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Giovanna e Matilde não parecem ter nada em comum, excepto o facto de morarem no mesmo bairro de Milão e de às vezes se cruzarem na rua. A primeira é uma encantadora antiquária, casada e com uma filha adolescente; a outra é uma pobre idosa que vive sozinha numas águas-furtadas das quais obstinadamente não se deixa despejar. Uma série de circunstâncias dramáticas aproxima as duas mulheres, que aprendem a conhecer-se e a travar uma profunda amizade. Matilde ajudará a jovem a encontrar a serenidade e o amor, enquanto Giovanna acompanhará Matilde ao longo da sua caminhada final.
Uma história dominada pela paixão, que nos retrata, com o talento habitual de Sveva Casati Modignani, duas inesquecíveis figuras femininas.
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Giovanna acordou em sobressalto. Uma rajada de vento tinha escancarado as portadas das janelas do seu quarto, deixando irromper o sol da manhã. Olhou para o relógio que estava em cima da mesa-de-cabeceira: eram oito horas.
Teve um gesto de contrariedade. Ao domingo, normalmente, concedia-se mais algumas horas de descanso. Levantou-se, sonolenta, afastou as imaculadas cortinas de voile e observou, para lá dos vidros, o céu de Abril intensamente azul. Abriu a janela. O vento, que criava redemoinhos de pó e folhas, bateu-lhe na cara, fazendo-a estremecer. Prendeu as portadas nos ganchos e voltou a fechar rapidamente a janela. Era inútil voltar para a cama: não ia conseguir adormecer de novo.
Vestiu o roupão para ir à cozinha preparar um café. Parou um instante em frente à porta entreaberta do quarto de Giny: a filha dormia o sono profundo dos jovens.
O apartamento estava mergulhado no sossego típico das manhãs dominicais de Milão. O tráfego quase inexistente, alguns vizinhos ausentes durante o fim-de-semana, a empregada longe, no seu dia de folga, o silêncio apenas quebrado pelo toque dos sinos na igreja de San Marco.
Enquanto o café filtrava, recapitulou o programa para aquele dia: almoço em casa, com a filha, tarde em Como, com Stefania Maroni, a sua amiga mais querida, jantar no lago, em casa dos Minervini, antiquários como ela e, como ela, proprietários de uma loja
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de arte na via Fiori Chiari, e a noite em Milão, num leilão importante. Um belo domingo, pensou, enquanto saboreava o café, ao mesmo tempo que percorria preguiçosamente as várias divisões da casa. Observou-se fugazmente num espelho que lhe devolveu a imagem de uma bela mulher de cabelos acobreados, olhos grandes, verdes, e sardas suaves sobre uma pele clara.
Entrou na sala de estar. Havia livros espalhados um pouco por todo o lado. Fixou a sua atenção numa antologia de literatura alemã. Era de Giny. Folheou-a distraidamente e veio-lhe à mão uma pequena folha de papel dobrada. Abriu-a. Era a receita médica de um anticoncepcional em nome de Eugenia Lanciani.
Sentiu a terra fugir-lhe debaixo dos pés.
Não podia tratar-se da sua menina, aluna exemplar da escola alemã. Aquela Eugenia Lanciani que tomava a pílula não era com certeza a sua Giny. Mas quantas mais Eugenias Lanciani conhecia ela? Só a sogra, e estava fora de questão que aquela receita tivesse alguma coisa a ver com ela, uma vez que já tinha ultrapassado a idade fértil havia algum tempo.
- É da Giny - concluiu, aterrorizada.
Apertou convulsivamente na mão aquele papel e esperou que o chão se abrisse e a engolisse. A sua pequena, a sua preciosa Giny estava irremediavelmente enxovalhada. Giovanna sentiu-se culpada por não ter conseguido protegê-la adequadamente. Achava que tinha feito o possível para a manter afastada dos homens. Giny tinha apenas cinco anos quando ela começou a tremer com a ideia de que alguém pudesse sequer pensar em tocar a filha.
- Como é que isto pôde acontecer? - perguntou a si mesma, sufocando as lágrimas. Com um gesto nervoso, atirou para trás uma madeixa de cabelos, saiu da sala e entrou de rompante no quarto da filha. Estava fora de si. Abriu rapidamente as janelas e acordou a rapariga com brusquidão.
Giny teve alguma dificuldade em restabelecer o contacto com a realidade, enquanto a mãe a fitava com um olhar feroz. Sentou-se na cama, sem perceber a razão de um despertar tão brusco. Vestia um pijama de seda de riscas azuis e brancas que Giovanna lhe tinha comprado no Harrod's, em Londres, uns meses atrás. Era extraordinariamente bonita e parecia-se com o pai. O mesmo perfil etrusco, os mesmos lábios grandes e cheios, os mesmos cabelos negros
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e encaracolados, os mesmos olhos escuros e rasgados em direcção às têmporas. Da mãe tinha herdado uma pele perfeita e as sardas delicadas.
- Mas o que é que se passa? - perguntou com uma voz ainda empastada de sono.
- Desde quando é que tomas a pílula? - perguntou a mãe, agressiva e com uma voz gelada, ao mesmo tempo que abanava a receita médica à frente da cara dela.
- Oh, não! - exclamou a rapariga, cobrindo os olhos com a mão para não ver aquele papel embaraçoso.
- Oh, não! já eu disse. Vamos lá levantar, minha menina - ordenou Giovanna, enquanto afastava com um gesto colérico a roupa da cama.
- Deixa-me em paz - gritou Giny.
- Levanta-te, temos de conversar - insistiu a mãe. - Não te vou deixar em paz. Eu é que devia ser deixada em paz. E estava em paz, até há dois minutos, antes de descobrir esta história medonha.
Giny mantinha-se obstinadamente ancorada à cama, com a almofada apertada nos braços. Giovanna, furibunda, esteve quase a arrancar-lha, mas dominou-se.
Não foi fácil convencer a jovem a sair da cama e, quando se pôs em pé à sua frente, Giovanna constatou com surpresa que a filha estava meio palmo mais alta do que ela. Por que tinha continuado a considerá-la uma menina?
- Agora vais contar-me tudo - disse, ao mesmo tempo que a agarrou por um braço e se dirigiu à sala de estar.
- Que chatice! - protestou Giny, libertando o braço.
- Faz o que eu digo - ordenou Giovanna, levantando a voz.
- Grita, grita mais. Assim o prédio inteiro vai poder ouvir-te. Vê que rica figura, para uma pessoa como tu, que liga tanto à reputação - respondeu a filha, agressiva, numa tentativa de se defender.
O prédio era uma construção elegante que remontava aos anos trinta. Situava-se na via Fatebenefratelli, perto da Esquadra Central, não muito longe do antiquário de Giovanna. Apartamento e loja tinham sido um presente de Jacopo Lanciani, o marido.
Giovanna teve de recorrer a toda a sua capacidade de auto-controlo, que sentia vacilar, mas finalmente conseguiu persuadir Giny
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a acompanhá-la até à sala de estar, onde a mandou sentar num sofá. Depois instalou-se em frente a ela.
- Agora, quero saber tudo - repetiu num tom peremptório.
- Mas que raio queres tu saber? Tu fazes a tua vida. Eu faço a minha. Ponto final - replicou a rapariga, decidida.
- Tu estás a tentar provocar-me, e eu quero uma explicação. Julgava que a tua vida era transparente e, de repente, descubro que não sei nada de ti. Um problema, não achas? - observou Giovanna, amargamente.
- Um problema teu - disse Giny.
- E teu também, a partir do momento em que és obrigada a fazer as coisas às escondidas.
- Às escondidas só faço amor - protestou a filha.
- E achas pouco? Com quem? Desde quando? Porquê? insistiu a mãe. A ideia de Giny fazer "aquela coisa" aterrava-a. Viu, num relâmpago, o rosto sujo de chocolate de uma menina e a mão rude de um homem que, ao tentar limpá-lo, o besuntava ainda mais. Uma imagem turva e inquietante que a fez estremecer.
- Queres mesmo que te explique porquê? Mas como é que me podes fazer uma pergunta tão idiota. Faço amor porque estou apaixonada. Tenho dezasseis anos e, na minha idade, parece-me normal. Se calhar não é tão normal que o faças tu, que tens quarenta anos...
- Não continuou, apesar de lhe apetecer concluir: E já és velha.
O primeiro impulso de Giovanna foi o de protestar em relação àquele dado. Tinha trinta e nove anos e era muito sensível à passagem do tempo.
- Aquilo que eu faço, só a mim diz respeito. Aquilo que tu fazes, ainda me diz respeito a mim, e continuará a dizer enquanto viveres nesta casa. Percebeste? Não, como é evidente. Caso contrário não terias dado esse salto. Quando foi que isso aconteceu?
- Há dois meses. No dia 14 de Fevereiro, dia dos namorados
- disse Giny.
- Muito romântico. - Giovanna não conseguiu conter a ironia. E continuou: - Quem é ele?
- Não me apetece falar sobre isso. De qualquer maneira, sei que não te vai agradar. Do bilião para baixo, os homens para ti não existem - replicou, provocadora.
- Já percebi: não tem um tostão - concluiu a mãe.
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Há muito tempo que Giny desejava falar sobre aquela história, que a absorvia totalmente. Tinha-se calado porque tinha a certeza que Giovanna não ia aprovar. Inconscientemente, porém, desejava que a descobrisse
Tu contavas tudo a tua mãe, quando tinhas a minha idade?
quis saber.
Quando eu tinha dezasseis anos, a minha mãe já tinha morrido E tu bem sabes. Em qualquer caso, nunca pensaria em comportar-me como tu. Mas se o tivesse feito, as minhas irmãs tinham-me dado uma tareia - declarou.
Bem, fizeste-o aos dezoito anos. Não me digas que não é
verdade, porque eu sei. Foi com um comerciante de automóveis usados. Depois é que apanhaste o pai - disparou Giny, olhando para ela com ar de desafio.
A bofetada atingiu-a antes que tivesse tempo de a evitar.
- Nunca digas que eu apanhei o teu pai. Eu amei-o. E ainda o amo - protestou Giovanna, profundamente ofendida. E continuou: - Quem foi que te contou essas maldades?
- Estou a odiar-te com todas as minhas forças - gritou Giny.
- E não são maldades. A tia diz-me sempre a verdade.
- Qual das duas? - perguntou, apesar de já saber que a delatora era Margherita, a irmã mais velha, a vítima da família que, por inveja, ainda não lhe tinha perdoado a escalada social e o sucesso que daí derivara. Lúcia, a segunda, era completamente diferente e não se metia nos assuntos das outras pessoas.
- Adivinha - provocou a filha.
- Não me interessa - rematou Giovanna. - Até porque quem está a ser interrogada não sou eu. Portanto, quem é ele?
- Chama-se Paolo. Tem vinte e cinco anos. Uma mulher e um filho de dois anos. Foi obrigado a casar porque ela estava grávida. Mas não a ama. Nunca a amou. Ela é uma víbora. É vulgar e gananciosa. O dinheiro nunca lhe chega. Atormenta-o de todas as maneiras e é mais ignorante que uma cabra - revelou Giny de um só fôlego, dominada por um irrefreável ataque de ciúmes.
Percebo - suspirou Giovanna. - São todas assim, as mulheres que os homens traem. E, como é evidente, quando eles as levaram Para a cama pela primeira vez não eram vulgares, nem
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gananciosas, nem ignorantes - prosseguiu, com uma ironia que a filha não captou.
- Exactamente. E falsa também. Antes de casarem era uma querida - acrescentou com extrema seriedade.
- Imagino que ele, o Paolo, tenha sido obrigado a renunciar à carreira, aos estudos e quem sabe a que mais por causa de um casamento forçado - replicou a mãe, quase enternecida com tanta ingenuidade.
- Exacto. Teve de abandonar os estudos e agora trabalha como um doido para manter aquela mulher que gasta às mãos-cheias continuou Giny, acalorada.
- Em que é que ele trabalha, o desgraçado?
- Na moda - respondeu, evasiva.
- Podes ser mais precisa?
- É representante de roupa interior para senhora - revelou, após um instante de hesitação.
Naquele ponto, Giovanna estava dividida entre o riso e o choro. Tinha sonhado para Giny tudo aquilo que ela nunca tivera. Uma festa maravilhosa para comemorar os dezoito anos, uma licenciatura com distinção, um marido que lhe oferecesse aquilo que Jacopo lhe tinha garantido a ela, e muito mais ainda. Giovanna nunca tinha conseguido sacudir de cima de si as suas próprias origens modestas e continuava a pensar que as condições para uma vida decente eram, para além de um trabalho de prestígio, as férias de Inverno na Áustria ou na Suíça, as de Verão num barco no Mediterrâneo, um casamento que incluísse pelo menos duas empregadas, uma casa na cidade e outra no campo, uma considerável conta bancária, jóias e, mesmo à frente do nariz dos defensores dos direitos dos animais, meia dúzia de casacos de pele. Giny estava a destruir aquele sonho.
- Desiludiste-me - disse por fim, com um tom de voz neutro. - Deixaste-te perder por causa de um impostor que tem mais dez anos do que tu e, como se não bastasse, uma mulher e um filho às costas. Que horror!
- Não pensavas assim se fosse um milionário - respondeu a jovem, agressiva.
Giovanna não respondeu à provocação. - Um homem não se mete com uma menina, ainda que ela se ache uma mulher madura e
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responsável. A partir de hoje, em qualquer caso, deves considerar encerrada essa história com o teu vendedor ambulante - declarou.
- Nunca. Ele é o homem da minha vida. Até te desafio a impedires-me de me encontrar com ele - reagiu num tom melodramático.
- Tu não desafias ninguém. Se tu não cortares com essa relação, vou ter de o fazer eu, com uma denúncia. Podes ter a certeza de que vais ver o teu Paolo fugir como uma lebre. Porque esse cavalheiro, sedutor de menores, é seguramente um infame, pronto para te abandonar ao mínimo sinal de perigo - disse Giovanna.
- Não é verdade. Tu não o conheces. Mais depressa fugirá comigo, para longe deste teu mundo nojento e burguês. Eu conheço bem os teus pontos de referência: roupa de marca, jóias valiosas, recepções em casa, amizades correctas. Eu odeio tudo isso. Percebes?
Giny soluçava, desesperada. Giovanna levantou-se e ficou em pé à frente dela, pensativa. A filha atirava-lhe à cara acusações às quais não sabia como reagir.
- Se tu tivesses um pai, não tínhamos chegado a este ponto deixou escapar. E logo depois lamentou a infelicidade do comentário.
Para Giny, porém, a isca lançada era muito útil.
- Eu tenho um pai - respondeu. - Mas tu, por acaso, esqueces-te muitas vezes de que tens um marido.
Jacopo Lanciani era um tema espinhoso entre as duas. Giovanna vivia há muito tempo praticamente separada do marido, apesar de continuar casada com ele. Uma situação ambígua que se repercutia de modo negativo, sobretudo em Giny.
- Pára de fazer juízos precipitados sobre mim e o teu pai ordenou.
- Sobre o pai, nunca. Mas sobre ti... - rebateu, sem se deixar atemorizar.
Se Giovanna tivesse de explicar a Giny os motivos daquela estranha circunstância pela qual Jacopo vivia em Florença e ela em Milão, ia encontrar-se numa situação embaraçosa. Tudo começara no início da doença do marido. Giny, nessa altura, tinha quatro anos.
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O primeiro sinal da doença manifestou-se uma manhã de Maio, quando o sol irrompeu no quarto onde dormiam. Giovanna acordou. Observou os ramos oscilantes do plátano, no jardim. Depois olhou para o marido, que continuava a dormir. Ficou imóvel, junto dele, a ouvir a sua respiração. Ela tinha trinta anos. Jacopo, trinta e cinco. Era ainda o mais bonito, o mais querido, o mais extraordinário dos companheiros. Com a ponta de um dedo seguiu o percurso do seu perfil. Jacopo abriu ligeiramente os olhos e sorriu-lhe. Do quarto ao lado, chegou até eles a voz terna da pequena Giny que chamava pelos dois.
- A nossa filha quer-nos - sussurrou ele.
- Vou lá já - decidiu Giovanna, e saltou da cama.
- Vamos os dois - disse prontamente o marido, ao mesmo tempo que afastava os cobertores. Mas, ao levantar-se, vacilou. Teve de se agarrar à cabeceira da cama para não cair.
- Tropeçaste? - perguntou a mulher.
Jacopo olhou para ela, aflito. - Estou sem força na perna.
- O que é que se passa? - perguntou Giovanna, preocupada.
- Não sei. É como se esta perna não me pertencesse - explicou. Estava pálido e confuso.
- Deita-te. Vou já chamar o médico - decidiu ela.
- Não vale a pena, já passou - sossegou-a.
Riram-se os dois do que tinha acontecido e entraram no quarto de Giny, que estendeu os braços para eles.
Aquele mal-estar repetiu-se no dia seguinte, e as análises clínicas confirmaram que Jacopo sofria de uma doença crónica, para a qual não havia cura.
Estavam casados há dez anos. Ela tinha estudado, trabalhado e aprendido a difícil profissão do mercado da arte na loja florentina dos Lanciani, na via Tornabuoni.
Nascida e crescida em Milão, Giovanna transferiu-se para Florença depois do casamento e pensou que aquela passaria a ser para sempre a sua cidade. O entendimento com o marido era perfeito. As relações com Eugenia, a mãe dele, eram óptimas. Gozava do afecto dos parentes e da simpatia dos amigos.
A harmonia familiar que, até àquele momento, fora perfeita, começou a quebrar-se por causa da doença de Jacopo. Ele adorava-a e Giovanna, que correspondia àquele amor, revelou-se terna e
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dedicada a assisti-lo, mas incapaz de aceitar o veredicto dos médicos.
Giovanna não conseguia conviver com a doença e com a perspectiva da morte. Desde sempre, o sofrimento dos outros, sobretudo o das pessoas que amava, causavam-lhe um mal-estar profundo que não sabia explicar nem suportar. Começou a criar alguma distância em relação ao marido.
Os Lanciani tinham também um antiquário em Milão, na via Fiori Chiari, e Giovanna, com o pretexto de acompanhar o negócio mais de perto, decidiu passar em Milão alguns dias por semana. Levava sempre Giny com ela. Obstinava-se na esperança de que Jacopo havia de se curar um dia. Entretanto, ia preparando noutro sítio um ninho para ela e para a filha.
Jacopo não fez nada para a impedir. Aliás, estimulou aquele afastamento, ofereceu-lhe um apartamento na via Fatebenefretelli e passou para o nome dela a loja de Milão. Concordou com Giovanna quanto ao facto de Giny frequentar a escola primária em Milão. Consequentemente, as visitas a Florença iam diminuindo. A maior parte das vezes era Jacopo que ia ter com ela. A família reunia-se durante os fins-de-semana: ele fingia que estava bem, Giovanna fingia acreditar que era assim.
Os anos passaram, e quando o marido deixou de estar em condições de se deslocar a Milão e o trabalho de Giovanna se tornou mais intenso, os encontros foram substituídos por longos telefonemas. Ele era pródigo em conselhos, ela sentia-se cheia de gratidão.
Giny ia ter com o pai e com a avó sempre que o desejava.
No seu canto, Giovanna sentia tanto a falta de distracções e frivolidades que esquecia muitas vezes o marido e a sua doença. Já não ia a Florença há um ano. Agora, pela primeira vez, a filha obrigava-a a enfrentar a realidade brutalmente.
- Que reservas tens em relação a mim? - indagou, hesitante.
- Há coisas que nunca me convenceram. Sempre me perguntei por que razão decidiste que eu vinha para Milão, quando em Florença tenho um pai doente, que adoro, e uma avó de quem gosto muitíssimo. Em Milão tu passas o tempo entre o trabalho e os compromissos sociais. Sempre me falaste do pai como se fosse uma divindade, e entretanto sais com outros homens. O pai sempre me falou de ti como se te adorasse, e entretanto vive com a Ottilia, e eu
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ainda não sei se ela é amante ou enfermeira. Tenho-me sentido cada vez mais confusa. A nossa família é muito estranha. Eu sinto-me só, mãe. Sempre me senti. Apaixonei-me pelo Paolo e finalmente sei que pertenço a alguém. Por que me queres privar desse direito?
Giny nunca lhe tinha feito um discurso tão consistente e tão claro: Giovanna escutara-a de pé, em frente à janela da varanda, de costas para a filha. Observava a comovente inconsistência das flores de jasmim e identificava-as com a sua personalidade.
- És uma mulher inconsistente - tinha-lhe dito a sogra muitos anos atrás, quando Jacopo decidiu casar com ela.
Sempre tinha existido nela uma necessidade absoluta de se amar a si própria, ignorando o resto do mundo. Vivia sequiosa de felicidade e assustada pela miséria, pelas doenças, pela morte. Pensou que a experiência lhe tinha ensinado quase tudo, excepto a capacidade de aniquilar a ferradela do egoísmo de que vivia prisioneira. Giny tinha-lhe falado de solidão. Sentiu-se por sua vez a mais só, a mais triste, a mais infeliz das mulheres. Voltou-se lentamente para a filha e disse, baixinho: - Por hoje, acho que já ouvi o suficiente. Se houver mais pormenores, peço-te que me poupes a eles.
Admirou a extraordinária beleza de Giny. E desejou que aquela paixão por Paolo se consumisse rapidamente sem a fazer sofrer demasiado.
- Tu és a pessoa que eu mais amo na minha vida e, por muitos erros que possa ter cometido contigo, acho que não podes ter dúvidas quanto a isso - afirmou.
- Está bem - respondeu Giny. - Agora posso voltar para o meu quarto?
- Podes fazer o que quiseres - respondeu Giovanna, com um ar cansado.
Tocou o telefone no momento em que a jovem ia a sair da sala.
- Atende tu, por favor. Se perguntarem por mim, diz que não estou - pediu Giovanna.
Giny cumprimentou a avó e os seus lábios abriram-se num sorriso.
- Estou bem. E fico contente por te ouvir - disse. - Estou com muita vontade de te ver. Se apanhar o comboio das dez, chego a tempo para almoçar contigo e com o pai - prosseguiu, com uma voz alegre. Depois o sorriso apagou-se e, enquanto apertava com
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força o auscultador, a sua voz transformou-se num sussurro: - Não acredito. Quando foi? - balbuciou. Depois estendeu o auscultador à mãe. Estava pálida e a tremer. Giovanna sentiu-se gelar.
- Seja o que for, diz-me tu - pediu-lhe.
- O meu pai morreu - disse Giny com um fio de voz.
Saiu da sala a correr, deixando-a sozinha a escutar as palavras da avó.
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Giny
tinha fechado as portadas das janelas do seu quarto. Na penumbra, a dor parecia-lhe mais suportável. Enfiou-se na cama e procurou protecção na tepidez dos cobertores.
A mãe abriu a porta devagar e entrou no quarto em bicos de pés.
- Arranjas-me um bocadinho de espaço? - perguntou com doçura, aproximando-se da cama.
Giny virou-se de lado e encostou-se à parede. Giovanna deitou-se e encostou o corpo ao da filha. Ficaram em silêncio, abraçadas, durante um tempo infinito. Depois Giny começou a falar.
- Sabes, mãe, quantas sardas tens na cara? Cento e trinta e quatro. Foi o pai que as contou.
- A sério? - sussurrou Giovanna.
- Foi ele que me disse, na última vez em que estivemos juntos. Foi na Páscoa, há duas semanas. Nunca contou as minhas sardas.
- Como podes ter assim tanta certeza?
- Gostava mais de ti do que de mim - replicou Giny.
- Era um amor diferente, mas igualmente forte. Se nasceste, a ele o deves. A princípio eu não te queria - admitiu. E acrescentou:
- Considerava-te uma espécie de erro de navegação. Aceitei ser mãe para fazer a vontade ao teu pai.
- Não me conforta muito ser considerada um erro - observou a rapariga.
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- Fica sossegada, minha querida. Quando estava no quarto mês de gravidez e o ginecologista me pôs a ouvir as batidas do teu coração, já eu te amava loucamente. Aos seis meses, quando me davas pontapés na barriga, derretia de amor por ti.
- Queriam um rapaz ou uma rapariga? - perguntou Giny.
- Queríamos pura e simplesmente um filho. O teu pai achava que eu era uma mulher imatura e que um filho me ia ajudar a crescer. Não amadureci como ele esperava, mas amei-te mais do que a mim própria.
- Está bem, mãe, deixa lá isso - disse Giny, para reagir à comoção.
Giovanna mantinha-a abraçada com força.
- Tenho tentado durante toda a vida evitar as coisas que não me agradam e que me fazem sofrer. Odeio o sofrimento. Sempre odiei. O teu pai sabia-o. Conhecia-me bem e amava-me por aquilo que eu era.
- O pai só amava as coisas belas e raras. O que significa que encontrou em ti alguma coisa de muito especial. Quando estávamos sozinhos, eu e ele, as conversas do pai acabavam inevitavelmente em ti. Adorava-te, sabes? Perguntava-me: "Como é que está a nossa menina?" Como é evidente, referia-se a ti.
Giovanna começou a chorar silenciosamente, enquanto Giny continuava com as suas recordações.
- O pai dizia que eras uma lombarda bonita e altiva. Achava que os teus cabelos cor de cobre e a pele branca eram uma herança dos teus antepassados bárbaros. Fantasiava, dizendo que tu descendias directamente da rainha Teodolinda. Até inventou uma árvore genealógica para demonstrar que o teu apelido, Reslieri, tinha não sei que raiz lombarda.
- Não sabia. Nunca me tinhas falado nisso - disse a mãe.
- Em casa, em Florença, há em quase todas as divisões uma quantidade exagerada de fotografias tuas. Ele falava comigo, com a avó ou com a Ottilia e olhava para as tuas fotografias: tu com vinte anos de biquini na praias do Forte, no jardim da casa do viale Michelangelo, vestida de noiva, com uma grande barriga. Tu na inauguração de um antiquário. E ainda tu numa festa, com um vestido de noite. Tu nas ruas de Paris ou de Nova Iorque. Só pensava em ti
- concluiu Giny.
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- Eu sei - admitiu Giovanna.
- Se sabias, por que permitiste que ele morresse longe de ti?
- desabafou a filha, explodindo num pranto desesperado.
- Não chores, por favor - suplicou Giovanna. - O que é que eu faço para te explicar que vivo cheia de medos? A doença, a dor e a morte aterram-me. Sempre foi assim.
- E a solidão, nunca pensaste nela?
- Não, nunca quis pensar - admitiu Giovanna., E prosseguiu:
- De qualquer maneira, foi a doença que o matou. Um mal que podia ter atingido qualquer pessoa, até a mim.
Ao formular aquela hipótese considerou que, pelo contrário, a ela não podia ter acontecido. Sentia que tinha edificado, no seu organismo, uma estrutura sólida, capaz de debelar qualquer doença. É claro que havia de morrer um dia, como toda a gente. Mas aquilo que ia acabar com ela seria um enfarte fulminante ou um acidente. Não o lento declínio que se arrasta durante meses, ou durante anos, como tinha acontecido com Jacopo.
Na penumbra do quarto, mãe e filha estavam agora caladas, cada uma delas imersa nos seus próprios pensamentos.
Giny recordou o pai durante o último encontro. Sorridente e impecável como sempre, mas já confinado a uma cadeira de rodas. Jacopo disse-lhe que tinha finalmente descoberto uma cura eficaz para o seu mal. - Vou a Lausanne, daqui a uns dias - revelou-lhe.
- Saiu um medicamento novo. Vou-me curar e ainda me vais ver dar cambalhotas. - Giny fez de conta que acreditou.
Giovanna levantou-se.
- Não me deixes - suplicou a rapariga, detendo-a com a mão.
- Temos de ir a Florença - disse a mãe, inclinando-se para lhe beijar a fronte.
- Eu também tenho medo, mãe - sussurrou.
Giovanna sentou-se ao lado dela e abraçou-a, embalando-a docemente, como quando era pequenina.
- Tenho de ir à loja. Depois vamos embora - sussurrou-lhe, com uma última carícia.
- Não precisas de lá ir. Hoje é domingo - protestou a filha. Giovanna conservava no cofre do estabelecimento um envelope
que o marido lhe tinha entregado, muito tempo atrás, pedindo-lhe
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que o abrisse apenas se lhe acontecesse alguma coisa. Agora tinha de cumprir aquela tarefa e queria estar só.
- Quero deixar um recado ao Lino. Já sabes que ele não tem telefone em casa - mentiu, ao mesmo tempo que saía do quarto de
Giny.
Lino era um restaurador de madeiras antigas. Trabalhava há muitos anos na loja de Giovanna. Era um homem esquivo, parco em palavras mas generoso nas acções. O pó da madeira tinha-lhe entrado na pele, nas unhas e nos cabelos. Cheirava a larix, a faia, a olmo, a cola, a gesso, a resina e a laca. O velho Lino estava impregnado dos aromas de todas as madeiras, de todos os vernizes, de todos os solventes usados para restaurar e limpar móveis antigos. Tinha nascido numa casa da via Fiori Chiari, quando aquela rua era habitada apenas por pobres e prostitutas. Onde agora se encontravam lojas prestigiadas de alta costura, decoração e antiquários, em tempos não muito distantes havia bordéis de todas as categorias, tabernas e oficinas artesanais. Lino morava ainda numa daquelas velhas casas e não tinha telefone.
- Vou e venho - disse à filha, que tinha ido com ela até à porta e a via descer as escadas a correr, ignorando o elevador, como normalmente fazia.
Percorreu com um passo expedito a via Fatebenefratelli, virou à esquerda na via Brera e chegou rapidamente à via Fiori Chiari. As lojas estavam fechadas e as grades dos cafés descidas. No meio da rua, iluminada por um sol fortíssimo, destacava-se a figura maciça da velha Matilde. Era uma mulher com cerca de oitenta anos. Vestia um casaco de uma cor indefinível que lhe cobria as ancas largas e os seios robustos. Tinha as meias franzidas sobre os tornozelos finos. Nos pés trazia umas pantufas gastas. Empurrava um carrinho desconchavado que tinha trazido de um supermercado e que forrara com uma manta de lã sobre a qual estava instalado o seu cão, um basset paralítico. Vivia na casa mais degradada da rua. A respeito dela, naquele bairro, corriam os comentários mais diversos e diziam-se coisas por vezes maldosas.
Lino dizia que Matilde tinha sido prostituta do Dezassete, uma casa de passe que fora buscar o nome ao número da porta. A porteira de um estabelecimento respeitável contava que a mãe tinha conhecido Matilde quando estava ainda na flor da idade. - Dançava
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o tango no andar de baixo do Teatro Fossati e sustentava um pintor que a esfaqueou na cara por ciúme - garantia.
Uma cartomante, que tinha uma banca na piazzetta Formentini, falava de um amante rico e nobre que por ela abandonara mulher e filhos. - Depois, ele morreu e deixou-a com uma mão atrás e outra à frente - concluía inevitavelmente. Não era por causa daqueles comentários que Giovanna sentia em relação a Matilde uma espécie de rejeição. Perturbava-a, antes, o facto de a mulher, ao passar em frente à sua loja, parar sempre como que a recuperar fôlego, dirigindo o olhar para o interior. Um olhar penetrante e indagador que lhe causava algum embaraço. Giovanna temia-a sem uma razão particular. Ou talvez houvesse um motivo. Via nela tudo aquilo que a assustava: a velhice, a miséria, o espectro da morte.
Assim que a viu, portanto, esteve quase a fazer um desvio para não se cruzar com ela. Mas a pressa de abrir a carta do marido obrigou-a a continuar. Avançou decidida em direcção a Matilde, que vinha ao encontro dela a empurrar o carrinho desengonçado. Viu-a tropeçar na borda de uma floreira e cair em cima do empedrado, a esbracejar no vazio.
Se houvesse mais gente na rua, teria de boa vontade deixado para outros a tarefa de a socorrer. Se fosse uma manhã como tantas outras, talvez tivesse mesmo apressado o passo, ignorando-a. Mas naquele dia alguma coisa tinha mudado na sua vida. Após um instante de hesitação, chegou-se àquele monte de trapos e inclinou-se, sentindo-se imediatamente envolvida pelo cheiro acre da mulher.
- Agarre-se ao meu ombro - ordenou. Matilde ergueu para ela um olhar orgulhoso e antipático.
- Eu levanto-me sozinha - reagiu bruscamente. O cão rosnava na direcção de Giovanna. A mulher fincou no
chão uma mão, na tentativa de se pôr em pé. Giovanna observou aquele rosto rugoso, escurecido pela imundície entranhada entre as rugas e ao longo da cicatriz que lhe marcava uma face. O odor que emanava era nojento. Recuou um passo. - Pior para si - disse, sabendo que Matilde nunca conseguiria levantar-se sozinha.
O hasset ladrava desesperadamente enquanto a mulher, sem forças, tentava em vão agarrar a pega do carrinho.
Então Giovanna, com um gesto decidido, enfiou-lhe os braços por baixo das axilas e, empregando todas as suas forças, levantou-a.
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- Agora consegue segurar-se? - perguntou-lhe.
- Toda a vida consegui - murmurou Matilde, olhando-a com altivez. Percebia-se que estava furibunda por ter sido obrigada a aceitar uma ajuda.
- A senhora não está bem. Deixe-me acompanhá-la até casa
- ofereceu-se.
- Eu não preciso de ninguém - respondeu obstinada, dirigindo-lhe o mesmo olhar penetrante com que a observava do outro lado da montra do estabelecimento.
- Pode-me explicar por que é que me espia quando passa em frente à minha loja? - conseguiu finalmente perguntar-lhe.
- A quimera - sussurrou Matilde, entreabrindo os lábios num sorriso. Giovanna tinha há algum tempo substituído o velho e sólido letreiro Lanciani Antiguidades por aquela nova designação, menos austera e mais cativante.
- Sim, A Quimera - repetiu Giovanna. - O que é que lhe desperta tanto a curiosidade na minha loja?
- Nós as duas somos parecidas - replicou Matilde, abanando a cabeça. Retomou com alguma dificuldade o seu caminho, empurrando o carrinho com o seu precioso conteúdo.
Giovanna observou-a, perplexa, durante alguns instantes, e depois continuou, perturbada por outras e mais profundas emoções.
Passou pelo portão do prédio de três andares onde ficava a loja. Cerca de vinte anos antes, quando a via Fiori Chiarí começava a assumir um aspecto elegante, o edifício fora completamente restaurado e recuperado. Os velhos inquilinos com as suas famílias tinham partido. Eram artesãos pobres que deixaram o lugar a intelectuais, profissionais liberais e ricos comerciantes.
Entre os novos habitantes do edifício contavam-se um chefe de redacção do Corriere della Será, um fotógrafo de moda e uma estilista que Giovanna encontrou no átrio. Estavam nervosos, a conversar.
- É melhor chamar já a polícia - dizia o jornalista. A estilista, ao ver Giovanna, deu um suspiro de alívio.
- íamos agora à sua procura, signora Lanciani - disse.
- Que mais estará para me acontecer esta manhã? - perguntou, mais exausta do que alarmada.
- Assaltaram a sua loja - explicou o fotógrafo.
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Giovanna foi direita à porta que, do átrio, dava para as traseiras da loja. Era blindada e estava completamente fechada. Carregou no botão que accionava o sistema de alarme e desactivou-o.
- Está tudo em ordem - observou, olhando para os inquilinos com um ar interrogativo.
- Entraram pela cave - explicou o fotógrafo, indicando uma portinha de madeira desconchavada. - Forçaram o alçapão, ao nível do chão, e entraram no estabelecimento - concluiu.
- Por isso é que o alarme não funcionou - comentou Giovanna. - Eu chamo a polícia - afirmou, precipitando-se para o interior. Acendeu todas as luzes e olhou em volta. Viu imediatamente, por trás da escrivaninha Luís XVI, que estava fora do sítio e cujo conteúdo tinha sido espalhado pelo chão, o cofre de parede escancarado e vazio. Tudo aquilo que continha, incluindo o envelope de Jacopo conservado durante anos, já lá não estava.
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Para Giovanna, a visita dos ladrões não era novidade. Nos últimos dez anos, desde que se transferira para Milão para tomar conta do estabelecimento da via Fiori Chiari, já tinha tido dois assaltos. Obviamente estava protegida por um seguro e por algumas câmaras de vigilância. Por isso, os ladrões tinham sido identificados e o valor do roubo recuperado.
Também este último episódio se concluiria provavelmente com a recuperação dos cheques e dos valores que tinham sido roubados do cofre. O que a aterrava era a perda da carta do marido.
Quando Jacopo lha entregara, tinha-a arrumado no cofre e quase a esquecera. Agora que lhe tinha sido tirada, era como se lhe faltasse o ar. Ignorava o seu conteúdo, mas tinha a certeza de que devia ser importante. Jacopo nunca fazia nada por acaso. Sentou-se num banco enquanto esperava a chegada da polícia. Depois pensou em Giny e resolveu telefonar-lhe para a informar do sucedido.
- Chove sempre no molhado - foi o comentário lacónico da filha, que acrescentou: - Não te preocupes, mãe. Eu trato de organizar a viagem a Florença.
Se não estivesse tão perturbada, ter-se-ia enternecido com o tom protector da filha. Porém, estava profundamente deprimida e parecia-lhe que o mundo estava prestes a desabar em cima dela. Até porque, ao fim de vinte anos de casamento, e pela primeira vez, se sentia realmente só.
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Jacopo tinha sido o ponto de referência mais importante da sua vida, apesar de se verem raramente, de ele viver com outra mulher há anos e de ela se ir entretendo com algumas histórias sentimentais. Apanhou do chão uma fotografia a cores do marido. Tinha-lha tirado ela própria, vinte anos antes, na villa dos Lanciani em Forte dei Marmi. Estava pousada em cima da secretária, numa moldura de bronze dourado. A moldura fora roubada e a fotografia atirada ao chão. Recordou aquele dia longínquo.
O aguaceiro torrencial e as fortes rajadas de vento tinham quebrado os ramos mais velhos e mais débeis dos pinheiros, dos pitósporos e dos oleandros. Devassaram hortênsias, rosas e clematites. Sujaram a água da piscina e viraram ao contrário o grande guarda-sol de lona branca que jazia, como um destroço abandonado, em cima de uma sebe de mirto. Através dos vidros da marquise, ela e Jacopo observavam em silêncio aquela poderosa exibição de força da natureza. Estavam muito agarrados um ao outro, a tremer. Os seus corpos nus, bronzeados, eram a própria imagem da beleza. Quando passou o temporal, o sol apareceu por entre as nuvens e caía ainda uma chuvinha fina.
- Tenho de ir ver se a cave inundou - sussurrou Jacopo, enterrando os lábios na massa sedosa dos cabelos dela.
- Mais tarde - sugeriu Giovanna, chegando mais as costas ao peito do rapaz. E acrescentou, feliz: - Estou tão bem, contigo.
- Também vou ter de subir ao sótão. Depois desta tempestade pode haver infiltrações de água - continuou ele, sem se desencostar. Ela estendeu um braço, agarrou o puxador e abriu a porta da marquise. Foram acometidos por uma lufada de ar fresco que sabia a resina e a loureiro. Giovanna estava a viver um momento maravilhoso e sentiu-se arrebatada por uma alegria irrefreável. Afastou-se de Jacopo e saiu da marquise. Desceu os degraus e chegou ao relvado verde-esmeralda. Abriu os braços e levantou o rosto para o céu. Depois começou a rodar sobre si mesma com movimentos de bailarina.
Jacopo observava-a, feliz e incrédulo. Giovanna já não era a rapariga tímida e atrapalhada que um amigo lhe apresentara uns dias antes. Era uma ninfa dos bosques que tinha atravessado os séculos da mitologia para aparecer no relvado da villa Belvedere para a alegria dos seus olhos.
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- Anda, Jacopo - convidou, enquanto continuava a rodopiar ao som das notas de um hino imaginário à chuva, aos seus jovens anos, à sua sede de felicidade. Ele foi ter com ela a rir, abraçou-a e começou a andar à roda com ela, ao mesmo tempo que o desejo subia a inflamar-lhe o corpo e o espírito.
No céu do entardecer desenhou-se um pálido arco-íris, o ar tornou-se ainda mais fresco e ele estremeceu.
- Vou lá dentro secar-me - disse, afastando-se dela. E, enquanto subia as escadas, acrescentou: - Devias fazer a mesma coisa.
Giovanna gostaria que o tempo parasse. - É tudo tão bonito, tão perfeito. Fica aqui, por favor - gritou. Mas ele já tinha desaparecido no interior da villa. Ela baixou-se e apanhou algumas pequenas flores selvagens. Fez um raminho e entrou em casa. Agora também ela tinha frio.
Jacopo não estava ali. Penetrou na penumbra silenciosa da sala de estar e lançou um grito. Jacopo tinha-a agarrado pelas costas e, enquanto ela tentava libertar-se, embrulhou-a numa toalha de felpo.
- Não vejo nada. Estás a sufocar-me - protestou com uma voz divertida. Ele pegou nela ao colo e pousou-a num sofá amplo, que ficava por baixo de um arco rebaixado, no salão. Secou-a com gestos delicados. Giovanna ria, olhando alternadamente para ele e para o tecto de painéis de madeira de várias cores, com rosáceas douradas.
- Estou a ver as cores do arco-íris - exclamou.
- Onde? - perguntou Jacopo.
- Aqui por cima. Nunca tinha visto um tecto tão bonito.
As pequenas flores selvagens e as toalhas de felpo escorregaram para o chão de tijoleira. A alegria esfumou-se na paixão. Depois ficaram deitados, ofegantes, apertados um contra o outro. Jacopo não era o seu primeiro namorado, mas naquele momento, Giovanna teve a certeza de ter encontrado o homem da sua vida. Agora sabia que o destino tinha guardado para ela aquele rapaz maravilhoso e que ia passar o resto da vida a adorá-lo.
- Logo à noite a minha mãe chega de Florença - anunciou ele, a olhar para o relógio.
- Já percebi. Visto-me e deixo o caminho livre - replicou secamente Giovanna.
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- Afinal não percebeste. Vou levar-te a jantar fora - anunciou Jacopo.
- Assim a senhora não corre o risco de me encontrar - concluiu Giovanna, ofendida.
- Vai encontrar-te, forçosamente. Estará à nossa espera no Capannina. Já lhe falei de ti - comunicou-lhe, divertido.
- O que lhe disseste? - perguntou com um ar desconfiado.
- Apenas que te amo - respondeu Jacopo com simplicidade.
- Com quantas outras raparigas já dançaste este minuete? Parecia-lhe demasiado bom para ser verdade.
- Não me lembro. Com muitas, em qualquer caso - sorriu Jacopo.
- Já imaginava - disse Giovanna, enquanto enfiava rapidamente o vestidinho às flores. - És um canalha - gritou, atravessando a sala de estar. As sandálias de couro tiquetaqueavam no soalho de cerâmica e a saiinha de seda oscilava sobre as pernas longas e bem torneadas.
- Giovanna, espera por mim - gritou por sua vez Jacopo, enquanto procurava as calças e a camisola.
- Vai para o inferno - foi a resposta dela, quando ia já a descer as escadas. Jacopo foi atrás dela e imobilizou-a no último degrau.
- Não tens sentido de humor. Como todos os lombardos, de resto - disse, abraçando-a.
- E tu não tens respeito pela sensibilidade dos outros, como todos os toscanos, de resto - replicou furibunda, enquanto se afastava dele.
Naquele momento o pé tocou em qualquer coisa encharcada. Giovanna deu um salto e estacou. Era um passarinho todo enrolado em cima do degrau. Estava imóvel. Parecia morto.
- Não queria magoar-te - sussurrou ele, acariciando-lhe o rosto. Giovanna não respondeu. Fitava o pobre pássaro moribundo. Jacopo viu-o também.
- A tempestade arrastou-o, juntamente com o ninho - comentou, enquanto se baixava para o apanhar.
- Não lhe toques! - gritou Giovanna com uma voz alterada, fechando os olhos para não ver.
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O pássaro era um novelo de penas escuras e encharcadas. Jacopo tinha-o pousado numa mão e sentia uma palpitação muito débil.
- Querida, olha, é só um pequeno ser assustado - encorajou-a com doçura.
- Não consigo olhar para um cadáver - replicou, a tremer de medo.
Naquele momento o pássaro deu sinal de si. Levantou a cabecinha, agitou as penas, abriu as asas e voou.
- Viste? Não estava morto. Voltou a voar. - Jacopo estava surpreendido com a reacção de Giovanna que, agora, chorava em silêncio. Pôs-lhe um braço à volta dos ombros, levou-a para a varanda e obrigou-a a sentar num cadeirão.
- O que é que se passa? Explica-me, se conseguires - pediu-lhe, enquanto lhe enxugava o rosto cheio de lágrimas.
- Julguei que estava morto. Tens a certeza de que levantou voo? - indagou, desconfiada.
- Se não te deixasses vencer pelo medo, tinhas visto. Mas ainda que estivesse morto, qual era o problema?
- Não consigo suportar a ideia da morte, nem que seja de um pássaro. Não sou capaz. É mais forte do que eu. Parece que enlouqueço. Como é que tu não entendes isto?
- O sofrimento e a morte fazem parte da vida. Não há nada para perceber. Basta aceitar - respondeu Jacopo.
- Mas eu nunca vou aceitar - rebateu, esforçando-se por recuperar uma certa compostura.
- O que foi que te aconteceu de tão terrível para cederes ao pânico perante um passarinho moribundo? - insistiu Jacopo, curioso.
- Não me aconteceu nada - respondeu, pondo-se na defensiva. Depois o medo dissolveu-se e Giovanna reencontrou um sorriso. - Olha - disse. - Tens flores na camisola.
Na pressa de se vestir, Jacopo não se tinha apercebido de que as flores colhidas por Giovanna tinham ficado agarradas à gola do pólo.
- Não as tires - pediu-lhe ela. Havia uma máquina fotográfica pousada numa consola ao pé da janela. - Quero imortalizar-te assim - concluiu a rapariga.
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A fotografia que então tirara estava agora nas suas mãos. Tinham passado vinte anos. Observou a expressão um pouco atónita e vagamente irónica daquele rapaz maravilhoso que acabara por ser seu marido. Não conseguia acreditar que estivesse morto.
- Deixaste-o morrer longe de ti - censurara-a Giny. Como poderia explicar-lhe que se tinha afastado de Jacopo com medo de o ver morrer?
- Não ia conseguir ficar junto dele - sussurrou, cobrindo o rosto com as mãos, a soluçar.
Os polícias que entraram na loja atribuíram aquela crise de choro ao choque provocado pelo roubo. Um deles apanhou do chão um envelope rasgado no qual estava escrito "PARA A GIOVANNA" e entregou-lho.
- Onde é que estava? Julguei que os ladrões o tinham levado, juntamente com todo o resto - disse, quando o agarrou. As mãos tremeram-lhe ligeiramente quando extraiu uma folha dobrada. Abriu-a e caíram-lhe no colo pequenos fragmentos de flores secas.
A carta dizia: "Não podes parar o tempo nem a felicidade, mas podes acariciar as recordações, como eu estou a fazer, há muitos anos. Deixo-te tudo quanto possuo e o pó das flores que apanhaste. Amar-te-ei sempre. Teu, Jacopo."
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Giovanna estava agora no carro com a irmã, Margherita, que se tinha sentado, cheia de autoridade, ao volante do Volvo azul, com Giny ao lado. Ela tinha sido relegada para o banco de trás e ia mastigando caramelos dietéticos enquanto Margherita falava sem parar. Giovanna nem a ouvia. Mas Giny anuía, e por vezes respondia. O telemóvel que tinha na carteira começou a tocar.
- Passa-me o telefone - disse Giny. - Eu atendo. Giovanna desligou-o. Depois entregou-o à filha.
- Se precisares, podes usá-lo. Eu não estou para ninguém declarou com uma voz cansada.
- Giovanna, por favor, agora não me caias em depressão. Não me parece que seja caso para isso. O Senhor, na Sua misericórdia, finalmente chamou a Si o teu marido, acabando com aquele sofrimento - afirmou Margherita, categórica como sempre.
Seguiam pela Auto-estrada do Sol, entre abrandamentos, filas de excursionistas de domingo e turistas estrangeiros.
- Hoje tinhas umas coisas combinadas - interveio Giny. Não seria oportuno anular tudo?
- Já nem me lembrava - admitiu Giovanna. Procurou na carteira a agenda dos telefones. - Avisa tu, Giny, por favor.
- Explica que o teu pai morreu e vocês que estão a caminho de Florença, para o funeral - ordenou Margherita.
- Basta dizeres que temos um problema familiar e que eu peço desculpa - disse Giovanna.
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- Detesto a tua mania de te armares em misteriosa, mesmo quando não é preciso - rebateu a irmã.
- Tia, pelo menos hoje, será que não podias evitar as tuas objecções? - disse Giny, irritada com a incapacidade que aquela mulher tinha de respeitar as opiniões dos outros.
Margherita era a tia de quem ela mais gostava. Encantava-a a sua maneira impulsiva de falar, tão diferente do discurso sereno da tia Lúcia e da mãe. Prestava-se muitas vezes às críticas e à ironia, como quando dizia com uma convicção absoluta: - Não é para me gabar, mas sou perfeita. - Era precisamente aquela sua fraqueza que a tornava simpática, porque Margherita, no fundo, não tinha realmente a certeza de o ser, e tinha uma necessidade constante de o afirmar para se convencer.
Giny conhecia muitas pessoas que se consideravam irrepreensíveis, mas que não o declaravam com receio de parecerem inconvenientes. A sua ideia de perfeição traduzia-se em criticar sempre tudo e todos. Qualquer auditório servia, desde que lhes permitisse lançar setas envenenadas e dar vazão às suas almas lívidas de raiva, roxas de inveja. Na presunção de serem depositárias da perfeição, não aceitavam críticas e, quando alguém ousava fazê-las, afiavam as garras para saírem dali vitoriosas. A tia Margherita, pelo contrário, declarava a sua própria perfeição com candura e, às vezes, era até capaz de admitir os seus próprios erros.
- Desculpem-me as duas - disse, efectivamente. - Tenho os nervos à flor da pele. Em suma, sabem muito bem que levo uma vida de loucos: o trabalho, os filhos, a família, os pobres da paróquia e, como é evidente, o nosso pai. Ninguém lhe liga, para além de mim. Eu sei que não é uma pessoa agradável, mas é preciso que haja um mínimo de caridade cristã.
O avô Reslieri vivia há anos num lar de idosos. Giny tinha estado com ele muito raramente e só de fugida. Diziam que tinha um péssimo feitio, mas ela nunca tivera hipótese de o constatar. Sempre que se falava dele, o que não acontecia muitas vezes, a conversa esmorecia e depois as filhas mudavam de assunto. Exactamente como fez Margherita, naquele momento.
- Parece absurdo dizer que nada funciona bem sem a minha intervenção, mas é assim mesmo. Olha hoje: quem é que teve de largar tudo para tratar de vocês? Eu, como é evidente.
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Giovanna gostaria de ter comentado que ninguém lhe tinha pedido ajuda para aquela viagem. Nem mesmo Giny. Margherita tinha-se imposto com a sua autoridade, como fazia sempre que encontrava uma abertura onde se enfiar para depois fazer valer o seu contributo. Mas seria uma perda de tempo.
- Obrigada, querida - respondeu apenas.
- Estou a falar de mais, como sempre - desculpou-se a irmã. Durante algum tempo conduziu em silêncio, deixando Giny
telefonar aos amigos da mãe. Depois, a sua índole tagarela veio outra vez ao de cima. Recomeçou a ditar leis. Giny voltou-se para a mãe, dirigindo-lhe um sorriso cheio de compreensão, e apertou-lhe a mão num sinal de solidariedade.
Um dia Giovanna tinha perguntado à filha por que razão gostava tanto da tia Margherita. A resposta de Giny deixara-a sem palavras. - Ela diz-me de onde venho. Tu e a tia Lúcia nunca o fazem. - Queria com aquilo dizer que Margherita era pródiga em narrações sobre as histórias da família Reslieri. Eram histórias por vezes tristes, nunca banais, que a tia envolvia de fascínio e de mistério. Ao fim de cada episódio, os protagonistas saíam de lá destruídos ou ridicularizados, enquanto ela sozinha brilhava como uma vítima sacrificial. Giovanna ficava nervosa quando Giny lhe referia aquelas histórias, sobretudo quando se tratava de referências ao pai.
- Por que é que não queres ouvir falar do avô? - perguntava Giny.
Giovanna esquivava-se, dizendo que o pai sempre fora uma pessoa violenta e que não sentia nenhuma simpatia por ele. Tinha a consciência de, na sua memória sobre a sua primeira infância, haver muitas lacunas mas sabia também que não tinha nenhum desejo de reconstituir o passado. Até porque, sempre que tentara fazê-lo, sentira uma inquietação desagradável. E Giovanna só apreciava as distracções agradáveis. O aperto de mão e o sorriso da filha dissiparam por um momento a tristeza, mas a dor persistia, e também o remorso, aguçado pela breve carta de Jacopo, que mantinha na carteira. Agora tinha a certeza de não ter conseguido amar o marido como deveria e parecia-lhe nunca ter amado ninguém para além de si mesma.
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Finalmente chegaram a Florença. No momento em que o Volvo passou o portão do jardim, que dava para a alameda de acesso à villa, Giovanna apercebeu-se com terror de que não conseguia enfrentar a realidade que a esperava.
O portão setecentista do edifício estava meio fechado, a indicar a presença da morte. Com um esforço de vontade obrigou-se a sair do carro, quando Giny desaparecera já no interior da villa. Ela, instintivamente, procurou o braço de Margherita.
- Então, vamos lá? - perguntou a irmã.
No jardim estavam estacionados muitos automóveis e havia um vaivém de pessoas, umas conhecidas, outras desconhecidas.
- Não consigo - afirmou, renitente.
- Tens de te lembrar que se trata do teu marido.
- Margherita, tenho medo - confessou debilmente.
- Já não és nenhuma criança. Já devias ter ultrapassado há algum tempo a história da mãe - disse a irmã.
- Qual história da mãe? - perguntou surpreendida.
- Esquece. Em qualquer caso, não vais fazer fitas e vais comportar-te com a dignidade devida - rematou Margherita.
Naquele momento Eugenia Lanciani foi ao encontro delas. Era uma bela senhora de setenta anos. Alta, esguia, a cheirar a Givenchy. Os cabelos de prata emolduravam um rosto sulcado pelas rugas da idade, que a dor tinha aprofundado. Vestia um tailleur príncipe-de-gales muito austero com uma camisa de seda crua. No pescoço e nos lóbulos das orelhas luziam as lindíssimas pérolas brancas e negras que ela tanto amava. Abriu os braços e Giovanna refugiou-se no seu peito.
- Estás a tremer de medo - constatou a sogra.
- Não tenho a sua força - desculpou-se Giovanna.
- Anda para dentro - disse Eugenia, convidando também Margherita com um gesto. No salão do rés-do-chão encontravam-se parentes e amigos. Um criado e duas empregadas serviam bebidas e café enquanto Ottilia fazia as honras da casa.
Ottilia era uma espécie de boneca loira, de olhos claros, brilhantes, sempre no limite do choro. Quando Giovanna a encontrou pela primeira vez, muitos anos atrás, cognominou-a de Barhie, pela semelhança com a boneca homónima. Directora de uma revista de antiguidades, sempre estivera apaixonada por Jacopo. Depois de
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Giovanna se ter instalado definitivamente em Milão, Jacopo anunciou-lhe um dia: - Ando com a Ottilia. - Nunca entendeu aquela escolha do marido, porque a mulher não tinha nada que o pudesse fascinar. Agora ia conversando com os hóspedes na qualidade de dona da casa. Os cabelos ainda mais loiros, os tacões mais vertiginosos, o vestido preto ainda mais justo sobre as ancas estreitas e o peito robusto. Mais Barbie do que nunca, pensou Giovanna, de fugida, e não se incomodou ao vê-la assumir um papel impróprio. Giovanna estava a chegar à porta quando a sogra lhe sussurrou: Vamos lá acima.
Margherita entrou no salão.
- Onde está a Giny? - perguntou Giovanna, seguindo-a até ao andar de cima.
- Com o pai, como é evidente - respondeu a avó.
Eugenia Lanciani, Peruzzi de solteira, retirara-se para o primeiro andar da villa depois da morte do marido. O pai de Jacopo falecera muito jovem, num acidente aéreo. O filho único tinha então quatro anos. Eugenia não voltara a casar, considerando a sua vida suficientemente preenchida pelo trabalho e pelo papel de mãe.
A profissão de antiquária assentava-lhe como uma segunda pele. Tinha descrito a Giovanna o seu nascimento no sótão de um castelo, sobre o lago Constança, no ano longínquo de 1930. Também ela, como o marido, descendia de uma estirpe de antiquários.
- A minha mãe - contou-lhe - tinha chegado ao castelo dos barões Von Bergerstein para adquirir em bloco tudo aquilo que tinha sido relegado para o sótão durante mais de cinquenta anos. Estava ali, com uma grande barriga, no oitavo mês de gravidez, a soprar o pó que cobria telas do século XVII, candelabros do século Xviii porcelanas de Meissen e de Nuremberga. Não imaginava certamente, a pobre senhora, que eu tivesse tanta fúria de nascer. Enquanto embrulhava um cisne de porcelana branca, sentiu uma pontada. Nem sequer houve tempo de a levar para o andar de baixo. Desenfornou-me com a rapidez com que as galinhas põem um ovo, estendida numa cama de campanha do período napoleónico. Estávamos a dezassete de Novembro. Pôs-me o nome de Eugenia em honra do santo padroeiro de Florença. Em conclusão, nasci no meio das velharias.
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Com o leite materno, Eugenia absorveu a paixão por uma profissão que se alimenta de beleza. Quando conheceu Giovanna, ficou impressionada com o fascínio e a graça da sua postura. Viu-a pousar os braços harmoniosos nos ombros do filho e os dois jovens, juntos, fizeram-lhe lembrar Diana e Endimião, uma estátua em porcelana branca de pasta mole que contemplara durante muito tempo no museu de Madrid. O ciúme maternal em relação àquele filho único lutou contra o bom senso que, no entanto, acabou por vencer e que, após um breve parêntesis de desaprovação, lhe permitiu aceitar Giovanna com relativa facilidade.
Aquele primeiro encontro teve lugar em Forte dei Marmi, no Capannina.
- Estás aqui com a tua família? - perguntou-lhe, enquanto se sentavam à mesa.
- Estou em casa da minha irmã Margherita - respondeu Giovanna, que se sentiu observada e avaliada.
Jacopo interveio em sua defesa. - A Giovanna é formada em Contabilidade. Trabalha na caixa de um grande talho, em Milão.
A Eugenia não escapou a compostura estudada da rapariga, típica de quem tem medo de falhar o movimento mais insignificante. O seu pensamento voou até aos anos passados no colégio de Poggio Imperiale. Anos de prisão, para falar verdade, vividos com muito sofrimento, raramente mitigado pela solidariedade de alguma companheira. Considerou o abismo social e cultural que separava o filho daquela rapariga que falava um italiano horrível, não sabia usar os talheres e comia com a boca aberta.
Quando ficou sozinha com Jacopo, confrontou-o com severidade.
- A Giovanna é bonita - admitiu -, mas não vejo nenhuma afinidade entre vocês. Não quero parecer demasiado classista, mas acho que há um limite para além do qual não devias passar. Espero, pelo teu bem, que esta história termine com o fim das férias desta empregada de caixa.
- Isso não vai acontecer. Estou apaixonado pela Giovanna declarou Jacopo.
- Da mesma maneira que ela está apaixonada pelo mundo que tu representas.
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- Pode ser. Mas isso não me importa nada, e até tremo com a ideia de ela me poder deixar - concluiu o filho.
Eugenia amava demasiado aquele filho único para o contradizer. Por isso, decidiu aceitar Giovanna.
Agora comportava-se com ela exactamente como Jacopo teria desejado.
- Como é que estás? - perguntou-lhe, quando entraram na sala de estar.
- Péssima - respondeu Giovanna num sussurro.
- Estou a ver - constatou a sogra com sincero pesar.
- E a senhora? Como se sente? - perguntou Giovanna.
- Estou serena. O Senhor dá, o Senhor tira. Não são palavras vazias, quando se tem fé.
- Eu não tenho esse dom - admitiu Giovanna. Estava pálida e a tremer. - Fale-me dele - acrescentou.
- Foi-se embora durante o sono, se é que isso te pode consolar. Ontem à noite jantámos, como de costume, ele, a Ottilia e eu. Até estava de bom humor. Hoje de manhã, às seis horas, a Ottilia entrou no quarto para a injecção habitual. O Jacopo estava a dormir. Para sempre. Que mais queres saber?
- Nada. Não posso acreditar que tenha morrido.
- Nem eu - disse a sogra.
- Não vou conseguir aproximar-me dele - sussurrou Giovanna.
- Eu sei. Tenho até a certeza, como o Jacopo, de resto, de que não terias sido capaz de estar ao lado dele durante estes longos anos de doença. O que não o impediu de te amar mais do que tu possas imaginar.
Giovanna baixou a cabeça.
- Agora vais ter de enfrentar a vida sem a ajuda dele - continuou Eugenia. - Tens uma filha em quem deves pensar. Está numa idade difícil e precisa do teu apoio. Na Giny eu revejo o meu filho. Por isso, agora vais encher-te de coragem, vais vencer os teus medos e vais velar o teu marido, ao lado da minha neta - disse, num tom que não admitia réplicas.
Giovanna começou a soluçar. - Não posso. Não quero vê-lo morto. Não percebe que estou aterrada?
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Eugenia afagou-lhe o rosto, olhando-a com ternura, e assustou-se porque ela escaldava. Pôs-lhe uma mão na testa coberta de suor. Estava a ferver. - Não estás nada bem - constatou.
Todo o corpo de Giovanna tremia, os seus dentes batiam e não parava de soluçar. Eugenia chamou imediatamente o médico, que a observou cuidadosamente sem identificar a causa daquela febre altíssima.
- É preciso levá-la para o hospital afirmou.
Foi transportada para uma clínica, onde foi imediatamente submetida a uma série de exames e mantida a soro para combater a desidratação.
Entretanto, celebraram-se os ritos fúnebres e Jacopo foi sepultado no jazigo de família.
Os resultados das análises foram todos negativos e, ao fim de alguns dias, a febre passou com a mesma rapidez com que se tinha manifestado. Eugenia teve uma certeza: Giovanna não quisera ver o marido morto nem assistir ao funeral.
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Um jovem entrou pelo pequeno portão daquela casa degradada na via Fiori Chiari. As paredes esfoladas, o ferro forjado das varandas devorado pela ferrugem e as portadas das janelas desconjuntadas conferiam ao edifício um aspecto triste de abandono, que se tornava ainda mais evidente pelos restauros cuidadosos das construções adjacentes.
Atravessou um pequeno átrio e foi ter a um pátio sujo e húmido. Ao centro, um contentor de zinco difundia o odor acre dos detritos, e um carrinho de supermercado albergava dois gatinhos enroscados. O intruso alarmou-os: com um salto, aterraram no cimento e dali desapareceram através de uma das janelas da cave. No cimo das escadas, uma voz de mulher, acompanhada pelos gemidos de um acordeão, cantava: - Noi siam como lê lucciole, brilliamo nelle tenebre, schiave d'un mondo brutal, noi siamo ifior dei mal...'
Com relutância, o rapaz começou a subir as escadas de pedra, tendo o cuidado de não tocar no corrimão sujo. Aqui e ali, ao longo das paredes, persistiam vestígios de uma antiga pintura azulada com frisos florais. Num patamar, abandonados pelo chão, havia restos de comida sobre um pedaço de papel engordurado. As formigas banqueteavam-se. Um rato deslizou por entre os seus pés e desapareceu numa fenda da parede. O jovem sentia que acabava de
1 Nós somos como os pirilampos, brilhamos nas trevas, escravas de um mundo brutal, nós somos as flores do mal. (N. da T.)
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penetrar no coração de um mundo distante e assustador. Teve vontade de fugir. No entanto, forçou-se a prosseguir. Ao fim e ao cabo, estava a trabalhar, e aquele salário permitia-lhe manter os estudos.
Enquanto subia o último lanço, a canção apagou-se num lamento: - Se poi vogliamo piangere, noi pur dohhiam sorridere, bailando sul marciapiè, finchè Ia luna c'è.2 - E achou-se à entrada da porta que dava acesso a um grande aposento de tecto inclinado.
A luz espalhava-se a partir de duas grandes janelas no tecto. Nunca tinha visto um ambiente tão singular. Estava em sintonia com a degradação do edifício, numa mistura de miséria e antiga opulência. No centro da divisão, em cima de uma bonita mesa de nogueira com as pernas torneadas e sólidas, uma jarra com um ramo de lírios brancos, muito perfumados. Por baixo de uma janela, numa bancada de granito, escorria de uma torneira um fio de água sobre duas pilhas de pratos sujos. Por baixo da bancada havia um bidé de ferro esmaltado. À direita via-se um grande espelho oval apoiado numas pequenas colunas de madeira com frisos dourados. À esquerda, uma sanefa comprida de ferro sustinha um reposteiro às flores preso dos lados, que emoldurava um grande leito matrimonial. A cabeceira era laçada, com desenhos chineses, e a cama estava por fazer. Na parede por cima da cama estava pendurado um quadro. Representava uma jovem mulher despida, estendida num divã, de barriga para baixo. No jogo de luzes e de cores, destacava-se a cândida linha sinuosa das costas e a massa fulva dos cabelos soltos. Um pé pequenino estava pousado no tapete. Uma mão afagava o dorso de um basset. Através da porta aberta de um armário entrevia-se um manequim de madeira. Era uma figura feminina que se erguia rígida e quase austera na sua nudez púdica. Ao lado da bancada, numa mesinha, estava pousado um mastodôntico rádio-gramofone dos anos cinquenta. O jovem conhecia aquele modelo porque tinha visto um parecido numa exposição. Ao lado do gramofone, numa cadeira de baloiço, uma velha balançava-se preguiçosamente. Os lábios finos esboçavam um sorriso. Tinha os olhos fechados e aconchegava um basset no colo.
2 Se depois quisermos chorar, temos antes de sorrir, bailando no passeio, enquanto houver lua. (N. da T.)
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Assim que o cão se apercebeu do intruso, começou a ladrar. A velha abriu os olhos e olhou para o jovem.
- O que é que tu queres? - perguntou com um tom de despeito na voz.
O rapaz lembrou-se da sua avó, uma velhinha pequenina que vivia numa casa limpa e luminosa, sempre sorridente e atarefada a limpar o pó, a cozinhar e a passar a ferro.
A mulher que o observava emanava uma força furiosa, como a cicatriz que do ângulo externo do olho descia em meia-lua ao longo da face e lhe chegava quase até ao lábio.
- Posso entrar? - perguntou, titubeante.
Ela baixou a cabeça e, com um gesto cansado, indicou-lhe uma cadeira de palhinha ao lado da mesa.
- É a signora Matilde Riva? - perguntou o rapaz, ainda sem saber se havia de se sentar ou de ir embora.
- Sabes muito bem que sou eu. Não há mais ninguém em toda a casa - respondeu, agressiva. Depois continuou a baloiçar-se na cadeira.
- Eu trabalho para o escritório Cometa, que administra este edifício - explicou, e esperou que o cão parasse de ladrar.
- Deita, Lilln - ordenou a velha, pousando uma mão na cabeça do cão. O animal sossegou. O jovem sentou-se e colocou em cima dos joelhos a pasta de pele negra. - Ouviste, Lilln A administração mandou-nos um embaixador - comentou com tom irónico. E prosseguiu: - Já muitos delegados nos deram a honra da sua visita, durante todos estes anos.
O cão ergueu para ela um olhar de adoração. Ela acariciou-o e começou a cantarolar, com a boca fechada, o tema que tinha acabado pouco tempo antes de tocar no gramofone.
- Signora Riva - começou o jovem -, desta vez, a sociedade que eu represento tem para si uma oferta realmente interessante." Fez saltar a mola do fecho da pasta, abriu-a e pegou nuns papéis.
- A sério? - perguntou Matilde, espantada. -Já me fez muitas ofertas. Vê-se que agora aumentou a parada. Deve estar mesmo muito interessada nesta ruína onde eu vivo. - Parou de baloiçar, sorriu com um ar malicioso e prosseguiu: - Ouve tu também, Lilln, porque este jovem tão elegante tem novidades para nós.
Aquela apreciação sobre a elegância levou o rapaz a considerar a modéstia do seu próprio vestuário: sapatilhas pretas, deformadas pelo uso, jeans desbotados por muitas lavagens, uma T-shirt preta com umas letras brancas e um blusão de ganga azul. Não era o máximo que se podia permitir, mas era uma boa farda de trabalho. O administrador prometera-lhe uma gratificação se conseguisse demolir a obstinação de Matilde. Mas agora dava-se conta de que a velha era realmente um osso duro de roer. Todos os inquilinos se tinham mudado há muito tempo, felizes por aceitar uma indemnização consistente e um alojamento confortável na periferia. Naquele edifício, que remontava aos inícios do século XVII, não havia comodidades de género nenhum: nem elevador, nem aquecimento, nem gás. Já para não falar das questões de higiene. Havia apenas um ignóbil quartinho de banho por andar. A sociedade proprietária do imóvel, e de muitos outros edifícios na mesma rua, tinha de iniciar o mais depressa possível os trabalhos de restauro, mas não o podia fazer enquanto Matilde não se fosse embora. O administrador tinha já várias vezes considerado a possibilidade de um despejo, acabando sempre por renunciar com receio de que a mulher se dirigisse à imprensa para criar um escândalo. O experiente administrador sabia que esse tipo de publicidade se voltaria necessariamente contra a sociedade imobiliária. Por isso, Matilde tinha sido aliciada com ofertas cada vez mais consistentes, que apenas receberam recusas. E assim se resignara a esperar que Matilde morresse. Mas tinham já passado dois anos e, apesar do seu mau estado, a mulher continuava viva. Desta vez, o escritório Cometa tinha posto de parte a ideia de uma mudança para a periferia. Elaborara uma nova proposta, que confiara ao colaborador mais jovem do escritório, dotado de uma boa carga de humanidade. Talvez ele conseguisse aquilo em que os mais hábeis tinham falhado.
- Eu também sou Riva, como a senhora - disse o rapaz, esperando cativar a simpatia da interlocutora.
- E depois? Isso não significa que sejamos parentes. Há mais Rivas em Milão do que peixes no mar. Fala-me mas é dessa oferta
- replicou a mulher, com uma voz dura.
- O meu avô dizia que Riva era o nome que se dava àqueles que, na Idade Média, trabalhavam ao longo das margens do Naviglio - insistiu.
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- O meu Naviglio - suspirou Matilde. - A quantidade de histórias que estão ligadas àquelas águas que atravessam Milão! Mas o mundo muda. Para pior, como é evidente. Os canais foram cobertos e é como se nunca tivessem existido. Mas não foi para falar destas coisas que aqui vieste - disse-lhe, retomando o fio à conversa.
- Diz aqui, nestes papéis, que nasceu ao fundo do corso Garibaldi. Arranjámos-lhe um apartamento novo em folha, completamente mobilado, com casa de banho, aquecimento e telefone. Não paga renda e recebe uma indemnização de dez milhões. Pode ler aqui - propôs-lhe, ao mesmo tempo que lhe estendia o esboço do contrato.
- Mas o que é que tu queres que eu leia? Nem sequer vejo os escaravelhos que andam para cima e para baixo nas paredes - respondeu, enquanto reparava que o olhar do rapaz se tinha prendido no retrato da rapariga nua, à cabeceira da cama, e na boneca que se entrevia através do armário aberto.
- Mas vejo bem a tua cara, e leio nela uma grande curiosidade sobre aquele nu e sobre a minha pigotta - acrescentou, divertida.
- Pigotta - perguntou o jovem.
- Mas que Riva és tu, se não conheces o milanês? Vocês que são gente instruída dizem boneca, ou escultura de madeira, ou manequim. Mas aquela ali vai ser sempre umapigotta - explicou.
- É uma boneca bem esquisita - observou ele.
- Acredito! Tem aos ombros quinhentos anos de vida. É uma das muitas recordações do meu esplendor passado. Como a rapariga do retrato.
- é lindíssima - comentou o jovem.
- Aquela sou eu, há sessenta anos atrás. Não acreditas em mim, pois não? Às vezes olho para ela e já nem eu tenho bem a certeza - declarou com amargura.
- Acredito sim. Ainda se vê que foi bonita. E o seu fascínio não se perdeu pelo caminho - tentou adulá-la, apesar de dizer a verdade. Aquela velha estranha tinha alguma coisa de especial.
- Mera, monsieur - surpreendeu-o Matilde, com uma pronúncia perfeita. E acrescentou: - Sabes como é que dizem os franceses?
3 Pigotta, no dialecto italiano da Lombardia, significa boneca de pano. (N. da T.)
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Un compliment fait à une femme n'est jamais perdu. Portanto, o que é que eu posso fazer para retribuir a tua galanteria?
- Aceitar a oferta da administração. Vai viver numa casa certamente melhor e eu ganho uma gratificação.
Matilde fitou-o com um ar pensativo. Depois expôs-lhe o seu próprio ponto de vista.
- Sabes uma coisa, filho? Eu já nem posso ver os administradores. Pertencem àquele raça medonha de gente que te tenta levar com ar de quem te está a fazer um favor. Diz ao teu administrador que a oferta dele não me interessa. O que é que eu faço com um apartamento novo? Esta casa para mim está melhor que bem. Não tenho de pagar renda, disseste? Mas eu aqui já não pago renda há cinco anos e o dono nem quer saber. Querem oferecer-me dez milhões? Não preciso. Já tenho a minha reforma. É pouca coisa, mas para as minhas necessidades até sobra. Só tenho pena que a minha recusa te impeça de receber a gratificação. Conforma-te. És jovem e vais ter mil e uma ocasiões, na tua vida - declarou a mulher.
- Mas olhe que a senhora não vai ter outra. Esta é uma oferta absolutamente excepcional - sublinhou o rapaz.
- Ninguém oferece nada a ninguém. Aprendi isso quando era criança. No ano passado, a câmara mandou-me duas assistentes sociais. Duas rapariguitas que me vieram oferecer ajuda e companhia. Fizeram-me muitos tagatés, chamaram-me "querida senhora", queriam ir às compra para mim, lavar-me a roupa e por aí adiante. Nessa altura, o meu Lilin ainda se aguentava nas pernas. Disse-lhe: "Lilin, manda-as embora." Não estava à espera de outra coisa, este meu amiguinho. Espetou os dentes nos tornozelos das raparigas. Devias tê-las ouvido. Gritavam como umas galinhas, enquanto corriam como tiros pelas escadas abaixo. Queriam meter o nariz na minha casa. Mas o meu cachorrinho não deixou. Agora a espinha dorsal já não o aguenta. E, no entanto, é o único macho da minha vida que me foi sempre fiel. Tirando o Alberto, é claro. Mas isso é outra história.
Calou-se, e uma lágrima escorreu-lhe ao longo da cicatriz. O cão começou a lamber-lhe uma mão e a ganir. Matilde limpou a cara e recomeçou a falar com uma voz cansada.
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- Eu e o meu Lilin somos uma só força. E quem é que quer saber do resto do mundo? À noite, quando nos metemos na cama, faço-lhe festas, sorrio-lhe e digo-lhe "Verrà la morte e avrà i tuoi occhi": Cesare Pavese. Nunca leste? Não faz mal. Também se vive sem os poetas. Todas as noites espero ardentemente que adormeçamos para sempre, juntos. Às vezes sonho que somos outra vez jovens e que vamos a subir uma longa escadaria de ouro. Ele tem uma coleira de brilhantes e eu seguro-o pela trela enquanto bato à porta do Paraíso. Depois acordo. É outro dia. O meu Lilin está vivo e a lamber-me a cara.
O jovem escutou, pálido, perguntando a si próprio quem realmente seria aquela mulher terna e feroz que citava Pavese, vivia numa água-furtada imunda, precisava imenso de ajuda e, no entanto, a recusava.
- Gosto de si - concluiu, após um breve silêncio.
- Também eu de ti. Tens uma cara honesta e um olhar inteligente. Nunca vais enriquecer porque és demasiado honesto. Mas não é preciso ter assim muito dinheiro para viver bem - declarou Matilde. E acrescentou: - Agora podes ir embora.
O jovem levantou-se de um salto.
- Peço desculpa pelo incómodo - balbuciou, perturbado. E perguntou: - Devo então informar que não há nada a fazer em relação àquela excelente proposta?
- Muito bem. Percebes as coisas à primeira e sabes quando não vale a pena insistir - concluiu a mulher.
- Olhe que eu tenho autorização para negociar - tentou, ao mesmo tempo que se dirigia já ao patamar. Tinha-se dado por vencido, mas tinha de cumprir as instruções recebidas. - Diga-me se houver alguma coisa que a faça mudar de ideias, que eu arranjo maneira de lha darem.
- Sim, há uma coisa que me podia fazer mudar de ideias. Queria uma mão que me acariciasse a testa. Queria não ter medo de morrer. Queria evitar a dor e a doença. Queria uma voz amiga que me falasse quando estou triste. Estás autorizado a negociar tudo
4 Virá a morte e terá os teus olhos. (N. da T.)
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isto? Não, como é evidente. Então diz aos teus patrões que se vão lixar - gritou, quando o jovem já ia a descer as escadas.
No momento em que chegou ao pátio ouviu, vinda da água-furtada, uma voz de mulher a cantar, sobre as notas de um tango: "Cuàntos anos aguantando mis cadenas, soportando resignada, tus abandonos... Enquanto saía daquele pátio pestilento, deu-se conta de que experimentava um estranho sentimento de nostalgia em relação àquela velha.
Matilde, entretanto, afagava o focinho do cão e, entre lágrimas, sussurrava-lhe: - Acho que chegou o momento de vender a nossa pigotta. Pelo menos, temos de pagar o aluguer atrasado. Não achas? Se assim não for, vamos estar à pega. Depois, esperemos que nos deixem acabar os nossos dias em paz.
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Giovanna regressou à loja. Era Maio mas ainda estava frio e a chuva forte não dava tréguas há vários dias. Lino acendera todas as luzes para receber um cliente assíduo, o arquitecto Filippo Pantani.
Giovanna pousou o guarda-chuva a pingar e tentou secar os sapatos encharcados no tapete de juta, enquanto Lino ia ao encontro dela para a ajudar a tirar o impermeável.
- Como está, signora? - perguntou-lhe em voz baixa. Não se viam há três semanas, desde aquele domingo em que os ladrões tinham entrado na loja e ela partira para Florença, para o funeral do marido.
Tranquilizou-o com um sorriso afectuoso. Depois estendeu a mão ao cliente que estava à espera dela. Ele apertou-lha e beijou-a na face.
- Giovannina, querida, sinto muito - começou Filippo Pantani. Tinha passado dos trinta anos há pouco tempo. Possuía um corpo de manequim e um bonito rosto, muito expressivo. Quando Giovanna o conheceu andava ainda no liceu. Passava junto à loja, que então se chamava Lanciani Antiguidades, com os livros na mão, e parava em frente às montras, atento aos mais pequenos objectos.
Naqueles anos, Giovanna, recém-casada, ia a Milão apenas esporadicamente. O estabelecimento era gerido por um excelente colaborador, amigo de Jacopo. Foi precisamente ele quem lhe chamou a atenção para aquele rapazinho.
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- Pára em frente à loja quase todos os dias, quando regressa da escola - disse-lhe.
No dia seguinte, Giovanna abriu a porta do estabelecimento e cumprimentou-o, dizendo: - Entra. Assim podes ver melhor as coisas que te agradam.
O rapazinho corou, balbuciou umas palavras confusas e por fim aceitou o convite daquela senhora tão bonita. Giovanna ainda se lembrava da maneira como ele apontou com o dedo para duas estatuetas de porcelana do século XVIII que representavam personagens da Commedia deWarte: Pantaleão e Colombina.
- Gosto daquelas - afirmou o rapazinho.
- E por que é que gostas? - perguntou ela, curiosa com o facto de um adolescente mostrar tanto interesse pelas antiguidades.
- Têm umas cores extraordinárias. Acho as poses elegantes. Quanto custam? - perguntou por fim.
- Tens mesmo a certeza de que queres saber? São pequenas obras-primas assinadas por um grande mestre alemão: Franz Anton Bustelli - explicou Giovanna. E continuou: - E depois, o que é que fazias com elas?
- Punha-as em cima da minha mesa e podia olhar para elas e tocar-lhes quando quisesse. Qual é o preço? - insistiu.
Giovanna disse-lhe e ele não pestanejou.
- As coisas bonitas pagam-se. Só que eu não tenho esse dinheiro todo. Se juntar as minhas economias, não chego a um quinto daquilo que me pede. Mas se eu passar de ano, a minha mãe e a minha avó vão premiar-me com aquilo que eu mais desejo. Por favor, não as venda antes do Verão. Depois dos exames eu venho comprá-las. Considere-as já minhas.
E foi assim que Giovanna e Filippo se conheceram. A seguir aos exames o rapazinho obteve as suas porcelanas e, depois disso, continuou a frequentar a loja. Acabou de se formar em Arquitectura e especializou-se em Decoração de Interiores. Possuía uma clientela de pessoas abastadas, que confiavam no seu gosto para lhes decorar casas, apartamentos, barcos e aviões, e para desenhar jardins, tapetes, louças e roupas de casa.
No sector do design de interiores, Filippo Pantani era muito estimado, e o seu nome era uma marca de prestígio. Quando soube
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que Giovanna tinha regressado a Milão depois da morte do marido, foi ter com ela para lhe dar os pêsames.
- Soube do Jacopo e lamento sinceramente, minha amiga -
disse.
Giovanna, comovida, retribuiu aquele abraço afectuoso.
Lino eclipsara-se discretamente para as traseiras do estabelecimento e Giovanna sentou-se à secretária, indicando uma poltrona a
Filippo.
- Como foi que soubeste? - perguntou ela.
- Sabes como é. No nosso meio não cai um alfinete sem que se fique a saber - tentou brincar.
- Foram todos muito queridos comigo - admitiu Giovanna, esforçando-se por sorrir. A morte de Jacopo deixara-a muito pesarosa. Interrogara-se durante muito tempo sobre a sua atitude perante a vida, pondo-se em questão como esposa, como mulher e como mãe. Mediu a imensidão do seu egoísmo e apercebeu-se de que nunca se tinha deixado envolver pelos problemas dos outros, no temor de ter que dar alguma coisa de si. Nos dias passados em Florença, depois da morte do marido, conversou muito tempo com a sogra, a chorar nos braços dela.
Eugenia, com sabedoria e generosidade, ouviu-a, consolou-a e deu-lhe coragem. - Vais descobrir muito em breve que a serenidade também se atinge através da dor. Não tenhas medo. Deves abrir-te aos outros, mas para o fazeres vais ter de olhar primeiro, profundamente, para dentro de ti própria - disse-lhe.
Desde que regressara a Milão, Giovanna dedicava mais tempo à filha. Giny parecia não apreciar os seus esforços, mas ela não se deixava desencorajar.
- Estás diferente, Giovannina - observou o arquitecto. - Tens um olhar mais intenso e um sorriso mais luminoso.
- Achas? Estou confusa e muito descontente comigo - confessou.
O jovem amigo sorriu-lhe.
-- Então vou aproveitar a tua fraqueza para sacar um bom preço para esta coisita - disse, indicando uma moldura que estava pousada na secretária. Delicadamente, fez deslizar os dedos pela Parte lisa da madeira e pelos entalhes que reproduziam conchas cheias, caramujos e bolinhas.
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- Essa coisita é uma flor do barroco siciliano, meu caro -- esclareceu ela, recuperando o seu tom profissional. - Encontra-me outra com estas dimensões, desta época e que seja assim tão bonita e eu garanto-te que estou pronta para a comprar sem me importar com o preço.
- É sempre um prazer fazer negócios contigo. Vendes objectos que os teus colegas também têm, mas consegues fazer com que os teus pareçam mais importantes - brincou ele.
- As obras de arte têm uma alma. E tu sabes disso. É por isso que são importantes - declarou. E acrescentou: - Queres um café?
- Leste-me o pensamento. Com esta chuva não tenho vontade nenhuma de andar por aí. Só te vou fazer compras a ti.
Comprou um Cristo de madeira do século XVI e um contador florentino de 1400. Lino empoleirou-se nas prateleiras das traseiras da loja para conseguir chegar a umas imagens napolitanas de inspiração bucólica do século XVIII em que Filippo estava interessado.
- Não me queres dizer o que estás a decorar? Se não for segredo, como é evidente - perguntou Giovanna.
- Estou a restaurar uma mansarda na piazza Cordusio e tencionava mesmo falar-te nisso. É um apartamento de quatrocentos metros quadrados. O proprietário é um homem da finança siciliano. As obras ainda não acabaram, mas o cliente parece ter muita pressa e por isso tenho que me despachar com a decoração - explicou.
- Então não me apertes com os preços. Os homens da finança têm fundos inesgotáveis - brincou Giovanna.
Tinham-se aproximado da montra para observar uma mesinha com embutidos. Parara finalmente de chover e o sol aparecia já por
entre as nuvens.
O arquitecto passava os dedos pelos embutidos do tampo da mesa e Giovanna observava o seu rosto bonito com uma espécie de ternura materna.
- Acho-te um bocadinho pálido - disse-lhe.
Naquele momento, Matilde, com o carrinho do costume, parou à frente da montra. Giovanna esboçou um sorriso, que a mulher não retribuiu. Afastou-se imediatamente, a empurrar o carrinho desengonçado.
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- Não estou em grande forma, minha querida Giovannina suspirou o jovem.
- Trabalhas de mais. Precisas de descansar - disse ela, para retirar importância à questão, com receio de ter suscitado a ansiedade do amigo.
- Tenho uma proposta para te fazer - prosseguiu Filippo.
- Estou a ouvir - respondeu Giovanna.
- Apetece-te dar-me uma mão para decorar a mansarda? Tenho de ser internado na clínica para fazer uma série de exames e a tua ajuda aliviava-me imenso - declarou. Tinha assumido a expressão tímida e um pouco assustada do rapazinho que Giovanna conhecera muitos anos atrás.
- Nada de sério, pois não? - perguntou, alarmada.
- Sou seropositivo - sussurrou ele. Giovanna abraçou-o de repente.
- Estou desesperado - murmurou Filippo, apertando-a contra si. - Acabo de fazer trinta anos e não quero morrer. - Choraram abraçados, em silêncio, durante algum tempo.
Filippo nunca tinha feito mistério da sua homossexualidade que, agora, o tinha exposto ao contágio.
- Tens de ter confiança - disse Giovanna, tentando tranquilizá-lo. - A ciência está sempre a descobrir novas curas.
- Conversa. Conversa sem fundamento - objectou ele, enquanto se separava do abraço da amiga.
- Estou convencida de que vais ficar bem - afirmou Giovanna, com força, dando-lhe um beijo na face.
- Gostaria que fosse verdade. Agarro-me a essa esperança como um náufrago ao bote salva-vidas. - E acrescentou: - Então, ajudas-me com o meu cliente?
- Está prometido - garantiu Giovanna. Despediram-se à porta da loja. O sol já tinha secado a rua. Era
quase hora de almoço e Giovanna tinha de ir buscar Giny à escola.
A história da filha com o representante de roupa interior continuava, mas Giovanna tinha deixado de a hostilizar. Sofria com, aquilo sem dar a perceber, e esperava que acabasse. Deixou a Lino a tarefa de fechar o estabelecimento e saiu.
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A velha Matilde estava ali outra vez, à frente dela. - Preciso de falar consigo - começou.
Giovanna olhou para ela, surpreendida.
- É sobre a minha pigotta - explicou. E acrescentou com ar de desafio: - Se não lhe meter muito nojo vir à minha casa, é claro.
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Giovanna observava, encantada, a pigotta de Matilde. Com toda a cautela, tirou-a do armário e pousou-a no chão, por baixo da flanela. O nu em madeira, com um metro e um palmo de altura, completamente pintado a têmpera, era o corpo de uma rapariga Apouco mais que adolescente: os ombros estreitos, os seios pequenos, os mamilos rosados, o ventre ligeiramente curvo que se tornava mais fino, como o cone de um lírio, em direcção ao púbis. Os cabelos cor de trigo, apanhados em pequenas tranças, afagavam o pescoço apertado por uma fita vermelha-escura com frisos desenhados a ouro. Intrigou-a a articulação dos braços, móveis nos ombros, no cotovelo e no pulso. Que sentido fazia a mobilidade naquele corpo totalmente rígido?
- É lindíssima - sussurrou, com verdadeira admiração.
- Eu sei - disse Matilde. - Por isso pensei em si, que só vende coisas importantes. Quer comprá-la? - perguntou quase com relutância. Giovanna observou a estátua. O trabalho revelava a mão sábia do artista que a tinha modelado e pintado. Não procurava defeitos. Dedicava antes a sua atenção ao valor, que era evidente.
Aquele nu feminino tinha certamente uma história de séculos. O trabalho do rosto fazia lembrar certos ovais cheios, típicos das Madonne quatrocentistas. Perguntou a si mesma se seria realmente possível que, numa época em que a arte estava ainda ao serviço da Igreja, alguém tivesse esculpido aquela figura profana, cuja função não entendia.
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- Tem a certeza de que a quer vender? - perguntou, incrédula. Matilde estava sentada na cadeira de baloiço e afagava o dorso
do basset. - Não a ofereceria a ninguém. Mas ofereço-a a si declarou, olhando-a nos olhos.
- Porquê? O que é que eu tenho de tão especial? - perguntou, curiosa.
- Nós as duas somos parecidas - respondeu a velha.
Já tinha feito aquela estranha afirmação algumas semanas atrás, quando Giovanna a ajudou a levantar-se depois de ela ter caído. Nessa altura tinha outras coisas em que pensar, e agora aquelas palavras irritaram-na.
- Tem mesmo a certeza? - insistiu, calando o desapontamento provocado por aquela afirmação absurda e pouco lisonjeira. Sabia que não tinha rigorosamente nada em comum com aquela velha de fama equívoca.
- Preciso de cinco milhões - explicou Matilde, fugindo à pergunta.
Giovanna considerou que a estátua, numa primeira observação, parecia não precisar de grandes restauros. Tinha certamente de ser limpa, e imaginou o prazer que seria fazer isso nas traseiras da loja, ao mesmo tempo que a analisava com o velho Lino, que era um especialista em madeira antiga. Cinco milhões pareceram-lhe um pedido exíguo.
- Posso perguntar-lhe como foi que a arranjou? - perguntou.
- Se fizer muita questão - respondeu, bruscamente. - Foi um presente. Há uns sessenta anos, ou talvez mais. Quem é que se lembra? Até tinha uma expertise. É assim que diz a gente da profissão. Foi comprada num leilão, em Londres. Antes da guerra, como é evidente.
- Talvez consiga então encontrar o certificado - insinuou Giovanna.
- Talvez. Mas não era com certeza aquele pedaço de papel que me interessava.
- Não tenciono roubá-la. Cinco milhões parece-me realmente pouco - disse Giovanna, que tinha aprendido com o marido e com a sogra o respeito pela ética profissional. Não se queria aproveitar da ingenuidade da pobre mulher. Se tivesse visto a estátua num antiquário, teria oferecido dez vezes a quantia pedida.
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Eu disse cinco. Não preciso de mais - teimou Matilde.
Não quero fazer negócio com a minha pigotta. Vendo-a porque preciso desta quantia. Não me resta muito tempo de vida. Quando morrer, hão-de vir aqui uns desconhecidos deitar a mão a tudo. Mais vale que fique a senhora com ela.
Para que é que precisa desse dinheiro? - quis saber Giovanna.
- Querem mandar-me embora desta casa. Se se agarrarem a lei, eu estou mal, porque não pago a renda há cinco anos, ou mais. Com esse dinheiro saldo a minha dívida. E a casa continua minha. Estou a dizer bem?
Giovanna olhou em volta e registou a singularidade daquela água-furtada, onde a imundície, a miséria e o abandono não conseguiam apagar os vestígios da sua antiga elegância. A cabeceira da cama, alguns quadros, o grande espelho e alguns objectos decorativos em porcelana conviviam com uns móveis desengonçados, cadeiras de plástico e um sofá com as molas de fora. No lava-loiça havia pilhas de pratos sujos com restos de comida.
A água-furtada, no entanto, era espaçosa e poderia transformar-se num espaço agradável se a casa fosse restaurada. Por que razão se obstinava aquela estranha velha a viver ali? Todos os outros inquilinos, Giovanna sabia, tinham ficado satisfeitos com as novas instalações. Aquela obstinação implicava talvez uma coisa diferente da teimosia normal, típica das pessoas de idade.
- Até quando acha que consegue subir quatro andares de escadas, com aquele animal ao colo? - perguntou.
Matilde apertou os lábios e olhou para ela com hostilidade.
- Desculpe - disse Giovanna muito depressa -, não tenho nada com isso.
- Exactamente. Portanto, leve essa pigotta embora e deixe o dinheiro em cima da mesa.
- Posso passar-lhe um cheque? - perguntou, ao mesmo tempo que tirava o livro da carteira.
A velha levantou-se da cadeira de baloiço. Aproximou-se da escultura e acariciou-lhe uma face, sussurrando: - Guando yo te vuelva a ver, no habra más penas ni olvido1.
Em espanhol, no original. (N. da T.)
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- O que foi que disse? - perguntou Giovanna, enquanto pousava o cheque preenchido em cima da mesa.
- Disse-lhe adeus. Quer saber se falo espanhol? Não falo. Só conheço as canções. Tangos, sobretudo. No tango está a resposta a muitos porquês da vida. O tango, minha senhora, é um pensamento triste que se dança. Pensamentos tristes tive eu muitos e dancei muito quando era nova e bonita como a senhora. Fui dançarina de tango no Fossati. Talvez não fosse muito boa, mas andava nua, ou quase. Isto bastava para fascinar os homens à procura de emoções. Leve a pigotta. Agora é sua - concluiu com maus modos, indicando-lhe a porta. E logo a seguir não conseguiu conter um gemido, ao mesmo tempo que levava uma mão à barriga.
- O que é que se passa consigo? - perguntou Giovanna, alarmada. Viu-a cambalear, dobrar-se sobre si mesma e procurar um apoio na mesa, enquanto lhe indicava a porta com a mão livre.
O instinto, posto à prova durante anos, sugeria-lhe que pegasse na escultura e fugisse para longe daquela velha doente e da sua casa pestilenta. Mas a piedade teve mais força.
- Deixe-se de coisas - ordenou com uma voz firme, indo ao encontro dela para a amparar. - Tem de se deitar imediatamente
- acrescentou, ao mesmo tempo que a levava para a cama.
Matilde sussurrou-lhe: - Dê-me um copo de água, por favor. E um analgésico. Está em cima da mesa-de-cabeceira.
Giovanna tirou o casaco do tailleur, arregaçou as mangas da blusa, pegou num copo que estava em cima da bancada e passou-o várias vezes por água. Encheu-o, encontrou o comprimido e ajudou-a a tomá-lo. Depois pousou-lhe uma mão na testa.
