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LIGEIRAMENTE SEDUZIDOS / Mary Balogh
LIGEIRAMENTE SEDUZIDOS / Mary Balogh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Jovem, bela, deliciosamente casadoura.
No momento mesmo em que vê lady Morgan Bedwyn do outro lado do deslumbrante salão de baile, Gervase Ashford, conde do Rosthorn, sabe que encontrou o instrumento perfeito para sua vingança. Mas o casamento não entra nos planos do libertino mais célebre do continente. Assim como tampouco é do interesse da independente lady Morgan... até que uma noite de escandalosa intimidade desemboca em um escândalo que poderia fazer ainda mais doce a vingança do Gervase.
Só existe uma coisa que se interpõe em seu caminho: Morgan, que conseguiu o impossível... ela faz com que seu frio coração se derreta. Para o Gervase, só é aceitável o matrimônio, mas Morgan não o aceitará assim fácil. Assim começa uma ardente corte em que dois receosos corações estão a ponto de abrir-se para a paixão mais escandalosa de todas: o glorioso e arrebatador amor.

 

 

 


 

 

 


Capítulo 1

Ainda lhe parecia um tanto estranho voltar a estar rodeado da flor e nata da sociedade inglesa e escutar como virtualmente todo mundo falava sua língua. Em realidade, a concorrência não estava composta só por ingleses. Também havia holandeses, belgas e alemães, entre outros. Mas os ingleses preponderavam.
Gervase Ashford, conde do Rosthorn, estava junto às portas do salão de baile na casa que o visconde do Cameron tinha alugado na rua Ducale, em Bruxelas, contemplando a cena com ávido interesse. Procurava rostos conhecidos. Desde sua recente volta da Áustria tinha visto vários, mas esperava encontrar alguns mais. Embora a maioria das damas e dos cavalheiros presentes pareciam excessivamente jovens. Por estranho que parecesse, aos trinta anos se sentia como um ancião.
A maioria desses jovens, e alguns cavalheiros de mais idade, traziam uniformes militares. Alguns eram azuis ou verdes, mas quase todos eram escarlates, reluzentes graças aos lustrosos galões e à profusão de guarnições douradas. Semelhantes a um bando de perus reais, eclipsavam às damas, com seus vaporosos vestidos de talhe alto em tons pastel. O contraste fazia com que parecessem delicadas e muito femininas.
-Fazem com que qualquer um se sinta em desvantagem até vestido com seus melhores trajes, não? -disse-lhe ao ouvido com tom lastimoso o honorável John Waldane, que estava a sua esquerda. Seu ouvido direito estava mais que ocupado com o zumbido de centenas de vozes que se erguiam para fazer-se ouvir por cima das demais conversas e do ruído da orquestra que afinava seus instrumentos.
-Se se veio com a intenção de impressionar às damas, sim, suponho que é certo - admitiu, baixo. - Se se veio para dar uma olhada sem chamar a atenção, não.
No momento, não queria chamar a atenção absolutamente. Ainda se sentia um pouco incomodado rodeado de ingleses, já que não deixava de perguntar-se se recordariam algo do acontecido nove anos atrás. Se ainda restava algo que recordar. Embora muito pouco do acontecido tinha tido lugar em público, não sabia até que ponto se estendeu o sórdido assunto.
Waldane, que naquela época formava parte de seus conhecidos e o tinha saudado com grande afabilidade quando voltaram a encontrar-se apenas dois dias antes, não tinha feito a menor alusão ao assunto. Claro que, é obvio, a reputação que ganhara depois era muito conhecida entre aqueles que tinham passado algum tempo no continente.
-É muito provável que um dia destes capturem Boney e o mandem de volta a Elba, onde o acorrentarão de por toda a vida se seus carcereiros tiverem dois dedos de testa –disse Waldane-. E a estes oficiais acabarão as desculpas para fazer alardes de galhardia e encantar às damas com seus encantos.
-Ciumento? -perguntou-lhe, e de novo pôs-se a rir baixo.
-Não sabe quanto -Waldane, ligeiramente mais corpulento que a última vez que o viu, nove anos antes, e com uma incipiente calva na cabeça, soltou uma seca gargalhada-. Há certas damas a quem mereceria a pena impressionar.
-Sério? -levou o monóculo ao olho para ver melhor o outro extremo do concorrido salão de baile. Reconheceu lorde Fitzroy Somerset, secretário do duque do Wellington, que estava falando com lady Mebs, e também a sir Charles Stuart, embaixador britânico em La Haja.
Mas seu olhar se desviou com gosto para as mocinhas, embora não esperasse reconhecer a nenhuma e, em caso de que o fizesse, seria estranho que lhe chamassem a atenção. As mocinhas não lhe atraíam o mínimo.
- Valha-me Deus! Tem razão.
Seu monóculo se deteve sobre uma das integrantes do grupo de sir Charles, que se tinha virado para saudar dois oficiais da Guarda Real Montada; duas figuras resplandecentes com suas antigas calças brancas, suas casacas vermelhas, seus galões azuis, suas guarnições douradas e seus sapatos em lugar das botas de montar regulamentares.
Era uma dama muito jovem, certamente recém apresentada em sociedade, se suas hipóteses estavam certas. Certamente teria passado por cima dela se Waldane não tivesse feito o comentário anterior. Mas, já que tinha decidido seguir seu conselho, viu-se obrigado a admitir que olhar a uma beldade podia ser extremamente prazenteiro as vezes.
Como nesse momento.
Sem dúvida alguma, a moça era linda e o contraste de seu vestido simples branco com os ostentosos uniformes dos oficiais fazia com que chamasse ainda mais a atenção. Era um vestido de manga curta, decote pronunciado e corte alto, confeccionado em cetim e coberto de bordado.
Embora para Ashford não era o vestido o que lhe interessava. Seu experiente olhar percebeu de que o corpo que cobria o vestido era esbelto e de pernas longas, magro embora inegavelmente feminino. Seu pescoço, longo e elegante como o de um cisne, segurava sua cabeça em um ângulo orgulhoso. E bem orgulhosa que podia estar. Seu cabelo negro, recolhido em um elegante coque e adornado com o que pareciam ser diamantes, brilhava à luz das milhares de velas dos lustres. Seu rosto, um oval perfeito com olhos escuros e nariz reto, era um exemplo de perfeição clássica. Sua beleza era deslumbrante quando sorria, coisa que fez ao responder a um comentário do oficial que tinha a sua direita enquanto levava um leque de renda branco ao queixo.
Chegou à conclusão de que nunca tinha visto uma mulher tão formosa embora pensando bem não podia dizer-se que era uma mulher. Em realidade era pouco mais que uma menina.
Mas com um encanto tão arrebatador como o de um casulo de rosa perfeito ainda por florescer. Talvez por sorte para a jovem em questão e para os pais ou a acompanhante que estivessem pululando a seu redor, Ashford preferia as flores em seu esplendor aos delicados casulos… Eram muito mais agradáveis de seduzir. Deu-se por satisfeito com o escrutínio e fez gesto de mover o monóculo.
-Valeria a pena impressioná-la - disse John Waldane ao perceber o gesto de seus lábios e da direção de seu olhar-. Mas, por desgraça, Rosthorn, nenhum homem chama sua atenção a menos que seus amplos ombros estejam vestidos em uma casaca vermelha - Soltou um suspiro teatral e pesaroso.
-E só se não superar os vinte e dois - acrescentou ele, ao perceber a juventude dos dois oficiais. Tinha que estar sentindo-se velho, pensou, se os oficiais lhe pareciam meninos brincando de guerra.
-Não sabe quem é? -perguntou-lhe Waldane ao ver que se voltava em direção à sala de jogos.
-Deveria? -perguntou a sua vez-. É alguém de relevância, suponho.
-Poder-se-ia dizer que sim - conveio seu amigo-. Se hospeda com os condes de Caddick na rue do Bellevue, pois sua filha, lady Rosamond Havelock, é amiga dela. Embora seu irmão também esteja na cidade; é funcionário da embaixada de La Haja, mas neste momento está em Bruxelas com sir Charles Stuart.
-E...? -insistiu para continuar com um gesto da mão.
-Um dos oficiais que está falando com ela (o loiro que tem à direita) é o visconde de Gordon -explicou Waldane-. O capitão lorde Gordon, herdeiro do Caddick. Filho único, já que falamos. Daí que o conde lhe tenha comprado o cargo na Guarda Real Montado, suponho.
Muita glória e muito uniforme, mas nada de perigo. Pavonear-se-ão a lombos de seus cavalos nas revistas às tropas, provocando desmaios coletivos entre as damas por sua galhardia, mas desmaiarão coletivamente se a ameaça de um enfrentamento com o Boney[1] deixa de ser um emocionante jogo para converter-se em uma realidade.
-Talvez nos surpreendam se lhes derem a oportunidade de alcançar a glória -disse Gervase com equanimidade. Deu um passo para as portas do salão de baile. Era óbvio que seu amigo Waldane tinha tomado seu interesse pela jovem morena por algo de índole mais pessoal e claramente queria que lhe suplicasse que lhe dissesse seu nome.
-É lady Morgan Bedwyn - disse Waldane.
Gervase se deteve e o olhou com as sobrancelhas arqueadas.
-Bedwyn?
-A caçula da família - explicou Waldane -. Recém saída da casca de ovo, apresentada na Corte muito recentemente, o tesouro mais cobiçado do mercado matrimonial, embora Gordon já a reclamou. Penso que se espera um anúncio formal a qualquer momento. Será melhor que se mantenha longe, Rosthorn, embora o lobo ficou na Inglaterra em lugar de acompanhá-la deu um tapinha no ombro e sorriu.
O lobo. Wulfric Bedwyn, o duque do Bewcastle. Embora levasse nove anos sem vê-lo e quatro ou cinco sem pensar nele, sentiu que a gélida fúria do ódio se apoderava dele com a simples alusão a sua pessoa. Bewcastle era o culpado de que não conhecesse nenhum desses rostos ingleses, de que seu próprio idioma lhe resultasse estranho e de que se sentisse como um estrangeiro entre eles, seus próprios compatriotas. Bewcastle era o culpado de que não tivesse pisado em chão inglês (seu próprio país, o país de seu pai) desde que tinha vinte e um anos. Em troca, tinha perambulado pelo continente sem pertencer realmente a França porque, apesar da nacionalidade francesa de sua mãe, ele era inglês de nascimento e herdeiro de um condado inglês. Por esse mesmo motivo tampouco tinha estado a salvo em outros países europeus, até há pouco sob a ocupação francesa.
Bewcastle, que tinha sido seu amigo em outros tempos, era o culpado de que toda sua vida perdera o rumo para sempre. Durante os dois primeiros anos o exílio lhe tinha parecido um castigo pior que a morte. O exílio, a insofrível humilhação e a impotência de ver-se incapaz de convencer a alguém da injustiça que se cometera com ele. Ao final se tinha consolado ao converter-se no que todos esperavam dele: um libertino que só se preocupava consigo mesmo e pela satisfação de seus desejos, fossem sexuais ou de outra índole. Certamente tinha permitido que Bewcastle ganhasse e em mais de um sentido.
Sim, compreendeu nesse preciso momento, enquanto observava ao Waldane por cima do ombro. O ódio, a urgente necessidade de devolver o golpe ao Bewcastle, não se tinha murchado nem um ápice com os anos. Limitou-se a enterrá-lo no fundo de sua mente.
E nesse preciso instante se encontrava no mesmo edifício, na mesma sala, que a irmã do Bewcastle. Era muito bom para ser verdade.
Voltou a cravar a vista no outro lado do salão de baile. A jovem tinha a mão apoiada na manga do oficial loiro (o capitão lorde Gordon) enquanto se dirigiam à pista de baile, onde se estavam formando as filas para começar com a contradança que abriria o baile.
Lady Morgan Bedwyn.
Sim, não lhe cabia a menor duvida de sua linhagem. Seu porte gotejava o orgulho e a arrogância da aristocracia. Poderia fazer alguma diabrura se a propusesse, pensou, olhando-a com os olhos entrecerrados. A tentação era quase irresistível. A moça ocupou seu lugar na longa fila de damas sem tirar o olho de cima do capitão lorde Gordon (um jovenzinho bastante bonito), que se colocou frente a ela na fila de cavalheiros.
O moço era muito elegível. Filho e herdeiro de um conde. Inclusive se murmurava que estava virtualmente comprometida com ele.
A idéia de fazer uma diabrura lhe pareceu ainda muito mais atraente.
Não lhe cabia dúvida de que a moça era uma inocente apesar de sua arrogância.
Provavelmente tinha estado rodeada de preceptoras[2] até ser apresentada em que sociedade, e de acompanhantes depois. Ele, em troca, não tinha nada de inocente. Em apesar de sua reputação, era certo que só utilizava seus encantos sedutores com mulheres que igualavam sua experiência e, por regra geral, sua idade. Mas se decidisse utilizar os ditos encantos com uma jovem inocente, talvez conseguisse que se esquecesse do casaca vermelha. Sim, se decidisse.
E como não ia fazê-lo?
Quando começou a música, sentiu que a tentação se apoderava dele com um formigamento ligeiramente sedutor. Embora, para ser sincero, a tentação não fosse muito menos ligeira.
Lady Morgan Bedwyn executava os passos da dança com precisão e elegância. Era uma mulher magra, esbelta e de peitos pequenos, atributos físicos que em geral não despertavam seu apetite sexual. E nesse momento não estava nenhum pouco excitado; limitava-se a apreciar em sua justa medida a perfeição de sua beleza. E sim, lhe seduzia a idéia de lhe causar problemas.
-Vai à sala de jogos, Rosthorn? -perguntou-lhe John Waldane.
-Talvez mais tarde -respondeu sem afastar a vista dos bailarinos, cujos pés golpeavam o parquet[3] ao compasso da música-. Devo ir em busca de lady Cameron e lhe pedir que me apresente a lady Morgan Bedwyn quando acabar esta dança.
-Vá, vá! -Seu amigo tirou a caixinha de rapé. - É um Dom Juan, Rosthorn! Bewcastle o desafiará a um duelo só por ter ousado pousar os olhos em sua irmã.
-Bewcastle, se a memória não me falhar, não participa de duelos - corrigiu-o com desdém ao mesmo tempo em que soprava pelo nariz por causa da dolorosa recordação-. Além disso, sou o conde do Rosthorn. Não há nada de mal em que solicite uma apresentação formal. Ou que a convide a dançar. Nem que estivesse pensando em convidá-la a fugir-se comigo.
Embora sentisse uma malévola satisfação ao imaginar a reação do Bewcastle se de verdade fugisse com a moça. Seria capaz de chegar a esses extremos?
-Cinco libras que insistirá em dançar todas as peças com um casaca vermelha e não lhe prestará a menor atenção -disse Waldane com uma gargalhada.
-Só cinco libras? -perguntou, e se pôs a rir baixo-. Que menosprezo, Waldane! Que sejam dez ou cem. Dá no mesmo para mim. Porque perderá, é obvio.
Não podia afastar os olhos da jovem. Era a irmã do Bewcastle, uma pessoa muito próxima a ele, um ser querido. Uma pessoa mediante a qual poderia ferir o orgulho e a posição preeminente do Bewcastle e inclusive seu coração. Embora duvidasse muito que tivesse coração. Da mesma maneira que ele tampouco o tinha, pensou com cinismo.
Os giros favoráveis que às vezes tomava o destino eram estranhos embora já fosse hora. Bélgica era o mais perto que tinha estado de retornar a casa, embora seu pai levasse mais de um ano morto e sua mãe o exortasse a retornar a Windrush Grange para encarregar-se de sua herança, de suas obrigações e de suas responsabilidades como conde do Rosthorn. Estava em Viena quando Napoleão escapou da ilha da Elba em março. Nesse momento, dois meses depois, tinha decidido dar o tímido passo de ir para Bruxelas, onde os ingleses e seus aliados começavam a reunir tropas para o enfrentamento decisivo com Napoleão. Muitos dos ingleses com filhos no exército tinham levado suas esposas e filhas, e outros membros da família. Uma enorme quantidade de cidadãos britânicos tinha chegado em massa a Bruxelas durante a primavera de 1815 pela simples razão de que era o lugar de moda.
E entre essa enorme quantidade de pessoas se encontrava lady Morgan Bedwyn, irmã do duque do Bewcastle. Certamente, o cenário era ligeiramente sedutor. O destino por fim lhe tinha dado uma mão vencedora.
Lady Morgan Bedwyn estava ligeiramente aborrecida; pior ainda, estava ligeiramente decepcionada. Sempre lhe tinha aborrecido a idéia da apresentação em sociedade e durante um ano ou mais, antes de completar os dezoito, tinha discutido sobre o assunto com o Wulf, o duque do Bewcastle, seu irmão mais velho e o cabeça de família. Tinha protestado porque não queria sorrir e soltar risinhos tolos atrás de um leque, nem converter-se em um objeto a mais à venda no mercado matrimonial. Não queria que esses jovens cavalheiros cheios de ar que lotavam Londres a examinassem e a valiassem como se a única coisa que importasse na vida fosse o matrimônio e a única coisa que ela tivesse para oferecer fosse seu aspecto físico e seu nobre berço.
Porém, é obvio, Wulfric tinha insistido. De forma inexorável e elevando tão só as sobrancelhas. Claro que as sobrancelhas do Wulf (para não falar de seu monóculo) eram tão formidáveis como o grito de guerra de um regimento completo. E, é obvio, a tia Rochester, essa velha enjoativa, tinha-a tomado sob sua asa sem demora quando chegou a Londres e em um abrir e fechar de olhos a obrigou a usar o uniforme típico de toda mocinha durante sua primeira temporada social. Em outras palavras, tudo era de cor branca, muito delicada, e parecia lhe tirar nove anos de cima, coisa absolutamente desejável para os dezoito anos. E depois chegou Freyja (sua irmã mais velha, lady Freyja Moore, marquesa do Hallmere) com seu marido o marquês para amadrinhá-la durante sua apresentação à rainha, celebrar seu baile de apresentação e acompanhá-la em seus primeiros eventos sociais.
Não tinha visto a hora de que chegasse a seu fim o tedioso processo. Tinha ficado aborrecida com cada minuto de cada dia. Havia-se sentido como um objeto. Um objeto muito exclusivo e valioso, claro estava, embora isso não a tivesse ajudado a sentir-se uma pessoa.
Entretanto, e uma vez que o tinha deixado atrás, alegrava-se de havê-lo feito. Porque apesar de sua relutância de suportar a temporada social em Londres, possuía uma alma aventureira e inquieta, assim como uma mente ágil e inquisitiva que necessitava de estimulação constante. De repente, a aventura e o alimento para sua mente surgiram de um nada quando Napoleão Bonaparte escapou da Elba e retornou a França. Os salões de Londres tinham cobrado vida com as notícias e as especulações que estas criavam sobre o futuro. Sem dúvida alguma, os franceses o rechaçariam.
Mas não tinha sido assim. Os rumores sobre uma possível guerra inundaram Londres. Seria possível que os aliados, tão agradavelmente encetados em conversações de paz em Viena, vissem-se obrigados a liberar outra terrível batalha contra Bonaparte?
Não demorou para ser evidente que a resposta era afirmativa e que o campo de batalha estaria na Bélgica. O duque do Wellington nada mais e nada menos se deslocou para ali em abril, para Bruxelas concretamente, e outros personagens de grande relevância procedentes de toda a Europa empreenderam viagem para reunir-se com ele.
O assunto tinha-lhe parecido fascinante desde o primeiro momento. E, dado que era uma Bedwyn e os Bedwyn sempre tinham menosprezado as convenções sociais e entre eles nunca tinha havido um assunto inapropriado para os ouvidos de uma dama, tinha discutido longa e extensivamente a situação com sua família. Pouco depois se apresentou a oportunidade de ir a Bruxelas. Os exércitos tinham começado a preparar-se para a guerra; alguns dos regimentos britânicos e numerosos oficiais se encontravam em Londres. Estes últimos começaram a aparecer em público com seus uniformes e um deles começou a cortejá-la com insistência.
Acotovelar-se com o capitão lorde Gordon, o loiro e bonito herdeiro do conde do Caddick, vestido com seu flamejante uniforme, tinha-lhe parecido bastante divertido. Juntos tinham passeado em carruagem, tinham ido à ópera acompanhados de seus pais e sua irmã, tinham dançado em multidão de eventos sociais. Inclusive tinha entabulado amizade com sua irmã, lady Rosamond Havelock. Então o capitão lorde Gordon recebeu ordens de partir para a Bélgica com seu regimento, e os Caddick, Rosamond incluída, decidiram segui-lo a Bruxelas. Dúzias, talvez centenas, de membros da alta sociedade acudiriam também à convocatória. Seria divertidíssimo, havia-lhe dito Rosamond quando a convidaram a ir com eles, sob a tutela da condessa.
Todo mundo tinha dado por assentado, é claro, que a corte entre o capitão e ela era a sério. E embora a ele assim parecesse, assim como à Rosamond e a seus pais, ela não se sentia preparada para tomar uma decisão que a ataria por toda a vida. Entretanto, ansiava ir a Bruxelas, estar perto da crise que se avizinhava e do lugar onde ia se desenvolver a ação, de modo que tinha pedido permissão à Wulf para que a deixasse ir.
Naquele tempo tinha suposto que tudo seria um exercício político e intelectual de grandes proporções, que a conversa seria séria e estimulante lá onde fora. Que idéia mais ridícula! De fato, estar em Bruxelas não era diferente de estar em Londres. Os dias e as noites eram uma sucessão de frivolidades. Em um dado momento inclusive chegou a desejar que Wulfric se negasse a lhe dar permissão. Tudo aquilo tinha resultado um pouco decepcionante.
Claro que estar em Bruxelas tinha certas vantagens. Por um lado, desfrutava de uma incrível sensação de liberdade. Não estava Wulfric para vigiar todos e cada um de seus movimentos com o monóculo na mão; e tampouco estava a tia Rochester com seus impertinentes preparados para olhá-la com reprovação cada vez que fazia algo. Só havia Alleyne, o irmão que menos diferença de anos tinha, que trabalhava na embaixada às ordens de sir Charles Stuart. Embora o jovem tivesse prometido a Wulf que daria um olho a sua irmã, até o momento tinha feito bem pouco. Talvez inclusive não lhe tivesse dado tempo.
Lady Caddick era uma acompanhante bastante permissiva. E bastante estúpida. Lorde Caddick não tinha caráter algum ou, se o tinha, ela não tinha visto o menor indício. Rosamond lhe caía bem, mas só gostava de falar de pretendentes, chapéus e bailes. O capitão lorde Gordon e o resto dos oficiais que conhecia gostavam de alardear sua dignidade dizendo às damas que não deviam ocupar suas lindas cabecinhas com os assuntos que lhe pareciam minimamente interessantes.
Tudo isso era muito irritante para alguém que tinha crescido com os Bedwyn e que tinha cometido a estupidez de esperar que todos os homens fossem como seus irmãos e todas as mulheres como Freyja.
A contradança que tinha aberto o baile dos Cameron estava a ponto de chegar a seu fim. Gostava de dançar com o capitão lorde Gordon porque o uniforme lhe sentava maravilhosamente e, além disso, dançava muito bem. Quando o conheceu chegou a acreditar que se apaixonaria por ele. Mas o passar do tempo tinha despertado nela muitas dúvidas com respeito a seu caráter. Ao começar a contradança, durante os breves instantes nos quais os passos os aproximavam, o capitão lhe havia dito que levava muito a sério seu papel na luta contra a tirania. Estava preparado, afirmou, para morrer por seu país se fosse preciso e por sua mãe e sua irmã e bom, ainda não tinha direito a acrescentar outro nome, concluiu com um olhar ardente. Pareceu-lhe um tanto dramático. E bastante alarmante. Porque nesse momento compreendeu que os Caddick e muitas outras pessoas tinham dado por sentado que ao aceitar seu convite também aceitava um futuro compromisso com seu filho. Não obstante, as razões que tinham alegado para convidá-la não eram outras senão a necessidade de Rosamond de contar com companhia feminina.
-Lady Morgan - lhe disse o capitão quando acabou a música -, estava rezando para que a orquestra se esquecesse de terminar. Para que pudéssemos continuar dançando toda a noite.
-Que tolice! - exclamou ao mesmo tempo que abria o leque e se abanava devagar as acaloradas faces -. Há outras damas que aguardam sua vez para dançar com você, capitão.
-Só há uma dama - começou o capitão, lhe oferecendo o braço para acompanhar a de volta ao lado de sua mãe - com a que mereça a pena dançar… Mas, por mais que me pese, não posso dançar duas peças seguidas com ela.
Seria possível, perguntou-se, que só fosse um jovem presumido e estúpido? Embora sua posição enfrentava à ameaça da guerra e da morte, devia recordar esse último. Seria injusto que o esquecesse. Podia perdoar a um homem certo grau de sentimentalismo em tais circunstâncias. Desde que não atuasse. Sorriu-lhe, mas falou com voz firme.
-Não, não pode -replicou-. Desejo dançar com outros pares.
O tenente Hunt-Mathers formava parte do grupo que rodeava lady Caddick e Rosamond e esperava sua vez para dançar com ela, logo a seguir. Não era tão alto, tão bonito, nem tão galhardo como lorde Gordon, mas era um jovem agradável de bom berço e lhe era simpático, embora tendesse a ser um pouco insípido. Virou-se para ele com um sorriso enquanto tirava a mão do braço do capitão.
Entretanto, antes que pudesse iniciar algum tipo de conversa, deu-se conta de que lady Cameron estava falando com lady Caddick a fim de solicitar sua permissão para lhe apresentar a um cavalheiro. Uma vez conseguido, Morgan se virou para a anfitriã e seu acompanhante.
-Lady Morgan - disse a viscondessa do Cameron com um sorriso amável-, o conde do Rosthorn solicitou uma apresentação formal.
Estudou ao conde com atenção. Não era um oficial. Ia vestido com umas elegantes calças cinzas de seda, um colete bordado de cor prata e um fraque negro muito justo. A camisa, a gravata e os punhos de rendas eram brancos. Tampouco era um homem especialmente jovem. Porém era alto, bem formado e bastante bonito, reconheceu enquanto o saudava com uma reverência e percebeu que tinha uns olhos cinzas de olhar indolente que pareciam observá-la com certa ironia. Entretanto, não viu nada no conde de Rosthorn que despertasse seu interesse. Era mais um dos muitíssimos cavalheiros que tinham desejado conhecê-la desde que fizera sua apresentação em sociedade. Era muito consciente de que a consideravam formosa, embora a seus olhos fosse muito magra e tivesse o cabelo muito escuro. Além disso, sabia que, como filha de um duque com uma vasta fortuna em seu nome, era atraente aos olhos de todos os solteiros, com independência de sua idade e de sua posição social. No fim de contas, era um objeto a mais à venda no mercado matrimonial apesar de encontrar-se em Bruxelas e não em Londres e apesar de que seu compromisso com lorde Gordon se desse por assentado. Comportou-se com educação e trocou as cortesias de rigor com lorde Rosthorn, embora em sua mente o catalogasse como mais um cavalheiro que carecia de interesse. Não obstante, olhou-o com a gélida arrogância que costumava desanimar aos cavalheiros cuja atenção não desejava. Esperava que o conde soubesse interpretar sua expressão e não lhe pedisse uma dança.
Em certas ocasiões se alarmava dar-se conta de como estava enfastiada de tudo aquilo aos dezoito anos.
-Estou bem, obrigado - respondeu ele com uma voz que em certo modo encaixava com esses olhos. Ambos um tanto indolentes e ligeiramente zombadores-. E muito melhor agora que me apresentaram à dama mais encantadora de todo o salão.
Pronunciou a estúpida adulação como se estivesse rindo de si mesmo enquanto o dizia. De modo que nem sequer se dignou lhe replicar. Abanou o rosto e o olhou nos olhos com as sobrancelhas ligeiramente arqueadas e uma expressão altiva. Uma expressão que os Bedwyn dominavam à perfeição. De verdade acreditava tão estúpida e descerebrada? Esperava que se pusesse a rir como uma parva e se ruborizasse agradada por semelhante estupidez? Embora por que não iria pensar isso? A maioria dos cavalheiros o fazia, demonstrando assim quão descerebrados eram eles.
Sua atitude intensificou o brilho zombador desses olhos cinza e compreendeu que lorde Rosthorn devia ter adivinhado o que ela estava pensando. Bem!, exclamou interiormente. Entretanto, suas palavras seguintes a desalentaram.
-É muito supor que ainda resta alguma dança livre e que me concederá a honra de dançá-la comigo? -perguntou.
Diabos!, pensou e deteve o movimento do leque enquanto procurava uma desculpa amável com a qual rejeitá-lo> Negava-se a mentir sem mais e lhe dizer que já tinha comprometidos todos as danças.
Alguém o fez por ela.
-Vá Por Deus! -exclamou o capitão lorde Gordon com aquele tom lânguido costumava utilizar quando falava com alguém a quem considerava inferior-. por aqui já se concederam todas as danças, meu amigo.
Indignada, abriu os olhos de par em par. Como se atrevia? Não obstante, antes que pudesse dar a satisfação de replicar com um comentário mordaz que rebatesse semelhante tolice, o conde do Rosthorn se virou para o capitão com um monóculo na mão que levou a um olho para observá-lo com evidente desinteresse.
-Aceite minhas felicitações, capitão -disse o conde-. Não obstante, vejo-me na obrigação de corrigir a equívoca impressão que parece ter. Não era a você a quem estava convidando a dançar.
Morgan conteve as gargalhadas de alegria com muita dificuldade. Que réplica mais maravilhosa! De repente via o conde de uma perspectiva totalmente distinta. Um homem de engenho tão rápido e de semelhante aprumo era sem dúvida uma alma gêmea. Recordou a seus irmãos.
-Obrigado, lorde Rosthorn – disse-lhe como se não tivesse acontecido nada-. Parece bem a seguinte peça?
Apesar de sua imaculada aparência, pensou, lorde Rosthorn tinha uma aura um tanto sórdida, embora não soubesse explicar a sensação. Talvez se devesse à diferença de idade que percebia entre eles e que o convertia, a seus olhos, em um homem de mundo. Claro que ela jamais admitiria sua ingenuidade. Havia uma espécie de indiferença, algo ligeiramente perigoso nele.
-Será uma honra que esperarei com anseio durante a próxima meia hora -respondeu o conde.
Talvez fosse seu olhar indolente, decidiu Morgan e sua voz, também indolente. Mas não, sua voz tinha algo que explicava essa sensação de perigo que percebia. Lorde Rosthorn tinha sotaque francês. Abanou o rosto com lentidão enquanto o observava partir.
-Esse tipo tem sorte de que haja mulheres presentes -disse lorde Gordon a seus amigos com uma nota furiosa na voz-. Sentir-me-ia muito satisfeito se tivesse podido lhe cruzar o rosto com a luva.
Morgan não fez conta.
-Minha querida lady Morgan -disse lady Caddick quando o conde se afastou bastante para não escutá-la-, o misterioso conde do Rosthorn deve ter gostado muito de você para procurar uma apresentação.
-Misterioso, mamãe? -perguntou Rosamond.
-Ai, sim, muito misterioso -respondeu a condessa-. Herdou o título e a fortuna de seu pai recentemente, há mais de um ano, mas fazia muitíssimo tempo que ninguém o via nem se sabia dele, desde aquele ano em que... mas agora está em Bruxelas. Se murmura que esteve oculto no continente, reunindo informação para o governo britânico.
-É um espião? -perguntou Rosamond, olhando as costas de lorde Rosthorn com os olhos arregalados.
-Talvez haja algo de certo nesse rumor -respondeu- ou sua mãe explicaria sua presença em Bruxelas em um momento no qual a informação sobre os movimentos dos franceses deve ser muito solicitada.
O interesse do Morgan aumentou ainda mais. Um homem perigoso! Não obstante, já se estavam formando as filas para a seguinte dança e a orquestra estava preparada para começar a tocar. O tenente Hunt-Mathers se aproximou dela, fez-lhe uma rígida reverência ao estilo militar e lhe ofereceu o braço.

 


Capítulo 2

 

