Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
B E D W Y N
LIGEIRAMENTE PERVERSO
Momentos antes do acidente da diligência , Judith Law estava imersa em uma fantasia que fez desaparecer de um modo muito eficaz a desagradável natureza da realidade que a rodeava.
Viajava em uma diligência pela primeira vez em seus vinte e dois anos de vida. Depois dos primeiros dois ou três quilômetros já se desvanecia qualquer ilusão que jamais tivesse albergado a respeito do romântico e aventureiro que podia chegar a ser esse meio de transporte. Estava apertada entre uma mulher tão volumosa que precisava ao menos um assento e meio a mais e um homem magro e inquieto, todo ossos e cotovelos, que não parava de remexer-se para encontrar uma postura mais cômoda nem de golpeá-la no processo, em ocasiões nos lugares mais embaraçosos. Em frente tinha um homem corpulento que roncava sem cessar, o que supunha um acréscimo considerável a já ruidosa viagem. A mulher que se sentava a seu lado não deixava de contar a triste história de sua vida com voz queixosa a qualquer um que fosse bastante estúpido ou tivesse a desgraça de cruzar o olhar com ela. Do silencioso homem que se sentava do outro lado da mulher chegavam o cheiro da falta de asseio mesclado com um cheiro estragado e cebola. A carruagem agitava, oscilava e se sacudia em cada pedra e cada buraco que encontrava no caminho, ou isso parecia a Judith.
Não obstante, apesar de todos os desconfortos da viagem, não estava impaciente por chegar a seu destino. Acabava de deixar para trás toda uma vida em Beaconsfield, para não mencionar sua família, e não esperava retornar em muito tempo... se é que retornaria. Dirigia-se a casa de sua tia Effingham. A vida que sempre havia conhecido chegou ao fim. Embora não ficasse explícito na carta que sua tia escreveu a seu pai, Judith era perfeitamente consciente de que não ia ser uma hóspede distinta e aprovada em Harewood Grange, e sim uma parenta pobre da qual se esperava que ganhasse sua manutenção da forma em que seus tios, seus primos e sua avó considerassem apropriada. Em poucas palavras: só a esperava monotonia e trabalho árduo... Nada de pretendente, matrimônio, casa ou família própria. Estava a ponto de transformar-se em uma dessas mulheres retraídas e abatidas tão abundantes na sociedade, que dependiam de seus parentes como criadas sem salário.
O convite de tia Effingham fora extraordinariamente amável, segundo palavras de seu pai... embora sua tia, irmã de seu pai, que fez um matrimônio extremamente vantajoso com o endinheirado e viúvo sir George Effingham quando já deixou bem longe a flor de sua juventude, nunca tinha se destacado por sua amabilidade.
E tudo por culpa de Branwell, esse esbanjador que merecia que o fuzilassem e depois o enforcassem, afogassem-no e lhe esquartejassem por suas desconsideradas extravagâncias. Judith não tinha acalentado um só pensamento amável ao seu irmão fazia semanas. Tudo aquilo tinha acontecido porque era a segunda filha, a que não tinha nenhum encargo que fizesse indispensável sua presença em casa. Não era a mais velha; Cassandra era um ano mais velha que ela. Nem muito menos era a beleza da família; sua irmã Pamela ocupava esse lugar. E não era a caçula; Hilary, de dezessete anos, tinha essa duvidosa honra. Judith era a que envergonhava a família por sua falta de delicadeza, a feia, a alegre e a sonhadora.
Foi Judith a quem todos tinham olhado depois que seu pai se sentou no salão e leu alto, a carta de tia Effingham. Seu pai passava por graves apertos econômicos, devia ter escrito a sua irmã para pedir o tipo de ajuda que ela acabava de lhe brindar. Todas sabiam o que isso significava para a escolhida que tivesse que ir a Harewood. Judith tinha se oferecido como voluntária. Todos tinham chorado ao escutá-la e suas irmãs também se ofereceram como voluntárias... mas ela fora a primeira a falar.
Judith tinha passado sua última noite na reitoria inventando deliciosos métodos de tortura para Branwell.
O ceu que se espiava pelas janelas da carruagem era de cor cinza e estava sulcado por umas nuvens baixas e carregadas de chuva; a paisagem tinha um aspecto lúgubre. O hospedeiro dono da pousada na qual pararam fazia uma hora para trocar os cavalos os tinha advertido que mais ao norte tinham caído chuvas torrenciais e que o mais provável era que topassem com elas, assim como com os caminhos cheios de barro; mas o cocheiro se pôs a rir diante da sugestão de permanecer na estalagem até que fosse seguro prosseguir viagem. Entretanto não havia dúvida de que o caminho estava mais lamacento a cada minuto que passava, mesmo que a chuva causadora do lodaçal tivesse cessado no momento.
Judith tinha conseguido afastar tudo de sua mente: o cansativo ressentimento que sentia, a terrível nostalgia de seu lar, o espantoso clima, as incômodas condições da viagem e a desagradável perspectiva que tinha por diante... Em troca sonhava
Acordada, inventando uma imaginária aventura com um herói imaginário em que ela era a insólita heroína. Uma distração em sua mente e seu ânimo deu boas-vindas até um momento antes do acidente.
Estava sonhando com salteadores de estradas. Ou, para ser mais exata, com um salteador de estrada em particular. Por suposição, ele não se parecia com nenhum assaltante real que apreciasse, um desses ladrões depravados, sujos, desonestos e toscos que cortavam o pescoço dos desafortunados viajantes. De jeito nenhum. O salteador era moreno, charmoso, elegante e risonho; com dentes brancos e perfeitos e uns olhos de um brilho alegre atrás dos buracos da estreita máscara negra. Galopou através das verdes pradarias iluminadas pelo sol até o caminho, refreando sem esforço o seu poderoso e magnífico garanhão branco com uma mão enquanto com a outra apontava uma pistola -descarregada, faltaria mais- para o coração do cocheiro. Ria e brincava alegremente com os passageiros enquanto os despojava de seus objetos de valor, embora depois os devolvesse a aquelas pessoas que não podiam se permitir a perda. Não, não devolvia todos os objetos a todos os passageiros, já que não se tratava de um salteador de verdade, mas sim de um cavalheiro que pretendia vingar-se de um vilão ao qual esperava encontrar viajando por esse mesmo caminho.
Era um nobre herói disfarçado de bandido, com uns nervos de aço, um espírito livre, um coração de ouro e uma aparência que provocava palpitações no coração das passageiras; palpitações que nada tinham a ver com o medo.
E em um dado momento desviava o olhar para Judith... todo o universo se detinha e as estrelas começavam a cantar em suas órbitas. Até que, é claro, ele se punha a rir de boa vontade e anunciava que a despojaria do pingente que pendia sobre seu busto, apesar de ser evidente a falta de valor. Não era mais que... algo que sua mãe a deu em seu leito de morte, algo que Judith jurara que jamais tiraria enquanto vivesse. De modo que ela se colocava com valentia diante do salteador, jogava para trás a cabeça e cravava o olhar nesses olhos risonhos sem intimidar-se. Não lhe daria nada, dizia-lhe com uma voz alta e clara que não tremia nem um ápice, ainda que isso lhe causasse a morte.
Ele se punha a rir de novo enquanto seu cavalo se erguia sobre as patas traseiras e se encrespava um pouco antes que o controlasse com facilidade. Nesse caso, se não podia levar o colar sem ela, declarou, o levaria com ela. Aproximou-se com lentidão para Judith, tão grande, ameaçador e esplêndido, e quando estava bastante perto, inclinou-se na sela, agarrou-a pela cintura com suas poderosas mãos -Judith passou por cima do problema da pistola, que momentos antes empunhava em uma mão- e a içou sem esforço algum até a sela de montar.
O estômago deu voltas quando perdeu contato com o chão e de repente, algo a devolveu à realidade. A carruagem perdeu tração no caminho enlameado e deu um brusco giro antes de ziguezaguear e sacudir-se sem controle. Houve tempo suficiente -muito mais que suficiente- para sentir um terror espantoso antes que derrapasse para um lado, colidisse com um montículo de erva, girasse bruscamente para o caminho, cambaleasse com maior intensidade e de uma forma mais alarmante ainda e, afinal, caísse sobre uma vala de pouca profundidade onde por fim ficou imóvel, apoiado pela metade sobre o teto e uma lateral.
Quando Judith recuperou o sentido todos seus companheiros de viagem pareciam estar gritando ou gemendo. Mas ela não formava parte desse grupo; estava mordendo os lábios para evitá-lo. Os seis passageiros do interior, conforme pôde descobrir, estavam amontoados sobre uma lateral da carruagem. Seus xingamentos, gritos e gemidos testemunhavam que a maioria deles, se não todos, estavam vivos. De fora chegavam gritos e os relinchos dos cavalos assustados. Duas vozes, que se escutavam por cima do resto, expressavam-se mediante a mais vulgar e surpreendente das linguagens.
Estava viva, pensou Judith com certa surpresa. Também estava-comprovou a conjetura com cautela- ilesa, embora se sentisse bastante maltratada. De alguma forma, acabou em cima de um monte de corpos. Tentou mover-se, mas nesse preciso instante a porta que havia sobre ela se abriu e alguém, o próprio cocheiro a olhou de cima.
- Me dê sua mão, senhorita - ordenou - A tiraremos rapidamente. Pelo amor de Deus, deixe de dar esses gritos, mulher! -disse à senhora faladora com uma lamento- falta de tato, tendo em conta que ele fora o culpado de tombar a carruagem.
Demorou algo mais de um Pai Nosso, mas ao final todos estavam de pé sobre a erva que cobria a beira da vala ou sentados sobre as bolsas caídas, observando com desespero a carruagem, que obviamente não ia reatar a viagem em um futuro próximo. De fato, era evidente inclusive para os olhos inexperientes de Judith que o veículo sofreu danos consideráveis. Não havia sinal de nenhum assentamento humano a leste no horizonte. As nuvens estavam baixas e ameaçavam descarregar chuva a qualquer momento. O ar era úmido. Era difícil acreditar que fosse verão.
Por algum estranho milagre, inclusive os passageiros que viajavam no exterior da carruagem se livraram de feridas graves, embora dois deles estivessem sujos de barro e essa circunstância não parecia fazê-los muito felizes. Para falar a verdade, os ânimos estavam muito exaltados. As vozes se elevavam e punhos se brandiam. Algumas dessas vozes eram furiosas e exigiam saber por que um cocheiro perito os levara direto para o perigo quando na última parada o aconselharam que esperasse um momento. Outros gritavam com a intenção de que suas sugestões a respeito do que teria que fazer se escutassem por cima da gritaria. E uns terceiros se queixavam dos cortes, machucados e outras feridas pelo aspecto. À mulher queixosa sangrava o pulso.
Judith não emitiu queixa alguma. Tinha escolhido continuar a viagem mesmo quando escutara a advertência e poderia ter esperado uma carruagem posterior. Tampouco tinha sugestão alguma que fazer. E não sofria nenhuma ferida. Somente se sentia desventurada, por isso olhou a seu redor em busca de algo que separasse de sua mente o fato de que estavam parados no meio do nada com uma ameaça de chuva iminente. Começou a ocupar-se daqueles que precisavam, embora a maioria das feridas fosse mais imaginária que reais. Era algo que podia realizar com segurança e certa destreza, posto que frequentemente tivesse acompanhado sua mãe quando visitava os doentes. Enfaixou cortes e contusões utilizando qualquer material que tivesse à mão. Escutou uma e outra vez todas e cada uma das narrações individuais sobre o acidente e murmurou palavras reconfortantes enquanto buscava um assento aos que se sentiam enjoados e abanava os desfalecidos. Em poucos minutos tirou o chapéu, que não deixava de incomodá-la, e o jogara no interior da carruagem caída. Estava-lhe soltando o cabelo, mas não se deteve para tentar recompor seu penteado. A maior parte das pessoas, descobriu, tinha um horrível comportamento durante as crises, embora aquela não fosse nem de perto tão desastrosa como poderia ter sido.
Não obstante, estava tão desanimada como os outros. Isto, pensou, era a gota que enchia o copo. Era impossível que sua vida pudesse ser mais deprimente. Havia tocado fundo. Em certo sentido inclusive era um pensamento reconfortante. Era pouco, provável que as coisas pudessem ficar pior. Somente melhor... ou fazia um eterno prosseguimento do mesmo.
- Como é que está tão alegre, querida? - perguntou a mulher que ocupou espaço e meio.
Judith sorriu.
- Estou viva - respondeu, - e você também. Há algo pelo qual não devesse estar alegre?
- Me ocorrem um par de coisas, na verdade - comentou a mulher.
Mas nesse momento as distraiu o grito de alguns passageiros viajavam nos assentos exteriores e que assinalava longe, em direção ao caminho pelo qual chegaram minutos antes. Aproximava-se um cavaleiro, só um homem a cavalo. Alguns dos passageiros começaram a chamá-lo, apesar de que o tipo estava ainda muito longe para escutá-los. Estavam tão entusiasmados como se um salvador sobre-humano se preparasse para resgatá-los. Judith não conseguia imaginar o que teriam pensado que podia fazer um só homem para melhorar a penosa situação em que se encontravam. Sem dúvida, eles tampouco saberiam dizer no caso de que perguntasse.
Dirigiu sua atenção de volta a um dos desafortunados cavalheiros encharcados, que entre caretas de dor estava limpando com um lenço cheio de barro o sangue de um arranhão no rosto. Possivelmente, pensou ela bem a tempo de reprimir uma sonora gargalhada, o desconhecido que se aproximava fosse o salteador moreno, alto, cavalheiresco e risonho de suas fantasias. Ou possivelmente fosse um bandido de verdade que vinha roubá-los, indefesos como estavam, todos seus pertences de valor. Possivelmente as coisas sim pudessem piorar depois de tudo.
Embora se tratasse de uma viagem longa, lorde Rannulf Bedwyn ia no lombo de seu cavalo; evitava viajar de carruagem sempre que era possível. O veículo que transportava tanto sua bagagem como seu valete, rodava por algum lugar do caminho atrás dele. Seu criado, uma alma tímida e precavida, com bom senso teria decidido deter-se na estalagem que deixou atrás fazia coisa de uma hora, depois de ser advertido da ameaça de chuva por um hospedeiro decidido a fazer negócio.
Devia ter caído um bom toró nessa parte do condado não fazia muito tempo. Inclusive nesse momento parecia que as nuvens estivessem contendo o fôlego antes de liberar outra descarga de água. O caminho estava cada vez mais molhado e enlameado, e nesse instante parecia um resplandecente lodaçal de lama revolta. Poderia ter retornado, supôs. Mas ia contra sua natureza abaixar as orelhas e fugir de um desafio, fosse humano ou de qualquer outra classe. Entretanto, teria que deter-se na seguinte estalagem que encontrasse. Talvez não lhe importassem os perigos que pudesse correr sua pessoa, mas devia mostrar consideração com seu cavalo.
Não tinha nenhuma pressa por chegar a Grandmaison Park. Sua avó o convocou, como fazia em algumas ocasiões, e ele a estava agradando, tal como estava acostumado a fazer. Amava-a muito, independente do fato de que alguns anos atrás o tivesse nomeado herdeiro de todas as propriedades e a fortuna que não estavam ligadas ao título que ela possuía, a despeito de ter dois irmãos mais velhos e um mais novo... sem contar suas duas irmãs, é óbvio. O motivo de sua falta de pressa era que, uma vez mais, sua avó anunciou que descobriu uma noiva adequada para ele. Tirar da anciã a impressão de que podia organizar sua vida sempre requeria uma combinação de tato, humor e firmeza. Não tinha intenção alguma de casar logo. Só tinha vinte e oito anos. E quando se casasse - se é que o faria-, Por Deus que seria ele quem escolheria sua noiva, ainda que não fosse o primeiro da família a cair nas redes do matrimônio. Aidan, um de seus irmãos mais velho, sucumbira e se casou em segredo poucas semanas atrás a fim de cumprir uma dívida de honra com o irmão da dama, um oficial com o qual serviu na Península. Por algum estranho milagre, o apressado matrimônio de conveniência parecia haver-se convertido em uma união por amor. Rannulf conhecera Eve, agora lady Aidan, fazia apenas dois dias. De fato, empreendeu a viagem de sua casa nessa mesma manhã. Aidan vendera seu cargo no exército e estava se adaptando à vida de um cavalheiro rural com sua esposa e seus dois filhos adotivos, o estúpido apaixonado. Mas a Rannulf caíra bem sua cunhada.
Para falar a verdade, era um alívio saber que se tratava de um matrimônio por amor. Os Bedwyn tinham a reputação de ser desmedidos, arrogantes e inclusive frios. Entretanto, também havia uma tradição familiar que os obrigava a permanecerem escrupulosamente fiéis as suas esposas uma vez casados.
Rannulf não podia imaginar-se amando uma só mulher durante o resto de sua vida. A idéia de permanecer fiel durante toda a vida era deprimente ao extremo. Só esperava que sua avó não tivesse comentado nada sobre o matrimônio em amadurecimento à dama em questão. O fez em uma ocasião e havia lhe custado muito convencer à mulher -sem que parecesse que o fazia, é óbvio- de que na realidade ela não queria casar-se com ele.
Perdeu o fio de seus pensamentos de repente quando apareceu diante dele uma mancha negra mais escura que as cercas e o barro imperantes. A princípio acreditou que se tratava de um edifício, mas à medida que se aproximava se deu conta de que era um grupo de pessoas e uma enorme diligência. Um veículo tombado, compreendeu imediatamente, com um eixo quebrado. Os cavalos se encontravam no caminho, igual a algumas pessoas. A maioria, não obstante, amontoava-se sobre a grama em frente à carruagem caída, a fim de manter os pés afastados do barro. Muitos gritavam e faziam gestos com as mãos, como se esperassem que desmontasse, apoiasse o ombro contra o veículo desconjuntado, voltasse a colocá-lo no caminho e reparasse o eixo por arte de magia antes de colocá-los todos no interior uma vez mais e pô-los a caminho para o proverbial entardecer.
Teria sido uma grosseria, certamente, passar ao largo pelo mero feito de não poder lhes oferecer nenhum tipo de ajuda prática. Puxou as rédeas ao chegar junto ao grupo e esboçou um sorriso quando todos tentaram falar ao mesmo tempo. Levantou uma mão para detê-los e perguntou se havia algum ferido com gravidade. Ao que parecia não havia.
- Nesse caso, o melhor que posso fazer por vocês - disse quando a gritaria sossegou de novo - é cavalgar tão rápido quanto possa e lhes enviar ajuda da aldeia ou povoado que se encontre mais perto.
- Há um povoado com mercado uns cinco quilômetros mais adiante, senhor - disse o cocheiro enquanto assinalava o caminho com um dedo.
Um cocheiro particularmente inepto, julgou Rannulf, já que perdeu por completo o controle de sua carruagem em um caminho lamacento e nem sequer teve a ocorrência de mandar a um lacaio com um dos cavalos em busca de assistência. Claro que o homem mostrava sinais inequívocos de haver-se fortalecido contra a umidade e o frio com o conteúdo da garrafa que se via através de um buraco no bolso de seu casaco.
Um dos passageiros, uma mulher, não se unira as boas-vindas que lhe devotaram os outros. Inclinava-se sobre um cavalheiro coberto de barro que estava sentado em uma caixa de madeira, e pressionava algum tipo de atadura improvisada sobre seu rosto. O homem tirou a atadura enquanto Rannulf os contemplava e a mulher se endireitou e se virou para olhá-lo.
Era jovem e alta. Ia vestida com uma capa verde um pouco molhada e ligeiramente enlameada na prega. A capa se abriu à frente para deixar descoberto um ligeiro vestido de musselina e um busto que imediatamente elevou em dois graus a temperatura corporal de Rannulf. Levava a cabeça descoberta. O cabelo desordenado lhe caía parcialmente sobre os ombros. Era de um glorioso e brilhante tom dourado avermelhado que ele jamais contemplou antes em um ser humano. O rosto que havia mais abaixo era oval, de faces rosadas e olhos brilhantes -os olhos eram verdes, acreditava- e para sua surpresa, adoráveis. Devolveu-lhe o olhar com aparente desdém. O que esperava essa moça que fizesse? Saltar ao barro e fazer-se de herói?
Dirigiu-lhe um sorriso lânguido e começou a falar sem afastar muito o olhar dela.
- Suponho – disse - que poderia levar uma pessoa comigo. Uma dama? Senhora, lhe parece bem?
As demais passageiras não demoraram a dizer o que pensavam, tanto de sua oferta como de sua escolha, mas Rannulf não fez conta. A beleza ruiva voltou a olhá-lo e ele chegou a pensar que declinaria a proposta a julgar pelo desprezo que refletia seu rosto. Não tinha dúvida de qual seria sua resposta quando um de seus companheiros de viagem, um indivíduo magro como um junco e com um nariz bicudo que bem poderia tratar-se de um clérigo, deu sua opinião sem que ninguém a pedisse.
- Rameira! - exclamou o homem.
- Ouça - disse outra das passageiras, uma mulher alta e gorda com as faces vermelhas como tomates e um nariz mais tinto ainda, - cuidado a quem chama rameira, meu senhor. Não acha que não me dei conta de como a olhou durante toda a viagem... porque sim me dei conta, velho lascivo... remexendo-se a todo o momento em seu assento para poder manuseá-la sem que o notasse. E isso porque levava um livro de orações na mão e to… Deveria ter vergonha! Vá com ele, querida. Eu o faria se me pedisse isso, embora não o fará porque sabe que partiria o lombo do cavalo dele.
A ruiva sorriu a Rannulf nesse instante, um sorriso que cresceu com lentidão juntamente com o rubor de seu rosto. - Será um prazer, senhor - disse ela com um tom de voz quente e rouco que percorreu as costas de Rannulf como uma luva de veludo.
Cavalgou até a beira do caminho, para ela.
Não se parecia em nada ao salteador de estradas de suas fantasias. Não era sutil, nem moreno, nem elegante nem usava máscara; e embora sorrisse, sua expressão era mais irônica que despreocupada.
Esse homem era maciço. Não gordo, e sim... maciço. O cabelo que se apreciava sob seu chapéu era loiro. Parecia ondulado e sem dúvida o usava mais comprido do que ditava a moda. Seu rosto era de tez morena, com sobrancelhas escuras e um nariz grande. Os olhos eram azuis. Não era charmoso absolutamente. Mas tinha algo. Algo irresistível. Algo inegavelmente atraente... embora essa palavra não fosse bastante forte.
Algo ligeiramente perverso.
Esses foram os primeiros pensamentos que atravessaram a mente de Judith quando o olhou. E estava claro que não era um salteador, e sim um simples viajante que se ofereceu a ir em busca de ajuda e a levar alguém consigo.
Ela.
Seu segundo pensamento foi de espanto, indignação e afronta. Como se atrevia? Por quem a tomou para esperar que ela se mostrasse de acordo em subir em um cavalo com um desconhecido e partir sozinha com ele? Era a filha do reverendo Jeremiah Law, cujas expectativas sobre o rígido decoro e a moralidade de seus fiéis só se viam superadas pelo que esperava de suas próprias filhas... sobretudo dela.
Seu terceiro pensamento foi que a pouca distância -o cocheiro havia dito cinco quilômetros- havia um povoado e a comodidade de uma estalagem, que talvez pudessem alcançar antes que caísse um toró. Se aceitasse a oferta do desconhecido, claro.
E então recordou uma vez mais sua fantasia; a absurda e encantadora fantasia a respeito de um audaz salteador que estivera a ponto de levá-la para uma estranha e fabulosa aventura, liberando-a assim de todas as obrigações para com sua família e seu passado, liberando-a de tia Effingham e da deprimente existência de trabalho duro que a esperava em Harewood. Um sonho que se fez em pedacinhos quando a carruagem tombou.
Esse momento lhe oferecia a oportunidade de experimentar uma aventura de verdade, por pequena que fosse. Durante cinco quilômetros e possivelmente um pouco mais de uma hora poderia cavalgar diante desse atraente desconhecido. Poderia fazer algo tão escandaloso e impróprio como abandonar a segurança e o decoro que oferecia a multidão para estar a sós com um cavalheiro. Se seu pai chegasse a saber, dar-lhe-ia uma Bíblia e a encerraria a pão e água em seu quarto durante uma semana; e tia Effingham bem poderia decidir que nem sequer um mês seria suficiente. Mas quem ia saber? Como poderia sair prejudicada?
Foi nesse instante quando o homem esquelético a tinha chamado de rameira.
Por estranho que pudesse parecer, não se sentiu indignada. A acusação lhe pareceu tão absurda que esteve a ponto de tornar a rir. Embora fosse como um desafio para ela. E a mulher gorda a estava animando. Poderia chegar a ser tão patética para afastar uma oportunidade das que só se apresentam uma vez na vida? Esboçou um sorriso.
- Será um prazer, senhor - disse e descobriu com certa surpresa que não utilizou sua própria voz, e sim a da mulher de suas fantasias, a que se atrevia a fazer coisas como aquela.
Ele aproximou o cavalo até ela sem deixar de olhá-la nos olhos e se inclinou na sela.
- Nesse caso me dê à mão e apóie o pé em minha bota - foram suas instruções.
Judith o fez e a partir desse momento foi muito tarde para mudar de idéia. Com uma facilidade e uma força que em lugar de assustá-la a deixou sem fôlego, o homem a levantou, a fez girar e, sem que se desse conta, abandonou o chão e acabou sentada de lado diante dele, envolvida entre seus braços que ofereciam uma enganosa sensação de segurança. Havia muito ruído a seu redor. Algumas pessoas se puseram a rir e a animavam, enquanto que outras protestavam por ficar para trás e suplicavam ao desconhecido que se apressasse em enviar a ajuda necessária antes que começasse a chover.
- Alguma dessas bolsas de viagem é sua, senhora? - perguntou o desconhecido.
- Essa aí - respondeu ela enquanto assinalava com o dedo - Ah, e a bolsa de mão que está ao lado. - Ainda que só contivesse a pequena quantidade de dinheiro da qual seu pai pudera desprender-se para que tomasse uma xícara de chá e possivelmente um pouco de pão e manteiga durante a longa viajem, horrorizava-lhe ter estado a ponto de esqueça-la.
- Você, jogue-me isso - disse o cavaleiro ao cocheiro - A bolsa de viagem da dama pode esperar, a recolherão com as demais mais tarde.
Assim que Judith agarrou a bolsa de mão, o homem aproximou o chicote à aba de seu chapéu e incitou seu cavalo para que se pusesse em marcha. Ela se pôs a rir. A patética e pequena grande aventura de sua vida começara e desejou que esses cinco quilômetros durassem eternamente.
Durante uns momentos a preocupou o fato de encontrar-se tão longe do chão no lombo de um cavalo - nunca fora muito boa amazona-, para não mencionar que o chão se transformou em um oceano de barro. Entretanto, não levou muito tempo a dar-se conta de quão íntima era essa postura. Sentia a calidez do corpo do desconhecido em todo o lado esquerdo. Suas pernas - que pareciam muito musculosas cobertas com as calças de montar ajustados e as flexíveis botas de cano longo - rodeavam-na por um e outro lado. Judith tinha os joelhos apertados contra uma dessas pernas e notava que a outra lhe roçava as nádegas. Percebia o aroma do cavalo, do couro e da colônia masculina. Os perigos da viagem empalideceram ao lado dessas outras sensações, totalmente desconhecidas.
Estremeceu.
- Está bastante fresco para um dia de verão - afirmou o cavaleiro, que a rodeou com um braço e a inclinou para o lado, de modo que seu ombro e seu braço estivessem apertados com firmeza contra o peito masculino; a Judith não restou nada mais que apoiar a cabeça sobre seu ombro.
Era mais que escandaloso... e sem dúvida emocionante.
Também a fez recordar de repente que não pusera o chapéu e não era só isso: com uma rápida olhada de esguelha descobriu que ao menos uma parte de seu cabelo estava solta e caía em desordem sobre seus ombros.
Que aparência teria? O que pensaria dela?
- Ralf Bed... Bedard ao seu serviço, senhora - disse.
Como poderia ela apresentar-se como Judith Law? Não estava se comportando absolutamente tal e como a ensinaram.
Talvez devesse fingir ser alguém muito diferente... uma pessoa inventada.
- Claire Campbell - disse ela, juntando os dois primeiros nomes que lhe vieram à cabeça - Como está você, senhor Bedard?
- No momento, extremamente bem - afirmou ele com voz rouca e ambos puseram-se a rir.
Estava flertando com ela, pensou. Que escandaloso! Seu pai teria desalentado semelhante impertinência com algumas palavras mordazes... e depois a teria castigado por fanfarronar diante dele. E desta vez teria tido razão. Mas não estava disposta a arruinar sua preciosa aventura pensando em seu pai.
- Aonde se dirige? - perguntou o senhor Bedard. - E por favor, não me diga que há um marido esperando em alguma parte onde você desça da carruagem. Ou um noivo.
- Nenhuma das duas coisas - respondeu ela, que se pôs a rir sem outro motivo que não fosse o alegre que se sentia. Ia desfrutar de sua pequena aventura até o último momento. Não pensava desperdiçar tempo, energia nem oportunidades em sentir-se escandalizada. - Estou solteira e sem compromisso... como desejo estar - mentirosa. Senhor, que mentirosa.
- Você acaba de me devolver à alma - assegurou ele - nesse caso, quem a espera ao final da viagem? Sua família?
Judith deu de ombros para si mesma. Não queria pensar no final da viagem. Entretanto, o bom das aventuras consistia em que não eram reais nem duravam muito. Durante o que restava desse estranho e breve interlúdio poderia dizer e fazer - e ser - o que desse vontade. Era como viver um sonho e estar acordada ao mesmo tempo.
- Não tenho família - disse - Ao menos nenhuma diante da qual deva responder. Sou atriz. Dirijo-me a York para representar uma nova obra. Um papel principal.
Pobre papai, pensou. Dar-lhe-ia uma apoplexia. Não obstante, esse sempre fora seu sonho mais persistente e desatinado.
- Uma atriz? - inquiriu ele junto a seu ouvido com voz grave e rouca - Devia imaginar assim que pus os olhos sobre você. Uma beleza tão vibrante brilhará sobre qualquer cenário. Por que não a vi alguma vez em Londres? Será porque raras vezes vou ao teatro? Está claro que terei que me emendar.
- Londres... - disse ela com despreocupado desdém - eu gosto de atuar, senhor Bedard, não que me devorem com os olhos. Eu gosto de escolher as obras nas que vou participar. Prefiro os teatros de província. Neles sou muito conhecida, acho.
Deu-se conta de que ainda falava com essa voz que usou junto à estrada. E por incrível que parecesse, ele acreditou em sua história. Era evidente por suas palavras e pela expressão que seus olhos refletiam: alegre, apreciativa e eloquente. Branwell, quando começou as aulas na universidade e começou a conhecer o mundo, havia dito uma vez a suas irmãs - na ausência de seu pai - que as atrizes de Londres quase sempre incrementavam seus honorários convertendo-se nas amantes de algum tipo rico e com título. Judith sabia que se movia em águas perigosas. Mas seria só durante cinco quilômetros; só durante uma hora.
- Eu adoraria vê-la sobre o palco - disse o senhor Bedard, que a estreitou com mais força e lhe ergueu o queixo com o dorso enluvado de seus dedos. Beijou-a. Na boca.
Não durou muito. Antes de tudo se encontrava a cavalo em um caminho perigoso com uma acompanhante que entorpecia seus movimentos e os do animal. Não podia permitir a distração que suporia um abraço mais longo.
Entretanto, durou o suficiente. O bastante para uma mulher a quem nunca beijaram. Ele tinha os lábios separados e Judith pôde perceber a umidade de sua boca. Uns segundos, ou possivelmente não mais de uma fração de segundo, antes que seu cérebro registrasse a atrocidade que estava cometendo, todo seu corpo reagiu. Sentiu um formigamento nos lábios que se estendeu até a boca, a garganta e o nariz. Sentiu que lhe endureciam os mamilos e que um doloroso desejo se pulverizava por seu abdômen, seu ventre e a parte interna das coxas.
- Oh - disse quando terminou.
Entretanto, antes de chegar a expressar a indignação que sentia por semelhante insolência, recordou que era Claire Campbell, a famosa atriz de províncias, e que se esperava que as atrizes, mesmo quando não eram as amantes de algum tipo rico e com título, soubessem um par de coisas a respeito da vida. Olhou seus olhos e lhe dedicou um sorriso sonhador.
Por que não? Pensou de forma temerária. Por que não viver sua fantasia enquanto durasse aquele breve feitiço e descobrir aonde a conduzia? Depois de tudo, esse primeiro beijo também seria possivelmente o último.
O senhor Bedard lhe devolveu o sorriso com um olhar lânguido e zombador.
- Eu não teria expressado melhor - disse.
Que demônios estava fazendo ao encetar-se - e muito - em um beijo quando a cada passo que dava Bucéfalo corria o risco de patinar, quebrar uma pata e fazer que seus cavaleiros sofressem uma aterrissagem acidentada e lamacenta? Rannulf se repreendeu mentalmente.
Ela era uma atriz que deixou muito clara sua preferência por interpretar obras dignas de consideração antes de permitir que a comessem com os olhos em um teatro da moda. Entretanto, deixava o cabelo solto com essa estudada desordem, um cabelo cuja cor era natural se sua vista não o enganava, e não tinha a menor dificuldade em apertar todas essas cálidas e voluptuosas curvas contra a parte frontal de seu corpo. O rubor que lhe cobria o rosto também era natural. Tinha uma maneira de semicerrar esses magníficos olhos - sim, definitivamente eram verdes - no gesto de convite mais evidente que ele jamais tinha visto. E sua voz não deixava de acariciá-lo como uma luva de veludo.
Seguia-lhe o jogo, não é? Bom, pois claro que estava seguindo. Por que outro motivo lhe deu um nome falso? Por que não ia fazê-lo, tendo em conta que tudo havia surgido do modo mais inesperado justo quando previa passar algumas semanas de castidade em companhia de sua avó? Era um homem de fortes apetites carnais e não estava disposto a desprezar um convite tão claro como o que ela oferecia.
Mas com tudo e com isso... beijá-la no lombo de um cavalo? Em um perigoso caminho cheio de barro? Rannulf riu para si mesmo. Desse material eram feitos os sonhos. Uns sonhos deliciosos.
- Aonde se dirige? - perguntou ela - Retorna para casa, junto de sua esposa? Ou em busca de uma noiva?
- Nenhuma das duas coisas – respondeu - estou solteiro e sem compromisso.
- Alegra-me ouvi-lo - replicou ela - Detestaria que tivesse que confessar esse beijo a alguém.
Sorriu-lhe.
- Estou a caminho da casa de uns amigos para passar umas semanas - explicou - Isso que vejo mais adiante são edifícios? Engana-me a vista?
A moça virou a cabeça para olhar.
- Não – respondeu - Acho que está certo.
A qualquer momento começaria a chover de novo. Seria maravilhoso afastar-se do caminho enlameado e refugiar-se sob um teto. Certamente era necessário informar o acidente da carruagem logo que fosse possível para que enviassem ajuda.
De qualquer forma, Rannulf sentiu certo pesar ao ver que estavam chegando tão depressa ao povoado. Embora talvez não estivesse tudo perdido. Nenhum dos dois poderia reatar essa viagem por muito perto que ele se encontrasse de seu destino.
- Assim, dentro de uns poucos minutos - disse, baixando a cabeça até que sua boca roçou a orelha da moça - estaremos a salvo em uma estalagem e faremos que enviem ajuda a esses pobres passageiros abandonados. Você relaxará em um quarto quente e seco e eu em outro. Parece-lhe bem?
- Sim, é claro - disse ela com um tom alto e claro, muito diferente ao que utilizou desde que se conheceram.
Caramba. Então tinha interpretado mal os sinais... Um ligeiro passeio no lombo de um cavalo era uma coisa, mas seus planos não foram mais à frente? Levantou a cabeça e se concentrou em guiar seu cavalo pelos últimos metros que o separavam do que parecia uma casa de postas nos subúrbios de um pequeno povoado.
- Não - retificou ela passados uns momentos, de novo com uma voz baixa e gutural - Não, não me parece bem absolutamente.
Caramba.
O interior da estalagem era quente, estava seco e pela primeira vez em várias horas Judith se sentia fisicamente a salvo. Entretanto, o lugar estava lotado. Tinham encontrado uma enorme confusão no pátio e as pessoas se abarrotavam no interior, alguns olhando o ceu através das janelas enquanto que outros já decidiram passar a noite ali.
Ela tinha um problema. Não dispunha de bastante dinheiro para pagar um quarto. Mas quando tinha mencionado ao senhor Bedard, ele se tinha limitado a esboçar esse sorriso zombador e não havia dito uma palavra. Nesse momento, o homem estava no balcão da recepção falando com o hospedeiro, enquanto ela esperava a certa distância. Seria possível que tivesse intenção de lhe pagar o alojamento? Deveria permitir? Como poderia lhe devolver o dinheiro?
Desejou com todas as suas forças que sua breve e gloriosa aventura não tivesse terminado tão depressa. Queria mais. Durante os dias e as semanas que estavam por vir reviveria a passada hora uma e outra vez, não havia nenhuma dúvida a respeito. Talvez revivesse esse beijo durante toda sua vida. Solteirona tola e desesperada, repreendeu-se. Entretanto, parecia ter o ânimo colado às solas de suas enlameadas botas de cano longo. Sentia-se muito mais deprimida nesse momento que uma hora antes, quando ele tinha entrado em sua vida.
Era um homem alto e de constituição forte. Seu cabelo, que por fim podia ver depois que tirou o chapéu, era encaracolado. E também abundante e loiro e quase chegava aos ombros. Se lhe acrescentasse mentalmente uma barba e um casco com chifres, poderia imaginá-lo à proa de um navio viking enquanto dirigia um ataque contra uma desventurada aldeia saxã. E ela seria uma valente e desafiante aldeã...
O senhor Bedard se afastou do balcão e cruzou a distância que os separava. Aproximou-se muito dela e falou em voz baixa.
- Já se refugiaram muitos viajantes aqui - disse - E os passageiros da diligência também vão precisar de quartos. A estalagem estará a transbordar esta noite. Embora haja uma estalagem muito menor e tranquila no povoado, perto de onde está o mercado. Utiliza-se sobre tudo durante estes dias, mas me asseguraram que está limpa e que é muito cômoda. Poderíamos deixar dois quartos livres aqui se fôssemos à outra pensão.
Havia um brilho em seus olhos que não acabava de ser nem risonho nem zombador. A Judith era impossível decifrá-lo, embora lhe provocasse uns calafrios que a percorreram de cima abaixo até a ponta dos pés. Umedeceu os lábios.
- Como já disse, senhor Bedard, só tenho algumas moedas comigo, já que esperava chegar a York sem fazer paradas. Ficarei aqui. Ficarei no salão ou junto de uma janela até que chegue outra diligência e possa reatar meu caminho.
Na realidade, tinha a suspeita de que não se encontrava muito longe de Harewood Grange. Já estavam em Leicestershire,
Seus olhos lhe sorriram com essa expressão que não chegava a ser de todo zombadora.
- O hospedeiro se encarregará de mandar entregar sua bolsa de viagem quando chegar - disse-lhe. - A carruagem tinha um eixo quebrado. Pode ser que demorem bastante a conseguir outra, uma noite será pouco. Deste modo, bem poderia esperar com comodidade.
- Mas é que não posso me permitir... - começou Judith de novo.
Colocou-lhe um dedo sobre os lábios, conseguindo que guardasse silêncio por causa da surpresa.
- Mas eu sim - replicou ele - Posso me permitir pagar um quarto, ao menos.
Durante um instante de suprema estupidez não entendeu o que queria dizer. Depois o fez. Perguntou-se se o rubor de seu rosto não seria tão intenso para acabar queimando o dedo do homem. Perguntou-se se lhe dobrariam os joelhos e cairia desmaiada ao chão. Perguntou-se se poria a gritar e lhe esbofetearia o rosto com toda a força da indignação que sentia.
Não fez nada disso. Muito ao contrário, escondeu-se atrás da mundana máscara de Claire Campbell enquanto sentia todo o peso da tentação. Sentiu um desejo quase irresistível de continuar sua aventura, seu sonho roubado. Esse homem estava sugerindo que compartilhassem um quarto em outra estalagem. E pretendia sem dúvida que compartilhassem também a cama. Queria manter relações conjugais ali... embora «conjugal» não era a palavra apropriada, pensou.
Esse dia. Essa noite. Nas próximas horas.
Esboçou o sorriso de Claire Campbell e foi consciente ao feito de que não faria falta mais resposta. Dessa maneira evitou ter que tomar uma decisão em toda regra ou expressar um compromisso verbal. Entretanto, estava claro que tomou uma decisão, já que de outra forma Claire não teria sorrido. Por uma vez em sua vida precisava, precisava com desespero, fazer algo gloriosamente escandaloso, desatinado, atrevido e... de todo incomum.
Outra oportunidade talvez jamais voltasse a se apresentar na vida.
- Resgatarei meu cavalo antes que se acomode muito no estábulo - disse-lhe enquanto retrocedia um passo, lhe dando uma conscienciosa olhada antes de dar meia volta para a porta do pátio.
- Sim - conveio ela.
Depois de tudo, nada era definitivo. Não pensava chegar até o final. Quando chegasse o momento, se limitaria a pedir desculpas e a lhe explicar que a tinha interpretado mal, que ela não era essa classe de mulher. Dormiria no chão ou em uma cadeira... ou em qualquer lugar onde ele não o fizesse. Era um cavalheiro. Não a forçaria. Aceitar a proposição de partir com ele não era mais que um modo de prolongar sua aventura. Não faria nada irreparavelmente depravado.
É claro que sim que o fará, disse-lhe uma inesperada vozinha em sua cabeça. Ah, querida, é claro que sim que fará. E era a enérgica voz de Judith Law com seu tom mais sensato.
O Rum e o Tonel era uma pequena estalagem de mercado. Carecia de hóspedes apesar de que a taberna estava bastante cheia. O senhor e a senhora Bedard foram recebidos com entusiasta hospitalidade e lhes ofereceu o melhor quarto da estalagem, um aposento retangular bastante arrumado que não demorou em ter um palpitante fogo na lareira - uma boa maneira de rebater a chuva que golpeava contra as janelas - e uma jarra de fumegante água quente na bacia que havia atrás do biombo. Asseguraram-lhes que lhes serviriam o jantar na saleta adjacente ao aposento. Ali se sentiriam mais cômodos e desfrutariam de privacidade, explicou-lhes a esposa do hospedeiro, com um sorriso de orelha a orelha como se acreditasse de coração que eram casados.
Claire Campbell afastou o capuz da capa quando ficaram a sós no quarto e permaneceu de pé, olhando pela janela. Rannulf tirou o casaco e o chapéu e os deixou sobre uma cadeira antes de olhá-la. Seu cabelo perdeu os grampos e estava muito desordenado. A capa verde estava caída à altura dos ombros e tinha a prega manchada de barro. Sua intenção fora a de deitá-la na cama logo que chegassem, de modo que ambos pudessem apagar um tanto a sede do desejo que os consumia. Entretanto, não lhe parecia o momento oportuno. Era um homem de apetite voraz, mas não de paixões transbordadas. O sexo, depois de tudo, era uma arte como uma função física necessária. A arte do sexo. Criaria o ambiente adequado.
Tinham toda a tarde e a noite por diante. Não havia pressa.
- Certo que gostará de refrescar-se - disse - Tomarei uma jarra de cerveja e voltarei quando o jantar estiver pronto. Mandarei que subam um pouco de chá.
Ela se virou para ele.
- Isso seria muito amável de sua parte - replicou. Rannulf esteve a ponto de mudar de idéia. O rubor voltou a lhe colorir o rosto e suas pálpebras estavam ligeiramente entreabertas, em claro convite. Tinha o cabelo alvoroçado, como se acabasse de levantar-se da cama. E era na cama onde queria tê-la, com ele em cima, entre as coxas e fundo em seu corpo.
Em troca, fez uma zombadora reverência e arqueou uma sobrancelha
- Amável? – repetiu - Asseguro-lhe que não costumam me acusar de ser amável, senhora.
Passou quase toda uma hora no bar, bebendo cerveja, enquanto um grupo de aldeãos o incluía com hospitalidade em seu círculo para perguntar sua opinião sobre o tempo e suas impressões sobre o estado das estradas enquanto davam baforadas em seus cachimbos, bebiam de suas jarras e concordavam sabiamente que iriam pagar pelo caloroso verão que desfrutaram das últimas semanas.
Subiu ao salão particular quando a mulher do hospedeiro lhe disse que estavam a ponto de servir a comida. Claire estava de pé na porta que separava os dois cômodos enquanto observava uma criada pôr a mesa e servir a comida.
- É um bolo de rins e carne. O melhor em vários quilômetros ao redor, o digo de verdade. Que aproveitem. Chamem quando quiserem que retire os pratos - disse a moça com um sorriso e uma reverência antes de partir da sala e fechar a porta.
- Assim o faremos. Obrigada - disse Claire.
A Rannulf quase deu medo olhá-la antes que os deixassem a sós. Só chegou espiar o vestido de musselina por baixo da capa. Nesse momento comprovou que se tratava de um vestido de corte singelo, de uma modéstia inesperada para uma mulher de sua profissão. Porém viajava em uma diligência. Era de esperar que precisasse vestir roupas que não chamassem muito a atenção. De qualquer forma, o vestido não conseguia esconder o esplendor do corpo que havia por baixo. Não era magra, apesar de que suas longas extremidades dessem essa primeira impressão. Era uma mulher voluptuosa, com uma cintura pequena, uns quadris que se curvavam de forma provocante. Seus seios, generosos e firmes, eram o sonho de qualquer homem na realidade.
Não tinha prendido o cabelo. O tinha afastado do rosto e lhe caía em ondas sobre os ombros até a metade das costas. Era de um glorioso e quase incrível tom avermelhado com reflexos dourados que brilhavam a luz do entardecer. Seu rosto alongado e ovalado perdeu o rubor e parecia tão pálido e delicado como a porcelana. Seus olhos possuíam uma surpreendente tonalidade de verde. E - Por Deus, - seu rosto tinha uma característica inesperada que a fazia descender ao reino dos mortais. Cruzou a distância que os separava e lhe passou um dedo por cima do nariz, de uma face à outra.
- Sardas - disse. Apenas perceptíveis.
Parte do rubor retornou a seu rosto.
- Foram minha maldição durante a infância - replicou. - Uma verdadeira lástima que nunca desaparecessem de todo.
- São encantadoras - disse ele. Sempre tinha admirado às deusas. Nunca tinha se deitado com uma. Gostava que suas mulheres fossem de carne e osso. Ao entrar na saleta quase temeu que Claire Campbell fosse uma deusa.
- Tenho que as ocultar com uma grossa capa de maquiagem quando apareço em cena - informou.
- Quase - disse enquanto baixava os olhos até seus lábios - tirou-me o apetite de comida.
- Quase - repetiu ela com essa voz alta e clara que escutara antes - Mas não de todo. Que tolice, senhor Bedard, quando seu jantar o espera na mesa e tem fome.
- Ralf - corrigiu-a - Será melhor que me chame de Ralf.
- Ralph - disse ela, - é hora de jantar.
E mais tarde dariam um festim com a sobremesa, pensou enquanto a ajudava a sentar-se à mesa antes de ocupar seu assento frente a ela. Um doce prazer que saboreariam durante toda a noite. Começou a lhe ferver o sangue ante a perspectiva de uma boa sessão de sexo. Não tinha a menor dúvida de que seria bom. Enquanto isso, ela tinha razão: seu corpo precisava alimentar-se.
A pedido da moça falou de Londres, já que parecia que ela não conhecia a cidade. Falou-lhe a respeito da vida social durante a temporada: dos bailes, as aglomerações, os concertos; do Hyde Park, Carlton House e os jardins Vauxhall. Ela falou do teatro a pedido seu, a respeito dos papéis que tinha interpretado e daqueles que gostaria de interpretar, a respeito de seus companheiros e dos diretores com os quais tinha trabalhado. Descreveu tudo muito devagar, com uma expressão sonhadora e um sorriso nos lábios como se fosse uma profissão da qual desfrutasse plenamente.
Desfrutaram do jantar. E mesmo assim, Rannulf se surpreendeu uma hora depois que começaram a comer, quando baixou os olhos até a mesa e viu que a maior parte das generosas porções tinha desaparecido e que a garrafa de vinho estava vazia. Não podia recordar nenhum sabor, embora se sentisse satisfeito: no geral e acalorado por uma persistente faísca de emoção.
Ficou em pé, aproximou-se da lareira e puxou a campainha. Queria que levassem os pratos e que subissem outra garrafa de vinho.
- Mais? -perguntou a Claire enquanto inclinava a garrafa sobre sua taça.
Ela a cobriu com uma mão. - Acho que não deveria - disse.
- Mas o fará. - Olhou-a nos olhos.
A moça esboçou um sorriso. - Mas o farei. - Afastou a mão.
Ele se reclinou na cadeira depois de encher as taças e beber um gole. Talvez tivesse chegado o momento. A exígua luz do dia por fim se estava extinguindo do outro lado das janelas. A chuva que repicava contra as janelas e o fogo que crepitava na lareira contribuía para criar um ambiente de acolhedora intimidade que era muito incomum no verão. Embora houvesse algo mais.
- Quero vê-la atuar - disse.
- O que? - Claire ergueu as sobrancelhas e a mão que sustentava a taça ficou a meio caminho de seus lábios.
- Quero vê-la atuar - repetiu ele.
- Aqui? Agora? - Deixou a taça na mesa - Que absurdo, não há cenário, nem decoração, nem outros atores, nem guia.
- Sem dúvida, uma experimentada atriz de talento não requer guia para certos papéis –disse - E tampouco fazem falta, cenário nem outros atores. Há muitos monólogos famosos que não requerem a presença de outros atores. Interpreta um para mim, Claire. Por favor.
Levantou a taça e a sustentou no alto para ela, num silencioso brinde, a moça o olhou fixamente; o rubor tinha voltado para seu rosto. Estava envergonhada, pensou com certa surpresa. Envergonhada pela idéia de declamar em uma representação particular com um homem que estava a ponto de transformar-se em seu amante.
Talvez fosse difícil concentrar-se em um papel dramático em semelhantes circunstâncias.
- Bom, suponho que poderia representar o famoso discurso de Porcia - disse ela.
- Porcia?
- O mercador de Veneza - explicou ela - Seguro que conhece o discurso sobre a clemência.
- Me refresque a memória.
- Sylock e Antonio estavam no tribunal - explicou ela, inclinando-se ligeiramente para ele sobre a mesa - para decidir se Sylock tinha direito a reclamar a Antonio uma libra de carne. Não havia dúvida de que tinha esse direito; estava mais que claro no contrato que ambos assinaram. Mas nesse momento chegou Porcia com a intenção de salvar o melhor amigo e benfeitor de Basanio, seu amor. Chegou disfarçada de advogado para falar a favor de Antonio. A princípio apela à natureza generosa de Sylock em seu famoso discurso a respeito da clemência.
- Agora recordo - disse ele - Interprete Porcia para mim,
Ela ficou em pé e olhou a seu redor.
- Esta é a sala de audiências – disse - Já não é o salão reservado de uma estalagem, e sim um tribunal onde mesmo a vida de um nobre pende por um fio. É uma situação desesperada. Não parece haver esperança alguma. Todos os personagens principais da obra estão presentes. Sylock está sentado em uma cadeira. - Assinalou a cadeira em que ele se sentava - Eu sou Porcia – disse - Mas estou disfarçada de homem.
Rannulf franziu os lábios em um arranque de humor quando ela voltou a percorrer a sala com o olhar. Levantou os braços, recolheu o cabelo, retorceu-o e o atou à altura da nuca. Depois desapareceu um instante no quarto para retornar com seu casaco sobre os ombros. Até com a roupa de homem, sua aparência era qualquer coisa menos masculina. Quando acabou de abotoá-lo por completo levantou a vista para olhá-lo diretamente nos olhos.
Rannulf esteve a ponto de retroceder ante a severa e controlada expressão de seu rosto. -«A clemência não quer força» - disse com uma voz que casava com sua expressão.
Durante um instante e por estúpido que parecesse, acreditou que era ela, Claire Campbell, quem se dirigia a ele, Rannulf Bedwyn.
-«É como a plácida chuva do ceu que cai sobre um campo e o fecunda... » - continuou enquanto se aproximava dele e a expressão de seu rosto se suavizava, tornando-se implorante.
Por todos os demônios, pensou, ela era Porcia e ele era o maldito vilão, Sylock.
-«Duas vezes bendita... »
Não era um discurso muito longo, mas quando chegou a seu fim, Rannulf estava consumido pela vergonha e disposto a perdoar a Antonio, e inclusive a prostrar-se de joelhos para rogar perdão por ter pensado sequer em lhe cortar uma libra de carne do corpo. Ela estava inclinada sobre ele, com os olhos semicerrados e um olhar penetrante, à espera de uma resposta.
- Santo Deus - disse, - Sylock devia ter o coração de pedra.
Deu-se conta de que estava meio excitado. Era muito boa.
Era capaz de interpretar o papel sem as excêntricas parafernálias que ele associava com os atores mais famosos que tinha visto em cena.
Claire se endireitou e lhe sorriu enquanto desabotoava o casaco.
- E que outro papel pode interpretar? - perguntou - Julieta?
Ela fez um gesto desdenhoso com a mão.
- Tenho vinte e dois anos – replicou - Julieta era uns oito mais nova que eu e uma bobona, por certo. Nunca vi a graça dessa obra.
Rannulf riu entre dentes. Assim não era uma romântica. - Ofélia? - sugeriu ele.
Ela compôs uma expressão afligida.
- Suponho que os homens gostam de ver mulheres débeis comentou ela com certo desdém na voz - E não pode haver nada mais fraco que essa estúpida da Ofélia. Poderia haver-se limitado a estalar os dedos no nariz de Hamlet e mandá-lo fritar aspargos.
Rannulf jogou a cabeça para trás e soltou uma estrondosa gargalhada. A moça estava toda rosada e tinha uma expressão contrita quando voltou o olhar.
- Farei lady MacBeth – disse - Era uma tola incapaz de sustentar sua maldade, embora não era absolutamente fraca.
- A cena em que caminha adormecida? - perguntou - Quando lava o sangue das mãos?
- Aí o tem. Vê? - Seu semblante voltava a ser desdenhoso quando assinalou com um braço - Suponho que é a cena preferida pela maioria dos homens. Uma mulher perversa que ao final cai na loucura, porque as mulheres normais não podem ter sua fortaleza para sempre.
- Tampouco é que MacBeth chegasse muito cordato ao final - recordou ele - Me atreveria a dizer que Shakespeare se mostrou imparcial em seu julgamento a respeito da fortaleza de espírito, tão masculina como feminina.
- Representarei a cena em que lady MacBeth tenta convencer MacBeth de que mate Duncan - disse ela.
E ele estava a ponto de converter-se em um silencioso MacBeth supôs Rannulf.
- Mas primeiro - comentou ela - terminarei o vinho. Sua taça tinha mais de dois terços de vinho. Bebeu-a de um gole e a deixou sobre a mesa. Desfez o nó que segurava o cabelo na nuca e agitou a cabeça para liberá-lo.
- MacBeth acaba de dizer a sua esposa: «Temos que renunciar a esse horrível propósito» -disse - MacBeth começa a arrepender-se da decisão de cometer o assassinato e ela o está incitando.
Rannulf assentiu e ela lhe deu as costas um instante e ficou muito quieta. Um momento depois viu como apertava os punhos e virava para ele. Esteve a ponto de saltar da cadeira e esconder-se atrás. Seus olhos verdes o atravessaram com uma expressão de gélido desprezo.
-«O que foi feito da esperança que alentava? Por ventura tem caído em embriaguez ou em sono? Ou está acordado e olha com estúpidos olhos pasmados o que antes contemplava com tanta arrogância?»
Rannulf resistiu ao impulso de falar em sua defesa.
-«É esse o amor que me mostrava?» - disse ela. Claire também declamou as frases de MacBeth, inclinada sobre seu corpo e sussurrando em voz tão baixa que Rannulf teve a impressão de que ele mesmo estava falando sem separar os lábios. Como lady MacBeth, apressou-o com sua energia, seu desdém e seus falsos incentivos. E quando terminou, Rannulf compreendia perfeitamente por que MacBeth tinha cometido a tamanha estupidez de assassinar seu rei.
A moça estava ofegando quando proferiu a última de suas frases e tinha um aspecto distante, triunfal e ligeiramente perturbado.
Rannulf se descobriu a ponto de ofegar pelo desejo. Enquanto o personagem que esteve interpretando abandonava os olhos e o corpo da moça, seus olhares se entrelaçaram e o ar que os separava começou a crepitar.
- Bom - disse ele em voz baixa.
Ela esboçou um sorriso torcido.
- Deve compreender – disse - que sou um pouco provinciana. Não atuei por três meses e não estou em plena forma.
- Que o ceu nos ajude - replicou Rannulf enquanto ficava em pé - o dia que estiver em plena forma. Seria capaz de sair sob a chuva à busca do rei mais próximo para assassiná-lo.
- Então, o que lhe parece? - perguntou.
- Acho - respondeu ele - que é hora de ir para cama.
Durante um instante, acreditou que ela ia negar-se. Claire o olhou fixamente, umedeceu os lábios, inspirou com força como se fosse dizer algo e logo assentiu.
- Sim - disse.
Rannulf inclinou a cabeça e a beijou. Estava a um passo de deitá-la no chão e tomá-la naquele mesmo momento, mas para que passar por esse desconforto quando havia uma estupenda cama no quarto contiguo? Além disso, tinha que considerar certas necessidades fisiológicas.
- Vá preparar-se - disse - Esperarei lá embaixo uns dez minutos.
Ela voltou a vacilar e umedeceu os lábios.
- Sim - assentiu e virou. Um segundo depois, a porta do quarto se fechou atrás dela.
Os seguintes dez minutos, pensou Rannulf, iriam parecer uma incômoda eternidade.
Por todos os demônios, essa mulher sim sabia atuar.
Judith ficou de pé com as costas apoiada contra a porta do quarto e fechou os olhos. A cabeça deu voltas, o coração pulsava acelerado e estava sem fôlego. Havia tantas razões que explicavam as três circunstâncias anteriores, que era impossível as pôr em ordem para recuperar sua costumeira compostura.
Em primeiro lugar, tinha bebido muito vinho. Quatro taças no total. Jamais tinha bebido mais de meia taça num dia e esse fato excepcional somente se produziu em três ou quatro ocasiões ao longo de toda sua vida. Não estava ébria; podia pensar de modo bastante coerente e caminhar em linha reta. Mas mesmo assim, tinha ingerido todo esse vinho.
Em segundo lugar, tinha resultado de todo embriagador atuar frente a uma audiência; por mais que sua audiência constasse somente de uma pessoa. A interpretação sempre tinha formado parte de sua vida secreta, algo que fazia quando tinha a certeza de que se encontrava sozinha e ninguém a observava. Não obstante, nunca tinha pensado nisso como «interpretar»; sempre o tinha visto como um modo de dar vida a outro ser humano através das palavras que o dramaturgo tinha proporcionado. Sempre fora capaz de meter-se na pele e na mente de outra pessoa e de saber com exatidão o que sentiria sendo essa pessoa nessas determinadas circunstâncias. Uma ou outra vez tinha tentado utilizar essa habilidade para escrever histórias, mas seu talento não residia na palavra escrita. Precisava criar ou recriar personagens utilizando seu corpo e sua voz. Cada vez que recitava os papéis de Porcia ou de lady MacBeth se convertia nelas.
De qualquer forma, a interpretação dessa noite fora ainda mais embriagadora que o vinho que tinha bebido. Tinha atuado para uma audiência de uma só pessoa muito melhor do que se nunca o fizesse. Ele tinha representado tanto Sylock como MacBeth, embora não tenha deixado de ser Ralph Bedard em nenhum momento; e ela, por estranho que parecesse, havia se sentido alegre e entusiasmada por sua presença. Tinha tido a sensação de que o ar que os rodeava estalava com uma energia invisível.
Abriu os olhos de repente e se apressou a ocultar-se atrás do biombo que se elevava do outro lado do quarto. Só tinha dez minutos para preparar-se... e já passaram alguns. Alguém tinha se encarregado de subir sua bolsa de viagem ao quarto, comprovou com alívio. Poderia vestir uma camisola.
Entretanto, deteve-se de modo abrupto enquanto se inclinava para abrir a bolsa. Que se preparasse? Para que? Ele acabava de beijá-la de novo. Se reuniria com ela em dez minutos - em menos de dez minutos - para levá-la para cama. Para lhe fazer... isso. Nem sequer sabia a ciência certa do que era «isso» exatamente, salvo de um modo mais vago e impreciso. Sentia uma espécie de debilidade nos joelhos. Mal podia respirar e a cabeça não deixava de dar voltas. Não ia permitir que acontecesse... ou sim?
Já era hora de pôr fim à aventura. Embora tivesse sido - e seguia sendo - uma aventura tão maravilhosa... E não haveria nenhuma mais. Nunca. Sabia que as mulheres que caíam na pobreza e que viviam como acompanhantes sem salário nos lares de seus familiares enriquecidos tinham poucas possibilidades, ou melhor, nenhuma, de mudar suas vidas. A única coisa que importava era o presente. E essa noite.
Judith abriu a bolsa de viagem sem mais demora. Estava esbanjando um tempo precioso. Que embaraçoso resultaria que ele se apresentasse para encontrá-la com a anágua, ou antes que tivesse aliviado suas necessidades ou que tivesse se lavado e penteado! “Pensaria mais tarde nisso» e em como evitar que acontecesse. Na saleta contígua havia um banco de madeira. Com um travesseiro, uma das mantas da cama e sua capa poderiam converter-se em um lugar razoável para dormir.
Bom seguro que ele estava demorando mais de dez minutos. Judith, vestida decentemente com sua camisola de algodão, estava de pé frente ao fogo escovando o cabelo quando escutou que batiam na porta e que esta se abria antes que ela pudesse cruzar o quarto para abrir ou lhe dar permissão para entrar. Sentiu-se nua de repente e também descobriu que devia estar bastante mais ébria do que tinha suposto a princípio. Em lugar de sentir o horror que sabia que deveria estar sentindo, percorreu-a uma onda de desejo. Não queria pôr fim à aventura. Queria experimentar «isso» antes que tanto sua juventude como sua vida chegassem a um proverbial fim. Queria tudo... e o queria com Ralph Bedard. Um homem tão atraente que a deixava sem fôlego, pensou desejando encontrar palavras mais eloquentes para descrever sua atitude.
Ralph se deteve com os lábios franzidos e as pálpebras entreabertas, e seu olhar a percorreu com lentidão da cabeça até os pés nus.
- Trata-se de sua profissão ou de seu instinto - disse ele por fim em voz fraca - que a ensinou a não ressaltar sua aparência? Algodão branco e nem rastros de franzidos nem de babados! É muito inteligente. Sua beleza fala alto e claro por si só.
Era feia. Sabia. As pessoas, inclusive sua própria mãe, sempre compararam seu cabelo com as cenouras quando era pequena e nunca com a intenção de que fosse um cumprimento. Sua pele sempre fora muito pálida, sua cútis sempre esteve desfigurada pelas sardas e seus dentes sempre foram muito grandes. E justo depois, por uma horrível crueldade do destino, quando por fim seu cabelo começara a escurecer um tanto, quando o pior de suas sardas se atenuou até desaparecer e quando seu rosto e sua boca se ajustaram ao tamanho de seus dentes, começara a crescer até transformar-se em uma desengonçada. Tinha crescido até igualar a altura de seu pai. Desfrutou de um curto alívio quando a desengonçada começou a tomar forma de mulher. Entretanto, para acrescentar ainda mais humilhação a sua ofensa, essa forma chegou acompanhada de um par de proeminentes seios e uns quadris generosos. Sempre fora uma vergonha para a família e em maior medida para si mesma. Seu pai passou a vida lhe ordenando que se vestisse de forma mais recatada e que cobrisse o cabelo, e constantemente a tinha culpado pelos olhares lascivos que os homens estavam acostumados a lhe dirigir. Ser a feia da família sempre fora uma carga muito pesada.
Entretanto, essa noite estava disposta a aceitar que por uma estranha razão - provavelmente pelo vinho, já que ele tinha bebido mais que ela, - Ralph Bedard a achava atraente.
Esboçou um lento sorriso sem afastar os olhos dele. O vinho tinha um efeito estranho. Dava-lhe a sensação de estar desligada da realidade, como se fosse uma simples espectadora que não participava dos acontecimentos. Era capaz de permanecer em um quarto em companhia de um homem, vestida somente com a camisola, sabendo que ele tinha toda a intenção de levá-la para cama em alguns instantes e mesmo assim lhe sorria de modo sedutor sem sentir-se minimamente responsável pelo que estava fazendo. A observadora não fazia nada para que prevalecesse a virtude e a decência. E Judith tampouco desejava que o fizesse.
- Suponho que já lhe terão dito mil vezes quão linda é - disse Ralph com um tom de voz maravilhosamente rouco. Isso dizia tudo! Estava bêbado.
- Agora já são mil e uma - replicou ela sem deixar de sorrir - E suponho que lhe terão dito mil e uma vezes quão bonito é.
Era uma mentira. Não era bonito. Tinha o nariz muito proeminente, as sobrancelhas muito escuras, o cabelo muito alvoroçado e a pele muito bronzeada. Mas possuía uma atração alarmante; e nesse preciso momento, «atraente» era dez vezes mais sedutor que «bonito».
- Agora já são mil e duas. - Aproximou-se dela e Judith soube que o momento da verdade tinha chegado. Entretanto, Ralph se deteve a escassa distância e estendeu uma mão em lugar de abraçá-la. - Dê-me a escova.
Ela o atendeu, esperando que a jogasse por cima do ombro para colocar mãos à obra. Permitiria seguir adiante? Acelerou-lhe a respiração. - Sente-se - disse - Na beira da cama. Sentar-se? Nada de deitar-se? Acaso ficariam alguns momentos dos que desfrutarem antes de ver-se obrigada a pôr fim a tudo aquilo? Enquanto estavam no salão, alguém tinha se encarregado de afastar os lençóis primorosamente, de acender o fogo, de subir sua bolsa de viagem e de encher com água quente a bacia que havia atrás do biombo.
Judith se sentou com os pés juntos sobre o chão e as mãos unidas no colo enquanto observava como ele se despojava de seu ajustado casaco, de seu colete e de seu lenço. Depois se sentou em uma cadeira e tirou as botas antes de voltar a ficar em pé, descalço salvo pelas meias.
Ah, Senhor! Pensou Judith. Não deveria estar contemplando semelhante cena. Embora fosse tudo um espetáculo. Ralph era um homem grande, embora pudesse jurar que não havia nenhum pingo de gordura supérflua nele. Um homem de ombros largos cujo corpo se estreitava ao chegar à cintura e os quadris. Tinha umas pernas longas e bastante musculosas. Toda essa musculatura ficava ressaltada ao usar somente as calças de montar e a camisa.
Ele agarrou de novo sua escova de cabelo e rodeou a cama. Judith sentiu que o colchão se afundava atrás dela. Não se virou para olhar. Esse era o momento no qual deveria ter ficado de pé. Senhor, mas é que não queria fazê-lo. E justo então sentiu o calor que desprendia o corpo de Ralph a suas costas, apesar de que ainda não a havia tocado.
E nesse momento o fez. Com a escova. Colocou-a justo por cima de sua testa - Judith espionou pela extremidade do olho direito a manga de sua camisa branca - e a deslizou pelo cabelo até chegar às pontas. Ajoelhou-se atrás dela com o simples propósito de lhe escovar o cabelo! Logo que compreendeu que suas intenções eram das mais inocentes, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos.
Esteve a ponto de desmaiar pelo prazer que lhe proporcionava. Com cada passada da escova sentia um formigamento no couro cabeludo. Escutava como corria por seu cabelo. De vez em quando podia sentir uma das mãos de Ralph que a tocava para colocar o cabelo atrás da orelha ou o afastar dos ombros. Não tinha a menor dúvida de que essa era a sensação mais maravilhosa do mundo: que alguém lhe escovasse o cabelo... ainda mais sendo, um homem. Podia sentir o calor que emanava do corpo masculino,
Assim como o aroma de sua colônia. Podia escutar sua respiração. Não demorou muito em relaxar-se e permitir que a frouxidão se apoderasse dela, embora se encontrasse estranhamente estimulada e alerta ao mesmo tempo. Notava os mamilos tensos. E começara a perceber um agradável e intenso palpitar entre as pernas.
- Você gosta? - perguntou ele pouco depois com um rouco murmúrio.
- Mmm. - Judith foi incapaz de reunir a força necessária para oferecer uma resposta mais eloquente.
Continuou lhe escovando o cabelo com movimentos lentos e rítmicos até que lançou a escova de um lado. Judith escutou o ruído que fez ao golpear contra o chão aos pés da cama. E nesse momento percebeu que se aproximou dela. O homem separara as coxas e tinha movido as pernas até as deixar de ambos os lados de seu corpo; se desejasse, podia afastar as mãos do braço e as apoiar sobre seus joelhos. Sentiu o roçar do tórax masculino nas costas ao mesmo tempo em que deslizava as mãos sobre os braços para lhe cobrir a parte inferior dos seios. Judith escutou como tomava uma lenta e sonora baforada de ar.
O pânico esteve a ponto de fazê-la dar um suspiro. Os seios não. Era tão embaraçoso. Entretanto, a ligeira embriaguez que a embargava retardou tanto a angústia como sua capacidade de reação. Essas mãos eram tão tenras e suaves... E seus polegares lhe roçavam os mamilos, que de forma estranha estavam duros e muito sensíveis. A despeito de tudo, não estava lhe machucando. Ao contrário, suas carícias despertavam nela ondas de puro desejo que desciam por sua garganta até terminar entre suas pernas e, além disso, se sentia palpitar por dentro.
Ao que parece Ralph não achava nada grotesco em seus seios.
Judith voltou a fechar os olhos e jogou a cabeça para trás para apoiá-la sobre um de seus ombros. Só um pouco mais. Uns instantes mais. Logo o deteria. Os polegares abrangeram seus mamilos e imediatamente sentiu que essas mãos lhe desabotoavam a parte dianteira da camisola e afastavam o tecido a fim de deixá-la exposta dos ombros até o umbigo. Quando as mãos retornaram até seus seios nus para rodeá-los, elevá-los, acariciá-los, para estimular, beliscar e esfregar os mamilos soube por fim que sua aventura - esse sonho roubado - era perfeita.
Isso era o que sempre tinha desejado. Justo isso. Desde que tinha se transformado em uma mulher. Sentir as carícias de um homem, permitir que a visse e que não a julgasse inadequada, que a acariciasse. Desfrutar sem deixar frestas à vergonha, ao medo. Desejava que esse momento nunca - por favor, por favor, nunca! - acabasse.
- Levante –se - murmurou Ralph a seu ouvido, e apesar de não estar de tudo disposta a afastar-se de suas carícias, obedeceu-o e abriu os olhos para ver como sua camisola caía ao chão.
Não sentiu o mínimo indício de pudor, por curioso que pudesse parecer, apesar do fogo que crepitava na lareira, da tremeluzente luz das duas velas colocadas sobre o suporte e do ódio que sempre a tinha embargado cada vez que se contemplava em um espelho. Voltou a sentar-se.
Foi consciente do momento em que o homem tirou a camisa pela cabeça e a jogou no chão, ali onde jazia sua escova. Imediatamente notou seu torso nu, quente e sólido, contra as costas e essas mãos voltaram a deslizar sob seus braços. Passaram sobre seus seios e os acariciaram com força antes de estender-se sobre suas costelas e seguir descendo para a cintura e o abdômen. Judith jogou a cabeça para trás e fechou os olhos de novo antes de mover os ombros e as costas para esfregar-se contra ele. O tórax masculino estava ligeiramente coberto de pêlo. As mãos de Ralph deslizaram por suas coxas a caminho dos joelhos e voltaram a ascender. Judith afastou as mãos do regaço e as apoiou sobre as coxas do homem, lhe rodeando os joelhos com as mãos.
Não demorou para compreender que tinha superado o ponto de retorno, esse momento no qual poderia ter detido o que ia ser. Entretanto, não se importava. Não se importava o mínimo. O bom senso, o decoro e a moral se encarregariam de assinalar a magnitude de seu errado comportamento quando chegasse a brilhante luz da manhã; mas embora soubesse, não se importava. Essa era a noite que proporcionaria luz e sentido ao resto de sua vida. Sabia com absoluta certeza. Uma mulher desonrada... Quem ia averiguar? A quem ia importar?
Ralph deslizou a mão direita até seu sexo, até esse lugar quente e oculto. Deveria estar horrorizada. Contudo, escutou que brotava um rouco som de aprovação do mais profundo de sua garganta e separou as pernas um pouco mais para lhe dar acesso.
Estava muito quente nesse lugar. Sabia pelo contraste com o frescor dos dedos de Ralph. Temia estar também úmida. Entretanto, ele não se afastou. Seus dedos exploraram o lugar, afastando as dobras e esfregando com suavidade entre elas até encontrar a parte mais recôndita e introduzir-se um pouco nela. Judith escutou sons que provocava a umidade, mas estava além da vergonha. Não demorou muito em compreender que Ralph sabia muito bem o que estava fazendo. O desejo se apoderou dela por completo. E justo então, ele fez algo com o polegar, algo tão suave que não teria sabido dizer com exatidão o que foi. Salvo que de repente o anseio se transformou em uma espécie de urgente desejo que transpassou os limites do desejo muito antes que fosse capaz de entregar-se à sensação. Arqueou as costas enquanto todos os músculos de seu corpo se esticavam e gritou enquanto se deixava cair contra ele, exausta e ofegante.
O que... que diabos tinha acontecido?
- Sim - sussurrou Ralph ao ouvido com um acento de euforia na voz. - Deus, sim! Magnífica!
Judith se deu conta de que respirava de forma entrecortada: - Deite-se - disse ele.
- Sim. - nem sequer se expôs a possibilidade de negar-se a deitar-se com ele.
Sentia-se um pouco enjoada, mas não teria sabido dizer se por causa dos efeitos do vinho ou pelo que acabava de experimentar.
Estendeu-se entre os lençóis enquanto Ralph ficava de pé e observou como se despojava do resto de sua roupa. Sem elas seu aspecto era muito mais imponente, uma combinação de duros músculos, ventre plano E... Por uns breves instantes se perguntou se deveria sentir-se assustada depois de tudo; mas o desejava, compreendeu.
Desejava-o com desespero. Desejava esse homem.
Ralph deitou em cima dela enquanto introduzia o joelho entre suas pernas e a obrigava às separá-las mais. Judith dobrou os joelhos e apoiou as plantas dos pés sobre o colchão para afiançar sua posição. Ele ergueu a parte superior do corpo, sustentou-se sobre os antebraços e inclinou a cabeça para beijá-la. O homem tinha a boca aberta e ela não demorou muito em imitá-lo quando lhe deu uma lambida e lhe acariciou a suave carne da parte interna dos lábios. Imediatamente, sentiu sua língua na boca, deslizando-se sobre a sua, lhe acariciando a parte mais sensível do paladar e avivando de novo a voracidade do desejo.
Quando ele ergueu a cabeça, exibia seu costumeiro sorriso zombador.
- Temo - disse - que é possível que exploda assim que entre em ti, com a mesma rapidez que você. De qualquer forma, temos o resto da noite para desfrutar o prazer. Aceita minhas desculpas adiantado?
- Está desculpado. - Judith sorriu em resposta, embora para falar a verdade não entendia muito bem o que pretendia lhe dizer.
Ralph voltou a deitar-se por completo sobre ela antes de lhe colocar as mãos sob as nádegas para segurá-la com força. Sentiu que seu duro membro a penetrava de forma hesitante, mas antes de ter a oportunidade de respirar fundo para acalmar-se, ele se afundou em seu corpo. Talvez houvesse dor. Não teve tempo de comprovar. Talvez houvesse desconforto. Não teve tempo de assimilá-lo. Só teve tempo de experimentar o mais absoluto dos assombros ao comprovar que um homem pudesse ser tão grande e estar tão duro, e que mesmo assim seu corpo fosse capaz de acolhê-lo.
Nesse instante ele começou a mover-se, retirou-se até sair quase por completo dela e voltou a penetrá-la até o fundo; fez outra vez, cada vez mais rápido e com mais força, até que seu corpo se esticou, deixou escapar um grito e caiu sobre ela com todo seu peso. Judith o envolveu com seus braços. Estava acalorado e tinha a pele escorregadia pelo suor.
E foi então quando chegou o desconforto. Sua virgindade tinha desaparecido. Assim, sem mais. E com o desconforto chegou à compreensão. A compreensão não só do que acontecia entre um homem e uma mulher, mas sim do que se sentia. Tinha sido decepcionante. Até certo ponto. Em parte se sentia maravilhada. Tinha deitado com um homem. Não passaria a vida sem conhecer a mais básica das experiências humanas. Tinha deitado com ele. Ainda estava deitada sob seu corpo, com os seios esmagados sob seu tórax, as coxas em torno de suas musculosas pernas e seu... essa parte dele ainda em seu interior.
Não se arrependia. E se era o vinho que estava falando, se encarregaria no dia seguinte de lhe dizer algumas coisas. Não se arrependia. Jamais se arrependeria. Ralph a tinha acariciado, a havia feito desfrutar, tinha conseguido que se sentisse tão feminina e bela como nunca antes ninguém fez; todos fizeram o contrário, e bem. E, além disso, deitou-se com ele e o tinha agradado. Deu-se conta de que estava dormido. Pesava muito. Custava-lhe muito respirar. Não demoraria em ter cãibras nas pernas. Não tinha dúvida de que estaria muito sensível nesse lugar. E, entretanto não desejava que ele despertasse. Assim, abraçou com força seu magnífico sonho roubado.