- Quer que chame um médico? - perguntou-lhe.
- Isto não é nada - disse a velha, com um fio de voz. O cachorrinho começou a ganir. - Ponha-mo em cima da cama. Ele quer estar ao pé de mim. - Giovanna obedeceu com relutância e o pequeno animal recompensou-a com um olhar cheio de reconhecimento.
- Obrigada por tudo - sussurrou Matilde, como que a despedir-se dela.
Giovanna não se decidia a ir embora. Era tarde e Giny estava provavelmente à procura dela, mas não tinha coragem para deixar aquela velha estranha.
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- Não é nada - repetiu a mulher, para a sossegar. E acrescentou: - Daqui a pouco o remédio faz efeito. Leve a boneca e tome conta dela. É a recordação de um período feliz da minha vida. Estou contente por agora ser sua.
- Pois, porque nós as duas somos parecidas. Não é verdade? repetiu, para ela ficar mais satisfeita.
- Não ligue. Sou velha e, às vezes, digo coisas sem sentido rematou.
- Ainda está com dores? - indagou Giovanna, sem se decidir a ir embora.
- Já está melhor. Hoje ainda me vai ver passar em frente à sua loja, com o meu cão - garantiu.
Giovanna pegou na estátua pela cintura e saiu da água-furtada em bicos de pés. Começou a descer lentamente as escadas sem conseguir ainda acreditar que tivesse feito uma aquisição tão extraordinária. Tinha descido apenas alguns degraus quando ouviu Matilde gritar: - Quimera! - Pousou a escultura no patamar e voltou atrás.
- Desculpe - disse a velha, da cama -, não sei o seu nome.
- Giovanna. Foi por isso que me chamou?
- Queria um último favor. Ponha-me um disco no gramofone. Indicou-lhe a estante ao lado da cama, que continha velhos 78
rotações de baquelite.
- Quero La Cumparsita. É o segundo disco à esquerda precisou Matilde.
Giovanna fez o que ela lhe pediu e, enquanto o disco começava a rodar, espalhando as primeiras notas da canção, a velha assentiu e sorriu.
Desta vez deixou a água-furtada com um sentimento de libertação. Desceu alguns degraus e apercebeu-se de que as notas do tango, que se espalhavam também pelo átrio, tinham um som vagamente familiar. Não se lembrava de onde nem quando tinha ouvido aquela canção, mas apercebeu-se de uma sensação aguda de mal-estar. Não gostava daquela música.
Chegou ao portão o mais depressa possível. As notas da Cumparsita seguiam-na como se a quisessem agarrar e esmagar. Era uma música horrenda. Desejou ir para muito longe daquela casa fétida,
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daquela velha louca, daquele tango perverso. Parecia-lhe que Matilde a tinha contagiado com uma maldição. Precisava de respirar ar puro, de ver coisas bonitas, de se sentir protegida entre as paredes da sua casa.
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Giny escancarou a porta de casa e bombardeou a mãe com uma rajada de perguntas.
- Onde estiveste? Porque não me avisaste de que estavas atrasada? Queres dar-me alguma explicação?
Giovanna olhou para ela, hesitante. Depois riu com vontade. A filha era realmente convincente no papel de chefe de família.
- Deixa-me tomar um duche rápido e depois conto-te tudo declarou, entrando no jogo.
Apareceu Bruna, a empregada. - Posso servir o almoço, signora?
- Ainda preciso de uns dez minutos - respondeu Giovanna.
- Olha que eu tenho fome - protestou Giny.
Pouco depois sentaram-se à mesa, uma em frente à outra.
- Conta - pediu a filha, enquanto enterrava o garfo no novelo de esparguete condimentado com azeite e manjericão.
- Não sei por onde começar. Este primeiro dia de trabalho foi, no mínimo, tumultuoso. Fala-me antes de ti. Como correu o regresso à escola?
- Ouvi os pêsames dos professores: um chorrilho de banalidades. Mas vamos por partes. Primeiro és tu - insistiu a filha.
- Estive com o Filippo Pantani - disse Giovanna.
Giny fez uma careta. - Não me parece um começo assim muito interessante - declarou.
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- Quer que eu o ajude a decorar uma mansarda na piazza Cordusio.
- E tu vais ajudá-lo?
- É uma experiência nova. Podia tratar daquilo durante o fim-de-semana e mesmo à noite, quando tu sais com o teu namorado
- sublinhou Giovanna, calando as várias razões que tinham levado o amigo a pedir-lhe ajuda. Giny encaixou o golpe sem reagir, atenta como estava a limpar o prato.
- Estou à espera de mais detalhes do teu dia - pediu a jovem. Giovanna falou-lhe do seu encontro com Matilde, da maneira
como tinha adquirido uma estátua absolutamente extraordinária e do efeito desagradável que lhe tinha provocado o som de uma velha canção. Esperava uma réplica trocista que não veio. Giny afagou-lhe a mão e olhou-a com ternura.
- Sabes uma coisa, mãe? É a primeira vez que me falas das tuas emoções.
- A sério? - disse Giovanna, espantada.
- Julgava que eras uma criatura de gelo e afinal descubro com prazer que és normal, como todos nós.
- Como assim? - perguntou Giovanna, curiosa.
- O pai era uma pessoa normal. Falava comigo e eu entendia-o. A avó é uma pessoa normal. Até a tia Margherita o é, apesar daquela mania dos mexericos e de se armar em vítima. Apesar de ser diferente, até a tia Lúcia é normal. É lésbica mas tem reacções normais. Só tu foste sempre um mistério - declarou.
Bruna tinha servido umas costeletas acompanhadas de salada fresca.
- Por este andar, corremos o risco de ficar amigas - brincou Giovanna, para aligeirar o tom daquelas confissões recíprocas. Não que eu seja uma especialista nessa área. Nunca tive uma amiga do peito, nem uma mãe com quem desabafar.
- Gostava muito de perceber que tipo de mulher tu és - suspirou Giny.
- Posso dizer-te tudo aquilo que não sou. Acho que não sou particularmente inteligente nem sequer esperta. Não tenho uma grande opinião sobre mim. Não sei tolerar a dor, não gosto de hospitais e detesto funerais - concluiu, com um encolher de ombros.
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- Esta série de negações não me agrada muito, mãe. Até porque sempre me meteste muito respeito - precisou a filha.
- Devíamos estar juntas mais vezes - afirmou Giovanna, enternecida.
- Só se continuares a falar-me de ti - replicou Giny.
- De acordo, com a condição de tu fazeres a mesma coisa rebateu Giovanna.
- Não vai ser fácil - disse a rapariga, pensativa.
- E quem é que disse que ia ser? Mas é importante tentar.
- O pai ia ficar muito contente com esta nossa conversa.
- Eu também acho. Agora, vamos tratar das costeletas antes que arrefeçam - replicou Giovanna, espetando o garfo na carne.
Depois do almoço saiu de casa, sentindo-se leve e disponível. Giny tinha-lhe prometido que, assim que acabasse os trabalhos de casa, passaria na loja para ver a estátua e depois iriam juntas comer uma. pizza.
Enquanto caminhava em direcção à via Fiori Chiari, Giovanna deu por si a cantarolar a Cumparsita, e todo o bom humor se desvaneceu com a rapidez de um relâmpago. Aquela canção perturbava-a profundamente. Porquê? O que haveria de tão terrível naquela música e naquelas palavras? Só se sentiu melhor quando entrou pela porta das traseiras da loja e viu Lino às voltas com a estátua de madeira, que tinha colocado em cima de um robusto pedestal.
O homem estava a limpar-lhe o rosto com um pano embebido num solvente especial.
- Já meteu mãos ao trabalho - disse Giovanna, satisfeita, ao mesmo tempo que atirava a carteira para um canto e se sentava ao lado do restaurador.
Depois de ter passado delicadamente o pano, Lino tirou a sujidade com outro pano limpo. A pouco e pouco, reapareceu a pintura perfeita do rosto: os lábios carmim, as faces rosadas e os olhos intensamente azuis.
- O que lhe parece, Lino? - perguntou com uma voz alegre
- Uma maravilha - respondeu o homem com convicção.
- Em que época a encaixava? - indagou ainda, enquanto calçava umas luvas de borracha para o ajudar.
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- Faz-me lembrar a escola de Maitani - respondeu, referindo-se ao artista de Siena que, em fins do século xv, tinha esculpido imagens de santos e Madonne semelhantes à daquela jovem.
- Talvez. Mas para mim não bate certo. A escultura profana floresce e espalha-se em fins do século xvi E esta senhorinha é muito profana. Não vê como está arranjada e pintada? Já para não falar da nudez - observou Giovanna.
- Não se pode realmente dizer que seja o rosto de uma rapariga temente a Deus - admitiu Lino.
- Digamos que é uma rapariga que qualquer homem gostaria de apertar nos braços - precisou Giovanna, enquanto limpava pacientemente a trança de ouro velho que descia ao longo das costas.
- O estado de conservação é extraordinário. Só tem uma pequena esfoladela num calcanhar. Praticamente não precisa de mais restauros - declarou Lino.
- É uma madeira macia. Mas qual, na sua opinião? - perguntou Giovanna.
- Podia ser faia. Ou uma árvore de fruto.
Giovanna pensou nos ensinamentos da sogra, quando lhe contava que até ao século XVI a decoração das casas era concebida, sobretudo, como barreira contra o frio. As grandes camas de dossel, as cadeiras de espaldar alto e as tapeçarias serviam para se defenderem dos sopros gelados e da humidade. Pintores e escultores estavam essencialmente ao serviço da Igreja.
Também nessa altura podia acontecer que algum camponês trabalhasse a madeira para fazer uma flauta, ou esboçasse uma marioneta para entreter as crianças. Mas nunca seria capaz de esculpir uma figura feminina tão harmoniosa. A estátua de Matilde era, seguramente, obra de um artista.
- Lino, isto não é uma cara de finais do século XVI. Podia ser mais antiga - admitiu Giovanna.
O homem anuiu. - Mas não entendo a mobilidade dos braços e dos pulsos. A não ser que... - interrompeu-se por um instante.
- Mas é claro! - exclamou. - Tinha mangas de tecido.
- É verdade! No século XV, as mangas eram uma peça separada da roupa. Exactamente como as meias. Por vezes, eram até acessórios luxuosos. Catarina de Médicis, quando foi casar com o rei de
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França, levou em dote já não sei quantos pares de mangas confeccionadas com brocados e rendas, pedras preciosas e fios de ouro. Os braços desta rapariga são articulados e não foram laçados porque estavam cobertos com mangas de tecido - explicou Giovanna, entusiasmada com a descoberta.
- Pois. Toda nua, mas com os braços cobertos para espicaçar a fantasia - respondeu Lino, divertido.
- Se assim fosse, seria uma espécie de manequim - afirmou Giovanna.
- O século XVIII está cheio deles - sugeriu o velho.
- Mas as únicas partes policromas eram o antebraço e o colo. Há manequins parecidos com este, mas da cintura para baixo não tinham pernas, só uns suportes de madeira - continuou Giovanna. Pensava também nos numerosos manequins eclesiásticos, com o rosto e as mãos laçados, que eram vestidos com tecidos preciosos para encarnar, segundo as exigências, uma Santa Rita ou um São Pancrácio.
- Esta senhorinha é um verdadeiro enigma - murmurou Lino.
Tocou o telefone. Era Eugenia Lanciani.
- Como está a correr o teu primeiro dia de trabalho? - perguntou.
- Melhor do que eu esperava - admitiu Giovanna. - E a senhora, como está?
- Resolvi tirar umas férias - disse a sogra.
- Parece-me uma ideia muito sensata. Onde vai?
- A Londres, passar uma semana. Agora que já não tenho de tratar do Jacopo, a minha vida parece um saco cheio de nada confessou.
- Eu entendo, mãe. Mas tem sempre a sua loja, os seus amigos e, sobretudo, a Giny e eu - tentou confortá-la.
- Tens razão, querida - respondeu Eugenia.
- Mãe, por que não vem a Milão? Gostávamos muito de estar um bocadinho consigo. Podia ficar aqui algum tempo, quando voltasse de Inglaterra. Tenho uma coisa para lhe mostrar - sugeriu Giovanna.
- O quê? Um quadro? Um móvel? Uma porcelana? - perguntou, curiosa.
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- Uma escultura. Um nu feminino que o Lino atribui à escola de Maitani - declarou, segura de ter suscitado o interesse da sogra.
- As avaliações do Lino não são o Evangelho - observou a antiquária.
- Eu acho que ele viu bem - respondeu Giovanna.
- Maitani é um mestre menor. E, em qualquer caso, só esculpia objectos sacros. Naquela época não se faziam nus de mulher. Começaram a fazer-se no século xvi e não ficou muita coisa. Que eu saiba, há um único exemplar do género conservado no museu de Turim.
- Se calhar é um erro de bradar aos céus, mas continuo a acreditar que a minha escultura é anterior.
- Quero dar uma vista de olhos. A propósito, onde a encontraste?
- É uma longa história. Conto-lhe quando estiver consigo rematou Giovanna. Quando pousou o auscultador, viu que Lino estava a preparar o gesso para o restauro do calcanhar. A composição era a mesma de sempre, em uso há seiscentos anos: cola de pele de coelho ligada com gesso de Bolonha, com uma mistura de pólvora negra e de um ovo para fixar a cor.
Giovanna deixou-o com o seu trabalho e foi verificar umas facturas. De vez em quando, sentada à secretária, levantava os olhos para a rua, à espera de ver passar Matilde. Sentia alguma gratidão por aquela velha, que lhe tinha praticamente oferecido um objecto tão interessante. O tempo passava e a mulher não aparecia. Começou a preocupar-se.
- Lino, acha que eu devia ir ver como está a Matilde? - resolveu perguntar.
- Aquela mulher não quer ninguém em casa dela - resmungou Lino.
- Mas hoje de manhã disse-me para eu subir.
- Só para lhe vender a estátua.
- Não estava nada bem. Tive de a meter na cama - explicou Giovanna.
- Mais dia, menos dia, ainda a encontram morta naquele sótão.
- Não gosta mesmo dela. Porquê?
- É uma bruxa. Mais vale não ter nada a ver com ela.
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- A mim pareceu-me apenas uma pobre mulher muito só objectou Giovanna.
- Não quer companhia - observou Lino.
-- Vou procurá-la - decidiu ela. - Se a minha filha chegar, diga-lhe que espere por mim.
Saiu do estabelecimento, chegou a casa de Matilde e subiu a correr os quatro lanços de escadas. Entrou na água-furtada e viu a mulher estendida na cama, com o cão a ganir ao lado dela.
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Giovanna respirou o cheiro do medo, da solidão e do abandono, enquanto a velha e o cão lhe dirigiam olhares suplicantes.
- O que é que eu posso fazer? - perguntou, desesperada.
- Use a sua imaginação - respondeu Matilde, irónica. - E entretanto pense no meu cão.
Giovanna levantou da cama aquele monte de pulgas e de simpatia e pousou-o no cesto, ao lado da cadeira de baloiço. Depois voltou para junto de Matilde, encostou um banco à cama, sentou-se e segurou entre as suas uma mão cansada da velha.
- O que é que se passa consigo? - perguntou, inclinando-se sobre Matilde.
- Acho que estou doente - admitiu a mulher com alguma renitência. Pegou numa manta velha e tentou esconder uma mancha no lençol - Fiz um esforço para me levantar, mas não consegui.
Envergonhava-se da situação a que o seu orgulho a obrigava, apesar de saber que precisava de ser ajudada.
- Por que é que teima em a viver assim? Por que recusa a ajuda de quem lhe poderia ser útil? - perguntou Giovanna com toda a ternura de que era capaz.
- Esforço-me tremendamente para defender a minha autonomia. Odeio a caridade - admitiu.
- E, no entanto, agora está a pedir-me ajuda - constatou Giovanna.
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Consigo é diferente. É capaz de entender coisas que os outros não entenderiam. As pessoas, em geral, humilham-nos. Obrigam-nos a fazer coisas que não queríamos. E se não obedecemos, castigam-nos e abandonam-nos. As pessoas gostam de mexer no lixo, de chafurdar na miséria dos outros para fazer conversa. Ou então ajudam-nos para salvar a alma. Tu és diferente. Não gostas da miséria e não pretendes obter louvores. - Tinha passado do você ao tu, como se falasse com uma amiga de sempre, e acabava de dizer coisas que revelavam um conhecimento profundo do carácter
de Giovanna.
- O que é que me escondes, Matilde? - perguntou.
- Não te escondo nada. Tu é que te escondes a ti própria.
Giovanna pensou no comentário de Lino: "É uma bruxa." E perguntou: já me disseste e repetiste que nós as duas somos parecidas. É por isso que sabes como é que eu sou? -desafiou.
Se calhar. Às vezes basta um olhar, um gesto, um movimento de corpo para revelar uma pessoa. Não se chega à minha idade sem ter aprendido a observar e a entender. Mas isso é outra história. Agora ajuda-me a sair da cama - ordenou, recuperando a voz áspera de sempre.
Matilde esticou os braços para ela, ao mesmo tempo que nos lábios lhe nascia um trejeito irónico. - Hoje ganhaste a lotaria: o prémio é o desconforto e a repulsa que vais sentir em relação a mim.
- Não me vais conseguir desencorajar - rebateu Giovanna, esticando os músculos para erguer o corpo maciço da velha. Instalou-a numa cadeira e, quando se aproximou da cama para a compor, viu os lençóis sujos de sangue. Virou-se para Matilde e afirmou, decidida: - Quer tu queiras, quer não, eu vou chamar um médico.
Matilde agarrou-se ao braço dela e começou a tremer.
- Não quero médico - balbuciou. - O médico mandava-me logo para o hospital, e lá não sabem o que é a piedade. Eu tenho direito à minha dignidade - disse, quase a chorar. Largou o braço de Giovanna e acrescentou, desesperada: - E depois, o meu Lilin, quem é que ia tratar dele? A ele não o aceitam no hospital. E eu não
o vou abandonar.
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- Não é evidente que o médico decida internar-te. Mas, ainda que assim fosse, tratava eu do teu cão, enquanto no hospital tu ias ser tratada e alimentada, tinhas comida e uma cama limpa.
- No hospital entra-se para morrer - sussurrou Matilde.
No meu tempo era assim, e não acho que as coisas tenham mudado muito.
Giovanna sentiu apertar-se-lhe o coração. No entanto, reagiu e começou a tirar os lençóis sujos: - Entretanto esta cama precisa de ser mudada, e tu precisas de um bom banho - afirmou, e acrescentou: - Quando começou a hemorragia?
- É a segunda vez que perco sangue. Sinto umas fisgadas na barriga, e depois sangro. A seguir a dor passa e a hemorragia pára. Mas hoje de manhã estava tão fraca que não consegui levantar-me sozinha. Tenho a certeza de que não é nada de grave - acrescentou, para fazer frente ao medo que sentia.
- Antes assim - replicou Giovanna.
Não sabia onde procurar lençóis lavados. O móvel de gavetas estava atulhado de roupas velhas, leques rasgados, boas de penas estragadas, frascos de perfume vazios, caixas de medicamentos, velhas fotografias, imagens de santos, um missal, um rosário em ouro e coral, luvas de renda, lenços de voile e rosas de organza num espantoso bricabraque de sagrado e profano.
Matilde divertia-se a observar o espanto de Giovanna perante aquela barafunda de velharias.
- Os lençóis estão no armário - decidiu-se finalmente a dar-lhe a indicação certa. Giovanna preparava-se para fechar a última gaveta quando reparou numa coisa de pano que libertava um brilho rosado e uns reflexos lunares.
- E isto, o que é? - perguntou, curiosa.
- Não estás a ver? - sorriu a velha.
Eram duas tiras de veludo de duas cores diferentes, o carmim e o verde malva, sobre as quais estavam aplicadas umas luminosas pedras vermelhas e umas minúsculas pérolas opalescentes.
Giovanna sentiu o coração dar um salto. - Parecem mangas sussurrou, incrédula.
- São as mangas da pigotta - confirmou Matilde. Giovanna observava estupefacta aquelas tiras de tecido que
nunca imaginou vir a encontrar.
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- Deixa-as estar - ordenou Matilde, e acrescentou: - Vendi-te a minha boneca, não o enxoval dela.
-- Mas estas pedras são verdadeiras? - perguntou Giovanna, hesitante.
- Não tens nada com isso.
- Quem te deu aquela escultura?
- Não vale a pena remexer no passado. Não te esqueças de que andavas à procura dos lençóis - rematou Matilde.
- Chamas lençóis a isto? - protestou Giovanna, ao mesmo tempo que extraía de um saquinho plástico dois panos lisos de tecido sintético.
- Faz-me a cama, se quiseres. Não me dês um sermão - protestou a mulher.
Giovanna meteu mãos à obra com um vago sentimento de inquietação. Aquela estranha velha exercia sobre ela uma atracção que não sabia explicar.
- Imagino que não haja banheira - disse, depois de ter dado à cama um aspecto decente.
- Tencionas lavar-te em minha casa ? - brincou Matilde. Depois mudou de tom e acrescentou: - Se não te meter nojo, olha atrás do biombo. Há uma tina.
A água-furtada possuía um cilindro eléctrico que não funcionava. Giovanna encheu de água duas panelas de alumínio e pô-las a aquecer no fogão a gás. Enquanto esperava, lavou a louça, a resmungar, porque havia pouco detergente, porque as esponjas estavam gastas, porque o esfregão estava sujo. Olhou em volta e constatou que lhe faltava sabão e pano para limpar as mãos.
A velha ouvia as suas lamentações, ria à socapa e não dizia nada.
A água começou a ferver e Giovanna apagou o gás. Encheu a tina acrescentando água fria.
- E agora, como é que te lavo? Nem sequer tenho uma luva de felpo.
- Eu lavo-me sozinha, não te preocupes. Já te disse que agora estou bem. Se quiseres, podes ir embora - disse Matilde, ao mesmo tempo que se levantava da cadeira e começava a desapertar a blusa.
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- Só vou depois de estares lavada e vestida - afirmou Giovanna.
A tarde ia já avançada e, das janelas da água-furtada, a última luz do sol ia enfraquecendo. Giovanna ouviu o som de passos apressados nas escadas. Virou-se para a porta de entrada e viu Giny.
- Graças a Deus que estás aqui. Entra e dá-me uma mão disse Giovanna.
- Estava à tua espera na loja - respondeu a jovem, sem se mexer da entrada da porta.
- Eu sei. Mas também estás a ver a situação em que me encontro - justificou-se.
- Ligou-te o arquitecto Pantani. Disse para lhe ligares depressa. Na loja estão dois clientes à tua espera. E, para terminar, tinhas uma coisa combinada comigo - declarou a filha.
Giny perguntava a si mesma por que razão a mãe, jovem, limpa, elegante e bonita quereria ficar naquele sótão tão medonho. Pensou que Matilde, ao ter-lhe vendido a escultura, a obrigasse a tratar dela.
- Quem é aquela? Manda-a embora - protestou Matilde, reforçando a opinião negativa de Giny.
- Aquela é a minha filha. E não se vai embora, se eu quiser que ela fique - rebateu Giovanna.
- Então, o que é que fazemos? - perguntou Giny, impaciente e inquieta.
- Minha querida, tenho que tratar desta pobre mulher. Eu despacho-me depressa, não te aflijas. Mas tu tens de me ir comprar luvas e sabonete. Também preciso de champô e de talco. Fazes-me esse favor? - perguntou, ao mesmo tempo que levava Matilde para trás do biombo e lhe pedia para se despir.
- Não - respondeu Giny. Deu um passo atrás, virou-se e foi-se embora.
Giovanna ainda tentou ir ao encontro dela, mas Giny já ia a descer as escadas, a correr.
- Por que não? - perguntou, debruçada no corrimão.
- Tu não fizeste nada pelo meu pai. E agora estás a dedicar-te a esta velha que nem sequer conheces - gritou a filha.
- Minha querida, por favor, pára. Volta aqui acima. Vamos conversar - suplicou Giovanna.
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Giny não respondeu. A mãe ouviu ressoar os seus passos no
átrio.
Tinha os olhos cheios de lágrimas e não sabia o que fazer. Gostaria de ter ido atrás daquela rapariga irracional, mas não podia abandonar Matilde. Giny, a loja e os clientes eram a sua vida, o seu trabalho, o seu universo. Entendia a reacção da filha. Giny tinha razão. Por que estaria ela a fazer por Matilde aquilo que nunca fizera por ninguém, nem sequer pelo marido?
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As dez horas da manhã, Giovanna chegou à piazza Cordusio. Filippo Pantani estava à espera dela em frente a uma banca de flores. Estendeu-lhe um raminho de lírios-do-vale que tinha na mão. Giovanna sorriu, agradeceu-lhe e deu-lhe um beijo.
- Estás cansada e de mau humor - adivinhou ele, pondo o braço en volta dos ombros de Giovanna.
- Estou zangada com a minha filha. Aliás, ela é que está zangada contigo e tem as suas razões. Mas eu também tenho as minhas. Parecemos dois pugilistas maltratados - brincou, para dissipar a amargura provocada por aquele conflito com Giny. Na véspera, depois de a filha a ter abandonado com Matilde, Giovanna encontrou uma mensagem quando chegou a casa: "Vou jantar com o Paolo, uma vez que não tinhas tempo para comer uma pizza comigo, como prometido". Regressou à uma hora da manhã. Giovanna estava a pé à espera dela. Nasceu dali uma discussão, durante a qual a filha reforçOU as acusações e ela não tentou sequer defender-se.
- Os conflitos entre gerações são normais - observou o arquitecto. - Uma mulher, para crescer, tem de entrar em competição com a mãe.
- A sério? - rebateu ironicamente Giovanna. Atravessaram o átrio de um edifício do século XIX. O porteiro
entregou a Filippo um molho de chaves e entraram no elevador, cheio de elegantes ferros forjados e cristais facetados.
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- Liberty puríssimo - decretou Giovanna. - Porque terão deixado de construir elevadores assim bonitos?
Porque as caixas de metal são mais baratas. Infelizmente,
porém, são feias - replicou o arquitecto.
Pararam no sexto andar. Um último e breve lanço de escadas, com degraus de mármore cor-de-rosa de Verona, levava à mansarda. A clarabóia, em forma de cúpula, executada com vidros de várias cores ligados por chumbo, deixava transparecer a luminosidade do sol que se tingia de verde, de azul, de rosa e de violeta.
- Que maravilha! - exclamou Giovanna, enquanto subia os poucos degraus que a separavam de um patamar espaçoso onde se impunha uma porta de nogueira clara, com o caixilho esculpido. Estava aberta de par em par. Do interior chegavam vozes e, por vezes, o ruído ensurdecedor de um martelo pneumático.
Giovanna e Filippo entraram na mansarda. O pavimento estava protegido por plásticos que faziam barulho quando eles passavam por cima. Foram envolvidos pelo cheiro forte da cal. Espreitaram para dentro de um salão. Dois operários, em cima de escadotes, trabalhavam com uma espátula para revestir a abóbada do tecto com estuque veneziano em delicados tons azulados. O efeito de um céu primaveril era realçado pelas colunas dóricas que, nos quatro cantos, sustinham a abóbada. Grandes janelas de arco rebaixado sucediam-se ao longo da parede do fundo. Giovanna e Filippo entraram num corredor e pararam na soleira de uma enorme casa de banho. A banheira, ao centro, era de mármore azul com filamentos dourados. Estava apoiada numas patas de leão de metal dourado. Três operários instalavam um estrado semicircular, do mesmo mármore, ao longo de uma parede côncava. As paredes e o tecto, revestidos de estuque, tinham as mesmas cores do mármore que revestia o pavimento.
- Esta é a terceira vez que refazemos a casa de banho - explicou Filippo. - Espero que seja a última.
Os operários cumprimentaram-nos. O que parecia ser o chefe, replicou: - Se me volta a atirar o trabalho ao ar, vai ter de arranjar outro que lhe faça isto. Já perdi clientes por andar às voltas com este apartamento.
Giovanna dirigiu a Filippo um olhar interrogativo. - O meu cliente - explicou-lhe -, não tem ideias muito definidas. Primeiro
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queria o branco de Garrara. Depois de o ter visto montado, já não gostava dele, e quis o brocatelo espanhol, amarelo com raios violeta. Mas, no fim do trabalho, disse que queria este azul do Brasil. E também é assim com o resto da casa. É uma pessoa difícil - desculpou-o Filippo.
- É melhor dizer que ele não é bom da cabeça, Sr. Arquitecto
- corrigiu o capataz.
- O cliente tem sempre razão - advertiu o arquitecto. Forneceu algumas indicações aos homens e continuou a volta
pelo apartamento, com Giovanna. Levou-a até ao quarto. As paredes tinham sido rematadas com estuque branco. Numa das paredes abria-se uma alcova, delimitada por duas colunas dóricas, entre as quais seria colocada a cama. No centro do quarto havia um estirador coberto de plantas e de decalques que reproduziam as várias divisões. Muitas das folhas tinham sido massacradas com vistosas correcções a marcador. Filippo olhou para elas e teve um gesto de contrariedade.
- Esteve cá outra vez - exclamou. - Se ao menos um dia eu conseguisse falar com ele!
- Estás a trabalhar para um cliente fantasma? - brincou Giovanna.
- Começo realmente a acreditar que sim. Nunca lhe vi a cara. Só comunica comigo por fax. Vem cá quando lhe apetece, rabisca os meus desenhos com um marcador e pretende que eu interprete estes hieróglífos. Muda de ideias de dois em dois dias e entretanto lamenta-se porque os trabalhos estão muito demorados. O único aspecto positivo é que não discute os custos - explicou Filippo.
- E como é que ele se chama? - perguntou Giovanna, divertida.
- Chama-se Alessandro Mongrifone.
- Caramba! - exclamou Giovanna. - É aquele construtor siciliano que tem ligações com a máfia?
- Esse é o pai dele. O meu cliente é o filho: finança e imobiliária. Vive entre Milão, Hong Kong e Londres. Este edifício é dele. No Outono passado entregou este trabalho ao meu gabinete, dizendo-me que o queria pronto na Páscoa. Estamos em Maio e ainda a procissão vai no adro. ´É evidente que a culpa não é minha, conforme pudeste constatar.
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- Arranjaste lenha para te queimares - lamentou Giovanna, enquanto seguia o amigo na volta de inspecção pelos outros aposentos. Havia um gabinete com computadores, um outro com uma secretária, um apartamento para os hóspedes e outro para os empregados, uma grande cozinha, um escritório imenso, um pequeno ginásio e um jardim suspenso com piscina coberta.
- Os meus clientes nunca são pessoas com quem é fácil lidar. Mas encontramo-nos, discutimos olhos nos olhos e, por fim, chegamos a algum entendimento. Só que com este fulano não há possibilidade de diálogo - lamentou-se.
- Telefona-lhe - sugeriu ela.
- Já telefonei. A aproximação maior que tive com ele foi a secretária que, com uma dança de palavras elegantes, me deu a entender que não a devia incomodar com um assunto de tão pouca importância.
- E tu ainda querias que eu te ajudasse? Escolheste a pessoa errada, meu amigo. Eu nem sequer saberia por onde começar, numa situação como esta - objectou.
- Giovannina, tu prometeste. Na segunda-feira tenho de emtrar na clínica e tu não és mulher para deixar um amigo numa situação complicada - ameaçou, em tom de brincadeira.
Giovanna sorriu, mas estava preocupada, até porque não sabia bem que tipo de contributo o arquitecto esperava dela.
- Parece-me uma casa muito masculina. Não encontro nada com que possa entrar em sintonia. O teu homem da finança não tem em conta as exigências da mulher? - perguntou.
- Não sei se há alguma. A mansarda, de qualquer maneira, é só para ele.
- Para a decorar, precisava de conhecer a pessoa que aqui vai morar - observou Giovanna.
- Normalmente é assim. Mas neste caso, de Alessandro Mongrifone só te posso dizer que nasceu em Palermo e que conseguiu obter, sabe Deus como, a nacionalidade inglesa. É tudo o que sei dele - sintetizou Filippo.
- Como foi que chegaram a acordo sobre o esquema do restauro?
- Por fax. E depois há estes blitz nocturnos para atirar ao ar, como viste, o trabalho já efectuado.
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- Mas este apartamento é soberbo. Daqui vêem-se os telhados da Milão oitocentista e todo o céu da Lombardia "cosi bello quand'è hélio", como dizia Manzoni.
O arquitecto não estava num estado de espírito adequado para apreciar as citações literárias de Giovanna.
- Amanhã vão começar a montar armários e estantes no quarto de vestir e no escritório. Confio em ti para verificar se as coisas ficam bem feitas. E também para a escolha das roupas de cama, de banho e de mesa. Vais ter de te entreter a escolher pratos, copos e talheres. A bateria de cozinha já está pronta e foi encomendada pelo cozinheiro. Eu desenhei os monogramas que têm de ser bordados na roupa, gravados nas pratas e reproduzidos nas louças.
- Ele gosta de marcar o seu território, como os cães - comentou Giovanna com ironia.
- Mas diverte-se a ficar na sombra. Imagina que até tentei, sem sucesso, arranjar uma fotografia dele. Falei com um amigo meu que faz a crónica social do Corriere. Disse-me que de Alessandro Mongnfone não há vestígios. Existem dados e imagens do pai, mas dele não.
- E o diz-que-diz das fofocas, o que é que conta?
- Só que ele e o pai se detestam. Ele saiu de Palermo de avião, há quinze anos, sem uma lira no bolso. Nunca mais lá voltou e, entretanto, construiu uma fortuna. Sabe Deus como. E isto é de facto tudo aquilo que se sabe dele - contou Filippo.
Deixaram a mansarda e saíram para a praça. Era hora de almoço. Os cafés eram tomados de assalto por empregados de balcão e funcionários, ao mesmo tempo que os estabelecimentos fechavam para a hora de almoço. Giovanna e Filippo despediram-se.
Ela seguiu a pé pelo corso Garibaldi. Decidiu que, se acelerasse o passo, conseguia chegar a tempo de apanhar Giny à saída da escola. Queria levá-la a almoçar a um sítio qualquer, numa tentativa de remendar o tumulto da noite anterior. Aos remorsos em relação ao marido, à dor pela sua morte, sobrepunha-se agora o receio de perder o amor da filha.
Viu-a. Destacava-se das colegas porque era a mais alta e a mais bonita. Estava vestida exactamente como todas as outras raparigas da sua idade: sapatilhas Nike, jeans remendados, T-shirt branca, camisola amarrada à cintura, mochila Mandarina Duck num ombro
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e os livros debaixo dos braços. Enquanto a observava, Giovanna pensou, com uma ternura infinita, que a sua Giny era tal e qual Jacopo.
O pequeno grupo de colegas dispersou-se e Giovanna atravessou a rua para ir ao encontro da filha. Naquele momento, viu-a erguer uma mão em direcção a um homem razoavelmente jovem, razoavelmente loiro, razoavelmente elegante, razoavelmente insignificante, que avançava na sua direcção. Giny abraçou-o, ele beijou-a nos lábios. Depois rodeou-lhe os ombros com um braço e juntos, a sorrir, aproximaram-se de um carro desportivo. Ele sentou-se ao volante, Giny sentou-se ao lado e o carro arrancou com um grande barulho de pneus.
- O vendedor de cuecas! - exclamou Giovanna, em voz alta, Levou uma mão à face como se tivesse apanhado uma bofetada. Sentiu-se desesperadamente só e teve vontade de chorar.
Depois lembrou-se de todas as vezes em que tinha deixado Giny para sair com algum dos seus admiradores e pensou que a filha também devia ter tido a mesma sensação de abandono e de amargura. Com uma pequena diferença: as suas histórias não tinham qualquer significado, enquanto que a de Giny poderia marcar-lhe a vida.
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Os jasmins na varanda tinham perdido as pétalas e as folhas estavam a ficar amarelas. Chegando àquele ponto, habitualmente, Giovanna deixava de tratar deles, deixando essa tarefa para os outros. No entanto, pela primeira vez, arranjou dois sacos de terra fresca e mudou as plantas de vaso, limpando as raízes para que, no ano seguinte, voltassem a florir ainda mais viçosas.
Andava a viver uns dias intensos, programando as horas de trabalho e aquelas que queria dedicar à filha. Tinha reduzido os compromissos com os amigos. Giny andava menos agressiva e parecia apreciar as maiores atenções da mãe. Havia muitos anos que a noite de sexta-feira era dedicada às reuniões de família: Margherita, com o marido e os filhos, e Lúcia, com a companheira do momento, iam jantar a casa de Giovanna.
Todos tinham em relação a ela um comportamento ligeiramente ambíguo: admiravam-na porque tinha conquistado uma óptima posição social, invejavam-na porque nenhum deles tinha conseguido fazer a mesma coisa, criticavam-na atribuindo o seu sucesso à beleza e à desenvoltura com que tinha conseguido gerir a sua vida.
Giovanna tinha consciência daquele emaranhado de sentimentos, mas não se importava. Ano após ano, o número de comensais fora ficando cada vez mais reduzido, uma vez que os filhos de Margherita, quando cresceram, começaram a preferir a companhia dos amigos à da tia Giovanna. Naquela noite, pela primeira vez, também Giny conseguiu escapar.
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- Já era altura - desculpou-a Lúcia. -Já fez dezasseis anos e é justo que tenha a sua vida.
Estavam a jantar um timbale de arroz e ervilhas preparado por
Bruna.
Depende das escolhas que se fazem - observou a irmã mais
velha.
- Estás a insinuar alguma coisa? - interveio Luigi, o marido.
-- Eu digo aquilo que penso. Por isso, não vale a pena procurarem segundos sentidos inúteis - replicou bruscamente Margherita.
- É preciso acrescentar que a confidente da tua sobrinha és tu
- insistiu Luigi, provocador.
- Os jovens só confessam aquilo que querem - interveio Alessia, a companheira de Lúcia.
- Fala por ti - respondeu Margherita, que só aceitava as companheiras da irmã por uma questão de convivência pacífica, mas não perdia uma oportunidade para deplorar aquela diferença.
A história de Lúcia com Alessia durava já há alguns anos e parecia consolidar-se com o passar do tempo. Lúcia tinha quarenta e três anos, Alessia menos vinte. Era filha de um homem muito conhecido e frequentava a universidade com resultados brilhantes. Antes de conhecer Lúcia, Alessia tinha sido um verdadeiro pesadelo para os pais. Em adolescente tinha sofrido de anorexia. Depois, tornou-se bulímica. Dois comportamentos contraditórios, tendo ambos como fim o desejo inconsciente de se anular. Os médicos tinham inutilmente empregado todas as suas forças para a ajudarem a viver. Só o encontro com Lúcia resolveu a situação. Alessia reconheceu a sua própria homossexualidade e, ao esclarecer a sua vida, encontrou um equilíbrio. Agora, a rapariga e a mulher viviam juntas, consideravam-se uma família para todos os efeitos e gozavam da bênção dos pais, que declaravam, laconicamente: - Mais vale uma filha lésbica do que uma filha morta.
A única que não aceitava a relação de Lúcia com Alessia era Margherita, que reprovava aquele convívio. Também naquela noite aproveitou para fazer com que Alessia se sentisse estranha à família.
Lúcia pousou uma mão consoladora sobre a mão da companheira e dirigiu-lhe um olhar suplicante, para a levar a não reagir.
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- Se temos de falar da Giny, declaro publicamente que não quero subentendidos - interveio Giovanna.
- Repara que eu apenas disse uma banalidade, sem malícia Mas se há alguma coisa a saber, gostava de saber já - declarou Margherita.
- Sim, há um dado novo. Já tem algum tempo, para dizer a verdade. Mas eu, como todos os pais, fui a última a ser informada. A Giny tem um namorado por quem se declara perdidamente apaixonada. Toma a pílula e isto já vos diz alguma coisa sobre a natureza daquela relação. Ele é vendedor de roupa interior e é casado disparou Giovanna de um só fôlego.
- Olha que uma destas, da minha sobrinha, não estava nada à espera - respondeu Margherita, indignada.
- Nós já sabíamos há algum tempo - sussurrou Lúcia, incluindo Alessia naquele papel de confitentes de Giny.
- Parece-me óbvio. Há coisas que só se podem contar a vocês as duas - explodiu Margherita.
- Deixa de te armar em mãe nobre e preocupa-te mas é com os teus filhos! - censurou Luigi.
- Tu come e cala-te - ordenou a mulher. Tinha uma consideração reduzida por aquele companheiro que não tinha conseguido fazer carreira e que, aos cinquenta anos, era ainda um empregado de quinto nível na administração pública.
- O Luigi tem razão - interveio Giovanna, em defesa do cunhado. - Tu tens a pretensão de te considerares a única depositária do Evangelho na Terra. E depois não entendo por que razão, de cada vez que nos encontramos, se tem por força de falar dos filhos.
- Deves admitir que essa história da Giny é bastante preocupante - respondeu Margherita, nem um pouco arranhada pelas palavras do marido e da irmã.
- É claro que tu és muito boa a atirar lenha para a fogueira criticou Luigi.
- Por que não falamos dos presentes? - interveio Alessia. Podia falar-vos de mim. Gosto tanto! É uma descoberta recente e muito gratificante. Primeiro era terrivelmente introvertida. Agora tornei-me uma tagarela imparável. Encontrei na Lúcia uma ouvinte extraordinária.
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Sim, querida, já sabemos - respondeu Margherita, provocadora. - Mas se em vez da minha irmã tivesses encontrado um apaz bonito, as coisas tinham-te corrido decididamente melhor.
Lúcia e Alessia não responderam à provocação, trocando entre elas, pelo contrário, um olhar divertido.
- Perdeste mais uma oportunidade de estares calada - interveio Luigi. - Não tens uma pinta de sensibilidade. De resto, nunca tiveste.
- A tua é mais do que suficiente para os dois. Sobretudo quando a traduzes numa prosa melada que utilizas para mandar bilhetinhos enjoativos às colegas jovens e engraçadas - disparou a mulher.
Bruna tinha servido um tamboril preparado no forno, condimentado com ervas aromáticas.
- Não acham este peixe delicioso? - Giovanna tentou mudar de assunto.
Luigi estava corado. Parou de comer e levantou-se da mesa.
- Talvez seja melhor retirar-me. Peço desculpa às senhoras. Incluindo a minha mulher, como é evidente.
- Mas é claro, vai lá, assim deixas de estar em pulgas. Desde que chegaste que estás com vontade de te pores a andar. Eu sei perfeitamente que a tua querida está à tua espera - respondeu bruscamente Margherita, com uma voz cheia de raiva.
Giovanna, sem fazer comentários, limitou-se a acompanhar o cunhado até à porta e, naquele momento, Alessia foi também ter com eles.
- Peço-te imensa desculpa, Giovanna. O sarcasmo da tua irmã é intolerável e está a piorar com o tempo. Também me vou embora
- disse.
A mesa ficaram apenas as três irmãs.
- Não se pode dizer que o jantar desta sexta-feira tenha sido um sucesso - lamentou Giovanna, regressando ao seu lugar.
Margherita tinha começado a chorar e Lúcia estava a tentar consolá-la.
- Aquele patife do meu marido tem uma amante - declarou, no meio dos soluços. E acrescentou: - Há meses que ando com este sapo aqui dentro. Ainda vou ficar com uma úlcera de estômago, e a culpa é toda dele.
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- Não é que tu tenhas feito muito para o manteres ao pé de ti
- observou Giovanna.
- De que é que estavas à espera? Os homens são todos uns porcos - declarou Lúcia.
Bruna assomou à porta e perguntou se podia servir a sobremesa. Giovanna fez-lhe um sinal de assentimento.
- Fiquei com o estômago apertado - protestou Margherita.
- Não consigo comer mais nada.
- O merengue da Bruna faz milagres - garantiu Giovanna, ao mesmo tempo que a empregada pousava em cima da mesa um bolo muito alto e muito branco de cujo topo desciam regatos de chocolate a ferver.
- Aqueles dois palermas foram-se embora e nunca vão saber o que perderam - exclamou Lúcia, enquanto olhava avidamente para o doce.
Naquele momento, Margherita enxugou as lágrimas, assoou ruidosamente o nariz no lenço e reencontrou um sorriso.
- Pois é, vamos lá afogar as mágoas no chocolate. Os doces são a minha única consolação.
- Pára de te lamentar - disse Giovanna.
- E porquê? A mim acontece-me tudo. Vocês as duas nunca sofreram sequer uma sombra daquilo que eu sofri. Em quarenta e cinco anos, nunca deixei de penar um único dia - declarou com um suspiro de vítima. E logo a seguir enterrou a colher no doce, encheu o prato e começou a comer.
Durante alguns minutos ficaram em silêncio. Só se ouvia o retinir das colheres nos pratos.
Depois Giovanna disse: - Há uns dias ouvi um tango. La Cumparsita, para ser mais exacta. Tive uma sensação de mal-estar que não consigo explicar. Não pode depender apenas do facto de eu odiar música, de tal maneira que nunca quis aprender a dançar. Mas recordei um sonho que me persegue há anos: vejo uma menina com os lábios sujos de chocolate e a mão de um homem a tentar limpar-lhos, sujando-a ainda mais. Não sei quem é aquela menina, nem a quem pertence aquela mão de homem. Mas sei que o mal-estar que me provoca este sonho é semelhante ao que senti ao ouvir o tango.
Lúcia e Margherita baixaram os olhos sobre os pratos.
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- Pensei nisto durante muito tempo, andei a remoer e, a noite passada, acordei num sobressalto a lembrar-me que em nossa casa se ouvia música, quando éramos pequenas. Tínhamos um gira-discos, estava em cima da cómoda, no quarto do pai e da mãe. A mãe a fazer vestidos para as clientes. O pai em cima da cama, a rir. Nós as três dançávamos e brincávamos. Depois um dia o gira-discos desapareceu. Porquê? - continuou Giovanna. Não obteve resposta.
- Já se está a fazer tarde - disse Lúcia. - Muito obrigada pelo jantar. Quanto à Giny, não te preocupes. Aquela história disparatada vai acabar mais cedo do que tu pensas.
- É melhor eu ir também - declarou Margherita. - Amanhã tenho de me levantar muito cedo. Vou ter de montar as bancas para a venda de beneficência na paróquia - justificou-se.
- É pena. Estava cheia de vontade de conversar convosco, esta noite - lamentou Giovanna.
- Fica para outra vez - prometeu Lúcia, enquanto se despedia.
- E não remexas muito no passado - acrescentou Margherita, quando chegou ao pé dela.
- Porquê? Que mal há nisso? - perguntou Giovanna, curiosa, enquanto as acompanhava à porta. Tinha a sensação de ter tocado num ponto doloroso e pareceu-lhe que as irmãs mais velhas estavam a tentar fugir ao assunto.
- Absolutamente nenhum - responderam, quase ao mesmo tempo. Abraçaram-na e desapareceram dentro do elevador.
Giovanna voltou a fechar a porta de casa, foi para o quarto e começou a despir-se. Pôs-se a cantarolar a Cumparsita. E as lágrimas saltaram-lhe imediatamente dos olhos.
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O pavimento de linóleo verde, no corredor da clínica, estava brilhante como um espelho. As portas dos quartos estavam fechadas. Duas enfermeiras conversavam à porta de um gabinete médico. Eram jovens, bonitas e tinham um ar cheio de saúde.
Enquanto percorria o corredor, Giovanna pensava que, por detrás de cada uma daquelas portas, se consumava um drama. Para muitos, o problema resolvia-se com um feliz regresso a casa. Para alguns havia um epílogo triste. Era um lugar de dor, camuflado em hotel de luxo. Um templo no qual os sacerdotes da medicina faziam de tudo para fomentar os seus interesses.
Giovanna nutria um supremo desprezo por quem especulava sobre a saúde. Ao dar a volta ao mundo com Jacopo, passando de um especialista para outro, na procura desesperada de ajuda, tinha sentido na pele o cinismo de muitos iluminados. Por fim, incomodados e desiludidos, ela e o marido chegaram à conclusão de que o velho médico de família era o melhor guia para um doente afectado por uma doença incurável. E assim foi. O velho médico da casa assistiu Jacopo com uma dedicação sincera e conseguiu infundir-lhe confiança e coragem, ajudando também Giovanna a conter a ansiedade.
Descobriu o quarto de Filippo. A porta estava entreaberta. Bateu e espreitou para dentro. O arquitecto estava numa poltrona, tinha vestido um roupão de seda vermelho-escuro e sorria com as piadas de um filme que passava na televisão.
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Posso incomodar, ou volto mais tarde? - perguntou Giovanna.
- Giovannina querida! - exclamou ele, ao mesmo tempo que se levantava para lhe dar um abraço. - Vens tão cheia de presentes que pareces o Pai Natal - acrescentou, enquanto a ajudava a libertar-se dos embrulhos.
- Trouxe-te os jornais todos que me pediste, uns chocolatinhos e um livro de arte. Diz-me que ainda não o tinhas, porque investi uma fortuna.
Era um grande volume, inteiramente ilustrado. Filippo leu: A Moldura Italiana do Renascimento ao Neoclássico, de Franco Sabatelli.
- Para mim é quase uma bíblia - sublinhou Giovanna.
- Concordo contigo. Também o tinha, mas emprestei-o a um amigo que, como acontece muitas vezes, nunca mais mo devolveu. Obrigado. - Deu-lhe um beijo na face.
- Em que ponto estão os teus exames? - perguntou ela.
- Os resultados daqueles que fiz até agora são reconfortantes. Mas isto anda devagar e vou ter de ficar aqui mais tempo do que o previsto. O imunologista que me está a seguir é muito simpático e muito competente. Explicou-me um monte de coisas a propósito da seropositividade, inclusivamente o facto de que ser seropositivo não significa estar necessariamente doente com Sida. Em suma, convenci-me de que o meu fim não está assim tão próximo como eu temia. Sinto-me renascer, depois dos dias de pesadelo que passei
- explicou, abraçando-a com alegria.
- Então podemos falar de trabalho - declarou Giovanna, sentando-se na poltrona em frente a ele.
Começaram a discutir ao pormenor a situação da mansarda da piazza Cordusio. Com a sua máquina, Giovanna tinha tirado muitas fotografias, que mostrava agora ao arquitecto para documentar
o estado dos trabalhos. - Como vês, os quartos dos hóspedes, o quarto de vestir e o escritório já estão em ordem. Também já tinha chegado a cama do teu cliente e, a propósito disso, mostro-te a Mensagem que encontrei ontem, bem à vista, na cabeceira. - Estendeu-lhe um papel escrito a marcador.
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Filippo leu: "Mandar de volta ao fornecedor. Eu trato de arranjar uma mais adequada." Teve um gesto de irritação. - É insuportável! Tinha-me dado liberdade para escolher.
- Tem calma, Filippo. Já tratei da devolução. Estou curiosa para ver o que é que ele vai arranjar para a substituir. Mas não acaba aqui. No escritório encontrei outra mensagem. Aqui está. Diz que as portas em raiz não ficam bem. Quer que sejam laçadas. Então eu também deixei uma mensagem em cima da secretária.
- O que foi que lhe escreveste?
- Que se deixe de caprichos.
- A sério? - perguntou Filippo, incrédulo.
- Fiz mal, eu sei, e peço-te que me perdoes. Estava furibunda e não considerei que, como tu dizes, o cliente tem sempre razão. Agora arriscas-te a perdê-lo por minha causa - lamentou.
- Eu acho que tu és extraordinária. Sempre soube que as mulheres andam um passo à frente. Eu nunca teria tido a coragem de lhe dizer isso. Fizeste muitíssimo bem - aprovou.
- Olha que eu posso voltar à mansarda e rasgar o bilhete. Até porque é provável que ele lá não volte durante uns tempos - sugeriu ela.
Giovanna não conseguia entender como podia um financeiro internacional arranjar tempo para fazer aquelas incursões antipáticas em vez de o utilizar para falar com o arquitecto que lhe estava a arranjar uma casa que parecia ser tão importante para ele.
- Quanto a mim, o teu cliente está a divertir-se à nossa custa. Tanto mais que se pode dar ao luxo de o fazer - observou finalmente.
- Desde que soube que estava doente, comecei a ver a vida sob uma nova luz. Não quero ter mais nada a ver com doidos. O Mongrifone é um deles. Não é verdade que o cliente tenha sempre razão
- declarou Filippo.
- O meu marido e a minha sogra também foram sempre dessa opinião e nunca se arrependeram. Aprendi a lição com eles e atirei-a à cara do Mongrifone. Mas, de qualquer maneira, não deixou de ser uma intromissão da minha parte. Desculpa - declarou Giovanna.
Entrou uma enfermeira com um ar simpático. Vinha a empurrar uma cadeira de rodas.
- Temos de ir à radiologia - anunciou... -
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- E eu tenho de voltar ao trabalho - disse Giovanna, em jeito
de despedida.
Antes de regressar à loja, ainda se permitiu a compra de um taileur leve na boutique de um estilista famoso. Esteve tentada a comprar também um vestido para a filha, mas renunciou ao prazer desse presente porque sabia que Giny não ia apreciar. Não partilhava dos gostos da mãe e, aos vestidos elegantes, preferia T-shirts horríveis com desenhos plastificados.
Entrou na via Fiori Chiari e lembrou-se de Matilde. Tinha-lhe mandado o seu médico, que era também um velho amigo. Depois telefonou-lhe e ele disse-lhe que Matilde precisava absolutamente de ser internada no hospital. - Não gosto daquela barriga - explicou-lhe, esclarecendo, no entanto, que só uma série de análises específicas lhe permitiria fazer um diagnóstico. A tarefa de Giovanna seria convencê-la a aceitar o internamento.
Parou num pequeno supermercado e comprou para ela leite, mel, biscoitos e sumos de fruta.
Como sempre, a porta da água-furtada estava escancarada e o velho gramofone espalhava o desespero de um tango: "...y aquel perrito companero, que por tua ausência no comia..."
Matilde baloiçava-se na cadeira, com o olhar perdido, a observar, pela janela do tecto, o céu delicado de Maio. Giovanna atravessou o quarto, parou o disco e pousou o saco das compras em cima da mesa.
Matilde continuou a baloiçar-se, fingindo ignorar a presença dela.
- Trouxe-te alguma comida - anunciou, ao mesmo tempo que arregaçava as mangas e começava a ordenar as coisas. Depois observou: - Não vejo pratos sujos. A que propósito? Lavaste-os ou fizeste jejum?
Matilde não respondeu.
- Estás zangada comigo por causa do médico? - insistiu, enquanto fazia a cama.
Novamente o silêncio.
- Devia ter-te avisado. Foi falta de tempo - desculpou-se.
- Tu não podes fazer e desfazer, ir e vir a teu bel-prazer - resmungou Matilde.
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- Tens razão. Não apareci cá nos últimos dias e devia ter-te informado sobre a vinda do médico. Se quiseres, vou-me embora.
- Eu não te pedi nada. Deixa-me em paz.
- No entanto, tens sempre a porta escancarada. Podia ser uma maneira de pedir ajuda - sublinhou Giovanna.
- O que é que tu sabes disso? Deixo entrar a vida por aquela porta, as recordações que me envolvem como lufadas de ar. O passado é tudo aquilo que me resta. Não tenho futuro, nem esperanças, nem sonhos. Não tenho nada para fazer se não recordar .
sussurrou a velha. Parou de baloiçar, fechou os olhos e voltou a falar: - Chamavam-me Cabelos de Ouro Vermelho quando, com uma postura altiva, dançava o tango, enquanto um violino, uma guitarra e um acordeão sublinhavam os meus passos. Metia na dança a raiva e o desespero que me devoravam. Rodava uma perna, e era como se desse um pontapé às violências sofridas. Só um homem intuiu a minha fragilidade. Chamava-me Flor de Pessegueiro. Mas antes, muito antes, era Cinco Centésimos de Pescoço Comprido, de tão pequena e seca que era. Mas por que é que te estou a dizer estas coisas? Tu não podes entender, porque nunca apreendeste a
ouvir.
- Ouvir o quê? - perguntou Giovanna.
- O silêncio, minha senhora distraída. O silêncio pode transformar-se num estrondo inaudito. Dizem que sou louca. Talvez tu penses isso também, mas não é assim. Louca era aquela rainha de Espanha, cujo nome tu partilhas, que andava pelo mundo a arrastar atrás dela o corpo do esposo defunto. Eu conservo no coração a recordação de todos os meus mortos, que se calaram para sempre. Mas se escutar o silêncio, então ouço as suas vozes, as suas histórias, e parece que enlouqueço. É esta a vida que deixo entrar pela porta escancarada.
Giovanna fez uma carícia no rosto estragado da mulher. Olhou para ela com afecto e perguntou-lhe: - Como estás? Tiveste mais dores?
- Não. Podias ter-me poupado a visita do teu médico e a tentativa de me convencer a ir para o hospital - replicou, enquanto afastava, com um gesto decidido, a mão de Giovanna.
- Tudo bem. Agora vou preparar-te uma chávena de leite e amanhã venho cá outra vez.
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- Põe a tocar a Cumparsita - ordenou Matilde, indicando o gramofone.
- Isso não - protestou Giovanna. --Porque não?
- Faz-me sentir mal.
- Mais uma razão para a ouvires. Não fujas, não tenhas medo de sofrer. Ouve a música e pergunta a ti própria por que razão aquelas notas e aquelas palavras te inquietam.
- Não percebo onde queres chegar - disse Giovanna, com uma vaga sensação de desânimo. Acabou de pôr a mesa, encheu uma chávena com o leite fumegante e barrou com mel algumas tostas.
- Hás-de perceber - sussurrou a velha. Levantou-se da cadeira de baloiço, sentou-se à mesa e começou a comer.
- Vemo-nos amanhã - disse Giovanna, dirigindo-se à saída.
- Põe a Cumparsita antes de ires embora - repetiu Matilde.
- Põe tu - gritou Giovanna, enquanto descia rapidamente as escadas.
Nas traseiras da loja, encontrou Lino a preparar um verniz para o restauro de uma moldura veneziana. Não estava só. Giny trabalhava com um raspador, a tirar o gesso em excesso no fundo entalhado da moldura.
- O que é que eu fiz de bem, hoje, para te ter aqui? - perguntou Giovanna, enquanto se inclinava para dar um beijo à filha.
- Não gozes, por favor, porque se não vou-me embora - respondeu Giny.
- Estou só contente por te ver - afirmou Giovanna, levantando os braços em sinal de rendição.
- A avó ligou, de Londres. Era para avisar que amanhã ao meio-dia está em Milão. Disse-lhe que a ias buscar a Linate - anunciou.
Giovanna contornou uma estante grande, acendeu uma lâmpada e observou a escultura de Matilde, completamente limpa e a salvo dos olhares dos curiosos. Eugenia Lanciani não resistira à tentação de ver a estátua. Sorriu, satisfeita.
- Então tenho de fazer logo à noite aquilo que tinha programado para amanhã de manhã - comentou.
-- O quê? - perguntou Giny.
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- A volta do costume para controlar as obras na mansarda da piazza Cordusio. Tinha-te falado nisso, não te lembras? A propósito, queres ir comigo?
- Não posso, logo à noite tenho de ir ao teatro. A escola vai levar-nos a ver O Jardim das Cerejas. Que seca! - resmungou a rapariga.
- A sério? Eu acho que se os teus professores te levam a ver Shakespeare, alguma razão há-de haver - respondeu Giovanna, com um ar grave.
- Mãe! - disse Giny, escandalizada. - É Tchekov! Se calhar até é bom eu ir ao teatro, porque se não arrisco-me a crescer ignorante como tu.
Giovanna sorriu, divertida. Tinha errado propositadamente para oferecer à filha uma pequena vantagem sobre uma mãe talvez demasiado incomodativa.
Depois do jantar levou-a ao Piccolo Teatro e a seguir foi até à piazza Cordusio.
Abriu a porta da mansarda e ouviu uns ruídos que provinham do quarto principal.
Seguiu pelo corredor, entrou no quarto e encontrou um homem que, de jeans e T-shirt, andava pelo meio do entulho espalhado no chão: as duas colunas dóricas que sustinham a alcova tinham sido demolidas. Ficou estarrecida e, durante uns instantes, não foi capaz de reagir. Depois balbuciou: - Mas que raio é que anda aí a fazer?
O homem, que estava de costas para ela, voltou-se para a ver.
- A senhora quem é? - perguntou, observando-a com curiosidade.
- Eu é que quero saber quem é o senhor - reagiu, perturbada pela extraordinária beleza do jovem.
Ele enfiou a mão no bolso dos jeans, tirou um lenço e passou-o pelas mãos para tirar o pó. - Ando a controlar as obras - respondeu, tranquilamente.
- Quem é o autor deste desastre? O quarto estava praticamente pronto - disse, sufocando a surpresa de se encontrar em frente a um desconhecido que a dominava do alto da sua estatura. Tinha voltado à noite, para fazer desaparecer a mensagem que deixara
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em cima da secretária. Não queria que Filippo se arriscasse a perder um cliente por culpa dela. Sentiu-se confusa e desorientada.
Com um gesto brusco, ele agarrou-a por um braço e levou-a até ao estirador onde estavam pousados os desenhos dos trabalhos.
- Consegue ler estas coisas? - interrogou-a, com ar de desafio, enquanto apontava com um dedo a planta do quarto, onde o marcador do costume tinha traçado umas cruzes sobre as colunas da alcova.
- Esteve cá outra vez - exclamou Giovanna, vencida e resignada.
- Pois é. O dono da casa esteve cá outra vez - precisou o jovem - E, francamente, não deixo de lhe dar razão. Isto é o quarto de um homem, não de uma rapariguinha frágil. Acho um bocado ridículas estas colunas, às quais esperamos ver agarrada uma diva dos anos vinte - observou com uma voz áspera.
- Mas ele já tinha examinado e aprovado os desenhos. Até chegou a ver o trabalho terminado. Será que não podia ter pensado nisso mais cedo? É realmente um homem que não tem as ideias claras.
- Se calhar nem você tem as ideias muito claras - respondeu com um sorriso desarmante e carregado de ironia.
- Bem, nesta história, felizmente, eu entro muito pouco. Só quis fazer um favor a um amigo e agora estou sinceramente arrependida - declarou Giovanna, enquanto se dirigia ao escritório para telefonar ao arquitecto.
A sua mensagem tinha desaparecido da secretária. Era evidente que o cliente a tinha lido e respondido à sua maneira. Agarrou no auscultador, e só então se lembrou de que a linha telefónica ainda não tinha sido ligada. O homem, da soleira da porta, com as mãos enterradas nos bolsos das calças, olhava para ela, divertido.
Giovanna devolveu-lhe um olhar embaraçado. Aquele rosto irónico dizia muito sobre a insolência da personagem.
- Então, o que é que fazemos? - perguntou, com um tom malicioso.
- Você não tem nenhum direito de tomar iniciativas - gritou-lhe na cara, tentando defender-se do fascínio que aquele homem exercia sobre ela.
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Ele foi ao encontro dela, segurou-a pela cintura e, mantendo-a bem presa, pousou os lábios nos dela.
Ela libertou-se, mas o homem apertou-a ainda mais, com ternura. Giovanna deixou-se vencer pela emoção daquele beijo tão meigo. Parou de se debater e retribuiu-o com uma emoção que nunca conhecera, envolvida pelo seu perfume, que cheirava a limão e a canela.
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Giovanna regressou a casa transtornada. Aquilo que lhe tinha acontecido estava muito para além do que alguma vez poderia imaginar. Irritava-a sentir-se dominada por sensações agradáveis a que se deveria negar. A sua bonita casa estava mergulhada no silêncio. Reparou numa lâmina de luz que provinha do quarto de Giny. Esperava que a filha já estivesse a dormir, porque não sabia como enfrentar o seu olhar depois daquilo que tinha acontecido na piazza Cordusio.
- Olá, mãe - disse a jovem quando sentiu os passos dela no corredor.
Giovanna endireitou as costas, impôs-se um sorriso de circunstância e abriu a porta.
- Olá, minha linda - respondeu, enquanto se sentava na beira da cama.
- Que cara tão esquisita - comentou Ginny.
- Isso é o que diz o Capuchinho Vermelho ao Lobo Mau que se enfiou na cama da avó. Não me roubes as deixas - brincou Giovanna.
- Não desvies para canto - disse a filha.
- Acho que estou cansada. Mas fala-me de ti. Como é que correu a ida ao teatro? - perguntou, esperando ter superado o exame de Giny.
- Foi emocionante. Amanhã conto-te tudo. Agora chega-me
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saber que já voltaste. Normalmente é ao contrário, és tu que esperas por mim.
- Não me vais também censurar por isso - Giovanna fingiu alguma impaciência.
- Boa-noite, mãe - disse Ginny, erguendo-se para lhe dar um beijo na face. - Tens um perfume tão estranho! - Esboçou um sorriso malicioso.
- Escolhe lá o papel. Se queres ser o Capuchinho Vermelho tens de esperar que eu me enfie na cama.
- Brinca, brinca, mas eu sinto o cheiro de novidades. Estás a esconder-me alguma coisa - insistiu Giny com um olhar inquisidor. Giovanna pousou a bolsa numa cadeira, tirou o casaco e respirou fundo. A tentação de falar de si era irresistível. Mas apercebia-se de que não havia nada de exemplar naquilo que tinha feito e a sua confissão seria totalmente inoportuna.
- Na mansarda, tive um encontro com um dos operários. Irritei-me e perdi o meu tempo - disse, tentando dominar a súbita aceleração do coração.
- Eu sei que não gostas de te confrontar com a classe operária
- comentou Giny, irónica. - Nem que tivesse nascido de uma estirpe principesca. Nunca consegui entender a tua aversão pelo mundo de onde provéns.
- Dizes isso porque vives no conforto - observou Giovanna.
- Esse é um assunto que tu evitas sistematicamente. Espero que um dia consigas clarificar as ideias. Já tens idade para isso, acho eu - afirmou, contendo um bocejo. E acrescentou: - Agora deixa-me dormir. Amanhã tenho dois testes e quero estar em forma.
Giovanna saiu e foi até ao quarto de vestir. Tirou a roupa e sentiu na pele o perfume daquele desconhecido: uma fragrância de limão e canela. Entrou na casa de banho, abriu o chuveiro e voltou a fechá-lo imediatamente. Seria como apagar todos os vestígios daquela aventura recente e não se sentia preparada para queimar essa recordação.
Entrou no quarto, abriu a gaveta da escrivaninha e encontrou a última carta do marido. Releu-a, apesar de a saber de cor.
A sua relação com Jacopo, apesar de intensa, nunca fora tão exaltante como aquilo que tinha vivido na mansarda com um desconhecido. Voltou a fechar o envelope e enfiou-se na cama, dividida
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entre o arrependimento e a sensação intensa do prazer sentido. Até àquele momento nunca tinha visto faíscas coloridas, nem ouvido tilintar campainhas de alegria. O homem tinha pegado nela, levantando-a como se fosse uma pena. Depois de atravessar o corredor, que se abria para o jardim suspenso, entrou no quarto de hóspedes e instalou-a na cama, coberta com uma macia colcha de cetim. O quarto cheirava à madeira nova que forrava as paredes e revestia o pavimento.
Giovanna tentou dizer alguma coisa. Ele pôs-lhe um dedo sobre os lábios, ao mesmo tempo que o seu olhar lhe sugeria a inutilidade daquelas palavras. A sorrir, Giovanna segurou nas suas mãos o rosto bonito do jovem e encostou os lábios aos dele. O tempo pareceu cristalizar-se sobre as longas ondas de prazer que os envolveram. A luz quente de um candeeiro, sobre a mesa-de-cabeceira, reflectia-se sobre as pesadas cortinas de seda cor de nogueira rosada e conferia suaves relevos ao quarto, à cama, aos seus corpos nus e perfeitos.
- Agora sabe-se lá o que vais pensar de mim - brincou ele, em voz baixa, com um olhar que tinha perdido a insolência e apenas exprimia ternura. Giovanna não respondeu e afagou-lhe o arco tenso das costas.
- És tão bonita - sussurrou ele. -
- Nem sequer sei como te chamas. Mas está bem assim. O nosso encontro acaba aqui - disse ela, ao mesmo tempo que se levantava da cama. Inclinou-se sobre o grande tapete inglês de ponto miúdo, apanhou a roupa e dirigiu-se à casa de banho.
Quando voltou ao quarto, o homem já estava vestido. Fumava um cigarro, encostado ao caixilho da porta envidraçada aberta sobre o jardim. O perfil duro do rosto parecia esculpido na pedra. Aquela figura, na penumbra, libertava uma força arrebatadora que inspirava, no entanto, uma sensação de sofrimento não expresso.
Giovanna atravessou o quarto, aproximou-se da cama e começou a arranjar as almofadas e a colcha. O homem apagou o cigarro e foi pôr-se do outro lado, para a ajudar.
- Deixa estar - disse Giovanna num tom brusco. Aquela colaboração pareceu-lhe uma maneira de não quebrar o fio da intimidade de que tinha gozado, mas em relação à qual, agora, se sentia culpada.
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- Porquê? Quando era criança gostava de ajudar a minha mãe a fazer as camas - objectou com espontaneidade.
- Eu não sou a tua mãe - rebateu ela.
- Captei a mensagem. A senhora quer restabelecer as distâncias - disse, recuperando o sorriso insolente.
- Não se trata daquilo que quero, mas daquilo que devo. Não me acontece todos os dias abandonar-me aos desejos de um homem que não conheço - respondeu com um tom despachado e saiu do quarto. Ele agarrou-a com uma mão, obrigando-a a parar.
- O meu desejo era também o teu - esclareceu, a sorrir. - Foi uma espécie de milagre que, se calhar, nunca mais se repete. Mas há uns minutos atrás éramos um homem e uma mulher que se amaram numa cama lindíssima, num quarto fantástico, em frente a um jardim adormecido sob as estrelas. Foi um milagre - repetiu.
Giovanna sentiu um arrepio. - Esta casa não nos pertence. Nós dois não pertencemos um ao outro. Eu fiz uma coisa censurável
- acusou-se, enquanto se afastava pelo corredor. Saiu do apartamento a correr e enfiou-se no elevador. Estava mais zangada consigo própria do que com ele.
- Nunca mais. Nunca mais vai acontecer - repetiu em voz baixa, enquanto se voltava na cama, inquieta, sem conseguir encontrar uma posição confortável para dormir.
Naquela noite dormiu poucas horas e, no entanto, quando acordou, espreguiçou-se como um gato feliz. Espantou-se por se sentir tão bem. Impôs a si mesma que não deveria voltar a pensar no que tinha acontecido na noite anterior. Saiu do quarto em bicos de pés, esperando não encontrar Giny, cuja perspicácia receava. Felizmente a filha já tinha saído e só lá estava Bruna, a arrumar os quartos. Foi até à cozinha e começou a depenicar a fruta que a empregada tinha lavado para ela. Olhou para o grande relógio de parede ao lado da janela. Marcava as nove horas: um atraso vergonhoso. Tinha muitas coisas para fazer e precisava de chegar a tempo a Linate para receber a sogra que chegava de Londres.
Tomou um duche e vestiu-se rapidamente. Saiu de casa e avançou a passo rápido em direcção à loja. Na esquina com a via Brera, onde ficava o café que frequentava habitualmente, não resistiu ao chamamento de um chá de baunilha com um brioche recheado de creme pasteleiro. Entrou.
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- Bom-dia, signora Lanciani - cumprimentaram-na quase ao mesmo tempo a empregada da caixa e o rapaz do balcão. - O costume? - perguntou o rapaz.
- O costume - assentiu Giovanna, olhando para os brioches acabados de sair do forno.
Havia mais clientes, com os quais Giovanna trocou cumprimentos e frases de circunstância. Também lá estava Lino, a tomar café. Limpou a boca com um guardanapo de papel e passou ao lado dela, cumprimentando-a com o murmúrio habitual.
- Vou abrir a loja - anunciou a meia-voz, enquanto se dirigia de cabeça baixa para a porta do café.
- Quanto mais envelhece mais antipático fica. Como é que consegues aguentá-lo? - perguntou-lhe em voz baixa uma mulher morena de olhar sorridente.
- É uma pessoa que me é muito querida - respondeu Giovanna. - Quero-lhe tanto como a um pai.
A mulher chamava-se Fiorella Solbiati. Tinha um prestigiado estabelecimento de molduras antigas, ao lado do de Giovanna. Trocavam clientes e eram boas amigas.
- Está bem, mas que feitio! - comentou Fiorella.
- Não é que o meu seja melhor - respondeu Giovanna, enquanto pousava no balcão a chávena vazia.
- O que se passa contigo esta manhã? Estás com cara de quem ganhou a lotaria - observou a amiga.
Giovanna corou. - Estou só com um bocado de calor - justificou-se.
Fiorella olhou-a com um ar malicioso e disse: - Consta que tens na tua loja uma estátua muito curiosa. Não ma mostras?
- O mundo é pequeno e mexeriqueiro - replicou Giovanna.
- Quando chegar a altura, eu mostro-ta - prometeu, antes de sair do café.
Giovanna sentou-se à secretária e começou a ronda de telefonemas. Falou com alguns clientes e com alguns colegas. Decidiu participar num leilão, na expectativa de conseguir uma arca veneziana muito interessante. Por fim, ligou a Filippo Pantani. - Em que ponto estão os teus exames? - perguntou-lhe.
O arquitecto respondeu-lhe que sairia da clínica dentro de alguns dias e informou-se sobre as obras da mansarda.
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- Passaste-me uma batata quente. Não tenciono de maneira nenhuma continuar a tratar daquilo - replicou, decidida.
- Giovannina querida, não me dês esse desgosto - lamentou-se o amigo.
- Os desgostos foste tu que mos deste a mim. O teu cliente ordenou a demolição das colunas no quarto principal.
- Não é possível! - exclamou o arquitecto.
- É de tal maneira possível que já lá não estão. No lugar delas está agora um monte de entulho e o quarto inteiro para refazer.
- Mas foi ele que quis a alcova - objectou Filippo.
- Para falar verdade, era um bocadinho arrebicada - deixou escapar. E acrescentou: - De qualquer maneira, para mim acabou. Não quero lá voltar. Vou devolver-te as chaves do apartamento.
O arquitecto percebeu que a decisão da amiga era irrevogável e não insistiu.
- Deixa-as ao porteiro. Dadas as circunstâncias é provável que também eu me despeça desse cliente - concluiu.
Pouco depois, Giovanna estava num táxi em direcção a Linate. Chegou no momento em que Eugenia Lanciani saía do controlo alfandegário.
- Nunca te vi tão bonita - constatou a sogra. E acrescentou:
- A minha neta, onde está?
- Na escola. Tinha dois testes hoje de manhã. Vai vê-la ao almoço, em casa - explicou Giovanna. - Como correu a viagem a Londres ? - perguntou-lhe mais tarde, no regresso à cidade.
- Muito bem, é claro. Mas os meus pensamentos levam-me inevitavelmente até ele - admitiu Eugenia, referindo-se ao filho desaparecido.
- Também acontece comigo. No entanto, deu-me uma grande vontade de viver. Quanto mais penso no Jacopo, mais amo a vida
- acrescentou, pensativa.
- O meu filho ficava contente se te ouvisse dizer isso - disse a sogra, dando-lhe uma palmadinha afectuosa no joelho. - Por isso, vamos em frente, a viver enquanto nos for permitido. Mas, sobretudo, vamos depressa para a loja. Quero ver a tua escultura.
Lino estava a fechar para o intervalo do almoço quando as duas senhoras chegaram à via Fiori Chiari. - Precisam de mim? - perguntou.
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- Obrigada. Não precisamos de nada. Até pode fechar as grades. Nós entramos pelas traseiras - respondeu Giovanna. Quando ficaram sós, a jovem antiquária retirou de cima da estátua o pano que a cobria, pousou-a numa mesa ao lado da janela para que a luz do dia a iluminasse e observou a sogra. Eugenia Lanciani pôs os óculos e analisou a estátua com um olhar absorto. Andou em volta dela. Afagou os ombros delicados, tocou num seio e no ventre ligeiramente arredondado. Apalpou as articulações dos braços, estudou o desenho das meias e os entalhes dos sapatinhos negros.
- Tinha mangas - declarou. - E também tinha um saiote. Provavelmente, com uma mão levantava a beira da saia para mostrar as pernas. Com a outra talvez segurasse uma placa com alguma coisa pintada. Certamente fazia reclame à sua mercadoria, se quisermos dizer assim. Talvez estivesse colocada à entrada de uma casa de prazer para chamar quem passava. Em suma, esta bela escultura é uma prostituta.
- Era o cartaz de um bordel? - perguntou Giovanna, desconcertada.
- Creio bem que sim - anuiu Eugenia. - Tropeçaste, de facto, num objecto extraordinário.
- Já sabia. Apaixonei-me à primeira vista por ela. Hei-de levá-la a todas as exposições. Mas nunca a vou vender.
- Percebo-te - concordou a sogra.
- Quanto é que acha que isto pode valer? - perguntou Giovanna.
A sogra tocou na madeira, concentrando a sua atenção no rosto e nos cabelos. Observou o colar gravado e deteve-se a analisar a trança dourada que descia sobre o pescoço e tocava na parte superior das costas.
- É pena - concluiu, finalmente, em voz baixa.
- Porquê? - perguntou a nora, numa voz tensa.
- A cabeça não é dela - declarou tranquilamente Eugenia. E prosseguiu: - O corpo podia ser do século XV. A cabeça é seguramente século XVIII siciliano.
- Não pode dizer uma coisa dessas. Não é verdade! - protestou Giovanna. - O Lino e eu teríamos dado conta quando
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a restaurámos. É uma única peça. Não vê que a trança e as costas são uma coisa só? - Giovanna insistia com convicção.
- A trança está bem colada. Só isso - replicou Eugenia.
- Está completamente equivocada. Esta escultura é um bloco único e vale o peso em ouro - rebateu obstinadamente.
- Esta escultura vale vinte e cinco tostões porque a cabeça não é dela - decretou a senhora.
- É muito má - protestou Giovanna, olhando-a com um ar desapontado.
- Mas sincera. Como sempre, minha querida - rematou Eugenia. Pegou na carteira e abriu a porta das traseiras da loja. - Vamos para casa. Estou cheia de vontade de ver a minha netinha. - A estátua tinha deixado de lhe interessar.
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Giovanna recordou um episódio do passado. Era criança. Andava na escola primária. Faltavam poucos dias para o Natal e, ao regressar da escola, parava a observar a montra de uma papelaria que tinha muitos brinquedos expostos. Através dos vidros embaciados pelo frio, descobriu uma bonequinha com pouco mais de um palmo de altura, vestida à tirolesa. Gostou muito dela, e por isso pediu-a numa carta que escreveu ao Pai Natal. Encontrou-a em cima da almofada na manhã do dia de Natal. Esteve o dia todo entretida com a boneca. Fez a ronda pelos vizinhos para mostrar aquela maravilha que, na realidade, era uma coisa insignificante. À noite, decidiu que a boneca tinha de ser lavada. Despiu-a e mergulhou-a numa bacia cheia de água quente. As irmãs chamaram-na para jantar, e quando voltou para tratar da boneca encontrou apeI nas uma massa informe. A pasta de papel de que era feita tinha-se desfeito na água. Viu esfumar-se a alegria de um dia, a felicidade de possuir uma coisa de que tanto gostava. O veredicto inapelável da sogra fez ressurgir em Giovanna a lembrança daquela desilusão. Enquanto se dirigiam a casa, Eugenia tentou animar a nora. - Não fiques assim. Lembra-te de que, em qualquer caso, tens nas mãos um objecto lindíssimo. Provavelmente único.
- É um bloco único - rebateu Giovanna.
- A cabeça não é dela. É bem evidente. O rosto não respeita as proporções do corpo.
- As cabeças grandes são típicas da época.
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- Os tons da pintura são mais vivos.
- Claro. Se é uma prostituta, tem a cara pintada. Por isso o artista reforçou as cores.
- O colar é um expediente habilidoso para esconder a junção da cabeça.
Cada uma delas tinha argumentos em defesa da sua própria tese, até que Giovanna lançou uma estocada.
- Nunca cometeu nenhum erro, em tantos anos de profissão?
- perguntou.
- Muitos. Alguns nunca vou chegar a confessá-los, porque ainda me queimam - admitiu a sogra.
- Se o Jacopo aqui estivesse dizia-lhe que podia estar enganada. Como quando, em Veneza, comprou por duas liras uma moldura velha, dizendo que era uma peça feia do século XIX - lembrou-lhe.
- Depois o Jacopo virou-a e descobriu que estava pendurada ao contrário. E revelou-se um raríssimo exemplar do século XVI continuou Eugenia, a sorrir.
- E voltou a vendê-la por uma quantia astronómica - sublinhou Giovanna.
- És mais teimosa do que uma mula. Se achas mesmo que eu estou equivocada, manda avaliar a tua escultura por um especialista. Fico feliz se puder reconhecer que me enganei - rematou a sogra.
Durante o almoço, Eugenia e Giny tentaram trocar piadas com uma alegria forçada, no limite do pranto, pensando em Jacopo. Giovanna observava-as, ouvia e calava.
Notou, com uma ponta de ciúme, que a afinidade entre Giny e a avó era decididamente maior do que aquela que a ligava à filha. Essa constatação fê-la sentir-se quase uma intrusa. E pensar que tinha feito todos os possíveis para retirar Giny à influência dos Lanciani. Quando a filha era pequena, Giovanna reagia quase com irritação à ternura que Jacopo sentia por ela. Agora interrogava-se sobre o motivo daquele comportamento, mas não conseguia arranjar uma explicação. No entanto, veio-lhe à ideia a suspeita de se ter afastado do marido não tanto por ele estar doente e ela não querer assistir ao seu declínio, quanto para o impedir de exteriorizar o seu afecto em relação à sua única filha. Por que se teria comportado
assim?
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- Já não percebo nada - sussurrou, incomodada com estas
reflexões.
- Disseste alguma coisa? - perguntou Eugenia. Giovanna tentou sorrir. - Desculpem-me. Estava a pensar em
voz alta - respondeu.
- E praticamente não tocaste na comida - observou Giny. De facto, nem sequer tinha provado o pudim de batatas e presunto. Giovanna arranjou rapidamente um pretexto para sair. - Peço-vos imensa desculpa, mas tenho de entregar as chaves do apartamento da piazza Cordusio - disse, levantando-se da mesa. Avó e neta nem iam dar pela sua falta. Antes pelo contrário,
uma vez que tinham muitos assuntos em comum, a sua ausência ia estimular a proximidade entre as duas.
Giovanna apanhou um autocarro na piazza Cavour e chegou ao seu destino em poucos minutos, dada a escassez de trânsito da hora de almoço. Desceu na via Tommaso Grossi, atravessou a via Mercanti e chegou rapidamente ao edifício. Percorreu o átrio por cima da passadeira de lã de um bonito vermelho-escuro e chegou à portaria. Não estava ninguém, mas do interior chegava um óptimo aroma a minestrone. Obviamente, na sala ao lado, a família estava à mesa. Bateu, e o porteiro apareceu.
- Venho entregar-lhe as chaves da mansarda. O arquitecto Pantani há-de vir buscá-las - disse Giovanna.
- O arquitecto não aparece por aqui há muitos dias - observou o homem.
- Eu sei. Esteve fora. Volta amanhã - explicou ela.
- Esperemos que acabem depressa as obras lá em cima. O pó entra por todos os lados e a gente nunca mais acaba de limpar lamentou-se, como se a culpa fosse de Giovanna.
- Diga isso ao arquitecto. Eu não tenho nada a ver com o assunto - replicou, preparando-se para ir embora. Percorreu o átrio em sentido inverso, caminhando lentamente e a lutar contra a tentação de subir ao último andar à procura do homem ao qual se tinha entregado com tanta paixão. E esteve quase a ceder, pensando que, à luz do dia, o homem lhe surgiria como aquilo que era: um energúmeno que se tinha aproveitado da sua fraqueza. Mas apercebeu-se de quanto essa interpretação era hipócrita. A verdade era que não conseguia esquecer aquela noite de amor.
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- Bom-dia, minha senhora. - Aquela voz quente e pastosa fê-la estremecer. Sentiu o perfume subtil do limão e da canela. Voltou-se e viu-o.
Trazia uns jeans claros e uma Lacoste vermelho-morango. Parecia muito mais jovem do que ela. Os cabelos castanhos, com reflexos loiros, desciam-lhe até ao pescoço e estavam despenteados sobre a testa. Dominava-a com a sua estatura e ela quase o temeu. Um instante atrás estivera tentada a voltar a vê-lo, e agora procurava uma saída digna.
- Estou cheia de pressa - disse, ao mesmo tempo que saía para a rua.
- Também eu - respondeu ele, seguindo-a de perto.
O semáforo mudou para verde e Giovanna atravessou quase a correr a via Dante. Estava desorientada, insegura, incapaz de tomar uma decisão. Não podia parar para esperar o autocarro. Continuou até à praça de táxis. Preparava-se para abrir a porta do carro parado quando ele a agarrou por um braço, obrigando-a a voltar-se e a olhar para ele. Tinha o rosto tão próximo que ela conseguia sentir-lhe o calor e o perfume. Se ele tivesse encostado os lábios aos dela, ter-se-ia deixado beijar mais uma vez. Detestou-se por aquela fraqueza. Sentia por aquele homem uma atracção desconcertante.
- O que é que queres? - perguntou-lhe, agressiva.
- Nada. Ou então tudo. Depende de ti - respondeu.
- Tenho quarenta anos. Tu não passas de um rapaz.
- Tenho trinta e cinco anos e aprendi cedo a ser homem.
- Então tenta sê-lo de facto. Este jogo é patético e infantil declarou, libertando-se dele.
- Todos os jogos de amor são infantis. Patéticos, nunca. Pelo menos para mim - observou ele.
- Mas que amor? O que é que queres de mim? Mais uma oportunidade para repetires a proeza?
- Peço-te uma oportunidade para te demonstrar que não é assim - afirmou ele, decidido.
Giovanna teve um momento de hesitação. O taxista baixou o vidro e interpelou-os bruscamente: - Se querem discutir, vão até ao café. Se querem entrar, decidam-se.
- Estou apaixonado por ti - sussurrou ele.
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- Esquece - disse ela, entrando no carro. Deu a morada e o taxista arrancou imediatamente.
Pediu para a levar à via Fiori Chiari, mas em vez de entrar na loja foi a pé até ao edifício degradado onde vivia Matilde. O gramoIfone da velha, felizmente, estava mudo. Ela estava sentada à mesa a ver fotografias antigas.
- Posso entrar? - perguntou Giovanna.
- Já estás cá dentro - constatou a mulher.
Giovanna sentou-se em frente a ela. Reparou que a cama estava feita. Matilde trazia um vestido limpo e tinha-se penteado. O basset rosnava sem convicção.
- Vejo que estás bem - começou Giovanna.
- Vai directa ao assunto - disse a velha, enquanto juntava as fotografias para as furtar à curiosidade de Giovanna.
- Já te aconteceu desejar com todas as tuas forças um homem que acabaste de encontrar? - perguntou.
- Lembro-me lá! - resmungou a velha. Afastou a cadeira e, procurando um ponto de apoio, chegou à cadeira de baloiço. Deixou-se cair com cautela e depois deu um suspiro de beatitude. Sorriu. - É claro que me lembro. Só me aconteceu uma vez. E ele era um indivíduo fora do comum. Mas já se passaram séculos, desde então. Se um homem te agrada verdadeiramente, é normal que o desejes a todo o custo. É uma questão de pele.
- Ontem à noite fiz amor com um homem que não conhecia
- confessou.
- E gostaste. Se assim não fosse, não estavas aqui a contar-me.
- Hoje voltei a vê-lo. Talvez não tivesse sido por acaso. Talvez estejamos à procura um do outro.
- E então? O que é que queres saber?
- Se fui palerma. Fugi-lhe.
- Por que fugiste? - Matilde tinha fechado os olhos e baloiçava-se lentamente.
- Por que é que havia de ser? Estou muito envergonhada por causa do que fiz ontem à noite. E tu és a única pessoa a quem ouso confessar o meu pecado. O meu marido morreu há poucas semanas e eu desejo apaixonadamente outro homem. Achas isto normal?
- És uma estúpida - comentou Matilde.
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- Não tinha escolha. Não sei quem ele é. Até podia ser um operário. Tinha de pôr em causa a minha vida toda para aceitar uma relação deste tipo - afirmou.
- E também és mentirosa. Contigo própria, como é evidente. Primeiro tens vergonha porque não consegues ser uma viúva sofredora, e depois descobre-se que o outro não te serve porque se calhar é um pobretanas - esclareceu a velha.
- Não são dois bons motivos para fugir?
- Não, não são. Ou decides que a vida está em vantagem sobre a morte, e portanto vives esta história até ao fim, ou então escolhes os compromissos, como fizeste até aqui, e sacrificas os sentimentos às aparências - sentenciou.
- Tu gostas de provocar - disse Giovanna, irritada, ao sentir que Matilde tocara em cheio na ferida. Pensava que o seu lugar, naquele momento, devia ser ao lado da sogra, que tinha vindo propositadamente para estar com ela. Em vez disso tinha-se refugiado naquela água-furtada esquálida para contar a uma estranha velha a parte mais secreta de si. Mas com quem mais poderia falar de coração aberto? "Nós as duas somos parecidas." Aquelas palavras, pronunciadas por Matilde, deviam ter um sentido se, ao fim e ao cabo, Giovanna a tinha procurado para lhe contar os seus segredos.
- Só tentei que fosses honesta. Se o homem de quem gostas fosse rico e tivesse um bom nome, não terias hesitado em começar a andar com ele.
- Se fosse rico e tivesse um bom nome não se tinha comportado de uma forma tão irresponsável - precisou Giovanna.
- Pois é. Os senhores não esquecem as regras do galanteio. Normalmente são desprovidos de impulsos e fazem amor cheios de nove horas. Acho que é bem melhor o teu vigoroso desconhecido.
- Estás realmente a dar-me bons conselhos - disse Giovanna, irónica.
- Nunca dei muitos conselhos. Como também nunca os aceitei. Sempre segui o instinto, ou então a necessidade - corrigiu Matilde.
- Estou tão infeliz - sussurrou Giovanna.
- Estou tão irritada - respondeu a velha.
- O que é que te aconteceu?
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- Olha ali, em cima do móvel. Vão-me mandar embora. E só de pensar que acabei de pagar o aluguer atrasado...
Giovanna encontrou o papel da acção de despejo e leu-o atentamente.
- Mas olha só - disse, surpreendida. - Este edifício é propriedade da Cogestar.
- Conheces o patrão?
- Claro que não. Mas a coincidência é estranha. Estive a tratar do restauro de um apartamento que pertence à Cogestar. O dono chama-se Alessandro Mongrifone. Gasta milhões, aliás, deita-os fora, em função dos seus caprichos. E agora descubro que quer despejar uma pobre velha desta espelunca - disse Giovanna.
- Para falar verdade, tinham-me oferecido soluções excelentes. Mas em qualquer caso era uma maneira de me mandarem embora. É isso que eu não aceito. Não gosto de sofrer, apesar de sempre ter sofrido. Detesto a prepotência e sempre fui esmagada. Sempre. Sempre. Desde que era deste tamanho - sussurrou Matilde.
- Como correram as coisas, dessa primeira vez? - perguntou Giovanna, com doçura, segurando entre as suas a mão de Matilde.
- É uma longa história. Não ias gostar de ouvir.
- Experimenta. Quem sabe se não te passa a raiva.
- Nunca o fiz antes e não sei por onde começar. Mas vou tentar, de qualquer maneira - declarou Matilde.
Giovanna começou a ouvir e achou-se imediatamente imersa numa atmosfera e numa época distantes, na Milão de finais dos anos vinte...
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O ASILO ANGioliNa
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A luz quente do entardecer era filtrada pelos vidros coloridos e iluminava com reflexos dourados os móveis austeros da antiga sacristia. Don Giuseppe, o pároco, beijou a opa de veludo já gasta e arrumou-a no armário dos paramentos sacros.
Tinha acabado há pouco de confessar os seus fiéis, sobretudo mulheres e crianças, que se preparavam para o mês de Maria, que estava a chegar. Tinha escutado com a bonomia de um padre os numerosos pecados veniais e alguns pecados mortais. Absolvera toda a gente, com o poder que Deus lhe conferira. Depois, enquanto o som poderoso do órgão enchia as naves góticas da sua igreja, don Giuseppe recolheu-se em oração, confessando ao Senhor o seu próprio cansaço ao fim de cinquenta anos naquela paróquia, a incapacidade de ajudar adequadamente os paroquianos, a revolta pelas suas misérias materiais e morais.
Don Giuseppe tinha passado já há algum tempo os setenta anos. Do jovem vigoroso e saudável que abraçara o sacerdócio com a presunção de melhorar o mundo restara apenas o olhar altivo e o tom autoritário. No decurso dos anos fora perdendo optimismo e saúde, tanto que, desde há uns tempos, tinha dirigido um pedido à Cúria para ser aliviado daquele encargo. Nascera numa família de ricos fabricantes de seda. Entre uma vida cómoda e uma existência ao serviço dos outros escolheu a última, seguindo o chamamento da vocação sacerdotal. Foi encarregado de uma das três paróquias mais pobres da diocese. A ela dedicou os seus melhores anos, o seu
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vigor, a sua coragem e o seu dinheiro. Fê-lo com alegria e com um autêntico espírito de sacrifício. Agora sentia-se cansado e incapaz de encontrar novos recursos para enfrentar as dificuldades quotidianas. Voltou, pois, a arrumar a opa e viu um jovem sacerdote que tinha entrado na sacristia e avançava ao seu encontro.
- Reverendo don Giuseppe - começou o padre, com uma voz que mal se ouvia. Era um rapaz bonito, loiro, alto, imponente, com um grande nariz adunco, lábios finos e olhos escuros e profundos. Parecia acabado de sair do seminário.
- Sou eu, sim. E o senhor quem é?
O jovem ajoelhou-se e pegou-lhe na mão para lha beijar, enquanto dizia: - Sou don Luigi. Atribuíram-me...
O velho pároco retirou bruscamente a mão e não o deixou acabar a frase: - Levante-se, meu filho. Reserve essas cerimónias para as eminências da Cúria - defendeu-se, e logo se deixou cair num banco, exausto.
Don Luigi calou-se e ficou à espera, em frente a ele.
- Sente-se - convidou-o o pároco, indicando-lhe a outra extremidade do banco. Entretanto, o seu rosto severo tinha-se aberto num sorriso. - Deus seja louvado - prosseguiu -, finalmente lembraram-se da minha pobre pessoa. Bem-vindo, don Luigi. Já não via a hora de chegar alguém para me aliviar de uma tarefa tão dura para as minhas pobres forças. Já não tenho idade para aguentar o peso da minha paróquia.
- Dizem-se grandes coisas de si - ousou confiar o jovem.
O velho pároco teve um gesto de contrariedade. A opinião da Cúria deixava-o completamente indiferente. O que lhe pesava eram os anos de duras batalhas e de derrotas. Perguntou a si próprio se deveria ter essa conversa com o jovem sacerdote.
