sair - repetiu o rapaz.

E, em breve, Isabel o avistou subindo a avenida a passos largos. Talvez fosse dançar. Dançar num tal momento! Oh! Como a juventude era tentada! Dum lado, o heroísmo, o gosto pelo perigo; do outro, o gosto pelo dinheiro, pelo prazer. Como é que se podia amar o dinheiro?

E, depois, encolheu os ombros. Estava-lhe muito bem, censurar os outros! Ela que continuava tão incerta como antes e nem mesmo era capaz de se dedicar sem um gesto de recuo.

"O Florêncio repetia muitas vezes aquela palavra de Guynemer: "Quando não se deu tudo, nada se deu." É difícil dar tudo, quando se está agarrado à esperança duma felicidade pessoal."

Voltou à sala já envolta em sombras, enquanto a oeste o céu era escarlate. Para dizer qualquer coisa, falou do crepúsculo purpúreo.

- Devias ir ao terraço, paizinho.

João não a ouviu. Tinha um mapa estendido diante de si. Ergueu os olhos para a filha, que se impressionou ao ver como estavam encovados.

- Avançam pela Normandia. Achas que a tua mãe tenha tido tempo de abandonar esta zona ameaçada?

Então ela inclinou-se com ele sobre o mapa, traçando o caminho por onde avançava a corrente inexorável, e os caminhos pelos quais Jeanine, Fani e os pequenos teriam podido afastar-se. Mas ele impacientou-se:

- Não percebes nada de estratégia. Nem eu, tão-pouco. Somos uns sonhadores, vivemos na Lua. Nunca deveríamos tê-la deixado partir.

Empregava sempre o pronome "a", como se apenas Jeanine estivesse em causa. Isabel, que via também as cabeças louras das crianças, respondeu no plural:

- Se Paris for sitiada, estarão melhor no campo. E tu sabes bem como eles precisam de leite, manteiga, carne: tudo o que, cada dia, nos vai faltando mais.

Ele suspirou:

- É verdade. Tu, filhinha, sofres tantas privações!

- Oh! eu...

Olhou-a, à sua filha: alta, delgada, bonita,

no seu vestido de linho cor-de-rosa, a cabeça coroada de caracóis brilhantes. Reparou como emagrecera:

- Tu? A tua vida é preciosa. Tens que manter-te forte, para o Florêncio.

- Sim. No entanto, não gostaria de ser feliz, de me alimentar bem, enquanto ele sofre como está a sofrer.

- Porque sabes amar.

- É tudo o que existe de bom, amar. O resto? Paizinho, não achas triste que haja tanta gente que apenas pense em comer, em divertir-se, enquanto a França é toda um campo de batalha e os seus melhores homens estão prisioneiros? Há nisto qualquer coisa que me perturba horrivelmente. Não queria censurar os outros. Mas...

Um silêncio. Ambos seguiam o seu pensamento, incertos, aos apalpões. João foi o primeiro a falar, lentamente:

- Pode-se, deve-se censurar certos actos. Censurar as pessoas? É difícil... Ignoramos o todo da sua vida, o todo da sua alma... Há quem diga que certos rapazes tomam propositadamente um ar desprendido. Em segredo, trabalham pela França.

Isabel perguntou a si mesma:

"João-Lucas será um deles? Mas por que razão é tão duro, tão mau? "

Sentada no braço da poltrona do pai, fazia por que ele sentisse a suavidade duma presença feminina. Ele, porém, distraído, indiferente às atenções gentis da filha, pensava em Jeanine. Isabel sentiu-o e afastou-se tristemente.

- Olha, há cartas para ti. Nada da mãezinha, com certeza.

- Nem podia ser. As comunicações com a província estão quase totalmente cortadas... Oh! Paizinho, que notícia!

Ele sobressaltou-se:

- Dizem-te alguma coisa da Normandia?

- Não, não... É a Irmã do convento onde mora a Rosa quem me escreve. A Rosa está na prisão.

- A Rosa presa! - repetiu João.

- Oh! Adivinho o que se passou. Ajudou alguém a esconder-se e foi denunciada.

- Mas quem a denunciaria? Uma rapariga pobre e tão boa não podia ter inimigos.

- Podia, sim. Em todas as casas onde tem trabalhado a invejam pela sua beleza e pelo sucesso que fazia. A Rosa, a Rosa presa, ela, tão pura, tão fina! E sabe Deus com quem estará misturada!

- Também ali ela fará bem, Isabel. Escuta... não devemos desejar um destino medíocre para almas tão elevadas. A Rosa Martin, a pescadorazinha normanda... a caixeira duma perfumaria de luxo, é das maiores almas que tenho conhecido.

Ela não se admirou. Recordava. E também ele recordava:

- Numa hora em que a minha consciência cegava, foi ela quem, pelo seu exemplo, simples e grande, me devolveu a luz.

- Sim, e o teu exemplo fez que a Fani voltasse ao bom caminho. A Rosa nunca o suspeitou.

Isabel já não chorava. Sonhava com o passado.

O pai levantou-se.

- Vai dormir, minha querida. Sais tão cedo todas as manhãs...

Oh! Chamara-lhe "minha querida"... Num salto ela estava junto dele, envolvendo-lhe o pescoço nos braços. E ele sentiu-se quase feliz. Isabel, tão diferente de Jeanine, dava-lhe não sei que paz, Bastava que, como naquele momento, encostasse a cabeça ao seu rosto. Suspirou.

- Invejo-te por fazeres serviço social. É tão ingrato o meu trabalho de burocrata!

- Mas, e os teus versos, paizinho? Os teus versos entram-nos cá dentro. Não podes calcular quantas pessoas eles incitam a fazer coisas maravilhosas. A mim tem-me ajudado tanta vez!

- Achas que ajudam o teu irmão? Já não consigo compreendê-lo.

- Eu estou convencida de que ele vale mais do que quer mostrar. Boa noite, paizinho. Talvez recebas notícias amanhã. E vai para a cama. Deitas-te sempre tão tarde.

Mas sentiu que ele não conseguia decidir-se a ir para o quarto vazio, para aquele quarto impregnado do perfume de Jeanine.

Ela, de olhos cerrados, tentava idealizar o quarto grosseiro onde Florêncio dormia, nessa noite de Junho. Passá-la-ia ainda no campo de concentração? Onde estava? Grande silêncio, opressivo, terrível. Meu Deus, contanto que o não tenham morto...

A essa hora, num bar de Montmartre, uma rapariga, empoleirada num alto tamborete, anunciava, em voz baixa, à companheira:

- Pois aí a temos na gaiola, àquela linda presumida. Sabes perfeitamente, a Rosa Martin, aquela grande, loura, que faz os homens doidos, com os seus ares virtuosos. Já estava farta das suas manigâncias! Espiei-a e descobri que a menina fazia "resistência", como agora se diz; escondia refractários, seus apaixonados, certamente, uns a seguir aos outros. Uma linda cartinha anônima e pronto, foi apanhada.

- Fizeste isso? - perguntou a outra, pousando o copo.

- Fiz, pois! Engraçado, não? Eh lá! Que tens tu, Jôjô?

- Repugnas-me! Oh! o que tu me repugnas!

- Ficam-te bem esses grandes ares. Para quem sabe a vida que levas, com a tua idade...

Muito nova, Jôjô estava já murcha. Mas, no rosto cansado, uns olhos imensos, cor de violeta, punham uma estranha nota de frescura.

- A vida que levo? É igual à tua. Mas nunca denunciei ninguém, eu. E a tua Rosa, a tua Rosa Martin, embora a não conhecesse, agradava-me; admirava-a por ter mantido uma vida tão limpa. Olha, toma para ti, Judas!

E deu-lhe uma bofetada. Puseram-na na rua, e ela caminhou na noite de Verão, indiferente aos apelos dos transeuntes. O seu coração de pobre rapariga sentia-se loucamente atraí da para essa Rosa, essa rapariga linda e pura, odiada porque era linda e porque era pura.

E Rosa, deitada no chão duma cela infecta, Rosa, que apanhara pancada, cruzava os braços sobre o peito dorido:

- Meu Deus, agradeço-vos por terdes permitido que sofresse como tantos outros. Meu Deus, preservai-me do pecado neste horrível lugar. Meu Deus, visto que viveis em mim, fazei que os outros Vos sintam viver.

A seu lado, criaturas miseráveis lastimavam-se, ralhavam, ressonavam, blasfemavam. Na alma da Rosinha havia uma festa.

 

ERA o dia de folga de Isabel. Não correu bem, aquele dia. O pai voltou para casa nervoso, irascível. Em vão tentou serená-lo, dar-lhe motivos de confiança.

- A mãezinha e a Fani, com certeza que conseguiram fugir. Devem tê-las ajudado: duas crianças, sabes, obrigam-nos a ter expediente. A Fani é enérgica...

Então, secamente, ele replicara:

- Podes falar, tu. Não é tua mãe. E não a amas. Nunca a amaste.

Partira, batendo com as portas, deixando Isabel trémula de desgosto, naquela sala onde ainda flutuava o perfume de Jeanine.

Oh! Aquelas palavras, aquelas palavras nunca pronunciadas e que pareciam haver cavado um abismo intransponível entre o marido de Jeanine e a que era apenas "enteada".

- Todavia, eu gosto dela; fiz-lhe tudo quanto pude. O pai é injusto. Engana-se. Julga-me mal. O seu nervosismo fá-lo perder a razão.

E depois pôs-se de pé:

- Pois bem, não, não se engana. Não sou realmente amiga da pobre Jeanine. O meu coração nada tem de comum com o seu. Nunca me fez sofrer voluntariamente, mas também ela me não soube amar. Nunca pudemos fundir-nos uma na outra. E o paizinho sente-se o único a sofrer a fundo por ela e isso fá-lo ainda mais infeliz. A quem hei-de contar isto? Ao João-Lucas? Não. O João-Lucas adora a mãezinha e não quero que ele suponha sequer que existe entre nós duas um desentendimento secreto. A senhora Morot-Léandre? Não. São assuntos de família. vou ver a Teresa, a minha boa e sensata Maçã.

Quis tomar o metropolitano mas as sereias deram o sinal de alerta, fazendo parar o trânsito. Só lhe restava ir a pé até Montmartre, desde que a circulação nas ruas fosse tolerada. Paris inteiro a atravessar. Mas ela gostava tanto de Paris! Atravessou os Campos Elísios onde despertavam alegres recordações pueris: os cavalos de pau, os fantoches; e recordações frescas da adolescência. Quando, oh! quando veriam de novo a bandeira tricolor hasteada?

Os outros caminhavam apressados como ela, pés nus nas sandálias usadas por longas marchas nesses dias de desordem. A basílica do "Sagrado Coração" impunha a sua alvura lá em cima, atrás dos telhados, desenhando-se sobre um céu ameaçado de tempestade. Subiu, olhos levantados para esse sinal de espiritualidade erguido ali por franceses a seguir à primeira dessas três guerras que formavam apenas uma.

- "A basílica consagrada ao Amor vela por Paris" - dizia consigo. - "Não, Paris não será destruída como o foram outras cidades. Não é possível."

O vento de Verão soerguia-lhe os cabelos, alargava as pregas da sua saia leve. Como sempre, pensava em Florêncio: era triste e, ao mesmo tempo, era doce. Pensava também em Jeanine: isso era só triste.

"Sinto-me sempre triste quando penso nela. No entanto, não é má. Mas tem tão pouca, tão pouca alma, pobre mãezinha excessivamente linda! Como é que o paizinho, que é só alma, a pode amar tanto? Mas não, não é só alma. Amou Jeanine pelo seu rosto admirável, pelo seu corpo de estátua. Para se tornar um artista, um poeta, precisou do amor duma mulher. E talvez os sofrimentos, as decepções que ela o fez experimentar o prendessem tanto quanto as alegrias. Dantes, eu julgava o amor unicamente espiritual. Agora sei que é também material. Gostaria de o ignorar por mais tempo... até ao regresso do Florêncio. Seria ele a explicar-me a vida. Todavia, não lamento que a minha profissão me tenha dado uma certa experiência humana: sinto-me assim mais unida a toda essa gente que ama, que sofre. Mas o Florêncio não irá sentir saudades da sua Liseron de outrora ?

Um homem cruzou-se com ela e dirigiu-lhe palavras audaciosas. Ela sacudiu os ombros para afastar a perturbação que a dominava. Sofria.

Longo caminho. Passado o alerta, as lojas reabriam. As pessoas voltavam aos seus negócios. E falavam todos do que se passaria lá longe.

- Onde estão? Combatem perto de Saint-Lô, duramente... Grande avanço ontem... Parece que isto vai depressa... Está tudo incendiado.

Tudo incendiado... Meu Deus! Jeanine e Fani, Edite, Guy. Oh! Sobretudo a pequenina Edite, aquela riquinha que lhe revelara a alegria de apertar contra si o corpo macio e tenro duma criança.

Quando subia o declive do "Sagrado Coração", deteve-se para respirar o perfume das rosas. Belas, tranqüilas, como se não sentissem a ameaça do sopro de fogo que, inexorável, vinha de oeste sobre Paris. Recordou aquelas palavras de Francis Jammes: "O perfume da rosa é uma oração que sobe para Deus." Idéia de poeta? Mas não serão os poetas os únicos a recolher a própria essência da verdade filosófica? Inclinou-se sobre a mais linda flor para recolher a inconsciente prece das coisas e torná-la humana.

Descansou alguns instantes, ajoelhada na basílica aberta a todos os ventos, pelas janelas sem vidros. Prometeu amar Jeanine, de futuro.

"De que maneira? Indicar-ma-eis, Vós. Ela vai precisar tanto de amor, depois desta provação, e durante toda a sua velhice."

Assustou-se, ao pensar na velhice de Jeanine.

Rua de S. Vicente. Encantadoras casinhas de artistas: não há duas iguais. Os jardins, escondidos pelos muros, deixam ver um ramo aqui e além. Uma borboleta branca voa sobre a rua. Ah! Cá está, nesta ruazinha, a casa onde moram a Teresa e o Sílvio. A Fani diz com desdém: "Uma casa de pobres." Isabel acha-a maravilhosa. Que importa que a escada seja de cimento e não tenha tapete Lá em cima, quando a porta se abre, a luz deslumbra. Vê-se toda Paris. E a casa, em si mesma - com os seus móveis sem valor - é algo de íntimo, alegre, delicioso. A serenidade de espírito da Teresa alia-se nela à fantasia de Sílvio Delorme, o artista.

Vozes infantis tagarelam. Há três crianças: Francisco e Domingos, os dois rapazinhos tão próximos, que têm o rosto redondo e fresco, os olhos verdes da Maçã, e uma damazinha loura, de rosto comprido, olhar triste, boca risonha como seu pai.

Teresa passa a roupa a ferro.

- Permites que continue? Podemos falar do mesmo modo. Como vai isso, minha querida? Estás de folga? O quê, vieste a pé desde a Avenida Vítor Hugo? Meninos, deixem-nos sossegadas. Cada um vai fazer um quadro como os do paizinho. Aqui têm papel e lápis de cor. Sim, Mariazinha, tu também.

Teresa não fora procurar longe o nome da filha. O mais bonito, para ela, era o mais simples. E Sílvio, o sonhador, dissera, depois dum momento de espanto:

- Tens razão, minha Teresa. Esse nome, milhões de pessoas o murmuram todos os dias, dizendo-o bendito. Houve tantas Marias encantadoras, em França.

Mas Jeanine declarara-o vulgar, o mais possível. E Fani dissera, irônica:

- A Teresa nunca há-de fazer nada como os outros. Quando éramos pequenas, já a sua boneca se chamava Maria, enquanto eu escolhia, para as minhas, os nomes do "diário mundano" do jornal.