Uma vez que Rannulf despertou e se separou dela desculpando-se por lhe haver esmagado todos os ossos do corpo, Claire Campbell saiu um instante. Podia escutar como se lavava atrás do biombo e esboçou um sorriso enquanto entrelaçava as mãos atrás da cabeça. Uma amante suscetível. Não demoraria para pô-la de novo úmida e exsudando aroma de sexo.
Era fantástica. Seu corpo e seu cabelo eram por si só suficientes para manter em estado de perpétua excitação qualquer homem de sangue quente, mas havia muito mais nessa mulher além de seus atributos. Estavam seus olhos, que refletiam esse olhar lânguido de pálpebras semicerradas quando estava excitada, dentes perfeitos, e essa voz rouca e sedutora. E suas habilidades interpretativas e seus sorrisos e sua risada... e seu conhecimento de regras relativas a uma aventura.
Uma atriz com semelhante atrativo e experiência bem podia ter tomado o controle de seu encontro, de modo que tivesse acabado liberando uma batalha de desejos e vontades para estabelecer o domínio e o controle durante sua primeira experiência como amantes. Tinha a certeza de que teria desfrutado - como poderia alguém não desfrutar de uma relação sexual com uma mulher como Claire Campbell?-, embora não tanto como o jogo que ele mesmo pusera em prática e ao qual ela se amoldou. O jogo da sedução lenta e pausada.
Enquanto lhe escovava essa gloriosa juba ruiva, a moça se sentou na cama como uma virgem recatada e o desejo o tinha inundado como a enchente de um rio que arrastava tudo a sua passagem depois de ter quebrado o dique. Claire lhe tinha permitido liderar cada passado do caminho, embora ele tivesse sido consciente do crescente desejo que a embargava, assim como de seus mamilos eretos e da umidade que evidenciava seu estado de excitação. Seu orgasmo tinha estalado com força e fora adulador. Muitas mulheres o fingiam e imaginavam que seus amantes não percebiam o engano. A autenticidade de seu clímax lhe tinha outorgado a permissão para alcançar o seu próprio com rapidez, sem sentir-se tão desajeitado como um escolar em plena efervescência sexual.
A moça saiu de trás do biombo e rodeou a cama para o lugar que estava vazio. Rannulf sentiu que lhe secava a boca ao vê-la. Seu maior pesar radicava no fato de que fosse uma aventura de uma só noite. Necessitaria todo um mês ou mais para explorar por completo as delícias desse corpo, para saciar o apetite que despertava nele.
- Não se deite - disse - Se ajoelhe sobre o colchão. Ela o obedeceu e se ajoelhou frente a ele, olhando-o com uma expressão interrogante. O fogo tinha ficado reduzido a uns rescaldos incandescentes, mas a luz das duas velas ainda tremulava no quarto.
- Vamos brincar – disse - enquanto estendia um braço para pegar sua mão.
- Muito bem - acessou Claire com seriedade. Rannulf riu baixo.
- Já acabamos com a senhorita afetada - disse - foi delicioso, devo admitir. Prometo que não estou acostumado a me mostrar tão... frenético em minhas relações. Só foi o efeito que sua serena obediência teve em mim. Já a possui segundo meus desejos. Agora toca a você. O que você gostaria de fazer?
Claire o contemplou durante um bom momento. Até mesmo a imobilidade e essa expressão serena eram capazes de excitá-lo.
- Não sei – respondeu ao fim.
- Tão vasto é seu arsenal? - Rannulf sorriu - Oxalá a noite durasse um mês para que pudesse desdobrar tudo comigo. Acha que um mês seria suficiente? Se decida. Sou todo seu. Seu escravo, se assim desejar. Faz o que quiser comigo. Faça-me amor, Claire. Desfruta do sexo comigo. - Estendeu os braços e as pernas sobre o colchão.
A moça permaneceu imóvel durante um tempo. Entretanto, seus olhos o percorreram de cima abaixo com as pálpebras entreabertas, comprovou Rannulf enquanto a observava. Houve um instante em que lambeu os lábios; a ponta de sua língua se moveu muito devagar de uma comissura até a outra.
Era muito mais preparada e bastante mais experimentada do que tinha suposto. Tinha imaginado que se lançaria sobre ele e o submeteria a um bom número de deliciosas e descaradas torturas sexuais que os levassem a um estado de frenesi pré- sexo. Tinha percebido de que sua forma de vestir era discreta. O mesmo acontecia com seu comportamento. Rannulf se sentiu arder pouco a pouco sob esse lânguido escrutínio, estremecendo adiantado.
E nesse momento Claire se inclinou sobre ele e o tocou com as pontas dos dedos, que estavam frios por causa da água com a qual acabava de lavar-se. Tocou-lhe a testa e deslizou os dedos entre seu cabelo. Deslizou os dedos por seu rosto, deixando que o indicador riscasse o perfil aquilino de seu nariz - um legado familiar que compartilhava com praticamente a totalidade de seus irmãos - e depois percorreu com suavidade o contorno de seus lábios antes de apoiar ambas as mãos sobre seus ombros e inclinar a cabeça para beijá-lo na boca. Oculto por sua juba ruiva, Rannulf sentiu o movimento de sua língua sobre os lábios e assim que os separou, a moça não duvidou em afundar-se em sua boca. Resistiu ao desejo de sugá-la. Devia interpretar um papel passivo durante esse tempo; um tempo bastante longo, esperava. Não tinha muito claras as intenções de Claire, mas até esse momento o estava encantando o joguinho. Talvez estivesse fazendo o mesmo que ele fez com ela: seduzindo-o com lentidão. E estava conseguindo. Sentia-se embriagado pelo prazer.
As mãos e a boca de Claire - junto com a língua e os dentes - descenderam devagar por seu corpo, detendo-se ali onde ele dava a mais ligeira amostra de satisfação. Pequena bruxa! Como se não conhecesse muito bem todas e cada uma das zonas erógenas de um homem. Sugou seus mamilos e deslizou a língua sobre eles com muita suavidade, até que Rannulf esteve a ponto de dar um salto e acabar com o jogo sem nem sequer ter chegado à culminação que ela estava procurando. Permaneceu imóvel e se concentrou em respirar.
A moça cobriu cada centímetro de seu corpo com suas levianas, frescas e eróticas carícias, salvo aquele lugar que tinha voltado para a vida e que tinha alcançado toda sua dureza e longitude muito antes que ela tivesse acabado. Quando passou junto a ele o esquivou. Que malvada! Cada vez lhe custava mais controlar-se para não ofegar.
E então o tocou ali, tomando-o por completo entre suas frias mãos. A princípio o sustentou com tanta delicadeza que Rannulf esteve a ponto de explodir, mas imediatamente tomou confiança e o rodeou com os dedos para acariciá-lo e deslizar o polegar sobre a sensível ponta.
- Você gosta? - perguntou em um murmúrio gutural que esteve a ponto de lhe fazer transbordar o limite.
- Não sabe quanto, maldita seja - respondeu.
Claire virou a cabeça para olhá-lo com um sorriso, levantou-se sobre os joelhos colocou o cabelo atrás dos ombros com ambas as mãos. Permaneceu na mesma postura durante um bom momento, sem deixar de olhá-lo nos olhos.
- Não quero fazer o resto sozinha - disse-lhe.
Liberado das restrições que o jogo lhe tinha imposto, Rannulf estendeu ambos os braços e lhe rodeou a cintura com as mãos para elevá-la e deixá-la escarranchada sobre seus quadris. Manteve-a assim um momento, deslizando as mãos por essas maravilhosas curvas enquanto ela continuava erguida, com as pernas separadas.
- Vamos, - disse - Me leve a seu interior e cavalguemos juntos. Prometo-te que será uma cavalgada maravilhosamente longa. Você gosta de cavalgar?
A expressão da moça se tornou de repente séria e dessa vez principiante.
- Eu gosto de cavalgar contigo - depois de um breve silêncio. Pequena bruxa! Como se ele significasse algo para ela. Não obstante, suas palavras obtiveram o efeito desejado.
Era uma sedutora consumada. Ou talvez soubesse que as pausas podiam resultar tão eróticas como os movimentos. Passaram apenas uns momentos até que ela o tomou com cuidado com uma mão, colocou-se na posição adequada, afastou a mão e se estendeu até ficar firmemente empalada sobre ele. Rannulf observou e escutou como respirava fundo. Com uma mulher insignificante poderia ter suspeitado que não fosse mais que uma argúcia deliberada para fazer um cumprimento a seu tamanho. Com ela, suspeitava que o prazer fosse genuíno.
Claire se inclinou sobre ele, apoiou-se sobre as mãos e seu cabelo voltou a ocultá-lo como uma cortina. Cravou os olhos nos seus. Rannulf lhe segurou os quadris com mais firmeza.
- Me monte, - disse - Serei uma montaria mansa sob seu corpo. Você imporá o ritmo e a velocidade. Você decidirá o destino e a distância que percorreremos antes de chegar. Que seja uma longa distância.
- Cem quilômetros - replicou ela.
- Mil.
- Mais.
A princípio começou a mover-se muito devagar, sentindo-o em seu interior, ajustando sua posição para a cavalgada, esticando seus músculos internos em torno dele até descobrir o ângulo perfeito. E depois o montou com mais firmeza, deixando que seu membro se afundasse nela cada vez mais, cada vez mais confiada. Rannulf jamais se encontrou com uma habilidade tão enganosamente cândida em nenhuma outra mulher. Bem poderia ser que Claire o impedisse de desfrutar com alguma outra no futuro, pensou enquanto se acomodava a seu ritmo e elevava os quadris em contraponto, investindo quando ela descia e saindo de seu corpo em cada ascensão; rodando e ajustando sua posição, para afiançá-la sobre ele e aumentar seu prazer sem afastar as mãos de seus quadris. Estava muito excitada e a umidade de seu corpo o atraía sem remédio. Não demorou a escutar os eróticos sons que essa umidade provocava com cada movimento... e os ofegos com os que ambos respiravam. Essa moça sabia muito bem como utilizar seus músculos internos para excitá-lo; para levá-lo a beira do clímax sem catapultá-lo antes do tempo.
Rannulf a esperou. Esperou muito tempo; teria podido esperá-la toda uma eternidade se fosse necessário. Claire pusera em marcha um jogo delicioso e lento, e ele era capaz de manter-se a sua altura durante toda a noite, devolvendo carícia por carícia. No entanto, a moça se esticou afinal, apoiou todo seu peso sobre os joelhos e a parte inferior das pernas, fechou os olhos e deixou que as pontas de seus dedos lhe roçassem o abdômen. Enquanto a observava, percebeu que ela estava à beira do orgasmo: na realidade levava já um momento à beira, mas não era capaz de alcançá-lo. A diferença de outras mulheres, não ia fingir um clímax para adular suas habilidades nem para dar por terminado o encontro.
Rannulf afastou uma mão de seus quadris e a introduziu entre seus corpos, depois estendeu um dedo até encontrar o lugar que procurava e acariciá-lo ligeiramente.
Claire jogou a cabeça para trás enquanto seu cabelo deslizava por suas costas como uma nuvem de cor acobreada, esticou todos seus músculos e deixou escapar um grito. Rannulf a segurou pelos quadris com mais força e se introduziu nela com um par de poderosas arremetidas que o fizeram alcançar seu próprio clímax com um grunhido.
- Ao menos dois mil quilômetros - disse quando ela ergueu a cabeça e o olhou como se não soubesse muito bem onde se encontrava nesse instante.
- Sim - replicou a moça enquanto se retirava dela para girá-la na cama e deixá-la deitada a seu lado. Ato seguido inclinou a cabeça e lhe deu um profundo e terno beijo.
- Obrigado - disse - É maravilhosa.
- E você também - disse por sua vez - Obrigado, Ralph.
Olhou-a com um sorriso. Adorava escutar o som do seu nome em seus lábios.
- Acredito – comentou - que ganhaste um sono.
- Sim - assentiu Claire. - Mas não muito longo.
- Não?
- Quero continuar brincando - replicou.
Se não estivesse tão exausto, teria tido outra ereção nesse mesmo instante. Em troca, riu baixo.
- Nesse sentido - disse, - estou disposto a agradá-la sempre, senhora. Bom, quase sempre. Antes devemos dormir ou não haverá nada com o que brincar.
A moça soltou uma pequena gargalhada e Rannulf a rodeou com os braços antes de agasalhar a ambos com as mantas e dormir com um sorriso nos lábios. Sua última lembrança consciente foi o repico da chuva nos vidros.
A chuva caía com força contra as janelas. Não parou por toda a noite. Sem dúvida seria impossível viajar essa manhã. Talvez ficasse um pouco mais de tempo, apesar de tudo.
Judith não abriu os olhos. Jazia apoiada pela metade sobre as costas e o lado, com um quente braço sob o pescoço e o outro apoiado pesadamente sobre sua cintura. Tinha as pernas embaraçadas com outro par de pernas. A respiração de Ralph era profunda, ainda estava dormindo. Cheirava a colônia, a suor e a homem. Por curioso que parecesse, era uma mescla agradável.
Devia ter estado bastante ébria a noite anterior, porque de outra maneira jamais lhe teria passado sequer pela cabeça fazer o que fez. Essa manhã estava sóbria e tinha uma ligeira dor de cabeça como aviso de que tinha bebido mais da conta. Essa manhã compreendia a gravidade do que fez. Não era somente a questão de que se transformar em uma mulher desonrada; isso importava o mínimo, dado que breve se transformaria em uma parenta acolhida e em uma solteirona murcha. O que mais a preocupava era que a partir desse instante saberia o que ia perder durante o resto de sua vida. A noite passada acreditou que as lembranças bastariam. Essa manhã não estava tão segura.
E essa manhã também tinha pensado em algo mais... Senhor!.
Não havia dúvida de que estava muito ébria. Bem poderia haver ficado grávida durante qualquer um dos quatro encontros da noite anterior. Com esse pensamento chegou o pânico, mas tentou mantê-lo a raia concentrando-se em respirar com calma. Bom, não demoraria a inteirar-se. Seu período tinha que chegar nos próximos dias. Se não acontecesse nada...
Pensaria nisso mais tarde.
Certamente fora uma noite gloriosa. O fato de que se acreditasse uma atriz e uma cortesã com experiência tinha conseguido que se metesse no papel como nunca antes. As quatro taças de vinho também ajudaram, disso não tinha dúvida. Mal podia dar crédito às coisas que fez, às coisas que ele fez, às coisas que fizeram juntos e a incrível diversão de todo o processo. E aos deliciosos prazeres sensuais.
Jamais tinha suspeitado que Judith Law fosse capaz de desentender-se de toda uma vida de estritas normas morais para converter-se em uma desavergonhada. Escutou a chuva e desejou que não parasse. Ainda não.
Ralph suspirou contra sua orelha e depois despertou sem afastar-se dela.
- Mmm - murmurou, - alegra-me descobrir que não foi somente um sonho delicioso.
- Bom dia. - virou o rosto para olhá-lo e logo se ruborizou ante a absurda formalidade dessas palavras.
- Sem dúvida são bons. - Seus olhos azuis a contemplaram com expressão relaxada. - É a chuva o que escuto cair contra o vidro?
- Atrever-me-ia a dizer - respondeu ela - que nenhuma carruagem se aventurará a viajar pelos caminhos enquanto continuar a chover. Arriscaria a segurança de seu cavalo ou a sua própria?
- Nenhuma das duas. - Seus olhos se tornaram risonhos. - Suponho que isso significa que estamos presos aqui durante este dia e é provável que também outra noite, Claire. Pode imaginar um destino mais terrível?
- Talvez se pusesse muito empenho... - respondeu ela, observando o sorriso que aparecia no rosto de Ralph.
- Vamos morrer de aborrecimento - predisse ele. - Como vamos passar o tempo?
- Teremos que pôr nossa mente para funcionar para solucionar o problema - respondeu com um tom de voz deliberadamente sério - Talvez juntos encontremos uma solução.
- Se não nos ocorre nada - comentou ele com um suspiro, - não restará outro remédio que ficarmos na cama e matar as aborrecidas horas aqui mesmo até os caminhos comecem a secar.
- Que aborrecido - disse ela. Ralph a olhou nos olhos.
- Aborrecido - repetiu ele com voz grave. - Sim, sem dúvida alguma. Ela compreendeu de repente o que queria dizer, ruborizou-se e depois soltou uma gargalhada.
- O duplo sentido foi acidental - disse.
- Que duplo sentido? - Ela voltou a rir - De qualquer forma - comentou ele enquanto tirava o braço de debaixo da cabeça e se separava dela para sentar-se na beira da cama, - a parte aborrecida do dia terá que esperar. Advogo pelo café da manhã. Poderia comer uma vaca. Tem fome?
Tinha. Muita. Oxalá tivesse mais dinheiro. Ele pagara o quarto e o jantar, e era de supor que estava disposto a fazer o mesmo essa noite. Não podia esperar que seguisse fazendo frente a seus gastos durante todo o dia.
- Me bastará uma taça de chá - respondeu ela.
Ralph levantou da cama e espreguiçou enquanto se virava para olhar, alheio a sua nudez. Mas claro, por que deveria preocupar-se? Tinha um corpo incrível. Judith não pôde evitar devorá-lo com o olhar.
- Isso não é muito adulador -disse ele enquanto a contemplava com um sorriso bastante zombador - Supõe-se que o bom sexo o deixa faminto. E a única coisa que quer é uma taça de chá?
Essa palavra, «sexo», nunca fora pronunciada em voz alta na reitoria nem em nenhum grupo de pessoas do qual ela tivesse tomado parte. Era uma palavra que sempre tinha evitado, inclusive em seus pensamentos, substituindo-a com eufemismos. Ele a tinha pronunciado como se formasse parte de seu dia a dia, algo que era mais provável.
- Sim foi bom. - sentou-se pondo muito cuidado em segurar o lençol sobre o busto e sob os braços, e abraçou os joelhos - Sabe de sobra.
Ele a contemplou com atenção uns instantes. - Quão vazia está sua bolsa? - perguntou. Judith sentiu que se ruborizava de novo.
- Bom, não tinha previsto parar no caminho – explicou - só trouxe comigo o que estimei necessário para uma viagem sem interrupções. Sempre se corre o risco de que assaltem a carruagem.
- Como é possível que uma atriz de seu talento esteja três meses sem trabalhar? -inquiriu.
- Bom, não estava sem trabalho - assegurou - Tomei um tempo de descanso porque estava... estava farta de me encontrar sempre longe de casa. Faço-o de vez em quando. E sim tenho dinheiro. O problema é que não o trago comigo.
- Onde é sua casa? - perguntou. Seus olhares se encontraram.
- Por aí –respondeu - É particular. Meu lugar de descanso. Jamais digo onde é.
- Me deixe adivinhar - disse ele: - é uma mulher independente e orgulhosa que não permite que nenhum homem a proteja nem a mantenha.
- Exato - assegurou. Oxalá fosse verdade...
- Então esta ocasião vai ser uma espécie de exceção - afirmou Ralph. - Não oferecerei dinheiro por seus serviços. Acredito que o desejo e o prazer que obtivemos ao satisfazê-lo foram mútuos. Mas sim pagarei sua hospedagem durante o tempo que estejamos aqui. Não tem que se matar de fome a base de chá e água.
-Pode se permitir isso? - perguntou-lhe.
- Sempre acreditei - respondeu ele - que qualquer salteador que decidisse me atacar teria que estar mal da cabeça; e em caso de que não fosse assim, certamente que o estaria quando acabasse com ele. Não viajo com a bolsa vazia. Posso me permitir pagar seu café da manhã e qualquer outra comida durante o tempo que estejamos aqui.
- Obrigado. Não podia insinuar que o devolveria em um futuro. Jamais teria dinheiro suficiente.
- E agora - insistiu ele - me diga se fui bastante bom ontem à noite para que esteja faminta esta manhã.
- Esfomeada. – Sorriu - Foi muito bom, como muito bem sabe.
- Ah! - murmurou Ralph enquanto se inclinava um pouco para ela, - outro traço humano. Tem uma covinha junto à comissura direita dos lábios.
Semelhante comentário obteve que recuperasse a seriedade. Essa era a terceira coisa que a tinha assolado durante a infância: uma sardenta cabeça de cor cenoura com uma covinha.
- É absolutamente encantador - assegurou ele - vou assear-me e a me vestir antes de descer, Claire. Pode se reunir comigo quando estiver preparada. Bem podemos comer no salão público esta manhã e ver um pouco do mundo. Vai ser um dia muito longo.
Judith esperava que se alongasse uma eternidade. Abraçou os joelhos com força quando ele desapareceu atrás do biombo.
A Rannulf ocorreu que o destino lhe tinha repartido uma mão muito boa. Por regra geral, ficar preso na estalagem de um povoado devido às inclemências do tempo teria sido o pior dos pesadelos. Em qualquer outra circunstância, a inatividade o tornaria louco e o teria levado a tentar encontrar um modo de que tanto ele como seu cavalo chegassem sãs e salvos a casa de sua avó apesar do perigo. Dava-se perfeita conta de que não estava a mais de trinta quilômetros de Grandmaison Park.
Não obstante, as circunstâncias eram as que eram, e lhe aliviava saber que sua avó nem sequer sabia que estava a caminho, embora a anciã sempre esperasse sua chegada poucos dias depois de sua convocação. Se desejasse, poderia atrasar sua chegada ao menos uma semana sem que mobilizasse a todos os oficiais da área para que saíssem em sua procura.
Quando apareceu no salão do térreo, Claire usava um vestido de algodão verde pálido, ainda mais singelo que o de musselina do dia anterior. Penteou o cabelo de modo rígido sobre o cocuruto para trançá-lo e recolhê-lo à altura da nuca. Rannulf tinha se acostumado à forma em que ela evitava ressaltar seus encantos. Sem dúvida era uma atriz com classe, decidiu enquanto ficava em pé e a saudava com uma reverência.
Deram conta do copioso café da manhã sem pressa, conversando sobre assuntos sem importância até que o hospedeiro lhes levou mais torradas e ficou para discutir a situação da agricultura e a bênção que supunha a chuva depois de tantas semanas de caloroso e seco verão. Mais tarde, sua esposa lhes levou chá recém feito e ficou a falar sobre o horrível clima e todo o trabalho extra que suportava as mulheres, que deviam limpar o chão sem cessar porque seus maridos e seus filhos, sem importar o muito que os admoestasse ou os perseguisse com uma vassoura, insistiam em sair sob a chuva, embora não tivessem nada que fazer, para depois deixar o chão limpo cheio de água e lodo. Embora, conforme disse a mulher, persegui-los com a vassoura só piorava a situação, porque em lugar de sair da casa corriam por ela em busca de refúgio; e no caso de que saíssem, acabavam por voltar e tudo começava de novo.
Claire riu e se compadeceu dela.
Não passou muito tempo antes que o hospedeiro e sua mulher se alojassem em suas cadeiras e a esposa se servisse uma taça de chá enquanto o homem bebia de um copo de cerveja, ambos dispostos a manter uma longa conversação.
Rannulf achava mais gracioso o fato de estar sentado em uma mesa numa estalagem, que jamais poderia qualificar-se de elegante por muito que a imaginação o tentasse, enquanto confraternizava com os criados. Bewcastle, seu irmão, o duque, os teria transformado em duas pedras de gelo com somente um olhar. Teria cortado de um rasgo suas pretensões com o mero gesto de um dedo ou com uma sobrancelha arqueada. Claro que bastaria um olhar de Bewcastle para que ninguém abaixo da categoria de barão se atrevesse a sonhar sequer levantar a vista do chão em sua presença a menos que ele o indicasse.
- Por que - perguntou de repente o hospedeiro - viajava a senhora Bedard na carruagem enquanto que você ia a cavalo senhor?
- Nos comichava a curiosidade - explicou sua esposa.
Rannulf procurou o olhar de Claire, que estava sentada frente a ele. Tinha as faces acesas.
- Santo Deus! - exclamou, - será melhor que você diga.
Ralph.
Mas ela era a atriz. Por que não podia inventar uma história verossímil? Contemplou-a uns minutos, mas Claire se limitou a devolver o olhar com a mesma espera que o outro casal. Rannulf limpou a garganta.
- Não tive em conta a delicada sensibilidade de minha esposa durante nosso almoço de bodas - explicou sem afastar o olhar dela - Alguns de nossos convidados beberam muito vinho e alguns (meus primos, de fato) fizeram alguns comentários indecentes. Por muito envergonhado que me sentisse ri. Minha brilhante esposa não o fez. Informou-nos que saía um instante e só mais tarde descobri que tinha fugido em nossa noite de bodas.
O rubor das faces de Claire se intensificou.
- Vê? - disse a mulher do hospedeiro enquanto lhe dava uma cotovelada nas costelas - Disse que acabavam de receber as bênçãos.
- Alcancei-a ontem por fim - continuou Rannulf enquanto a via morder o lábio. - Alegra-me lhes informar que me concedeu o perdão por haver rido quando não devia e que agora tudo está bem.
A moça abriu os olhos de par em par.
A mulher do hospedeiro virou a cabeça para olhar a Claire com um sorriso terno.
- Neste caso, pombinha - disse - A primeira vez é a pior.
- Embora para ser sincera não escutei soluços e não vejo rastros de lágrimas esta manhã, assim que me atrevo a dizer que não foi tão mau como acreditou. Espero que o senhor Bedard saiba como fazê-lo bem. - pôs-se a rir com ar conspiratório e Claire se uniu à mulher.
Rannulf olhou sobressaltado o hospedeiro, que o olhou por sua vez com idêntica expressão.
Claire e Rannulf saíram ao pátio depois do café da manhã, embora se surpreendesse que a moça pedisse para acompanhá-lo. Rannulf queria ver seu cavalo para assegurar-se de que não se machucara no dia anterior e de que fora atendido como correspondia. Queria escová-lo e lhe dar de comer ele mesmo essa manhã. Claire colocou as botas de cano longo e a capa, ergueu o capuz e ambos cruzaram o pátio descoberto correndo, tentando pisar sobre os montes de erva e assim evitar o barro e o esterco na medida do possível.
A moça se sentou sobre um monte de feno limpo enquanto ele trabalhava. Tirou o capuz e abraçava os joelhos.
- Pequena história - comentou.
- Refere-se a da noiva puritana? Também me pareceu isso. - Sorriu.
- A hospedeira em pessoa vai limpar nossos aposentos e assegurar-se de que se acenda o fogo nas lareiras dos dois aposentos - informou - Deve ser uma grande honra que ela nos atenda em lugar da criada. Não me parece justo enganá-los, Ralph.
- Acaso preferiria lhes dizer a verdade? - inquiriu ele. Seu cavalo não parecia estar em mal estado, embora não cessava de soprar inquieto. Queria sair e fazer exercício.
-Não – respondeu - Isso tampouco seria justo. Rebaixaria a categoria de seu estabelecimento.
Ele arqueou as sobrancelhas, mas não disse nada.
- Como se chama seu cavalo? - perguntou-lhe.
- Bucéfalo - respondeu Rannulf.
- É valioso.
- Sim.
Guardaram silêncio enquanto ele terminava de escovar o cavalo, tirava o feno sujo do estábulo para substituí-lo por feno limpo e dava de comer e de beber ao animal. Era algo muito surpreendente. À maioria das mulheres que conhecia adoravam tagarelar, com a notável exceção de sua irmã Freyja. Claro que Freyja era uma exceção à maioria das regras. O silêncio entre eles era cômodo. Não se sentia coibido ante o sereno escrutínio da moça.
-Você gosta dos cavalos - afirmou Claire uma vez que ele havia terminado e se apoiou contra uma escora de madeira com os braços cruzados - Tem mãos delicadas.
- Sério? - Esboçou um meio sorriso. - Você não gosta dos cavalos?
- Não tive muito contato com eles - admitiu a moça - Acredito que tenho um pouco de medo.
Entretanto, antes que pudessem aprofundar a conversação, apareceu um moço de estábulo para informar que a mulher do hospedeiro tinha preparado uma jarra de chocolate quente que os esperava no salão, de modo que atravessaram correndo de novo o pátio e pulando uma vez mais os atoleiros. A chuva parecia cair com menos força.
Sentaram-se e falaram durante umas duas horas até que o almoço estava preparado. Falaram a respeito dos livros que leram e a respeito da guerra, recém acabada com a derrota e captura de Napoleão Bonaparte. Rannulf falou de seus irmãos e irmãs sem lhe dizer exatamente quem eram. Falou de Wulfric, o mais velho; de Aidan, o oficial de cavalaria que tinha voltado para casa de licença, casou-se e decidiu abandonar o exército; de Freyja, que esteve a ponto de comprometer-se duas vezes com o mesmo homem, mas que o perdeu nas mãos de outra mulher no ano passado e que parecia uma fúria depois; de Alleyne, seu charmoso irmão mais novo; de Morgan, a pequena, a irmã que ao que parece ia ser mais linda do que qualquer uma teria direito de ser.
- A menos – acrescentou - que tivesse o cabelo da cor do fogo, olhos verdes e pele de porcelana. - e o corpo de uma deusa, acrescentou para si mesmo. - Fale-me de sua família.
Falou-lhe de suas três irmãs: Cassandra, a mais velha; Pamela e Hilary, que era a pequena. E também falou de seu irmão, Branwell. Seus pais ainda viviam. Seu pai era um clérigo, o que explicava por que se afastou de sua família. O que teria motivado à filha de um clérigo a transformar-se em atriz? Não formulou a pergunta e não ofereceu informação a respeito.
Mas quando terminaram de almoçar, a chuva se transformou em uma ligeira garoa. Se cessasse na próxima hora, os caminhos estariam transitáveis no dia seguinte. A idéia era de certa forma deprimente. O dia parecia estar passando muito depressa.
- O que podemos fazer para nos divertir neste povoado? - perguntou à hospedeira quando esta se aproximou para retirar os pratos; ao que parece os consideravam muito importantes para que fossem atendidos pela criada. A criada em questão estava ocupada servindo cerveja aos paroquianos no bar contíguo.
- Não há muito que fazer em um dia como este - respondeu a mulher enquanto se endireitava, colocava os braços na cintura e franzia o cenho em um gesto de concentração. - Não é dia de mercado. Só há uma igreja, e não é nada do outro mundo.
- Há lojas? - perguntou Rannulf.
- Bom, há a loja de provisões do outro lado do prado - respondeu com jovialidade, - a chapelaria está ao lado e a ferraria depois. Embora não acredite que você necessite dos serviços do ferreiro.
- Nos conformaremos com a loja de provisões e a chapelaria -respondeu ele. - Tenho intenção de comprar para minha esposa um chapéu novo, já que fugiu sem nenhum.
O do Claire, ao menos o único que levara consigo, ficou esquecido dentro da carruagem, ou isso havia dito antes.
- Nem pensar! – protestou - Na verdade não tem por que fazê-lo. Não poderia permitir que...
- Aceite algo que lhe ofereça, pombinha - aconselhou a hospedeira com uma piscada. - Atrever-me-ia a dizer que ganhou ontem à noite.
- Além disso - adicionou Rannulf, - supõe-se que as esposas não devem questionar a forma em que seus maridos gastam o dinheiro, não é certo?
- Não enquanto o gastem nelas. - A mulher pôs-se a rir de boa vontade e desapareceu com os pratos.
- Não posso permitir que... - começou Claire.
Ele se inclinou sobre a mesa e colocou uma mão sobre as suas. - É mais que possível -disse - que todos os chapéus da loja sejam horrendos. Mas de qualquer maneira iremos vê-los. Quero comprar um presente. Não tenha a menor dúvida de que ganhaste isso. Um presente não é mais que um presente.
- Mas eu não tenho dinheiro para comprar um - protestou ela. Ele arqueou uma sobrancelha e ficou de pé. Era evidente que era uma mulher orgulhosa. Seria capaz de deixar loucos alguns protetores em potencial se alguma vez atracasse nos salões dos teatros de Londres.
Todos os chapéus que estavam à vista na chapelaria eram de fato horrendos. Mas qualquer esperança que tivesse albergado Judith de evitar a mortificação que suporia receber um presente se esfumou quando a senhorita Norton desapareceu nos fundos da loja para depois sair com um chapéu nas mãos.
- Este - disse, avaliando Ralf com uma olhada - guardei para um cliente especial.
Judith se apaixonou a primeira vista. Era um chapéu de palha com uma aba pequena e fitas vermelhas. Na parte superior da aba, onde se unia com a copa, havia uma fileira de flores de seda com as intensas cores do outono. Mesmo que por isso não fosse um chapéu empetecado. A simplicidade era seu maior atrativo.
- E ressalta a compleição da senhora - comentou a senhorita Norton.
- Prove - disse Ralf.
- Mas...
- Prove
Ela assim o fez, ajudada pelas ágeis mãos da senhorita Norton, que lhe atou as largas fitas no lado esquerdo do queixo e depois pegou um espelho de mão para que Judith pudesse contemplar-se.
É precioso. Podia ver seu cabelo sob o chapéu, tanto pela frente como pela parte posterior. Todos os chapéus que havia possuído sua mãe os tinha escolhido com toda deliberação - embora contasse com sua total aprovação - para esconder a maior quantidade de seu cabelo cor cenoura que fosse possível.
- Levaremos esse - anunciou Ralf.
- Mas... – virou-se para olhá-lo de frente.
- Não se arrependerá, senhor - afirmou a senhorita Norton. - A beleza da senhora toca a perfeição.
- Sem dúvida - concordou ele enquanto tirava um moedeiro do bolso interno do casaco. - Nós ficamos. Ela o usará agora.
Judith engoliu em seco com desconforto. Não era permitido que uma dama aceitasse um presente de um cavalheiro que não fosse seu noivo. E inclusive nesse caso...
- Que tolice! Menina estúpida pensar no que faria uma mulher depois da noite passada. E o chapéu era a coisa mais bonita que havia possuído em toda sua vida.
- Obrigado - disse e foi então quando percebeu a quantidade de cédulas que estava estendendo à senhorita Norton. Judith fechou os olhos, horrorizada, e sentiu o prazer contraditório que supunha possuir algo novo, caro e encantador.
- Obrigada - repetiu quando saíram da loja e ele abriu sobre suas cabeças o enorme e velho guarda-chuva que o hospedeiro tinha insistido em lhes emprestar para cruzar o pantanoso prado que se estendia entre a estalagem e as lojas. - É incrivelmente lindo.
- Embora fique de todo eclipsado por sua proprietária – disse - vamos ver o que nos oferece a loja de provisões?
O estabelecimento tinha praticamente de tudo, e a maioria dos produtos eram baratos, escandalosos e de um gosto execrável. Entretanto, olharam tudo, colados um ao outro, enquanto sufocavam a risada ante os artigos mais espantosos. Depois, o lojista encetou com Rannulf uma discussão sobre o tempo, que começava a melhorar por fim. O sol brilharia pela manhã, predisse o homem.
Judith tirou seu moedeiro da bolsa de mão e contou rapidamente as moedas. Sim, tinha o justo. Embora esperasse que a diligência a levasse a casa de sua tia no dia seguinte sem maiores demoras, já que não ficaria nada para comer. Mas não se importava. Agarrou uma caixinha de rapé de uma estante e a levou ao balcão. Riram ao vê-la porque tinha uma cabeça de porco especialmente horrorosa na tampa. Pagou a importância enquanto Ralph trabalhava muito para fechar o guarda-chuva, já que não o precisariam no trajeto de volta através do prado.
Deu-lhe o presente à saída da loja. Ele se pôs a rir quando o desembrulhou.
- E isto é a medida da estima que sente por mim? - perguntou-lhe.
- Talvez assim me recorde cada vez que desfrutes de um bom espirro - respondeu-lhe.
- É claro que sim - disse-lhe enquanto abria o casaco para guardar a caixinha com extremo cuidado no bolso - que a recordarei, Claire. Mas entesourarei seu presente. Gastou até a última moeda que tinha?
- Não, é claro que não - assegurou-lhe.
- Mentirosa. - Enlaçou seu braço com o dela. - Quase passou a tarde e o aborrecimento ainda não nos conduziu de volta à cama. Embora me parecesse que está a ponto de fazê-la. Acredita que acharemos tedioso o tempo que passemos ali?
- Não - respondeu ela, que se sentiu de repente sem fôlego.
- Sou da mesma opinião - afirmou ele. - O hospedeiro e sua encantadora senhora nos alimentaram bem. Teremos que encontrar um modo de abrir o apetite para fazer justiça ao jantar que sem dúvida estão nos preparando. Ocorre-lhe alguma maneira de consegui-lo?
- Sim - respondeu ela.
- Só uma? - Estalou a língua.
Judith sorriu. Sentia-se bonita com seu novo chapéu, o presente que lhe deu descansava em seu bolso e retornavam à estalagem... à cama. Tinham o resto da tarde e a noite por diante. Faria que durasse uma eternidade.
Levantou os olhos para o ceu, mas já se viam claros entre as nuvens e começava a aparecer o ceu azul. Não olharia. Ainda faltavam horas para que chegasse o amanhã.
- Olhe - disse Claire com uma ligeira nota de assombro na voz. - Viu alguma vez uma imagem mais maravilhosa?
A moça estava junto à janela aberta da saleta privada, com os cotovelos apoiados no batente e o queixo sobre as mãos, observando como o sol se ocultava sob um ceu coalhado de matizes de cor alaranjada, rosa e dourado. Usava um vestido de seda de listras bege e dourado, muito de acordo com o que Rannulf começava a identificar como seu característico estilo singelo e elegante. O cabelo, que lhe caía solto pelas costas, parecia escuro em comparação.
Claire era uma constante fonte de surpresas. Quem teria imaginado que uma atriz se maravilharia diante de um pôr-do-sol? Ou que seus olhos mostrariam tal fascinação por um chapéu delicioso em sua beleza, mas nem muito ostentoso ou caro? Ou que riria como uma tola por uma caixinha de rapé horrorosa em troca de que gastou o último xelim de sua atribuição para a viagem? Ou que faria amor sem ocultar o deleite que lhe produzia?
- Ralph? - Claire voltou à cabeça e estendeu uma mão para ele. - Vem olhar.
- Já estava olhando – disse - Você forma parte do quadro.
- Não precisa ficar me adulando – replicou. - Vem olhar.
Rannulf lhe deu a mão e se colocou junto dela. O problema do pôr-do-sol era que a escuridão chegava lhe pisando os calcanhares. Igual ao problema com o outono era que o inverno não demorava em segui-lo. Mas o que era que o estava pondo tão sensível?
- O sol brilhará amanhã - disse Claire.
- Sim.
Apertou-lhe a mão.
- Me alegro muito que tenha chovido - prosseguiu a moça. - Alegro-me que a diligência tenha tombado. Alegro-me de que não procurasse hospedagem no último povoado.
- E eu. - Rannulf afastou a mão da dela para lhe rodear os ombros com o braço.
Claire se recostou contra ele e ambos contemplaram como o sol desaparecia depois do longínquo horizonte.
Queria deitar-se com ela de novo. Tinha toda a intenção de fazê-lo, tantas vezes durante a noite quanto sua energia permitisse. Entretanto, essa noite não sentia a urgência que o tinha acompanhado a noite anterior nem a lasciva euforia dessa tarde. Essa noite se sentia quase... melancólico. E não era um estado de ânimo ao qual estivesse acostumado.
Depois de retornar das lojas, entregaram-se ao prazer de duas vigorosas relações sexuais; entre lençóis limpos, conforme pode comprovar. Tinham dormido um pouco e depois jantaram em particular. Claire tinha representado Viola e Desdémona para ele. E então se fixou no pôr-do-sol.
Estava ficando tarde. O tempo se esgotava e lamentava muito não poder prosseguir com essa aventura até que concluíra por si mesmo de modo natural, talvez em alguns dias ou um pouco mais de uma semana.
Claire suspirou e virou a cabeça para olhá-lo. Rannulf a beijou.
Gostava do modo de beijar da moça, com os lábios relaxados e abertos para ele, lhe respondendo sem urgência para tomar o controle. Sua boca tinha sabor de vinho apesar de só ter bebido uma taça durante o jantar.
E foi enquanto a beijava quando lhe ocorreu a idéia. A brilhante idéia. A idéia mais óbvia.
- Partirei contigo amanhã - disse após levantar a cabeça.
- O que? - Claire o olhou com as pálpebras entreabertas.
- Partirei contigo amanhã - repetiu Rannulf.
- Na diligência? - Franziu o cenho.
- Alugarei uma carruagem particular – disse - Deve haver alguma disponível aqui por perto. Viajaremos muito mais cômodos. E...
- Mas o que acontecerá com seus amigos? - perguntou ela.
- Não acredito que enviem uma patrulha de busca - respondeu. - Nem sequer confirmei uma data exata de chegada. Irei contigo a York. Ardo de desejo de vê-la atuar em um cenário de verdade junto a outros atores. E o nosso caso ainda não terminou, certo?
Ela o olhou sem piscar.
- Não, não - replicou Claire. - Não poderia lhe causar semelhante incômodo. Uma carruagem particular custaria uma fortuna.
- Minha bolsa está bastante cheia - afirmou ele.
A moça negou muito devagar com a cabeça e Rannulf teve um repentino pressentimento.
- Há alguém a esperando? – perguntou - Acaso outro homem?
- Não.
- Outra pessoa, possivelmente? - prosseguiu ele com as perguntas. - Outra pessoa que possa sentir-se ofendida pelo fato de que eu a acompanhe?
- Não.
Entretanto, Claire continuava expressando sua negativa com um lento movimento de cabeça. A Rannulf ocorreu outra possibilidade bastante sombria.
- O nosso caso terminou? – inquiriu. - Ou continuaremos juntos depois de compartilhar outra noite? Se alegrará voltar a ser livre manhã e prosseguir seu caminho solitário?
De novo uma negativa, para alívio de Rannulf.
- Quero mais de você, Claire – insistiu. - Quero mais de seu corpo, mais de você. Quero vê-la atuar. Não ficarei para sempre, só durante uma semana sim, até que ambos estejamos satisfeitos. É uma mulher independente que não gosta de sentir nada por um só homem, já me dei conta disso. Eu sou um nome que não tem problemas para seguir adiante depois de desfrutar uma breve aventura. Mas amanhã é muito de repente. Além disso, não acredito que esteja desesperada por subir na diligência e se sentar de novo junto a outro clérigo esquelético.
Claire não moveu a cabeça dessa vez. Durante um instante apareceu em seus lábios um pequeno sorriso.
- Me diga que quer mais de mim - disse Rannulf aproximando-se de sua boca.
- Quero mais de você.
- Nesse caso estamos de acordo. - Deu-lhe um fugaz beijo. - partiremos juntos amanhã. A acompanharei a York e a verei atuar. Passaremos mais uns dias juntos, talvez uma semana. Possivelmente mais. Tanto tempo quanto dure.
A moça voltou a esboçar um leve sorriso e lhe acariciou a face com as pontas dos dedos.
- Isso seria estupendo - disse.
Rannulf cobriu a mão com a sua e depositou um beijo sobre sua palma. Quem ia imaginar, no dia anterior, quando deixou a casa de Aidan de caminho a Grandmaison, que cavalgaria direto aos braços de uma nova amante e de uma tórrida aventura? Tinha amaldiçoado o barro e a ameaça de chuva, mas ambos acabaram por ser uma bênção.
- Pronta para ir para cama? - perguntou. Ela assentiu com a cabeça.
Rannulf estava exausto. Quatro vezes na noite anterior e duas mais nessa mesma tarde fizeram trinca em sua resistência e sem dúvida alguma também na de Claire. Não obstante, essa noite não tinha por que ser tão desesperada como tinha previsto. Não era preciso que permanecessem acordados toda a noite para aproveitar ao máximo cada momento. Tinham muitos dias e muitas noites por diante, tantos quanto necessitassem.
- Vamos, - Tomou de novo a mão e a precedeu até o dormitório. - Desfrutaremos fazendo amor muito devagar e depois dormiremos, está bem? – Sim - respondeu ela com um murmúrio rouco cuja tentadora e sensual promessa prendeu por completo Rannulf.
Já havia luz no exterior, embora provavelmente fosse muito cedo. A diligência deixaria a estalagem às oito e meia, conforme lhe tinha informado o hospedeiro na noite anterior, embora o homem tivesse suposto que o senhor e a senhora Bedard não prosseguiriam sua viagem nela.
E não o fariam. Mas Judith Law o faria se tivesse a possibilidade. Não podia partir com Ralph. Aonde iriam?
A aventura acabou. Seu sonho roubado se transformou em algo vazio e sem brilho. Uma dor surda lhe apertava o peito como se fosse uma mão enorme. Teria que despertar Ralph dentro de pouco e sugerir que fosse procurar uma carruagem de aluguel sem parecer muito ansiosa a respeito. Não tinha coragem para lhe contar a verdade, nem tampouco para urdir outra mentira. Era muito covarde para lhe dizer que não, que não partiria com ele, que continuaria sua viagem sozinha na diligência.
Dizer a verdade seria o mais honorável e talvez o mais considerado.
Entretanto, não suportaria ter que dizer adeus.
Ralph tinha dormido como uma pedra durante toda a noite depois de fazer amor muito devagar, quase com frouxidão. Ela tinha passado as horas deitada a seu lado, olhando o teto; fechando os olhos de vez em quando sem chegar a dormir; observando a janela a espera dos primeiros indícios de luz; desejando que a noite durasse uma eternidade e assim prolongar sua agonia.
Era-lhe difícil acreditar até há duas manhãs antes tivesse sido Judith Law que conhecera durante toda sua vida. Nesse momento já não sabia quem era Judith Law.
- Já está acordada? - perguntou Ralph do outro lado da cama e ela virou a cabeça para lhe sorrir. Para embeber-se de sua imagem, para entesourar lembranças - dormiu bem?
- Mmm - murmurou ela.
- Eu também. - Se espreguiçou - dormi como uma pedra, tal e como reza o ditado. Sem dúvida sabe como esgotar um homem, Claire Campbell. Da melhor maneira possível, está claro. - Partiremos cedo? - perguntou.
Ralph pôs os pés no chão para levantar-se da cama e atravessou o quarto em direção à janela.
- Nenhuma nuvem no ceu - informou depois de abrir as cortinas - e nem sequer se vê um atoleiro no pátio. Não há motivo algum para atrasar-se. Talvez devesse sair em busca de uma carruagem assim que me tenha vestido e barbeado. Podemos tomar o café da manhã mais tarde, antes de partir.
- Parece-me um bom plano - disse ela.
Desapareceu atrás do biombo e Judith pôde escutar o ruído da água ao verter-se sobre a bacia. Como desejava que se apressasse. Como desejava que o tempo parasse.
- Alguma vez teve relação sexual em uma carruagem, Claire? - perguntou-lhe.
Judith captou a nota risonha de sua voz.
- Asseguro-lhe que não. - Dois dias atrás, semelhante pergunta a teria escandalizado até o inexprimível.
- Há! – exclamou - Nesse caso prometo que hoje terá uma nova experiência.
Apareceu de novo uns minutos depois, completamente vestido com camisa, colete e jaqueta, além das calças de montar de antes e as botas de cano longo; afastou o cabelo úmido do rosto recém barbeado. Caminhou para a cama onde ela continuava deitada, inclinou-se e lhe deu um beijo rápido.
- Assim, com o cabelo esparramado sobre o travesseiro e os ombros nus – disse, - tentaria ao mais ascético dos santos, entre cujas filas não me encontro. Entretanto, os negócios estão antes do prazer. Uma carruagem pode converter-se em... uma cama da mais interessante, Claire.
Endireitou-se, esboçou um sorriso, deu meia volta e partiu.
Sem mais.
Foi-se.
O silêncio que deixou atrás dele era ensurdecedor.
Durante um instante Judith ficou tão mergulhada na tristeza que foi incapaz de mover-se. Não obstante, entrou em ação sem perda de tempo e saltou da cama para correr para o biombo depois de apanhar sua roupa. Quinze minutos mais tarde descia a escada com a pequena bolsa em uma mão e a pesada bolsa de viagem na outra.
O hospedeiro, que estava limpando uma mesa no bar, endireitou-se para olhá-la e cravou os olhos em sua bolsa de viagem. -Tenho que apanhar a diligência - disse ao homem.
- Sim? - perguntou ele.
Sua esposa saiu nesse preciso momento por uma porta situada à esquerda de Judith.
- O que aconteceu, pombinha? – perguntou. - foi brusco com você, não é? Falou-lhe com rudeza, não foi? Não se preocupe. Os homens sempre falam sem pensar. Tem que aprender a enrolá-lo para engraçar-se com ele. Não lhe custará trabalho algum. Já me dei conta do modo em que a olha. Adora-a, sim senhor.
Judith se obrigou a sorrir.
- Tenho que partir - disse. Entretanto, lhe ocorreu algo de repente. - Poderiam me arrumar papel, pluma e tinta?
O casal a contemplou em silêncio durante uns instantes antes que o hospedeiro corresse para o balcão em busca das três coisas.
Estava esbanjando um tempo precioso, pensou Judith com o estômago encolhido pelo medo. Ralph retornaria a qualquer momento e teria que dizer-lhe pessoalmente. Não seria capaz de suportar. Não poderia suportar. Escreveu apressada, deteve-se um momento e depois voltou a inclinar a cabeça para acrescentar uma frase mais. Assinou apressadamente com seu nome - Claire-, secou a tinta e dobrou a folha duas vezes.
- Dará isto ao senhor Bedard quando retornar? - perguntou.
- Farei, senhora - prometeu-lhe o hospedeiro enquanto ela se agachava para apanhar sua bolsa de viagem. - Espere, direi ao moço do estábulo que leve sua bolsa.
- Não tenho dinheiro para lhe pagar - disse Judith com as faces ruborizadas.
A hospedeira estalou a língua.
- Valha-me Deus! – replicou. - Acrescentaremos à conta de seu marido. Dá-me vontade de lhe dar com um pau de amassar macarrão na cabeça, falo sério. Assustá-la deste modo...
Voltou a perder um tempo precioso enquanto chamavam o moço do estábulo, mas por fim Judith abandonou a estalagem apressada em direção à casa de postas, com a cabeça encurvada sob seu novo chapéu. Desejava, desejava de todo coração - por favor, Senhor! - não topar-se com Ralph no caminho.
E assim, meia hora depois, enquanto a diligência - um distinto, com um condutor distinto e com passageiros distintos em sua maioria - saía do pátio da estalagem e tomava o caminho do norte, Judith colou o nariz à janela e observou desesperada os arredores, desejando vislumbrar Ralph. Tinha o estômago revolto. A dor de cabeça do dia anterior tinha retornado com força. Estava tão deprimida que perguntava se isso era o que as pessoas chamavam desespero.
Rannulf retornou à estalagem quarenta minutos depois de havê-la abandonado, depois de acordar o aluguel de uma carruagem mais ou menos decente e de dois cavalos a um preço exorbitante. Demorariam uma hora em prepará-los. Teriam tempo para tomar o café da manhã. Voltava a sentir um apetite voraz. Esperava que Claire não estivesse ainda na cama... sentia-se também um tanto excitado e o aspecto da moça fora muito tentador quando ele saiu do quarto.
Subiu os degraus de dois em dois e abriu a porta com um empurrão. A cama estava vazia. Claire não estava atrás do biombo. Abriu a porta da saleta particular. Tampouco estava ali. Maldição, em lugar de esperar tinha descido para tomar o café da manhã. Não obstante, acabava de retornar à escada quando se deteve em seco, franziu o cenho e deu meia volta. Entrou no dormitório e deu uma olhada ao redor.
Nada. Nem rastro de roupa, grampos ou bolsa. Nem da bolsa de viagem. Apertou os punhos de ambos os lados do corpo e começou a sentir um principio de fúria. Não podia fingir que se tratava de um mal-entendido. A moça fugiu e o tinha abandonado. Sem uma palavra. Nem sequer teve a coragem de lhe dizer que partia.
Retornou ao térreo e topou cara a cara com o hospedeiro e sua esposa; o primeiro o olhava com aparente compaixão enquanto que a mulher o fazia com os lábios apertados e soltando faíscas pelos olhos.
- Suponho - começou Rannulf. - que foi na diligência.
- Assustadiça - disse o hospedeiro. - As recém casadas, refiro-me. Algumas são assim até que se as domestique como é devido.
- As esposas não são cavalos - replicou sua esposa com severidade. - Suponho que terão discutido e que você lhe terá dito algumas coisas feias. Espero que não a tenha maltratado. - A mulher semicerrou os olhos.
- Não a maltratei - afirmou Rannulf, incapaz de acreditar que se rebaixou a defender-se diante de um casal de criados.
- Nesse caso será melhor que cavalgue atrás dela e engula o orgulho - advertiu-lhe a mulher. - Não lhe ocorra dar-lhe uma reprimenda. Diga que está arrependido e que durante o resto de sua vida falará como Deus manda.
- Farei - acessou Rannulf, que se sentia mais estúpido e furioso até não poder mais. Nem sequer teve a decência de...
- Deixou-lhe uma nota - disse o hospedeiro, assinalando com a cabeça em direção ao balcão.
Rannulf virou a cabeça para ver um pedaço de papel dobrado sobre a tosca madeira. Atravessou a grandes passadas o bar, agarrou-a e desdobrou o papel.
«Não posso partir contigo - rezava a nota. - Sinto muito não ter a coragem de lhe dizer isso pessoalmente. Sabe? É certo que há outra pessoa. Atenciosamente, Claire.»
Tinha sublinhado a palavra «há» três vezes.
Assim esteve deitando-se e passando bem com a amante de outro homem, não? Assentiu com a cabeça um par de vezes enquanto a seus lábios aparecia um sorriso zombador. Supunha que ao final sim fora um ingênuo ao acreditar que uma mulher com sua aparência e sua profissão não contava com o amparo de algum homem endinheirado. Enrugou o papel com uma mão e o guardou em um dos bolsos da jaqueta.
- Imagino que quererá seu cavalo, senhor - disse o hospedeiro. - Para ir atrás dela.
Maldita fosse, o que queria era seu café da manhã. - Sim – respondeu. - Assim é.
- Já está preparado - informou o homem. - Tomei a liberdade de fazê-lo depois de que a senhora sua esposa partisse de...
- Sim, sim - interrompeu Rannulf. - Dê-me a conta e me porei a caminho.
- E sendo um recém casado há tão só duas noites... - disse a mulher. - Troquei a roupa da cama, senhor, como terá notado. Supus que ontem à noite não iam querer deitar-se em lençóis manchados de sangue, não é verdade?
Rannulf, que estava de cara para o balcão abrindo o moedeiro, tinha à mulher a suas costas. Ficou paralisado durante um instante.
- Lençóis manchados de sangue? - pensou.
- Sim, dava-me conta - respondeu enquanto tirava a soma requerida mais uma generosa gorjeta. - Obrigado.
Enquanto se afastava da estalagem a cavalo pouco depois, supostamente atrás de sua assustadiça e zangada esposa, recitou todas e cada uma das obscenidades e maldições que lhe passaram pela cabeça.
- Estúpido! - exclamou por fim em voz alta. - Era uma maldita virgem!
Nessa tarde, quando Judith desembarcou da carruagem no povoado de Kennon, em Leicestershire, descobriu sem muita surpresa que não havia caleche, carreta ou criado algum de Harewood Granger esperando-a. A casa estava a quase cinco quilômetros, conforme lhe informaram; e não, não havia nenhum lugar seguro onde pudesse deixar sua bolsa de viagem. Teria que levá-la consigo.
Cansada, faminta e com o coração quebrado, Judith percorreu como pôde os cinco quilômetros, detendo-se com frequência para soltar a bolsa e trocar de mão. Levava muito poucas coisas nela - não tinha muito que levar-, mas era surpreendente o que podiam chegar a pesar alguns vestidos, sapatos, camisolas e escovas para o cabelo. O sol caía com força sobre seu rosto do ceu espaçoso. A sede não demorou muito em converter-se em uma necessidade mais urgente que a fome.
O caminho de entrada à propriedade, que serpenteava sob os ramos de umas enormes e escuras árvores, resultou-lhe interminável; embora ao menos a sombra fosse de agradecer. A casa, conforme pôde descobrir quando por fim apareceu diante de seus olhos, era toda uma mansão; mas claro, não tinha esperado menos. O tio Effingham era enormemente rico. Esse era o motivo pelo qual a tia Effingham se casou com ele; ou isso foi o que mamãe disse em uma ocasião, zangada depois de ler uma carta de sua tia cujo tom lhe tinha parecido condescendente.
Quando Judith bateu na porta principal, apareceu um criado que a olhou com expressão altiva, como se ela não fosse mais que uma lesma arrastada pela chuva, e lhe indicou um salão adjacente ao enorme vestíbulo de mármore antes de voltar a fechar a porta. Ficou esperando naquele lugar quase uma hora, mas não apareceu ninguém, nem sequer para lhe levar um refrigério. Desejava com todas as suas forças abrir a porta e pedir um copo de água, mas por absurdo que parecesse se sentia atemorizada tanto pelo tamanho da casa como pelas evidentes mostra de riqueza que a rodeavam.
Por fim chegou tia Effingham, uma mulher alta e magra com uma inverossímil mata de cachos negros que lhe emoldurava o rosto sob a aba do chapéu. Tinha mudado muito pouco em oito anos, o tempo transcorrido da última vez que Judith a viu.
- Há! Assim você é Judith, não? - perguntou enquanto se aproximava o bastante para beijar o ar junto à face de sua sobrinha. - Não há dúvida de que tomaste seu tempo. Esperava que viesse Hilary, posto que seja a mais nova de vocês e bem certo a mais obediente. Mas terá que ser você, que remédio. Como está meu irmão?
- Está bem, obrigado, tia Louisa - respondeu Judith. - Mamãe envia seus...
- Santo ceu, menina, seu cabelo! - exclamou sua tia de repente. - Segue sendo tão chamativo como recordava. Que desgraça mais horrível e que dura experiência para meu irmão, que sempre foi à personificação do decoro e a decência. No que estava pensando sua mãe quando comprou esse chapéu? A única coisa que consegue é pôr em evidência seu cabelo. Terei que procurar outro. Trouxe toucas para usar em casa? Dar-lhe-ei algumas.
- Sim tenho... - começou a dizer Judith, embora o olhar de sua tia se transladasse de seu ofensivo cabelo coroado pelo chapéu até sua capa, um tanto entreaberta para aliviar um pouco o calor. As sobrancelhas de tia Louisa se elevaram com horror.
- No que estava pensando minha cunhada ao enviá-la a minha casa vestida assim? -exclamou.
Sob a capa, Judith usava um singelo vestido de musselina de recatado decote e cintura alta, segundo os últimos ditames da moda. Um pouco incômoda, baixou o olhar para observar-se. - Esse vestido é indecente! - exclamou sua tia com voz ensurdecedora. - Parece uma rameira.
Judith notou que se ruborizava. Durante um dia e duas noites conseguiram que se sentisse linda e desejável, mas as palavras de sua tia a devolveram à realidade bruscamente. Era feia; embaraçosamente feia, tal e qual seu pai se empenhou em lhe fazer entender, embora nunca tivesse usado palavras tão cruéis como as de tia Effingham. Embora talvez parecesse de verdade uma rameira. Talvez esse fosse o motivo pelo qual Ralph Bedard a tinha achado tão desejável. A idéia era excessivamente dolorosa.
- Terei que inspecionar toda sua roupa - prosseguiu tia Louisa. - Se todos seus vestidos forem como este, terei que ordenar que alarguem as costuras para conseguir que pareçam um pouco mais modestos. Espero que Effingham não se veja obrigado a lhe pagar vestidos novos. Ao menos não este ano, quando teve que custear a apresentação de Julianne à rainha e sua estréia na sociedade, além de todos os gastos adicionais que suporão as bodas e o vestido de noiva.
Julianne era a prima de dezoito anos de Judith, a quem estava oito anos sem ver.
- Como está vovó? - perguntou Judith.
Sua avó vivia com a tia Effingham. Judith não a tinha visto desde que era uma menina. Recordava de forma muito vaga uma senhora coberta de jóias e enfeitada com vestidos muito extravagantes que falava muitíssimo, ria a gargalhadas, abraçava suas netas a menor oportunidade, contava-lhes histórias e escutava seus falatórios. Judith a tinha adorado até que se fez evidente que para seus pais era um incômodo e mais que um motivo de vergonha.
- Com a grande quantidade de convidados que chegarão nos próximos dias, será de utilidade se lhe fizer companhia - apressou-se a responder tia Louisa. - Não terá muito mais que fazer, posto que não foi apresentada a sociedade nem assistiu a nenhuma temporada e sem dúvida se sentiria incômoda se participasse das atividades previstas para a festa. E não tenho a menor dúvida de que estará desejando fazer tudo o que esteja em sua mão para demonstrar a Effingham sua enorme gratidão pelo fato de que tenha oferecido para viver aqui.
Judith não precisava que a recordassem que chegou Harewood na qualidade de parente pobre com o fim de servir à família em algo que solicitassem. Ao que parece ia ser a dama de companhia de sua avó. Sorriu ao pensar que não demoraria para desmaiar a menos que comesse ou bebesse algo logo. Mas como ia pedir sequer um copo de água?
- Pode subir agora e lhe apresentar seus respeitos - disse tia Effingham. - Já tomou o chá em seus aposentos, dado que Julianne e eu estávamos de visita. Esperávamos sua chegada faz dias, embora creiamos que seria Hilary quem viria, é claro. Não entendo por que se atrasou tanto meu irmão em enviá-la e em livrar-se desse modo de uma carga econômica.
- A diligência no qual viajava tombou no barro faz dois dias - explicou Judith. - E depois a chuva nos atrasou.
- Bom, foi mais que inconveniente não a ter aqui justo quando teria sido de mais utilidade - replicou sua tia.
A porta se abriu de novo antes que tia Effingham chegasse até ela e uma moça muito bonita entrou no salão. Em oito anos, Julianne deixou de ser uma menina pálida e bastante insípida e transformara-se em uma jovem magra, mas voluptuosa, com um rosto em forma de coração, grandes olhos azuis e delicados cachos loiros.
- Qual delas é? - perguntou, olhando sua prima dos pés à cabeça. - Ah! É Judith, a do cabelo cor cenoura. Pensei que titio enviaria Hilary. Faz dias que a estamos esperando. Mamãe se zangou muitíssimo, porque enviamos Tom ao povoado para buscá-la e demorou quatro horas em retornar. Mamãe o acusou de ter ficado bebendo na estalagem, mas ele negou de forma cortante. Mamãe, quero meu chá. Será que não vai vir nunca? Qualquer criada pode acompanhar Judith aos aposentos da vovó.
Eu também me alegro de vê-la, Julianne, pensou Judith. Era evidente que não pensavam convidá-la ao mencionado chá.
Ao que parece sua nova vida ia ser tal e qual a tinha imaginado.
Rannulf fez uma parada no caminho para tomar o café da manhã e outra para almoçar. Foi durante esta última parada quando por fim seu valete e a carruagem que transportava sua bagagem o alcançaram. Já estava bem avançada à tarde quando atravessou as portas de entrada de Grandmaison Park no lombo de seu cavalo, deixou atrás a solitária casa de campo e tomou o amplo e reto caminho de acesso à mansão. Um criado o acompanhou até o salão particular de sua avó. Esta ficou em pé e estudou seu aspecto enquanto ele atravessava a sala, ainda com as roupas de montar.
- Bom – disse -, já era hora, Rannulf. Esse cabelo necessita um bom corte. Dê-me um abraço. - Estendeu os braços para ele.
- Essa chuva infernal me deteve durante dois dias - explicou. - O cabelo cresceu quase dez centímetros por causa da umidade enquanto esperava. Está segura de que não vou quebrar todos os seus ossos?
Rodeou a diminuta cintura da anciã com os braços, elevou-a no ar e depositou um sonoro beijo em sua face antes de voltar a deixá-la no chão.
- Moço desavergonhado - resmungou sua avó enquanto endireitava o vestido. - A fome e a sede estão acabando contigo? Já tinha ordenado que lhe trouxessem algo de comer e beber a cinco minutos de sua chegada.
- Tenho tanta fome que comeria uma vaca - comentou Rannulf. - E poderia deixar o mar seco, embora espere não ter que provar nenhuma só xícara de chá. - esfregou as mãos e olhou à anciã de cima abaixo. Como de costume, tinha um aspecto impecável. Embora parecesse um pouco mais diminuta e estava mais magra que nunca. Seu cabelo, preso em um elegante penteado, era tão branco como a touca de renda que o cobria.
- E como estão seus irmãos e irmãs? – perguntou - ouvi que Aidan se casou com a filha de um mineiro.
Rannulf sorriu.
- Entretanto, vovó, embora olhasse muito de perto e com a ajuda de um monóculo - disse - não seria capaz de encontrar nenhum pingo de carvão sob suas unhas. Cresceu e foi educada como uma dama.
- E Bewcastle? - perguntou - deu algum sinal de levar ao altar à filha de alguém?
- Wulf? - perguntou Rannulf por sua vez. - Absolutamente. E pobre da mulher cuja mão peça em matrimônio. A deixaria congelada entre os lençóis.
- Ah! - exclamou sua avó. - Não tem a menor idéia de quão atraentes são os homens como Wulfric, Rannulf. Freyja ainda segue adoecendo por esse visconde?
- Ravensberg? Refere a Kit? - perguntou - Freyja me deu um murro na mandíbula quando sugeri isso mesmo; mas isso já faz um ano, justo quando Kit anunciou seu compromisso com a senhorita Edgeworth. Kit e sua viscondessa esperam um feliz acontecimento para os próximos meses, coisa que talvez seja algo doloroso para Freyja, ou talvez não. De qualquer modo, não demonstra seus sentimentos.
- E como está Alleyne? – perguntou - Tão bonito como sempre?
- Isso parece opinar as damas - respondeu com um sorriso.
- E Morgan? Wulfric vai apresentá-la logo a sociedade?
- O ano que vem, quando completar os dezoito - respondeu. - Embora ela afirme que antes preferiria a morte.
- Menina tola - replicou sua avó, que não disse nada mais enquanto uma criada entrava com uma bandeja no salão e fazia uma reverência antes de retirar-se.
A bebida não era chá, comprovou Rannulf com certa satisfação. Serviu-se ele mesmo e voltou a ocupar seu assento depois que sua avó lhe indicou com um movimento da mão que não queria comer nem beber. Bom, chegou momento da verdade, pensou Rannulf com um suspiro de resignação para si mesmo, pressentindo que as cortesias preliminares chegaram a seu fim e que a anciã estava a ponto de ir ao assunto.
- Aidan é o mais preparado da família - comentou, - embora tenha preferido à filha de um mineiro. Deve ter completado os trinta e já ia sendo hora de que começasse a ter filhos. E você tem vinte e oito, Rannulf.
- Um simples pintinho, vovó - disse com um sorriso.
- Encontrei uma jovem perfeita para você – informou – Seu pai é um simples baronete, bem é certo, mas pertence a uma família antiga e respeitada que não carece de dinheiro. A moça é tão linda como um dia do verão e foi apresentada a primavera passada. Está decidida a conseguir um matrimônio proveitoso.
- Acaba de ser apresentada? - Rannulf franziu o cenho. - Quantos anos têm?
- Dezoito - respondeu sua avó - ou a idade perfeita para você, Rannulf. É bastante jovem para modelá-la a sua vontade e tem por diante muitos anos para ter filhos.
- Dezoito? - exclamou Rannulf. - Não é mais que uma menina! Preferiria alguém com uma idade mais próxima à minha.
- Mas a essa idade tão avançada - replicou a anciã de forma desanimada. - toda mulher deixou atrás a metade de seus anos férteis. Quero me assegurar de que minha propriedade estará segura em suas mãos e na de seus descendentes, Rannulf. Tem irmãos, e a todos eles professo um grande afeto, mas faz muito tempo que decidi que você seria o eleito.
- Ainda restam muitos anos para agradá-la - disse ele - Ainda é uma jovenzinha, vovó.
- Moço impertinente... - Estalou a língua. - Mas não tenho todo o tempo do mundo, Rannulf. - Muito pouco, para falar a verdade.
Rannulf a estudou com atenção, deixando o copo a meio caminho de seus lábios.
- Que tenta me dizer? - perguntou.
- Nada que deva preocupar-se em excesso - apressou-se a responder à anciã. - Um simples probleminha que sem dúvida me levará a tumba alguns anos antes do que o tivesse feito a velhice.
Rannulf deixou o copo na mesa e ficou em pé antes que sua avó pudesse erguer uma mão com firmeza.
- Não - disse-lhe. - Não quero compaixão alguma, nem palavras melífluas nem consolo. Trata-se de minha vida e de minha morte, de modo que serei eu quem luta com ambas, muitíssimo obrigado. A única coisa que quero é vê-lo casado antes de partir, Rannulf. E talvez, se se esforçar muito no cumprimento de suas obrigações e eu for muito afortunada, possa ver seu primeiro filho em seu berço antes de partir.
- Vovó... - passou os dedos de uma mão pelo cabelo. Odiava pensar em seus familiares como seres mortais. A última vez tratou de seu pai, quando ele ainda contava com doze anos de idade. Fechou os olhos como se quisesse afastar a clara implicação das palavras de sua avó. Estava morrendo.
- Você gostará de Julianne Effingham – disse - É uma moça encantadora. Justo seu tipo de mulher, me arriscaria a afirmar. Sei que vieste com o firme propósito de desprezar qualquer intento casamenteiro por minha parte, Rannulf, tal e como sempre fez no passado. Sei que considera que não está preparado para o matrimônio. Mas tenta-o, sim? Tentará ao menos considerar esta vantajosa união? Por meu bem? Só peço que tente, não que prometa se casar com a jovem. Fará?
Rannulf abriu os olhos e a olhou. Não havia dúvida de que estava muito mais magra que a última vez que a viu. Soltou um suspiro.
- Prometo-lhe isso – respondeu - Prometer-te-ia o sol, a lua... as estrelas se assim o desejasse.
- Conquanto que me prometa conhecer e cortejar a senhorita Effingham me conformo - replicou a anciã. - Obrigado, moço.
- Mas me prometa uma coisa em troca - disse ele.
- O que? - perguntou sua avó.
- Não morra em um futuro próximo.
A anciã lhe sorriu com carinho.
A apresentação a sociedade de Julianne Effingham foi declarada um categórico êxito por parte de sua mãe. Era certo que não tinha conseguido o sonho dourado de toda jovem dama: pegar um marido rico e charmoso durante sua primeira temporada em Londres. Embora a situação estivesse longe de ser desesperada. Tinha atraído um grande número de admiradores, alguns deles jovens cavalheiros dos mais adequados, e havia feito amizade com várias jovens que estavam acima dela na escala social.
Julianne e sua mãe estudaram a lista de amigos e admiradores muito detalhadamente; também tinham elaborado uma ambiciosa lista de convidados e tinham enviado os convites para uma festa campestre de duas semanas em Harewood Grange. Quase a metade tinha aceitado e o número desejado se alcançou com facilidade ao enviar convites a uma segunda lista de candidatos e, posteriormente, a uma terceira. Esperava-se a chegada dos hóspedes quatro dias depois da chegada de Judith.
Não se tratava de uma coincidência, como descobriu muito em breve. Apesar de que a razão principal e o motivo a longo prazo para que a houvessem convidado era quão útil resultaria na hora de atender as necessidades de sua avó, teve um milhão de tarefas com as quais manter-se ocupada durante os frenéticos dias que precederam à chegada dos convidados.
Tia Effingham e Julianne não tinham outro tema de conversa que não fosse a festa, os pretendentes e as perspectivas de matrimônio. O tio George Effingham não falava de nada absolutamente e em raras ocasiões abria a boca salvo para comer e beber ou responder a uma pergunta direta. A avó de Judith falava a respeito de uma grande variedade de temas e estava disposta a rir de algo que lhe fizesse um pingo de graça. A Judith logo foi evidente que, além dela mesma, ninguém parecia dar muita atenção ao que dizia a anciã.
Estava muito mais gorda do que recordava; e também mais preguiçosa. Queixava-se de um sem número de enfermidades, tão reais como imaginárias. Passava as manhãs em seus aposentos e consumia a maior parte do tempo enfeitando-se com elaborados penteados, perfume e cosméticos muito pouco sutis, roupas de grande colorido e enormes quantidades de jóias. Ia para o salão pelas tardes e as noites; não saía salvo para visitar seus vizinhos e amigos em uma carruagem fechada; e comia em demasia, sendo sua gratificação predileta os bolos de nata e os bombons. Judith a adorou no primeiro momento. Era de natureza bondosa e parecia verdadeiramente encantada de ver sua neta.
- Por fim chegou - tinha gritado no primeiro dia antes de envolver Judith na calidez de seu abraço, o perfume das violetas e o tinido dos braceletes de prata que usava em ambos os pulsos. - E é Judith. Desejava de coração que fosse você. Mas me preocupava muitíssimo que toda essa chuva a arrastasse pelo caminho. Deixa que lhe dê uma olhada. Sim, sim, Louisa, pode descer a tomar o chá. Mas se encarregue de que Tillie traga uma bandeja para Judith, se for amável. Atrever-me-ia a dizer que não comeu muito durante sua viagem. Ah, carinho, se transformou em uma beleza excepcional, tal e como sempre soube que aconteceria.
A avó era exigente, apesar de seus sorrisos, desculpas, agradecimentos e abraços conseguiam que todas essas tarefas desnecessárias fossem menos incomodas do que teriam sido de outra maneira. Sempre que estava no segundo andar precisava de algo que estava em baixo. Quando estava em baixo, precisava de algo de seus aposentos. Quando se encontrava a poucos passos da bandeja dos bolos ou do prato dos bombons, precisava que alguém os aproximasse porque suas pernas lhe doíam muito nesse dia. Não custava entender o motivo pelo qual tia Effingham se mostrou tão bem disposta a acolher a uma das filhas de seu irmão quando este lhe tinha comunicado suas penúrias econômicas.
Fiel a sua palavra, tia Effingham examinou toda a roupa que Judith levara consigo e se apropriou de quase todos os vestidos de uma vez. Uma criada hábil com a agulha tirou as costuras laterais, de maneira que os mesmos se penduravam em seu corpo, ocultando sua voluptuosa figura e fazendo-a parecer gordinha e sem curvas. Judith levara duas toucas com ela, já que sua mãe sempre tinha insistido em que as usasse, embora Cassandra, que era um ano mais velha, passava a maior parte do tempo com a cabeça descoberta. Tia Louisa procurou outra para que a usasse durante o dia, uma touca de matrona que se atava sob o queixo e que escondia a totalidade de seu cabelo; um objeto que em combinação com os vestidos modificados lhe conferia o aspecto de uma mulher de trinta e poucos anos.
Judith não se queixou. Como poderia fazê-lo? Vivia em Harewood graças à caridade de seu tio. Sua avó sim protestou, de modo que Judith a agradava uma ou outra vez tirando touca quando estavam sozinhas na saleta de sua avó.
- Tudo isso porque é muito linda, Judith - disse sua avó, - e Louisa sempre temeu o tipo de beleza que você possui.
Judith tinha se limitado a sorrir. Sabia muito bem que isso não era certo.
Não demorou em dar-se conta de que grande parte das conversações familiares que tiveram lugar nos dias prévios à chegada dos convidados foi para seu conhecimento, apesar de que raras vezes se dirigiam a ela de forma direta. Alguns dos convidados possuíam título ou eram filhos da aristocracia mais seleta. Todos ocupavam um lugar destacado na sociedade. Quase todos eram ricos e aqueles que não eram chegavam respaldados pelo berço e a ascendência. A maioria dos cavalheiros que acudiriam estava perdidamente apaixonada por Julianne e a ponto de declarar-se. Embora Julianne não tivesse claro que fosse aceitar nenhum. Tinha a certeza de que poderia conseguir outra pessoa... sempre e quando ele ganhasse sua aprovação.
- Lorde Rannulf Bedwyn é irmão do duque de Bewcastle, mãe - explicou tia Louisa na sala de estar durante a segunda noite. - É o terceiro filho, mas mesmo assim o segundo na linha de sucessão, já que nem o duque nem lorde Aidan Bedwyn geraram um varão. Lorde Rannulf é o segundo na linha de sucessão ao ducado.
- Vi o duque de Bewcastle em Londres esta primavera - comentou Julianne. - É solene, arrogante e tudo o que se pode esperar de um duque. E olhe que surpresa! Seu irmão deve visitar lady Beamish, sua avó e nossa vizinha.
Já que tia Louisa, tio George e a avó deviam ser muito conscientes de que lady Beamish era sua vizinha, Judith chegou à conclusão de que ela era a destinatária da dita informação. Lady Beamish, ao que parece a avó materna do duque de Bewcastle, vivia perto.
- Sei que está desejando que lorde Rannulf chegue - disse a avó enquanto erguia uma resplandecente mão carregada de anéis do braço da poltrona. - Comentou-me isso quando fui visitá-la faz uns dias. Judith, carinho, importar-se-ia de me passar mais bolos? Por desgraça, a cozinheira os fez muito pequenos hoje. Terá que falar com ela, Louisa. Não duram mais que três bocados.
Entretanto, Julianne não tinha terminado com seu discurso. - e lady Beamish está particularmente interessada em me apresentar lorde Rannulf – disse - Aceitou com entusiasmo a sugestão de mamãe de que ele participasse das atividades previstas para a festa. E me convidou, junto ao resto de nossas hóspedes, a Grandmaison para uma festa ao ar livre.
- É óbvio que sim, querida - disse tia Effingham, que sorria cheia de orgulho. - Lorde Rannulf Bedwyn é o herdeiro de lady Beamish, além de possuir uma considerável fortuna própria. É normal que deseje acertar uma boa aliança, e há melhor escolha possível que uma linda jovem de bom berço e fortuna que é também sua vizinha? Seria uma aliança magnífica para você, não lhe parece, Effingham? - O tio George, que estava lendo um livro, limitou-se a grunhir. - Agora se dará conta, Julianne - continuou sua mãe, - de por que tomou a decisão correta ao seguir meu conselho de não alentar as atenções do primeiro cavalheiro que lhe propôs matrimônio em Londres.
- Sim, é claro - conveio Julianne. - Poderia me haver casado com o senhor Beulah, que é um chato; ou com sir Jasper Haynes, que nem sequer é charmoso. Embora seja possível que não me case com lorde Rannulf Bedwyn. Tenho que ver se eu gosto. É muito mais velho.
