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LIÇÕES DO DESEJO
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CAPÍTULO 18

Londres ficava tão vazia em setembro quanto Nápoles em julho. Não era um mês em que a sociedade culta lotasse as lojas da Oxford Street ou enchesse os parques no horário mais concorrido.

Contudo a casa de Easterbrook não estava fechada. Elliot a encontrou com a criadagem completa ao chegar de Southampton. Os criados explicaram que sua tia Henrietta e sua prima Caroline tinham se retirado para a casa de campo de Easterbrook em Aylesbury, mas que o marquês ficara na cidade.

Elliot imaginou que o irmão estivesse aproveitando seu isolamento depois de se ver livre das mulheres da casa. Podia levar dias até que pudesse encontrar Christian.

Ele se reacostumou com a casa e com os serviços de um criado pessoal que previa cada necessidade. Tinha ficado fora tempo bastante para que sua antiga vida agora parecesse irreal e estranha. Tentou encontrar contentamento nos espaços e rotinas conhecidos desde a infância.

Porém seus pensamentos não deixavam Phaedra. O início da viagem fora alegre, mas, no final, o clima beirava o desespero. Na última semana, seu desejo fora violento e imerso em fúria. Ele nunca se saciava e, por conta disso, jogara a discrição para o alto.

Apesar de seu prazer febril, nada ficara resolvido. Depois daquela tarde em Nápoles, nunca mais falaram das memórias de Richard Drury. Nem ele recebera promessas dela sobre a paixão em si. Nenhuma declaração de fidelidade. Nenhum acordo de continuarem amantes. Nem mesmo sugestões de que fossem amigos.

Ele a deixara sozinha com sua independência na casa pequena e singular perto de Aldgate. Elliot se despedira na carruagem, sem nem ao menos saber se ela queria que ele voltasse.

Serviu um pouco de brandy e levou o cálice para seu quarto. Desembrulhou seus papéis e se sentou em sua escrivaninha na sala de estar.

Tinha começado a fechar a mente aos caprichos da vida quando uma criada chegou, abrindo-a de novo.

– O marquês pede que o acompanhe no jantar esta noite, senhor.

Ele ficou tentado a recusar o convite. A conversa que seu irmão queria ter não podia ser evitada para sempre, mas Elliot contara com as distrações de Christian, quaisquer que fossem, para adiá-la.

– Diga-lhe que estarei lá.


– Você disse que desceria para o jantar.

A voz assustou Elliot. Estava muito próxima de seu ouvido. Assim como o rosto. Christian estava inclinado, espiando os papéis sobre a mesa.

Elliot pescou o relógio no bolso.

– Não se dê o trabalho. Já passa das dez.

O marquês esticou o braço por cima do ombro do irmão e virou uma página.

– Assim não vai dar, Elliot. Já é ruim que Hayden fique estranho às vezes, mas pelo menos a esposa provavelmente irá curá-lo. Agora é você com mais excentricidades... – Ele olhou para baixo com firmeza. – Do que está rindo?

– Achei engraçado você descrever Hayden como excêntrico ou estranho.

– Não acha estranho o comportamento dele com aqueles estudos matemáticos? Na primavera passada, ele mergulhou em uma existência insalubre e hermética e não foi a primeira vez.

– Ele não é mais estranho do que você, e imagino que eu também não seja.

– Se não ficou estranho, então ficou mal-educado. Fiquei à sua espera na sala de jantar. Até me arrumei.

De fato, ele estava arrumado – se o colarinho aberto e o cabelo comprido escovado pudessem ser considerados assim. Pelo menos não estava descalço e usando robe.

Christian se afastou e se jogou em uma cadeira de leitura acolchoada. Apontou para uma mesa próxima:

– Trouxe uma bandeja e um pouco de vinho. Temi que a viagem tivesse sido muito dura e que você precisasse de comida decente. Mas, em vez de cansado demais para me ver, encontro-o ocupado.

Elliot se levantou e carregou a bandeja e o copo para a mesa.

– Está com aparência boa e saudável, Christian. Não tão magro como quando parti.

Christian esticou as pernas e cruzou as botas.

– Comecei a fazer exercícios físicos. Boxe, remo e tal. Estou praticando esgrima três vezes por semana. É uma chatice, mas não tenho escolha.

Elliot provou um pouco do frango. A cozinheira de Easterbrook era fabulosa e a ave fora coberta com um molho espesso. O cheiro da refeição era celestial quando comparado ao da comida no mar.

– O que o estimula agora e não estimulava há alguns meses?

Christian se levantou de novo e espiou nas estantes. Encontrou charutos e se serviu de um.

– Estou planejando lutar um duelo em breve. É melhor estar em forma para isso.

Christian era puro contentamento ao acender o charuto. Parecia que havia acabado de anunciar que estava treinando boxe e esgrima para se preparar para uma noite no teatro.

– A quem você ofendeu tanto a ponto de desafiá-lo?

– Espero eu mesmo fazer o desafio, não responder ao desafio do outro – disse, balançando o charuto de forma descuidada. – Nossa jovem prima Caroline está sendo assediada por Suttonly, com quem Hayden rompeu por motivos que desconheço. Preciso dizer mais?

– Sim.

– Sua apresentação à sociedade lhe subiu à cabeça. Tia Henrietta só a encorajou. Elas permitiram que Suttonly continuasse a lhe fazer galanteios depois que Hayden tentou cortar o romance inicial pela raiz. Hayden informou a tia Henrietta que, se Caroline se casar com Suttonly, a porta da casa estará fechada e sua acolhida nesta família, terminada. – Ele respirou fundo. – Ousado esse nosso irmão, já que a casa é minha, assim como a acolhida. Contudo ele dominou nossa tia de tal forma que não me dei o trabalho de esclarecer esses pontos.

– Christian, desconfio que você não tenha conversado com nenhum ser humano desde que a família foi para Aylesbury. Sua longa explicação sugere que esteja fascinado pela própria voz.

– Estou contando as novidades da família. Você está impaciente demais.

– Pode voltar para o duelo?

– Hayden advertiu Suttonly de que não permitiria o relacionamento. Caroline chorou durante dias. Tia Henrietta e Alexia a levaram para o campo para se recuperar. É óbvio o que vai acontecer.

A única coisa óbvia para Elliot era que Christian não falara tanto assim nos últimos oito meses juntos.

– Diga o que vai acontecer, por favor.

– D: O Visconde Suttonly não parará de assediar Caroline. Agora é uma questão de orgulho para ele. U: Ele vai convencê-la a fugir para casar. E: Hayden vai segui-los e pegá-los antes de se casarem, mas o ato já terá se consumado. L: Hayden não voltará atrás na rejeição a Suttonly. Tia Henrietta ficará histérica e Caroline estará arruinada. O: Terei que desafiar Suttonly para um duelo.

– Por que não é Hayden quem deve desafiá-lo? Hayden é o administrador e o tutor de Caroline.

– Não posso permitir isso. Se ele morrer, Alexia ficará viúva, com um bebê.

– Alexia está grávida?

– Esta é outra novidade.

Ele relaxou na cadeira de novo e bateu a cinza do charuto no cinzeiro. De repente, deixou de ser o irmão simpático para se tornar Easterbrook, por completo.

– Agora que acabamos com isso, conte-me de sua viagem.

Elliot comeu mais uma garfada do frango. Mastigou devagar, deliciando-se, e bebeu um gole de vinho. Os cílios de Christian baixavam um pouco mais a cada adiamento gastronômico.

– Encontrei a Srta. Blair no endereço que Alexia me deu.

– Ela estava com as memórias?

– Não, mas elas estão em sua posse. Estávamos certos sobre isso.

– Quanto isso vai me custar?

– Infelizmente, ela não vai aceitar seu pagamento.

A jovialidade amigável que Christian trouxera ao quarto desapareceu.

– Quanto você ofereceu?

– Não fui específico. Ela se sentiu insultada com a mera sugestão.

– Todo mundo fica insultado com a mera sugestão. É por isso que não se faz uma mera sugestão. É preciso definir um valor. Um valor alto. Aí a pessoa não tem tempo de se sentir insultada, porque fica ocupada demais calculando o que poderá comprar.

– Nenhum valor a convenceria. Ela prometeu ao pai em seu leito de morte que publicaria suas memórias. E não seria demovida desse dever agora.

Christian rejeitou o dever de Phaedra com outra batida de cinzas.

– Então você tem que fazer de outro jeito. Onde está o manuscrito?

– Ela não o tinha com ela, então suponho que esteja em algum lugar aqui, em Londres.

– Não deve ser tão difícil de achar. Ela tem poucos bens. Deve estar na casa dela ou com um terceiro, um amigo ou o advogado dela.

Ele pensou no problema por um instante.

– Quando ela pretende voltar para casa? Quanto tempo nós temos?

Elliot pensou em mentir.

– Ela já chegou. Veio no mesmo navio que eu.

A atenção de Christian ficou congelada na brasa de seu charuto. Depois ele se voltou para Elliot. Era o olhar de uma águia que vê os detalhes no solo lá embaixo com muita nitidez.

Ele se levantou.

– Você fez o que pôde, tenho certeza. Mas me encarregarei daqui por diante.

Elliot se levantou também.

– Não, você não fará isso. Ficará longe dela. Você não fará nada para coagi-la.

Christian o examinou de novo. Procurando. Imaginando. Por fim, descobrindo.

– Droga, ela o seduziu.

– Não.

E isso era verdade.

– Não foi como você pensa.

– Mas aconteceu. Como quer que tenha sido, ela o desarmou. Enquanto gozava dos favores dessa linda donzela, pelo menos pediu o favor que mais queria? Uma mulher satisfeita pode ser muito compassiva aos desejos de seu amante.

– Não fale dela assim, maldição!

– Como devo falar, então? Como sua amada? Sua amante?

Ele fez um gesto brusco para a escrivaninha.

– Aposto que ela não lhe deu motivo para pensar nela como coisa alguma sua. Por isso você se isola nesse mundo só seu. As verdades que desencava por lá são mais seguras do que as que tem que enfrentar aqui.

Eles não estavam gritando, mas as vozes cortavam o ar e os despedaçavam.

– Se algum de nós sabe por que isso aconteceu, esse alguém é você, Christian. Droga, você passa a vida toda nesse lugar.

– Bem, não estou lá agora, nem estarei até ver tudo isso resolvido.

Ele não pretendera falar em tom de ameaça, mas a frase poderia ser interpretada assim. Não ajudava muito que a cada frase raivosa o atual marquês de Easterbrook se assemelhasse cada vez mais com o anterior.

– Ela não ficou indiferente a nossas preocupações sobre o nome da família – disse Elliot, tentando deixar seu tom mais ameno, para fazer com que o irmão voltasse à razão. – Estava pronta para entrar em acordo por nós.

– Por você, é o que quer dizer.

Na verdade, tinha sido por Alexia. Elliot explicou o que as memórias diziam e que o nome do pai deles não era citado diretamente. Descreveu o encontro insatisfatório com Merriweather.

Christian ouviu, sombriamente interessado.

– Merriweather é um tolo.

– A honra não permitiria que ele mentisse. Seria ignóbil da sua parte pensar mal dele.

– Agora você é o protetor de Merriweather e da Srta. Blair? Não, espere, você não assumiu esse papel na vida dela, assumiu? A crença dela no amor livre significa que está acima tanto dos direitos quanto das expectativas que daria a um homem.

Elliot esperava por uma reação mais forte em relação às suspeitas de Merriweather e às implicações que pairavam sobre seu pai. Negação. Fúria. Ao contrário, seu irmão permaneceu impassível e estranhamente calmo.

– Maldição! Você sabe a verdade – disse Elliot. – Você sabe se ele fez isso mesmo.

– Não sei de nada.

– Então sabe como descobrir.

– Não quero descobrir. Nem precisarei defendê-lo se a Srta. Blair retirar a passagem do texto. Se ela não o fizer e Merriweather continuar resoluto, teremos que lidar com mais do que a fofoca da sociedade.

– Se não for verdade, não haverá nada a temer e tudo a ganhar caso isso venha à tona. Acho que devemos fazer isto: descobrir se é verdade ou não, para termos certeza.

– Repito: não quero descobrir nada.

– Christian, pode não ser verdade.

Christian caminhou para a porta.

– Que filho esperançoso você é. Mas só porque não o conheceu tão bem. Quanto à Srta. Blair, considerarei manter-me afastado por respeito a seus sentimentos. Contudo há outras pessoas com nítido interesse nessas memórias. É improvável que ela consiga enfeitiçar todos os homens de todas essas famílias.


CAPÍTULO 19

Phaedra desceu do cabriolé de aluguel carregando um grosso embrulho nos braços. Ela acenou para se despedir das mulheres com quem viera. Aprendera há muito tempo que, com um pouco de ousadia, podia encontrar estranhos com quem dividir a corrida. Conseguira voltar rápido de sua visita ao centro financeiro da cidade graças a isso.

Ela esperara bastante até buscar o manuscrito. Precisava descansar da viagem, é claro. Depois quisera se reacostumar à antiga rotina e procurar alguns velhos amigos.

Também esperava que alguns velhos amigos a procurassem. Alexia, em particular. Imaginava que a ausência de uma carta ou um cartão de Alexia significasse que ela estava no campo, não que agora repudiasse sua amizade devido às memórias que editaria.

Porém, não poderia culpar Alexia se o motivo fosse mesmo o último. Nem um pouco.

A honestidade era uma virtude que ela se esforçava por praticar, principalmente consigo mesma. Assim, naquela manhã, Phaedra encarara a verdade enquanto se vestia: tinha um dever que não queria cumprir, mas já era hora de levá-lo adiante. As cartas que a esperavam em casa deixaram isso muito claro. A que chegara pela manhã tinha sido a gota de água.

Outras pessoas, além de Elliot, queriam ver as memórias destruídas e estavam dispostas a pagar caro por isso. A carta anônima da véspera fora além de ofertas de suborno. Era uma ameaça velada, porém clara o bastante para deixá-la arrepiada.

Se não tivesse feito uma promessa ao pai, ela lhes daria o que queriam. Queimaria as folhas e deixaria a editora ir à falência. Não se importava muito se ficasse sem um tostão por isso.

Virou uma esquina para entrar em sua rua e caminhou em direção à porta. Parou e deu alguns centavos a Bess, a mendiga.

– Os gatos já sabem que você está aqui – disse Bess, indicando com a cabeça o prédio atrás dela.

Phaedra não ouvia os miados como Bess, mas viu os gatos, um preto e outro branco, na janela embaçada da casa ao lado da sua. Uma senhora idosa acariciava um e uma menininha, o outro. Suas vizinhas haviam se encarregado de tomar conta dos gatos enquanto ela estivesse fora. Era para ser temporário, contudo o apego da pequena Sally aos bichos tornou o arranjo permanente.

– Uma carruagem passou por aqui mais cedo – contou Bess. – Pelo barulho, era bem grande. Não parou, só passou bem devagar. Ninguém tinha passado por sua porta antes dela.

Fazia cinco anos que Bess mendigava ali. Apesar de cega, a senhora percebera que os visitantes de Phaedra tinham mais dinheiro do que a maioria das pessoas que vinha àquela rua, portanto podia ser lucrativo ficar próximo à porta da Srta. Blair.

Um desses visitantes a esperava agora, encostado na porta. Uma pasta grande estava apoiada em sua perna e ele segurava um caderninho no qual desenhava. Era Harry Lawrence, um jovem artista com quem tinha feito amizade no último inverno. Ela esquecera completamente sua carta da véspera que lhe avisara da visita naquele dia. A outra carta a fizera esquecer.

– Peço desculpas – disse, após saudá-lo. – Minha visita ao centro financeiro demorou mais tempo do que imaginava.

– Não tem problema. Fiz um esboço da mendiga e também da meretriz na janela, do outro lado da rua. Um artista nunca se entedia.

Ela o acomodou na sala de visitas. Deixou o manuscrito esperando por ela em uma mesa ao lado do divã enquanto fazia as honras da casa. Phaedra e Harry passaram a hora seguinte analisando os desenhos dele. Ela preferia os rabiscos expressivos feitos no caderno de esboços aos desenhos cuidadosos que ele preparara para um quadro grande que pretendia inscrever na Royal Academy para uma exposição.

A chegada de outro visitante interrompeu sua explicação dos motivos de sua preferência. Ela abriu a porta e deu de cara com Elliot.

Seu coração pulou ao vê-lo. A alegria a paralisou. Ela só conseguia ficar parada e olhar para ele, espantada com a forma como ele a atraía. Por um longo momento, tudo o que fizeram foi olhar um para o outro.

Elliot lhe entregou seu cartão de visita.

– Espero que a Srta. Blair esteja em casa hoje.

Ela pegou o cartão e o examinou com atenção.

– Bem, talvez esteja, só para você.

Phaedra abriu a porta e fez um carinho no queixo de Elliot quando ele deu um passo para entrar. Ele fechou a porta, a abraçou e lhe deu um beijo nada casto.

– Você não me escreveu – disse ele. – Não dava mais para esperar.

Ela não escrevera porque não sabia o que dizer. Só sabia que não queria que o caso deles acabasse em tristeza e temia que era isso o que aconteceria se o levassem adiante na Inglaterra.

A alegria que sentiu em seu beijo e seu calor, no mero fato de ele existir perto dela, a advertiu de quanto o fim poderia ser triste. Contudo nem isso poderia diminuir sua felicidade. Fazia só quatro dias que não se viam, e ela sentira muita saudade. Só agora percebia quanta.

Ela o levou até a sala de estar, feliz em poder olhar para o seu rosto. Ele parou na soleira da porta. Seu sorriso se transformou em um traço menos amigável.

Phaedra seguiu seu olhar até onde Harry ainda rabiscava no caderno de esboços.

– Parece que a Srta. Blair não está em casa só para mim – sussurrou ele. – Um de seus amigos, Phaedra?

Ela estava tão feliz que até se sentiu lisonjeada pelo ciúme dele, apesar de isso anunciar tudo o que poderia dar errado entre eles ali, em Londres. Phaedra apresentou os dois homens. Harry, pobre inocente como só ele sabia ser às vezes, não se conteve de tão feliz por encontrar um membro da nobreza no humilde lar de Phaedra.

Elliot foi educado. Sentou-se e fingiu interesse nos desenhos. Phaedra percebeu sua impaciência com uma visita que não estava correndo do jeito que pretendia.

– Acho que vou deixar os dois brindarem minha volta segura ao lar – anunciou. – Voltarei em breve com os cálices de bebida.

Ela saiu e Harry prosseguiu sua explicação das intenções artísticas por trás de uma grande imagem de um general a cavalo. Ela foi à cozinha, serviu dois bons cálices de brandy e voltou para a sala de estar.

Harry tinha ido embora, junto com todos os esboços e desenhos. Elliot estava de frente para a parede, estudando um quadro de Piranesi que retratava uma prisão macabra. Ele se aproximou para pegar os cálices. Colocou um na mesa ao lado do divã e deu um gole no outro.

– O Sr. Lawrence teve que ir embora – disse ele.

– Abruptamente, parece.

– Já vi um homem se mover mais rápido, não me lembro onde.

– O que você disse para que ele saísse às pressas, Elliot?

– Admirei seu prodigioso talento e aludi à possibilidade de comprar sua nova pintura para a coleção de arte de Easterbrook. Ah, sim, também lhe disse para escolher entre ir embora ou morrer.

Ela engoliu uma risada ao imaginar a reação de Harry.

– Isso foi muito reprovável.

– Não estou nem um pouco arrependido.

Ele olhou em volta na sala de estar. Seu olhar se deteve no forro gasto do divã. Os xales postos sobre ele não davam conta de esconder por completo o tecido desgastado.

– Aqui era a casa de sua mãe?

– Ela alugava um apartamento na Piccadilly. Comprei esta casa quando vim morar sozinha.

– Aos 16 anos. A péssima escolha de bairro pode ser explicada por sua inexperiência, entretanto mora aqui até hoje.

– É a minha casa. Fiz amizade com os vizinhos. Sou feliz aqui.

– Tem uma mendiga na sua porta e uma mulher exibindo os peitos na janela do outro lado da rua.

– Elas são inofensivas. E qualquer uma das duas daria a vida para me salvar.

– Não fico tranquilo com sua menção a precisar ser salva, considerando a condição dos prédios desta rua. Permita-me procurar um lugar melhor para você.

Ela se sentou no divã. Elliot não mostrava mais o rosto amigável da chegada. A dureza dos Rothwells o tomara. Ela sabia o motivo, porém queria poder ter adiado a conversa por pelo menos mais uma hora.

– Você veio até aqui se oferecer para me manter, Elliot?

Ele se sentou ao lado dela.

– Vim porque não consegui ficar longe.

– Então a oferta de uma casa melhor foi um impulso?

– Não percebi como esta rua era pobre ao deixá-la aqui no outro dia. Meus pensamentos estavam apenas na despedida e em quanto ela me desagradava. Também não esperava que você recebesse outro homem tão pouco tempo depois de...

Seu maxilar se retesou. Ele bebeu mais brandy.

– Elliot, homens visitam mulheres por toda a Londres. Nas melhores famílias. Mesmo nas de mulheres que são sustentadas por outros homens. Tenho certeza de que você já fez isso. A visita de um homem não significa que haja uma relação amorosa.

– Vai me dizer que esse artista não era um amante que esperava por sua volta?

Ele tentou evitar falar como se tomasse satisfações. Também tentou esconder seu alívio diante da possibilidade de haver uma explicação. Phaedra achou as duas reações muito doces.

– Estou dizendo que ele não é meu amante e que não espero que seja em momento algum do futuro próximo. Como você não é casado, nenhuma outra mulher jamais lhe deu tantas certezas. Não imagino por que precisaria receber mais de mim.

Sua expressão sugeria que ele não estava feliz com o fato de ela não ter lhe dado uma garantia que fosse definitiva.

– Mesmo assim, gostaria que você fosse morar em outro lugar.

– Não sou uma cortesã, Elliot.

– Não estou falando de sustentá-la. Estou pensando em sua segurança.

– Primeiro, minha segurança; depois, meu conforto; depois, minha proteção. Chame como quiser no começo, vai sempre acabar da mesma maneira.

Ela pousou a mão em seu rosto. A sensação da pele dele sob sua palma a deixou tonta.

– Não me faça lamentar a pequena ajuda que me deu enquanto estávamos fora. Você devia saber que eu não permitiria que isso continuasse aqui. Se você alugar uma casa para mim, me tornarei uma meretriz, não importa a filosofia que eu pregue.

– Pelo menos eu não a encontrarei sozinha com outro homem, Phaedra. Eu quase esmurrei seu artista hoje.

Ele pegou a mão que acariciava seu rosto e lhe beijou a palma.

– Não deixei de gostar de você porque voltamos para Londres. Parece que meu desejo não foi causado pelo sol do sul, no final das contas. Entretanto lamento muito ter perdido os poucos direitos que as circunstâncias me deram lá.