Gervase passou a meia hora seguinte na sala de jogos, e perambulando entre as mesas e observando os jogadores enquanto trocava as saudações de rigor com vários conhecidos. E o fez com um ouvido posto na música. Lady Morgan Bedwyn era tão encantadora de perto como tinha parecido do outro extremo do salão. Sua tez era sedosa e impecável; seus olhos, castanhos, enormes e rodeados de espessas pestanas escuras. Sua reação ante as adulações deliberadamente lisonjeadoras que lhe tinha dedicado tinha-lhe feito muita graça. Tinha olhado para ele de cima abaixo como se fosse uma viúva enfastiada. Ao que parecia, não era tão panaca como tinha esperado que fosse.
Esse olhar altivo e distante devia estar unido ao sobrenome. Bewcastle a tinha convertido em uma arte. E ele a tinha sofrido em suas própria pele a última vez que o viu. A expressão do rosto de lady Morgan Bedwyn sugeria orgulho, altivez, vaidade, arrogância. Facetas de um caráter que reforçavam sua resolução.
A música por fim acabou e foi substituída pelo murmúrio das conversações procedente do salão de baile. Tinha chegado o momento de reclamar seu par. A irmã do Bewcastle. O ruído e as gargalhadas do salão de baile pareciam ocultar o fato de que todos estavam ali, sobre tudo os oficiais, porque a guerra era iminente. Mas talvez fosse precisamente a possibilidade de que se produzisse uma hecatombe o que incitava a todo mundo a desfrutar do momento. Um momento que talvez fosse o último para muitos deles.
Localizou seu par entre a multidão e se aproximou dela. Saudou lady Caddick, sua acompanhante, com uma inclinação de cabeça e a lady Morgan com uma reverência.
-Lady Morgan -disse-, acho que é minha dança.
A jovem assentiu com um gesto régio. Tanto ela como a moça loira que a acompanhava estavam rodeadas por um grupo de jovens oficiais, que o olharam com hostilidade mal dissimulada.
-É uma valsa -comentou a outra moça-. Conhece os passos, lorde Rosthorn?
-É claro - assegurou. - passei vários meses em Viena. Ali é a dança de moda.
-Rosamond! -repreendeu-a lady Caddick, talvez por haver-se dirigido a ele antes de que tivessem sido formalmente apresentados. Entretanto, as volumosas plumas do toucado da condessa se inclinaram com elegância para ele-. Pode dançar a valsa com lady Morgan, lorde Rosthorn. recebeu a aprovação das damas do comitê organizador do Almack’s[4]. Ofereceu o braço a lady Morgan e ela apoiou a mão. Uma mão de dedos longos e esbeltos dentro de uma luva branca.
-A aprovação das damas do comitê organizador do Almack’s -repetiu enquanto se afastavam, arqueando as sobrancelhas- é importante?
-É mortalmente aborrecido -respondeu ela com essa expressão que tanto recordava a uma viúva enfastiada-. Uma dama não tem permissão para dançar uma valsa em Londres a menos que tenha recebido a aprovação do comitê.
-Seriamente? -perguntou-. Por favor, explique-me isso.
-Muitas pessoas não gostam da valsa -disse ela-. Tacham-na de ser uma dança livre.
- Livre? -perguntou, inclinando a cabeça para ela.
-Indecente -respondeu lady Morgan com voz desdenhosa.
Gervase esboçou um sorriso.
-Entendo -replicou. E o entendia. A velha a Inglaterra. Não tinha mudado. Tão puritana como de costume.
-Tinha-a dançado milhares de vezes em casa com meu professor de baile e com meus irmãos -disse ela-. Mas não me permitiram dançá-la em minha festa de apresentação!
-Como se fosse uma menina pequena! -exclamou ele com expressão horrorizada.
-Exato! -Mas lady Morgan o olhou nos olhos com receio enquanto ocupavam seu lugar na pista de baile e esperavam que a música começasse.
Senhor, era uma beleza!
-É um espião britânico? -perguntou-lhe ela.
Gervase arqueou as sobrancelhas ante a brusca mudança de conversa.
-Corre o rumor de que o é -prosseguiu a jovem-. Está fora da Inglaterra há muito tempo. Diz-se que esteve realizando missões para solicitar informação em nome do governo britânico.
-Caramba! Receio muito que não sou tão romântico -replicou ele-. passei nove anos fora da Inglaterra porque me exilaram... Meu pai me exilou.
-Seriamente? -perguntou lady Morgan.
-Por culpa de uma mulher -lhe explicou com um sorriso- e pelo roubo de uma jóia de valor incalculável.
-Que você roubou?
-Que eu não roubei -a corrigiu-. Mas não dizem o mesmo todos os ladrões sentenciados?
Lady Morgan o olhou um instante com as sobrancelhas arqueadas.
-Sinto que não seja um espião -disse-. Embora de qualquer forma duvido muito que tivesse estado disposto a responder minhas perguntas a respeito da situação militar - Virou a cabeça para o estrado onde estava a orquestra. A música por fim começava a soar.
Gervase lhe colocou a mão direita na cintura (era tão estreita que quase podia abrangê-la com as duas mãos) e tomou sua mão direita com a esquerda. Ela apoiou a mão livre em seu ombro.
Era muito jovem. E incrivelmente arrebatadora.
E a irmã do Bewcastle.
Gervase se considerava um bom bailarino. Sempre se encantava com os elegantes giros do minueto e do cotillón[5], intrincados e vigorosos passos da contradança e a vibrante sensualidade da valsa. Talvez os ingleses tivessem razão ao proteger às jovens de sua sedutora influência.
Conduziu-a pela pista de baile girando com cuidado, comprovando até que ponto sabia dançar e se era capaz de deixar-se levar por seu par. Tinha tido bons professores. Mas sua habilidade transcendia a precisão e a destreza. Soube desde esse primeiro momento, enquanto giravam tão devagar como o resto dos casais que os rodeavam.
Lady Morgan não parecia muito disposta a seguir conversando e ele tampouco estava pelo trabalho. Estava rodeada por um perfume suave, talvez um sabonete floral ou uma colônia.
Violetas? Sua esbelta figura transbordava juventude. Deixava-se levar com soltura e docilidade, movendo os pés a escassos centímetros de seus sapatos.
-Assim é como os ingleses dançam a valsa? -perguntou-lhe.
-Sim -Lady Morgan o olhou-. Não se dança assim no resto do mundo?
-Permite-me que lhe ensine como se faz em Viena, chérie? -perguntou-lhe.
Viu-a abrir os olhos de par em par, embora não soube se o fez em resposta a sua pergunta ou pelo uso do apelativo carinhoso em francês.
Começou a mover-se com passos mais largos, descrevendo círculos cada vez mais amplos em um dos cantos da pista e ela o seguiu. Inclusive conseguiu lhe arrancar um alegre sorriso.
A valsa não se concebeu para ser mecânica e monótona, com todos os casais girando em lenta e perfeita harmonia as umas com as outras. De modo que se dispôs a dançá-lo como sem dúvida foi concebido, com os olhos e a mente concentrados em seu par; com os ouvidos atentos à música de modo que a melodia e o ritmo impregnassem nele; com os pés dispostos a converter o ritmo em movimento.
Era uma dança sensual, concebida para concentrar a atenção de um homem em seu par e viceversa. Concebido para fazê-los pensar em outro tipo de dança, uma de índole muito mais íntima.
Não era de estranhar que os ingleses tivessem objeções na hora de dançar a valsa.
Fê-la girar pela pista até que as luzes dos lustres se converteram em um brilhante brilho informe sobre suas cabeças; conduziu-a com destreza entre os outros casais que dançavam mais devagar, percebendo com satisfação que o seguia sem perder o ritmo, sem o menor temor de perder o passo, de chocar com outro casal ou de perder o equilíbrio. Os brilhantes uniformes dos oficiais e os delicados tons pastéis dos vestidos das damas se fundiram em uma repentina melodia de cor.
Quando a primeira parte da valsa chegou a seu fim, lady Morgan tinha os olhos brilhantes, estava ligeiramente ruborizada e respirava com dificuldade. Parecia ainda mais formosa que antes.
-Ah! -exclamou-. Eu gosto da valsa vienense!
Gervase inclinou a cabeça para ela.
-Acredita que as damas do comitê organizador do Almack’s a aprovariam?
- Com certeza não -respondeu, e depois pôs-se a rir.
A música começou a soar de novo. Mas era uma melodia mais lenta, mais sossegada.
Conduziu-a de novo entre a multidão de casais, girando entre elas, variando a amplitude do passo e dando uns mais curtos antes de executar uns giros amplos que a obrigavam a arquear as costas e o pescoço. Sentia a música com todo o corpo, movia-se com ela, desafiava-a, tomava liberdades e se deixava levar por sua magia. E lady Morgan se movia com ele sem afastar o olhar de seu rosto. Segurava-a talvez um pouco mais perto do tolerado, embora não se tocassem salvo naqueles lugares permitidos.
Lady Morgan suspirou quando a música chegou a seu fim.
-Não sabia que a valsa pudesse ser tão... -disse, embora o gesto que fez com a mão que acabava de lhe tirar do ombro indicou que não lhe ocorria uma palavra adequada para descrever.
-Romântico? -sugeriu-lhe. Aproximou os lábios a seu ouvido-. Erótico?
-Agradável -replicou ela, e depois franziu o cenho e voltou a olhá-lo com sua expressão altiva-. Sua escolha de palavra não foi muito acertada! Além disso, por que me chamou "chérie"?
-passei nove anos no continente -respondeu-, e falei francês quase todo esse tempo. Minha mãe é francesa.
-Isso quer dizer que me chamaria "querida" ou "preciosa" se tivesse passado todo esse tempo na Inglaterra? -perguntou-lhe-. Ou se sua mãe fosse inglesa?
-Provavelmente não – olhou-a com um sorriso-. Teria passado a vida imerso na suscetibilidade inglesa e nas inibições inglesas. Teria sido uma experiência aborrecidíssima . Alegra-me muito que minha mãe seja francesa, chérie.
-Não deve me chamar assim -o repreendeu-. Não lhe dei permissão. Como verá, sou inglesa e sou tão suscetível, tão inibida e tão aborrecida como qualquer inglesa.
Gervase chegou à conclusão de que era a irmã do Bewcastle dos pés à cabeça. Entretanto, tinha vislumbrado uma rebelde sob a aristocrata, tinha espionado à mariposa que ansiava liberar-se de seu casulo. E à mulher que se ocultava atrás da fachada juvenil; uma mulher que sem dúvida era capaz de vibrar de paixão.
-Não acredito nem por um instante -replicou em voz baixa e sem perder o sorriso-. Mas se não puder chamá-la "chérie", como quer que a chame? Desde quando as damas se chamam "Morgan"?
-Foi o nome que escolheu minha mãe -respondeu ela-. Meus irmãos também têm nomes pouco habituais. Mas o meu não é tanto. Não ouviu falar de Morgana nas lendas artúricas[6]? Era uma mulher.
-E uma feiticeira -acrescentou ele-. Nesse caso, o nome lhe cai como luva.
-Tolices -replicou ela com brutalidade-. Além disso, não sou Morgan para você, não é certo, lorde Rosthorn? Sou lady Morgan.
A música voltou a soar com a última parte da valsa ao mesmo tempo que seu sorriso se transformava em uma gargalhada.
-Ah-disse ela, com expressão radiante-, outra melodia alegre. Dançar pode ser muito aborrecido em algumas ocasiões, não está de acordo, lorde Rosthorn?
-Se se dançar à maneira inglesa, tenho que estar de acordo com você -respondeu-. Mas a maneira vienense é muito mais... digamos que interessante, não lhe parece?
-Quando fez essa pausa, tinha a intenção de que pensasse nessa outra palavra, não? -perguntou ela-. Acredito, lorde Rosthorn, que está paquerando descaradamente comigo. Mas tenho que lhe advertir que talvez não seja tão ingênua como aparento. Sim, dancemos a valsa à maneira vienense já que é muito mais interessante -E lhe sorriu.
Um sorriso que irradiava a luz do sol e a calidez do verão, e compreendeu que a moça estava participando de seu jogo ou do que ela acreditava que era seu jogo. Lady Morgan era muito mais interessante do que tinha esperado. Talvez demonstrasse ser uma digna rival. Ou esperava isso.
-Convenceu-me, chérie -disse ao mesmo tempo que a fazia girar sem afastar o olhar desses olhos risonhos-. Dançaremos essa erótica dança.
Lady Morgan se ruborizou profusamente, mas não afastou o olhar dele. Detalhe que lhe arrancou um lento sorriso.
Quase todos os visitantes britânicos que estavam em Bruxelas se transladaram ao povoado de Schendelbeke e tinham atravessado a ponte provisória que cruzava o rio Dender, em cuja borda ia passar revista, à cavalaria inglesa, o duque do Wellington. O marechal de campo prusiano, Von Blücher, também estava presente. Era um cenário bastante pitoresco para semelhante espetáculo. E grande espetáculo. A princípio, a cavalaria formou para a inspeção, e Morgan, que estava sentada em um cabriolé[7] com o Rosamond e os condes do Caddick, teria jurado que nem os milhares de homens nem suas correspondentes montarias moveram um só músculo. Depois, lorde Uxbridge, seu comandante, ordenou-lhes desfilar em frente ao duque e o fizeram com tal precisão que pareciam um único ser.
-Como não vai apaixonar se uma mulher normal por todos e cada um dos oficiais? -perguntou Rosamond com uma gargalhada, embora tivesse sussurrado a pergunta para que sua mãe não a ouvisse. Às vezes, Morgan tinha a impressão de que o entusiasmo de sua amiga a fazia parecer um pouco ridículo, mas teve que lhe dar a razão nesse ponto. Não teria perdido o desfile por nada do mundo. Se ainda estivesse em Londres, nesse momento provavelmente estaria fazendo insossas visitas sociais com a tia Rochester. Embora um pouco antes tinha tentado manter uma discussão com o conde do Caddick a respeito da necessidade de que a disciplina militar se antepusesse ao direito de todo ser humano a sua individualidade e, em troca, só tinha recebido expressões atônitas das damas e um grunhido do conde por resposta. A Guarda Real Montada formava parte do desfile e apareceram em todo seu esplendor escarlate. Montavam magníficos cavalos muito bem adestrados. Os melhores da Europa, segundo o capitão lorde Gordon, que se encontrava entre os soldados que desfilavam, igual a muitos dos jovens oficiais que formavam o habitual grupo de amigos de Morgan.
Se as coisas chegassem até o ponto de que a cavalaria britânica se visse obrigada a entrar em batalha, predisse Rosamond em voz alta, não lhe cabia a menor duvida de que a cavalaria francesa lhes lançaria um olhar e sairia correndo tremendo de pânico. A infantaria francesa ficaria muito aterrada para, sequer, fugir. Embora as coisas não chegariam até esse ponto, é obvio.
Morgan não estava tão segura a respeito. Alleyne tinha advertido no dia anterior de que a situação começava a tomar rumos perigosos e de que cabia a possibilidade de que os Caddick decidissem retornar a Inglaterra breve. E sem dúvida, pensou, que tantos anos de guerras teriam ensinado aos europeus a insensatez de subestimar Napoleão Bonaparte e aos soldados franceses, que sempre tinham lutado por seu comandante e chefe com incansável coragem. Muitos britânicos, é obvio, mostravam-se relutantes em admitir que, além dos ingleses, houvesse outros homens capazes de atuar com valentia. Guardou seus pensamentos.
Quando terminou o desfile, o capitão lorde Gordon e vários oficiais se aproximaram, de cavalo, do cabriolé para apresentar seus respeitos aos condes e conversar com as damas. Morgan era muito consciente de que a demonstração visual dessa tarde não era um mero espetáculo. Era a realidade de uns homens reais que se preparavam para a guerra. Para matar e para que os matassem. Fez girar a sombrinha sobre a cabeça e seu olhar se foi posando sobre cada um dos jovens que se aproximaram. Era difícil imaginar a vitalidade masculina em circunstâncias tão desesperadas.
-O duque do Wellington espera com ansiedade a chegada de mais tropas estrangeiras - estava explicando lorde Gordon, que já tinha situado a seu cavalo junto à portinhola do cabriolé que havia a seu lado-. E se murmura que lhe aterra a possibilidade de que as tropas veteranas que lutaram com ele na península Ibérica não cheguem a tempo da América em caso de que os franceses sejam bastante estúpidos para nos atacar. Embora seja evidente que nossa cavalaria é bastante forte e temível para levar a cabo a tarefa sem problemas. Seus sorridentes companheiros aclamaram o comentário.
-Não está de acordo depois de ter presenciado o desfile, lady Morgan? -perguntou-lhe.
Sabia perfeitamente, igual a todos, que sempre era a infantaria quem ganhava ou perdia uma batalha.
-Certamente que parecem formidáveis -respondeu.
-E o que opina da Guarda Real Montada? -perguntou-lhe o capitão-. Todo mundo sabe que somos o melhor do melhor, que os ingleses de prestígio escolhem a Guarda (se suas famílias o podem permitir) e que temos os melhores cavalos. Deu-se conta de que o resto da cavalaria, toda a infantaria e os regimentos de artilharia nos olhavam com inveja e respeito? Sobretudo os casacas verdes.
Seus companheiros voltaram a aclamá-lo e a rir, e lady Caddick sorriu agradada. Rosamond estava conversando em um à parte com o major Franks, que se tinha colocado em seu lado da carruagem.
Morgan desejou não ter a desconcertante impressão de que eram um grupo de colegiais que falavam de ganhar uma partida de críquete de um colégio rival. Não podia evitar perguntar-se com inquietação como reagiriam tropas tão pouco curtidas sob o fogo inimigo. A maioria dos casacas verdes aos que lorde Gordon se referiu eram fuzileiros, e a maioria eram veteranos das campanhas da península Ibérica, tropas acostumadas e curtidas na batalha. Talvez muitos deles tivessem um aspecto desalinhado, mas se tinha dado conta de que os soldados falavam deles com considerável respeito.
-A Guarda Real Montada esteve particularmente magnífica -respondeu.
O capitão lhe deu de presente um cálido sorriso.
-Não deve temer nada, lady Morgan -lhe disse-. Primeiro porque nenhum francês com dois dedos de testa voltaria a lutar por Napoleão, se puder evitá-lo. Segundo porque Bruxelas está rodeada de tropas aliadas que formam uma barreira impenetrável. E terceiro porque se todo o resto falhar, a Guarda Real Montada não o fará. Está a salvo de todo perigo. Escutou-se uma nova aclamação de vivas.
-Não me sinto ameaçada -assegurou ao capitão.
-Jamais a reteríamos em Bruxelas se houvesse algum perigo, asseguro, lady Morgan - disse lady Caddick-, e também assegurei ao duque, seu irmão, antes de vir.
-Em certo modo, lamento que Bonaparte não chegue até as portas de Bruxelas - confessou lorde Gordon preso do ímpeto juvenil sem prestar atenção a qualquer outra coisa que não fosse ela-. eu adoraria liberar uma batalha para lhe ensinar algumas coisinhas a respeito da cavalaria britânica em geral e da Guarda Real Montada em particular. Se Wellington tivesse contado conosco na península Ibérica, asseguro que não lhe teria custado tanto obrigar aos franceses a voltar para seu país.
-Talvez não -conveio Morgan-. Mas agora sim estão aqui.
Sua indignação crescia aos poucos. Seu irmão Aidan tinha sido oficial de cavalaria até há um ano. Tinha atravessado Portugal e Espanha de batalha em batalha com as tropas do Wellington, percorrendo o lento caminho que os levou a França. Jamais lhe tinha escutado dizer que seu regimento (ou que a cavalaria) tinha ganho a guerra. Sempre falava com respeito de todos os corpos militares (cavalaria, infantaria e artilharia, já fossem britânicos ou aliados) que tinham participado da luta. Inclusive falava com respeito dos franceses. Claro que, evidentemente, Aidan era mais velho e tinha muitíssimo mais experiência.
Perdeu o fio de seus pensamentos quando viu a figura do conde do Rosthorn, que cavalgava há pouca distancia com um cavalheiro desconhecido para ela. Reconheceu ao conde imediatamente. Não o tinha visto desde a noite do baile dos Cameron, mas não tinha esquecido sua valsa, nem sua conversa. Embora, para ser sincera, devia reconhecer que tinha desfrutado do momento, recordou-se com desaprovação. O conde a tinha tratado com uma familiaridade que não gostava. Continuou chamando-a "chérie" mesmo que lhe tivesse exigido que não o fizesse. E tinha se proposto escandalizá-la com toda premeditação, contando o que tinha provocado seu exílio da Inglaterra e utilizando essa palavra, "erótico", para descrever a dança. Usou-a em duas ocasiões. E, enquanto dançavam, tinha aproximado de seu corpo mais da conta e inclusive tinha inclinado a cabeça para lhe sussurrar ao ouvido. Era, não cabia dúvida, um libertino, e tinha demonstrado todos seus encantos com ela como se achasse que era uma mocinha inexperiente e, portanto, incapaz de adivinhar suas intenções.
Depois da dança tinha tomado a decisão de lhe dar as costas se voltasse a aproximar-se dela. Não pensava dançar ao som de ninguém. Ao fim e ao cabo, era uma Bedwyn. O conde a tinha visto. Seus olhares se encontraram e o viu adotar uma expressão que não terminava de ser um sorriso. Metade zombador, metade alegre. Uma expressão que iluminou seu olhar indolente e ergueu as comissuras de seus lábios. negou-se a ser primeira em afastar o olhar. Assim arqueou as sobrancelhas com a intenção de imitar na medida do possível o gesto que Wulfric utilizava quando desejava desalentar aos pretensiosos e convertê-los em um pedaço de gelo. Em seguida, lorde Rosthorn enfiou seu cavalo para o cabriolé, abrindo passagem entre o resto de carruagens e cavaleiros.
Diabos!
O grupo de oficiais o deixou passar, e alguns pareceram ficar um tanto surpreendidos.
-Caramba, lady Caddick! -exclamou, afastando o olhar dela no último instante enquanto levava mão à aba do chapéu para saudar a condessa-. Esperava encontrá-la aqui. Como vai?
-Lorde Rosthorn -o saudou a aludida com grande afabilidade-. desfrutou do desfile? Nunca passei isso tão bem, nem me senti mais orgulhosa. Conhece meu marido?
Ambos os cavalheiros, que ao que parecia se conheciam, trocaram inclinações de cabeça antes que lorde Rosthorn se dirigisse de novo a lady Caddick enquanto o resto do grupo guardava silêncio para observar o intercâmbio.
Morgan estava bastante irritada. Desejava com todas suas forças lhe replicar como merecia ao menor pretexto.
- Planejo celebrar um jantar campestre no bosque do Soignes -disse lorde Rosthorn- e neste momento me encontro elaborando a lista de convidados.
-Um jantar campestre! -exclamou Rosamond, que afastou os olhos do major Franks e olhou Morgan entusiasmada.
-Um jantar à luz da lua -acrescentou lorde Rosthorn, dando de presente um sorriso radiante à Rosamond antes que sua atenção retornasse à condessa-. Milady, seria uma enorme satisfação que a senhora e seu marido aceitassem meu convite e trouxessem sua filha e lady Morgan.
Rosamond levou as mãos ao peito.
-E também a seu filho -acrescentou o conde- e a qualquer outro oficial da Guarda Real Montada que deseje aceitar o convite.
-Muito amável de sua parte, lorde Rosthorn -replicou lady Caddick-. Estaremos encantados de participar, não é assim, Caddick? Lorde Caddick grunhiu.
-Esplêndido! -exclamou o conde-. Nesse caso, será uma honra lhe fazer uma visita em sua residência de Bruxelas quando os pormenores estiverem preparados.
Lorde Rosthorn não se demorou mais. Fez girar seu cavalo e se afastou entre a multidão para reunir-se com seu amigo, que o esperava não muito longe. Entretanto, antes de fazê-lo, olhou-a sem dissimulações, fez-lhe uma reverência formal e voltou a lhe presentear com seu costumeiro sorriso torcido, como se compartilhassem um segredo muito divertido.
Só lhe faltou chamá-la chérie.
-Bem! -exclamou zangada sem dirigir-se a ninguém em particular.
Sentia-se muito indignada. Como se atrevia? Não lhe tinha dirigido nenhuma só palavra.
Apenas a tinha olhado quando se aproximara do cabriolé. E mesmo assim tinha a impressão de que tinha convidado a todos ao jantar campestre por ela.
O que estava tramando?
Teria encantado desfrutar de um tempo para considerar seu convite enquanto girava sua sombrinha no processo, e depois recusá-la de maneira pública e explícita, sem dar explicação alguma. Um simples não. Porém, viu-se obrigada a guardar silêncio e a escutar, como uma menina cujos desejos fossem irrelevantes.
Se em realidade estava planejando o jantar campestre só por ela, merecia que não participasse. Seu sotaque francês tinha sido muito evidente durante a curta conversa. Mas era inglês, ou não? Acaso esperava que seu sotaque lhe parecesse irresistível porque o francês (ou o inglês falado com acento francês) considerava-se o idioma do amor? Um libertino deveria ser , ao menos, um pouco mais sutil com suas artes más.
Claro que, pensou, pôr a prova seu engenho contra um libertino animaria seus dias de certa forma. Dias que tinham chegado a ser bastante tediosos. E a idéia de um jantar à luz da lua no bosque de Soignes tinha seu atrativo.
-Quem esse tipo acha que é? -perguntou lorde Gordon com voz irritada enquanto dava batidinha com uma mão na portinhola do cabriolé.- Não acreditará que vai impressionar-nos com seu título quando está há anos sem pisar na Inglaterra e suas correrias pela Europa lhe deram uma péssima reputação, não é? E certamente que é tudo verdadeiro. Faz duas noites, no baile dos Cameron, obteve quase à força a primeira valsa de lady Morgan, a qual tinha decidido que seria para mim.
-Não tinha prometido essa dança a ninguém, capitão -lhe recordou com brusquidão enquanto Rosamond se virava de novo para conversar animadamente com o major Franks. O resto dos oficiais conversavam entre eles e lady Caddick fazia algum comentário a seu marido-. Teria sido impróprio que dançasse com você tão cedo depois da dança inicial. O conde do Rosthorn solicitou uma apresentação formal e me pediu que lhe reservasse uma dança, pedido que eu acessei.
-Peço-lhe desculpas -se apressou a dizer o capitão-. Simplesmente me parece um tipo muito grosseiro e não permitirei que lhe imponha suas atenções se não as deseja. Embora talvez esse não seja o caso.
-Se não as desejasse -replicou ela-, negar-lhe-ia a saudação, sobretudo se fosse grosseiro comigo. Mas me é impossível considerar uma apresentação formal durante um baile como uma imposição. E o convite dirigido a sua mãe foi muito formal e muito generoso.
-Peço-lhe desculpas -repetiu o capitão tenso.
O episódio era o mais parecido a uma discussão que tinham tido. Embora, para falar a verdade, lorde Gordon podia ser muito incômodo, pensou. E esse afã possessivo era intolerável em qualquer homem que não fosse seu marido. E inclusive em seu hipotético marido, corrigiu-se interiormente.
E olhe o que me obrigou a fazer, disse-se, desviando a vista para a figura de lorde Rosthorn, que já se afastava deles. Ali estava ela, defendendo a um homem com o que estava bastante incomodada.
O que estaria tramando?

 


Capítulo 3

 

Os preparativos para a guerra estavam a passos aumentados na Bélgica. Cada novo dia trazia consigo mais tropas de reforço, mais fornecimentos e mais artilharia, embora nada fosse suficiente para o duque do Wellington, segundo os rumores. Entretanto, poucos acreditavam que a cidade de Bruxelas estivesse em perigo. Muito poucas pessoas retornaram à segurança das Ilhas Britânicas. A maioria se lançara com mais entusiasmo a desfrutar dos entretenimentos que se organizavam diariamente para sua diversão, decididos a permanecer ao lado de seus maridos, irmãos, filhos e amantes tanto tempo como fosse possível.
O jantar campestre que ia celebrar o conde do Rosthorn demonstrou ser o acontecimento mais concorrido de todos os celebrados até a data. Da multidão de convites que se enviaram só três foram recusados. Tinha sido uma idéia concebida por um mero impulso, admitiu Gervase para si depois de falar com lady Caddick durante o desfile militar, evento ao que assistiu com o rápido propósito de voltar a ver lady Morgan Bedwyn. Waldane se tinha rido dele e tinha assegurado com certa malícia que seria a inveja de todas as anfitriãs de Bruxelas desde que não acabasse passada por água, é obvio. Mas não lhe prestou atenção. Tinha contratado a uma agência especializada, em cujas peritas mãos deixou os preparativos, e inclusive a elaboração da lista de convidados (limitou-se a assinalar que convidassem a todo personagem relevante que estivesse presente na cidade), e continuou com sua rotina habitual como se fosse mais um convidado.
Quando chegou o dia famoso, já estava tudo preparado e sua única preocupação era o tempo. Não obstante, depois de uma manhã de chuvas intermitentes e uma tarde nublada, o céu limpou para a hora do chá e o sol brilhou até o ocaso. A lua saiu antes de que reinasse a escuridão e inclusive esta chegou acompanhada de milhões de cintilantes estrelas. Era uma noite cálida sem um sopro de brisa.
Nesse momento Gervase estava inspecionando o lugar e felicitando ao gerente da agência (presente em qualidade de meirinho e supervisor do serviço e dos detalhes do banquete) enquanto aguardava a chegada dos convidados e esperava que lady Morgan Bedwyn não tivesse encontrado uma desculpa para não participar.
Durante a revista das tropas tinha aproveitado para comê-la com os olhos e aproximar-se de sua acompanhante, com quem manteve uma muito correta conversa fazendo caso omisso de sua presença, detalhe que deixou à dama em questão visivelmente perturbada.
Era uma jovem muito orgulhosa e altiva. Por fim, havia a possibilidade de que decidisse castigá-lo ficando em casa com uma suposta dor de cabeça ou qualquer outra indisposição leve.
Embora apostaria que era muito orgulhosa para inventar um falso pretexto e muito arrojada para não aceitar seu desafio. Lady Morgan Bedwyn não era, tal como tinha descoberto com enorme satisfação, uma jovem embasbacada. De qualquer forma , admitiu, o joguinho lhe estava saindo muito caro.
A inveja de todas as anfitriãs de Bruxelas… Pelo amor de Deus!
Morgan, trajando um vestido de noite verde claro que sem saber por que lhe tinha parecido muito adequado para a ocasião, estava sentada junto ao Rosamond de costas ao cocheiro no cabriolé de lorde e lady Caddick, que tinham se sentado em frente a elas. Não poderiam ter desejado uma noite melhor para o acontecimento ao qual participavam, pensou enquanto erguia o rosto para o céu, visível através das altas copas das árvores. O jantar ia ser um acontecimento concorrido e suntuoso, descobriu isso pouco depois de que o conde de Rosthorn as convidasse pessoalmente junto- ao Dender. Todos seus conhecidos estavam convidados. Inclusive Alleyne iria. Igual a um grande grupo de oficiais conhecidos, entre os quais se incluía, é obvio, o capitão lorde Gordon.
Tinha estado a ponto de ficar em casa. Inclusive tinha dado voltas à mensagem de desculpa que enviaria com os Caddick, porque teria insistido em que eles assistissem, claro estava. Teria lhes dito que explicassem ao conde que essa noite preferia ficar em casa com um bom livro, já que se encontrava um pouco cansada por causa das incontáveis noitadas que tinha participado durante a última semana. Claro que lady Caddick jamais teria aceito entregar semelhante mensagem. A condessa lhe diria que lhe doía a cabeça ou teria posto qualquer outra desculpa igualmente ignominiosa. Além disso, desprezava a mera idéia de fugir dele. Tinha decidido que seria muito melhor confrontá-lo e lhe fazer saber que se tinha organizado o jantar campestre com ela em mente, tinha cometido um engano garrafal. Demonstraria que suas descaradas atenções a aborreciam como a uma ostra.
Nunca tinha lutado com um libertino até o momento. Ao Wulfric teria bastado erguer uma sobrancelha em Londres para acovardar a qualquer um que passasse pela sua cabeça flertar com ela. E a tia Rochester teria estado sobrevoando a zona como uma enorme ave de presa de magnífica plumagem. A idéia de entabular uma batalha de engenho com um reputado libertino tinha seu atrativo, admitiu para si.
-A temperatura é muito agradável agora -assinalou lady Caddick-, mas me pergunto se não refrescará mais tarde. Talvez deveríamos ter trazido a carruagem de quatro portas, Caddick.
Lorde Caddick grunhiu algo entre os dentes enquanto ela e Rosamond trocavam alguns sorrisos. Ambas preferiam o cabriolé. Como era um jantar no campo? Era uma pergunta que Rosamond não tinha deixado de repetir ao longo dos últimos dias. Era igual a um lanche ao ar livre? Sentariam no chão sobre umas mantas e comeriam coxas de frango e empanadas de lagosta enquanto bebiam vinho? Haveria depois passeios pelo bosque? Não estaria muito escuro sob as árvores? Talvez, tinha sugerido ela, a escuridão fosse a desculpa perfeita para perder-se durante uns minutos com o cavalheiro de sua escolha. Se esse fosse o caso, decidiu com ironia, quase com toda segurança escolheria ao capitão lorde Gordon ou, pensou, ao conde Rosthorn. Seria um desafio interessante, sem dúvida.
O bosque do Soignes se assemelhava a uma enorme catedral, concluiu enquanto aspirava sua fresca fragrância à medida que a carruagem se internava na espessura e recordava o aroma de incenso. Mal havia ervas mal cheirosas. De ambos os lados do caminho se erguiam imensas faias de lisos troncos prateados, semelhantes a poderosas colunas de mármore. Seus ramos se estendiam nas alturas como os nervos esculpidos das abóbadas. O bosque inspirava um profundo respeito, tal como o faria uma catedral gótica. Nele se tinha a sensação de estar em um lugar poderoso, misterioso; em um lugar que transcendia o presente e erguia a outro plano o espírito daquele que o visitasse.
De repente, tremeram-lhe os dedos pelo desejo de pintar a tudo, tanto o bosque como o espírito que o habitava. De repente, a vida que tinha levado durante os últimos meses lhe pareceu muito corriqueira. Sentia falta da campina que rodeava Lindsey Hall e das numerosas horas de solidão que tanto valorizava.
-Pergunto-me -a interrompeu Rosamond, que também estava olhando para cima- se a luz da lua penetrará bastante pelos ramos para que possamos ver o que comemos. Talvez o bosque não seja a melhor opção para fazer um jantar campestre depois de tudo.
Entretanto, não havia a menor duvida de que o conde do Rosthorn já teria previsto o problema e teria encontrado a solução. Ou, ao menos, o teria feito a pessoa a que tinha contratado para que organizasse o jantar. Duvidava muito que ele tivesse movido um só dedo durante os preparativos. Suas hipóteses eram certas, é claro. À medida que o cabriolé se aproximava do lugar convencionado para o jantar, começaram a ver lanternas, centenas de lanternas de todas as cores do arco íris, penduradas nos ramos das árvores.
De repente, o bosque adquiriu um encanto de distinta natureza. Trabalhada pela mão do homem, mais humano, mais íntimo, mais romântico. E tão sedutor, desse modo, como a beleza natural que a tinha cativado pouco antes.
-É mágico -disse Rosamond com um olhar resplandecente-. Como os jardins do Vauxhall.
Entre as árvores colocaram mesinhas redondas cobertas por antigas toalhas brancas onde se dispuseram a baixela, os cristais e o faqueiro ao estilo mais formal. Cada uma delas tinha uma lanterna de cor no centro.
Entretanto, o esplendor não se limitava ao plano visual.
-Escute! -disse ela, erguendo uma mão. Quando a carruagem se deteve, e com ele o chiado das rodas e o som dos cascos dos cavalos, escutaram música. Procedia de uma pequena orquestra situada em um estrado de madeira que tinham erguido entre as árvores, ao final do caminho. Sob o estrado havia um extenso espaço coberto por um piso de madeira.
-Haverá baile! -exclamou Rosamond, apertando-lhe o braço com força.
Quem quer que tivesse planejado tudo aquilo em nome do conde, pensou, fazia um trabalho magistral. O jantar, supôs, seria a fofoca da cidade durante dias e, inclusive, durante semanas.
Outras carruagens se aproximavam pelo mesmo caminho que eles tinham chegado, e o brilho de seus abajures iluminava o trecho que faltava para eles chegar. Entretanto, já estavam ali um bom número de convidados. Entre eles, vários oficiais trajando suas casacas vermelhas.
-Este vai ser o evento mais divulgado da temporada até o momento -declarou Rosamond de forma cortante.
Enquanto o cocheiro descia os degraus e abria a portinhola do cabriolé para que se apeassem, percebeu que o conde do Rosthorn abandonava a um grupo de convidados para aproximar-se deles. Oferecia uma imagem esplêndida, com sua vestimenta cinza, branca e prateada. Tinha escolhido um traje clássico: meias brancas. Um estilo que lhe sentava muito bem, já que tinha as pernas longas, musculosas e muito bem formadas. Em seus lábios se apreciava seu eterno sorriso indolente. Estava muito bonito.
Morgan aceitou a mão que lhe estendia uma vez que lorde Rosthorn ajudou a descer a lady Caddick.
-Tudo isto parece tirado de um poema pastoril, lorde Rosthorn -disse-. Conseguiu muito. Não resta mais remédio que elogiar seus esforços.
Seus olhos adquiriram um brilho risonho enquanto a ajudava a descer.
-Me alegro de que não tenham sido em vão -replicou. Seu olhar se deteve nela um instante antes de desviar-se para Rosamond.
Bom, pensou, não se tinha equivocado. Evidentemente, não se tinha equivocado.
-Milord, estamos decididas a que esta noite seja a melhor de toda a temporada -
estava dizendo Rosamond-. Não é certo, Morgan?
-Farei tudo o que esteja em minhas mãos para que assim seja -respondeu ele.
Entretanto, seus olhos estavam cravados nela enquanto falava.
Com um gesto da mão lorde Rosthorn se desvencilhou de um criado muito esticado que se aproximara para acompanhá-las a sua mesa; em seguida, ofereceu o braço a lady Caddick e os conduziu até uma mesa disposta perto da orquestra e do soalho de madeira onde se aconteceria o baile. Dali desfrutariam de uma vista magnífica da área , que se assemelhava a um enorme salão de baile ladeado por colunas, com um teto formado por folhas verdes, um chão ligeiramente desnivelado e uma atmosfera fresca que permitia respirar os aromas do bosque e da terra. Além de um sem-fim de lanternas de cores que acrescentavam um halo de poético encanto ao conjunto.
Quando chegaram à mesa, o conde fez uma reverência e partiu sem demora.
Já se aproximava, para eles, um garçom que levava uma garrafa de vinho envolta em um pano branco. Ficou sentada com seu grupo por volta de uma hora. Quando todos os convidados fizeram ato de presença e ocuparam seus assentos, serviu-se um jantar frio composto por um bom número de deliciosos e suculentos pratos enquanto escutavam à orquestra e a um tenor. A beleza de sua voz esteve a ponto de encher seus olhos de lágrimas. Depois, vários jovens oficiais se aproximaram de sua mesa e lorde Caddick partiu para conversar com um grupo de conhecidos que se reuniu sob uma faia, não muito longe dali. O capitão lorde Gordon e o major Franks convidaram ao Rosamond e Morgan a dar um passeio pela zona iluminada a fim de conversar com os conhecidos comuns, e lady Caddick, em resposta à ansioso olhar que recebeu por parte de sua filha, deu seu beneplácito com gesto elegante.
A orquestra tomou um descanso. O baile começaria quando retornassem de seu passeio, augurou lorde Gordon. Em sua opinião, o soalho de madeira era um substituto muito pobre do soalho gentil de uma residência elegante e a orquestra não era tão boa como outras que tinha escutado em Bruxelas, mas esperava que lady Morgan se estivesse divertindo de qualquer modo.
-Enormemente -lhe assegurou-. O encanto das árvores, da luz e da cor das lanternas compensa com acréscimo qualquer deficiência que tenha um soalho de madeira que precisou ser montado sobre o chão desnivelado do bosque e de uma orquestra que se vê obrigada a enfrentar uma acústica que não é a ideal, não lhe parece?
-Caramba, é obvio, é obvio! -concordou. - Não poderia estar mais de acordo com você, lady Morgan. Só me preocupava a possibilidade de que não fosse de seu agrado. Para falar a verdade, é uma noitada esplêndida.
Ali estava de novo, pensou, vendo-se obrigada a defender a noitada do conde do Rosthorn. Não obstante e a pesar da mudança que supunha o jantar à luz da lua, tudo parecia indicar que a noitada seguiria o mesmo curso que qualquer outra a que tinha assistido desde sua apresentação em sociedade. Claro que ao menos nessa ocasião estavam ao ar livre e em um lugar encantador.
Uma parte de sua cabeça se separou de sua fachada social, que seguiu sorrindo e conversando tal como ditavam os bons costumes, e se dispôs a observar tudo como se estivesse no plácido e silencioso coração do bosque.
Tomara estivesse pintando, em lugar de ver-se obrigada a relacionar-se com as pessoas. Quando retornaram à mesa que ocupavam, descobriu que lorde Rosthorn estava conversando com lady Caddick. O conde deu a volta e lhe sorriu.
-Ah, aqui está -lhe disse-. Espero que o jantar tenha sido de seu agrado.
-Sim, obrigada - assegurou. Nesse instante lhe chamou a atenção o contraste entre o pálido tom prateado de seu traje e o vermelho brilhante das casacas que traziam muitos dos convidados, e chegou à conclusão de que, por estranho que parecesse, seu aspecto era muitíssimo mais viril que o do mais valente dos oficiais ali pressente.
-Lady Morgan -lhe disse-, gostaria de dar um passeio em minha companhia?
Só a ela. Rosamond não estava incluída no convite.
-Pode ir, lady Morgan -interveio lady Caddick com elegância-. Mas permaneçam sempre à vista.
Lorde Gordon pigarreou como se fosse protestar, mas se sua intenção tinha sido a de detê-la, o gesto só podia provocar nela o efeito contrário. Além disso, tinha curiosidade por saber como procederia o conde. Estava quase certa de que tinha organizado tudo aquilo para ela. Acaso acreditava que ia cair rendida a seus pés, totalmente enfeitiçada por essa fastuosa demonstração, aparentemente de devoção?
-Obrigada -respondeu, lhe dando-lhe um de seus olhares mais altivos enquanto aceitava o braço que lhe oferecia. - eu adoraria.
Era um braço musculoso e duro. Notou que lhe ultrapassava quase uma cabeça, apesar de que ela fosse alta. Era mais alto que lorde Gordon. Estava-a olhando com esse sorriso zombador que já lhe era tão familiar; como se fosse consciente de que ela percebera seu joguinho mas acreditasse que ia ganhar de qualquer forma.
- Deve ter sido uma grande provocação organizar um jantar à luz da lua -lhe disse.
-Suponho que o terá sido - concordou - mas para monsieur Pepin da agência Pepin. Terá que perguntar a ele se quiser saber com segurança. Monsieur tentou me fazer partícipe dos preparativos procurando minha opinião para algumas das questões mais delicadas, mas lhe recordei que estava pagando uma soma mais que considerável para que fossem seus ombros os que levassem tão pesada e aborrecida carga. Acertei? Fiz bem em depositar minha confiança nele? Uma de suas dúvidas (transcendental em sua opinião, suponho) era se devia trazer mesas até aqui ou, em troca, estender mantas no chão.
Nesse momento estava rindo descaradamente dela com os olhos.
-As mesas e as cadeiras são muito mais cômodas que as mantas -replicou ela-. E pareciam muito pitorescas ao chegar, com os serviços dispostos do modo mais elegante.
-Se tivesse declarado sua preferência pelas mantas -disse lorde Rosthorn, levando-a mão livre ao coração-, me teria deixado desolado.
Morgan sorriu contra sua vontade.
-E outra de suas dúvidas -prosseguiu ele- era se deixar que se filtrasse a luz da lua e das estrelas entre as sombras do bosque (desde é claro que a noite não estivesse nublada) sem contar com mais iluminação que as lanternas das mesas ou se, em troca, devia pendurar lanternas nos ramos das árvores e interferir assim com a beleza da natureza. Temo que careço da sensibilidade filosófica necessária para lutar com questões tão difíceis. Quando chegou nesse ponto proibi de modo cortante que voltasse a me consultar a menos que surgisse uma questão de extrema urgência, como que a lua se transladasse a outra galáxia ou que um exército de lenhadores chegasse ao bosque para destruir as árvores. você acredita que monsieur Pepin tomou a decisão acertada?
-As lanternas penduradas deste modo realçam a beleza da natureza em noitadas como esta -respondeu. - Não a arruínam.
-Se sua opinião tivesse sido outra -replicou-, me teria deixado destroçado.
Isso lhe arrancou uma gargalhada.
Como poderia alguém tomar a sério um flerte tão descarado e teatral? Supunha que não era isso o que se esperava dela. E também supunha que o conde do Rosthorn era um pouco mais preparado do que pensava. Deu-se conta, como não, de que ela seria consciente de suas intenções, daí que não fizesse o menor esforço de ocultá-las.
Entretanto, estava fazendo-a rir de forma deliberada.
E devia reconhecer que estava passando em grande. Aquilo era melhor que o aborrecimento. Claro que queria abrandá-la até o ponto de que participasse dos planos que tinha esboçado para ela. Podia esperar sentado, fossem quais fossem.
Tinham estado passeando ao redor da zona das mesas, à vista de lady Caddick e de toda e qualquer pessoa que quissesse controlar seus passos, como Alleyne, por exemplo, que estava presente. A essas alturas, quase todos os convidados estavam de pé, mesclando-os uns com os outros. As risadas e as animadas conversas proclamavam que o jantar campestre de lorde Rosthorn era um êxito completo.
Esperava que o conde a acompanhasse de volta à mesa de lady Caddick passado um tempo prudencial e aguardasse até o começo do baile para convidá-la. Entretanto, não parecia ter pressa por livrar-se de sua companhia. Manteve-a junto a seu lado, com sua mão sobre o braço enquanto circulavam entre os convidados, trocando breves saudações com a maioria e detendo-se para conversar de forma mais extensa com alguns.
Conhecia quase todos os pressentes, daí que se sentisse muito à vontade. Entretanto, não tinha passado por cima que lorde Rosthorn segurava seu braço com firmeza, de modo que não pudesse livrar-se dele em caso de querer fazê-lo sem chamar a atenção. Tinha toda a intenção de mantê-la a seu lado; quase como se fosse a anfitriã da noite ou a convidada de honra. Quase como se fossem um casal comprometido. Para falar a verdade, não era muito adequado que lhe dedicasse semelhantes atenções durante tanto tempo. Perguntou-se se seriam a fofoca das pessoas no dia seguinte; lady Morgan Bedwyn, que estava quase comprometida com o capitão lorde Gordon, e o conde do Rosthorn, esse misterioso libertino. Era muito fácil converter-se no objeto das especulações e dos desagradáveis falatórios das pessoas como bem devia saber ele.
Não obstante, o joguinho de lorde Rosthorn era divertido no momento. Quando retornaram à mesa, só lady Caddick, Rosamond e os oficiais estavam presentes.
Tinha esperado encontrar-se com algo um pouco mais perigoso, talvez, embora a noite continuasse sendo jovem.
Enquanto refletia a respeito, ele inclinou a cabeça e lhe falou ao ouvido de modo que ninguém mais o escutasse.
-O ruído das conversas e a confusão dos pressentes é excessivo, não acha? - perguntou, acariciando com os dedos o dorso de sua mão que descansava sobre seu braço-. Talvez devesse ter feito o esforço de ordenar à agência que não convidasse a toda a cidade, literalmente. Seria mais agradável ter mais espaço, dispor de um lugar onde respirar com tranqüilidade e onde poder fingir ao menos que nos encontramos em completa solidão, não lhe parece?
-Parece-me, lorde Rosthorn -respondeu ela, olhando o de soslaio - que tal como reza o ditado, é melhor não abandonar a segurança do grupo.
O conde retrocedeu como se estivesse assombrado por suas palavras.
-Acredita que estava sugerindo algo indecente? -perguntou-lhe- Acaba de ferir minha sensibilidade de cavalheiro. Minha intenção não era outra que a de lhe mostrar algo que monsieur Pepin me mostrou pouco antes da chegada dos convidados. E é algo excepcional. Me permita mostrar-lhe, Não se afastará nem um só instante do penetrante olhar de sua acompanhante.
Lady Caddick, tal como comprovou, estava no centro de um grande grupo de oficiais, que ao que parecia cortejavam alegremente ao Rosamond. Era muito provável que a dama se esquecera por completo até de sua mera existência.
-Muito bem - aceitou . - Mostre-me isso.
Até esse momento tinha acreditado que as lanternas estavam dispostas em uma espécie de círculo ao redor das mesas. Entretanto, quando lorde Rosthorn o indicou, observou que havia uma série de serpenteantes caminhos iluminados pelas lanternas que partiam do perímetro do círculo. Uns caminhos criados para passear entre as árvores sem acabar sumidos na escuridão e sem o risco de perder-se. Cada um dos caminhos iluminados descrevia uma curva em algum ponto que o devolvia à zona das mesas.
-Não é brilhante? -perguntou-lhe o conde com um brilho zombador no olhar-. Tomara tivesse sido partícipe dos preparativos da noitada para poder reclamar o mérito. Caminhos semiprivados para aqueles que desejem estar em semiprivacidade. Deteve-se ao cair na conta de que a levava por um dos tais caminhos.
-Certamente que é brilhante -conveio-. Mas não preciso ir mais longe. Daqui vejo muito bem o brilhantismo de seu desenho.
Ele riu entredentes.
-Teme que planeje seqüestrá-la, chérie? -perguntou-lhe-. À vista de uma horda de convidados em minha própria festa? A zona central é visível desde todos os pontos dos diferentes caminhos que, em realidade, não são caminhos a não ser meros atalhos dispostos entre as árvores. Além disso, vê? Inclusive antes de que comece o baile, já há outros casais que os descobriram. Permita-me mostrar-lhe.
Seu sotaque francês era mais pronunciado. E havia tornado a chamá-la chérie. Acabava de passar, compreendeu, a seguinte fase de seu jogo, à fase mais perigosa. Perguntou-se fugazmente por que tinha escolhido a ela. Talvez porque era muito, muito rica? Os libertinos não se caracterizavam por demonstrar seus encantos com as damas mais jovens a menos que fosse por esse motivo, não?
-Mas já o fez - replicou, lhe lançando um olhar deliberadamente inocente.
-Ah! -exclamou ele-. Tem medo de que seja o lobo mau do conto. Peço-lhe desculpas, lady Morgan Bedwyn. Não imporei minhas atenções a uma mocinha que me tem medo.
Acabássemos, pensou. Embora sabia que a estava manipulando como se fora uma marionete, reagiu tal como ele esperava que o fizesse. Presa da irritação.
- Se lhe tenho medo? -Procurou com os dedos o leque que pendia do pulso, agarrou-o, abriu-o e começou a abanar o rosto com ímpeto-. Se tenho medo a você, lorde Rosthorn? Talvez não compreenda o que significa ser um Bedwyn. Ninguém nos dá medo, asseguro. Adiante, me mostre o caminho.
Lorde Rosthorn sorriu e ela viu a aprovação que aparecia em seus olhos enquanto se internavam em um dos caminhos iluminados pelas lanternas, onde se viram apanhados ao ponto na ilusão de privacidade e intimidade que oferecia.
-Por fim -disse ele- comecei a desfrutar da noite como desejava fazê-lo desde o princípio.
-Comigo? -Voltou a abanar o rosto e ergueu a vista para ele com expressão altiva, um tanto desdenhosa inclusive-. Desejava desfrutar da noite comigo?
-Com você, chérie -afirmou ele em voz baixa.
-Tudo isto o organizou para mim? -perguntou-lhe-. A noitada em si?
-Pensei que talvez achasse divertido -respondeu.
Morgan se deteve, fechou o leque e o soltou para que voltasse a pender de seu pulso.
- Com que propósito? -perguntou-lhe.
-Refere-se porque acreditei que o acharia divertido? -perguntou ele por sua vez-Porque você é jovem, chérie, e os jovens desfrutam com as comidas ao ar livre, com a luz da lua e com a música. Não é certo?
-Refiro-me, lorde Rosthorn -o corrigiu com voz gélida-, por que me escolheu. Por que organizar algo tão suntuoso e extravagante para mim quando sou uma completa estranha para você? Foi extremamente presunçoso de sua parte!
-Caramba, mais non! -exclamou-. Não é uma completa estranha. Fomos devidamente apresentados. Dançamos uma valsa.
-Mas algo tão complicado como isto como resultado de uma simples apresentação e de uma valsa? -perguntou ela ao mesmo tempo que agitava um braço com ímpeto em direção à zona das mesas- Lorde Rosthorn, acredito que você me escolheu para desfrutar de um interlúdio romântico. Acredito que suas intenções não são honrosas.
-Honrosas -Soltou uma gargalhada muito curta. - Não penso me prostrar de joelhos e lhe pedir que se converta em minha esposa, se for a isso ao que se refere, chérie -A vacilante luz de um das lanternas ressaltou o brilho risonho de seu olhar-. Entretanto, no baile dos Cameron acreditei reconhecer em você um espírito afim, um espírito que não suporta as constrições das normas sociais e que anseia liberdade e aventura. Equivoquei-me?
-E são essas supostas ânsias de liberdade e aventura as que impulsariam a um interlúdio romântico com você, lorde Rosthorn? -perguntou-lhe com desdém-. Sua presunção é incrível, milord.
- Acha isso? -Inclinou a cabeça para observá-la com atenção.
-O que planejou? -exigiu saber-. Chegou a uns extremos incríveis para me atrair até aqui. O que pensa fazer agora? Me roubar um beijo? Me seduzir? -Arqueou as sobrancelhas.
Compreendeu, não sem certa malícia, que estava desfrutando muitíssimo. Lorde Rosthorn não tinha porque ser o único que jogasse.
-Seduzi-la? -levou uma mão ao coração e compôs uma expressão horrorizada-. Chérie, acaso acredita que ia trazer esta horda de pessoas até aqui, com um regimento completo incluído, se minhas intenções fossem me aproveitar de você quase em público? Poderia ser um expediente espetacular para a noite se acabasse pendurado em uma destas árvores, ou trespassado por uma dúzia de sabres.
-Mas não negará que tinha a intenção de me roubar um beijo, não é verdade? -perguntou.
Lorde Rosthorn se inclinou um pouco mais para ela.
-Acredito que deveria protestar por seu uso do passado -replicou.
O fato de ser a caçula dos Bedwyn, muito menor que os outros e mulher para cúmulo de maus, sempre tinha sido uma enorme desvantagem nas discussões familiares.
Entretanto, havia uma tática que tinha aprendido muito bem: a melhor defesa era sempre um ataque. De surpresa.
-Nesse caso, lorde Rosthorn -declarou com voz cortante-, aconselho-o que saiamos deste caminho já que, conforme admitiu, está à vista daqueles que ocupam a zona das mesas, e nos internemos no bosque. Ou deseja que nos vejam enquanto me beija ou tenta fazê-lo?
O conde franziu os lábios e seu olhar risonho se acentuou. Executou uma galante reverencia antes de lhe oferecer o braço.
-Eu gostaria de ver o contraste do bosque sumido na escuridão da noite com a parte iluminada para o jantar, é claro - disse enquanto ele mudava o rumo de seus passos e abandonava o caminho marcado pelas lanternas. - Da natureza em seu estado puro com a natureza submetida à mão do homem.
-Ah! -exclamou ele-. Então se trata de um passeio para admirar a natureza, não?
-Possivelmente lhe permita me beijar antes de que retornemos, lorde Rosthorn - acrescentou com estudado desdém-, ou possivelmente não. Se o fizer, não será um beijo roubado mas concedido ou contido.
Lorde Rosthorn jogou a cabeça para trás e riu de boa vontade.
-Não lhe assusta a possibilidade de que lhe roube um segundo e um terceiro, chérie? - perguntou-lhe.
-Não -A essas alturas, a luz e o ruído tinham diminuído o suficiente para poder admirar o bosque. Deteve-se e ergueu o olhar-. Não o permitirei. É provável que nem sequer lhe permita me dar um.
-Talvez ninguém lhe tenha falado de minha reputação -declarou o conde, que também se deteve e lhe tinha solto o braço para apoiar as costas contra o tronco de uma árvore. Cruzou os braços diante do peito com despreocupação-. Talvez seja perigoso, chérie. Talvez devesse estar assustada.
-Que tolices diz -replicou-. Se tivesse más intenções para minha pessoa, guardaria-se muito de mencionar seu desonroso passado e estaria rezando para que eu não estivesse inteirada -Entretanto, devia admitir para si mesmo que estando onde estava e em semelhantes circunstâncias, na escuridão do bosque e a sós, parecia tremendamente perigoso.
Seu comentário o fez rir entredentes.
-Qual vai ser o assunto em concreto para seu estudo da natureza de esta noite? –perguntou ele muito devagar e com uma nota zombadora na voz.
Para falar a verdade, era muito agradável estar longe da multidão e do ruído. O céu continuava coalhado de estrelas, cuja luz se filtrava entre os altos ramos das árvores. Castigaria-o fingindo que não pressentia perigo algum, que o tinha convidado pelo mero prazer de sua companhia.
-Parou alguma vez a pensar em quão afortunados somos por ter sido beneficiados com tantos contrastes? -perguntou-lhe. Girou-se até realizar um círculo completo e fechou os olhos para inspirar fundo a fim de captar todos os aromas.
-Masculino e feminino? -matizou lorde Rosthorn-. Perto e longe? Acima e abaixo?
Morgan girou a cabeça para olhá-lo com interesse embora, é obvio, já não podia vê-lo com clareza. Se houvesse formulado essa pergunta à Rosamond, ao capitão Gordon ou a um sem-fim de seus conhecidos, só teria conseguido que a olhassem sem compreender.
-Luz e sombra, som e silêncio, companhia e solidão -acrescentou.
-Sagrado e profano, grande e pequeno, guerra e paz -acrescentou ele-. Beleza e fealdade.
-Ah, não! -protestou-. Aí não há contraste. O que a nós pode ser feio é sem dúvida formoso para alguém ou para algo. A lesma mais repugnante é provavelmente formosa para outra lesma. Uma tormenta que perturbe com a chuva e o frio o passeio que alguém estava a ponto de dar, pode ser bela para o agricultor que contempla com preocupação seus áridos campos.
-E o que pode parecer pequeno ou grande a nossos olhos se verá de forma muito distinta da perspectiva de um elefante ou de uma formiga -acrescentou lorde Rosthorn-. Os opostos não são mais que duas faces da mesma moeda. Duas faces que não podem existir uma sem a outra.
-Isso é -Se aproximou os contrastes são inseparáveis. Não são mais que um modo de processar informação, de assimilar, de valorizar. O passado e o futuro, por exemplo. Em realidade não existem, não é verdade? Só existe o presente. Mas se não tivéssemos esses dois conceitos contrapostos, não seríamos capazes de organizar nossas vidas nem nossos pensamentos. Acabaríamos afligidos porque tudo aconteceria ao mesmo tempo e teríamos que tomar um milhar de decisões ao mesmo tempo.
-Morreríamos enquanto nascemos -De repente, o conde riu entre dentes-. Para isto nos internamos no bosque?
-O interlúdio romântico era seu propósito -lhe esclareceu Morgan-. O meu era escapar por um instante do tédio de uma reunião social muito concorrida.
-Acaba de me matar -afirmou, levando de novo uma mão ao coração-. organizei tudo isto para que se entretenha, e o acha tedioso, chérie?
-Absolutamente -Se aproximou dele um pouco mais-. É mágico, um festim para os sentidos. Mas o é aqui e neste preciso momento, porque ao apreciar a escuridão, o silêncio e a tranqüilidade do bosque, posso valorizar em sua justa medida as luzes, a diversão e as risadas. Celebrar um jantar campestre neste lugar foi uma idéia genial, lorde Rosthorn, e o agradeço.
Ofereceu um sorriso deslumbrante e intencional.
E então, seus olhos já se tinham adaptado à escuridão. O conde do Rosthorn a estava olhando com seu sorriso indolente.
-É uma feiticeira -replicou ele-. tornou as voltas contra mim, não é certo, lady Morgan Bedwyn? Ganhou-me em meu próprio jogo e me falou de filosofia quando eu o teria feito com palavras de amor. Inclusive me provocou para que entre em sua discussão filosófica. Mas não é tão simples fazer que me esqueça de meus instintos mais básicos. Devo-lhe roubar um beijo, disso não cabe a menor duvida. E, como afirmou com contundência que não me permitirá lhe roubar nem um segundo nem um terceiro, será melhor que tire o melhor partido do único roubo.
Morgan sentiu um golpe de medo pela primeira vez. Embora talvez "medo" não fosse a palavra adequada, já que não acreditava que lorde Rosthorn tivesse a intenção de forçá-la e seduzi-la contra sua vontade. Além disso, estavam bastante perto da zona das mesas para que seus gritos alertassem às pessoas, que se preparariam a ajudá-la.
Em realidade sentiu que lhe acelerava a respiração, que lhe afrouxavam os joelhos e de repente caiu na conta de que se aproximara muito a ele. E compreendeu, evidentemente, que o que estava sentindo não era medo.
Era desejo. Desejava que esse homem a beijasse.
Em conseqüência, esteve a ponto de retroceder um passo. Esteve a ponto de dar meia volta e sair correndo. Porque estava jogando com fogo e era muito possível que acabasse queimando-se. Mais ainda, estava a ponto de demonstrar a lorde Rosthorn quão fácil era desfrutar de um interlúdio romântico com ela, quão fácil era para um libertino experiente fazê-la sua presa.
A irritação foi sua tábua de salvação; junto com o orgulho dos Bedwyn. Grande ridículo! No fim de contas, lorde Rosthorn não era mais que um libertino indolente.
Deu um passo à frente e jogou a cabeça para trás.
-Mas não vai roubar nada -lhe disse com voz fria e admiravelmente firme-. vim com toda a intenção de que me beije. Não demonstrou ser muito preparado, lorde Rosthorn, embora medianamente interessante. Me beije.
O conde continuou imóvel uns instantes. Ficou apoiado contra a árvore com os braços cruzados enquanto a observava com evidente ironia. Ela arqueou as sobrancelhas e lhe devolveu o escrutínio. Ao final, descruzou os braços, afastou-se da árvore e tomou o rosto com ambas as mãos.
Morgan esperava algo agressivo, feroz, enérgico e dominante. Algo, em definitivo, devastador. Entretanto, quando seus lábios a tocaram, fizeram-no com ternura, com suavidade, ligeiramente entreabertos e delicados como o roçar de uma pluma. Se em um primeiro momento se sentiu um pouco decepcionada, não demorou para mudar de opinião. Embora ela não movesse os lábios, lorde Rosthorn sim o fez. Esses lábios acariciaram os dela com delicadeza antes de lambê-los, mordiscá-los e explorar com a língua seu úmido e sensível interior. A calidez de seu fôlego lhe roçou a face.
Os efeitos do beijo, descobriu, não se reduziram à zona dos lábios. A sensação se estendeu por toda sua boca e dali desceu pela garganta até chegar à zona dos seios, do abdômen e da parte interna das coxas. Quando o conde se afastou, por fim teve muito claro por que um só beijo podia ser perigoso. O calor que irradiava o corpo masculino a afetava da cabeça aos pés. Percebia sua masculinidade com uma intensidade esmagante. Lorde Rosthorn desceu as mãos.
-Muito agradável, chérie -disse-. Muito, mas que muito agradável. Desejaria que os bosques da Bélgica estivessem equipados com colchões e que as acompanhantes, inclusive as que são tão negligentes como parece ser a sua, carecessem da noção do tempo. Mas, por desgraça, devemos retornar com meus convidados e voltar para a segurança do grupo.
Ofereceu-lhe o braço ao mesmo tempo que executava uma galante reverencia.
E desse modo, pensou Morgan enquanto lhe lançava um olhar sério e aceitava o braço que lhe oferecia, talvez se proclamava vencedor do hostil joguinho. Porque estava claro que não a tinha beijado como Deus mandava, ou ao menos não como deveria beijar um libertino e nem muito menos como tinha pretendido beijá-la.
Limitou-se a brincar com ela.
Era um adversário ardiloso. Perguntou-se se depois dessa noite se cansaria do joguinho e se limitaria a esquecer sua existência enquanto se lançava atrás de outra presa.
Wulfric e a tia Rochester sofreriam uma apoplexia se pudessem vê-la nesse momento, pensou de repente. E com bom motivo. Tinha aceito o desafio de superar com o engenho a um libertino experiente que, por alguma razão que desconhecia, tinha-a escolhido como sua vítima. E não tinha nada claro quem tinha ganho.
Talvez fosse um empate.

