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Series & Trilogias Literarias
Crescer no seio da família Bedwyn não é tarefa fácil; que o diga a jovem Freyja Bedwyn. Tendo passado a infância rodeada por quatro rapazes, habituou-se desde cedo a igualá-los em ousadia e independência. Mas o atrevimento - tolerável numa menina - é considerado inaceitável numa mulher.
Quando, a meio de uma viagem a Bath, o quarto em que Freyja está hospedada é invadido por um atraente fugitivo, a jovem não tem meias-medidas e esmurra-o.
Ele é Joshua Moore, o petulante marquês de Hallmere. Nessa noite mal adivinham que, dias depois, estarão noivos. Para duas pessoas que anseiam por liberdade e parecem detestar-se, esta reviravolta é, no mínimo, inexplicável.
Entre o choque e a admiração, a alta sociedade não se cansa de especular sobre a origem de uma relação tão enigmática, excessiva, e ligeiramente escandalosa.
CAPÍTULO 1
Quando foi para a cama, Lady Freyja Bedwyn não podia estar mais mal-humorada. Dispensara a sua criada, embora uma pequena cama dobrável tivesse sido montada no seu
quarto e a rapariga se tivesse estado a preparar para dormir lá. Mas Alice ressonava e Freyja não tinha a menor vontade de dormir com uma almofada sobre a cabeça
e apertada contra as duas orelhas simplesmente para obedecer aos ditames do decoro.
- Mas Sua Senhoria deu-me instruções específicas, minha senhora - lembrou-lhe a rapariga, timidamente.
- Estás ao serviço de quem? - perguntou Freyja, num tom de voz imperioso. - Do duque de Bewcastle ou de Lady Freyja Bedwyn?
Alice olhou para ela ansiosa, como se suspeitasse de que se tratava de uma pergunta traiçoeira, e bem podia fazê-lo. Embora fosse a criada de Freyja, era o duque
de Bewcastle, o irmão mais velho de Freyja, que pagava o seu salário. E este tinha-lhe dado, de facto, instruções para não sair do lado da sua senhora dia e noite
durante a viagem de Grandmaison Park, no Leiscestershire, até à sua residência temporária no The Circus em Bath. Não gostava que as suas irmãs viajassem sozinhas.
- Ao seu serviço, minha senhora - respondeu Alice.
- Então sai. - Freyja apontou para a porta.
Alice olhou para a porta com incerteza. - Não existe nenhuma fechadura, minha senhora - afirmou.
- E se houver intrusos durante a noite, és tu quem me vai proteger do mal? - perguntou Freyja desdenhosamente. - O mais provável era que as coisas se passassem ao
contrário.
Alice exibiu uma expressão angustiada, mas não tinha outra escolha senão sair.
E foi dessa forma que Freyja se viu sozinha na posse de um quarto de segunda categoria numa estalagem de segunda categoria sem qualquer criado ao seu dispor e sem
qualquer fechadura na porta. E na posse igualmente de um mau humor considerável.
Bath não era um destino que lhe inspirasse muito entusiasmo. Era uma estância termal excelente e em tempos atraíra a nata da sociedade inglesa. Mas isso já não acontecia
hoje em dia. Atualmente era um ponto de encontro refinado para idosos, doentes e para aqueles que não tinham um local melhor para ir, como ela. Aceitara um convite
para passar um mês ou dois com Lady Holt-Barron e a sua filha Charlotte. Charlotte era uma amiga de Freyja, embora não fosse nem de perto nem de longe uma amiga
muito próxima. Em circunstâncias normais, Freyja teria declinado educadamente o convite.
Aquelas não eram circunstâncias normais.
Acabara de partir do Leicestershire, de Grandmaison Park, onde estivera de visita à sua avó, cuja saúde se mostrara frágil ultimamente, e onde tinha assistido ao
casamento do seu irmão Rannulf com Judith Law. Deveria ter regressado a casa, Lindsey Hall, no Hampshire, com Wulfric, o duque, e Alleyne e Morgan, o seu irmão mais
novo e irmã mais nova, respetivamente. Mas a ideia de estar lá naquele momento em particular revelara-se-lhe bastante intolerável e, sendo assim, tinha agarrado
a única desculpa que se apresentara para não regressar logo a casa.
Era verdadeiramente vergonhoso ter medo de regressar à nossa própria casa. Freyja cerrou os dentes enquanto se deitava na cama e apagava a vela. Não, não era medo.
Ela não temia nada nem ninguém. Apenas não queria estar lá quando aquilo acontecesse, mais nada.
No ano passado, Wulfric e o conde de Redfield, o vizinho deles em Alvesley Park, tinham acordado um casamento entre Lady Freyja Bedwyn e Kit Butler, o visconde Ravensberg,
filho do conde. Os dois conheciam-se desde sempre e tinham-se apaixonado arrebatadamente quatro anos antes, durante um verão, enquanto Kit estava em casa de licença
do seu regimento colocado na península. Mas na altura Freyja estava praticamente prometida em casamento ao irmão mais velho dele, Jerome, e deixara-se persuadir
a fazer o que a respeitabilidade e o dever ditavam: permitira que Wulfric anunciasse o seu noivado com Jerome. Kit regressara à península louco de fúria. Jerome
morrera antes de as núpcias se poderem realizar.
A morte de Jerome fez de Kit o filho mais velho e herdeiro do conde de Redfield e, de súbito, um casamento entre ele e Freyja tornou-se conveniente e desejável.
Ou pelo menos assim pensaram todos em ambas as famílias, incluindo Freyja.
Mas, aparentemente, não incluía Kit.
Não ocorrera a Freyja que ele pudesse estar decidido a vingar-se. Mas estava. Quando regressou a casa para aquilo que todos esperavam que fosse a celebração do noivado
de ambos, trouxe uma noiva consigo, a mais-do-que-respeitável, mais-do-que-encantadora e mais-do-que-desinteressante Lauren Edgeworth. E depois de Freyja o ter desafiado
temerariamente a levar o noivado adiante, casara-se com Lauren.
Agora, a nova Lady Ravensberg estava prestes a dar à luz o primeiro filho de ambos. Sendo uma esposa desinteressante e obediente, iria sem dúvida gerar um bebé do
sexo masculino. O conde e a condessa ficariam felicíssimos. Todos os vizinhos iriam indubitavelmente irromper num júbilo frenético.
Freyja preferia não estar sequer nas imediações de Alvesley quando isso acontecesse, e Lindsey Hall ficava perto.
Daí aquela viagem para Bath e a perspetiva de ter de se distrair durante um mês ou mais.
Ela não correra as cortinas. Com a lua e as estrelas lá no cimo e a luz de numerosas candeias do pátio da estalagem lá em baixo, o quarto quase parecia inundado
pela luz do dia. Mas Freyja não se levantou para fechar as cortinas. Em vez disso, puxou a roupa da cama para cima da cabeça.
Wulfric alugara uma carruagem privada para ela e contratara um autêntico desfile de cavaleiros corpulentos, todos com ordens rigorosas para a proteger de qualquer
mal e outras inconveniências variadas. Levavam instruções quanto a onde deviam pernoitar, num estabelecimento superior adequado à filha de um duque, mesmo uma que
viajava sozinha. Infelizmente, uma feira de outono na vila em questão havia atraído pessoas de todas as direções e não havia um único quarto disponível naquela estalagem
em particular nem em nenhuma outra nas imediações. Tinham sido obrigados a seguir viagem e depois parar ali.
Os cavaleiros queriam revezar-se a guardar a porta do quarto dela, especialmente depois de saberem que não existiam fechaduras em nenhuma das portas. Freyja tinha-os
feito desistir dessa ideia com uma firmeza que não permitira qualquer discussão. Não era prisioneira de ninguém e não iriam fazer com que se sentisse dessa forma.
E agora Alice também se fora embora.
Freyja soltou um suspiro e preparou-se para dormir. A cama tinha alguns altos. A almofada era pior. Havia um barulho constante vindo do pátio lá em baixo e da estalagem
à sua volta. Os cobertores não tapavam toda a luz. E ainda havia o dia de amanhã, durante o qual teria de enfrentar Bath. Tudo isto porque ir para casa se tornara
praticamente uma impossibilidade. Poderia a vida ser ainda mais desoladora?
Num futuro próximo, pensou, mesmo antes de se deixar adormecer, teria de começar a olhar a sério para todos os cavalheiros que conhecia - e existiam muitos, apesar
de ela ter agora vinte e cinco anos de idade e ter sido sempre feia - que fariam o que fosse preciso se desse a entender que um casamento consigo era uma possibilidade.
Ser solteira numa idade tão avançada não era uma situação propriamente alegre para uma senhora. O problema era que não estava completamente convencida de que estar
casada fosse muito melhor. E seria demasiado tarde para descobrir que realmente não era esse o caso depois de se casar. O casamento era uma prisão perpétua, como
os irmãos dela gostavam de afirmar, embora dois dos seus quatro irmãos tivessem aceitado livremente essa prisão nos últimos meses.
Freyja acordou sobressaltada algum tempo depois, quando a porta do quarto dela se abriu subitamente e depois se fechou de novo com um estalido audível. Não estava
sequer segura de que não estivera a sonhar até olhar e ver um homem de pé junto à porta, vestido com uma camisa branca aberta no pescoço, calças e meias escuras,
um casaco sobre um dos braços e um par de botas na outra mão.
Freyja saiu disparada da cama como se tivesse sido expelida de um canhão e apontou de forma imperiosa para a porta.
- Fora daqui! - exclamou.
O homem dirigiu-lhe um sorriso rasgado, bem visível à meia-luz do quarto.
- Não posso, querida - disse ele. - Essa direção é sinónima de desgraça certa. Tenho de sair pela janela ou esconder-me algures aqui dentro.
- Fora daqui! - Ela não baixou o braço, ou o queixo. - Eu não dou guarida a criminosos. Ou a qualquer outro tipo de criatura masculina. Lá para fora!
Algures no exterior do quarto ouviam-se os sons de um pequeno alvoroço sob a forma de vozes agitadas a falar ao mesmo tempo e passos, todos estes a aproximarem-se
cada vez mais.
- Não sou nenhum criminoso, querida - disse o homem. - Sou simplesmente um homem inocente que se pode meter num sarilho muito grave se não desaparecer depressa.
O armário está vazio?
As narinas de Freyja adejavam.
- Fora daqui! - ordenou mais uma vez.
Mas o homem cruzou o quarto a correr na direção do armário, abriu a porta com violência, viu que estava vazio e entrou lá para dentro.
- Ajude-me, querida - disse ele, mesmo antes de fechar a porta pelo lado de dentro -, e salve-me de um destino pior do que a morte.
Quase em simultâneo, ouviu-se uma pancada seca e forte na porta. Freyja não sabia se deveria marchar na direção da porta do quarto ou do armário. Mas essa decisão
foi evitada quando a porta se abriu de rompante mais uma vez, revelando o estalajadeiro a segurar uma vela ao alto, um cavalheiro baixo, entroncado e grisalho e
um indivíduo careca e corpulento que estava a precisar desesperadamente de fazer a barba.
- Fora daqui! - exigiu ela, completamente enfurecida. Trataria do homem que estava dentro do armário depois de tratar deste mais recente ultraje. Ninguém entrava
sem ser convidado no quarto de Lady Freyja Bedwyn, quer esse quarto fosse em Lindsey Hall, na casa londrina dos Bedwyn ou numa estalagem reles com pretensões de
requinte sem fechaduras nas portas.
- Peço-lhe perdão, senhora, por a incomodar - disse o cavalheiro grisalho, inchando o peito e inspecionando o quarto à luz da vela em vez de se concentrar em Freyja
-, mas creio que um cavalheiro acabou de correr aqui para dentro.
Se ele tivesse esperado por uma resposta à pancada na porta e depois se lhe dirigisse com a deferência apropriada, Freyja podia ter denunciado o fugitivo dentro
do armário sem quaisquer escrúpulos. Mas ele tinha cometido o erro de irromper pelo seu quarto e de a tratar como se ela não existisse senão para lhe fornecer informação
e a sua presa. O indivíduo com a barba por fazer, por outro lado, não fizera mais nada a não ser olhar para ela, com uma expressão lúbrica pateta na cara. E o estalajadeiro
estava a exibir uma lamentável ausência de preocupação pela privacidade dos seus hóspedes.
- Acredita realmente que sim? - perguntou Freyja altivamente. - Está a ver o cavalheiro em questão? Se não, sugiro que feche a porta sem fazer barulho à saída e
permita que eu e os outros hóspedes deste estabelecimento retomemos o nosso descanso.
- Se não se importar, senhora - disse o cavalheiro, fitando a janela fechada, a cama e depois o armário -, gostaria de revistar o quarto. Pela sua própria proteção,
minha senhora. Ele é um patife perigoso e não é de modo nenhum seguro junto de senhoras.
- Revistar o meu quarto? - Freyja inspirou lentamente e observou-o do cimo do seu proeminente e ligeiramente adunco nariz Bedwyn com uma altivez gélida até ele finalmente
olhar para ela e a ver pela primeira vez. - Revistar o meu quarto? - Ela voltou o olhar para o estalajadeiro silencioso, que se escondeu atrás da proteção da sua
vela. - É esta a hospitalidade da casa da qual se gabou com tão pomposa eloquência aquando da minha chegada, homem? O meu irmão, o duque de Bewcastle, irá saber
disto. Ficará sem dúvida interessado em saber que permitiu que outro hóspede, se é que este cavalheiro se trata sequer de um hóspede, batesse com violência na porta
do quarto da irmã dele a meio da noite e entrasse de rompante sem esperar por resposta, meramente porque acredita que outro cavalheiro fugiu para aqui. E que o senhor
ficou de braços cruzados, sem uma palavra de protesto, enquanto ele fazia a sugestão insolente e despropositada de ser autorizado a revistar o meu quarto.
- Estávamos obviamente enganados, senhor - disse o estalajadeiro, meio escondido atrás do canto da porta, embora ainda estivesse a segurar a vela bem longe de si
para iluminar o quarto. - Ele deve ter escapado por outro lado ou escondeu-se noutro lugar. Peço-lhe perdão, senhora, minha senhora, isto é. Permiti que isto acontecesse
porque temia pela sua segurança, minha senhora, e achei que o duque iria querer que a protegesse a todo o custo de patifes perigosos.
- Fora daqui! - disse Freyja uma vez mais, com o braço imperiosamente esticado na direção da porta e dos três homens que lá se encontravam. - Fora deste quarto!
O cavalheiro grisalho lançou um último olhar ávido em torno do quarto, o bruto da barba por fazer lançou-lhe um último olhar lúbrico e depois o estalajadeiro inclinou-se
à frente de ambos e puxou a porta, fechando-a.
Freyja ficou a olhar fixamente para ela, de narinas abertas, o braço e dedo ainda esticados. Como se atreviam? Nunca tinha sido tão insultada. Se o cavalheiro grisalho
tivesse proferido mais uma palavra ou o indivíduo boçal lhe tivesse lançado mais um olhar lúbrico, teria marchado até eles e batido as cabeças de ambos uma contra
a outra com força suficiente para os pôr a ver estrelas durante uma semana.
Era mais do que certo que não iria recomendar aquele estabelecimento a nenhum dos seus conhecidos.
Quase se esquecera do homem no armário até a porta se abrir com um rangido e ele sair lá de dentro. Era um jovem alto e de membros compridos, observou ela à luz
generosa que vinha da janela. E bastante loiro. Provavelmente também tinha olhos azuis, embora a luz não fosse suficiente para lhe permitir verificar essa teoria.
Todavia, conseguia ver a ponto de supor que era demasiado bem-parecido para o seu próprio bem. Ele exibia igualmente uma expressão alegre muito pouco apropriada.
- Foi uma atuação magnífica - declarou ele, pousando as botas altas no chão e atirando o casaco para cima da cama dobrável. - É realmente irmã do duque de Bewcastle?
Correndo o risco de parecer repetitiva, Freyja apontou para a porta de novo.
- Fora daqui! - ordenou ela.
Ele limitou-se a sorrir de orelha a orelha e deu um passo na sua direção.
- Na minha opinião, não - disse ele. - Por que motivo iria a irmã de um duque pernoitar neste estabelecimento muito pouco grandioso? E sem uma criada ou uma acompanhante
para a guardar? Foi uma atuação maravilhosa, apesar disso.
- Posso viver sem a sua aprovação - disse ela com frieza. - Não sei o que fez de tão terrível. Não quero saber. Quero-o fora deste quarto e quero que saia agora.
Vá procurar outro lado onde se possa encolher de pavor.
- Pavor? - Ele riu-se e pousou uma mão sobre o coração. - Feriu-me os sentimentos, meu encanto.
Ele estava muito perto dela, suficientemente perto para Freyja se aperceber de que o cimo da sua cabeça mal chegava ao queixo dele. Mas fora sempre uma mulher baixa.
Estava acostumada a governar o seu mundo abaixo do nível de grande parte da ação.
- Não sou a sua querida nem tão-pouco o seu encanto - disse-lhe ela. - Vou contar até três. Um.
- Com que propósito? - Ele colocou as mãos na cintura dela.
- Dois.
Ele baixou a cabeça e beijou-a. Em cheio na boca, com os lábios ligeiramente afastados para que houvesse uma sensação chocante de intimidade quente e húmida.
Freyja inspirou bruscamente, levou um braço atrás e deu-lhe um soco com força no nariz.
- Ai! - disse ele, tateando o nariz cautelosamente e contraindo a boca. Retirou a outra mão da cintura dela e Freyja observou com satisfação que o tinha feito sangrar.
- Ninguém lhe ensinou que uma senhora normal deveria esbofetear um homem nestas circunstâncias escandalosas e não dar-lhe um soco no nariz?
- Eu não sou uma mulher normal - disse-lhe ela severamente.
Ele exibiu mais um sorriso rasgado e tocou ao de leve no nariz com as costas de uma mão. - Fica adorável quando está zangada - disse ele.
- Fora daqui.
- Mas eu não posso fazer isso, sabe - disse ele. - Aquele avozinho e o seu capanga pugilista estarão à minha espera para me fazer uma emboscada e é tão certo que
o meu destino seja um grilhão na perna quanto é eu estar aqui neste momento.
- Não quero saber dos pormenores sórdidos - disse ela, apercebendo-se nesse momento do porquê do seu aspeto descomposto. - E por que motivo haveria de me importar
se eles estiverem de facto à espera para lhe fazer uma emboscada?
- Porque, querida - disse ele -, ver-me-iam a sair do seu quarto, tirariam as suas próprias conclusões ligeiramente escandalosas e a sua reputação sofreria um duro
golpe.
- Não tenho dúvidas de que iria sobreviver ao choque - disse ela.
- Tenha pena de mim, ó formosa dama - disse ele, sorrindo-lhe de novo. Será que aquele homem não levava nada a sério? - Caí num velho truque. Estava um cavalheiro
idoso e a sua neta, uma donzela extraordinariamente encantadora, na sala de estar lá em baixo sem nada que fazer para passar as horas do serão e estava lá eu, de
igual modo ocupado, ou desocupado. Foi a coisa mais natural do mundo que eu e o avô jogássemos algumas partidas de cartas enquanto a dita donzela nos observava silenciosa
e docemente, sempre na minha linha de visão. Depois de me ter retirado para ir dormir e ela ter vindo até ao meu quarto para oferecer um entretenimento adicional
(suponho que terá reparado que não existem fechaduras nas portas?) deveria ter apontado virtuosamente para a porta e ordenado que saísse? Eu sou feito de carne e
osso. No fim de contas, foi verdadeiramente uma sorte ainda estar de pé e meio vestido e o avô não ter esperado muito tempo antes de irromper pelo quarto, cheio
de fúria moralista, com o estalajadeiro e o rufião de ar feroz na sua peugada como testemunhas. Também tive sorte que eles tivessem irrompido impetuosamente pelo
quarto em bloco, deixando a porta sem guarda. Fiz uso da saída que me foi assim proporcionada, disparei ao longo do corredor o mais depressa que pude e... abri a
única porta que estava à minha disposição. Esta. - Indicou a porta do quarto dela com um gesto floreado do braço.
- Preparava-se para seduzir uma rapariga inocente? - O peito de Freyja inchou.
- Inocente? - Ele riu-se por entre os dentes. - Foi ela quem veio ter comigo, querida. Não que eu me tivesse mostrado de algum modo relutante, sinto-me obrigado
a admitir. É um artifício que alguns homens usam para casar as suas filhas ou netas de modo vantajoso, compreende, ou pelo menos extorquir uma importância considerável
como forma de compensação pela virtude perdida. Ficam à espera para fazer emboscadas em locais como este até um pobre pateta como eu aparecer e depois entram em
ação.
- Seria muito bem feito - disse ela severamente - se tivesse sido apanhado. Não sinto a menor compaixão por si.
E no entanto, pensou, aquele era exatamente o tipo de sarilho em que Alleyne se podia ver metido, ou Rannulf, antes do seu casamento recente com Judith.
- Vou ter de ficar aqui durante o resto da noite, receio eu - disse o desconhecido, olhando em volta. - Por acaso não está inclinada a partilhar a sua cama comigo?
Freyja brindou-o com o seu olhar mais frio e altivo, aquele que paralisava em segundos a maior parte dos comuns mortais.
- Não? - Ele fez de novo um sorriso rasgado. - Terá de ser a cama dobrável, nesse caso. Tentarei não ressonar. Espero que também não ressone.
- Vai sair deste quarto - disse-lhe ela - antes de eu contar até três, ou eu grito. Muito alto. Um.
- Não vai fazer isso, querida - disse ele. - Vai denunciar-se como mentirosa aos seus visitantes de há pouco.
- Dois.
- A não ser - disse ele com um riso abafado - que lhes explique que devo ter entrado no quarto em bicos de pés e me escondi no armário enquanto continuava a dormir
e que depois fiz notar a minha presença assim que presumi que não houvesse perigo.
- Três.
Ele olhou para ela, arqueou várias vezes as sobrancelhas, e depois voltou-se com um desprendimento deliberado na direção da cama dobrável.
Freyja gritou.
- Céus, mulher - disse ele, erguendo uma mão como se a pretendesse fechar sobre a boca dela.
Mas deve ter sido óbvio para ele que isso seria o mesmo que colocar trancas na porta depois de a casa ter sido roubada. Freyja possuía uma considerável capacidade
pulmonar. Ela soltou um grito bem longo e alto sem ter de parar uma única vez para respirar.
O desconhecido agarrou no casaco e nas botas, precipitou-se na direção da janela, puxou para cima o caixilho com violência, pôs a cabeça de fora, atirou a roupa
e o calçado lá para fora e a seguir desapareceu.
A queda até ao chão devia ser de pelo menos dez metros, calculou Freyja, sentindo um remorso momentâneo. Provavelmente, naquele momento, os seus restos mortais esmagados
estavam espalhados pelo pátio lá em baixo.
A porta abriu-se com violência, revelando uma verdadeira multidão de pessoas nos mais variados estados do processo de vestir, com o estalajadeiro a aparecer por
último ao lado do cavalheiro grisalho e do rufião de expressão lúbrica.
- Ele sempre invadiu o seu quarto, minha senhora? - perguntou o homem grisalho acima de um clamor de vozes que exigiam saber o que se passava e quem tinha sido assassinado
na cama.
Mas ela desprezava o homem, quer pelos seus próprios motivos, quer pelos do desconhecido que ele tentara apanhar numa armadilha utilizando uma mulher, isto se acreditasse
na história. Era igualmente provável que o desconhecido tivesse fugido com todos os valores do homem.
- Um rato! - gritou Freyja, a arfar e a agarrar o pescoço. - Um rato atravessou a minha cama a correr.
Houve um grande rebuliço enquanto algumas das senhoras presentes gritaram e olharam à sua volta à procura de cadeiras para onde pudessem subir e alguns homens se
precipitaram para dentro do quarto para dar início a uma animada caça ao rato debaixo da cama, atrás do móvel onde estava o jarro com água, do armário, debaixo da
cama dobrável e no meio das malas de Freyja.
Entretanto, Freyja foi obrigada a manter um papel que lhe era muito pouco familiar. Estremeceu e adotou uma expressão indefesa.
- Atrevo-me a dizer que deve ter sido um sonho, senhora, isto é, minha senhora - disse por fim o estalajadeiro. - Não é muito frequente termos ratos dentro de casa.
Os gatos mantêm-nos à distância. Se foi de facto um rato que viu, já desapareceu, sem sombra de dúvida.
Alice chegara no meio da comoção, os olhos arregalados de terror, imaginando provavelmente o que iria dizer ao duque de Bewcastle, ou, mais acertadamente, o que
ele lhe diria a ela, se o pescoço da sua senhora tivesse sido cortado de lés a lés enquanto dormia noutro lugar que não o quarto onde deveria estar.
- A sua criada ficará consigo, minha senhora - disse o proprietário enquanto os outros hóspedes dispersavam, alguns indignados por terem sido tão rudemente despertados,
outros claramente desapontados por não terem testemunhado um rato a ser apanhado e executado pela transgressão de ter atravessado a correr uma cama com um humano
lá dentro.
- Sim. Obrigada. - Freyja achou que o tom da sua voz fora adequadamente patético.
- Vou dormir na cama dobrável, minha senhora - anunciou corajosamente Alice depois de todos se terem retirado e a porta ter sido fechada. - Eu não tenho muito medo
de ratos, desde que eles não saiam do chão. Acorde-me se ele a incomodar de novo e eu afugento-o para longe. - Estava obviamente aterrorizada.
- Vais voltar para a tua cama, onde quer que ela esteja - disse-lhe Freyja. - Gostaria de dormir nas horas que restam da noite.
- Mas, minha senhora... - começou Alice a dizer.
- Achas que eu tenho medo de um rato? - inquiriu desdenhosamente Freyja.
A criada pareceu compreensivelmente confusa.
- Bom, não achava que tivesse - respondeu.
- Sai. - Freyja apontou para a porta. - E que esta seja a última interrupção que qualquer uma de nós sofre no resto da noite.
Assim que se viu sozinha, correu até à janela, pôs a cabeça de fora e olhou para baixo, com medo do que poderia ver. Ele era um tratante e um patife, e merecia o
que lhe estava a acontecer. Mas certamente que não merecia a morte. Não, sentiria pena, e até alguma culpa, se tivesse sido esse o seu destino.
Não havia qualquer sinal do desconhecido, das suas botas ou do seu casaco.
Foi nessa altura que reparou na hera espessa que crescia ao longo da parede.
Bom, fosse como fosse, era um alívio, pensou, fechando a janela e voltando-se para dentro. Talvez agora pudesse contar com algumas horas de sono pacífico.
Porém, parou subitamente antes de chegar à cama e olhou para baixo.
Toda aquela cena, ou conjunto de cenas, tinha sido desempenhada enquanto estava vestida apenas com a sua camisa de noite, de pés descalços e com o cabelo solto e
num tufo volumoso de caracóis enredados ao longo das costas.
Deus do Céu!
E depois sorriu.
E depois soltou um riso abafado.
E depois sentou-se na beira da cama e riu em voz alta.
Que absurdo fora aquilo tudo!
Não se conseguia lembrar da última vez em que se divertira tanto.
CAPÍTULO 2
Joshua Moore, marquês de Hallmere, vinha do Yorkshire, onde ficara hospedado em casa de um amigo, para passar a semana com a sua avó, a viúva Lady Potford, em Bath.
Podia indicar uma dúzia de outros lugares nos quais preferia estar sem forçar muito as suas faculdades mentais, mas gostava muito da avó e não a via há cinco anos.
Deixou o cavalo numa cocheira de aluguer, encontrou a casa certa na Great Pulteney Street, bateu levemente a aldraba contra a porta e reparou, com algum divertimento,
na forma como a expressão do rosto do serviçal que a abriu passou de uma deferência calculada para um desdém altivo.
- Senhor? - disse ele, fechando parcialmente a porta e bloqueando o intervalo entre esta e o caixilho com a sua pessoa vestida de negro. - O que pretende daqui?
Joshua sorriu-lhe alegremente. - Veja se Lady Potford está em casa e pergunte-lhe se me pode receber, sim? - perguntou.
O homem parecia prestes a informá-lo, sem sequer se dar ao trabalho de verificar, de que a sua senhora estava ausente.
- Diga-lhe que é o marquês de Hallmere - acrescentou Joshua.
O nome obviamente significava alguma coisa para ele. A expressão do homem passou por mais uma alteração, transformando-se numa máscara inexpressiva e educada à medida
que abria a porta completamente para trás, se colocava de lado e fazia uma vénia.
- Se tiver a bondade de esperar aqui, meu senhor - murmurou ele.
Joshua avançou para o átrio de mármore axadrezado preto e branco e observou o serviçal, o mordomo, sem dúvida, a subir as escadas, as costas rigidamente direitas
e tensas, plenas de desaprovação educada, e a desaparecer de vista. Passados cerca de dois minutos, reapareceu.
- Se tiver a bondade de me seguir, meu senhor - anunciou ele a meio das escadas -, a senhora irá recebê-lo.
Lady Potford estava numa sala de estar quadrada e agradavelmente mobilada com vista para a elegância ampla e clássica da Great Pulteney Street. Continuava magra,
com uma postura ereta, e requintadamente vestida e penteada, reparou Joshua quando entrou a passos largos na sala, embora o cabelo estivesse mais grisalho do que
recordava. Estava, de facto, bastante branco junto às têmporas.
- Avó! - Ele teria avançado a grandes passadas até junto dela para a abraçar se ela não tivesse erguido um lornhão preso a uma corrente de ouro fina junto ao pescoço
até aos olhos com um ar pesaroso.
- Meu querido Joshua - disse ela -, fui mesmo tonta ao imaginar que a aquisição do título certamente te tornaria respeitável. Não admira que o Gibbs exibisse a sua
expressão mais inexpressiva e pouco comunicativa quando veio anunciar a tua chegada.
Joshua baixou o olhar para si próprio, abatido. Embora o casaco e calças estivessem decentes, as botas altas careciam de qualquer brilho e ainda exibiam vestígios
de lama da noite anterior. Assim como o casaco, na verdade. A camisa era a mesma da véspera e estava enrugada. Grande parte desta estava escondida sob o casaco,
é claro, mas havia a lamentável ausência de um lenço de pescoço para a fazer parecer ligeiramente respeitável ou um colete para a esconder mais. Estava igualmente
sem chapéu nem luvas. Não se barbeava desde a noite anterior, nem passara um pente pelo cabelo. Em suma, devia exibir um mau aspeto extraordinário. Devia parecer
alguém que acabara de sair a cambalear de uma orgia pela noite fora.
Verdade fosse dita, beijara duas mulheres diferentes na noite anterior, mas, lamentavelmente, em nenhuma das duas ocasiões lhe fora dado tempo ou oportunidade para
se entregar a algo semelhante a uma orgia.
- Tive um pequeno problema numa estalagem a noite passada - explicou ele - e escapei exatamente como me está a ver. Consegui resgatar o meu cavalo do estábulo da
estalagem, mas infelizmente fui obrigado a abandonar todos os meus pertences. O meu criado particular irá sem dúvida resgatá-los e trazê-los para cá mais tarde.
Não será a primeira vez que ele acorda e descobre que eu já parti.
- Não tenho a menor dúvida disso - respondeu Lady Potford de forma mordaz, deixando cair o seu lornhão preso à corrente. - Bom, será que tenho direito a um beijo?
Ele sorriu, deu os três passos que faltavam até junto dela, envolveu-a nos braços, girou-a em torno de si e beijou-lhe afetuosamente a face ao mesmo tempo que a
pousava de novo no chão. Ela abanou a cabeça, meio exasperada, meio a reconhecer que devia estar à espera de algo semelhante da parte dele.
- Rapaz descarado - murmurou ela.
- É bom vê-la, avó - disse ele. - Já há imenso tempo que não a via.
- E quem é o culpado disso? - perguntou ela severamente. - Tens andado a vaguear sem destino no estrangeiro há anos, segundo as más-línguas e as tuas raras cartas,
embora nem queira imaginar de que forma conseguiste fazê-lo enquanto a guerra ainda estava a ser combatida. É uma pena que fosse preciso o teu tio morrer para voltares
a Inglaterra.
A morte do tio tinha proporcionado a Joshua o seu título, propriedade e fortuna, assim como todos os encargos inerentes a isso.
- Não foi bem assim, avó - disse ele. - Foi o fim da guerra que me trouxe de volta a Inglaterra. Com Napoleão Bonaparte aprisionado na ilha de Elba e os Ingleses
livres para vaguear sem destino pela Europa de novo, deixou de ser possível divertir-me a esquivar-me do perigo.
- Bom, não interessa - disse ela, abanando a cabeça de novo. - Agora estás em casa, independentemente da razão, ou quase em casa, pelo menos. E é assim que deve
ser.
- Não tenho qualquer intenção de voltar para Penhallow, se é isso que tem em mente - disse-lhe ele. - Existem muitos outros lugares aonde ir e outras experiências
para serem vividas.
- Oh, senta-te por favor, Joshua. És demasiado alto para eu estar a olhar para ti aqui de baixo. - Ela própria também se sentou. - És o marquês de Hallmere agora.
Devias estar em Penhallow, a propriedade é tua agora. Tens deveres e responsabilidades lá. Já vem sendo altura de voltares para lá.
- Avó. - Ele sorriu-lhe ao mesmo tempo que se sentava na cadeira que ela indicara e passava pesarosamente uma mão pela barba de uma das faces. - Se tenciona dar-me
sermões sobre a importância do dever durante a próxima semana, ver-me-ei obrigado a partir rumo ao pôr do sol em busca de outro sarilho.
- Sem dúvida que não precisarias de procurar muito longe - disse ela. - Os sarilhos parecem vir a galope à tua procura, Joshua. Os teus olhos estão raiados de sangue.
Presumo que não tenhas dormido esta noite. Não te perguntarei o que mais fizeste para além de cavalgar rumo a Bath num estado tão escandalosamente descomposto.
Ele bocejou até o maxilar estalar, um gesto bastante descortês na presença de uma senhora, e ao mesmo tempo o seu estômago roncou de forma bastante audível.
- Estás num estado absolutamente lamentável, Joshua - observou a avó sem cerimónia. - Quando é que comeste pela última vez?
- A determinada altura durante o serão da noite de ontem - admitiu ele com um ar bastante envergonhado. - Também fui obrigado a abandonar a minha carteira, sabe.
- Vira-se forçado a fazer alguns desvios complicados e morosos em torno de cancelas de portagens no caminho até lá.
- Deve ter sido mesmo um grande problema - disse ela, pondo-se de pé e puxando o cordão da campainha ao lado da lareira. - Quase me sinto tentada a perguntar se
ela era bonita pelo menos, mas isso estaria muito abaixo da minha dignidade. Deixar-te-ei ao cuidado do Gibbs. Ele alimentar-te-á, far-te-á a barba e depois deves
querer dormir um pouco. Não vais ter muito mais para fazer até o teu criado particular chegar com uma muda de roupa. Tenho várias visitas a fazer.
- Comer, fazer a barba e dormir. Por essa ordem, parece-me o Paraíso - disse ele, num tom de agrado.
Lady Holt-Barron comprazeu-se alegremente pelo feito de ter aliciado Lady Freyja Bedwyn, irmã do duque de Bewcastle, a vir até Bath, na qualidade de sua hóspede.
Charlotte estava mais satisfeita apenas pelo facto de ter uma amiga da sua idade ali.
- A mãe não parava de insistir em virmos para Bath de novo, Freyja - explicou à medida que as duas passeavam no Pump Room1 de manhã cedo após a chegada de Freyja
enquanto Lady Holt-Barron, posicionada na mesa da água com um copo das famosas águas termais na mão, exibia um sorriso orgulhoso de orelha a orelha enquanto conversava
com um grupo de conhecidos que faziam o mesmo. - Ela acredita que um mês das águas lhe dá boa saúde durante o resto do ano. Pode ter razão, mas o pai, o Frederick
e os rapazes foram à caça, como fazem sempre nesta altura do ano, e eu preferia de longe estar com eles. Estou-te tão agradecida por teres concordado em vir.
Não havia muitas oportunidades para conversas privadas. O Pump Room era o local mais popular para as pessoas se encontrarem todas as manhãs e se dedicarem ao exercício
e à má-língua, assim como à toma das águas para os que se sentissem inclinados a fazê-lo, mas, na realidade, descobriu Freyja, a quantidade de exercício que se fazia
ao caminhar no salão de tetos altos de estilo georgiano elegantemente mobilado era mínima. De facto, dava-se alguns passos e depois parava-se para cumprimentar conhecidos
e conversar com eles alguns minutos antes de dar mais alguns passos e parar de novo. E sendo ela uma recém-chegada, e ainda por cima com um título de nobreza, descobriu
que toda a gente desejava falar com ela, cumprimentá-la, e interrogá-la a propósito de notícias de fora de Bath.
O dia prosseguiu de uma forma ainda menos agitada. Foram às compras na Milson Street depois do pequeno-almoço. Freyja nunca tivera prazer nessa obsessão feminina
quase universal. Arrastou os pés entre lojas de vestidos, modistas de chapéus e joalharias, na peugada de Lady Holt-Barron, com uma Charlotte entusiástica ao seu
lado, e perguntou-se qual seria a reação de todos à sua volta se parasse no meio do passeio, abrisse a boca e gritasse, de modo tão enérgico como fizera há duas
noites. Deu por si a sorrir perante essa recordação. Nunca tivera o hábito de gritar, mas sentira um enorme regozijo ao dar largas àquele grito e ver o desconhecido
sorridente e presunçoso a mergulhar pela janela.
O sedutor presunçoso fora posto em debandada.
- Oh, então sempre gostas dele, Freyja - disse Charlotte, reparando no sorriso. Estava a exibir um chapéu arrojado com uma pluma escarlate muito garrida em vez da
sua touca mais modesta. - Eu também, e não me parece que consiga resistir a comprá-lo, embora já tenha mais chapéus do que alguma vez irei precisar. Devo comprá-lo,
mãe?
- Se Lady Freyja gosta dele - disse Lady Holt-Barron -, deve ser de primeira ordem, Charlotte. E de facto parece bastante bonito.
Durante a tarde fizeram algumas visitas sociais e a seguir tomaram chá nos Upper Assembly Rooms2, onde estavam mais pessoas com as quais tinha de conversar. O conde
de Willett estava presente. Estava hospedado em Bath em casa de um tio, de quem constava que era provável que viesse a herdar uma fortuna considerável. Ele prestara
uma atenção intencional a Freyja desde a morte de Jerome, mas ela nunca o tinha encorajado. Era um homem baixo, de cabelo e sobrancelhas ruivas e pestanas loiras,
embora não fosse a sua aparência banal que o tornava pouco atraente, mas a sua conduta sempre rigidamente conveniente e desprovida de humor. Afinal de contas, ela
própria não era nenhuma beleza. Mas nunca era rigidamente conveniente.
No panorama de Bath, porém, onde a maioria dos habitantes eram idosos, tinha de admitir que a juventude do conde era, por si só, um ponto de atração. Cumprimentou-o
mais calorosamente do que teria feito se se tivessem encontrado em Londres e ele sentou-se à mesa de Lady Holt-Barron e desfez-se em amabilidades para com as três
senhoras durante mais de meia hora.
- Minha querida Lady Freyja - disse Lady Holt-Barron após ele ter deixado a mesa, erguendo significativamente as sobrancelhas -, creio bem que fez uma conquista.
- Ah, mas o problema, minha senhora - disse Freyja altivamente -, é que ele não a fez.
Charlotte riu-se. - Parece-me que seria um desperdício do seu tempo, mãe - disse -, tentar fazer o papel de casamenteira de Freyja.
No serão, regressaram aos Upper Rooms para um concerto. Freyja não desgostava de música. Na verdade, existiam muitos tipos de música que tinham o poder de a encantar.
Sopranos operáticas não. Mas quis a sorte que a convidada de honra fosse uma soprano com um nome italiano, um grande peito e uma voz possante, que exibiu no máximo
do seu volume ao longo do recital. Talvez fosse da opinião, pensou Freyja, com os tímpanos a contrair-se perante as notas altas agudas, de que um volume superior
era sinónimo de uma qualidade superior.
O conde Willett arranjou forma de sentar-se ao lado dela durante a segunda parte depois de trocarem algumas palavras no intervalo.
- A nossa audição pode ser permanentemente afetada por uma atuação deste género - comentou ela.
Alleyne ou Rannulf ter-lhe-iam respondido no mesmo tom e, após algumas trocas de palavras deste tipo, teriam de se esforçar para reprimir as gargalhadas.
- Sim, é um facto - concordou o conde solenemente. - É divina, não é verdade?
E aquele era apenas o primeiro dia.
O segundo começou da mesma forma, com a única diferença de que na manhã anterior o tema sensação de todas as conversas fora a chegada de Freyja a Bath, enquanto
naquele dia se centrava na chegada do marquês de Hallmere. Todos aguardavam com uma expectativa ansiosa a sua aparição no Pump Room com a viúva Lady Potford, a sua
avó materna. Freyja conhecia Lady Potford, mas nunca travara conhecimento com o marquês. Quando a senhora chegou, porém, vinha sozinha. A sensação de desapontamento
na sala era bastante palpável.
- Ele é jovem - explicou Lady Holt-Barron - e consta que muito bem-parecido. Claro que é um dos melhores partidos de Inglaterra. - Olhou maliciosamente para Freyja.
E por esse motivo, seria considerado bem-parecido mesmo se parecesse uma gárgula, supôs Freyja.
Bastava a chegada de alguém novo, de preferência alguém com um título de nobreza, para agitar o espírito daquelas pessoas, pensou Freyja com um grande suspiro interior
à medida que deixavam o Pump Room para regressar a casa e tomar o pequeno-almoço. Tinha cometido um erro medonho ao vir para Bath. Enlouqueceria no espaço de duas
semanas, no espaço de uma semana! Mas depois recordou-se da alternativa, estar em Lindsey Hall, a aguardar o anúncio iminente de Alvesley, e decidiu que devia suportar
de alguma maneira o seu exílio durante pelo menos um mês. Além disso, seria indelicado da sua parte deixar os Holt-Barron tão cedo.
No entanto, Freyja não conseguia tolerar outra manhã de compras. Utilizou a desculpa de ter algumas cartas para escrever para não acompanhar Charlotte e a mãe e
sentou-se de facto, para apaziguar a consciência, na escrivaninha do seu quarto a escrever a Morgan, a sua irmã mais nova. Deu por si a descrever o que acontecera
na estalagem onde passara uma noite a caminho de Bath, romanceando consideravelmente a história, embora os factos concretos fossem de facto suficientemente sensacionais
por si só. Morgan apreciaria o humor de tudo aquilo e podia confiar nela a ponto de saber que não mostraria a carta a Wulfric.
Era mais do que certo que Wulf não acharia aquilo divertido.
Estava um belo dia para o início de setembro, se bem que um pouco ventoso. Freyja sentiu vontade de andar a cavalo. As colinas que rodeavam Bath eram perfeitas para
serem percorridas a cavalo. Mas se enviasse um criado para alugar um cavalo e esperasse que este lhe fosse trazido, Charlotte e a mãe podiam regressar das compras
antes de o cavalo chegar e dar-se-ia um grande espalhafato em torno da questão de enviar um lacaio consigo para a proteger. Nunca fora capaz de suportar criados
a arrastar-se atrás de si enquanto andava a cavalo. Em vez disso, decidiu caminhar e partiu sozinha assim que mudou de roupa, com o seu vestido verde de passeio
a fazer um ruge-ruge contra as pernas à medida que descia a passos largos a colina íngreme onde ficava a casa, no The Circus. O seu cabelo loiro espesso estava preso
num penteado e praticamente domado sob o chapéu de penas, pousado com desenvoltura de um dos lados da cabeça.
Caminhou com passadas largas pelo centro de Bath, acenando com a cabeça a alguns conhecidos e esperando não encontrar por azar as suas anfitriãs e ser obrigada a
passar o resto da manhã em lojas com ambas, seguiu por um atalho ao longo do cemitério da abadia, ao lado do Pump Room e da própria abadia, mudou de direção para
caminhar ao longo do rio e depois reparou na majestosa ponte Pulteney em frente, da qual se esquecera, uma vez que já não vinha a Bath há muitos anos. Do outro lado
da ponte, recordava-se agora, ficava a esplendidamente ampla e elegante Great Pulteney Street. E os Sidney Gardens não ficavam no final dessa rua?
Não tencionava caminhar até tão longe, mas sentiu que estava a respirar fundo pela primeira vez em dias e não tinha a menor vontade de regressar já a casa. Fez um
desvio para caminhar pela ponte, olhando fugazmente para as montras das pequenas lojas enquanto passava, e depois descobriu que a memória não a atraiçoara. A pouca
distância à sua frente estendia-se uma das mais magníficas vistas de uma cidade reconhecidamente magnífica.
No final da Great Pulteney Street virou para Sidney Place, tencionando cruzá-lo para chegar até aos jardins. Mas depois reparou no letreiro a indicar que a Sutton
Street ficava à sua esquerda, franziu o sobrolho e parou abruptamente. Bastaram alguns segundos para se aperceber do motivo pelo qual aquele nome lhe parecia tão
familiar. Era na Sutton Street que Miss Martin tinha a sua escola para raparigas. Freyja hesitou, fez um esgar, hesitou de novo e depois avançou com firmeza ao longo
da rua. Até sabia o número da casa.
Cinco minutos depois, encontrava-se de pé numa saleta humilde com pretensões de elegância, a aguardar a chegada da própria Miss Martin. Esta não era, definitivamente,
uma boa ideia, decidiu Freyja. Nunca tinha ido ali pessoalmente, lhe escrevera, ou permitira sequer que o seu procurador utilizasse o seu nome.
Miss Martin não a fez esperar muito. Continuava pálida, com uma expressão carrancuda e costas bem eretas, tal como Freyja se recordava dela. Os seus olhos cinzento-escuros
fitavam os de Freyja com a mesma firmeza de sempre, mas agora ela atrevia-se a devolver o olhar com uma hostilidade mal disfarçada por uma máscara de cortesia.
- Lady Freyja. - Ela inclinou a cabeça, mas não fez uma vénia. Não lhe ofereceu uma cadeira ou uma bebida, nem exprimiu surpresa ou contentamento. Não apontou para
a porta ordenando à sua visita que saísse. Limitou-se a olhar, com uma expressão de interrogação educada no rosto.
Freyja ficou a gostar um pouco mais da mulher por causa disso.
- Ouvi dizer que tinha uma escola aqui - disse Freyja, disfarçando o seu próprio embaraço com mais altivez do que a habitual. - Estava de passagem e decidi fazer-lhe
uma visita.
Que palavras tontas!
Miss Martin não se dignou a responder. Limitou-se a inclinar a cabeça.
- Para ver como se estava a dar - acrescentou Freyja. - Para ver se havia alguma coisa de que a sua escola tivesse necessidade. Alguma coisa que eu pudesse proporcionar.
Os olhos de Miss Martin exibiam espanto agora, e a hostilidade era mais ostensiva.
- Estou a sair-me muito bem, obrigada - disse ela. - Tenho alunas pagantes, alunas em regime de beneficência e várias boas professoras. Também tenho um benfeitor
que tem sido amável e generoso para mim e para as minhas meninas. Não tenho qualquer necessidade da sua caridade, Lady Freyja.
- Bom. - Freyja notara a pobreza mal disfarçada daquele lugar e concluiu que o benfeitor não tinha sido suficientemente generoso. Ou que a pessoa que estava a serviço
do benfeitor possuía uma noção diferente da do seu empregador quanto ao que seria um financiamento adequado. - Achei que valia a pena fazer a oferta.
- Obrigada. - A voz de Miss Martin estremeceu com uma emoção que a sua pessoa não aparentava. - Só posso esperar que tenha mudado nestes nove anos, Lady Freyja,
e que tenha vindo aqui movida por uma amabilidade genuína em vez de uma esperança maliciosa de me encontrar desesperada e na miséria. Não é esse o caso. Mesmo sem
a generosidade do meu benfeitor, a minha escola está a começar a pagar as despesas. Decididamente não preciso da sua assistência, nem de mais qualquer visita sua.
Bom dia. As minhas alunas estão a perder a aula de História.
Pouco depois, Freyja estava a caminhar pelos Sydney Gardens, ainda com o coração a bater de forma errática e as orelhas a arder da reprimenda e da antipatia com
a qual fora proferida.
Não devia ser uma hora popular para estar ali, concluiu com algum alívio. Passou por muito poucas pessoas enquanto avançava pelos caminhos labirínticos, e não se
cruzou com ninguém que conhecesse. Aquele não era, supôs, um lugar para andar a caminhar sem uma criada a segui-la como devia ser. Mas nunca se importara com as
conveniências, e naquele momento em particular sentiu-se mesmo muito satisfeita por estar completamente sozinha. Sentou-se num banco rústico durante algum tempo,
junto de um carvalho antiquíssimo, a saborear a luz do sol no rosto e a mera sugestão de outono no ar, observando um par de esquilos à busca de algo semelhante a
alimento que os visitantes do parque pudessem ter deixado para trás. Eram extraordinariamente mansos. Em todo o caso, deixou-se ficar muito quieta. Não os queria
afugentar.
Ela afugentara uma série de precetoras quando era rapariga. Nunca aceitara de bom grado estar presa a algum lugar, fazer o que lhe diziam, prestar atenção a matérias
que achava terrivelmente aborrecidas, aceitar a autoridade de senhoras insípidas de boas famílias. Tinha sido um horror, na verdade.
Wulf sempre encontrara outras ocupações para as suas precetoras depois de as dispensar ou aceitar a sua demissão e Freyja nunca pensara muito nessa questão. Até
ao momento em que Miss Martin mostrara uma determinação inesperada ao abandonar Lindsey Hall, a pé, de cabeça erguida, tendo recusado qualquer tipo de assistência
da parte de Wulf.
Pela primeira vez na vida, Freyja tinha ficado genuinamente abalada por uma precetora, ou uma ex-precetora, naquele caso em particular. Tolerou a seguinte, embora
fosse a mais insípida de todas, durante o resto do tempo da sua instrução.
Foi por acidente que ouviu falar de Miss Martin de novo. Tinha aberto uma escola em Bath, mas estava a passar por sérias dificuldades e teria de a fechar muito em
breve. A história foi contada maliciosamente a Freyja por uma pessoa das suas relações que esperara que ela ficasse encantada com o sucedido. Não foi o caso. Recorreu
a um procurador, dissuadiu-o da ideia de que precisava de um homem para a acompanhar e tratar dos seus negócios e recompensou-o extremamente bem para que localizasse
Miss Martin, determinasse as necessidades da sua escola e lhe anunciasse que um benfeitor anónimo estava preparado para dar resposta a essas necessidades, mediante
a condição de que pudesse provar a um inspetor todos os anos que a educação que oferecia às suas alunas tinha um nível aceitável.
Desde essa altura, Freyja começou a entusiasmar-se com o seu novo papel de benemérita da humanidade merecedora e enviou a Miss Martin várias alunas em regime de
beneficência e até mesmo uma professora necessitada, facultando os fundos necessários ao sustento de todas.
A pobre Miss Martin teria um ataque de fúria se soubesse a identidade da sua benfeitora.
E ela própria ficaria bastante mortificada, pensou Freyja enquanto observava, absorta, os esquilos, se alguém descobrisse a sua indulgência secreta. Porque não passava
disso mesmo. Qualquer precetora que não conseguisse controlar quem estava a seu cuidado merecia ser dispensada. E qualquer precetora dispensada que era demasiado
orgulhosa para aceitar o auxílio do seu empregador merecia passar fome.
Soltou uma pequena gargalhada. Como gostara de Miss Martin naquela manhã. Como a teria desprezado se tivesse bajulado a sua antiga atormentadora.
Foi então que um grito a fez voltar bruscamente à realidade - um grito feminino, vindo de algures no fundo da colina, depois de uma curva no caminho sinuoso. As
árvores escondiam a pessoa que gritara da vista de Freyja, mas ouviam-se também os sons distintos de uma luta confusa, uma voz masculina grave, um grito menos frenético
e uma voz feminina aguda. Os esquilos romperam numa correria até à árvore mais próxima e dispararam pelo tronco acima, desaparecendo entre os ramos e as folhas.
Freyja pôs-se de pé num salto. Ela própria também era uma mulher. Era pequena. Não tinha ninguém a acompanhá-la, nem sequer uma criada. Estava num parque que parecia
quase deserto e que se tornava ainda mais isolado pelas colinas e árvores das quais era composto. Não era o momento ideal para um ato heroico. Qualquer mulher normal
naquela situação ter-se-ia voltado para a direita e corrido na direção oposta, afastando-se o mais depressa que as pernas a conseguissem levar.
Freyja não era de todo uma mulher normal.
Voltou-se para a esquerda e avançou com passadas largas pelo caminho, quase desatando numa corrida. Não teve de ir muito longe. Quando contornou a curva, uma área
relvada ficou à vista mesmo à sua frente. Sobre ela encontrava-se um homem-besta grande e alto, um cavalheiro, ainda por cima, a agarrar uma criadita franzina. Os
braços dela estavam presos contra o peito dele e ele estava a baixar a cabeça com o intuito lascivo de reclamar o seu prémio, se bem que para completar o ato iria
sem dúvida arrastá-la para os arbustos nos momentos seguintes.
- Tire as mãos de cima dela! - ordenou Freyja, alongando a sua passada. - Seu canalha bruto. Solte-a.
Eles separaram-se com um salto e voltaram os rostos igualmente sobressaltados na sua direção. E depois a criadita, rapariga sábia, gritou de novo e abalou pela colina
abaixo o mais depressa que os pés a conseguiam levar, sem olhar para trás.
Freyja não abrandou o passo. Marchou em frente até ficar a meros centímetros do patife, levou o braço atrás e deu um murro no nariz daquele predador de inocência
feminina.
- Ui! - disse ele, com a mão a subir de rompante para cobrir o órgão ofendido. E depois os olhos lacrimejantes focaram-se nela. - Bem me parecia que tinha reconhecido
este suave toque feminino. É a senhora, não é?
Ele estava elegantemente vestido com um casaco de montar azul, calças de montar de camurça, botas altas reluzentes e um chapéu alto na cabeça. Mas com um choque
de reconhecimento, Freyja reparou nos membros longos, no corpo perfeitamente proporcionado, no cabelo muito loiro sob o chapéu e nos olhos muito azuis do homem que
vira pela última vez a mergulhar pela sua janela da estalagem três noites antes. Adónis e o Diabo juntos numa única pessoa. Ela respirou fundo de forma audível.
- Sim, sou eu - afirmou. - E agora estou sinceramente arrependida por não ter revelado o seu esconderijo no armário àquele cavalheiro grisalho e abandoná-lo ao seu
destino.
- Não está nada, pois não, querida? - perguntou ele, tendo o descaramento de lhe sorrir, não obstante os olhos lacrimejantes e o nariz avermelhado. - Mas que falta
de desportivismo da sua parte.
- Seu patife ignóbil e covarde - declarou ela. - Seu devassador perverso da inocência. Não merece qualquer consideração. Irei denunciá-lo e fazer com que seja expulso
de Bath e que se mantenha longe da companhia de pessoas respeitáveis.
- Não me diga? - Ele inclinou-se um pouco na direção dela, com os olhos a brilhar de uma hilaridade lacrimejante. - E a quem me irá denunciar, meu encanto?
Freyja sentiu-se a inchar de indignação. - Irei descobrir a sua identidade - declarou. - Não poderá sair à rua em Bath de novo sem eu o ver e descobrir quem é.
- Bom - disse ele -, ambos sabemos que a senhora não é a filha de um duque, não é assim? Onde está o seu séquito de guardiões e parasitas?
- Não irá desviar a minha atenção - disse ela severamente. - Acha que pode agarrar qualquer criada simplesmente porque é uma criada? E porque é demasiado bonito
para o seu próprio bem?
- Sou? - Ele esboçou um sorriso rasgado de novo. - Suponho que não está com disposição para me permitir explicar o sucedido, pois não, querida?
- Eu não sou a sua querida - disse ela. - E não preciso de quaisquer explicações para além do testemunho dos meus próprios ouvidos e olhos. Ouvi a rapariga a gritar
e vi-o com ela presa nos braços, prestes a cumprir o seu objetivo malicioso. Não sou estúpida.
Ele cruzou os braços por cima do peito e observou-a com olhos brilhantes e lábios contraídos. Ela ficou muito tentada a esmurrá-lo mais uma vez no nariz.
- Não - disse ele -, talvez não. Mas não tem receio de que, com o meu intuito malicioso recém-frustrado e as minhas ânsias violentas por satisfazer, eu possa decidir
precipitar-me sobre si agora?
- Desafio-o a tentar - disse ela friamente. - Garanto-lhe que iria regressar a casa com mais nódoas negras do que acharia confortável.
- Um desafio tentador. - Ele riu-se. - Mas claro que a senhora consegue gritar bem mais alto do que aquela criadita que acabou de escapar às minhas garras. Creio
que será mais sensato não arriscar. Um bom dia para si, minha senhora.
Ele tocou com a mão na aba do chapéu, fez-lhe uma meia-vénia trocista e atravessou o relvado num passo descontraído com as suas pernas longas em direção ao caminho
lá ao fundo.
Freyja foi coroada vencedora do campo.
Joshua soltou uma risada abafada para si próprio enquanto caminhava. Quem diabo era ela?
Pensara nela algumas vezes nos últimos dias, sempre com algum divertimento. Parecera sedutoramente bem proporcionada de camisa de noite. O cabelo loiro, selvagem,
com madeixas soltas sobre os ombros e pelas costas abaixo só tinha aumentado a sua atração. A fúria, ousadia, ausência total de inibição ou medo haviam despertado
o seu interesse. A recusa inesperada dela em ceder ao seu jogo tinha conquistado a sua admiração, embora provavelmente tivesse partido o pescoço ao lançar-se por
aquela janela se não tivesse reparado naquela hera mesmo a tempo.
A sua primeira impressão naquela manhã fora que ela era feia. Não era feia do pescoço para baixo. Era uma mulher pequena, mas no seu vestido de passeio de bom corte
parecera tão bem proporcionada como na outra noite. Até o cabelo, naquele dia preso decentemente sob um chapéu pequeno e encantador, mas que ao mesmo tempo ainda
conseguia parecer ondulado e bastante indómito, não se podia considerar desprovido de atração. Mas as sobrancelhas eram incongruentemente escuras em contraste com
a cor quase loira do cabelo e o nariz era proeminente, com uma curvatura. Tinha olhos verdes ferozes e uma tez escura pouco elegante.
Não havia nada de delicadamente feminino nos seus traços. Não era bela, nem sequer bonita. Mas também não era feia. Existia demasiado caráter atrás daqueles olhos
para isso. Se fosse generoso, podia considerá-la bem-parecida. Se fosse sincero, chamar-lhe-ia atraente.
Quem quer que a tivesse ensinado a dar um murro tinha sem dúvida feito bem o seu trabalho. Se muitos mais iguais àqueles aterrassem no seu nariz, pensou Joshua lugubremente,
podia muito bem adquirir uma curvatura semelhante à dela.
Uma semana em Bath iria realmente parecer interminável, pensara há apenas uma hora, por muito satisfeito que estivesse por ver de novo a sua avó após tanto tempo.
No dia anterior, apesar de ter ido a pé até à Pulteney Bridge e voltado, ter saído a cavalo, como fizera naquela manhã, e depois ter percorrido um atalho desde as
cocheiras de aluguer, através dos Sidney Gardens, e até à Great Pulteney Street como estava a fazer naquele momento, ao todo passara demasiado tempo dentro de casa,
a ser sociável para as visitas da sua avó durante a tarde e a acompanhá-la ao jogo de cartas privado de Mrs. Carbret ao serão em vez de ir ao concerto nos Upper
Rooms.
Embora estivesse na posse do título há mais de seis meses, ainda lhe parecia estranho ser apresentado como o marquês de Hallmere, e notar a deferência adicional
no comportamento das pessoas assim que o seu título de nobreza era mencionado.
Nunca quis o título nem nenhum dos apanágios que tinham vindo com ele, muito menos Penhallow, a casa senhorial do marquês na Cornualha. Viveu lá dos seis aos dezoito
anos e odiou quase todos os momentos que lá passou. Enquanto filho órfão do irmão do marquês, nunca o tinham feito sentir-se bem-vindo na casa do tio. Fizera algumas
visitas à avó e ao tio materno, Lord Potford, filho desta, ao longo dos anos, mas nunca se queixara a eles nem pedira para ficar indefinidamente. Era demasiado orgulhoso
e talvez demasiado teimoso para isso. No entanto, deixou Penhallow assim que foi capaz. Aos dezoito anos, implorara a um carpinteiro da região para o aceitar como
aprendiz, visto que sempre gostara de trabalhar com a madeira, e mudara-se para a aldeia de Lydmere na outra margem do rio de Penhallow. Foi feliz ali durante cinco
anos até que as circunstâncias o obrigaram a partir.
O título de nobreza, Penhallow e todos os fardos emocionais que deixara para trás na Cornualha pesavam-lhe extraordinariamente nos ombros. Tinha dispensado o administrador
do tio há seis meses e contratara um novo. Lia os relatórios mensais e respondia por carta com instruções específicas quando o seu parecer pessoal era necessário.
De resto, ignorava o local. Nunca mais o queria ver de novo.
Ficaria em Bath a semana inteira, decidiu enquanto se aproximava da casa da avó, mas nem mais um dia. Tinha amigos em todo o país e agora tinha fundos vastos com
os quais podia viajar, o único aspeto da sua nova condição de que ele gostava confessadamente. Passaria o inverno a viajar ao longo do país, permanecendo uma semana
aqui e duas acolá. Pensaria numa residência mais permanente na primavera seguinte.
Sorriu sozinho enquanto subia as escadas dentro da casa, dois degraus de cada vez. Aquela pequena Amazona do parque, a filha de um duque, realmente! Mas devia estar
hospedada algures em Bath. Provavelmente mostrar-se-ia num dos locais frequentados pela sociedade elegante, ainda que não estivesse na primeira linha dessa mesma
sociedade - o Pump Room, os Assembly Rooms, o Royal Crescent3, por exemplo. Era quase obrigatório encontrá-la de novo, assim como descobrir quem realmente era.
Talvez namoriscasse com ela. Isso seria infinitamente divertido, dada a opinião dela a seu respeito e o seu temperamento explosivo. Contudo, devia ficar atento àquele
punho da próxima vez. Já tinha sido apanhado desprevenido duas vezes.
Depois de entrar no quarto e lançar o chapéu e a chibata para cima da cama, lembrou-se da ameaça dela de o encontrar e denunciar a... Bom, a alguma autoridade, supôs.
Podia não ser sensato tentar desafiá-la desta vez. Devia estar preparado para alguns momentos interessantes quando ficassem frente a frente em público. É claro que
a podia vencer no seu próprio jogo...
Joshua sentou-se num dos lados da cama e tirou as botas de montar sem perder tempo a chamar pelo seu criado particular. Esperava que ela não estivesse a planear
deixar Bath nos próximos dias. Podia ser a sua única esperança para evitar uma morte induzida por um aborrecimento extremo.
Diabos, pensou, tocando cuidadosamente no nariz, ainda estava dorido.
1 Edifício histórico em Bath onde se podia beber a água mineral da nascente. (N. da T.)
2 Uma série de elegantes salões de chá e baile localizados no centro da cidade de Bath. (N. da T.)
3 Rua composta por trinta casas em fila, imponentes e em pedra, dispostas na forma de um quarto crescente em Bath, construídas entre 1767 e 1774. (N. da T.)
CAPÍTULO 3
- Não, realmente não bebo as águas - declarou Lady Potford ao neto na manhã seguinte à medida que a carruagem na qual viajavam passava pela abadia e se aproximava
do Pump Room. - Parece-te que a tua avó se quer matar?
- Mas não são águas curativas? - perguntou ele com um brilho trocista nos olhos. - Não são elas a razão pela qual tantas pessoas acorrem a esta cidade?
- A maior parte das pessoas, assim que prova as águas - disse ela -, tem a sensatez necessária para decidir que prefere as enfermidades que lhe são confortavelmente
familiares. Banharmo-nos efetivamente nas águas, é claro, está um pouco fora de moda. Não, Joshua, vai-se ao Pump Room todas as manhãs, não pela nossa saúde, mas
para ver e ser visto. É o que se deve fazer quando se está em Bath.
- Tal como passear no Hyde Park quando se está em Londres - disse ele, pulando para fora da carruagem assim que a porta se abriu e puxando para baixo os degraus
antes de ajudar a avó a descer. - Com exceção do facto de que isso é feito à hora do chá, uma hora bem mais civilizada do que ao romper do dia.
- Oh, a promessa do início do outono - disse ela, detendo-se num dos degraus e inspirando o ar. - É a minha estação do ano preferida. E a minha altura preferida
do dia.
A avó estava vestida com uma elegância perfeita, assim como ele. Em Bath, deve fazer-se aquilo que as pessoas de Bath fazem, concluíra na véspera. E isso significava
participar em todas as exibições públicas entediantes que faziam realmente parte da rotina diária, começando pelo passeio matinal madrugador no Pump Room.
Joshua perguntou-se se a pequena guerreira de sobrancelhas escuras estaria ali. Se sim, iria descobrir quem era, assim como ela iria descobrir a sua identidade.
Isso poderia levar a novos e interessantes acontecimentos. Pelo menos, aquela manhã não seria monótona se ela estivesse lá, mesmo se decidisse não lhe dirigir sequer
a palavra.
Ela não estava lá. Mas todo um conjunto de outras pessoas estava, e um grande número destas ainda não lhe tinha sido apresentado. Sentiu-se como alguém mascarado
de um grande herói à medida que as pessoas se reuniam em torno da avó para a felicitar por ter o neto de visita e permaneciam para lhe serem apresentadas. Resignou-se
a sorrir, a conversar e a pôr em prática o seu charme.
Fez um esgar mental quando viu Mrs. Lumbard a aproximar-se a grande velocidade. Era uma das vizinhas do seu tio na Cornualha e uma das amigas mais chegadas da sua
tia. Nunca mostrara grande predileção por ele enquanto crescia em Penhallow, especialmente depois de, por volta dos dez anos, ele ter ensinado à filha um palavrão
que aprendera nos estábulos e que ela utilizara ao alcance dos ouvidos da precetora. Desceu ainda mais na sua consideração no tempo em que desempenhou o ofício de
carpinteiro. Agora estava a aproximar-se dele, de peito palpitante, ancas amplas e um chapéu com plumas oscilantes, como um navio a todo o pano, com aquela mesma
filha na sua peugada, e afundou-se numa vénia graciosa.
- Lady Potford - disse ela, dirigindo-se à sua avó, embora estivesse a olhar para ele -, que contente deve estar por ter o marquês de Hallmere consigo finalmente.
Tornou-se num cavalheiro tão bem-parecido e distinto. Não é assim, Petunia, meu amor? E recordo-me da altura em que ele era uma criança travessa tão amorosa. - Ela
sorriu afetadamente com a sua própria piada. - A minha queridíssima Corinne costumava derramar lágrimas de desespero por causa dele. Meu caro marquês de Hallmere,
suponho que seja pedir demasiado esperar que se recorde de mim?
- Recordo-me bem de si, minha senhora - disse ele, fazendo uma vénia. - E de Miss Lumbard também. Como estão?
- Estamos ambas razoavelmente bem - respondeu Mrs. Lumbard - se ignorar algumas pontadas do reumatismo, que estão sempre piores nesta altura do ano. Mas eu nunca
me queixo. Que amável da sua parte em ter perguntado. A minha queridíssima Corinne irá ficar fora de si de contentamento quando souber que me cruzei consigo. Todos
os dias que passam ela espera o seu regresso a casa. Anseia desesperadamente por vê-lo.
Joshua achava muito mais provável a tia estar a cruzar os dedos na esperança de que ele jamais regressasse, embora recentemente lhe tivesse escrito mais do que uma
vez a convidá-lo a regressar a casa. Achara levemente divertido o facto de as suas cartas estarem redigidas exatamente nesses moldes, na forma de convites graciosos
para a sua própria casa. Ela não precisava de recear nada. Estava livre para viver a sua vida em Penhallow sem ser incomodada por ele.
Ele inclinou a cabeça de forma hirta a Mrs. Lumbard.
- Ah - disse ela, subitamente distraída -, ali estão Lady Holt-Barron, a filha e Lady Freyja Bedwyn. Tenho absolutamente de ir apresentar-lhe os meus cumprimentos.
Vem daí, Petunia.
Joshua ofereceu à avó o braço de novo e preparou-se para continuar a caminhar. Mas quando olhou de relance na direção das recém-chegadas, deteve-se de súbito, de
lábios contraídos.
Bem! Aqui estava algo para alegrar o que prometera ser uma manhã intoleravelmente aborrecida. Ali estava ela.
Naquele dia, usava um vestido de passeio e chapéu castanho-avermelhados e parecia mais calma do que na véspera. Exibia de igual modo uma expressão de altivez entediada
no rosto como se, tal como ele, preferisse de longe estar noutro local qualquer bem mais animado.
- Quem é a senhora... - começou a perguntar à avó.
Mas a senhora em questão avistou-o ao mesmo tempo que falava. Não desviou o olhar dele, com uma dureza cada mais visível nos olhos, apesar da distância entre ambos.
E depois ele ouviu o eco daquilo que Mrs. Lumbard acabara de dizer. E Lady Freyja Bedwyn.
Aquele nariz proeminente subiu no ar, e juntamente com ele, o queixo agressivamente obstinado. Os olhos verdes ficaram gelados.
Joshua já começava a retirar prazer da situação.
- ... de castanho-avermelhado junto das outras duas senhoras das quais Mrs. Lumbard se está a aproximar? - perguntou ele, completando a sua pergunta.
- Lady Freyja Bedwyn? - perguntou a avó, seguindo o seu olhar. - Lady Holt-Barron tem andado a exibi-la por toda a cidade desde que chegou há alguns dias, como se
fosse uma espécie de troféu. O que é, claro, aquilo que serei acusada de fazer contigo.
- Lady Freyja Bedwyn? - perguntou.
A mulher estava a bater um pé impaciente no chão. Não estava a prestar absolutamente nenhuma atenção a Mrs. Lumbard, que estava a desfazer-se em atenções junto dela,
e continuava a fitar Joshua de olhos semicerrados.
- A irmã do duque de Bewcastle - explicou a avó.
Oh, não. Joshua sorriu lenta e deliberadamente.
Lady Freyja Bedwyn estava a deixar para trás o seu grupo sem uma palavra ou um olhar e estava a avançar intencionalmente pela sala com passadas longas e masculinas.
A ausência de adequação dos seus movimentos num ambiente tão circunscrito e distinto atraiu atenções mesmo antes de se deter a menos de trinta centímetros à frente
de Joshua, fitando-o furiosamente naquilo que ele agora podia interpretar corretamente como um desdém aristocrático.
- Lady Potford - disse ela, sem tirar os olhos dele -, teria a bondade de me esclarecer a identidade do cavalheiro que está consigo?
Seguiu-se um silêncio breve, a única indicação que a sua avó deu da surpresa que devia estar a sentir perante aquela intimação indelicada.
- Olá, querida - murmurou Joshua e pensou que se Lady Freyja Bedwyn tivesse uma chaminé no cimo da cabeça, não teria todo o aspeto de estar prestes a explodir.
- Lady Freyja - disse a avó com uma compostura admirável -, dá-me a honra de lhe apresentar o meu neto, Joshua Moore, marquês de Hallmere? Lady Freyja Bedwyn, Joshua.
Ela fitou-o furiosamente, as narinas abertas, aparentemente nada intimidada por aquilo que acabara de saber. Ele devolveu-lhe o olhar com uma admiração bem-humorada.
Meu Deus, ela não se importava de dar um espetáculo perante uma grande audiência da sociedade de Bath. E o sussurro das conversas paralelas silenciara-se consideravelmente
à medida que as cabeças se voltavam para ver o que estava a ameaçar perturbar a rotina cortês do passeio matutino.
- Creio que - disse Lady Freyja num tom estridente que devia chegar de forma clara a cada um dos cantos da sala - um nome mais apropriado para ele seria o de marquês
de Hellmere4. - Ela apontou um dedo enluvado diretamente ao peito dele. - Este homem nem sequer merece denominar-se cavalheiro.
Ouviu-se uma exclamação abafada generalizada à sua volta, seguida de sussurros a pedir silêncio. Ninguém queria perder uma palavra daquele escândalo delicioso que
estava a decorrer perante os seus próprios olhos.
- Minha cara Lady Freyja... - começou a dizer a avó, parecendo bastante consternada.
- Este homem - prosseguiu Lady Freyja - gosta de se divertir ao aproveitar-se de mulheres inocentes e indefesas.
Ouviu-se um burburinho de choque, seguida de novo de mais sussurros frenéticos a pedir silêncio.
- Peço-lhe, Lady Freyja... - a avó dele tentou de novo.
Lady Freyja fez pressão com o dedo, como um punhal rombo, contra o peito de Joshua.
- Eu avisei-o de que iria descobrir a identidade dele e expô-lo à sociedade de Bath como o patife que ele é na realidade. Jurei expulsá-lo da sociedade de pessoas
decentes. - Ela fez pressão com o dedo contra o peito dele de novo. - Se pensou que eu estava a fazer bluff, meu caro, estava muito enganado.
- Mais uma vez - disse ele, a sorrir de forma contrita e a prever que a sua expressão iria enfurecê-la ainda mais. - Realmente já devia ter aprendido a lição, não
é verdade?
Mais ninguém fingia estar a passear. Até mesmo as mesas das águas tinham sido abandonadas. Joshua apercebeu-se de que ele, a avó e Lady Freyja Bedwyn tinham ficado
isolados no meio de uma espécie de círculo que se formara em torno deles. O público parecia igualmente dividido entre aqueles que estavam intensamente embaraçados
por uma senhora se comportar com uma tal ausência de decoro e os que fitavam com olhos hostis o homem que se aproveitava de mulheres inocentes e indefesas.
Alguém estava a vir em socorro deles ou para se juntar à desordem. Era um homem com um ar presunçoso que vinha arbitrar a crise inesperada. Joshua reconheceu-o:
tratava-se de James King, o mestre de cerimónias das Upper Assembly Rooms, que o tinha visitado duas tardes antes na Great Pulteney Street. O seu trabalho era manter
a cortesia e as boas maneiras em Bath e assegurar-se de que todos os visitantes eram bem-recebidos e devidamente distraídos. E que cada um dos visitantes mantinha
as regras rígidas do decoro.
Até mesmo marqueses e filhas de duques.
- Minha senhora - disse ele, dirigindo-se a Lady Freyja -, decerto que está enganada. Este cavalheiro é o marquês de Hallmere e neto de Lady Potford, uma residente
de longa data da nossa cidade. Talvez este pequeno mal-entendido possa ser esclarecido tranquilamente lá fora?
A voz dele era cortês, mas exibia uma inflexão dura. Agarrou em Lady Freyja pelo braço, mas ela libertou-se dele com um safanão e fitou-o do cimo do seu nariz como
se ele fosse um verme.
- Este pequeno mal-entendido? - disse ela com um ênfase altivo. - Um par do reino ataca uma pobre criadita ontem num relvado isolado nos Sydney Gardens apesar dos
gritos aflitivos dela por ajuda e estava prestes a arrastá-la para uns arbustos para concretizar os seus intuitos maliciosos enquanto eu testemunhava tudo e isso
trata-se de um pequeno mal-entendido? É algo que deve ser abafado discretamente para lá destas quatro paredes? Não me parece. Esta questão será esclarecida aqui
e agora, diante dos cidadãos respeitáveis de Bath. Tenha a coragem de levar a cabo o dever de que está incumbido e expulse este homem de Bath sem mais demoras.
Ouviram-se alguns aplausos isolados no meio dos espectadores que se reuniam em volta.
Joshua sorriu abertamente a Lady Freyja, que se comportara de forma magnífica como uma rainha Amazona. Chegou mesmo a esboçar levemente um beijo com os lábios.
Mr. King suspirou e voltou a sua atenção para Joshua.
- Tem algo a dizer relativamente a esta questão, meu senhor? - perguntou.
- Tenho, pois - respondeu Joshua. - A senhora tem uma imaginação fértil e sinistra.
Ela olhou para ele com um desdém altivo. - Eu devia ter imaginado - declarou - que iria negar tudo.
- Viu Lady Freyja nos Sydney Gardens ontem, meu senhor? - perguntou o mestre de cerimónias.
- Sem dúvida que sim - disse Joshua. - Estava sozinha e usava um vestido de passeio verde-escuro e um chapéu com penas. E deu-me um murro no nariz.
Ouviu-se mais uma exclamação abafada dos espectadores, seguido de um zunzum de vozes, e depois de sussurros inevitáveis a pedir silêncio.
Mr. King exibia uma expressão pesarosa.
- Sem qualquer motivo, meu senhor? - perguntou. - Espera que todos nós acreditemos que ela o agrediu, um desconhecido, sem qualquer motivo aparente?
- Ela veio a correr na minha direção quando eu estava a segurar uma criada nos braços - explicou Joshua. - É provável que ela tenha ouvido a rapariga a gritar alguns
momentos antes. Ela pareceu ter concluído que eu estava prestes a... hum!... A levar a minha avante com a criadita.
- Mas não era esse o caso, meu senhor? - perguntou o mestre de cerimónias.
Na curta pausa que Joshua permitiu que se abatesse sobre a sala antes de responder, conseguiu aperceber-se da súbita expressão comprometida nos olhos de Lady Freyja,
do início da tomada de consciência de que talvez tivesse cometido um erro medonho. De que, na realidade, tinha acabado de fazer uma autêntica figura de idiota.
- Um esquilo tinha cruzado o caminho da rapariga enquanto esta atravessava um relvado no parque - explicou Joshua. - Assustou-a e ela parou abruptamente. Mas em
vez de fugir para longe como qualquer esquilo sensato faria naquelas circunstâncias, o animalzinho tentou refugiar-se debaixo das saias dela e ela gritou. Quando
me precipitei para o local, após ter testemunhado toda a catástrofe, a pobre rapariga estava histérica, embora o esquilo tivesse recuperado há muito o bom senso
e disparado para a árvore mais próxima. Eu, hum, agarrei-a para a acalmar.
Ele estivera, é claro, igualmente prestes a beijá-la, com a sua permissão total e entusiástica, mas não havia qualquer necessidade de juntar esses pormenores incriminatórios.
- Foi nesse momento - acrescentou Joshua - que Lady Freyja Bedwyn se precipitou em cena, assustou a pobre criadita, fê-la gritar mais uma vez e pôr-se em fuga, e
deu-me um murro no nariz.
Mr. King transferiu o olhar que mantinha fixo em Joshua para Lady Freyja. Assim como, calculou Joshua, todos os demais no Pump Room.
- Poderá ser esta a explicação daquilo que testemunhou, minha senhora? - perguntou ele.
De forma admirável, ela não perdeu a compostura ou pareceu estar à procura de um buraco fundo no chão do Pump Room por onde se pudesse enfiar. Nem tão-pouco começou
a disparar furiosamente em todas as direções ou fez ainda maior figura de idiota ao tentar insistir na verdade da sua história. Os olhos dela semicerraram-se e continuou
a olhar fixa e altivamente para Joshua.
- Por que motivo não me explicou tudo isto ontem? - perguntou ela com um tom imperioso.
- Deixe-me ver. - Ele ergueu uma mão e afagou o queixo com o polegar e indicador. - Eu perguntei se me era permitido explicar o que sucedera e a senhora respondeu
taxativamente que sabia perfeitamente o que tinha visto e ouvido. Acrescentou, creio eu, que não era estúpida. Teria sido muito pouco galante da minha parte contradizê-la.
Ouviu-se um riso abafado vindo de alguns membros do público.
Os olhos dela ficaram gelados de novo. - Isto foi deliberado - afirmou. - O senhor conduziu-me a isto de forma bastante deliberada.
- Peço perdão por contradizer uma senhora. - Ele fez-lhe uma meia vénia elegante. - Mas creio que foi a senhora que me abordou a mim esta manhã.
- Parece-me que - disse o mestre de cerimónias, erguendo ligeiramente a voz, olhando em torno de si com uma afabilidade bem-humorada e dando às suas palavras um
tom definitivo e firme - esta altercação se deveu a um pequeno mal-entendido. Temos de os ver a apertar as mãos, meu senhor e minha senhora, para que todos possam
perceber que não se mantém qualquer rancor entre ambos.
Joshua, com um gesto deliberadamente floreado, estendeu a mão direita com a palma para cima. Sorriu. Estava a divertir-se imenso. Estava muito contente por ela não
ter cedido à mortificação feminina, o que iria diminuir o seu prazer ao levar a melhor sobre ela. As narinas dela retesaram-se de novo, o queixo subiu e, juntamente
com ele, aquele esplêndido nariz aristocrata, e tal e qual uma rainha a conceder um favor a um pobre mortal inferior, pousou a mão sobre a dele.
Ele apertou-lhe a mão e levou-a aos lábios.
Mais uma vez ouviram-se aplausos e depois toda a gente voltou à ocupação séria de caminhar pela sala, de falar sobre os outros ou, para os mais valentes, de beber
as águas.
- Hei de vingar-me - murmurou ela.
- Asseguro-lhe que o prazer será todo meu, minha senhora - murmurou ele de volta e sorriu-lhe com toda a força do seu charme considerável.
Lady Holt-Barron ficou tão transtornada com a cena no Pump Room que se sentiu completamente incapaz de ir às compras após o pequeno-almoço. Na verdade, até o pequeno-almoço
teve de ser reduzido a uma torrada seca e um chá pouco forte, os únicos alimentos que se achou capaz de digerir. Depois disso, retirou-se para o quarto para se deitar
tranquilamente na cama.
- Oh, Céus - disse Freyja para Charlotte quando ficaram sozinhas na sala de estar da manhã. - Esqueço-me de que existem senhoras com tais inconveniências como constituições
delicadas. Achas que me deveria desculpar junto da tua mãe?
Mas o rosto de Charlotte adquirira um tom arroxeado, e a jovem estava a tentar enfiar o lenço de linho na boca. Nada, porém, conseguiria abafar o riso que irrompeu
para fora.
- Oh - gemeu ela -, se a mãe me ouvir, vai ter um ataque monumental de histeria e vamos acabar por ter de mandar chamar o médico.
Ela reprimiu as gargalhadas o melhor que conseguiu.
- Pode ter-te parecido uma comédia no final - queixou-se Freyja. - Mas teria recebido a morte de braços abertos naquele momento.
- Se ao menos te pudesses ter visto - continuou Charlotte. - A atravessar majestosamente o Pump Room como um anjo vingador enquanto todas aquelas senhoras de idade
abriam a boca de espanto à tua passagem. E depois a falar com o marquês tal e qual a diretora da minha escola costumava falar connosco quando estávamos num grande
sarilho. E a carregar-lhe no peito com o dedo.
Mas as memórias eram demasiadas para a sua compostura. Ela abriu o lenço no rosto e o corpo todo estremeceu ao ritmo das suas risadas.
- Ele sabia que eu ia fazer aquilo - disse Freyja, pensando com indignação no marquês sorridente, cuja aparência imaculada apenas tinha exacerbado a sua ira. - Foi
por esse motivo que não insistiu para me contar a verdade no parque.
- E se pudesses ter visto a mãe a tentar tornar-se invisível - prosseguiu Charlotte -, e aquela horrenda Mrs. Lumbard a inchar para o dobro do tamanho, os olhos
prestes a saltar-lhe das órbitas e, oh, toda a gente. - Desatou mais uma vez às gargalhadas.
- Pelo menos - disse Freyja - dei a todos o suficiente sobre que falar e escrever para casa para cerca de um mês ou mais. As cartas serão todas do tamanho de verdadeiros
livros, ao que me parece.
- Oh, não faças isso! - Charlotte lançou-se para trás na sua cadeira.