Ela entendeu o que ele queria dizer. Seus beijos logo reacenderam a excitação, porém era mais do que apenas prazer o que sobrevivera à volta deles. Tinha ficado muito nostálgica nos últimos dias, com lembranças e sentimentos a invadir sua mente e seu coração.

– Não permitirei que você seja meu protetor. Não serei sua amante. Não poderemos viver juntos como antes. Contudo podemos ser amigos, Elliot. Podemos tocar nossas vidas como sempre e ainda assim compartilhar momentos juntos.

Os lábios dele pressionaram a palma da mão dela de novo. Ele fechou os olhos.

– Se fizermos isso, não haverá outro homem. Não sou aberto a esse ponto.

– Se eu quiser outro homem, lhe direi. Tenho certeza de que fará a mesma gentileza. Terminaremos essa parte de nossa amizade com dignidade se o sol se puser nela.

Elliot a beijou. Ela percebeu que ele refletia, como se pesasse de que abriria mão e o que receberia em troca com esse acordo. Ele a encarou, sério.

Um medo terrível tomou o coração dela. Elliot poderia recusar a proposta. Era o que estava considerando naquele exato momento. Ela sabia disso.

O sofrimento partiu seu coração. Era mais doloroso do que estar de luto. Era uma ferida aberta, uma fonte de dor profunda. Dor e sofrimento, pânico e medo.

Ela o beijou com força. Desesperadamente. Usou o próprio desejo para atiçar o dele, de forma que lembrasse por que a desejava.

Elliot reagiu com fúria: agarrou-a pelos braços e segurou sua cabeça para castigá-la com um beijo. Isso a fez recordar os abraços apaixonados no navio, cheios de pedidos implícitos. Sentiu raiva dentro do prazer, mas não se importou. Seu coração conhecia esse alívio, essa incrível alegria.

– Onde fica o quarto? – perguntou ele, com voz rouca.

– Venha comigo.

Phaedra o pegou pela mão e o conduziu pelas escadas até seu quarto.

Ele nem percebeu os móveis simples no andar de cima. Ela não lhe deu chance. Soltou as presilhas do vestido e o deixou cair no chão.

Ele foi na direção dela. Phaedra o deteve pondo as mãos em seu peito.

– Deite-se na cama – ordenou ela.

Elliot se mostrou surpreso ao receber uma ordem, tão parecida com a dele em Portici. Ela lhe deu um leve empurrão. Com uma risada, ele se deixou cair.

– Devo me preocupar com minha virtude? – perguntou ele.

– Com toda a certeza.

Ela passou uma perna de cada lado do corpo de Elliot. Os dedos dele começaram a brincar com o debrum da camisa de Phaedra. Ela lhe deu um tapinha.

– Hoje sou eu quem vai arrebatar você.

– Então tire a roupa com as próprias mãos, Phaedra. Deixe sua beleza me arrebatar.

Ela tirou a roupa e se sentou, encarando-o. O sorriso dele a enfeitiçou. Os olhos dela pareciam muito profundos.

– Você é uma deusa, Phaedra. Foi o que pensei na torre, quando subi as escadas e a vi. Nunca tinha visto uma mulher tão confiante e bela na minha vida. Tenho certeza de que nunca mais verei.

Ela tentou sorrir, mas sua boca tremeu. As palavras dele a emocionaram. Inclinou-se para beijá-lo, depois começou a despi-lo.

– Enquanto minha beleza o arrebata, vou arrebatar seu corpo.

Ele continuou tentando acariciá-la enquanto ela abria os botões da roupa dele. Tudo se tornou um jogo em que ela se esquivava de suas mãos travessas para tentar concluir a tarefa. Por fim, entre gargalhadas e gestos desajeitados, além da dificuldade para tirar as botas dele, ele ficou nu sob o corpo dela.

Phaedra se sentou novamente nas coxas dele. Seu júbilo desapareceu, dando lugar a uma doce paz em que seus desejos e espíritos se uniam. Elliot esticou a mão para pegar nas pontas dos cabelos de Phaedra. Enrolou a mecha entre os dedos, observando. Depois seu olhar voltou para o rosto dela.

O ar ainda brilhava da felicidade deles, mas o conhecimento e a intimidade que compartilhavam estavam nos olhos dele.

– Você sabe mesmo como arrebatar o corpo de um homem, Phaedra? Apesar de toda a sua ousadia, acho que não.

Ela sentiu seu rosto queimar.

– Sei, sim. Mas teoria e prática são coisas diferentes. Espero conseguir.

Havia motivos para ela nunca ter arrebatado o corpo de um homem antes. Suas amizades anteriores não eram assim.

Com suavidade, ele puxou a ponta do cabelo dela. A cabeça dela aceitou o convite. Ela o beijou. Sentiu o impulso dele de assumir o controle, ou pelo menos de dividi-lo com ela. Em vez disso, porém, ele aceitou ser conduzido por sua boca e sua língua.

Ela beijou mais abaixo, no pescoço e no peito dele. Isso gerou uma torrente de reações nela, respostas novas que a fascinaram, ainda que estivesse no meio de um jorro de excitação. Phaedra fora uma amante ativa antes, mas isso era diferente. Começava a entender como o próprio prazer dava prazer ao companheiro.

Ela o acariciava todo ao mesmo tempo que o beijava e lambia. Saboreou o gosto daquele corpo e os sinais de seu efeito nele. Sentir o próprio poder a enlouqueceu. Pareceu a coisa mais natural do mundo beijá-lo todo, o quadril, as coxas e o abdome, até a ereção que sua mão circundava.

Ele tocou a cabeça dela de leve. Era um gesto de estímulo e um pedido. Ela usou a boca para arrebatá-lo da melhor forma como imaginava que seria.

Elliot não conseguiu não se entregar. Abriu mão do controle do próprio corpo de uma forma que nunca fizera antes. Phaedra pôde ver sua rendição quando montou nele de novo e o fez penetrar nela.

Não era a primeira vez que ficava por cima dele, só que agora era diferente. Ela o deixou acariciá-la, mas era a união de seus corpos que tomava sua mente. Sua consciência estava no membro ereto dentro dela, nas demandas do próprio corpo e no movimento de seu quadril ao tomá-lo por completo.

Até seu gozo foi diferente, mais forte e completo. E insistiu que Elliot fosse junto com ela. Não perdeu a consciência de si mesma nem por um instante. Vivenciou cada prazer em estado máximo de alerta.

Phaedra desabou sobre Elliot como ele faria sobre ela. Os braços dele a envolveram, apertando-a. Suas respirações se fundiram na exaustão. Ela virou a cabeça e deitou no ombro dele, de forma que seus rostos ficassem próximos.

Os olhos dele estavam fechados, mas ele sentiu a atenção dela. Um leve sorriso se formou.

– Você não é de meias medidas, Phaedra.

Ela se perguntou se ele estava chocado por a experiência ter ido tão longe.

– Você quer meias medidas?

– Lógico que não.

Ele olhou para ela.

– Sou egoísta o bastante para ficar feliz por você conhecer a teoria, contudo também me alegra que ainda não tivesse a prática.

Não havia como ela ter tido antes essa experiência, nem muitas outras que se permitira com ele. Ser amigo e ser amante eram coisas diferentes.

– Dizem que isso não é algo que as mulheres decentes e normais façam – comentou Phaedra.

– Desconfio que muitas pessoas decentes e normais mintam a esse respeito.

– Você já fez isso com uma mulher decente e normal?

– Você quer dizer antes de hoje?

Ele a surpreendeu. Ela podia se qualificar como decente, mas normal...

Elliot riu e bateu a ponta do dedo no nariz dela.

– Você estava tão encantada com seu poder que hesitei em lhe dizer isso, mas...

Ela ficou esperando.

– Eu também conhecia a teoria, porém não a prática.


Se o sol se puser. Ele deslizou os dedos pelo peito de Phaedra, descendo pelo vale aveludado entre seus seios. Se. Ficou maravilhado com o modo como essa palavra o afetara. Não quando, mas se. Sua alegria fora completa, pueril, ridícula. Minha.

Elliot se perguntou o que aconteceria se esse pôr do sol nunca acontecesse. Espantou-o o fato de ficar satisfeito com isso, em vez de preocupado. Talvez a filosofia de Phaedra estivesse correta e a própria falta de vínculos legais ajudasse o desejo deles a sobreviver.

Só que ela mesma não acreditava nisso, pelo menos não com ele. Em um instante ela falava de eternidade e, no seguinte, de fim. Phaedra podia ter dito se, mas na realidade não esperava que qualquer parte da amizade deles sobrevivesse à publicação do manuscrito, muito menos essa.

E sobreviveria? Poderia? Ele não sabia. Não devia encarar o dever dela como uma traição. Ele nem queria que ela fizesse concessões por sua causa. Essa paixão tinha uma limpidez que ele não queria obscurecer com negociações ordinárias.

Ainda assim, ele devia à própria família a mesma lealdade que ela devia à dela. Devia ao pai até mais do que queria admitir.

Christian não queria saber. Talvez ele tivesse se esforçado muito para permanecer na ignorância. Porém saber a verdade poderia ser a única maneira de resolver aquele dilema.

– Tenho que lhe pedir uma coisa – disse ele.

– Não há muito o que eu possa lhe negar, Elliot. Se você tem que pedir, provavelmente eu terei que dar.

Isso não era verdade. Havia muito o que ela resguardara sem lhe dar, razão pela qual ele pedia agora um pequeno favor, quando muito. Era por isso que ele atravessava a cidade até essa rua pobre para receber o que ela dava. Talvez, com o tempo, ele se adaptasse à total falta de direitos, ao que ela não dava, mas duvidava um dia se ver livre de querer mais.

– Em Nápoles, Merriweather não pôde negar que o jantar que seu pai descreveu tenha acontecido. Nem que teria havido a conversa. Contudo ele não tem certeza se suas suspeitas tinham fundamento. Se eu encontrar provas de que ele estava errado, ou que a morte na colônia do Cabo não teve a ver com minha família, você pode suprimir essa passagem?

Ela pareceu achar a sugestão interessante.

– Considerando que eu mesma supus que tivesse, como de fato acredito que meu pai também o fez... Meu pai me encarregou de cuidar para que suas palavras verdadeiras fossem publicadas. Se eu soubesse que elas não são verdadeiras ou que podem lançar suposições inverídicas sobre alguém... sim, Elliot, eu poderia suprimir essa passagem.

Ela sorriu com pesar.

– Talvez eu devesse publicar um anúncio no Times oferecendo isso a outras pessoas. Você não é o único a querer que eu altere trechos das memórias de Richard Drury. Minha caixa de correspondência está cheia de ameaças e pedidos. Está evidente que meu antigo sócio tentou o mesmo esquema com outras pessoas e que todos ficaram sabendo quem agora está de posse do texto e da editora.

– Se você fosse menos honrada, logo teria os meios para comprar uma casa melhor. Só Easterbrook já poderia lhe garantir uma boa fortuna.

Elliot não pretendeu com isso retomar as negociações, mas se ela expressasse o mais leve interesse no tamanho dessa fortuna... Ele poderia argumentar que ela devia ser prática. Não se importaria de resolver o problema assim, se ela quisesse.

– Uma fortuna agora? Só de Easterbrook! Meu Deus, não fazia ideia de que chantagem era algo tão lucrativo.

Ela fingiu estar refletindo e pesando.

– De quanto seria tal fortuna?

– Cinco mil.

O valor fora passado a ele naquela manhã. Chegara com a bandeja do café, em um pedaço de papel escrito com a caligrafia elegante de seu irmão. Nenhuma palavra, nenhum sinal da moeda a que se referia, só o número cinco e os respectivos zeros.

Ele entendera o bilhete como sendo a ordem que era e também como um lembrete de que Christian não tinha aceitado que Phaedra fosse livre para decidir sozinha.

– É uma quantia absurda. Temo que Easterbrook tenha ficado louco. Felizmente, vou poupá-lo desse prejuízo, porque não aceitarei.

Pois bem. Christian estava errado. Por maior que fosse o valor do suborno, não seria suficiente para fazer qualquer pessoa vacilar. Phaedra não se sentiu insultada, nem ficou calculando o que poderia comprar com o dinheiro.

– Se eu recebesse essa fortuna, teria que viver de acordo – ponderou ela. – Pense nos resultados. Um guarda-roupa novo, é claro. Todos aqueles espartilhos, fechos e ganchos. Depois precisaria de criadas para cuidar de meus luxos e para me vestir.

Evidentemente, no final ela começara a fazer cálculos. Era perturbador que Christian estivesse certo.

– Você aprenderia a gostar desses luxos.

E ele adoraria vê-la coberta deles. Ela merecia muito mais do que aquela casa e a árdua tarefa de contar tostões o tempo todo.

– Ah, mas ter tantas criadas seria uma amolação. Seria difícil ficar na cama a tarde toda e a noite inteira e depois me levantar um instante para um jantar simples preparado por mim mesma.

– Está me convidando para jantar? Um jantar feito por você?

A ideia invocou imagens domésticas encantadoras. Quase tão encantadoras quanto as que tinham a ver com a noite após o jantar.

E era ela que se preocupava com ser escravizada. Se ela soubesse...

– Claro. Está com fome?

Ele moveu a mão levemente. O seio dela se enrijeceu ao toque.

– Estou sempre faminto quando estou com você, Phaedra.


Elliot se vestiu na penumbra do quarto. Olhou para o corpo de Phaedra, pálido e belo em meio aos lençóis revirados. Ela estava deitada de bruços com o rosto meio coberto pelo travesseiro que abraçava. Suas pernas continuavam afastadas e seu traseiro redondo, exposto, exatamente como estava quando ele a possuíra pela última vez não havia nem uma hora.

Ele não podia ficar ali, olhando para ela durante horas. Isso faria dele um tolo ainda maior do que já era, então a deixou dormindo e foi para os cômodos do andar de baixo.

A cozinha ainda continha os restos do jantar que ela servira na mesa perto da lareira. Como estavam os dois nus, seria ridículo servir a comida em porcelana na sala de jantar.

A sala de estar, com sua coleção variegada de móveis e objetos de arte, recebia mais da luz do alvorecer do que os outros cômodos. Ele andou até o divã e a mesa lateral. O segundo cálice de brandy ainda estava lá, intacto, bem ao lado de um embrulho de bom tamanho feito de papel.

Ele percebera o embrulho na véspera, na hora em que chegara. Tinha quase as mesmas dimensões de uma resma de papel. O tamanho exato de um manuscrito de livro.

Rompeu o lacre do pacote, que caiu no chão ao se partir, deixando à mostra a primeira página das memórias de Richard Drury.

Pressupôs que o texto estivesse em ordem cronológica. Se quisesse encontrar as páginas ofensivas, não seria difícil.

O silêncio o rodeava na casa. Phaedra dormia um sono pesado no andar de cima. A rua lá fora quase não dava sinal de vida. Ele não pôde resistir a tocar as páginas arrumadas em pilha. Correu o polegar pelas bordas, folheando-as com suavidade.

Duvidava que houvesse uma cópia. Phaedra tinha sido muito descuidada ao deixar o manuscrito ali.

Elliot chegou a pensar que ela queria que ele cedesse à tentação. Se o manuscrito, ou mesmo as páginas certas, se perdesse, ela ficaria livre da promessa feita a Richard Drury. Ela mesma não poderia quebrá-la, mas talvez não lamentasse o fato de ficar sem opção.

Mas e se ela visse isso como uma traição? Christian acharia que o fim do caso amoroso do irmão seria um pequeno preço a pagar. Também encontraria um jeito de compensá-la sem que ela se desse conta, se Elliot pedisse.

Phaedra teria alguma segurança. Não precisaria viver de forma tão frugal. Se ela se vestisse na moda e se mudasse para um bairro melhor, tomaria o lugar da mãe entre os literatos, em vez de ser a bela porém estranha filha de Artemis Blair que morava naquele bairro fétido de Londres.

Bastaria um pequeno roubo da parte dele e a vida dela mudaria para melhor. O dever dele estaria terminado. Ninguém ficaria comentando que o falecido lorde Easterbrook tinha contratado um homem para matar seu rival. Seus filhos poderiam voltar a fingir não saberem que talvez ele tivesse feito isso.

Elliot percebeu a forma cruel como avaliava as opções e fazia cálculos. Seu lado bom já não ficava surpreso ou chocado. Nem conseguia apresentar outros argumentos além dos sentimentais sobre confiança e afeição. Isso contava muito pouco no mundo. Ele nem ao menos tinha certeza de que contasse tanto assim para Phaedra.

Passou o polegar pelo canto das folhas de novo.


Phaedra acordou tarde naquela manhã e viu que as roupas dele não estavam mais lá. Ou ele tinha descido ou ido embora.

Passou a mão pelo lugar em que ele estivera deitado. Imaginou ainda senti-lo lá, tão saciado quanto ela, apesar de terem sido necessárias várias refeições para satisfazer a ambos. Correu a mão pelo lençol até o travesseiro em que ele repousara. Tocou algo que não era musselina e plumas. Apoiou-se nos cotovelos, curiosa.

O manuscrito de seu pai estava no travesseiro, embrulhado de qualquer jeito no papel. O lacre do pacote tinha sido rompido, mas as páginas estavam em precisão militar, formando um bloco espesso.

Ela perdeu o fôlego. Colocara-o na mesa ao chegar com Harry e depois o esquecera lá. Claro que Elliot teria adivinhado o que o pacote continha. O tamanho e a forma gritavam “manuscrito”. Ele se levantara cedo e fora verificar. Provavelmente teria tirado as páginas que não queria publicadas.

Uma onda de alívio a tomou. Um alívio profundo e agradecido. Ficou mergulhada nesse sentimento até seus olhos se umedecerem.

Sentou-se para arrumar o embrulho. Não falaria com Elliot sobre isso. Não agora. Não por enquanto. Talvez nunca. Tinha sido errado da parte dele roubar as páginas, muito errado, mas ela não o censuraria. Tampouco falaria do sofrimento de que tinha sido poupada. Talvez agora, quem sabe...

Seus dedos pararam sobre o pacote. Inclinou a cabeça. Uma folha tinha sido acrescentada ao manuscrito. Ela a puxou de debaixo do papel de embrulho.


Minha querida,
Você deve tomar mais cuidado com esse legado. É o tipo de tesouro que pode tentar os mais cruéis. Há pessoas que o roubariam com satisfação, como as cartas que recebeu bem provam.
Não é seguro mantê-lo em casa. Leve-o para o Museu Britânico. Vou informá-los de que você usará a sala de leitura para preparar uma obra para publicação. Os bibliotecários guardarão as folhas para você entre suas visitas. Quem está preocupado com isso logo saberá que o texto está guardado em segurança e, assim, você e sua casa não serão mais molestadas.
Não peguei as folhas que procurava, nem precisa verificar. Temi perder sua amizade se violasse sua confiança.
Obrigado pelo jantar. Estava delicioso.
Seu amigo agradecido.
Elliot


CAPÍTULO 20

– Obrigada por me acompanhar – disse Phaedra. – Não espero que o homem admita tudo. Será útil você estar lá para avaliar a reação dele às minhas perguntas.

– Já que está determinada a fazer tais perguntas, não quero que faça a visita sozinha – respondeu Elliot. – Sua descrição do encontro com Needly indicou que esses homens não encaram bem suas suspeitas, o que não me surpreende.

– Needly não ficou zangado. Ele riu de mim. Isso não pode ser considerado perigoso.

Contudo houvera uma boa dose de desprezo na risada do Sr. Needly. Desprezo por ela e pela mãe. Tinha sido um encontro rápido num pequeno escritório, na véspera. O primeiro vendedor de antiguidades de quem Matthias falara era idoso, elegante, culto e arrogante. Ele respondeu rapidamente a suas perguntas sobre o camafeu.

“Uma fraude”, dissera, a boca rígida franzindo-se em repugnância. “Falei isso na hora em que ela me mostrou o camafeu, mas ela não deu valor à minha opinião, apesar de ter me procurado para isso. Ela discutiu comigo, como se tivesse conhecimento sobre o assunto. A grande Artemis Blair foi enganada como uma mocinha inexperiente. O fato de sua filha vir me inquirir sobre a mesma joia mostra que ela se recusou a encarar a verdade, sem dúvida porque a verdade a tornava uma tola.”

– O fato de ele ter rido não significa que o homem que vamos ver hoje não vá perceber as insinuações em suas perguntas – contrapôs Elliot. – Sei que isso é importante para você, só peço que seja discreta.

Eles caminhavam juntos pelas ruas, rumo a um endereço que Phaedra conseguira. Não ficava muito longe do escritório da editora, em Paternoster Row.

Elliot não dissera uma palavra sequer sobre as atividades da editora ao chegar lá, nem tinha expressado desagrado por encontrar-se com Phaedra na empresa. Ela duvidava que o fato de Elliot ter deixado o manuscrito intacto três noites antes indicasse que ele teria se conformado com a ideia da publicação iminente das memórias. Provavelmente ainda acreditava que encontraria provas suficientes para que ela fizesse o que ele pedira, como prometera.

Phaedra esperava que ele encontrasse. Queria muito que aquela pedra saísse do caminho da felicidade de ambos. Os últimos dias tinham sido idílicos, até melhores do que as semanas no Reino das Duas Sicílias. A alegria e amizade que agora compartilhavam provavam que a paixão poderia sobreviver à volta para a Inglaterra. Ela percebera estar mais feliz do que nunca. Mesmo a conclusão das investigações sobre a mãe não prejudicaria seu humor.

A livraria de Thornton ocupava uma pequena loja em uma ruazinha perto do Museu Britânico. Anos de fuligem se acumulavam nas persianas daquela sombria caverna de livros.

– Fiz algumas investigações – disse Elliot. – A história dele é obscura. Dizem que tem pai inglês e mãe italiana e que estudou em Bolonha. Seria difícil refutar isso e, além do mais, as pessoas que o conhecem o consideram culto.

– Se ele é meio italiano, pode ter algum acesso a objetos produzidos lá – ponderou Phaedra.

– Talvez este seja o homem certo. Ao contrário de Needly, a reputação dele não é ilibada. Ouvi alguns boatos.

Entraram na loja. Silêncio e escuridão caíram sobre os dois. As estantes chegavam até o teto, cobertas de livros antigos. E havia outros, exemplares de bibliotecas deixadas em espólios, que se acumulavam em pilhas mais altas do que Phaedra.

As sombras na extremidade do fundo se moveram. Uma figura se levantou detrás de uma parede de livros e andou na direção deles. Era o dono, que vinha saudá-los. Elliot recuou e abriu a porta de novo para que alguma luz entrasse e mostrasse o homem em questão.

Nigel Thornton não era o velho livreiro bolorento que as instalações dariam a entender. Ele parecia não passar dos 30 anos, apesar de que seus traços tão perfeitos, sua sobrecasaca elegante e seu cabelo escuro talvez pudessem esconder alguns anos extras. Ainda assim, era muito mais jovem do que Phaedra pensara.

Ela o imaginou ainda mais jovem, com sua beleza ainda fresca e sua energia sem limites. Quando os últimos resquícios da juventude de Artemis se esvaíam, será que ela buscara renovação em um caso amoroso com um homem mais jovem?