 


Capítulo 4

 

Um considerável número de convidados percebeu sua volta à zona das mesas, observou Gervase, assim como da direção da qual procediam. Esses mesmos convidados recordariam tê-lo visto circular entre a multidão com a mesma dama pouco antes. Recordariam o tempo que tinha passado com ela em um evento no qual nem sequer se esperava que os casados permanecessem juntos muito tempo.
No dia seguinte, ou talvez antes de que a noite chegasse a seu fim, comentariam o que tinham visto outras pessoas que possivelmente não se deram conta. Lady Morgan Bedwyn e o conde do Rosthorn seriam a fofoca breve, não lhe cabia a menor duvida.
Tal como tinha planejado.
O problema era que a moça lhe caía bastante bem. Não era nem de longe uma tonta. E tinha caráter. enfrentou a ele em seu próprio jogo e ainda não tinha decidido se tinha sido ela a ganhadora ou não. Porque a princípio tinha tido a intenção de beijá-la de um modo muito mais lascivo. Em troca, decantou-se por surpreendê-la. E ali estava, caminhando a seu lado com expressão distante e ligeiramente aborrecida enquanto gotejava altivez aristocrática por todos os poros de seu corpo. Essa atitude tão fria o teria incomodado se não estivesse quase seguro de tê-la irritado em certa medida.
-Por Deus! -exclamou com um suspiro exagerado-. Tenho que cumprir com um dever que não pude me liberar por mais que tentei me esconder de monsieur Pepin. Devo anunciar o começo do baile e também devo ser eu quem o abra com a dama de minha escolha, ou com a primeira dama que consinta em dançar comigo. Mmmm, me deixe pensar... teria que saber qual vai ser a primeira peça porque Pepin me mostrou o programa e me aconselhou que o memorizasse. Ah, sim, já me lembro. A primeira peça será uma valsa. Tem que dançar comigo, chérie. Insisto em que o faça. Você dança muito bem e estou seguro de que não me porei em evidencia diante de todos meus convidados lhe esmagando os dedos dos pés. Dançará comigo?
Olhou-a com um sorriso zombador nos lábios e encontrou sua recompensa ao ver os esforços da jovem para não rir.
-Muito bem -respondeu ela com evidente desdém.
Era interessante que tivesse aceito. Muito interessante, certamente embora estivesse tentando não mostrar-se ansiosa por dançar a valsa com ele, é obvio. Era uma digna adversária.
E sentia muito que fosse o ódio o que o tinha aproximado dela e que fosse o ódio o que o impulsionava a continuar atrás dela. Não obstante, a idéia de que a indiscrição cometida por lady Morgan Bedwyn ao passar tanto tempo em sua companhia chegasse aos ouvidos do Bewcastle na Inglaterra lhe dava um prazer irresistível.
Conduziu-a até o soalho de madeira que fazia as vezes de pista de baile. Ajudou-a a subir, colocou-se a seu lado e se dirigiu a seus convidados durante o espectador silencio que sua presença provocou. O baile estava a ponto de ter começo, anunciou. A primeira peça seria uma valsa. Convidou-os a escolher par e a se unissem a eles. E depois, sem esperar que a pista se enchesse de bailarinos, fez um gesto com a cabeça ao diretor da orquestra.
A música começou no ponto e, com a mesma rapidez, uma de suas mãos segurou a cintura de lady Morgan enquanto que a outra a puxava pela mão direita para guiá-la nos primeiros passos da valsa.
E assim estiveram dançando virtualmente a sós durante alguns minutos, até que outros casais os rodearam e se uniram à dança. Durante esses minutos voltaram a estar expostos aos olhares dos convidados enquanto compartilhavam a mais íntima de todas as danças. Baixou o olhar para observá-la com um sorriso e, em lugar de encontrá-la horrorizada ou envergonhada como deveria estar, descobriu que lhe devolvia o olhar com arrojo, com essas perfeitas sobrancelhas arqueadas sobre uns olhos igualmente perfeitos. Concentrou-se por completou na valsa e, contra sua vontade, viu-se apanhado na euforia da dança enquanto a olhava nos olhos sem deixar de sorrir e a guiava entre os restantes casais. O ar livre era um lugar perfeito para dançar a valsa, decidiu. Pareciam formar parte do bosque, seu jovem par e ele, parte da noite, parte do baile que era a vida em si mesma. Lady Morgan jogou a cabeça para trás para contemplar as estrelas que giravam por cima dos ramos das árvores e soltou uma gargalhada.
-Ah, chérie! -exclamou em voz baixa-. Você e eu nos movemos em perfeita harmonia na pista de baile.
-É um gênio na hora de usar as pausas, não é certo? -replicou ela com altivez e sem rastro algum do sorriso. O comentário lhe arrancou uma gargalhada. A perseguição, concluiu, ia levar lhe mais tempo de que tinha previsto. Claro que não o incomodava. ia desfrutar de cada passo do caminho.
Não teve a oportunidade de acompanhá-la à mesa de sua acompanhante quando a valsa acabou. Antes inclusive de que tivessem deixado de girar, um cavalheiro se aproximou deles e agarrou a lady Morgan pela mão para colocá-la com firmeza no braço.
-Obrigado, Rosthorn -disse o recém-chegado com rígida cortesia-. Acompanharei a lady Morgan de volta à lady Caddick.
Lorde Alleyne Bedwyn se parecia muito com seu irmão mais velho, sobre tudo quando estava irritado como era o caso nesse momento. Não tinham sido formalmente apresentados, mas o tinha visto um par de vezes por Bruxelas e o tinha saudado quando chegou a festa. Despediu-se de lady Morgan com uma reverência acompanhada de um sorriso antes de que seu irmão se apressasse a afastar a de seu lado.
Ah, ah! A coisa prometia, pensou enquanto os observava afastar-se com os olhos entrecerrados. Se Bedwyn os tinha visto e se havia sentido ofendido por seu comportamento, isso queria dizer que outras pessoas também se teriam dado conta.
Que sorte para ele que a moça tivesse uma criatura tão lamentável como acompanhante.
-Bom, Morg -disse Alleyne uma vez que se internou com ela em um dos caminhos iluminados e se livraram da angustiante multidão-, vejo que esta noite está passando em grande.
-Suponho -começou ela- que todos os pressentes estão verdes de inveja por não ter sido os primeiros em organizar um jantar à luz da lua no bosque do Soignes.
-Suponho -concordou ele-. Mas sabe muito bem do que estou falando. Não me dirá que foi se a apaixonar pelo Rosthorn, não é verdade? Acreditava que tinha mais bom senso.
-Que me apaixonei? Está louco? -perguntou-. Não costumo me apaixonar por todos os cavalheiros que se dignam a me prestar atenção.
-Me alegro de ouvir isso -replicou Alleyne com secura-. Mas não entendo no que estava pensando lady Caddick para lhe permitir passear com ele depois do jantar como se fossem casados, para permitir-lhe desaparecer por um destes caminhos durante tanto tempo que estive a ponto de ir buscá-la e para lhe permitir pisar na pista de baile com ele quando ainda estava deserta salvo por vocês dois. Terá muita sorte se não se converter na fofoca de toda a cidade amanhã e mais sorte ainda se o incidente não chegar aos ouvidos do Wulf. Acreditei que essa mulher era uma acompanhante responsável. E o mesmo devia pensar Wulf se lhe permitiu vir a Bruxelas sob sua tutela.
-Lady Caddick não tem feito nada irresponsável -protestou, irritada-. Nem eu tampouco. Não tem nada de excepcional passear com um cavalheiro a quem se conhece previamente. Nem sequer a tia Rochester teria posto a menor objeção. E tenho permissão para dançar a valsa. Lady Caddick não sabia que lorde Rosthon pretendia abrir o baile antes de que estivéssemos acompanhados por outros casais. Nem eu tampouco.
-Vamos, Morg -disse seu irmão-. Sabe muito bem que a tia Rochester teria estado jogando fogo pelas orelhas e pelo nariz até antes de que se metesse em um destes caminhos e desaparecesse da vista. E enquanto isso Wulf teria deixado um rastro de pedaços de gelo a sua passagem. A estas alturas já estaria em casa, metida na cama, e Rosthorn estaria tirando pedacinhos de gelo do fígado.
-Bom, pois não estão aqui -replicou-. E ninguém o nomeou meu guardião, Alleyne. Não tem nada melhor que fazer esta noite que me vigiar enquanto me divirto? Com certeza há um montão de damas que estão desesperadas por dançar consigo.
Até ela admitia que seu irmão era muito bonito, com seu cabelo escuro e sua constituição atlética, apesar de ter herdado o proeminente nariz dos Bedwyn. De fato, ela era a única da prole que se livrara.
-Prometi ao Wulf que lhe daria uma olhada -confessou-. Embora tal como se estão pondo as coisas parece que deveria lhe dar dois, Morg. Está claro que Rosthorn quer algo com você.
-Tolices! -exclamou ela-. Só estivemos desfrutando de nossa mútua companhiaesta noite. E é um cavalheiro.
-Aí se engana - corrigiu-a Alleyne, que por um momento recordou muitíssimo ao Wulfric porque seu rosto se tornou muito inexpressivo-. De cavalheiro só tem o sobrenome familiar. O tipo tem uma reputação muito sórdida, Morg. Leva anos perambulando pelo continente, nem sempre nas melhores companhias, e se murmura que partiu da Inglaterra açoitado por um escândalo.
Morgan guardou silêncio.
-Wulf não o consideraria elegível, pode estar segura -concluiu seu irmão.
-Elegível? -repetiu com altivez- É que um cavalheiro sempre tem que ter o matrimônio em mente quando convida a uma dama a dar um passeio?
-Será melhor que não tenha outra coisa -respondeu ele com voz irada-. Ao menos quando a dama em questão é minha irmã. Acreditei que estava apaixonada pelo Gordon.
-Começa a me aborrecer -confessou-. É bastante bonito para chamar a atenção de qualquer dama, mas é vaidoso e pretensioso. Tento desculpar seus defeitos atribuindo-lhe a sua juventude, mas sempre acabo caindo na conta de que é quatro anos mais velho que eu.
Alleyne riu entredentes e voltou a adotar sua expressão habitual.
-Sei que posso confiar em você, Morg -disse, apertando sua mão contra seu flanco.- Os Bedwyn talvez sejam desmedidos, mas sabemos qual é nosso lugar. Entretanto, embora você não goste nada que lhe digam isso, é uma inocente e às vezes a inocência pode ser muito perigosa. Me prometa que terá muito cuidado com o Rosthorn, sim? Se quiser, terei umas palavrinhas com ele.
-Se o faz -replicou, fervendo de fúria-, imitarei um dos famosos ganchos de esquerda da Freyja e lhe recolocarei o nariz, Alleyne. É obvio que tomarei cuidado. Embora não seja necessário. Lady Caddick é uma acompanhante adequada e dá a casualidade de que tenho um cérebro na cabeça.
Alleyne se pôs-se a rir e lhe deu um murro brincalhão no queixo com a mão livre.
-Nesse caso, fico com o nariz tal como o tenho, se não se importa -concluiu-. Levo-a de volta com lady Caddick? Suponho que Gordon estará impaciente por dançar com você.
Assentiu com a cabeça e se perguntou o que diria seu irmão, e o que faria, se lhe contasse que a noitada em si mesma tinha sido ideada e organizada somente para ela. E que se internou no bosque de forma deliberada com lorde Rosthorn, onde lhe tinha permitido beijá-la sabendo que a única coisa que ele tinha em mente era um interlúdio romântico.
A reação do Alleyne rivalizaria com os foguetes dos jardins do Vauxhall. Possivelmente despedaçaria ao conde do Rosthorn membro a membro e espalharia depois os pedaços pelo bosque.
E como reagiria Wulfric? O que diria? O que faria? Era melhor não pensar nisso sequer. De qualquer forma, não estava disposta a sentir-se culpada. Não tinha acontecido nada de mau.
Justamente o contrário. Um libertino experiente e calculador tinha decidido jogar com ela, mas lhe tinha saído o tiro pela culatra e ela tinha saído relativamente ilesa da experiência. Estava muito orgulhosa de si mesma.
Talvez o conde do Rosthorn, um homem mais que desprezível, pensasse melhor antes de voltar a perder seu tempo e seu dinheiro com uma mocinha inexperiente.
Mocinha inexperiente! Ja! Pelo amor de Deus, ela era lady Morgan Bedwyn!
Passaram-se vários dias antes de que Gervase voltasse a falar com lady Morgan Bedwyn. Viu-a uma noite na Salle du Grand Concert na rue Ducale (atuava a famosa soprano madame Catalini e o duque do Wellington se encontrava entre os assistentes), mas não se aproximou dela porque estava rodeada por um numeroso séquito no qual se incluía seu irmão. Certamente se falava deles nos salões de Bruxelas, o bastante para que algumas pessoas incluíssem , sem a menor duvida, algum ou outro comentário a respeito nas cartas que mandavam a Inglaterra, onde correria a voz. A dama em questão era, depois de tudo, lady Morgan Bedwyn, a irmã do duque do Bewcastle.
Seu estratagema estava funcionando bastante bem. E não o preocupava absolutamente que o assunto se desenvolvesse com lentidão. Não tinha pressa alguma.
Uma manhã se encontrava cavalgando pelo Allée Verte (uma avenida coberta de grama situada além das muralhas da cidade e flanqueada por caminhos de fileiras de tílias, uma das quais dava para um caudaloso canal) quando viu que lady Morgan passeava também a cavalo em sua direção, acompanhada por lady Rosamond Havelock. Ele estava sozinho, já que acabava de separar-se de John Waldane e de um grupo de conhecidos comuns.
A jovem apresentava uma imagem verdadeiramente deslumbrante com seu flamejante traje de montar azul marinho e o alegre chapeuzinho a combinar adornado com plumas. Montava em uma sela de amazona, mas o fazia com tal elegância e segurança que bem podia ter nascido na montaria. Um par de corpulentos cavalariços as seguiam a uma distância prudente.
Levou a mão ao chapéu e executou uma reverência da sela. Lady Morgan correspondeu a sua saudação com um elegante gesto de cabeça; essa manhã interpretava o papel de grande dama, talvez como conseqüência das fofocas que seguiam circulando sobre eles. Possivelmente teria passado ao largo sem dizer uma palavra se não fosse pela saudação de lady Rosamond.
-Bom dia, lorde Rosthorn -lhe disse com voz alegre-. Faz um belo dia, não é?
-Depois de dois dias de chuva, é muito agradável voltar a sair -concordou.
-Foi uma sorte que fizesse o jantar campestre na noite que escolheu -continuou a moça enquanto seus três cavalos se detinham e os cavalariços imitavam a certa distância-. Depois o tempo foi muito rude.
-Espero que desfrutaram da noitada -acrescentou ele.
-Foi maravilhosa! -exclamou a dama com o entusiasmo característico de uma jovem de sua idade-. Desfrutamos de cada minuto, não é, Morgan?
Entretanto, essa jovem em concreto o estava observando com uma expressão muito séria, comprovou ao posar o olhar nela.
-Sabe algo dos franceses, lorde Rosthorn? -perguntou-lhe-. Se comenta que avançam para aqui.
-Morgan, lembre-se do que disseram Ambrose, o major Franks e o tenente Hunt-Mathers ontem à noite - interveio lady Rosamond antes de que ele tivesse oportunidade de responder-. Disseram que não tínhamos que nos preocupar o mínimo pelos franceses. Jamais atravessarão nossas defesas para aproximar-se de Bruxelas. Vá, aí estão o capitão Quigley e o tenente Meredith! -exclamou quando se uniram os dois oficiais da Guarda. - Que eles nos dêem sua opinião a respeito. Corremos perigo de que os franceses nos invadam, capitão Quigley?
A pergunta pareceu deixá-lo horrorizado.
-Perigo, lady Rosamond? -repetiu-. Com a Guarda Real Montada para defendê-la? Não permitiremos que Boney ponha um pé na Bélgica sem tê-lo arrancado antes com um canhão, pode estar segura.
-Não deve ocupar sua linda cabecinha com essas questões, lady Rosamond –acrescentou o tenente-. Nem tampouco deve questionar a segurança de seu irmão nem a de qualquer outro oficial que se encontre entre seus conhecidos. Bonaparte não se atreverá a nos atacar com esse rebanho de rufiões ao que chama exército. Uma lástima, na verdade.
Os oficiais fizeram girar seus cavalos para prosseguir o passeio com as damas.
Entretanto, lady Morgan apenas lhes dirigiu um olhar de enfado. Seus olhos seguiram cravados nele enquanto franzia o cenho.
-Permite-me cavalgar com você um trecho? -perguntou-lhe, e ela assentiu com a cabeça, embora o fez de forma um tanto distraída, ou assim pareceu.
Cavalgaram o um ao lado do outro, a certa distância de lady Rosamond e dos oficiais, que conversavam com a voz alta e riam à vontade. Os dois cavalariços, observou quando deu uma olhada por cima do ombro, foram atrás do grupo.
-É para mim frustante, e inclusive insultante -começou lady Morgan-, que me repitam ao menos vinte vezes ao dia que não devo ocupar minha linda cabecinha com essas questões, quando está claro que me correspondem, igual à todos meus compatriotas em geral e a certos conhecidos que formam parte do exército em particular.
-Proteger às damas do perigo e da ansiedade forma parte da natureza de um cavalheiro -explicou.
-Então, vai acontecer, não é verdade? -perguntou ela-. vai explodir a guerra de novo.
-Indubitavelmente -lhe confirmou ele, decidindo-se pela franqueza que utilizaria em caso de lhe ter perguntado um homem-. Qualquer esperança, por vã que fosse, de que os franceses se negassem sem mais a fechar filas em torno de seu imperador cansado se esfumou. Se Comenta que o exército francês é numeroso e imponente. Todos seus marechais mais renomados correram a seu lado, sem dúvida com a esperança de que Bonaparte restaure o prestígio e a glória que perderam. Sim, ao menos será inevitável que haja uma batalha. Só cabe esperar que uma seja suficiente. Se Bonaparte for vencedor, o futuro será imprevisível.
-Mas o que aconteceu com o que era previsível -protestou a jovem-. É o que venho dizendo desde o começo. As pessoas chamam de "Fraco" a Napoleão Bonaparte e aceitam que um homem com semelhante nome tem que ser um mequetrefe. Mas para ter alcançado o êxito que teve ao longo dos anos, deve ser um homem de grande inteligência e carisma, não?
-A iminente batalha será letal -comentou ele- e seu resultado é de todo incerto; em caso contrário, Wellington não se mostraria tão preocupado. Embora seja crença que Bruxelas não corre perigo de momento. As fronteiras estão muito bem defendidas. Se houvesse uma ameaça real, a maioria dos visitantes britânicos e todas as damas estariam a caminho de casa a estas alturas.
-Lorde Caddick quer que não demoremos mais nossa partida -disse ela- e meu irmão Alleyne foi ontem nos visitar para saber por que continuamos aqui. Mas lady Caddick se nega a partir até o último momento. Está empenhada em seguir perto de lorde Gordon e eu aplaudo sua decisão. Permitem fazer muito pouco às mulheres, lorde Rosthorn. Salvo estar ao lado de nossos homens.
-E lorde Gordon é o homem junto ao qual quer estar? -perguntou.
Lady Morgan o olhou nos olhos.
-Essa é uma pergunta muito impertinente, lorde Rosthorn -replicou.
Sorriu.
Entretanto, a dama não parecia disposta a discutir.
-Não é minha segurança nem a da cidade o que me preocupa -confessou ela-. Suponho que quando chegar a hora, tirarão-me daqui a toda pressa, muitíssimo antes de que corra qualquer perigo. Mas não podem fazer o mesmo com os soldados, não é? Eles devem ficar e lutar. E morrer.
-Nem todos os soldados morrem na batalha -recordou com delicadeza-. Pense em todos os veteranos que há na cidade. Participaram de numerosas e sangrentas batalhas na península Ibérica, muitos deles inclusive vinham das campanhas da Índia, e sobreviveram para contar.
-Meu irmão Aidan entre eles -declarou a jovem-. Seguiu no exército até depois da batalha de Toulouse, no ano passado. Mas, lorde Rosthorn, não deve esquecer-se dos milhares de veteranos que não estão em Bruxelas porque morreram; entre eles o irmão de minha cunhada Eve, por exemplo.
Lady Rosamond estava rindo-se alegremente com os oficiais, mas ela não parecia escutá-los.
-Talvez detenham o Bonaparte na fronteira -disse-, mas não se limitará a voltar para casa amedrontado, não é verdade?
-Isso seria muito improvável, sim -concordou ele.
-Então o que vai fazer? -perguntou-lhe, olhando-o de novo nos olhos.
-Como será uma questão de orgulho -respondeu-, terá que tentar abrir-se caminho à força até as portas de Bruxelas. As tropas do duque do Wellington não o porão fácil… Ou não o permitirão, com um pouco de sorte. Mas sem dúvida alguma tentará isso. Se eu estivesse em seu lugar, atacaria o ponto débil da linha defensiva, que talvez seja o lugar onde se unem as tropas do Wellington e as do marechal Von Blücher. Se conseguir abrir uma brecha por esse ponto, separar os flancos e impedir a comunicação entre eles, terá muitas possibilidades ter a vitória.
Não tinha por costume fazer predições tão agoureiras às mulheres e muito menos se se tratasse de uma muito jovem e resguardada dos rigores da vida, mas lady Morgan não era como as demais; cada vez estava mais convencido disso.
-Obrigada -lhe disse ela com voz séria-. Obrigada por não fazer referências desabonadoras a minha linda cabecinha, lorde Rosthorn, e por responder a minhas perguntas sem suavizar as respostas. Às vezes acredito que os oficiais que conheço se comportam como soldadinhos de chumbo que estejam jogando de guerra. Embora suponho que isso é injusto. Limitam-se a lhe tirarem ferro à realidade em presença das damas porque nos acreditam muito delicadas para enfrentar à verdade. Estou segura de que entre eles se comportarão de outro modo.
O estrondoso coro de gargalhadas procedente do grupoo de lady Rosamond ilustrou à perfeição o que acabava de dizer.
-Perdoará a eles se os mandam à batalha -disse.
-Se os mandarem? -repetiu lady Morgan.
-Quando os mandarem -retificou.
Os lábios da jovem se crisparam e perderam parte de sua cor.
-Durante anos -começou-, quando era pequena, costumava passar os dias doente de preocupação por Aidan. A guerra me parecia algo inútil. Por que tinha que estar o irmão a quem eu adorava afastado de mim e de sua família durante tanto tempo quando nós o necessitávamos e o queríamos? Por que devia arriscar sua vida um dia atrás de outro? Por que tinha que ver-me obrigada a viver com o medo constante de que um dia chegasse um homem de uniforme às portas do Lindsey Hall e nos comunicasse que tinha morrido em uma batalha? Ainda continuo pensando que a guerra é inútil. Você não, lorde Rosthorn?
-É claro - respondeu-. Mas continua sendo inevitável. A luta, por desgraça, forma parte da natureza humana. Sempre haverá guerras.
-Forma parte da natureza dos homens -particularizou ela-. As mulheres não declaram guerras. Se fôssemos nós as que governássemos os países, relacionaríamo-nos os uns com os outros com muitíssimo mais bom senso.
Isso o fez sorrir.
-Faz-lhe graça a idéia, lorde Rosthorn? -perguntou-lhe com voz cortante.
-Só porque acredito que as mulheres são bastante sensatas para manter-se afastadas da política -respondeu-. Têm coisas melhores nas quais ocupar seu tempo.
-Como bordar, suponho -replicou ela-, e tomar o chá com suas vizinhas.
-E criar a seus filhos -acrescentou-. E fazer seus homens entrarem em razão. E assegurar-se de que o mundo não relega a beleza da arte, da música e da poesia.
-Pergunto-me se tantos louvores não esconderão uma crítica -disse a jovem.
Nesse momento, os oficiais se despediram de lady Rosamond e se viraram para incluir lady Morgan e para assegurar-se de que essa noite participaria de um jantar organizado pelo regimento.
Ele aproveitou as circunstâncias para fazer o mesmo e recebeu um gesto amigável de despedida por parte da dama.
Ah!, pensou enquanto se afastava no lombo de seu cavalo e retomava a direção que tinha quando se cruzou com as jovens. A cena não se desenvolveu absolutamente como a paquera que tantas vezes tinha planejado. Era um tanto desconcertante descobrir que a moça tinha cérebro e que gostava de utilizá-lo. Mas se preferia tratá-lo como se tratasse de um amigo , que assim fosse.
Não costumava olhar o dente a um cavalo dado.
Na manhã de 13 de junho lorde Alleyne Bedwyn bateu na porta da residência de lorde Caddick na rue do Bellevue e falou em privado com o conde antes de passar ao saleta matinal, onde se encontravam as damas. Estavam todos em casa, já que o dia tinha amanhecido com uma garoa e ainda não se limpara o suficiente para dar um passeio a cavalo nem para ir a lojas.
-Os Kiev-Denson, uns conhecidos de sir Charles Stuart, partem da cidade amanhã a primeira hora, senhora -explicou a lady Caddick depois de trocar as saudações de rigor.
- Têm uma filha e afirmam que sua preceptora possui um excelente bom senso e muita coragem. Aceitaram que minha irmã os acompanhe até Londres. E se o deseja, também incluirão lady Rosamond.
Morgan se esticou e Rosamond olhou a sua mãe com os olhos totalmente abertos por causa da desilusão.
Lady Caddick abanou o rosto, visivelmente preocupada.
-Não sei, lorde Alleyne -disse-. É um detalhe que os Kiev-Denson se ofereçam para nos ajudar desse modo, mas continuo pensando que o lugar do Rosamond é com seu pai e com sua mãe. E eu não gosto da idéia de abandonar ao Gordon quando mais necessita. Além disso, não acredito que a situação seja tão desesperada. Lorde Uxbridge ou o duque do Wellington em pessoa haveriam dito algo se acreditassem que nos encontramos em grave perigo.
-Entendo e compartilho seus sentimentos, senhora -replicou Alleyne-. Nesse caso, direi à senhora Kiev-Denson que só será Morgan quem viaja com eles. Ordene a sua camareira que prepare sua bagagem sem mais demora, Morg.
Entretanto, antes de que pudesse abrir a boca para expressar um indignado protesto, lady Caddick tomou a palavra.
-Eu não gosto da idéia, lorde Alleyne -confessou-. Lady Morgan foi confiada a meu cuidado pelo duque do Bewcastle em pessoa. E careço da autoridade para ceder essa responsabilidade a outra pessoa.
-Assumo a responsabilidade, senhora -disse seu irmão-. E lorde Caddick está de acordo comigo em que Bruxelas se converteu em um lugar potencialmente perigoso sobre tudo para as damas.
Não elaborou mais o comentário. Não teve que fazê-lo. Morgan sabia, igual a todo mundo embora ninguém se atrevesse a dizê-lo com palavras, o que podia passar às mulheres de uma cidade conquistada quando o exército invasor tomava suas ruas. Tão grave era o perigo, então?
De qualquer modo, seus temores contimuavam sem estar centrados em sua pessoa. De certa forma lhe parecia uma covardia partir nesse momento. E, embora não estivesse apaixonada pelo capitão lorde Gordon nem de nenhum outro oficial, conhecia-os e a preocupava o que pudesse lhes acontecer. A idéia de que a obrigassem a partir de Bruxelas a enojava.
-Não penso em ir, Alleyne -disse.
Seu irmão a observou com uma sobrancelha arqueada. Não obstante, suas palavras estavam dirigidas a lady Caddick.
-Poderia falar com minha irmã a sós, senhora? -perguntou.
A condessa ficou em pé na hora.
-Necessito que me acompanhe a meus aposentos, Rosamond -disse.
Sua amiga lhe fez uma careta ao passar a seu lado enquanto abandonava a saleta sem pigarrear atrás de sua mãe. Morgan ficou em pé e se aproximou da janela para dar uma olhada ao exterior. Viu que tinha deixado de chover. A calçada e o meio-fio começavam a secar..
-Não penso em ir, Alleyne -repetiu. Podia ser muito obstinada quando se propunha, como bem sabia toda sua família.
Alleyne soltou um suspiro.
- Que tal lhe parece que falemos sem disfarces, Morg? -perguntou-lhe enquanto se aproximava dela-. Não vou permitir que minha irmã corra o risco de que a viole um soldado francês. Parece-lhe suficientemente claro dito assim? E acho que não me engano ao dizer que Wulf estaria de acordo comigo.
-Partirei quando o perigo for iminente -assegurou-. Me obrigarão a fazê-lo. Lorde Caddick insistirá e sua esposa compreenderá que deve antepor a segurança do Rosamond e a minha a sua preocupação por lorde Gordon. Esperarei até que chegue esse momento, Alleyne. Confiarei neles para que tomem a decisão adequada. Vim aqui sob sua responsabilidade, depois de tudo. Não -disse, erguendo uma mão para sossegar os protestos do Alleyne-. Não queira se fazer de irmão mais velho. Limite-se a ser meu irmão. Não posso partir agora. Não posso.
Descobriu que lhe tremia a voz, o que era mortificante.
-Suponho que o faz pelo Gordon -disse Alleyne, passando uma mão por seu escuro cabelo-. Existe um compromisso entre vocês, Morg? É por isso? Espero que não se trate de um compromisso secreto. Wulf pedirá sua cabeça.
-Nem sequer falamos desse assunto - assegurou-. Mas por favor, Alleyne, não insista em que parta amanhã pela manhã. O baile dos duques do Richmond será depois de amanhã de noite e o teriam cancelado se o perigo fosse iminente, não? Se comenta que o duque do Wellington vai participar. Por que não esperamos até que passe o baile e logo decidimos o que é o melhor?
-Os Kiev-Denson já terão partido, então -protestou seu irmão.
-Mas haverá outras pessoas que partem -replicou-. Haverá outros com quem pode fazer a viagem se for necessário que saia da cidade. Por favor, Alleyne.
Piscou com rapidez. Nunca tinha sido dada às lágrimas nem às súplicas, mas estava a ponto de recorrer a ambas nesse instante. Não podia partir de Bruxelas. Ao menos nesse momento. Havia a possibilidade de que acontecesse uma grande batalha da qual nem sequer teria notícias em Londres até que passassem um sem-fim de dias. Os oficiais que conhecia podiam morrer e ela não saberia; mas passaria cada minuto de cada hora de cada dia imaginando o pior.
Alleyne soltou um grunhido exasperado.
-Morg -lhe disse-, é a caçula da família, a menina dos olhos de todos nós. Não pode ser a única capaz de obedecer sem protestar? Está bem. Já veremos o que fazemos a manhã seguinte ao baile dos duques do Richmond. Espero não ter que me arrepender desta decisão durante o resto de minha vida. Vai contra o que me diz o bom senso.
Aproximou-se dele correndo, jogou os braços no seu pescoço e lhe deu um beijo na face.
-Obrigada -disse.
-Ao menos Gordon é elegível -comentou-. Wulf deve aprová-lo ou não teria deixado que viesse a Bruxelas com os Caddick. Está certa de que não há nada entre vocês?
-Muito certa - afirmou. Entretanto, se Alleyne preferisse não acreditar no que lhe disse na noite do jantar campestre a respeito de que lorde Gordon era um chato, não pensava discutir com ele. Tinha que ficar na cidade um poquinho mais.
-Pois estaria muito bem se vocês se comprometessem - disse ele-. Houve muitos comentários depois do jantar no bosque do Soignes, como suponho que sabe muito bem. Deixou que Rosthorn retivesse a seu lado muito tempo. Não tornou a incomodá-la depois?
-Absolutamente -respondeu-. Apenas o vi.
Isso não era de todo certo. Não esquecia que tinha cavalgado com ele pelo Allée Verte dias atrás. Claro que o conde não tinha tentado paquerar com ela nem lhe tinha dirigido palavras melífluas. Não a tinha chamado chérie nenhuma só vez e tampouco a tinha olhado com sua costumeira expressão indolente e seu sorriso zombador. Em troca, tinha tido a enorme amabilidade de tratá-la como a uma pessoa e não como a uma menina tola e delicada. Estava cansada de que a tratassem assim. Tinha sido o único homem de toda Bruxelas, com a exceção de Alleyne, disposto a lhe confessar a verdade sobre a situação militar.
-Me alegro de ouvir -replicou seu irmão-. Esperemos que as fofocas não cheguem aos ouvidos do Wulf. Vejo que deixou de chover. Por que não corre para pôr a touca e vamos ao parque para dar um passeio? Não sei por que me dá a sensação de que a deixei muito abandonada desde que chegamos.
-Suponho - disse antes de sair da sala - que se deve por ser enfim um homem trabalhador, Alleyne, e tem melhores coisas a fazer que correr todo o dia atrás de sua irmã.
-Nem que fosse uma novidade, Morg -protestou ele com voz risonha.
Em 14 de junho correram as notícias de que os franceses tinham concentrado seu exército no Mauberge e de que inclusive tinham cruzado a fronteira. Em Bruxelas se viu como uma demonstração jactanciosa sem importância, segundo a opinião geral. Havia uns cem mil soldados prusianos defendendo todos os caminhos que uniam as Ardenas com o Charleroi, além de um número ligeiramente inferior de soldados britânicos e aliados defendendo as rotas entre o Mons e o mar do Norte. Era impossível que os franceses pudessem passar.
Entretanto, em 15 de junho se passou revista no Allée Verte às tropas aquarteladas em Bruxelas ante os olhos de uma multidão que observava o espetáculo com um pouco mais de ansiedade e menos alegria que em ocasiões anteriores.
E nessa mesma tarde, embora muito poucos souberam , o príncipe do Orange e o duque do Wellington receberam as notícias de que um destacamento prusiano tinha sido atacado perto de Charleroi e de que Thuin tinha caído em mãos francesas. Pouco depois Wellington ordenou que as Segunda e Quinta divisões se agrupassem no Ath, e se preparassem para entrar em ação quando lhes ordenasse.
Mas aqueles britânicos que continuavam na cidade seguiram sem experimentar nada fora do comum. Era de conhecimento geral que o baile dos duques do Richmond ia celebrar se conforme o planejado e que a maioria dos oficiais aquartelados na cidade ou perto dela tinham pensado em participar. Se comentava que mesmo Wellington faria ato de presença. Planejou-se que um grupo de gaiteiros formado por sargentos e soldados pertencentes aos 42 Regimento dos Royal Highlanders e aos 92 Regimento de Infantaria de Sua Majestade amenizasse a noite com reels e strathspeys[8]. Ia ser um acontecimento divulgado sem dúvida alguma.
Por sorte talvez para Morgan, tinham enviado Alleyne sem prévio aviso a Amberes em missão diplomática e não se esperava que retornasse até o dia seguinte. Estava desejando participar do baile. Havia uma espécie de tensão nervosa no ambiente, uma espécie de reconhecimento coletivo do momento histórico que estavam vivendo. Todo mundo sabia que aquela seria sua última oportunidade para desfrutar juntos.
É obvio, havia a possibilidade de que os movimentos de tropas se devessem a uma questão de estratégia militar e de que em alguns dias, estas retornassem a Bruxelas enquanto que Napoleão Bonaparte voltasse para a França e a vida recuperasse seu ritmo normal.
Entretanto, era muito mais provável que não se tratasse de um falso alarme, mas sim dos preparativos das tropas para o que acabaria sendo uma batalha encarniçada.