- O Pump Room vai parecer mortalmente aborrecido para sempre depois disto - declarou Freyja - mesmo para aqueles que nunca se aperceberam de que é sempre assim.
Ficarão todos a olhar para mim à espera da continuação do espetáculo. Serei famosa!
Charlotte soltou risadinhas.
- Na verdade - admitiu Freyja -, a minha grande vontade, Charlotte, era ter dado um murro no nariz do marquês de Hallmere novamente por me atrair até aquela armadilha.
Mas cheguei à conclusão de que era melhor não. Talvez ele me faça algum tipo de provocação que me leve a isso amanhã.
Ela olhou, por alguns momentos, de sobrolho franzido para a amiga, antes de os lábios estremecerem nos cantos e primeiro soltar uma gargalhada abafada para depois
se rir em voz alta.
Ele era um adversário à sua altura. Tinha de admitir pelo menos isso a seu respeito.
Lady Holt-Barron saiu do quarto um pouco depois do meio-dia, com um ar pálido e sofredor, embora tenha sorrido alegremente e assegurado à filha e a Freyja de que
se sentia bastante repousada e de que apenas tinha uma dor de cabeça muito leve. Todavia, não acreditava que fosse sair para visitar ninguém de tarde e não aconselhava
as senhoras mais jovens a sair para caminhar. Era da opinião de que ia chover e de que ambas iriam apanhar constipações se fossem surpreendidas pela chuva.
Olhou incisivamente para Freyja durante um momento.
- Minha querida Lady Freyja - perguntou -, mas o que estava a fazer sozinha nos Sydney Gardens ontem? Por que razão não esperou pela Charlotte para a acompanhar?
Ou por que razão não levou a sua criada consigo, pelo menos?
- Apetecia-me apanhar ar e fazer exercício, minha senhora - disse-lhe Freyja. - E sou demasiado velha para precisar de acompanhantes.
Lady Holt-Barron parecia ligeiramente chocada, mas não insistiu na questão. Freyja começou a suspeitar de que a sua anfitriã tinha um pouco de receio dela.
- Talvez - prosseguiu Freyja - fique mais feliz se eu deixar Bath, minha senhora. Consigo ver que a embaracei esta manhã. - E aquela era sem dúvida uma afirmação
muito aquém da realidade dos factos, pensou. Ela embaraçara-se a si mesma, o que não acontecia facilmente.
- Oh, não, Freyja - exclamou Charlotte.
- É uma oferta generosa - respondeu a sua anfitriã. - Mas não a aceitarei, Lady Freyja. Daqui a alguns dias aquele incidente infeliz terá sido esquecido. Amanhã
de manhã, agiremos como se nada fosse e faremos a nossa aparição habitual no Pump Room. Talvez o marquês de Hallmere tenha o tato necessário para ficar em casa.
- Não tenho absolutamente qualquer medo de ficar cara a cara com ele - disse Freyja. - E de uma coisa estou plenamente convencida. Ele estava prestes a roubar um
beijo àquela criadita. Gostava de o ouvir a negar isso.
- Oh, minha querida Lady Freyja - com uma voz débil da ansiedade, mais uma vez -, peço-lhe para não o confrontar com uma acusação desse tipo.
Ela deu um salto, alarmada, com o som da aldraba da porta que subiu vindo lá de baixo e ergueu-se para fazer uma verificação apressada do estado do vestido e cabelo.
- Espero sinceramente que não seja uma visita - disse. - Realmente não me sinto capaz de receber ninguém hoje. Estava com esperanças de que todos os nossos conhecidos
nos deixassem em paz até amanhã.
Como se o comportamento dela naquela manhã as tivesse colocado a todas sob quarentena, pensou Freyja.
Mas tratava-se de facto de uma visita. A governanta bateu ao de leve na porta e entregou à sua senhora um cartão de visita.
- Deus do Céu! - exclamou Lady Holt-Barron depois de ler o nome lá escrito. - O marquês de Hallmere! E ele está à espera lá em baixo, Mrs. Tucker?
- À espera para saber se está em casa, minha senhora - explicou a governanta.
E agora, o que é que ele estava a tramar?, perguntou-se Freyja, semicerrando os olhos.
Lady Holt-Barron lançou-lhe um olhar nervoso. - E estamos em casa?
- Oh, seguramente. - Freyja ergueu as sobrancelhas. Não se ia esconder de ninguém, muito menos dele.
- Acompanhe Sua Senhoria até cá a cima, Mrs. Tucker - declarou Lady Holt-Barron.
Tornou-se evidente para ela assim que ele entrou na sala que o marquês de Hallmere era cliente do famoso alfaiate Weston. Tal como Wulfric e os outros irmãos de
Freyja. O marquês apresentou-se com um casaco verde de qualidade superior que era tão justo ao corpo que parecia que este tinha sido vertido para dentro dele, e
de calças cinzentas que torneavam cada um dos impressionáveis músculos e curvas das suas longas pernas. A camisa era branca como a neve e as botas altas tão reluzentes
que as podia ter usado como espelhos se olhasse para baixo. O chapéu, luvas e bengala deviam ter sido deixados lá em baixo.
Era evidente que ele tinha ido até lá com a intenção de as impressionar. E o seu aspeto era de facto impressionante, Freyja foi obrigada a admitir. Até mesmo os
dentes dele eram perfeitos, tortos o suficiente para serem interessantes, mas muito brancos.
Lady Holt-Barron também estava obviamente impressionada. Ficou num estado de grande alvoroço, uma tendência que exibia quando estava na presença de alguém de classe
superior. Estava igualmente a sorrir afetadamente, uma reação infeliz à visão de um homem bem-parecido. Charlotte também estava impressionada. As suas faces estavam
ruborizadas.
Freyja cruzou uma perna sobre a outra numa postura que uma série de precetoras durante a adolescência lhe tinha dito ser pouco elegante e vulgar, começou a baloiçar
o pé que estava livre, ergueu o queixo e olhou-o fixa e altivamente.
- Agradeço-lhe, minha senhora, por me ter recebido quando não era esperado - disse ele, dirigindo-se a Lady Holt-Barron.
Ela ficou alvoroçada, brindou-o uma vez mais com o seu sorriso afetado e assegurou-lhe de que era muito bem-vindo. Ofereceu-lhe uma cadeira e ele sentou-se.
Por favor, não peça desculpa em meu nome, pediu Freyja fervorosamente à sua anfitriã em silêncio. E se ele estava à espera de algum pedido de desculpa da parte dela,
bem podia esperar até o inferno congelar.
- Não vou tomar muito do seu tempo, minha senhora - disse ele, ainda a dirigir-se a Lady Holt-Barron. - Vim aqui com um convite da parte da minha avó para a senhora,
Miss Holt-Barron e Lady Freyja Bedwyn se juntarem a um pequeno grupo para jantar amanhã à noite. Ambos consideramos que é desejável dissipar qualquer receio persistente
de que existe uma animosidade duradoura entre Lady Freyja e eu próprio em torno, hum, do nosso pequeno mal-entendido desta manhã.
Freyja cerrou os dentes.
- Certamente que não existirá nenhum pensamento desse tipo na mente de ninguém, meu senhor - assegurou-lhe Lady Holt-Barron. Esta chegara ao ponto de agitar rapidamente
as pestanas, embora fosse provavelmente uma reação nervosa em vez de um gesto namoriscador, concedeu Freyja.
- Não sinto qualquer animosidade - disse ele, voltando finalmente a cabeça e fitando Freyja com olhos bem abertos e francos. - Espero que a senhora também não a
sinta, Lady Freyja.
- Não, por que motivo sentiria? - disse ela com um desprendimento deliberado. - O senhor deu uma explicação satisfatória para aquilo que observei no parque, para
grande parte daquilo que observei.
Por um momento, ela viu uma ponta de humor a aflorar nos olhos dele e percebeu que ele compreendia perfeitamente o significado das suas palavras. Não restavam dúvidas
de que estivera prestes a beijar aquela rapariga. Mas naquela tarde estava a desempenhar o papel de um cavalheiro impecavelmente cortês e não seria adequado sorrir-lhe
ironicamente ou tratá-la por querida.
- Posso esperar que todas venham até à Great Pulteney Street amanhã à noite, nesse caso? - perguntou ele.
Lady Holt-Barron quase tropeçava em si própria na ânsia de aceitar o convite. O marquês retirou-se cinco minutos depois de todos se terem envolvido numa discussão
animada a respeito do tempo, com a exceção de Lady Freyja.
- Lady Freyja! - exclamou Lady Holt-Barron, apertando as mãos contra o peito, a dor de cabeça aparentemente esquecida. - Acredito piamente que tudo correrá bem apesar
de tudo e nenhuma sombra de escândalo persistirá sobre as nossas cabeças. Pressinto até que o marquês está encantado consigo.
Freyja soltou um resmungo em resposta.
- Ele é extraordinariamente bem-parecido - disse Charlotte com um suspiro.
- Meu amor - disse a mãe num tom reprovador -, lembra-te do Frederick.
O ausente Frederick Wheatcroft, o noivo de Charlotte, estava a caçar com o pai e irmãos da noiva.
Extraordinariamente bem-parecido, de facto! Demasiado bem-parecido. E sem dúvida que agora pensava que podia fazê-la colocar de parte a sua indignação com o embuste
através do charme. Ele transpirara charme por todos os poros do corpo. Isso logo se veria.
Devia tê-lo deixado ser apanhado naquele armário como um rato numa ratoeira.
Devia ter escolhido um quarto na estalagem com toda a hera arrancada das paredes exteriores.
Devia ter-lhe dado mais um murro no nariz naquela manhã enquanto tivera oportunidade.
Devia...
Estava tão desesperadamente contente por existir algo interessante à sua espera no dia seguinte. O marquês de Hallmere podia ser, e não havia dúvidas de que era,
sinónimo de todo o tipo de coisas desagradáveis e duvidosas, mas pelo menos não era insípido.
4 Trocadilho entre Hall, nome original, e Hell (Inferno), em inglês. (N. da T.)
CAPÍTULO 4
O jantar em casa de Lady Potford estava a transformar-se num grande acontecimento à medida que a avó dele continuava a acrescentar nomes à lista de convidados.
- Já és o marquês de Hallmere há mais de seis meses, Joshua - explicou quando ele perguntou se ela tinha mais alguma aba móvel para juntar à mesa da sala de jantar,
e talvez mais uma ala inteira para juntar à própria sala de jantar. - Já está mais do que na altura de ocupares o teu lugar legítimo na sociedade em vez de percorreres
o país de lés a lés à procura de diversão com companhias vulgares.
- Mas a diversão é tão... divertida, avó - disse ele com um suspiro exagerado. Não acrescentou que algumas das suas companhias "vulgares" eram aristocratas ou filhos
de aristocratas.
- Está igualmente na altura de regressares a Penhallow - disse ela, não pela primeira vez. - É tua, não só em termos de posse, mas também enquanto responsabilidade.
- A minha tia vive lá - relembrou-lhe ele -, assim como as minhas primas. Se eu fosse morar para lá também isso só as iria deixar incomodadas, assim como a mim.
A minha tia sempre teve a seu cargo a gestão da propriedade, mesmo quando o meu tio ainda era vivo. Ele não se importava. Eu importar-me-ia.
- Bom, e estarias no teu direito - disse a sua avó com grande exasperação enquanto dobrava o último convite e tocava a campainha para chamar um criado para o ir
entregar. - Deves ir e esforçar-te por fazer outro tipo de planos para a marquesa e as suas filhas, Joshua. Existe uma casa da viúva em Penhallow, não é verdade?
Valha-me Deus! Quando o teu avô morreu e o Gregory adquiriu o título de Potford, a ideia de ficar na Grimley House era tão despropositada como voar para a lua. A
Gladys não teria gostado disso e eu ainda menos.
Joshua esticou as pernas à sua frente ao longo do tapete da sala de estar e cruzou-as nos tornozelos. - Esforçar-me? - Ele esboçou um sorriso rasgado à avó. - Isso
parece-me extraordinariamente doloroso, avó.
- Joshua. - Ela voltou-se na cadeira junto à escrivaninha e fitou-o com alguma severidade. - Sempre preferi acreditar que estavas em França e noutros países da Europa
durante os últimos cinco anos a arriscar os perigos de captura numa nação inimiga simplesmente pela diversão de levar a cabo um feito desse género. Mas sempre soube
lá no fundo que existia uma explicação bem mais alarmante para a tua presença no continente. Não penses agora que me podes convencer de que és um indivíduo indolente
que não se interessa por nada que não seja a sua própria diversão.
Ele ergueu as sobrancelhas e franziu os lábios. É claro que tinha estado a espiar as forças militares e as manobras de Napoleão Bonaparte para o governo britânico,
mas não oficialmente. Não possuía qualquer posto militar ou cargo diplomático.
- Ah, mas foi divertido, avó - disse-lhe ele.
Ela soltou um suspiro e pôs-se de pé. - O que devias fazer - declarou - era escolher uma noiva adequada, levá-la para Penhallow e dar início à vida nova que tens
agora, quer a tenhas desejado ou não.
- Não a desejei - disse ele categoricamente. - O Albert era o herdeiro e nunca o invejei pelas suas possibilidades futuras.
- Mas o teu primo morreu há cinco anos - recordou-lhe ela, como se ele precisasse de ser relembrado. - O teu novo estatuto não se revelou inesperadamente quando
o teu tio morreu.
- A não ser pelo facto de que ele era um homem com uma saúde de ferro quando eu parti - declarou - e ter morrido bem mais cedo do que esperava.
- Apesar daquela cena pavorosa no Pump Room - disse ela, ocupando um lugar junto dele -, não consigo deixar de admirar a forma franca como Lady Freyja Bedwyn te
confrontou com aquilo que tinha interpretado como uma ofensa imperdoável. A maior parte das senhoras teria fechado os olhos ou falado entre si de forma privada,
denegrindo o teu nome antes de teres a oportunidade de te defender.
Joshua soltou uma risada abafada. - A maior parte das senhoras não teria estado a caminhar no parque sem companhia, ou teria dado meia-volta e fugido ao primeiro
som de uma outra pobre mulher a gritar.
- Ela é irmã do duque de Bewcastle - prosseguiu a avó. - Não há ninguém de grande importância acima de um duque a não ser que se suba ao domínio dos príncipes propriamente
ditos.
Ele fitou-a mais atentamente, subitamente alerta.
- Não estará, por acaso - perguntou-lhe -, a sugerir Lady Freyja Bedwyn para minha noiva?
- Joshua. - Ela inclinou-se ligeiramente para a frente na cadeira. - Agora és o marquês de Hallmere. Seria uma união muito conveniente tanto para ela como para ti.
- E é isso o porquê disto tudo? - perguntou-lhe ele. - Deste grande jantar?
- Nem por sombras - disse ela. - Este jantar é para restabelecer as conveniências aos olhos de todos os céticos. Foi realmente uma cena pavorosa, embora deva admitir
que dei uma risada ou duas em privado perante a recordação.
- Ela dá murros extraordinários - disse ele -, como aprendi já por duas vezes às minhas custas. E, no entanto, acha que ela seria uma noiva adequada?
- Duas vezes? - Ela olhou incisivamente para ele.
- Não vou mencionar a outra ocasião - disse, com um ar comprometido. - Peço desculpa por desapontá-la, avó, mas estimo sobremaneira a minha saúde para me lançar
na corte de Lady Freyja Bedwyn. Ou de qualquer outra senhora, já agora. Não me sinto preparado para o casamento.
- Pergunto-me por que razão será - disse ela, pondo-se novamente de pé - que cada um dos homens que diz essas palavras parece acreditar perentoriamente nelas. E
por que razão cada um deles parece acreditar que é o primeiro a proferi-las. Tenho de descer até à cozinha para ver se está tudo a avançar bem para o jantar desta
noite.
E por que razão seria, pensou Joshua de forma algo lúgubre, que todas as mulheres acreditavam que assim que um homem alcançava um título de nobreza e fortuna, devia
adquirir também um desejo ardente de os partilhar com uma companheira?
Lady Freyja Bedwyn!
Soltou uma risada audível e veio-lhe à memória a imagem dela na tarde da véspera na sala de estar de Lady Holt-Barron, na sua dignidade mais altiva e a fervilhar
de ressentimento e hostilidade mal suprimidos. E incapaz de resistir pelo menos a um sarcasmo mordaz ao insinuar que sabia muito bem que ele tinha estado prestes
a beijar aquela criadita.
Perguntou-se se ela apreciaria o humor da sugestão absurda da avó. Tinha de a partilhar com ela, pensou, dando mais uma risada, e ficar de olho atento aos punhos
dela ao mesmo tempo.
Não havia ninguém no jantar de Lady Potford que Freyja não conhecesse. Sentiu-se perfeitamente à vontade na companhia daquelas pessoas. Demorou algum tempo, porém,
a aperceber-se de que a maior parte dos outros convidados estava longe de se sentir à vontade na companhia dela. Deviam estar a perguntar-se se ela se estava a preparar
para fazer mais uma extraordinariamente embaraçosa figura de idiota naquela noite.
As pessoas eram tão disparatadas. Será que não compreendiam que a nobreza lhe estava enraizada nos próprios ossos? Conversou com os vizinhos na mesa de jantar com
um à-vontade experiente e ignorou deliberadamente o marquês de Hallmere, que estava sentado na ponta da mesa, suficientemente belo no seu traje acinzentado e branco
para irritar seriamente um ou dois deuses gregos. Ele também a ignorou, se não se tivesse em conta a única ocasião em que os olhos de ambos se tinham encontrado
por cima da mesa. Ela estava certa de que não fora um truque da luz trémula das velas que fizera parecer que ele lhe piscara o olho lentamente, apenas com um dos
olhos.
Bom, todos os dias traziam algo novo, pensou, redobrando os seus esforços para ser sociável com o muito surdo Sir Rowland Withers sentado à sua direita. Nunca lhe
tinham piscado o olho antes, com exceção dos seus irmãos.
Mas é claro que o propósito da noite não era ela e o marquês ignorarem-se mutuamente. Assim que os cavalheiros se juntaram às senhoras na sala de estar depois do
jantar, tornou-se necessário algum entretenimento e Miss Fairfax sentou-se obsequiosamente no pianoforte e tocou algumas fugas de Bach com um talento e destreza
admiráveis.
- Lady Freyja? - perguntou Lady Potford quando ela terminou. - Será que nos poderia honrar com uma composição breve ou uma canção?
Oh, não. As pessoas mais próximas já sabiam há muito que Lady Freyja Bedwyn não era como as outras jovens senhoras, solícita e capaz de fazer gala dos seus dotes
em todos os encontros sociais. Ela decidiu recorrer à franqueza, como tinha por hábito fazer. Era mais fácil do que sorrir afetadamente.
- Depois de receber algumas lições no pianoforte quando era mais pequena - explicou ao grupo que estava reunido - o meu professor de música pediu-me para erguer
as mãos e declarou-se espantado pela catástrofe por que eram responsáveis. Felizmente para mim, dois dos meus irmãos estavam por perto a ouvir e repetiram o comentário
com grande regozijo ao nosso pai, tencionando fazer uma piada às minhas custas, como é óbvio. O professor de música foi dispensado e jamais substituído.
Ouviu-se uma risada geral, embora Lady Holt-Barron parecesse claramente desconfortável.
- Uma canção, nesse caso? - perguntou Lady Potford.
- Não sozinha, minha senhora - disse Freyja firmemente. - Tenho o tipo de voz que precisa de ser enterrada no meio de um coro muito extenso, para poder ser exposta
em absoluto.
- Eu canto um pouco, Lady Freyja - disse o marquês. - Talvez possamos juntar as nossas vozes num dueto. Há uma pilha de pautas de música em cima do pianoforte. Vamos
ver o que podemos encontrar enquanto uma outra pessoa entretém os convidados?
- Oh, esplêndido - disse Lady Potford, e ouviram-se outros murmúrios de interesse cortês.
Freyja apercebeu-se tardiamente de que devia ter mencionado que a sua voz de canto era semelhante ao ruído de serras ferrugentas, mas nunca gostara de faltar de
tal forma à verdade. O marquês de Hallmere estava, como esperava, a olhar para ela com um interesse cortês, assim como um vislumbre de divertimento nos olhos. E
todos os outros estavam a observar com um interesse ávido a primeira troca de palavras entre os antagonistas da véspera.
Ela ergueu-se e aproximou-se do pianoforte, que estava perto do local onde ele se encontrava de pé.
- Miss Holt-Barron? - perguntava delicadamente Lady Potford e Charlotte, sem um murmúrio de protesto, aproximou-se do instrumento e deu início a uma execução irrepreensível
de uma sonata qualquer de Mozart.
O marquês pegou na pilha inteira de pautas de música e levou-a para um banco amplo com estofos de veludo junto à janela. Ele sentou-se num dos lados e Freyja no
outro.
- Permite-me observar, Lady Freyja - disse ele - que fica particularmente cativante nesse tom de verde-mar? Condiz com os seus olhos. E permite que apresente as
minhas desculpas por não acreditar em si quando afirmou ser a irmã de um duque? Nenhuma irmã de um duque das minhas relações dorme em quartos de estalagem sem fechadura,
e sem uma criada a acompanhá-la, nem caminha num parque público sem um acompanhante, compreende? Nem dá murros no nariz a homens quando eles fazem algo que lhe desagrada.
- Negaria, nesse caso - disse ela, pegando numa pauta de música que anunciava ser uma canção para duas vozes. Porém, logo num primeiro relancear pela folha, viu
que a pessoa que cantava na parte do início teria de elevar a voz até uma nota bastante aguda e passou a música para o fundo do monte. - Negaria, nesse caso, que
estava prestes a roubar um beijo àquela pobre rapariga?
- Oh, é claro que sim - afirmou ele.
- Então mente! - retorquiu ela, agarrando em mais uma folha de uma canção cantada por várias vozes do monte e deitando-lhe um olhar furioso. - Não sou nada estúpida,
apesar da sua insinuação do contrário ontem de manhã.
- Não! - disse ele, fitando-a com uns olhos cheios de humor. Ele não fazia qualquer tentativa de procurar pautas de música no monte. - Eu fiz isso? Mas por que motivo
faria eu algo tão pouco cavalheiresco quando a verdade se deve ter tornado óbvia na mente de todos que se reuniram à nossa volta? Era um grupo bastante grande, não
acha?
Freyja ficou com a nítida impressão de que podia ter encontrado alguém à sua altura, algo que raramente acontecia fora dos membros da sua própria família. Deu a
sua atenção à canção que tinha entre mãos. O tema eram cucos e o autor da canção parecia ter concebido toda a peça para que as duas vozes, ou melhor, quatro vozes,
pudessem levar o público a acreditar que eram um bando de aves dementes em pânico e incapazes de proferir qualquer som com exceção dos seus próprios nomes. Era o
género de canção que provocaria exclamações de deleite e admiração da maior parte dos grupos. Freyja colocou-o no fundo do monte.
- Sinto-me obrigado a defender a minha honra mais uma vez - prosseguiu o marquês. - Não estava prestes a roubar um beijo, Lady Freyja. Estava prestes a conceder
um e a ter um concedido voluntariamente em troca. Não pode imaginar como a sua interrupção foi inoportuna. Ela tinha lábios semelhantes a cerejas e eu estive a momentos
de provar o seu doce néctar. Será possível chupar o néctar de uma cereja? Seja como for, creio que me fiz entender de forma bem clara.
Se os olhos dele dançassem mais alegremente, ficariam em perigo de dançar para fora da sua cabeça. E estava a usar um pouco de perfume. Freyja detestava homens que
usavam perfume, mas aquele era subtil, almiscarado e envolvia sedutoramente todos os seus sentidos. Os olhos dela baixaram até aos lábios dele, que tinham estado
tão perto de beijar a criada no parque, achou-os tão perfeitos como o resto e baixou-se ainda mais para junto do monte de pautas. Acabara de se lembrar que aqueles
lábios, na realidade, também já a tinham beijado.
- Devia estar a ajudar-me a escolher um dueto para cantar - disse ela.
- Creio que vou deixar isso à sua consideração - disse ele. - Se não gostasse da minha escolha, iria sem dúvida provocar uma discussão em torno disso e encontrar
algum motivo para me dar um murro no nariz, e é bastante possível que as outras pessoas presentes na sala se apercebessem disso. E mesmo que não se apercebessem,
não retiro grande prazer do facto de ver o meu nariz ser esmurrado. E então, porque é que está a franzir tão ferozmente o sobrolho?
- Ninfas, pastores, Fílis e Amarílis - disse ela, franzindo o sobrolho com aversão perante a canção nas suas mãos. - A última só falava de cucos. - Ela colocou a
folha junto das outras rejeitadas por baixo do monte e encontrou outro dueto.
- Está sempre assim tão zangada? - perguntou-lhe ele.
- Na presença de uma companhia desagradável, sim - respondeu, olhando-o friamente.
Ele esboçou um sorriso rasgado. - Nunca sorri?
- Tenho estado a sorrir toda a noite - disse-lhe ela. - Isto é, até ser obrigada a entrar nesta conversa a dois.
- Quase - disse ele suavemente - sou levado a acreditar, Lady Freyja, que está a tentar dar-me uma descompostura.
- Quase - retorquiu ela - sou levada a acreditar, Lord Hallmere, que deve possuir alguma inteligência.
Ele riu-se suavemente, um som que foi abafado pelos aplausos corteses que se sucederam à interpretação de Charlotte. Mais ninguém ocupou o instrumento de música.
Estavam a ser montadas mesas para jogos de cartas e os convidados estavam a ocupar os seus lugares. Ninguém tentou incluir qualquer uma das duas pessoas sentadas
no banco junto à janela.
- Esta noite - disse o marquês -, esteve a exibir aquilo que suspeito ser o sorriso público de Lady Freyja Bedwyn, a expressão graciosa através da qual informa o
mundo de que é alguém de importância e que está à altura de todas as situações sociais. Gostava imenso de ver o sorriso privado da Freyja, se é que existe tal coisa.
Não existiam muitos homens que ousassem galanteá-la. E não restavam dúvidas de que era disso que se tratava. Um galanteio trocista, é claro. Os olhos dele continuavam
a rir-se para ela.
- Eu tenho aquilo que os meus irmãos descrevem como um sorriso felino - disse-lhe ela, observando-o friamente. - Quer que o brinde com uma exibição?
Ele soltou mais uma risada e esticou o braço por cima do monte de pautas de música para tirar-lhe a folha das mãos.
- Hum - disse, após tê-la examinado durante um momento. - "Junto às águas prateadas do Trent morava Sirena." Gosto dela. Cada vez se torna melhor. "Aquela a quem
a natureza concedeu tudo o que era superior." Fascinante, não é verdade?
- É óbvio que para si é - respondeu ela.
Nesse momento, ele fez uma coisa que quase a levou a fechar as mãos em punhos. Deixou os olhos vaguearem lentamente ao longo do corpo dela, a começar pela extensão
ampla de peito visível acima do grande decote, muito em voga, do seu vestido, e deslocou-os para baixo, dando a impressão de que via cada uma das curvas sob a barreira
do seu vestido de cintura alta e das suas saias soltas. Ele franziu os lábios.
- "Aquela a quem a natureza concedeu tudo o que era superior" - murmurou ele de novo. E depois sorriu, desta vez não com o sorriso irónico habitual, mas com uma
expressão de grande charme, claramente concebida para que as mulheres ficassem com os joelhos a tremer. - Passamos para o banco do pianoforte, Lady Freyja, e experimentamos
esta?
Ela sentia os joelhos a tremer de fúria mal contida, concluiu quando se pôs de pé. E depois a mão dele pousou no fundo das suas costas. Ela olhou altivamente por
cima do ombro para ele.
- Sou bastante capaz de fazer o caminho entre a janela e o pianoforte sem o seu auxílio, Lord Hallmere - declarou.
- Mas senti-me obrigado a pôr à prova uma teoria - disse-lhe ele. - "Aquela a quem a natureza concedeu..." Esqueça.
- Suponho que - disse ela - se aperceba de que sou bastante imune às suas lisonjas e tentativas de galanteio. Mas é claro que se apercebe. É por isso que está a
fazê-lo. Suponho que tenha esperanças de me provocar a fazer uma exibição pública de mau génio.
- É preferível um galanteio a uma corte - disse ele. - A minha avó sugeriu-me fazer-lhe a corte. Ela acredita que o nosso casamento seria uma união fabulosa para
ambos.
Ela fitou-o fixamente, sem palavras.
Ele sorriu-lhe. - Pelo menos, concordamos numa coisa, querida - murmurou e indicou o pianoforte com a mão.
Alguns momentos depois, estavam sentados lado a lado num banco do pianoforte que não fora feito para duas pessoas. Ele não fez qualquer tentativa de se instalar
precariamente na ponta do seu lado, como faria um cavalheiro decente, e em vez disso ocupou ostensivamente o espaço junto à sua anca e ao longo do seu braço nu.
Aparentemente, os dois tinham sido esquecidos pelo resto do grupo, concentrado nos seus jogos de cartas acompanhados por trocas de palavras sussurradas.
- Vamos tentar - disse o marquês, espalhando a pauta no suporte e colocando as mãos nas teclas. Eram mãos de dedos longos e bem cuidados, viu Freyja. Haveria algum
traço físico nele que não fosse perfeito? Sim, havia os dentes tortos, embora na verdade, fossem apenas muito ligeiramente entortados e pareciam mais atraentes daquela
forma do que se estivessem todos seguidos numa fila perfeita. - Sabe ler música?
- É claro que sei ler música - disse ela. - Só não consigo interpretá-la.
Ele possuía uma agradável voz de tenor, que se revelou bastante semelhante à voz de contralto dela. Surpreendentemente, as duas vozes juntas faziam uma agradável
combinação de som. A canção avançava lenta e melodiosamente de forma a tornar-se bastante simples cantá-la razoavelmente bem, mesmo que não a dominassem completamente.
- Oh, muito bem - disse Lady Potford quando, após algumas falsas partidas, eles cantaram a canção até ao fim sem parar ou fazer grandes deslizes.
Aparentemente, ela não fora a única a escutar em silêncio enquanto cantavam. Ouviram-se aplausos educados de todas as mesas. Lady Holt-Barron sorria abertamente
de modo aprovador.
- Creio que - murmurou o marquês - foi ultrapassada uma crise de forma bem-sucedida, Lady Freyja. Fui visto publicamente a mostrar ter-lhe perdoado e a senhora foi
vista a mostrar ter aceitado graciosamente o erro das suas suposições.
Ela pôs-se de pé num salto e olhou-o furiosamente do alto enquanto ele a fitava com um espanto inocente.
- O senhor perdoou-me a mim? - disse ela com toda a altivez que conseguiu reunir. - O erro das minhas suposições? Quando a culpa foi toda sua? Pois fique sabendo
que...
Mas Lady Potford tinha-se posto apressadamente de pé também, meros momentos depois de Freyja.
- Chegou a altura de pedir para trazer os tabuleiros do chá - declarou. - Joshua, meu querido, terias a bondade de puxar o cordão da campainha?
Freyja tratou de dobrar a pauta da música e de trazer o resto do monte do banco junto à janela. Aquela fora por pouco. Começava a sentir-se um fantoche a dançar
nos fios do marquês de Hallmere. Ele fizera aquilo deliberadamente, mais uma vez. Sempre fora conhecida pela sua franqueza e temperamento explosivo, mas sempre soubera
onde e quando usar cada uma dessas coisas, e, mais propriamente, onde e quando não o fazer.
Foi colocar-se junto da mesa de Charlotte e olhou com atenção para as cartas por cima dos ombros da amiga.
Joshua sentia-se pronto para seguir viagem, embora pretendesse ficar até ao final da semana em Bath, visto ser isso que a avó esperava dele. Lady Freyja Bedwyn andava
a evitá-lo, embora ele fosse a todos os lados que os membros da sociedade elegante deveriam ir e ela também. Era divertido observá-la a cumprimentar as pessoas com
uma altivez graciosa, se bem que entediada. Pressentiu que não se tratava apenas de um papel para ocultar o seu embaraço daquela cena em que se encurralara a si
mesma no Pump Room. Ela era filha e irmã de um duque. A arrogância surgia-lhe naturalmente. Devia ter acreditado nela desde o início.
Ele viu-a duas manhãs seguidas no Pump Room. Da primeira vez, preparava-se para sair com Lady Holt-Barron e respetiva filha exatamente no momento em que ele estava
a chegar com a avó, e todos trocaram entre si apenas o mínimo de cortesias. Da segunda vez, estava a passear com o conde de Willett, cuja cabeça estava curvada atentamente
na sua direção enquanto ela falava. Ela concedeu a Joshua um impercetível aceno de reconhecimento quando o viu.
Viu-a na Milson Street nessa tarde. Estava parada no passeio a falar com Willett. Lady Holt-Barron e a filha estavam a sair de uma casa de chapéus de senhora quando
Joshua passou. Houve um frenesi de cumprimentos por todo o lado e ele prosseguiu o seu caminho.
Viu-a no teatro uma das noites. Estava sentada entre Miss Holt-Barron e Willett a abanar languidamente o rosto com o leque. Ergueu as sobrancelhas quando cruzou
um olhar com Joshua, acenou graciosamente com a cabeça e depois dirigiu a sua atenção de volta à conversa.
Sendo assim, não havia muito no que dizia respeito ao galanteio para manter Joshua em Bath mais do que uma semana, nem mesmo quando acompanhou a avó numa visita
à tarde à casa de Lady Holt-Barron no The Circus, aquele círculo esplêndido de majestosas casas em banda de arquitetura georgiana com um espaço relvado circular
no centro e várias árvores antiquíssimas magníficas. Era verdade que tinham chegado no preciso momento em que Lady Freyja e Miss Holt-Barron estavam a preparar-se
para caminhar na Royal Crescent ali próxima e que Miss Holt-Barron o convidara a juntar-se a elas. Mas elas já tinham um acompanhante. Willett ocupou com firmeza
o seu lugar ao lado de Lady Freyja, embora ela não tivesse aceitado o seu braço para se apoiar.
Ela caminhava, reparou Joshua à medida que passeava ao longo de Brock Street atrás deles junto de Miss Holt-Barron, com uma passada firme e masculina, apesar da
sua baixa estatura. A bengala de Willett batia elegantemente nas pedras da calçada. Joshua entrelaçou as mãos atrás de si e procurou ser agradável à sua companhia.
O Royal Crescent era um semicírculo magnífico de casas em fila, um complemento deliberado ao The Circus. Várias outras pessoas estavam a passear ao longo da rua
calcetada diante das casas, a desfrutar da vista sobre o parque em frente e ao longo da colina sobre a cidade lá em baixo. E, inevitavelmente, estas pessoas cumprimentavam-se
entre si quando passavam umas pelas outras e por vezes detinham-se para partilhar quaisquer notícias ou má-língua que se havia acumulado desde o encontro da manhã
no Pump Room.
- Bath é divinal - declarou Miss Fanny Darwin quando o seu grupo se cruzou com o de Joshua e todos se detiveram -, e existem tantas coisas empolgantes para fazer
a todos os momentos. Não concorda, Lord Willett?
- Certamente que sim, Miss Darwin - disse o conde. - Bath oferece uma combinação agradável de exercício fora de portas e entretenimento dentro de portas. E tudo
isso para ser desfrutado na companhia aprazível dos nossos pares.
- Levámos a carruagem para os Sydney Gardens ontem à tarde e passeámos por lá mais de uma hora - declarou Miss Hester Darwin. - Foi um exercício maravilhoso num
cenário deliciosamente pitoresco. Já conhece o parque, Lady Freyja?
O irmão dela pigarreou, o primo dela, Sir Leonard Eston, sacudiu um ponto invisível de pó de uma das mangas do casaco, a irmã dela enrubesceu até ficar com o rosto
vermelho-vivo e Miss Hester Darwin tapou apressadamente a boca com uma das mãos, demasiado tarde, enquanto vinha à memória de todos o resultado da incursão solitária
de Lady Freyja aos Sydney Gardens.
Joshua esboçou um sorriso rasgado. - Creio bem que Lady Freyja já conhece o parque, Miss Darwin - disse ele. - Assim como eu.
- Exercício! - exclamou Lady Freyja. - As pessoas vêm até Bath por causa da sua saúde, e pela sua saúde passeiam no Pump Room, passeiam no Crescent e passeiam no
parque. É uma palavra que devia ser banida do dicionário, passear. Se eu não caminhar para algum lado em breve ou, melhor ainda, cavalgar para algum lado onde exista
espaço para nos mexermos, posso muito bem acabar numa cadeira de rodas a ser empurrada de lugar para lugar e a beberricar a água de Bath.
A audiência dela escolheu reagir às suas palavras como se tivesse proferido algo enormemente espirituoso. Os cavalheiros riram-se e as senhoras soltaram risinhos
abafados.
- Decididamente, tem de ser salva das águas de Bath - disse Joshua. - Venha cavalgar comigo amanhã, Lady Freyja. Buscaremos as colinas e os espaços abertos fora
das limitações da cidade.
- Parece-me o Paraíso - disse ela, fitando-o com aprovação talvez pela primeira vez desde que o conhecia. - Irei de bom grado.
- Mas não sozinha, Lady Freyja - disse apressadamente Willett. - Seria um pouco escandaloso, temo eu. Talvez possamos organizar um grupo de cavaleiros. Eu certamente
que me juntaria a ele. E a senhora, Miss Holt-Barron?
- Oh, eu também - exclamou Miss Fanny Darwin. - Nada me dá mais prazer do que cavalgar, desde que o passo não seja muito rápido nem a distância muito longa. Gerald,
também tens de vir e tu também, Leonard, para a mãe não colocar quaisquer objeções ao facto de permitir que eu e a Hester nos juntemos ao grupo.
O olhar de Joshua cruzou-se com o de Lady Freyja. Conseguia pressentir o esgar de descontentamento que ela não deixava instalar-se no rosto. Ele sorriu-lhe e piscou-lhe
o olho.
Ficou feliz por ver as narinas dela retesadas de indignação.
Talvez, pensou ele esperançosamente, o dia de amanhã fosse mais divertido do que os últimos dias haviam sido.
CAPÍTULO 5
Freyja e Charlotte não tinham os seus cavalos em Bath, mas conseguiram alugar dois por um dia. Freyja mandou para trás o primeiro cavalo que lhe foi levado com a
mensagem de que ela cavalgava praticamente desde que dera os primeiros passos e nunca apreciara andar a trote numa pileca velha que parecia ser coxa nas quatro patas.
A segunda montada foi aprovada, ainda que Lady Holt-Barron a achasse suficientemente impetuosa para precisar da mão firme de um homem nas rédeas, e implorou a Freyja
para ter bastante cuidado.
- O que diria eu ao duque, Lady Freyja - perguntou retoricamente - se ma trouxessem para casa com um pescoço partido?
Freyja e Charlotte desceram lado a lado a cavalo a íngreme Gay Street na direção da abadia, à porta da qual tinham combinado encontrar-se com os outros seis membros
do grupo. Estava um dia glorioso, suficientemente quente para o verão, mas com mais frescura no ar.
- Se tivermos de ir a passo lento assim que deixarmos Bath, o equivalente ao ritmo de passeio mas em cima de um cavalo, Charlotte - disse Freyja -, vou ter um ataque
de fúria. Será que as irmãs Darwin serão assim tão mal-intencionadas?
- Receio que sim - disse Charlotte com uma risada abafada. - Nem todos somos cavaleiros que gostem de arriscar como tu, Freyja. Achas que o conde de Willett irá
conseguir passar algum tempo sozinho contigo hoje? Ele parecia muito determinado nos últimos dias. Deve estar muito perto de te fazer uma proposta de casamento.
- Oh, Céus - disse Freyja. Ela tinha-o encorajado bastante, simplesmente porque queria desencorajar o marquês de Hallmere, que andava a divertir-se propositadamente
às suas custas e que parecia saber exatamente como a fazer perder a cabeça em público. Era óbvio que era tudo muito divertido para um homem que provavelmente nunca
tivera um pensamento sério na vida. Infelizmente, o conde de Willett não precisava de muito encorajamento. - Espero sinceramente que ele possa ser poupado a esse
embaraço.
- Não aceitarias a proposta dele, então? - perguntou Charlotte.
Devia, pensou Freyja. Ele era um conde com uma propriedade enorme no Norfolkshire e uma fortuna que constava ser bastante grande, sem falar na possibilidade de a
duplicar com a morte do tio. Era agradável, se bem que com uma maneira de ser um pouco cerimoniosa. Seria aprovado por Wulfric. Devia casar-se com ele e pôr um ponto
final na questão. Mas a recordação do tipo de paixão que conhecera com Kit Butler durante um verão breve quatro anos antes invadiu-a. E, de seguida, os olhos dela
iluminaram-se com a figura esplendorosamente bem-parecida do marquês de Hallmere enquanto se aproximavam do local de encontro combinado. E soube que queria mais
da vida do que simplesmente conformar-se com um casamento que prometia respeitabilidade e prosperidade.
Ainda a propósito do marquês, este estava montado num animal esplêndido, poderoso e negro, de pelo lustroso. Freyja ficou instantaneamente invejosa. As pernas longas,
cingidas por calças de montar de camurça e botas altas pretas, podiam ser melhor apreciadas quando estava na garupa de um cavalo. Assim como o resto. Ele podia ser
um homem frívolo e desregrado e ela parecia não fazer mais nada senão fervilhar de hostilidade sempre que estava perto dele, mas pelo menos estava vivo e fazia-a
sentir-se viva. E estava-lhe enormemente grata por ter sugerido aquela saída a cavalo, embora esperasse que fosse mais do que um mero passeio a passo de caracol
pelo campo.
- Acho que não - disse em resposta à pergunta de Charlotte. - Vou tentar evitar cavalgar ao lado dele. Iria arruinar o meu dia e o dele também, se se lembrasse de
deixar escapar a pergunta hoje.
Mas o conde de Willett não se deixava dissuadir facilmente. Uma vez encorajado, e ela tinha-o encorajado, tornara-se ousado na sua corte a Lady Freyja. Enquanto
o marquês cavalgava com uma das irmãs Darwin de cada lado, com risadas entusiásticas que feriam os ouvidos de Freyja, e Charlotte cavalgava entre Mr. Darwin e Sir
Leonard Eston, o conde seguia na dianteira do grupo, ao lado de Freyja. Avançaram sonolentamente ao longo das ruas de Bath e subiram a colina que se estendia depois
da cidade, seguindo pela estrada de Londres.
- Não vamos testar os limites dos nossos cavalos nesta encosta íngreme - informou-a o conde -, ou mesmo quando chegarmos a terra plana. Tenho sempre presente o facto
de que existem quatro senhoras no grupo e de que a senhora monta à amazona. Admiro-a imenso pela graciosidade e perícia com que o faz, mas serei zeloso nos meus
esforços para não a colocar em qualquer perigo desnecessário.
Freyja lançou-lhe um olhar horrorizado, mas ficou calada. Eles estavam, de facto, numa ladeira bastante íngreme naquele momento.
Quando chegaram ao topo, todos pararam para admirar a vista que tinham deixado para trás, os edifícios brancos elegantes e reluzentes de Bath.
- É isto que mais anseio ver sempre que vimos até cá - disse Miss Fanny Darwin com um suspiro de contentamento. - O primeiro vislumbre da cidade. Todos aqueles edifícios
brancos resplandecem diante dos nossos olhos quando o sol brilha, como no dia de hoje. Ainda vamos andar muito mais a cavalo, Lord Willett?
Freyja virou-se bruscamente para a fitar.
- Existe uma aldeia não muito longe junto à estrada - disse o conde. - Ia sugerir que cavalguemos até lá num passo tranquilo, bebamos um chá ou limonada na estalagem
e façamos o caminho de volta. Não vou sugerir que nos afastemos da estrada. Nos campos existem sempre covas de coelhos e terrenos acidentados semelhantes a armadilhas
para os mais incautos.
Ainda era de manhã, pensou Freyja. Ele tencionava estar de regresso a Bath para as atividades habituais da tarde, então? E desde quando é que aquilo se tinha tornado
a saída a cavalo dele?
- Num passo tranquilo? - disse ela. - Junto à estrada? Pelo mero prazer de beber chá? Eu vim para fazer uma corrida. - Ela apontou para a sua direita com a chibata.
- Tenciono fazer uma corrida naquela direção, através das colinas. Na verdade, tenciono galopar através delas.
- Lady Freyja... - O conde parecia genuinamente alarmado.
- Oh, aprovado! - O tom de Mr. Darwin era animado e cheio de interesse.
- Gerald - disse Miss Hester Darwin -, a mãe fez-te prometer que não nos deixavas cavalgar depressa e não desatavas a galopar à nossa frente.
- Ver-vos-ei a todos em Bath, nesse caso - disse Freyja, voltando o cavalo para fora da estrada e dirigindo-o para uma abertura da sebe do campo ao lado.
Já começava a sentir-se mais animada. Incentivou o cavalo a dar início a um galope leve e não olhou para trás para ver se alguém tinha tido a coragem de a seguir.
Mas mesmo que ninguém a seguisse, o conde de Willett fá-lo-ia. Sentir-se-ia moralmente obrigado a acompanhá-la. Talvez, no fim de contas, se tivesse encurralado
numa conversa privada com ele. Incitou a montada a um passo mais rápido. Ah, conseguia sentir o ar no rosto, finalmente.
Podia ouvir cascos a trotar atrás de si. Esperava que ele não estivesse sozinho, se de facto a seguira. Virou a cabeça para olhar para trás e sentiu um alívio instantâneo.
Claro! Já devia saber que o marquês de Hallmere seria o único a aceitar o desafio. Fora ele, no fim contas, que tinha sugerido aquela saída, só entre os dois. E
fora ele quem lhe piscara o olho, de novo, quando Miss Darwin exprimiu a sua esperança de que o grupo não cavalgasse até muito longe ou muito depressa.
Ele exibia um sorriso rasgado. Isso, é claro, não era nenhuma surpresa.
- Está a ver aquela rocha branca? - perguntou ele, vindo posicionar-se ao seu lado e apontando para a frente com a chibata ao mesmo tempo que ela abrandava um pouco.
Havia um ponto branco lá ao longe. Entre este e a posição atual de ambos estendiam-se pelo menos três campos. Mas do cimo da rocha, que se projetava sobre a terra
lá em baixo, devia estender-se um panorama esplêndido que incluía a cidade de Bath.
- Aquele será o ponto de chegada da nossa corrida? - perguntou, antecipando o que ele se preparava para dizer. - Muito bem. Esperarei lá por si. - Ela esporeou o
cavalo e curvou-se junto ao seu pescoço.
Não era o seu próprio cavalo, é claro, mas não era nenhuma lesma. Respondia às suas ordens com um ímpeto poderoso. Ela experimentou apenas um instante de apreensão
quando se aproximaram da primeira sebe. Mas seria vergonhoso virar para o lado à procura de um portão. O cavalo elevou-se no ar sobre a sebe com uns bons trinta
centímetros de intervalo e Freyja riu-se. Com a visão periférica, conseguia ver o marquês nem a um comprimento de distância dela. Se estava a conter-se por causa
da intenção galante de permitir a vitória a uma senhora, depressa se daria conta do seu erro. Mas é claro que não precisava de temer uma galantaria indevida da parte
dele. Ele ultrapassou-a bem antes de a sebe seguinte ficar próxima e ficou a um comprimento total ou mais de distância à sua frente. Ele tinha uma postura de equitação
esplêndida, reparou Freyja com admiração.
A corrida tornou-se tudo para ela depois disso. Sempre fora intensamente competitiva, talvez mais até porque sempre tinha sido pequena e a única rapariga entre numerosos
e turbulentos rapazes, os seus irmãos Aidan, Rannulf e Alleyne e os vizinhos Butler, Jerome, Kit e Sydnam. Nunca se sentira uma rapariga que tivesse uma irmã para
brincar. Morgan era sete anos mais nova do que ela. Competira com os rapazes e tornara-se igual a eles.
Agora também estava a competir, incitando a sua montada a ir cada vez mais e mais depressa, ouvindo o trovejar dos cascos sob si, sentindo o vento a bater com violência
no chapéu, cabelo e traje de montar, vendo o intervalo entre si e o cavalo à sua frente tornar-se cada vez mais estreito até que, quando saltaram a última sebe,
estavam quase lado a lado.
O marquês cometeu o erro, depois de terem aterrado, de olhar para o lado na sua direção, talvez com alguma surpresa ao ver que ela o alcançara, visto que certamente
não estaria a fazer concessões, nem pelo facto de ser uma mulher, nem pelo facto de montar à amazona. Quando chegaram à grande rocha branca, ela estava à frente
dele por uma cabeça inteira. Ela soltou um grito de triunfo e voltou-se para se rir para ele.
- Não me divertia assim há uma eternidade - gritou.
- Fico contente por ter permitido que ganhasse, então - disse ele.
Ele estava imprudentemente perto. Ela esticou o braço que segurava a chibata e cravou-a com força nas costelas dele.
- Ai! - exclamou ele. - Onde aprendeu a cavalgar assim? Esperava estar perfeitamente repousado e a dormir profundamente na altura em que aparecesse a trotar. - Desceu
do cavalo num movimento ágil, prendeu-o com uma corda a uma árvore e depois avançou até ela com passadas firmes e estendeu os braços. - Permita-me.
Ela pousou as mãos nos ombros dele e teria saltado para baixo, mas ele ergueu-a pela cintura com mãos fortes, fê-la deslizar com demasiada lentidão à sua frente
e depois, quando os pés dela estavam em terra firme, curvou a cabeça e beijou-a nos lábios, como fizera numa outra ocasião memorável.
As mãos dele rodearam os pulsos dela quando ergueu a cabeça. - Admito graciosamente a derrota com um beijo - disse ele, a sorrir. - E, ao mesmo tempo, protejo o
meu nariz do choque com um punho a voar.
Ele era um homem extraordinariamente atraente, pensou Freyja. É claro que isso não era uma descoberta nova. Mas o que a surpreendeu foi que naquele momento em particular
não se tratava apenas de uma apreciação intelectual. Conseguia sentir o corpo a reagir à atração dele com uma perceção aumentada e uma ligeira respiração ofegante.
Não reagia fisicamente a nenhum homem desde Kit.
Mas o marquês de Hallmere não era certamente o homem que devia despertar qualquer tipo de paixão. Não restavam dúvidas de que ficaria encantado por vê-la desconcertada.
Ela brindou-o com o seu sorriso felino, libertou os pulsos e voltou-lhe as costas para subir à rocha branca. O vento batia com violência contra as saias pesadas
do seu traje de montar e chapéu de penas. Ela arrancou o chapéu com impaciência, guardando no bolso os ganchos que o prendiam ao cabelo, e depois não conseguiu resistir
a retirar também os ganchos do próprio cabelo. Sentiu uma felicidade absoluta ao levantar a cabeça bem alto e sentir o vento a soprar-lhe pelos cabelos. Inspirou
profundamente o ar e expirou-o lentamente.
- Uma donzela viking de pé na proa de uma embarcação viking - declarou ele lá de baixo. - Teria servido de inspiração a um barco cheio de guerreiros para desbravar
caminho com o machado pela costa acima e conquistar uma nova terra para si.
Ele tinha um pé apoiado na rocha e um braço à volta da perna. Na outra mão segurava o chapéu. O cabelo muito loiro voava ao vento, tremeluzindo à luz do sol.
- Suspeitei muitas vezes - disse ela - que tinha nascido na era errada.
- Lady Freyja Bedwyn - disse ele -, não me parece que a insulte ao fazer a observação de que já terá deixado os vinte anos para trás há algum tempo, pois não? Porque
é que ainda está solteira?
- Tal como o senhor. Porquê? - contra-atacou ela.
- Eu perguntei primeiro.
Ela olhou para a vista e inspirou profundamente de novo.
- Desde que nasci - declarou - que estava destinada a Jerome Butler, visconde Ravensberg, o filho mais velho do conde de Redfield, o vizinho do meu pai. Ficámos
noivos quando eu fiz vinte e um anos. Ele morreu antes de eu fazer vinte e dois e antes de nos casarmos.
- Lamento imenso - disse ele.
- Não precisa de lamentar nada - disse-lhe ela. - Crescemos juntos e sentíamos afeto um pelo outro. Chorei a sua morte. Mas não sentíamos uma grande paixão um pelo
outro.
- Há quanto tempo é que ele morreu? - perguntou ele.
- Há mais de três anos - respondeu ela.
- E não houve mais ninguém em todo esse tempo? - perguntou ele.
- É a sua vez - disse-lhe ela. - Porque é que o senhor não está casado? Também já deixou para trás os vinte anos há muito.
- Eu cresci na qualidade de familiar pobre na casa do meu tio, o falecido marquês - disse ele. - Ele tinha um filho, o meu primo Albert. Nunca teria sido considerado
um bom partido até que a sua morte acidental há cinco anos me transformou subitamente no herdeiro. O meu tio tinha três filhas mas mais nenhum filho. Suponho que
me tenha tornado instantaneamente desejável assim que passei a ser o herdeiro, mas desde a altura da morte de Albert até ao presente, nunca me deixei ficar num lugar
tempo suficiente para formar qualquer tipo de ligação duradoura.
- Está à espera que eu sinta pena de si? - perguntou ela, fitando-o de cima. - Ou será que essa vida lhe foi muito conveniente? Ama-as e abandona-as, é isso?
Ele soltou uma risada abafada. - A minha avó ainda quer que eu lhe faça a corte - afirmou -, mesmo depois de começar a insurgir-se de novo contra mim na festa dela.
Ela acha-a simplesmente impetuosa. Acredita de que precisa apenas de uma mão firme nas rédeas. Ou seja, a minha mão.
- Pondo de parte o seu último comentário, talvez até inventado por si para provocar a minha ira - disse ela -, a sua avó vai ficar desapontada, não é verdade? Não
tem qualquer desejo de me cortejar e eu não tenho qualquer desejo de ser cortejada. Pelo menos estamos de acordo a esse respeito.
- Tem toda a razão - disse ele. - Não tenho o casamento em mente e, felizmente, nem tão-pouco a senhora. Não preciso de temer, nesse caso, que ficará com a ideia
errada se lhe disser que sinto uma vontade quase irresistível de a beijar devidamente. Será que irei adquirir dois olhos negros e um nariz partido se ceder a essa
vontade? - Ele voltou a cabeça para lhe lançar um sorriso deslumbrante. Os olhos, como seria de esperar, estavam a dançar de alegria.
Ela inspirou para proferir a descompostura mordaz que uma pretensão desse género merecia. Mas era um pensamento tentador. Tinha vinte e cinco anos e não era beijada
há quatro anos. Jerome, por mais estranho que pareça, nunca lhe beijara mais do que as costas da mão. Por vezes, o vazio e a solidão de ter amado e perdido Kit eram
quase insuportáveis.
E ali estava um homem, um homem bem-parecido e perigosamente atraente, que não esperava nada dela além de um beijo e que sabia que ela não iria exigir nada em troca.
- A senhora hesita - disse ele. - Interessante.
- Não sofreria qualquer mutilação na cara - disse ela com firmeza. - A não ser que caísse da rocha na descida.
Sentiu-se horrivelmente embaraçada naquele momento e horrível e disparatadamente consciente da sua fealdade. Tinham passado anos desde a altura em que desistira
de lamentar aquilo que não podia mudar. A natureza dera-lhe um arbusto selvagem em vez de cabelo, sobrancelhas de uma cor diferente, e o pai passara-lhe o nariz
dos Bedwyn, tal como tinha feito a toda a sua prole, com a exceção de Morgan, que era a personificação da beleza, tal como a mãe de ambas.
Freyja voltou-se, determinada, enquanto ele pousava o chapéu numa reentrância abrigada e depois retirou o dela da sua mão e também o pousou no mesmo sítio. Ela ergueu
o queixo.
Ele afagou-o indolentemente com o nó do dedo indicador. As pálpebras dele tinham ficado bastante pesadas, e surtiram o estranho efeito de fazer com que a sua barriga
começasse a dar voltas. Definitivamente não tinha sido uma boa ideia, mas agora era demasiado tarde para dizer que não. Ele poderia acusá-la de cobardia e com alguma
razão.
Era óbvio que ele não tinha pressa. Ela estava à espera que ele baixasse a cabeça e reivindicasse os seus lábios sem mais demoras. Pelo menos, nessa altura podia
ter fechado os olhos e escondido o seu embaraço. As mãos dele estavam erguidas e a tocar-lhe no rosto, embora apenas o fizesse com as pontas dos dedos. Ele passou
os polegares sobre as suas sobrancelhas, e um dos indicadores percorreu, ao de leve, o seu nariz.
- Interessante - disse ele. - Tem um rosto interessante. Inesquecível.
Pelo menos, pensou ela, não lhe chamara bela. Por uma questão de princípio, não podia ter continuado aquilo se o tivesse feito.
As mãos dele seguraram o rosto dela.
- Também me pode tocar - disse ele -, se quiser fazê-lo.
- Não quero. Ainda - acrescentou, e os olhos dele riram-se para ela.
Ele esfregou ligeiramente o nariz contra o dela e depois desviou a cabeça e tocou suavemente com os lábios nos dela por um momento. As mãos dela apoiaram-se na cintura
dele. Ela teve de se concentrar para não se libertar com um safanão e desatar numa corrida desenfreada. Seria uma verdadeira humilhação!
Rapariga espantadiça de uma certa idade, sem acompanhante, foge das garras de devasso experiente.
A língua dele lambia os seus lábios suave e sedutoramente. Ela agarrou a cintura dele com um pouco mais de força, inclinou-se um pouco mais para junto dele e entreabriu
os lábios. A língua dele entrou e enrolou-se para afagar a carne suave e humedecida do interior. Sensações viscerais irromperam numa explosão por todo o corpo de
Freyja, desde os lábios aos joelhos, e prosseguiram até aos dedos dos pés. Ela abraçou-o pela cintura, deu um passo em frente até os seios ficarem pressionados contra
o peito dele e o seu abdómen ao dele e abriu a boca.
Ele beijou-a nesse momento com toda a competência e perícia de um homem de uma vasta experiência que deve ter praticado a sua arte em metade da população feminina
da Europa, no mínimo, como mais tarde suspeitou. Só lhe restava colar-se a ele, pressionar mais o corpo contra o dele, usar a língua como arma contra a dele e extrair
o máximo que conseguia das suas próprias e escassas competências, nascidas de um puro instinto de autodefesa.
De repente, parecia que estava no meio de uma onda de calor no pico do verão.
Não fazia ideia de quanto tempo tinha durado. Só sabia que quando começou a voltar a si, que foi quando pressentiu que ele estava prestes a descolar finalmente a
boca da dela, conseguia sentir uma das mãos dele aberta por cima das nádegas, a segurá-la firmemente contra si. E não era assim tão inocente para não perceber perfeitamente
exatamente contra o quê estava a ser apertada com tanta firmeza.
- Bom - disse ela, com a voz apenas ligeiramente ofegante quando ele ergueu a cabeça e olhou para ela com as pálpebras consideravelmente mais pesadas do que antes
-, isto foi muito agradável.
O sorriso começou nos olhos dele, espalhou-se até aos lábios e depois fê-lo atirar a cabeça para trás e soltar uma gargalhada ruidosa ao mesmo tempo que a soltava.
- Aquele foi o meu melhor beijo, especialmente concebido para transformar os joelhos das senhoras em gelatina - disse ele. - E foi muito agradável ? Não tenho dúvidas
que sim. É melhor pô-la de novo em cima daquele cavalo, Lady Freyja, e eu no meu, antes que a imagem que tenho de mim próprio fique consideravelmente debilitada.
Creio que existe uma aldeia depois desta subida ou na seguinte. Cavalgamos nessa direção para ver se conseguimos encontrar uma estalagem ou uma casa de pastéis que
nos possa alimentar? Beijar dá fome.
Ele sorriu ironicamente ao mesmo tempo que lhe dava o chapéu de volta e colocava o dele na cabeça com um gesto floreado, puxando-o para junto das sobrancelhas para
impedir que fosse levado pelo vento.
Depois de testar sub-repticiamente os joelhos antes de dar um passo em frente, Freyja percebeu que iriam mantê-la de pé. Aquilo tinha sido uma das coisas mais irrefletidas
que fizera ultimamente. Estava à espera de pouco mais do que um beijinho rápido do género dos outros dois beijos com que ele a brindara, um no quarto da estalagem
após o primeiro encontro de ambos e outro depois de a ter ajudado a descer do cavalo naquela manhã. Devia ter adivinhado que quando ele se referira a beijá-la devidamente,
tinha muito mais em mente.
Sentia-se bastante agitada e não estava a gostar nem um pouco dessa sensação. Ajudava um pouco o facto de ele estar a ser tão desprendido em relação a tudo aquilo
ao ponto de não se aperceber de que ela não estava bem em si. Decerto tiraria partido da situação se suspeitasse disso. Seria massacrada com a sua perspicácia sorridente.
Ela apoiou o pé nas mãos entrelaçadas dele e ele impulsionou-a para a sela antes de montar o seu próprio cavalo.
- É claro que - disse ela na sua voz mais altiva - aquilo não foi um convite aberto para se lançar sobre mim sempre que sentir essa vontade. Foi um momento agradável,
mas não deve ser repetido. Isso seria uma maçada.
- Muito bem - disse ele, voltando uma cara risonha para ela antes de se colocar na dianteira rumo à colina e à aldeia que pensava estar próxima -, afinal não foi
possível evitar uma reprimenda. Sinto-me arrasado, rebaixado, desprovido de toda a minha confiança junto do belo sexo para toda a eternidade. Talvez seja esse o
epitáfio da minha lápide: a vida dele foi muito agradável, mas repeti-la seria uma maçada. Preciso de uma bebida forte. Um copo de brandy no mínimo.
Freyja seguia atrás dele, sorrindo nas suas costas.
*
Que grande erro de julgamento, pensou Joshua enquanto estiveram sentados na sala de estar de uma pequena estalagem, a comer pastéis de carne e a beber chá e cerveja
e ao longo de todo o caminho de volta a Bath.
Ela parecera realmente magnífica de pé naquela rocha, com o cabelo solto e selvagem como da primeira vez que a vira, mas com a luz do sol e o vento a incidir nele
desta vez. Quisera beijá-la, mas da mesma forma leve e casual como a tratara em todos os seus encontros até agora.
Não tencionara, de forma alguma, beijá-la daquela forma. E não antecipara a efusão desregrada de paixão dela. O que fora realmente insensato da parte dele. Apesar
de toda a sua altivez, tinha muitas provas de que ela era uma mulher de caráter forte, temperamento incerto e natureza impulsiva.
Ela seria, suspeitava agora, sinónimo de uma paixão absolutamente furiosa e descomedida na cama.
Era algo que preferia não suspeitar, visto que a única forma de verificar uma ideia tão apelativa seria através do casamento e este simplesmente não estava nos seus
planos imediatos ou a médio prazo.
Era realmente uma sorte que também não estivesse nos planos dela.
Ele acompanhou-a todo o caminho até à porta de Lady Holt-Barron em Bath e levou o seu cavalo de volta para a cocheira de aluguer a que pertencia. De seguida, colocou
o seu próprio cavalo num estábulo e regressou à casa da avó a meio da tarde, sentindo-se despenteado pelo vento, repleto de energia e determinado a deixar Bath nos
próximos dias antes de se sentir tentado a entrar em mais indiscrições com Lady Freyja Bedwyn, das quais talvez não fosse capaz de sair tão facilmente.
A avó estava a receber pessoas na sala de estar, informou-o Gibbs. Pedira a Lord Hallmere que a fosse ver imediatamente depois de regressar da sua saída a cavalo.
Joshua seguiu o mordomo pelas escadas acima, verificando se as suas roupas de montar estavam pelo menos minimamente respeitáveis para uma breve aparição na sala
de estar. Mas a avó dissera imediatamente. Era melhor não perder tempo indo até ao quarto mudar de roupa.
Estavam duas senhoras com a avó. Joshua não via qualquer uma das duas há cinco anos, mas era impossível confundir a tia, a marquesa de Hallmere. Possuía uma estatura
média, uma constituição delgada e parecia doce, frágil e até mesmo enfermiça. Sempre tivera o mesmo aspeto. Mas a aparência exterior, como descobrira às suas custas
durante os seus anos em Penhallow, escondia uma vontade de ferro dominadora e um temperamento maldoso e desprovido de humor. A mulher mais nova junto dela, menos
roliça e menos vulgar do que se recordava, era Constance, a sua filha mais velha.
A tia nunca deixava Penhallow. Era o seu reino e ela governava-o como um feudo privado. Até mesmo as vantagens de levar as filhas para Londres quando alcançavam
uma idade apropriada para uma apresentação à rainha e uma introdução na sociedade elegante não a tinham conseguido persuadir. O que a trouxera a Bath devia ser algo
de uma importância imensa.
Ele próprio, sem dúvida.
Ele ignorara os seus convites para regressar a Penhallow. Sendo assim, ela dera o extraordinário passo de vir até ele, informada da sua presença em Bath pela sua
amiga Mrs. Lumbard, é claro. O coração dele aterrou algures junto às solas das suas botas.
- Tia? - disse. - Constance? - Fez uma vénia a ambas antes de cumprimentar a avó com um sorriso hirto.
- Joshua - disse a tia, pondo-se de pé e avançando na sua direção, com os braços delgados esticados. A voz tremia de emoção. Havia lágrimas nos seus olhos. - Meu
queridíssimo rapaz. Vivemos em ansiedade há demasiado tempo, as minhas pobres filhas e eu. O marquês de Hallmere, o falecido marquês de Hallmere, já não está cá
e o Albert já não está cá. Estamos inteiramente à tua mercê. Foste criado em Penhallow como um dos nossos próprios filhos, é claro, mas os jovens muitas vezes esquecem
as dívidas para com aqueles que os amaram e se sacrificaram por eles durante os anos em que foram crescendo.
Santo Deus! Ela era capaz de o olhar nos olhos e proferir um discurso tão disparatado e sem sentido? Mas é claro que sim. Joshua tomou nas suas as mãos frouxas e
frias que ela lhe oferecia e apertou-as antes de as soltar.
- Não me estou a preparar para a atirar para a rua juntamente com as minhas primas, tia - disse bruscamente. Além disso, mesmo que o fizesse, ela tinha a sua renda
mais do que generosa da propriedade.
- Mas não duvido de que te casarás em breve - disse ela - e seríamos um empecilho para a tua marquesa, por muito que eu gostasse de a receber em Penhallow de braços
abertos. Não, eu vim até Bath para tratar do assunto contigo com vista a alcançar a satisfação de todos. Trouxe a Constance comigo.
É claro que trouxera Constance com ela. E um olhar de relance ao rosto pálido e hirto da prima disse-lhe que ela conhecia o motivo tão bem como ele e gostava tanto
disso como ele.
Por que motivo não dissera o que pensava, então? Por que motivo não recusara acompanhar a mãe? Não recusara compactuar com a maquinação que a tia estava obviamente
a engendrar?
Mas, para ser justo para com Constance, sabia que era quase impossível contrariar a marquesa de Hallmere a partir do momento em que esta decidia agir por uma determinada
via.
Ela decidira obviamente que a melhor hipótese que tinha de manter a sua casa e domínio era casar a sua filha mais velha com o sobrinho.
Santo Deus!
CAPÍTULO 6
Estava a chover intensamente na manhã seguinte e Lady Holt-Barron decidiu não ir até ao Pump Room. Freyja passou a manhã a escrever cartas para Eve e Judith, as
suas cunhadas, e para Morgan. Descreveu a saída a cavalo da véspera, incluindo o medo das irmãs Darwin de cavalgar a um ritmo mais rápido do que um cuidadoso passo
de caracol e a insistência rebuscada do conde de Willett em tratar as senhoras como se fossem plantas de estufa delicadas. Descreveu a sua própria fuga com o marquês
de Hallmere e a corrida de ambos através dos campos, saltando sebes pelo caminho.
É claro que não descreveu o que aconteceu depois de a corrida de ambos terminar, mas ficou sentada a pensar sobre isso durante longos minutos, roçando a pena do
seu aparo de forma absorta no queixo.
Fora um beijo escandaloso e lascivo e temia que talvez fosse a culpada por isso. Ele tinha as mãos a rodear-lhe o rosto quando começou e depois beijara-lhe os lábios.
Nenhuma parte do corpo dele estava a tocar em nenhuma parte do dela. Aquilo tudo provavelmente teria terminado de forma doce e casta se ela não se tivesse agarrado
à cintura dele para se equilibrar e depois não se tivesse inclinado contra ele e depois não se tivesse abraçado a ele. E depois...
Bom.
E depois.
Ela franziu furiosamente o sobrolho.
Mas não devia assumir toda a culpa. Fora ele quem começara a lamber-lhe os lábios, a colocar-lhe a língua dentro da boca e a fazer coisas lá dentro que devia saber
muito bem que a levariam à loucura. Não tinha qualquer dúvida de que ele era muito experiente com esse tipo de táticas de sedução e em muitas outras coisas também.
Ele incitara aquilo que se seguira.
Mas Freyja não se sentia minimamente reconfortada com esse pensamento. Como habitual, dançara nos seus fios como uma marioneta desprovida de cérebro. Provavelmente
rira-se dela durante todo o caminho até casa e toda a noite. Provavelmente ainda se estava a rir naquela manhã e a congeminar formas de provocá-la a fazer mais uma
figura de idiota naquele dia.
Lady Freyja Bedwyn não aceitava de ânimo leve que a fizessem passar por idiota.
Mas, oh, Céus... Ela suspirou em voz alta ao mesmo tempo que mergulhava a pena na tinta e se preparava para continuar a carta para Morgan. Aquele único beijo tinha
despertado desejos ardentes que julgara que Kit fosse a única pessoa capaz de desencadear. Talvez não fosse propriamente por Kit por quem tinha estado apaixonada
todos aqueles anos, mas pela paixão exuberante da sua própria natureza que tinha irrompido de forma gloriosa quando estivera com ele, quatro verões antes.
Ora ali estava um pensamento bastante interessante.
Ser uma virgem de vinte e cinco anos era realmente uma coisa bastante desoladora, concluiu, e debateu consigo mesma durante mais de um minuto se deveria acrescentar
na sua carta o conselho de que Morgan procurasse seriamente um marido à sua volta quando fizesse a sua apresentação à sociedade na primavera seguinte. Mas os Bedwyn
eram sobejamente conhecidos por nunca aceitarem conselhos, até mesmo, ou especialmente, uns dos outros. E Morgan iria pensar que Freyja sofria de alguma doença grave
se fizesse algo tão incaracterístico como aconselhar a irmã a participar voluntariamente no mercado londrino do casamento. Além disso, havia qualquer coisa ligeiramente
humilhante na ideia de Morgan se casar antes de si.
A mente dela considerou de novo a ideia do conde de Willett como potencial marido, mas pôs de parte esse pensamento sem mais considerações. Não seria capaz de suportar
isso. Ele insistiria em tratá-la como uma senhora a todos os minutos de todos os dias e de todas as noites também, muito provavelmente. Morreria de tédio, frustração
e ira passado um mês.
Inclinou-se sobre a carta mais uma vez.
À tarde a chuva abrandara para um chuvisco leve. Lady Holt-Barron continuava a não gostar da ideia de molhar os sapatos e a bainha do vestido ou de levar um guarda-chuva
em vez de uma sombrinha, mas os Upper Rooms ficavam a uma curta distância e permanecer em casa era uma alternativa pouco atraente perante a perspetiva de tomar chá
e conversar com outras pessoas. Foram a caminhar até lá.
O salão de chá estava mais cheio do que o habitual porque o tempo desencorajava atividades ao ar livre, mas encontraram uma mesa vaga e acenaram educadamente com
a cabeça a várias pessoas das suas relações enquanto o chá lhes era servido. Passados cinco minutos, o conde de Willet estava sentado na mesa ao lado delas. Veio,
explicou ele, para se assegurar de que Lady Freyja não sofrera qualquer mal causado pela sua pequena corrida pelos campos na véspera.
- O marquês de Hallmere não devia tê-la encorajado - afirmou. - Devia ter-se recordado de que é uma senhora e, dessa forma, obrigada a montar à amazona.
Freyja fitou-o com um desdém altivo e deu-se conta de que o objeto da sua queixa estava naquele preciso momento a entrar no salão de chá, bonito e com ar distinto
num traje castanho-amarelado. Ela ficou absolutamente alarmada pelo estado alerta no qual o seu corpo se lançou imediatamente.
O marquês de Hallmere não devia tê-la encorajado.
Não, não devia. Mas ela não precisara de muito encorajamento, pois não?
Ela ignorou-o propositadamente. Ele estava a acompanhar três senhoras, Lady Potford e duas desconhecidas. A senhora mais velha estava de luto e a exibir um sorriso
doce em torno da sala enquanto se apoiava pesadamente no braço dele. Mas embora Lady Potford se tivesse sentado passado pouco tempo numa mesa com algumas pessoas
conhecidas, o marquês e as outras duas senhoras permaneceram de pé e circularam lentamente em volta da sala. Aparentemente, ele estava a apresentá-las à sociedade
de Bath.
O conde ergueu-se e fez uma vénia quando o grupo se aproximou da mesa deles. Freyja olhou para cima para os olhos do marquês, os seus próprios olhos impassíveis
e ligeiramente desdenhosos, esperava ela. O sorriso dele, reparou, parecia um pouco mais tenso do que o habitual.
- Lady Holt-Barron, Miss Holt-Barron, Lady Freyja Bedwyn e o conde de Willett - disse ele com uma grande formalidade - permitem-me que vos apresente a minha tia,
a marquesa de Hallmere, e a minha prima, Miss Constance Moore?
A tia dele era a que levava no braço.
- Como estão? - disse esta. - É maravilhoso estar em Bath e conhecer todos os amigos queridos do Joshua.
Ela agarrava-se ao braço dele como se fosse demasiado frágil para se aguentar de pé sozinha. Sorria docemente e falava no género de lamúria aguda adotada pelas senhoras
que se julgavam permanentemente adoentadas. Pela experiência de Freyja, estas quase invariavelmente sobreviviam aos seus familiares mais robustos e levavam-nos quase
até à loucura enquanto estavam vivos.
Lady Constance, uma rapariga vestida e penteada com simplicidade e elegância e com um ar sensato, fez uma mesura e murmurou um cumprimento.
- Como está, minha senhora, Lady Constance? - disse graciosamente Lady Holt-Barron. - Veio de Penhallow para tomar as águas?
- Talvez elas possam melhorar a minha saúde - respondeu a marquesa. - O meu ânimo tem estado abatido desde o falecimento do meu querido, o marquês de Hallmere. Mas
eu vim com o propósito de ver o meu querido sobrinho, minha senhora, e de fazer com que reforce os laços que tinha com a sua prima. A Constance era pouco mais do
que uma rapariga quando o Joshua saiu de casa em busca de aventuras há cinco anos. Cinco anos penosos - acrescentou com um suspiro que parecia verdadeiramente penoso.
Ah. A mulher tinha vindo com a intenção de casar a filha com o sobrinho e dessa forma, salvaguardar a sua casa e o seu lugar dentro dela. Freyja olhou com mais atenção
para Lady Constance Moore. E depois transferiu o seu olhar para o marquês. Ele devolvia-lhe o olhar sem vacilar, de lábios franzidos e a rir-se com os olhos. Era
uma expressão que lhe dizia que acompanhara a leitura que ela fizera da situação.
- Estamos hospedadas na estalagem White Hart - estava a dizer a marquesa em resposta a uma pergunta que Lady Holt-Barron devia ter feito. - Informaram-me de que
era a melhor.
- Lord Hallmere - disse o conde -, tenho de lhe agradecer por acompanhar Lady Freyja a casa em segurança depois da vossa corrida de ontem. Devo confessar que me
senti muito inquieto por ela quando a levou do grupo que tínhamos formado e foi galopar pelas colinas com ela. Mas devolveu-a em segurança à casa de Lady Holt-Barron
e não sucedeu qualquer mal de maior.
Freyja sentiu-se dividida entre o divertimento e a exasperação.
O marquês ergueu as sobrancelhas. - Na verdade, Lord Willett - disse ele -, para minha eterna vergonha devo confessar que foi Lady Freyja quem ganhou a nossa corrida
por uma cabeça inteira, e por esse motivo, deveria dizer-se que foi ela quem me trouxe de volta em segurança depois da nossa corrida. Estou-lhe muito agradecido
por esse facto.
- Só posso ficar agradecida - disse Lady Holt-Barron, abanando-se com o seu guardanapo de pano - por desconhecer por completo esta corrida até muito depois de estar
terminada. Não sei o que diria ao duque de Bewcastle, irmão de Lady Freyja, se ela tivesse caído do cavalo e partido todos os ossos do corpo.
- Oh, não me diga isso, minha senhora - disse a marquesa, parecendo estar a ponto de ter um ataque de histeria. - As corridas de cavalos são extremamente perigosas,
especialmente para uma senhora. Espero que nunca convenças a Constance a galopar pelos campos contigo, Joshua, querido.
A voz dela era débil, mas os olhos estavam severamente fixos em Freyja e trespassavam-na como duas agulhas. Freyja ergueu as sobrancelhas com uma altivez subjugadora.
Deus do Céu, pensou, estou a ser ameaçada. Que ideia tão divertida.
A marquesa de Hallmere era uma senhora que gostava de levar a sua avante e fazia-o por quaisquer meios à sua disposição. Não seria uma situação confortável ter uma
pessoa assim como mãe ou como tia. Seria interessante ver se conseguiria manobrar de forma bem-sucedida o marquês.
O grupo prosseguiu para a mesa seguinte.
- A marquesa parece-me ser uma pessoa muito distinta - disse com aprovação Lady Holt-Barron.
- É muito louvável da parte dela ter vindo de um lugar tão distante como a Cornualha para apresentar os seus cumprimentos ao sobrinho que herdou o título do seu
falecido marido - declarou o conde. - Seria muito correto da parte dele pedir a mão da prima em casamento.
Freyja trocou um olhar com Charlotte por cima da mesa e a amiga esboçou um meio-sorriso. Charlotte quisera saber no dia anterior o que acontecera depois da corrida.
E, de todas as coisas de que podia ter falado e escrevera naquela manhã com grande pormenor para os membros da sua família, Freyja disse bruscamente apenas duas
palavras.
- Ele beijou-me.
Charlotte levara as mãos ao peito, com os olhos a dançar de contentamento.
- Eu sabia - dissera ela. - Desde o primeiro momento, naquela cena hilariante e deplorável no Pump Room, reconheci a atração que sentem um pelo outro. E agora ele
beijou-te. Sentir-me-ia terrivelmente invejosa se não fosse pelo Frederick, ainda que o pobrezinho tenha um aspeto vulgar e muito pouco romântico.
- E eu também o beijei - a franqueza obrigara Freyja a acrescentar. - Mas não significou absolutamente nada, Charlotte. Estávamos os dois de acordo a respeito disso
quando falámos depois.
Charlotte limitara-se a soltar um risinho abafado e saiu apressadamente da divisão para ir mudar de vestido.
Apesar da chuva intensa que manteve a avó em casa durante a manhã, Joshua caminhara até ao White Hart e acompanhara a tia e a prima até ao Pump Room, onde as tinha
apresentado às poucas pessoas que tinham desafiado o tempo e onde Mrs. Lumbard e a filha os cumprimentaram com um entusiasmo bajulador. Depois disso, acompanhara-as
de volta ao hotel e tomara o pequeno-almoço com elas. Levara-as às compras à Milson Street e depois ao hotel passadas duas horas, de mãos vazias. Os preços nas lojas
eram escandalosamente elevados, queixara-se a tia. Ele almoçara com elas antes de regressar à casa da avó.
Mas prometera ir buscá-las de novo mais tarde para as levar até aos Upper Rooms para tomar chá. Depois disso, embora tivesse sido mais conveniente deixá-las no White
Hart e regressar à Great Pulteney Street na carruagem com a avó, a tia convidou-o a entrar, explicando que tinha umas questões que precisava de discutir com ele.
E foi assim que a avó regressou a casa sozinha.
Foi um dia aborrecido para Joshua. A tia sempre fora uma tirana e regia a sua própria família com uma vontade de ferro, mas reservara o pior de todo o seu veneno
para o sobrinho que chegara a Penhallow aos seis anos, um órfão desorientado e infeliz, que acabara de perder ambos os pais para uma febre, no espaço de três dias,
embora nem sequer soubesse disso na altura. À medida que foi ficando mais velho, compreendeu que o ódio dela por ele devia-se em grande parte ao facto de, do total
de quatro filhos, apenas ter sido capaz de gerar um do sexo masculino. Albert era o herdeiro, mas ele, Joshua, era a opção de reserva, por assim dizer.
Ele e Albert também não morriam de amores um pelo outro. Albert era mais baixo, mais fraco e um ano mais novo do que Joshua. Gostava de tentar fazer gala da única
grande vantagem que tinha sobre o primo e ficara enfurecido ao descobrir que Joshua realmente não tinha qualquer interesse em herdar o título.
Foi uma agonia para Joshua ser forçado a passar um dia inteiro na companhia da tia, a guiá-la a ela e a Constance por toda a cidade de Bath, a apresentá-las a todas
as pessoas de importância social, com as palavras melífluas e queixas da tia a ressoar-lhe nos ouvidos a cada passo que davam. Mas era óbvio que não as podia abandonar
para descobrirem por si próprias os meandros da cidade. Tinham vindo com o único propósito de o ver. Além disso, não iria evitar deliberadamente Constance mesmo
se pudesse. Sempre sentira muito carinho pelas primas.
Perguntou-se por quanto tempo tencionavam ficar, por quanto tempo a cortesia o obrigaria a estar de serviço permanente junto delas. Afinal de contas, existiam igualmente
os Lumbard, com os quais podiam socializar a partir desse dia.
A tia deixou-se cair numa cadeira assim que chegaram à sala de estar privada de ambas no White Hart e a sua criada lhe ter levado o chapéu, as luvas e outros acessórios
necessários para uma incursão fora de casa.
- Estou mais do que exausta - disse ela, fazendo com que Joshua se perguntasse porque fora tão insistente para ele entrar com elas. - Assim como tu, Constance, meu
amor. Vai deitar-te na tua cama durante uma hora. O Joshua não se importará.
- Mas, mãe... - começou a dizer Constance.
- Estás cansada - informou-a a mãe. - Vai deitar-te.
Constance foi obedientemente para o quarto depois de Joshua lhe ter dirigido um sorriso compreensivo.
- Vou deixá-la descansar, tia - disse ele esperançosamente, mas ela indicou-lhe com o braço para se sentar.
- Fica - disse ela. - Passou muito tempo desde a última vez que te vimos e agora és o marquês de Hallmere. Deves estar muito feliz com isso. Atrevo-me até a dizer
que foi o que sempre desejaste.
Ele não a contradisse. De que valia isso? Sentou-se e cruzou uma perna sobre a outra.
- Cresceste e tornaste-te num belo homem, Joshua - disse ela, franzindo-lhe o sobrolho em desaprovação. - E o teu título de nobreza e fortuna tornam-te duplamente
desejável. És bem recebido em Bath, como pude ver. Estou contente por isso. - Ela parecia tudo menos contente.
- Toda a gente é bem recebida em Bath, tia - disse ele com um sorriso. - Não é um destino tão em voga como já foi em tempos, especialmente entre os jovens. Toda
a gente é recebida de braços abertos.
- Existem pelo menos alguns jovens além de ti aqui - declarou. - As irmãs Darwin são excelentes raparigas.
- São, sim - concordou ele. - Mas tenho dificuldade em distingui-las, embora não seja gémeas.
- Miss Holt-Barron é muito bonita - disse ela.
- E igualmente agradável - disse ele. - Parece que está noiva de Mr. Frederick Wheatcroft, filho do visconde Mitchell.
- Ah, sim - disse a tia. - As raparigas mais bonitas vão sempre mais depressa. A beleza não é certamente uma doença da qual Lady Freyja Bedwyn padeça. - O seu tom
de voz endurecera quase impercetivelmente.