Enquanto o ferro de engomar, pesado e brilhante, alisava os bibes infantis, a Maçã explicou:

- Devolveram a corrente eléctrica durante o alerta. Aproveitei-a e o ferro ainda está quente... Como estão lá em casa? Oh! Tens um ar tão triste. Conta... bom, lá estás tu a chorar. Porquê? Não há notícias da mãe? Mas visto que estão cortadas as comunicações, o silêncio nada tem de inquietante. O paizinho tortura-se, faço idéia... Mas tu estás lá, para o encorajar, para o ajudar...

Isabel ergueu para ela um rosto molhado de lágrimas:

- Eu Pelo contrário, até lhe faço mal. Se tu soubesses o que ele me disse há bocado!

Mas os garotos voltavam orgulhosos das suas obras-primas:

- Está bonito, diz, mãezinha?

A Maçã examinou com atenção o quadro de cada um, fez críticas, louvou, tudo séria e gentilmente. E os olhos infantis brilhavam de prazer e confiança. A mãezinha compreendia tão bem o que se queria ter feito! E explicava tão bem!

Isabel contemplava os rapazinhos apertados contra a jovem mãezinha roliça e fresca, com quem tanto se pareciam. E era lindo, a Maçã vestida de Tobralco às flores, Francisco e Domingos de linho azul, com os braços e as pernas queimadas, os cabelos lustrosos. A Maçã tinha não sei que beleza, talvez a beleza da maternidade feliz. Propôs aos artistas um novo assunto de composição que os fez pular de entusiasmo, afiou o lápis à filha. Quando os três se foram, o ferro estava frio.

- Isabel, vem sentar-te ao pé de mim, no divã. E conta. Estás com um grande desgosto, bem vejo...

- Teresa, Teresa, ouve o que me respondeu o paizinho, quando tentava tranqüilizá-lo: "Podes falar, tu: não é tua mãe. E não a amas. Nunca a amaste."

Soluços... A Maçã deixava-a chorar, apertando-a ternamente contra o seu coração de mãezinha. Por fim, disse com a simplicidade que lhe era peculiar:

- O pai falou assim porque estava a sofrer brutalmente. Mas fez mal. Tu tens dado à mãezinha tantas provas de afecto e dedicação! Contudo... no fundo, ele não se enganava em absoluto: tu não podias amar a mãezinha como se fosse a tua própria mãe e como se possuísse todas as virtudes duma mãezinha. Nada tens a censurar-te, Isabel. Não dependia de ti experimentar os sentimentos duma verdadeira filha. A mãe não era totalmente digna disso, vês tu.

- Tu, tu dizes isso, Teresa?

- Por que não? Falo com sinceridade, como se deve falar. De que serve afivelar uma máscara sobre as pessoas e as coisas? Eu gosto da mãezinha porque é minha mãe e porque tem qualidades. Mas julgo-a. É por isso que te compreendo.

- Mas eu faço sofrer o paizinho...

- Que podes tu contra isso, minha filha? Ele sentiu, com a sua hipersensibilidade de poeta, uma coisa que nunca mostraste. Paciência. Nunca mais aludes ao que ele te disse num momento de nervosismo: ele ser-te-á grato, acredita-me.

- És tão sensata!

Uma linda gargalhada fresca.

- Assim o espero. com um marido como o meu, que seria de mim se não tivesse alguns grãos de bom-senso na cabeça?

- Dizes que a Fani to quis tirar em tempos que lá vão!...

- Teria sido uma calamidade. A Fani tão chique, tão difícil, mulher daquele fantasista, daquele boêmio! Vês, ele precisava da sua Maçã simples e redonda.

- Querida, há também o João-Lucas. Ele assusta-me - murmurou Isabel. - Nunca pára em casa. Faz mercado negro. Parece não pensar na guerra.

Teresa esteve calada alguns instantes.

A Mariazinha veio aninhar-se-lhe nos joelhos. Acariciando a cabeça loira da criança, acabou por dizer:

- Não nos inquietemos, por enquanto. Não julguemos. Todos os rapazes me parecem um pouco frívolos. Sê-lo-ão? Nada sabemos. Sê terna com ele, porque sofre. E espera...

- Obrigada, Maçã. Agora vou deixar-te.

- Merendas, primeiro. Juro-te que tenho que chegue. Há cá sempre o suficiente, embora não sejamos ricos. Mas eu faço esticar a nossa fortuna. Ah! Se eu fosse a ouvir o Sílvio, comer-se-ia tudo no primeiro dia e jejuava-se o resto do tempo. Uma verdadeira cigarra, aquele rapazinho. Olha, aí vem ele.

Sílvio apareceu, alto, delgado, olhos tristes, boca trocista:

- Está cá uma visita - anunciou Teresa.

E, depois, a rir:

- Não faças essa cara: é a Isabel.

- Ah! Se é a Isabel, está bem. Viva, irmãzinha! Que há de novo

- Nada... Nada do Florêncio... Nada da mãezinha...

- O pai deve estar num lindo estado. Lamento-o. Se eu tivesse de estar sem notícias da Teresa, enlouquecia.

-Maluco já tu és bastante - respondeu, serena, a Teresa. - Sabes muito bem que nunca nos separaremos, nunca... Sim, o Sr. Sílvio queria fazer-nos partir com a mãezinha e a Faní, no momento em que todos os parisienses perderam a cabeça. Mas eu disse logo: "Fico. Se é preciso morrer, que morramos todos juntos." Fazes idéia do que seria eu na Normandia impossibilitada de ter e dar notícias?

- Não, não faço idéia - respondeu Isabel. - Eu farei como tu, mais tarde. Nunca me separarei voluntariamente do Florêncio. Digo voluntariamente porque, como é aviador, há-de estar sempre a ir-se embora.

O Silvio, traquinas, despertou:

- É um disparate, Isabel, ir casar com semelhante rapaz. com franqueza, franquezinha, desprenda-se enquanto é tempo... O HugoLesoir, sim, é o marido que lhe convém.

Teresa riu a bom rir perante a cólera da irmã mais nova:

- Não voltes a ser o "fantoche" que a Isabel sempre detestou. Não, querida, não casas com o Hugo Lesoir. Hás-de casar com o teu Florêncio. E se estiveres sempre em cuidado por ele, mais e melhor o amas. E ele, sempre que volte a casa, há-de achar a sua Isabel tão bonita, a casa tão doce, que talvez um dia desista de voar. Isabel abanou a cabeça:

- Nunca procurarei fazê-lo desistir da sua vocação. Mesmo que ele me faça sofrer...

Calaram-se os três.

- Graças a Deus! - exclamou finalmente o Sílvio - aí está o que se chama uma mulher!

 

- QUEM trabalha esta noite - interrogou uma voz de fantasma.

- O Morot-Léandre - respondeu outra.

E o Morot-Léandre avançou, com a sua picareta e a sua pá. Detestava aquele trabalho de toupeira. Mas tinha de o fazer para os companheiros que queriam partir através do túnel.

Não para si. Ele sairia à luz do sol. Agora já tinha tudo que lhe era necessário. Enviara-lho a avó, a quem se dirigira por saber que a ela se podia pedir tudo. E também porque inquietar o coração duma avó é preferível a inquietar o dos pais. Uma avó já está acostumada a sofrer!

A senhora Honorat, auxiliada pelo seu vizinho Solignac, administrador da vila, conseguira enviar-lhe papéis falsos de trabalhador alemão e um fato de operário. Tudo isto camuflado em inocentes encomendas.

Provido do essencial, falando correctamente o alemão, havia de desembaraçar-se. Oh! Partir!...

Escavando a terra, pensava o que seria a sua chegada a França... Paris... A casa. A família. Isabel...

Asfixiava, ali dentro. Durava há meses aquele trabalho subterrâneo. Em breve, o túnel estaria pronto e os camaradas poderiam partir. Pobres rapazes, cento e vinte fugitivos, nunca alcançariam a França! E se os apanhassem? Florêncio arrepiava-se. A cela, passa... Sente-se mais fome, eis tudo. Mas o resto... Balas nas costas, um homem caído como se fora um fantoche quebrado. Não, não podia pensar neste ou naquele amigo que decidira arriscar-se e que, talvez em breve, fosse abatido com um grito, ou devorado pelos cães.

- Por mim, contanto que não me metralhem neste subterrâneo... Lá isso não! Quero morrer ao sol. Se estou aqui a cavar, é por eles. Mas não há-de ser por este túnel que hei-de fugir... Oh! Esta terra, onde é que a havemos de meter? E o boche sempre aos berros à procura da pá... Tenho frio... Tenho calor. Falta-me o ar. Ah! Correr pelas encostas do Limousin, róseas de orvalho... Nadar na ribeira viva e cantante... subir de avião. Pensar que talvez aqui morra...

Morrer? A força da sua juventude revoltava-se. Não queria morrer. Uma recordação do colégio trouxe-lhe à memória aqueles versos de Chénier que outrora achava declamatórios:

Je ne suis qu'au printemps Je veux voir Ia moisson (*).

Como em 93... Recomeça sempre a crueldade.

- "Se me safar daqui, hei-de ser mais humano. Hei-de ser aquilo a que eu chamava um tipo fixe."

E continuou a cavar. É difícil, cavar em terra gelada.

Quando o subterrâneo estava quase terminado, reuniram-se misteriosos conciliábulos.

- Vem, Morot-Léandre-diziam-lhe os outros.

- Não? Ah! Teimoso como um burro!

- Sim, como um burro - respondia tranqüilamente. - Deixem-me agir. E se vos perguntarem onde está o tenente Morot-Léandre, podem dizer que nada sabem. Queria só que não deixassem que os cães me descobrissem o rasto. Não estou grandemente interessado em conhecer-lhes os dentes.

- Tudo se há-de arranjar, não te enerves.

Uma noite chuvosa e triste, chegou o camião onde empilhavam a roupa suja. Quando partiu,

 

(*) Estou apenas na Primavera, Quero ver a ceifa.

 

além dela, levava também Florêncio que, à força de ardis, se conseguira esconder.

"Que mal que isto cheira! Que nojo! Pior do que o túnel. Hei-de sair daqui lindo. E como é que hei-de sair? Só depois de termos ultrapassado os acampamentos, os miradouros com aqueles projectores que cegam a gente, as sentinelas com as suas metralhadoras... Antes disso, já estarei sufocado. Dizer que existem perfumes por esse mundo fora... os perfumes que vendia a Rosa Martin, a amiga de Isabel... Aquele "amanhecer dum lindo dia"... Ah! purifica, pensar no amanhecer dum lindo dia."

Pesado, lento, o camião percorria as estradas enlameadas. Finalmente, parou. Chegara o momento... Florêncio, com uma ligeireza de serpente, arrastou-se entre as trouxas sujas, deslizou por detrás, deitou-se sob o enorme veículo e esperou, observando as idas e vindas dos soldados que descarregavam as roupas. Quando se certificou de que nenhum voltaria, saiu do esconderijo e pôs-se de pé.

Era livre. Mas até quando?

A noite era densa. Chovera o dia inteiro. O mistério da sombra e da aventura emprestava uma aparência estranha às coisas. Cada moita ocultava um mistério. Impossível orientar-se sob aquele céu brumoso. Caminharia em boa direcção?

- Sim, deve ser por aqui. As minhas irmãs diziam que eu tinha um faro de selvagem. O vento vem de oeste, e estou a caminhar em sentido contrário, logo, estou a afastar-me do campo. Mas tão lentamente! Oh! Vem aí um automóvel. Um camião. Meu Deus, está a abrandar! Apanharam-me. Estou perdido.

Agachou-se num fosso. O camião deteve-se, com efeito, mas para verificar o motor. Florêncio esperou o momento em que o motorista retomava o seu lugar e, num impulso, agarrou-se à parte de trás. Era talvez loucura o que fazia, mas o veículo caminhava também para oeste... E o importante era afastar-se rapidamente. Àquela hora teriam já dado pela sua falta.

Deram por ela na primeira chamada. Os cães procuraram-no. Mas quando os guardas, para pôr os animais em pista, lhes levaram os fatos do Morot-Léandre, foram os de um outro, doente e incapaz de se evadir, que farejaram rosnando. E os animais erravam, arquejantes, inquietos, sem descobrir o rasto do fugitivo que, ávidos, buscavam.

E os companheiros, silenciosos e apaixonados, seguiam de longe o moço que partira na grande aventura. Apanhá-lo-iam?

Nesse dia, não. Estava muito longe quando largou, desvairado, surdo pelo vento da corrida, as mãos ensangüentadas à força de se crisparem, o camião parado à beira duma floresta onde o iam carregar de lenha.

Uma floresta. O sítio ideal para se esconder. Mas haveria ali água? Estava tão sujo, tão alterado! Um suplício, aquela sede. Não, não encontrou água. Mas o mais importante era dormir. A aurora despontava, uma aurora húmida, raiada duma chuvinha miúda e gelada. Ao longe, um galo cantava: voz que em todos os países é igual e que o fez estremecer de emoção. Escolheu o lugar em que os altos pinheiros eram mais cerrados. As agulhas espetavam-se-Lhe no corpo. Que importava? Estendeu-se. Que importava que as feras vagueassem em torno, que o roçassem?... Dormir, dormir... Ao acordar, sentindo fome, meteu a mão na mochila trespassada pela chuva. Encontrou biscoitos desfeitos, açúcar derretido, chocolate que parecia lama. Comeu, mesmo assim.

E foi procurar água. Só encontrou aquela que a chuva acumulara num sulco. Bebeu-a com delícia. E lavou-se. Alegria de se sentir limpo. E livre. Livre! Quisera cantar. Mas não, os lenhadores poderiam ouvir-lhe a voz. Era dentro do coração que cantava.

Sentia-se ainda em perigo. E, incerto do local em que estava situada a floresta, caminhou durante vários dias, melhor, várias noites. Avançava de noite e aproveitava o dia para descansar. Quantas vezes abençoou a avòzinha que colocara uma bússola na algibeira do fato-macaco que lhe enviara! Para oeste, precisa de se dirigir para oeste e encontrar uma estação. Mas que estação?

Conheceu a fadiga, a fadiga esmagadora, verdadeira, aquela que varre todas as idéias do espírito, excepto uma: o termo; um único desejo: atirar-se por terra, deixar de fazer peso sobre as pernas. Quando alguma voz, ruído, passos se aproximavam, ele experimentava a mesma angústia que a lebre que, sabendo-se perdida e cercada, sente aproximarem-se os cães, as narinas dilatadas...

Por fim, reconheceu o apito dum comboio. Alcançou a linha, seguiu-a até à primeira estação. E assim, Paulo Dubois, trabalhador livre na Alemanha, tomou o comboio para a França.

Chegaria?

 

A noite estava linda. Isabel tornou a virar-se entre as cobertas da cama.

"Não consigo dormir... Se a Marieta aqui estivesse, diria: "Pensas de mais. Não tens juízo." Como é que é possível não pensar, num tempo destes? Enfim... vou ler. Talvez adormeça."

A electricidade inundou a alvura do seu quarto de rapariga. Ela contemplou-o, sensível ao caracter efêmero dessa elegância.

"O meu lindo quarto... Pensar que poderia ir ao ar com uma bomba e que eu ficaria sem nada, como a velha do dispensário... Prendemo-nos demasiado às coisas. Só as pessoas deveriam contar. Que será feito da Jeanine, da Fani, da Edite e do miúdo? Sem uma pessoa que os tranqüilize, os dirija... A não ser que a Fani se revele um valor. Eu acho que ela tem possibilidades... Mas talvez o medo a paralize. E os pequenos vão sofrer toda a vida as conseqüências deste período. Coitadinhos!"

Pegou num livro e esforçou-se por ler. Mas os romances escritos antes da guerra soavam-Lhe falsos. Aquele luxo, aquelas intrigas de amor, aqueles debates de interesses mesquinhos... Não, a vida já não era aquilo; tornara-se áspera e grande. Seres vivos vinham substituir as personagens fictícias do romance.