Ele os saudou com elegância, porém fez questão de dar a entender que eles tinham interrompido assuntos importantes.

Seus olhos escuros mediram Elliot e deixaram transparecer que o lorde foi reconhecido. Seu olhar então se voltou para Phaedra e expressou vagamente que dela não havia recordação.

– Lorde Elliot, é uma honra recebê-lo. Estaria à procura de obras para uma nova biblioteca? Temos as melhores edições das histórias romanas e podemos providenciar encadernações novas, se quiser.

– Considero a biblioteca de Easterbrook adequada por ora. É esta dama que está à sua procura, interessada em uma história em particular, e não em uma biblioteca cheia delas. Sou um mero acompanhante.

Thornton aceitou isso, mas a forma como baixou os cílios indicou desapontamento por perder o que seria uma tarde lucrativa.

– Permita-me apresentar a Srta. Phaedra Blair – disse Elliot. – O senhor conheceu a mãe dela.

A luz que chegava pela porta iluminou o belo rosto de Nigel Thornton o bastante para que Phaedra pudesse ver sua reação. Seu rosto ficou paralisado em uma passividade cuidadosa, mas os olhos escuros sob as pálpebras semicerradas pareceram brilhar com mais intensidade à medida que examinava o rosto dela. E ele o examinou por longo tempo, com todo o cuidado e grande interesse.

– Fui recebido algumas vezes por sua mãe, Srta. Blair. Não a conheci bem o bastante para contar histórias sobre ela.

– Ouvi o contrário, Sr. Thornton. Soube que o senhor ia à casa de minha mãe com muita frequência, não apenas algumas vezes, nos últimos dias de vida dela.

Ele pendeu a cabeça em um ângulo que nem concordava nem discordava, dando a entender que o nível de intimidade estava aberto a discussão.

– Também soube que há alguns anos o senhor vendia mais do que livros, Sr. Thornton.

– Mesmo agora, outros itens atravessam meu caminho.

Phaedra pescou o camafeu do bolso e o colocou sobre uma pilha de livros sob a luz que vinha pela porta. Ele brilhou em toda a sua beleza artística em meio aos livros escuros e empoeirados.

O olhar do homem pousou na joia. Um laivo de reconhecimento se fez notar. Uma aura peculiar transbordou dele, como se uma onda de sentimento tivesse inesperadamente alcançado o quebra-mar. Ele começou a sorrir, mas deteve o impulso antes que passasse de uma linha vaga e triste.

– O senhor vendeu ou deu a Artemis Blair esta joia, Thornton? – perguntou Elliot.

– O que quer saber? A história deste camafeu?

– Sim – confirmou Phaedra.

– Lamento não poder ajudar.

Ele podia, sim. Ela sabia que podia.

– Mas o senhor o reconheceu.

Ele o pegou com delicadeza e observou com atenção, passando o polegar pelas figuras minúsculas.

– Era dela.

– Os melhores especialistas em arte me afirmaram que se trata de uma falsificação.

– Então imagino que seja. Ainda assim, é bem-feito e muito bonito.

Naquele momento, ela pouco ligava se era bonito ou não.

– Minha mãe o conseguiu por seu intermédio?

– Se eu disser que sim, admitirei a falsificação. Se disser que não, vocês não terão motivo para acreditar em mim.

– Isso porque não seria a primeira fraude – pressionou Elliot. – Soube que houve problemas com algumas moedas anos atrás.

Thornton suspirou.

– Aquelas moedas me chegaram de fonte confiável. E não as vendi com garantia de autenticidade. Esse ramo é cheio de riscos e de colecionadores que ouvem o que querem ouvir. É por isso que prefiro livros antigos.

– Foi o que aconteceu com esse camafeu? Minha mãe ouviu o que queria ouvir?

– Não há como eu saber se ela achava que fosse autêntico. Parece-me que sim.

Ele devolveu o camafeu a Phaedra. Por um instante, os dedos dos dois permaneceram na peça, como se o homem hesitasse em largá-la.

– Se decidir vendê-lo, me avise.

– O senhor o compraria? Para revendê-lo?

Ele se virou, voltando a se fundir com o canto escuro do castelo de livros.

– Eu o compraria porque é bonito. E porque foi dela.


– O que você acha? – quis saber Phaedra.

Ela remontava o encontro com Thornton em sua cabeça à medida que caminhava com Elliot pelo Museu Britânico.

– O que você acha?

– Acho que foi ele. Só faltou admitir com todas as letras. Se eu não tivesse dito que sabia que era uma falsificação, ele poderia ter me revelado tudo. Foi erro meu. Da forma como aconteceu, ele só poderia satisfazer minha curiosidade se admitisse ser um criminoso. Mas seu comportamento, a maneira como ele reconheceu a peça... As palavras, apesar de cautelosas, indicaram que ele sabia que minha mãe era a dona do camafeu e que o considerava autêntico.

Ela percebeu uma reação em Elliot, esperou algum tempo, porém ele não se expressou.

– Então, o que você acha? – perguntou ela de novo.

– Acho que você já recebeu sua resposta, só que ela é um pouco diferente do que seu pai concluiu.

– Como assim?

– Nigel Thornton não foi um canalha que tirava vantagem, roubava a afeição e planejava grandes fraudes. Ele se apaixonou por Artemis. Acho que ainda a ama.

A observação a espantou. Ela queria discordar. O homem não combinava com a imagem do fraudador demoníaco que o pai descrevera em suas memórias. Isso retirava a raiva e a indignação que pudesse sentir em relação ao caso amoroso da mãe. Se o outro homem na vida de Artemis a amava, isso só complicava tudo.

Mas Phaedra desconfiava de que Elliot estivesse certo. O clima na loja havia mudado no instante em que Thornton vira o camafeu. As lembranças e os sentimentos provocados pela joia tinham ficado quase tangíveis.

– Se ele a amava, não posso odiá-lo, não é?

– Qual versão você prefere, Phaedra? A de que um homem seduziu sua mãe para usar os conhecidos dela e envolvê-la em crimes que a arruinariam? Que esse amor tardio fez com que tirasse a própria vida? Ou a de que sua mãe se apaixonou por um homem muito mais jovem, que, por ignorância, lhe vendeu ou deu uma joia sem se certificar de sua autenticidade? Você terá que decidir como acha que tudo ocorreu, contudo não acredito que aquele homem tenha deliberadamente se aproveitado de sua mãe.

– Acho difícil de acreditar que meu pai tenha se enganado tanto com o caráter e a motivação de Thornton.

– Seu pai perdeu o amor da vida dele, a razão de sua existência, para um rival muito mais jovem. Provavelmente pensou que sua mãe tivesse perdido o juízo junto com o coração. É improvável que ele pudesse julgar a situação com objetividade.

Ele falava como se não tivesse dúvidas de como tudo se passara. Ela podia ter achado Nigel Thornton um enigma, mas Elliot saíra da loja muito seguro de haver reconhecido os sinais de um homem apaixonado.

– Se eu vender este camafeu a Thornton, ele provavelmente o passará adiante de novo como se fosse uma antiguidade. Você disse que alguns de seus negócios anteriores são suspeitos. Se for assim, é provável que ele tenha realmente se aproveitado da minha mãe.

Elliot pegou a mão de Phaedra e a puxou para um canto da galeria.

– É tão importante para você acreditar nisso, Phaedra, que ela foi enganada? Você disse em Nápoles que poderia entender o motivo de ela ter escolhido outro amante. Se o homem a amava também, isso não vai facilitar, em vez de dificultar, que aceite esse fato?

Ela não sabia o que dizer. O coração dela se rebelava diante dessa explicação simples que Elliot abraçava tão facilmente.

– Desconfio que, se examinássemos a fundo as negociações de Thornton, descobriríamos ambiguidades e sugestões, porém não alegações falsas – continuou Elliot. – Como ele disse, os colecionadores ouvem o que querem ouvir. Tenho certeza de que ele sabe como explorar isso sem cruzar a fronteira da fraude. Quanto ao camafeu, se você o vender a ele, não acredito que o repasse a outra pessoa. Acho que ele o guardará como uma lembrança dela até o fim de seus dias.

Ela visualizou Nigel Thornton de pé na livraria. Imaginou-o oito anos mais jovem, encantando a Artemis de meia-idade com sua confiança e seu rosto bonito. Lembrou-se de como os olhos do homem se tornaram cálidos ao ver o camafeu e falar da mãe dela.

Céus, Elliot devia estar com a razão! Isso também explicava por que nenhum dos amigos de sua mãe sabia o nome do novo amante. Thornton era tão jovem que Artemis provavelmente o mantivera em segredo, de forma que ninguém a considerasse ainda mais tola.

– Que desfecho embaraçosamente comum para meu grande mistério – sussurrou ela.

Elliot passou o braço em torno de seu ombro e deu um aperto encorajador.

– Está desapontada?

Estaria? A raiva dela em relação ao amante da mãe tinha se abrandado nas últimas semanas, porém as palavras acusatórias do pai ainda queimavam em seu peito. Talvez ela quisesse culpar alguém pela morte da mãe e o pai tivesse lhe dado uma forma de fazer isso. Talvez ela estivesse com raiva era de Artemis, por trair a perfeição que o amor livre oferecia.

Phaedra deixou ir embora o que restava da raiva profunda que carregara até Napóles. Nigel Thornton talvez não fosse um modelo de integridade, mas também não era um conquistador barato. Artemis provavelmente ficara muito desapontada ao descobrir a verdade sobre o camafeu, porém era improvável que o episódio a tivesse destruído.

Ela tocou o camafeu no bolso. Talvez o desse para Nigel Thornton, já que ele ainda levava Artemis no coração.


– Pode voltar para sua vida desregrada, Christian. Não haverá fuga. Nem fuga nem duelo. Caroline aceitou minha autoridade sobre o assunto.

Lorde Hayden Rothwell falava no tom firme e confiante de um homem que espera que o mundo obedeça a suas ordens. Phaedra duvidava de que essa suposição fosse inadequada com muita frequência.

Ele falara do outro lado da mesa. O jantar que ele e Alexia estavam oferecendo era muito mais íntimo do que Phaedra esperava. Os convidados eram somente os três irmãos Rothwells, Alexia e ela.

Quando Alexia lhe mandou o convite, ela pensara em não aceitar. Alexia e Hayden haviam retornado do interior fazia alguns dias e provavelmente já sabiam das memórias de Richard Drury. Se isso fosse verdade, ela não seria muito bem-vinda. Agora, contudo, desconfiava de que o casal não estava a par de nada. Easterbrook tinha ciência de tudo, isso era certo. Seu comportamento para com ela havia sido cordial, até elegante, porém ela o pegara várias vezes vigiando-a como uma águia observa um rato.

– Sendo homem, duvido que você tenha entendido totalmente a questão ou interpretado corretamente o humor de nossa prima – disse Easterbrook em resposta à afirmação de Hayden. – Eu ficaria mais tranquilo se sua esposa se juntasse à sua opinião ou assentisse em concordância com você.

Alexia enrubesceu diante do pedido de Easterbrook de que ela apoiasse ou se comprometesse com a opinião do marido.

Ainda espantava Phaedra o fato de a amiga ter se apaixonado por Hayden. Alexia se casara pelas razões mais sensatas, depois se apaixonara pelo marido. Phaedra nunca teria imaginado tal desdobramento, sobretudo em se tratando daquele homem.

Lorde Hayden era bonito, isso era certo, mas severo e frio. Ao contrário de Elliot, sua conduta e caráter não suavizavam o rosto com traços típicos dos Rothwells. Entretanto Alexia insistia em dizer que o mundo não conhecia o verdadeiro homem por trás daquela frieza.

– Christian, não se deve semear a discórdia entre marido e mulher – apaziguou Elliot. – Se Alexia decidir discordar do marido, ela pode fazê-lo. Nossa anfitriã nunca se furtou em expressar sua opinião quando julgou necessário.

Alexia pareceu agradecida pela interferência de Elliot. Phaedra percebeu que eles tinham um vínculo de amizade. Os três irmãos pareciam ter Alexia em alta conta.

Isso a impressionou e a deixou mais à vontade no jantar. Ela não fora tratada como a intrusa que era, tanto na alta sociedade quanto naquela mesa. Alexia fora insistente em seu convite. As duas tinham trocado algumas palavras e novidades em voz baixa na sala de estar antes de descerem.

– Bobagem – disse Easterbrook. – Hayden não se importaria se a esposa saísse de sua posição de neutralidade. Ele sabe que uma mulher percebe o que se passa na mente de outra melhor do que nós. O que me diz, Alexia? Caroline se intimidou ou tem planos secretos?

– Ninguém pode afirmar o que se passa na cabeça de outra pessoa, lorde Easterbrook – interrompeu Phaedra. – Nem todas as mulheres pensam da mesma forma. Alexia é sensata demais para entender a mente de uma moça deslumbrada com um título de nobreza.

Ela fora muito bem-sucedida em tirar a atenção de Easterbrook de Alexia. Ele a encarou de forma tão direta que os corpos se mexeram nas cadeiras.

Elliot veio em seu socorro.

– Acho que não é o que se passa na cabeça de Caroline que importa, mas na de tia Henrietta. Ela pode estar mais deslumbrada do que a filha.

– Exatamente – disse Alexia. – É Henrietta que precisa ser orientada. Temos feito grandes progressos com ela.

Hayden mudou de assunto. Os homens seguiram na conversa. Phaedra e Alexia ficaram trocando olhares silenciosos e cheios de significados.

Elliot percebeu, mas não reagiu. Ele estava um pouco estranho naquela noite. No momento em que a recebera na carruagem do lado de fora, ele lhe parecera bem... diferente. Phaedra o pegara olhando para ela da mesma forma que fizera no quarto em Nápoles, como se a visse pela primeira vez e analisasse o que estava na sua frente.

Talvez o jantar o estivesse afetando. Ela estaria por inteiro no mundo dele naquela noite. Phaedra também não fingira ser o que não era, exceto por estar usando seu vestido azul. Não ganhava nada em fingir ser dócil e normal. E ela nunca permitiria que Easterbrook a intimidasse ou tornasse reverente.

O jantar acabou e Alexia convidou Phaedra para se retirarem para a sala de estar. A porta se fechou, deixando para trás os irmãos com seus charutos e o vinho do Porto. Phaedra imaginou se os homens discutiriam a dificuldade em manter a virtude de Caroline ou o assunto urgente das memórias de Richard Drury.

– Estou tão grata por você ter concordado em vir – disse Alexia, ao sentar-se ao lado da amiga em um canapé. – Isso me proporcionou uma desculpa para deixar Henrietta em Aylesbury.

Em outras palavras, Henrietta não aprovava o convite a Phaedra Blair e não se sentaria à mesa com ela.

– Então fico feliz de ter vindo, se isso lhe deu uma folga da companhia dela.

– Você gostou do jantar? Sei que Easterbrook pode ser...

– Adorei tudo.

E era verdade. Tinha achado muito tocante a amizade entre os irmãos. Até mesmo invejara Elliot e entendera melhor do que nunca por que um laço de sangue normalmente valia mais do que qualquer coisa para conquistar a lealdade de uma pessoa.

– Também fiquei feliz em ver como você está totalmente integrada a eles, Alexia. Ainda não a tinha visto entre eles como vi esta noite. Você achou outra família como se tivesse nascido nela. Acredito que cada homem naquela mesa daria a vida para proteger você e seu filho.

Alexia enrubesceu.

– Eles são todos muito meigos, não? A forma como Elliot falou comigo ao nos reencontrarmos hoje foi um amor. Contudo me pergunto se sua visita ao Reino das Duas Sicílias o agradou tanto assim. Ele parece distraído, como se não se importasse de ficar sozinho, em vez de na companhia dos outros no jantar esta noite.

O homem de quem falavam entrou na sala de estar. Não parecia nem um pouco distraído no momento, mas sério e determinado.

– Alexia, por favor, me desculpe, mas gostaria de falar com a Srta. Blair a sós. Você se importa se eu roubá-la por uns minutos? É uma conversa que não pode ser adiada.

As sobrancelhas de Alexia se ergueram. Ela lançou um olhar sutil para Phaedra. Espero que me conte o que está acontecendo.

– Não, não me importo, é lógico. Vou para a biblioteca.

– Por favor, não se incomode. Eles subirão logo. Srta. Blair, talvez uma volta pelo jardim lhe agrade. Podemos conversar enquanto sentimos o aroma das flores que desabrocham.

Phaedra ignorou quanto Alexia achou isso interessante. Aceitou o convite imaginando que o assunto exigia o pedido extraordinário de Elliot por privacidade.


CAPÍTULO 21

O jardim estava vazio e tão perfumado pelas flores que desabrochavam no verão quanto Elliot prometera.

– Seus irmãos o mandaram numa nova investida contra mim, Elliot?

– Eles ficaram tão espantados com a minha saída da sala de jantar quanto você com meu pedido.

Ele a conduziu a um banco de ferro e pediu que se sentasse. Ele mesmo, entretanto, ficou de pé.

– Apesar de que, se eu tivesse saído por raiva deles, teriam minhas justificativas. Christian estava contando a Hayden sobre as memórias. Acredito que eles discutirão sobre o assunto por um longo tempo.

– Discutirão sobre mim, você quer dizer.

Ela se perguntou se iria se arrepender de ter aceitado o pedido de privacidade de Elliot. Se lorde Hayden pensasse como Easterbrok, talvez ela tivesse desperdiçado os últimos minutos que teria com Alexia antes que o marido a proibisse de vê-la para sempre.

Não conseguia ver a expressão de Elliot no escuro, mas sentia sua cabeça trabalhando. Calculando. Decidindo.

– Phaedra, houve um desdobramento inesperado em relação a nosso desdobramento inesperado.

Levou um tempo até que ela percebesse que ele se referia ao casamento em Positano.

– Nem tão inesperado, suponho.

– Muito inesperado.

Ele apoiou o pé no banco ao lado dela e se inclinou sobre o joelho para que seu rosto e voz ficassem mais próximos.

– Hoje de manhã, meu advogado me disse que o casamento é provavelmente legítimo e será considerado como tal se posto em questão.

Todos os pensamentos e sentimentos desapareceram enquanto ela absorvia o impacto. Depois, emoções diversas jorraram em seu coração. Elas gritavam e se chocavam, criando o caos. Sua mente, contudo, alcançou uma clareza espantosa.

– Agora entendo por que você estava olhando para mim de forma tão estranha durante o jantar. É um milagre que não tenha bebido até perder a consciência com a notícia.

Ele não respondeu à observação, o que foi elegante de sua parte. Ela também entendeu por que ele queria falar com ela no escuro. Assim como ela mesma, duvidava de que Elliot conseguisse ocultar seu desalento.

– Não vejo como posso estar casada se não decidi me casar, não assinei um contrato e a cerimônia foi católica – ponderou ela.

– Passei a tarde com um especialista que apresentou casos semelhantes e ele me explicou tudo. Um casamento que é legal no país em que acontece também é aqui. Isso é garantido pelos tribunais eclesiásticos. Não é necessário haver um clérigo anglicano para validar os votos nesses casos. Ele acredita que nenhum questionamento vá se sustentar, porém sugeriu que, para assegurar sua validade, a cerimônia seja repetida aqui.

– Por que eu repetiria votos que nunca pensei em fazer?

Ele virou a cabeça em direção à casa. Olhou para as janelas que davam para o jardim. Ofereceu-lhe a mão.

– Venha comigo, Phaedra. Vou lhe contar exatamente o que me disseram.

Elliot passou o braço dela por debaixo do seu e começou a falar baixinho enquanto caminhavam pelo jardim. O coração dela batia com mais força a cada passo e a cada palavra.

– O casamento não se encaixa nas categorias rígidas da lei. Assim, sua validade se tornou uma questão de interpretação nos tribunais. Não há garantias de qual será a sentença em um processo – explicou. – Quando o especialista sugeriu que os votos fossem repetidos, estava pensando em um questionamento posterior, em relação a questões de herança e legitimidade de filhos. Era nisso que meu advogado pensava também quando falou de o casamento ser considerado legítimo se posto em questão. Ambos estavam tão certos de que o casamento seria julgado válido que só recomendaram outra cerimônia para evitar que alguém fizesse um escândalo tentando explorar essa ambiguidade mais tarde.

– Eles entenderam tudo ao contrário, Elliot, e o conselho deles é falho em consequência disso. Não queremos certezas de que o casamento se sustentará. Queremos certezas de que isso não aconteça.

– Há uma pressuposição de validade no tribunal. Se alegarmos que não foi válido, então teremos que comprovar isso.

O pânico que tomara conta do sangue dela começava a chegar à cabeça.

– Acho que outra pessoa teria que provar que o casamento é válido.

– Phaedra, aprendi mais sobre jurisprudência nesse assunto hoje do que qualquer homem precisaria saber. Mesmo na Inglaterra, os parâmetros nem sempre são tão claros quanto se esperaria. Algumas das sentenças que me foram lidas hoje me espantaram. Casamentos considerados válidos sem a documentação adequada, por exemplo. O fato de não termos assinado nada em Positano tem pouca importância, principalmente porque bastam nossas palavras para darem validade ao ato naquele país, segundo as leis deles.

Elliot a puxou sob a copa de uma árvore.

– Parece que você está presa a mim, querida.

Ela não podia acreditar que estivesse ouvindo aquilo. O pânico aumentou, ameaçando fazê-la perder a compostura.

Ele fez menção de abraçá-la. Ela se desvencilhou do abraço.

– Isto não é um desdobramento inesperado, Elliot. É um desastre.

Ela se afastou, lutando para recuperar a razão. Com certeza ele entendera errado. Tinha que haver um jeito de resolver o problema.

– Você falou em ambiguidade. Na minha opinião, há ambiguidades suficientes desde o início para anular o casamento. Quais são as que seus advogados veem como possíveis problemas mais tarde?

– Phaedra...

– Não. Não. Existe um motivo para que nunca tenha me casado, Elliot. Tomei uma decisão após pensar bastante sobre o assunto. Não vou me ver casada agora por acidente, em vez de por opção. Você precisa me dizer se há algum jeito de desfazer isso tudo.

Ele cruzou os braços. Isso enfatizava o tamanho dele em comparação ao dela e expressava seu estado de espírito, que agora deixava o clima pesado.

Ela odiava quando os homens assumiam essa postura. Odiava.

– Eu poderia me divorciar de você. É uma forma de desfazer o casamento. Você teria que me dar um motivo, e não estou inclinado a permitir isso.

Permitir? Que Deus a protegesse: ele já estava falando como marido.

– Divórcio significa que houve casamento, e isso eu nego.

Seus pensamentos se sucederam rapidamente e se juntaram numa afirmação final:

– Temos que explicar que não queríamos isso. Temos que explicar que não houve consentimento.

– Uma cidade inteira nos ouviu fazer os votos. Ninguém viu uma espada em nossos pescoços na hora.