Joshua comprimiu os lábios, divertido.
- Ela pode ser irmã de um duque - continuou a tia -, o duque de Bewcastle, não é verdade? Mas a sua posição social aparentemente não a tornou atraente para um possível
casamento. Já deve ter vinte e cinco ou vinte e seis anos e é desafortunadamente feia. Não há muita coisa que possa fazer para disfarçar aquele nariz, pois não?
Joshua achava que o nariz de Lady Freyja era talvez a sua característica mais atraente, embora o cabelo, especialmente quando estava solto pelas costas e a voar
ao vento num emaranhado selvagem ficasse num segundo lugar muito próximo.
- Ouvi-a a ser descrita como bem-parecida.
- Isso é aquilo que as pessoas dizem sempre sobre as raparigas quando são demasiado caridosas para lhes chamar feias - afirmou ela. - Foste andar a cavalo sozinho
com ela ontem, Joshua? Isso não foi algo indiscreto?
- Fomos andar a cavalo com um grupo de oito pessoas - explicou ele, divertido. O nariz infalível da tia levara-a até à presa certa, pelo menos. - Fomos galopar sozinhos
juntos visto que o ritmo do grupo não nos agradava. Lady Freyja Bedwyn é uma cavaleira temerária.
- Enquanto alguém que conhece mais da vida do que tu, Joshua - disse ela de forma benevolente -, sinto-me obrigada a advertir-te a respeito das artimanhas que mulheres
solteiras de idade avançada e pouco atraentes utilizam quando métodos mais polidos fracassaram no propósito de fisgar um marido desejável. Se não tiveres muito cuidado,
Lady Freyja Bedwyn irá encurralar-te, comprometer a sua virtude e vais dar por ti obrigado a fazer-lhe uma proposta de casamento.
Os lábios dele estremeceram enquanto pensava no quarto da estalagem em que encontrara pela primeira vez Lady Freyja e do beijo ardente da véspera na rocha branca
no cimo das colinas. Pensou se ela apreciaria a piada se lhe contasse o que a tia acabara de lhe dizer. Ou será que daria largas à sua fúria?
- Oh, podes sorrir, Joshua - disse a tia, com um ar frágil e fatigado. - Mas não digas que não foste avisado.
- Não o farei, tia - prometeu ele.
- Mal posso acreditar - disse ela - que a Constance já tem vinte e três anos. Como o tempo voa. Já se devia ter casado há muito tempo. Eu já devia ter netos para
dar alento à minha velhice. Mas a tragédia manteve a pobre rapariga solteira este tempo todo. O Albert morreu exatamente quando ela devia ter feito a sua apresentação
à sociedade e desde essa altura a minha saúde tem sido demasiado frágil para suportar uma temporada em Londres. Depois, justamente quando eu pensava que talvez estivesse
a recuperar força suficiente para tomar a atitude mais correta para com a Constance e a Chastity, o meu marido sofreu o seu ataque de coração e morreu. Agora não
sei quando é que as minhas queridas filhas podem esperar estabelecer-se na vida. E quanto à Prudence... - Ela suspirou de modo a inspirar pena.
Seguiu-se uma pausa bastante extensa durante a qual Joshua soube exatamente o que estava para vir, embora fosse incapaz de o impedir.
- Está na altura de tu considerares o casamento, Joshua - disse ela. - Tens vinte e oito anos e agora és o marquês de Hallmere. O teu dever é gerar um herdeiro masculino
para Penhallow. E também é teu dever cuidar das tuas primas uma vez que és o tutor legal delas, com a exceção da Constance, é claro, que já é maior de idade e já
recebeu a sua parcela. Está na altura de pores pelas costas estes anos em que levaste uma vida de estroinice. Não te levo a mal por essa altura ou por esses desvarios,
Joshua, embora o Albert nunca mostrasse qualquer inclinação de abandonar a sua casa, família, irmãs, ou a mãe. Mas peço-te agora que recordes o teu dever. E peço-te
que não fiques melindrado com esta pequena chamada de atenção da parte da tua tia que te amou e cuidou de ti durante toda a tua vida.
- Com exceção dos meus primeiros seis anos de vida, tia - disse ele serena, mas firmemente -, quando a minha mãe e o meu pai ainda estavam vivos.
- Que Deus guarde as suas almas - disse ela. - Tens uma noiva possível em mente?
- Não - respondeu. - Mas informá-la-ei assim que estiver noivo, tia. Será daqui a bastante tempo. E eu exerci a minha tutela sobre a Chastity e a Prue. Deixei-as
tranquilas em Penhallow consigo. A Constance também.
- Eu sei que gostas muito delas, querido Joshua. - Ela fitou-o com olhos tristes e afetuosos, até se iluminarem, aparentemente com uma ideia súbita. - Seria absolutamente
delicioso se começasses a sentir uma afeição romântica pela Constance. Não seria nenhuma surpresa. Ela é uma rapariga sensata e obediente e está com um ótimo aspeto,
não é verdade? Se bem me lembro, ela sempre nutriu carinho por ti e tu por ela. Seria perfeitamente... apropriado se te casasses com a irmã das menores que estão
à tua guarda. Não consigo imaginar porque é que não pensei nisto antes.
- A Constance é minha prima direita, tia - fez notar ele.
- Os primos estão sempre a casar-se - respondeu ela. - É a coisa mais sensata a fazer, Joshua. Mantém os títulos de nobreza e as fortunas numa única família, assim
como os deveres e as responsabilidades.
- Não me estou a preparar para a deixar a si, à Constance ou às minhas outras primas sem dinheiro, tia - disse Joshua -, mesmo se tivesse o poder para o fazer. Não
existe realmente necessidade de me impingir uma das suas filhas.
- Impingir. - Ela falou com uma voz esmorecida e pareceu encolher-se na cadeira, abatida. Foi buscar um lenço debruado a preto a algum lado e levou-o aos lábios.
- Ofereço-te a minha queridíssima Constance e tu acusas-me de a impingir? Mas tu sempre te mostraste ingrato, Joshua. Foste um rapaz difícil de criar e depois envergonhaste
o teu tio, rejeitando a sua hospitalidade generosa para ir viver para a aldeia e trabalhar como um carpinteiro. E depois continuaste a visitar a nossa casa, supostamente
para ver a Prudence e... Bom, eu tento nem sequer pensar na vulgaridade descarada do teu comportamento. E quando o Albert te foi confrontar e te repreender... Mas
esforcei-me imenso para colocar as memórias dolorosas para trás e para te perdoar. É a coisa mais cristã a fazer e foi sempre essa a minha forma de proceder. Estava
preparada para acreditar que cinco anos te tinham amadurecido e tornado uma pessoa melhor. Confiei em ti o suficiente para te oferecer a minha própria filha. E ainda
assim falas em impingir?
Ela mirrara para aquilo que parecia ser metade da sua altura habitual, um truque a que sempre recorrera para atrair pena, remorsos e, por fim, a submissão de todos
aqueles que tinham sido suficientemente insensatos para contrariar a sua vontade. Esfregou levemente os olhos com o lenço.
- Atrever-me-ia a dizer - disse ele - que a Constance também não tem qualquer desejo de me ser impingida, tia.
- A Constance sempre foi uma rapariga obediente - disse ela. - Ela fará o que eu lhe aconselhar. Ela sabe que coloco sempre o seu próprio bem à frente de tudo. E
que rapariga é que não gostaria de ser a marquesa de Hallmere? Renunciarei ao título em prol dela sem qualquer relutância. Aceitarei com grande alegria o título
de viúva do marquês.
Joshua pôs-se de pé. - Eu não falaria disto como se fosse uma coisa inevitável se estivesse no seu lugar, tia - disse ele num tom firme. - Estaria sem dúvida condenada
ao desapontamento. Devia ter permitido à Constance assistir a esta discussão. Estou convencido de que ela a iria dissuadir de uma vez por todas da ideia de que nós
nos iremos casar. Todavia, isso não a deve transtornar. Já a tinha informado antes que não tenciono regressar a Penhallow para lá viver. É a sua casa. Pode viver
lá em paz durante o resto da sua vida. As minhas primas podem viver lá durante o resto da vida delas se não se casarem.
Se por algum estranho acaso da sorte chegasse a casar-se com Constance e fixasse a sua residência em Penhallow, pensou Joshua, a tia teria de sair de lá. Aparentemente,
ela não possuía a imaginação necessária para chegar a essa conclusão.
Ela fitou-o pesarosamente, com os olhos marejados de lágrimas.
- Sempre foste um rapaz duro e insensível, Joshua - disse ela. - Mas eu não ficarei ofendida. E não vou desesperar. Vou trocar impressões com a Constance e ela irá
concordar comigo de que um casamento entre os dois é o único meio decente através do qual podes expiar as tuas ações do passado.
Muito bem, pensou Joshua, afinal deixara que as palavras dela o irritassem, provocando-o como uma agulha aguçada e penetrante. Estava zangado. Não se devia ter envolvido
emocionalmente se não fosse para se divertir. Ela ia tentar fazer ceder as defesas de Constance, se é que já não o fizera, e depois utilizar o seu carinho pela prima
para o fazer sentir culpado por resistir à sua sugestão completamente absurda.
O problema era que estava estupidamente receoso. A mulher era uma verdadeira fanática no que dizia respeito a levar a sua avante.
- Há um concerto nos Upper Rooms este serão - disse ele. - Quer ir até lá?
- Não. - Ela suspirou. - A Marjorie Lumbard convidou-nos para um jogo de cartas nos aposentos dela este serão. Contudo, vamos até ao Pump Room de novo amanhã. Podes
vir buscar-nos quando te dirigires para lá. E vai realizar-se um baile nos Upper Rooms amanhã à noite, ouvi dizer?
- Sim - respondeu ele.
- Nós estaremos presentes - disse ela. - Deves ser o par da Constance na música de abertura. Iria parecer muito estranho se não fosses.
Ela parecia abatida e deprimida. Qualquer homem que não conhecesse os seus métodos de imposição dos seus desejos podia ter-se sentido impelido a dizer que iria pelo
menos considerar o que ela propusera.
Ela não precisava dessa garantia.
- Com todo o prazer, tia - disse Joshua. - Agora vou despedir-me para que possa descansar antes do seu jogo de cartas.
Ela acenou-lhe com o lenço num gesto patético de impotência, demasiado dominada pela emoção, aparentemente, para lhe dizer adeus.
É claro que ela estava absolutamente determinada a levar a melhor sobre ele, pensou sombriamente Joshua enquanto deixava o White Hart e seguia a grandes passadas
na direção da ponte de Pulteney. O chuvisco aumentara ligeiramente de intensidade, e passado pouco tempo sentia-se húmido e desconfortável. Soubera-o assim que lhe
pusera os olhos em cima na sala de estar da avó na véspera. Santo Deus, ela até dera o passo sem precedentes de deixar Penhallow.
Agora, a linha de ação óbvia era a da menor resistência. Devia simplesmente deixar Bath. Decidiu que era exatamente isso que iria fazer, sentindo-se consideravelmente
mais animado. Era tão fácil cair nos velhos padrões de pensamento quando estava sob a aura da influência da tia. Durante anos não teve escolha a não ser obedecer
ou sofrer as consequências. Mas estava livre dela agora. Não lhe devia nada exceto a cortesia básica de um cavalheiro e familiar.
Partiria dali a dois dias. Não no dia seguinte, embora se sentisse muito tentado a escapar-se enquanto a costa estava livre. Concordara em acompanhar a tia e Constance
ao Pump Room de manhã e ao baile nos Assembly Rooms à noite. Cumpriria essas obrigações e depois escapulir-se-ia.
Dançaria com Lady Freyja Bedwyn no baile também. Faria alguns galanteios uma última vez, talvez descobrisse uma forma de provocar aquele seu temperamento volátil
uma última vez. Que divertido seria se o conseguisse fazer em público, em plena vista de todos no baile. Que pensamento malicioso! Joshua riu-se baixinho para si
mesmo.
Ia sentir a falta dela. Era seguramente a senhora mais interessante das suas relações.
Uma das mais sexualmente apelativas, também.
Uma admissão perigosa. Sim, por mais do que uma razão, estava na altura de deixar Bath.
CAPÍTULO 7
A previsível rotina da vida em Bath estava a vencer pelo cansaço o ânimo de Freyja. A chuva parara, embora o céu ainda estivesse carregado de nuvens cinzentas e
após um dia de ausência, regressaram ao Pump Room para a usual manhã de passeio. As mesmas pessoas de sempre tinham comparecido, como o habitual. De facto, não havia
absolutamente quaisquer rostos novos a não ser a marquesa de Hallmere e a filha. O marquês e Lady Potford estavam na sua companhia.
Freyja passeou com Charlotte e parou para falar com Mr. Eston e uma das irmãs Darwin, sem estar certa de qual delas seria, e depois com Mrs. Carbret e a irmã. O
conde de Willett juntou-se a elas e caminhou entre as duas até ficarem frente a frente com o grupo do marquês junto a um nicho numa das extremidades da sala. Freyja
pensou quase com nostalgia naquela manhã, quando avançara intempestivamente até ao marquês e exigira que ele fosse expulso do Pump Room e da própria cidade de Bath.
A vida tinha alguma agitação naqueles dias. Parecia ter sido há uma eternidade.
- Gosto imenso do corte do seu vestido, Lady Freyja - disse a marquesa depois dos cumprimentos e observações de cortesia terem sido trocados e o marquês, com uma
expressão comedida e respeitável naquela manhã, ter baixado parcialmente uma das pálpebras enquanto olhava para Freyja e a ter feito fervilhar de indignação. - Tem
de me dizer quem é a sua modista e quem me recomenda em Bath. Venha passear comigo.
Ela agarrou no braço de Freyja, apoiando-se pesadamente sobre este como se fosse uma inválida acabada de sair do seu leito de doença e conduziu-a para longe dos
outros.
- Sou a última pessoa do mundo com quem deve trocar impressões a respeito da moda, minha senhora - disse Freyja. - E não recomendo absolutamente ninguém em Bath.
Ir às compras é seguramente o passatempo mais entediante que alguma vez foi inventado para as mulheres. Ficará mais bem aconselhada se falar com Lady Holt-Barron
ou com a filha.
- Ah, mas é consigo com quem eu quero falar - disse a marquesa.
Isto era interessante, pensou Freyja, acenando cordialmente para duas senhoras de meia-idade. E podia apostar que sabia aquilo que estava para vir, embora suspeitasse
que a sua companhia iria perder algum tempo a ir direta ao assunto. Mas que belo entretenimento! Devia escutá-la atentamente para poder reproduzir a conversa textualmente
a Morgan quando lhe escrevesse mais tarde.
- Sinto-me lisonjeada, minha senhora - respondeu.
- Estou grata por estar em Bath a passar uma temporada, Lady Freyja - disse a marquesa. - Segundo pude observar, não existem muitos outros jovens aqui de uma posição
social suficientemente elevada para oferecer companhia ao marquês de Hallmere.
- A sua gratidão foi mal empregue - disse-lhe Freyja. - Não vim até Bath para oferecer companhia ao marquês de Hallmere. Vim visitar a minha amiga, Miss Holt-Barron.
A senhora soltou um risinho abafado. - O Joshua está a apreciar imenso a companhia da minha querida Constance - disse ela. - Ele cresceu em Penhallow com as primas
depois da morte trágica dos pais quando era muito pequeno. Ele adora-as e elas a ele. Na verdade, era muito frequente o tio dele e eu esquecermos completamente que
não eram todos irmãos e irmãs.
A voz em forma de lamúria infantil estava a irritar Freyja. Gostava que a mulher falasse abertamente e mostrasse as garras.
- Mas agora está feliz - disse Freyja - por se lembrar de que, na verdade, ele e Lady Constance são somente primos.
- É uma união que o falecido marquês de Hallmere e eu esperámos durante quase toda a vida dos dois - disse Lady Hallmere com um suspiro emotivo. - Podia ter parecido
uma ligação inconveniente enquanto o meu filho ainda estava vivo, visto que o querido Joshua não possuía qualquer fortuna própria. Mas o nosso carinho por ele era
tal e o afeto entre eles era tão grande que não teríamos coragem de recusar o nosso consentimento para a união. Agora, é claro, não existem quaisquer barreiras desse
tipo para ultrapassar. Eles podem contar com um final feliz para a sua longa história de afeto.
- Os finais felizes são os melhores finais possíveis - declarou Freyja -, especialmente quando ocorreu uma separação desnecessária de anos e depois um reencontro
súbito e inesperado. - Ela acenou com a cabeça a mais algumas pessoas.
- Ah, a separação - disse a marquesa. - Ela foi necessária. A Constance mal tinha dezoito anos, era demasiado nova para o matrimónio, na opinião do pai, que tinha
as suas próprias ideias a respeito dessas questões. No entanto, a paixão do querido Joshua era tal que estar tão perto dela todos os dias era um tormento insuportável
para ele. E foi por esse motivo que ele partiu em busca da sua fortuna e partiu os corações de todos nós.
- Que sofrimento coletivo, minha senhora - murmurou Freyja.
- Foi devastador. - A senhora lançou-lhe um olhar desconfiado. - Mas não para o coração da Constance. Ela sabia que ele iria manter-se leal a ela. Ela sabia que
ele não ficaria distante para sempre. E agora a paciência dela e o sentido de honra do Joshua irão ser recompensados, Lady Freyja. Ele irá casar-se com a minha filha
e Penhallow continuará a ser a minha casa e a casa das minhas outras filhas durante todo o tempo que permanecerem solteiras.
- Sinto-me realmente honrada - disse Freyja - por me ter confiado um segredo tão íntimo.
- Fi-lo - disse a marquesa com uma expressão de candura triste - porque tive a nítida impressão ontem, Lady Freyja, de que talvez estivesse em perigo de perder o
seu coração para o marquês de Hallmere. E o rapaz tem de facto uma inclinação maliciosa de galantear as senhoras. Ele é tão bem-parecido, sabe, que não consegue
deixar de reparar nos olhares de admiração que atrai onde quer que vá. Mas o seu coração é leal e já o entregou há muito.
Freyja descobriu que se estava a divertir imenso.
- Agora compreendo por que motivo me chamou à parte com aquele estratagema inteligente a respeito do corte elegante do meu vestido - disse ela. - Estou-lhe eternamente
grata, minha senhora. Se alguma vez der por mim inclinada a sentir uma fraqueza nos joelhos com a visão da pessoa bem-parecida do marquês de Hallmere ou a sofrer
palpitações no coração quando ele me conceder um dos seus sorrisos charmosos, lembrar-me-ei que o seu coração já foi entregue a outra pessoa e assim se manteve há
cinco longos anos enquanto a sua amada cresceu, da idade juvenil dos dezoito anos até à idade bem mais conveniente dos vinte e três. Lembrar-me-ei de que a trouxe
até cá para junto dele porque ele estava cheio de um medo ansioso de que talvez ela ainda fosse demasiado jovem para ser retirada dos braços da mãe. É uma história
maravilhosamente romântica, na qual o seu próprio papel foi o de uma devoção maternal altruísta. Como podia eu pensar em intrometer-me num romance tão comovedor?
O braço da marquesa retesou-se por baixo do de Freyja. A sua voz estava um tanto ou quanto mais dura quando voltou a falar.
- Parece-me que está a fazer pouco de mim, Lady Freyja - disse ela.
- Parece-lhe? - perguntou Freyja? - Que peculiar.
- Simplesmente senti que era o meu dever fazer-lhe um aviso amigável - disse a marquesa. - Não gostaria de ver o seu coração partido.
- A sua gentileza não tem limites - disse Freyja.
- Atrevo-me a dizer que, passada uma certa idade - prosseguiu Lady Hallmere -, o coração torna-se ainda mais vulnerável ao desapontamento. Como por exemplo, passados
os vinte e cinco anos? Ou os vinte e seis? Mas aconselho-a a não desesperar, Lady Freyja. Estou confiante de que o conde de Willett se encontra bastante preparado
para a aceitar.
Freyja ficou dividida entre um sentimento de afronta e um tremendo divertimento. Este último venceu. Era difícil sentir uma verdadeira afronta contra uma adversária
tão pouco digna de mérito.
- Oh, acredita nisso, minha senhora? - perguntou. - Mas que conforto para as minhas piores ansiedades seria se isso acontecesse. Na minha idade, devo ficar imensamente
grata a quem quer que seja, mesmo a um limpador de chaminés, que ainda esteja disposto a libertar-me do meu estatuto de solteira. E agora, minha senhora, creio que
esgotámos o tema desta conversa. - Ela sorriu para Lady Potford e para Lady Holt-Barron que estavam juntas perto da mesa das águas. - Creio que nos compreendemos
uma à outra perfeitamente bem.
- Não creio que me tenha compreendido de modo nenhum, Lady Freyja - disse bruscamente a marquesa. - Não vou permitir que se coloque entre o marquês de Hallmere e
a noiva que lhe está destinada. Pergunto-me o que o duque de Bewcastle pensaria se soubesse que a irmã saiu do decoro de um grupo de oito senhoras e cavalheiros
para partir a galopar sozinha com um dos cavalheiros de uma forma escandalosamente imprópria.
Ah, assim era melhor. As garras da senhora estavam a mostrar-se finalmente.
- Imagino que, minha senhora - disse Freyja -, ele não diria nada. Porém, sem dúvida que utilizaria o seu lornhão de forma mortífera, embora deixe a cargo da sua
imaginação se seria eu a vítima ou o divulgador de uma informação tão disparatada. Pode endereçar qualquer carta a Vossa Senhoria para Lindsey Hall, no Hampshire.
- Pergunto-me se o marquês de Hallmere se lembrou de lhe mencionar - disse a marquesa, recuperando o seu tom doce e lamuriento enquanto se apoiava mais pesadamente
no braço de Freyja de novo - que tem um filhinho bastardo adorável a viver com a mãe na aldeia junto a Penhallow. Ela era a precetora das minhas filhas até o incidente
infeliz ter obrigado o meu marido a dispensá-la. Não parecem estar a passar dificuldades. Soube que o marquês continua a sustentá-los.
Isto era um tanto surpreendente e desagradável, teve de admitir Freyja a si própria, se fosse verdade. Ela sabia muito bem que todos os seus irmãos eram homens de
sangue quente, até mesmo Wulfric, que mantinha a mesma amante em Londres há anos. Mas também sabia, embora ninguém lho tivesse dito, que uma das regras fundamentais
com as quais tinham crescido era a de que não deviam fazer quaisquer avanços amorosos a ninguém empregado em qualquer uma das casas ducais, nem em qualquer uma das
propriedades ou nas aldeias junto a estas. E também não o deviam fazer a qualquer mulher que não estivesse disposta a isso. Existia também uma forte tradição entre
os Bedwyn de que, uma vez casados, se mantinham leais aos seus conjugues durante o resto das suas vidas.
- Bom, isso encerrou a questão - disse bruscamente Freyja. - Renuncio a qualquer pretensão sobre o marquês, minha senhora, não obstante o coração partido. Simplesmente
não sou capaz de tolerar que qualquer parte da sua fortuna seja dissipada ao impedir um bastardo e a sua mãe de morrer à fome. Lady Constance deve ser uma santa
se está preparada para fechar os olhos a um tal gasto inútil.
- Não aprecio a sua leveza refinada, Lady Freyja - queixou-se a marquesa. - Seria de esperar que uma senhora da sua idade e aparência infeliz tivesse um cuidado
especial em cultivar uma conduta gentil.
As garras tinham deixado nela um caminho ensanguentado, reparou Freyja com interesse, abandonando-a à sua morte. Por um momento, toda a máscara de saúde frágil e
temperamento doce desaparecera.
- Reconheço a minha falta - disse Freyja - e compreendo agora por que motivo é que com a idade de vinte e cinco anos ainda estou solteira. Atrevo-me a dizer que
o culpado será o meu nariz. A minha mãe realmente devia ter pensado duas vezes antes de gerar uma filha com o meu pai. O nariz parece relativamente distinto nos
meus irmãos. Em mim é grotesco e arrasou todas as minhas esperanças matrimoniais. Não irei chorar aqui, minha senhora. Não tenha receio que eu vá atrair atenção
para si. Vou esperar até estar no meu próprio quarto na casa de Lady Holt-Barron. Trouxe seis lenços comigo para Bath. Devem ser suficientes.
Tinham chegado junto do marquês de Hallmere e Lady Constance Moore na altura em que acabou de falar. A marquesa sorria docemente, Freyja mostrava o seu sorriso felino
ameaçador, Lady Constance não exibia qualquer expressão aparente e o marquês erguera as sobrancelhas.
- Lady Freyja Bedwyn e eu temos estado a desfrutar de uma conversa deliciosamente agradável - declarou a marquesa. - Concordámos que vocês, os dois primos, formam
um par encantador. Espero que tenham estado a desfrutar do vosso passeio.
- Sim, tia - assegurou-lhe o marquês.
- E agora - disse ela - podes acompanhar-nos de volta ao nosso hotel para tomarmos o pequeno-almoço, Joshua. Vai estar presente no baile nos Upper Assembly Rooms
esta noite, Lady Freyja? O Joshua insistiu em dançar a primeira música com a Constance.
- Enquanto eu - disse Freyja, com um suspiro -, ainda espero ansiosamente evitar transformar-me numa rapariga infeliz sem par.
Ela viu o riso a brilhar nos olhos do marquês.
- Vou buscar a minha avó, tia - disse ele. - Ela está na mesa das águas com Lady Holt-Barron. Posso acompanhá-la até lá, Lady Freyja?
Ele ofereceu-lhe o braço e ela aceitou-o.
- Bom, querida - disse ele, enquanto se afastavam para fora do alcance dos ouvidos da tia dele. - Deixe-me adivinhar. Ela estava a adverti-la para se afastar do
território dela.
- Quer eu me sentisse inclinada a usurpá-lo ou não - disse Freyja. - E eu não sou a sua querida.
- Exibiu uma paciência admirável - disse ele. - A cada momento que passava, estava à espera de a ver a puxar o braço para trás e desferir um soco na cara dela.
- Até à data, nunca bati numa senhora - disse ela. - Seria uma falta de desportivismo da minha parte. A minha língua é uma arma bem melhor.
Ele lançou a cabeça para trás e riu-se, atraindo bastante atenção na direção de ambos de pessoas que ainda tinham esperanças de ver a continuação da altercação entre
eles, que animara tanto a manhã naquele preciso lugar há alguns dias.
- O meu palpite - disse ele -, é que pôs o inimigo em debandada de forma retumbante e o fez bater em retirada no meio de uma sensação confusa de embaraço. Isso é
um feito notável no que diz respeito à minha tia. Dança comigo esta noite? Posso deixar reservada a segunda música para si?
- Mas que humilhação! - disse ela altivamente. - Apenas a segunda música?
- Lembre-se - disse ele - de que eu insisti em dançar a primeira música com a minha prima. Na verdade, implorei e rastejei, mas o meu orgulho não gosta de o admitir.
- E também irá implorar e rastejar pela segunda música? - perguntou-lhe ela.
- Posso colocar-me aqui e agora de joelhos no chão se o desejar - disse ele, com um sorriso rasgado.
- Está a tentar-me - disse ela. - Mas estas pessoas podiam fazer uma interpretação errada do gesto e a sua tia podia sofrer um ataque do coração. Danço a segunda
música consigo. Pelo menos, poupa-me à humilhação de ficar sem par se ninguém se oferecer para dançar comigo a primeira música. Acabei de ser informada que uma senhora
da minha idade e aparência deve ter o cuidado de cultivar uma conduta gentil.
- Não me diga! - Ele sorriu-lhe. - O que eu pagaria para ter ouvido a sua resposta.
Chegaram junto da avó dele e de Lady Holt-Barron e o marquês fez uma vénia e retirou-se, com a avó pelo braço.
- Que amabilíssimo da parte da marquesa de Hallmere passear consigo, Lady Freyja - disse Lady Holt-Barron. - Ela é uma senhora muito doce, não é verdade? Que tristeza
a saúde dela não parecer ser muito robusta. Parece-me que a pobre senhora está a fazer um luto profundo pelo marido.
Embora tenha sido recordada da sua idade avançada e aparência muito pouco atraente, Freyja sentia-se bem mais animada no regresso à casa no Circus do que quando
tinham partido para o Pump Room de manhã cedo.
A boa disposição não durou muito tempo. Havia uma carta de Morgan encostada à sua chávena de café na sala dos pequenos-almoços e visto que Lady Holt-Barron também
tinha várias cartas à sua espera e Charlotte tinha uma carta bem gorda do noivo, Freyja quebrou o selo e leu-a à mesa.
Havia uma longa e bem-humorada descrição de um baile da aldeia a que Morgan fora autorizada a ir com Alleyne, visto já ter dezoito anos e a sua apresentação à sociedade
estar marcada para a primavera seguinte. E havia uma longa dissertação a respeito de um livro de poesia da autoria de Mr. Wordsorth e Mr. Coleridge que tinha estado
a ler. Entalado entre estes dois assuntos, estava um parágrafo breve e conciso.
"Um mensageiro chegou de Alvesley ontem à tarde com uma mensagem do Kit", escrevera Morgan. "O Wulf leu-a a todos à hora do chá. A viscondessa Ravensberg deu à luz
um rapaz ontem de manhã. Estão os dois bem."
Mais nada. Nenhum pormenor. Nenhuma descrição do êxtase que Kit deve ter declarado na mensagem. Nenhum comentário sobre o que Wulf e Alleyne tinham dito acerca das
notícias. Nenhuma descrição de como a própria Morgan se sentia. Ela sempre idolatrara Kit como um herói, pois fora gentil para ela quando era uma criança com a dupla
desvantagem de ser bem mais nova do que todos os outros companheiros de brincadeira e de ser a única rapariga além de Freyja.
- Más notícias, Freyja? - perguntou subitamente Charlotte, preocupada.
- O quê? - Freyja olhou inexpressivamente para ela. - Oh, não, não. Claro que não. Todos estão perfeitamente bem em casa. Como está o teu Frederick?
Um filho.
Kit tinha um filho. Com a mais-do-que-perfeita, mais-do-que-perfeitamente desinteressante Lauren Edgeworth com quem se casara. A viscondessa era perfeita até ao
último pormenor, ao que parecia. Tinha gerado um filho um ano depois do casamento. E assim sendo, Alvesley e o condado de Redfield tinha os seus herdeiros para as
duas gerações seguintes.
Freyja forçou um sorriso e tentou prestar atenção ao conteúdo da carta de Charlotte, que estava a ser lida em voz alta.
Graças a Deus, pensou Freyja, oh, graças a Deus que não estava em Lindsey Hall agora. Alleyne e Morgan estariam a evitar cuidadosamente o assunto junto dos seus
ouvidos e a vizinhança estaria em polvorosa com a boa-nova. Ela sentir-se-ia moralmente obrigada a fazer uma visita ditada pelo dever a Alvesley com a família e
ambas as famílias se sentiriam horrivelmente desconfortáveis. O facto de ela quase se ter tornado a viscondessa Ravensberg, primeiro como a noiva de Jerome e depois
como a de Kit, seria dolorosamente percebido em qualquer pequeno silêncio que surgisse na conversa. Em consequência, todos iriam tagarelar animadamente sem cessar
a respeito de um tema qualquer imbecil que lhes viesse à cabeça.
Teria de sorrir graciosamente para a viscondessa. Teria de dar os parabéns a Kit. Teria de fitar com admiração o bebé.
Graças a Deus que estava em Bath.
Inventou uma desculpa para não acompanhar as outras duas senhoras às compras. Tinha de escrever algumas cartas, explicou. Mas em vez disso fez uma coisa que muito
raramente fazia. Atirou-se para cima da cama de barriga para baixo e ficou a matutar no assunto.
Odiava o que tinha acontecido, e aquilo que não tinha acontecido, à sua vida. Quem teria imaginado enquanto crescia que ela ia acabar assim? Solteira, sem qualquer
compromisso, sem qualquer ligação a outro coração.
Cerrou os dentes e empurrou os punhos contra o colchão.
Se o conde de Willett aparecesse na soleira da porta da casa de Lady Holt-Barron naquele preciso momento para lhe propor casamento, pensou, provavelmente voaria
ao encontro dos braços dele e afogava-o em lágrimas de gratidão.
Que imagem horrível aquilo lhe trazia à mente.
Por favor, meu Deus, não o deixes fazer nada assim tão estúpido.
Seria bem melhor ir ao baile naquela noite e namoriscar escandalosamente com o marquês de Hallmere. Ele era um adversário bem mais merecedor e um encontro entre
ambos tinha muito menos probabilidades de dar origem a quaisquer consequências extremas e duradouras. Valia a pena fazê-lo quanto mais não fosse para ver a marquesa
tia dele com fumo a sair pelas orelhas e narinas.
Freyja deu meia-volta na cama e olhou fixamente para o dossel pregueado de seda da cama a lembrar-se da cena no parque, quando lhe dera um murro no nariz e o descompusera,
e da cena no Pump Room na manhã seguinte, onde ele se vingara diabolicamente dela. Pensou no jantar oferecido pela avó dele e no combate verbal dessa ocasião. Pensou
na corrida de cavalos, na qual o tinha derrotado justamente e no beijo que se seguira. E depois lembrou-se do primeiro encontro entre ambos no seu quarto da estalagem
a caminho de Bath e soltou uma risadinha para depois se rir em voz alta.
Era vergonhoso o facto de ter esperado ansiosamente por Kit Butler três longos anos depois do breve verão de paixão de ambos e não ter sido capaz de se livrar do
sentimento que nutria por ele no ano seguinte a ele a ter rejeitado com desprezo e se ter casado com Lauren Edgeworth. E era insuportável saber que a sua família
estava tão consciente dos seus sentimentos que Morgan se sentira obrigada a dar-lhe a notícia num parágrafo tão breve que, se tivesse pestanejado, lhe teria passado
despercebido.
Decidiu que se ia levantar naquele preciso momento e sair para fazer uma caminhada longa e enérgica. E naquela noite iria dançar até não poder mais dos pés.
Matutar nalguma coisa não era, de modo nenhum, uma atividade satisfatória.
Joshua desfrutou dos seus poucos minutos a sós com Constance no Pump Room. Ela nunca fora uma rapariga particularmente bonita ou cheia de vivacidade. Nunca lhe ocorrera
achá-la atraente. Mas sempre fora sensata e bondosa. No passado, sentira carinho por ela e, no presente, sentia a força da relação que existia entre ambos. Eles
eram primos. Os pais de ambos tinham sido irmãos.
Ela respondeu a todas as suas questões sobre as irmãs. Chastity, que sempre fora mais bonita e enérgica do que ela, tinha agora vinte anos, mas não desenvolvera
qualquer ligação romântica. Prudence, Prue, tinha dezoito anos. Estava bem, informou-o Constance, extremamente bem. Progredira muitíssimo com a ajuda da sua precetora,
Miss Palmer, e fizera alguns amigos muito próximos na aldeia. Estava feliz. Mas quando é que Prue não estivera feliz? Ninguém podia ter uma felicidade mais radiosa
do que Prue.
Constance estivera relutante em falar sobre si própria até ele ter decidido ser franco com ela e tocar no tema das esperanças e planos da sua mãe. Ela admitiu-lhe
nessa altura que tinha um pretendente, uma ligação bastante inaceitável, que a mãe despediria se isso estivesse no seu poder.
- Despedir? - perguntara Joshua. - Trata-se de um dos criados, Constance?
- É Mr. Saunders. - Ela corara.
Jim Saunders era o administrador que Joshua entrevistara em Londres e contratara para Penhallow, a única pessoa que trabalhava para eles que a sua tia não tinha
efetivamente poder para dispensar.
- Ele é um cavalheiro - comentara Joshua.
- E eu sou filha de um marquês - dissera ela amargamente. - Mas amo-o de todo o coração. Não me casarei contigo, Joshua, embora possa nunca me vir a casar com ele.
Não precisas de recear que eu me junte à mãe na tentativa de te persuadir. E mesmo que ela te levasse a fazer-me uma proposta de casamento, eu diria que não.
- Não o farei - dissera ele. - És minha prima, e por esse motivo, importante para mim. Mas não és a noiva que eu escolheria.
- Obrigada - dissera ela e tinham olhado um para o outro e rido. Naquele momento, a prima parecera-lhe muito mais bonita.
Mas ela contou uma história ligeiramente diferente quando a conduziu para a pista de dança dos Upper Assembly Rooms naquela noite para a música inaugural de danças
do campo. Estava claramente agitada, embora não falasse até estarem bem fora do alcance dos ouvidos da mãe.
Não tinha havido uma afluência elevada de pessoas, e muitas das que estavam presentes eram de meia-idade. Não obstante esse facto, James King, o mestre de cerimónias,
fizera bem o seu trabalho e persuadira quase toda a gente que não estivesse presa a uma cadeira de rodas a dançar. A tia de Joshua não estava a dançar, é claro.
Ainda usava as suas roupas pretas de luto. Mas Lady Freyja Bedwyn estava a dançar. Estava realmente magnífica num vestido cor de marfim com uma túnica de um tecido
dourado em forma de rede, o cabelo num penteado elaborado, preso com ganchos dourados enfeitados com joias.
Mas era óbvio que algo acontecera para abalar Constance ao ponto de a fazer abandonar a sua habitual maneira de ser plácida.
- Joshua - disse ela com urgência nos poucos momentos privados antes de a orquestra começar a tocar -, tenho de te avisar de uma coisa.
- O que foi? - perguntou ele, inclinando a cabeça para mais perto da dela.
- A mãe está determinada - disse ela.
Ele sorriu-lhe. - Vamos gorar os planos dela - disse-lhe. - Nada temas. Vou deixar Bath amanhã de manhã.
A orquestra, sentada à parte num estrado, começou a tocar antes de poderem dizer mais alguma coisa e, por alguns momentos, os passos vigorosos e complexos da dança
que os fazia rodopiar à volta do casal junto deles, impossibilitaram a continuação da conversa.
- Amanhã pode ser demasiado tarde - disse ela, ofegante, assim que conseguiu.
- Sorri - disse-lhe, ele próprio a sorrir. - A tua mãe está a observar-nos.
Constance sorriu. Bateram palmas juntamente com todos os outros à medida que o casal no final da linha rodopiava entre eles, demasiado afastados para conversar em
privado. Depois, repetiram de novo os passos.
- Ela vai fazer com que dancemos quase todas as músicas juntos - disse Constance quando se juntaram por um momento de novo, a voz ofegante do esforço físico. - E
vai mencionar a nossa ligação a qualquer pessoa que esteja ao alcance da sua voz. Está até com esperanças de ouvir anunciar o nosso noivado esta noite.
- Que absurdo! - exclamou Joshua. - Nem mesmo a tua mãe pode forçar-nos a anunciar um noivado, Constance.
Ela rodopiou para longe no braço do cavalheiro ao lado de Joshua.
Joshua exibiu o seu sorriso mais charmoso ao par desse homem e fê-la rodopiar com firmeza. Pareceu passar uma eternidade antes de haver um pequeno momento de privacidade
no qual pudesse trocar mais algumas palavras com Constance.
- Oh, pode, sim - disse ela amargamente como se não tivesse havido qualquer interrupção. - Ela é a mãe, Joshua. Falou do meu dever para com ela e para com a Chastity,
e acima de tudo, para com a Prue. E disse-me que tu lhe disseste que te casarias comigo se eu desse o meu consentimento. Disseste isso?
- Maldição, Constance - disse ele. - É claro que não.
Eles ocuparam os seus lugares nas linhas respetivas e bateram de novo palmas enquanto um outro casal, o conde de Willett e Lady Freyja, passava a rodopiar entre
os pares.
A tia distorcera as suas palavras no White Hart, é claro. Convencera-se de que ele iria submeter-se à sua vontade apenas se Constance desse o seu consentimento.
E a pobre Constance era a filha dela e tinha de viver com ela todos os dias da sua vida. Como é que a pobre rapariga lhe podia resistir quando ele próprio mal o
conseguia fazer?
Ele devia torcer-lhe o pescoço. Isso resolveria a questão de uma vez por todas.
Estava com esperanças de ouvir anunciar o seu noivado naquela noite? Francamente!
- Joshua - disse Constance assim que se aproximaram de novo. - Faz alguma coisa. Sê firme. Estou com um medo terrível de que eu não seja capaz de o fazer. E se ela
conseguir que dancemos juntos a noite toda ou me induzir a admitir em público que gosto de ti ou algo semelhante, vais sentir-te moralmente obrigado a... Oh, vou
ficar de rastos.
Ele fez um esgar.
- Vou pensar nalguma coisa - disse ele. - Entretanto, tenho pelo menos a próxima música prometida a outra pessoa.
- Graças a Deus - disse ela, ansiosamente.
Devia desatar a correr enquanto tinha oportunidade, pensou Joshua. A tia dificilmente o podia levar a um noivado com Constance se ele nem sequer estivesse presente.
Mas, que diabo, ia fugir de uma mulherzinha maldosa e manipuladora?
Era muito tentador, tinha de admitir. Mas primeiro, tinha de dançar com Lady Freyja Bedwyn.
- A próxima música vai ser uma valsa - disse a tia depois de ter levado Constance de volta para o seu lado. Ela sorriu de forma radiante para os dois e falou bastante
alto, de modo a incluir na conversa uma série de pessoas que estavam por perto. - A Constance sabe os passos, Joshua, e estou certa de que tu também deves saber.
Por favor, vão dançá-la juntos, já que todos conseguem ver que ambos o desejam fazer. Fazem um casal tão bonito, e, nas circunstâncias felizes do vosso recente reencontro,
ninguém colocará objeções ao facto de dançarem duas músicas seguidas juntos.
Santo Deus, pensou Joshua. A prima não tinha exagerado.
- Peço-vos desculpa, Constance, tia - disse ele com uma vénia -, mas já solicitei a mão de Lady Freyja Bedwyn para a próxima dança.
Uma valsa. Aquilo ia ser interessante. Olhou para o salão de baile à procura de Lady Freyja. Ela estava realmente bastante encantadora naquela noite. Exibia um ar
próprio da realeza ou pelo menos desempenhava de forma exemplar o papel da filha de um duque. Estava ao lado de Miss Holt-Barron, de queixo erguido, com o leque
a refrescar-lhe lentamente o rosto.
- Isso foi amável da tua parte, Joshua - disse a tia, com uma entoação dura na voz. Ela baixou-a para um sussurro teatral. - Ela é extraordinariamente feia.
Ele fez uma vénia a Lady Freyja alguns momentos depois e conduziu-a para o salão de baile, onde também se estavam a reunir outros casais.
- Fiquei encantado por ver - disse ele - que não ficou sem par na primeira música.
- Assim como eu - disse ela. - Caso contrário, teria ido para casa e enfiado uma bala na cabeça, sem dúvida.
Ele riu-se e apoiou a mão à volta da cintura dela enquanto ela apoiou a mão no ombro dele. Ele pegou-lhe na outra mão. Sempre que não estava com ela, esquecia-se
de como era pequena. Contudo, era igualmente muito bem-proporcionada.
- Mas que inteligente da minha parte, querida - disse ele -, ter escolhido uma valsa.
- Só espero que a saiba dançar bem - disse ela. - Não consegue imaginar o perigo em que as senhoras se colocam durante esta dança em particular, em que os nossos
sapatos ficam a esta proximidade dos sapatos de dança dos parceiros. E não sou a sua querida.
A orquestra começou a tocar e durante algum tempo ele esqueceu-se de tudo exceto do verdadeiro prazer de se deslocar com ela através dos passos ritmados da valsa.
Ia lamentar o facto de não a voltar a ver depois daquela noite, de não trocar observações espirituosas com ela. De não a beijar.
Ela levantou a cabeça para olhar para ele e franziu as sobrancelhas.
- Até agora, ainda não houve dedos esmagados - disse ela.
- Se for assim tão desastrado e grosseiro - disse ele -, autorizo-a a utilizar o punho na minha cara sem sequer me tentar defender.
Ela riu-se.
- Como é que está correr a sua corte? - perguntou-lhe ela. - A sua tia parece muito feliz consigo mesma esta noite.
Ele fez um esgar. - Sinto a armadilha do casamento a aproximar-se - disse ele. - Segundo a Constance, que está tão ansiosa pela união como eu, ela está determinada
a atirar-nos para os braços um do outro esta noite com tanta frequência que, a bem da própria decência, seremos obrigados a anunciar o nosso noivado. Devo acrescentar
que a vontade daquela mulher quase nunca foi contrariada.
- Que disparate! - disse ela. - Achei-a uma adversária muito pouco digna de nota quando falei com ela esta manhã.
- Talvez a Connie e eu a devêssemos usar contra ela então, querida - disse ele. - Por acaso não quer entrar num noivado falso comigo durante um dia ou dois, pois
não?
Ele fez um sorriso irónico.
Ela olhou-o fixamente, com uma expressão intrigada no rosto. As sobrancelhas ergueram-se altivamente. Ele ficou à espera da sua língua contundente.
- Por acaso - disse ela -, isso seria bastante divertido, não acha?
Ele descobriu com alguma surpresa que continuavam a valsar.
CAPÍTULO 8
Ele estava louco.
Ela estava louca.
Eles sorriram um para o outro como dois grandíssimos idiotas.
Era uma sugestão absurda e louca. Decerto que ele não falara a sério. Mas a possibilidade de se vingar dos insultos daquela manhã no Pump Room era irresistível para
Freyja. Além disso, tinha-se sentido abatida todo o dia por causa daquela carta infernal, ou antes, por causa daquele parágrafo breve infernal na carta. E aquilo
parecia-lhe realmente divertido.
Um noivado a fingir! Exatamente aquilo que suspeitara de Kit no ano anterior, sussurrou-lhe a mente. Ela colocou o pensamento firmemente de lado. Estava farta até
à ponta dos cabelos de Kit Butler, o visconde Ravensberg.
Fora sempre uma estouvada. Aquelas muitas precetoras que atormentara tinham tentado constantemente explicar-lhe que, se ao menos aprendesse a pensar antes de agir
e antes de se precipitar de forma impulsiva para o plano criado pela sua imaginação fértil, ficaria muito menos vezes em sarilhos.
Freyja sempre gostara imenso de sarilhos.
Deu por si subitamente feliz, de uma forma bastante irracional e descabida.
- Estou completamente de acordo - disse ela ao marquês. - Vamos a isso. Esta noite. Agora. Podemos romper o noivado amanhã. Não tenho dúvidas de que é isso que as
pessoas esperam de nós, em todo o caso.
Sempre adorara dançar a enérgica e ligeiramente escandalosa dança da valsa. Estava a gostar especialmente de dançar aquela com o marquês. Mas estava muito feliz
por deixá-la a meio. O marquês esperou até estarem perto da porta que dava para o salão de chá e depois atravessou-a sempre a valsar com ela antes de a libertar
dos seus braços, pegar-lhe no braço e ir em busca do mestre de cerimónias, que estava ausente do salão do baile.
Mr. King estava no salão de chá a circular entre as mesas e a conversar com os seus ocupantes. Brindou-os com um sorriso radiante quando os viu, esfregando as mãos
uma na outra ao mesmo tempo.
- Meu senhor - disse ele. - Estou encantado por ter convidados tão ilustres esta noite como o senhor e Lady Freyja Bedwyn, assim como a marquesa, sua tia, e a sua
filha, é claro. Uma mesa para dois?
- Não, obrigado - disse o marquês, sorrindo amavelmente. - Talvez não se importe de fazer um anúncio público no final da valsa, Mr. King. Desejo que todos os meus
amigos e relações em Bath partilhem a minha alegria. Lady Freyja Bedwyn acabou de me tornar o mais feliz dos homens ao aceitar a minha proposta de casamento.
Mr. King pareceu ficar quase sem fala de espanto por alguns momentos. Mas não precisou de muito tempo para a recuperar e de inchar o peito de importância. Sorriu
abertamente com deleite.
- Fá-lo-ei com o maior dos prazeres, meu senhor - declarou ele, pegando numa das mãos do marquês e sacudindo-a energicamente para cima e para baixo. A seguir, fez
a Freyja uma vénia reverente. - Minha senhora. Não lhe consigo expressar o quão encantado e honrado me sinto.
Deixaram-no ao mesmo tempo que ele chamava a atenção de todos os que estavam no salão de chá e os informava que se dirigissem ao salão de baile quando a música terminasse,
pois iriam ouvir um anúncio muito feliz.
- Acabou de me salvar de uma situação muito melindrosa, querida - murmurou o marquês enquanto conduzia Freyja de volta ao salão do baile. - Talvez lhe possa retribuir
o favor um dia.
- Pode ter a certeza que sim - disse ela. - Embora acredite que a expressão na cara da sua tia será recompensa suficiente por agora. Não a perderia por nada deste
mundo.
A valsa estava a acabar. O marquês ofereceu o braço a Freyja e levou-a até ao sítio onde Lady Holt-Barron estava sentada. Fez uma vénia muito correta antes de regressar
ao seu grupo, mas os olhos dele dançavam de alegria, reparou Freyja, abrindo o seu leque e refrescando o rosto afogueado.
Ela controlou a sua expressão até exibir a altivez habitual. O que acabara de fazer? Bastaria um olhar glacial de Wulf para a paralisar se aquilo lhe chegasse aos
ouvidos. Será que podiam pôr um fim à brincadeira ainda antes do dia de amanhã?
Mas não podia negar que o coração palpitava alegremente. Aquilo era exatamente o que precisava para lhe elevar o ânimo.
Estavam a chegar pessoas ao salão do baile vindas do salão de chá e da sala de jogos de cartas. Sentia-se no ar o interesse a fervilhar e passado pouco tempo esse
estado de espírito também se transmitiu às pessoas do salão de baile. A sociedade de Bath vivia de notícias e mexericos, tal como a sociedade em geral. Mas raramente
havia alguma coisa realmente nova para agitar os espíritos e animar as conversas. Mr. King não precisava de bater palmas para atrair a atenção quando subiu ao estrado
da orquestra, mas fê-lo na mesma.
Freyja observou que a marquesa de Hallmere, uma figura aparentemente frágil e enfermiça de negro, estava, não obstante, a sorrir graciosamente enquanto apoiava um
braço na manga do marquês e o outro no braço de Lady Constance. Pensava claramente que tinha a noite em mãos seguras.
Lady Constance parecia tensa e infeliz. O marquês parecia despreocupado. Trocou um olhar com Freyja do outro lado do salão e baixou uma pálpebra naquele seu piscar
de olhos lento.
- Fui agraciado com o privilégio de fazer um importante e feliz anúncio - disse Mr. King à sua audiência avidamente atenta. - Trata-se de um noivado entre dois dos
mais ilustres membros, não só da sociedade de Bath, mas de toda a alta sociedade britânica. Trata-se de uma união brilhante, em todos os aspetos.
Freyja sacudiu o leque um pouco mais depressa. A marquesa voltou a sua atenção graciosa para a filha, tendo decidido claramente que o anúncio não tinha nada de interesse
para lhe oferecer.
- O marquês de Hallmere pediu-me - disse Mr. King, sorrindo radiosamente à sua volta com orgulho e prazer - para anunciar o seu noivado com Lady Freyja Bedwyn, que,
como todos sabem, é irmã do duque de Bewcastle.
A marquesa voltou-se bruscamente para olhar para o sobrinho, de olhos arregalados. Lady Constance também olhou para ele com os olhos a brilhar de felicidade.
E depois Freyja apercebeu-se do crescendo de som à sua volta e das exclamações de surpresa e deleite vindas de Lady Holt-Barron e de Charlotte. Apercebeu-se de que
o marquês de Hallmere avançava a grandes passadas no salão de baile na sua direção, com um sorriso charmoso fixo e um braço esticado. Freyja deu uns passos em frente
e foi ao seu encontro numa clareira aberta no salão de baile. Ele pegou-lhe na mão, fez uma vénia sobre ela com uma elegância palaciana e levou-a aos lábios.
Os espectadores suspiraram de prazer e depois aplaudiram entusiasticamente.
Foi tudo horrivelmente teatral.
E assustadoramente real.
Freyja reprimiu a vontade de dar largas aos seus sentimentos, atirar a cabeça para trás e soltar uma gargalhada ruidosa. Em vez disso, sorriu.
O marquês ergueu a cabeça, ainda a segurar na sua mão, e sorriu-lhe, fitando-a diretamente nos olhos. Por detrás do sorriso charmoso e radiante, nas profundezas
dos seus olhos, ele ria-se.
- Agora é que nos metemos num bonito sarilho, querida - murmurou ele.
Foram as últimas palavras privadas que puderam trocar durante algum tempo. Um grande número de pessoas, na verdade, quase todas as que estavam presentes queriam
apertar-lhes a mão, fazer-lhes uma vénia ou uma mesura e desejar-lhes felicidades. Algumas até afirmavam ter previsto um desfecho daquele tipo imediatamente após
a confusão que ocorrera no Pump Room. Lady Holt-Barron estava a chorar delicadamente no seu lenço e a sorrir ao mesmo tempo. Charlotte abraçou Freyja com força e
sussurrou-lhe que nunca se sentira tão feliz na vida, exceto quando o seu próprio noivado fora anunciado. O conde de Willett parecia tristemente destroçado. Lady
Potford deu um beijo no rosto de Freyja, voltou-se para o neto e bateu-lhe bruscamente na manga com o leque antes de o acusar de ser um patife por lhe esconder um
segredo tão maravilhoso. Mrs. Lumbard desfazia-se em lisonjas, relembrando-os e a toda a gente que a conseguisse ouvir que seriam vizinhos quando o marquês e a sua
nova marquesa fossem viver para Penhallow.
Mr. King bateu palmas a pedir silêncio de novo após uns bons dez minutos de barulho e felicitações e anunciou que o programa da noite seria ligeiramente modificado
para incluir outra valsa curta, que seria dançada pelo casal recém-comprometido. Todos se deixaram ficar para os ver a dançar antes de os jogadores de cartas regressarem
lentamente à sua sala e os apreciadores de chá à deles.
Era tudo extraordinariamente ridículo, e vergonhosamente emocionante.
- Amanhã a comoção será ainda maior - observou Freyja quando a valsa privada de ambos estava a chegar ao fim -, quando rompermos o noivado.
- Amanhã, não, querida - disse ele. - Se for igual para si, continuaremos noivos até a minha tia regressar a casa. Atrevo-me a dizer que ela não ficará em Bath mais
de um dia ou dois agora que a vontade dela foi contrariada. Regressará a casa ofendida e zangada.
- No momento em que ela partir, então - disse Freyja -, nós faremos esse anúncio. - Na verdade, não se importava de prolongar aquela farsa divertida por um dia ou
dois.
- Nós não - disse o marquês. - A senhora irá romper o noivado. É uma coisa que um cavalheiro nunca faz.
- Que maravilha! - disse ela, sarcasticamente. - Era bem feito se eu me recusasse a fazê-lo e se fosse obrigado a casar-se comigo.
- Prefiro a senhora à Constance, meu encanto - afirmou ele.
- A memória dessas palavras ardentes do meu prometido irá ajudar-me a adormecer esta noite - disse ela.
Ele sorriu de forma irónica e depois retribuiu os aplausos dos espectadores com um sorriso mais apropriado.
- Vamos ver o que a minha tia tem para a dizer? - sugeriu ele.
- Claro que sim - disse-lhe ela, pousando a mão no braço que ele lhe oferecia. Não deixara de reparar que a marquesa fora um dos poucos convidados que não viera
felicitá-los antes da valsa de ambos.
A senhora recuperara daquilo que devia ter sido um choque muito desagradável. Parecia frágil, doce e mirrara para cerca de metade do seu tamanho habitual. Era um
desempenho impressionante. Esticou as mãos a Freyja quando eles se aproximaram, apertou-as com uma força desnecessária, obrigando Freyja a contra-atacar ao apertar
as dela ainda com mais força, beijou o ar junto da face esquerda de Freyja e depois da direita, e sorriu calorosa e graciosamente.
- Que surpresa maravilhosa, Lady Freyja - disse ela bastante alto para ser ouvida pelas pessoas à volta. - Não me consigo lembrar de ninguém que receberia mais alegremente
no seio da minha família. Sempre considerei o querido Joshua como um filho, sabe. - Os olhos dela estavam, de novo, a trespassá-la como duas pontas de agulhas muito
aguçadas.
- Obrigada, minha senhora - disse Freyja. - Eu sabia que ia ficar contente por nós.
- E o meu querido Joshua. - A marquesa transferiu a sua atenção e as mãos para o sobrinho. - Mas que surpresa endiabrada. Não podias ter partilhado o segredo com
a tua avó ou com a tua tia?
- Ganhei coragem para pedir Lady Freyja em casamento durante a valsa, tia - disse ele -, e ela disse que sim. Estávamos ambos tão repletos de uma alegria profunda
que queríamos que todos partilhassem a nossa felicidade sem mais demoras. Achei que a tia e a avó iriam apreciar a surpresa feliz.
O sorriso da marquesa não esmoreceu. - É claro que sim, querido - disse ela.
Mr. Darwin fez uma vénia a Freyja nessa altura e pediu-lhe para dançar a próxima música de danças do campo com ele. Ainda só tinham dançado apenas duas músicas no
baile. Ela sorriu enquanto apoiava a mão no braço dele, ao recordar-se da decisão de namoriscar com o marquês de Hallmere naquela noite.
Bom, fizera bem melhor do que namoriscar. Entrara num noivado a fingir com ele. Apenas pelo puro prazer de o fazer.
Descobriu que já há muito tempo que não se sentia tão ansiosa pelos dias seguintes e com tanta satisfação. Pelo menos, isso afastar-lhe-ia os pensamentos de Alvesley,
do novo filho de Kit e do estado desolador da sua própria vida.
Joshua caminhou até à casa de Lady Holt-Barron no Circus no final da manhã seguinte. Evitara o Pump Room, especialmente quando a avó anunciou que ficaria em casa
depois da noite agitada. Mas não conseguira evitar o assunto que o tinha mantido acordado grande parte da noite, alternando entre momentos de risadas e suores frios.
A tia convidara-se a si mesma e a Constance para o pequeno-almoço e juntara-se entusiasticamente ao plano da avó para organizar uma grande festa de noivado na Great
Pulteney Street dali a uma semana.
- Não te consigo exprimir o quanto estou encantada, Joshua - dissera a tia -, por finalmente teres decidido assentar. Embora me pareça que vais querer levar a tua
noiva numa viagem pelo continente durante um ano ou dois depois das núpcias, agora que as guerras terminaram.
- Pressenti que Lady Freyja era a mulher certa para ti desde o primeiro momento - concordara a avó antes de se rir. - Bem, quase desde o primeiro momento. Nunca
vais achar a vida aborrecida com ela, Joshua.
Constance arranjara um momento para trocar umas palavras em privado com ele.
- Obrigada, Joshua - dissera ela. - Foste tão rápido a pensar e a agir! Mas espero sinceramente que não tenhas proposto casamento a Lady Freyja Bedwyn apenas para
contrariar a mãe. Isso seria injusto, não é verdade? Não acho que ela seja feia. Acho-a distinta e bem-apessoada. Mas, ainda assim, deve ter sentimentos, e pode
sair magoada de tudo isto.
- Lady Freyja e eu compreendemo-nos um ao outro perfeitamente bem - assegurou-lhe ele. - Partilhamos a mesma satisfação por uma bela partida.
- Ah - dissera ela. - Não se trata de um noivado real, então. Suspeitava disso. Mas fico com muita pena. Não posso deixar de pensar, tal como a tua avó, que ela
é perfeita para ti.
Sendo assim, a tia estava a planear ficar pelo menos durante mais uma semana, pensou ele pesarosamente enquanto subia a grandes passadas a inclinação acentuada da
Gay Street. Não estava à espera que ela ficasse tanto tempo. Nem tão-pouco esperava que a avó insistisse numa grande festa. Esta questão do noivado ainda se podia
revelar um embaraço enorme ou talvez fosse divertido, admitiu para si mesmo. Fora essa a palavra que ela usara, não fora?
Ele bateu na porta da casa no The Circus, foi recebido por uma governanta sorridente que claramente estava ao corrente da notícia (havia alguém em Bath que não estivesse?),
e foi levado imediatamente à sala de estar onde as senhoras estavam reunidas, mãe e filha com ar de quem tinha regressado recentemente de uma saída à rua.
Lady Holt-Barron lançou-lhe um sorriso radiante e a filha sorriu. Lady Freyja parecia desconfiada.
- Vim convidar Lady Freyja para caminhar comigo - disse ele depois de terem sido trocadas as cortesias iniciais.
Ela pôs-se de pé depois de dobrar uma carta que devia ter estado a escrever na escrivaninha.
- Preciso de algum ar fresco - disse ela.
- E hoje, Lady Freyja - disse a anfitriã dela com um sorriso de orelha a orelha - não precisa de nenhum acompanhante enquanto vai caminhar com o seu noivo.
Alguns minutos depois, desciam a grandes passadas a Gay Street, sem se tocarem. Ela recusara-se a aceitar o braço dele.
- Estava a escrever à sua família? - perguntou-lhe. - A dar a boa-nova?
- Nada disso - disse ela. - Estava a escrever à minha irmã, como faço a maior parte dos dias. Estava a descrever-lhe a noite de ontem, parte da noite, pelo menos.
- Mas sem dúvida que omitiu o pormenor insignificante de o seu noivado ter sido anunciado durante essa noite - disse ele, a sorrir. Ela parecia aborrecida naquela
manhã.
- Exatamente - disse ela. - Eles não precisam de saber. Daqui a um dia ou dois estaremos livres para pôr um fim a este disparate. Estou convencida de que a sua tia
deixará Bath bastante descontente e depois posso mandar fazer um anúncio ou o senhor também poderá partir e eu irei para casa pouco depois e não será preciso dizer
absolutamente mais nada a respeito deste assunto.
- Acredita realmente que vai ser assim tão simples, querida? - perguntou ele, soltando uma risadinha.
Tinham chegado ao fundo da colina e avançaram num caminho serpenteante rumo à abadia e ao rio que ficava atrás dela. O sol brilhava, embora a brisa fosse fresca.
- Claro que vai - disse ela com uma confiança brusca.
- A minha avó está neste preciso momento a planear uma grande festa de noivado para a próxima semana - disse ele.
Ela fez um esgar. - Então, temos ambos de sair daqui antes disso - respondeu.
- Isso seria uma falta de desportivismo da minha parte - disse-lhe ele, tocando na aba do chapéu num gesto de cortesia para um casal que estava a passar. - Os convites
vão ser enviados todos hoje.
- Raios - declarou ela.
Ele soltou uma gargalhada. Nunca tinha ouvido uma senhora proferir uma palavra daquele tipo. Perguntou-se se ela teria outras pérolas do mesmo género no seu vocabulário
e imaginou que sim.
- E a minha tia decidiu ficar para a festa - disse-lhe ele.
Ela parou de caminhar e olhou severamente para ele como se fosse o culpado, e até determinado ponto, não restavam dúvidas de que era.
- Raios a dobrar - disse ela. - O senhor parece estar a divertir-se bastante.
- Não posso deixar de pensar - disse ele, quando recomeçaram a andar - que as coisas pareciam negras na noite de ontem e que a minha tia me podia ter facilmente
encurralado de forma a anunciar o meu noivado com a Constance. Prefiro de longe a senhora.
- Mal posso conter a minha alegria - disse ela altivamente.
- Porque pode ser descartada daqui a uma semana ou duas - disse ele.
- Como um casaco velho - retorquiu ela.
- A não ser que prefira que eu cumpra o prometido, é claro - disse ele - e me case consigo.
- Deus me livre - disse ela.
- Fingir um noivado comigo e uma afeição romântica por mim durante uma semana inteira será um sacrifício insuportável para si? - perguntou. - Que terminará numa
grande festa para depois recuperar a liberdade e a sanidade? Ontem, pensou que isto tudo podia ser divertido.
- Ontem, eu não pensei - disse Freyja. Ela olhou para ele de forma inquisitiva ao mesmo tempo que chegavam junto do rio e se dirigiam, tacitamente, na direção da
ponte de Pulteney. - No entanto, a vida em Bath é dolorosamente aborrecida em circunstâncias normais.
- Sim - concordou ele. - Estamos de acordo, nesse caso, em desfrutar das circunstâncias muito pouco normais, ou bem mais do que normais, que a próxima semana promete?
Ela sorriu-lhe lentamente, com o mesmo brilho ligeiramente destemido nos olhos da noite anterior quando lhe perguntou a brincar se gostaria de entrar num noivado
a fingir com ele.
- Tendo em conta o facto de que teremos de sobreviver à próxima semana, seja como for - disse ela - o melhor é desfrutarmos o mais possível dela. Aonde vamos?
- Aos Sydney Gardens? - sugeriu ele. - É bastante longe, mas não é uma caminhada demasiado longa para si, segundo me lembro. Posso até ser capaz de encontrar lá
outra criadita a ser perseguida por um esquilo e impressionar a minha noiva ao salvá-la.
- Não, os Gardens não - declarou ela. - O penhasco de Beechen. Ouvi dizer que é uma subida íngreme, mas que a vista do cimo é extraordinária. Quero ir até lá.
- Muito bem - disse ele.
Pelo menos, ser a sombra de Lady Freyja Bedwyn durante a próxima semana não ia ser aborrecido. Tencionara estar de partida de Bath naquela manhã. Não estava nada
arrependido da desculpa para passar mais tempo na companhia dela. Achava-a divertida. E cada vez mais atraente.
Freyja não se fez de rogada. Fizera um enorme favor ao marquês de Hallmere e reclamava o seu pagamento de todas as formas possíveis na semana que se seguiu ao anúncio
do noivado entre ambos.
Era verdade que o Pump Room ainda tinha de ser suportado na maior parte das manhãs, assim como os ocasionais concertos, peças de teatro ou jogos de cartas durante
os serões. Mas, na realidade, não se importava muito de desempenhar essas atividades. Pelo menos, o passeio obrigatório até ao Pump Room punha todos de pé e a mexer-se
a uma hora decente da manhã e ela gostava de boa música, de peças humorísticas e até mesmo de jogos de cartas de vez em quando. Exceto o resto do dia, que sempre
fora insuportavelmente entediante.
Agora o tédio desaparecera.
Todos os dias ela arrastava o marquês para ir caminhar ou andar a cavalo. Escalaram o penhasco de Beechen naquele primeiro dia e subiram até à colina de Beacon para
depois atravessar os campos até à aldeia de Charlcombe noutro dia. Caminharam até à aldeia de Weston numa tarde. Foram de cavalo até à colina de Landsdown e à colina
de Claverton. No dia em que choveu ininterruptamente de manhã à noite, ela ainda assim insistiu em ir de cavalo até à aldeia de Keynsham, a meio caminho de Bristol.
Descobriu rapidamente que ter um noivo era tão bom como ter um dos seus irmãos em Bath, visto que Lady Holt-Barron não esboçava qualquer protesto em torno do decoro
em saírem sozinhos tantas vezes.
Mas a verdade era que ela desfrutava mais da companhia do marquês do que qualquer um dos irmãos, e estava certa de que ele desfrutava igualmente da companhia dela.
Gostava de olhar para ele. Ele era indiscutivelmente um dos homens mais belos das suas relações. E era uma companhia com sentido de humor. Ela nunca conseguia levar
a melhor sobre ele verbalmente, ou vice-versa. Ele nunca lhe dava a entender que aquela caminhada ou aquele passeio a cavalo podiam ser demasiados para uma senhora.
Quando exigira andar a cavalo à chuva, nem sequer pareceu ficar surpreendido, embora Lady Holt-Barron a tivesse advertido a respeito de todas as consequências terríveis
para a saúde de ambos se não fossem tomar simplesmente chá aos Upper Rooms.
Freyja não estava ansiosa pela festa em casa de Lady Potford, que ia ser um acontecimento concorridíssimo, visto que quase toda a gente com alguma pretensão de nobreza
em Bath fora convidada. Gostava de Lady Potford e não sentia prazer ao pensar na grande fraude que seria uma festa daquele género. Mas quanto mais via a marquesa
de Hallmere e Lady Constance Moore durante a semana, mais se apercebia de que teria sido realmente cruel ter abandonado o marquês àquilo que podia ter sido o seu
destino, um casamento com a prima, que se queria casar com ele tanto como ele se queria casar com ela.
Não, durante apenas aquela semana ela estava noiva, mais uma vez, e iria desempenhar o seu papel até ao fim para depois regressar ao seu estado normal de solteira
e à sua vida normal quando a festa chegasse ao fim e a marquesa tivesse partido para a Cornualha.
A vida na semana seguinte iria parecer muito aborrecida, pensou quando regressou à casa de Lady Holt-Barron após o passeio a cavalo até à colina de Claverton. Mas
pensaria nisso na semana seguinte. Talvez regressasse a casa, a Lindsey Hall. Seria seguro fazê-lo por essa altura.
O marquês entrou na casa com ela, visto que Lady Holt-Barron o convidara para tomar chá. Eles estavam um pouco descompostos pelo vento e de faces avermelhadas da
saída ao ar livre, mas Freyja não subiu ao quarto para mudar de roupa antes. Entrou antes do marquês na sala de estar.
E deteve-se de forma tão abrupta que ele quase chocou com ela atrás de si.
Lady Holt-Barron e Charlotte estavam na sala.
Assim como Wulfric.
Ele estava a pôr-se de pé naquele momento, exibindo o seu habitual ar elegante, imaculado e ligeiramente frio, assim como os seus olhos prateados. Os dedos longos
enrolaram-se à volta do cabo do lornhão e ergueram-no quase até ao olho.
- Ah, Freyja - disse ele, com uma voz altiva e distante.
- Wulf! - exclamou ela.
- E...? - O lornhão aproximou-se completamente do olho, ampliando-o de modo horrível.
- Posso apresentar-lhe o marquês de Hallmere? - disse ela, desviando-se para um dos lados. - O meu irmão Wulfric, meu senhor. O duque de Bewcastle.
O que trouxera Wulf a Bath precisamente naquela altura? Mas ela sabia a resposta sem ter de pensar muito mais. É claro! Às vezes pensava que Wulf era tão omnisciente
como Deus. Fora precisamente aquela altura que o tinha trazido.
Alguém lhe dissera.
Ele sabia!
As palavras seguintes dele dissiparam todas as dúvidas.
- Ah, sim - disse ele suavemente, baixando o lornhão, mas continuando a fitar o marquês com olhos frios. - O noivo da Freyja, não é verdade?
CAPÍTULO 9
Bewcastle possuía uma grande vantagem sobre si, pensou Joshua uma hora depois enquanto os dois caminhavam pela Gay Street, depois da governanta de Lady Holt-Barron
ter tratado do que era necessário para que os cavalos fossem levados aos respetivos estábulos. Havia a vantagem da posição social, é claro. Bewcastle era um duque
enquanto ele era um marquês. Mas a diferença entre eles era bem maior do que essa. Bewcastle nascera para o seu papel atual. Era a personificação de um aristocrata
enquanto Joshua, mesmo depois de ter sido herdeiro do título durante cinco anos e seu detentor há sete meses, ainda se sentia um usurpador.
As cinco pessoas presentes na sala tinham conversado sobre uma variedade de assuntos durante o chá e, em consequência, nada de significativo fora dito. Agora Bewcastle
falava do aspeto agradável de Bath e Joshua concordava com cada uma das suas palavras, tentando ao mesmo tempo não se sentir como um rapazinho açoitado, ou antes,
um rapazinho prestes a ser açoitado. Mas aquilo tudo era realmente uma verdadeira embrulhada. Tinha sido esperar muito imaginar que a notícia do noivado não tivesse
de algum modo chegado aos ouvidos do irmão de Lady Freyja, mas quem poderia prever que ele viria pessoalmente a Bath em vez de pedir simplesmente à irmã mais informações
por escrito?
- Entra no Royal York comigo? - perguntou Bewcastle quando o declive se estabilizou. Fora formulada como uma pergunta, mas Joshua reconhecia uma ordem quando ouvia
uma.
- Com todo o prazer - respondeu.
O duque tinha uma suíte privada no hotel. O criado particular dele levou os chapéus e luvas de ambos e trouxe uma bandeja de bebidas para a sala de estar. Bewcastle
indicou uma cadeira vazia e ocupou outra. O criado particular serviu dois copos, entregou um copo a cada um e depois deixou-os sozinhos, fechando a porta silenciosamente
atrás de si.
Bewcastle observou o seu visitante com olhos claros e argutos, que faziam lembrar a Joshua os de um lobo. Ao que parecia, o homem tinha um nome apropriado.
- Irá sem dúvida explicar-me - disse Bewcastle numa voz suficientemente agradável, embora os olhos estivessem frios como gelo - por que motivo o vosso noivado foi
anunciado publicamente à sociedade de Bath sem ser sequer mencionado à família de Lady Freyja Bedwyn.
Joshua cruzou uma perna sobre a outra. - Foi uma decisão impetuosa - declarou. - Propus casamento a Lady Freyja durante uma valsa nos Upper Rooms, ela disse que
sim, e decidimos convidar os presentes a partilhar a nossa profunda alegria. - A sua explicação parecia extraordinariamente idiota mesmo aos seus próprios ouvidos.
- Ah, impetuosidade - disse Bewcastle. - Mas não desejou convidar igualmente a família dela a partilhar a vossa profunda alegria, talvez no dia seguinte, no dia
a seguir ou ainda no dia a seguir a esse?
Seguiu-se uma pausa infeliz enquanto Joshua ponderava algumas respostas possíveis. É claro que não havia qualquer resposta convincente. Aquilo era tudo bastante
embaraçoso.
- Talvez - sugeriu o duque - tencionasse fazer-me uma visita em Lindsey Hall depois da primeira euforia do compromisso entre ambos ter passado?
- Lady Freyja é maior de idade - disse Joshua. - Em rigor, não precisamos do seu consentimento. Iríamos procurar a sua bênção no momento certo, sim. Durante a passada
semana, como sugeriu, estivemos a desfrutar demasiado da companhia um do outro para refletir sobre o que deveria ser feito.
- Os dois desenvolveram então - disse o duque suavemente - uma paixão um pelo outro?
Oh, não. Ele estava a avançar para terrenos perigosos.
- Podia dizer-se que sim - respondeu.
- Podia - concordou Bewcastle. - Mas o senhor pode dizer isso?
- Creio - disse Joshua cuidadosamente - que os meus sentimentos por Lady Freyja e os dela por mim só nos dizem respeito a nós.
- Sem dúvida. - Bewcastle pousou o seu copo meio vazio, recostou-se na cadeira, pousou os cotovelos nos braços e juntou as pontas dos dedos. Aparentemente, os silêncios
não o deixavam constrangido. Passou algum tempo antes de ele continuar. - Ao que parece, o senhor sempre foi um homem ambicioso.
Joshua ergueu as sobrancelhas.
- Seria estranho se não o fosse - disse Bewcastle. - Ao longo de toda a sua vida, esteve a uma vida de distância do direito de sucessão ao título de marquês e à
sua propriedade e fortuna. Sem dúvida uma frustração para um rapaz sem quaisquer recursos. E depois essa única vida foi extinta em circunstâncias um tanto ou quanto
misteriosas.
Santo Deus! Joshua ficou gelado por dentro. Pelo menos agora era claro quem tinha informado Bewcastle do noivado e por que motivo este não perdera tempo em vir para
Bath.
- Em circunstâncias trágicas - disse Joshua. - Está a insinuar que acredita que eu estive implicado na morte do meu primo?
- Nunca insinuo nada - disse Sua Senhoria, erguendo sobrancelhas altivas. - Muito provavelmente foram meramente circunstâncias afortunadas para si. Celebrou as suas
novas expectativas de vida viajando bastante e, digamos assim, entregando-se a uma vida desregrada?
- Passei cinco anos em França - disse Joshua, algo irritado -, a fazer trabalho de espionagem para o governo britânico. Não gosto deste interrogatório, Bewcastle.
- Não? - O duque continuava a falar suavemente. Ele não se deixava arrastar para trocas de palavras acesas. - Mas quer casar-se com a minha irmã, Hallmere. Irei
interrogar qualquer homem que aspire à sua mão, mesmo que ele tenha forçado a minha mão ao anunciar o noivado antes de falar comigo. Recusou-se a casar-se com a
senhora de origens humildes que engravidou em Penhallow antes de partir?
Joshua franziu os lábios. Seria interessante ler a carta que a tia escrevera ao duque de Bewcastle. Mas não iria permitir que a malícia dela o colocasse na defensiva
perante um desconhecido.
- Ela nunca me pediu que casasse com ela - disse ele, a sorrir. - Mas tenho-a sustentado a ela e à criança há mais de cinco anos.
Bewcastle não mostrou quaisquer sinais de partilhar o seu bom humor. Pegou de novo no copo e beberricou a bebida. - Lady Freyja Bedwyn é filha de um duque - disse
ele. - Também é uma mulher extremamente abastada, como acredito que saiba.
- Suponho que teria chegado a essa conclusão - disse Joshua - se tivesse pensado no assunto.
- Ela é de facto - disse o duque - uma escolha brilhante para si.
- Visto que estamos a falar de posição social e fortuna - disse Joshua, sorrindo de novo -, podemos dizer que eu sou igualmente uma escolha brilhante para ela. É
o que a sociedade de Bath tem vindo a dizer desde que o anúncio foi feito, em todo o caso.
O duque fitou-o com uma altivez fria. Ocorreu demasiado tarde a Joshua que talvez devesse simplesmente contar a verdade a Bewcastle. No fim de contas, aquele noivado
a fingir iria acabar na semana seguinte. Por que motivo deveria deixar nas mãos de Lady Freyja a tarefa de o explicar à família?
- Não está completamente certo de que me aprova - disse ele. - Não o posso censurar por isso. Propus casamento à sua irmã sem o consultar primeiro na qualidade de
chefe da família e depois agravei esse erro ao fazer com que o noivado fosse anunciado em público durante um baile e ao descurar o meu dever de lhe escrever ou de
o visitar imediatamente depois. Segundo compreendi, a minha tia levou a cabo essa tarefa por mim. Neste momento só posso dizer que tenho a mais alta estima pela
sua irmã e aceitarei a decisão dela se ela achar conveniente romper o nosso compromisso depois de ouvir a sua opinião.
Muito bem. Talvez aquilo lhes desse uma saída decente da alhada em que se encontravam quando chegasse a altura. Aquela visita inoportuna do irmão dela a Bath afinal
podia vir a ser positiva.
As sobrancelhas ducais tinham-se erguido.
- Extraordinário! - exclamou suavemente Bewcastle. - Não vai lutar pela mulher que ama, Hallmere?
- Não vou decididamente obrigar nenhuma mulher a entrar num casamento contra a vontade dela - disse Joshua.
O duque pousou o copo vazio na mesa ao lado e Joshua interpretou o gesto como um sinal de que a conversa chegara ao fim. Pôs-se de pé.
- Irei acompanhar Lady Freyja a um concerto nos Upper Rooms esta noite - disse ele. - Terei o prazer de o encontrar lá?
O duque inclinou a cabeça.
- Nesse caso, desejo-lhe uma boa tarde - disse Joshua e saiu do aposento.
Ao sair do Royal York Hotel, expirou ruidosamente o ar que tinha nos pulmões. O duque de Bewcastle ainda ia gostar menos dele quando desaparecesse da vida de Lady
Freyja dali a alguns dias. Isso não lhe faria absolutamente qualquer diferença, é claro, mas podia fazer uma grande diferença a Lady Freyja, quer ela resolvesse
dizer a verdade nessa altura ou não.
Diabos! A vida estava a ficar demasiado complicada para o seu gosto.
Mas de repente sorriu. Seria realmente interessante ser uma testemunha invisível do encontro que estava para acontecer entre Bewcastle e Lady Freyja.
Uma coisa era ter-se envolvido num noivado aos olhos da sociedade de Bath, mas outra bastante diferente era saber inesperadamente que dois desses olhos pertenciam
a Wulfric. Uns olhos inescrutáveis. Sempre o tinham sido. Eram a sua única grande mais-valia ao lidar com os subalternos, incluindo os irmãos e irmãs.
A sua outra grande mais-valia era a paciência, se essa era a palavra certa. Wulfric nunca tinha pressa. Conseguia esperar eternamente pelo momento certo enquanto
a sua presa se agitava nervosamente, vacilava e esperava pelo ataque dele.
Durante todo o tempo que durou o chá em casa de Lady Holt-Barron não fizera mais qualquer menção ao noivado, mas conversara educadamente sobre a sua viagem e o estado
das estradas, a respeito de Bath, do tempo e de uma dúzia de outros assuntos. Depois, saíra a pé de regresso à cidade com o marquês, todo ele elegância e cortesia,
com uns olhos semelhantes a duas lascas de um glaciar.
Sentou-se ao lado de Freyja durante o concerto sinfónico nos Upper Rooms nessa noite, com Lady Holt-Barron do outro lado e o marquês do outro lado de Freyja. Não
fizeram nada mais senão escutar a música e falar sobre música, embora Wulfric tivesse sido rodeado durante o intervalo por uma multidão de pessoas ansiosas por fazer
a sua mesura ou vénia ao duque de Bewcastle. Quase não houve um momento para trocar umas palavras a sós com o marquês.
- O que foi que ele disse? - perguntou ela durante um desses momentos. - Contou-lhe a verdade?
- Santo Deus, não - disse ele, respondendo à segunda pergunta. - Devia ter contado? Achei que uma farsa lhe ia causar mais problemas do que o rompimento de um noivado
na próxima semana.
- O Wulf não é o meu tutor legal - disse ela altivamente. - Os problemas não têm razão de ser.
- Então porque é que está tão aborrecida, querida? - perguntou-lhe, com um sorriso.
Alguém estava a dizer a Wulf que devia estar encantado pelo noivado da sua irmã com o marquês de Hallmere e Freyja trocou um olhar com o marquês e soltou uma risadinha
pesarosa.
Haveria imensos problemas.
Wulfric regressou ao hotel depois do concerto. Apareceu no Pump Room na manhã seguinte, de preto e cinzento, com uma camisa branca imaculada. Cumprimentou Freyja,
Charlotte e Lady Holt-Barron e falou com outras pessoas, particularmente com Lady Potford, com a qual deu duas voltas em torno do salão.
Freyja caminhava de braço dado com Charlotte, que se confessou aterrorizada com Sua Senhoria, embora se risse da sua patetice.
- Ele alguma vez sorri, Freyja? - perguntou ela.
- Nunca - respondeu Freyja. - É algo que está abaixo da dignidade ducal.
Elas riram-se ao mesmo tempo e ela sentiu-se desleal. Adorava todos os seus irmãos, incluindo Wulf.
A multidão estava a começar a dispersar-se para o pequeno-almoço quando Wulfric a procurou e a informou de que iria fazer essa refeição no Royal York com ele.
Devia confessar-lhe toda a verdade e pôr um ponto final naquele assunto, pensou alguns minutos depois quando aceitou o braço dele e partiram a pé num passo rápido.
Mas ele já sabia de tudo. Lady Holt-Barron dissera-lhe, em êxtase com o romance fictício, que nessa semana ela e o marquês tinham saído juntos para caminhar e andar
a cavalo, sem uma criada ou um acompanhante à vista. Que imagem isso daria de si se fosse repentinamente revelado que não estavam realmente noivos?
E desde quando, perguntou a si mesma, é que tinha medo de dizer a verdade ou de admitir uma pequena indiscrição? Nunca fingira viver sob a alçada do código moral
que oprimia as mulheres em todos os aspetos até terem menos liberdade do que os criados ou os animais de estimação.
Tomou fôlego para contar a Wulfric exatamente o que acontecera.
- Lady Potford não se poupou a esforços para organizar esta grande festa de noivado para os dois - declarou ele.
Ah, sim, a festa. Naquela noite. Bom, aquela farsa devia manter-se até o dia de amanhã, pensou. Decerto que a marquesa regressaria a casa no dia seguinte ou no dia
a seguir a esse. Devia estar exausta de sorrir docemente a Freyja sempre que os caminhos de ambas se cruzavam, pelo menos duas ou três vezes por dia, enquanto lhe
lançava veneno através dos olhos. Parecia bastante satisfeita naquela manhã, mas talvez isso se devesse ao facto de antecipar problemas para o sobrinho e Freyja
com a chegada inesperada de Wulfric a Bath.