 


Capítulo 5


Em semelhantes circunstâncias teria sido lógico que muito poucos participassem do baile dos duques de Richmond na noite de 15 de junho; mas, em troca, foi um dos maiores eventos sociais celebrados em Bruxelas desde que os ingleses começaram a cruzar o canal da Mancha em massa mais de um mês antes. Também poderia pontuar-se de surpreendente o fato de que os oficiais de todos os regimentos aquartelados na cidade e seus arredores aparecessem no baile.
Trajados com seus uniformes de gala, com meias de seda e com sapatos em lugar das botas regulamentares, pareciam não estar pensando sequer na possibilidade de partir para a batalha.
As damas resplandeciam como se na vida não houvesse nada mais importante que dançar e no mundo não houvesse nenhum lugar melhor que o salão de baile dos duques do Richmond.
Claro que as aparências enganavam. Gervase, que já tinha apresentado seus respeitos aos duques, localizou um grupo de conhecidos e descobriu que estavam encetados em uma conversa muito séria sobre a situação militar. Nenhum deles duvidava de que ao amanhecer o exército completo iria a caminho para a fronteira. A única dúvida era se se produziria uma batalha encarniçada em algum ponto ou se as fortes defesas aliadas freariam Napoleão Bonaparte e o incitariam a bater em retirada. A opinião generalizada era que não haveria retirada francesa e que no final haveria uma batalha.
O murmúrio das conversas e das risadas se erguia por cima da alegre música que tocava a orquestra. O rítmico sapateiar das dúzias de pés que executavam os passos de uma contradança se escutava debaixo dos murmúrios.
Gervase viu lady Morgan Bedwyn, avermelhada, com um sorriso radiante, e linda com um vestido branco que resplandecia à luz das velas. Estava dançando com Gordon e só parecia ter olhos para ele.
A última coisa que esperava era vê-la. Um bom número de famílias inglesas, sobre tudo aquelas com crianças pequenas ou mulheres a seu cargo, partiram à relativa segurança do Amberes ou de volta a Inglaterra nos últimos dias. Tinha suposto que Caddick teria o bom senso de partir da cidade, pois com ele estavam duas jovenzinhas e também sua esposa; embora, é obvio, a presença do capitão Gordon os incitava a ficar. Lady Morgan possivelmente também se sentisse pouco disposta a partir. Não obstante, era estranho que seu irmão, vinculado à embaixada, não tivesse insistido em que partisse.
Seu sorriso era frágil, quase desesperado.
Não tinha falado com ela desde o dia em que se encontraram no Allée Verte e estiveram cavalgando juntos um tempo. Mas tinha pensado muito nela. Lady Morgan tinha essa arrogância quase inata dos Bedwyn, mas também era inteligente, sincera e honrada. Qualidades que admirava. E além de possuir uma beleza clássica, possuía um inegável atrativo. Embora o beijo que compartilharam no bosque do Soignes gotejava inocência, tinha conseguido excitá-lo.
Para falar a verdade, começava a sentir-se culpado. Seu ódio pelo Bewcastle e seu desejo de fazê-lo sofrer de algum jeito não tinham diminuído nem um ápice desde que escolhera a sua irmã para paquerar com ela e convertê-la na fofoca da aristocracia. Entretanto, tinha a sensação de que seus atos talvez fossem egoístas e começava a arrepender-se. O melhor que podia fazer essa noite, pensou, era manter-se afastado dela.
Até essa noite Morgan não tinha sido consciente de que seria capaz de sorrir, desfrutar, dançar, conversar e rir apesar da catástrofe que se aproximava. O normal era que considerasse esse comportamento inapropriado, desrespeitoso, insensível e inaceitável. Entretanto, via-se incapaz de comportar-se de outra maneira. E se lhe servia de consolo, o resto dos presentes fazia o mesmo. Rosamond, os oficiais que conhecia, Todo mundo.
Era o baile mais alegre ao que tinha assistido esse ano.
Também era o mais triste. No mais profundo de seu coração era muito consciente da terrível fragilidade da vida humana, do tragicamente efêmera que era.
Dançou a primeira dança com o capitão lorde Gordon. Depois seguiu a seu lado, enquanto as gaitas de fole soavam e os bailarinos escoceses deixavam a todos os presentes assombrados com sua energia, com os complicados passos dos reels e com o imponente espetáculo visual de seus tartans e seus kilts[9] em movimento. A meia-noite dançou uma valsa com lorde Gordon, justo quando chegava o duque de Wellington, tão jovial e contente como o resto dos convidados.
Entretanto, a essas alturas da noite circulava por todo o salão a notícia de que o príncipe do Orange, outro convidado ao baile, tinha recebido um despacho durante o jantar no qual lhe informava que Charleroi tinha caído.
Charleroi estava em território belga, a mais de trinta quilômetros da fronteira.
O sorriso de Morgan não fraquejou. Nem do resto dos convidados.
Sentiu uma estranha ternura, quase desesperada, pelo capitão. Talvez porque todo mundo esperava que formassem um casal e porque desde que chegaram a Bruxelas se desfizera em atenções que ela tinha correspondido só com uma ligeira irritação em certas ocasiões muito mais que ligeiras. Havia a possibilidade de que no dia seguinte se encontrasse com a morte.
-Parece ser, lady Morgan -disse o capitão alegremente enquanto dançavam a valsa-,que amanhã partiremos bastante cedo. Mas me alegro. Me alegro de que Boney se atreveu a vir e de que tenhamos a oportunidade de esmagá-lo de uma vez por todas no campo de batalha. Amanhã, ou depois de amanhã, ou quando acontecer a batalha, seremos heróis. Farei que se orgulhe de mim.
Detrás de suas fanfarronadas, pensou ela, devia ocultar um medo atroz.
-Seus pais e todo aquele que o conhece já estão muito orgulhosos de você -replicou-. Estou certa de que não necessitam que demonstre sua coragem no campo de batalha. Talvez ainda estejamos a tempo de evitar a luta -Embora não acreditava nem por nada.
-Peço-lhe desculpas por ter mencionado um assunto semelhante -disse o capitão ao mesmo tempo que a fazia girar com passos curtos e cautelosa precisão-. Não deveria importunar sua linda cabecinha com esse tipo de comentários.
Morgan tentou aplacar a irritação que a invadia cada vez que escutava essas palavras. Sorriu-lhe e se concentrou em sua pessoa. Se necessitava de sua companhia e de sua admiração essa noite, não as negaria. Pouco mais podiam fazer as mulheres em semelhantes circunstâncias.
Estavam junto às portas do salão de baile quando ele deixou de dançar de repente, agarrou-a pela mão e a obrigou a sair. Do outro lado havia uma multidão, mas o capitão se limitou a dar uma olhada a ambos os lados antes de conduzi-la por um corredor situado à direita. Deixaram atrás as portas que conduziam a salões lotados e às salas de jogos até chegar ao extremo do corredor onde se internou na intimidade que oferecia a penumbra de um aposento cuja porta estava aberta.
-Lady Morgan -começou com ardor-, amanhã partirei para me reunir com meu regimento. Rogo-lhe que me conceda o favor de um beijo antes de partir.
Chegados a esse ponto talvez tivesse esboçado a linha, já que não tinha desejo algum de que o capitão lorde Gordon a beijasse, mas ele não esperou uma resposta. Rodeou-a com os braços sem muitos olhares, inclinou a cabeça e a beijou com ardor. Sua boca, ardente, seca e com os lábios fechados, apoderou-se da sua com tal ímpeto que lhe fez mal na parte interna dos lábios.
Semelhante comportamento lhe teria reportado uma réplica mordaz e uma sonora bofetada na face. Mas essa noite não. Essa noite, nesse momento, estava à beira das lágrimas e não sentia nem pingo de alegria. Segurou-se com ambas as mãos ao rígido tecido de sua casaca, justo no lugar onde as mangas se uniam aos ombros, e lhe devolveu o beijo com toda a ternura que sentia pelos homens que podiam morrer no dia seguinte ou dois dias depois, no estúpido e cruento jogo masculino da guerra.
Era muito consciente da calidez que lorde Gordon irradiava, de sua vivacidade, de seu entusiasmo juvenil.
-Lady Morgan -lhe disse com apaixonado ardor quando se separou de seus lábios-, me conceda, o suplico, a honra de lutar por você na batalha quando chegar o momento, a honra de saber que me estará esperando, que se preocupa comigo.
Estava-lhe pedindo uma espécie de promessa, algo que se via incapaz de lhe oferecer. Mas como podia rechaçar o plano por mais estúpidas que lhe tivessem parecido suas palavras em circunstâncias normais? As circunstâncias nas que se encontravam distavam muito de ser normais.
-É obvio que me preocupo -respondeu enquanto o olhava com uma expressão transbordante de sentimento-. É obvio que sim.
-me diga, o suplico -prosseguiu ele, lhe agarrando a mão direita com ambas as mãos e levando-lhe ao coração-, que chorará minha morte se ocorrer o pior, que chorará minha perda e levará luto por mim o resto de sua vida, que jamais haverá outro homem para você. Diga-me isso.
-É obvio que chorarei sua perda -lhe assegurou, embora começava a sentir-se incômoda-. Mas, por favor, não fale da morte.
O capitão voltou a abraçá-la com mais ímpeto que a primeira vez. Mas antes de que pudesse inclinar a cabeça, alguém fechou a porta do corredor. Seu cantinho privado já não o era tanto. De modo que a soltou.
-Devemos retornar ao salão de baile -lhe recordou-. Sua mãe se estará perguntando onde estou.
Lorde Gordon entrelaçou seus braços e lhe deu um forte apertão na mão.
-Obrigado -lhe disse enquanto a conduzia de retorno ao salão-, me fez o homem mais feliz do mundo, lady Morgan.
Horrorizada e estupefata, compreendeu que o capitão tinha dado por sentado que tinham chegado a algum tipo de acordo, que estavam a um passo do compromisso. Mas não o tiraria de seu engano, era incapaz de fazê-lo. Haveria tempo de sobra quando retornasse da batalha.
Se o fizesse.
Embora continuasse sendo tão ensurdecedor como antes, o ruído procedente do salão de baile tinha um matiz distinto e isso porque apenas se ausentaram uns minutos. O número de uniformize pressentes se reduzira notavelmente. A maioria dos oficiais que continuavam pressentes não dançava, apesar de que a orquestra continuasse tocando a valsa. Estavam reunidos em grupos de expressões sérias ou despedindo-se de seus familiares e amigos.
-Recebemos ordens de ir sem demora -disse o major Franks a lorde Gordon enquanto o agarrava elo braço. a saudou com um sorriso e uma inclinação de cabeça-. Nada que deva perturbar sua linda cabecinha, milady. Estaremos de volta para dançar a valsa com as damas antes de uma semana.
Morgan escutou uma espécie de assobio que não procedia nem da orquestra nem de nenhum outro lugar que não fosse sua cabeça. O ar que respirava pareceu gelar de repente.
Mas se controlou com muito esforço e determinação. Não era o momento de permitir-se seu primeiro desmaio. Tinha ido a Bruxelas porque queria formar parte da História, envolver-se nos acontecimentos. Porque queria ver com seus próprios olhos o que aconteceria.
E essa certeza lhe resultava entristecedora nesses momentos. perguntou-se se as gerações vindouras ouviriam falar do baile dos duques do Richmond e se perguntariam como os militares, suas esposas e suas famílias puderam dançar e pôr sua melhor cara na véspera do desastre.
-Deve ir junto a sua mãe imediatamente - disse com brusquidão a lorde Gordon quando percebeu a extrema palidez de seu rosto.
Por surpreendente que parecesse, o baile continuou apesar de que o duque do Wellington partira pouco depois de ter admitido, supostamente, que haveria uma batalha no dia seguinte e apesar de que os oficiais partiram para reunir-se com seus regimentos, sendo muito poucos os que ficaram.
Gervase viu lady Morgan Bedwyn só em um dos laterais do salão; não estava dançando e tampouco estava com sua acompanhante. Estava abanando o rosto e parecia tão branca como seu vestido. O sorriso alegre que trazia antes tinha desaparecido por completo. Superou um súbito instante de indecisão, aproximou-se dela e lhe ofereceu o braço sem falar.
-Lorde Rosthorn -disse ela, olhou-o um instante como se não o estivesse vendo de verdade. Uma de suas elegantes mãos se apoiou em seu braço-. Me deu a impressão de que lady Caddick e Rosamond precisavam passar um tempo a sós. Estão muito afetadas.
-Me permita que a acompanhe ao salão de refrescos e lhe busque algo para beber -disse.
-Um pouco de limonada me viria bem -admitiu ela-. Não, água. A água estaria melhor.
Voltava a cheirar a violetas. Levava o cabelo adornado com pérolas, assim como o decote,a borda das mangas e a bainha de seu vestido. Estava linda e parecia frágil como não usualmente.
-Acredita que os matarão a todos? -perguntou-lhe.
-Não -respondeu ele em voz baixa.
-Que pergunta mais idiota - disse ela-. Alguns morrerão. Muitos deles.
-Sim.
-Suponho que chamaram a meu irmão Aidan. Fizeram isso muitas vezes -prosseguiu-. Me alegro de não ter estado nunca ali, embora ficar em casa, sem saber o que acontece, imaginando o pior, é quase tão horrível como isto. Acreditei que queria estar aqui para ver este momento, que inclusive poderia ser útil. Promete ser um marco histórico, não acha? Se Napoleão Bonaparte ganhar a batalha, sua volta será recordada com assombro durante gerações. Se perder, a reputação do duque do Wellington perdurará na memória de todos durante séculos.
Evitou com muito cuidado o resto dos convidados e a conduziu ao salão de refrescos, onde lhe conseguiu um enorme copo de água. Ali também havia muitos convidados, quase todos homens, reunidos em grupinhos e conversando com ávido interesse. Levou-a a uma pequena sala de espera onde se dispuseram várias mesas com suas correspondentes cadeiras. Não havia ninguém mais e, é obvio, era inapropriado que estivesse a sós com ela sem o conhecimento e a aprovação de sua acompanhante. Não obstante, o decoro, ou a ausência de este, era a última coisa na qual estava pensando nessa noite. Lady Morgan necessitava de um ombro no qual apoiar-se, pensou. Parecia muito perturbada. Insistiu para que sentasse, pôs-lhe o copo em frente e se sentou do outro lado da mesa, em frente a ela.
-E o capitão lorde Gordon significa tanto para você como seu irmão, lorde Aidan Bedwyn? -perguntou-lhe.
Ela o olhou nos olhos, mas não o repreendeu por sua rabugice como fjizera em outra ocasião.
-É um jovem cheio de vitalidade, sonhos e esperanças -respondeu com um olhar resplandecente em seus olhos escuros-. Sua família o quer muito, embora sua vida seja valiosa por si mesma. E mesmo assim está imerso nesta loucura que tanto parece gostar à humanidade. Beijou-me antes de partir e me rogou que o esperasse e que chorasse por ele em caso de que morresse.
-Ah-disse. Perguntou-se se lady Morgan despertaria na manhã seguinte com a embaraçosa lembrança de haver contado algo tão íntimo a um cavalheiro que era pouco mais que um estranho. Embora fosse muito possível que essa noite não dormisse nada absolutamente.
-Como ia dizer lhe que não? -continuou ela-. Teria sido egoísta, mesquinho, cruel.
-Desejava lhe dizer que não? -perguntou-lhe. Em muitas ocasiões tinha duvidado de que sentisse algo pelo moço. Era indigno dela; um jovenzinho vaidoso que não dava sinais de adurecer.
-Essas perguntas jamais deveriam formular-se, nem responder-se, em uma noite como esta -respondeu ela-. Esta noite imperam as emoções. Mas escolher à pessoa com a que vai se contrair matrimônio é um assunto muito sério, não?
-É? -perguntou por sua vez em voz baixa. Era algo no que não tinha pensado, ao menos nos últimos anos.
- O casamento é para toda a vida -respondeu lady Morgan-. Sempre tive muito claro que não escolheria a tolas e a loucas e que não aceitaria a menor imposição. É muito fácil apaixonar-se, ou isso acredito. É um estado extremamente emocional. Mas não estou tão certo de que amar seja tão fácil.
-Quer dizer que o amor não é emocional? -perguntou-lhe com um sorriso.
-Não se rege pela emoção -respondeu-. O amor é afeição, companheirismo, respeito e confiança. Não domina nem tenta possuir. E só prospera quando ambas as partes se comprometem a respeitar a liberdade do outro. Por isso o matrimônio é tão difícil. Não há mais que pensar na cerimônia em si, nos votos matrimoniais e na exigência de fidelidade. Tudo sugere restrições e inclusive submissão. Os homens falam de cadeias perpétuas e de armadilhas de por toda a vida quando se referem ao matrimônio, ou me engano? Mas o matrimônio deveria ser justo o contrário: duas pessoas que concordam em entregar-se uma à outra.
-Muitos cavalheiros casados que têm amantes e também as damas que desfrutam de seus cochichos aplaudiriam sua opinião, chérie -lhe assegurou.
Mas lady Morgan o olhou com expressão séria.
-Não me entendeu -disse-. Se não se está disposto a respeitar os votos sagrados, não deveriam fazer-se. Os casais casados deveriam entregar-se um ao outro para viver plenamente, aprender e encontrar a realização pessoal. Não são duas faces de uma mesma moeda nem duas metades de uma mesma alma. São duas almas individuais, valiosas em si mesmas, que se uniram livremente para fazer com suas vidas algo muito mais glorioso, mais incitante.
Gervase não sabia se devia tomá-la por uma idealista tonta ou por uma mística clarividente. Mas, de qualquer forma, tinha-o fascinado. Nunca teria pensado que pudessem manter uma conversa semelhante, muito menos nessa noite.
-Deseja amar ao homem com quem se case desse modo tão grandioso, chérie? -perguntou-lhe.
-Sim -Voltou a olhar o de forma penetrante e direta-. Não tenho por que me casar por dinheiro nem para melhorar minha posição social, lorde Rosthorn. Nem sequer tenho que fazê-lo para garantir minha segurança. Prefiro esperar cinco ou dez anos, toda uma vida se for necessário, antes que me casar com o homem equivocado. Embora eu não gostaria ter que esperar tanto.
Distinguiriam as mocinhas normais e comuns o amor do amor?, perguntou-se. Haveria muitas damas, sem importar sua idade, que declarassem com semelhante convicção que o amor e a possessividade não iam de mãos dadas? Nem sequer ele tinha chegado a essa importante conclusão. Embora lady Morgan tinha razão, não? Haveria tantos matrimônios infelizes se não existisse uma diferença entre ambos conceitos?
-Por tradição familiar -continuou ela-, o amor é a força que move nossos casamentos. Os Bedwyn não têm amantes uma vez casados -Esse olhar direto não titubeou nem um instante-. Se espera deles que amem a suas esposas e que lhes sejam fiéis. E o mesmo se aplica às Bedwyn.
Gervase sorriu.
-E tem muitos irmãos casados? -perguntou-lhe. Se sua memória não lhe falhava, em uma ocasião fez menção a uma cunhada.
-Três -lhe respondeu ela.
-O duque do Bewcastle é um deles? -quis saber. Não estava informado de que se casara. Mas como ia inteirar se de algo? Apesar de ter passado as últimas semanas em Bruxelas e deter retomado a amizade de alguns conhecidos de juventude, ainda não estava em dia das notícias e das fofocas procedentes da Inglaterra.
-Não -Lady Morgan meneou a cabeça-. Aidan está casado. E também Rannulf e Freyja. Todos contraíram matrimônio durante este último ano.
-E todos são casamentos por amor? -perguntou-lhe.
-Agora o são -respondeu convencida-. Rannulf e Judith acabam de ter um filho.
Tinha amado Bewcastle ao Marianne?, perguntou-se de repente. Tinha estado preparado para amá-la durante o resto de sua vida? Para lhe ser fiel? Duvidava-o muito. Sempre lhe tinha parecido que Bewcastle era incapaz de amar.
-E você não ama ao jovem Gordon como gostaria de amar a seu marido? -quis saber-Não lhe disse que não esta noite apesar disso?
-Tampouco lhe disse que sim -protestou-, mas duvido muito que se deu conta. Terei que lhe dar uma negativa cortante quando retornar.
-Causará-lhe uma grande decepção - assegurou.
-Pior seria se me casasse com ele - declarou ela-. Não acredito que seja fácil conviver comigo, lorde Rosthorn, embora ame a meu marido com toda a alma. O capitão Gordon não me ama. Ama o ideal que represento: a filha de um duque que acaba de ser apresentada em sociedade e que é muito rica. Não vê nada mais.
Estava cometendo uma injustiça consigo mesma, pensou Gervase. Mas nesse momento sua expressão se tornou desolada.
-Lorde Gordon poderia morrer -disse ela-. Que situação mais estúpida. Estúpida e mortalmente séria. Como ia deixar que partisse com o não ressonando em seus ouvidos? Permiti-lhe acreditar que sentia o mesmo que ele, que o esperaria, que choraria sua ausência o resto de minha vida se não retornasse. E talvez o faça. Quem sabe?
De repente lhe encheram os olhos de lágrimas. Estendeu o braço e lhe agarrou uma mão. Ela a virou e entrelaçaram os dedos enquanto enxugava as lágrimas com a mão livre.
-Não quero que ocorra -disse com ferocidade-. Nada disto. Será que não compreende ninguém que a guerra não resolve nada? Sempre haverá outra guerra, sempre em nome da paz e da liberdade. Como pode haver liberdade quando os homens morrem por um sem sentido? Como pode haver paz se os homens se vêem obrigados a lutar para consegui-la? A humanidade seguirá empenhada em alcançar esses ideais mas jamais o conseguirá -O olhou com as faces ruborizadas e um brilho apaixonado nos olhos.
Dois casais entraram na sala, olharam-nos (olharam suas mãos unidas) e saíram, murmurando uma desculpa. Lady Morgan não pareceu dar-se conta.
-Suponho -começou Gervase- que Caddick as tirará de Bruxelas amanhã. dentro de uma semana estará de volta na Inglaterra, com sua família, e a vida voltará a lhe parecer menos tumultuosa.
-Não será assim -lhe assegurou ela-. Por favor, não me trate como a uma menina, lorde Rosthorn… Você não. Preferiria ficar aqui. Preferiria saber o que está passando. Preferiria sofrer com o resto. Mas embora o conde de Caddick não insista em que partamos, Alleyne o fará.
Agora mesmo está em Amberes, mas volta amanhã. Antes de ir me disse que me obrigaria a retornar a casa se a situação não tivesse melhorado a sua volta. E piorou -Suspirou-. O que vai fazer você, lorde Rosthorn?
-Ficar - respondeu-. Não pertenço ao exército, mas talvez haja algo que possa fazer para ajudar.
-Isso é o que eu gostaria de fazer -replicou ela-. Eu gostaria de ajudar. Não pode nem imaginar como impotente se sente uma mulher nesta situação Ou em centenas de situações, já que estamos aqui. Embora suponha que partirei amanhã.
-Hospedo-me na rue do Brabant -disse, e lhe deu o nome da casa-. Se por acaso necessitar de mim, me fará saber isso?
Lady Morgan lhe deu de presente um sorriso torcido.
-Porque sou muito fraca para me arrumar sozinha? Embora seja você muito amável e lhe agradeço o oferecimento -Viu-a descer a vista para suas mãos e foi então que pareceu perceber de que estavam unidas. Soltou-a e levou a mão ao regaço-. Acredito que estive tagarelando como uma idiota. Costumo fazê-lo quando algum assunto me revolta. E a guerra o faz. Assim deve parecer muito estranho que me sentisse obrigada a vir a Bruxelas apesar de que meu irmão não queria me dar sua permissão, não é? Não deveríamos estar aqui sozinhos. Embora esta noite nada é como deveria. Tem a amabilidade de me levar com lady Caddick?
Gervase ficou em pé e lhe ofereceu o braço.
-As guerras cessarão -lhe disse-, ao menos durante um tempo. E seu sonho de amor sem dúvida se fará realidade chegado o momento, chérie. Voltará a ser feliz.
Ela soltou uma gargalhada.
-Promete-me isso, lorde Rosthorn?
-Caramba! Os sonhos não podem ser prendidos com uma promessa -lhe respondeu-. Igual à água, escorrem-se de nossas mãos. Entretanto, a água é a fonte da vida. Acredito que seu sonho se fará realidade sempre e quando não fizer concessões e acabe esquecendo-o.
Lady Morgan voltou a rir.
-Nem sequer lhe perguntei por seus sonhos -disse-. Que desconsideração de minha parte!
-Sou muito velho para sonhar -replicou enquanto a conduzia de volta ao salão, onde restavam muito poucos convidados. E era certo. Tinha tido sonhos grandiosos quando era muito jovem e tinha esperado que a maioria se fizessem realidade. Mas sua juventude tinha tido um final prematuro nove anos atrás. E depois tinha vivido com os pés firmemente plantados no chão.
-Mas devemos ter algum sonho -insistiu ela- ou a vida deixa de ter sentido, perde sua paixão, sua razão de ser.
Isso era o que lhe tinha passado a sua vida?, perguntou-se. Lady Caddick estava de pé,observando-os com ar distraído enquanto se aproximavam.
-Ah, aqui está, lady Morgan -disse-. Estamos preparados para voltar para casa.
Lady Rosamond, que estava ao lado de sua mãe, parecia ter estado chorando. lançou-se aos braços de lady Morgan e ambas se fundiram em um estreito abraço.

 


Capítulo 6

 