"A Rosa, a Rosa Martin prisioneira! E nem sequer a posso ir ver. com quem estará misturada, ela, tão fina! Em toda a vida da Rosinha há este caracter de contradição que a põe, pura, num meio impuro. E guarda sempre a mesma inocência. É a sua maior qualidade, a pureza. Se eu estivesse no seu lugar, resistiria do mesmo modo? Não sei. A minha fraqueza tem sido tão preservada... Só agora tive contacto com o pecado. Mas o pensamento de que aquela pobre gente precisa de mim, afasta-me do mal e aumenta o meu desejo de brancura."

Leu algumas páginas e voltou a interromper-se

"O João-Lucas... tem um olhar de que não gosto nada. Um olhar fugidio. Pobre pequeno, a vida é difícil para os rapazes. Talvez já nem consigam distinguir entre a verdade e a mentira. A única coisa que o pode suster é o amor que tem pela mãezinha. Eu, por mim, se não fosse o amor do Florêncio..."

Florêncio, Florêncio... Fechando os olhos, repetiu o nome querido.

"Onde estás Não sei. Sei só que não estás no campo de concentração, sinto-o. Tenho a certeza. Oh! Que perigo! vou ler para esquecer um pouco este tormento."

Mas não acabara o desfile das sombras.

"O paizinho, o que ele sofre! É a coisa pior que existe, a inquietação. Agora é que eu compreendo bem. Mas não consigo distraí-lo nem consolá-lo. Nem mesmo tive coragem para lhe dar os parabéns no dia dos anos dele, por ser também o de Jeanine. O seu desgosto tem qualquer coisa de duro que me intimida."

Voltou a pegar no livro e voltou a fechá-lo.

"É inútil, não consigo. Esta gente não terá nada mais que fazer senão dissertar sobre os seus sentimentos e sensações? Se soubessem como tudo isso nos é indiferente... Pensamos noutras coisas. A vida puxa-nos, magoa-nos, empurra-nos. Sentimo-nos... levados para o plano das coisas imensas. Decide-se o futuro da França, do mundo. Diante disto, que importa o amor dos heróis de romance? O nosso destino, esse já não se disputa nos salões ou nos hipódromos, mas em campos de batalha. E quando a batalha terminar, reconstruiremos a França. Isto sim, é grande, é verdadeiro. Não torno a ler romances. Não quero adormecer o espírito e quebrar a vontade com estas tolices. vou dormir."

Estefânia, Jeanine, Edite e Guy erguem-se diante dela no semissono, nesse momento estranho em que o relevo das coisas se acentua e as torna terrivelmente reais, nuas, sem máscara... Aquelas cabeças, todas loiras, aqueles corpos elegantes e cuidados. Depois Rosa Martin, robusta e linda... João-Lucas de perfil rectilíneo, de grandes olhos de veludo castanho... João, o homem taciturno com um rosto duro e um olhar azul que suaviza singularmente a frieza rígida dos traços... Maçã, a fresca, a simples, com os seus bebês gorduchos e frescos... As quatro Morot-Léandre, raparigas apaixonadas... Cláudio Ariel e Hugo Lesoir, dois rapazes que amaram Isabel, que, por vezes, a perturbaram, e que talvez ainda a amem... E os mortos erguem-se também: Odília, Marieta, Pedro Jacquelin. Era estranho como os revia nitidamente.

E, por fim, Florêncio, um belo Florêncio de dezoito anos, a camisa de linho descobrindo-lhe o pescoço e os braços nus e uma voz decidida exigindo: "Um avião e a Isabel."

Nem avião, nem Isabel. Os arames farpados, os guardas. Pensou no tempo em que estariam lado a lado. E isso foi-lhe tão doce que adormeceu.

Por pouco tempo. Brusco despertar. As sereias rugem no céu de Paris. Enfia depressa o roupão, os chinelos, e corre aos quartos dos outros. O João-Lucas tem um sono tão pesado! Sacode-o: meu Deus, como se parece com a mãe, assim, com o cabelo loiro disperso na almofada! Espreguiça-se, resmunga.

- O que é que foi? Um alerta? Ora... deixa-me dormir.

Apesar disso, levanta-se. Isabel encontra o pai já pronto. Diz-lhe:

- vou buscar a criada. Não quero que ela fique lá em cima.

Isabel tem sempre a preocupação das criadas. Por se lembrar de Marieta? Sim... E também porque é profundamente humana. Assim, todas gostam muito da menina. E pouco da senhora.

Finalmente, está reunido o seu mundo. Os homens recusam-se a descer à cave. Isabel fica com eles no salão dominado por um retrato de Jeanine em toda a sua beleza. João não desvia dele o olhar.

- Pobre rapariga! - suspira depois dum estampido mais forte. - Pensar que vive continuamente nisto!

- Mas que idéia, pai - disse João-Lucas. com certeza que conseguiram escapar-se. A Fani não é nenhuma tola.

- A Fani tem muita coragem nos momentos difíceis - assegura Isabel, recordando tal ou tal episódio da vida da irmã. - E a mãezinha e ela entendem-se tão bem, que certamente tomaram qualquer resolução sensata.

- A vossa mãe está cansada e é frágil, impressionável.

Não ousou dizer: "Já não é nova." Pensou-o pela primeira vez.

Uma terrível explosão, ao longe. João-Lucas corre ao terraço.

- Oh! É fantástico! Vem ver, Isabel, estes foguetões de todas as cores... Além, um incêndio... Sim, aquilo está a arder.

Isabel pensa nos mortos. Os dos espaços do céu, os das casas, os das fábricas. A grande dor que, desde a adolescência, vem tantas vezes picar-lhe o coração, fere-a de novo:

- Como o mundo sofre! Senhor, tende piedade do mundo!

O pai veio também para o terraço. Ela aperta-se contra ele. A brisa é suave. Deveria ser-se feliz. Mas os homens odeiam-se, matam-se.

- Paizinho, paizinho - murmura, desejando que ele a envolva nos braços, que a ampare, que a console, ela a quem a angústia de ver o mal se exerceu, palpável, junto de si, faz sofrer bem mais do que o medo.

NãO. É em Jeanine que pensa. com os olhos cheios de lágrimas, ela sonha com o dia em que, pousando a cabeça no ombro dum homem, do "seu Florêncio", se sentirá protegida não só corporal, mas espiritualmente. Oh Florêncio... passar sem ti estes anos terríveis!

Nos seus colóquios íntimos, ela diz "tu".

O céu chameja, a este. Um enorme clarão vermelho, dançante, apagou o azul aveludado da noite. Já se não ouvem os aviões. Acabou o alerta.

- Vou-me deitar - anuncia João-Lucas. Amanhã de manhã não há-de faltar trabalho para escavar os escombros, além.

Isabel demora-se junto do pai. Talvez ele precise dela, já que não repara que ela precisa dele. Um vento leve soergue as pregas do seu roupão até aos pés.

- Paizinho - murmura.

Desperto do sonho por aquela voz, ele envolve com o braço os ombros da filha. E fala, mas para repetir o mesmo nome e recordar.

- Jeanine... Jeanine... Lembras-te como os alertas a enervavam? Lembras-te do frio que tinha, até no Verão? Trazia sempre o casaco de peles. Lembras-te duma noite em que descemos para o abrigo e em que ela estava tão inquieta por cá ter deixado o anel de brilhantes? Lembras-te?

A cada evocação, Isabel diz:

- Sim, paizinho.

E acrescenta novos pormenores que tornam a ausente mais próxima e dão relevo às sombras do passado. João, que um dia teve a crueldade de dizer: "Nunca gostaste de tua mãe", recolhe-os com avidez. Ela disse isto. Tinha aquele lenço...

Era triste e era belo. Como ele a ama! Como sofre sem aquela presença! Isabel acaba por dizer a rir, embora sinta vontade de chorar:

Paizinho, é maravilhoso ser-se amado pelo

marido. Gostaria que daqui a vinte, trinta anos, o Florêncio falasse assim de mim.

E ele apercebe-se que tem junto uma rapariga com vida pessoal e fremente.

- Sim, minha querida... O Florêncio há-de falar assim de Isabel. E - acrescentou com esforço - talvez melhor ainda, porque a Isabel há-de vir a ser uma mulher mais completa.

- Oh! Paizinho, nunca serei tão bonita!

- Não, mas tu tens encanto. Há homens que preferem o teu gênero. E tens a tua alma.

Não disseram mais. Eram felizes junto um do outro. Tanto quanto se pode ser feliz à luz vermelha dum incêndio e com a inquietação por um noivo, por uma mulher. Sem mesmo saber onde o pensamento os poderia encontrar, nem se ainda viveriam. Apertavam-se um contra o outro, para sentirem menos o vazio.

No dia seguinte, os "diz-se" corriam pelas ruas. "Caiu aqui, além... Há centenas de mortos... Fábricas destruídas..."

João e Isabel foram para o trabalho. Quando se encontraram ao meio-dia, Isabel, melhor informada, deu parte ao pai dos seus receios:

- A fábrica do Paulo deve ter sido atingida. João telefonou ao genro. Era verdade. O que

tinham visto arder era a fábrica Bastien.

- O pobre velho nunca mais poderá refazer-se dum choque destes.

- É preciso ajudá-lo - disse Isabel. -Ele que venha cá jantar hoje. Não há muita coisa, mas, paciência, come-se massa.

Foi um homem louco de desgosto que apareceu.

- O trabalho de toda a minha vida! Nunca mais volto a ser o que fui...

- Paulo, - respondeu ternamente Isabel - se a Fani cá estivesse, teria que ter coragem por ela. Ao menos, arranje força para a encorajar quando ela vier. E depois, você sabe que a pode reconstruir.

- A Fani! Que vida tenho eu agora para lhe oferecer?

Depois do cunhado sair, João-Lucas acendeu um cigarro, instalou-se numa poltrona e encetou um desses discursos em que adorava mostrar a sua eloqüência.

- Reparaste, Isabel, que o velho Paulo está bem mais inquieto devido à fábrica do que à mulher? Muito interessante, este pormenor. Mais uma vez se confirma a minha idéia de que aos homens, o que os prende, acima de tudo, é a profissão; depois é que vem a família.

- Exageras - respondeu Isabel.

- Pouco. O Paulo é um bom marido, um bom pai. Mas, acima de tudo, é um homem de negócios. Serei também assim, mais tarde O Florêncio sê-lo-á E o marido da Noelle Pergunto-o a mim próprio. Vais dizer-me que, para o pai, a mãezinha está primeiro do que tudo. Mas o pai é um homem à parte.

- Acho que interpretas mal a atitude do Paulo. Diante da fábrica incendiada, encontra-se em face dum facto consumado e brutal. A ausência de Fani não prova que lhe tenha acontecido qualquer desgraça. O Paulo adora a mulher, mas é uma pessoa fleumática e um pouco gasta. Por isso, não se tortura antecipadamente com o paizinho, Percebes?

- Sim, sensatíssima mana. Quem é que tocou à porta? O quê, a Denise? Sozinha, a uma hora destas? O que é que aconteceu? Vem toda afogueada!

com efeito, ela mal podia respirar:

- Vim a correr todo o caminho... Leiam este bilhete... Não se percebe nada... O paizinho recebeu-o agora... Não sabemos donde veio nem quem o escreveu...

"O noivo de Isabel bateu a asa."

- Não desmaies, Isabel - aconselhou João-Lucas.

Terno, abraçou a irmã, e os três leram e releram as misteriosas palavras. As três cabeças juntas, como isso era doce para Denise! Pôs-se a chorar com Isabel. E João-Lucas a arreliá-la:

- Denise, Denise, chorar é coisa que não se faz na tua família!

- Não estou ao pé da minha família, demônio de rapaz. E, além disso, eu não tenho a pretensão de me parecer com os grandes. Eu cá choro. E é preciso que me conheçam tal qual sou. E eis que, depois de beijar Isabel, ele beija também a bochechinha molhada de Denise.

- Enganaste-te - diz a petiza rindo entre as lágrimas.

- Não, não me enganei - respondeu ele. - Se não gostaste, dá-me uma bofetada.

Então ela beijou-o também.

 

DENISE vinha das aulas. Mas não pensava nos estudos. Ninguém pensava em estudos naquele Verão; pensava-se na batalha da Normandia. E, além disso, pensava em João-Lucas. Era agradável e triste.

À esquina da rua um camião militar parou. Uma rapariga de uniforme saltou para o chão.

- Meu Deus, é a Solange!

Denise desatou a correr com os livros debaixo do braço e alcançou a irmã que avançava a passo rápido, mas de cabeça baixa.

- Solange! Solange.

A outra voltou-se. Teve um sorriso ao avistar a irmã, sorriso que depressa fugiu.

- Viva, migalhinha. Não era preciso correr tanto. vou a casa.

- Oh. Deixa-me ver-te. Há que tempos que te não pomos a vista em cima... Que queimada estás!

- Ando sempre pelas estradas, portanto...

- Cresceste. Estás magra. Diz... Tens um ar triste. Não estás doente?

- Não. Mas não tenho visto coisas lá muito alegres...

- Coitadinha! Agora, em casa, vais distrair-te e descansar. Faremos por que esqueças as coisas tristes.

- Oh! Filhinha! Julgas que é possível esquecer?

Havia todo um drama no seu olhar. Denise, espantada, deu o braço à irmã e calou-se. Estava certa de que era de silêncio que Solange precisava...

- Estão todos bons - perguntou Solange depois de alguns minutos de silêncio.

- Mais ou menos... O Roland e a Noelle trabalham nos hospitais. Quase nunca os vemos. O bebê está no campo, infelizmente! Gostava tanto que ela mo confiasse! A Catarina? Olha, não sabemos onde está. Foi a casa da avòzinha para descansar e depois tornar a partir sem dizer para onde. O paizinho anda furioso e a mãezinha triste, por causa dela. O Florêncio? Não temos notícias. Supomos que fugiu. Em casa dos Morlainville está tudo aflitíssimo, pois não têm nenhuma notícia de Normandia. Ah! Talvez tu lhes possas dizer alguma coisa, não? Hás-de trazer tanto que contar! Anda, fala. Peço-te. Estou tão interessada...

- Não me maces-respondeu Solange, no tom seco da Solange de outrora.

Denise fez-se vermelha e depois pensou: "Coitadinha, está cansada!" E chegaram a casa.

- Mãezinha. -gritou Denise. - Está aqui a Solange.

A senhora Morot-Léandre apareceu à janela com um sorriso que emprestava certa juventude ao seu rosto cansado, Solange desatou a correr.

"Que lindos sapatos que ela tem" - notou Denise.

E depois envergonhou-se por ligar importância a coisas tão estúpidas.

Solange já estava em casa. Quando Denise chegou, a irmã repeliu-a:

- Vai-te embora. Quero estar sozinha com a mãe.

Denise olhou-a, desolada. Solange estaria de novo má e áspera? Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e foi dar largas ao seu desgosto para o quarto de Florêncio - o refúgio enquanto Solange atirava com as portas. Suspirou.

"Quem me dera que a guerra acabasse... As pessoas tornam-se insuportáveis... Nunca sabemos o que é verdade, o que é permitido, o que é bem... Queria que a Isabel me explicasse as coisas... A Isabel também perguntava quando tinha dezassete anos. E mesmo agora. Às vezes o pai conversa com ela a sério. Eu, com os pais não me atrevo. Estão tão preocupados com o Florêncio e a Catarina que não têm tempo para ver que já não sou nenhum bebê. Toda a gente me julga ainda um bebê... Por causa deste nariz arrebitado e destas bochechas redondas, sobretudo... Por que é que a Solange correu comigo? Os outros nunca fizeram uma coisa destas. Ah! Sim, o Florêncio, quando soube que podia entrar para Saint-Cyr e casar com a Isabel, desatou a gritar: "Fora daqui, raparigas!" Mas não tinha aquele ar crispado da Solange. Meu Deus, terá feito algum disparate? Prolonga-se, a conversa com a mãezinha! Aí vem o pai; ouço-lhe os passos no jardim. vou preveni-lo."

Desceu a escada a quatro e quatro.