Na realidade, pensou de súbito Freyja num momento de revelação, fora provavelmente Lady Potford quem informara Wulf.
- Ela tem sido muito atenciosa - respondeu Freyja, o que provocou um olhar atento por parte do irmão, que se deve ter interrogado com a brandura da sua resposta.
Não voltaram a falar mais enquanto caminhavam.
Se a marquesa partisse no dia seguinte, pensou Freyja, o marquês provavelmente partiria no dia a seguir. Nessa altura, podia confessar tudo a Wulfric e regressar
a Lindsey Hall com ele. Seria tudo muito fácil. Ninguém precisava de saber nada em Bath. Nenhum anúncio do rompimento do noivado precisava ser efetuado. Passado
algum tempo, as pessoas iam esquecer-se e parar de perguntar quando seria o casamento. Em todo o caso, ela nunca se importara muito com aquilo que era falado a seu
respeito.
Tomaram o pequeno-almoço na suíte privada de Wulfric. O criado particular do irmão foi dispensado assim que trouxe a refeição numa bandeja e lhes serviu o café.
- Vimos dois dos nossos irmãos casados nos últimos meses - disse Wulfric num tom descontraído ao mesmo tempo que Freyja espalhava manteiga numa torrada. - Ambos
de forma bastante súbita e com noivas pouco convenientes.
Ela concordara com ele em ambas as situações quando conhecera as suas duas cunhadas.
- O pai da Eve pode ter sido um mineiro de carvão - disse ela -, mas ela foi criada como uma senhora e possui muita coragem e um coração bondoso. Além disso, o Aidan
adora-a. A Judith é uma senhora de boas famílias, ainda que o pai seja apenas um vigário rural humilde. A avó adora-a, assim como o Rannulf, claro. Uma ligação conveniente
não é tudo, Wulf.
- Sem dúvida - disse ele, demorando-se a mastigar uma dentada de salsicha. - Tu, por outro lado, fizeste uma escolha perfeitamente conveniente, Freyja.
Ela estava mais do que preparada para argumentar e discutir. Não sabia como reagir àquelas palavras de aprovação. Olhou para ele com desconfiança.
- Embora fosse igualmente súbita - acrescentou.
- Foi uma decisão impetuosa - disse ela. - Ele pediu-me em casamento durante uma valsa nos Upper Rooms, eu disse que sim e decidimos convidar os presentes a partilhar
a nossa profunda alegria.
- Ah - disse Wulf suavemente, daquela maneira que fazia com que a pele se arrepiasse, apreensiva -, uma explicação quase literalmente semelhante à que recebi do
próprio Hallmere.
- Porque foi assim que as coisas se passaram - disse ela. - Ouve, Wulf, se vieste até Bath para desempenhares o papel de irmão mais velho e chefe de família e me
quiseres repreender por ficar noiva do marquês sem primeiro ir a correr para junto de ti a chorar e implorar para me dares o teu consentimento, bem podes ir para
casa outra vez. Já atingi a maioridade há quatro anos. Pensei que ias ficar encantado por me ver casada com alguém tão conveniente.
- Prefiro um marquês a um lacaio, sem dúvida - disse ele. - Mas sinto-me obrigado a perguntar-te se os casamentos do Aidan e do Rannulf te levaram a isto, Freyja.
- Hein? - perguntou ela de forma muito pouco elegante, com um garfo cheio de ovo a meio caminho da boca.
- Atingiste, como acabaste de observar - disse ele -, a tua maioridade há quatro anos. Vinte e cinco anos é uma idade desconfortável para uma senhora solteira. Tiveste
consciência desse facto este ano?
- Não! - exclamou ela, veementemente. Embora pudesse haver uma ponta de verdade naquilo que ele dissera. Não estivera presente no casamento de Aidan. Ninguém da
família estivera sequer ao corrente disso até semanas depois do acontecimento. Mas estivera presente no de Rannulf e Judith mesmo antes de vir para Bath e sentira
alguma inveja. Tinha estado até a considerar pôr um ponto final no seu estado de solteira e conquistar um qualquer cavalheiro conveniente em Bath, como, por exemplo,
o conde de Willett.
Wulfric pareceu hesitar antes de falar de novo. Parou para beber um pouco de café da sua chávena.
- Não me passou despercebido o facto - disse ele - de que o anúncio do teu noivado foi feito dois dias depois de a viscondessa Ravensberg dar à luz um filho. Um
dia depois, creio, de a Morgan te ter escrito e informado do acontecimento. Provavelmente no mesmo dia em que recebeste a carta.
- Se queres chegar a algum lado, Wulf - disse ela quando ele fez uma pausa - não é preciso demorares o dia todo. Achas que porque o Kit tem um filho estou a sofrer
e cheia de pena de mim? Achas que me lancei nos braços do primeiro homem disponível depois de saber a notícia? Achas que fui eu quem propôs casamento ao marquês
durante aquela valsa e lhe implorei para anunciar o nosso noivado? Tudo para encobrir um coração partido? O Kit Butler não é assim tão importante para mim. - Ela
estalou os dedos de satisfação por cima da mesa. - Nem a sua viscondessa. Nem o filho de ambos. - Partiu um pedaço da torrada e enfiou-o rancorosamente na boca.
- Trata-se então - perguntou Wulfric após um silêncio breve - de uma união de amor, Freyja?
Como é que o podia negar depois daquela tirada inflamada, motivo pelo qual ainda se sentia ofegante?
- Eu adoro-o - disse ela. - E ele adora-me.
- Ah - disse ele, fitando-a com olhos inescrutáveis. - Sem dúvida.
A tensão era quase insuportável. Que mentira descarada acabara de dizer. E se ele acreditara nela, ia parecer ainda mais patética dali a alguns dias depois de ter
sido abandonada. Freyja inclinou-se sobre a mesa, com os olhos a brilhar de prazer.
- Ouviste falar do nosso primeiro encontro em Bath? - perguntou-lhe. - Ou antes, dos nossos primeiros dois encontros. Estão ligados. Se ainda não ouviste falar deles,
é mais do que certo que alguém irá trazer o assunto à baila esta noite. É melhor contar-te agora pelas minhas palavras.
Ele parecia ligeiramente pesaroso. - Tenho a impressão - disse - de que pode ser uma coisa que preferia não saber.
Ela riu-se e contou-lhe o mal-entendido nos Sydney Gardens, o murro que dera no nariz do marquês de Hallmere e o facto de ele não insistir em contar-lhe o que realmente
acontecera.
- É claro - acrescentou ela - que não sabia a identidade dele naquela altura, nem ele a minha. Ele recusou-se a acreditar que eu era irmã de um duque porque não
tinha qualquer acompanhante comigo.
- Parece-me muito claro - observou secamente Wulfric - que te estavas a comportar de um modo perfeitamente normal.
Ela continuou, descrevendo a cena no Pump Room na manhã seguinte, com todos os seus pormenores abomináveis.
- Devias ser enaltecida - disse Wulfric quando ela terminou. Ele parecia bastante enfadado. - Deves ter proporcionado à sociedade de Bath assunto suficiente para
uma semana, Freyja. E depois, justamente quando estava a morrer, trouxeste-o de novo à vida com aquele anúncio inesperado no baile. Agora que me descreveste a forma
como conheceste o Hallmere, é claro que faz todo o sentido para mim que os dois se tenham apaixonado perdidamente um pelo outro e que tenham decidido um compromisso
mútuo de uma vida no decurso de uma única valsa. - Ele suspirou e pousou o garfo e a faca.
Freyja perguntou-se o que ele diria se lhe descrevesse o primeiro encontro com o marquês fora de Bath.
- Vais ser feliz neste casamento? - perguntou ele.
Por vezes, muito ocasionalmente, era possível ter um vislumbre repentino da humanidade de Wulfric. Não era algo frequente. Se tinha sentimentos, quase nunca os exibia.
Se tinha sonhos, segredos ou inquietações pessoais, nunca os partilhava. Ela perguntava-se muitas vezes a respeito da sua relação com a amante. Se era estritamente
impessoal, com o propósito apenas de satisfazer a sua função óbvia. Mas por vezes, durante um mero momento, surgia a perceção chocante de que talvez ele se preocupasse
com todos eles, não só como irmãos e irmãs à sua responsabilidade, mas como pessoas que podia amar.
Ela teve um desses vislumbres dolorosos quando ele fez aquela pergunta. E reagiu de forma realmente vergonhosa. Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Sim, vou - disse com emoção, inclinando-se um pouco por cima da mesa. - Sim, vamos.
E depois engoliu em seco e ouviu um som gorgolejante horrível na garganta quando se lembrou que aquilo que acabara de dizer com uma emoção tão incaracterística não
passava de uma mentira.
Quase desejou estar realmente noiva do marquês de Hallmere, estar realmente apaixonada por ele e ansiosa por uma vida inteira de felicidade com ele. Queria ser capaz
de dar a sua felicidade de presente a Wulf, que devia ser muito provavelmente um homem solitário, pensou Freyja repentinamente.
- Suponho que, nesse caso - disse Wulfric, pousando o guardanapo na mesa e inclinando-se para trás na cadeira -, será melhor dar a minha bênção a este casamento,
Freyja, valha ela o que valer. Atrever-me-ia a dizer que é quase igual a pôr trancas na porta de uma casa roubada.
Ainda havia comida no prato de Freyja, mas ela perdera o interesse nela. Empurrou o prato para longe. Sentia-se desprezível. Era impulsiva, obstinada e frequentemente
indiscreta, mas não estava acostumada a mentir a Wulf ou a quem quer que fosse da sua família. Tinha-se envolvido tão profundamente naquela história fraudulenta
que não havia mais nada a fazer agora senão avançar em frente até ela chegar ao fim. Felizmente, isso estava para breve.
- É melhor o marquês de Hallmere voltar para Lindsey Hall connosco a não ser que tenha uma obrigação mais urgente noutro lugar - afirmou Wulfric. - Vamos precisar
de o apresentar à vizinhança e de celebrar convenientemente o vosso noivado. E precisamos de fazer planos para o vosso casamento.
Naquele momento, Freyja arrependeu-se de ter comido.
CAPÍTULO 10
A casa de Lady Potford na Great Pulteney Street estava repleta de convidados na noite da festa de noivado. Ela abrira as portas da sala de estar formal, da sala
de estar privada, de um salão e da sala de jantar para receber todos os seus convidados. Cada uma das divisões resplandecia com a luz de muitas velas. A longa mesa
da sala de jantar com uma toalha imaculadamente branca estava coberta de pratos cheios de uma grande variedade de iguarias apetitosas. Dois criados estavam junto
dela para ajudar os convidados a fazer a sua seleção e encher os pratos. Outros levavam grandes bandejas de copos cheios de divisão em divisão.
Lady Potford estava, como dissera a Joshua e a Freyja numerosas vezes, e uma vez ao duque de Bewcastle durante o passeio matinal no Pump Room, mais do que encantada
com a feliz reviravolta dos acontecimentos.
- Estava terrivelmente receosa - dissera a Joshua - de que continuasses a vaguear por aí à semelhança do que tens feito nos últimos anos, a saborear os prazeres
efémeros da vida sem te aperceberes de que existe um prazer ainda maior no cumprimento do papel que nos foi destinado na vida e na formação da nossa própria família.
Vais regressar a Penhallow depois de te casares com Lady Freyja, começar a preparar o quarto das crianças, superintender a administração da tua propriedade e o bem-estar
das pessoas que dependem de ti. Ela é a noiva certa para ti, Joshua. Estou extremamente feliz.
- Eu tenho um administrador competente, avó - sublinhara ele - e estou sempre em comunicação com ele. - Jim Saunders era, de facto, a única pessoa que sabia sempre
onde é que ele estava. - Lady Freyja pode preferir viver em Londres, ou não - admitiu ele.
Todos os convidados pareciam igualmente felizes. Não era muito frequente haver um acontecimento tão grandioso para celebrar em Bath, e que envolvesse duas personalidades
tão ilustres como um marquês e a filha de um duque. Ouviam-se muitas conversas prazenteiras e risos em todas as divisões.
A marquesa de Hallmere, vestida de forma régia num vestido de cetim preto com plumas altas negras no cabelo, parecia tão feliz como os demais. Sorria com um contentamento
sentimental a todos que lhe davam os parabéns e limpava ocasionalmente uma lágrima de felicidade dos olhos com o lenço debruado a preto. Beijou o ar perto da face
de Freyja e segurou momentaneamente no rosto de Joshua entre as mãos antes de o beijar carinhosamente na face e de frisar, suficientemente alto para que quem estivesse
por perto conseguisse ouvi-la, de que o seu querido e falecido tio teria ficado orgulhoso dele naquela noite.
E depois foi procurar o duque de Bewcastle na sala de estar.
- Sinto-me grata e aliviada por ter considerado conveniente vir a Bath tão depressa, Vossa Senhoria - disse ela, estendendo-lhe a mão.
Ele agarrou-a e fez uma vénia sobre ela, embora não a levasse aos lábios.
- Minha senhora - disse ele.
- Lady Freyja conquistou instantaneamente a sociedade de Bath - disse ela. - Ela é uma jovem tão doce.
Sua senhoria inclinou a cabeça em resposta ao estranho elogio, com os olhos prateados inexpressivos e inescrutáveis.
- Só podemos esperar - prosseguiu - que ela seja tão feliz como merece.
- Sem dúvida, minha senhora - concordou ele com uma altivez gélida.
- E só podemos esperar - afirmou, encostando delicadamente o lenço a um dos olhos - que o Joshua não se tenha precipitado neste noivado simplesmente para pregar
uma partida.
As sobrancelhas ducais arquearam-se ligeiramente, mas não fez a pergunta pela qual ela estava claramente à espera na pausa que se seguiu às suas palavras.
- Ele é um rapaz encantador - disse ela com um grande suspiro. - É impossível não o adorar, apesar de todas as suas travessuras. Era dedicado às primas, especialmente
à Constance, a minha filha mais velha, a quem foi apresentado no Pump Room esta manhã.
O duque inclinou a cabeça de novo.
- Mas depois acobardou-se, nas palavras do falecido marquês de Hallmere, quando estava prestes a pedi-la em casamento há cinco anos - declarou - e fugiu para se
divertir no continente, embora não consiga imaginar por que motivo decidiu ir para lá em plena guerra. Tornou-se claro para mim após o falecimento do meu querido
marido que ele ainda se sentia demasiado envergonhado para regressar a casa, e por esse motivo, vim até cá. Tornou-se óbvio passado pouco tempo que o afeto entre
o Joshua e a Constance continuava a ser bem real. Mas os pais podem ser muito insensatos, Vossa Senhoria, quando não querem nada mais do que a felicidade dos seus
filhos e insisti de forma imprudente no casamento entre ambos em vez de permitir que a corte seguisse o seu caminho natural. Desejava de todo o coração que o noivado
entre ambos fosse anunciado durante o baile da semana passada nos Upper Rooms, e fiquei com a nítida impressão de que também era esse o desejo de Joshua. Mas depois
ele saiu para valsar com Lady Freyja com aquela expressão travessa e maliciosa no rosto que conheço tão bem e no final da dança pediu a Mr. King que anunciasse o
seu noivado com ela.
O duque de Bewcastle agarrou no cabo do seu lornhão e ergueu-o quase até ao olho.
A marquesa soltou um risinho e depois deixou a expressão feliz desvanecer-se. Parecia frágil e abatida.
- Receio - disse ela - que o meu sobrinho se tenha aproveitado de uma boa senhora que talvez tenha atingido uma idade na qual, e estou certa de que me irá perdoar
por falar de forma tão franca, Vossa Senhoria, está tão ansiosa por uma proposta de casamento que é incapaz de distinguir entre uma proposta séria e uma que foi
feita meramente por motivos de conveniência até ele poder desaparecer novamente numa das suas escapadas estouvadas.
Por um momento, a marquesa deu por si a passar pela experiência desconcertante de ser observada através das lentes do lornhão do duque. Passado um pouco ele deixou
cair a fita do lornhão.
- Devo dar-lhe os parabéns, minha senhora - disse ele friamente -, por ter escapado por um triz.
- Como? - Era óbvio que ela não sabia do que ele estava a falar. Refugiou-se atrás do lenço e depois sorriu docemente a um convidado que a cumprimentou ao passar.
- Seria doloroso para si, minha senhora - disse ele - ver o marquês de Hallmere casado com a sua filha quando suspeita que ele foi de algum modo responsável pela
morte do seu filho.
Ela fitou-o atentamente. - Oh, peço-lhe que me perdoe - disse ela, com os olhos arregalados e chocados. - Foi essa a impressão que dei na carta que senti a obrigação
de lhe escrever, Vossa Senhoria? Foi um acidente. O Joshua estava com o Albert antes de aquilo acontecer. Foi a última pessoa a vê-lo com vida. Contudo, nunca existiu
qualquer suspeita de que ele tenha causado o acidente ou testemunhado o que aconteceu.
- Ah - disse Sua Senhoria. - Mas continuaria a existir a verdade dolorosa de que o homem casado com a sua filha tivesse gerado uma criança com a precetora dela.
- Oh, não foi a precetora da Constance - disse ela. - A Constance já tinha concluído a sua educação. Miss Jewell era a precetora das minhas outras filhas, Vossa
Senhoria. Foi um incidente infeliz. - Ela sorriu afetadamente e olhou para ele com uma expressão maliciosa. - Mas os jovens serão sempre jovens, como decerto saberá,
Vossa Senhoria. Tem vários irmãos mais novos, não é assim?
Os frios olhos prateados observaram-na em silêncio.
- Bom. - Ela levou o lenço aos olhos mais uma vez. - Achei que era meu dever avisá-lo, Vossa Senhoria, de que a sua irmã pode estar a correr o perigo de ficar com
o coração partido. O Joshua é tão encantador como cruel. Não sei porque é que gosto tanto dele, mas essa é a verdade. Lady Freyja é uma senhora tão doce. Odiaria
vê-la sofrer.
Sua Senhoria empunhara o cabo do lornhão de novo e observava-a com sobrancelhas altivamente erguidas e olhos gelados.
- Oh. - Ela sorriu profusamente e acenou a alguém do outro lado da sala. - Queira desculpar-me, Vossa Senhoria. Estão a chamar-me.
O duque dobrou-se ligeiramente numa vénia e ela afastou-se apressadamente.
- O que foi, querida? - perguntou Joshua. - Não consegue manter as mãos afastadas de mim, pois não?
Ele estava a acender as velas de um castiçal na prateleira da lareira no pequeno quarto no piso inferior que a avó utilizava como escritório e onde escrevia as suas
cartas. Havia uma secretária e uma cadeira, assim como algumas estantes e dois cadeirões iguais com braços e pernas dourados.
- Ora! - exclamou ela com um desdém altivo.
Ele virou-se para lhe dirigir um sorriso. Ela dissera-lhe que precisava de trocar umas palavras em privado e ele levara-a para ali. Freyja estava a usar uma túnica
prateada transparente por cima de um vestido azul-claro decotado com uma profusão de fios de prata e adornos, e estava deslumbrante. O cabelo dela também estava
entrelaçado com fios de prata.
- Eu é que sou bem capaz de não conseguir manter as mãos afastadas de si - disse-lhe ele, sentando-se na ponta da secretária com um pé apoiado no chão e a outra
perna a baloiçar. - A sua modista deve ter ficado sem tecido quando chegou a esse corpete. E o resultado foi magnífico, devo acrescentar.
- Esse tipo de comentários lascivos não lhe dão qualquer vantagem - disse ela severamente. - Imagino que não se atreveria a falar dessa forma a qualquer outra senhora.
- É claro que não - concordou ele. - Nunca gostei de ser esbofeteado. Repare que me coloquei a meia sala de distância antes de falar desta forma consigo. Gosto do
meu nariz com a forma que tem agora.
- Metemo-nos numa grande embrulhada - afirmou ela.
- Sem dúvida - concordou ele. - Não sei porquê, mas imaginei que Mr. King ia anunciar o nosso noivado, todos iam sorrir, acenar com a cabeça e declarar que era uma
notícia muito agradável e depois tudo voltaria mais ou menos ao habitual até podermos seguir com as nossas vidas após um intervalo decente. Não antecipei esta festa
nem a dimensão da felicidade da minha avó.
- E eu não previ a vinda do Wulf a Bath - disse ela, franzindo o sobrolho. - Só veio complicar esta história de forma horrível e embaraçosa.
- Ele tentou persuadi-la a pôr um fim ao noivado? - perguntou ele. - Tenho tido a nítida impressão de que ele não me vê com bons olhos. - Joshua perguntou-se se
o irmão lhe mostrara a carta da tia ou lhe dissera algumas das coisas incriminatórias que parecia ter incluído na carta.
Ela abanou a cabeça. - O Wulf não faria isso - disse ela. - Ele não dá ordens aos irmãos e irmãs. Embora já tenha pensado muitas vezes que é extremamente eficaz
em manobrar-nos, apesar da nossa aparente livre vontade.
- Nesse caso, talvez - disse ele, sorrindo-lhe - o deixe manobrá-la a livrar-se de mim. Seria a resposta perfeita para o nosso dilema, não acha? Só preciso que me
avise com alguma antecedência se isso acontecer antes de a minha tia deixar Bath para que eu consiga pôr-me em fuga antes de dar por mim noivo de outra pessoa.
- Eu declarei categoricamente - disse ela - que o adoro e que o senhor me adora a mim. Prometi-lhe que seríamos felizes.
Ele lançou a cabeça para trás e riu-se, sem se conter.
- Podia tentar franzir menos o sobrolho - disse ele. - Sinto-me tentado a acreditar que não está a falar a sério.
- Será que tudo é uma piada para si? - perguntou ela, aproximando-se dele. - Nunca menti ao Wulf antes. Sempre desprezei mentiras.
Ele estendeu o braço, agarrou uma das mãos dela e ajustou a sua posição de forma a ficar completamente sentado na secretária.
- Neste momento - disse ele -, estou a sentir algo semelhante à adoração.
- Ele quer que nos acompanhe na viagem de regresso a Lindsey Hall nos próximos dias - declarou ela - para ser apresentado ao resto da minha família e aos nossos
vizinhos. Para que o nosso noivado possa ser celebrado lá. Para que o nosso casamento possa ser planeado.
- Ah - disse ele, pegando na outra mão dela. - Metemo-nos realmente numa bela embrulhada.
- O senhor não pode concordar com isso - disse ela, fitando-o de nariz no ar, altiva e furiosa. - Não nos vai acompanhar. Vai dar uma desculpa qualquer a respeito
de um outro compromisso e, depois de ter partido, conto a verdade ao Wulf.
- Oh, querida - disse ele. - Dificultei-lhe mesmo a vida.
- Isso é verdade - disse ela. - Mas eu concordei com o seu plano maluco e, no geral, não estou arrependida. A semana que passou tem sido bem menos entediante do
que teria sido se não estivéssemos noivos um do outro. Na verdade, tem sido bastante agradável.
- Para mim também. - Ele sorriu-lhe.
Ela abriu a boca e preparou-se para dizer outra coisa, mas não disse nada e limitou-se a olhá-lo nos olhos. Foi um momento de silêncio constrangedor e inesperado
no qual os dois se aperceberam ao mesmo tempo de que estavam sozinhos numa sala pequena e íntima iluminada apenas pela luz bruxuleante de três velas.
Ele estava muito consciente do peito nu e sedutor dela, da linha entre os seios generosamente arredondados, da curva graciosa do pescoço, do rosto ousado e estranhamente
atraente e da massa brilhante do cabelo loiro. Sentiu a temperatura a subir, a respiração a acelerar e a zona à volta das virilhas tensa.
Joshua puxou-a para a frente até ela ficar entre as suas pernas e juntou os braços dela atrás da sua cintura. Segurou-lhe o rosto nas mãos, deslizou levemente os
polegares sobre as sobrancelhas escuras dela e depois sobre o resto da face para se deter nos lábios.
Passou a língua pelos seus próprios lábios ao mesmo tempo que baixava a cabeça, e depois fez o mesmo por cima dos lábios dela. Eram macios, quentes e não ofereceram
qualquer resistência. Puxou para baixo o lábio inferior com o polegar, passou a língua para a frente e para trás, por cima da carne macia do interior, e depois,
quando ela abriu a boca com um som baixo e aprovador, beijou-a completamente, enfiando a língua dentro da boca dela.
O desejo explodiu dentro dele como o calor de uma fornalha. Passou um braço à volta dos ombros dela e o outro à volta da cintura para a aproximar mais de si e entregou-se
a uma sensação pura de luxúria.
- O que estamos a fazer? - perguntou ela subitamente pouco depois, afastando a cabeça e fitando-o furiosamente com olhos brilhantes e faces avermelhadas.
- A beijar-nos? - sugeriu ele, esfregando o nariz contra o dela e sorrindo-lhe. - Afinal, acabámos de concordar que foi uma semana agradável, não é assim? Porque
não torná-la ainda mais agradável?
- Talvez - disse ela, com as mãos nos ombros dele como se estivesse prestes a empurrá-lo - precise de ser relembrado de que não estamos realmente noivos um do outro.
- Mas esta é a nossa festa de noivado - disse ele - e afirmou ao seu irmão que nos adoramos e vamos viver felizes para todo o sempre. A senhora nunca mente ao seu
irmão.
Devia ter mais cuidado, pensou ele, ou ainda ia defender uma coisa que depois não ia ser fácil de contrariar.
- Eu não beijo todos os desconhecidos bem-parecidos com que me cruzo - retorquiu ela.
- Só aqueles dos quais fica temporariamente noiva? - Ele sorriu e juntou os dois braços à volta da cintura dela. Era muito estreita, num delicioso contraste com
o peito e ancas.
Ela olhou-o fixamente. - Prometa-me que não se deixará persuadir a ir para Lindsey Hall - disse ela. - Isto precisa de acabar agora, o mais depressa possível depois
desta noite.
- Tem medo - perguntou ele suavemente, a esfregar o nariz no dela de novo e a incitar os lábios dela com os dele - de não conseguir resistir ao meu corpo muito mais
tempo?
Ela fez um estalido de desprezo com a língua. - Nunca conheci um homem tão presunçoso na minha vida - afirmou.
- Tenho um medo terrível - continuou ele - de não ser capaz de resistir ao seu.
Ele falava a sério. Suspeitava que ter Lady Freyja Bedwyn na cama seria uma experiência sensual única na vida. Infelizmente, nunca saberia com toda a certeza se
isso seria verdade. Ela era uma senhora, uma aristocrata. Estava-lhe interdita. Mas um noivado, ainda que fosse um noivado falso, criava uma tentação enorme. A ela
também, aparentemente. Apesar das suas palavras, não fazia qualquer esforço para se afastar dele.
- Podia começar o banquete aqui - disse ele, mordiscando-lhe os lábios - e depois ia descendo até aos dedos dos pés. Os dedos são uma parte maravilhosamente erótica
da nossa anatomia. Sabia disso?
- Não sabia - disse ela firmemente, afastando a cabeça para trás alguns centímetros para o fuzilar com os olhos. - E esta é uma conversa mais do que imprópria. Está
a rir-se de mim. Os seus olhos traem-no sempre.
- A sério, querida? - Ele baixou a cabeça para encostar o nariz ao pescoço dela, onde este se unia ao ombro. Ela arqueou o ombro e deixou cair a cabeça para trás.
- E também lhe dizem que posso nunca chegar aos dedos dos pés? Posso ficar distraído por uma parte bem mais erótica.
Ele ouviu o som sibilante da respiração dela. Aquele podia ser o momento certo para proteger o nariz de adquirir uma curva própria, mas quando ergueu a cabeça viu
que os lábios dela estavam afastados e as pálpebras muito pesadas. Não parecia estar a pensar em dar-lhe um murro.
- Não devíamos estar aqui - disse ela. - Devíamos estar com os convidados da sua avó. Eles vão começar a perguntar onde é que estamos.
- Vão pensar que reservámos alguns momentos para nós os dois - disse-lhe ele. - Vão ficar encantados.
Ela lançou a cabeça para a frente naquele momento, fechando os olhos enquanto se aproximava, e beijou-o furiosamente nos lábios, abrindo a sua boca e invadindo a
dele com a língua.
Ela tinha os braços à volta do pescoço dele e ele tinha as duas mãos abertas sobre as nádegas dela quando a porta se abriu.
- Ah - disse a voz fria e bastante lânguida do duque de Bewcastle quando Joshua abriu os olhos, ergueu a cabeça e subiu as mãos para uma posição mais decente na
cintura dela -, aqui estão os dois.
Ele entrou na divisão e fechou a porta silenciosamente atrás de si enquanto Lady Freyja se voltava num salto, enrubescida e ligeiramente descomposta.
- Nunca bates à porta, Wulf? - inquiriu ela altivamente.
Ele ergueu as sobrancelhas e pareceu levemente surpreendido. - Não - disse ele, depois de fazer uma pausa para pensar na pergunta dela. - Um criado conduziu-me até
aqui.
Freyja sentia-se horrivelmente embaraçada, em parte porque se lançara com uma intenção lasciva sobre o marquês e em parte porque Wulf tinha entrado na sala, apanhando-a.
Só depois de o marquês deslocar as mãos é que ela se apercebeu de onde tinham estado. E é claro que acontecera bem à vista de Wulf. Ela estava de costas para a porta.
Olhou para baixo apressadamente, mas ficou aliviada por ver que o corpete decotado do vestido ainda estava a cobrir tudo aquilo que fora feito para cobrir. Agora,
pensou de mau humor, ia parecer duplamente patética dali a alguns dias quando aquela farsa chegasse ao fim.
Aparentemente, Wulfric não tinha vindo até ali para a arrastar pelos cabelos de volta para a festa. Sentou-se num dos cadeirões com pernas douradas, pousou os cotovelos
nos braços e uniu os dedos, uma pose característica quando tinha algo importante a dizer.
- Senta-te, Freyja - disse ele, indicando o outro cadeirão, antes de voltar a unir as pontas dos dedos. - Fui informado de que havia muito mais em jogo durante aquele
famoso baile nos Upper Rooms do que parecia.
Freyja sentou-se e sentiu o marquês a posicionar-se atrás de si junto a um dos cantos do seu cadeirão, e a pousar uma mão nas costas dele. Naquele momento, não teve
dúvidas de que Wulfric já sabia de tudo.
- Aparentemente - prosseguiu ele - apesar de a maior parte dos convidados o ignorar por completo, havia uma corrida a decorrer onde o vencedor iria anunciar um noivado
com um cavalheiro em particular. Estou correto, Hallmere?
Era previsível que a voz do marquês parecesse divertida quando respondeu.
- Não exatamente - disse ele -, embora, segundo a minha prima Constance, a marquesa estivesse com esperanças de fazer avançar de tal forma a nossa aparente corte
um ao outro que um anúncio formal desse tipo não fosse necessário. Preferi defender-me com uma ofensiva.
Wulfric apontou-lhe o tipo de olhar arguto e glacial que fazia com que a maior parte das pessoas normais se encolhesse, na vã esperança de desaparecer. Freyja não
olhou para cima para ver se o marquês se incluía nesse grupo. Devia estar a sentir um enorme alívio. A pior parte de pôr um fim naquele embuste, a parte de contar
a verdade a Wulf, podia ser evitada. Já devia ter previsto que ele ia descobrir a verdade pelos seus próprios meios.
- Parto do princípio que este noivado irá terminar assim que a marquesa de Hallmere e a filha regressarem a casa? - perguntou Wulfric.
- Com uma gratidão sincera a Lady Freyja por me salvar de uma pena perpétua e um pedido de desculpas por qualquer inconveniência que isto lhe possa ter trazido -
concordou o marquês.
- Não foi inconveniente, Wulf - acrescentou Freyja com firmeza. - Na verdade, concordei de boa vontade com o plano. E o tédio da vida em Bath foi bastante atenuado
na semana que passou.
- Tempo durante o qual levaste a cabo excursões às colinas e região rural envolvente a todas as horas do dia, sozinha com um cavalheiro que não é o teu noivo - disse
Wulfric. - E andaste a abraçá-lo.
- Isso foi só esta noite - disse ela. - E numa outra ocasião - acrescentou, por uma questão de sinceridade, agora que as mentiras tinham sido postas de parte. -
Não vais ser antiquado em relação a isto, pois não, Wulf? Tenho vinte e cinco anos. Não preciso de estar sempre rodeada de acompanhantes e guardiões como a pobre
Morgan.
Ele transferiu o seu olhar inescrutável para o marquês.
- A previsão da sua tia, que me foi feita há nem sequer uma hora, revelar-se-á perfeitamente exata quando abandonar a minha irmã na semana que vem - disse ele. -
Ela ficará encantada. Lady Freyja Bedwyn ficará humilhada.
- Que disparate, Wulf - disse ela, irritada.
Mas ele não olhou para ela. O seu olhar prateado estava fixo no marquês, que soltou uma pequena risada.
- Nenhuma dessas previsões é do meu agrado - disse ele. - O que sugere, Bewcastle? Que eu me case com Lady Freyja? Duvido que ela me aceite como marido.
- Isso devia ser uma decisão dela, pelo menos publicamente - disse Wulfric. - Não concorda?
Freyja pôs-se de pé num salto. - Que disparate - disse ela de novo. - Concordei com este plano porque era divertido. Não o fiz para encurralar o marquês de Hallmere
a casar-se comigo. Não o quero para marido nem quero marido nenhum, na verdade.
Os olhos dele estavam a rir-se quando Freyja passou ao lado dele com passadas largas, na direção da secretária. Sentou-se na cadeira do móvel, o mais longe dos dois
homens que conseguiu ficar. Que situação estúpida.
- Talvez - disse o marquês - possamos representar outra cena no Pump Room daqui a alguns dias. Ouviu falar da primeira, Bewcastle? Receio que Lady Freyja não tenha
desempenhado um bom papel nessa ocasião. Na próxima, posso fazer com que ela ganhe a simpatia de todos quando me der um soco no nariz e me mandar para o inferno.
Todos lhe irão dar os parabéns por se ver livre de forma tão pública de um noivado com um patife.
Freyja conseguiu ver que Wulfric, que fitava o marquês pensativamente, não achara as palavras dele engraçadas.
- No dia depois de amanhã, Hallmere - declarou ele - irá acompanhar Lady Freyja e eu próprio a Lindsey Hall, onde travará formalmente conhecimento com a nossa família
e vizinhos. O vosso noivado será devidamente anunciado e celebrado. Se, pelo Natal ou na primavera, ela tiver decidido que afinal não deseja unir-se em matrimónio
consigo, o anúncio necessário será realizado, por mim. A decisão dela será reprovada, é claro, isso não pode ser evitado agora, mas não terão pena dela.
- Creio que - disse o marquês, voltando-se para olhar para ela - Lady Freyja não quer que eu vá para Lindsey Hall.
Ela apertou os lábios. Quantos minutos tinham passado desde que afirmara ao marquês que Wulf nunca dava ordens aos irmãos e irmãs? Aos seus ouvidos, aquilo parecia-lhe
um comando ducal bastante firme.
- Lady Freyja vai ficar feliz por ter uma companhia na próxima semana ou quinzena - disse Wulfric. - Os nossos irmãos e respetivas mulheres vão viajar para Lindsey
Hall, pois foram convidados para estarem presentes nas celebrações do batismo do novo neto do nosso vizinho, o duque de Redfield.
Freyja ficou imóvel na cadeira. Celebrações do batismo do filho de Kit? E agora não tinha outra alternativa senão voltar a casa, com ou sem o marquês de Hallmere?
Para rir e sorrir a todos e fingir estar feliz por Kit, pela viscondessa e pelo conde e condessa?
O marquês olhou para ela, as mãos unidas atrás das costas. Parecia mais sério do que o habitual, quase severo, na realidade.
- Se for Lady Freyja quem irá decidir se e quando o nosso noivado irá terminar - disse ele -, então será ela quem irá decidir se eu devo ir para Lindsey Hall ou
não.
Ela devia libertá-lo do compromisso ali e agora. Na verdade, devia marchar até à festa naquele preciso momento e fazer um anúncio público do final do noivado de
ambos. Era uma farsa ridícula desde o início. Ao mesmo tempo, o marquês podia fazer um anúncio público de que não se iria casar com a prima Constance. Isso colocaria
um fim a toda aquela estúpida embrulhada.
Com a humilhação patética do rompimento de um noivado atrás de si, pois as notícias iam chegar inevitavelmente a casa mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais
cedo do que tarde, ela teria de estar presente na festa do batismo do bebé de Kit e sorrir até sentir o rosto permanentemente deformado.
- É melhor vir por uma semana ou duas, nesse caso - disse ela um tanto ou quanto indelicadamente. - Arranjaremos forma de discutir no final. Não deve ser difícil
para os dois.
Wulfric pôs-se pé. - Creio que - disse com uma altivez distante - estão a ignorar os convidados de Lady Potford há demasiado tempo.
Ele caminhou tranquilamente até à porta e saiu da divisão sem um único olhar para trás.
O marquês olhou para Freyja.
- Santo Deus - declarou.
- Maldição a triplicar - disse ela.
Ele sorriu abertamente e depois, de forma bastante previsível, riu-se.
- Pelo menos sobrevivemos para nos podermos beijar de novo - declarou, agitando as sobrancelhas e oferecendo-lhe um braço.
- Só por cima do meu cadáver - assegurou-lhe ela, erguendo o nariz no ar e passando por ele a caminho da porta.
- Um lugar-comum muito pouco digno de si, querida - disse ele. - Mas espero sinceramente que não fale a sério. Seria incapaz de desfrutar de um beijo nessas condições,
tal como a senhora, é claro, e odiava que isso acontecesse aos dois.
CAPÍTULO 11
Dois dias depois, Joshua cavalgava na estrada do rei no meio da comitiva impressionante e extensa de cocheiros de libré, lacaios e cavaleiros que acompanhavam a
carruagem brasonada de Sua Senhoria e respetivo coche de bagagem até Lindsey Hall no Hampshire. Quem poderia prever a bizarra sequência de acontecimentos que o levara
até aquele momento? Não conseguia decidir se devia estar a tremer cheio de terror ou a rir às gargalhadas.
Contudo, não era um homem muito dado ao terror. E era extraordinariamente divertido observar as pessoas em cada uma das aldeias por que passavam a abrir a boca de
espanto, a desatar em vénias ou a levar a mão à testa com deferência, e os condutores de qualquer veículo por que passavam a desviar-se respeitosamente para um dos
lados da estrada até o cortejo passar. Ele também podia fazer o mesmo se quisesse. Era o marquês de Hallmere, no fim de contas. O pensamento agradou-lhe bastante.
Gostava de poder partilhar a piada com Lady Freyja. Mas ela viajava dentro da carruagem principal com o duque, contra a sua vontade, suspeitou ele. Além disso, era
possível que ela estivesse tão acostumada àquela forma de viajar que não a achasse minimamente engraçada. Perguntou-se sobre que estariam a conversar. Provavelmente
nada, além do tempo ou da paisagem do momento. Bewcastle não falava do noivado desde a noite da festa.
Joshua manteve a sua boa disposição habitual ao aproximar-se de Lindsey Hall. Era verdade que estava completamente encurralado na armadilha do matrimónio até Lady
Freyja decidir libertá-lo no momento certo. Estava completamente à sua mercê. Mas ela era uma mulher que agia sempre de forma justa, ainda que por vezes fosse dura.
Além disso, ela queria casar-se com ele tanto como ele se queria casar com ela. Entretanto, gostava dela. Ainda não se cansara da companhia dela. Muito pelo contrário.
Achava as conversas com ela, a sua perspicácia e engenho tão estimulantes como qualquer um dos seus amigos masculinos. E achava-a fogosamente atraente. Ia ter de
vigiar cautelosamente os seus passos nos próximos dias, semanas ou o tempo que contavam que ficasse no Hampshire.
Chegaram a Lindsey Hall a meio da tarde. Joshua seguiu a carruagem pelos portões e ao longo de uma avenida reta e ampla rodeada de ulmeiros. A casa depressa ficou
à vista no final da avenida. Não era medieval, da época de Jaime I, georgiana ou de qualquer outro estilo arquitetural único. Exibia uma mistura de muitos estilos
e era claramente uma mansão que estava na família há gerações, "melhorada" e acrescentada muitas vezes. O resultado era surpreendentemente imponente e aprazível.
A avenida ampla dividia-se perto da casa, rodeando um grande jardim circular com uma fonte de mármore no meio. Não havia tantas flores naquela altura do ano como
em julho, mas a água ainda não tinha sido desligada para o inverno. Erguia-se pelo menos a dez metros de altura antes de se derramar sobre a grande base como os
raios cintilantes de um chapéu de chuva.
Havia um rapaz sentado precariamente na borda da base, provavelmente a ficar molhado. Um homem alto, de constituição sólida com um semblante moreno e ameaçador e
um nariz grande e torto (o nariz Bedwyn?) estava de um dos lados da avenida perto do rapaz, com uma menina empoleirada nos ombros e agarrada ao cabelo. Uma senhora
esguia e bonita de cabelo castanho e uma outra ruiva com uma figura voluptuosa encontravam-se junto a ele. Todos se voltaram para observar a aproximação da carruagem.
As senhoras sorriram à sua passagem. A menina acenou. Todos olharam com curiosidade para Joshua.
Três outras pessoas vestidas com um traje de montar estavam a sair do pátio dos estábulos ao mesmo tempo que a carruagem deu a sua última volta em direção ao pátio
empedrado diante das grandes portas duplas da casa. Uma era uma belíssima jovem, esguia e graciosa, de cabelo escuro. Os outros dois eram homens, um alto, largo,
loiro e de sobrancelhas escuras e o outro moreno, magro e bem-parecido. Ambos tinham o nariz da família.
Estava prestes a conhecer os Bedwyn, percebeu Joshua. Perguntou-se como seria apresentado. Não discutira com Bewcastle se a família deveria ou não participar na
farsa que devia ser representada, a bem das aparências, até o noivado poder ser apropriadamente terminado, se é que havia uma forma apropriada de terminar um noivado.
Seguiu-se uma grande algazarra à medida que todos se juntaram no pátio, enquanto a porta da carruagem era aberta de par em par e os degraus colocados. O irmão grande
e loiro enfiou os braços dentro da carruagem e retirou Lady Freyja para fora sem o auxílio dos degraus. A seguir, ela abraçou as senhoras e a menina. Apertou as
mãos como um homem ao rapaz e aos irmãos. Entretanto, o duque desceu, acenou a todos e pareceu levemente surpreendido quando a senhora de cabelo castanho o abraçou.
Joshua desmontou o seu cavalo e entregou-o ao cuidado de um moço de estrebaria que chegara a correr dos estábulos.
Freyja aproximou-se dele com passadas largas depois de ter concluído a sua ronda de cumprimentos. O queixo dela estava orgulhosamente erguido. Os olhos possuíam
um brilho bélico. Talvez não fosse um momento pelo qual aguardara com grande alegria. Ela pegou-lhe numa das mãos com firmeza.
- Apresento-vos a todos o marquês de Hallmere, o Joshua - disse ela, erguendo a voz de modo altivo. - O meu noivo. Ainda não existe nenhuma data de casamento marcada.
Tudo leva a crer que será durante o próximo ano. Talvez no próximo verão.
Houve um coro de vozes, mas ela ergueu uma das mãos e este acalmou.
- Deixem-me fazer as apresentações primeiro - disse ela, e em seguida indicou o nome de todos os desconhecidos em seu redor. Lady Morgan Bedwyn, a belíssima jovem
morena, fez-lhe uma mesura e observou-o com olhos francos e escuros. Lord Alleyne, o jovem de cabelo escuro, parecia divertido. O gigante de cabelo loiro era Lord
Rannulf Bedwyn, e a ruiva deslumbrante a sua mulher, Judith. A bonita senhora de cabelo castanho era Eve, Lady Aidan Bedwyn. O marido era o homem moreno e severo
que parecia ter passado um ano ou dez no exército. As crianças, Davy e Becky, eram deste último casal.
- Então foi por isso que partiste à pressa para Bath sem dizer palavra a ninguém exatamente na altura em que estávamos à espera da chegada do Aidan, da Eve, do Rannulf
e da Judith - disse Lady Morgan ao irmão mais velho. - Soubeste do noivado e foste ver o que se passava com os teus próprios olhos. Porque será que o Wulf fica a
saber de todas as histórias interessantes e nós não?
Lord Rannulf estava a apertar a mão de Joshua com uma mão calorosa e firme.
- Isto foi repentino - disse ele, sorrindo. - Mas nós, os Bedwyn, temos uma história recente de noivados e casamentos repentinos. Porque é que deveria ser diferente
com a Free?
- Hallmere? - Lord Aidan Bedwyn, com um semblante moreno e granítico, apertou-lhe a mão com um aceno da cabeça, mas sem qualquer sorriso.
A mulher dele estava a abraçar novamente Lady Freyja, de lágrimas nos olhos.
- Estou tão feliz por ti, Freyja - disse ela. - Eu sabia que isto tinha de acontecer em breve.
O rapazinho tinha-se esgueirado entre Joshua e Freyja e estava a puxar o vestido dela.
- Tia Freyja - disse ele, e deu mais um puxão. - Tia Freyja, trouxe o meu conjunto de críquete comigo.
- Seu malandrete. - De repente, Lord Aidan pareceu quase humano quando se baixou para erguer a criança com um movimento rápido e a depositar em cima dos próprios
ombros, às cavalitas. - Deixa a tua tia primeiro pousar os pés em casa antes de a importunares para jogar contigo. Além disso, não estamos na época do críquete.
Arranjaremos uma outra atividade para fazer amanhã.
- Mas o críquete será a primeira coisa a fazer, independentemente do facto de estar ou não na época - disse Lady Freyja, a sorrir para o rapazinho e, surpreendentemente,
a piscar-lhe o olho. - Quero-te na minha equipa, Davy. Vou fazer logo seis pontos na minha primeira vez a bater.
Joshua olhou para ela com algum interesse. Ela jogava críquete? Já devia ter percebido que sim.
- Também posso jogar? - perguntou ele. - Sou famoso pelos meus lançamentos e sou conhecido por impedir que a outra equipa faça uma jogada de seis pontos durante
um turno inteiro ou até mesmo uma de quatro pontos.
- Veremos! - exclamou ela.
O rapazinho estava a rir-se, deliciado, e Lord Aidan parecia completamente humano ao sorrir abertamente.
- Acho que - disse ele - qualquer época é boa para o críquete se os Bedwyn assim o decidirem.
- Talvez - disse o duque de Bewcastle, sem erguer minimamente a voz, embora todos os ruidosos Bedwyn tivessem feito silêncio para o ouvir - seja melhor entrarmos
em casa e nos reunirmos para tomar chá na sala de estar daqui a meia hora.
- O senhor falou - disse Lord Alleyne com uma risada abafada depois de Bewcastle ter tomado a dianteira rumo à casa. Ele estendeu um braço por cima dos ombros de
Lady Freyja e abraçou-a contra si. - Estou feliz por ti, Free, se tu estiveres feliz. E por si, Hallmere. É melhor seguirmos em fila lá para dentro como um bando
de cordeirinhos. - E avançou com passos largos à frente deles.
- Ufa! - exclamou Joshua, sorrindo a Freyja e oferecendo-lhe o braço.
- Decidi - disse ela, fitando-o altivamente enquanto aceitava o braço dele - que te vou tratar por Josh. Recuso-me a chamar-te "meu senhor", não quero tratar-te
por Hallmere e Joshua é demasiado bíblico. Podes tratar-me por Freyja.
- Ou por Free, tal como os teus irmãos? - sugeriu ele.
- Ou por Free - concordou ela. - Mas só enquanto estivermos noivos um do outro. Até ao Natal, o mais tardar.
- Nesse caso, vou usar e abusar de Free como se fosse meu por direito até essa altura - disse ele.
Ela lançou-lhe um olhar de esguelha, mostrando que não lhe tinha passado despercebido o duplo sentido.
Subiram as escadas e entraram na casa. Joshua entrou num impressionante átrio medieval rematado com um teto de traves de carvalho, uma lareira gigantesca suficientemente
grande para assar um boi, paredes caiadas de branco adornadas com brasões, estandartes e armas, uma galeria de menestréis por cima de um painel de madeira pormenorizadamente
trabalhada, e uma mesa de carvalho colossal que preenchia grande parte do espaço útil.
Parecia o cenário perfeito para um banquete e uma orgia.
Freyja descobriu que o batismo seria dois dias depois do seu regresso a casa, e previa-se um grande acontecimento. Depois do serviço religioso na igreja ao final
da manhã, todos os convidados seguiriam para Alvesley Park, casa do conde de Redfield, e também de Kit, o visconde Ravensberg, para almoçar e para uma festa que
provavelmente duraria até à noite.
Rannulf e Judith tinham vindo de Grandmaison, no Leicestershire, onde viviam com a avó materna dos Bedwyn, atualmente de saúde frágil, de quem Ralf era o herdeiro.
Ele e Kit tinham sido sempre amigos muito próximos. E Aidan, Eve e as crianças tinham vindo porque não estavam longe do Oxfordshire e porque, segundo Aidan, estivera
ausente nas guerras durante tantos anos que perdera uma década ou mais de acontecimentos familiares e dos vizinhos.
Ia ser uma prova difícil. Freyja começou a temer esse dia, mesmo com a segurança adicional de um noivo ao seu lado. Era estúpido ficar tão transtornada com uma paixão
antiga. Tinham passado quatro anos desde que se apaixonara desesperadamente por Kit Butler, paixão que durara precisamente um mês. É claro que tinha havido aquela
história aborrecida no ano anterior e todo aquele grande embaraço. Tinha-se comportado muito mal. Fizera figura de idiota. Acabara praticamente a implorar a Kit
para abdicar de Lauren para se casar com ela e depois a cravar o punho no maxilar do pobre Ralf, talvez porque o de Kit não estava disponível naquele preciso momento.
Pensaria no dia seguinte quando o dia seguinte chegasse, decidiu na manhã a seguir à sua chegada. E pensaria no problema do Josh depois de o dia seguinte terminar.
Ele estava em dívida para com ela, apesar de todas as caminhadas e passeios a cavalo em Bath. No final de contas, ele também tinha desfrutado desses momentos. Por
isso, devia-lhe a sua companhia no dia seguinte. Depois disso, encontraria uma forma de o envolver numa discussão feia e muito pública e romperia o noivado. Não
tencionava esperar até ao Natal ou mais tarde, como Wulfric sugeriu. Seria injusto. E podia achar mais difícil fazê-lo se deixasse passar mais tempo. Ele era assustadoramente
atraente. Além de ser um homem incrivelmente bonito, é claro, facto que não passara despercebido entre os membros da sua família.
- Estiveste em Bath algumas semanas, Freyja - dissera Morgan na noite anterior quando todas as mulheres se tinham reunido momentaneamente no quarto de vestir de
Freyja - e vieste para casa com um deus grego. Aquilo que eu vou descobrir quando for para Londres na primavera para a minha apresentação à sociedade e consequente
exposição ao mercado londrino do matrimónio é um bando de imberbes desastrados e cheios de borbulhas. É uma grande provocação.
Judith e Eve tinham-se rido às gargalhadas.
- Mas vais esperar até que o teu príncipe chegue, Morgan - dissera Eve. - E ele vai chegar, tal como fez o da Freyja.
- Por coincidência, o príncipe da Freyja é absolutamente deslumbrante - acrescentara Judith, com a mão direita colocada teatralmente sobre o coração e a agitar furiosamente
as pestanas. - Aquele cabelo loiro reluzente. Céus!
- E aqueles olhos azuis sorridentes - acrescentara Morgan num lamento. - Como é que eu irei encontrar um homem que esteja à altura dele?
- Mas o príncipe particular de cada uma parece sempre mais esplêndido do que qualquer homem normal, Morgan, ou mesmo qualquer outro homem extraordinário - disse
Eve carinhosamente. - Eu vejo o Aidan dessa forma e estou certa de que a Judith também vê o Rannulf assim.
Freyja olhara para ambas, ligeiramente invejosa.
Naquele dia decidiu que não ia sentir quaisquer emoções negativas, depois de sair cedo da cama e de olhar pela janela para reparar que, uma vez afastadas as nuvens
altas a meio da manhã, podia vir a ser um dia soalheiro. O ar que entrava pela sua janela aberta era fresco, mas não frio. Estava uma bela manhã para jogar críquete.
Estava um belo dia para todo o tipo de atividades ao ar livre.
Era maravilhoso estar longe do ambiente restritivo de Bath.
Todos se reuniram para um jogo de críquete depois do pequeno-almoço, exceto Wulfric, é claro, que desapareceu dentro do seu escritório. Até Eve e Judith decidiram
jogar, embora Rannulf tentasse dissuadir Judith, dirigindo-lhe todo o tipo de olhares significativos à mesa, que ela ignorou.
Deus do Céu, pensou Freyja. Será que Judith estava grávida? Isso seria muito interessante se fosse verdade. Ainda não passara um mês desde o dia de casamento de
ambos. Seria que... Mas esse assunto não lhe dizia respeito.
Freyja e Joshua estavam em equipas diferentes, propositadamente. Ele estava determinado a eliminá-la do jogo; ela estava igualmente determinada a fazer uma jogada
de seis pontos às custas dele. Tinha Eve, Morgan, Rannulf e Davy na sua equipa. Joshua tinha Judith, Aidan, Alleyne e Becky na sua.
Felizmente, Rannulf era um jogador decente. Embora tenha sido benevolente com Judith e muito benevolente com Becky, deixando-a bater algumas bolas e marcar um total
de oito pontos enquanto todos os outros jogadores ficavam repentinamente desajeitados e incapazes de a expulsar do jogo, Aidan conseguiu uma jogada de seis pontos
e duas de quatro pontos às custas dele antes de Freyja o apanhar perto do limite do campo de jogo e Joshua aguentou-se durante um total de vinte pontos. Alleyne
foi expulso do jogo de forma vergonhosa na primeira bola que lhe foi arremessada. A bola deitou abaixo as três estacas verticais do jogo atrás de si enquanto Davy
explodia de contentamento.
A equipa de Freyja precisava de cinquenta e dois pontos para ganhar quando chegou a vez deles de bater. Rannulf fez um total de quinze pontos antes de uma das suas
bolas ser apanhada diretamente. Eve fez dezasseis pontos e Morgan onze pontos, depois de lançamentos muito brandos de Josh, que parecia bastante viril sem casaco
e colete e com as mangas da camisa enroladas junto aos cotovelos. Davy, depois de também receber lançamentos amigáveis, estava com nove pontos quando Morgan finalmente
saiu e Freyja entrou.
A primeira bola de Joshua veio bater a grande velocidade em baixo nos paus atrás de si, com uma rotação perversa de forma a que o rumo fosse quase impossível de
avaliar. Freyja não pôde fazer nada senão proteger de forma temerária as suas estacas e olhar furiosamente para o lançador sorridente.
- Não consegues fazer melhor do que isso? - berrou ela, a dobrar os punhos e a fazer alguns movimentos vistosos no ar com a pá.
Ele conseguia.
A bola seguinte girou de forma bizarra mesmo à frente dela, trazendo consigo uma chuva de erva e pó, e quase lhe arrancou os dentes da frente ao mesmo tempo que
passou com um silvo junto ao seu rosto.
- Não consegues fazer melhor do que isso? - berrou ele, enquanto a equipa dele assobiava e a de Freyja batia as mãos e lhe gritava palavras encorajadoras.
Ela acompanhou o percurso da bola seguinte centímetro a centímetro, viu-a como se estivesse a aproximar-se a metade da velocidade, avaliou a sua rotação com uma
mente clara e sem pressas, ajustou a pá, agarrou-a com força e bateu na bola com uma pancada convincente. Viu-a a voar a grande altura sobre o relvado num bonito
arco e a passar por cima da cabeça de Aidan, no limite do campo de jogo, a mais de um metro de altura. A seguir, desatou a correr por entre as estacas, com a pá
numa das mãos e as saias presas na outra, rindo-se enquanto corria, passando por um Davy exultante pelo caminho.
O jogo tinha sido ganho pela equipa de Freyja.
- Creio que - disse ela, quando deu por terminada a sua corrida, detendo-se não muito longe de Joshua, arquejante, com as mãos nas ancas e o cabelo num desalinho
à volta dos ombros, depois de ter retirado os ganchos que o prendiam - acabei de provar um ponto importante.
- Sem dúvida - disse ele, com uma expressão de desalento profundo contrariada pelos seus olhos sorridentes. - Ganhaste a nossa aposta, Free. É melhor pagar a pena.
E ali mesmo, à frente dos seus irmãos, irmã, cunhadas e das crianças, ele deu dois passos longos em frente, enfiou uma das mãos por entre o seu cabelo de forma a
agarrar-lhe a nuca, inclinou-lhe a cabeça para trás e beijou-a demoradamente nos lábios.
Ainda bem que tinha estado a correr, pensou Freyja, quando ele finalmente levantou a cabeça e ela reparou que se tornara o centro da atenção dos seus familiares
sorridentes. O esforço físico justificava as faces a escaldar. Teria sido demasiado humilhante ser vista a corar.
- Devo sofrer de perda de memória - disse ela. - Não me recordo de nenhuma aposta.
- Nunca mais serei capaz de erguer a cabeça junto dos meus companheiros de críquete - disse Joshua. - Devo confessar que o jogo foi ganho de forma bastante justa.
Não tencionava deixar-te bater uma bola minha.
- Eu sei. - Ela brindou-o com um sorriso radiante.
- O que vamos fazer a seguir? - Davy estava aos pulos de excitação e dirigiu-se a todos num berro estridente. - Disseste que íamos encontrar uma outra coisa ativa
para fazer, tio Aidan. Podemos ir andar a cavalo, jogar às escondidas, subir às árvores ou...
Aidan foi atrás dele e pendurou-o no ar pelos tornozelos.
- O que vamos fazer a seguir - disse ele, enquanto Davy guinchava, ria e exigia ser pousado no chão - é almoçar. E depois logo se verá. - Ele pousou o rapaz com
cuidado na relva e fez-lhe cócegas com a ponta da bota.
- Tio Aidan? - perguntou Joshua, enquanto caminhavam de volta para a casa, pegando na mão de Freyja e entrelaçando os seus dedos nos dela.
- A Becky e o Davy eram os filhos adotivos da Eve quando o Aidan a conheceu no início deste ano - explicou ela. - Os pais deles morreram e nenhum familiar estava
disposto a acolhê-los. A custódia legal de ambos foi concedida à Eve e ao Aidan recentemente. A Becky chama-lhes mamã e papá. O Davy chama-lhes tio e tia. A Eve
disse-me que têm o cuidado de não tentar ocupar o lugar dos pais deles ou de encorajar as crianças a esquecer os pais. Nunca consegui imaginar o Aidan com crianças.
Mas, tal como podes ver, ele gosta tanto daquelas duas crianças como se fosse o pai delas.
- Ele esteve no exército? - perguntou Joshua.
- Durante doze anos - disse ela. - Desde os dezoito anos até há alguns meses, depois de se ter casado com a Eve. - Ela olhou para as mãos dos dois. - Eu dei-te permissão
para pegar na minha mão, Josh, e de uma forma tão íntima?
Ele também olhou para as mãos dos dois e depois ergueu o olhar para o rosto dela antes de se rir.
- Não - respondeu. - Mas temos uma farsa a manter. Aparentemente, tu e o Bewcastle acordaram que o nosso noivado deve parecer real à vossa família. Estou simplesmente
a fazer a minha parte.
- Se acreditas - disse ela severamente - que vou ficar de braços cruzados enquanto me assedias em nome do realismo, posso dizer-te já que estás enganado.
- Ficar de braços cruzados? - Ele riu-se de novo. - Oh, espero que não. Não é nada divertido assediar uma estátua de mármore ou um peixe murcho. Sou levado a crer
que foste uma verdadeira maria-rapaz enquanto crescias.
- É claro que sim - disse ela.
- Ótimo. - Ele baixou a cabeça para junto da dela e, por um momento, Freyja pensou que ele ia beijá-la de novo. - Eu tenho um fraquinho por marias-rapazes.
A farsa dera-lhe carta-branca para galanteá-la de forma escandalosa e para ir mais além do que um simples galanteio por vezes.
Porque é que esse era um pensamento tão emocionante?
Os Bedwyn eram uma família animada que gostava de se divertir, concluíra Joshua antes de o dia chegar ao fim. As crianças não estavam escondidas num quarto da casa
enquanto os adultos encontravam alguma coisa aborrecida e apropriada com que se ocuparem. Depois do almoço, decidiram todos caminhar até ao lago que estava escondido
da vista no meio das árvores a este da casa. Lá havia muitos esconderijos, disse Rannulf (todos eles tinham convidado Joshua a tratá-los de forma informal pelo primeiro
nome) para um jogo de escondidas. Podia levar o baloiço, acrescentou Alleyne, e montá-lo numa das árvores. As árvores também estavam lá para ser trepadas, declarara
Freyja.
- E temos sempre a água - disse Aidan.
- Em setembro? - perguntou a sua mulher.
- Um setembro quente - disse Aidan, a olhar pela janela.
De facto, o sol brilhava.
- Se alguém for nadar - disse ela com firmeza -, vou ficar na margem a observar e sem mexer qualquer músculo.
- Eu também, Eve - disse Judith. - Podemos fazer turnos no baloiço para nos exercitarmos.
Foi uma tarde tão ativa e cansativa como prometido. Joshua suspeitava que as crianças eram meramente uma desculpa para os adultos se divertirem à grande e passarem
um belo bocado.
Alleyne e Joshua subiram a uma árvore alta e robusta não muito longe do pitoresco lago artificial e prenderam as cordas do baloiço a um ramo alto. As crianças baloiçaram
lá durante algum tempo, mas foi inevitável que se desse início a um jogo de escondidas que continuou durante uma hora ou mais até chegar a vez de Joshua ir à procura
e ter descoberto toda a gente exceto Freyja. Acabou por a descobrir empoleirada no alto de um velho carvalho, de costas contra o tronco, os pés encolhidos junto
a si e os braços à volta dos joelhos. Ele já a tinha procurado à volta daquela árvore meia dúzia de vezes.
- Ei! - gritou ele. - Isso é batota. Uma das regras era que nos tínhamos de manter em contacto com o chão.
- O tronco da árvore está em contacto com o chão - disse ela, olhando para baixo sem dar qualquer sinal de que pudesse ter medo das alturas. - E as minhas costas
estão em contacto com o tronco da árvore.
- Hum - disse ele. - Existe uma falha nessa lógica nalgum lado. Mas agora foste apanhada.
- Tens de me tocar primeiro - disse ela.
- Vais obrigar-me a ir até aí a cima? - perguntou ele, semicerrando os olhos.
- Sim. - Ela inclinou a cabeça para admirar o céu.
Eles admiraram-no juntos depois de ele ter trepado e lhe ter tocado no braço para a eliminar oficialmente do jogo. Uma série de pequenos farrapos brancos deslizava
lentamente num vasto fundo azul.
- O verão está quase a acabar - disse ela. - Bom, já terminou, mas está a arrastar-se para dentro do outono. Gostava que o inverno não estivesse à nossa frente.
- Mas podem-se fazer caminhadas e passeios a cavalo revigorantes no inverno disse ele. - E se nevar, existem corridas de trenós, lutas de bolas de neve, esqui e
bonecos de neve para construir.
- Nunca neva - disse ela com um suspiro.
Ele pôs-se de pé no ramo ligeiramente abaixo do nível do dela e fitou-a. Ela parecia uma criatura selvagem e melancólica do reino das fadas dos bosques.
- Vamos ter de continuar noivos, querida - disse ele. - E eu vou mostrar-te tantas formas interessantes de viver o inverno que vais desejar que o verão nunca mais
chegue.
Ela virou a cabeça e esboçou um sorriso.
- Não te preocupes - disse ela. - Vou decidir muito antes de o inverno chegar em força que pagaste a dívida que tens para comigo. O dia de amanhã será verdadeiramente
aborrecido.
- Amanhã? - disse ele e depois lembrou-se de que iam a uma festa de batismo do novo bebé de um vizinho. - O Redfield e a família são um grupo aborrecido?
- Estive prometida ao filho mais velho em tempos - disse ela. - A viscondessa Ravensberg devia ser eu. O primeiro filho, o primeiro herdeiro da próxima geração,
devia ser meu. Mas o Jerome morreu.
- Ah, sim - disse ele. - Peço desculpa, já sabia isso. Amáva-lo? - Ela dissera que não quando lhe falara do noivado na rocha branca no alto de Bath.
Pareceu ligeiramente desdenhosa. - Nós crescemos a contar com o casamento - declarou. - Não antipatizávamos um com o outro. Mas o amor não é um requisito para uniões
desse género.
No entanto, naquele dia estava a sentir-se abatida com aquela questão. O dia seguinte podia ser um tanto ou quanto difícil para ela. Ia ver outra mulher no lugar
que devia ter sido seu com uma criança que devia ter sido sua, se bem que com um pai diferente.
- Sabes nadar, Josh? - perguntou.
- É claro que sei nadar - respondeu. - Não te estás a preparar para propor uma corrida, pois não, Free? Se assim for, aviso-te já de uma coisa: eu cresci ao lado
do mar. Vou ganhar. Já prejudicaste bastante a minha autoestima, primeiro ao ganhar a nossa corrida a cavalo em Bath e depois ao bater uma das minhas melhores bolas
esta manhã durante a tua primeira série numa jogada de, nada mais, nada menos, que seis pontos.
- Até à outra margem e voltar - disse ela.
Ele olhou para baixo e viu que os homens e as crianças já estavam dentro da água. Agora que estava a prestar atenção, conseguia ouvir os gritos deles e o riso das
crianças. Eve e Judith estavam sentadas na margem como convinha a duas senhoras. Morgan estava no baloiço, impulsionando-se no alto quase de modo perigoso, continuando
a parecer muito bonita. A jovem ia ser acossada por futuros pretendentes quando fizesse a sua apresentação à sociedade na primavera seguinte, independentemente do
facto de ser filha de um duque.
- O que tencionas vestir? - perguntou ele.
- A minha combinação - disse ela. - Se achas que vais ficar demasiado embaraçado, podes regressar a casa e procurar um bom livro para ler.
- Embaraçado? - Ele começou a descer a árvore sem lhe oferecer ajuda. Isso podia ser provocação suficiente para um dos seus famosos socos no nariz. - Mal posso esperar.
Vou dar-te um avanço na nossa corrida, combinado? Vou contar lentamente até dez antes de ir atrás de ti.
Ele riu-se baixinho enquanto ela desatou a resmungar, irritada, e desceu atrás dele.
CAPÍTULO 12
O batismo do ilustre Andrew Jerome Christopher Butler foi de facto um acontecimento grandioso, reparou Freyja assim que os Bedwyn chegaram à igreja e foram conduzidos
aos seus lugares. A igreja estava repleta de vizinhos e familiares de Kit e da viscondessa. O primo desta, o jovem visconde Whitleaf, estava presente, assim como
o avô dela, o barão Galton. Depois, também lá estavam todos os seus ilustres familiares pelo segundo casamento da mãe: o duque e a duquesa de Portfrey, o duque e
a duquesa de Anburey, o marquês de Attingsborough, o conde e a condessa de Kilbourne, a condessa viúva e a sua filha viúva, Lady Muir.
Tanto espalhafato, pensou Freyja, por um bebé que estava absolutamente indiferente a tudo aquilo que se passava à sua volta em sua honra. Ele estava vestido de forma
magnífica num longo vestido de batismo rendado, uma herança de família, mas dormiu durante todo o serviço religioso, acordando apenas uma vez para soltar um vagido
de indignação quando a água batismal foi derramada por cima da sua cabeça. Voltou a adormecer passado pouco tempo, embalado nos braços de Kit.
Freyja tentou não prestar demasiada atenção ao grupo central, mas como podia evitar ver Kit, praticamente a explodir de orgulho e felicidade, e a sua viscondessa
(Freyja nunca fora capaz de pensar nela como Lauren) a exibir o brilho radioso da sua maternidade recente?
A viscondessa possuía uma certa beleza, admitiu Freyja. Tinha um cabelo escuro e lustroso, uma tez sem mácula e olhos surpreendentemente violetas. Mas mostrava sempre
uma postura digna, comportava-se sempre como uma senhora respeitável, sem uma palavra ou um cabelo fora do lugar. Parecia-lhe que carecia de toda a espécie de engenho
ou carisma. Odiava a mulher, quanto mais não fosse pelo facto de todos os restantes a admirarem e gostarem dela.
Freyja estava a olhar para as mãos enluvadas pousadas no colo quando Joshua pegou numa delas, a apertou com força e a puxou para junto do seu braço. Ela olhou para
ele com a sua expressão isto-não-é-uma-maçada-de-morte. Ele sorriu-lhe, com os olhos mais meigos, menos alegres, menos trocistas do que o habitual e cobriu a mão
dela com a mão livre.
Naquele momento, a vontade dela era lançar-se contra ele com os dois punhos erguidos. Sabia muito bem o que era aquilo. Ele sentia pena dela. Um pouco antes, tinha-a
ajudado a subir para uma das carruagens, quando ela se estava a sentir deprimida e irritada com toda a gente, inclinara a cabeça para junto da dela e falara apenas
para os seus ouvidos.
- Coragem - dissera ele. - O teu Jerome já não está cá. Mas vai haver outra pessoa para ti um dia. - E sorrira ironicamente. - E, entretanto, talvez eu te possa
ser útil, querida.
Ele achou que ela estava deprimida por causa de Jerome. E estava, ou devia estar. Ele morrera tão novo e de forma tão idiota, de uma febre contraída enquanto salvava
várias das famílias dos trabalhadores dos seus vizinhos de uma cheia. E ela gostara realmente muito dele. Fora um dos seus companheiros de brincadeiras durante toda
a sua infância. Mas arrastara os pés no que dizia respeito a um casamento com ele, e ele também não parecera muito ansioso pelo acontecimento. Sempre que ela arranjava
alguma desculpa para não formalizar logo o noivado entre ambos ou, depois do noivado, para não marcar logo uma data do casamento, ele não levantara quaisquer objeções.
O serviço interminável acabou finalmente e Kit e a viscondessa partiram na primeira carruagem, visto que se aproximava a hora na qual o bebé precisaria de ser alimentado.
Ao que parecia, a viscondessa estava a amamentar pessoalmente o filho. Ainda bem que não era perfeita em relação a esse pormenor, pensou Freyja com uma satisfação
momentânea. Muitas senhoras de bom-tom iriam franzir o nariz e até mesmo achá-la vulgar por não contratar uma ama de leite.
Era uma enorme bênção ter Joshua ao seu lado depois de chegarem a Alvesley. Apresentá-lo a todos como o seu noivo ocupou-lhe imenso tempo e atenção e protegia-a
de qualquer embaraço ou pena que qualquer uma daquelas pessoas que soubesse o que se passara no ano anterior pudesse estar a sentir. E havia um número terrivelmente
elevado de pessoas que sabiam que as celebrações do aniversário da avó de Kit no verão anterior (ela falecera subitamente no início daquele ano) deveriam ter incluído
o anúncio do seu noivado com Lady Freyja Bedwyn.
Mesmo antes do almoço, Kit e a sua viscondessa desceram da sala das crianças e chegou o momento doloroso de ficar frente a frente com eles. Kit ostentava o sorriso
algo cauteloso que exibia sempre na presença de Freyja. A viscondessa exibia o respetivo sorriso radiante e caloroso. Freyja sorria de orelha a orelha. Deviam ser
tão diferentes os pensamentos e as emoções atrás daqueles três sorrisos, pensou ela.
- Tenho de dar os parabéns a ambos pelo nascimento do vosso filho - disse ela.
- Obrigado, Freyja - disse Kit. - E obrigado por vires.
- Estamos encantados por ter regressado a casa vinda de Bath a tempo de se juntar a nós no dia de hoje - disse a viscondessa, seguramente a mentir com todos os dentes.
- Permitem-me que vos apresente o marquês de Hallmere, o meu noivo? - disse Freyja. - O visconde e a viscondessa Ravensberg, Josh.
- O noivo de Lady Freyja. - A viscondessa sorriu para Joshua com um prazer caloroso. - Estou extremamente feliz por conhecê-lo, Lord Hallmere. E extremamente feliz
por si, Lady Freyja.
Ela deu um passo em frente, e, por um momento horroroso, Freyja pensou que estava prestes a ser abraçada. Ergueu as sobrancelhas e o queixo e a viscondessa hesitou
e contentou-se com outro sorriso caloroso.
- Hallmere? - Kit apertou-lhe a mão. - É um felizardo. Espero que saiba que ganhou um tesouro.
Freyja sentiu os nós dos dedos a formigar enquanto enrolava os dedos nas palmas das mãos.
- E Freyja. - Kit pousou as mãos nos ombros dela. Eu sabia que não tardarias a encontrar a felicidade. Os meus sinceros votos de felicidade para o futuro. - Ele
não hesitou como a sua mulher e beijou-a afetuosamente na cara.
Felizmente, o almoço foi anunciado naquele momento e não houve necessidade de fazer mais qualquer tipo de conversa. Freyja pegou no braço de Joshua e fez um grande
sorriso.
- Mas que divertido isto está a ser - murmurou ela.
Joshua não ficou ao lado de Freyja toda a tarde. Isso não teria sido considerado de bom-tom e pareceu-lhe que assim que o almoço chegara ao fim, a tensão terrível
que pressentira no corpo dela no início do dia, apesar dos seus sorrisos e compostura aparentemente perfeita, se dissipara. Ela estava a circular no meio dos convidados,
de olhos animados, perfeitamente à vontade, sociável e com um ar extraordinariamente atraente num vestido de musselina com uma saia ondulante em tons variados de
turquesa e verde-mar.
Não estava completamente certo de que ela, na realidade, não amara profundamente Jerome Butler. Não restavam dúvidas de que o dia de hoje lhe parecera muito difícil.
Ele também conviveu com os convidados durante grande parte da tarde. No final, acabou por se sentar no banco junto à janela da sala de estar ao lado do filho mais
novo do conde de Redfield, Sydnam Butler, que estava lá há algum tempo. O braço e olho direito do homem tinham desaparecido e o lado direito do rosto e pescoço estavam
desfigurados com as marcas arroxeadas de queimaduras antigas.
- Feridas de guerra? - perguntou Joshua.
- Exato - disse Sydnam Butler. - Fui capturado por uma patrulha francesa quando estava numa missão de reconhecimento em Portugal. Estava sem o meu uniforme.
Joshua fez um esgar. - Foi o meu maior medo durante cinco anos - afirmou. - Estive em França a fazer algum trabalho de espionagem para o governo, mas a título completamente
não-oficial. Sem qualquer patente de oficial, sem qualquer uniforme, sem qualquer salvamento se tivesse sido capturado. Não lhe foi dado o tratamento digno que o
uniforme lhe teria garantido, nesse caso?
- Não - respondeu Butler.
Conversaram um pouco sobre as guerras e sobre o país de Gales, onde o ex-oficial estava agora a viver, numa das propriedades de Bewcastle, desempenhando as funções
de administrador. De seguida, Butler acenou na direção de Freyja. Ela estava num grupo com Rannulf, Judith, Lady Muir e um primo de Butler cujo nome se tinha escapado
da memória de Joshua.
- Estou muito contente por ver a Freyja feliz de novo - disse ele. - É óbvio que o senhor está a fazer-lhe bem.
- Obrigado - respondeu Joshua. - O dia de hoje tem sido uma prova um tanto ou quanto dura para ela. Creio que deve ter tido uma ligação profunda ao seu irmão enquanto
esteve noiva dele.
- Oh, eles nunca estiveram realmente noivos - disse Butler. - Quando o Kit voltou a casa no verão passado, trouxe a Lauren com ele já na qualidade de noiva, e pôs-se
um ponto final na união que o Bewcastle e o meu pai tinham combinado. - Ele fez uma pausa momentânea e Joshua apercebeu-se de que estava a fazer uma expressão ligeiramente
confusa. - Peço-lhe perdão. Estava a referir-se ao Jerome. Sim, claro que sim. Eles gostaram sempre muito um do outro. Mas eu não me preocuparia se estivesse no
seu lugar. Isso foi há muito tempo e ela parece feliz hoje. Muito feliz.
Ravensberg e a mulher, que tinham estado ausentes da sala há algum tempo, voltaram a entrar naquele momento. A viscondessa trazia o bebé ao colo, já sem o vestido
de batismo, embrulhado confortavelmente numa mantinha branca. Duas mãozinhas mexiam-se por cima das dobras. Eles começaram a passar de grupo em grupo a exibir o
seu tesouro enquanto as senhoras murmuravam carinhosamente e sorriam para ele e vários dos cavalheiros pareciam levemente intimidados.
Formavam um casal extraordinariamente atraente. E ainda estavam sob o efeito de um amor profundo e mútuo, a menos que Joshua estivesse enganado.
Também percebera perfeitamente o que Sydnam Butler acabara de dizer antes de se ter apercebido do seu erro. Fora combinado um casamento entre Freyja e o atual visconde
Ravensberg. Fazia sentido. Se as duas famílias tinham planeado a aliança com o filho mais velho desde a infância dos dois, não seria natural, passado um tempo apropriado
após o seu falecimento, restabelecer o plano com o segundo filho no papel de marido desejado? Mas o segundo filho trouxera para casa uma noiva da sua própria escolha
e estragara o plano dessa forma.
Será que fora deliberado? Será que ele estava ao corrente do casamento que o pai dele e o irmão de Freyja estavam a combinar para ele? Será que ele, muito à semelhança
do próprio Joshua em Bath, se apressara a ficar noivo de outra pessoa com o propósito de evitar um casamento que não desejava? Ou será que não sabia de nada?
Em todo o caso, era provável que Freyja se tivesse sentido rejeitada e menosprezada.
Não devia ter gostado nem um pouco disso!
Perguntou-se que parte dela teria sido mais ferida pela rejeição. O orgulho? Ou o coração?
Observando-a do banco junto à janela (Sydnam Butler afastara-se na companhia do pai e de um primo), Joshua conseguia ver o sorriso de Freyja a tornar-se cada vez
mais radiante à medida que o casal e o bebé se aproximavam do seu grupo. Conseguia vê-la a fletir os dedos de ambas as mãos e um pé a bater freneticamente no tapete.
O sorriso parecia-lhe um tanto ou quanto felino. Ela lançou um olhar à viscondessa, que não estava muito longe dela naquele momento e acabara de se rir com ternura
enquanto fitava o rosto do seu bebé. O olhar de Freyja, se bem que breve e rapidamente dissimulado, era puro veneno.
Dali a alguns momentos, o casal e o bebé iriam passar ao grupo de Freyja e ela iria ser solicitada a admirar a criança. Judith já estava a sorrir de orelha a orelha
na expectativa do momento, e a lançar um olhar terno a Rannulf.
Joshua pôs-se de pé.
- Freyja. - Ele tocou-lhe no braço e ela deu um salto, como se ele lhe tivesse tocado com um ferro de marcar a escaldar. - Estou a ver que algumas almas corajosas
estão a passear no terraço. Gostavas de apanhar um pouco de ar fresco?
- Adorava - disse ela, bastante alto. - Estou a enlouquecer com toda esta inatividade.
O tempo mudara de um dia para o outro. O dia anterior tinha sido quase como um dia de verão. Naquele dia, o tempo estava frio, cinzento e ventoso, mais parecido
com um dia de novembro do que setembro. Eles vestiram capas quentes para ir lá para fora. Joshua enterrou o chapéu bem fundo para não ser levado pelo vento.
- Espero que - disse Freyja - não estejas à espera que eu dê alguns passinhos afetados para a frente e para trás no terraço, Josh. Preciso de fazer entrar ar nos
meus pulmões. Não achas este tipo de ocasiões insuportavelmente enfadonhas?
Ela virou à direita para caminhar na direção dos estábulos, e assim que deixaram ficar para trás os jardins formais à frente e em baixo da casa, ela atravessou o
relvado para caminhar em paralelo com o caminho da entrada. Ela caminhava com a sua habitual passada masculina. Joshua colocou-se a seu lado, acompanhando o ritmo
dela.
- Ah. - Ela inclinou para trás a cabeça. - Assim está melhor.
Ele não tentou fazer qualquer tipo de conversa e era óbvio que ela não estava com disposição para isso. Caminharam até chegarem à ponte de pedra que atravessava
o rio e constituía o limite entre a parte cuidada do parque e as matas bravias que ficavam depois desse ponto. Devia ser mais tarde do que tinha imaginado, pensou
Joshua. Começara a anoitecer.
- E agora? - perguntou ele. - Voltamos para a casa?
- Ainda não - disse ela. - Aquela festa ainda vai durar horas. Ninguém sabe quando terminam acontecimentos deste tipo.
- Para onde vamos a seguir, então? - perguntou ele.
Ela olhou em volta. - O lago está ali - disse ela, apontando para a direita. - Mas não me apetece nadar hoje. - Ela estremeceu quando uma rajada fria de vento os
fustigou.
- O quê? - perguntou ele, sacudindo as sobrancelhas. - Não vou poder ver-te de combinação outra vez hoje? - Em rigor, ele vira-a numa combinação molhada na véspera
e era como se esta fosse inexistente. A temperatura dele ameaçou subir uns graus perante essa recordação.
- Vamos até à cabana do couteiro - disse ela. - É por aqui. - Apontou para a mata à esquerda do caminho de entrada. - Na verdade, é mais como um pequeno refúgio
da família, uma vez que não me consigo lembrar de algum couteiro que tenha vivido lá. Mas foi mantida sempre em bom estado. Talvez possamos acender uma fogueira
e aquecer-nos um pouco durante algum tempo antes de voltarmos.
A ideia agradava-lhe, pensou Joshua, passando pela ponte em primeiro lugar.
Vaguearam pela mata cada vez mais escura durante um bocado visto que ela não se conseguia recordar exatamente onde era a cabana. Mas o estado de espírito de Freyja
melhorou bastante durante a procura.
- Passei lá várias horas de uma tarde abafada uma vez - disse-lhe ela. - Fui fechada lá dentro e o Jerome e o Kit ficaram de guarda no lado de fora. Eles tinham-me
raptado. Mas a aventura começou-lhes a correr mal quando o Aidan e o Ralf se recusaram a pagar um resgate para me libertar. Quando o Kit finalmente foi até casa
para tentar roubar alguma comida da cozinha, eu gritei e praguejei tanto que o Jerome deixou-me sair com medo que eu atraísse a atenção de algum jardineiro que estivesse
de passagem. Brindei-o com um nariz sangrento e depois fui para casa e também deixei algumas nódoas negras no Ralf e no Aidan.
- E nunca mais foste raptada? - disse Joshua, sorrindo-lhe ironicamente. - Querida, as donzelas raptadas devem lançar-se em prantos, perder o vigor e fazer com que
os seus captores se apaixonem por elas.
- Ah! - exclamou ela. - Oh, ali está ela. Eu sabia que devia estar aqui por perto.
A porta estava fechada à chave, mas ele passou os dedos por cima do lintel e ela levantou algumas pedras cheias de musgo ao lado da porta até encontrar a chave.
A porta abriu-se tão facilmente que Joshua soube antes de entrar que a cabana ainda devia ser usada. O interior estava escuro, mas ele conseguia ver à luz débil
que vinha da porta que havia uma pequena mesa junto à parede mais afastada e uma lamparina e acendalhas em cima dela. Ele tateou às escuras durante uns momentos
até conseguir acender a lamparina.
Havia uma lareira com cinzas recentes e uma caixa com lenha ao lado. Havia uma velha cadeira de baloiço de madeira com um cobertor desbotado estendido sobre as costas
e o assento. Havia uma cama estreita junto a uma das paredes, preparada de forma cuidada com cobertores e uma almofada. Estava tudo limpo, incluindo o chão de terra.