– A situação era tão ruim quanto uma espada no pescoço. Quando descrevermos os fatos, isso ficará claro para a Igreja. Se explicarmos que nenhum de nós dois disse aquelas palavras de livre e espontânea vontade, deve bastar.

Elliot olhou para Phaedra. Ela vasculhou as sombras de seu rosto em busca de indicações de alívio.

– Eu não fui coagido, Phaedra. Fiz tudo para protegê-la, é verdade. Mas disse aquelas palavras em total consciência de que elas poderiam tornar-se um vínculo para mim. Não mentirei sobre isso.

Sua aceitação calma do casamento a deixou em choque.

– Você não pode estar querendo isso.

– Não tive a intenção de que acontecesse, porém não estou tão perturbado quanto você. Em vista do que compartilhamos, é um passo pequeno.

– Você ficará perturbado em breve. Não precisa de um casamento para ter o que quiser compartilhar comigo. Você não ganha nada com isso, exceto a responsabilidade por uma mulher que nunca aceitará seus direitos sobre ela.

Assim que acabou de falar isso, a verdade penetrou em seu desespero. Ele ganhava algo, sim. Algo que ele e sua família queriam muito.

Phaedra olhou para a silhueta escura de Elliot nas sombras da noite fechada. Uma esposa perdia tudo no casamento. A lei dava ao marido seus bens, sua voz, seus filhos e até sua individualidade.

Ele seria capaz de fazer isso? Seria capaz de tomar uma medida irrefletida para assumir o controle da editora e das memórias? Ela considerava o lucro muito pequeno se comparado ao custo.

Elliot andou até ela e a puxou para seus braços. Deu-lhe um beijo forte, como se a paixão pudesse obliterar a horrível suspeita que penetrara em sua mente.

– Não é isso – disse com voz rouca. – Se não peguei o manuscrito quando saí de sua cama na semana passada, não me venderia por isso agora.

Seu beijo a confundiu ainda mais. Ela não conseguia ordenar seus pensamentos, que se sucediam com rapidez e de forma desconexa.

– Então por quê?

– Por causa disso.

Ele a beijou de novo, longa e profundamente.

– Isso você já tem – sussurrou ela.

– Não terei mais se você fizer um pedido ao tribunal para invalidar nosso casamento.

– Se eu quiser, então terá. A decisão é minha...

– Não é mais. Se alegar que suas palavras foram proferidas sob coação, não poderemos continuar como estávamos. Não podemos fazer os votos, compartilhar uma cama e depois alegar que não estamos casados. Só o passado, se vier a público, já bastaria para que esse casamento fosse considerado válido. Não fomos discretos no Reino das Duas Sicílias. Continuar um caso aqui, ter qualquer contato íntimo, daria bases para que os juízes indeferissem o pedido.

O tom dele, tão claro e firme, tão destituído de uma empatia verdadeira, soou cruel. Era uma decisão terrível o que ele descrevia.

Desolação e raiva jorravam da cabeça dela. Ela mal conseguia controlar seus efeitos. Não deveria ter que abrir mão dele por um motivo tão estúpido.

Phaedra viu as opções de forma tão clara que pensou que fosse passar mal. Abrir mão da amizade deles, nunca mais sentir seu toque, desistir de toda intimidade, ou aceitar os grilhões legais que a lei forjava nas mulheres e se submeter de todas as formas ao domínio de outra pessoa.

E ela conhecia bem que formas eram essas. Ouvira a mãe enumerá-las durante dezoito anos.

– Não tem que ser assim – gritou, rejeitando violentamente ambas as alternativas. – Nunca se saberá de verdade o que aconteceu na viagem. Ninguém nos acompanhou o tempo inteiro. Se formos discretos aqui, ninguém saberá também.

Ele agarrou os braços dela com as duas mãos, como se quisesse controlar uma louca.

– Estaremos sob juramento. Não vou mentir. Nem você.

– Você não pode estar querendo isso. Não pode. Pense, Elliot. O mundo vai escarnecer de você se formos marido e mulher. Não serei diferente do que sou, nem por você nem por sua família. Todos rirão e dirão que você tem uma mulher muito esquisita, com ideias estranhas e hábitos excêntricos. Eles...

– Eles dirão que me casei com uma mulher que é quase tão estranha quanto meu irmão. Não ligo a mínima para o que disserem.

Os olhos dela arderam. Ela os cobriu com as duas mãos e os apertou com força, numa tentativa de conter as lágrimas. Seu coração pesava.

Elliot soltou os braços dela e a abraçou de novo. Isso só piorou as coisas. Seu calor e as lembranças a tocaram tão fundo que ela perdeu a batalha para a emoção e chorou. Pressentiu a dor que a aguardava, a perda da separação, a saudade que faria seu coração em pedaços.

Quis desesperadamente que essa dor a convencesse a aceitar a alternativa. Desejou ardentemente que sua emoção lhe dissesse que o casamento com aquele homem seria bom, não uma prisão.

Ele a abraçou enquanto a tristeza se transformava em lágrimas, segurando-a com força em seus braços. Pressionou seus lábios quentes no alto da cabeça dela.

Seu coração se apertou, se partiu. Ela sentiria falta disso, acima de tudo. Disso e da intimidade que ia além de qualquer amizade.

A aura de Elliot mudou. Foi como se a rigidez dos Rothwells perdesse força. A brisa noturna a tinha levado embora.

Ela encostou os olhos úmidos no ombro de Elliot.

– Não é assim que um casamento deve ser, menos ainda para mim. Vou tentar desfazer isso, Elliot.

A palma da mão dele repousou na parte de trás da cabeça dela. O gesto de conforto quase a fez cair em prantos de novo.

– Pode me ajudar, Elliot? Não quero que minta, mas poderia não se opor a isso?

– Está me pedindo para desistir totalmente de você, Phaedra. Não sei se consigo.

– Não totalmente. Depois poderemos ser amigos de novo. Não quero pensar que ficaremos separados para sempre.

– Vai demorar um longo tempo até poder tocá-la de novo, querida. A justiça é muito morosa.

Ele virou a cabeça dela e beijou sua face.

– Você está pedindo muito mais do que jamais entenderia.

– Você acha isso agora, mas logo verá que eu nunca daria uma boa esposa. Minha personalidade é muito deformada para que eu consiga encontrar satisfação nesse papel.

Ela ensaiou um sorriso, mas isso só fez sua boca tremer.

– Estou poupando você. Está tentando ser honrado e fazer o certo, o que é bom e nobre da sua parte. Mas, depois que seu desejo passar, você odiaria esse casamento inadequado e ficaria infeliz por ter sido forçado a tomar essa decisão.

Ele tocou os lábios dela com os dedos.

– Essa separação será menos natural do que o casamento que você descreve. Durante várias semanas, pensei em você como se fosse minha. Beije-me, para que eu possa guardar comigo o gosto desse último beijo.

O coração dela se rebelou ao ouvi-lo dizer “último beijo”. Ele gritava de raiva quando suas bocas se encontraram. E chorava quando Phaedra se agarrou a Elliot em um abraço desesperado.

Ele a segurou com mais firmeza, como se ordenasse o fim da tempestade. A alma dela obedeceu ao comando silencioso. As nuvens se dissiparam, o vento ameno soprou e, uma última vez, ela voltou a ficar com ele em um lugar de amor, luz e liberdade.


– Você está bêbado? – perguntou Hayden ao fechar a porta da biblioteca.

Ele deu uma olhada para a jarra sobre a mesa e o copo na mão de Elliot.

– É a última coisa de que preciso agora. Contudo gostaria de ficar sozinho.

– Vou deixá-lo, então.

– Droga, a casa é sua. Sua biblioteca e sua bebida. Eu vou embora.

– Fique.

O sorriso de Hayden tornou a frase um pedido.

– Fico feliz que você tenha adiado sua ida. Isso me dá a oportunidade de conversar a sós com você sobre as revelações que me foram feitas hoje.

Elliot se lembrou do rosto de Hayden após o jantar, quando Christian contara sobre as memórias. Ele não ficara aborrecido nem com Phaedra nem com Richard Drury, mas com seus dois irmãos, por não lhe confiarem a verdade antes.

Esse aborrecimento o atingiu de novo, em silêncio.

– Saber sobre essas memórias explica muita coisa. Chalgrove me abordou no mês passado e perguntou se Alexia exercia alguma influência sobre a Srta. Blair e se poderia lhe arrumar um encontro com ela. Fui estúpido o bastante para achar que ele estivesse encantado por Phaedra. Agora acho mais provável que ele esteja preocupado em aparecer naquelas páginas.

– Não as li. Não sei se ele tem motivos para se preocupar.

– Talvez você possa lhe fazer uma visita para descobrir de quanta influência ele necessita.

– Se eu falhei em ajudar esta família, dificilmente poderei ajudá-lo.

– Com uma curta conversa com a Srta. Blair, você descobrirá o quão preocupado ele precisa ficar. Ele é um velho amigo e tem passado por muitos problemas ultimamente. Faça isso por mim e esquecerei que me manteve ignorante dessa trama.

– Christian decidiu que você não deveria saber.

Era uma desculpa esfarrapada de um homem a quem faltava força no momento. Só tinha um enorme vazio dentro do peito que quase o sufocava. Sua alma estava esvaziada desde que voltara do jardim.

Phaedra pensara que era ela que estava tomando a decisão lá, mas ele também tinha feito cálculos obscuros. Não ficara nem um pouco chocado ao saber da situação mais cedo. Os especialistas tinham lhe mostrado uma forma de garantir que a posse da mulher que ele queria fosse total e definitiva.

Se ela tivesse dado a mínima indicação de que ficara feliz com aquele desdobramento, Elliot a teria feito aceitar o que ele desejava. Estava inclinado a não deixar que ela invalidasse os votos. Queria tê-la ligada a si para sempre, de forma que nunca um novo amigo pudesse tirá-la dele.

Elliot repetira muitas vezes para si mesmo ao longo do dia que ela se acostumaria com isso. A oposição dela era filosófica e não havia senso prático em suas crenças. O prazer, o luxo e a doçura a fariam mudar de ideia rapidamente. Ele não pediria mudanças de início e requisitaria muito poucas depois.

Contudo uma lembrança o maltratara – e ainda maltratava, apesar do brandy. Não era uma lembrança de Phaedra. Nem mesmo de sua mãe. Ele via o pai na porta da biblioteca em Aylesbury, olhando para a mulher cuja cabeça pairava acima de uma caneta. O rosto dele estava duro como sempre e sua postura, impassível. Ele não notou o menino sentado no chão ao lado das estantes, tamanha era a atenção que devotava à esposa.

Elliot entendia essa lembrança agora de uma forma que nunca conseguira na infância. O último lorde Easterbrook estava observando a esposa com os olhos de um homem apaixonado. Irremediavelmente apaixonado. Tragicamente apaixonado.

Ele olhou para o irmão. Hayden esperava conversar sobre outro assunto, quando tudo o que lhe importava era aquele beijo no jardim.

– Christian sabia que eu não aprovaria seus métodos – disse Hayden. – Também não entendo por que ele se importa tanto. Todos sabem que nosso pai não era santo. Se quiserem pensar que ele matou um homem, que pensem.

Elliot teve que rir disso.

– Dizem que é você quem mais se parece com ele. Talvez isso tenha lhe permitido aceitar o que ele era ou possa ter sido.

– É isso o que as pessoas dizem? Que interessante. Eu diria que era você ou Christian. Veja bem, nunca faria com Alexia o que ele fez com nossa mãe. Nem me vingaria de um rival depois de vencido.

– E você acha que eu faria isso?

– Não sei. Só sei que eu não faria.

Elliot não estava tão certo de que ele mesmo não faria. Havia aprendido muito sobre desejo nos últimos tempos e nem todas as lições foram boas. Os olhos de que ele se lembrava o deixavam inquieto porque pareciam demais com os que ele via ultimamente ao se olhar no espelho.

Talvez Phaedra tivesse percebido isso. Talvez houvesse notado durante uma daquelas invasões de alma, ou talvez ela temesse que isso fosse um comportamento que ele herdara.

– Não sabemos se ele se vingou – disse Elliot.

Ele não queria acreditar que a crueldade dos Rothwells chegasse a tal ponto.

– Não importa se ele o fez ou não. O fato de haver dois filhos dele que acreditam nessa possibilidade já significa mais do que o ato em si, não?

Não era no soldado da colônia do Cabo que Elliot pensara.

– Nossa mãe não era santa.

Hayden refletiu sobre essa observação.

– Mesmo sem saber se ele fez isso, você ainda tenta achar justificativas? Não, ela não era santa. Ela era uma adúltera. E o pior: não foi um caso rápido, mas uma paixão duradoura. Ele não poderia deixá-la partir, mas não tinha que isolá-la. O casamento já era prisão suficiente para ela. Ele não precisava transformar Aylesbury em um cárcere.

– Ele não a forçou a ficar lá. Ele me disse que não.

– Talvez não tenha dado ordens, mas tornou o casamento impossível de aturar. Ele não a perdoaria mesmo que ela quisesse perdão. Talvez ela tenha optado por ficar lá. Santuário ou prisão, ela não ficou com ele.

– Você parece entender a situação melhor do que ninguém.

– Melhor do que eu gostaria. É uma lição sobre os perigos do orgulho, imagino. Uma advertência sobre como ele pode transformar a personalidade de um homem, para o bem ou para mal.

Elliot não achava que fora orgulho o motivo da forma dura como o pai tratara a mãe. Fora uma emoção muito mais fundamental do que isso.

Hayden viu as gotas cor de âmbar no copo do irmão.

– Elliot, não vim até aqui por acaso. Alexia está preocupada. Ela comentou como a boca e os olhos da Srta. Blair estavam vermelhos quando vocês dois voltaram para a sala de estar. Confesso que não reparei.

Ele serviu brandy para si e se acomodou em uma cadeira.

– Ela acha que aquela boca foi beijada com força.

Com muita força. Eles tinham se beijado pelo que parecia uma eternidade. Ainda assim, acabara cedo demais.

– Ela certamente está chocada – concluiu Elliot.

– Alexia aceita as restrições do decoro, mas muito pouca coisa a espanta. Menos ainda quando isso envolve Phaedra Blair. Foram os olhos vermelhos que a deixaram preocupada e ela me mandou aqui para arrancar informações suas.

Elliot imaginou quanto de informações ele estava disposto a arrancar.

– Suponho que você não a tenha importunado no jardim – disse Hayden.

– É improvável que qualquer homem importune Phaedra Blair e fique vivo para ver o amanhecer.

Hayden riu. O som fez Elliot rir também. Seu humor melhorou, embora seu peito ainda se sentisse cheio e vazio ao mesmo tempo.

– Droga. Causei um desastre, Hayden. Se Christian de repente passou a se preocupar com boatos, vai ficar apoplético ao saber sobre a diversão que estou prestes a proporcionar aos fofoqueiros da alta sociedade.

– Suponho que a Srta. Blair seja uma das protagonistas nessa história.

– E eu, o outro. Sirva-me mais brandy e lhe contarei o enredo, para que você aprecie a moral da história no desfecho. É uma história de desejo e paixão, de sedução, fantasia e perigo, de casamento e...

– Casamento?

– Ah, sim. De casamento e repúdio e...

Hayden estava ocupado servindo o brandy e não percebeu que a frase ficou inacabada. Contudo as palavras finais ressoaram na cabeça de Elliot. A sensação de preenchimento em seu peito se esvaziou.

De casamento e repúdio e amor.


CAPÍTULO 22

Phaedra pousou o lápis e esfregou os olhos. O manuscrito de seu pai precisava de mais preparação do que ela esperava. A caligrafia dele tinha piorado na parte final. Ficara tão ruim que a equipe da gráfica teria muita dificuldade de reconhecer as letras. Imaginava que precisaria de pelo menos mais uma semana de trabalho por isso.

Olhou em volta da sala de leitura do Museu Britânico. Outras cabeças e costas estavam inclinadas sobre livros em outras mesas. A maioria era de homens, mas também havia umas poucas mulheres. Sua atenção se concentrou nos primeiros, um a um.

Elliot não estava lá. Procurar por ele se tornara um hábito. Eles não podiam se encontrar a sós, mas um encontro público não oferecia perigo. Se pelo menos ele trabalhasse por ali ao mesmo tempo que ela...

Não precisariam se cumprimentar. Sem saudações nem conversa. Ela só queria vê-lo. Ficaria imensamente feliz em simplesmente estar no mesmo espaço que ele, mesmo que ele se sentasse longe e não virasse a cabeça em sua direção.

Ela fechou os olhos e o viu em pensamento. Sentiu o gosto do último beijo e inalou seu perfume. A mão dele acariciou seu corpo. Ela saboreou as lembranças, vivenciando-as de novo naquele momento.

Quanto tempo demoraria até elas se apagarem? Imaginava que isso um dia aconteceria e que, junto com as lembranças, se fossem também as emoções que agitavam sua alma. Ela relembrava tudo com muita frequência por temer que elas sumissem.

– Phaedra, você está dormindo?

Ela abriu os olhos, assustada. Um chapéu elegante e requintado estava pousado sobre a mesa. A voz sussurrada tinha vindo de uma mulher que a espiava com curiosidade.

– Alexia, o que está fazendo aqui?

– Soube que você tem passado seus dias neste lugar.

Ela olhou em volta da sala. Seus murmúrios tinham ecoado e outros leitores as encaravam insatisfeitos.

– Vamos lá fora. Preciso tomar um pouco de ar – pediu Phaedra.

Alexia esperou enquanto a amiga amarrava o manuscrito. Phaedra o entregou ao bibliotecário, que o guardou em uma prateleira. Elas escaparam da sala de leitura e de Montague House.

– Podemos dar uma volta por Bedford Square – sugeriu Phaedra.

– Então este é o famigerado manuscrito – disse Alexia, enquanto se dirigiam à praça.

O coração de Phaedra se apertou.

– Eles lhe contaram.

– Não há muitos segredos entre mim e Hayden. Não me olhe desse jeito tão atormentado, querida amiga. Não vim pedir sua misericórdia. Easterbrook quer que eu faça isso, mas decidi ignorar suas insinuações a esse respeito.

– Meu primeiro pensamento foi para você, Alexia. Quando o li, não liguei muito para seu marido e os irmãos, mas você...

– Isso é muito gentil e sou grata. Porém entendo a lealdade que uma pessoa deve à família. Se seu pai a encarregou dessa tarefa, você não pode escolher que parte da promessa quer cumprir e que parte vai ignorar.

Phaedra ficara abalada desde o jantar na mansão de Easterbrook. A generosidade da amiga mexeu com ela ainda mais. Alexia olhou para Phaedra e lhe deu um sorriso encorajador.

– Quem lhe contou que tenho trabalhado no manuscrito em Montague House?

Outro olhar. Outro sorriso. Um sorriso de empatia.

– Não foi ele. O visconde Suttonly voltou para Londres e tia Henrietta estupidamente o seguiu com Caroline a reboque. Hayden está furioso e estabeleceu regras muito severas, que encarregou Easterbrook de impor.

– Não posso imaginar o marquês dando um sermão a uma garota sobre sua virtude.

– Ele não disse nem uma palavra sobre o assunto, de acordo com tia Henrietta, que está muito perturbada. Em vez disso, todo dia ele limpa suas pistolas de duelo na biblioteca, para Caroline ver.

Phaedra riu ao imaginar a cena.

– Imagino como Henrietta está perturbada. O casamento da filha com um nobre está ao alcance dela, afinal.

– Não ligo por ela ter voltado, de verdade. Isso me permite ficar na cidade também. Ela é um ímã para as melhores fofocas. Foi ela que me disse que você estaria aqui, por exemplo.

– Lorde Elliot recomendou que eu mantivesse o manuscrito guardado com os bibliotecários do museu. Foi mais sensato do que eu. Tenho certeza de que alguém esteve na minha casa ontem à noite, sem dúvida procurando pelos papéis.

Ela estava dormindo e não ouvira nada, mas, de manhã, ao entrar na sala de estar, percebera algo errado. O ambiente estava ligeiramente diferente: os xales dispostos de outra forma e as estantes arrumadas demais.

– Não foi um de nós – disse Alexia. – Não haveria motivo para isso. Easterbrook e Hayden sabem onde você guarda o texto.

Elas deram uma volta pelo pequeno parque da Bedford Square. As casas ao redor pareciam modestas, porém confortáveis. Todas similares, eram o tipo de construção que escritores de sucesso, advogados e adidos estrangeiros escolheriam para morar. Suas fachadas simples se alinhavam de maneira uniforme, com tetos não muito altos. As casas combinavam bem com as pequenas proporções da praça.

– Elliot pretende sair de Londres em breve – disse Alexia, como se respondesse a uma indagação.

Talvez ela tivesse ouvido a pergunta que estava na ponta da língua de Phaedra.

Elas caminharam mais dez passos.

– Quanto você sabe, Alexia?

– Quase mais do que gostaria. Não concordo com sua filosofia, Phaedra. Nunca menti a esse respeito. Agora temo estarmos prestes a ver o estrago que ela pode causar. Contudo você nunca tentou me converter e também não tentarei convertê-la.

Alexia se direcionou à área central do parque e se sentou em um banco de pedra.

– Elliot teve uma discussão com Easterbrook ontem.

– Uma discussão séria?

– Nas palavras de tia Henrietta, uma discussão seriíssima.

Phaedra se sentou ao lado dela.

– Henrietta ouviu a discussão?

– Nada neste mundo impediria Henrietta de ouvir atrás das portas. Mas eu a convenci de que ela entendeu errado dessa vez. Ela disse que a discussão era sobre um casamento.

– Sem dúvida ela entendeu errado.

Phaedra estudou uma hera que se esgueirava perto de seu sapato.

– Ela disse que a briga era sobre os direitos de um marido e a necessidade de os maridos exercerem esses direitos. Em suma, Easterbrook disse a Elliot que, se algo de remotamente parecido com um casamento existia entre vocês, ele deveria tomar a editora que você herdou.

– Se Elliot não concordou, foi um gesto nobre da parte dele.

– Que resposta estranha, Phaedra. Esperava que você risse à mera referência de haver algo remotamente parecido com um casamento entre você e Elliot – comentou ela e depois inclinou a cabeça com ar inquisidor: – Qual será o tamanho desse estrago?

Phaedra queria muito que Alexia parasse de usar a palavra “estrago”, apesar de talvez ser uma palavra bem apropriada. A situação poderia ter destruído algo de valioso e causar ainda mais sofrimento.

Ela contou a verdade à amiga. A expressão de Alexia refletia um espanto cada vez maior.

– Concordo que os votos não deveriam ser válidos – disse ela. – Hayden não havia me contado tudo, afinal. Entretanto sua história explica este bilhetinho.

Ela pôs a bolsinha no colo, abriu-a e tirou um pedaço de papel dobrado lá de dentro.

– Ele me pediu que entregasse isto a você. Não podia imaginar o motivo, já que percebi que eram todos advogados.