Na manhã posterior ao baile dos duques do Richmond todos aqueles estrangeiros que não tinham relação alguma com o exército protagonizaram um êxodo maciço de Bruxelas a Amberes. Chegado o meio-dia, os caminhos estavam lotados de carruagens, cavalos e carretas com suas bagagens.
Morgan e os Caddick não estavam entre eles. Rosamond tinha despertado com uma das enxaquecas que a afetavam muito de quando em quando e que a deixavam totalmente incapacitada. Porque não se tratava de uma simples dor de cabeça; a enxaqueca a deixava meio cega, provocava-lhe náuseas e lhe intumescia a metade esquerda do corpo. A luz e o ruído mais insignificante lhe eram insuportáveis. Apesar do perigo que radicava ficar em Bruxelas e apesar das pressões do conde, que jamais tinha padecido uma enxaqueca e que portanto não podia imaginar até que ponto incapacitava a uma pessoa, lady Caddick se manteve inflexível. Rosamond devia ficar onde estava, encerrada em seu dormitório sem que ninguém a incomodasse, até que passasse a pior fase do ataque. Às vezes se alongavam até três, quatro e inclusive cinco dias.
Lorde Caddick se ofereceu a procurar uma pessoa disposta a atuar como sua acompanhante para que a acompanhasse até um lugar seguro, mas Morgan aduziu que Alleyne retornaria logo do Amberes e se encarregaria de fazer os acertos pertinentes para sua partida. O bom senso lhe ditava que partisse o antes possível, embora isso significasse viajar com pessoas que mal conhecia. Entretanto, era difícil fazer caso ao bom senso em circunstâncias tão extremas. Em realidade não suportava a idéia de partir. Tinha conhecidos e alguns amigos entre os oficiais da Guarda e suas esposas. A maioria destas ficariam na cidade. Por que não podia fazê-lo ela? Como ia partir sem saber o que lhes proporcionaria o futuro?
Havia dito a verdade a lorde Caddick. Não obstante, esperava que Alleyne não retornasse de Amberes com tempo para obrigá-la a partir da cidade nesse mesmo dia. Talvez no dia seguinte tivessem mais notícias do fronte. Talvez os enfrentamentos tivessem acabado então e já não seria necessário abandonar a cidade.
Alleyne ainda não tinha retornado ao meio dia.
Pela tarde, presa do nervosismo e desejosa de abandonar a casa fazendo o menor ruído possível em deferência a pobre Rosamond, obteve permissão de lady Caddick para fazer uma visita à senhora Clark, esposa do major Clark, da Guarda Real Montada. A senhora Clark vivia a uns dez minutos a pé e tinha prometido sair acompanhada de sua criada. Estava tomando o chá com a mulher quando escutou o que a princípio tomou por um trovão distante. Entretanto, a senhora Clark esboçou um sorriso bastante tenso quando ela expressou seu desejo de que as tropas não vissem aumentado seu sofrimento por causa de um toró.
-É artilharia pesada -lhe explicou a mulher.
Morgan se viu sacudida por uma súbita sensação de vertigem.
-Estão longe - tranqüilizou-a a senhora Clark-. Em realidade é mais uma vibração, uma sensação, que um som, não acha? Além disso, quem pode assegurar d onde os estão disparando ou que tropas estão envolvidas? Quem sabe se são nossos canhões ou os dos franceses?
Tinha tido a esperança de que Alleyne fora a procurá-la antes de que chegasse a hora de voltar para a residência dos Caddick, mas empreendeu o caminho de volta com a única companhia de sua criada.
Alleyne não tinha estado na rue do Bellevue. E tampouco apareceu durante o resto do dia.
Nessa noite ficaram acordados até bem entrada a madrugada (e Rosamond viu incrementado seu padecimento) a causa do incessante movimento de um lugar a outro de cavalos e carruagens pela rua, além de algum ou outro grito proferido pelos homens que os conduziam.
Não deviam alarmar-se, assegurou-lhes lorde Caddick do corredor dos dormitórios. A agitação se devia à passagem de um extenso comboio de canhões que estava atravessando a cidade de caminho ao fronte.
Que não se alarmassem? Morgan, que estava frente à janela de seu dormitório com um xale sobre os ombros, pôs-se a tremer. Onde estava Alleyne?, perguntava-se. Onde estavam os oficiais que conhecia? Na manhã seguinte já era muito tarde para abandonar Bruxelas, mesmo que Rosamond saísse de seu dormitório com o aspecto de um fantasma de olhos inchados e assegurasse a seus pais que o ataque de enxaqueca não era tão intenso como outros que tinha sofrido no passado e que estava pronta para partir assim que o ordenassem.
A primeiras horas da manhã um destacamento de cavalaria belga tinha passado pela cidade procedente do fronte, despertando ao Morgan de novo com o ruído, e tinha gritado a todo aquele com quem se cruzava, assim como a quem dormia no interior das casas, que tudo estava perdido e que o exército aliado tinha sofrido uma derrota esmagadora. Entretanto, não se tinham detido para responder as perguntas das pessoas. O pânico se estendeu à sua passagem. Virtualmente a totalidade dos visitantes estrangeiros que ficavam e muitos dos habitantes de Bruxelas se prepararam para abandonar uma cidade que de um momento a outro se veria assaltada por hordas de selvagens soldados franceses. Na residência dos Caddick as bolsas de viagem e os baús estavam preparados e tudo estava disposto para partir depois de um café da manhã muito cedo.
Não obstante, apresentou-se uma complicação inesperada. Quando lorde Caddick ordenou que levassem as carruagens e os cavalos à porta principal, informaram-lhe que todos os veículos da cidade tinham sido requisitados pelo exército para o envio de fornecimentos à frente. Por muito que o conde vociferasse ou ameaçasse, por muito que tentasse adular ou subornar, não demorou para ficar patente que não ia conseguir nenhum meio de transporte. Não havia modo de abandonar Bruxelas nesse dia a menos que quisessem fazê-lo a pé, levando consigo só o que pudessem conduzir nas mãos e nas costas. Coisa impensável, tal como lady Caddick se encarregou de assinalar com uma voz que gotejava mais fúria que medo.
E assim ficaram apanhados em Bruxelas.
De certo modo e embora não pudesse negar que estava assustada, Morgan se alegrou. Rosamond retornou à cama a tropeções.
Começou a chover à tarde. Escutou-se um tremendo trovão de madrugada, um de verdade nessa ocasião, e a chuva caiu torrencialmente durante horas.
Era impossível saber com exatidão a posição dos exércitos ou elucidar o significado dos distantes canhões que se escutaram durante o dia. Entretanto, enquanto jazia encolhida na cama resistindo ao impulso de tampar a cabeça com as mantas para não escutar o som da chuva, não teve o menor problema em imaginar o sofrimento de milhares de soldados que tentavam encontrar um refúgio para cobrir-se e descansar onde não havia nenhum.
Ao menos, anunciou lorde Caddick alegremente durante o café da manhã, os efeitos da chuva entorpeceriam em grande medida as manobras militares. Os caminhos estariam intransitáveis. Nesse dia não haveria nenhuma batalha.
Além disso, acrescentou sua esposa, era domingo.
Morgan estava muito preocupada com Alleyne. E também com Rosamond, que continuava sofrendo muitíssimo por culpa da enxaqueca. Lady Caddick estava fora de si por causa da ansiedade, em parte pela indisposição de sua filha e em parte por sua própria segurança, embora o principal motivo fosse a incerteza do destino que tinha deslocado lorde Gordon. Seu marido se aventurou a sair em busca das últimas notícias, embora parecesse circular mais rumores que fatos fidedignos.
A chuva cessou por fim e Morgan, que havia voltado a obter permissão de uma distraída condessa, partiu com sua criada para a casa da senhora Clark uma vez mais. Tinha descoberto que as esposas dos oficiais do regimento costumavam reunir-se ali e, em geral, eram muito mais sensatas que a maioria das pessoas, menos dadas ao pânico e também menos dadas a engolir os rumores fantasiosos que substituíam às notícias confiáveis. Nessa manhã em concreto se reuniram todas ali. Sentiu um enorme alívio quando a receberam como se fosse uma mais, não como uma estranha que não era bem-vinda.
Pouco depois do meio-dia se escutaram de novo as salvas da artilharia pesada. Soavam muito mais perto do que o fizeram dois dias atrás. Além disso, depois do primeiro sobressalto, era impossível confundir os incessantes tiros de canhão com trovões. As damas passaram várias horas organizando remédios e outros fornecimentos que tinham reunido ao longo dos dias anteriores e enrolando ataduras. Falavam com placidez e inclusive riam enquanto trabalhavam, mas Morgan, que se mantinha tão ocupada como qualquer uma delas, sentia a tensão e o medo latentes sob a alegria com a qual tentavam desentender do significado do que estavam fazendo.
Que vida mais sacrificada, pensou, a de uma esposa que seguisse às tropas ano atrás de ano.
No meio da tarde as interrompeu um alvoroço na rua. Algumas das pressentes correram para as janelas enquanto que ela e a senhora Clark o faziam para a porta. Ante elas passaram um bom número de soldados a cavalo, com as montarias cobertas de babas pelo esforço e brandindo os sabres nas mãos. Vinham da Porta do Namur, convocada no extremo sul da cidade, vinham da batalha.
-É a cavalaria prusiana, não a Guarda -assinalou a senhora Clark.
Se estavam cavalgando por outras ruas tantos soldados como estavam passando em frente a elas, devia tratar-se de um regimento completo, pensou Morgan. Estavam gritando em alemão, um idioma desconhecido para ela. Embora muitos dos transeuntes se prepararam para fazer-se de intérpretes.
-Tudo está perdido! -gritou um homem.
-Os franceses pisam nos seus calcanhares! -acrescentou alguém mais.
O pânico se estendeu entre o resto dos pressentes. Não obstante, a senhora Clark a puxou pelo braço com firmeza e a obrigou a entrar de novo na casa. Depois fechou a porta atrás delas.
-Logo começarão a chegar os feridos - disse ao resto das damas-. Se os informe são corretos, a batalha está perdida e os franceses não demorarão para chegar. Mas eles também trarão seus feridos. Podemos nos esconder aqui e nos deixar levar pelo pânico ou sair aí fora e fazer tudo o que possamos para ajudar a aqueles que nos necessitem, seja qual for a cor de seu uniforme ou o lado no qual tenham lutado.
Morgan a olhou com renovado respeito e crescente admiração enquanto inspirava fundo para acalmar-se. Ela mesma tinha estado a ponto de sucumbir ao pânico, admitiu.
-Eu prefiro sair -disse.
A senhora Clark se virou para ela.
-Mas não deveria fazê-lo, lady Morgan -protestou-. Deveria retornar a rue do Bellevue. A condessa do Caddick estará preocupada com você. O que vamos fazer é muito perigoso. Além disso, será horrível e muito desagradável. Não vai gostar do que veja.
-Não espero gostar, senhora -replicou-. E o fato de ser a filha solteira de um duque não me converte em uma delicada flor de estufa. Quero pôr meu grãozinho de areia. Por favor, não discuta comigo. Acho que vão necessitar de todas as mãos disponíveis dentro de um momento. Quanto a lady Caddick, estará ocupada atendendo ao Rosamond e muito preocupada com lorde Gordon. Sabe que estou com você.
A senhora Clark não perdeu mais tempo com palavras. limitou-se a assentir com a cabeça brevemente enquanto a agarrava pela mão para lhe dar um apertão.
-Iremos até a Porta do Namur -disse.
Foi ali onde lorde Alleyne encontrou Morgan por volta de uma hora depois. Embora não a estivesse procurando precisamente. A essas alturas imaginava muito longe de Bruxelas. Tinha percorrido todo o caminho de volta desde o Amberes procurando a entre a multidão que circulava em direção contrária à sua. Embora não se preocupara ao não vê-la. Tinha chegado à conclusão de que estaria em um navio, a caminho da Inglaterra. Apresentou-se ante sir Charles Stuart sem pensar sequer em ir antes à residência da rue do Bellevue alugada pelo conde do Caddick. Nesse momento ia para o sul, com uma mensagem para o duque de Wellington. Apresentou-se como voluntário para a missão. Talvez fosse perigosa, tinha-lhe advertido sir Charles, se o som dos canhões era fiel indicativo da ferocidade da batalha que se estava acontecendo. Mas ansiava ver com seus próprios olhos o que estava acontecendo. Além disso, Aidan, seu irmão mais velho, tinha lutado na península Ibérica. Acaso ia ele a acovardar-se ante a insignificante tarefa de levar uma carta a primeira linha do fronte?
Os soldados feridos nos enfrentamentos dos dias anteriores começavam a chegar caminhando a Bruxelas, alguns com a cabeça enfaixada ou com os braços em tipóia, mas a maioria levava as feridas ainda sangrando cobertas com sujos farrapos. Alleyne os observava com lástima à medida que se aproximava da Porta do Namur de caminho para o sul e também contemplava com admiração ao grupo de damas que tinha improvisado um hospital de primeiros socorros no lugar.
Um dos feridos estava explicando à dama que segurava um copo de água junto a seus lábios que a batalha do dia, um enfrentamento desesperado e brutal, estava-se liberando justo ao sul do bosque do Soignes, não muito longe de um povoado chamado Waterloo.
A dama em questão era Morgan.
Alleyne desceu do cavalo ao mesmo tempo que ela soltava o copo e erguia os olhos. Quando o reconheceu, correu para ele.
-Alleyne! -gritou-. Onde esteve? Estava muito preocupada.
Sustentou-a pelos ombros e a sacudiu sem muitos olhares.
-Que demônios faz aqui? -perguntou-lhe-. Por que não está no Amberes ou de caminho a Inglaterra?
-Disse-me que viria para mim na manhã seguinte ao baile dos duques do Richmond! -recordou-lhe.
-Maldita seja, Morgan! -replicou, exasperado-. Me retiveram no Amberes. Não posso acreditar que não tivesse a sensatez de partir com os Caddick. Vou dizer lhes algumas coisas.
-Ainda estão aqui -o interrompeu-. Não acreditará que se teriam ido sem mim, não é?
Lady Caddick se toma sua responsabilidade como minha acompanhante muito a sério -E passou a lhe explicar a sucessão de acontecimentos que os tinha impedido de abandonar Bruxelas.
-Maldição! -repetiu-. Terei que tirá-la eu mesmo daqui, Morg. Poremo-nos em marcha assim que acabe com um encargo da embaixada.
-Mas me necessitam aqui -protestou ela-. Me necessitarão durante um tempo. E porei meu grãozzinho de areia, Alleyne, embora não possa lutar contra os franceses como fez Aidan. Não tem que preocupar-se por mim.
Agarrou-a pelos ombros com mais força.
-Wulf me arrancará a cabeça -disse- e não poderei culpá-lo. Voltarei antes da noite chegar. Depois iremos.
-Alleyne -lhe disse, agarrando-o pelos cotovelos-, aonde vai? O que está fazendo aqui precisamente?
-Tenho que levar uma mensagem ao fronte -respondeu.
Sua irmã abriu os olhos de par em par.
-Não se preocupe -lhe disse com um sorriso-. Não vou intervir na batalha. Nada de heroísmos em meu caso. Não correrei nenhum perigo.
-Tenha muito cuidado -Tomou uma funda baforada de ar-. Se por acaso tiver notícias sobre a Guarda Real Montada -Deixou a frase no ar. Não era preciso que dissesse mais. Puxou-a e a abraçou com força por um instante.
-Verei o que posso averiguar -lhe prometeu antes de afastar-se dela e subir de novo a sua montaria de um salto.
Pelo caminho de acesso à cidade se aproximavam duas barulhentas carretas carregadas de feridos. O ar se saturou com o fedor do sangue, mais intenso que antes.
Morgan deu a volta e com a distração nem sequer se despediu dele antes que transpusesse as portas a cavalo. Morgan, pensou. A caçula. Uma mulher, comportando-se com uma absurda coragem e fazendo algo que provocaria um bom número de desmaios entre a maioria das damas que tinham o dobro de idade. Embora deveria tê-lo imaginado a verdade. Igual a Freyja, ou talvez inclusive mais que ela, Morgan se aborrecia com a idéia de que uma dama perfeita tivesse que ser uma tenra florzinha. Além disso, tinha a firme suspeita de que tinha sido o aumento das tensões o que a tinha levado a Bélgica, mais que a presença do Gordon. Gordon, em sua opinião, era um fantoche. Estava muito orgulhoso de sua irmã, de que estivesse na rua atendendo aos feridos em lugar de estar escondida na residência dos condes. Entretanto e apesar de tudo, teria uma discussão com a condessa do Caddick, a quem tinha confiado seu cuidado. Wulf lhe arrancaria a cabeça por não havê-la enviado a casa muito antes.
Passaram várias horas antes de que Gervase a encontrasse no mesmo lugar. Então já havia uma verdadeira corrente de feridos, alguns dos quais sofriam feridas muito graves. Havia alguns cirurgiões na Porta do Namur que faziam o que podiam para atender os casos mais graves e que levavam a cabo sua horrível missão no interior de umas tendas improvisadas.
Também havia muitas mulheres pressentes, que limpavam as feridas, enfaixavam aos feridos mais leves e davam água e um pouco de consolo a outros. Desde que escutara os canhões, teve muito claro que ao cabo de umas poucas horas a avalanche de feridos suporia um enorme problema para a cidade, já que ultrapassaria com acréscimo todos os esforços dos voluntários que se reuniram nas portas para ajudar. O que precisavam era organização; uma lista dos habitantes da cidade preparados e dispostos a abrir as portas de suas casas para alojar aos feridos; alguém que enviasse aos feridos, os cirurgiões e as enfermeiras a tais casas; e algum modo de abastecê-los com todo o necessário. Supôs que já haveria muita gente organizando todo o assunto. Mas era impossível que houvesse uma maneira de coordenar os esforços de toda essa gente. Ele só podia ajudarno que pudesse. Reuniu a todos os conhecidos que pôde localizar e que estavam dispostos a ajudar e juntos puseram mãos à obra. Percorreram as ruas batendo nas portas das casas, procurando farmacêuticos, lojistas e qualquer que pudesse lhes vender fornecimentos para milhares de feridos ou mais, e elaborando intermináveis listas.
Quando por fim tiveram tudo preparado, correram até a Porta do Namur e estabeleceram um posto de controle cujo principal objetivo era o de dirigir os comboios de feridos às casas onde encontrariam camas limpas, comida, água e um teto onde cobrir-se enquanto recebiam os solícitos cuidados de enfermeiras e médicos.
Havia muito poucas enfermeiras e ainda menos médicos, como era de esperar, mas tinham feito tudo o que estava em suas mãos.
Percebeu que uma dama muito jovem estava inclinada sobre o que parecia um montão de farrapos ensangüentados no chão. O montão de farrapos vinha a ser um soldado raso muito jovem coberto de barro e sangue, a quem tinham arrancado a perna direita por debaixo do joelho por um tiro de canhão. A jovem tinha o cabelo recolhido com um lenço manchado de sangue e de barro. Seu vestido de musselina estava enrugado e sujo e cheio de salpicaduras de sangue. Murmurava docemente ao moço enquanto lhe limpava o rosto com um trapo úmido.
O ferido estava na fila, uma fila muito longa, para que o atendesse um cirurgião. Nesse instante, a dama se endireitou e passou o pulso pelos olhos com evidente esgotamento.
Pelo amor de Deus! Gervase ficou petrificado onde estava. Era lady Morgan Bedwyn. Aproximou-se dela sem demora e a agarrou por um cotovelo.
-Ainda continua em Bruxelas? -perguntou-lhe, tolamente.
Ela o olhou um instante sem reconhecê-lo. Depois, piscou várias vezes.
-Lorde Rosthorn - disse.
Também lhe custava trabalho acreditar o que viam seus olhos.
-Os condes do Caddick não a levaram a um lugar seguro? -perguntou-. Nem lorde Alleyne?
-Não havia meios de transporte disponíveis quando nos decidimos partir - explicou-. E Alleyne se atrasou em Amberes mais da conta. Retornou hoje mesmo. Tinha que ir até o fronte para cumprir uma missão diplomática.
-O que está fazendo aqui? -quis saber.
-Não é evidente? -replicou com um sorriso cansado-. Há tanto por fazer, lorde Rosthorn. Não posso ficar aqui a falar com você.
Nesse momento compreendeu que era uma mulher feita e direita; uma mulher com um grande coração e com a força e a coragem que este requeria. Desde que a conheceu albergava a suspeita de que não era uma mocinha tola, mas aí tinha a prova que o demonstrava. Nesse instante lhe pareceu mais formosa que nunca. Soltou-lhe o cotovelo.
-Então vá -lhe disse-. Volte para o trabalho.
Ele também esteve ocupado durante várias horas; nem sequer soube quantas, porque perdeu a noção do tempo. Ajudou a descer feridos das carretas e a separá-los em distintos grupos: os que necessitavam atenção médica, mas não os serviços de um cirurgião; os que requeriam uma amputação; os que só precisavam um gole de água e uma mão amiga que os consolasse enquanto morriam. Tirou o chapéu oferecendo essa mão amiga e esse gole de água uma e outra vez. Ao mesmo tempo, tentou levar a cabo o objetivo que se fixasse em um princípio sem mover do lugar. Tentou procurar alojamento para todos os feridos que não podiam partir por seus próprios pés.
Ao final, em algum momento da tarde, um dos amigos do John Waldane chegou para relevá-lo. Gervase pôs os braços na cintura enquanto estirava os músculos das costas e dos ombros. Era surpreendente a rapidez com a qual os olhos e os ouvidos se acostumavam às imagens e aos sons, e o nariz, aos aromas. Passado o primeiro momento, esqueceu-se de todas as afetações. Lady Morgan Bedwyn, com um aspecto muito mais desarrumado e sujo que antes, estava ajoelhada junto a um sargento grisalho trajando o uniforme verde dos fuzileiros enquanto lhe atava uma tipóia ao pescoço e dizia algo que arrancou ao homem uma rouca gargalhada. Aproximou-se dela e esperou até que acabou e se endireitou.
-Chérie -lhe disse-, já é hora de que descanse. Me permita acompanhar a de retorno a rue do Bellevue.
Mas ela fez um gesto negativo com a cabeça.
-Não posso voltar até que se saiba algo concludente -replicou-. Esse sargento -disse e apontou o homem que acabava de atender- Me disse que lorde Uxbridge dirigiu uma cargada cavalaria esta tarde que varreu ao inimigo a sua passagem e fez com que os franceses empreendessem a retirada. Mas se internaram muito atrás das linhas inimigas e acabaramlhes cortando a retirada. Não sabe quantas baixas houve -Sua expressão delatou o perto que estava de derrubar-se, mas se recompôs e conseguiu esboçar um sorriso-. Não apareceu nenhum ferido ainda -disse-. Suponho que são boas notícias. Ninguém sabe se a batalha está ganha ou perdida. Mas logo escurecerá. Não podem continuar lutando durante a noite, não é?
-Precisa descansar um pouco -lhe disse de forma cortante-. Não será de nenhuma ajuda para ninguém se acabar esgotada.
-A senhora Clark pôs sua casa a disposição dos feridos -comentou ela-. Faz uma hora que queremos ir, mas parece que sempre fica algo mais por fazer. A casa já está preparada. Aceitei me encarregar do turno da noite. De qualquer forma não poderia dormir -Inclinou a cabeça a esquerda e direita e entrecerrou os olhos.
Gervase lhe colocou as mãos nos ombros e insistiu que ficasse de costas para ele. Ficou lhe massageando os músculos do pescoço e das costas até que a escutou suspirar e a viu inclinar acabeça para frente.
-Alleyne ainda não retornou - disse. - Me disse que voltaria muito antes de que anoitecesse. E já está anoitecendo. Não acredito que tarde em chegar.
-Me permita que a acompanhe a casa da senhora Clark -se ofereceu-. Alguém indicará a direção a seu irmão. Se ainda não há muitos feridos ou há suficientes mãos para ajudar, talvez possa aproveitar para descansar um pouquinho. Ou ao menos para tomar uma xícara de chá.
-Isso soa a glória -admitiu.
-Ou para lavar-se um pouco -acrescentou ele.
Lady Morgan se olhou com certa ironia.
-Este é um de meus vestidos mais elegantes -disse-. Ou o era. Duvido muito que possa voltar a pôr isso ou que queira fazê-lo.
Ofereceu-lhe o braço e ela o aceitou. Nesse momento lhe era muito difícil recordar o aspecto que tinha a primeira vez que a viu: tão formosa que tirava o fôlego, mas ao mesmo tempo altiva e aristocrática. Tinha-a tomado por uma mocinha mimada. Envergonhava-lhe recordar que se aproximara dela pelo mero fato de ser a irmã do Bewcastle; como se carecesse de uma identidade própria.
-Me alegro de continuar em Bruxelas -confessou ela-. Me alegro de ter visto o que vi hoje. Mas sobre tudo me alegro de ter podido encontrar o modo de ajudar em algo. Embora tudo tenha sido em vão. Se perdermos esta batalha, do que terá servido? Se ganharmos, que sentido terá tido a luta para os franceses feridos e mortos? Não consigo fazer distinções entre eles, e você? Franceses, ingleses, prusianos, belgas e holandeses… todos são homens valentes mas estúpidos. Embora talvez não sejam tão estúpidos. depois de tudo, não foram eles quem decidiram fazer hoje esta batalha. Foram seus chefes. Sinto muito. Já falei sobre este assunto antes com você. Tenho que esquecê-lo e me limitar a confrontar a realidade do que aconteceu e do que está acontecendo.
Gervase lhe cobriu a mão que descansava sobre seu braço.
-Se posso -começou-, irei dizer à condessa do Caddick onde se encontra.
-Ai, sim, por favor! -exclamou ela-. Que descuido de minha parte não ter pensado antes.
Deveriam pendurar aos Caddick pelos polegares, pensou de forma não muito benévola. Fariam algum esforço por descobrir o paradeiro da jovem com o passar do dia? E por que não tinham insistido em que abandonasse a cidade muito antes embora eles não quisessem fazê-lo?
-Será um prazer, chérie -replicou.
-Sua mãe é francesa -disse lady Morgan-. Não se pôs em nenhum momento do lado de seus compatriotas, lorde Rosthorn?
-mais de uma vez -respondeu-, mas não costumo confessá-lo diante de nenhum inglês, já seja homem ou mulher. Meu pai era inglês, sabe? Minha lealdade está dividida entre ambos países, talvez por isso nunca me senti inclinado a entrar no exército.
Ela o olhou com expressão grave, mas não lhe fez mais perguntas. Deteve-se ao chegar a uma casa que devia ser a residência da senhora Clark e se virou para lhe agradecer por tê-la acompanhado. As portas da casa, conforme pôde ver, estavam totalmente abertas e o interior estava iluminado. Lady Morgan passaria a noite em claro, fazendo tudo o que estivesse em suas mãos para aliviar o sofrimento dos feridos e para assegurar-se de que os sobreviventes da batalha não morressem por causa da febre ou por falta de atenção.
Tomou ambas as mãos e se inclinou sobre elas enquanto as levava aos lábios.
-Entre, chérie -lhe disse-. Virei pela manhã para me assegurar de que descansa.
-Obrigada -replicou ela-. O que fará esta noite, lorde Rosthorn?
-Voltarei para a Porta do Namur -respondeu-. Talvez entre um pouco no bosque. Está escurecendo e os canhões deixaram de disparar, como suponho que já teria notado. A batalha já estará ganha ou perdida. Ou talvez se chegou a um ponto morto e voltem a enfrentar-se pela manhã.
-Se por acaso se encontrar com Alleyne, dirá-lhe que estou aqui? -pediu-lhe-. E se tiver notícias de qualquer um, deverá comunicar-nos.
Não soube se referia-se ao capitão lorde Gordon em particular ou aos oficiais da Guarda em geral. Mas poderia ter ficado todo o dia preocupada com eles na residência dos Caddick. Em troca, tinha estado nas ruas, atendendo aos feridos enquanto mantinha seus sentimentos firmemente controlados e enterrados. Embora esses sentimentos estavam aí, a preocupação e o intenso sofrimento, e ele sabia.
-Farei-o, chérie -respondeu e aguardou até ver que desaparecia no interior da casa para partir em direção a rue do Bellevue. Encontrou à condessa tão perturbada pela falta de notícias sobre seu filho que teve a impressão de que a mulher nem percebeu que lady Morgan se ausentara desde essa manhã.
-Está com a senhora Clark, não é, lorde Rosthorn? -perguntou depois que lhe deu o recado-. Uma boa mulher, embora o major poderia ter aspirado a mais. Suponho que lady Morgan e ela terão passado o dia agarradas pela mão, consolando-se uma à outra.
Gervase não se incomodou em lhe explicar o que as damas tinham estado fazendo. Despediu-se, retornou andando às cavalariças onde tinha deixado seu cavalo e cavalgou uns quilômetros para o sul, apesar de que o crepúsculo cinzento quase tinha dado passagem à escuridão.
As notícias eram mais alentadoras à medida que avançava. Ao que parecia, os aliados tinham ganho a batalha, embora ninguém pudesse assegurá-lo com certeza. Os prussianos tinham chegado no último momento para reforçar as linhas britânicas e as aliadas, que se encontravam em apuros, e os franceses bateram em retirada. Os aliados os estavam perseguindo e tinham a intenção de chegar até Paris se fosse necessário.
Talvez teria entrado um pouco mais em busca de notícias mais concludentes, mas enquanto passava junto a uma carreta que transportava feridos, viu dois soldados que levavam umas maca. Sem dúvida levavam a um oficial ferido. Apesar da escuridão, distinguiu que o uniforme do ferido era da Guarda Real Montada, de modo que se aproximou do trio.
-Quem é? -perguntou.
-O capitão lorde Gordon, senhor -respondeu um dos soldados-. Ferido esta tarde na carga da cavalaria, embora só o encontramos recentemente.
-Está muito ferido, gravemente? -quis saber.
Entretanto, o capitão estava consciente e respondeu por si mesmo.
-Uma maldita perna quebrada -disse. - É você, Rosthorn? Se tivesse podido tirar o pé do estribo, não me teria acontecido nada e teria trespassado com o sabre a alguns franceses a mais. Mas o cavalo me caiu em cima e tive que me fazer de morto até que tudo acabou-se. Tampou os olhos com uma mão.
-Então, a batalha terminou? -perguntou ele.
-Claro que sim! -exclamou Gordon-. Cortamos a sua retirada quando estavam atacando e depois disso foi só questão de tempo -Soltou um impropério repentino e bastante colorido dedicado aos portadores da maca, um dos quais acabava de tropeçar em uma pedra-. Mau nascidos! Idiotas! -exclamou-. Ninguém parece compreender a dor que me atormenta. Rosthorn, seria amável de adiantar-se a cavalo e dizer a minha mãe que vou a caminho para que meu pai possa procurar o melhor médico de Bruxelas?
-O que sabe do resto da Guarda? -perguntou Gervase por sua vez. Entretanto, teve que aguardar para obter uma resposta já que Gordon apertou os dentes ao sofrer um espasmo de dor.
-Muitos morreram -respondeu. - A Guarda Real Montada nunca voltará a ser a mesma, mas livramos a Europa e a Inglaterra do Bonaparte.
-E o major Clark? -quis saber.
-Está vivo - assegurou o capitão Gordon-. Esteve falando comigo enquanto me colocavam na maca. Partiu com o resto do exército em perseguição dos franceses. Bastardo afortunado.
-Pois então será melhor que retorne a Bruxelas -disse.
Em primeiro lugar foi a rue do Bellevue para informar aos condes do Caddick de que seu filho estava vivo, embora ferido. Entretanto, não esperou que Gordon chegasse nem se ofereceu a ir em busca de um médico. Em troca, cavalgou até a casa da senhora Clark.
Uma criada abriu a porta em resposta a sua chamada. Inclusive antes de pôr um pé na residência, percebeu que os feridos ocupavam todo o espaço disponível. Só no estreito corredor havia três catres.
Lady Morgan em pessoa apareceu apressadamente de um quarto situado na parte traseira apenas um minuto depois que a criada tivesse desaparecido. Parecia exausta, mas tinha lavado o rosto, escovado o cabelo e continuava mantendo seu porte tão orgulhoso.
-A batalha acabou e os aliados são os vencedores -lhe disse sem mais preâmbulos-. O major Clark está a salvo e trazem o capitão Gordon para casa, vivo, mas com uma perna quebrada. Acredito que viverá e se recuperará por completo.
Observou como ela abria os olhos de par em par e mordia o lábio inferior. Depois correu para ele e desviou de um dos catres para lhe oferecer as mãos, ficar nas pontas dos pés e lhe dar um beijo na face.
-Obrigado por trazer as notícias - disse, lhe dando um apertão nas mãos-. Muito obrigada, lorde Rosthorn. Você é muito amável. Sabe algo do Alleyne?
-Não o vi nem soube nada dele -respondeu a seu pesar-. Mas não me cabe dúvida de que voltará amanhã, inclusive pode ser que esta noite.
-Sim -concordou ela-. Suponho que sim.
Um dos feridos que ocupavam o corredor tossiu, gemeu e soltou um grito. Lady Morgan lhe soltou as mãos e se aproximou do catre sem demora.
Nesse mesmo instante a senhora Clark apareceu pelas escadas com os olhos cravados nele e uma mão na garganta.
-Seu marido está a salvo, senhora, e a batalha está ganha -disse.

 

Capítulo 7

 


Não havia lugar para que Morgan dormisse em casa da senhora Clark quando foi substituida de suas obrigações ao amanhecer, embora lhe teria gostado de ficar perto. Não obstante, também estava impaciente por voltar para a casa da rue do Bellevue. O capitão lorde Gordon já estaria ali.
Talvez ele tivesse mais informação sobre a batalha e sobre a sorte que tinha acontecido aos outros oficiais a quem conhecia. Embora ao mesmo tempo lhe dava medo voltar a vê-lo. Tentaria lhe fazer cumprir as promessas que acreditou que lhe tinha feito a noite do baile dos duques do Richmond? Ou estaria tão envergonhado pelas lembranças e tão disposto a esquecer tudo como estava ela?
O conde e Rosamond estavam tomando o café da manhã. Esta ficou em pé quando a viu, abraçou-a com força e caiu em lágrimas.
-Ganhamos a batalha - disse quando pôde falar-, mas não sabemos quem morreram e quem sobreviveu. Ambrose está vivo. Mamãe passou toda a noite em claro a seu lado e ainda continua em seu dormitório.
-Como está a perna? -perguntou com sincera preocupação. Tinha havido tantas amputações.
-Quebrada em dois lugares -respondeu o conde do Caddick-. O cavalo lhe caiu em cima e o apanhou. Mas são fraturas limpas e não terão que amputá-lo. Já lhe tornaram a encaixar os ossos e o médico acredita que conseguirá recuperar-se por completo e que nem sequer ficará uma claudicação.
Aliviada, Morgan suspirou com força e Rosamond voltou a abraçá-la e a soltar umas quantas lágrimas mais.
-Sinto muitíssimo que por minha culpa não pudéssemos abandonar a cidade para nos pôr a salvo dias atrás -lhe disse-. Deve ter estado aterrada, Morgan. Mas as coisas acabaram bem depois de tudo, não é verdade? Bruxelas já não corre perigo e Ambrose está aqui conosco em lugar de em um hospital de campanha deixado na mão de Deus e rodeado de centenas de feridos. Nem sequer posso suportar a idéia, e você?
Morgan negou com a cabeça.
-Vamos levá-lo para casa, para a Inglaterra -continou sua amiga. - Mamãe quer que o atenda nosso médico de Londres. Papai conseguiu duas carruagens e partiremos a primeira hora da manhã. Não lhe parecem umas notícias estupendas?
Morgan assentiu com a cabeça.
-Parece cansada, lady Morgan -interveio o conde-. Suponho que será por causa da preocupação. Mas as coisas saíram bem.
Rosamond, que já tinha comunicado todas suas notícias, afastou-se dela e só nesse momento percebeu sua aparência desarrumada.
-Tem sangue no vestido -disse-. Como se feriu, Morgan? Venha, sente-se.
Acreditava que tinha passado a noite em casa da senhora Clark.
-E o fiz. - Se deixou cair na cadeira que um criado se apressou a retirar da mesa. - estive atendendo aos feridos que se alojam ali. Há tantos, Rosamond… centenas e centenas. Atreveria-me a dizer que ainda ficam milhares no campo de batalha e nos caminhos de acesso a Bruxelas. Em casa da senhora Clark há nada menos que vinte. Havia vinte e um, mas um morreu durante a noite. Substituíram-me durante umas horas, mas devo retornar antes do meio-dia. Há muito por fazer e muito poucas mãos disponíveis.
Rosamond se sentou na cadeira contigüa à sua e a olhou com os olhos dilatados pela fascinação.
-Atendendo aos feridos? -repetiu-. Mas que valente é! Irei consigo quando retornar, embora a mera visão do sangue que leva no vestido faz que me dê voltas a cabeça. Já me recuperei quase por completo da enxaqueca.
-Você não irá a nenhum lado, senhorita -interveio seu pai com voz cortante-. Talvez tenha acabado a batalha, mas as ruas estarão lotadas de rufiões da pior índole. Ficará em casa onde sua mãe e eu possamos tê-la vigiada. E não me cabe a menor duvida de que lady Caddick dirá o mesmo a você, lady Morgan. Acreditava que a senhora Clark era mais responsável.
Lady Caddick se somou à cena nesse momento. Parecia cansada, mas assim que posou os olhos nela, sua expressão se tornou radiante de alegria.
-Notícias maravilhosas, minha querida lady Morgan! -exclamou-. Suponho que saberá que os franceses sofreram uma derrota esmagadora. Gordon se converteu em um herói. Está ferido gravemente, meu pobre moço, mas leva seu sofrimento com admirável coragem e com alegria. Suas feridas não são mais que medalhas à honra, isso me disse. Viu a alguém que se comporte com semelhante nobreza de espírito?
-Me alegro muito de que esteja a salvo, senhora - assegurou Morgan.
-Levaremos a meu moço de volta a Inglaterra amanhã -seguiu a condessa-. Suponho que lhe alegrará muito retornar aos braços de sua família.
-Esteve Alleyne aqui ontem à noite? -perguntou.
-Lorde Alleyne Bedwyn? -perguntou por sua vez lady Caddick-. Acredito que não. Esteve aqui, Caddick?
O conde grunhiu uma resposta que ela interpretou como uma negativa.
-Igual a você -disse a sua esposa-, lady Morgan esteve toda a noite em claro. Sugiro que as duas tomem uma boa xícara de chá acompanhada de torradas e logo vão diretas à cama.
Rosamond fará companhia ao Gordon.
-Acaba de tomar outra dose de láudano - explicou a condessa enquanto se sentava à mesa-, assim suponho que dormirá durante um bom tempo. Estou segura de que quererá vê-la quando despertar, lady Morgan. falou várias vezes de você durante a noite. Mas devo lhe advertir que vê-lo poderia ferir sua sensibilidade. além da perna quebrada, tem outras muitas feridas.
Morgan sentiu que lhe caía a alma aos pés. lorde Gordon tinha falado dela. Queria vê-la. Claro que ao menos estava a salvo. Não podia dizer o mesmo do Alleyne. Nem da vintena de homens que havia em casa da senhora Clark e que necessitavam de atenção quase constante. Suas vidas pendiam de um fio. Entretanto, o que mais necessitava nesse momento era dormir. Agradeceu em silencio por que lorde Gordon tivesse tomado láudano e não estivesse em condições de receber visitas. Teria que vê-lo mais tarde e depois teria que enfrentar-se à idéia de retornar a Inglaterra e deixar atrás todo o sofrimento que embargava a cidade. Tomou uma torrada e uma xícara de chá, por necessidade mais que por fome. Rosamond a agarrou pelo braço quando acabou e a acompanhou escada acima até seu dormitório. Antes de partir, sua amiga lhe deu um beijo na face.
-Estou muito orgulhosa de você - assegurou -por ter atendido aos feridos. Morgan, espero que acabemos sendo irmãs!
Esboçou um sorriso cansado enquanto entrava em seu dormitório e fechava a porta atrás de si. Sua criada a ajudou a tirar o vestido e depois se desabou na cama e fechou os olhos. Entretanto, justo antes de que o sono a arrastasse, recordou algo.
A noite anterior tinha beijado ao conde do Rosthorn na face. Não porque tivessem estado paquerando muito menos. Não porque ele a tivesse desafiado ou ela se houvesse sentido desafiada, mas sim porque se mostrou compassivo com ela e com a senhora Clark. Porque tinha passado horas na Porta do Namur esse dia, tentando assegurar-se de que todos os feridos tivessem um lugar onde recuperar-se e estar cômodos. Porque tinha percebido sua bondade. Porque de algum modo tinha deixado de vê-lo como um libertino potencialmente perigoso cuja paquera lhe tinha sido irresistível e se convertera em um amigo. Não era uma idéia um tanto fantasiosa? Ficou adormecida antes de poder responder a sua própria pergunta.
Gervase voltou pela manhã cedo a casa da senhora Clark; depois de ter tomado o café da manhã, a fim de acompanhar a lady Morgan Bedwyn de volta à residência dos Caddick na rue do Bellevue. Entretanto, a dama partiu dez minutos antes. Passou o resto da manhã fazendo tudo o que esteve em suas mãos para ajudar a organizar a avalanche de feridos que chegava do campo de batalha, situado ao sul do Waterloo. O número de baixas era esmagador, embora sabia que só estava vendo os poucos que teriam recolhido. No campo de batalha ainda devia haver milhares de mortos.
Foi a casa do conde do Caddick a meio-dia e entregou seu cartão ao mordomo.
-Obrigado por sua visita, Rosthorn -disse o conde, que apareceu no vestíbulo para recebê-lo em pessoa e saudá-lo com um apertão de mãos-, sobre tudo porque as ruas devem estar mergulhadas no caos e é muito mais seguro ficar em casa. Alegrará-lhe saber que meu filho se encontra bastante bem dadas as circunstâncias. Já lhe entalaram a perna e atenderam o resto de suas feridas. Temos a esperança de que consiga recuperar-se por completo uma vez que o levemos de volta a Inglaterra.
-Partem logo, senhor? -perguntou.
O melhor para lady Morgan Bedwyn era que a levassem imediatamente de um entorno tão insalubre. Embora ao mesmo tempo se deu conta de que sentiria sua falta. Que idéia mais estranha.
-Partiremos à primeira hora da manhã -respondeu o conde.
Nesse momento apareceu lady Morgan no vestíbulo. Continuava estando um tanto pálida, mas se tinha penteado e usava um vestido limpo.
-Lorde Rosthorn, soube algo de meu irmão? -perguntou-lhe enquanto ele a saudava com uma reverência.
Para sua mortificação, caiu na conta de que nem sequer se recordara de lorde Alleyne Bedwyn, quem no final de contas podia cuidar-se sozinho.
-Temo que não -respondeu.
O olhar da moça se tornou um pouco mais sombrio.
-Suponho -começou- que se viu tão afligido pelas circunstâncias que esqueceu que devia vir para me tirar de Bruxelas. De qualquer forma, depois da vitória saberá que estou a salvo na cidade e que já não há motivos para partir para a carreira.
-Eu não diria tanto, lady Morgan -a corrigiu Caddick-. Minha esposa teme que se nosso médico não atender a perna do Gordon em menos de uma semana e se assegura de que foi devidamente colocada e entalada, meu filho acabará com uma claudicação por toda a vida.
Gervase manteve os olhos cravados em lady Morgan e percebeu que franzia ligeiramente o cenho.
-Me permita que vá em busca de sir Charles Stuart e lhe pergunte se sabe algo sobre lorde Alleyne -se ofereceu-. Voltarei logo que me seja possível para aliviar sua preocupação.
-É muito amável -disse ela-. Mas se importaria me levar as notícias a casa da senhora Clark? Devo retornar imediatamente. dormi mais do que queria.
-Retornar? -Caddick estava verdadeiramente surpreso-. A casa da senhora Clark, lady Morgan? Com vinte feridos alojados ali? Não é um lugar apropriado para uma dama.
-Nem para ninguém, milord -conveio ela-. Mas esses homens estão sofrendo igual a lorde Gordon, com a condição de que eles não contam com uma mãe abnegada nem com uma irmã nem um pai que os cuidem. Ontem lutaram com a mesma valentia e a mesma coragem que lorde Gordon. Alguém deve atendê-los.
-Mas não lady Morgan Bedwyn -insistiu o conde-. Não é apropriado. Além disso, partiremos amanhã pela manhã e hoje precisará descansar.
-Já descansei, milord -assegurou a jovem com brusquidão. - Farei o que possa em casa da senhora Clark e retornarei esta noite a fim de me preparar para a partida.
-Mas as ruas não são seguras -protestou Caddick.
-Não é assim, senhor -interveio ele-. Mas se ficar mais tranqüilo, acompanharei em pessoa a lady Morgan e a sua criada até a casa da senhora Clark e as trarei de volta esta noite.
Ela o olhou com expressão agradecida e partiu sem mais demora em busca de sua touca enquanto Caddick protestava energicamente, ainda indeciso, e murmurava algo a respeito de que sua esposa continuava adormecida em seu dormitório.
Cinco minutos mais tarde estavam na rua, seguidos pela criada que caminhava a uma distância apropriada.
-Viu lorde Gordon? -perguntou.
Ela negou com a cabeça.
-Quando cheguei a casa estava dormindo -explicou-. Passou uma manhã inquieta, mas voltou a dormir antes de que despertasse. Verei-o esta noite.
Gervase se perguntou até que ponto se preocupava com o moço. Seus sentimentos tinham sido muito contraditórios e confusos no baile dos duques do Richmond. Talvez o fato de sabê-lo ferido tivesse animado o afeto que lhe professava. Lady Morgan ergueu a cabeça para olhá-lo fixamente como era habitual nela e pareceu adivinhar seus pensamentos.
-O capitão lorde Gordon só é mais um dos milhares de feridos - assegurou-. Tem uma família que se preocupa com ele, uma casa cheia de criados e um lar tranqüilo e cômodo onde recuperar-se. Sou mais necessária em outro lugar.
-Não anseia vê-lo nem que seja por um instante? -perguntou-lhe com um sorriso.
Ela franziu o cenho.
-Esteve falando de mim ontem à noite -respondeu. - Queria ver-me. Está ferido, embora diria que não tanto como a maioria dos homens realojados em casa da senhora Clark, e por isso devo evitar dizer algo que possa alterá-lo desnecessariamente. Mas é óbvio que devo vê-lo -Suspirou-. Suponho que deveria ter deixado claros meus sentimentos há muito tempo. Mas me hospedava com seus pais e sua irmã.
-Amanhã -disse ele, lhe dando uns tapinhas na mão- partirá para seu lar. Voltará com sua família e poderá mandar ao Gordon ao inferno se o desejar.
-E o que fará você quando partir daqui? -perguntou-lhe lady Morgan-.Continua exilado?
Pôs-se a rir entre dentes.
-Meu pai está morto, chérie -respondeu-, e minha mãe me suplicou que voltasse para casa. Talvez a agrade antes de que acabe o verão.
-Só tem a sua mãe? -perguntou ela de novo.
-Tenho um irmão casado -respondeu- que é o vigário de nossa propriedade no Kent; Duas irmãs casadas que vivem muito longe de casa; e uma segunda prima, antiga pupila de meu pai, que continua vivendo no Windrush Grange com minha mãe.
-Me alegro por você -replicou a jovem-. A família é muito importante. Eu não sei o que faria sem a minha. Quero-os muitíssimo a todos.
-O duque do Bewcastle incluído? -quis saber-.-se murmura que é um tirano sem senso de humor.
Lady Morgan ficou visivelmente furiosa.
-Ambos os qualificativos são cruéis -afirmou- e não definem absolutamente ao Wulfric.
É certo que não sabe rir, mas suporta sobre seus ombros o peso de numerosas responsabilidades desde que herdou o título aos dezessete anos, mais jovem do que eu o sou agora. Toma suas obrigações muito a sério e exerce sua autoridade sobre aqueles que estão sob seu cuidado ou que trabalham para ele com rígida disciplina.
-Isso também inclui a você, chérie? -perguntou.
-Bom, os Bedwyn são feitos de uma massa muito dura -lhe assegurou-. Wulfric não nos assusta, embora todos o respeitamos. E o queremos.
Era difícil imaginar que alguém quisesse ao Bewcastle embora houve um tempo no qual ele mesmo o admirasse e aspirasse a formar parte de seu seleto círculo de amizades íntimas. Mas então já tinham chegado à casa da senhora Clark e, a julgar pelas portas totalmente abertas e o bulício procedente do interior, acabavam de levar mais feridos. Tomou uma das mãos de lady Morgan e a levou aos lábios.
-Voltarei dentro de uma hora com notícias de lorde Alleyne -lhe disse-. Descanse de vez em quando, chérie.
Ela deu meia volta e subiu os degraus correndo. Quando se tinha convertido a seus olhos em uma pessoa por direito próprio e tinha deixado de ser só a irmã do duque do Bewcastle?, perguntou-se enquanto a observava afastar-se. No dia anterior? E além disso era uma pessoa que gostava e a quem inclusive admirava. Até a diferença de idade que existia entre ambos parecia ter minguado. Era uma mulher de princípios, uma mulher compassiva sem cair no sentimentalismo. Sentia-se mais envergonhado que nunca por havê-la tratado como o fez a princípio. Entretanto, se não fosse assim, jamais teria procurado que a apresentassem nem teria chegado a conhecê-la, não é verdade?
A única coisa que conseguiu averiguar Gervase ao cabo de uma hora era que lorde Alleyne não se apresentara ante sir Charles Stuart no dia anterior. Uma falta muito grave, dado que tinha que retornar com uma resposta imediata à carta urgente que devia entregar.
Tampouco se tinha apresentado essa manhã. O resto do pessoal da embaixada se debatia entre a discrição e a preocupação; embora não estivessem bastante preocupados para iniciar uma busca. Gervase informou de sua decisão de cavalgar até o Waterloo para ver se descobria algo sobre o desaparecido.
-É possível que lorde Alleyne se unisse ontem à noite às tropas que partiram para Paris? -perguntou antes de partir. Entretanto, em lugar de respostas recebeu perguntas e expressões surpreendidas. Por que ia fazer algo assim um funcionário da embaixada? Com que propósito? Com ordens de quem? Depois de tudo, lorde Alleyne não estava relacionado com nenhum diplomata em Paris.
Lady Morgan se mostrou muitíssimo mais preocupada quando lhe relatou o que tinha averiguado uma vez de volta em casa da senhora Clark.
-Ainda não retornou? -perguntou-lhe-. Onde pode estar?
Viu o medo que aparecia nos olhos da jovem. Seu rosto, que já estava bastante pálido, perdeu mais cor ainda.
-Toda a zona ao sul de Bruxelas esteve mergulhada ontem na confusão -lhe recordou, tomando-a pelo cotovelo para convidá-la a sair da casa- e não me cabe a menor duvida de que ainda o está. Pode estar segura de que algo importante o atrasou.
-Mas ele não é um cidadão britânico sem compromissos como você ou como eu - replicou ela, com o cenho franzido-. Tem deveres que atender e sem dúvida devia retornar sem demora em busca de novas ordens. Não é típico de Alleyne descuidar de suas obrigações.
Não lhe disse nada sobre a resposta que seu irmão devia ter levado a embaixada.
-Hoje me aproximarei do Waterloo -disse-. Verei o que posso averiguar e voltarei para informá-la imediatamente. Certamente está bem. Depois de tudo, não é um militar e não participou da luta como tal.
O problema era que tinha cavalgado até um lugar muito próximo ao campo de batalha. Levava uma mensagem para o Wellington e era bem sabido por todos que o duque costumava estar sempre no fragor da batalha. A expressão da dama lhe deu a entender que ela também sabia e que suas palavras não a tinham reconfortado absolutamente. Puxou-a sem parar para pensar no que fazia e a abraçou como se desse modo pudesse protegê-la de todos os males do mundo.
-Encontrarei-o- prometeu. - Encontrarei-o e o trarei de volta.
Ela jogou a cabeça para trás e o olhou nos olhos em silencio. Gervase inclinou a cabeça e lhe deu um beijo na fronte, sem fazer caso da presença de quantos transeuntes passavam pela rua.
Tomou o rosto entre as mãos e lhe sorriu.
- Coragem, chérie -lhe disse.
Entretanto, fazia uma promessa muito apressada se acaso podia considerar-se como tal. Não havia palavras para descrever nem para analisar o horror das cenas que encontrou enquanto cavalgava para o sul através do bosque onde menos de duas semanas antes tinha celebrado um jantar campestre para centenas de convidados. O caminho estava congestionado por um sem-fim de carretas que se dirigiam para o norte, quase todas elas carregadas de feridos. Havia cadáveres abandonados espalhados em qualquer parte, já que os pelotões de enterros ainda não tinham chegado tão ao norte. Muitos dos corpos estavam nus, obra de outros soldados que procuravam uniformes que estivessem menos destroçados que os seus, ou dos aldeãos que procuravam um meio de cobrar-se tudo o que tinham perdido durante o inferno que viveram no dia anterior.
Quando se deteve talvez pela enésima vez para perguntar por lorde Alleyne Bedwyn, viu que uma mulher estava ajoelhada no bosque junto a um dos corpos nus e que erguia a cabeça para pedir ajuda.
-Está vivo! -gritou-. E é meu marido. Por favor, que alguém me ajude!
Enquanto ele titubeava, um sargento que levava a cabeça enfaixada e um olho abafado, separou-se de um grupo que avançava com muita dificuldade pelo caminho e lhe disse com amabilidade.
-Já vou, senhora. Está ferido gravemente?
Gervase não se deteve para contemplar o feliz desenlace, se acaso o marido chegasse a sobreviver, claro estava. Entretanto, o incidente serviu para lhe recordar que ele não era muito menos o único que procurava um desaparecido, fosse no caminho ou no campo de batalha. Havia dúzias de pessoas, talvez centenas, e quase todas elas mulheres, que procuravam freneticamente entre os mortos e feridos o rosto familiar de um ser querido. Não só chegou até Waterloo, mas passou o povoado até chegar à zona surpreendentemente pequena em que no dia anterior se dera a cruenta batalha. O ar ainda estava carregado com o aroma acre da fumaça, misturado com o fedor do sangue e da morte.
As pessoas transportavam no lugar, caminhando a toda pressa entre o barro e os cultivos esmagados; os pelotões de enterros trabalhavam sem descanso para realizar seu triste encargo.
Gervase percorreu a zona a pé e a cavalo, perguntando uma e outra vez, embora em vão, se alguém tinha visto lorde Alleyne Bedwyn ou se sabiam algo dele. Observou os rostos de milhares de mortos, ou isso lhe pareceu, mas nenhum era o que procurava e temia encontrar. Ao final, com a promessa de um novo crepúsculo no horizonte, abandonou a busca e voltou para Bruxelas.
Talvez, pensou esperançado, cruzou-se sem dar-se conta com Bedwyn no caminho e este já estivesse várias horas na cidade. Ou talvez estivesse na cidade desde o dia anterior. Talvez tivesse passado a noite com uma mulher e se esquecera tanto da mensagem que tinha que entregar a sir Charles como da promessa de ir em busca de sua irmã para tirá-la de Bruxelas e levá-la a um lugar seguro. Talvez...
E talvez lorde Alleyne Bedwyn estivesse morto em algum lugar entre Bruxelas e o extremo mais afastado do campo de batalha. Se fosse assim, jamais o encontrariam, sobre tudo se tivessem despido seu cadáver. Era possível que já estivesse enterrado em alguma fossa comum.
Teria que aferrar-se à esperança de que houvesse outra explicação, decidiu.
Lady Morgan ainda não tinha retornado a rue do Bellevue. Descobriu-o quando chegou à residência dos condes do Caddick, e tampouco tinha passado por ali lorde Alleyne Bedwyn. Partiu depois de assegurar a um mais que agitado conde que acompanharia a jovem de volta a casa em menos de uma hora.
Com vinte e quatro feridos na casa, muitos dos quais padeciam as virulentas febres que costumavam acompanhar às amputações cirúrgicas, Morgan mal tinha tido tempo para pensar em toda a tarde. Nesses escassos momentos em que o tinha feito, não pôde menos que surpreender-se pelo que estava fazendo e por fazê-lo sem arredar-se sequer.
Era uma Bedwyn, não havia dúvida, e os Bedwyn se orgulhavam de ser tenazes e intrépidos. Mesmo assim, só tinha dezoito anos. Um ano antes por essas mesmas datas, inclusive seis meses atrás, estava no Lindsey Hall, no Hampshire, cuidadosamente resguardada de todo perigo e de qualquer penalidade, e sob a inflexível tutela da senhorita Cowper, sua preceptora e acompanhante durante os últimos anos. A senhorita Cowper partiu em fevereiro para viver com sua irmã, que tinha enviuvado fazia pouco, levando consigo a generosa pensão que Wulfric lhe tinha atribuído. Perguntava-se o que diria este quando se inteirasse do que tinha estado fazendo durante os dois últimos dias, e durante a noite. Não havia nem um só oficial entre os feridos alojados em casa da senhora Clark. Havia dois sargentos e três cabos. Outros eram soldados rasos, homens cujos rudes sotaques proclamavam suas origens humildes.
Mas não lhe importava, tal como tinha descoberto. Todos a necessitavam. sentia-se a um mundo de distância da sala-de-aula e de sua vida aristocrática. Estava refrescando o rosto de um ferido que delirava por causa da febre quando a senhora Hodgins lhe deu uma batidinha no ombro.
-Já sigo - disse-. Você vai ter um descanso agora mesmo, querida. Leva horas trabalhando sem parar. O cavalheiro que trouxe ontem à noite as notícias sobre o major Clark acaba de chegar. Quer falar com você.
-O conde do Rosthorn?
Morgan ficou em pé e endireitou com cuidado as costas. Tinha esquecido a missão que tinha empreendido lorde Rosthorn essa tarde. E também tinha esquecido que Alleyne ainda não tinha retornado. Pôs-se a andar sem mais demora para o abarrotado vestíbulo, agarrou seu xale do cabide onde estava pendurado e se reuniu com lorde Rosthorn, que a estava esperando nos degraus da entrada.
Inspirou uma baforada de ar fresco e ao fazê-lo compreendeu como estava viciado o interior da casa. Nesse mesmo instante percebeu a aparência desalinhada que apresentava com o vestido manchado de sangue. Mas não importava. Nada disso importava. Olhou a lorde Rosthorn com a preocupação gravada no rosto.
-E Alleyne? -perguntou-lhe.
Ele negou devagar com a cabeça.
-Não pude encontrá-lo -respondeu-, embora cavalgasse até o Waterloo, inclusive mais à frente, até o campo de batalha, de fato. Mas não pode imaginar a confusão que reina no lugar, toda essa gente e as carretas que vão de um lado a outro e paralisam os caminhos. Encontrá-lo teria sido um milagre.
Morgan estudou seu rosto com atenção, apesar da escuridão.
-Lorde Rosthorn -lhe disse-, sabe muito bem que é melhor não utilizar esse tom de voz comigo.
-Que tom de voz?-perguntou ele.
-Esse tão alegre e despreocupado -respondeu-. Como se fosse uma menina.
O conde a olhou com expressão grave durante um instante.
-Chérie -sussurrou ao final-, o que preferiria que lhe dissesse?
-Simplesmente que não pôde encontrá-lo -respondeu.
-Não pude encontrá-lo.
Morgan fechou os olhos e inspirou fundo. Lhe afrouxaram os joelhos como se de repente se transformassem em gelatina. Teve que lutar contra o pânico e a histeria.
Onde estava Alleyne?
- Há alguns dias o retiveram em Amberes quando esperava que retornasse para acompanhá-la de volta a casa -disse lorde Rosthorn enquanto tomava com determinação o cotovelo e puxava ela para que se sentasse a seu lado na soleira. - Você me disse isso.
Suponho que naquele tempo também estava preocupada, não?
-Sim -admitiu.
-Mas voltou -prosseguiu ele-. E não me cabe dúvida de que o fará de novo. Quem sabe o que pôde atrasar ontem a um homem? E hoje. Amanhã voltará e lhe surpreenderá vê-la tão preocupada.
Morgan percebeu que a tinha agarrado com força pela mão. Seus dedos estavam entrelaçados.
-A sério acha? -perguntou-lhe.
-Acredito que é uma possibilidade -respondeu lorde Rosthorn.
Alleyne não podia estar morto, pensou. Não podia e não havia mais que falar. Não podia existir um mundo sem o Alleyne; sem um só de seus irmãos ou sem sua irmã, para falar a verdade. Era uma idéia que lhe tinha passado pela cabeça em incontáveis ocasiões quando era pequena, cada vez que a preocupação por Aidan ameaçava afligi-la. E sempre tinha estado certa. Sempre tinha chegado sua carta para demonstrar que continuava vivo. E depois chegou aquele glorioso dia, quando apareceu cavalgando pela avenida do Lindsey Hall sem prévio aviso e ela desceu voando as escadas da sala-de-aula, sem ter pedido permissão a Wulfric nem à senhorita Cowper, para jogar-se em seus braços.
Alleyne chegaria no dia seguinte. Tinha que haver alguma explicação muito simples que justificasse sua ausência e seu silêncio.
E pensava matá-lo assim que o visse.
-Chérie -Lorde Rosthorn lhe tinha passado um braço pelos ombros. Tinha inclinado a cabeça até juntá-la à sua, já que sentia a calidez de seu fôlego na face. Ainda continuavam juntos com força pela mão-. Chérie?
Era difícil recordar aqueles dias nos quais se havia sentido ofendida por seu uso do carinhoso apelativo francês. Nesse instante reconfortava-a mais que o xale, assim fechou os olhos e sucumbiu à tentação de inclinar a cabeça e apoiá-la em seu ombro. Sempre se tinha orgulhado de sua capacidade para enfrentar sozinha os acontecimentos. Tinha quatro irmãos mais velhos que podiam liberar suas batalhas por ela. Jamais lhes tinha pedido que o fizessem.
Tinha quatro irmãos mais velhos.
-Chérie -A voz grave de lorde Rosthorn lhe acariciou o ouvido com suavidade e pareceu lhe chegar de muito longe-. Está há cinco minutos dormitando sobre meu ombro. Já é hora de que a leve para casa.
Morgan ergueu a cabeça, envergonhada. Não podia ter ficado adormecida, não é? Não quando estava tão preocupada com Alleyne.
- Para casa -repetiu com voz ofegante-. Mas não posso partir. Resta muito por fazer.
-Já se encarregará outra pessoa - assegurou ele-. Além disso, prometi ao conde do Caddick que a levaria para casa sem mais demora. O capitão lorde Gordon estava na casa do conde do Caddick. Teria que vê-lo quando retornasse; a menos que por algum milagre estivesse outra vez dormindo. A vida era tão extenuante!
-Vou dizer à senhora Clark que retornarei pela manhã cedo -disse.
-Mas, chérie, amanhã pela manhã partirão para a Inglaterra - recordou-lhe o conde.
-Antes que Alleyne retorne? - Ergueu as sobrancelhas com inconsciente arrogância- Antes de saber o que lhe passou? Acho que não, lorde Rosthorn.
-É obvio que não -repetiu ele enquanto ficava em pé e lhe oferecia uma mão para ajudá-la a fazer o mesmo-. Não se iria em semelhantes circunstâncias embora a batalha seguisse em todo seu apogeu e tivesse chegado mesmo às portas da cidade, não é verdade? Nesse caso, vá falar com a senhora Clark para que possa acompanhá-la a casa antes da meia-noite. Eu mesmo a acompanharei de volta pela manhã e depois voltarei a sair em busca de seu irmão.
Morgan estava em um degrau por cima do que ocupava lorde Rosthorn. Pô-lhe as mãos nos ombros e o olhou nos olhos. Quando se tinha convertido esse homem em uma pessoa tão forte e imprescindível para ela? Quando se tinha convertido em um amigo digno de confiança?
-Lorde Rosthorn, sinto muitíssimo tê-lo julgado mau e tê-lo tomado por um libertino carente de miolo -lhe disse-. Paquerou comigo de forma escandalosa e foi muito extravagante para que organizasse essa janta no bosque do Soignes para que eu me divertisse. Mas agora sei que o fez por aborrecimento, porque queria divertir-se de algum modo. Nos últimos dias, quando a vida tomou um giro mortalmente sério, demonstrou ser o homem mais amável e confiável de meu mundo.
-Mais non, mon enfant! -disse-lhe.
E a beijou. Na boca, com muita ternura e suavidade, e com os lábios ligeiramente entreabertos. Foi muito parecido ao beijo que lhe deu no bosque do Soignes, salvo pela sensação que provocou nela. Porque o achou menos lascivo, menos malicioso, menos excitante. E, entretanto, sentiu que sua doçura lhe chegava até a ponta dos pés e lhe inundava o coração. Pareceu-lhe adequado. Sim, pareceu-lhe adequado. Desejou-lhe jogar os braços ao pescoço, apoiar-se nele e perder-se nessa força em que tanto confiava.
Entretanto, era um luxo e uma debilidade que não se permitiria nem nesse instante nem nunca! Nem sequer com o homem a quem amasse durante o resto de sua vida, fosse quem fosse.
Jamais permitiria que sua força, que sua vontade, que sua singularidade como pessoa ficassem esmagadas debaixo de um homem ou de uma mulher.
Olhou os olhos entrecerrados de lorde Rosthorn que a contemplavam com expressão indolente e deu meia volta para ir em busca da senhora Clark.
Era seu amigo de alma, disse-se. Nada mais. Embora fosse estranho depois da relação absurda, banal e inclusive perigosa que tinham tido a princípio. Mas de qualquer forma era certo. Lorde Rosthorn era seu amigo mais prezado nesse momento.