Isto, pensou Joshua, era definitivamente o refúgio de alguém.
Freyja entrou na cabana e fechou a porta. Ficou de pé de costas para a porta enquanto Joshua se ajoelhava e acendia a fogueira.
- Sim, aqui está ela - declarou. - A minha prisão.
- Mas já não é uma prisão, querida - disse ele, endireitando-se e sacudindo as mãos antes de se voltar e aproximar dela. Inclinou a cabeça para baixo e tocou nos
lábios dela com os seus. - Um abrigo. Um abrigo quente, em breve, espero eu.
Também era um abrigo muito privado e isolado. Um abrigo perigoso para um homem e uma mulher que estavam a tentar evitar que o noivado de ambos se transformasse na
pena perpétua de um casamento. Ele deu um passo atrás e apontou para a cadeira de baloiço.
Ela desapertou a capa, atirou-a para cima das costas da cadeira e sentou-se. Ele pousou o chapéu e a capa na mesa e sentou-se na beira da cama.
- O grande suplício está quase a terminar - disse ele.
Ela riu-se suavemente, de olhos postos nas chamas. - Era bem feito se eu me recusasse a libertar-te do teu compromisso - disse ela. - Sou um suplício assim tão grande
para ti? Que humilhação. É verdade que tu és um suplício, mas eu também sou?
- Não me estava a referir a nós - disse ele. - Fala-me acerca do Ravensberg.
- Do Jerome? - perguntou ela.
- Do Kit.
Ela olhou bruscamente para ele. - O que é que queres saber acerca do Kit?
- Estavas apaixonada por ele? - perguntou.
- Pelo Kit? - Ela franziu-lhe ferozmente o sobrolho.
- O Jerome não foi o único irmão do qual estiveste noiva - disse ele - ou quase noiva. Gostavas muito do Jerome. Gostavas ainda mais do Kit?
Ela continuou a fuzilá-lo com os olhos. - Não é da tua conta - afirmou.
- Eu sou o teu noivo - relembrou-lhe ele.
- Não, não és - disse ela com desdém. - E não vais desempenhar o papel do amante ciumento agora, Josh. Mas que ideia! Não é da tua conta saber quem amei ou quem
ainda amo, se é que essa pessoa existe. O Kit não é da tua conta.
- Ele sabia - perguntou-lhe ele - que tu o amavas?
- É claro que ele sabia - disse ela, olhando novamente para a lareira e depois encostando a cabeça à cadeira e fechando os olhos. - Ele queria desesperadamente que
eu me casasse com ele. Queria que eu abdicasse de tudo, de todas as expectativas da família dele e da minha, e partilhasse a vida de um soldado com ele. Eu era tudo
no mundo para ele e ele era tudo no mundo para mim. Mas o Wulf não deu o seu consentimento. Eu tinha vinte e um anos e não precisava do seu consentimento. Ele não
me proibiu propriamente de o fazer, o Wulf raramente faz isso e é claro que sabia que eu lutaria até à morte contra uma tentativa de tirania desse género. Mas fez
um discurso sobre o dever para com a família e deixei-me convencer a anunciar o meu noivado com o Jerome. O Kit lutou com o Ralf até o deixar a sangrar quando veio
numa grande fúria a Lindsey Hall e lhe recusaram a entrada. Depois regressou ao seu regimento na península. No ano passado, com o Jerome morto antes de as nossas
núpcias terem sido celebradas e com o Kit a caminho de casa, o pai dele e o Wulf combinaram finalmente o nosso casamento. Mas o Kit não me perdoou. Vingou-se de
mim ao trazer para casa aquela mulher perfeita e insípida, a Lauren Edgeworth.
Joshua perguntou-se se ela já se tinha dado conta de que, mesmo que tivesse começado como uma vingança, ou simplesmente um escape, o casamento era agora uma união
de amor. E perguntou-se quanto amor real Freyja ainda sentiria por Ravensberg, misturado com o ódio e a amargura bem reais.
- Pobre Freyja - disse ele suavemente.
Ela pôs-se de pé de súbito e chegou junto dele em três passadas. Ele prendeu-lhe o pulso direito com uma mão quando o punho dela ficou a cinco centímetros do seu
nariz e o pulso esquerdo quando o outro punho dela roçou a parte inferior do seu queixo. Ergueu-se e prendeu os braços dela atrás das costas. Segurou-os pelos pulsos,
visto que as mãos dela ainda estavam fechadas em punhos.
Os olhos dela fulminaram-no. Estava furiosa.
- Não te atrevas a ter pena de mim - disse-lhe na sua voz mais fria e altiva. - A minha história e os meus sentimentos só a mim dizem respeito e a mais ninguém.
Muito menos a ti. Nós nem sequer estamos realmente noivos. Não somos nada além de desconhecidos que foram atirados um para o outro pela força das circunstâncias.
Não significamos nada um para o outro. Não significas nada para mim. Estás a perceber? Nada.
Ele baixou a cabeça e beijou-a. Sabia que estava a correr um risco mortal. Ela podia muito bem arrancar-lhe um pedaço do lábio com os dentes. Mas ela precisava de
ser reconfortada. Contudo, os seus motivos não eram inteiramente altruístas. Freyja Bedwyn num acesso de fúria era uma mulher infinitamente excitante.
- Absolutamente nada, querida? - murmurou ele. - Feriste-me os sentimentos.
- Vou é arrancar-te a cabeça dos ombros se não parares de ser cobarde e de me prender os pulsos - disse ela, com os olhos ainda a faiscar de fúria. - Tens medo de
enfrentar a raiva de uma mulher a não ser que lhe tenhas manietado os braços?
Ele sorriu e soltou-a. E riu-se em voz alta enquanto se esquivava a murros sem voltar a prender-lhe os braços.
- Ai! - disse ele quando um dos punhos dela entrou em contacto com uma das orelhas.
Mas ela não se dera por satisfeita e não o faria até ele estar caído no chão, para o poder espezinhar com os sapatos. Ainda bem que ela não estava a usar as botas
de montar. Porém, a verdade é que ela também não tentou usar as unhas nem os dentes. Lutava com desportivismo.
Havia apenas uma opção defensiva em aberto além de utilizar o seu próprio punho na cara dela. Agarrou-a, colocou um dos braços à volta da cintura e o outro à volta
dos ombros, ergueu-a com firmeza contra si para que os punhos dela ficassem a mexer-se inutilmente dos lados e beijou-a de novo, com a boca aberta.
- Sinto uma aversão profunda por ti - disse ela friamente quando ele ergueu a cabeça um bom bocado depois. A raiva desaparecera dos olhos e a fúria da voz. - E não
significas absolutamente nada para mim. Menos que nada.
- Eu sei, querida - disse ele e beijou-a de novo.
A raiva dela podia ter-se acalmado, mas era óbvio que a paixão não. Abriu a boca sob a dele, arranjou forma de passar os braços à volta dele e apertou-se contra
ele o máximo que as roupas e anatomia permitiam.
- Não pares - disse-lhe furiosamente quando ele ergueu os olhos, a tentar desesperadamente não perder a cabeça. - Não pares!
- Freyja...
- Não pares!
Ele não sabia quem empurrara quem para cima da cama, mas ali estavam eles momentos depois, a travar um combate corpo a corpo e a arquejar juntos no espaço estreito,
com as mãos a percorrer o corpo um do outro num esforço desesperado para encontrar pele nua. Ela arrancou-lhe o casaco e colete com pouca cooperação dele e puxou-lhe
a camisa para fora das calças e deslizou as mãos por baixo para tocar nas costas nuas dele enquanto ele, com os polegares, puxou o decote do vestido de musselina
dela por baixo dos seios e agarrou-os nas mãos, friccionando os mamilos entre os polegares e os indicadores. Com a ajuda da boca, encontrou o ponto na base do pescoço
onde conseguia sentir a batimento do coração dela.
Vindo não sabia bem de onde, o bom senso estava a tentar chamar a sua atenção. E um outro pensamento também lhe ocorreu.
- Querida. - Ele ergueu a cabeça e olhou para o rosto dela. - És virgem?
Talvez não fosse depois daquele interlúdio apaixonado com Kit Butler. Se não fosse...
- Ergue os braços.
Ele ergueu-os e a camisa dele passou-lhe pela cabeça e voou por cima da cama para aterrar num monte de roupa constituído pelo seu casaco e colete.
- És virgem?
- Não te atrevas a parar. - Com uma das mãos, ela puxou o rosto dele novamente para junto do seu. Com a outra, começou a mexer na cintura das suas calças.
Ele partiu do princípio de que a resposta era sim. Se não fosse, ela dizia e dispensava os seus escrúpulos. O peito nu dele precipitou-se por cima dos seios dela
e ele enfiou a língua dentro da boca dela. Ela chupou-a avidamente.
- Deixa-me fazer isto - sussurrou passados alguns momentos, saindo de cima dela e desabotoando os botões das calças sozinho.
Mas ela ajudou-o a tirar as calças depois de ele ter tirado à pressa as botas altas e as meias. Ele puxou-lhe o vestido para baixo, despindo-lhe ao mesmo tempo a
roupa interior. Depois de também lhe ter despido as meias de seda, apercebeu-se de que o bom senso fora atirado para longe com as roupas de ambos.
Eles lançaram-se um contra o outro de novo com uma paixão feroz. Se ela era virgem, e ele apostaria que sim, não mostrava qualquer inibição com a sua própria nudez
ou com a dele. Mas sempre soubera que estar na cama com Freyja seria semelhante a dormir com uma pilha de explosivos com os rastilhos acesos.
Quando ele lhe tocou no meio das pernas, ela abriu-se para ele, impaciente e ansiosa. Estava quente, húmida e preparada. Ele estava duro e latejava com o desejo
que sentia. Posicionou-se completamente em cima dela, afastou-lhe as pernas com as suas, deslizou as mãos por baixo dela para a levantar e inclinar e penetrou-a.
Ela era virgem. Era pequena e estreita e havia uma barreira a impedir o seu progresso. Mas também estava quente e húmida e os músculos internos contraíam-se à volta
dele e as mãos dela empurravam-lhe as nádegas enquanto os pés dela a faziam levantar da cama. Ele fez pressão no seu interior, ouviu o grito involuntário dela à
medida que a penetrava e uniu-se plenamente a ela.
Ele podia tê-la possuído lenta e cuidadosamente depois disso, mas ela não aceitou. Estava quente e repleta de uma paixão furiosa e ele sentia um desejo recíproco
que não precisava de mais qualquer encorajamento.
O que se seguiu foi mais um combate corpo a corpo do que o ato de fazer amor. Não fazia ideia de quanto tempo durara. Só sabia que conseguiu agarrar-se a uma réstia
de controlo até ela soltar um grito e estremecer num clímax poderoso. A seguir, foi em busca do seu próprio prazer e derramou a sua semente dentro dela.
Momentos ou minutos depois (ele tornara-se estranhamente inconsciente do tempo que passava), descobriu que o suor tornara os corpos escorregadios, embora o fogo
na lareira se tivesse extinguido. Também estavam ofegantes, como se cada um tivesse corrido vinte quilómetros contra um vento forte. Ele ergueu a cabeça e olhou
para ela à luz ténue da lamparina.
O cabelo dela estava num desalinho revolto e ondulado à volta da cabeça e ombros. Tinha o rosto avermelhado. Os lábios estavam afastados e as pálpebras estavam quase
fechadas.
- Bom, querida - disse ele -, se não estávamos numa alhada antes, agora estamos, sem sombra de dúvida.
CAPÍTULO 13
As pernas de Freyja estavam a tremer enquanto se vestia. Bem como as mãos enquanto ela puxava desajeitadamente os ganchos do cabelo, tentando domar e voltar a arranjar
o cabelo sem o auxílio de um espelho ou pente. Estava muito agradecida a Joshua por se ter vestido mais depressa do que ela e estar nesse momento ajoelhado junto
à lareira, a limpar os vestígios do fogo de há pouco e a juntar lenha para acender outro.
Ela olhou-o de relance e sentiu o estômago às voltas com a tomada de consciência.
Deus do Céu, aquele esplêndido corpo masculino tinha estado nu ainda há pouco e...
Bom, não importava.
- Isto - disse ela numa voz firme e prática - aconteceu tudo por minha culpa.
Ele pôs-se de pé e voltou-se para ela com os olhos a rir-se, embora a boca estivesse um pouco severa.
- Vais fazer mais uma mossa na minha autoestima, então? - perguntou-lhe ele. - Acabei de ser seduzido, Free?
- Não o terias feito - disse ela - se eu não tivesse insistido. Nunca te vou culpar por isso. Isto aconteceu tudo por minha culpa.
Não pares. Não te atrevas a parar.
Que humilhação.
- Se isso fosse o ninho de um pássaro - disse ele, a apontar para o cabelo dela, que tentava segurar no cimo da cabeça enquanto o prendia com ganchos para o manter
no lugar - seria realmente impressionante. Mas parece-me que a intenção é ser um penteado elegante, não é assim?
Ele aproximou-se, bateu-lhe levemente nas mãos para as afastar e quando o cabelo dela caiu em cascata por cima dos ombros, fê-la sentar-se na ponta da cama e arranjou-lhe
o cabelo com umas mãos surpreendentemente hábeis.
- Foi uma explosão mútua de luxúria, Freyja - disse ele. - Também foi mutuamente satisfatório, embora não possa deixar de acreditar que te magoei bastante. Atrevo-me
a dizer que preferias ser torturada a admitir isso, e por esse motivo não te vou perguntar nada. Acho que agora és capaz de concordar que estamos metidos numa alhada
realmente grave.
- Se com isso queres dizer - disse ela, imóvel enquanto ele prendia com firmeza o cabelo com os ganchos - que agora somos obrigados a casar, então é óbvio que estás
a dizer um disparate. Não te atrevas a propor-me casamento. Tenho vinte e cinco anos e imagino que tu sejas mais velho. Porque é que não devemos ir para a cama um
com o outro se quisermos? Na minha opinião, foi uma experiência extraordinariamente agradável.
- Agradável. - Ele soltou uma pequena risada e deu um passo atrás para admirar o seu trabalho. - Muito chique, na minha opinião. Agradável, querida? Sabes mesmo
ferir um homem onde mais lhe dói. Mas posso responder à tua pergunta com uma palavra. Porque é que não devemos deitar-nos um com o outro se quisermos? Bebés! Eles
têm o hábito irritante e por vezes embaraçoso de resultar do tipo de atividade a que acabámos de nos dedicar.
Fora uma imbecil por não ter pensado nisso, especialmente no dia de um batismo.
- Isso não vai acontecer - disse ela bruscamente, levantando-se e pondo a cama em ordem de novo.
- Se tiver acontecido - disse-lhe ele -, acabámos de ficar irremediavelmente presos um ao outro, querida. Por agora, é melhor voltarmos para a casa e esperar que
ninguém se tenha dado conta do tempo que estivemos ausentes.
Eles embrulharam-se bem nas capas e ela esperou no exterior, a orientar-se no meio das matas escuras, enquanto ele apagava a lamparina, trancava a porta e colocava
a chave novamente no lugar onde a tinham encontrado. Regressaram ao caminho de entrada e atravessaram a ponte sem falar.
Era estranho que ela se opusesse tanto à ideia de se casar com Joshua. Não era contra o casamento. Queria casar-se. E já tinha vinte e cinco anos. Joshua era bonito,
charmoso, espirituoso, atraente e gostava do mesmo tipo de atividades ao ar livre que ela. Tinham estado juntos numa cama e fora uma experiência gloriosa.
Então, porque não se queria casar com ele?
Porque ele não se queria casar com ela? Porque podia correr o risco de se apaixonar por ele? Porque é que isso seria indesejável?
Porque se sentiria desleal para com Kit? Ou porque iria destruir o seu sonho de amor disparatado e romântico ao provar que era possível amar dois homens diferentes
ao longo da vida?
Porque tinha medo de partir o coração mais uma vez?
Mas Lady Freyja Bedwyn não temia nada nem ninguém. Jamais.
- Se eu fosse um exército inimigo a ver-te a marchar numa batalha contra mim - afirmou Joshua -, voltava costas e fugia em pânico e terror.
- Mas que conversa disparatada - disse ela.
- Porque estás com essa expressão carrancuda e com um passo tão apressado, meu encanto? - perguntou-lhe ele.
- Está frio, caso não tenhas reparado - respondeu. - Estou ansiosa por voltar para a casa.
- A nossa saída cumpriu o seu propósito, então? - perguntou ele.
- Tens de compreender - disse ela - que toda a gente na minha família e na do Kit, toda a gente da vizinhança, sabia que ele vinha para casa para se casar comigo.
E depois ele apareceu com a Lauren Edgeworth e apresentou-a como sua noiva. Eu nunca gostei de ser humilhada. Julguei que fosse um conluio para me deixar furiosa,
para me castigar. Achei que era um noivado falso porque eles pareciam não ter muito que ver um com o outro. De facto, as circunstâncias pareciam muito semelhantes
às nossas neste momento. Com a exceção de que eu pensava que ele realmente tencionava escolher-me no final. Em vez disso, casou-se com ela. Eu não sou uma pessoa
desprezível, Josh. Não quero que tenham pena de mim. Estou simplesmente... zangada.
- É uma união de amor - disse ele. - Acredita na opinião de alguém que os viu pela primeira vez hoje. É uma verdadeira união de amor, Free.
Ela riu-se suavemente à medida que se aproximavam da casa a subir pelo relvado. - Essas são as tuas palavras de conforto? - perguntou ela.
- Não as disse para te insultar - disse ele. - Tu gostas de dizer as coisas como elas são, querida. Gostas mais da verdade do que a falsidade e da franqueza mais
do que o subterfúgio. O teu Kit está profundamente apaixonado pela mulher.
- O meu Kit. - Ela riu-se de novo. - Ele estava louco de dor naquele verão há quatro anos. Tinha acabado de trazer o Sydnam de volta da península, destroçado, mutilado
e mais perto da morte do que da vida. Culpava-se a si mesmo. Era a única pessoa que acompanhava o Sydnam naquela missão de reconhecimento e era o seu oficial superior.
Quando foram capturados por uma patrulha francesa e um deles teve de arriscar a captura para que o outro pudesse ficar livre para completar a missão, o Kit foi quem
ficou em liberdade. Ele estava a enlouquecer de culpa naquele verão e voltou-se para mim. O meu Kit. Ele nunca foi meu.
Ela nunca tinha reconhecido a verdade antes. Ele tinha estado tão desesperadamente apaixonado por ela como ela por ele naquele verão, mas para ele fora uma coisa
transitória, uma forma de lidar com a sua culpa e ansiedade. Perguntou-se se Wulfric se apercebera disso e por esse motivo dera o passo inusitado de interferir na
vida dela, de lhe dar um verdadeiro sermão a respeito do dever. Perguntou-se se o conde de Redfield se apercebera disso. Assim como o Jerome.
Todos menos ela.
Não estava ninguém a passear no terraço agora. Todos estavam dentro de casa.
- Este é o momento - disse Joshua - em que devemos esperar que a nossa ausência não tenha sido demasiado comentada e que todos os ganchos no teu cabelo não decidam
cair no tapete assim que entrarmos na sala de estar.
É claro que a ausência prolongada de ambos não escapara à atenção da família de Freyja. Aidan ergueu as sobrancelhas quando entraram na sala de estar, Alleyne franziu
as suas, Morgan sorriu com um ar cúmplice quando cruzou um olhar com Freyja e Wulfric agarrou o cabo do seu lornhão. Rannulf foi o único a não reagir, completamente
absorto numa conversa com Kit, a viscondessa e Judith.
Kit estava sentado ao lado da viscondessa, com o braço esticado nas costas da cadeira dela, as pontas dos dedos a tocar-lhe ao de leve no ombro oposto. Era uma pose
quase escandalosamente informal, mas o dia já ia avançado e todos pareciam mais descontraídos do que no início da festa. Os dois estavam a escutar atentamente o
que Judith estava a dizer.
Sim, era verdade, pensou Freyja. Já o sabia há muito tempo, é claro, talvez desde o início. Era uma união de amor. E talvez eles até fossem perfeitos um para o outro.
Sem dúvida que faziam um casal bonito.
Ela não esperou para ver se a admissão lhe provocava alguma dor. Olhou de relance para Joshua e viu que ele estava a olhar para ela com um ar zombador, juntou o
braço ao dele e avançou com uma passada larga pela divisão.
- Espero - murmurou ele - não estar prestes a ser arrastado para uma cena, querida. As cenas costumam ser embaraçosas.
Freyja sorriu, primeiro para Kit, que pareceu ficar subitamente alerta e depois para a viscondessa, cujo sorriso gracioso escondeu qualquer sinal de perturbação
que pudesse estar a sentir.
- Peço desculpa - disse Freyja - por ter perdido a oportunidade de ver o bebé quando o trouxeram cá abaixo há pouco. O Josh sugeriu caminhar um pouco, eu estava
ansiosa por algum ar fresco e saí a correr sem pensar. É claro que devia ter esperado alguns minutos.
Embora estivesse a reconhecer publicamente o seu erro, ou talvez por causa disso, estava a falar com a voz altiva que utilizava sempre quando estava na defensiva.
Mesmo assim, os quatro olharam para ela com algum espanto. Joshua estava a segurar-lhe o braço com firmeza.
- Oh, mas ele ainda está acordado - disse a viscondessa, com um sorriso radiante e caloroso enquanto se punha de pé. - Não nos pareceu correto deixá-lo aqui em baixo
quando está habituado à paz e tranquilidade do seu quarto. Quer subir para o ver agora?
Freyja fez um esgar por dentro, mas manteve o sorriso.
- Se não tiver receio que eu o vá perturbar - disse ela.
- Oh, não. - A viscondessa olhou para Joshua e os seus olhos violetas sorriram-lhe. - Mas não o vamos arrastar lá acima, Lord Hallmere. Por favor, sente-se na minha
cadeira.
Por um momento, Freyja achou que a viscondessa ia dar-lhe um braço, mas se teve essa intenção reconsiderou, caminhou à sua frente para fora da divisão e ao longo
das escadas até ao piso onde ficava a sala das crianças.
- Receio que - disse ela, voltando a cabeça para sorrir para Freyja quando se estavam a aproximar da sala - os pais recentes sejam muito entediantes, Lady Freyja.
Adoramos os nossos filhos e partimos do princípio de que todos os outros tenham de ficar tão encantados como nós.
- Talvez seja altura - disse Freyja - de colocar de parte o "Lady" cada vez que se dirige a mim.
A viscondessa voltou-se bruscamente. - E a Freyja tem de me começar a tratar por Lauren - disse ela. - De acordo?
O bebé estava deitado numa manta no meio do chão do quarto, com os bracinhos a esmurrar o ar e os pezinhos a dar pontapés enquanto a ama estava sentada numa cadeira
perto dele, a tricotar. Mas a sala não era exatamente um lugar de paz e tranquilidade. Havia mais algumas crianças presentes, algumas das quais bebés, outras mais
velhas, incluindo Becky e Davy, que acenaram alegremente a Freyja antes de se concentrarem de novo nas suas pinturas. Havia mais três amas na sala.
Freyja teria ficado satisfeita em ficar de pé a olhar para o bebé lá em baixo e fazer alguns comentários apropriados de admiração. Mas Lauren curvou-se, pegou nele
e depositou-o nos braços de Freyja antes de a conduzir até um quarto interior, que deveria ser o quarto de dormir do bebé e fechar a porta.
Freyja segurou-o cautelosamente, com pavor de o deixar cair. Ele tinha o cabelo castanho de Kit, mais claro do que o de Lauren. Mas ia ter os olhos dela. Era macio,
quente e não pesava quase nada. Tinha um cheiro doce e a pó de talco. Fez pequenos sons gorgolejantes e fitou-a com olhos que ainda não estavam completamente focados.
Ela ficou alarmada com a onda de carinho que sentiu.
Pelo bebé de Kit... e de Lauren.
- Ele é lindo - disse ela. Palavras realmente patéticas. Ela entregou-o à mãe.
- Freyja - disse Lauren - não lhe consigo dizer o quanto estou feliz por ter conhecido Lord Hallmere e estar noiva dele. Não vou fingir que o conheço bem em tão
pouco tempo, é óbvio, mas além da sua beleza extraordinária, possui uns olhos sorridentes. Confio sempre em olhos como os dele. Ele parece feliz e a Freyja parece
feliz. O rubor das suas faces fica-lhe tão bem! Eu sabia que isto tinha de lhe acontecer um dia, mas até isso acontecer, fiquei ansiosa por si. Sabia como se devia
estar a sentir. Fui abandonada no altar pelo homem que amei toda a minha vida. Pensei que a minha vida tinha acabado. Nunca esperei vir a amar outra vez. Mas amei
e o segundo amor tem sido muito mais poderoso e satisfatório do que o primeiro. Creio que também deve estar a descobrir isso. Só vai melhorar à medida que o tempo
passa. Acredite em mim.
Ela era realmente extremamente encantadora, admitiu Freyja de má vontade. E resplandecia com o brilho da sua nova maternidade e de tudo o resto.
O homem com quem Lauren crescera e quase se casara, era o conde de Kilbourne. Estava lá em baixo com a mulher. A filha de ambos era um dos bebés que estava na sala
das crianças. Era óbvio que Lauren não sentia qualquer amargura no que dizia respeito a ele e à vida que podia ter tido.
- Eu nunca amei realmente o Jerome - disse Freyja. - Gostava muito dele. Chorei a sua morte bem mais profundamente do que alguma vez pensei que fizesse. Mas não
o amava.
Lauren sorriu em resposta ao mal-entendido deliberado de Freyja e olhou para o bebé que estava a ser embalado nos braços dela para adormecer.
- Quem me dera ter conhecido o Jerome - disse ela. - O Kit adorava-o.
Sim. Mas o último encontro entre ambos fora amargo e violento. Kit partira o nariz de Jerome antes de partir a cavalo para Lindsey Hall e lutar com Ralf para depois
regressar para a península.
- Tenho de lhe contar - disse Freyja - a altura em que os dois me raptaram e me fecharam dentro daquela cabana do couteiro no meio da mata.
Lauren olhou para cima e riu-se. - O Kit disse-me - respondeu. - Fiquei encantada ao saber que saiu vitoriosa da aventura. Praguejou assim tanto? E deu realmente
um murro na cara do Jerome? As memórias de infância são maravilhosas, não são? Eu e o Kit usamos essa cabana com muita frequência. É o nosso refúgio privado, tranquilo
e acolhedor.
Freyja lembrou-se subitamente do que tinha acontecido lá há cerca de uma hora. Estava a tentar não pensar nisso. Talvez naquele preciso momento ela própria estivesse
grávida. Talvez naquele preciso momento estivesse condenada a casar-se com Josh, contra a vontade de ambos. Mas, se não fosse esse o caso, estava condenada a terminar
o noivado de ambos em breve e nunca mais o voltar a ver.
Era um pensamento estranhamente desolador.
O bebé estava a dormir. Lauren beijou-o suavemente na testa e pousou-o delicadamente no berço antes de o cobrir com cobertores. Depois, voltou-se para Freyja e desta
vez juntou o braço ao dela antes de voltarem a descer.
- Estou tão contente por podermos ser amigas finalmente - disse ela. - Sempre gostei de si e a admirei. Às vezes gostava de ter o seu espírito ousado. Mas também
tenho de confessar que tive sempre um pouco medo de si.
Freyja deixou escapar uma pequena risada sarcástica. - Ninguém diria - disse ela. - Lembra-se daquela primeira vez que veio a Lindsey Hall com o Kit?
- E todos vocês me tentaram fazer sentir o mais desconfortável possível? - disse Lauren, rindo-se também. - Como é que eu podia esquecer? A minha vontade foi encolher-me
num canto qualquer e morrer.
- Mas em vez disso, deu-me uma descompostura magnífica e absolutamente educada - disse Freyja. - Os meus irmãos estavam deliciados quando se foi embora.
A festa estava a terminar, viu Freyja quando entraram na sala de estar. Alguns dos vizinhos já tinham partido. Wulfric estava de pé, assim como os outros membros
da sua família. Já deviam ter mandado chamar as carruagens.
- Céus, Free - disse Alleyne, aparecendo ao lado dela enquanto Lauren se dirigia para Wulf -, houve uma grande reconciliação entre ti e a Lauren? A vida está a ficar
realmente muito aborrecida.
- Já é altura de arranjares uma vida própria - disse ela severamente.
Ele retraiu-se. - Um golpe, Free! - exclamou. - Um golpe óbvio, para citar uma personagem qualquer que não consigo identificar de momento5. Terei de sair para o
mundo em busca do meu próprio final feliz. O Aidan, o Ralf, tu... Os finais felizes estão a tornar-se uma epidemia entre nós.
Joshua estava de pé a falar com Lady Kilbourne e com a duquesa de Portfrey. Estava a usar todo o seu charme e parecia esmagadoramente atraente. A luz do lustre em
cima fazia o cabelo dele cintilar de forma a parecer muito loiro. Freyja sentiu mais uma vez aquela tomada de consciência que lhe punha os joelhos a tremer. Há apenas
uma hora...
Ele tentara impedir aquilo de acontecer.
Ela desafiara-o a continuar.
Que complicada se tornara a vida.
E indiscutivelmente emocionante.
Ele virou a cabeça, sorriu-lhe e ela ergueu as sobrancelhas. E depois ele baixou lentamente uma das pálpebras e ela explodiu de indignação.
Por norma, Joshua era um madrugador. Na manhã seguinte, não se deixou ficar na cama, mas levantou-se mais tarde do que o habitual. Mal pregara olho durante a noite,
caindo apenas num sono profundo quando já estava a amanhecer. Todos os Bedwyn, exceto Freyja e Judith, estavam a tomar o pequeno-almoço.
- Ela sente-se indisposta esta manhã - disse Rannulf, com uma expressão um tanto ou quanto comprometida quando Joshua perguntou por Judith - tal como na manhã de
ontem até quase à hora de sairmos para a igreja. Acabei de informar a família de que ela está grávida. Íamos guardar isto só para nós durante algum tempo, mas os
enjoos matinais são um grande desmancha-prazeres.
- Pobre Judith - disse Eve. - Vou subir e fazer-lhe companhia durante um pouco depois do pequeno-almoço, a não ser que veja que ela prefere estar sozinha.
- E a Freyja? - perguntou Joshua. De certeza que não estava na cama, a não ser que tivesse tido uma noite tão em claro como a dele. Era perfeitamente possível.
- Vocês os dois discutiram ontem? - perguntou Alleyne, sorrindo. - Ela não voltou cá para dentro depois de andar a cavalo connosco antes do pequeno-almoço. Disse
que precisava de apanhar mais ar e foi caminhar em passo de marcha.
- Discutir? - disse Joshua. - Com a sua irmã? Como é que alguém consegue provocar uma discussão com uma senhora tão doce como a Freyja?
Todos os que estavam à mesa se riram. Até Bewcastle parecia levemente divertido.
- Pisquei-lhe o olho do outro lado da sala de estar mesmo antes de deixarmos Alvesley na noite passada - disse Joshua - e provoquei um ataque de fúria descomunal.
As pessoas, disse-me ela quando ficámos um momento sozinhos antes de entrar na carruagem com a Morgan e o Alleyne, podiam ter reparado naquele gesto absolutamente
vulgar. Para onde é que ela pode ter ido?
- O mais sensato - disse Aidan - será esperar que ela elimine qualquer sentimento de indignação que ainda possa ter com a caminhada e que volte a casa quando bem
entender.
- Ah - disse Joshua -, mas nunca ninguém foi capaz de me acusar de ser sensato.
- Existe um caminho sinalizado por trás da casa - disse Morgan. - É para onde ela vai geralmente quando quer ficar sozinha. E se eu tivesse discutido com o meu noivo,
Aidan, gostava que ele viesse atrás de mim mesmo que tivesse dito a toda a gente que preferia que me deixassem em paz e de lhe ter dito para não me seguir.
- A Eve ainda me está a ensinar a compreender as mulheres - disse o Aidan. - Ao que parece, passei demasiados anos no exército.
É claro que eles não tinham discutido propriamente, pensou Joshua meia hora depois, enquanto avançava num passo apressado para trás dos estábulos, até ao ponto onde
o caminho começava. E ela não tivera um ataque de fúria descomunal com o piscar de olhos, ficara apenas furiosamente indignada. Ele enviara-lhe um beijo e chamara-lhe
querida quando ela o repreendera só para ver a expressão de fúria dela e depois, quando estavam dentro da carruagem com o irmão e a irmã dela, tinha-lhe puxado deliberadamente
a mão para junto de si.
Não, não tinham discutido. Mas na noite passada, tinham tido relações conjugais e tudo mudara entre ambos. O que começou como um ligeiro galanteio para atenuar o
tédio de estar preso em Bath durante uma semana tinha-se transformado num noivado impulsivo e bastante temporário para evitar a armadilha sórdida da tia e depois
em algo muito mais demorado por causa da decisão da sua avó de lhes oferecer uma festa de noivado. E depois, Bewcastle chegara a Bath e depressa percebera a verdade
e isso levara àquele prolongamento da situação. Ele apercebera-se do perigo. Preparara-se para ele, criara barreiras contra ele, tanto por ela como por ele. E depois
o que acontecera? Corriam o terrível perigo de ver uma brincadeira temporária transformar-se num compromisso para toda a vida. Se se viesse a descobrir que ela estava
grávida, não teriam outra escolha. E mesmo se não estivesse...
Santo Deus, ela era Lady Freyja Bedwyn.
Na noite anterior, ela não pareceu aperceber-se da gravidade do que acontecera. Ou talvez sim, mas se recusasse simplesmente a admiti-lo. Naquela manhã, se estivesse
certo, enfrentara a realidade e achara-a verdadeiramente perturbadora.
O caminho começava com uma série de grandes degraus de terra delimitados com madeira no meio de arbustos de rododendros que se transformavam em árvores maiores mais
acima na colina. Depois, o caminho sombreado e calcorreado virava bruscamente à direita para avançar aos ziguezagues entre as árvores e dar ao caminhante uma impressão
de isolamento total, de estar a quilómetros de qualquer habitação. O ar cheirava a vegetação, apesar de o pico do verão já ter passado, e estava repleto do canto
dos pássaros.
Ele fizera o mesmo naquela manhã, isto é, enfrentar a realidade, ou na noite anterior, para ser mais exato. Ele agora era o marquês de Hallmere, quer quisesse ou
não. A guerra tinha terminado e Napoleão Bonaparte estava aprisionado na ilha de Elba. O seu trabalho estava concluído. Tinha vinte e oito anos. Era verdade que
não tencionava regressar a Penhallow. Nunca mais. Mas era um par do reino. Teria de ocupar o seu lugar na Câmara dos Lordes em breve. Teria de adquirir uma casa
permanente algures, provavelmente em Londres. Teria de assentar, por mais que temesse essa palavra.
Não sabia porque é que a temia tanto. Já assentara uma vez há anos, quando aprendera e praticara o ofício de carpinteiro. Esperava viver a sua vida na aldeia de
Lydmere. Até começara a olhar com atenção para algumas das raparigas da aldeia.
Talvez tivesse chegado a altura de se casar. E se tinha de se casar, porque não com Freyja? Socialmente, não podia fazer uma escolha melhor. Nunca se aborreceria
com ela. Achava-a atraente. Descobrira na noite passada que era tão explosivamente apaixonada na cama como esperara. Não restavam dúvidas de que ia gostar da oportunidade
de se deitar com ela em circunstâncias menos frenéticas para descobrir se seria tão sensual como ardente. Ele apostava que sim.
Porque não Freyja?
Talvez porque nunca pensara em cortejá-la. Talvez porque ela nunca tivesse mostrado qualquer inclinação para ser cortejada. Talvez porque a sua vontade de ver o
mundo ainda não tivesse sido saciada ou porque os sentimentos dela ainda estavam demasiado ligados a uma paixão frustrada pelo visconde Ravensberg.
Mas talvez eles não tivessem mais escolha no assunto, pensou ele, a caminhar com passadas largas e a olhar com atenção para os pomares e construções esporádicas
que tinham sido erguidas para que os caminhantes pudessem repousar ao longo do caminho. Não havia sinais de Freyja. Era possível que ela não tivesse ido naquela
direção. Ou já podia ter regressado a casa por outro caminho.
O caminho tinha vindo a subir constantemente desde o início, embora não com um declive muito acentuado. Estava prestes a passar pelo topo da colina e dar início
à descida gradual e sinuosa que conduzia ao final do trajeto. Uma torre de pedra, astuciosamente construída de forma a parecer romanticamente arruinada, fora erguida
no topo. Se houvesse uma escada em caracol no interior da entrada estreita com um arco gótico, o que era muito provável, um caminhante ágil podia subir às ameias
fortificadas e usufruir, por cima das árvores, de uma vista magnífica dos campos em volta.
Ele olhou para cima e sorriu.
As mãos dela estavam pousadas nas ameias. O rosto estava erguido para o sol e estava meio de costas para ele. Se tinha usado um chapéu na sua saída a cavalo de manhã
cedo, não havia sinal dele agora. Ou de ganchos de cabelo. O cabelo dela ondulava solto ao sabor da brisa lá atrás.
Mais uma vez, a imagem que lhe veio à memória foi de donzelas vikings ou de guerreiras saxãs. Naquela manhã, ela parecia mais a senhora medieval do seu castelo,
a protegê-lo de todos os atacantes enquanto o seu senhor estava ausente numa batalha.
Ela já lhe tinha dito que por vezes sentia que tinha nascido na era errada.
- Se eu me aproximar - gritou ele, colocando as mãos dos dois lados da boca - serei recebido com óleo a ferver e uma chuva de setas envenenadas?
Ela deu meia-volta e olhou para baixo, erguendo as mãos para afastar o cabelo da cara.
- Não - gritou ela de volta. - Acho que vou dar a mim mesma o prazer mais pessoal de te lançar das ameias abaixo. Podes subir.
Ela presenteou-o com um dos seus sorrisos felinos.
5 Referência à citação de Hamlet de William Shakespeare: "A hit! A very palpable hit.". (N. da T.)
CAPÍTULO 14
- Olha - disse ela depois de ele ter subido a escada em caracol no interior da torre e se lhe ter juntado lá no alto. Ela fez um movimento amplo com o braço à volta
de si. - Achas possível existir uma vista mais encantadora?
Via-se uma paisagem que percorria quilómetros em todas as direções. A casa estava atrás de si, mas ela preferia enfrentar o vento e olhar na direção oposta, por
cima das árvores, por cima da parte traseira do jardim e das terras de cultivo, construções das quintas, sebes e caminhos sinuosos. A torre era um dos seus lugares
preferidos, agreste e isolada, e atenuava os seus pequenos problemas e dores de cabeça, soprando-os para longe com o vento.
Não gostava de a partilhar com ninguém, mas teria sido mesquinho da sua parte mandar o Josh embora. Contudo, gostava de o ter feito. Ouvir a voz dele a chamá-la
inesperadamente lá de baixo e vê-lo pusera-lhe os joelhos a tremer, o estômago a dar voltas e prendera-lhe a respiração num momento de distração. Estava muito consciente
dele fisicamente, ainda mais agora que ele subira para ficar a seu lado, um homem alto e viril nas suas roupas de montar sem chapéu.
Não gostava nem um pouco daquela sensação. A paixão fora muito bem recebida há quatro anos, quando se imaginara igualmente apaixonada e rumo a um final feliz. Era
tão jovem nesses tempos. Mas agora sugeria apenas uma perda de controlo, um medo de perder de alguma forma o seu forte sentido de independência obtido à custa de
muito esforço. Não estava apaixonada por Josh, mas sentia um desejo sexual óbvio e vergonhoso por ele. Não gostava disso. Não era por vontade própria que se apaixonava
ou sentia um desejo sexual, especialmente por um homem que achava tudo na vida divertido e raramente parecia ter um pensamento sério.
Joshua Moore, marquês de Hallmere, não era digno do seu amor, mesmo que estivesse preparada para o oferecer. Não estava.
- Se existe, não a vi em nenhuma das minhas viagens - disse ele em resposta à sua pergunta, a olhar em volta com agrado para a paisagem. - Já fizeram as colheitas
de todos os campos e algumas das árvores estão a começar a mudar de cor. Daqui a algumas semanas, vão parecer ainda mais gloriosas. Ah, peço perdão. - Ele virou-se
para olhar para ela. - Não gostas do outono, pois não?
- Só porque o inverno vem logo a seguir - disse ela. - O inverno lembra-me sempre... - Ela estremeceu.
- A tua mortalidade? - sugeriu ele. - Já leste As Viagens de Gulliver?
- É claro que sim - disse ela.
- Lembras-te daquelas personagens que estavam condenadas a viver para sempre? - perguntou-lhe. - Não me consigo lembrar em que parte do livro estavam, mas elas nasciam
com uma marca na testa que significava que nunca podiam morrer. Em vez de serem invejadas, eram os membros mais lastimados da sua raça. Era um destino terrível nascer
com uma marca dessas. O Jonathan Swift era mais sábio do que a maior parte de nós, ao que parece, e compreendeu como seria indesejável viver para sempre. E se vivermos
num medo constante, Free, como é que podemos desfrutar do tempo que nos está destinado?
- Eu não vivo num medo constante - disse-lhe ela.
- Só no inverno? - disse ele, sorrindo-lhe. - E no outono porque o inverno vem a seguir? Metade do ano?
Ela abanou a cabeça. - Esta é uma conversa disparatada - disse ela. - Quem te disse que me ias encontrar aqui?
- Estavas a esconder-te de mim? - perguntou-lhe.
- Eu nunca me escondo de ninguém - disse ela, de mau humor. Mas é claro que tinha estado a fazer isso, ou pelo menos a adiar o máximo possível vê-lo naquela manhã.
- Acho que chegou a altura de discutirmos, Josh. Chegou a altura de te libertar e de te desejar boa viagem. Chegou a altura de pôr um fim a esta farsa.
- Não pode ser, querida - disse ele, apoiando um dos cotovelos nas ameias e voltando-se completamente para ela. - Ainda não. Não até sabermos se estás grávida ou
não.
Ela não pregara olho a maior parte da noite, preocupada exatamente com essa questão. Com a questão de ter de se casar com Josh. Com a questão de ele ter de se casar
com ela. Com a questão de ficar encurralada para sempre num casamento que nenhum deles escolhera de livre vontade e com o qual ambos iam ficar eternamente ressentidos.
Com a questão de ter um bebé macio, quente e vivo que fosse seu.
- Não estou - disse ela com firmeza. - E há sempre este ou aquele motivo. Quando começámos isto, íamos terminá-lo no dia seguinte. Parece que a cada dia que passa
cavamos um buraco mais fundo.
- Devo então depreender, meu encanto - perguntou-lhe ele - que não queres casar-te comigo?
- Tu sabes que não quero - disse ela irritada -, assim como tu não te queres casar comigo. Age de forma séria uma vez na vida, Josh. Começo a pensar que o teu sorriso
e a tua postura despreocupada são máscaras que usas. Só não consegui decidir ainda se elas estão a encobrir um vazio absoluto ou se existe uma pessoa por trás que
eu não reconheceria sem o disfarce.
Ele fitou-a de olhos semicerrados, com o sorriso ainda desenhado no rosto. - Seria um vazio absoluto, querida - respondeu. - Estás arrependida do que aconteceu ontem?
- Claro que estou arrependida - disse ela. - E a culpa foi toda minha. Para começar, nem sequer devia ter sugerido a cabana do couteiro. Não era preciso muita imaginação
para adivinhar o perigo a que nos estava a conduzir. Mas fi-lo. Não me tinha preparado para resistir àquilo que se revelou irresistível. Ao contrário de ti. Tu querias
impedir-me. Mas não permiti isso. Foi um verdadeiro desastre.
- Isso quer dizer que não desfrutaste do que aconteceu? - perguntou-lhe ele.
- É claro que sim... - Ela fulminou-o com o olhar. - É claro que desfrutei. Sou uma mulher e tu és um homem... um homem bonito e atraente.
- Não! - Ele sorriu-lhe. - Sou?
- É claro que desfrutei do que aconteceu - repetiu ela. - Mas isso é irrelevante. Não vês isso? Gostava que nunca tivesse acontecido. Não só não estamos noivos um
do outro, como nem sequer estamos a pensar em ficar noivos um do outro. Nunca desenvolvemos uma relação mais profunda do que um namorico e lançámo-nos nisto apenas
porque estávamos presos em Bath e completamente aborrecidos. Nunca levámos o nosso noivado fingido a sério, embora nos tivéssemos divertido com ele a pensar que
seria uma espécie de partida que acabaria em breve e nos deixaria sem quaisquer cicatrizes. A noite de ontem estragou isso tudo. É claro que gostava que não tivesse
acontecido. Se formos obrigados a casar, aquele meu único erro irá arruinar as nossas vidas.
- Espero que não sejamos obrigados a casar um com o outro, nesse caso - disse ele, sem qualquer sorriso. - Mas será que a noite de ontem teve pelo menos um resultado
positivo? Foste capaz de colocar de parte o teu ódio pela viscondessa Ravensberg?
- Já estava mais do que na altura - disse ela com um suspiro, voltando costas para olhar para a casa, que parecia muito isabelina daquela perspetiva, com as suas
longas janelas com pinázios. - Os meus sentimentos tinham-se tornado um embaraço para mim, assim como para ela e para o Kit. Ela é uma senhora perfeita, atenciosa
e com um bom coração, tudo qualidades que odiava nela porque eu própria não as possuo. Mas, sim, entendemo-nos ontem à noite. Talvez até nos tornaremos amigas. Quem
sabe? Acontecem coisas estranhas todos os dias.
- E quanto ao visconde Ravensberg? - perguntou-lhe ele. - Perdoaste-lhe?
Ela suspirou outra vez e desviou o cabelo do rosto com um dos braços. - Não consegui parar de pensar durante toda a noite - disse ela - que se ele tivesse regressado
a casa no verão passado sem a Lauren, talvez não fosse capaz de resistir à pressão das expectativas da família dele e da minha. Podia ter-se casado comigo simplesmente
porque não conseguia encontrar uma forma de não se casar comigo. E eu ia dar-me conta disso, talvez não imediatamente, mas pouco tempo depois. Ia estar encurralada
num verdadeiro inferno. Não há nada a perdoar. Ele queria casar-se comigo há quatro anos, mas eu não me casei com ele. Não me devia nada no ano passado. E talvez
eu me tenha estado a agarrar a uma coisa que nunca existiu realmente. Eu estava apaixonada, desesperadamente apaixonada, mas não tenho a certeza se estar apaixonada
está mais próximo de amar realmente alguém do que sentir desejo por uma pessoa.
- Sentes desejo por mim? - perguntou ele.
Ela olhou de novo para ele e riu-se quando viu o riso de volta aos olhos dele.
- Oh, isso - disse ela - não posso negar. De qualquer forma, já deves saber, tal como eu sei o desejo que sentes por mim. Mas não seria suficiente para nos levar
a qualquer futuro em comum. E por esse motivo é perigoso e devemos resistir a ele a todo o custo.
Ela estava muito perto dele. As mãos dele estenderam-se para a agarrar pela cintura e a puxar contra si. Ele baixou a cabeça e beijou-a suavemente, quase de forma
indolente, com lábios ligeiramente afastados. Ela apoiou as mãos nos ombros dele e pensou, com uma sensação de desânimo, que a sua vida ia ficar com um vazio imenso
no lugar que ele ocupava depois de aquela farsa ter chegado finalmente ao fim.
- Embora nunca venha a saber - disse ela quando ele ergueu a cabeça - por que razão sentes desejo por mim. Sou tão feia.
- O quê? - Os olhos dele brilhavam de humor. - Em qualquer outra mulher isso seria uma tática muito pouco subtil para conseguir um elogio. Mas tu estás a falar a
sério. Deixa-me ver. Deixa-me olhar bem para ti.
Os olhos dele começaram a percorrer-lhe o rosto enquanto ela se perguntava o que a tinha possuído para dizer aquelas palavras estúpidas em voz alta. Há muito que
desistira de se lamentar por causa da sua aparência e de invejar Morgan pela dela. Ela era assim e ponto final. Quem não gostasse de olhar para ela podia simplesmente
olhar para outro lado.
- Não és bonita, Free, nem bela - afirmou ele. Pelo menos, não ia recorrer a nenhuma lisonja mentirosa. - És outra coisa, porém, bem acima dessas duas coisas. Tu,
minha querida, és absolutamente deslumbrante. Acho que depois de ti vou considerar para sempre todas as raparigas bonitas um tanto ou quanto insípidas.
- Que disparate! - Ela riu-se. - Mais um pouco dessa verdadeira bajulação e garanto-te que te empurro destas ameias abaixo.
- Estou cheio de medo e a tremer - disse ele e curvou-se para a pegar ao colo.
- Pousa-me no chão - exigiu ela, indignada.
Mas ele aproximou-se das ameias com ela e ergueu-a no alto. Ela soltou um grito agudo, prendeu os braços com firmeza à volta do pescoço dele e depois começou a rir-se
descontroladamente.
- Não te mexas - disse ele, também a rir-se - ou posso deixar-te c-c-cair, Free. Ups!
Ela soltou outro grito agudo quando ele fingiu fazer isso.
Por fim, ele pousou-a e ela ficou junto a ele, com o rosto apoiado no peito dele a recuperar do ataque de riso.
- Seu patife - disse ela. - Vou vingar-me. Juro que vou.
- Free - disse ele suavemente, com o queixo apoiado no cimo da cabeça dela -, há uma coisa que tem de ser dita. Se tivermos concebido uma criança, eu estive tão
envolvido no processo como tu. Teremos de nos casar e tirar o melhor partido do casamento pela criança e por nós. Não iremos desperdiçar energia com ressentimentos
e culpas mútuas e tornar-nos infelizes ao imaginar que o outro deve estar infeliz. Daremos o nosso melhor para nos darmos bem. De acordo?
Ela estava bastante abalada. Sentia-se quente e segura colada a ele e, contrariamente à sua maneira de ser, recebeu de bom grado a segurança sólida do corpo dele.
As palavras dele não alteravam nada. E alteravam tudo.
... se tivermos concebido uma criança...
- De acordo - respondeu ela.
Deixaram-se ficar naquela posição e nenhum deles parecia saber o que fazer a seguir.
- É melhor voltarmos para casa - disse ela bruscamente, dando um passo atrás. Estou esfomeada.
- Eu desço aquelas escadas à tua frente - disse ele. - São muito íngremes. Podes apoiar-te na minha mão se quiseres.
Freyja levantou o queixo num ângulo pronunciado e fulminou-o com o olhar do cimo do seu nariz.
- Oh, não! - disse ele, erguendo as mãos teatralmente como se se quisesse defender de um ataque. - E agora, o que foi que eu disse?
- Não te atrevas a tentar proteger-me! - disse-lhe ela, com uma voz fria e altiva. - Eu subi as escadas sem o auxílio condescendente da mão de um homem. Vou descer
as escadas da mesma forma.
- Diabos te levem - disse ele, abanando a cabeça e baixando os braços - não se pode ser um cavalheiro contigo, Free, sem despertar a tua fúria. Vai à minha frente.
Se partires o pescoço a descer as escadas eu vou ficar aqui atrás de ti, agradecido por não me estares a arrastar para baixo na queda. Melhor ainda, podes amparar
a minha queda quando tropeçar nas minhas próprias botas.
Freyja sorriu para si mesma quando começou a descer a íngreme escada em caracol.
Joshua gostava dos Bedwyn e lamentava o engano de que estavam a ser vítimas, embora esse engano deixasse de ter razão de existir se ele e Freyja fossem obrigados
a casar-se.
Rannulf e Judith iriam regressar ao Leicestershire no dia seguinte. Viviam em Grandmaison Park com Lady Beamish, a avó materna dos Bedwyn, mas ela tinha uma saúde
frágil e eles não queriam ficar ausentes mais tempo.
- Voltaremos a vê-lo em breve, Joshua - disse Judith quando se estava a despedir de todos -, por isso isto não é um adeus. Só espero que não marquem a data do casamento
para uma altura em que esteja impossibilitada de viajar. Mas isso é extremamente egoísta da minha parte. Ficarei muito feliz por si e pela Freyja onde quer que esteja
nesse dia.
- Deve ser um homem de fibra para se ter comprometido com a Free - disse Rannulf, piscando-lhe o olho quando apertaram as mãos. - Sem dúvida que não será um casamento
tranquilo. Ela não é facilmente controlada. Mas tenho o pressentimento de que encontrou alguém à sua altura. Será seguramente um casamento interessante.
- Não acredito - disse Joshua - que ela possa ser controlada, facilmente ou de qualquer outra forma. Talvez seja uma bênção que eu goste dela tal como ela é.
Rannulf riu-se de modo aprovador e deu-lhe um murro no ombro.
Aidan parecia severo e desprovido de humor até alguém o conhecer. Era decididamente reservado e era difícil arrancar-lhe uma gargalhada ou sequer um sorriso, mas
depressa se tornou evidente que adorava Eve e era dedicado às crianças. Passou grande parte do dia antes do batismo e os dias seguintes com as crianças, a brincar
com elas, a levá-las a passear e a andar a cavalo. Exigia cortesia e obediência deles, mas, fora isso dava-lhes uma rédea muito solta.
- Eles passaram por todos os terrores da rejeição e da insegurança depois de os pais morrerem - explicou ele depois de Joshua ter supervisionado o rapazinho no seu
pónei enquanto Aidan dava à menina uma aula de equitação uma manhã. - Até mesmo depois de estarem com a Eve há algum tempo e depois de eu me ter casado com ela,
alguém tentou tirá-las dos nossos braços numa vingança contra a Eve por se ter casado comigo. Foi preciso uma sessão em tribunal e o parecer de um magistrado para
estabelecer que somos os seus guardiães legais. Se eu tiver de passar os próximos vinte anos da minha vida a ajudá-los a acreditar que têm um lugar num lar, que
são amados incondicionalmente, que o mundo deles é um lugar predominantemente bom, que se podem atrever a ser adultos felizes e produtivos quando crescerem, considerarei
esses anos bem empregados.
- São crianças afortunadas - disse Joshua, relembrando-se da tristeza da sua própria infância.
- Têm todo o direito de o ser - disse-lhe Aidan. - É claro que existe a possibilidade de ver o ressurgimento dessas inseguranças quando a Eve gerar uma criança que
seja nossa, mas ainda não chegou esse momento e lidaremos da melhor forma com essa situação se isso acontecer.
Joshua via muito de si em Alleyne. Embora fosse um jovem alegre e permanentemente ativo, exibia um certo ar de insatisfação e ausência de objetivos.
- Invejo-o - disse ele quando os dois estavam sozinhos ao pequeno-almoço depois de se despedirem de Rannulf e Judith. - Tem a sua casa e a sua propriedade para onde
ir agora que é detentor do título e os seus serviços em França já não são necessários. E um casamento com alguém que ama para o ajudar a criar raízes. Acho que deve
amar a Free. - Ele esboçou um sorriso irónico. - Não consigo imaginar outra razão pela qual um homem se queira casar com ela a não ser a fortuna dela, e é óbvio
que não precisa do dinheiro dela.
- Não, não preciso - concordou Joshua. - Mas não me parece que seja um homem desprovido de fortuna ou de qualquer um dos atributos necessários para atrair uma futura
noiva, se é isso que deseja.
- O problema é que - disse Alleyne - eu não sei o que quero. Se fosse pobre, não teria outra alternativa senão encontrar um trabalho, não é assim? Presumo que teria
encontrado o meu lugar no mundo há muito tempo e seria razoavelmente feliz com isso. E se fosse pobre, não haveria tantas mulheres decididas a conquistar o meu afeto.
Talvez eu tivesse cortejado e conquistado alguém que me amasse por quem eu sou, uma mulher pela qual abdicaria alegremente da minha liberdade. A posição social e
a fortuna não estão isentas de problemas.
- Em tempos - disse Joshua - não tinha nem uma nem outra, e em geral, tenho de admitir que tem razão.
- Tendo dito isto - disse Alleyne pesarosamente, erguendo-se do lugar para se ir servir de mais comida do aparador -, não estou certo de que abdicaria de qualquer
uma dessas coisas mesmo se o pudesse fazer. Estive a pensar, com um pequeno incentivo da parte do Wulf, a candidatar-me a um lugar no Parlamento ou a aceitar algum
cargo no governo. Quanto ao casamento, não tenho pressa. De acordo com a tradição familiar, os Bedwyn devem ser monógamos depois de se casarem. Mais do que isso,
devem amar os seus conjugues. Não tenho a certeza se já estou pronto para esse compromisso, se é que alguma vez estarei. Espero que o Joshua esteja. A Freyja vai
exigir isso de si, com os punhos, se for necessário.
- Ora aí está uma ameaça que me enche de terror - declarou Joshua. - Já senti na pele duas vezes a força de um desses punhos, ou melhor, o meu nariz sentiu.
Alleyne atirou para trás a cabeça e riu-se.
- É assim mesmo, Free - disse ele.
Morgan era jovem, bela e estava prestes a fazer a sua apresentação à sociedade. Seria apresentada à rainha na próxima primavera e ia ficar em Londres para participar
no frenesim de todas as atividades sociais da temporada social londrina. Com todas as suas vantagens de nascimento, fortuna e aparência, não podia deixar de conquistar
a sociedade elegante e ser cortejada por todos os cavalheiros que estivessem à procura de uma mulher e por muitos que iam começar a ponderar o matrimónio depois
de pousar os olhos nela.
Mas ela não estava ansiosa por esse dia. Não era uma rapariguinha frívola sem nada na cabeça a não ser rapazes e festas.
- É tudo um grande disparate - disse ela ao jantar uma noite -, toda esta perda de tempo de uma apresentação à sociedade e de uma temporada social. E a ideia que
está por trás do mercado de casamento é desagradável e humilhante.
- Não tens medo que ninguém te faça uma proposta de casamento, pois não, Morgan? - perguntou Alleyne.
- Não tenho medo de nada disso - respondeu ela com desdém - por isso, podes tirar esse sorriso da cara, Alleyne. Tenho medo exatamente do oposto. Estou à espera
de ser rodeada por patetas presumidos, devassos velhíssimos e, sinceramente, homens entediantes de todas as idades. Tudo por causa de quem eu sou. Nenhum deles me
irá conhecer nem desejar conhecer-me. A única coisa que vão querer é um casamento com a abastada irmã mais nova do duque de Bewcastle.
- Felizmente, Morgan - disse Aidan -, tens o poder de dizer não a qualquer um ou a todos esses homens. O Wulf não é nenhum tirano e, mesmo se fosse, não te podia
obrigar a entrar num casamento contra a tua vontade.
- Vais conhecer alguém na próxima primavera - disse Eve - ou no ano a seguir ou no seguinte a esse e vai haver alguma coisa nele que vai ser diferente, Morgan. Alguma
coisa que vai mexer contigo aqui. - Ela tocou no coração. - E antes de dares por isso, mesmo que nunca tencionasses amá-lo ou sequer gostar dele, vais saber que
não existe mais ninguém no mundo para ti que não seja ele.
- A Eve encontrou o Aidan - disse Freyja, com uma aparente exasperação, embora houvesse um certo brilho aprovador nos olhos enquanto fitava a cunhada - e tornou-se
uma romântica incurável.
- Sim, é verdade - concordou Eve e riu-se, corando.
- Bom, não espero decididamente conhecer o meu futuro marido no mercado de casamentos londrino - disse Morgan com um gesto desdenhoso da cabeça. - Vou esperar até
aos vinte e cinco anos se for preciso, tal como a Freyja. Ela esperou até ter conhecido o homem certo. - Voltou-se para Joshua com aprovação no olhar.
- Ainda que tenha havido alguns percalços pelo caminho - acrescentou Alleyne.
Joshua descobriu que nem sequer antipatizava com Bewcastle. O homem era frio, austero e distante. Tomava as refeições com a família e juntava-se a esta na sala de
estar durante os serões. Mas, além disso, preferia a solidão. No entanto, convidou Joshua para a sua biblioteca depois do almoço no dia da partida de Rannulf e Judith.
Joshua calculou que esse género de convites fosse raro. Sentou-se na poltrona de pele que Bewcastle lhe indicou antes de este ocupar a que estava colocada do outro
lado da lareira.
- Foi apresentado à maior parte dos membros da nossa família - disse ele, pousando os cotovelos nos braços da poltrona e unindo os dedos - e a quase todos os nossos
vizinhos enquanto estivemos em Alvesley para o batizado. Quando regressei de Bath, tencionava oferecer uma festa à noite ou até mesmo um baile em honra do vosso
noivado. Mas vocês os dois podem considerar esse tipo de acontecimento indesejável. Presumo que o noivado ainda seja temporário.
Joshua hesitou e olhou fixamente para os olhos claros e inescrutáveis do duque. Por um momento, pareceu-lhe que quase podia ler naqueles olhos o conhecimento do
que se passara naquela noite em Alvesley.
- Como fez notar em Bath - disse Joshua - e como expliquei a Freyja antes disso, o meu noivado é muito real para mim. Só ela o pode terminar. Ela ainda não deu a
sua última palavra a esse respeito.
Ele já tinha reparado que Bewcastle não se desconcertava com silêncios prolongados, como aquele que se seguiu.
- Se a sua intenção for que ela dê essa última palavra - disse finalmente Bewcastle -, espero que crie as condições convenientes para ela o fazer. A Freyja pode
ser a última mulher que alguém esperaria ser vulnerável a um coração partido, mas não é uma coisa nova para ela.
- Eu sei - disse Joshua.
- Ah. - As sobrancelhas ducais ergueram-se.
- Vou descobrir o que é que Freyja pensa a respeito de uma festa ou um baile - disse Joshua, sentindo que tinha tido um breve vislumbre de um lado de Bewcastle que
ele mantinha cuidadosamente escondido mesmo da sua própria família. Ele preocupava-se com Freyja, e não apenas com o seu bom nome e, desse modo, com o bom nome dos
Bedwyn, mas com ela. Tinha receio de que ela sofresse de novo.
A porta da biblioteca abriu-se, nesse momento, com um estalido atrás de si e as sobrancelhas ducais arquearam-se ainda mais enquanto os seus dedos agarravam o cabo
do lornhão. Joshua olhou para trás e descobriu que o intruso era a pequena Becky, que espreitou pela porta durante um momento antes de dar um passo em frente e fechá-la
cuidadosamente atrás de si.
- Acabei de acordar da minha sesta - disse ela, decidida, na sua vozinha aguda - e o Davy não estava lá e a ama Johnson disse que eu podia descer. Mas a mamã, o
papá e os outros foram lá para fora e eu não quero ir ter com eles porque hoje está frio.
Bewcastle levantou o lornhão a alguma distância do olho. - Nesse caso, parece-me - disse ele - que a única alternativa é ficar dentro de casa.
- Sim - concordou ela. Mas não reagiu à sugestão implícita de que estava à vontade para utilizar qualquer uma das divisões da casa, exceto a biblioteca.
- Olá, tio Joshua - disse ela enquanto passava por ele para ir examinar o objeto que atraíra a sua atenção: o lornhão de Bewcastle. Ela tirou-o das suas mãos surpreendidas,
examinou-o atentamente, virou-o e levou-o até ao olho. A seguir, olhou para cima para o duque. - Ficas esquisito com isto, tio Wulf.
- Parece-me que sim - disse ele. - Assim como o teu olho.
Ela desatou a rir, antes de se virar e de torcer o corpo até ficar no colo dele, encostando-se ao peito dele e continuando o seu jogo com o lornhão dele.
A verdade é que, pensou Joshua enquanto Bewcastle deu início a uma conversa determinada a respeito de Penhallow, ele parecia ligeiramente desconfortável e ligeiramente
agradado. Estava muito quieto, como se tivesse receio de assustar a criança. Joshua calculou que nunca antes lhe tinha acontecido nada semelhante.
Freyja opôs-se categoricamente a qualquer celebração pública do noivado de ambos em Lindsey Hall, tal como Joshua esperava.
- Deus do Céu - disse ela, quando ele lhe perguntou isso durante uma partida de bilhar a meio dessa tarde -, o que virá a seguir? Um casamento a fingir? Isso já
é de mais! Vou discutir contigo muito em breve, Josh, e de uma forma muito pública, quer gostes disso ou não. Esta história toda está a tornar-se aborrecida e ridícula.
- Espera só mais um pouco - disse ele.
- Oh, espera, espera, espera - disse ela, impacientemente. - Vais continuar a dizer isso no meu octogésimo aniversário? Isto tudo tornou-se tão estúpido. Não, não
vai haver nenhuma receção, nenhum baile, nenhum chá, nenhum nada. Quem me dera que nunca tivéssemos começado isto. Quem me dera que não tivesses entrado de rompante
no meu quarto na estalagem naquela noite. Quem me dera não ter ido caminhar pelos Sydney Gardens naquela manhã. Quem me dera ter ignorado aqueles gritos tontos.
Quem me dera não ter dançado contigo no baile. Quem me dera...
- Se bateres nessa bola - advertiu-a ele - ela vai sair disparada pelo fundo da mesa e partir a janela pelo caminho.
Freyja pousou com violência o taco de bilhar.
- Josh - disse ela - estão todos tão felizes por mim. Por nós. Não consigo suportar mais isso.
- Podemos optar por dois caminhos, nesse caso - disse ele. - Podes discutir comigo, romper o noivado e mandar-me embora ou eu posso descobrir um assunto importante
que exige o meu regresso imediato a Penhallow. Eu sugeria a segunda opção, visto que não implica um fim imediato do nosso noivado e deixa-te com uma abertura para
me fazer regressar se isso for necessário.
Diabos, pensou ele, surpreendido, não queria ir-se embora já. Mas tinha de admitir que a situação se tornara intolerável e decididamente desnecessária. Olhando para
trás, não estava convencido de que Bewcastle tivesse tido razão em insistir na vinda dele e no prolongamento do noivado durante tanto tempo.
- Faz isso, então - disse ela, franzindo o sobrolho. - Mas como? Que razão irás dar?
- O meu administrador escreve-me com muita frequência - disse-lhe ele. - Ele sabe que eu estou aqui. É quase certo que irei receber uma carta dele nos próximos dias.
- Não vejo a hora de essa carta chegar - disse ela.
- Que palavras calorosas e românticas, querida - disse ele, erguendo uma mão e batendo ao de leve com o indicador no queixo dela.
Ela pegou no taco de bilhar, de sobrolho franzido, e inclinou-se novamente sobre a mesa.
CAPÍTULO 15
A carta chegou na manhã seguinte. Estava à espera dele em cima da bandeja de prata na grande mesa do átrio onde as cartas da família eram sempre colocadas, com exceção
das de Bewcastle, que eram separadas das restantes e entregues na biblioteca. Estavam de regresso de uma saída a cavalo, ligeiramente molhados, visto que começara
a cair uma chuva miudinha. O duque também se tinha juntado a eles naquela manhã. Os mais pequenos já estavam a correr pelas escadas acima em direção ao quarto das
crianças para mudarem de roupa.
- Aidan, está aqui uma carta da Thelma! - exclamou Eve, parecendo encantada. - E está aqui uma para ti por baixo, Joshua. - Ela entregou-lha com um sorriso.
Os olhos dele cruzaram-se com os de Freyja. Ela própria acabara de pegar numa carta que lhe fora endereçada. Foi um momento triste. A desculpa dele para partir estava
ali à sua frente. Já tinha pensado no que diria depois de "ler" a carta, o que podia corresponder parcialmente à verdade: depois das colheitas e com o inverno à
porta era urgente dar início a algumas reparações e reedificações das casas dos trabalhadores agrícolas e, por mais aborrecido que fosse esse tipo de assunto, teria
de supervisionar pessoalmente o trabalho, pelo menos durante algumas semanas. Durante essas semanas, Freyja ficaria a saber a verdade a respeito do seu estado e,
ou o traria de volta para organizar um casamento apressado ou poria um fim no noivado de ambos. Ficava a seu cargo pensar numa razão plausível para isso.
Ia deixar aquela casa no dia seguinte, pensou enquanto quebrava o selo da carta. Seria um homem livre de novo, assim que recebesse boas notícias da parte de Freyja.
Podia fazer o que quisesse durante o resto da vida. Podia continuar a gozá-la a seu bel-prazer.
A carta de Jim Saunders era mais curta do que o habitual. Joshua leu-a rapidamente e depois leu-a novamente mais devagar. Raios, pensou. Contrariara a determinação
daquela mulher e agora ela não se ia dar por satisfeita até o ter destruído. Aparentemente, ela preparava-se para fazer algo extremo.
- Está tudo bem, Josh? - perguntou Freyja, com uma voz deliberadamente alta e inquieta, e tal como ela tencionava, olharam todos para ele.
- Na verdade, não - disse ele. - Receio ter de partir para Penhallow sem demora.
- O que foi que se passou? - perguntou Eve, preocupada. - Espero que não seja nada de muito mau.
- Por acaso - disse ele -, estou prestes a ser acusado de homicídio.
- Homicídio? - Aidan falou por todos numa voz que em tempos devia fazer pular um regimento inteiro de homens e atrair a sua atenção. - Homicídio de quem?
- Do meu primo - disse Joshua, dobrando a carta. - Há cinco anos. Uma testemunha foi-se apresentar recentemente à minha tia, a marquesa de Hallmere. Está preparada
para jurar que me viu a matar o Albert.
- E matou-o? - perguntou Aidan, com uma expressão extremamente dura, a encarnar de forma impressionante o papel do coronel do exército que tinha sido.
- Não - disse Joshua, sorrindo. Ele sabia que aquilo não era engraçado, mas a situação estava a desenrolar-se como um melodrama, com todos eles de pé no grande átrio
como atores bem posicionados. - Embora tenha sido, aparentemente, o último a vê-lo com vida.
- Posso sugerir - disse Bewcastle, com uma expressão perfeitamente impassível, quase aborrecida - que passemos esta discussão para a sala dos pequenos-almoços?
Por alguns momentos, ninguém se mexeu além do próprio Bewcastle. Mas depois Freyja avançou apressadamente para junto de Joshua e deu-lhe o braço.
- Eu tenho fome - disse ela.
Ela fê-lo marchar em frente com passadas longas, deixando todos para trás.
- Eu já devia saber - disse ela, com uma voz baixa e furiosa - que ias inventar uma história absolutamente ridícula como esta. Achas mesmo que alguém vai acreditar
nela?
- Vou dar o meu melhor para ser convincente, querida - disse ele, enfiando a carta de Saunders no bolso do seu casaco de montar. - Pelo menos, vais ter uma desculpa
razoável para pôr um fim ao nosso noivado daqui a algumas semanas se se vier a revelar que eu sou um criminoso perverso, fechado à chave numa cela qualquer húmida
e sombria à espera de ser enforcado.
- Para ti, tudo é uma piada - retorquiu ela.
Não houve mais nenhuma oportunidade para uma conversa privada. Os outros não perderam tempo a ir atrás deles, ávidos por mais informações. Mas Bewcastle falou de
modo lânguido e determinado acerca do tempo até todos terem enchido os pratos junto do aparador e o mordomo ter servido o café e ser dispensado.
- Talvez agora, Hallmere - disse Sua Senhoria quando a família estava toda reunida e sozinha -, não se importe de nos esclarecer mais a respeito dessas acusações
contra si. Ou talvez não. A Freyja tem algum direito a saber. Os restantes não.
- O Albert afogou-se - explicou Joshua. - Ele e eu saímos juntos de barco para o mar durante uma noite que se tornou cada vez mais tempestuosa. Ele saltou borda
fora para nadar de volta para a praia. Não era um bom nadador, mas recusou-se a voltar para o barco. Eu acompanhei-o de barco até ele estar suficientemente perto
da praia para poder pôr os pés na areia, o que ele chegou a fazer, e depois levei novamente o barco para o mar durante uma hora ou mais. Foi uma atitude imprudente
da minha parte naquelas circunstâncias, mas tinha coisas em que pensar. Além disso, naqueles tempos, ainda me considerava invencível. Na manhã seguinte, ouvi dizer
que ele estava desaparecido. Mais tarde nesse mesmo dia, o corpo dele veio a dar à praia com a maré.
Eve levou as mãos à boca.
- Ele foi nadar outra vez depois de ter dado meia-volta com o barco? - perguntou Alleyne. - Foi uma decisão bastante estúpida numa noite de tempestade, especialmente
se não nadava bem. Ou será que ele também se considerava invencível?
- Parto do princípio que os dois tinham discutido - disse Alleyne.
- Sim - admitiu Joshua -, embora já não me consiga lembrar da razão da discussão. Estávamos sempre a discutir. Crescemos juntos em Penhallow, mas nunca morremos
de amores um pelo outro.
- E ainda assim - disse Bewcastle, beberricando o seu café e fitando Joshua com olhos prateados firmes - saiu de barco com ele de noite.
- Sim.
- E agora apareceu uma testemunha - disse Morgan com desdém. - Presumo que fosse alguém que também estava num barco ou a nadar por perto naquelas águas tempestuosas.
E o Joshua não o viu? A meu ver, essa testemunha deve ser alguém com esperança de fazer fortuna com uma pequena chantagem. Acha provável que a sua tia lhe pague?
É melhor regressar a casa e impedi-la de fazer isso.
- Têm de compreender que a minha tia - explicou Joshua - perdeu o seu único filho naquela noite. Ele era o herdeiro do título de nobreza e de tudo aquilo que lhe
estava associado, incluindo a casa que ela ainda considera o seu lar. Eu fui a pessoa que mais beneficiei com a morte dele, tornando-me o herdeiro de tudo. Há bem
pouco tempo, deixei bem claro que não me iria casar com a minha prima, a filha mais velha dela. Já estava... comprometido com a Freyja.
- Então ela está disposta a acreditar nesta testemunha? - disse Eve, com os olhos arregalados de ansiedade. - Oh, pobre Joshua. Como é que irá provar a sua inocência?
- Não conto que isso seja difícil - disse ele. - Mas tenho de ir até lá para tirar este assunto a limpo. Aparentemente, um outro primo meu, o meu presumível herdeiro,
foi convocado, e é inevitável que isto cause alguns problemas. Até porque, se a acusação for levada a sério, não tenho a proteção do meu título. A morte ocorreu
muito antes de eu ser o marquês de Hallmere.
- Oh, pobre Joshua - disse Eve de novo. - O que é que nós podemos fazer para ajudar?
- Gostava de dar uma palavrinha a esta testemunha - disse Alleyne. - Parece-me uma história muito duvidosa.
Freyja tinha-se mantido silenciosa no seu lugar do lado oposto da mesa todo aquele tempo, a observar Joshua com olhos frios e hostis. De repente, ergueu-se, empurrando
para trás a cadeira, que chiou de forma desagradável, e deu a volta à mesa com um passo imponente até chegar ao lugar dele. Enfiou a mão no bolso dele sem cerimónias,
tirou a carta de Saunders, abriu-a e ficou imóvel a lê-la. Os lábios dela estavam comprimidos numa linha dura quando terminou. Dobrou a carta e pousou-a ao lado
do prato dele.
- Aquela mulher está por trás disto - disse ela. - Precisa de levar uma lição de que nunca mais se irá esquecer. Partimos hoje. Uma hora deve ser mais do que suficiente
para nos prepararmos. Wulf, por favor faz com que a carruagem esteja pronta e à nossa espera daqui a uma hora.
- Nos prepararmos? - disse Joshua. - Nós?
- Achas mesmo que te vou deixar ir enfrentar isto sozinho? - perguntou ela altivamente. - Eu sou a tua noiva. Eu também vou.
- Sim, Freyja - disse Eve. - Concordo que deves ir.
- É claro que existe - disse Bewcastle - a pequena questão do decoro. Ainda não estás casada com o marquês de Hallmere, Freyja.
Ela emitiu um estalido impaciente com a língua, mas foi Alleyne que tomou a palavra.
- Eu posso ser o teu acompanhante, Free - afirmou. - Eu vou com vocês os dois. Na verdade, não perdia isto por nada deste mundo.
- E eu também vou - disse firmemente Morgan. - Não, não vale a pena pegares no teu lornhão, Wulf. Isso não me vai impedir. Tenho dezoito anos e é perfeitamente respeitável
ir visitar o meu futuro cunhado com a minha irmã e o meu irmão. Na verdade, parece-me justo que a Freyja tenha uma companhia feminina. A personagem da marquesa de
Hallmere não me agrada muito. Quero vê-la pessoalmente. E creio que ela devia ter a oportunidade de descobrir que a família à qual o Joshua se vai unir através do
casamento pode ser um inimigo poderoso.
- Bravo, Morgan - disse Eve. - Apesar de ainda não sabermos se a marquesa teve alguma coisa que ver com o aparecimento desta testemunha repentina. Mas gosto da ideia
de ela ser confrontada com todo o poder dos Bedwyn. É claro que, de todos vocês, o Aidan é o que parece mais feroz. Aidan? - Ela olhou interrogadoramente para ele.
Ele devolveu-lhe o olhar com um rosto inexpressivo durante alguns momentos antes de erguer as sobrancelhas e abanar ligeiramente a cabeça.
- Tínhamos planeado uma espécie de viagem de núpcias tardia depois de sairmos de Lindsey Hall - disse ele -, com as crianças, é claro. A precetora deles casou-se
há pouco tempo e ainda não a substituímos. Chegámos a ponderar a Região dos Lagos como um destino possível, mas a Cornualha é uma opção igualmente válida, isto é,
se formos convidados. Hallmere?
Um grupo de membros da família Bedwyn determinado a ser um adversário temível e feroz. Uma tia com uma vontade de ferro decidida a uma vingança tão implacável que
ameaçava a sua própria vida. Uma vizinhança em polvorosa por acusações de homicídio, uma testemunha misteriosa e algum tipo de investigação oficial a decorrer. O
primo Calvin Moore, o herdeiro piedoso, a dirigir-se a toda a pressa para Penhallow para reclamar uma herança obtida através de um crime abominável. E um noivado
falso ao qual fora concedido mais um prolongamento.
Que cavalheiro de sangue quente e de espírito desportivo conseguia resistir a semelhante cenário?
- É claro que estão todos convidados - disse Joshua -, se preferirem alguma excitação fora do comum em vez de um entretenimento mais convencional.
- Nós somos a família Bedwyn - disse Alleyne com um sorriso irónico.
- Estamos a perder tempo enquanto ficamos aqui sentados a falar - disse Freyja impacientemente. - Podemos estar a muitos quilómetros de distância ao anoitecer se
partirmos esta manhã.
Depois de um início de dia cinzento com chuva miudinha e nevoeiro, a perspetiva de uma viagem longa e inesperada para a Cornualha e de uma investigação de homicídio
potencialmente desagradável que envolvia o futuro cunhado deles no papel de único e principal suspeito parecia ter animado imenso os Bedwyn. Estavam todos a falar
ao mesmo tempo e a empurrar para o lado os respetivos pratos do pequeno-almoço enquanto Joshua saía da divisão com Freyja.
- Querida - disse ele, assim que ficaram fora do alcance do ouvido dos outros -, ofereci-te a oportunidade perfeita para te veres livre de mim hoje e a desculpa
perfeita para tu te livrares permanentemente de mim assim que tiveres a certeza de que não estás grávida. E mesmo assim, insistes em vir comigo?
- Aquela mulher foi demasiado longe desta vez - disse ela, com o queixo e nariz bem erguidos e um brilho ameaçador nos olhos. - Terei todo o prazer em mostrar-lhe
isso.
Ele soltou uma pequena gargalhada. - É possível que nunca te vejas livre de mim - disse.
- Que disparate - disse ela bruscamente. - Será apenas por mais um curto espaço de tempo. Mas que homem no seu perfeito juízo estaria sozinho num barco no meio do
mar durante uma noite de tempestade a ver alguém passar por perto noutro barco, sem reparar nele e a lançar o primo borda fora para o afogar? Que homem normal não
faria uma verdadeira algazarra se isso tivesse acontecido e não tentaria pelo menos salvar o homem que se estava a afogar? Que homem ficaria de boca calada a respeito
de tudo isto durante cinco anos e depois a decidia abrir exatamente no momento em que a mãe da vítima estava furiosa porque não conseguira convencer o assassino
a casar-se com a filha? Gostava de dar uma ou duas palavrinhas a esse homem.
- Que Deus o ajude - disse Joshua. - Tu e o Alleyne juntos. E parece-me que o Aidan e a Morgan também vão. Para não falar da Eve. Não te dás conta, meu encanto,
de que nos estamos a enfiar numa alhada cada vez mais profunda a cada dia que passa?
- Que disparate - disse ela de novo. - E não precisas de ter medo que a nossa relação se torne permanente, Josh. Ontem à noite descobri que fomos ambos poupados
a esse destino. Pelo menos isso é um alívio.
Ele olhou para ela. Não estava grávida? E, mesmo assim acabara de perder a sua oportunidade de se ver livre dele permanentemente nas próximas horas? E depois riu-se
em voz baixa.
- A próxima jogada é tua, queridinha - disse ele. - És tu que vais ter de encontrar uma forma de sair deste noivado. Eu estou resignado a ser um homem comprometido
até ao meu nonagésimo aniversário.
- Até daqui a uma hora - disse ela decididamente quando chegaram à porta do quarto dela. - Espero que todos estejam prontos e lá em baixo no átrio daqui a precisamente
uma hora, e nem um minuto depois disso.
- Sim, minha senhora - disse Joshua, sorrindo-lhe enquanto ela entrava rapidamente no quarto e fechava a porta com firmeza na cara dele.
Mas o sorriso dele esmoreceu e o estômago dele começou a dar voltas assim que ficou sozinho. Afinal, ia ter de voltar a Penhallow.
Era uma perspetiva sinistra.
A viagem foi longa e aborrecida. As conversas dentro da carruagem e nas diversas estalagens onde pararam para as refeições e alojamento giravam em torno de assuntos
neutros que provavelmente não eram de grande interesse para ninguém, nem para Freyja, decididamente.
Ela não conseguia acreditar que aquilo estava a acontecer. Durante os silêncios que uma viagem longa inevitavelmente criava, e mesmo durante algumas das conversas,
tentou reconstituir cada uma das fases da sua relação com Joshua para perceber como é que se tinha metido naquela grande alhada, como ele lhe chamara. Como é que
passara do ponto em que acordara a meio da noite e o descobrira a invadir o seu quarto para aquele momento em que viajava rumo à casa dele na Cornualha na qualidade
de noiva dele, acompanhada por metade da sua família? O seu envolvimento começara quando lhe deu asilo no armário e não o denunciou ao desagradável cavalheiro de
cabelo grisalho que nem sequer esperou que ela respondesse à pancada na porta dela.
O que teria acontecido se o tivesse denunciado? Será que toda a sua vida seria diferente naquele momento?
Partia do princípio que sim.
Assim como a dele.
Chegaram a Penhallow no final de uma tarde, tendo avançado quase todo o dia ao longo da estrada da costa, a admirar a vista. Não estava um dia de sol radioso. Nem
tão-pouco estava completamente nublado. O mar sob as falésias escarpadas tanto parecia cinzento-metálico e bastante ameaçador como exibia um tom azul resplandecente
e brilhante à luz do sol. Na maior parte do tempo a sua superfície era uma mistura dos dois extremos.
- Gostava de pintar o mar - disse Morgan. - Seria um desafio maravilhoso, não acham? Suponho que a maior parte de nós geralmente imagina que só tem uma cor, ou pelo
menos só uma cor naquele momento e dia em especial. Mas não é assim. Seria preciso uma paleta completa de cores para o pintar de forma fiel, e mesmo assim...
- No entanto, se entrasses no mar, apanhasses água com as tuas mãos e a deixasses escapar por entre os dedos - disse Joshua -, verias que não tem cor.
- A cor é projetada de outro lado - disse Morgan.
- Do céu? - sugeriu Alleyne.
- Mas se subires a uma montanha elevada - disse Morgan - vais descobrir que o céu, o ar, também não tem cor. O que dá cor ao céu? O que dá cor à água? Se conseguíssemos
entrar dentro de uma folha de erva, tal como conseguimos entrar dentro da água e do ar, iríamos descobrir que ela também não tem cor? - Os olhos dela brilhavam com
a intensidade do enigma.