- Paizinho, está cá a Solange. No quarto da mãe. Mas ela não quer que ninguém lá entre.

Não quer? Nunca ninguém opôs a sua vontade à do pai de família. Encolhendo os ombros, ele abriu a porta. E houve novo colóquio. Denise acabara por se sentar na escada com o seu livro de química. Mas não conseguiu aprender nada. Um raio de sol, vindo obliquamente pela janela da escada, aureolava-se de ouro. Era bonita e não o sabia.

Finalmente, a porta abriu-se. Chamaram-na.

Ela queria tomar um ar ofendido. Não conseguiu. E, apenas entrou, sentiu que algo de imenso se passara. Solange -que nunca ninguém vira chorar - enxugava os olhos com um lenço muito sujo.

- Que há - perguntou a petiza. - Peço-vos, digam-me o que aconteceu. Paizinho, mãezinha...

- A mãezinha vai dizer-te - respondeu o senhor Morot-Léandre, incapaz de falar de coisas tristes à sua benjamina.

E voltou-se de costas, olhando através da janela, enquanto, lentamente, a mãe anunciava em voz trêmula:

- A Solange acaba de nos dizer que a pobre senhora Morlainville foi vítima dum bombardeamento.

- Mas... não morreu.

- Sim, minha filha, morreu.

- Oh. A mãezinha do João-Lucas... a mãezinha do João-Lucas! Ele adorava-a.

E foi uma pobre garotinha soluçante que a mãe amparou nos braços. O pai tamborilava na vidraça. Finalmente, Denise perguntou:

- Ele sabe? Eles sabem?

- Ainda não. Foi a Solange quem trouxe a triste notícia.

- E a Fani? E os miúdos? Também morreram?

- Não. A Fani está ferida. Os pequenos nada sofreram. E a nurse também não.

- Como é que lhes vão dizer, mãezinha? Escute, acho melhor que comecem por prevenir a Isabel. A Isabel não era filha. E, depois, ela é forte, embora o não pareça. E está habituada a dar notícias difíceis às pessoas. O senhor Morot-Léandre olhou-as.

- A Denise tem razão. Mas que tarefa para a pobre pequena!

- Digam-lhe para cá vir- propôs Denise. - Assim poderemos consolá-la para que ela console depois os outros.

- Sim - aprovou Solange com os dentes cerrados. - E depressa. Quanto mais cedo, melhor. vou telefonar-lhe a dizer que estou cá e a pedir-lhe que passe por aqui antes de ir para casa.

Contente por ir ver a amiga, Isabel chegou a sorrir. Mas imediatamente sentiu a presença da dor em expectativa. Perturbou-se, corou. Então Solange, de pé, apoiada contra a parede, disse lentamente:

- Isabel, tenho uma triste notícia a dar-te... A senhora Morlainville foi chamada a Deus.

Isabel teve um grito de angústia:

- Mãezinha! Jeanine? Mas de que morreu Assim tão de repente...

Um silêncio. Todos os corações batiam com força. Solange continuou, no mesmo tom sem cambiantes:

- Houve um bombardeamento na aldeia onde ela se tinha refugiado com a Estefânia e os miúdos. Caiu uma bomba sobre a casa...

Isabel mantinha-se rígida e extremamente pálida, sem lágrimas.

- E a Fani E os pequenos? A Edite?

- A Fani foi ferida ao querer salvar a mãe dos escombros. Mas não está em perigo. As crianças, que tinham ido sair com a nurse, estão absolutamente intactas.

Isabel levou a mão à testa suada:

- É horrível... Solange, ela sofreu muito?

- Não. A morte foi instantânea.

- Desfigurada - balbuciou Isabel. Solange hesitou.

- Sim.

Então, um forte soluço sacudiu o corpo da rapariga.

- Paizinho! Pobre paizinho... João-LucasJ Noite terrível... Amanhã seria preciso falar. Deitara-se sem comer por não se sentir com

forças para enfrentar o pai e o irmão ainda ignorantes da sua infelicidade. Ouviu João-Lucas sair, como todas as noites.

"Devia ter coragem para ir fazer companhia ao paizinho. Não, não posso. E quero que ele tenha ainda uma noite de sossego antes de tanto sofrer. Amanhã fico com ele, não vou ao trabalho. Dantes perguntava a mim própria como era possível viver a sofrer daquele modo. Temos sofrido, desde então. Oh! Sim, temos sofrido. E não sofremos apenas pelo nosso desgosto pessoal. há ainda o peso dos outros. É isso o pior. E eu estou sozinha, sozinha a sofrer."

"Só?" - diz a voz divina. - "Vinde a mim, vós que sofreis e vos sentis esmagados."

Assim, de manhã cedo, dirigiu-se à igreja e, tendo deposto na oferenda da missa o seu sofrimento e o dos outros, sentiu que era uma pequenina parcela do Grande Corpo Místico e que tudo, absolutamente tudo, tomava um valor novo, um valor de redenção.

Já sem se sentir só, ousou falar. Primeiro de Solange, do seu regresso, da sua tristeza, das regiões que percorrera, tão devastadas. Vira a Fani, os petizes. Rezara junto da mãezinha... Sim, doente, a mãezinha, muito doente...

As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces. Ele julgou compreender. Então, brusco, afastou-a:

- Cala-te. Isso não é verdade. Vai-te embora!

Depois chamou-a de novo com um olhar chamejante:

- Diz-me a verdade, sem rodeios. Falas ou não, idiota? Proíbo-te que me escondas o que quer que seja. Morreu, não é verdade? Oh! Que suplício, Quero ver a Solange. Tu, deixa-me em paz.

Correu ao telefone, chamou e fechou-se no seu gabinete. Dez minutos depois, Solange entrava. com palavras delicadas mas precisas, contou-lhe como Jeanine, a linda Jeanine, fora morta na sua cama. Mas não disse que o rosto admirável ficara reduzido a uma massa informe.

Isso, nunca diria.

Depois de ouvir todos os pormenores, João Morlainville deixou-se cair numa poltrona com um gemido de animal ferido de morte. Solange abriu a porta.

- Vem, Isabel.

Ela não ousava. Mas a amiga murmurou:

- É preciso que ele chore. Beija-o, anda, beija-o.

Então, passando os braços em volta do pescoço do homem petrificado, Isabel encetou aquele panegírico dos mortos, que não é falso visto que se tira da sombra aquilo que os tornara dignos de estima e de amor:

- Era tão linda... tão alegre... Eu gostava tanto de a beijar quando era pequena. Ela amava-te...

Ele ouvia. Talvez sem escutar. Não chorava.

De súbito, a porta abriu-se bruscamente.

João-Lucas apareceu, despenteado, em pijama:

- Que foi que aconteceu?

E, adivinhando-o, soltou um verdadeiro uivo. Empurrou Isabel para se agarrar ao pai.

- Mãezinha, mãezinha... Paizinho, diz qualquer coisa, diz que não é verdade... Eu não quero... Mãezinha!

Erguia para o pai os lindos olhos de veludo, E parecia-se tanto com Jeanine, aquele filho de Jeanine, que as lágrimas, por fim, brotaram.

- Meu filho, meu filho... estamos sozinhos no mundo.

João-Lucas soluçava; grandes soluços de rapaz.

- Ouvi qualquer coisa... através da porta...

Por que é que me não preveniram primeiro do que à Isabel? Sou seu filho, eu!

"Oh! Eles repelem-me" - pensou Isabel.

Novo golpe. Encontravam-se, aqueles dois, na mesma dor, dor que não podia ser inteiramente sua.

Então, deixando-se cair diante duma mesa, pousou o rosto inundado de lágrimas sobre os braços. Pela primeira vez na sua vida, vida que ela queria encher de bondade e amor, se sentia a mais ao lado das pessoas que sofriam. Nunca previra essa espécie de angústia.

Exausta, perdida na solidão da sua alma, sabia apenas repetir baixinho um nome. O nome querido daquele com quem, um dia, partilharia tudo, alegrias e pesares.

Florêncio... Florêncio, seu marido... O pai dos seus filhos... Regressaria, o Florêncio?

 

QUANDO Isabel apareceu, vestida de preto, o pai teve um sobressalto.

- Ah! Até aqui, não conseguia acreditar. Uma morte, sem o pobre corpo, sem enterro, não parecia realidade. Mas ver-te de luto... Então é preciso que eu também me vista de preto E o João-Lucas. Isabel, trata tu disso. Eu não tenho coragem.

De tudo era preciso que Isabel se ocupasse. João agia como um autômato: guardava silêncio horas seguidas e depois, soerguido por um mar de dor, falava da morte, celebrando-lhe a beleza. Evocando também virtudes que ela nunca possuíra, pobre mulher frívola. Isabel escutava, perguntando a si própria por que razão a morte coloca as pessoas nesse novo plano em que os defeitos se esfumam e as qualidades adquirem excessivo relevo. Ilusão Ou verdade profunda

Será o verdadeiro íntimo do nosso ser evocado nesses toques de ideal

"Todavia, eu revejo Marieta com a sua fealdade de rosto, e recordo-me do seu humor irregular."

Não conhecia ainda a força do laço que se estabelece entre os esposos e os torna um só.

Sempre que seu pai dizia: "A tua mãe era tão afectuosa... tão simples... tão alegre", ela respondia, sem mentir: "Sim, paizinho", porque encontrava, nas suas recordações, muita anedota provando que, de facto, a pobre Jeanine tinha em si possibilidades de bem e que, por vezes, fora uma mãezinha simples, afectuosa e alegre para a filhita do marido. João adorava este evocar duma fresca infância e, fechando os olhos, revia a mulher, jovem, loura, pujante, brincando com a pequenina Isabel morena e tímida, de grandes olhos um tanto selvagens. Isabel reencontrava assim o caminho do coração do pai. Ele, já não lhe dizia: "não eras sua filha, nunca a amaste."

Mas sim, Isabel amara-a, à pobre Jeanine! E chorava, esquecida das suas insuficiências, dos seus erros, ao murmurar para si o "nunca mais".

Antes de partir para a Normandia, onde o exército libertador avançava sempre, Solange dissera a Isabel:

- Vem comigo. Há falta de assistentes sociais.

E a recusa da amiga espantara-a, irritara-a.

A paciência era nula, entre os Morot-Léandre -, quase a escandalizara.

- Não te compreendo. O teu pai pode muito bem passar sem ti. O João-Lucas, a Teresa, o Sílvio. Todos o rodeiam de afeição. Têm uma óptima criada. O dever, neste momento, é dar tudo ao País. Acho-te estúpida, confesso-te francamente.

- Tens a tua maneira de julgar e eu tenho a minha. O dever mais certo é, em geral, o dever mais próximo. Outras assistentes poderão substituir-me na "frente". E ninguém me pode substituir junto do paizinho.

- Tens um raciocínio de velha - declarou desdenhosa a Solange, a quem a vida de acção devolvera um pouco do antigo azedume. - Não te julgava tão atrasada.

- Achas que é ser atrasada amar o paizinho e salvá-lo do desespero?

A outra rectificou a abotoadura do seu uniforme.

- Acho. É preciso olhar para a frente e não para trás.

- E se estiverem possibilidades imensas atrás? A vida do paizinho não acabou. Um homem como ele é susceptível dum ressurgir, dum engrandecimento extraordinários, e de escrever, então, coisas de tal modo belas que o desgraçado mundo de após-guerra se ilumine à sua claridade.

- Isso é uma teoria como outra qualquer. Fico com a minha opinião. Até à vista, Isabel, a Antígona dos tempos modernos. Isabel segurou-a pelos ombros:

- Pareces-me desorientada. Dize-me, não perdeste a tua vocação?

- Nunca! Continuo decidida a ser missionária. Somente. Tomo à letra a palavra do Evangelho: "Aquele que põe mãos à charrua e olha para trás, não é digno de mim." Tu, Isabel, olhas para trás. Eu não.

- Ainda não chegou o momento de eu ir para a frente. Espero o Florêncio. Depois, com certeza, julgarei doutro modo os meus deveres para com o paizinho. Até lá, está-me confiado. Solange: eu e o João-Lucas somos tudo para ele. Nada me levará a abandoná-lo.

- Talvez tenhas razão. De resto, é provável que, em breve, não falte trabalho em Paris. Se for tomado... Bem, despeço-me. Voltar-nos-emos a ver É fantástico, a vida, agora, conta tão pouco! Achas que não... Fica-te bem o preto! Mas ouve cá, se o Florêncio vier, não o recebas de luto...

Se o Florêncio vier. Isabel suspirou. À noite, disse a João-Lucas:

- A Solange volta para lá. Quis levar-me.

Respondeu-lhe um grunhido indistinto. E então, ela olhou-o atentamente e reparou que estava pálido e tinha os olhos encovados.

- Cansado, meu Janico? Que tens? Conta... Um silêncio e depois

- Tenho nojo de mim próprio.

- Se podes, diz-me porquê. Se não, não digas nada. E vamos os dois ver como é que te hás-de curar dessa repugnância.

Sem responder, ele levantou-se, dirigiu-se ao quarto, e voltou com as mãos cheias de notas de banco.

- Olha, mercado negro.

E, lançando tudo sobre a mesa, afundou-se numa poltrona e escondeu o rosto nas mãos.

- Oh! Tenho nojo, tenho nojo... Ao pé de rapazes tão fantásticos... e de raparigas, como a Solange, que arriscam a pele por essas estradas metralhadas, eu faço tráfico de dinheiro. E enquanto...

A voz quebrou-se-lhe num soluço:

- Enquanto a mãezinha morria, eu... eu dançava. Sim, dancei naquela noite, num antro onde isso se fazia às escondidas. Nunca mo perdoarei. Nunca a mãezinha me perdoará. Nem tu, tão direita, tão altruísta e que, pelos amigos, esqueces tudo.

- Pelos amigos? Então tu, meu querido, não sabes como eu gosto de ti?

E as recordações de infância vieram, naquele seu ritmo peculiar, hesitante.

- Quando nasceste, tinha eu cinco anos. Mostraram-me um bebê rechonchudo e rosado: "É o teu irmãozinho." Fiquei encantada. Queria andar sempre contigo ao colo, e a Marieta ralhava. "É muito pesado para si." Mas a mãezinha ria, tu sabes, com aquele seu lindo riso: "Deixe-a, Marieta: é tão engraçado ver esta cabecinha morena e aquela loura reunidas!" E depois, cresceste. Brincámos juntos. Tiravas-me as bonecas. Eu achava que eras o rapazinho mais bonito do mundo. Sentia-me orgulhosa quando, no bosque de Bolonha, as criadas diziam umas para as outras: "É lindo aquele menino! ". E depois fui para o Sanatório. Quando voltei já eras crescidote.

- E tinha-te roubado o quarto - disse ele, continuando insensivelmente. - E trataste-me quando tive o sarampo... Lembras-te? Não queria mais ninguém ao pé de mim: Tinhas tanto jeito para contar histórias!

Ela sentou-se no braço da poltrona onde ele se refugiara.

- E agora sou de novo eu quem está junto de ti. A tua mãezinha confia-te à Isabel, como outrora. Se fizeste tolices, acabou-se. Não devemos pensar mais nisso.

- Este dinheiro asqueroso!

- Dá-mo. Para os meus sinistrados.

- Mas o resto... O que te disse e o que te não disse. Toda esta paródia, estes tráficos, imperdoáveis num tal momento. Mas então, serei eu um fantoche, um ente sem cérebro nem coração? Ah! que nojo que eu tenho de mim mesmo!

- Não, és só um pouco leve. És o filho dum poeta e duma mãezinha demasiado bonita...

Quem te impede de reparar tudo, fazendo agora coisas de valor?

- Eu sei... Há rapazes que, sob uma aparência frívola, trabalham para a libertação do País. Conheço alguns... ou melhor, suponho que alguns façam parte duma organização secreta. Mas não me hão-de querer lá, Isabel. Todos têm opinião formada a meu respeito, estou classificado definitivamente.