- Também me disseram que esta não é uma paróquia fácil continuou don Luigi. Mantinha os olhos baixos, um pouco fugidios, talvez para esconder a impetuosidade do seu carácter.
- O Senhor dá em função das nossas capacidades. A mim deve ter-me sobrevalorizado - disse com um suspiro de resignação, ao mesmo tempo que já se via no comboio, directo a um seminário, onde o esperava um quartinho asseado, a tarefa de instruir no Latim os jovens estudantes e um pedacinho de terra para cultivar nos tempos livres.
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- Então não tem nada para me dizer? - perguntou don Luigi.
- Posso dizer-lhe que, para um jovem como o senhor, que viveu primeiro no seminário e depois nas salas da Cúria, não vai ser fácil medir todo o Bem e todo o Mal de um bairro como este.
- Vivemos numa cidade grande e bonita, conduzida por pessoas iluminadas. Em Milão as obras de caridade são numerosas e muito activas. Sei também que estão a trabalhar no novo ordenamento urbanístico, razão pela qual andam a demolir os bairros mais degradados para construir edifícios novos e ruas espaçosas disse don Luigi, entusiasmado.
- Eu penso nas pessoas, nos pobres. Há casas e ruas, nesta paróquia, onde o mundo parou no ano mil, acredite. Os socialistas, os intelectuais e os bem pensantes primeiro, os fascistas agora, não conseguem penetrar nas pregas de uma humanidade tão necessitada de ajuda e no entanto resistente a qualquer intervenção benéfica resmungou don Giuseppe.
Falavam duas linguagens diferentes e tinham pontos de vista diferentes. O velho pároco, dera-se conta naquele momento, ia ser substituído por um jovem que, a par da fé cristã, tinha a política debaixo de olho. Um relâmpago de malícia atravessou-lhe o olhar.
Don Luigi acabaria por se aperceber à sua custa de que a gramática sucumbe perante a prática.
- São assim tantos os pobres desta paróquia? - perguntou o jovem.
- Muitos, don Luigi. Muitos. E de tal maneira pobres que para eles a fé é um luxo. Aqui, muitas vezes, vale mais um prato de sopa do que a hóstia consagrada. Há algumas miúdas que, com quinze anos, já são prostitutas. Há casos de abuso dos pais sobre as filhas. Em várias famílias o vínculo do matrimónio não tem valor nenhum. A nossa bela cidade é esta também, mas não tem direito a notícia. Na Cúria sabem disto, mas preferem estender um manto piedoso sobre esta realidade. Talvez o Senhor o tenha escolhido a si para levantar este manto. É jovem, munido de um ardor sagrado. O Senhor vai ajudá-lo - concluiu don Giuseppe.
Don Luigi olhou-o com respeito. O velho pároco estava com certeza a perder algumas faculdades. Era impensável que os superiores não interviessem em situações que, a serem verdade, seriam completamente intoleráveis.
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- Mas ainda deve haver bons cristãos - replicou.
- Esses não são notícia e não é a eles que temos de salvar a alma
- rematou o velho pároco.
Da nave da igreja penetrou na tranquilidade da sacristia uma voz infantil que chamava por don Giuseppe. À voz sobrepunha-se o ruído apressado dos tamancos. Finalmente, perfilou-se à entrada da porta o vulto delgado de uma menina despenteada que trazia um vestido gasto e sujo. Viu o pároco na companhia do jovem padre desconhecido. Parou, intimidada e ofegante da corrida.
- O que foi, Rosalinda? - perguntou don Giuseppe. Conhecia todos os paroquianos pelo nome, porque desde sempre passava mais tempo nas suas casas do que na igreja.
- Houve um problema na família do Delmo - sussurrou a menina.
O pároco levantou-se do banco com uma agilidade que só o chamamento da necessidade fazia regressar ao seu corpo cansado.
- Venha comigo, don Luigi. O meu último dia como pároco ainda não acabou. Vai fazer de meu assistente - ordenou.
A rapariga já tinha desaparecido.
- Que tipo de problema? - perguntou o jovem, preparando-se para o seguir.
- Sabe-se lá! Com o Delmo nunca se pode estar sossegado respondeu.
Naquele momento, Delmo atravessava o corso di Porta Nuova e, depois de ter passado para o outro lado, sentiu-se bem. Acabava de entrar no seu território. Don Giuseppe tinha-lhe arranjado um emprego na Magnetti Marelli. Delmo não gostava nada de estar a trabalhar num torno seis horas por dia e seis dias por semana, mas o velho pároco tinha-o obrigado, ameaçando desacreditá-lo do púlpito se não entrasse nos eixos. E, Delmo sabia-o, aquele velho tinhoso não era pessoa para faltar a uma promessa. Por isso, aceitou e calou. Mas quando ao fim do dia saía do eléctrico de Sesto e passava os limites do seu bairro, sentia-se renascer. Já não era um número, como na fábrica. Era Adclmo Riva, a quem chamavam Delmo, o Rodolfo Valentino da Porta Galibaldi. Conhecia toda a gente e toda a gente o conhecia. As mulheres não se faziam rogadas para se deixarem seduzir. Muitas competiam entre si para gozarem dos seus favores, pois era o homem mais bonito do bairro. Quando,
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nos bailes da praça, as arrastava em tangos lânguidos e mazurcas temerárias, elas desvaneciam sob o seu olhar assassino e esperavam o momento de se esconderem com ele ao abrigo de algum arbusto, ou ao longo da margem do Naviglio. Pais, maridos e namorados suspeitavam, mas nunca o tinham apanhado em flagrante. Delmo era óptimo a fugir no momento oportuno. Nunca se gabava das suas conquistas e estava sempre pronto para oferecer um copo de vinho tinto às suas vítimas. Se rebentava uma rixa, nunca fugia para trás. Se havia uma procissão, era o primeiro a oferecer-se para levar aos ombros a estátua da Virgem. Não ia à missa, mas aceitava as ajudas do pároco, que se preocupava em matar a fome aos seus filhos. Entrou então no corso Garibaldi e viu muita gente no estabelecimento de Egiziaco, o taberneiro mais conhecido da rua.
É a hora da demonstração, pensou Delmo, e sorriu.
Egiziaco tinha inventado um expediente singular para atrair os clientes. Tirara de um bordel a prostituta Ermelinda, com quem vivia, e mostrava-a todos os dias, antes do pôr-do-sol, aos seus clientes.
Ermelinda, que era morena como pez, pintava o cabelo de loiro como Jean Harlow, assim como as partes mais íntimas. E o taberneiro desafiava os clientes que não acreditavam que se pudesse chegar a tanto.
- Ermelinda - dizia -, mostra lá os teus caracóis de ouro a este bando de desconfiados.
A ex-prostituta subia para uma mesa, levantava a saia e ostentava a flor um pouco madura mas ainda vigorosa do seu jardim secreto.
- Olhem que coisa! - declamava o taberneiro com ar de apresentador. - Isto é coisa de cinematógrafo americano.
O negócio corria às mil maravilhas. Ermelinda ria e girava sobre si própria para que todos a pudessem ver. Os clientes aplaudiam, mandavam vir vinho com fartura e alguns esticavam a mão para tocar as pernas da bela Ermelinda. Nessas alturas, o taberneiro, a rir, muito satisfeito, travava à nascença aquele gesto audaz.
- Ver é lícito. Tocar é proibido - avisava. Depois, voltado para Ermelinda, de quem tinha muitos ciúmes, ordenava: - Põe o saiote para baixo e vai para a cozinha. - Continuava então a circular por entre as mesas, a servir litros e meios litros de vinho, ostentando a expressão orgulhosa do domador de loiras irrequietas.
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Ao passar pela horta, por detrás da taberna, Delmo entrou na cozinha à socapa. Num pequeno espaço entre o fogão e os sacos de provisões, desfrutou daquela flor loira de Ermelinda. A criada de doze anos, em frente ao fogão onde cozinhava feijões e toucinho espreitava-os, sorria e perguntava a si mesma quando chegaria a sua vez. Em resposta ao seu desejo, Delmo piscou-lhe o olho, ao mesmo tempo que abotoava as calças, fazendo-a corar de prazer.
Ermelinda recompôs-se e, enquanto Delmo se esgueirava para fora da cozinha, assestou uma pancada na nuca da rapariga e despenteou-lhe os cabelos. - Estúpida! - ralhou-lhe. - O Delmo não é pão para os teus dentes. Trata mas é de não deixar queimar o toucinho.
A rapariga corou ainda mais e saltaram-lhe dos olhos umas grandes lágrimas, que lhe escorregaram pela face e caíram na caçarola.
Delmo, ágil como um gato, tinha já entrado na taberna com um ar descarado no momento em que uma mulher corria ao seu encontro a chamar por ele aos berros.
- Anda para casa, Delmo. Anda depressa - gritava. - Aconteceu uma desgraça.
- Ó diabo de mulher! - praguejou ele. Ainda sentia o corpo enlanguescido por aquele encontro recente e tinha programado tomar uma bebida reconfortante. - Mas o que foi que aconteceu? perguntou, contrariado.
Os clientes do Egiziaco calaram-se e olhavam alternadamente para a mulher e para o marialva.
- Delmo, por amor de Deus, anda - suplicava a mulher, a esbracejar.
Chamava-se Barbarina. Era vizinha deles e tinha fama de tratar mais depressa das coisas dos outros do que das dela.
- Olha que se é a brincadeira do costume da minha mulher, apanha ela e apanhas tu também - ameaçou.
Os clientes levantaram-se das mesas e saíram para a rua a ver o companheiro de bebedeiras que se afastava com Barbarina. Os comerciantes, atraídos pelo barulho, apareciam à porta dos estabelecimentos. Em frente à porta da casa onde Delmo morava havia uma pequena multidão de mulheres e crianças.
Era uma casa popular que remontava aos primeiros anos do século xix. Era habitada por famílias pobres. Em um ou dois quartos
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vivia em média uma dezena de pessoas. Em todo o edifício havia uma única retrete, que ficava no pátio. Os quartos, de Inverno, eram húmidos e gelados. No Verão, destilavam calor. No átrio de gravilha, com dois corredores de pedra para a passagem dos carros, estava a carroça das lavadeiras. Por cima de uma montanha de roupa estava estendida uma mulher ainda jovem, encharcada da cabeça aos pés. Ao lado da carroça estavam os filhos. Matilde, que tinha onze anos, era a mais velha. Trazia ao colo o irmãozinho mais novo, que tinha sete meses, e dava a mão ao penúltimo, de dois anos. Os outros três filhos estavam agarrados às traves da carroça. Um deles tentava abaná-las e o outro dava-lhe sapatadas para ele estar quieto.
Delmo aproximou-se da carroça e observou a mulher, estendida no meio da roupa encharcada. Tinha os lábios carnudos e secos, o nariz pequeno e delicado, os olhos grandes, amarelos como os dos gatos e o rosto pálido e em parte escondido por uma grande massa de cabelos de um loiro intenso, com reflexos avermelhados. Tinha também um corpo pesado devido às numerosas gravidezes.
- Cá estamos nós - disse Delmo. - Quantas garrafas despachaste, desta vez? - perguntou-lhe em voz baixa.
- Caiu ao Naviglio - disse Barbarina.
- Estou a ver. Perdida de bêbeda, como sempre - replicou ele, com desprezo na voz.
- Escorregou-lhe o frasco da lixívia. Inclinou-se para o apanhar, antes que a corrente lho levasse - contou ainda a mulher.
E caiu lá dentro.
- Desta vez mato-te - disse Delmo, ao mesmo tempo que levantava uma mão para a esbofetear.
Um homem travou-lhe o braço. - Está morta, Delmo. Não vês?
Foi como se tivesse apanhado um murro no estômago. Empalideceu, olhou para a mulher, olhou para aquela ninhada de filhos e desatou a chorar.
- Ainda fomos a correr arranjar umas varas para a ajudar a sair - disse outra mulher.
- Adelina, agarra-te, gritavam-lhe - explicou outra lavadeira.
- Ela levantou o braço e não se percebia se era para agarrar a vara
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ou para dizer adeus. Para dizer, já que aqui estou, mais vale acabar de uma vez por todas.
- Estão a dizer-me que se deixou morrer? - perguntou Delmo, revoltado.
- Nós não estamos a dizer nada. Mas uma mulher, quando se embriaga, alguma razão há-de ter - disse Barbarina.
Delmo olhou para a filha mais velha, que naquele momento tinha os lábios entreabertos num sorriso. Era uma menina pálida e magra como um prego. Os cabelos fulvos estavam apanhados em duas tranças grossas. As maçãs do rosto, altas e proeminentes, faziam realçar os olhos grandes, imensos e cansados. Dos ombros estreitos erguia-se um pescoço comprido e fino. O vestido de algodão cinzento tinha-se tornado tão curto e tão justo que sublinhava as curvas dos seios ainda imaturos e as costas que ela tendia a curvar, como para se dobrar sobre si própria.
- O que é que estás a fazer, estúpida? Estás-te a rir? - perguntou Delmo, agressivo.
Matilde não tinha vontade nenhuma de rir. Pelo contrário, estava profundamente perturbada porque não conseguia acreditar que aquela grande boneca inerte em cima da carroça fosse a mulher cansada e muitas vezes embriagada que distribuía palmadas e carícias, que levantava bacias de roupa mesmo quando as forças lhe faltavam e paria filhos continuamente. Matilde, portanto, não encontrava nada de risível naquela situação mas, precisamente porque estava transtornada com um acontecimento tão imprevisto e tão incrível, sorria por não conseguir chorar. E, de resto, ninguém chorava. Só o pai tinha explodido em soluços, mas por poucos instantes, recuperando imediatamente a descarada agressividade de sempre.
O sorriso de Matilde alargou-se e ao mesmo tempo caiu sobre a sua face diáfana a mão pesada do pai. Uma mão forte, de dedos grossos como salsichas, com unhas curtas de contorno negro. Uma mão que trabalhava o ferro, marcada por vistosas cicatrizes causadas pelos acidentes de trabalho.
Matilde não estava à espera daquela bofetada. Perdeu o equilíbrio e caiu, tendo no entanto a presença de espírito de fazer de escudo, com os braços, ao irmãozinho que segurava ao colo. O menino começou a gritar enquanto ela, corando pela vergonha de ter sido agredida em frente a toda a gente, se levantava sem uma palavra.
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Olhou para a mãe morta, mas não tinha lágrimas para aquela morte inesperada e cujo significado não entendia ainda. Os irmãos, que acabavam de a ver de pernas para o ar, riram-se, divertidos.
Barbarina ficou indignada com Delmo. - Isso não é maneira de tratar uma pobre órfã - protestou.
Delmo estalou os dedos, chicoteando o ar. - Então, de que é que estamos à espera? - perguntou, sem saber muito bem o que se devia fazer.
De repente, os murmúrios daquela pequena multidão que se acotovelava no pátio diminuíram e apagaram-se. Os poucos homens presentes tiraram os bonés, as mulheres juntaram as mãos e inclinaram a cabeça e as crianças ficaram quietas. Entre os presentes abriu-se um espaço e avançou don Giuseppe, seguido do sacristão e de um jovem padre desconhecido.
O velho pároco parou diante da carroça, observou Adelina e, com um gesto piedoso, fechou-lhe os olhos. Depois, recolheu-se em oração. Os seus lábios recitavam o Requiem adernam e a sua mente recuava no tempo. Recordou o momento em que a baptizara, poucos dias depois de ter nascido, a seguir a comunhão e finalmente o casamento com aquele pedaço de asno que era Adelmo Riva. Recordava Adelina, pouco mais do que adolescente, quando lhe disse no segredo da confissão: - Don Giuseppe, perdoe-me, porque pequei. Fiz amor com o Delmo na margem do Naviglio.
- Depois ajustamos contas. Entretanto, como penitência, vais dizer dez Ave-marias - replicou num tom furioso.
Quando acabou a confissão, puxou-lhe uma orelha, chamou-lhe burra e prognosticou-lhe um futuro desgraçado se continuasse a andar com aquele miserável.
Adelina não quis ouvir argumentos nenhuns. Na margem do Naviglio se entregara a Delmo, na mesma margem dera à luz seis filhos, entre uma bacia de roupa lavada e outra por lavar. No Naviglio encontrara, ou talvez tivesse procurado, a morte. Tinha trinta anos e estava já velha e desiludida. O Senhor, na Sua infinita piedade, levara-a consigo. Mas o que seria agora, perguntou a si mesmo don Giuseppe, daquela ninhada de filhos?
Olhou para Matilde, a mais velha, e sentiu por ela muita compaixão, porque era uma rapariga, porque estava numa idade difícil,
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porque já não tinha uma mãe em quem se apoiar, porque o pai ia usar e abusar dela como tinha feito com Adelina.
Voltou-se para don Luigi. - Aqui está um dos tantos casos piedosos de que vai ter que tomar conta - disse-lhe. E acrescentou: - Não vai ser uma tarefa gratificante porque, faça o que fizer vai fazer sempre mal. E não vai poder fazer de conta que não se passa nada, porque esta gente é o seu rebanho.
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Matilde acordou. Saltou da cama em que dormia com os dois irmãos mais pequenos, passou por cima dos catres ocupados pelos mais velhos e abriu as persianas para a primeira luz da madrugada. Foi até ao outro quarto, que dava para a varanda. Era a cozinha, o ponto de encontro da família, o quarto dos pais. Havia uma salamandra, redonda e negra, que se acendia mesmo de Verão para ferver a água, fazer a sopa e aquecer o leite. Havia também uma mesa, dois bancos, umas cadeiras, uma arca para arrumar a roupa de vestir, um aparador desconjuntado e umas bacias de ferro esmaltado para lavar a roupa e a louça. Por cima da cabeceira de ferro do leito matrimonial estava pendurado um Sagrado Coração de Jesus, presente de casamento de don Giuseppe à pobre Adelina. Mas faltava uma fotografia que recordasse a jovem mãe desaparecida. Quando casaram, Adelmo quis ir a um fotógrafo. - Não há razão nenhuma para gastarmos um dinheiro que não temos objectou Adelina. - E depois os retratos tiram-se àqueles que estão perto de morrer. - Nem por um instante poderia imaginar o seu fim precoce, ao fim de doze anos de casamento. Delmo dormia agora sozinho na cama grande. Com muita cautela, para não o acordar, Matilde atiçou o fogo. Abriu o postigo, no cimo do tubo da salamandra, para facilitar a tiragem. Depois agarrou em dois baldes, abriu a porta de casa, percorreu a varanda até ao fundo e desceu os quatro lanços de escadas.
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No pátio, um homem descarregava sacos de juta. Vendia carvão, lenha e serrim, e os sacos, efectivamente, tinham uma grande utilidade. Serviam até para os homens protegerem os ombros quando chovia ou nevava. Faziam lembrar religiosos de uma confraria de desesperados.
- Bom-dia, signor Giulio - cumprimentou Matilde.
- Levantas-te sempre cedo - comentou o homem. Vestia de preto e pretos tinha os cabelos, os bigodes, as mãos e a cara.
- Pois é, seis homens em casa não deixam tempo para a gente se aborrecer - suspirou a menina, como se fosse uma perfeita mãe de família. Foi à fonte, pôs os baldes dentro de um grande nicho de pedra, depois agarrou no manípulo que accionava a bomba e, com a força dos braços, fez saltar da torneira grandes jactos de água clara até os encher.
Com aquele peso voltou a subir as escadas ainda desertas e passou em frente às casas silenciosas dos vizinhos. Quando estava a abrir a porta, viu o vulto de um homem surgir na porta ao lado da sua, e retirar-se imediatamente. Matilde sorriu para os seus botões. Toda a gente sabia, no prédio e no bairro, que Ettore Tamponi, violinista no Teatro Diana, gostava de homens. Acontecia muitas vezes algum amigo passar a noite com ele, mas tinha de sair de madrugada, para não dar nas vistas. Os vizinhos não faziam disso um drama, mas não perdiam uma oportunidade para provocar o "primeiro violino" com piadas por vezes ferozes. O pobre Tamponi corava, negava e continuava a alimentar as suas paixões em segredo.
Matilde entrou na cozinha. Pousou no chão de tijoleira os baldes cheios de água com uma sensação de alívio dos seus ombros estreitos, que tinham aguentado todo aquele peso. O fogo crepitava na salamandra, e ela pôs-lhe em cima uma panela de alumínio que encheu de água. Tinha que fazer uma papa mole de farinha amarela a que, à última hora, juntaria um grão de sal e um copo de leite. Era a primeira refeição do dia. A segunda, à base de sopa de legumes, arroz e toucinho, quando havia, tomava-se à noite. Ao meio-dia, ela e os irmãos comiam no refeitório da escola.
Do outro quarto, virado para a rua, chegou o choro do irmão mais novo. Tinha agora oito meses. Matilde estava dividida entre a necessidade de pegar no pequenino e as papas que, se não fossem continuamente mexidas, se agarravam ao fundo e se estragavam.
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Delmo ficava danado quando encontrava grumos, porque no interior a farinha não ficava cozida. Perante uma tigela com grumos, ficava numa fúria e passava à estalada. Mas também lhe bateria se fosse acordado pelo pranto do pequenino. Em suma, acabaria por apanhar de qualquer maneira.
Matilde decidiu abandonar as papas ao seu destino, fechando um pouco o postigo para atenuar o calor da salamandra e reduzir a fervura. Tirou da arca fraldas limpas, deitou água numa bacia e entrou no quarto. Afastou o cobertor da cama, destapando também o irmãozinho de dois anos, que continuou a dormir. Pegou no pequenino, que estava todo molhado, ao colo. Tirou-lhe a fralda. Mergulhou um paninho na água da bacia, torceu-o e começou a lavar delicadamente o menino. Entretanto ia-lhe falando em voz baixa: - Não chores, pequenino. Temos que nos portar bem durante mais uma meia horita, até as papas ficarem prontas. Também há para ti. Se fores bonito, ponho um bocadinho de manteiga nas tuas. Vê lá que eu até roubei, para ti. Mas não se diz a ninguém.
O menino ficou quieto e sorriu-lhe. Ela secou-o com cuidado e, como vira fazer a mãe, passou-lhe nas nádegas inflamadas um pouco de óleo de vaselina para amaciar a pele. Voltou a vesti-lo com uma fralda limpa e regressou à cozinha com ele ao colo. Com a mão livre recomeçou a mexer as papas, com a outra embalava o pequenino.
Através das persianas da cozinha começou a passar a primeira luz do dia. Do aparador, onde a tinha escondido, tirou uma pequena porção de manteiga. Roubara-a na leitaria no momento em que o dono se virou de costas para encher a garrafa do leite. O pai dava-lhe pouco dinheiro e Matilde arranjava-se como podia. Com a colher tirou uma noz de manteiga e deitou-a dentro de uma tigela, que depois encheu de papas. A manteiga desfez-se, juntando-se nas bordas e emanando um perfume que fazia crescer água na boca. Sentou-se no vão da janela ainda fechada e começou a dar de comer ao irmão. Soprava em cada colherada antes de lha dar. Ele agitava os braços tenros e gorgolejava para exprimir satisfação. Esvaziou a tigela. Ela manteve-o apertado contra o peito, enquanto lhe dava umas pancadinhas nas costas para o ajudar a digerir. Depois sentou-o dentro de um cesto, deu-lhe uns tronquinhos de madeira para ele brincar e a seguir abriu as persianas. - Pai, acorda! São horas
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- disse, ao mesmo tempo que sacudia o ombro do homem, que continuava a dormir.
Pôs em cima da mesa tijelas e colheres. Fechou definitivamente o postigo da salamandra e, por cima dos carvões que ardiam ainda, borrifou um pouco de água.
Delmo acordou com dificuldade. Na noite anterior tinha estado até tarde na taberna e agora não estava com vontade nenhuma de se levantar. No sítio da língua, sentia um ralador, e parecia-lhe que tinha um círculo de ferro a apertar-lhe a cabeça.
- Tenho sede - disse.
Matilde passou-lhe uma caneca de água, que ele bebeu de um trago. Depois, a blasfemar contra a filha, com se ela tivesse culpa do seu mal-estar, pôs as pernas fora da cama e sentou-se.
- Dá-me mais água. E um kalmin - ordenou. O kalmin era um remédio para as dores de cabeça que tinha de ser amolecido em água antes de ser engolido. Era preciso ter cuidado para que, ao molhá-lo, não se abrisse. Matilde tremeu à ideia de falhar, porque o pai só estava à espera de um pretexto para lhe pôr a mão. Conseguiu fazer tudo da melhor maneira. Depois eclipsou-se para o outro quarto. Abriu as persianas completamente. O sol espalhava-se nos campos distantes e iluminava os topos recortados de uma longa fileira de árvores. Outras janelas se abriram também, ruidosamente. Na rua passavam carros e carroças. Ouviu-se o assobio de um comboio. Os comerciantes levantavam as grades ou abriam as portadas de madeira dos estabelecimentos. Pelas escadas do prédio era um vaivém de tamancos. Os vizinhos do andar de baixo começaram a discutir, os do lado a protestar para que fizessem pouco barulho. Tinha começado um novo dia.
Enquanto os irmãos se levantavam dos catres, Matilde juntou a roupa suja e pô-la de molho numa bacia. Depois voltou à cozinha. Encheu de água outra bacia para que o pai primeiro, e os irmãos depois, pudessem lavar as mãos e a cara. Depois serviu as papas nas tigelas e, quando estavam todos sentados à mesa, recolheu os bacios e voltou a descer até ao pátio para os despejar e lavar debaixo da água da fonte. Voltou a subir a correr. Tinha de arranjar os irmãos. Como todos os dias, ia deixar os mais pequenos aos cuidados de Barbarina, que era uma vizinha muito prestável. Os três mais
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velhos saíam com ela: um ainda andava na creche, nas freiras, e os outros na escola.
Abriu a porta para voltar à cozinha e apanhou em plena face uma bofetada que a deixou atordoada. O pai espumava de raiva.
- Cretina! - atacou. - Falta um botão na minha camisa. O que é que eu visto para ir trabalhar?
Matilde conteve as lágrimas e olhou para o pai com o furor dos débeis desesperados. Se pudesse apagá-lo da face da Terra, fazia-o. Odiava-o com todas as suas forças.
Os irmãos riam como se estivessem no cinema a ver uma comédia de Charlot. O mais pequeno, dentro do cesto, assustou-se, ficou vermelho e começou a chorar.
- Por hoje, vais trabalhar com um botão a menos - decidiu Matilde.
- Prega-o imediatamente - ordenou Delmo.
- Não tenho tempo. Temos de ir para a escola - respondeu Matilde. Entretanto limpava o nariz do pequenino e, com os dedos, compunha a melena de outro.
- Já disse para me pregares imediatamente o botão. Quero lá saber da tua escola. Aliás, a partir de hoje, acabou a escola para ti.
Matilde olhou para ele, desesperada. A raiva que a devorava esfumou-se num sorriso.
O pai não estava a falar a sério. Estava com vontade de brincar.
- Prego-te o botão logo à noite. Juro - prometeu, conciliadora.
- Então não me fiz entender - disse ele, em voz baixa. Baixava sempre o tom de voz quando estava furioso.
As horas de escola eram os melhores momentos do dia de Matilde. Enquanto a professora dava a aula, Matilde esquecia a miséria, a pancada, a morte da mãe, o cansaço de todos os dias. A sua mente abria-se com curiosidade sobre novos horizontes, distantes da realidade quotidiana. As aulas representavam uma evasão no mundo dos sonhos.
- Meninos, saiam - ordenou Matilde. - Digam à professora que vou chegar atrasada - acrescentou, ao mesmo tempo que tirava de uma gaveta do aparador agulha e linha para arranjar a camisa de Delmo.
- Olha que tu não voltas à escola - rebateu o pai.
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- Porquê? - perguntou Matilde.
- Porque eu resolvi assim. Se julgas que vais viver à minha custa, estás bem enganada. Já estudaste que chegasse. A partir de amanhã, vais trabalhar.
Era uma sentença definitiva. Ela entregou-lhe a camisa e meteu-lhe na mão uma marmita de alumínio com polenta e toucinho para a refeição do meio-dia. Ele dirigiu-lhe um sorriso de desafio. Depois foi-se embora.
Matilde lavou a cara. Retirou o sangue que tinha solidificado entre o nariz e o lábio. Penteou as tranças e olhou-se ao pequeno espelho que estava pendurado ao lado da porta. O lado direito da cara estava inchado. Ainda iam passar muitos dias antes que aquele inchaço desaparecesse. Pegou nos dois irmãos mais pequenos ao colo e bateu à porta de Barbarina.
- Por que foi que te bateu, desta vez? - perguntou a mulher, quando a viu.
- E desde quando é que ele precisa de uma razão para bater?
- respondeu secamente.
- Os homens! Que raça maldita - comentou a mulher, enquanto pegava nas crianças. - E nós temos de aguentar e calar.
As palavras de Barbarina eram uma litania que Matilde sempre ouvira nos lábios de todas as mulheres. Desceu as escadas a correr e saiu para a rua. Sempre a correr, foi até à igreja. A nave estava deserta. Ajoelhou-se diante do altar, contornou-o e entrou na sacristia.
- Don Giuseppe - chamou em voz alta, quase sem fôlego. Só então se lembrou de que don Giuseppe se tinha ido embora para sempre. No lugar dele viu don Luigi, que olhou para ela, surpreendido.
- Tu quem és? - perguntou o novo pároco.
- Sou a Matilde, a filha mais velha do Delmo Riva - respondeu, ofegante, e acrescentou, para lhe refrescar a memória: - Foi o senhor que fez o funeral da minha mãe. Mas, eu... enfim, antes estava aqui o don Giuseppe, e agora...
- Agora estou cá eu. Por que é que tens a cara tão inchada? perguntou o sacerdote.
Matilde teve um gesto de irritação. Se fosse o velho pároco, tinha ido a correr refugiar-se nos seus braços, chorava tudo o que
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tinha para chorar e pedia-lhe ajuda. O velho padre sabia impor-se a Delmo porque conseguia ser mais temível do que ele. Mas o que podia ela contar àquele jovem que não a conhecia? Sentiu-se pouco à vontade.
- Caí - respondeu.
- O que é que eu posso fazer por ti? - perguntou ele.
- Se eu deixar de ir à escola, o que é que acontece? - perguntou-lhe.
- Acontece que ficas ignorante. A escola é uma obrigação, não sabes isso?
- Então alguém podia vir perguntar-me por que é que eu não estou lá? E se calhar podia obrigar-me a regressar? É assim?
O padre abanou a cabeça. - Talvez. Mas a tua professora tinha de fazer uma denúncia - explicou o sacerdote.
- Então espero bem que a faça, porque não sou eu que não quero ir para a escola. O meu pai é que não quer - revelou.
- Porque razão?
- Don Luigi, o senhor realmente não conhece o nosso bairro
- lamentou, e acrescentou: - O meu pai é o Delmo. Já lhe disse isso. Aquilo que ele decidir, é lei, aliás, é mais ainda - disse, já derrotada, e de cabeça baixa começou a andar em direcção à porta.
O padre chamou-a. - Foi ele que te bateu? - perguntou-lhe. Pensava nas palavras do seu velho antecessor. Não passava um dia, desde que se tinha instalado naquela paróquia, em que o seu pensamento não voasse até don Giuseppe e àquilo que ele lhe tinha dito na noite em que se encontraram. Tinha-lhe falado de uma pobreza extrema, de degradação moral, de violências e abusos dos adultos sobre as crianças. Era tudo verdade. Olhou para aquela menina malnutrida e quase teve medo do seu olhar carregado de raiva.
- Esqueça, don Luigi - respondeu Matilde, baixando os olhos. Esqueceu, como fazia sempre perante situações maiores do que
ele. Viu-a afastar-se e ajoelhou-se a rezar.
Matilde seguiu o caminho de casa. Agora estava realmente só e sentia que não seriam suficientes as poucas forças que lhe restavam para enfrentar um pai prepotente que queria dobrá-la segundo a sua própria vontade.
Vou-me afogar, como fez a minha mãe, pensou. Mas o ódio era mais forte do que o desejo de se anular e prometeu a si mesma que,
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antes de cumprir aquele gesto extremo, havia de encostar Delmo à parede.
Passou em frente à escola. As colegas estavam a sair para o pátio porque era a hora do recreio. Viram-na e começaram a meter-se com ela.
- A Cinco Centésimos de Pescoço Comprido faltou à escola
- cantarolavam entre elas. Era assim que a tratavam.
Matilde agarrou-se às grades como se ela própria, na rua, estivesse dentro de uma prisão e elas, pelo contrário, estivessem em liberdade. Olhava para elas, a garganta apertada pelo pranto.
- A Cinco Centésimos de Pescoço Comprido faltou à escola
- repetiam as meninas em coro.
Então ganhou coragem e retribuiu com caretas e língua de fora.
- Eu não sou palerma como vocês - gritou, com uma voz quebrada pelo desespero. E acrescentou: - Eu não volto à escola. A partir de amanhã vou trabalhar, vou comprar vestidos bonitos e divertir-me imenso - garantiu. Afastou-se numa corrida, a soluçar.
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Há males que vêm por bem - sentenciou Barbarina, para a consolar. - Uma mulher não precisa de instrução continuou. - Eu só fiz a escola primária. Tu, por pouco não fazias mais um ano. Até estudaste de mais. Em tua casa o que faz mesmo falta é uma mulher, se não os teus irmãos vão crescer mal. Tu também sabes muito bem que as autoridades não tardam a intervir. Fecham-vos a todos num orfanato e lá dentro a vida é muito dura.
- O Delmo quer pôr-me a trabalhar. Assim não vou poder, de qualquer maneira, tratar dos pequeninos - comentou Matilde.
- Pois é, são momentos difíceis. O dinheiro que a pobre da Adelina ganhava és tu que tens de o levar para casa, agora. Mais vale o trabalho que o orfanato - insistiu a mulher.
A perspectiva de ser encerrada numa instituição assustava Matilde ainda mais do que o convívio com o pai. O orfanato significava perder o contacto com a única realidade que conhecia. Significava a separação dos irmãos que amava.
O trabalho que Delmo lhe arranjou não era excessivamente cansativo e tinha aspectos agradáveis. A empurrar um carrinho, Matilde subia o corso Garibaldi, passava por ruas e vielas e chegava até à piazza delia Scala. Frequentava, passando sempre pelas escadas de serviço, apartamentos elegantes onde lhe entregavam sacos de roupa suja. A cada saco, Matilde prendia um cartãozinho com o nome do proprietário. No fim daquele circuito, o carrinho ficava a abarrotar de roupa, e empurrá-lo até à lavandaria não era tarefa
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fácil. Fazia paragens frequentes, sobretudo para admirar as senhoras bonitas que passavam por ela e que usavam vestidinhos de seda de cores luminosas, chapelinhos com véu, luvas de renda e sapatinhos de pontas compridas e estreitas.
- Quando for grande, também me vou vestir assim - prometia a si mesma, para dar algum lugar à esperança. Entretanto, escondia as tranças dentro do decote da camisa, imaginando que tinha o cabelo curto, penteado em pequenas ondas e negro, porque considerava horrível a espantosa cor acobreada da sua cabeleira. Depois recomeçava a empurrar a sua carga, mas um automóvel luzidio que passava oferecia-lhe a deixa para uma nova paragem e mais sonhos.
Acontecia às vezes que algum transeunte de boa vontade a ajudasse a empurrar o carrinho durante uma parte do trajecto. Matilde agradecia, com um sorriso e uma vénia.
A volta mais interessante era a da tarde, quando entregava a roupa lavada e dobrada. Então recebia boas gorjetas, sobretudo dos homens sós. As mulheres não eram tão mãos-largas.
Pelo caminho, também lhe acontecia receber grandes piropos. Matilde corava e ganhava asas nos pés.
À noite, quando regressava a casa, entregava o dinheiro ao pai, que o enfiava no bolso do casaco, deixando-lhe menos do que o necessário para fazer as compras.
Às vezes, Matilde protestava. - O Marco precisa de uns sapatos. O Francesco já não cabe nos calções. O pequenino está com tosse, tenho de comprar um xarope - dizia. E gostaria de acrescentar: - Eu também preciso de um vestido - mas não ousava exteriorizar aquela necessidade.
Delmo não a ouvia, já quase não lhe ralhava. Mas, às vezes, observava-a durante muito tempo, quando ela lhe virava as costas. Matilde sentia aquele olhar e fugia, desconfiada.
Chegou Julho. O trabalho diminuiu, porque muitos clientes tinham partido para férias. Matilde ganhava menos, mas tinha mais tempo para tratar dos irmãos, para conversar com as mulheres no pátio e para ir espiar, à noite, os jovens que dançavam ao ar livre, nas tabernas ao longo das margens, sob as pérgolas iluminadas por balões de papel colorido com lâmpadas dentro.
Encostava-se aos arbustos e sentia um formigueiro nos pés, tanta era a vontade de se mexer ao ritmo de uma valsa ou de uma
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mazurca. Via o pai a rir, a brincar e a dançar com as raparigas. Então lembrava-se da mãe, que passava as noites em casa a chorar enquanto embalava um filho e esperava outro. Pensava que, quando se casasse, nunca escolheria um homem como Delmo. Matilde queria um marido que a levasse a dançar todos os dias.
Apoiada ao arbusto, sob o céu estrelado de Julho que se espelhava nas águas preguiçosas do Naviglio, embalada pelas notas de um tango, Matilde olhava e sonhava. A claridade da lua e as luzes dos balõezinhos reflectiam-se nos copos de cerveja, de espumante e de vermute com água gasosa que os bailarinos tomavam entre duas danças: os homens de colete e mangas de camisa, as mulheres com vestidos vistosos e bastante decotados. O acordeonista da pequena orquestra, instalada num estrado, atormentava o instrumento com as notas da Cumparsita.
Uma noite, Matilde começou a baloiçar o corpo, seguindo o ritmo da música.
- Parece que nasceste para dançar - exclamou uma voz atrás dela.
Voltou-se de repente, assustada. Julgava que estava sozinha. A loira Ermelinda observava-a com curiosidade.
- Estás a falar a sério? - perguntou, incrédula.
- Tenho a certeza. Bonita como és, bastava-te uma coisa de nada para te tornares bailarina - afirmou, enquanto a avaliava com uma certa satisfação. E acrescentou: - Daqui a pouco os homens vão começar a fazer-te a corte e, se fores esperta, podem fazer loucuras por ti.
A mãe falava mal de Ermelinda. E Barbarina não tinha melhor opinião. Mas estavam todas de acordo em dizer que era generosa e que tinha bom feitio. Matilde sabia que a mulher se exibia na taberna de Egiziaco e considerava aquele espectáculo uma vergonha. No entanto, sentia-se fortemente atraída por ela porque não era agressiva, nem mexeriqueira e tinha sempre uma palavra simpática para toda a gente.
- Eu não sou bonita, Ermelinda - observou. - Tenho o pescoço demasiado comprido, os cabelos demasiado vermelhos e os lábios demasiado grandes.
O olhar da mulher iluminou-se com uma luz maliciosa. - Já começaste a ver-te ao espelho - constatou, divertida.
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- Vejo-me nas montras. E o que vejo não me agrada - confessou. E prosseguiu: - Vejo as raparigas da minha idade, bem vestidas, bem penteadas, com cachinhos castanhos ou loiros, a cheirar a lavado. Depois olho para mim e fico mortificada, porque sou um desastre.
- Essas lambisgóias não têm nada a ver contigo, nem comigo
- comentou a mulher. - São criaturas sem graça. Mas tu tens carácter, como o teu pai. És parecida com ele.
Ser parecida com Delmo era o último desejo de Matilde. A comparação, aliás, ofendeu-a. - Tenho de ir para casa. Se o meu pai chega e não me encontra, há tareia - disse, e entrou na viela que ia até ao corso Garibaldi.
Nos meses que se seguiram, Ermelinda não perdia uma ocasião para se aproximar dela e lhe dar conselhos.
- Tens de aprender uma profissão - dizia-lhe.
- A dança?
- Aquilo foi uma brincadeira. Mas empurrar um carrinho de lavandaria é um esforço desperdiçado. Tens de ter um trabalho sério, se quiseres ser respeitada. Digo-te isto porque sei o que significa crescer sem rei nem roque, dependendo dos caprichos dos homens - explicava-lhe.
Um dia ofereceu-lhe um colarzinho de pérolas falsas e, em seguida, deu-lhe um dos seus vestidos usados, oferecendo-se para o pôr à medida dela.
Matilde não sabia como avaliar aquelas atenções. E sentia-se confusa quando a mulher estendia uma mão para lhe acariciar o rosto. - Gostava tanto de ser tua mãe - dizia-lhe. - Faria os possíveis e os impossíveis para te dar uma vida melhor do que a minha.
- Mas as coisas não te correm assim tão mal como isso - observava a rapariga.
- Isso é o que tu pensas. Sempre fui usada. Por todos. Até o Egiziaco. Nunca ninguém me amou - lamentava-se.
Durante o Inverno, nas raras noites em que o pai não saía, Ermelinda apresentava-se em casa deles com o pretexto de lhes oferecer um minestrone ou um pedaço de vitela estufada. - Assim não precisas de perder tempo, nem de gastar dinheiro para cozinhar. Não te esqueças de me devolver a panela, amanhã - dizia a Matilde,
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ao mesmo tempo que apertava em volta dos ombros o grande xaile de chenile negro.
- Manda-a entrar - ordenava Delmo à filha. - Não se deixam as visitas à porta.
- Só um instante - garantia Ermelinda, com um sorriso de circunstância. - Há muito que fazer na taberna e o meu homem fica zangado se eu não o ajudar.
Sentava-se à mesa, enquanto Delmo pegava numa garrafa de vinho tinto que estava pousada no peitoril da janela.
Matilde apressava-se a pôr os copos em cima da mesa, depois de os limpar cuidadosamente com um pano. Fazia questão de que a hóspede a visse limpá-los: parecia-lhe um sinal de respeito e de extrema delicadeza.
- Agora vai dormir - ordenava-lhe Delmo.
Obedecia sem replicar, apesar de preferir ficar ali, porque sabia o que acontecia entre Ermelinda e Delmo assim que ficavam sozinhos. Aquela história não lhe agradava, considerava-a uma ofensa à
mãe.
Barbarina, que espiava os movimentos do prédio inteiro, estava ao corrente daquelas visitas e prognosticava desastres.
- Espera até o taberneiro descobrir e vais ver que fim do mundo - dizia a Matilde. E continuava: - O teu pai é viúvo. E já se sabe que um homem tem necessidade de certas coisas. Mas aquela desavergonhada, com tudo de bom que aquele homem fez por ela, arrisca-se a voltar para o bordel.
Matilde sabia que Egiziaco a tinha resgatado de uma casa de passe, pagando as dívidas contraídas durante anos com o proprietário. Mas não tinha a certeza de que a situação de Ermelinda tivesse melhorado muito. Tinha de se mostrar aos clientes, servir às mesas e viver com um homem que era mais feio que o pecado. Percebia a atracção daquela mulher pelo pai, mas não gostava que aqueles encontros tivessem lugar na cama que tinha sido da pobre Adelina.
Uma noite, depois de a taberneira loira sair, Delmo voltou a chamar Matilde à cozinha. - A partir de amanhã, mudas de trabalho - anunciou.
Matilde ficou calada à espera do que se ia seguir. O pai, nos últimos tempos, andava mais meigo, e às vezes até trazia para casa uns freguglie, restos de pastelaria esmigalhados que eram recebidos
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com alegria pelas crianças. Já quase não lhe batia. Às vezes, chegava ao ponto de elogiar a maneira como tinha preparado o minestrone. Matilde atribuía aquela mudança à influência de Ermelinda.
De facto, Delmo explicou-lhe: - A Ermelinda acha que não se aprende uma profissão a empurrar um carrinho.
- E o que é que eu vou fazer? - perguntou a rapariga.
- Vais passar a ferro.
Matilde estremeceu. Passar a ferro era muito pior do que empurrar o carrinho. Matilde conhecia algumas engomadeiras. Apertavam os dentes para sufocar as dores nos ombros e nas costas. Ficavam com os pés e as pernas inchados. De Verão, derretiam com o calor dos ferros. De Inverno, adoeciam com bronquite por causa das passagens bruscas do calor do sítio onde trabalhavam para o frio das suas casas.
- É um trabalho bem pago - continuou o pai. - Amanhã de manhã às sete horas vais ter com a signora Serafina, na via Santa Margherita. É a dona da engomadaria.
- Não - respondeu Matilde, desafiando o olhar de Delmo. E esperou, impávida, que ele lhe batesse.
No entanto, viu o olhar do homem tornar-se mais meigo, ao mesmo tempo que lhe dizia: - Estás a ficar crescida.
Estendeu uma mão. Matilde fechou os olhos com força e ficou à espera da tareia. Mas o pai afagou-lhe um ombro ossudo. Depois explicou, sem levantar a voz: - O dono da casa sou eu e decidi assim.
- A Ermelinda é que decidiu. Não foste tu - observou a rapariga, com raiva, determinada a provocá-lo.
Como única resposta, o homem desatou a rir. Matilde estava confusa, não percebia o que estava a acontecer. Ele estendeu outra mão para ela e despenteou-lhe os cabelos. - Estás a ficar fina, rapariga. Francamente, julgava que eras um bocado atrasada. Mas estava enganado - disse Delmo, divertido.
Naquele momento, Matilde teve a sensação de que se tinha bloqueado um mecanismo testado ao longo dos anos e que sempre tinha funcionado da mesma maneira. Não conseguia acreditar que o homem que reagia agora a rir e a brincar a uma recusa sua fosse realmente o seu pai.
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- Assim gosto de ti, rapariga - continuou ele, acariciando-lhe uma face. Como era bom sentir uma carícia e ouvir a voz de Delmo modulada em tons da ternura.
Por que não fora sempre assim? Por que lhe tinha sempre batido, por que a tinha sempre ofendido e maltratado quando bastava uma carícia para obter a sua obediência? Seria capaz de fazer tudo por ele, em troca de um gesto afectuoso.
Fechou os olhos e ficou à espera que o pai a abraçasse, lhe dissesse finalmente que gostava muito dela, que sempre havia de tomar conta dela. E foi exactamente isso que Delmo fez. Abraçou-a, disse-lhe que gostava muito dela, pegou nela ao colo e pousou-a na cama.
Quando Matilde percebeu, já era demasiado tarde. Delmo pôs-lhe uma mão na boca para sufocar o grito. E, quando a tortura acabou, assentou-lhe uma bofetada em plena face.
- O dono da casa sou eu - proclamou.
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Asignora Serafina era uma mulher viçosa e tinha a pele clara como leite. Trazia um vestido branco e largo, que lhe deixava livres os braços e o pescoço. Um lenço também branco, atado na nuca, escondia uns cabelos escuros e encaracolados. Uma penugem castanha escurecia-lhe o lábio superior e juntava-lhe as sobrancelhas, conferindo ao seu rosto uma expressão contraída. Os lábios, grandes e cheios, abriram-se num sorriso radioso.
- Então és tu a pequena que foi recomendada pela Ermelinda?
- começou, com uma voz robusta.
Matilde, rígida de tensão, continuou imóvel à frente dela. Limitou-se a baixar a cabeça em sinal de assentimento.
- A Ermelinda tem um coração de ouro e isto é um lugar sério. Nem todas as engomadarias se podem gabar de uma clientela como a minha. Tens vontade de trabalhar? - perguntou-lhe.
Matilde baixou ainda mais a cabeça.
- Que cara feia é essa? Olha que eu não te como. Aqui a gente tenta estar o mais alegre que pode. Canta-se, ri-se das nossas desgraças e trabalha-se - declarou a signora Serafina, ao mesmo tempo que iam chegando ao estabelecimento jovens mulheres a tagarelar em voz baixa. Cumprimentavam com respeito a patroa e dirigiam um sorriso à rapariga.
- Quem é esta menina? - perguntou uma mulher já avançada nos anos, com um corpo pesado e os cabelos cinzentos apanhados na nuca num carrapito opulento.
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- É a nova pequena - explicou a patroa.
- Esperemos que tenha a cabeça no lugar. Que não seja uma mandriona como a última que se foi embora - resmungou a mulher, enquanto se dirigia com um passo de pata para uma salinha de onde as mais jovens, que tinham entrado antes dela, saíam de combinação e chinelos.
- Em breve vamos ficar a saber - declarou Serafina. E acrescentou: - Como disseste que te chamavas?
- Não disse - sussurrou Matilde.
- Então Cara Feia está bem - disse a patroa, com uma risada alegre, enquanto se dirigia à sala de trabalho.
Matilde ficou ali, à porta, desejando que o chão se abrisse debaixo dos seus pés para a engolir. O casaco justo, que Barbarina tinha alargado e alongado com um acrescento de uma imitação de pele de coelho, apertava-a e incomodava-a. Queria tirá-lo, mas tinha medo que todas aquelas mulheres vissem a miséria, a torpeza, a porcaria do seu pecado. Estava alagada em suor, mas não arranjava coragem para se despir. Olhou para a sala. Era um compartimento muito espaçoso, com grandes janelas protegidas por grades de ferro. Havia uma série de mesas de várias dimensões. Do tecto pendia por cima de cada mesa uma lâmpada eléctrica que iluminava o plano de trabalho. Junto de cada lâmpada havia uma tomada a que se ligava o ferro. No meio da sala estava acesa uma salamandra sobre a qual estavam alinhados ferros de todas as dimensões. Havia uns tão pequeninos que pareciam de brincar. Alguns eram planos e compactos, outros eram ocos, perfurados e enchidos com carvão aceso que ardia numa braseira colocada ao lado da janela entreaberta. Estava muito calor ali dentro.
- Cara Feia, olha que daqui a pouco vais derreter, se continuas assim enfaixada - observou a patroa.
- Chamo-me Matilde - sussurrou a rapariga.
- Santa Matilde, padroeira das bordadeiras - interveio a mulher mais velha. E continuou: - Se calhar, enganaste-te na profissão. Devias ir ter com a Madame Viviani. Essa é que é uma verdadeira especialista em bordados. - Estava sentada a uma mesa baixa sobre a qual estava pousado um vestido vermelho de voile de seda. Usando um ferro minúsculo e revelando uma paciência de santo, estava a passar uma série infinita de preguinhas.
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Matilde tinha vontade de chorar. Entrou na salinha e tirou o cachecol e o casaco. Por nada deste mundo tiraria o vestido, não tanto para esconder a combinação remendada, mas porque tinha horror da sua própria nudez.
Na noite anterior, enquanto o pai dormia, tinha-se lavado e voltado a lavar na esperança de eliminar aquele cheiro. Depois acabou por perceber que, por muita água e sabão que gastasse, a marca da violência e do pecado nunca mais seria apagada.
- Amanhã traz uns chinelos - sugeriu a signora Serafina. E acrescentou: - Agora anda cá. Vou ensinar-te a preparar a goma. Estás a ver, é precisa esta água assim, na bacia, e tem de estar morna. Depois junta-se este punhadinho de goma e mexe-se com os dedos. Não podes sentir grumos nas pontas dos dedos. Depois mergulhas os colarinhos e os punhos das camisas. Por fim, espremes. A goma é importante para que a camisa fique bem passada.
- Eu não sei passar a ferro - confessou ela, em voz baixa.
- Ninguém nasce ensinado. É preciso tempo para se ser uma boa engomadeira, e ainda vai levar uns meses até que pegues num ferro. Agora tens de aprender o ABC da profissão. Estás a ver a Marietta? - disse, indicando a mulher mais velha. - Ela é a mestra dos plissados. Passou a vida com os plissados. Agora já tem uma certa idade e eu mandei fazer aquela mesa especial, porque assim pode trabalhar sentada. Quando deixar de me ajudar vai ser terrível, porque o meu estabelecimento é famoso por causa dos plissados.
Matilde aprendia depressa e bem. Tinham-lhe ensinado as tarefas mais humildes que lhe permitiam, no entanto, ficar em sintonia, pouco a pouco, com aquele pequeno universo de mulheres tagarelas, orgulhosas da sua profissão. Limpava vidros e chão, acendia a salamandra, mantinha vivo o fogo na braseira, enchia os ferros de carvão, preparava as bacias com a goma, lavava peças sujas, massajava os ombros das engomadeiras, cheias de formigueiros, e ouvia as suas histórias e cantigas. Sempre em silêncio, sempre atenta para não errar, sempre sisuda.
De tarde saía para as entregas. A signora Serafina sabia dobrar as peças passadas para que não se amarrotassem, antes de as colocar dentro de umas grandes caixas de cartão. Eram vestidos de noite, écharpes, lenços, calças e saias, blusas de senhora e camisas de homem. Indicava a Matilde o nome do cliente e o endereço. A rapariga
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tinha aprendido a conhecer as ruas do centro quando andava a empurrar o carrinho da lavandaria. Por isso, caminhava com um passo seguro, no frio do Inverno, armada de caixas e caixinhas, sem se enganar no caminho e já sem o prazer de parar, encantada, a admirar as montras, as senhoras elegantes e os automóveis de luxo.
Tinha perdido a inocência, a despreocupação da infância, e vivia no terror daquilo que a esperava à noite, quando estavam todos a dormir. Quando regressava a casa, punha na mesa a sopa para o pai e para os irmãos. Já não se sentava com eles à mesa. Comia à parte, ao lado da salamandra, a remoer maus pensamentos. Depois, arrumava a cozinha, verificava se os irmãos mais velhos tinham feito os deveres, metia os mais pequenos na cama e enfiava-se na cama com eles, completamente vestida. Naquele momento, enquanto os meninos adormeciam, começava a tremer, à espera que o pai entrasse no quarto e a chamasse.
As vezes sentia-o sair, e então dedicava uma oração ao Senhor por a ter salvado. Na maioria das vezes, porém, tinha de ir com ele para a cama. Tinha sempre vontade de lhe pedir a piedade de a poupar. Mas ficava calada, sabendo que as súplicas só iam servir para acentuar o seu desejo. A única coisa que podia fazer era opor-lhe uma passividade total. Quando lhe sussurrava palavras de amor, respondia cuspindo-lhe na cara. Então Delmo esbofeteava-a e esmurrava-a. A pancada, em qualquer caso, parecia-lhe mais suportável do que aqueles trejeitos.
Às vezes, quando regressava do trabalho, o pai trazia-lhe um presente: uma tablete de chocolate, uma caixa de biscoitos, um par de meias. Matilde distribuía os doces pelos irmãos sem sequer os provar. As meias atirava-as para dentro da salamandra, ao mesmo tempo que olhava para o pai com ar de desafio e esperava, impávida, a sua réplica violenta.
- Ainda assim, tenho de conseguir domar-te - insistia Delmo, com os dentes cerrados. Não lhe parecia possível que todas as mulheres do bairro fossem doidas por ele, enquanto que aquela filha insolente tinha tantas esquisitices. Não que lhe desagradasse possuí-la à força. Pelo contrário, era ainda mais excitante. Mas queria uma fêmea reconhecida. Matilde, porém, preferiria dar-lhe uma tigela de veneno em vez da sopa. Entretanto iam passando as semanas, e ela sentia-se cada vez mais desesperada. No trabalho era
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irrepreensível, mas o desconforto daquela situação tornava-a conflituosa.
Quando regressava à engomadoria, depois de ter feito as entregas, a tagarelice das mulheres apagava-se. Matilde suspeitava que as companheiras tivessem estado a fazer comentários sobre ela. Aterrava-a a ideia de que soubessem dos abusos do pai. Era um segredo que lhe causava muita vergonha. Nunca tinha ousado falar daquilo nem sequer em confissão, e há muito tempo que se negava a Comunhão dominical.
Uma vez as engomadeiras não se aperceberam da presença dela. Ouviu falar a velha Marietta, enquanto trabalhava com cuidado um plissado soleil. - Aquela pobre rapariga faz-me muita pena. Às vezes nem se despe para não mostrar as negras que tem nos braços e nas costas - disse.
- Mas não consegue esconder o lábio inchado e o nariz negro
- interveio a signora Serafina.
- Tu conheces bem a Ermelinda. Perguntaste o que se passa com a Cara Feia? - insistiu Marietta.
Era estranha aquela amizade entre a engomadeira e a ex-prostituta. Serafina sentia um certo fascínio pela bondade e pela generosidade de Ermelinda, a qual admirava nela a tenacidade, muito feminina, que lhe tinha permitido emergir sem a ajuda de um homem. Tinham-se conhecido num período feliz, quando Ermelinda tinha um amante fixo, muito abastado, para quem Serafina passava a roupa. O amante acabou por desaparecer mas a amizade entre as duas mulheres manteve-se. - A Ermelinda é uma pessoa que se cala, mesmo quando sabe. Mete-se na vida dela. Não é uma fala-barato, como vocês - rematou Serafina. Sabia, por experiência, que há situações que não se resolvem a conversar.
Matilde estava no quartinho a vestir-se para ir fazer uma entrega. Tinha de levar dez camisas ao professor Brasca, um clínico ilustre que morava perto do Scala.
Eram camisas confeccionadas em Génova, por Finollo, um alfaiate que servia as personalidades mais notáveis de toda a Itália. Pelo menos, era isso que afirmava a signora Serafina. Dizia que Finollo tinha as medidas de todos os clientes habituais. Bastava uma carta ou um telegrama para receber as peças em poucos dias.
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As engomadeiras tinham um cuidado especial a passar aquelas camisas porque, diziam, o trabalho de um artista deve ser respeitado.
Matilde, portanto, esgueirou-se à socapa, com uma sensação de alívio: não tinham adivinhado o seu segredo.
Saiu para a rua e, uma vez que estava a nevar, enterrou-se na neve até ao tornozelo. Levantou o rosto para o céu, para o oferecer àqueles flocos grossos e farinhentos que, ao pousarem na testa, no nariz e nas faces, derretiam em pequenos fios gelados que lhe escorriam pelo pescoço até penetrarem no grande xaile de lã grossa. Sorriu.
Era Fevereiro, e era a primeira vez, ao fim de muitos meses, que conseguia sorrir. Sorria à neve porque era a única coisa branca, macia e não contaminada em que tocava há muito tempo.
Na piazza delia Scala, um grupinho de rapazes atirava bolas de neve a um eléctrico. - Os jovens de hoje crescem como vândalos
- lamentaram-se alguns transeuntes.
Matilde virou na via Verdi e chegou à frente do edifício onde morava o professor. No átrio estava parado um automóvel. A mala estava aberta e um criado, ajudado pelo porteiro do edifício, encaixava lá dentro uma série de malas de couro. Matilde parou, intimidada.
- O que queres? - perguntou o porteiro.
- Venho entregar umas camisas ao professor Brasca - respondeu ela.
- Graças a Deus que chegaram - interveio o criado, que vestia uma libré de risquinhas amarelas e pretas. - Dá-mas depressa. O professor está de partida e precisa delas.
Matilde entrou muito depressa no átrio, bateu com uma perna no carro e caiu, fazendo voar as caixas. Pareceu-lhe que o chão se precipitava sobre ela. Sentiu um choque surdo. Depois, mais nada.
- Professor, arrisca-se a perder o comboio - disse uma voz masculina.
- Paciência. Esta menina precisa de ser tratada - replicou outra voz, profunda e suave como o som de um tubo de órgão.
Matilde sentiu o cheiro penetrante de um desinfectante e um perfume mais subtil, de bom tabaco e alfazema. Uma mão delicada estava pousada na sua testa dorida. Abriu os olhos. Estava num quarto, na penumbra. A luz de um abat-jour iluminava uma espécie
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de otomana sobre a qual estava estendida. Havia um homem enorme junto dela. Estava em mangas de camisa. Vestia um colete escuro e, no pulso, trazia um relógio de ouro. Tinha um rosto largo, maxilas fortes, olhos azuis, cabelos negros salpicados de prata e bigodes que faziam realçar os seus lábios rosados. Matilde levou uma mão à testa e os seus dedos hirtos tocaram a tepidez das mãos daquele senhor.
- Já recuperaste os sentidos - disse ele, a sorrir.
- Então, professor, será melhor despachar-se - insistiu o criado, que estava atrás dele e segurava o abat-jour à altura do rosto de Matilde.
- Sou o professor Brasca, o médico. Como te chamas? - perguntou, com um tom afectuoso.
- Matilde, signore - balbuciou ela.
- Dói-te a testa, Matilde?
- Um bocadinho - respondeu ela.
- Tens aí um rico galo. A ferida, felizmente, é superficial. Desinfectei-a e pus-lhe um penso - explicou, ao mesmo tempo que a ajudava a levantar-se do divã. Estavam na portaria do edifício. O porteiro, à entrada da porta, observava-os.
- Sentes a cabeça a andar à roda, Matilde? - perguntou ainda o médico.
Estava um pouco confusa, mas tinha a sensação de nunca se ter sentido melhor. A presença, a voz, o toque gentil daquele médico infundiam-lhe um calor e uma segurança até então desconhecidos.
- Estou muito bem, signore - respondeu.
Ele sentou-se num banco e ajudou-a a levantar-se.
- Chega cá a lâmpada, Celestino - pediu ao criado. Segurava entre as mãos o rosto da rapariga e, com os polegares, baixou-lhe as pálpebras inferiores. Depois tocou-lhe nos maxilares, na garganta e
na nuca.
- Acho que está tudo em ordem - concluiu. - Mas umas fatiazinhas de carne a mais não te faziam mal nenhum. Comes carne, ovos, queijo? - perguntou-lhe.
- Raramente, signore - confessou ela.
- Eu sei muito bem como é - sussurrou ele. E acrescentou:
- Agora vira-te.
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O criado e o porteiro observavam-nos. Matilde obedeceu. O médico rodeou com um braço o seu corpo miúdo, obrigando-a a inclinar-se para a frente. Depois pousou a cabeça nas costas dela.
- Respira fundo - disse-lhe.
Através da flanela do vestido, Matilde sentia o calor daquele homem que tinha decidido tratar dela. Pela segunda vez naquele dia, sorriu.
- Quantos anos tens, Matilde? - perguntou o professor Brasca, ao mesmo tempo que com um dedo lhe seguia a curva das costas, ao longo da linha da coluna vertebral.
Gostava da maneira como pronunciava o nome dela, parecia-lhe mais bonito.
- Onze, signore - respondeu.
- Tens uma ligeira escoliose - diagnosticou. - Devias fazer alguma ginástica.
- Isso é um luxo de senhores - replicou ela.
- Eu sei. É uma injustiça - murmurou ele em voz baixa. Começou a desapertar a longa fila de botões que fechavam o vestido nas costas. Naquele momento, o sonho de Matilde acabou. Com um movimento brusco, voltou-se e começou a abotoar o vestido, à pressa. Mas, apesar de ter sido muito rápida, o médico teve tempo de reparar numa vasta equimose no ombro esquerdo.
- Tenho mesmo de ir. Desculpe - corou, enquanto procurava com os olhos o casaco e o xaile.
- Um momento - disse ele, agarrando-a por um braço. - Não te quero fazer mal. Sou médico e, neste momento, tu és minha doente - explicou com firmeza. Depois voltou-se para os dois homens: - Deixem-me sozinho com ela - ordenou.
Saíram os dois e Matilde, por sua vez, recuou em direcção à porta, agarrada ao casaco e a olhar para ele com uns olhos assustados.
- Quem é que te bate dessa maneira? - perguntou com uma voz autoritária.
- Ninguém, signore - respondeu a tremer.
- Não quero ouvir mentiras - disse ele com severidade.
- E eu não quero dizer a verdade - rebateu Matilde, com a coragem do desespero.
O homem respirou profundamente. Levantou-se do banco, foi até junto dela e acariciou-lhe os cabelos, olhando-a com piedade.
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- Pobre pequena Matilde - sussurrou. - Tenho muita pena de ti. Gostava que todas as crianças do mundo fossem respeitadas. Infelizmente, quase nunca é assim. Se precisares de ajuda, bate-me à porta - concluiu. Meteu dois dedos no bolso do colete, tirou algumas moedas e estendeu-lhas.
- Obrigada, não, signore - defendeu-se Matilde, retraída.
- És uma boa rapariga, Matilde. Que a sorte te ajude - desejou-lhe, enquanto vestia o casaco. - E vai ajudar-te, graças ao nome que tens. Sabes o que significa Matilde? Vem da antiga língua dos Celtas. Quer dizer "possante" na batalha. Tenho a certeza de que te vais empenhar nas tuas guerras pessoais e que as vais vencer.
Naquela noite, Delmo reparou no vistoso galo na testa da filha e no penso que o cobria parcialmente. Não fez perguntas. Matilde pôs na mesa a sopa de couves com toucinho, que todos devoraram com avidez. Arrumou a cozinha e pousou em cima da salamandra o ferro para passar a camisa do pai. Delmo saiu. Ela, vencida pelo cansaço, em vez de passar a camisa foi para a cama.
Deitou-se ao lado dos irmãos mais pequenos. A proximidade daqueles corpos deu-lhe conforto. Eles adormeceram imediatamente. Ela ficou a pensar no acidente ocorrido na casa do ilustre médico e na ternura daquele encontro. Se calhar, nem todos os homens são malvados, pensou.
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Matilde adormeceu e sonhou que estava nos braços fortes e ternos de um homem bom que lhe dizia: - És uma boa rapariga, Matilde. Que a sorte te ajude.
A brutalidade de uma mão que a abanava arrancou-a do sonho. Abriu os olhos. No quarto silencioso, a figura maciça do pai impunha-se sobre ela.
- Mexe-te, anda para ali - ordenou Delmo em voz baixa.
Matilde deslizou para fora da cama e entrou na cozinha, fechando atrás de si o quarto onde dormiam os irmãos. Trazia ainda o vestidinho de lã abotoado até ao pescoço. Os pés estavam descalços e o contacto com o pavimento gelado acentuou o ardor das frieiras. A cozinha estava muito quente. A pequena salamandra, carregada com a lenha que crepitava, tinha as paredes rubras do fogo.
- Olha que rico calorzinho eu preparei para ti - disse Delmo, enquanto se enfiava na cama de casal e lhe indicava que fizesse o mesmo.
Matilde observou a salamandra escaldante e não se mexeu. - Sinto-me mal - disse, ao mesmo tempo que levava uma mão à testa magoada, na tentativa de encontrar uma escapatória.
Delmo dirigiu-lhe um sorriso de bêbedo. - Caíste? - perguntou.
Ela reagiu com um encolher de ombros.
- Custa-te assim tanto falar? - insistiu o pai
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Olhou-o com desprezo. Que sentido fazia contar-lhe o que tinha acontecido? Ele só queria uma coisa e, enquanto durasse aquele desejo turvo, estava até na disposição de lhe oferecer um sorriso. Mas quando a doçura falsa não obtinha resultados, recorria ao velho e bem testado método da violência.
- Vou eu buscar-te? - perguntou com um gesto de irritação.
- Por uma vez, deixa-me em paz - suplicou Matilde.
- Depois. Depois podes dormir toda a noite.
Sentiu um nó que lhe apertava a garganta. O que poderia fazer para se libertar daquela maldição? As portadas da janela estavam fechadas, assim como a porta de casa, mas o vento, que tinha limpado o céu e varrido a neve, assobiava e penetrava pelas frinchas, gemendo ao longo do tubo da salamandra. Parecia o gemido doloroso de um animal ferido. Matilde estremeceu outra vez.
- Não estiques de mais a corda - ameaçou o pai.
- Aqui estou - disse ela, dando um passo incerto em direcção à cama.
Parecia-lhe que o vento falava, profetizando desventuras. Recordou que, na noite anterior à morte da mãe, aquele mesmo vento tinha anunciado o drama.
- Escuta - disse ao pai. - Estás a ouvir?
- O quê? - respondeu bruscamente.
- O vento. Diz que está para acontecer uma desgraça. Delmo deu uma gargalhada grosseira. A sua cara de bêbedo exprimia apenas o desejo sórdido de a possuir.
- És uma cretina - disse em tom de desprezo. Agarrou-a com uma mão e obrigou-a a cair na cama. - Agora vais fazer aquilo que deves - acrescentou, puxando-a para si. O hálito saturado de vinho aumentou a repulsa de Matilde.
Sentia-se débil, frágil e indefesa, mas apoderou-se dela a certeza de que o pai nunca mais voltaria a violá-la.
- Não torno a fazer isso contigo - afirmou.
Delmo começou a bater-lhe com os punhos fechados, fazendo-a sangrar. Matilde sorria e exasperava o pai, sussurrando: - Não sinto dor. As tuas pancadas já não me fazem nada. Não volto a fazer isso contigo, nem que me mates. - Ouvia o silvo do vento e recordava as palavras do professor Brasca: - Matilde é um nome de origem celta e significa "possante" na batalha.
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O pai batia-lhe e, por cada murro recebido, repetia a si mesma: Sou Matilde, possante na batalha.
Ele arrancou-lhe o vestido, revelando a frágil nudez sobre a qual se ia lançar até que as forças o abandonassem. Ao despi-la, obrigou-a a fazer uma meia pirueta. Naquele momento, o olhar desesperado de Matilde capturou o olhar atónito de Marco, o irmão mais velho.
Ela estava completamente nua, nos braços do pai, que a impedia de qualquer movimento. Ele estava à porta, de camisola interior e cuecas. Olhava para a irmã e para o pai. Viu o corpo de Matilde coberto de nódoas negras, o sangue que lhe escorria do nariz. E gritou. Foi um grito terrível, que surpreendeu o próprio Delmo.
Matilde aproveitou aquele instante, soltou-se e libertou-se daquele abraço vergonhoso. Caiu da cama, arrastando consigo a pesada colcha de algodão, na qual tentava envolver-se. Marco continuava a gritar, desorientado pela violência com que se deparara. Uma ponta da colcha foi parar à salamandra e começou a arder.
Os vizinhos, perturbados pelos gritos do rapaz, acordaram em sobressalto.
- Fora daqui, desgraçado! - gritou Delmo. E como Marco, petrificado pelo horror, não se mexia, saiu da cama, nu como estava, agarrou-o por um braço, abriu a porta de casa e empurrou-o lá para fora, para a varanda varrida pela ventania.
Matilde atirou para o chão a colcha em chamas e tentou enfiar o vestido que o pai lhe arrancara. O fogo espalhava-se. Os pequenos, acordados pela confusão, correram para a cozinha, aterrorizados.
- Os pequenos! Levem lá para fora os pequeninos! - gritou Matilde.
O ar ia-se tornando acre e irrespirável. O aparador começou a arder. Os vizinhos andavam de um lado para o outro na varanda, indecisos sobre o que haviam de fazer.
Delmo, fora de si com o medo que sentia, injuriava os filhos e batia em Matilde. Diante daquele inferno, desvaneciam-se os vapores do álcool. - Resolveste ridicularizar-me em frente ao bairro inteiro - acusou a filha, aos gritos.
Barbarina e o violinista Tamponi foram os primeiros a recuperar
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um mínimo de sangue-frio - Tragam água! Toda a água que tiverem em casa - ordenou o artista.
- Vou procurar um telefone para avisar os bombeiros - disse Barbarina.
Tinha posto um xaile por cima da camisa de noite e desceu as escadas a correr, seguida de outros que transportavam baldes para encher na fonte.
- Vão lá para fora, meninos. Fora! Lá para baixo! Para a rua
- gritava Matilde, preocupada em ver se todos os irmãos saíam da cozinha.
- Porca nojenta, olha a confusão que foste arranjar - gritou Delmo, agarrando-a por um braço, preparado para lhe dar um murro na cabeça. Tinham ficado sozinhos na cozinha cheia de fumo e de chamas. Matilde só pensava em fugir, para se pôr a salvo, mas não conseguia libertar-se do aperto do pai. Então, com a mão livre, agarrou no pesado ferro de brunir que estava em cima da salamandra, fê-lo rodar por cima dela e acertou na cabeça de Delmo, que rachou como uma melancia de Agosto.
A mão do homem, que lhe prendia o braço, abriu-se como uma mola partida. Finalmente livre, Matilde chegou até à porta e abandonou-se nos braços de alguém que a socorresse.
Os bombeiros chegaram com potentes jactos de água. O prédio inteiro foi evacuado. Não houve feridos. Só alguns intoxicados pelo fumo. E um morto: Delmo Riva.
O Corriere delia Será tomou conta da notícia, que publicou com abundância de pormenores. Falava-se sobretudo do infortúnio que perseguia uma ninhada de irmãozinhos a quem tinha primeiro morrido a mãe, afogada no Naviglio, e agora o pai, perecido entre as chamas, na generosa tentativa de pôr os filhos a salvo. Os pobres restos carbonizados do homem tinham sido piedosamente recolhidos e enterrados. Do velho edifício do corso Garibaldi, só o quarto andar foi considerado inabitável. Os inquilinos, Barbarina e o violinista incluídos, mudaram-se para outro sítio. As crianças Riva foram todas internadas no hospital. Matilde estava em péssimas condições. Tinha queimaduras graves na mão direita, uma fractura no braço esquerdo, equimoses por todo o corpo e uma febre altíssima. Delirava, e repetia: - O vento já tinha dito que aquilo ia acabar assim.
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Na cama do serviço de pediatria foi cuidadosamente assistida pelo professor Alberto Brasca, que acabara de chegar de Roma. Tinham-na transferido para ali do serviço de urgência, depois de alguma medicação sumária. Entre as notas relativas à paciente Matilde Riva, estava referida a desfloração. O médico desesperou para conseguir salvá-la.
Matilde esteve entre a vida e a morte durante muitos dias. Brasca lembrava-se dela e fez tudo o que foi possível para a ajudar. Matilde salvou-se. Dois meses depois, quando ficou completamente curada, levaram-na para o asilo Angiolina. Os irmãos mais velhos tinham sido acolhidos no Martinitt, o orfanato masculino da cidade. Os mais pequeninos foram adoptados por uma família.
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Matilde respirava um novo ar entre aquelas paredes antigas. No asilo Angiolina tinha finalmente encontrado a paz. Tinha um quartinho só para ela, contíguo ao da regente, num sector afastado da grande villa que albergava aquela gloriosa instituição. Disseram-lhe que aquela espécie de isolamento era provisório. Em seguida, depois de uma atenta avaliação do seu caso, passaria a porta de comunicação com o asilo propriamente dito. Entretanto tinha-lhe dado livros para ler e um bordado para fazer, para que pudesse ocupar o seu tempo.
Entre umas páginas lidas e uns pontos desconexos, Matilde recebia a visita de dois assistentes que, interrogando-a, tentavam reconstruir os pontos mais importantes da sua história de vida.
Matilde defendia com obstinação os seus tremendos segredos. Quanto ao resto, era uma hóspede modelo. Cumpria docilmente as regras impostas, respeitando os momentos da oração, tratando com cuidado da sua higiene pessoal e da limpeza do seu quarto e comendo com apetite. Falava facilmente da mãe, dos irmãos, da escola e do trabalho. Ignorava as perguntas sobre o pai e aquelas que, de alguma maneira, tinham a ver com o seu passado recente.
A personagem mais relevante na villa da via Vincenzo Monti era Anna Lucchini, directora e fundadora do asilo. Mulher de um médico famoso, amiga de socialistas iluminados como Filippo Turati e Anna Kuliscioff, a idosa senhora batia-se há anos pelos direitos das mulheres vítimas de violência.
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No seu asilo acolhia meninas e raparigas que tinham conhecido os aspectos mais cruéis e ferozes da vida. Órfãs, ladras, mendigas, mitómanas, mentirosas, alcoólicas. Com o apoio de professores, médicos e voluntários, conseguiam às vezes ter um futuro. Algumas falavam de bom grado das suas experiências, denunciando os responsáveis pelos ultrajes sofridos. Matilde não fazia parte desse grupo e opunha uma resistência tenaz a qualquer tentativa de contar a sua história.
No hospital, uma consulta minuciosa e delicada tinha evidenciado a tareia e os abusos sofridos. O nome do violentador permaneceu na sombra.
As notícias recolhidas sobre a pequena hóspede revelavam um pai violento que a tinha tirado da escola para a pôr a trabalhar. As vizinhas falavam de Matilde como sendo uma menina exemplar, muito responsável para aquela idade tão jovem. Barbarina traçou o perfil de Delmo Riva como sendo um bêbedo que batia na filha sem piedade e sem motivo, uma vez que a pequena tratava da casa e dos irmãos com um forte sentido do dever. Serafina Lovati, a dona da engomadaria, exaltava o esmero, a honestidade e a compostura de Matilde, e confirmava as tareias. A professora considerava-a uma aluna diligente, com notáveis capacidades de aprendizagem.
- É possível que o violador tenha sido o pai. Mas nunca chegaremos a ter sobre isso alguma certeza, uma vez que a Matilde não fala - disse a regente a Anna Lucchini. O silêncio da rapariga exasperava-a.
- Mande-a ter comigo. Vou tentar abrir alguma brecha naquele mutismo - decidiu a directora.
Uma professora acompanhou a menina até ao escritório, que ficava no rés-do-chão da villa. Depois deixou-as a sós.
Matilde aproximou-se da secretária onde Anna estava sentada. Era a primeira vez que se encontrava diante da directora e sentiu-se prisioneira.
Anna tinha os cabelos brancos e macios separados por uma risca ao meio e apanhados na nuca num pequeno carrapito. Os olhos profundos, o nariz marcado e os lábios finos desenhavam um temperamento voluntarioso. A rapariga ficou fascinada com um alfinete de ouro em forma de flor, com incrustações de pérolas, que
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fechava o colarinho do vestido severo de seda azul que a directora trazia.
Anna esperou que Matilde acabasse a minuciosa inspecção da sua pessoa e do escritório onde se encontrava. A rapariga observou o tecto coberto de frescos, as paredes forradas de tecido vermelho-escuro com grandes flores amarelas, uma mesa redonda que ostentava uma jarra com narcisos acabados de colher, o tampo da secretária cheio de papéis, pequenos objectos decorativos e um telefone de baquelite preta.
- Bom-dia, Matilde. - Anna decidiu quebrar o silêncio. - Como estás? - perguntou logo a seguir, com um sorriso tão doce que Matilde nunca mais havia de o esquecer.
A pequena esboçou uma espécie de vénia e respondeu desastradamente ao cumprimento. Vestia uma farda comum a todas as alunas: uma bata azul-celeste solta na cintura, com as mangas compridas, arregaçadas, que apertava atrás com uma fila de botões.
- Senta-te no sofá - sugeriu Anna. Matilde obedeceu.
- Sabes quem eu sou? - perguntou Anna. Era uma maneira banal de começar a conversa, mas era certamente a mais acessível para a rapariga, que anuiu mais uma vez com um gesto de cabeça.
- Dizem-me que te recusas a contar a tua história - disse Anna.
- Dizem a verdade - confessou ela.
- Gostas de estar aqui?
- Não sei. É um sítio novo.
- Mas não é uma prisão. Não és obrigada a ficar.
- O que é que isso quer dizer? - perguntou, desconfiada.
- O que eu disse. Se não te agrada, podemos procurar juntas outra solução - propôs Anna, com carinho.
- Para onde é que eu podia ir? Já não tenho casa, nem família. Haverá outro lugar para uma rapariga como eu? - perguntou.
- Há o Nazareth, o Bom Pastor...
- Qual é a sua opinião?
- Não tos aconselho. Este sítio é certamente o melhor. Matilde passou a mão pela cabeça. No hospital tinham-na rapado completamente. Agora o cabelo já começara a crescer mas
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estava curtíssimo, e quando olhava para o espelho achava-se parecida com uma alcachofra.
- Tiveste algumas dificuldades com as assistentes. Eu entendo-te, mas a tarefa não é fácil. Cada rapariga que aqui está dentro é um caso especial. Tu também és um caso especial - prosseguiu Anna.
Matilde olhava para ela impávida e orgulhosa, e continuava calada. Considerava que ser um caso especial era melhor do que nada. Era isso que ela gostaria de dizer àquela senhora tão meiga. Era verdade que à noite se deitava sem tremer, porque já lá não estava o pai para lhe perturbar as noites. Mas gostaria de lhe explicar que sentia a falta dos irmãos, dos vizinhos, do mundo que conhecia. Sentia-se desorientada naquela realidade estranha, sem pontos de referência. A comida era boa, o quarto limpo e confortável, mas sentia-se desesperadamente só.
Como se tivesse adivinhado os seus pensamentos, a directora prosseguiu: - Sentes-te abandonada por toda a gente, não é verdade? Eu acolhi-te na minha comunidade porque houve um benfeitor que te recomendou - anunciou, e esperou uma reacção.
O olhar da rapariga iluminou-se.
- Refiro-me ao professor Alberto Brasca. Sei que te conheceu antes daquela desgraça. Disse-me que, nessa altura, tinha visto no teu corpo as marcas das tareias que apanhavas. Tratou-te também enquanto estiveste no hospital. Não sabes disso porque estavas muito mal. Por atenção àquele grande homem, eu vou ter para contigo uma solicitude especial. Mas tu vais ter de me ajudar - disse Anna.
- Vou fazer o melhor que puder - prometeu Matilde.
- Muito bem. Amanhã vou a Bolonha e só regresso a Milão na semana que vem. Até essa altura continuas em isolamento, porque antes de te inserir num programa preciso de te conhecer melhor. Entendes, não é verdade?
Matilde entendia e não se importava de ficar sozinha.
Do jardim chegavam as vozes infantis de uma dança de roda e os gritos alegres das raparigas que brincavam ao te-ghe-l'et. Era um jogo que desenvolvia os reflexos e consistia em dar um empurrão a uma companheira gritando: "Te-ghe-l'et" para depois fugir rapidamente à pancada que se recebia em resposta. Matilde conhecia bem
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aquele jogo, que era o seu divertimento preferido nas horas de recreio, na escola, até porque era rapidíssima e ganhava quase sempre. Mas agora não lhe apetecia jogar. Desejava, com todas as suas forças, a sua casa, os irmãos, Barbarina e o professor Brasca, que a tinha tratado e lhe revelara o significado do seu nome. Porém, agora que sabia que lhe devia a ele a hospitalidade naquele asilo, estava incerta entre a gratidão e o desengano. O orfanato era um sítio feio e seria o único refúgio possível, depois de ter perdido a casa e os pais. Mas o asilo Angiolina era quase uma marca de infâmia, na opinião das pessoas, porque recolhia sobretudo "as raparigas perdidas". Apesar de tudo, ela não se identificava com aquela categoria. Por isso não lhe desagradava a ideia de ficar sozinha.
- Continuamos a nossa conversa noutra altura - concluiu Anna. E prosseguiu: - Entretanto podes ler, bordar e cumprir as tarefas que receberes da signorina Alberta. Se quiseres, podes escrever uma carta ao professor Brasca. Acho que ele ia ficar contente por receber notícias tuas - sugeriu, quando se despediu dela.
Matilde passou mais dois dias no recolhimento do seu quarto. A mão queimada não tinha recuperado totalmente a mobilidade, e bordar cansava-a muito. Às vezes aborrecia-se e ficava deitada na cama, imóvel. Então os pensamentos voavam como pássaros enlouquecidos. Recordava o vento norte com o seu presságio de desventuras, as chamas e o fumo que invadiram a casa, os irmãozinhos aterrorizados e o pai a bater-lhe no quarto em chamas e a tentar impedi-la de fugir com os outros. Não se lembrava como tinha conseguido libertar-se dele, mas sentia que a sua morte não lhe provocava nenhuma dor.
No domingo decidiu escrever a carta ao professor Brasca. Não sabia como começar, pois nunca tinha escrito uma carta. Lembrava-se, por ouvir dizer, que era preciso começar com um "Excelentíssimo Senhor". Gostava muito daquele "excelentíssimo" e por isso escreveu-o com uma convicção absoluta. Se lhe faltava o desejo de falar, o de escrever nascia impetuoso da pena que ia mergulhando no tinteiro.
De repente ouviu um lamento débil que provinha do quarto ao lado.
No sossego da tarde dominical, quase de Verão, aquele gemido tinha algo de inquietante. Foi até à porta do quarto ao lado e bateu.
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Não obteve resposta. Empurrou o puxador e, na penumbra, viu uma menina encolhida na cama.
- Estás doente? - perguntou Matilde, sem se decidir a entrar.
- Dói-me a cabeça - respondeu a vozinha débil. Havia muitos frascos de medicamentos em cima da mesa-de-cabeceira.
- Queres que peça ajuda? - ofereceu-se Matilde.
- Não é preciso.
Matilde deu uns passos dentro do quarto. Era parecido com o dela: paredes brancas, caminha branca. Algumas imagens de flores. Uma cómoda de madeira. Jarro e bacia para a higiene. A menina, naquela cama cândida, era um ser minúsculo e assustado.
- O que é que tens? - perguntou-lhe.
- Uma doença má - respondeu. - Uma doença de pessoas grandes. Dá-me um bocadinho de água, por favor.
Matilde encheu um copo com água e aproximou-o dos lábios gretados da rapariga, que bebeu um pequeno gole e a seguir, exausta, abandonou a cabeça na almofada.
- Que doença é? - indagou ainda.
- Sífilis - respondeu a rapariga.
A palavra sífilis metia medo a toda a gente porque era sinónimo de sofrimentos infinitos e de morte. Matilde sentiu um arrepio e olhou para a porta com vontade de fugir. Depois recordou o significado do seu nome. Ela era uma rapariga forte. Não se devia deixar vencer pelo medo. Tinha conseguido, usando a sua força, fugir a Delmo, que a queria deixar morrer. Não se podia deixar assustar por uma pequena doente.
- Chamo-me Matilde. E tu?
- Eu sou a Giulia.
- Quantos anos tens, Giulia?
- Quase nove.
- Eu já fiz onze.
- Também estás doente?
- Agora já estou curada. Mas estive vários dias entre a vida e a morte. É o que dizem, porque eu não me lembro. Mas a minha casa ardeu. Os meus irmãos mais pequenos estão num orfanato e a mim trouxeram-me para aqui. Parece que isto é um bom sítio. A minha mãe morreu no ano passado, nas águas do Naviglio. O meu pai ficou num incêndio - explicou sucintamente.
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- Água e fogo - sussurrou Giulia. - Se o fogo tivesse vindo primeiro, a água tinha-o apagado.
- Já se vê que era o destino - suspirou Matilde, resignada.
- Eu nunca conheci a minha mãe - disse Giulia. - Sou uma filha ilegítima. Quem me criou foi uma mulher muito má que, por dinheiro, me levou para casa de um senhor. Ele atormentou-me muito e deu-me esta sífilis. Internaram-me no hospital da via Lanzone e eu contei tudo aos médicos. Depois aquela mulher foi ter comigo e bateu-me, a jurar que eu só tinha dito mentiras. Mas eu só disse a verdade. Então os médicos decidiram que era melhor mudar para outro hospital, para aquela mulher má não saber onde eu estava. Para já, receberam-me aqui. Estou isolada porque dizem que isto é contagioso. Logo que houver uma cama livre levam-me para a via Pace. Eu acho que lá me vão curar. O que é que tu achas?
- É claro que te vão curar - respondeu Matilde, apesar de saber que não ia ser assim.
- Tu nunca foste atormentada por um homem? - perguntou a menina. Matilde pensou em Delmo e esteve tentada a não responder.
- Sim - respondeu por fim. - Mas ele agora está morto. Eu estou viva e estou bem.
- Eu também ficava contente se aquele senhor morresse. Mas ficava ainda mais contente se morresse a mulher que me criou. Ainda me lembro daquele dia, e já foi há tanto tempo. Eu chorava porque não queria estar na casa daquele desconhecido e ela despia-me. Para eu não gritar amarrou-me as mãos e tapou-me a boca com um lenço. Depois meteu-me na cama daquele homem e foi-se embora. Ela recebeu muito dinheiro. Eu, só a sífilis.
Uma voz severa interrompeu os dramáticos sussurros das duas raparigas.
- Matilde, o que é que estás a fazer aqui dentro? - perguntou a signorina Alberta, a regente.
- Deu-me de beber - respondeu Giulia imediatamente.
- Inconsciente! Vai já lavar as mãos e ai de ti se voltas a este quarto - ordenou a mulher. Estava furibunda com aquela perigosa intrusão no quarto de Giulia.
Matilde baixou a cabeça e saiu. Lavou as mãos, como lhe tinham
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mandado, depois regressou ao quarto e continuou a escrever a carta ao professor.
De vez em quando, encostava-se à parede que a separava da sua pequena amiga e apurava o ouvido. Apenas ouvia o silêncio. Então afagava a parede, por não poder afagar o rosto daquela companheira infeliz.
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Anna Lucchini leu a carta que Matilde escrevera ao professor Brasca. Qualquer mensagem, à chegada ou à partida do asilo, era atentamente analisada, às escondidas das jovens alunas. Era uma maneira criticável, mas eficaz, para conhecer melhor o íntimo de cada uma. As meninas confiavam às suas cartas estados de alma, desejos e nostalgias.
Na mensagem ao professor Brasca, Matilde revelava uma extrema necessidade de afecto e de protecção, assim como o desejo de preencher a sua própria solidão. Era um pedido de ajuda. Não dizia uma palavra sobre a violação, como se a tivesse apagado da memória.
Anna percebera que as brutalidades tinham vindo do pai e esperava que Matilde conseguisse abrir-se naquela carta. Deu um longo suspiro de piedade. A situação psicológica daquela rapariga era realmente dramática, o profundo sentimento de culpa podia ler-se nas entrelinhas. A certa altura, escrevia: "Se eu tivesse sido uma filha submissa, ainda tinha uma casa e os meus irmãos pequeninos."
Havia anos que aquela mulher tentava estimular nas raparigas a consciência da sua própria dignidade e o direito à igualdade com os homens. Muitas vezes era um esforço desperdiçado.
Nas conferências que fazia em Itália e no estrangeiro, nos encontros de feministas, Anna Lucchini falava com entusiasmo da superioridade da mulher sobre o homem, como mãe e pilar de cada família. Expunha os resultados de investigações no âmbito dos
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vários estratos sociais, ensinava às mulheres o respeito por si próprias.
As mulheres entendiam aquela linguagem, apreciavam as suas palavras e aplaudiam-na. Depois regressavam a casa e recomeçava imediatamente a eterna tragédia sob o domínio do amo e senhor.
Se Matilde queria conservar o seu segredo, não seria ela a forçar uma confissão. Mas esperava o momento em que a rapariga se abrisse espontaneamente.
Voltou a fechar o envelope endereçado ao médico. Ia encontrar-se com ele naquela mesma noite, ao jantar, e podia entregar-lhe a mensagem da sua pequena protegida.
Depois mandou-a chamar ao escritório e recebeu-a com um sorvete de limão.
- Já soube - começou Anna - que foste socorrer a pobre da Giulia. Foi um gesto que eu apreciei.
- Onde é que ela está? Nunca mais a ouvi e a signorina Alberta proibiu-me de voltar ao quarto dela - admitiu, pesarosa.
- A regente tem razão. É preciso ter cuidado perante certas doenças. Agora a Giulia está no hospital.
- Posso ir visitá-la? - perguntou Matilde. Tentava aflitivamente tecer qualquer ligação que a fizesse sentir-se menos só.
- Não. Já viste demasiado sofrimento. Eu quero que tu cresças saudável, forte e serena. Quero ver-te estudar e brincar. Por isso, resolvi acabar com o teu isolamento. Hoje vais conhecer as outras alunas e esta noite vais ser transferida para o dormitório. A partir de amanhã tens uma professora particular, aqui do asilo. Se estudares muito ainda podes passar de ano - disse Anna com entusiasmo.
Mas Matilde não se entusiasmou. - Posso ver os meus irmãos?
- perguntou. O resto não lhe interessava.
- Em ti, a voz do coração é mais forte do que qualquer chamamento - observou Anna, considerando que as violências sofridas não tinham prejudicado a capacidade afectiva de Matilde. Vais vê-los muito em breve. Nós aqui nunca queremos separar as famílias. O nosso objectivo, aliás, é o oposto. Mas tens de perceber que estás prestes a iniciar uma vida completamente nova. E espero que seja melhor do que a que tiveste no passado.
As "angiolinas", como eram habitualmente designadas as internas daquele asilo, carregavam aquele nome durante toda a vida.
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Mesmo quando conseguiam aprender uma profissão, casar-se, ter uma vida serena, o asilo Angiolina revestia-as como uma segunda pele. Para as pessoas comuns, uma ex-Angiolina podia recair no pecado a qualquer momento.
- Sim, signora - disse Matilde, baixando a cabeça. E acrescentou: - Muito obrigada pelo sorvete. Nunca tinha provado.
- Soube-te bem? - perguntou Anna.
- É brusco - observou. Depois corou porque lhe pareceu que tinha sido pouco delicada.
- Vais aprender que se diz áspero - disse Anna com um sorriso.
Matilde observava-a e apercebia-se de que entre ela e a velha senhora havia um abismo que nunca chegaria a ser ultrapassado. Anna Lucchini pertencia ao mundo dos senhores, como o professor Brasca. Ambos falavam bem, se mexiam com graça, vestiam com uma elegância austera e pareciam olhar de cima para os acontecimentos mais dramáticos, conservando a compostura e a dignidade.
Gostava daquela atmosfera pacata que se tinha criado entre ela e a directora, na tranquilidade do escritório. Mas bastou uma coisa de nada para estragar tudo. A signorina Alberta irrompeu entre elas como um temporal imprevisto.
- Desculpe, signora Lucchini - começou, com uma expressão alarmada.
- O que foi? - perguntou Anna.
- Aconteceu uma coisa... uma coisa...
- Acalme-se, minha querida - sugeriu Anna. - Seja o que for, havemos de encontrar uma solução.
A regente debruçou-se sobre a secretária e sussurrou qualquer coisa ao ouvido da directora.
- Mas tem mesmo a certeza? - perguntou Anna, espantada.
- Leia, signora - disse, e estendeu-lhe um telegrama.
- Oh, meu Deus do céu! Só faltava esta novidade para nos complicar a vida - exclamou a senhora depois de ter lido a mensagem. Logo a seguir captou, pousado nela, o olhar curioso de Matilde e recuperou imediatamente o sorriso. - Podes ir, Matilde disse-lhe. - Eu entendo a tua curiosidade. Se tiveres paciência, vais
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saber, como as tuas companheiras, a novidade que acaba de nos ser anunciada.
A rapariga saiu, fechando atrás de si a porta do escritório. Mas ainda teve tempo para apanhar as últimas palavras de Anna: - É preciso convocar o conselho. Imediatamente.
Pela primeira vez, desde o dia em que chegara, Matilde saiu para o pátio. Era a hora do recreio e foi rapidamente rodeada por uma legião de raparigas barulhentas que estavam vestidas como ela. Uma professora batia palmas para as fazer entrar na ordem.
- Apresento-vos a Matilde - anunciou. E acrescentou: - Recebam cordialmente a vossa nova irmã.
Naquele dia, Matilde conheceu Maria, Cecília, Tosca, Iside, Olga, Pinuccia, Roberta e muitas outras raparigas desafortunadas como ela. A mais pequena tinha seis anos e fora entregue ao asilo pela mãe, que a acusava de ser preguiçosa, mentirosa e glutona. Era claro que a mulher, viúva e com mais quatro filhos para manter, se queria livrar dela. A directora aceitara-a sabendo que, pelo contrário, era uma menina normal, mas ilegítima. E pareceu-lhe necessário retirá-la à péssima influência da mãe. A mais velha tinha dezasseis anos. Chamava-se Orietta. Tinha sido confiada aos cuidados do asilo por um polícia que lhe deitou a mão quando ela tentava seduzir homens na via Torino. Tinha nessa altura doze anos. Vivia há quatro naquela comunidade e tinha-se revelado uma rapariga alegre, carente de comida e de afecto e com inclinação para o estudo.