- E quantos anjos conseguem dançar na cabeça de um alfinete? - disse Alleyne com uma risadinha. - Mesmo se os pudesses contar, Morg, não sei que interesse isso teria.
- A cor, a interpretação, vêm das nossas mentes - disse Freyja. Ela ergueu a mão para pedir silêncio quando Morgan abria a boca para falar novamente. - Mas o que
dá às nossas mentes essa capacidade, não sei. Talvez exista alguma coisa além das nossas mentes, alguma coisa da qual não estamos conscientes.
- A própria consciência? - disse Morgan.
Ela era uma rapariga estranha, refletiu Freyja. Bela, talentosa, destemida, tão orgulhosa e altiva como qualquer um deles, tão ousadamente desdenhosa como a própria
Freyja de algumas das regras e convenções mais rígidas da sociedade. Todavia possuía uma profundidade intelectual e aquela quase consciência mística dos mistérios
da existência que a maior parte das pessoas nem sequer se dava ao incómodo de questionar.
O que seria da sua irmã, perguntou-se Freyja, agora que já era adulta e estava prestes a ser lançada na sociedade? Será que ia encontrar um homem que a valorizasse,
que lhe desse rédea suficiente para se sentir livre, que não lhe cortasse as asas?
E o que seria de si? Assim que aquela questão disparatada da acusação de homicídio fosse esclarecida, ia ter de pôr um ponto final no seu noivado com Joshua. A questão
não podia ser mais uma vez adiada por qualquer razão pouco convincente que surgisse entretanto. Mas e depois, o que seria de si?
- Pode pintar em Penhallow - disse Joshua a Morgan - e sondar todos os mistérios do universo com o seu pincel. Mas, falando de Penhallow, a casa está prestes a ficar
visível depois desta curva.
A presença do vale de um rio que atravessava a paisagem tornara a curva necessária. A falésia virava bruscamente para longe do mar e depois descia gradualmente para
uma encosta íngreme. A estrada fora construída ao longo do cimo da falésia. Lá em baixo, um rio amplo corria lentamente na direção do mar. As ladeiras de ambos os
lados eram verdes, rochosas e cobertas em muitos lugares por relva-do-olimpo cor-de-rosa, giesta amarela e trevos brancos. No lado mais próximo do vale, erguiam-se
uma igreja e casas de uma aldeia, estas mais perto do mar e a subir a encosta por falta de terra suficientemente plana ao lado do rio.
Do outro lado, do lado ocidental do vale, talvez a pouco menos de um quilómetro do mar, e posicionada num vasto planalto a mais de metade da subida, erguia-se uma
grande e imponente mansão de pedra cinzenta. Estava parcialmente voltada para o mar, com relvados lisos em seu redor que se prolongavam pela encosta abaixo com canteiros
de terra castanha que deviam ser floridos no verão. Com a sua localização ímpar, rodeada pelos quatro lados, assim como por cima e por baixo pelas belezas selvagens
do litoral da Cornualha, a casa e o respetivo jardim eram como uma pedra preciosa perfeita e trabalhada.
A primeira vez que Freyja viu Penhallow foi acompanhada por uma espécie de sensação física pura, quase como se um punho colidisse com um baque surdo contra as costelas
abaixo do coração. Foi uma sensação quase dolorosa.
A estrada estava a descer lentamente, mas de forma bastante íngreme para o vale e para a ponte de pedra com três arcos que Freyja conseguia ver mais à frente. Do
outro lado, a estrada seguia o curso do rio a norte durante algum tempo antes de subir e deixar o vale para trás do outro lado. Também havia um caminho de entrada
íngreme e sinuoso até à casa e uma casa de pedra mais pequena, embora não insignificante, no início do caminho, que talvez fosse a casa da viúva.
Morgan e Alleyne estavam colados à janela do seu lado da carruagem, a olhar para fora. Joshua olhava por cima do ombro de Freyja.
- Realmente impressionante - disse Alleyne.
- Lindo! - disse suavemente Morgan.
Joshua estava calado. E tenso. Freyja conseguia sentir a sua tensão, embora ele não lhe estivesse a tocar. Ali era onde a tia e as primas viviam. Onde ele passara
uma infância infeliz depois de se ter tornado órfão. Onde ele nunca quisera regressar. E onde iria lutar contra a suspeita, a insinuação, a hostilidade, o ódio e
acusações de homicídio.
Eram as suas terras. Era a sua herança, a sua fonte de riqueza e prestígio, a sua responsabilidade. Era o fardo que carregava nos ombros.
Ela não sabia quase nada da vida dele ali, daquilo que o afastara, do motivo pelo qual se mostrara tão relutante em regressar. Mas estava prestes a descobrir muita
coisa. Não sabia se isso seria uma boa ideia. Sempre considerou Joshua um homem de riso fácil, despreocupado e charmoso, mas com um caráter um tanto ou quanto leviano.
Achou agradável namoriscar e partilhar uma cama com ele, mas não o achava minimamente desejável para ser o seu parceiro para toda a vida. Queria poder dizer-lhe
adeus sem verdadeiros arrependimentos.
Esperava que tudo isso não estivesse prestes a mudar, mas um aperto horrível no coração dizia-lhe o contrário.
Longe de ter essa intenção e sem qualquer razão racional, procurou a mão dele e apertou-a com firmeza. Ele entrelaçou os dedos nos dela e agarrou-a com tanta força
que ela sentiu dor. Numa situação normal, tê-lo-ia repreendido rispidamente ou tentado apertar a mão dele com mais força ainda. Mas deixou-se ficar calada e não
esboçou qualquer protesto.
As rodas da carruagem ressoaram por cima da ponte e Freyja conseguiu ter uma vista desafogada e bela ao longo do rio que corria para o mar. Tanto o rio como o mar
estavam a cintilar como um milhão de diamantes à luz do sol. As nuvens tinham-se deslocado momentaneamente da frente do sol.
Era difícil alguém aproximar-se de Penhallow sem ser visto a não ser que trepasse até ao promontório acima da casa e descesse furtivamente a colina a pé. A aproximação
de duas carruagens majestosas, de uma mais simples para os criados particulares e de dois coches de bagagens seria quase impossível de passar despercebida.
Mesmo assim, apenas Jim Saunders estava à espera no pátio de gravilha diante das portas da frente quando a primeira carruagem, na qual Joshua viajava com Freyja,
Alleyne e Morgan, abrandou para chegar ao mesmo tempo que as outras e depois se deteve um pouco mais à frente para deixar espaço para a carruagem de Eve e Aidan.
Já se estavam a aproximar moços de estrebaria vindos dos estábulos.
Joshua foi o primeiro a sair da carruagem. Apertou calorosamente as mãos do administrador que contratara em Londres há seis meses e não vira desde essa altura e
voltou-se para ajudar Freyja e Morgan a sair da carruagem antes de Alleyne descer. Aidan já tinha tirado as crianças da carruagem e as duas desataram a correr para
o outro extremo do pátio para olhar para o vale lá em baixo, que terminava numa extensa praia de areia dourada.
- Vim o mais depressa que pude - disse Joshua depois de ter apresentado Saunders aos Bedwyn.
- Ainda bem, meu senhor - disse-lhe Saunders. - O reverendo Calvin Moore chegou ontem à noite.
As portas da frente abriram-se finalmente e ao olhar para cima Joshua viu a tia no degrau superior com um ar frágil e enfermiço nas suas roupas negras de luto e
com um lenço debruado a negro junto dos lábios. Perguntou-se se ela estaria à espera dele e se contava que trouxesse Freyja consigo. Podia apostar que ela não contava
que ele trouxesse outros hóspedes. E os Bedwyn eram um grupo temível. À exceção de Eve, estavam todos a fitar a marquesa com as suas expressões mais altivas. Ninguém
conseguia superar os Bedwyn no que dizia respeito à altivez.
Joshua quase esboçou um sorriso rasgado, mas decidiu não o fazer.
- Tia? - disse ele, avançando com grandes passadas para junto dela.
Ela desceu os degraus e deixou-se cair nos seus braços.
- Joshua, meu querido rapaz - disse ela. - Que surpresa absolutamente agradável, e mesmo na altura em que já tinha perdido toda e qualquer esperança de alguma vez
regressares a casa. Estava mesmo agora a dizer ao primo Calvin... Mas tu não sabes que ele está cá de visita, pois não? Estava mesmo agora a dizer-lhe que seria
mais apropriado se fosses tu a recebê-lo, visto que Penhallow é tua e ele é o teu herdeiro, mas que não tinhas arranjado tempo para vir cá desde que o teu pobre
tio tinha falecido. E depois a Chastity viu as carruagens a chegar e eu soube que as minhas preces tinham sido ouvidas.
Não, concluiu Joshua, ela não estava à espera dele. Nem tão-pouco se tinha apercebido de que ele sabia do que estava em marcha, ou então decidira não falar disso
imediatamente. É claro que o teria recebido de forma bastante diferente se tivesse vindo sozinho.
- Estou encantado por estar aqui, tia - disse ele. - Trouxe convidados comigo, como pode ver. Já conhece a minha noiva. Posso apresentar-lhe Lord e Lady Aidan Bedwyn,
Lady Morgan Bedwyn e Lord Alleyne Bedwyn? A minha tia, a marquesa de Hallmere.
Ela recebeu-os graciosamente. Por um momento, pareceu que estava prestes a abraçar Freyja, mas alguma coisa na postura de Freyja a fez mudar de ideias e ela contentou-se
em brindá-la com um sorriso caloroso e lacrimejante. Um estranho podia ter jurado que a marquesa nunca se sentira tão feliz como naquele momento ao receber uma série
de hóspedes inesperados na casa que ainda considerava ser sua.
- E crianças! - exclamou ela, juntando as mãos no peito e fitando afetuosamente Becky e Davy, que ainda estavam a admirar a vista enquanto a ama deles os vigiava
atrás da terceira carruagem. - Que maravilha será ouvir as vozes felizes das crianças dentro das paredes de Penhallow novamente. Já passaram muitos anos desde que
tu, o Albert e as meninas eram crianças, Joshua. Foram bons tempos. Querem subir à sala de estar, onde estão todos a aguardar para vos conhecer? Devem estar ansiosos
por tomar um chá.
Joshua voltou-se para oferecer o braço a Freyja, mas antes que ela o pudesse aceitar, alguém passou a grande velocidade pela tia na porta de entrada. Corria desajeitadamente,
com os braços colados ao corpo até aos cotovelos e as mãos a agitarem-se de ambos os lados numa demonstração de grande entusiasmo. O rosto redondo e infantil sorria
de orelha a orelha de felicidade. Estava a rir-se convulsivamente, como uma criança a participar entusiasticamente num jogo.
- Josh! - repetia continuamente. - Josh, Josh, Josh.
Ele abriu os braços, ela lançou-se contra eles e não o deitou por terra por pouco. Os braços dela apertaram-se com força à volta do pescoço dele, quase o sufocando,
e a cabeça foi arremessada contra o peito dele, roubando-lhe quase todo o ar. Ela continuava a rir-se e a repetir o nome dele.
Os cinco anos que passaram tinham-na feito crescer e ele sabia que ela já fizera dezoito anos, mas não tinha mudado muito desde a última vez que a vira.
- Prue! - disse ele, abraçando-a. - Prue, meu doce.
- Voltaste para casa - disse ela junto ao peito dele. - Eu sabia que ias voltar para casa. Josh, Josh, Josh.
- Prudence! - disse a tia num tom de voz temível. - Como te atreves a sair da sala das crianças sem a minha permissão? Onde está Miss Palmer?
- Não há problema, tia - disse Joshua quando a prima começou a emitir sons semelhantes a grunhidos de aflição. - Foram as melhores boas-vindas que podia ter tido.
Trouxe algumas pessoas para tu conheceres, meu coração. Se me libertares, vou apresentar-tas.
- Lady Prudence Moore, minha prima - disse ele, olhando primeiro para Freyja. - Esta é Lady Freyja Bedwyn, Prue. Penso que ela vai deixar que a trates por Freyja,
e tratar-te por Prue. Ela vai ser minha mulher.
Porque acrescentara aquilo?
Prue exibiu o seu grande e sincero sorriso infantil a cada um dos Bedwyn à medida que lhes era apresentada e repetiu os nomes deles baixinho para si mesma para não
os esquecer. Quando Joshua terminou as apresentações, ela olhou para ele e riu-se.
- E este é o Josh - disse ela, tendo reparado que ele não fora apresentado a ninguém.
- E eu sou o Josh - disse ele, sorrindo afetuosamente para ela e passando um braço por cima dos ombros dela.
- E voltaste para casa.
- E voltei para casa.
- E trouxeste a Freyja contigo - disse Prue. - Gosto da Freyja. Gosto de todos. De quem gosto mais é da Eve. Sem contar com o Josh. Gosto mais do Josh do que qualquer
outra pessoa no mundo. Sem contar com a Chass e a Constance e...
- Prudence! - disse a mãe, numa voz um pouco mais branda.
Joshua soltou uma risadinha e olhou para Freyja. Ela não parecia fria, altiva, chocada, repugnada ou qualquer uma das coisas de que estava à espera. Estava a olhá-lo
fixamente, com um brilho de intensa curiosidade nos olhos.
A tia indicou o caminho no interior da casa. Eve avançou apressadamente em frente e pegou no braço de Prue, com um sorriso amável e muito genuíno a iluminar o seu
bonito rosto, enquanto Aidan atravessava em passadas largas o pátio para ir buscar as crianças. Morgan e Alleyne já tinham entrado na casa. Joshua ofereceu o braço
a Freyja.
- Ela foi sempre uma criança - disse ele. - Será sempre uma criança.
- E tu sentes amor por ela - disse Freyja.
- Ela é feita de amor - disse ele. - Não existe mais nada nela senão amor. Como não lhe retribuir com amor?
- Josh - disse ela com um suspiro -, isto era uma coisa que eu realmente não precisava de saber a teu respeito.
- Querida - disse ele, rindo-se suavemente -, achavas-me incapaz de amar? Isso não foi nada justo da tua parte.
CAPÍTULO 16
O átrio com colunas possuía a altura de dois andares com frisos e bustos de mármore que valia a pena examinar com mais atenção numa outra altura. A escadaria, com
os seus degraus largos e reluzentes de carvalho e um corrimão lindamente trabalhado estava numa divisão à parte. A sala de estar à qual a marquesa de Hallmere os
conduziu era um espaço grande, quadrado, de uma elegância clássica com uma lareira ornamentada com mármore esculpido, paredes revestidas de lambrins de papel seda
com pormenores a dourado, um teto alto em abóbada pintado com cenas da mitologia grega e uma janela saliente com alguma profundidade com vista para uma paisagem
de cortar a respiração, o vale lá em baixo e o mar em frente.
Freyja não reparou imediatamente na vista, mas assim que entrou na casa reparou que era muito mais majestosa do que esperava. Contudo, era um lugar onde Joshua nunca
quisera regressar.
Lady Constance aguardava-os na sala de estar. Sorriu com uma cordialidade genuína a Joshua e a Freyja. A senhora que estava ao seu lado, esguia quase até ao ponto
da magreza, de cabelo castanho, um rosto longo e oval e uns grandes olhos bonitos e tristes, era a sua irmã mais nova, Lady Chastity Moore. O cavalheiro ligeiramente
corpulento e um tanto ou quanto calvo com um colarinho tão duro e alto que tinha de mexer o tronco quando queria virar a cabeça, foi apresentado aos hóspedes recém-chegados
como o reverendo Calvin Moore, o segundo primo de Joshua.
O herdeiro que fora chamado, presumiu Freyja.
Foi Joshua quem fez as apresentações, não a tia dele. Freyja reparou com algum interesse que toda a sua atitude se alterara assim que tinham entrado na sala de estar.
A divisão tornou-se quase visivelmente dele. Transformou-se no senhor da casa. Convidou todos a sentarem-se depois das apresentações terem sido feitas e a apreciar
a vista da janela saliente. Perguntou à tia se podia mandar vir chá para todos.
- Prudence - disse a tia dele, com um sorriso doce a contrariar o olhar venenoso que lançava à filha mais nova -, volta imediatamente para junto de Miss Palmer na
sala das crianças.
- Não - disse Joshua, encarnando o papel do marquês de Hallmere dos pés à cabeça -, a Prue pode ficar para o chá, tia.
A rapariga agitou as mãos, entusiasmada, e Lady Chastity pegou numa delas e puxou a irmã para junto de si num sofá de dois lugares.
- Claro que sim - concordou Eve, sentando-se perto de ambas e sorrindo abertamente para as duas. - Viemos até cá para ver a casa do Joshua e para conhecer os membros
da família dele que vivem cá. A Prue é um deles.
- É realmente uma vista esplêndida - comentou Alleyne depois de caminhar descontraidamente até à janela saliente. - Presumo que a praia deste lado do vale seja privada,
não é assim? Faz parte da propriedade? Que inveja.
- Continuo a querer pintar o mar - disse Morgan, que estava ao lado de Alleyne. - Mas também quero pintar este vale, a casa e o jardim na encosta. Que bom que vai
ser o meu cunhado, Joshua. Posso vir visitar-vos várias vezes por ano e em alturas diferentes para dar uso a toda a minha paleta de cores. Oh, Freyja, tudo isto
também vai ser teu.
- Parece-me que estas são terras de carneiros, não é assim, Joshua? - perguntou Aidan. - As terras de cultivo ficam acima do vale? Estou ansioso por vê-las na sua
companhia e por conversar com o seu administrador.
Freyja estava a ignorar a vista da janela naquele momento. Estava a observar de forma muito deliberada a divisão, posicionada no meio desta e a girar lentamente
o corpo.
- É uma divisão magnífica - disse ela na sua voz mais altiva. - Parece-me que vou querer mudar alguns dos móveis e cortinados depois de nos casarmos, Josh, mas pouca
coisa. Vou gostar imenso de receber pessoas aqui. Atrevo-me a dizer que também terá gostado de receber pessoas aqui no tempo que passou nesta casa, minha senhora.
- Ela sorriu graciosamente para a marquesa que sorriu docemente de volta. A chegada dos tabuleiros do chá deu à marquesa um pretexto para não responder.
Os Bedwyn, pensou Freyja, tinham-se feito entender.
Joshua estava a falar com o seu segundo primo.
- Foi uma coincidência feliz estar de visita a Penhallow exatamente na altura em que trouxe a minha noiva e parte da sua família para ver a casa que será dela depois
de nos casarmos - disse ele. - Devem ter passado quase dez anos desde a última vez que o vi, Calvin. Decidiu tirar umas férias na Cornualha?
O reverendo Calvin Moore ficou ruborizado. - Fui convidado para vir até cá pela prima Corinne - disse ele, de maneira hirta.
- Não me diga? - Joshua ergueu as sobrancelhas e olhou para a tia com um sorriso. - Tia, adivinhou que eu iria trazer a Freyja para cá em breve e lembrou-se de me
fazer uma surpresa com uma visita do meu herdeiro? Isso foi extraordinariamente amável da sua parte. Sinta-se à vontade para ficar uma semana ou mais, Calvin. Melhor,
fique o tempo que desejar. Vai ser bom ter a minha família por perto enquanto a família da Freyja está cá.
Mr. Moore pigarreou. - Isso é amável da sua parte - disse.
Todos se sentaram para tomar chá depois disso e seguiu-se uma conversa amena em torno de diversos assuntos. Era uma situação engraçada, pensou Freyja. O único assunto
não mencionado parecia estar a pairar na sala. Uma testemunha que se apresentara para acusar Joshua de um homicídio ocorrido há cinco anos. Era óbvio que o reverendo
Calvin Moore já tinha conhecimento disso. Assim como as filhas, com a exceção provável de Prue. Assim como Joshua e todos os Bedwyn. Mas nem uma palavra do escândalo
pendente foi proferida em voz alta.
Freyja calculou que a marquesa fora apanhada de surpresa pela súbita chegada do sobrinho, pelo facto de ele a ter trazido consigo, bem como outros hóspedes, e pelos
seus modos educadamente imperiosos. Ela tramara a conspiração, mas era óbvio que esta ainda não fora posta completamente em prática.
E, por esse motivo, aquela cena suscitava uma absurda sensação de normalidade. Duas famílias, prestes a unir-se através do casamento, tomavam chá juntas e eram afáveis
uma com a outra. A marquesa quase reluzia de alegria.
- Mrs. Richardson deve estar pronta para vos conduzir aos quartos - disse ela, depois de terminarem de tomar o chá. - Estou certa de que todos devem desejar descansar
antes do jantar. Será maravilhoso ter tantos hóspedes à minha mesa. Como desejei este momento. Não foi, Constance?
- Descansar? - disse Freyja, sorrindo ligeiramente para a mulher. - Não me parece, minha senhora. Vou mudar de roupa, refrescar-me e depois estarei pronta para uma
visita guiada da casa. Posso contar contigo, Josh?
- Será um prazer - disse ele. - Será que todos se querem juntar a nós? O Calvin também? E Chass, tens de nos acompanhar, se quiseres. Sempre foste a pessoa, de todos
nós, que mais pormenores sabia acerca da casa. E sim, Prue, meu coração, claro que não vamos sem ti. Encontramo-nos todos no átrio daqui a meia hora?
A casa era bem maior do que lhe parecera à chegada. Era um edifício elegante e quadrado. A maior parte das divisões públicas situavam-se na ala da frente, viradas
para sudeste e para as vistas magníficas dos jardins, do vale e do mar. Os aposentos privados e os quartos de vestir situavam-se na ala este e os aposentos de aparato,
o salão de baile e a longa galeria de peças de arte na ala ocidental. A ala norte, virada parcialmente para o vale e parcialmente para trás, para os jardins em declive
e para a encosta, consistia principalmente de escritórios, com os aposentos dos criados nos pisos superiores.
Joshua falou durante a maior parte do tempo à medida que lhes mostrava tudo, embora Constance acrescentasse alguns comentários. Mas foi Chastity que deu todas as
explicações assim que chegaram aos aposentos de aparato e à longa galeria. Ela sabia a história de cada pormenor arquitetónico, de cada peça de arte, de cada geração
da família Moore que vivera ali, tanto na casa antiga, antes de ter sido demolida, como na nova, que existia há apenas quatro gerações. Ela falava de forma suave,
clara, concisa e com uma paixão óbvia. Freyja descobriu que gostava muito de todas as irmãs. Todas elas pareciam surpreendentemente diferentes da mãe.
Joshua, liberto da responsabilidade de ser o guia nos aposentos de aparato, puxou a mão de Freyja para junto do seu braço e fitou-a com olhos sorridentes.
- Os Bedwyn são realmente temíveis quando entram em ação - disse ele. - Tu, mais do que todos, querida. Então, vais remodelar a minha sala de estar? E gostar de
receber pessoas lá?
- Os cortinados são da cor errada - disse ela. - E várias das cadeiras são de mau gosto. São exageradamente ornamentadas.
Ele riu-se em voz baixa. - Vou gostar imenso de receber pessoas aqui - disse ele, citando-a palavra por palavra. - Atrevo-me a dizer que também terá gostado de receber
pessoas aqui no tempo que passou nesta casa, minha senhora. Se ao menos pudéssemos ter lido os pensamentos dela naquele momento, Free.
- Não veio à baila nenhuma suspeita de homicídio - afirmou ela.
- Mas virá. - Ele fez um sorriso trocista.
Eles eram tão parecidos, pensou ela. Ele estava a divertir-se. Era um idiota. Podia ser enforcado se fosse condenado, mas a perspetiva excitante do perigo só o fazia
sorrir estupidamente.
O resto do dia desenrolou-se de forma muito semelhante. Joshua ocupou a cabeceira da mesa ao jantar e sentou Freyja à sua direita e Constance à sua esquerda. A tia
dele ocupou o lugar no fundo da mesa. Ele dirigiu-lhe um aceno firme quando achou que era altura de as senhoras se retirarem e deixarem os cavalheiros entregues
ao vinho do Porto e às conversas masculinas.
Chastity e Morgan, que pareciam ter desenvolvido uma espécie de amizade, entretiveram-se mutuamente e a todas as outras no pianoforte, Eve sentou-se ao lado de Prue,
que Joshua permitira que jantasse com todos (Freyja imaginou que isso nunca acontecera antes) e Freyja ficou junto da janela saliente a olhar para a escuridão até
os cavalheiros se juntarem a elas.
Eve entabulou uma conversa com a marquesa e Constance. Não possuía a altivez gélida dos Bedwyn, mas saía-se bastante bem na sua própria forma de ser tranquila e
doce.
- Deve ser triste perder muito mais do que apenas o parceiro de uma vida quando este falece - disse ela. - Ser a senhora de Penhallow deve ter sido uma parte maravilhosa
do seu casamento, minha senhora. Estou certa de que a Freyja também gostará. Quais são os seus planos para o futuro? Ou ainda é demasiado cedo para ter chegado a
alguma decisão? Estou a ver que ainda se encontra de luto.
A marquesa tocou levemente nos olhos com um lenço. - O meu querido marquês de Hallmere, o falecido, é tudo aquilo em que consigo pensar de momento, Lady Aidan -
disse ela. - É claro que irei receber Lady Freyja aqui de braços abertos. Há muitas coisas que lhe posso ensinar a respeito da gestão de uma casa tão grande, embora
me atreva a dizer que ela deve ter aprendido alguma coisa a esse respeito em Lindsey Hall.
- A casa da viúva no vale é um lugar muito agradável - disse Eve.
- Que bonita é a execução da sua irmã, Lady Freyja - disse a marquesa, erguendo a voz. - E é uma jovem tão bela. Atrevo-me a dizer que ela estará casada antes do
próximo verão. As raparigas mais bonitas são sempre as primeiras a casar-se.
- Se escolherem casar-se, minha senhora - disse Freyja. - Não tenho a certeza se a Morgan se insere nesse grupo.
- E a senhora, Lady Constance - prosseguiu Eve -, quais são os seus planos, agora que o ano de luto da sua mãe está a terminar? Talvez uma temporada em Londres?
Se a Freyja e o Joshua se casarem antes da primavera, a Freyja será perfeitamente capaz de a apadrinhar, caso a sua mãe ainda não se sinta com disposição para isso.
Sim, pensou Freyja, sorrindo para si mesma, Eve era tão temível como qualquer um deles.
- Já está mais do que na hora de voltares para a sala das crianças, Prudence - disse a mãe naquela voz lamurienta infantil de que Freyja se lembrava tão bem.
- Vem, Prue. - Eve pôs-se de pé e fez a rapariga levantar-se. - Está mais do que na hora de eu subir e ler algumas histórias à Becky e ao Davy antes de os aconchegar
na cama. Também gostavas de ouvir algumas histórias?
Mais tarde, depois de os cavalheiros terem regressado à sala de estar e de todos terem tomado chá e prolongado a conversa mais um pouco, a marquesa sugeriu que se
retirassem cedo, sugestão que estava certa de que todos receberiam de bom grado após uma viagem tão longa.
- E eu própria devo confessar que me sinto bastante fatigada - disse ela - com toda esta excitação de receber o querido Joshua de volta a casa, onde ele pertence,
a sua querida noiva e a sua respetiva família.
Ninguém exprimiu qualquer objeção. Fora realmente uma viagem muito longa. Mas, aparentemente, Joshua ainda não estava preparado para se retirar.
- Gostavas de apanhar um pouco de ar fresco antes, Freyja? - perguntou.
- Mas Joshua, querido - disse a tia numa voz fraca -, Lady Freyja vai precisar de levar a criada.
Alleyne sorriu ironicamente e ergueu as sobrancelhas para Freyja.
- Ela vai estar com o noivo, minha senhora - disse Aidan, maravilhosamente arrogante e cerimonioso. - Não existe qualquer necessidade de uma acompanhante.
- E mesmo se existisse... - disse Freyja, arqueando as sobrancelhas e deixando a frase incompleta. - Sim, gostava muito, Joshua, obrigada.
A noite estava fria, como era próprio do início do outono, mas mesmo assim, estava uma bela noite. O céu, que estivera tão escuro há pouco enquanto permanecera junto
da janela saliente da sala de estar, estava agora repleto de estrelas e o luar resplandecia numa faixa larga e cintilante ao longo do mar e da parte mais baixa do
rio.
Havia um caminho que ia ter à encosta ao mesmo nível que a casa, rodeado por arbustos e canteiros de flores no lado interior, da colina, e por um muro de pedra ao
nível da cintura meio coberto por hera e outras plantas do outro lado. Para lá do muro, havia mais uma fila de flores e depois um relvado numa inclinação descendente
até uns arbustos e à estrada lá em baixo. Freyja imaginou que no verão aquilo devia ser tudo uma explosão de cor. Era lindíssimo, mesmo à noite.
- Que mulher pateta que é a tua tia - disse ela. - Não tencionavas cá voltar, pois não? Ias deixá-la viver o resto da vida em paz aqui e governar a casa como se
fosse dela. Porém, ela teve de provocar problemas onde eles não existem.
- E agora a Morgan vem visitar-nos com alguma frequência para poder pintar, o Alleyne vem até cá para desfrutar da minha praia privada, o Aidan está interessado
nas minhas quintas, a Eve está a planear uma apresentação à sociedade londrina para as minhas primas, tu estás a planear remodelar a minha casa e eu estou aqui -
disse ele. - Sim, suponho que se a minha tia pudesse voltar atrás e ignorar a carta de Mrs. Lumbard a informá-la da minha presença em Bath, talvez o fizesse. Ou
talvez não. Ela sempre teve de se sentir a controlar completamente tudo à sua volta.
- Porque é que nunca mais querias voltar para cá? - perguntou ela.
Ela sabia muito pouco sobre ele além do facto de ser uma companhia divertida e atraente. Era estranho como se podia conhecer um homem da forma mais íntima possível
fisicamente e, apesar disso, não conhecer absolutamente nada dele enquanto pessoa. Não quisera conhecê-lo. Continuava a não querer. Contudo, parecia inevitável agora.
Tomara a decisão impulsiva e louca de o acompanhar até ali e agora fora arrastada de forma irreversível para a vida dele.
- Vim para aqui quando tinha seis anos - disse ele - depois de os meus pais terem morrido. De início, nem sequer me disseram que eles tinham morrido. Disseram-me
que tinham tido de se ausentar durante algum tempo. Pensavam que gradualmente eu me iria esquecer deles e nunca teria de saber a terrível verdade. Mas a minha tia
disse-me da primeira vez que fiz uma travessura. Os meus pais teriam ficado muito desapontados por saber que tinham um menino tão mau, disse-me ela. Ainda bem que
estavam mortos e que nunca o saberiam.
- Ah, sim - disse Freyja. - É mesmo o tipo de coisa que a marquesa diria. Espero que lhe tenhas dito para ir para o diabo.
- Disse - respondeu ele -, em palavras bem mais coloridas do que essas, creio eu. Mas soube naquele momento o que a verdade significava para mim. Tinha suportado
a vida aqui até essa altura com toda a paciência. Aguardava ansiosamente pelo dia em que a minha mãe e o meu pai me fossem buscar para me levar para casa. Senti
um vazio verdadeiramente aterrorizador ao saber que eles tinham desaparecido para sempre. E, ao mesmo tempo, fiquei a saber que a minha vida com o meu tio, tia e
primos era a minha vida permanente.
- Espero que - disse ela com acrimónia, lutando contra a pena que sentia pelo rapaz que ele fora - nunca tenhas sido subserviente.
Ele riu-se. - Querida - disse ele -, já devias estar lavada em lágrimas com pena de mim neste momento. Não, nunca fui. Decidi que se a minha tia estava determinada
a considerar-me mau, faria tudo o que estivesse ao meu alcance para merecer essa reputação.
- E o teu tio? - perguntou ela. - E os teus primos? Eles partilhavam a opinião pouco favorável dela a teu respeito?
- O meu tio não teve outra escolha - disse ele. - Eu era mau, Free. Podia pôr-te os cabelos em pé com um relato das minhas proezas.
- Duvido - declarou ela. - Eu cresci com os Bedwyn e os Butler. Eu própria sou uma Bedwyn. Mas na minha família éramos chamados impetuosos e travessos antes de sermos
castigados. Nunca maus.
- Dava-me bastante bem com as raparigas - disse ele. - Mas elas eram muito mais novas e, por esse motivo, nunca foram realmente minhas companheiras de brincadeiras.
- Parto do princípio que - disse ela - a tua tia te odiava porque eras o herdeiro a seguir ao filho dela.
- Sem dúvida. - Ele soltou uma risadinha.
- Oh - disse ela quando dobraram uma pequena esquina no caminho e foram subitamente fustigados pelo vento. Naquele ponto também tinham uma vista muito mais ampla
do mar e surgira a visão da aldeia no lado oposto do rio. - Magnífico!
- É, não é? - concordou ele.
Contudo, ele nunca mais quisera voltar àquele lugar.
- Como era o Albert? - perguntou ela.
- O filho perfeito - disse ele. - Aprendeu tudo o que havia para aprender com o meu tio e ajudava-o nos assuntos da propriedade sempre que podia. Adorava a mãe e
era atencioso com as irmãs. Distinguiu-se nos estudos, na escola e na universidade. Era um membro ativo da igreja e contribuía para todas as obras de beneficência
que surgiam. Intercedia frequentemente a meu favor junto da mãe.
- Eu tê-lo-ia odiado - disse Freyja.
Ele riu-se suavemente. - Sim, acredito - concordou.
- E, mesmo assim - disse ela -, estavas sempre a discutir com ele? Afirmaste isso em Lindsey Hall.
- É claro que sim - disse ele. - Por norma, o mau não gosta do bom, Free. Eu era muito, muito mau. E o Albert era muito, muito bom. Ele dava-me muitas vezes sermões
a respeito da bondade e eu dizia-lhe o mesmo número de vezes o que é que ele podia fazer com os sermões.
A voz dele exibia a habitual zombaria. Freyja apercebeu-se de que era uma máscara atrás da qual escondia todas as sombras mais escuras da sua vida. Ela perguntara-se
antes se a máscara não escondia absolutamente nada ou escondia, de facto, alguma coisa. Agora sabia a resposta, embora ainda não tivesse penetrado naquelas sombras.
Não queria fazê-lo. Queria ser capaz de se lembrar de Josh como um namorico ligeiro que, durante uma noite memorável, se tornara algo mais. Não queria sentir nenhum
arrependimento depois, nenhuma memória melancólica de uma pessoa que podia ter valido a pena conhecer.
Eles tinham dobrado outra esquina no caminho. A encosta erguia-se diante deles numa escarpa quase a pique e ficaram de novo abrigados do vento. Pararam de caminhar
e Joshua inclinou-se para apoiar os cotovelos no muro e olhar lá para baixo. O luar iluminou o seu perfil. Ele estava a sorrir.
- Se odiavas assim tanto a vida aqui - perguntou-lhe ela - porque é que ficaste tanto tempo? Só te foste embora daqui há cinco anos. Já devias ter... Que idade tinhas?
Vinte e dois ou vinte e três anos?
- Vinte e três - disse ele. - Eu deixei Penhallow quando fiz dezoito anos. Fui viver para Lydmere. - Acenou com a cabeça na direção da aldeia. - Ofereci-me como
aprendiz de um carpinteiro e aprendi o ofício. Era bom no que fazia. Podia ter-me saído muito bem nisso. Estava razoavelmente feliz e teria continuado a ser feliz,
creio eu.
Era um pensamento estranho que Lady Freyja Bedwyn nunca tivesse conhecido Joshua Moore, carpinteiro, da aldeia de Lydmere na Cornualha e ignorasse a sua existência
mesmo se os caminhos de ambos se cruzassem de algum modo. Teriam sido de mundos diferentes.
- Mas depois o Albert morreu e tornaste-te o herdeiro de tudo isto - disse ela - e tudo mudou.
- Sim. - Ele olhou para ela com um sorriso estranhamente trocista nos lábios. - E depois tornei-me o marquês de Hallmere e pude aspirar à mão da filha de um duque,
ainda que seja por intermédio de um noivado falso. A vida é estranha, não achas?
Mas ele ainda não explicara por que motivo tinha partido.
Freyja lembrou-se de uma coisa naquele momento, à qual não prestara muita atenção na altura. Joshua dissera à sua família em Lindsey Hall que já não se conseguia
recordar por que motivo ele e Albert tinham discutido no barco na noite em que Albert morreu. Como é que não se conseguia recordar? Tendo em conta o desfecho daquela
noite, decerto que cada um dos pormenores devia estar gravado na sua memória.
Mas não lhe iria perguntar nada. Na verdade, não queria saber, embora aquele argumento estivesse a perder força na privacidade dos seus próprios pensamentos.
- Deixaste completamente de vir a Penhallow durante os anos em que estiveste a viver na aldeia? - perguntou.
- Vinha uma vez por semana no meio dia livre que tinha do trabalho - disse ele. - Vinha ver a Prue.
- Pobre rapariga - disse Freyja. - A mãe não tem muito carinho por ela, pois não?
- Não é necessário utilizar a palavra pobre para descrever a Prue - disse ele. - Tendemos a encarar os que têm capacidades físicas e mentais diferentes da norma
como criaturas com deficiências ou incapacidades dignas de pena. Utilizamos palavras como aleijados e idiotas. Vemo-los da nossa própria perspetiva limitada. Conheci
em tempos um cego cuja capacidade de se maravilhar com o mundo me fez ter vergonha das minhas próprias perceções limitadas. A Prue é feliz e transpira amor, dois
atributos que muitos de nós deixamos de ter depois da infância. Em que sentido ela é incapacitada? Ou deficiente? Ou pobre?
Ele falou com uma intensidade que fez com que Freyja não o reconhecesse. Ele fora amável e paciente com a rapariga toda a tarde e todo o jantar, sem qualquer sinal
de sacrifício, aborrecimento ou condescendência. Prue não fora a única a transbordar de amor. Joshua fizera-a lembrar muito de Eve, que Aidan descrevia afetuosamente
como uma mulher com um coração enorme e uma predileção por enjeitados. A casa de ambos estava repleta de serviçais que mais ninguém empregaria por uma razão ou outra,
incluindo a governanta, uma ex-presidiária verdadeiramente feroz que morreria de bom-grado por Eve e que Freyja admirava imenso.
- Talvez agora que regressaste - disse ela - decidas ficar, assim que este disparate que a tua tia tem estado a maquinar seja esclarecido. É claro que terás de a
colocar a morar noutro lado qualquer, mas ela não pode ter ficado completamente na miséria.
- De modo nenhum - afirmou ele. - Mas ela vai continuar a viver aqui. Eu não.
Se ela estivesse no lugar dele, pensou Freyja, teria feito tudo que estivesse ao seu alcance para ter a satisfação de expulsar a marquesa de Penhallow, de a privar
de tudo aquilo que não era seu por direito. Mesmo que escolhesse não viver ali, não ia permitir que a outra mulher o fizesse. Ia desfrutar da satisfação de uma pequena
vingança.
Mas aquilo que Joshua fazia ou não, não lhe dizia respeito. Ele não lhe dizia respeito.
- Uma encosta tranquila numa noite estrelada - disse ele -, com o luar a iluminar o mar. E com uma mulher deslumbrante ao meu lado. O que estou eu a fazer, a conversar
educadamente com ela e a admirar a vista? Devo estar a perder qualidades, e também perdia depressa a minha reputação se alguém me visse a fazer isto. - Ele endireitou-se
junto ao muro e lançou-lhe um sorriso trocista.
- Podes imaginar, se quiseres - disse ela -, que a minha criada está a alguns metros de distância.
Ele riu-se baixinho. - Mas o Aidan disse que não precisavas de uma acompanhante - lembrou-lhe ele.
- Porque o Aidan confiou em ti - disse ela - e porque ele pensa que estamos noivos.
- E é verdade que estamos - disse ele -, graças à minha tia e ao Bewcastle. E graças à tua decisão de me acompanhar até cá. O teu cabelo está solto por baixo desse
capuz, não está?
Ela retirara os ganchos quando fora ao quarto buscar a capa.
- O que é que isso tem que ver com o resto? - perguntou ela altivamente. Agora que ele falara nisso, o cenário à volta era mesmo propício ao romance ou a brincadeiras
amorosas. Mas ela já se envolvera o suficiente nessas atividades com Joshua durante as últimas semanas. Eles tinham realmente muita sorte por não serem obrigados
a casar-se um com o outro. Não devia encorajar mais indiscrições.
Mas ele aproximou-se dela e ergueu as mãos para lhe empurrar para trás o capuz. O cabelo caiu-lhe em cascata à volta dos ombros e pelas costas. Havia vento suficiente,
mesmo naquele ponto abrigado, para o levantar e fazê-lo esvoaçar à volta do rosto.
- É só porque - disse ele - um homem de sangue quente fica em pulgas por enrolar os dedos num cabelo assim, Free. Não é nada pessoal, é claro, mas eu tenho o sangue
quente. - Os dedos dele brincaram com o cabelo dela e depois entrelaçaram-se nele. - É claro que depois de fazer isso, ele não consegue resistir a fazer isto. -
Puxou-a contra si e inclinou-lhe a cabeça para trás. Ela fitou o rosto dele iluminado pelo luar. Os olhos dele riam-se para ela.
- Mas o problema - disse ela, colocando as mãos na cintura dele - é que a mulher depois sente um vontade quase irresistível de atacar esse homem de sangue quente
com os punhos.
Ele soltou uma risada. - Um bom combate de murros podia fazer-nos cair do muro abaixo, rebolar pela encosta e ir parar àqueles arbustos ali em baixo - disse ele
- com os braços, as pernas e outras partes do corpo enroladas umas nas outras. Podia ser verdadeiramente interessante. Vou correr esse risco. - Ele baixou a cabeça
e esfregou o nariz contra o dela.
- Não consigo pensar em nenhuma razão no mundo - disse ela - para estarmos a fazer isto. - Mentirosa, mentirosa.
- Vês? - disse ele, lambendo-lhe os lábios e provocando-lhe sensações fervilhantes em todas as partes erradas do corpo, erradas se ela queria sair daquilo ilesa.
- Somos o oposto perfeito um do outro, querida. Eu não consigo pensar em nenhuma razão do mundo para não estarmos a fazer isto.
- Isto é para casais que se estão a cortejar - afirmou ela. - Para casais que estão noivos. Para casais que estão casados. Nós não somos nenhuma dessas coisas.
- Mas somos um homem e uma mulher - disse ele, baixando a cabeça e falando com os lábios junto ao pescoço dela. Os dedos dos pés de Freyja encolheram-se dentro dos
sapatos e uma das mãos dela agarrou o cabelo dele e depois perdeu-se no meio daquela massa suave e sedosa. - Sozinhos e juntos numa noite de luar. E a morrer de
desejo um pelo outro.
- Eu não estou...
A boca dele travou o protesto dela. Não com os lábios, mas com a boca, aberta, quente, húmida, tentadora, em busca, e a língua a fazer pressão contra os seus lábios
e a encontrar um caminho através destes para a boca dela. Ela rendeu-se a ele com um pequeno gemido, com uma pulsação surda e dolorosa a latejar no meio das coxas
e mais acima, onde ele a possuíra.
Ela contra-atacou com a língua e enfiou as mãos por baixo da capa e do casaco e colete dele (porque é que os homens usariam tantas camadas de roupa?) enquanto as
dele lhe acariciavam os seios por baixo da capa e depois se deslocaram para trás dela para agarrar as nádegas e puxá-la com força contra ele, quase a erguendo no
ar ao mesmo tempo, roçando-a contra ele de tal forma que a ânsia dolorosa dentro dela quase explodiu com uma luz semelhante à das estrelas lá no alto.
- Não estás...? - perguntou muito mais tarde, afastando a boca talvez dois centímetros da boca dela.
- A morrer de desejo - disse ela, vergonhosamente ofegante.
Ele riu-se em voz baixa. - Nem quero pensar no que aconteceria se estivesses então - disse ele. - Porque é que não te queres casar comigo, Free? Não te podes casar
com o visconde Ravensberg, mas presumo que, mais tarde ou mais cedo, terás de te casar com alguém. Porque não comigo?
- E tu também terás de te casar mais tarde ou mais cedo? - perguntou ela bruscamente, afastando a cabeça mais dois centímetros.
- É diferente para um homem - disse ele.
- De que forma?
- Um homem gosta de liberdade e não de compromissos - disse ele. - Consegue retirar prazer de brincadeiras amorosas e não procura mais nada além disso. As mulheres
têm instintos domésticos. Querem lares, fidelidade, romances eternos e bebés.
Ele riu-se subitamente e apanhou o pulso direito dela com uma mão, recuando para olhar para a mão dela.
- Então, querida? - perguntou. - Não há punhos a voar pelo ar? Achei que aquilo te ia provocar imenso. Ai!
O punho esquerdo dela surpreendeu-o com um golpe firme no queixo.
- Porque é que não me quero casar contigo? - perguntou ela. - Talvez seja porque sinto alguma pena da tua bonita cara. Se estivesse ao meu alcance diariamente durante
o resto da minha vida, depressa ficaria num estado lamentável, como os rostos daqueles brutos que são contratados para se esmurrarem até perderem os sentidos para
satisfação dos cavalheiros que gostam de apostar em desportos sangrentos.
Ele lançou para trás a cabeça e riu-se, tocando ao de leve no queixo e movendo-o.
- É melhor voltarmos para a casa - disse ele. - Fica subentendido que eu sou um homem livre, ávido por sensações novas e que ainda não dei por terminada a minha
juventude estouvada, se é que alguma vez o irei fazer, e que tu preferes viver a vida como uma solteirona do que te casares com alguém que não consegue atrair os
teus sentimentos tão profundamente como no passado. Nós nunca nos iremos casar um com o outro, Freyja. Mas sentimos atração um pelo outro e tendemos a entrar em
erupção como dois vulcões sempre que temos uma oportunidade. Vamos evitar esse tipo de oportunidades até lhes podermos pôr um fim definitivo? Ou não e limitamo-nos
simplesmente a desfrutar do momento por aquilo que vale? Estou a referir-me aos próximos dias, semanas, ou seja o que for.
- Falas como se os próximos dias possam ser ocupados com nada mais do que oportunidades para brincadeiras desse género - disse ela. - É suposto haver uma maquinação
em marcha para te acusar e condenar por homicídio, não é assim? Uma testemunha pode ser uma coisa perigosa.
- Meu Deus, sim - concordou ele. - Meia dúzia de testemunhas podem ser ainda mais mortíferas. Pergunto-me se a minha tia seria astuta a esse ponto, ou idiota a esse
ponto.
- Pergunto-me o que realmente aconteceu naquela noite - disse ela. Mas abanou a cabeça ainda enquanto estava a falar e puxou novamente o capuz para cima da cabeça
antes de dar meia-volta e caminhar com passadas largas na direção da casa. - Mas não quero saber.
Ele colocou-se ao lado dela. - Porque receias que eu o tenha realmente matado? - perguntou-lhe.
Era por isso que ela se sentia tão relutante em ouvir a verdade?
- Eu ameaçei matá-lo - disse ele.
- Mas não o fizeste - disse ela com firmeza. - Disseste ao Aidan que não tinhas feito isso quando ele te perguntou em Lindsey Hall e eu acreditei em ti. Continuo
a acreditar em ti. Achas que o tinhas matado se ele tivesse vivido mais tempo?
Joshua demorou muito tempo a responder. Dobraram a esquina onde o vento se fazia sentir mais de novo, desta vez nas costas deles.
- Não sei mesmo - disse ele. - Mas receio que talvez não o fizesse.
Muito bem! Era tudo o que ela queria saber a respeito desse assunto, pensou Freyja, alargando a sua passada. Já ouvira demasiado. Alguma coisa horrivelmente grave
acontecera naquela noite, além do facto terrível de alguém ter morrido. E não queria saber o que tinha sido.
Pergunto-me se o marquês de Hallmere se lembrou de lhe mencionar que tem um filhinho bastardo adorável a viver com a mãe na aldeia junto a Penhallow.
As palavras voltaram à memória de Freyja na voz lamurienta da marquesa.
Ela era a precetora das minhas filhas até o incidente infeliz ter obrigado o meu marido a dispensá-la. Não parecem estar a passar dificuldades. Soube que o marquês
continua a sustentá-los.
A história sórdida não tinha nada que ver com ela, concluiu Freyja. Ele não era o noivo dela e não tinha a mínima vontade de fazer julgamentos de valor a seu respeito.
Mas tinha uma terrível suspeita de que a discussão no barco naquela noite fora a respeito da precetora e do filho dela. Será que Albert lhe dera um dos seus sermões
conservadores e presunçosos a respeito do assunto? E será que Joshua...? Bom, como é que ele reagira além de ameaçar matar o primo? Como e por que motivo ao certo
morrera Albert?
Não queria saber.
- Consegui chocar-te, querida - disse Joshua. - Isto quer dizer que já não vai haver mais brincadeiras entre nós? Mas que grande desilusão.
- Será que não levas nada a sério? - perguntou ela com desdém.
Mas Freyja sabia agora a resposta a essa pergunta e preferia não saber.
Sim, existiam muitas coisas na vida que Joshua Moore, o marquês de Hallmere, levava a sério.
Ela devia ter-lhe dito adeus há muito tempo, antes de começar a suspeitar de que ele não era simplesmente um patife leviano e sorridente, demasiado bonito.
Ele riu-se baixinho, encontrou a mão dela por baixo da capa e apertou-a enquanto caminhavam, entrelaçando os dedos nos dela.
CAPÍTULO 17
- Quem é? - perguntou Joshua, sentando-se na ponta da secretária do seu administrador, de braços cruzados sobre o peito. Era de manhã cedo, mas Saunders já estava
a trabalhar no seu escritório.
- Hugh Garnett - disse Saunders. - As terras dele ficam do outro lado do vale. A mãe dele era a filha de um barão. É um homem próspero, segundo consta. Comprou mais
terras depois de substituir o pai na gestão da propriedade há dois anos. É um cavalheiro com alguma influência.
- Eu conheço o Hugh Garnett. - Joshua franziu o sobrolho. - Ele é sobrinho, pelo lado do pai, de Mrs. Lumbard, a amiga íntima da marquesa. Não estou nada surpreendido.
Mas que vantagem teria ele, na sua opinião, além do facto de ter razões para antipatizar comigo? Não é o tipo de homem que faça seja o que for em troca de nada.
- Ele tem vindo a demonstrar algum interesse por Lady Chastity - disse Saunders -, mas sem qualquer encorajamento tanto da sua prima como da marquesa. Contudo, a
sua tia convidou-o para um chá na companhia de Mrs. Lumbard e da filha depois de ter regressado de Bath. Seria um casamento brilhante para ele, especialmente com
a bênção total da mãe da senhora.
- E mais especialmente se não fosse provável eu estragar as coisas ao vir para cá viver agora que estou noivo e me posso casar a qualquer altura - disse Joshua.
- Parece-me que o reverendo Calvin Moore foi trazido para cá tanto para cortejar a Constance como para oferecer apoio e conforto moral à marquesa. Ela governa o
seu mundo com a mesma impiedade de sempre, não é verdade?
Ele pôs-se de pé e aproximou-se das janelas. Estas davam para a encosta mais alta da colina. Mesmo assim, era uma bonita vista. As hortas e os jardins de flores
ficavam ali atrás, assim como várias estufas. Atrás destas, um caminho subia aos ziguezagues por entre arbustos e flores silvestres ao aproximar-se do planalto lá
no alto.
Recordou-se naquele momento do que Constance lhe dissera e deu meia-volta para olhar para Jim Saunders. Era um cavalheiro de trinta anos, talvez menos, que iria
herdar uma fortuna e propriedade muito modestas com a morte do pai, embora tivesse um irmão mais novo e várias irmãs para sustentar. Possuía um rosto agradável e
era muito dedicado ao trabalho. Era fácil perceber por que razão Constance, vivendo naquele isolamento de homens da própria classe, teria concentrado o olhar e os
seus sonhos nele. Será que ele retribuía o interesse dela? Estava sentado atrás da sua secretária, a olhar para um livro-mestre fechado, sem qualquer expressão percetível
no rosto.
- Tem de compreender, meu senhor - disse Saunders, com uma voz cuidadosamente formal -, que estou aqui há relativamente pouco tempo e ainda não formei opiniões firmes
a respeito de quem quer que seja na casa ou na vizinhança. Não conheço bem a marquesa e não me arrisco a tentar adivinhar os seus motivos. Nem o conheço bem a si.
Mas sou sensível ao facto de que é a si que devo a minha lealdade e não à marquesa.
Era uma resposta cuidadosa. Não era uma resposta obsequiosa.
- Nesse caso, não está certo de que exista alguma verdade nestas acusações que, segundo me advertiu, estavam iminentes - disse ele. - Duvida se o seu empregador
é um assassino que não olha a meios para obter o que quer.
- Gosto de pensar que não - disse o administrador.
- Obrigado. - Joshua fitou-o com mais atenção. - Como é que soube disto? Nada foi dito desde a minha chegada. Não chegou nenhum guarda à minha porta ansioso por
me deter. Quem lhe disse?
Saunders endireitou o livro-mestre e alinhou a parte inferior do mesmo com a borda da secretária.
- Foi a Constance?
Saunders começou a abrir o livro e tornou a fechá-lo. - Ela sugeriu-me que devia ser informado, meu senhor - declarou.
- Ah - disse Joshua suavemente. - Nesse caso, tenho de lhe agradecer e agradecer-lhe a si por respeitar a vontade dela. Ao que parece, o conluio ainda não está completamente
em marcha e a minha chegada pode ter travado o seu avanço. Porque é que não estará em marcha, pergunto-me eu, se existe uma testemunha, um cavalheiro próspero, disposto
a jurar que me viu a assassinar o meu primo?
Saunders devolveu-lhe o olhar mas não fez qualquer comentário.
- Creio que - disse Joshua, afastando-se da janela e sorrindo - vou criar ainda mais dificuldades ao avanço deste conluio, Saunders. Agora vou gozar um dia de lazer.
Amanhã pode fazer-me um relatório dos progressos das novas construções e das reparações que deviam ser levadas a cabo no final da época das colheitas. Também vou
querer ver a casa da quinta e falar com os meus trabalhadores e as suas mulheres enquanto estiver aqui.
- Sim, meu senhor - disse o administrador. - Estou à sua disposição sempre que desejar.
Joshua deixou para trás a ala de serviço da casa para ver se alguém da família ou dos hóspedes já estava acordado. Devia ter estado com Saunders mais tempo do que
se dera conta. Quase todos já estavam reunidos na sala dos pequenos-almoços.
- Bom dia - disse ele, entrando com uma passada rápida. - E este tem todo o ar de vir a ser um dia de sol sem nuvens. O que acham de irmos todos de carruagem ou
a cavalo até Lydmere mais tarde? É uma bonita aldeia piscatória com um porto e uma praia a seus pés. Ah, Freyja. - Ele pegou na mão dela, ergueu-a até aos lábios
e manteve-a ali um pouco mais do que era necessário enquanto lhe sorria e olhava diretamente nos olhos.
Sempre se podia divertir ao irritar Freyja e a tia ao mesmo tempo, pensou ele. As sobrancelhas de Freyja arquearam-se, Alleyne esboçou um sorriso irónico, Calvin
pigarreou e a tia sorriu docemente.
Mas interpretar o papel de um amante fogoso era mais fácil do que a realidade de um noivado falso, concluiu ele, à medida que se servia de comida do aparador e se
sentava à cabeceira da mesa. O momento íntimo da noite anterior fora mais frustrante do que satisfatório, especialmente tendo em conta o que agora sabia de Freyja.
Na noite anterior, percebera que corria o sério risco de se apaixonar ligeiramente por Freyja Bedwyn. Ia ter de se esforçar por manter a relação entre ambos num
padrão familiar. A última coisa que queria era apaixonar-se seriamente por alguém.
Juntou-se à conversa geral até Eve e Aidan, os últimos a chegar, vindos da sala das crianças, se sentarem e começarem a comer.
- Estive a pensar - disse ele - que o meu regresso a casa é uma ocasião digna de nota na vizinhança, e parece-me que a minha chegada não passou despercebida ontem.
Quando se souber que trouxe comigo a minha futura mulher, ninguém vai estranhar uma celebração da ocasião. Uma celebração que pede um grande baile em Penhallow.
Marcamos a data para daqui a uma semana? Posso encarregar-me da maior parte dos preparativos pessoalmente, mas não estou cá há cinco anos e já não conheço todas
as pessoas que vivem na vizinhança. Será que a tia me pode ajudar com a lista de convidados? Assim como a Constance e a Chastity?
Constance, ruborizada e de olhos brilhantes, acenou afirmativamente com a cabeça. Chastity sorriu.
- Que ideia absolutamente maravilhosa, Joshua - disse a tia, sorrindo docemente - se bem que eu ainda estou de luto pelo teu querido tio. Mas tens de te lembrar
de que não estamos em Londres nem em Bath. Existem muito poucas famílias de alguma importância que vivam a menos de vinte quilómetros de Penhallow. Um pequeno jantar
ou receção seria mais conveniente. Tratarei pessoalmente de enviar os convites e dos preparativos com a cozinha.
- No que diz respeito aos acepipes a servir no baile, sim - disse ele, sorrindo-lhe. - Obrigado, tia. Agradecia-lhe imenso. Fiz muitos amigos durante os anos que
passei em Lydmere. Muitos deles iam apreciar bastante a oportunidade de dar um pezinho de dança no nosso salão de baile. E não nos podemos esquecer de todos os meus
rendeiros, bem como dos trabalhadores da minha propriedade. Será mais como uma festa da aldeia do que propriamente um baile da alta sociedade. Só posso esperar que
os seus amigos mais distintos não se ofendam com isso, tia. Soube que Mrs. Lumbard já regressou de Bath com a filha. Podemos convidá-las. Talvez o sobrinho dela
as possa acompanhar. Chama-se Hugh Garnett, não é?
A tia dele empalideceu visivelmente e fitou-o fixamente com lábios apertados. O garfo de Chastity caiu ruidosamente em cima do prato.
- Segundo ouvi dizer, ele tem por hábito acompanhar a tia em visitas - disse Joshua. - De facto, não é verdade que acompanhou Mrs. Lumbard quando a convidou para
tomar chá há pouco tempo?
Os Bedwyn estavam todos a observar e a escutar a cena com um interesse ávido. Constance estava a olhar fixamente para o prato, embora não estivesse a comer. Os olhos
arregalados de Chastity estavam pregados no rosto de Joshua. Calvin pigarreou de novo.
- É verdade - disse a tia. - É um jovem agradável. A Edwina Lumbard adora-o.
- Contudo - disse Joshua -, creio que ele a deve ter transtornado seriamente quando reabriu feridas antigas que talvez só agora estivessem a começar a sarar.
- O que queres dizer com isso, Joshua? - Ela levou uma mão ao coração enquanto os ombros se abatiam e a sua expressão parecia inquieta e patética.
- Creio que - continuou ele - Mr. Garnett lhe sugeriu que a morte do Albert há cinco anos não foi acidental e que ele na verdade foi assassinado. E creio que me
acusou de ser o seu assassino.
- Não, Joshua! - exclamou Eve, levando igualmente a mão ao coração.
- Mas que diabo...! - exclamou Alleyne.
- Se isso for verdade - disse Aidan - é realmente uma acusação muito grave, Joshua.
- Deus do Céu - disse Freyja, levando a chávena de café aos lábios com uma mão perfeitamente serena. - Estarei noiva de um assassino? Mas que ideia tão divertida!
Chastity exibia uma palidez cadavérica, bem como Constance.
O reverendo Calvin Moore pôs-se de pé, pigarreou de novo e ergueu as mãos, como se estivesse prestes a proferir uma bênção.
- Tem toda a razão, Joshua - disse ele. - Foi feita essa insinuação. Mr. Garnett afirma ter sido uma testemunha do sucedido na noite em que o nosso primo morreu.
Foi por esse motivo que a prima Corinne me pediu para vir até cá. Sentiu a necessidade de um homem e de um familiar para a aconselhar. Mas este não é o melhor local
ou altura para discutir um assunto tão angustiante.
- Não consigo pensar num local ou altura melhores - disse Joshua, sorrindo-lhe. - Sente-se, Calvin. Nesta sala, somos todos família ou família potencial.
A marquesa levou uma mão ao pescoço e o rosto ficou subitamente acinzentado. - Joshua, meu querido - disse numa voz ténue. - Nunca acreditei numa única palavra do
que disse Mr. Garnett. Não sei porque é que ele diria tais coisas. Mas senti a necessidade de me aconselhar com alguém mais sensato do que eu, um homem e alguém
da família. E o primo Calvin é um homem do clero.
- Espero que a minha chegada inesperada ontem não o tenha deixado perturbado, Calvin - disse Joshua. - Mas asseguro-lhe que está perfeitamente em segurança aqui
comigo. Eu estive com o Albert na noite em que ele se afogou, mas não o matei. Quando é que me ia pedir para voltar para casa para me poder defender dessas acusações,
tia? Ou será que a sua carta para Lindsey Hall se desencontrou comigo?
- Tens de compreender, Joshua - disse ela -, que fiquei terrivelmente perturbada. Não sabia o que fazer. Pedi ao primo Calvin para me vir aconselhar com alguma urgência.
Não te queria trazer até cá onde pudesses estar em perigo.
- Isso foi muito atencioso da sua parte - disse ele.
- Bom. - Ela tocou nos lábios com o guardanapo. - És meu sobrinho. Sempre foste como um filho para mim.
- Constance - disse ele, desviando o olhar para ela -, acreditas que eu posso ter assassinado o teu irmão?
Ela ergueu os olhos. - Não - disse ela. - Não, não acredito, Joshua.
- Chass? - Ele olhou para a rapariga, que ainda o fitava fixamente, os olhos arregalados no meio dum rosto muito pálido. - Acreditas nisso?
Ela abanou a cabeça lentamente. - Não - sussurrou.
- Calvin? - perguntou ao primo, que acabara de se sentar novamente.
Calvin pigarreou, o que parecia ser um hábito. - O Joshua foi sempre um rapaz travesso - disse ele. - Mas, segundo aquilo que me lembro, nunca foi mal-intencionado.
Acreditaria nisso apenas se as evidências viessem a provar a sua culpa de maneira irrefutável.
- Uma resposta justa - disse Joshua. - Freyja?
- A manhã está a passar enquanto falamos destes disparates - disse ela, com o nariz no ar e um tom de voz altivo. - Estou ansiosa pela ida a cavalo até à aldeia
que nos prometeste.
- Eu também, Joshua - disse Morgan.
- E as crianças já devem estar impacientes e ansiosas para serem levadas lá para fora - acrescentou Aidan. - Mas teria todo o prazer em acompanhar-te numa visita
a Mr. Hugh Garnett mais tarde, Joshua. Presumo que tenciones fazer-lhe uma visita?
- Sem dúvida - afirmou Joshua. - Calvin, é melhor vir também.
A tia levou mais uma vez o guardanapo aos lábios. - Mr. Garnett ausentou-se - declarou.
- A sério, minha senhora? - perguntou Aidan.
- Se não fosse esse o caso, já lhe tinha pedido para vir até cá falar com o primo Calvin - disse ela. - Estou tão ansiosa como toda a gente para o ouvir a admitir
que estava enganado. Mas ele ausentou-se durante alguns dias.
- Claro. - Joshua fitou-a, divertido.
- Num momento destes? - Alleyne estava absolutamente espantado. - Quando se devia ter apresentado ao magistrado com o seu testemunho? Mas confesso que não consigo
perceber porque é que esperou cinco anos, e porque é que decidiu vir a público com a sua história neste preciso momento.
- Parece-me que Mr. Garnett se ausentou - disse Joshua - para refletir sobre o seu testemunho com mais cuidado. Seria insensato da parte dele avançar demasiado depressa,
especialmente depois de esperar tanto tempo, não acham? Em qualquer julgamento que se realizasse seria a sua palavra contra a minha e eu sou, no fim de contas, o
marquês de Hallmere. Só posso esperar que ele reflita sobre todos os pormenores. Terá de se lembrar que um barco de pesca, porque parto do princípio de que foi num
barco de pesca que ele testemunhou este crime ignóbil, teria estado perfeitamente visível para mim e especialmente para o Albert. Porque é que ele se terá afastado
sem lhe oferecer qualquer auxílio? Será que teve receio que eu também o pudesse assassinar?
- Tu fazes pouco caso da questão, Joshua - disse a tia na sua voz lamurienta e queixosa. - Mas isto pode vir a tornar-se muito sério. Não vou suportar perder outro
filho ou um sobrinho que sempre me foi tão querido como um filho. Quase que sugeria que partisses agora enquanto podes e desaparecesses. Pelo menos assim estarias
a salvo.
- Eu iria odiar-me se agisse como um cobarde - disse Joshua, a sorrir.
- E eu odiaria não ser a senhora de Penhallow - disse Freyja desdenhosamente enquanto se erguia da mesa. - Esta conversa está a ficar cada vez mais aborrecida. Vou
andar a cavalo, mesmo que tenha de o fazer sozinha.
Os Bedwyn ergueram-se todos da mesa e os outros apressaram-se a fazer o mesmo, exceto a marquesa, que parecia demasiado abalada e frágil para se mexer.
- Uma vez que Mr. Garnett não será confrontado hoje - disse Joshua - mais vale desfrutarmos do bom tempo. Encontramo-nos no átrio daqui a meia hora? As crianças
e a Prue também? Venha, tia, não se deve apoquentar mais. Vou dizer algumas palavras duras a Mr. Garnett quando conseguir vê-lo por ter atormentado desta forma a
sua sensibilidade delicada. Permita-me que a acompanhe até ao seu quarto. - Ele ofereceu-lhe o braço e ela não teve outra escolha senão aceitá-lo.
- Espero que fales com ele, Joshua - disse ela, apoiando-se pesadamente nele. - Isto é realmente insuportável.
Depressa se tornou evidente que Joshua era muito estimado tanto em Penhallow como na aldeia de Lydmere. Freyja reparara que os criados da casa tinham o hábito de
lhe sorrir abertamente mesmo quando o estavam a servir ou na sua linha de visão. Não conseguiu deixar de fazer a comparação entre eles e os criados de Lindsey Hall,
cuja ideia de sorrir a Wulfric seria tão absurda como a de desatar a cantar ou dançar na sua presença.
Em Lydmere, a reação foi ainda mais óbvia. Ele foi reconhecido imediatamente enquanto seguia a cavalo ao lado de Freyja à cabeça do grupo. Em toda a parte, as pessoas
faziam mesuras, vénias ou levavam respeitosamente a mão à cabeça. Por si só esta reação não era assim tão extraordinária, uma vez que ele era o marquês de Hallmere,
mas todos os rostos exibiam sorrisos e alguns dos aldeãos mais ousados gritaram cumprimentos. De forma mais do que previsível, pensou ela exasperada e com uma admiração
inconfessada, Joshua desceu do cavalo na primeira oportunidade e entregou as rédeas a Alleyne para apertar mãos, dar palmadas nas costas ou beijar a face de algumas
mulheres de meia-idade.
O rosto dele estava radiante, cheio de alegria e afeição.
Foi nesse momento que Freyja se apercebeu realmente do perigo sério que corria. A cada minuto que passava, mais aspetos da humanidade de Joshua eram revelados. Naquela
manhã ao pequeno-almoço ele fora corajoso e franco, com um tom implacável por detrás da sua cortesia e sorriso. Ela era capaz de resistir a esse homem. Agora exibia
afeto, risos, preocupação e amizade por pessoas que Freyja por norma não considerava dignas de atenção. Aquela era uma tomada de consciência estranhamente embaraçosa.
Era bem mais difícil resistir àquele homem. Era tão diferente de qualquer outro homem da sua classe e relações.
Ela devia ter-se acautelado para evitar aquilo. Afinal, ele fora em auxílio de uma criadita que tinha sido assustada por um esquilo.
Mas ele não abandonou os seus familiares e hóspedes que levara até à aldeia num passeio. Levaram os cavalos para o estábulo da estalagem da aldeia e entraram para
tomar chá e cerveja com pãezinhos doces. Sentaram-se no bar e ele começou a apontar para os diversos pormenores da vista que a janela proporcionava e a descrever
outros pontos que podiam achar interessantes. Eve e Aidan não ficaram muito tempo dentro da estalagem. Levaram as crianças novamente lá para trás e depois para a
praia que Joshua indicara, que não era tão larga como a praia privada de Penhallow do outro lado do rio, mas igualmente pitoresca, com os seus vários pontões e barcos
a baloiçar no mar ou encalhados na areia devido à meia-maré. Chastity levou Prue para junto deles. Calvin convidou Constance para passear ao longo da rua principal
e passado um pouco Morgan e Alleyne foram explorar as ruas estreitas e íngremes e espreitar para dentro das poucas lojas que a aldeia oferecia.
Joshua apresentou Freyja a Isaac Perrie, o estalajadeiro, o que foi uma experiência nova para ela. Ele era um homem gigante e careca, desdentado e de rosto avermelhado.
- Que senhora às direitas que foste encontrar, rapaz - disse ele, esmagando entusiasticamente a mão de Joshua, que parecia desaparecer dentro da sua manápula. -
E todos nós aqui em Lydmere vamos ficar bem contentes quando te casares com ela e voltares para Penhallow de vez.
Ele deixou-se ficar para dois dedos de conversa, de pernas abertas, a limpar as mãos no seu grande avental. Freyja estava dividida entre o divertimento e a indignação,
mas ganhou o primeiro. A vida com Joshua nunca era aborrecida.
- A propósito do Hugh Garnett - estava a dizer Joshua quando ela voltou a prestar atenção à conversa. - Ouvi dizer que ele se está a sair bem.
O estalajadeiro fez um estalido de desprezo com a língua e revirou os olhos. - Sim senhor, muito bem - respondeu. - Com dinheiros ganhos por meios duvidosos, sem
dúvida. Mas vive e deixa viver é o meu lema, meu rapaz, como bem sabes.
- Pelos vistos, ele está a preparar-se para não me deixar viver a mim - disse Joshua com uma gargalhada. - Esteve em Penhallow há pouco tempo e afirmou à minha tia
que me viu a matar o meu primo há cinco anos.
- Não! - Mr. Perrie parou de limpar as mãos por um momento. - Será que ele é idiota?
- Ele ausentou-se - disse Joshua - e por esse motivo ainda não lhe pude fazer uma visita. Parece-me que ele é suficientemente inteligente para juntar algumas testemunhas.
Queres fazer uma aposta de quem ele vai buscar?
- Não sou imbecil a ponto de fazer apostas - disse o homem. - Não havia ninguém a apostar contra mim. Deixa o assunto nas minhas mãos, rapaz. Leva a tua senhora
lá para fora para ver as vistas. Foi uma honra e um privilégio conhecê-la, minha senhora.
A brisa fresca do mar apanhou o chapéu de Freyja assim que saíram da estalagem e ela prendeu-o no lugar.
- Do que é que ele estava a falar? - perguntou ela.
- O Hugh Garnett - explicou - tentou montar um negócio de contrabando aqui há alguns anos. O negócio em si não era nenhuma novidade. O contrabando é um grande negócio
ao longo de toda a costa sul de Inglaterra. Mas os comparsas dele eram um bando de rufiões que tentaram controlar o negócio com uma mão de ferro. Reconheceram o
seu erro e tomaram a iniciativa de se retirarem para outras partes.
- Depreendo - disse ela - que tu foste uma das pessoas que os ajudou nesse reconhecimento. O Isaac Perrie também esteve envolvido nisso?
Ele riu-se e agarrou-lhe o braço.
- Gostava que conhecesses uma pessoa - disse ele.
Ele levou-a a uma casa pequena e bonita de paredes caiadas próxima do porto e bateu à porta. Era a casa de Richard Allwright, o carpinteiro idoso que ensinara e
empregara Joshua. Ele e a mulher convidaram-nos a entrar e insistiram em oferecer-lhe mais uma chávena de chá antes de Mrs. Allwright exibir orgulhosamente uma pequena
mesa de madeira lindamente trabalhada que Joshua fizera sob a supervisão do marido e lhe oferecera quando terminou a sua aprendizagem.
- É um dos meus tesouros - disse ela a Freyja.
- Eras realmente talentoso, Josh - disse Freyja, passando a mão pela superfície macia da madeira e tentando imaginar como é que ele seria naqueles dias.
- É talentoso, minha senhora, não era - corrigiu Mr. Allwright. - A carpintaria é um talento que não morre, mesmo quando não é praticado. E então agora, meu rapaz,
vais perder o teu tempo a ser um marquês em vez de ganhar a vida com um trabalho honesto? - Mas ele riu-se entusiasticamente e deu uma cotovelada bem-humorada a
Joshua. - É bom ver-te em casa. Nunca consegui perceber porque é que achaste que tinhas de partir. Vai gostar de estar cá, minha senhora.
- Acredito que sim - disse Freyja, sentindo estranhamente que dissera a verdade. Ou que seria essa a verdade se tivesse alguma intenção de ficar. Não esperara vir
a gostar da Cornualha, mas havia alguma coisa naquele local que a emocionava.
- Gostava que conhecesses uma pessoa - disse Joshua, depois de terem deixado a casa do carpinteiro.
- Mais uma? - perguntou Freyja.
Ele olhou para ela e riu-se.
- Presumo que esta não seja bem a tua ideia de uma manhã interessante - disse ele.
Ele parecia um rapazinho, exuberante e feliz. Ela inclinou a cabeça para um dos lados e observou-o com olhos semicerrados contra o brilho intenso do sol.
- Josh - disse ela -, porque é que partiste?
Parte do brilho extinguiu-se dos olhos dele quando eles se detiveram à porta de Mr. Allwright de frente um para o outro.
- O Albert tinha morrido e eu era o herdeiro - disse ele. - Os meus tios ficaram fora de si com a dor e inclinados a culpar-me, embora a palavra assassínio nunca
tivesse sido mencionada. Eu culpava-me a mim próprio. Remei ao lado dele até ele ficar com pé, mas não o vi a chegar efetivamente à praia. Parto do princípio que
ele tenha tido cãibras e se tenha afogado. Não podia ficar aqui depois disso.
Não lhe parecia razão suficiente. Decerto que o tio dele queria que ele ficasse, para aprender as suas futuras responsabilidades. Mas isso não lhe dizia respeito.
- Quem é que queres que eu conheça desta vez? - perguntou ela.
Ele ficou mais animado, ofereceu-lhe o braço e subiu uma encosta íngreme a seu lado até chegarem perto de outra casa pequena e pitoresca com roseiras a trepar pela
parede da frente e uma vista para os telhados das casas da aldeia e para o porto lá em baixo. Ele bateu à porta.
A mulher que a abriu era jovem e bem-parecida. Os olhos dela iluminaram-se quando se fixaram em Joshua.
- Joshua! - exclamou ela, estendendo-lhe duas mãos esguias. - És mesmo tu? Oh, pois és! Que surpresa maravilhosa.
Freyja adivinhou com algum choque enquanto Joshua a apresentava a Anne Jewell que esta devia ser a precetora que dera à luz o seu filho. Ela foi apresentada como
Miss Anne Jewell, mas tinha um filho, um rapazinho de cerca de cinco anos, loiro e de olhos azuis, com todo o potencial de ser um quebra-corações quando crescesse.
A mãe pô-lo a fazer uma vénia ao marquês de Hallmere e a Lady Freyja Bedwyn antes de ele escapar para fora de vista atrás das saias dela.
Eles não entraram, ainda que tivessem sido convidados. Ficaram alguns minutos a falar à porta. Freyja não sabia se podia classificar aquilo como uma afronta. Era
verdade que não estava realmente noiva de Joshua. Contudo, levá-la ali revelava mau gosto da parte dele.
- Então o que fiz eu agora, querida? - perguntou ele quando deram início à descida da encosta na direção do porto. Ela não respondera a nenhuma das suas tentativas
de conversa.
- O que fizeste? - disse ela no seu tom mais gélido e implacável.
- Não estás com ciúmes, pois não? - perguntou ele, com uma risada abafada. - Ela não é tão deslumbrante como tu, Free.
Freyja ficou verdadeiramente zangada naquele momento e libertou o braço do dele com um safanão.
- Devias mostrar um pouco mais de lealdade - disse ela. - No fim de contas, ela significa muito mais para ti do que eu. Tal como seria de esperar.
Ele deteve-se no passeio e fitou-a, perplexo.
- Oh, não - disse ele. - Estou a detetar a malícia da minha tia. E tu caíste nisso, Free? Já me devias conhecer melhor. Ela sempre acreditou que eu era o sedutor
da Anne Jewell e o pai do filho dela. Eu deixei-a acreditar nisso. Nunca me importei com a opinião dela a meu respeito.
Freyja sentiu-se horrivelmente envergonhada naquele momento. Porque era claro que tinha ouvido isso da boca da marquesa e não pensara sequer em questionar o ponto
essencial da acusação. Que estupidez da sua parte.
- Não és o pai da criança? - perguntou ela. - Mas ele parece-se contigo.
- E também se parece com a mãe - respondeu ele. - Reparaste que ela tem cabelo loiro e olhos azuis?
- Sustentas os dois? - perguntou ela. - Foi isso que a tua tia me disse.
- Não por inteiro. - Ele sorriu-lhe. - Ela já tem um ou dois alunos agora, Free, e recusa-se a aceitar mais dinheiro da minha parte de que não precise realmente,
mas houve uma altura em que ela não era nada bem aceite aqui. Estas pessoas são bondosas mas nem sempre são tão tolerantes como deviam ser. São humanos, não santos.
Ela estava na miséria e não tinha família a quem pudesse recorrer.
Freyja inspirou lentamente e voltou-se para continuar a andar, com as mãos cruzadas atrás das costas. Mas ele estava a começar a parecer um santo e ela não gostava
disso nem um bocadinho. Se quisesse realmente resistir-lhe, teria de encontrar alguma coisa para desprezar.
- Deixa-me adivinhar - disse ela, a pensar como é a verdade não lhe saltara aos olhos há muito tempo. - Foi o Albert?
- Sim, foi o Albert - disse ele. - E não foi com o consentimento da Anne. Ela tem melhor gosto.
Chegaram ao fundo da colina e viraram de direção para passear na rua que se estendia em paralelo à praia. Becky e Davy estavam a fazer cabriolas na areia com mais
algumas crianças enquanto Eve e Aidan os observavam. Todos pareciam estar a divertir-se, a soltar gritinhos agudos. Prue estava sentada num dos lados de um barco
de pesca encalhado, a baloiçar as pernas e com uma expressão excitada e feliz enquanto Chastity conversava com uma mulher mais velha e um jovem se mantinha perto
de Prue, como se pretendesse apanhá-la se caísse. Constance e o reverendo Calvin Moore estavam na outra ponta da rua.
- Porque é que não te limitaste a dizer a verdade ao teu tio? - perguntou Freyja. - Ele não tinha o direito de saber?
- O que faria o duque de Bewcastle - perguntou-lhe ele - se descobrisse que um dos teus irmãos tinha engravidado a tua precetora ou a de Morgan?
- Dava uma sova ao infrator até este ficar mais perto da morte do que da vida - disse ela com convicção.
Ele riu-se suavemente. - Sim - disse ele. - Acredito que o duque de Bewcastle fizesse isso. Também acredito que nenhum dos teus irmãos alguma vez o colocasse nessa
situação. Não posso saber como é que o meu tio teria reagido, mas posso tentar adivinhar. Teria contado à minha tia e ela não só teria dispensado a precetora como
também a teria expulsado da vizinhança. A Anne teria ficado na miséria, grávida e sem-abrigo, para rematar. Teria acabado numa prisão qualquer. O filho dela teria
sorte se conseguisse sobreviver.
- E foi por isso que deixaste a culpa cair sobre ti - disse ela.
- Eu tenho as costas largas - disse ele, encolhendo os ombros.
E provavelmente muito pouco dinheiro nos últimos cinco anos, até ter herdado o título, pensou ela. E, no entanto, durante a maior parte desses anos, tinha sustentado
uma criança que não era dele.
- Acho-te bastante estúpido - disse ela desdenhosamente. - Incrivelmente estúpido, na verdade. Sinto um enorme alívio em saber que nunca nos iremos casar.
Empinou o nariz no ar e avançou com passadas largas na direção de Eve e Aidan, a tentar convencer-se de que acabara de dizer as palavras mais sinceras da sua vida.
Ela odiava-o.
Odiava-o mesmo.
Como é que ele se atrevia a ser tão estupidamente nobre?
Aquilo era completamente ridículo.
Desejou fervorosamente não ter decidido ir até ali com ele de forma tão impulsiva. Desejou estar de volta a Lindsey Hall. Desejou nunca ter ido para Bath. Desejou
nunca ter conhecido o marquês de Hallmere.
Não, não desejava.
- Querida. - Ele estava a tentar acompanhar o ritmo dela. - Ficas duplamente deslumbrante quando estás irritada. Não, triplamente deslumbrante.
Ela quase se envergonhou a si própria com uma gargalhada. Em vez disso, subiu ainda mais o nariz no ar.
CAPÍTULO 18
Constance e Chastity reuniram-se com Joshua durante a tarde e ajudaram-no a esboçar uma lista de convidados para o baile. Apesar do esplendor do salão de baile de
Penhallow, ele não se conseguia lembrar de uma única vez em que tivesse sido utilizado. Como a tia sublinhara ao pequeno-almoço, não existia nas proximidades um
número bastante de famílias com estatuto social suficientemente elevado para merecer um convite.
- Vamos convidar toda a gente - explicou ele. - Presumo que os habitantes da zona não tenham mudado muito em cinco anos, mas têm de me ajudar para não me esquecer
de ninguém.
- Um baile a sério - disse Chastity, com os olhos a brilhar - no esplêndido salão de baile de Penhallow. Estou tão contente por não teres deixado que a mãe te convencesse
a desistir da ideia, Joshua. - Ela ficou ruborizada, aparentemente devido à sua deslealdade. - E estou contente por não teres deixado que ela te obrigasse a casar
com a Constance.
Constance ficou igualmente ruborizada.
- Talvez - disse ele, com os olhos a cintilar - a Constance goste mais do primo Calvin. - O seu palpite daquela manhã estava certo. A tia estava a fazer tudo ao
seu alcance para encorajar um casamento entre ambos.
- Não, Joshua - disse Constance solenemente.
- A Constance gosta mais de Mr. Saunders - disse Chastity.
- E tu, Chass? - perguntou ele. - Gostas do Hugh Garnett?
A sua intenção era fazer uma brincadeira para que todos se pudessem rir. Mas ela fitou-o com olhos aflitos e uma palidez crescente no rosto.
- Eu não daria o meu consentimento, em todo o caso - disse-lhe apressadamente. - Sou o teu tutor legal, lembras-te?
Ela sorriu, com os lábios tão pálidos como o rosto.
- Também és o tutor legal da Prue - disse ela. - Vais permitir que ela fique fechada na sala das crianças o resto da vida, Joshua? Ou que seja enviada para um hospício?
- Um hospício? - disse ele, franzindo o sobrolho. - Essa possibilidade não foi mencionada novamente, pois não?
Quando se tornou óbvio que Prue não era igual às outras crianças, a mãe quis enviá-la para um hospício para dementes. Felizmente, essa foi uma das poucas questões
na qual o tio de Joshua fez valer a sua vontade e Prue ficou em casa. Chastity dedicou a maior parte da sua meninice à irmã, sendo a sua companhia. Joshua ajudou-a,
assim como Constance, em menor grau.
- Se vieres para cá viver e tivermos de nos mudar para a casa da viúva, a mãe diz que não terá outra alternativa senão mandá-la embora - disse Chastity. - Os nervos
dela não irão suportar ter a Prue ao alcance da vista todos os dias.
Joshua suspirou. Nomeara um administrador bom e competente para cuidar da sua propriedade e considerara o seu dever cumprido para com a sua nova posição. Mas era
o tutor legal de Chastity, assim como de Prue. Talvez fosse negligente da parte dele ter-se mantido à distância e estar a planear partir de novo assim que aquela
questão com Garnett tivesse sido esclarecida. Não era uma admissão agradável.