Phaedra leu os três nomes escritos a caneta no papel. Reconheceu um deles, um homem que representara uma condessa que tentara pedir divórcio. Todos os detalhes tinham sido veiculados nos jornais. Ela supôs que os detalhes sobre sua ação seriam publicados na imprensa também.

– Não tenho condições de contratar esses profissionais.

– Hayden me deu o bilhete e me pediu para lhe dizer que ele acertaria as contas com eles. Agora que entendi as circunstâncias, estou certa de que ele quis dizer que pagaria os honorários advocatícios.

Então o próprio irmão de Elliot pagaria as despesas dessa petição de divórcio. O outro irmão queria que ele exercesse seus direitos de marido enquanto ainda existisse a ambiguidade do relacionamento, contudo Easterbrook também ficaria feliz em ver a família livre dela.

Talvez Elliot tivesse concluído o mesmo. No mínimo, a ajuda de Hayden provavelmente também significava que Elliot não contestaria suas alegações.

O desapontamento que surgiu em seu coração era uma reação tola. Os corações não pensavam com clareza, nem tomavam decisões. Eles mergulhavam em sentimentos e não previam o futuro. O arrependimento e a melancolia não iriam embora facilmente, mas isso não significava que ela deixaria que emoções traiçoeiras a dominassem.

Phaedra enfiou o papel no bolso e desviou a conversa para assuntos que a distraíssem dos pensamentos em Elliot.


O Sr. Pettigrew ficava batendo com as pontas dos dedos no queixo duplo. Phaedra já deixara de pensar no hábito como um gesto de alguém que refletia. Começava a julgar que o homem passava o tempo todo sonhando acordado.

– O que me diz, senhor? Minha petição terá uma audiência justa?

Até mesmo a pergunta levou um bom tempo para penetrar na mente do homem. Por fim, os dedos grossos deixaram o pescoço gordo. A cabeça altiva de cabelos grisalhos se endireitou.

– Este é um caso muito interessante, Srta. Blair. Interessante de fato. Fiquei fascinado com as potenciais ramificações e implicações que uma sentença terá neste caso.

– Fico muito satisfeita de poder proporcionar-lhe estímulo mental. Contudo quero me certificar de que estou correta em minha visão da questão.

A atenção do advogado se concentrou nela. O Sr. Pettigrew era um homem baixo e corpulento cuja gravata parecia estrangulá-lo. Seus olhos azuis podiam ser muito penetrantes quando ele ficava atento.

– Se a senhorita decidiu tomar esse caminho, precisa saber que a jornada será longa. Quanto às provas, seria melhor providenciar cartas juramentadas de outras pessoas que estavam lá e só isso já levará meses. As testemunhas presentes na cerimônia de casamento dirão que a senhorita foi coagida?

– A mulher, sim. Também acho que o padre está ciente de que não houve um consentimento verdadeiro. Não o senti à vontade celebrando a cerimônia.

– Veja, já temos um problema, bem aí nas suas palavras. Consentimento verdadeiro. Tudo depende disso. Você deu consentimento, mas não foi, como diz, um consentimento verdadeiro. O tribunal não verá essa alegação com bons olhos. Quantos outros diriam que não houve consentimento verdadeiro? No entanto, a senhorita está contando uma história que possivelmente sustenta essa afirmação. Fascinante.

– É fascinante o bastante para que o senhor me represente?

Pettigrew não era o primeiro nome na lista. Phaedra já tinha recebido negativas dos outros dois.

Ele a olhou criticamente.

– Está certa de que lorde Elliot contará a mesma história que a senhorita? É essencial que ele não a conteste. Se o fizer, nenhum tribunal julgará o caso. Afinal, ele é filho de um lorde.

– Ele não está fazendo nada para impor esses votos. Não vivemos como marido e mulher. Ele não fez qualquer menção de assumir meus bens.

– Ah, bem, se ele deixou seus bens intocados... Veja como o caso vai se desdobrar, Srta. Blair. O tribunal suspeitará de que esta é uma tentativa de desfazer um casamento realizado às pressas enquanto estavam no exterior. Esses casamentos impulsivos não são raros quando nossos cidadãos são estimulados pelo contato com climas mais quentes e povos mais apaixonados. O bom senso sempre volta tarde demais.

– Essa não é uma descrição do que aconteceu conosco. Os votos só foram proferidos para que eu não ficasse sujeita a acusações de crimes que não cometi. Foi uma tentativa desesperada de me salvar, só isso.

O advogado ouviu isso sem fazer comentários, mas ela detectou uma ponta de ceticismo escondida por baixo de sua expressão afável.

– E há ainda a questão da noite na torre – observou ele. – Perguntarão à senhorita e a lorde Elliot se houve intercurso sexual lá. Se houve, o caso inteiro pode ser posto a perder. – Ele fez uma pausa e franziu os lábios. – Se essa atividade continuou depois que a senhorita deixou Positano, bem... E se houver prole resultante dessa ligação, então vai tudo por água abaixo.

Ela pensou com seus botões na rejeição que estava por vir. Aqueles não eram os únicos advogados do mundo. Ela teria que achar outros, menos desdenhosos. Alguém acabaria por perceber que sua posição era correta.

– Acredito que o senhor ache que minha petição não vale a pena ser sustentada.

– Só estou lhe explicando as dificuldades.

Seu rosto redondo se abriu em um sorriso. Sua mão cortou o ar em um arco longo e amplo. O gesto abrangia a visão dela.

– Normalmente, isso seria inútil. Contudo a senhorita não é uma pessoa comum, não é verdade?

– Como é?

– Srta. Blair, sua antipatia pelo casamento é bem conhecida. A vida de sua mãe é cheia de lendas e sua própria excentricidade e provável falta de fidelidade não são algo ao qual o filho de um lorde se ataria de livre e espontânea vontade. Se qualquer outra mulher afirmasse não ter dado consentimento para se casar com lorde Elliot Rothwell, o tribunal zombaria dela. Já a senhorita...

De novo a mão se moveu.

– Seu comportamento e suas crenças sustentarão sua alegação. O tribunal ficará inclinado a liberar lorde Elliot de quaisquer obrigações. Sim, vou aceitar o caso e tomar providências para que tenha o melhor especialista trabalhando comigo. Espero que ele e eu possamos aproveitar os louros da notoriedade desse processo por anos.

A promessa de notoriedade não ajudou a melhorar o humor de Phaedra. Ela deixou o escritório de Pettigrew com o mesmo olhar tristonho com que tinha chegado. Como a temperatura estava agradável, fez o caminho para o Museu Britânico a pé.

Enfiou a mão no bolso e tocou a carta escondida lá. Elliot escrevera dois dias antes, expressando preocupação com a segurança em sua casa. Alexia lhe contara sobre o intruso noturno.

O tom da carta era formal, quase distante. Ela fantasiou que, com aquelas expressões frias de precaução e cuidado, ele na verdade tentasse dizer algo mais. Desista de tudo, venha ficar comigo e nunca mais estará em perigo.

Nada desse tipo tinha sido escrito. Nenhuma palavra de paixão, nem alusões ao que eles tinham vivido juntos. Podia ser uma carta a um conhecido que ele não via há cinco anos.

Talvez Elliot não quisesse arriscar escrever uma carta que desmentisse as alegações dela sobre o casamento. Ou talvez ele já tivesse começado a vê-la de forma diferente.

Phaedra não poderia culpá-lo por isso se fosse verdade. Escolhera a liberdade em vez dele, afinal. Ele se convencera a aceitar a validade dos votos e sem dúvida se sentira insultado pela recusa dela em fazer o mesmo. Phaedra não achava que ele um dia entenderia o motivo de sua atitude.

Ela mesma começava a não entender por que agira daquela forma.

Só de tocar a carta, sentiu-se mais confiante. Nunca se sentira sozinha na vida antes, porém agora, sim. Também nunca questionara essa vida em sua essência, mas, tarde da noite, triste e solitária, era o que acontecia agora. Não conseguia se acostumar ao sofrimento que essa separação lhe causava. A dor estava instalada em sua alma, não melhoraria nunca.

Entrou na sala de leitura e recuperou o manuscrito. Agora odiava essa tarefa diária. Carregou as folhas como o peso que de fato eram. Deixou-as cair em cima da mesa e olhou para elas.

O ar por trás dela de repente se deslocou. Uma presença se intrometeu no seu entorno. Seu coração parou de bater um instante. Fechou os olhos e saboreou a alegria que se espalhou por ela como raios de sol penetrando nuvens escuras.

Phaedra se virou e viu Elliot depositar um volume encadernado e uma pilha de papéis na mesa logo à frente dela. Ele lhe sorriu: um sorriso gentil dado a um conhecido, não a uma pessoa com quem se tivesse dormido.

– Srta. Blair, que prazer encontrá-la ao acaso. Não sabia que ainda estava trabalhando aqui.

– Estou quase acabando, lorde Elliot.

O olhar dele pousou brevemente no manuscrito que os unira. Depois ele fez um gesto para a mesa.

– Também estou quase acabando. Não vou bloquear a luz da janela se sentar aqui, não é? Há outras mesas em que posso me sentar se estiver atrapalhando de alguma forma.

– O sol está forte hoje. A luz que entra pode ser compartilhada.

Ele não disse mais nada. Pegou sua cadeira, abriu o livro, espalhou seus papéis e se refugiou em seus exercícios mentais.

Ela se sentou com o manuscrito diante de si. Mantinha os olhos nele e fingia ler. Na verdade, não estava enxergando as anotações do pai, apesar de Elliot não bloquear nem um pouco a luz.

Ela só o sentia ali, tão perto. Estava apenas aproveitando sua presença e a forma como isso a acalmava. Saboreou a forma como seu coração se enchia de emoções. Admirou-se de como estava prestes a cair em prantos.

Apaixonara-se por ele. Era isso que todas essas emoções significavam. A alegria, o sofrimento, a paz e a confusão eram reações de uma mulher perdidamente apaixonada.

Não sabia por que essa verdade lhe ocorrera só ali, naquele momento, durante essa hora de intimidade distante. Já havia se considerado apaixonada outras vezes, mas aqueles breves encantamentos em nada se comparavam a isso. Ela interpretara mal tantas coisas sobre si mesma e sobre os vínculos que formara com essa amizade tão especial.

Não saberia dizer quanto tempo ficou assim, sentindo sua presença e admirando-se com a satisfação que isso trazia a seu coração. O movimento dele ao erguer-se da cadeira a tirou de repente de seu doce deslumbramento. Ele caminhou até as estantes, pegou outro livro e voltou.

Ela precisava olhá-lo. Não conseguia pensar em mais nada. Ele parecia tão lindo em sua sobrecasaca escura, gravata de nó elaborado e camisa de colarinho. Se seus olhos ainda refletiam sua absorção intelectual e seu cabelo parecia despenteado, isso o tornava ainda mais atraente. Não era o corpo que fazia o homem.

Elliot notou a atenção dela e emergiu de seus pensamentos. Seus passos ao atravessar a sala de leitura pareceram desacelerar. Seu olhar queimou de desejo, de forma tranquila e sutil, oculta de todos menos dela.

Phaedra reagiu como sempre. Como sempre aconteceria. Imaginou-se velha e grisalha, deparando com ele na cidade, depois de separados há décadas. Se ele a olhasse assim, ela se lembraria na hora quanto sempre o desejara.

Desta vez, ele não se sentou. Caminhou até a mesa dela, um acadêmico curioso com o trabalho de outro. Ficou de pé atrás dela e se inclinou por cima de seu ombro. Ela o sentiu ali de uma forma muito clara e cálida. Cerrou os dentes para controlar o impulso de virar a cabeça e beijar seu peito.

– Só faltam algumas páginas – disse ele.

– Talvez tenha que rever tudo. Vai levar um tempo até estar em condições de ser publicado.

Ela olhou para Elliot.

– Imagino que o senhor tenha que vir aqui com frequência agora também, para verificar os detalhes de seu livro.

– Normalmente, há muita revisão para fazer no final.

– Então talvez tenhamos que compartilhar a luz do sol de novo, lorde Elliot.

– Não é provável. Vou partir de Londres amanhã por pelo menos uma semana. Você já deve ter acabado quando eu voltar.

Os olhos continuaram cálidos. Conhecedores. Ela viu a afeição dele mesmo que mais ninguém pudesse. Também viu aqueles clarões de aço.

– Não retarde muito a sua tarefa, Srta. Blair. A senhorita escolheu como proceder nesta e em outras questões, e não tenho interferido. Contudo não seria sensato que confiasse que eu me manteria convencido dessas nobres inclinações para sempre. Confesso que a balança de minha consciência anda pendendo para um dos lados nos últimos tempos.

Sua advertência a aturdiu.

– Estou esperando uma solicitação final em relação ao teor deste trabalho – disse ela.

– As solicitações virão na próxima semana, se é que virão. Depois disso, tome uma decisão. Ou vá em frente ou desista. Não se retarde nesse assunto ou questionarei sua determinação em relação a esta e outras questões. Estou atento demais, e sempre sou lembrado de que uma palavra minha resolverá tudo da forma como eu preferiria.

Ele andou até a mesa, deixou o livro e juntou seus papéis.

– Foi um prazer ter sua companhia hoje. Um prazer incomensurável. Não consegui fazer nada na última hora e meia além de imaginá-la nua sobre esta mesa implorando para que eu a possuísse.

Ele olhou em volta da sala cheia de livros para os leitores de óculos e bibliotecários de expressão sóbria.

– Droga, Phaedra. Nunca mais verei esta biblioteca do mesmo jeito.


Elliot planejara ir a Suffolk para visitar Chalgrove, conforme Hayden solicitara, mas adiara a viagem por vários motivos. Enquanto percorria o campo em sua carruagem, admitiu que o motivo verdadeiro fora Phaedra.

Procurá-la na sala de leitura fora uma fraqueza, uma rendição à melancolia que o atormentava. Ele jurara que não se sentaria perto dela. Nem planejara deixar que ela o visse. Depois, logo que ela entrara pela porta, ele correra para sorver sua presença, como um ébrio que passara muito tempo longe da bebida.

Saber que beirava o ridículo não detivera o impulso de fazer papel de bobo. O amor era um inferno, isso sim.

Ele olhava fixamente para as fazendas, entretanto o que via, na verdade, era seu futuro com ela. Ele visitando Phaedra em sua casinha. Talvez ela nem aceitasse os presentes que um amante costuma oferecer à amada. Dias passariam sem que ele a visse nem uma vez. Independentemente de quanto tempo a relação durasse ou de declararem amor infinito, ela não seria de verdade parte de sua vida.

O homem nele se rebelou com a ideia. Assim como o amante estupefato. Ela podia ter crescido achando que esse tipo de relação era normal, porém ele não conseguia fazer sua cabeça e seu coração aceitarem isso.

E o pior: suspeitava de que ela aceitaria viver assim porque, na verdade, não o queria em sua vida. O que levantava a questão de que ele poderia ter cometido a estupidez de se apaixonar por uma mulher que não o amava.

Nunca haviam falado de amor. Ele tinha a ignorância como desculpa, só que talvez ela tivesse uma razão muito diferente.

A carruagem saiu da estrada, pegando um caminho mais estreito, e sua mente se voltou para o encontro que se aproximava. Esta seria a mais agradável de suas tarefas fora de Londres, mas não a esperava com ansiedade. Não poderia influenciar Phaedra em relação às memórias, muito menos no que dissesse respeito ao conde de Chalgrove.

As terras de Chalgrove exibiam evidências de que o proprietário residia nelas. Os campos pareciam produtivos. O solar parecia receber manutenção frequente. Porém Hayden dissera que as finanças do amigo não iam bem. Dívidas herdadas e prejuízos sofridos durante a última crise bancária tinham deixado Chalgrove pisando em ovos no que tangia a sua vida financeira precária.

Ele recebeu Elliot em seu escritório. Era um cômodo muito elegante. Se alguns livros raros haviam sumido e algumas paredes tinham sido despojadas de quadros, ninguém diria.

Chalgrove era um homem grande com compleição atlética. Na juventude, era sempre visto na cidade e ficara conhecido por seus hábitos luxuosos. Agora raramente ia à cidade e, na última temporada, não comparecera à maioria dos eventos sociais.

Eles se sentaram no escritório com bebidas na mão. Os olhos cinza de Chalgrove quase não refletiam suas preocupações, mas seus modos estampavam a sobriedade de um homem que carregava mais responsabilidades do que desejaria.

– Seu irmão me escreveu. Foi muita gentileza sua ter vindo – disse.

– Não sei em que posso ajudar. Não li o manuscrito.

– Mas a editora, sim. Aquela mulher, a Srta. Blair.

Ele descansou os pés no banquinho e relaxou com a bebida. As botas traziam lama seca: o conde já percorrera seus campos pela manhã.

– Fui abordado por Merris Langton antes de sua morte. Ao que parece, Richard Drury incluiu meu nome nas memórias por engano.

Elliot imaginou que todos os que tinham sido mencionados e não elogiados insistiriam em que Richard Drury havia cometido um erro.

– Era um assunto pessoal?

– Político. Drury exagerou muito minhas relações com algumas facções radicais quando eu era mais jovem. Não há nada de ilegal ou sedicioso em seu relato, e eu não passava de um rapaz, mas seria embaraçoso. Prefiro que o erro não fique indelevelmente publicado. Imagino que entenda a minha posição.

– Lamento, mas é improvável que eu possa ajudá-lo. A Srta. Blair prometeu ao pai que publicaria o manuscrito como está. O senhor faz parte de um grupo grande de pessoas que gostariam que o texto sofresse mudanças, mas ela não atendeu a nenhum pedido.

– Droga.

As sobrancelhas escuras de Chalgrove baixaram em um olhar raivoso.

– O homem fez isso por vingança. Normalmente as memórias póstumas são assim, uma oportunidade de acertar contas e não sofrer retaliações.

– Nunca ouvi seu nome ligado a ele. O senhor o conhecia bem o bastante para terem contas a acertar?

Chalgrove olhou por cima dos óculos e sorveu um bom gole de sua bebida. Pôs o copo vazio no chão e deu uma olhada longa e direta em seu convidado.

– Mal o conheci, mas tivemos uma única conversa que não terminou muito bem. Foi há cerca de oito anos. Eu era jovem e estava apaixonado e, apesar de minhas expectativas e origem, a família da moça não queria me aceitar. Sem dúvida o pai dela compreendia as limitações dessas expectativas de formas que eu ainda não havia descoberto.

Ele fez um gesto indicando o cômodo, a casa e tudo ao redor. A exasperação e o cansaço que demonstrou refletiram seus problemas financeiros melhor do que qualquer palavra.

– Eu vinha fazendo parte do círculo de Artemis Blair em algumas ocasiões. Foi assim que conheci Drury. Então, em uma noite, durante um jantar, ele me agraciou com um sermão sobre meu desapontamento.

– Foi bobagem dele. Um homem desapontado não apreciaria esse tipo de coisa.

– Este homem aqui com certeza não apreciou. Ele me deu uma longa e tediosa explicação de como tudo tinha sido melhor assim, como o casamento acabava com o amor, como era preferível amar livremente, etc.

– Era a filosofia que ele seguia.

– Para o inferno com a filosofia dele. Fiquei com raiva por ele pontificar suas ideias superiores e esclarecidas. Então lhe disse que ele era um péssimo exemplo do que pregava, pois Artemis Blair estava com outro.

Chalgrove deu um sorriso amarelo e balançou os ombros.

– Como eu disse, eu era muito jovem.

– Ele na certa não gostou que isso lhe fosse jogado na cara, mas o senhor não era o único a saber. Não acho que isso tenha criado contas a acertar...

– Ele ainda não sabia. Fui eu quem o alertou. Tenho certeza disso. Ele ficou chocado e com raiva. Pensei que fosse me desafiar para um duelo. Logo depois, contudo, ficou claro que ele havia se afastado da vida dela. Depois que ficou ciente, não teve a menor dificuldade em determinar quem era o homem, suponho. Ou talvez tenha perguntado a ela.

– O senhor sabia quem era?

– Acredito que sim. Tive algum contato com o homem, eu suponho. Ele era um canalha. Um ladrão. Vendia antiguidades falsas. Gostava de abordar jovens inexperientes como eu para oferecer as peças.

A expressão de Chalgrove continuou plácida. Se havia alguma raiva em seus olhos, ela ficou bem oculta. Elliot pensou em deixar o assunto morrer, mas de repente suspeitou que talvez ele e Phaedra tivessem sido generosos demais ao interpretar as ações de Thornton.

– O senhor fala como se tivesse comprado algumas dessas peças falsas.

– Não tenho prova de que ele soubesse que eram falsas, apesar de achar que sim. De qualquer forma, não o difamarei com fofocas. Decidi não divulgar essas informações no passado, e não vou fazê-lo agora.

– É claro. Na verdade, acredito que sei de quem se trata. Só buscava uma confirmação.

Chalgrove pensou por um momento. Depois se levantou.

– Venha comigo. Vou lhe mostrar uma coisa.

Ele mostrou o caminho para fora do escritório, em direção à frente da casa.

– Tentei ser um colecionador quando estava na universidade. Comecei com moedas romanas. Depois, uns poucos fragmentos do passado. Foi o que me atraiu para o círculo da Srta. Blair e levou à minha breve inclusão nele. Por isso, na hora em que me fizeram uma boa oferta, vinda de alguém que deveria conhecer do assunto e que era amigo da Srta. Blair, me senti seguro para pagar um bom dinheiro pela peça.

Ele entrou em um salão de baile. Suas botas ecoaram na sala enorme. Lençóis cobriam os móveis e a poeira se acumulava nos castiçais presos às paredes. O salão não era usado havia anos.

– Quando meu pai ficou doente, enfim me confiou os problemas da propriedade. Eu levava a vida como se o dinheiro nunca fosse acabar e só então descobri que o fim dele estava bem próximo. Comecei a vender a coleção. Foi aí que entendi que a boa oferta era uma falsificação.

– O senhor tem certeza?

– Nada menos do que quatro especialistas me garantiram. Continuei procurando por alguém que dissesse o contrário, mas foi sem sucesso.

– O senhor tomou satisfações com o homem?

Eles foram para a galeria que corria ao longo da casa. Uma linhagem secular da família Chalgrove os espiava de suas molduras ornamentadas.

– Sim. Ele insistiu em dizer que os especialistas que procurei estavam errados. Então procurei a Srta. Blair com minhas provas. Não acredito que ela tenha sido cúmplice, mas não aceitou de imediato que eu estava certo. A reação dela, a própria expressão... Ela mostrou consternação, mas continuou a protegê-lo. Foi por isso que achei que ele era o novo amante.

Chalgrove parou diante de um móvel com porta de vidro e apontou para a prateleira do meio.

– Ali está. Linda, não? Fico repetindo para mim mesmo que não fui tão idiota assim, mas a mantenho aqui para não me esquecer de que fui estúpido o bastante para ser enganado. Garantiram-me que é uma falsificação muito boa, reconhecível principalmente porque a fundição usou um método mais moderno que só alguns arqueólogos notariam.

– Sim, é linda.