Orietta tomou imediatamente conta de Matilde. Pegou-lhe na mão e afastou as outras companheiras com um gesto imperioso de mestra. - Agora vou-te explicar como funcionam as coisas aqui dentro - anunciou, ao mesmo tempo que a conduzia para o interior da villa. Começou a expor-lhe os programas do asilo, as características mais evidentes de cada interna, as peculiaridades da signorina Alberta e das professoras, a bondade da directora e as expectativas que a boa senhora depositava em cada uma das suas protegidas.
- Vais perceber depressa as coisas que há para fazer durante um dia. Não temos só de ir à escola. Por turnos, tratamos da cozinha, das limpezas, da barrela e do ferro. Há grupos que estudam música, outros que fazem bordados. Aprende-se a tricotar e a fazer a nossa roupa. Lê-se muito, escrevem-se poemas e preparam-se os exames do fim do ano - explicou Orietta, cheia de entusiasmo.
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- Eu não vou conseguir fazer nada disso - disse Matilde, alarmada.
- Vais aprender, como todas nós. Com algumas excepções. Sabes, entre nós há algumas atrasadas - disse em voz baixa.
- Eu vou ser uma delas - garantiu Matilde.
Quando se aproximaram da cozinha, que ficava na meia cave, ouviram o som de pancadas fortes e regulares.
- Oh, meu Deus, lá estamos nós outra vez! - suspirou Orietta, acelerando o passo. - Agora é que tu vais ver o que significa ser atrasada - anunciou, ao mesmo tempo que abria a porta da cozinha e se enfiava, de gatas, por baixo da grande mesa central onde uma rapariguinha, toda encolhida, batia com a cabeça contra a madeira. Agarrou-a por um braço, obrigou-a a sair da posição em que estava e arrastou-a até à bancada.
- Pega numa toalha - ordenou Orietta a Matilde. Entretanto
abria a torneira, forçando a rapariga a manter a cabeça debaixo do jacto de água que lhe encharcava a testa.
- Está a sangrar - observou Matilde, aflita.
- Claro. Assim que a gente a perde de vista, começa a bater com a cabeça até ficar atordoada - explicou, ao mesmo tempo que pegava na toalha e a apertava contra a testa molhada da menina.
- Por que é que ela faz isso? - perguntou Matilde.
- Diz tu, Dorina. Explica à Matilde por que é que estás sempre a bater com a cabeça - ordenou Orietta com uma voz áspera.
Dorina tinha oito anos, o rosto gorducho, os cabelos muito loiros e o olhar triste. - É para fazer entrar o juízo - afirmou com uma voz rouca, esboçando um ligeiro sorriso.
- Não percebo - disse Matilde, muito pesarosa.
- O meu pai diz que eu não tenho juízo e bate-me sempre na cabeça para o fazer entrar. Agora já não estou com o meu pai e tenho de o fazer sozinha. Assim, um dia vou ficar inteligente como as outras - explicou com extrema seriedade, sem se preocupar com a ferida que ainda sangrava.
- Viste? Esta é uma das atrasadas que vivem aqui. O juízo nunca lhe vai entrar na cabeça, como é evidente. Em compensação, mais cedo ou mais tarde vai-se matar - explicou Orietta com convicção. Depois virou-se para Dorina: - Por hoje já bateste que chegasse. Agora podes ir para o recreio brincar.
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- Achas mesmo que chega? - perguntou Dorina.
- Garanto - afirmou a companheira.
A pequena afastou-se, satisfeita, deixando Matilde cheia de pena de Dorina. Mas a torrente de palavras com que Orietta a assaltou não lhe permitiu abandonar-se a outras reflexões.
- Logo à noite estou de serviço na cozinha e tu vais-me ajudar. Há batatas para descascar, espinafres para lavar e legumes para cortar. Depois fervemos o leite para fazer um creme de ovos. Se nos sobrar açúcar, cobrimos com caramelo. A cozinheira trata do resto. Deve estar a chegar. Aqui cozinha-se muito bem. Nunca falta um doce. Nem carne. A signora Anna dá muita importância à comida e tem razão, porque a fome é um animal feroz. Eu sei, porque já experimentei - explicou.
- Também eu - respondeu Matilde.
Naquele momento tocou uma campainha cujo eco invadiu os corredores, as salas e o jardim.
- A campainha, a esta hora? - interrogou Orietta. - Isso quer dizer que há uma reunião extraordinária. O que é que terá acontecido? Temos de ir já para o átrio - acrescentou, enquanto limpava os braços que tinha mergulhado até ao cotovelo numa bacia de água em que estava a lavar os legumes. Matilde levantou-se de um salto, abandonando o balde com as batatas para descascar, e seguiu a companheira.
O átrio da villa, iluminado pelo sol poente, estava já repleto de raparigas a falar alto". Anna Lucchini, que tinha ao lado a regente e as professoras, estava muito direita, a meio das escadas, à espera que se fizesse silêncio.
Deixou vaguear o olhar sobre as quarenta raparigas, que a observavam com olhos atónitos e curiosos.
- Hoje chegou um telegrama de Roma - começou. - O secretário particular da rainha Elena de Sabóia comunicou que Sua Majestade nos vem visitar.
Nasceu um murmúrio de incredulidade, imediatamente apagado com um gesto da directora.
- Como todas sabem, o asilo Angiolina goza de uma boa reputação. Penso, portanto, que a nossa soberana queira ver pessoalmente como funciona esta instituição. Estão dispostas a colaborar para o sucesso desta atenção real? - perguntou-lhes.
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As raparigas ficaram em silêncio, como se não tivessem captado a importância daquele acontecimento. Os soberanos de Itália pertenciam a um mundo inatingível, quase irreal. Os seus retratos estavam expostos em todas as escolas e nas repartições públicas, mas eram considerados pelas pessoas comuns ao nível das imagens dos santos.
Anna conhecia bem as suas meninas, intuiu o motivo daquele silêncio e disse: - Percebo que a notícia vos tenha apanhado de surpresa. Garanto-vos que também me surpreende a mim. O governo sempre se interessou pouco por nós. De qualquer maneira, temos uma semana para nos prepararmos para receber a rainha e mais alguém do seu séquito. Não vamos fazer nada de especial, até porque não queremos alterar a nossa realidade. Quero dizer com isto que não precisam de se vestir de festa, nem de ostentar coisas preciosas que não têm. Mas vai ser preciso prestar homenagem à rainha. Se o bom tempo nos ajudar, organizamos um lanche no jardim. Preparamos uma pequena exposição dos vossos trabalhos, e quem sabe se não nos vai cair algum dinheirinho no bolso. Por agora é tudo.
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O professor Alberto Brasca estava a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar da sua casa, na via Verdi. Passava pouco das sete horas da manhã e a rua ainda estava silenciosa. A claridade do dia que acabava de nascer era demasiado fraca para lhe permitir a leitura do jornal diário que o mordomo lhe deixara em cima da mesa. A luz do candeeiro de Murano dava-lhe alguma ajuda mas, mais do que tudo, precisava de óculos. Adiava mês após mês essa aquisição, na convicção de que, aos quarenta e cinco anos, ainda era cedo para ceder à presbiopia. Enquanto saboreava pedaços de pão fresco barrados com manteiga, depois de os ter mergulhado num ovo à la, coque, passou em revista os títulos das notícias, a necrologia e os anúncios publicitários, e deteve a sua atenção nas páginas de política. Num artigo extenso exaltavam-se os vanguardistas e os jovens balilla1 que se tinham reunido nos montes do Trentino, sempre queridos à pátria. Noutro, ilustrado com fotografias, contava-se com abundância de pormenores a presença de Mussolini, chefe do governo, nas manobras navais de La Spezia. Como sempre, o jornal fazia propaganda da imagem de uma Itália onde reinavam a serenidade, o progresso, o bem-estar e o amor pela pátria. A realidade, porém, era diferente e preocupante. Alberto Brasca, que passava os dias nos corredores do hospital, apercebia-se do abismo que
1 Sob o fascismo, nome dado aos rapazes entre os oito e os catorze anos organizados em formações de carácter paramilitar. (N. da T.)
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separava as mentiras do regime da verdade dos factos. Os operários continuavam a ser mal pagos e trabalhavam em condições precárias. O número dos desempregados aumentava, a lei dominante era a do mais forte, a beneficência pública não era capaz de dar respostas concretas à miséria crescente. Brasca e os seus amigos começavam a alimentar dúvidas sobre o facto de o governo fascista poder reerguer os destinos de uma nação deixada de joelhos pela guerra mundial e que, à distância de dez anos, ainda não se tinha levantado.
Voltou a fechar o jornal com uma sensação de aborrecimento. Deitou na chávena de porcelana bávara o café muito quente e começou a saboreá-lo, ao mesmo tempo que chegavam até ele as badaladas do grande relógio na sala da entrada. Entoando as notas do Big Ben londrino, o relógio anunciava o fim da sua meia hora de solidão, a melhor do dia.
A mulher ia continuar a dormir por muito tempo ainda. Os filhos, que como sempre, iam faltar às aulas na universidade, seguiam o exemplo da mãe. Mas os doentes estavam à espera dele e ele queria vê-los, um a um, porque sabia de que maneira as suas palavras ou um gesto afectuoso eram importantes para eles.
Alberto era um homem atormentado. Carregava consigo, desde sempre, um sentimento de inquietação, de insatisfação, cuja origem ignorava mas que, nos raros momentos de ócio, se impunha e o esmagava. Era rico e cheio de fascínio. Poderia perfeitamente, como sempre tinham feito os homens daquela família, viver dos rendimentos, administrando o património dos Brasca. No entanto, quis estudar Medicina, "para ter alguma coisa que fazer", como ele próprio dissera. Rapidamente se apercebeu de como os mais desfavorecidos tinham necessidade de ajuda. A amizade com os expoentes do socialismo mais iluminado abriu-lhe novos horizontes sobre mundos que os Brasca sempre tinham preferido ignorar. Aos vinte e dois anos casou com Lucetta Carini, uma jovem aristocrata de Piacenza, que durante algum tempo lhe envenenou a existência com os seus caprichos e numerosas infidelidades. Agora a mulher, que tinha a mesma idade que ele, começava a murchar, enquanto ele continuava a ser um homem vigoroso e bonito. Os cabelos salpicados de prata, a fama profissional e a capacidade de se dedicar ao sofrimento dos outros contribuíam para aumentar o seu fascínio.
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Muitas mulheres suspiravam por ele. Às vezes, Alberto retribuía as atenções que elas lhe dispensavam, desencadeando a ira de Lucetta que, sabe-se lá como, conseguia estar sempre bem informada e, como acontece com muitas pessoas infiéis, só aceitava as transgressões num sentido: o próprio.
Sentiu um contacto agradável numa perna. Baixou a mão e afagou o pêlo fulvo de Nestore, um cão rafeiro encontrado na rua que, há alguns anos, se tinha tornado o seu companheiro fiel.
Era um animal de hábitos, extremamente respeitador dos horários. Indicava-lhe agora que tinha terminado o tempo do pequeno-almoço e esperava a recompensa habitual. - São horas. Já sei
- concordou Alberto, estendendo-lhe um pedaço de pão. O cão segurou-o delicadamente na boca e devorou-o, seguindo o dono que entretanto saiu da sala de jantar.
No quarto de vestir, Celestino esperava-o com o barbeiro. O mordomo tinha já preparado a roupa que o patrão ia vestir, enquanto o barbeiro fazia crescer a espuma de sabão dentro de uma taça esmaltada, mexendo-a rapidamente com o pincel da barba.
O médico instalou-se na poltrona e Nestore aninhou-se aos seus pés. A clientela de Arno Salviati, assim se chamava o mestre da barbearia, vivia no perímetro compreendido entre a piazza San Babila, a piazza Cavour e a piazza delia Scala. O professor Brasca era o cliente mais madrugador. Na sua peregrinação quotidiana, de casa em casa, Arno recolhia retalhos de vida das pessoas mais ilustres, transformando-os em crónica de salão que, muitas vezes, raiava a pura fantasia. Para o professor reservava o resumo do dia anterior.
Com gestos rápidos e experimentados passava o fio finíssimo da navalha Puma pelas faces do médico, erguendo o dedo mindinho, apetrechado de uma unha compridíssima, sinal de extrema distinção. Enquanto o barbeava, tagarelava sobre o litígio entre duas damas que se tinham encontrado no teatro exibindo um chapelinho idêntico. Contava em pormenor a fuga amorosa de um conhecido banqueiro com uma bailarina. Actualizava-o sobre as dívidas de jogo do director de um jornal ou sobre a intriga sentimental entre uma dama de caridade e um prelado da Cúria. Arno sabia tudo de todos. Falava em voz baixa, incessantemente.
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Alberto fechava os olhos e fingia ouvir aquela conversa, enquanto se abandonava aos seus próprios pensamentos.
Recordou a noite anterior, passada com Anna Lucchini e o marido, que tinha sido seu professor de Fisiatria, e com outros amigos. Tinham-se reunido em casa dos Lucchini para jantar, com o prazer de se encontrarem entre pessoas com afinidades entre si e que gostavam de discutir os assuntos que mais os apaixonavam: a política, a sociedade, a ciência. Anna referira-se de fugida, quase com relutância, à visita anunciada pela rainha.
- Alguém lhe deve ter sugerido que a nossa instituição não pode ser ignorada pelas autoridades - observou.
- Vai fazer como o Mussolini: veio, fez grandes promessas e depois ficou tudo na mesma - recordou o professor Lucchini.
- Tratando-se de Sua Majestade, é possível que avance com uma doação - interveio um dos convivas.
- Não tenho grandes ilusões - declarou Anna, com o habitual sorriso complacente. - Os nossos soberanos conhecemos nós bem. Defini-los como parcimoniosos seria um eufemismo.
- Aquela visita é, em qualquer caso, um bom veículo propagandístico. Podia ser uma maneira de levar os jornais a falar do asilo e aumentar o círculo de benfeitores - sublinhou o professor Lucchini.
- Espero bem que assim seja. O dinheiro nunca chega para as minhas meninas. Este Verão gostava de as poder mandar para a praia. O Mussolini preocupa-se muito com os filhos dos trabalhadores, mas não mexe uma palha para as filhas de ninguém - acrescentou Anna. E naquele momento lembrou-se da cartinha de Matilde. Levantou-se da mesa para a ir buscar e entregou-a a Alberto, antes de se despedir.
- Como está a pequenita? - perguntou ele.
- Muito bem. O nosso médico achou que ela estava em óptima forma - respondeu Anna.
- Sabes muito bem que não é disso que eu falo. - Alberto tinha metido a carta no bolso.
- Está como pode. Tem um carácter muito forte. Não quer falar dela. Não vai ser fácil fazê-la recuperar - concluiu Anna.
Enquanto o barbeiro lhe lavava o rosto barbeado com um
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paninho quente, prometeu a si próprio ler a carta de Matilde. Ia fazê-lo nessa mesma noite. Agora tinha mesmo de ir para o hospital.
Algumas horas mais tarde, Lucetta Brasca acordou. A criada anunciou-lhe a chegada da massagista. Depois da massagem tomou um banho e a seguir o pequeno-almoço. Enquanto mergulhava um biscoito no café com leite, percorria os títulos do jornal que o marido já folheara, detendo a sua atenção nos programas teatrais, nas poucas notícias mundanas e nas crónicas do mundo do cinema. Depois fez as perguntas rituais à criada:
- Quem telefonou? Chegou o correio? Flores? Telegramas? Os meninos já saíram?
Obteve respostas satisfatórias. Nesse momento começou a vaguear pela casa, completamente entediada. Era deprimente não ter umflirt com tanto tempo à disposição. Precisava absolutamente de arranjar um novo amante apesar de, atendendo à idade, a empresa se estar a tornar cada vez mais difícil.
Entrou discretamente no escritório do marido. Era um aposento austero, cheio de livros, na sua opinião ilegíveis. Pairava ali um perfume de couro antigo de que ela gostava muito.
Sentou-se no cadeirão atrás da secretária e começou a divagar. Lamentava não ter sabido, quando era tempo, apreciar os aspectos positivos de um companheiro como Alberto. Poderia ter casado com ele por amor, mas tinha-o feito por despeito, estando apaixonada por outro que a tinha deixado. Quando percebeu que Alberto era o melhor dos homens possíveis, aquela união estava já definitivamente quebrada. Agora que a beleza dos anos de juventude já não a segurava, media o poço profundo da sua própria solidão e encarniçava-se contra as esporádicas infidelidades de Alberto, por falta de outros argumentos que a ajudassem a sobreviver. Começava a perceber que não tinha conseguido dar um sentido à sua existência e dava-lhe jeito atribuir todas as culpas ao marido, acusando-o de ter amado mais a profissão do que a mulher, de se ter dedicado aos seus doentes em vez de se ocupar da família.
Passou em revista as cartas que se tinham acumulado sobre a secretária e reparou num envelope endereçado ao marido e preenchido com uma caligrafia infantil.
Abriu-o e leu a carta.
- Que história indecente - sussurrou.
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Quem seria aquela Matilde que escrevia a Alberto com tanta confiança? De uma rapariga do asilo Angiolina não havia nada de bom a esperar.
- Pequena nojenta - comentou, ao mesmo tempo que fazia a carta em pedaços e a atirava com raiva para o cesto dos papéis.
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Matilde gostava muito da companhia de Dorina e da simplicidade com que elaborava pensamentos singulares e profundos, distantes dos esquemas comuns, que revelavam o dom de uma imaginação fervilhante.
O anúncio da visita da rainha tinha suscitado em todas as "angiolinas" apreensão, agitação e as mais incríveis fantasias.
Matilde esperava encontrar uma senhora altiva, tal como a via nos retratos oficiais, com um manto de seda debruado a arminho e a coroa de diamantes, e imaginava que ela tivesse na mão um ceptro brilhante idêntico à varinha mágica de uma fada. Falou nisso a Dorina.
- Se a rainha quiser, com um toque da varinha transforma-nos a todas em princesas - disse-lhe.
- Eu não quero ser princesa. Prefiro ser transformada numa abelha. Assim posso voar de flor em flor e chupar muito mel, como a rainha - replicou Dorina.
- A rainha não chupa o mel - corrigiu Matilde.
- Ai isso é que chupa. E também voa. Voa baixinho, mas nunca pousa os pés na terra, porque não tem pés. As rainhas não têm pés porque não podem pisar o lixo do chão. Em vez disso, têm duas pequenas asas que as seguram no ar. Se a rainha tivesse pés era uma pobrezinha como nós. E também não vai à retrete - explicou Dorina. - Nem sequer sabe que há retretes.
- Mas, se ela come... - duvidou Matilde.
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- Ela alimenta-se de uma papa real. São as abelhas que a preparam para ela. Quando está a dormir, elas pousam-lhe nos lábios e dão-lhe de comer - garantiu a pequena tonta.
- Se é assim, podes-me explicar por que é que a cozinheira está desesperada a preparar sorvetes e bolinhos para oferecer à soberana e ao seu séquito?
- Porque assim manda a boa educação. Ela vai olhar para os sorvetes e para os bolinhos e vai dizer: "Que bonitos são!" mas nem lhes vai tocar - explicou com uma convicção absoluta.
A ideia de uma rainha alimentada por abelhas com uma papa real, que por não ter pés não chegava a tocar no chão, que não frequentava locais desagradáveis como a retrete, agradava imenso a Matilde. Por isso se convenceu de que Dorina sabia muito mais do que as outras todas.
Teve de reconhecer o engano quando a soberana fez a sua entrada no jardim do asilo, com mais quatro damas e alguns dignitários atrás dela. Não só caminhava como toda a gente, como também era evidente que os sapatinhos de pele escura lhe ficavam apertados, tanto que o saibro do caminho lhe provocou um esgar de desconforto e, por fim, se deixou cair com uma evidente sensação de alívio num cadeirão de vime. Ao sentar-se, ergueu uma ponta do casaco de seda cinzenta às florzinhas azuis, revelando umas ancas roliças que davam bem a entender o prazer que sentia em comer.
Matilde deu a Dorina um beliscão para lhe comunicar o seu próprio desapontamento. Dorina tinha os olhos cheios de lágrimas de desilusão. Deu um passo para fora da fila, onde estava alinhada com as companheiras, e começou a correr vertiginosamente em direcção ao fundo do jardim. Chegou ao portão e começou a dar cabeçadas no pilar de cimento que o sustinha. Orietta e uma das professoras foram ter com ela para tentar impedir que se magoasse, enquanto a rapariga repetia: - O meu pai tem razão. Mas o juízo, mais cedo ou mais tarde, vai ter de entrar nesta minha cabeça tonta.
No entanto, a fuga imprevista da pobre Dorina acabou por aliviar a tensão de um encontro demasiado rígido. Naquela ocasião, as regras férreas da etiqueta dissolveram-se, ao mesmo tempo que as senhoras e as meninas se abandonavam à naturalidade dos modos e da linguagem.
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Matilde ofereceu à rainha um raminho de lírios-do-vale. Recebeu em troca uma carícia e umas palavras incompreensíveis.
O grupo real visitou as salas do asilo, o dormitório, a biblioteca e a cozinha. Os trabalhos de costura e os bordados das alunas foram convenientemente admirados e foi aceite de bom grado a homenagem dos pequenos centros executados em crochet. Depois a rainha proferiu um discurso de despedida, em que elogiou o trabalho das educadoras e a vontade das "angiolinas" de se erguerem da condição em que o pecado as tinha precipitado.
Anna Lucchini não apreciou aquele género de retórica e não ficou muito surpreendida com a esmola modesta que foi deixada ao asilo. Estava tudo previsto. No entanto, os jornalistas presentes, com os seus artigos, não deixaram de lembrar que o asilo Angiolina era uma instituição única no seu género e que os sucessos obtidos na reeducação das raparigas difíceis eram de tal modo lisonjeiros que tinham chamado a atenção da soberana.
Quando os ilustres visitantes se foram embora e a vida no asilo retomou o ritmo habitual, Anna respirou de alívio.
Fechou-se no escritório para telefonar ao marido e lhe fazer um resumo da visita. Depois tentou recolher ideias para programar as intervenções mais urgentes. Alguém bateu à porta.
- Entre - disse a directora com uma voz cansada.
A regente estava à entrada da porta, com uma expressão alarmada.
- Não há maneira de acalmar a Dorina. Não será melhor chamar o médico? - perguntou.
- Dê-lhe umas gotas de valeriana - propôs Anna.
- Já dei. Cuspiu-a. Juntámo-nos três para a amarrar à cama e não a deixar magoar-se - explicou.
Dorina estava a tornar-se um grande problema. O médico do asilo tinha sugerido, havia já algum tempo, o internamento num hospital psiquiátrico. Anna recusava aquela solução, alegando que a rapariga não era doida, mas que passaria a ser se a internassem.
Sabia os riscos que corria se Dorina encontrasse a morte dentro dos muros do asilo. Havia muitas instituições que toleravam mal a autonomia económica e religiosa do asilo Angiolina e que se insurgiriam denunciando-a pela incúria e pela incapacidade de gerir uma
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situação tão difícil. Talvez a obrigassem a encerrar para sempre uma estrutura que para ela representava uma razão de viver. O manicómio seria a solução mais simples no caso de Dorina. Mas Anna amava as suas meninas e, até onde fosse possível, batia-se para as salvar. Anna conhecia os traumas que a pequena sofrera em tenra idade. Tinha sido violentada pelos irmãos e por um amante da mãe. O pai batia-lhe porque à noite, em vez de voltar para casa, deambulava pelas ruas à procura de alguém que lhe desse vinho. Um varredor encontrou-a, bêbeda, adormecida nos degraus do Duomo. Levou-a para ali. Foi tratada, desintoxicada e assistida com amor.
- Antes de ser maltratada e violentada, era uma menina como as outras. Construiu umas barreiras mentais para fugir à realidade e se salvar. Tem um espírito muito vivo e, se continuarmos a tratar dela, um dia há-de encontrar o seu equilíbrio - defendia Anna.
Os resultados positivos que a rapariga obtinha nos estudos davam-lhe razão. Aprendera rapidamente a ler e a escrever. Sabia desenhar de uma forma original e gostava de fazer poemas com rima. As crises em que batia com a cabeça eram cada vez menos frequentes.
- Falou com ela? - perguntou Anna à signorina Alberta.
- Não ouve ninguém. Eu acho que isto ainda vai acabar mal
- declarou.
- Minha querida, você é uma óptima regente, mas o seu sentimento da catástrofe é irritante - disse Anna. Levantou-se da secretária. - Vamos lá vê-la - decidiu.
Tinham levado Dorina para um quartinho isolado. Através da porta entreaberta, Anna e Alberta ouviram uma conversa em voz baixa. Pararam a escutar.
- Não é por tua culpa que a rainha é uma mulher como as outras - dizia Matilde.
- É sim senhora - defendia teimosamente a amiga. - É tudo por culpa minha e do juízo que não quer entrar na minha cabeça.
- Aí é que tu te enganas. O juízo já o tens dentro de ti, e está bem guardado. Eu também devia bater nas paredes com esta minha cabeçorra vermelha, porque tinha imaginado a rainha com uma coroa e uma varinha mágica que nos ia transformar em princesas. Depois vi que era só uma velha senhora com um bigode por cima do lábio, nem sequer muito bonita, e até um bocado arrogante.
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A desilusão foi forte e por pouco não comecei a chorar. Mas percebi que aquilo era só fantasia. Agora já sabemos como é uma rainha. Achas pouco? Eu acho muitíssimo. Quantas raparigas para além de nós podem dizer que viram Sua Majestade e perceber que a signora Anna é muito melhor do que ela? - defendeu Matilde.
- Isso é verdade. Se dependesse de mim, eu fazia a nossa directora rainha - comentou Dorina.
Riram-se as duas. Depois a rapariga começou a queixar-se.
- Dói-me muito a testa.
- Acredito. Está inchada e esfolada. Não podes continuar com isso. Prometes-me que não voltas a fazer?
- Não posso prometer, porque não sei quando me dão aqueles cinco minutos de loucura. Mas garanto-te que por hoje estou sossegada. É uma promessa solene. Agora solta-me, por favor.
A directora e a regente resolveram entrar no quarto. - Solta-a, Matilde - ordenou Anna, aproximando-se da menina.
Mudou-lhe o pano frio que tinha na testa, ao mesmo tempo que se reforçava nela a convicção de que o amor podia curar aquela pequena. Disse-lhe: - Hoje vais ter uma grande chávena de chocolate, porque te portaste bem com os nossos hóspedes. E vais ter chocolate todos os dias, se deixares de te magoar.
O asilo era um campo de batalha onde, diariamente, cada um fazia os possíveis por continuar a ter esperança. Mas Anna sabia que, na verdade, era muito mais dura a luta que as suas meninas tinham de travar. Elas lutavam para reencontrar e afirmar a sua própria individualidade, carregando nos ombros o peso de experiências devastadoras. Nem sempre as mais tranquilas eram as que tinham problemas menores. Matilde, por exemplo, tão solícita com as companheiras, tão calma, silenciosa e diligente, na opinião de Anna era uma bomba que podia explodir de um momento para o outro, se ela não conseguisse descobrir alguma coisa que a levasse a abrir-se.
Esperou mais alguns dias. Depois mandou-a chamar. - Tens vontade de ver os teus irmãos? - perguntou-lhe.
- Está a falar a sério? - disse Matilde, incrédula.
- Refiro-me aos mais velhos. Vou combinar um encontro com eles.
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- E os pequeninos? - perguntou. Estava sobretudo afeiçoada aos mais pequenos, porque tinha dormido com eles durante meses, aquecendo-se no seu calor. Apertando-os contra o peito, conseguira sobreviver à violência do pai.
- Para os veres é precisa uma autorização do tribunal, porque agora foram adoptados por um casal muito rico e sem filhos. Mas garanto-te que estão em óptimas mãos - garantiu Anna.
- Isso quer dizer que nunca mais os posso ver - concluiu Matilde, resignada.
- Preferias saber que estão num orfanato?
Matilde não respondeu. Baixou os olhos e conteve um soluço. Não queria chorar em frente de ninguém, nem sequer daquela senhora tão boa e tão generosa.
Foi a signorina Alberta que a acompanhou à gloriosa instituição dos Martinitt.
Os três irmãos mais velhos estavam à espera dela no parlatório. Matilde viu-os e quase não os reconheceu. Tinham as cabeças rapadas, as faces rosadas e bem lavadas, a roupa limpa e sem remendos. Olharam uns para os outros sem saber o que dizer. A regente sentou-se num canto do parlatório e ficou a observá-los.
Matilde estendeu-lhes um pacote de caramelos. Marco, o mais velho, ofereceu-lhe uma rosa escarlate.
- É feita com miolo de pão - explicou. - Fui eu que a modelei. Eles pintaram-na - concluiu, indicando os dois irmãos.
- Vou guardá-la bem - sussurrou Matilde. Finalmente arranjou coragem para fazer perguntas. - Como é que vocês estão? O que fazem? Como se sentem neste colégio? Come-se bem aqui?
Os mais pequenos pareciam ter conservado o bom humor de sempre. Atiraram-se aos caramelos, enquanto Marco, o mais velho, olhou a irmã bem nos olhos e sussurrou: - Eu sei por que foi que não te mandaram para as Stelline. Vi tudo, naquela noite.
- Tudo o quê? - perguntou Matilde, espantada.
- Tudo o que aconteceu. Fizeste bem em acabar com aquilo. Matilde empalideceu. Marco sorriu-lhe. - É um segredo entre
nós os dois. Nunca vou falar disto com ninguém - garantiu. Ela baixou a cabeça, sem encontrar palavras para responder.
- Tenho pena que te tenham mandado para as "angiolinas". Não merecias - acrescentou com ternura.
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Chegados àquele ponto, não tinham mais nada a dizer. Matilde afastou-se com uma sensação de profundo desconforto e desejou que não houvesse mais nenhuma oportunidade para encontrar os irmãos. A recordação de uma noite de Março varrida pelo vento era um tormento demasiado grande para ela.
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Anna quis saber como tinha corrido o encontro entre Matilde e os irmãos.
- Gostaram muito dos caramelos - referiu a regente. - O mais velho disse qualquer coisa à irmã, e depois despediram-se. Não houve lágrimas, nem despedidas dilacerantes. Acho que cada um deles está adaptado à sua nova condição de vida - concluiu, dizendo substancialmente a verdade.
A directora abanou a cabeça, perplexa. - Esta rendição toda não me agrada - sussurrou. Olhou para além da janela do escritório, para o jardim. Matilde estava sentada num banco com um livro escolar no regaço. Tinha de estudar, de fazer os deveres, de aprender de cor os tempos dos verbos. No entanto, o seu olhar perdia-se no vazio.
- Um dia destes levo-a a minha casa - anunciou à regente. A sua casa poderia ser o sítio para convencer a rapariga a desabafar, a libertar-se daquelas recordações terríveis.
O apartamento dos Lucchini ocupava todo o andar nobre de um palácio oitocentista na via Boccaccio. Matilde tinha espreitado para muitas casas de gente rica nas suas andanças de entregas pelas ruas do centro da cidade, mas a residência da directora era diferente. As elegantes tapeçarias claras, os austeros móveis de mogno vermelho encerados, as viçosas plantas em vasos e as estantes cheias de livros criavam uma atmosfera acolhedora e serena.
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Um belíssimo setter irlandês foi ao encontro dela a abanar a cauda em sinal de boas-vindas. Cheirou cuidadosamente a rapariga e depois, sossegado, ia afastar-se quando Matilde estendeu a mão para lhe fazer uma festa. Então o cão voltou-se, esfregou o focinho na mão dela e, finalmente, foi-se embora.
- Gosta de ti - observou Anna. E acrescentou: - Chama-se Full. É o cão do professor. - O professor era o marido de Anna, docente universitário e grande amante da caça.
No silêncio do apartamento ressoaram os acordes de um nocturno de Chopin.
- É a minha nora. É pianista. De vez em quando vem estudar para nossa casa, gosta do som do nosso piano - explicou Anna.
Uma criada idosa foi ter com elas. Tinha os cabelos apanhados numa trança em volta da nuca, um rosto cheio, de faces coradas, e as pernas cobertas por umas meias pretas. Trazia um vestido cinzento que fazia realçar a brancura do avental.
- Quem é esta linda menina? -perguntou, afectuosa.
- Chama-se Matilde. É uma das minhas meninas - respondeu Anna.
- E tu, não sabes falar? Onde escondeste a língua? - perguntou-lhe a criada, a sorrir, enquanto tirava das mãos da senhora as luvas e o chapéu.
Matilde, intimidada, arregalou para ela os grandes olhos claros, sem responder. Tinha vergonha da sua insignificância.
- Preparei uns biscoitos e creme pasteleiro. Sirvo na varanda?
- prosseguiu a criada.
- Na minha salinha. Estou cansada e preciso de me estender um pouco - disse Anna, conduzindo Matilde através de um labirinto de corredores.
O trabalho que enfrentava todos os dias tornava-se cada vez mais cansativo. O coração não estava nas melhores condições e o cardiologista tinha-lhe sugerido uma drástica redução dos seus compromissos. Recomendações que Anna continuava a ignorar.
A salinha dava para um terraço onde havia uma grande gaiola de ferro, pintada de branco, cheia de periquitos de cores berrantes.
Anna instalou-se no canapé de veludo carmim e deixou que Matilde olhasse em volta.
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- Às vezes, sinto o peso dos anos - começou, e prosseguiu:
- Olho para vocês, que são jovens, com uma ponta de inveja. Há demasiadas coisas que já não consigo fazer porque me faltam as forças - lamentou-se.
Matilde observou a gaiola com curiosidade. Depois o seu olhar pousou sobre o retrato a sépia de uma menina que devia ter mais ou menos a sua idade.
- Era a minha filha - explicou Anna. - Aqueles eram os periquitos dela. Morreu aos doze anos. Abri o asilo e dei-lhe o seu nome, Angiolina. Alguns dos periquitos já estão velhos. A Angiolina morreu há vinte anos. Nessa altura, eu era jovem, forte e andava pelo mundo fora a falar de mulheres às mulheres. Quando a minha filha morreu, eu estava em Londres. Nunca me perdoarei sussurrou.
Matilde tinha-se aninhado aos pés do canapé e ouvia-a com atenção.
- O que é que quer dizer falar de mulheres às mulheres? Aquela frase tinha-a tocado.
- Quer dizer explicar-lhes o que elas valem - respondeu Anna.
- Nós, mulheres, valemos pouco - observou a pequena, com tristeza.
- Aí é que tu te enganas. Cada mulher, Matilde, é como um pequeno cofre que contém pedras preciosas. Nenhum homem, nem mesmo o melhor, vale tanto como uma mulher. Temos de ter consciência disso. Eu sonho com um mundo em que nós possamos ter os mesmos direitos dos homens, as mesmas oportunidades, as mesmas possibilidades de fazer ouvir a nossa voz, de impor as nossas opiniões. Um mundo em que já não seja preciso combater para ter aquilo que se merece.
- A minha mãe ensinou-me que nós, mulheres, nascemos para sofrer. Ela sofreu muito. Em cada família há só um chefe: o homem. É ele quem manda. Nós só temos de obedecer e sofrer, mesmo quando não queremos - concluiu Matilde num sussurro.
- Achas mesmo que o bom Deus criou a mulher para fazer dela uma mártir? O Criador, na Sua infinita sabedoria, nunca poderia conceber um projecto semelhante.
- Eu sei que temos de aguentar o peso da cruz por termos nascido mulheres - insistiu a rapariga.
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- Jesus carregou a cruz por todos nós, homens e mulheres objectou Anna, e prosseguiu: - Ele pregou o amor e condenou a violência. Jesus amou as crianças e defendeu a sua inocência. Isto significa que não devem ser agredidas, nem exploradas, nem forçadas a acções torpes.
Caiu o silêncio entre elas. Ao fim de alguns minutos, Matilde falou num sussurro. - Estava no seu direito - disse, baixando os olhos. - Ele era o dono da casa e eu tinha de obedecer.
Matilde confessava-se, finalmente. Anna ficou calada, esperando, do fundo do coração, que a rapariga não se interrompesse. Após um instante de silêncio, Matilde prosseguiu: - Eu não me podia revoltar. Sofria e ficava calada. Sentia muita vergonha. Até que...
Naquele momento recordou a salamandra incandescente, as chamas crepitantes que apagavam tudo. Depois mais nada, até acordar no hospital. Estava muito mal. A mão queimada doía-lhe muito. A freira dizia-lhe que os irmãos estavam bem e que o pai tinha morrido. Perguntou mais uma vez a si mesma se o que matara Delmo tinham sido as chamas ou a pancada do ferro.
- E depois, o que aconteceu? - Anna rompeu o silêncio.
- Depois interveio a mão de Deus - sussurrou Matilde. Anna sentou-se. Pegou nas pequenas mãos de Matilde entre as
suas e olhou-a nos olhos, a sorrir.
- Finalmente abriste-me o teu coração - disse-lhe. E acrescentou: - Agora temos de tratar do futuro, da tua nova vida.
- Mas eu estou sempre triste e não consigo estudar - admitiu Matilde.
- Temos de dar tempo ao tempo. A tua professora disse que és uma aluna aplicada.
- Não quero pensar mais no passado.
- Mas vai continuar a acontecer. É inevitável. Nem imaginas quantas são as meninas e os meninos da tua idade, e até mais pequenos, igualmente maltratados, explorados e atormentados. É um sacrilégio que se perpetua desde a noite dos tempos. É para eles, Matilde, e para ti, minha menina, que eu combato dia após dia afirmou Anna, acalorada.
O entusiasmo da velha directora por uma causa tão importante tocou Matilde, que finalmente pediu a sua ajuda.
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- Eu não tenho mais ninguém no mundo - sussurrou, desanimada.
- Tens-te a ti própria. Achas pouco? Tu és a síntese maravilhosa de um mundo que está a nascer. Deves aproveitar as tuas energias e os teus recursos. Trabalha e reflecte. Continua a estudar, ainda que te sintas cansada. Vai ser preciso tempo e paciência, mas eu sei que tu vais conseguir fazer algo de bom na tua vida - afirmou Anna, segura.
A criada entrou com o carrinho do chá, onde também havia biscoitos e creme.
- Agora vamos lanchar - anunciou Anna, com alegria.
Matilde lembrou-se da mãe, que pronunciava as mesmas palavras quando, a um certo momento do dia, se levantava da pedra onde permanecera ajoelhada durante horas a passar a escova e a lixívia na roupa que tinha para lavar. Levava as mãos à altura dos rins, empurrando para fora o ventre pesado de uma nova gravidez, e sorria-lhe. A sua imagem espelhava-se trémula nas águas preguiçosas do Naviglio.
De um cesto pousado na erva alta que crescia ao longo da margem, Adelina tirava uma forma de pão amarelo, cortava-o às fatias e regava-o com vinho tinto que tinha numa garrafa. Depois abria um pacotinho de açúcar e, com parcimónia, polvilhava o pão humedecido. A seguir distribuía uma fatia por cada criança.
Sentavam-se então em círculo na erva e olhavam as barcaças que deslizavam lentas à superfície das águas. Os barqueiros trocavam graças com as lavadeiras, ouviam-se algumas gargalhadas, nasciam litígios entre as crianças.
Adelina falava pouco, sorria raramente, às vezes chorava, com mais frequência recorria à garrafa de vinho. Depois ficava alegre e Matilde apreciava a energia da mãe. Abraçava-a, envolvida pelo perfume daquela pele fresca. Recorria a ela quando precisava de ajuda. Adelina não lhe gritava, não lhe batia, raramente lhe fazia uma carícia. Depois acabou tudo e começaram os dias difíceis.
A criada começou a servir o chá. Naquele momento, à porta da sala, surgiu o vulto imponente de um homem de cabelos negros salpicados de prata.
- Incomodo? - perguntou uma voz suave.
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Reconheceu-o imediatamente. Era o professor Brasca. Vestia um fato leve cor de nata e trazia na mão um chapéu panamá.
- Entra, Alberto. Tu não incomodas nunca - disse Anna.
- Tive uma longa discussão com o teu marido - explicou ele, inclinando-se para lhe beijar a mão. - Agora já me ia embora, mas soube que estavas em casa e quis cumprimentar-te.
Não lhe pareceu tão velho como quando o tinha conhecido, num dia frio de Fevereiro.
- Lembras-te desta menina bonita? - perguntou-lhe Anna.
- Olá, Matilde - cumprimentou ele, sorrindo-lhe com simpatia.
Matilde corou. Não a esquecera.
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Não tinha escapado a Anna o tom afectuoso com que Alberto Brasca cumprimentara a pequena Matilde. Enquanto se informava sobre a saúde de Lucetta e dos filhos, reparou que o médico observava a rapariga com um olhar doce e melancólico. Na mente de Anna desenhou-se logo um projecto.
- Não te importas de levar a nossa Matilde ao asilo? - perguntou Anna a certa altura. - Hoje estou muito cansada - justificou-se.
- Com muito gosto. Fica-me a caminho - garantiu.
Era a primeira vez que Matilde entrava num carro. Sentiu uma emoção tão intensa que nunca mais a esqueceria. Parecia-lhe que estava numa sala que se mexia. Era fantástico estar sentada e ver avançar na sua direcção as casas, as árvores e os transeuntes. Era como viajar num mundo fantástico. O médico observava-a com ternura.
O carro parou em frente à villa da via Vincenzo Monti. O sol estava a pôr-se e as nuvens, empurradas pelo vento, tornavam-se mais pesadas, desenhando no céu formas misteriosas. Das janelas do refeitório chegava um tilintar de talheres acompanhado das vozes alegres das raparigas.
- Um dia destes venho cá visitar-te - prometeu Alberto Brasca.
- Espero que sim - sussurrou Matilde, ao mesmo tempo que se exibia numa vénia de despedida.
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A regente aparecera à porta e sorria, cerimoniosa, ao médico, que tinha tirado o chapéu para a cumprimentar. Matilde entrou no edifício, mas estava demasiado emocionada para enfrentar as companheiras. Aproveitando a longa conversa com a qual a regente continuava a entreter o médico, atravessou o átrio do asilo e refugiou-se no jardim. Correu vertiginosamente até às grades do muro. Agarrou-se a uma barra de ferro e fechou os olhos, tentando conter as lágrimas.
Uma mão veio pousar na sua, ao mesmo tempo que ouvia a voz de uma mulher que lhe dizia: - Como estás mudada, Matilde, minha pequenina!
Deu um salto. Abriu os olhos e viu Ermelinda.
Parecia uma senhora. Tinha na cabeça um chapéu de ráfia azul, debruado a organza. Vestia um tailleur de seda carmim. Não estava pintada.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou, espantada.
- Procurei-te por todo o lado - disse a mulher. - Primeiro no hospital. Não me deixaram entrar. Depois aqui. Nunca me deram autorização para te ver - revelou.
- Não sabia de nada. Por que é que não me podes ver?
- Não sou uma pessoa recomendável. Foi isso que me disseram. Mas eu estava cheia de vontade de estar um bocadinho contigo. Ficaste-me no coração. Estás bonita, sabias? Estás com boa cor. O cabelo, assim curto e encaracolado, fica-te bem - observou, com os olhos cheios de lágrimas. Depois perguntou: - Por que é que te puseram aqui? Uma boa menina como tu devia estar nas Stelline. - Matilde corou. Era claro que Ermelinda não sabia dos abusos do pai.
- Alguma razão deve haver - respondeu, pensando que um dia lhe falaria sobre isso. Depois sorriu-lhe e continuou: - Tu também estás diferente, Ermelinda - constatou, comovida. - Estás com ar de senhora a sério.
- Deixei o Egiziaco e a taberna. Mudei de vida, finalmente.
- Como é que está a Barbarina e os outros todos lá de casa? perguntou Matilde, perturbada pelas recordações.
- Muitas coisas mudaram, desde a noite do incêndio. Foram-se todos embora. Eu agora vivo sozinha, na via Brera, por cima da loja de ferragens - explicou.
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- É uma casa de luxo - disse Matilde, espantada.
- É uma residência digna - replicou Ermelinda.
Atrás de Matilde apareceu, de surpresa, a regente. Dirigiu-se às duas com hostilidade. - O que é que está aqui a fazer? - berrou, agressiva, para a ex-prostituta. Depois voltou-se para Matilde: - E tu não tens nada que falar com esta mulher.
- Se precisares de mim, já sabes onde me encontras - sussurrou.
Matilde foi arrastada à força, enquanto gritava: - Ermelinda, não me deixes! - Tentava inutilmente escapar à mão enérgica da regente.
- Vá-se embora. E não volte a incomodar a menina, ou seremos obrigadas a pedir a intervenção das autoridades - ameaçou a signorina Alberta.
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Anna deu ao motorista o endereço do hospital pediátrico, onde pediu para ser recebida pelo professor Brasca.
- Desculpa por te ter feito esperar - começou o médico, quando entrou no gabinete onde Anna o aguardava há alguns minutos.
- As crianças têm sempre prioridade - concordou ela com um sorriso.
- Mas agora estou por tua conta, minha amiga - disse-lhe, inclinando-se para lhe beijar a mão.
Alberto nutria afecto e estima por aquela mulher que sabia infundir esperança e alegria, que nunca se dava por vencida e que tinha sempre uma palavra de conforto para toda a gente.
- Andas a trabalhar de mais - declarou Anna, observando-lhe o rosto. - Tens olheiras e estás pálido. Há quanto tempo não fazes umas férias?
- Vieste desempenhar o papel da mãe apreensiva? - brincou o médico, tirando a bata.
Sentou-se à secretária, repleta de revistas médicas e medicamentos de todos os tipos. As paredes do escritório estavam cobertas de estantes cheias de livros, diplomas universitários e desenhos ingénuos executados por crianças que Alberto tinha tratado e curado.
- Vim aqui para te falar da Matilde Riva - explicou Anna. E acrescentou: - Sabes, podia ser tua filha.
O médico não a deixou acabar a frase.
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- Tens razão. Confesso-te que gostava de a adoptar - afirmou, seguro.
- Nunca o poderias fazer - observou Anna, que conhecia a sua difícil situação conjugal. - Não me parece que a Lucetta estivesse de acordo.
- Não o posso fazer, mas não é por causa da minha mulher. Se a adoptasse a Matilde, cometeria uma injustiça em relação a dezenas de crianças igualmente necessitadas de uma família. Sentir-me-ia culpado perante toda a gente, privilegiando-a só a ela - constatou tristemente.
- Mas tu gostas da Matilde. Aquilo que te peço não tem nada a ver com uma adopção. Sei que tens uma casa bonita no Varesotto, onde nunca vais. A menina podia tirar muito proveito de um Verão passado na colina. Gostava de a afastar do asilo durante uns tempos. Anda desanimada, não consegue estudar e está a custar-lhe adaptar-se à sua nova vida.
- Na minha villa no campo não está ninguém, para além dos criados. Quem é que ia tratar dela? - perguntou Alberto, perplexo.
Num tempo já distante, a grande moradia liberty, situada numa elevação de terreno com uma esplêndida vista sobre o lago, tinha sido assiduamente frequentada pela sua família de origem. Alberto passara ali com os pais a infância e a juventude. Depois a moda alterou-se, e ao campo começaram a preferir-se as férias na praia, as viagens ao estrangeiro e os cruzeiros. A sua família não se instalava naquela casa há mais de vinte anos. Lucetta detestava-a, dizendo que tinha um aspecto sinistro. Os filhos de Alberto preferiam a Versilia, no Verão, e o Valle d'Aosta, no Inverno.
De vez em quando, Alberto regressava sozinho, durante alguns dias, sobretudo no Outono, quando os bosques se tingiam das cores fortes do Verão que termina. Dava longos passeios com Nestore, o seu cão. Ia até uma pequena igreja setecentista, já desconsagrada, no cume de uma colina que separava dois vales e, quando estava com veia para a melancolia, pensava que aquele seria um bom sítio para morrer. Por vezes, descia até à aldeia e ia ter com os pescadores. Sentava-se à mesa com eles e escutava histórias de anos longínquos, de filhos emigrados para a América e de outros mortos durante a Grande Guerra. Passava algum tempo nas traseiras da farmácia, onde se reuniam os notáveis do sítio: o médico, o notário,
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o veterinário e o padre. Outras vezes convidava-os a todos para jantar na villa. Os criados, um casal que tomava conta da casa, preparavam o jantar. Com esses velhos amigos, Alberto gostava de falar de política e de ciência, mas sobretudo de recordar histórias da aldeia.
Após essas fugazes evasões, regressava ao trabalho, retemperado e mais sereno. Agora a sua velha amiga propunha-lhe reabrir a villa para hospedar uma órfã em dificuldades.
- A menina ia sentir-se demasiado só naquele sítio - considerou Alberto.
- Não é por acaso que te digo que precisas de descansar. Estás a trabalhar de mais, ultimamente. Durante uns dias podias ficar com a Matilde. Assim ela tinha tempo para se adaptar e tu punhas-te em forma. Não vai ser difícil arranjares uma boa professora que esteja disposta a fazê-la estudar. Eu posso ir buscá-la a qualquer momento, se a ideia não funcionar - prometeu Anna.
- Percebes que me estás a incumbir de uma responsabilidade enorme? E se acontecesse alguma coisa à Matilde... - hesitou.
- Já lhe aconteceu de tudo, meu amigo. E tu bem sabes - suspirou Anna, e prosseguiu: - No fundo, trata-se apenas de algumas semanas que poderiam ser determinantes para lhe permitir reencontrar um certo equilíbrio. Se não me negares a tua ajuda.
- Não era isso que eu tinha em mente quando ta recomendei
- brincou o médico. - Mas tens razão. Eu estou realmente cansado - admitiu, pensando no trabalho que não lhe permitia uma pausa, nos conflitos com a mulher, nas desilusões que lhe vinham dos filhos e numa infinidade de outros problemas que o angustiavam. Havia momentos em que perdia o ânimo e tinha a tentação de se retirar para o campo. Depois, as responsabilidades vinham ao de cima.
- Então, confio-te a Matilde - concluiu Anna.
- Dá-me uns dias para organizar o meu trabalho - respondeu ele, a sorrir. E acrescentou: - É isto que eu mais admiro em ti: a determinação em ajudares as tuas meninas.
Enquanto o motorista a levava ao asilo, Anna pensava na felicidade de Matilde quando lhe comunicasse a notícia.
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Depois do encontro com Anna, Alberto Brasca regressou a casa com a intenção de falar de Matilde à mulher. O criado estava à espera dele. Já lhe tinha preparado o banho e a roupa para se mudar.
- Professor, logo à noite temos visitas - anunciou-lhe, enquanto o ajudava a vestir-se.
- Quer dizer que, ao menos por uma vez, vou ter o prazer de ver a minha família reunida - comentou o médico com ironia.
Celestino estava a apertar os botões de punho em ouro quando Lucetta entrou no quarto de vestir.
- Preciso de falar contigo - anunciou num tom excitado.
- Eu também - disse Alberto, observando-a com uma sensação de enfado. A mulher parecia uma montra da Tiffany. Destilava jóias e trazia um vestido comprido resplandecente de lantejoulas. Tinha ido ao cabeleireiro e a maquilhagem cuidadosa fazia-a mais jovem.
- O Alessio vai ficar noivo da Vittoria Pulitanò e, esta noite, temos cá ao jantar os pais da rapariga. Tu conheces os Pulitanò, não conheces? - perguntou com uma voz melada.
Claro que conhecia. O pai de Vittoria era o actual amante de Lucetta.
- Muito superficialmente - respondeu apenas.
- O Alessio promete. Não achas? - insistiu ela.
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Celestino tinha-se eclipsado prudentemente enquanto Alberto fazia o nó da gravata.
- Ai sim? E em que domínio? Não na universidade, uma vez que não faz uma cadeira há dois anos. Nem sequer no desporto: vai esquiar e parte uma perna, monta a cavalo e fractura um braço. Já para não falar nas mesas de jogo, uma vez que sou eu que lhe pago as dívidas. Em que é que ele promete? Claro, já percebi. No meio dos lençóis. Nisso, porém, tem um companheiro à altura: o irmão. De resto, se me permites o lugar-comum, quem sai aos seus não degenera - concluiu, referindo-se a Lucetta.
Ao contrário do costume, ela não respondeu à provocação.
- Alberto, por favor, não vamos agora levantar questões. Refiro-me ao património dos Pulitanò. Deixa que o Alessio se case com a Vittorina e vais ver que fica com a cabeça no sítio. Portanto, por favor, põe cá fora toda a tua diplomacia. Eu quero mesmo aquele património - continuou a mulher, acalorada.
- Porquê? - perguntou Alberto.
A união de Alessio com a filha daquele empresário rico representava para Lucetta um pretexto válido para intensificar os seus encontros com o amante, sem suscitar mexericos. Preocupava-se muito com as aparências. O médico já tinha percebido o seu jogo, mas fingiu ignorá-lo.
- Porque os pais desejam sempre o melhor para os filhos. E tu, querido, o que me querias dizer?
A hipocrisia de Lucetta estava quase a levá-lo ao seu limite. Queria dizer-lhe que se tinha disponibilizado para albergar uma órfã na casa do Varesotto, mas preferiu adiar a conversa.
- Sugiro-te que retires alguma dessa quinquilharia que tens em cima. É um insulto à miséria - não conseguiu deixar de comentar. Depois saiu do quarto de vestir, deixando-a sozinha a ferver de raiva.
- Porque, quanto a ti, se a deixar na gaveta ninguém se ofende? - respondeu, irritada, apesar de ele já não a poder ouvir.
Alberto ostentou todo o seu fascínio durante o jantar e também depois, quando se serviram os licores e o café. Fingiu ignorar os olhares de entendimento entre Lucetta e o futuro sogro do filho e foi amável com a signora Pulitanò. Apercebia-se do abismo que
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o separava agora da sua família. Sentiu-se aliviado quando os convidados se despediram. Foi para o escritório e começou a ler as actas de um congresso de fisiatria que se tinha realizado em Modena. Trabalhou durante quase uma hora e depois, vencido pelo cansaço, resolveu ir deitar-se.
Celestino tinha deixado em cima da mesa-de-cabeceira uma garrafa de água e um copo. Enquanto se despia, sentiu uma tontura. Algum tempo atrás, por causa daquele mal-estar, tinha ido consultar o seu mestre, o professor Lucchini, que o mandara fazer uma série de análises clínicas. Com os exames na mão, ele expôs-lhe o diagnóstico e concluiu: - Por que não fazes umas férias?
- Eu adoro o meu trabalho e considero-me em férias há uma vida inteira - brincou.
- Sabes muito bem o que eu quero dizer - respondeu o professor, preocupado.
Agora, ao deitar-se na cama, considerou que Anna Lucchini, ao impor-lhe a responsabilidade de uma das suas meninas, o ajudava a afastar-se da rotina cansativa do hospital.
Acendeu a luz e abriu o romance de Thackeray que andava a ler há alguns dias: A Feira das Vaidades. Na ficção narrativa, os bons sentimentos, no fim, venciam o cinismo e a arrogância. No entanto, pensou Alberto, na vida real, acontecia sempre o contrário.
Chegou até ele o som abafado do relógio, à entrada, que anunciava a meia-noite. Ao mesmo tempo sentiu bater à porta, e logo a seguir o trinco abriu-se e a mulher entrou no quarto.
- Incomodo? - perguntou.
- Já aqui estás - respondeu Alberto, resignado, fechando o livro. Tirou os óculos, a que se tinha rendido para não cansar demasiado a vista.
Lucetta vestia um roupão que sublinhava uma adiposidade incipiente.
- Queria agradecer-te. Foste perfeito, esta noite - disse.
- Limitei-me a fazer o teu jogo - replicou ele.
- Os pequenos parecem-me muito ligados um ao outro - comentou a mulher.
- Enquanto durar. E vai durar enquanto a Vittoria não descobrir que raça de inútil é o nosso filho. Porque não sei se estás a ver, Lucetta, a Vittoria não é como a mãe. Aquela pobre Pulitanò vive
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na total dependência do marido. Mas a filha pareceu-me mais voluntariosa e tudo menos disposta a aguentar - declarou o médico, enquanto Lucetta se sentava numa poltrona ao lado da cómoda, com a intenção de entabular uma discussão.
- Tu não estimas os teus filhos o suficiente. Por isso é que eles não levam nada até ao fim - observou. E prosseguiu: - De qualquer maneira, garanto-te que a Pulitanò não é uma vítima. De camponesa do Trapanese chegou a mulher de um homem riquíssimo. O que mais podia desejar?
- Francamente, é um assunto que não me interessa - afirmou Alberto, que tinha à frente apenas cinco horas de sono e estava determinado a não as deixar escapar.
- Nem a mim - rematou Lucetta. - Só te queria agradecer e informar de que amanhã vou para fora. Estarei ausente durante algumas semanas - anunciou.
- Então, boa viagem.
- Não te interessa saber onde vou?
- Seja qual for o teu destino, espero que tenhas uma estadia feliz. Eu também parto amanhã. Vou para a villa e levo comigo uma das meninas da Anna.
- Oh, meu Deus, que horror! Ainda vais arranjar alguma complicação, com essas tuas manias de bom samaritano - exclamou num tom melodramático.
- O que é isso, um prognóstico ou um desejo?
- O que tu quiseres. De qualquer maneira, não tenho nada a ver com isso. Boa-noite - concluiu Lucetta, e saiu do quarto.
Alberto apagou a luz. Teve alguma dificuldade em conciliar o sono, lamentando o falhanço daquele casamento. Objectivamente, não conseguia atribuir a responsabilidade só a Lucetta. Apercebia-se de que sempre se tinha ocupado muito com o trabalho e pouco com a família. Talvez não estivesse à altura de ser um bom marido e um bom pai. Por outro lado, na sua família de origem, a figura paterna tinha faltado, porque o pai morrera quando Alberto e os irmãos ainda eram pequenos. A mãe tratava dos filhos com um distanciamento afável. Cresceram entre nurses, professores e colégios particulares.
Mas isso não o impedira de enfrentar a vida com seriedade. Esperara que também os filhos, Alessio e Pietro, que amava muitíssimo,
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se tornassem homens seguros de si, equilibrados e generosos. Não fora assim. Cresceram mimados, ociosos e cínicos. Perguntava muitas vezes a si próprio que parte de responsabilidade teria naquele falhanço. Tinha consciência do facto de os seus rapazes não terem tido uns pais que agissem em sintonia. Alberto ditava-lhes regras que Lucetta subvertia, pelo prazer de o contradizer. Naquele jogo de contradições, Alessio e Pietro tinham-se perdido.
Pensou na mulher. Também ela, provavelmente, tinha alguma dificuldade em adormecer. Mas por outras razões. A perspectiva de uma longa viagem com o amante devia ser muito excitante. E com estas considerações acabou por adormecer.
Partiu para o Varesotto ao fim da tarde. Tinha programado os turnos dos médicos no hospital e ameaçado com sanções o pessoal nem sempre eficiente. Quis resolver os casos mais difíceis e assegurar aos seus pequenos doentes uma assistência adequada. Quando chegou ao asilo Angiolina, Anna Lucchini estava à espera dele. Matilde estava com ela e tinha na mão uma malinha castanha.
- A Matilde já tem tudo com ela - anunciou Anna. - Livros, cadernos e roupa. Tenho a certeza de que lhe vais arranjar uma boa professora para a ajudar a passar de ano.
Celestino estava ao volante do carro. Saíram de Milão ao pôr-do-sol.
- A julgar pela bagagem, o teu guarda-roupa parece-me muito reduzido - observou Alberto, mais para romper o silêncio.
- Para mim até sobra. Nunca tive mais de dois vestidos: um de Verão e um de Inverno - disse a rapariga.
- Junto ao lago, nesta altura do ano, as noites são frescas. Vais precisar de um casaquinho, ou de uma camisola. E também precisas de uns sapatos adequados para substituir as tuas sandálias, que já estão um bocadinho estragadas - comentou. Voltou-se para o criado: - Celestino, vamos parar em Varese. Ainda deve haver lojas abertas, acho eu.
Matilde sorriu, sem replicar. Desde que entrara no carro sentia que iniciava uma viagem ao mundo das histórias de encantar. Pela primeira vez, via suaves declives, bosques e casas que vislumbrava por detrás das árvores. Respirava o ar impregnado dos perfumes que vinham da terra, das plantas e das flores. Atravessaram pequenas aldeias onde as casas eram minúsculas e asseadas. As mulheres
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estavam às portas, ao longo da estrada, a conversar, e as crianças corriam umas atrás das outras com gritos felizes. O automóvel entrou na cidade e parou numa grande praça. Matilde e o professor saíram do carro e entraram num estabelecimento muito elegante com um letreiro que dizia Moda para a Juventude.
O sorriso prestável de duas vendedoras gelou quando pousaram os olhos na menina que vinha pela mão do senhor distinto que a acompanhava.
- Em que lhe podemos ser úteis? - perguntou a que parecia ser a dona.
- A mim, em nada. Mas preciso que se ponha à disposição desta linda menina - replicou Alberto, que começava a divertir-se.
- Mas com certeza! Que linda - sussurram as duas mulheres, abrindo de par em par as portas dos armários encostados às paredes da loja.
Matilde arregalou os olhos perante aquelas filas intermináveis de vestidos de todos os feitios, tecidos e cores. Prevaleciam as organzas e os tafetás coloridos com favinhos, com mangas de balão; mas também havia blusas de algodão bordadas, saiinhas floridas com alças, pólos com botões de fantasia em forma de coelho, de morango, de rosinha; vestidinhos com casaco, camisolas de alças, casacos debruados a pele e capas impermeáveis, chapelinhos com fitas coloridas e florzinhas de organza; meias curtas e pelo joelho, em fio de Escócia e em seda; luvas, sapatinhos de vários tipos, de borracha para a chuva, de verniz negro, de veludo para a noite.
Passou em revista toda aquela festa de frivolidades com uma lentidão exasperante. De vez em quando lançava um olhar interrogativo ao professor, que anuía ou então franzia o nariz para indicar que não gostava de determinado vestido.
- Não tem um vestido à marinheira? - perguntou finalmente Matilde, fazendo ouvir a sua voz.
- Com certeza, querida. Os que tu quiseres - disse a dona, enquanto a empregada se apressava a pôr em cima do balcão alguns modelos. - Vê lá: temos em crepe da china para a Primavera, um algodão inglês para o Verão, este muito macio em lã australiana para o Inverno. Temos golas empiquet de seda e piquet de algodão.
- Está bem. Levo este de algodão. Obrigada - decidiu Matilde.
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Sempre sonhara com um vestido à marinheira e agora podia tê-lo. Não desejava mais nada.
- Um vestido só parece-me pouco. Vamos levar pelo menos quatro - interveio o médico. E acrescentou: - É claro que também queremos sapatos e alguma roupa interior para o dia e para a noite.
Celestino levou para o carro uma série de embrulhos, enquanto Matilde não conseguia acreditar que tudo aquilo era para ela.
- Estes vestidos vão-me durar anos - observou.
- Na tua idade as meninas crescem a olhos vistos, e tu em breve já não vais caber nesta roupa - disse o professor.
- Podem-se alargar e descer. Vou usá-los durante anos, garanto-lhe - insistiu Matilde.
Chegaram ao portão de entrada, que os criados tinham aberto, à espera deles. Dois pequenos pastores alemães, Kabiria e Saladino, latiam festivamente em volta do carro. Avançaram lentamente ao longo de uma alameda de saibro até à villa, cuja fachada estava inteiramente recoberta por trepadeiras.
Por cima da copa das árvores, na crista da colina, nascia a lua.
O casal de criados, o jardineiro Peppino e a empregada Rosetta estavam à espera deles. Depois dos cumprimentos habituais, olharam com curiosidade para a pequena hóspede.
- Mas que rica menina - disse Rosetta. - Um bocado macilenta, mas daqui por uma semana já está com as cores do Varesotto
- decretou.
- Nós tratamos de a pôr mais gordinha, professor - interveio Peppino. Depois virou-se para ela: - Como é que te chamas?
- Matilde Riva - respondeu, intimidada.
- Então, Matilde, anda comigo. Vou levar-te lá acima e mostro-te o teu quarto - decidiu Rosetta.
O quarto que lhe fora destinado ficava no segundo andar, onde ficavam os quartos da criadagem. Tinha paredes azuis com um friso de cornucópias em amarelo e ocre. Havia uma cama e um armário em faia, uma mesa rústica de nogueira e um lavatório de ferro esmaltado com um espelho oval, uma bacia e um jarro de louça. Por cima da cómoda havia uma graciosa pia de água benta. A janela enquadrava as colinas distantes.
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- Olha, podes pousar aqui os teus livros. Amanhã vais ter um candeeiro para leres quando ficar escuro e um tapetinho para te ajoelhares a rezar - disse Rosetta, enquanto Celestino, que vinha atrás dela, pousava em cima da pequena cama as compras que tinham feito.
- Mas o que vem a ser isto tudo? - perguntou a velha criada.
- A roupa para a menina - respondeu Celestino, que piscou o olho com um ar cúmplice.
- A minha roupa - repetiu Matilde, entre a submissão e o desejo de assumir um ar sério.
- Caíste mesmo nas boas graças do patrão - disse Rosetta, satisfeita. E acrescentou: - Tudo coisa fina, de Varese. Então despacha-te a mudar de roupa, porque agora vamos comer. E olha que aqui se toma banho todas as manhãs. É ao fundo do corredor e temos água corrente, quente e fria. O professor diz que a limpeza mantém as doenças afastadas. E se ele diz, eu acredito - concluiu, ao mesmo tempo que saía do quarto.
Matilde olhou em volta, tentando familiarizar-se com aquele ambiente novo. Durante os últimos meses tinha havido tantas mudanças na sua vida! Juntou as mãos, fechou os olhos e sussurrou:
- Senhor, faz com que isto seja para sempre.
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Matilde desceu a correr os dois lanços de escadas, encontrou a cozinha e ficou parada à porta. Rosetta estava a pôr na mesa uma terrina de minestrone fumegante. O jardineiro e Celestino já estavam sentados e havia também um lugar para ela.
- Então? Não te mudaste! - observou Rosetta. - Anda, senta-te, que agora vamos comer - disse, começando a encher as tigelas.
- Não sabia o que havia de escolher. E depois tinha medo de sujar um vestido novo - justificou-se, enquanto se sentava no seu lugar. -
- Tem juízo, a pequena - disse Peppino. <
- Amanhã pões-te elegante - sugeriu Celestino, a sorrir.
- E o professor? - perguntou ela.
- O patrão não come com os empregados. E, de qualquer maneira, nunca janta sozinho. Foi à aldeia. Vai jantar em casa do farmacêutico - explicou a empregada.
Matilde sentiu-se à-vontade no meio daqueles estranhos afectuosos, comeu com voracidade e no fim limpou o prato com um pedaço de pão. Depois ajudou Rosetta a tirar a mesa e insistiu para lavar a louça.
- Não me parece que o patrão queira que tu faças de empregada - observou Rosetta, com um ar bondoso.
- Mas eu quero retribuir a hospitalidade. E como sei fazer bem estas coisas, quero ser útil - disse com determinação.
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- No asilo Angiolina educaram-te bem - comentou Rosetta. Era evidente que o médico, ou Celestino, tinham falado dela.
E isso desagradou-lhe, porque não tinha orgulho nenhum em ser considerada uma "angiolina".
- Eu eduquei-me bem sozinha - replicou, enquanto mergulhava os talheres numa bacia de água quente.
Rosetta sorriu-lhe. - Estou a ver que és uma boa rapariga - desculpou-se.
Os homens tinham saído para o jardim. Estavam sentados por baixo de uma pérgola de clematites e conversavam em voz baixa. Peppino acendia o cachimbo e Celestino bebericava uma aguardente.
- O que há mais para fazer? - perguntou Matilde, enquanto Rosetta enxugava os copos e os arrumava, um a um, dentro do aparador.
- Agora vais a correr para a cama. Hoje tiveste um dia cansativo e amanhã de manhã, às oito horas, chega a professora. É a signorina Ortensia. Vais conhecê-la. É uma espécie de instituição na aldeia. Ensinou a fazer traços e pontos, a ler, a escrever e a contar a três gerações. Até ao professor, que nasceu aqui. E ao nosso filhinho, que morreu na guerra. Só tínhamos aquele, e o Senhor levou-o. O quarto onde tu estás era dele - acabou de contar, num sussurro.
Matilde deitou-se. Apagou a luz e observou a lua que, através da janela aberta, olhava para ela com o seu grande rosto sorridente. Sentiu os passos pesados dos criados, ao longo do corredor. Iam para o quarto. Deu voltas e voltas naquela cama estranha, sem conseguir conciliar o sono. Era já muito tarde quando ouviu latir os cães e chegou até ela, do jardim, a voz do professor a mandá-los sossegar. Sentiu o barulho da porta da entrada que se abria e depois o som do ferrolho, a fechar. Por fim, o silêncio.
- Já chegou - disse Matilde à lua. Fechou os olhos e adormeceu.
Acordou quando o sol nascia. Abriu a porta, saiu para o corredor e, descalça, entrou no quarto de banho. Encheu a banheira e lavou-se. Depois voltou ao quarto e enfiou um vestido novo. Era aos quadradinhos azuis e brancos. Tinha uns bolsos pequenos em forma de coração e uma golinha de piquet branco. Penteou-se com cuidado e depois desceu até à cozinha.
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Rosetta já tinha o fogão aceso e preparava o café. Em cima de um tabuleiro havia uns pratinhos de porcelana que continham caracoizinhos de manteiga, mel dourado e fatias de pão torrado no forno. E uma taça de damascos.
- Bom-dia - disse Matilde.
- Estou a ver que acordaste cedo - observou Rosetta. - Olha que hoje pareces mesmo uma flor. Estás muito elegante.
- Obrigada - respondeu Matilde com algum embaraço. - O que é que eu posso fazer?
- Tens de comer. O patrão está à tua espera. Pus a mesa no terraço.
- Vou comer com ele? - perguntou.
- São essas as ordens - disse a empregada, ao mesmo tempo que pousava no tabuleiro duas chávenas e a caneca de leite.
- Então eu levo o pequeno-almoço - ofereceu-se, segurando as pegas do tabuleiro. Julgava que era madrugadora e descobria que toda a gente se tinha levantado mais cedo do que ela. Celestino tinha ido à aldeia buscar a professora. Peppino estava a limpar a coelheira. Rosetta tinha arranjado o pequeno-almoço para toda a gente. Decidiu que no dia seguinte ia acordar quando ainda fosse noite. Queria ser a primeira a levantar-se.
Alberto lia o jornal, sentado à mesa do terraço. Por cima do pijama branco trazia um roupão de caxemira azul. Pareceu nem ter reparado nela. Matilde, caminhando quase nas pontas dos sapatos novos, pousou o tabuleiro na mesa. Depois sentou-se à frente dele.
- Podes começar com os damascos - disse, sem olhar para ela. Matilde deitou café numa chávena e juntou o leite.
- E o senhor pode começar com o café com leite - replicou.
- Ponho açúcar?
Ele fechou o jornal, olhou para ela e sorriu. - Dormiste bem?
- perguntou-lhe. Não fez comentários sobre a sua elegância. Parecia que Matilde tinha sido sempre assim, com os cabelos curtos e bem penteados, o vestidinho requintado e os sapatos novos.
- Chegou tarde a casa - ousou a rapariga.
- É grave?
- Muito não. Só um bocadinho. Eu não ia conseguir dormir enquanto não chegasse.
Alberto anuiu. -
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Matilde comeu a fruta toda. Depois pegou numa fatia de pão, barrou-a com manteiga, cobriu-a de mel e estendeu-lha.
- Estás a dar-me muito mimo - tentou brincar.
- Quantos anos tem, professor? - perguntou ela subitamente.
- Quarenta e cinco - respondeu Alberto.
- Tantos. Mas não parece assim tão velho. Quer dizer, se não fosse pelos cabelos brancos...
O médico riu com gosto.
Celestino veio anunciar a chegada da signorina Ortensia. Era uma senhora à volta dos oitenta anos. Trazia um vestido escuro, severo, um pouco fora de moda. Apoiava-se numa bengala com cabo de prata. Trazia ao pescoço uma corrente que segurava um pincenez. A única vaidade notava-se no cabelo, ostensivamente pintado de vermelho, apanhado com uns ganchos de tartaruga, e no rosto embranquecido com pó-de-arroz. Falou brevemente com o médico, que tinha em relação a ela um comportamento obsequioso, enquanto que ela o tratava por tu. Depois Matilde foi-lhe apresentada e decidiram as duas que o terraço seria um bom sítio para trabalhar.
- Antes de mais, gostava de perceber o que é que tu sabes, quais as noções que assimilaste - começou a professora.
O médico tinha-se eclipsado. Estavam sozinhas, e às palavras da professora seguiu-se o silêncio, até porque Matilde não sabia como responder.
- Podemos começar com um ditado, assim posso ficar com uma ideia do teu nível ortográfico - prosseguiu a signorina Ortensia.
- No ditado fui sempre muito boa. Não me pode explicar a história dos Romanos e dos Gauleses, ou as barricadas de 1848 e as óperas de Giuseppe Verdi? - perguntou de um fôlego.
- Bem, alguma coisa sabes. Portanto, comecemos pelo ditado
- decidiu a professora. Tirou da carteira uma caixinha de prata e abriu-a. Continha tabaco com um cheiro mentolado. Pegou num bocadinho entre o polegar e o indicador e levou-o ao nariz, com uma evidente sensação de prazer. Depois começou a ditar.
Foram quatro horas de trabalho intenso. Ao meio-dia, Celestino levou a signorina Ortensia de volta à aldeia e Matilde almoçou de novo na cozinha com os criados. O médico não apareceu durante
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todo o dia. Matilde pensou que tivesse saído. Mas afinal, disse-lhe Rosetta, estava no escritório a trabalhar.
- Posso ir ter com ele? - perguntou a menina.
- De maneira nenhuma. Só lá podemos ir quando ele chama
- respondeu.
- E o que é que eu posso fazer?
- Vai ter com o Peppino, que está a tratar dos animais - sugeriu a empregada.
Havia patos, galinhas e coelhos para além dos dois pastores alemães pequeninos. Matilde brincou com eles. Conseguiu sujar o vestido, encher as meias de pó, esfolar um joelho e rir com prazer quando os cães lhe lambiam o rosto.
Sentia-se renascer. Só estava no campo há um dia e já o passado se esfumava numa neblina trémula, enquanto o presente a levava a esperar uma nova vida. Deu mais uma cambalhota na erva e levantou-se, feliz.
De repente, uma dor lancinante trespassou-lhe o baixo-ventre. Assustou-se. Dobrada pela dor, chegou ao alpendre, onde Rosetta estava a remendar umas meias.
- Estou tão mal - queixou-se Matilde.
- Oh, meu Deus! - replicou a mulher, aflita, deixando cair no cesto da costura o ovo de madeira, a agulha e o dedal.
- Mas mesmo muito mal - acrescentou Matilde, com um fio de voz, agarrando-se com uma mão à coluna de pedra.
- Vou já avisar o professor - anunciou Rosetta.
- Não o podemos incomodar. Está a trabalhar - observou Matilde.
- Deixa-te estar aí, sentada. Eu é que sei quando é caso para o chamar. E pela maneira como te vejo, posso lá ir - decidiu.
Matilde pensou que aquele espantoso cenário, no qual se tinha encontrado como por magia, era demasiado belo para durar. Pensou também que tinha uma doença terrível, da qual ia certamente morrer. Começou a chorar. E naquele momento lembrou-se da mãe. Gostaria de se sentir envolvida pelo abraço terno de Adelina.
- Mãe, ajuda-me - suplicou, num sussurro, com os olhos velados pelas lágrimas.
- Eu ajudo-te - disse uma voz masculina. O professor Brasca
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inclinou-se sobre ela, pegou-lhe ao colo, levou-a para o escritório e instalou-a no sofá.
- Agora vou observar-te com cuidado, e entretanto tu contas-me o que sentes.
Rosetta afagou-lhe os cabelos e Matilde respirou fundo. Parecia-lhe que estava melhor.
- Se calhar não é nada. Aliás, até já estou melhor. Senti uma dor forte na barriga, como uma alfinetada - explicou.
Alberto exerceu com as mãos pequenas pressões no abdómen.
- Diz-me quando te doer - sugeriu.
Enquanto os dedos do médico desciam em direcção às virilhas, a dor tornava-se mais intensa.
- O que foi que comeste ao almoço? - perguntou-lhe. Rosetta respondeu por ela. - Risotto de queijo e peixe assado.
Como toda a gente.
- Agora vou medir-te a tensão - decidiu Alberto, ao mesmo tempo que tirava o aparelho da maleta. Apertou-lhe o braço, meteu ar, abriu a válvula e depois deixou o ar sair.
- Está perfeita - declarou. E acrescentou: - Já alguma vez tiveste problemas de barriga? Tiveste alguma indigestão?
Matilde anuía ou negava, conforme as perguntas. Alberto observou-a durante muito tempo, com um ar pensativo. Depois sorriu.
- Rosetta - disse -, vai com ela à casa de banho e verifica se a natureza seguiu o seu caminho.
Matilde foi docilmente atrás da criada e saíram do escritório. Depois recusou-se a aparecer diante do médico. Fechou-se no quarto e aninhou-se na cama.
Alberto teve de ir ter com ela. - Então, menina Matilde - começou -, como é que vai essa dor de barriga?
- Está a passar, professor - sussurrou ela, corando.
- Sai já da cama. Tu não estás doente. Quem olha para ti acha que ainda és uma menina, mas já és mulher.
- Eu sei - disse Matilde, num sussurro.
- Agora vou levar-te a dar uma volta pelo bosque. E assim que o sol se esconder, vamos até ao lago. Vou ensinar-te a remar.
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Anna Lucchini morreu em Agosto. Alberto Brasca hesitou em levar Matilde de volta a Milão. Anna era uma presença tranquilizadora para a sua pequena protegida. O professor Lucchini disse-lhe que a direcção do asilo seria assumida por uma nora que tinha seguido de perto o trabalho de Anna.
Matilde tinha passado de ano e, na opinião da signorina Ortensia, estava em perfeitas condições para prosseguir os estudos liceais.
- Não tenho coragem para a levar de volta à via Vincenzo Monti - confiou Alberto à signorina Ortensia. - O que é que acha?
- A julgar pela afeição que tens à pequena, sugiro-te um bom colégio na Suíça - declarou a velha mestra.
- Eu também acho - concordou o médico.
Contactou várias instituições, sem se decidir a fazer uma escolha definitiva. Entretanto matriculou Matilde num liceu de Varese.
Veio o Outono e depois o Inverno. Alberto adiava mês após mês a escolha de um colégio, até porque Matilde lhe suplicava que não a mandasse embora.
- Sinto, finalmente, que tenho uma casa. A Rosetta, o Peppino, o Celestino, os cães e o senhor são a minha família. A escola tem corrido bem. Em casa tenho alguma utilidade. Por que é que se quer livrar de mim? - perguntava-lhe, com o mesmo olhar meigo de Kahiria e Saladino quando eram repreendidos e não percebiam a razão.
- Não me quero livrar de ti. Só procuro a melhor solução.
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Gostaria de lhe explicar que queria fazer dela uma mulher de classe, com amizades importantes e um futuro sereno, mas sabia que Matilde não iria compreender e que viveria aquele afastamento como uma rejeição. Assim, pouco a pouco, foi abandonando a ideia do colégio.
Depois do liceu, Matilde foi matriculada no Magistério.
De manhã, montava na bicicleta e, qualquer que fosse o tempo, descia até à estação, onde apanhava um transporte para a cidade. Frequentava as aulas com bom aproveitamento e regressava à villa cheia de fome.
Alberto ganhou o hábito de passar os domingos no lago, porque a companhia daquela rapariga o recompensava das muitas amarguras. Normalmente chegava à villa ao sábado à noite e jantavam juntos. Por vezes, depois de jantar Alberto ia até à aldeia para se encontrar com os amigos, mas era mais frequente retirar-se para o escritório, seguido de Matilde e dos cães, que se aninhavam todos aos seus pés. Os cães enroscavam-se e adormeciam, enquanto Matilde lhe mostrava os trabalhos de casa que tinha feito durante a semana, lhe pedia explicações e lhe colocava questões de todos os tipos, obtendo respostas exaustivas. Uma vez atreveu-se a pedir-lhe notícias sobre a mulher e os filhos.
- É gente muito mundana, Matilde - explicou Alberto. - Viajam, vão a recepções, fazem sala. Em suma, andam sempre muito ocupados.
- Por que é que nunca vêm à villa ? - perguntou, curiosa.
- Este sítio é demasiado tranquilo. Acham a vida no campo muito aborrecida - disse-lhe.
Chegou a Primavera. Um dia, Matilde regressou da escola e encontrou uma grande confusão no jardim e em casa. Os cães estavam irrequietos. Havia muitos automóveis na alameda da entrada. Do salão chegava um som de música, muito alto, e havia gente lá dentro.
Assustada, deu a volta à casa e entrou pelas traseiras, pela cozinha. Rosetta estava muito atarefada à volta do fogão. Peppino trazia da cave garrafas de vinho velho. Uma mulher da aldeia esticava massa com o rolo.
- Que festa é esta? - perguntou ela, enquanto pousava no chão a pasta com os livros.
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- Põe um avental e começa a trabalhar - ordenou Rosetta,
com um ar severo.
- Gostava de ouvir uma resposta - respondeu Matilde, agastada.
- Chegaram os meninos, de Milão. Uma coisa assim de repente - resmungou Peppino. - E trouxeram com eles amigos e namoradas.
- Caíram aqui como um temporal - comentou a criada. - Temos de cozinhar para eles todos. Espero que não se lembrem de ficar também para a noite - concluiu. Estava furibunda.
- Chegaram os filhos do professor! - exclamou Matilde, incrédula.
- E que lindos que estão - comentou a mulher que esticava a massa. - Vê-se logo que são uns senhores. Eu ainda me lembro deles quando gatinhavam no jardim e eu tinha de lavar montes de fraldas. Depois, nunca mais apareceram.
- Também posso ir à sala? - perguntou Matilde, que não sabia se havia de ficar contente ou preocupada com aquele acontecimento inesperado.
- Tu só podes dar uma mão. Vai pôr a mesa para quinze. E atenção, faz as coisas bem feitas. A toalha de renda azul, os pratos bonitos de beira dourada e os copos de cristal. Três copos para cada pessoa - recomendou Rosetta.
Matilde obedeceu. Relembrando os ensinamentos da criada, fez o melhor possível para pôr uma mesa elegante, movendo-se rápida e silenciosa. Enquanto tirava do aparador os copos de pé, de cristal fino, partiu um. Escorregou-lhe da mão e ficou feito em pedaços no mosaico do chão.
A porta de espelhos da sala de jantar, que comunicava com o salão, abriu-se de repente. Apareceu a cabeça de uma jovem de olhos de veludo e lábios vermelho coral. Trazia um fato branco de malha de lã. A saia de pregas tinha uma beira azul, assim como o decote da blusa comprida. Tinha uma pele de porcelana e uns cabelos negros que lhe desciam em ondas sobre os ombros.
- Tu quem és? - perguntou, depois de a ter observado atentamente.
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- Sou a Matilde, ao seu dispor, signorina - respondeu ela, a tremer por ter sido apanhada em falta. Não sabia como havia de se comportar com uma rapariga tão elegante.
Atrás da jovem apareceu um rapaz muito bonito. Era parecido com o professor, mas o olhar era diferente, duro e um pouco trocista.
- Parti um copo. Sinto muito - disse Matilde, corada, enquanto se inclinava para apanhar os vidros.
- O que é que estás aqui a fazer, Vittorina? - perguntou o rapaz.
- Ela disse-me que se chama Matilde - informou a jovem. Não é aquela prostituta que o teu pai tem aqui há já algum tempo?
- perguntou em voz baixa. Matilde ouviu.
- A um grande homem como ele, é preciso perdoar algumas extravagâncias - replicou o jovem, a rir.
A porta voltou a fechar-se.
Matilde chorava enquanto apanhava do chão os fragmentos de vidro. Cortou-se num dedo. O asilo Angiolina tinha-lhe ficado colado à pele. Era evidente que toda a gente conhecia a sua história. E por quem a poderiam ter sabido, se não pelo professor? Sentiu-se traída.
Aquela comitiva barulhenta partiu ao pôr-do-sol, mas isso não adiantou para aliviar a ansiedade dos empregados que, durante todo aquele tempo, tinham procurado inutilmente Matilde. Agora que tinham ficado sozinhos, retomaram as buscas com mais liberdade. A rapariga parecia ter desaparecido no vazio. Não estava em casa, nem no jardim. Na aldeia ninguém a tinha visto. Talvez tivesse ido para o bosque. Rosetta e Peppino não faziam ideia do motivo que a tinha levado a fugir. Os cães também tinham desaparecido.
- O Saladino e a Kabiria estão com ela. Por isso, se se perdeu por aí em algum caminho, eles conseguem trazê-la para cá - disse o jardineiro, para tentar acalmar aquela aflição. No entanto, foi também à procura dela.
Já era noite quando decidiram que era preciso avisar o professor.
- Eu não tenho coragem para lhe dizer. Telefona tu - disse Peppino à mulher.
- Imagina que ela volta de um momento para o outro. Vamos afligi-lo para nada. O melhor é avisar antes a polícia - sugeriu Rosetta.
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- Isso ia dar muita confusão. O patrão é que tem de decidir. Telefonaram-lhe. Alberto chegou à villa quando já passava da
meia-noite, e não havia ainda sinais de Matilde.
O médico estava furibundo. Fez mil e uma perguntas, exigindo explicações que ninguém era capaz de lhe dar. Nem sequer sabia que os filhos tinham ali estado com os amigos.
- Foi por causa deles que ela fugiu - concluiu por fim.
- Eu acho que ela ficou atormentada por ter partido um copo
- defendeu Rosetta, a quem faltava a coragem de contar que, enquanto servia o almoço, ouviu a namorada de Alessio discorrer sobre Matilde com palavras pouco respeitosas. Os jovens riam, e um deles perguntava com insistência se podia ver a "prostituta".
Foi então que Alberto se apercebeu de quanto Matilde se tinha tornado importante para ele. Com o jardineiro e Celestino, munidos de tochas, deu uma volta pela colina, desceu até à aldeia e percorreu a margem do lago. Emitia, de vez em quando, o assobio modulado com que era costume chamar os cães. Tremia com a ideia de a rapariga se ter afogado, praguejava contra aqueles idiotas dos filhos e hesitava em denunciar o desaparecimento às autoridades. Percorreu o cais onde atracavam os barcos. Ao seu chamamento respondeu um latido. Alberto orientou o feixe de luz para esse latido, que se repetia, e viu os focinhos escuros dos cães a aparecer por baixo da tela que cobria o barco. Os animais, no entanto, não se mexeram. Segurou a beira do barco enquanto Peppino, com um salto, subiu e afastou a tela. Matilde, enroscada no fundo, dormia ao lado de Saladino e Kabiria.
Alberto estava dividido entre a cólera e a alegria. Entrou no barco, pegou na rapariga ao colo e, seguido pelos cães e pelos criados, regressou a casa.
Não disse uma palavra, não fez comentários. Pousou-a na cama, tirou-lhe os sapatos e cobriu-a. Rosetta apercebeu-se de que o patrão estava comovido.
- Amanhã de manhã sou eu que a vou levar à escola - disse simplesmente, e saiu do quarto em bicos de pés.
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16
A Primavera explodira no jardim com uma festa de cores e perfumes. As colunas estavam cheias de rosas trepadeiras de formas antigas e tons esbatidos. Nos canteiros desabrochavam íris e lírios. Os gladíolos, as frésias e as dálias estavam ainda aprisionadas nos botões verdes, à espera de se abrirem, enquanto as begónias e as camélias terminavam o seu ciclo de florescimento. Peppino, com a cabeça protegida por um chapéu de palha, recolhia pacientemente a erva acabada de cortar e fazia com ela uns montes que depois iria transportar no carrinho e usar como forragem para os coelhos.
Matilde, aninhada no relvado, arrancava as ervas daninhas para impedir que sufocassem o crescimento da relva que revestia, como um tapete, a área em volta do caramanchão onde costumava passar, no Verão, a hora do pôr-do-sol, contemplando a neblina que se levantava do lago e a última luz dourada sobre o cume das colinas. Da villa chegou até ela o som da sineta.
- São horas de almoço - anunciou o jardineiro, enquanto tirava o chapéu e passava um lenço pela testa coberta de suor.
- Eu ouvi. Não sou surda - respondeu Matilde, continuando o seu trabalho. Gostava de fazer limpezas dentro e fora de casa. Nada lhe parecia nunca demasiado luzidio: os copos, as pratas, os espelhos, os pavimentos, o relvado.
- Então despacha-te - pediu o velho. - Porque se não a comida arrefece.
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- Ufa! Ninguém me deixa em paz - protestou, enquanto se endireitava. - Às vezes pergunto-me onde é que vou arranjar paciência para aturar um velho resmungão como tu - acrescentou, dirigindo-se a casa em passos largos.
Foi então que os cães, do sítio em que estavam deitados à sombra, saltaram os dois ao mesmo tempo e começaram a correr ao longo da alameda de saibro em direcção ao portão, por onde vinha
a entrar um carro.
- Oh, meu Deus, chegou o patrão - exclamou o jardineiro, abandonando o carrinho de mão.
Rosetta apareceu à porta da villa, a limpar as mãos a uma ponta do avental que tinha à cintura.
- Peppino, vai depressa à cave buscar vinho - gritou para o marido. Depois voltou-se para Matilde. - E tu, minha menina, não fiques aí especada. Mexe-te.
Matilde chegou à alameda no momento em que um Lancia preto acabava de dar uma curva ladeada por umas azáleas viçosas. O carro parou e Alberto saiu. A rapariga deu uns passos para ir ao encontro dele.
- Pára onde estás - ordenou o médico, a sorrir. O motorista, entretanto, pôs o carro outra vez em movimento e foi até à entrada da villa.
Matilde tirou o chapéu de palha e abanou a cabeça, fazendo ondear aquela massa compacta de longos cabelos acobreados. Usava sempre um chapéu, no Verão, para evitar que as sardas se multiplicassem e a pele muito branca ficasse vermelha. Trazia uma blusa de organza rosada e umas calças brancas de tecido fino que flutuavam sobre as pernas muito compridas. Levou uma mão à testa para proteger os olhos do sol do meio-dia e sorriu por sua vez.
- Por que é que tenho de parar? - perguntou.
- Estás lindíssima. Pareces feita com pétalas de flor de pessegueiro - exclamou Alberto.
Celestino estava a descarregar da mala do carro uma série de embrulhos que Rosetta ia levando para casa. Os cães faziam um carrossel em volta das pernas do dono e dirigiam-lhe olhares de adoração, à espera de uma carícia.
Matilde correu ao encontro do professor e abraçou-o, enquanto os cães ladravam alegremente e se atiravam a eles.
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Alberto ria, feliz, com aquela confusão. - Tu e os cães conseguem ser piores do que um terramoto - exclamou, divertido.
- Há seis semanas que não o vejo. Julgava que se tinha esquecido de mim - lamentou-se Matilde, ao mesmo tempo que se dirigia à villa ao lado dele.
- Posso servir o almoço, professor?
- Eu como convosco na cozinha - decidiu o médico, enquanto tirava o casaco e arregaçava as mangas da camisa até ao cotovelo.
- Se soubéssemos que vinha, eu tinha cozinhado alguma coisa especial - desculpou-se a criada. - E a Matilde tinha feito o bolo de passas. Está fantástica a fazer doces.
- Só temos sopa de arroz e omeleta com umas pontas de urtigas que eu apanhei - explicou Matilde.
- Aquilo que serve para vocês também serve muito bem para mim - afirmou o médico, que não se resolvia a desviar os olhos da rapariga.
Levara-a até ali para uma estadia de algumas semanas. Tinham passado sete anos e ainda lá estava. A rapariga difícil, conflituosa e desesperada que Anna Lucchini lhe confiara tornara-se uma jovem de dezoito anos, alegre, conversadora e desenvolta, que animava com a sua presença aquela villa calma e sonolenta sobre o lago.
Alberto tinha-a visto crescer e fazer-se mulher, desabrochando como uma flor de rara beleza.
Mantivera-se um pouco selvagem. Gostava de se perder nos bosques e de ir pescar no lago. As vezes, a tristeza velava-lhe o olhar. Nesses momentos, alheava-se de todos. Até os criados respeitavam aqueles silêncios. - Vamos deixá-la sossegada - dizia Rosetta ao marido. - Tem os seus momentos de melancolia e nós temos de a entender. Tudo aquilo que ela passou não se apaga com uma esponja.
- O que me espanta é o desinteresse da família do patrão por esta desgraçada - lamentava o jardineiro.
- É claro que, se dependesse deles, já a rapariga estava na rua
- observava Rosetta.
Para os dois criados, Matilde tinha ocupado o lugar do filho perdido na guerra. Sabiam que a presença dela naquele lugar era precária. Só dependia da vontade do patrão continuar a albergá-la ou mandá-la embora. Achavam que, se a signora Brasca quisesse, o patrão a adoptava como filha.
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- Um dia - prognosticava Rosetta -, o patrão há-de encontrar para ela o marido certo. Porque a Matilde vai acabar por se casar, vai viver não sei para onde e nós nunca mais a vemos.
- Mas tem de ser um marido com muito dinheiro, porque ela agora está mal habituada - dizia Peppino, a quem desagradava a ideia de deixar de ter por perto aquele terramoto de rapariga.
Rosetta tinha-se apercebido há algum tempo de que havia alguns rapazes na aldeia que lhe faziam a corte com discrição, e não sabia se havia de ficar contente ou preocupada. Matilde, no entanto, não parecia dar-se conta. Um dia, a criada resolveu falar sobre o assunto com o patrão.
- Há um gavião ali da aldeia que anda a esvoaçar à volta da nossa Matilde - revelou-lhe.
Alberto ficou alarmado.
- Quem é? - perguntou, desconfiado.
- O filho do farmacêutico, o que anda a estudar em Pavia. Sempre que a pequena regressa da escola, ele arranja maneira de estar na estação e depois vem a pedalar com ela até aqui - contou Rosetta. - É claro que se pode dizer tudo daquela pestinha menos que seja maliciosa - acrescentou com uma certa satisfação.
- Não me agrada. Esta história não me agrada - decretou o médico. Sabia muito bem o que um jovem de vinte anos, de boas famílias, procurava numa rapariga sem família, sobretudo sendo bonita como Matilde. Não lhe disse nada. Mas falou com o farmacêutico e o "gavião" desapareceu de circulação. Agora, sentado com os criados à mesa da cozinha, conversava animadamente, contando a sua recente viagem a Nova Iorque.