- A Prue terá sempre uma casa em Penhallow enquanto eu for vivo e for o marquês - afirmou. - E toda a casa estará à sua disposição, assim como a sala das crianças.
Miss Palmer é boa para ela?
- A mãe chama-lhe uma precetora inadequada - disse Chastity - porque ela nem sequer tenta ensinar à Prue a maior parte das coisas que as precetoras ensinam habitualmente.
Mas ela ensinou à Prue todo o tipo de coisas e leva-a para fora de casa, onde a Prue adora estar. A Prue consegue tratar das plantas com o aspeto mais deplorável
que possas imaginar e transformá-las num jardim encantador. Ela não é louca, Joshua. É apenas... diferente.
- Estás a pregar a quem já está convertido - disse ele, sorrindo-lhe. - Tu e ela estavam com a Mrs. Turner e o Ben Turner lá em baixo no porto esta manhã?
- A Mrs. Turner adora a Prue - disse Chastity. Ela hesitou. - E acho que o Ben também. Se soubesse, a mãe teria um ataque de fúria.
Joshua respirou fundo. Com mil diabos, tudo indicava que teria de ficar algum tempo. A tia era a mãe daquelas raparigas, e por esse motivo, a tutora legítima delas,
ainda que não fosse a legal. Mas não conseguia ver nada exceto infelicidade à sua volta. Ali estavam duas jovens, ambas na casa dos vinte anos, a quem ainda não
tinha sido dada qualquer hipótese de uma vida própria. E a Prue já era uma adulta agora, tinha dezoito anos. Já não podiam continuar a pensar nela como uma criança,
embora deduzisse que a tia preferisse não pensar nela de modo nenhum. Parecia incapaz de pensar na felicidade de alguém, à exceção da sua.
Naquele momento, desejou não ter voltado.
Será que os problemas desapareceriam se não estivesse ali para os ver?
Será que conseguiria ignorar de forma tão egoísta as suas responsabilidades?
- Vou falar com Miss Palmer - disse ele. - E falaremos numa outra altura sobre o que é melhor para a Prue. Mas agora vamos dedicar-nos à nossa lista. Só temos dez
nomes até agora. Acho que precisamos de mais alguns se quisermos ultrapassar o número dos membros da orquestra.
Constance riu-se.
- Uma orquestra? - perguntou Chastity, com os olhos a brilhar de novo. - A sério, Joshua? Este baile vai ser tão mágico.
Algum tempo depois, Joshua subiu o caminho íngreme por trás da casa, sentindo o calor do sol no corpo, embora soubesse que não ia ter tanto calor quando chegasse
lá em cima, pois já não estaria protegido do vento. Pela primeira vez em sete meses, sentia-se realmente o marquês de Hallmere e completamente assoberbado pelo peso
da responsabilidade. O mais alarmante era que não o encarava como um peso opressivo. As primas precisavam dele ali, ainda que tudo o resto pudesse ser gerido por
um administrador, e ele sentia carinho por elas. Agora tinha o poder de fazer alguma coisa positiva para tornar as vidas delas mais felizes, assim como o poder de
não o fazer. Podia partir e deixá-las ao cuidado da tia ou podia ficar e fazer valer a sua tutela.
Estranhamente, mal se lembrara da acusação de homicídio que ainda pairava, ameaçadora, sobre a sua cabeça toda a tarde. Era difícil levá-la a sério.
O caminho levou-o a subir para fora do vale e, tal como esperava, foi fustigado por uma rajada de vento. Olhou para trás na direção da casa e dos jardins, do rio
e da ponte lá no fundo, da aldeia que ficava visível exatamente naquele ponto depois do promontório do outro lado do vale. E voltou-se para olhar para a terra que
se elevava ligeiramente à sua esquerda, uma superfície irregular com afloramentos de rochas, erva áspera, arbustos de giesta e flores silvestres. As ovelhas da quinta
da sua propriedade estavam espalhadas pela terra, a pastar. À sua direita, a terra inclinava-se para baixo e aplanava numa manta ordenada de retalhos de campos separados
por muros de pedra e algumas sebes. A estrada principal subia pelo vale não muito longe dali, serpenteava pelos campos e continuava em frente até onde a vista alcançava,
rumo ao cabo de Land's End.
Era a sua terra. As suas quintas. E as quintas dos seus rendeiros.
Um amor completamente inesperado por tudo aquilo atingiu-o como um golpe baixo no estômago. Santo Deus, será que perdera o juízo?
Abanou a cabeça e virou à esquerda para avançar apressadamente na direção das falésias. Os Bedwyn eram um grupo fisicamente ativo, como descobrira em Lindsey Hall.
A ida a cavalo até Lydmere de manhã e as brincadeiras ruidosas na praia não tinham sido suficientes para eles. Tinham subido até ali para ver a vista, a conselho
dele. Ele prometera juntar-se a eles assim que terminasse de organizar a lista de convidados para o baile.
Dali a pouco começou a vê-los ao longe. As crianças e Prue corriam por todo o lado, a uma distância segura do cimo da falésia. Parecia que estavam a perseguir ovelhas,
que também tinha sido um dos seus passatempos preferidos em criança. Mas as ovelhas, criaturas sensatas, não mostravam sinais de verdadeiro pânico. Limitavam-se
a pular a uma distância segura mesmo antes de poderem ser apanhadas e depois regressavam à séria tarefa de comer erva. Eve estava sentada numa rocha plana, os braços
à volta dos joelhos, com Aidan estendido ao comprido ao lado dela. Morgan e Alleyne estavam a passear ao longo do promontório a alguma distância. Não havia sinal
de Freyja.
Prue foi a primeira a vê-lo e atirou-se pesadamente contra ele na sua forma caracteristicamente desajeitada, com os cotovelos colados ao tronco e as mãos a agitar-se
freneticamente no ar. Estava a rir-se, empolgadíssima, e ele abriu os braços e preparou-se para a receber enquanto ela se lançava violentamente contra eles e lhe
apertava o pescoço quase ao ponto da asfixia.
- Josh! - gritou ela. - Josh, Josh, Josh. Estou a divertir-me tanto. Gosto da Becky e gosto do Davy. Gosto da Eve e gosto de ti e...
Ele libertou-se com delicadeza do abraço dela, pousou-lhe um braço por cima dos ombros e apertou-a contra si.
- Tu gostas de toda a gente, Prue - disse ele. - Diz simplesmente que gostas de toda a gente. Andam a perseguir ovelhas?
- S-i-im. - Ela riu-se. - A Eve disse que o podíamos fazer desde que não as magoássemos. O Davy não as quer magoar. A Becky não as quer magoar. Eu não as quero magoar.
Adoro ovelhas. - Ela brindou-o com um sorriso de orelha a orelha.
- Onde está a Freyja? - perguntou ele.
- A olhar para o mar - disse ela. - Ela gosta disso. Ela gosta de mim. Deixou-me pegar-lhe na mão e ajudá-la a subir pelo caminho.
A Freyja tinha feito isso?, pensou ele com algum espanto.
- Dei-lhe a mão porque ela se sente sozinha - disse Prue. - Fi-la sentir-se um pouco melhor. Tu vais fazê-la sentir-se bem melhor, Josh.
Freyja a sentir-se sozinha? Era uma ideia verdadeiramente estranha, mas muito possivelmente correta. Por vezes, Prue tinha perceções inesperadamente perspicazes,
que estavam completamente livres das expectativas processadas através do pensamento lógico e do intelecto. Mas era um pensamento singular. Freyja a sentir-se sozinha?
- Joshua - disse Eve quando ele se aproximou deles - isto é tudo espantosamente belo. Estou tão contente por termos vindo para cá em vez da Região dos Lagos. Depois
de se casar com a Freyja, vamos estar sempre à procura de motivos para receber convites vossos. Não é assim, Aidan? - Os olhos dela dançavam, divertidos.
Aidan estendeu o braço que tinha uma erva na mão e fez-lhe cócegas atrás da orelha com ela. Ela riu-se em voz alta enquanto lhe desviava a mão.
- Vou ter de lhe ensinar algumas maneiras, minha senhora - disse Aidan, com um rosto impenetrável.
Joshua teve uma sensação curiosa e perturbadora no fundo da barriga. Costumava pensar no casamento como um escape para a paixão, o tipo de paixão sexual que se podia
encontrar noutro lado sem a necessidade de um compromisso para toda a vida. Mas ali estava um aspeto do casamento que era ainda mais apelativo, por mais estranho
que parecesse, quando não existia qualquer sinal aparente da paixão que imaginava que deflagrasse quando os dois estavam sozinhos e em privado. Estavam descontraídos,
a rir-se (Aidan estava a rir-se, apesar da expressão deliberadamente severa) e a arreliar-se mutuamente.
- Posso dizer - disse Aidan quando Prue fugiu para se juntar às crianças nas suas brincadeiras - que a forma como lidou com aquela situação ridícula ao pequeno-almoço
esta manhã conquistou a minha admiração, Joshua? Abrir o jogo com franqueza era claramente a melhor coisa a fazer.
- Aprendi muito cedo - respondeu Joshua - a não jogar os jogos da minha tia à maneira dela.
- Mas e se aquele homem, Mr. Garnett, trouxer mais testemunhas? - perguntou Eve. - O dia de hoje está a ser tão maravilhoso e pacífico que tenho de me obrigar a
lembrar que alguém está a tentar incriminá-lo por um homicídio.
- Isso não me preocupa minimamente. - Joshua sorriu. - Trata-se de um assunto aborrecido que precisa simplesmente de ser esclarecido de uma vez por todas. Onde está
a Freyja?
- Ela encontrou uma reentrância ali atrás onde se podia sentar - disse Aidan, indicando as falésias atrás de si com o dedo. - Acho que a paisagem a intimida.
Joshua sabia exatamente qual era o lugar que ela devia ter encontrado. Era como uma concavidade de terra que parecia ter sido escavada na rocha, com erva no chão
e com três lados constituídos por uma mistura de rocha e terra firme. Do quarto lado, a falésia precipitava-se quase completamente a pique para a praia e o mar lá
em baixo. Era um local que estava abrigado da maior parte dos ventos a não ser que estes soprassem diretamente do sul.
Ela estava sentada no meio da reentrância, com as pernas esticadas à frente e os braços apoiados na erva atrás de si. Já não usava o vestido de montar e chapéu elegantes
daquela manhã. Agora envergava um vestido de musselina e uma capa que parecia quente. O cabelo dela estava previsivelmente solto e caía-lhe pelos ombros.
- Isto era a minha fortaleza em criança - disse ele, detendo-se no rebordo da reentrância acima dela -, o mastro do meu navio, o ninho muito alto da minha águia
e o meu refúgio para todo o tipo de sonhos.
Ela ergueu a cara contra o sol enquanto ele descia para se sentar ao lado dela.
- Nunca gostei do mar - disse ela. - Sempre me pareceu demasiado vasto, demasiado misterioso, demasiado... poderoso. Nunca podemos controlar o mar, pois não?
- E gostas de sentir que controlas tudo? - perguntou-lhe ele.
- Sou uma mulher - disse ela. - As mulheres têm muito pouco controlo sobre o que quer que seja nas suas vidas. Não somos sequer pessoas legalmente, apenas a propriedade
de um homem qualquer. Temos de lutar por qualquer pedacinho de controlo que consigamos exercer sobre o nosso destino. Eu tenho quatro irmãos poderosos. Tive de lutar
mais do que a maior parte das mulheres. Mas não posso lutar contra o mar.
- Nem eu, se isso te reconforta - disse ele. - O mar existe para nos lembrar a todos o quão pequenos e impotentes somos. Isso não é necessariamente uma coisa má.
Fazemos coisas terríveis com o poder que possuímos de facto. Mas quando começaste a falar parecia que talvez tivesses perdoado o mar.
- Ele também é exaltante - afirmou ela. - Toda aquela liberdade e energia. Sinto-me a fitar a eternidade. A praia lá em baixo é privada, não é? Pertence a Penhallow.
- Sim - respondeu ele. - Posso levar-te até lá um destes dias. É grande e tem uma areia dourada quando a maré está vaza e é inexistente quando a maré está cheia.
Pode ser perigosa. A maré sobe depressa e podemos ficar isolados do vale se não tivermos o cuidado de regressar a tempo.
- E se não tivermos esse cuidado? - perguntou ela. - Afogamo-nos?
- Ou escalamos a falésia - disse ele. - Às vezes escalava-a só pela emoção de o fazer, mesmo quando a maré estava vaza. Parece ser a pique, mas é claro que existem
muitos apoios para os pés e para as mãos. Contudo, é perigoso. Uma escorregadela e teria ficado desfeito aos bocadinhos com a queda, e nunca me terias conhecido.
- Também a teria escalado se vivesse aqui contigo - disse ela, com uma expressão felina ameaçadora e um brilho destemido nos olhos. - E faria uma corrida contigo
até ao cimo.
Ele soltou um riso abafado. - Nunca saberemos, pois não? - disse ele.
Ela apontou em frente para o mar. - Que ilha é aquela? - perguntou. - É habitada?
- Foi um antro de contrabando há muito tempo - disse ele. - Mas tanto quanto sei já deixou de o ser. É selvagem e deserta.
- Já estiveste lá? - perguntou ela.
- Costumava ir até lá de barco de vez em quando - disse-lhe. - Por vezes com amigos, mas a maior parte das vezes sozinho. Gostava da solidão, da oportunidade de
pensar e sonhar sem interrupções.
- Deve ser de difícil acesso - disse ela. - O mar parece picado à volta e existem penhascos escarpados que se erguem diretamente do mar.
- Existem alguns portos de abrigo - disse ele. - Tens medo do mar?
- Eu não tenho medo de nada - disse ela, erguendo o queixo no ar na sua habitual postura de arrogância.
- Mentirosa - disse ele. - Tens medo.
- Que disparate! - exclamou ela enquanto ele vigiava cautelosamente as suas mãos. Mas ela manteve-as apoiadas no chão atrás de si. - Leva-me até lá. Um destes dias...
amanhã. Só tu e eu. Só nós os dois.
Ele não saía para o mar numa embarcação pequena desde aquela noite. Só se apercebeu da sua relutância naquele momento. Olhou para o mar onde ele e Albert tinham
estado a discutir até Albert ter mergulhado borda fora e depois se ter recusado a entrar de novo no barco. Inclinou a cabeça e olhou para o ponto depois do rio onde
Albert se ergueu com água à altura do peito e ele o considerou em segurança e partiu, circundando o promontório seguinte para desanuviar a cabeça e decidir qual
seria o seu próximo passo.
Fechou os olhos, desejando que as memórias desaparecessem. Todas as memórias.
- Acho que - disse Freyja - és tu quem está com medo, Josh.
Ele virou a cabeça para lhe sorrir.
- Amanhã? - disse ele. - Só nós os dois? Estás disposta a enfrentar esse perigo? E não me estou a referir à viagem de barco.
Ela olhou para ele, de sobrancelhas erguidas. Fitou-o durante um longo momento antes de responder e ele sentiu uma tensão inequívoca na zona das virilhas.
- Estou disposta a isso - disse ela por fim. - Mas gostava imenso de ainda ser capaz de te ver como te via quando estávamos em Bath, Josh. Como um devasso encantador
e fútil.
O sorriso dele manteve-se.
- Mas eu não passo disso, querida - disse ele. - Acontece que tive uma infância interessante e me vi inevitavelmente envolvido numa série de situações absurdas antes
de partir daqui. Parece que fui arrastado de volta para isso agora e tenho de o resolver de uma vez por todas. Mas não passa de um percalço menor na minha vida frívola.
- Quem me dera poder acreditar em ti - disse ela, soerguendo-se e abraçando os joelhos.
E ele gostava que Prue não lhe tivesse sugerido que Freyja se sentia sozinha. Queria pensar nela como uma mulher forte, independente e desdenhosa de todos que estavam
abaixo de si. Contudo, perdera o homem com quem crescera e esperara vir a casar e perdera o homem que amara apaixonadamente. Não, nunca quis conhecer realmente Freyja
Bedwyn do mesmo modo que ela não o quis conhecer a ele.
O namorico ligeiro de ambos em Bath tinha sido tão agradável.
Ele sorriu-lhe ironicamente e ela continuou a olhá-lo altivamente. Mas o habitual antagonismo ligeiro e sedutor deixara de existir entre ambos. Alguma coisa subtil
mudara. Pensou desesperadamente numa forma de aligeirar o ambiente. Mas ela desorientou-o ao pousar uma mão na sua cara muito ao de leve, só com as pontas dos dedos.
Por um momento, teve a sensação absurda de que não tinha ar suficiente para respirar. Pegou na mão dela e inclinou a cabeça para lhe beijar a palma da mão.
- Tens a certeza de que não queres que eu convide mais ninguém para esta excursão à ilha? - perguntou-lhe.
- Tenho a certeza - disse ela. - Mais ninguém.
Santo Deus! Estava pronto a explodir. Mais um pouco e ia atirar-se de cabeça daquela falésia para se refrescar no mar, a menos que a maré estivesse vaza.
O problema era que, pensou Joshua, enquanto ela se inclinava para a frente e encostava os lábios aos dele, já não se conseguia lembrar porque é que o noivado deles
era falso e por que motivo teriam de lhe pôr um fim mais tarde ou mais cedo. Havia um motivo, não havia? O facto de ele não estar pronto para assentar? O facto de
ela amar outra pessoa?
Mas o processamento dos seus pensamentos tornou-se lento com o beijo. Não sabendo bem como, deu por si deitado de costas e ela ficou meio deitada em cima dele. Estavam
a beijar-se, não com uma paixão destravada nem com um desejo ardente, mas com beijos suaves, quase indolentes, que pareciam bem mais perigosos a Joshua. Ele estava
a segurar-lhe no rosto com ambas as mãos. As mãos dela prendiam-lhe o cabelo com os dedos e afagavam-lhe levemente a testa. Os dois tinham os olhos abertos.
Santo Deus!
Uma Freyja apaixonada era um barril de pólvora prestes a explodir. Uma Freyja terna era bem mais mortífera.
- Hum... - disse ele debaixo dos lábios dela. - As minhas memórias deste lugar vão alterar-se para sempre.
Não sabia quanto tempo teriam continuado a trocar beijos suaves. Alguém pigarreou lá em cima.
- É uma vista encantadora, Morg, não concordas? - perguntou Alleyne. - Embora te aconselhe a olhar para a frente em vez de olhar para baixo. Podes ficar com vertigens.
- É melhor procurarem outro miradouro - disse Joshua enquanto Freyja se sentava e Morgan se ria. - Este já está ocupado.
- Francamente - disse Alleyne. - Mas que anfitrião muito pouco gentil. Não somos desejados aqui, Morg. Mas estou a ver que o Davy apanhou uma ovelha e está a tentar
montá-la. É melhor irmos em seu socorro.
- Do Davy ou da ovelha? - perguntou Morgan.
Eles desapareceram.
- Esta excursão vai ser muito perigosa, sabes - disse Joshua, entrelaçando os dedos atrás da cabeça enquanto Freyja puxava para trás o cabelo e o prendia atrás das
orelhas antes de agarrar de novo os joelhos.
- Eu sei - disse ela.
- Mas não tens medo?
- Não - disse ela. - Tu tens?
- Um medo de morte. - Ele soltou uma risada, embora estivesse a falar muito a sério. - Posso não conseguir manter as minhas mãos longe de ti, querida.
O sol surgiu atrás da cabeça dela ao mesmo tempo que ela a inclinava para olhar para ele e transformou as ondas rebeldes do cabelo dela num halo dourado à volta
do rosto. Parecia estranha e subitamente bela aos seus olhos.
- Talvez eu não consiga manter as minhas longe de ti - disse ela, olhando-o nos olhos sem hesitar.
Mais uma vez, Joshua sentiu-se a ficar sem ar.
- Vai ser um dia interessante - disse ele.
- Sim.
Em que se estavam a meter agora? Em águas perigosas, sem dúvida, em mais do que um sentido.
Tinha de haver uma razão para não se casarem. Ambos tinham sido tão inflexíveis a esse respeito.
Mas que razão era essa afinal ? Podia conseguir salvar-se se se conseguisse lembrar.
- Quando fizer as minhas orações hoje à noite - declarou - vou pedir para não chover amanhã.
A seguir, fez um sorriso trocista.
CAPÍTULO 19
Freyja pediu para chover nas suas orações ou, melhor ainda, para nevar no dia seguinte. Depois apercebeu-se da sua cobardia e em vez disso pediu ao criador divino
do tempo um dia de sol a brilhar sem nuvens e temperaturas do pino do verão.
No dia seguinte, muito cedo, quando ainda nem sequer se via luz, atirou para trás as roupas da cama, foi até à janela e olhou lá para fora. Não havia uma única nuvem
no céu, o que não significava que ia ser um dia maravilhoso. Muitas vezes, um início de dia com um sol radioso dava lugar a nuvens e chuva mais tarde. E um dia de
sol naquela altura do ano vinha muitas vezes acompanhado de temperaturas baixas. Mas Freyja reparou que a janela estava aberta e ela não estava a tremer de frio.
O que é que lhe passara pela cabeça? Ela tinha medo do mar. Tinha um medo de morte de ficar à deriva sobre a sua superfície num pequeno barco de pesca. Mas exigira
ser levada até àquela ilha assustadoramente distante. Todavia, não fora essa perspetiva que perturbara o seu sono. Apesar de tudo, era Freyja Bedwyn e enfrentava
os seus medos de frente sempre que lhe surgisse um desafio.
Leva-me até lá. Um destes dias... amanhã. Só tu e eu. Só nós os dois.
De onde tinham vindo aquelas palavras? Porque não organizar uma excursão para todos? Não tinha dúvidas de que seria possível alugar mais de um barco. Era mais seguro
quanto mais pessoas fossem.
Só tu e eu. Só nós os dois.
Ela estava envolvida de forma muito mais profunda com Josh do que gostava de admitir. Tinha chegado a essa conclusão durante uma parte da noite em que não conseguira
dormir enquanto se tentava convencer de que ainda não esquecera Kit. Mas já o tinha feito. Estava a começar a usar a sua paixão antiga como um escudo atrás do qual
se escondia. Kit estava feliz com Lauren, ela estava feliz com ele e já não sentia qualquer sofrimento ou raiva relativamente a essa realidade. Essa parte da vida
dela estava terminada e resolvida.
Mas se tinha esquecido Kit, o que é que a impedia de amar Josh?
Ela não se atrevia a amá-lo. Muito embora ele não fosse nem de perto a pessoa superficial por quem o tomara quando estavam em Bath, não era um homem pelo qual fosse
sensato apaixonar-se. Não tencionava fazer de Penhallow ou de qualquer outro lugar o seu lar. Estava ansioso por voltar à sua vida de errância ociosa. A sua vida
frívola, como a descrevera na véspera.
E, contudo, não estava certa de ter acreditado nele...
No dia seguinte, naquele próprio dia, iria até àquela ilha com ele. Só os dois. E não podia ser inocente em relação a isso.
Estás disposta a enfrentar esse perigo? E não me estou a referir à viagem de barco.
Estou disposta a isso.
Posso não conseguir manter as minhas mãos longe de ti, querida.
Talvez eu não consiga manter as minhas longe de ti.
Freyja acabou por estremecer no ar que antecedia o amanhecer e voltou para a cama, mas não conseguiu fazer muito mais do que dormitar até poder levantar-se e sair
do quarto a horas decentes.
Tão madrugador como ela, Joshua já saíra para a quinta da propriedade com o seu administrador. Aidan e Alleyne tinham ido com ele. Freyja lembrou-se nessa altura
que prometera passar a manhã a escrever convites para o baile com Morgan, Constance e Chastity.
Quando se juntou às outras na sala de estar da manhã após o pequeno-almoço descobriu que a lista de convidados era longa. Duvidava se teriam omitido alguém num raio
de vinte quilómetros de Penhallow e concluiu que era muito próprio de Joshua ser assim tão igualitário apesar da sua posição social elevada. Tentou imaginar Wulfric
como anfitrião de um baile daquele género e sorriu perante o pensamento absurdo.
- Consegues imaginar o Wulf com uma lista de convidados deste tipo, Morgan? - perguntou ela quando as quatro deram início à sua tarefa.
- Ou nós próprias a frequentar um baile deste tipo? - disse Morgan. - O Wulfric é o nosso irmão, o duque - explicou às outras duas senhoras. - Leva o orgulho da
sua posição social ao extremo.
- O Joshua não vê este baile como um acontecimento social elegante para os membros da classe social superior - disse Constance. - Vê-o como uma celebração de toda
a vizinhança do seu regresso a casa e do seu noivado. E todas estas pessoas eram seus amigos, criados, trabalhadores, aldeãos. Quer partilhar a felicidade e a sorte
dele com eles. Um baile deste tipo irá ofendê-las?
- Acho que - disse Morgan, inclinando-se para a frente por cima da mesa - me vou divertir imenso.
- Se isso fizer o Josh feliz - disse Freyja - também me fará feliz.
Deus do Céu, parecia uma mulher submissa e apaixonada.
Seria essa mulher?
Constance ergueu os olhos do cartão em branco que colocara à sua frente, a pena imóvel por cima do boião de tinta. - Eu acreditei realmente quando estávamos em Bath
- disse ela -, e quando ajudou o Joshua a frustrar o plano da minha mãe de o convencer a casar-se comigo, que iriam encontrar em breve alguma forma discreta de pôr
um fim no vosso noivado. Não percebi que era real, ainda que o anúncio formal tivesse sido antecipado. Estou tão contente que assim seja. A Freyja é perfeita para
o Joshua. É destemida e suficientemente inteligente para o desafiar. Irá domesticá-lo sem contrariar o espírito dele e ao mesmo tempo não vai permitir que ele a
subjugue. Ele iria desprezá-la ou depressa ficaria farto de si caso o fizesse.
Freyja foi apanhada de surpresa, mas não teve hipótese de responder.
- Freyja! - exclamou Morgan. - Houve mais alguma coisa a respeito do teu súbito noivado em Bath do que aquilo que nos contaste? Pensava que não tínhamos segredos
uma para a outra. Vou arrancar-te tudo mais tarde, aviso-te já. Mas concordo absolutamente com a Constance de que o Joshua é realmente perfeito para ti. Espero encontrar
alguém tão perfeito para mim, embora tenha a certeza de que isso não irá acontecer no ambiente pateta de uma temporada social londrina.
- Mas seria maravilhoso passar por essa experiência - disse Chastity, sonhadora. - Todos aqueles bailes, encontros elegantes e concertos. E pessoas. Invejo-te bastante,
Morgan.
Elas dedicaram-se a escrever durante algum tempo, depois de dividirem a lista em quatro partes iguais. Era bastante provável, pensou Freyja, que muitos dos destinatários
daqueles convites nem sequer fossem capazes de os ler. Mas sem dúvida que a notícia se espalharia depressa e todos iriam compreender o significado dos cartões mesmo
sem serem capazes de decifrar o que estava lá escrito.
Ela descobriu que estava ansiosa pelo baile. Iria ser divertido, pelo menos. A vida era mesmo divertida com Joshua. E decididamente imprevisível.
Ela quebrou o silêncio depois de cerca de quinze minutos, tempo durante o qual não se ouvira mais nada além do arranhar de quatro penas no papel.
- Constance - perguntou -, lembra-se da noite em que o seu irmão morreu?
Era estranhamente fácil esquecer a razão por que todos tinham vindo para Penhallow. Só quando via a marquesa, silenciosa, pálida e patética a lançar-lhe olhares
venenosos quando ninguém estava a ver é que se lembrava de que estavam todos à espera do próximo desenvolvimento num jogo bizarro e possivelmente perigoso.
- Não me lembro de nada em especial - disse Constance. - Foi uma noite tempestuosa e ficou pior à medida que a noite avançou. Só fiquei a saber que o Albert não
tinha vindo para casa na manhã seguinte.
- Mas sabia que ele tinha saído? - perguntou Freyja.
- Ele foi a Lydmere - disse Constance. - Disse que ia falar com o Joshua.
- A respeito de quê? - perguntou Freyja.
- Eu... Eu não sei - disse Constance. Mergulhou a pena no boião de tinta de novo, mas não escreveu nada. - A respeito de Miss Jewell, creio eu. Ela era a precetora
da Chastity e foi dispensada porque... Bom, isso não interessa. O Joshua encontrou uma pequena casa na aldeia para ela viver e a mãe ficou aborrecida com isso. O
Albert concordou em ir falar com ele.
- A precetora estava grávida? - perguntou Morgan, de olhos arregalados. - E a sua mãe e irmão achavam que o Joshua era o responsável por isso? Não consigo acreditar
que ele fosse capaz disso.
- O Joshua não era o pai - disse Chastity com veemência. - Ninguém sabe quem era o pai. Miss Jewell nunca o disse.
No silêncio bastante tenso que se seguiu, Constance inclinou-se sobre a sua tarefa de novo e depois disso Morgan fez o mesmo. Chastity estava incapaz de escrever,
reparou Freyja com um olhar atento. A sua mão tremia. Talvez receasse que as suas duas hóspedes estivessem a chegar à conclusão de que, se não era Joshua, o pai
devia ser o irmão dela.
- E a Chastity? Lembra-se dessa noite? - perguntou Freyja.
Chastity abanou a cabeça. - Não me lembro de nada - disse ela com firmeza. - Mas não deve pensar nada de mal acerca do Joshua, Freyja. Eu sei que ele não fez nada
de impróprio com Miss Jewell. Ele vinha cá a casa todas as semanas para visitar a Prue, não Miss Jewell. Eu sei isso porque eu própria estava sempre com Miss Jewell
quando ele estava cá ou então com ele e com a Prue. E eu sei que ele não matou o Albert nem fez nada para causar a morte dele. Foi um acidente, nada mais do que
isso.
Freyja continuou a observá-la durante algum tempo antes de voltar à sua tarefa (ainda tinha mais quatro convites para enviar) e dar uma oportunidade à rapariga de
se recompor ao ponto de voltar a pegar na pena.
Ela perguntou-se se qualquer uma das irmãs tinha amado o irmão. Era certo que nenhuma estava preparada para suspeitar de mão criminosa na sua morte, embora ambas
soubessem que ele fora à aldeia naquela noite para confrontar Joshua relativamente àquela situação desagradável que envolvia a precetora. Pelo menos uma das irmãs,
Chastity, concluíra que o irmão era o pai da criança.
Miss Anne Jewell era uma personagem triste, pensou Freyja. Um tanto ou quanto aceite na aldeia agora, embora não fizesse realmente parte dela. Uma mulher com um
filho ilegítimo, com muito pouco do trabalho com o qual esperara vir ganhar o seu sustento, obrigada a aceitar pelo menos um apoio parcial de um homem que não era
de nenhuma forma responsável por ela. Aquilo de que a mulher precisava era de independência, de uma ocupação e o restabelecimento de todo o seu orgulho. Aquilo de
que ela precisava...
Miss Anne Jewell não lhe dizia respeito, disse a si própria com firmeza.
A tarefa foi finalmente concluída e Constance reuniu os convites dobrados e levou-os consigo para serem entregues. Chastity pediu licença e retirou-se para ir à
sala das crianças ver Prue.
- Freyja - disse Morgan quando ficaram sozinhas -, há muita coisa aqui que ainda está por dizer e resolver, não é assim? Assim como uma acusação de homicídio que
ainda paira sobre a cabeça do Joshua. Isto é tudo muito excitante e desafiante.
Uma típica reação Bedwyn, pensou Freyja.
- Quase que te invejo - disse a irmã.
- Quase? - Freyja ergueu as sobrancelhas.
- Bom, gosto imenso do Joshua - disse Morgan - e ele é, de longe, o homem mais bonito que eu já vi, incluindo o Alleyne. Mas gosto dele como um cunhado. Vou ter
de encontrar o meu próprio desafio e o meu próprio motivo de excitação, se é que resta alguma coisa para mim algures por aí.
Freyja esteve prestes a dizer à irmã que o seu noivado não era de modo nenhum real, mas não o disse. Havia alguns assuntos a resolver primeiro, incluindo a viagem
planeada de barco até à ilha a determinada altura daquele dia cuja importância não era de desprezar.
Posso não conseguir manter as minhas mãos longe de ti, querida.
Talvez eu não consiga manter as minhas longe de ti.
O coração dela bateu mais depressa ao lembrar-se das palavras.
- Vais encontrar alguém perfeito para ti um destes dias - disse ela. - Toda a gente encontra.
Toda a gente exceto eu.
Os únicos homens perfeitos que parecia conhecer estavam indisponíveis para uma relação permanente, pensou Freyja sombriamente.
Desde que se lembrava que Freyja sabia nadar. Conseguia saltar para lagos da margem, de ramos suspensos de árvores, de barcos. Conseguia nadar à superfície ou debaixo
de água, em crawl, de costas ou simplesmente flutuar. Conseguia navegar num barquito pequeno, sentada ou de pé. Nunca lhe passara pela cabeça a ideia de ter medo
da água.
Até ter visto o mar pela primeira vez com cerca de dez anos.
Nunca soube ao certo o que é que o mar tinha de tão aterrador. Talvez a sua vastidão. Mas nunca tivera de admitir o seu terror, nem mesmo a si própria, até àquele
momento. Nunca tivera oportunidade de nadar ou de navegar no mar.
Estava sentada num banco estreito de madeira dentro de um barco estreito de madeira, rodeada por todos os lados de água que estava tão próxima dela que podia mergulhar
nela uma mão e observar o rasto que deixava para trás, se quisesse. Não queria. Tinha a plena consciência de que o conjunto de pranchas finas do barco aos seus pés
era a única coisa que a separava de profundidades desconhecidas.
Estava tão envergonhada e irritada com o seu próprio terror que ergueu o queixo num ângulo arrogante, como se achasse aquilo tudo uma verdadeira maçada, e juntou
despreocupadamente as mãos no colo em vez de se agarrar com toda a força dos seus braços aos dois lados do barco.
- Estás nervosa? - perguntou Joshua, com um grande sorriso.
Ele estava sem chapéu. Remava através da água revolta que ondulava na brisa, trazendo espuma branca. Como sempre, estava irresistível. O vento despenteou-lhe o cabelo
loiro e fê-lo cintilar. Ela tentou concentrar-se na sua beleza, ou, melhor ainda, no seu sorriso malicioso e trocista. Ele sabia que ela estava aterrorizada.
- Ora! Com um pouco de água? - Ela tentou não reparar no facto de que a ilha parecia mais distante do que quando tinham partido ou de que a terra firme parecia estar
a quilómetros de distância.
- Não me estava a referir à água. - Ele baixou uma das pálpebras naquele seu piscar de olhos lento.
- Que disparate! - Ela apertou os lábios e ele riu-se.
Joshua tinha explicado à mesa do almoço que prometera arranjar-lhe um barco e levá-la a dar uma volta no mar durante a tarde. Mas antes que alguém pudesse fazer
a sugestão de se formar um grupo para isso, acrescentara que o barco que tinha pedido emprestado era muito pequeno, só cabiam nele duas pessoas e que pedia imensa
desculpa, mas era um homem recém-comprometido e precisava de algum tempo sozinho com a sua noiva.
Josh sorrira de forma cativante para todos à mesa, com uma expressão tão maliciosa quanto encantadora. Ninguém proferira uma palavra de protesto, nem sequer Aidan,
que podia ter desempenhado papel de irmão mais velho, visto que Wulf não estava lá para dar a sua opinião a respeito de uma indiscrição tão flagrante. Mas é claro
que todos acreditavam que ela estava noiva de Josh. Talvez nem sequer pensassem duas vezes nisso se soubessem que a ilha era o destino dos dois.
A seguir, todos os outros tinham tratado de fazer os seus próprios planos. A marquesa ia fazer visitas e informou Constance de que ela a iria acompanhar, juntamente
com o reverendo Calvin Moore. Chastity ia levar todos os outros para a praia lá em baixo. Morgan ia levar uma tela e tintas consigo. Eve deixou bem claro que ninguém
podia sequer pensar em nadar no mar.
Freyja virou a cabeça e ficou surpreendida ao descobrir que esta ainda se movia sobre o pescoço. Conseguia vê-los a todos agora na praia, figuras minúsculas que
pareciam invejavelmente a salvo, algumas deles a correr e outras a caminhar mais tranquilamente. Três delas estavam a acenar junto à água. Seriam Prue e as crianças?
Freyja levantou uma mão e acenou de volta.
Estava embaraçosamente consciente de que havia dois cobertores dobrados no fundo do barco. Reparara neles assim que Josh e o pescador a quem pertencia aquele barco
a tinham ajudado a subir para a embarcação, pois pisara-os. Se tivesse perguntado para que serviam, ele diria, com olhos trocistas, que eram para enrolar à volta
deles se o vento ficasse demasiado frio.
Ela não lhe perguntou nada.
- Se quiseres, querida - disse Joshua -, podemos voltar para trás neste preciso momento.
Ela fitou-o com altivez. - Eu não tenho medo - disse-lhe. - Não tenho medo de nada. E tu?
Ele limitou-se a sorrir-lhe.
Ela reparou na forma como os músculos dos braços e coxas dele se fletiam enquanto remava. Se o barco tombasse, só tinha de começar a nadar. Assim como ele. Ele não
a deixaria afogar-se. Freyja sentiu-se a descontrair como sempre depois de confrontar qualquer medo que ameaçava assombrá-la.
Ao mesmo tempo, a sua respiração acelerou-se e o sangue correu mais depressa nas suas veias. O que ia acontecer na ilha? Ia deixar que acontecesse? Ia fazer com
que acontecesse? Ia impedir que acontecesse? Ou será que essa questão não se iria levantar? Iam simplesmente gozar uma hora a caminhar em torno da ilha, admirar
as vistas e depois regressar à segurança da terra firme?
Durante algum tempo, achou que não iam conseguir sequer desembarcar. Os penhascos pareciam muito altos, a costa muito rochosa, o mar demasiado picado. Mas Joshua
remou à volta da ilha até chegar a uma praia estreita e arenosa numa pequena enseada, saltou para a água e puxou o barco para fora da água. A seguir, inclinou-se
por cima dele e colocou os cobertores por cima de um dos ombros.
Bom, aquilo respondia pelo menos a uma pergunta, pensou ela.
- Podemos querer sentar-nos um pouco - disse ele, sorrindo-lhe. - A não ser que estejas a planear ficar aqui sentada toda a tarde.
Ela ignorou a mão que ele lhe estendia, saltou para fora do barco de forma bastante deselegante e colocou os pés na areia. Ele puxou o barco mais para cima na praia
antes de iniciar o caminho através da areia, seixos soltos e rochas duras até ao terreno mais acima. Ela avançou lenta e cuidadosamente atrás dele.
A ilha era maior do que pensara. Estendia-se à sua frente em dunas e depressões ondulantes, numa mistura de erva verde e áspera, areia amarela, rochas em bruto,
giesta amarela e relva-do-olimpo cor-de-rosa. As gaivotas grasnavam lá no alto, e dos seus poleiros em rochas ou dunas. O ar era fresco e salgado. O mar era visível
a toda a volta.
Joshua pegou-lhe na mão enquanto estavam parados num pequeno promontório a assimilar a beleza elementar de tudo.
- É estranho - disse ele. - Tinha-me esquecido de que há muita coisa que eu amo aqui na Cornualha.
- Num lugar como este - disse ela, erguendo o rosto para a brisa -, é fácil acreditar em Deus e na eternidade sem a interferência de qualquer religião.
- É melhor não deixares o reverendo Calvin Moore ouvir-te a dizer isso - disse ele. Mas havia um calor na sua voz, uma ternura que a fez prender a respiração e a
deixou alarmada.
- Dei-te permissão para segurar na minha mão? - perguntou ela.
Ele riu-se suavemente e ergueu as duas mãos entrelaçadas para encostar as costas da mão dela aos lábios.
- É demasiado tarde para isso, querida - disse ele. - Foste tu que me convidaste para vir até cá, lembras-te? Só nós os dois? Existe uma outra baía no lado oriental
da ilha. É mais abrigada do vento do que o resto da ilha. Vamos até lá para nos sentarmos um pouco?
- Claro que sim - disse ela, sentindo os joelhos vacilantes. O que estavam eles a fazer? Depois da questão dele com Garnett ser esclarecida, presumivelmente após
o baile, o plano era deixar Penhallow e cada um seguir o seu caminho. Nunca mais se voltariam a ver. Estaria completamente certa de queria ficar com esta recordação?
Mas ao mesmo tempo que colocava essa pergunta a si própria, apercebeu-se de que já não tinha outra escolha. O que acontecesse, ou não, naquela tarde ficaria gravado
para sempre na sua memória.
Será que ia achar Josh tão difícil, ou tão fácil de esquecer como Kit? Nunca fizera amor com Kit.
Fixou o olhar na vastidão interminável da água azul e verde enquanto ele estendia um cobertor por cima da erva áspera acima da pequena baía com uma praia a que os
tinha conduzido. De facto, era um local mais abrigado. Quase se podia imaginar que era verão, um dia frio de verão. Ele pousou o outro cobertor no chão, ainda dobrado.
Para talvez se cobrirem com ele se tivessem frio.
Depois.
Ela inspirou lentamente. Ainda não era demasiado tarde. Ele não iria obrigá-la a nada.
Da última vez tinha sido fácil. Não tivera de tomar qualquer decisão. Tinha sido impelida por uma paixão urgente e cega provocada pela dor da festa de batismo e
por alguma coisa que ele dissera que a enfurecera. Já não se conseguia lembrar do que fora. Agora havia demasiado tempo para pensar.
Mas um pensamento palpitava em sintonia com o bater do coração. Ela desejava-o. Queria essa recordação para a levar consigo no futuro. Já não podia proteger-se do
tipo de dor que conhecera com Kit. Era demasiado tarde.
Ao que parecia, não possuía qualquer sensatez relativamente aos homens que escolhia para amar.
Sentou-se no cobertor, ergueu os joelhos e abraçou-se a eles, tudo sem olhar para ele. Ele sentou-se ao lado dela, deitou-se de lado e apoiou a cabeça numa das mãos.
- Então, querida - disse ele suavemente -, porque é que estamos aqui?
Ela encolheu os ombros e manteve-os encolhidos. - Para ver a ilha? - disse ela. - Para passarmos algum tempo juntos?
- Com que propósito? - perguntou-lhe ele. - Porque estamos noivos?
- Mas nós não estamos noivos - afirmou ela.
- Pois não. - Ele ficou calado durante algum tempo. - Porque é que estamos aqui, Free?
Ele ia obrigá-la a dizê-lo com todas as letras, não ia? Bom, isso era mais do que justo. Pedira para ser trazida ali. Pedira para virem sozinhos. Será que devia
agir como uma flor de estufa e esperar que o homem assumisse o controlo da situação? Ela inclinou a cabeça para olhar para ele. Os olhos dele estavam a sorrir-lhe
mas sem a zombaria ou a expressão maliciosa de que estava à espera.
- Para fazer amor - disse ela.
Eles olharam um para o outro enquanto o ar quase crepitava entre ambos.
- Sim - disse ele, com uma voz baixa. - Para fazer amor. Vamos fazê-lo como deve ser, sem qualquer tipo de pressa ou impaciência, querida? Para que ambos fiquemos
com recordações felizes das nossas breves semanas juntos?
Ele sentou-se e tirou as botas altas e as meias. Despiu rapidamente o casaco e desabotoou o colete. Freyja ergueu os braços e retirou os ganchos do cabelo. Quando
sacudiu livremente o cabelo, ele estava a despir a camisa pela cabeça.
Mal tivera oportunidade de olhar para ele na cabana do couteiro em Alvesley. Mas a beleza dele não estava limitada ao rosto, descobriu ela naquele momento. Os ombros,
o peito e os braços eram todos fortemente musculados e proporcionados numa perfeição masculina. Ela encostou uma mão às costas dele e abriu os dedos. Ele estava
quente e convidativo.
- Queria fazer isto desde a última vez - admitiu ela.
- Não consegues fazer melhor do que isso? - perguntou-lhe ele, sorrindo-lhe. - Eu queria fazer isto ainda antes da última vez. Creio que tudo começou num certo quarto
de uma estalagem onde estavas descalça, despenteada e furiosa. - Ele aproximou a cabeça até os seus lábios tocarem nos dela. - Deves ser, de longe, a mulher mais
desejável que já conheci, Freyja Bedwyn. - A língua dele acariciava ligeiramente os lábios dela, provocando-lhe sensações explosivas dos lábios aos pés.
Ele despiu-a com mãos que eram claramente experientes. A seguir, livrou-se do resto da sua própria roupa enquanto a devorava com os olhos e vice-versa. Ela deitou-se
de costas no cobertor quando ficaram os dois nus.
Freyja ficou com medo nesse momento de, ao tocar-lhe, ao tomar a iniciativa, estragar tudo por ter demasiada pressa como da última vez. Queria descobrir se podia
existir tanta ternura no ato de fazer amor como paixão ardente. Queria ser capaz de se recordar dele com ternura. Queria recordar-se dele como estava agora, a olhar
para ela com um desejo controlado. Ela abriu os braços para os lados, com as palmas das mãos para baixo.
- Faz amor comigo - disse.
- É o que tenciono fazer, querida - respondeu ele, inclinando-se por cima dela.
As mãos dele avançaram sobre o corpo dela. Ele era tão experiente em fazer amor com as mãos como ao despi-la com elas. Sabia exatamente onde a tocar e como, por
vezes com a ponta dos dedos tão leve que ela se apercebia mais da sensação do que do toque dele. E também sabia usar a boca, beijando os pontos a latejar, sugando
os seios, fazendo-a sentir um hálito quente junto ao umbigo e lambendo-o ligeiramente com a língua, dando beijos leves como uma pena no interior das coxas e chupando
um dos dedos grandes do pé antes de erguer a cabeça e sorrir-lhe.
Pegou-lhe nos pés, massajou-os de forma a multiplicar o seu desejo e depois abriu-os e puxou-os para cima de tal forma que os joelhos dela se abriram antes de ele
voltar a pousar os pés no cobertor. Ajoelhou-se entre as coxas dela, erguendo-lhe as pernas por cima das dele. E depois deslizou uma mão no meio delas.
Ela estava húmida e quente e a mão dele parecia fria em contraste.
Ele sabia exatamente como a tocar ali também. Os dedos dele moviam-se leve e intencionalmente, ao mesmo tempo que observava o que fazia enquanto ela observava o
rosto belo e absorto dele, de olhos semicerrados. E depois tocou-lhe num ponto qualquer com o polegar, friccionando-o muito ligeiramente. Ela arqueou as costas,
gritou, abrindo mão de todo o seu controlo cuidadosamente conservado e explodiu num clímax trémulo e absolutamente delicioso.
Ele riu-se suavemente enquanto a puxava para cima do seu colo, a abria com os polegares e a penetrava profundamente. Ela respirou fundo. Não houve qualquer dor daquela
vez, só um prazer inacreditável enquanto ele fazia pressão contra tecidos ainda a latejar e sensíveis do seu clímax recente. Ela moveu as mãos para se agarrar aos
joelhos dele.
- Acho que chegou altura de eu também fazer amor contigo - disse ela, fitando-o através de pálpebras semicerradas. - É muito bom sentir-te, Josh.
- Não duvido. - Os olhos dele estavam a rir-se, mas também estavam repletos de paixão.
Devagar, ela apertou os músculos interiores em torno dele e o rosto dele estremeceu.
- Quase que me tentas a render-me - disse ele. Quase.
Ele recuou até quase sair de dentro dela e depois penetrou-a de novo com força, recuou e penetrou-a mais uma vez enquanto ela se esquivava com músculos internos
latejantes e ancas oscilantes. Freyja cerrou os dentes, sentindo a ascensão do desejo mais uma vez e obrigou-se a acompanhá-lo, movimento por movimento, durante
todo o tempo que durasse aquilo. Ela queria que durasse para sempre.
Desta vez, foi ele que observou o rosto dela enquanto ela observava o que eles faziam juntos, com os olhos a ver o que o corpo sentia com aquela intensidade tão
doce e quase dolorosa. Era quase insuportavelmente erótico.
- Querida - disse ele por fim, com uma voz enrouquecida e ofegante -, um cavalheiro não pode desatar a galopar rumo ao pôr do sol e deixar a sua senhora para trás.
Se eu admitir a minha derrota, deixas-te ir e deixas-me seguir-te?
Ela olhou para os olhos dele, perdeu o ritmo e o seu frágil controlo e ficou subitamente indefesa contra o embate firme do corpo dele na sua doce dor. Soltou mais
um grito e estremeceu à volta dele.
Ele ainda estava profundamente dentro dela e ainda o sentia inteiro e duro como pedra. Ela abriu os olhos e ele sorriu-lhe. Pousou as mãos no cobertor ao lado dos
ombros dela e mudou de posição sem sair de dentro dela. Deitou-se completamente em cima dela, cobrindo-a dos ombros aos dedos dos pés, com o peso dele a prendê-la
ao chão. Procurou a boca dela com a sua e beijou-a, não profundamente, não apaixonadamente como ela esperava, mas com uma ternura infinita.
E depois pousou a cabeça ao lado da dela, com a cara enterrada no seu cabelo e agitou-se dentro dela de novo com movimentos longos e profundos, cobrindo-lhe o corpo
de forma a que ela se sentisse estranhamente querida, estranhamente amada. Sexualmente saciada como estava, era uma sensação extraordinária, mais emocional do que
física. Todavia, sentia-se muito presente no seu corpo também. Quando ele parou, ficou tenso durante um momento e depois descontraiu todo o seu peso em cima dela
com um suspiro profundo. Conseguiu sentir a corrente quente do orgasmo dele profundamente dentro de si. Ela abraçou-o, sentindo que tinha oferecido e recebido uma
dádiva ao mesmo tempo.
A respiração dele estava ofegante junto do seu ouvido. Os dois estavam com calor e transpirados. As gaivotas grasnavam lá no alto. Ouvia-se a corrente e a sucção
eternas e elementares do mar contra a areia. Sentiam-se os cheiros a sal, areia e mar. Havia a luz e o calor do sol e a frescura bem-vinda da brisa.
A terra abrandou a seus pés.
Sim, a recordação daquilo ficaria sempre com ela. E não ia permitir que uma dor futura a manchasse. Não ia permitir.
Joshua pegou no outro cobertor quando se separaram e ela deitou-se de lado de costas para ele enquanto ele o estendia por cima dos dois e depois lhe enfiava um braço
por baixo do pescoço e se enroscava atrás dela.
Freyja fixou o olhar no penhasco rochoso que formava um dos lados da baía e na água verde-escura sob ele. Uma gaivota branca estava empoleirada no cimo de uma rocha
a fitar o mar e a abrir o bico para soltar um grasnido. Sentia-se quente, indolente, muito consciente da gravação indelével de cada uma das sensações na sua memória.
A julgar pela respiração, Joshua dormiu durante um bocado. Ela ficou contente. Não queria falar. Ainda não. Não queria ouvir a sua ligeira troça ou ouvi-lo dizer
que estavam numa alhada mais uma vez.
Não queria rir nem ter medo de nada. Queria simplesmente ser naquele momento interminavelmente presente. E quando tivesse de avançar para o futuro, muito bem. Jamais
iria esquecer. Jamais se iria permitir negar que, durante uma tarde gloriosa não tinha estado apenas apaixonada. Também tinha amado. Amado com o corpo e amado com
o coração.
Idiota, idiota, idiota, uma voz ténue interior tentou dizer-lhe. Mas ela deixou-se adormecer em vez de escutar a voz adverti-la de que se iria arrepender daquele
dia e daquela queda do precipício do amor.
CAPÍTULO 20
- Recorda-me outra vez, querida - disse Joshua, com os olhos semicerrados por causa do brilho do sol na água -, porque é que nós não nos vamos casar.
Ela estava sentada à frente dele no barco, com os olhos semicerrados fixos na linha da costa e uma expressão pouco comunicativa. Mal tinham trocado uma palavra desde
que tinham feito amor pela segunda vez, vestido as roupas e regressado ao barco.
Ela desviou o olhar para o rosto dele.
- Não te atrevas a sentir-te obrigado a agir como um cavalheiro e pedir-me em casamento - disse ela, parecendo genuinamente zangada. - O que aconteceu foi por minha
culpa. Não foi para te fazer cair numa armadilha para me pedires em casamento.
- Tua culpa? - Ele sorriu-lhe. - Outra vez? Começo a sentir-me uma marioneta presa a uma corda.
- Que foi exatamente como eu me senti quando nos conhecemos - disse ela. - Agora estamos quites.
- Casar comigo seria como cair numa armadilha, então? - perguntou-lhe ele.
- Claro que seria - disse ela impacientemente. - Sempre estivemos conscientes disso e com sérias reservas desde o início. Seria um erro tremendo para ambos.
Ele já não tinha certeza disso. Ela não podia chorar o seu amor perdido para sempre, pois não? Por outro lado, odiaria estar casado com uma mulher que nunca deixasse
de sentir sequelas dessa perda.
- Porque é que esta tarde aconteceu? - perguntou-lhe. - Não temos a desculpa de nos termos deixado levar pela paixão, pois não? Isto foi planeado de forma bastante
deliberada ontem, por ambos.
Ela não respondeu imediatamente. Desviou o olhar para fitar o mar de novo.
- Eu sou Lady Freyja Bedwyn - disse ela. - Sou filha e irmã de um duque. Embora tenha sido sempre conhecida como destemida, pouco convencional e por vezes até mesmo
rebelde, espera-se que eu me comporte, em todos os aspetos básicos, com o mais absoluto decoro, tanto em público como em privado. Os cavalheiros não possuem esse
tipo de restrições relativamente ao seu comportamento privado. Todos os meus irmãos tiveram amantes ou aventuras amorosas. O Wulf tem a mesma amante há anos sem
qualquer ponta de escândalo associado ao seu nome. Eu escolho não me casar. Ainda não o quero fazer agora e não o quero fazer sem conhecer alguém por quem sacrificaria
de bom grado a minha liberdade. Mas tenho vinte e cinco anos e tenho todas as necessidades de uma mulher.
- Então usaste-me, querida - perguntou-lhe ele -, para uma... aventurosa amorosa?
- Não sejas absurdo - disse ela, olhando de novo para ele com um desdém frio. - Consegues ser extraordinariamente cansativo às vezes, Josh. Troca de lugar comigo.
Quero remar.
Ele sorriu-lhe. - Não estamos num lago - afirmou. - Remar no mar exige muito mais força e habilidade. Além disso, terias de te levantar do teu lugar e passar à minha
volta para chegar aqui. Parece-me que o barco vai balançar perigosamente.
- Se caíres borda fora - disse ela - eu paro o barco e salvo-te.
Ela era admirável. Tinha-se apercebido do seu terror durante a ida até à ilha, embora ela não mostrasse qualquer sinal exterior do que sentia. Contudo, agora estava
disposta a mover-se dentro do barco, a trocar de lugar com ele e remar de volta ao porto? Quase conseguia sentir o medo no ar junto à sua postura arrogante e despreocupada.
- Isso deixa-me descansado - disse ele, segurando os remos e erguendo-se, agarrando-se aos dois lados do barco ao mesmo tempo. O barco balançou de um lado para o
outro. - Farei o mesmo por ti, Free, embora me esteja a lembrar que sabes nadar como um peixe. Venci-te por uma unha negra na corrida que fizemos em Lindsey Hall.
Achou que ela ia mudar de ideias porque não se mexeu logo, mas quando se aproximou dela, Freyja pôs-se de pé de uma vez só sem se agarrar aos dois lados do barco.
Manteve-se de pé com firmeza e baloiçou ao ritmo do barco enquanto ele passou muito próximo dela e se sentou no seu lugar. Ficou a observá-la de forma aprovadora
enquanto ela avançou pelo barco, mantendo um equilíbrio perfeito, deu meia-volta, sentou-se e agarrou os remos com as mãos. O queixo dela estava erguido e ela fitava
o mundo do alto do seu nariz.
Ela acusara-o de usar uma máscara, de esconder o seu verdadeiro eu ou absolutamente nada atrás dela. Ela não era diferente dele. Atrás da fachada indiferente, altiva
e ousada que ela mostrava ao mundo estava uma mulher que tinha sido magoada, uma mulher que se sentia sozinha (Prue estava completamente certa) e uma mulher que
talvez tivesse medo de amar de novo.
Ele devia ter calculado que ela iria remar o barco como uma perita. Não desperdiçava energias ao mergulhar profundamente os remos e tentar deslocar todo o oceano
em cada remada. Em breve, estavam a avançar a um ritmo contínuo.
Pelos vistos, não mudara de ideias em relação ao casamento. Era uma pena, visto que ele estava a começar a mudar de ideias relativamente a um casamento com ela.
Na verdade, a ideia de lhe dizer adeus, o que provavelmente iria acontecer muito breve, era algo em que preferia não pensar. A sua vida ia parecer verdadeiramente
vazia sem Freyja a fazer parte dela. E agora, para rematar, ia ter de viver com as memórias daquela tarde.
Apesar de toda a sua ousadia e paixão, ainda não passava de uma inocente em termos sexuais. Provavelmente não reconhecia a diferença entre fazer sexo e fazer amor.
Tinham estado a fazer amor naquela tarde, ou pelo menos, ele tinha estado a fazer amor com ela, embora tivesse tido o cuidado de não proferir uma única palavra de
amor.
Ela desejara-o apenas pela experiência, pela satisfação do seu desejo sexual feminino.
Era um pensamento um tanto ou quanto humilhante.
Ele soltou uma pequena gargalhada.
- Devia estar a empunhar um chicote na mão direita - disse ele, pousando as mãos ao longo do rebordo do barco. - Esta cena iria parecer bem mais impressionante do
porto dessa forma.
De facto, estavam vários aldeãos parados na rua junto ao mar ou na areia junto aos barcos a observar com curiosidade o facto de a noiva do marquês de Hallmere estar
a remar o barco que o conduzia a terra firme.
Joshua saiu do barco com um salto quando entraram em águas pouco fundas, correndo o risco de enfrentar a fúria do seu criado particular quando visse as suas botas.
Arrastou o barco para areia seca e pegou em Freyja ao colo para a tirar de lá no preciso momento em que Ben Turner apareceu a correr para puxar o barco mais para
cima na praia. Alguém que estava na rua assobiou de forma estridente e seguiu-se uma explosão de riso bem-humorada.
- Ben - disse Joshua -, és mesmo o homem com quem queria falar.
Ben olhou desconfiadamente para ele e estendeu o braço para dentro do barco para tirar os cobertores.
- Constou-me - disse Joshua - que a tua mãe tem sido amável com Lady Prudence. Estou a ver que ela está à porta da vossa casa. Vamos até lá?
Ele agarrou no braço de Freyja e apontou para uma das pequenas casas na rua junto ao mar acima do porto. Mrs. Turner estava parada à porta, de braços cruzados por
cima do peito. Ela esperou que se aproximassem antes de se curvar numa mesura. Ben seguiu-os.
- Se foi ele que a obrigou a remar aquele barco, minha senhora - disse ela, com um riso abafado -, se fosse a si dizia-lhe para se pôr a andar. Ou esclarecia bem
as coisas de uma vez por todas.
- Mas foi ela que insistiu - protestou Joshua. - Como é que um cavalheiro podia dizer que não?
Ele reparou que Freyja achava aquilo muito estranho, aquela sua forma de confraternizar com pessoas normais e a forma como estas se sentiam à vontade com ele. Tinha
sido um deles apenas cinco anos antes. Ela manteve-se calada ao seu lado.
- Falaram-me de toda a gentileza que tem tido com Lady Prudence - disse ele a Mrs. Turner.
Joshua tinha tido uma conversa demorada com Miss Palmer durante a manhã enquanto Prue estava lá fora a caminhar com Eve e as crianças. Prue estava praticamente restringida
à sala das crianças dentro da casa. Miss Palmer saía com ela sempre que podia. Caminhavam até à aldeia com muita frequência ou levavam a carroça se estivesse disponível.
Prue desenvolvera uma ligação profunda com os Turner, que a tratavam com uma afeição calorosa. Na verdade, Mrs. Turner sugeria muitas vezes a Miss Palmer que a deixasse
lá durante uma hora ou duas e tirasse algum tempo para si. Ela explicara que costumava visitar Miss Jewell.
Mrs. Turner pareceu instantaneamente desconfiada.
- Espero que me perdoe, meu senhor, mas ela é uma criança muito doce - declarou - e não é idiota, embora a mãe pareça acreditar nisso. Eu sei que ela é Lady Prudence
e por esse motivo não a devia encorajar a entrar na minha casa, mas alguém tem de lhe mostrar amor e Miss Palmer nem sempre é suficiente.
- Não vim aqui para a repreender - disse Joshua, juntando as mãos atrás das costas.
- Espero bem que não - disse ela. - Ela adora esta casa. Tem o seu próprio avental atrás da porta e a primeira coisa que faz é ir buscá-lo e colocá-lo. Varre o chão,
sacode os colchões, lava os pratos, estende a roupa, faz chá para mim e para o Ben e está a aprender a cozinhar. Também remenda algumas roupas quando se senta durante
uns momentos. Ela traz a luz do sol para dentro desta casa.
Joshua olhou para Ben, que corou, baixou a cabeça e se concentrou subitamente numa pedra enterrada na rua com a ponta da bota.
- Ela faz isso tudo - disse ele. - E também já não é nenhuma rapariguinha. - Ele ergueu os olhos para o rosto de Joshua com algo semelhante a uma expressão de desafio.
- É uma mulher adulta.
Miss Palmer exprimira preocupação relativamente ao número de vezes que Prue declarara amar Ben Turner. É claro que ela dizia isso de toda a gente e era sincera em
relação a cada uma dessas pessoas. Mas dizia-o de uma determinada forma relativamente a Ben, afirmara Miss Palmer, que esta não conseguia explicar convenientemente
por palavras.
- Amas a Prue, Ben? - perguntou Joshua calmamente.
O rubor de Ben intensificou-se, mas o rapaz não desviou o olhar. - Não tenho o direito de amar a Prue, isto é, Lady Prudence - disse ele. - Não precisa de se preocupar
comigo, meu senhor. Não me vou esquecer do meu lugar.
Dirigira-se a ele com um ligeiro ênfase e algum azedume, reparou Joshua. Suspirou.
- Não, não esperava isso de ti, Ben - disse ele. - Queria agradecer-vos por se terem tornado amigos dela. Eu também a amo.
- Nunca a deixei sozinha com o Ben - disse Mrs. Turner. - Jamais o faria. Estou atenta a isso, embora saiba que o Ben nunca iria perder a cabeça.
Joshua sorriu aos dois, acenou cordialmente com a cabeça e ofereceu o braço a Freyja. Caminharam na direção da estalagem, onde tinham deixado os cavalos no estábulo.
- Estranhamente - disse ele - nunca tinha considerado o problema de a Prue crescer. Como ela será sempre uma criança em muitos aspetos, acho que esperei que permanecesse
uma criança em todos eles.
- É um erro que se comete muitas vezes a respeito das mulheres em geral - disse ela -, a presunção de que elas não têm necessidades iguais às dos homens. A Prue
não é uma criança, pois não? É uma mulher. E o Ben Turner viu isso. Provavelmente, ela percebeu que ele viu isso e a atração daquela pequena casa prende-se mais
com ele do que com a mãe dele. O que fará a marquesa se descobrir a verdade?
- Vai tentar enviar a Prue para um hospício - disse ele - onde será fechada à chave, acorrentada, espancada, exibida em público e tratada como um animal.
Ela olhou bruscamente para ele. - Nem mesmo ela podia ser tão cruel - disse.
- Por ela já o tinha feito quando a Prue era criança - disse ele - se o meu tio, por uma vez na vida, não tivesse feito valer a sua vontade. Anda a ameaçar fazê-lo
agora se for obrigada a mudar-se para a casa da viúva com as filhas devido ao meu regresso a casa.
Freyja inspirou ruidosamente. - Se os meus punhos não se cruzarem com a cara daquela mulher antes de eu me ir embora - afirmou - serei uma séria candidata à santidade,
e isso parece-me um destino terrível. O que é que tu vais fazer em relação a isso? És o tutor legal da Prue, não és?
- Até ser condenado por homicídio, sim - disse ele. - O que devo fazer, Freyja? Encorajá-la a casar-se com um pescador?
Ele sorriu com a expressão do rosto dela. Uma perspetiva desse género devia ser impensável para qualquer um dos membros da orgulhosa família Bedwyn. Todavia, ele
ficara a saber na sua estadia em Lindsey Hall que Aidan se casara com a filha de um mineiro de carvão galês e que Rannulf se casara com a filha de um humilde vigário
rural e neta de uma atriz londrina. No entanto, Eve e Judith eram tão bem aceites pelo resto da família como se fossem duas duquesas.
- Talvez - disse ela - a Prue seja capaz de tomar as suas próprias decisões em relação à sua vida. Josh, ela segurou-me na mão ontem à tarde quando estávamos a subir
a colina atrás da casa. Não porque precisava da minha ajuda, mas porque acreditou que eu precisava da dela.
- Recusaste categoricamente a minha ajuda quando eu cometi esse erro uma vez - disse ele. - Embora estivéssemos prestes a descer em vez de subir, de acordo com a
minha memória.
- Eu sei - disse ela. - Mas fiquei comovida. Percebi o que querias dizer quando me disseste que ela está repleta de amor e transpira amor. E é tão inocente que chego
a recear por ela. Talvez não devêssemos recear por pessoas desse género, mas por nós próprios, a quem a experiência ensinou a não confiar nos outros ou na própria
vida.
Ele olhou para ela com algum espanto. A voz dela perdera toda a sua altivez habitual. Estava quase a tremer de emoção. Tudo isso porque Prue, achando que ela se
sentia sozinha, lhe segurara na mão?
- Achas que devia falar com ela? - perguntou ele. - Queres estar ao meu lado quando o fizer?
Ela já parecia mais igual à si própria. - A Eve seria uma escolha muito melhor do que eu - disse. - Mas sim, estarei ao teu lado. Josh, o que é que eu estou aqui
a fazer em Penhallow? Porque é que não estou em Bath, a passear pelo Pump Room todas as manhãs e a tomar chá nos Assembly Rooms?
- Querida, o que eu acho é que - disse ele - viste à tua frente um patife e não conseguiste resistir à possibilidade de alegrar a tua vida durante algum tempo ao
aceitar o desafio de o tentar conseguir acompanhar. Além disso, é melhor para ti estares aqui comigo do que morrer de aborrecimento lá, não é?
- Um patife - disse ela enquanto entravam no estábulo calcetado da estalagem e o rapaz encarregado dos cavalos se apressou a conduzir os cavalos deles lá para fora.
- É isso que tu és, Josh? A vida era tão simples quando não tinha dúvidas a respeito dessa resposta.
Ele piscou-lhe o olho.
*
A manhã seguinte estava bastante desoladora, nublada e ventosa. Joshua saiu cedo de novo com o seu administrador e Aidan. A marquesa pediu a Constance para lhe fazer
um recado na aldeia e no último momento sugeriu que o reverendo Calvin Moore a acompanhasse. Alleyne, talvez apercebendo-se da expressão tensa no rosto de Constance,
perguntou a Chastity se também gostaria de ir e os quatro tinham partido juntos de casa, com o olhar venenoso da marquesa fixo nas costas de Alleyne.
Ela era uma adversária cansativa, concluiu Freyja. Muito ao contrário da própria Freyja ou de qualquer um dos Bedwyn, ela não se limitava a explodir com uma hostilidade
aberta, combatendo de forma justa. Colocara alguma coisa em movimento e estava preparada para esperar até isso se tornar uma realidade. Entretanto, representava
o papel de uma anfitriã graciosa e frágil para todos. O seu sorriso amável parecia estar pintado na cara.
Freyja refugiou-se na sala de estar da manhã. Estava a escrever uma carta ao seu procurador enquanto Morgan escrevia a Judith ao seu lado na mesa.
- Toda esta espera para alguma coisa acontecer é muito estranha, não é? - disse abruptamente Morgan passado um bocado. - Estava à espera de ver fogo de artifício
assim que chegássemos a Penhallow. Estava à espera de excitação, perigo, espadas em riste e pistolas a fumegar no primeiro dia ou dias e depois da satisfação da
vitória.
- Estás desapontada? - Freyja sorriu-lhe.
- Desapontada? Não. - Morgan franziu o sobrolho. - Mas um pouco apreensiva, devo confessar. A marquesa odeia realmente o Joshua, não odeia? E também nos odeia a
todos, embora insista em informar-nos do quanto está encantada por nos ter aqui. Porque é que ela o odeia tanto ao ponto de estar preparada para colocar a sua vida
em perigo?
- Ela culpa-o pela morte do filho - disse Freyja. - Acha que ele é o culpado da questão sórdida em torno da precetora e que depois, quando o filho dela foi confrontá-lo
em relação a isso, morreu. De certa forma, não a podemos censurar por se perguntar se o acidente realmente foi um acidente.
- Presumo - disse Morgan - que tenha sido o filho dela quem seduziu a precetora.
- Sim - respondeu Freyja.
- Acho que não teria gostado dele - disse Morgan. - Na verdade, tenho a certeza de que o teria abominado tanto quanto abomino a mãe dele. Foi terrível da parte dele
ter permitido que o Joshua arcasse com a culpa, e que encontrasse uma casa para aquela pobre senhora. Mas aquilo que me preocupa, Freyja, é aquela testemunha. É
tão irritante o facto de ele estar ausente e não poder ser confrontado. Sozinho decerto que não constitui qualquer ameaça, mas... e se conseguir persuadir outros
homens para corroborar a sua história? O Joshua compreende o perigo que corre? Está a fazer alguma coisa em relação a isso?
- Está, sim - disse uma voz vinda da porta e as duas voltaram a cabeça e viram o próprio Joshua de pé junto à porta. Ainda usava o seu traje de montar. A cara dele
estava afogueada de ter estado lá fora e os olhos riam-se para as duas.
Ele gostava de viver no limiar do perigo, pensou Freyja.
Num plano independente do pensamento, o corpo dela ficou instantaneamente consciente dele, da sua graciosidade viril e beleza. Ela quisera que o dia anterior acontecesse
para ter recordações felizes às quais se agarrar. Fora uma idiota. Como ia viver sem aquilo? Como ia viver sem ele?
- O quê, nesse caso? - perguntou Morgan.
- Não vou estragar a piada ao contar-vos - disse ele a rir-se enquanto entrava na sala. - O Garnett ainda não regressou a casa, mas tenho esperança de que regresse
a tempo para o baile. Na verdade, estou a contar com o facto de ele ter ouvido falar nele e de ter uma propensão dramática. Enviei-lhe um convite.
- Eu sei - disse Morgan. - Fui eu que o escrevi. Porquê?
Ele soltou uma gargalhada. - Vou dizer apenas - disse - que se o Garnett vier, o baile será um acontecimento do agrado dos Bedwyn.
Os olhos de Morgan brilharam. - Oh, tem mesmo alguma coisa planeada - disse ela. - Muito bem.
Ele estendeu um braço e apertou-lhe o ombro enquanto voltava a sua atenção para Freyja.
- Vou caminhar até ao rio com a Prue - disse ele. - Queres juntar-te a nós, Freyja?
- Tenho de acabar esta carta para a Judith - disse Morgan quando Freyja olhou para ela - e depois tenho de escrever à tia Rochester. Já não lhe escrevo há uma eternidade,
mas é ela quem vai apadrinhar a minha apresentação na primavera, por muito que me queira esquecer disso.
Freyja mudou de roupa para um vestido de lã e uma peliça quente. Depois de olhar pela janela e reparar que o tempo ainda não se alterara foi buscar um chapéu que
lhe cobrisse as orelhas. Prue também estava vestida com uma roupa quente de um tom vivo de amarelo da cabeça aos pés. Estava com um sorriso de orelha a orelha e
claramente empolgada com a perspetiva de um passeio com Josh e Freyja.
Avançaram lenta e cuidadosamente pelo relvado em declive até ao vale sem seguir pelo caminho sinuoso com uma inclinação mais gradual que conduzia até à casa da viúva.
Prue riu-se em voz alta quando se atirou nos últimos metros para os braços de Joshua, que estava à sua espera mais abaixo. Freyja fulminou-o com o olhar no momento
em que ele se preparava para lhe oferecer uma assistência semelhante e ele sorriu e deu meia-volta.
Avançaram ao longo do caminho privado que se estendia junto ao rio até à praia. Não chegaram a ir até à praia. Paravam muitas vezes para olhar atentamente para a
água, observando as correntes lentas a fazer redemoinhos à volta de pedras e pequenos bancos de areia e a ver alguns girinos a passar a grande velocidade. Joshua
pegou numa pedra e atirou-a de modo a fazer um grande arco e ir parar à margem oposta a alguma distância e Prue riu-se e bateu as mãos com satisfação. Freyja, para
não ficar atrás, apanhou uma pedra plana e atirou-a de tal forma que tocou ao de leve na superfície da água, saltando quatro vezes antes de se afundar. Prue, no
seu entusiasmo, começou a dar saltinhos.
- Quero fazer isso - disse e Freyja passou os dez minutos seguintes a mostrar-lhe como escolher uma pedra adequada e como a atirar de lado com o movimento certo
do pulso. Prue nunca conseguiu fazê-lo como deve ser, mas divertiu-se imenso a tentar e quando viu que Joshua também não conseguia, deixou-se cair em cima de uma
grande rocha a rir incontrolavelmente.
Freyja, com um olhar brusco ao rosto resignado dele, ficou convencida de que ele conseguia fazer com que as suas pedras saltassem dez vezes se quisesse.
Não conseguia perceber o amor quase doloroso que sentia por Prue. Ficava geralmente envergonhada com a sua opinião a respeito daqueles que sempre encarara como deficientes.
Se tivesse sabido da existência de Prue, teria ficado horrorizada e ter-se-ia mantido à distância dela. Mesmo assim, tinha mantido uma distância cautelosa durante
alguns dias, deixando de bom grado a Eve, Joshua e Chastity a tarefa de conversar com a rapariga.
Mas não existia nenhuma maldade nela, nem estupidez, lentidão de espírito ou negatividade. Ela era uma criança radiosa que simplesmente não possuía aquilo que a
maior parte das pessoas tinha que lhe permitiam passar da exuberância inocente e da confiança repleta de amor da infância para um local mais sombrio a que chamavam
maturidade. Embora os movimentos por vezes deselegantes e a cara redonda e infantil de Prue fossem um sinal exterior de que ela não era como as outras jovens, era
uma jovem bastante bonita, apesar disso.
Tinha a mesma idade que Morgan.
Joshua olhou para ela com um sorriso afetuoso até ela parar de se sacudir com o riso.
- Gostas de ir à aldeia, Prue? - perguntou.
- Si-im - disse ela. - Adoro.
- Qual é a tua parte preferida? - perguntou-lhe ele. - O teu lugar preferido?
Prue olhou em frente com olhos cintilantes por cima do rio na direção de Lydmere.
- A casa junto ao porto - disse ela.
- De Mrs. Turner.
- Sim.
- Porque é que gostas dela? - Ele agachou-se à frente dela, escolheu algumas pedras do rio e fê-las rolar numa das mãos.
- Posso fazer coisas - disse Prue. - Posso ajudar. É um sítio amoroso.
- Mas pequeno - disse Joshua. - Não gostavas de viver lá, pois não?
Prue pensou, de sobrolho franzido e depois sorriu de novo. - Sim, gostava - afirmou. - Eu sei fazer coisas.
- Gostas de Mrs. Turner? - perguntou Joshua.
- Sim. - O sorriso dela alargou-se. - E do Ben. - Eu adoro o Ben.
- Adoras? - Ele voltou-se e atirou uma das pedras. Esqueceu-se de que não dominava a habilidade de as fazer saltar na água. A pedra saltou cinco vezes. Prue riu-se
entusiasticamente e apontou para lá. - Porque é que o adoras, Prue? Ele é bom para ti?
- Si-im - respondeu Prue. - Gosta que eu faça chá para ele e comeu o meu bolo, não o de Mrs. Turner. O Ben adora-me.
- Eu adoro-te, Prue - disse Joshua. - A Freyja adora-te.
- Sim. - Ela olhou para Freyja e fez um grande sorriso. - O Josh fez-te sentir melhor, Freyja. Eu vi-vos no barco. Vocês foram até à ilha.
Céus. Freyja devolveu-lhe o sorriso e evitou os olhos de Joshua.
Prue olhou de novo para Joshua. - O Ben deu-me um beijo - disse ela.
A cara dele empalideceu visivelmente. - Deu-te um beijo?
Prue riu-se com satisfação. - No meu aniversário - disse. - Quando fiz dezoito anos. Mrs. Turner deu-me o meu avental e deu-me um beijo. E o Ben serviu-me o chá,
rimo-nos todos e ele deu-me um beijo. Aqui - acrescentou ela, tocando com o dedo na bochecha perto da boca. - Eu disse: "Adoro-te, Ben" e ele disse "Adoro-te, Prue".
- Ela riu-se, feliz.
- Prue - perguntou Freyja, pegando na mão da rapariga e colocando-a de pé para que pudessem continuar a caminhar -, gostas do Ben de forma especial? Como a Eve gosta
do Aidan?
- Como tu gostas do Josh? - Prue riu-se. - Si-im.
Joshua colocou-se do outro lado de Prue.
- O Ben tem mãos bonitas - disse Prue. - São grandes. Trabalha com elas. Mas não era capaz de me magoar com elas.
- É claro que não - disse Joshua, pegando-lhe no braço, dando-lhe palmadinhas na mão. - Nunca ninguém te vai magoar, Prue. Sabes o que é o casamento? Sabes aquilo
que as pessoas casadas fazem juntas?
- Si-im - disse Prue. - Cuidam um da outra. E dão beijos uma à outra. E têm bebés.
Joshua lançou um olhar sobressaltado a Freyja.
- Miss Palmer explicou-me isso - disse Prue - e a Chastity também. A Chastity levou-me a ver Miss Jewell e ela explicou-me. Miss Jewell tem o David. Eu adoro o David.
- O filho dela? - disse Joshua. - É um rapazinho bonito.
- Miss Jewell disse que havia beijos maus e que eu não devo deixar ninguém dar-mos outra vez - disse Prue. - O Ben não me daria beijos maus. O Ben adora-me. Eu adoro
o Ben.
As mulheres da vida dela, todas exceto a mãe, que era a pessoa mais qualificada para o fazer, tinham estado a educar Prue a respeito dos perigos da sua própria sexualidade,
pensou Freyja. Tinham-se apercebido claramente de que, pelo menos em alguns aspetos, a rapariga já não era uma criança.
- Se vivesses sempre naquela pequena casa - disse Joshua - o teu lar deixaria de ser tudo aquilo que existe em Penhallow, Prue. Terias de dormir e viver lá e os
trabalhos que lá fazes agora teriam de ser feitos todos os dias. Não achas que Lady Prudence Moore devia viver numa grande casa com criados para cuidar dela e com
roupas elegantes sempre à sua disposição?
- Eu gostava de viver na casa junto ao porto, Josh - disse ela. - Gostava de viver com Mrs. Turner. Gostava de viver com o Ben acima de tudo. Eu adoro o Ben. Ele
deu-me um beijo e não foi um beijo mau. Ele não me vai dar beijos maus. Não me vai magoar com as mãos dele.
Ele levou a mão dela aos lábios durante alguns momentos.
- Não, não vai, meu doce - disse ele. - Eu conheci o Ben quando ele era rapaz. Não te vai magoar nem faria isso a qualquer outra mulher. E se ele voltar a beijar-te,
será com beijos bons. Se ele te tocar, será com mãos carinhosas.
Freyja ficou surpresa ao reparar que os olhos dele estavam marejados de lágrimas.
- Devo falar com o Ben e com Mrs. Turner, então? - perguntou ele a Prue. - Escolhias realmente viver com eles se pudesses?
Ela parou de caminhar, afastou bruscamente o braço de Joshua, juntou as mãos à frente do peito e fitou-o primeiro e depois Freyja com olhos arregalados e empolgados.
- Miss Palmer disse que a mãe ia dizer que não - disse ela - e que tu ias dizer que não. Mrs. Turner disse que a mãe ia dizer que não e que tu ias dizer que não.
Eu perguntei e ela disse isso. O Ben começou a chorar e saiu lá para fora.
- Mas tu és uma mulher agora, Prue - disse Joshua num tom meigo. - Às vezes, uma mulher pode decidir coisas sozinha. Mas Mrs. Turner e o Ben também terão de decidir.
Eu vou falar com eles.
Prue exibiu um sorriso radioso e depois riu-se e deu uma volta sobre si própria antes de oferecer uma das mãos a Joshua e a outra a Freyja. Continuaram a caminhar
ao longo do rio, o que na verdade os fazia saltitar mais do que propriamente caminhar, a baloiçar os braços como três crianças exuberantes,
Freyja sentiu uma onda de amor quase dolorosa por Joshua. Se tivesse suspeitado de que ele seria capaz de uma tal gentileza e preocupação por um dos seres menores
da vida, de acordo com o consenso geral, teria fugido a sete pés dos Sydney Gardens naquela manhã em Bath e deixado aquela pobre criadita entregue ao seu destino.
Tê-lo-ia ignorado no Pump Room. Teria...
Não, não teria.
Talvez tivesse tentado demonstrar o seu interesse com astúcia e determinação. Não teria entrado num mero jogo de sedução ligeira nem lhe teria dado a impressão contínua
de que não queria mais nada da parte dele. Agora era demasiado tarde. Se fizesse isso agora, ele ia sentir-se encurralado e obrigado a pedi-la em casamento, obrigado
a fingir ser feliz com ela.
E por esse motivo não podia fazer mais nada senão saltitar ao longo do rio ao lado dele e de Prue, sofrendo de amor por ele.
CAPÍTULO 21
Os criados de Penhallow, tanto os internos como os externos, tinham trabalhado de forma extraordinariamente árdua nos preparativos para o grande baile. Ouviram-se
alguns protestos, mas apenas quando Joshua estava presente para os ouvir para que depois ele lhes sorrisse, bajulasse e se risse quando o tratavam por "rapaz". Nas
suas costas, não desperdiçavam tempo em queixas e lançavam-se com grande entusiasmo nos preparativos para um acontecimento tão fora do vulgar.
Nem a memória do criado mais velho de Penhallow se recordava da última vez em que os aposentos de aparato tinham sido utilizados. Estes existiam apenas para exposição.
Os viajantes esporádicos que fossem suficientemente ousados para bater à porta eram conduzidos até lá pela governanta e autorizados a fitar todos os tesouros enquanto
ela recitava a sua história. Embora tivessem sido sempre mantidos limpos, nunca parecera existir a necessidade de eliminar todos os grãos de pó existentes e tornar
reluzentes todas as suas superfícies.
Era uma tarefa monumental ter tudo pronto a tempo, e tudo para pessoas como eles, observou a cozinheira ao espreitar o salão de baile quando os grandes lustres estavam
no chão e as suas centenas de velas estavam a ser substituídas. Os criados achavam muito estranho todos eles terem sido convidados, bem como os membros das suas
famílias e amigos da aldeia e das quintas em volta. Nem mesmo aqueles que teriam de estar de serviço num determinado trabalho exibiam um ar abatido. O mordomo, a
pedido de Joshua, tinha organizado os criados em turnos para que aqueles que trabalhassem no início da noite pudessem participar no banquete e no baile no final
e vice-versa para aqueles que teriam de trabalhar no final.
O chefe dos jardineiros tinha passado a pente fino o jardim à procura de flores tardias e concordara em sacrificar quase todo o conteúdo das suas estufas cuidadosamente
preservadas para a ocasião. Os arranjos de flores foram levados a cabo pelas senhoras da casa. Chastity supervisionou os trabalhos, de faces coradas e os olhos brilhantes
com o prazer de dar o seu contributo para uma ocasião tão grandiosa. Prue foi autorizada a ajudar. Constance e Eve eram ajudantes competentes, mas Morgan era a que
tinha o melhor olho para o estilo geral. Fez uma série de sugestões a Chastity que ambas discutiam com muitos gestos de braços e boa disposição. Freyja contentou-se
em observar, uma vez que os arranjos de flores nunca tinham sido o seu forte. A marquesa estava ausente, tendo declarado que as flores a faziam espirrar e lhe tinham
provocado uma dor de cabeça.