Nesse momento ordenaram a Judith que subisse ao segundo andar para deixar os brincos de sua avó no porta-jóias - porque como sempre que os usava por mais de uma hora, tinham-lhe machucado - e trouxesse os brincos de rubis com forma de coração.
Corações! A ela sim que doía o coração, pensou enquanto subia apática a escada. Sua maior preocupação não tinha demorado a desaparecer, para seu enorme alívio, já que teve o período no dia seguinte a sua chegada a Harewood. Embora suspeitasse que nada a livraria da profunda depressão durante bastante tempo. Não podia pensar em outra coisa que não fossem o dia e meio e as duas noites que tinha passado em companhia de Ralph Bedard; revivia sem cessar cada momento, cada palavra, cada carícia e cada sensação, incapaz de desfazer-se das lembranças um só instante por medo de que se desvanecessem por completo e perguntando-se ao mesmo tempo se não seria melhor para ela que fizessem precisamente isso.
Em ocasiões tinha a impressão de que lhe partiria o coração. Mas sabia que os corações não se partiam pelo mero fato de que seus proprietários fossem infelizes... e estúpidos. E ela fora estúpida até não poder. Entretanto, aferrava-se às lembranças como a um salva-vidas.
Já estava bem avançada a manhã do dia prévio à chegada dos convidados, quando Julianne entrou como uma exalação no quarto de vestir de sua avó feito um feixe de nervos enquanto Tillie arrumava o cabelo grisalho de sua senhora com seu habitual e complicado estilo e Judith preparava o tônico matutino, que lhe assegurava que não inchassem muito os tornozelos.
- Vovó, ele veio. Ele veio, Judith - anunciou, - Chegou faz uns dias e vai vir esta tarde para apresentar seus respeitos. - Uniu as mãos sobre o peito e começou a dar voltas sobre o tapete.
- Isso é maravilhoso - disse a avó. - Acredito que está um pouco mais alto na parte esquerda, Tillie. Quem diz que vem?
- Lorde Rannulf Bedwyn - respondeu Julianne com impaciência. - Lady Beamish enviou uma nota esta manhã para anunciar sua intenção de visitar-nos esta tarde com a idéia de apresentar-nos lorde Rannulf. Vinte e oito anos não é muito velho não? Acha que é charmoso, vovó? Espero que não seja espantosamente feio. Pode ficar com ele se for, Judith. - pôs-se a rir com jovialidade.
- Suponho que o filho de um duque terá ao menos um porte distinto - replicou a avó. - Costumavam ter, ou era assim nesta época. Ah, obrigado, Judith, carinho. Esta manhã sinto que me falta o fôlego, um sinal inequívoco de que vão me inchar as pernas.
- Temos que nos assegurar de estar no salão vestidas com nossos melhores vestidos - disse Julianne. - Ah, vovó... o filho de um duque nada menos! - Inclinou a cabeça para depositar um beijo na face de sua avó antes de dirigir-se apressada até a porta. Mas se deteve com a mão no trinco. - Por certo, Judith, quase me esqueço. Mamãe diz que se lembre de pôr a touca que lhe deu. Será melhor que não deixe que a veja com a cabeça descoberta como está agora.
- Me passe os bombons, Judith, se for amável - disse sua avó depois que Julianne partiu - Nunca me acostumarei ao sabor dessa medicina. Louisa deve ter a cabeça cheia de serragem se insistir em que use toucas quando não é mais que uma menina. Embora me atrevesse a dizer que não quer que seu cabelo eclipse os cachos loiros de Julianne. Não teria que preocupar-se. A menina é bastante bonita para que qualquer idiota perca a cabeça. O que ponho esta tarde, Tillie?
Pouco tempo depois, Judith colocou o vestido de musselina verde claro, um de seus favoritos, embora agora lhe pendurasse no corpo como um saco, e atou as estreitas fitas da touca sob o queixo. Pelo amor de Deus, parecia à tia solteirona de alguém, pensou com uma careta antes de afastar-se com decisão do espelho. De qualquer forma ninguém ia incomodar-se em olhá-la essa tarde. Perguntou-se se Julianne aceitaria lorde Rannulf embora pudesse ser um anão corcunda com cara de gárgula. Supunha que sua prima seria incapaz de resistir à tentação de transformar-se em lady Rannulf Bedwyn, sem importar seu aspecto ou seu comportamento.
Rannulf tinha passado o primeiro dia em Grandmaison em companhia de sua avó, conversando com ela; passeando pelos jardins principais, onde a anciã se negou a agarrar-se a seu braço; falando a respeito das atividades recentes de seus irmãos e irmãs; compartilhando com ela a primeira impressão que lhe tinha causado sua cunhada Eve, lady Aidan; e respondendo a todas suas perguntas.
Notou que se movia mais devagar que de costume e que parecia estar cansada a maior parte do tempo, mas o orgulho e a dignidade a mantinham erguida e ativa, de modo que não se queixou nenhuma só vez e tampouco aceitou sua sugestão de que se retirasse cedo para descansar.
Rannulf se vestiu com especial atenção para visitar Harewood Grange e permitiu que seu valete o ajudasse a vestir seu casaco azul mais ajustado e elegante, a que tinha os enormes botões de bronze, e lhe atasse o lenço ao pescoço com um desses complicados nós. Vestiu as calças justas de cor nata e as botas de cano longo com o arremate branco. Já que usava o cabelo muito comprido para arrumar o bruto como ditavam a última moda, ou para qualquer outro estilo que estivesse em voga, o recolheu à altura da nuca com uma estreita fita negra e fez pouco caso dos afligidos comentários de seu valete, segundo os quais tinha todo o aspecto de haver fugido de um retrato familiar que fazia duas gerações.
Ia cortejar uma mulher. Deu um suspiro diante de semelhante admissão. Ia visitar sua possível noiva. E não tinha a menor idéia de como ia livrar se nesse momento. Tinha prometido a sua avó. Estava muito doente; não o estava enganando. Além disso, sua petição fora a de lhe prometer que teria em conta à moça, não que se casaria com ela. Tinha sido o mais justa possível com ele.
Entretanto, sabia que estava preso. Preso por seu sentido da honra e por seu amor por ela. Dar-lhe-ia a lua e as estrelas se as quisesse, e assim havia dito. Mas a única coisa que sua avó queria era vê-lo bem casado antes de morrer, talvez com um filho no ventre de sua esposa ou inclusive já no berço. Rannulf não iria ver a moça somente para verificar se era apropriada. Cortejá-la-ia. Casar-se-ia com ela antes que acabasse o verão se o aceitasse. E não tinha a menor dúvida de que aceitaria. Não havia engano com respeito a suas aptidões, em especial tratando-se da filha de um simples baronete de linhagem irrepreensível e considerável fortuna.
Viajava para Harewood Grange em um cabriolé junto a sua avó, desejando pela primeira vez em sua vida que Aidan não tivesse sido descartado como herdeiro pelo mero feito de ter sua vida resolvida como oficial de cavalaria. A despeito de tudo, sabia que o problema radicava em que amava sua avó. E ela estava morrendo.
E pensar que quase tinha atrasado sua chegada uma semana... Se Claire Campbell não o tivesse abandonado, nesse momento estaria em York, desfrutando de um tórrido romance com ela enquanto que sua avó esperava, cada dia mais perto do final. Ainda não era capaz de pensar em Claire sem que o embargassem a fúria, a humilhação e a culpa. Como não se deu conta de... ?
Obrigou-se a afastá-la de seus pensamentos. A atriz tinha formado parte de um sucesso irrelevante de seu passado. E tal como acabaram as coisas, tinha-lhe feito um favor ao fugir dessa maneira.
- Já chegamos - disse sua avó quando o cabriolé saiu entre escuras árvores cujos ramos serviam de dossel ao extenso e sinuoso caminho de entrada. - Você gostará, Rannulf. Prometo que você gostará.
Segurou a mão da anciã e a levou aos lábios.
- Espero de coração, vovó – respondeu. - Já estou meio apaixonado por ela somente por sua recomendação.
- Moço descarado! - exclamou ela.
Uns minutos mais tarde tinham entrado no espaçoso saguão recoberto de mármore, tinham subido uma elegante escadaria curvada e o rígido e azedo mordomo anunciava sua presença às portas do salão.
Havia cinco pessoas no aposento, mas não era difícil adivinhar quem era a que importava. Enquanto Rannulf fazia uma reverência e murmurava umas palavras de saudação a sir George, lady Effingham e sua mãe, a senhora Law, deu-se conta com certo alívio de que a única jovem presente, a quem lhe apresentaram em último lugar, possuía em efeito uma beleza deliciosa. Era de baixa estatura, tanto que duvidava que seu cocuruto chegasse à altura dos ombros, e magra. Tinha o cabelo loiro, olhos azuis e tez rosada. A moça sorriu e fez uma reverência quando sua mãe a apresentou e Rannulf lhe devolveu a saudação e a contemplou com apreciação.
Provocava-lhe uma estranha sensação saber com certeza que estava vendo sua futura esposa... não tão futura, para falar a verdade.
Maldição. Maldita fosse sua imagem!
As saudações foram seguidas de um alvoroço de risadas e conversa animada, momento que a senhora Law aproveitou para lhes apresentar a sua dama de companhia, em quem nem sequer tinha reparado até esse momento: a senhorita Law. Sem dúvida era parenta da família, uma mulher gordinha e sem curvas, de idade indefinida, que tinha curvado a cabeça e tinha movido sua cadeira até ficar atrás da anciã quando todos tomaram assento.
A senhora Law convidou lady Beamish a sentar-se junto a ela no sofá para poder desfrutar de uma agradável conversa em particular, segundo suas próprias palavras, e a Rannulf convidou a ocupar um assento ao lado de sua avó. A senhorita Effingham escolheu com deliberação um sofá duplo que se encontrava perto dele. Serviu-se o chá e a visita começou oficialmente. Lady Effingham levou o peso da conversação, embora quando pediu a sua filha que contasse a lorde Rannulf algo a respeito das festas às quais tinha comparecido em Londres durante a temporada social, a moça obedeceu encantada e suas maneiras não foram nem muito abertas nem muito tímidas. Falou sem hesitações em voz baixa e doce, sempre com um sorriso nos lábios.
Estava mais que disposta a aceitá-lo, deu-se conta Rannulf após dez minutos de conhecê-la. Igual a sua mãe. Para elas devia ser o enlace do século, é claro. Rannulf sorriu e falou com soltura e sentiu como se fechava o laço ao redor de seu pescoço. Percebeu de que Effingham apenas realizou alguma contribuição à conversação.
Tinham deixado a bandeja do chá junto à mesa adjacente ao lugar onde se sentava Rannulf. O prato com os deliciosos sanduíches de pepino japonês já tinha passado de mãos uma vez, igual ao das massas. Serviu-se outra rodada de chá, depois que lady Effingham tinha despachado à criada com um gesto da cabeça. Entretanto, a senhora Law parecia não ter satisfeito seu apetite. O vestido de seda rangeu ao redor de sua gordinha figura e as pedras preciosas do colar, dos brincos dos anéis e dos braceletes resplandeceram a luz do sol quando deu meia volta para dirigir-se à mulher que estava atrás dela.
- Judith, carinho - disse, - seria amável de me trazer de novo as massas? Hoje estão particularmente deliciosas.
A melancólica e disforme acompanhante ficou em pé e passou por trás do sofá onde estava sentado Rannulf para apanhar o prato. Ele estava concentrado na lista de hóspedes que a senhora Effingham estava recitando para seus ouvidos.
- Ah, carinho, ofereça também aos outros, se não se incomodar – disse a anciã quando sua dama de companhia se dispôs a voltar para seu assento atrás do sofá. - Lady Beamish não apanhou nenhuma a última vez. Mas tem por diante todo o esforço que supõe a viagem de volta para casa, Sarah.
- Também esperamos que meu enteado venha - estava dizendo lady Effingham a Rannulf, - embora nunca se pode estar certo com Horace. É um jovem encantador e não deixam de lhe enviar convites para festas de verão.
- Não, obrigado, senhorita Law - respondeu sua avó em voz baixa enquanto repelia o prato com os bolos. - Já comi mais que o suficiente.
Rannulf levantou a mão para repetir o mesmo gesto que sua avó quando a mulher ficou diante dele e lhe ofereceu o prato com a cabeça tão curvada que a borda da touca lhe ocultava o rosto. Embora para falar a verdade tampouco ele ergueu a vista. Mais tarde não soube dizer o que foi o que lhe chamou a atenção de repente. Não era mais que uma dessas mulheres invisíveis que estavam acostumados a abundar nas casas dos ricos. Nunca se reparava nelas.
Fosse o que fosse, que o pôs de sobreaviso e ela levantou a cabeça apenas um ápice. O suficiente para que seus olhos se encontrassem. A mulher baixou a cabeça imediatamente e se afastou antes mesmo que ele pudesse terminar o gesto.
Olhos verdes. Um nariz ligeiramente salpicado de sardas. Law. A senhorita Law. Judith. Judith Law.
Por um instante se sentiu completamente desorientado. Claire Campbell.
- Isto... Peço-lhe mil perdões - disse a lady Effingham. - Não. Não, não acredito que tenha o prazer de conhecê-lo, senhora. Horace Effingham. Não, sem dúvida. Embora seja possível que o tenha visto alguma vez.
A dama de companhia deixou o prato, voltou a passar atrás dele - e nesse momento Rannulf foi muito consciente dela enquanto o fazia - e afastou a cadeira um pouco mais antes de voltar a sentar-se.
Nem sequer se atreveu a olhá-la, embora não tinha a menor dúvida de que não se equivocou. Não se tratava de que estivesse procurando olhos verdes e sardas aonde fosse. Não o fez. Não tinha desejado voltar a encontrá-la na vida, nem tinha esperado fazê-lo. Além disso, tinha o convencimento de que ela se encontrava em York.
Contudo, seus sentidos o tinham brindado com a prova irrefutável da verdade, por muito estranha que esta fosse.
Queria isso dizer que não havia nenhuma atriz chamada Claire Campbell? Até isso fora uma engenhosa mentira? Era Judith Law, parente da família. Uma parenta pobre, a julgar pelas aparências. Daí que viajasse com uma bolsa vazia... daí também que viajasse em uma diligência. Permitiu-se uma aventura com ele quando se tinha apresentado a oportunidade. Tinha sacrificado sua virtude e sua virgindade em um ato imprudente, arriscando-se às terríveis consequências.
As consequências...
Rannulf não tinha a menor idéia do que lhe disseram nem do que respondeu durante os cinco minutos que passaram até que sua avó ficou em pé para partir. A imitou, conseguiu de algum modo dizer o apropriado para semelhante ocasião e se encontrou sentado de novo no cabriolé cinco minutos depois, após ter ajudado sua avó a subir à carruagem em primeiro lugar. Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, embora só por um instante. Não estava sozinho.
- E bem? - perguntou sua avó quando o veículo se colocou em marcha.
- Bom, vovó - começou, - não há dúvida de que é muito bonita. Ainda mais do que me fez acreditar.
- E também possui umas maneiras deliciosas - disse ela. - Se houver algum excesso, deve-se à impulsividade da juventude e não demorará para maturar com as responsabilidades do matrimônio e a maternidade e sob a mão paciente de um bom marido. Será um bom enlace para você, Ralf. Talvez não muito brilhante, mas acredito que nem sequer Bewcastle poderia encontrar muitas objeções.
- Jamais se falou – replicou - de que Wulf escolhesse a minha esposa, vovó.
A anciã riu entre dentes.
- Mas aposto o que quiser que esteve a ponto de ter uma apoplexia quando descobriu que Aidan se casou com a filha de um mineiro - arguiu.
- Depois de semelhante impressão - afirmou ele, - estou seguro que dará sua aprovação a uma jovem tão apropriada como a senhorita Effingham.
- Quer isso dizer que está disposto cortejá-la a sério? - perguntou sua avó colocando uma mão sobre sua manga.
Rannulf notou como essa pele pálida e fina se esticava sobre os ossos e lhe cobriu a mão com a sua.
- Acaso não concordei retornar amanhã à noite para o jantar, quando tiverem chegado todos os convidados? - recordou-lhe.
- É certo. - A anciã suspirou. - Esperava que se mostrasse mais difícil. Não lamentará, prometo-lhe isso. Os Bedwyn sempre se mostraram resistentes a casar-se, mas seus matrimônios acabaram sendo uniões por amor em todos e cada um dos casos, como bem sabe. Sua pobre mãe jamais se recuperou depois do parto de Morgan e morreu muito antes do que deveria, mas foi muito feliz com seu pai, Rannulf, e ele a adorava.
- Sei - disse ao mesmo tempo em que lhe dava uns tapinhas na mão. - Sei, vovó.
Entretanto, a cabeça lhe bulia com pensamentos a respeito de Judith Law, aliás, Claire Campbell. Como demônios iriam se evitar durante as próximas semanas? Pelo menos já entendia o motivo de sua fuga. Tinha querido acompanhá-la para vê-la atuar, sem dar-se conta de que em primeiro momento tudo o que tinha visto dela fora uma farsa.
Isso não diminuía a fúria que sentia. A moça o tinha enganado. Apesar de todos os excessos que tinha cometido em sua vida, jamais lhe teria passado pela cabeça seduzir uma mulher de bom berço. E assim se sentia exatamente nesse momento: como um sedutor de inocentes. Um maldito e lascivo canalha.
Não havia dúvida de que a vida tinha piorado bastante desde que recebeu a carta de sua avó em Londres.
- É tão grande, mamãe... - queixou-se Julianne, que não obstante juntou as mãos sobre o peito como se estivesse extasiada.
O tio George tinha descido para se despedir de lady Beamish e lorde Rannulf Bedwyn e não tinha voltado para o salão.
- Mas tem um porte elegante - adicionou tia Effingham. - Suas roupas não levam enchimento, asseguro-lhe isso, e tampouco precisa.
- Embora não seja absolutamente charmoso, não lhe parece? - perguntou Julianne. - E tem o nariz muito grande.
- Mas tem olhos azuis e bons dentes - interveio sua mãe. - E todos os Bedwyn têm esse nariz, querida. É o que se conhece como «nariz aristocrático». Muito distinto.
- E seu cabelo! - exclamou Julianne. - É longo, mamãe. E usava um rabo-de-cavalo!
- Devo confessar que isso é um pouco estranho - afirmou tia Effingham. - Mas o cabelo sempre se pode cortar querida, sobretudo se o pede uma dama pela qual sinta afeto. Ao menos não é calvo.
Mãe e filha deixaram escapar umas risadas tolas.
- Em meus tempos, Julianne - disse a avó, - o cabelo comprido era a última moda entre os homens, embora alguns raspassem a cabeça e usavam perucas. Seu avô não, é claro. Eu conservaria seu cabelo. Em minha opinião, o cabelo comprido é muito atraente.
- Ora! -foi o comentário de Julianne. - O que opina você de lorde Rannulf Bedwyn, Judith? Acha que é bonito? Deveria aceitá-lo?
Judith teve mais de meia hora para recuperar a compostura. Acreditou que desmaiaria quando o viu entrar na sala. Não podia ser, não podia ser… tinha pensado durante um fugaz instante. A mente e a vista deviam estar lhe fazendo uma brincadeira. Embora fosse inequívoco e indiscutível:
Ralph Bedard e lorde Rannulf Bedwyn eram a mesma pessoa. O sangue lhe tinha abandonado a cabeça, deixando-a fria e encharcada em suor, amortecendo os ruídos e fazendo que tudo o que a rodeava se balançasse e desse voltas como se não fosse real.
Ralph... Rannulf. Bedard... Bedwyn. Pareciam-se, mas eram bastante distintos para ocultar sua verdadeira identidade a uma atriz ambiciosa e exigente. E bastante diferente para que ela não se precavesse da semelhança de não ter se encontrado com o homem cara a cara. Tinha-lhe suposto um esforço enorme não desmaiar e atrair assim mais atenção indesejada para sua pessoa. Mas ainda se sentia bastante instável para perder o sentido se não tomasse cuidado.
- Bonito? – repetiu - Não, não me parece isso, Julianne. Embora sim, é certo que tem um porte distinto, tal como diz tia Louisa.
Julianne pôs-se a rir, ficou de pé de um salto e começou a dar voltas da mesma forma que fez no quarto de vestir de sua avó horas antes.
- Mostrou-se muito atento, não acham? – perguntou. - Escutou tudo que eu disse e não pareceu nem condescendente nem aborrecido, como muitos outros cavalheiros quando uma mulher fala. Casar-me-ei com ele, mamãe? Farei, vovó? Você não gostaria de estar em meu lugar, Judith?
- Primeiro terá que pedir sua mão a papai - recordou tia Effingham enquanto ficava em pé. - Mas é evidente que gostou muito você, querida, e está claro que lady Beamish tem toda a intenção de promover o enlace. Deve ter bastante influência sobre ele. Acredito que podemos ser otimistas.
- Judith, carinho - disse a avó, - teria a amabilidade de ajudar a me levantar? Não sei por que estou tão torpe ultimamente. Acredito que teremos que voltar a chamar o médico, Louisa. Deve me dar mais remédios. Será melhor que subamos a meus aposentos e que depois chame Tillie, Judith, se não se importar. Acredito que deitarei durante uma hora.
- Ah, nesse caso não terá nada que fazer, Judith - disse tia Effingham. - Reúna-se comigo na biblioteca dentro de uns minutos. Terá que escrever os cartões que indicarão os lugares dos comensais durante o jantar de amanhã e realizar um sem-fim de tarefas. Não ficará de braços cruzados. Estou segura de que seu pai lhe disse o que o diabo pode fazer com mãos ociosas.
- Descerei logo que vovó esteja preparada - prometeu Judith.
- Julianne, querida - disse sua mãe, - tem que descansar e não se fatigar muito. Amanhã deve ter sua melhor aparência.
A cabeça de Judith seguia dando voltas. Era lorde Rannulf Bedwyn e tinha ido ali para cortejar Julianne e casar-se com ela. Ao menos, isso era o que sua tia e sua prima acreditavam. Era provável que o visse todos os dias durante as duas próximas semanas. Veria os dois juntos.
Ele saberia? Tinha-a reconhecido? Por que, em nome de Deus, teve que levantar a cabeça quando ele ergueu a mão para repelir um pastel e depois ficou quieto? Por que não se antecipou a esse gesto e tinha seguido seu caminho? Olharam-se nos olhos. Havia tornado a curvar a cabeça antes de poder distinguir algum sinal de reconhecimento em seu olhar, mas o havia sentido.
A teria reconhecido? A humilhação de que a tivesse visto em semelhante estado, de saber quem e o que era, era impossível de suportar. No caso de que não a tivesse reconhecido essa tarde, não haveria dúvida de que o faria em algum momento das semanas seguintes. Não poderia esconder-se dele de forma permanente. Tinha escutado que sua avó combinava uma visita com lady Beamish para a tarde seguinte, enquanto os convidados chegavam a Harewood. Ela, Judith, teria que acompanhá-la? Estaria ele ali?
Acreditou que a vida não podia piorar. Mas tinha se equivocado. Sentiu um golpe de dor. Supunha-se que os sonhos e a realidade não se mesclavam nunca. Por que seu sonho, o mais glorioso de toda sua vida, espatifou-se contra a realidade? Talvez porque jamais fora um sonho?
- Agarrarei em seu braço, Judith, se não for muito incômodo - disse sua avó descarregando todo seu peso sobre ela. - Deu-se conta de que Louisa se esqueceu de apresentá-la lady Beamish e lorde Rannulf? A vi curvar a cabeça mortificada e me senti indignada, não me importa confessar. Apesar de tudo, é sua sobrinha e prima irmã de Julianne. Mas isso é o que acontece com gente empenhada em subir na escala social, nunca se voltam para olhar aos que estão em degraus inferiores por temor que semelhante associação os desmereça aos olhos de outros. Perdeu peso desde que chegou querida? Esse vestido fica enorme e não tira o menor partido de sua encantadora figura. Temos que pedir a Tillie que aperte as costuras, assegurar-me-ei de que coma como é devido. Olhe, ao final me incharam os pés. Talvez o tônico que me preparou esta manhã não fosse bastante forte.
- Teve uma tarde muito ocupada, vovó - disse Judith para tranquilizá-la. - Se sentirá melhor depois de descansar um momento e puser os pés no alto.
A carruagem que levava a senhora Law a Grandmaison Park no dia seguinte era coberta e todas as janelas permaneciam fechadas a despeito de ser um dia ensolarado e caloroso. Uma corrente de ar poderia provocar um de seus catarros, explicou a Judith, que estava sentada junto a ela e não tinha dúvida de que ambas se derreteriam pelo calor. Contudo, sua avó estava de muito bom humor e não deixou de tagarelar durante todo o trajeto. Lady Beamish fora sua melhor amiga desde que se mudou para Harewood dois anos atrás, explicou-lhe. Era muito agradável afastar-se de vez em quando da casa, onde Louisa estava sempre de mau humor por alguma coisa.
Judith não tinha desfrutado de um momento de pausa durante toda a manhã, que tinha transcorrido em um tráfego de recados à cozinha, a outras dependências, aos estábulos e às cocheiras enquanto tia Effingham se assegurava de que não tinha esquecido um só detalhe dos preparativos para a chegada dos convidados. Enquanto isso, Julianne, que tinha o mesmo número de pés e mãos que sua prima, passou a manhã dando exuberantes voltas e saltos, se lançado as janelas para ver se alguém chegava antes do tempo ou correndo escada acima para trocar os sapatos, o cinto ou os laços do cabelo; em poucas palavras, esgotando-se, como dizia sua mãe com uma carinhosa advertência.
Embora a esperança de Judith de que não lhe ordenassem acompanhar sua avó durante a visita dessa tarde se desvanecesse quando sua tia a olhou já avançada a manhã e descobriu com desagrado que as faces de sua sobrinha estavam ruborizadas de uma forma indecorosa, que tinha os olhos anormalmente brilhantes e que uma mecha de cabelo tinha escapado da touca à altura da nuca. Julianne tinha escolhido esse mesmo momento para falar com sua mãe.
- Lady Margaret Stebbins não é mais bonita que eu, não é, mamãe? -tinha perguntado com repentina ansiedade. - Nem Lilian Warren, nem Beatrice Hardinge, não lhe parece? Sei que Hannah Warren e Theresa Cooke não o são, ainda que sejam encantadoras e as amo com loucura. Mas eu serei a mais bonita de todas, não é mesmo?
Tia Effingham se apressou a abraçar sua filha e a assegurar que era dez vezes mais bonita que qualquer de suas queridas amigas, que chegariam nessa mesma tarde. Entretanto, seu sério olhar posou sobre Judith enquanto pronunciava essas palavras e na rebelde mecha de cabelo que sua sobrinha estava ocultando atrás da touca.
- Não é necessário que esteja aqui quando chegarem nossos convidados esta tarde, Judith - havia dito. - Não será de nenhuma utilidade e estorvará todo mundo. Pode acompanhar minha mãe a Grandmaison e assim Tillie ficará aqui para me servir de ajuda.
- Claro, certamente tia Louisa - havia dito Judith, que sentiu um nó no estômago quando Julianne cravou os olhos nela com curiosidade.
- Pobre Judith - tinha comentado sua prima, - jamais terá uma apresentação na sociedade, apesar de ser alguns anos mais velha que eu. Que desagradável e fastidioso para você não poder se mesclar por igual com a alta sociedade. Mamãe diz que seu caso não seria tão desesperado se o tio tivesse feito um matrimônio melhor. Não sabe a sorte que tem de que a convidassem a viver aqui, onde ao menos poderá se acotovelar com gente de linhagem.
Judith não tinha respondido. Nem sequer lhe tinham dado a oportunidade de pensar se considerava oportuno expressar sua indignação no que se referia a sua mãe; Julianne tinha virado para tia Louisa para lhe pedir sua opinião sobre o vestido que tinha escolhido.
E nesse momento Judith se encontrava na carruagem junto a sua avó, abanando-se para suportar o calor. Era provável que os cavalheiros não prestassem muita atenção às damas de avançada idade, em especial quando se esperava a visita de outra anciã. Seria estranho que lorde Rannulf Bedwyn estivesse com sua avó essa tarde.
Logo ia descobrir quão equivocada estava.
Depois de descer da carruagem e entrar no vestíbulo de Grandmaison, acompanharam-nas a uma espaçosa sala de estar de tetos altos onde a luz se refletia sobre os adornos dourados das paredes em tom marfim e se respirava uma opulenta elegância. Os quadros que decoravam a sala, tecidos de paisagens com marcos dourados, acrescentavam profundidade e beleza. As enormes portas francesas que havia ao fundo estavam abertas, de forma que os gorjeios dos pássaros e o aroma das flores inundavam a sala. Judith poderia haver-se apaixonado por semelhante casa a primeira vista não se deu conta de que ali havia duas pessoas em lugar de somente uma.
Lady Beamish estava se levantando de uma poltrona que havia junto a lareira. Lorde Rannulf Bedwyn já estava em pé ao lado da lareira. Judith curvou a cabeça e se escondeu na medida do possível atrás de sua avó enquanto atravessavam o salão. Desejou poder estar em qualquer outro lugar do mundo. Sentia-se extremamente humilhada e mais feia que de costume, vestida como estava com seu vestido de algodão listrado recém modificado, a touca e um chapéu com uma aba enorme que tia Louisa lhe deu porque já não o usava.
- Gertrude, querida - disse lady Beamish com afeto antes de dar um beijo em sua avó na face. - Como se encontra? E vejo que trouxe a senhorita Law contigo. Que agradável. É uma das netas das quais me falou?
- Sim, Judith - disse sua avó, que a olhou com um radiante sorriso. - É a segunda filha de Jeremiah e minha favorita. A verdade é que temia que meu filho enviasse uma de suas irmãs em lugar dela.
Surpreendida, Judith olhou de esguelha sua avó. Estava claro que a anciã não as conhecia o bastante para ter uma favorita - Como vai, senhorita Law? - perguntou lady Beamish com amabilidade. - Sente-se.
Enquanto isso, lorde Rannulf fez a reverência de rigor à avó em primeiro lugar e depois a ela, enquanto murmurava seu nome. Devolveu-lhe o gesto sem olhá-lo e se sentou na cadeira mais próxima. Entretanto, enquanto tirava as luvas percebeu de quão horrível era seu comportamento na impossibilidade de ocultar sua identidade durante muito mais tempo, se acaso ele não a descobriu a essa altura. Levantou a cabeça e o olhou diretamente nos olhos.
Ele a estava contemplando com os olhos semicerrados. Judith ergueu o queixo o mais que pôde, apesar de sentir que o rubor inundava suas faces.
Os seguintes minutos estiveram ocupados com os comentários de rigor. Lady Beamish perguntou pela saúde da família de Judith e a avó perguntou pela de lorde Rannulf Bedwyn. Também se comentou a chegada dos hóspedes essa tarde a Harewood e o fato de que lorde Rannulf tivesse a intenção de cavalgar até ali para o jantar. Nesse momento a voz de lady Beamish adquiriu um tom mais enérgico.
- Gertrude e eu somos velhas amigas, Rannulf – disse, - nós gostamos mais de passar uma hora juntas falando de coisas que só a nós interessam. Tem permissão para escapar do tédio de se comportar conforme ditam as boas maneiras. Por que não acompanha à senhorita Law ao exterior e lhe mostra os jardins principais? Depois talvez goste de sentar-se no caramanchão enquanto você segue com seus assuntos.
Judith apertou as mãos com força sobre seu regaço. - Parece que aqui estamos estorvando, senhorita Law - disse ele antes de dar uns passos em sua direção e lhe fazer uma ligeira reverência enquanto fazia um gesto com a mão em direção às portas francesas - Gostaria de dar um passeio?
- Possivelmente, lorde Rannulf - disse a senhora Law quando Judith ficou em pé a contra gosto, - seria você tão amável de fechar as portas ao sair. Se não lhe parecer mal Sarah, é claro. Acredito que uma de minhas febres está me espreitando. Judith teve que me abanar o rosto durante todo o caminho até aqui.
Judith passou por cima do braço que lhe ofereciam. Apressou-se a chegar até as portas francesas e saiu no terraço ladrilhado. Encontrava-se em um atalho que atravessava o centro dos jardins principais quando se deteve a ouvir que as portas se fechavam atrás dela. Para onde estava fugindo? E por que teria que fazê-lo? Embora fosse certo que jamais havia se sentido tão mortificada como nesse momento.
- Bem, senhorita Judith Law - disse ele em voz baixa enfatizando o nome, e ela se deu conta com certo sobressalto de que o tinha justo atrás. Sua voz destilava um temperado veneno.
Judith cruzou os braços às costas, virou-se e cravou o olhar com atrevimento em seu rosto, cuja proximidade e familiaridade eram espantosas.
- Bem, lorde Rannulf Bedwyn - disse ela, com a mesma ênfase nas palavras.
- Touché! - Olhou-a com o costumeiro brilho zombador nos olhos. Assinalou o atalho com um gesto - Damos um passeio? Da sala podem ver-nos perfeitamente onde nos encontramos agora.
Conforme pôde observar Judith, os jardins principais foram desenhados com uma precisão geométrica e estavam atravessados por uma série de atalhos calçados que conduziam em linha reta, como se tratassem dos raios de uma roda, até a fonte que se encontrava no centro: um cupido de mármore que se apoiava sobre um pé justo no meio da pia enquanto a água saía disparada da flecha que segurava sobre seu arco e voltava a cair sobre o reservatório de água. Umas sebes baixas e podadas de modo impecável delineavam os atalhos e demarcavam os maciços de flores, que reportavam um festim de cor e de variedades à vista e uma doce fragrância ao olfato.
- Enganou-me - disse ele enquanto caminhavam.
- E você a mim. - apertou os antebraços com mais força às costas.
Oxalá não tivesse descoberto jamais a verdadeira identidade desse homem. Por que tinha que estar acontecendo tudo aquilo? De todos os possíveis destinos da Inglaterra, tinham que encaminhar-se a casas que não distavam mais que oito quilômetros entre si. E por acaso fora pouco, o homem pensava assistir à festa campestre que se daria em Harewood.
De verdade ia casar com Julianne? Tinha-o planejado antes de sua viagem?
- Pergunto-me - disse ele com um tom de voz agradável e indiferente- se a sua avó e a seus tios interessaria saber que é uma atriz e uma cortesã.
Estava ameaçando-a? Teria medo, possivelmente, de que ela o delatasse?
- E eu me pergunto - replicou Judith com aspereza. - se não lhes interessaria saber que o homem que pretendem que aspire à mão de minha prima Julianne tem por costume enredar-se em aventuras amorosas com desconhecidas durante suas viagens.
- Nada faz senão demonstrar o pouco que sabe do mundo, senhorita Law - disse ele. - Sem dúvida os Effingham são mais que conscientes de que os cavalheiros têm certos... digamos «interesses» que perseguem sempre que se apresenta a oportunidade, tanto antes como depois do matrimônio. É você uma convidada de honra na casa de seu tio?
- Sim, convidaram-me a viver em Harewood - respondeu ela.
- E como é que não se encontra ali esta tarde para receber os convidados? - inquiriu lorde Bedwyn.
- Minha avó precisava de minha companhia - respondeu Judith.
- Mente, senhorita Law - disse ele. - De fato, você mente muitíssimo. É uma parenta pobre. Veio a Harewood na qualidade de criada sem salário, a fim de evitar a sua tia a necessidade de atender as exigências de sua avó, se minhas hipóteses forem corretas. O matrimônio de seu pai não foi tão vantajoso como o de sua tia?
Tinham chegado à fonte e se detiveram ali. Judith sentia a frescura das gotas de água que caíam sobre suas faces. - Minha mãe - respondeu com irritação - pertence a uma família acima de toda recriminação. E meu pai, além de ser clérigo, é um homem de recursos.
- De recursos - repetiu ele com um que de ironia. - Mas não de fortuna? E ditos recursos minguaram até tal ponto que seus pais se viram obrigados a enviar uma de suas filhas a viver com uns parentes ricos?
Judith rodeou a fonte para chegar até o atalho que havia do outro lado. Ele a rodeou em sentido contrário antes de colocar-se de novo junto a ela.
- Suas perguntas são muito impertinentes - afirmou ela. - Minhas circunstâncias não são de sua incumbência. Nem tampouco as de meu pai.
- É a filha de um cavalheiro - disse ele com suavidade.
- É claro que sim.
- E está zangada - acrescentou lorde Rannulf.
Estava? Por quê? Porque era humilhante que a vissem tal e como realmente era? Porque seu único sonho roubado, que devia sustentá-la durante o resto de sua solitária vida, fez-se em pedaços? Porque ele parecia tão tranquilo e indiferente ante essa horrível coincidência? Porque zombava dela e de seus pais? Porque Julianne era jovem, bonita e rica? Porque Branwell tinha esbanjado a pequena fortuna que seu pai tinha economizado com tanto esforço? Porque a vida não era justa? Quem alguma vez disse que deveria ser?
- E é uma covarde - acrescentou ele depois de um breve silêncio. - Nem sequer teve a coragem de me olhar nos olhos e me contar essa história a respeito de que havia outro homem. Nem sequer teve a coragem de despedir-se de mim.
- Não - admitiu Judith. - Não, não tive.
- E dessa forma - continuou ele - fez-me ficar como um estúpido. A mulher do hospedeiro me deu um sermão por havê-la tratado mal e me aconselhou que cavalgasse atrás de você e engolisse o orgulho.
- Sinto muito - sussurrou ela.
- De verdade? - Ele baixou o olhar para observá-la e Judith se deu conta de que uma vez mais tinham deixado de caminhar. - A teria tomado mesmo que houvesse dito a verdade. Dá-se conta disso? A teria transformado em minha amante. A teria mantido; teria cuidado de você.
Nesse momento Judith se sentiu furiosa e sabia muito bem por que. Por que tinha que morrer o único grande sonho de sua vida de uma maneira tão infame e dolorosa? De repente o odiou; desprezou e odiou esse homem por obrigá-la a ser consciente da sordidez do que tinha acontecido entre eles.
- Vejamos. - deu uns golpes sobre os lábios com um dedo e olhou para cima como se estivesse meditando. - Acredito que isso tivesse sido durante alguns dias, pode ser uma semana no máximo. Até que nos cansássemos um do outro, o que traduzido significa, conforme acredito, até que você se cansasse de mim. Não, muito obrigado, lorde Rannulf. Eu desfrutei de nosso encontro. Encheu uns dias potencialmente aborrecidos enquanto aguardávamos que parasse de chover. Já me tinha cansado de você então. Não obstante, teria sido muito desconsiderado dizer, já que admitiu que queria desfrutar de mim durante uns dias ou até mesmo uma semana mais. De modo que escapuli enquanto estava fora. Perdoe-me.
Ela o olhou fixamente em silêncio durante longo momento, com uma expressão indecifrável.
- Se me mostrar onde se encontra o caramanchão, me sentarei ali até que minha avó envie alguém para me buscar - acrescentou Judith.
Ele falou de repente, passando por cima sua sugestão. - Está grávida? Já sabe?
Se um buraco negro tivesse tido a amabilidade de abrir-se sob seus pés, Judith teria saltado de boa vontade em seu interior. - Não! - exclamou com as faces acesas. - É claro que não.
- É claro? - Com as sobrancelhas arqueadas, esse homem era a viva imagem de um irreverente e arrogante aristocrata. - Os bebês chegam como resultado dessas atividades das quais nós desfrutamos, senhorita Law. Acaso não sabia?
- É claro que sabia! - Se era possível sentir-se mais envergonhada, Judith não podia imaginar em que circunstâncias. - Suponho que não acreditará que eu teria permitido...
Uma mão no alto a deteve.
- Por favor, senhorita Law - disse com um tom de voz enfastiado, - deixe de atuar como se fosse uma mulher do mundo. Porque é uma atuação, igual a sua Viola ou sua lady MacBeth. Está certa de que não?
- Sim. - De repente sentiu os lábios rígidos e quase não pôde pronunciar a palavra. - Estou bastante segura. Onde está o caramanchão?
- Por que usa uma roupa tão espantosa? - perguntou ele. Judith o olhou com os lábios apertados.
- Semelhante pergunta não é digna de um cavalheiro - replicou enquanto ele aguardava sua resposta.
- Não estava vestida dessa forma para viajar - disse lorde Rannulf, - embora seja culpa minha não haver dado conta de que não era mais que uma garota de campo brincando de ser uma atriz e uma cortesã. É boa... em ambas as coisas. Mas de onde saíram esse chapéu, essa ridícula touca e esse vestido tão largo?
- Suas perguntas são muito insolentes - afirmou Judith.
Entretanto, seus olhos e seu sorriso zombavam dela de uma forma bastante perversa.
- Suponho - disse ele, interrompendo-a uma vez mais, - embora temo seja mais uma certeza que uma hipótese, que quando sua tia a viu chegar a Harewood se deu conta de que, por desgraça, você eclipsaria muito sua filha e decidiu ocultá-la atrás do melhor disfarce que pôde imaginar. Estou certo?
É claro que não estava certo. Acaso era cego? A única coisa que fez tia Louisa era insistir, inclusive mais que seu pai, em que ocultasse seus feios traços.
- Ou também seu cabelo era parte da atuação? - perguntou ele antes que seus lábios esboçassem um sorriso torcido ainda mais zombador - Está calva sob a touca, senhorita Law?
- Suas perguntas são repetitivas e ofensivas, lorde Rannulf - disse - Tenha a amabilidade de me indicar onde se encontra o caramanchão ou pedirei a algum jardineiro que me mostre o caminho.
O homem a observou durante um instante mais; soprou pelo nariz em um gesto que poderia ter sido de fúria e em seguida estalou a língua, afastou o olhar e começou a retroceder o caminho pelo qual chegaram até que tomou um atalho adjacente que conduzia - conforme pôde comprovar Judith - às grades cobertas de rosas que deviam contornar os limites do caramanchão.
Era um lugar tão bonito que roubava o fôlego ou o teria feito em outras circunstâncias. Fechado em três dos lados por altas grades que o protegiam do vento, descia ao longo de quatro amplos terraços em direção a um arroio borbulhante. Havia rosas por toda parte, de todos os matizes e cores, de todos os tipos e tamanhos. O ar estava carregado de seu perfume.
Judith se sentou em um banco de ferro forjado colocado no terraço superior e cruzou as mãos sobre o regaço.
- Não precisa me fazer companhia – disse - Estarei muito bem aqui só rodeada por semelhante vista.
Ele permaneceu de pé a seu lado sem dizer nada durante o que pareceu um bom momento. Judith não levantou a vista para ver se a estava olhando ou se não fazia mais que contemplar os arredores, embora sim pudesse ver a ponta de uma das botas de montar riscando uma e outra vez o mesmo desenho sobre a pavimentação que havia ao lado do banco. Não podia suportar sua proximidade. Não podia suportar a realidade, nem tampouco o fato de saber que seu sonho roubado se fez em pedacinhos para sempre.
E então ele se afastou sem dizer uma palavra e ela se sentiu vazia.
Rannulf se dirigiu diretamente a seu quarto. E começou a andar de um lado a outro.
Era a filha de um cavalheiro. Maldita fosse sua imagem! Não deveriam tê-la deixado viajar sozinha, sem nem sequer uma criada que lhe oferecesse certa respeitabilidade. Seu pai merecia que lhe dessem um tiro por permitir isso. Não deveria ter aceitado cavalgar com ele nem muito menos utilizar essa voz rouca e fingir que era atriz. Nem paquerar com ele. Nem permitir que lhe roubasse um beijo sem lhe arrancar a cabeça dos ombros por semelhante impertinência.
A moça tinha que conhecer as regras do decoro tão bem como ele.
Ele conhecia essas regras.
Apoiou ambas as mãos sobre o batente da janela, respirou fundo, conteve o fôlego e o deixou escapar muito devagar. Olhou para baixo. Um criado bordejava os jardins principais em seu caminho de volta à casa. O copo de limonada que Rannulf tinha ordenado que enviassem a Judith já fora entregue, parece.
Ela não deveria ter aceitado a escandalosa sugestão de que se mudassem da hospedaria aquela outra estalagem muito mais tranquila, situada junto ao prado do mercado. Nem haver-se mostrado de acordo em compartilhar um quarto com ele. Nem ter jantado a sós com ele. Nem ter estimulado seu desejo com essa atuação... Onde demônios tinha aprendido a atuar assim? Nem ter deixado solto esse cabelo de sereia.
Por todos os diabos, não deveria ter se deitado com ele. Teria que conhecer as regras.
Ele conhecia essas regras.
Deu um murro no batente da janela e amaldiçoou entre dentes.
Ele conhecia as regras, maldição. Seu pai tinha criado filhos ingovernáveis e teimosos que desprezavam os costumes e as opiniões de outros a menor oportunidade. Também tinha criado filhos honoráveis, que sabiam que regras não se podiam romper.
Havia-lhe dito que a teria tomado até sabendo a verdade sobre ela. A teria transformado em sua amante, tinha-lhe assegurado. O teria feito? Provavelmente não... Não, sem lugar a dúvidas.
Era a filha de um cavalheiro.
Por todos os santos! Era certo que a moça nem sequer sabia ainda se tinha conseguido escapar do pior dos destinos. Era uma mentirosa consumada. Não seria de estranhar que também lhe tivesse mentido a respeito. Poderia dar a luz a seu bastardo em um pouco menos de nove meses.
Estampou o punho no batente uma vez mais e se afastou da janela para começar a andar de novo de um lado a outro do quarto, com os punhos apertados de ambos os lados do corpo. Maldição, maldição, maldição!
Ao final, abriu de repente a porta e saiu como uma exalação para o corredor sem fechar a porta. Sem pensar duas vezes.
Ela continuava sentada onde a deixou, com as mãos no regaço, uma sobre a outra com as palmas para cima; o copo de limonada, ao qual apenas teria dado um gole, encontrava-se sobre uma pequena mesa de ferro forjado que o criado devia ter colocado a seu lado. A moça contemplava o arroio e só girou um pouco a cabeça quando ele apareceu sob o arco gradeado, procedente do terraço.
- Estive dando voltas por meu quarto - disse, - tentando me convencer de que você era a única culpada do ocorrido. Mas não é certo. Eu sou igualmente culpado.
Ela girou por completo a cabeça para olhá-lo e Rannulf se encontrou contemplando uns surpreendidos e abertos olhos verdes.
- O que? - perguntou.
- Você era uma jovem inocente e inexperiente - disse Rannulf. - E eu estou muito longe de ser inocente e inexperiente. Teria que me ter dado conta. Deveria me haver precavido do engano.
- Está se culpando pelo que aconteceu entre nós? - perguntou ela com um tom estupefato. - Que absurdo! Não tem sentido jogar a culpa em ninguém. Foi algo que aconteceu de mútuo acordo. Acabou-se e é melhor esquecer.
Oxalá fosse tão fácil!
- Não acabou - afirmou ele - Tomei sua virgindade. Agora é você, se me permite dizer com certa crueldade e sem disfarces, mercadoria danificada, senhorita Law; e não é possível que seja tão inocente para não dar-se conta desse fato.
Com as faces vermelhas, ela girou a cabeça de repente para voltar a olhar à frente e se levantou com brutalidade.
- O que o faz pensar... ? - começou a dizer.
- Não, não são coisas minhas - replicou ele. - Estava um pouco ébrio, tanto pelo vinho que tinha consumido como por sua atuação e seus encantos. Depois que fugiu, a hospedeira me explicou por que tinha trocado os lençóis de nossa cama depois da primeira noite que passamos juntos. Havia sangue nos que retirou, como muito bem se encarregou de me assinalar.
As costas da moça encolheram de forma evidente. - Você é uma dama, senhorita Law - disse ele, - embora seja certo que não pertence a uma família rica nem de relevância social. Pertence a uma classe social muito abaixo de qualquer nível no que tanto minha família como meus pares esperariam que eu escolhesse uma esposa, mas não tenho outro remédio. Não é que culpe a você. Culpo a mim mesmo por estar tão cego como para não me dar conta da realidade. Embora seja muito tarde para me lamentar. Dar-me-ia a honra de casar-se comigo?
Nessa hora suas costas não encolheram. Ficou rígida. Durante alguns instantes, Rannulf chegou a pensar que não ia responder lhe. Entretanto, afinal o fez.
- Não - disse com uma voz firme e bastante precisa.
E ato seguido se afastou dele, descendo o amplo terraço até deixar atrás as rosas e deter-se na beira do arroio. Talvez devesse fazer a proposta com palavras ternas; ter se colocado diante dela e ter tomado sua mão. Em troca, tinha-a obsequiado com a pura verdade, porque de qualquer modo ela teria reconhecido qualquer tipo de engano por sua parte. Em seu papel de Claire Campbell tinha parecido uma mulher inteligente. Foi atrás dela.
- Por que não? -perguntou.
- Não sou o problema de ninguém, lorde Rannulf - respondeu ela. - E não serei o bálsamo que alivie a consciência culpada de ninguém. Ainda que não seja necessário que se sinta culpado. Fui a você de maneira voluntária E... deitei-me com você de boa vontade. Era algo que queria experimentar e decidi aproveitar a oportunidade quando se apresentou. Tem toda a razão quanto ao motivo de minha presença em Harewood. Não é muito provável que se descubra que uma mulher em minhas circunstâncias uma mulher desonrada ou «mercadoria danificada». As mulheres como eu permanecem solteiras durante toda a vida. Suponho que, depois de tudo, a possibilidade de me casar deveria ser tentadora. Poderia me transformar em lady Rannulf Bedwyn e ser mais rica do que jamais cheguei a sonhar. Entretanto, não me casarei por que você não tenha outro remédio ou porque seja muito tarde para que você escape da armadilha que eu represento aos seus olhos. Não me casarei porque a honra o obrigue a me oferecer matrimônio tão imprudente e desigual. Para você não seria uma honra que aceitasse sua proposta, e sim um martírio.
- Rogo que me desculpe - disse ele - Não pretendia dizer que...
- Claro que não - conveio ela, - você não pretendia dizer nada. Limitava-se a constatar um fato. Por qual de todas essas razões esperava que eu aceitasse com alegria sua proposta lorde Rannulf? Porque é você o filho de um duque e um homem imensamente rico? Porque minhas esperanças de me casar com qualquer outro seriam escassas mesmo se não tivesse perdido a virgindade? Porque o decoro dita que deveria me casar com o homem que me seduziu dado que ele teve a boa vontade de me propor isso embora, é claro, você não me seduziu? Porque me disse que o honraria se eu o aceitasse? Minha resposta é não.
O alívio pugnava com a incredulidade e a indelével sensação de culpa. Tinha sido a crueldade de sua proposta que a tinha ofendido. Se fizesse o pedido da forma adequada, faria ela o correto?
- Me perdoe - disse ele - Acreditei que desprezaria as palavras doces e aduladoras. Permita que...
- Não. - virou-se para ele e o olhou nos olhos. - Foi uma experiência efêmera, lorde Rannulf. Jamais pretendi que durasse mais tempo. Sentia curiosidade, o satisfiz e também encontrei satisfação. Não sentia o menor desejo de continuar com a relação e certamente tampouco sinto o menor desejo de me casar com você. Por que deveria fazê-lo? Não sou tão inocente nem tão ignorante para não saber como são os homens de sua posição. Tive ocasião de comprovar durante a viagem e suas palavras de hoje confirmam o que já sabia. Você não é nem inocente nem inexperiente, conforme proclamou com orgulho. Qualquer um que saiba como são as coisas, assegurou, compreenderia que deve esperar um comportamento semelhante tão antes como depois do matrimônio. Até no caso de que desejasse me casar com você, não o faria. Por sabendo que iria transformar-me em uma esposa não desejada, abandonada em alguma tranquila e respeitável propriedade campestre enquanto seu marido continua com sua vida de flerte e libertinagem como se ela não existisse? Queria viver uma aventura com você, não o ter como marido; e por muito que me satisfez à aventura, não estou disposta a repeti-la. Que sorte para você! Depois de tudo não terá que enfrentar o desprezo de seus pares nem o descontentamento de seu irmão, o duque de Bewcastle. Que tenha um bom dia.
Por estranho que parecesse, apesar de suas loquazes e desdenhosas palavras, da ira apenas reprimida e do vestido que tão mal a vestia, a moça voltava a atraí-lo de repente e o fez recordar a intensa atração sexual que tinha sentido por ela durante o dia e meio e as duas noites que passaram juntos. Até esse momento nem sequer tinha passado pela cabeça que fosse a mesma mulher.
- É essa sua última palavra? - perguntou.
- Que parte do que lhe disse é a que não compreendeu, lorde Rannulf? - inquiriu ela sem deixar de olhá-lo nos olhos. Entretanto, antes que pudesse responder, Rannulf se deu conta de que havia alguém mais no caramanchão. Levantou a vista e descobriu o mesmo criado de antes justo sob o arco, limpando a garganta. Rannulf arqueou as sobrancelhas.
- Enviaram-me para dizer à senhorita Law que deve retornar à sala de estar, milorde - disse.
- Obrigado - replicou Rannulf com secura.
Não obstante, quando se virou para oferecer o braço a Judith Law, ela se apressou a atravessar os terraços inferiores, levantando as saias com ambas às mãos e fazendo pouco caso de sua existência.
Não a seguiu. Ficou ali olhando-a, embargado pelo que viu. Embora não tinha nem idéia de por que se sentia aliviado, logo recordou que de uma maneira ou de outra teria que casar-se com alguém nesse mesmo verão.
Sentia-se irritado. E continuava consumido pela culpa. E bastante excitado, maldição!
Harewood Grange era um fervedouro de ruído e atividade quando a carruagem deixou Judith e sua avó no terraço. Conforme puderam comprovar, todos os convidados que se esperavam já chegaram. A maioria se encontrava no salão, tomando chá com tia Louisa, tio George e Julianne. Aqueles que chegaram mais tarde ainda estavam em seus respectivos aposentos, trocando de roupa. No terraço se amontoavam multidões de baús, bolsas de viagem e caixas de chapéus, que numerosos criados e valetes desconhecidos se apressavam a transportar a seus aposentos correspondentes tão rápido como podiam.
- Estou muito cansada para fazer presença, Judith - disse sua avó. - Tenho a sensação de que estou a ponto de sofrer uma de minhas enxaquecas. Mas você não pode perder a reunião. Se for tão amável, me acompanhe a meus aposentos e depois me traga uma xícara de chá e talvez uns dois pastéis... os que estão cobertos por esse glacê branco, carinho. E depois tem que pôr um vestido bonito e se reunir com Louisa e Julianne no salão para que a apresentem a todos os convidados.
Judith não tinha a mínima intenção de fazer tal coisa. Acabava de vislumbrar a oportunidade de desfrutar a primeira hora de verdadeira liberdade desde que chegara a Harewood e não pensava desperdiçá-la. Correu para seu quarto assim que chamou Tillie a fim de que ajudasse sua avó a meter-se na cama para tirar uma sesta, colocou rapidamente um dos poucos vestidos que ainda não foram submetidos às mudanças de sua tia - um velho vestido de algodão cor amarelo limão que guardava com especial carinho, - atirou a touca de um lado para substituí-la por seu chapéu de palha e se apressou a descer a escada de serviço, que descobriu poucos dias atrás enquanto fazia vários encargos na cozinha. Escapuliu pela porta traseira e saiu aos jardins da cozinha, com as verduras de um lado e os maciços de flores do outro. Os prados verdes se estendiam ao longe até os pés de uma colina salpicada de árvores. Judith se encaminhou nessa direção e não demorou em aliviar o passo, erguendo o rosto para o sol e a ligeira brisa para desfrutar da maravilhosa sensação que supunha sentir sobre o cabelo, a testa e o pescoço, que por regra geral estavam cobertos pela touca.
Quão louca estava para ter repelido uma proposta de matrimônio? De um homem com título e fortuna? Um homem com o qual se deitou? Ao qual achava extremamente atraente? Cujas lembranças esperara que inundassem os sonhos do resto de sua vida? O matrimônio era o objetivo primitivo de qualquer mulher; ela desejava com ardor que o matrimônio lhe reportasse segurança, filhos e um pouco de consolo, talvez inclusive amizade.
Durante alguns anos tinha aguardado com paciência a oportunidade de conhecer um homem disposto a casar com ela; um homem a quem seu pai achasse aceitável e fosse passível a seus próprios olhos. Tinha sido bastante sensata para não esperar jamais que seus sonhos de encontrar o amor se transformassem em realidade. E, entretanto essa manhã -fazia pouco mais de uma hora- tinha recusado lorde Rannulf Bedwyn.
Acaso estava louca?
A colina não era muito alta, embora de qualquer modo do topo proporcionasse uma encantadora vista da campina que a rodeava, Judith podia olhar em todas as direções. A brisa soprava um pouco mais forte ali em cima. Colocou-se de cara ao vento, fechou os olhos e jogou a cabeça para trás.
Não, não estava louca. Como poderia ter aceitado quando ele nem sequer tinha tentado dissimular o ressentimento que lhe provocava o fato de ver-se obrigado a fazer semelhante proposta? Como ia aceitar quando deixou claro o muito que desprezava sua modesta classe social? Como ia aceitar quando tinha confessado sem disfarces que o que tinha acontecido entre eles não era uma circunstância incomum para ele e que semelhante aventura continuariam produzindo-se até depois de seu matrimônio?
Como podia casar-se com um homem que detestava com todas as suas forças?
Mesmo assim, pensou enquanto espiava um pequeno lago na parte mais afastada do pé da colina em cuja direção se pôs em marcha, sua negativa se viu afetada por uma irrefletida loucura; o orgulho tinha nublado seu bom senso. E era este último quem lhe recordava nesse momento que apesar do matrimônio com lorde Rannulf tivesse suposto acabar encerrada em algum canto perdido enquanto ele continuava com suas aventuras amorosas, teria sido um matrimônio apesar de tudo. A teria transformado na respeitada senhora de seu próprio lar.
Em troca, dependia de tio George, que mal reparava em sua existência, e era o objeto do desprezo e as ordens de tia Louisa, que continuariam durante incontáveis anos no futuro. Só sua avó fazia suportável sua vida nesses momentos. Repreendeu-se para si mesma ao perceber o rumo da autocompaixão que tinham tomado seus pensamentos. Havia destinos piores. Poderia estar casada com um homem que se importasse com sua insignificância, que descuidasse dela, que fosse infiel e...
Bom, havia destinos piores!
O lago que se encontrava ao pé da colina era íntimo e encantador. Estava rodeado de erva alta, flores silvestres e algumas árvores. Parecia um lugar abandonado e era muito provável que não o usassem nem sequer o frequentassem.
Possivelmente, pensou, poderia transformar-se em seu refúgio particular durante os dias, os meses e os anos vindouros. Ajoelhou-se na erva e colocou uma mão na água. Estava fresca e clara, não tão fria como supôs. Recolheu um pouco de água com as mãos e afundou seu acalorado rosto nelas.
Estava chorando, comprovou de repente. Ela quase nunca chorava. Entretanto, as lágrimas eram ardentes em contraste com a frescura da água, e de seu peito brotavam uma série de soluços impossíveis de controlar.
A vida era mais injusta em algumas ocasiões. Tinha estendido a mão só uma vez em sua vida para apoderar-se de um sonho breve e maravilhoso. Não tinha exigido nem esperado que se prolongasse. Só desejou que a lembrança desse sonho perdurasse durante o resto de sua vida.
Era evidente que pedira muito.
Nesse momento seu sonho desmoronou por completo. As lembranças estavam manchadas... todas as lembranças. Porque ele descobriu que ela não era a rutilante estrela, a extravagante atriz que lhe tinha parecido atraente apesar de seus defeitos físicos. E porque ela descobriu que ele era um calhorda.
Entretanto, acabava de lhe propor matrimônio e ela o recusou.
Ficou em pé e encaminhou de volta ao topo da colina.
Não podia permitir que sentissem falta dela. Se assim fosse, tia Louisa se encarregaria de que não pudesse desfrutar de um só instante de ócio no futuro.
Ao chegar à porta traseira, descobriu que alguém a fechou com chave. Não conseguiu abri-la apesar de todos seus esforços e ninguém atendeu sua chamada quando bateu com os nódulos. Rodeou a casa em direção à entrada principal, desejando com todas as suas forças que os convidados continuassem reunidos no salão a fim de poder escapulir para seu quarto sem que a descobrissem.
Quando dobrou a quina do terraço dianteiro, uns moços guiavam dois cavalos em direção aos estábulos e vários criados estavam descendo um monte de bagagem de uma carruagem. Havia dois cavalheiros de costas para ela; um deles dava as ordens pertinentes com voz impaciente e arrogante. Judith retrocedeu e teria desaparecido de novo atrás da quina se o outro cavalheiro não tivesse virado um tanto a cabeça, deixando seu perfil à vista.
Ela o olhou fixamente sem dar crédito ao que via e em seguida se apressou a aproximar-se dele, esquecendo que não queria que a vissem.
- Bran? – gritou - Branwell?
Seu irmão se virou com as sobrancelhas erguidas e depois sorriu enquanto se aproximava dela correndo.
- Jude? – perguntou - Você também está aqui? Fantástico! - tirou o chapéu, levantou-a do chão com um forte abraço e a beijou na face. - Também vieram outros? Eu gosto do chapéu... muito favorável.
Ia vestido à última moda e para falar a verdade parecia muito charmoso e elegante com seu cabelo loiro revolto pela brisa e esse sorriso afetuoso em seu entusiasmo, juvenil e rosto atraente. Por um instante Judith esqueceu seus desejos de torturar com lentidão e traição todas e cada uma das partes do corpo de seu irmão, da cabeça até as unhas dos pés.
- Só estou eu – respondeu - Uma de nós foi convidada e me tocou.
- Fantástico! - exclamou.
- Mas o que está fazendo você aqui, Bran? - perguntou ela.
Antes que seu irmão pudesse responder, o outro cavalheiro se uniu a eles.
- Bom, bom, bom - disse, submetendo-a a esse tipo de escrutínio descarado que teria feito que seu pai desse uma reprimenda a ela, de havê-lo presenciado. - Quer nos apresentar, Law?
- Judith - disse Branwell. - Minha irmã. Horace Effingham. Jude. Nosso primo por parte do tio George.
Há! Assim, tinha acudido; o filho do primeiro matrimônio do tio George. Tia Effingham fiaria encantada. Essa era a primeira vez que Judith o via em toda sua vida. Superava em alguns anos os vinte e um de Branwell e era alguns centímetros mais baixo que seu irmão; na realidade não era muito mais alto que ela. Era um pouco mais robusto que Bran e sua compleição morena lhe conferia uma atração que poderia pontuar-se de agradável. Seu sorriso revelou uns dentes muito grandes e muito brancos.
- Prima - disse, enquanto estendia uma mão firme, mas suave, para tomar a sua. - É um verdadeiro prazer. Sinto-me repentinamente encantado de ter sucumbido à persuasão de minha madrasta e de ter vindo ao que pensava que ia ser todo um aborrecimento. Trouxe seu irmão comigo para aliviar o tédio. Tomarei a liberdade de chamá-la de Judith, posto que somos parentes próximos. - levou sua mão aos lábios e a sustentou ali mais tempo do que o necessário.
- Effingham é um grande tipo, Jude - disse Branwell com entusiasmo. - Levou-me às corridas e me deu conselhos muito úteis sobre como escolher um ganhador; e também a Tattelsall's, onde me aconselhou como escolher os melhores cavalos. Uma noite me convidou ao White's e tomei parte em uma das mesas e ganhei trezentos guinéus antes de perder trezentas e cinquenta. De qualquer modo, só perdi cinquenta enquanto que os tipos que estavam comigo perderam centenas. E o White's! Deveria vê-lo, Judith; claro que não pode, porque é uma mulher.
Judith tinha se recuperado da surpresa inicial e também do prazer de ver seu irmão. Branwell, o único varão entre quatro mulheres - o bonito, entusiasmado e alegre Bran -, sempre fora o menino mimado. Tinha ido ao colégio à custa do gasto que supôs para seu pai e tinha retornado a casa com umas notas medíocres. Entretanto, tinha se destacado em todos os jogos, era o melhor amigo de todo mundo. Depois tinha ido a Cambridge, onde superara os exames por um fio. Mas não havia se sentido atraído nem por uma carreira eclesiástica, nem pela advocacia, nem pela política, nem pelo corpo diplomático, nem pelo exército. Não sabia o que queria fazer. Precisava ir a Londres, mesclar-se com gente adequada e descobrir com exatidão onde podia aplicar seu talento e habilidade para ganhar uma fortuna.
Durante o ano que tinha transcorrido desde sua volta de Cambridge, Branwell tinha esbanjado todo o dinheiro que seu pai dispôs para ele; e depois tudo o que economizou para os modestos dotes de suas filhas. Nesse momento seu irmão estava gastando o salário que permitia à família viver independentemente. E mesmo assim seguia sendo o menino mimado, que não demoraria em deixar para trás as loucuras da juventude e se disporia a recuperar a fortuna familiar. Inclusive seu pai, que era tão rigoroso com suas filhas, não via em Branwell nada mau que o tempo e a experiência não pudessem emendar.
- Encantada de conhecê-lo, senhor Effingham - disse Judith, escapando de sua mão logo que a cortesia o permitiu. - Alegra-me muito vê-lo de novo, Bran. Mas devo me apressar a entrar. Vovó estará a ponto de despertar da sesta e devo ver se precisa de algo.
- Vovó? - perguntou Branwell. - Tinha-me esquecido que a anciã estava aqui. Uma velha harpia, não é Jude?
A Judith não agradou muito o tom desrespeitoso de seu irmão.
- Tenho-lhe muitíssimo carinho - replicou com sinceridade. - Talvez queira lhe apresentar seus respeitos assim que tenha se refrescado, Bran.
- Se Judith estiver com ela, o acompanharei, Law - disse Horace Effingham com uma gargalhada.
Não obstante, Judith já se afastava com urgência, enquanto comparava sua situação em Harewood Grange com a de seu irmão. Ela estava ali na qualidade de criada sem salário, enquanto que Bran acabava de chegar como convidado. Apesar de ser a causa de suas desditas. De todas elas. Se não fosse por Bran, não teria estado na diligência. Não estaria ali.
De qualquer forma, não tinha sentido voltar a cair em autocompaixão.
Descobriu, não sem certo alívio, que o saguão e a escada continuavam desertos. Enquanto subia apressada, escutou o murmúrio das vozes procedentes do salão.
Rannulf, tal e como acontecia ao resto de sua família, nunca havia se sentido particularmente atraído pelas reuniões sociais, quer fossem em Londres durante a temporada, em Brighton, em um dos balneários frequentados no verão ou em qualquer festa campestre celebrada com o passar dos anos. A festa que teria lugar em Harewood prometia ser da mais insípida, conforme comprovou ao chegar. Mesmo assim, não podia livrar-se dela. Devia passar as duas semanas seguintes esforçando-se por agradar à senhorita Effingham. E durante essas duas semanas, ou pouco depois teria que propor matrimônio a jovem.
Duas propostas a duas mulheres diferentes e com apenas um mês de diferença. Embora da segunda delas não haveria liberação possível.
Desde sua chegada a Harewood para o jantar tinha resultado embaraçosamente óbvio que era o convidado de honra, mesmo que não pernoitasse na mansão como o resto dos presentes. E não era só o convidado de honra, também o pretendente predileto na hora de conceder a mão da senhorita Effingham. A mãe da jovem o guiou através do salão pouco depois de sua chegada, com o fim de lhe apresentar aqueles convidados que ainda não conhecia - a maioria deles, para falar a verdade-, convidou sua filha a que os acompanhasse. A dama os arrumou pouco depois para que fosse o par de sua filha durante a procissão de entrada ao salão, onde descobriu que ambos se sentariam lado a lado para jantar.
Resultou-lhe interessante descobrir que um dos convidados era um tal Branwell Law, um moço loiro e de aparência agradável que claramente era o irmão de Judith Law. Não o tinha mencionado Claire Campbell? De Judith e a senhora Law não havia rastros, algo pelo qual estava muito agradecido. Dizer que se sentia envergonhado depois de seus encontros no jardim, de maneira especial depois do segundo deles no caramanchão, seria calcular por baixo. Tinha-o recusado!
A senhorita Effingham parecia extremamente jovem e sua estupidez alcançava níveis alarmantes. Seu único tema de conversa eram as festas às quais tinha assistido em Londres e os contínuos comentários sobre como este e aquele - a maioria cavalheiros com título - tinham-na tratado com atenção e tinham desejado dançar com ela quando já tinha prometido todas as peças a outros cavalheiros.
Acreditava com firmeza que os descansos nos bailes deveriam ter lugar cada duas peças em lugar de cada três, de modo que pudesse haver mais oportunidades de troca de casal e assim um maior número de cavalheiros desfrutasse de um baile com a dama de sua escolha. O que opinava lorde Rannulf a respeito?
Lorde Rannulf pensava - ou isso afirmou- que era uma sugestão notavelmente inteligente que teria que propor a algumas das anfitriãs mais proeminentes de Londres, em particular a aquelas que formavam o comitê organizador do Almack'S.
- Como se sentiria - perguntou a jovem, olhando-o com esses olhos azuis totalmente abertos e a colher suspensa sobre o pudim - se quisesse dançar com uma dama e ela desejasse com desespero dançar com você, mas tivesse comprometidas todas as peças com outros cavalheiros, lorde Rannulf?
- Raptaria-a - respondeu e observou como ela abria os olhos um pouco mais antes de desfazer-se em alegres e agudas gargalhadas.
- Não o faria – replicou - Ou sim? Causaria um tremendo escândalo e depois, não sei se sabe, ver-se-ia obrigado a pedir sua mão em matrimônio.
- Absolutamente - contradisse ele - Levá-la-ia a Gretna Green, casar-me-ia com ela sobre a bigorna.
- Que romântico! - exclamou com um pequeno arquejo de surpresa. - A sério faria isso, lorde Rannulf? Com alguém a quem admirasse?
- Só se não tivesse nenhuma peça de baile livre - disse.
- Há! - exclamou ela com uma gargalhada. - Se a moça soubesse disso com antecedência, assegurar-se-ia de que não restasse nenhuma. E depois poderia levá-la a toda pressa... Não obstante você não faria algo tão escandaloso, certo? – Em seus olhos aparecia o remorso da dúvida.
Rannulf estava farto daquele estúpido joguinho.
- Sempre me asseguro – disse - de chegar ao baile com tempo suficiente para conseguir ao menos uma peça se houver alguma dama em particular a quem admire.
O sorriso desapareceu dos lábios da moça.
- Há muitas damas que admira, lorde Rannulf? -perguntou.
-Neste momento - respondeu ele, cravando os olhos nela, - só vejo uma, senhorita Effingham.
- Oh!
Era certo que a jovem sabia quão bonita estava com os lábios franzidos desse modo. Manteve a expressão uns instantes antes de ruborizar-se e baixar a vista para seu prato. Rannulf aproveitou a oportunidade e se virou para fazer um comentário à senhora Hardinge -a mãe da senhorita Beatrice Hardinge-, que estava sentada de seu outro lado. Lady Effingham ficou em pé pouco depois para assinalar às damas que chegou a hora de retirar-se ao salão enquanto os cavalheiros tomavam o porto.
A primeira pessoa que Rannulf viu quando entrou no salão meia hora mais tarde foi Judith Law, que estava sentada perto da lareira junto a sua avó. Usava um vestido de seda cinza pálido que parecia tão disforme como o de algodão listrado que tinha usado em Grandmaison essa mesma manhã. E voltava a usar touca. Era um pouco mais bonita que a outra, embora também lhe ocultasse o cabelo por completo. Segurava um pires e uma taça para a anciã, conforme comprovou Rannulf, enquanto esta sustentava um prato com um pastel de nata do qual estava dando boa conta.
Esqueceu-se de ambas as mulheres depois de fazer um amistoso gesto de cabeça em direção à senhora Law, que sorriu antes de lhe devolver o gesto. Era desconcertante descobrir que a moça fosse quase invisível para o resto dos congregados no salão... tal e como o fora para ele no dia anterior, quando foram apresentados. Toda sua vibrante e voluptuosa beleza estava oculta do modo mais eficaz.
Sir George Effingham indicou que tomasse assento a seu lado para jogar whist, mas lady Effingham tomou com firmeza seu braço e o conduziu para o piano, onde lady Margaret Stebbins estava regalando com atenção os convidados com uma peça de Bach.
- É a seguinte, Julianne, querida, não é certo? - perguntou lady Effingham antes que lady Margaret tivesse sequer acabado - Aqui está lorde Rannulf para ajudá-la a passar as páginas da partitura.
Rannulf se resignou a passar a noite distraindo e adulando a um bando de senhoritas dadas a risadas tolas, enquanto trocava comentários engenhosos com um grupo de jovens cavalheiros de aspecto atordoado. Sentiu-se como se tivesse cem anos.
Judith Law, não pôde evitar dar-se conta, não teve nem um momento de descanso graças a sua avó. Passou toda a noite dando passeios para a bandeja de chá. Em duas ocasiões teve que sair do salão. A primeira vez retornou com os óculos de sua avó, que esta deixou de um lado sem usar. A segunda com um xale de caxemira que acabou dobrado e esquecido sobre o braço da poltrona da anciã. Contudo, Rannulf percebeu que falavam muito entre elas, sorriam-se com frequência e pareciam desfrutar de sua mútua companhia.
Sorriu e elogiou a senhorita Effingham, que acabava de finalizar sua segunda peça no piano e que estava claramente ansiosa para que a audiência requeresse um bis. Enquanto isso, a honorável senhorita Lilian Warren e sua irmã aguardavam seu turno para sentar-se a frente do instrumento.
E nesse momento se produziu uma comoção junto à bandeja de chá. Ao que parece Judith Law estava servindo uma taça de chá quando alguém - Horace Effingham, comprovou Rannulf - deu-lhe um tranco no cotovelo. O chá se derramou pela parte dianteira de seu vestido, obscurecendo a seda cinza até ficar quase transparente e fazendo que se colasse ao peito. A moça soltou um grito e Effingham tinha tirado um lenço com o qual estava tentando secá-la. Ela utilizava uma mão para afastá-lo enquanto esforçava-se por afastar o tecido do busto com a outra.
- Judith! -gritou lady Effingham com um funesto tom de voz. - Moça torpe e desajeitada! Saia daqui imediatamente.
- Não, não, foi minha culpa, mãe - replicou Effingham. - Deixa que seque seu vestido, prima.
Tinha um olhar risonho, percebeu Rannulf. E lascivo.
- Meu Deus! - murmurou à senhorita Effingham. - Judith acaba de converter-se em motivo de riso.
Rannulf se descobriu apertando os dentes enquanto atravessava o salão a grandes passadas em busca do xale que repousava sob o cotovelo da senhora Law. Aproximou-se com rapidez do lugar onde estava a bandeja de chá e colocou o xale sobre os ombros de Judith Law, por trás e sem chegar a tocá-la. A moça se virou, surpreendida e agradecida, enquanto segurava os extremos do xale e se envolvia nele de forma protetora.
- Ah! – exclamou - Obrigado.
Rannulf respondeu com uma breve reverência.
- Queimou-se, senhora? - perguntou. - Será que ninguém parou para pensar que acabava de entornar-se em cima uma xícara de chá fervente?
- Só um pouco – respondeu - Na realidade não é nada. - Deu meia volta para sair com presteza do salão, mas Rannulf conseguiu ver que mordia o lábio inferior com força.
De repente, se descobriu frente a frente com Horace Effingham, cuja lasciva expressão parecia estar a ponto de converter-se em uma piscada de cumplicidade.
- Que galante por sua parte – disse - ter encontrado um xale com o qual ocultar o atordoamento da dama.
Tinha feito de propósito, compreendeu de repente Rannulf ao observar o homem com os olhos semicerrados. Pelo amor de Deus! Tinha feito de propósito.
- Poderia ter sofrido uma queimadura grave - disse com voz cortante. - Aconselharia que fosse mais cuidadoso no futuro quando se aproximar de uma bandeja de chá.
E nesse momento Effingham se atreveu a piscar um olho enquanto murmurava:
- Eu sim que estou ardendo, embora ela não esteja. E igual a você, Bedwyn, atrever-me-ia a apostar. Muito brilhante de sua parte encontrar a desculpa perfeita para aproximar-se com presteza.
Nesse momento lady Effingham elevou de novo a voz, embora nessa hora sua voz fosse alegre e afável.
- Vamos, que todo mundo siga divertindo-se – disse - Peço desculpas pela desafortunada e lamentável interrupção. Minha sobrinha não está acostumada a mover-se entre os círculos refinados e temo que seja um pouco torpe.
- Bom, tia, eu não diria tanto - replicou o jovem Law.
- Jude nunca foi torpe. Não foi mais que um acidente.
- Lorde Rannulf. - A senhora Law lhe puxou a manga e Rannulf se deu conta ao olhá-la de que o incidente a tinha perturbado. - Muitíssimo obrigado por ser o único com o aprumo necessário para ajudar Judith e lhe evitar deste modo parte da vergonha. Devo me apressar a subir para comprovar a gravidade de seu estado.
Colocou suas duas gordinhas mãos nos braços da poltrona em busca de apoio.
- Me permita, senhora - disse Rannulf, oferecendo uma mão.
- Você é muito amável. - A anciã apoiou todo seu peso nele enquanto ficava em pé. - Acredito que deve ser o calor o causador do inchaço de meus tornozelos e o motivo de minha contínua falta de ar.
Na opinião de Rannulf se tratava bem da enorme quantidade de bolos de nata que a senhora parecia consumir e de seu indolente estilo de vida.
- Me permita acompanhá-la, senhora - ofereceu-se.
- Bom, se não lhe causar muitos incômodos - disse a anciã. - Nem sequer gostaria de tomar essa xícara de chá, você sabe? Mas queria que Judith se separasse de meu lado e se mesclasse com os convidados. É muito tímida e até insistiu em jantar comigo esta noite porque me encontrava muito cansada para descer ao salão. Pensei que talvez desfrutasse se alguém lhe desse um pouco de conversação. Estou muito aborrecida com Louisa por ter esquecido de apresentá-la aos convidados depois do jantar. Suponho que tem muitas coisas na cabeça.