- És tonto! Na tua idade, alguma coisa é definitiva? Podíamos ter pedido conselho à Solange mas ela parte amanhã de manhã.

- Amanhã? vou já lá a casa. A Solange, dantes, não valia vintém: há-de compreender-me.

Solange, adivinhando que se tratava de algo de sério, conduziu-o ao quarto de Florêncio, local sagrado. Escutou-o sem nada dizer. E, como ele falava bem, ela sentia-se comovida.

- Meu velho, eu também fui um bom estafermo.

- Foi por isso que te vim pedir auxílio. Ambos se puseram a rir.

- Ouve, eu vou-me embora, não posso fazer nada por ti. Sabes quem é que se vai alistar? Não desmaies: o teu cunhado.

- O velho Paulo?

- Sempre és muito estúpido! O velho Paulo tem mais em que pensar. Trata-se do Sílvio, do marido da Teresa.

- Ele? Um artista, um frívolo, um "Nossa Senhora não te rales"

- Não te fies nas aparências. É alguém, apesar do seu tipo fantoche. "Alguém" amparado pela Teresa. Sim, meu amigo, quando se é ajudado por uma mulher como ela, é-se capaz de tudo.

- Ainda não estou em mim, palavra! O Sílvio, um resistente! Ah! Esse sim, soube guardar segredo!

- E tu também hás-de saber guardá-lo - disse gravemente a rapariga. - Viva a França!

Calaram-se. Em seus corações cantava a Marselhesa.

- Agora, vai-te-ordenou Solange. -Parecemos uns conspiradores. Tenho que partir mais cedo do que julgava. O teu cunhado Bastien arranjou - não sei como, mas, com dinheiro, tudo se consegue - uma licença para ir ver a Fani, que está a ser tratada numa ambulância em Angers. Quer que eu parta com ele, e depois traz para Paris os pequenos. Sabes que a Fani esteve quase a ficar sem braço? Chegaram a julgar imprescindível a amputação... Foi fantástica durante o bombardeamento, a tua irmã, só pensava na mãe e nos filhos. E foi ao tentar salvar a tua pobre mãezita que ela se feriu. Vês tu, a Isabel sempre disse: "A Fani tem grandes possibilidades de heroísmo, mas nem sempre se quer servir delas."

- É como eu - suspirou o rapaz. - Sou um tipo indeciso, repartido.

- Todos neste momento somos pobres tipos indecisos, repartidos. Fomos muito abalados pelos acontecimentos. Mas é preciso reagir. Como fez a Isabel.

- E a Teresa.

- A Teresa, não. Nunca teve necessidade de reagir. É uma pessoa totalmente simples e sã. Aí tens a razão por que há-de fazer do marido

- que tu qualificas de fantoche - um homem superior. com outra mulher, continuaria um inútil; com a Fani, por exemplo. Tu, João-Lucas, quando quiseres casar, escolhe a tua mulher entre mil!

- Tenho muito tempo! - exclamou divertido. Desceu a escada a quatro e quatro, como

outrora o Florêncio. Ao ouvir aquelas passadas de rapaz, os pais sentiram um aperto no coração. Quando ecoaria na escada o alegre saltitar de Florêncio?

No patamar interior, encontrou Denise com um vestido claro, em acordo com o jardim. O vê-la refrescou-o. Ela sorriu e ele achou-a gentil.

- É raro a gente ver-te - disse ela. - Trabalhas muito?

Envergonhou-se de enganar aquela alma pura:

- Não, andava a fazer asneiras. Mas agora tudo vai mudar. Pensa em mim, Denise!

Ela não ousou dizer: "Penso continuamente", mas apenas: - vou rezar por ti.

Deu-lhe o braço e deram uma volta em torno do canteiro. Ele era bastante mais alto do que ela, que tinha de levantar os olhos para contemplar esse perfil que tanto admirava. Por seu lado, ele inclinou-se e achou lindo aquele olhar sem sombra, sem falsidade.

- Não te pareces nada com as tuas irmãs notou - tens os olhos cinzentos e a pele mais clara. Esse novo penteado fica-te bem.

Ela corou de alegria e aborreceu-se por ter corado. Então pôs-se a rir, mostrando os dentes muito brancos e certos.

- Não, não me pareço com as minhas irmãs, nem mesmo no feitio. Mas, como elas, quando sou amiga, sou-o a fundo e para sempre.

Compreendê-la-ia? Pensava em tantas coisas diferentes do amor dessa garotinha, coisas que assentavam sobre um novo plano, algo estranho.

- De facto, as tuas irmãs são umas apaixonadas. A Noelle com o seu Roland; a Solange que quer abandonar tudo pelos seus negros; a Catarina... Afinal, onde é que anda a Catarina?

Denise suspirou:

- Ninguém sabe. A Solange julga - não digas a ninguém! - julga que ela foi ter com o Magloire, ao Sul. Parece ter a certeza do que diz... Os pais estão desesperados. Sobretudo o paizinho. Se soubesses o tom em que ele me disse, no outro dia: "Tu sê sempre criança, minha rosinha branca." Coitado, não imaginas a necessidade que ele tem de que a gente o ame!

- O paizinho também sente necessidade do amor da Isabel. Nós, os homens, somos assim... Denise, tenho que te deixar. És um amor de amiguinha. Dás-me um beijo?

- com certeza!

E o rostozinho ergueu-se para receber e para dar um beijo cheio de pureza.

 

COMO ele mudou, coitado do Paulo!" notou Isabel, avistando uma sombra esguia a ir e vir na sala onde o cunhado a esperava.

Ele voltou-se vivamente para ela:

- Ah! Tinha sede de a ver, Isabel.

- Também eu, Paulo; depois destes dias horríveis. Fale-me depressa da Estefânia.

- Deixei-a ontem. Graças a Deus, conseguiram evitar a amputação. Mas quantos meses não serão precisos para que o braço readquira o seu vigor e a sua beleza! com uma coragem que me enche de admiração e de espanto. E... ela foi heróica ao tentar salvar a mãe.

Passou a mão pela fronte, onde o cabelo já rareava, e suspirou.

- Levei as crianças para Auvergne, segundo o seu desejo. Certamente, Isabel, você tê-la-ia tratado o melhor possível. Mas que sorte esperará os Parisienses De qualquer modo, vamos, pelo menos, conhecer a fome e toda a espécie de privações. A Edite e o Guy estão melhor lá fora. Você não sai de Paris?

- É aqui o meu lugar, junto do paizinho e no meu posto de trabalho.

- Mas não tem medo? E se Paris passar pelo mesmo por que passou Varsóvia?

- Não-disse gravemente Isabel. -Eu confio. Paris será preservado.

Ele olhou-a, admirado. Aquela rapariga, de aparência delicada, era forte na sua confiança! Enfim, nunca se sabe o que pode surgir duma mulher... Fani, a mundana, heróica diante do perigo e da dor...

- Isabel - continuou - bem entendido, não é possível trazer o corpo da sua infeliz mãe. Foi piedosamente inumado no cemitério da aldeia bombardeada. Trago-lhe o que foi possível salvar dos objectos de seu uso pessoal. Esta mala, que foi encontrada num cubículo que não desabou, e as jóias que trazia consigo. Quer devolver isto ao Sr. Morlainville? Eu, confesso que não tenho coragem.

Isabel pediu pormenores a respeito dos petizes. O rosto crispado do homem distendeu-se ao pronunciar-lhes os nomes.

- A Edite está muito abalada. O irmãozito já quase esqueceu. Tinham ido brincar para o campo, foi o que os salvou... Sabe o que aconteceu à fábrica, Isabel?

Falava com uma espécie de paixão. Isabel, escutando-o sem compreender o sentido de alguns termos técnicos, pensou com mágoa:

"Parece mais desgostoso com o que sucedeu à fábrica do que com o resto. Oh! Os homens, como eles se prendem à sua profissão, aos seus negócios! Nós, mulheres, damos ao amor o primeiro lugar, mas não creio que isso seja recíproco. O Florêncio será também assim, algum dia Será preciso resignarmo-nos Será preciso compreender e até aceitar o lugar que nos é destinado no conjunto que formam, para os homens, família e profissão. Tenho horror a mulheres ciumentas das preocupações profissionais dos maridos. Mas ao mesmo tempo... habituarmo-nos deve ser doloroso, sobretudo quando se gosta a valer."

Paulo partiu, deixando a linda mala de Jeanine, recordação de felizes viagens.

"Não lhe tocarei" - decidiu Isabel. - "É ao paizinho que compete a tarefa." Mas ele recusou:

- Não posso. Examina tu isso tudo. Dar-me-ás os objectos importantes. O resto, arruma-o nas gavetas. Basta-me sentir o seu perfume para ficar sem coragem.

Isabel não se atreveu a responder: "Não é o meu papel. Não sou filha..." mas telefonou à Teresa.

- Como és escrupulosa! - exclamou esta. Podias bem ter aberto tu própria a mala. Enfim... já que insistes... façamos isto metòdicamente. Aqui as jóias, ali os objectos da toilette... além os papéis, se os há. Espantar-me-ia, a mãezinha nunca gostou de escrever.

Tiraram as jóias, que tantos tinham visto brilhar nos dedos, no peito da linda senhora Morlainville; a roupa interior, rosada e sedosa, que guardava a forma do seu corpo, as luvas, os produtos de beleza, que revelavam um desejo intenso de prolongar a juventude; a perfumaria, delicada.

- Entristece, tudo isto, pobre mãezinha.

- suspirou Teresa. - Vês, não há papéis. Se calhar, costumava destruir as cartas do pai à medida que as recebia.

- Além... aquele de seda antiga. O que é que terá dentro?

- Vê - respondeu a Maçã, ocupada a enrolar umas meias claras, muito transparentes e macias. - Os meus dedos estão tão ásperos: tenho medo de deitar malhas abaixo. Não posso dar-te agora atenção.

- São cartas.

- Cartas De quem? Percorre-as. É preciso, visto o paizinho não querer tratar de nada. Perguntar-lhe-emos depois o que quer que se lhes faça. Mas que há, Isabel?... Pareces impressionada.

- Teresa, Teresa - murmurou a rapariga valia mais que não lesses isto.

- Não! Gosto de claridade em tudo. Dá cá isso!

Teresa percorreu uma e outra folha. Corou.

- Oh! pobre, pobre mãezinha! Casada com o teu pai, um homem daqueles, e pôde admitir que lhe escrevessem neste tom!

- Bem me lembro, desse tal senhor Germain

- disse muito baixo Isabel. -Estava no jantar que a mãezinha deu pouco depois de eu ter voltado da montanha, na noite de S. João. Falava com muita eloqüência. O paizinho olhava-o duramente enquanto ele expunha as suas idéias sobre um assunto que eu não compreendia. Pobre mãezita!...

- Escuta, Isabel: ela foi imprudente, leviana... Talvez pior...

- Crês isso, Maçã?

- Não sei, infelizmente! É preciso que isto fique entre nós duas. Vamos destruir estas cartas. E, nas recordações do marido, a mãezinha será sempre uma mulher fiel, apaixonada, digna de veneração.

Isabel, com os cotovelos fincados na mesa, murmurou tristemente:

- Sim, com certeza. É o nosso dever. E depois, a soluçar:

- Maçã, ela amava-o. Asseguro-te que o amou. Isso nunca ilude, nem mesmo uma garota: aqueles gestos, aqueles olhares. Amava-o, admirava-o.

- Amou quando admirou - respondeu Teresa, com simplicidade. - Compreendes?

Então o passado iluminou-se:

- Sim, tens razão. O paizinho irritava-a, no tempo em que era apenas funcionário do ministério. Chamava-lhe "manga de alpaca". Em Petites-Dalles, naquele ano inesquecível, andava sempre a passear com um grupo muito lançado e o paizinho ia só, para as falésias. Dançava sem ele. Não quis voltar para Paris quando ele lho pediu. Eu era tão miúda! Tudo isto me desgostava mas nada compreendia.

- E depois, quando ele se revelou um grande poeta, quando se tornou o escritor em moda, ela admirou-o, amou-o, esqueceu o outro.

- Esqueceu? Guardou as cartas... Não o esqueceu, pois não, Teresa?

- Achas possível esquecer aquele que amamos - murmurou a mulher. - Julgas que a Catarina Morot-Léandre esquecerá o seu velho músico? E a própria Noelle, tão feliz no casamento, decerto não esqueceu aquele castelãozito sem caracter que não ousou dizer a seus pais: "Esta é a mulher que escolhi; não é nobre nem é rica. Tanto pior. É a que eu amo." E iria jurar que o idiota também a não esqueceu.

Calaram-se. Isabel pousou finalmente a cabeça no ombro da mais velha.

- Consola-me. O contacto com o mal fere-me.

- Por isso é preciso fazer bem.

- Há tanta dor pelo mundo, Maçã.

- Nós podemos pôr-lhe um pouco de felicidade.

- Depressa o readquirirás, quando o Florêncio cá estiver.

- Custa muito esperar, sabes.

Teresa sentiu o ombro molhado, através da blusa preta, pelas lágrimas de Isabel. Na sua alma serena e forte, soube encontrar palavras que tranqüilizavam.

- Custa, é verdade. Mas tudo o que se oferece o sofrimento, a expectativa, a inquietação, tudo serve para comprar o mundo futuro.

Isabel beijou-lhe a bochechinha redonda e fresca:

- Oh! Teresa, gostava de ter tido uma mãezinha como tu

- Uma mãezinha que abandona os seus petizes! Devem estar a arreliar a minha vizinha! Agora vamos arrumar tudo. Ponhamos a roupa na cômoda de pau-rosa de que ela tanto gostava. O paizinho dirá depois o que quer que se lhe faça.

- Guardará tudo. Como relíquias.

- Não se pode. As coisas também morrem.

- Sim - murmurou Isabel-quando a Marieta morreu, quis guardar o chapéu dela: lembras-te, o chapéu das uvas? As traças atacaram-no. Tive que me desfazer dele.

Dispuseram tudo em ordem. Restavam as cartas. A Maçã meteu-as na sua carteira.

- Queimá-las-ei na lareira do estúdio. E ninguém neste mundo saberá que a mãezinha teve falhas. Ela pede-no-lo, Isabel. Parece-me que, até lá, não poderá descansar em Paz...

Teresa partiu, adelgaçada pelo luto pesado. Quando João voltou, Isabel disse-lhe:

- Está feito, paizinho. Arrumámos tudo na cômoda. Aqui estão as jóias.

Ele pegou no anel onde brilhava o diamante e pô-lo no dedo. Um soluço, um áspero soluço o sacudiu:

- Ah! a mão dela ficava tão linda quando o punha! Pobre querida, minha pobre querida!

- Sim, tinha umas mãos lindas - disse docemente Isabel. - Quando eu era pequena, admirava aqueles dedos afilados, aquelas unhas, aquela pele setinosa, branca, branca.

- E aqui está o colar. Como ele lhe brilhava no colo, aquele colo admirável!

- Cor de leite, paizinho. E tão redondo, tão puro.

- Esta pulseira... Ela adorava pulseiras. Tinha uns braços absolutamente perfeitos.

- Eu pensava sempre: "Que pena!" quando a via com um vestido de mangas compridas.

- Mas ela usava-os por ser sensata, razoável. Era razoável, sabes, aquela mundana. Sabia renunciar a coisas intensamente desejadas. Ah! arrependo-me de tudo o que lhe neguei! Como era encantadora ao exprimir um desejo! E terna, ao agradecer um mimo! Como nós nos amávamos! Isabel sofria ao ouvi-lo. Ele continuava:

- É raro, asseguro-te, minha filha, uma mulher ser tão extraordinariamente bonita e tão séria, não é verdade?

- Sim, paizinho.

- Posso bem dizer-te: atraiu muitas homenagens. Mas não pensava senão no seu marido, nos seus filhos. É admirável, não é?

- Sim, paizinho. Pegou na mão da filha.

- Minha querida, o meu único consolo é falar contigo, para quem ela foi tão boa.