A orquestra chegou no final da tarde e os seus membros foram levados para os respetivos quartos na ala das traseiras da casa depois de montarem os instrumentos e
os afinarem.
O jantar foi marcado para duas horas mais cedo do que o habitual, visto que os convidados começariam a chegar por volta das sete e as senhoras preferiam vestir os
seus vestidos e adornos de cerimónia depois da refeição. Não ia ser um baile londrino, que começava tarde e se prolongava até ao amanhecer. A maioria dos convidados
eram pessoas com trabalhos modestos que não teriam o luxo de ficar na cama até meio da tarde seguinte. E muitos deles tinham de viajar alguns quilómetros, a pé ou
de carroça, embora o chefe do pessoal do estábulo, seguindo ordens de Joshua, se tivesse organizado para enviar todas as carruagens e outros veículos para ir buscar
os mais idosos e as pessoas mais distantes.
Ia haver uma fila de boas-vindas à entrada do salão de baile, da qual faziam parte Joshua e Freyja, a marquesa, Constance, Chastity e Prue.
Joshua, usando um casaco de cerimónia castanho-escuro com umas calças escuras, um colete com bordados dourados, meias brancas e uma camisa rendada junto ao pescoço
e nos punhos, olhou à sua volta com satisfação à porta do salão de baile. Sempre achara uma pena os aposentos de aparato nunca serem utilizados. Inspirou o perfume
das flores, reparou na forma como o piso recém-polido reluzia sob a luz dos lustres, olhou para estes e depois para o teto, com as suas cenas da mitologia ricamente
pintadas.
Sentiu um arrepio de prazer. Aquilo era tudo dele e naquela noite alegraria todas as pessoas a seu cargo e mostrar-lhes-ia que nascera uma nova era na forma como
se relacionavam com Penhallow e com o marquês de Hallmere. Ia deixar de existir uma distância impenetrável entre eles e o seu vizinho e senhor feudal abastado, privilegiado
e detentor de um título de nobreza. Naquela noite dar-se-ia início a uma nova era para aqueles que estavam dependentes dele, para aqueles sobre os quais, quer gostasse
ou não, ele tinha algum poder, um poder do qual podia abdicar.
Naquela noite, ia dar início à sua nova vida. Apenas uma semana antes teria ficado horrorizado ao imaginar que podia sentir uma ligação com Penhallow, que tinha
sido uma casa-prisão infeliz durante o seu crescimento, através de um título de nobreza que nunca desejara, e pelas suas responsabilidades, as quais tentara cumprir
através da contratação de um administrador competente, mas que se estendiam bem mais além das competências de um administrador, como veio a descobrir. Mas sentia
essa ligação e o mais extraordinário era que eram os laços de amor, mais do que os do dever, que o manteriam ali em Penhallow.
Mas aquilo que ia enfrentar naquela noite não era uma história com um final feliz. Havia muito a tratar antes de começar sequer a pensar em termos de felicidade,
e muito menos numa história com um final feliz, que era uma ideia disparatada, fosse como fosse. Ouvira dizer que Hugh Garnett regressara a casa. Não havia forma
de saber com toda a certeza se viria ao baile, mas Joshua quase apostava que sim. Depois havia a questão da tia. E Freyja...
Ouviu sons atrás de si e deu meia-volta. Viu Freyja a aproximar-se com Morgan e Eve. Aidan e Alleyne vinham atrás delas, ambos em trajes de cerimónia brancos e pretos.
Freyja reluzia num vestido verde-claro profusamente bordado com fios dourados. Era um vestido decotado com uma saia que caía solta à sua volta com uma bainha e mangas
rendilhadas. O cabelo dela, elaboradamente enrolado, estava entrelaçado com fios dourados. As suas luvas compridas e sapatos também eram dourados.
Ele susteve a respiração. Quando é que tinha começado a achá-la bela? Não era uma mulher bela, pois não? Mas para ele ela era mais encantadora do que qualquer outra
mulher que conhecesse. Sorriu, pegou na sua mão enluvada, fez uma vénia sobre ela e levou-a aos lábios.
- Estás lindíssima, meu encanto - disse ele.
As sobrancelhas escuras dela arquearam-se com arrogância.
- Tu também, Josh - respondeu.
Ele brindou-a com um sorriso irónico e voltou-se para cumprimentar os outros. A tia e primas estavam igualmente a aproximar-se com Calvin. A tia, com um vestido
de seda preta com plumas oscilantes no cabelo, estava a sorrir em seu redor como se aquilo tudo tivesse sido sua ideia. De facto, ela estivera de bom humor todo
o dia embora tivesse evitado o salão de baile enquanto as flores estavam a ser levadas para dentro e separadas em arranjos. Constance, mais bonita do que parecera
em Bath, usava um vestido azul-claro e parecia serena. Chastity, de cor-de-rosa, irradiava entusiasmo. Prue, de amarelo-claro, estava quase fora de si.
Quase de imediato, os convidados começaram a chegar e em breve havia uma verdadeira enchente deles, uma mistura curiosa de membros elegantemente vestidos das classes
mais altas e aldeãos, pequenos agricultores e trabalhadores nos seus melhores trajes domingueiros, com um ar constrangido e feliz consigo próprio, de faces avermelhadas
enquanto faziam as suas vénias e mesuras à marquesa, que os cumprimentou com uma condescendência hirta, e mais descontraídos enquanto sorriam a Joshua. Ele apertou
as mãos a todos eles e tinha sempre uma palavra simpática a dizer.
Ficou contente por ver que Anne Jewell veio. Joshua tinha-a visitado pessoalmente para insistir que aceitasse o convite. Ela entrou no salão de baile com Miss Palmer
e fixou os olhos no chão enquanto fazia uma mesura à marquesa. Ben Turner veio com a mãe. Os Allwright já tinham chegado. Isaac Perrie veio com a sua mulher e duas
filhas. Jim Saunders apareceu. Assim como Sir Rees Newton, o magistrado local, com Lady Newton e o filho de ambos.
Na altura em que as pessoas começaram a chegar a conta-gotas e Joshua anunciou a sua intenção de dar início ao baile, não se conseguia lembrar de ninguém que não
tivesse vindo, com exceção de Hugh Garnett. Seria uma desilusão se ele não viesse a fazer qualquer tipo de aparição. Entretanto, havia que desfrutar do baile.
Joshua conduziu a dança de abertura com Freyja. Era uma dança rural animada, como a maior parte das danças planeadas para essa noite. Todos sabiam os passos e não
se sentiriam inibidos ao participar. É claro que houve alguma inibição no início e Joshua teve de deixar o seu lugar na fila, com Freyja no braço, para dar uma volta
pela pista de dança e persuadir mais casais a juntar-se aos dançarinos. Ele riu-se e brincou com as pessoas e, passado pouco tempo, a fila esticava-se em toda a
extensão do salão. Joshua, ocupando o seu lugar de novo e piscando o olho a Freyja, acenou com a cabeça para o condutor da orquestra e a música começou a tocar.
Depois disso, toda a gente pareceu entregar-se à alegria. Se os de uma posição social mais elevada sentiram algum desconforto ao conviver com os das classes mais
baixas, não mostravam quaisquer sinais disso. Aidan, reparou Joshua, dançou a segunda dança com Anne Jewell, Alleyne com uma das raparigas Perrie, cujas bochechas
estavam tão avermelhadas que pareciam prestes a explodir em chamas. Joshua dançou com Constance, que fora acompanhada na dança de abertura por Calvin.
- Estás a divertir-te? - perguntou ele.
- É claro que sim. - Ela sorriu.
- Achei - disse ele - que o Saunders iria reivindicar esta dança contigo. - Jim Saunders ainda não tinha dançado com ninguém.
- A mãe não ia gostar disso - disse ela.
- Não? - Ele queria ter uma conversa a sério com Constance, mas ainda não tinha tido tempo para isso. - Mas será que tu ias gostar?
Ela fitou-o sem dizer palavra.
- E será que o Saunders ia gostar? - perguntou ele.
A expressão dela ficou marcada por um sobrolho franzido durante um momento. - Nem sempre podemos fazer aquilo que queremos - disse ela.
- Porque não? - Ele sorriu-lhe.
- Oh, Joshua - disse ela muito depressa -, quem me dera ser como tu. Quem me dera...
Mas a música começou e eles foram obrigados a dar a sua atenção aos passos complicados da dança.
Foi no final da segunda dança que Hugh Garnett entrou calmamente no salão de baile, acompanhado de mais cinco homens, nenhum dos quais vivia nas redondezas. Joshua
estava a falar com Mrs. Turner e Prue nessa altura e ficou retido pelo relato entusiástico de Prue da sua dança com Ben. Mas a tia aproximou-se da porta e recebeu
os novos convidados com sorrisos graciosos e muita oscilação das suas plumas. Deu o braço a Garnett e voltou-se para olhar para o salão de baile com um sorriso.
Fez um sinal a alguém no salão e Joshua viu Chastity a atravessar o salão na direção deles, com um sorriso fixo no rosto, mas com toda a luz extinta dentro de si.
Garnett fez uma vénia e disse alguma coisa antes de estender o braço. Chastity pousou a mão em cima dele e ele conduziu-a à pista, onde os casais já se estavam a
reunir para a próxima dança.
Os outros cinco homens dispersaram-se no interior do salão de baile e Joshua depressa os perdeu de vista no meio da multidão.
Ah, pensou Joshua, assim estava melhor. Foi ao encontro de Morgan, o seu par seguinte.
Freyja dançou a segunda dança com Sir Rees Newton e a terceira, surpreendentemente, com Isaac Perrie, o estalajadeiro da aldeia. Mal conseguia acreditar que ele
a tinha convidado e que ela tinha aceitado. Se Wulf estivesse ali teria pregado o homem ao chão com um único olhar daqueles seus olhos prateados por sequer se atrever
a erguer os olhos para Lady Freyja Bedwyn. Mas ela descobriu que se estava a divertir imenso. Aquilo parecia-lhe inexplicavelmente certo. Era assim que a vida devia
ser. Sentiu pena por aquelas pessoas pelo facto de Joshua partir em breve, se se conseguisse proteger contra a ameaça que ainda pairava sobre si, e por a vida regressar
inevitavelmente à sua normalidade desoladora sob o domínio da marquesa. Sentiu pena por ele. E por si própria.
Mas ia colocar de parte pensamentos tristes naquela noite. A sua intenção era divertir-se.
- É bom ver o Garnett de volta das suas viagens - disse Mr. Perrie, acenando com a cabeça para o fundo da fila dos dançarinos.
- Hugh Garnett? - Freyja olhou para ele, em sobressalto. - Ele está cá?
- Em pessoa. - O estalajadeiro exibiu o seu sorriso desdentado. - É o terceiro a contar do fim.
Hugh Garnett, viu Freyja num olhar rápido, era um homem de aparência jovem, de cabelo escuro e bem-parecido de uma forma um pouco untuosa. Estava a dançar com Chastity.
- Não se preocupe, rapariga - disse Mr. Perrie. - O seu rapaz está protegido de qualquer mal.
Rapariga? Freyja podia ter soltado uma gargalhada com o absurdo da situação se não se tivesse sentido subitamente alarmada e estranhamente empolgada. Finalmente!
Ia acontecer qualquer coisa.
Essa coisa aconteceu depois de a dança ter terminado.
Quando todos os convivas se retiraram da pista de dança, Hugh Garnett não arredou pé. E na pausa que se seguiu à música e ao bater dos pés dos dançarinos contra
o chão, ergueu a voz e dirigiu-se para alguém do outro lado do salão.
- Sir Rees Newton - disse ele e esperou um momento enquanto a atenção de todos se voltava bruscamente na sua direção e as conversas cruzadas diminuíam de tom num
silêncio surpreendido -, será que se terá apercebido, sir, de que este salão de baile esconde um assassino e um usurpador esta noite?
Freyja, olhando apressadamente para o salão de baile para onde Joshua estava, ao lado de Mr. e Mrs. Allwright, reconheceu instantaneamente nele o homem que tinha
entrado de rompante no seu quarto da estalagem a caminho de Bath e o homem que ficara imóvel no Pump Room na manhã a seguir ao incidente dos Sydney Gardens, à espera
que ela acabasse de se aproximar dele no seu passo imponente. Parecia alerta, pronto para o perigo, extraordinariamente vivo e a divertir-se imenso.
- Perdão - disse Sir Rees, completamente estupefacto. - Está a falar comigo, Garnett?
- Estou espantado por ele ter tido a audácia de regressar à Cornualha - declarou Garnett. - Joshua Moore assassinou o primo há cinco anos depois de o levar para
o mar num pequeno barco de pesca, onde o empurrou borda fora e o prendeu debaixo de água com o remo. Assassinou-o pela sua fortuna e tirou proveito de todos os seus
privilégios. Vemo-lo esta noite como o marquês de Hallmere e na posse de tudo o que vem com esse título. Vim aqui para o denunciar, sir. Eu fui uma testemunha do
homicídio.
Ninguém, aos olhos de Freyja, mexera um músculo exceto Chastity, que se deixara cair numa cadeira ao lado de Morgan e da marquesa, que estava meio a desfalecer,
com uma mão junto ao pescoço.
Sir Rees parecia mais irritado do que indignado quando falou.
- Essa é uma acusação muito grave, Garnett - disse ele. - Mas este não é o momento nem o local mais indicado...
Uma outra voz interrompeu-o.
- Eu estava com o Hugh Garnett nesse momento - disse um homem atarracado e de aspeto rude, saindo do meio da multidão -, e posso comprovar o testemunho dele.
- Eu também estava e também posso - disse outro homem magro e careca, dando um passo em frente no meio da multidão junto ao estrado da orquestra.
- Eu também, sir.
- Eu também, sir.
- Assim como eu.
Eram cinco. Além do próprio Hugh Garnett. Os joelhos de Freyja fraquejaram. Sentiu-se subitamente enjoada.
- Mr. Garnett. - A marquesa agarrou o braço dele com uma mão, a outra ainda junto ao pescoço. - Quando veio ter comigo com estas acusações, disse-lhe que jamais
acreditaria nelas. Não podia acreditar nisso em relação ao meu querido Joshua, que era como um filho para mim, embora a vítima tenha sido o meu próprio filho. Não
o podia fazer a não ser que me oferecesse provas que nem mesmo eu pudesse ignorar. Mas ainda não consigo acreditar nisso. Diga-me que existe algum engano. Diga-me
que estou a sonhar. Diga-me que isto é alguma brincadeira.
As mãos de Freyja fecharam-se em punhos.
Sir Rees também deu um passo em frente. Parecia profundamente inquieto, o que não era de admirar. Aquilo não era o que tinha esperado de uma noite de celebração.
Mas antes que ele pudesse falar de novo, Isaac Perrie tomou a palavra.
- Não se inquiete, minha senhora - disse ele, afavelmente. - São bandidos mentirosos, todos eles. Estava à porta do meu bar nessa noite porque a tempestade se aproximava
e eu sabia que os rapazes tinham saído de barco. Vi-o a voltar. O jovem Josh, aquele que agora é o marquês, estava a remar o barco e o seu filho estava a nadar ao
lado dele. Eles estavam próximos da praia e eu vi o seu filho pousar os pés em terra firme enquanto o jovem Josh levava o barco para o mar de novo. Fiquei irritado
com ele por voltar para trás quando o mar estava encrespado, mas ele sempre foi um rapaz muito seguro com os remos. Não me preocupei.
- Eu também vi isso - disse outra voz. - Eu estava ao teu lado, Isaac, se bem te lembras. O primo do jovem Josh estava a caminhar dentro da água, a salvo e a pingar
por todos os lados.
- Eu vi-os da rua - disse ainda uma outra voz. - Foi exatamente como o Isaac disse.
- Eu estava junto do nosso barco com o meu pai - disse Ben Turner. - Eu também os vi.
- Eu vi-os da janela da minha casa - disse Mrs. Turner.
Freyja abriu o leque e abanou-o lentamente junto ao rosto. Os olhos dela cruzaram-se com os de Morgan do outro lado do salão e elas trocaram meios-sorrisos. Era
óbvio o que estava a acontecer. Pelo menos uma dúzia de outras pessoas tinham testemunhado o sucedido da aldeia exatamente como Joshua relatara na altura. E, como
se isso não fosse suficiente, alguns dos criados de Penhallow tinham estado a passear na praia privada do outro lado do rio e também o tinham visto, e dois dos trabalhadores
da quinta tinham estado a caminhar no cimo da falésia por cima de Penhallow e também o tinham visto.
Para uma noite de tempestade, aquela área tinha estado literalmente a abarrotar de pessoas, todas com uma visão extraordinariamente boa, partindo do princípio de
que não houvera luar durante a tempestade.
Os olhos de Freyja cruzaram-se com os de Joshua e ele baixou lentamente uma das pálpebras.
Aparentemente, a marquesa e Mr. Hugh Garnett não tinham tido em conta o facto de que Penhallow e os seus arredores estavam repletos de amigos de Joshua, pessoas
que o conheciam, o amavam, confiavam nele e estavam dispostas a prestar um falso testemunho em seu nome.
- Eles estão a mentir, Newton, todos eles - disse Hugh Garnett, mantendo-se firme, embora o rosto tivesse adquirido um tom semelhante a púrpura. A marquesa balançava
de forma vacilante, mas ninguém correu em seu auxílio. - Estão dispostos a defender um assassino porque ele lhes ofereceu um baile requintado esta noite. Ele não
é o legítimo detentor do título de marquês de Penhallow e devia ter sido enforcado há muito tempo. O reverendo Calvin Moore é o verdadeiro marquês.
- Tu! - Isaac Perrie apontou um dedo grande e inequívoco na direção do indivíduo atarracado e desordeiro. - Acho que te disseram há seis anos para pegares em ti
e desapareceres daqui com estes teus comparsas. Foi-te dito que não queremos as tuas intrigas de contrabando e modos abrutalhados nestas partes. Foste avisado de
que se mostrasses a tua pele miserável aqui mais alguma vez serias arrastado à força para o magistrado e abandonado ao teu destino, que seria o enforcamento ou o
degredo, muito provavelmente. Mesmo assim, voltaste pela calada um ano depois para sair de barco com o Hugh Garnett, o teu antigo patrão, para testemunhar um homicídio
e não levantaste sequer um dedo para ajudar o moribundo nem para deter o seu assassino covarde, foi? É uma história realmente provável.
Às suas palavras seguiu-se uma gargalhada geral, uma mão-cheia de vivas e depois um burburinho surdo de algo mais ameaçador.
Sir Rees Newton ergueu ambas as mãos e todos ficaram em silêncio.
- Não sei o que está por detrás disto - disse ele -, mas tudo isto me parece um disparate malicioso. Devias ter vergonha, Garnett. E se eu descobrir um sinal das
tuas cinco testemunhas dentro da minha jurisdição amanhã, vão passar todos a noite de amanhã na minha cadeia e aí ficarão a meu bel-prazer, às ordens do meu desprazer.
Quanto a todas as testemunhas da defesa, aconselho-vos uma oração extra para a salvação das vossas almas na igreja no próximo
domingo. Lady Hallmere, minha senhora,
peço desculpa pelo sofrimento que esta patetice lhe causou. E, meu senhor. - Ele fez uma vénia hirta na direção de Joshua. - Sempre acreditei no seu relato do que
aconteceu naquela noite e atrevo-me a dizer que sempre acreditarei. Todos o julgavam um rapaz honesto e de confiança e não vi qualquer razão para duvidar de si.
Sugeria que desse ordem para que o baile prosseguisse se for da opinião de que a noite não ficou estragada.
- De modo nenhum - disse Joshua, ao mesmo tempo que Hugh Garnett abandonava o salão de rompante e os seus cinco cúmplices o seguiam com um ar furtivo e comprometido.
- Na verdade, creio que chegou a altura de passarmos à ceia na sala de jantar de aparato, embora não existam lugares sentados para todos. Talvez seja melhor todos
encherem um prato e encontrarem um lugar algures. Lady Freyja e eu daremos uma volta e trocaremos uma palavra com todos. Este baile é, em parte, uma celebração do
nosso noivado.
Mas, antes de todos se encaminharem com gratidão numa onda de vozes e movimento rumo à ceia, o reverendo Calvin Moore pigarreou e ergueu a voz inesperadamente, usando
a sua voz do púlpito, embora esta tremesse de indignação.
- Este foi um espetáculo desprezível de malevolência - disse ele - provocado, sem dúvida, por alguns problemas em torno do contrabando no passado, nos quais o Joshua
se colocou no lado da lei e da paz. Quero que saibam que vim até cá para lidar da melhor maneira que fosse capaz com a angústia compreensível que esta crise iminente
tinha causado à minha prima, a marquesa. Não vim porque cobiçava o título. Não o cobicei nem cobiço. Sou um homem do clero e estou perfeitamente feliz com o meu
lugar no mundo.
Ouviram-se mais alguns aplausos, mas a maior parte das pessoas estava agora ansiosa pela sua ceia e pela oportunidade de se espantar mutuamente ao repetir cada uma
das palavras que tinham acabado de ouvir como se estivessem à espera de descobrir alguém que tivesse dormido durante o sucedido.
Freyja ergueu as sobrancelhas quando Joshua se aproximou dela, com os olhos a rir para ela.
- Estás a ver, querida? - disse ele. - Por vezes, é melhor ficar de boca calada e deixar que o adversário meta o pé na argola.
- Como eu fiz no Pump Room? - disse ela.
Ele estendeu as duas mãos e rodeou-lhe os pulsos com os dedos.
- Não podes estar à espera que um cavalheiro concorde com isso - disse ele. - Mas se a carapuça te servir...
- Presumo que isto - disse ela - tenha sido aquilo a que Mr. Perrie se referiu naquela manhã quando te disse para deixares tudo a cargo dele.
Ele sorriu-lhe.
- Estás a ver - disse ele -, a minha tia e o Hugh Garnett nem sequer são inimigos dignos de respeito. Isto foi uma espécie de desilusão, não foi?
- Vai alimentar a má-língua nestas redondezas durante os próximos cinquenta anos - disse ela. - Vai fazer parte do folclore das gerações vindouras.
Ele soltou uma gargalhada abafada.
Joshua não pedira a nenhum deles para fazer aquilo, nem mesmo a Perrie. Mas tinham-no feito por ele num ato cego de fé. Como o conheciam e tinham conhecido Albert,
não tinham duvidado dele nem por um momento. E nenhum deles acreditara também que ele era o pai do filho de Anne Jewell, embora nunca o tivesse negado e alguns deles
tivessem demorado algum tempo a aceitá-la na aldeia. Tinham acreditado nele.
Era difícil saber que deixara amigos daquele tipo para trás e nunca mais quisera voltar.
Passou todos os momentos da ceia a circular entre os convidados com Freyja a seu lado, como prometera. A única coisa que lhe pesava no coração era a mentira que
tinha dito a toda a gente. Acabara de a repetir: aquela noite, dissera aos seus amigos, era uma celebração do seu noivado. A não ser que conseguisse persuadi-la
a mudar de ideias em relação a ele.
Mas isso não lhe parecia nada justo.
Chastity tocou-lhe no braço assim que as pessoas que enchiam a sala de jantar estavam a começar novamente a encaminhar-se lentamente para o salão de baile. Exibia
uma palidez cadavérica. Parecia que se estava a segurar de pé apenas com a força de vontade.
- Joshua - disse ela -, vens até à biblioteca? Pedi à mãe, à Constance, ao primo Calvin e a Sir Rees Newton para virem também. E a Miss Jewell. Freyja, faz o favor
de vir também?
Mas Joshua agarrou-lhe a mão e apertou-a com firmeza. - Não, Chass! - exclamou ele. - Não! Não faças isto. Não é necessário.
- Sim, é necessário. - Ela olhou apaticamente para ele enquanto puxava a mão e dava meia-volta. - É necessário.
Ele fechou os olhos por um momento e admitiu com um profundo suspiro interior que ela provavelmente tinha razão. Em todo o caso, agora já não havia forma de a impedir.
- Estamos prestes a descobrir - perguntou Freyja tranquilamente - o que realmente aconteceu naquela noite?
- Vamos até lá para ver, de acordo? - perguntou ele, oferecendo-lhe o braço.
CAPÍTULO 22
- Ninguém disse a verdade no salão de baile há pouco - afirmou Chastity. Ela pedira a todos para se sentarem e todos tinham acedido ao seu pedido, exceto Joshua,
que ficou de pé junto à janela, de costas para ela, e a própria Chastity, que se agarrara à extremidade da secretária como se precisasse de apoio. - Ninguém.
- Eu percebi isso, Lady Chastity - disse Sir Rees Newton. - Peço-lhe para não se angustiar por causa disso. O Hugh Garnett consegue ser uma personagem desagradável
quando decide fazer das suas e os homens que falaram em defesa dele são um bando de patifes pouco recomendáveis. Não pense que eu não sabia dos seus esquemas de
contrabando há anos, embora não tenha dito nada na altura. Quanto àqueles que falaram em defesa de Lord Hallmere, bom, é tão certo que prestaram um falso testemunho
como eu estar aqui sentado, mas conhecem-no, confiam na sua palavra e decidiram claramente que existem vários tipos de verdade. Estou mais do que preparado para
fingir que não fiz nada mais do que dançar, festejar e desfrutar da companhia dos meus vizinhos esta noite.
- Talvez seja esse o problema - disse a marquesa, com uma voz amarga. A sua máscara de doçura gentil desaparecera finalmente. - Toda a gente sempre gostou do Joshua.
Toda a gente sempre acreditou em todas as palavras dele. Ninguém, nem sequer o meu marido, insistiu numa investigação adicional relativamente àquilo que aconteceu
naquela noite. O Albert foi confrontar o Joshua a respeito da sua imoralidade e corrupção inquestionável de uma pessoa que fazia parte do nosso pessoal e o Albert
morreu. O Joshua foi o último a vê-lo vivo. Isso não é suficientemente suspeito para criar dúvidas na cabeça de todos?
- Eu sei que toda a gente estava a mentir - disse Chastity, erguendo a voz e articulando as palavras de forma bem clara embora os seus olhos estivessem fixos no
chão - porque ninguém tinha saído naquela noite, quer para a água, quer em terra, ninguém pôde testemunhar o que se passou. Ninguém exceto o Joshua e o Albert. E
eu.
Santo Deus! Joshua fixou a atenção nela, surpreendido, à semelhança de todos os outros. O que era aquilo?
- Eu vi o que aconteceu - disse Chastity. - Apenas eu.
- E eu também, Chastity - disse Anne Jewell, serenamente. - Eu estava contigo.
Como?
Chastity franziu-lhe o sobrolho, mas não a contradisse.
- Eu fui a pé até à aldeia - disse Chastity. - Sabia que o Albert ia falar com o Joshua e fui atrás dele. Fui à casa de Miss Jewell primeiro e depois nós as duas
fomos até à casa do Joshua, mas descobrimos que eles tinham saído de barco. Descemos até ao porto para esperar por eles. As nuvens já tinham coberto o céu e estava
a levantar-se vento. Não havia mais ninguém por perto. Eu tinha uma arma comigo.
- O quê?
A marquesa deixou-se cair na sua cadeira, mas ninguém lhe prestou qualquer atenção e, sendo assim, ela decidiu pôr de parte o desfalecimento.
- Estávamos a abrigar-nos do vento ao lado de um dos barcos quando vimos o Joshua a regressar - disse Chastity. - Estava a remar. De início, achámos que o Albert
não estava com ele, mas depois conseguimos vê-lo a nadar ao lado do barco. Quando chegaram perto da praia, o Joshua levou de novo o barco para longe e o Albert começou
a caminhar dentro de água na direção do porto.
- Obrigado, Chass - disse Joshua com firmeza, dando um passo em frente. - Não é necessário dizer mais nada. Isso confirma o que tenho afirmado sempre. Vamos...
Freyja levantou-se da cadeira e aproximou-se o suficiente para lhe pousar uma mão no braço.
- Temos de saber o que aconteceu ao Albert - disse Calvin. - Se, de facto, chegou a salvo à praia nesse momento.
- Eu confrontei-o - disse Chastity. - Com a arma. Apontei-lha e não o deixei sair da água. Disse-lhe que podia ficar lá a gelar até prometer ir até junto do pai
confessar o que tinha feito e prometer deixar Penhallow para nunca mais regressar.
- Oh, Chass - disse Constance. Ela fitou Anne Jewell, com uma expressão de dor no rosto. - O pai do seu filho era o Albert, não era? Acho que sempre soube isso.
Simplesmente não queria saber, apesar de nunca ter acreditado que era o Joshua.
- Sua malvada! - exclamou a marquesa, fulminando Chastity com o olhar. - Jamais acreditarei nisso. Jamais! E se esta, esta rameira diz isso, está a mentir. E o Joshua
também. Mas, mesmo que assim fosse, ameaçarias o teu próprio irmão, o teu próprio sangue, com a morte ou o exílio, simplesmente porque ele se entregou ao prazer
com uma mulher que o estava a pedir, sempre a fazer-lhe olhinhos e a atraí-lo para longe da sala das crianças para ir ver alguma coisa na sala de aulas? Oh, sim,
menina. Não pense que eu não reparava.
- Não havia nenhum buraco de bala no corpo - disse Sir Rees. - O seu irmão afogou-se, Lady Chastity.
- Ele riu-se de mim - disse ela. - Disse que não precisava de sair da água, que tencionava nadar um pouco mais porque estava uma noite maravilhosa. Voltou a entrar
na água e nadou para longe. - Ela cobriu o rosto com ambas as mãos. - Se alguém o matou fui eu.
Constance ergueu-se de um salto e correu para abraçar a irmã. Chastity apoiou-se nela durante um momento, mas depois empurrou-a para trás devagar.
- Não foi só por causa de Miss Jewell - disse ela -, embora isso já fosse suficientemente mau. Mas Miss Jewell só foi vítima dos avanços do Albert porque ela o afastava
deliberadamente da sala das crianças para a sala de aula.
- Pois! - disse a marquesa, fazendo um grande arco com um braço.
- Chastity - avisou Anne Jewell. - Por favor, minha querida.
- Chass - disse Joshua. - Não digas mais nada. Já foi dito o suficiente. Não digas mais nada.
- Fiquei contente quando descobri que ele estava morto - disse Chastity. - Fiquei contente. Que Deus me ajude, ainda me sinto contente. A Prue tinha treze anos.
Treze! E era a sua própria irmã. Mas ele pensou que como ela tinha a mente de uma criança e a boa vontade de uma criança de agradar e de fazer tudo o que lhe era
dito, podia escapar impune ao facto de fazer tudo o que desejava com ela. Tenho... tenho quase pena de ele não me ter dado um motivo para ter disparado a arma.
A marquesa soltou um grito agudo e deixou-se cair na sua cadeira. Desta vez Constance reparou nela e apressou-se a ir ter com ela para lhe pegar numa mão. Chastity
apoiou-se contra a secretária. Calvin pigarreou.
- Também tenho pena, Chastity - disse Freyja. - Tens a minha admiração.
- Se a minha palavra valer alguma coisa - disse Anne Jewell -, corroboro tudo o que Lady Chastity disse.
Sir Rees Newton pôs-se de pé. - Já ouvi o suficiente - disse. - Agradeço-lhe por me ter convidado, Lady Chastity, para ouvir estes terríveis segredos de família.
Não duvidei da história de Lord Hallmere, mas o seu relato do que aconteceu eliminou qualquer sombra de dúvida que possa ter perdurado. Não é responsável pela morte
do seu irmão. Enquanto magistrado, absolvo-a de toda a culpa. Quanto ao sofrimento em torno de toda a tragédia e a revelação desta noite àqueles que a desconheciam,
bom, isso já não me diz respeito. Vou deixar-vos a todos e regressar para junto da minha estimada mulher no salão de baile.
Ele fez uma vénia e abandonou a sala sem mais demoras.
- Aquela rapariga, a Prudence - disse a marquesa, empurrando Constance para o lado e inclinando-se para a frente na cadeira -, vai ser levada desta casa e fechada
à chave num hospício onde é o seu lugar. Isto nunca teria acontecido se ela não se estivesse constantemente a exibir à frente do Albert, não que eu acredite que
ele alguma vez lhe tivesse mostrado mais do que uma afeição fraterna. Ele sempre foi um rapaz afetuoso. Nunca mais quero pôr os olhos em cima da Prudence. Ela vai
deixar esta casa logo de manhã. Primo Calvin, por favor, encarregue-se disso. O senhor é um homem do clero. Deve conhecer um lugar adequado para onde ela pode ser
levada.
- Se a Prue se for embora, mãe - disse Chastity -, eu também vou.
- Já chega - disse Joshua, dando um passo em frente para o meio da sala e falando com uma autoridade firme. - Já houve maldade suficiente nesta casa nos últimos
tempos. Tinha esperança de que a verdade nunca se tornasse pública, mas talvez seja impossível contornar o velho ditado que diz que a verdade vem ao de cima aconteça
o que acontecer. Talvez fosse preciso que assim fosse. Mas deve e vai ficar bem claro que a Prue é a mais inocente das vítimas em tudo isto. Ela ficará nesta casa,
na minha casa, até quando quiser, tia, e será sempre bem-vinda aqui mesmo depois de eu ter partido.
- A Prudence é minha filha - gritou a sua tia.
- E está à minha guarda - recordou-a Joshua. - Mas não vamos envolver-nos numa discussão acesa a respeito dela como se fosse um objeto inanimado. A Prue é uma mulher
e tem uma mente e vontade próprias. É capaz de escolher o seu próprio futuro, o seu próprio percurso na vida, e, na verdade, já o fez. Ela vai casar-se com o Ben
Turner.
A marquesa fitou-o, muda, e depois pôs-se de pé para o confrontar, o rosto pálido e distorcido de raiva.
- Vais casar Lady Prudence Moore com um pescador rude? - perguntou-lhe ela.
- Vou fazer o anúncio assim que regressarmos ao salão de baile, tia - disse ele. - Venha comigo, sorria e pareça contente. Amanhã podemos discutir tudo o que é necessário
discutir. Esta noite temos convidados a quem temos de dar atenção e estamos a descurar esse dever.
Mas a tia estava a olhar por cima dos ombros dele, os olhos semicerrados e lábios apertados numa expressão perversa.
- A culpa é sua! - disse ela, passando ao lado de Joshua para se deter a centímetros de Freyja. - Isto foi tudo por sua culpa! Se não tivesse usado as suas artimanhas
altivas e orgulhosas para seduzir o Joshua em Bath e roubá-lo mesmo debaixo do nariz da Constance, ele estaria noivo dela agora e seríamos a família unida e feliz
que sempre fomos. E agora veio invadir Penhallow e tentar dar-nos ordens a todos com a sua família orgulhosa e insolente.
Freyja arqueou as sobrancelhas e observou a marquesa com um desdém frio e silencioso.
Joshua viu, horrorizado, a tia a erguer uma mão e assentá-la com força numa das faces de Freyja. Estendeu, em vão, uma mão mas chegou demasiado tarde.
Freyja recolheu o braço direito e deu um soco no nariz da sua tia. Esta caiu no chão como uma trouxa de farrapos, inanimada.
Calvin pigarreou. As outras senhoras continuaram a assistir à cena como se estivessem educadamente à espera da cena seguinte do drama. Joshua reparou que uma das
plumas do cabelo da tia se tinha partido ao meio.
- Estava a começar a recear - disse Freyja - que ela nunca me provocasse o suficiente para me permitir fazer isto. Estou muito contente por ela o ter feito.
*
Por volta da meia-noite, o baile tinha terminado e todos os convidados tinham regressado a casa, e todos eles garantiram a Joshua na despedida que nunca tinham tido
um serão tão grandioso. O drama com Hugh Garnett a meio do baile só servira para aumentar o regozijo deles, calculou Freyja.
Para isso também contribuíra o anúncio do noivado entre Prue e Ben e a felicidade transbordante de ambos durante o resto da noite levara a própria Freyja até perto
das lágrimas algumas vezes. Pestanejou categoricamente os olhos nesses momentos, reprimindo-as. Lady Freyja Bedwyn não era decididamente dada a lágrimas sentimentais.
Surpreendentemente, a marquesa regressou ao salão de baile com o resto da família. O nariz dela ficara bastante vermelho durante algum tempo, assim como uma das
faces de Freyja, e as duas plumas que escaparam incólumes tiveram de ser reorganizadas, mas ela tinha-se recomposto e exibia o seu habitual sorriso de mártir.
Constance dançou as últimas três músicas da noite, reparou Freyja com interesse, com o administrador de Joshua, James Saunders, que ainda não tinha dançado com ninguém
até essa altura. Constance, geralmente serena, de porte digno e reservado, de repente não fazia segredo do brilho do amor nos seus olhos e face. Depois dos primeiros
cinco minutos, Mr. Saunders começou a corresponder a cada expressão e gesto dela.
- Foi uma noite maravilhosa, Joshua - disse Eve quando restavam apenas eles no salão de baile vazio. A marquesa e o reverendo Calvin Moore tinham-se retirado. Chastity
e Miss Palmer tinham levado Prue para a cama. Constance tinha desaparecido algures com Mr. Saunders. - Já estivemos em bailes semelhantes na estalagem da aldeia
próxima da nossa casa, não foi, Aidan? Mas a noite de hoje fez-me perceber que temos de convidar toda a gente para a nossa casa, talvez para uma festa ao ar livre
no verão ou uma festa de Natal ou...
Aidan riu-se e abraçou-a pela cintura. - Ou ambas, meu amor - disse ele. - Sabia que ia ter tantos apoiantes aqui esta noite, Joshua?
- Só lhe posso dizer que não fiquei surpreendido - disse Joshua com um sorriso rasgado.
- Foi impagável - acrescentou Alleyne. - Só gostava que tivesse havido alguns combates a soco. Nada me daria mais prazer do que deitar por terra aquele sorriso trocista
do Garnett. Mas isso não seria de bom-tom com tantas senhoras presentes, pois não?
- Pelo menos, eu tive oportunidade de dar um soco na marquesa - afirmou Freyja. - Nunca fiquei tão contente na vida como no momento em que ela me deu uma bofetada
na cara.
- Estás a ver? - Morgan ergueu de rompante as mãos. - Eu perco tudo o que é engraçado. Nunca me contas nada, Freyja. Mas o que é que aconteceu?
- É uma longa história - disse Freyja - e não me compete a mim contá-la.
- A vossa família veio até cá para me apoiar quando parecia provável eu ser acusado de homicídio - disse Joshua. - Creio que conquistou o direito de saber a verdade.
Sei que posso contar com a vossa discrição.
Ele fez-lhes um relato breve e sucinto do que fora revelado algumas horas antes na biblioteca.
- Oh, Prue - disse Eve, fechando os olhos quando Joshua terminou e pousando o braço na cintura de Aidan. - Minha doce e inocente Prue. Mas ela tinha a Chastity,
Miss Jewell e o Joshua a defendê-la e agora vai ter aquele jovem trabalhador e muito simpático, o Ben Turner. Acredito que ela será feliz. Estou pronta para ir dormir.
Aidan beijou-lhe o cimo da cabeça.
Freyja fitou-os com alguma inveja. Nunca vira nenhuma exibição pública de afeto entre os dois antes.
- Eu não - disse. - Preciso de ar, de exercício e de sentir o vento na cara. Levas-me até à praia, Josh?
Alleyne fez um sorriso irónico e franziu as sobrancelhas, mas ninguém deu voz a qualquer comentário ou, mais propriamente, qualquer protesto. Foram todos para a
cama enquanto Freyja mudava apressadamente de roupa para um vestido de lã, uma capa quente com um capuz e sapatos resistentes. Ela sabia que a noite estava gelada
embora também estivesse iluminada. Não teriam qualquer necessidade de lanternas para iluminar o caminho que descia até ao vale e ao longo do trilho do rio. Joshua
também já não estava a usar o seu traje de cerimónia, reparou ela quando se encontrou com ele no átrio.
Havia uma sensação de conclusão deprimente a precisar de ser levada pelo vento. O perigo que Joshua corria tinha desaparecido depois daquilo que foi uma cena maravilhosamente
satisfatória no salão de baile. Todas as incertezas relativamente à noite da morte de Albert tinham sido esclarecidas. Era o fim. Já não havia mais nada a fazer.
Mais nada a mantê-los em Penhallow.
Mais nada a mantê-los juntos.
- Vais ficar cá até ao casamento da Prue? - perguntou ela.
- Sim - respondeu-lhe ele.
- Um mês inteiro enquanto os banhos do casamento são lidos? - disse ela. - Vais suportar ficar todo esse tempo aqui, Josh, porque a amas?
- Sim - disse ele.
Ele não era de modo nenhum o tipo de pessoa que julgara que fosse. Essa tomada de consciência irritara-a há alguns dias. Agora, estava contente que assim fosse e
contente por ter tido a oportunidade de descobrir o tipo de pessoa que ele era realmente.
- E depois? - perguntou ela. - Vai continuar tudo como estava e tu vais... fazer o quê? Vaguear pelo mundo? Continuar a gozar a vida?
- Tenho a sensação - disse ele - de que o anúncio do casamento da Constance não será adiado muito mais tempo. Os olhos dela foram finalmente abertos para uma série
de coisas esta noite. Pareceu-me inegável que estava a fazer uma admissão quase pública dos seus sentimentos por Jim Saunders hoje e ele parecia estar bastante disposto
a ser persuadido a casar-se com alguém muito acima da sua posição social.
- O casamento teria a tua aprovação, nesse caso? - perguntou ela. Perguntou-se o que Wulf teria a dizer se ela de um momento para o outro se envolvesse num romance
com um dos seus administradores.
- Sim - disse ele. - Mas a minha aprovação não tem qualquer importância, não é verdade? A Constance é maior de idade e não está à minha guarda. E, tal como a Prue,
tem uma mente própria e é bastante capaz de decidir o que lhe dará mais felicidade na vida. Não posso pensar de forma dinástica, Freyja. Não fui criado dessa forma.
- Também vais ficar para esse casamento? - Estavam a aproximar-se do final do vale e a ladeira a pique já não os protegia do vento ocidental gélido que fazia as
capas de ambos erguer-se numa onda de um dos lados.
- Sim - disse ele. - Gostava de os instalar na casa da viúva, mas preciso de resolver alguns pormenores primeiro.
- Sendo assim, a pobre Chastity ficará em Penhallow sozinha com a mãe - disse Freyja. - Mas pelo menos terá as irmãs por perto.
- A minha tia não pode continuar a viver em Penhallow - disse ele, olhando para ela. - Penhallow vai ser a minha casa.
- Oh. - Ela fitou-o com alguma surpresa, mas não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Sentia-se um pouco magoada por alguma razão que não conseguiu aprofundar.
- Será ela que terá de viver na casa da viúva se mais nenhuma solução se apresentar entretanto - disse ele. - Mas vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para
lhe encontrar outro lugar para viver. Parece-me que ela não gostará de ficar tão próxima de mim.
- E a Chastity? - disse ela.
Ele suspirou. - Ela está à minha guarda - disse ele. - Mas não é minha prisioneira. Eu não posso decidir o que ela irá fazer, pois não? Talvez escolha ir para onde
a minha tia vá. Talvez vá viver com a Constance, ou fique aqui. Dar-lhe-ei a oportunidade de uma temporada social em Londres se ela o desejar, embora não saiba muito
bem como é que isso se faz. Mas eu sou o marquês de Hallmere, não é verdade? Um homem de importância e influência. - Ele sorriu-lhe ironicamente.
Deram a volta ao promontório e a areia plana e extensa da praia estendia-se à frente de ambos, com os penhascos elevados de um dos lados e o mar do outro. A maré
estava a subir ou a descer. Freyja não tinha a certeza. Conseguia ouvir a força da água e ver a luz do luar a cintilar na sua superfície. Estava mais frio ali e
o ar estava mais húmido e salgado. Ela ergueu o rosto e inspirou grandes golfadas desse ar.
Ele ia ficar. Ia assumir as suas responsabilidades enquanto chefe da sua família. Ia assentar. Sem ela.
- Talvez te veja em Londres na próxima primavera nesse caso - disse ela. - A Morgan vai fazer a apresentação à sociedade.
- Quero a primeira valsa do primeiro baile - disse ele. - Só valsámos juntos uma única vez, Free, e mesmo essa vez foi interrompida pela necessidade de ir em busca
do mestre-de-cerimónias para anunciar o nosso noivado.
Eles começaram a atravessar a praia, com o vento a fustigar-lhes o rosto.
- A primeira valsa está reservada - disse ela.
Caminharam em silêncio durante algum tempo. Não estavam a tocar-se. Ela tinha as mãos dentro da capa. Ele tinha as dele juntas atrás das costas.
- A maré está a subir - disse ele. - Mas temos muito tempo antes de ficarmos isolados do vale.
- Achas que ele se suicidou? - perguntou ela.
- O Albert? - Ficou calado por alguns momentos. - Ele deve ter-se apercebido de que estava metido num verdadeiro sarilho. Também sabia que a mãe não era capaz de
ver nada de errado nele e que o pai era um homem fraco. Seja como for, não parecia ser o tipo de homem que poria fim à própria vida. Mas quem sabe? A Chass tinha-lhe
feito um ultimato. Eu também. Disse-lhe que se ele ainda estivesse a menos de quinze quilómetros de Penhallow ao cair da noite do dia seguinte o mataria com as minhas
próprias mãos. Não creio que o tivesse feito, mas ter-lhe-ia dado uma tareia até ficar mais perto da morte do que da vida. Ele também sabia isso. O meu palpite é
que o frio ou as cãibras levaram a melhor sobre ele. Ele era uma criatura sórdida e perversa, Freyja. Sempre suspeitei que também estivesse envolvido naquela tentativa
de conluio de contrabando. Mas chega desse assunto. Já está mais do que encerrado.
Ele parou de caminhar e ficou quieto a olhar para o mar. Freyja deteve-se ao seu lado, sentindo todo o vasto prodígio do universo e a alegria de fazer parte dele.
- Freyja - disse ele -, o que vais fazer com o resto da tua vida?
Oh, não! Ela ficou instantaneamente alerta com o tom dele e por lhe ter chamado Freyja em vez de Free ou querida.
- Seja o que for - disse ela, erguendo o queixo -, será sem ti, Josh. Não sou uma das tuas pontas soltas a resolver antes de poderes assentar pacificamente aqui.
Nunca fez parte do nosso acordo o facto de te sentires obrigado a propor-me casamento a sério.
- E se aquilo que eu sinto não for uma obrigação? - perguntou ele.
Subitamente, sentiu a garganta áspera e dorida e apercebeu-se com algum horror de que se o deixasse dizer mais uma palavra podia fazer uma grande figura de idiota
ao desatar num pranto. Como é que ele se atrevia a fazer-lhe semelhante coisa? Não precisava daquilo. Deu uma meia-volta brusca e fitou os penhascos. O luar incidia
diretamente sobre eles. Não pareciam tão íngremes ali de baixo.
- Vou subir - declarou.
Ele suspirou. - Muito bem - disse ele. - De qualquer modo, é melhor começarmos a voltar para trás. A maré está a subir depressa.
- Vou subir para ali. - Ela apontou para o cimo dos penhascos e sentiu a fraqueza familiar nos joelhos e a falta de ar que a assaltavam sempre que se obrigava a
fazer coisas perigosas, de preferência aquelas que mais a aterrorizavam. Subira a árvores quando era criança só porque tinha medo das alturas.
Joshua soltou uma pequena gargalhada. - Voltarei de manhã, querida - disse ele -, para varrer o que restar de ti. Não, não vou poder fazer isso. Os restos já terão
sido levados pela maré. O que diabo estás a fazer?
Ela estava a dirigir-se em grandes passadas diretamente para os penhascos.
- Vou subir os penhascos - disse ela.
- Porquê? - Ele alcançou-a. - Ainda estamos muito longe de ficarmos isolados pela maré.
- Porquê? - repetiu ela altivamente. - Que pergunta estúpida, Josh. Porque eles estão ali, é claro.
Ela empurrou a capa para trás das costas, encontrou os primeiros apoios para os pés e mãos e içou-se acima da praia. A seguir, olhou para trás por cima do ombro.
- Aposto que consigo chegar primeiro do que tu ao cimo - afirmou.
CAPÍTULO 23
O que ele devia ter feito, pensou Joshua, era tê-la arrancado da face do penhasco, carregando-a de volta para a casa pelo caminho do vale, à força, se fosse necessário.
É claro que teria sido necessário. Teria de a prender com um braço ou carregá-la por cima de um ombro, esquivar-se aos golpes dela o melhor que conseguisse sem qualquer
retaliação e tapar os ouvidos aos insultos dela. Mas pelo menos ela continuaria a ser um corpo vivo na altura em que a pousasse a salvo dentro das paredes de Penhallow.
Teria sido a atitude mais responsável, e ele começara a dar valor à responsabilidade durante a semana anterior. Tornara-se uma pessoa nova, um adulto maduro, um
marquês sensato com o dever como a sua luz orientadora. Preparara-se para definhar lentamente no meio de uma responsabilidade convencional e numa meia-idade prematura.
Mas o que é que ele estava a fazer em vez de arrastar Freyja de volta para casa?
A verdade é que estava a subir aos penhascos com ela.
A meio da noite, com um vento forte a soprar.
E com os movimentos dela dificultados pelo vestuário feminino.
Também estava a rir-se a bandeiras despregadas. Que absurdo! E que onda inegável de adrenalina face ao perigo!
Todavia, não era tão perigoso como parecia, especialmente visto de cima. Por mais íngremes que os penhascos fossem, ofereciam uma série de apoios perfeitamente estáveis
para pés e mãos. É claro que não havia a possibilidade de voltar a descer assim que se tivesse iniciado a subida. Por um lado, descer a face de um penhasco era infinitamente
mais difícil do que subir. Por outro, a maré já tinha chegado à foz do rio e não existia qualquer forma de alcançar o vale a não ser a nado.
Ele não estava a participar numa corrida contra ela. Mantinha-se o mais próximo que conseguia e ligeiramente abaixo, quase como se acreditasse que podia apanhá-la
se por acaso escorregasse e caísse desamparada junto a si. Mas talvez pudesse oferecer alguma assistência se ela se visse impedida de continuar. Não fez essa oferta
em voz alta. Não queria que a fúria a distraísse. Quando ela parava, por vezes durante um minuto inteiro, deixava-se ficar silenciosamente onde estava.
Ele sabia que assim que chegassem ao topo, iam cair por terra, com as pernas transformadas em gelatina e completamente inúteis durante vários minutos. Também iam
ficar esticados ao comprido numa terra abençoadamente plana, agarrados a ela como se esperassem deslizar a grande velocidade para o espaço a qualquer momento. E
iam fazer uma promessa solene, como ele fizera em rapaz sempre que cometia esse erro, de que nunca mais voltariam a ser tão imprudentes.
Os últimos metros eram os mais difíceis, onde a rocha sólida se misturava com terra, erva e pedras soltas, e o perigo de encontrar um falso apoio para o pé e escorregar
descontroladamente se tornava muito real. Ele lembrava-se de ter ficado agarrado à rocha sem se mexer durante talvez meia hora a uma distância de um corpo do cimo
na primeira vez que fizera aquela subida, incapaz durante todo esse tempo de se convencer a mexer um músculo ao mesmo tempo que dizia a si mesmo que tinha de o fazer,
antes de se envergonhar profundamente ao perder o controlo da bexiga.
Freyja não cometeu o erro de se agarrar ao mesmo sítio durante muito tempo e ficar paralisada. Ele tinha estado a tentar decidir o que fazer nesse caso. Içou-se
depois dela por cima da extremidade da mesma reentrância onde tinham estado sentados alguns dias antes e ficou deitado de barriga para baixo na erva ao lado dela,
a arquejar.
Ela foi a primeira, talvez depois de cinco minutos, a começar a rir-se.
Ele juntou-se a ela.
Ficaram deitados lado a lado, agarrados firmemente ao mundo como se estivessem à espera que a força da gravidade se esgotasse a qualquer momento, com o corpo a estremecer
com a força do riso.
- Parece-me que ganhei a aposta - disse ela, numa declaração tão disparatada que lhes provocou convulsões repetidas de riso.
- Presumo - disse ele - que tenhas medo de alturas?
- Sempre tive - admitiu ela.
Eles riram-se tanto que ficaram a arquejar, sem conseguir respirar.
Ele colocou-se de lado para poder olhar para ela e ela fez o mesmo.
- Não achas que a noite está fria, pois não? - perguntou ele.
- Fria? - Ela ergueu as sobrancelhas. - Fria?
Eles encontraram-se no meio do espaço entre eles e em breve estavam a ser relativamente bem-sucedidos ao tentar ocupar exatamente o mesmo espaço. Os braços de ambos
percorriam o corpo um do outro, as bocas abriam-se uma sobre a outra, a beijar-se com a urgência de dois estouvados que sabiam muito bem que tinham acabado de desafiar
a própria morte e saído vitoriosos.
Pouco depois, uniram os corpos numa mistura de roupas, braços e pernas, calor, transpiração e uma urgência irresistível dentro de ambos. Fizeram amor com vigor,
paixão e júbilo.
- Meu coração doce - murmurou ele, e outras tontices do mesmo género, sempre que a sua boca ficava livre para falar.
- Meu amor. Oh, meu querido amor - murmurou-lhe ela de volta.
Eles explodiram num êxtase em conjunto, talvez três minutos depois de terem começado. Como se naquele momento, terminada a escalada, estivessem a fazer uma corrida.
A qual, apropriadamente, terminara com um empate.
Ficaram novamente ofegantes e ela riu-se mais uma vez contra o ombro dele enquanto ele a segurava com um braço por baixo e envolvia os seus corpos com as duas capas.
- O que foi isto? - perguntou ele, com a boca colada à orelha dela. - Será que comecei a ouvir mal de um momento para o outro? Meu amor? Meu querido amor? Foi um
desvario da paixão e da luxúria, querida?
O riso dela acalmou, mas ela não disse nada.
- Ficaste sem fala? - sugeriu ele.
- Não estragues isto, Josh - disse ela.
- O que vai estragar as coisas para mim - disse ele - é ver-te ir embora daqui a alguns dias, Free, e sorrir alegremente como se estivesse feliz por te ver partir
para planear o nosso casamento. E depois aguardar pela tua carta a terminar oficialmente o nosso noivado. E depois dançar uma valsa contigo na próxima primavera,
tendo esperado todo o inverno apenas por essa meia hora. E depois passar o resto da minha vida sem ti.
Ele ouviu-a a inspirar lenta e profundamente.
- Não existe qualquer necessidade... - começou ela.
- Maldição! - Ele interrompeu-a antes de ela se poder lançar num discurso previsível. - Vamos deixar que haja alguma verdade entre nós finalmente, Freyja. Já estou
farto de mentiras, evasões e segredos para uma vida inteira. Se tudo isto não foi mais do que uma brincadeira para ti, muito bem. Di-lo honestamente e deixo-te partir
sem mais palavras, a não ser, isto é, que tenhas engravidado. Mas se me vais abandonar porque achas que tens de respeitar a cláusula temporária no nosso acordo e
porque achas que eu estou a ser irritantemente nobre na minha oferta para tornar real o noivado, deixa-te disso, querida. Deixa-te simplesmente disso. Quero que
sejas sincera agora. Amas-me?
A voz dela parecia tranquilizadoramente normal: fria e altiva.
- Bom, é claro que te amo - disse ela.
- É claro. - Ele tornou a rir-se nesse momento. Abraçou-a com força e pareceu não conseguir parar de se rir durante algum tempo. - Vamos deixar que um acordo insignificante
arruine o resto das nossas vidas?
- Sempre que discutíssemos - disse ela -, e vamos discutir, Josh, cada um de nós se interrogaria se o outro se tinha sentido coagido a casar-se.
- Que tontice! - exclamou ele. - Não confias que eu te diga a verdade, Freyja? Eu digo que te amo, que te adoro, que não posso imaginar maior felicidade do que passar
o resto da minha vida a amar-te, a rir, a discutir e até a lutar contigo. Eu confio que me estejas a dizer a verdade. Disseste que me amavas, que é claro que me
amavas. Isso inclui uma vontade de te casares comigo, de viveres aqui comigo toda a tua vida, de ter bebés comigo e de te divertires comigo? De partilhar as tristezas
da vida comigo? E todas as suas alegrias?
- É claro que inclui essa vontade - disse ela. - Mas, Josh, estou cheia de medo.
- Porquê? - perguntou ele. A cara dela estava encostada com firmeza ao ombro dele.
- Nunca me saí bem com o amor, noivados e perspetivas de casamento - disse ela. - Se ceder à felicidade agora, é bem possível que tudo se evapore diante dos meus
próprios olhos.
- Querida, querida - disse ele. - O que aconteceu no outro dia quando estavas com medo do mar?
- Eu não estava...
- O que aconteceu?
Seguiu-se um silêncio curto.
- Convenci-te a levar-me até à ilha - disse ela.
- E?
- E insisti em remar parte do caminho de volta.
- Apesar de teres de trocar de lugar dentro do barco comigo - disse ele. - O que fizeste esta noite quando ficaste com medo da altura dos penhascos?
- Escalei-os - disse ela.
- E agora - disse ele - estás cheia de medo de me amar. O que vais fazer em relação a isso?
Ela afastou a cabeça do ombro dele e fulminou-o com o olhar.
- Vou amar-te na mesma - disse ela. - Não faças a próxima pergunta, Josh, se gostas da forma do teu nariz. Lembras-me tudo aquilo que eu odiava em relação a todas
as minhas precetoras, a fazer as suas perguntas e a tentar extrair-me as respostas certas por etapas e com uma paciência infinita. Vais perguntar-me o que tenciono
fazer relativamente a um noivado real contigo e a um casamento real contigo.
Ele fitou-a nos olhos e não disse nada.
- Estamos noivos um do outro - disse ela com firmeza. - Já está, é isso que eu vou fazer. Estamos realmente noivos um do outro. Mas se morreres antes do nosso casamento,
Josh, vou perseguir-te por todo o Paraíso e todo o Inferno depois da minha própria morte e esgano-te. Estás a ouvir?
- Sim, querida - disse ele docilmente e fez-lhe um sorriso trocista. - Quero ouvir-me a dizer isto, Free. E quero ouvir a tua resposta.
Ele sentou-se, verificou a distância a que estava da extremidade e colocou-se numa postura ajoelhada teatral. Pegou numa das mãos dela e brindou-a com o seu sorriso
mais encantador.
- Lady Freyja Bedwyn - disse ele -, dar-me-á a grande honra de aceitar casar comigo? Com a condição de que será estritamente uma união de amor de ambas as partes?
- Que imagem extraordinariamente ridícula.
- Eu sei, querida - disse ele, enviando-lhe um beijo pelo ar. - Mas quero que sejas capaz de te gabar disto aos nossos netos um dia. De que o avô deles se ajoelhou
e te implorou para te casares com ele.
- Nunca irão acreditar nisso - disse ela - quando olharem para a mulher idosa em que me vou tornar e depois olharem para o cavalheiro idoso bem-parecido em que te
irás tornar. - Ela sentou-se e suspirou. - Mas eu vou-me lembrar deste momento toda a minha vida e posso dizer que trará lágrimas aos meus olhos quando souber que
mais ninguém está a olhar. Sim, meu amor. Vou casar-me contigo, mas só com a condição de que será uma união mútua de amor.
Ela deixou-se ficar sentada, ele deixou-se ficar ajoelhado e sorriram um ao outro, como um par de patetas satisfeitos consigo mesmos enquanto o cabelo dela voava
livremente à volta do rosto e ele estava muito consciente da queda longa e quase a pique a menos de um metro atrás dos seus calcanhares.
- Continuo à espera de sentir o peso de um grilhão a fechar-se em torno da minha perna - disse ele -, mas isso não está a acontecer. Sou um homem comprometido e
nunca me senti tão livre. Livre6 com a Free! Vamos voltar para casa e acordar toda a gente com a novidade?
- Não seria uma novidade para eles, pois não? - disse ela.
- Meu Deus, não - disse ele, sorrindo-lhe abertamente. Temos de celebrar de alguma forma, então, querida. Tens alguma sugestão?
- Oh, Josh - disse ela, abrindo os braços -, por favor, para de dizer disparates e vem cá.
- Que ideia brilhante - disse ele.
Joshua tinha saído para tratar de negócios quando Freyja perguntou por ele na manhã seguinte. Estava a transbordar de um entusiasmo pouco usual, mas embora estivesse
rodeada pela família e amigos, não havia ninguém com quem pudesse partilhar isso. O que diria?
Estou apaixonada?
Fiquei noiva?
Vou-me casar?
Com o Joshua?
Além do facto de olharem para ela como se finalmente tivesse perdido o juízo, aquilo tudo era muito rebaixante. Ela não era uma pessoa dada a uma efusão exuberante
de conversas sentimentais disparatadas.
Em vez disso, foi caminhar e desceu até à aldeia. Era uma coisa que precisava de fazer e tinha de o fazer sozinha. Ninguém devia saber disso. A ideia que alguém
pudesse descobrir provocava-lhe arrepios.
- Bom dia - disse ela quando Anne Jewell abriu a porta da sua pequena casa em resposta à sua pancada. - Não! - Ela ergueu uma mão a pedir silêncio quando a mulher
fez um gesto a convidá-la a entrar na sua casa. - Não vou entrar ou incomodá-la mais tempo do que preciso.
- Mas... - começou a dizer Anne Jewell.
- Não, obrigada. - Freyja manteve a mão erguida. - Corrija-me se estiver enganada, mas não acredito que se sinta completamente feliz a viver nesta aldeia, pois não?
O sorriso de boas-vindas da mulher desvaneceu-se.
- Toda a gente tem sido muito atenciosa - disse ela -, especialmente o Joshua, isto é, Lord Hallmere. Mas não deve temer nada. Não continuarei a aceitar o auxílio
dele. Tenho esperança de conseguir alguns alunos novos em breve.
Freyja fez um estalido de impaciência com a língua. - Acha que me importo com um pequeno auxílio? - perguntou ela. - Olhei para si e vi uma mulher inteligente que
nunca se queixou da sua sorte embora esta tenha sido causada por um nobre autossacrifício e uma injustiça, bem como uma mulher cujo orgulho não foi quebrado. Quer
continuar a ensinar?
Miss Jewell ficou com uma expressão séria.
- Sempre quis - disse ela. - A minha família nunca foi abastada, embora eu tenha sido suficientemente afortunada para ser educada. Sempre quis ensinar.
- Existe um cargo disponível para si se quiser - disse Freyja - numa escola de raparigas em Bath. É um estabelecimento bastante respeitável e oferece um salário
que a irá sustentar a si e ao seu filho com algum desafogo. E, a propósito, pode levá-lo consigo. O meu procurador informou-me há cerca de uma semana que existe
a necessidade de contratar uma outra professora, de geografia, creio eu.
Anne Jewell fitou-a, muda.
- Eu possuo alguma influência nessa escola - explicou Freyja.
Anne Jewell humedeceu os lábios. - Gostaria muito - disse, com uma voz que era pouco mais do que um sussurro. - Eles sabem que o David é um filho ilegítimo?
- Sim - disse Freyja. - Isso não será usado contra si desde que desempenhe um bom trabalho enquanto professora.
- Assim farei. - Ela levou uma mão ao pescoço e fechou os olhos com força. - Céus, claro que farei. Numa escola! Em Bath! Como é que alguma vez lhe poderei agradecer,
Lady Freyja?
- Apenas desta forma - disse Freyja com firmeza. - Foi o procurador, Mr. Hatchard, que encontrou este cargo para si e verificou as suas referências. Não conhece
mais ninguém, exceto ele. Foi ele quem respondeu à sua carta a pedir informações e depois lhe escreveu de volta a oferecer-lhe o cargo. O meu nome nunca deve ser
mencionado a ninguém, entendido? Especialmente dentro das paredes da escola de Miss Martin. E muito menos à própria Miss Martin.
Miss Anne Jewell estava a observá-la com olhos arregalados.
- É claro que sim - disse ela. - Sim, é claro que sim.
- Nesse caso, Mr. Hatchard irá escrever-lhe na próxima semana ou na seguinte com uma oferta formal e pormenores, bem como bilhetes de diligência para si e para o
seu filho - disse Freyja. - Um bom dia para si, Miss Jewell.
Foi nesse momento que a porta meio fechada da casa se abriu e uma criança saiu para fora, com Joshua na sua peugada.
- Estou pronto, mãe - gritou entusiasticamente a criança. - Olha! As mãos estão limpas. - Ele mostrou-as para a sua inspeção, primeiro as palmas e depois as costas.
Naquele momento, Freyja desejou furiosamente possuir a capacidade de se tornar invisível. Maldição, será que o Josh ouvira alguma coisa? Mas ele olhou para ela com
uma surpresa alegre.
- Freyja - disse ele -, também estás aqui? Vim buscar o David. Pensei em organizar uma excursão para as crianças hoje.
- Vim dizer adeus a Miss Jewell - explicou Freyja - visto que vou regressar a Lindsey Hall em breve. Para começar a planear o casamento. - Ela sentiu-se a corar
vergonhosamente e depois fulminou-o com o olhar com o rosto tenso quando ele baixou uma das pálpebras.
As memórias da noite anterior voltaram em força.
Caminharam de regresso a casa juntos, com um David orgulhoso e feliz na garupa do cavalo enquanto Joshua segurava nas rédeas com a mão.
- Se eu soubesse que ias visitar a Anne - disse Joshua -, teria esperado por ti, Free. Podíamos ter ido juntos a cavalo.
- Sim, bom - disse ela despreocupadamente -, foi apenas um dos muitos recados que tenho de fazer antes de partir.
- Querida - disse ele suavemente -, és uma fraude.
Ela virou bruscamente a cabeça e fitou os olhos sorridentes dele.
- Mas não tens nada a temer - disse ele. - O teu segredo está a salvo comigo.
- Segredo? - Ela franziu o sobrolho.
- Que ligação tens com Miss Martin? - perguntou ele.
- Josh - disse ela friamente. - Apetece-me matar-te por estares naquela casa esta manhã. Presumo que tivesses a orelha encostada ao buraco da fechadura.
- Não houve necessidade disso, querida - disse ele. - Foste tu quem recusaste entrar dentro de casa e obrigaste a Anne a ficar lá de pé com a porta meio aberta.
Se tivesses entrado, ter-me-ias visto. Não fiz qualquer tentativa para me esconder.
- Ela foi minha precetora - disse ela, de mau humor. - Não fui correta com ela, ela foi dispensada por ser incapaz de me controlar e depois teve o descaramento de
recusar a oferta do Wulf para lhe encontrar outro trabalho. A tonta da mulher abriu uma escola em Bath e estava prestes a morrer à fome quando eu soube disso. O
que podia eu fazer? - Ela fitou-o, furiosa.
Ele sorriu-lhe e piscou-lhe o olho. O rapazinho soltou uma gargalhada quando o cavalo resfolegou e sacudiu a cabeça.
- Presumo que - disse ele -, tens sido o benfeitor da escola desde essa altura. O benfeitor anónimo.
- Miss Martin odeia-me - disse ela. - Se ela soubesse, recusava todo e qualquer auxílio, morria à fome e eu teria de viver com a minha culpa. Isso seria extremamente
injusto.
Ele soltou mais uma risada abafada, enfurecendo-a. David estava a chamar alguns aldeãos e a acenar-lhes com um ar cheio de importância.
- E presumo que de vez em quando - prosseguiu ele - vês alguém que podia ser ajudado por essa escola, uma potencial professora, por exemplo, ou um aluno merecedor
que não tem possibilidades de pagar as propinas da escola e cedes a um impulso terrível, um impulso vergonhoso, de ser bondosa e caridosa.
- Josh - disse ela severamente -, se não apagares esse sorriso da tua cara até eu contar até três, eu apago-o por ti. Um.
- Não passas de um coração mole - disse ele, a sorrir.
- Dois.
- Amo-te, querida - disse ele, sem qualquer vestígios de riso. - Amo o teu corpo, mente e alma.
Ela fitou-o com exasperação.
- E o teu coração bondoso e mole - acrescentou.
Ela deu uma risadinha.
- Parto do princípio - disse ela -, de que vais usar isso contra mim durante o resto da minha vida.
- Até ao último minuto - disse ele, pegando na mão dela com a que estava livre e entrelaçando os dedos nos dela.
Ela soltou uma gargalhada.
- Odeio-te com todo o coração - disse ela.
E nesse momento olhou para ele, um homem muito loiro e bem-parecido, ágil, sorridente e deslumbrante. O homem dela. O amor dela.
- Oh, Josh - disse -, amo-te com todo o coração. E também podes usar isso contra mim durante o resto da minha vida.
- Faço tenções disso, querida - disse ele, com um sorriso rasgado.
6 Trocadilho com a palavra free - livre, em português. No original: Free with Free! (N. da T.)
CAPÍTULO 24
- Acho que vou começar a chorar - anunciou Morgan.
- Não o faças em público, então - disse Freyja. - Daria uma má imagem de todos os Bedwyn e as pessoas podem começar a achar-nos sentimentais. Podem começar a imaginar
que temos corações.
Alice já estava a chorar, embora fungasse para conter as lágrimas enquanto colocava o chapéu branco e debruado a pelo cuidadosamente por cima do penteado elaborado
da sua senhora e lhe atava as fitas brancas e largas num grande laço de um dos lados do queixo.
- Pelo branco por cima de veludo branco - disse Judith. - E um abafo para as mãos! Começo a achar que talvez me devesse ter casado no inverno em vez do verão.
Mas estava a sorrir e não falara realmente a sério. E ela própria estava deslumbrante num vestido e peliça de um verde-acinzentado escuro que favorecia o seu cabelo
ruivo impressionante. A saia do seu vestido caía livremente da cintura alta, tão em voga, para dar lugar à ligeira protuberância do seu abdómen.
Morgan usava um vestido de veludo cor-de-rosa pálido e parecia mais bela do que qualquer mulher tinha o direito de parecer.
- Bom, eu vou certamente verter algumas lágrimas - disse Eve -, incluindo em público. As pessoas podem dizer o que quiserem a respeito das mulheres dos Bedwyn. -
Parecia delicadamente bela num vestido azul-claro.
Alice deu finalmente por terminada a sua assistência e deu um passo atrás com uma espécie de soluço. Freyja ergueu-se e deu meia-volta para olhar para si própria
no espelho colocado num dos cantos do seu quarto de vestir.
Céus, pensou, esta sou eu?
Vestida da cabeça aos pés em veludo e pele brancos, parecia quase bela. De início, rejeitara a sugestão de branco como a cor para o seu vestido de casamento. Lady
Freyja Bedwyn não era uma pessoa que usava branco. Teria preferido uma outra cor mais viva.
- Estás a ver? - disse a tia Rochester na sua habitual voz estridente e pragmática, a tia temível deles em cujas veias e artérias corria apenas sangue puro Bedwyn.
- Não tinha razão em insistir no branco, Freyja?
Ela não insistira propriamente. Os Bedwyn não insistiam em relação a nada com outros Bedwyn, que tinham todos vontades de ferro. Mas tinha enfatizado a sua opinião
de forma bastante enérgica e ela era amplamente conhecida pelo seu gosto impecável. Freyja queria desesperadamente parecer o mais encantadora possível no dia do
seu casamento.
- Tive razão ao escolher essa cor, tia - disse ela.
- Oh, vejam só, Free - disse Alleyne da porta. - Pareces um retrato. Mas ainda bem que estamos quase no Natal e quase no fim do ano. Três casamentos na família Bedwyn
num ano foi um choque valente, especialmente para aqueles que ficaram de fora. Proponho que a próxima seja a Morgan.
- Mas vamos deixar-te ter o teu dia primeiro, Freyja - disse Aidan atrás do ombro dele. - O vestido é encantador. O brilho nos teus olhos é ainda mais encantador.
A seguir, os dois tiveram de entrar efetivamente no quarto para dar lugar a Rannulf, que trazia a avó deles pelo braço. No verão, quando Judith e Rannulf se tinham
casado, tudo indicava que estava próxima da morte, embora o seu maior desejo fosse ver o seu primeiro bisneto antes de morrer. O casamento de ambos, a gravidez de
Judith e o facto de ambos viverem com ela em Grandmaison tinha-lhe dado uma extensão de vida. Ela insistira em fazer a longa viagem até Lindsey Hall desde o Leicestershire
para o casamento de Freyja.
- Alleyne - disse Ralf -, tem a bondade de me apresentar àquela beleza muito feminina de branco. Ah! - Ele recuou de forma teatral. - Esquece. É a Freyja?
- Estás linda, elegante e pareces feliz, Freyja, minha querida - disse a avó deles. - Mas não creio que o teu quarto de vestir foi construído para receber tantas
pessoas. E não creio que o pastor vá apreciar o facto de chegarmos tarde à igreja. Vamos ter de te deixar com a Morgan e a tua criada.
Morgan era a dama de honor de Freyja.
Foi nesse momento, quando, depois de muito barulho e alvoroço, todos se retiraram, que Freyja se começou a sentir novamente nervosa. Sentira-se nervosa depois de
partir de Penhallow uma semana depois do baile, e todos os dias das semanas que se tinham seguido, embora Joshua lhe tivesse escrito diariamente. Ainda não conseguia
acreditar realmente na sua história com final feliz, ou pelo menos na sua oportunidade de um futuro feliz. Abrira todas as cartas dele com receio. O facto de o inverno
se ter instalado não ajudou.
Ela odiou isso, a sensação de vulnerabilidade, o amor doloroso que ainda não a deixava confiar completamente num futuro.
E se ele saísse outra vez de barco, caísse e se afogasse? E se escalasse aqueles penhascos de novo (era um homem mesmo estúpido se fizesse isso), escorregasse e
caísse? E se...?
Ele ficara em Penhallow para os casamentos de Prue e de Constance. Despedira-se da tia, que partira a caminho do futuro que escolhera: a gestão da grande casa do
seu irmão recém-enviuvado no Northamptonshire. Chastity escolhera vir até Lindsey Hall para o casamento com Constance e Mr. Saunders antes de se juntar à mãe. Mas
ia estar em Londres durante a primavera, ia ser apresentada à rainha e fazer a sua apresentação à sociedade durante a temporada social e Freyja iria apadrinhá-la.
Anne Jewell tinha partido para Bath há um mês, com o filho, para ocupar o seu cargo de professora de geografia na escola de Miss Martin.
As semanas em que Joshua ficou em Penhallow tinham-lhe parecido intermináveis. Mas ele tinha vindo, finalmente.
E hoje era o dia do casamento deles.
Ela continuava a sentir-se nervosa. E continuava a odiar isso.
Freyja ergueu o queixo. - Os dias dos casamentos são tão aborrecidos - disse ela a Morgan - com toda a gente a choramingar e a ser sentimental. Gostava que tivéssemos
ido simplesmente para Londres, comprado uma licença especial e casado sem ninguém saber, como fizeram o Aidan e a Eve.
- Não, não gostavas - disse Morgan a sorrir. - Vem, Freyja. O Wulf já deve estar à nossa espera.
E estava. Estava parado no grande átrio, rodeado de toda a pompa e esplendor dos estandartes e armamento medievais, com um ar absolutamente satânico. Observou-as
da cabeça aos pés com os seus frios olhos prateados, primeiro Morgan e depois Freyja. A seguir, apanhou Freyja completamente de surpresa ao estender-lhe os braços.
Freyja pousou neles as mãos com luvas brancas e olhou para o irmão com sobrancelhas altivamente erguidas enquanto as mãos dele se fechavam com firmeza à volta das
suas.
- Estás muito bela, Freyja - disse ele.
O Wulf a fazer elogios?
- Prometes-me que serás feliz? - disse ele.
Foi nesse momento que as lágrimas assomaram aos olhos dela. Sentiu uma vontade imensa de lhe dar um murro no nariz. Mas ele não esperou pela sua resposta. Inclinou
a cabeça por cima das suas mãos e beijou-as uma de cada vez.
Ora.
Ora.
- Do que estamos à espera? - perguntou ela altivamente. - Preferia não chegar atrasada.
Já estavam todos dentro da carruagem, a melhor carruagem de viagem ducal, quando ela respondeu à pergunta dele.
- Prometo, Wulf - disse ela, fitando-o no lugar em frente da carruagem.
Às vezes, ela tentava categorizar os seus irmãos numa ordem, do seu favorito ao menos favorito. O Aidan estava habitualmente no topo da lista, talvez porque tinha
estado longe na guerra durante tantos anos e tinha tido menos oportunidades de a provocar. Em todo o caso, aquilo era um disparate. Ela amava-os a todos de formas
diferentes, mas de modo bastante igual. Morreria por qualquer um deles, tal como por Morgan. Mas naquela manhã, naquele preciso momento, Wulf era o seu irmão preferido.
Faria tudo que estivesse a seu alcance para também o ver feliz.
Depois disso, foi tudo uma confusão de acontecimentos e sensações. A carruagem deteve-se no adro junto à igreja, com hordas de aldeãos sorridentes, ou assim lhe
pareceu, ávidos por apanhar o primeiro vislumbre dela, ela estava a avançar pelo caminho debaixo do velho teixo despido, com o vento a soprar as últimas folhas secas
e enroladas ao longo do caminho à sua frente, Morgan estava a compor a cauda do seu vestido, Wulf estava com um ar austero e desprovido de emoção, firme como o rochedo
de Gibraltar, o órgão da igreja estava a tocar e ela estava a caminhar no meio da igreja de braço dado com Wulf, pessoas sentadas nos bancos de ambos os lados e...
Ah. A confusão dissipou-se, bem como todas as suas emoções dispersas e nervosas.
Joshua aguardava-a no final do corredor, extraordinariamente bonito, vestido de branco e preto. Mas não foi o seu exterior perfeito que ela viu. Ela viu-o a ele.
O seu amor. O seu querido amor.
Ela nem sequer fez uma pausa para se censurar por ter pensamentos tão imbecis e sentimentais.
Sentiu-se a sorrir. Sentiu a felicidade a crescer numa onda dentro de si e a ameaçar extravasar-se na forma de gargalhadas.
Ele devolveu-lhe o sorriso e ela viu a brilho familiar do riso nos olhos dele. Mas, naquela manhã, não foi a habitual travessura estouvada que ela viu espelhada
naqueles olhos. Era alegria. Simplesmente alegria.
Freyja pestanejou furiosamente. Podia permitir-se alguma sentimentalidade pateta. No fim de contas, aquele era o dia do seu casamento. Mas lágrimas? Não, tinha de
pôr um limite à mais pequena ameaça de lágrimas. Ele nunca a ia deixar esquecer isso.
- Caríssimos - começou o pastor.
Era uma manhã fria e fresca de dezembro. Soprava um vento gélido. Todavia, era uma carruagem aberta que aguardava os noivos ao fundo do adro da igreja e fora sumptuosamente
decorada, por pessoas desconhecidas, embora várias delas fossem sem dúvida da família Bedwyn, com fitas e laços de todas as cores do arco-íris, bem como botas velhas
a arrastar-se atrás.
Os sinos da igreja estavam a repicar efusivamente.
Todas as casas da aldeia deviam ter ficado vazias, pois os seus habitantes tinham-se reunido na rua nos meus melhores trajes domingueiros e com uma disposição festiva
porque todos iam ser presenteados com um almoço de casamento preparado especialmente para eles na estalagem da aldeia dali a uma hora, uma oferta do duque de Bewcastle.
Foi essa a cena que recebeu Freyja e Joshua quando saíram da igreja. Alguém soltou um viva e todos se juntaram, a princípio um pouco timidamente, mas com um entusiasmo
crescente à medida que os convidados que tinham assistido ao serviço religioso começaram a sair da igreja alguns passos depois da noiva, do noivo, do padrinho, do
reverendo Calvin Moore, e da dama de honor.
- Vamos esperar para ser sufocados por convidados com sorrisos de orelha a orelha? - perguntou Joshua. - Ou desatamos a correr?
- Desatamos a correr - disse ela e ele pegou-lhe na mão e correu pelo caminho com ela, passando por baixo da velha árvore e ao lado dos aldeãos sorridentes que aplaudiam,
até à carruagem.
Foi preciso algum tempo para ela entrar. O seu vestido de veludo incluía uma cauda. Ela estava a rir-se, ofegante e ruborizada quando ele finalmente também subiu
para dentro da carruagem e ocupou o seu lugar ao lado dela.
Todos estavam fora da igreja nessa altura, toda a sua família, o conde e a condessa de Redfield, o visconde e a viscondessa Ravensberg, ambos a sorrir carinhosamente
para Freyja, a avó, a tia e o tio dele, Lord e Lady Potford, bem como os seus filhos, Constance e Jim Saunders, Chastity, Lord e Lady Holt-Barron com a sua filha
e noivo, e alguns dos amigos mais próximos dele.
- Pode seguir - disse Joshua ao condutor. Haveria muito tempo para cumprimentar toda a gente em Lindsey Hall antes do almoço de casamento. Naquele momento, ele queria
fitar com admiração a sua recém-esposa.
Será que era realmente um homem casado? Achara difícil acreditar na realidade de tudo aquilo depois de ela partir de Penhallow com a família. Todos os dias, estava
meio à espera de que uma das cartas diárias dela fosse aquela que anunciasse o rompimento do noivado de ambos.
Estavam casados!
Procurou a mão dela dentro do seu grande abafo de pelo branco e entrelaçou os dedos nos dela enquanto a carruagem balouçava e se afastava da igreja.
- Já te disse o quão bela és? - perguntou ele.
- Que disparate! - disse ela. - Nunca ouvi tamanho disparate, Josh. É o vestido, o chapéu e todo este pelo. E a cor. A tia Rochester aconselhou-me a usar branco
e tinha toda a razão. São as roupas, mais nada.
Ele riu-se. - Vou ter de tas despir logo à noite, então - disse ele. - Todas elas. Até à última peça. Só para ver se continuas bela sem elas. Aposto que sim.
- Se alguma vez me mentires - disse ela, olhando severamente para ele -, faço-te engolir os dentes com o meu punho, Josh. Juro que faço.
- Não podes fazer isso - disse ele, sorrindo-lhe. - Agora és a minha mulher, a minha marquesa. Tens de fazer aquilo que te mandam. Tem de ser "Sim, meu senhor" e
"Não, meu senhor" e "Como posso servi-lo, meu senhor?". Acabaram os combates a soco, meu encanto.
Por um momento, ele pensou que ia ter de se desviar de golpes ali mesmo em plena vista dos convidados e de todos os aldeãos atrás deles. O rosto dela ficou tenso,
as sobrancelhas arquearam-se e os olhos verdes fulminaram-no. Mas depois ela inclinou para trás a cabeça e riu-se.
- Ias cansar-te de mim passado um mês - disse-lhe ela.
- Na minha opinião, numa semana - disse ele.
Se ela alguma vez olhasse para um espelho quando se estava a rir assim, pensou ele, veria por si própria o quão incrivelmente encantadora era, apesar das sobrancelhas
escuras e do nariz Bedwyn. Mas não a ia provocar novamente ao dizer-lhe isso. Não naquele momento.
- Não há mais queixas sobre o inverno? - perguntou-lhe ele.
Ela abanou a cabeça. - É a minha estação preferida.
- Amo-te, querida - disse-lhe ele. - Minha mulher.
A expressão alegre dela suavizou-se num sorriso e ela pareceu ainda mais bela.
- Sou a tua mulher, não sou? - disse ela. - E tu és o meu marido. Amo-te a sério, Josh. A sério.
Ele piscou-lhe lentamente o olho, baixou a cabeça e beijou-a.
Os dois ignoraram as exclamações entusiásticas que se ergueram atrás de si. Em todo o caso, o som dos sinos da igreja abafava quase tudo o resto.
Mary Balogh
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