Rannulf não teve a intenção de acompanhá-la além da parte superior da escada. Entretanto, a anciã se apoiava de tal modo em seu braço que se viu obrigado a levá-la até a porta de seus aposentos. Ao menos deu por certo que era seu quarto até que a mulher ergueu uma mão coberta de anéis e bateu na porta.
A porta se abriu quase imediatamente e Rannulf se viu preso pela carga que tinha pendurada no braço. Judith tinha desfeito tanto do vestido como da touca. Seu cabelo, apesar estar preso com grampos, soltou-se em muitos lugares, de maneira que umas compridas e brilhantes mechas acobreadas caíam sobre seus ombros, lhe emoldurando o rosto. Usava uma camisola folgada cujos extremos fechava com uma mão. Mesmo assim deixava à vista uma ampla porção de pele nua que se estendia desde seus ombros até a união de seus seios. A pele que ficava a escassos centímetros destes tinha adquirido uma cor vermelha intensa.
- Oh! - Suas faces não demoraram a adotar a mesma tonalidade que a queimadura. - Eu... eu pensei que era alguém com o unguento que pedi. - Cravou o olhar em sua avó, mas Rannulf intuiu que estava muito consciente dele. Sua mão aferrou com mais força os extremos da camisola.
- Judith, carinho, queimou-se! - exclamou a senhora Law, soltando o braço de Rannulf e correndo para sua neta com uma rapidez da qual jamais a teria acreditado capaz. - Minha pobre menina!
- Não é nada, vovó - tranquilizou-a Judith, mordendo o lábio.
Não obstante, Rannulf percebeu que tinha os olhos cheios de lágrimas e soube que devia estar padecendo uma tremenda dor.
- Me permita - disse-lhe - ir em busca da governanta para me assegurar de que trazem o unguento sem mais demora. Enquanto isso, senhorita Law, uma toalha úmida sobre a queimadura a ajudará a aliviar parte da dor.
- Obrigada - disse ela, olhando-o nos olhos.
Seus olhares se entrelaçaram um instante antes que a moça se virasse e a anciã lhe rodeasse os ombros com o braço.
Rannulf se afastou apressado, entretendo-se com umas agradáveis visões nas quais banhava Horace Effingham em algo muitíssimo mais quente que o chá.
Judith permaneceu em seu quarto durante dois dias curando as dolorosas feridas do peito. Sua avó tinha esquecido suas próprias doenças já que contava com as de outra pessoa para distrair-se, visitava-a frequentemente e lhe levava bombons, notícias do resto da casa e conselhos de que permanecesse na cama e dormisse tudo o que pudesse. E Tillie por ordens de sua avó, levava bandejas de comida ao quarto e voltava a cada hora para lhe aplicar unguento calmante.
Horace Effingham enviou um buquê de flores por Tillie, acompanhado de uma nota onde explicava que as recolhera com suas próprias mãos e que lhe desejava uma pronta recuperação.
Branwell foi vê-la pessoalmente. - Está desfrutando da festa campestre? - inquiriu Judith depois que perguntou por sua saúde.
- Estou me divertindo muito - respondeu seu irmão - fomos cavalgar em Clynebourne Abbey esta manhã. Não restam mais que algumas ruínas, mas eram bastante pitorescas. Cavalgamos primeiro até Grandmaison para convidar Bedwyn que se unisse a nós. Acredito que Julianne gosta dele, mas acabará com o coração quebrado, se quer saber minha opinião. Os Bedwyn estão em um degrau muito mais elevado. Bewcastle... me refiro ao duque de Bewcastle, o cabeça de família... é conhecido por ser um homem impassível, e seria improvável que aprovasse uma aliança com a filha de um simples baronete.
- Alegra-me que desfrutasse da cavalgada. - Judith esboçou um sorriso. - perguntou-se o que diria Branwell se soubesse que lorde Rannulf Bedwyn lhe tinha proposto matrimônio no dia anterior, sem ir mais longe.
- Uma coisa, Jude. - levantou-se com brutalidade da cadeira em que estava sentado e caminhou até a janela de seu dormitório para contemplar a vista, de costas para ela. - Por acaso não poderá me emprestar algumas libras, não é? Trinta, talvez?
- Não, asseguro que não posso - respondeu ela. - Duvido que pudesse reunir um xelim mesmo que pusesse meu moedeiro de barriga para baixo e o espremesse. Para que precisa de trinta libras? - lhe parecia uma soma exorbitante.
Seu irmão deu de ombros e se virou para olhá-la com um sorriso sobressaltado.
- Não tem importância – afirmou. - É uma soma insignificante e Effingham me disse que não me preocupasse a respeito. Mas detesto estar em dívida com ele. Detesto que pague todos os gastos de minha viagem, mas papai se tornou notavelmente miserável de uns tempos para cá. Está zangado por algo?
- A viagem até aqui custou trinta libras? - perguntou Judith com estupefação.
- Não compreende o que significa ser um cavalheiro que se move em companhia de outros cavalheiros, Jude - replicou ele - tem que seguir o ritmo. A gente não pode aparecer como um caipira, sem casacos na medida e com botas que pareçam fabricadas por um sapateiro popular. É necessário alojar-se nos estabelecimentos que estão na moda e ter um cavalo decente para viajar. E a menos que a gente confie em si mesmo todo momento, deve fazer sempre o que fazem outros cavalheiros e ir aonde vão... aos clubes, às corridas, a Tattersall’s.
- Deve dinheiro a mais gente, Bran? - perguntou Judith, que não estava muito segura de querer escutar a resposta.
Ele fez um gesto desdenhoso com a mão e lhe sorriu, embora alguma coisa terminasse por não se enquadrar na expressão.
- Todo mundo deve dinheiro – respondeu - Qualquer um consideraria excêntrico um cavalheiro se não devesse uma pequena fortuna ao alfaiate, ao sapateiro e ao merceeiro.
- Tem também dívidas de jogo? - perguntou Judith antes de poder conter-se. Na realidade não queria saber.
- Insignificantes. - Esboçou de novo esse estranho sorriso. - Nada que ver com as de alguns companheiros, que devem mil. Alguns tipos perdem propriedades inteiras em uma mão de cartas Jude. Eu nunca aposto mais do que posso me permitir perder.
Judith foi muito covarde para lhe perguntar a quanto ascendia à soma de suas dívidas de jogo.
- Bran - disse-, quando pensa se decidir por alguma profissão?
- Para falar a verdade - afirmou ele com o mesmo sorriso alegre de sempre, - estive pensando em me casar com uma garota rica, uma lástima que Julianne tenha posto os olhos em Bedwyn... Embora me atrevesse a dizer que não tem nenhuma oportunidade em um milhão de apanhá-lo. Não obstante, as irmãs Warren têm pai mais rico que Creso, ou isso ouvi, e ambas são muito bonitas. Embora suponha que seu pai não me desse à mínima atenção, não acha?
Disse como se a mesma idéia fosse uma brincadeira bem intencionada, mas Judith não estava tão segura. Era óbvio que estava endividado até o pescoço... uma vez mais. Ela não sabia se seu pai poderia tirá-lo do atoleiro nesse momento sem ficar completamente arruinado. E o que aconteceria então a sua mãe e a suas irmãs?
- Vamos, Jude - disse Branwell enquanto ficava em pé e pegava suas mãos, - não fique tão séria. Sairei disto. Não deve preocupar-se por mim. Queimou-se muito?
- Estarei bem em dois dias - respondeu.
- Estupendo. - Apertou-lhe as mãos. - Se por acaso conseguir algumas libras durante as duas próximas semanas, possivelmente quando papai lhe enviar sua atribuição, poderia arrumar para me emprestar algo? Vir-me-ia muito bem, já sabe, e aqui não há muitas formas de gastar isso não é?
- Não espero que me enviem nenhum dinheiro - respondeu Judith.
- Ah. - Franziu o cenho - veio só de visita, não é certo, Jude? Papai não a terá enviado para que vivas aqui a custa da generosidade do tio George, não é? Isso seria o cúmulo. O que ocorre a papai ultimamente?
O que lhe ocorre é você, Bran, pensou Judith. A papai e a toda nós. Mas embora estivesse bastante zangada para lhe gritar uma boa reprimenda e lhe dizer algumas verdades que parecia ignorar, a chegada de Tillie com o unguento e uma dose de láudano impediu que o fizesse.
- Vai ter que me desculpar, Bran – disse - Devo descansar um momento.
- Certamente. - levou uma das mãos de Judith aos lábios e esboçou um de seus sorrisos mais doces. - Se cuide, Jude. Sabe quanto me alegro de ter uma de minhas irmãs aqui. Sinto muitas saudades de todas, se por acaso não sabia.
Se houvesse alguém que o coloca-se no trilho, pensou Judith, talvez tivesse possibilidades de seguir adiante. De qualquer modo, ela não tinha tempo para meditar no assunto. A dor era horrível. Quem ia imaginar que uma simples xícara de chá poderia chegar a ser tão letal?
Ao terceiro dia, Judith se atreveu a descer depois do almoço. Esperava poder evitar os convidados e encontrar sua avó. Mas como era de esperar, a primeira pessoa que a viu descer as escadas foi Horace Effingham, que se apressou a aproximar-se com um sorriso nos lábios.
- Judith! – exclamou - Por fim se recuperou. Ofereço minhas mais humildes desculpa por minha estupidez da outra noite na sala de estar. Estamos tentando decidir o que fazer esta tarde, agora que a chuva de ontem à noite e as nuvens desta manhã desapareceram. Venha e nos diga o que pensa. Ofereceu-lhe o braço.
- Para falar a verdade preferiria não ter que fazê-lo - afirmou Judith. - Não conheço ninguém. Sabe onde está vovó, Horace?
- Não conhece ninguém? - inquiriu o homem. - Fico pasmado. Ninguém a apresentou aos convidados?
- Não tem a menor importância. - Judith sacudiu a cabeça.
- Ah, claro que tem - corrigiu ele. - Não posso deixar que escape depois de ter aguardado pacientemente durante três dias que aparecesse. Vem.
Ela tomou a contra gosto o braço que ele oferecia e foi arrastada de uma forma indecorosa contra seu flanco enquanto a guiava à sala de estar. Entretanto, admitiu poucos minutos depois, era melhor que alguém a apresentasse aos convidados. Não era uma criada, apesar de tudo, e seria embaraçoso topar com gente a qual não fora apresentada como era devido durante a seguinte semana e meia. Embora, claro estava que parecia quase uma criada.
Branwell sorriu e lhe perguntou como estava; a senhora Hardinge se compadeceu dela por seu desafortunado acidente e Julianne disse que se alegrava de ver que estava em pé de novo e de que os livrasse das tediosas conversas da avó e de suas constantes exigências. A maior parte dos convidados, não obstante, não fez intento algum de entabular conversa, embora se mostrassem educados durante a apresentação.
Judith teria escapado logo que terminaram as apresentações, mas se viu atrasada, ao menos durante uns instantes, pela chegada de lady Beamish e lorde Rannulf Bedwyn. -Ah, duas apresentações mais, prima - disse Horace enquanto a conduzia até eles.
- Já tive o prazer - replicou ela, mas era muito tarde para evitar um encontro cara a cara.
- Senhorita Law - disse lorde Rannulf com uma reverência - espero que se encontre bem.
Devolveu-lhe a reverência e tentou não pensar na última vez que o viu junto à porta de seu quarto, acompanhado pela avó, lhe dando conselhos sobre como tratar a queimadura olhando-a com verdadeira preocupação antes de afastar-se a grandes passadas para apressar a chegada de um criado com o unguento que ela tinha solicitado. Depois do que tinha ocorrido essa manhã, a única coisa que queria era odiá-lo até a morte e esquecer-se dele.
- Rannulf me falou de seu desafortunado acidente comentou lady Beamish. - Confio em que não lhe tenha deixado um dano permanente, senhorita Law.
- Certamente que não; muito obrigado, senhora - assegurou Judith. - Encontro-me bastante bem.
Julianne deu umas palmadas para chamar a atenção de todos.
Estava resplandecente com um vestido de musselina amarelo claro e seus cachos loiros agitando-se com cada gesto em torno de seu rosto com forma de coração.
- Optamos – anunciou - por passear pelo longo atalho do bosque durante uma hora e depois fazer um piquenique no prado para tomar o chá. Agora que lorde Rannulf Bedwyn chegou, não há razão para demorar mais. - Olhou o homem com um sorriso radiante e Judith, que não pôde evitar olhá-lo, contemplou como este fazia uma reverência a sua prima para mostrar seu acordo enquanto lhe dirigia um olhar agradecido.
Doía. Por estúpido que parecesse, doía.
- Nesse caso apanhemos nossos chapéus e gorros e nos ponhamos em marcha - disse Julianne.
Seus planos pareceram gozar do favor geral. Produziu-se um breve alvoroço quando a maioria dos ocupantes da sala se apressou a preparar-se para a saída.
- Devo ir procurar vovó - murmurou Judith antes de soltar-se por fim do braço de Horace.
Entretanto, sua avó acabava de entrar na sala de estar com tia Effingham e a ouviu.
- Não preciso que se preocupe por mim, carinho - disse, olhando-a com um carinhoso sorriso. - Sarah me fará companhia. Agora que se levantou, deveria sair e se divertir com gente jovem.
- O ar fresco lhe fará bem depois de alguns dias de confinamento, senhorita Law - assinalou lady Beamish com amabilidade.
Tia Effingham tinha outras idéias, é claro.
- A verdade é que precisaria de sua ajuda, Judith - apressou-se a afirmar - foi desafortunado que sua estupidez tivesse como consequência uma longa temporada de ociosidade.
- Mas, mãe - protestou Horace, sorrindo de forma sedutora à tia Effingham, - asseguro que eu também preciso com urgência da ajuda de Judith: preciso que me livre do destino de me converter em um floreiro. Talvez não tenha percebido que o número de cavalheiros supera ao das damas nesta festa.
- Isso se deve a que não me informou que foste vir, Horace - replicou ela um pouco envergonhada- Nem de que ia trazer Branwell contigo.
- Judith. - Horace lhe fez uma reverência. - vá apanhar seu chapéu.
A vida em Harewood estava sendo mais exasperante do que tinha pensado. Embora sua mãe sempre as mantinha ocupadas quando estavam em casa e seu pai tinha rígidas normas de comportamento, jamais havia se sentido tão impotente.
Nem com essa absoluta falta de liberdade.
Ao menos em seu lar lhe pediam frequentemente sua opinião e consultavam suas preferências. Ali não. Teria sido uma surpresa para todos descobrir que ela teria preferido muito ficar a trabalhar para sua tia que permitir o duvidoso prazer de passear pelo bosque junto a Horace sentindo-se como uma intrusa e ver-se obrigada a contemplar como Julianne e lorde Rannulf Bedwyn caminhavam de braço dados, ela tagarelando sem cessar e ele inclinando a cabeça para escutá-la melhor. Puseram-se a rir algumas vezes e Judith recordou a contra gosto as ocasiões nas quais ele tinha rido com ela, sobretudo à saída da loja do povoado, quando desembrulhou sua caixinha de rapé.
O atalho do bosque ziguezagueava através das árvores até a parte ocidental da casa e fora desenhado com esmero para ressaltar ao máximo sua beleza. As flores silvestres cresciam ao lado do caminho e de vez em quando apareciam bancos e pequenas grutas, a maioria no topo das elevações do atalho, que proporcionavam agradáveis vista da casa e do resto da propriedade. Era um caminho desenhado para proteger aos que passeavam do calor do verão e do frio vento de outono.
Judith foi incapaz de apreciar o encanto da paisagem, embora pensasse que poderia converter-se em um retiro tranquilo com o passar dos anos, quando tivesse alguma hora livre.
Não estava desfrutando dessa hora em particular. Horace fazia pouco caso de todos os outros para concentrar toda sua atenção nela. Não obstante, longe de lhe parecer aduladoras, seus cuidados eram cansativos. Horace tentou entrelaçar seu braço com o dela, mas Judith apertou as mãos às costas com firmeza. Tentou caminhar mais devagar com o fim de se afastar do resto do grupo, mas Judith acelerou o passo com decisão cada vez que a distância aumentava. Olhava-a com mais frequência que à paisagem, em especial seu busto, que nem sequer o folgado vestido que usava podia ocultar por completo. Comentou a forma em que lhe tinha aderido o vestido ao corpo no dia que derramou o chá, revelando uma silhueta que deveria estar vestida de uma forma muito mais favorecedora.
- Eu diria que minha madrasta tem algo a ver com seus vestidos e suas toucas –afirmou - Parece decidida a casar Julianne este verão, se for possível com Bedwyn. Deu-se conta de que minha irmã é muito mais bonita que as demais garotas convidadas? - Riu baixo - Mamãe não pode permitir que haja nenhuma competidora em um ponto tão crucial para a vida de Julianne. E muito menos se tratando de uma prima.
A Judith não ocorreu nada que responder a esse comentário, de modo que guardou silêncio. Aumentou a longitude de seus passos para cortar a distância que os separava do senhor Peter Webster e da senhorita Theresa Cooke, o casal mais próximo a eles. Mas nesse momento Horace soltou uma exclamação de enfado e se deteve. Havia uma pedra incrustada no salto de sua bota, explicou-lhe antes de apoiar a mão contra o tronco que havia junto a Judith e levantar o pé para tirar a pedra de modo que ela ficou presa entre seu corpo e a árvore.
- Bom, já está - disse depois de uns momentos antes de voltar a colocar o pé sobre o chão e levantar a cabeça para sorrir a Judith.
Estava muito perto e os outros os tinham deixado bastante atrás.
- Sabe, Judith? - disse Horace, com a vista cravada em seu rosto, embora acabasse descendo até seu busto - Poderia fazer que sua estadia em Harewood fosse muito mais agradável. E poderia me convencer de que viesse de visita muito mais frequentemente do que tenho por costume.
Uma de suas mãos se ergueu com um propósito evidente. Ela a separou com um tapa e se moveu para rodeá-lo; mas posto que o homem não retrocedesse, a única coisa que conseguiu foi aproximar-se mais dele.
- Estou bastante cômoda como estou - afirmou Judith. - Estamos ficando para trás.
Ele riu baixo antes que sua mão alcançasse o objetivo e se fechasse ao redor de seu seio. Embora somente durante um breve instante. Horace afastou a mão e se afastou um pouco quando o rangido dos ramos augurou o retorno de um dos passeantes. Judith teria se posto a chorar pelo alívio quando viu Branwell.
- Ah, ah - disse seu irmão com jovialidade, - temos algum problema?
- Quase me vi obrigado a pedir a sua irmã que me tirasse à bota - respondeu Horace, rindo entre dentes. - Tinha uma pedra incrustada no salto e foi dificilíssimo me livrar dela.
- Ah - disse Branwell, - então Bedwyn estava equivocado. Enviou-me de volta porque acreditou que talvez Jude não se sentisse bem e precisava que a escoltassem até em casa. O problema da pedra está solucionado, não é assim?
- Livrei-me dela - respondeu Horace enquanto oferecia seu braço a Judith. - Judith? Não acha que deveríamos acompanhar o retorno de Branwell até a dama que tenha sido bastante afortunada para desfrutar de sua companhia? Sabia que seu irmão se converteu no preferido de todas elas?
Entretanto, Judith não estava disposta a deixar passar a oportunidade que se tinha apresentado de bandeja, por assim dizer.
- Sigam sem mim - disse, - os dois. Não preciso que ninguém me acompanhe, mas a verdade é que me sinto bastante fraca depois de ter passado os dois últimos dias em meu quarto. Voltarei para casa e me sentarei com vovó e lady Beamish. Ou talvez me deite um momento.
- Está segura, Jude? -perguntou Branwell. - Não me importaria de acompanhá-la absolutamente.
- Muito segura. - Esboçou um sorriso.
Minutos depois deixou para trás o bosque e se apressou a alcançar a segurança da casa. Sentia um desagradável formigamento na pele. Essa mão fora como uma serpente, tal e como ela imaginava que seria o tato de uma serpente. Tinha-lhe oferecido transformar-se em sua amante. Acaso todos os homens eram iguais?
Entretanto, fora lorde Rannulf quem enviou Branwell, lembrou. De verdade acreditou que se encontrava mal? Ou teria adivinhado a verdade? Mas como era possível que tivesse notado sequer que Horace e ela ficaram para trás?
Ainda não podia retornar a casa, compreendeu de súbito.
Embora conseguisse chegar à intimidade de seu quarto, a sensação de confinamento seria muito forte. E havia ainda mais probabilidades de que sua avó ou tia Effingham a vissem antes de consegui-lo. Estava muito nervosa para enfrentar tanto a tão carinhosa amabilidade de uma como à azeda irritação da outra.
Virou para a parte traseira da casa e dois minutos depois corria através dos jardins da cozinha e do prado que se estendia para o topo da colina. Tinha intenção de parar ali para deixar que o vento e a vista apaziguassem sua alma inquieta. Entretanto, o lago parecia deliciosamente fresco e isolado. Estremeceu ao recordar essa mão fechada sobre seu peito uma vez mais. Sentia-se suja.
Depois de quase três dias em companhia da senhorita Effingham e seus convidados, Rannulf desejava com todas suas forças retorna à tranquila discrição de Lindsey Hall, o ancestral ducado que lhe servia de lar durante a maior parte do ano. Ali se celebravam festas campestres e a maioria dos convidados era escolhida com cuidado, sempre tendo em conta sua capacidade de dizer algo razoável. Possivelmente Freyja e Morgan, suas irmãs, fossem pouco convencionais, teimosas, difíceis e bastante diferentes ao resto das damas de sua classe, mas Rannulf as preferia muito mais às jovens como as honoráveis senhoritas Warren, a senhorita Hardinge, a senhorita Cooke e lady Margaret Stebbins. Todas eram amigas íntimas da senhorita Effingham, que presumia diante delas que se tratasse de seu novo e adorado cãozinho pequinês.
Não poderia fazer isso, pensava ao menos uma vez durante cada hora que passava em sua companhia. Não poderia casar-se com ela, atar-se a sua bonita estupidez para o resto de sua vida. Acabaria mais louco que uma cabra em menos de um ano. Freyja e Morgan fariam picadinho da moça e Bewcastle a deixaria cravada no lugar somente com um olhar desdenhoso.
Entretanto, uma vez por hora ao menos, e justo depois de pensar o anterior, chegava à lembrança da promessa que fez a sua avó de que tentaria tê-la em conta como possível noiva. passou tempo suficiente em companhia da anciã para dar-se conta de que estava muito doente. Seria uma terrível decepção para ela se ao menos não anunciasse seu compromisso nesse verão. E qualquer decepção poderia levá-la à tumba. Não podia fazer isso.
De modo que perseverou e suportou o tolo flerte da senhorita Effingham, encantou suas amigas e brincou com os jovens cavalheiros, quem faziam que se sentisse como um octogenário mesmo que só ultrapassasse em alguns anos à maioria deles.
Tinha deixado de um lado o sentimento de culpa que lhe inspirava Judith Law. O que tinha acontecido entre eles não fora uma sedução e ela chegou até extremos insuspeitados para enganá-lo. Ele fez o correto e lhe tinha proposto matrimônio. A moça o tinha recusado. Não havia razão alguma para que seguisse sentindo-se responsável por ela. Não obstante, conhecia os tipos da estirpe de Horace Effingham. E sabia que o acidente do chá fora deliberado por sua parte. Rannulf supunha que o homem tentaria levar a cabo suas libidinosas intenções na menor oportunidade.
Não tinha demorado a perceber enquanto passeavam pelo bosque de que Effingham estava tentando ficar a sós com Judith e de que ela resistia como podia a seus esforços. E depois tinham desaparecido por completo. Por acaso, Branwell Law estava muito perto e não fora difícil persuadi-lo de que voltasse atrás para ajudar a sua indisposta irmã.
Law retornou minutos mais tarde junto a Effingham e anunciou que sua irmã se sentia um pouco fraca e tinha insistido em retornar à casa sozinha. Entretanto, Rannulf observou um momento depois, quando deixaram atrás outro banco do qual se via a casa e a propriedade, que ela não se dirigia para a mansão... e que não parecia nem débil nem exausta. Afastava-se correndo pela parte traseira da casa.
O chá ao ar livre estava disposto no prado que havia frente à fachada principal quando saíram do caminho do bosque. Todos passeavam em grupo de um lado a outro, riam e se mesclavam com as pessoas. Rannulf aproveitou a oportunidade para livrar-se do bate-papo vazio e jactancioso da senhorita Effingham ao menos durante um momento e se retirou com seu prato ao terraço, onde sua avó e a senhora Law estavam sentadas lado a lado.
- Pergunto-me onde estará Judith - disse a senhora Law, que passeava a vista ao redor em busca de sua neta.
- Branwell não disse, senhora? - perguntou Rannulf. - Sentiu-se um pouco esgotada depois de um momento e retornou a casa para descansar. Não permitiu que seu irmão a acompanhasse.
- Mas está perdendo o chá - afirmou à senhora Law. - Encarregar-me-ei de que Tillie suba uma bandeja. Se fosse tão amável, lorde Rannulf...
Ele ergueu uma mão para detê-la.
- Se me permitir o atrevimento, senhora - disse, - poderia sugerir que possivelmente fosse melhor deixar que a senhorita Law descanse um pouco mais?
- Certamente que sim - conveio à anciã. - Tem razão se importaria de aproximar esse prato de bolos, lorde Rannulf? Sua avó não apanhou nenhum, mas estou segura de que deseja prová-los.
Ele levou o prato e o ofereceu primeiro a sua avó, que fez um gesto negativo com a cabeça, e depois à senhora Law, que agarrou três, antes de voltar a colocá-lo sobre a mesa. Ninguém lhe prestava atenção, descobriu ao dar uma olhada a seu redor. Lady Effingham estava falando com a senhora Hardinge e a senhorita Effingham se encontrava com um alegre grupo formado pela senhorita Hannah Warren, lorde Braithwaite e Jonathan Tanguay.
Rannulf escapuliu pela quina da casa sem que ninguém descobrisse e rodeou o edifício até a parte traseira. Não havia sinais da moça. Perguntou-se aonde teria ido. Já teria retornado? Talvez estivesse descansando de verdade em seu quarto a essa altura. Havia uma colina salpicada de árvores não muita longe. Semicerrou os olhos para observar a distância, mas não a viu. Parecia um lugar tranquilo, de qualquer forma. Apertou o passo e se dirigiu para lá.
Sem nenhuma dúvida, Judith devia ter retornado à casa, pensou minutos depois enquanto ascendia os últimos metros em direção ao topo da colina e observava a vista com agrado. Muito melhor. No fundo não tinha albergado esperança alguma de encontrá-la, não é? Para que? Não tinha se detido a fazer-se semelhante pergunta até esse momento.
Havia um lago mais abaixo. Parecia descuidado e cheio de mato, ainda que de qualquer modo fosse encantador. Surpreendeu-se que não estivesse conectado com o atalho do bosque. Estava tentando decidir descer ou não quando a viu. A moça acabava de aparecer por baixo dos ramos de um salgueiro chorão. Nadando. Estava de costas e movia as pernas com lentidão enquanto seu cabelo se esparramava a seu redor como uma nuvem escura.
Deus... Tinha ido ali para estar sozinha. Deveria respeitar sua intimidade.
Não obstante, descobriu que suas pernas o levavam colina abaixo apesar de tudo.
Foi mais uma sensação que uma imagem ou um som: pressentimento de que não estava sozinha. Abriu os olhos e virou a cabeça com certo temor, esperando que Horace tivesse conseguido segui-la até ali.
Durante um instante experimentou um imenso alívio ao ver que era lorde Rannulf Bedwyn quem estava sentado junto a um monte de roupa sob o salgueiro, com uma perna esticada diante ele e o braço apoiado sobre a outra.
Sua roupa! Moveu-se com rapidez até que somente sua cabeça ficou fora da água. Levantou os braços para afastar o cabelo do rosto e, ao dar-se conta de que estavam nus, voltou a inundá-los imediatamente e os estendeu sob a superfície a fim de manter o equilíbrio.
Tinha sido uma soberana estupidez arriscar-se a nadar naquele lugar com somente a anágua.
- Não vou - disse ele em voz baixa, embora sua voz chegasse perfeitamente até ela da margem - correr com sua roupa nem lhe impor meus cuidados.
- O que quer? - perguntou. Sentia-se mais do que envergonhada, a despeito do dia e as duas noites que passaram juntos. Para falar a verdade, aquilo parecia ter acontecido fazia uma eternidade. Tal como parecia que tivesse acontecido a outra pessoa.
- Só um pouco de tranquilidade - disse ele. - Fez-lhe mal?
- Não. - Salvo que esteve chapinhando na água durante vários minutos em um intento desesperado por sentir-se limpa.
- Reunir-me-ia com você - disse lorde Rannulf. - Mas temo que uma ausência prolongada possa considerar-se de má educação. Por que não sai e se reúne aqui comigo?
A Judith pareceu assombroso e alarmante o tentador que lhe era a sugestão. Não tinham nada mais que dizer-se e, entretanto... entretanto a tinha salvado de uma situação potencialmente desagradável no atalho do bosque. Embora dias atrás tivesse admitido que era um aventureiro, ela sabia de algum jeito que podia confiar em que não lhe imporia seus cuidados. Acabava de dizê-lo.
- Não quer que a veja em roupa interior? - perguntou quando ela não se aproximou imediatamente da margem. - Vi-a com menos.
Partiria se ela pedisse? Era muito provável. Queria que partisse? Nadou muito devagar para ele. Não. Para ser completamente sincera consigo mesma, devia admitir que a resposta era não.
Apoiou as mãos na margem, tomou impulso e colocou o joelho na erva assim que foi possível. A água desceu por seu corpo. A anágua se aderia a ela como uma segunda pele. Virou-se e se sentou com os pés metidos na água.
- Talvez - disse sem olhá-lo - pudesse ser amável de me dar o vestido, lorde Rannulf.
- A única coisa que conseguiria seria molhá-lo também - disse ele - e sua situação não melhoraria absolutamente. O melhor seria que não o pusesse até o momento de retornar a casa e primeiro tirar a anágua.
- Está sugerindo... ? - começou ela.
- Não, não sugiro nada. Não vim aqui para seduzi-la, senhorita Law - disse, enfatizando as últimas palavras.
Por que tinha ido ali? Em busca de um pouco de tranquilidade, tal e como havia dito? A teria encontrado por acaso?
Judith se deu conta de que ele estava se pondo em pé e de que começara a tirar o casaco. Um instante depois, sentiu o peso e a maravilhosa calidez do casaco sobre os ombros. E depois ele sentou ao seu lado e cruzou as pernas, com um aspecto informal e depravado.
- Incomodou-a durante estes três dias, da noite do chá até hoje? - perguntou-lhe.
- Não - respondeu Judith - e suponho que não voltará a fazê-lo. Acredito que hoje deixei bastante clara minha postura.
- Sério? - perguntou ele. Era muito consciente de que o homem estava contemplando seu perfil, apesar de não se virar para olhá-lo. - Por que não me deixou clara sua postura?
- Agora? - inquiriu ela. - Acaba de me dizer que...
- Quando me ofereci levá-la a cavalo - explicou ele - Quando sugeri que compartilhássemos um quarto na estalagem do mercado.
Judith foi incapaz de dar uma resposta adequada, embora soubesse que ele esperava uma resposta. Tirou os pés da água, rodeou as pernas com os braços e inclinou a cabeça até apoiá-la em cima dos joelhos.
- Isso foi diferente - disse afinal em um sussurro. Mas por que fora diferente? Talvez porque tinha pressentido a princípio que se tivesse se negado, ele não teria insistido? Mas como estaria segura? Estaria certo? - Queria viver essa experiência. - Embora ela tivesse desejado um sonho.
- Isso quer dizer que a viveria com Effingham se tivesse sido ele quem aparecesse em meu lugar? - perguntou.
Judith se pôs a tremer. - Não, é claro que não.
Lorde Rannulf ficou calado durante um momento e quando por fim voltou a falar, mudou de assunto.
- Seu irmão é um cavalheiro que se veste na moda - disse, - e que se move nos círculos da moda. Atrever-me-ia a dizer até que são círculos dissolutos, a julgar por sua amizade com Horace Effingham. Está desfrutando da vida indolente de um convidado enquanto você está aqui como uma espécie de criada de alta categoria. Equivoco-me ao pensar que há uma história por trás de tão díspares situações?
- Não sei - disse ela antes de levantar a cabeça e cravar o olhar na água. - Acha isso?
- Seu irmão é a ovelha negra da família? - perguntou ele. - Embora você o ame apesar de tudo...
- É claro que o amo - replicou ela. - Bran é meu irmão e ainda que não fosse, seria muito difícil que o quisesse mal. Enviaram-no ao colégio e à universidade para que recebesse a educação de um cavalheiro. É normal que deseje mesclar-se com outros cavalheiros em uma situação de igualdade. É normal que se mostre um pouco esbanjador até que descubra o que deseja fazer com sua vida e escolha uma profissão. Não é um depravado. Só é...
- Desconsiderado e egoísta? - sugeriu o homem quando pareceu que ela era incapaz de encontrar a palavra adequada. - Sabe seu irmão que é o culpado por você estar aqui?
- Ele não... - começou ela.
- Mente muito, sabe? - disse ele.
Judith virou a cabeça e o fulminou com o olhar.
- Não é assunto seu, lorde Rannulf – replicou. - Nada que tenha que ver com minha vida ou com minha família é de sua incumbência.
- Não, não é - conveio ele. - Mas só porque você assim o quis, senhorita Law. Suas irmãs sofreram um destino parecido ao seu?
- Elas continuam em casa - respondeu Judith com uma onda de nostalgia que a fez voltar a apoiar a testa sobre os joelhos.
- Por que você? -perguntou-lhe. - Ofereceu-se voluntariamente? Não posso acreditar que alguém esteja impaciente por vir a este lugar e padecer a carinhosa dedicação de sua tia.
Ela suspirou.
- Cassandra é a mais velha – explicou - e a mão direita de nossa mãe. Pamela é a terceira e a beleza da família. Não teria suportado partir e deixar de ser o centro da admiração de todo mundo... e não estou dizendo que se vanglorie de sua aparência. Hilary é muito jovem. Só tem dezessete anos. Ter-lhe-ia quebrado o coração ter que deixar nossos pais... e isso teria quebrado também a todos.
- Quer dizer que ninguém romperá o coração por sua ausência? - perguntou-lhe.
- Uma de nós tinha que vir - disse ela. - E todos choraram quando parti.
- E apesar de tudo - insistiu lorde Rannulf. - segue defendendo esse mequetrefe esbanjador que tem por irmão?
-Não tenho nenhuma necessidade de fazê-lo - replicou, - e tampouco de censurá-lo. Não diante de você.
Entretanto, não estava zangada com ele por misturar-se nem por ter compreendido a situação tão bem. Sentia uma traiçoeira sensação de bem-estar ante o fato de que alguém se interessasse bastante por sua vida para lhe fazer perguntas. Alguém que compreendesse, talvez, até onde chegava o sacrifício que fez de forma voluntária... embora não tinha dúvidas de que ela teria sido a escolhida mesmo que não se oferecesse.
- Onde aprendeu a atuar? - perguntou-lhe. - Acaso sua família oferece representações teatrais de aficionados no vicariato, a reitoria ou onde quer que vivam?
- Vivo em uma reitoria - esclareceu, voltando a levantar a cabeça. - Deus santo, não; meu pai teria uma apoplexia. Opõe-se com veemência à interpretação e ao teatro e assegura que é obra do diabo. Mesmo assim, sempre me encantou atuar. Estava acostumada a sair às escondidas às colinas, onde ninguém podia me ver nem me ouvir, e interpretar os diferentes papéis que tinha memorizado.
- Parece ter memorizado uma boa quantidade - disse lorde Rannulf.
- Bom, não é muito difícil - assegurou ela. - Se interpretar o papel como se fosse esse personagem, as palavras se transformam em algo seu e parecem as mais lógicas nessas circunstâncias, não sei se me entende. Nunca memorizei um papel de forma deliberada. Limito-me a me transformar em diferentes personagens.
Judith guardou silêncio, bastante mortificada pelo entusiasmo com o que tinha explicado sua paixão pela interpretação. Sempre tinha desejado ser atriz quando crescesse, até que compreendeu que não era uma profissão respeitável para uma dama.
Lorde Rannulf permaneceu a seu lado em silêncio, com uma mão sobre o joelho enquanto que com a outra arrancava tufos de erva de forma distraída. Judith o recordou tal e como o tinha visto pouco antes, com a cabeça inclinada para Julianne, escutando com atenção seu bate-papo.
- Diverte-lhe brincar com os sentimentos de Julianne? - perguntou. As palavras saíram de sua boca antes que tivesse plena consciência de que ia dizê-las em voz alta.
A mão do homem se deteve.
- Julianne tem sentimentos com os quais se possam brincar? - perguntou ele a sua vez. - Não acredito, senhorita Law. Vai à caça de um marido com título, e quanto mais rico e mais alta seja sua posição social, melhor. Atrever-me-ia a dizer que o filho de um duque com fortuna própria é uma presa muito apetecível para ela.
- Então, não acredita que procure o amor ou que ao menos tenha esperanças de encontrá-lo? – inquiriu. - Que possua sentimentos ternos? Deve ser um cínico.
- Absolutamente - respondeu ele. - Limito-me a ser realista. Pessoas de minha posição não escolhem seus cônjuges por amor. O que aconteceria à estrutura da sociedade civilizada se começássemos a fazer isso? Casamos por dinheiro e posição.
- Nesse caso sim está brincando com ela - disse - Meu tio é um simples baronete, de modo que sua filha deve estar muito abaixo do interesse do filho de um duque.
- Volta a estar equivocada - replicou lorde Rannulf. - Os títulos não são tudo. A linhagem de sir George Effingham é impecável e é um latifundiário rico. Minha avó acredita que a aliança seria da mais adequada.
E seria?
- Assim sendo, vai se casar com Julianne? - perguntou. Não tinha conseguido acreditar até esse momento, apesar do que disseram tia Effingham e Julianne.
- Por que não? - Lorde Rannulf deu de ombros. - É jovem, bonita e encantadora. De berço bom e rico.
Judith não entendia por que seu coração e sua mente acabavam de verem-se embargados por semelhante desassossego. Ela teve sua oportunidade com ele e a tinha recusado. Embora claro que sabia o motivo. A simples idéia de que ele pudesse estar com Julianne lhe era insuportável. «É jovem, bonita e encantadora.» E também uma cabeça oca vaidosa e egoísta. Acaso merecia esse homem outra coisa? Tudo o que lhe tinha contado a respeito de si mesmo lhe indicava que não. E, entretanto...
- É óbvio - acrescentou ele, - tanto a senhorita Effingham como sua mãe terão uma desilusão se esperam vê-la transformada em duquesa algum dia. Sou o segundo na linha de sucessão, mas meu irmão mais velho se casou recentemente. Se as coisas seguirem o curso habitual, é provável que sua esposa fique grávida logo. Em caso de nascer um varão, ver-me-ia relegado à terceira posição.
Judith sabia de antemão a expressão que teria aparecido no rosto de lorde Rannulf e, como era de esperar, quando levantou a vista para olhá-lo descobriu o já familiar gesto zombador.
- Pode ser que lady Aidan - prosseguiu ele. - cumpra seu dever com devoção e dê a luz a doze filhos em outros tantos anos. Isso me deixaria quase sem esperanças. O que é o oposto à esperança? O desespero? Cada filho de Aidan me afundará mais e mais no desespero.
Judith compreendeu de súbito que sua intenção não era tanto a de zombar dela ou de si mesmo como a de fazê-la rir. E o tinha conseguido. Que imagem mais absurda tinha criado. Soltou uma gargalhada.
- Que terrível e triste para você - disse.
- Pois se considerar que minha situação é desesperada - comentou, - imagine a de Alleyne, meu irmão mais novo. Aidan gerando filhos sem cessar e eu com vinte e oito anos e em grave perigo de me casar a qualquer momento e de ter filhos próprios.
Ela soltou outra gargalhada, nesse momento olhando-o. - Isso está melhor - disse ele com um estranho brilho nos olhos que bem poderia ser bom humor. - Precisa sorrir e rir mais frequentemente. - Estendeu a mão para lhe acariciar o nariz com a ponta do indicador durante um instante e depois a retirou, movendo-se inquieto enquanto pigarreava e cravava o olhar na margem oposta do lago.
Para Judith pareceu que acabara de marcá-la a fogo. - O duque não se casará? -perguntou.
- Bewcastle? Duvido muito. Nenhuma mulher é bastante boa para Wulf. Ou talvez isso não seja de todo justo. Desde que herdou o título e tudo o que isso suportava a idade de dezessete anos, dedicou sua vida a cumprir com os deveres ducais e a ser o cabeça da família.
- E o que faz você, lorde Rannulf? - perguntou - Enquanto seu irmão se dedica a seus deveres, o que resta a você?
Ele deu de ombros.
- Quando estou em Lindsey Hall – começou, - passando o tempo com meus irmãos e irmãs. Cavalgo e saio para caçar e pescar com eles ou visito nossos vizinhos. Meu melhor amigo Kit Butler, o visconde de Ravensberg, vive perto. Continuamos muito unidos, apesar da horrível briga que tivemos faz uns anos, que nos deixou machucados e sangrando, e de ser um homem casado. Também me dou bem com sua esposa. Quando não estou em Lindsey Hall eu gosto de me mover. Evito Londres sempre que posso e me canso logo de lugares como Brighton, onde não há mais que frivolidade e descuido. No ano passado embarquei em uma excursão a pé pelas highlands escocesas e este ano mesmo percorri o Distrito dos Lagos. O exercício, a experiência e a companhia estiveram bem.
- Gosta de ler? - perguntou-lhe.
- A verdade é que sim. - Olhou-a com um sorriso lânguido. - Surpresa?
Não estava surpresa, embora tampouco deixava de estar, se deu conta de que sabia muito pouco sobre ele. E deveria, é claro, alegrar-se que as coisas continuassem assim.
- Suponho - disse enquanto apertava os joelhos - que os filhos dos duques não têm que trabalhar para viver.
-Não os filhos do duque que foi meu pai - respondeu - Somos indecentemente ricos por direito próprio, deixando de lado Bewcastle, que possui meia Inglaterra e parte de Gales. Não, não precisamos trabalhar, embora certamente se tenham certas expectativas para os filhos mais novos. Aidan é o segundo, portanto era de esperar que seguisse a carreira militar, coisa que fez sem pigarrear. Vendeu seu cargo recentemente... depois de casar-se. Bewcastle esperava que o subissem a general em alguns anos. Como terceiro filho, a idéia era que eu me dedicasse a Igreja. Não cumpri com meu dever.
- Por que não? – perguntou. - Será que sua fé não é bastante forte?
Ele arqueou as sobrancelhas.
- Conheço muito poucos cavalheiros que se decidiram pela vida religiosa movidos pela fé - respondeu ele.
- Você é um cínico, lorde Rannulf - concluiu Judith. O homem esboçou um sorriso.
- Imagina-me subindo ao púlpito nos domingos pela manhã, levantando a batina por cima dos tornozelos e dando um apaixonado sermão a respeito da moralidade, a decência e o fogo do inferno? - inquiriu.
Muito a seu pesar, Judith lhe devolveu o sorriso. Teria detestado vê-lo como um clérigo: sério, devoto, virtuoso, critico e totalmente sem alegria. Como seu pai.
- Meu pai me via levando a mitra de um bispo - comentou-lhe. - Talvez até mesmo como arcebispo de Canterbury. O teria decepcionado se tivesse vivido. Em seu lugar decepcionei meu irmão.
Notava certo que de amargura em sua voz?
- Nesse caso - indagou Judith, - sente-se culpado por não ter feito o que se esperava de você?
Ele deu de ombros.
- Trata-se de minha vida - respondeu. - Ainda que às vezes me pergunte se há algum motivo ou sentido para viver? Sua vida pede-lhe isso, Judith? Encontra algum sentido ou motivo a tudo o que aconteceu a sua família nos últimos tempos e por tanto a você?
Ela afastou o olhar.
- Não me faço essas perguntas – replicou. - Vivo o dia a dia.
- Mentirosa - disse ele em voz baixa - O que lhe proporciona o futuro aqui? Um interminável vazio ao longo dos anos? E mesmo assim não se pergunta por quê? Ou que sentido tem continuar vivendo? Acredito que sim o faz, cada hora de cada dia. Eu vi à autêntica Judith Law, recorda? E não tenho nada claro que aquela vibrante e apaixonada mulher do Rum e o Tonel fosse um engano e que esta mulher serena e disciplinada de Harewood seja a autêntica.
Judith ficou em pé segurando o casaco a seu redor com as duas mãos.
- Estou aqui muito tempo – disse - sentirão minha falta e tia Louisa se zangará. Partirá primeiro? Ou... se virará enquanto me visto?
- Não olharei - prometeu enquanto apoiava os pulsos sobre os joelhos e baixava a cabeça.
Judith deixou cair o casaco atrás dele.
- Temo que esteja úmida por dentro - disse-lhe.
Tirou a anágua, que seguia úmida, com toda a rapidez de que foi capaz e colocou o vestido. Retorceu o cabelo até convertê-lo em um coque que ocultou sob a touca. Colocou o chapéu e atou as fitas com força sob o queixo.
«Um interminável vazio ao longo dos anos.»
Tocavam-lhe castanholas os dentes enquanto se apressava a recompor sua aparência.
- Já estou vestida - disse, e lorde Rannulf ficou em pé com agilidade antes de virar-se para ela.
- Peço perdão - desculpou-se se a incomodei.
- Não, não o fez - assegurou ela- Sou uma mulher, Rannulf. As mulheres estão acostumadas ao aborrecimento, a esperar um futuro sem...
- Esperança?
- Sem promessas nem troca de emoções – corrigiu - todas as mulheres levam uma vida aborrecida, tanto se casam ou se envelhecerem a mercê da caridade de parentes ricos, como é meu caso. Esta é a verdadeira Judith, lorde Rannulf. A que tem diante de si.
- Judith. - aproximou-se para apoderar-se de sua mão antes que ela pudesse sequer pensar em retirá-la.
Entretanto, lorde Rannulf se deteve de repente, cravou a vista no chão que os separava, emitiu um suspiro e lhe soltou mão depois de dar um forte aperto.
- Rogo-lhe que me desculpe – repetiu - por entristecê-la quando faz um instante a fiz rir. Também eu devo retornar senhorita Law. Seguro que minha avó está pronta para voltar para casa. Eu rodearei a colina e sairei ao jardim dianteiro pela lateral. Você pode subir a colina e entrar pela parte posterior de casa. Está bem?
- Sim - respondeu ela, que o observou enquanto se afastava sem olhar para trás nenhuma só vez.
Não demorou a desaparecer de sua vista. Judith inspirou fundo e soltou o ar muito devagar. Na realidade não queria começar a conhecê-lo como pessoa. Não queria descobrir nada agradável nele. Seu futuro já era bastante horrível sem ter que acrescentar o arrependimento.
Arrependimento! Arrependia-se da resposta que lhe deu três dias atrás? Não, não o fazia. É óbvio que não. Tinha-lhe deixado muito claro um momento antes o tipo de mulher que seria sua esposa ideal e ela não tinha qualidade em nenhum dos aspectos. Além disso, quando lorde Rannulf se casasse seria com o único propósito de ter filhos que levassem seu nome. Reservaria todas suas energias, todo seu encanto e toda sua paixão para mulheres como a inexistente Claire Campbell.
Não, não se arrependia de sua decisão. Entretanto, sua alma se arrastou junto com seus pés durante todo o caminho de volta para casa.
Como era habitual, Rannulf fora convidado a Harewood à tarde seguinte, momento para o qual já se teria planejado algum plano para sua distração e a de todos outros. Entretanto, toda uma procissão de carruagens se aproximou de Grandmaison pela manhã cedo. O mordomo entrou na saleta para avisar do sucedido lady Beamish, que estava sentada a mesa escrevendo cartas, e também a Rannulf, que lia sua correspondência, uma carta previsivelmente curta de seu amigo Kit e outra mais longa de sua irmã Morgan.
Da carruagem que encabeçava a comitiva desceu um lacaio com a ordem de convidar lorde Rannulf a reunir-se com os convidados de Harewood em uma excursão cujo destino era um povoado a uns doze quilômetros. Entretanto, quando o servente bateu na porta, Rannulf já estava no vestíbulo e se encaminhava ao exterior para receber o convite das mãos da própria senhorita Effingham, que tinha descido da carruagem acompanhada da honorável senhorita Lilian Warren e sir Dudley Roy-Hill. Os passageiros das outras três carruagens também estavam apeando, e todos pareciam de muito bom humor.
Judith Law não se encontrava entre eles, comprovou Rannulf com uma simples olhada. Horace Effingham sim.
- Deve vir conosco, lorde Rannulf - disse a senhorita Effingham enquanto dava um passo em sua direção e estendia as duas mãos. - Vamos às compras a gastaremos todo o dinheiro. E depois tomaremos chá no Cervo Branco. É muito elegante.
Rannulf tomou suas mãos e se inclinou sobre elas. A jovem tinha uma aparência da mais atraente com um vestido de passeio verde claro e o chapéu de palha. Seus grandes olhos azuis faiscavam diante da espera de um dia de aventura. Até onde Rannulf podia ver, a senhora Hardinge, que viajava na última carruagem, era a única acompanhante do grupo.
- Concederemos dez minutos para que se prepare Bedwyn - gritou Effingham com jovialidade. - Nem um segundo mais.
- Guardei um lugar em minha carruagem - acrescentou a senhorita Effingham, que não tinha pressa alguma por retirar suas mãos - embora o senhor Webster e lorde Braithwaite competissem por ela.
Rannulf imaginou o dia que se avizinhava. Duas horas na carruagem pela manhã e outras duas no caminho de volta, todas elas em estreita companhia de sua futura noiva. Algumas horas de lojas com ela, depois tomaria o chá sentado a seu lado na estalagem. E sem dúvida a volta a Harewood mais tarde, onde também se sentaria junto a ela durante o jantar e se veria obrigado a passar as páginas da partitura enquanto ela tocava o piano ou a sentar-se junto a ela como par de cartas no salão depois do jantar.
Tanto sua avó como a mãe da moça estariam encantadas pelo feliz progresso do cortejo.
- Rogo-lhe que me desculpe. - Soltou-lhe as mãos, enlaçou as suas atrás das costas e esboçou um sorriso de desculpa para ela e o grupo em geral. - Mas prometi passar o dia com minha avó a fim de planejar as atividades de amanhã. - No dia seguinte se celebraria a festa ao ar livre em Grandmaison, um acontecimento ao qual não tinha dedicado o menor pensamento até esse instante.
A expressão da senhorita Effingham se decompôs e o presenteou com uma linda careta.
- Mas qualquer um pode planejar uma festa ao ar livre – replicou. - Estou segura que sua avó o liberará de sua promessa quando souber qual é nosso destino e que nos desviamos expressamente para convidá-lo.
- Sinto-me honrado de que o tenham feito - assegurou ele. - Mas me resulta impossível romper uma promessa. Que tenham um bom dia.
- Falarei com lady Beamish em pessoa -insistiu a senhorita Effingham com o rosto resplandecente. - O liberará se eu pedir.
- Obrigado - replicou Rannulf com firmeza, - mas não. Não posso partir hoje. Permita-me que a ajude a subir a sua carruagem, senhorita Effingham.
O semblante da moça mostrou claramente sua desilusão e Rannulf sentiu uma ferroada de remorso. Sem dúvida lhe tinha estragado o dia. Não obstante, enquanto aceitava sua mão e erguia a vista para observá-lo com uma expressão que não foi capaz de decifrar imediatamente, gritou em direção ao terraço:
- Lorde Braithwaite - chamou com jovialidade, - pode sentar-se comigo apesar de tudo. Para falar a verdade me parecia de boa educação reservar um lugar para lorde Rannulf, mas lhe é impossível vir.
A Rannulf fez graça observar, depois de deixá-la nas mãos de outro homem e esperar como ditava a educação que a procissão prosseguisse viagem, que ela não o olhou nenhuma só vez, mas sim se dedicou a sorrir ao paquerar com Braithwaite, a lhe colocar a mão na manga e a conversar animadamente com ele.
A tonta tentava lhe causar ciúmes, pensou enquanto voltava para casa. Sua avó acabava de aparecer no vestíbulo.
- Rannulf? – perguntou. - Vão sem você?
- Têm uma excursão planejada para todo o dia - respondeu enquanto se apressava a aproximar-se da anciã para lhe oferecer o braço. Sua avó se negava a utilizar bengala, mas ele sabia que frequentemente precisava apoiar-se sobre algo para caminhar. - Não gostaria de deixá-la sozinha tanto tempo.
- Mas que tolice, moço - replicou ela. - Como acha que me arrumo quando não está aqui... como sempre?
Acompanhou-a em direção à escada ao supor que queria retirar-se a seus aposentos. Cortou suas passadas para ajustar seus passos ao da anciã.
- Fui uma decepção para você, vovó? - perguntou - Por não optar pela Igreja como profissão. Por não vir frequentemente apesar de que faz anos que me nomeou seu herdeiro. Por não demonstrar interesse algum por meu futuro herdeiro...
A anciã o observou com olhos críticos enquanto subiam as escadas. Rannulf se deu conta de que subia os degraus um a um e de que sempre levantava primeiro o pé esquerdo. - O que provocou esta crise de consciência? - inquiriu a mulher.
Não estava seguro. A conversa com Judith Law, talvez. As coisas que lhe havia dito a respeito da ociosidade dos cavalheiros; sua própria admissão de que não tinha cumprido com seu dever, tal e como Wulf e Aidan faziam. Negou-se a converter-se em clérigo. Mas tampouco fez outra coisa. Não era melhor que esse mequetrefe de Branwell Law, salvo que ele dispunha de dinheiro com o qual desfrutar de uma vida ociosa. Tinha vinte e oito anos, estava enfastiado e vagava sem rumo; a sabedoria que tinha acumulado ao longo de sua existência o levava a cínica conclusão de que a vida não tinha sentido.
Acaso tinha tentado dar sentido à vida?
Respondeu à pergunta de sua avó com uma própria. - Desejou alguma vez que viesse mais frequentemente, que mostrasse interesse pela casa e a propriedade, que aprendesse o trabalho que acarretam e talvez que fiscalizasse sua administração e reduzisse suas responsabilidades? Que conhecesse seus vizinhos? Que me transformasse em um membro ativo desta comunidade?
À anciã faltava o fôlego quando chegaram à parte superior da escada. Rannulf se deteve para permitir que se recuperasse.
- Teria a amabilidade de me dizer a que vem tudo isto?
- Estou planejando me casar, não?
- Sim, é óbvio. - Precedeu-o a sua saleta particular, onde Rannulf se sentou em uma cadeira depois que a ajudou a se sentar. - De modo que essa idéia despertou seu sentido latente da responsabilidade, tal e como esperava que fizesse. É uma coisa muito doce, não parece? Mais caprichosa e frívola do que tinha imaginado, mas nada que o tempo e a maturidade não possam corrigir. Sente algo por ela, Rannulf?
Pensou em mentir descaradamente. Entretanto os sentimentos não eram indispensáveis para o matrimônio que tinha prometido ter em conta.
- Isso chegará com o tempo, vovó – disse - Sua descrição da moça é bastante acertada.
- E, entretanto - replicou ela com o cenho franzido, - acaba de recusar a oportunidade de passar todo o dia a seu lado.
- Me ocorreu - explicou- que poderia me reunir com seu administrador, vovó, para ver se tinha tempo de me mostrar os campos e me explicar algumas coisas. Sou bastante ignorante no que se refere a estes assuntos.
- Deve se aproximar o final dos tempos - comentou a anciã. - Nunca acreditei que viveria para ver este dia.
- Isso quer dizer que não me considera presunçoso? - inquiriu ele.
- Meu querido moço. - inclinou-se para diante - sonhei em ver-te não só como um homem casado e pai de família, mas também como um homem adulto, amadurecido e feliz. Foi um moço encantador desde que nasceu, mas já tem vinte e oito anos.
Rannulf ficou de pé.
- Pois irei endireitar meu caminho - disse com um sorriso, - deixá-la-ei descansar.
Havia uma nova vitalidade em seus passos quando desceu a escada. Surpreendia-se não ter pensado antes nessa possibilidade, contente como estava com sua vida ociosa em Lindsey Hall -que era o lar de Bewcastle, não o seu- e em qualquer lugar que pudesse desfrutar de uns dias ou semanas de entretenimento.
E, entretanto durante anos tinha sabido que chegaria o dia em que se transformaria em um latifundiário. Tinha muitas coisas que fazer, muito que aprender, de modo que quando chegasse o momento fosse capaz de dar-se à terra tanto como receber dela.
Entretanto, devia fazê-lo com Julianne Effingham a seu lado, sua mente expulsou essa idéia. Pensaria nisso em outro momento.
A Judith teria encantado unir-se à excursão de compras, sobretudo depois que Branwell pediu diretamente. Entretanto, quando tia Effingham se apressou a afirmar com bastante firmeza que necessitava que sua sobrinha ficasse em casa, não pôs objeções. De qualquer forma não tinha dinheiro algum que gastar, e não tinha a menor graça ir às lojas se não se podia comprar nem a mais insignificante ninharia para recordar o dia. Além disso, Horace não tinha demorado em secundar o convite de Bran. E se fosse, teria que ver como Julianne e lorde Rannulf Bedwyn conversavam e riam juntos durante todo o dia.
Não o amava. Mas se sentia sozinha e deprimida, e em um momento de loucura -sim, uma loucura- permitiu-se saborear outra vida muito diferente... com ele. Não podia evitar recordar. Seu corpo recordava, sobretudo durante os momentos nos quais baixava a guarda. Começava a despertar a noite com o corpo exaltado por algo que jamais voltaria a ter.
Em termos gerais, agradou-lhe passar o dia escrevendo um monte de convites para o grande baile da semana seguinte e levando alguns pessoalmente ao povoado -a pé todo o trajeto de ida e de volta porque não tinham lhe oferecido a caleche- e depois cortar flores do jardim da cozinha e fazer arranjos para cada uma das salas diurnas. Passou uma hora no salão organizando a bolsa de fios de sua tia, que se tinham embaraçado de maneira impossível, separando os fios com paciência antes de voltar a enrolá-los em sedosas meadas. Esta tarefa se viu interrompida duas vezes: uma para subir a escada em busca do lenço de sua avó e outra para levar o prato de bombons que tanto gostava.
Mas ao menos sua avó era uma companhia agradável. Sempre que tia Effingham não estava com elas conversavam animadamente sobre um sem-fim de temas. À avó adorava lhe contar histórias a respeito de seu avô, a quem Judith não chegou a conhecer apesar de ter sete anos quando morreu. Ambas se puseram a rir quando Judith contou à anciã algumas anedotas de sua casa com o simples propósito de entretê-la, como aquela vez em que todos os aldeãos tinham perseguidos como loucos um leitão que escapou por todo o cemitério e o jardim da reitoria, até que seu pai saiu do estúdio e conseguiu que o apavorado animal se detivesse em seco ao olhá-lo com sua expressão eclesiástica mais severa.
Foi então quando o mordomo as interrompeu.
- Peço-lhes perdão, senhoras - disse sem deixar de olhar a ambas como se não soubesse muito bem a quem dirigir-se, - mas há... isto... uma pessoa na entrada que insiste em falar com o senhor Law. Nega-se a acreditar que o jovem não se encontra aqui.
- Quer falar com Branwell? - perguntou Judith. - De quem se trata?
- Será melhor que o faça entrar, Gibbs - disse sua avó. - Embora não entendo por que não acredite.
- Não. - Judith ficou de pé. - irei ver o que quer.
O homem que havia na entrada tinha um chapéu entre as mãos ao qual não deixava de dar voltas e parecia muito incomodado. Tanto sua idade como sua roupa fizeram que Judith abandonasse imediatamente a idéia de que se tratava de um amigo de Bran que se encontrava pela área e que decidiu visitá-lo de surpresa.
- Posso ajudá-lo em algo? - perguntou-lhe. - O senhor Law é meu irmão.
- Seriamente, senhorita? - O homem fez uma reverência. - Mas tenho que ver o cavalheiro em pessoa. Tenho que lhe entregar algo em mãos. Sua irmã não me servirá. Diga-lhe que venha se não se importar.
- Não se encontra aqui - disse Judith. - Não voltará até a noite. Embora o senhor Gibbs já houvesse dito, conforme tenho entendido.
- Mas é que sempre dizem isso - replicou o homem - e quase nunca é certo. Não consentirei que me evite, senhorita. Vê-lo-ei cedo ou tarde. Diga-lhe que esperarei que volte.
Por que motivo? - perguntou-se Judith. E a que vinha essa insistência que raiava a grosseria? Como descobriu que Bran estava ali? De qualquer modo, ela não era nenhuma idiota. Sentiu uma ferroada de apreensão.
- Nesse caso deverá esperar na cozinha - informou-lhe - se o senhor Gibbs permitir, claro está.
- Me siga - disse o mordomo, que olhou o visitante com uma expressão altiva, como se tratasse de um verme especialmente repugnante.
Judith os observou afastar-se, carrancuda, antes de retornar ao salão.
Entretanto, nem sequer teve a oportunidade de sentar-se quando escutou o som dos cavalos e as carruagens e foi à janela para dar uma olhada. Sim, tinham retornado, muito mais cedo do que esperava.
- Já estão de volta? - A surpresa de sua avó era fiel reflexo da sua.
- Sim - respondeu Judith. - Não demoraram muito.
Claro que à volta não teriam tido que dar a volta até Grandmaison. Teriam levado lorde Rannulf com eles. Contra sua vontade, viu-se se inclinando para a janela para espioná-lo enquanto desembarcavam da carruagem. Mas foi lorde Braithwaite quem ajudou Julianne a descer, e atrás deles o fizeram à senhorita Warren e sir Dudley Roy-Hill. Tia Effingham tinha saído para recebê-los.
- O que queria esse homem de Branwell? - perguntou sua avó.
- Não tenho a menor idéia - respondeu Judith. - Queria vê-lo pessoalmente.
- Suponho que seja um amigo - comentou sua avó.
Judith não a contradisse. Um instante depois a porta do salão se abriu de par em par e Julianne entrou feita uma fúria, com uma expressão mal-humorada, os lábios franzidos e sua mãe lhe pisando os calcanhares. Tia Effingham fechou a porta atrás dela. Era de supor que os convidados se dirigiram a seus aposentos para refrescar-se depois ter passado o dia fora.
- Não pôde vir - disse Julianne com voz tensa e gritando - Tinha prometido a lady Beamish que ficaria com ela. Mas não me deixou que a convencesse para que o liberasse de sua promessa. Não queria vir. Não gosta. Não vai pedir minha mão. Ah, mamãe, o que vou fazer? Tenho que me casar com ele! Morrerei se tiver que me conformar com alguém inferior.
- Voltou para casa muito cedo, Julianne - comentou a avó - O que aconteceu?
- As lojas não valiam à pena - respondeu com petulância - Tudo parecia maltrapilho em comparação com os produtos que havia inclusive nas lojas mais modestas de Londres. Entretanto, todos queriam deter-se em todas as partes e não deixavam de exclamar maravilhados perante algo. Estava mortalmente aborrecida na hora de chegar. E quem quer que tenha pontuado o Cervo Branco de elegante é que não viu nada elegante em sua vida. Tivemos que esperar dez minutos para tomar chá morno e umas massas rançosas. E se Hannah e Theresa disserem que o seu estava quente, mamãe, mentem. Foi uma estupidez ir a esse lugar. Estou segura de que teve um dia fantástico comparado ao meu, Judith.
Judith compreendeu que fora a negativa de lorde Rannulf a unir-se à comitiva o que condenou a excursão ao fracasso. Por que teria se negado?
- É claro que gosta, queridinha - disse tia Effingham para acalmá-la - Lady Beamish foi bastante explícita na hora de promover uma união entre os dois, e lorde Rannulf se mostrou do mais atento. Se não pôde ir contigo hoje, tenha por certo que tinha uma boa razão. Não deve demonstrar que está aborrecida com ele. Amanhã se celebrará a festa ao ar livre em Grandmaison e já sabe que também nos convidaram para jantar. Tudo sairá bem amanhã, verá. Deve ter sua aparência encantadora de sempre, queridinha. Nenhuma dama pega cavalheiro algum com um aborrecimento.
- Comprei dois chapéus, embora um eu não gostasse nada - disse Julianne um tanto mais calma - E o outro, temo, é de um estilo que não me favorece. Também comprei umas fitas. Não podia decidir que cor eu gostava mais, assim comprei duas. Embora não havia nenhuma que eu gostasse de verdade. - Deixou escapar um longo suspiro - Que dia mais insípido!
Chegando a esse ponto, sua avó decidiu retirar-se a seus aposentos e Judith a ajudou a ficar em pé e a acompanhou até lá.
- Estes brincos me machucam - lamentou sua avó enquanto tirava um quando se aproximavam de seu quarto e fazia uma careta. - Sempre esqueço que o fazem. Embora meu porta-jóias esteja tão desorganizado que me limito a colocar a mão e tirar o que estiver mais acima. Tenho que guardar estes no fundo.
- Eu o farei, vovó - ofereceu-se Judith.
Entretanto, quando viu o interior da enorme caixa de madeira esculpida em que sua avó empilhava sua considerável coleção de jóias, soube que deviam tomar medidas drásticas.
- Você gostaria que organizasse tudo? - perguntou - Vovó, o porta-jóias está dividido em compartimentos. Se usar um para os anéis, outro para os brincos e outros para os broches, os colares e os braceletes, tudo seria muito mais fácil de encontrar.
Sua avó suspirou.
- Seu avô sempre estava comprando jóias porque sabia o muito que eu gostava. E como pode ver, guardo as peças mais valiosas separadas. - Assinalou a bolsa de veludo borgonha que estava quase escondida sob o desordenado monte de jóias. - Organizará isso tudo? Que amável de sua parte, Judith, carinho. Nunca me dei bem em manter as coisas em ordem.
- Levarei o porta-jóias a meu quarto - sugeriu Judith - para não incomodá-la enquanto descansa.
- Sim, preciso descansar - admitiu a avó. - Acredito que o frio me afetou o estômago quando me sentei ontem no terraço com Sarah. Pensei que o chá me sentaria bem, mas não foi assim. Tillie me dará um tônico de algo, suponho.
Judith levou o pesado porta-jóias a seu quarto e derrubou tudo sobre a cama. Seu avô devia ter sido muito apaixonado por sua avó, pensou com um sorriso, para lhe dar de presente tantas e tão ostentosas jóias, muitas das quais apenas se podiam distinguir de suas resplandecentes companheiras.
Estava organizando os colares, o último monte que restava, quando bateram na porta e Branwell se apressou a entrar a despeito dela ainda não ter acabado de perguntar quem era. Estava branco como um lençol.
- Jude - disse, - preciso que me ajude.
- O que aconteceu? - De repente recordou do pertinaz visitante.
Devia ser o causador da confusão de seu irmão. - O que queria esse homem?
- Bom. -Tentou esboçar um sorriso. - Não era mais que um mensageiro. Que falta de vergonha, maldita seja. As pessoas têm dívidas com seu alfaiate e seu sapateiro e se vê açoitado por meio país, como se sua palavra de cavalheiro não fosse suficiente para assegurar o pagamento.
- Era um alfaiate que exigia o pagamento de uma dívida? - perguntou com um pesado colar de safiras na mão.
- Não era o alfaiate em pessoa - respondeu ele. - Contratam indivíduos para estes assuntos, Jude. Ele me disse que tenho duas semanas de prazo para pagar.
- Quanto dinheiro? - inquiriu com os lábios repentinamente ressecados.
- Quinhentos guinéus - respondeu com um sorriso apagado - Há tipos que lhes devem dez vezes mais, mas ninguém os persegue.
- Quinhentos... - Por um instante, Judith acreditou que ia desmaiar. O colar caiu sobre seu regaço com um golpe.
- A verdade é que não vai restar mais remédio a papai que pagar a dívida - disse Branwell enquanto se aproximava da janela. - Sei que é muito e sei que não pode repetir-se. Devo corrigir meus hábitos e tudo isso. Mas está feito, não é? Assim papai vai ter que me tirar deste embrulho. Mas dará um ataque se o peço pessoalmente ou se digo por carta. Escreverá por mim, não é, Jude? Explique a ele. Diga-lhe...
- Bran – interrompeu-o com uma voz que parecia vir de muito longe, - não estou segura de que papai possa lhe dar tanto dinheiro. Mesmo se o tiver, não restará nada mais. O arruinará igual à mamãe, a Cass, a Pamela e a Hilary.
O semblante do jovem empalideceu ainda mais, se algo assim era possível. Inclusive os lábios adquiriram um tom esbranquiçado. - A coisa está tão mal? - perguntou- É verdade, Jude?
- Por que acha que estou aqui, Bran? - inquiriu ela. - Porque vir viver com tia Effingham é o sonho de minha vida?
- Ah, por Deus... - Olhou-a com uma careta de compaixão. - Sinto muitíssimo, Jude. Não queria acreditar, mas é verdade, não é? Eu fui o culpado disto? Bom, pois acabou. Arrumarei isso, verá. Pagarei minhas dívidas e recuperarei a fortuna familiar. Encarregar-me-ei de que volte para casa e de que todas vocês tenham dinheiro para conseguir um marido. Eu...
- Como, Bran? - Em lugar de sentir-se comovida por seu efusivo remorso, Judith estava zangada. - Apostando forte nas corridas e nos clubes de cavalheiros? Alegrar-nos-ia muitíssimo mais que escolhesse uma profissão respeitável e que se assentasse em uma vida decente.
- Me ocorrerá algo - disse ele - Verá Jude. Me ocorrerá algo. Arrumarei isso sem ter que recorrer a papai. Santo ceu! - Seus olhos posaram de forma distraída no porta-jóias- De quem são todas essas jóias? Da vovó?
- Estavam todas embaralhadas - explicou, - exceto as mais valiosas, que estão nesta bolsa. Ofereci-me para organizar.
- Aí deve haver toda uma fortuna - disse seu irmão.
- Nada disso, Bran - disse ela com voz turva. - Não recorrerá à vovó para pagar suas dívidas. Estas jóias são dela, são suas lembranças da vida com o vovô. Talvez valham uma fortuna, mas são dela... nem tuas nem minhas, nunca lhe prestamos muita atenção, em parte porque papai sempre nos transmitiu a impressão de que não era respeitável, embora não tenha a menor idéia de seus motivos. Pode ser que seja um pouco cansativa segundo as circunstâncias, sempre esquecendo as coisas em outro aposento e queixando de sua saúde, embora de um tempo para cá o faça menos. Mas lhe peguei muito carinho. É divertida e adora rir. E juraria que não tem nenhum pingo de maldade no corpo... que é mais do que posso dizer de sua filha... ou de seu filho. - ruborizou-se por haver dito algo tão desleal de seu próprio pai.
Branwell suspirou.
- Não, é óbvio que não pedirei ajuda à anciã - disse - Sobretudo porque seria humilhante admitir diante dela que me encontro em apuros. Ainda que, pelo amor de Deus, nem sequer se daria conta de que falta uma, duas ou dez peças dessas, não acha?
Judith o deteve com um olhar sério.
- Só estava brincando, Jude – explicou - Não me conhece o bastante para saber que jamais me ocorreria roubar minha própria avó? Só era uma brincadeira.
- Sei, Bran. - ficou em pé e sucumbiu ao impulso de lhe dar um abraço. - Terá que encontrar a maneira de sair você sozinho do atoleiro. Talvez se visitar os comerciantes envolvidos possa chegar a algum acordo com eles para lhes pagar uma mensalidade o...
Ele soltou uma gargalhada, um som carente de humor.
- Não deveria tê-la incomodado com meus problemas - respondeu. - Esqueça Jude. Apesar de tudo são meus problemas, não os seus. Arrumarei isso. E quanto a você, não vejo por que não pode atrair um marido decente embora viva neste lugar sem nenhum dote. Claro que não o fará com essa aparência. Jamais entendi por que papai insistia a mamãe para que sempre usasse touca quando as demais nem sequer as punham. Nunca compreendi o que tem de horrível seu cabelo. Sempre acreditei que as mulheres ruivas são muito atraentes.
- Obrigada, Bran. - Sorriu - Devo terminar isto e devolver o porta-jóias ao quarto da avó. Tenho que admitir que me põe um pouco nervosa ter todas estas jóias aqui. Oxalá pudesse ajudá-lo, mas não está em minha mão.
Seu irmão esboçou um sorriso e pareceu recuperar sua expressão habitual.
- Não se preocupe - disse. - Os homens passam por este tipo de coisas todo o tempo. Mas sempre as arranjam. Eu também o farei.
A frase se converteu em uma espécie de lema para ele, percebeu Judith. As arrumaria. Mas ela não via como.
Seu pai se veria afetado cedo ou tarde, pensou, igual a sua mãe e suas irmãs. E ela se veria presa por séculos e séculos com tia Effingham. Até esse momento não se deu conta de que uma parte dela seguia acalentando a esperança de que retornaria para casa, de que tudo voltaria para a normalidade.
O clima cooperou em grande parte com a festa ao ar livre em Grandmaison. Apesar de o dia ter amanhecido com o ceu coberto de nuvens que pareciam pressagiar chuva, a tarde foi limpa e ensolarada, com o calor justo para não se tornar cansativo. O salão estava disponível para qualquer um que se sentisse mais inclinado a sentar-se no interior, mas haviam tornado a abrir as portas francesas e a maioria dos convidados se encontravam fora, passeando pelos atalhos dos jardins principais, sentados no caramanchão ou caminhando pela grama e pelo atalho do arroio. No terraço dispuseram umas longas mesas cobertas com toalhas de um branco imaculado, carregadas com apetitosos alimentos de todas as classes possíveis, além de bules e enormes jarras de limonada e ponche.
Judith estava decidida a passá-lo bem. Usava o que sempre tinha considerado seu vestido mais bonito, o de musselina verde claro; embora igual à maior parte de seus vestidos não tinha escapado às alterações. Usava também uma de suas próprias toucas sob o chapéu que lhe deu tia Louisa. Não se sentia bonita, mas jamais se iludiu com respeito a sua aparência. De qualquer modo, essa tarde não se considerava muito diferente do resto dos convidados da vizinhança. Em sua maior parte não pareciam nem de perto tão elegantes nem na moda como o grupo de Harewood. E Judith tinha a vantagem de ter conhecido muitos deles no dia anterior, quando tinha entregue os convites para o baile.
Passou a primeira meia hora acompanhada da esposa e a filha do vigário, com as quais acreditou possível poder cercar uma amizade com o tempo. Elas por sua vez apresentaram a algumas pessoas que se dirigiram a ela de forma educada e nem a olharam com desdém - pior ainda - viraram-se imediatamente como se não estivesse ali. Depois de quase uma hora, uniu-se a sua avó no salão e lhe levou um prato de comida do terraço. Estiveram sentadas ali tranquilamente até que lady Beamish as descobriu e as arrastou até o caramanchão depois de persuadir sua avó de que o ar era quente e de que a brisa era quase inexistente.
Estava desfrutando da festa, disse-se Judith depois de deixar conversando às duas velhas amigas. A seu redor distinguia os sons das risadas e a diversão. Parecia que os jovens se moviam em grupos, às vezes em casais, com um aspecto vivaz e exuberante enquanto desfrutavam da companhia de outros. Inclusive os convidados de mais idade pareciam ter alguém com quem falar ou sentirem-se mais cômodos... igual a ela, é óbvio. Ela tinha sua avó.
Julianne estava rodeada por suas amigas mais íntimas e por alguns cavalheiros convidados de Harewood. Lorde Rannulf estava ao seu lado, tal e como estivera a maior parte da tarde, e sua prima o olhava com uma expressão resplandecente, embora dissesse algo que provocou as gargalhadas de todo o grupo.
Ia casar-se com Julianne.
Judith desejou de repente estar a sós depois de descobrir que era possível sentir-se mais só que nunca em meio a uma multidão, algo que nunca tinha acontecido em seu lar. Ninguém lhe prestava atenção nesse momento. No geral, em quase todas as grandes mansões se podia encontrar um pouco de tranquilidade se alguém fosse para a parte traseira. Tomou um atalho que rodeava o lado da casa e descobriu os esperados jardins da cozinha na parte posterior. Por sorte, estavam desertos e imediatamente começou a respirar com mais calma.
Teria que superar de uma vez, disse-se com determinação; teria que superar essa sensação de estar fora do lugar, essa perda de confiança em si mesma e essa autocompaixão.
Os estábulos se encontravam no outro extremo da casa e havia um curral atrás. Passou junto à área cercada e contemplou os cavalos pastando ali, aliviada de que não houvesse nenhum cavalariço pelo lugar que pudesse vê-la e perguntar que fazia tão longe da festa.
Além dos estábulos o terreno descia em uma inclinada costa coberta de erva até uma área de floresta. Judith desceu quase correndo e se viu rodeada por arbustos de rododendro, envolta de repente por sua intensa fragrância. Adiante dela, uma vez que desceu a inclinação, descobriu um bonito mirante e, mais à frente, um lago de nenúfares.
O mirante tinha forma hexagonal e estava completamente fechado sob seu pontiagudo teto de telhas de madeira, embora contasse com janelas em todos os lados. Provou o trinco e a porta se abriu para dentro sem dificuldade graças a umas dobradiças bem lubrificadas. No interior o chão estava coberto de ladrilhos e havia um banco estofado em pele por todo o perímetro do mirante. Era claro que se usava de vez em quando. Estava limpo. Havia alguns livros amontoados de um lado do banco. Embora estivesse claro que não era o refúgio privado de alguém. Não estava fechado com chave.
Entrou e deixou a porta aberta para poder respirar a fragrância dos rododendros e escutar o canto dos pássaros; além disso, queria ter uma boa vista do formoso e bem conservado lago de nenúfares, com suas águas de cor verde escura sob o dossel de ramos e o surpreendente contraste da brancura dos nenúfares.