- Duas semanas num navio, para ir e voltar - contava. - Há coisas, na América, que nós nem imaginamos. Os arranha-céus são tão altos que metem medo. As pessoas de dia trabalham na cidade e à noite regressam a casa cobrindo distâncias como a de Milão até aqui. Andam todos de automóvel ou de metropolitano, que é muito mais comprido e mais moderno do que o de Paris. Eu fiquei num grande hotel na Quinta Avenida. Deram-me um apartamento no quarto andar e eu não conseguia dormir com o barulho dos carros. Pedi que me mudassem para o décimo quinto andar e finalmente consegui descansar.
Ouviam-no, espantados, e Matilde não parava de fazer perguntas.
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- Se tirares o curso de professora, como prémio levo-te a fazer uma grande viagem comigo - prometeu Alberto.
Tinham acabado de almoçar e estavam sentados, sozinhos, no terraço. Matilde, como sempre, aninhada aos seus pés com os cães.
- A sério, professor, era capaz de fazer uma coisa dessas por mim? - perguntou, incrédula.
- Porquê, não devia?
- Porque se calhar a sua família não ia gostar que levasse consigo, para a América, uma órfã que há demasiado tempo se aproveita da sua generosidade - disse de um só fôlego.
Tinha deixado para trás a infância, há muito tempo, e agora começava a colocar algumas questões e a alimentar certas dúvidas em relação ao futuro.
- Com toda a franqueza, Matilde, devo dizer-te que não me interessa nada aquilo que a minha família pensa. Da mesma maneira que à minha mulher e aos meus filhos importa muito pouco aquilo que eu penso ou faço. Esta é que é a verdade - confessou com alguma tristeza.
Matilde observou-o, pensativa.
- O que mais me queres dizer? Eu conheço-te bem, minha menina. Qual é o problema? - perguntou, olhando-a com ternura.
- Nem eu sei bem. Ando inquieta, nervosa. Não sei porquê.
- Quando souberes, vamos abordar os dois juntos a situação, como sempre fizemos. Se isso serve para te tranquilizar, ficas a saber que eu tenho muito orgulho de ti. Daqui a um ano és professora. Vais ter uma profissão que te permitirá viver com dignidade. Quanto ao resto, eu vou estar sempre ao teu lado para te ajudar. Nunca te vou perder de vista, porque tu fazes parte da minha vida
- declarou Alberto, inclinando-se para lhe despentear os cabelos.
Matilde ergueu os braços, rodeou-lhe o pescoço, apertou-o contra ela e começou a beijar-lhe o rosto com uma emoção inesperada para os dois. Quando os lábios de ambos se encontraram, pareceu-lhes que aquele era o instante pelo qual tinha valido a pena esperar durante sete longuíssimos anos.
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Foi um beijo longo e apaixonado, ao qual se abandonaram no silêncio da tarde percorrida por uma brisa quente e ligeira.
Já de manhã, ao chegar à villa, no momento em que Matilde tinha corrido ao seu encontro, Alberto ficara atordoado com a sua beleza. Etérea e sensual, a jovem estava agora quase da sua altura. Tinha um corpo magro e flexível, a pele de uma transparência delicada, o rosto rosado, os traços perfeitos exaltados pelas pequenas sardas que salpicavam o nariz e as faces, e os cabelos cor de fogo que desciam em ondas largas e lhe acariciavam o pescoço comprido e os ombros.
Tinha decidido ir vê-la após a fadiga de uma longa viagem de trabalho aos Estados Unidos e uma tempestade familiar desencadeada pela nora, Vittonna Pulitanò que, ao descobrir mais uma infidelidade do marido, decidira separar-se dele. Lucetta aproveitara a ocasião para despejar em cima de Alberto a culpa pela imaturidade de Alessio e também a de Pietro, o segundo filho. E, já agora, culpara-o também da sua própria infelicidade, devida ao abandono do amante que tinha optado por uma mulher mais jovem.
Durante a noite, Lucetta enfiou-se na cama de Alberto, o que provocou uma cena tremenda, porque ele se esquivou ao desejo da mulher e se foi refugiar no escritório. Ela foi atrás dele e desfiou um rosário de acusações.
- Tu foges de mim porque tens outra mulher - acusou Lucetta.
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- Há vinte anos que não partilhamos a mesma cama. De onde veio agora esta paixão repentina? - reagiu ele.
- Só queria verificar se andas metido com a égua que tens lá na casa de campo. Agora tenho a certeza de que é tua amante - declarou ela.
Deu-lhe uma bofetada de que se arrependeu imediatamente; Mas não fora capaz de tolerar um insulto à inocência de Matilde e à pureza daquela relação.
- Achas mesmo que todas as mulheres são parecidas contigo?
- perguntou em tom de desafio.
- Eu posso armar um escândalo. Sabias? Posso mandar pôr aquela prostituta na rua quando eu quiser - ameaçou.
A ira de Alberto esfumou-se numa gargalhada. - Isto é realmente o cúmulo. Se tu não fosses a mulher infeliz que tens sido toda a vida, eu ainda atribuía esse teu azedume à menopausa. O Giovanni Pulitanò deixou-te, e agora queres descarregar em cima de mim. Nunca admitiste a hipótese de a imaturidade dos teus filhos depender do facto de terem tido uma mãe como tu?
Mandou-a sair e fechou-se no escritório. Obviamente, não conseguiu dormir. Por isso, voltou a vestir-se e dirigiu-se ao hospital, a meio da noite.
Deu uma volta pelos corredores, espiando o sono dos seus pequenos pacientes. De manhã, depois das consultas no serviço com os alunos, telefonou a Celestino para o ir buscar e levar à villa, no campo. Estava demasiado cansado para conduzir.
Decidiu conceder-se uma semana de repouso. Entretanto, esperava que a tempestade em casa amainasse e desejava que Lucetta arranjasse outra vítima em quem descarregar o histerismo. Agora, enquanto beijava Matilde, percebeu que a mulher, com uma intuição feminina, tinha lido nele o sentimento que experimentava por aquela jovem. Desejava-a com toda a alma. No entanto, apelando ao bom senso, tentou distanciar-se dela imediatamente. Agarrou-a pelos pulsos e desfez o abraço.
Sorriu-lhe, tentando aligeirar o que acabava de acontecer. - Ei, minha menina, estas efusões deves guardá-las para o teu namorado, quando o tiveres. Não para este médico velho.
Estava assustado com aquela paixão, que podia provocar uma reviravolta na vida deles, anulando tudo aquilo que de bom tinham
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construído juntos em tantos anos. Arrependeu-se de não a ter mandado para um colégio quando era tempo.
Matilde dirigiu-lhe um olhar suplicante. - Porquê? - perguntou. Depois sussurrou, corando. - Eu amo-te, professor.
Estas palavras, finalmente ditas, deram-lhe a medida de um sentimento durante muito tempo acalentado e nunca confessado. Agora sabia que os numerosos rapazes que há muito tempo lhe faziam a corte a tinham deixado sempre indiferente porque o seu coração pertencia desde sempre a Alberto.
- O que sabes tu do amor? - perguntou-lhe ele com uma sombra de tristeza na voz. - Eu acho que estás a confundir com amor a gratidão, a amizade e o afecto que nos liga há anos.
Matilde teve uma sensação de irritação que a fez reagir: - Com que direito julgas os meus sentimentos?
- És a pestinha do costume. Mas eu não vou cair na tua armadilha. Tenho mais de cinquenta anos. Tu só tens dezoito. Se eu te fizesse a vontade, considerar-me-ia um velho lúbrico. Minha pequena Matilde, tu mereces mais e melhor do que este médico velhote que gosta muito de ti - disse Alberto, olhando-a com ternura.
Ela estava furibunda. Aquele homem bom, generoso e bonito, rejeitava a felicidade que tinham ao alcance da mão.
- Se pensa assim, eu não quero continuar nesta casa. Não aceito a presença de um homem que me ama e que não tem a coragem de o admitir - declarou com raiva.
Desceu os degraus do terraço e correu, através do prado, até ao caramanchão. Através das pequenas colunas cobertas de hera olhou as águas escuras do lago onde o sol criava movimentos cintilantes. O silêncio da tarde era sublinhado pelo canto ensurdecedor das cigarras, que exaltava o seu desespero. Perguntava a si mesma onde poderia ir para escapar a uma situação que se tornara, de repente, insustentável. Não tinha ninguém no mundo, para além dele.
Então lembrou-se de Ermelinda. De vez em quando escreviam-se. A mulher terminava sempre as cartas dizendo: "A tua amiga, aquela com quem poderás sempre contar."
- Vou-me embora - disse em voz alta.
- Tu não vais a lado nenhum. Pelo menos sem mim. Que sentido teria a minha vida se tu não estivesses ao meu lado ? - Alberto veio surpreendê-la, aproximando-se por trás dela, em silêncio.
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Matilde não se mexeu. Ele pousou-lhe uma mão na nuca. Ela estremeceu com aquele contacto. Alberto tinha umas mãos lindíssimas. "Taumatúrgicas", como ela gostava de as definir.
- Olha para mim, pequenina - sussurrou. Ela voltou-se e olhou para ele.
- Achas mesmo que este velho é digno de ti? - perguntou com ternura, acariciando-lhe o rosto. Tinha os olhos brilhantes de comoção. Abriu os braços e Matilde refugiou-se no seu peito. Ficaram abraçados, sem falar.
Depois atravessaram o prado e entraram em casa.
Os criados, nas tardes de Verão, descansavam no quarto. Alberto subiu as escadas com ela ao colo, entrou no seu quarto, pousou-a na grande cama coberta de piquet branco e, lentamente, começou a despi-la.
As persianas descidas filtravam lâminas de sol que desenhavam riscas de luz e sombra nas paredes, na cama, nos seus corpos nus. No prazer que os uniu, ela esqueceu o medo e apagou recordações terríveis.
- Quero mandar fazer o teu retrato - disse Alberto, abraçando-a.
- Já me tiraste muitas fotografias. Tenho-as guardadas num álbum - replicou.
- Estou a falar de uma pintura. Quero um bom pintor para ti.
- Não tenho a certeza de querer posar - respondeu ela.
- Depois pensamos nisso - rematou Alberto, atormentado por um pensamento terrível: - E agora, quem é que me vai dar forças para me separar de ti e regressar a Milão?
- Pois é. E eu, como é que vou arranjar coragem para enfrentar a Rosetta, o Peppino e o Celestino? - respondeu.
Alberto apertou-a contra si e embalou-a. Como todos os apaixonados, gostaria de poder excluir o resto do mundo, porque não precisavam de ninguém para além deles próprios. Tinha agora a certeza de que Matilde era a mulher que o destino reservara para si, e que tudo aquilo que tinha feito na vida ganhara sentido com aquele encontro. Pensou que, nos desígnios misteriosos da sorte, tivesse estado desde sempre reservada, para ele, aquela silenciosa tarde de Verão, a fresca penumbra do quarto e aquela espantosa jovem de dezoito anos que dava finalmente uma forma concreta
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àqueles longos anos de espera. Matilde era a flor de uma planta rara que fora desabrochando para ele.
Recordou o corpinho magro, malnutrido, martirizado pelas tareias, que apanhara do chão no átrio da sua casa, na via Verdi. Recordou a criatura febril, no hospital das crianças, que lutara durante dias entre a vida e a morte, extenuada pelos maus-tratos e pelos abusos de um pai violento. A sorte acabara por lha entregar, e ele fizera tudo quanto estava ao seu alcance para lhe dar uma vida melhor. Agora que fizera dela sua mulher, poderia ainda garantir-lhe a mesma serenidade?
- Os criados são mesmo um problema? - perguntou-lhe, pensativo.
Matilde anuiu.
- Vamos já resolver isso. Veste-te - disse-lhe.
Desceram juntos ao rés-do-chão e entraram na cozinha. Rosetta estava no lava-loiça a lavar a hortaliça para o minestrone do jantar. Levantou os olhos para eles e ficou espantada por os ver abraçados.
- A partir desta noite, a Matilde vai dormir no meu quarto. Quer eu esteja na villa, quer não, porque agora o meu quarto é dela também - anunciou Alberto, com simplicidade.
- Oh, meu Deus! - balbuciou a mulher, empalidecendo. Levou uma mão molhada à testa, como se quisesse apagar uma realidade difícil de aceitar.
- A Matilde já está preocupada que chegue. E até eu estou, se queres que te diga a verdade - confessou Alberto.
- Com todo o respeito que lhe devo, deixe-me que lhe diga que não estava à espera - disse a criada.
- Preferias que escondêssemos os nossos sentimentos? Tens medo que eu possa fazer mal à Matilde? Temes pela minha família? Eu entendo o teu espanto, que é nosso também - explicou Alberto.
Rosetta ficou calada. Depois aproximou-se de Matilde e, com um braço, rodeou-lhe os ombros, num gesto protector.
- Agora, esta pequenina está feliz. Mas amanhã, o que vai ser dela? - atreveu-se a perguntar.
- Eu vou preocupar-me com ela amanhã, depois de amanhã
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e todos os dias que vierem para o resto da minha vida - afirmou Alberto.
- Não se poderia manter a coisa em segredo, pelo menos durante algum tempo? - observou a criada, que começava já a aceitar aquele facto novo.
- Seria a mesma coisa que admitir que somos culpados e que temos medo daquilo que as pessoas vão pensar - replicou Alberto.
- O senhor é uma pessoa instruída e um cavalheiro. Se pensa assim, lá terá as suas razões. Eu, cá por mim, nem pio - concluiu Rosetta, e continuou a lavar a hortaliça.
Alberto regressou a Milão uma semana depois e a separação foi realmente difícil para ambos, apesar de saberem que em breve estariam juntos de novo.
No domingo, Matilde foi à missa, à aldeia, e quis confessar-se.
- Reverendo, perdoe-me porque pequei - sussurrou, através da grade, ignorando que repetia as mesmas palavras pronunciadas pela mãe quando começara a sua história com Delmo.
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Matilde entrou no comboio Milão-Paris, precedida por Alberto e seguida por um funcionário que transportava a bagagem dos dois. Era Dezembro. O vento gelado insinuava-se sob as abóbadas altíssimas da Estação Central, repleta de viajantes. Estremeceu por baixo do casaco claro de pele de castor, e por uns instantes desejou estar ainda na villa sobre o lago, onde tudo lhe era familiar. Sentiu-se culpada por causa dos dias de estudo que ia perder, por ter deixado sozinhos o jardineiro e a mulher e pelos cães, que iam sofrer com a sua ausência. Sentiu-se assustada com aquela nova aventura que a levava para longe, em direcção a uma terra desconhecida, tendo Alberto como único ponto de referência. Quando ele lhe anunciou a viagem, sentiu à flor da pele um formigueiro de prazer. Agora estava apavorada. Instintivamente, estendeu uma mão para agarrar o braço do companheiro. O médico voltou-se e sorriu-lhe. O revisor abriu a porta de um compartimento da carruagem-cama.
- Este é para a menina - disse, enquanto se chegava para o lado e deixava Matilde entrar. - E aqui ao lado é o compartimento do senhor - acrescentou, enquanto abria uma porta que punha em comunicação os dois espaços.
O funcionário separou a bagagem de Matilde da do médico, enquanto o chefe continuava a dar instruções.
- Isto é o lavabo, com água quente e fria, e no armário de cima está a garrafa da água fresca e os copos. Espero que o aquecimento
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seja suficiente. O jantar será servido às oito horas, no vagão-restaurante. Para qualquer necessidade, basta tocar esta campainha: estou ao serviço dos senhores - concluiu. Alberto estendeu uma gorjeta ao funcionário e ao revisor. Fechou a porta dos dois compartimentos, que davam para o corredor, tirou o sobretudo e o chapéu, e a seguir ajudou Matilde a tirar o casaco de peles.
- De repente, ficaste muda - disse, olhando-a nos olhos.
- Estou um pouco confusa - sussurrou ela.
- Vais ter de te habituar às viagens. No próximo Verão vamos à América. Mas antes disso, na Páscoa, vou levar-te a Londres. Nunca mais quero ir para longe sem ti - explicou.
Bateram à porta. Era um funcionário. - Flores para a senhora e champanhe para o senhor - anunciou.
- Quem mandou? - perguntou Matilde, ao mesmo tempo que enterrava o rosto num ramo de rosas pálidas e lírios pequenos.
- O senhor - disse o empregado. E acrescentou, com ar profissional: - Quando forem jantar eu trato de arranjar as camas.
- Vais dar-me sempre este mimo todo? - perguntou Matilde, a sorrir.
- E muito mais, minha pestinha. Aquilo que eu te posso oferecer nunca chegará a recompensar tudo aquilo que recebo de ti. Beijou-a, enquanto insinuava uma mão por baixo do casaco do tailleur azul para acariciar a seda da camisa e sentir a tepidez do seu corpo.
- Ofereces-me avalanches de amor, de vestidos, de livros, de flores. Levas-me ao cinema, ao teatro. Passas as noites a correr entre o lago e o hospital, em vez de descansares como devias. Sacrificaste por mim a tua vida familiar, os teus amigos, os teus compromissos sociais. Aguentas as criticas da tua família. Eu não faço nada por ti
- observou Matilde.
- Tu devolveste-me os meus vinte anos. Há muito tempo que não jogava ténis, que não andava de bicicleta, que não fazia esqui nem relaxava à noite num sofá com uma mão simpática a fazer-me festas. Tu não sabes o prazer que eu sinto só de olhar para ti, ou quando me lês as páginas de um romance que te agrada. Para além disso, reservas-me ainda a alegria do teu corpo, que se adapta tão bem ao meu. Quando nos amamos, é tudo tão perfeito que raia a comoção - admitiu.
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- E quando te falam de mim como se fosse tua filha? Também gostas disso? - desafiou-o, divertida.
- Com toda a sinceridade, estimula o meu orgulho de macho. Estou louco por ti - confessou.
Riram os dois. Um esticão brusco e o assobio da locomotiva avisaram-nos da partida. Matilde agarrou-se a ele.
- Sinto-me como uma árvore que alguém está prestes a arrancar pela raiz - sussurrou.
- É a sensação que acompanha qualquer partida. Nós não somos um povo nómada - disse Alberto. Abriu a garrafa de champanhe e serviu-o. - Temos de brindar à tua primeira viagem disse. - E à sorte, para que nunca nos separe.
Durante todo o Verão e o longo Outono tinham passado juntos o pouco tempo livre de Alberto, isolando-se do mundo, felizes naquela intimidade, rodeados pela cumplicidade discreta dos criados e pelas lamentações dos amigos da aldeia que, durante aqueles anos, se tinham habituado à companhia do ilustre clínico. - Aquela pequena deu-lhe a volta à cabeça - sussurravam entre eles, não sem uma certa inveja.
Na realidade, Alberto não tinha efectivamente perdido o juízo, tinha sim redescoberto o prazer de viver. Fizera uma escolha e, como sempre lhe acontecera, iria levá-la até ao fim do mundo.
Deixou o apartamento da via Verdi, que partilhara com Lucetta e com os filhos durante vinte e cinco anos, e transferiu-se para a via Bigli, para o prédio da mãe, Cristina Brasca, Odescalchi de solteira.
A velha condessa acolheu-o, de acordo com o seu estilo, com serenidade. - Fala-me dela - disse-lhe. - Pelo que tenho ouvido em conversas de salão, deve ser lindíssima.
- Não acredites, mãe, nas conversas de salão - replicou Alberto.
- Sei muito bem o que valem - concordou a senhora.
- De facto, nunca ninguém a viu na cidade. De qualquer maneira, é verdade que é muito bonita, mas a Lucetta também era, quando casei com ela. A Matilde é diferente. É forte, determinada, sincera. Gostavas dela, se a conhecesses.
- Cada coisa a seu tempo. Diz-me o que há de verdade no seu passado de "angiolina".
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- Foi lá que a fui buscar. Queria a filha que a Lucetta não me deu. E só depois, quando a criança desesperada se tornou mulher, percebi que sempre tinha procurado nela a minha companheira confessou Alberto.
- Muito intelectual, e poético também - comentou a mãe. - Mas, a partir do momento em que te puseste contra todos, tens o meu apoio incondicional - decidiu a senhora, que era suficientemente rica e influente para não dar qualquer importância à opinião dos outros.
- Lamento que haja tanta conversa à volta disto - disse ele.
- Parece-me legítimo. Quando o tédio vencer a bisbilhotice, então eu vou querer conhecer essa maravilha - decretou a mãe.
Mas, entretanto, a bisbilhotice proliferava e ia-se enriquecendo de pormenores cada vez mais fantasiosos. Salviati, o barbeiro, que agora se apresentava de manhã cedo na via Bigli, fazia questão de informar o médico sobre o andamento da situação.
- O comendador Brambati arranjou uma amante jovem e a signora Brambati diz mal de si, professor. Diz que o senhor é um péssimo exemplo para todos os maridos, se é que me posso permitir referir-lhe textualmente as suas palavras - revelou-lhe uma manhã.
Alberto, com o rosto coberto de espuma, sorriu, ao mesmo tempo que acariciava a cabeça de Nestor, que ia comentando os mexericos do barbeiro com umas rosnadelas surdas.
As crónicas de Salviati prosseguiam, intervaladas, por vezes, com perguntas ansiosas sobre o seu próprio estado de saúde.
- Quando ando um bocado a correr, sinto uma espécie de assobio na garganta. É grave, professor?
- Salviati, você tem de fumar menos, falar menos e trabalhar menos. Já não é nenhuma criança - replicou Alberto.
- Tenho exactamente cinquenta anos, como o professor.
- Só que eu aparento quarenta e você sessenta.
- Não me quer fazer uma consultazinha?
- Está bem. Um destes dias dou uma vista de olhos. Agora despache-se, porque está a fazer-se tarde - pediu Alberto, ao mesmo tempo que tirava da cara os paninhos embebidos em água quente.
Tinha um criado novo, Gino. Celestino ficara na villa com a tarefa de servir de motorista a Matilde. Tinha comprado para ela
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um carro novo. O seu criado de confiança deveria ainda ensiná-la a conduzir.
Agora, enquanto o comboio saía da estação e passava, com um ruído forte de ferros, por cima de um labirinto de linhas, sentia-se tranquilo por saber que no dia seguinte encontrariam Celestino em Paris para os receber.
Para Matilde, tinha mandado reabrir o palacete neoclássico que pertencia à mãe, nas proximidades de Neuilly. Alberto seguiria as sessões de um congresso de fisiatria e Matilde, na companhia de Celestino, ia descobrir Paris e as suas montras fabulosas. Iam passar o Natal juntos, na intimidade daquela casa, e regressariam a Itália no fim das férias, a tempo do recomeço das aulas.
Do corredor da carruagem-cama chegou o som de uma campainha que anunciava que o jantar estava servido.
- Até parece que estou a viver num filme, ou num romance observou Matilde, tirando do ramo uma rosa e prendendo-a à gola do casaco.
- Não sei se vai ser sempre assim tão excitante, mas garanto-te um final risonho - afirmou Alberto, enquanto a escoltava até ao vagão-restaurante
- O final risonho seria: "E viveram felizes e contentes para sempre"? - perguntou a jovem.
- Conheces algum melhor? - replicou ele.
Sentaram-se à mesa, iluminada por um abat-jour rosado. Sobre a toalha de linho adamascado havia uma minúscula jarra de flores.
Matilde estendeu a mão e pousou-a sobre a de Alberto. - Nunca se vive feliz e contente para sempre. Já não sou uma criancinha a quem tenhas de contar uma história. Um final melhor, e até mais realista, seria: "E morreram juntos, amando-se, nos braços um do outro" - disse, em voz baixa.
- Era isso que tu querias? - perguntou Alberto, espantado.
- Não, se pensar no presente. Sim, se pensar nos anos que estão para vir.
- Então pensa só no presente e lê o menu. Há ostras de entrada. Tu nunca comeste e eu não tas aconselho. Não é evidente que façam bem ao amor, mas é verdade que fazem mal ao estômago.
- Tudo bem, professor. Nada de ostras - concordou ela.
- Mas podes provar uma. Assim já vês a que é que sabem.
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- Diz-me tu.
- Eu não sei. As ostras sempre me meteram nojo. Como os miolos, os rins, os caracóis e as rãs.
- Como o alho, a cebola crua, o pepino e a sopa de tartaruga
- completou Matilde.
- Quando é que provaste sopa de tartaruga? - perguntou Alberto, desconfiado.
- Nunca. Mete-me nojo só o nome - respondeu ela. Riram-se, divertidos, conscientes de que, se o final risonho não
existe, existe pelo menos um mundo risonho até se chegar à meta.
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19
Quando regressaram de Paris, Alberto já tinha com ele o retrato de Matilde. Era uma pequena tela assinada pelo pintor trances Eric Junot, que tinha sido aluno de Giovanni Boldini. Com o professor, falecido cinco anos antes, tinha aprendido a extraordinária técnica de traçar figuras femininas, exaltando-lhes a sensualidade.
A ela custara-lhe horas intermináveis de pose, menos aborrecidas devido à presença de Alberto, que nunca a deixaria sozinha com o artista. Na salinha da villa neoclássica, aquecida pelo fogo da lareira, Matilde, praticamente nua, ficava estendida no sofá Império com os seios e o ventre em contacto com as almofadas de seda adamascada. Oferecia à vista do pintor os ombros, as costas, as nádegas e as pernas compridas num jogo de luzes e sombras que faziam realçar a candura da pele e a massa fulva de cabelos longos, que lhe afagavam os ombros e sublinhavam o perfil delicado do rosto.
O som de um gramofone acompanhava aquelas pinceladas lentas e leves, espalhando pela sala tangos argentinos cantados por Carlos Gardel, Azucena Maizani, Sofia Bozán c Roberto Firpo.
- O tango - explicou o pintor - ajuda-me a fazer emergir o que há de melhor em cada mulher que retrato.
- Gosto destas canções. As palavras parecem-me mais bonitas que um poema. Alberto, por que não me levas a dançar? Tenho tanta vontade de dançar o tango - disse Matilde.
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- Vais ter de passar sem isso, porque eu ia-me sentir terrivelmente ridículo se te levasse a dançar - respondeu o médico.
- Posso oferecer-me como acompanhante de mademoiselle Matilde? Conheço os sítios onde há tango a sério, em Paris. Se monsieur me permitir - propôs o pintor.
- Monsieur não permite - respondeu Alberto, dirigindo a Matilde um sorriso malicioso. E prosseguiu: - Quanto a ti, minha pestinha, não distraias o artista do seu trabalho. Tenho pressa de ver o teu retrato acabado.
Quando a pintura ficou pronta, Alberto e Matilde observaram-na durante muito tempo. - Aquela serei eu? - perguntou Matilde.
- És mesmo tu - afirmou Alberto, satisfeito, e acrescentou:
- Está ali toda a tua sensualidade.
- Nunca vou ter coragem de levar este quadro para casa. Ia corar de vergonha se a Rosetta ou os outros o vissem - confessou ela.
- É meu. Vou pô-lo no meu quarto, em Milão. Assim posso olhar para ti enquanto estiver longe - declarou ele.
A primeira coisa que fez, ao regressar a casa da mãe, foi procurar um prego e um martelo para pendurar a pintura. Achou o sítio ideal, na parede ao lado da cama, pois assim poderia vê-la mesmo estando sentado à secretária. Estava precisamente a dar a última pancada com o martelo quando a mãe apareceu à porta. Alberto foi ao encontro dela e cumprimentou-a, beijando-lhe a mão.
- Paris continua fantástica? - perguntou ela.
- Desta vez mais ainda - sublinhou ele.
A velha senhora sentou-se no pequeno sofá aos pés da cama.
- Acho que deves saber por mim o que aconteceu por cá enquanto estavas de férias - começou.
- Se tem a ver com a Lucetta, prefiro não saber - disse Alberto. Naquela fase esperava o pior da mulher, que há meses lhe fazia telefonemas ameaçadores e lhe enviava cartas cheias de insultos.
- Teve alta da clínica há dois dias. Tentativa de suicídio com barbitúricos - disse a mãe. - Agora está bem, mas não sei até que ponto estaria determinada a levar a cabo o seu propósito. Mas não é só isto. A tua nora deixou definitivamente o Alessio e os Pulitanò intentaram uma causa por danos. Parece que o teu filho esbanjou ao jogo o património da pobre Vittorina. E não se pode dizer que
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as coisas corram melhor com o teu outro filho. Engravidou a filha da cozinheira e a jovem Damiana Magnaghi. Os Magnaghi exigem um matrimónio que repare o dano, enquanto a cozinheira ameaça uma denúncia se o teu filho não aceitar as suas exigências económicas. Queres que continue?
Enquanto a mãe falava, Alberto tirava o quadro da embalagem.
- Ouvi uns rumores sobre isso, em Paris. Telefonou-me o administrador a perguntar se devia pagar - disse ele.
- E então? - perguntou a mãe.
- Fechei as torneiras todas. Acho que os meus filhos têm de aprender a resolver a vida deles sem recorrer ao meu dinheiro. Enquanto eu paguei, as coisas correram de mal a pior. Quanto a Lucetta, só tinha tomado cinco comprimidos para dormir. Não tem a mínima intenção de morrer - declarou.
- Nunca te vi tão determinado com a tua família. Estou a gostar. No entanto, pergunto a mim mesma se vale realmente a pena mergulhar nesta confusão toda por causa de uma mulher - comentou a signora Brasca.
- Julga tu, mãe - afirmou Alberto, enquanto pendurava o retrato de Matilde.
A signora Brasca levantou-se, encostou-se à parede e observou a pintura com a ajuda de uns pequenos óculos que trazia pendurados ao pescoço com uma fitinha de veludo preto.
- É ela? - perguntou. Alberto anuiu.
- Sim, vale a pena - concluiu, dirigindo ao filho um sorriso cheio de compreensão.
Alberto inclinou-se para beijar a testa da mãe. - Obrigado sussurrou. - A tua aprovação dá-me uma grande ajuda.
- Vou ter com a minha nora e verei o que lhe posso propor para aceitar a situação sem mais dramas - disse a mãe.
Nos meses que se seguiram, pareceu, de facto, que Lucetta se tinha conformado com a separação. Acabou com os telefonemas ameaçadores, não voltou a escrever cartas insultuosas e regressou à sua brilhante vida social, explicando às amigas que a relação de Alberto com a "jovem prostituta" era o seu canto do cisne.
- Coitado do homem, vai fazer cinquenta e um anos e não se resigna a envelhecer. Também a nós, mulheres, nos custa aceitar
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o curso inexorável do tempo. Mas ao fim acabamos por nos conformar. Em breve o meu marido vai regressar a casa e eu vou recebê-lo com o meu perdão - dizia num tom frívolo.
Com os filhos, dentro das paredes domésticas, aquela aparente magnanimidade desaparecia. - O vosso pai é um porco - declarava, sempre que tinha oportunidade. - E vocês os dois são dignos dele. Uma coisa é certa: enquanto ele estiver com aquela galdéria, e vai estar durante muito tempo, porque os Brasca são todos uns teimosos, vamos ter muito pouco dinheiro em casa. A menos que a galdéria que ele tem lá no campo não o traia. E como ainda está para nascer uma rameira que saiba ser fiel, só precisamos de ter paciência. Entretanto, vocês vão ter de resolver a vossa vida sozinhos. Por isso, tu, Pietro, vais casar com a jovem Magnaghi, que não é propriamente o máximo das minhas aspirações, mas que sempre é um bom partido. Podes dar graças a Deus por a tua avó te ter livrado de uma complicação com o que pagou à filha da cozinheira. E tu, meu pobre Alessio, vais ter de começar a trabalhar. Os meus parentes de Parma arranjaram-te um bom emprego no banco deles. Com o tempo, vais conseguir reconquistar a tua mulher. A Vittorina é tão estúpida que, apesar de tudo, continua apaixonada por ti.
Quando estava sozinha, acontecia-lhe muitas vezes desatar a chorar. - Mas por que é que eu tenho de ser tão infeliz? - dizia.
- Não fiz nada para merecer uma sorte tão horrível. Tive alguns flirts, é verdade. Mas que mais podia eu fazer, para passar o tempo? É verdade que não casei com ele por amor, mas isso não significa que eu não seja a sua mulher, para todos os efeitos. Até lhe dei dois filhos. E ele esperou que eu chegasse aos cinquenta anos, sem possibilidades de refazer a minha vida, para se apaixonar por uma de dezoito e me humilhar diante de toda a gente. Se existe uma justiça divina, o meu marido vai pagar caro por esta afronta. Mas, entretanto, onde é que eu vou arranjar forças para sobreviver? - Olhava para o espelho, limpava as lágrimas e tocava as rugas que lhe marcavam o rosto. - Não tenho hipótese nenhuma de arranjar um novo amante. Se calhar, devia entregar-me às obras de caridade. As minhas amigas fazem isso. Mas não me apetece. As misérias dos outros deprimem-me. E se fizesse uma viagem? Uma longa viagem, como é evidente. Talvez dar a volta ao mundo, da América até à China. Pois, mas com quem?
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Lucetta atormentava-se nas suas dúvidas e as semanas iam passando, sempre iguais. Alberto brilhava pela sua ausência total. Chegou a Páscoa. Matilde adoeceu.
Rosetta telefonou ao professor, que estava no hospital. - A menina está com febre alta e queixa-se de dores de garganta - disse.
Alberto foi imediatamente para a villa.
Matilde estava realmente mal. Quase não conseguia falar. Ele observou-a escrupulosamente. Por fim, dirigiu-lhe um sorriso tranquilo: - É só uma laringite. Vou dar-te quinino para baixar a temperatura e um medicamento novo para combater a infecção. Não faz mal se não conseguires engolir a comida. Vais tomar sumos de fruta e um caldo simples, de carne. Entretanto vou pôr-te uma compressa fria na testa.
Rosetta e Peppino corriam da cozinha para o quarto com gelo, fruta passada e adoçada com mel, mudas de roupa. Celestino ia e vinha da aldeia a toda a hora a comprar remédios e alimentos. Alberto sentou-se numa poltrona, ao lado da cama, decidido a não deixar Matilde enquanto ela não saísse do torpor da febre.
Passou assim um dia e uma noite. Limpava-lhe o suor, dava-lhe de beber em pequenos goles e amparava-a para a levar à casa de banho. Finalmente, a temperatura começou a ceder. Mas a dor de garganta persistia.
Alberto procurou atenuar-lhe a secura da garganta. Ao fim de uma semana, Matilde sentia-se melhor, mas ainda não estava curada. - Acho que não vais poder ir a Londres comigo - anunciou ele, cheio de pena. Chegou até a considerar a hipótese de renunciar ele próprio à viagem. E tê-lo-ia feito, se não tivesse verificado nela sinais inequívocos de cura.
- Eu também acho - respondeu Matilde. Não conseguia ainda ingerir comida sólida. Rosetta preparava-lhe papas, carne picada e batidos de fruta.
- Se me pedires, renuncio ao congresso em Inglaterra - disse Alberto, esperando firmemente que ela lhe fizesse esse pedido.
- Vai sossegado, meu amor. Quando voltares, eu já estou boa. Vou correr ao teu encontro e assalto-te logo para ver os presentes que me trouxeste - brincou Matilde.
- Vou estar fora uma semana. Sem ti, será a semana mais longa da minha vida. A propósito, o que queres que te traga de Londres?
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-- Nada. Volta depressa. Tu és o meu presente preferido - replicou. Depois acrescentou com alguma timidez: - Em qualquer caso, gostava muito de ter uma boneca.
- Não achas que és um bocadinho crescida para brincar com bonecas?
- Nunca tive nenhuma, quando era pequena - justificou-se. De Londres, Alberto telegrafava todos os dias e o empregado
dos correios andava muito atarefado, a receber e transmitir mensagens. Um dia, Matilde recebeu um telegrama: "Encontrei boneca. Linda de morrer. Parecida contigo."
No jardim floriam prímulas e lírios-do-vale, narcisos e margaridas. Nuvens de tempestade deslizavam velozes para oriente, empurradas pelo vento de Abril. Matilde tinha recebido um telefonema de Alberto, que saía do comboio em Milão. Agora esperava-o com impaciência.
Corria continuamente da cozinha, onde estava a preparar uma tarte de maçã, para a varanda, assim que lhe parecia ouvir ladrar os cães.
De manhã tinha lavado o cabelo. Rosetta ajudou-a a secá-lo junto à lareira e depois penteou-a, fazendo-lhe uma grande trança que lhe enrolou na nuca. Trazia, umas meias de seda, uns sapatinhos de verniz azul-escuro, uma saia de godés de crepe azul-claro e.uma camisolinha de angora da mesma cor.
- Estás tão bonita que pareces uma pintura - concluiu a criada. Matilde sentia-se renascer. Achava que tinha de recuperar aquelas duas semanas de cama fazendo mil e uma coisas.
- Mas fica um bocado quieta - disse Rosetta, impaciente. És pior que um gafanhoto. Não é por andares a correr para trás e para a frente que o patrão vai chegar antes do tempo.
- Mas se eu estiver ocupada, o tempo passa mais depressa explicou ela.
- E ficas outra vez doente, porque ainda estás muito fraca e essa correria não te faz nada bem - ralhou.
- É ele. Chegou! - gritou Matilde, fechando de repente a porta do forno onde tinha colocado a forma da tarte. Kahiria e Saladino, com efeito, tinham-se esgueirado da cozinha e corriam em direcção à alameda onde o Lancia de Alberto parou.
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Celestino já lá estava, a abrir a porta, e Matilde quase o derrubou quando Alberto abriu os braços para a receber. Levantou-a do chão e começou a rodar sobre si mesmo, enquanto ela lhe cobria o rosto de beijos.
- Amo-te. Amo-te. Amo-te - repetia Matilde alegremente.
- Nunca parei de pensar em ti - disse ele, beijando-a com paixão.
Celestino tirou as malas da bagageira e depois avançou com uma grande caixa de cartão nas mãos.
- É a minha boneca? - perguntou ela. Alberto anuiu.
- É enorme, a julgar pela embalagem. Dá-ma, Celestino disse Matilde.
- Leva-a para cima, para o quarto - ordenou Alberto ao criado.
- Por que é que não posso tê-la já? - perguntou a rapariga, impaciente.
- Porque primeiro quero ter a certeza de que estás realmente curada. O aspecto é radioso, mas preciso de examinar a tua garganta - explicou Alberto, encaminhando-a para o escritório.
- Está bem, professor - condescendeu, com um ar resignado e não sem uma ponta de ironia. - Como quiser, professor. O senhor tem sempre razão.
- Pára de resmungar - brincou ele. Matilde deixou-se observar e auscultar com a confiança de sempre, sem trair a impaciência.
- Apta, professor? - perguntou, quando o médico a deixou vestir-se.
- Não te faz mal nenhum continuar sossegada durante mais uns dias. E tem cuidado, porque não podes correr muito nem transpirar - recomendou, enquanto lavava as mãos.
Matilde nem o ouviu. Já ia a correr pelas escadas acima. Lançou um grito de alegria quando o braço de Alberto a agarrou pela cintura, obrigando-a a travar a corrida. - Deixa-me - gritou, a rir, libertando-se do braço dele.
- Não. Primeiro o Celestino tem de tirar a boneca da embalagem. Tens de a ver em todo o seu esplendor.
Entraram no quarto. A boneca estava pousada em cima da arca. Matilde viu-a e emudeceu.
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- Não era isto que tinhas pensado, pois não? - observou ele.
- Parece-me mais uma estátua do que uma pigotta - sussurrou Matilde, incerta entre a desilusão e o espanto provocado por aquela grande figura de madeira apenas parcialmente vestida.
Os braços, do ombro até ao pulso, estavam encerrados dentro de umas mangas sumptuosas de veludo, de riscas horizontais, verde e carmim. Sobre o verde brilhavam pequenas pedras vermelhas e no carmim sobressaíam, como gotas de chuva, umas pérolas branquíssimas. Os seios e os ombros estavam nus. Tinha o ventre semiescondido por uma saia enrugada de organza transparente com uma beira bordada a veludo carmim. O rosto, muito doce e cheio, era emoldurado por uns cabelos de ouro que caíam numa trança sobre as costas.
- É um manequim muito antigo. Apesar de não o demonstrar, esta rapariga tem quinhentos anos - explicou-lhe Alberto. - Comprei-a num leilão, na Sotheby's. Não foi fácil conseguir comprá-la, porque havia mais gente fascinada com esta escultura.
- Acho-a um bocado escandalosa - observou Matilde. - Se calhar era mais pudica se estivesse completamente nua.
- E estava. Fui eu que mandei fazer a saia e as mangas - confessou.
- Porquê? - perguntou, enquanto começava a tirar-lhe a saia.
- Queria que isto fosse uma prenda importante. Tu não queres jóias, mas eu queria oferecer-te pérolas e rubis. Mandei-os pregar no veludo das mangas.
- Estás a dizer-me que isto são pedras preciosas? - perguntou, incrédula.
- Quando decidires, desmanchas as mangas e fazes um colar comprido e precioso - revelou Alberto.
- Agradeço-te. Mas agora não quero colar nenhum - decidiu Matilde, libertando os braços da escultura. Enrolou as mangas e a saia de organza e arrumou-as numa gaveta, junto com a sua roupa interior.
- Ora aí está, gosto mais dela nua - afirmou, com um ar decidido. - Mas não é verdade que ela seja parecida comigo.
- De facto, tu és mais bonita - concordou Alberto.
- Obrigada, meu amor - sussurrou Matilde, abraçando-o. -
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Nunca me hei-de separar destapigotta. Sei que me vai fazer companhia quando tu aqui não estiveres - acrescentou, observando o rosto curioso da boneca.
- Mas eu vou estar cada vez mais aqui, porque só eu sei o que me custou não te ver durante oito dias - confessou ele, que há algum tempo acalentava um projecto que lhe ia permitir ficar sempre ao lado de Matilde.
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Chegou o Verão. Matilde tinha concluído brilhantemente os seus estudos. Alberto planeara para Julho a viagem aos Estados Unidos. Um domingo de manhã decidiram dar um passeio pelos bosques, no alto das colinas, em direcção a uma igreja setecentista que se perfilava, solitária, num grande planalto de onde se dominava o vale.
Para o piquenique, Alberto levava aos ombros uma mochila, que Rosetta enchera com pão acabado de sair do forno, costeletas frias, ovos cozidos e fruta. Havia também uma garrafa-termos com chá gelado. Matilde levava uma manta e uma toalha enroladas e amarradas com uma correia.
Eram precisas duas horas de marcha para chegar ao topo. Avançavam os dois lado a lado, em silêncio, à sombra de um imenso carvalhal, a respirar o perfume do bosque, a ouvir o som ritmado dos, passos, seguindo cada um o fio dos seus próprios pensamentos.
Alberto recordava o encontro recente com o seu amigo Giacomo Orombelli, notário da família. Tinha ido ter com ele ao escritório, onde lhe transmitiu a sua ansiedade relativamente ao futuro de Matilde.
- Sou muito mais velho do que ela. Se eu morrer, quero que a Matilde tenha uma boa estabilidade económica - disse-lhe.
- Lembra-te de que tens uma mulher e dois filhos que poderiam impugnar o testamento, se tu destinasses à Matilde uma parte das tuas propriedades - observou o notário.
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- Por isso vim ter contigo. Tu conheces a consistência do meu património. Há que chegue para todos. Mas não ia ficar um cêntimo para a Matilde se eu não tomasse algumas previdências.
- Podes sempre fazer uma doação em vida - sugeriu o amigo.
- Podias pôr em nome dela um capital com uma boa rentabilidade.
- Não com o vento que sopra nesta desgraçada nação. Quero que tenha casas e terras e uma conta num banco na Suíça - decidiu Alberto.
- Então, vou preparar um esboço de doação, que depois acertaremos juntos. Queres fazer isso agora ou depois das férias?
- Por mim está bem na próxima semana, antes de partirmos para os Estados Unidos - disse Alberto.
- Tanta pressa, para um homem jovem e saudável como tu observou Orombelli, com um sorriso compreensivo.
- É uma questão que me atormenta há meses e quero resolvê-la definitivamente. Assim não penso mais nisso.
Dali a alguns dias ia finalmente livrar-se daquela preocupação.
Matilde pensava na sua gravidez. Sabia há um mês que estava grávida, e essa certeza deixara-a muito agitada, até porque não sabia como Alberto ia reagir quando lhe dissesse. Por isso, adiava o momento semana após semana, à espera de encontrar o momento mais oportuno para lhe falar.
- Quando lhe disseres, vai ficar muito contente - garantiu Rosetta, que era a única pessoa que conhecia o seu segredo.
- E se fica zangado? Se me diz que não quer um filho? - perguntou ela, preocupada.
- Conheço o patrão desde que ele era pequeno. Conheço-o melhor do que tu e do que a senhora condessa. Agora já sei como ele gosta de ti. Portanto, também vai gostar do filho que trazes dentro de ti - concluiu a criada.
Pelo caminho, que subia ligeiramente, Matilde olhava para o médico de vez em quando, observando o seu perfil bonito e altivo, por vezes ensombrado por sabe-se lá que preocupações.
- Meu amor, o que é que se passa? - ousou perguntar-lhe a certa altura.
Alberto parou, sorriu-lhe e puxou-a para si, beijando-a levemente nos lábios.
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- Quando estás comigo, está tudo o melhor possível - sossegou-a.
Chegaram ao planalto quando o sol ia já alto no céu. Naquele ponto terminava a propriedade dos Brasca, da qual a igreja fazia parte. Era uma pequena construção que remontava à primeira metade do século xvill. Ao longo do perímetro externo das paredes, em tempos cobertas de frescos de cores vivas, havia ainda vestígios de cores esbatidas. Das cenas pintadas viam-se apenas algumas orlas de vestes e rostos cujo perfil se adivinhava. Em tempos, a pequena igreja fora meta de peregrinações estivais que se concluíam com danças e banquetes no prado. Depois foi abandonada com a diáspora dos camponeses. Os ladrões tinham dado conta dos objectos sacros. No interior ficou apenas o altar de pedra que ostentava, esculpido, o brasão da família materna de Alberto, os Odescalchi. O calor do sol de Julho era amenizado pelo ar fresco da colina. Alberto abriu a porta da igreja, que resistira aos maus-tratos do tempo. Sobre as traves da abóbada estavam pousados alguns passarinhos que entravam pelas aberturas da parede.
- Em criança, vinha muitas vezes cá acima - disse Alberto.
- Tinha um criado que me trazia às cavalitas. Contava-me que por baixo deste chão há uma cripta onde estão sepultados um antepassado da minha mãe e a sua amante, trucidados pelo marido dela. Depois disso, a igreja foi desconsagrada.
- É verdade? - perguntou Matilde, curiosa.
- Não faço ideia. A minha mãe nunca soube nada disso. Dizia que eram histórias de camponeses, lendas nascidas na sugestão dos bosques.
As suas vozes eram amplificadas pelo eco que ressoava nas paredes nuas.
- As lendas têm sempre um fundamento de verdade - observou Matilde, enquanto avançava para o meio da igreja. Com a sola dos sapatos deu umas pancadas no pavimento de tijolos. - Aqui por baixo sente-se que é oco. Se calhar, aqueles túmulos estão mesmo aqui.
- Eu gostava que estivesse aqui um padre para nos casar disse Alberto.
- Qual é a necessidade? Eu considero-me tua esposa - replicou ela.
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- Mas um dia vou conseguir casar contigo. Desde que tu o queiras, minha doce flor de pessegueiro - brincou ele, enquanto lhe afagava levemente com a mão a curva das costas.
- Preciso de te dizer uma coisa - sussurrou Matilde.
- Eu também - afirmou ele.
- Está frio aqui dentro. Vamos sair? - propôs ela, estremecendo. Trazia umas calças curtas que sublinhavam a perfeição das pernas e uma blusa de linho branco, sem mangas. Lá fora, no ar quente, zuniam os insectos. O lago, visto daquela altura, parecia um espelho luzidio. Uma brisa ligeira afagava a erva salpicada de florzinhas de todas as cores. Alberto parou a olhar a paisagem. Sorria enquanto respirava aquele ar leve e tépido. Rodeou com um braço os ombros de Matilde.
- Este é um lugar mágico onde o tempo parou e eu me revejo menino a fazer cabriolas no prado. Vim muitas vezes cá acima, sempre sozinho, porque não queria partilhar com ninguém a maravilha deste sítio. Agora tu estás comigo e é ainda mais bonito. Sabes uma coisa, Matilde? Quando eu morrer, gostava de ser sepultado aqui, ao lado do muro desta igrejinha, por baixo do relógio de sol. Acho que este seria um bom lugar para repousar eternamente.
- Então, também eu quero repousar aqui, ao teu lado - replicou ela. E acrescentou: - Mas antes disso queria organizar no prado um grande baile com damas e cavalheiros e canções que se perdessem no vento e chegassem a todo o lado, inundando o vale de notas alegres e de gargalhadas.
- Mas, como a morte ainda está longe e nós os dois temos muita vitalidade e muita fome, eu propunha que puséssemos a mesa
- decidiu Alberto, ao mesmo tempo que pousava a mochila no chão.
Matilde estendeu a manta em cima da erva. Depois ajoelhou-se e começou a tirar as coisas da mochila.
- Querias dizer-me uma coisa - lembrou-lhe Matilde.
- Tenho um projecto em mente - começou Alberto, enquanto pegava num pão.
- Também me inclui a mim? - perguntou ela.
- E que projecto poderia ser, se tu não fizesses parte dele?
- Então conta-me tudo.
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- No Verão passado comprei uma casa em Nova Iorque - revelou.
- Porque?
- Porque gostei dela. Dá para um parque que se chama Reservoir Park. É uma casa pequena, com tijolos à vista e grandes janelas e lareiras em todos os aposentos. Ultimamente percebi que não quero continuar a viver em Itália. Sabes, na América respira-se um ar de liberdade que aqui já esquecemos. Tu vais aperceber-te disso assim que lá chegarmos. Ainda não te disse que a minha mãe foi para lá há já um mês. Está à nossa espera - contou-lhe.
- Isso preocupa-me.
- A minha mãe está do nosso lado.
- Preocupa-me na mesma.
- Se eu te dissesse que queria ficar na América para sempre, o que é que tu pensavas?
Passaram alguns segundos até que Matilde captasse o significado daquelas palavras.
- Explica-me até que ponto desenvolveste esse projecto indagou.
- É só uma ideia. Queria discutir contigo antes de tomar uma decisão - esclareceu o médico.
Matilde pensou naquela grande nação desconhecida sobre a qual se fantasiava tanto. Era a terra do luxo e da abundância, onde toda a gente tinha automóvel, onde as mulheres usavam casacos de peles para ir às compras, onde todas as casas tinham rádio e frigorífico eléctrico. Imaginava as casas como se viam no cinema e as raparigas com rostos de estrelas de Hollywood. Os criados negros eram bondosos até ao ponto de se sacrificarem pelos patrões brancos que, por sua vez, eram simpáticos e generosos. Pensou no espaÇo infinito que separava a velha Europa do Novo Continente. Pensou nos irmãos e teve uma sensação dilacerante. Nunca mais os vira depois de deixar Milão. Sabia que nunca mais voltaria a ver os pequeninos, porque a família de adopção tinha exigido segredo. Mas os outros ainda estavam no Martinitt. De vez em quando, escrevia umas cartas ou mandava uns presentes, recebendo pontualmente respostas de Marco, o mais velho, que lhe agradecia e lhe dizia que continuavam bem e que estavam a aprender uma profissão. No entanto, apercebia-se de um certo distanciamento nessas breves
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mensagens. O fio daquela ligação ia-se tornando cada vez mais fino. Mas continuava a haver uma ligação. E se ela partisse para tão longe, esse fio acabaria por se quebrar. No entanto, se era esse o desejo de Alberto, ela só podia fazer-lhe a vontade.
- Desde quando me pedes opinião antes tomares decisões? perguntou-lhe.
- Por acaso fiz alguma coisa que tu não quisesses? - replicou ele, alarmado.
- Estou só a dizer que tu sempre decidiste por mim. Tu decides se eu estou bem ou se estou mal, se tenho fome ou se tenho sono, se devo ir à escola ou se preciso de férias, se vamos ao cinema ou se ficamos em casa. Tu decides tudo.
- Estás a falar a sério? Imagina que eu conhecia uma menina que tinha decidido que eu ia tomar conta dela. Essa mesma menina, quando cresceu, decidiu que eu ia ser o homem da vida dela. Parecem-te decisões sem importância? - respondeu, por sua vez.
- Queres dizer que não estavas de acordo? Que não me desejavas quando eu te desejava? - desafiou.
- Nunca mexeria um dedo para te conquistar.
- Se é assim, vamos voltar à estaca zero. Eu já não sou a tua mulher e tu já não és o meu homem - disse Matilde, irritada, ao mesmo tempo que se punha em pé e o fitava com uns olhos de gelo.
Alberto agarrou-a pelas pernas e fê-la cair em cima dele. Ria-se e achava que nunca se tinha sentido tão feliz.
- Amo-te, pestinha. Mas sabes muito bem que nunca serias minha contra a tua vontade. No entanto, foi um grande dia, aquele em que decidiste que me querias.
- Eu sei. E gostava de acrescentar que, independentemente da tua vontade e da minha, está alguém a bater à nossa porta. - Saiu-lhe assim o anúncio da gravidez.
Alberto olhou para ela perplexo, sem entender.
- Estou a falar do nosso filho. Meu amor, eu estou grávida concluiu. Deu um suspiro de alívio quando viu o sorriso ligeiramente incrédulo de Alberto.
- Não é brincadeira, pois não?
- Estou no segundo mês - declarou Matilde.
Alberto abraçou-a, ao mesmo tempo que insinuava uma mão por dentro das calças dela e lhe afagava o ventre.
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- Aqui dentro está o nosso menino. Que estúpido. Não me tinha apercebido de nada. Mas temos mesmo a certeza?
- Não há dúvidas. Fui a um ginecologista, a Varese. A Rosetta foi comigo - explicou-lhe.
- Por que não me disseste nada?
- Não encontrava palavras, nem sabia como ias reagir. Alberto tinha os olhos marejados de lágrimas, enquanto a apertava contra o peito e a beijava.
- Ah, meu Deus do céu! Vou ter um filho. Esta minha rapariga fantástica vai-me dar um filho. Não posso acreditar. - Estava perturbado e feliz. - Anda, vamos já para casa - disse, pegando-lhe na mão.
- E o nosso piquenique?
- Deixamo-lo para as formigas. Já não tenho fome. Olha, Matilde, o nosso filho vai nascer num grande país. Vai nascer na América. Vai nascer um homem livre. Tu nem sabes que presente extraordinário me deste. - Alberto estava comovido e ria-se, e através das lágrimas via a sua rapariga, já mãe, com o seu menino ao colo.
- Vou ter de tomar muito bem conta de ti. Antes de mais, vais fazer uma série de análises clínicas. Deves estar numa forma perfeita durante os sete meses que faltam. Vou tratar da tua alimentação. Vais fazer muita ginástica. Vou-te ensinar as técnicas respiratórias para o parto. Depois é preciso...
Matilde não o deixou acabar.
- Tem calma, Alberto. Trata-se apenas de uma gravidez, não de um evento sobrenatural - brincou, para o chamar à realidade.
- Mas eu tenho mais de cinquenta anos. Não há muitos homens que tenham a alegria de ser pais com esta idade.
- Também não há muitos homens que, com a tua idade, pareçam uns rapazes.
Chegaram à villa ao princípio da tarde. Os cães fizeram um grande alarido e foram atrás deles enquanto subiam as escadas.
- Vá, ninho, os dois - ordenou Alberto, enquanto fechava a porta do quarto.
- Porquê? - perguntou Matilde.
- Quero fazer amor contigo. Já - afirmou, ao mesmo tempo que, com dedos nervosos, lhe desapertava os botões da blusa.
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Amaram-se durante muito tempo, languidamente, plenamente, delicadamente. Alberto não se cansava de a acariciar, de beijar aquele ventre pequeno que não revelava ainda os sinais da maternidade.
Só quando ouviram a sineta que anunciava o jantar se aperceberam de que tinham passado a tarde inteira atordoados de amor e de palavras. Estavam exaustos e felizes.
Vestiram-se. Matilde aproximou-se da grande boneca e disse-lhe, com um ar malicioso: - Também gostavas de ter um rapaz como eu tenho, não era?
- És uma peste! - declarou Alberto, ao mesmo tempo que a levantava do chão.
- Larga-me! - protestou Matilde.
- Vou levar-te para baixo ao colo - replicou Alberto.
Ela rodeou-lhe o pescoço com os braços e inclinou a cabeça sobre os seus ombros. Saladino e Kabiria ainda ali estavam, aninhados em frente à porta do quarto. Desceram as escadas atrás deles, a abanar a cauda.
- Um destes dias estes animais, que andam sempre no meio dos meus pés, ainda me fazem dar um tombo - protestou ele.
Foi naquele instante que, para evitar um dos cães, pôs um pé em falso. Perdeu o equilíbrio. Caiu para trás e bateu com a cabeça num degrau, enquanto Matilde, que tinha caído com ele, lhe largava o pescoço para se agarrar ao corrimão. Levantou-se imediatamente, ilesa.
- Está tudo bem, amor? - perguntou, inclinando-se sobre Alberto.
Os olhos de Alberto sorriam na imobilidade da morte, que o atingira numa fracção de segundo, no instante em que a nuca batera com violência contra a aresta do degrau.
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Começou com um gemido de criança que perdeu a mãe. Depois, o lamento tornou-se um grito lancinante que ressoou por toda a casa e se espalhou pelo jardim e pelo parque.
Os criados acorreram ao sítio onde a vida de Alberto, num
momento, se apagara.
Encontraram Matilde sentada nos degraus, com a cabeça do homem que amava apertada contra o peito.
Celestino e Peppino debruçaram-se sobre o corpo inerte do patrão.
- Chamem depressa o médico - ordenou Rosetta.
- Não vale a pena - sussurrou Matilde.
Parecia ausente, distante. Abandonou a cabeça de Alberto e levantou-se, como um autómato. A velha criada desceu até ao átrio e telefonou ao médico.
Entretanto, os homens levantaram o corpo do patrão e levaram-no para o quarto. Rosetta entrou, ofegante.
- O doutor já aí vem - anunciou.
O marido abanou a cabeça e não disse nada. Celestino chorava. Matilde estava em pé, imóvel, ao lado da cama, e fitava o rosto inanimado de Alberto.
Chegou o médico e confirmou a morte. - Sinto muito - disse a Matilde. - Por ele e por ti. Agora vais ter a família dele toda contra ti. Quanto a ele, se é que isso te pode consolar, ficas a saber que nem sequer deu conta de que ia morrer.
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- Obrigada - sussurrou Matilde.
- Gostava muito de te poder ajudar - disse ainda o médico, quando se preparava para sair. Estava sinceramente abalado, por Alberto, que era um velho amigo, e por Matilde, que via agora só e indefesa.
- Não preciso de nada. A sério - garantiu ela, num sussurro.
Depois chamou Celestino. - Telefona à signora Brasca - ordenou. - E manda imediatamente um telegrama à mãe do professor. Está em Nova Iorque. Encontras a direcção em cima da secretária. Depois chama o padre, para a extrema-unção. - E como Celestino continuava a soluçar, concluiu: - Pára de choramingar. - Depois voltou-se para Rosetta, que estava ao lado dela, e disse: - Traz-me uma mala, e depois deixa-me sozinha com ele.
- Pobre menina. O que vai ser de ti, agora? - perguntou a criada, olhando-a com piedade. - E dessa criatura inocente que trazes no ventre, o que vai ser? - continuou, enxugando os olhos com o avental.
- O meu filho e eu estamos vivos. Não te preocupes connosco, Rosetta - respondeu baixinho.
A mulher saiu do quarto em bicos de pés e voltou com uma mala de couro, a mesma que Matilde tinha usado poucos meses antes para ir a Paris com Alberto. Pousou-a numa cadeira e saiu.
Matilde abriu a mala e arrumou lá dentro a roupa interior, que tirou dos gavetões da cómoda, e alguns vestidos que tirou do armário. Fechou-a e pousou-a ao lado da pigotta. Depois encostou uma cadeira à cama. A noite caíra e, através da janela aberta sobre o jardim, via-se a lua. Acendeu o candeeiro da cómoda e sentou-se ao lado de Alberto. Acariciou-lhe a mão e sussurrou: - Sinto muito, meu amor. Era tudo tão bonito e tão perfeito! Não podia durar. Sei que vais continuar a tomar bem conta de mim, como sempre fizeste. Estou contente por teres sabido do nosso filho, e enche-me de felicidade senti-lo crescer dentro de mim, porque nele estás tu, a tua carne, o teu sangue, o teu espírito. E é isso que conta. E levo dentro de mim todo o nosso amor, os nossos sonhos e as nossas esperanças. Adeus, meu amor.
Entrou uma mariposa no quarto e começou a girar, enlouquecida, à volta do candeeiro. Tocou na lâmpada, queimou-se e caiu.
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Matilde pegou nela delicadamente, levantou-se e pousou-a no peitoril da janela.
No campanário da igreja ouviram-se as badaladas da meia-noite. Rosetta, apesar da proibição, entrou no quarto. - Precisas de descansar, pequena - disse-lhe. - Vai dormir.
Fico eu a velar o patrão.
- Durante mais algumas horas, ele é só meu - afirmou Matilde. - Depois vai ser da família.
Sentou-se outra vez na cadeira e, sem se mexer mais, esperou a
primeira luz da madrugada. Celestino entrou, em bicos de pés, e estendeu-lhe uma chávena de café. Ouviram o ruído dos automóveis que percorriam a alameda de saibro. - Já chegaram - sussurrou Celestino.
Os cães, que na noite anterior se tinham insinuado no quarto, passaram a noite aninhados aos pés da cama. Naquele momento levantaram-se, espreguiçaram-se, olharam para Matilde e depois desceram a ladrar aos intrusos que estavam a invadir o átrio da villa. Matilde tomou o café. Depois entregou ao criado a chávena vazia. Levantou-se da cadeira e aproximou-se da janela para fechar as portadas, enquanto Celestino saía. Voltou junto da cama, debruçou-se sobre o homem amado e pousou os lábios nos dele, num último beijo.
- Adeus, meu amor - sussurrou.
Agarrou na grande boneca de madeira, prendeu-a debaixo do braço, pegou na mala e saiu do quarto.
Lucetta Brasca e as noras iam a subir as escadas. Afastaram-se
para o lado para a deixarem passar.
- É ela - afirmou em voz baixa uma mulher jovem, que Matilde reconheceu imediatamente. Era a mesma que, ao entrar na sala de jantar, a tinha apanhado com os cacos de um copo na mão.
- É ela - constatou Lucetta Brasca, recomeçando a subir. Rosetta estava à espera dela no andar de baixo.
- Para onde é que vais? - perguntou, num sopro. <
- Vou-me embora. Eles não apreciam a minha presença. Assim como eu não os aprecio a eles - respondeu.
- Vai ao escritório do patrão. Estão lá os filhos e o notário à tua espera - anunciou.
- O que é que eles querem? - perguntou, incomodada.
249
- Alguma coisa devem querer, se me disseram para te chamar. Matilde pousou no chão a sua grande boneca e a mala. - Adeus,
Rosetta. Muito obrigada por teres tratado de mim durante tantos anos. Acho que nunca mais nos voltaremos a ver - disse, abraçando-a com força.
- Mas que é que tu estás para aí a dizer? Não podes ir-te embora assim... E depois nem é certo que tenhas mesmo de partir. O patrão não ia querer, tenho a certeza.
- O patrão já cá não está. Sem ele, este lugar já não faz sentido
- disse Matilde, baixinho.
- Entre, menina, fique à vontade - disse um homem à porta do escritório. Era o notário da família, o mesmo com quem Alberto tinha falado na semana anterior.
O homem aproximou-se dela. - Estou a tentar zelar, dentro dos possíveis, pelos seus interesses - sussurrou-lhe, convidando-a a segui-lo.
Foi assim que Matilde se achou perante os filhos de Alberto, que olhavam para ela, embaraçados.
- Sente-se - sugeriu o notário.
Sentia-se pouco à vontade sob os olhares curiosos dos dois donos da casa. Sentou-se na beira da cadeira e esperou.
- O meu amigo Alberto deixou-nos sem redigir um testamento - começou o notário.
- Por isso, a menina não tem nenhum fundamento para reivindicar quaisquer direitos sobre a sua herança - interveio Alessio.
Mas de que estariam eles a falar? Matilde olhou para eles, espantada.
- No entanto, o professor Brasca tinha expressado a clara intenção de que recebesse uma parte do seu património - apressou-se a dizer o notário.
- Por isso, apesar de não haver documentos que o provem, e para evitar um escândalo, poderemos liquidar a situação com um pequeno capital - continuou o mais novo.
- Os herdeiros propôem uma cifra que não se aproxima de todo daquilo que o professor Brasca tinha em mente para si. No entanto, é bastante consistente. Vamos discutir este assunto, signorina Riva? - perguntou o notário.
250 .
Finalmente estava tudo esclarecido. Queriam dar-lhe dinheiro, com receio que ela avançasse com alguma exigência, invocando até eventualmente o testemunho dos criados. Levantou-se e olhou, gélida, para os dois filhos de Alberto. Nem sequer tinham sentido a necessidade de ver o pai morto. A única coisa que os preocupava era o património de que estavam prestes a tomar posse. Ela estava dilacerada com a morte daquele homem que amara perdidamente. Eles nem conseguiam mascarar a alegria que aquela morte lhes tinha proporcionado.
- Não pretendo discutir, até porque não tenho nada para discutir, nem com os senhores, nem com os outros. A relação entre mim e o professor apenas a nós dizia respeito. Não lhes devo nada, nem me devem nada a mim. Tenho comigo apenas o dinheiro para apanhar o comboio - disse, ao mesmo tempo que tirava do bolso umas notas e lhas mostrava. Avançou até à porta e saiu.
Rosetta e Peppino estavam no átrio, a chorar.
- Não vás embora, pequena - disse o jardineiro. - Fica connosco. Este é um lugar seguro para ti.
- Obrigada - sussurrou Matilde, abraçando-os. - Obrigada por tudo. Vou gostar sempre de vocês - acrescentou, e dirigiu-se para a porta. Os cães foram atrás dela, prazenteiros.
- Vão-se embora - ordenou ela, com uma voz dura.
Os cães pararam. Matilde percorreu a alameda até ao portão e eles seguiram-na à distância. Quando ia a sair para a estrada de terra batida, estavam de novo junto dela.
- Eu disse embora - gritou, com os olhos cheios de lágrimas, e como eles não se mexiam apanhou do chão um punhado de pedrinhas e atirou-lhas.
Naquele momento apareceu um Lancia. Era Celestino.
- Entra, Matilde - disse-lhe.
- Levas-me à estação? - perguntou.
- Levo-te onde quiseres - afirmou o criado.
- A Milão, à via Brera. A casa da minha amiga Ermelinda, respondeu Matilde.
251
GIOVANNA
1
Matilde levantou-se da cadeira de baloiço e, de uma gaveta do armário, pegou em qualquer coisa que enfiou num grande envelope. Pousou-o na mesa, diante de Giovanna.
- Querias conhecer a minha história? Pois bem, agora sabes como começou: a casa em chamas, depois o asilo Angiolina e a villa sobre o lago. Mas isto não foi se não o início. A seguir ainda foi pior. Portanto, chegou agora o momento de encontrar um refúgio de onde ninguém me possa mandar embora - disse num tom áspero.
Giovanna estava muito perturbada com a narrativa da velha. Com os cotovelos apoiados na mesa, observava-a, comovida. Não conseguia acreditar que aquela extraordinária rapariga de dezoito anos, por quem um ilustre clínico se apaixonara perdidamente fosse a mulher velha e cansada que tinha à frente.
- E depois? Depois, o que aconteceu? - perguntou-lhe.
- Não tenho nenhuma intenção de te ditar as minhas memórias. Preciso de levar o meu Lilin à rua - afirmou, debruçando-se sobre o cachorro. Pegou nele ao colo com algum esforço e ofereceu-lhe um pedaço de biscoito.
- Pega naquele envelope - acrescentou. - Lá dentro estão as mangas da pigotta.
- O que é que eu faço com elas? - perguntou Giovanna. -- Vendes as pedras. Preciso de dinheiro.
- Tinhas-me dito que não precisavas de nada - hesitou a outra.
255
- Disse-te que quero um sítio que seja verdadeiramente meu. O sol estava a desaparecer. De longe, chegou até elas o som inquietante da sirene de uma ambulância.
Giovanna abriu o envelope e tirou de lá as mangas. Se as pérolas e os rubis pregados no veludo fossem pedras autênticas, Matilde possuiria um tesouro. Mas se fossem apenas boas imitações?
- Estás a dar-me uma responsabilidade muito grande. Acho que não posso aceitar - disse, para se defender.
- Diz antes que achas que não me queres ajudar - replicou a velha, irritada.
- Imagina que são só vidros - insistiu Giovanna.
- O Alberto disse-me que eu podia fazer com elas um colar precioso. Portanto, não são vidros - teimou a mulher.
- Se é assim, por que não os vendeste antes?
- És uma alma pobre, pequena e medíocre. Contei-te a parte mais importante da minha vida e não percebeste nada. Vens chorar no meu ombro porque, ao menos uma vez, te comportaste como uma mulher. És de um conservadorismo revoltante. Tens medo de mergulhar nos sentimentos, de te sujares, de enfrentar o sofrimento. Tens o terror de atirar o teu coração para lá do obstáculo porque depois, achas tu, nunca mais o irás recuperar. Nunca vais ser mulher, nem mãe, nem amante, nem esposa. Só podes ser uma comerciante de luxo. Por que não vendi antes, perguntas-me? Mas tu não percebes que estas pérolas e estes rubis são tudo aquilo que me resta do homem que eu amei? Será que se pode trocar o amor em moedas, mulherzinha estúpida? - disse Matilde, furiosa.
- Deste-me praticamente um par de estalos - replicou Giovanna, empalidecendo. - És impiedosa - acrescentou, considerando que Matilde lhe dissera a verdade. Agora tinha a consciência de ter sempre vivido de aparências, de ter sempre temido confrontar-se consigo própria com medo de sofrer.
Tinha registado, naquela longa narração de Matilde, a referência ao frasco de lixívia que vogava, à superfície da água, arrastado pela corrente do Naviglio. Identificou-se com aquele objecto que se afastava para longe. Sempre tentara ignorar o bem e o mal que lhe passavam ao lado. Em vez de encontrar a força para voltar a subir a corrente e ser mais participativa na vida, andava lentamente à deriva.
256
- O meu frasco de lixívia está a meter água e arrisca-se a afundar - sussurrou, concluindo os seus pensamentos.
Matilde dirigiu-lhe um sorriso maligno.
- O balão cheio está prestes a explodir - comentou com lironia.
- Tens razão. Vou ajudar-te - decidiu Giovanna. - Já sabia. Só que desta vez vais até ao fim. Vendes as minhas pedras e acho que vais conseguir uma boa quantia em dinheiro garantiu a velha.
Giovanna olhou para ela, desconfiada.
- Matilde, deixa ver se eu entendo. Para não deixares esta água-furtada, recusaste um apartamento novo e confortável que não te ia custar nada. Agora dizes que precisas de dinheiro. Porquê? perguntou, curiosa.
- Agora não me apetece falar sobre isso. Só tens de fazer aquilo que te peço - respondeu a velha, dirigindo-se às escadas, Giovanna seguiu-a. Parecia que Matilde se divertia a dar-lhe informações a conta-gotas pelo prazer de a manter suspensa. - És mesmo insuportável - resmungou. - Sei perfeitamente. Podes sempre mandar-me para o diabo replicou.
- Dizes isso porque tens a certeza de que eu não o faria - concluiu. Depois encolheu os ombros, resignada. Tinham chegado ao pátio. Matilde pousou o animal no carrinho. Giovanna aproximou-se dela e fez-lhe uma carícia no rosto. - Gosto de ti - sussurrou, a sorrir. - És fantástica - acrescentou.
- Era, há sessenta anos. Hoje sou uma ruína - respondeu, agarrando no carrinho e empurrando-o pelo átrio. - Para as tuas pedras, vou ter com um comerciante honesto garantiu-lhe.
A velha afastou-se ao longo da rua a empurrar o carrinho deIsengonçado.
Giovanna entrou na loja. Lino estava a mostrar a uma cliente duas pequenas porcelanas do século XVIII. Eram nus femininos captados no instante em que se libertavam da última peça de roupa. - Acha que o meu marido ia gostar? Estava a pensar dar-lhas nos anos - disse a mulher, quando viu Giovanna.
257
O marido em questão era um coleccionador de nus femininos, conhecido entre os antiquários por aquela paixão, que cultivava há algum tempo.
- Ele já as viu - revelou Giovanna. - Mais ou menos há um mês. Observou-as durante muito tempo. Por fim, sem tecer comentários, despediu-se de mim.
- Se calhar, não ficou convencido - comentou a senhora. Depois, baixando o tom de voz, apesar de não haver mais clientes na loja, perguntou: - E o que me diz daquele manequim que anda a esconder de toda a gente?
Giovanna dirigiu a Lino um olhar divertido. O velho encolheu os ombros como quem diz: no nosso meio não existem segredos. A antiquária baixou a voz também, assumindo um ar de cumplicidade.
- Mandei-o para Florença. A minha sogra apaixonou-se por ele e quer tê-lo em casa. Achei justo fazer-lhe a vontade - mentiu.
- Que pena. Fala-se muito dele, por aí. Gostava imenso de o ver.
Lino escapuliu-se para as traseiras, deixando as duas mulheres sozinhas.
- Já sabe como o nosso mundo é mexeriqueiro. Ninguém viu a minha escultura, mas toda a gente fala dela como se a conhecesse
- disse Giovanna, com um ar malicioso.
A cliente foi-se embora e Giovanna foi ter com o seu colaborador. Riram os dois. - Está a ver, Lino, até que ponto chega a curiosidade? O aniversário do marido é em Novembro, mas já aqui entraram os dois, numa aflição, por causa da minha pigotta, e qualquer pretexto é bom para tentar vê-la. - Abriu o envelope e tirou de lá as mangas de veludo. Observou-as à luz do candeeiro. As pérolas e os rubis reflectiam um brilho suave.
- E isto, o que é? - perguntou Lino.
Os elásticos que fechavam as mangas nos pulsos e na parte superior dos braços tinham perdido força ao longo das décadas. Giovanna pegou em dois pedaços de fio.
- Já vai ver - disse a Lino, ao mesmo tempo que contornava a estante por trás da qual estava escondida a escultura. Enfiou o tecido nos braços de madeira e apertou-o com o fio nas duas extremidades. Depois foi pôr-se ao lado de Lino para admirar o efeito.
258
- O que lhe parece? - perguntou, com um ar satisfeito.
- Esta rapariga está cada vez mais bonita - observou o velho restaurador.
- A Matilde quer que eu venda as pedras. É claro que ele deve tê-la amado muito - disse Giovanna, com um suspiro.
- Quem?
- O homem que ofereceu este manequim à Matilde.
- E se o tivesse roubado? - insinuou Lino.
- Você não gosta mesmo daquela pobre mulher. Porquê? - perguntou-lhe.
- É uma pessoa de quem se pode esperar qualquer coisa. Até que esteja metida em alguma complicação - confessou Lino, inflexível.
- Ninguém sabe nada da Matilde e toda a gente a detesta. A história da escultura é comovente, acredite - respondeu Giovanna, contrariada.
- Eu, no seu lugar, deixava de andar à volta dela - insistiu Lino, com uma voz lúgubre.
Giovanna não deu importância àquelas palavras. Tirou as mangas da escultura, voltou a metê-las no envelope e regressou à loja.
Telefonou a um joalheiro florentino, amigo dos Lanciani. - Podes dar-me o endereço do Fred Silverstein? - perguntou-lhe. Sabia que o joalheiro comprava quase sempre as pedras a Silverstein, um inglês de origem húngara, conhecido comerciante de diamantes.
- Estás a roubar-me o meu trabalho? - perguntou-lhe o amigo.
- Estou a fazer um favor a uma cliente que tem uma coisa para vender - explicou Giovanna, sem se alongar.
Assim que obteve o endereço, procurou na lista os números da Cogestar e enviou dois faxes para Londres. O primeiro para combinar um encontro com Fred Silverstein e o segundo para marcar uma entrevista com Alessandro Mongrifone, presidente da Cogestar, a quem ia pedir uma revogação da acção de despejo de Matilde. Duvidava que pudesse obter alguma resposta, mas queria fazer todos os possíveis para ajudar a velha.
Em qualquer caso, não estava à espera de ser recebida imediatamente. No entanto, quando Lino estava já a fechar o estabelecimento, o fax começou a funcionar. A primeira mensagem vinha precisamente da Cogestar. O texto dizia: O Sr. Presidente terá muito
259 .
prazer em recebê-la. Pode marcar a data e a hora. A segunda comunicava-lhe que Mr. Silverstein teria muito gosto em recebê-la nos escritórios de Hatton Garden, na segunda-feira seguinte, às nove da manhã.
- Parece que vou ter de ir a Londres no domingo - anunciou Giovanna a Lino, depois de ter marcado um encontro com Mongrifone para segunda-feira à tarde.
- É claro que é tudo por causa da Matilde - comentou o homem, irónico.
- O que é que quer que lhe diga? É a primeira vez que me dou a tanto trabalho por causa de alguém - respondeu. Não lhe disse que levava aquilo tão a sério porque agora gostava mesmo da mulher. Isso seria apenas metade da verdade. A outra razão, mais secreta, era que Giovanna sentia que, de alguma forma, Matilde fazia parte do esquema misterioso do seu destino.
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2
Giovanna despediu-se de Lino, que estava a fechar a loja. No caminho de casa foi atraída pela montra de uma loja de discos. Nunca gostara de música.
Jacopo tinha por várias vezes tentado arrastá-la, impondo-lhe balets e concertos de música clássica. Ela tinha-o acompanhado para lhe agradar, e experimentara sempre um sentimento de frustração que não conseguia definir. Também detestava a música ligeira, já para não falar do rock, tão amado por Giny. Entrou no estabelecimento, repleto de jovens à caça de cassetes e CD. Uma aparelhagem estereofónica transmitia uma música metálica ensurdecedora.
Uma rapariga bonita, com os lábios, as unhas e os cabelos pintados de azul e um brinco que lhe trespassava o lábio inferior, atendeu-a sem entusiasmo. Giovanna observou-a, a pensar em Giny, e sentiu-se grata à filha por não ter cedido àquela moda extrema.
- Ando à procura de um tema antigo - começou Giovanna.
- Diga-me - replicou a rapariga.
- La Cumparsita - precisou, sentindo-se pouco à vontade com aquele pedido, tão contrastante com o ambiente onde se encontrava.
Inesperadamente, a rapariga de azul dirigiu-lhe um sorriso angélico.
- Temos uma edição óptima. Aqui está, recomendo-lhe o último CD do Júlio Iglesias.
Saiu com o disco e continuou o caminho, pensando no desconhecido que encontrara naquela mansarda da piazza Cordusio.
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Por que tinha fugido ao voltar a vê-lo? Comparou-se com a determinada Matilde e pareceu-lhe que nunca tivera coragem para assumir as suas próprias acções.
A sogra veio abrir-lhe a porta de casa. Reparou no saco da loja de discos.
- Desde quando é que te interessas por música? - perguntou Eugenia, curiosa, enquanto seguia atrás dela em direcção à sala de jantar.
- Desde que a música se interessou por mim, se é que podemos chamar música a um velho tango - respondeu, enquanto se sentava à mesa, que estava posta só para as duas. - E a Giny? - perguntou.
- Acabou de sair. Já sabes com quem - anunciou a sogra.
- E quer-me parecer que também sabe - sublinhou Giovanna.
- Pois é. A tua filha falou-me no assunto - revelou, com um sorriso de resignação. E prosseguiu: - No meu tempo, uma história assim era uma coisa inimaginável. Agora os jovens têm outras regras, que eu não conheço.
- Se ao menos tivessem regras, já era um sucesso - constatou Giovanna, amargamente.
- Eu não sei fazer um juízo, sobretudo tratando-se da Giny.
- Quanto a mim, é uma história falhada. E tanto é verdade que a sua neta não é propriamente o retrato da felicidade. Às vezes, penso que isto é só para me incomodar - queixou-se.
Estavam a jantar sem vontade.
- Tu não és uma mãe muito fácil. Eu tento pôr-me na pele daquela rapariga, que tem de competir com uma mulher bonita e bem-sucedida. No mínimo, sente-se frustrada - comentou Eugenia.
- Tu e a Giny sabem perfeitamente que eu sou diferente daquilo que pareço - observou Giovanna.
- É verdade. Se levantarmos o véu da aparência, por baixo há alguma confusão. Não digo isto para te ofender, mas porque te estimo e porque mereces uma opinião sincera.
Da rua, através das janelas abertas, chegava o incessante ruído do trânsito.
- Por isso, se a minha filha faz disparates, a culpa é minha. Muito obrigada - respondeu, irritada.
- Também é dela, como é evidente. Há jovens cuja vida é muito mais difícil e que conseguem ainda assim ser mais equilibradas.
262
Consola-te ao pensar que sempre te desenrascaste bem. Também com ela vai ser assim - comentou a sogra.
- Conversa! Entretanto imagine a tragédia que seria se aquele desgraçado decidisse deixar a mulher para se meter com ela - disse, dando voz a uma preocupação que a assaltava há semanas.
- Não vai acontecer, acho eu. Lembra-te, em qualquer caso, de que há remédio para tudo. É essa a parte bonita da vida. - Pensou no filho que perdera e convenceu-se de que, se Giovanna tivesse vivido sempre ao lado dele, Giny teria tido menos problemas.
- Gostava de a proteger do sofrimento - disse em voz baixa, apesar de começar a perceber que a dor é uma componente inevitável da vida e que é perigoso tentar ignorá-la ou afastá-la. Acabaram de jantar em silêncio.
- No domingo vou a Londres. Fica aqui até eu voltar? A sua neta ia sentir-se menos só e eu ficava mais sossegada - propôs.
- Há algum leilão que me tenha escapado? - perguntou a sogra, curiosa.
- Fique sossegada: a si nunca lhe escapa nada, sobretudo quando se trata do nosso trabalho. Tenho de fazer um favor à velha que me vendeu a escultura - contou-lhe. E prosseguiu: - Aquela pobre mulher está muito doente. Sabe que eu sempre procurei fugir do sofrimento dos outros. Agora já não o consigo fazer. Sinto-me empenhada com a Matilde. Socorri-a quando ela caiu. Mandei-lhe o meu médico para a ver. Limpei-lhe a casa. Há apenas um ano atrás, nunca imaginaria ser capaz de fazer tal coisa. Francamente, não sei o que se está a passar comigo.
- Estás a ficar adulta. Se o caminho da tua maturidade passa por aquela mulher, tudo bem - concluiu Eugenia, ao mesmo tempo que pousava uma mão tranquilizadora no braço da nora, que lhe dirigiu um sorriso.
Depois olhou para o relógio. - Já se está a fazer tarde. Tenho de ir a um leilão. Desta vez, porém, não é nada que tenha a ver com a velha Matilde - disse, a sorrir. E acrescentou: - Quer vir comigo?
- Prefiro ficar em casa à espera da Giny - respondeu a sogra. Giovanna foi sozinha. Vira a exposição das peças a leiloar uns
dias antes e sentira-se atraída por uma pintura de 1933 intitulada: Menina com Gatinho de Borracha. Ficou fascinada com os olhos da menina, que pareciam dois luzidios bagos de uva negra. A filha
263
tinha o mesmo olhar, espantado e penetrante. Agora dava-se conta de que, provavelmente, já em criança Giny se debatia entre as aparentes certezas que Giovanna lhe oferecia e as profundas incertezas de uma situação familiar ambígua.
O preço base da pintura era relativamente módico e ela esperava conseguir a tela para a oferecer a Giny. A pintura estava na mão de um funcionário, que a mostrava ao público, enquanto o leiloeiro lhe enumerava as qualidades. Começaram as ofertas. Enquanto iam subindo, alguém no público triplicou a oferta. Era uma mensagem clara, com a qual o interessado comunicava aos outros que deviam retirar-se porque ficaria com o quadro a qualquer preço. Por isso, Giovanna não voltou a falar. Resolveu abandonar o leilão e dirigiu-se à saída. Ia já no fundo da sala quando ouviu anunciar um óleo sobre tela de Eric Junot. Título da obra: Lição de Tango.
Parou e virou-se de repente. Junot era o mesmo pintor que retratara Matilde na villa parisiense de Alberto Brasca.
Voltou atrás, enquanto o vendedor prosseguia a apresentação da pintura.
- Como os senhores podem ver, a pincelada reevoca o estilo de Boldini, de quem Junot foi aluno, mas a sensualidade é mais marcada. As cores são quentes, ligeiramente esbatidas no fundo, onde adivinhamos, mais do que vemos, um gramofone que difunde as notas de um tango. A bailarina, de vestido vermelho, está agarrada ao companheiro, que a segura com força. Podem notar, senhores, a força deste gesto de posse por parte do homem, ao qual a mulher responde retraindo-se, como se quisesse fugir-lhe.
Giovanna voltou a sentar-se, literalmente apanhada pela beleza daquela tela. Entretanto, o leiloeiro prosseguia na sua descrição:
- Eric Junot foi um artista injustamente definido como menor, porquanto...
Giovanna olhava para a pintura e pensava na outra que estava pendurada na água-furtada da via Fiori Chiari. Àquelas duas imagens sobrepôs-se uma terceira: a de uma menina de lábios sujos de chocolate que uma mão masculina queria limpar e em vez disso besuntava ainda mais.
Naquele momento começaram as ofertas, e ela ouviu o homem anunciar: - Dois milhões e um... e dois...
264
- Quatro milhões - disse Giovanna em voz baixa, acompanhando as palavras com um gesto da mão.
Arrematou-o no meio do espanto dos presentes que, por aquela tela, nunca pagariam uma soma tão elevada.
Regressou a casa com o quadro. No apartamento silencioso sentiu a presença reconfortante de Giny, da sogra e da empregada, que dormiam nos seus quartos.
Serena, preparou-se para a noite com o seu habitual e metódico ritual: lavou cuidadosamente os dentes, retirou a maquilhagem, tomou um duche quente e, por fim, vestiu o pijama de seda. A seguir, em frente ao espelho do toucador, massajou o rosto, o pescoço, as mãos e os braços com vários tipos de cremes hidratantes. Depois espalhou nos pulsos um pouco de Eternity, o seu perfume preferido. Este ritual tornava o seu sono mais agradável.
Naquela noite, porém, ficou a pensar na vertiginosa sucessão dos acontecimentos nos últimos dias. Pousou os cotovelos no tampo do toucador, segurou a cabeça entre as mãos e observou a sua própria imagem reflectida no espelho. O que é que se passa?, perguntou a si mesma.
Estava deprimida e reagiu com um trejeito. Mas não conseguiu o sorriso habitual que afastava os maus pensamentos. O mecanismo adoptado há muito tempo para afugentar as sombras e os fantasmas já não funcionava.
Surgiu-lhe à frente o rosto lindíssimo do jovem desconhecido por quem se tinha apaixonado, apesar de se obstinar em combater aquele sentimento.
Voltou a ver o rosto duro de Giny enquanto lhe dizia: "Apanhaste o pai."
Recordou os momentos mais importantes da história de Matilde, com a sua carga de violência e de desespero.
Por fim, ressurgiu o rosto gorducho de uma menina com os lábios sujos de chocolate. O fio condutor de todas estas imagens era um tango dilacerante cujas notas ressoavam na sua cabeça, causando-lhe um profundo mal-estar.
Vestiu um roupão, atravessou o longo corredor em bicos de pés e refugiou-se na sala de estar.
Desembrulhou o quadro que acabava de comprar e colocou-o em cima de uma mesinha, por baixo da luz de um candeeiro.
265
Encontrou o disco de Júlio Iglesias, introduziu-o no leitor e escolheu a terceira canção: La Cumparsita. Pôs os auscultadores para ouvir, enquanto se aninhava em cima do tapete, em frente ao quadro.
Depois das primeiras notas, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e começou a recordar.
O BAIRRO Na PERIFERIA
1
Giovanna tinha nove anos. As irmãs, Margherita e Lúcia, tinham respectivamente treze e onze. Gisella, a mãe, era costureira e trabalhava em casa. Guido Reslieri, o pai, era funcionário dos caminhos-de-ferro. Moravam num bairro nas proximidades de uma extensão de campos e hortas, na periferia da cidade.
A estrada asfaltada não chegava até ao bairro. Por isso, os habitantes da zona caminhavam sobre pó, no Verão, a lama, no Outono e a neve, no Inverno. Para ir à escola, as crianças faziam a pé dois quilómetros por dia.
Gisella não gostava daquela casa. Sonhava com um apartamento espaçoso e confortável num prédio mais decente e, para realizar esse projecto, trabalhava afincadamente.
Quando estava com veia para as confidências, falava disso com as filhas: - Quero uma casa grande e bonita, com o chão de mármore, aquecedores em todas as divisões, uma entrada principal e outra de serviço e duas casas de banho: uma para nós, mulheres, e outra para o vosso pai.
Também as irmãs davam o seu contributo para que aquele sonho se realizasse. À noite, depois do jantar, colavam caixas de cartão para uma fábrica de embalagens farmacêuticas. Era um trabalho simples e mal pago, que lhes permitia, porém, ficar ao lado da mãe, fazendo assim uma tácita repreensão ao pai, que não compartilhava aquela ideia.
269
Guido Reslieri, de facto, era hostil àquela iniciativa, tanto que tinha investido as suas próprias poupanças na aquisição de um FIAT 600 em segunda mão.
- Vai-me permitir deslocar-me mais facilmente de casa para o trabalho e vice-versa - disse, como resposta aos protestos da mulher. E acrescentou: - Eu não tenho vícios. Entrego todo o meu ordenado em casa. O que mais se pode exigir de um pobre homem?
- Que faça horas extraordinárias, por exemplo - respondeu Gisella.
- Lá estamos nós outra vez. Esse é um assunto que eu não quero discutir - replicava, refugiando-se no quarto a ouvir a música de que mais gostava: os tangos de Gardel, Júlio Sosa e Astor Piazzolla.
Tinha instalado um gira-discos em cima da cómoda. Ninguém lhe podia tocar, para além dele. Às vezes, os turnos de trabalho obrigavam-no a ficar longe de casa durante dois ou mais dias seguidos, durante a semana. Quando regressava, e depois de recuperar o sono perdido, ligava o aparelho. As meninas gostavam daquela música. Por vezes, a mãe ficava irritada, porque o dinheiro gasto com os discos era dinheiro subtraído ao seu sonho.
Quando via a mulher particularmente zangada, Guido agarrava-a pela cintura e obrigava-a a dançar. As meninas riam-se e a tensão diminuía.
A mãe tinha um corpo miúdo, o rosto pálido, os lábios pequenos e finos, grandes olhos azuis e cabelos loiros, compridos e sedosos, que usava presos na nuca.
O pai tinha uma cabeleira farta e ruiva, o rosto claro salpicado de sardas e a compleição de um lutador. Gostava da alegria, troçava daquela ideia fixa da mulher e as suas gargalhadas explodiam estrondosas como trovões. Sabia ser meigo mesmo quando tinha de ralhar. - Que sentido faz - perguntava às suas mulheres - dar cabo da vida para comprar uma casa? Não será mais sensato trabalharmos menos e divertirmo-nos mais?
Gisella começava a tamborilar os dedos em cima da mesa: sinal de grande irritação. Então, ele abraçava-a e avisava: - Se te zangas, fazes mal ao coração.
Gisella sofria de insuficiência cardíaca e aquela doença era uma preocupação constante.
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- Numa sociedade civilizada, cada família teria o direito de possuir a casa onde vive - replicava, obstinada. E não se permitia uma pausa para descansar. Excepto ao domingo. Então punha a cobertura na máquina de costura, mudava de vestido e ia à igreja com as filhas. De tarde, deixava-as brincar com as amigas. Ela estendia-se na cama a ler fotonovelas, perdendo-se naquelas histórias de amor infinito. Num domingo de Maio, logo a seguir ao almoço, Giovanna saiu com as irmãs e umas amiguinhas.
- Onde vão? - quis saber a mãe.
- Para os campos - respondeu Margherita.
A mãe entregou-lhes um saco de lona às riscas amarelas, azuis e vermelhas.
- Tragam alguma salada - pediu, pensando que, com uns ovos cozidos, o jantar ficava pronto.
As meninas seguiram por um caminho ladeado de sebes de sabugueiro. Cantavam alegremente uma canção de sucesso interpretada por Gianni Morandi: "Fatti mandare dália mamma a prendere illatte...1
Giovanna estava cheia de orgulho por causa dos jeans que Gisella lhe tinha comprado no mercado. Eram os primeiros da sua vida. Tinha-se até recusado a vestir um casaco de algodão, que os escondia em parte, uma vez que desejava exibi-los perante as amigas.
- Basta a blusa - disse à mãe. - Agora está calor. - Efectivamente, parecia Verão.
Lúcia ostentava o seu penteado à Mary Quant, a inglesa que tinha lançado a minissaia. Margherita, que já andava no liceu, era a mais velha do grupo e sentia-se satisfeita com aquele papel de galinha choca.
O calor tornou-se sufocante e o céu tingia-se de lilás. Um súbito remoinho de vento levantou pó e folhas, fez estremecer a erva e os ramos das árvores e despenteou os cabelos das raparigas, que se assustaram e se encostaram umas às outras.
1 Diz à tua mãe que te mande ir buscar leite. (N. da T.)
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- Vamos abrigar-nos naquela cabana - ordenou Margherita, indicando uma pequena construção de madeira e chapa que servia para arrumar ferramentas.
As rajadas de vento punham à prova a resistência das paredes e do tecto, que rangiam de uma maneira sinistra. As meninas estavam caladas, cheias de medo. Lúcia começou a chorar e a dizer que queria ir imediatamente para casa.
Giovanna, pelo contrário, estava quase excitada com aquele grande ruído amplificado pela chapa da cabana. Mas quando uma rajada de vento levantou o telhado, levando-o para longe, também ela gritou de terror, como as companheiras.
- Vamos sair já daqui, porque se não vai cair tudo em cima de nós - decidiu Margherita.
O ar tinha ficado gelado e as raparigas, a tremer, começaram a correr em direcção a casa, ao mesmo tempo que um trovão ensurdecedor anunciou o início do temporal.
De repente, Giovanna afastou-se do grupo e dirigiu-se outra vez ao prado.
- Onde é que vais? - gritou Margherita.
- Buscar a salada para a mãe - respondeu.
A irmã foi atrás dela e agarrou-a. - És completamente doida. Vem já para casa - ordenou, peremptória.
- O que é que a mãe vai dizer, se não lhe levarmos a salada? protestou Giovanna.
Naquele momento viram-na avançar pelo caminho, com as outras mães, aflitas por causa das meninas que tinham sido surpreendidas pelo temporal. No céu disparavam relâmpagos e começavam a cair grandes gotas de chuva. Enquanto se desencadeava a fúria do temporal, entraram todas em casa.