 


Capítulo 8

 


Morgan dormiu muito pouco essa noite. Como ia dormir? Estava exausta depois das incontáveis horas de trabalho e do desgaste emocional que lhe provocava a proximidade com os feridos. Estava tão preocupada com Alleyne que tinha o estômago revolto. E tinha suportado uma hora espantosa com os Caddick depois que lorde Rosthorn a acompanhara de volta a casa.
Continuavam com a idéia de retornar a Inglaterra pela manhã. Suas bolsas de viagem e seus baús estavam empilhados no vestíbulo. Rosamond se aproximou para lhe dar um abraço e para desculpar-se por não tê-la acompanhado a casa da senhora Clark. Seu pai tinha proibido expressamente, explicou-lhe, e sua mãe tinha necessitado de sua ajuda para cuidar de seu irmão.
Era preciso duas mulheres e um batalhão de criados para cuidar de um só ferido?, pensou Morgan muito surpreendida, embora guardasse seus pensamentos.
-Tem que ir ver o Ambrose agora mesmo -lhe disse Rosamond, pegando-a pela mão-.Mamãe está com ele. Está o dia todo perguntando por você -concluiu com um sorriso.
O conde também se encontrava no quarto de seu filho, o capitão lorde Gordon descansava em uma enorme cama com dossel. Tinha a perna erguida sobre um montão de almofadões por debaixo da colcha. Apoiava a cabeça em um montão de almofadões brancos cheios de plumas. Usava uma limpísima camisa de dormir. O fogo crepitava na chaminé apesar da agradável temperatura da noite. Grossas cortinas estavam corridas. Em um primeiro momento foi impossível não comparar essa estampa com as circunstâncias tão pouco ideais que sofriam os pobres soldados feridos a quem estava atendendo há dois dias.
Mesmo assim, eles eram muito mais afortunados que outras centenas, se não milhares, de soldados.
Não obstante, foi um pensamento fugaz. Era evidente que lorde Gordon tinha sido ferido no fragor da feroz batalha. Poderia ter morrido. Tinha uns espantosos ferimentos em um lado do rosto e uma de suas mãos, que descansava em cima da colcha, estava enfaixada. Tinha as faces ruborizadas pela febre e os olhos brilhantes.
Era a viva imagem do herói romântico e ganhou seu coração imediatamente. Olhou-o com compaixão e os olhos de lorde Gordon se iluminaram ao vê-la, quando virou a cabeça sobre o travesseiro.
-Estou vivo, lady Morgan -lhe disse-. sobrevivi a uma carga de cavalaria que deixou boquiaberto e sobressaltado a todo aquele que a viu. Retornei vitorioso para dedicar meu triunfo a meus seres queridos -Seus olhos não se afastaram dela enquanto falava, e Morgan soube que suas palavras eram só para ela. Tinha retornado por ela. Era a ela a quem dedicava o triunfo.
Morgan sorriu enquanto lhe caía a alma aos pés. O baile dos duques do Richmond parecia ter acontecido muitos anos antes. Tinha a impressão de ter vivido toda uma vida depois. Entretanto, apesar do que tinha tido que suportar, lorde Gordon falava exatamente igual ao que fez naaquele tempo.
-Lorde Uxbridge dirigiu a carga da cavalaria justo quando parecia que a infantaria francesa ia superar à nossa, e abriu uma brecha pelo centro que nos fez ganhar a batalha -explicou o capitão-. Ensinamos a eles algumas coisas, lady Morgan… Às duas infantarias, refiro-me. Estou convencido de que aniquilamos a centenas, se não a milhares, de franceses. Tomara-nos tivesse visto. Não foi um desfile elegante como o que viu no Allée Verte a semana passada. Foi uma carga se desesperada a vida ou morte contra os fuzis inimigos e suas baionetas. Nossos companheiros e seus cavalos caíam a nosso redor. Mas seguimos carregando contra eles com valentia. Acredito que passará à história como a batalha que a cavalaria ganhou.
Morgan estava um pouco enjoada por causa do esgotamento.
-Acredito que as gerações vindouras recordarão a coragem dos soldados de ambos os lados - corrigiu-o. Tinha escutado comentários sobre a questão dos lábios dos homens que estavam em casa da senhora Clark. Muitos deles, sobretudo os veteranos, falavam com o mesmo respeito dos franceses e de seus camaradas, pertencessem à infantaria ou à cavalaria.
- Homens tão infames para lutar sob o estandarte da tirania não podem ser qualificados de valentes -interveio lady Caddick, um tanto escandalizada-. Mas agora temos que deixar que Gordon descanse um pouco. O dia foi muito longo e exaustivo para ele. Como levou a sua criada com você, lady Morgan, ordenei a minha criada que lhe faça a bagagem. Suas coisas estão prontas para que possa partir pela manhã.
-Por favor, senhora -disse Morgan, embora suas palavras eram dirigidas tanto à condessa como a seu marido-, não podemos esperar um pouco mais? Parece que Alleyne desapareceu. Ontem foi ao fronte para levar ao duque do Wellington uma mensagem de sir Charles. Disse-me que voltaria antes do anoitecer, mas ainda não retornou. Lorde Rosthorn foi esta tarde ao Waterloo em busca de notícias sobre seu paradeiro, mas não descobriu nada. Estou muito preocupada. Lorde Rosthorn me prometeu que empreenderá a busca amanhã pela manhã.
-Ai, Morgan, minha pobre! -exclamou Rosamond enquanto se aproximava dela e lhe passava um braço pela cintura para consolá-la. - O que terá acontecido? É obvio que esperaremos, não é verdade, mamãe?
-Não tenho a menor duvida de que lorde Alleyne Bedwyn está ocupado com algum assunto de suma importância -respondeu lady Caddick-. E sabe que pode estar tranqüilo enquanto você esteja sob minha responsabilidade já que tomarei as melhores decisões concernentes a sua segurança e a seu bem-estar. Partiremos amanhã cedo, depois de tomar o café da manhã, como tínhamos planejado. Gordon tem que ficar em mãos de um bom médico inglês sem mais demora.
-Não posso partir sem ter notícias de meu irmão -Morgan olhou ao conde com expressão aflita.
-Há muitas outras irmãs, mães e esposas que não sabem nada de seus familiares desde ontem -replicou lorde Caddick com o tom pomposo e resmungão que costumava utilizar quando falava com uma mulher-. Sua ansiedade não pode equiparar-se a dessas mulheres, lady Morgan. Depois de tudo, Bedwyn não esteve no campo de batalha, não é? Tem que aprender a comportar-se com mais estoicismo, querida. Suponho que terá notícias dele assim que cheguemos a Londres.
-Mamãe -disse lorde Gordon nesse momento-, acho que necessito de outra dose de láudano.
Morgan se retirou ao seu quarto sem discutir mais. Rosamond a acompanhou sem tirar o braço da cintura.
-Lorde Alleyne estará bem -assegurou-. Pressinto-o. Mas, minha pobre, Morgan, sei como deve se sentir. Ontem passei muito mal até que tivemos notícias do Ambrose. Mas retornou a casa são e salvo. Seu irmão também o fará.
Exausta, Morgan não demorou para desabar na cama, embora descobriu ao pouco tempo que lhe era impossível dormir. levantou-se ao amanhecer, asseou-se com água fria e se vestiu sem a presença de sua criada. Passou por cima o impecável vestido de viagem preparado para que o pusesse e, em troca, rebuscou em suas bolsas de viagem até dar com o mais simples de seus vestidos limpos.
Tinha tomado uma decisão durante a noite. E não tinha sido difícil fazê-lo.
Os condes e Rosamond já estavam tomando o café da manhã quando fez sua aparição na piso terreo.
-Ah, aqui está, lady Morgan -disse a condessa com um sorriso agradável-. Tome o café da manhã depressa. Sairemos dentro de uma hora. E estou segura de que lhe alegrará saber que Gordon passou uma noite bastante tranqüila.
Morgan não se sentou. Aferrou-se com ambas as mãos ao espaldar de uma cadeira.
-Não posso partir até que saiba que meu irmão está a salvo, senhora -disse-. Rogo-lhe que espere um dia mais. Sem dúvida aparecerá com o passar do dia de hoje e assim poderei retornar a casa levando as boas notícias a minha família.
-Esperar um dia mais? Consumida como estou pela preocupação de que a perna do Gordon não tenha sido devidamente entalada? -Lady Caddick parecia estupefata-. Minha querida lady Morgan, está sendo irracional, inclusive egoísta diria eu, ao me pedir algo semelhante. Não, não atrasaremos nossa partida nenhuma hora. Lorde Alleyne Bedwyn é mais que capaz de cuidar-se sozinho, pode estar tranqüila.
-Mamãe! -exclamou Rosamond, olhando Morgan com a preocupação gravada no rosto. - Não acredito que um dia faria muita diferença. O que aconteceria se fosse Ambrose quem estivesse desaparecido?
-Gordon estava em meio da batalha, Rosamond -lhe recordou seu pai-. Sua situação e a do Bedwyn são totalmente diferentes.
-Não penso partir -anunciou Morgan com firmeza.
O conde tentou intimidá-la. A condessa tentou intimidá-la e também persuadi-la. Recordou-lhe que se encontrava ali a seu cargo e que essa responsabilidade a tinha conferido o duque do Bewcastle em pessoa, o qual se zangaria com toda razão se soubesse que se estava comportando de forma tão atroz. Ordenou-lhe que os acompanhasse em sua volta. Rogou-lhe que o fizesse. Derramou incontáveis lágrimas e lhe disse que era uma moça sofrível, teimosa e ingrata. Que sabia, que sempre tinha sabido, que os Bedwyn eram uma família não governável e indisciplinada, mas que erroneamente tinha acreditado ser uma mocinha doce e dócil, diferente dos outros; engano que acabava de descobrir nesse momento, conforme afirmou. Assegurou-lhe que o duque se zangaria muitíssimo com ela se se negasse a obedecer uma ordem direta da pessoa a quem tinha confiado seu cuidado e bem-estar. Que a encerraria ao Lindsey Hall ou a uma de suas propriedades mais remotas. Não tinha uma propriedade no Gales?, perguntou-lhe de passagem. E que jamais lhe permitiria retomar a vida social.
Mas ela era uma Bedwyn dos pés à cabeça.
Durante o discurso inoportuno continuou agarrada à cadeira, atrás da fachada de fria altivez que se convertera no selo da família. Insistiu em sua posição, não cedeu nem um ápice. Não partiria de Bruxelas até que tivesse notícias do Alleyne. Logo compreendeu que os Caddick tinham a intenção de partir essa manhã, acompanhasse-os ou não. Entretanto, se o faziam para que ela se rendesse, levaram uma enorme surpresa. ficaria com a senhora Clark ou com uma das esposas dos oficiais, disse-lhes. Qualquer dessas damas estaria encantada de lhe oferecer um teto provisório. E assim poderia continuar ajudando-as com os feridos.
-Jamais conheci uma moça mais desobediente, teimosa e mal educada, Caddick –disse a condessa enquanto agitava um lenço diante de seu rosto-. Acho que estou a ponto de desmaiar.
Enquanto lady Caddick cumpria sua palavra, Morgan aproveitou para escapulir e mandar chamar a sua criada a seu quarto. Iriam ter que fazer gestões para levar suas coisas a casa da senhora Clark, ao menos temporariamente, explicou à moça. Entretanto, esperava-lhe outro contratempo. A donzela explodiu em soluços quando soube que iriam ficar e que, além disso, retornariam a essa espantosa casa com todos esses homens, suas feridas e sua pestilência. Assegurou-lhe que não poderia suportar. Que se tornaria louca. Recordou-lhe que a tinham contratado para ajudar a uma dama e não à escória dos bairros pobres. Fez uma eloqüente exposição de seu caso. Exigiu retornar a casa. Morgan lhe deu dinheiro para comprar uma passagem de volta a Inglaterra e para a viagem até Londres, além de seu salário e o de um mês extra, e a despediu. Para falar a verdade, a criada estava ao serviço do Wulfric e era ele quem pagava seu salário, mas em sua opinião lhe estava fazendo um favor já que assim não teria que recorrer ao Wulfric para lhe pedir seu dinheiro, nem tampouco teria que lhe explicar por que tinha abandonado a sua senhora em Bruxelas.
Quando desceu de novo as escadas com a intenção de partir pra a casa da senhora Clark embora fosse a pé e de perguntar se um dos criados podia encarregar-se de levar seus pertences, as carruagens da família aguardavam na porta de entrada. Acabavam de descer ao capitão lorde Gordon e o tinham acomodado em uma delas. Nesse momento estava sozinho salvo pelos cocheiros, que esperavam na calçada, e seu criado de quarto, a quem ordenou que se afastasse quando a viu aparecer.
-Lady Morgan! -chamou-a.
Ela se aproximou ansiosa à portinhola aberta. Como não lhe tinha ocorrido pedir ajuda a lorde Gordon? Sua mãe faria algo que lhe pedisse.
A luz do dia tornava mais evidentes os ferimentos e a palidez de seu rosto, embora ainda tivesse as faces ruborizadas por causa da febre. Tinha estendido a perna enfaixada e entalada sobre o assento. A dor conferia a seus olhos uma expressão vidriosa. Sentiu uma pontada de genuína compaixão por ele e aceitou a mão que lhe estendia.
-Capitão -começou-, sabe que...?
Entretanto, lorde Gordon tinha começado a falar de forma simultânea.
-O que me disseram? -perguntou-lhe, franzindo o cenho e desfigurando desse modo o bonito arco de suas sobrancelhas castanhas-. optou por não vir conosco, lady Morgan? Rogo-lhe que reconsidere sua postura. É impensável que uma jovem de sua posição permaneça em uma cidade estrangeira, ou em qualquer lugar, sem uma acompanhante.
-Não sei o que ocorreu a meu irmão -explicou-. Foi a...
-Mas sabe o que me ocorreu , lady Morgan -a interrompeu-. Não sou ao menos tão importante como seu irmão? Não lhe preocupa que possa coxear durante o resto de minha vida se não me entalarem a perna como é devido e sem demora?
Morgan o olhou, muda pela surpresa. Esse era o mesmo homem que lhe tinha suplicado a honra de lutar por ela? Que lhe tinha suplicado que o chorasse durante o resto de sua vida se morresse em combate? Não obstante, estava sofrendo muito. O diziam seus olhos. O traslado da cama à incômoda carruagem devia lhe ter dado uma insuportável agonia.
-Se lhe importa embora seja um pouco, lorde Gordon -disse com veemência-, convença a seus pais para que fiquem um dia mais. Por favor. Estou convencida de que terei notícias de Alleyne antes desta noite. Já não corremos nenhum perigo em Bruxelas, não é? E sua perna foi atendida por um médico de renome. Não me cabe a menor duvida de que outro dia de repouso na cama lhe assentará muito melhor que uma longa viajem de carruagem. Por favor, convença-os. Estou morta de preocupação.
Lorde Gordon a olhou com a mesma veemência que ela estava demonstrando e por um instante acreditou que acessaria a seus desejos. Esboçou um sorriso. Caiu na conta de que ainda lhe segurava a mão.
-Estou decepcionado -disse ele-. Acreditei que era mais importante para você que seu irmão. Você é mais importante para mim que minha irmã. Se acreditasse que ia servir de algo ficar, apoiá-la-ia sem duvidá-lo. Inclusive encabeçaria a busca nesta mesma carruagem se fosse necessário. Mas os homens não necessitam que as mulheres revoem a seu redor quando estão ocupados com assuntos de Estado, lady Morgan. Lorde Alleyne Bedwyn se sentirá envergonhado quando se inteirar do alvoroço que causou por sua ausência. De momento minha mãe está muito afetada, Rosamond não deixa de chorar, meu pai está zangado e eu me sinto decepcionado.
Estava desejando contar com a distração de sua companhia durante a viagem, que sem dúvida alguma me será muito dolorosa. Estava desejando falar com o duque do Bewcastle a nossa volta. Está decidida a manter-se em seus treze? Minha mãe diz que é uma qualidade dos Bedwyn.
Morgan afastou a mão.
-Só peço um dia mais -disse-. Um dia.
Ainda albergava a esperança de que lorde Gordon olhasse além de sua própria dor para ver o que ela estava padecendo e assim se redimisse em certa forma ante seus olhos. Entretanto, limitou-se a olhar por cima de seu ombro.
-Ah, é você, Rosthorn? -perguntou-. Devo lhe agradecer que se adiantasse anteontem para tranqüilizar a minha mãe. A ansiedade é um horrível padecimento para as mulheres sensíveis e devemos fazer tudo que esteja em nossa mão para aplacá-la. Alegrará-se de saber que estou tão bem como cabe esperar, embora desejo consultar a um médico inglês o mais breve possível, é obvio.
Morgan deu meia volta para olhar a lorde Rosthorn.
-Já se vão? Agora? -perguntou ele-. Você também, lady Morgan? -Seu olhar se demorou no simples vestido de musselina que levava.
-Eu fico até que tenha notícias do Alleyne -respondeu-. Pensava ficar com a senhora Clark ou com uma das esposas dos oficiais, se me aceitarem.
-E como pensa retornar a Inglaterra? -perguntou-lhe.
-Encontrarei alguém com quem viajar -Levantou o queixo-. Ou Alleyne ncontrará a alguém para fazê-lo.
-E sua criada? -Olhou a seu redor, embora a única mulher presente fosse ela.
Morgan sentiu que o rubor lhe cobria as faces.
-Não deseja ficar comigo -respondeu-, assim a enviei para casa.
Lorde Rosthorn arqueou as sobrancelhas.
-Faça-a entrar em razão se é que pode, Rosthorn -disse lorde Gordon com voz cansada-. Diga-lhe que é impossível que fique em Bruxelas sem minha mãe como amparo. É inaceitável. Diga-lhe que se preocupa tolamente. Diga-lhe que não fica mais remédio que retornar conosco.
O conde do Rosthorn a olhou com expressão inescrutável, assim levantou o queixo ainda mais. A menor tentativa de lhe ordenar que fosse com os Caddick a enfureceria muitíssimo e qualquer transeunte que passasse pela rua ia inteirar se disso.
-Por que parte lady Caddick de Bruxelas quando lady Morgan não pode fazê-lo? - perguntou a lorde Gordon sem afastar os olhos dela.
"Não pode." Vá, pensou Morgan, compreendia-a.
-Minha mãe está ansiosa para que me veja um médico inglês -explicou lorde Gordon com um tom decididamente irritado-. Lady Morgan está sob seu cuidado. É revoltante que contrarie os desejos de minha mãe e a ponha em uma situação tão desagradável. Estou seguro de que Bewcastle tomará cartas no assunto se lady Morgan continuar obstinada. Foi ele quem aceitou a minha mãe como acompanhante de sua irmã.
Era surpreendente que se houvesse sentido ligeiramente atraída por ele em outra época, pensava Morgan.
Lady Caddick saiu da casa nesse preciso momento, seguida de seu marido e do Rosamond.
-Ah, aqui está, lady Morgan -disse com um brilho beligerante nos olhos-. Insisto em que nos acompanhe, vestida para a viagem ou não. Não aceitarei um não por resposta. O duque do Bewcastle saberá das dores de cabeça que me provocou. Bom dia, Rosthorn. Estou segura de que lhe alegrará saber que Gordon possui a valentia necessária para viajar apesar da considerável dor que ainda sofre.
-Senhora - saudou-a ao mesmo tempo que fazia uma reverência-. vim para acompanhar a lady Morgan à casa da senhora Clark. Seus pertences seguem aqui? Enviarei a alguém para buscá-los em menos de uma hora. Desejo-lhe uma boa viagem.
Seu sotaque francês era bastante pronunciado. Falava com um tom de voz encantador e também com um matiz resistente desconhecido para ela até esse momento.
-Ouça, Rosthorn… -protestou o conde do Caddick.
-Quando lorde Alleyne Bedwyn partiu anteontem de Bruxelas -o interrompeu o conde do Rosthorn-, ordenou a lady Morgan que esperasse sua volta, depois do que lhe prometeu levá-la em pessoa de volta a Inglaterra. Está autorizada a ficar em Bruxelas. Eu a acompanharei à casa da senhora Clark. Ali estará a salvo. Encarregarei-me pessoalmente de que não lhe aconteça nada mau.
-Lorde Rosthorn -interveio lady Caddick com um fio de voz-, você é um cavalheiro solteiro sem parentesco algum com lady Morgan. Seria muito inapropriado e irresponsável que eu a deixasse a seu cuidado.
-Nesse caso, deve ficar para que continue estando sob sua tutela, senhora -replicou ele.
Morgan deu meia volta e se afastou pela calçada. Se ficasse um instante mais, acabaria intervindo na discussão e tampouco tinha vontade de continuar escutando-os discutir por sua culpa. A vida tinha adquirido uma cor cansativa em alguns dias. Estava morta de preocupação pelo Alleyne e, entretanto, aquelas pessoas que tinha acreditado que se preocupavam com ela a tratavam como se fosse uma menina mimada e desobediente por querer encontrá-lo. E o homem que apenas uma semana antes lhe tinha declarado seu amor de uma forma tão extravagante esperava que o antepor a todos seus seres queridos… inclusive a sua família.
Nesse momento teria dado algo para ver Wulfric aproximar-se dela ou Aidan ou Rannulf. Ou ao Alleyne. Alleyne estava morto. Não havia outra explicação.
Não podia estar morto.
Escutou que alguém a seguia correndo justo antes de que Rosamond a rodeasse e a abraçasse com força.
-Sinto muito tudo isto, Morgan -disse com os olhos cheios de lágrimas-. Sinto muitíssimo. Tomara pudesse ficar com você, mas não posso.
Em seguida, sua amiga retornou à carruagem com a mesma pressas. Lorde Rosthorn se aproximou e lhe ofereceu o braço sem mediar palavra.
Não, não estava de todo sozinha, pensou ao mesmo tempo que recuperava a compostura. Ainda restava um amigo. E a senhora Clark a receberia com os braços abertos. Os feridos a necessitavam. E além de tudo isso, era lady Morgan Bedwyn. Levantou o queixo e alargou o passo de forma inconsciente enquanto aceitava o braço do conde.
Alleyne sempre havia predito que ela eclipsaria a todos os Bedwyn chegado o momento. Ao que parecia, tinha estado certo.
Tinha dezoito anos e estava caminhando pelas ruas de uma cidade estrangeira pelo braço de um cavalheiro a quem mal conhecia., depois de ter desafiado à mulher a que Wulfric lhe tinha encomendado seu cuidado e depois de ter despedido sua criada.
Mas Alleyne estava nessa mesma cidade. Nesse mesmo dia apareceria, e no dia seguinte ele mesmo a levaria de volta a casa.
Não podia estar morto.
Em seus tempos tinha cometido muitas loucuras, refletia Gervase. Umas loucuras que o tinham metido em encrencas horrorosas. Mas isso não era uma simples embrulhada. Era um problema muito grande. Que demônios acabava de fazer?
Tinha ajudado e apoiado a uma jovem em seu empenho por desafiar e afastar-se da acompanhante que seu irmão mais velho tinha designado, isso tinha feito. E não durante uma hora ou uma manhã inteira. Nem sequer durante um dia inteiro. Os Caddick retornavam a Inglaterra. Lady Morgan Bedwyn ficava em Bruxelas. E ele tinha apoiado sua decisão de ficar apesar deles partirem. Tinha prometido encarregar-se de seu bem-estar.
"Encarregarei-me pessoalmente de que não lhe aconteça nada mau."
O que se propôs, a menos que lhe sorrisse muito a sorte, eram os grilhões do matrimônio.
O que tinha conseguido, a menos que encontrasse o modo de escapar da situação, era a satisfação de ver seus sonhos de vingança sobre o Bewcastle feitos realidade. Assim que os Caddick chegassem a Inglaterra e difundissem as notícias por todos os salões e os clubes londrinos, lady Morgan Bedwyn se veria arruinada sem remissão ou obrigada a casar-se com ele.
E qualquer das duas possibilidades seria um golpe cruel para seu irmão.
Entretanto, já não queria vingar-se do Bewcastle desse modo. Não queria utilizar lady Morgan. Gostava dela. Respeitava-a e a admirava.
-Sou eu a equivocada? -perguntou-lhe ela, com a mão apoiada em seu braço e olhando à frente com expressão beligerante-. Sou eu?
Supôs que se tratava de uma pergunta retórica, mas mesmo assim lhe respondeu.
-Não está equivocada -lhe assegurou-. É evidente que os Caddick estão ansiosos por conseguir que seu filho se recupere e é compreensível que se mostrem impacientes por levá-lo o de volta a casa. Entretanto, quando aceitaram trazê-la com eles a Bruxelas, assumiram uma responsabilidade. Aceitaram tratá-la com o mesmo respeito e consideração que demonstrariam com qualquer membro de sua família. Hoje faltaram a essa responsabilidade.
-Obrigada - disse ela-. Isso mesmo penso eu.
-Assim que cheguemos a casa da senhora Clark farei os acertos necessários para que tragam seus pertences -se ofereceu-. E depois farei uma nova visita a sir Charles Stuart e, se for necessário, voltarei para Waterloo.
Talvez, pensou, conseguisse encontrar ao Bedwyn. Talvez estivesse ferido em algum hospital de campanha. Ou talvez aparecesse montado a cavalo em Bruxelas procedente do lugar no qual tivesse estado durante os dois últimos dias e lhes oferecesse uma explicação razoável.
Talvez pudesse partir para a Inglaterra com sua irmã nesse mesmo dia, ou ao menos fazer-se responsável por ela. Chegado o caso, decidiu Gervase, ele se perderia pelo horizonte rapidamente. Chegado o caso, seria um verdadeiro milagre.
Estava virtualmente convencido de que lorde Alleyne Bedwyn estava morto.
-Obrigado -disse ela-. Acredita que está morto, lorde Rosthorn?
-Não deve perder a esperança, chérie -respondeu, colocando a mão livre sobre a sua-.Farei tudo que esteja em minha mão para encontrá-lo.
-É o mais alegre de todos os Bedwyn -prosseguiu lady Morgan-. O mais carismático, o mais impulsivo. Tem tanta vitalidade para compartilhar com o mundo, tanta vida por diante. Recentemente decidiu dar uma oportunidade à carreira diplomática em lugar de ocupar o assento no Parlamento que Wulfric lhe teria proposto. Este é seu primeiro trabalho. Não lhe parece irônico? Não pode estar morto, lorde Rosthorn. Sentiria-o aqui -Se levou a mão livre ao coração.
Gervase se perguntou quantas centenas ou milhares de mulheres se estariam dizendo isso nesse mesmo momento.
-Se estivesse morto, já o teriam encontrado, não? -continou ela.
Limitou-se a lhe dar um apertão na mão. Como ia dizer lhe que havia milhares de cadáveres abandonados e que os que estavam melhor vestidos já tinham sido despojados de seus trajes na noite posterior ao fim da batalha? Esses cadáveres só se livrariam de um enterro anônimo em uma fossa comum no hipotético caso de que um conhecido os identificasse sem perda de tempo.
-Tente não pensar nisso se puder - respondeu-. De momento.
Cruzaram-se com quatro conhecidos, tanto deles como de lady Morgan, antes que por fim chegassem à casa da senhora Clark. Saudou-os todos com amabilidade. Embora duvidava que ela se desse conta. Entretanto, perguntou-se quanto tempo demorariam para descobrir que os condes do Caddick partiram para Inglaterra essa manhã. Assim que o fizessem, desataria-se o escândalo tanto em Bruxelas como em Londres.
Menos de duas semanas antes a tinha exposto de forma deliberada aos rumores durante o jantar no bosque do Soignes. Nesse momento, quando já não era sua intenção fazê-lo, estava a ponto de expô-la a algo muito maior. Embora não fosse culpa dele, é obvio. Ela teria ficado de qualquer forma. Teria ido a pé à casa da senhora Clark, com ou sem ele. Considerando todas as circunstâncias e apesar do risco que corria, preferia que estivesse fazendo com ele.
A senhora Clark os recebeu na entrada, abraçou a lady Morgan quando escutou sua história e se preparou para lhe assegurar que era bem recebida e que podia ficar, desde que não se importasse compartilhar um minúsculo quarto com sua anfitriã.
Nenhum funcionário da embaixada tinha notícias de lorde Alleyne Bedwyn. Estava claro que a irritação que demonstraram no dia anterior se convertera em preocupação a essas alturas. Sua ausência era inexplicável a menos que estivesse ferido ou que tivesse morrido na batalha que teve lugar ao sul do Waterloo.
Inclusive haviam tentado averiguar se tinha entregue a carta dirigida ao duque do Wellington. Gervase anunciou sua intenção de retornar ao campo de batalha de novo. Prometeu voltar para falar com eles e assim trocar qualquer informação que tivessem podido solicitar.
Não averiguou nada, evidentemente. O caminho a Waterloo continuava abarrotado de homens e de carretas que avançavam em sentido contrário ao dele, embora estivesse um pouco mais transitável que no dia anterior. O bosque do Soignes continuava semeado de restos da luta. O campo de batalha era uma cena tirada do inferno. Mas não descobriu nada a respeito da sorte corrida pelo Bedwyn apesar de ter falado com muitas pessoas e se deter em todos os povoados e granjas pelas quais passou. Inclusive o buscou entre os feridos lá onde estivessem agrupados.
Parecia que lorde Alleyne Bedwyn tinha desaparecido da face da terra e provavelmente assim fora.
Retornou a Bruxelas com o coração na mão. Que outra esperança poderia oferecer a lady Morgan? Não seria uma irresponsabilidade tentá-lo sequer?
Não obstante, tinha descoberto que lady Morgan Bedwyn tinha caráter apesar de sua juventude. Não estava em sua mão dar esperanças ou tirar-lhe. A única coisa que podia fazer era lhe oferecer os fatos: nem o pessoal da embaixada nem ele tinham notícias sobre o paradeiro de seu irmão.
Entretanto, havia novidades. A carta que lorde Alleyne Bedwyn tinha levado ao duque de Wellington tinha sido entregue em mão.