Era um pequeno paraíso na terra, decidiu enquanto se sentava no banco, entrelaçava as mãos sobre o regaço e se permitia relaxar um pouco pela primeira vez em toda à tarde. Deixou de um lado a nostalgia de seu lar, a solidão e a tristeza. Não era próprio dela acalentar sentimentos negativos durante muito tempo e ditos sentimentos estavam curvando-a há muitos dias. Ali podia encontrar beleza e tranquilidade para nutrir seu espírito e aceitaria semelhante presente abrindo-se ao que lhe ofereciam e dando a oportunidade de que lhe chegassem à alma.
Respirou fundo e relaxou ainda mais. Fechou os olhos durante dois minutos, embora não estivesse adormecida. Sentia-se feliz e consciente da sorte que recebia. Perdeu o sentido do tempo. - Bonita vista, certamente - disse com suavidade uma voz procedente do vão da porta, o que a trouxe de volta a desagradável realidade como se estivesse dormindo de verdade.
Horace estava ali, com um ombro apoiado contra o marco da porta e as pernas cruzadas à altura dos tornozelos.
- Ah, - disse ela, - assustou-me. Fui dar um passeio, descobri o mirante e me sentei para descansar uns momentos. Deveria retornar agora mesmo. - Ficou em pé e se deu conta de que o lugar não era espaçoso absolutamente.
- Por quê? - perguntou ele sem mover um ápice - Porque minha madrasta poderia ter alguns recados que a encarregar? Porque sua avó poderia necessitar que lhe levasse mais bolos? A festa durará algum tempo mais e os convidados de Harewood ficarão depois que todos os outros partirem, como bem sabe. Convidaram-nos para jantar. Relaxe. Não sentirão sua falta durante um bom tempo.
Isso era precisamente o que ela temia.
- É tudo muito pitoresco, não lhe parece? - disse Judith com jovialidade. E mais longínquo e afastado, pensou.
- Muito, sim - conveio ele sem afastar os olhos dela. - E o seria ainda mais se tirasse o chapéu e a touca.
Ela sorriu.
- É isso um cumprimento, senhor Effingham? – inquiriu - O agradeço. Ficará aqui um momento mais? Ou retornará a casa comigo?
- Judith. - Esboçou um sorriso que revelou seus perfeitos dentes brancos. - Não há nenhuma necessidade de se mostrar tímida... nem de me chamar «senhor Effingham». A vi abandonar a festa porque se sentia sozinha e afastada. Aqui não a apreciam, não é? Deve-se a minha madrasta que a trata como se fosse uma parenta pobre e respira essa impressão na maioria dos convidados, que a vêem somente como a dama de companhia de sua avó. E que obrigaram a se disfarçar dessa forma. Sou o único homem aqui, além de seu irmão, que teve o privilégio de espiar o que há debaixo.
Judith se repreendeu em silêncio por se vestir da forma que o fez no dia que Horace chegou com Bran. Não teria mostrado interesse nela se a tivesse visto com o aspecto que tinha nesse momento. Não lhe ocorreu nenhuma resposta sensata a essas palavras.
- Não obstante, nem todos a desprezam - disse ele.
- Bom. - Judith se pôs a rir. - Muito obrigado. Mas de verdade devo ir agora. - Deu um passo para diante. Se desse um mais, daria de frente com ele. Entretanto, tal e como fez no atalho do bosque, o homem se manteve em seu lugar e não se afastou para deixar que passasse - Desculpe-me, por favor, senhor Effingham.
- Suponho – acrescentou - que teve uma educação rígida e limitada na reitoria, não é assim, Judith? Se por acaso não sabe, um interlúdio romântico poderia ser muito divertido, sobretudo quando a festa é tão aborrecida.
-Não tenho o menor interesse em um interlúdio romântico - replicou ela com firmeza.
- Isso é porque nunca teve a oportunidade - disse ele - Corrigiremos essa falta em sua educação, Judith. Poderíamos acaso pedir uma ambientação mais... pitoresca para a primeira lição?
- Já basta - disse ela com tom cortante. Estava assustada de verdade, já que esse homem parecia não ser capaz de aceitar um não por resposta, nem sequer quando o dava com firmeza. - Parto-me daqui. E o aconselharia que não tentasse me deter. O tio George e tia Louisa não se sentiriam muito agradados com você se o fizesse.
Ele riu entredentes com o que parecia genuína diversão. - Muito inocente... – disse - De verdade acha que me jogariam a culpa?E de verdade acha que chegaria a dizer-lhes - Deu um passo para frente e ela meio passo para trás.
- Eu não gosto disto, senhor Effingham – disse - Seria pouco cavalheiresco de sua parte aproximar um centímetro mais de mim ou continuar falando de um assunto que me é extremamente desagradável. Deixe-me sair agora mesmo.
Em lugar de permitir - levantou a mão, desatou os laços de seu chapéu e o jogou junto com a touca sobre o banco que havia a suas costas antes de agarrá-la. A metade de seu cabelo caiu sobre um ombro e Judith escutou Effingham ofegar.
Foi a última coisa que escutou ou viu de forma consciente durante o que pareceu uma eternidade, embora na realidade não fosse mais que um minuto ou talvez dois. Começou a golpeá-lo como uma possessa com ambos os punhos, deu-lhe chutes e lhe cravou os dentes em qualquer lugar que ficasse perto de sua boca... Mas não gritou, percebeu mais tarde. Jamais fora das que gritavam. De qualquer modo, era estranho que apesar de tão irrefletidas pareciam suas ações, uma parte dela se afastou da situação para contemplar quase com indiferença como lutava perdida no pânico com o fim de liberar-se e como Horace a dominava sem muito esforço, ria baixo a maior parte do tempo e amaldiçoava quando em duas ocasiões ela conseguiu lhe acertar um golpe.
De repente, seu corpo se viu apertado contra o do Horace, com o vestido levantado até a metade das pernas e uma das coxas do homem entre as suas, enquanto lhe aprisionava as mãos contra o peito e aproximava essa asquerosa boca úmida à sua. Foi então quando recuperou o bom senso. Esse homem pretendia violá-la e ela não seria capaz de detê-lo. Ainda que não se rendesse com docilidade. Seguiu lutando e o pânico se apropriou de novo dela ao dar-se conta de que seus esforços não serviam para livrar-se, e sim para agradá-lo e excitá-lo ainda mais.
E de repente, sem nenhum tipo de aviso, viu-se livre e contemplou com aterrorizada incredulidade o enorme monstro que acabava de afastar Horace de seu lado e que ainda grunhia de modo ameaçador quando se virou e o lançou fora do mirante. O monstro era lorde Rannulf Bedwyn, que saiu atrás de Horace, levantou-o do chão com uma mão e o estampou contra o tronco de uma árvore.
Judith procurou a apalpadelas o batente mais próximo e se agarrou a ele. - Talvez não tenha notado - estava dizendo lorde Rannulf, ainda com esse rouco grunhido - que a dama não estava interessada.
- Isto é um pouco exagerado, não lhe parece, Bedwyn? - perguntou Horace, que tentava em vão escapar da mão que aferrava as lapelas de seu casaco - Mostrava-se mais tímida que relutante. Ambos sabemos que... Ai!
Lorde Rannulf tinha puxado a mão livre para trás e tinha encravado o punho no estômago de Horace.
- O que ambos sabemos - disse em um tom de voz que sugeria que estava apertando os dentes - é que chamá-lo de verme, Effingham, seria difamar o reino dos insetos.
- Se gostar da moça... Ai! - Horace se dobrou para diante quando recebeu outro murro no estômago, mas lorde Rannulf o manteve em seu lugar com a mão esquerda.
- Agradeça – disse - que estejamos na propriedade de minha avó e que há uma festa em curso. De outra maneira, seria um enorme prazer para mim ordenar à senhorita Law que partisse para lhe dar a surra que merece. Garanto-lhe que terminaria inconsciente e ensanguentado sobre o chão, com o rosto alterado de forma permanente.
Deixou cair à mão e Horace, visivelmente aturdido, separou-se do tronco e começou a recolocar o casaco e a camisa. - Acha isso, Bedwyn? - perguntou com fingida despreocupação. - Ah, e tudo por uma moça que não faz mais que arquejar pelos cuidados de qualquer um que use calças.
Lorde Rannulf teve muito presente que não devia arruinar a festa de lady Beamish com uma briga. Não deu nenhum murro em Horace na cara. Todos foram dirigidos ao corpo, acima da cintura. Judith se segurou com mais força ao batente da janela e contemplou a cena sem ao menos perceber que Horace, apesar de sacudir os punhos de vez em quando, não acertou nenhuma só vez. Não era uma briga, embora Effingham pudesse querer tê-la transformado em uma. Era um castigo. E terminou somente quando seu agressor esteve de quatro e vomitou presa de terríveis ânsias sobre o chão.
- Pode ser que deseje - disse lorde Rannulf com a voz só ligeiramente entrecortada - apresentar suas desculpas por não ficar para jantar, Effingham. Dar-me-ia vontade de vomitar se o visse sentado à mesa de minha avó. Manter-se-á afastado da senhorita Law no futuro, entendido? Mesmo que eu não esteja perto para ver se a persegue. Chegaria a me inteirar e a próxima vez lhe daria uma surra que o deixaria a um passo da morte... isso se tiver sorte. Desapareça de minha vista agora mesmo.
Horace ficou em pé com muita dificuldade, apertando o estômago com uma mão. Estava tão pálido que tinha adquirido um tom esverdeado. Não obstante, olhou lorde Rannulf antes de dar meia volta e afastar-se a tropicões.
- Me pagará por isso - disse. A seguir cravou o olhar em Judith. - E você também. - O ódio resplandecia em seu olhar.
E então, quando por fim partiu, Judith se deu conta de que tinha os nódulos brancos de tanto apertar o batente, o estômago revolto e os joelhos trêmulos. Lorde Rannulf ajeitou a roupa e se virou para ela. Só nesse instante Judith se deu conta de que teria que ter aproveitado esse momento para recuperar a compostura, mas mesmo assim não pôde soltar o batente.
- Sinto que tenha presenciado semelhante amostra de violência - disse ele - Deveria a ter enviado de volta à casa primeiro, mas supus que não iria querer que todos a vissem de semelhante forma e soubessem imediatamente o que tinha acontecido dentro do mirante, - quando ela não lhe respondeu - Estava lutando com todas suas forças –acrescentou - Tem coragem.
Ato seguido, afastou a mão de Judith do batente, separou-lhe os dedos com cuidado, colocou-a sobre a sua e depositou a outra em cima. Tinha os nódulos avermelhados, conforme comprovou ela. - Não voltará a acontecer - assegurou ele - Conheço os tipos como Effingham. Abusam das mulheres que não os adoram e idolatram e se comportam como uns covardes diante dos homens que lhes pedem contas. Asseguro-a que me tem medo e que não passará por cima de minhas advertências.
- Eu não o convidei a fazer nada disso - afirmou Judith com um tremor na voz que foi incapaz de controlar - Não vim aqui com ele.
- Sei -disse ele - Vi-a rodear a casa e percebi que ele a seguia. Custou-me uns minutos me desembaraçar da companhia e desaparecer sem que se dessem conta. Rogo que me perdoe por vir tão tarde.
Judith podia ver seu cabelo... de ambos os lados de seu rosto. Seu vestido, compreendeu quando olhou para baixo, moveu-se com o esforço, de modo que seu modesto decote revelava nesse momento a parte superior de seus seios. Ergueu a mão livre para prender o vestido e descobriu que ainda tremia, tanto que nem sequer podia segurar o tecido.
- Vem. - Lorde Rannulf também agarrou essa mão entre as suas e a obrigou a sentar-se no banco. Tomou assento a seu lado sem lhe soltar as mãos e deixou que seu braço exercesse uma relaxante pressão sobre seu ombro - esqueça de seu aspecto por uns instantes. Aqui não virá ninguém. Apóia a cabeça sobre meu ombro se desejar. Respira a paz que nos rodeia.
Ela seguiu sua sugestão e permaneceram sentados assim durante cinco minutos, possivelmente dez, sem falar nem mover-se. Como podiam dois homens na aparência similares ser tão distintos? Perguntou-se. Lorde Rannulf lhe fez uma proposta depois do acidente da diligência, uma da mais imprópria, e a pusera em prática. O que o diferenciava de Horace? Para falar a verdade ela mesma já tinha respondido essa pergunta. E ainda acredita em sua resposta, talvez mais que nunca. Lorde Rannulf teria continuado sozinho no lombo de seu cavalo naquele dia se lhe houvesse dito que não. A teria deixado na hospedaria se ela se negasse a mudar-se à estalagem do mercado. Ter-lhe-ia permitido dormir no banco do salão privado se lhe houvesse dito que não. Não, na realidade lhe teria cedido à cama e ele teria dormido no banco. Sabia que o teria feito. Lorde Rannulf Bedwyn estava mais que disposto a paquerar e até a deitar-se com uma mulher interessada, mas jamais forçaria uma que não estivesse.
E mesmo assim desonraria os votos matrimoniais tomando amantes? Não encaixava com o que seu instinto lhe dizia. De qualquer forma, ela estava - sim, certamente que estava - apaixonada por ele, de modo que era normal que o idealizasse. Não devia começar a acreditá-lo um homem perfeito.
Levantou a cabeça, separou a mão da do homem e se afastou do consolo que tinha encontrado em seu ombro. Ele não a olhou, descobriu com agradecimento, quando ajustou o sutiã e, em ausência de escova, penteou o cabelo o melhor possível antes de recolher-lhe na nuca com os grampos que pôde encontrar e ocultá-lo sob a touca e o chapéu.
- Já estou pronta para retornar - disse enquanto ficava em pé - Muito obrigado, lorde Rannulf. Não sei se alguma vez serei capaz de lhe devolver o favor. Parece que sempre estou em dívida com você. - Ofereceu-lhe sua mão direita. Estava bastante firme, teve o orgulho de comprovar.
Ele a estreitou entre as suas e se levantou.
- Se desejar – disse - pode se ausentar do jantar e das atividades posteriores anunciando que está indisposta. Encarregar-me-ei de que a levem de volta para casa na carruagem de minha avó e enviarei uma criada para que fique contigo se temer que a incomodem ali. Só tem que decidir.
Senhor, era mais que tentador. Judith não sabia se seria capaz de sentar-se para jantar e manter a compostura enquanto conversava com quem estivesse sentado a seu lado. Não sabia se seria capaz de ver lorde Rannulf sentado junto a Julianne, falando e rindo com ela. Mas era uma dama, recordou-se. E apesar de não ser mais que um membro de menor categoria da família de tio George, formava parte dela, apesar de tudo.
- Obrigado - disse, - mas ficarei. Ele esboçou um sorriso imediatamente.
- Eu adoro essa forma de erguer o queixo que tem, como se desafiasse o mundo –afirmou - Parece-me que é nesses momentos quando a verdadeira Judith Law sai em cena.
Levou suas mãos aos lábios e, por um momento, ela esteve a ponto de tornar a chorar ante a efêmera ternura da carícia. Em troca se limitou a sorrir.
- Suponho – disse - que sim há um pouco de Claire Campbell em Judith Law.
Não se segurou em seu braço, embora ele o oferecesse. O destino havia tornado a reuni-los, mas sua camaradagem terminava aí. Tinha-a salvado e a tinha consolado porque era um cavalheiro. Não devia dar mais importância a seu comportamento. Não deveria aferrar-se a ele. Recolheu a saia pelos lados e subiu com dificuldade a costa que conduzia aos estábulos.
- Retornarei por onde vim - disse quando chegaram ao topo. - Você deve seguir um caminho diferente, lorde Rannulf.
- Sim - conveio ele antes de afastar-se para a parte dianteira dos estábulos, deixando-a com uma inexplicável sensação de vazio no peito.
Acaso tinha esperado que se negasse a fazê-lo?
Passou apressada junto ao curral e os jardins da cozinha e estremeceu ao pensar que poderia ter retornado em circunstâncias muito diferentes se ele não se desse conta de que Horace a tinha seguido. Não suportava sequer imaginar.
Entretanto, como se deu conta? Estava convencida de haver escapulido sem que ninguém a visse. Não obstante, Horace a tinha visto, igual à lorde Rannulf. Talvez não fosse tão invisível como começara a acreditar, apesar de tudo.
A Rannulf foi atribuído o assento que havia entre lady Effingham e a senhora Hardinge durante o jantar, já que sua avó fora muito mais discreta na hora de distribuir a mesa do que era lady Effingham em Harewood. Supôs um alívio para ele, mesmo que uma das damas só falava de quão duro era ter seis filhas para apresentar a sociedade quando teria gostado mais ficar em sua propriedade durante todo o ano, e a outra ria e se compadecia dele pelo fato de ver-se obrigado a acompanhar a duas matronas quando sem dúvida preferiria estar sentado junto há alguém muito mais jovem e bonita.
- Até poderia mencionar -sugeriu enquanto olhava de esguelha - alguém muito particular.
A senhorita Effingham, que se encontrava no mesmo lado da mesa que Rannulf embora afastada, falava animadamente com Roy-Hill e Law, seus companheiros de mesa. Em algumas ocasiões sua mãe se inclinou para frente a fim de averiguar o motivo de um ou outro estalo de risadas.
- Lorde Rannulf, eu mesma e todos outros nos sentimos separados da diversão, queridinha - disse em uma dessas ocasiões.
Judith Law estava sentada do outro lado da mesa e conversava em voz baixa com seu tio e com Richard Warren. Ao olhá-la nesse momento ninguém teria adivinhado a terrível experiência que sofreu algumas horas antes. Era muito mais dama que sua tia, face à fachada de elegância e sofisticação desta última. Como as demais damas de Harewood, a moça se trocou em um aposento atribuído a tal feito no andar superior. Estava vestida com o mesmo vestido de seda listras cor bege e dourado que tinha usado no Rum e o Tonel na segunda noite. Rannulf o recordava por sua singela elegância, que naquele momento acreditou deliberada para não ressaltar sua aparência, igual ao resto de seus vestidos. Essa noite o vestido tinha apliques de uma cor bege mais escuro nos lados, uma banda do mesmo material ao redor do decote que evitava que não pudesse apreciar-se nem um centímetro de seu busto e uma cintura quase inexistente. Usava uma bonita touca debruada de renda que, como era de esperar, cobria-lhe o cabelo.
Quantos dos que estavam sentados à mesa? - perguntou-se Rannulf - davam-se conta de que tinha menos de trinta anos apesar de estar vendo-a a uma semana? Ou quantos saberiam de que cor era seu cabelo. Ou os olhos, já repararam?
Havia algo que lhe tinha ficado angustiosamente claro durante o transcurso do dia. Não podia - não podia de nenhuma maneira - casar-se com a mucosa dos Effingham. Ficaria louco em menos de uma semana de matrimônio. Não se tratava somente de que fosse uma tola e uma cabeça oca. O pior era sua forma de ser tão presunçosa e egocêntrica. E o único motivo pelo qual a jovem tentava chamar sua atenção era por ser o filho de um duque e um homem rico. Não tinha tentado absolutamente conhecê-lo como pessoa. E era provável que nunca o fizesse. Poderia passar cinquenta anos casado com uma mulher que jamais saberia -nem se importaria- que ele tinha passado os últimos dez anos negando a culpa que o embargava por não ter cumprido com seu dever de aceitar uma carreira eclesiástica, tal e como seu pai tinha planejado para ele, e ter escolhido em troca uma vida de libertinagem ocasional sem nenhum objetivo. Nem que decidiu fazia pouco dar um sentido e um significado a sua vida transformando-se em um latifundiário capacitado, cabal, responsável e possivelmente algo progressista e benévolo.
A conversação do jantar não exigia um uso intensivo de intelecto. Teve tempo de pensar muito durante esse tempo.
Não podia casar-se com a senhorita Effingham. E tampouco podia decepcionar sua avó. Acaso era o único que se dava conta da rigidez de sua postura, das marcadas linhas que havia nas comissuras de seus lábios, detalhe que evidenciavam uma dor reprimida? Ou que o brilho de seus olhos mascarava o cansaço extremo que a embargava? Com tudo isso, a anciã tinha disposto que a festa ao ar livre culminasse com um jantar a qual seguiriam várias atividades, em honra aos convidados de Harewood. Rannulf a observou em várias ocasiões com afeto e exasperação.
E depois estava Judith Law. Perguntou-se se a moça se dava conta de que foram dois os homens que babaram por ela essa tarde. Para sua infinita vergonha, Rannulf a tinha desejado quase com tanto desespero como Effingham. Pálida, desarrumada e com o cabelo descoberto tinha um aspecto comovedoramente atraente e seu trêmulo atordoamento o tinha tentado a consolá-la de forma muito diferente da que tinha escolhido.
Sentou-se junto a ela no mirante refreando seus desejos, concentrando toda sua força de vontade em lhe proporcionar o sereno e passivo consolo que tinha percebido que ela precisava e repreendendo-se a cada instante com a idéia de que não se diferenciava tanto de Effingham.
Sempre tinha visto as mulheres como criaturas cujo fim era o de lhe proporcionar prazer e satisfação; criaturas às quais se podia tomar, usar, pagar e esquecer. Salvo suas irmãs, é óbvio; e outras damas, todas elas mulheres virtuosas; e inclusive algumas de duvidosa moral que o tinham repelido.
O problema das mulheres tão magníficas e voluptuosas como Judith Law residia em que os homens sempre as olhavam com luxúria e possivelmente jamais viam a pessoa que se ocultava atrás da deusa.
Sua avó interrompeu suas divagações quando se levantou da cadeira e convidou o resto das damas a reunir-se com ela no salão. Depois de sua marcha, era uma tentação atrasar-se com o porto e a afável conversação masculina durante um período indefinido, já que suspeitava que sir George Effingham e um bom número do resto dos cavalheiros se mostrariam encantados de passar o resto da noite sentado à mesa. Entretanto, tinha que cumprir com seu dever e prometeu que faria o papel de anfitrião para tirar de sua avó parte das cargas sociais. Levantou-se passados uns escassos vinte minutos e outros cavalheiros o seguiram até o salão.
Não tinha a menor intenção de consentir que as mesmas jovens de sempre animassem a reunião tocando o piano, como era o costume; nem de permitir que a senhorita Effingham monopolizasse o instrumento uma vez que tivesse ocupado a banqueta enquanto lhe passava as páginas da partitura.
- Tomaremos o chá – anunciou - e depois cada um de nós tentará entreter os outros. Todos os que... vejamos... todos os que tenham menos de trinta anos.
Elevou-se um coro de protestos, em sua maioria masculinas, mas Rannulf ergueu uma mão e pôs-se a rir.
- Por que se espera sempre que sejam as damas quem faça adorno de todos seus talentos e habilidades? – perguntou - Não tenho dúvida de que todos podem fazer algo para amenizar uma reunião deste tipo.
- Ceus... - lamentou-se lorde Braithwaite, - ninguém gostaria de me ouvir cantar, Bedwyn. Quando me uni ao coro do colégio, o professor de canto me disse que o mais benévolo que lhe ocorria era comparar minha voz à serena cascata de um casco de navio. E isso pôs fim há meus dias como cantor.
Produziu-se uma gargalhada geral.
- Não haverá exceções - disse Rannulf. - Há outras formas de entreter as pessoas além do canto.
- E o que você vai fazer, Bedwyn? -perguntou Peter Websster - Ou vai se excluir do assunto se amparando atrás do papel de mestre de cerimônias?
- Espere e verá - respondeu Rannulf. - Parece-lhes bem que demos dez minutos para o chá antes de retirar a bandeja?
Ele foi o primeiro. Parecia justo. Tinha aprendido alguns truques de mágica ao longo dos anos e tinha desfrutado entretendo Morgan e sua tutora. Levou a cabo alguns deles nesse instante; truques tolos como fazer desaparecer uma moeda de sua mão e fazê-la reaparecer detrás da orelha direita da senhorita Cooke ou no bolso do colete de Branwell Law; ou fazer que um lenço se transformasse de repente em um relógio de bolso ou no leque de uma dama. Tinha, é claro, a vantagem de havê-los planejado com antecipação. Sua audiência exclamou maravilhada e aplaudiu com entusiasmo, como se fosse um virtuoso da arte.
Teve que persuadir alguns dos convidados e algum deles - sir Dudley Roy-Hill se negou categoricamente se fazer de idiota, conforme disse; mas foi do mais surpreendente descobrir durante a seguinte hora a variedade de talentos, em ocasiões impressionantes, que tinham jazido ocultos durante a primeira metade da festa. Como era de prever, as damas escolheram a música, a maioria o canto ou o piano; uma - a senhorita Hannah Warren - a harpa do salão, que Rannulf não recordava ter escutado tocar anteriormente. Law cantou uma trágica balada com uma agradável voz de tenor e Warren cantou um dueto barroco com uma de suas irmãs. Tanguay recitou o «Kubla Khan» de Coleridge com tal paixão e sensibilidade que as damas estalaram em entusiasmados aplausos quase antes que a última palavra tivesse saído de sua boca. Webster realizou uma elogiável imitação de um baile cossaco que contemplou durante uma de suas viagens, dobrando os joelhos, cruzando os braços, levantando os pés, dando saltos e acompanhando-se com sua própria voz, o que conseguiu que tanto a audiência como ele mesmo estalassem em gargalhadas antes que caísse desabado sobre o tapete com escassa elegância. Braithwaite, animado possivelmente pela boa acolhida de sua história como menino do coro, contou três anedotas mais sobre seus dias de escola, todas em seu próprio detrimento, e adornou os detalhes com hilariantes exageros até que as damas, e até alguns cavalheiros, tiveram que limpar as lágrimas enquanto seguiam rindo.
- Bom - disse lady Effingham com um suspiro quando Braithwaite se sentou, - já fizemos todos. Poderia continuar assim durante uma hora mais. Foi uma idéia esplêndida, lorde Rannulf. Divertimo-nos muito. De fato, eu...
Entretanto, Rannulf ergueu uma mão para interrompê-la. - Não tão depressa, senhora – disse - Não fizemos todos. Ainda falta a senhorita Law.
- Bom, para falar a verdade não acredito que Judith queira fazer o ridículo - apressou-se a dizer sua carinhosa tia.
Rannulf não lhe fez o mínimo caso. - Senhorita Law?
Ela tinha erguido a cabeça de repente e o olhava com os olhos abertos como pratos e uma expressão horrorizada. Rannulf tinha concebido tudo aquilo para chegar a esse preciso momento. Enfurecia-o que a tivessem transformado em uma mulher invisível, em pouco mais que uma criada, e tudo porque esse mucoso que tinha por irmão acreditou que podia viver acima de suas possibilidades financiado pelo poço sem fundo da fortuna de seu pai. Embora fosse por uma vez, Judith se faria visível em toda sua magnificência enquanto todos os convidados permanecessem em Harewood.
Tinha sido uma aposta arriscada desde o começo, é claro. Mas fora planejado antes dos desagradáveis sucedidos que tinham tido lugar essa tarde. Rannulf não deixou de dar voltas durante toda a noite à idéia de deixar que seguisse passando despercebida.
- Mas eu não possuo nenhum talento em particular, milorde - respondeu ela - Não sei tocar piano nem cantar salvo de forma passável.
- Possivelmente - disse ele, olhando-a diretamente aos olhos - tenha memorizado algum verso ou alguma passagem da Bíblia.
- Eu... - Judith fez um gesto negativo com a cabeça.
Deixaria aí, decidiu Rannulf. Equivocou-se de parte para parte. Tinha-a envergonhado e talvez a tivesse magoado.
- Possivelmente, senhorita Law - disse sua avó com amabilidade, - estaria disposta a nos ler um poema ou uma passagem da Bíblia se trouxéssemos o livro da biblioteca. Falando com você esta tarde me dei conta de que tem uma voz muito agradável. Mas só se o desejar. Rannulf não insistirá se você for muito tímida.
- É óbvio que não, senhorita Law - disse ele antes de fazer uma reverência.
- Nesse caso, lerei, senhora - disse com tom resignado.
- Importar-se-ia de trazer algum livro da biblioteca, Rannulf - solicitou sua avó - Um pouco de Milton ou de Pope, possivelmente? Melhor a Bíblia?
De modo que só tinha conseguido envergonhá-la, pensou Rannulf enquanto se encaminhava para a porta da biblioteca. Entretanto, antes que a alcançasse, uma voz o deteve.
-Não, por favor - disse Judith Law antes de ficar em pé - Trazer um livro e encontrar uma passagem adequada somente serviria para atrasar as coisas. Eu... representarei uma pequena cena que memorizei.
- Judith! - exclamou sua tia, que parecia verdadeiramente horrorizada. - Não acredito que uma reunião desta categoria queira ver-se submetida às representações teatrais de uma colegial...
- Sim, sim, Judith! - exclamou a senhora Law quase ao mesmo tempo, produzindo um tinido de anéis e de braceletes ao juntar as mãos. - Isso seria magnífico, carinho.
Judith caminhou muito devagar e com evidente desinteresse para a área que havia frente à lareira e que fora limpa para os entretenimentos que não tinham que ver com a música. Permaneceu ali de pé durante uns instantes, apertando-os nódulos de uma mão contra os lábios e olhando o chão. Rannulf, que sentia os batimentos do coração no peito como se fosse um martelo, foi consciente de que os convidados começaram a remexer-se em seus assentos com desconforto. Supôs que algum deles a via nesse momento pela primeira vez. Tinha o aspecto de uma tutora singela e gordinha.
E nesse instante, ela levantou a vista, com o acanhamento e o rubor ainda pintados no rosto.
- Declamarei o papel de lady MacBeth da última parte da obra - disse e olhou um instante a Rannulf antes de afastar o olhar. - A cena de sonambulismo que é provável que todos vocês conheçam; a cena em que ela tenta sem cessar limpar das mãos o sangue do assassinato do rei Duncan.
- Judith! - advertiu lady Effingham. - Devo pedir que se sente. Esta se pondo em ridículo e está envergonhando a todos.
- Cale-se! - exclamou a senhora Law. - Guarda silêncio, Louisa, e nos deixe desfrutar.
A julgar pela expressão de estupor do rosto de lady Effingham, Rannulf supôs que era a primeira vez em muito tempo que sua mãe lhe falava dessa maneira.
Entretanto, não podia prestar muita atenção a ninguém que não fosse Judith Law, que tinha um aspecto do mais inapropriado para o papel que tinha escolhido. Seria possível que tivesse cometido um terrível engano? O que ocorreria se ela se visse intimidada pela ocasião e a companhia?
Judith deu as costas a todos. E enquanto a olhava, Rannulf começou a relaxar de forma gradual. Pôde vê-la, antes mesmo que se virasse, e meter-se no corpo, na mente e na alma de outra mulher. Já tinha visto antes. E em dado momento, ela inclinou a cabeça para frente, tirou a touca e a deixou cair ao chão, seguida dos grampos.
Sua tia ofegou e Rannulf foi consciente pelo menos de que alguns cavalheiros presentes se endireitavam em seus assentos.
Nesse momento, ela se virou.
Já não era Judith Law em um de seus disfarces. Seu vestido folgado se transformou em uma camisola. Seu cabelo se desordenou enquanto dava voltas na cama, primeiro tentando conciliar o sonho e depois dormindo inquieta. Tinha os olhos abertos, mas com a expressão estranha e vazia de uma sonâmbula. Além disso, seu rosto estava tão carregado de horror e repugnância que não guardava nenhuma semelhança com o de Judith Law.
Suas trêmulas mãos se ergueram lentamente até ficar a frente de seu rosto com os dedos estendidos, que se pareciam mais a serpentes que a dedos. Tentava lavar as mãos e as esfregava com desespero antes das erguer de novo para as contemplar com atenção.
Nessa cena havia outros dois personagens, um médico e uma criada, para presenciar e descrever seu aspecto e seus atos. Suas palavras não eram necessárias essa noite. Estava claro que era uma mulher atormentada, uma mulher que estava passando um calvário, inclusive antes que abrisse a boca. E então começou a falar.
-«Ainda estão manchadas» - disse com uma voz grave e esgotada que apesar tudo chegava alta e clara até o fundo da sala que parecia conter o fôlego.
Tocou a mancha da palma com o dedo indicador da mão contrária, beliscou-a, arranhou-a e lhe cravou as unhas; suas ações estavam cada vez mais frenéticas. -«longe de mim esta horrível mancha...!». Rannulf estava preso por completo em seu feitiço. Encontrava-se perto da porta, sem ver nem ouvir outra coisa que não fosse ela: lady MacBeth, a triste, horrível e culpada ruína de uma ambiciosa mulher que se acreditou bastante forte para incitar ao assassinato e inclusive cometê-lo. Uma moça, formosa, desencaminhada e ao final, trágica a quem se compadecia do fundo da alma, porque já era muito tarde para que voltasse atrás e aplicasse sua recém adquirida sabedoria às decisões passadas.
Embora possivelmente não seja muito tarde para aqueles de nós bastante afortunados para ter cometido pecados menos irrevogáveis, pensou ele.
Ao final, ela escutou uma chamada na porta do castelo e entrou em pânico ante a possibilidade de que a apanhassem literalmente com as mãos manchadas de sangue por um assassinato que se cometeu fazia muito tempo.
-«Vem, me dê a mão... » - disse a um invisível MacBeth enquanto afundava os dedos em seu também invisível braço.
« Quem desfaz o fato?... À cama.»
Virou-se nesse momento e, embora só se movesse alguns passos dentro do reduzido espaço, pareceu que atravessava a toda velocidade uma enorme distância, com o pânico e o horror acompanhando-a a cada passo. Acabou, tal e como começara, de costas à audiência.
Produziu-se um momento de absoluto silêncio... e a seguir um prolongado, genuíno e ensurdecedor aplauso. Rannulf se sentiu invadido pelo alívio e se deu conta, não sem certo assombro, de que estava à beira do pranto.
Roy-Hill assobiou.
Lorde Braithwaite ficou em pé de um salto. - Bravo! – gritou - Bravo, senhorita Law!
- Onde aprendeu a atuar assim, Jude? - perguntou seu irmão - Não tinha a menor idéia.
Entretanto, ela estava agachada no chão, apoiada sobre um joelho e ainda de costas ao resto da sala, recolhendo o cabelo antes de ocultá-lo sob a touca uma vez mais. Rannulf atravessou a sala para lhe oferecer a mão.
- Muito obrigado, senhorita Law - disse. - Foi uma atuação magnífica e um final do mais adequado para nosso jogo. Eu não gostaria de ser quem se apresentasse a seguir.
Ela voltava a ser Judith Law, com o rosto ruborizado pela vergonha. Colocou a mão sobre a sua, mas continuou com a cabeça curvada enquanto se apressava a chegar à cadeira que ocupou junto à senhora Law sem olhar ninguém.
A senhora Law, percebeu Rannulf, estava enxugando os avermelhados olhos com um lenço. Agarrou uma das mãos de sua neta e lhe deu um forte aperto, embora não dissesse nada.
Rannulf se afastou.
- Mas minha querida senhorita Law - disse lady Beamish, - por que cobre esse maravilhoso e lindo cabelo sendo tão jovem como é?
Os olhos de Judith se abriram de par em par pela surpresa, descobriu Rannulf quando voltou a olhá-la. Descobriu também nesse mesmo instante que era o centro de atenção de todos os cavalheiros.
- Lindo, senhora? – perguntou - Bom, eu não acredito. É da cor do diabo, conforme sempre disse meu pai. Minha mãe sempre disse que tem a cor das cenouras. A cor do diabo mesmo! Seu próprio pai havia dito isso?
- Bom - disse a avó de Rannulf com um sorriso, - Eu o compararia com um ardente entardecer tingido de ouro, senhorita Law. Mas seguro que a estou envergonhando. Rannulf...
- Já se tem feito bastante tarde, lady Beamish - disse lady Effingham com firmeza antes de ficar em pé, - já que minha sobrinha decidiu prolongar o entretenimento e converter-se no centro da atenção. Foi muito amável com ela e lhe agradeço muito semelhante condescendência, mas já chegou à hora de irmos.
Teve que trazer as carruagens à parte dianteira, carregados com a bagagem que se precisou para trocar-se de roupa depois da festa ao ar livre, e as criadas e os valetes que vieram de Harewood. Mas em meia hora os convidados se puseram em marcha e Rannulf pôde acompanhar sua avó até o quarto. Sua pele tinha uma cor quase cinzenta pelo cansaço, percebeu, embora ela jamais admitisse tal coisa.
- Foi tudo muito agradável - afirmou à anciã - A senhorita Effingham estava especialmente encantadora vestida de rosa.
Usava um vestido rosa? Nem sequer havia notado.
- Entretanto, tem muito pouca compostura – acrescentou - É claro, só teve como exemplo sua mãe e lady Effingham tem uma desagradável tendência à vulgaridade. A jovem esteve flertando durante o jantar e mais tarde com todos os cavalheiros que tinha ao alcance só porque você não estava ao seu lado, conforme acredito, Rannulf. É um comportamento deplorável em uma jovem que ainda espero que se converta em sua noiva. Está satisfeito com ela?
- Só tem dezoito anos, vovó - disse ele - Não é mais que uma menina. Maturará com o tempo.
- Suponho que sim. - Sua avó exalou um suspiro quando chegaram ao alto da escada - Lorde Braithwaite é todo um gênio do humor. É capaz de causar hilaridade a partir das circunstâncias mais correntes e não se preocupa que zombem dele. Mas a senhorita Law... ! Tem essa classe de talento que a faz se sentir humilde e honrada de estar em sua presença.
- Assim é - disse Rannulf.
- Pobre moça. - A anciã suspirou de novo. - É linda além das palavras e nem sequer sabe. Seu pai deve ser um desses clérigos puritanos e amargurados. Como é possível que tenha dito umas coisas tão espantosas sobre esse glorioso cabelo?
- Atrever-me-ia a dizer, vovó - disse ele, - que viu o muito que a olham alguns de seus paroquianos e chegou à conclusão de que deve haver algo pecaminoso em sua aparência.
- Estúpido! É um destino terrível ser pobre e mulher, não parece? - disse a anciã. - E que a deixem nas mãos da caridade de alguém como Louisa Effingham... Mas ao menos a senhorita Law tem a sua avó. Gertrude a adora.
«Quem desfaz o fato... ?» Essa frase que ela tinha pronunciado como lady MacBeth seguia rondando a cabeça de Rannulf depois que sua avó entrou no quarto de vestir e ele se retirou a seu próprio quarto.
Era a pura verdade. Não podia voltar atrás e cavalgar a sós em busca de ajuda depois de encontrar a diligência tombada. Não podia devolver sua virgindade. Não podia apagar o dia e meio nem as duas noites nos quais tinham falado, rido e se amaram e nos que estava disposto a persegui-la onde fosse, até os limites do mundo se tivesse sido necessário.
Não podia voltar atrás e mudar nada daquilo.
De algum jeito, apaixonou-se por Claire Campbell, admitiu finalmente para si mesmo. Não se tratava somente de luxúria. Havia mais sentimentos implicados. Não estava apaixonado por Judith Law, mas havia algo... e não era pena. Ter-lhe-ia causado repulsão se não tivesse podido sentir mais que compaixão por ela. Tampouco se tratava de luxúria, apesar de desejá-la com todas as suas forças deitar-se com ela, por ignominioso que parecesse. Não se tratava de... Para falar a verdade, não sabia do que se tratava. Nunca fora dado às emoções profundas. Tinha tingido seu mundo com um lânguido e aborrecido cinismo desde que tinha uso de razão.
Como poderia definir o que sentia por Judith Law quando não tinha referência alguma com a que compará-lo? Não obstante, de repente recordou seu sereno, sombrio, sério, sempre correto, sempre responsável irmão Aidan, que tinha aceitado um posto na cavalaria do exército no dia de seu décimo oitavo aniversário, tal e como estava previsto desde que nasceu. Aidan, que recentemente se casou sem dizer a ninguém da família, nem sequer a Bewcastle, e que depois vendera seu cargo no exército para viver com sua nova esposa, só porque fez um juramento solene ao moribundo irmão da jovem, um oficial com o qual serviu na Península. Rannulf tinha acompanhado Aidan de Londres até a propriedade de sua esposa na primeira etapa de sua viagem até Grandmaison e conhecera lady Aidan... e aos dois meninos que tinha adotado.
Rannulf tinha observado com estupefação como os dois meninos saíam correndo da casa para saudar Aidan, a pequena chamando-o de «papai», e ele os abraçava e lhes demonstrava o mesmo afeto como se fossem os amados frutos de sua semente. Já a seguir tinha olhado sua esposa, que se aproximava devagar depois dos meninos, e a tinha rodeado com seu braço livre antes de beijá-la.
Sim, pensou Rannulf, esse podia ser seu ponto de referência. Esse momento no qual Aidan tinha rodeado Eve com o braço e a tinha beijado; esse momento no qual tinha parecido jovem, humano, exuberante, vulnerável e invencível ao mesmo tempo.
Só havia uma palavra para descrever o que tinha presenciado. Amor.
Caminhou de forma impulsiva até seu quarto de vestir em busca do casaco que pendurava no armário. Remexeu no interior do bolso até que achou o que estava procurando. Puxou-o, tirou o papel marrom que o envolvia e contemplou a barata caixinha de rapé com o horrível porco gravado na tampa. Riu baixo, fechou os dedos em torno da caixa e sentiu uma tristeza quase agonizante.
Judith voltou para casa na última carruagem com sua avó, tinha demorado mais que outros em preparar-se para partir e tinha pedido a Judith em duas ocasiões se teria a amabilidade de retornar ao quarto onde se trocou para assegurar-se de que não tinha esquecido nada. Quando chegaram a Harewood já era muito tarde. Todos os convidados se retiraram a seus aposentos para dormir. Tia Effingham a esperava no vestíbulo.
- Judith - disse com um tom que não pressagiava nada bom, - ajudará mamãe a chegar a seus aposentos e depois se reunirá comigo na saleta.
- Eu também vou, Louisa - disse sua mãe.
- Mãe - começou lady Effingham lançando a anciã um desanimado olhar, embora fizesse um intento por suavizar o tom de voz, - é tarde e está cansada. Judith a levará para cima e chamará Tillie se não a estiver esperando. Ela a ajudará a se despir e a deitar e também lhe levará uma xícara de chá e um tônico que a ajude a conciliar o sonho.
- Não quero me deitar nem tomar uma xícara de chá -replicou a anciã com firmeza - Irei a saleta. Judith, carinho, importaria de me oferecer seu braço de novo? Suponho que passei muito tempo sentada no caramanchão esta tarde. O vento me deixou rígidas todas às articulações.
Judith estava esperando o sermão que claramente estava a ponto de receber. Não podia acreditar que tivesse ousado atuar diante de uma audiência... Sem dúvida seu pai a teria castigado fazendo-a passar toda uma semana em seu quarto a pão e água por ter feito algo semelhante em casa. Inclusive se tivesse soltado o cabelo. Tinha atuado e tinha reagido ante a audiência, que a tinha obsequiado com sua mais absoluta atenção apesar de não ter sido consciente disso naquele instante. Transformou-se em lady MacBeth. Tinham gostado tanto que tinham aplaudido e a tinham elogiado. O que fez não podia ser tão mau. Todos os outros fizeram o possível para entreter ao resto, e nem todos através da música. Ela era uma dama. E tão convidada de lady Beamish como qualquer outra pessoa que estivesse presente.
Lady Beamish lhe havia dito que seu cabelo era maravilho e lindo. De que outra maneira o havia descrito? Judith franziu o cenho enquanto subia a escada muito devagar ao lado de sua avó, seguidas por tia Effingham.
«Eu o compararia com um ardente entardecer tingido de ouro.» Lady Beamish, embora fosse uma mulher de maneiras impecável não era dada a adulações frívolas e falsas, suspeitava Judith. Seria possível, pois, que alguém pudesse ver seu cabelo dessa maneira. «um ardente entardecer tingido de ouro.»
- Estes brincos me machucam tanto como os outros - disse sua avó enquanto os tirava quando entravam na saleta. - Bem que os usei durante toda a tarde é claro. Onde os ponho para que não se percam?
- Dê-me vovó - disse Judith, que os apanhou e os guardou em sua bolsa, onde poderiam estar seguros - Deixá-los-ei no porta-jóias quando subirmos.
Horace estava na sala, percebeu Judith ao entrar, sentado sobre o braço de uma poltrona com uma taça de algum licor escuro na mão, balançando uma perna de forma indolente enquanto a olhava com insalubre insolência. Julianne também estava ali, secando-os olhos com um lenço debruado de renda.
- Sente-se melhor, Horace? - perguntou a avó - foi uma verdadeira lástima que se sentisse indisposto e perdesse o jantar e os entretenimentos posteriores no salão.
- Indisposto, vovó? - Horace se pôs a rir - Só era a indisposição que provoca o aborrecimento. Sei por experiência quão aborrecida podem ser as noites em casa de lady Beamish.
Judith, com um nó no estômago por causa da repugnância, tentou não olhá-lo nem escutar sua voz.
- Foi uma noite espantosa - afirmou Julianne. - Estive sentada a meia mesa de distância de lorde Rannulf durante o jantar, e ele não protestou pela disposição dos assentos, embora estivesse na casa de sua avó. E eu que acreditava que lady Beamish estava promovendo nosso enlace... Seguro que a convenceu para que me mantivesse separada dele. Não gosta. Não vai pedir minha mão. Nem sequer me aplaudiu com mais entusiasmo que a lady Margaret quando toquei o piano e isso que eu toquei muitíssimo melhor que ela. E nem sequer me pediu um bis. Nunca me senti mais humilhada em toda a vida. Nem tão infeliz. Odeio-o, mamãe. Odeio-o!
- Ah certo, queridinha - disse sua mãe com intenção de tranquilizá-la. Embora fosse evidente que sua cabeça estava em assuntos que nada tinham que ver com o mal-estar de sua filha - E agora, senhorita «Judith Law», vai ser você tão amável de explicar-se.
- Explicar-me, tia? - perguntou Judith enquanto ajudava sua avó a sentar-se em seu lugar de costume junto ao fogo. Decidiu que não se deixaria acovardar. Não fez nada errado.
- Qual - perguntou sua tia - foi o propósito do vulgar espetáculo que deu esta noite? Estava tão envergonhada que apenas fui capaz de manter a compostura. Seu pobre tio foi incapaz de articular palavra no caminho de volta para casa e se encerrou na biblioteca ao chegar.
- Santo ceu! Prima - disse Horace com certa ironia, - o que é que fez?
Entretanto, antes que Judith pudesse pensar em uma réplica adequada para sua tia, sua avó interveio.
- Vulgar, Louisa? – perguntou - Vulgar? Judith concordou depois ser persuadida, igual o fez o resto dos jovens que entretiveram os convidados. Representou uma cena e posso lhe dizer que jamais contemplei uma atuação melhor. Surpreendeu-me e deleitou-me. Emocionou-me tanto que estive a ponto de me por a chorar. Foi em muito a melhor interpretação da noite e é evidente que todos, ou quase todos, compartilhavam minha opinião.
Judith olhou sua avó com estupefação. Jamais a escutara falar de um modo tão apaixonado. Estava zangada de verdade, comprovou. Atirava faíscas pelos olhos e tinha as faces avermelhadas.
- Mãe - replicou tia Louisa, - acredito que seria melhor que ficasse à margem deste assunto. Uma dama não solta o cabelo em público e se converte no centro de atenção de todos com semelhante... dramatismo.
- Santo ceu! - disse Horace, que estalou a língua e levantou o copo em direção a Judith, - de verdade fez isso prima?
- Uma dama solta o cabelo à noite - prosseguiu a anciã. - E quando começa a andar sonâmbula não tem tempo de tornar a prendê-lo Judith não era ela esta noite, Louisa. Era lady MacBeth. Disso se tratava, de inundar-se no personagem, de fazer que este adquirisse vida para os espectadores. Embora claro, não espero que você compreenda.
A Judith surpreendia que sua avó sim o fizesse.
- Sinto muito a ter incomodado, tia Louisa – disse - Mas não posso me desculpar por servir de entretenimento ao grupo quando tanto lorde Rannulf Bedwyn como lady Beamish insistiram que o fizesse. Tivesse sido imperdoável me mostrar tímida. Assim que me decidi a fazer algo que acreditei poder fazer bem. Não compreendo por que tem tanta aversão ao teatro. Parece-se com meu pai nesse aspecto. Nenhum outro convidado pareceu escandalizar-se. Mas bem justamente o contrário, de fato…
Sua avó lhe tinha segurando uma das mãos e a estava esfregando como se estivesse fria.
- Devo supor, minha querida Judith - começou sua avó - que seu pai jamais lhe contou isso, não é? Nem ele nem Louisa nunca chegaram a perdoar seu avô pelo que lhes fez, e ambos estiveram fugindo disso toda sua vida. Embora nenhum dos dois teria vida se seu avô não o tivesse feito.
Judith a olhou com o cenho franzido, sem compreender.
- Mãe! - exclamou tia Louisa com brutalidade. - Já é suficiente. Julianne...
- Seu avô me conheceu no salão do teatro Covent Garden de Londres - explicou à anciã. - Disse que se apaixonou por mim muito antes disso, quando me viu no cenário, e eu sempre acreditei apesar de que todos os cavalheiros estavam acostumados a dizer coisas parecidas... E houve um grande número deles. Seu avô se casou comigo três meses depois e passamos trinta e dois maravilhosos anos juntos.
- Vovó? - Julianne estava totalmente estupefata. - Foi atriz! Senhor, isto é intolerável. Mamãe, o que acontecerá se lady Beamish descobrir? E lorde Rannulf? Morrerei de vergonha. Juro que o farei.
- Ah, ah - murmurou Horace.
A anciã deu uns tapinhas na mão de Judith.
- Quando a vi em menina, soube que você era a que mais se parecia comigo, carinho - disse - Esse cabelo! Seu pobre pai e sua mãe estavam horrorizados porque sugeria uma exuberância imprópria para uma menina criada na reitoria; como também sugeriam que talvez tivesse herdado algo mais de sua escandalosa avó. Quando a vi esta noite, foi como ver a mim mesma faz cinquenta anos. Salvo que você é muito mais linda do que eu jamais fui, e também muito melhor atriz.
- Vovó... -disse Judith, que apertou a mão gordinha cheia de anéis entre as suas. De repente uma boa parte de sua própria vida adquiria sentido. Uma grande parte.
- Pois bem, não tolerarei este comportamento, jovenzinha - interveio tia Louisa. - Envergonhou a mim e a minha jovem e impressionável filha diante de convidados que selecionei entre a flor e nata da sociedade, assim como diante de lady Beamish e do filho de um duque que está cortejando Julianne. Recordo-a que está aqui graças à gentileza e a caridade de seu tio. Ficará aqui uma semana mais, já que a necessitarei para atender as necessidades de sua avó. Amanhã escreverei a meu irmão para lhe dizer que estou muito aborrecida contigo. Não ha dúvida de que não se surpreenderá o mínimo. Oferecerei me encarregar de uma de suas irmãs em seu lugar. Nesta ocasião pedirei de forma explícita que seja Hilary, que é bastante jovem para saber qual é seu lugar. E você voltará para sua casa desonrada.
Horace voltou a estalar a língua. - Prima - disse - Só durou uma semana. - Judith deveria sentir-se aliviada e até mesmo eufórica. Ia para casa? Embora seu pai se inteiraria de todo o referente à atuação em casa de lady Beamish. E Hilary se veria obrigada ocupar seu lugar em Harewood.
- Se Judith se for, eu também o farei - declarou sua avó - Venderei algumas de minhas jóias, Judith. Deve saber que valem uma fortuna. Compraremos uma casinha em algum lugar e juntas nós faremos um lar ali e levaremos Tillie.
Judith lhe apertou a mão de novo.
- Vamos, vovó - disse - É tarde e está chateada e cansada. A ajudarei chegar a seu quarto. Falaremos pela manhã.
- Mamãe? - choramingou Julianne. - Não está me escutando. Seguro que já não se preocupa por mim. O que vou fazer com lorde Rannulf? Tenho que me casar com ele. Mal me deu atenção esta noite. E agora vai descobrir que sou a neta de uma atriz!
- Minha queridíssima Julianne - começou sua mãe, - há muitas maneiras de apanhar um marido. Será lady Rannulf Bedwyn antes que termine o verão. Confia em mim.
Horace sorriu com malícia a Judith quando ela passou ao lado com sua avó apoiada em seu braço.
- Recorda o que a adverti, prima - disse em voz baixa.
Durante a semana seguinte, Rannulf passou as manhãs, e inclusive uma ou outra tarde, com o administrador de sua avó aprendendo os pormenores dos trabalhos de um imóvel. Surpreendeu-se ao descobrir que desfrutava estudando os livros de contabilidade e outra série de documentos legais tanto como quando cavalgava pelos terrenos agrícolas da propriedade e as granjas dos arrendatários a fim de vê-las com seus próprios olhos e falar com os granjeiros e trabalhadores. Embora se cuidasse muito em um aspecto.
- Não a estou ofendendo, não é, vovó? - perguntou durante desjejum uma manhã, enquanto lhe segurava uma magra mão de pele quase transparente sulcada por veias azuladas, a sustentava com supremo carinho. - Não estarei dando a impressão de que estou fazendo com o controle como se já fosse o amo e senhor, não é? Deve saber que desejaria que vivesse ao menos dez ou vinte anos mais.
- Não estou segura de que fiquem as forças necessárias para lhe dar o gosto –replicou. - Mas está iluminando meus últimos dias, Rannulf. Não esperava isso, confesso, mas sim estava convencida de que aprenderia com rapidez e faria um bom trabalho quando eu já não estivesse. É um Bedwyn apesar de tudo, e os Bedwyn sempre levaram o dever muito a sério, sem importar o que outros digam deles.
Ele levou a mão aos lábios e a beijou.
- Agora bem, se pudesse vê-lo casado - prosseguiu ela, - minha sorte seria completa. Mas é Julianne Effingham a mulher adequada para você? Esperava que fosse. É uma vizinha, sua avó é uma de minhas melhores amigas e, além disso, é jovem e bonita. O que opina, Rannulf?
Tinha acalentado a esperança de que sua avó mudasse de opinião e deixasse de lhe impor esse enlace. Ao mesmo tempo sabia que a anciã se sentiria um pouco decepcionada se não se casasse logo.
- Acredito que será melhor que siga visitando Harewood a cada dia – disse - A festa campestre acabará em uma semana. E ainda resta o grande baile. Prometi que consideraria com seriedade a moça e assim o farei, vovó.
Entretanto, à medida que avançava a semana descobriu que o problema era que jamais chegaria a gostar da senhorita Effingham por muito que a conhecesse. A jovem seguia fazendo caretas quando se negava a dar atenção cada minuto de cada hora de cada dia e seguia insistindo em castigá-lo paquerando com outros cavalheiros. Seguia tagarelando sobre ela mesma e seus lucros e conquistas cada vez que estava com ele e ria como uma estúpida com suas adulações. Conseguia que se sentisse mais aborrecido que uma ostra. E é óbvio sua mãe não deixava de fazer tudo que estava em sua mão para que estivessem juntos. Sempre acabavam sentados um ao lado do outro quando jantava em Harewood, coisa que acontecia quase todas as noites. Sempre compartilhavam a carruagem se ia a alguma das numerosas excursões a diferentes lugares de interesse. Sempre o queriam para que passasse as páginas das partituras.
Às vezes pensava que talvez continuasse com suas visitas a Harewood nem tanto por agradar sua avó mais pela esperança de conversar em particular com Judith Law. Temia que depois de tudo tivesse cometido um engano imperdoável ao obrigá-la a atuar em Grandmaison. Nunca a tinha visto muito em Harewood, mas os últimos dias sobressaiam por sua ausência. Jamais se sentava à mesa para jantar. Como tampouco o fazia à anciã. Jamais se unia às excursões nem às atividades ao ar livre. Nas poucas ocasiões nas quais aparecia no salão à noite, comportava-se mais que nunca como uma dama de companhia para a senhora Law e se retirava cedo com ela.
Rannulf percebeu uma coisa imediatamente. Quando Tanguay a convidou que jogasse cartas como seu par, lady Effingham lhe informou que sua mãe se encontrava indisposta, que precisava que a senhorita Law a acompanhasse a seus aposentos e ficasse com ela. Quando Roy- Hill a convidou a unir-se ao grupo para que tocasse piano, a senhorita Effingham informou que sua prima não tinha o menor interesse em algo relacionado com a música. Quando todos decidiram jogar charadas uma noite e Braithwaite a escolheu em primeiro lugar para que estivesse em sua equipe, lady Effingham comunicou que à senhorita Law sentia dor de cabeça e que tinha permissão para partir do salão nesse mesmo momento.
Os convidados varões se deram conta por fim da existência de Judith Law. E lady Effingham a estava castigando por esse motivo. Entretanto, Rannulf tinha plena consciência de que ele era o único responsável. Tinha cometido um engano. Tinha piorado sua vida em lugar de melhorá-la. E por isso não fez intento algum de falar com ela quando sua tia ou sua prima se encontravam perto. Não queria piorar a situação ainda mais. Esperaria o momento adequado.
Todo mundo foi ao povoado um dia antes ao grande baile, inclusive lady Effingham, dado que a maioria dos convidados precisavam fazer algumas compra para a ocasião. Rannulf tinha declinado o convite de unir-se à comitiva. Sua avó decidiu aproveitar essa oportunidade para visitar a senhora Law com a esperança de encontrar a casa em calma. Rannulf a acompanhou apesar de assegurar que não era necessário.
- Não as incomodarei, vovó - tranquilizou-a - Darei um passeio depois de apresentar meus respeitos à senhora Law.
Tinha albergado a esperança de convidar Judith Law que o acompanhasse, mas a moça não se encontrava no salão.
- Está em seu quarto escrevendo cartas a suas irmãs, acho - disse a senhora Law quando Rannulf se interessou pela saúde de sua neta. - Embora não vejo o motivo, já que as verá muito em breve.
- As irmãs da senhorita Law virão a Harewood? - perguntou lady Beamish. - Seguro que adorará isso.
A senhora Law suspirou.
- Uma delas o fará – respondeu. - Mas Judith volta para casa.
- Lamento ouvir isso - replicou lady Beamish. - Sentirá muito sua falta, Gertrude.
- Sim - admitiu a senhora Law. - Muitíssimo.
- É uma jovenzinha encantadora - afirmou lady Beamish. - E quando atuou para nós faz uns dias percebi sua extraordinária beleza. E o talento que tem. Herdou-o de você, é claro.
Rannulf se desculpou e saiu ao exterior. Era um dia frio e nublado, embora a chuva não fizesse presença. Caminhou em direção à colina que se elevava a costas da mansão. Não esperava ver Judith Law ali, mas dificilmente poderia ir a seu quarto e chamar a sua porta.
A moça se encontrava de novo no lago, embora não nadasse nessa ocasião, mas estava sentada diante do salgueiro com as mãos enlaçadas sobre os joelhos e com o olhar perdido na água. Tinha a cabeça descoberta, com o cabelo trançado e recolhido na nuca, enquanto o chapéu -que lhe tinha comprado- descansava a seu lado sobre a erva. Não havia sinais de nenhuma touca. Usava um casaco de manga larga sobre o vestido.
Desceu a colina muito devagar, sem intenção alguma de ocultar que se aproximava. Não queria surpreendê-la nem assustá-la. A moça o escutou quando estava a meio caminho e olhou por cima do ombro um momento antes de retomar a postura anterior.
- Parece ser que lhe devo desculpas - disse ele - Embora suponha que uma mera desculpa seja bastante inapropriada... - ficou atrás dela e apoiou um ombro contra o tronco da árvore.
- Não me deve nada - replicou ela.
- Vão enviá-la de volta pra casa - disse ele.
- Não acredito que isso possa considerar-se como um castigo, não lhe parece? -perguntou.
- E uma de suas irmãs vai ocupar seu lugar nesta casa.
Inclusive à sombra da árvore e com o ceu nublado, o cabelo preso sobre seu cocuruto parecia brilhar com o fulgor do ouro e do fogo.
- Sim. - Viu-a inclinar a cabeça até deixar a testa apoiada sobre os joelhos, em uma postura que começava a reconhecer como característica da moça.
- Não deveria ter me intrometido - disse. O eufemismo do século. - Sabia que a pessoa com mais talento da sala ainda não tinha atuado e não pude resistir a persuadi-la.
- Não tem que lamentar nada - assegurou ela. - Me alegro que acontecesse. passou tempo sonhando fazendo justo o que fiz quando lady Beamish e você insistiram em que contribuísse com algo para a diversão geral. Foi o primeiro ato que fiz por vontade própria desde que cheguei aqui. Ajudou-me a compreender quão desgraçada fora. Fui muito mais feliz estes últimos dias, embora talvez não lhe seja evidente durante as poucas vezes que me viu. Vovó e eu decidimos que é melhor para mim me comportar como todos esperam quando me vir obrigada a permanecer com os outros, mas reduzimos essas ocasiões ao mínimo. Quando estamos juntas falamos como nunca e rimos e nos divertimos. Ela... - Levantou a cabeça e pôs-se a rir entre dentes - Gosta de escovar meu cabelo durante ao menos meia hora. Diz que faz bem a suas mãos... e a seu coração. Acredito que contribui para que sua mente esqueça todas essas enfermidades imaginárias. Está muito mais animada, muito mais alegre quando cheguei.
Recordou com total precisão o momento em que ele se ajoelhou atrás dela na cama do Rum e o Tonel para lhe escovar o cabelo antes de fazer amor.
- Sentirá muitas saudades quando for - disse ele.
- Quer vender algumas de suas jóias e comprar uma casinha em algum lugar para que possamos viver juntas - explicou Judith. - Embora não acredito que isso chegue a acontecer. De qualquer maneira não deve sentir-se culpado por ser o causador involuntário de tudo o que está acontecendo. Alegra-me que tenha acontecido. Aproximou-me muito mais de minha avó e agora entendo minha vida muito melhor.
Não lhe explicou nada mais, mas ele recordou de repente algo que foi dito fazia escassos momentos.
- Minha avó diz que herdou seu talento da senhora Law - comentou.
- Ah, assim lady Beamish sabe - disse ela - E você também? Minha tia e minha prima estão horrorizadas pela possibilidade de que qualquer de vocês descubra a verdade.
- Que sua avó foi atriz? - perguntou enquanto se separava da árvore para sentar-se na erva junto a ela.
- Em Londres. - percebeu que Judith estava sorrindo. - Meu avô se apaixonou por ela ao vê-la no cenário, foi conhecê-la no salão do Covent Garden e se casaram três meses depois, para o imperecível espanto de sua família. Minha avó era a filha de um comerciante de tecidos. Tinha tido muito êxito como atriz e tinha uma legião de admiradores entre os cavalheiros. Deve ter sido muito linda, embora também fosse ruiva, como eu.
Era difícil imaginar à senhora Law como uma linda jovem ruiva, perseguida pelos dândis e os galãs da época. Embora não impossível. Inclusive nesse momento em que estava gorda, velha e grisalha, possuía certo encanto e sua pessoa enfeita de jóias sugeria certa excentricidade de caráter que ia em consonância com seu passado como atriz. Bem poderia ter sido uma beleza em sua juventude.
- Manteve sua forma até que meu avô morreu - disse Judith. - Foi então quando começou a comer para consolar-se, ou isso me disse. Mais tarde se transformou em um costume. Parece-me muito triste que desfrutasse de um matrimônio tão feliz e que seus dois filhos, tanto meu pai como minha tia, se envergonhem dela e de seu passado, não acha? Eu não me envergonho dela.
Rannulf havia segurado sua mão antes de dar-se conta.
- Por que deveria se envergonhar quando ela é a responsável por sua beleza, seu talento e a riqueza de sua personalidade? - perguntou-lhe.
E, entretanto, pensou enquanto pronunciava essas palavras, os Bedwyn estariam à frente daqueles dispostos a evitar uma mulher de ascendência tão desonrosa. Surpreendia-lhe que sua avó, até sabendo a verdade a respeito de sua amiga, considerasse Julianne Effingham uma noiva adequada para ele, por impecável que fosse sua linhagem paterna. Bewcastle bem poderia considerar o assunto de uma maneira muito diferente.
- Me diga uma coisa - pediu, com uma repentina tensão e urgência na voz - E peço que seja sincero. Por favor. Sou bonita?
E de repente Rannulf compreendeu tudo: compreendeu por que a ensinaram a ver seu cabelo como um motivo de vergonha e rubor; por que a tinham animado a acreditar que era feia. Cada vez que seu pai, o reitor, a olhasse teria uma lembrança da mãe que poderia pô-lo sob suspeita ante seus paroquianos e seus pares se chegassem a saber da verdade. Sua segunda filha sempre deve ter lhe parecido uma cruz a carregar.
Levantou-lhe o queixo com a mão livre e lhe virou a cabeça para que o olhasse no rosto. Tinha as faces avermelhadas pelo espanto.
- Conheci muitas mulheres, Judith - disse - admirei as mais lindas, adorando a algumas inalcançáveis a distância, perseguindo outras com certa perseverança. É o que os cavalheiros ricos, ociosos e aborrecidos como eu estamos acostumados a fazer. E posso afirmar com total sinceridade que jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.
Seria verdade essa afirmação tão desmedida? Seria de verdade tão linda? Ou era somente porque esse encantador pacote continha Judith Law? Não importava. Apesar de tudo, esse batido clichê segundo o qual a beleza residia no coração encerrava uma grande verdade.
- É linda - repetiu antes de inclinar a cabeça e depositar um ligeiro beijo em seus lábios.
- Sou? - Seus olhos verdes estavam marejados de lágrimas quando ele levantou a cabeça. - Não sou vulgar? Não tenho um aspecto vulgar?
- Como poderia a beleza ser vulgar? - perguntou-lhe.
- Quando os homens me olham – confessou - e me vêm de verdade, olham-me com lascívia.
- Isso é porque a beleza feminina acordada o desejo nos homens - explicou-lhe - E quando não existe o controle ou se carece de galanteria, quer dizer, quando o homem não é um cavalheiro, aparece a lascívia.
- Você não me olhou assim - disse ela.
Ele se sentiu envergonhado. Apenas vê-la e a tinha desejado e a tinha perseguido Nem mais nem menos que por pura luxúria.
- Não o fiz? - perguntou.
Ela negou com a cabeça.
- Havia algo em seus olhos – disse - apesar de suas palavras e seus atos. Um pingo de... humor, talvez. Não sou capaz de defini-lo. Não me provocou repulsa. Fez-me sentir... feliz.
Que Deus o ajudasse.
- E fez-me sentir linda - acrescentou. Esboçou um lento sorriso. - Pela primeira vez na vida. Obrigada.
Rannulf engoliu em seco com desconforto. Merecia que o açoitassem pelo que lhe fez. E em troca lhe agradecia.
- Será melhor que voltemos para a casa - disse a moça, que levantou a vista quando lhe retirou a mão do queixo. - Acredito que vai chover.
Ficaram em pé e uma vez que sacudiram as fibras de erva, Judith colocou o chapéu com supremo cuidado sobre o cabelo e atou as fitas a um lado do queixo com um enorme laço. Sem a touca sob o boné, sua beleza era deslumbrante.
- Eu subirei a colina e você pode rodeá-la para voltar a entrar pela frente - disse-lhe.
Mas a ele tinha ocorrido uma idéia melhor, embora nem a tinha meditado nem desejasse fazê-lo.
- Vamos juntos – propôs. - Não há ninguém que possa nos ver.
Ofereceu-lhe o braço e ela aceitou depois de duvidar um instante; depois, os dois subiram a colina juntos enquanto lhes caía em cima uma ou outra gota de chuva.
- Suponho que deve aborrecer-se muito no campo - disse - Embora não se somou a muitas das atividades programadas para esta semana.
- Estou aprendendo a levar os cultivos e a administração da propriedade - explicou - e estou me divertindo muitíssimo.
Ela virou a cabeça para olhá-lo.
- Está se divertindo? -pôs-se a rir. Ele a imitou.
-Também me surpreendeu - confiou-lhe - Granddmaison será meu chegado o momento, e contudo, jamais me tinha interessado por seu funcionamento. Agora sim. Assim já pode imaginar dentro de uns anos, percorrendo com passo lento minha propriedade com um cão desgrenhado preso aos calcanhares, um casaco folgado sobre os ombros e sem mais assunto de conversa que as colheitas, as drenagens e o gado.
- É difícil de imaginar. - A moça pôs-se a rir de novo. - Conte-me isso O que aprendeu? O que viu? Tem planejado fazer mudanças quando a propriedade for sua?
A princípio Rannulf acreditou que as perguntas nasciam das boas maneiras, mas logo se deu conta de que estava realmente interessada. De maneira que falou durante todo o caminho de volta a casa sobre temas que o teriam feito bocejar apenas duas semanas atrás.
As duas anciãs continuavam no salão onde Rannulf as deixou. Judith teria soltado de seu braço antes de entrar na casa e teria se retirado a seu quarto, mas ele não permitiu. - Só são minha avó e a sua – disse. - Ninguém retornou ainda do povoado.
Manteve seus braços enlaçados quando entraram na sala e ambas as mulheres levantaram a vista.
- Encontrei-me com a senhorita Law quando estava passeando – explicou - e desfrutamos de nossa mútua companhia durante toda esta hora.
Rannulf percebeu que os olhos de sua avó se aguçaram imediatamente.
- Senhorita Law - disse-lhe, - esse chapéu é encantador. Por que não o vi antes? O ar fresco deu um toque de cor a suas faces. Venha e sente-se a meu lado para que me possa dizer onde aprendeu a atuar tão bem.
Rannulf também tomou assento depois de puxar a campainha a instâncias da senhora Law, a fim de ordenar mais chá recém feito.
Judith não estava segura de que devesse assistir ao baile de Harewood apesar de que sua avó havia dito que estava obrigada a fazer presença, embora só fosse para lhe fazer companhia.
- De qualquer forma, atrever-me-ia a dizer que todos os jovens competirão para dançar contigo - assegurou - notei o muito que mudou sua atitude para com você durante esta semana, carinho, tal e como deve ser. É minha neta, igual à Julianne ou Branwell.
Era uma perspectiva bastante tentadora, devia admitir Judith, assistir a um baile e pares com os quais dançar. Sempre tinha desfrutado muitíssimo dos bailes que celebravam no povoado. Nunca lhe tinha faltado par. Naquela época tinha pensado que todos se mostravam muito amáveis ao dançar com ela, embora tivesse começado a forjar uma nova possibilidade em sua mente.
«Jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.»
Tinha muita vontade de assistir ao baile, mas lhe dava pavor que lorde Rannulf escolhesse tão famoso acontecimento na festa campestre para anunciar seu compromisso com Julianne. Não seria capaz de suportar, pensou Judith, nem de ver a expressão triunfal no rosto de sua prima e no de sua tia. Não seria capaz de suportar a cínica resignação que apareceria no rosto do homem... e tinha a certeza de que essa seria sua expressão.
Estava a ponto de tomar a decisão de não assistir quando, ao retornar a seu quarto depois de tomar o café da manhã cedo, encontrou-se com Branwell na escada.
- Bom dia, Jude. - Colocou-lhe uma mão no ombro e lhe deu um beijo na face. - Tão madrugadora como sempre, não é? Nesse caso será melhor que descanse esta tarde para estar linda. Todos os cavalheiros querem dançar contigo esta noite e estiveram me pedindo que a convença, como se fosse eu que a tivesse proibido participar de todas as atividades destas duas semanas. Suponho que foi tia Louisa - disse enquanto dava uma olhada rápida a seu redor e baixava a voz. - Se quer saber a verdade, é humilhante ver que tratam a minha própria irmã como se fosse uma espécie de criada só porque papai é um clérigo e tio George uma espécie de paxá.
- Na realidade não me entusiasma muito o baile, Bran - disse a jovem.
- Fofocas! – exclamou - Todas sempre gostaram dos bailes. Escute-me, Jude, logo que tenha saldado minhas dívidas com todos esses incômodos e insolentes comerciantes, vou embarcar em uma carreira profissional e desbravar uma fortuna. E assim poderá retornar pra casa e tanto você como as demais encontrarão maridos respeitáveis e tudo ficará bem.
Judith não havia dito a seu irmão que ia retornar pra casa -com desonra- nem que Hilary teria que ocupar seu lugar em Harewood.
- Mas como vai saldar suas dívidas, Bran? - perguntou a contra gosto. Tinha tentado não pensar nelas ao longo da semana. Inclusive tinha pensado durante um embaraçoso momento em pedir ajuda a sua avó...
A alegre expressão de Bran se desmoronou um instante, embora não demorou para recuperar o sorriso e a aparência despreocupada.
- Já me ocorrerá algo - respondeu-lhe - Tenho toda a confiança do mundo. Não deve preocupar-se por nada. O que tem que fazer é pensar no baile. Promete-me que o assistirá, Jude?
- Bom, está bem - respondeu de modo impulsivo antes de começar a subir de novo a escada. - Irei.
- Esplêndido! - exclamou Bran a suas costas.
Assim, havia uma coisa mais que teria que fazer livremente antes de retornar a casa, decidiu. Iria ao baile. E o faria tal e qual como era, não como essa parenta pobre a que mantinham afastada dos olhares dos outros com tanta eficácia como se fosse uma monja. Dançaria com todos os cavalheiros que a convidassem. E se ninguém o fizesse, sentar-se-ia com sua avó e desfrutaria do acontecimento de qualquer modo. Se fosse anunciado o compromisso de Julianne... Sua ousadia fraquejou por um momento e teve que aferrar-se ao trinco da porta de seu quarto. Se fosse anunciado o compromisso de Julianne com lorde Rannulf, ergueria o queixo, esboçaria um sorriso e lançaria mão de toda a dignidade própria de uma dama que fosse capaz de reunir.
Como era possível - perguntou-se enquanto entrava em seu quarto - que o fugaz beijo nos lábios do dia anterior tivesse despertado suas emoções de uma forma tão poderosa como o fizeram os encontros sexuais consumados na estalagem do mercado umas semanas atrás? Talvez porque naquele tempo não era mais que sexo enquanto que o do dia anterior fora...? O que? Amor não. Ternura possivelmente? Lorde Rannulf havia dito que era linda e depois a tinha beijado. Mas não com desejo; embora possivelmente também houvesse um pingo de ambas as partes. Houve algo mais que desejo. Houve... sim, devia ser ternura.
Talvez depois de tudo, pensou, uma vez que retornasse a casa e separasse de sua mente a imagem de Julianne casada com ele, seria capaz de recuperar seu sonho roubado e continuar vivendo de suas lembranças nos anos vindouros.
- O primeiro que pensei ao me inteirar do baile de Harewood - disse lady Beamish a seu neto, - foi que seria o acontecimento perfeito para anunciar seu compromisso com Julianne Effingham. Tinha-lhe ocorrido essa possibilidade, Rannulf?
- Sim - respondeu ele com sinceridade.
- E...?
Sua avó estava sentada frente a ele no salão do térreo, com um aspecto mais frágil e magro que nunca, embora suas costas seguissem tão retas como o pau de uma vassoura e não se apoiava no respaldo da poltrona, conforme comprovou Rannulf.
- Segue sendo seu mais prezado desejo? - perguntou por sua vez. A anciã pareceu meditar durante uns instantes antes de responder.
- Meu mais prezado desejo? – repetiu - Não, Rannulf. Esse seria o de vê-lo feliz. Embora para isso tivesse que continuar solteiro.
Acabava de liberá-lo... e de lhe impor a pesada carga do amor.
- Não -replicou ele - Não acredito que permaneça solteiro, vovó. Logo que se envolve de forma ativa com a terra, entende e aprecia o eterno ciclo da vida, a morte, a renovação e a reprodução. Tal e como você precisa se assegurar de que esta terra passará a minhas mãos e às de meus descendentes, eu preciso estar seguro de que passará as mãos de meu filho depois de minha morte; ou talvez de uma filha ou de um neto. Tenha por certo que me casarei.
Nem sequer se tinha exposto semelhante possibilidade até esse momento, mas soube que suas palavras encerravam uma grande verdade.
- Com Julianne Effingham? - perguntou sua avó. Rannulf a olhou, mas nem sequer o amor podia misturar-se na verdadeira essência de seu ser.
- Não com a senhorita Effingham - respondeu em voz baixa. - Sinto muito, vovó. Não só não professo afeto algum a jovem, mas sim me provoca uma profunda aversão.
- Alegra-me sabê-lo - foi à surpreendente resposta de lady Beamish. - Foi uma tolice por minha parte, nascida do desejo egoísta de vê-lo casado em seguida, antes que fosse muito tarde.
- Vovó...
Ela ergueu uma mão.
- Sente algum tipo de afeto pela senhorita Law? - perguntou-lhe.
Rannulf a olhou sem pestanejar antes de limpar garganta. - Pela senhorita Law?
- Possui muitas qualidades das que sua prima carece - afirmou à anciã.
- Mas é pobre - replicou Rannulf com voz cortante antes de ficar em pé para aproximar-se das portas francesas, que permaneciam fechadas essa manhã posto que o dia seguisse tão frio e nublado como o anterior. - É possível que o mequetrefe de seu irmão acabe arruinando sua família dentro de pouco, se minhas hipóteses forem corretas. O pai é um cavalheiro, filho de uma antiga atriz e neto de um comerciante de tecidos. É bastante possível que a mãe seja uma dama, embora também seja possível que não tivesse fortuna nem posição social alguma antes de casar-se com o reverendo Law.
- Ah! - exclamou sua avó. - Envergonha-se dela.
- Me envergonhar? - Contemplou a fonte com olhar furioso e expressão carrancuda. - Teria que acalentar algum tipo de sentimento por ela para me sentir envergonhado.
- E não é assim? - inquiriu lady Beamish.
A conversação era provocada pelo impetuoso plano que pusera em marcha no dia anterior a fim de que sua avó tomasse nota de Judith Law e de uma possível relação entre eles. Entretanto, a anciã não havia dito nada durante o trajeto de volta pra casa nem tampouco durante o resto do dia. Rannulf a olhou por cima do ombro.
- Vovó - disse, - faz duas semanas dava um passeio com ela pelos jardins para agradá-la. Animei-a que nos entretivesse neste mesmo salão faz só uma semana, quando a maioria do resto de seus convidados já o fez. Encontrei-me com ela nos arredores de Harewood ontem, onde passeamos e conversamos durante uma hora. Por que ia acalentar algum tipo de sentimento por ela?