Começaram a subir as escadas. Gisella subia com dificuldade cada degrau, e sonhava com um apartamento lindíssimo, num prédio com elevador.
- Mãe, podemos ir à Luana? - perguntaram Lúcia e Margherita.
- E os trabalhos de casa? - objectou Gisella.
- Vá lá, mãe. Só um bocadinho. É domingo - insistiu Margherita.
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Assim Giovanna e a mãe ficaram sozinhas em casa. Entraram na cozinha, que era o coração daquele pequeno apartamento. Fios de chuva riscavam os vidros. Giovanna espirrou.
- Não quiseste levar o casaquinho e constipaste-te - ralhou Gisella.
O aposento, com um chão de azulejo branco, estava mobilado com uns armários de fórmica verde-claro.
Giovanna sentou-se em frente à porta envidraçada que dava para o terraço. Gostava daquela cozinha e da atmosfera de intimidade que se criava quando estava sozinha com a mãe, ou quando chegava uma cliente para provar roupa. A senhora ficava em combinação e Gisella ajudava-a a enfiar o vestido alinhavado. Depois prendia nos lábios uma série de alfinetes, enquanto a cliente se via ao espelho.
- Veja aqui, signora Gisella. Não acha que o ombro está com defeito?
- A cava tem de ser alargada - observava a mãe, desenhando com os alfinetes um novo traço no tecido.
- Acho a cintura um bocadinho alta - dizia a cliente.
- Baixamos meio centímetro. Mais não, porque se não vou ter de mexer nas pinças dos lados.
Falavam de carré, de bolsos falsos, de pregas, de decotes e viés, observando o modelo original publicado na Burda e em outras revistas de moda. Eram diálogos em voz baixa que Giovanna gostava de ouvir.
Depois, inevitavelmente, a mãe e a cliente trocavam os últimos mexericos sobre a mulher do dono do pomar, que tinha mandado fazer uma gargantilha de ouro maciço, ou da dona da charcutaria, que tinha comprado um casaco de vison.
Por fim, a cliente perguntava: - E o seu coração, signora Gisella, como é que vai?
- Dizem-me que não devo trabalhar de mais, mas como é que a gente pode dar ouvidos aos médicos? - respondia, com um suspiro.
Giovanna sofria com a doença da mãe. Às vezes, dizia-lhe: - Não te aflijas. Não ouviste dizer que há um tal professor Barnard que substitui os corações que funcionam mal por outros novos? Se for preciso, vais tu também substituir uma peça!
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Lá fora, o temporal amansava. Gisella abriu uma porta do aparador e pegou numa tablete de chocolate. - Toma - disse-lhe, pousando-a em cima da mesa.
A menina ficou encantada. - Ai que bom! É daquele suíço exclamou, enquanto o desembrulhava e dobrava com cuidado o papel de estanho. Partiu o chocolate em muitos quadradinhos, que começou a saborear com um ar consolado. - Mãe, por que é que o chocolate é tão bom? - perguntou.
A mãe estava sentada à mesa, a folhear uma revista. Observava as fotografias de actores e mulheres famosas e lia as legendas, a sonhar com um mundo do qual a separava uma distância inultrapassável.
- Como é que eu te posso responder? As coisas boas são boas e pronto - respondeu.
- E as más são más e pronto? - replicou Giovanna.
- E também as há assim-assim. Que a gente não sabe se são boas ou más. São as piores, porque temos de as avaliar com atenção, e quando o bem e o mal se confundem, ficamos desorientados
- comentou Gisella.
Giovanna observou-a, pensativa, enquanto continuava a comer o chocolate. - O pai é bom ou mau? - perguntou finalmente.
- Assim-assim - respondeu Gisella, com um suspiro. Naquele momento a música explodiu no quarto ao lado. Era
um tango: La Cumparsita.
- Adeus, sossego. Acordou - comentou a mulher, com resignação, referindo-se ao marido, que tinha regressado de manhã para o turno de descanso.
Guido Reslieri apareceu à porta da cozinha. Tinha os olhos ainda inchados de sono, os cabelos despenteados e a barba de dois dias. Estava descalço. Vestia as calças já gastas de um pijama azul-claro e uma camisola de algodão branco.
- Arranja-se um café? - começou, com um bocejo.
A chuva estava a diminuir e o sol voltava a brilhar. Na cozinha ressoavam as notas do acordeão que acompanhava a voz do cantor.
O homem pousou os olhos em Giovanna e sorriu. - Estás com a boca toda suja de chocolate. Não se pode dizer que a tua mãe não te dê mimo - constatou. Sentou-se à mesa e pousou Giovanna em cima dos joelhos. - Olha como tu te puseste - acrescentou,
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ao mesmo tempo que lhe passava a mão pela boca. Era uma mão grossa, um pouco áspera, que sabia a tabaco. Giovanna apercebeu-se da tensão da mãe.
- Deixa-a - ordenou Gisella. - Não vês que ainda a sujaste mais?
O pai riu-se. - Trata mas é de me fazer um café - replicou, voltando-se para a mulher. Depois encostou o rosto ao da filha. - Agora o pai vai-te limpar - acrescentou. Giovanna sentiu na face a pele áspera de barba.
- Deixa-me ver como é bom esse chocolate - sussurrou ele. Pousou os lábios nos da menina e passou a língua, repetidamente, como se estivesse a lamber um cone de gelado. Era um contacto tão agradável que Giovanna se riu.
Sentiu em cima dela as mãos nervosas da mãe, que a agarraram, arrastando-a até junto do lava-loiças. - Agora lavo-te eu a cara disse a mulher.
A gargalhada do pai acompanhou o fluxo da água que saía da torneira. - A minha mulher tem ciúmes até das minhas meninas. Quer ser só ela a tocar-lhes - comentou, irónico.
- Há muitas maneiras de a gente se comportar - rematou a mulher, que respirava agora com dificuldade. Giovanna viu os seus lábios ficarem mais brancos, enquanto lhe secava o rosto gorducho com uma toalha. Depois empurrou-a para fora da cozinha. - Vai lá acima chamar as tuas irmãs - ordenou-lhe. - São horas de fazer os trabalhos de casa - concluiu, enquanto a punha fora da cozinha. Giovanna parou junto ao corrimão. Tinha-se desvanecido o prazer do chocolate e também aquele contacto tão doce com o pai. A mãe tinha ficado nervosa e ela não entendia a razão.
- Tu tens de deixar as minhas meninas em paz. Percebeste? A voz da mãe, habitualmente baixa, assumira um tom estridente e chegava até ela.
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2
O quartinho delas era tão pequenino que continha com alguma dificuldade uma cama para Margherita e um beliche onde dormiam Giovanna e Lúcia. Mas era agradável encontrarem-se as três, à noite, naquele quartinho.
Deitaram-se cedo. Giovanna adormeceu, enquanto Margherita e Lúcia teciam um diálogo sobre as fortunas de Jacqueline Kennedy e de Sophia Loren.
- Se eu passar de ano, vou pôr o cabelo como a Sophia Loren
- anunciou Margherita. E acrescentou: - Gostava tanto de ser bonita como ela!
- Esquece lá isso! Para que é que te serve a beleza se depois escolheres um marido velho e feio como o dela? - objectou Lúcia.
- Um homem não precisa de ser bonito, basta que seja rico. Olha para a Jacqueline: casou com o Onassis, que é um sapo, mas que é riquíssimo - contrapôs a irmã.
- Meu Deus, que nojo! Como é que tu consegues raciocinar dessa maneira? O dinheiro não conta para nada, se não houver amor - sentenciou Lúcia.
- E o que é que tu sabes sobre o amor?
- Já me esquecia que a especialista és tu. Derretes-te com aquele monstrinho do Tullio, que tem a cara cheia de espinhas e as mãos suadas. E, ainda por cima, é mais pobre do que nós - respondeu Lúcia, referindo-se ao filho dos vizinhos com o qual Margherita mantinha uma inocente troca de cromos.
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- Deixa o Tullio sossegado, se não queres que te dê uma estalada - ameaçou a irmã, atirando-lhe uma almofada.
Lúcia respondeu com um grito e Giovanna, que acabava de adormecer, acordou. Alguém bateu à porta do quarto.
- Querem sossegar e dormir? - Era a mãe, que estava a mexer no puxador da porta.
- Fica tranquila, mãe. Está fechada à chave - garantiu Margherita.
- Nós já nos vamos calar - acrescentou Lúcia.
- Por que é que de noite temos de nos fechar à chave? - perguntou Giovanna, sufocando um bocejo.
- Porque a mãe quer assim. Cala-te e dorme - ordenou a irmã mais velha.
- Por que é que só nos fechamos quando cá está o pai? - insistiu.
- Mas que chata - respondeu Lúcia, impaciente. Giovanna sufocou um espirro. - Dói-me a garganta - queixou-se.
- Estás a ficar constipada. E a culpa é tua, porque hoje quiseste ir para o campo sem casaco - ralhou Margherita.
- És má e antipática - resmungou Giovanna, cobrindo a cabeça com a almofada.
- E tu és uma miúda ambiciosa. Querias mostrar os jeans e agora tens a paga - interveio Lúcia.
- Já não vos suporto. Só porque são mais velhas do que eu, acham-se no direito de andar sempre em cima de mim - lamentou-se Giovanna.
Agora falavam em voz baixa, para não perturbar o descanso dos pais.
- Coitada da vítima - troçou Margherita.
- Não falo mais convosco. Estou cansada e tenho sono. Se me acordam outra vez, grito. Endireitou a almofada e adormeceu outra vez.
De manhã, quando acordou, voltou a espirrar. Foi à cozinha tomar o pequeno-almoço e encontrou a família toda sentada à mesa.
- Tens os olhos brilhantes - observou a mãe, quando a viu entrar. Foi até junto dela e encostou-lhe os lábios à testa. - Estás um bocadinho quente - constatou.
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- Não tenho fome. Não vou comer - disse Giovanna, afastando a chávena de café com leite.
As irmãs, que não partilhavam daquele mal-estar, dividiram entre si as torradas que ela recusava.
- Não estás bem - acrescentou a mãe. - Toma um bocado de leite. Não podes ir para a escola em jejum.
O pai, ainda em pijama, mexia o açúcar na chávena de café, enquanto ouvia o noticiário na rádio. Parecia absorto noutros pensamentos e, no entanto, interveio.
- Com certeza que não queres mandá-la para a escola nestas condições - disse à mulher.
- Por acaso até quero - sussurrou Gisella.
Giovanna gostaria de voltar para a cama, mas por princípio nunca discutia as vontades da mãe.
O pai deu a habitual gargalhada sonora. - A vossa mãe, minhas queridas meninas, tem uns ciúmes loucos - brincou.
A mulher não respondeu à provocação. - Eu saio convosco declarou, enquanto as empurrava para fora de casa. - Tenho de ir à retrosaria e depois vou a casa de uma cliente buscar uns tecidos.
- Vais comigo até à escola? - perguntou Giovanna, quando iam a descer as escadas.
A mãe anuiu, sem lhe dizer que tinha uma consulta no cardiologista. Ultimamente não se sentia muito bem. Tinham-lhe inchado as pernas e sentia um cansaço invencível a que o médico chamava astenia. Quando chegaram ao pé da escola, Lúcia e Margherita entraram a correr, enquanto Giovanna se chegou à mãe.
- Não me sinto nada bem - sussurrou.
- Eu sei. Tem paciência. Logo à tarde o pai volta para o trabalho e temos a casa toda para nós. Vou pôr uma caminha na cozinha, e assim podes ficar deitada ao pé de mim enquanto eu costuro prometeu, empurrando-a em direcção à entrada da escola. Mas Giovanna não queria separar-se dela.
- Mãe, é verdade que és ciumenta? - perguntou-lhe.
- é verdade - admitiu, a sorrir.
- Eu gosto do pai - afirmou a pequena.
- Eu sei - rematou ela. - Agora entra, porque se não vais chegar atrasada.
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- Também tenho de ficar para o almoço e para as actividades da tarde?
- Não é preciso, sobretudo se não te sentires bem. Espero por ti ao meio-dia - respondeu a mãe, inclinando-se para lhe dar um beijo na testa. A consulta no cardiologista estava marcada para as dez e ela contava regressar a casa a tempo.
Quando tocou a campainha para o fim das aulas, Giovanna saiu da sala. No corredor encontrou Lúcia, que lhe bloqueou o passo.
- Onde é que vais?
- Vou para casa - respondeu ela. a
- Nem penses. Mesmo que não te sintas bem, e isso vê-se, não vais para casa a esta hora.
- Mas foi a mãe que disse. Disse que eu podia faltar ao almoço e às actividades da tarde - teimou Giovanna.
- E se a mãe ainda não tiver chegado? - perguntou Lúcia.
- Ela vai estar em casa. Prometeu-me. E depois está o pai afirmou Giovanna, enquanto assoava ruidosamente o nariz num lencinho de papel.
Lúcia inclinou-se sobre ela e, olhando-a bem nos olhos, disse-lhe: - Ouve bem o que eu te digo. Se a mãe não estiver, vai para casa da Luana e espera lá até que ela chegue. Percebeste?
- Meu Deus, tanta complicação - resmungou Giovanna, que tinha um único desejo: voltar para casa e meter-se na cama.
Fez com alguma dificuldade o trajecto da escola até casa. Estava exausta. Tinha muita febre e era tal a sua prostração que, enquanto caminhava, chorava.
Juntou as forças que lhe restavam e subiu os três lanços de escadas. À entrada largou a pasta aos pés do bengaleiro e abriu a porta do quartinho. Nem sequer teve forças para se despir. Deixou-se cair na cama de Lúcia.
No outro quarto ouviu a voz do pai: - Gisella, és tu? Obviamente, estava à espera da mulher, que ainda não voltara.
Quis responder, mas não conseguiu.
O pai apareceu à porta do quarto. Continuava em pijama. Mas tinha-se lavado, barbeado e penteado. Cheirava a água-de-colónia. Estás mal, não estás? - perguntou-lhe com ternura, inclinando-se sobre ela para lhe afagar a testa.
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- Tenho frio - sussurrou Giovanna.
- A tua mãe saiu convosco e ainda não apareceu - comentou ele, a sorrir. Começou a desapertar os cordões dos sapatinhos e acrescentou: - Quer dizer que, por uma vez, vou ter o privilégio de tratar da minha pequenina.
Tirou-lhe os sapatos e os jeans, embrulhou-a num cobertor, pegou nela ao colo e levou-a para a cama de casal.
- Agora vou preparar-te um bom remédio - sussurrou-lhe, com uma voz que infundia confiança. Obrigou-a a beber um sumo de fruta depois de lhe ter dado uma aspirina.
- Vais ver que daqui a pouco a febre começa a baixar e ficas logo melhor - garantiu-lhe. Depois ligou o gira-discos e ouviram-se no quarto os acordes da Cumparsita.
- Tenho muito frio - balbuciou a pequena.
- O papá vai tratar de te aquecer - replicou, enfiando-se também na cama e envolvendo-a num abraço terno. O seu tacto era ainda mais simpático e delicado do que o da mãe. Os arrepios de frio começavam a atenuar-se. Lembrou-se de quando era muito mais pequena e estava naquela cama enorme com as irmãs. O pai e a mãe, no espaço entre a cómoda e o armário, dançavam o tango. O pai fazia umas caretas engraçadas, a mãe ria e atirava a cabeça para trás e ela e as irmãs saltitavam na cama, fazendo chiar a rede metálica. A certa altura o pai pegou nelas ao colo e pô-las a dançar, uma de cada vez, enquanto a mãe sorria, com o rosto iluminado de alegria.
Depois tudo mudara. Sabe-se lá porquê.
- Quando eu melhorar, vamos dançar o tango - sussurrou, extenuada pela febre e por um prazer que nascia dentro dela e saía da mão quente do pai, que lhe acariciava as virilhas.
- Estás quente - dizia o pai. - És uma menina quente, como eu gosto. - Entretanto tinha conseguido tirar o pijama e encostá-la ainda mais a ele. Giovanna sentia o perfume da água-de-colónia. Tinha os olhos fechados e parecia-lhe estar a sonhar. Era tão bom que certamente não estava à espera, no meio de uma tão extenuante doçura, da dor lancinante que lhe trespassou o ventre e a apanhou à traição. Lançou um grito desesperado, que se juntou a um outro, mais agudo, semelhante a um estertor. Depois ouviu qualquer coisa a cair.
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O pai retraiu-se, apavorado. A mulher estava aos pés da cama, prostrada no chão. A música tinha acabado, o disco girava no vazio. Os vizinhos, atraídos pelos gritos uníssonos de Giovanna e da mãe, batiam à porta de casa.
- O que foi que eu fiz - balbuciou o pai, aterrado, sem saber se havia de tratar das pessoas que se aglomeravam no patamar ou da mulher que estava no chão, desmaiada. A pequena Giovanna queixava-se baixinho, como uma cria ferida.
Agora que a sua mente se desanuviava, Guido tremia, dominado pelo medo. Com os braços pouco firmes, inclinou-se para levantar a mulher e pousou-a na cama, ao lado de Giovanna.
- E agora, o que é que eu faço? - começou a soluçar, aterrado por ter sido descoberto.
Margherita chegou da escola naquele momento. Dispersou os vizinhos, que lhe explicaram a sua presença por terem ouvido uns gritos desesperados. Entrou em casa, depois de ter aberto a porta com as suas chaves, e foi a correr até ao quarto. Viu o pai a chorar, apoiado na cabeceira da cama sobre a qual a mãe respirava com dificuldade, mantendo ainda apertada contra si a pequena Giovanna, seminua e delirante.
- Nojento! - sibilou, olhando-o com desprezo.
Agarrou no gira-discos e atirou-o ao chão. Lavou cuidadosamente a irmã mais nova, vestiu-lhe um pijama lavado e deitou-a na caminha dela. No quarto dos pais mudou os lençóis sujos de sangue, levantando a mãe com uma força que não sabia possuir.
O pai tinha-se refugiado numa poltrona, num canto do quarto, com a cabeça entre as mãos, e continuava a chorar. Ela parou diante dele e cuspiu-lhe na cara. - Garanto-te que não vai haver uma próxima vez, porque eu mato-te antes disso - disse-lhe com muita calma.
- Perdão - sussurrou ele.
- Fora daqui - ordenou-lhe. - Mas antes, entrega-me as chaves de casa.
Mais tarde, quando chegou o médico da Cruz Vermelha chamado de urgência, o pai já tinha ido embora.
O médico observou a mãe e analisou o resultado do electrocardiograma feito de manhã, depois de uma fila de espera interminável que a impedira de regressar a casa a tempo de evitar o desastre.
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- O teu pai não está? - perguntou a Margherita.
- Ele trabalha nos caminhos-de-ferro. Só volta daqui a dois dias - respondeu a rapariga.
- Não é possível avisá-lo? Preciso de falar com ele.
- Pode dizer-me a mim. Não está mais ninguém em casa.
- A tua mãe tem de ser internada imediatamente no hospital
- afirmou o médico.
- Não, o meu lugar é aqui, ao pé das minhas meninas - sussurrou a mulher, com um fio de voz. E acrescentou: - Onde está a Giovanna? Quero-a ao pé de mim.
- Ouviu? A mãe não quer ir para o hospital. Receite-lhe os remédios que são precisos e eu trato dela - decidiu Margherita.
- Faça o que diz a minha filha. Eu já estou melhor - sussurrou a mulher.
O médico foi-se embora, depois de ter receitado à doente uma série de medicamentos e repouso absoluto.
Margherita trouxe a irmã mais nova para junto da mãe. Depois foi à farmácia.
No caminho de volta encontrou Lúcia que, terminada a escola, conversava alegremente com umas colegas. - Anda comigo - ordenou-lhe.
Assim que ficaram sós, Margherita explicou: - O porco também fez aquilo com a Giovanna.
A menina de onze anos empalideceu. - A mãe sabe? - perguntou, num sussurro.
- Apanhou-o em flagrante. Sentiu-se mal. Quanto à Giovanna, também não está nada bem. Tem muita febre e está a delirar.
- Eu já sabia. Sentia que isto ia acabar assim. Eu não queria que ela saísse da escola sabendo que a mãe estava fora e que ele estava em casa - disse.
- Teria acontecido de qualquer maneira - rematou Margherita, entrando em casa e dirigindo-se ao quarto dos pais.
Gisella continuava abraçada a Giovanna e respirava com dificuldade.
- Que ninguém saiba disto - sussurrou para as duas filhas.
- Ninguém vai saber - garantiu Margherita.
- Vocês vão ter de se defender dele - continuou a mulher.
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- Ele é que vai ter de se defender de nós, mãe - garantiram as duas irmãs ao mesmo tempo.
- Consegui proteger-vos às duas. Mas não pude salvar a pequenina.
Lúcia e Margherita ficaram em silêncio.
- Agora toma estas gotas - pediu Margherita, e estendeu-lhe um copo de água em que tinha diluído o remédio.
Giovanna estava mergulhada no torpor da febre. De vez em quando queixava-se, murmurando palavras incompreensíveis.
A noite passou e no dia seguinte a mãe estava pior. Giovanna, pelo contrário, deixou de delirar porque a febre já tinha baixado. No entanto, pareceu às irmãs mais velhas que acabava de emergir de um território remoto, nos confins do sonho.
- Mãe, também estás doente? - perguntou Giovanna a Gisella, abraçando-a.
- Não é nada. É só o meu coração a fazer uma birra - sussurrou a mulher, acariciando-lhe a testa.
- Dormi muito. Tive muitos sonhos. Parecia-me que estava muita gente aqui à volta. Aconteceu alguma coisa? - perguntou às irmãs, enquanto olhava para elas com um ar abatido.
- Tiveste um febrão enorme. Como é que te sentes agora? perguntou Margherita.
- Não sei. Sinto-me fraca. E dói-me aqui - disse, enquanto levava uma mão à virilha.
- Se calhar ainda é um efeito da febre - disse Lúcia.
A mãe começou a chorar.
- Posso levantar-me? - perguntou Giovanna.
- Vais ficar na cama todo o dia - ordenou Margherita. - Nós agora temos de ir para a escola. E tu não podes abrir a porta a ninguém. Percebeste? Nem ao pai.
- Porquê? - perguntou ela.
- Porque é assim que tem de ser - sussurrou a mãe.
Passou o dia, e a noite. Giovanna dormiu o tempo quase todo e só acordava para beber. Depois adormecia outra vez, com um braço à volta do pescoço da mãe.
Na manhã seguinte, quando acordou, olhou para Gisella que dormia ao seu lado.
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- Mamã, estás tão fria - disse Giovanna, afastando-se dela.
Ao fazer isto, deslocou o braço da mãe, que voltou a cair inerte em cima do lençol. Então Giovanna gritou com todo o fôlego que tinha. As irmãs apareceram imediatamente.
A mãe estava morta.
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3
A avó Amalia foi viver com elas. E não teve uma vida fácil, com três raparigas irrequietas e um pai que, quanto a ela, sempre tinha sido uma pessoa indecifrável.
O facto de ter de tratar delas ajudou-a a superar a dor pela perda da filha. Percebeu imediatamente que a sua Gisella lhe tinha escondido uma situação familiar decididamente estranha. O que mais a chocava era o desprezo, nem sequer muito velado, que as raparigas, sobretudo as duas mais velhas, tinham pelo pai. A pequena, mais do que desprezá-lo, ignorava-o totalmente.
O homem, nos raros momentos que passava com a família, mantinha o olhar baixo, falava só quando o interrogavam e, quando passava a noite em casa, ficava fechado à chave no quartinho que tinha sido das meninas. Elas dormiam agora no quarto dos pais. Para a avó, montaram uma cama de armar na cozinha.
Tinha de admitir que Gisella educara bem as meninas no que dizia respeito às actividades domésticas. Margherita sabia fazer as compras e tinha um livro com as contas de casa. Lúcia, apesar dos seus onze anos, desenrascava-se na cozinha. A pequena Giovanna ajudava na lida da casa. Mas quanto ao resto, aquelas meninas pareciam-lhe realmente estranhas. As duas mais velhas tinham assumido a protecção da mais nova. Nunca a deixavam sozinha, respeitando os seus longos silêncios e o ar muitas vezes ausente.
A avó estava convencida de que Giovanna era um pouco imatura, apesar de a pobre Gisella lhe ter sempre dito que era uma rapariga imaginativa e inteligente.
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Gisella repousava havia dois meses no cemitério de Musocco. A escola tinha acabado e as três irmãs tinham passado de ano. Era domingo. Voltaram da missa com a avó, e o pai chegou também.
- Quanto tempo vais ficar? - perguntou Margherita, com o habitual ar de desdém, obrigando-o a parar no pequeno hall de entrada. A avó e Lúcia estavam já à volta do fogão. Giovanna tinha ido fazer as camas.
- Volto ao serviço na segunda-feira à noite - respondeu Guido em voz baixa.
- Tens três horas para descansar. À hora do almoço, quando estivermos todos à mesa, temos de falar - concluiu a rapariga.
- Está bem - respondeu ele, de cabeça baixa, enquanto se dirigia ao seu quartinho.
Giovanna, a quem cabia a tarefa de distribuir a comida pelos pratos, como sempre, ignorou o pai. Como sempre, a avó interveio.
- Esqueceste-te do teu pai - disse-lhe.
- É verdade - replicou ela, ao mesmo tempo que se sentava e levava à boca um frito de flor de abóbora.
- Serve-o a ele também - ordenou Margherita. Giovanna obedeceu.
A avó tinha feito um misto de verduras panadas e fritas que acompanhavam uns croquetes de frango aromatizados com limão. Comeram a refeição em silêncio. Depois a avó tirou a mesa e Margherita voltou-se para o pai: - Precisamos de dinheiro em casa começou.
- Entrego-te a ti o meu ordenado, como fazia com a mãe observou Guido.
- O dinheiro que a mãe ganhava já não existe. Eu tenho de me matricular no liceu e daqui a dois anos vai a Lúcia, e depois a Giovanna. Portanto, as despesas vão aumentar - insistiu.
- As poupanças da vossa mãe estão à parte. Não lhes toquei. Se não chegam para comprar uma casa, como ela queria, pelo menos são suficientes para os vossos estudos - observou o pai.
- Nesse dinheiro não se toca, Vai ser um pequeno dote para nós as três, quando casarmos.
- Então, o que é que pensas fazer? - perguntou ele.
A avó, que acompanhava a conversa, interveio: - Eu tenho a minha pensão. Não é grande coisa, mas pode servir como contributo.
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- Não, podes vir a precisar desse dinheiro - respondeu Margherita, com um sorriso. Depois voltou-se novamente para o pai: Tens de fazer aquilo que sempre evitaste em quinze anos de casamento: horas extraordinárias. Já me informei. Até podes duplicar o ordenado. E é isso que vais fazer - decretou com firmeza.
Guido baixou a cabeça sobre o prato vazio. - Parece-me justo -- observou, simplesmente.
- Então, acabou a conversa - disse Margherita, levantando-se da mesa.
O pai retirou-se para o seu quarto. A avó Amalia passou um olhar severo pelas três netas.
- Agora ouçam-me a mim - começou. - Eu não tenho a certeza de continuar a querer viver convosco. Nunca vi tratar desta maneira um chefe de família. Há aqui qualquer coisa que não me convence e gostava de saber do que se trata.
- Quem é o chefe de família? - perguntou Giovanna.
- Primeiro era a mãe. Agora sou eu - esclareceu Margherita. Lúcia anuiu.
- O chefe de família, até prova em contrário, é o vosso pai insistiu a avó.
- Até prova em contrário - retorquiu Lúcia. - E existe prova em contrário - sublinhou.
- O que é uma prova em contrário? - intrometeu-se mais uma vez Giovanna.
- E eu também posso saber qual é, finalmente? - perguntou a avó, ignorando a pergunta de Giovanna.
- Não - respondeu Margherita. - É um segredo que a mãe nos fez prometer que nunca revelaríamos a ninguém. Mas acredita em nós, avó, sob palavra de honra.
- O vosso pai deve ter-se manchado com uma culpa terrível, se a minha filha pediu silêncio - sussurrou a avó. E no entanto, agora que vivia ao lado dele, nutria pelo genro uma profunda compaixão.
Passaram alguns anos. As três irmãs cresciam e comportavam-se de uma forma irrepreensível, mas a relação com o pai não melhorava.
Quando Giovanna se inscreveu no primeiro ano de Contabilidade, Lúcia estava no terceiro ano e Margherita no último. Na escola
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que frequentavam eram conhecidas por todos os professores, que apreciavam a seriedade das três irmãs. A última, Giovanna, era a mais bonita e a mais estranha. Apesar de estudar com aproveitamento, parecia muitas vezes ausente, como se a sua mente navegasse ao longo de uma rota desconhecida dos outros.
Uma vez, a professora de Literatura abordou o assunto com Margherita. - Olha lá - disse-lhe. - Estive a observar a tua irmã com atenção e receio que ela esteja doente.
Margherita ficou assustada.
- Por que não a levas a um neurologista? Aquelas ausências mentais podem ser de origem epiléptica. É só uma suspeita, como é evidente. Mas não fazia mal estudar essa eventualidade.
Assim, Giovanna foi submetida a uma série de análises. Com resultado negativo.
- Ela é apenas estranha - disse Margherita à professora. - De resto, sempre foi assim - concluiu.
Depois de acabar o curso, Margherita arranjou um emprego e um namorado. Aos vinte anos casou-se com Luiggi Brenna, que tinha um bom emprego na Câmara do Comércio.
O marido aceitou hospedar em sua casa Giovanna, que estava no último ano.
Lúcia trabalhava na biblioteca municipal e aproveitou o pretexto do casamento da irmã mais velha para ir viver sozinha.
Em pouquíssimas semanas, naquele bairro junto aos campos, ficaram apenas a avó e o genro.
A sua convivência foi pacífica e durou muitos anos.
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4
Giovanna entrou na sala de jantar onde a família Brenna tinha acabado de jantar há pouco tempo.
- Isto são horas de chegar? - ralhou Margherita.
- Atrasei-me. Desculpa - justificou-se. O prato dela tinha sido coberto para a comida não arrefecer.
O cunhado Luigi levantou-se e, ao passar ao lado dela, deu-lhe uma palmadinha afectuosa no ombro, ao mesmo tempo que os dois sobrinhos a abraçavam. Giovanna destapou o prato. Sentiu imediatamente o aroma do pudim de espinafres e presunto.
- Onde estiveste? - quis saber Margherita, que estava sentada em frente a ela, com os cotovelos apoiados na mesa e os dedos cruzados para segurar o queixo.
- Complicas tanto as coisas! Afinal, só vim uma hora atrasada
- defendeu-se, a bufar.
- Bastam cinco minutos para fazer um disparate. Perguntei-te onde estiveste e com quem - insistiu a irmã.
Giovanna recordou aqueles momentos tão ternos que passara na companhia de Luca, o comerciante de automóveis que tinha um stand perto do grande talho em cuja caixa Giovanna trabalhava há meses
Sabes muito bem com quem ando - respondeu, irritada com aquela intrusão indevida. - O Luca veio trazer-me a casa e estivemos aqui em baixo, à porta, a conversar. - Era verdade. Giovanna
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nunca mentia e Margherita sabia-o. Isso, porém, não chegava para aplacar as suas aflições maternais.
- Pode saber-se o que é que aquele tipo quer de ti? - perguntou.
- Imagina - replicou Giovanna, saboreando com prazer o pudim.
- Não brinques. Lembra-te que eu sempre fui uma mãe para ti.
- O que é que o teu marido queria de ti, quando se conheceram? - provocou Giovanna.
- Ele queria casar comigo. E eu queria casar com ele, como é evidente. Mas esse Gandolfi é um escroque. Digo-te isso porque tirei informações sobre ele. E não me mandes meter na minha vida, porque enquanto viveres debaixo do meu tecto, aquilo que fizeres diz-nos respeito a todos.
- E não mando, de facto. Se me perguntasses a mim, em vez de te armares em detective, tinhas poupado tempo e trabalho. É verdade que gosta muito de andar atrás de saias. Eu tenho andado a segurá-lo porque não quero ser só mais uma das suas conquistas.
- Se brincares com o fogo, acabas por te queimar, mais cedo ou mais tarde - alertou-a.
- Ouve, Margherita, eu não me quero queimar, quero casar. O Luca é rico, é um homem bonito e acho que ele também quer ter uma família. Por isso, que razões tens tu para te preocupar?
- E o amor? - perguntou Margherita.
- Ainda não pensei nisso - respondeu Giovanna, tranquilamente.
- Andas com um homem e não sabes se o amas? É o cúmulo, Giovanna. Mas o que é que tu tens no coração? - disse a irmã, desesperada.
- Não sejas tão dramática. Será mesmo necessário amar um homem para casar com ele? Não chega gostar dele? Eu gosto do Luca. Ele gosta de mim. O que mais é preciso?
- Sempre foste muito esquisita - comentou amargamente Margherita.
Giovanna retirou-se para o seu quarto pois queria elaborar em paz aquilo que lhe parecia ser um óptimo projecto. Luca tinha vinte e nove anos, mais dez do que ela. Era filho único e proprietário,
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com o pai, de um negócio bem lançado e muito rentável. Vivia na mansarda de um edifício situado nas proximidades da Estação Central, para onde a tinha muitas vezes convidado, e onde ela sempre se recusara a ir. Um dia havia de aceitar, mas não antes de ele a pedir em casamento.
A declaração não tardaria a chegar, tinha a certeza. Ela não tinha um tostão, mas era séria, bonita e tinha um emprego seguro. Tinha também um número razoável de pretendentes, mas a sua escolha recaíra sobre Luca porque lhe parecia mais sólido e porque lhe oferecia mais garantias para o futuro. Sentou-se junto à mesinha, ao lado da cama, e começou a traçar num papel a sua assinatura de senhora casada: Giovanna Gandolfi. Já via a aliança no dedo e imaginava-se a morar numa casa lindíssima com um marido que a encheria de presentes e lhe proporcionaria uma vida fantástica, entre recepções elegantes e viagens exóticas. Escreveu também o nome dele e fechou os dois dentro de um coração. Depois fez uma careta, porque achou que aquilo era uma representação demasiado melada.
Deitou-se, apagou a luz e continuou a sonhar com o casamento. Casaria de branco, com um vestido luxuoso de tule e um pequeno diadema de folhinhas de hera, porque o verde fazia realçar o tom acobreado dos seus cabelos. As damas de honor seriam Lúcia e Margherita. O seu cunhado Luigi iria levá-la ao altar em vez do pai, com quem não tinha qualquer relação. Não que tivessem alguma vez discutido. Pelo contrário; quando ia visitá-lo com as irmãs, ele arranjava sempre maneira de lhe passar discretamente para a mão um envelope com algum dinheiro. Mas havia desde sempre, entre eles, qualquer coisa latente, não resolvida. Não sabia o que era nem tinha vontade de descobrir. Bastava-lhe saber que era bem tratado pela avó. Quanto ao resto, a relação de parentesco reduzia-se ao respeito pelas convenções.
Lúcia vivia com uma amiga de Zurique que se chamava Liselotte. Era secretária de um funcionário da embaixada suíça. Não
faziam segredo da sua homossexualidade, para grande sofrimento
de Margherita, que não se conformava com aquela diferença da irmã.
Ia ser difícil impor a Lúcia um vestido de cerimónia elegante.
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Vestia-se mal, mortificando a sua beleza dentro de roupas masculinas, não se pintava e tinha cortado à escovinha os seus bonitos cabelos loiros. Era muito simpática, generosa e extrovertida, e Giovanna preferia de longe a companhia de Lúcia à da irmã mais velha. Com estes pensamentos adormeceu.
Poucos dias mais tarde, Luca Gandolfi convidou-a para jantar num restaurante sobre o Naviglio. Era um sítio que estava muito na moda, frequentado por jovens elegantes. Para a ocasião, Giovanna escolhera um vestido de seda preto sobre o qual se destacava um colar de pérolas de cultura, emprestado por Margherita. Toda a gente olhava para ela com admiração, e ela tinha consciência disso. Luca usou todo o seu fascínio e conduziu a conversa num tom leve e um pouco superficial que para Giovanna servia perfeitamente. Luca era divertido e generoso: duas qualidades a não menosprezar num futuro marido.
- E se fôssemos dançar? - propôs-lhe, quando acabaram de jantar.
Giovanna ficou estarrecida. Não gostava de música e muito menos de dançar.
- Não seria melhor darmos um passeio ao longo do rio?
- Tens alguma coisa contra a vida nocturna?
- Tenho mesmo de estar em casa antes da meia-noite, porque se não a minha irmã fica muito zangada. Para além disso, não sei dançar. Não gosto, nem quero aprender. Detesto música e não tenho ouvido nenhum - declarou, de um só fôlego.
Luca sorriu: - Uma resposta directa é preferível a muitos jogos estúpidos de palavras. - E acrescentou: - E se em vez disso déssemos uma volta de carro? - Luca pensava já na intimidade do seu Jaguar.
- Acho uma proposta um pouco ambígua. Sabes, Luca, eu cresci debaixo da asa protectora das minhas irmãs. Vivo com uma delas, que é uma espécie de cão de guarda. Mas é justo que seja assim. Não sou uma rapariga fácil - explicou.
Avançaram ao longo da margem do Naviglio, de mãos dadas, como dois tímidos apaixonados no primeiro encontro.
- Mas deves ter tido alguma história sentimental - insinuou ele
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- Nem uma. Sempre que tentei marcar algum encontro, lá estava a Margherita com a espingarda apontada - confessou.
- Acho que és a rapariga mais inacessível que alguma vez encontrei - constatou Luca com alguma satisfação.
- A minha irmã sabe que eu ando contigo e já se pôs em guarda. É claro que não era preciso, porque eu sei que tu gostas de raparigas fáceis. Comigo estás a perder tempo - respondeu tranquilamente.
- Enquanto que tu és do tipo de casar - disse Luca, pensativo. Gostava imenso de Giovanna, mas ainda não estava preparado para o casamento.
- Acho que era melhor levares-me a casa. Está a fazer-se tarde
- concluiu ela.
Deixou-a à porta de casa. - Estou a apaixonar-me por ti confessou-lhe, beijando-lhe a mão.
- Sinto-me muito lisonjeada - respondeu ela, a sorrir.
- E tu? - perguntou Luca.
- Ainda não sei. Começa a fazer-me a corte.
- Porquê, o que foi que eu andei a fazer até agora? - replicou, espantado.
- Ainda só tentaste levar-me para a cama - afirmou ela, ao mesmo tempo que lhe fechava a porta na cara.
Para Luca tornou-se uma questão de brio expugnar aquela fortaleza extraordinária. Começou a mandar-lhe flores e a inventar para ela poemas estúpidos, que enfiava nas caixas de bombons. Giovanna divertia-se a ler aqueles versos formais e dava os chocolates aos sobrinhos.
De manhã, Luca apresentava-se à porta de casa para a acompanhar ao trabalho e, à noite, esperava-a à saída do talho para a levar a casa. Às vezes, iam jantar a um restaurante.
Uma noite, antes de começarem a jantar, o solteirão formulou a sua proposta de casamento. Giovanna não conseguiu conter a felicidade, sobretudo quando ele lhe enfiou no dedo um anel com um diamante espantoso.
- É tudo aquilo que eu sempre desejei - disse. Luca não percebeu se ela se referia à sua declaração ou ao anel.
- Ainda não me disseste se me amas - comentou.
- Gosto muito de ti. Achas que chega? - respondeu Giovanna.
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Estava habituado a abrir caminho nos corações femininos, e o seu orgulho de macho ressentiu-se. No entanto, sorriu. Aos seus olhos, Giovanna era a representação perfeita da mulher ideal.
- Farei com que chegue. Até porque aprecio a tua sinceridade
- admitiu, sem lhe confessar que por ela tinha perdido há muito o
sono e a segurança tranquila de sempre. Depois acrescentou: -
Gosto da candura que te torna tão estranha. Nos tempos que correm, muita gente considera quase uma culpa a virgindade de uma mulher. Mas eu sou à moda antiga e sei dar a essa virtude o valor que merece. Serei um marido especial. Não te vais arrepender de casar comigo.
Giovanna apresentou oficialmente Luca às irmãs e conheceu os pais dele. Foi marcada a data do casamento: Setembro.
Em Agosto, Margherita partiu com a família para Forte dei Marmi, onde Luigi tinha uma casinha com um bonito jardim que herdara dos avós. Giovanna foi para a Sardenha com Luca. Em Porto Rotondo, os Gandolfi possuíam uma villa construída na escarpa, a pique sobre o mar. Os pais de Luca receberam-na como a uma filha que os enchia de felicidade. À hora do aperitivo, na praceta da terra, anunciaram o noivado aos amigos. O casal de noivos ficou submerso em felicitações e uma série de convites.
Giovanna entrava num mundo com que sonhara durante muito tempo e que até então se divertira a imaginar, tomando como ponto de partida as crónicas das revistas. Tal como Cinderela, bastara-lhe encontrar Luca para entrar num reino onde toda a gente tinha para ela sorrisos cativantes, palavras de encorajamento e uma manifesta admiração, deixando para trás a humildade das suas próprias origens, a cultura escassa, as maneiras pouco elegantes e as restrições económicas com que sempre se debatera.
Estava fascinada e imensamente feliz.
Disse-o aos futuros sogros.
- Com o tempo, tudo te vai parecer menos extraordinário. Eu nasci pobre como tu e construí o meu sucesso com trabalho, vontade e uma boa dose de sorte. Garanto-te que uma pessoa se habitua depressa à riqueza, mas que nunca mais se conforma com a miséria
- garantiu o pai de Luca.
- Mereces realmente ser feliz - sussurrou a futura sogra. --
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Nos tempos que correm é uma raridade encontrar uma rapariga bonita como tu que se casa com o primeiro homem da sua vida.
Giovanna sorriu.
À noite, depois do jantar, os dois namorados foram passear abraçados pela praia. Estava uma noite fantástica, de lua cheia, e o ar cheirava a ervas aromáticas.
- Não tenho assim tanto a certeza de querer chegar virgem ao casamento - disse-lhe, apertando-se contra ele.
- Estás a brincar? - perguntou ele, incrédulo.
- Tenta. No fundo, foi aquilo que sempre desejaste. Giovanna pensava muito nos mistérios do sexo desde os anos
da adolescência. Quando Luca a beijava, sentia um formigueiro agradável e o desejo irrefreável de se entregar a ele. Mas a rígida educação que recebera da família impedira-a de se abandonar ao prazer de amar e tinha muita curiosidade em descobrir.
- Tens a certeza de que também o desejas? - hesitou Luca. Giovanna pousou os lábios nos dele e beijaram-se docemente,
enquanto se deixavam escorregar para a areia macia. Era tudo tão perfeito que ela se abandonou sem reservas às delícias daquele novo jogo, tão doce e tão forte.
Quando Luca entrou nela admirou-se por não sentir dor, como se tivesse sido feita só para ele.
E, de repente, o encanto quebrou-se. Luca separou-se dela sem uma palavra e sentou-se na areia de costas voltadas.
- Fiz alguma coisa de errado? - balbuciou Giovanna, perturbada com aquela mudança súbita.
- E ainda perguntas? - disse ele, ao mesmo tempo que apanhava a roupa espalhada em volta.
- É claro que pergunto, porque não sei. Um momento atrás estávamos no paraíso, e agora parece-me que me despenhei numa placa de gelo - replicou, desorientada.
- Por que me mentiste? - perguntou Luca, levantando-se.
- Quando? - respondeu ela, estupefacta.
- A propósito da tua virgindade - replicou ele, furibundo. Naquele momento, Giovanna relacionou a ausência de dor com
a acusação do namorado. Tinha a certeza da sua própria sinceridade e não sabia o que dizer. - Lamento muito que não acredites. Para
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mim foi, de facto, a primeira vez. - Estava confusa e tinha muita vontade de chorar.
- Que necessidade havia de me enganares?
- Luca, por favor, escuta. Eu disse-te a verdade. É mesmo necessário que uma mulher sinta dor? - perguntou, levantando a voz.
- Sim, é mesmo necessário - replicou Luca.
- Nesse caso, os nossos caminhos têm de se separar. Não me posso casar com um homem que não tem confiança em mim reagiu. Apanhou a roupa e vestiu-se rapidamente.
- De facto, fui muito ingénuo em propor-te casamento - replicou. E acrescentou: - Agradava-te a ideia do marido brilhante, de uma família rica, de um futuro sem problemas.
- Sabes uma coisa? Não quero saber do teu dinheiro, da tua boa educação, do teu anel de diamante - disse, ao mesmo tempo que tirava do dedo o solitário e lho atirava à cara. - És um homenzinho. Agora eu sei que mereço melhor - concluiu. E acrescentou:
- Se eu fosse a ti, informava-me melhor. Não admites a hipótese de que uma mulher possa ter nascido assim, como eu?
Na manhã seguinte deixou a villa dos Gandolfi e apanhou um táxi para o aeroporto. Apanhou o primeiro voo para Pisa e chegou a casa da irmã, em Forte dei Marmi. Margherita, o marido e os filhos estavam sentados no jardim a tomar o pequeno-almoço. Olharam para ela, estarrecidos.
- Sou mesmo eu - disse ela.
- Então vamos para a praia contigo - gritaram os sobrinhos, com alegria.
Giovanna deixou cair a mala e pegou neles ao colo. Margherita nem ousava falar. O cunhado sorriu-lhe.
- Está tudo bem, Giovanna? - perguntou.
- Se excluirmos o facto de o casamento ter ido ao ar - respondeu ela.
- Eu já sabia. Nunca acreditei que aquele menino de boas famílias fosse o homem certo para ti - resmungou Margherita.
- Meninos, vão buscar as bicicletas. Vamos para a praia anunciou Giovanna aos sobrinhos.
Enquanto as crianças se afastavam, inclinou-se para a irmã.-
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- O Luca é mesmo um miserável - sussurrou. E acrescentou:
- Vá lá que pelo menos eu não estava apaixonada, porque se não ia
sofrer imenso. Assim, sinto-me renascer. Era tudo muito opressivo,
antes.
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5
Para Giovanna foi um Verão extraordinário. Foi eleita "Miss Versilia" e gozou de uma discreta popularidade. O mundo para o qual a sua beleza a tinha catapultado era, porém, muito diferente daquele que tinha imaginado. Por isso, não lhe custou muito assumir a devida distância. Nunca se sentira em sintonia com a banalidade e o mau gosto.
Foi submersa por uma avalanche de ofertas de trabalho que lhe reforçaram a vaidade. Mas apercebeu-se imediatamente de que o seu lugar na caixa do talho era preferível a outras propostas, aliciantes só na aparência. O bom senso, em suma, prevaleceu sobre tanta adulação.
A única novidade concreta era representada por um jovem fotógrafo que lhe pedia com insistência que posasse para uma série de fotografias. - Tens tudo o que é preciso para te tornares modelo publicitário - dizia-lhe, explicando-lhe que apenas teria contactos com agências de prestígio, e sólidas como cofres-fortes. Fazias a tua fortuna e a minha também, porque eu podia ser o teu agente.
- Vou pensar nisso - prometeu, sem assumir nenhum compromisso. - Agora gostava de gozar em paz os poucos dias de férias que ainda me restam.
O miserável naufrágio da sua história de amor com Luca começava a assumir a patina evanescente das recordações que esqueceria muito em breve. Acreditava no destino e consolou-se ao pensar
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que o papel de senhora rica e burguesa não se adaptava obviamente a ela. As férias estavam quase a acabar quando, inesperadamente, Luca Gandolfi se apresentou em casa de Margherita.
- Vim pedir-te desculpa - disse-lhe, com ar de cão escorraçado. E acrescentou: - Comportei-me de uma maneira deplorável.
Giovanna devolveu-lhe um olhar gelado. - A mim pareceu-me que foste coerente contigo próprio e com a tua maneira de pensar - observou.
Estavam fora, no jardim. Ele olhava para aquela rapariga tão bonita, que tinha o sol nos olhos e nos cabelos, e media a sua própria pequenez.
- Queria que me perdoasses - sussurrou-lhe.
- Isso já fiz - replicou Giovanna.
- Quer dizer que ainda posso ter alguma esperança? - perguntou.
- Não fomos feitos um para o outro - respondeu Giovanna.
- Mesmo que eu te ame e te deseje mais do que a qualquer outra coisa neste mundo?
Era tão patético que raiava o ridículo. Giovanna sentiu-se profundamente irritada com aquilo e fez os possíveis por se controlar.
- Luca, a nossa história acabou. Ia ser um erro para ambos se nos casássemos. Somos demasiado diferentes - afirmou, estendendo-lhe a mão. Era uma despedida definitiva.
Margherita, que tinha espiado aquele encontro, atacou-a assim que ficaram sós. - És mesmo doida. Veio ter contigo a rastejar e tu puseste-o na rua. Onde é que vais encontrar outro marido assim tão rico? - protestou.
- Um marido que seja só rico não me interessa. Quero mais e melhor da vida. Esta história com o Luca iluminou-me as ideias justificou-se.
- Tu, minha querida, andas à procura da lua no poço. Ou tens em mente alguma coisa que eu não saiba? - perguntou, alarmada.
- Apanhar a lua sem cair ao poço - disse Giovanna com um ar tranquilo.
- Fantasias de mais. Devias olhar a realidade de frente. Infelizmente, em muitos aspectos, sais à nossa mãe. Também era uma sonhadora. Lembras-te quando ela queria comprar um grande apartamento com duas casas de banho?
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É
- A sério? Não sei nada disso - respondeu Giovanna, desconcertada. - Quando foi?
- Eras pequenina, mas também trabalhavas como nós a colar caixas de cartão para acrescentar uns trocos ao sonho da mãe contou Margherita, iluminando-se com aquela recordação distante.
- E depois? Depois o que aconteceu? - indagou, enquanto se esforçava inutilmente por reencontrar alguns farrapos do passado.
- A mãe morreu e, com ela, aquele sonho. Mas ficou o dinheiro que foi poupando aos poucos. Nunca ousámos tocar-lhe. Isto pelo menos, deves saber - acrescentou Margherita que, tal como Lúcia, abençoava as lacunas da memória de infância da irmã.
- Claro que sei. Mas não vai ser aquela meia dúzia de tostões que vai mudar a minha vida. Eu quero outra coisa, maninha - sorriu.
- Boa sorte. Mas tem cuidado com os confrontos directos. Podem fazer muito mal - alertou-a.
Giovanna retomou o emprego na caixa do talho. Nos tempos livres trabalhava com o jovem fotógrafo, que preparou para ela um álbum bem fornecido de excelentes imagens, focando sobretudo o seu rosto encantador. Era um profissional correcto. Nunca lhe propôs que se despisse, nem tentou seduzi-la. Enchia-a de elogios e prognosticava-lhe um futuro brilhante.
Uma noite telefonou-lhe. - Faz figas - disse. - Chegou a primeira oferta concreta de uma agência importante. Querem falar contigo.
- Concreta, como? - perguntou ela.
- Estou a falar de milhões, Giovanna. Não te preocupes com isso. Sou o teu agente e vou apontar para o preço mais elevado. Amanhã à tarde encontramo-nos na agência. Atenção, leva um vestido simples e não te pintes. Quero lançar-te como uma rapariga de cara lavada.
Giovanna não se entusiasmou demasiado. Aliás, preparou-se para aquele encontro com uma certa desconfiança. Parecia-lhe tudo demasiado simples e fácil. Verificou que estava enganada quando se achou em presença da cortesia dos seus interlocutores, que lhe propuseram a publicidade de uns lençóis de uma marca famosa.
- O empresário quer conhecer-te antes de assinar o contrato
- disseram-lhe.
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- Qual é a necessidade, se já viram as minhas fotografias? perguntou Giovanna.
- É um sujeito à moda antiga. Gosta de ver aquilo que compra
- replicou o dono da agência.
Assim, Giovanna e o fotógrafo entraram naquela prestigiada sede da indústria têxtil. Uma secretária acompanhou-os até um escritório sumptuoso, onde foram recebidos pelo dono e por alguns colaboradores. Giovanna respondeu com bons modos a uma série de perguntas banais e sentiu-se satisfeita com a admiração dos homens da empresa. Depois leu atentamente o contrato que lhe foi apresentado, pedindo aqui e ali alguns esclarecimentos ao seu agente. Por fim, assinou aquele compromisso que previa uma remuneração notável.
- Neste ponto, só nos falta festejar o nosso acordo - propôs o industrial. Era um homem de aspecto severo, relativamente jovem e despachado. - Vamos jantar? - acrescentou.
- É mesmo preciso? - perguntou Giovanna ao fotógrafo, num sussurro. Tinha trabalhado todo o dia e estava cansada.
- É um convite cortês. Por que é que havias de recusar? objectou o rapaz.
Giovanna pensava nas justificações que ia ter de dar à irmã e no facto de o seu despertador tocar todas as manhãs às seis e meia. Não a entusiasmava a ideia de sair à noite com desconhecidos. Por fim, o contrato que acabava de assinar levou-a a aceitar com um sorriso.
- Lamento não te poder acompanhar. Tenho outro compromisso - disse o fotógrafo. Os outros dois directores também se
eclipsaram e ela foi obrigada a um frente-a-frente, no habitual restaurante da moda, com aquele importante interlocutor que lhe falou de si, do pai que, de vendedor ambulante de tecidos, tinha conseguido implantar no Varesotto os primeiros teares logo a seguir à guerra, do grande impulso que ele e os irmãos tinham dado à empresa, dos seus objectivos expansionistas.
Discorreu durante muito tempo sobre as diferenças subtis entre o algodão grego e o egípcio, sobre as doenças profissionais,
como a surdez, que afectavam as operárias que trabalhavam nos
teares, sobre a delicadeza dos fios e dos tecidos. Depois entreteve-a
com dissertações pormenorizadas sobre vários tipos de tecidos,
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percal, casca de ovo, algodão penteado, renda medieval e tela de
Flandres...
- Vai promover a nossa produção de casca de ovo - explicou, detendo-se em pormenores fastidiosos.
Era um falador incansável. Giovanna escutava e assentia. O discurso envolveu depois a família, os filhos demasiado mimados, a mulher de temperamento agreste, a solidão do poder.
Giovanna ouvia, resignada, aquela torrente de palavras. Conseguiu não bocejar mas, ostensivamente, mais do que uma vez, olhou com impaciência para o seu pequeno relógio de pulso.
- Sou um tolo - disse ele, a certa altura. - Está cansada e eu estou a fazê-la perder tempo em conversas inúteis - quase se desculpou, apressando-se a escoltá-la para fora do restaurante, onde os dois tinham comido pouquíssimo.
Convidou-a a entrar no seu carro e ofereceu-se para a levar a casa. Entretanto, continuou com a exposição dos seus projectos empresariais. Estacionou o carro em frente à porta do prédio de Giovanna e, no momento em que ela se ia despedir, ele deteve-a, agarrando-lhe delicadamente o braço. - Falei-lhe muito de mim, mas não sei nada de si - disse.
- Garanto-lhe que não tenho, de facto, nada de interessante para contar - respondeu ela, enquanto tentava abrir a porta do carro, sem conseguir.
Olhou para ele, aflita, e ele sorriu.
- Já te deixo ir embora - garantiu, em tom confidencial. - Mas antes disso quero ter uns minutos de boa intimidade - disse, enfiando com prepotência uma mão por baixo do vestido dela.
Então Giovanna assustou-se. A rua estava escura e deserta. Ecoou na sua mente o aviso de Margherita: "Cuidado com os confrontos directos. Podem fazer muito mal."
- O senhor é completamente louco! - gritou, enquanto se debatia para sair do carro.
O rico empresário tinha baixado o fecho das calças e preparava-se para se lançar sobre ela.
- Não sejas estúpida. Acabas de assinar um contrato muito vantajoso. Com certeza que não queres mandar tudo ao ar. - Tinha reclinado o assento e estava em cima dela, esmagando-a.
Giovanna lançou um uivo assustador.
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- Acaba com isso, cretina! - resmungou o homem, desorientado.
Alguém, do lado de fora, dava pancadas vigorosas na carroçaria. Ele retraiu-se, alarmado. No passeio estava Luigi que, espicaçado pela mulher, tinha descido para esperar Giovanna à porta de casa.
- Grande estúpida, comigo acabou - sibilou o industrial, recompondo-se rapidamente.
Luigi escancarou do lado de fora a porta que Giovanna não tinha conseguido abrir. A rapariga saiu precipitadamente, ao mesmo tempo que atirava à cara do industrial o contrato que acabara de assinar.
Luigi deu a volta ao carro, abriu a outra porta e agarrou o homem pelo casaco. - Pede desculpa à rapariga - ordenou com uma voz gelada.
- Você tire as mãos de cima de mim. Ainda lhe posso arranjar problemas - ameaçou o homem.
Luigi arrastou o industrial para fora do carro e esbofeteou-o com força.
Assim que Giovanna entrou em casa com o cunhado, desatou num pranto.
- Eu bem te avisei em relação às tuas ambições - comentou Margherita. E acrescentou, ao mesmo tempo que lhe estendia um lenço para ela limpar as lágrimas: - Agora vou-te preparar um bom chá de camomila. Assim acalmas-te e podes reflectir mais tranquilamente.
Mas ela não queria ficar mais triste do que o necessário. Bebeu devagar o chá de camomila, enquanto Margherita a assistia com afecto.
- Errei mais uma vez - admitiu com amargura. - Não é nada de grave. É como quando se aprende a conduzir. Depois de uma série de guinadas, percebe-se como aquilo funciona. Da próxima vez, não vou falhar - decidiu, determinada a esquecer o sucedido.
De facto, não voltou a falhar. No Verão seguinte, durante as férias, encontrou Jacopo Lanciani. Apaixonou-se e deixou que o instinto lhe sugerisse a forma de se comportar para não incorrer numa nova desilusão. Mas, em qualquer caso, Jacopo não a ia desiludir, porque era a melhor criatura que uma mulher poderia encontrar.
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HOJe
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1
Giny acordou sobressaltada. Tivera um pesadelo, que o despertar fez desaparecer. Olhou para o despertador. Eram duas horas da manhã. Levantou-se e foi à cozinha beber um copo de água. Observou uma faixa de luz que provinha da sala de estar. Abriu a porta e encontrou a mãe enterrada num sofá com os auscultadores nos ouvidos. Estava a chorar.
Giovanna viu-a. Tirou os auscultadores, limpou as lágrimas e sorriu-lhe.
- O que é que se passa, mamã? - perguntou-lhe com ternura. Giovanna abriu os braços para a receber. Giny sentou-se nos
joelhos da mãe e abraçou-a.
- Estou só um bocadinho melancólica - disse a mãe, tentando não a assustar.
- Vejo que sim. Estavas a ouvir música, e isso já me parece preocupante - constatou a filha.
- E tu, desde quando é que acordas a meio da noite?
- Tive um sonho horrível
- Já passou. Não penses mais nisso - sussurrou Giovanna, apertando-a contra si.
- Estás a sofrer por causa do pai? - perguntou Giny.
- Também - confessou Giovanna.
- Tínhamos prometido contar tudo uma à outra. Sou toda ouvidos - disse Giny. Viu em cima da mesa o quadro que Giovanna tinha comprado naquela noite. - Bonita, esta tela - exclamou.
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- Chama-se Lição de Tango. Fico contente por gostares dela.
Apetecia-lhe contar a Giny a sua história e explicar que, finalmente, percebia agora por que não tolerara nunca o afecto do marido pela filha. Tinha-lhe sonegado Giny não por ciúme, mas pelo receio inconsciente de que pudesse acontecer-lhe aquilo que lhe acontecera a ela. O medo tinha-a acompanhado toda a vida. Quantos erros e quanta infelicidade provocara a si própria e aos outros. Estava desesperada e não encontrava as palavras nem a coragem para explicar tudo aquilo a Giny.
Sorriu para a filha e disse: - Queres que te conte tudo? Prometo-te que o farei, quando estiver menos triste e, sobretudo, menos cansada. Agora vamos dormir.
Saíram da sala e Giny foi atrás dela até ao quarto.
- Posso ficar ao pé de ti? - perguntou-lhe.
- Só se me prometeres que dormes - avisou Giovanna. - São quase três horas e amanhã tens de ir para a escola. - Deitaram-se na cama, uma ao lado da outra.
- Apaga a luz, por favor - disse Giny.
Ficaram muito juntas, no escuro, cada uma mergulhada nos seus próprios pensamentos.
Giovanna estava demasiado perturbada para conciliar o sono. Gostaria de poder confrontar imediatamente as irmãs e perguntar-lhes as razões daquele longo silêncio porque, só agora se apercebia, elas sempre tinham sabido a verdade.
- Acabei com o Paolo - sussurrou Giny.
Giovanna esforçou-se por não reagir, deixando que Giny continuasse a falar.
- Mãe, ouviste o que eu disse? - insistiu a filha.
- Claro. Acabaste com o Paolo - repetiu Giovanna calmamente. Sentou-se na cama e voltou a acender a luz.
- Apaga, ou eu não te consigo contar - suplicou Giny.
- Despachaste-o, finalmente - disse Giovanna, satisfeita.
- Ele é que me despachou a mim - corrigiu a filha.
- Por isso é que não conseguias dormir. O que é que aconteceu?
- Disse-lhe que estava grávida.
- Mas não é verdade. Diz-me que não é verdade, Giny - pediu a mãe, alarmada.
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- Eu falei muito com a avó a respeito do Paolo. A conversar com ela, percebi que talvez não estivesse assim tão apaixonada...
Giovanna, assustada, não a deixou acabar: - Mas tu tomas a pílula. Como é que aconteceu uma coisa dessas?
- Mãe, eu não estou grávida. Só lhe disse isso para ver como ele reagia. Fugiu de uma maneira infame. Até me fez pena. Sinto
vergonha por ele, e um pouco por mim também. Fiz-te sofrer inutilmente. Desculpa.
Mãe e filha abraçaram-se com força e Giovanna contou-lhe a história de Luca Gandolfi, o seu primeiro amor, a sua primeira desilusão.
- Então, podes entender como eu me sinto - sussurrou Giny. - Eu sempre me recusei a sofrer. Se alguma coisa ou alguém me feria, apagava-o do meu horizonte. É um método que não te aconselho. Não nos curamos das desilusões sufocando-as no fundo do coração. Tens de resolver os teus problemas sem medo. Passa
[depressa, vais ver. Eu só posso abençoar o pobre do Paolo. Seria um desastre se tivesse tido a coragem de assumir os seus próprios sentimentos. Ia debater-se entre ti e a família. Iam sofrer todos e, ao fim, acabavas por perceber que não eram feitos um para o outro disse Giovanna.
- Foi a avó que me sugeriu pô-lo à prova - confessou Giny. - A minha sogra, como boa florentina, descende por algum lado do Maquiavel - disse Giovanna, a sorrir. E acrescentou: -Já te contei quando ela me pôs à prova? Não lhe agradava muito a ideia de eu casar com o teu pai. Por isso, um dia, veio ter comigo e idisse-me que o filho não tinha nada, nem sequer a casa onde vivia. Se eu queria ser a signora Lanciani, tinha de me preparar para uma vida de privações, porque ela nunca nos iria ajudar. E, como priImeira jogada, fechou a villa de Forte dei Marmi e tirou o ordenado [ao Jacopo. Sabes uma coisa, Giny? Comportámo-nos com muita [dignidade. Eu tinha o meu ordenado e chegava-me. O teu pai arranjou emprego através de um amigo e mudou-se para um pequeno apartamento em San Frediano. Eu só o queria a ele, não o dinheiro que ele tinha. Amava-o profundamente.
- Mamã, espero bem que as nossas desavenças tenham acabado, porque eu preciso muito de ti - disse Giny, com uma voz ensonada. Adormeceu e Giovanna encostou-se bem a ela.
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- E eu também espero bem que o período dos meus medos tenha acabado, porque preciso muito de recomeçar a viver - sussurrou, antes de se deixar vencer pelo sono.
No dia seguinte era sexta-feira. Giovanna conseguiu mandar a filha e a sogra ao teatro e pediu às irmãs que viessem sozinhas ao jantar semanal.
- Quero esclarecer o meu passado - começou, enquanto se sentavam à mesa. -Julgo que vocês as duas calaram algo muito importante para mim, e ainda não sei se vos hei-de agradecer ou amaldiçoar.
Lúcia e Margherita não ousaram levantar os olhos dos pratos. Aquela tomada de consciência de Giovanna andava já no ar. Tinham-no entendido as duas, quando a irmã mais nova, algum tempo atrás, insistira em certas perguntas a que elas não tinham querido responder.
A porta da sala de jantar estava completamente aberta para a sala de estar, onde a aparelhagem estereofónica tocava La Cumparsita, cantada por Júlio Iglesias.
- Precisamos mesmo de estar a ouvir esta música? - resmungou Lúcia.
- Foi ao som destas notas que o pai me violentou - afirmou Giovanna num tom gélido.
Lúcia bebeu o seu vinho de um só trago, limpou os lábios e olhou para a irmã mais nova com ar de desafio.
- Pensas que foste a única vítima? O pai já tinha feito isso com a Margherita e depois comigo - declarou.
Caiu o silêncio. Lúcia começou a chorar, Margherita levantou-se da mesa e foi à sala desligar a aparelhagem.
Regressou à sala de jantar e confrontou Giovanna: - Nós defendemos-te como pudemos, quando eras pequena. Nós também éramos pequenas, mas não queríamos que te tocasse a mesma sorte que a nós.
- A mãe nunca soube de nós duas, apesar de suspeitar - soluçou Lúcia.
- Mas onde é que tu encontras forças para continuares a preocupar-te com aquele desgraçado do nosso pai? - perguntou Giovanna a Margherita. E continuou: - Eu não te percebo. Nem te percebo a ti, Lúcia. Por que nunca disseram nada? Eu afastei aquela
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recordação alucinante, mas vocês tinham a obrigação de me levar a recordar. Não têm consciência da confusão que criaram com o vosso silêncio? Toda a gente a dizer: "A Giovanna, coitadinha, é estranha", e a ter muita pena de mim. Como é que vocês foram capazes de se calarem durante tanto tempo? - gritou, dominada pela cólera.
- Giovanna, somos três desgraçadas, esta é que é a verdade interveio Lúcia. E acrescentou: - A Margherita é uma neurótica e atirou-se para a religião como se fosse uma tábua de salvação. Tu agarraste-te às aparências, ignorando a substância da vida. Eu reagi rejeitando os homens. Somos realmente três desgraçadas. O que havemos de fazer? Temos de continuar a chorar no ombro umas das outras? Vamos amaldiçoar o nosso pai até ao fim dos nossos dias?
- Pára, Lúcia - interveio Margherita. - O nosso pai não passa de um pobre homem atormentado pelo remorso e pela consciência de que voltaria a fazer exactamente aquilo que fez. Porque o seu instinto perverso é mais forte do que a razão. Não tenciono absolvê-lo, mas sim perdoar-lhe. Eu perdoei-o. Acho que vocês deviam fazer a mesma coisa, sobretudo considerando as suas condições. Está num estado grave de confusão, mas lembra-se bem da sua violência. E sofre com isso - concluiu.
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2
A casa de repouso fora, em tempos, uma villa de uma família aristocrática. Agora era uma fundação subvencionada em parte por doações privadas e em parte pelos próprios pensionistas que, com as suas reformas, contribuíam para as despesas. O edifício ficava no meio de um parque, nos arredores de Pavia.
Guido Reslieri tinha ali entrado por iniciativa própria cinco anos atrás, após a morte da sogra, que ele assistira até ao fim.
Giovanna perguntou por ele na portaria. Veio ao encontro dela uma enfermeira. - Olhe, o signor Reslieri está ali ao fundo - disse-lhe, indicando um local impreciso ao longo da alameda ladeada de plátanos antigos.
- Ali ao fundo, onde? - perguntou Giovanna, titubeante.
A mulher observou a visitante e reparou na elegância do tailleur de linho azul-celeste, dos sapatinhos de verniz de duas cores, azul-claro e azul-escuro, assim como da pequena carteira que trazia a tiracolo. Viu a grande água marinha no dedo mindinho e invejou-a. Pensou que fosse uma grande senhora e admirou-se que ela estivesse à procura do pobre signor Reslieri, reformado dos caminhos-de-ferro.
- Ali, ao pé daquela fonte - explicou. E acrescentou: - Quer que a acompanhe?
- Não, obrigada - respondeu Giovanna.
Nos banquinhos de madeira, ao longo da alameda cheia de árvores, estavam sentados vários idosos. Alguns vestidos de forma
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irrepreensível, outros em pijama e roupão. Havia outros doentes em cadeiras de rodas empurradas por auxiliares. Todos tinham rostos cansados e tristes, o olhar apagado, o corpo magro.
Giovanna estremeceu ao percorrer a alameda, esforçando-se por sorrir àqueles velhos que olhavam para ela com curiosidade.
Uma mulher idosa segurou-a por um braço. - Tu és a Angela?
- perguntou num tom brusco.
- Não, minha senhora - respondeu Giovanna.
- Trouxeste-me o gelado? - insistiu a mulher.
- Lamento - replicou, ao mesmo tempo que tentava esquivar-se àquela mão esquelética que lhe apertava o pulso.
A mulher, resignada, largou a presa. Giovanna acariciou-lhe a testa. - Obrigada - sussurrou a velha.
Reparou num homem sentado numa cadeira de plástico branco. Tinha a cabeça inclinada sobre o peito, as mãos nodosas agarradas aos braços da cadeira e o olhar fixo sobre a água esverdeada de um tanque onde nadavam uns peixes vermelhos grandes como trutas.
Giovanna aproximou-se e reconheceu-o. Pousou uma mão no ombro ossudo do velho.
- Olá - disse -, sou a Giovanna.
O homem ergueu para ela um olhar baço. - Conhecemo-nos?
- perguntou.
- Sou tua filha - respondeu ela.
- A minha vista está muito fraca. Tens de ter paciência - explicou-lhe.
Giovanna sentou-se na beira do tanque, à frente dele.
- Agora vês-me? - perguntou.
O velho não respondeu, de olhar perdido no vazio. Os cabelos, em tempos fortes, ruivos e encaracolados, estavam brancos e ralos. A estatura imponente tinha ressequido. Era só pele e osso. As pequenas sardas que em tempos lhe salpicavam o rosto largo e claro tinham-se transformado em grandes manchas castanhas que lhe marcavam as faces.
Giovanna pensou que, com o passar dos anos, ia ficar exactamente como ele, de tal forma eram parecidos.
- Como é que estás? - perguntou-lhe.
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- Como alguém que está à espera de morrer. Aqui dentro, todos esperamos a morte. Cada dia é igual ao anterior. Vamos piorando aos poucos, mas não nos apercebemos disso. É um declínio lento - explicou o pai.
- O que fazes durante o dia? - perguntou-lhe.
- Olho para os peixes, quando está bom tempo. De Inverno fico em frente à janela do meu quarto e olho para o céu.
Giovanna anuiu, deixando correr o olhar para lá dos ombros do velho, onde havia um minúsculo caramanchão que continha um banquinho semicircular em volta de um pedestal que suportava uma estátua colorida da Virgem.
- E penso - acrescentou o pai, após uma pausa interminável. Veio ao encontro deles uma jovem bonita e morena que trazia
vestida uma bata vermelha esvoaçante. Aproximou-se do velho e deu-lhe um beijo na testa. Falou-lhe como se fosse uma criança.
- Como é que está o meu querido? - perguntou-lhe.
- Reconheço-te pela voz. És a Giuditta - disse Guido, esboçando um sorriso.
A jovem, que tinha uns olhos vivos e alegres, passou a mão pelos cabelos do homem e despenteou-o.
- Então, vamos dar um passeio? - perguntou, enquanto observava Giovanna com curiosidade.
- A Giuditta é uma voluntária - explicou o pai. E acrescentou: - Esta é a Giovanna, a mais nova das minhas filhas.
- Parabéns, Guido. Tens uma filha muito bonita - disse a jovem, com uma voz animada. - Amanhã venho ter contigo acrescentou, dando-lhe uma pancadinha afectuosa na face.
- Obrigada - sussurrou Giovanna, sorrindo-lhe. A voluntária foi-se embora.
- Queres dar uma volta comigo? - perguntou ao pai.
O homem levantou-se com dificuldade, ajudado por Giovana e, os dois juntos, avançaram ao longo da alameda.
- Vou mostrar-te o meu quarto - propôs ele. Entraram na villa e percorreram um amplo corredor. No tecto abobadado podiam ver-se frescos com pequenas cenas bucólicas. Nas paredes estavam pendurados retratos a óleo da família Brunelli, que fundara aquela instituição, assim como de outros benfeitores. Rostos severos e aristocráticos, antigos, cujos olhares pareciam fitar com
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severidade o velho pai e aquela filha tão bonita como se conhecessem o seu drama torpe. Um ascensor levou-os ao segundo andar. Chegaram a uma grande sala de estar, de paredes muito brancas e chão de madeira. Estava mobilada com pequenas poltronas de pele vermelha e mesinhas redondas. Em cima de cada mesa havia flores em jarras.
Uma freira vestida de branco estava a regar as grandes plantas ornamentais alinhadas ao longo dos janelões que davam para o parque. Os velhos, sentados em poltronas, liam ou ouviam música com auscultadores, e algumas senhoras bordavam. Ao longo da parede oposta aos janelões, uma série de portas dava acesso aos quartos. De uma delas saiu um velho com os braços apertados contra o peito para que o roupão inchado não se abrisse.
- Signor Beretta, o que foi que roubou desta vez? - disse a freirinha, ao mesmo tempo que largava o regador e lhe fazia frente.
- Nada - respondeu ele com um ar inocente.
- Ora deixe-me ver - insistiu ela, enfiando a mão no roupão. Tirou de lá rolos de papel higiénico, toalhinhas de felpo e pedaços de sabonete. - Signor Beretta, tem de parar de roubar nos quartos dos seus companheiros. - Depois voltou-se e sorriu para Guido e Giovanna, que se aproximavam.
- A minha Gisella veio visitar-me - anunciou Guido à freira.
- A Gisella era a minha mãe - precisou Giovanna.
Como a freira sabia que por vezes Guido perdia a noção das coisas, não sublinhou o erro, e perguntou-lhe: - Nunca tinha cá vindo, pois não? Normalmente vejo a outra irmã.
- É a primeira vez - respondeu Giovanna. E acrescentou:
- Queria mostrar-me o quarto dele.
- É este. - A freira abriu a porta de um quartinho muito limpo, mobilado com o essencial: uma cama branca, uma mesa-de-cabeceira, uma mesinha pequena, uma cadeira e um sofá junto da janela. Por cima da cama estava pendurado um crucifixo.
Giovanna sentiu um aperto no coração. Não havia mais nada que o ligasse ao passado, à família, à casa onde vivera.
- Onde está a Gisella? Por que é que ela não vem cá? - perguntou Guido, sentando-se na beira da cama.
- A Gisella morreu. Há trinta anos - explicou Giovanna.
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- Sinto muito - disse ele, abanando a cabeça. - Eu gostava muito dela. Era uma grande mulher. Deu-me três filhas. Também gostava muito delas.
Pousou a cabeça na cabeceira da cama e começou a chorar. - Eu gostava muito das minhas meninas - soluçou. - Não sei por que é que lhes fiz mal. Eu não queria. Para os outros era uma coisa feia. Mas para mim era correcto. E isso não me dá paz. Sofri muito quando me excluíram da vossa vida, porque continuava a gostar de vocês. Foi só por amor - disse, secando as lágrimas.
- Pobre velho - lamentou Giovanna, ao mesmo tempo que lhe afagava o rosto com uma infinita piedade.
- Peço-te perdão - sussurrou ele.
Depois abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e pegou numa tablete de chocolate. Estendeu-lha. - Gostavas muito disto quando eras pequenina. Toma.
- Já não gosto - respondeu ela, retraindo-se. Dirigiu-se à porta.
- Já vais embora? - perguntou o pai. Ela assentiu.
- Então diz à Gisella que me venha visitar. Diz-lhe que sinto muito a falta dela.
Na sala de estar, Giovanna aproximou-se da freira. - Como é que está o meu pai? - perguntou-lhe.
- É um doente modelo. Só que às vezes cai nuns estados de confusão e diz coisas estranhas.
- Por exemplo?
- Diz que em toda a vida só amou a mulher e as três filhas, e que por isso Deus o castigou, levando-lhas embora. Venha visitá-lo mais vezes. Está muito só - recomendou a freira.
Giovanna desceu ao rés-do-chão e avançou pela alameda de plátanos. Passou o portão, entrou no carro e seguiu em direcção a Milão. Estava triste. Pensou que não tinha conseguido dar-lhe um beijo, nem chamar-lhe pai.
No entanto, o capítulo mais dramático da sua vida estava finalmente encerrado.
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3
Giovanna decidiu regressar à mansarda da piazza Cordusio com a esperança de encontrar o homem por quem se tinha apaixonado. Cumprimentou o porteiro, que a reconheceu, e perguntou-lhe pelas chaves. - Olhe que suspenderam as obras - informou-a.
- O que foi que aconteceu? - perguntou, aflita.
- Fecharam a loja. Já lá não está ninguém.
- Pode-me dar as chaves?
- Quem as tem é o arquitecto.
Foi-se embora, desiludida, a pensar que nunca mais veria aquele enigmático desconhecido.
Do estabelecimento, ligou a Filippo Pantani, mas não conseguiu encontrá-lo em lado nenhum. No dia seguinte, no aeroporto, entrou na sala de embarque do voo para Londres.
Tinha marcado um quarto no Halcyon, um pequeno hotel em Holland Park, onde em tempos costumava ficar com Jacopo.
Sentou-se com os outros passageiros, à espera. Pensava com algum alívio na conclusão da história sentimental da filha e confortava-a saber que ela estava na companhia da avó. Para lá dos vidros, viu cair as primeiras sombras do dia e associou-as ao crepúsculo do pai. A morte, provavelmente, era menos assustadora do que a velhice. O que fez dissipar a melancolia daqueles pensamentos foi a chegada do seu amigo arquitecto, que olhava em volta à procura de um lugar onde se sentar.
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- Olha o que é o destino - exclamou Giovanna, enquanto avançava ao encontro dele.
Filippo sorriu-lhe e abraçou-a.
- Fartei-me de te procurar, ontem. Onde é que te escondeste?
- perguntou-lhe.
- Em casa da minha mãe. Agora estou a viver com ela.
- Estás com um aspecto magnífico - disse Giovanna.
- Para o conservar o mais possível, tenho de levar uma existência regrada. Nem imaginas como as mães são úteis, nestes casos.
Sorriram ambos.
- Por que é que andaste à minha procura? - perguntou.
- Estava com curiosidade em saber como estão a correr as obras da piazza Cordusio - disse ela com um ar vago.
- Tudo suspenso. É por isso que vou a Londres. Aquele maldito quarto ficou como tu viste. Entulho incluído. O Mongrifone materializou-se finalmente com um telefonema e está à minha espera amanhã no escritório dele - explicou.
- O Ilustre Desconhecido vai revelar-se - disse Giovanna, irónica. E acrescentou: - Se por acaso recomeçares as obras, avisa-me. Ao fim e ao cabo, interessa-me saber qual vai ser o destino daquele apartamento - confessou com um ar desinteressado. Depois prosseguiu: - Agora aguenta lá esta. Amanhã, de tarde, também eu vou estar nos escritórios da Cogestar.
- Porquê? - perguntou o amigo, curioso.
Giovanna contou-lhe sucintamente a história de Matilde, a acção de despejo do edifício degradado, o envio do fax para Londres e aquela resposta surpreendente. - Pensei que me iam mandar dar uma volta. Mas afinal marcaram-me uma entrevista. Quanto a mim, o Mongrifone é meio doido.
- Sobre isso não há dúvidas. Mas satisfaz-me só uma curiosidade. Essa velha de quem me falas tem alguma coisa a ver com a escultura que tens escondida na tua loja?
- Também já sabes! - exclamou Giovanna, divertida.
- Fala-se muito disso. E a culpa é tua, porque estás a transformar a coisa num mistério.
- A culpa é do nosso meio, que sofre de doenças crónicas como a curiosidade e a inveja. Queriam vê-la para poderem falar ainda mais. Por isso, não a vou mostrar a ninguém.
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- Nem a mim, que sou o teu melhor amigo?
- Vou pensar nisso, Filippo - rematou ela. Quando abriram a porta de embarque, dirigiram-se os dois ao avião. Havia muitos lugares vazios e, por isso, sentaram-se ao lado um do outro e continuaram a conversar. Chegaram a Heathrow num instante. Apanharam o metropolitano. Giovanna desceu em Holland Park, perto do hotel. Filippo em Green Park onde, em
? Saville Row, ficava o apartamento da mãe.
- Espero que consigas continuar com as obras do Mongrifone
-- desejou-lhe, quando se despediram. Alimentava ainda a esperança absurda de regressar àquela mansarda e reencontrar o homem
que tanto a fascinara. - E eu espero que tu consigas resolver o problema da tua
velha - retribuiu ele. - Em qualquer caso, vemo-nos em Milão. Na manhã seguinte, "Giovanna chegou a Hutton Garden, o
bairro londrino dos joalheiros. Parou em frente a uma vivenda de aspecto modesto, com a habitual porta laçada de azul, a bow window com cortinas de tule branco e um pequeno jardim. Antes de tocar à campainha, verificou o endereço, com receio de se ter enganado.
Veio abrir um rapazinho de fato escuro, solidéu preto, cabelos loiros e dois caracóis que lhe tapavam as orelhas.
- Sou a signora Lanciani. Tenho um encontro com o Mr. Silverstein - disse num tom inseguro.
O seu amigo joalheiro de Florença sempre lhe tinha falado de Silverstein como o mais fiável e mais rico comerciante inglês de pedras. Aquela casa não parecia à altura da fama de quem ali morava.
- O pai está à sua espera, signora Lanciani - disse o rapazinho, que subiu à frente dela uma escada interior que levava ao andar de cima. Introduziu-a numa sala de estar agradável, forrada com um papel de flores pálidas, cortinas guarnecidas com folho e alcatifa azulada.
Giovanna não tinha nenhuma familiaridade com o mundo dos ricos comerciantes de jóias, quase todos de origem hebraica. O homem que a recebeu, porém, superou qualquer previsão possível. Era um homenzinho de baixa estatura, de rosto ainda jovem meio escondido por uma barba loira e farta da qual se destacavam uns pequenos lábios vermelhos. Tinha olhos grandes e azuis, muito claros,
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e um bonito nariz, direito e altivo. Vestia um casaco negro que lhe chegava aos joelhos e uma camisa imaculada, sem colarinho.
- Sinto-me muito feliz em conhecê-la - disse-lhe, estendendo a mão.
- O prazer é todo meu - respondeu Giovanna.
- Tanto quanto percebi, temos em comum o amor pelas coisas bonitas. O nosso amigo toscano explicou-me que é comerciante de arte - prosseguiu o homem, indicando-lhe uma pequena poltrona em frente à secretária.
Antes de se sentar, Giovanna tirou da carteira as mangas da escultura e pousou-as no tampo da secretária, revestido a pele.
Ele olhou para elas e sorriu. Abriu uma gaveta, tirou de lá um tabuleiro forrado de camurça e colocou ali o veludo antigo. Giovanna reparou nas suas mãos pequenas, muito brancas e delicadas.
Encostou uma lente ao olho esquerdo, acendeu uma pequena lâmpada de halogéneo e inclinou-se para examinar as pedras.
Pegou numas pinças e retirou uma pedra do sítio onde estava presa. Depois observou-a minuciosamente. Tirou outras e estudou-as com atenção. Depois mediu-lhes o calibre com um pequeno aparelho. Fez o mesmo com algumas pérolas.
Giovanna seguia em silêncio os seus movimentos, observando o rosto absorto do homem.
Passaram alguns minutos, que lhe pareceram uma eternidade.
Por fim, o joalheiro tirou a lente e sorriu-lhe. - São pedras muito bonitas. A cor, a pureza e a lapidação são perfeitas. Têm cerca de dois quilates cada uma - sentenciou com as mãos unidas, como se estivesse a rezar.
- A pessoa a quem pertencem quer vendê-las - disse Giovanna.
- Não vai ter dificuldade em o fazer.
- Quer comprá-las? - perguntou-lhe.
- Eu compro e vendo. Aceita um café? - Continuava a sorrir, sem lhe responder.
Achou indelicado recusar e, apesar de não gostar do café inglês, aceitou-o e agradeceu.
O homem carregou num botão num ponto impreciso por baixo da secretária, e logo a seguir entrou uma mulher jovem que trazia na mão um tabuleiro com duas chávenas de café a fumegar.
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- Signora Lanciani, apresento-lhe a minha mulher, Sara - disse o homem, ao mesmo tempo que se aproximava dela. A mulher estava nitidamente grávida.
- Como vai? - cumprimentou Giovanna.
- Alegremente à espera do meu quinto filho - respondeu, abrindo os lábios num sorriso infantil. Da mesma forma que se tinha apresentado, retirou-se em bicos de pés. Eles tomaram o café em silêncio.
Depois, o comerciante contou as pedras e as pérolas. Fechou os olhos e disse um número, em dólares.
Giovanna ficou sem fôlego. Pareceu-lhe uma soma exorbitante. Esforçou-se, no entanto, por conservar uma expressão imperturbável. - A pessoa que quer vender esperava pelo menos o dobro - replicou, impassível.
- Está fora de questão - disse ele, abanando a cabeça.
- Então, sinto muito. Nada feito - decidiu Giovanna, com ar de quem quer encerrar as negociações. A profissão tinha-lhe sugerido uma estratégia. Esperou que fosse a mais correcta.
- Vamos discutir, signora Lanciani - continuou ele, mantendo o seu sorriso calmo.
- De acordo, Mr. Silverstein - sorriu por sua vez.
Entusiasmaram-se os dois. O homem enumerou todos os encargos que tal investimento comportava, enquanto Giovanna referia as vantagens. E pensava em Matilde, que nunca julgaria possuir aquela enorme fortuna. Ao fim de uma hora de negociações extenuantes, saíram os dois e foram ao banco. As pedras tinham mudado de mão e o Mr. Silverstein depositou na conta de Giovanna a soma acordada. Estavam ambos muito satisfeitos.
Giovanna estava eléctrica e queria informar imediatamente Matilde. Mas a velha nem sequer tinha telefone.
Regressou ao hotel. Almoçou rapidamente e preparou-se para ir à Cogestar. Calculou meia hora de entrevista. Portanto, ia conseguir apanhar o voo para Milão às quatro horas da tarde. Ainda a tempo de ir a casa de Matilde.
Arrumou a mala, pagou a conta do hotel e mandou chamar um táxi para a levar a Berkeley Square, no coração da City.
O nome Cogestar estava inscrito numa grande placa de mármore luzidio por cima da porta de entrada de um edifício sumptuoso.
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A euforia que a tinha invadido até àquele momento apagou-se. Sentiu-se ridícula.
A Cogestar era uma importante holding internacional. Com que coragem ia conseguir enfrentar o seu interlocutor para lhe pedir que não desalojasse uma velha desesperada de uma água-furtada quase em ruínas? Recordou o fax que tinha enviado para Londres. Tinha sido clara. E igualmente clara fora a resposta. Encheu-se de coragem, pensando que, na pior das hipóteses, a punham na rua.
Entrou e indicou o seu nome e a hora da entrevista com Mongrifone ao porteiro cheio de galões que a recebeu.
O homem pediu-lhe para preencher uma ficha com os dados pessoais e depois falou com alguém ao telefone. A seguir conduziu-a ao elevador. - Último andar - disse-lhe. - Vai encontrar à sua espera Miss Elaine, a secretária do Sr. Presidente.
O elevador era uma caixa revestida de espelhos, mogno vermelho e latão luzidio. Miss Elaine era uma mulher de aspecto agradável e elegância sóbria.
- Bem-vinda, signora Lanciani - disse-lhe a sorrir. E acrescentou: - O Sr. Presidente está ocupado. Apresenta as suas desculpas e pede-lhe que espere apenas uns minutos.
Instalou-a numa salinha com um mobiliário essencial. Nas paredes havia duas grandes telas de Campigli, que representavam figuras femininas. Giovanna pousou a mala no chão, ao lado do sofá onde se sentou.
- Posso oferecer-lhe um chá? Ou um café? - perguntou a secretária.
- Nada, muito obrigada - respondeu, com esperança de que a espera não fosse demasiado longa, porque corria o risco de perder o avião.
Ficou sozinha e começou a folhear nervosamente uma revista de viagens, abandonada em cima de uma mesinha, enquanto se convencia cada vez mais da inutilidade daquela entrevista. Passaram alguns minutos. Depois Miss Elaine abriu lentamente a porta e anunciou-lhe que Mr. Mongrifone a aguardava.
Giovanna achou-se assim à porta de um escritório hollywoodesco, com grandes janelas que davam para os telhados da cidade, móveis escuros, sofás de pele negra e uma alcatifa branca e macia.
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Por detrás da enorme secretária estava sentado um homem em contraluz. No ar, pairava um perfume vago de limão e canela.
- Finalmente - recebeu-a uma voz nunca esquecida.
- Oh, não! - exclamou ela, quando o reconheceu.
- Sou mesmo eu - replicou o homem, enquanto avançava em direcção a ela.
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4
Giovanna não podia acreditar que o homem que ela tanto desejara, o desconhecido com quem partilhara momentos inesquecíveis, fosse Alessandro Mongrifone, o presidente da Cogestar.
- Fizeste-me vir até aqui para cair na tua armadilha - disse, agressiva.
- Pediste uma entrevista e eu aceitei, considerando-a uma graça caída do céu - replicou Alessandro.
- Sinto-me ridícula - acrescentou, com maus modos. Incomodava-a constatar que, também naquela situação, ele continuava a ser tremendamente fascinante.
- Estou apaixonado por ti - confessou ele.
- Já me tinhas dito isso.
- E agora repito.
- Detesto mentirosos. Fizeste-me acreditar que eras aquilo que não eras.
- Não me deste tempo para explicar - dcfendeu-se, enquanto se aproximava dela. Estendeu a mão para a acariciar e ela deu um passo atrás.
- Não me toques - gritou com uma voz histérica.
- Deixa tu também de mentir. Desejas-me pelo menos tanto como eu te desejo a ti - afirmou, decidido.
Era verdade, mas Giovanna não se queria render. Estava dividida entre o desejo de o abraçar e a necessidade de fugir. Em jeito de salvação o telemóvel, que tinha enfiado no bolso do blazer, tocou.
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Só as pessoas da família tinham aquele número e devia haver um motivo sério para a procurarem.
Era Giny. - Levaram para o hospital a tua amiga Matilde anunciou-lhe. - O cão está aqui na loja. Ela não o queria deixar e eu tive de lhe prometer que tu tomavas conta dele.
- Vou já para o aeroporto. Vai buscar-me a Linate com a avó
- respondeu Giovanna.
Desligou a chamada e voltou-se para Alessandro. - Vim cá para te pedir uma coisa que já não tem qualquer importância disse-lhe, preparando-se para sair do escritório.
- Por que é que queres sempre discutir de cada vez que nos encontramos? - disse ele, atrás dela. Chegaram ao elevador e entraram. - Se tens algum problema, gostava de te ser útil - sugeriu, resistindo à tentação de a abraçar.
Giovanna voltou-lhe as costas, maldizendo a lentidão dos elevadores ingleses. - Aconteceu qualquer coisa àquela pobre velha que a tua sociedade quer pôr no meio da rua - sibilou, ao mesmo tempo que as portas se abriam. Atravessou o átrio com um passo largo e chegou à rua. Viu chegar um táxi. Mandou-o parar e entrou.
Alessandro gritou: - Nunca mais vais chegar a tempo de apanhar o avião. Há uma greve.
Giovanna não captou o sentido daquelas palavras, mas entendeu-as quando se viu presa num engarrafamento. Ficou nervosa e acabou por discutir com o motorista, acusando-o de não ter sabido escolher um percurso mais rápido. Quando chegou ao aeroporto, o seu avião já tinha descolado. Naquele momento percebeu que não tinha consigo o saco com os documentos e o bilhete.
E agora, o que é que eu faço?, perguntou a si própria, deixando-se cair numa cadeira besuntada de gelado derretido. Levantou-se de repente, mas era demasiado tarde. Tinha os jeans molhados e sujos. Não tinha roupa para poder mudar e, sem documentos, não podia partir. Olhou em volta, desesperada, e desatou a chorar.
- Mas por que é que eu sou tão estúpida? - soluçou. Mais uma vez não tinha tido a coragem de confessar a Alessandro que o amava. Mais uma vez se tinha comportado como uma parva. O que é que eu queria demonstrar?, questionou, furibunda.
Depois ouviu o seu nome no altifalante.
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- Signora Lanciani, de partida para Milão, é favor apresentar-se no balcão de informações da Alitalia - anunciou uma voz feminina.
Olhou em volta, ansiosamente, e descobriu o local indicado. Incomodavam-na as calças besuntadas de gelado e perguntava a si própria como poderia recuperar o saco de que se esquecera na Cogestar, da qual a separavam dezasseis quilómetros de ruas impraticáveis. Estava aflita por causa de Matilde. Se morresse antes de conseguir falar com ela, o que faria com aquele dinheiro todo? Mas sobre estas interrogações continuava a prevalecer a memória de Alessandro.
- Sou a signora Lanciani - apresentou-se.
- Boa-tarde, signora - disse um jovem comissário. - O meu nome é Peter Grey. Tem aqui o seu saco - anunciou, mostrando-lhe o saco que tinha na mão. E acrescentou: - Se me quiser acompanhar, o avião particular de Mr. Mongrifone está pronto para a descolagem.
Giovanna ficou sem fôlego, com a surpresa. Engoliu as lágrimas e tentou retribuir o sorriso. - E Mr. Mongrifone, onde está?
- perguntou.
- Está na cidade. Vai viajar sozinha - explicou o jovem, enquanto seguia um caminho tortuoso que conduzia à área dos aviões particulares.
Giovanna nunca tinha viajado num voo privado. Sentiu sobre ela a atenção da tripulação inteira: o comandante, o segundo comandante, o comissário de bordo e a hospedeira. Os motores já estavam a trabalhar e ela olhou com curiosidade para as paredes forradas de madeira clara, os sofás de pele clara e as mesinhas de mogno vermelho. Por todo o lado se via o monograma de Mongrifone. Recordou o comentário de Filippo: "Gosta de marcar o seu território, como os cães."
A hospedeira, uma oriental muito bonita, indicou-lhe a casa de banho e Giovanna pôde finalmente lavar-se e mudar de roupa. Antes da descolagem ligou a Giny, para a avisar de que ia desembarcar no sector reservado aos voos privados.
Quando o avião estabilizou, ofereceram-lhe bombons e champanhe. Recusou e pediu apenas água. Depois esticou-se no sofá, fechou os olhos e sorriu.
326
Pensou em Alessandro com um arrepio de alegria. Por um instante, aos contornos fortes e duros daquele homem, à sua expressão irónica, que por vezes se esfumava em tristeza, sobrepôs-se o rosto do marido, tão doce e tranquilizador. Lamentou não ter conseguido dar-lhe o melhor de si. Se não cometesse os mesmos erros com Alessandro, a sua vida podia ser completamente diferente.