- Sim. Foi muito minha amiga, quando eu era pequena. - Ele continuou:

- Linda, boa. E inteligente. Ninguém como ela sabia fazer a crítica das minhas obras. Uma criatura completa. E esmagada, esmagada...

Deteve-se, a voz quebrada num soluço. Isabel apertava-lhe a mão na sua. Para quê falar Finalmente, ergueu-se.

- Dou em doido. Se não tivesse fé, matava-me. Mas a minha fé vacila. Esta lei de morte é anti-humana.

- A nossa vida não é aqui, paizinho.

- Sim, diz-se isso. Mas tu ainda não amaste. Não protestes. Ainda não conheceste o dom de dois seres um do outro. Não sabes o que pode representar a morte, para os esposos que se adoram. O que fica não é mais do que a metade de si próprio. Mais vale morrer.

Deixou-se cair numa cadeira, escondendo nas mãos o rosto em tempestade.

Nesse momento as sereias soaram o alerta.

- Ah! Oxalá me matem - exclamou.

E Teresa, ajoelhada diante do fogo onde ardiam as cartas acusadoras, recordava este e aquele episódio da vida de sua mãe:

"Não reparei, naquela altura. Mas lembro-me... aquelas visitas, aquelas saídas... aquele ar feliz. Mas então, é possível ter um marido digno de amor e gostar doutro homem? É possível ser-se mãe e viver-se para si própria? Oh! agradeço a Deus por me ter feito uma mulherzinha simples!"

Sílvio foi encontrá-la assim, vigiando os papéis para que deles apenas restassem as negras cinzas.

- Mas o que é que tu estás a queimar? perguntou admirado.

- Coisas da mãezinha.

Ele não insistiu, tinha tanta confiança na sua Teresa! Acariciou os belos cabelos lisos que se lhe ofereciam sob as mãos.

Ela ergueu o rosto:

- És tão alto!

Sem responder, ele olhou-a. Ela olhava-o. Nos olhos claros da sua mulher, Sílvio encontrara a felicidade.

 

Com a pequenina Maria pela mão e os dois rapazes saltitando um pouco adiante, Teresa subia a rua em direcção a casa. Tinham ido passar a tarde aos jardins do Sacrê Coeur donde se avistava, patético, todo o grande panorama de Paris.

Entre dois alertas, os petizes tinham-se divertido e Teresa pensado, com um trabalho de malha entre as mãos; uma ameaça cruciante pesava sobre Paris; e, em todas as lutas, Sílvio tomaria parte. Como os dias eram pesados de possibilidades Mas Teresa guardava confiança. A sua alma simples e sã encontrava sempre razões para esperar.

Numa curva da sua rua - todas as ruas têm curvas, em Montmartre - chocou com uma rapariga vestida de enfermeira - Noelle! a mais velha das Morot-Léandre. Ambas ficaram satisfeitas.

- Vai achar-me muito curiosa - disse Teresa.

- Mas o que é que a trouxe ao nosso bairro?

O belo rosto de Noelle anuviou-se:

- Esperava notícias de um bebê. Mas as pessoas que mas deviam trazer não vieram. Há dois meses que nada sei dele.

Teresa estremeceu. Dois meses!

- Lamento-a imenso, Noelle Mas, ao menos, se houver alguma coisa, sentirá o seu filho em segurança.

- Onde é que se está em segurança? - interrogou a outra com tristeza. - O exemplo da sua mãe prova a inutilidade dos nossos cálculos... Senti muito o vosso desgosto: não tive tempo de vo-lo dizer.

- Sempre muito ocupada?

- Oh! O trabalho é de se perder a cabeça! E ainda será maior se...

Calaram-se ante esse "se". Teresa sentia a amiga nervosa e cansada.

- Onde é que janta esta noite - perguntou. - No hospital?

- Não, em minha casa. Muito tarde e com pouca coisa. Compreende... quando se passa o dia inteiro fora...

- Pois bem! Vai jantar connosco, Noelle. Não diga que não, tem que travar conhecimento com a minha casa.

- Mas o meu marido fica em cuidado.

- Telefone-lhe e pronto.

- Teresa, acho isso uma indiscrição, nesta época.

- Come-se do que houver! Imagino - acrescentou alegremente a boa Maçã - que a ementa será mais completa do que em sua casa.

Noelle riu-se também.

- Sem dúvida alguma. Aceito! O Roland fica a jantar no Hospital.

Quando a porta de Teresa se abriu, Noelle soltou um grito de espanto:

- Que bonito!

- Bonito com móveis de dez tostões o metro. Mas o Sílvio tem tanto gosto!

- E a Teresa tanta ordem. Que bem que aqui se está, meu Deus!

- Instale-se... Ali, no cadeirão. vou fazer o jantar. Meninos, deixem a amiga Noelle em paz!

- Oh! - murmurou Noelle - queria tanto ter um nos joelhos.

- Eu! Eu! - gritaram os rapazes.

Mas foi Mariazinha a escolhida. Era a mais pequena, a mais próxima do seu garoto.

Cabelos de criança lustrosos e leves... Respiração curta... suave delícia desse corpito apertado contra o seu peito de mulher... Perfume de infância... Noelle fecha os olhos, depressa as lágrimas lhe percorrem as faces; esforça-se por sorrir:

- Querem uma cantiga? Não, não canto mal de todo.

Os rapazes aproximam-se. Escutam uma canção da avòzinha, tantas vezes repetida nos bosques de Châtaigneraie pelos cinco Morot-Léandre. As bocas entreabrem-se deixando ver os dentes de leite. Como são fortes e bonitos! Um dia o filhinho de Noelle será assim.

- Está pronto - anuncia Teresa. - Não vale a pena esperarmos pelo meu marido. Agora não se pode exigir pontualidade aos homens. Tem fome?

- Nem sei. Nunca penso nisso. Tenho tão pouco tempo para comer! E depois os choros do Hospital penetram em toda a parte e cortam o apetite. Se gosto da sopa? Ai não! Onde é que arranjou legumes, Teresa E gás para os cozer?

- Servi-me das reservas! A marmita norueguesa. E a Providência.

Noelle saboreou:

- Deliciosa! Parece-se com as sopas da Châtaigneraie. Que bem que isto me sabe, Teresa. Deve calcular que é coisa que nunca consigo fazer.

Teresa perguntou a si própria o que ela "faria". Estava magra e cheia de olheiras, a Noelle. E o marido, sem dúvida, estaria na mesma. Que prazer, alimentá-la convenientemente nessa noite! Teresa fugiu um pouco às regras que se impusera, abrindo uma lata de conservas destinada aos maus dias que poderiam chegar; e para tornar a sopa espessa juntara-lhe batatas, esse tesouro! Paciência... O Senhor gosta que confiemos nele.

Noelle tudo aprecia, tudo a espanta. Que vida áspera não levará essa Morot-Léandre que teve uma juventude tão agradável e cuidada! Teresa exprime gentilmente a sua admiração.

- É belo servir assim o país.

Mas a amiga olha em volta, sonhadora, e diz:

- Você também.

Palavras que surpreendem Teresa. A cozinha, o arranjo da casa... não são coisas que mereçam elogios.

Depois do jantar, metem-se as crianças na cama. Hora emocionante para Noelle... A oração da noite, o abandono dos vestidinhos de dia pela roupa da noite, longa e fresca; as despedidas, as cabeças nos travesseiros; os braços, os braços que envolvem o pescoço da mãezinha; os segredos murmurados ao ouvido; o bocejar de gatinhos cansados; as pálpebras cujos longos cílios palpitam sobre o cetim liso das faces...

Dormem; Noelle contempla-os. O seu, o seu pequenino, quem o velará, nessa noite?

- Venha - diz Teresa, puxando-a pela mão.

- Vamos conversar para ao pé da janela aberta. Não se importa que eu faça tricô? O Sílvio chama-me a Dama do tricô.

Sílvio... este nome repete-se a cada instante. Como ela o ama! Tanto quanto Noelle ama Roland: não do mesmo modo, certamente. Instalam-se. A aragem é suave... as andorinhas passam soltando gritos agudos. Estarão, de facto, em guerra? Noêlle esquecia-o, mas Teresa pronuncia a terrível palavra, sempre à espreita:

- Quando a guerra acabar parecer-lhe-á maravilhoso estar de novo de posse do seu bebê.

Noêlle hesita:

- Não sei se poderei... com certeza que tenho que o entregar à minha mãe. O meu curso de médica ainda não está concluído. O Roland está formado mas eu ainda não.

Teresa deixou cair o trabalho no colo:

- Não compreendo... Então não tenciona ficar em casa

Noêlle? - nada pacientes, os Morot-Léandre retorquiu com vivacidade:

- Mas, Teresa, não compreende que preciso do meu diploma?

- E depois? Depois Vai exercer Mas então, a sua casa Os seus filhos? Tudo?

Ela encolheu os ombros:

- Arranjarei modo de a casa andar arrumada e os filhos bem educados. Quero, queremos, o Roland e eu, trabalhar juntos no laboratório.

Um silêncio. Noêlle olha ao longe, através da janela aberta. E a casa pequenina de clima de amor parece-lhe agora sufocante. Teresa tem as mãos juntas, as suas mãos de forma pura, mas marcadas pelo trabalho.

- Noelle, - murmura - não acha que a missão da mulher casada está dentro do próprio lar?

- Nem sempre, não inteiramente. Há vocações que se aliam à de esposa e mãe.

Teresa escuta.

- Há uma curiosidade, um entusiasmo, uma paixão pela ciência que não pode satisfazer-se entre as paredes duma casa.

Teresa escuta.

- Gosto do meu marido, do meu filho, de todos os que virão, tantos quantos Deus quiser; mas amo o estudo, a descoberta, o serviço da humanidade que sofre. O Roland e eu temos o mesmo ideal. Trabalharemos juntos. Foi para isso que casámos.

Por longo tempo ela expôs os projectos de futuro de ambos. Falava bem. A Maçã admirava aquela inteligência, aquela paixão pelo saber. Mas a sua alma simples pasmava. "Trabalhar em conjunto", bela fórmula. Mas vivificar um homem rodeando-o de bem-estar e amor, levá-lo a dar tudo, também é grande. Perguntava a si própria se o seu Sílvio, casado com uma artista como ele, teria adquirido o mesmo talento, "

conhecido a mesma felicidade.

- Censura-me, com certeza, - disse por fim

Noelle - você é a esposa e a mãe tradicionais.

Eu, preciso de mais qualquer coisa.

- Não, não a censuro. Penso apenas, ao vê-la esta noite tão em cuidado pelo seu filho, que o mesmo problema se lhe há-de impor continuamente: a quem reservar o primeiro lugar à família ou à profissão? Vê, para mim seria diabólico, ter duas vocações. Gosto de coisas definidas, claras. O Sílvio, os pequenos, são o bastante para dar à minha vida toda a sua plenitude. São precisas mulheres como você, certamente. Mas eu acho que também são úteis as que são como eu. Vocês, as Morot-Léandre, são umas apaixonadas, umas raparigas ardentes e complexas. Eu - e um sorriso fez aparecer duas covinhas nas suas faces redondas - eu, sou a Maçã, uma boa rapariga, mais nada.

A noite descia. Inclinadas sobre Paris, as duas mulheres escutavam o viver da grande cidade. Teresa murmurou:

- Tantas casas! É nelas que a vida feminina ganha o seu sentido, a sua beleza, a sua plenitude.

- Sim - respondeu Noelle- mas deveremos contentar-nos unicamente com a nossa? As outras casas chamam-nos: quantas paixões escondidas, sofrimentos, gente a curar, a vivificar, sob esses tectos!

- Então eu sou uma egoísta?

Noelle nunca respondia ao acaso. Levantou-se, contemplou a cidade, e, depois, voltando-se para a casinha simples, bonita e alegre, murmurou:

- Não: é para que o seu marido, os seus filhos partam fortes e activos para o mundo, que torna tão boa a sua casa. Boa noite, Maçã...

Partiu, sombra rápida na noite. E a Maçã demorou-se à janela, à espera do Sílvio, Sílvio, seu amor.

 

O avanço das tropas de desembarque prosseguia, lento e seguro, rumo a Paris. Vivia-se ardentemente.

- Devia ter mandado a petiza para o campo

- repetia todos os dias o Sr. Morot-Léandre. Agora já é tarde.

Mas a petiza regozijava-se por ter ficado. Para viver horas históricas. E para respirar o ar que João-Lucas respirava. Aquele João-Lucas novo. Porque fora um João-Lucas novo quem lhe dissera: "Pensa em mim, Denise." Disso tinha a certeza, embora ele nada lhe tivesse confiado. O rapaz a quem amamos não precisa de falar para ser compreendido.

Denise saboreava de modo estranho a beleza trágica desses dias de expectativa. O eco incessante de coisas poderosas arrastava-a para fora da infância. Todavia o paizinho precisava tanto do amor do seu bebê Denise... Sofria muito, ele: devido ao Florêncio, devido à Catarina. Devido a Solange também, exposta a todos os perigos. Denise era a única filha que lhe restava.

"Meu Deus! - pensava. - "Que não falte, ao menos, o estrictamente necessário à petiza!"

Mas Denise preocupava-se pouco com a alimentação. Era outra coisa que a torturava: o desenvolvimento da sua alma.

A mãezinha notava-o, mas não se atrevia a provocar confidências. Sem dúvida, quando Denise escutasse aquela célebre pergunta, tão inútil "Em que estás a pensar", responderia, como é hábito: "Em nada." E seria uma porta fechada. Além disso, a senhora Morot-Léandre sofria demasiado pelos outros filhos. Por Catarina, sobretudo. Chegara até eles um postal, posto no correio em Paris por qualquer mão complacente:

"Estou bem. Penso em vós. Trabalho. Tenham confiança na vossa Catarina."

Trabalhava... Aonde? Em quê? A terrível inquietação era, todavia, suavizada pelo apelo final: "Tenham confiança na vossa Catarina." Sabiam que era nobre, o coração da Cigana.

O repouso, a alegria, vinham de Isabel. Só de a verem se sentiam mais leves. Na intimidade, ela tratava a futura sogra por "mãezinha", e isso era doce, infinitamente doce à senhora Morot-Léandre, tão certa da ternura, da pureza, da espiritualidade da noiva de seu filho. Tratava-a agora sempre por tu, livre do receio de que o seu afecto, inteiramente maternal, pudesse causar ciúmes à pobre Jeanine. Isabel era de facto a sua quinta filha, e o pai Morot-Léandre invejava Morlainville por gozar da sua constante presença em casa.

Morlainville, porém, não lhe prestava atenção. Um único pensamento: Jeanine. Recordações, saudades, remorsos, apelos apaixonados, faziam dele um ser obcecado.

- Já não consigo vê-la - acabou por dizer a Isabel. - A sua imagem desvanece-se. É horrível.

Então ela pediu ao Sílvio que fizesse, depressa, um retrato guiando-se pelas melhores fotografias e pelas suas recordações. Sílvio recusou.

- Não tenho tempo. E depois, como pintor, não gosto daquele gênero de beleza. Nunca houve simpatia entre a sogra e o genro. Dirija-se a outra pessoa, Isabel.

Teresa interveio, na sua voz calma:

- Vai fazer o retrato, Sílvio. É o teu dever.

- Ora! - replicou zangado. - É sempre preciso obedecer-te.

Então ela olhou-o e riram-se ambos. Depois tornaram-se graves. Era a outros que Sílvio obedecia, desde há meses.

Mas Isabel, que o ignorava, não compreendeu.

Sílvio espreguiçou-se:

- Bem, conta com o retrato. Mas detesto as fotografias que para aí trouxe. Este arzinho amável, infantil, não corresponde à verdadeira personalidade de sua mãe. Havia nela muita outra coisa: orgulho, possibilidades de paixão. É isso que quero traduzir; talvez decepcione o marido, apresentando-a sob esta luz. Paciência! Ou interpreto a senhora Morlainville a meu modo, ou não a interpreto mesmo. Concedido, Teresa?