- O estranho seria que não o tivesse - respondeu sua avó. - É uma mulher de beleza extraordinária uma vez que se olhe além de seu disfarce e o conheço bastante para saber que admira as mulheres lindas. Entretanto, esta moça possui algo mais que beleza. Também tem uma boa cabeça sobre os ombros. A igual a você quando se decide a usá-la, como muito bem demonstraste vindo para ver-me nesta ocasião. Além disso, Rannulf, tinha uma expressão muito peculiar no rosto quando retornou ontem de seu passeio.
- Uma expressão? - Olhou-a com o cenho franzido. - Refere a uma expressão de ridículo amor? Não sinto tal coisa.
E, entretanto queria que sua avó discutisse sua afirmação, que o animasse, que o convencesse de que uma relação entre eles seria adequada.
- Não - disse ela - Não teria dado nenhuma importância se fosse alguma estúpida expressão varonil, embora talvez tivesse insistido a recordar que a moça é uma dama, sobrinha de sir George Effingham e neta de minha melhor amiga.
E Rannulf se sentiu terrivelmente culpado... outra vez! - Bewcastle jamais aceitará semelhante união - disse-lhe.
- E, entretanto - recordou sua avó, - Aidan acaba de casar-se com a filha de um mineiro e Bewcastle não só deu a boas-vindas a jovem, mas sim dispôs sua apresentação à rainha e celebrou um baile em sua honra em Bedwyn House.
- Bewcastle encontrou um fato consumado no caso de Aidan - arguiu Rannulf. - A única coisa que fez foi arrumar o que considerava um completo desastre.
- Dentro de um momento me oferecerá seu braço para me ajudar a subir a meus aposentos - disse a anciã. - Mas antes vou dizer-lhe algo, Rannulf: se permitir que o orgulho e a vergonha mascarem sentimentos mais ternos e que isso o impeça de ter a oportunidade de celebrar um matrimônio que responderia a todas suas necessidades (incluindo as do coração), seria do mais grosseiro por sua parte jogar toda a culpa em Bewcastle.
- Não me envergonho dela - replicou. - Justamente o contrário, para falar a verdade. Estou... - Fechou a boca e se aproximou de sua avó com urgência assim que esta ficou em pé.
- Acredito que a expressão correta é «Estou apaixonado» - disse a anciã enquanto colocava uma mão com delicadeza sobre o braço de seu neto. - Mas nenhum neto meu que se aprecie admitiria jamais acalentar um sentimento tão absurdo, não é certo?
Não era certo, pensou Rannulf. Por muito que o envergonhasse admitir, Judith Law seguia despertando sua luxúria. Gostava dela. Atraía-o. Encontrava-se pensando nela de forma constante quando estava acordado e sonhava com ela quando estava dormido. Tinha descoberto que podia falar com ela como não fora capaz de fazer com nenhuma outra mulher, salvo possivelmente com Freyja. Entretanto, inclusive com sua irmã devia manter uma atitude cínica e enfastiada. Não podia imaginar a si mesmo falando com entusiasmo sobre agricultura e a administração de uma propriedade com Freyja. Com Judith Law podia relaxar e ser ele mesmo, embora tivesse a impressão de que só fazia duas semanas que descobriu seu verdadeiro eu.
Em essência, sua avó acabava de dar sua bênção para que cortejasse Judith Law. Bewcastle... bom, Bewcastle não era seu guardião.
Perguntou-se se Judith teria a intenção de assistir ao baile essa noite. Teria que ter em conta que ela já o tinha recusado em uma ocasião só duas semanas atrás. Mas talvez pudesse persuadi-la que mudasse de opinião. Devia agir com muito cuidado, é claro, e não em público, a fim de não humilhar à senhorita Effingham. Por muito estúpida e petulante que fosse a jovem, não merecia algo assim.
Judith trabalhou com esforço na costura durante toda a manhã, caso os preparativos do baile a mantivessem ocupada toda à tarde. E não se equivocou. Sua tia a fez correr de um lado para outro a cada minuto, levando mensagens e ordens à governanta ou ao mordomo, nenhum dos quais estava onde se supunha que devia estar. Atribuiu-lhe a monumental tarefa de preparar os arranjos florais que deviam adornar o salão, assim como a de colocá-los nos lugares indicados, combinando-os com esmero com as plantas de interior. Gostava da tarefa, mas assim que chegou ao salão descobriu que os criados não deixavam de lhe consultar todos os problemas, por insignificantes que fossem.
Justo depois a enviaram ao povoado a comprar uma fita para adornar o cabelo de Julianne, depois de ter chegado à conclusão de que as que tinha comprado no dia anterior não eram adequadas nem em cor nem em largura, apesar ter sido pagas e entregues. A ida e a volta supunham um trecho bastante longo. Por regra geral, Judith teria agradecido a possibilidade de estar ao ar livre, embora se tratasse de um dia nublado. Entretanto, tinha acalentado a esperança de desfrutar de um momento para lavar o cabelo e ter um descanso antes que chegasse a hora de vestir-se para o baile. Apressou-se a concluir o encargo com o fim de dispor de algum tempo para si mesma.
Quando retornou, a porta do quarto de Julianne estava ligeiramente entreaberta. Judith ergueu a mão para anunciar sua presença com umas batidas, mas escutou a risada de Horace procedente do interior. Não a tinha incomodado abertamente desde a semana anterior, embora jamais desperdiçasse a oportunidade de fazer algum comentário obsceno ou sarcástico ao ouvido. Evitava-o na medida do possível. Decidiu esperar. Também poderia levar a fita ao quarto de tia Effingham e depois fingir que tinha se esquecido que devia levá-la diretamente ao quarto de sua prima.
- Devo conseguir esse homem e ponto - estava dizendo Julianne com voz petulante, concentrada em seu tema favorito. - Sentirei uma mortificação inexprimível se não se declarar antes que todos os convidados abandonem Harewood. Todos sabem que esteve me cortejando. Todos sabem que recusei os olhares do resto de meus admiradores, inclusive as de lorde Braithwaite, porque lorde Rannulf está a ponto de pedir minha mão.
Judith deu meia volta para partir.
- E o terá, tonta - disse Horace. - Será que não ouviu o que mamãe acaba de dizer? Terá que obrigá-lo a lhe propor matrimônio. A única coisa que tem que fazer é se assegurar de que alguém os encontre em uma situação comprometedora. E ele fará o mais honorável. Conheço homens como Bedwyn. Ser um cavalheiro é para eles tão importante como a vida.
Chegados a esse ponto, Judith achou impossível não continuar escutando.
- Horace tem razão, queridinha - disse tia Effingham. - E o apropriado é que se case contigo depois de ter brincado de modo deliberado com seus sentimentos.
- Mas como vou fazê-lo? - perguntou Julianne.
- Senhor! - exclamou Horace com aborrecimento. - Acaso não tem imaginação, Julianne? Tem que lhe dizer que está a ponto de desmaiar ou que tem calor ou frio ou algo que o obrigue a lhe acompanhar a um lugar privado. Talvez a biblioteca. Ninguém salvo papai a frequenta e nem sequer ele estará ali esta noite já que considerará que seu dever é permanecer no salão de baile. Fecha a porta quando entrarem. Se aproxime muito dele. Consiga que a abrace e que a beije. E nesse momento eu os surpreenderei... papai e eu o faremos. Seu compromisso será anunciado antes que o baile termine.
- Como vai convencer papai que o acompanhe à biblioteca? - perguntou Julianne.
- Se não for capaz de imaginar isso para arrastá-lo a seu lugar favorito no mundo, comerei meu chapéu - replicou Horace. - O novo de pele de castor.
- Mamãe?
- Funcionará, sem dúvida - apressou-se a responder tia Effingham. - Já sabe, queridinha, que uma vez que se converta em lady Rannulf Bedwyn terá que se dedicar de corpo e alma a convencer lorde Rannulf de que tudo fizemos por seu bem. E enquanto isso desfrutará de sua fortuna e de sua posição social.
- E de Grandmaison quando lady Beamish morrer - acrescentou Julianne, - e de uma casa em Londres, suponho. O persuadirei de que compre uma. E serei a cunhada do duque de Bewcastle e poderei realizar meu desejo de visitar sua residência, Bedwyn House. Para falar a verdade, talvez vivamos ali enquanto estivermos na cidade, em lugar de compramos uma casa própria. E suponho que os verões passaremos no campo, em Lindsey Hall. Conseguirei que...
Judith ergueu a mão e chamou com força à porta antes de abri-la e entregar a fita a Julianne.
- Espero que esta lhe assente bem - disse - Era a única de cor rosa que havia na loja, mas em minha opinião é um tom precioso, mais intenso e mais adequado para sua tez que os outros.
Julianne desenrolou a fita, estudou-a com cuidado e a jogou na penteadeira que havia atrás dela.
- Acredito que eu gosto mais das outras – replicou - demorou muitíssimo, Judith. Acredito que deveria ter se apressado mais, já que o encargo era para sua própria prima.
- Talvez, prima - disse Horace, - possa usar uma das fitas que Julianne decida não usar. Ah! Que falta de tato por minha parte. O rosa não lhe assenta bem, não é? Há alguma cor que o faça?
- Não há dúvida de que Judith se sentirá muito mais cômoda esta noite ficando em seu quarto - interveio tia Effingham. - Vamos comparar as fitas com mais calma, queridinha. Não quererá que...
Judith saiu do quarto e se dirigiu ao seu sem perder tempo.
Seria certo que não tinha intenção de pedir a mão de Julianne por iniciativa própria? Tão desesperadas estavam Julianne e tia Effingham por consegui-lo como marido que se viam obrigadas a lhe preparar uma armadilha que o deixasse em uma situação supostamente comprometedora? Horace tinha razão, concluiu. Lorde Rannulf Bedwyn era um cavalheiro e não havia dúvida de que pediria a mão de qualquer dama se acreditasse tê-la comprometido. Ela sabia de primeira mão.
O coração lhe pulsava com força quando fechou a porta de seu quarto. Que se casasse com Julianne por decisão própria fora uma possibilidade muito difícil de aguentar. Mas que o fizesse sendo a vítima de um engano...
Judith desfrutou de um jantar tranquilo com sua avó na saleta particular da anciã, posto que nenhuma delas se sentisse muito inclinada para jantar com os convidados. Depois se separaram com o fim de vestir-se para o baile.
Judith estava mais nervosa do que se atrevia a admitir. Pôs-se mil vezes seu vestido de seda de listras bege e dourado para assistir aos bailes celebrados no povoado. Nunca fora o último grito da moda nem estava muito adornado. Seus pais sempre foram muito rígidos no referente ao recato, mais ainda em seu caso. Mas ao menos seguia sendo um traje elegante que lhe sentava muito bem. Sempre tinha gostado dele, até que a criada de tia Louisa lhe acrescentasse umas peças dos lados e cobrisse o decote.
Passou toda a manhã tirando os apliques. Havia devolvido o vestido a sua forma original, salvo pela longa fita de seda cor de pêssego que sua avó a tinha presenteado poucos dias antes dizendo que a cor lhe sentaria maravilhosamente e que ela não o usaria jamais. A fita era bastante longa para que os extremos chegassem quase até o chão depois de fazer um primoroso laço na parte frontal da cintura alta.
Não houve nenhuma criada que a ajudasse a preparar-se. De qualquer forma, tinha desfrutado em raras ocasiões dos serviços da criada da reitoria, posto que as exigências de sua mãe e de suas três irmãs ocupavam todo o tempo da moça. Judith estava acostumada a pentear-se até para as ocasiões formais. Teve tempo tanto de lavar o cabelo como de secar-lhe Quando o afastou do rosto com a escova, tinha o brilho lustroso do cabelo limpo; o recolheu em duas tranças que enrolou e retorceu de um modo muito favorecedor na parte posterior da cabeça. Utilizou um espelho de mão para comprovar o resultado enquanto se sentava frente da penteadeira.
O estilo era elegante, concluiu. Com cuidado para não arruinar o esmerado penteado que tanto lhe havia custado fazer, puxou duas largas mechas que se frisaram assim que lhes passou a escova. Seu cabelo era bastante encaracolado para que as mechas caíssem em belas ondas sobre suas orelhas. Repetiu a operação nas têmporas.
Não colocou touca, nem sequer a de bonita renda que sempre tinha usado às reuniões ou às noites.
«Jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.»
Contemplou sua imagem no espelho e ficou em pé para poder ver-se de corpo inteiro. Tentou olhar-se através dos olhos de um homem que talvez tivesse pronunciado essas palavras com total sinceridade. Ela confiava em sua honestidade. Havia-o dito de coração.
Era linda. Sou linda!
Pela primeira vez em sua vida podia contemplar-se e acreditar que possivelmente houvesse algo de verdade na, ao que parece, absurda declaração. Sou linda!
Escapuliu para o quarto de sua avó antes que a coragem a abandonasse. Chamou com suavidade à porta do quarto de vestir e entrou.
Sua avó ainda seguia sentada frente ao espelho enquanto Tillie, a suas costas, prendia três longas plumas em seu cabelo cinza, recolhido em um complicado penteado. A anciã usava um vestido de noite de um intenso tom rubi que ficava eclipsado pelos brilhos das inumeráveis e enormes jóias que lhe adornavam o pescoço, o peito, os gordinhos pulsos, cada um dos dedos de ambas as mãos salvo os polegares e as orelhas. Usava inclusive um intrincado e imenso broche preso no vestido abaixo de um ombro. Sobre a mesa da penteadeira repousavam um lornhão com incrustações de pedras preciosas.
Em suas maçãs do rosto se distinguiam dois círculos de ruge.
Entretanto, Judith apenas desfrutou de um momento para assimilar a aparência de sua avó. A anciã a olhou do espelho, virou-se na banqueta demonstrando uma incomum agilidade – fazendo com que Tillie deixasse escapar uma exclamação antes de colocar-se de novo a suas costas com as plumas na mão - e uniu as mãos entre o tinido das jóias.
- Judith! – exclamou - Ah, meu carinho! Está... Tillie, que palavra estou procurando?
-Linda? - sugeriu a criada - Está, senhorita.
-Linda nem se aproxima - disse a senhora Law, fazendo um gesto depreciativo com a mão - Vire-se, vire-se, Judith, e deixa que lhe de uma olhada.
Judith riu, estendeu os braços com elegância de ambos os lados do corpo e virou muito devagar.
- Estou bem? -perguntou.
- Tillie - disse sua avó, - minhas pérolas. O colar comprido e o curto, por favor. Nunca as uso, Judith, porque na minha idade preciso de algo que brilhe para afastar os olhares de minhas rugas e outros tristes atributos. - Deixou escapar uma sincera gargalhada. - Entretanto, as pérolas ressaltarão sua deliciosa beleza sem competir com ela.
As pérolas não estavam no joalheiro, e sim em uma gaveta. Tillie, que acabou por fim de colocar as plumas com satisfação, tirou-as com presteza e as segurou para observá-las. – Lhe assentarão maravilhosamente, senhorita - disse.
A avó de Judith ficou em pé e assinalou a banqueta. -Sente-se, carinho – disse, - para que Tillie possa colocar o colar mais longo no cabelo sem desfazer o penteado. Eu gosto de como enrolou as tranças. A sua idade eu usava multidão de cachos, cachos e cachos de cabelo por toda a cabeça e não era nem a metade de linda que você. Claro que nunca fui famosa por meu bom gosto. Seu avô acostumava zombar de mim por isso, embora insistisse que me amava tal e qual era.
Dez minutos mais tarde, Judith usava o colar mais curto ao redor do pescoço e descobriu que tinha o comprimento perfeito para o modesto decote de seu vestido. As pérolas que adornavam seu cabelo não eram visíveis pela frente, mas Tillie lhe mostrou com um espelho como tinha ficado a parte posterior de sua cabeça e ao mover-se pôde comprovar o pesado balanço do colar e escutar o roçar das pérolas.
Esboçou um sorriso antes de soltar uma gargalhada. Sim, era. Sem dúvida nenhuma. Era linda!
Não importava que fosse a dama menos elegante do baile e que todas as convidadas a eclipsassem. Não importava absolutamente. Era linda e estava desfrutando de sua aparência pela primeira vez em toda sua vida.
Sua avó, também entre gargalhadas, agarrou o lornhão em uma mão e inclinou a cabeça, fazendo que as plumas se movessem para cima e para baixo.
- Magnífica - disse- Essa era a palavra que estava procurando. Está magnífica, carinho. - Deu uns tapinhas no braço de Judith com o lornhão - Desçamos a agarrar os corações de todos os homens do baile. Eu ficarei com os velhos e você pode ficar com os jovens.
Até Tillie se uniu a suas gargalhadas nesse momento.
Rannulf jamais tinha assistido a um baile por vontade própria. Embora isso não quisesse dizer que não tivesse assistido uma boa quantidade deles, já que a sociedade civilizada tinha decretado que seus membros estavam obrigados a divertir-se dançando de vez em quando. O baile de Harewood, como pôde comprovar logo que sua avó e ele deixaram para trás a linha de recepção e entraram no salão, parecia ter congregado um grande número de pessoas para tratar-se de um acontecimento rural. Não tinha reparado nos esforços para decorar a sala com grandes ramos de flores e plantas de interior.
Olhou a seu redor e lhe fez graça, embora não foi nada surpreendente, descobrir que era muito fácil distinguir os convidados da festa campestre, todos esplendidamente vestidos com seus enfeites londrinos, daqueles que procediam dos arredores e cujas roupas eram muito mais singelas. A senhorita Effingham, a quem acabava de deixar atrás na linha de recepção, estava resplandecente com um vestido de fina renda sobre cetim rosa, com a cintura alta e o decote baixo conforme ditava a moda e o cabelo loiro penteado em elaborados cachos entrelaçados com laços de cor rosa e pedras preciosas. E a ele, como não, tinham-no manipulado de modo que se visse obrigado a lhe pedir que fosse seu par para a dança tradicional que abriria o baile.
Foi então quando localizou Judith Law, que acabava de afastar o olhar dele e se inclinou para dizer algo a sua avó. Rannulf tomou ar muito devagar. A moça tinha um aspecto muito parecido ao que tinha a primeira vez que a havia visto com esse vestido: voluptuosa e elegante. A simplicidade do desenho não fazia mais que acentuar a feminilidade das curvas e a vibrante beleza da mulher que o usava. Penteou o cabelo com simplicidade para trás, mas o tinha preso na nuca com um complicado desenho que se via realçado de forma delicada e bela pelas pérolas que o adornavam.
De repente, sentiu o impulso de algo que não era luxúria, embora sem dúvida incluía o desejo. Deu-se conta de que esteve esperando todo o dia até que chegasse esse momento, temendo possivelmente que ela não se dignasse aparecer.
A senhora Law ergueu um de seus braços cheio de jóias e fez um gesto com o empetecado lornhão.
- Ah, aí está Gertrude - disse sua avó. - Vou me sentar com ela para contemplar a festa, Rannulf.
Rannulf a escoltou através da sala e se deu conta de que Judith não estava tão isolada como estivera sempre no salão e durante a maior parte das atividades que aconteceram durante as duas semanas anteriores. Roy-Hill e Braithwaite estavam ao seu lado.
Depois de trocar as saudações de rigor, sua avó se sentou junto à senhora Law.
- Esta noite está especialmente encantadora, senhorita Law - disse sua avó. - Tem intenções de dançar, suponho.
- Obrigada, senhora. - Judith se ruborizou e esboçou um sorriso, algo que Rannulf não a tinha visto fazer quase nunca nas duas semanas anteriores. - Sim, lorde Braithwaite foi bastante amável para oferecer-se em me guiar na primeira peça e sir Dudley solicitou a segunda.
- Suponho, nesse caso - disse lady Beamish, - que se algum cavalheiro deseja dançar com você esta noite será melhor que o diga logo.
- Bom... - Judith se pôs a rir.
- Senhorita Law - Rannulf fez uma reverência, - dar-me-ia honra de reservar a terceira peça para mim?
Nesse instante ela o olhou fixamente, com esses adoráveis olhos verdes totalmente abertos enquanto a luz dos lustres arrancava brilhos de seu cabelo vermelho. Talvez fosse nesse preciso momento que Rannulf percebeu do quão pouco disposto esteve nas semanas passadas a chamar a cada coisa por seu nome. O que sentia por Judith Law não era nem luxúria nem ternura nem afeto nem atração nem amizade, embora todas essas coisas estivessem incluídas no sentimento que se negava a identificar.
Amava-a.
- Obrigada, lorde Rannulf. - Fez uma leve reverência. - Será um prazer.
O murmúrio de espera que se ergueu ao seu redor distraiu a atenção de Rannulf. Lady Effingham tinha entrado no salão de baile e se aproximava do estrado da orquestra. Sir George ia atrás dela, com sua filha no braço. Rannulf percebeu que tinham esperado que ele se apresentasse para começar o baile. Deu um passo para diante para reclamar a sua companheira que estava ruborizada, sorridente e, para falar a verdade, muito bonita.
- Ouvi, lorde Rannulf - disse Julianne Effingham quando ocuparam os lugares opostos nos extremos das filas das damas e os cavalheiros, - que as regras do decoro não se aplicam aos bailes rurais e que os cavalheiros podem pedir a uma dama que dance com eles tantas vezes quanto quiserem. Entretanto, ainda me preocupa que possa considerar uma falta de maneiras dançar mais de duas vezes com o mesmo companheiro. O que opina você?
-Talvez - sugeriu ele - o mais apropriado seja escolher um companheiro diferente para cada peça, em especial quando a reunião... como a de esta noite, por exemplo... é bastante numerosa para proporcionar amplas oportunidades.
Tinha dado, é claro, a resposta incorreta... e com total deliberação.
-Mas em ocasiões -disse ela com uma risada - as boas maneiras podem ser aborrecidos, não lhe parece?
- Certamente que sim - conveio Rannulf. Braithwaite tinha se colocado atrás dele e Judith atrás da senhorita Effingham.
- De qualquer forma, inclusive as boas maneiras que estipula a alta sociedade -acrescentou Julianne Effingham - permitem que um cavalheiro dance com a mesma dama em duas ocasiões sem incorrer em falta alguma. Em todos os bailes que assisti durante a temporada, sempre me solicitaram que dance duas vezes com o mesmo cavalheiro e ninguém me acusou jamais de ser mal educada ao fazê-lo, embora muitos cavalheiros se queixassem quando ficava sem peças livres.
- Quem poderia culpá-los? - perguntou ele. A jovem voltou a rir.
- A quarta peça será uma valsa - informou - Não pude dançá-la até quase metade da temporada, quando lady Pulôver por fim me deu seu consentimento. Acredito que o fez porque havia muitos cavalheiros que se queixavam diante dela de que não podiam dançar comigo. Suponho que muitos dos que há aqui esta noite nem sequer conhecem os passos, mas roguei a mamãe que a incluísse entre as peças. Imagino que você conheça os passos, não é assim, lorde Rannulf?
- Consegui finalizar algumas valsas sem destroçar os pés de meu par - admitiu.
Ela riu de boa vontade.
- Vamos - disse, - estou segura de que nem sequer correu o risco de que isso acontecesse, só está rindo as minhas custas. Estou convencida de que não pisará nos pés. Meu Deus! - Seu rosto adquiriu um encantador rubor e levou uma mão à boca - estava-me pedindo que fosse seu par, não é? Morrerei de vergonha se não for assim.
Ele franziu os lábios; a situação tinha sua graça apesar de tudo.
-Não posso permitir que morra em meio de seu próprio baile, senhorita Effingham –disse. - Demonstraremos a todos seus convidados quão superiores são suas habilidades para dançar a valsa.
- Bom, não só as minhas -replicou ela com modéstia. - As suas também, lorde Rannulf. Sabe dançar a valsa, Judith? Atrever-me-ia a dizer que meu tio alguma vez a permitiu aprender os passos, não é? Considera-se um baile escandaloso, mas eu acredito que é absolutamente divino. Meu professor de baile dizia que devem tê-lo criado pensando em mim, porque meus pés são ligeiros e delicados. Era muito tolo. Acho que estava meio apaixonado por mim.
A orquestra começou a tocar os lembre iniciais da dança tradicional e evitou que Judith respondesse. Embora fosse óbvio fora uma pergunta retórica. Rannulf se concentrou em sua companheira tal e como ditavam as boas maneiras, embora toda sua atenção estivesse posta no objeto de seu amor, que se movia com elegância ao lado de sua prima.
Judith estava sem fôlego quando lorde Braithwaite a acompanhou ao lugar onde se encontrava sua avó. Tinha sido uma dança da mais vigorosa e tinha desfrutado muito apesar de ter que suportar a proximidade de lorde Rannulf e de Julianne. Entretanto, também isso teve suas compensações. Tinha compreendido, graças ao modo em que ele tinha impedido todos os esforços de Julianne para levá-lo ao terreno das adulações e o flerte, que na realidade não estava se comportando como um homem que estivesse a ponto de declarar-se. E talvez fosse até mais importante o fato de ter escutado como as engenhava Julianne para conseguir que ele dançasse com ela a valsa que seria a quarta peça. Seria nesse momento quando teria que vigiar com mais atenção, embora não sabia como poderia salvar lorde Rannulf de uma armadilha tramada de antemão que nem sequer conhecia. Não podia advertir-lhe sem mais. Passaria por uma estúpida!
- Talvez, senhorita Law - disse lorde Braithwaite, - seu pai lhe tenha permitido aprender os passados da valsa. E talvez queria me conceder a honra de dançá-la comigo.
O homem a tinha observado com aberta admiração durante todo o baile. Para Judith fora muito adulador. Era um jovem charmoso e afável.
- Meu pai não teve a oportunidade de proibir nem de aprovar as lições de valsa -explicou ela. - O baile nem sequer chegou ainda a nossa localidade. Desfrutarei observando como dança com outra pessoa, milorde.
Judith se deu conta de que sua avó, cujas plumas se moviam ao uníssono com as de lady Beamish enquanto ambas conversavam e comentavam a cena que tinham diante, estava retirando os brincos com um gesto de dor. Pobre vovó... será que alguma vez compreenderia que não havia brincos que não a machucasse?
- Vovó - Judith se inclinou de forma solícita sobre ela, - quer que os leve para cima e os guarde?
- Ah, carinho, fá-lo-ia? - perguntou à anciã. - Mas perderá a dança com sir Dudley.
- Não, não perderei - assegurou Judith. - Não demorarei mais que um minuto.
- Nesse caso lhe agradeceria muito - disse sua avó enquanto lhe punha as jóias na mão. - Importar-se-ia de me trazer os que têm forma de estrela, se não for muito problema? - É claro.
Judith saiu apressada do salão de baile e subiu a escada em direção aos aposentos de sua avó depois de apanhar uma vela de um candelabro da parede. Encontrou o enorme porta-jóias e voltou a colocar os preciosos brincos na bolsa de veludo da qual tinham saído à maior parte das jóias que a anciã usava essa noite -embora ainda estivesse repleta- antes de procurar na seção que ela mesma tinha atribuído aos brincos. Entretanto, não pôde encontrar os que tinham forma de estrela. Rebuscou em vão entre os colares e os braceletes. Estava a ponto de escolher outro par quando recordou que os brincos com forma de estrela eram os que havia tirado da mão de sua avó na noite que passaram em Grandmaison. Deviam estar na bolsa que tinha usado nessa noite. Fechou o porta-jóias e o guardou tão rápido como pôde; correu até seu quarto e descobriu com alívio que os brincos estavam onde pensava que estariam. Saiu apressada do quarto e deu um encontrão com uma criada que passava por ali. Assustadas, ambas soltaram um grito em uníssono e depois Judith pôs-se a rir, desculpou-se por estar com tanta pressa e desceu a toda velocidade a escada.
Através das portas do salão de baile pôde ver que já estavam formando os grupos, mas a má sorte quis que se chocasse contra Horace quando se apressava a passar entre eles. Deteve-se em seco, ruborizada e sem fôlego.
- Vai a alguma parte com tanta pressa, prima? - perguntou antes de lhe bloquear o caminho quando ela tentou passar a seu lado. - Ou deveria perguntar se veio de algum lugar com tanta pressa? Algum recado, possivelmente?
- Fui apanhar outros brincos para vovó – disse - Se me desculpar, prometi esta dance a sir Dudley.
Para seu alívio, o homem se afastou e fez um exagerado gesto com o braço para que passasse. Ela se apressou a cumprir o encargo de sua avó e se aproximou com uma desculpa até seu par.
Era muito agradável voltar a dançar tão logo. Sir Dudley Royy-Hill iniciou uma conversação quando os passos da dança assim o permitiram e Judith se encontrou com os inequívocos olhares de admiração de muitos outros cavalheiros. Em casa haveria se sentido um pouco incomodada ao pensar que teria feito algo para despertar semelhantes olhadas lascivas. Mas «lascívia» era uma palavra que utilizava seu pai. Essa noite, com sua recém descoberta confiança em sua própria beleza, dava-se conta de que essas olhadas somente expressavam admiração. E se descobriu sorrindo cada vez mais.
Entretanto, foi consciente em todo momento de que ia dançar a seguinte peça com lorde Rannulf Bedwyn. O homem não teve outro remédio e ela sabia muito bem. O comentário de lady Beamish a respeito de que se algum homem queria lhe pedir uma dança teria que fazê-lo logo o tinha obrigado a comportar-se como um cavalheiro. Embora não se importasse muito. Em duas ocasiões - ambas junto ao lago-lorde Rannulf tinha passado o tempo a seu lado quando poderia ter evitado os encontros sem dificuldade alguma. Assim bem podia dançar com ela. E Judith se importava o mínimo o que tia Effingham tivesse que dizer a respeito na manhã seguinte, embora sem dúvida seria longo e tedioso. Logo voltaria para casa, onde ao menos não teria que comportar-se como uma criada.
Estava impaciente para que começasse a próxima dança. Oxalá pudesse durar toda a noite. Ou para sempre.
Oxalá pudesse durar toda a noite, ou inclusive para sempre, pensou Rannulf. Ela dançava os lentos e majestosos passos do antigo minueto com graça e elegância. Só o tinha olhado nos olhos em duas ocasiões e por um breve espaço de tempo, mas havia uma expressão em seu rosto que revelava interesse e sem dúvida felicidade.
Rannulf não lhe tirava os olhos de cima enquanto, ao seu redor, as múltiplas cores dos vestidos e os casacos giravam com lentidão ao compasso da música; a luz dos lustres arrancava brilhos dos cabelos e as jóias, e a fragrância das colônias e as centenas de flores se mesclavam no quente ambiente.
Era estranho o diferente que lhe parecia essa outra mulher da estalagem O Rum e o Tonel. Naquela época, embora tivessem falado e rido juntos e tinha desfrutado de sua companhia, ela fora em quase todos os aspectos que importavam pouco mais que um corpo extraordinariamente desejável para levar para cama. Nesse instante era...
Bom, nesse instante era Judith.
- Desfruta do baile? - perguntou quando uniram as mãos e se aproximaram por um momento.
- Muitíssimo - respondeu, e Rannulf sabia que dizia a verdade.
Ele também. Estava desfrutando de um baile, coisa que nunca fez antes; desfrutando do lento minueto, coisa que jamais fez antes.
Havia algo entre eles, pensou, semelhante a uma intensa corrente de energia que os unia e os isolava do resto das pessoas que se encontrava na sala. Tinha a certeza de que não era algo imaginário. Sem dúvida alguma ela também o sentia. E não se tratava somente de desejo sexual.
- Sabe dançar a valsa?
- Não. - Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
Eu há ensinarei algum dia, pensou Rannulf.
Judith o olhou nos olhos e lhe sorriu como se tivesse escutado seus pensamentos.
Rannulf sabia que era a inveja de todos os homens que se encontravam no salão. Perguntou-se se ela se dava conta da comoção que estava causando essa noite ou da agressividade com que sua tia a olhava.
- Talvez - disse ele, - se não tiver prometido já todas as danças, poderia reservar outra para mim. A última?
Ela ergueu a vista de novo e o olhou nos olhos durante uns instantes.
- Obrigada - disse.
Essa foi quase a totalidade de sua conversação durante o baile.
Entretanto, também estava essa sensação de unidade, de corações e sentimentos compartilhados, de que as palavras não eram necessárias.
Talvez, pensou ele, ao final da noite estivesse cansada de dançar e pudessem sentar-se juntos em algum lugar, à vista de outros convidados em nome do decoro, para manter uma conversação particular. Talvez pudesse averiguar os sentimentos que acalentava por ele e se a oferta que lhe fez sofreu alguma mudança durante as duas últimas semanas.
Talvez até pedisse de novo essa noite que se casasse com ele; embora para falar a verdade preferisse perguntar-lhe na manhã seguinte, fora, onde poderiam desfrutar de uma completa intimidade. Pediria permissão a seu tio, a levaria ao pequeno lago e se declararia.
Havia algo no comportamento de Judith - estava certo de que não era imaginação sua - que lhe permitia albergar a esperança de que o aceitaria de uma vez por todas.
Rannulf se entreteve com tais planos e pensamentos enquanto a via dançar e contemplava o resplendor de felicidade -seguro que era isso- que iluminava seu rosto.
E foi nesse instante quando a música chegou a seu inevitável fim. - Obrigado - disse ele enquanto lhe oferecia o braço para escoltá-la de novo até onde se encontrava sua avó.
Ela virou a cabeça para olhá-lo com um sorriso.
- Formam um par de danças muito elegante - afirmou lady Beamish quando se aproximaram.
Lady Effingham estava atrás da cadeira de sua mãe, comprovou Rannulf.
- Judith, querida - disse com uma voz enjoativa, - espero que tenha agradecido lorde Rannulf da forma adequada à amável deferência que mostrou ao tirá-la para dançar. Mamãe parece muito cansada. Estou segura de que não se importará de levá-la a seu quarto e ficar ali com ela.
Entretanto, a senhora Law se inchou como um globo de ar quente, imersa em muitos brilhos e tinidos.
- Posso lhe assegurar que não estou cansada absolutamente, Louisa – afirmou - Que barbaridade! Perder o resto do baile e deixar a minha querida Sarah aqui sentada sozinha... Além disso, Judith prometeu a peça posterior à valsa ao senhor Tanguay e seria de muito má educação por sua parte desaparecer agora.
Lady Effingham arqueou as sobrancelhas, mas não pôde dizer nada mais em sua presença e na de sua avó.
Tocava o turno da valsa e Rannulf se viu obrigado a dançar com a senhorita Effingham. Pelo menos a achava divertida, pensou enquanto se inclinava em uma reverência e se virava para procurá-la. Embora sem dúvida ela não acharia aduladora a natureza de sua diversão. Além disso, estava desejando que chegasse à última dança. E a manhã seguinte. Embora não deveria albergar muitas esperanças a respeito. Se Judith Law não desejava casar-se com ele, não mudaria de opinião nem por sua posição nem por sua fortuna.
Suspeitava que teria que amá-lo antes de aceitar. Amava-o?
A insegurança, a incerteza e o desassossego eram emoções completamente desconhecidas para um homem que tinha cultivado o tédio e o cinismo durante a maior parte de sua vida adulta.
Julianne tinha os olhos mais brilhantes e as faces mais rosadas que em toda a noite, conforme comprovou Judith. Embora essa expressão podia atribuir-se por inteiro ao fato de estar dançando com lorde Rannulf de novo. Semelhante reação era da mais compreensível para Judith.
Muito mais nefasto era o fato de que Horace se aproximou de tio George e o tivesse levado além do grupo de velhos cavalheiros com os quais esteve conversando. Judith tinha recusado um convite para ir com o senhor Warren, que tampouco dançava a valsa, em busca de uma limonada; embora tivesse sorrido para agradecer. Tinha que ficar no salão de baile. Contemplou a cena com o coração descontrolado. Sem dúvida o repugnante estratagema que fora tramado no quarto de vestir de Julianne essa tarde não podia tratar-se de algo sério. Quem poderia desejar uma oferta de matrimônio obtida de semelhante maneira?
Não obstante, sabia que Julianne desejava com desespero converter-se em lady Rannulf Bedwyn.
E tia Effingham estava igualmente desesperada por casar sua filha com ele.
Era provável que Horace também desfrutasse com a idéia de vingar-se de lorde Rannulf pelo que lhe fez junto ao mirante na semana anterior.
Judith apenas prestava atenção à natureza escandalosa e apaixonante da valsa, onde as damas e os cavalheiros dançavam em pares e se tocavam com ambas as mãos enquanto giravam ao redor da pista, um nos braços do outro. Em outras circunstâncias, poderia ter sentido inveja daqueles que conheciam os passos e tinham galantes pares com os quais executá-los.
Mal prestava atenção às oscilantes plumas dos tocados de sua avó e de lady Beamish, que estavam sentadas frente a ela e desfrutavam do espetáculo fazendo algum comentário ocasional.
Branwell sabia dançar a valsa, descobriu com certa surpresa. Estava dançando com a senhorita Warren; ria com ela como se não tivesse a menor preocupação no mundo.
Entretanto, até essa pequena distração com seu irmão esteve a ponto de ser fatal para a vigilância de Judith. Quando posou a vista de novo em lorde Rannulf e Julianne, tinham deixado de dançar e ele tinha a cabeça inclinada para escutar melhor o que lhe dizia. Sua prima esfregava um pulso, falava depressa e parecia um pouco angustiada. Fez um gesto com um braço em direção à porta.
Enquanto isso, Horace seguia falando com seu pai.
Judith não esperou mais. Possivelmente aquilo fosse um disparate, mas tinha todo o aspecto de ser o início do plano que escutara. Possivelmente tivessem trocado o lugar quando ela saiu do quarto de vestir de Julianne. Mas teria que arriscar-se. Escapuliu do salão de baile com toda a rapidez e o sigilo do que foi capaz e se apressou a descer as escadas, descobriu com alívio que não havia nenhum criado que pudesse perguntar aonde se dirigia e entrou na biblioteca, um lugar tão sagrado para seu tio que ela jamais tinha visto o interior da sala.
Estava bastante escuro, mas por sorte podia ver o suficiente para encontrar o caminho até a janela e abrir as pesadas cortinas. A noite estava iluminada pela luz da lua e as estrelas, depois que as nuvens do dia se dispersaram ao longo da tarde. Havia luz suficiente para que pudesse encontrar o que precisava: duas estantes abarrotadas de livros que chegavam até o teto. Correu para a que se encontrava atrás da porta e de um enorme sofá.
O minuto que seguiu lhe pareceu eterno. O que aconteceria se tivesse ido ao lugar errado? E se Julianne tinha arrastado lorde Rannulf a algum outro lugar para que o vissem beijando-a ou fazendo outra coisa que a comprometesse?
E nesse mesmo momento a porta voltou a abrir-se.
- Deve estar aqui. - Era a voz de Julianne, que parecia aguda e nervosa. - Papai me deu isso de presente em meu baile de apresentação e se zangaria muitíssimo comigo se a perdesse. Inclusive se se desse conta de que não a uso, sentir-se-ia ferido e zangado.
Judith não podia imaginar tio George nem aborrecido, nem ferido e nem zangado.
- Se recorda havê-la deixado aqui - disse lorde Rannulf, que parecia muito tranquilo e inclusive dava a sensação de estar se divertindo, - então a recuperaremos e estaremos dançando a valsa em menos de dois minutos.
Entrou na biblioteca sem nenhuma vela e Judith viu como Julianne fechava a porta empurrando-a com um pé.
- Ah, Senhor - disse sua prima, - essa porta sempre se fecha de repente. - Correu até lorde Rannulf e exclamou de forma triunfal: - Há, aqui está! Sabia que devia havê-la deixado aqui quando desci para descansar um pouco; embora me preocupasse muitíssimo estar equivocada e tê-la perdido de verdade. Lorde Rannulf, como poderia lhe agradecer o sacrifício que tem feito ao interromper nosso baile e vir aqui comigo sem que meu pai se inteire?
- Colocando-a no pulso - respondeu ele - para que a possa levar de volta ao salão de baile antes que sintam sua falta.
- Senhor, este broche... - comentou ela - Não há luz suficiente. Importar-se-ia de me ajudar?
Rannulf se inclinou para ela enquanto Julianne erguia o pulso, rodeava-lhe o pescoço com o braço livre e se recostava contra ele.
- Sinto-me terrivelmente agradecida - disse.
Como se esse gesto tivesse sido o sinal, a porta se abriu de novo; Horace ergueu a vela que levava, resmungou uma imprecação e tentou impedir que seu pai visse o que acontecia na biblioteca. - Possivelmente não seja tão boa idéia vir aqui para se afastar do ruído, apesar de tudo - disse em voz alta e clara. - Vamos, pai...
Entretanto, tio George, tal e como se supunha que devia fazer, tinha sentido o proverbial descuido reprimido. Afastou Horace de um lado com o braço e entrou em grandes passadas no aposento justo no momento em que Julianne gritava, separava-se de um salto e lutava com o decote de seu vestido, que de algum modo desceu e deixou quase tudo à vista.
Tinha chegado o momento de começar com o contra-ataque. - Há, aqui está - disse Judith, que saiu de seu esconderijo com um enorme livro aberto entre as mãos. - E aqui estão, tio George e Horace para me ajudar a declarar o ganhador. E temo que seja Julianne, lorde Rannulf. O primeiro animal que Noé liberou da arca para ver se as águas tinham baixado foi um corvo. E depois enviou uma pomba. A pomba saiu três vezes, de fato, até que não retornou e Noé soube que devia haver terra firme de novo. Mesmo assim, o primeiro foi um corvo.
A forma em que os quatro se viraram para ela e a olharam fixamente não teria desafinado em nenhuma comédia. Judith fechou o livro com uma floreio.
- Foi uma estupidez discutir sobre esse assunto – acrescentou - e descer os três no meio de um baile para descobrir a resposta. Mas Julianne tinha razão, lorde Rannulf.
- Bem - disse ele com um audível suspiro, - nesse caso suponho que devo aceitar a derrota. Embora tenha sido melhor assim, já que teria sido muito pouco cavalheiresco de minha parte contradizer uma dama embora tivesse tido razão. Não obstante, sigo pensando que em minha Bíblia é uma pomba.
- Que demônios...? - começou a dizer Horace.
- Julianne - disse Judith, interrompendo-o enquanto soltava o livro, - ainda não conseguiu fechar o bracelete? Você tampouco, lorde Rannulf? Deixe-me tentar.
- Que! - balbuciou tio George. - Desci para ter um instante de paz e descubro que minha biblioteca foi invadida. Sabe sua mãe que pôs seu bracelete, Julianne? Suponho que sim. Um conselho, Bedwyn. Jamais discuta com uma dama. Sempre têm razão.
Se tivesse podido desenhar um trovão, pensou Judith, sem dúvida alguma guardaria uma notável semelhança com o rosto de Horace. Seus olhares se encontraram um instante e distinguiu a fúria assassina que aparecia em seus olhos.
- Tê-lo-ei em conta, senhor - assinalou lorde Rannulf. - Asseguro-lhe que esta foi à última vez que discuto sobre corvos e pombas.
Julianne, que tinha os lábios apertados e o rosto cinzento, separou o braço de Judith, tentou fechar o bracelete e ao não poder fazê-lo o tirou com fúria e o jogou sobre a mesa onde o tinha encontrado.
- Horace - disse, - me leve até mamãe. Não me encontro bem.
- Suponho que será melhor que volte a cumprir com meu dever - declarou tio George com um suspiro.
Um instante depois os três partiram, levando a vela com eles e deixando a porta entreaberta.
- Que livro era esse? - perguntou lorde Rannulf após uns momentos de silêncio.
- Não tenho a menor idéia - afirmou Judith. - Estava muito escuro para distinguir os títulos.
- Está segura de que a primeira ave que saiu da arca foi um corvo? Teria apostado que era uma pomba.
- Pois teria perdido - disse ela. - Sou a filha de um clérigo.
- Suponho - começou a dizer ele - que tudo isto era uma armadilha para obter que sir George Effingham acreditasse que tinha comprometido sem perdão a sua filha.
- Sim.
- Muito descuidado de minha parte – declarou - Esteve a ponto de funcionar. Acreditei que essa mucosa era estúpida e aborrecida, mas inofensiva.
- Mas Horace não é - assinalou ela. - E tia Louisa tampouco.
- Judith - aproximou-se dela, - salvou-me que uma desastrosa sentença pelo resta da vida. Como poderei agradecer isso
- Estamos em paz – respondeu - Você me salvou a semana passada no mirante e eu o salvei esta semana.
- Sim. -As mãos de Rannulf se encontravam sobre seus ombros, cálidas, firmes e conhecidas. - Judith...
Quando começara a utilizar seu nome de batismo? Tinha-o feito antes dessa noite? Judith cravou o olhar no intrincado laço do lenço que usava no pescoço, mas só durante uns instantes. O rosto do homem se interpôs no caminho antes de beijá-la.
Foi um beijo apaixonado, embora ele não afastasse as mãos de seus ombros e ela se limitou a aferrar-se às lapelas do casaco. Lorde Rannulf lhe separou os lábios e ela abriu a boca para lhe facilitar o acesso. Sentiu sua língua na boca, enchendo-a, possuindo-a, e a sugou para introduzi-la ainda mais.
Judith se sentia como um faminto que oferecessem um festim. Não podia saciar-se dele. Jamais poderia saciar-se dele. Percebeu o familiar aroma de sua colônia.
E em um dado momento, sua boca se separou dela e a contemplou à luz da lua.
- Retornemos ao baile – disse - antes que alguém faça um alvoroço por sua ausência. Obrigado, Judith. O tempo que falta para a última dança vai ser do mais tedioso.
Judith tentou não buscar outro sentido a essas palavras. Lorde Rannulf se sentia aliviado de ter escapado. Sentia-se agradecido. Recordava o tempo que passaram juntos quando a acreditava Claire Campbell, a atriz e experimente cortesã. Isso era tudo.
Judith dispôs de muito pouco tempo para reorganizar seus dispersos pensamentos e emoções. Talvez sua volta ao salão no braço de lorde Rannulf passasse inadvertido para a maioria das pessoas, mas não para tia Effingham, cuja expressão não pressagiava nada bom para sua sobrinha. Julianne tinha conseguido rodear-se de cavalheiros justo no momento em que a valsa chegava a seu fim e nesse momento não parava de rir e paquerar no centro de seu elenco de admiradores. Tio George tinha retornado junto ao grupo de cavalheiros de mais idade e estava imerso em uma conversação. De Horace não havia nem rastros.
- Mas onde foi, Rannulf? - perguntou lady Beamish quando seu neto acompanhou Judith ao lado da senhora Law. - Vi-o dançando a valsa e imediatamente tinha desaparecido.
- A senhorita Effingham descobriu de repente que perdeu seu bracelete – explicou - e a senhorita Law foi tão amável de ajudar-nos na busca. Por sorte, a encontramos justo no lugar onde a senhorita Effingham pensou que poderia tê-lo deixado.
A avó de Judith esboçou um plácido sorriso, mas os penetrantes olhos de lady Beamish se detiveram um instante em cada um deles. Claro, pensou Judith, a anciã fora a promotora da união entre seu neto e Julianne. Sem dúvida se sentiria decepcionada porque o cortejo não estivesse avançando mais depressa.
Justo nesse momento lorde Rannulf se afastou para convidar uma jovenzinha a dançar que, conforme recordava Judith, só o fez em uma ocasião durante toda a noite e o senhor Tanguay se aproximou dela para reclamar sua peça.
Judith sorriu e lhe dedicou toda sua atenção, embora fosse muito difícil quando seu coração seguia descontrolado por causa da tensão dos últimos quinze minutos.
Quando a música chegou a seu fim, Judith ria a gargalhadas. Tinha sido uma peça muito alegre, de passos e giros complicados. De qualquer modo, o senhor Tanguay não teve oportunidade de acompanhá-la até o lugar onde descansava sua avó, posto que Branwell apareceu frente a ela e a tomou pelo braço.
- Peço que nos desculpe, Tanguay - disse ao homem. - Preciso falar com minha irmã um minuto.
Judith o olhou com surpresa. Apesar de ter trocado olhares e sorrisos, e até uma piscada em uma ocasião durante o transcurso da noite, Bran estivera muito ocupado desfrutando da companhia das jovenzinhas para procurar sua irmã a fim de começar uma simples conversação. O sorriso seguia em seu lugar, mas havia certa rigidez em seus lábios. Estava inusualmente pálido e seus dedos se cravavam no braço de Judith de forma bastante dolorosa.
- Jude - disse uma vez que chegaram ao patamar da escada, justo à saída do salão de baile, e se assegurou que ninguém podia escutá-los, - só queria lhe informar de que parto. Agora. Esta noite.
- Do baile? - Olhou-o sem compreender.
- De Harewood. - Bran sorriu e inclinou a cabeça em direção a Beatrice Hardinge, que passou por eles no braço de um jovem desconhecido.
- De Harewood? - Judith estava mais do que desconcertada. - Esta noite?
- Effingham acaba de ter umas palavras comigo. Ao que parece, faz dois dias veio alguém mais exigindo a importância de uma conta insignificante. Effingham o pagou sem nem sequer me informar. Agora quer que lhe devolva o dinheiro junto com as trinta libras que lhe devo da viagem até aqui. - passou os dedos de uma mão pelo cabelo. - É claro que tenho a intenção de lhe devolver o dinheiro, mas agora mesmo não posso fazê-lo. Resolveu o assunto de um modo bastante desagradável e deixou cair uma série de comentários ofensivos, não só para minha pessoa, mas também para você. Ter-lhe-ia atiçado um bom murro no nariz ou inclusive o teria desafiado a um duelo, mas como ia fazer, Jude? Estou na casa de tio George na qualidade de convidado estamos rodeados de gente. Seria o cúmulo da má educação. Tenho que partir, é a única solução.
- Mas esta noite, Bran? - Tomou uma das mãos de seu irmão entre as suas. Sabia muito bem por que era tudo aquilo. Como se atrevia Horace a descarregar sua ira e sua frustração sobre Bran desse modo? - Por que não esperar que amanheça?
- Não posso – respondeu. - Tenho que ir agora. Assim que trocar de roupa. Há uma razão para fazê-lo.
- Mas em plena noite? Santo Deus, Bran! O que vai fazer?
- Não deve preocupar-se por mim - tranquilizou-a ele, afastando-se de suas mãos com evidente agitação Tenho... tenho um plano. Conseguirei uma fortuna em muito pouco tempo, prometo-lhe isso - Dedicou-lhe um pálido reflexo de seu antigo sorriso. - E depois devolverei a papai tudo o que gastou em mim nos últimos tempos e vocês voltarão a ter uma posição segura. Tenho que ir, Jude. Não posso me demorar mais.
- Deixa ao menos que o acompanhe até em cima - disse - e que me despeça quando se tiver trocado.
- Não, não. -Voltou a olhar a seu redor, claramente impaciente por partir. - Fique aqui, Jude. Quero escapulir sem que ninguém perceba. Devolverei- o dinheiro a Effingham logo que possa e depois me pagará de outro modo pelo que disse de minha irmã. - Inclinou a cabeça e lhe deu um beijo na face.
Judith o observou enquanto partia, preocupada e presa de uma horrível premonição. Era evidente que seu irmão devia uma enorme soma de dinheiro a um bom número de pessoas; pessoas entre as quais agora se encontrava Horace, a quem sem dúvidas deveria muito mais que trinta libras. Mesmo assim, Bran saía correndo a meia-noite, convencido de que ao menos tinha encontrado o modo de fazer em pouco tempo uma fortuna com a qual pudesse pagar todas as suas dívidas. A única coisa que ia conseguir era piorar ainda mais a situação.
E arruinar por completo sua família.
Judith retornou ao baile com a alma nos pés. Nem sequer a idéia de dançar a última peça com lorde Rannulf bastava para lhe levantar o ânimo.
De qualquer modo, sua desilusão ia ser muito maior em alguns minutos.
- Judith - disse sua avó enquanto pegava sua mão e lhe dava um apertão, - minha querida Sarah não se encontra muito bem. Há muita corrente com todas as janelas e as portas abertas, e para falar a verdade, o ruído é ensurdecedor. Possivelmente possa ir à busca de lorde Rannulf.
- Não há necessidade de formar tanto alvoroço, Gertrude rogou lady Beamish. - Sinto-me muito melhor desde que me abanou o rosto.
Entretanto, Judith percebeu num só olhar de que a já pálida tez da anciã tinha adquirido um tom cinzento e de que suas costas pareciam um pouco encurvadas em lugar de mostrar sua característica rigidez.
- Está cansada, senhora - disse-lhe, - e não é de estranhar. Já é meia-noite. Agora mesmo vou à busca de lorde Rannulf.
Não demorou. Chegou assim que Judith começou a procurá-lo entre os numerosos grupos de convidados que iam de um lado a outro durante o descanso. Inclinou-se sobre a poltrona de sua avó e encerrou uma das mãos da anciã entre as suas.
- Está cansada, vovó? - perguntou-lhe com tanta ternura no rosto e na voz que Judith sentiu que o coração dava um salto. - Devo confessar que eu também estou. Ordenarei que tragam a carruagem imediatamente.
- Tolices! -exclamou lady Beamish. - Jamais abandonei um baile tão cedo. Além disso, ainda faltam duas peças e o esperam duas jovens com as quais se comprometeu a dançar.
- Não tinha convidado a ninguém para a seguinte peça e a senhorita Law ia ser meu par para a última. Estou seguro de que aceitará minhas desculpas.
- É claro - assegurou-lhes.
Lady Beamish lhe dirigiu um olhar penetrante apesar de seu evidente cansaço.
- Obrigado, senhorita Law - disse-lhe - É muito amável e compassiva. Está bem, Rannulf, pode ordenar que tragam a carruagem. Gertrude, querida, vou ter que lhe abandonar.
A avó de Judith riu baixo.
- Não sei como fui capaz de manter os olhos abertos durante a última meia hora -disse-lhe. - Quando chegar o seguinte descanso direi a Judith que me acompanhe a meu quarto se tiver a amabilidade. Depois poderá retornar para dançar as últimas peças se o desejar. Foi uma noite muito agradável, não é certo?
- Senhorita Law - disse lorde Rannulf, - importar-se-ia de me ajudar a procurar um criado que leve uma mensagem aos estábulos?
Para alguém de sua presença física e posição social não era um problema encontrar um criado e chamar sua atenção. A mensagem foi enviada com presteza. Judith aproveitou a oportunidade para pedir ao mesmo criado que enviasse Tillie aos aposentos de sua avó. Entretanto, lorde Rannulf tinha a intenção de falar a sós com ela. Detiveram-se a saída do salão, quase no lugar exato onde estivera falando com seu irmão pouco antes. Uniu as mãos atrás das costas e se inclinou um pouco para ela.
- Não encontro palavras para descrever o muito que sinto não poder dançar a última peça - disse-lhe.
- Mas não somos meninos - replicou Judith com um sorriso - para fazer uma manha cada vez que nos privam de uma diversão com a qual já contávamos.
-Pode ser que você seja uma santa, Judith - disse-lhe, entrecerrando os olhos com sua antiga expressão zombadora, - mas eu não.
- Agora mesmo seria capaz de me atirar ao chão no meio do salão de baile, chutar o piso, golpear o ar com os punhos e soltar uma enxurrada de imprecações malsoantes.
Judith prorrompeu em alegres gargalhadas enquanto ele inclinava a cabeça e franzia os lábios.
- Nasceu para rir e ser feliz - disse-lhe - Posso vê-la amanhã pela manhã?
Para que? Pensou Judith.
- Estou segura de que todos estarão encantados - respondeu.
Ele a olhou sem pestanejar, com esse brilho zombador ainda presente nas profundidades de seus olhos.
- Está sendo deliberadamente obtusa - disse-lhe. - Perguntei se posso ver você, Judith.
Era evidente que só podia referir-se a uma coisa. Entretanto, já o tinha pedido antes -de um modo que fora bastante ofensivo- e lhe tinha respondido com uma negativa cortante. Embora isso por volta de duas semanas. Muitas coisas tinham acontecido após. Muitas coisas tinham mudado, embora talvez só fosse sua opinião sobre ele. Nem ele nem ela poderiam ter mudado tanto... Ela seguia sendo a filha empobrecida de um clérigo rural que, embora jamais tivesse sido rico, tinha visto reduzida sua fortuna; enquanto que ele ainda era o filho de um duque e o segundo na linha de sucessão ao título.
- Se for esse seu desejo... - Judith descobriu que tinha respondido em um sussurro, embora ele a tenha escutado.
Lorde Rannulf lhe fez uma profunda reverência e ambos retornaram ao salão, onde o homem ajudou sua avó a ficar em pé, entrelaçou um dos braços da anciã com o seu em um gesto protetor e a guiou em direção à tia Effingham e as enormes plumas se agitaram com rígida elegância- antes de abandonar o salão.
Judith se sentou na poltrona que acabava de abandonar lady Beamish e se perguntou se bastaria o que restava da noite para assimilar tudo o que tinha acontecido durante o baile.
-Não se preocupe, Judith, carinho - disse-lhe sua avó enquanto movia uma gordinha mão para cobrir as suas, unidas sobre o regaço, e lhe dava uns tapinhas. - Não tenho nenhuma intenção de me retirar do baile até que a última nota musical se desvaneça. Mas não queria que Sarah pensasse que estava me abandonando. Temo que esteja bastante doente há algum tempo, embora jamais fale de sua saúde.
E assim, depois de tudo Judith dançou a última peça - com lorde Braithwaite de novo, - embora tivesse preferido retirar-se a seu quarto. Enquanto se via obrigada a sorrir e a responder a ligeira paquera de lorde Braithwaite, em sua mente se mesclavam os incômodos pensamentos sobre Branwell com outros muito mais eufóricos e apreensivos a respeito da visita que teria lugar na manhã seguinte.
No campo era estranho que qualquer baile que se apreciasse durasse até a uma da madrugada. Muitos dos convidados que não pernoitavam na mansão partiram antes que as últimas peças acabassem. Nenhum se demorou uma vez que concluíram. Como tampouco o fez a orquestra. Só a família, os convidados hospedados na casa e alguns criados seguiam no salão quando se escutou uma pequena briga na entrada.
A voz de Tillie se escutava a perfeição, muito mais alta que o tom tranquilo e altivo do mordomo.
- Mas tenho que falar com ela agora mesmo - estava dizendo a criada, claramente incomodada por algo. - Já esperei muito. Talvez seja muito tarde.
O mordomo começou a discutir, mas a avó de Judith, que acabava de ficar em pé e estava apoiada sobre o braço de sua neta, olhou para a porta com expressão surpreendida. -Tillie? -chamou-a - O que aconteceu? Entra aqui agora mesmo.
Todo mundo deixou de falar para escutar quando a criada entrou com presteza na sala, retorcendo as mãos e com semblante mudado.
- São suas jóias, senhora - choramingou.
- O que aconteceu a elas? - perguntou tio George, coisa estranha nele.
- Desapareceram! - informou Tillie com um dramatismo que qualquer heroína trágica teria invejado. - Todas elas. Quando entrei no quarto de vestir, o porta-jóias estava aberto de boca para baixo no chão e não restava nenhuma só jóia salvo as que usa, senhora.
- Tolices, Tillie - disse Horace, aproximando-se de seu pai. - Suponho que o porta-jóias caiu antes, com a pressa de que vovó estivesse pronta a tempo para o baile, as guardou em uma gaveta para colocá-las em seu lugar mais tarde. Seguro que esqueceu.
Tillie jogou mão de toda sua dignidade.
- Não me teria ocorrido fazer tal coisa, senhor – replicou - Não teria jogado o porta-jóias e se tivesse caído, teria ficado no quarto de vestir para recolher todas as jóias e colocá-las em seu lugar.
Enquanto, sua senhora se aferrava a sua neta com tanta força que os anéis se cravavam na mão de Judith de forma dolorosa. - Desapareceram, Tillie? - perguntou- Roubadas? Dava a sensação de que todo mundo estivesse esperando que se pronunciasse essa palavra. Elevou-se um murmúrio que foi crescendo enquanto se fazia a comoção.
- Nesta casa não há ladrões - assegurou tia Effingham com voz cortante. - Que barbaridade! Deve procurar melhor, Tillie. Têm que estar em alguma parte.
- Procurei por todos os lados, senhora - informou Tillie. - Três vezes.
- Esta noite vieram muitas pessoas estranhas - disse a senhora Hardinge- acompanhadas de seus criados.
- Todos nós somos estranhos - recordou o senhor Webster.
- É impossível que suspeitemos de qualquer um de nossos convidados - replicou tio George.
- Alguém roubou as jóias de mamãe - recordou tia Louisa. - É claro que não desapareceram sozinhas.
- Mas quem ia ter um motivo para fazer tal coisa? - perguntou à anciã.
Branwell, pensou Judith, que se sentiu envergonhada imediatamente. Bran jamais roubaria. Ou sim? A sua própria avó? Poderia essa ser a razão que justificasse seu ato como um empréstimo em lugar de um roubo? Quem mais poderia tê-lo feito? Bran havia se sentido esquecido durante a noite. Tinha abandonado Harewood no meio do baile, no meio da noite. Parecia muito nervoso. Não tinha querido que o acompanhasse ao andar de cima nem que se despedisse. Branwell. Tinha sido Branwell. Dentro de pouco todo mundo perceberia. Judith se sentiu enjoada e teve que fazer um grande esforço para não desmaiar.
- Quem está precisando de dinheiro? - perguntou Horace.
A pergunta flutuou no ar como se tratasse de uma obscenidade. Ninguém respondeu.
- E quem teve oportunidade de fazê-lo? – seguiu - Quem conhecia o lugar onde vovó guardava suas jóias e quem seria bastante audaz para entrar em seu quarto com o fim de roubá-las?
Branwell. Judith tinha a impressão de que o nome de seu irmão ressonava sobre o pesado silêncio.
- Não pôde ser um estranho - seguiu Horace. - Não a menos que seja um homem muito resoluto ou que tenha um cúmplice na casa. Como ia saber qual era o quarto correto? Como ia sair triunfante sem que ninguém o detectasse? Como ia conseguir que ninguém sentisse sua falta no salão? Houve alguém que desaparecesse do salão embora fosse somente um momento?
Branwell.
Todo mundo pareceu falar em uníssono depois da pergunta. Todo mundo tinha uma opinião, uma sugestão ou um comentário assombrado sobre o roubo. Judith inclinou a cabeça para sua avó.
-Quer se sentar, vovó? – perguntou. - Está tremendo.
Ambas tomaram assento e Judith começou a lhe esfregar as mãos. – As encontraremos – disse - Não se preocupe.
Mas que distância teria percorrido seu irmão a essa altura? E aonde se dirigia? O que faria com as jóias? As empenhar? As vender? Era certo que não as venderia. Certo que ainda ficava uma fresta de honra em sua consciência. Seu irmão se encarregaria de que as jóias fossem devolvidas. Mas como conseguiria redimir-se?
- Não é tanto pelo valor das jóias - disse-lhe sua avó - mas pelo fato de que foi seu avô quem as me deu de presente. Quem pode me odiar deste modo, Judith? Um ladrão entrou em meu quarto. Como vou voltar ali agora?
Sua voz soava trêmula e fatigante. Murcha e derrotada.
Tio George e Horace tomaram o controle da situação.
Enviaram o mordomo em busca dos criados para interrogá-los. Judith queria levar sua avó ao andar de cima, mesmo que fosse ao seu próprio quarto, onde a anciã poderia estar tranquila e Tillie poderia lhe levar uma taça de chá e todo o necessário para que trocasse de roupa. Entretanto, sua avó não consentiu mover-se.
Foi um processo longo e tedioso que não levaria a nenhum lugar, tal e como Judith compreendeu durante há seguinte meia hora. O que lhe era mais surpreendente era o fato de que ninguém tivesse sentido ainda falta de Branwell. Tio George perguntou se algum criado estivera no segundo andar, na ala dos quartos, no começo do baile. Três deles assentiram, incluindo a criada com a qual ela deu um encontrão a caminho de seu quarto. Todos tinham boas razões para estar ali e todos estavam trabalhando em Harewood tempo suficiente para contar com a confiança de seus senhores.
- E ninguém mais subiu? - inquiriu tio George com um suspiro.
- Se me permite, senhor - disse a criada, - a senhorita Law esteve lá em cima.
Todos os olhos se viraram em direção a Judith, que sentiu que se ruborizava.
- Subi para trocar os brincos da vovó – explicou. - Os que usava antes a machucavam. Mas o porta-jóias estava em seu lugar quando estive ali e as jóias também. Apanhei os brincos, soltei os que levava e retornei aqui. O roubo deve ter sido depois. Foi... me deixem pensar. Foi no primeiro descanso do baile.
- Mas você saía de seu quarto, senhorita - disse a criada. - Saiu dali como um tufão e demos um encontrão. Recorda?
- Sim - respondeu Judith. - Os brincos que vovó queria estavam em minha bolsa de mão desde a tarde que fomos a Grandmaison.
- Então deve ser quando retornava ao salão quando esteve a ponto de tropeçar comigo, prima - interveio Horace. - Tinha a respiração entrecortada. Parecia muito assustada. Mas sim, posso confirmar que foi no primeiro descanso.
- Judith, carinho. - Sua avó estava à beira das lágrimas. - Enviei-a ali e poderia tê-la enviado à morte. E se tivesse encontrado o ladrão? Poderia tê-la golpeado na cabeça.
- Não aconteceu nada, vovó - tranquilizou-a Judith. Oxalá tivesse se encontrado com Bran. Poderia ter evitado todo esse pesadelo.
-Bom - disse Horace com voz resoluta, - teremos que começar a procurar e já.
- Que desagradável - comentou tio George. - Não podemos revistar os aposentos dos convidados e não acredito que ao ladrão tenha ocorrido esconder as jóias em qualquer outro aposento da casa.
- Bom, eu não tenho inconveniente em que revistem meus aposentos - afirmou Horace. - De fato, pai, insisto que seja o primeiro.
- Se me permite o atrevimento, sir George - disse o mordomo, que acabava de dar um passo à frente, - permito de forma voluntária que se reviste meu quarto e os de toda a criadagem, a menos que alguém tenha uma objeção. Se alguém a tiver, que diga agora.
Os criados guardaram silêncio. Depois de tudo, quem ia objetar quando ao fazê-lo se transformaria no centro de todas as suspeitas?
Lorde Braithwaite limpou a garganta.
- Pode revistar meus aposentos, senhor - disse-lhe.
O resto dos convidados expressou seu acordo com um murmúrio generalizado, embora Judith supusesse que a maioria o fez a contra gosto. Que revistassem os aposentos seria uma espécie de violação que os faria sentir, embora fosse por uns instantes, que eram suspeitos do roubo. Mas manteve a boca fechada.
- Quer ir a seus aposentos, vovó? - perguntou a anciã uma vez que tio George, Horace, o mordomo e Tillie abandonaram o salão. - Ou os meus se preferir?
- Não. -Sua avó parecia mais abatida do que Judith jamais a tinha visto. - Ficarei aqui. Espero que não encontrem as jóias. Não é absurdo? Prefiro não voltar as ver jamais, a saber que alguém desta casa as roubou. Por que não me pediu quem quer que as tenha levado? Tenho muitas. Teria dado alguma a qualquer parente, amigo ou criado que estivesse em apuros. Mas suponho que a pessoa é muito orgulhosa para pedir ajuda, não é?
Julianne soluçava entre os braços de sua mãe, sem perder em nenhum momento um ápice de sua beleza.
- A noite acabou sendo odiosa - choramingou. - Aborreci-me cada minuto da noite e estou segura de que todos a proclamarão desastrosa e jamais voltarão a aceitar nosso convite.
A criadagem seguia guardando silêncio. Os convidados tinham formado pequenos grupos e conversavam em voz baixa, claramente envergonhados.
Transcorreu outra meia hora antes que o grupo que terminava a revista retornasse, todos eles com expressões muito sérias.
- Encontramos isto - elevou-se a voz de tio George sobre o silêncio que acabava de cair sobre o salão de baile. - Tillie a reconheceu. Estava no porta-jóias de minha sogra - mostrou a bolsa de veludo cor borgonha que normalmente continha as jóias mais valiosas. Era óbvio que estava vazia. - E isto, que também formava parte de suas jóias. - Entre o polegar e o indicador da outra mão sustentava um solitário brinco de diamantes.
Os apenas audíveis murmúrios cessaram imediatamente. - Alguém tem algo que dizer a respeito? - perguntou tio George. - Ambos os objetos se encontraram no mesmo aposento.
De Branwell, pensou Judith, o que lhe revolveu o estomago.
Ao que parece ninguém desejava pronunciar-se.
- Judith - disse seu tio com voz baixa e carente de toda emoção, - a bolsa estava no fundo de uma das gavetas de sua penteadeira. O brinco estava no chão, quase oculto atrás da porta.
Judith teve a sensação de que contemplava seu tio do fundo de um túnel muito extenso e escuro. Sentiu que sua mente até se esforçava por decifrar os sons que tinham saído dos lábios do tio George, tentando convertê-los em palavras.
- Onde escondeu o resto, Judith? - perguntou-lhe no mesmo tom de voz - Não está em seu quarto.
- O que? - Não sabia muito bem como tinha conseguido pronunciar algo. Nem sequer estava segura de que seus lábios tivessem dado forma a essa palavra.
- Não tem sentido fingir que tudo deve ser um equívoco -prosseguiu seu tio - Judith, roubou jóias muito valiosas, pertencentes a sua própria avó.
- Moça ingrata e malvada! -gritou tia Effingham com voz estridente. - depois de tudo o que tenho feito por você e sua desprezível família. Será castigada por isso, escuta bem o que digo. Alguns delinquentes são pendurados por muito menos.
- Deveríamos ordenar que trouxessem um oficial - interveio Horace. - Peço desculpas a todos os outros por estar lavando em público os trapos sujos da família. Se soubesse que se tratava de Judith teríamos mantido em silêncio para poder investigar quando todo mundo se retirasse para dormir. Mas como íamos imaginar?
Judith estava em pé sem ser consciente de haver-se levantado - Eu não roubei nada - afirmou.
-É claro que não. É claro que não o fez - disse sua avó, que voltou a segurar sua mão. - Está claro que isto é um engano, George. Judith é a última pessoa que me roubaria algo.
- E contudo -acrescentou Julianne com evidente desprezo. - não tem nem um xelim, vovó. Não é certo, Judith?
- E seu irmão está até o pescoço de dívidas - assinalou Horace. - Devo confessar que suspeitei dele assim que Tillie nos informou de sua descoberta. Alguém mais percebeu que desapareceu no meio do baile? Temo que foi porque lhe lembrei certa dívida sem importância que devia resolver comigo. Ocorreu-me que podia ter feito uma estupidez, embora me aborrecesse o fato de expressar minhas suspeitas em voz alta. Mas ao que parece foi Judith.
- Ou Judith em conspiração com Branwell - conjeturou tia Effingham. - É isso, moça perversa? É essa a razão de que as jóias não estejam em seu quarto? Seu irmão fugiu com elas?
- Não, não e não! - gritou sua avó - Judith não fez nada errado. Essa bolsa... Eu... eu a dei a Judith para que guardasse nela algumas de suas coisas. E o brinco. Judith está acostumada a levar porque me machucam, igual aos que uso agora mesmo. Deve ter caído quando os levava de volta e nenhuma das duas nos demos conta.
- Isso não há quem acredite, mãe - replicou tio George com o mesmo tom de voz Acredito que todos deveríamos ir para cama e tentar dormir. Encarregar-nos-emos de Judith pela manhã. Ninguém terá que suportar a vergonha de ter que vê-la de novo. Suponho que a enviaremos a sua casa para que seu pai diga o que fazer. Enquanto isso, devemos ir atrás de Branwell.
- Pai - disse Horace, - sigo acreditando que deveríamos chamar o oficial e...
- Não enviaremos Judith a uma cela para provocar um sórdido escândalo que daria que falar por todo o condado - disse tio George com firmeza.
Judith levou ambas as mãos à boca. Aquilo era muito horrível até para desejar que fosse um pesadelo em que houvesse opção de despertar.
- Espero de todo coração que meu irmão lhe de umas chicotadas, Judith - disse tia Effingham, - tal e como deveria tem feito faz muitos anos. Escreverei para sugerir-lhe. E espero que a encerre em seu quarto esta noite, Effingham, de modo que não possa nos roubar nenhuma outra coisa enquanto dormimos.
- Não nos ponhamos melodramáticos - replicou seu marido. - Embora toda a situação tenha uma desagradável semelhança com o pior dos melodramas. Judith, vá para seu quarto e fique ali até que a mande chamar pela manhã.
- Vovó. - Judith se virou para a anciã com as mãos estendidas. Entretanto, esta tinha as mãos unidas com força sobre o regaço e nem sequer ergueu a vista.
- Branwell está endividado - disse em voz baixa, de maneira que só Judith pudesse escutá-la - e não me disse isso. Ter-lhe-ia dado qualquer uma de minhas jóias se me tivesse pedido ou se você me tivesse pedido. Acaso não se deu conta?
A avó acreditava. Acreditava que ela tinha conspirado com Bran para lhe roubar as jóias. Foi o pior momento da noite. - Eu não o fiz, vovó - sussurrou Judith enquanto contemplava como uma lágrima deslizava pelas mãos da anciã.
Jamais soube como saiu do salão de baile e subiu a seu quarto. Uma vez nele, ficou um longo momento apoiada contra a porta, aferrando o trinco que havia a suas costas como se a força de seu corpo fosse à única coisa a se interpor entre ela e o universo que acabava de desabar sobre sua cabeça.
Certamente que era muito cedo para fazer uma visita, pensou Rannulf enquanto percorria a cavalo o longo caminho de acesso a Harewood Grange, sobretudo na manhã posterior a um baile. Entretanto, esteve andando por seu quarto como um urso enjaulado desde o amanhecer e não fora capaz de matar o tempo nem sequer quando foi ao térreo, apesar de haver cartas para responder e outro registro no livro de contabilidade que tinha que estudar.
Assim, decidiu sair com a esperança de encontrar ao menos sir George Effingham de pé e com o convencimento de que Judith não estaria ainda na cama. Seria para ela tão difícil como a ele conciliar o sono? Bem, certo que a moça não teria interpretado mal suas intenções a noite anterior. Quais seriam seus sentimentos para ele? Que resposta teria pensado lhe dar?
Se fosse outra negativa, teria que aceitá-la.
Era uma idéia deprimente, embora se aferrasse à esperança de que esse impulso magnético que tinha sentido durante o baile não tivesse sido produto de sua imaginação. É óbvio que não o tinha imaginado. Entretanto, seu coração pulsava com uma incomum ansiedade enquanto entrava no pátio dos estábulos, deixava Bucéfalo aos cuidados de um cavalariço e se dirigia a casa.
- Pergunte a sir George se posso falar em particular com ele disse ao criado que abriu a porta.
Um minuto mais tarde o fizeram passar à biblioteca, onde a noite anterior estivera a ponto de encontrar-se com um horrível destino. Sir George estava sentado atrás de uma enorme mesa de carvalho, com aspecto mal-humorado. Mas claro, esse era seu aspecto habitual, refletiu Rannulf. Era a viva imagem de um homem insatisfeito com seu círculo familiar e que tampouco se sentia muito contente consigo mesmo.
- Bom dia, senhor - saudou Rannulf. - Espero que todos tenham descansado bem depois da alegre noitada.
Sir George resmungou:
- Saiu cedo, Bedwyn. Não estou seguro de que Julianne ou o resto se levantaram. Mas queria falar comigo, não?
- Será somente um momento, senhor – respondeu - Eu gostaria que me concedesse permissão para falar em particular com sua sobrinha.
- Com Judith? - Sir George franziu o cenho enquanto estendia a mão para apanhar uma pluma com a qual começou a brincar.
- Acreditei que talvez pudesse dar um passeio com ela - prosseguiu Rannulf. - Com sua permissão, é claro, e sempre que ela aceite.
Sir George soltou a pluma.
- Chegou muito tarde - disse o homem. - Partiu.
- Como partiu? - Rannulf sabia que a família tinha intenção de mandá-la para casa, mas de modo tão perverso e rápido na manhã posterior a um baile? Dever-se-ia talvez, por ter frustrado os planos de matrimônio de sua prima?
Sir George deixou escapar um fundo suspiro, se recostou na poltrona e indicou com um gesto a seu convidado que tomasse assento frente a ele.
-Suponho que será impossível ocultar todos os fatos a você ou a lady Beamish -disse, - embora esperasse, e ainda tinha a esperança, de que os detalhe mais sórdidos não cheguem aos ouvidos de outros vizinhos. Ontem à noite nos apresentou uma situação muito desagradável, Bedwyn. As jóias de minha sogra foram roubadas no transcurso da noite e com a revista que fizemos encontramos provas irrefutáveis e inequívocas no quarto de Judith. Também foi vista abandonando seu quarto de forma apressada durante o baile, quando não havia motivo algum para que estivesse ali; pouco depois disso, Branwell Law desapareceu. Abandonou Harewood na metade do baile sem despedir-se de ninguém.
Rannulf permaneceu na cadeira, imóvel.
- Ordenei a Judith que permanecesse em seu quarto até esta manhã - continuou o homem, - embora me negasse a fechar a porta com chave ou a deixar alguém montando guarda. Pareceu-me um tanto degradante para a família tratá-la como uma prisioneira. Minha intenção era enviá-la para casa junto com uma escolta em minha própria carruagem, com uma carta dirigida a seu pai. Esta carta. - Deu um tapa numa folha de papel dobrada e selada que se encontrava sobre a mesa. - Mas quando esta manhã me dirigi a seu quarto acompanhado por uma criada e chamei a sua porta, não obtive resposta. O quarto estava vazio. A maioria de seus pertences, se não todos, continuam ali, mas não há rastros dela. Fugiu.
- Acredita que foi para casa? - perguntou Rannulf, rompendo o pesado silêncio.
- Duvido - respondeu sir George. - Meu cunhado é um homem rigoroso. Não é o tipo de pessoa que acudiria uma mulher em semelhantes circunstâncias de forma voluntária. E, além disso, seu irmão não estará lá, não acha? Suponho que terão planejado se encontrar em algum lugar e dividir o roubo. Essas jóias devem valer uma fortuna considerável, embora minha sogra jamais me permitisse guardar as mais valiosas em um lugar seguro.