 

Capítulo 9

 

Morgan descobriu que o coração se aferrava de um modo muito estranho à esperança mesmo que não houvesse razões lógicas para fazê-lo. E também que a vida continuava. Estava dando um passeio pelo parque de Bruxelas com o conde do Rosthorn e observavam aos cisnes nadar no lago, deixando a sua passagem delicadas esteiras sobre a superfície. Era uma zona linda situada no centro da cidade e fazia um maravilhoso dia estival. Sentia que parte da tensão acumulada em seus ossos depois das longas horas que tinha passado atendendo aos feridos desaparecia sob o sol.
Não tinham falado em profundidade do Alleyne. Uma das damas que atendia aos feridos em casa da senhora Clark lhe disse que alguém a esperava na porta e, quando saiu para ver quem era, descobriu nos olhos de lorde Rosthorn as respostas a todas suas perguntas.
-Nada? -foi a única coisa que lhe perguntou.
Ele negou com a cabeça com gesto sério.
-Nada.
Talvez fosse absurdo que não tivessem falado nada mais a respeito. Mas que mais se podia dizer?
Lorde Rosthorn lhe propôs que se tomasse um descanso de uma hora e dessem um passeio pelo parque. A senhora Clark, que acabava de levantar-se da cama depois de uma sesta, esteve de acordo em que necessitava de um pouco de ar fresco e de um descanso, e a desculpou de seus deveres. Ambas estavam tão preocupadas que nem sequer pensaram na conveniência de que a acompanhasse uma criada para guardar a etiqueta. Embora tampouco podiam prescindir de nenhuma criada, na verdade.
Além disso, a mera idéia de guardar a etiqueta e o decoro parecia irrisória em semelhantes circunstâncias. Alleyne estava morto, ou supunha isso. Mas sua mente se negava a aceitar essa crua realidade. Ainda não.
-Tomara que Wulfric estivesse aqui -disse de repente, rompendo assim o longo silencio.
-Seriamente, chérie? -Olhou-a com essa expressão tão peculiar que a fazia sentir o centro de toda sua atenção e compaixão.
Nesse instante lhe ocorreu que talvez suas palavras tivessem parecido um tanto ofensivas.
-Você foi extremamente amável comigo -lhe assegurou-. Mas seria presunçoso de minha parte esperar que continue dedicando seu tempo não só a mim, mas também a minhas preocupações.
-Não me ocorre nada melhor que fazer com ele nem ninguém a quem dedicar o replicou ele em voz baixa com um marcado sotaque francês.
Apenas algumas semanas antes teria pensado que tanto suas palavras como seu tom de voz eram escandalosamente provocadores. E talvez lhe teria devotado uma réplica similar. Entretanto, nesse momento era capaz de aceitar suas palavras como sinceras, como a expressão da estranha e inesperada amizade que parecia ter florescido entre eles.
-Wulfric saberia o que fazer -prosseguiu-. Saberia o que decidir. Saberia quando tinha chegado o momento de aceitar a realidade. Saberia quando declarar morto Alleyne.
-Se assim o deseja -disse lorde Rosthorn-, levarei-a até ele, chérie.
-Está na Inglaterra -lhe recordou ao mesmo tempo que o olhava com surpresa.
-Levarei-a até lá se assim desejar.
Olhou-o sem saber o que dizer, esquecidos já os cisnes do lago e a beleza do parque. Tinham chegado já a esse ponto? Teria que retornar a casa para dizer ao Wulf e ao Aidan, a Rannulf e a Freyja? Seria esse seu papel, sua tarefa? Tentou imaginar-se pronunciado as espantosas palavras: Alleyne está morto.
-Esperarei alguns dias mais -disse-. Talvez apareça. Talvez haja uma explicação.
Talvez... -Não lhe ocorriam mais possibilidades com as que terminar a frase.
-Vamos sentar um momento -sugeriu lorde Rosthorn, ao mesmo tempo que indicava um banco colocado à sombra de uma árvore.
Morgan se separou de seu braço e se sentou. Deixou as mãos no regaço, com as Palmas para cima, e cravou a vista nelas.
-Sente-se traída, chérie? -perguntouele.
-Por lady Caddick? -Uniu as mãos-. Não pensei nela em todo o dia. Embora sentirei falta de Rosamond.
-Refiro a seu jovem oficial - corrigiu-a lorde Rosthorn com gentileza-. Ao capitão lorde Gordon.
-Não é meu oficial -protestou, apertando as mãos com força-. Nunca o foi.
-Mas ele acreditava sê-lo -assinalou ele- e você esperava apoiar-se em seu amor. Não o julgue com muita dureza. Sofreu feridas muito graves faz alguns dias e era evidente que esta manhã sofria muito.
-Vi muitas feridas e muita dor durante estes dois dias, lorde Rosthorn -replicou-. E também vi muita nobreza. Vi a um homem morrer sem queixar-se sequer apesar de que devia estar sofrendo uma dor insuportável porque, tal como me disse, não queria pôr nervosos a outros feridos. Vi homens feridos de suma gravidade nos dizer que atendêssemos a outros que necessitavam muito mais de nossos cuidados. Escutei como se desculpavam conosco por todos os inconvenientes que nos causavam. Ouvi como um homem dizia à senhora James que fosse descansar porque estava ficando adormecida de pé apesar de que necessitasse que lhe trocassem as bandagens e devia sentir-se muito desconfortável. Escutei homens que elogiavam a seus companheiros e a outros regimentos e batalhões. Não escutei que nenhum se vangloriasse de suas próprias ações. Salvo o capitão lorde Gordon.
-É muito jovem, chérie – desculpou-o lorde Rosthorn.
-Dois dos que estão feridos estão na casa da senhora Clark têm quatorze e quinze anos - replicou-. Não conheci ninguém tão valente como eles, embora um ainda corre perigo de morrer por suas feridas.
-Continua empenhada em julgar duramente ao Gordon? -perguntou-lhe, dando um tapinha nas mãos.
Sem pensar no que fazia, Morgan girou a mão até que seus dedos se entrelaçaram.
-Tinha a ridícula idéia de lutar contra os franceses por mim -lhe explicou-. Acredito que se via como uma espécie de cavalheiro medieval que lutava pela honra de sua dama. E, entretanto, esta manhã, quando teve a oportunidade de lutar por mim de um modo muito mais prático, só pensou em seu próprio bem-estar durante a viagem de volta a casa. Me alegro de não ter sido tão idiota para me apaixonar por ele.
- Acho, chérie -disse lorde Rosthorn-, que nunca poderá ser tola. Mas me alegro de que não lamente a perda de um jovem que nunca a mereceu. Não é mais que uma marionete, um fantoche, um cabeça oca.
Morgan se pôs a rir muito a seu pesar.
Lorde Rosthorn levou suas mãos ainda unidas até a coxa e ali as deixou. Nem o toque do tecido suave e tenso das calças de montar nem o calor que irradiava o forte músculo que havia debaixo a escandalizaram. Inclinou o ombro até que ficou apoiado em seu braço e o contato a reconfortou.
-Nunca me quis -lhe disse-. É um engano bastante típico entre os homens. Vêem uma mulher a quem consideram formosa, desejável e apropriada e já se acreditam apaixonados. Embora, em realidade, apaixonam-se pela imagem idealizada que a dama em questão tem deles. Não lhes interessa descobrir como é essa mulher em realidade.
-Ai, chérie -replicou lorde Rosthorn em voz baixa-, isso só acontece com os homens? Não há muitas mulheres que fazem o mesmo?
Tomou ar para lhe dizer que não. Entretanto, sempre tinha tentado ser sincera consigo mesma. Era verdade? Também faziam isso as mulheres? Também se apaixonavam pela imagem idealizada que descobriam nos olhos de um homem bonito? Tinha-o feito ela alguma vez? Acaso não tinha estado encantada a princípio com as atenções do capitão lorde Gordon? Caso não tinha aceito a amizade do Rosamond e o convite de ir a Bruxelas porque o capitão a admirava e ela elogiava seu bom gosto? Se fosse certo, e era o bastante sincera para admitir que havia algo de verdade na idéia, era muito humilhante.
-Suponho que também o fazemos -admitiu-. Quando admiramos a um homem, costumamos estar mais interessadas, ao menos a princípio, em nossos próprios sentimentos, no que diz ou faz para que nos sintamos bem. Mas o amor é muito mais. É familiaridade, É conhecer o um ao outro.
-Quem é lady Morgan Bedwyn? -perguntou o conde.
Morgan esboçou um sorriso torcido e o olhou no rosto. Estava muito perto do seu. Esses olhos de olhar indolente lhe devolviam o sorriso, e de repente recordou que a tinha beijado nos lábios na na noite anterior, quando despertou com a cabeça apoiada em seu ombro. Mas reprimiu a lembrança. Não queria pensar nele em termos sexuais. Não nesse momento, quando o necessitava como amigo. E quando gostava como pessoa.
-Não há melhor pergunta para me deixar muda -respondeu ela-. Como posso explicar quem sou, lorde Rosthorn? Às vezes nem eu mesma sei. Até agora sabia que era decidida. Minha antiga preceptora haveria dito "teimosa" e perseverante, mas nunca tinha imaginado que podia ser capaz de desafiar à acompanhante designada pelo Wulfric nem que me atreveria a ficar em uma cidade estrangeira sozinha, sem uma criada sequer. Sabia que não era idiota nem melindrosa, mas não que podia atender a soldados feridos de gravidade sem perder a compostura, nem ver um homem morrer sem me derrubar. Não queria ser apresentada em sociedade porque me negava com todas minhas forças a me converter no objeto mais cobiçado do mercado matrimonial. E, entretanto, desfrutei de minha apresentação e de alguns dos atos sociais que implicava. Não me acreditava romântica, mas os oficiais com suas casacas vermelhas me fascinaram e teria rogado ao Wulfric que me deixasse vir a Bruxelas se isso tivesse servido de algo. Também me opus sempre à guerra, e mesmo assim parte de meus motivos para vir aqui... Não, não era parte, mas o motivo principal. O motivo principal foi a atração que sentia pela histórica batalha que se estava preparando às portas da Inglaterra. Teria considerado-me imune às adulações de um libertino, mas além de não lhes pôr freio, cheguei inclusive a respirá-lo e a correspondê-lo. Teria acreditado impossível entabular amizade com um homem assim. Não obstante, agora, neste preciso momento, acredito que é você o melhor amigo que tive. Como vê, não me conheço absolutamente. Assim, como vou dizer lhe quem sou?-Soltou uma gargalhada.
Lorde Rosthorn também pôs-se a rir.
-É muito jovem -disse-. Não deve ser tão dura consigo mesma. Acaba de pôr um pé no caminho dos descobrimentos que a levarão a maturidade. Mas duvido muito que nenhum de nós chegue a conhecer-se a fundo. Que aborrecida seria a vida se o fizéssemos! Não haveria capacidade para o crescimento pessoal. Jamais nos surpreenderíamos com o que somos capazes de fazer.
-A única coisa que sei com segurança é que não sou só uma dama -replicou ela-. Sou uma mulher e também uma pessoa.
-Jamais o pus em dúvida, chérie -lhe assegurou lorde Rosthorn.
E ali estava ela, exibindo uma atitude que deplorava em outros. Estava tão absorta consigo mesma que virtualmente tinha esquecido ao homem que tinha ao lado. Voltou a olhá-lo no rosto.
-E quem é você, lorde Rosthorn? -perguntou-lhe.
O conde voltou a rir. Era muito bonito quando sorria, pensou e também quando não o fazia, na verdade. Mas tinha ruguinhas nas comissuras dos lábios e ao redor dos olhos, o que sugeria que costumava fazê-lo freqüentemente. Envelheceria bem, pensou, embora essas ruguinhas fossem mais evidentes com o passar do tempo.
-Não gostaria de me conhecer, chérie -respondeu-. levei a vida de um parasita.
-Tanto antes como depois de que o exilassem? -perguntou-lhe-. Então, não aprendeu nada das circunstâncias que provocaram o desastre?
-Ao que parece, não.
Lorde Rosthorn a olhou no rosto com expressão risonha e indolente. Seus lábios estavam apenas a uns centímetros. E, mesmo assim, não se sentiu ameaçada por ele. sentia-se relaxada por completo a seu lado. Apesar de sua reputação e do fato inegável de que seu pai o tivesse exilado nove anos atrás, era-lhe impossível acreditar que fosse um parasita.
-Mas nem sequer os sórdidos detalhes de sua vida me diriam quem é você se chegasse a averiguá-los -prosseguiu-. Não respondeu a minha pergunta.
-Talvez porque não há resposta -sugeriu ele-. Talvez porque sou um homem superficial.
-Duvido-o muito -replicou Morgan-, embora talvez o tivesse acreditado faz uma semana. Por que me tomou sob sua asa, lorde Rosthorn?
-Como se fosse uma galinha com seus pintinhos? -Soltou outra gargalhada-. Talvez porque você é a mulher mais formosa que vi em minha vida, chérie, e porque admiro a beleza.
Tinha-o perdido. Lorde Rosthorn se havia escondido atrás da fachada sarcástica e zombadora que já vira em seus primeiros encontros, incluindo o jantar no bosque do Soignes. Mas por que a estava ajudando? Não havia motivo algum para que o fizesse, ou sim? Aúnica conclusão era que o estivesse fazendo por amabilidade. Aí estava depois de tudo, sabia algo dele. Entretanto, considerava-a uma amiga ou uma responsabilidade? Não acreditava que fosse o último. Assim devia ser o primeiro. Era sua amiga do mesmo modo que ele era seu amigo.
-Um parasita -repetiu, sorrindo-lhe-. Muito engraçado, lorde Rosthorn -escapou de seus dedos e lhe deu uns tapinhas no dorso da mão-. Devo retornar. Tenho que descansar esta tarde para me ocupar do turno da noite.
Ele ficou em pé imediatamente e a pegou pelo braço.
-Irei vê-la todos os dias se me for possível - disse ele enquanto caminhavam-, e lhe trarei qualquer notícia que se produza. Se decide retornar a Inglaterra, encarregarei-me de tudo. Se me necessitar por qualquer outro motivo, já sabe onde me encontrar ou ao menos onde me deixar uma mensagem.
-A rue do Brabant -lhe disse-. Onde fica?
-Passaremos por lá a caminho da casa da senhora Clark -respondeu lorde Rosthorn-.
Não se afasta muito de nossa rota e assim lhe direi qual é a casa.
-Obrigada -disse ela-. Mas não partirei até que tenha alguma notícia concludente sobre o Alleyne.
O fato de não ter pensado em seu irmão durante toda uma hora lhe foi surpreendente. Não, isso não era de todo certo. No fundo de seus pensamentos, entrelaçada com o resto de suas emoções, estava presente a preocupação pelo Alleyne. Mas durante uma hora tinha falado de outras coisas e tinha desfrutado da companhia de outra pessoa assim como da paz do entorno natural do parque.
E tudo graças ao conde do Rosthorn.
Mas o que ocorreria se não tivesse notícias concludentes?, pensou. Quando admitiria que...? Não obstante, esse momento ainda não tinha chegado. Acomodou-se ao passo do conde do Rosthorn e continuou caminhando. Durante os quatro dias seguintes, Morgan atendeu aos feridos com a mesma devoção e energia dos dias anteriores. Perderam outro soldado e lutaram para manter com vida a alguns quando a febre ameaçou consumi-los. Mas pouco a pouco a maioria começou a recuperar-se, alguns com bastante rapidez, e ao final do quarto dia só ficavam dezessete feridos em casa da senhora Clark.
Morgan tinha a impressão de que o tempo se deteve. Sabia que os dias não podiam continuar dessa maneira. Os feridos que ficavam não demorariam para partir, de volta a seus regimentos, ou de retorno a Inglaterra. E também sabia que a maioria das mulheres, incluída a senhora Clark, esperava receber notícias de seus maridos para ir a Paris.
Sabia que teria que confrontar a realidade breve. Não havia explicação razoável para a prolongada ausência de Alleyne. Só a óbvia. Wulfric tinha direito a saber que estava desaparecido. Sem dúvida, sir Charles Stuart o poria à corrente logo se ela não o fizesse. Mas ainda não estava preparada. Cada vez que a idéia aparecia em sua mente, afastava-a com decisão. Fiel a sua promessa, o conde do Rosthorn vinha toda tarde para levá-la a dar um passeio. Além disso, costumava fazer recados em nome da senhora Clark ou lhes ajudava amover aos pacientes mais corpulentos. Em uma ocasião escreveu cartas para alguns homens que tinham amigos ou vizinhos bastante instruídos para ler a suas famílias. Todas as esposas dos oficiais estavam meio apaixonadas por ele, pensou com carinho. E todas acreditavam que estava loucamente apaixonada por ele. Não era assim. Nesse momento era incapaz de pensar nele em termos de amor e corte Ou de paquera. Mas não tinha nem idéia do que teria feito sem ele. Supunha que se teria arrumado sozinha. É obvio que o teria feito. Mesmo assim, agradecia muitíssimo sua presença.
Às vezes mal falavam durante seus passeios. Costumava estar muito cansada para pensar com clareza e tinha a certeza de que lorde Rosthorn era consciente disso e se limitava a acompanhá-la para que pudesse respirar ar fresco e sentir a calidez do sol sobre a pele sem necessidade de entabular conversa. Outras vezes conversavam sobre qualquer assunto.
Era um homem instruído, conforme descobriu, e sabia bastante de música e arte. Tinha visitado algumas das galerias mais famosas do continente e tinha visto alguns dos panoramas mais renomados. Compartilhou suas experiências com ela com uma eloqüência que a convenceu de sua inteligência e de sua extensa educação.
Possivelmente, pensava as vezes, que estivesse um pouco apaixonada por ele. Mas semelhantes sentimentos careciam de importância. Um romance era a última coisa que necessitava durante esses dias. E então, ao cair a tarde do quarto dia, chegaram por fim as notícias. Estava enfaixando o coto do braço de um dos soldados quando a senhora Clark apareceu para substituí-la.
-Tem uma visita -lhe disse. - Está esperando-a na cozinha.
Não havia outro lugar onde receber às visitas. Embora não pudesse ser lorde Rosthorn. O conde se teria anunciado em pessoa ou teria enviado a alguém para lhe dizer que a esperava fora. O instinto lhe disse que não perguntasse quem era. A senhora Clark se preparou para ocupar seu lugar e a enfaixar ao ferido.
A visita era um dos ajudantes de sir Charles Stuart. Apresentou-se e a saudou com uma reverência formal. Já o tinha visto antes, mas não recordava seu nome. Tampouco ficou com ele nessa ocasião. Sentiu que lhe caía a alma aos pés e apertou os punhos contra os flancos para controlar-se.
-Venho em nome de sir Charles, milady -disse o homem depois de pigarrear-. Está muito ocupado neste momento, redigindo uma carta para o duque do Bewcastle.
Morgan levantou o queixo e o olhou nos olhos.
-Faz uma hora mais ou menos sir Charles recebeu uma carta -explicou o ajudante-.Estava cheia de barro, amassada e com data de há uns dias. Mas a reconhecemos como a carta que sua excelência, o duque do Wellington, ditou a um ajudante, quem a sua vez por entregou a lorde Alleyne Bedwyn.
Ela continuou olhando-o. E o homem pigarreou de novo.
-A carta se encontrou esta mesma manhã no bosque do Soignes -prosseguiu-, ao norte do Waterloo.
A carta. Não seu portador. O ajudante não o disse. Não era preciso.
-Milady -continuou-, sir Charles me autorizou a lhe comunicar que muito a seu pesar se vê obrigado a abandonar a esperança de que lorde Alleyne Bedwyn continue com vida. Envia-lhe suas mais sinceras condolências e fica a sua total disposição para o que necessitar. Gostaria de saber se pode fazer os preparativos para enviá-la de volta a Inglaterra.
Morgan o olhava sem escutar o que estava dizendo.
-Obrigada - disse-. E, por favor, agradeça a sir Charles a informação. Agora, se não se importar, eu gostaria de estar sozinha.
-Milady...-começou o ajudante.
Entretanto, o instinto fez que o olhasse com a altivez da qual faziam mostra os Bedwyn quando recebiam uma surpresa desagradável.
-Agora -disse-. Se não se importa.
E ficou a sós, com a vista cravada na réstia de cebolas que pendia do teto enquanto escutava o assobio do bule que estava no fogo. Não soube quanto tempo passou até que escutou o frufrú de umas saias a suas costas e umas cálidas mãos a seguraram pelos ombros.
-Minha pobre menina -disse a senhora Clark-. Sente-se enquanto lhe preparo uma xícara de chá.
-Encontraram a carta -Sua voz mal era um sussurro. Limpou a garganta-. Mas não Alleyne.
-Sei, querida -disse a senhora Clark, lhe dando um fortísimo apertão nos ombros-Beba um pouco de chá. Ajudará-a a recuperar-se da impressão.
Mas ela se negou com a cabeça. Sentia algo muito parecido ao pânico apoderando-se dela.
Não podia sentar-se e beber chá. Acabaria explodindo. Devia...
-vou sair -disse-. Preciso dar um passeio. Preciso pensar.
-Quase anoiteceu -lhe recordou a senhora Clark-. Não posso prescindir de ninguém para que a acompanhe. Vamos, sente-se.
Não obstante, Morgan escapou de suas mãos.
-Vou sair -insistiu-. Não necessito de uma acompanhante nem de uma criada. Tenho que estar sozinha.
-Lady Morgan, querida...
-Sinto abandoná-la em meio a meu turno, mas preciso sair -Já estavam no vestíbulo, onde agarrou seu xale de um cabide e o jogou sobre a cabeça e os ombros-. Não me passará nada. Voltarei logo. Preciso respirar!
E saiu da casa sem demora. Desceu os degraus depressa e pôs-se a correr pela rua, sem saber para onde se dirigia, embora tampouco lhe importasse. Agachou a cabeça e caminhou a passo vivo como se desse modo pudesse deixar atrás a verdade do que ainda não tinha aceito no fundo de sua alma. Fazia dias que sabia.Nunca houve esperanças. Durante dias tinha acreditado que se estava preparando. Mas chegado o momento, a preparação não servia de nada.
Alleyne estava...
Estava ofegando quando por fim se deteve, como se tivesse deslocado quilômetros. Nem sequer sabia onde se encontrava. Mas quando olhou a seu redor à mortiça luz do crepúsculo, deu-se conta de que estava frente à casa que o conde do Rosthorn lhe tinha indicado quatro dias antes, na rue do Brabant. Havia luz em uma das janelas do piso superior.
Tinha sido sua intenção ir a esse lugar em concreto?, perguntou-se um pouco desconcertada. Ou tinha sido mera coincidência?
Não importava.
Subiu os degraus, levantou a aldrava de latão e, depois de um breve instante de indecisão, golpeou a porta com ela.

 

 

Capítulo 10

 


Quando escutou que batiam na porta da rua, Gervase abriu a cortina da saleta de estar e deu uma olhada ao exterior. A caseira e sua filha tinham saído, assim como seu criado de quarto, já que esse era seu dia livre. Tinha criados na casa, mas provavelmente estavam reunidos na cozinha, que estava na parte traseira. Não havia nenhum criado fazendo guarda no vestíbulo porque não se esperavam visitas.
A pessoa que tinha batido levava a cabeça coberta com um xale, mas a reconheceu na hora. Pelo amor de Deus! O que estava fazendo lady Morgan Bedwyn na porta de sua casa a essas horas? Virtualmente tinha anoitecido; as velas já estavam acesas. A primeira coisa que pensou enquanto deixava em uma cadeira próxima o livro que tinha estado lendo e se apressava a descer as escadas foi guardar as aparências. Se alguém a visse... Entretanto, antes de chegar ao último degrau, recordou que lhe havia dito que fosse vê-lo se necessitava algo. Claramente, não se tratava de uma visita social.
Nesse instante apareceu um criado no vestíbulo procedente da parte traseira da casa.
- Eu abro -disse Gervase em francês-. É um amigo.
Por sorte, o criado não esperou para ver de que amigo se tratava. O homem assentiu com a cabeça, girou-se e retornou por onde tinha aparecido da mesma maneira em que o tinha feito, arrastando os pés.
Gervase abriu a porta, deu uma olhada ao rosto de lady Morgan e, embora as sombras o ocultassem em parte, desprezou a idéia de sair a passear com ela para afastá-la da casa. Em troca, agarrou-a pelo braço e insistiu para que entrasse, depois do que fechou a porta sem demora.
-Me acompanhe acima -lhe disse-. Ali estaremos a sós e poderá me dizer no que posso lhe servir de ajuda.
Estava pálida e muito alterada. Não disse nenhuma palavra enquanto subiam as escadas a caminho da saleta. Uma vez ali, Gervase fechou a porta. Em realidade, pensou, não era preciso ser muito preparado para adivinhar o que devia ter acontecido.
-Encontraram a carta do duque do Wellington que Alleyne lhe trazia para sir Charles Stuart - explicou ela enquanto tirava o xale da cabeça e o deixava cair sobre os ombros. - Estava abandonada no bosque, entre o Waterloo e a cidade -Falava com voz monótona.
Quando o olhou, Gervase teve a impressão de que seus olhos eram dois poços insondáveis.
-Ai, chérie - disse ao mesmo tempo que lhe segurava ambas as mãos. Tinha-as geladas.
Ela esboçou um sorriso torcido.
-Está morto, não é verdade?
Acaso seguia tentando aferrar-se a um fio de esperança? Já não tinha sentido, era hora de enfrentar a crua realidade. Por isso tinha ido vê-lo, compreendeu. Algum funcionário da embaixada devia lhe haver comunicado as notícias, mas tinha ido a ele de forma instintiva para assimilar de uma vez por todas o que esse fato significada de verdade. Perguntou-se em que momento se converteram em dois amigos tão apreciados o um para o outro.
-Sim, chérie -respondeu-, deve aceitar que está morto.
Ela o olhou, embora seu olhar parecia estar perdido em algum lugar situado a milhares de quilômetros. O xale escorregou por seus ombros muito devagar e acabou enrugado sobre o tapete em torno de seus pés. Gervase lhe soltou as mãos para abraçá-la. Rodeou-lhe a cintura com um braço e os ombros com o outro. Puxou-a para aproximá-la a seu corpo e notou que apoiava a face sobre sua gravata.
-Está morto -repetiu lady Morgan.
Estava tremendo.
- Receio Isso.
A jovem pôs-se a chorar em silêncio. Não se teria dado conta de que o estava fazendo a não ser pelos tremores que sacudiam seu corpo e pela calidez das lágrimas que acabaram lhe empapando a gravata. Aproximou-a de seu corpo pouco a pouco. Não sabia como tinham acabado assim, como tinham chegado a compartilhar uma amizade muito mais profunda que qualquer que tivesse conhecido previamente, fosse com um homem ou com uma mulher. Supôs que se devia às circunstâncias; a circunstâncias que nada tinham de normais e que os tinham entregue a uma relação que nada tinha de habitual. Não havia dúvida de que essa amizade não derivava de seus primeiros encontros.
Ainda continuava abraçando-a muito depois que deixara de chorar. Ela não fez gesto algum por afastar-se. Enquanto precisasse sentir uma ilusória sensação de consolo, estava disposto a oferecer-lhe. Afinal, afastou a cabeça de sua gravata e o olhou nos olhos a lhe à luz das velas. Já não chorava, mas tinha os olhos inchados e avermelhados.
Não podia fazer nada mais estúpido. De fato, não foi capaz de explicar-se como aconteceu, nem nesse preciso momento nem muito depois. Certamente era o mais inapropriado que podia ter feito, salvo que analisando-o em retrospectiva estava quase convencido de que tinha sido mútuo.
Inclinou a cabeça e se apoderou de seus lábios.
O beijo não teve nada que ver com nenhum dos que já tinham compartilhado. Foi um beijo ardente e ávido durante o qual ela separou os lábios e se deixou conquistar por sua língua. Ambos se abraçaram com força como se pusessem a vida nisso. Sim, foi um beijo intenso, impetuoso e inexplicavelmente apaixonado. A vida que protestava de forma irada ante a morte?
Entretanto, não havia desculpa alguma, tal como admitiu muito mais tarde. E tampouco a havia para o que aconteceu depois. Separou-se de seus lábios apenas uns centímetros para olhar esses olhos que o observavam nublados pela paixão.
-Chérie -murmurou.
-Não -replicou ela com a voz rouca de desejo. - Não -E sem mais voltou a fechar os olhos e a beijá-lo enquanto o abraçava pela cintura e lhe enterrava os dedos da outra mão no cabelo.
Gervase era consciente da dor, da agonia, do desejo da moça. E também de seu próprio desejo de consolá-la, de lhe dar tudo o que ansiasse. Mas era uma reação emocional que não teve nada que ver com seu intelecto. Não estava pensando. Esse não era momento adequado para pensar com clareza nem para fazer caso ao bom senso. Ela o necessitava. E por isso a pegou a ele e a beijou com mais anseio ainda, com mais paixão se pudesse.
Quando notou que ela tirava com frenesi os botões de sua jaqueta e fazia o mesmo com os do colete, ajudou-a para poder senti-la mais perto, para poder abraçá-la mais perto de seu coração. Ela o tinha abraçado por debaixo da jaqueta e do colete. Um de seus braços lhe rodeava a cintura e o outro descansava sobre suas costas, com a camisa como única barreira entre eles e seu corpo nu. Segurou-a pelo traseiro para erguê-la um pouco e juntá-la mais a ele. Se tivesse podido fundir-se com ela e fazer sua a dor que a embargava para libertá-la dela, o teria feito de boa vontade.
Beijou-a nos lábios, no queixo, no pescoço e na garganta enquanto ela se esfregava contra ele; os seios contra seu torso; o abdômen contra seu membro já ereto.
-Por favor -lhe disse com voz gutural e sem afastar-se de seus lábios-. Por favor, sim. Por favor.
-Chérie...
Levou-a até o sofá, situado a escassa distância de onde estavam, e se sentou sem soltá-la. Não obstante, em lugar de sentar-se em seu regaço, ela se colocou escarranchado sobre seus quadris e o frenesi de paixão continuou. Ergueu-lhe as saias para que pudesse desfrutar de uma maior liberdade de movimentos e depois colocou as mãos por debaixo e lhe acariciou a face interna das coxas até chegar a sua entreperna e roçar sua ardente umidade.
Nesse instante, sentiu que lhe segurava a cabeça com ambas as mãos e o aproximava de seus seios enquanto gemia, ofegava e começava a esfregar-se contra seus dedos.
Gervase desabotoou as calças, colocou-a sobre seu membro e depois de segurá-la pelos quadris a penetrou. Entretanto, não lhe permitiu ir com gentileza.
Desceu sobre seu membro sem mais demora e gritou quando o teve dentro por completo. No mais recôndito de sua mente caiu na conta de algo que teria notado de qualquer modo: Lady Morgan Bedwyn era virgem; entretanto, embora seus instintos por si só o tivessem apressado a ser terno com ela, a tomá-la com delicadeza, sua opinião não contava para nada.
Ela o arrastou à voragem de paixão que tinha conjurado e acabaram o encontro ofegantes, possuídos pelo feroz desejo de conseguir alcançar um ponto onde pudessem converter-se em um só e encontrar a paz e o esquecimento juntos.
Por incrível que fosse, e o teria parecido se estivesse pensando, ela se esticou um instante antes de que a investisse por última vez para derramar-se em seu interior e voltou a gritar. Mas nessa ocasião fez o movimento pelo abandono do clímax e não pela dor e a surpresa. Continuaram compartilhando o úmido abraço durante uns minutos, até que o mundo deixou de girar com tanta rapidez e retomou seu ritmo habitual.
Seu primeiro pensamento racional pareceu surgir de um nada. Não obstante, escutou sua malévola precisão com clareza. Por fim, disse-lhe sua mente, vingou-se do Bewcastle tal como merecia. Lorde Rosthorn estava sentado em um extremo do sofá com ela encolhida em seu regaço. As saias voltavam a lhe cobrir decentemente as pernas. Ele tinha a cabeça apoiada no espaldar enquanto a abraçava pela cintura. Morgan se surpreendeu ao cair na conta de que ficou adormecida. Embora não acreditava que lhe tivesse passado o mesmo. Tinha a impressão de que estava acordado embora guardasse silêncio. O que tinha acontecido entre eles era algo que necessitava que acontecesse e não se arrependia. Mas acabaria fazendo-o se por sua causa mudava a natureza de sua amizade. Como não ia mudar? Tinha sido ela quem o tinha procurado, porque era seu melhor amigo. E também era, embora só fosse por essa vez, seu amante. Não, as coisas jamais voltariam a ser iguais entre eles.
-Não deve ter a culpa -lhe disse sem mover-se; porque apostaria algo a que lorde Rosthorn se estava culpando-. Você não teve a culpa de nada do acontecido.
Nesse instante se deu conta de que estava acariciando seus cabelos. Seus dedos massagearam o couro cabeludo com suavidade, lhe confirmando desse modo que estava acordado.
-Talvez, chérie -replicou-, seria melhor que não pensássemos nos acontecimentos de esta noite em termos de culpa. Porque isso implicaria que fizemos algo mau. E fizemos nada de mau, só o fizemos antes do tempo. Falarei com o duque do Bewcastle quando a levar para casa.
Morgan se endireitou na hora e se virou para olhá-lo, desacorçoada. Deveria ter suposto que reagiria de um modo tão néscio. Ao fim e ao cabo, era um cavalheiro.
-Para lhe pedir minha mão? -perguntou-lhe-. Nem pensar.
Lorde Rosthorn esboçou um sorriso indolente sem erguer a cabeça.
-Farei-o, chérie -insistiu-. Você, é obvio, pode rechaçar minha proposta, mas não o aconselharia.
-É claro que a recusarei! -replicou. Piscou furiosa ao dar-se conta de que lhe tinha os olhos cheios de lágrimas. Quase nunca chorava-. Não danifique as coisas, lorde Rosthorn. Foi meu amigo da alma durante estes dias tão espantosos. Inclusive esta noite foi meu amigo. Ofereceu-me o consolo que necessitava. Não danifique as coisas ao acreditar-se na obrigação de pedir minha mão em matrimônio.
-Mas talvez deseje fazê-lo, chérie -comentou ele-. Talvez a ame.
-Não me ama -o contradisse-. Se compadece de mim pelo de... pelo do Alleyne. E também gosta de mim, ou isso acredito, e me respeita ao igual a eu o respeito. Nesses sentimentos há um pouco de amor, mas não é o amor de duas pessoas que estão preparadas para comprometer-se- uma a outra por toda a vida.
-Chérie -começou ele-, estive dentro de seu corpo. Arrebatei-lhe a virgindade.
"Dentro de seu corpo". Morgan sentiu que lhe ardiam as faces.
-A isso precisamente refiro-me -assegurou-. Se nos tivéssemos limitado a nos sentar no sofá quando cheguei para lhe contar minha notícia, não me haveria dito que falaria com o Wulf, não é verdade?
Lorde Rosthorn continuou sorrindo, mas não respondeu.
-Não pode negá-lo, vê? -prosseguiu ela-. Não pode mentir. Não me casarei com você, lorde Rosthorn, pelo mero fato de que tenhamos mantido relações íntimas.
-Chérie -disse ele, erguendo uma mão até sua face-, não vamos discutir por isso. E muito menos esta noite. Sinto muito a morte de lorde Alleyne Bedwyn. Muito mais do que possa expressar com palavras.
As ditosas lágrimas voltaram a lhe encher os olhos.
-Acreditei que se negava a verdade durante um tempo -confessou-, estaria melhor preparada quando não ficasse mais remédio que admiti-la. Esperava ter adormecido minhas emoções para não sentir toda a crueldade do golpe. Mas não foi assim. E esta noite, quando vim, acreditei suponho que acreditei que... Mas a dor continua aqui. A verdade é que acredito que nem sequer comecei a senti-la.
-Não, suponho que não começou -Tomou a cabeça com ambas as mãos e a aproximou para lhe dar um delicado beijo nos lábios-. E meu único pensamento foi consolá-la, chérie. Mas não há consolo. Uma dor como a sua só se supera com o passar do tempo. Precisa estar com sua família. Deve retornar a sua casa, a Inglaterra.
Nesse instante sentiu que lhe importava muito pouco Wulfric E Freyja e a seus outros irmãos. Aos irmãos que ficavam.
-Sim -concordou.
-Eu a levarei -se ofereceu-. Partiremos amanhã.
-Mas não posso lhe pedir algo assim -protestou com o cenho franzido.
-Você não me pediu nada -a tranqüilizou-. Partiremos cedo. Acompanharei-a de volta a casa da senhora Clark para que faça a bagagem.
Quando acabou de falar, já a tinha ajudado a ficar em pé e estava agachando-se para recolher seu xale do chão.
Não podia retornar sozinha a Inglaterra, concluiu. Por mais que se considerasse uma mulher independente, havia certas coisas que nem sequer ela faria sem um acompanhante. Viajar de um país a outro era uma delas. Tinha esquecido por completo que sir Charles Stuart se oferecera para fazer os acertos pertinentes para enviá-la a casa.
-Obrigada - disse ao mesmo tempo que jogava o xale pelos ombros. Descobriu que, apesar da cálida noite, tremia de frio longe de seus braços.
Lorde Rosthorn manteve seu braço pego a seu flanco enquanto caminhavam em direção à casa da senhora Clark. Não deveria necessitar desse apoio, pensou, mas o agradecia. Sua mente se tinha aberto à realidade e à dor. Alleyne estava morto. No dia seguinte retornaria a casa. Seria ela quem daria a notícia ao Wulfric.
E essa noite tinha tido relações íntimas com o conde do Rosthorn. Não era de estranhar que lhe tremessem tanto as pernas. Havia muitas coisas nas quais pensar, muitas coisas que sentir. Guardou silêncio enquanto caminhavam. Igual a ele. Nem sequer percebeu os transeuntes com os que se cruzavam; pelas ruas. Tampouco foi consciente de que lorde Rosthorn dava boa noite a dois conhecidos.
-A senhora Clark a estará esperando, não tenho dúvida - disse ele ao chegar a seu destino-. Entre, chérie, e descanse se puder. Vai ser uma viagem longa.
-Sim. Obrigada.
O conde a ajudou a subir os degraus e estava a ponto de bater na porta quando esta se abriu do interior e apareceu a senhora Clark, com o rosto mudado pela preocupação e o alívio.
-Graças a Deus! -exclamou com sinceridade-. Estava preocupada. Me alegro de que a tenha encontrado, milord.
-Amanhã acompanharei a lady Morgan de volta a Inglaterra, senhora -lhe disse ele-.Virei recolhê-la a primeira hora, logo que seja possível. Antes terei que procurar uma criada disposta a acompanhá-la.
-É a melhor solução, embora não a mais idônea -conveio a senhora Clark-, mas eu não posso acompanhá-la. Entre, querida -disse, rodeando os seus ombros com um braço. - Venha à cozinha e lhe farei essa xícara de chá que lhe prometi antes.
Morgan sucumbiu à tentação de deixar-se mimar, ao menos um pouquinho . Sua mente, suas emoções, tinham-na afligido.