A hospedeira apareceu na salinha. - Está tudo bem? - perguntou-lhe.
- Tudo bem, obrigada - respondeu Giovanna.
- Vamos aterrar. Não se importa de apertar o cinto? - pediu-lhe.
- Por favor, não se vá embora.
A rapariga sentou-se à frente dela. Apertaram ambas os cintos de segurança.
- Quando volta a ver Mr. Mongrifone? - perguntou-lhe.
- Daqui a algumas horas, se em Linate nos derem autorização para regressar imediatamente a Londres - respondeu. E acrescentou: - Mr. Mongrifone tem de estar em Paris logo à noite.
- Posso deixar-lhe uma mensagem? A hospedeira anuiu.
- Durante o voo, onde é que ele se costuma sentar? - perguntou Giovanna.
- Exactamente onde a senhora está agora - disse a hospedeira.
Giovanna tirou da carteira um pequeno bloco de apontamentos. Rasgou uma folhinha e escreveu: "Amo-te." Depois dobrou-a e pousou-a em cima da mesinha, por baixo de uma revista. Tinha a certeza de que a hospedeira a ia ler, mas isso não lhe importava nada. Em Linate, o comissário acompanhou-a até à saída e despachou todos os procedimentos alfandegários.
Giny e a avó estavam à espera dela.
- Desde quando é que passaste a ser uma viajante milionária?
- perguntou a filha.
- É uma longa história. Para já posso dizer-te que perdi o meu avião e que alguém me ofereceu uma passagem - respondeu. Depois acrescentou: - Falem-me depressa da Matilde. Onde está? Como está?
E Giny contou-lhe.
327
5
Naquela manhã, quando Giny saiu da escola com as colegas, olhou em volta e descobriu a avó que, no passeio do outro lado, lhe fazia um sinal com a mão. Separou-se do grupo e foi ter com ela.
- Mas o que é que tu tens vestido? - perguntou Eugenia, surpreendida por lhe ver um vestidinho de seda às riscas, muito feminino.
- Peguei num vestido da mãe - respondeu a rapariga. E acrescentou: - Não achas que me fica bem?
- Se não fosse essa mochila que trazes às costas, ficava-te lindamente - observou a avó.
- Onde vamos? - perguntou a neta, sem responder à provocação.
- Disse à Bruna que íamos almoçar fora. Achas bem a Trattoria delPOrso?
- Por que é que não compramos um pãozinho com chouriço e vamos para a loja comer? - propôs Giny.
E assim fizeram. Giny gostava do estabelecimento da via Fiori Chiari e tinha uma paixão pelas coisas antigas.
Agora, sentadas em frente ao balcão de trabalho de Lino, a saborear os pãezinhos com chouriço, a avó observou: - Eu realmente acho que tu ias gostar de ser antiquária.
- Não sei. Também gostava de ser professora, ou jornalista. Acho que me desenrasco bem a escrever. O que é que tu dizes?
328
- Que ainda é cedo para escolher - observou Eugenia.
- Depois da desilusão com o Paolo, durante uns tempos não quero fazer escolhas de tipo nenhum - disse com amargura.
- Não chores mais do que o necessário por causa disso - disse a avó.
- Foi a minha primeira experiência, percebes? E tive-a com um imbecil. Vê lá tu que ainda hoje, quando saí da escola, estava à espera de o ver à minha frente. Tive a ilusão de que ele podia vir pedir desculpa por tanta baixeza. Mas nada. Desapareceu. Só espero que os outros homens não sejam como ele - suspirou, e acrescentou: - Avó, o que é que tu achas, a mãe estará apaixonada?
- Por que é que me perguntas isso?
- Porque tu és fina - exclamou, a rir.
- Descobre sozinha - disse Eugenia, que não queria arriscar juízos sobre a nora. Levantou-se da mesa e foi atrás da estante, onde estava a escultura de que Giovanna gostava tanto.
- Quanto a mim, a mãe tem uma história - insistiu Giny, enquanto ia ao encontro de Eugenia, que observava a estátua com atenção.
- Acende aquele foco, por favor - pediu à neta.
Orientou a luz para iluminar os ombros, o pescoço e o rosto da boneca.
- Gostas desta senhorinha? - perguntou à neta.
- Não - respondeu sem hesitar. - É demasiado estranha. Inquieta-me sobretudo o rosto, tão redondo e tão pintado. É demasiado chato, não vês?
Eugenia Lanciani observava e reflectia. Depois, o seu olhar iluminou-se. - Mas é claro! Por que é que eu não pensei nisso antes?
- Em quê?
- O escultor teve de seguir a forma do tronco. Não havia madeira suficiente para dar mais espessura ao rosto. A tua mãe tinha razão. A cabeça e o corpo são realmente uma peça só.
- E o que é que isso muda?
- Assim a estátua vale muito mais. Gostava de a expor na minha loja, em Florença.
- Esquece. A mãe não ta vai dar nunca - declarou Giny.
329
Naquele momento, Lino entrou pelas traseiras da loja e elas apressaram-se a tirar da mesa os restos do almoço. O velho restaurador foi à frente e levantou a grade. Na rua tinha-se formado um pequeno círculo de pessoas.
Voltou às traseiras e disse: - É preciso chamar uma ambulância. Alguém se sentiu mal.
A avó e Giny saíram. Matilde estava estendida no chão. Ao lado dela estava o carrinho com o cão.
Giny meteu-se no meio das pessoas, que olhavam para a velha sem se decidirem a socorrê-la. - Fique sossegada, minha senhora
- disse, inclinando-se sobre Matilde -, já aí vem um médico.
- O meu Lilin - sussurrou Matilde. - Onde é que está o meu cão?
- Eu trato dele - garantiu. - E vou já avisar a minha mãe.
- Quem és tu? - perguntou a mulher.
- Sou a filha da Giovanna - respondeu-lhe, para a sossegar. Quando meteram a mulher na ambulância, Giny tomou conta
do cão e levou-o para a loja. A seguir telefonou para Londres, para avisar a mãe.
Agora que Giovanna tinha regressado, sentiu-se aliviada de uma responsabilidade.
- Quero ir já ter com ela - decidiu Giovanna. Naquele momento, ouviu um latido que provinha do banco traseiro, onde Giny estava sentada.
- É o cachorro dela. Não sabíamos onde o deixar - explicou Eugenia. Tinham-no enfiado dentro de um saco de tecido acolchoado. - Não quis comer nem beber - acrescentou Giny.
Quando chegaram à entrada do hospital, Giovanna deixou a filha e a sogra e pegou no cão, - Encontramo-nos em casa, mais tarde - disse, enquanto entrava no hospital com o saco.
Matilde estava num quarto com duas camas, no serviço de medicina geral. Estava muito pálida e olhou para ela com uns olhos amedrontados.
- Adivinha o que eu te trouxe - sussurrou Giovanna, ao mesmo tempo que pousava o saco em cima da coberta imaculada.
- O meu Lilin - exclamou a velha com um fio de voz e os olhos marejados de lágrimas.
330
Giovanna acariciou-lhe uma face. - Como te sentes? - perguntou-lhe.
A mulher estava agarrada ao cão, a chorar. Uma enfermeira que passou no corredor viu o animal. Entrou no quarto e olhou para Giovanna com um ar de reprovação. - Não são permitidos cães. por isso, leve já esse animal lá para fora - ordenou.
- Por favor, só ficamos aqui uns minutos - disse Giovanna.
- Está fora de questão. Ou o leva imediatamente ou eu tenho de chamar a enfermeira-chefe - disse a outra, levantando a voz.
Giovanna foi até junto dela e olhou-a como se a quisesse aniquilar: - Esta mulher e o cão são inseparáveis e a senhora tente mandar-nos embora.
- Mas como é que se atreve? - gritou a enfermeira, furibunda.
- Fora daqui, imediatamente! - intimou Giovanna. Voltou para junto de Matilde e tranquilizou-a. - Vou levar-te
para uma clínica - disse-lhe. - Vais ter um quarto só para ti e ninguém te vai separar do teu Lilln.
- Mas eu não posso pagar uma clínica - observou a velha.
- Matilde, vendi as tuas pedras. És mais rica do que imaginas.
- Saiu para o corredor e telefonou ao médico, que já tinha observado Matilde. Explicou-lhe a situação e pediu-lhe ajuda. O amigo sossegou-a.
- Manda-a transportar imediatamente para a casa de saúde. Eu trato de arranjar um quarto para ela - garantiu.
Giovanna voltou ao quarto e debruçou-se sobre Matilde. - Vou levar-te para um hotel de cinco estrelas - anunciou, enquanto a mulher continuava a chorar e a fazer festas ao cachorro.
- Estou a morrer, Giovanna - sussurrou.
- Tu és imortal - respondeu-lhe a sorrir.
Giovanna regressou a casa no momento em que Giny e a sogra se preparavam para jantar. - Meu Deus, que dia! - suspirou, ao mesmo tempo que se sentava com elas. Estava exausta, mas achava que tinha cumprido o seu dever da melhor maneira, pelo menos, naquilo que dizia respeito a Matilde.
- Telefonou há pouco o signor Alessandro Mongrifone. Pediu-me para te dizer que tinha recebido a tua mensagem - anunciou Giny.
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Giovanna corou.
- O que foi que eu te disse, avó? - continuou a rapariga, referindo-se à suspeita de que a mãe estivesse apaixonada. Agora tinha a certeza.
332
6
Geovanna parou na portaria da clínica -
como está o cão da signora Riva? perguntou
ao porteiro.
- Entre, por favor - sugeriu o homem. O basset estava dentro do saco e dirigiu-lhe um olhar suplicante. Giovanna debruçou-se para lhe fazer uma festa.
- Olá, Lilm. Agora vou levar-te à tua dona. Ele comeu? perguntou.
- No quarto da signora Riva. Aqui recusou a comida. Então o meu colega, antes de deixar o serviço, levou-o lá acima - explicou o porteiro.
- Agradeço-vos do fundo do coração - disse Giovanna, enquanto pousava discretamente na mesa uma gorjeta generosa. Agarrou nas pegas do saco e dirigiu-se ao elevador.
Naquele dia, Matilde tinha o aspecto de uma velha e distinta senhora em algum sofrimento. Recostada em várias almofadas, ostentava uma camisa de noite de seda imaculada. Os cabelos brancos, graciosamente penteados, emolduravam um rosto pálido. Uma enfermeira, sentada ao lado da cama, lia um jornal em voz alta. Viu Giovanna e levantou-se. - A senhora passou uma noite tranquila
- comunicou-lhe imediatamente.
- Cá está outra vez o meu Lilin - exclamou Matilde, de braços estendidos, ao ver Giovanna pousar o saco em cima da cama.
- E a mim, não dizes nada? - perguntou, enquanto se baixava para lhe dar um beijo no cabelo.
333
Matilde sorriu e, referindo-se à enfermeira, disse: - Manda-a embora.
A mulher ouviu a ordem e respondeu com um sorriso resignado.
- Vá dar uma voltinha - sugeriu Giovanna. - Eu fico aqui pelo menos uma hora. - Tinha contratado três enfermeiras que tomavam conta dela, por turnos, dia e noite. Tinha também comprado roupa interior de seda e tudo aquilo que, apesar de supérfluo, pudesse permitir a Matilde viver numa riqueza há muito esquecida. Assim que ficaram sós, Giovanna ocupou o lugar que a enfermeira tinha deixado livre. - Então, o que me contas ? - perguntou-lhe.
- Que cheguei ao fim da linha - resmungou como resposta.
- Hoje de manhã levaram-me para os subterrâneos e fizeram de mim gato-sapato. Enfiaram-me dentro de uma máquina esquisita de onde pensei que nunca mais ia sair. Depois, quando voltei para aqui, veio aquele teu amigo médico contar-me um monte de mentiras. Como estou sei eu, não preciso que os outros me venham dizer.
- Como estás? - perguntou Giovanna.
- Bem - respondeu. - Não se vê logo?
- E as dores ? - insistiu.
- Passaram, felizmente. Pode ser que me dê outra crise. Mas, para já, aquelas mulheres que puseste à minha volta só me incomodam. Agora, diz-me lá o que aconteceu com as minhas pedras disse, com um tom enérgico que desmentia as precárias condições de saúde.
- Vendi-as, minha querida. A correr, e muito bem. Hoje de manhã abri-te uma conta no banco e transferi para lá a quantia total que consegui. Agora tens de assinar uma autorização para eu poder, se tu quiseres, fazer a gestão do dinheiro por ti - explicou-lhe, enquanto lhe punha uns papéis à frente.
- Acende a luz, porque assim eu não consigo ler - disse Matilde. Leu o extracto bancário e assinou a autorização, após o que restituiu tudo a Giovanna.
- Caramba! Não fazia ideia de que valessem tanto - sussurrou. - Acho que é muito mais do que aquilo que eu preciso.
- O que é que tens em mente? Agora vais ter de me falar sobre isso, não achas?
334
Ouviram bater à porta e apareceu uma enfermeira. - O professor vem aí - anunciou. - Era altura de fazer desaparecer o cão.
Giovanna tomou conta do animal e fechou-o na casa de banho, esperando que não começasse a ladrar. As gorjetas, generosamente distribuídas, tinham criado uma cumplicidade maravilhosa em torno do pequeno Lilln.
O médico trazia os resultados dos últimos exames. Dirigiu a Giovanna um olhar eloquente, que Matilde captou imediatamente.
- Já que estou à espera de morrer, tudo aquilo que me possa dizer deixou de me interessar - começou, deixando o médico desconcertado.
- Todos estamos à espera de morrer - suspirou ele. - É inevitável.
- Mas eu estou perto. O senhor não - rebateu num tom áspero.
- Talvez não tão perto como julga. Na sua idade, as doenças antigas avançam com lentidão. Ainda pode ter dias muito bons disse ele.
- Eu preciso de mais do que uns dias. Por isso, faça o que puder para me ajudar a viver uns meses - ordenou, como se se dirigisse a um empregado indolente que precisasse de se espicaçado.
- Estou aqui para isso, signora - explicou. - Vai começar a partir de hoje um tratamento com vitaminas e analgésicos. Vamos fazer, como é evidente, mais análises para criar uma combinação de medicamentos mais eficaz - explicou.
- Quando é que eu posso voltar para minha casa?
- Ainda agora acabou de chegar e já nos quer deixar? - sorriu o médico.
- Sentes-te assim tão mal, aqui? - acrescentou Giovanna, afagando-lhe a mão.
- Conheces alguém que se sinta feliz por estar no hospital? resmungou Matilde. E insistiu: - Quero saber quando é que me posso ir embora.
- Dê-me duas semanas, signora - disse o médico. - Venho cá vê-la todos os dias, duas vezes por dia. Sei que a signora Lanciani programou uma assistência adequada. Sei também que tem aqui o seu cão - acrescentou a sorrir. E concluiu: - Eu vou fazer um bom trabalho. Deixe-se tratar.
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Quando ele foi embora, Giovanna foi atrás dele até ao corredor. - Então, o que me diz? - perguntou, ansiosa.
- Está no fim. Pode ser daqui a uns dias ou daqui a umas semanas - respondeu o médico.
- Percebo. Será possível, pelo menos, evitar o sofrimento?
- Vou fazer o melhor que puder, garanto-te - acrescentou ele, antes de se despedir.
Giovanna regressou ao quarto, ostentando um sorriso que não enganava ninguém, muito menos Matilde.
Veio também a enfermeira do turno seguinte, que Giovanna afastou com um pretexto qualquer.
Matilde quis o seu Lilm bem perto de si. - Vais tratar dele, não vais? - perguntou.
- É o que estou a fazer, acho eu - replicou.
- Eu sei e agradeço-te. A verdade é que me desagrada a ideia de me separar dele. E, mais ainda, desagrada-me a ideia de morrer. Não pensava estar tão afeiçoada a esta minha velha carcaça. E, de qualquer maneira, não era assim que eu imaginava o meu fim. Sempre esperei que chegasse de repente, como aconteceu com o Alberto, que um instante antes estava cheio de vida e de amor, e um instante depois tinha partido. Quem sabe por que razão a morte é clemente com uns e pérfida com outros - comentou, pensativa. E prosseguiu: - Quero ser sepultada ao lado dele. Se a vida nos afastou, que ao menos a morte nos una, tal como ele queria. Perguntavas-me para que é que ia servir aquele dinheiro todo? Quero um túmulo no alto da colina, ao lado da igrejinha antiga, onde o Alberto queria ser sepultado. Puseram-no na capela de família e depois, quando os Brasca ficaram arruinados, venderam tudo, capela incluída. Em minha casa, no armário, encontras cartas e documentos. A villa, junto ao lago, como vais ler, foi comprada pelos herdeiros Pulitanò, os netos do homem que foi amante da Lucetta Brasca. E a igreja também, como é evidente. Os restos do Alberto estão no ossário do cemitério. Despacha-te, Giovanna, porque a morte está a bater-me à porta e eu não sei até quando vou conseguir mantê-la lá fora.
- Matilde, pára de falar na morte - protestou Giovanna, para reagir à comoção.
336
- Não te preocupes. Com dinheiro faz-se quase tudo. Já devias saber isso. Portanto, encarrega as pessoas certas de comprar a igreja e a terra à volta dela. Em suma, quero ser sepultada naquela colina, ao lado do meu homem.
Giovanna foi-se embora e levou com ela o cachorro, que entregou ao porteiro. Chegou a nova enfermeira, que se sentou ao lado de Matilde. A velha fingiu que estava a dormir, pois não tinha vontade de falar com ninguém. Uma dor forte torturava-lhe o ventre, embora o soro que lhe estavam a dar conseguisse, felizmente, torná-la suportável. O zumbido do ar condicionado fez-lhe lembrar o dos insectos no ar quente do Verão, num planalto acariciado pelo vento quente que vinha do lago e se espalhava pela erva salpicada de pequenas flores de todas as cores.
Recordou a voz de Alberto, que dizia: "Este é um lugar mágico, onde o tempo parou. Quando eu morrer, gostava de ser sepultado aqui, ao lado do muro desta igrejinha, por baixo do relógio de sol. Acho que este seria um bom lugar para repousar eternamente." Ela era jovem, cheia de vigor, e no seu espírito não havia espaço para a melancolia. Tinha um filho dentro dela e vibrava de felicidade. No entanto, prometeu-lhe: "Então, também eu quero repousar aqui, ao teu lado."
Quantos anos tinham passado desde aquele dia distante? Nunca mais fora tão feliz. Conheceu outros homens, mas não voltou a apaixonar-se.
A sua vida, desde que tinha memória dela, fora sempre envenenada pela dor. Tinha havido salpicos de luz, lampejos de alegria fugaz, mas o sofrimento prevalecera sempre. E, no entanto, continuava a preferir aquele difícil calvário à meta no alto da colina, onde ficava o fim de tudo: dos pensamentos, das recordações, das emoções. Pensou em Alberto e no fruto daquele amor que tinha tido no ventre. Onde estava agora aquele filho que não chegara a nascer?
Matilde abandonou-se às suas recordações.
337
OS ANOS DE ABANDONO
1
Ermelinda tinha ao seu serviço a jovem Amélia, filha de camponeses do Veneto, que sofria de uma fome ancestral. Era magra, morena e diligente como uma formiga. A única coisa viçosa que havia nela era a cabeleira negra, forte e encaracolada. A sua família, aliciada pela propaganda de regime, que prometia um lugar ao sol numa terra fértil, tinha partido para a Abissínia. Mês após mês, Amélia mandava para lá o seu salário, porque os pais lhe enviavam pedidos desesperados de dinheiro.
Tinha quinze anos e, às limpezas da casa, preferia as brincadeiras com a gata. Ermelinda entendia e desculpava. Por isso, quando queria a casa a brilhar, arregaçava as mangas e limpava ela tudo. No entanto, a criadita tinha boas qualidades: estava sinceramente afeiçoada à patroa e gostava muito de cozinhar.
Ermelinda era uma óptima modista. Tinha ganho nome entre as senhoras da média burguesia que viviam ali à volta e queriam imitar a elegância do grande mundo. Baptizou o atelier: Sartoria Passoni. Copiava os modelos de Lanvin e Ventura a um preço acessível, dando às clientes a ilusão de usarem peças de alta-costura. Contratou quatro empregadas e podia contar com a ajuda de mulheres que trabalhavam em casa para os acabamentos mais complicados. Alugou o apartamento ao lado do seu e ocupava agora todo o primeiro andar de um edifício na via Brera.
A Itália era finalmente um império, mas as colónias não tinham alterado uma economia precária e a única coisa estável era a miséria.
341
No entanto, as pessoas acreditavam no fascismo e cultivavam sonhos de grandeza. As famílias da classe média poupavam na comida e danavam-se para salvar as aparências. Havia quem passasse fome para se poder vestir bem, para comprar o verniz vermelho coral para as unhas, a tinta loiro mel para os cabelos e os bilhetes para o cinema ao domingo. Os mais afortunados tinham ainda um rádio e um Balilla, o automóvel para todos, como rezava a publicidade. As revistas de moda estrangeira, como a Marie Claire, a Vogue e a Harper's Bazaar, não se conseguiam encontrar. Ermelinda mandava-as vir da Suíça. Porque embora a propaganda do regime impusesse sucedâneos como L'almanacco delia donna italiana, as senhoras continuavam a preferir a moda do outro lado dos Alpes. A autarquia obrigava as modistas a usar o bemberg em vez do algodão, peles de rato em vez das raposas prateadas e dos visons selvagens, pêlo de coelho em vez de lã de ovelha, cortiça em vez de couro. Para enfeitar os cabelos já não havia penas exóticas de cores garridas, mas somente penas de peru, de pato e de galinha.
Toda a gente se tinha adaptado à ditadura, embora esperando que acabasse o mais depressa possível, porque os ideais de grandeza comportavam sacrifícios de todos os géneros. Também a cultura se ressentia e os horizontes intelectuais tornavam-se cada vez mais estreitos.
Ermelinda, que continuava a ser muito generosa, oferecia o almoço às empregadas e comia na cozinha com elas e com Amélia. Dava-lhes uma comida substancial e confeccionada com cuidado pela jovem criada, que era também competente a fazer as compras: escolhia os melhores ingredientes e discutia o preço com os comerciantes. A sua habilidade como cozinheira era um dom inato, como o de cultivar em vasos, nas varandas, o manjericão e outras plantas aromáticas.
Naquele dia de Julho pôs na mesa uma sopa de arroz feita com caldo de galinha e pão rústico barrado com um queijo muito suave.
Quando acabaram de almoçar, Amélia pôs ao lume a máquina do café, enquanto as raparigas fumavam um cigarro.
342
- Hoje às três horas vem aí a signora Finzi para provar o taileur - anunciou Ermelinda. - Como é que está? - Temos de montar as mangas. Faz-se isso em meia hora garantiu a empregada mais velha.
- Às cinco chega a professora Alfano. É a quarta prova, e esperemos que seja a última, porque este vestido de noite já me está a irritar - acrescentou Ermelinda.
- A bordadeira ainda não entregou o corpete de strass. Devia estar aqui ao meio-dia, mas ainda não apareceu - referiu outra empregada. Amélia serviu o café e, naquele momento, tocaram à
campainha da porta.
- Aí está a bordadeira - disse Amélia. - Vou buscar o corpete. Mando-a entrar? - perguntou, dirigindo-se à entrada.
- Diz-lhe que espere por mim no atelier - ordenou a modista. Do hall de entrada chegou até elas o eco de uma conversa em
voz baixa. Depois, à porta da cozinha apareceu Matilde. Trazia nos braços uma grande boneca de madeira. Amélia já tinha pegado na mala. As mulheres olharam, admiradas, para a figura solar e austera da rapariga, e por cima das suas conversas banais caiu o silêncio. - Virgem Maria, és tu, Matilde! - exclamou Ermelinda, pousando a chávena do café.
A rapariga anuiu, com os olhos cheios de lágrimas, e sussurrou:
- Ele morreu.
Ermelinda levantou-se da mesa e abraçou-a, segurando-a com força contra o peito. Matilde, finalmente, chorou. Ermelinda levou-a para o seu quarto, pediu-lhe que se sentasse e sentou-se ao lado dela.
- Conta-me tudo - disse-lhe.
Então Matilde atirou para cima dela toda a dor e desespero que sentia. - Não sabia para onde ir, nem quem procurar. Só me restas tu, Ermelinda - concluiu. Depois acrescentou: - Mas eu ainda não te disse tudo. Infelizmente, há mais.
- Seja o que for, eu vou ajudar-te. Resolveremos juntas qualquer problema - disse a amiga, assumindo ela também a dor de Matilde.
- Era melhor se eu tivesse morrido com ele - soluçou.
- Não digas disparates. Essa dor vai passar e hão-de chegar dias melhores. Eu estou aqui, junto de ti, para te dar tudo aquilo
343
que tenho. Não é muito, mas é melhor do que nada. O mundo continua e tu também vais continuar - tentou confortá-la.
Estava ainda abraçada a ela e afagava-lhe os cabelos. Continuou a falar, em voz baixa, até que Matilde adormeceu. Não descansava há dois dias e, por fim, o cansaço venceu a dor.
Então Ermelinda fechou as persianas e saiu do quarto em bicos de pés. No atelier, Amélia e as raparigas tinham retomado o trabalho e conversavam entre elas. Calaram-se quando a viram entrar. - Não quero mexericos - começou a modista, com firmeza.
- A Matilde é como uma filha para mim. É boa rapariga e precisa muito de afecto. Portanto, acabou a conversa. Vamos mas é tentar ajudá-la.
- Não estávamos a dizer nada de mal - replicou a empregada mais velha. E acrescentou: - Só estávamos a ver o que seria aquela espécie de boneca que ela trazia nos braços. Parece um manequim.
- Agora vamo-nos preparar, porque deve estar a chegar a signora Finzi - rematou Ermelinda.
Quando caiu a noite e as empregadas se foram embora, voltou ao quarto. Matilde ainda dormia. Foi então à cozinha, onde Amélia preparava o jantar. - Quero fazer um bolo - anunciou. - A Matilde gosta de doces - explicou, ao mesmo tempo que pousava em cima da mesa os ovos, o açúcar e a farinha.
A criada estava numa grande agitação. Aquela presença inesperada e misteriosa tinha espicaçado a sua curiosidade e gostaria que Ermelinda fosse um bocadinho mais loquaz sobre o assunto. Por fim, não conseguiu conter por mais tempo a curiosidade.
- É mesmo muito bonita - disse, com um ar distante. - Parece um figurino de Paris. E aristocrata, também. Vê-se que é uma senhora. Quem foi que morreu?
- O homem que a amava - sussurrou Ermelinda. Entretanto perguntava a si mesma qual seria a coisa que Matilde não tinha revelado.
Quando meteu o bolo no forno e acabou de pôr a mesa, foi sentar-se na varandinha que dava para o pátio. Acendeu um cigarro e suspirou, preocupada com a sua jovem amiga, que continuava a dormir.
344
Matilde acordou pouco antes da meia-noite. Encontrou Errnelinda na sala de estar, a folhear distraidamente uma revista de moda. Olharam uma para a outra e sorriram.
- Tenho fome - disse Matilde, com os olhos ainda inchados de chorar.
- O teu jantar já está frio. Vou aquecer-to - disse, ao mesmo tempo que se dirigia à cozinha.
- Onde está a minha pigotta - perguntou, preocupada.
- Meti-a naquele que vai ser o teu quarto. A minha casa é grande e eu fico contente se tu ficares aqui comigo. Sinto-me muito sozinha.
- Pois eu não estou sozinha. Tenho uma criança dentro de mim - sussurrou.
- Virgem Maria! Ainda não me tinhas dito isso - suspirou Ermelinda. E acrescentou: - Infelizmente, sei que uma mãe solteira é escorraçada por toda a gente. A ti não acontecerá tal coisa. Eu vou tomar conta de ti e dessa criança.
- Mas eu vou ter de arranjar um emprego. Não posso pensar que vou viver à tua custa - objectou a rapariga.
- Pensamos nisso quando for altura. De qualquer maneira, tens o curso do magistério e, portanto, és professora. Podes ensinar.
- Mas que professora? Se calhar achas que algum instituto ia aceitar uma professora grávida e sem marido? Não, é melhor enterrar o passado.
- Então, ensino-te a costurar. Vais trabalhar aqui, comigo. Vamos começar a preparar o enxoval para o teu bebé. E fazemos uns vestidos muito bonitos para esta jovem mamã - decidiu Ermelinda. - Tu é que tens razão. O passado é passado.
No entanto, o passado ressurgiu ao fim de umas semanas. Celestino, o empregado do professor Brasca, tocou à porta da Sartoria Passoni e pediu para falar com Matilde. Trazia um embrulho e passou-lho para a mão.
- É um quadro. É a condessa Brasca, a mãe do patrão, quem to manda - explicou.
Matilde imaginava o que pudesse ser. Era a tela, pintada em Paris por Eric Junot, que a retratava estendida no sofá.
- Obrigada, Celestino. Entra, não fiques à porta - convidou.
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- Nós - disse, incluindo o jardineiro e a mulher -, estamos sempre a pensar em ti e sentimos muito a tua falta. - Estava visivelmente comovido. E acrescentou: - A condessa Brasca espera-te em casa dela. Quer ajudar-te. Soube pela Rosetta que estás à espera de um filho.
- Diz-lhe que não preciso de nada, que vou tomar conta do neto e que o vou amar tanto quanto amei o filho. O passado é passado e nunca mais volta - disse, tristemente, e acrescentou: - Dá um abraço a todos por mim. Hei-de conservar-vos sempre no meu coração.
Era uma despedida definitiva. Depois disso, ao longo dos anos, teve notícias por via indirecta da família Brasca, abalada por várias desgraças. Matilde não se espantou, mas também não ficou contente. Aconteceu-lhe até considerar como uma consolação o facto de Alberto não ter sofrido com isso.
Passou o Verão, o Outono foi longo e chegaram os dias frios e escuros. Matilde sentiu-se mal. A meio da noite, Ermelinda levou-a de táxi para o hospital da via Commenda. Foi vista por uma obstetra do serviço de urgência.
- De quantos meses estás? - perguntou-lhe, olhando para ela com severidade. Matilde tinha referido a sua situação e a condição de solteira.
- Seis - respondeu com um fio de voz, sufocando os espasmos das contracções contínuas.
- Estás a ter um aborto espontâneo. A pobre criatura dificilmente sobreviverá. E, se calhar, é melhor assim - sentenciou, abandonando-a na maca.
Ermelinda, que fora proibida de entrar no gabinete de consultas, foi ter com a médica que ia a sair. - Diga-me por favor, é grave? - perguntou.
- É grave não ter um marido - observou num tom áspero. Ermelinda não ousou responder, apesar de ter vontade de se
atirar a ela e de lhe bater.
Matilde passou a noite a queixar-se, enquanto a amiga a ia consolando conforme podia.
O parto prematuro ocorreu de madrugada. - Era um rapaz disse a obstetra. - Teve mais bom senso do que a mãe. Morreu imediatamente.
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Agora chega! Assim não se pode continuar. Percebes quê transformaste a minha casa e o atelier num velório?
Ermelinda, sempre tão doce, compreensiva e maternal, pôs-se em pé como uma mola, vermelha de cólera, e deu um murro na comprida mesa de trabalho em volta da qual estava sentada com as outras empregadas e com Matilde; Amélia, debruçada no chão, apanhava com um íman os alfinetes espalhados por todo o lado. Estavam todas a trabalhar num véu de noiva de organza branca, ao qual pregavam, a toda a volta, um finíssimo cordão de cetim. Eram tecidos delicados que deviam ser tratados com extremo cuidado. As mulheres cosiam em silêncio, enquanto ouviam um programa de canções transmitidas pela rádio. Matilde, como sempre desde que saíra do hospital, chorava.
Tinha passado um mês desde o desfecho trágico da sua gravidez e o desespero não a abandonava. Quase não comia, dormia pouquíssimo e chorava continuamente.
Por experiência, Ermelinda sabia da necessidade de lágrimas que as mulheres têm depois do parto. Mas eram crises que, normalmente, iam acalmando ao longo dos dias. Já tinha passado um mês e Matilde, pelo contrário, continuava a definhar a olhos vistos. A amiga sofria com isso e já não sabia o que fazer para a tirar daquele desespero.
Assim, naquela manhã, enquanto ia dando um ponto atrás do outro, as lágrimas de Matilde caíram em cima da organza do véu
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e danificaram o tecido. A frustração transformou-se em cólera e todas elas, incluindo Matilde, estremeceram perante a reacção inesperada de Ermelinda. Ela própria ficou surpreendida. Empalideceu, sentou-se e voltou a pegar na agulha com a mão a tremer.
- Desculpa, pequenina - sussurrou.
- Desculpa-me tu a mim. E vocês também - balbuciou Matilde, abandonando o trabalho e refugiando-se no seu quarto.
Era uma divisão pequena, que Ermelinda tinha forrado com um papel de flores provençais. A cama era revestida de rendas e fitinhas, a janela tinha cortinas de tule, e um grande tapete branco cobria o chão quase por inteiro. O retrato a óleo de Matilde tinha sido pendurado por cima da cómoda. A suapigotta, pousada sobre um pedestal, estava num canto, em frente à cama. Havia dias em que Matilde a ignorava e outros em que lhe falava como a uma amiga e lhe contava da dor que sentia por ter perdido aquele filho, que era a última ligação a Alberto. Enquanto a criança crescia dentro dela e a sentia mexer-se e dar pontapés, parecia-lhe que Alberto não tinha morrido, mas que continuava a viver dentro dela. Depois do parto prematuro começou a sentir a dor do abandono, e teve de tomar consciência do facto de Alberto ter partido para sempre. O medo da solidão regressou, como nos tempos do asilo Angiolina, quando perdeu os irmãos e a casa.
Quando chegou ao quarto, Matilde enroscou-se numa poltrona estofada e abraçou-se a uma almofada de tafetá com reflexos cor-de-rosa e brancos, enquanto os soluços lhe sacudiam o peito. Limpou os olhos e observou o retrato pendurado por cima da cómoda. Recordou a salinha na villa de Neuilly, em Paris.
Era Dezembro e tinha passado um ano, desde então. Relembrou a lareira acesa, o sofá com almofadas de cetim, o jovem pintor de olhos ardentes, que com o pincel acariciava a tela e com o olhar lhe acariciava o corpo. Relembrou ainda o sorriso protector do seu amante; o jardim estava branco de neve e, na distância, acendiam-se as luzes de Paris. Gostaria tanto de recuperar aqueles momentos felizes e reviver, nem que fosse só por um instante, aquela atmosfera quente, sensual, tão doce. Mas estava tudo acabado, para sempre.
A gata de Ermelinda, que estava enroscada em cima da cama, deu um salto e foi pousar em equilíbrio instável entre os ombros dela e as costas da poltrona. Depois começou a miar, porque queria
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descer para o seu colo mas não podia, por causa da almofada que Matilde mantinha apertada contra ela. Naquele momento, Ermelinda abriu a porta do quarto.
- Hoje é o último dia do ano - disse. - Esta noite levo-te à festa dos artistas. Quero ver-te sorrir.
Matilde olhou para ela, sem reagir. Ermelinda inclinou-se sobre a amiga.
- Até quando achas que podes resistir, assim neste estado? perguntou com uma voz meiga. Acariciou-lhe os joelhos e continuou: - Só tens dezanove anos. Devias estar na idade de não pensar em coisas sérias. Mas estás para aí a atormentar-te, e pões-me triste também a mim e à minha casa. Sei quanta tristeza tens no coração. Mas a vida continua. Tem confiança em mim e deixa-me ajudar-te. Garanto-te que vais voltar a sorrir. E agora sai imediatamente deste quarto. A Amélia preparou uma banheira cheia de água muito quente e sais perfumados. Vais tomar um banho, vestes um vestido fantástico e esta noite vamos divertir-nos - garantiu Ermelinda.
Matilde fez-lhe a vontade para não lhe desagradar.
O réveillon era no Teatro Fossati, onde as pessoas se acotovelavam a cantar e a dançar. Entre serpentinas e confetis, o vinho mantinha o moral elevado. A orquestra oferecia valsas e tangos. Uma cantora, com uma maquilhagem exagerada, chilreava: "La spagnola sã amar cosi, bocca a bocca... O fumo dos cigarros espalhava-se no ar quente.
Matilde trazia um vestido preto de malha de seda que lhe cingia o corpo magro e a cobria do pescoço aos tornozelos, fazendo sobressair a palidez do rosto e o ouro vermelho dos cabelos. Estava agarrada ao braço de Ermelinda como se, na confusão, tivesse medo de a perder. Um empregado levou-as até uma mesinha um pouco afastada da pista de dança. Sentiu em cima dela os olhares dos homens, que a admiravam, e corou de embaraço.
- Quer dançar, signorina? - convidou um homem robusto que tinha bebido alguns copos a mais. Agarrou Matilde pela cintura, mas vacilou imediatamente sob um empurrão de Ermelinda.
- A mãe não permite - disse, fulminando-o com um olhar. Não a tinha acompanhado até ali para a abandonar nos braços de um bêbedo. Sentaram-se à mesa, seguidas pelo homem embriagado.
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- Esta confusão toda aflige-me. Vamos para casa, Ermelinda,
- suplicou a rapariga.
- Minhas senhoras, peço-lhes humildemente perdão - começou o homem. E acrescentou: - Permitam-me que me apresente.
- Era Aurélio Banti, crítico musical do Corriere. Sentia-se envergonhado com aquela abordagem rude, devida ao vinho. Sob o efeito do álcool, o rubicundo jornalista articulava as palavras com dificuldade. Franzia a testa para dar maior seriedade às suas afirmações, num comportamento comum aos bêbedos. - O facto é que, gentil senhora, a beleza desta menina e a sua elegância irrepreensível me fizeram perder a cabeça. Mas isso não desculpa o facto de ter tentado arrastar a sua filha para o vórtice das danças.
- Sente-se à nossa mesa, Dr. Banti, e faça-nos companhia convidou Ermelinda, que tinha reconhecido no homem o marido de uma das suas clientes. E acrescentou: - Eu sou a modista Passini e esta menina é a minha afilhada, a Matilde Riva.
O homem, que tinha acabado de se sentar, voltou a levantar-se, inclinando a cabeça e pondo à mostra a calvície luzidia. Tencionava exibir-se num elaborado beija-mão, mas acabou por se agarrar à mesa porque tinha alguma dificuldade em segurar-se nas pernas.
- Conheço toda a gente nesta cidade. Como é possível que esta maravilha me tenha escapado? Signorina Matilde, se estivesse sóbrio, se fosse solteiro e tivesse menos vinte anos, ajoelhava-me aos seus pés e declarava-lhe o meu... Desculpem-me, saem-me sempre mal estas frases... Se o camarada Starace me ouvisse, arriscava-me a ser transferido para a província. Portanto, o que é que estávamos a dizer?
Matilde, pela primeira vez depois de tantos dias de tristeza, sorriu. - Não se preocupe, signor Banti. Encheu-me de cumprimentos que eu não mereço. Muito obrigada - disse-lhe.
Um empregado pousou na mesa o balde com o espumante e três taças.
- Faltam poucos minutos para a meia-noite. Para me despedir do ano velho não há nada melhor do que brindar convosco ao novo ano que surge "livre e jucundo", como diz a canção - continuou o jornalista.
- Não é o sol que surge livre e jucundo? - perguntou Matilde, que começava a deixar-se transportar pela euforia do momento.
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- Tudo, à nossa volta, é livre e jucundo desde que Mussolini se tornou um pai sensato para os Italianos. Ele leva-nos pela mão e diz-nos aquilo que devemos ou não devemos fazer. As injustiças nunca são obra sua, mas dos seus dirigentes - afirmou o jornalista.
- Dr. Banti, por amor de Deus, controle-se. Apesar do barulho, alguém nos pode ouvir - disse Ermelinda, aflita.
- Tem razão. Alguns dos meus amigos acabaram no degredo por muito menos. No entanto, a ideia de que esta ceia se chame "Rancho de São Silvestre", porque o ano fascista se festeja a 28 de Outubro, é um insulto ao meu sentido estético. E se tivessem que me fuzilar por isto, eu morria a gritar: "Viva a ceia, abaixo o rancho!"
A orquestra recomeçou a tocar uma valsa melancólica. Começaram todos a dançar. As pessoas levantaram-se das mesas erguendo os copos cheios de espumante. A cantora, do palco, começou a contar os segundos que faltavam para concluir o ano velho. - Menos dez, nove, oito...
- Matilde! Encontrei-te, finalmente - sussurrou uma voz de sotaque marcadamente estrangeiro.
Ela virou-se de repente e deparou com um rosto que conhecia bem, apesar de não se lembrar de onde, nem de quando o tinha visto. Era um jovem de olhar cintilante. Estava de smoking e tinha uns cabelos muito negros, cheios de brilhantina. Um caracol rebelde caía-lhe na testa. De repente, um nome aflorou aos lábios de Matilde, ao mesmo tempo que recordava a assinatura na tela do retrato. Por um instante, ao rosto do rapaz sobrepôs-se o de Alberto Brasca.
- Eric Junot - sussurrou. O som da primeira badalada ecoou em todo o teatro. Era meia-noite.
Os cálices ergueram-se. Os casais beijaram-se. A orquestra entoou outra valsa. Eric puxou-a para si e pousou os lábios nos dela.
A dor de Matilde derreteu com o calor daquele corpo que se encostava ao seu e o desespero voou juntamente com o fim do ano velho.
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Ermelinda olhou para a sua jovem amiga e para o rapaz. Formavam um par muito bonito.
- Vou-me embora com ele - anunciou Matilde, em voz baixa.
- Conheces esse rapaz? - perguntou, preocupada.
- É o pintor que me fez aquele retrato - explicou.
- Posso confiar, ou não?
- Pode ser que tenha acabado o tempo das lágrimas. Não era isso que querias? - disse Matilde.
Ermelinda viu-os afastarem-se no meio da multidão. Uma mão gorducha pousou em cima da sua. O jornalista observava-a com simpatia. - Deixe-os ir. Só se é jovem uma vez na vida.
Agora que Matilde tinha ido embora, toda aquela confusão, aquela euforia um pouco forçada, a deixou melancólica.
Nunca fora jovem. Só há poucos anos tinha conseguido alguma serenidade, mas trazia dento dela as humilhações, as prepotências e as maldades sofridas. Os ultrajes tinham aberto feridas que não cicatrizavam. Ganhara com muito custo alguma respeitabilidade, mas tornara-se desconfiada e suspeitava de toda a gente. Bastava uma coisa de nada para a ferir. Via sombras em toda a parte. Quando um homem lhe demonstrava alguma atenção, em vez de ficar satisfeita, perguntava a si mesma se ele saberia alguma coisa do seu passado e repelia-o com receio de sofrer de novo. Naquele momento, interrogava-se sobre a simpatia que o jornalista lhe estava a demonstrar. Perguntou a si mesma o que quereria ele dela. Depois
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reparou no seu olhar perdido no vazio e teve pena. Não sabia o que o atormentava, mas era certamente um homem infeliz.
- Cara signora Passoni - continuou ele -, saber esquecer é um dom de Deus. Quando me dou conta de que estou a recordar demasiadas coisas, confio-me a uma amiga fiel, a garrafa. Ela sabe pôr as coisas todas no lugar.
Ermelinda anuiu com um ar compreensivo, pensando que toda a gente tinha alguma coisa para esquecer mas que nem todos, felizmente, recorriam ao álcool.
Levantou-se da mesa, imediatamente imitada pelo jornalista.
- O que me diz, Dr. Banti, se eu lhe propuser acompanhá-lo a casa? - perguntou-lhe.
- Receio ter-me esquecido de onde moro - desculpou-se ele.
- Mas eu sei. A sua esposa é minha cliente.
Saíram para a rua. Apesar do frio, muita gente tinha saído de casa para festejar o novo ano.
Ermelinda embrulhou-se no casaco de veludo forrado a pele de coelho. Passou um táxi, que avançava devagar à procura de clientes, e mandou-o parar. Deu ao motorista o endereço do jornalista. - Depois leve-me à via Brera - disse.
Ajudou o jornalista a abrir o portão.
Quando finalmente entrou em casa, respirou de alívio. O relógio de pêndulo, no hall, bateu a uma. Tirou o casaco, atravessou o atelier e abriu a porta do quarto de Matilde. A cama estava intacta. A rapariga ainda não tinha voltado. Depois entreabriu a porta do quarto onde Amélia dormia. A criada estava enroscada por baixo da pesada coberta acolchoada. Em cima da almofada, no meio da selva de cabelos negros, estava a gata.
-Já está em casa? - perguntou a rapariga, levantando a cabeça.
- Dorme, dorme - sussurrou Ermelinda. A gata deu um salto e aproximou-se dela.
- Precisa de alguma coisa? - perguntou Amélia.
- Já te disse que durmas - ordenou Ermelinda. Fechou a porta e dirigiu-se, com a gata atrás, ao seu quarto. Despiu-se, limpou a cara com água de rosas, vestiu uma camisa comprida de flanela e, por cima, uma liseuse de lã. Enfiou nos pés umas pantufas de feltro e foi à cozinha.
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As salamandras dos quartos estavam apagadas há algum tempo mas a tepidez persistia. Pôs a aquecer um tachinho com água no fogão eléctrico. Pegou num frasco de vidro, deitou no bule umas colheres de flores de camomila e esperou que a água fervesse.
Naquele momento, Amélia apareceu à porta.
- O que queres? - perguntou Ermelinda.
- Faço-lhe companhia enquanto espera pela Matilde - respondeu, ao mesmo tempo que se sentava à mesa e apertava mais o roupão.
- Queres um chá de camomila? - perguntou Ermelinda, pousando duas chávenas em cima da mesa.
No silêncio da cozinha, ouviam-se as colheres com que mexiam o açúcar no líquido cor de âmbar. A gata tinha saltado para o tampo do aparador e fustigava o ar com a cauda.
- Aquela gata está nervosa - observou Amélia.
- E eu também estou - replicou Ermelinda.
- Mais cedo ou mais tarde, ela chega - disse Amélia, referindo-se a Matilde, que era a causa daquele nervosismo.
- Mais cedo ou mais tarde - repetiu Ermelinda, e começou a beber devagar.
- Onde é que ela foi? - perguntou Amélia.
- Não sei - respondeu Ermelinda com uma voz aborrecida.
- Era isto que a senhora queria que acontecesse, ao fim de tantas semanas de lágrimas - lembrou a criada.
- Mas não sabia que ia acontecer assim, de repente. E com aquele pintor de quem eu não sei absolutamente nada - desabafou. E prosseguiu: - Até já estou arrependida de a ter levado ao réveillon.
- E ele, como é? - indagou Amélia.
- Lá bonito é. Jovem, elegante, mas... - não acabou a frase, porque não sabia traduzir em palavras a sua ansiedade.
- A Matilde sabe o que faz - tentou sossegá-la.
- Cala-te, cala-te - sussurrou, excitada. Tinha ouvido passos nas escadas e esperou que fosse a amiga. Mas os passos continuaram para além do primeiro andar.
Tinham esvaziado as chávenas. Ermelinda começou a tamborilar com os dedos em cima da mesa.
- Acendo a salamandra? - propôs a criada.
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- Era melhor irmos dormir - sugeriu a patroa.
- Mas de qualquer maneira não dormimos. Estamos as três nervosas - concluiu Amélia, incluindo a gata nesse número.
- Mas por que é que eu tenho de me preocupar assim tanto? Ela nem sequer é minha filha! - disse Ermelinda.
- Nem minha - disse Amélia, com ar de senhora. - Porque nós, mulheres, sabemos como são certas coisas, e também sabemos que não se pode confiar nos homens. Que mundo cão, signora Ermelinda. Se não houvesse homens, vivíamos muito mais sossegadas, entre nós - suspirou.
- Mas o que é que tu estás para aí a dizer? Se não fossem os homens, como é que nós nascíamos? E depois não é verdade que as mulheres sejam muito melhores. Também as há muito más - disse, e acrescentou: - Amélia, vai para a cama.
O relógio bateu as duas. Ermelinda abriu a gaveta do aparador, pegou no maço de cigarros e acendeu um. Começou a fumar, enquanto Amélia continuava sem se mexer da mesa.
Às três horas ainda ali estavam sentadas, cheias de frio.
Depois ouviram a chave rodar na fechadura. Matilde surgiu à porta da cozinha.
- O que é que estão a fazer a pé, a esta hora? - perguntou, com um sorriso radioso. Nenhuma das duas a tinha alguma vez visto tão feliz. Sorriram-lhe, esquecendo a ansiedade daquela longa espera. A gata saltou para a mesa, onde se enroscou, fechando os olhos.
- Estávamos à tua espera - respondeu Ermelinda. - Então, divertiste-te? - perguntou.
- Ah, l'amour! L'amour, toujours l'amour - começou a cantarolar, enquanto tirava o casaco.
- Está apaixonada? - perguntou Amélia.
- Não - respondeu a rir, enquanto a abraçava. - Mas é como se estivesse.
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Saíram do teatro. Eric pôs um braço à volta dos ombros de Matilde e apertou-a contra ele, enquanto percorriam a via Ponte Vetero.
- Onde é que me vais levar? - perguntou.
- A lição de tango.
Atravessaram a piazza Carmine e dirigiram-se à via Fiori Chiari. Por baixo do sobretudo preto, o pintor trazia uma écharpe de seda branca que o vento gelado levantava. Matilde trazia uma capa vermelha com carapuço, forrada de pele negra de carneiro. Era uma peça muito boa, confeccionada por Ermelinda para uma cliente abastada. - Tem cuidado, não a estragues nem a sujes - pediu a modista, preocupada, quando lha pousou nos ombros. - Se a signora Belicchi sabe que a usaste, já não a vai querer e eu tenho de lha pagar - explicou.
Matilde não conhecia a cliente, mas sentia-se muito orgulhosa com aquela capa, que realçava a sua beleza.
A via Fiori Chiari estava escura. Passaram à porta de um dos prostíbulos mais famosos da cidade. As portas estavam fechadas e as luzes apagadas. Os dois jovens passaram o cruzamento com a via Formentini e ali o pintor parou.
- Moro aqui - disse, enfiando uma grande chave de ferro na fechadura de um velho portão. Era um edifício modesto, habitado por artesãos e lojistas.
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- Há quanto tempo é que moras aqui? - perguntou Matilde, enquanto percorria com ele o átrio que dava para um pequeno pátio interior.
- Desde que vim para Itália - respondeu, ao mesmo tempo que começaram a subir as escadas. - Aluguei a água-furtada. É espaçosa, e de dia tem muita luz. Lembra-me muito Paris - acrescentou.
Ia alumiando as escadas com uma pilha. O último lanço levava a uma porta que o pintor abriu. Entraram no aposento, iluminado pela lua que se via através do recorte de uma grande janela. O cheiro da lenha, que ardia numa lareira de tijolo, misturava-se com o das tintas a óleo e o dos dissolventes.
Eric acendeu um candeeiro a petróleo. - A luz eléctrica ainda não chegou cá acima - explicou, enquanto tirava a écharpe e o sobretudo.
Matilde olhou em volta. Ao lado da janela, num grande cavalete, uma tela ostentava apenas um esboço. Uma mesa comprida, encostada à parede, estava atulhada de pincéis, frascos, tintas e rolos de papel. Nas paredes, esquiços e desenhos a lápis estavam pendurados um pouco por todo o lado. Num canto havia um fantástico toucador de mogno, ao lado de uma estante carregada de discos e livros. Havia também uma bonita mesa redonda com umas cadeiras à volta. Um biombo de cores vivas escondia, provavelmente, a zona de dormir.
Matilde tirou a capa, dobrou-a com cuidado e pousou-a em cima da mesa. - Por que vieste para Milão? - perguntou, curiosa.
- Fui chamado para pintar o retrato de senhora muito bonita
- explicou o pintor, enquanto pousava em cima da mesa uma garrafa de vinho e dois copos.
- Não bebo, obrigada - disse Matilde. E perguntou: - Quem é a tua cliente?
- O nome Pulitanò diz-te alguma coisa?
- Vittorina Pulitanò? A mulher do Pietro Brasca? - perguntou em voz baixa.
- Essa mesma - confirmou Eric. - Foi por ela que soube que o professor Brasca já não está entre nós. Nesse momento, comecei a procurar-te. E finalmente encontrei-te - explicou, enquanto a olhava com admiração.
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Matilde considerou que o destino se divertia a tecer uma curiosa teia em volta da sua vida. Por que razão continuaria o passado a atormentá-la com recordações dilacerantes?
- Não era suposto dares-me uma lição de tango? - perguntou, para reagir à melancolia.
- É para isso que aqui estamos - sorriu ele. Tirou um disco da estante e pousou-o no gramofone. - Vais ouvir La Cumparsita. Fecha os olhos e ouve. Não interessa que não percebas as palavras. Só precisas de seguir o ritmo da música - acrescentou, ao mesmo tempo que se espalhavam pelo sótão as primeiras notas de um acordeão, e uma voz masculina cantava: "Se supieras, que aun dentro de mi alma..."
Eric afagou-lhe o rosto triste e sentiu uma lágrima por baixo dos dedos. - Continuas a pensar nele? - sussurrou.
- Estou a tentar esquecer - respondeu ela com um fio de voz.
- Tenho muita vontade de fazer amor contigo. Desejo-te desde que te vi em Neuilly. Nessa altura só tinhas olhos para ele. Ainda agora parece que ele continua a estar entre nós.
- É verdade - admitiu Matilde.
- Vamos fazer amor, por favor - suplicou-lhe, abraçando-a
com ternura.
- Não estou preparada. Consegues perceber isso? - Matilde libertou-se dos braços dele. Eric anuiu, continuando a segurar nas mãos dela.
- Então - propôs-lhe, a sorrir -, vamos lá começar esta lição de tango?
- Promete-me que não te ris da minha falta de jeito - disse ela.
- Está prometido. Agora vou ensinar-te o primeiro passo: a promenade - explicou, agarrando-a pela cintura. Dobrou um joelho e obrigou Matilde a debruçar-se sobre ele. - Fantástico. É assim mesmo que deves fazer. - Ela sorria, atrapalhada mas divertida.
- Agora vou mostrar-te uma figura muito bonita. Chama-se "cauda de andorinha". Abre as pernas e dobra-te para trás até formares um arco, exactamente como eu estou a fazer. Vira a cabeça e olha-te ao espelho. Estás a ver? Os nossos corpos parecem a cauda de uma andorinha, é por isso que este passo tem este nome.
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- Mas é dificílimo. Não consigo coordenar os movimentos protestou Matilde.
Eric ensinou-lhe o corte, a posição de joelhos, o casquei. Depois ainda a ré f alada, a corrida e a lustrada. Matilde riu com vontade daquele último passo que o pintor executou esfregando a ponta do sapato nas calças.
A música acabou e eles continuavam abraçados. Olhavam-se nos olhos como dois galos prontos para o combate, odiando-se e amando-se.
- O tango é violência - afirmou ele. - Um homem e uma mulher procuram-se aflitivamente e, assim que se encontram, fogem um do outro. Voltam a juntar-se e deixam-se de novo. É a dança de um amor sem fim.
- Gosto do tango - decidiu Matilde. - Vamos recomeçar? Ouviram bater uma série de pancadas no chão.
- Há alguém que não está de acordo - observou Eric, referindo-se aos vizinhos que tinham sido acordados a meio da noite.
- Têm razão. São três horas da manhã. Tenho de voltar para casa - disse Matilde.
- Vou-te levar - decidiu ele.
Saíram outra vez para a rua e dirigiram-se à via Brera. Iam abraçados, como dois apaixonados. Matilde pensava em Alberto e em como tinham sido diferentes as emoções vividas com ele.
- Parto hoje - disse ele. - Regresso a Paris.
- É pena - replicou ela.
- Mas volto daqui a um mês. A Vittorina Pulitanò foi para a montanha e interrompeu as sessões para o retrato - explicou.
- Por que insistes em tratá-la pelo nome de solteira?
- Porque se separou do marido. Parece que ele se encheu de dívidas a um ponto tal que, para pagar uma parte delas, lhe cedeu a herança paterna.
- A villa também? - perguntou, com um sentimento de dor.
- Não sei.
- Pronto, é aqui que eu moro - disse Matilde.
- Já sei onde te procurar, quando voltar - disse ele a sorrir.
- Boa viagem, Eric - sussurrou ela.
- Bom ano, Cabelo de Ouro Vermelho.
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Matilde entrou no átrio e ele esticou-se e agarrou-lhe o braço. Obrigou-a a fazer meia pirueta e segurou-a pelas ancas.
- Esta é outra figura do tango. Chama-se buit - explicou a sorrir. - Vamos fazer outra vez?
- Quando voltares - prometeu Matilde.
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5
Na manhã do dia de Ano Novo, Ermelinda partiu de camioneta para o santuário de Caravaggio. Levava consigo uma discreta soma em dinheiro para oferecer, como todos os anos, à Senhora que a tinha ajudado a reconstruir uma vida respeitável e digna. Amélia foi com ela, deixando Matilde sozinha. A jovem dormia tão profundamente que nem sequer as ouviu sair. Acordou sobressaltada com o som insistente da campainha da porta. Em camisa de noite, descalça e ainda ensonada, foi até ao hall de entrada e, espreitando através do olho mágico, viu o rosto de uma mulher.
- Quem é? - perguntou.
- Sou a signora Belicchi.
Era a dona da capa que Matilde vestira na véspera. Nunca se tinha encontrado com ela.
- A Ermelinda não está - disse atrás da porta, sem se decidir a abri-la.
- Eu sei. Foi a Caravaggio. Mas eu quero a minha capa - replicou a cliente num tom impaciente.
Abriu o ferrolho, sossegada pelo facto de a capa ter sido cuidadosamente embrulhada num pano e colocada numa caixa. Encontrou pela frente uma senhora com cerca de quarenta anos, de formas opulentas. Tinha os olhos pintados, uns lábios cor de coral e os cabelos muito negros, lisos e apanhados na nuca, onde formavam um grande carrapito metido dentro de uma redinha invisível.
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Emanava um tal aroma a Chanel que parecia ter tomado banho naquele perfume caríssimo.
- Nunca te vi. Quem és? - perguntou a mulher, observando a figura esguia da rapariga, os cabelos compridos e encaracolados e o rosto que tinha uma transparência de porcelana.
- Chamo-me Matilde. Se quiser entrar, eu vou só vestir alguma coisa, estou com frio - respondeu.
- Está à vontade. Eu conheço a casa - disse a cliente, sorrindo. Matilde arranjou rapidamente o cabelo, enfiou nos pés umas
pantufas de feltro e vestiu um roupão branco de lã, macio e quente. Depois entrou na salinha das clientes, onde a signora Belicchi a esperava. Era uma divisão com sofás forrados de seda pesada cor de nata, um armário laçado onde a modista guardava as peças em prova ou prontas para entrega e um grande espelho com duas partes articuladas que permitia que as clientes se vissem também de costas.
A signora Belicchi tinha tirado o casaco de peles. Vestia um tailleur aos losangos de veludo cinzento e preto e uma blusa branca com uma laçada de renda apertada no pescoço com um alfinete de ouro e rubis. Matilde recordou outro alfinete parecido com aquele, que sobressaía no vestido severo da idosa que fora tão sua amiga, Anna Lucchini, a directora do asilo Angiolina. Tirou a caixa do armário e pousou-a em cima da mesinha.
- Gostas do meu alfinete? - A signora Belicchi fumava um cigarro de mentol enfiado numa boquilha de marfim.
- É muito bonito - respondeu Matilde, enquanto abria a caixa.
- Não são as jóias que fazem a felicidade. Mas nós, mulheres, gostamos delas. É um presente de um admirador - explicou, e acrescentou: - Uma mulher nunca compra jóias, recebe-as de presente. Não concordas?
Matilde pousou na mesa a capa vermelha, que se impôs em toda a sua riqueza. - Não percebo muito de jóias - defendeu-se, um pouco embaraçada com a conversa da cliente.
- Que maravilha! - exclamou a mulher. - Vamos lá ver como é que me fica. - Apagou o cigarro e pousou a capa nos ombros, enquanto Matilde orientava o espelho para que a cliente se pudesse ver melhor.
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- Fica-lhe muito bem - afirmou Matilde.
A mulher olhou para ela com uns olhos sorridentes: - Ficaste no lugar daquela lagartixa da Amélia?
- Eu vivo com a Ermelinda porque não tenho mais ninguém de família. Ela conhece-me desde que eu era pequena - esclareceu rapidamente.
- Grande mulher, aquela Ermelinda. Eu sempre disse isso comentou a cliente, que continuava a mirar-se, satisfeita, ao mesmo tempo que observava a imagem de Matilde reflectida no espelho.
- Somos da mesma altura, eu e tu. Mas a ti esta capa ficava muito melhor - sorriu, divertida.
Matilde sentiu-se apanhada em falso. - Como assim? - sussurrou.
- Sabes perfeitamente do que estou a falar. A noite passada vi-te na via Fiori Chiari. Estavas com um rapaz bonito, muito elegante. Eu disse cá para mim: olha lá, aquilo ali parece a minha capa. E era. Ficava-te muito bem. Se eu não precisasse dela logo à noite, deixava-ta ficar - disse a mulher.
- Vesti-a para ir ao réveillon - confessou Matilde. E acrescentou: - Fiz mal. Desculpe. Imagino que agora já não vai querê-la. - Nunca lhe revelaria que aquele disparate fora da autoria de Ermelinda, até porque tinha sido motivado pelo amor que lhe tinha.
- Era o que faltava. Quero oferecer-ta e, acredita, não é nenhum sacrifício. Vamos fazer assim: hoje à noite, uso-a eu. Amanhã mando entregar-ta e podes considerá-la tua - decidiu a mulher, enquanto lhe levantava o queixo com um dedo para ver melhor a cara dela. - És mesmo muito bonita - prosseguiu. - Não sei nada de ti, mas acho-te graça. Aquela santa daquela Ermelinda tomou conta de ti e está a ensinar-te uma profissão. De teu tens a inteligência, a educação e a sinceridade. A julgar pela maneira como aquele rapaz bonito te abraçava, parece que também encontraste o amor. Não ponhas demasiado sentimento nisso. Com os homens, é um desperdício. Deixa-os antes que te deixem a ti. Tu, minha querida, representas um rico capital. Investe-o bem e faz-te sempre respeitar - disse, enquanto dobrava a capa com cuidado.
Matilde recordou mais uma vez Anna Lucchini e os seus ensinamentos: - Uma mulher é como um cofre que contém pedras
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preciosas - disse-lhe a velha senhora. - Nenhum homem, nem o melhor, vale tanto como uma mulher.
A signora Belicchi estava a dizer-lhe as mesmas coisas, ainda que de uma forma diferente.
- Aceita um café? - propôs-lhe Matilde, enquanto apertava as fitas da caixa.
- Aceito de boa vontade. Vou contigo à cozinha. Matilde preparou as chávenas e o açucareiro.
- Há quanto tempo estás aqui? - indagou a mulher, enquanto tirava uma cadeira de debaixo da mesa. A gata, que estava aninhada em cima dela, deu um salto e fugiu da cozinha.
- Há seis meses. Antes vivia junto ao lago.
- Vais ter um futuro brilhante, palavra da Irma. Não me podiam dar um nome mais estúpido. O teu, pelo contrário, é rico em promessas. Uma vez existiu uma certa Matilde de Canossa que fez ajoelhar um imperador.
Matilde sentia-se adulada e isso agradava-lhe, mas não queria demonstrá-lo. - Peço desculpa por causa da capa. Normalmente não faço estas coisas. Não me lembro de a ter encontrado, signora Belicchi. A rua estava deserta - disse, enquanto acabava de preparar o café.
- Minha querida, eu tenho olhos por todo o lado. Estava ali na zona e reparei em ti, porque uma criatura como tu até um cego a vê - observou, com uma extrema seriedade.
- Não acho que seja assim tão bonita - defendeu-se Matilde.
- Não te armes em modesta. Tu, minha querida, és digna de um rei. Tem confiança em ti própria e vais percorrer um longo caminho na tua vida. Precisas de mais do que um atelier de costura. Tu nasceste para uma vida brilhante, palavra de honra.
Naquelas palavras ressoou qualquer nota fora de tom que fez Matilde desconfiar.
- Agora tenho mesmo de ir - disse a cliente, olhando para o relógio de pulso de ouro maciço. E acrescentou: - Amanhã mando cá trazer a capa. Usa-a sempre que puderes.
- Eu acho que não posso aceitar. Nem a Ermelinda me deixava. E depois, o fim de ano é só uma vez - replicou.
- Nunca recuses um presente, sobretudo quando te é oferecido por simpatia - aconselhou-a ao despedir-se.
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Matilde foi a correr até à janela do atelier e olhou para a rua. Viu a mulher passar o portão. À porta estava um bonito automóvel parado, com um motorista que se apressou a abrir-lhe a porta. Matilde sorriu. Na noite anterior tinha encontrado Eric Junot, e agora Irma Belicchi oferecia-lhe a capa. Pensou que o ano tinha começado bem. Passou a tarde a ler, ao lado da salamandra, afagando a gata aninhada sobre os seus joelhos. Era noite quando Ermelinda e Amélia voltaram para casa. Estavam transidas de frio. Do santuário tinham trazido velas, água benta e medalhinhas de Nossa Senhora.
- Descansaste? - perguntou Ermelinda, encostando as mãos à salamandra.
- Veio cá a signora Belicchi buscar a capa - disse Matilde.
A modista ficou imóvel. Franziu as sobrancelhas e olhou para
Matilde com um ar severo. - E tu, o que fizeste? - perguntou. - Entreguei-lhe a peça. Fiz mal?
- Não deves abrir a porta a ninguém quando eu não estiver
em casa. - Ermelinda tinha levantado a voz.
- Não percebo porquê. Foi muito simpática. Até me disse que
a capa me fica melhor a mim do que a ela. Queria oferecer-ma, mas eu, como é evidente, recusei - explicou.
- Ouve lá, a Irma Belicchi é uma cliente minha. Mas não é
como as outras senhoras. Alguma delas se propôs alguma vez oferecer-te uma peça tão cara? Ninguém dá nada a ninguém, sobretudo aquela - explicou, irritada.
- És capaz de me explicar por que é que não gostas dela?
- É claro que te explico. Agora tenho mesmo de explicar. Ela é
a maìtresse do Dezassete.
Matilde empalideceu. Não conseguia acreditar que aquela mulher tão simpática e tão generosa fosse a proprietária de uma casa de tolerância.
- Agora percebo - sussurrou.
- E tens de perceber também que aquela generosidade dela, e
aquelas palavras simpáticas, têm um único objectivo: apanhar numa armadilha as raparigas bonitas como tu.
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Se ela é uma mulher assim tão ruim, por que é que trabalhas para ela?
- Ela não é uma mulher ruim, é apenas uma pessoa com quem tu não te deves dar. E depois, porque o dinheiro me dá jeito e ela paga melhor do que um banco - explicou a modista.
- Pecunia non olet - sentenciou a jovem.
- O que é que disseste? - perguntou Ermelinda, desconfiada.
- O dinheiro não tem cheiro. É latim. Foi uma das primeiras máximas que aprendi a traduzir, quando andava na escola - explicou Matilde.
- Pois é, estás a ver? Queres comparar a tua instrução com a minha, ou com a da Irma? É disso que te deves fazer valer, e não dos macaquinhos que ela te quer meter na cabeça - comentou.
Ermelinda era uma mulher devota, mas mais do que a fé, o que a atraía na igreja eram as palavras enigmáticas do padre quando dizia as orações em latim. Ao ouvir aquela linguagem solene, cujo eco se repercutia, amplificado, nas naves, experimentava uma sensação de alegria e de comoção. Captava toda a sugestão daqueles sons misteriosos, que penetravam na alma e abriam brechas de salvação na escuridão do pecado. - Pecunia non olet - repetiu, com uma voz solene. - Esta tenho de aprender de cor.
Amélia tinha posto o jantar na mesa.
- Olha que não podes passar a vida inteira a defender-me.
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Tenho de me arranjar sozinha - protestou Matilde, encerrando a
discussão.
Os dias passaram e Ermelinda esperava que chegasse depressa o pintor bailarino. Mas não havia notícias de Eric.
Matilde passava o tempo todo no casulo protegido do atelier. Tinha superado a depressão sombria dos meses anteriores e consolava-se a pensar em Eric. Não podia, obviamente, compará-lo com Alberto, mas via nele uma vaga semelhança com o grande médico. Nos poucos momentos que passara com ele, sentira-se protegida.
Tinha a certeza de que, como Alberto, era também um homem forte e honesto. Não estava apaixonada por ele, mas gostaria de o voltar a ver.
Assim, como noutros tempos andava pela cidade a entregar roupa lavada e passada a ferro, agora, para se distrair, entregava roupa às clientes de Ermelinda. Um dia, quando se apresentou em casa da signora Finzi, encontrou pela frente um rapaz muito magro, de rosto pálido, nariz imponente e olhos escuros, sorridentes, diminuídos pelas lentes de míope. Vestia uns calções à zuavo e uma camisola vermelha.
- Venho entregar um vestido à senhora - anunciou Matilde, um pouco desorientada pelo olhar insistente do rapaz que lhe tinha aberto a porta.
- Fique à vontade - disse ele, pondo-se de lado para a deixar passar. Tinha um ar cómico e atrapalhado. Ela queria entregar-lhe a caixa e ele não se decidia a segurar nela, limitando-se a fitá-la com um ar perdido.
- Olhe que eu não posso ficar aqui eternamente - avisou a sorrir.
Ele corou. - Desculpe. O que acontece é que a minha mãe está na loja, os criados foram-se embora e eu não sei o que hei-de fazer
- declarou.
- Já percebi - disse ela. Pousou a caixa numa cadeira do hall, desapertou as fitas que a fechavam, tirou um vestido de crepe castanho e pousou-o em cima da mesa. - Aqui está, isto é para a sua mãe e está aqui a factura - acrescentou. E prosseguiu: - Quer pagar, ou volto cá quando a senhora estiver?
- Eu... eu nem sequer sei onde é que está o dinheiro - balbuciou, corando.
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Matilde fechou a caixa e saiu. Já do lado de fora, voltou-se e perguntou-lhe: - Por que é que os criados se foram embora?
- Somos judeus, e está toda a gente a criar um vazio à nossa volta - explicou com simplicidade.
- Sinto muito - sussurrou Matilde, dirigindo-lhe um sorriso de encorajamento.
- Obrigado - respondeu o rapaz.
Matilde ia já a descer as escadas quando ele se debruçou no corrimão. - Chamo-me Mosè - disse.
Ela levantou o rosto para ele. - Não desanime. Lembre-se de que outro com o seu nome se safou em situações piores.
Regressou ao atelier e contou aquilo que tinha acontecido.
- Pobre gente - comentou Ermelinda. - O marido escondeu-se na Suíça. A signora Finzi é católica e só espera que a deixem sossegada com os dois filhos.
Tocaram à porta, e pouco depois Amélia entregou um envelope a Ermelinda.
- A signora Finzi pagou a factura. Está ali o filho a perguntar pela Matilde - anunciou a empregada.
- Ficou impressionado contigo - constatou a modista.
- Coitada de mim - disse a rapariga. - Nunca vi um rapaz tão feio nem tão atarantado como ele. Amélia, diz-lhe que não estou - pediu-lhe.
- Até tu o queres evitar? Isso não é caridade cristã - observou Ermelinda.
Com um impulso de raiva, Matilde abandonou agulha e linha e foi até ao hall.
- Bom-dia, signonna - cumprimentou Mosè. E acrescentou:
- Não quer ir ao cinema comigo, logo à tarde? No Diana passam um filme de Blasetti. Diga que sim, por favor.
- À tarde trabalho. Sinto muito - respondeu.
Mosè não ousou insistir e baixou os olhos para esconder a desilusão.
- Eu dou-te autorização - interveio Ermelinda, que foi ao hal ter com eles.
- Está bem - disse Matilde, resignada -, encontramo-nos depois do almoço. Espere por mim à porta.
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Assim que acabou de comer, Matilde vestiu um casaco verde com uma gola larga de castor, enfiou um gorro de tecido igual ao do casaco, pôs a carteira castanha a tiracolo e saiu.
A porteira esperava-a no fundo das escadas. - Está ali uma pessoa à sua procura - disse-lhe.
- Eu sei. Já vou - respondeu, saltando a pés juntos os últimos quatro degraus. Abriu a porta que dava para o átrio, mas não viu Mosè. Quem ali estava era uma mulher à volta dos trinta anos, de rosto magro.
- Matilde? - perguntou, pronunciando o seu nome com um sotaque francês.
A rapariga anuiu.
- Foi o Eric que me mandou cá - explicou. E prosseguiu:
- Podemos falar?
Instintivamente, Matilde foi atrás dela até à rua, longe dos ouvidos indiscretos da porteira.
- Aconteceu-lhe alguma coisa? - perguntou, enquanto avançavam ao longo da via Brera.
- Manda-te isto - disse, entregando-lhe um tubo de cartão.
- E isto também - acrescentou, metendo-lhe na mão um molho de chaves. A mulher tinha uns modos muito despachados e um ar nervoso que a incomodou.
- Mas tu afinal quem és? O que é que tens a ver com o Eric? Por que é que ele ainda não chegou? - quis saber Matilde.
A mulher bufou com impaciência.
- Ouve - disse -, estou cansadíssima. Cheguei agora de Paris e tenho de voltar imediatamente. Ele foi para Espanha, para Barcelona. Combater contra os italianos que estão do lado do Franco.
- Eu não sei nada sobre isso - sussurrou Matilde com um ar aflito.
A mulher não fez comentários. Parecia ter cumprido de má vontade um encargo desagradável.
- Ainda não me disseste quem és - insistiu.
- Chamo-me Paulette. Mas isso não tem importância nenhuma. No tubo está uma tela para ti. As chaves são as do sótão. O Eric pagou a renda por dois anos. Manda dizer para tratares das coisas dele. - Depois dirigiu-lhe um sorriso irónico: - Diz para
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esperares por ele, porque te ama e vai voltar para ti. É tudo - concluiu. Atravessou a rua e afastou-se.
Matilde suspirou, resignada. Por instinto, dirigiu-se à via Fiori Chiari, descobriu a velha casa onde tinha estado com o pintor, entrou e subiu as escadas. Enfiou a chave na fechadura e abriu a porta da água-furtada.
Estava muito frio, e a sua respiração materializou-se numa cândida nuvenzinha de vapor. Olhou em volta. Gostava daquele espaço. Tudo tinha ficado como na noite de fim de ano. Passou a mão pelo gramofone onde estava ainda pousado o disco da lição de tango. Fez rodar a manivela e pôs o disco a tocar. As notas da Cumparsita espalharam-se pelo sótão gelado. Então pôs-se à frente do espelho e deu alguns passos, repetindo as figuras que o pintor lhe tinha ensinado, enquanto dizia em voz alta: - Promenade, cauda de andorinha, corte, casquei...
O disco acabou. Matilde abriu o tubo de cartão. Continha uma pequena tela enrolada. Reproduzia dois bailarinos. Reconheceu-os: a mulher era ela, o homem era Eric. Ao fundo, via-se o gramofone. Tinha pintado de memória a atmosfera daquela noite, as cores quentes projectadas pelo candeeiro de petróleo. Só o vestido da bailarina, em vez de ser preto, era de um bonito vermelho-vivo.
Virou a tela. Na parte de trás, Eric tinha escrito: "Lição de Tango." Achou que aquilo era extraordinariamente romântico.
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Com quatro preguinhos, Matilde fixou a tela no cavalete. Meteu o disco na capa, fechou a tampa do gramofone e saiu. Desceu lentamente as escadas, perguntando a si mesma o que teria o pintor a ver com a guerra de Espanha.
Dirigiu-se a casa. Mosè Finzi estava à porta, com as mãos enterradas nos bolsos do sobretudo, o nariz imponente vermelho de frio e os olhos húmidos por detrás das lentes grossas.
- Pensei que já não vinha - balbuciou, confuso.
- Encontrei uma amiga, e...
Não a deixou acabar a frase. - A porteira disse-me.
Não tinha vontade nenhuma de falar com ele. Antes queria estar sozinha e reflectir. Por que razão tinha Eric ido para Espanha, combater numa guerra que não era dele? Se o pintor morresse, ela nem sequer ia saber.
- Não lhe apetece ir ao cinema, pois não? - perguntou Mosè.
- Adivinhou - respondeu-lhe.
- A mim também não. Mas podíamos dar um passeio - propôs-lhe. Dirigiram-se à piazza Cavour.
- Deixei o liceu - disse ele, de repente, afastando-a dos seus pensamentos.
- Porquê? - perguntou Matilde, mais por educação do que por interesse.
- Há um mês atrás, uns colegas deram-me uma grande tareia e chamaram-me porco judeu. Eu sou católico. Vou à missa ao
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domingo - tinha uma necessidade desesperada de desabafar as suas frustrações.
- É verdade que te fizeram isso? - perguntou ela, incrédula. Tinha passado a tratá-lo por tu, como se ele fosse um velho amigo. Matilde conhecia bem a violência e a humilhação dos abusos injustamente sofridos. Pôs-se em bicos de pés e deu um beijo na face do rapaz. Ele começou a chorar.
- Pobre Mosè - sussurrou, ao mesmo tempo que lhe entregava um lenço para ele secar as lágrimas.
Estavam a passar ao lado dos jardins públicos. Matilde olhou para as árvores despidas e tristes. Recordou o parque da villa sobre o lago e voltou a ver-se menina, de nariz esmagado contra o vidro de uma janela, a espiar por entre os ramos nus a chegada do carro do professor Brasca. Nesse tempo esperava um futuro sereno, mas nenhum dos seus sonhos se tornara realidade. Agora, a caminhar ao lado de um rapaz desesperado, numa rua varrida por um vento gélido, perguntava a si mesma o que mais teria a vida reservado para ela.
- Vamos embora para casa - disse a Mosè.
Nos meses seguintes, encontraram-se com alguma frequência.
Mosè estava perdidamente apaixonado por ela, mas tinha apenas dezassete anos e não ousava confessar-lho. Matilde, que já tinha vinte, intuía os sentimentos dele e fingia ignorá-los. Mosè fazia-lhe pena. Por isso ouvia-o, confortava-o e lamentava a sua sorte, comportando-se com ele como um adulto em relação a um rapaz.
De vez em quando, ia ao sótão de Eric. Tirava o pó aos móveis, limpava os vidros e punha em cima da mesa um ramo de flores frescas. Depois ligava o gramofone, ouvia um tango e dançava sozinha. De todas as vezes esperava encontrar o pintor. Chegou o Verão e passou num instante. O regime fascista tornava-se cada vez mais opressivo. Mussolini começava a perder apoio. O ano acabou, e com a nova Primavera terminou a guerra civil de Espanha. A espera de Matilde transformou-se em ansiedade. Se não morreu, pensava, vai voltar.
Um domingo de Abril, comprou um raminho de lírios-do-vale e dirigiu-se à via Fiori Chiari. Entrou no átrio e sentiu que a agarravam por um braço. - Finalmente - sussurrou, com um grande sorriso.
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Era Mosè que a segurava com força e olhava para ela, desconfiado.
- O que é que tu queres? - perguntou, desiludida.
- Há meses que te sigo. O que é que vens aqui fazer? - perguntou-lhe, com um tom agressivo.
- Não tens nada com isso - respondeu bruscamente.
- Pensava que éramos amigos - replicou Mosè. '''
- Não gosto de ser seguida - disse, irritada.
- Tens um amante - acusou-a, quase a chorar.
- Olha que tu não tens direitos nenhuns sobre mim. Como tu próprio disseste, somos amigos. De qualquer maneira, não tenho nenhum amante - replicou com um sorriso resignado.
- Isso é mentira. Levas-lhe flores. Levas-lhe sempre flores continuou o rapaz, obstinado.
- Não voltes a chamar-me mentirosa - disse ela, fulminando-o com o olhar.
- Desculpa - sussurrou ele. Baixou a cabeça e foi-se embora. Como sempre, Matilde deixou-se vencer pela piedade que sentia por aquele rapaz infeliz. Foi atrás dele.
- Anda cá, Mosè. Vou levar-te lá acima comigo. Assim vais ver que lugar misterioso é aquele que fica no topo das escadas - convidou-o.
Entraram juntos no sótão deserto. O sol irrompia pelas janelas e iluminava os desenhos e os esboços pendurados nas paredes e a tela pousada no cavalete, que representava a lição de tango.
- É o estúdio de um pintor! - exclamou o rapaz. - E aquela és tu - acrescentou, indicando a pintura.
- Sou mesmo eu. O bailarino é ele, o homem que aqui não está. Foi-se embora há mais de um ano. Pediu-me para lhe tomar conta do estúdio. Só isso - disse, com um ar despachado, enquanto metia as flores numa jarra.
- Por que é que trazes flores? - indagou num tom desconfiado.
- Para cultivar uma boa recordação - tentou explicar.
- Isso significa que o amas.
Aquela intrusão forçada nos seus sentimentos irritou-a.
- Faz-me um favor, Mosè. Vai-te embora - pediu-lhe, indicando-lhe a porta da água-furtada.
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- Não és capaz de me amar, Matilde? Ao menos um bocadinho! - suplicou, a soluçar.
Matilde aproximou-se dele e abraçou-o. - Mas por que é que eu me deixo sempre comover contigo? Não faz sentido - protestou.
- Eu desejo-te infinitamente - balbuciou o rapaz, limpando as lágrimas.
- Sinto muito. Não posso fazer nada - disse, desconsolada, afastando-se dele.
Levantou os olhos. Eric estava à porta e sorria-lhe. Estava em mangas de camisa, com o casaco ao ombro. Numa mão segurava uma grande mala. O seu rosto lindíssimo tinha a cor do couro antigo. Rugas profundas sulcavam-lhe a testa, e os cabelos muito negros estavam salpicados de fios de prata. Só o sorriso era o mesmo de sempre. - Incomodo? - perguntou. Pousou a mala e virou-se para Mosè. - Tu quem és? - indagou.
O rapaz corou, balbuciou umas palavras confusas e saiu a correr. Eric deu uma gargalhada sincera.
Matilde olhou para ele, incrédula.
- Parti-lhe o coração - disse Eric, enquanto deixava correr o olhar pela sala. Viu a pintura no cavalete e as flores na jarra, em cima da mesa.
- Sempre que te encontro, estás cada vez mais bonita e mais desejável - acrescentou por fim, com ternura.
Deu alguns passos. Atirou o casaco para cima de uma cadeira e esticou a mão para a mesa. Tirou uma flor da jarra, cheirou-lhe o perfume, aproximou-se de Matilde e enfiou-lha entre os cabelos, por cima da orelha.
- Ficaste muda? - perguntou, a sorrir.
Não era assim que ela imaginara aquele encontro. Via-o com um smoking de corte perfeito a abrir os braços para a apertar contra si. Talvez tivesse sido a presença de Mosè a estragar tudo.
- Tomei conta da tua casa, como pediste - foi a única coisa que conseguiu dizer.
- Quem é aquele rapazinho? - insistiu ele.
- Já sabes. Alguém a quem partiste o coração - replicou.
- Não gostei de o encontrar aqui - afirmou ele. Aproximou-se do cavalete e passou os dedos na tela que os retratava enlaçados no tango.
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- Parece-me que passou um século desde aquela noite - sussurrou.
- Mas só passou a guerra de Espanha - constatou ela. - Provavelmente, daqui a pouco há outra - acrescentou, baixando a voz.
- Isso é o mais certo - anuiu o pintor.
- Quando tiverem acabado todas as batalhas, avisa-me. Pode ser que nos possamos encontrar - disse Matilde, com um nó na garganta.
Eric aproximou-se dela e olhou-a com doçura. - Voltei para estar contigo - disse ternamente.
- A sério? E por quanto tempo? Uma semana ou um ano? Gostava de saber. Julgava que tinha encontrado um pintor, e afinal descubro que és um guerreiro. Que mais surpresas haverá no meu futuro incerto? - disse, agressiva, erguendo a voz.
- Pára com isso, Matilde - sussurrou ele, abraçando-a. Matilde pensou nos longos meses que passara à espera dele. Na
sua necessidade de segurança num mundo que se tornava cada vez mais precária. Ela e Ermelinda combatiam, dia após dia, contra as restrições económicas que se iam tornando mais opressivas. A clientela do atelier diminuía e duas das empregadas já tinham sido despedidas. Durante um ano e meio, pensar em Eric tinha sido um refúgio para os seus medos. E agora que tinha voltado, tudo aquilo que soubera dizer-lhe fora o prognóstico uma nova guerra.
- Já não me encantas - afirmou, libertando-se dos braços dele. Desceu as escadas a correr e, ao dar a volta no pátio para entrar
no átrio, deu de caras com Mosè. - Pára de andar atrás de mim gritou, irritada. Depois saiu para a rua inundada de sol. Dirigiu-se a casa com um passo expedito.
- Bom-dia, beleza! - saudou-a uma voz conhecida. Matilde levou uma mão à testa para se proteger do sol que lhe
ofuscava a vista.
- Bom-dia, signora Belicchi - respondeu.
- Vais com pressa? - perguntou a mulher. Trazia um vestido às flores azuis e brancas. Por cima tinha um casaco azul de lã. O corte amplo disfarçava a opulência do seu corpo. Matilde trabalhara durante horas naquela roupa, a pregar os viés que lhe escorregavam e a coser bainhas invisíveis com pontos minúsculos.
- Não mais do que o costume - respondeu, evasiva.
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- Então vai fazer-te bem tomar um cappuccino. Vou levar-te a um café de luxo, ao Biffi - decidiu, enfiando-lhe o braço.
Matilde hesitou, recordando as recomendações de Ermelinda. Depois apercebeu-se de que tinha liquidado dois homens, um atrás do outro. Podia também desafiar as proibições de uma amiga demasiado protectora.
Sentaram-se numa mesinha ao ar livre. Alguns senhores elegantes, quando viram Irma, baixaram a cabeça num cumprimento ao qual a mulher respondeu com um sorriso.
- Como está a Ermelinda? - perguntou Irma a Matilde e, sem esperar pela resposta, prosseguiu: - A tua amiga, da sua antiga profissão só conheceu os aspectos mais sórdidos. Mulher quente, a Ermelinda, mas ingénua. Não nasceu para prostituta. E eu ajudei-a a sair do circuito. Se calhar ela não te disse isso. Mas, se continuamos amigas, é precisamente porque nos estimamos uma à outra.
- Se está a tentar convencer-me a enveredar por esta profissão, não vale a pena cansar-se. Tenho outras aspirações - declarou Matilde.
- Já percebi. E nunca me passou pela cabeça a ideia de te fazer entrar numa casa de tolerância. Sabes, Matilde, eu sou filha e mãe de uma prostituta. Eu própria, durante anos, exerci a profissão. E com sucesso, uma vez que dirijo duas das casas mais importantes da cidade. Vou revelar-te um segredo: para não se ser vítima desta profissão, antes de mais é preciso inteligência, e depois beleza. Tenho uma americana a trabalhar para mim. Ousaria dizer que é feia como o pecado. Mas os clientes acham-na lindíssima porque tem classe. Toca piano, canta como um rouxinol, recita versos de Verlaine e de Rimbaud e sabe de literatura e de filosofia. Ensinava música numa universidade de. Santa Mónica. Agora está na minha casa da via Verri. É ela que escolhe os companheiros. Acredita no que faz. É essa a razão do seu sucesso. Quanto à minha filha, é bailarina na América. Começou nos estabelecimentos de Lãs Vegas e agora vai estrear-se na Broadway. É tudo uma questão de inteligência, acredita - explicou Irma.
- E o que é que me diz das centenas, milhares de mulheres que são humilhadas, exploradas, e acabam numa cama de hospital destruídas pelas doenças e pela solidão? - provocou Matilde.
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- Digo que é a lei que governa o mundo. Por uma que se afirma, cem sucumbem. Mas isto não acontece só na prostituição. Acontece também nas escolas, nas fábricas, na política e no comércio.
- De qualquer modo, é uma profissão que não me agrada, signora Belicchi - declarou Matilde com extrema convicção.
Parou um carro desportivo. Saiu de lá um jovem muito elegante que passou ao lado delas. Viu Irma e levantou o chapéu num gesto obsequioso. Depois olhou para Matilde e esteve quase a parar. Mas um olhar de Irma levou-o a prosseguir.
- Não o conheces? - perguntou a signora Belicchi. - É o Pietro Brasca - sussurrou a jovem, aflita.
- Um caso perdido - sentenciou a mulher. - Derreteu toda a parte dele da herança paterna e agora sobrevive com uma pensão vitalícia da avó. Exactamente como o irmão. A mãe regressou a Parma e foi viver com a família, que a mantém por uma questão de caridade cristã. Venderam tudo: casas e terrenos. Mas o que é que tu tens a ver com os Brasca?
- Absolutamente nada - rematou. E acrescentou: - Muito obrigada pelo cappuccino. - Era uma despedida.
Irma Belicchi segurou-lhe na mão. - Lembra-te disto: eu podia fazer a tua fortuna - disse-lhe com um sorriso.
Matilde foi-se embora a pensar que Ermelinda tinha razão. Aquela mulher era a expressão mais clamorosa do cinismo. Não lhe interessava, de facto, o tipo de fortuna que lhe propunha.
Regressou a casa. Junto à entrada, a porteira estava sentada com mais três senhoras a gozar o sol e a conversar. - Olhe, tenho aqui um envelope para si. Foi um homem muito bonito que o trouxe - comentou com malícia.
Matilde abriu-o enquanto subia as escadas. Continha a chave da mansarda e um bilhete de Eric. "Peço-te desculpa. Quando me perdoares, já sabes onde me encontras."
Entrou em casa. Rasgou o bilhete e deitou-o no balde do lixo. Enfiou a chave na carteira, pensando que havia de arranjar uma maneira de a restituir.
Na cozinha, Amélia misturava ovos, farinha e lágrimas. - Onde está a Ermelinda? - perguntou Matilde num tom impaciente. Não lhe apetecia preocupar-se com as desgraças dos outros.
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A criada não respondeu. Matilde eclipsou-se no seu quarto. Sentou-se ao lado da janela. Olhou para a sua pigotta e disse-lhe:
- O que é que tu pensas? Achas que é o homem certo? O que é que eu devo fazer? Não estou apaixonada, mas gosto dele. E tenho muita vontade de ser feliz.
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Amélia chorava porque tinha de deixar a casa de Ermelinda. A família, que tinha visto naufragar a esperança de um lugar ao sol nos confins do império, tinha regressado à terra de origem e reclamava a sua presença.
Matilde ficou a saber disso durante o jantar, enquanto Ermelinda tentava animar Amélia com palavras afectuosas.
- Não quero trabalhar na terra - protestava a rapariga. - E, para além disso, a terra agora nem sequer é nossa.
Amélia nunca acreditara nas mentiras sistematicamente contadas pela propaganda do regime sobre as maravilhas da vida no campo. Quando ouvia no rádio aqueles gorjeios que exaltavam o trabalho nos campos, o sol, o grão, ela replicava com uma única palavra: - Tretas! - E desligava o rádio.
- O Mussolini fez de nós parvos. E a senhora bem sabe protestava.
Ermelinda, como muitas outras pessoas, sabia.
- Ai de ti se repetes certas coisas fora desta casa - advertia-a.
- Ai de mim, pois! Porque nos tornámos todos uns escravos e uns mortos de fome. Os meus irmãos foram mandados para a Albânia. Vejam lá que conquista para o império! Cabras, pedras e milhões de esfomeados. Mas por que será que ninguém protesta?
- Ouve, tens de obedecer à tua família. Aqui haverá sempre uma casa para ti. Mas entretanto vai ter com eles. Depois vê-se -- Ermelinda tentava confortá-la.
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Matilde ouvia e calava, comparando os seus pequenos problemas com o drama de Amélia.
Teve pena de a ver partir. Ofereceu-lhe alguns vestidos e um frasquinho de perfume.
Ermelinda deu-lhe dinheiro.
- Nunca mais a voltamos a ver - disse, quando ficaram sozinhas. - A Amélia tem razão. Vêm aí tempos muito difíceis -- acrescentou.
- Haverá alguma solução? - perguntou Matilde.
- Esperar o pior. Comprei uma casinha no campo, perto de Saronno. As minhas clientes, como vês, começam a cortar nas encomendas. Algumas já as perdemos definitivamente. Investi as minhas poupanças naquela casinha e naquela terra que está à volta dela. Se eu for obrigada a fechar o atelier, podemos viver com o que a terra der - declarou.
A casa parecia vazia sem a presença de Amélia. Até a gata vagueava pelas divisões, a sacudir nervosamente a cauda esticada. Nos meses que se seguiram, Ermelinda viu baixar as encomendas, porque as clientes menos ricas deixaram de fazer roupas novas. Matilde trabalhava muito mais, porque tinha assumido também as tarefas de Amélia. Os seus pensamentos percorriam um passado tranquilo, e quando se voltavam para o futuro deixava-se vencer pelo desconforto.
O jovem Mosè passeava por baixo da janela de Matilde sem arranjar coragem para bater à porta. Eric, pelo contrário, mandava-lhes cestinhos de fruta fresca acompanhados por desenhos engraçados que por vezes o retratavam a ele, ou o sótão e os objectos que o decoravam, com um ar triste de saudades dela.
- Vou ter com o pintor - anunciou uma noite. Disse-o num tom belicoso, como se se preparasse para enfrentar o inimigo.
- Tem juízo - recomendou Ermelinda.
Subiu até ao último andar. A porta estava escancarada. O gramofone tocava um tango. O pintor estava junto ao cavalete, a pintar. Matilde olhou em volta. Em poucos dias, o sótão tinha mudado. Havia luz eléctrica, um lava-loiças, um frigorífico e alguns móveis muito bonitos.
- Decidiste-te - disse ele, continuando o seu trabalho.
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Matilde fechou a porta e encostou-se a ela. - Montaste casa? perguntou-lhe.
- Fiz isto para ti - respondeu ele.
- O que queres de mim?
- Casar contigo. Acho que é a única maneira de te ter verdadeiramente.
Matilde ficou sem fôlego. Não estava à espera de uma proposta de casamento. Sentiu-se tentada a fugir.
O pintor apercebeu-se disso. Foi até junto dela e segurou-lhe o rosto com as mãos. Beijou-a na testa e sussurrou-lhe com doçura:
- Há alguma coisa em ti que me põe doido. Não tenho muito para te oferecer. Mas quero-te. Vou levar-te comigo para Paris. Vamos trabalhar os dois, e até pode ser que fiquemos ricos. Com certeza que seremos mais felizes juntos do que separados.
Ela não se sentia pronta para aceitar ou recusar. Só queria fazer amor com ele, porque era bonito, porque tinha fogo no olhar, porque a sua voz era doce como uma carícia.
Lembrou-se de quando era pequena, num terraço de onde se adivinhava o jardim de uma taberna junto do Naviglio. Uma pequena orquestra tocava e os clientes dançavam. Entre eles estava o pai. A mãe tinha ficado em casa, a tratar dos filhos. Jurara a si mesma que nunca se casaria com um homem que não a levasse a dançar. Eric podia ser o homem certo. - Conheço-te tão mal sussurrou.