- O que pensa fazer agora? - perguntou Rannulf.
- Oxalá pudesse me manter a margem - respondeu o homem com evidente franqueza.- São os sobrinhos de lady Effingham e os netos de sua mãe. Mas ao menos devemos recuperar as jóias. Imagino que agora que fugiram e têm que ser perseguidos é muito tarde para lutar com o problema de um modo discreto. Suponho que terão que enfrentar à justiça e passar um tempo no cárcere. Não é uma perspectiva aduladora.
- Os perseguirão? - perguntou Rannulf. Sir George suspirou de novo.
- Dirigiremos o assunto com discrição o quanto seja possível - respondeu, - embora com uma casa a transbordar de criados e convidados seria como tentar refrear o vento. Meu filho irá atrás deles manhã pela manhã, assim que nossos convidados partam. Acha, e devo estar de acordo com ele, que seu único destino possível é Londres, posto que levam só as jóias e nada de dinheiro e não é algo do que possam desprender-se com facilidade. Os perseguirá e os deterá ele mesmo se tiver sorte... se todos tivermos sorte. O mais provável é que tenha que solicitar os serviços dos agentes de Bow Street.
Permaneceram sentados em silêncio durante um breve intervalo de tempo antes que Rannulf ficasse em pé de repente. - Não o entreterei mais, senhor - disse- Pode estar seguro de que ninguém, salvo minha avó, saberá nada disto através de mim.
-Isso lhe honra. - Sir George ficou em pé. - É um assumo do mais desagradável.
Rannulf andou o caminho de acesso à propriedade no lombo de seu cavalo com mais rapidez que quando chegou. Deveria ter suposto que ia acontecer algo assim. Ele mesmo estivera a ponto de ver-se comprometido com a senhorita Effingham apesar de que não era o principal inimigo no que concernia a Horace Effingham. Sua maior humilhação tinha provindo das mãos de Judith. Sua intenção seria que o castigo recaísse sobre ela.
E tinha escolhido um castigo bastante desagradável que sem dúvida não faria mais que piorar.
Sua avó se encontrava em seu salão privado, escrevendo uma carta. A anciã lhe sorriu e deixou a pluma de um lado quando Rannulf entrou na sala depois de pedir permissão.
- Que maravilhoso é ver que o sol brilha de novo - comentou-lhe. - Eleva os ânimos, não lhe parece?
- Vovó. - Rannulf cruzou a distância que os separava e tomou uma das mãos da anciã entre as suas. - Devo deixá-la por alguns dias. Talvez um pouco mais.
- Ah! - Lady Beamish não perdeu seu sorriso, mas seu olhar se tornou menos brilhante - ou se, é claro, sente-se inquieto. Entendo-o.
Rannulf levou a mão de sua avó aos lábios. - Alguém roubou as jóias da senhora Law ontem à noite durante o baile - explicou - e a culpa recai inteiramente sobre Judith Law. Encontraram provas em seu quarto.
- Não, Rannulf! –exclamou. - Não pode ser.
- Fugiu em algum momento da noite - prosseguiu, - o que consegue, em minha opinião, que a acusação tenha mais peso.
A anciã o olhou sem piscar.
- Jamais acreditaria algo semelhante da senhorita Law - disse-lhe. - Mas pobre Gertrude. Essas jóias tinham um enorme valor sentimental para ela.
- Eu tampouco acredito que Judith o tenha feito - disse Rannulf. - Vou a sua procura.
- Judith - repetiu sua avó - percebeu que é «Judith» para você, Rannulf, não?
- Fui esta manhã até Harewood para lhe propor matrimônio - respondeu.
- Bom. - Sua voz tinha recuperado sua costumeira vivacidade. - Será melhor que não se atrase mais.
Quinze minutos mais tarde, lady Beamish se encontrava no terraço, ereta como uma vela e sem necessidade de apoiar-se em nenhum lugar, para se despedir de seu neto enquanto este abandonava os estábulos no lombo de seu cavalo.
Sem dúvida Judith teria se assustado muito ao ter permitido que sua mente analisasse a natureza do apuro no qual se encontrava. Estava sozinha sem mais posses que uma bolsa com seus pertences mais imprescindíveis. Ia a caminho de Londres, onde esperava chegar depois de uma caminhada de uma semana ou possivelmente duas. Na realidade não tinha a menor idéia de quanto tempo levaria. Não tinha dinheiro para comprar uma passagem em uma diligência nem para passar a noite em uma estalagem nem para conseguir comida. Nem sequer sabia como ia encontrar Branwell quando chegasse a Londres -se é que chegaria-, nem tampouco se seria muito tarde para recuperar as jóias e devolver a sua avó.
Por agora, tinha a certeza de que a perseguiriam. Logo apareceria algum homem - tio George ou um oficial ou, o que era pior, Horace- cavalgando atrás dela para levá-la arrastada ao cárcere. Depois de ter fugido de Harewood não teria a opção de que a enviassem de volta para casa. De qualquer modo, não estava muito certa de que esse fosse um destino melhor que o cárcere. Como ia enfrentar seu pai quando era impossível demonstrar sua inocência e ninguém podia demonstrar tampouco à de Bran?
Não, foi à simples perspectiva de enfrentar a horrível desgraça de retornar para casa e ver como Bran caía do pedestal que sempre ocupou o que a tinha convencido pouco antes do amanhecer de fugir a pé enquanto ainda tivesse a oportunidade. A facilidade com que conseguiu foi surpreendente. Tinha esperado encontrar-se com alguém montando guarda em sua porta ou ao menos no vestíbulo do térreo.
Negava-se a deixar se arrastar pelo pânico. Depois de tudo, do que ia servir-lhe? Avançava com dificuldade pelo caminho nessa tarde que era mais calorosa no momento, concentrada em mover um pé depois do outro e em viver o presente conforme se apresentasse. Embora fosse muito mais fácil pensar que fazer. Pela manhã cedo tinha viajado durante três ou quatro quilômetros na carreta de um granjeiro que fora bastante amável para compartilhar com ela uma parte de pão duro. Depois tinha bebido água em um pequeno arroio. Mas mesmo assim, seu estômago começava a grunhir pela fome e se sentia um pouco enjoada. Doíam-lhe os pés e estava certa de que tinha criado outra bolha. A bolsa que transportava parecia pesar uma tonelada.
Era difícil não ceder à autocompaixão no melhor dos casos. E ao pânico mais absoluto no pior.
O medo lhe provocou um calafrio nas costas quando escutou o som dos cascos de um cavalo atrás dela. Tratava-se de um só cavalo, pensou, não de uma carruagem. Já tinha acontecido várias vezes durante o dia, mas tinha interrompido sua marcha para esconder-se atrás dos arbustos até que o caminho ficava livre de novo. Judith se aferrou à esperança de sentir-se aliviada ao ver passar um cavalo estranho montado por um cavaleiro desconhecido.
Entretanto, esse cavalo não passou longe. Diminuiu o passo quando chegou junto dela -Judith rogou que fosse coisa de sua imaginação- e trotou durante um instante justo a suas costas. Não pensava olhar, embora se preparasse para qualquer coisa. Um chicote? Correntes? Um corpo humano que se lançava sobre ela e a jogava no chão? Escutava os ensurdecedores batimentos de seu coração nos ouvidos.
- Está dando um passeio? -perguntou-lhe uma voz familiar. - Ou se dirige a algum lugar?
Judith se virou com rapidez e ergueu a vista em direção a lorde Rannulf Bedwyn, que parecia enorme e um tanto ameaçador no lombo de seu cavalo. Deteve sua montaria e a estava olhando com seriedade apesar do tom ligeiro de suas palavras.
- Não é assunto seu, lorde Rannulf – respondeu - Pode seguir seu caminho.
Mas aonde ia esse homem? Retornava para casa?
- Não se apresentou à entrevista que tínhamos esta manhã - disse-lhe, - assim que me vi obrigado a segui-la a cavalo.
A entrevista! Tinha-a esquecido por completo.
- Não me diga que esqueceu - acrescentou como se acabasse de lhe ler a mente. - Isso seria muito humilhante, sabe?
- Talvez não lhe tenham dito... - começou Judith.
- Disseram-me sim.
- Bom - seguiu ao perceber que o homem não pensava dizer nada mais, - nesse caso pode prosseguir seu caminho ou retornar, lorde Rannulf, o que mais lhe convenha. Não terá nenhum desejo de relacionar-se com uma ladra.
- Isso é o que é? - perguntou ele.
Escutar essa pergunta de seus lábios resultou terrivelmente doloroso para Judith.
- As provas eram irrefutáveis - respondeu.
- Sim, sei - replicou ele - Não obstante, é uma ladra da mais inepta, Judith. Não deveria ter deixado provas em seu quarto sabendo que cedo ou tarde acabariam encontrando-a.
Judith ainda não podia entender por que Bran tinha escondido a bolsa em seu quarto. O brinco compreendia. Aterrorizado pela pressa, deve tê-lo deixado cair sem dar-se conta. O chão estava atapetado. Era impossível escutar o tinido do brinco. Mas a bolsa... A única explicação que fora capaz de encontrar era que seu irmão sabia que suspeitariam dele num primeiro momento e deu por feito que não revistariam seu quarto. Tinha escondido a bolsa em sua penteadeira, supunha, como prova particular de sua culpa e como garantia de que devolveria seu conteúdo tão rápido quanto fosse possível era uma explicação muito satisfatória... mas não lhe ocorria outra coisa.
- Não sou uma ladra – corrigiu - Não roubei nada.
- Eu sei.
Sabia? Confiava nela? Ninguém o fez e era provável que ninguém o fizesse.
- Aonde vai? - perguntou lorde Rannulf. Judith apertou os lábios e o olhou nos olhos.
- Suponho que a Londres - acrescentou ele. - Acho que é um passeio muito agradável.
- Não é de sua incumbência - replicou Judith. - Volte para Grandmaison, lorde Rannulf.
Não obstante, o homem se inclinou para diante na sela e estendeu uma mão para ela. Judith recordou com claridade outra ocasião idêntica a essa e a primeira impressão que lhe causou esse homem: grande, forte, de compleição bronzeada, de olhos azuis e nariz proeminente, com uma juba loira excessivamente longa, absolutamente bonito, mas sim possuidor de uma perturbadora atração. Nesse momento era só Rannulf e pela primeira vez desde que amanheceu sentiu desejo de tornar a chorar.
- Me dê à mão e apóia o pé em minha bota - disse-lhe. Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
- Sabe quanto demoraria para chegar a Londres andando? - perguntou-lhe.
- Não farei todo o trajeto caminhando - respondeu Judith. - E como sabe que Londres é meu destino?
- Tem dinheiro?
Ela voltou a apertar os lábios.
- Levá-la-ei a Londres, Judith - disse-lhe. - E a ajudarei a encontrar seu irmão.
- Como sabe que...?
- Me dê à mão - ordenou-lhe.
Judith se sentiu derrotada e, ao mesmo tempo e por estranho que parecesse, reconfortada por sua enorme presença, pelo fato de que soubesse o que tinha acontecido e por sua insistência em que cavalgasse com ele. Fez o que lhe ordenava e imediatamente voltou a encontrar-se sentada na parte dianteira de sua sela de montar, a salvo entre seus braços e suas pernas.
Como desejava que o tempo retrocedesse para poder reviver a aventura que os unira três semanas atrás e mudar os acontecimentos posteriores.
- O que pensa fazer quando o encontrar? - perguntou-lhe. - Entregá-lo às autoridades? Enviá-lo a prisão? Poderia haver algo pior para ele que isso? Poderia ser...? -Judith foi incapaz de completar a espantosa possibilidade.
- Isso quer dizer que é culpado? - inquiriu ele.
- Está muito endividado - respondeu, - e seus credores até o seguiram a Harewood como método de pressão para que pague.
- Acaso todos os homens endividados roubam as jóias de suas avós? - perguntou Rannulf.
- Bran sabia de sua existência - respondeu ela. - Inclusive viu o porta-jóias. Brincou a respeito de como as jóias poderiam tirá-lo do apuro. Ao menos acreditei que era uma brincadeira. Ontem à noite me procurou na metade do baile para me dizer que partia, que tinha a intenção de resolver suas dívidas e fazer uma fortuna em pouco tempo. Estava muito nervoso. Não deixava de olhar a todo lado, como se esperasse que alguém se lançasse sobre ele para detê-lo. Não consentiu que o acompanhasse para me despedir.
- A evidência parece entristecedora - comentou Rannulf.
- Sim.
- Igual no seu caso.
Judith virou a cabeça de repente para olhá-lo de frente. - Acha que sou culpada! –gritou. - Por favor, deixe-me descer. Deixe-me descer!
- O que quero dizer - prosseguiu o homem. - é que no momento as evidências enganam. Como é óbvio que acontece no seu caso.
Judith o olhou sem pestanejar.
- Então, acha que é possível que Branwell seja inocente? -perguntou-lhe.
- Quem mais pôde roubar as jóias? - perguntou Rannulf por sua vez. - Quem mais tinha um motivo além de vocês dois?
- Ninguém - respondeu Judith com o cenho franzido. - Ou talvez um grande número de pessoas a quem era tentadora a perspectiva de uma fortuna.
- Exato - conveio ele. - Isso reduziria o número de culpados a noventa por cento da população inglesa. Quem poderia ter algum motivo para arruinar a seu irmão e a você?
- Ninguém. - O cenho de Judith se acentuou. - Todos admiram o encanto de Bran e sua natureza alegre. Quanto a mim ninguém...
- É quando menos uma possibilidade, não acha? - disse ele ao ver que seus olhos se arregalavam.
- Horace? - A possibilidade era agonizantemente encantadora, posto que dessa maneira Branwell seria considerado inocente.
- Não resta dúvida de que tinha arquitetado um plano horrível para mim - recordou-lhe.
Entretanto, não podia aceitar uma hipótese pelo mero feito de que desejasse acreditar. Salvo que tanto a bolsa oculta na gaveta como o brinco encontrado no chão teriam muito mais sentido se Horace fosse o culpado.
- De qualquer modo devo encontrar Bran - disse, - embora só seja para pô-lo de sobre aviso. Preciso saber a verdade.
- Sim - conveio ele, - isso é certo. Quando comeu pela última vez?
- Esta manhã – respondeu. - Mas não tenho fome.
- Mentirosa – replicou. - Claire Campbell também tentou me enganar a respeito. Não sei se sabe que o orgulho pode matá-la de fome. Dormiu ontem à noite?
Ela negou com a cabeça.
- Nota-se - afirmou Rannulf. - Se este fosse nosso primeiro encontro, poderia confundi-la com uma mulher medianamente atraente sem mais.
Judith não pôde evitar tornar a rir, embora imediatamente teve que levar uma mão aos lábios e tragar várias vezes a fim de não começar a chorar como uma Madalena.
Uma das mãos de Rannulf afrouxou as fitas do chapéu, atadas sob o queixo. Assim que o tirou - era o chapéu que lhe deu, - voltou a atar as fitas desajeitadamente na cela da montaria. Ato seguido, puxou-a até deixá-la apoiada sobre seu corpo e a obrigou a colocar a cabeça sobre um de seus ombros.
- Não quero ouvir nenhuma palavra mais de seus lábios até que cheguemos a uma estalagem de aspecto respeitável onde possa lhe dar de comer - disse-lhe.
Não deveria ter se sentido tão à vontade. Ou talvez não estivesse. De repente se encontrava muito cansada para pensar. Não obstante, sentia sob ela os fortes e sólidos músculos do peito e o ombro masculinos; cheirava essa colônia ou o que quer que fosse que o fazia único; e tanto sua cabeça como seu chapéu a protegiam dos raios do sol. Deixou-se levar por um agradável estado de sonolência e se imaginou deitada e a salvo no fundo de um navio viking enquanto Rannulf permanecia em pé na popa, com um aspecto magnífico e em atitude protetora. Ou de pé junto a ele no topo de uma colina enquanto a brisa agitava seu cabelo saxão e sua túnica, sabendo que ele enfrentaria qualquer guerreiro feroz que ousasse invadir suas terras e o venceria sem ajuda de ninguém. Judith teria acreditado que estava dormindo e sonhando se não tivesse sido consciente do que sonhava e de não ter tido a capacidade de dirigir o sonho ao seu desejo.
Queria confiar nele como se fosse o eterno herói da mitologia.
Deixou passar ao longe a estalagem porque adormeceu sobre seu ombro e supôs que precisava do sono tanto como da comida. Deteve-se na seguinte estalagem decente e insistiu que Judith comesse absolutamente tudo o que lhe serviram, ainda que depois de alguns bocados afirmasse que era incapaz de comer mais.
Já estava bem avançada à tarde. Não conseguiriam chegar a Londres essa noite. Pensou por um momento em alugar uma carruagem e ir até Ringwood Manar, em Oxfordshire. Aidan confessou com evidente ternura em Londres, enquanto arrumava todos os assuntos relativos à venda de seu cargo no exército com a impaciência nascida do desejo de retornar junto a sua esposa, que Eve tinha uma forte tendência a dar proteção a todo tipo de pessoas necessitadas e que a maior parte delas acabavam empregadas em sua casa. Ela aceitaria Judith mesmo que a Aidan não parecesse bem e a olhasse com desconfiança. Talvez sua cunhada pudesse oferecer a Judith alguma coisa do consolo que precisava.
Ainda que não achasse verdadeiro consolo até que encontrasse seu irmão, até que se convencesse acima de qualquer dúvida de que ele não tinha nada a ver com o roubo das jóias de sua avó. E não teria consolo, supôs Rannulf, até que as jóias e o ladrão tivessem aparecido e tanto ela como Branwell fossem inocentados de toda culpa.
- Será melhor irmos - disse Judith enquanto deixava a faca e o garfo sobre o prato vazio. - A que hora chegaremos a Londres? Acha que Bran estará em seu alojamento?
- Judith - começou ele, - está a ponto de cair de cansaço.
- Tenho que encontrá-lo - afirmou ela. - E deve ser antes que venda as jóias, no caso de que as tenha.
- Não chegaremos a Londres esta noite - disse-lhe. Ela o observou com uma expressão vazia. - E embora o fizéssemos -disse, - não serviria de nada. Estaria dormindo em pé. Quase está agora mesmo.
- Não deixo de pensar - confessou Judith - que vou despertar e descobrir que tudo isto não é mais que um pesadelo. Tudo: os esbanjamentos de Bran, a carta em que minha tia convidava a uma de nós a viver em Harewood e tudo o que aconteceu depois.
Incluído o que tinha acontecido durante sua viagem? Rannulf a contemplou em silêncio uns instantes. De verdade fora a noite anterior quando sentiu esse forte vínculo com ela e se convenceu de que Judith aceitaria a proposta de matrimônio que pensava lhe fazer essa manhã?
- Será melhor que fiquemos aqui esta noite – disse. - Assim poderá descansar como é devido e estar pronta para sair cedo pela manhã.
Ela levou as mãos ao rosto por um momento e sacudiu a cabeça; mas quando o olhou, em seus olhos havia uma expressão de cansaço e resignação.
- Por que saiu em minha busca? - perguntou. Ele compôs uma careta.
- Possivelmente depois do desastre que esteve a ponto de acontecer com a senhorita Effingham - declarou, - alegrasse-me ter alguma desculpa para evitar futuras visitas a Harewood Grange. Possivelmente estivesse farto de me sentir preso no campo. Possivelmente não me fizesse graça à idéia de que Horace Effingham fosse seu único perseguidor.
- Horace também saiu em minha busca?
- Está a salvo comigo - assegurou ele. - Mas preferiria que compartilhássemos um quarto esta noite. Repito que está a salvo comigo. Não tentarei lhe impor meus cuidados.
- Nunca o fez. - Ela o olhou com cansaço. - Estou muito esgotada para me levantar sequer da cadeira. Talvez fique aqui toda a noite. - Esboçou um sorriso extenuado.
Rannulf ficou em pé e foi em busca do hospedeiro. Alugou um quarto em nome do senhor e a senhora Bedard e retornou ao salão, onde Judith ainda continuava sentada com os cotovelos sobre a mesa e o queixo apoiado nas mãos.
- Vamos - disse antes de colocar uma mão sobre seus ombros e notar quão tensos tinha os músculos. Apanhou sua bolsa de viagem com a outra mão.
Ela ficou em pé sem dizer uma palavra e o precedeu através do salão e a escada em direção ao quarto que lhe tinha indicado.
- Vão subir água quente – disse. - Tem tudo o que precisa?
Ela assentiu.
- Dorme - ordenou Rannulf, - passarei o que resta da tarde lá em baixo para não lhe incomodar. Dormirei no chão quando voltar.
Ela cravou a vista nas tábuas nuas do chão, igual a ele.
- Não há nenhuma necessidade - afirmou.
Rannulf pensou que era mais que necessário. Jamais tinha forçado uma mulher. Seus apetites sexuais, embora saudáveis, nunca tinham escapado a seu controle. Entretanto, o controle de todo homem tinha um limite. Apesar de cansada, poeirenta e desarrumada como estava, Judith era todo um festim para a vista.
- Dorme – disse - e não se preocupe com nada.
É claro, isso era mais fácil de dizer que fazer, admitiu Rannulf quando saiu do quarto para dirigir-se ao bar, onde se sentou em um lugar do qual podia contemplar a entrada do local. Mesmo que chegassem a encontrar seu irmão e ele alegasse que não era culpado -coisa que Rannulf sabia que faria-, mesmo que Judith chegasse a acreditar, ainda teriam que provar sua inocência ante o resto do mundo. E mesmo que conseguisse fazê-lo, seu irmão continuaria sendo um esbanjador que por certo estaria bastante endividado para arruinar sua família.
Rannulf se perguntou se ele teria sido tão ocioso e esbanjador se não tivesse contado com uma fortuna pessoal com a qual financiar seus maus hábitos. Não estava nada seguro de qual seria a resposta.
Judith se lavou da cabeça aos pés com água quente e sabão antes de colocar a camisola que havia trazido consigo, além de um vestido limpo e a roupa interior indispensável. Deitou-se na cama, quase enjoada pelo cansaço, com a certeza de que dormiria assim que apoiasse a cabeça no travesseiro.
Entretanto, não foi assim.
Vieram-lhe à mente milhares de idéias e imagens, todas elas muito deprimentes. Durante duas horas, deu voltas e mais voltas na cama; obrigou-se a manter os olhos fechados para não ver a luz do sol e a não escutar os ruídos que procediam tanto do exterior como do interior da animada estalagem. Estava a ponto de voltar a chorar pelo cansaço e a necessidade de encontrar algo que lhe proporcionasse um alívio momentâneo quando por fim jogou as mantas de um lado e se levantou. Afastou o cabelo do rosto e se colocou junto à janela, com as mãos apoiadas no batente. Estava escurecendo. Se tivesse seguido o caminho, nesse momento se encontrariam duas horas mais perto de Londres.
Bran, pensou, onde está, Bran?
Teria na verdade roubado as jóias? Transformou-se em um ladrão além de todo o resto? Seria ela capaz de fazer algo para salvá-lo? Ou essa perseguição era inútil?
Em todo caso, se fora Branwell, por que deixou a bolsa de veludo na penteadeira? Teria muito mais sentido que Horace o tivesse feito. Mas como poderia provar?
Nesse instante lhe veio à mente um pensamento muito reconfortante que não tinha ocorrido antes. Se Bran tivesse decidido saldar suas dívidas roubando à avó, não teria roubado todas as jóias. Teria tomado somente as suficientes para cobrir os gastos. Teria pego somente algumas com a esperança de que jamais sentissem falta delas, ou ao menos que demorassem para perceber sua ausência de maneira que as suspeitas não recaíssem sobre ele. Não teria feito algo tão incriminador como fugir na metade do baile se tivesse roubado todas, não é?
Não obstante, a culpa poderia tê-lo feito fugir em lugar de pensar com lógica, como faria qualquer ladrão de sangue-frio.
Apoiou a testa contra o cristal da janela e soltou um suspiro no mesmo momento em que a porta se abria com cuidado a suas costas. Virou-se um pouco assustada, mas era só Rannulf, que a olhava com o cenho franzido.
- Não consigo dormir - disse ela se desculpando. O homem se incomodou em alugar esse quarto para que ela pudesse descansar bem e nem sequer estava deitada.
Fechou a porta com firmeza e cruzou o pequeno quarto até chegar a seu lado
- Está muito cansada – disse - e também muito nervosa. Tudo sairá bem, verá. Prometo-lhe isso.
- E como pode me prometer isso? - perguntou.
- Porque decidi que tudo sairá bem - afirmou com um sorriso, - e eu sempre saio com a minha.
- Sempre? - Judith sorriu com pesar.
- Sempre. Vem aqui.
Puxou-a pelos ombros e a estreitou contra seu peito.
Ela virou a cabeça e apoiou a face sobre seu ombro antes de suspirar. Rodeou-lhe a cintura com os braços e se abandonou ao delicioso prazer que lhe reportavam essas mãos que esfregavam suas costas de cima abaixo, enquanto seus dedos se afundavam nos músculos tensos para obrigá-los a relaxar-se.
«Tudo sairá bem... »
«Porque decidi... e eu sempre saio com a minha.»
Despertou do atordoamento ao dar-se conta de que a levava nos braços para cama e a depositava sobre o colchão.
- Mmm. - Olhou-o com olhos sonolentos. Rannulf estava sorrindo de novo.
- Em outras circunstâncias - disse, - teria me ofendido muitíssimo que uma mulher caísse adormecida assim que a abraço. - inclinou-se sobre ela para apanhar o outro travesseiro. - Não durma no chão - pediu Judith. - Por favor, não o faça.
Continuava meio acordada quando dois minutos depois um peso adicional afundou a outra metade do colchão e sentiu um agradável calor nas costas. Subiu-lhe as mantas até os ombros, conseguindo que se desse conta que sentia-se gelada. O braço que as tinha subido rodeou a cintura com firmeza e a aproximou para o corpo que lhe proporcionava calor. E então se deixou levar por um delicioso e profundo sono.
Rannulf despertou quando as primeiras luzes do amanhecer começaram a encher de tonalidades cinza o quarto. Ainda dormindo, Judith acabava de virar-se para ele e se esfregou brandamente contra seu corpo. Seu cabelo, conforme pôde notar, emoldurava seu rosto em selvagem desordem e caía sobre seus ombros.
Santo Deus, quem o fazia passar por essa prova de dor insuportável? Acaso quem quer que fosse não sabia que ele era humano? Era muito cedo para levantar e começar a preparar a viagem. Segundo seus cálculos, Judith teria dormido umas cinco ou seis horas, mas precisava de mais.
Podia notar seus seios contra o peito nu, suas coxas contra as suas. Seu corpo estava relaxado e quente. Entretanto, já não podia se permitir o luxo de vê-la como Claire Campbell, a atriz experiente em questões de sexo. Era Judith Law e era a mulher que amava.
Fez o firme propósito de elaborar uma lista de seus defeitos. Cenouras. A cor de seu cabelo se parecia com o das cenouras, segundo a descrição de sua mãe. Tinha sardas. Se entrasse um pouco mais de luz no quarto, poderia vê-las. E tinha uma covinha junto à comissura direita da boca... Não, isso não contava. Uma covinha não era um defeito. Que mais? Que o Senhor o ajudasse, não havia nada mais.
E nesse preciso instante, ela abriu esses olhos sonolentos emoldurados por longas pestanas. Tampouco encontraria nenhum defeito neles.
- Achei que estava sonhando - disse com essa voz rouca que utilizou Claire Campbell.
- Não.
Olharam-se um ao outro sob as luzes da alvorada: ela com os olhos semicerrados; ele com a sensação de um homem que se afoga e tenta convencer-se de que não está mais em um barco. Desejava com desespero que houvesse um pouco mais de espaço entre eles. Judith estava a ponto de perceber de forma física sua perfídia a qualquer momento, face à presença de suas calças de montar, que não tirou em nome do decoro.
E então ela elevou uma de suas cálidas mãos e lhe roçou os lábios com os dedos.
- É um homem incrivelmente bom - disse-lhe. - Ontem à noite me prometeu que tudo sairia bem e falava sério, não é assim?
Também lhe tinha prometido que estaria a salvo dele. E já não estava seguro de ser capaz de manter essa promessa.
- Falava sério.
Ela afastou a mão e a substituiu por seus lábios.
- Obrigada – sussurrou. - Uma noite de descanso conseguiu que tudo pareça diferente. Agora me sinto muito segura.
- Se soubesse o perigo que corre - advertiu ele, - sairia fugindo de camisola.
Sorriu-lhe... mostrando sua covinha.
- Não referia a esse tipo de segurança - disse antes de voltar a beijá-lo.
- Judith - disse Rannulf, - não sou de pedra.
- Nem eu tampouco - replicou ela. - Não tem a menor idéia do quanto senti falta que me abraçasse... bom, que me abraçasse.
Nem sequer nesse momento podia ter a certeza de que aquilo não fosse algo reprovável, de que não estivesse se aproveitando de sua vulnerabilidade. Entretanto, ele não era nenhum herói extraordinário sem sentimentos nem necessidades. Que Deus; o ajudasse, não era mais que um homem.
Estreitou-a com mais força entre seus braços e separou os lábios para introduzir a língua no calor interior de sua boca. Da garganta de Judith brotou um profundo gemido de satisfação enquanto o rodeava com um de seus braços e finalmente Rannulf se deu por vencido.
Deitou-a de costas, tirou os botões das calças, liberou-se sem tirá-la e lhe levantou a camisola até a cintura.
- Judith - sussurrou quando se estendeu sobre ela, - está segura de que quer fazer isto? Se não for assim, detenha-me. Detenha-me agora.
-Rannulf... - murmurou ela em resposta. - Deus, Rannulf...
O momento não deixava lugar a preliminares. Era evidente que ela estava tão preparada como ele. Colocou-lhe as mãos sob o corpo para levantá-la um pouco do colchão e se introduziu até o fundo nela.
Foi como uma estranha volta ao lar. Rannulf a soltou para apoiar o peso sobre os antebraços e a olhou. Devolveu-lhe o olhar com os lábios entreabertos, os olhos semicerrados por causa do sono e do desejo, e o cabelo esparramado ao seu redor sobre o travesseiro e os lençóis.
- Lutei com todas minhas forças para que isto não acontecesse - disse Rannulf.
- Sei. - Ela esboçou um novo sorriso. - Jamais o culparia. De nada.
Pegou-lhe as mãos e as cruzou por cima da cabeça antes de entrelaçar os dedos com os seus e deixar cair sobre ela. Deu-se conta de que Judith o rodeava com as pernas. Penetrou-a com investidas rítmicas e profundas, deleitando-se com a suavidade e a cálida umidade que o rodeavam; agradecido pelo estado de relaxamento em que ela se encontrava em princípio e muito mais agradecido pela maneira em que se adaptou a seu ritmo passado um instante e começou a contrair os músculos internos ao seu redor para arrastá-lo ao que seria um poderoso e satisfatório clímax.
Ele moveu a cabeça para beijá-la. – Deixe-se ir - disse-lhe.
- Sim.
Rannulf se deu conta de que era a primeira vez em sua vida que chegava ao topo da paixão em uníssono com uma mulher, a primeira vez que gritavam juntos e desciam, saciados e satisfeitos, pela mão. Sentiu-se bem além do imaginável.
Separou-se dela, segurou-lhe as mãos e se deixou levar pelo sono durante uns minutos. Quando voltou a abrir os olhos, descobriu que Judith tinha virado a cabeça para ele. Contemplava-o com um meio sorriso nos lábios. Tinha um aspecto ruborizado, satisfeito e estava incrivelmente linda.
- Bem, isto deixou claro uma coisa. - disse Rannulf enquanto lhe apertava a mão: - quando todo este assunto estiver resolvido, nos casaremos.
- Não - replicou ela. - Isto não foi uma armadilha, Rannulf. Ele franziu o cenho imediatamente.
- E o que foi exatamente?
- Não estou certa - admitiu ela. - Nos últimos dias houve uma espécie de... loucura entre nós. Não pretendo conhecer o motivo pelo qual queria ver-me ontem pela manhã, mas acredito que faço uma idéia. Teria sido um terrível engano. Eu poderia haver dito que sim, sabe?
Mas que demônios estava dizendo?
- E por que dizer sim teria sido um engano?
- Sim. - Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça - Olhe-nos, Rannulf. Estamos tão longe na escala social que até na melhor das circunstâncias nosso matrimônio seria considerado de uma estranheza. Mas estas não são as melhores circunstâncias.
- Mesmo que Branwell não tivesse roubado as jóias, mesmo que pudesse ser exonerado de toda culpa, ele continuaria em apuros e nós continuaríamos sendo pobres. Cresci em uma reitoria rural e você na mansão de um duque. Jamais encaixaria em seu mundo e você jamais poderia se rebaixar ao meu.
- Não acha que o amor iguala tudo? - perguntou ele. Não podia acreditar que ele, Rannulf Bedwyn, fizesse semelhante pergunta.
- Não. - Judith negou com a cabeça. - Além disso, não existe o verdadeiro amor. Somente a estima, conforme acredito, e certo... certo desejo. - Olhou-o nos olhos.
- É isso o que acaba de acontecer? - perguntou Rannulf. - Não foi mais que desejo?
O olhar de Judith titubeou durante um breve instante. -e estima - afirmou ela. - Nós gostamos um do outro, não é certo?
Ele se sentou na beira da cama e abotoou as calças.
- No geral não me deito com mulheres só porque me estimam - declarou.
- Mas também há o desejo - disse ela. - O desejo mútuo. Não pode me negar que foi difícil deitar comigo na cama sem me tocar, Rannulf. Também me custou muito. O desejo não é algo exclusivo dos homens.
Ele não soube se enfurecia-se ou se ria. Se alguma vez tivesse imaginado semelhante conversa, sem dúvida os papéis estariam investidos. Teria sido ele que recusaria com delicadeza qualquer sugestão de que se tratou de um encontro amoroso em lugar de um meramente sexual.
- Suponho que isso dá por terminado o descanso - disse antes de ficar em pé. - Vista-se, Judith; enquanto isso irei alugar uma carruagem para o resto do caminho. E desta vez nem lhe ocorra fugir.
- Não o farei - prometeu ela.
Estava a ponto de anoitecer quando chegaram a Londres. Não tinham trocado mais que uma dúzia de frases em todo o dia. Judith tinha uma desolação mais que acrescentar ao resto de suas preocupações.
Não podia casar-se com ele. Tinha estado a ponto de deixar-se seduzir pela loucura dois dias atrás. Tinha-lhe parecido quase uma possibilidade. Mas isso acabou. Não, jamais poderia casar-se com ele. De qualquer modo, alegrava-se de que o sucedido da semana passada a permitisse ao menos apreciá-lo e admirar suas nobres qualidades... que eram muitas. Alegrava-se pelo acontecido essa manhã. Alegrava-se de amá-lo. Tinha recuperado seu sono roubado, que provavelmente duraria toda a vida uma vez que se dissipasse a dor. Porque ia haver dor, sem nenhuma dúvida.
Jamais esteve em Londres. Sabia que era grande, mas nunca teria imaginado que nenhuma cidade pudesse ser tanto. Parecia estender-se até o infinito. As ruas estavam flanqueadas por edifícios e cheias de gente, de veículos e do ruído das rodas, dos cavalos e dos gritos das pessoas. Entretanto, qualquer assombro se viu imediatamente esmagado pelo pânico.
Como ia encontrar Branwell?
Esperou, ou isso acreditou, que não teria mais que deter-se em alguma estalagem ou em qualquer outro edifício público, pedir que lhe dessem umas informações e depois seguiria sem mais problemas... e alguns minutos depois de sua chegada a Londres.
- Isso tem fim? - perguntou como uma estúpida.
- Londres? - inquiriu ele. - Não é meu lugar favorito no mundo. Por desgraça, a primeira vista é a pior. Achará Mayfair mais tranquilo, mais limpo e mais espaçoso que isto.
- Ali é onde vive Branwell? - perguntou Judith. - Acha que o encontraremos em casa?
- É provável que não - afirmou ele. - No geral, os cavalheiros não resistem passar muito tempo em suas residências.
- Espero que volte para casa em algum momento da noite - declarou ela quando toda a ansiedade do dia anterior retornou com renovadas forças. - O que faremos se não o fizer? Acha que o caseiro nos permitirá esperá-lo em seus aposentos?
- O mais provável é que tenha uma apoplexia se mencionar essa hipótese - advertiu Rannulf. - Não é habitual que as damas solteiras visitem os cavalheiros, acompanhadas unicamente por outro cavalheiro, se por acaso não sabia.
- Mas eu sou sua irmã. - Ela o contemplou com incredulidade.
- Atrever-me-ia a dizer - acrescentou ele - que os caseiros conheceram um grande número de «irmãs».
Judith o olhou nos olhos, incapaz de falar durante um instante.
- E o que acontecerá se não puder vê-lo hoje? – perguntou. - Não posso lhe pedir que espere fora toda a noite sentado na carruagem; tenho que...
- Não vou levá-la a seus aposentos - disse Rannulf. - Irei em outro momento, sozinho.
- O que? - Judith o olhou sem compreender.
- Vou levá-la para casa de meu irmão - disse - A Bedwyn House.
- À casa do duque de Bewcastle!? - Contemplou-o com horror.
- Pode ser que Bewcastle e Alleyne sejam os únicos que se encontrem em casa - aventurou ele, - neste caso terei que pensar em outro lugar para levá-la... a casa de tia Rochester, mais provável; embora ela seja uma espécie de dragão e arrancar-lhe-ia a cabeça para tomar o café da manhã se apenas a encarasse.
-Não penso ir à casa do duque de Bewcastle - disse ela, horrorizada. - Vim aqui para encontrar Branwell.
- E o encontraremos - afirmou Rannulf, - se é que em efeito veio a Londres. Mas agora está em Londres, Judith. É o cúmulo da indecência que tenhamos vindo até aqui sozinhos, sem criada nem acompanhante alguma. Mas esta falta de decoro será a última enquanto estiver aqui. Tenho que pensar em minha reputação, como bem sabe.
- Que coisa mais absurda - disse ela. - Absurda por completo, encontrarei o caminho sozinha.
Rannulf era irritantemente a viva imagem da tranquilidade.
Estava ligeiramente reclinado sobre o encosto, com um pé apoiado sobre o assento em frente. E teve a audácia de lhe sorrir. - Tem medo - disse Rannulf. - Medo de enfrentar Bewcastle.
- Não é verdade. - Estava morta de medo.
- Mentirosa.
A carruagem parou quando ela estava tomando fôlego para replicar como se merecia. Deu uma olhada pela janela e percebeu que, em efeito, encontravam-se em uma parte mais tranquila e espaçosa de Londres. A um lado da carruagem se elevava uma fileira de altos e majestosos edifícios, no outro lado havia um pequeno parque e atrás dele outra fileira de edifícios. Devia ser uma das praças de Londres! A porta se abriu e o cocheiro se apressou a desdobrar os degraus.
- Isto é Bedwyn House? - perguntou Judith.
Rannulf se limitou a sorrir uma vez mais, desceu da carruagem e lhe ofereceu a mão para ajudá-la a descer.
Ia vestida com um folgado vestido de algodão que esteve dobrado no interior de sua bolsa de viagem durante tudo o dia anterior e que tinha usado durante toda a jornada do caminho. Não tinha escovado nem arrumado o cabelo desde essa manhã. E o tinha esmagado sob o chapéu todo o tempo. Devia ter um aspecto espantoso. Para completar, ela não era outra que Judith Law, da reitoria de Beaconsfield, fugitiva e suspeita de roubo, que se dirigia ao encontro de um duque.
A porta da casa já estava aberta quando ela desceu da carruagem. Um instante depois, um mordomo de aspecto régio informou a lorde Rannulf de que em efeito Sua Excelência estava em casa e que se encontrava no salão. Precedeu-os pela enorme escada para o segundo andar. Judith pensou que lhe teriam dobrado os joelhos se não a tivesse chamado de mentirosa quando tinha afirmado que não tinha medo e se a mão de Rannulf não a segurasse pelo cotovelo.
Um criado abriu uma enorme porta dupla assim que chegaram à parte superior da escada e o mordomo se deteve entre as duas folhas.
- Lorde Rannulf Bedwyn, Excelência - anunciou.
Rannulf a tinha olhando durante um segundo no térreo, mas não havia tornado a fazê-lo depois.
Para seu mais absoluto espanto, Judith comprovou ao passar através das portas que na sala havia mais de uma pessoa. Quatro, para ser exatos: dois homens e duas mulheres.
- Ralf, velha raposa - disse um dos homens, que se pusera em pé imediatamente, - já retornou? Escapou ileso das garras da vovó uma vez mais? - calou-se de repente quando viu Judith.
Era um jovem alto, esbelto, moreno e incrivelmente charmoso; a única coisa que o identificava como irmão de Rannulf era o proeminente nariz. Uma das damas, a mais jovem e bonita, parecia-se muito com ele. A outra era loira, como Rannulf; tinha o cabelo comprido e encaracolado e o usava solto. Igual a ele, sua tez era morena e possuía umas sobrancelhas escuras e um nariz grande.
Não foram mais que impressões fugazes. Judith manteve de forma deliberada os olhos separados do outro homem, que nesse preciso momento estava se pondo de pé. Até sem olhá-lo, sabia que era o duque.
- Rannulf? - disse o homem com leve arrogância, algo que a Judith provocou uma onda de desassossego e um calafrio nas costas.
Ao olhá-lo descobriu que a observava fixamente com as sobrancelhas elevadas, enquanto essa mão de dedos longos mantinha o monóculo a meio caminho do rosto. Era moreno e magro, igual ao irmão mais novo, com o nariz da família e uns olhos de um cinza tão claro que teria sido mais preciso descrevê-los como prateados. Tinha uns traços frios e arrogantes que pareciam carecer de humanidade. Para falar a verdade, tinha o aspecto que Judith tinha esperado. Era, apesar de tudo, o duque de Bewcastle.
- Tenho a honra de lhes apresentar à senhorita Judith Law manifestou Rannulf enquanto lhe apertava o cotovelo com a mão - Senhorita Law, minhas irmãs, Freyja e Morgan. E meus irmãos, Bewcastle e Alleyne.
As damas a olhavam com altivo desdém, pensou Judith enquanto fazia a reverência. O irmão mais novo a olhava de cima abaixo com os lábios franzidos e uma patente admiração nos olhos.
- Senhorita Law - disse o jovem. - É um prazer.
- Senhora - disse o duque marcando mais as distâncias. Seus olhos se moveram até seu irmão. - Sem dúvida deixou à donzela da senhorita Law lá em baixo, não é assim, Rannulf?
- Não há tal donzela - replicou Rannulf antes de soltar o braço de Judith. - A senhorita Law fugiu de Harewood Grange, perto de Grandmaison, depois de ser acusada de roubar a sua própria avó e eu saí a cavalo em sua busca. Temos que encontrar seu irmão, que talvez tenha as jóias, embora seja muito provável que não seja assim. Enquanto isso deve ficar aqui. Alegra-me descobrir que Freyja e Morgan também vieram de Lindsey Hall, porque desse modo não terei que levá-la até tia Rochester.
- Ah, ah... - disse lorde Alleyne. - Então se lançou em uma aventura de capa e espada, Ralf? Esplêndido!
- Senhorita Law - disse o duque de Bewcastle com uma voz suave e fria que, por surpreendente que parecesse, não congelou o ar sobre sua cabeça, - bem-vinda a Bedwyn House.
Não tenho dúvida - disse Wulfric, duque de Bewcastle, enquanto segurava com elegância uma taça de brandy em uma mão e sustentava o monóculo na outra de forma relaxada- de que está a ponto de me explicar o motivo de que albergue em minha casa à suspeita de um roubo de jóias, que dá a casualidade de ser uma jovem que carece de acompanhante, Rannulf.
- E que além disso, no que se refere a beleza, supera em muito a média -acrescentou Alleyne com um sorriso. - Suponho que isso deveria ser explicação suficiente, Wulf.
Bewcastle tinha convidado Rannulf que o seguisse à biblioteca depois de ordenar à governanta que acompanhasse Judith a um quarto de hóspedes. Semelhante convite raras vezes tinha um motivo amistoso. Alleyne os tinha acompanhado sem necessidade de que o convidassem. Seu irmão mais velho passou por cima do comentário de Alleyne e fez de Rannulf o objeto de sua indiferente atenção; embora a possuísse de forma enganosa. Seu olhar seguia sendo tão perspicaz como de costume.
- É Judith Law, sobrinha de sir George Effingham, vizinho de vovó - explicou Rannulf. - Estava vivendo em Harewood Grange como dama de companhia da mãe de lady Effingham que não é outra que sua própria avó. Durante estes quinze dias se celebrou uma festa campestre na propriedade. O irmão da senhorita Law assistiu como convidado; é um mequetrefe que desfruta de uma vida de luxuosa ociosidade, muito acima dos meios econômicos que lhe proporciona seu pai, um clérigo rural. Segundo minhas hipóteses, a família está a beira da ruína.
- Então a senhorita Law - disse Wulfric depois de dar um gole em seu brandy. - é uma parenta pobre que residia nem Harewood. Seu irmão está até o pescoço de dívidas. E a avó de ambos possui, ou melhor, possuía jóias muito valiosas.
- Desapareceram durante um baile - prosseguiu Rannulf. - Igual a Branwell Law. Entretanto, uma das jóias foi descoberta no quarto da senhorita Law, junto com uma bolsa de veludo vazia onde se costumava guardar as peças mais valiosas.
- Não há dúvida de que é incriminador - comentou Wulfric em voz baixa enquanto arqueava as sobrancelhas.
- Muito incriminador - conveio Rannulf. - Até o mais inexperiente dos principiantes o teria feito melhor.
- Bom, bom! -exclamou Alleyne com júbilo. - Alguém armou uma armadilha. Algum vilão ruim. Tem alguma idéia de quem pode ser, Ralf?
O duque se virou para seu irmão mais novo com o monóculo a meio caminho de seu olho.
- Não convertamos isto em uma comédia, por favor, Alleyne - disse-lhe.
- Pois não está muito errado - afirmou Rannulf. - Horace Effingham, o filho de sir George, tentou impor suas atenções à senhorita Law durante uma festa ao ar livre que foi celebrada em Grandmaison faz coisa de uma semana. Teria conseguido se eu não tivesse passado por ali bem a tempo para lhe dar uma boa surra. A noite do baile tentou vingar-se de mim e esteve a ponto de me apanhar em um elaborado plano para encontrar a sua irmã e a mim em uma situação comprometedora que teria me obrigado a pedir sua mão em matrimônio; a senhorita Law me salvou de semelhante destino. Foi durante esse mesmo baile quando o jovem Law partiu de Harewood de forma repentina e as jóias da senhora Law desapareceram.
- Uns acontecimentos incríveis - comentou Alleyne. - E enquanto todo esse folguedo tinha lugar em Leicestershire, eu me vi obrigado a permanecer aqui, mostrando a Morgan todos os lugares interessantes.
Wulfric tinha soltado o monóculo. Com os olhos fechados, pressionava a ponte do nariz com o polegar e o dedo do meio. - E por isso a senhorita Law fugiu e você a seguiu - disse - Quando foi isso, Rannulf?
- Ontem - respondeu.
- Já vejo. - Wulfric afastou a mão de seu rosto e abriu os olhos. - E seria um atrevimento perguntar onde passou a noite?
- Em uma hospedaria. - Rannulf semicerrou os olhos. - Olhe, Wulf, se isto for um interrogatório sobre mi...
Seu irmão ergueu a mão e Rannulf guardou silêncio. As pessoas tendiam a fazer isso com Wulf, pensou, irritado consigo mesmo num simples gesto -embora só arqueasse uma sobrancelha- e Bewcastle regia seu mundo.
- Nem sequer considerou - perguntou o duque- na possibilidade de que lhe tenham armado outra armadilha ainda mais arteira, Rannulf? Que possivelmente a dama seja pobre, avara e ambiciosa?
-Se tem pensado fazer qualquer outro comentário de semelhante natureza - replicou Rannulf enquanto apoiava as mãos nos braços da poltrona e se erguia - será melhor que guarde isso, Wulf; a menos que a seguinte coisa que queira fazer seja procurar seus dentes.
- Bravo! - exclamou Alleyne com uma nota de admiração. Wulfric se limitou a apertar o cabo do monóculo com os dedos enquanto erguia as sobrancelhas.
- Presumo - continuou o duque - que se apaixonou pela dama, estou certo? A filha de um clérigo rural pobre e a beira da ruína? Uma juba ruiva e certos atributos... digamos que generosos o têm feito perder a cabeça? Os caprichos deste gênero tendem a nublar o pensamento racional Rannulf. Está seguro de que seu bom senso não está nublado?
- Horace Effingham se ofereceu como voluntário para perseguir os Law até Londres - explicou Rannulf. - Minha hipótese é que não lhe bastará somente apanhá-los. Quererá encontrar provas que demonstrem acima de qualquer dúvida que eles são os ladrões.
- Se quer deixar provas falsas, frustraremos seus intentos - interveio Alleyne. - Conheço-o de vista, Ralf. Um tipo lisonjeador de dentes grandes, não é? Alegro-me muito descobrir que é um canalha ruim. Sim senhor, a vida se animou sobremaneira desde esta manhã.
Wulfric voltou a beliscar a ponte do nariz.
- O que necessito - disse Rannulf - é encontrar Branwell Law. Duvido muito que esteja em seu alojamento a estas horas. O mais provável é que esteja em algum lugar tentando fazer uma fortuna com as cartas. Mas de qualquer modo darei uma volta para ver se o encontro.
- Para isso existem os criados - replicou Wulfric. - É quase hora do jantar, Rannulf. Não há dúvida de que a senhorita Law se sentirá muito mais incômoda que antes se você não se sentar à mesa. Enviarei um criado e se estiver em casa, poderá ir pessoalmente mais tarde.
- Ela está decidida a ir pessoalmente - informou Rannulf.
- Nesse caso terá que dissuadi-la - asseverou o duque. - Como está vovó?
Rannulf voltou a reclinar-se na poltrona. - Morrendo - respondeu.
Semelhante resposta ganhou a completa atenção de seus irmãos.
- Não dirá nada a respeito – disse. - Está tão elegante, independente e ativa como sempre. Mas não há dúvida de que está muito doente. Morrendo, de fato.
- Não falou com seu médico? - perguntou Wulfric. Rannulf negou com a cabeça.
- Teria sido uma invasão de sua intimidade.
- Pobre vovozinha - disse Alleyne. - Sempre pareceu imortal.
- Assim, este assunto da senhorita Law - interveio Wulfric - deve esclarecer-se sem mais demora. Vovó o necessitará em Grandmaison, Rannulf. E eu quero vê-la uma vez mais. A noiva que escolheu para você era por acaso a senhorita Effingham que mencionou? A família provém de uma linhagem respeitável, embora não brilhante.
- Mudou que opinião - explicou Rannulf. - Vovó, quero dizer... Já sabia que eu ia à procura de Judith.
- Judith!? - exclamou seu irmão em voz baixa, erguendo de novo as sobrancelhas. - Vovó a aceita? Por regra geral tenho em alta estima suas opiniões.
Mas não as de seu próprio irmão, pensou Rannulf com pesar. Ficou em pé.
- Enviarei um criado disse.
Judith se levantou cedo na manhã seguinte, embora tenha dormido surpreendentemente bem durante toda a noite. O quarto de hospedes que lhe tinham atribuído era de um esplendor opulento. Inclusive tinha um espaçoso quarto de vestir contíguo. A enorme cama com dossel era suave e muito confortável e tinha um ligeiro aroma de lavanda. Contudo, não acreditou que pudesse dormir.
Estar em Bedwyn House era sem dúvida a experiência mais embaraçosa de toda sua vida. Os irmãos de lorde Rannulf se comportaram com absoluta correção durante o jantar e a hora que seguiu a este no salão. Entretanto, havia se sentido muito deslocada. A idéia de sair de seu quarto essa manhã lhe era muito desalentadora.
Não tinham localizado Branwell. A noite anterior foi enviado um criado a seu alojamento, mas seu irmão não estava ali. Depois de dizer que ela mesma iria pela manhã, o duque de Bewcastle levou o monóculo ao olho, lorde Rannulf a proibiu de modo cortante e lorde Alleyne lhe havia dito com um sorriso que deixasse tudo nas mãos de Rannulf. Mas isso não era o que tinha ido fazer em Londres. Embora a idéia de abandonar seu quarto fosse desalentadora, a de deixar Bedwyn House era duas vezes mais.
Quinze minutos depois de sair da cama, Judith se encaminhava à sala de café da manhã no térreo usando um vestido que uma das criadas devia ter engomado durante a noite. Preparou-se mentalmente para encontrar-se de novo com a família completa, mas descobriu com grande alívio que a sala estava vazia salvo pelo mordomo, de pé junto ao aparador, de onde lhe fez uma reverência e lhe sugeriu alguns dos pratos que talvez gostasse de provar, ao tomar o café da manhã, de entre a desconcertante variedade disponível. O homem lhe serviu uma xícara de café assim que se sentou.
Era um alívio estar sozinha, mas não restaria outro remédio que ir a procura de lorde Rannulf depois do café da manhã. Necessitava-o para que lhe indicasse a direção de Branwell. E também esperava que a acompanhasse até ali.
Entretanto, não permaneceu sozinha durante muito tempo. Antes que tivesse sido capaz de comer dois bocados, a porta se abriu para dar passagem a lady Freyja e lady Morgan, ambas vestidas com seus trajes de montar de elegante desenho. A presença das duas damas aterrorizou Judith, que se desprezou por deixar que essa arrogância aristocrática tivesse semelhante efeito sobre ela.
- Bom dia - saudou.
As mulheres lhe devolveram a saudação antes de começarem a encher seus pratos no aparador.
- Saíram a dar um passeio a cavalo? - perguntou Judith com educação quando ambas se sentaram.
- Em Hyde Park - respondeu lady Freyja. - É um exercício do mais insípido depois de ter tido até poucos dias todo o terreno de Lindsey Hall e dos campos que se estendem a seu redor para galopar.
- Foi você quem insistiu que eu deveria vir à cidade, Free - replicou lady Morgan, - apesar de meus protestos.
- Porque queria que visse alguns dos monumentos mais importantes - disse sua irmã, - além de resgatá-la da sala de aula e das garras da senhorita Cowper durante uma semana ou duas.
- Tolices! - negou lady Morgan. - Ambas sabemos que não foi essa a razão. Senhorita Law, oxalá tivesse sua cor de cabelo. Deve ser a inveja de todas suas amizades.
- Obrigada - respondeu Judith, surpreendida. Tinha-lhe envergonhado o fato de não ter nenhuma touca consigo. - Lorde Rannulf saiu cavalgar com vocês? Estou esperando-o para que me acompanhe esta manhã ao alojamento de meu irmão. Espero poder empreender a volta para casa esta tarde. - Embora não estivesse muito segura de como ia chegar até lá. Teria que pedir a Rannulf o dinheiro para pagar a diligência, supunha.
- Sim, e por certo - respondeu lady Freyja, - tinha que lhe dizer quando voltasse para casa que não se preocupe com nada absolutamente, que Ralf se encarregará de tudo em seu nome.
Judith ficou em pé de um salto, arrastando a cadeira para trás com a parte traseira dos joelhos.
- Mas Branwell é meu irmão – disse - Encontrá-lo deve ser minha preocupação, não de lorde Rannulf. Não penso ficar aqui como uma boa garotinha, sem ter uma só preocupação em minha linda cabecinha, e deixar que um homem se encarregue de meus assuntos em meu lugar. Vou encontrar Bran, tanto com ajuda de alguém ou não para chegar a seu alojamento. E não me importa o fato de que em Londres uma dama não possa visitar um cavalheiro a sós. Que coisa mais absurda quando o cavalheiro não é outro que o próprio irmão. Desculpem-me, por favor.
Judith não era muito dada a demonstrar tais estalos de temperamento, mas a sensação de impotência que a acossava desde que chegou a Harewood Grange quase três semanas atrás acabou por encher sua paciência.
- Maravilhoso! - exclamou lady Freyja, contemplando-a com manifesta e surpreendida aprovação. - Julguei-a injustamente, senhorita Law; ao menos espero de todo coração tê-lo feito. Tinha-a tomado por uma desprezível aproveitadora. Entretanto, já vejo que é você uma mulher muito parecida comigo. Os homens podem ser criaturas das mais ridículas, em especial os cavalheiros com seu arcaico sentido de galanteria para com as damas. Irei com você.
- E eu também - adicionou lady Morgan com entusiasmo. Sua irmã a olhou com o cenho franzido.
- Será melhor que não, Morgan - disse a sua irmã. - Wulf pediria minha cabeça. Já foi bastante ruim que a trouxesse para Londres sem lhe consultar primeiro. Quando me chamou à biblioteca falou em voz tão baixa que era quase um sussurro. E me aborreço que faça isso, sobretudo quando sou incapaz de reprimir o impulso de lhe gritar em resposta. Consegue pô-la em uma horrível desvantagem... como muito bem sabe. Não, deve ficar em casa.
- Não há necessidade de que nenhuma das duas me acompanhe - apressou-se a dizer Judith. - Não preciso de acompanhante.
- Ah! Mas eu sou incapaz de me privar da diversão de visitar os aposentos de um cavalheiro - assegurou lady Freyja enquanto deixava seu guardanapo junto ao prato sem terminar e ficava em pé. - Sobretudo quando há jóias roubadas e vingadores em busca de justiça para acrescentar emoção.
- Wulf pedirá sua cabeça de qualquer modo, Free - predisse lady Morgan.
Judith e lady Freyja abandonaram Bedwyn House pouco depois. Caminharam até que estiveram bem longe da praça e depois lady Freyja deteve uma carruagem de aluguel a cujo condutor deu a direção de Branwell.
Judith descobriu que sua acompanhante despertava nela uma enorme curiosidade. Lady Freyja Bedwyn ia vestida com um elegante vestido de passeio em cor verde e usava o cabelo penteado sob um elegante chapéu que Judith supôs que seria a última moda. Era uma mulher de baixa estatura e deveria ser feia com essas sobrancelhas escuras tão incongruentes, sua compleição bronzeada e o nariz proeminente. Entretanto, havia algo em seu rosto que a livrava de ser pontuada de feia; uma arrogância inconsciente, algo que falava de um caráter decidido. Quase podia dizer-se que era atraente.
O ânimo de Judith melhorou com a confiança de saber que por fim ia ver Bran, de saber que por fim poderia escutar a história de seus próprios lábios. Esperava de todo coração que seu irmão pudesse negar implicação alguma no roubo das jóias da avó; mas mesmo que isso não fosse possível, talvez pudesse chegar a tempo de salvar algo da situação. Talvez pudesse persuadir Bran que devolvesse as jóias e pedisse perdão à avó, por muito insuficiente que fosse o gesto. Sabia que o tempo era essencial. Agradecia enormemente a Rannulf que a tivesse seguido e levado a Londres com tanta rapidez.
Por que decidiu Horace esperar todo um dia para sair em sua busca? - perguntava-se. Se tinha a esperança de pegar Bran com a mão na massa antes que pudesse desfazer-se das jóias, não teria sido mais lógico que se pusesse em marcha naquele mesmo dia? Teria esperado possivelmente porque sabia que não havia pressa? Porque sabia que Bran não tinha nenhuma jóia da qual desfazer-se?
Tantas conjeturas que não conduziam a nenhum lugar estavam conseguindo que voltasse a lhe dar voltas à cabeça.
A viagem resultou ser uma perda de tempo. Branwell não estava em seus aposentos e o caseiro não sabia quando voltaria.
- Embora todo mundo estivesse perguntando por ele, ontem à noite e esta manhã –disse. - E agora duas mulheres. O que nos faltava...
- O senhor Law é meu irmão - explicou Judith. - Preciso vê-lo imediatamente por... por um assunto familiar.
- Ah! -exclamou o homem, as olhando com descaramento e deixando à vista uma fileira de dentes meio podres. - Já me cheirava que alguma de vocês era sua irmã.
- Sério, senhor? - perguntou lady Freyja, observando-o com expressão arrogante. - Acaso supôs também que nos faria graça escutar seus insolentes comentários? Quem mais veio em busca do senhor Law?
O homem baniu a expressão lasciva e seu olhar se tornou mais respeitoso.
- Isso é confidencial, senhora, vai me perdoar.
- É óbvio que é - replicou lady Freyja com brutalidade enquanto abria sua bolsa. - E você, como não, é a integridade personificada. Quem?
Judith arregalou os olhos ao ver que sua acompanhante tirava uma nota de cinco libras de sua bolsa e a segurava entre o dedo indicador e o coração.
O caseiro umedeceu os lábios e fez gesto de estender uma mão.
- Veio alguém ontem à noite - respondeu, - o criado de um cavalheiro, que usava uma libré azul e prateada. Esta manhã veio dois senhores e um comerciante pouco depois deles. O último o conhece; o senhor Cooke. Suponho que o senhor Branwell deve grana a seu sapateiro. Os senhores não conheço nem de vista e não perguntei, embora se via que os dois eram bem jovens. Depois há chegou outro, pouco antes que vocês. Não perguntei. E não vou perguntar quem são vocês tampouco.
Lady Freyja lhe entregou o suborno, embora tenha obtido muito pouca informação útil em troca de semelhante fortuna. Judith estava horrorizada. Ao que parece os credores de Bran ainda seguiam atrás dele. Quem eram os três cavalheiros? Lorde Rannulf e outros dois homens mais? Ou lorde Rannulf junto com um de seus irmãos e outra pessoa mais?
Horace?
Onde diabo estava Bran? Teria saído tão cedo? A comprar ou empenhar alguma das jóias, possivelmente? Ou teria partido de Londres de novo?
Sentiu que lhe revolvia o estômago.
- Vamos - disse lady Freyja. - Não conseguiremos mais informação aqui, está claro. -Deu outra direção ao condutor da carruagem. - Nos leve ao Gunter’s.
- Sinto muito - desculpou-se Judith. - Não posso lhe reembolsar as cinco libras. Eu... eu parti de Leicestershire com tanta pressa que esqueci de apanhar dinheiro. Terei que lhe pagar em outra ocasião. – A pergunta era quando.
- Bah! - exclamou a mulher, fazendo um gesto depreciativo com a mão. - Isso não é nada. Embora gostasse de encontrar um pouco mais de diversão. Você não acredita que seu irmão é o ladrão, não é? Eu prefiro mais a idéia de que seja o senhor Effingham. Vi-o duas vezes. Põe-me arrepiada, embora o tipo tenha toda a pinta de se acreditar um sedutor consumado.
- Espero - replicou Judith com ardor - que ele seja o culpado. Embora como vá provar?
Gunter's, conforme comprovou Judith, era uma sorveteria. Pequeno luxo! E, além disso, vendiam gelados pela manhã. Lady Freyja e ela se sentaram a uma das mesas e Judith comeu o sorvete em pequenas colheradas, saboreando cada uma delas enquanto deixava que se derretesse na língua antes de tragá-las. Parecia estranho dar gosto aos sentidos de semelhante modo quando o desastre a esperava depois da esquina.
O que ia fazer a seguir? Não podia continuar hospedando-se em Bedwyn House e tampouco podia continuar permitindo que lorde Rannulf liderasse suas batalhas. Embora tampouco houvesse esperanças de que pudesse transferir-se aos aposentos de Branwell e esperar sua volta ali.
O que ia fazer?
O duque de Bewcastle, quando retornou ao amanhecer depois de ter passado a noite com sua amante, tinha saído a cavalgar com seus irmãos tal e como costumava fazer todas as manhãs. Depois tomou o café da manhã no White's, mas não se dirigiu a seguir à Câmara dos Lordes posto que a sessão da primavera por fim tinha finalizado dois dias atrás. Para falar a verdade, se suas irmãs não tivessem chegado de improviso quatro dias antes, estaria nesse momento em Lindsey Park para passar ali o resto do verão.
Retornou a casa do White's e se retirou à biblioteca com a intenção de ocupar a manhã com a correspondência. Não tinha passado nem meia hora quando ergueu a cabeça com o cenho franzido ao escutar que seu mordomo batia na porta e a abria.
- Um tal senhor Effingham o espera no saguão para vê-lo, Excelência - disse - Digo-lhe que não se encontra em casa?
- Effingham? - O cenho do duque se acentuou. O melodrama que tinha acompanhado a volta de Rannulf a Londres no dia anterior era algo que teria preferido ignorar. Não obstante, era necessário esclarecer todo o assunto. Devia ir a Grandmaison antes que fosse muito tarde para ver sua avó. - Não, faça-o entrar, Fleming.
Horace Effingham era um completo desconhecido para o duque de Bewcastle. Entretanto, o homem entrou na biblioteca sorridente e com passo resoluto, como se fossem irmãos de sangue. O duque não ficou em pé. Effingham cruzou a sala até chegar a mesa e se inclinou sobre esta com o braço direito estendido.
- Fez bem em me receber, Bewcastle - disse.
Sua Excelência ergueu o monóculo, através do qual contemplou com brevidade a mão que lhe oferecia, antes de soltar a lente e deixar que se pendurasse de novo na fita que a segurava ao peito.
- Effingham? – disse. - O que posso fazer por você?
O sorriso do homem se alargou enquanto retirava a mão. Olhou ao seu redor como se procurasse uma cadeira, mas ao não ver nenhuma perto ficou de pé.
- Conforme tenho entendido, seu irmão se hospeda de novo aqui - disse-lhe.
- Sim? - disse Sua Excelência. - Confio que meu mordomo tenha feito o favor de comunicar à cozinheira. Claro que, é óbvio, tenho três irmãos.
Effingham soltou uma gargalhada.
- Referia a lorde Rannulf Bedwyn - esclareceu.
- É claro - disse o duque.
Ao comentário seguiu um breve silêncio durante o qual Effingham pareceu um tanto desconcertado.
- Devo perguntar a Sua Excelência – começou - se veio acompanhado por uma dama. Uma tal Judith Law.
- Deve perguntar? - O duque arqueou as sobrancelhas. Effingham apoiou ambas as mãos na mesa e se inclinou ligeiramente para frente.
- Possivelmente não saiba – disse - que se ela estiver aqui, está encobrindo uma delinquente fugitiva da justiça. Isso em si é um delito, Excelência, embora esteja seguro de que não permitirá que siga sob seu teto assim que conheça a verdade.
- É um alívio - replicou Sua Excelência, que voltou a apanhar o monóculo. - saber que você me tem em tão alta estima.
Effingham riu de boa vontade.
- A senhorita Law está aqui, Bewcastle? - perguntou.
- Conforme entendi - disse o duque, erguendo a lente, - a violação também é um delito. Embora é claro, quando a acusação é de intenção de violação não está assegurada a condenação. Entretanto, a palavra de duas pessoas contra a de uma pode ter certo peso em um tribunal e diante de um jurado, sobretudo quando uma dessas duas pessoas é o irmão de um duque. Será capaz de encontrar a saída ou devo chamar meu mordomo?
Effingham se endireitou, esquecida toda pretensão de afabilidade.
- Vou a caminho de contratar os serviços de um agente de Bow Street – disse - Planejo encontrá-los custe o que custar; sabe, Judith e Branwell Law. E tenho a intenção de recuperar as jóias de minha avó. É de supor que o julgamento e a sentença se verão envoltos em um bonito escândalo. Se estivesse em seu lugar, Excelência, separar-me-ia de tudo isto e aconselharia a meu irmão que fizesse o mesmo.
- Agradeço-lhe imensamente - replicou o duque de Bewcastle, elevando o monóculo até colocar-lhe frente ao olho. - que me estime o suficiente para vir até Bedwyn House e me dar conselhos. Fechará você a porta sem fazer ruído quando sair?
As comissuras dos lábios de Effingham estavam ligeiramente pálidas. Assentiu muito devagar com a cabeça antes de dar meia volta e cruzar a sala. Fechou a porta com um sonoro golpe.
Sua Excelência observou tudo com expressão pensativa.
Rannulf observou Judith com certa exasperação. Tinha um aspecto vivaz e maravilhoso com esse cabelo ruivo descoberto; nada a ver com a sombra quase invisível que fora em Harewood. Também tinha saído pela manhã para aventurar-se em uma área de Londres a qual as damas respeitáveis não se aproximavam e tinha arrastado Freyja consigo. Não, esse ponto ao menos era injusto. Freyja não teria necessitado que a arrastassem.
Não havia necessidade alguma de que fosse a esse lugar. Judith sabia que ele se encarregaria de comprovar pessoalmente se seu irmão estava em casa. É claro, Branwell Law não estava ali e todas as perguntas que Alleyne e ele fizeram em outros lugares semelhantes não tinham encontrado nenhuma resposta. Havia muitos homens que conheciam Law. Mas nenhum deles sabia onde poderia estar.
Entretanto, Bewcastle entrou na sala antes que pudesse dar uma boa reprimenda em Freyja... posto que não tinha nenhum direito de tornar-lhe Judith. Talvez fosse melhor. Era muito provável que Judith tivesse presenciado uma rixa familiar. Wulf chegou a sugerir, com esse tom de voz suave e enganosamente indiferente que o caracterizava, que talvez fosse no interesse de todos os implicados que se redobrassem os esforços para encontrar Branwell Law.
- Acabo de ter a fascinante visita do senhor Effingham – informou. - Parecia ter chegado a desconcertante hipótese de que dou proteção a delinquentes fugitivos em Bedwyn House. Posto que não recebeu nenhum tipo de satisfação aqui, sem dúvida procurará em algum outro lugar o suposto fugitivo que possivelmente não tenha encontrado um lugar seguro onde hospedar-se e que talvez não saiba que precisa encontrá-lo. Suponho, Rannulf, que não achou o senhor Law em seus aposentos esta manhã, certo?
Rannulf negou com a cabeça.
- Entretanto, alguém mais foi buscá-lo - interveio Freyja, que ganhou um longo e silencioso olhar dos olhos prateados de Wulf.
Não obstante, Freyja não se intimidava com facilidade. Limitou-se a devolver o olhar a seu irmão e a lhe relatar o que Judith e ela acabavam de contar a Rannulf e Alleyne. Acrescentou que tinha subornado o caseiro para surrupiar a informação de outros visitantes.
Os olhos de Wulf se entrecerraram, ainda que não se separassem de sua irmã. Entretanto, em lugar do furioso sermão que Rannulf tinha esperado, as seguintes palavras de Bewcastle foram dirigidas a ele.
- Será melhor que retorne lá, Rannulf - disse. - Cheira a mato sem cachorro, como reza o ditado. Irei contigo. - Eu também vou - disse Judith.
- Judith...
- Disse que eu também vou.
Judith o olhou nos olhos com férrea determinação e pela primeira vez Rannulf se perguntou se não haveria algo de certo no batido clichê das ruivas e seu temperamento. A única coisa que desejava era ajudá-la a solucionar todo esse embuste para que a moça se tranquilizasse e assim ele pudesse concentrar-se em seu cortejo. E nessa ocasião o faria como Deus manda. Transformá-la-ia em sua esposa...
- Nesse caso - disse Bewcastle com um suspiro, - será melhor que Freyja venha também. Será uma excursão familiar em toda regra.
Partiram em uma das carruagens particulares de Bewcastle; uma muito singela que o duque utilizava quando não desejava chamar a atenção. Não demoraram em chegar à pensão onde se alojava Law. Rannulf não entendia do que serviria retornar ali, mas Wulf não se mostrava muito comunicativo.
O caseiro revirou os olhos quando abriu a porta depois de escutar a chamada do cocheiro e viu todos reunidos em sua soleira.
- Que o Senhor nos perdoe ao confessar - disse, - aqui vamos de novo.
- Isso parece - replicou Bewcastle, acabando com a insolência do caseiro mediante um simples olhar distante que obteve que o homem inclinasse a cabeça de modo respeitoso e desse um puxão no cabelo que lhe caía sobre a testa. Como conseguia Wulf, até mesmo com desconhecidos? - Conforme tenho entendido, o senhor Branwell Law é um jovem muito popular esta manhã.
- Eu que o diga, senhor - disse o homem. - Primeiro um criado ontem à noite, depois esse cavalheiro daí com outro esta manhã, depois outro senhor e depois as duas damas aí. Pequena manhã temo.
- E não pôde lhes dar nenhum informação sobre o senhor Law? - perguntou-lhe Bewcastle. - Os lugares que frequentou nos últimos dias? A última vez que o viu?
- Não, senhor. -O homem endireitou as costas tudo o que pôde. - Não dou informação pessoal de meus inquilinos a ninguém.
- Uma postura da mais elogiável - replicou Bewcastle. - Alguns homens em sua posição tentariam tirar algum dinheiro extra por baixo do pano aceitando subornos em troca de informação.
Os olhos do caseiro se desviaram com desconforto para Freyja e retornaram ao duque.
- Quando viu pela última vez Branwell Law? - perguntou-lhe Bewcastle.
O homem umedeceu os lábios.
- Ontem à noite, senhor – respondeu - depois que veio o criado. E esta manhã.
- O que!? - gritou Judith. - Esta manhã não nos disse nada disso.
- Ah veio depois de que vocês se foram, Senhorita - explicou.
- Mas poderia ter me dito que esteve aqui ontem à noite - disse Judith. - Disse-lhe que era meu irmão. Disse-lhe que era um assunto familiar urgente.
Bewcastle ergueu uma mão em um breve gesto conciliador e Rannulf tomou a mão de Judith para colocá-la sobre seu braço e cobri-la com a sua. A moça estava tremendo; de ira, parecia.
- O cavalheiro que veio sozinho esta manhã... - seguiu indagando Bewcastle. - Descreva-o, se não for incômodo.
- Cabelo loiro, olhos azuis - disse o caseiro. Seus olhos adquiriram uma expressão matreira, observou Rannulf. - Baixo. Coxeava.
- Ah! - exclamou Wulf. - Sim, é claro.
Então não se tratava de Effingham, pensou Rannulf com certa desilusão. Embora o tipo não demorasse em aparecer. Estava em Londres e já tinha ido a Bedwyn House.
- Isso é tudo o que posso lhe dizer, senhor - disse o homem, fazendo gesto de fechar a porta.
Bewcastle o impediu com a bengala.
- Suponho – disse - que não deixaria passar aos aposentos do senhor Law esse cavalheiro coxo, de cabelo loiro, olhos azuis e baixa estatura, não é?
O caseiro retrocedeu, espantado.
- Deixá-lo entrar, senhor? – perguntou - Sem que o senhor Law estivesse? Não, é claro que não.
- Pergunto-me - prosseguiu Bewcastle - quanto lhe pagou. Os olhos do homem se abriram muito.
- Eu não aceito...
- Sim, claro que o faz - contradisse-o Bewcastle com suavidade. - Eu não lhe darei nem um xelim. Não ofereço subornos. Mas o advirto que esta manhã se cometeu um delito nos aposentos de Branwell Law e você aceitou dinheiro do delinquente ao qual deixou passar aos ditos aposentos, será acusado de cúmplice do delito e com certeza pagará o preço em um dos famosos cárceres de Londres.
O caseiro o olhou com a boca aberta, os olhos arregalados e uma repentina palidez no rosto.
- O delinquente? – repetiu - Um delito? Era um amigo do senhor Law. Tinha-o visto com ele antes. Mais tinha que entrar para apanhar algo que havia se esquecido a última vez que esteve aqui.
- Nesse caso foi todo um detalhe por sua parte deixá-lo passar - replicou Bewcastle enquanto Judith se aferrava ao braço de Rannulf com mais força. - Estava sozinho? O homem moreno, refiro-me.
O caseiro umedeceu os lábios e em seus olhos voltou a aparecer a mesma expressão matreira.
- Atrever-me-ia a dizer - aventurou Bewcastle - que teve que lhe pagar muito bem para que o descrevesse tal e como o tem feito no caso de que o interrogassem, para lhe permitir passar sem ninguém que o acompanhasse e para afirmar que o senhor Law esteve aqui ontem à noite e esta manhã, estou certo?
- Não me pagou muito, não - murmurou o homem depois de uma breve pausa.
- Pois mais estúpido é você - disse Bewcastle com voz enfastiada.
- Canalha! - Rannulf soltou a mão de Judith e deu um passo à frente. - Deveria lhe dar uma boa surra. O que levou dos aposentos? Mais importante ainda, o que deixou ali?
O caseiro retrocedeu acovardado e ergueu ambas as mãos. - Não sabia que ia fazer algo mau - defendeu-se. - Juro que não.
- Guarde essas patéticas súplicas para o juiz - disse Rannulf. - Nos leve aos aposentos de Law agora mesmo.
- Acredito que seria preferível - interveio Wulf, que não tinha abandonado essa irritante aparência imperturbável. - proceder de um modo mais sereno, Rannulf. Estou seguro de que este bom homem tem um aposento mais ou menos cômodo em que podemos esperar. E acredito também que de agora em diante vai mostrar-se extrema sinceridade com todo aquele que lhe faça uma pergunta. Talvez assim consiga salvar a pele ou ao menos evitar perder alguns anos de liberdade.
- Esperar? - As sobrancelhas de Rannulf se ergueram para unir-se em um profundo cenho. Esperar? Quando Effingham estava aí fora em algum lugar, igual a Branwell Law? Quando o bom nome de Judith e sua liberdade continuavam em perigo? Quando era possível que no aposento de Law houvesse provas falsas?
- Se não estou muito equivocado - explicou Bewcastle, - esta casa vai receber outra visita dentro de muito pouco. - Olhou de novo o caseiro. - Acredito que também aceitou não mostrar sinais de reconhecimento quando esse mesmo sujeito moreno retornasse acompanhado com um agente de Bow Street, não é assim?
O pomo de adão do homem subiu e baixou quando engoliu em seco e passeou o olhar entre Bewcastle e Rannulf.
- Nos leve a um aposento onde possamos escutar se chegar alguém - ordenou o duque.
Era um aposento pequeno e sujo, com móveis escuros e desmantelados. Fez passar os quatro, que aguardaram no interior com a porta entreaberta.
Freyja deixou escapar uma suave gargalhada.
- Às vezes, Wulf - disse, - não resta mais remédio que lhe admirar. Como adivinhou?
- Acredito que foi nos joelhos de nossa mãe onde aprendi que dois mais dois, Freyja, sempre são quatro.