– Ele disse que tinha sido encontrada na costa da península Itálica. Soube me pegar pela vaidade.

Os dois ficaram lado a lado diante da vitrine. Chalgrove sorriu com pesar olhando seu erro da juventude. Um novo vazio se abriu no peito de Elliot.

– Sugiro que fale pessoalmente com a Srta. Blair, Chalgrove. Vá até a cidade e peça à esposa de Hayden que combine um encontro. Conte à Srta. Blair o que acabou de me dizer. Tenho motivos para acreditar que ela está muito interessada no homem que lhe vendeu a peça e talvez ouça seu pedido sobre essas memórias com a mente aberta.

– Não quero dizer o nome dele, Rothwell. Não depois de todos esses anos, nem mesmo em uma conversa reservada.

– Não será necessário. Só leve essa peça consigo.

Ele apontou para a vitrine e para a pequena estátua de bronze de uma deusa nua igualzinha à que ele vira recentemente no estúdio de Matthias em Positano.


CAPÍTULO 23

Phaedra cruzou as mãos no colo para esconder as manchas de tinta na luva direita. Tinha ido à gráfica para discutir a produção do livro do pai. Um gesto descuidado perto de algumas folhas com tinta fresca sujara seu único par de luvas que não eram pretas.

Sua anfitriã não se importaria nem se a tinta estivesse em seu rosto. Alexia nunca a julgara por sua aparência. O impulso de Phaedra de parecer mais normal naquele dia não tinha nada a ver com a amizade delas.

Não tinha certeza do motivo que a levara a escolher o vestido azul e desencavar o par de luvas brancas de sua juventude. Talvez o lugar da visita a tivesse encorajado a isso. Alexia escrevera pedindo que ela viesse e até enviara uma carruagem para facilitar a visita. Se Hayden estava disposto a tolerar a presença de Phaedra Blair na vida da esposa, não era muito sábio exagerar em sua falta de “normalidade” enquanto estivesse na casa dele.

– Tenho um presente para você – disse Alexia, após uma pausa na conversa.

Alexia tinha gastado muito tempo pedindo conselho a Phaedra sobre seus primos em Oxfordshire e sobre o comportamento inconsequente de Henrietta em relação a Caroline. Descrevera longamente seus planos da nova decoração para a biblioteca na qual estavam no momento. Levara-a para admirar a nova carruagem de inverno recém-adquirida.

Alexia preencheu quase duas horas falando de tudo, exceto das coisas que Phaedra estava louca para discutir. Infelizmente eram assuntos que também não sabia como abordar.

Alexia se levantou e pegou em uma mesa de canto um embrulho feito em musselina. Ela abriu o presente e tirou um chapéu novo.

– Achei que poderia ter dois chapéus para usar – disse.

Phaedra instintivamente tocou no que estava em sua cabeça.

– Este aqui tem sido usado demais nos últimos tempos. Você fez este novo também?

– É claro. Deu-me muito prazer.

Phaedra tirou as luvas sujas para não estragar o chapéu. As criações de Alexia sempre a impressionavam. Elas conseguiam estar na moda, só que sem os excessos vistos na cidade. Com suas linhas e proporções contidas e perfeitas, exibiam uma qualidade superior.

– Você é uma artista, Alexia. Seu marido não se importa que você ainda faça chapéus?

– Por que se importaria?

Phaedra poderia pensar em várias razões. A habilidade de Alexia na arte de fazer chapéus era uma pequena bandeira de independência a balançar diante do marido. Sempre fora, mesmo durante a corte peculiar de lorde Hayden.

– Li o texto de sua mãe. O que fala de casamento – disse Alexia. – Está na biblioteca de Easterbrook.

Phaedra olhou para o chapéu.

– Por que o leu?

– Você nunca tentou me converter, então nunca me explicou direito suas crenças. Achei que ia entendê-las se o lesse. Imaginei que assim conseguiria compreendê-la melhor.

– E o que achou dele?

Alexia parou para pensar um pouco.

– Admito que há lógica no argumento dela. As leis são ruins e precisam ser revistas, isso é inegável. Porém, a rejeição completa do casamento...

Phaedra esperou.

– Perdoe-me, Phaedra. Não quero fazer críticas. Contudo achei que foi escrito por uma moça que não sabia muito sobre a vida ou o dia a dia real do casamento. Achei parecido com os filósofos que falam do sentido da vida de uma forma que não tem nada a ver com as preocupações práticas que tomam a maior parte dela.

Phaedra teve que rir. Elliot dissera algo semelhante.

– Artemis era jovem na época em que escreveu aquele texto. No entanto, mesmo com o passar do tempo, ela não mudou os pontos essenciais.

– Sim, jovem – Alexia repetiu a palavra conscientemente, como se isso explicasse muito, senão tudo. – Antes de você nascer, com certeza. Muito provavelmente, antes de amar um homem.

A calma observação de Alexia espantou Phaedra. O impulso de defender a mãe surgiu, contudo ela respeitava demais a amiga para rejeitar o comentário como sendo ignorante. Isso também tocava em questões que a atormentavam à noite, fazendo-a rolar na cama perdida em pensamentos sobre o preço das próprias escolhas.

– Alexia, você nunca questionou o poder que deu a Hayden quando se casou com ele? Você pôs seu futuro e sua felicidade nas mãos dele.

Alexia achou a pergunta engraçada.

– E ele pôs o futuro e a felicidade dele nas minhas, Phaedra.

– Não é a mesma coisa. Você faz parte das posses dele. A lei...

– A lei é sobre outras coisas e outros tipos de bens. Sou dele, é verdade, só que ele também é meu. Nosso amor faz com que seja desse jeito, assim como os votos que pronunciamos. Nisso, a lei é clara. Não perdi nada de mim mesma com essa união, querida amiga. Nada mesmo. Hoje sou mais do que era antes de conhecê-lo, não menos.

Ela falou com uma confiança calma que afetou o clima entre as duas. A intimidade inesperada emocionou Phaedra. Ela se sentiu transportada para a infância, quando ouvia as lições de sua mãe.

Phaedra pegou a mão de Alexia nas suas.

– Mas não há como ter certeza se ele um dia vai usar esse poder da forma errada.

– Suponho que seja possível amar e não ter essa certeza. Contudo eu tenho. É uma das poucas coisas na vida da qual não tenho a menor dúvida.

Ela apertou a mão de Phaedra.

– Agora preciso vê-la usando minha nova criação. Pode ser que eu tenha que fazer alguns ajustes para ficar perfeita.

Voltar para amenidades femininas não apagou a intimidade, mas deixou o ambiente mais leve. Juntas, andaram até um espelho de parede. Alexia tirou o chapéu de Phaedra e colocou o novo em sua cabeça.

– Pensei em fazer um gorro, porém ficaria estranho se não prendesse o cabelo.

Alexia tocou na copa macia do chapéu.

– O índigo ficou ainda melhor do que eu imaginava. É uma cor suave que cai bem com seu tom de pele, não acha?

Phaedra olhou para seu reflexo. Não era uma imagem que combinasse com a que tinha de si mesma. O chapéu a fazia parecer mais pálida, de alguma forma. E também menos jovem. Ela viu uma mulher chegando à maturidade, não mais inocente. Não era mais uma menina. Não era mais uma filha.

Deu um passo à frente para se ver melhor, removendo as lembranças de outros reflexos para que pudesse enxergar o que estava lá naquele momento diante de seus olhos.

– Ficou bonito. Você é bonita.

O elogio a arrancou de suas divagações. O reflexo da sala tinha mudado no espelho. Atrás dela, em vez de Alexia, estava Elliot.


Ele gostaria de ter sido avisado. Talvez a cunhada temesse que ele recusaria o encontro se ela o sugerisse. Talvez acreditasse que, daquela maneira, Phaedra e ele poderiam alegar tratar-se do acaso. De qualquer forma, quando ele respondera ao bilhete de Alexia pedindo que viesse, nunca esperara encontrar Phaedra ali.

Phaedra não o ouvira entrar na sala. Estava absorta demais nos próprios pensamentos, analisando seu reflexo como se não conhecesse o rosto que via. Alexia silenciou a saudação dele levando um dedo aos lábios, depois se afastou ignorando a expressão de desagrado no rosto dele.

Phaedra se virou surpresa quando a porta da biblioteca se fechou com a partida de Alexia.

– Não a censure – disse Elliot. – Com certeza ela acredita estar ajudando.

– Não estava pensando em reclamar com ela.

Tirou o chapéu com cuidado e o colocou sobre uma cadeira.

– Estou feliz em vê-lo, Elliot. Pensei que você estivesse fora da cidade.

– Voltei ontem.

Ele estava feliz em vê-la também. Ridiculamente feliz. Animado como um garoto. Não ligava para a evidência de que não fizera nenhum progresso em retomar o poder que ela tinha sobre ele.

Ela se acomodou em um divã. Ele não ousou sentar ao seu lado. Elliot a desejava tanto que seus dentes já estavam cerrados de excitação. Se chegasse perto o bastante para tocá-la, estaria perdido. Permaneceu de pé, a uma boa distância.

– É conveniente este encontro – disse ele. – Ia lhe escrever. O conde de Chalgrove vai procurá-la. Ele quer falar sobre as memórias. Peço que o ouça.

Ela não fez objeção, mas sua expressão refletiu a impaciência com todos os pedidos que andava recebendo em relação às memórias.

– Sua casa tem estado segura? – perguntou.

– Não houve outras invasões. O manuscrito está na gráfica e eles o guardarão em segurança para mim.

– Quanto tempo até...

– Um mês, pelo que me disseram.

Um leve sorriso surgiu nos lábios dela e Elliot não achou que fosse uma alegria motivada pela publicação iminente. Ela apenas aparentava felicidade, como tinha acontecido na biblioteca no dia em que se encontraram.

Ela o confundia. Como podia uma mulher deixá-lo tão orgulhoso e, ao mesmo tempo, tão infeliz e enraivecido?

– Estive com Pettigrew ontem – disse ele, abordando o assunto sem ter planejado.

Ela pegou as luvas brancas e começou a alisá-las, unindo-as num par perfeito.

– Foi muito bom você ter feito isso.

– Foi, sim.

Muito de seu ressentimento transpareceu na voz dele. Deixara aquela reunião muito perturbado.

– Ele vai zombar de você, Phaedra. Eles vão pintá-la como uma mulher que nenhum homem racional em boa posição iria querer como esposa. Vão usar isso para convencer o tribunal de que os votos não foram consensuais, que eu só cedi para salvá-la.

Ela levantou o olhar das luvas.

– Ele só falará uma verdade que o mundo todo já aceita e outra que você e eu sabemos ser correta.

– Você é muito fria, Phaedra. Muito confiante no que acredita ser verdade. Eu quase o mandei para o inferno. Cheguei perto de...

Ela esperou pelo restante.

De dizer que nos casamos de livre e espontânea vontade. De reconhecê-la como minha para sempre. De mentir, se necessário, para acabar com esta separação e para evitar a vida de meias medidas que você está me oferecendo.

– Phaedra, quero que você retire sua petição. Farei quaisquer promessas que você quiser para tranquilizá-la sobre o casamento.

– Você chegaria a esse extremo para nos poupar de todo o escândalo que isso vai criar?

– Não dou a mínima para o escândalo. Pelo menos, por mim. Só não quero que você leve isso adiante, e retirar a petição vai evitar tudo isso.

– Eu sobreviverei. Sempre fui meio escandalosa. Acho que sei seu motivo real, e ele é cego. Também sinto saudades de você, Elliot. Sinto falta do prazer e da sua companhia. Conto os dias até poder tê-lo em meus braços de novo. Mas seria um erro agir impulsivamente para apressar esse momento.

– Mais uma vez você supõe entender o que não sabe.

Ela ia fazê-lo expressar em palavras o que sentia. É claro que ia. Ela não sabia onde a cabeça e o coração dele tinham andado nas últimas semanas.

– Quero que este casamento seja para valer, Phaedra. Quero repetir os votos junto com você para que não haja equívoco quanto à sua validade. Tenho pensado sobre isso e fico rezando para que a petição seja indeferida. Não quero você casada comigo desse jeito, mas, por Deus, me pego torcendo por isso, se for a única saída.

Ela se levantou e caminhou até ele. Parecia um anjo com aquele vestido azul e seus cachos cor de cobre descendo em cascata até o quadril. Mas anjos não tinham olhos como aqueles, que revelavam seu desejo com tanta franqueza.

Elliot cruzou os braços para conter o impulso de agarrá-la. Ela entendeu o motivo do gesto e parou a boa distância.

– Fico lisonjeada, Elliot. No entanto, é nossa separação que o faz pensar assim. Depois que estivermos juntos de novo...

– Maldição! Não é isso. Não estou falando de luxúria nem de um desejo primário. Mesmo que eu possa tê-la de novo, isso não basta. Eu a amo, Phaedra, e ser um amigo especial não me satisfaz. Não posso viver assim.

Ele não planejara esse ultimato. Seu coração enraivecido falara sem consultar o cérebro. Agora a frase estava lá, pairando sobre suas cabeças como uma espada.

– Você diz que me ama pela primeira vez, Elliot, e em seguida faz uma exigência.

Ela parecia atônita e triste. Tão triste que o coração dele se condoeu.

– Antes eu não podia falar de amor. Eu queria coisas de você, lembra? Mas isso ficou para trás se o livro já foi para a gráfica. Eu a desejo mais do que tudo, há muito tempo, e preciso falar honestamente para que entenda por que não posso fazer do seu jeito.

Ela deu um passo à frente. Um desejo há muito negado percorreu seu corpo, deixando-o rígido.

– Se nos amarmos, se for um amor verdadeiro, tudo vai dar certo independentemente da forma que escolhermos, Elliot. Não é melhor compartilhar um amor livre, da forma como fizemos até agora?

– Não compartilhamos amor livre até agora, Phaedra. Compartilhamos prazer livre. Sinto falta, porém enxerguei com mais clareza ao ficar sem ele. Já não é suficiente. Nem uma mera amizade. Não para mim, pelo menos.

Ela se aproximou dele e tocou seu rosto de leve. Seus dedos pareciam veludo frio, ainda assim queimaram sua pele.

Ele pegou na mão dela e beijou sua palma. Fechou os olhos para tentar controlar o efeito que ela lhe causava. Sua vida se tornara um inferno desde aquele jantar. Agora enfrentava sua pior tortura ao tocá-la de novo. Isso, mais do que tudo, disse-lhe que ele estava certo. Não podia fazer as coisas do jeito dela.

A razão estava perdendo força rápido. Ele queria acabar com a discussão da forma como sempre fazia, tomando seu corpo e tentando marcar seu nome na alma dela.

Ele olhou nos olhos dela.

– Eu falo de amor, mas você não, Phaedra. Talvez eu esteja errado e você não sinta o mesmo. Talvez você tenha medo desse sentimento e do que ele faz com as pessoas, ou talvez tenha sido só desejo da sua parte.

Ele não queria ouvir que estava certo. Não precisava encarar a verdade hoje também. Soltou-a e caminhou para a porta.

– Eu o amo, Elliot. Mais do que posso suportar. Eu o amo tanto que dói.

Ele parou e olhou para trás. A emoção contorcia o rosto dela e as lágrimas inundavam seus olhos.

– Se isso é verdade, então sabe que essa coisa de amor livre não existe, Phaedra. Quando o amor é verdadeiro, não é possível ser livre de verdade.

– É, sim. Nós podemos ser.

Ele balançou a cabeça.

– A necessidade de posse é forte demais e a tendência ao ciúme, humana demais. Amar sem exigências ao outro, sem desejo nem esperança de que vá durar para sempre não é natural. Perdi minha liberdade quando me apaixonei por você, querida. Agora estou acorrentado, não importa o que aconteça conosco. Temo ter sido escravizado para o resto da vida, mas não poderia me submeter à constante tortura de não saber se você é minha.

Ela parecia ter levado um tapa dele. O impulso de voltar e tomá-la nos braços, aceitar o que quer que ela oferecesse, o varreu como uma onda gigante. Provavelmente ele poderia encontrar alguma imitação de felicidade vivendo da forma como ela queria.

Elliot esperou um bom tempo que ela dissesse alguma coisa. Qualquer coisa. Então, sentindo-se tão vazio que pensou jamais conseguir respirar de novo, saiu da biblioteca.


Elliot já tinha ido embora fazia um bom tempo quando Phaedra conseguiu vencer sua confusão. O choque a deixara trêmula. Ela se sentou no divã, aturdida e incrédula. A dura realidade começou a percorrê-la, fazendo-a gelar.

Tentou entender o que tinha acabado de acontecer. Em um espaço de poucos minutos, Elliot declarara seu amor, a pedira em casamento e a abandonara.

Abandonara.

Era do jeito dele ou de jeito nenhum. Era a isso que tudo se resumia. Como um homem.

Seu coração tentou lhe oferecer uma armadura. Envolveu o peito em suas crenças e até ergueu o escudo da raiva.

Não funcionou. Nada funcionava. A verdade rasgava seu coração em pedaços. Ele se fora. De vez. Mesmo que a petição fosse indeferida e eles ficassem casados de verdade, ele sairia da vida dela.

Seus olhos ardiam a ponto de ela não conseguir enxergar. Sua garganta queimava e apertava tanto que ela ficou sem ar. Um soluço brotou dela, fazendo todo o corpo tremer. Depois veio outro e mais outro, até que ela escondeu o rosto na saia.

Braços circundaram seus ombros e a ergueram. Uma voz doce sussurrou palavras carinhosas. Ela aceitou o calor maternal e o apoio de irmã e deixou sua tristeza vazar em lágrimas no ombro de Alexia.


CAPÍTULO 24

– Nunca perdoarei Hayden. Quem poderia imaginar que ele seria tão rígido e arbitrário?

A irritação de tia Henrietta acabou tirando a concentração de Elliot. Ele conseguira não ouvir a maior parte de suas reclamações. Virou a última página de seu manuscrito e, com relutância, lhe deu atenção.

Ela se recusara a voltar para Aylesbury no último mês. Mantivera a filha consigo também. Christian limpara as pistolas de duelo toda noite até Suttonly sair da cidade. Agora mãe e filha mantinham as caras amarradas para demonstrar que não haveria perdão.

– A senhora não precisa ficar aqui, tia Henrietta. Pode voltar para sua casa em Surrey. Se ele estiver mesmo interessado, vai encontrar Caroline lá. Dê seu consentimento e estará tudo acabado.

– Deixar esta casa? Easterbrook não vive sem mim. Ele é indiferente a questões domésticas, e sua governanta e seu mordomo o estavam roubando todo dia. É meu dever ficar aqui.

Com o final do drama referente a Suttonly, Christian tinha voltado à velha rotina. Raramente saía do quarto para fazer suas refeições e passava a maior parte do tempo em seus aposentos. Normalmente, Elliot teria desaparecido também, deixando a casa para Henrietta, mas não ousava se aventurar pela sala de leitura do museu de novo.

Se visse Phaedra lá, perderia o controle. Imploraria que ela o perdoasse e concordaria com tudo o que ela quisesse, por mais infeliz que isso o tornasse. Depois a despiria, a deitaria, beijaria seus lábios e levaria a boca...

Droga.

A biblioteca de Easterbrook tinha tudo de que ele precisava. Seu livro estava ficando tão bom quanto esperado. Teria terminado há uma semana, não fossem as intrusões frequentes de tia Henrietta.

– Esperava que Alexia me apoiasse mais – despejou a tia. – Se há uma mulher que entende a importância de um bom casamento, esta mulher é Alexia.

– Bem, poderíamos fazer com que Caroline tentasse o método de Alexia. Podemos deixá-la sem um tostão, fazê-la trabalhar como preceptora e esperar que um homem como meu irmão se apaixone por ela.

Henrietta podia ser um pouco desligada e sonhadora, porém não era idiota. Ela levantou as sobrancelhas diante do sarcasmo.

– O que afetou tanto o seu bom humor? Você tem andado muito parecido com Easterbrook ultimamente.

Muitas coisas vinham afetando seu humor. Noites insones e dias distraídos. Desejo no corpo e raiva no coração. A reunião feita dois dias antes com o advogado de Phaedra não tinha melhorado em nada a situação.

A fúria de Christian pelo próprio irmão ter se recusado a se apossar da editora de Phaedra enquanto aquele casamento continuasse ambíguo criara uma rixa que talvez nunca fosse solucionada. Porém o ponto principal que comprometia seu estado de espírito era não ter visto Phaedra desde aquele dia na biblioteca de Alexia, fazia um mês, dois dias e vinte horas.

Depois de tanto tempo, já deveria estar retomando qualquer que fosse o poder que Phaedra tinha sobre ele. Não era idiota. Também não era poeta. Perturbava-o ter se apaixonado estupidamente pela única mulher na Inglaterra que não entendia os benefícios de um bom casamento e que desdenhava por completo essa ideia.

Esperava que a tia o deixasse em paz com seu mau humor. Ela era o tipo de mulher que achava ser seu dever ajudar as pessoas a serem felizes. Se embarcasse nesses esforços agora, ele seria capaz de estrangulá-la.

Felizmente, um serviçal entrou na biblioteca justamente quando ela tentava convencê-lo a adotar uma postura mais otimista. O homem carregava um embrulho que colocou bem em cima do manuscrito de Elliot.

– Lorde Easterbrook me pediu que trouxesse isto para o senhor.

Um bilhete de Christian acompanhava o embrulho: Parabéns.

No momento em que Elliot tocou o papel, soube do que se tratava. A palavra do irmão não era um elogio, mas uma expressão de fúria irônica.

Desembrulhou o pacote. Surgiram páginas não encadernadas, à espera de que alguém lhes desse acabamento. A primeira folha impressa exibia o longo título: Memórias de um membro do Parlamento durante os reinados de George III e IV: Richard Drury e suas recordações políticas e culturais de Londres e seus arredores, com comentários consideráveis sobre pessoas famosas e infames.

Ele esperava que o livro fosse lançado a qualquer momento. Christian devia ter pedido aos criados que ficassem vigiando as livrarias e comprassem o primeiro exemplar que surgisse.

– O que tem aí, Elliot? Um livro?

– Sim. Um livro sobre política, bastante árido.

Ele pegou a pilha de folhas, seu manuscrito junto com o livro de Drury.

– Por favor, perdoe-me. Tenho coisas a fazer.

Deixou Henrietta na biblioteca e carregou a pilha de papéis para outro cômodo, em busca de alguma privacidade.

As páginas haviam sido folheadas. Christian lera tudo antes de mandar para ele. Parabéns, seu inútil desleal, porcaria de filho.

Elliot virou a primeira página. Ver esse livro o deixou mais enraivecido do que imaginara. Não tinha direito de sentir raiva, nem um pouco. Não se arrependia por não tê-la detido. Só se ressentia profundamente por ter sido forçado a escolher entre fazer más ações em nome de uma boa causa ou boas ações em nome de uma causa inútil.

Pôs de lado as emoções provocadas por esse livro, o dever de Phaedra e seu amor por ela. Isso ficaria para outra hora. Um dia teriam a ver com outra vida.