- Eu posso dizer a mesma coisa de ti. Na primeira vez que te encontrei, estavas com o teu amante. Na segunda, numa ceia de fim de ano com um jornalista bêbedo. Na terceira, encontrei-te com um rapazinho desesperado por ti. Não são propriamente credenciais excelentes para uma mulher. Mas quero-te porque te amo confessou, com uma carícia.
Foi uma memorável noite de amor.
De manhã, quando Matilde saiu para regressar a casa, encontrou Mosè à sua frente. Tinha os olhos vermelhos de chorar.
- Deixa-me em paz - disse, agressiva.
- Passaste a noite toda com ele. Tu não sabes o que eu penei
- desabafou.
- Nem quero saber. Mosè, tens de me deixar em paz, percebeste?
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- Nunca. Amo-te mais do que à minha vida - respondeu. Matilde tinha apressado o passo e ele continuava atrás dela.
Chegaram à frente da casa de Matilde.
- Se tu não fores minha, e só minha, eu mato-te - ameaçou-a. Matilde fechou-lhe o portão na cara.
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Eric era um personagem singular. Meigo quando se amavam, tornava-se conflituoso quando Matilde tentava penetrar na sua vida. Perante a sua curiosidade, ele entrincheirava-se no silêncio, ou então dizia: - São coisas que não te dizem respeito.
Havia dias em que desaparecia sem dizer onde ia, nem quando voltava. Ela tinha a certeza de que não se tratava de questões de amor. Suspeitava que tivesse a ver com a política, mas não sabia até que ponto Eric estaria envolvido com a oposição ao regime. Temia que tivesse regressado a Milão para organizar alguma coisa que não tinha nada a ver com a pintura.
- Não me faças perguntas - respondia sistematicamente às perguntas dela. Eram estas as razões das suas discussões. - Eu não quero saber nada sobre o teu passado. Faz o mesmo comigo - dizia-lhe.
- Mas como é que eu posso casar com um homem de quem não sei nada?
- Sabes que te amo. Isto deve chegar - replicava.
- Tens a mesma mentalidade dos fascistas. As mulheres não contam para nada - acusou-o um dia.
- A minha mulher conta muitíssimo. É por isso que eu quero manter-te fora de certas coisas - declarou.
- Por que é que eu não posso entender? Porque são coisas maiores do que eu? - provocou.
- Porque são perigosas - replicou, pondo um fim à discussão.
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Chegou o Verão. Passaram juntos momentos tranquilos na casa de campo de Ermelinda. Eric passava os dias a trabalhar. Não pintava paisagens, só rostos. Os dos camponeses, dos artesãos, dos comerciantes e das crianças. Tinha abandonado os traços suaves com que retratava as jovens senhoras da sociedade. Pintava rostos encovados pelo cansaço e olhares desesperados, com pinceladas fortes, incisivas.
- Estás a fazer um excelente trabalho - dizia-lhe Matilde, para lhe dar coragem.
- Não é verdade. Pinto o que vejo, mas não o que sinto. Em Espanha vi a tragédia, mas ainda não estou preparado para a contar. Talvez por não ter ainda acabado, talvez porque mal começou e porque muitas coisas estão para acontecer - replicava.
- Chega, Eric. Não quero ouvir-te falar assim - protestava ela. Procuravam refúgio para os seus medos abraçando-se e amando-se. Naqueles longos dias de Verão, Matilde esqueceu sofrimentos antigos e recentes. No futuro, não queria pensar.
Uma manhã, em fins de Agosto, veio um homem procurar o pintor. Era francês, como ele. Dirigiram-se aos campos. Eric regressou a casa sozinho. - Parto esta noite - anunciou, durante o almoço. - Regresso ao meu país. Gostava de te levar comigo, mas só te ia arranjar problemas. Por isso, vais ter de esperar que eu volte.
- Quando? - perguntou Matilde, com uma voz neutra.
- Não sei. Em França estão a passar-se coisas terríveis. São momentos muito maus, Matilde.
- Não te podes explicar melhor? - disse ela, irritada.
- Os Alemães vão invadir a Polónia, e a França não tem nenhuma intenção de ficar a olhar para os nazis que vão tomando conta da Europa inteira - explicou.
- Não me interessa aquilo que acontece na Polónia, ou na Áustria, ou na Alemanha. Quero saber o que vai acontecer contigo e comigo. Nós não somos duas nações, somos apenas um homem e uma mulher que se sentem bem juntos. Quero que me digas por que é que isto tem de acabar. Falaste-me em casamento e eu ainda não te dei uma resposta. Dou-ta agora. Caso contigo, Eric. Vamos ter aquela ninhada de filhos que tu tanto desejas. Preciso de algumas certezas para continuar a viver - exaltou-se, dominada pela raiva, porque sentia que ele já estava longe.
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Ermelinda observava-os, calada. Percebia as razões de ambos e sofria por eles.
- Preciso tanto de certezas como tu. Mais do que tu - replicou Eric. - Por isso tenho de ir combater. Eu volto, Matilde. Juro-te. E, se ainda me quiseres, viverei contigo o resto da minha vida.
Matilde não acreditou.
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Mussolini, "O salvador da paz", entrou na guerra ao lado dos aliados alemães contra as potências demo-plutocráticas".
Foram tempos sombrios.
Ermelinda despediu as empregadas que ainda restavam. As senhoras já não tinham dinheiro nem vontade para ostentar vestidos elegantes. Desapareceram da cidade. Refugiaram-se nas casas de campo, levando atrás delas as crianças e os velhos. Os maridos ficaram na cidade, para trabalhar e conseguir o indispensável para manter as famílias.
A Sartoria Passoni voltou a confeccionar vestidinhos simples para as lojistas do bairro. Algumas clientes levavam-lhe peças boas de outros tempos para apertar, alargar, encurtar e diminuir para as filhas.
A signora Finzi apresentou-se um dia em casa de Ermelinda, a chorar.
- Eu já não consigo tratar sozinha da joalharia. É uma vida muito difícil, acredite, signora Ermelinda.
- A quem o diz. Mala têmpora currunt - sentenciou a modista, fazendo Matilde sorrir.
- É isso mesmo. E as coisas ainda vão piorar. Tenho maus pressentimentos - confessou a signora Finzi.
- Não diga isso. A guerra há-de acabar - interveio Matilde, que pensava no seu pintor. Há mais de um ano que não tinha notícias dele.
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- E nós vamos acabar nas mãos dos Alemães. Então é que vai
ser mesmo uma catástrofe - objectou signora Finzi. - Nem quero pensar nessa eventualidade - replicou Ermelinda e, voltando-se para Matilde, acrescentou: - Vai levar a seI nhora a casa. - Achou que a cliente estava demasiado perturbada para ir sozinha. Matilde ia com ela de braço dado e, no passeio do outro lado, Mosè caminhava, mantendo-as debaixo de olho. Aquele rapaz tornara-se seu perseguidor. Nunca mais tinha ousado aproximar-se dela, mas continuava a espiá-la e a segui-la onde quer que ela fosse. Aquele pequeno percurso ao lado da mãe podia ser a ocasião para lhe pedir que interviesse. Matilde procurou palavras para abordar o assunto. Mas não as encontrou. Achou que signora Finzi estava já suficientemente angustiada com problemas mais graves, e calou-se. Mas quando a deixou à porta de casa, dirigiu-se com um passo resoluto ao rapaz, decidida a fazer-lhe frente. Nesse momento, ele não arranjou nada melhor do que fugir.
- És realmente doido - lamentou a jovem, retomando o seu caminho.
Naquela noite o telefone tocou. Matilde, que acordou sobressaltada, foi a correr atender. E ouviu a voz de Eric. Sentiu o coração a galopar.
- É um milagre eu ter conseguido ligar-te - começou ele. E acrescentou: - Como estás?
- Louca de alegria - respondeu Matilde.
- Tenho boas notícias. Daqui a pouco regresso a Milão disse.
A ligação era péssima. Matilde tinha muitas perguntas para fazer, mas não conseguiu formulá-las.
- Trata do nosso sótão - foi tudo o que conseguiu ouvir antes que a chamada caísse.
- Era ele - sussurrou, atordoada. - Está vivo. Vai voltar, Ermelinda.
A amiga abraçou-a.
Passou mais algum tempo. Começaram os bombardeamentos na cidade. Matilde corria de vez em quando até à via Fiori Chiari para ver se a casa ainda estava de pé.
- Eu acho que é de doidos continuar aqui. Temos de sair já de Milão e ir definitivamente para o campo - decidiu Ermelinda.
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- Vai tu, se quiseres. Eu daqui não saio. O Eric prometeu que vinha. Vou ficar à espera dele - replicou Matilde.
- És completamente louca. A França está na mão dos Alemães. Aqui temos guerra. Tu achas mesmo que o teu pintor pode voltar? - observou a amiga.
- Ermelinda, não insistas. Vai tu para o campo e deixa-me a gata - disse. - Eu vou-me mudar para o sótão. Gosto muito daquele lugar. Já conheço as pessoas do prédio. Posso fazer algum trabalho de costura. Em suma, vou-me desenrascar.
Ermelinda deixou-a com pouca vontade, sabendo que, em qualquer caso, não ia conseguir demovê-la. Todas as semanas lhe ligava para o restaurante da via Fiori Chiari. De todas as vezes, suplicava-lhe inutilmente que fosse ter com ela. A cidade ia-se esvaziando e os bombardeamentos dos aliados ingleses e americanos intensificavam-se. Matilde, teimosamente, esperava.
Saía de madrugada e dava grandes voltas nas ruas desertas para ir às hortas procurar fruta e legumes. À noite, as salas de baile estavam muitas vezes repletas e os espectáculos de variedades conheciam um sucesso nunca antes atingido.
Um dia, ao passar em frente ao Teatro Fossati, reparou num cartaz: PROCURAM-SE BAILARINAS JOVENS. Matilde apresentou-se.
- Eu só sei dançar o tango - disse ao empresário, um homem idoso, de rosto triste.
- Podias até ficar imóvel no meio do palco, que já eras um espectáculo - considerou o homem. E contratou-a.
Foi assim que se tornou bailarina, confeccionando ela própria os fatos que usava. Não era excelente, mas tinha alguma coisa a mais do que as outras. Libertava no tango todo o desespero e a nostalgia dos dias em que tinha sido feliz. O futuro tinha o rosto de Eric, mas os seus traços, com a passagem do tempo, tornavam-se cada vez mais incertos, como incertos se tornavam os destinos da guerra.
Quando voltava a casa, com o recolher obrigatório, os admiradores punham-se em fila para terem o privilégio de a acompanhar. Matilde preferia que fosse o empresário a levá-la, não tanto pelo receio de agressões, como para se defender das perseguições de Mosè. O rapaz era agora um homem, mas não tinha perdido o
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hábito de a espiar. Para escapar às perseguições contra os Judeus, vivia com a mãe e a irmã num convento. E, no entanto, arriscava-se por vezes à prisão e ao desterro só para a poder seguir. Não lhe falava, nem se aproximava dela. Olhava-a de longe, e quando ela tentava fazer-lhe frente, fugia. Desaparecia durante algumas semanas e voltava a aparecer de repente.
O empresário, o signor Mário, era um bom homem. Protegia as suas bailarinas como uma galinha choca. Em relação a Matilde, que rejeitava os admiradores e não se abandonava a aventuras de uma noite, tinha atenções especiais. Mesmo quando a jovem não trabalhava, preocupava-se em saber se lhe faltava dinheiro. Adivinhava que ela tivera uma vida difícil e que a profissão de bailarina era uma maneira de sobreviver. No entanto, quando o espectáculo ia em tournée, ela recusava-se a abandonar a cidade. Não dava explicações, nunca falava de si própria, nem sequer confraternizava com as colegas de trabalho, que a consideravam arrogante e invejavam a sua beleza.
Uma noite de Inverno, terminado o espectáculo, o signor Mário levou-a à via Fiori Chiari, como sempre, apesar de estar constipado e sentir arrepios de febre.
- Venha a minha casa - propôs ela. - Preparo-lhe um grogue e dou-lhe um comprimido.
O empresário aceitou. Gostou do sótão de Matilde, com os móveis antigos, as pinturas e os livros na estante.
Enquanto saboreava a bebida quente, ousou fazer-lhe algumas perguntas sobre a sua vida. Mas apenas obteve respostas evasivas. Matilde tinha edificado à sua volta um muro intransponível.
Pouco depois foi com ele até ao portão de entrada. - Agasalhe-se, tenha cuidado - disse-lhe, enquanto ele se afastava. Depois entrou no átrio, mas não conseguiu fechar a porta. Mosè estava em cima dela, a gritar a sua loucura.
- Agora também andas metida com velhos! Vais com todos, menos comigo. Odeio-te.
Tinha-a agarrado pelos ombros e abanava-a com raiva. Matilde reagiu dando-lhe uma estalada. Os óculos do rapaz saltaram para longe, ao mesmo tempo que na sua mão apareceu uma navalha.
Entretanto, tinham-se aberto algumas janelas e os vizinhos tentavam ouvir o que se passava.
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- Tinha-te avisado de que te matava - gritou Mosè, e mexeu a mão com a força do desespero. Matilde afastou-se e a lâmina penetrou-lhe profundamente na face.
O rapaz fugiu, abandonando a navalha. As janelas voltaram a fechar-se e só a porta do Dezassete se abriu para deixar passar Irma Belicchi.
Matilde tinha desmaiado. A mulher, com a ajuda de uma rapariga do bordel, pegou nela, meteu-a no carro e levou-a ao hospital.
- Cosam-na o melhor que puderem - recomendou ao cirurgião, que conseguiu voltar a unir a pele, depois de ter unido os músculos.
Foi uma intervenção trabalhosa. Matilde sofreu durante muitos dias. A medida que a ferida cicatrizava, as dores iam-se atenuando. Quando lhe deram alta do hospital, o lado direito do rosto estava ainda coberto de gaze e adesivo. Fechou-se em casa, esperando sarar completamente. Recusou-se a apresentar uma denúncia, dizendo que não sabia o nome do agressor. De três em três dias voltava ao hospital para fazer os tratamentos. Ao fim de um mês, viu-se ao espelho. E ficou horrorizada. Aquele rosto tão bonito estava estropiado para sempre. Não quis a compaixão de ninguém. Para saldar uma dívida de gratidão com Irma Belicchi, ofereceu-lhe um quadro de Eric: Lição de Tango. Uma manhã, escondendo o rosto atrás de uns grandes óculos de sol e com um lenço ao pescoço, foi ter com Ermelinda à casa de campo.
A amiga chorou quando a viu. - Nem a Nossa Senhora do Caravaggio conseguia fazer o milagre de te pôr como eras antes sussurrou.
Matilde não chorou nem se desesperou, mas deixou de pensar no futuro. A guerra acabou e ela regressou ao sótão da via Fiori Chiari, porque aquela era agora a sua casa. Eric era um capítulo encerrado, e não ia haver mais capítulo nenhum.
Maio chegou. Ermelinda reabriu o atelier. Havia pouco dinheiro, mas as senhoras estavam outra vez com vontade de gastar. Matilde voltou a trabalhar com ela. À noite, quando paravam de trabalhar, iam as duas à igreja rezar o terço a Nossa Senhora. Depois iam à leitaria jantar café com leite e biscoitos. A seguir, a modista acompanhava Matilde até à via Fiori Chiari e continuava sozinha em direcção a casa. Uma noite, Ermelinda encontrou Eric
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Junot. Tinha envelhecido, mas mantinha os olhos ardentes de outros tempos.
- Regressei. A Matilde, onde está? - perguntou-lhe.
- No teu sótão, como sempre - disse ela com uma voz titubeante.
- Há alguma coisa que eu deva saber? A mulher anuiu. E?
- Anda com outro ? - indagou.
- Um louco esfaqueou-a há seis meses atrás. Estropiou-lhe o rosto - avisou.
Eric nem sequer se despediu. Correu como um louco à procura da rapariga.
A porta da água-furtada estava escancarada. Matilde, esticada numa cadeira de baloiço, ouvia um tango: La Cumparsita. Nos pátios das casas e pelas ruas, havia festa todas as noites. Ela festejava à sua maneira, recordando o passado. E viu-o.
Instintivamente, levou a mão ao rosto e virou-se de lado. Mas, tal como em criança não tinha conseguido impedir Alberto de ver as marcas das tareias, também agora não conseguiu esconder a cicatriz. Eric aproximou-se dela, levantou-a da cadeira, segurou-a nos braços e apertou-a com força contra si.
- Fizeste mal em voltar - disse-lhe ela.
- Era uma promessa - replicou ele.
- Nunca mais me podes dizer que sou bonita - sussurrou.
- Isso é o que tu pensas.
Matilde separou-se dele, afastou a madeixa de cabelo que lhe cobria a face e esticou a cara em direcção à luz do luar. - Olha para mim, então - ordenou, com uma voz áspera.
Eric passou os dedos pela cicatriz comprida. - Onde estão as minhas tintas ? - perguntou.
- Onde as deixaste - respondeu.
- Então deita-te na cama e dá-me uns minutos.
Do outro lado do biombo, Matilde sentiu-o mexer em dissolventes e tubos de tinta. Depois voltou junto dela. Tinha a paleta na mão. - Preciso de luz. Acende o candeeiro - disse. E acrescentou: - Fecha os olhos.
Matilde sentiu na face o pincel macio. Ficou imóvel, de olhos
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fechados, a ouvir o tiquetaque do relógio e a respiração ligeira do pintor. Pareceu-lhe estar a viver um sonho.
- Acabei - anunciou Eric. - Agora podes levantar-te e ver-te ao espelho.
Matilde viu que na parte superior da face tinha florido uma rosa de tons delicados e que a cicatriz se tinha transformado num pé verde do qual nasciam algumas folhas frágeis.
- Estás ainda mais bonita - disse-lhe com doçura. Levou-a para Paris. Casou com ela. Não tiveram filhos, mas ele
amou-a enquanto viveu. Morreu com cinquenta anos, quando Matilde tinha quarenta. Deixou-lhe tudo o que possuía: quadros e algum dinheiro. Matilde vendeu os quadros e regressou a Milão, ao velho sótão da via Fiori Chiari. Também Ermelinda tinha morrido, entretanto, deixando-lhe em herança um pequeno capital. Um dia, Matilde apanhou na rua um cão vadio.
- Agora, tu e eu vamos ser uma família - disse-lhe. Chamou-Ihe Lilin, e havia de chamar aquele nome a todos os cães que depois viessem para mitigar a sua solidão.
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HOJE
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Giovanna entrou em bicos de pés no quarto de Matilde. A enfermeira levou um dedo aos lábios para lhe pedir silêncio.
- Está a dormir - disse num sussurro.
- Então vamos deixá-la descansar - replicou Giovanna.
A televisão, com o volume baixo, transmitia um programa musical. Saíram as duas para o corredor.
- Como é que ela passou a noite? - perguntou.
- Com um grande nervosismo. Deram-lhe um sedativo, há pouco. Ao pequeno-almoço comeu bem: um chá e dois biscoitos. Insiste em querer levantar-se e a minha colega disse que hoje de manhã quis tomar um duche. Perguntou muitas vezes por si disse a enfermeira.
- Quanto às dores, como está?
- Não se queixa. Gosta de ver televisão. Disse-me que nunca teve um televisor. Veja lá que coisas esquisitas ela conta.
- Mas é verdade. A Matilde não conta coisas esquisitas - replicou Giovanna, em defesa da outra. E prosseguiu: - Por que não vai tomar um café? Eu fico aqui agora.
A enfermeira foi-se embora, grata por aquela pausa, e Giovanna voltou a entrar no quarto. O cão viu-a e começou a ganir. Ela pegou nele ao colo e foi-se sentar ao lado de Matilde.
- Já a liquidaste? - perguntou a velha.
- Pensei que estavas a dormir - disse Giovanna, surpreendida.
- Às vezes durmo, mas normalmente faço de conta. São muito
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curiosas, aquelas mulherzinhas. Querem falar, saber, bisbilhotar. Desliga aquela engenhoca maldita - ordenou, indicando o televisor.
- Incomoda-te?
- Terrivelmente. Mas aquelas pobres têm de passar o tempo de
alguma maneira. Eu não sou, com certeza, uma grande companhia
- respondeu, com um sorriso malicioso. E acrescentou: - Põe aqui o meu Lilin.
Giovanna estendeu um xaile sobre a coberta e pousou em cima o cão, que esticou o focinho para a dona, a cheirou e a lambeu. Giovanna observou, enternecida, a troca de afecto entre a velha e o animal.
- Esta noite tive um sonho - disse Matilde. - Estava no centro de uma grande praça toda dourada, absolutamente deserta. O sol iluminava as fachadas dos edifícios. Sentia-me bem. Depois vi à minha frente uma grande escadaria. Comecei a subir, mas os degraus iam-se tornando rasos e eu nunca mais chegava ao cimo. Acordei nesta cama. Que tristeza!
- Não estás assim tão mal instalada - observou Giovanna. E acrescentou: - Na semana passada comprei um quadro. Chama-se Lição de Tango. Está assinado pelo mesmo pintor que fez o teu retrato.
- E então? - resmungou Matilde.
- A bailarina retratada és tu. Reconheci-te - afirmou.
- A quem o compraste? - quis saber.
- Num leilão.
- Gostava de o ver outra vez - sussurrou Matilde.
- Vendeste-o?
- Ofereci-o - precisou a velha.
- Depois de o ter comprado, levei-o para casa e observei-o durante muito tempo, a ouvir um tango. Chegaram-me muitas más recordações. Tinhas razão, Matilde. Tu e eu somos parecidas. Não podias sabê-lo, mas temos em comum sofrimentos que marcaram a nossa vida. Uma realidade dura de aceitar que, durante muito tempo, recusei - confessou Giovanna.
- Tu tens o mesmo olhar que eu tenho, inquieto, fugidio, como o de muitas meninas do asilo Angiolina. As experiências dolorosas
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não se podem negar, é preciso enfrentá-las e superá-las. A vida é uma ocasião maravilhosa que não se pode perder.
- Eu era muito diferente antes de te conhecer - observou Giovanna.
- Tu, na verdade, nem sequer me querias conhecer.
- Tinha medo.
- Mas alguma coisa te obrigou a tratar de mim.
- Só o teu fascínio, Matilde. És a pessoa mais fascinante que alguma vez encontrei - admitiu Giovanna.
- Mas que fascínio! Estava escrito que seria assim. Não se pode ir contra o destino. Eu tentei muitas vezes, mas não adiantou nada - constatou Matilde, passando um dedo pela cicatriz que lhe sulcava a face. E acrescentou: - Põe aqui, ao lado da minha cama, a cesta do meu cão. Não gosto nada que ele esteja desterrado na casa de banho ou no cubículo do porteiro.
- Minha querida, estamos numa clínica. Respeitemos ao menos as aparências - sugeriu Giovanna.
- O tanas. Já soube quanto custa este quarto e tudo o resto. Por essa quantia, até instalo aqui uma criação de bassets - declarou, decidida.
Giovanna sorriu e fez-lhe a vontade. - Vais ver que te mandam embora - avisou-a.
- Está bem. Assim posso voltar para minha casa, partindo do princípio que eu ainda tenho uma casa.
- Tens, Matilde, e ninguém te vai mandar embora enquanto viveres - garantiu.
Giovanna viu as horas no relógio de pulso.
- Se tens mais que fazer, por que insistes em ficar aqui? perguntou Matilde num tom brusco.
- Por que é que consegues tornar-te detestável quando não o és?
- Para te facilitar as coisas. Estás cheia de vontade de ir embora a correr. Portanto, vai.
Giovanna afastou a cadeira da cama, levantou-se e dirigiu-se à porta.
- Mas não estarias com tanta pressa se fosse só um compromisso de trabalho - acrescentou Matilde, com um ar malicioso.
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- De facto. Trata-se de um compromisso que assumi por ti, minha querida. Esqueceste-te da villa junto ao lago, da igrejinha no planalto e do resto todo? - disse Giovanna, voltando-se a olhar para ela.
- Vais lá agora? - perguntou a velha, com um sorriso cheio de espanto. E acrescentou: - Toma cuidado, para não te enganares no caminho. Quando subires da praça da aldeia, tens duas curvas. Na segunda há uma bifurcação. Segue sempre à esquerda - recomendou.
- Tens medo que me perca? Fica sossegada, que eu não vou sozinha - respondeu com um sorriso radioso.
- Vais com ele? - perguntou Matilde.
Giovanna anuiu. Voltou a aproximar-se dela e, afagando-lhe a mão, disse: - Se o voltei a encontrar, a ti o devo. Estou-te muito grata, sua velha peste.
- Se, de facto, consegui ajudar-te de alguma maneira, terá sido a primeira boa acção da minha vida.
Alessandro estava já à espera dela em frente à porta da clínica. Estava sentado numa moto de grande cilindrada, a fumar um cigarro.
Giovanna viu-o ao atravessar o átrio e o seu coração começou a galopar. Era uma emoção que se repetia a cada encontro. E aquela era a terceira vez que se encontravam. Depois de regressar de Londres, Alessandro convidara-a para jantar numa estalagem sossegada, à entrada de Milão. Não tinha falado muito, mas olhara-a com adoração e a sua expressão um pouco triste ia-se amenizando num sorriso que lhe iluminava os traços duros do rosto. Giovanna sentia-se segura ao pé dele. Por isso, quase sem se dar conta, tinha-lhe falado de si, de Jacopo, de Giny, do seu trabalho e de Matilde.
- Só soube que a minha sociedade tinha aquela casa na via Fiori Chiari quando recebi o teu fax - confessou-lhe.
Depois Giovanna contou-lhe a história da escultura, das mangas cobertas de rubis e de pérolas e de como as tinha conseguido vender.
- O Silverstem levou-te. Eu teria pago muito mais - comentou.
- Também negoceias em pedras preciosas? - perguntou, curiosa.
- Eu compro e vendo tudo aquilo que é lícito comprar e vender - foi o comentário lacónico.
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Voltaram a encontrar-se dois dias depois. Alessandro mandou o motorista buscá-la para a levar a Bergamo, a um edifício na parte alta da cidade, onde estava a decorrer uma recepção.
- Cheguei agora de Veneza. Tenho de partir daqui a uma hora para Viena. Não teria tido a possibilidade de te ver se não te tivesses disposto a vir até aqui - sussurrou-lhe, enquanto a conduzia para um salão, antes de a apresentar aos donos da casa.
- Mas tu vives sempre assim? - perguntou-lhe então.
- Dá-me só algum tempo para organizar umas coisas e depois vou ter um dia só para nós dois - prometeu-lhe.
- Promessa cumprida - disse, quando a viu sair da clínica.
Giovanna estendeu-lhe a mão, que ele beijou. Depois acrescentou: - Estou em férias por vinte e quatro horas. O que significa: nada de motorista, nada de telefone e... nada de carro. Para ir até ao lago, esta moto será o ideal.
Giovanna esteve quase a opor-se. Não lhe parecia próprio de uma senhora da sua idade montar naquela coisa enorme.
- Mas eu não... - tentou protestar.
- É uma emoção, vais ver - garantiu, enfiando-lhe na cabeça um capacete enorme.
Nunca imaginaria que a viagem pudesse ser tão agradável. Só tinha sentido uma emoção semelhante aos vinte anos, quando Jacopo a levou ao parque de diversões e andaram os dois na montanha-russa. Com o corpo colado ao de Alessandro, bem instalada num assento macio, envolvida pelo ar quente de Junho, naquela máquina que corria como uma seta sobre a fita prateada da auto-estrada, Giovanna teve a sensação de ter outra vez vinte anos.
Atravessaram Varese e entraram numa estrada secundária. Depois começaram a subir uma estrada cheia de curvas e, a certa altura, viram o lago e entraram na aldeia.
Matilde tinha-o descrito como uma espécie de burgo de ar sonolento. Agora, era uma sucessão de pequenas indústrias, de pizarias e de construções modernas.
Seguindo as indicações de Matilde, subiram a colina e descobriram a bifurcação. Por fim, chegaram a um portão enorme, enferrujado pelo tempo e sustentado por pilares de pedra.
399
Alessandro parou a moto. Desceram e aproximaram-se do portão. Uma haste de ferro que terminava numa argola accionava uma sineta.
- O que dizes? Tocamos? - perguntou Giovanna.
- A sineta está sem badalo - observou ele. Giovanna agarrou-se às barras e olhou para dentro, para o fundo da alameda onde cresciam ervas muito altas.
- Este sítio faz-me arrepios - sussurrou.
- Olha para ali - disse ele, indicando um cartaz de madeira amarrado a um dos pilares. A palavra VENDE-SE, escrita com tinta branca, mal se lia. Por cima das copas das árvores via-se o topo de um telhado.
- Está desabitada - constatou ela, aflita. '''
- Mostra-me os papéis que a Matilde te deu - pediu ele. Sentaram-se na erva, em frente ao portão. Giovanna, aninhada,
com o queixo apoiado nos joelhos, relembrava a história da velha e via-a, menina, de bicicleta sobre o saibro branco da alameda para ir até à aldeia. Imaginava os canteiros a transbordar de flores, a erva penteada, os latidos festivos dos cães, o som da buzina do carro de Alberto, as vozes dos criados.
Alessandro examinava os documentos. - Puseram-na à venda em 1984. Há catorze anos - observou.
- Mas ninguém a vai querer comprar, por causa daquele grito
- disse uma voz.
Giovanna estremeceu. Do lado de dentro do portão tinha aparecido um velho, que os observava.
- Que grito? - perguntou Alessandro.
- É um grito que mete medo - disse o velho, desmentindo aquelas palavras com um sorriso trocista.
- Queríamos ir até à igreja - disse Giovanna.
- Então têm de voltar para trás, porque a igreja fica na aldeia
- explicou.
- Estou a falar da igreja pequena, no cimo do planalto. Há um caminho que parte da villa e vai até lá - precisou ela.
- Ah, essa. Mas essa é propriedade privada. Esqueçam. Tem pouco que ver: quatro paredes e um tecto - resmungou o homem.
- Deixe-nos entrar, por favor - interveio Alessandro.
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O velho observou atentamente os dois visitantes, como se quisesse avaliá-los. Depois abanou a cabeça. - Não posso deixar entrar ninguém sem a autorização dos proprietários. Sou o guarda, percebe? - Parecia pouco satisfeito por não poder fazer-lhes a vontade.
- Gostávamos pelo menos de visitar a villa, uma vez que está à venda - propôs Alessandro.
O homem enfiou uma mão por baixo do boné e coçou a testa. Estava a reflectir sobre aquele pedido. - Para os deixar entrar, primeiro tenho de ter autorização dos proprietários - repetiu. E prosseguiu: - De qualquer maneira, se estão mesmo interessados numa villa, por estes lados há coisas mais bonitas. Não lhes aconselho esta. Ninguém a quer, por causa daquele grito. Eu ouvi-o uma vez, há muitos anos. Fiquei com os cabelos todos brancos de susto. Perguntem por aí. Toda a gente lhes diz como é assustador.
Giovanna sentia aumentar a inquietação, enquanto Alessandro estava com um ar divertido.
- Como foi que nasceu essa lenda? - indagou, pensando que o velho tinha inventado aquela história para afastar os intrusos.
- Dizem que aqui, durante muitos anos, viveu uma rapariga muito bonita. Parece que era amante do patrão. Ele também era um homem fascinante, mas muito mais velho do que ela, que era muito jovem. Gostavam imenso um do outro. Mas ele era casado. Por isso, pensaram fugir para a América. Na véspera daquela grande viagem, ele caiu pelas escadas e morreu de repente. Ela gritou pela grande dor que sentiu. Os parentes do patrão mandaram-na embora e não se soube mais nada dela. Mas todos os primeiros domingos de Julho, no aniversário daquela morte trágica, quando o sol se põe para lá das montanhas, o grito da rapariga ressoa na villa vazia. Desde essa altura, os proprietários foram atingidos por uma maldição. Eram ricos e morreram na miséria. Os que vieram depois eram aparentados com o amante da rapariga. Também esses acabaram mal e resolveram vender este sítio, que foi comprado por alguém que nunca apareceu. Ouçam o que lhes digo, não tenham ideias extravagantes. Procurem noutro lugar - sugeriu o guarda. Voltou a coçar a cabeça. Depois afastou-se e continuou a resmungar sozinho.
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- É louco. A solidão fez-lhe mal à cabeça - observou Alessandro, divertido.
- Mas a história é completamente verdadeira - sublinhou Giovanna.
- Foi a tua velha que ta contou? Giovanna anuiu.
- A rapariga muito bonita era a Matilde. Ela acha que a propriedade está há anos nas mãos dos Pulitanò. Mas parece que já não é assim - comentou.
- De qualquer maneira, está à venda. Por isso podemos comprá-la - concluiu Alessandro.
- Como é que havemos de fazer? Realmente, não sei por onde começar - replicou Giovanna. Estava ainda perturbada com a história do velho guarda.
- Vamos a Varese e fazemos uma pesquisa no registo de propriedades - decidiu ele, enquanto subia para a moto.
Giovanna espantou-se com a desenvoltura com que Alessandro se mexia naqueles registos, superando, uma atrás da outra, as complexas malhas da burocracia.
- É um trabalho que fiz durante muitos anos. Agora são os meus colaboradores que fazem estas coisas, mas a mim diverte-me voltar a percorrer estes itinerários - explicou-lhe.
Ao meio-dia, no momento em que a repartição se preparava para fechar as portas, Alessandro Mongrifone chegou ao fim da sua pesquisa. E deu uma gargalhada clamorosa: - Imagina a quem pertence a villa, com a igreja e a colina inteira.
- A ti, certamente - brincou Giovanna. Ele anuiu.
- Faz parte do património imobiliário da Cogestar, que a comprou precisamente há catorze anos. Foi um dos meus numerosos erros de juventude.
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2
Almoçaram por baixo da pérgola de um restaurante virado para o lago. Giovanna estava ainda muito emocionada. Olhava alternadamente para as embarcações que deslizavam ao longe, à superfície da água, e para o rosto pensativo do homem que a acariciava com o olhar.
- Dadas as circunstâncias, o que é que eu tenho de fazer para que a Matilde possa realizar o seu desejo? - perguntou-lhe.
- Se estiveres de acordo, eu trato disso - respondeu Alessandro.
- Confio em ti - disse ela.
- Está uma tarde fantástica. Apetece-te dar uma volta? - perguntou-lhe, beijando-lhe a mão.
Caminharam ao longo da margem um pouco selvagem do lago.
- Se ao menos fosses um bocadinho menos misterioso... deixou escapar
- Mas que mistério! É só pudor, timidez. Não gosto de falar de mim - replicou com sinceridade.
- Gostava de conhecer um pouco mais de perto a vida do homem que amo - sussurrou Giovanna.
- Queres saber como nasceu a minha fortuna? Digo-te em poucas palavras. Tinha vinte anos e arranjei um trabalho. Correu bem. É só isto - explicou Alessandro, lacónico.
- Posta assim nesses termos, é uma biografia bastante deprimente - observou Giovanna. - Eu acho que deve haver outras
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coisas. Na primeira vez em que estivemos juntos contaste-me que, em criança, gostavas de ajudar a tua mãe a fazer as camas. Parecia o início de uma longa história.
- Há momentos em que a gente se deixa ir. Depois...
- Depois intervém uma estúpida como eu e faz-te calar. Fui realmente muito desagradável, naquela noite. Peço-te desculpa. Senti-me presa numa armadilha e queria fugir - confessou.
- Eu percebi. E não te levei a mal por isso - disse ele. E acrescentou: - Eu amei muito a minha mãe. Morreu cedo de mais. Depois, apaixonei-me por uma rapariga que eu achava fantástica.
- Como é que acabou? - perguntou.
- Mal, como é evidente. Sofri durante muito tempo. Mas só porque não sabia que te ia encontrar a ti - respondeu, abraçando-a.
- Vamos regressar a Milão? - propôs Giovanna, intuindo que Alessandro não iria mais longe nas confissões.
- Apetece-te ir até à mansarda? - perguntou ele, enquanto se instalavam na moto.
Chegaram à piazza Cordusio. Alessandro tinha-se entrincheirado atrás de um muro de silêncio, e Giovanna sentiu mais uma vez o desejo de fugir. Sentia-se amada, mas não o suficiente para aceitar aqueles mutismos inexplicáveis. Pensou no seu casamento com Jacopo: ele fora sempre um livro aberto, ela fora sempre indecifrável. Agora, com Alessandro, os papéis tinham-se invertido.
- Tens mesmo a certeza de que ainda me queres ao pé de ti? hesitou, enquanto subiam no elevador.
- Interrompi os trabalhos para tu poderes acabá-los. Este apartamento devia ser uma espécie de refúgio de solteiro. Tu chegaste e eu percebi que queria um espaço para dividir contigo acrescentou, olhando-a com uma ternura que arrebatou o coração de Giovanna.
- Quem te fez sofrer assim tanto? - perguntou ela, sem se decidir a segui-lo.
- Acho que não quero falar sobre isso. Não agora, pelo menos
- sussurrou.
- Beija-me, Alessandro - disse ela. Beijaram-se durante muito tempo, apaixonadamente. Depois, a rir como duas crianças, subiram a correr o último
lanço de escadas. Alessandro digitou o código e a porta abriu-se.
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O hall de entrada era um espectáculo de flores amarelas e brancas. Na sala de jantar, a mesa estava posta para duas pessoas e havia nenúfares brancos que flutuavam dentro de uma taça de cristal.
Giovanna olhou para ele, desconfiada. - Então não é verdade que as obras não estejam terminadas - observou.
- Vê por ti - disse, enquanto a levava em direcção ao quarto onde se tinham encontrado pela primeira vez. O entulho tinha sido retirado, mas o aposento estava completamente vazio.
- Achei que este podia ser o teu quarto. E que o devias arranjar como quisesses. Quanto a mim, o meu quarto vai ser este acrescentou, enquanto a conduzia ao sector dos hóspedes, ao quarto onde se tinham amado.
Estava tudo perfeitamente em ordem. A cama já estava preparada para a noite.
- Quem trata da casa? - perguntou, curiosa.
- Os empregados, como é evidente - explicou ele, ao mesmo tempo que lhe punha um braço em volta dos ombros e a levava até ao terraço, onde as plantas cresciam viçosas à volta da piscina.
- Apetece-te tomar um banho? - propôs-lhe.
Sobre as camas de vime entrelaçado, cobertas com colchões, estavam pousados dois roupões brancos de felpo. Num carrinho de chá havia copos grandes, chá gelado e sumo de laranja,
- Realmente, pensas mesmo em tudo. Eu olho em volta, pergunto a mim mesma o que é que falta, e tenho de constatar que está tudo perfeito, até os pormenores mais insignificantes - brincou ela.
- Tento apenas fazer as coisas o melhor possível. Como se trata de ti, redobrei as atenções - explicou com um sorriso.
- Estavas assim tão certo de que eu vinha até aqui? - desafiou-o.
- Não tenho a certeza de nada, mas actuo sempre como se tivesse.
- E se eu dissesse que não vinha?
- Perguntava a mim mesmo onde teria errado - admitiu. Brincaram na água, alternando beijos e gargalhadas. E depois
amaram-se com a paixão do primeiro encontro e a consciência de pertencerem totalmente um ao outro.
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Quando se sentaram à mesa para jantar, Giovanna observou:
- Os teus empregados têm o dom da invisibilidade.
- Porque não estão cá. Foram-se embora antes de nós chegarmos - disse ele. E acrescentou: - Tinha-te prometido vinte e quatro horas só para nós, não te lembras?
- E depois? - perguntou Giovanna, com uma voz hesitante a pensar no momento em que teriam de se separar.
- Vou ter de arranjar mais tempo para estar contigo - prometeu Alessandro, enquanto lhe enchia uma taça com salada de frutas. Tinha uma maneira quase maternal de tratar dela. Naquele momento, Giovanna pensou em Giny. Tinha-se esquecido dela durante todo o dia e sentiu-se culpada. Devia pelo menos ter-lhe telefonado, mas não lhe apetecia quebrar aquele fio tão delicado de uma intimidade maravilhosa.
- Há quinze anos que trabalho como um louco. Acho que este é o meu primeiro dia de férias - declarou.
- É evidente que gostas do teu trabalho - observou ela. Tinham passado para a sala de estar. As portas estavam completamente abertas sobre o jardim suspenso. Por entre as hortênsias acenderam-se umas luzes ténues.
- A princípio, o trabalho serviu-me para sobreviver, mas bem depressa se transformou num desafio entre mim e o meu pai - afirmou Alessandro. Acendeu um cigarro.
Giovanna pegou num bombom e começou a saboreá-lo, enroscada numa poltrona muito confortável.
- Saí de Palermo no dia em que fiz vinte anos. Tinha dois milhões de liras no meu cartão de crédito. Comprei um bilhete de avião para Londres, só de ida. Paguei uma semana adiantada num pequeno hotel de Regent Park, comprei o Times e comecei a percorrer os anúncios da secção de economia. Descobri uma oferta de trabalho numa sociedade imobiliária. Apresentei-me, e o director perguntou-me: "O que é que sabes fazer?" Eu respondi que não sabia fazer nada. Estava no segundo ano de Engenharia, tinha feito um exame na semana anterior. Contratou-me à experiência. Se dentro de um mês não tivesse conseguido cobrir um determinado volume de negócio, despedia-me. Eu tinha de fazer de intermediário na venda de umas lojinhas na periferia. Espaços pequenos, escuros, invadidos pelos ratos e pelos escaravelhos. Os meus clientes eram
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uns desesperados que tentavam enganar outros desesperados. Para compensar a minha frustração, não arranjei nada melhor do que desencorajar vendedores e compradores fazendo realçar os inconvenientes desses negócios. Podes não acreditar, mas a minha sinceridade total deu os seus frutos. Junto daquela gente, habituada a ser enganada de mil e uma maneiras, o meu pessimismo constituiu uma garantia. Ao fim de um mês tinha realizado mais do que o director podia esperar, e começou a espalhar-se a minha fama de mediador honesto. Comecei assim. Trabalhava dezoito horas por dia e os negócios que me divertiam mais eram os difíceis de levar a bom termo. Ao fim de seis meses tornei-me sócio da agência, e nove meses depois abri uma sucursal em Paris. Depois comecei a comprar. Comprei a prestações o pequeno hotel onde vivia e voltei a vendê-lo ao fim de duas semanas ganhando o triplo do investimento. Assim nasceu a Cogestar, e assim cheguei a Milão. Às vezes acreditava demasiado no meu instinto, e fiz investimentos errados. Mas à distância acabaram por ser interessantes. A villa sobre o lago é um deles - concluiu. E acrescentou: - Vamos a Veneza.
- A esta hora?
- O avião está à nossa espera. Ainda chegamos antes da meia-noite. Quero levar-te ao pé do Rialto. Há lá um pequeno cais para atracagem das gôndolas. Vamos sentar-nos no parapeito de uma ponte e ouvir o ruído da água a bater contra os barcos e a abaná-los. Adoro Veneza. Sempre desejei estar naquele sítio com a mulher que amo.
- Tenho de avisar a Giny - disse Giovanna. - Ela está um bocadinho preocupada com esta mãe inconsciente - acrescentou,
a rir.
- Vou já ligar o telefone que tinha desligado. - Ligou a central e todos os aparelhos da mansarda começaram a tocar ao mesmo tempo. Alessandro teve um gesto de contrariedade.
- Atende, querido. Se não, não posso ligar à minha filha pediu Giovanna.
Ele abanou a cabeça em sinal de negação. - Tinha dito vinte e quatro horas para nós. Ainda só passaram dez - declarou. E acrescentou: - Não podes ligar à Giny do teu telemóvel?
- Esqueci-me dele em casa - respondeu a sorrir. Alessandro pegou no auscultador. - Sim, sou eu - disse.
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Giovanna viu-o empalidecer enquanto ouvia o interlocutor.
- Parto imediatamente - declarou. Desligou a chamada e marcou rapidamente outro número. - Partimos para Palermo. Prepara o plano de voo - ordenou.
Depois virou-se para Giovanna. - Sinto muito, meu amor sussurrou. - As nossas férias acabaram.
- Posso ao menos saber o que aconteceu? - perguntou-lhe, confusa e preocupada.
- O meu pai morreu. Há duas horas atrás. Mataram-no.
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3
Giovanna saiu do elevador com a escultura de Matilde nas mãos. Giny estava à porta do apartamento.
- Então sempre te decidiste a trazê-la para casa - observou, abrindo completamente a porta.
- Quero pô-la no meu quarto - anunciou, enquanto avançava ao longo do corredor. A filha foi atrás dela.
- Não a querias levar à exposição dos antiquários? - lembrou-lhe.
Giovanna pousou a estátua no canto entre a mesa-de-cabeceira e a cómoda francesa. Depois afastou-se para a admirar.
- Está muito baixa - disse. - Tenho de lhe arranjar um pedestal.
Giny estava à porta e Bruna colocara-se entretanto ao lado dela.
- Bem, o que é que acham? - perguntou, esforçando-se por parecer alegre. Mas estava deprimida. Alessandro tinha desaparecido no vazio há uma semana.
No dia a seguir à sua partida precipitada para Palermo, os jornais e os telejornais tinham fugazmente referido a morte de Salvatore Mongrifone, rico empresário siciliano, como uma vingança da máfia. O homem tinha sido morto por uma rajada de metralhadora à saída de uma clínica de Palermo, onde se deslocara para visitar um amigo. Depois, como se alguém tivesse cosido a boca à imprensa, não houve mais notícias. Giovanna deixou passar os dias e finalmente
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resolveu ligar para o telemóvel de Alessandro. Uma gravação lacónica informou-a que o cliente não estava disponível. Procurou-o então em Londres e em Paris, onde secretárias eficientes lhe deram respostas análogas. Estava triste e deprimida, mas esforçava-se por não deixar transbordar aquele mau humor. Continuou a trabalhar, a falar com os clientes, com os amigos, com as irmãs e com a filha, como se nada tivesse acontecido. Foi à clínica ter com Matilde e decidiu levar para casa a suapigotta.
- Ao fim de tantos anos nesta casa, já vi muitas coisas esquisitas. Mas uma estátua como aquela, nunca vi - observou a empregada, observando a escultura.
- Esquisita porquê? - perguntou Giovanna.
- Não sei bem. Faz-me impressão. - Bruna não soube dizer mais nada.
- A avó disse que a cabeça é mesmo dela - revelou Giny.
- A grande especialista engoliu o juízo que tinha feito - comentou Giovanna. Noutra ocasião, aquela mudança de opinião da sogra tê-la-ia entusiasmado.
- Desgostos de amor? - perguntou Giny, olhando-a com simpatia.
Giovanna desapertou o cinto do vestido de seda. Tirou os sapatos e estendeu-se na cama, com as pernas cruzadas e as mãos por baixo da nuca. Anuiu com um gesto da cabeça e tentou sorrir.
- Também passei por isso. Sei o que significa - disse Giny, com um ar de adulta experiente.
- Conseguiste arrancar-me um sorriso - admitiu Giovanna.
- Agradeço-te por isso.
- É horrível vê-los ir embora, não é? - constatou a filha, ao mesmo tempo que se instalava em cima da cama, ao lado dela.
- É horrível quando não se percebe se ele fugiu mesmo ou se desapareceu porque lhe aconteceu alguma coisa. A incerteza é muito má companhia - revelou.
- Estás assim tão apaixonada?
- Receio bem que sim.
- Como estavas pelo pai?
- É completamente diferente. Agora tenho quarenta anos e sou muito diferente da rapariga de há vinte anos.
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- Por que é que não me falas dele? Nem sequer sei como se chama, nem o que faz na vida - lamentou Giny.
- Chama-se Alessandro Mongrifone. É muito mais jovem do que eu, é lindíssimo e muito meigo. Acho que teve uma vida difícil. O pai morreu há uma semana - disse, sem revelar a notícia do assassinato. - Desapareceu desde então.
- Isso é normal. Quando o pai morreu eu não dei sinais de vida a ninguém durante quinze dias - objectou a filha. - Nem ao Paolo.
- Bem, se me permites, o Alessandro Mongrifone é uma pessoa diferente do teu ex-namorado.
- Lá estamos nós outra vez. É uma história encerrada, mas tu continuas a remexer em águas turvas. Por que és tão pérfida? disse a rapariga, irritada.
- Está bem, Giny, desculpa, mas não estou com veia para pôr cá fora o meu lado melhor.
Naquele momento tocou o telefone e Giny apressou-se a atender. - Olá, Filippo. Queres falar com a mãe? Vou-ta passar - disse, passando o auscultador a Giovanna.
- Diz-lhe que não estou - sussurrou ela, em voz baixa.
- A mãe está aqui, mas eu tenho de te dizer que ela não está confessou a verdade, com uma voz risonha.
A mãe arrancou-lhe o auscultador da mão. - Desculpa, Filippo. Estava a descansar e não me apetecia falar com ninguém - tentou desculpar-se. - Mas aqui estou. Podes falar - acrescentou, conformada.
- O Mongrifone encarregou-me de reestruturar uma igreja no Varesotto e disse-me que tenho de te mostrar o projecto - explicou o arquitecto.
Giovanna ficou com a respiração suspensa. - Quando é que estiveste com ele? - perguntou-lhe.
- Telefonou-me há uma semana. Ia para a Sicília.
Antes de partir, portanto, Alessandro tinha-se preocupado com ela. Então porquê aquele longo silêncio?
- Eu achava que eram precisas autorizações especiais para o fim a que se destina essa igreja - observou Giovanna.
- De facto. Para as conseguir são precisos anos, e nem sempre são concedidas. Pois bem, tenho-as aqui em cima da mesa. Chegaram
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há uma hora. Foi por isso que te liguei. Temos de trabalhar juntos, Giovanna. - Filippo estava cheio de entusiasmo. Giovanna continuava a sentir-se deprimida.
- Vemo-nos amanhã, na loja - disse ela, à laia de despedida, e desligou o telefone.
Giny tinha ido embora e Giovanna decidiu ir visitar Matilde.
Encontrou a amiga no sofá. O médico estava sentado na beira da cama. Estavam a conversar quando Giovanna apareceu à porta. Matilde sorria.
- Incomodo? - perguntou, sem se decidir a entrar. Trazia para a ocasião um sorriso de circunstância que contradizia a angústia interior.
- Estava aqui a dar os parabéns à senhora por esta recuperação surpreendente - explicou o médico, enquanto ia ao encontro dela.
Matilde tinha realmente melhor aspecto. Estava mais magra e o corpo tinha beneficiado com isso. Giovanna inclinou-se para lhe beijar a testa.
- Este jovem diz que estou a responder bem aos tratamentos
- declarou a velha, com um ar radiante. E acrescentou: - Pergunta-lhe se posso voltar para casa.
- Por enquanto, como é evidente, nem pensar - respondeu o médico. - Sobretudo se a casa é aquela onde eu a vi há uns tempos atrás. Agora vem aí o calor e eu sugeria-lhe um lugar mais fresco, que lhe dê a possibilidade de uma assistência adequada.
- Jovem, pode ir embora. Eu sei bem o que posso fazer e para onde posso ir. Preocupe-se apenas em me levantar da cama e em me tirar esta porcaria destas agulhas, que me puseram num estado miserável - resmungou, referindo-se ao soro contínuo que lhe tinha deixado aparatosas equimoses nas costas das mãos e nos braços.
- Nunca se deve subvalorizar o convite simpático de uma amável senhora - disse o médico, com ironia, quando já se preparava para sair.
Giovanna segurou-o por um braço.
- Achas mesmo que ela pode sair da clínica? - perguntou.
- Vê com os teus olhos. Hoje levantou-se da cama, amanhã vai começar a dar uns passos. Em suma, o quadro clínico é de uma clara recuperação. Há coisas que a ciência médica não consegue de todo explicar - admitiu o médico.
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- A verdade é que são todos uns incompetentes - resmungou Matilde, com um ar satisfeito. E acrescentou, virada para a amiga:
- Senta-te aqui e conta-me tudo.
- Onde é que está a enfermeira? - perguntou Giovanna.
- Despedida. Despedi-as às três. Aquelas múmias que se sentam à minha cabeceira para espiar cada suspiro que eu dou aborrecem-me demasiado - explicou.
- Matilde, és uma peste - bufou Giovanna.
- Deixa de te preocupar comigo. Vamos mas é falar de ti. Cheira-me a problemas - tentou adivinhar.
- Há oito dias que o homem que amo não dá sinais de vida. Só me apetece chorar - confessou.
- Por que não o fazes? Às vezes as lágrimas servem para diluir a tensão.
- Com a minha idade, sinto-me um pouco ridícula. E, de qualquer maneira, a dor mantinha-se.
- Achas que ele te esqueceu? Se É assim, não vale a pena sofrer.
- Acho que na vida dele há coisas e pessoas mais importantes do que eu - admitiu.
- A desgraça das mulheres é que vivem em função do homem. Até a mulher mais livre e evoluída não é capaz de passar sem isso. Sabe-se lá porquê! São uns chatos. Inseguros, frágeis, egoístas. Dão a impressão de nos concederem tudo, mas na verdade ficam eles com tudo e só nos deixam as migalhas. E, no entanto, não passamos sem os amar. Quanto a mim, não devias ficar tão angustiada. Ele vai voltar, tenho a certeza. E então vais achar que foste estúpida por teres visto sombras onde só havia sol - sentenciou Matilde.
Giovanna sorriu. - Gostava de ter as tuas certezas. Quanto ao resto, não me importava de apanhar as migalhas, como tu dizes. Entrou um funcionário com o carrinho do jantar.
- Queres comer alguma coisa? - perguntou Matilde.
- Não, obrigada. Ainda tenho de passar na loja antes de fechar e queria ir dar uma vista de olhos ao teu sótão. Quando voltares para casa, vais ter de ficar confortavelmente instalada, dentro dos possíveis.
Matilde agarrou-lhe numa mão, levou-a à face e apertou-a com força. - A vida - disse - é sempre rica de surpresas. Nunca pensei
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que pudesse um dia tropeçar numa alma generosa como a tua. Devo-te muito, bem sabes.
- Eu também te devo muito. Passaste a ser uma presença insubstituível na minha vida - confessou Giovanna.
- Despacha-te a arranjar uma substituta. Eu não vou viver muito tempo - resmungou Matilde, que tinha os olhos húmidos de comoção.
Giovanna abraçou-a. - Sinto-te mais irmã do que as minhas próprias irmãs - sussurrou-lhe.
- Esse é o maior cumprimento que me podias fazer. Obrigada, Giovanna - murmurou a velha. Depois, achando que se tinha abandonado de mais à ternura, reencontrou a garra de sempre: - Gostava de comer a minha sopinha de massa enquanto está quente. Despacha-te a ir embora.
Giovanna sentiu-se aliviada quando saiu da clínica. De tal maneira, que decidiu dar um passeio pelas ruas do centro. Tinha passado demasiados dias entre a casa e a loja, estremecendo a cada toque do telefone na esperança de ouvir a voz de Alessandro.
Os seus passos levaram-na até à piazza Cordusio. Parou perto do semáforo e olhou para o lado oposto, em direcção ao edifício que ficava à sua frente. A mansarda não se via da rua. Achou que, se pudesse pelo menos ver as janelas, se ia sentir menos só. Alessandro fazia-lhe tanta falta como o ar. Amava tudo nele: a voz, o olhar, as mãos fortes, o corpo perfeito e, sobretudo, aquele ar vagamente irónico que escondia uma tristeza profunda, uma sinceridade rara.
Não sabia que significado atribuir àquele silêncio, mas queria acreditar que havia motivos sérios que o mantinham afastado. Até quando duraria aquela ausência? "A desgraça das mulheres é que vivem em função dos homens", tinha dito Matilde. Para ela não era uma desgraça viver em função de Alessandro. Quando muito, era um milagre. Queria viver com ele e para ele, para sempre. Abanou a cabeça, desconsolada, e começou a atravessar a praça. Um automóvel azul chamou a sua atenção. Estava a parar mesmo em frente ao edifício de Alessandro. Reconheceu o motorista, que saiu e abriu a porta de trás.
Do carro saiu uma mulher lindíssima. Era loira, alta e elegante. Tinha o cabelo apanhado na nuca. Vestia um tailleur azul-escuro
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onde brilhava um alfinete de diamantes. Trazia uns sapatos de salto altíssimo. Era absolutamente perfeita.
Atrás dela surgiu Alessandro, que ofereceu o braço àquela criatura maravilhosa, e entraram juntos no átrio. Giovanna ficou como que paralisada por aquela visão. Sentiu uma vertigem que a fez vacilar.
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Em Palermo, o comissário escoltou Alessandro até ao exterior do aeroporto. Um homem idoso, de aspecto simples e austero, veio ao encontro dele. Alessandro reconheceu-o imediatamente: era Sebastiano Rolla Cangemi. Para ele, fora sempre o tio Bastiano.
- Tinha de morrer o teu pai para tu voltares finalmente a casa
- foram as primeiras palavras do homem, pronunciadas num sussurro.
- Tinha de morrer para eu te poder abraçar outra vez? - perguntou Alessandro, apertando-o contra si.
- Eu era amigo dele - protestou Sebastiano.
- E também eras o meu único amigo - sublinhou Alessandro.
- Sempre esperei que o tempo compusesse as coisas entre vocês - precisou.
Aproximaram-se de um Mercedes preto que estava à espera deles. Entraram no carro, que o motorista pôs em marcha, dirigindo-se ao Instituto de Medicina Legal.
O corpo de Salvatore Mongrifone estava tapado com um lençol branco. Só depois da autópsia seria transportado para a igreja privada da villa de Mondelío.
Um tenente da polícia explicou a Alessandro o que tinha acontecido, e um médico, em poucas palavras, comunicou a causa da morte.
- Posso vê-lo? - perguntou Alessandro, e acrescentou: - Sozinho.
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- Espero por ti cá fora - disse Sebastiano.
Alessandro levantou o lençol e olhou para o corpo sem vida do pai. Observou durante muito tempo aquele rosto ainda bonito e altivo que, na compostura da morte, exprimia uma profunda serenidade.
Inclinou-se sobre ele e beijou-lhe a mão. - Ao fim e ao cabo, conseguiste o que querias - sussurrou.
Saiu da sala. Sebastiano estava a fumar um charuto e sorriu-lhe.
- Fizeste-te um homem, meu rapaz - comentou. - E que homem! - acrescentou, satisfeito.
- E tu envelheceste, tio Bastiano - disse-lhe, com afecto.
- Já fiz setenta. E estou cansado. O teu pai tinha menos cinco do que eu mas possuía ainda a força de uma torrente.
Voltaram a entrar no carro, atravessaram a cidade e dirigiram-se a Mondello. Iam os dois silenciosamente absortos nos seus próprios pensamentos.
Estavam já perto da viliz quando Alessandro perguntou: - Quem foi?
- O killer não tem importância - respondeu Sebastiano. Isso já Alessandro sabia. Os killers eram meros instrumentos
"de matança". Os verdadeiros assassinos eram os mandantes.
Depois Sebastiano pronunciou um nome, quase sem mexer os lábios. - Vittorugo Burgio - disse.
- Porquê? - perguntou Alessandro.
- O teu pai tinha-lhe sacado um negócio de biliões para a construção de uma cadeia de hotéis na Europa de Leste - revelou.
- Isso não me convence. Os Burgio e os Mongrifone passaram a vida a guerrear-se por causa de negócios desse género - comentou Alessandro.
Sebastiano calou-se. Era evidente que havia outras coisas, mas não queria falar sobre isso.
Sebastiano Rolla Cangemi era o homem mais terno e leal que alguma vez encontrara. Durante a sua infância e adolescência, tinha sido como um pai. Lembrava-se dele sempre perto de si. Primeiro, na sala de estar da casa de Palermo. Depois, na villa setecentista de Mondello. Não tinha um papel definido no clã de Salvatore Mongrifone. Às vezes ia com ele à caça. Mais frequentemente, conversava com a sua mãe. Ia com ela às compras, ou ao teatro. Sugeria-lhe
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a aquisição de um quadro ou a escolha de umas férias no estrangeiro. Quando Alessandro era muito pequeno, o tio Bastiano punha-o às cavalitas e depois andava às voltas, a correr, em casa ou no jardim, deixando-o louco de alegria. Mais tarde, ensinou-o a montar a cavalo e a usar uma espingarda de caça.
Uma vez apanhou a mãe banhada em lágrimas, enquanto Sebastiano a abraçava, tentando confortá-la.
Sempre fora um homem de poucas palavras. Ao crescer, Alessandro compreendeu que entre Sebastiano e o pai existia uma ligação profunda, cuja origem ignorava. O tio Bastiano era advogado, mas não se lembrava que alguma vez tivesse exercido a profissão. Era oriundo de uma família abastada e não dava importância ao dinheiro. Na realidade, não havia nada que pudesse justificar a ligação entre aqueles dois homens tão diferentes. No entanto, Salvatore Mongrifone sempre mostrara uma certa deferência em relação ao amigo. Uma vez, quando Alessandro era ainda uma criança, durante um passeio de caça, tinha-se afastado do pai e do tio para espiar um dos perdigueiros. Os dois homens estavam sentados à sombra de uma árvore frondosa. Ao voltar para junto deles, o rapaz ouviu a voz severa de Sebastiano, que dizia: "Salvatore, és um grande idiota." O pai não replicou. Ninguém teria nunca a coragem de proferir uma apreciação daquele tipo. E, se alguém o fizesse, não viveria o suficiente para se poder gabar.
Alessandro e Sebastiano chegaram à villa já de noite. Um velho criado, de libré verde, esperava-os à porta.
- Seja bem-vindo, signorino - disse o homem, inclinando a cabeça perante Alessandro.
- Mimi! Como estás? - Abraçou-o e o velho ficou comovido.
- Como Deus quer - respondeu o criado.
- Continuas na mesma. Quantos anos tens, Mimi?
- E quem é que se lembra? Já era velho quando nasci. - Limpou as lágrimas e acrescentou: - Sinto muito por don Salvatore.
- Eu sei - disse Alessandro.
- Donna Perla pediu-me para lhes anunciar que está na sala amarela. Ainda se lembra onde é?
Alessandro olhou em volta. Nada tinha mudado naquela grande villa que, em tempos, e durante gerações, tinha sido morada de príncipes e há trinta anos era habitada pela sua família. Nada tinha
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mudado desde que partira. A mesma decoração em estilo barroco, as mesmas jarras, os mesmos tapetes. Mas havia outros quadros. Naturezas mortas do século xvii, sobretudo.
- Mimi, eu tenho uma memória de elefante - disse Alessandro, enquanto olhava para a escadaria que se abria à sua frente.
A porta da sala amarela estava entreaberta. Empurrou-a devagar. Perla estava a fumar. Olhava para longe, para lá da varanda sobre o jardim. Os cabelos loiros, muito apertados na nuca, libertavam reflexos de ouro à luz ténue de um candeeiro. Trazia um vestido branco, de seda leve, que fazia realçar a linha perfeita do seu corpo. Alessandro deu dois passos na sala e a luz projectou-lhe a sombra na parede. Perla voltou-se de repente, levantou-se e baixou ligeiramente a cabeça, tal como Mimi tinha feito antes.
- Don Alessandro - disse simplesmente.
Alessandro saiu para a varanda e sentou-se na balaustrada de pedra.
Do jardim subia um perfume intenso de rosmaninho. Quase tinha esquecido os perfumes da Sicília e a extraordinária beleza daquele céu.
Sentiu um rumor por baixo dos arbustos de fúcsias e depois viu aparecer um homem.
Tirou o boné e cumprimentou-o: - Os meus sentimentos, don Alessandro
- Quem és tu? - perguntou-lhe
- Um guarda de Vossa Senhoria - respondeu o homem. Enterrou o boné na cabeça e prosseguiu o seu giro.
- Desde quando é que há guardas na villa - perguntou Alessandro a Perla.
- Desde sempre. Não te lembras? Lembrava-se, mas já não estava habituado. Aproximou-se de Perla e, finalmente, olhou para ela. Pareceu-lhe ainda mais bonita do que quando a tinha deixado. Durante aqueles longos anos de separação, tinha às vezes perguntado a si mesmo o que sentiria se a voltasse a ver. Agora sabia que não sentia nada. Era uma estranha.
- Querias falar comigo. Estou a ouvir - disse.
- Imagino que o tio Bastiano não te tenha contado toda a verdade sobre os motivos do crime - começou, com uma voz serena.
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- Queres contar-me tu? - replicou Alessandro.
- Foi por causa de uma afronta a Vittorugo Burgio. O teu pai levou para a cama a sua netinha adorada. Tem apenas quinze anos. Desonrou-a - explicou. E acrescentou: - Quando me tocou a mim, tinha dezasseis. Como tu bem sabes.
Aquele era um detalhe supérfluo. Sentia ainda na pele a queimadura daquela traição. Alessandro estava tão perdidamente apaixonado por Perla que não ousava tocar-lhe.
Ela tinha-lhe suplicado. - Quero ser tua - dissera-lhe mais do que uma vez.
- Só quando fores minha mulher - insistia ele.
- Por que é que vais com as outras e comigo não? Eu sei que vais com a Cristina Spanò e com a viúva Reccosta - censurou-o.
- Com essas não vou casar. Contigo é diferente. E vamos casar em breve, porque te desejo loucamente.
- Em breve, quando?
- Quero a bênção do meu pai. A regra é essa.
- E se don Salvatore não estiver de acordo? - observou Perla. Alessandro tinha excluído uma tal possibilidade. Quando o pai
visse Perla, concordaria com aquela escolha. Por isso, levou a rapariga a Mondello e apresentou-lha, numa tarde de Verão, exactamente ali, naquela varanda. Perla mantinha o olhar baixo perante aquele homem poderoso que observava o sulco entre os seus seios delicadíssimos.
- És realmente uma bonita rapariga. O meu filho, reconheço, pelo menos nisso parece-se comigo: gosta de flores ainda em botão.
- Ria muito, abrindo os lábios sobre a dentadura voraz. Alessandro temia aquele sorriso, que associava à expressão ávida do perdigueiro quando está prestes a abocanhar a presa.
- Então tu és filha de don Nicola Scafidi, o dono do mais bonito dos restaurantes sobre o porto - prosseguiu.
- Foi lá que eu e o Alessandro nos conhecemos - explicou a rapariga, modulando a voz com um tom muito meigo.
- Posso convidá-la para ficar na villa durante uns dias? - perguntou o rapaz, e acrescentou: - Quero ensiná-la a andar a cavalo.
Don Salvatore anuiu e, naquela noite, quando ficou a sós com o filho, abordou o assunto com decisão. - Quais são as tuas intenções em relação àquela rapariga? - perguntou-lhe.
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- Quero casar com ela - respondeu Alessandro.
- Porquê? Também a podes ter sem casamento.
- Estou muito apaixonado por ela.
- Tal como ela está apaixonada pelo teu dinheiro.
Aquela observação, cínica e injusta, ofendeu-o. - Não é bem assim. De qualquer maneira, só quero a tua bênção.
- Não a vais ter. Para ti, espero uma coisa melhor., apesar de reconhecer que é muito bonita. Mas é demasiado esperta, e tu és demasiado ingénuo para perceber isso. A Perla precisa de outras coisas. Não, não vais casar com ela - decretou. Aquilo, Alessandro sabia-o, era uma sentença sem apelo.
- Pois vou casar com ela mesmo sem o teu consentimento replicou.
- Ainda és um menino mimado. Culpa da tua pobre mãe. Ficaste agarrado às saias dela até morrer. Agora, que ela já cá não está, julgas que podes ser um pater famílias. Precisas de tempo. Antes de teres a tua casa tens de te formar e de trabalhar a sério.
- Estás a subvalorizar-me, pai. E eu não gosto disso. Tive mais afecto da minha mãe, dos criados e do tio Bastiano do que de ti. Em qualquer caso, és meu pai e eu devo-te respeito. Não obediência cega. Vou sair desta casa com a Perla. - Estava furibundo e tinha recorrido a todo o seu autocontrole para dominar a cólera perante a vontade paterna de o humilhar.
- Mas onde é que pensas que vais? O que é que tu achas que fazes sem mim? Quanto a ela, não vai casar contigo quando souber que não vão ter nenhuma ajuda minha - escarneceu.
- Um dia ainda vais engolir tudo aquilo que disseste - ameaçou o rapaz.
Naquele momento recebeu uma bofetada que o fez vacilar.
- Um dia vais voltar de joelhos para me beijar esta mão que te bateu - decretou o pai. Assim começou o desafio entre eles.
Alessandro desceu até às cavalariças, montou o seu cavalo e foi correr, até se esgotar a si próprio e ao animal. Voltou muito tarde. Entrou no quarto, enfiou algumas roupas num saco e depois foi bater à porta do quarto de Perla. Não obteve resposta. Abriu a porta e viu-os juntos, ela e o pai. Então fugiu. Devia ter sido para sempre. Mas agora tinha voltado, e Perla estava à sua frente: jovem, lindíssima, viúva sem luto.
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- Eu sei. Quando te tocou a ti, tinhas dezasseis anos. Mas casou contigo -- sublinhou.
- Se não o tivesse feito, o meu pai tinha-o matado. E agora foi o Burgio que o matou.
Alessandro olhou para ela com um sentimento de piedade. Como foi a tua vida com ele? - perguntou-lhe.
- Terrível. Mas os erros pagam-se - confessou. Aproximou-se do bar e serviu-se de um copo de whisky. - Isto é para conciliar o sono - justificou-se, com um sorriso. E acrescentou: - Não me consigo sentir uma viúva inconsolável.
- No funeral vais ter de te comportar como se o fosses - diss ele.
- Como Vossa Senhoria mandar - respondeu Perla com iro-' nia, esboçando uma vénia. E prosseguiu: - Vê-se logo que és filho do teu pai.
Ela preparava-se para sair, mas ele deteve-a. - Naquela noite de há dezasseis anos, quem tomou a iniciativa? - perguntou-lhe.
- Não gosto de atirar as culpas para os mortos. Por isso, digo-te que fui eu. Será que isto simplifica as coisas? - perguntou com uma voz irónica.
Don Salvatore foi enterrado, ao lado da mulher, na igreja que ficava dentro do recinto da villa. Depois procedeu-se à leitura do testamento. O homem tinha destinado doações de consistências diversas a parentes afastados, amigos, criados e associações de beneficência. O herdeiro universal era o filho, Alessandro.
- Quanto à minha mulher, Perla - leu o notário -, deixo a Alessandro o poder de decidir, se assim o desejar, e na medida que considerar oportuna.
A viúva não pestanejou. Na prática, fora deserdada.
Os dias que se seguiram foram frenéticos. Alessandro tentou esclarecer os muitos e complicadíssimos negócios do pai. Quando mais tentava desenredar as meadas, mais os fios se emaranhavam. Sebastiano iluminou-o naqueles percursos tortuosos, mas só até certo ponto. Houve situações em que ambos desesperaram.
- Tu tens excelentes colaboradores. Pede-lhes ajuda - sugeriu o velho amigo.
- Os negócios da Cogestar são rigorosamente transparentes.
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Não quero interferências com os do meu pai, que têm demasiados aspectos obscuros - declarou Alessandro.
- Arriscas-te a perder muito tempo.
- Eu sei, e não quero. Não queres ser tu a tratar disto? - propôs-lhe.
- Vou tentar. Mas não posso tomar conta da Perla também. Esse é um problema teu.
Alessandro falou com ela e fez-lhe uma proposta que ela não pôde recusar: uma renda anual que lhe permitiria o mesmo nível de vida e o usufruto da villa.
- És muito generoso - agradeceu a viúva.
- Então anda comigo a Milão. Os meus contabilistas vão preparar o esboço de um acordo que tu vais assinar - decidiu.
Oito dias depois da morte de don Salvatore, Alessandro chegou à piazza Cordusio com a viúva do pai. Giovanna viu-os. E tirou uma conclusão errada.
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No escritório da mansarda da piazza Cordusio, o contabilista ouviu, sempre de acordo, as exigências de Perla, precisas e justificadas. Depois voltou-se para Alessandro.
- Estás de acordo em relação a tudo?
Alessandro anuiu. Tinha pressa em concluir definitivamente aquela questão. Precisava de atar o mais rápido possível os fios dos seus próprios assuntos e, sobretudo, precisava de reencontrar Giovanna. Quando o contabilista se foi embora, anunciou a Perla que o motorista estava à espera dela para a levar ao aeroporto.
- Na verdade, tencionava ficar uns dias em Milão. O teu pai nunca me deixou sair da Sicília - explicou.
- Mando-te reservar um quarto no Grand Hotel - propôs.
- E não posso ficar neste apartamento de sonho? - perguntou com aquela voz modulada que ele tão bem conhecia.
Alessandro olhou para ela, perplexo, sem perceber onde ela queria chegar.
- Agora que resolvemos o aspecto mais prosaico da situação, não poderíamos rever o outro mais agradável da nossa relação? prosseguiu, olhando-o com ternura.
A perplexidade de Alessandro tornou-se espanto e depois incómodo. - Receio que estejas a baralhar tudo, Perla - disse num tom impaciente.
- Quanto a isso não há dúvidas. Sempre fui uma especialista
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em erros. Mas já os paguei. Agora gostava de recomeçar, contigo, como é evidente. Não me parece que seja demasiado tarde.
- As coisas entre nós acabaram há dezasseis anos - declarou ele.
- Não acredito nisso. Ainda não casaste - observou ela.
- Mas dá-se o caso de estar muito envolvido com outra pessoa
- rebateu.
- Referes-te àquela antiquária quarentona, viúva, com uma filha às costas? - perguntou, apanhando-o desprevenido.
- Refiro-me a ela. Mas o que é que tu sabes disso? - perguntou, surpreendido.
- Foi o teu pai que me disse. Ele, não sei como, conseguia estar sempre informado sobre tudo aquilo que te dizia respeito. E, para me irritar, era tão simpático que me vinha contar tudo. Portanto, é dela que se trata. Então não tenho razões para me preocupar. Sou muito mais nova e mais bonita. Vou dar-te um tempo, Alessandro. Vais voltar quando menos pensares. E agora, se quiseres, leva-me ao hotel - concluiu, ao mesmo tempo que lhe dava uma palmadinha na face.
Alessandro reagiu com uma gargalhada. Dezasseis anos com don Salvatore não lhe tinham dado felicidade, mas tinham-lhe permitido aprender muita coisa.
Alessandro acompanhou-a à porta com uma sensação de libertação. E procurou imediatamente o número de Giovanna no telemóvel. Ela não atendeu. Então ligou para casa. Responderam-lhe que a senhora não estava.
Começou então a retomar os contactos com os seus colaboradores. Aquela arte de mergulhar no trabalho para não pensar nos assuntos pessoais fora solidificando ao longo dos anos, e funcionou também daquela vez.
Durante aquela estadia na Sicília tinha trabalhado muito, pensado muito e dormido pouquíssimo. Era quase meia-noite quando decidiu tomar um banho na piscina. Nadou durante muito tempo até que se agarrou, exausto, à escadinha de aço. Nesse momento aproximou-se um empregado com um ar ensonado que lhe estendeu o telefone portátil.
- Tem uma chamada, signore - disse.
Alessandro saiu a pingar, enfiou um roupão e atendeu o telefone.
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- Olá, meu amor - disse, sabendo que só Giovanna lhe poderia ligar àquela hora.
- Não queimes etapas. Vamos por fases - disse Perla.
- Não era a tua voz que eu estava à espera de ouvir - replicou.
- Que pena. Seria um bom começo. Ia-me deitar e queria agradecer-te por tudo, mais uma vez. Quero também oferecer-te um pequeno contributo que te vai servir para juntar as muitas peças do teu complicadíssimo mosaico familiar. O tio Bastiano foi amante da tua mãe. Agora pergunta a ti próprio se don Salvatore sabia disso, e considera também o facto de poderes não ser filho dele. Boa-noite, Alessandro.
Com aquela revelação, Perla tentava forçá-lo a ir ter com ela para saber mais coisas. Disso tinha a certeza. Era o tipo de pessoa que, posta na rua pela porta, volta a entrar pela janela. Só que desta vez tinha-se enganado nos cálculos. Ele não se ia deixar entalar. Um dia, talvez voltasse à Sicília para esclarecer muitas dúvidas. Mas agora tinha outras coisas para fazer.
Entrou no quarto que tinha partilhado com Giovanna, estendeu-se na cama e adormeceu.
Acordou-o o empregado, que entrou no quarto com o carrinho do pequeno-almoço e lhe pousou em cima da cama um monte de jornais. Tinha pela frente um dia cheio de compromissos, mas o seu primeiro pensamento foi para Giovanna. Telefonou-lhe.
- A senhora não está em casa - disse a empregada.
- Sabe onde a posso encontrar? - indagou.
- Não faço ideia - respondeu. Giovanna, ao lado dela, anuiu. Mas isso Alessandro não podia saber.
Ligou-lhe para a loja e atendeu o gravador de chamadas.
Às dez horas da manhã estava na via Fiori Chiari. Mandou para o diabo os compromissos de trabalho. Entrou na loja. Ali estava ela, sentada à secretária, com um rosto desfeito, os olhos inchados de cansaço.
- O que é que se passa? - perguntou Alessandro num tom acusatório.
Apetecia-lhe abraçá-la, mas olhava-a como uma inimiga. Não suportava pensar que ela quisesse fugir-lhe.
Giovanna fechou a porta que dava para as traseiras da loja e enfrentou-o.
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- O que é que queres de mim? - perguntou, gelada.
- Quero a mulher que deixei há oito dias. Não gosto desta víbora que está a olhar para mim com vontade de me morder disse ele.
- Pois podes ir embora, porque eu sou a mesma de sempre. Não faço de conta que estou apaixonada por um homem para depois o trair ao virar da esquina.
- De que é que estás a falar?
- De ti! - berrou, e acrescentou: - Vai-te embora, imediatamente!
Alessandro abraçou-a de repente e tentou beijá-la. Ela conseguiu libertar-se e começou a bater-lhe no peito com os punhos fechados. Alessandro deixou-a bater-lhe até que Giovanna se apoiou, ofegante, às costas de uma poltrona, para recuperar o fôlego. Alessandro atirou-se a ela e imobilizou-lhe os pulsos. - Não sei o que aconteceu, mas juro-te que vais ser a mãe dos meus filhos.
- E a loira que levaste para casa ontem à noite, onde é que a metemos? - gritou ela.
Agora percebia tudo. Se estivesse menos perturbado, teria conseguido explicar. Mas agarrou-a pelos ombros, empurrou-a para fora da loja e arrastou-a até ao carro que estava estacionado na esquina da rua. - Para o Grand Hotel - ordenou ao motorista, ao mesmo tempo que obrigava Giovanna a sentar-se ao lado dele.
Giovanna estava exausta.
- Tu és louco - disse.
- Sou siciliano, é diferente. Vais ter de ajustar contas comigo para o resto da tua vida. É a primeira regra: nunca duvidar um do outro - replicou com decisão.
- Onde é que me vais levar?
- A esclarecer o mistério da loira - respondeu.
Perla estava ao balcão da cafetaria a conversar animadamente com o barman.
- Olá - começou Alessandro. Depois voltou-se para Giovanna: - Esta é a signora Mongrifone, a viúva do meu pai.
- E esta flor é Giovanna Lanciani, suponho - respondeu Perla, a sorrir, numa bem conseguida imitação de uma diva dos anos cinquenta. Desceu do banco onde estava empoleirada e estendeu a mão para a cumprimentar.
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Giovanna pensou que, vista de perto, era ainda mais encantadora.
Alessandro explicou: - É a mulher que amo. Queres dizer-lhe por que razão estavas ontem à noite em minha casa? - pediu num tom imperativo.
- Gostaria de poder contar que estávamos ali para nos divertirmos. Mas não seria verdade. Tratou-se apenas de desagradáveis questões de dinheiro. O meu marido deserdou-me, praticamente, e o Alessandro, talvez recordando uma antiga paixão por mim, deu provas da sua generosidade - disse Perla, calmamente e não sem uma certa ironia. Depois acrescentou: - Também tentei transformar aquele encontro em algo mais interessante para ambos. Só que não consegui, pelo menos desta vez. Mas com os Mongrifone nunca nada é definitivo. De qualquer maneira, acho muito divertido ter desencadeado uma discussão entre vocês os dois. Posso ser-vos útil?
Giovanna e Alessandro saíram do hotel de mãos dadas.
- E agora? - disse Giovanna a sorrir.
- Podes voltar para a tua loja. Eu mando-te lá levar.
- Não ficamos juntos? - perguntou ela, surpreendida.
- Tenho de partir imediatamente. Acho que não vamos ver-nos durante mais uma semana. Mas telefono-te todas as noites e espero encontrar-te em casa quando ligar - avisou, com uma expressão grave.
- Olha que eu não sou exactamente o tipo da escrava que fica à espera do regresso do guerreiro.
- Muito bem. Então vens comigo. Ficas comigo em todos os momentos do dia e da noite, vais comigo às reuniões de trabalho, aos conselhos de administração, ajudas-me a dialogar com os presidentes de sociedades grandes e pequenas...
- Acontece que eu também tenho coisas para fazer - objectou ela.
- Estás a ver? Bem te disse que voltasses para a loja - disse ele a sorrir, beijando-lhe a boca ao de leve.
- Ainda há muitas coisas de ti que eu não sei - replicou Giovanna.
- Vou ter muito tempo para tas contar. Isto é uma promessa.
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Em vez de regressar à loja, Giovanna regressou a casa. Disse a Bruna que não queria ser incomodada, estendeu-se na cama e sorriu, na penumbra protectora do seu quarto, para a pigotta, que parecia satisfeita com a felicidade dela. Alessandro tinha partido novamente, mas Giovanna conseguia sentir a sua presença ao lado dela, e essa sensação dava-lhe segurança. Dormiu até à tarde. Quando acordou, encontrou a casa inundada de flores.
- Será que esta história ainda vai durar muito tempo? - perguntou Giny, com uma pontinha de ciúme.
- Eu espero que dure para sempre - replicou Giovanna, e abraçou-a. Naquele momento tocou o telefone. Era Matilde.
- Tive autorização para regressar a casa. Podes vir buscar-me, a mim e ao meu cão, por favor? - Mais do que um pedido, era uma ordem.
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6
Em Julho, Giovanna fechou a loja para férias. Lino continuaria o seu trabalho de restaurador nas traseiras. Ele nunca ia de férias. Também os outros estabelecimentos na via Fiori Chiari estavam a fechar. Voltariam a abrir todos em Setembro.
Encontrou-se com os colegas no café do costume, para as despedidas. Entre dois dedos de conversa trocaram-se informações sobre as férias iminentes e definiram-se algumas estratégias para o Outono.
- E tu, o que vais fazer? - perguntou-lhe Fiorella Solbiati.
- Amanhã vou levar a Giny a Malpensa. Vai para a Califórnia com os colegas da escola. Depois vou ter com a minha sogra a Forte dei Marmi. Nada de excepcional. Tudo como sempre - declarou.
- O que é que me dizes daquele rapaz de estrondo que vejo muitas vezes na tua loja? - perguntou a colega, baixando a voz, com um sorriso cheio de cumplicidade.
- Que é efectivamente um estrondo - admitiu Giovanna.
- Só isso? Não me contas mais nada? Juro-te que não conto a ninguém - garantiu Fiorella, incapaz de refrear a curiosidade.
- Não há mais nada a dizer - respondeu Giovanna, à defesa. Trocaram beijos e cumprimentos.
Depois foi ter com Matilde. Vencendo a resistência da velha, tinha conseguido mandar instalar na água-furtada um aparelho de ar condicionado. O calor era agora mais suportável, e havia também
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uma empregada doméstica muito eficiente que tratava da doente. Matilde aceitara essas imposições porque estava demasiado débil para se opor. Passava os dias entre a cama e a cadeira de baloiço, a dar mimos ao cão. Tinha deixado de ouvir os seus tangos e já nem sequer lhe interessava olhar para o céu, Giovanna chegou a casa dela e encontrou-a sozinha, sentada à mesa. Estava a escrever.
- São as tuas memórias? - brincou, inclinando-se para lhe dar um beijo.
- É o meu testamento - replicou. Tinha o mesmo ar implicativo de sempre.
- Se eu fosse a ti, preocupava-me em gastar da melhor maneira o dinheiro que tens - sugeriu Giovanna, enquanto enchia um copo de água. Afastou uma cadeira e sentou-se à mesa, à frente dela.
- Com o meu dinheiro, faço o que me apetecer. Já me impuseste demasiadas coisas. Aquela mulher que anda aí à minha volta o dia inteiro incomoda-me. Só começo a respirar de alívio ao fim da tarde, quando ela se vai embora - resmungou, ao mesmo tempo que pousava a caneta e a desafiava com o olhar.
- E agora, onde é que ela está? Por que é que estás sozinha? perguntou.
- Mandei-a comprar flores. Era um pretexto para a mandar dar uma volta e poder escrever em paz. À noite, com a luz eléctrica, não consigo - respondeu.
- É natural. Insistes em não usar óculos - insinuou. Matilde não respondeu à crítica.
- Quando eu partir, tens esta carta para ti, se por acaso tiveres a bondade de me deixar acabá-la - replicou.
Giovanna inclinou-se para ela e pousou as mãos nas suas. Não gosto de testamentos. Não quero pensar que tenho de te perder. És uma amiga preciosa, Matilde - sussurrou-lhe, olhando para ela com ternura.
- Tu também és - admitiu baixinho. - Deste-me mais do que ninguém e fizeste-me sentir menos só. Agarra a vida, Giovanna, e vive-a também por mim.
- Vou fazê-lo. Prometo-te - disse, contendo a comoção. Ouviu o toque do telemóvel. Tirou-o da carteira e atendeu. Iluminou-se-lhe o rosto.
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- Está bem - disse, depois de ouvir a conversa. E acrescentou: - Amanhã à noite vou ter contigo.
Matilde sorriu. - Com ele vais ser feliz. É o meu pressentimento. Não há nada mais fantástico do que o amor de um homem forte e sincero que te faça de almofada e de cobertor. São raros, esses homens. Mas se tiveres a sorte de encontrar um no teu caminho, podes ter a certeza de que vai ser para a vida - sussurrou. Depois abanou a cabeça e acrescentou: - A não ser que caia de uma escada.
- Este não vai cair, Matilde - replicou, convencida. Naquele dia, Giovanna ajudou a filha a fazer as malas. Encheu-a de recomendações, enquanto contava as horas que a separavam de Alessandro.
- Sabes, mãe, que o amor te faz bem? Estás cada vez mais bonita. Achas que um dia também me vai acontecer a mim? - perguntou Giny.
- É garantido. Estas coisas acontecem quando menos se espera.
- Eu gostava que fosse depressa - disse a filha, com um ar sonhador.
- Os acontecimentos seguem um percurso misterioso. Não podes apressá-los nem adiá-los. Todas as coisas acontecem quando chega o momento. Portanto, aprende a esperar - sentenciou Giovanna.
Como única resposta, Giny fez-lhe uma festa nos ombros.
- Gosto tanto de ti, mãe. És uma mãe de quem eu sinto orgulho. Considero-te a minha segunda amiga do peito. A primeira é a Annabel. Olha que não é pouco, podes crer - confessou-lhe.
- Acredito e agradeço-te. É o melhor cumprimento que me podias fazer.
No aeroporto, quando estavam prestes a separar-se, Giny abraçou-a. - Cuida de ti, mamã. E diz ao Alessandro que estou morta por o conhecer.
Giovanna regressou a casa. Entrou no quarto e encostou-se à pigotta. Passou a mão pelos ombros daquela rapariga antiga e sorriu-lhe. - Também nós as duas estamos a ficar amigas - sussurrou, com um ar satisfeito.
Tirou da gaveta do toucador a carta de Jacopo. Abriu-a. Deixou escorregar para a palma da mão os fragmentos das florzinhas e apertou-os. Releu a carta e sussurrou: - Se tu pudesses ver, meu
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amor, como eu estou mudada! Sabes uma coisa, Jacopo? Quero aprender a dançar. Vou ter lições de tango. Estou-te infinitamente grata por aquilo que me ensinaste. Vou amar-te sempre. - Voltou a dobrar a carta, meteu-a no envelope com o pó das flores e fechou a gaveta.
Estava pronta para partir para Londres, onde Alessandro a esperava.
- Temos três dias só para nós - foi a primeira coisa que ele lhe disse, quando ela chegou ao aeroporto.
- Essa sim, é uma notícia extraordinária - replicou Giovanna, enquanto entrava no carro.
Caía a noite e chuviscava. Achou Londres lindíssima.
- Quero confessar-te um segredo - sussurrou Alessandro, quando entraram no apartamento.
Giovanna olhou para ele e mais uma vez se espantou por aquele jovem tão fascinante ser seu. Parecia-lhe que o tinha desejado desde sempre, com a certeza de nunca o encontrar.
- Sou toda ouvidos - disse em tom de brincadeira.
- Estou perdidamente apaixonado por ti. Pede-me a lua, e eu dou-ta. Hei-de apanhar as estrelas, uma a uma, para fazer um grande ramo e pousar na tua almofada - disse, apertando-a contra si.
- Para já, só te peço que me leves a jantar. E depois gostava de ir ao Coliseum. Está lá o Royal Ballet. Achas que consegues arranjar dois bilhetes?
- Vamos ter o camarote real! - garantiu ele.
- Tu não podes imaginar o que significa para mim querer assistir a um espectáculo de ballet - confessou-lhe, enquanto jantavam.
- De facto, não imagino. Conta-me - disse ele.
- É uma conquista extraordinária. E é também uma longa história. Claro que te conto. Mas não esta noite - sussurrou.
Depois do teatro tomaram um Pimm's num bar perto de casa e beberam-no devagar, olhos nos olhos, saboreando antecipadamente o prazer da longa noite que passariam juntos.
Quando regressaram, encontraram uma mensagem para Giovanna: "Telefonar imediatamente para casa."
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Giovanna empalideceu - Aconteceu alguma coisa terrível sussurrou, ao mesmo tempo que o seu pensamento corria para Giny.
Agarrou no telefone. Alessandro bloqueou-lhe o gesto. - Eu ligo - decidiu.
Foi Bruna, a empregada de Giovanna, quem atendeu.
- Sinto muito se assustei a senhora. O que aconteceu foi que a Matilde piorou de repente e o médico diz que não há esperanças explicou.
- Está bem. A senhora chegará a Milão o mais depressa possível - replicou.
Virou-se para Giovanna e contou-lhe. - A tua querida velhinha está muito mal. Sinto muito. Eu vou contigo. Partimos imediatamente.
Foi com ela à via Fiori Chiari e deixou-a em frente à porta de Matilde. - Espero-te na mansarda. Se precisares de ajuda, telefona-me.
O médico estava ao lado de Matilde. Apesar da sonda, a pobre mulher respirava com dificuldade. Tinha uma mão pousada na cabeça do seu Lilln, que estava enroscado em cima da cama.
- Como é que ela está? - perguntou Giovanna. O médico abanou a cabeça num gesto eloquente.
Matilde não falava. Tinha os olhos semicerrados. Parecia olhar para longe, em direcção a um horizonte misterioso. Aquilo que acontecia à volta dela já não lhe dizia respeito.
- Foi uma crise repentina - sussurrou o médico. - O coração já não consegue fazer o seu trabalho.
- Está a sofrer? - quis saber Giovanna.
- Não. Está em coma.
Giovanna pousou-lhe a mão leve na testa.
Matilde estava a sonhar com uma escada branca, compridíssima, que se perdia no azul. Era outra vez jovem. Trazia a blusa de organza cor-de-rosa e as calças compridas brancas, como no dia em que ela e Alberto Brasca se tinham amado pela primeira vez. Subia lentamente as escadas, precedida pelo seu Lilin, muito vivo e aos saltos, mas as escadas nunca mais acabavam. De repente, mesmo lá no cimo, viu Alberto. Vestia um fato azul, uma camisa imaculada
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e uma gravata às riscas. Era o homem mais bonito e desejável do mundo. Ele sorria-lhe e olhava para ela com um amor infinito.
- Pára onde estás - disse-lhe.
- Por que é que tenho de parar?
- Porque eu quero admirar-te em todo o teu esplendor.
- Faz-me voar até ti, depressa. Há muito tempo que desejo isto.
Alberto abriu os braços para a receber e ela abandonou-se neles, feliz.
Giovanna sentiu um ligeiro suspiro.
- O que foi? - perguntou, ansiosa.
- Morreu - decretou o médico.
Giovanna conteve um soluço e inclinou-se para lhe depositar um beijo na testa. Depois abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e encontrou a carta dirigida a ela. Leu-a. Continha as últimas vontades de Matilde Riva. Deixava todos os seus bens ao asilo Angiolina. A ela deixava o óleo sobre tela de Eric Junot e pedia um futuro tranquilo para Lilin.
Já era dia quando foi ter com Alessandro à mansarda da piazza Cordusio. Estava tão cansada que se deixou cair nos seus braços. Ele levantou-a, levou-a para o quarto, meteu-a na cama e deixou-a dormir durante todo o dia.
Na manhã seguinte foi de carro com ele acompanhar Matilde até à pequena igreja da villa junto ao lago.
Quando passaram o portão do jardim, já não havia ervas altas. Alessandro tinha posto a funcionar um exército de operários e jardineiros, que tinham arranjado todos os caminhos de saibro. O carro funerário parou em frente à villa para que Matilde pudesse, pela última vez, saudar os espaços onde vivera o seu amor.
Quatro homens carregaram aos ombros o caixão. No calor do meio-dia de Julho, iniciaram o percurso em direcção à antiga igrejinha no planalto inundado de sol e acariciado pelo vento. Alessandro e Giovanna iam atrás deles, de mãos dadas.
Ela pensava num domingo como aquele, há sessenta anos, quando Matilde e o amante tinham percorrido o mesmo caminho.
A igrejinha tinha sido restaurada e, junto ao muro, por baixo do relógio de sol, tinha sido escavado um fosso ao lado de uma
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sepultura onde uma simples lápide dizia: AQUI REPOUSA ALBERTO BRASCA.
O caixão foi descido para a terra escura. Giovanna estremeceu. Alessandro tirou o casaco e pousou-lho nos ombros.
- Deus foi bom com ela. Queria repousar para sempre ao lado do homem que amou. Esse sonho realizou-se - disse Giovanna, baixinho.
Ficaram sós, no planalto cheio de sol. Sentaram-se junto ao portão da igreja. Giovanna deixou correr o olhar pela erva salpicada de flores. Encostou-se a Alessandro e sussurrou: - Por uma vida que parte, há outra que nasce.
- Estás a dizer-me que... - Alessandro não ousou acabar a frase.
- Achas que quarenta anos é uma idade demasiado avançada para ter um filho? - perguntou em voz baixa.
Ele inclinou-se sobre ela e beijou-a apaixonadamente.
- Ainda não tens quarenta, acho eu. Mas o que é certo é que não me vou contentar só com um - afirmou, seguro.
Giovanna sorriu, radiante de felicidade.
Sveva Casati Modignani
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