- Pobre mãezinha!... Não faças dela uma mulher fatal. Deixa-a linda, ao menos.

- Deixo, porque o foi. Parece-me que a nossa Mariazinha vai ser como ela. Mas Deus queira que de feitio seja diferente!

- Contigo é que ela se parece, Sílvio.

- Não percebes nada disto. Há-de parecer-se mais com a avó do que com o pai.

Entretanto, chegou João-Lucas. Isabel parecia surpreendida e o rapaz contrariado pelo encontro.

- Sílvio, - contou Teresa - é preciso dizer à Isabel de que se trata. Vocês sabem muito bem que ela é uma rapariga que sabe calar-se. Fala, Sílvio. Ela tem o direito de conhecer o fundo das coisas.

Então cerraram mais o círculo familiar e, em voz baixa, Sílvio revelou à cunhada que fazia parte das forças que, na sombra, preparavam a libertação do país. E João-Lucas tornara-se seu auxiliar.

Ela olhou-os a ambos: novos, aparência frívrola e trocista, parisienses até à ponta das unhas. E prontos a darem as vidas!

- É belo! -exclamou. - Sinto-me tão orgulhosa de vocês!

João-Lucas quis arreliá-la:

- O quê? Não choras? Não dizes: "Tenho medo"

Ela sacudiu a cabeça e sorriu tristemente.

"Que lindo sorriso de mulher! "- pensou Sílvio. - "Até que enfim! Aí está uma fisionomia que eu gostava de estudar."

- Já não tenho medo de nada - murmurou.

- Sofro, não é a mesma coisa. Quem te decidiu a isto, meu Janico?

Ele hesitou:

- A morte da mãezinha. Senti nojo de mim mesmo, lembras-te E a Solange foi tão estupenda. Compreendeu tudo e mandou-me vir ter com o Sílvio. E salvei-me, aqui tens!

- Ah! - suspirou ela - se também pudéssemos salvar assim o paizinho...

- É mais difícil - disse o Sílvio. - Os pais agarram-se ao passado, nós corremos para a frente e renovamo-nos. Em todo o caso, deixe-me esta fotografia de amador, Isabel. É a que prefiro.

- Por que é que a cortaste ao meio - perguntou João-Lucas.

Ela corou e Teresa compreendeu: havia lá mais alguém... Oh! a imprudente Jeanine...

- Aposto - disse Sílvio traquina - que a Isabel também figurava, e possivelmente não se achou bonita...

Mas duvidava de que fosse esse o motivo. Teresa não tinha segredos para o marido e, sem mostrar as cartas, revelara-lhe a triste descoberta.

Isabel retomou a bicicleta: já não se fiava no metropolitano, constantemente detido por "alertas". Enquanto pedalava, ia pensando no modo de arrancar seu pai ao torpor em que se afundava cada vez mais. Nada o tocava, nada lhe interessava. Vivia com uma sombra.

Quando ela chegou, nessa noite, achou-o abatido, febril:

- Apanhei frio no abrigo, durante o último "alerta". Vou-me deitar. Oh! Quem me dera morrer...

Não reagia. Isabel, repartida, uma vez mais, entre duas formas de dever, decidiu ficar junto do pai. Num momento de tanto trabalho! Não seria desertar? Não... Colette e Jeanine, uma e outra, a haviam incumbido dessa missão.

Colette... Isabel, sentada a tricotar junto do doente, recordava a recomendação encontrada nos papéis de sua mãe, que morrera tão nova e tão triste: "Deixo-te o teu Pai; torna-o feliz, aconteça o que acontecer."

Aconteça o que acontecer: e fora a perda duma outra mulher, a rival da pobre Colette, o que o despedaçara. E torná-lo feliz, agora, afigurava-se-lhe impossível. A menos que o conseguisse tornar feliz duma felicidade mais alta, da única, verdadeira, grande...

"Serei capaz "

Durante a vigília, contemplava o pai. Traços rígidos, olhos cerrados, era de novo o "homem carrancudo" do passado. Fora-se Romain Villanel, fora-se o poeta. Que miséria! Mas que amor! Ah! Feliz Jeanine por assim ter sido amada!

Perturbava-a pensar na morte de Jeanine. Até então, evitara imaginá-la. Nessa noite, porém, as perguntas assaltavam-na, ansiosas. Teria sofrido muito? Teria tido tempo de apelar para Deus? Em que estado se encontraria a sua alma? Certamente, tornara-se uma mulher de conduta irrepreensível; todavia levara, no momento da fuga, como tesouros, as recordações dum passado mais ou menos culpável. Então? Permaneceria presa ao seu pecado e tê-la-ia a morte surpreendido assim Terrível, esse imprevisto! Em dias como os que se viviam, devia-se estar sempre preparado. O Senhor da vida abre tão de repente a porta sobre o Além! Mortes de Pedro Jacquelin, de Marieta, de Odília... mortes preparadas, aceitas, santificadas. E, de outro lado, a morte dessa gente surpreendida pelo estampido das bombas num momento de trabalho, de sono, de pecado. Morte de soldados, de marinheiros, de aviadores, de fuzilados, de prisioneiros; de heróis que agem em segredo... Subia da terra um odor de sangue e um gemido.

Os corpos cessavam de viver. Mas as almas, todas essas almas...

- "Não vais morrer, tu, paizinho", - murmurou num soluço - "não estás pronto. Não disseste o teu sim a Deus."

E pela noite fora ela rezou, enquanto, em seu delírio, João chamava e procurava Jeanine.

- É sério, -disse o médico, depois de ter examinado o corpo que jazia nessa cama demasiado larga - não se nota a mínima reacção. Não o abandone um instante, visto ser enfermeira.

Que dias difíceis! Começava a faltar tudo. Isabel já não conseguia arranjar leite para o doente. Nem fruta, nem remédios. E, pisando, incansável, o solo de França, o exército aliado avançava...

Um dia, João-Lucas entrou, emocionado:

- Adivinhas quem encontrei? A Catarina.

- A Catarina? Oh! Conta.

Saíram do quarto, onde o pai adormecera.

- Sim, a Catarina. Uma Catarina apaixonada. Que olhos, minha filha! Sabes o que veio pedir aos pais? Autorização para casar com o Estêvão Magloire. Só... Foi para ir ao seu encontro que fugiu da Châtaigneraie. Ele estava encarregado duma missão perigosa, no Sul. Ela soube-o. Obteve um posto junto dele e vem agora buscar o consentimento paternal para voltar para lá e tornar-se senhora Magloire. O quê? Então não dizes: "É maluca"

- E tu, não o dizes, João-Lucas?

- Não. Acho estúpido o que ela fez. Mas já há anos que o ama. Nunca desistirá...

- Parecia que o Joel Saint-Yvy...

- Sim, parecia. Mas era engano. Uma rapariga como a Catarina não ama duas vezes. Escusado será dizer que o pai está furioso, que a mãe lhe tem dado mil conselhos razoáveis e inúteis como a maioria dos conselhos. Vem cá ver-te, ela. Olha, o telefone.

Era a senhora Morot-Léandre.

- Isabel, estás ao corrente? Peço-te, faz com que a Catarina renuncie a essa loucura.

Quando Isabel pousou o aparelho, tinha o rosto crispado.

- É insuportável isto! Julgam-me sensata como uma senhora velha. E eu não o sou. Se a Catarina gosta assim tanto do Magloire, não tenho coragem para lhe fazer sermões, o que importa é amar.

- Em todo o caso... Pode ficar viúva dum momento para o outro.

- E os soldados? Não deixam também viuvas?

- E se ele se tornar feio, resmungão, sarnoso?

- Amá-lo-á do mesmo modo. As mulheres são assim, meu amigo.

- A mãezinha, não, - murmurou ele - mas a mãezinha era uma mulher à parte, tão linda!

Essa palavra parecia tudo justificar. Nessa mesma noite, Catarina apareceu, queimada pelo sol, o olhar ardente.

- A mãezinha falou-te? E estás encarregada de me fazeres voltar à razão. Podes começar. Mas previno-te de que perdes o teu tempo.

- Escuta, Catarina, entre nós, nada de segredos. Não te comprometeste com ele?

Ela sacudiu as madeixas negras em que o sol do meio-dia pusera reflexos de cobre.

- Sou uma rapariga. Tão rapariga como tu própria. O Estêvão ficou apavorado quando me viu chegar: fez-me uma cena e não deixa de repetir que eu não devo "sacrificar-lhe a minha vida". Como são estúpidas estas frases feitas Sacrificar-lhe a minha vida? Dou-lha, para que ele a torne mais ainda uma vida... Sei perfeitamente, os pais já me vêem com véus de viúva. Tenho tantas possibilidades de o vir a ser como qualquer rapariga que case com um soldado. E depois, viúva, terei as minhas recordações, as minhas recordações de luz e alegria. A sua música continuará a cantar dentro de mim! De resto, porquê fazerem de mim uma viúva? Que palavra mais feia! Há-de viver muito tempo. Amar-nos-emos. Comporemos juntos obras maravilhosas. Vês tu, há pessoas feitas umas para as outras desde toda a eternidade. o Florêncio e tu; o Estêvão e eu. Nada se pode contra isto.

- E o Saint-Yvy? - perguntou Isabel.

- Vai sofrer, coitado. Disso estou eu certa. Que queres? Fiz tudo o que pude para o amar. Impossível...

- Catarina, já pensaste que os vossos filhos vão ter um pai muito velho? Já pensaste que... talvez até nem tenham filhos

Sobre o rosto móbil e ardente passou uma sombra:

- Sim, pensei. Mas teremos outros filhos: as suas obras. Escuta isto.

Foi para o piano, e os seus dedos ágeis fizeram evolar sons de beleza perfeita.

E depois desapareceu, deixando Isabel perturbada. Que paixão!...

 

NO céu de Paris, os sinos anunciavam a Assunção.

- Dantes - disse João Morlainvile, inclinado sobre a balaustrada do terraço para recolher a frescura deliciosa da manhã e esse ruído de festa sobre a cidade ameaçada - dantes, gostava de acompanhar a procissão de 15 de Agosto, no campo...

Estava curado. Mas sempre igualmente triste. E nunca principiava uma frase sem esta palavra "dantes".

De novo Isabel recebeu de passagem o choque desse desolado "antes". Para o suavizar, uniu as suas frescas recordações de infância às do homem gasto. Depois, querendo arrancá-lo ao passado que o obcecava, propôs:

- Se fôssemos à procissão num jardim de convento? Oh! Aqui perto o metropolitano já não funciona e eu não quero estragar os sapatos.

Ele aceitou. Deixava-se dirigir com uma tal indiferença!

Vestiu o seu mais lindo vestido preto, transparente e leve, e partiram, ele apoiado sobre ela. Isabel nunca passara o 15 de Agosto em Paris. Mas aquele não era um 15 de Agosto como os de outrora, quando toda a vida parecia ter sido retirada da capital para se expandir nos campos. Desta vez, apesar do sol, os parisienses estavam ali, silenciosos e altivos, incertos do seu destino. Nunca tinham amado tanto Paris.

Um jardim sem flores - já nem se regavam os jardins, visto ser preciso poupar a água de que talvez em breve Paris fosse privada -. As árvores mantinham-se belas, e sob as largas folhas dum verde brilhante a procissão desenrolou a sua alvura. Véus de cambraia, chapas de seda leitosa e cintilante de ouro, velhos cânticos de França. Ligeira e alta, a voz de Isabel unia-se à das religiosas.

- Cansado, paizinho? -perguntou entre duas quadras a João cujo braço pesava sobre o seu.

Não obteve resposta. Bastante se irritara Jeanine com esses silêncios! Mas Isabel compreendia. Os anos passados na montanha haviam-lhe dado o gosto por eles. E sabia que, para o poeta, o silêncio povoava-se de grandeza e vida. Deixou que se apoiasse mais fortemente em seu braço. Agora, era a única ternura feminina que possuía. Sentia-o um pouco seu filho.

Quando entraram na capela, Isabel sentiu-se liberta daquela pressão que lhe deixara uma marca vermelha sobre a pele nua. Era a sua vez de sentir-se filha, filha dessa Maria que festejavam. Ajoelhou-se junto de João, que continuava de pé. E versos de Claudel vieram traduzir o seu pensamento turbado de emoção:

Mère de Jésus-Christ, je ne viens pás príer. Je ri ai rien à offrir et rien à demander. Je viens seulement, Marie, pour vous regarder... Vous regarder, pleurer de bonheur, savoir cela Que e suis votre fils e que vous êtes là (*).

Encanto dessa presença maternal, dessa troca de olhares, das "lágrimas de felicidade" que molhavam os dedos pousados nos rostos Mas seriam realmente "lágrimas de felicidade" as desse terrível 15 de Agosto? Poderia haver felicidade? Podia, porque havia esperança...

- Quero esperar, espero. A libertação aproxima-se. O Florêncio voltará. A França seguirá de novo o seu belo destino. Não é assim? dizei, vÓS a quem ela foi consagrada, há três séculos.

 

(*) Mãe de Jesus Cristo, não venho rezar.

 

Nada tenho a oferecer e nada tenho a pedir. Venho somente, Maria, para te olhar... Para te olhar, chorar de felicidade, saber isto Que sou teu filho e tu estás aqui, mas tende piedade, Maria, deste homem que aqui está e já não espera. Já não sabe rezar, nem esperar, nem chorar. Nem fazer versos, ele que punha a sua alma em verso, como Claudel. O mundo vai precisar tanto de poetas!

E versos suplicantes de Claudel voltaram-lhe à memória:

Vous êtes la Femme, VEden de Vancienne tendresse oubliée, Dont lê regard trouve lê coeur tout à coup, Etfait jaillir lês larmes accumulées (*).

Quantas lágrimas se acumulavam no coração de João Morlainville! Sentindo o pai rígido junto de si, Isabel repetia: "Não diz nada, pobre paizinho. Mas ele olha-vos. E vós sois bela, ó Imaculada. Toda bela. Olhai-o. Tocai de súbito o seu coração e fazei que brotem as lágrimas acumuladas."

Quando saíram, impregnados dum perfume de incenso, viu que ele chorara.

Era um dia de Assunção bastante singular. A bandeira nazi flutuava por toda a parte. Camiões cinzentos percorriam as ruas vazias.

 

(*) Vós sois a Mulher, o Éden da velha ternura esquecida Cujo olhar toca de súbito o coração E faz brotar as lágrimas acumuladas.

 

O céu, dum azul demasiado vivo, orlava-se de nuvens ameaçadoras.

Os Morlainville entraram na sua casa fresca e confortável. Sentiram-se bem.

- vou fazer o chá, paizinho. Ainda tenho algum.

Dispôs a mesa com toda a elegância possível nesses dias de miséria: seu pai amava tanto a graça das coisas! Pôs-lhe até algumas flores.

- Dálias, já - exclamou João. - Não costumo gostar delas, mas estas têm um cor-de-rosa lindo e são flexíveis.

- A Denise escolheu-as, para ti, entre todas as do seu jardim.

- Muito gentil... Ela está a tornar-se bonita, sabes. Surge finalmente uma rapariga no lugar da garotinha de traços irregulares. Sim, de facto, são lindas, as dálias. Mas esta flor simboliza o declínio do Verão. Outro Verão de guerra...

- O último. Será essa a bênção deste dia da Assunção.

Falava gravemente. O pai impressionou-se.

- Minha querida, ao pé de ti, readquire-se confiança. Que boa merenda! Onde é que arranjaste tudo isto? Não devias ter ido às reservas. Se formos sitiados...

- Mais uma palavra pessimista! Não te inquietes. Hoje sinto-me leve, tranqüila.

- Eu - confessou ele - encontrei um pouco de paz. Naquela capela havia não sei que beleza repousante.

Pai e filha compreendiam-se por meias palavras. Isabel seguiu a idéia esboçada.