- Mas e se não for agora? - perguntou Judith. - E se não tiver nada no quarto de Bran? Por que não nos deixa dar uma olhada, Excelência?
- O caseiro dirá a verdade – respondeu. - É melhor, senhorita Law, que possa afirmar com total honestidade que ninguém entrou nos aposentos de seu irmão desde que Effingham saiu esta manhã.
- Bran não esteve aqui ontem à noite nem esta manhã, não é? - perguntou ela. - Onde está?
Ambas eram perguntas retóricas. Não esperava resposta de nenhum dos que se encontravam ali. Rannulf tomou as mãos de Judith entre as suas, apertou-as com força e as sustentou contra seu peito. Não importava o que pudessem pensar seus irmãos. –Nós o encontraremos – disse - E se as hipóteses de Wulf são corretas, e apostaria qualquer coisa que são, seu nome ficará limpo quando tudo acabar. Deixa de preocupar-se.
Embora, é claro, era muito provável que seu irmão estivesse metido em graves problemas que não tinham nada a ver com todo aquele assunto das jóias roubadas. Se esteve tão desesperado para abandonar Harewood em plena noite porque um bom número de credores o pressionava, estaria bastante desesperado para apostar forte com o fim de recuperar sua fortuna.
- Não se preocupe - disse Rannulf de novo antes de levar uma das mãos de Judith aos lábios, onde a reteve por um momento até que ela o olhou nos olhos e sorriu.
Freyja, comprovou Rannulf, sentara e os observava com uma expressão inescrutável. Bewcastle estava virado ligeiramente para a janela, olhando a rua.
- Ah! – disse - Bem a tempo.
Judith tinha muitíssimo medo. Medo pelo que estava a ponto de acontecer; medo pelo que poderiam descobrir nos aposentos de Branwell; medo pelo que talvez não pudesse descobrir. Tinha medo por Bran, inclusive à margem de todo esse assunto; medo por sua família e por ela mesma. E lhe dava medo essa família orgulhosa, arrogante e poderosa que estava liderando as batalhas em seu lugar.
Embora possivelmente o que mais lhe dava medo fosse a expressão dos olhos de Rannulf, a constante ternura de suas mãos e a cálida doçura do beijo que acabava de depositar em uma delas. Acaso não o entendia?
Escutou que o caseiro abria a porta de novo. Todos permaneceram imóveis, escutando. Reconheceu a voz de Horace, acompanhada de outra muito mais rouca e desanimada.
- Sou o agente de Bow Street - disse essa outra voz - encarregado de investigar o roubo de uma enorme quantidade de jóias. Devo insistir em que nos deixe entrar nos aposentos do senhor Branwell Law, onde espero encontrar alguma prova.
- Nesse caso suponho que devo fazê-lo - respondeu o caseiro.
- Espero - interveio Horace com voz séria e petulante - que não encontremos nada, Witley, embora tema o pior. Branwell Law é meu primo, antes de tudo. Mas não sei quem poderia ter roubado as jóias de sua avó além de sua irmã e ele. Ambos fugiram na mesma noite. Espero que esta busca seja em vão e que em Harewood tenham descoberto que foi algum vagabundo quem entrou e roubou a casa durante o baile.
- É pouco provável, senhor - disse o agente.
Escutou-se o som das botas ao subir a escada, o tinido das chaves e o chiado de uma porta no segundo andar. - Wulf e eu subiremos - disse Rannulf. - Judith, você fica aqui com Freyja.
Sua irmã soprou.
- Eu também vou - replicou Judith. - Isto me concerne tanto como a Bran.
Depois do primeiro lance de escada havia uma porta aberta que claramente conduzia aos aposentos de Branwell. Judith espionou o caseiro no interior. Quando chegaram ao patamar da escada, o homem os olhou com uma expressão preocupada. Horace estava no meio do aposento, de costas para porta e com os braços cruzados sobre o peito. O agente de Bow Street, um homem calvo, baixo e robusto, saía de outra sala interior, talvez o dormitório, aferrando em uma mão um brilhante monte do que deviam ser as jóias de sua avó.
- Nem sequer se incomodou de esconder a consciência - disse com certo desprezo.
- Mas como, se não estou muito equivocado - disse Horace, assinalando em direção a uma cadeira que estava à vista de Judith, - é uma das toucas de Judith Law. Minha pobre Judith! Que descuido por sua parte. Como desejava que não tivesse nada a ver com isto.
- Deve ser cúmplice de certa forma, não acha senhor? - perguntou o agente enquanto deixava as jóias com um tinido sobre uma mesinha, a fim de apanhar a touca que Judith tanto detestava.
Não sabia o que esperavam os outros para intervir.
- É um mentiroso e um canalha, Horace! - gritou enquanto entrava no aposento, atraindo imediatamente a atenção de ambos os homens. - Você deixou as provas em meu aposento em Harewood, igual às deixou aqui. É uma vingança malévola e covarde, sobretudo para Branwell, que não fez nada para ofendê-lo.
- Ah, minha querida prima em pessoa - disse Horace. - Já tem um ladrão que prender sem necessidade de procurar mais, Witley. - E justo então seu olhar posou além de Judith e o sorriso zombador que esboçava ficou congelado em seu rosto.
- Tem suficientes motivos para perder esse ar arrogante. - disse Rannulf com voz serena.
- Estes são os Bedwyn, Witley - explicou Horace ao agente sem afastar os olhos de Rannulf. - Com o duque de Bewcastle à cabeça. Uma família poderosa, como já sabe. Mas espero que sua integridade esteja acima do temor a esse poder. Lorde Rannulf Bedwyn está enamorado por Judith.
- O jogo acabou, Effingham - disse Rannulf. - O caseiro que acaba de lhe deixar entrar nestes aposentos jurará que Branwell Law ocupou estes aposentos somente duas semanas... antes que acontecesse o roubo, claro está. Também jurará que esta manhã o subornou com uma importante soma de dinheiro para que o deixasse passar sem ninguém que o acompanhasse e para contar certas mentiras no caso de que fosse interrogado, incluindo uma segundo a qual Law teria estado aqui ontem e hoje. Eu jurarei que a última vez que vi essa touca foi em Harewood a semana passada e que, não tornei a ver desde que escoltei a senhorita Law a Londres. Que por certo esteve acompanhada em todos os momentos por um ou outro de meus familiares desde que chegou à cidade ontem a tarde. Se essas forem todas as jóias que se encontraram nestes aposentos, apostaria que há muitas mais em algum outro lugar. Judith, você saberá melhor que eu. Deveria haver mais?
- Muitas mais - respondeu.
- Pergunto-me - prosseguiu Rannulf - se teria sido bastante arrogante para ocultá-las em seus aposentos, Effingham, com o convencimento de que a ninguém ocorreria procurá-las ali.
O agente de Bow Street pigarreou.
- As acusações que está fazendo são muito sérias, milorde - disse.
- Em efeito - conveio Rannulf. - Talvez, posto que vamos à caça de um tesouro, devamos considerar convidá-los aos aposentos de Effingham e dar uma olhada.
Foi então quando Judith, que não tinha tirado o olho de cima de Horace, soube que o homem estava derrotado. Estava claro que fora bastante imbecil para deixar as jóias em seus aposentos. E nesse momento o rubor que se estendia por seu rosto e os gritos que proferia o incriminavam ainda mais. Agia com tanta covardia como fez no mirante de Grandmaison.
Judith levou as mãos ao rosto uns instantes e deixou de escutar. Todo aquilo -tudo- tinha acontecido porque no dia que Horace chegou a Harewood usava um de seus vestidos sem modificações e não pôs a touca. Ele a tinha olhado com evidente lascívia, tal e como os homens estavam acostumados a olhá-la desde que abandonou a infância, e a partir daí os acontecimentos se precipitaram. Tudo tinha acontecido por sua culpa.
Freyja, conforme pôde comprovar, estava sentada em uma das poltronas da sala, com as pernas cruzadas e balançando um pé. Tinha todo o aspecto de estar divertindo-se muitíssimo. O duque ainda continuava no patamar da escada, de costas ao aposento e com as mãos unidas atrás dele, sem tomar parte nos acontecimentos que estavam se desenvolvendo.
- Eu... eu estive aqui antes - estava confessando Horace quando Judith voltou a prestar atenção - e descobri tudo... todas as jóias roubadas. Levei quase todas para guardadas em um lugar seguro e deixei o resto para poder trazê-lo comigo na qualidade de testemunha, Witley.
- Acredito, senhor - disse o agente, - que será melhor irmos a seus aposentos e apanhemos os restantes das jóias. Suponho que depois terei que detê-lo.
Judith levou uma mão aos lábios e fechou os olhos. As detenções acabavam em julgamentos, em declarações de testemunhas, em notoriedade e em terríveis dores de cabeça para a família implicada. Acabavam com uma condenação que na maioria dos casos era bastante severa. Escutou seu próprio gemido justo antes que os braços de Rannulf a rodeassem por trás para segurá-la pelos cotovelos.
- Posto que foi contratado pelo senhor Effingham - interveio por fim o duque, que entrou no aposento e cruzou a distância para observar as jóias e a touca com evidente desagrado, - seria talvez um tanto injusto que o prendesse... Witley, chama-se assim, não? Desejaria você que lorde Rannulf Bedwyn e eu nos encarregássemos de todo este assunto?
O agente de Bow Street pareceu titubear e Horace o olhou com certo desanimo, perguntando se possivelmente qual dos dois maus seria o pior.
- Não estou muito seguro, Excelência - respondeu o homem. - Vai contra o estabelecido deixar que um homem escape a seu justo e legal castigo somente porque pertence à nobreza.
- Posso lhe assegurar - replicou o duque com uma voz tão serena e gélida que Judith se descobriu tiritando - que haverá um castigo.
- Senhorita Law - disse lady Freyja enquanto ficava em pé. - Acredito que este é o momento no que nos ordenam que abandonemos o recinto. Que acha de irmos por vontade própria?
O dia já tinha adquirido um colorido irreal para Judith. Mas de repente essa sensação se incrementou. Lady Freyja e ela se viraram para a porta quando alguém mais entrou no quarto.
- Mas, bom... ! - disse uma voz familiar. - Que diabo está acontecendo aqui?
- Bran! - Judith se jogou em seus braços.
- Jude?-perguntou seu irmão. - Effingham? Bedwyn? Que demônios...?
- Não roubou as jóias, não é? - perguntou Judith, que ergueu a cabeça para olhar o rosto pálido e carrancudo de Bran. - Sinto muito ter suspeitado de você, Bran. Foi algo horrível de minha parte e peço que me perdoe.
- Que jóias? - perguntou ele, ainda mais perplexo. - Será que todo mundo ficou louco?
- As da vovó - explicou Judith. - Desapareceram justo depois que partiu do baile e encontraram a bolsa de veludo vazia e um brinco em meus aposentos. Horace deixou as jóias nessa mesa esta manhã, junto com a touca que tia Effingham me obrigou a usar em Harewood, e depois trouxe um agente de Bow Street para que as encontrasse. Mas o duque de Bewcastle adivinhou tudo e chegamos a tempo de pegar Horace e agora lady Freyja e eu temos que abandonar o aposento porque acredito que lorde Rannulf vá b... brigar com Horace.
Enterrou o rosto no ombro de Bran e começou a chorar. - Bom, isso explica tudo - escutou seu irmão dizer enquanto tentava controlar-se; sentia-se terrivelmente mortificada - Esse é o motivo pelo qual se comportou de um modo tão desagradável durante o baile, Effingham? Por isso sugeriu que passasse toda a semana na festa de Darnley a fim de ganhar nas mesas de jogo o dinheiro suficiente para lhe pagar?
- E quanto ganhou, Law? - Até na situação em que se encontrava, Horace teve a audácia de esboçar um sorriso de desprezo.
- Trinta libras, de fato - respondeu Branwell. - Bom, muito obrigado, Bedwyn.
Seu irmão apanhou algo da mão de Rannulf e lhe deu: um enorme lenço. Judith saiu ao patamar da escada, secou os olhos e soou o nariz.
- Estava a ponto de apostá-las quando recuperei o bom senso - disse Branwell. - As teria perdido com certeza e certo que depois teria perdido alguma coisa mais. Mas com as trinta libras posso lhe pagar o custo da viagem, acredito, e mais tarde o reembolsarei as demais dívidas que tenho pendentes. E o farei. Parti da festa um dia antes de finalizada para retornar à cidade. Aqui tem! - Judith escutou as pisadas de seu irmão enquanto este atravessava o quarto. - Trinta libras. E agora acredito ter motivos para brigar também.
Judith sentiu uma mão sobre o ombro.
- Nós as damas sempre perdemos o mais divertido - disse Freyja com um suspiro. - Vamos, retornaremos para casa na carruagem de Wulf.
- Divertido? - Judith a olhou com certa indignação. Seu mundo acabava de fazer-se em pedaços e lady Freyja achava «divertido»?
Entretanto, não opôs resistência à pressão da mão da mulher. Para falar a verdade, queria afastar-se dali o mais rápido possível. Sentia-se profunda e tremendamente envergonhada, até sem ter em conta o resto das angústias pessoais. Que a família de lorde Rannulf tivesse tido que presenciar uns assuntos tão sórdidos relacionados com sua família. Que todos soubessem dos problemas de Bran e de seus estúpidos esbanjamentos e da perda da fortuna de seu pai. Que soubessem que seu primo era um canalha. Que a tivessem visto desmantelar-se e voltar a chorar como se fosse romper o coração... e pensar que só alguns dias atrás - somente passaram três?- dançou com lorde Rannulf e acreditara possível que este pudesse lhe propor matrimônio e que ela o aceitasse.
Devia sentir-se muito agradecida pelo fato de que tivesse acontecido algo que lhe devolvesse o bom senso.
Para estar em consonância com o resto do dia, fora estava chovendo. Caía uma ligeira garoa que as obrigou a correr até a carruagem.
- Uf! - exclamou lady Freyja enquanto sacudia o vestido uma vez que estiveram sentadas e o veículo colocou-se em marcha. - Será um prazer chegar em casa, embora tivesse preferido ficar para ver o que aconteceria.
A casa. Essa foi à única palavra que escutou Judith.
- Lady Freyja - disse, - poderia lhe solicitar um grandíssimo favor?
A dama a olhou com expressão curiosa.
- Emprestar-me-ia...? Não. - Judith se deteve. - Não posso lhe pedir um empréstimo. Duvido muito que possa devolver-lhe algum dia, por muito que o prometesse. Pagar-me-ia a passagem de uma diligência até minha casa em Wiltshire, por favor? Sei que é… um atrevimento por minha parte.
- Por quê? -perguntou lady Freyja.
- Não tenho nenhuma razão para ficar aqui mais tempo - respondeu Judith - e não quero me aproveitar mais da hospitalidade do duque de Bewcastle. Desejo ir para casa.
- Sem dizer adeus a Ralf? - perguntou a dama. Judith fechou os olhos um instante.
Durante uns momentos reinou o silêncio na carruagem. - Há muitas pessoas - disse lady Freyja em voz baixa - que dariam algo para que alguém as olhasse como Ralf a olhou no aposento enquanto esperávamos.
Judith engoliu em seco.
- Não pretende que ache - replicou Judith - que não se deu conta de quão inadequada seria nossa união no preciso momento em que pôs os olhos sobre mim ontem, igual ao resto de seus irmãos. E hoje deve ter ficado mais claro ainda. Partirei logo que apanhe minha bolsa em Bedwyn House, com sua ajuda ou sem ela. Acreditei que estaria disposta a desprender do dinheiro da passagem se com isso conseguisse me afastar da vida de Rannulf.
- Você sabe muito pouco sobre nós os Bedwyn - disse lady Freyja.
- Isso quer dizer que não me ajudará?
- É claro que o farei - respondeu.
Por ilógico que parecesse, o ânimo de Judith decaiu ainda mais, se isso era possível.
Saiu ao patamar para assoar o nariz e não se virou, pensou. Não tinha se virado para olhar uma última vez. A única coisa que tinha para recordá-lo era o lenço que ainda seguia feito uma bola enrugada em seu punho... E seu chapéu de palha.
- Obrigada - disse-lhe.
Tinham passado apenas umas horas quando Horace Effingham saiu dos aposentos de Branwell Law escoltado por dois robustos homens que Bewcastle tinha chamado do nada sem ter abandonado sequer o aposento. Effingham passaria a noite em seus próprios aposentos, sob custódia, depois seria escoltado de volta a Harewood Grange para que lutasse com seu pai, presumivelmente depois de uma consulta prévia com a senhora Law, já que era a parte ofendida.
Effingham partiu com o nariz vermelho e inchado e um olho que estaria fechado e negro pela manhã... ambas as coisas por cortesia de Branwell Law, nos dois minutos depois das damas se retirarem. O agente de Bow Street partiu pouco tempo depois disso.
Rannulf não pusera a mão em cima de Effingham salvo para agarrá-lo pelo cangote e pô-lo nas pontas dos pés cada vez que se mostrava obstinado e insolente. Nada lhe teria agradado mais que moê-lo a golpes, mas a distante e calada presença de Bewcastle teve um efeito calmante sobre ele. Apesar de tudo, o que demonstrava a violência salvo que a pessoa era fisicamente superior ao adversário? Um desdobramento físico de força fora o apropriado no mirante de sua avó. No aposento de Branwell Law não teria sido mais que um ato de auto-satisfação.
Law tirou papel, pluma e tinta quando pediram, e a Effingham ordenaram que se sentasse à mesa e escrevesse várias cartas de confissão e desculpa: uma para a senhora Law, outra para sir George Effingham e outra para o reverendo Jeremiah Law. A tarefa levou quase duas horas, sobretudo porque Rannulf não gostava do que o homem escrevia. Antes que as três cartas recebessem sua aprovação e a de Branwell Law - Bewcastle se manteve à margem, - ambos nadavam entre as bolas de papel que tinham jogado ao chão.
Enviaram-se as cartas, franqueadas por Bewcastle, antes que levassem Horace. Detalhadas, transbordantes de culpa e servis, chegariam às mãos da senhora Law e de sir George antes que o próprio culpado aparecesse. Seria um castigo bastante severo, pensou Rannulf, apesar de que em certos aspectos lhe parecia menos satisfatório que uma boa surra. A humilhação pública era algo terrível para um homem. O rosto de Effingham ao partir, inchado e decomposto pelo ódio e a frustração, era uma prova fidedigna desse fato. Não lhe seria fácil retornar a Harewood e ter que enfrentar seu pai e sua avó.
As jóias, junto com as que se encontraram no alojamento de Effingham, seriam devolvidas a Harewood mediante um mensageiro especial, também por ordens de Bewcastle.
- Assim está - disse Branwell Law, deixando-se cair em uma cadeira uma vez que Effingham e suas escoltas partiram, depois do qual apoiou a cabeça contra o respaldo e tapou os olhos com o dorso da mão. - Que assunto mais espantoso e pensar que uma vez o considerei meu amigo. Até cheguei a admirá-lo. - Pareceu recordar de repente com quem estava e se endireitou na cadeira. - Não sei o que teria feito sem sua ajuda, Excelência; nem sem a sua, Bedwyn. Nunca poderei agradecer-lhe o suficiente. De verdade. Também quero lhes agradecer em nome de Jude. Ela não merecia isto.
- Não - conveio Rannulf, - não merecia.
Law esboçou um hesitante sorriso e passeou o olhar entre ambos, claramente morto de calor por encontrar-se a sós com um duque e o irmão deste.
- Quero que me diga a quanto ascendem suas dívidas - ordenou Rannulf, que estava de pé com as mãos enlaçadas às costas.
- Bom, isto... - Law avermelhou. - São uma insignificância. Nada que não possa me encarregar.
Rannulf deu um passo em sua direção.
- Quero que diga a quanto ascendem suas dívidas - disse, - até o último xelim. -Assinalou a mesa, onde continuava havendo papel, tinta e uma pluma sem usar. - Anote tudo, até a mais minúscula insignificância.
- Bom, isto... – repetiu Law. - Certamente que não vou fazê-lo, Bedwyn. Não é de sua incumbência.
Rannulf se agachou, agarrou ao jovenzinho pela gola do casaco e o pôs de pé com um puxão.
- Acabo de fazê-la de minha incumbência - disse-lhe. - E quero saber tudo o que deve... Tudo. Compreende? Vou pagar todas as suas dívidas.
- Bom, isto... - disse Law pela terceira vez, embora indignado neste momento. - Não posso deixar que faça isso por mim. Já me as apa...
- Não vou fazer por você - interrompeu Rannulf. Law fez gesto de falar, mas logo fechou a boca e franziu o cenho.
- Por Jude?
- Esteve a ponto de arruinar sua família -disse Rannulf- e é evidente que está a um passo de completar a tarefa. Já tinham enviado a Senhorita Judith Law a viver com uns parentes ricos que a tratavam como uma criada, de classe superior, mas como uma criada. Outra de suas irmãs está a ponto de sofrer o mesmo destino. E ficam outras duas em casa com sua mãe. Um jovem tem direito de desfrutar de suas aventuras, por incomodo que isso possa resultar a quem o conhece. Mas não tem nenhum direito de arruinar e despejar toda sua família. Você não tem direito de causar desditas à senhorita Judith Law. Comece a escrever. Faça-o devagar e assegure-se de não esquecer nada. Saldar-se-ão todas suas dívidas, proporcionarei o dinheiro suficiente para pagar o aluguel e os gastos básicos para o próximo mês e depois ganhará a vida como facilmente possa ou morrerá de fome. E me dará sua palavra de cavalheiro a este respeito: jamais voltará a dirigir-se a seu pai para lhe pedir um só xelim.
O rosto do Law perdeu toda a cor. - Faria tudo isto por Judith? - perguntou.
Rannulf se limitou a entrecerrar os olhos antes de voltar a assinalar a mesa. Law se sentou, apanhou a pluma e a molhou no tinteiro.
Rannulf olhou Bewcastle, que estava sentado do outro lado da sala com uma perna elegantemente cruzada sobre a outra, os cotovelos sobre os braços da poltrona e os dedos entrelaçados. Arqueou as sobrancelhas quando encontrou o olhar de seu irmão, mas não fez comentário algum.
A única coisa que se escutou durante a seguinte meia hora foi o roçar da pluma de Law e um ou outro sussurro enquanto o homem somava as colunas de cifras. Levantou-se duas vezes para desaparecer no dormitório e sair de novo com uma fatura.
- Pronto - disse por fim, depois de secar a folha e estender a Rannulf. - Isso é tudo. Embora tema que seja uma soma considerável. - Lhe avermelharam as faces pela vergonha.
A Rannulf não parecia uma soma muito alta, mas aos olhos de um homem que não possuía os recursos necessários para pagar nenhuma libra da dívida, devia parecer exorbitante.
- Permita que lhe dê um conselho - disse Rannulf: - o jogo pode ser uma atividade muito agradável quando se tem dinheiro para perder e estabelecer um limite rígido quanto à quantidade que se pode apostar. Entretanto, é um método infernal e miserável para tentar recuperar uma fortuna inexistente.
- Como se não soubesse... - disse Law com ardor. - Jamais na vida voltarei a apostar.
Rannulf arqueou as sobrancelhas.
- Agora, senhor Law - interveio Bewcastle para romper o longo silêncio, - me diga que profissão lhe parece que se ajusta melhor a seu caráter.
Os outros dois homens se viraram para olhá-lo.
- O serviço diplomático? – sugeriu Bewcastle. - A advocacia? O exército? A Igreja?
- A Igreja não - respondeu Law. - Não posso imaginar nada mais aborrecido. E tampouco o exército. Nem a advocacia. - Isso nos deixa o serviço diplomático, não?
- Sempre acreditei que poderia desfrutar com o comércio ou a indústria - disse Law. - A Companhia das Índias Orientais ou algo do estilo. Eu gostaria de ir a Índia ou a algum outro lugar de além mar. Mas meu pai sempre disse que estava abaixo da dignidade de um cavalheiro.
- Alguns postos não - afirmou Bewcastle, - embora seja evidente que um aprendiz não poderia ocupar jamais um dos mais altos cargos de uma companhia sem antes trabalhar muito duro nos postos de menor categoria e demonstrar seu valor.
- Estou disposto a trabalhar com esforço - assegurou Law. - Se tiver que ser sincero, estou bastante farto da vida que levei. Não se pode desfrutar quando não se tem o mesmo dinheiro que seus acompanhantes.
- Bastante certo - conveio Bewcastle. - Venha para ver-me amanhã pela manhã, senhor Law, as dez em ponto. Verei o que posso fazer por você, até então.
- Ajudar-me-ia a começar uma carreira? - inquiriu Law. - Faria isso por mim, Excelência?
Bewcastle nem se dignou a responder à pergunta. Limitou-se a ficar em pé e a recolher o chapéu e a bengala. Dirigiu uma breve inclinação de cabeça a Branwell Law por despedida. - Confio que Freyja nos tenha mandado de volta a carruagem, Rannulf - disse.
Assim era. E em boa hora: estava chovendo. Rannulf deixou que Bewcastle se sentasse no sentido da marcha e ele ocupou o assento oposto. Sentia-se exausto. A única coisa que desejava era voltar para casa para ver Judith, estreitá-la entre seus braços e lhe assegurar que as penúrias acabaram, que tudo estava bem e que a única coisa que restava fazer era começar seu particular «felizes para sempre» com uma valsa. E se importava o mínimo que todos seus irmãos se alinhassem para ver como fazia.
- Foi um gesto muito cortês, Wulf - disse-lhe quando se fechou a portinhola e a carruagem colocou-se em marcha. - A única oportunidade que tem de mudar de vida é começar uma profissão. Embora sem sua influência, suas possibilidades se veriam muito diminuídas.
- Tem intenção de se casar com a senhorita Law? - perguntou seu irmão.
- Sim. - Rannulf o observou com cautela.
- É uma jovem extraordinariamente linda - afirmou Wulfric, - apesar da simplicidade de seus vestidos e do estilo tão austero com o que se penteia. Sempre teve debilidade por esse tipo de mulheres.
- Nenhuma se pode comparar com Judith Law - disse Rannulf. - Mas se equivoca se acha que não vejo além de sua beleza, Wulf.
- Era algo assim como uma rapariga em apuros - replicou Wulfric, - e em mais de um sentido. O afã cavalheiresco de cavalgar na ajuda de alguém assim pode confundir-se com amor, ou isso acredito.
- Jamais se comportou como uma vítima - assegurou Rannulf. - E não estou confuso. Se for me recitar a lista completa dos motivos pelos quais não seria uma boa esposa para mim, Wulf, pode economizar o esforço. Conheço todos e não mudam nem um ápice meus sentimentos. Tenho posição, dinheiro e propriedades de sobra para não precisar de uma esposa rica - Seu irmão não fez comentário algum - Devo entender que não contarei com sua bênção, Wulf? - perguntou Rannulf passado um momento de silêncio.
- É importante para você? Rannulf meditou um instante.
- Sim - respondeu por fim - É. Geralmente me deixa louco, Wulf e jamais permitirei que me controle; mas o respeito, e muito mais que a qualquer outra pessoa que conheça. Sempre cumpriu com seu dever e não duvida em ir em nossa ajuda, por desagradável ou aborrecido que possa ser. Como fez a dois de meses, quando acudiu a Oxfordshire para ajudar Eve e Aidan a recuperar a custódia de seus filhos adotivos... os órfãos de um humilde lojista. E como fez hoje por mim. Sim, sua bênção é importante para mim. Ainda que case com Judith com sua bênção ou sem ela.
- A tem - disse Wulf em voz baixa. - Embora não considerarei que estou cumprindo com meu dever se não assinalar que semelhantes diferenças podem ser fonte de possíveis desditas em um futuro, quando o ardor do primeiro momento tenha desaparecido. O matrimônio é um compromisso por vida e os Bedwyn sempre têm sido fiéis as suas esposas. Mas é você quem deve escolher a sua esposa, Rannulf. É maior de idade e será você quem viverá com ela o resto de sua vida.
Seria essa a razão pela qual Bewcastle jamais se casou? - perguntou-se Rannulf. Consideraria a sua fria e calculada maneira todas as possíveis fontes de futuras desditas? Entretanto, até onde ele sabia, seu irmão mais velho jamais tinha mostrado o menor interesse em uma dama, apesar de levar anos sendo um dos solteiros mais cobiçados da Inglaterra. Tinha mantido à mesma amante durante anos, mas nenhum romance que pudesse conduzir ao matrimônio.
- Não espero que vivamos felizes para sempre, Wulf - respondeu. - Mas sim, espero ser feliz uma vez que o ardor do primeiro momento tenha desaparecido. Como você disse, o matrimônio é um compromisso para toda vida.
Não disseram nada mais, e assim que a carruagem se deteve diante das portas de Bedwyn House, Rannulf desceu de um salto e se apressou a entrar na casa para subir a escada até o salão. Alleyne, Freyja e Morgan estavam ali, mas não havia rastros de Judith.
- Ah, por fim - disse Alleyne. - Anda, nos conte como acabou a história, Ralf. Conforme parece, Free e a senhorita Law foram despachadas no momento mais interessante. Deixe-me ver seus nódulos.
- Onde está Judith? - perguntou Rannulf.
- Em seu quarto, suponho - respondeu Alleyne. - Afligida por tanta emoção, sem dúvida. Como foi a briga com Effingham? Se o fez, não o acertou no rosto a pesar do fácil objetivo que supõe o nariz dos Bedwyn. - Sorriu.
- Não está ali - interveio Morgan. - E sabe muito bem, Alleyne. Não está em seu quarto. Foi-se.
Rannulf a atravessou com o olhar antes de cravar os olhos em Freyja, que estava sentada com uma serenidade muito pouco habitual nela e que não tinha exigido um imediato relatório a respeito do acontecido depois de sua saída dos aposentos de Law.
- Foi para casa - disse - em uma diligência.
- Para casa? - Rannulf a olhou sem compreender.
- A Beaconsfield, em Wiltshire - explicou - À reitoria. Para casa, Ralf, onde acredita que é seu lugar.
Rannulf a olhou sem piscar, estupefato. - Por todos os infernos - resmungou.
Dizia muito dos Bedwyn o fato de que nenhuma das damas mostrasse o menor indício de assombro ante semelhante comentário.
Choveu durante quase toda a noite, o que tornou mais lento o avanço da diligência e fez que Judith agarrasse o estômago de medo em duas ocasiões, quando a carruagem escorregou por terrenos muito enlameados. Entretanto, o amanhecer trouxe um ceu espaçoso, um sol brilhante e rostos conhecidos que lhe sorriram e lhe deram a boas-vindas uma vez que apeou na estalagem de Beaconsfield.
Embora não fossem muito reconfortantes. Enquanto abria caminho pela rua que conduzia à reitoria, localizada do outro lado do povoado, tinha a impressão de que com cada passo lhe destroçava mais o coração. Nem sequer o olhou uma última vez e temeu estupidamente durante a interminável viagem não poder recordar seu rosto.
Sua história teve um final feliz. Não deixava de repetir. Tanto ela como Bran foram inocentados do roubo e apanharam o verdadeiro culpado. Recuperaram as jóias da avó, ou ao menos supunha que o fizeram, dado que Horace não tinha negado que o resto estivesse em seus aposentos. Ela voltava para casa... Sem dúvida tia Effingham não iria querer que retornasse a Harewood depois do acontecido. E era muito improvável que quisesse alguma outra de suas irmãs, assim Hilary também estaria a salvo da miséria de viver naquele lugar.
Entretanto, não lhe parecia um final feliz. Tinha o coração destroçado e estava convencida de que demoraria muito tempo em sarar.
Além disso, seguia sem ser um final feliz independente do estado de seu coração. Não havia resolvido nada a favor de sua família. Muito ao contrário. Bran estava endividado até o pescoço e parecia convencido de que a única maneira de sair do atoleiro era jogando e rogando a seu pai que o ajudasse. Não demoraria a recorrer ao último, e logo todos se veriam consumidos na pobreza. Parecia bastante provável que o destino final de Bran fosse à prisão de devedores. E talvez também o de seu pai.
Não, era uma manhã horrível em todos os aspectos. Não obstante, enquanto pensava, a porta da reitoria se abriu e Pamela saiu ao exterior seguida por Hilary, que não deixava de gritar. - Jude! - exclamou. - Jude, voltou para casa!
Judith deixou a bolsa no chão junto à porta do jardim e pôs-se a rir quando suas irmãs, primeiro uma e depois a outra, jogaram-se em seus braços e a abraçaram até deixá-la sem fôlego. Cassandra as seguiu mais devagar com um cálido sorriso e os braços estendidos.
- Judith - disse antes de abraçá-la. - Ah, Jude, tínhamos tanto medo de que não retornasse a casa e jamais voltássemos a vê-la... - Tinha os olhos marejados de lágrimas. - Tem que haver uma explicação. Eu sei. Onde está Bran?
Entretanto, antes de responder, Judith viu a silenciosa e rígida figura de seu pai na porta. Os dedos invisíveis de um funesto destino se abateram sobre ela.
- Judith - disse sem levantar a voz... e com o mesmo tom que utilizava do púlpito, - venha a meu estúdio se tiver a amabilidade.
Não havia a menor duvida de que chegaram notícias de Harewood.
- Acabo de chegar de Londres, papai - disse-lhe. - Recuperaram-se todas as jóias da vovó. Foi Horace Effingham quem as roubou com o único propósito de incriminar Bran e a mim. Mas o apanharam e confessou. E podem testemunhá-lo várias pessoas além de Bran e de mim; o duque de Bewcastle entre elas. Atrever-me-ia a dizer que vovó e tio George serão informados de tudo nos próximos dias.
- Ah, Jude. - Cassandra começara a chorar sem disfarces. - Sabia. De verdade que sabia. Não duvidei de você nem um só instante.
Sua mãe golpeou seu pai em sua pressa para sair ao atalho do jardim e abraçar Judith com força.
- Estava na cozinha - disse entre lágrimas. - Meninas, por que não me avisaram? Minha querida Judith. Branwell também foi desculpado? Esse moço é uma fonte de dor de cabeça para seu pobre pai, mas seria tão incapaz de roubar como você mesma. Veio na diligência? - Alisou-lhe uma mecha de cabelo que tinha escapado do chapéu. - Não tem ciência do cansaço, carinho. Vêem comer algo e logo a meteremos na cama.
Por uma vez, seu pai se viu superado por suas mulheres. Permaneceu em pé, com o cenho franzido e uma expressão preocupada, mas não fez gesto de levar Judith para lhe dar um sermão a respeito das notícias que tinha recebido de Harewood. E ninguém, conforme pôde comprovar Judith, fez comentário algum a respeito de sua menção ao duque de Bewcastle. Depois que a levaram a cozinha, não voltou a ver seu pai até o meio-dia. Face à insistência das demais, não tinha se deitado e passou a manhã com sua mãe e suas irmãs na sala de estar. Enquanto as demais se entretinham com a costura, ela tinha escrito duas cartas: uma ao duque de Bewcastle e outra para lorde Rannulf. Devia sua mais profunda gratidão a ambos, mesmo que tivesse fugido de Bedwyn House sem despedir-se de nenhum dos dois. Acabava de terminar a árdua tarefa quando seu pai entrou na sala com seu habitual cenho e uma carta aberta nas mãos.
- Acabo de receber isto de Horace Effingham - disse - Apóia tudo o que me disse esta manhã, Judith. É uma confissão completa, não só do roubo e de seu intento de incriminar Branwell e a você, mas também de seus motivos. Tentou lhe impor suas atenções enquanto esteve em Harewood e você as recusou com toda propriedade. Seu plano era vingar-se de você. Segundo esta carta, também escreveu a sua avó e a sir George.
Judith fechou os olhos. Sabia que todos acreditaram nela essa manhã... inclusive seu pai. Mas era um alívio que a exonerassem por completo. Horace jamais teria escrito semelhante carta por vontade própria, é claro; sobretudo essa parte tão humilhante em que dizia que ela tinha recusado suas atenções e que queria vingar-se. Tinham-no obrigado a escrevê-la... Lorde Rannulf o obrigou. De verdade acontecera tudo no dia anterior? Parecia-lhe que passou uma eternidade.
Rannulf fez tudo por ela.
- Limpou seu nome, Judith - disse seu pai. - Mas por que acreditaria Horace Effingham que poderia apreciar suas inapropriadas atenções? E onde está sua touca?
Era a história de sempre. Os homens a olhavam com lascívia e seu pai jogava a culpa nela. A única diferença residia em que já sabia que não era feia.
«E posso afirmar com total sinceridade que jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.»
Tentou rememorar o som de sua voz ao pronunciar essas palavras no pequeno lago que havia atrás de Harewood.
- Não quero usar touca nunca mais, papai - disse.
Por surpreendente que parecesse, seu pai não a repreendeu nem lhe ordenou que fosse ao seu quarto em busca de uma. Em seu lugar, estendeu outra carta que seguia lacrada.
- Isto chegou para você ontem – explicou. - É de sua avó.
Fez-se um nó no estômago de Judith. Não queria lê-la. Sua avó acreditou que ela era a ladra. E ainda continuou acreditando no momento de escrever essa carta. Apesar de tudo, Judith ficou em pé e apanhou o papel das mãos de seu pai. Entretanto, de repente não pôde suportar estar encerrada na casa, rodeada pela cômoda normalidade de sua vida familiar. Nada era normal. Nada voltaria a ser.
- Lerei no jardim - anunciou.
Não se deteve a apanhar o chapéu. Saiu pela porta traseira e viu que as plantas de estação de sua mãe estavam em pleno esplendor, transbordantes de colorido. Embora ela não fosse capaz de desfrutar de sua beleza. Bran não demoraria em apelar a seu pai para que o ajudasse a sair de seus apuros. E inclusive sua mente se fechava a essa idéia, não lhe ocorria nada que pudesse lhe levantar o ânimo.
Nem sequer se virou para vê-lo uma última vez.
O jardim se encontrava a uma distância sufocante da casa, Olhou com saudade as colinas que havia além da cerca posterior, seu refúgio quando queria estar sozinha. As colinas onde tinha vagado, e havia se sentado e leu durante sua infância e onde atuou, interpretando diferentes personagens em voz alta para que as colinas a escutassem. Abriu a porta da grade, começou a subir e não se deteve até que chegou à conhecida rocha plaina que se encontrava a um terço do topo da colina mais próxima. Dali podia ver o vale, o povoado e as cercas que rodeavam as granjas. Ficou sentada uma meia hora antes de atrever-se a tirar a carta de sua avó do bolso.
Era uma carta cheia de emoção, embora não havia rastros físicos de lágrimas. Durante uma hora de debilidade, tinha-lhe escrito sua avó, acreditou nessas malditas provas. Chegara a amar sua neta durante essas duas semanas mais do que amou a ninguém desde que seu marido morrera; e até a teria perdoado, mas acreditou nessa mentira. Embora só durante uma hora. Passou uma terrível noite de remorsos e acudira logo que acreditou adequado ao quarto de Judith para rogar que a perdoasse... de joelhos se fosse preciso. Mas Judith partiu. Não estava certa que pudesse perdoar-se por duvidar de sua neta durante essa única hora. Poderia perdoá-la Judith?
Não podia fazê-lo. Enrugou a carta na mão e olhou em direção ao vale com os olhos cheios de lágrimas. Não podia. Embora depois recordasse que ela suspeitou de Branwell e durante muito mais que uma hora. De fato, não teve clara sua inocência até que se apresentaram provas. No que se diferenciava então de sua avó, que inclusive lhe tinha escrito essa carta quando ainda não havia provas que sustentassem sua inocência?
Permitiria que Horace obtivesse o prazer da vitória final deixando que se prolongasse esse ressentimento entre ela e essa anciã a quem chegou a amar em duas semanas tanto como aos membros de sua família que estavam na reitoria?
- Vovó - sussurrou enquanto levava a carta aos lábios. - Ah, vovó...
Permaneceu sentada ali durante longo momento depois de alisar a carta, dobrá-la com supremo cuidado e devolvê-la ao bolso de seu vestido. Rodeou os joelhos com os braços e contemplou as colinas em lugar do vale, desfrutando da calidez do sol e da frescura da brisa, atirando a luz toda a infelicidade que sentia com o fim de enfrentá-la.
Tinha uma família que a amava. A vida não demoraria em fazer-se mais difícil para eles. Mas continuavam sendo uma família e seu pai seguiria tendo seu trabalho. E com certeza, não acabariam despojados de tudo. Que egoísta de sua parte ter medo da pobreza. Milhares de pobres sobreviviam com dignidade e coragem. Tinha uma avó que talvez a amaria mais que a ninguém no mudo. Que bênção era ser amada! Certo que não podia ter o homem que amava, mas havia milhares de pessoas nas mesmas circunstâncias. Um coração quebrado não era uma sentença de morte. Tinha vinte e dois anos. Ainda era jovem. Nunca se casaria; não poderia fazê-lo por muito que algum homem decente a aceitasse sem dote. De qualquer forma, a vida de solteira não tinha por que carecer de sentido nem de felicidade.
Lavraria sua própria felicidade. Fá-lo-ia. Não esperaria o impossível. Permitir-se-ia um tempo para chorar sua perda, mas não desfrutaria da miséria. Não deixaria que a autocompaixão a consumisse.
Faria muito mais que sobreviver durante os anos que ficariam por diante. Viveria!
- Já começava a pensar que teria que subir todo o trecho até o topo antes de encontrá-la - disse uma voz familiar.
Ela se virou sobressaltada enquanto protegia os olhos do sol com uma mão.
Tinha esquecido quão atraente era, pensou em um arranque de completa estupidez.
Estava sentada sobre uma enorme rocha plaina, rodeada de um halo de luz tão lindo que lhe contraiu os músculos do peito e lhe espremeu o coração. Não usava nem chapéu nem touca. Tinha todo o aspecto de alguém que tivesse escalado em busca de liberdade, longe de todos aqueles que lhe teriam imposto suas idéias a respeito da beleza e o decoro.
- O que está fazendo aqui? -perguntou ela.
- Te olhando - disse ele. - Tenho a sensação de que faz ao menos uma semana da última vez que a vi, em lugar de vinte e cinco ou vinte e seis horas. Tem o costume de fugir de mim.
- Lorde Rannulf - disse ela enquanto tirava a mão dos olhos e abraçava os joelhos em um gesto tenso e defensivo, - por que veio? Talvez porque parti sem dizer uma palavra ou sem deixar uma nota? Porque escrevi uma carta, deve sabê-lo, e outra para o duque de Bewcastle. Estão prontas para serem enviadas.
- Esta é a minha? - Sustentou no alto a folha selada no qual rezava seu nome escrito com a cuidadosa caligrafia da moça.
- Esteve em minha casa? - Judith tinha os olhos totalmente abertos.
- É claro que estive na reitoria – respondeu. - Sua governanta me deixou passar a saleta, onde conheci sua mãe e a suas três irmãs. São todas encantadoras. Não tive nenhum problema em identificar a que você descreveu como a beleza da família. Mas devo lhe dizer que estava equivocada. Sua beleza não pode comparar-se com a sua.
Ela se limitou a abraçar os joelhos com mais força.
- Sua mãe me deu isto - disse enquanto assinalava a carta.
Rompeu o selo com o polegar. Judith esteve a ponto de estender o braço para detê-lo, mas depois voltou para sua postura original. Curvou a cabeça para apoiar a testa sobre os joelhos.
-«Querido lorde Rannulf» - leu ele em voz alta- «Não sei como começar a lhe agradecer a amabilidade que me demonstrou desde o dia em que parti de Harewood Grange até ontem.» - Ergueu o olhar para contemplar a cabeça encurvada da jovem - «Amabilidade», Judith?
- Foi amável - defendeu-se ela. - Muito amável.
Deu uma olhada ao resto da carta, que continuava com a mesma tônica das primeiras palavras.
-«Atentamente» - leu alto quando chegou ao final. - E isto é tudo o que tem a me dizer?
- Sim. - Ela levantou a cabeça nesse momento e Rannulf dobrou a carta antes de metê-la no bolso do casaco - Sinto não ter ficado para dizê-lo pessoalmente, mas já deveria saber a esta altura que sou uma covarde no que se refere às despedidas.
- E por que achou necessário se despedir? - perguntou ele. Sentou-se na pedra a seu lado. Estava morna pelo calor do sol.
Ela suspirou. - Não é evidente?
Tão evidente como o proeminente nariz de seu rosto... e isso era dizer muito. Era uma mulher orgulhosa e teimosa que uma vez, por paradoxal que parecesse, tinha muito pouca confiança em si mesma. Dita confiança ficara sepultada por uns pais repressivos cujas intenções foram as melhores, mas que tinham provocado um dano inexprimível à filha que não era senão o cisne entre o resto de seus patinhos.
- O duque de Bewcastle é meu irmão - disse ele - e é um aristocrata arrogante, tão elevado na escala social como qualquer monarca. Destila poder com o mínimo gesto do mindinho. Freyja, Morgan e Alleyne são meus irmãos; vestem-se com elegância, caminham com orgulho e se comportam como se estivessem muito acima do resto dos mortais. Bedwyn House é uma das propriedades de minha família e é opulenta e esplêndida. Somente Bewcastle e Aidan se interpõem entre minha pessoa e o ducado, as fabulosas riquezas e as terras e propriedades que se estendem por amplas áreas da Inglaterra e de Gales. Aproximei-me um pouco da metade do que é evidente?
- Sim. - Judith não olhava em sua direção; tinha os olhos cravados na inclinação da colina.
- O reverendo Jeremiah Law é seu pai – continuou - É um cavalheiro de recursos modestos e reitor de uma comunidade sem relevância. Tem quatro filhas às quais atender com meios que se viram seriamente diminuídos pelos esbanjamentos de um filho que nem sequer decidiu ainda o que fazer para ganhar a vida. Além disso, tem a enorme desgraça de ser o neto por parte de mãe de um mercador de tecidos e o filho de uma atriz. Descrevi a outra metade que faltava do evidente?
- Sim. - Mas já não olhava a colina. Olhava a ele, e Rannulf comprovou com certa satisfação que estava zangada. Preferia muito mais seu aborrecimento a sua passividade
- Sim, é exatamente isso, lorde Rannulf. Mas eu não me envergonho de minha avó. Absolutamente. A amo muitíssimo.
- Não tinha a menor dúvida - assegurou ele. - Ela a adora, Judith.
- Não me transformarei em sua amante - advertiu-lhe.
- Pelo amor de Deus! -Rannulf a olhou com estupefação. - Acreditava que era isso o que tinha vindo lhe oferecer?
- Jamais poderá haver outra coisa entre nós - disse ela - Não se dá conta? Será que não se dá conta? Até mesmo os criados da residência Bedwyn tinham mais porte que eu. Todo mundo se comportou de maneira educada comigo e lady Freyja e o duque de Bewcastle foram muito amáveis em seus esforços para me ajudar. Mas devem ter ficados estupefatos quando apareci ali.
- É preciso muito mais que isso para escandalizar um Bedwyn - afirmou ele. - Além disso, Judith, não tem por que viver em Bedwyn House; nem com nenhum de meus irmãos. O que quero é que viva comigo, certamente em Grandmaison, como minha esposa. Não acredito que minha avó me permita levá-la ali na qualidade de amante. É um pouco suscetível com essas coisas.
Ela ficou em pé de um salto, embora não se afastasse imediatamente.
- Não é possível que queira se casar comigo - disse Judith.
- Não? - inquiriu ele - por que não?
- Não funcionaria - sussurrou ela - Não poderia funcionar.
- Por que não? - repetiu ele.
Ela se virou e se afastou, decidindo continuar a subir em lugar de descer. Rannulf ficou em pé e a seguiu através da erva curta e ondulante, que estava muito verde depois das recentes chuvas.
- É porque pode ser que esteja grávida? - quis saber Judith.
- Quase espero que esteja - respondeu ele - Não porque queira a prender em um matrimônio contra sua vontade, mas sim porque eu gostaria de cumprir o último sonho de minha avó enquanto ainda continua com vida. Está morrendo, se por acaso não sabe. Seu último desejo é que me case antes que chegue a hora e seu sonho é que minha esposa e eu apresentemos seu neto enquanto ainda vive.
Ela deixou de caminhar.
- Essa é a razão de querer se casar comigo?
Levantou uma mão e colocou o dedo indicador sob o queixo de Judith.
- Semelhante pergunta não merece uma resposta - disse-lhe - Não me conhece ainda, Judith?
- Não, não o conheço. - Afastou sua mão e prosseguiu a subida.
O aclive estava cada vez mais pronunciado, mas ela não diminuiu o passo. Rannulf tirou o chapéu e o colocou sob o braço.
- Você mesmo me disse que o matrimônio só servia para adquirir riquezas e posição; que os verdadeiros prazeres se encontram fora do matrimônio.
- Santo Deus, eu disse isso? - Sabia que o havia dito.
Recordava havê-lo dito, ou alguma coisa muito similar. Nem sequer naquele momento tinha falado a sério; só tinha querido escandalizá-la. - Não sabia que aos Bedwyn não é permitido ter atividades fora do leito conjugal? Há alguma regra a respeito nos arquivos familiares, conforme acredito. Qualquer um que rompa essa norma será banido às trevas pelo resto da eternidade.
Judith acelerou o passo, por impossível que parecesse.
- Uma vez que me case, Judith - disse ele ao dar-se conta de que ela não estava de humor para brincadeiras - minha esposa será a única que terá minha devoção incondicional, tão dentro como fora do leito conjugal. E isso seria assim mesmo que por alguma razão me visse obrigado a me casar com uma mulher que não fosse de minha escolha... como esteve a ponto de acontecer durante as semanas passadas. Você é a esposa de minha escolha, o amor de meu coração durante o que me restar de vida.
Rannulf escutou suas próprias palavras como se tratasse de um espectador que nada tivesse a ver com suas emoções, talvez por medo de que não houvesse forma de persuadi-la. O espectador era muito consciente de que teria achado a exorbitância de suas palavras muito embaraçosa apenas umas semanas atrás... «A esposa de minha escolha, o amor de meu coração... »
Judith tinha a cabeça encurvada. Compreendeu que estava chorando. Rannulf não fez comentário a respeito nem pronunciou palavra alguma. Limitou-se a caminhar a seu lado. Estavam a ponto de chegar ao topo dessa colina em particular.
- Não pode se casar comigo - disse ela afinal - Logo ficaremos na ruína. Não houve final feliz nos aposentos de Bran ontem. Continua endividado até o pescoço. Acabará na prisão de devedores ou arruinará meu pai... ou ambas as coisas. Não pode se vincular a uma família semelhante.
Judith se deteve de repente. Não podia tomar nenhum caminho à parte que descia pelo outro lado da colina e que conduzia a uma propriedade abandonada depois da qual se erguia a colina seguinte.
- Seu irmão já não está endividado - disse-lhe Rannulf - e tenho a esperança de que não volte a estar nunca mais.
Ela o olhou com os olhos arregalados.
- O duque de Bewcastle não haverá... - Não chegou a completar o pensamento.
- Não, Judith - assegurou ele. - Não foi Wulf.
- Você? - levou uma mão à garganta - pagou suas dívidas? Como vamos lhe devolver tudo isso?
Rannulf apanhou-lhe a mão para afastá-la do pescoço. - Judith - disse, - é um assunto familiar. Branwell Law vai formar parte de minha família, ou esse é meu mais fervente desejo. Não tem sentido falar de devoluções. Sempre farei tudo o que estiver em minha mão para o manter afastado de qualquer dano ou desdita. - Tentou esboçar um sorriso, mas não estava seguro de tê-lo conseguido. - Mesmo que isso signifique me afastar de sua vida e não voltar a vê-la nunca mais.
- Rannulf - disse ela, - pagou suas dívidas? Por mim? Meu pai jamais aceitará.
Não fora singelo. O reverendo Jeremiah Law era um homem orgulhoso e severo que não condescendia com facilidade. Também era um homem rígido e honesto que amava seus filhos, até mesmo Judith, cujo caráter tinha esmagado sem pretender ao longo dos anos.
- Seu pai aceitou o fato de que não é nada estranho que seu futuro genro preste certa ajuda a um filho dele - informou Rannulf. - Vim aqui com sua permissão, Judith.
Ela abriu muito os olhos.
- Seu futuro cunhado também ajudou - continuou ele - Utilizou sua influência para encontrar para seu irmão um posto inferior na Companhia das Índias Orientais. Se trabalhar com esforço poderá subir de forma considerável. Pode-se dizer que seu único limite é o ceu.
- O duque de Bewcastle? Deus... - Judith mordeu o lábio. - Por que fez tanto por nós quando deve desprezar-nos de todo coração?
- Também estou aqui com sua bênção, Judith - assinalou antes de levar sua mão aos lábios.
- Deus... - repetiu Judith.
- Parece que está na mais absoluta minoria ao considerar que um matrimônio comigo é impossível - anunciou ele.
- Rannulf. - As lágrimas brilhavam de novo em seus olhos, conseguindo que parecessem mais verdes que nunca.
O espectador que morava no interior de Rannulf contemplou com horror como este se arriscava a estragar uma das pernas de sua calça ao prostrar-se de joelhos sobre a erva diante dela, enquanto lhe agarrava a outra mão.
- Judith - disse sem afastar a vista de seu rosto surpreso e avermelhado, - conceder-me-ia a grande honra de se casar comigo? Peço-lhe isso por uma só e única razão. Porque a adoro, meu amor, e não posso imaginar felicidade maior que passar o resto de minha vida fazendo-a feliz e compartilhando contigo minha amizade, meu amor e minha paixão. Se casará comigo?
Não havia se sentido tão indefeso e ansioso em toda a vida.
Aferrou-lhe com força as mãos, cravou o olhar na erva e tentou passar por cima do fato de que o resto de sua vida dependia da resposta que ela desse.
Pareceu-lhe que demorava uma eternidade em responder. Quando Judith soltou as mãos, Rannulf sentiu que sua alma caía a seus pés. Mas depois notou o ligeiro roçar de suas mãos no cocuruto, antes que começasse a lhe acariciar as mechas com delicadeza. Deu-se conta de que se inclinava para ele e de que lhe dava um beijo na cabeça, a qual sustentava entre suas mãos.
- Rannulf - disse com suavidade. - Rannulf, meu amor...
Ele ficou imediatamente em pé, agarrou-a pela cintura para levantá-la do chão e começou a girar com ela até que Judith jogou a cabeça para trás e pôs-se a rir.
- Olhe o que fez - disse-lhe sem deixar de rir uma vez que a deixou no chão.
Tinha-lhe soltado o cabelo em um dos lados e a trança estava se desfazendo com rapidez. Ergueu os braços, soltou o cabelo do outro lado e guardou os grampos no bolso. Sacudiu a cabeça, mas Rannulf cortou a distância que os separava.
- Deixe-me fazer isso - pediu.
Enterrou os dedos em seu cabelo para desfazer o que restava da trança até que o cabelo caiu solto em brilhantes ondas sobre os ombros e as costas. Cravou o olhar nesses resplandecentes e felizes olhos verdes e esboçou um sorriso antes de beijá-la. Judith lhe rodeou o pescoço com os braços e se recostou nele enquanto a rodeava a cintura e a atraía para si como se pudessem unir-se em um só ser ali mesmo, sobre o topo da colina.
Sorriram um ao outro quando por fim levantou a cabeça, sem necessidade de palavras, sem querer romper o abraço. Foi então quando se afastou para trás e estendeu os braços de Judith para contemplá-la... Sua recompensa, seu amor, sua.
A brisa soprava com certa força no topo. Para que seu vestido se agitasse atrás dela e que se colasse na frente. Transformava seu cabelo em uma nuvem de grão e ouro que flutuava a suas costas. Rannulf sabia que somente umas semanas atrás haveria se sentido terrivelmente envergonhada de que a vissem assim, em todo seu vibrante e voluptuoso esplendor. Mas nesse dia lhe devolveu o olhar com a cabeça bem alta, um suave sorriso nos lábios e as faces rosadas.
Era toda uma beleza, uma deusa espetacular, toda uma mulher que ao fim se aceitou tal e qual era.
- Devo presumir que sua resposta é sim? - perguntou Rannulf.
- Sim, certamente - disse ela entre risadas. - Não disse isso? Sim, é claro que sim, Rannulf!
Puseram-se a rir antes que ele a segurasse nos braços e começasse a girar até que ambos se sentiram enjoados.
O pequeno quarto de vestir de Judith estava tão abarrotado que Tillie Mal podia dobrar os cotovelos para lhe colocar o chapéu sobre a cabeça com muito cuidado de não desmanchar os delicados cachos do penteado.
- Está linda, Jude - disse-lhe Pamela com os olhos brilhantes pelas lágrimas. - Sempre disse que foi a mais bonita de todas.
- Lorde Rannulf vai ficar boquiaberto - comentou Hilary enquanto unia as mãos sobre o peito.
- Judith - começou Cassandra sem deixar de olhá-la. Sempre fora sua melhor amiga. As palavras lhe falharam. - Ah, Judith...
Sua mãe fez algo mais que olhá-la. Levantou as mãos para a renda que descansava sobre a aba do chapéu e a baixou para cobrir o rosto de sua filha.
- Tenho a sensação de ter esperado uma eternidade para ver uma de minhas filhas felizmente casada - disse-lhe. - Me prometa que será feliz, Judith. - Embora seus gestos fossem bruscos, era evidente que estava a beira das lágrimas.
- Prometo, mamãe - replicou Judith.
Sua avó, vestida de chifon violeta e adornada com o que parecia ser a totalidade das jóias de sua bolsa de veludo, não deixava de emitir brilhos e tinidos enquanto abria e fechava as mãos e sorria a sua neta preferida. Não tinha se queixado de nenhuma doença nesse dia. E tampouco tomou o café da manhã a não ser sua costumeira xícara de chocolate matutino. Segundo suas próprias palavras, estava muito nervosa.
- Judith, carinho... - disse nesse momento, - desejaria... Senhor, como desejaria que seu avô estivesse comigo para compartilhar meu orgulho e minha alegria. Mas como não está, terei que me sentir o dobro de orgulhosa e feliz.
E nesse momento alguém bateu na porta e outra pessoa mais se apertou na estadia.
- Bom, bom... ! - exclamou Branwell. - Está linda, Jude. O tio George me pediu que lhes dissessem que as carruagens esperam na porta para levar a todos à igreja, salvo Jude e papai.
Elevou-se uma nova onda de murmúrios e emotivas felicitações, além de algumas palavras de conselho, antes que o aposento se esvaziasse e Judith ficasse a sós com Tillie.
Tinham-lhe atribuído outros aposentos, uma muito maior que o anterior, em Harewood Grange. Era o dia de suas bodas. Tinham discutido muito sobre o lugar mais apropriado para celebrar o enlace. Seu pai queria que fosse em Beaconsfield e Rannulf esteve disposto a lhe fazer a vontade. Embora houvesse alguns obstáculos. Onde se alojariam todos os membros da família do noivo? Poderiam as avós de ambos deslocar-se? Sobre tudo lady Beamish, cuja saúde era delicada. Sugeriu-se Londres, mas a opção ficou descartada porque suporia uma viagem de igual comprimento para as anciãs. Talvez Leicestershire fosse a melhor decisão, já que tanto Rannulf como Judith tinham parentes com casas bastante grandes para albergar às duas famílias. Embora em princípio tivesse parecido impossível. Como poderiam Judith e sua família convidar-se sem mais a Harewood Grange depois dos últimos acontecimentos?
O problema tinha ficado resolvido depois da chegada à reitoria de uma missiva muito educada procedente de sir George Effingham, que acabava de receber a notícia do compromisso dos lábios de sua sogra. Convidava cordialmente seu cunhado a levar sua família a Harewood, escreveu sir George, se as núpcias se celebrassem nas adjacências. Na mesma carta mencionava que seu filho partiu recentemente para a América e que tanto sua esposa como sua filha estavam de visita na casa dos pais do senhor Peter Webster, o futuro marido de Julianne.
Rannulf tinha passado o último mês em Grandmaison enquanto corriam os proclamas. Seus irmãos e irmãs também passaram ali a maior parte do tempo, atraídos tanto pela notícia da delicada saúde de lady Beamish como pelas bodas. A mesma Judith não chegara até no dia anterior e vira Rannulf somente um instante, tinha se deslocado de Grandmaison com lorde Alleyne depois do jantar. Toda a família de Judith esteve presente, e ficou apenas meia hora.
Mas por fim, sim, por fim, seis semanas depois de sua milagrosa aparição na colina próxima à reitoria, chegou o dia de suas bodas.
- Está tão bonita como uma pintura, senhorita - disse Tillie.
- Obrigada.
Judith se virou para olhar-se no espelho, que esteve oculto atrás dos corpos de seus familiares até um minuto. Decidiu-se pela simplicidade face à insistência de seu pai que não reparasse nos gastos. Seu vestido de seda cor marfim tinha um decote baixo e a cintura alta que estava tão na moda, as mangas curtas e a prega estavam rematadas por um adorno e um bordado dourado. Seu maior atrativo era o modo em que se amoldava às curvas de seu busto antes de cair em suaves pregas sobre os quadris e as longas pernas. O chapéu, igual às luvas, era da mesma cor que o vestido, embora a pluma que o adornava fosse dourada. Igual aos sapatos. No pescoço usava uma delicada corrente de ouro de duas voltas, um presente de bodas que Rannulf lhe deu na noite anterior.
Sim, pensou Judith, tinha a aparência que desejava. Embora as mariposas que tinham revoado em seu estômago do instante em que despertou até o emocionante momento em que colocou o vestido tinham retornado com força. Não tinha conseguido acreditar que esse dia chegaria, até esse momento. E até mesmo nesse instante...
- Seu pai deve estar esperando-a, senhorita - disse Tillie.
- Sim. - Judith se afastou com decisão do espelho e saiu do quarto de vestir enquanto uma sorridente Tillie fazia uma reverência enquanto abria a porta.
Seu pai a esperava ao pé da escada, com uma aparência séria e formal, vestido com seu melhor traje negro. Seus olhos a percorreram de cima abaixo enquanto descia e o cenho que lhe enrugava a testa era muito evidente. Judith se preparou para escutar suas críticas, decidida que não a desanimasse.
- Bom, Judith - disse-lhe, - passei anos temendo que toda essa beleza acabasse por atrair um homem que não soubesse ver além das aparências. Mas acredito que evitou esse destino tão comum para as mulheres lindas. Hoje está radiante.
Judith mal podia dar crédito ao que estava ouvindo. Sempre a tinha achado linda? Por que não disse nenhuma só vez? Por que não explicou...? Embora supusesse que os pais não eram esses pináculos de perfeição que os filhos acreditavam e esperavam que fosse. Eram seres humanos que faziam o melhor possível, embora se equivocassem frequentemente.
- Obrigada, papai. - Sorriu-lhe - Obrigada.
Ofereceu-lhe o braço para conduzi-la ao exterior, para a carruagem que os estava esperando.
A igreja local de Kennon, com seus antigos muros de pedra e suas vidraças, era pitoresca, mas também pequena. Detalhe de pouca relevância, dado que a lista de convidados ao enlace da senhorita Judith Law e lorde Rannulf Bedwyn se reduzia às famílias dos noivos.
Rannulf estava tão nervoso como se fosse uma grande boda em sociedade celebrada na tão em moda St George em Haanover Square em Londres. Quase desejou ter feito o mesmo que Aidan, que levara Eve a Londres para casar-se em particular com uma licença especial, tendo somente sua tia avó e seu assistente pessoal como testemunhas, depois da qual a levara de volta a sua casa em Oxfordshire sem sequer informar a Bewcastle do acontecimento.
Rannulf esperava junto ao altar com Alleyne, seu padrinho.
Bewcastle estava sentado no segundo banco junto a sua avó, Freyja e Morgan. Aidan se sentava no seguinte com Eve e seus dois filhos adotivos, embora sempre se referissem a eles como seus próprios filhos. Atrás deles estavam os marqueses de Rochesster, tios de Rannulf. A mãe de Judith se sentava no segundo banco do outro lado do corredor, com seu filho e sua sogra. As três irmãs de Judith estavam atrás com sir George Effingham. Alguns criados de Grandmaison e Harewood se acomodaram nos bancos ao fundo da nave.
O último mês foi interminável apesar de ter contado com a companhia de seus irmãos, salvo a de Aidan, que chegou na semana anterior. Todos os dias temia que chegasse uma carta de Judith rompendo o compromisso com a desculpa mais insignificante. Muito temia que a confiança que sua futura esposa tinha em si mesma fosse ainda muito frágil. De qualquer forma, a carta não chegou e quando cavalgou até Harewood a noite passada, teve a grata surpresa de descobrir que sim chegou segundo o previsto.
Embora não conseguia acreditar nem sequer essa manhã. Mas nesse momento e graças ao silêncio que reinava na igreja, pôde perceber que as portas se abriam e se fechavam, e Alleyne lhe tocou o cotovelo para recordar que chegou a hora de ficar em pé.
O vigário, vestido com a túnica e levando um grande sorriso, fez um gesto ao organista para que começasse a música.
Rannulf virou primeiro a cabeça e depois o resto do corpo. Senhor, era tão linda que o deixava sem fôlego... e não só por seu voluptuoso corpo, que ficava ressaltado pelo vestido de noiva; nem pelo glorioso cabelo, meio oculto pelo chapéu; nem por seu encantador rosto, escurecido pelo véu. Não era somente por sua aparência e seu físico, mas sim porque se tratava de Judith.
Sua Judith. Quase sua.
A noiva não sorria, percebeu quando se aproximou dele pelo braço de seu pai. Tinha os olhos verdes totalmente abertos. Parecia aterrorizada. Entretanto, seu olhar posou imediatamente nele e de repente pareceu transformar-se pela alegria.
Rannulf lhe sorriu e começou a acreditar.
- Queridos irmãos... - disse o vigário momentos depois.
Era uma estranha sensação, como se o tempo passasse muito devagar... justamente o contrário ao que ela acreditou que aconteceria. Judith escutou e saboreou cada palavra da cerimônia que a uniria em santo matrimônio a Rannulf para o resto de suas vidas. Escutou como seu pai entregava sua mão ao noivo e se virou para lhe oferecer um sorriso. Notou o incomum brilho de seus olhos e se deu conta de que o momento o emocionara. Viu lorde Alleyne, atraente, elegante e sorridente. Escutou o murmúrio das pessoas que havia a suas costas, assim como os soluços de sua avó e alguém que mandava calar a um menino que tinha perguntado muito alto se essa era sua nova tia. Cheirava as rosas, que estavam dispostas em dois enormes vasos de cada lado do altar.
E sentiu a presença de Rannulf com cada fibra de seu ser, percebeu do quanto sentira sua falta durante o último mês e de que depois desse dia permaneceriam juntos até que a morte os separasse. Cortou o cabelo, embora ainda parecesse um guerreiro saxão. Estava incrivelmente atraente com um casaco marrom justo, colete dourado, calças de cor nata, camisa, meias e renda de cor branca e sapatos negros. Sua mão parecia grande e firme enquanto segurava a sua, e seus dedos não tremeram nem um ápice quando lhe deslizou o anel no anular. Seus olhos azuis a contemplaram com expressão risonha no momento em que a viu até que o vigário pronunciou as últimas palavras.
- E eu lhes declaro marido e mulher em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Judith se perguntou como era possível que a felicidade fosse tão intensa que era quase dolorosa.
- Minha esposa - sussurrou Rannulf a seu ouvido antes de afastar o véu do rosto e colocá-lo sobre a aba do chapéu para contemplá-la com os olhos brilhantes e um olhar intenso. Por um desconcertante momento, Judith acreditou que ia beijá-la a ali na igreja, diante do vigário e das famílias de ambos.
Assinaram o registro que faria oficial seu matrimônio e depois saíram juntos da igreja como marido e mulher. Era setembro. O calor do verão tinha desaparecido, mas o outono ainda não fez ato de presença. O sol brilhava no ceu azul.
- Meu amor - disse Rannulf assim que saíram da nave da igreja enquanto rodeava sua cintura com um braço e baixava a cabeça para beijá-la.
Houve vivas e aplausos, e quando Judith levantou a vista viu uma multidão congregada junto à porta que dava acesso ao caminho de pedra que rodeava o cemitério. Todos os aldeãos deviam ter ido para vê-los.
Pôs-se a rir e olhou a Rannulf, que também ria. - Corremos para a carruagem? -perguntou ele.
Judith se deu conta de que o cabriolé que tinha aparecido do outro lado da porta estava decorado com uns enormes laços brancos.
- Sim.
Deu-lhe a mão, levantou as saias com a outra e correu junto a ele em direção à carruagem. Ao longo dos últimos metros caiu sobre eles uma chuva de pétalas de flores enquanto se elevava um coro de risadas e felicitações.
Puseram-se em marcha depois que Rannulf apanhou uma bolsa repleta de moedas de um canto do assento e as lançasse aos punhados para a multidão. Depois se sentou junto dela entre gargalhadas, embora o sorriso desaparecesse de seu rosto, ficando relegado aos olhos, quando voltou a lhe segurar a mão entre as suas. - Judith, meu amor. Está feliz?
- Quase abundantemente feliz - respondeu - A felicidade quer sair aos borbotões de meu corpo, mas não encontra um modo.
- Encontraremos um modo - replicou Rannulf enquanto baixava a cabeça para beijá-la de novo. - Esta noite. Prometo-lhe isso.
- Sim - disse ela, - mas antes tem o almoço de bodas.
- Antes o almoço de bodas - conveio ele.
- Alegra-me tanto que nossas duas famílias estejam aqui para celebrar conosco... -disse - Acredito que até hoje não tinha me dado conta de quão importante é a família.
Ele apertou sua mão entre as suas.
Certamente que as famílias eram um bem incalculável. E as duas famílias em questão, os Bedwyn e os Law, deram-se melhor do que Rannulf acreditou possível. Bewcastle relaxou o bastante para ser agradável aos Law quando foram apresentados; durante o almoço encetou uma conversa com o reverendo Jeremiah Law que parecia ter como tema a teologia. O marquês de Rochester conversou longa e tediantemente com sir George Effingham sobre política. Tia Rochester, a mais altiva das aristocratas, permitiu-se formar parte da conversação que mantinham a mãe de Judith e as avós de ambos. Alleyne engenhou para acabar sentado entre Hilary e Pamela. Morgan, que estava frente a eles, sentou-se junto a Branwell Law. Eve, sorridente e encantadora, falou com todo mundo sem separar-se de seus filhos, salvo quando a pequena por fim deu sinais de cansaço por causa de toda a agitação e Aidan a segurou nos braços.
Os tios de Rannulf se mostraram encantados com Judith durante as apresentações.
- Deve ser algo fora do normal ter conseguido apanhar o coração de Rannulf - disse sua tia com seu habitual desdobramento de sinceridade e o lornhão na mão dispostos para seu uso, - sem ter em conta a aparência. Bewcastle já havia me dito que era uma beleza.
- Obrigada, senhora. - Judith sorriu e fez uma reverência. Morgan e Freyja a beijaram na face quando chegaram da igreja. Eve, a quem acabava de conhecer nesse instante, deu-lhe um forte abraço.
- Rannulf veio a Grandmaison faz dois meses com a firme decisão de resistir a qualquer intento casamenteiro - comentou com uma piscada depois de lançar a ele um breve e travesso olhar. - Me alegro muito de que seu plano tenha frustrado.
Aidan, o alto, sério e austero Aidan, fez-lhe uma reverência, fazendo pensar com certeza que era inclusive mais rígido e frio que Bewcastle. Entretanto, depois disso a agarrou pelos ombros, inclinou a cabeça para beijá-la na face e lhe sorriu.
- Bem-vinda à família, Judith - disse - Somos um grupo sem acerto algum. É necessária uma mulher muito valente para casar-se com um de nós.
Eve se pôs a rir e baixou a mão para posá-la sobre a cabeça do menino.
- Posso assegurar que Judith é tão intrépida como eu - disse. Freyja se movia de um grupo a outro, comportando-se com total educação. Entretanto, parecia a pessoa mais fora de lugar em meio a semelhante celebração, pensou Rannulf. Levou sua irmã para um canto enquanto Judith conversava com sua avó, a quem acabava de escutar dizer que já tinha encharcado três lenços, mas que ainda restavam outros três de reserva na bolsa.
- Está muito emotiva, Free? - perguntou-lhe.
- É claro que não - replicou Freyja com presteza. - Me alegro por ti, Ralf. Devo confessar que me senti um pouco horrorizada quando chegou a Bedwyn House com Judith, mas não é nenhuma débil nem caça-fortunas, não é? Atrevo-me a dizer que será feliz.
- Sim, eu também acredito. - Inclinou a cabeça para um lado para estudá-la mais detalhadamente. - Irá amanhã a Lindsey Hall com Wulf e os outros?
- Não! - respondeu com brutalidade. - Não, parto para Bath. Charlotte Holt-Barron está ali com sua mãe e me convidou para passar uma temporada com elas.
- A Bath, Free? - Rannulf franziu o cenho. - Não é um lugar no qual possa encontrar jovens com os quais se relacionar, nem tampouco muitas diversão, não lhe parece?
- Me fará bem - disse ela.
- Isto não tem nada a ver com Kit, não é? - inquiriu Rannulf. - Nem com o fato de que sua esposa esteja a ponto de ter um filho.
Kit Butler, o visconde de Ravensberg, que fora antigo pretendente de Freyja e seu noivo no verão passado, por desgraça vivia muito perto de Lindsey Hall. E lady Ravensberg estava a ponto de dar a luz.
- É claro que não! - replicou ela com muita veemência. - Mas olhe como é estúpido, Ralf.
O iminente acontecimento e as bodas de um irmão deviam ser algo muito doloroso para Freyja.
- Sinto muito, Free - disse - Mas logo encontrará alguém e então se alegrará de ter esperado.
- Será melhor que se esqueça deste ridículo assunto - ordenou-lhe - se não quer que lhe dê um murro no nariz, Ralf.
Ele sorriu e lhe deu um beijo na face, algo que raras vezes fazia.
- Se divirta em Bath - disse.
- Tenho toda a intenção de fazê-lo - respondeu. Olhou além de seu irmão. - Como se sente, vovó?
Rannulf se virou e rodeou à anciã com os braços. -Vovó - disse.
- Tem-me feito muito, mas muito feliz hoje, Rannulf - assegurou a anciã.
Sorriu-lhe. Ver-se rodeada de seus netos durante o último mês parecia ter feito bem a sua saúde. Embora a gente nunca pudesse estar seguro com essa mulher, é claro. Sua saúde era um assunto do qual nunca falava.
- Eu também sou feliz - confessou.
- Sei. - Deu-lhe um tapinha no braço. - Essa é a razão de que eu o seja.
Por fim chegou uma oportunidade de ficar a sós com Judith. Passaria a noite de bodas na residência da viúva, que fora arejada, limpada e acondicionada para a ocasião. Embora a maior parte do que restava do dia passariam em Granddmaison com ambas as famílias. Portanto só foi um momento roubado quando no meio da tarde escaparam ao exterior e se encaminharam para o caramanchão. Não estava tão coalhado de flores como no princípio do verão, mas até esse instante era um lugar íntimo e encantador, com os distintos terraços banhados pelo sol da tarde e o arroio que borbulhava por seu pedregoso leito.
Sentaram-se juntos na beira do banco onde Judith se sentou a primeira vez que visitou Grandmaison, aquele dia em que a pediu em matrimônio pela primeira vez. Rannulf enlaçou os dedos com os dela.
- Correndo o risco de parecer insensível - disse, - me alegro de que chovesse aquele dia e de que nem o cocheiro nem eu fizéssemos caso das advertências para não continuar a viagem. Alegro-me de que a diligência tombasse. Que diferentes seriam hoje nossas vidas se essas coisas não tivessem acontecido.
- E se houvesse dito que não quando se ofereceu me levar a cavalo - acrescentou ela. - Tinha a negativa na ponta da língua. Jamais fez algo tão inapropriado. Mas decidi roubar um sonho e se transformou no sonho do resto de minha vida. Rannulf, não sabe quanto o amo. Oxalá houvesse palavras para expressar o que sinto.
- Não há - disse ele enquanto erguia suas mãos entrelaçadas e depositava um beijo sobre os nódulos de Judith. - Nem sequer quando fizermos amor esta noite poderemos expressar de forma adequada o que é o amor, não lhe parece? Essa foi a maior surpresa dos últimos dois meses: o amor não se limita somente a um plano, seja físico, mental ou emocional. Transcende em muito a qualquer um deles. É a mesma essência da vida, não acha? Um mistério indescritível que só chegamos a vislumbrar graças ao descobrimento do ser amado. Ajude-me um pouco, Judith. Acha que estou dizendo tolices?
- Não. - pôs-se a rir. - Compreendo-o perfeitamente. Ela inclinou a cabeça e começou a acariciar o dorso da mão de Rannulf com os dedos da mão livre.
- Rannulf, lembra-se quando estávamos na colina que há perto de minha casa faz seis semanas e disse que quase desejava que fosse verdade?
- Refere-se a... - Rannulf cravou o olhar nos brilhantes cachos da nuca de sua esposa com a boca repentinamente seca.
- Pois é verdade - disse ela em voz baixa antes de levantar a cabeça para olhá-lo nos olhos. - Estou grávida. Ao menos, acho que estou.
Ele a contemplou, incapaz de mover-se. - O incomoda muito? - perguntou.
Inclinou-se sobre ela e lhe soltou a mão para poder lhe rodear os ombros com um braço enquanto deslizava o outro por baixo dos joelhos e ficava em pé com ela. Deu duas voltas com ela nos braços.
- Vou ser pai! - gritou ao ceu azul que se abria sobre eles, com a cabeça arremessada para trás. - vamos ter um filho.
Gritou entusiasmado antes de baixar a cabeça para ela. Sua esposa tinha os olhos brilhantes e não deixava de rir.
- Acredito que não se incomoda absolutamente - disse ela.
- Judith - disse lhe roçando a boca com os lábios. - Minha esposa, meu amor, meu coração. Estou dizendo tolices outra vez?
- É provável - respondeu ela entre risadas antes de lhe rodear o pescoço com os braços. - Mas só eu estou aqui para escutar. Diga alguma mais.
Mas, como ia fazê-lo? Estava-o beijando apaixonadamente.
Mary Balogh
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