Começou a ler.


No escritório da editora Merris Langdon, Phaedra anotou algumas cifras no livro contábil. Somou os resultados. O total a deixou mais aliviada. Se as coisas continuassem assim, talvez a editora sobrevivesse. As dívidas poderiam ser reduzidas o bastante, pelo menos para tirar os oficiais de justiça da porta.

Jenny entrou carregando outro maço de papéis.

– A Hatchard’s quer mais quarenta e a Lindsell, mais vinte.

Phaedra anotou os pedidos. Alguns desses livreiros ficaram surpresos por fazerem negócios com uma mulher, mas o sucesso das memórias de Richard Drury tornara esses sentimentos insignificantes. Se também ficaram surpresos de tratar com Jenny, outra mulher, isso importara ainda menos.

– Está indo muito bem, não é, Srta. Blair? – perguntou Jenny.

– Muito bem, Jenny. Com os rumores, as vendas vão aumentar ainda mais. Acho que vamos ter que imprimir mais exemplares.

Jenny saiu e Phaedra voltou para as contas. Lembrou-se do pai na cama, colocando o manuscrito em suas mãos e pedindo que ela fizesse a promessa que lhe causara tantos problemas desde então.

Será que ele sabia que seria assim? Será que havia incluído os “comentários consideráveis sobre pessoas famosas e infames” para garantir que o livro vendesse bem e lhe garantisse alguma segurança? Ele não tinha muito mais para deixar em herança, e aquelas cem libras por ano que Phaedra recebia do tio mal bastavam.

Provavelmente conseguiria tirar um dinheiro para si em breve. Se escolhesse bem o livro seguinte, poderia obter uma renda regular com o negócio. Ela mergulhou a pena no tinteiro perguntando-se o que compraria com as primeiras libras ganhas com o próprio trabalho. Talvez um sofá novo...

Uma pontada abaixo do coração acabou com seus devaneios. Não, um sofá não. Haveria outros usos para o dinheiro em breve.

A pontada veio de novo. Assim como outra sensação, a de uma mão apertando seu peito.

Pousou a pena. Agora que o livro tinha sido publicado, era hora de falar com Elliot. Hoje seria um dia tão bom quanto qualquer outro. Seu coração bateu forte, de medo e empolgação pela ideia de encontrá-lo. Não que ela não quisesse. O que ela mais desejava era vê-lo, mesmo que o encontro pudesse não correr muito bem.

Ela se levantou e se encheu de coragem, respirando fundo. Enrolou a capa preta em volta do corpo. Pegou um exemplar embrulhado do livro do pai, avisou a Jenny que ia sair e se preparou para uma longa caminhada.


Elliot olhava pela janela. As árvores do jardim começavam a mudar de cor e as últimas florações se curvavam ao frio. Uma lembrança lhe ocorreu, de flores aveludadas rodeando um terraço em uma noite perto de Paestum.

Olhou de volta para a mesa. As memórias de Richard Drury estavam lá, arrumadas em pilha. Ele levara três horas para ler o livro.

A publicação causaria burburinho, disso estava certo. Drury tinha um bom olho para as fraquezas de seus conterrâneos. As observações no livro eram incisivas, inteligentes e muito reveladoras.

Ele deveria escrever a Phaedra e parabenizá-la pelo sucesso da publicação. Deveria escrever sobre outros assuntos também. Não, ele lhe faria uma visita.

Um criado entrou na sala.

– Senhor, uma mulher quer vê-lo.

Elliot não lhe deu muita atenção.

– Leve-a a minha tia. Não estou em casa para visitantes hoje.

– Ela foi muito explícita sobre não desejar visitar sua tia, mas o senhor.

Elliot voltou sua atenção para o criado.

– Ela lhe deu um cartão de visita?

– Não, senhor. Tentei dispensá-la, porém ela foi muito insistente – disse o homem, antes de fazer uma careta e prosseguir: – Ela está vestida de um jeito estranho. Parece um daqueles reformistas. Ou, melhor, uma... uma...

– Uma bruxa?

– Sim, senhor. Como sabe?

Ele se sentiu sorrir.

– Traga-a aqui.

Elliot se virou para as janelas, mas não viu mais o jardim. Imaginou Phaedra andando pela sala, com seu vestido preto flutuando em torno dela e o cabelo ondulando livremente.

Ela tinha vindo procurá-lo antes que ele fosse atrás dela. Não sabia o motivo da visita, nem isso importava. Fechou os olhos e sentiu sua presença na casa. Escutou o som de seus passos, espantado com a alegria que lhe causava.


O criado empurrou a porta e indicou que ela entrasse. Outra pessoa já estava lá.

Um homem estava de pé à janela, de costas para ela. Um homem lindo o bastante para deixar uma mulher sem palavras. Um homem tão confiante que seria justificado usar da arrogância que ele decidira não ter. Belo. Elegante.

Elliot se virou e Phaedra viu o calor em seu sorriso e em seus olhos. Ficou aliviada.

– Phaedra, estou feliz que esteja aqui. Eu estava de saída para procurá-la. Teríamos nos cruzado na rua sem nem perceber.

Ela não soubera o que esperar. A acolhida a acalmou. O efeito dele sobre ela não tinha se reduzido nem um pouco no último mês. Ela se viu sem fôlego.

Elliot a convidou para se sentar à mesa de desjejum. Depois puxou uma cadeira e se sentou à cabeceira, ao lado dela.

Por fim ela conseguiu encontrar a própria voz.

– Trouxe um exemplar do livro de meu pai para você.

– Obrigado, mas já o li – disse ele, e apontou para as páginas na outra extremidade da mesa.

Ela respirou fundo para manter a compostura. E para inalar a presença dele, seu cheiro e a realidade. Vê-lo ali era muito parecido com os sonhos que encheram sua cabeça em tantas noites. Só que nesses sonhos ele a pegava nos braços, jogava na cama e...

Havia uma distância entre eles, mesmo que Elliot estivesse próximo o bastante para tocá-la. Sua postura mostrava que ele fizera bons progressos em pôr fim ao encantamento que vivenciaram juntos.

Isso a desapontou horrivelmente. O coração dela queimou. Mas o que ela esperava?

Elliot deu um tapinha no embrulho que ela trouxera.

– Você tem um sucesso nas mãos, Phaedra.

Ela queria encostar os lábios na mão dele. Fazia um mês. Uma eternidade. Seu coração chorava e ria ao mesmo tempo.

– Vi que não há menção a Chalgrove – comentou.

– Ele me convenceu de que meu pai tinha exagerado aquela passagem. Foi a única pessoa que usou bons argumentos para me convencer.

Ele assentiu.

– No entanto, você acrescentou algumas notas no que se referia a sua mãe.

– Você me odeia por isso? Sei o que ele significa para você.

– É melhor que mais ninguém seja ludibriado. Desconfio que aquelas estatuetas e camafeus continuam vindo para a Inglaterra. Ele provavelmente descobriu aquela rede de falsificadores quando visitou a península Itálica depois da guerra. As peças que ele trouxe na volta venderam com tanta facilidade que ele decidiu se mudar para lá e fazer disso um meio de vida.

Elliot sorriu com pesar.

– E eu me ofereci para fazer parte dessa fraude com aquela nova estatueta que ele tinha.

– Ele não aceitou a oferta, Elliot, e não permitiu que você se maculasse com isso.

Contudo Matthias permitira que outros se maculassem. Tinha usado e abusado de Artemis na única vez em que ela se permitira apaixonar-se irremediavelmente.

– Na verdade, recebi uma carta dele na semana passada – disse Elliot. – Deve tê-la escrito logo depois que saímos de Positano. Entre outras coisas, ele expressou seu interesse em me deixar procurar um lar para a pequena deusa.

– Lamento ouvir isso, Elliot. Esperava que ele tivesse escrúpulos pelo menos em relação a você.

– Aparentemente, não tem.

Ela imaginou o jovem Nigel Thornton sofrendo em silêncio enquanto a mulher que amava era conquistada por Matthias Greenwood. Thornton devia ter visto o camafeu com Artemis, mas tinha sido do outro que ela o recebera.

– Talvez eu nunca ficasse sabendo que foi Matthias, e não Thornton, se você não tivesse mandado Chalgrove falar comigo e garantido que eu me encontrasse com ele, Elliot.

Ele lhe deu um sorriso triste em agradecimento.

– Escrevi imediatamente e adverti Matthias de que você descobrira tudo. A verdade viria a público, mais dia menos dia.

– Eu fiz o mesmo.

Ela o fizera por Elliot, não por Matthias.

Ele riu em silêncio.

– Bem, assim ele pode deixar o Reino das Duas Sicílias antes que suas acusações nessas memórias cheguem até lá.

– Talvez ele tenha companhia na fuga. Desconfio que Whitmarsh esteja envolvido. Ele saberia que a estatueta de bronze que Matthias nos mostrou era uma fraude que se fazia passar por antiguidade. Ele fingia ignorância. O Sr. Sansoni me disse que as falsificações eram feitas nas cidades montanhosas ao sul. Acho que era isso que Whitmarsh fazia nas caminhadas matinais, visitava as oficinas. Só lamento que Tarpetta não tenha que fugir também. Acho que ele era subornado por Matthias para fazer vista grossa.

– Se for verdade, Carmelita Messina vai se certificar de que toda a Positano fique sabendo.

Os olhos dele mostraram admiração.

– Você pensou em tudo isso, não? Acha que agora ela esteja vingada? Está mais feliz com suas últimas lembranças dela?

Estaria? Suas lembranças de Artemis tinham mudado muito nas últimas semanas. Era como se ela finalmente houvesse apagado as últimas partes de sua infância e enxergado a mãe com mais objetividade.

Phaedra ainda a adorava. Ainda a respeitava. Mas não se sentia mais na obrigação de defendê-la por seus erros de julgamento. E, como qualquer pessoa, Artemis também tinha cometido os seus.

– Estou mais em paz com tudo isso, Elliot.

As mãos dele se fecharam sobre as dela.

– Você acrescentou algumas partes, mas suprimiu outras, querida.

Ela olhou para as mãos dele nas suas. Mais morenas, mais fortes e tão masculinas. Ela amava as mãos dele. Tudo nelas. Principalmente o que sentia quando elas a tocavam, sua pegada e carícias firmes, porém suaves. Uma mulher poderia saber muito sobre um homem só em observar suas mãos.

– Por que não me disse que suprimiria o trecho sobre aquela morte na colônia do Cabo, Phaedra?

– Decidi de última hora, Elliot. Os tipógrafos estavam bem adiantados no livro.

Ela descreveu sua corrida impulsiva para a gráfica com um pedido para fazer uma modificação às pressas.

– Fiquei na expectativa de que você me traria alguma prova de que não era verdade. O menor indício já seria o bastante. Apesar da forma como você foi embora na última vez em que o vi, eu sabia que você ainda tentaria descobrir a verdade.

A prova não chegara. Nem ele voltara. Fora preciso decidir sozinha, sem desculpas ou racionalização, exceto as que seu coração lhe dera.

Ele olhou para a mão dela enquanto a acariciava com o polegar. A carícia sutil fez o braço tremer.

– Não consegui prova alguma para lhe dar. Fui me encontrar com o homem, Phaedra. Eu o procurei mesmo antes de vê-la na casa de Alexia. Interroguei-o sobre o acontecido. É horrível ter de perguntar a um homem se seu pai lhe deu dinheiro em troca de matar alguém.

– Ele negou?

– É claro.

– Então por que não me contou, Elliot? Eu teria ficado aliviada por ter qualquer motivo para...

– Não acreditei nele, Phaedra.

Ela não soube o que dizer. Só teria precisado de uma palavra. Só uma, mesmo que o homem tivesse mentido. Contudo Elliot decidira que não usaria a mentira dessa forma. Ele fora honesto com ela. Mais honesto do que ela pedira.

– Talvez seja melhor decidir acreditar nele, Elliot.

– Não posso mentir para mim mesmo tanto assim. Não mais. Mas agora entendo melhor meu irmão Christian. Cheguei à conclusão de que não quero ter certeza. Em breve, talvez concorde com Hayden e perceba que não me importa qual seja a verdade.

– A postura de Hayden é boa. Se isso aconteceu mesmo, foi um pecado e uma escolha de seu pai, não de vocês.

– Sangue é sangue, e ele se mancha indelevelmente.

Ele deu de ombros, como se não quisesse pensar mais naquelas questões.

– Christian lhe ofereceu 5 mil libras se retirasse aquelas páginas. Você deveria aceitar agora. Isso ajudaria a estabilizar sua editora.

Cinco mil libras. Isso quitaria as dívidas e deixaria a empresa em boa situação financeira. Ela se perguntou se Easterbrook investigara o valor de que ela precisava antes de pedir para Elliot oferecer a propina.

– Não digo que não fico tentada, Elliot.

Estava tão tentada que chegou a fazer uma careta para a decisão que estava prestes a tomar.

– Mas não fiz isso por dinheiro e não aceitarei.

– Então, por que o fez?

Ela engoliu em seco.

– Fiz porque as suspeitas de Merriweather poderiam ser equivocadas. Fiz por causa da amizade de Alexia.

Uma queimação agradável lhe subiu pela garganta.

– Mas, principalmente, fiz por sua causa, Elliot. Quando me vi sem saída, de repente isso pareceu uma pequena concessão de meu dever para com meu pai.

Por um instante Phaedra pensou que ele fosse beijá-la. O impulso estava nos olhos dele.

– Obrigado, do fundo do meu coração, Phaedra. Você demonstrou mais generosidade do que eu mereço. Sua decisão poupou inocentes dos fulgores do escândalo e o nome de meus pais das piores fofocas.

– Estou satisfeita com minha escolha, Elliot. Fiz a escolha certa, tenho certeza.

Ele olhou em volta do cômodo, para as janelas e a mesa, e pegou Phaedra pela mão.

– Venha comigo. Precisamos conversar e na biblioteca é mais confortável.


Elliot se sentou ao lado dela no sofá da biblioteca. Próximo o bastante para tocá-la. Ela tentou organizar seus pensamentos. Eles precisavam mesmo conversar, mas agora que era chegada a hora, todas as frases que havia ensaiado lhe faltavam.

Demorou um bom tempo para que Elliot olhasse para Phaedra. Ele também não disse nada. Entretanto, quando por fim virou o rosto para o lado dela, seu olhar foi o de um amante ausente há muito tempo.

Imediatamente, ele a excitou de todas as formas de que era capaz, só que agora os arrependimentos e anseios de um mês intensificavam cada sensação e emoção.

– É um inferno vê-la e não beijá-la, Phaedra.

– Eu não disse que você não podia me beijar.

A expressão dele ficou mais firme.

– Enquanto sua petição estiver sendo examinada, eu não posso. Isso não mudou. Nem minhas intenções.

– Quer que eu vá embora? Vê-lo trouxe o sol de volta à minha vida, mas não quero deixá-lo zangado.

– Não estou zangado. Estou feliz por você estar aqui, só que me sinto mais tentado a acabar com seus planos do que esperava.

Ela desejou que ele trancasse a porta, a abraçasse e não parasse por aí. Em vez disso, ele se levantou e se afastou, carrancudo. Elliot se virou e cruzou os braços.

Ela teria que lhe pedir para não fazer mais isso.

– Passei um mês me remoendo, Phaedra. Não adiantou nada. O que mais ainda tenho que lhe dizer ou fazer para convencê-la de que fomos feitos um para o outro?

– O que quiser dizer, Elliot. Vim aqui para ouvir. Vim aqui para ser convencida, se ainda me quiser desse jeito.

Ele se aproximou dela e a pegou nos braços. Finalmente, o abraço pelo qual ela tanto ansiara. Por fim, a ligação e a certeza de que seu coração tanto necessitava.

– Não sou nenhum Richard Drury, mas também não sou meu pai. Se você tem medo de que eu me torne alguém como ele, não tenha.

Ele falou com determinação, como se tivesse feito uma escolha e agora proferisse um juramento.

– Todo homem tem isso dentro de si, Elliot, mas não tenho medo. Se algum dia um homem me aprisionar ou me amarrar contra minha vontade, eu me libertarei. Contudo você sabe que não se trata da sua personalidade. Não foi você que eu rejeitei.

– Sei por que não acredita no casamento. Entendo isso. Não espero que você seja diferente do que é. Apaixonei-me por Phaedra Blair e não quero que você mude. Não pedirei isso e certamente não exigirei.

Ele olhou para o corpo dela.

– Não me importo se continuar a usar esses vestidos pretos. Você pode ficar com sua editora – disse, então fez uma pausa e depois deu de ombros para prosseguir: – Nem reclamarei de suas amizades, desde que os homens não queiram mais do que ser amigos.

Ela tocou o rosto dele com a palma da mão. Parecia tão certo, era tão bom poder tocá-lo.

– Não importa que eles queiram mais. Eu nunca mais vou querer. Já lhe disse que você não precisa de um casamento para isso.

Ele suspirou alto. Se era de alívio pela carícia ou de frustração por sua resistência, ela não sabia.

– Eu quero esse casamento, Phaedra. Preciso dele para saber que você é minha. Eu a amo ainda mais do que a desejo. Quero você ao meu lado para sempre. Quero voltar para uma casa em que você more. Você nunca sonha com essas coisas também?

Ele a beijou com doçura. O primeiro beijo em muitas semanas. Subiu à sua cabeça como vinho.

As palavras tocaram o coração de Phaedra. Não só as declarações de amor, apesar de elas a emocionarem a ponto de chorar. Ele fora honrado com ela. Concordara com a petição mesmo sem querer que o tribunal a aceitasse. Não tinha imposto no passado a vantagem que poderia tirar de seus votos, assim como ela sabia que ele não faria no futuro.

Ele fora justo e honesto. Fizera suas escolhas por amor. Escolhas altruístas. Tantas...

– É bom saber que você ainda quer que o casamento continue, Elliot, porque há uma boa chance de que minha petição seja indeferida. Houve outro desdobramento inesperado.

– Então desista dela, meu amor. Não se sujeite a isso se seus advogados veem poucas chances de sucesso. Prometo que você nunca se arrependerá...

Ele coçou a cabeça e franziu o cenho.

– Que desdobramento?

– Meu advogado disse que a petição não seria deferida se houvesse consequências.

– Sempre há consequências, então...

A ruga em seu cenho se aprofundou, depois desapareceu.

– Você quer dizer consequências do casamento? Um filho?

Ela assentiu.

– E há? Pode haver? Você está...

– Não tenho certeza absoluta ainda. Mas há uma possibilidade.

– Uma possibilidade grande?

– Maior a cada dia que passa. Isso complica muito as coisas, é claro.

– E você não me disse nada? Não importa. Não me incomodo com isso. Phaedra, este é um dos motivos pelo qual disse que não poderíamos fazer as coisas do seu jeito. Uma criança merece uma vida de abundâncias e mais cedo ou mais tarde você acabaria engravidando. Isso não complica nada. Simplifica tudo.

A aceitação dele a tranquilizou, mas seu julgamento, não.

– Minha vida não teve abundâncias e, mesmo assim, eu me virei bem, Elliot. Sou a mulher que sou por causa da forma como minha mãe me educou. Richard foi um pai para mim. Não é por causa de um indeferimento judicial que temos que morar juntos.

– É claro que vamos morar juntos. Vamos procurar uma casa imediatamente. De jeito nenhum terei que fazer visitas matinais à minha própria esposa. Você tem que desistir agora. Com certeza já percebeu isso.

Ele tinha razão. E ela sabia disso. Percebera antes mesmo de reconhecer os sinais que indicavam que ela devia estar grávida. A ideia não a aterrorizava. Na verdade, um risinho de felicidade borbulhava dentro dela quando pensava em ter um lar e uma família com Elliot. Um medo de que ela houvesse destruído a possibilidade de fazer deste um casamento feliz se esgueirara nela.

Não era por teimosia ou por se agarrar cegamente a uma crença que essa última rebelião contra seu casamento acidental surgira. Nem porque ela previra que o mundo a veria como vencida, ou Elliot como pego numa armadilha.

A emoção que fazia seu coração se acelerar vinha do espanto, do maravilhamento e da surpresa. O desejo abrira seu coração para o amor. Depois o amor a levara a ir mais adiante do que jamais pensara ser possível. Agora ela oscilava na última fronteira de seu mundo.

O próximo passo a deixaria com nada além de esperança, confiança e amor sob seus pés. Ali estava ela, Phaedra Blair, filha da famosa Artemis, uma mulher que, como a mãe, forjara o próprio destino, acuada como uma criança diante do desconhecido.

Isso a animava, mas também a assustava a ponto de deixá-la desorientada.

Ele percebeu tudo isso. Ela poderia até dizer que ele a entendia e era solidário.

– Você é forte, Phaedra. Forte e orgulhosa, e eu a amo por isso. Mas e se sua filha não for forte como você? E se ela se magoar com a rejeição dos amigos e ouvir cochichos de que é uma bastarda?

Ele segurou o rosto dela entre as mãos e a olhou fundo nos olhos.

– Você superou tudo isso, porém nem todos conseguem. E você será feliz, Phaedra. Vou fazer de tudo para isso, não importa o que seja preciso, porque eu a amo mais do que a meu orgulho.

Ela o encarou. Nunca olhara tão fundo nos olhos de ninguém como estava fazendo com aquele homem. Nunca tivera tanta certeza de que via a verdade no coração de uma pessoa. Eu tenho certeza. Esta é uma das poucas coisas na vida da qual não tenho a menor dúvida.

Sim, querida Alexia, minha amiga sábia. A pessoa sabe.

Ela tocou a mão dele e a levou até seu queixo.

– Eu concordo, Elliot. É assim que tem que ser. Sou uma mulher de sorte e fico aliviada por você acolher bem essa ideia. Creio que você me ame o bastante para que sejamos felizes. Acredito em você e sei que o amo o suficiente para que essa amizade dure para sempre.

Ela faria isso pela criança. Por ele também. Mas o principal é que faria por si mesma, pela oportunidade de amar e ser amada e se regozijar na intimidade que compartilhavam. Ela faria isso para manter a única coisa boa da qual tinha certeza.

E não ficaria sozinha andando sobre o nada quando deixasse os limites de seu mundo. Elliot estaria com ela, ajudando-a a encontrar o caminho.

Phaedra não disse mais nada, mas ele leu todos os seus pensamentos em seu coração. Os olhos dele deixaram transparecer isso. Assim como o beijo que deu nela.

E se havia um pequeno brilho de triunfo em seu olhar suave e alegre e uma carícia de posse junto com o beijo, ela não se importava.

Ele era homem, afinal.

Ela sentiu seu vestido se soltando. Ele a deitou no sofá, para que a união fosse completa. Seria forte e rápido dessa vez. Ela estava feliz. Haviam ficado longe por muito tempo e a impaciência dela combinava com a dele.

Phaedra o segurou junto de si enquanto o prazer e o amor a levaram para um mundo só deles. Respirou o mesmo ar que ele e gemeu na hora em que a preencheu. E gritou seu amor quando a febre que sentiam atingiu o ápice.