- Sim, uma beleza branca, fresca. Uma presença séria e terna, deliciosa. O que acho maravilhoso é que, junto da Santa Virgem, sentimos sempre uma alma de criança.

- É isso - aprovou.

- Paizinho, mais chá? Uma torrada? Sabes o que fazias, se fosses amável? Ias escrever alguns versos a propósito da procissão de 15 de Agosto. Para mim. Para que eu os guarde toda a minha vida. Em recordação.

Ele encolheu os ombros:

- Se quiseres... Não sairá grande coisa.

- Que importa? Não os vou mostrar a ninguém.

- Nem ao Florêncio?

- Ao Florêncio, sim. mostro-lhe tudo. O Florêncio não é qualquer.

Florêncio... "Onde estará?" perguntam ambos a si próprios sem o dizerem. Sem notícias, desde há meses. E já ninguém enviava encomendas para o seu endereço: suspensas. Que fome sofreria, meu Deus! Na esperança de que o rádio trouxesse algum indício que permitisse adivinhar a marcha dos acontecimentos, ela deu a volta ao botão do aparelho.

- Dás licença? Sei que, neste momento, detestas música, mas vai já acabar: são horas do noticiário.

Escutaram e depressa chegou a grande nova: um desembarque francês, nas costas da Provença. O rosto pálido de João iluminou-se. E Isabel - não era seu costume dançar quando estava contente? - dançou, o que fez rir o pai. Oh! Alegria, ele rira! Beijou-o:

- Confessa que eu tinha razão em esperar. Anda, a guerra vai acabar mais depressa do que julgamos.

- Pequenina fada da esperança... Pequenina fada da esperança... -murmurou acariciando a seda escura dos caracóis que se lhe ofereciam sob a mão esguia.

Inconscientemente coquette - gostava tanto de agradar - ela teve um sorriso adulador:

- Tu vais fazer os meus versos! Oh! Paizinho, este desembarque na Provença, que coisa fantástica!

- Mas, agora me lembro, a tua amiga Catarina voltou para lá há pouco. Os pais devem estar aflitíssimos! Tens que ir ver os Morot-Léandre. Sim, podes deixar-me. Na tua ausência, obedecer-te-ei, princesa, escreverei versos... O chá fez-me bem - é uma bebida inteligente. Vês tu?

Ela sentiu, com alegria, que, pela primeira vez, a solidão lhe seria salutar. Assim, partiu, leve, para essa casa da Rua da Torre que adorava. Bem entendido, ninguém falou do acontecimento do dia. Esteve lá a Noelle com o marido, ambos cheios de entusiasmo e confiança.

- A guerra está no fim. Os prisioneiros vão regressar.

O Sr. Morot-Léandre era menos optimista.

- Isto ainda pode durar muitos meses. Então Denise disse-lhe sem preâmbulos:

- Não armes em velho caturra, por favor.

- Bravo, Denise! - gritou o cunhado Roland.

- É preciso pensar como gente nova, agir como gente nova, preparar uma França nova, um mundo novo.

Uma esperança imensa os soerguia. Todos tinham menos de trinta anos. Os pais ainda não ousavam erguer bem alto a cabeça.

E à noite, nessa noite de 15 de Agosto, uma tempestade diluviana desabou sobre Paris, lavando tudo, iluminando tudo de lívidos clarões. Dir-se-ia ser o sinal.

Nessa noite, como seu pai, Isabel compôs versos.

Desde então, cada dia foi um dia de fogo. As notícias atropelavam-se: "Os aliados aproximam-se. Estão em Mans. Estão em Chartres." João-Lucas raramente aparecia em casa. Pálido, despenteado, mal vestido, uma chama ardente no olhar. O pai inquietava-se.

- Onde é que ele anda?

Então Isabel deu-lhe a conhecer o motivo dessa ausência. João fechou os olhos:

- Ele tem razão. Mas a morte irá roubar-mo também.

- Não, a mãezinha protege-o, lá de cima. E a litania de amor cego voltou.

- A tua mãe... teria sofrido muito neste momento... Mas ela era forte... sensata... Amava-nos tanto.

- Sim - respondia Isabel, estendendo um véu sobre a memória daquela que, apesar dos seus defeitos, fora uma mãe para si. Pobre Jeanine loura e linda!

O gás faltou... Passou-se a cozinhar com papel. A electricidade desapareceu... Utilizou-se a luz trêmula das lamparinas. Ia-se para a bicha do pão logo de madrugada e era tão pouco o que havia para comer, que a gente, esfomeada, não resistia à tentação de roer a ponta da côdea. De tempos a tempos ouvia-se uma descarga de fuzil ou metralhadora. Ninguém sabia donde vinha.

Um dia, começaram a cortar as árvores ao longo das avenidas: caíram, jovens, plenas de vida na sua folhagem de verniz verde. Deitaram-nas por terra, e Paris fez barricadas. Bateram-se nas ruas. Os carros de bombeiros faziam retinir, incessantes, as suas duas notas de alarme. As explosões sucediam-se mais ou menos próximas. Mesmo assim, caminhava-se. As notícias voavam de boca em boca: "Estão em Maintenon... em Versalhes... Vão entrar."

Sim... mas antes disso? - Passou-se uma noite inteira nas caves.

Ninguém via o João-Lucas. João-Lucas não era já o estudante mundano: era um rapaz do povo francês, um combatente de olhar duro. Isabel admirava essa criatura nova.

E depois, na noite de 24 de Agosto chegou a grande noticia: a guarnição alemã capitulava! Ninguém se deitou. E nas sombras azuis dessa noite de Verão, dessa noite de estrelas, todos os sinos repicaram! Paris estava liberta! Alegria, lágrimas de alegria!

Isabel e seu pai estavam no terraço, escutando a respiração de Paris, bebendo a liberdade a plenos pulmões, e eis que um homem atravessa a Avenida, se detém à beira do passeio, ergue os olhos.

Meu Deus, aquele homem! Isabel inclina-se e ele estende os braços.

- Isabel!

- Florêncio! - gritou.

Ele subiu. Sem mesmo o olhar, ela caiu-lhe nos braços. Ele respirava forte. Repetia: "Minha querida! Minha Liseron!" E as lágrimas de ambos confundiam-se.

- Tu... Você - dizia ela. Por fim, ele afastou-a de si:

- Deixa-me ver-te. És sempre a minha Liseron!

E ela por sua vez:

- Florêncio, emagreceste. Florêncio, o sofrimento marcou-te o rosto, mas acho-te mais bonito ainda!

- Vem - disse ele - vem a casa. Fui lá primeiro, fui. Mas não posso separar-me de ti. Não seria possível dormir numa noite como esta. Vamos passear para o jardim. Vem, meu amor. Põe um casaco sobre o teu vestido leve. Os teus cabelos são tão macios! Tudo é doce e fresco em ti. Vem... a mãezinha disse que sim.

- Oh! -exclamou ela, rindo através das lágrimas. - Ele disse: "a mãezinha disse que sim" exactamente no tom de outrora.

Então a voz do rapaz estrangulou-se:

- É que é tão bom, tão bom poder dizer "mãezinha"!

Assim foram, apoiados um no outro. Nem mesmo reparavam nos tiros que partiam dos telhados, Quando chegaram, Isabel lançou-se nos braços da mãezinha do Florêncio.

- Obrigada por mo ter enviado! Obrigada por me ter permitido vir!

- És nossa filha-respondeu ela. -E, sem ti, o Florêncio não poderia sentir-se completamente feliz.

Desceram ao jardim.

- Lembras-te - disse Florêncio - da noite do baile e do teu vestido de organdi? Quantas vezes pensei nele, lá, e parecia-me sentir ainda o teu perfume.

- Sim, "o amanhecer dum lindo dia". Está presa a Rosa, a caixeirinha.

- Lembras-te da madressilva que colhi, para ti, em Petites-Dalles? Eras uma miúda e eu já te admirava.

- Guardei-a. Guardá-la-ei toda a minha vida.

- Lembras-te do laço de veludo azul que caiu dos teus cabelos na floresta de Fontainebleau, de que eu fizera uma relíquia? Ainda o tenho.

Consegui escondê-lo.

- E o nosso noivado, na Châtaigneraie, na véspera do dia trágico. Se soubéssemos a dor que se aproximava! O que nós sofremos, Florêncio!

- Mas julgo que me tornei melhor. Digo-te

isto simplesmente. Sabes, tem-se tempo para aprofundar as coisas, por detrás dos arames farpados, e para distinguir as que valem a pena. Aqui, qual é o ambiente?

- Há gente fantástica. Outros, só pensam no dinheiro. Nós dois, Florêncio, que seremos

nós dois?

- Gente nova que quer refazer a França.

 

VINTE e cinco de Agosto... Manhã azul

como um vitral. Todas as balaustradas se enfeitaram de tricolor durante essa noite de Agosto cintilante de estrelas. Sobre o Arco de Triunfo desenrola-se a longa facha azul, branca, vermelha.

Paris exulta. Os soldados franceses estão ali: rostos tisnados pelo sol, clarão de dentes brancos. Beijam-nos. Ouvem-nos contar coisas, coisas. As mulheres vestiram os seus mais lindos vestidos que dançam, claros e floridos, sobre as pernas nuas. Vão de cabelo ao vento. Trepam sobre os carros de guerra. Beijam garotos de uniforme. Sorriem à nova França.

Mas há sombras em meio da alegria. Onde está João-Lucas? Catarina? Contaram a Florêncio a sua história. Esperaram que ele dissesse, encolhendo os ombros: "A rapariga é doida." Mas eis que da sua boca caem estas palavras:

- Deixem-na casar com o seu Magloire, visto que ela o ama. Ora, paizinho, que importa que a felicidade dure pouco ou muito? A felicidade não se mede segundo o tempo, mede-se segundo a intensidade. Actualmente, sobretudo.

"Como se tornou sério!" - pensa Denise. E ousa confiar-lhe o seu tormento:

- Florêncio, escuta: Vais chamar-me parva. Mas eu... eu também gosto de alguém.

- Tu? Um bebê desses? E esse alguém chama-se...

- Oh! Tu sabes: João-Lucas. Queria tanto saber o que foi feito dele...

- Decididamente, as minhas irmãs são autênticos vulcões.

Denise começa a chorar. Ele levanta o dedo:

- Schiu! Não se chora cá em casa!

- Chora-se, pois! - protesta a petiza. - Eu sempre chorei. Não posso conter-me. Flô, se o João-Lucas morreu, seguirei a Solange.

- Queres dizer...

- Irei para o convento.

- O quê? A Solange quer entrar para o convento? Aquela rapariga insuportável, que se pintava, namoriscava, não obedecia a ninguém?

- Mudou, afianço-to. Sim, vai. E eu também vou se...

- Parvinha, não está perdido, o teu João-Lucas.

- Sabe-se lá? Vi uma coisa horrível esta, manhã: um ramo tricolor no meio da rua, porque. ali... fora morto um rapaz.

Desde há cinco anos que Florêncio não via uma mulher chorar. Ontem, a mãezinha tinha chorado, depois a Isabel e, agora, Denise. Atingi-lo-ia o contágio? O seu coração batia apressado sob a camisa de linho, a "sua" camisa de outrora, que tivera a alegria de encontrar no "seu" armário, mas cujas mangas estavam já curtas de mais.

- Denise - murmurou, acariciando a seda loura dos cabelos da irmã - as lágrimas das mulheres enfraquecem a coragem dos homens. Paris é livre, mas a guerra ainda não acabou. vou partir de novo, para combater. É preciso que saibas dominar-te, compreendes?

- Sim-suspirou ela. - Obrigada. Falas-me como a uma pessoa crescida. Os pais julgam-me sempre um bebê.

- Já o não és. Quando voltei, perguntei a mim mesmo: "Quem será aquela rapariga " Não reconheci nela a "migalhinha". O que tu cresceste e... embelezaste! Não cores assim, minha idiota. Ninguém te disse que estavas a tornar-te jeitosa? Não? Nem sequer o João-Lucas?... Escuta: já não és um bebê. Mas os pais têm necessidade de ver em ti uma criança. É para eles uma consolação. Aceita!

- Sim, Flô. Mas... eu queria também que o João-Lucas me tomasse a sério!

O Florêncio de outrora teria troçado. O Florêncio de hoje disse com grave ternura:

- Mostra-lhe que amadureceste. Como? Tornando-te cada dia melhor. No fundo, minha pintainha, é só isso que conta.

Então ela admirou-o. E votou-lhe um culto apaixonado quando ele obteve licença para que ela fosse aos Campos Elísios ver o desfile.

- Vai-acabara por dizer o Sr. Morot-Léandre.

- Acima de tudo, é preciso que a juventude tenha coisas destas para recordar.

Perdida na multidão, contemplou o extraordinário desfile desses dias de delírio. Aclamou os que passavam. E de súbito, de pé sobre um carro, avistou João-Lucas. Trazia um braço ao peito. Mas vivia. Ah! Que belo momento!

Quando voltou para dar a notícia a Florêncio não o encontrou.

- Está em casa da Isabel - explicou a mãe. Sim, imagina que caí na asneira de dizer que já não se podia comprar tecido para fazer vestidos. Sua Ex. a foi aos arames, como antigamente "O quê? Então a Isabel não pode comprar o fato de noiva? Vai casar-se de tailleur como a Noèlle? E preto, visto estar de luto?" Não consegui dominá-lo. Uma tempestade com efeito, chegara sem fôlego a casa dos Morlainville.

- Parece que já não se consegue encontrar tecido? Então você casa-se de tailleur? A idéia arrepia-me. Sonhei tantas vezes com o nosso casamento, com o seu vestido de cetim branco com tule e flores!

Ela pôs-se a rir, o que o irritou. Era ainda um violento, se bem que interiormente equilibrado. Ela pousou-lhe a cabeça no ombro e ele sentiu-se acalmar.

- Julga que eu sou tonta? O meu vestido de noiva Há muito tempo que o comprei.

- Ora ainda bem! Mas... deve estar fora de moda, Liseron querida!

Uma gargalhada:

- Os homens têm cada uma! Venha ao meu quarto.

Ele seguiu-a, e ela tirou da cômoda uma caixa de cartão presa por um fio dourado, uma dessas caixas de outrora, cheias de promessas. Soergueu a tampa, um papel sedoso vibrou sob os seus dedos, e a beleza sumptuosa das sedas de França apareceu: níveo cetim sobre que seria talhado o vestido de noiva de Liseron.

- Ajude-me! - pediu.

Ele olhou as mãos rudes, mãos de trabalhador.

- Empreste-me umas luvas, sou capaz de romper o cetim.

E ambos desfizeram as dobras e desenrolaram um rio deslumbrante de alvura sobre a cama, sobre as confortáveis poltronas baixinhas.

- Tanto! - exclamou Florêncio. - Você não precisa disto tudo.

- E a cauda?

- Sim, a cauda...

Suave, com as mãos enluvadas, pegou na ponta do tecido e envolveu com ele a noiva.

- És linda - murmurou. - Esperei-te tanto tempo!

À noite, foram juntos ao Arco de Triunfo que erguia os seus arcos luminosos e pálidos para o veludo azul-escuro do céu. Apertados um contra o outro, eles sentiram que a sua felicidade pessoal se perdia, como gota de água, no destino do país e do mundo.

- Tudo recomeça - disse Florêncio. - Havemos de rejuvenescer a França!

Também João Morlainville fora à Etoile. Mas com uma alma despojada.

"Esta alegria... e ela não está aqui. Não assistirá à vitória."

Não, não estava ali, a sua amada. Mas estava ali o homem cujo talento podia erguer multidões. com seus olhos de poeta fixos no imenso estandarte que, tremulando ao vento de Verão, trazia sucessivamente à luz o azul, o branco e o vermelho, compreendeu que, também a si, o esperava a França. E pronunciou uma jura, em meio da multidão, em meio da noite:

- Vou de novo viver.

 

 

                                                                                                    Berthe Bernage

 

 

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