Na paz que se seguiu, em um êxtase tão repleto da unidade tranquila que seu coração não era capaz de conter, uma palavra chegou num sussurro.

Agora Phaedra já não a temia. Entendia que ela significava compartilhar amizade e amor eterno, que prometia felicidade e um fim à solidão – e anunciava um novo mundo criado por sua união, por terem um ao outro.

E, em meio à satisfação e à confiança, à gratidão comovente, o sussurro surgiu de novo e mais uma vez.

Só que dessa vez não veio dos lábios de Elliot.

Foi o coração de Phaedra que sussurrou:

Meu.


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OS ROTHWELLS


Jogos do prazer


CAPÍTULO 1

Roselyn Longworth refletiu sobre sua desgraça.

O inferno não era feito de fogo e enxofre, concluiu. Era feito de um cruel autoconhecimento. No inferno, você aprende a verdade sobre si mesmo. Enfrenta as mentiras que disse à própria alma para justificar um erro.

O inferno era também a humilhação infinita, exatamente o que ela sentia naquela festa numa casa de campo.

Ao redor, os outros convidados de lorde Norbury riam e brincavam enquanto aguardavam serem chamados para o jantar. No dia anterior, ao chegar na carruagem de lorde Norbury, descobrira que a lista de convidados não era o que esperava. Os homens faziam parte da sociedade culta, mas as mulheres...

Um grito interrompeu seus pensamentos. Uma mulher que usava um espalhafatoso vestido de noite azul-safira fingia afastar o homem que a agarrava. Os outros incentivavam o companheiro. Até Norbury fazia isso. Após a falsa resistência, a cativa se rendeu a um abraço e um beijo que não deveriam ser dados em público.

Roselyn avaliou os rostos maquiados e as roupas exageradas das mulheres. Os homens não tinham trazido suas esposas. Não tinham levado sequer suas amantes refinadas. Aquelas mulheres eram prostitutas dos bordéis de Londres. Ela desconfiava que algumas não teriam sequer tamanho status.

E ela estava no meio.

Não podia negar a dura conclusão a que isso levava. Os homens trouxeram suas prostitutas e lorde Norbury trouxera a dele.

Como ela podia ter interpretado tão mal os fatos ocorridos há um mês? Tentou se lembrar do dia em que lorde Norbury fizera os primeiros elogios e propostas, mas a recordação se fora, virara cinzas diante da chama impiedosa da realidade das últimas 24 horas.

De repente ele passou por entre seus convidados, vindo em sua direção. A cada passo, aumentava um pouco o brilho nos olhos dele. Antes ela via neles chamas de amor e paixão. Naquele momento, enxergava apenas reflexos gélidos.

Tinha sido uma idiota, patética.

– Está muito calada, Rose. Passou o dia todo assim.

Ele se aproximou, assomando ao lado da cadeira dela. No dia anterior, ela teria ficado feliz em receber a atenção dele e julgaria romântico seu gesto.

Burra, burra.

– Pedi que me deixasse ir embora. Só estou nesta sala porque o senhor exigiu que eu descesse para o jantar, portanto não reclame por não me envolver nas brincadeiras da sua festa. Não me interesso pelas pessoas que estão aqui, nem pelo comportamento libertino que demonstram.

No canto da sala, o casal enlaçado já não percebia o mundo ao redor, ainda que o mundo percebesse a apalpação deles.

– Nossa, como é orgulhosa. Muito mais do que deveria.

A observação tinha um toque cruel. Ela sentiu a nuca formigar.

Ele não se referia apenas à opinião dela sobre a festa. Rose havia recusado algumas coisas na noite anterior. A princípio, nem entendera o que ele queria e não escondera o espanto quando ele lhe explicara.

Em questão de minutos, o amante afetuoso e generoso se transformara no comprador zangado e cheio de desprezo. Frio. Duro. Mesquinho. Transformara-se num homem que pagara mais do que deveria por um bem e depois descobrira o engano.

Ela ficou com o rosto quente ao se lembrar da sórdida cena no quarto, antes que ele saísse. Pensava que era a amada, a amante. Ele deixara claro que a considerava uma prostituta como outra qualquer. As palavras mordazes tinham sido como tapas que a despertaram de uma ilusão criada por sua solidão e falta de esperança.

– Se sou orgulhosa, chame a carruagem e deixe-me partir. Seja gentil e permita que eu mantenha o pouco que me resta desse orgulho.

– Mas eu ficaria sem uma mulher. Vou parecer idiota na minha própria casa.

– Diremos que adoeci. Diremos que...

Ele colocou a mão no ombro dela, fazendo-a calar-se. Apertou com firmeza, para machucar. Ela tentou conter um tremor de repulsa por ter aquela mão em sua pele.

– Não vamos dizer nada. Você não vai a lugar nenhum. Espero que continue a demonstrar gratidão por minha generosidade. Se me agradar, podemos continuar com nosso acerto. Você gosta de vestidos e enfeites, Rose. Quer ter o luxo e o conforto que perdeu após a ruína de sua família.

Ela sentiu a garganta apertar. Piscou, afastando as primeiras lágrimas do dia.

– O senhor entendeu errado.

– Você me concedeu seus favores e sua inocência. Aceitou meus presentes. Não entendi errado coisa nenhuma.

Ele se inclinou, pondo o rosto a centímetros do dela. Rose conteve a vontade de afastar aquela cara vermelha, os olhos claros e os cabelos louros que antes eram de um homem a quem respeitava. Tinha até se convencido de que ele era bonito.

– Pelo menos agora nos entendemos, não é? – Ele fez a frase soar como uma exigência e completou: – Esta noite não haverá mais melindres infantis.

Ela sentiu o estômago revirar.

– Já houve muitos mal-entendidos e acredito que continue havendo. Passei o dia inteiro pedindo para ir embora porque não acontecerá nada esta noite.

A boca de Norbury se tornou uma linha tão dura que ela se sentiu aliviada por haver outras pessoas ali. A mão no ombro forçou o aperto.

– Está pondo a paciência de um homem à prova, Rose.

De novo, ela sentiu um formigamento na nuca, que dessa vez se espalhou pela coluna. Examinou o rosto dele em busca do homem jovial que até tão pouco tempo ela pensava amá-la. Não encontrou nada. Claro que não. Aquele homem nunca existira.

Um pequeno distúrbio quebrou a batalha silenciosa travada entre eles. O mordomo se aproximava. Norbury pegou o cartão que ele trazia numa salva de prata, leu-o e se afastou.

Abriu as portas que davam para a biblioteca. Antes que se fechassem, Rose viu de relance um homem alto, de cabelos negros, à espera.

Sentiu novamente o estômago revirar. Tentou conter o pânico que queria invadi-la.

Mais uma vez, tinha sido burra. Ignorante e cega. O que tinha acabado de enfrentar não era nada. A verdadeira descida ao inferno aconteceria à noite.


Ao entrar na biblioteca, Norbury parecia zangado. Kyle, que o esperava, vislumbrou a sala de visitas antes que as portas se fechassem.

– Bradwell. Pensei que você viesse mais cedo.

– Os inspetores demoraram mais do que o esperado – explicou Kyle, e então fez um gesto em direção à sala e comentou: – Você está se divertindo. Posso voltar amanhã.

– Bobagem. Já está aqui. Vejamos o que trouxe.

O rosto de Norbury se abriu num sorriso supostamente encorajador.

Kyle desconfiou que a irritação não era motivada pela hora da visita. Como quase todos os homens de sua posição social, o visconde de Norbury, filho e herdeiro do conde de Cottington, não gostava de ser contrariado. Julgava que todos, menos os seus pares, tinham obrigação de concordar com tudo o que ele fizesse ou dissesse. Pelo jeito, alguém ali não tinha seguido essa norma.

Kyle abriu um grande rolo de papel em cima da escrivaninha. Norbury se debruçou sobre o mapa. Olhou-o com atenção e apontou para uma parte vazia próxima de um riacho.

– Por que não há nada aqui? Podemos construir mais uma casa e de bom tamanho.

– Seu pai não quer mais uma casa que possa ser vista dos fundos do solar principal. Por causa do riacho, não há como aproveitar o terreno sem que uma casa fique...

– Ele não está em condições físicas ou mentais de decidir essas questões. Você sabe. Por isso ele me passou a administração dos negócios.

– O terreno continua sendo dele, que me deu ordens diretas.

Sem dúvida, a irritação de Norbury agora era motivada por Kyle.

– É típico dele. Concordou em dividir uma de nossas propriedades em pequenos lotes para satisfazer seus amigos arrivistas e depois se preocupa com o futuro do velho solar. Nunca o usamos, então por que se preocupar? Quero que construa mais uma casa aqui. Será a melhor e a mais cara do local.

Kyle não queria discutir, mas viu que seria obrigado. Norbury não entendia nada sobre loteamento de terras. Não sabia dizer qual a melhor área, muito menos os valores que seriam acertados. A família dele forneceria apenas o terreno e iria lucrar bastante. Os únicos riscos seriam assumidos por Kyle e pelos outros investidores do grupo que construiria aquelas casas e estradas.

– Você pode considerar insensatas as vontades de seu pai, mas não perdemos nada em atendê-las. Os compradores não gostariam de ter vista para o solar, da mesma forma que a sua família não gostaria de ver a casa dos compradores. Além disso, para construí-la, teremos que dar continuidade a esta estrada aqui, que atravessaria mais dois lotes e reduziria o valor deles.

Norbury olhou o dedo de Kyle percorrer o mapa. Não gostava de estar errado. Nenhum homem gostava.

– Bom, Kyle, suponho que vá funcionar do jeito que está – disse, por fim.

Aquilo soou como se o visconde concordasse, mas Kyle sabia que cada palavra tivera um motivo para ser usada. “Do jeito que está” dava a entender que poderia ter ficado melhor. “Suponho” era um lorde dando sua aprovação de má vontade. E chamá-lo de Kyle tinha sido a escolha de palavras mais condescendente de todas.

Os dois se conheciam muito bem. Tinham se encontrado muitas vezes na vida, desde meninos. Mas, mesmo se um gostasse do outro, o que não era o caso, as origens bem diversas e uma antiga hostilidade mostravam que jamais seriam amigos. Norbury se esforçava para que não ocorressem suposições erradas quanto a isso. A forma de tratamento era uma maneira de colocar o arrivista em seu lugar, que era bem abaixo de Cottington e Norbury. Evidentemente, Kyle não podia retribuir aquela informalidade.

– Vejamos o projeto das casas – sugeriu Norbury.

O “vejamos” era mais uma forma de arrogância.

Kyle desenrolou vários projetos. Levando em conta o humor de Norbury, concluiu que sua suspeita estivesse certa. Alguém na sala de visitas tinha atingido o orgulho do anfitrião.

Isso não era difícil. Norbury tinha um jeito jovial na maior parte do tempo, mas era temperamental às vezes. E também não era muito inteligente. De vez em quando era preciso mostrar-lhe o óbvio, como os problemas em lotear aquela parte do terreno. Infelizmente, Norbury podia se tornar mesquinho quando percebia ter sido idiota ou bancado o tolo.

O clima ficou mais amistoso enquanto discutiam a localização dos cômodos e quantos quartos de empregados as casas deveriam ter. Kyle fingiu concordar quando Norbury disse que qualquer pessoa precisava de uma dúzia de criados para ter o mínimo de conforto.

– Invejo esse seu talento – admitiu Norbury com um suspiro, apontando para um dos projetos. – Eu deveria ter estudado isso. Se não fosse a minha origem, talvez o mundo hoje tivesse outro Christopher Wren. Mas tenho obrigações a cumprir, não?

Mesmo sem achar graça, Kyle sorriu enquanto enrolava os projetos.

– Então nos vemos em Londres, como combinado. Levarei os projetos finais para nossa reunião.

– Imagino que teremos uma longa tarde. Até lá, receberemos notícias da França a respeito de Longworth e o grupo fará uma primeira reunião para decidir nosso posicionamento.

– Espero que terminemos logo com isso. É um obstáculo.

– Fique tranquilo, haverá justiça. Estamos todos empenhados.

Num momento de gentileza, que ocorria de vez em quando, Norbury o ajudou a amarrar os projetos com fitas.

Kyle fez menção de ir embora, porém notou que o dono da casa o observava.

– Seu casaco não está tão ruim, considerando-se que você esteve no campo hoje.

– Eu não estava fazendo cercas vivas.

– Aliás, belo casaco. Eu diria que é mais do que apropriado.

– Faço o possível.

– Eu quis dizer mais do que apropriado para sentar-se à mesa conosco – explicou o visconde e então fez sinal em direção à sala. – Mandei o mordomo chamar os convidados e avisar que eu iria ao encontro deles assim que terminássemos. Você também pode ir.

Norbury se encaminhou para a porta como quem esperasse ser seguido.

– Vai se divertir na festa – falou.

Sendo um homem de negócios, Kyle nunca perdia uma oportunidade de manter contato com pessoas ricas e de alta posição social. Os cavalheiros também não se incomodavam em recebê-lo. No final, o dinheiro fala mais alto que o sangue, e ele tinha talento para fazer os ricos ficarem mais ricos.

Seguiu Norbury até a sala de jantar. Os sons abafados de uma festa animada se transformaram num rugido quando a porta foi aberta.

Kyle deu uma olhada no grupo e percebeu que não faria qualquer contato de negócios naquela noite. Os homens podiam ser da nata da sociedade, contudo as mulheres, não. Eram prostitutas vulgares, extravagantes e muito maquiadas. As pessoas já estavam bêbadas o bastante para terem perdido qualquer pudor.

Menos uma das mulheres.

Uma loura de incrível beleza e elegância estava sentada perto da extremidade oposta da mesa. Parecia não tomar conhecimento dos outros convidados. Olhava para o nada e tinha uma expressão de passividade.

Tudo nela, da pluma discreta na cabeça ao vestido de noite vermelho e o porte que a fazia tão séria e digna, destacava-a dos homens e mulheres que tinham perdido toda a compostura.

Ele a reconheceu. Tinha-a visto pela primeira vez no teatro fazia dois anos. Depois de notar seu lindo rosto, mal conseguiu acompanhar o que se passava no palco.

Kyle olhou para Norbury:

– O que a irmã de Timothy Longworth está fazendo aqui?

– Eu a seduzi. Nem precisei me esforçar muito, na verdade. Parece que o sangue ruim está em toda a família. Mas já desfrutei de um pouco de justiça enquanto aguardo a queda daquele patife.


Roselyn desejou que o cavalheiro recém-chegado tivesse trazido notícias de algum problema que obrigasse lorde Norbury a se ausentar por dias.

Teve náuseas quando Norbury voltou a participar da festa. Sentiu um arrepio de repugnância quando ele percorreu a mesa em direção à cadeira vazia ao lado dela.

Notou que duas pessoas perceberam a reação. O homem alto e moreno que saíra da biblioteca junto com Norbury olhara para ela ao se sentar à outra ponta da mesa. Uma mínima mudança na expressão dele dera a entender que havia notado sua repulsa.

Em frente a ela na mesa, uma mulher chamada Katy também notara. Seus olhos brilhantes viram Norbury se aproximar, depois encontraram os de Rose, solidários.

Rose se agarrou a uma satisfação presunçosa de que a moça também estava sendo mantida ali à força. Mas Katy sorriu, solidária. Os homens ao redor dela estavam todos conversando e ela se inclinou para a frente, discreta.

– As coisas vão mal, não é?

Era uma avaliação tão sutil do que Rose vinha enfrentando que quase a fez rir.

– É, vão.

Katy balançou a cabeça, irritada.

– Ele devia saber e você também. Não combinaram as condições, não é? Precisa fazer isso no começo, não importa onde ele a tenha conhecido. Do contrário, as coisas ficam ruins.

– Parece que sim.

Norbury tinha parado para falar com um amigo, mas dali a pouco estaria na cadeira ao lado dela.

– Olhe, os homens são como crianças. Se a mamãe disser que não vão ganhar doce se não obedecerem, eles obedecem. Claro que alguns, não. Há sempre os que fazem a mamãe chorar, mas a maioria sabe como conseguir o que quer. Não é preciso magoar uma garota, se outra vai fazer com prazer o que ele quer pelo mesmo preço, não?

Rose não podia competir com a experiência e a lógica de Katy. Notou que Norbury se aproximava e se empertigou.

Katy examinou o vestido e o penteado dela.

– Se você quiser, podemos trocar. George, este aqui ao meu lado, é fácil e, se pagarem bem, tipos como o seu lorde não me incomodam.

– Obrigada, mas não quero ficar com George. Não quero nenhum. Eu quero...

– Vejo que finalmente se dignou a falar – comentou lorde Norbury ao sentar-se ao lado dela. – Que bom. De nada adiantaria estragar a festa.

Os olhos de Katy mostravam que sua oferta estava de pé. Rose olhou para George. O corpulento irmão de um barão percebeu e sorriu, satisfeito.

Katy concluiu que isso bastava e se pôs a flertar acintosamente com lorde Norbury. Rose começou a pensar desesperadamente numa estratégia, caso houvesse de fato uma troca de pares.

O homem que tinha entrado na sala com Norbury olhou para ela. Parecia maior e mais forte do que aqueles cavalheiros bêbados, mas talvez fosse só ilusão, pelo fato de ele estar sóbrio. Sentou-se ao lado de uma das mulheres e, de vez em quando, falava com ela e com o homem à frente na mesa. Mas, na maior parte do tempo, ele apenas observava os demais convidados enquanto jantava.

O rosto dele não tinha qualquer refinamento ou suavidade, mas era bonito. Não usava smoking, o que não fazia muita diferença na extrema informalidade do ambiente. O traje que usava era irrepreensível. Devia ter pedido ao alfaiate uma roupa cara, de um corte e um tecido que agradassem a todo mundo.

Katy parecia estar tendo sucesso em seduzir lorde Norbury. Porém, ainda que fizesse insinuações chocantes para Katy, o lorde continuava atento a Rose. Em vão, ela tentava adivinhar os pensamentos dele. Era óbvio que estava tramando algo.

O visconde se levantou para dirigir-se aos convidados. Aos poucos, eles se calaram.

– Imagino que alguns aqui não conheçam uma das pessoas presentes – começou ele. – Gostaria de apresentá-la.

Rose imaginou que ele apresentaria o homem que estava no final da mesa. Em vez disso, Norbury estendeu a mão para ela.

– Levante-se, minha cara.

Ela não podia fazer outra coisa senão levantar-se. Todos os olhos se fixaram nela. Os únicos sóbrios pertenciam ao convidado que chegara por último.

– As lindas moças devem estar se perguntando por que esta dama orgulhosa está no meio de vocês – disse Norbury. – A Srta. Longworth tem um irmão que fugiu das próprias dívidas, que não eram poucas. Ela tem bom berço, mas não o suficiente: o dinheiro acabou faz tempo e os parentes estão longe demais para fazerem diferença. Por acaso, seu último tropeço foi na minha cama e talvez tenha sido um tanto precipitado. Ela preferiu presentes a dinheiro, assim pôde fingir que as coisas não eram o que eram. E imaginou coisas românticas quando propus apenas uma boa troca.

Rose trincou os dentes para não chorar ou gritar. Todos a olhavam, rindo. Até Katy. As prostitutas assentiam. Sim, a Srta. Longworth era o tipo de dama que gosta de fingir. Aquelas mulheres que nunca fingiam também não tinham muita empatia.

Não, nem todos os presentes a olhavam. O último convidado parecia não ouvir o que se passava. Bebia de sua taça de vinho como se pouco se importasse.

– Bom, o fato é o seguinte – acrescentou Norbury. – Estou com essa mulher, mas cansei dela. Lastimo a indulgência com que a tratei e os presentes que a tornam tão linda no meio de vocês. Na verdade, estou interessado em outra.

Ele olhou para Katy, que tentou parecer pudica e surpresa.

– George, que está aqui ao meu lado, deve estar achando que vai haver uma simples troca. Não se acanhe, George, percebi o seu flerte. Mas talvez eu possa compensar minhas perdas nesse vestido e no restante. Então, o que acham, senhores? Posso leiloar a Srta. Longworth?

Os presentes acharam que um leilão seria bem divertido. Risos e gritos ecoaram enquanto todos se preparavam para uma ótima atração.

Rose não conseguiu disfarçar o choque. Virou-se para Norbury, de forma que ele percebesse sua reação, o que só serviu para aumentar a satisfação dele.

– Não vou aturar essa afronta.

Ela afastou a cadeira e se virou para sair. Foi impedida por alguém que a segurou pelo braço.

– Ela é espirituosa e precisa ser domada, senhores. Só isso, para alguns de vocês, já valeria uns xelins a mais.

Norbury apertou o braço dela com força. Apesar do sorriso, o olhar continha uma ameaça.

Alguns homens se aprumaram para ver melhor. Ela ficou enojada por eles se sentirem atraídos por uma mulher que seria tomada à força.

– Vejamos. Acho que devo exibi-la um pouco, não?

Norbury fingiu refletir.

Ela queria bater nele. Não, queria matá-lo. Tentou puxar o braço, mas ele apertou ainda mais os dedos.

– Você não vai fazer isso.

O visconde a ignorou.

– Bom, como vocês podem ver, ela é linda. Sempre a considerei uma das mulheres mais bonitas de Londres.

– Essa beleza não vai durar muito – avisou uma das prostitutas. – Ela deve ser alguns anos mais velha que eu.

– É verdade que é uma mulher madura, mas o homem que a dominar poderá desfrutar bastante até que sua encantadora beleza acabe.

Ele coçou a cabeça.

– Por uma questão de justiça, preciso falar nos defeitos também, não? Como fazer isso de maneira delicada? Não tem jeito. Sou obrigado a informar que ela não é muito participativa, o que os senhores devem saber o que significa.

Ela tentou se agarrar à raiva para não desmaiar. Ainda assim, os rostos pareciam se multiplicar e se mover, até que ela se visse diante de uma centena de máscaras cheias de malícia.

– Devo dizer também que, como ela começou tarde, ainda tem o que aprender.

Meu Deus.

– Posso dar umas aulas – ofereceu-se uma prostituta, segura.

Norbury fez uma reverência para ela.

– Minha cara, no livro da erudição carnal, você está redigindo o capítulo vinte e a Srta. Longworth ainda não chegou a ler o dois. Há homens que gostam de ensinar e são esses que devem abrir suas carteiras.

Rose se recusou a reagir. Isso atiçou o interesse de mais alguns. Norbury apertou os dedos ainda mais, a ponto de quase entorpecer o braço dela.

– Mas devo admitir algumas qualidades – emendou ele. – Primeiro: ela não é gananciosa. Segundo: para aqueles que, como eu, foram prejudicados pela falência do irmão dela, seus favores são uma compensação...

Pasma outra vez, não conseguiu continuar indiferente. Virou-se e olhou para ele. Não imaginava que tivesse sido essa a motivação dele. Não mesmo. Tinha se enganado quanto a tudo. Fora assediada e seduzida por vingança.

Canalha.

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

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