A viagem para casa foi longa e tediosa, embora depois Morgan não teria sabido dizer se durou um dia ou uma semana. Manteve-se encerrada em si mesma e deixou que a dor a intumescesse na medida do possível para não ter que lutar com a crueldade desse sofrimento sozinha ou para não lutar com ela de um modo tão inapropriado como fizera nos aposentos do conde do Rosthorn em Bruxelas. Envergonhava-a enormemente o havê-lo empurrado a cometer semelhante indiscrição, uma que lhe tinha inspirado tal sentimento de culpa que se sentia obrigado a pedir sua mão em matrimônio.
Tinha uma nova criada, uma moça que mal falava inglês e que virtualmente desconhecia as obrigações de seu posto. Mas só tinha sido contratada para guardar as aparências na medida do possível e Lise retornaria a Bruxelas assim que a tivesse acompanhado a Londres. Assim o havia dito o conde Rosthorn.
Apenas o viu durante o trajeto de Bruxelas ao Ostende. Ela fez a viagem em silencio com Lise no interior da carruagem alugada enquanto que ele o fez a cavalo. Mas isso mudou durante a travessia por mar até o Harwich, na costa inglesa. Sua criada sofreu uma horrível indisposição que a obrigou a permanecer no camarote que compartilhavam. Morgan, ao contrário, não podia suportar ver-se encerrada ali embaixo. Precisava passear de um lado ao outro da coberta, ficar junto à amurada ou sentar-se em algum lugar ao ar livre onde pudesse sentir o sal no rosto, respirar o fresco aroma do mar e contemplar a eternidade.
As aparências lhe importavam um nada.
O fato de ser o único membro da família que carregava sobre seus ombros a terrível verdade a afligia. Tentou ensaiar o discurso com o qual lhes comunicaria a notícia, mas era incapaz de fazê-lo, embora só fosse em sua mente. Nem ela mesma tinha conseguido assimilar a verdade. Não havia corpo, não havia uma prova tangível de que Alleyne já não estava com eles. Se fechasse os olhos, ainda podia ver seu bonito e sorridente rosto e escutar sua voz alegre e zombadora como se estivesse justo a seu lado. Às vezes abria os olhos de repente, como se quisesse pilhá-lo olhando-a e rindo-se dela por havê-la enganado por completo.
O conde do Rosthorn era sua única e inseparável companhia enquanto estava na cobertura, embora houvesse mais pessoas a bordo a quem ambos conheciam. Era incapaz de mostrar-se sociável, de modo que adotou sua atitude mais altiva e antipática para manter-se afastada de todos eles. Mas ele não se separava de seu lado. Em regra geral, guardavam silêncio. De vez em quando falavam de algum assunto que logo esquecia. Em uma ocasião, quando o navio se viu açoitado por um verdadeiro vendaval que tinha enviado a todos os passageiros debaixo da cobertura, lorde Rosthorn lhe colocou bem a capa e manteve o braço sobre seus ombros de um modo muito reconfortante. Ficaram nessa postura por volta de uma hora.
Até apesar do intumescimento no que se mantinha, era muito consciente de que tinha passado a conhecê-lo de uma forma muito distinta. Entretanto, ele não fez a menor referência ao incidente e ela não se encontrava preparada para refletir a respeito nesse momento. Alegrava-lhe muitíssimo que, sem saber muito bem como, tivessem encontrado o modo de retomar a amizade que começara a partir do baile dos duques do Richmond.
Se em algum momento tivesse passado pela cabeça a idéia de que sua presença no convés sem sua criada era muito inapropriada e de que somada à relação tão próxima com o conde do Rosthorn, seu acompanhante, poderia instigar certos comentários entre os passageiros que se propagariam assim que chegassem a terra, a teria descartado com desdém. Só tinha que responder de seus atos ante ela mesma e ante o Wulfric, claro, mas ele o entenderia assim que explicasse.
O que desejava acima de tudo era estar em casa, no Lindsey Hall, no Bedwyn House em Londres ou em qualquer lugar que estivessem seus irmãos. Em qualquer lugar que estivesse Wulfric. Wulfric lhe tiraria a pesada carga que levava sobre os ombros. Ele saberia o que fazer. E, mesmo assim, voltar para casa era também o que mais temia. Como ia enfrentar a seus irmãos? O que lhes diria?
Desembarcaram em Harwich numa úmida e ventosa tarde mais própria do outono que de meados do verão. Alojariam-se na Estalagem do Porto, situada muito perto do mole conforme lhe informou lorde Rosthorn ao mesmo tempo que apontava o estabelecimento com a mão, e reatariam a viagem para Londres pela manhã.
-Ordenarei que lhe preparem um quarto rapidamente -lhe prometeu-. E enquanto descansa, alugarei uma carruagem para amanhã. Um dia mais e estará em casa.
Morgan segurou a aba do chapéu para protegê-lo do açoite do vento e o olhou com o cenho franzido.
-Que egoísta fui -disse- ao pensar só em mim mesma durante toda a viagem.
Acaba de pisar em chão inglês pela primeira vez em nove anos.
- Com efeito, chérie -concordou ele com um sorriso-. E de momento estou agüentando a impressão.
De repente, compreendeu que essa viagem, essa chegada, devia ser um calvário para ele na mesma medida que o era para ela. Teria que encontrar-se com pessoas que não tinha visto em nove anos. De algum modo, teria que retomar as rédeas de uma vida que se viu obrigado a abandonar quando era muito jovem. Tinha-o forçado a retornar antes de que estivesse preparado para fazê-lo? Olhou-o presa de um horrível remorso. Poderia ter falado desses assuntos durante as silenciosas horas que tinham compartilhado no navio. Em troca, tinha estado encerrada em si mesma. Decidiu que ele seria o assunto de conversa durante o jantar.
-Espero que todo vá bem -lhe desejou.
Lorde Rosthorn a pegou pela mão e a colocou no braço enquanto lhe sorria.
Lise, um pouco melhor da indisposição uma vez em terra firme, seguiu-os enquanto caminhavam para a estalagem, com as cabeças baixas para se proteger do açoite do vento e da chuva. Foi um grande alívio entrar no estabelecimento e ver o fogo que rugia na imensa chaminé do vestíbulo. Morgan se aproximou e começou a sacudir a água de sua capa enquanto o conde do Rosthorn se aproximava do balcão.
Que diferentes eram seus sentimentos daqueles que albergara da última vez que esteve no Harwich, pouco menos de dois meses atrás. Certamente que naquele tempo se sentia pelo menos dez anos mais jovem que nesse momento. Tomara pudesse retroceder no tempo e fazer as coisas de um modo muito diferente. Mas como? Tendo um chilique na Porta do Namur que obrigasse ao Alleyne a separar-se de seus deveres para que a levasse de volta a Inglaterra sem mais demora?
Estendeu as mãos para o calor do fogo e virou a cabeça para observar a lorde Rosthorn enquanto este se encarregava de fazer os acertos pertinentes para passar a noite E de repente tirou o chapéu olhando a um cavalheiro alto e trajando uma elegante capa negra que cruzava o vestíbulo em direção à porta de saída.
Wulfric! sentiu-se tão aflita pela impressão e a incredulidade que por um momento foi incapaz de mover-se ou de gritar.
Seu irmão não a tinha visto. Mas sim tinha visto o conde do Rosthorn. Wulfric se deteve em seco, soprando pelo nariz, e o olhou com os olhos entrecerrados e uma expressão glacial.
Mas ela não percebeu nada. Por fim tinha recuperado tanto a fala como a capacidade de movimento.
-Wulf! -gritou ao mesmo tempo que corria para ele como se a morte lhe pisasse nos calcanhares.- Wulf!
Wulfric não era o tipo de homem em cujos braços alguém pudesse jogar-se de forma impulsiva. Entretanto, nesse momento representava a segurança, a solidez e tudo o que lhe era querido. Jogou-se em seus braços e sentiu seu reconfortante presença quando lhe devolveu o abraço. Não obstante, o momento passou logo. Wulfric a segurou pelos braços, afastou-a dele e a olhou brevemente antes de que seus olhos voltassem a cravar-se no conde do Rosthorn por cima de sua cabeça. Sua expressão teria feito tremer a uma estátua de gelo.
-Não me cabe a menor duvida -começou com essa voz tão baixa que costumava usar em seus momentos mais aterradores- de que alguém vai me explicar o que está se passando.
Estava claro que lhe tinham chegado os rumores, concluiu Morgan. A condessa do Caddick tinha estado batendo à língua. Mas isso não era o que mais lhe preocupava nesse momento.
Nem sequer pensou que fazia Wulf no Harwich. O pânico atendia o seu estômago, ameaçando-a, fazendo-a vomitar.
-Wulf -repetiu antes de continuar resmungando com voz trêmula enquanto se aferrava à capa de sua capa com ambas as mãos e esquecia a dignidade e os discursos que tinha estado ensaiando em sua cabeça-. Wulf, Alleyne morreu -E depois só escutou o som de castanholas de seus próprios dentes.
Algo mudou nos gélidos olhos prateados de seu irmão. O brilho que os iluminava desapareceu, deixando-os deslustrados e inexpressivos. Suas mãos se fecharam ao redor de seus braços como grilhões. Depois, inclinou a cabeça uma vez, duas e um sem-fim de vezes mais muito devagar e de forma quase imperceptível.
-Ah! -disse com uma voz tão distante que apenas o escutou.
Foi um momento aterrador… Wulfric sem palavras e sem saber o que fazer. Era a primeira vez que presenciava algo assim. De repente, seu irmão se convertera em um homem que podia mostrar sua vulnerabilidade em qualquer momento, coisa da qual ela nunca o tinha acreditado capaz. Não queria que fosse um ser humano. Queria que fosse seu irmão mais velho, Wulfric, o invencível duque do Bewcastle. Não queria ser uma mulher de dezoito anos nesse momento. Queria ser de novo uma menina, a salvo na poderosa e imutável órbita de seu irmão. Mas o momento passou e todo rastro de vulnerabilidade se esfumou. Seus olhos se cravaram uma vez mais em lorde Rosthorn e voltou a ser Wulfric. Suas mãos a soltaram. Morgan abriu a boca para fazer as apresentações, mas tomou a palavra.
-Enfim, Rosthorn… -disse Wulf, lhe dando uma ligeira ênfase no nome.
-Bewcastle? -replicou o conde em resposta-. Meus mais sincero pêsames. Estava a ponto de fazer os acertos para acompanhar a lady Morgan e a sua criada até Londres. Seria possível encontrar um aposento onde possamos falar em particular? pediu uma explicação.
Morgan o olhou de esguelha. Sua voz parecia diferente; suas palavras, mais cortantes, mais precisas e sem rastro algum de sotaque francês.
Estava devolvendo o olhar ao Wulfric com expressão áspera e a mandíbula apertada. Era evidente que seu irmão tinha escutado os rumores e que lorde Rosthorn sabia. Assim que se veria apanhada entre o orgulho e o ditoso sentido da honra de dois cavalheiros.
Apenas um momento depois de dizer ao Wulf que Alleyne tinha morrido.
-Acredito que podemos prescindir das explicações -respondeu Wulfric-. depois da visita que lady Caddick me fez ontem, dispunha-me a ir a Bruxelas em busca de lady Morgan para trazê-la a casa em pessoa. Parece que meus planos iniciais são desnecessários, embora talvez tenha que empreender a viagem para me encarregar de que o corpo de meu irmão retorne a casa.
-Morgan observou que agarrava a manga de seu monóculo com tal força que os nódulos se puseram brancos-. De qualquer forma, sua companhia já não é necessária, Rosthorn. Eu me encarregarei do amparo de lady Morgan daqui em diante. Que tenha um bom dia.
Morgan o olhou sem dar crédito. Nem sequer ia escutar uma explicação? Não ia lhe agradecer a lorde Rosthorn por havê-la acompanhado até ali? Nem a lhe dizer do que o acusava lady Caddick exatamente? Eram imaginação dela ou já se conheciam antes?
Virou a cabeça para olhar a lorde Rosthorn. Seu rosto continuava crispado, com a mandíbula tensa e o olhar áspero. Apenas o reconhecia. Entretanto, olhou-a e executou uma reverência muito formal.
-Adeus, chérie -lhe disse.
-Então, parte? -perguntou-lhe ela. Assim, sem mais?
Não obstante, lorde Rosthorn já dera meia volta e caminhava a grandes passadas para a porta. Não podia deixar que partisse assim, pensou. Mas antes de que pudesse dar um passo para segui-lo, Wulfric voltou a agarrá-la pelo braço e ela o olhou com os olhos arregalados.
Seu irmão não tinha considerado necessário procurar um lugar onde pudessem dispor de intimidade quando lorde Rosthorn o tinha proposto. Embora devia ter dado algum tipo de ordem ao pessoal que estava de serviço na recepção. Em questão de minutos, conduziram-nos entre profundas reverências e outras amostras de respeito a um salão privado cuja porta fecharam ao sair.
Sentiu que lhe afrouxavam os joelhos quando voltou a perceber a enormidade do momento. Seu amigo mais prezado se foi com tal rapidez e de forma tão inesperada que nem sequer tinha tido a oportunidade de despedir-se. Mas estava em casa. Wulf estava com ela e por fim se livrara do terrível peso das notícias que levava.
Seus claros olhos prateados estavam cravados nela. Sua mão, que já tinha executado esse gesto tão familiar, procurou o cabo do monóculo.
-Agora, Morgan, se for amável -lhe disse-, me conte como perdeu a vida Alleyne.
Ela o olhou sem fraquejar, passando por cima o zumbido dos ouvidos, a frieza que se deu em sua cabeça e a debilidade que lhe afrouxava os joelhos.
-Morreu na batalha do Waterloo -replicou.

 


Capítulo 11

 


A chuva caía sem cessar e as gélidas rajadas de vento sopravam com força. Entretanto, Gervase seguiu cavalgando quase a galope, sem prestar atenção nem ao perigo nem aos inconvenientes.
Tinham-no despachado sem mais. Bewcastle, que claramente tinha escutado o bastante de lábios de lady Caddick para ir a Bruxelas em pessoa, tinha exigido uma explicação que depois se negou a escutar. Tinha despachado a seu antigo inimigo como se fosse um dom ninguém. Estava fervendo de fúria por causa de um ódio inflamado que tinha ressurgido assim que pôs os olhos em cima de Bewcastle. Um ódio que ainda não se detera a analisar. Um ódio que o cegava, palpitava em sua cabeça e lhe nublava o bom senso. Mas ao menos podia dar-se por satisfeito em um sentido: apesar do gélido controle que aparentava, Bewcastle estava claramente perturbado. E mais estaria, jurou. Ainda não tinham acabado. Nem muitíssimo menos.
Insistiu com o cavalo para fazer-se a um lado do caminho para deixar passar ao carruagem do correio que ia em direção contrária, salpicando água e barro. Recomeçou a marcha a um passo muito mais cauteloso e prudente. Não demoraria para fazer uma visita ao duque do Bewcastle em Londres. Embora não iria precipitar se. A pesar do ódio que sentia, era consciente de que devia guardar certas aparências. A família Bedwyn necessitava de um tempo para chorar sua perda. Ela necessitava de tempo. Por estúpido que parecesse, tentou não lhe pôr um rosto ou um nome à única pessoa capaz de minar sua determinação, mas que representava ao mesmo tempo a oportunidade de pôr a cereja em sua vingança.
Enquanto isso, os rumores de Bruxelas e da travessia no navio correriam por Londres como a pólvora, e com os Caddick pressente para avivar as chamas, não lhe cabia a menor duvida de que seriam bastante suculentos e persistentes para converter-se em um escândalo em toda regra.
Não iria a Londres imediatamente, decidiu. Tinha chegado o momento de retornar a casa, ao Windrush Grange no Kent. Tinha chegado o momento de retomar sua vida onde a deixara nove anos atrás. Entretanto, perguntava-se se isso seria possível. Já não era o moço daquele tempo nem o homem no qual se convertera depois.
Seguiu seu caminho, muito consciente de que se encontrava uma vez mais na Inglaterra, e muito consciente também de que não o tinham recebido com os braços abertos. A paisagem era cinza e erma; as nuvens, baixas e carregadas de água. A chuva escorregava pela aba de seu chapéu e penetrava pelo pescoço do capote. O caminho corria enlameado e infestado de atoleiros que indicavam ligeiros buracos ou buracos mais profundos. Não havia maneira de diferenciá-los a menos que se fosse bastante incauto para pisar em um. Talvez, pensou, teria sido mais sensato ficar no Harwich e tomar o primeiro navio que saísse de volta ao continente.
Mas tinha assuntos pendentes na Inglaterra. Tinha chegado o momento.
Prosseguiu a marcha. E muito a seu pesar pensou em lady Morgan Bedwyn. Deliciosa e irradiando esse encanto juvenil no baile dos Cameron; altiva, inteligente e incitante durante o jantar no bosque do Soignes; despenteada, formosa e estóica na Porta do Namur enquanto atendia a um pobre soldado envolto em um montão de ataduras ensangüentadas; com os olhos dilatados pela dor em seu alojamento da rue do Brabant; transbordante de paixão enquanto procurava consolo. Uma mulher fascinante de múltiplas facetas.
-Maldição! -Refreou o cavalo quando se deu conta de que o tinha insistido a galopar de novo-. Maldição!
Como ia utilizá-la? Mas já o tinha feito, é obvio. Já o tinha feito.
Morgan teve a sensação de estar vivendo em uma espécie de limbo irreal durante dez dias. Explicou todo o acontecido a Wulfric; a maior parte do relato brotou de seus lábios sem mais no salão privado da Estalagem do Porto, mas seu irmão conseguiu lhe surrupiar o resto mediante o sutil interrogatório ao que a submeteu não só nesse primeiro momento mas também durante a interminável viagem a Londres do dia seguinte. Contou-lhe tudo o que sabia a respeito do desaparecimento do Alleyne e do reaparecimento da carta, fato que se interpretava como prova irrefutável de sua morte. Contou-lhe o acontecido com os Caddick, sua determinação de retornar a Inglaterra e sua conseqüente negativa a ficar em Bruxelas com ela. Contou-lhe que a senhora Clark a tinha acolhido em sua casa e lhe falou do trabalho que tinham realizado junto com as demais esposas dos oficiais enquanto atendiam aos feridos.
A história que lady Caddick tinha contado a seu irmão quando se apresentou no Bedwyn House presa da indignação e do despeito diferia um pouco da sua, conforme comprovou. A condessa não tinha mencionado nem o desaparecimento do Alleyne nem seu trabalho com os feridos. Segundo sua versão, comportou-se como uma menina mimada, desobediente e teimosa que se negra a abandonar as diversões da cidade e as atenções de uma série de galãs inaceitáveis entre os quais destacava o conde do Rosthorn.
-E acreditou que ficava para desfrutar dessas frivolidades, Wulf? -perguntou-lhe com altivez, virando a cabeça para cravar a vista na paisagem-. Tão pouco me conhece?
- Parece isso - respondeu seu irmão-. Não esperava que atrevesse a despachar a uma acompanhante como se fosse um chapéu velho. Entretanto, tampouco esperava que sua acompanhante despachasse a você. Tive umas palavras a respeito com lady Caddick antes que partisse.
Teria se encantado ver a cena por um buraquinho enquanto Wulf exortava à condessa e esta partia sentindo-se pouco menos que um insignificante verme. Em várias ocasiões tentou lhe falar da amabilidade que o conde do Rosthorn lhe tinha demonstrado, mas seu irmão se limitou a escutá-la sem fazer comentários antes de continuar falando de outro assunto que não tinha nada que ver com o que acabava de lhe contar. Claro que Wulf não entenderia que os últimos dias não tinham sido comuns absolutamente e que as formalidades habituais lhe tinham sido irrelevantes. Embora não podia negar o enorme sentimento de culpa pelo ocorrido a última noite em Bruxelas. Custava acreditar que nenhum dos dois tivesse impedido que acontecesse.
-Conhecia antes o conde do Rosthorn? -perguntou-lhe de repente.
-O suficiente para saber que não é um acompanhante adequado para você -respondeu seu irmão-. Espero que essa seja a estalagem onde temos que trocar os cavalos. Exigirei uma explicação pelo atraso de meia hora que levamos.
Nove anos atrás Wulfric tinha vinte e quatro. Por força tinha que conhecer lorde Rosthorn. E por força tinha que conhecer o escândalo que o tinha levado a exílio. Esteve a ponto de lhe perguntar pelos sórdidos acontecimentos, mas mordeu a língua. O conde do Rosthorn não o tinha contado em pessoa. Não tentaria surrupiar a informação ao Wulfric, cuja atitude para com ele era claramente hostil.
Sentia falta dele. Sua despedida tinha sido muito repentina e brusca. Sua ausência deixava um enorme vazio em sua vida. Perguntou-se se falaria com o Wulfric para fazer uma petição formal de sua mão tal como lhe havia dito. Esperava de todo coração que não o fizesse. Entretanto, à medida que passavam os dias e não chegava, ao ver que nem sequer ia comprovar como estava nem dar o pêsames à família, embargou em uma profunda decepção e inclusive se sentiu doída.
Tentou não pensar nele. Lorde Rosthorn não lhe devia nada, depois de tudo por muito que seu sentido da honra insistisse no contrário. De fato, as coisas eram ao reverso. Era ela quem estava em dívida com ele. Freyja e Joshua continuavam em Londres, já que as sessões do Parlamento não tinham terminado. Entretanto, sua presença na capital não se devia só às obrigações políticas de Joshua. Freyja tinha se apresentado como sua madrinha durante a temporada social e também tinha sido a de lady Chastity Moore, a prima e pupila do Joshua, que se alojava com eles em sua residência londrina. Chastity acabava de comprometer-se com o visconde do Meecham. E, além disso, sua volta ao Penhallow, na Cornuallha, teria se visto atrasado de todas formas porque Freyja queria ver um médico de prestígio. Estava nos primeiros meses de sua gravidez.
Aidan tinha chegado de o Oxfordshire com o Eve e seus filhos adotivos, Davy e Becky. Rannulf e Judith também se deslocaram desde o Leicestershire, apesar de que William, seu filho, mal tinha dois meses de idade. Todos responderam imediatamente às cartas que Wulfric lhes enviou por mensageiro especial.
A presença de sua família completa deveria tê-la reconfortado em grande medida. E de certa forma assim foi. Mas Wulfric se manteve mais distante que nunca, uma vez que lhes deu as notícias e adotou o costume de passar quase todo o tempo na biblioteca. Assim sobre ela recaiu a responsabilidade de responder a inundação de perguntas que lhe fizeram todos. Ser testemunha da dor de seus irmãos, em regra geral tão resolvidos, foi espantoso. Na aparência, Freyja era quem melhor levava, já que sua atitude continuava sendo tão enérgica e alegre como sempre. Não obstante, seu rosto parecia estar esculpido em mármore e Joshua não parava de revoar a seu redor com expressão angustiada em lugar de seu costumeiro sorriso. Ranulf, o efusivo e generoso Ralf, encerrou-se por completo em si mesmo e se refugiou no quarto infantil, onde passava a maior parte do tempo com seu filho recém-nascido nos braços, mesmo que este estivesse dormindo. Aidan, o curtido e sério oficial de cavalaria, pôs-se a chorar enquanto a abraçava com todas suas forças e ficou em evidencia com os agonizantes soluços que tentava sossegar em vão.
A ausência do Alleyne tinha deixado um espantoso e enorme vazio no círculo familiar. Possivelmente o pior de toda aquela tragédia era que não havia corpo, Não havia nada sobre o que chorar, nada ao que velar. Nada que enterrar. Nada a que levar flores até que a dor se fosse suavizando com o passar dos anos. Não havia corpo. Só um enorme vazio. Wulfric dispôs que se celebrasse uma missa em memória de seu irmão na igreja do Saint George, em Hanover Square, onze dias depois de sua volta. Foi um acontecimento com muita gente. Ela se sentou junto ao Wulfric no primeiro banco e o teria pego pela mão se ele a tivesse deixado. Mas sua atitude foi mais fria e mais inalcançável que nunca; como se se tivesse enterrado em um bloco de gelo. Talvez só uma irmã pudesse compreender a dor que o embargava. Entretanto, essa certeza lhe serviu de muito pouco. Aidan tinha ao Eve; Rannulf tinha ao Judith; Freyja tinha ao Joshua. Ela não tinha a ninguém. passou-se toda a missa sentada com as mãos no regaço e a cabeça encurvada.
O conde do Rosthorn não esteve presente. Abandonou toda esperança de que fosse de outra maneira quando a missa concluiu e a maioria dos assistentes aguardou nas portas da igreja que os Bedwyn saíssem em primeiro lugar. Não o viu por nenhuma parte, embora o buscou entre a multidão. Nem tampouco apareceu no Bedwyn House para tomar uma xícara de chá como fizeram outros.
Talvez não estivesse em Londres, pensou. Talvez tivesse retornado a Bélgica ou a outro lugar da Europa, a Paris, possivelmente. Talvez estivesse no campo, em sua casa senhoril. Mas sua ausência a perturbava. Independentemente do acontecido aquela noite em Bruxelas, tinha-o considerado seu amigo. E nem sequer lhe tinha escrito uma carta. Claro que não podia lhe enviar uma carta diretamente, não teria sido apropriado. Mas poderia haver irradiado suas condolências à família, não?
Outras pessoas à quem teria preferido não ver fizeram ato de presença. Os condes do Caddick foram acompanhados de Rosamond. Inclusive o capitão lorde Gordon se apresentou me Bedwyn House, oferecendo a viva imagem do herói romântico com seu uniforme de gala, salvo pela bota que lhe faltava na perna entalada. Caminhava com muletas, acompanhado por seu criado de quarto, e ganhou os elogios de muitos dos pressentes. Um herói que tinha sobrevivido à batalha do Waterloo.
Rosamond a abraçou e se mostrou relutante a soltá-la.
-Não me importa o que digam, Morgan -lhe assegurou-. Não deixo de contar o incrivelmente valente que foi a todos os que querem me escutar. Sinto muitíssimo a perda de lorde Alleyne -As lágrimas a impediram de acrescentar algo mais.
Sua mãe não sofreu o mesmo impedimento.
-Me alegro muitíssimo de vê-la de volta em casa sã e salva, lady Morgan -disse com voz cortante-. É uma sorte que tenha retornado levando tão más notícias ou Bewcastle teria expresso de um modo pouco agradável para você o desgosto pela desobediência que me demonstrou. A princípio se sentiu inclinado a me culpar por havê-la deixado em Bruxelas, por incrível que pareça. Suponho que a estas alturas compreendeu que estava em um engano. É impossível que não o tenha feito.
Morgan se limitou a arquear as sobrancelhas, e depois de observar a sua antiga acompanhante com silencioso desdém, abandonou-a para aproximar-se de outro grupo de pessoas. Teria preferido evitar por completo ao capitão lorde Gordon, mas ele a interceptou deliberadamente e lhe perguntou se podiam falar um momento em privado. sentou-se com ele em um canto do salão, um pouco afastados do resto. Acabaria por perdoá-lo, supôs. Mas lhe custaria muito pronunciar as palavras. E só o faria pela simples razão de que era uma pessoa irrelevante para ela.
Os ferimentos tinham desaparecido de seu rosto. Estava tão bonito como de costume, pensou.
Entretanto, lhe era difícil acreditar que pouco tempo antes tivesse estado ligeiramente apaixonada por ele.
-Lady Morgan -lhe disse-, espero que me perdoe.
-Foram uns dias muito difíceis, capitão -replicou ela-. Estou certa de que não nos comportamos tão bem como deveríamos ter feito ou tão bem como o teríamos feito em circunstâncias normais. É melhor esquecer o assunto.
-É muito generosa -Parecia muito aliviado-. Estava a ponto de participar de minha primeira batalha, como compreenderá, e não pensava nem falava de forma razoável.
Estava a ponto de participar de sua primeira batalha? Morgan franziu o cenho.
-por que se está desculpando exatamente, lorde Gordon? -perguntou-lhe.
O capitão se ruborizou e nem sequer a olhou nos olhos enquanto respondia.
-Acho que meu comportamento pôde lhe criar certas expectativas quando não era essa minha intenção -disse. - Acho que meu comportamento pôde respirar certas esperanças em você quando não era minha intenção sugerir nada de índole permanente.
Compreendeu que lorde Gordon não se referia a seu último encontro às portas da casa da rue do Bellevue, mas ao acontecido entre eles durante o baile dos duques do Richmond.
-Você achou que pude chegar à conclusão de que estamos comprometidos, lorde Gordon? -perguntou em voz muito baixa.
-Eu... isto... -O capitão parecia estar envergonhado.
- De maneia alguma -assegurou-. Se me tivesse pedido sem rodeios aquela noite, lhe teria respondido que não. Em meu caso, os pedidos de mão devem realizar-se formal e adequadamente. Lorde Gordon, jamais me desceria a aceitar um compromisso clandestino com um homem que não se dirigisse com antecedência ao duque do Bewcastle. Mas, embora o tivesse feito e embora o duque tivesse dado sua aprovação, eu o teria recusado de qualquer forma.
O rubor do capitão se intensificou.
-Sou um candidato perfeito, lady Morgan -replicou ele com tensão-. Algum dia serei o conde do Caddick.
-Por mim nem que algum dia fosse o príncipe de Gales -lhe disse, erguendo o queixo e olhando-o por cima do nariz como se fosse um espécime masculino particularmente desprezível-.Não o considero digno de minha mão, capitão Gordon. E lhe agradeço que não tenha vindo me pedir perdão pelo comportamento que exibiu na manhã que abandonou Bruxelas. Em um momento de debilidade possivelmente o teria concedido -ficou em pé.
-Minha mãe tem razão sobre você -replicou ele com brusquidão. - E o resto do mundo.
-Seriamente? -Olhou-o com uma de suas expressões mais gélidas.
-Para uma mulher cujo nome vai de boca em boca por todos os clubes e salões de Londres como se fosse uma vulgar rameira se mostra excessivamente altiva, milady –prosseguiu lorde Gordon-. Não pensará que seus passeios por toda Bruxelas pelo braço do conde do Rosthorn e seus abraços em público, não só na rua mas também no navio que a levou ao Harwich onde viram de mãos dadas, passaram inadvertidos, verdade? Seu comportamento foi o mais escandaloso inclusive para um Bedwyn e não há palavras para descrevê-lo –Parecia um menino rancoroso que queria vingar-se de um insulto.
-E, mesmo assim -replicou ela, percorrendo-o com um olhar desdenhoso-, encontrou uma boa quantidade de palavras para descrever minha situação com suma eloqüência, capitão. Felicito-o.
Continuou olhando o de forma impassível um momento. Mas em seu interior estava estupefata. Seria verdade? Corriam rumores sobre ela? Porque tinha ficado em Bruxelas para cuidar dos feridos enquanto esperava notícias do Alleyne e o conde do Rosthorn tinha tido a amabilidade de cuidar dela e de acompanhá-la cada vez que necessitava de uma pausa? Porque tinha tido a amabilidade de acompanhá-la de volta a casa quando precisou retornar? Mas tinha feito a viagem acompanhada por uma donzela. Quando se tinham abraçado? Só recordava uma ocasião, sentada na soleira da casa da senhora Clark, tão cansada pelas longas horas de trabalho que ficou dormindo com a cabeça apoiada em seu ombro. Depois, subiu ao degrau superior ao que ele ocupava e lhe tinha dado um beijo. Naquela rua sempre havia transeuntes. Teria que ter imaginado que isso suscitaria rumores em Londres irremediavelmente. Além disso, os Caddick teriam espalhado muitos mais. E todas essas coisas, tão irrelevantes durante aqueles dias em Bruxelas, pareceriam escandalosas para ouvidos dos ingleses que não tinham estado ali para viver o ocorrido. E ela não era de todo inocente, não é? Nada inocente, de fato. Não tinha sentido ficar indignada. O capitão lorde Gordon devia ter estado apavorado pela possibilidade de que seu comportamento no baile dos duques do Richmond lhe tivesse conduzido a um compromisso e de que ela se negasse a liberá-lo. A esse herói militar que tinha ganho a batalha do Waterloovirtualmente só não gostaria que seu caminho se visse impedido, além de pelas muletas, pelo escândalo que ela arrastava. Sorriu-lhe com gélido desdém e se virou sem dizer nada.
Explicaria isso a relutância do conde do Rosthorn a aparecer tanto no Bedwyn House como na missa?, perguntou-se. Teriam-no expulso os rumores de Londres? Talvez da Inglaterra? Isso seria muito injusto.
Embora se esse fosse o caso, já podia esquecer-se de voltar a vê-lo. Era uma idéia espantosa e muito deprimente. Nesse dia em concreto desejava vê-lo mais que nunca, desejava ver como aquele indolente sorriso lhe iluminava os olhos, ouvir aquele fascinante sotaque francês, escutar como a chamava chérie. Queria ter ao lado alguém que só tivesse laços com ela.
Um bom amigo. Embora, uma vez que a idéia tomou forma em sua cabeça, resultou-a como desprezível. Não o necessitava. Não necessitava de ninguém. Ergueu os ombros e se aproximou de outro grupo de visitantes.
Ao final todos se foram. A tia Rochester e seu marido também se foram para casa. Igual a Freyja e Joshua, acompanhados do Chastity e lorde Meecham. Aidan e Eve tinham subido ao quarto infantil com o Rannulf e Judith para estar um momento com seus filhos. Morgan se sentia horrivelmente só apesar de sua determinação e apesar de ter recusado o convite do Joshua para que fosse com eles para passar a tarde, e as do Eve e Judith, que lhe pediram que subisse com elas ao quarto infantil. Iria à biblioteca, decidiu, e se sentaria com o Wulfric. Não o incomodaria não. Tampouco esperava que ele conversasse nem que a entretivesse.
A única coisa que queria era encolher-se em uma das poltronas de couro e sentir o consolo de sua companhia. Não bateu na porta. Abriu-a sem fazer ruído, com a intenção de entrar sem chamar a atenção. Wulfric estava de pé frente à chaminé, com os olhos cravados no espaço vazio da lareira. Tremiam-lhe os ombros. Um de seus punhos estava apoiado no suporte da chaminé, por cima de sua cabeça. Estava chorando e tentava sufocar os soluços tal como Aidan o tentou dias atrás.
A imagem a deixou paralisada uns instantes. Depois, fechou a porta com mais cuidado que empregou para abri-la e subiu a escadaria a toda pressa em direção a seu dormitório. Se Wulf estava chorando, o fim do mundo devia estar à volta da esquina. Atirou-se de bruços sobre a cama e se aferrou à colcha com todas suas forças.
Alleyne estava morto. Foi-se para sempre.
Pela primeira vez desde aquela tarde em Bruxelas, deu rédea solta a sua dor.

 

 


Capítulo 12

 


O sol por fim aparecia entre as nuvens a tarde que Gervase chegou a casa. O cascalho da avenida que serpenteava preguiçosamente entre os bosques e sobre as suaves colinas do Windrush Grange estava úmida, mas não empapada. Das folhas das árvores caíam brilhantes gotinhas de água sobre as fibras de erva. No ar flutuava o intenso aroma de terra molhada.
Recordou subitamente o muito que amava Windrush, quão agradecido sempre tinha estado pelo fato de ser o primogênito, pelo fato de ser ele quem herdasse a propriedade enquanto que Pierre estava destinado ao sacerdócio. O longo caminho de acesso à mansão sempre tinha levantado a moral. Entretanto, tinham passado nove anos desde última vez que o pisou. Naquele tempo seu pai estava vivo. Suas duas irmãs ainda viviam em casa. E ele era um moço sem preocupações, ansioso por desfrutar dos prazeres da cidade e da companhia de seus iguais, mas também ansioso por aprender tudo o que precisava saber em sua qualidade de herdeiro. Poderia-se dizer que era um moço feliz, bastante inofensivo, cuja vida seguia sem sobressaltos o rumo que lhe tinham esboçado do berço.
E então chegou o desastre em forma de uma série de horríveis acontecimentos que escaparam por completo a seu controle. Tinha a impressão de estar retornando à vida de outra pessoa. A um lado da mansão, com sua fachada de tijolo vermelho e seus telhados de duas águas, estendia-se um enorme jardim com pérgulas, atalhos empedrados e um banco de ferro forjado sob um velho salgueiro chorão. À medida que se aproximava, percebeu que havia três mulheres naquele espaço; duas delas estavam inclinadas sobre as flores dos caminhos com cestas nos braços enquanto que a terceira as observava com um menino apoiado no quadril. Havia um homem sentado no banco.
Uma das mulheres se endireitou ao escutar os cascos do cavalo e ergueu a aba de seu enorme chapéu de palha para olhá-lo. Em seguida soltou um grito, deixou a cesta no chão e pôs-se a correr para ele, erguendo o vestido com uma mão. Era baixa, continuava tão magra como sempre e seu cabelo ainda era negro. A alegria iluminava seu rosto.
Gervase desmontou, arrojou as rédeas sobre o pescoço do cavalo e se aproximou da mulher com os braços estendidos.
-Gervase! -gritou ela-. Gervase, mon fils.
-Mamam! -Ergueu-a nos braços e girou com ela no ar antes de voltar a deixá-la no chão.
-Está em casa -Sua mãe se tornou para trás e lhe colocou uma trêmula mão na face enquanto seus olhos o olhavam com avidez-. Meu moço está mais bonito que nunca!
-E por você não passa o tempo, mamam -replicou ele com um sorriso-. Continua parecendo uma moça.
Não era de todo certo, é obvio. Seu cabelo estava eivado de cinza e havia algumas rugas em seu rosto. Mas os nove anos passados não tinham deixado muito rastro nela. Continuava sendo linda. O homem do banco a tinha seguido. Mal era um menino da última vez que o vira. Mas se tinha convertido em um cavalheiro alto, magro e calvo, que levava óculos e vestia com um estilo sóbrio.
-Pierre?
Por um momento pareceu que fossem fundir se em um abraço fraternal. Mas ambos titubearam e o momento passou. Gervase lhe ofereceu a mão e seu irmão a estreitou.
-Gervase -lhe disse-. O correto era que retornasse. Me alegro de que o tenha feito. Me permita te apresentar a minha esposa. Emma, querida, este é Rosthorn.
A dama lhe fez uma reverência. Era uma jovem de aspecto bastante comum e cabelo castanho. Gervase aceitou a mão que lhe estendia e a saudou com uma inclinação de cabeça.
-Senhora Ashford, é um prazer -disse-. Este é seu filho?
O menino que o observava tinha uns lindos olhos cinzas. Um halo de cachos loiros emoldurava sua carinha gordinha.
-Este é Jonathan, milord -respondeu sua cunhada.
-Jonathan -Seu sobrinho.
Tinha outro e mais três sobrinhas, todos eles filhos de suas irmãs. A vida tinha seguido seu curso durante esses nove anos como se ele não tivesse existido.
-E aqui vem Henrietta para te saudar, Gervase -acrescentou sua mãe.
A moça era sua segunda prima e tinha vivido com eles desde a morte de seus pais, na qualidade de pupila do conde do Rosthorn. Ao menos ela continuava tendo o mesmo aspecto. Sempre tinha sido baixa, de compleição robusta, morena e de rosto quadrado. Não era feia nem muito menos, mas tampouco podia dizer-se que fosse bonita. Nunca se tinha casado. Devia rondar os vinte e sete ou os vinte e oito anos.
-Henrietta -a saudou ao mesmo tempo que inclinava a cabeça com um sorriso.
-Gervase -replicou ela, e lhe fez uma reverência sem sorrir.
Não tinha sido uma boas-vindas-, concluiu quando sua mãe o agarrou pelo braço e insistiu para caminhar em direção à mansão enquanto um cavalariço levava seu cavalo aos estábulos. Não tinha percebido rastro algum de hostilidade nem de ressentimento neles.
Entretanto, havia certo receio; uma espécie de desconforto, como se fossem estranhos. Coisa que certamente eram. Tinham-lhe arrebatado a sua família, pensou, entre muitas outras coisas. Voltariam seus laços a ser tão estreitos como sempre tinham sido? Poderiam recuperar a confiança? Era muito consciente da ausência de seu pai. Porque ele tinha sido seu herói. Até que o repudiara. Da forma mais absoluta. Tinha acreditado nas mentiras e nas patranhas de outras pessoas em lugar de fazer caso à declaração de inocência de um filho a quem sempre tinha afirmado querer.
A traição tinha sido terrível.
Pior que a de Marianne.
Pior que a de Bewcastle.
Tinha sido demolidora.
Durante os dias seguintes a sua volta teve que conhecer aos criados e ficar em dia com o administrador; quase todos eles eram completos desconhecidos. Devia inspecionar a granja que abastecia à mansão e explorar a propriedade; ambas conhecidas mas irrevogavelmente mudadas.
Teve que conversar com os arrendatários e receber aos vizinhos, pois as notícias de sua volta se estenderam com rapidez pelo condado e as pessoas começaram a chegar para lhe apresentar seus respeitos. Se conheciam o motivo de sua apressada marcha ao continente nove anos antes e de sua extensa estadia no estrangeiro, ninguém disse nada. Para falar a verdade, alguns pareciam acreditar que se fora para viver um tempo com sua família materna. Conhecia-os todos, mas lhe pareciam estranhos.
Sentia-se desconfortável e inquieto em sua própria casa. Durante os nove anos de exílio, tinha acreditado que quando retornasse encontraria tudo exatamente igual ao que deixou. Tinha acreditado que voltaria a ser a mesma pessoa que tinha sido naquele tempo.
Mas tudo tinha mudado e, sobre tudo, ele tinha mudado. E isso o desgostava. Muitíssimo. O problema era que poucos dias depois de estar ali se deu conta de que não podia retornar ao continente e retomar a vida de dissipação e libertinagem que tinha levado durante os passados anos. Já que tinha voltado para casa, não podia voltar atrás. Era um homem apanhado no limbo, sem raízes e sem laços que o unissem a outras pessoas. Embora não tivesse motivos de peso para queixar-se. Sua mãe em particular se desfazia em mimos com ele.
Uma manhã durante o café da manhã lhe perguntou pelas famílias vizinhas que estavam ausentes nesse momento. Várias delas estavam em Londres para desfrutar da temporada social. De fato, ele mesmo tinha estado a ponto de encontrar-se com a casa vazia. Sua mãe e Henrietta tinham pensado partir a Londres ao cabo de uns dias para ir às compras e assistir ao teatro, assim como a algum que outro evento social.
Sua mãe seguiu contando histórias sobre seus vizinhos, preenchendo assim as lacunas provocadas por sua longa ausência. Produziram-se poucas mudanças significativas, percebeu; muito poucas famílias partiram do condado e muito poucas se mudaram.
-E o marquês do Paysley? -perguntou-lhe-. Se deixa ver muito pelo Winchholme Park, mamam?
Esperava que não estivesse ali nesse momento. Sua presença lhe criaria um dilema, já que teria que considerar se devia lhe fazer uma visita ou não. Mas Winchholme era uma das propriedades menores do marquês. Nunca tinha tido por costume alojar-se nela durante muito tempo.
-Ah! O marquês do qual você se lembra morreu faz já algum tempo -respondeu sua mãe, que se fez a um lado para que o mordomo lhe servisse uma segunda xícara de café-. Não lhe disse isso em uma de minhas cartas, mon fils? -Lhe deu de presente um sorriso fugaz antes de voltar a concentrar-se na tarefa de jogar aniz ao café e de removê-la.
-Não -respondeu. Sua mãe sabia que não lhe havia dito nada, claro estava. Jamais o teria mencionado.
-O novo marquês não é o dono do Winchholme -lhe debitou-. Se puxar pela memória, recordará que não estava vinculado ao título. O defunto marquês dispôs em seu testamento que a propriedade passasse à mãos de sua filha.
Gervase lançou um olhar penetrante a sua mãe. O marquês só tinha uma filha.
-À mãos de Marianne? -quis saber-. E vive ali?
-Sim, vive ali -respondeu sua mãe-. Deveria ir vê-la e falar com ela. Seria muito angustiante que passassem a vida se evitando o um ao outro quando vivem apenas a cinco quilômetros de distância, não lhe parece? Já passou muito tempo desde que aconteceu tudo aquilo.
Gervase continuou olhando-a em silêncio. Sim, tinha passado muito tempo e ele o tinha passado todo no exílio. De verdade esperava que poderia perdoar e esquecer, que poderia enterrar o passado assim sem mais? Conhecia Mariane desde que eram meninos. Suas irmãs e Henrietta brincavam com ela. Ele também o tinha feito em certas ocasiões. E mesmo assim o tinha traído de uma forma espantosa.
-Henrietta e ela continuam sendo amigas -prosseguiu sua mãe quando foi evidente que não pensava replicar-. Não pode se afastar dela como se não existisse.
-Quem é seu marido? -perguntou.
-Mas se não se casou! -respondeu sua mãe-. Bonita que é, não encontrou o homem que a agrade. me prometa que irá vê-la.
-Não! -exclamou com mais brusquidão do que pretendia-. Não, não o farei, mamam. Não sou capaz de me mostrar caridoso com ela.
De fato, doía-lhe que sua mãe a aceitasse como vizinha com tanta complacência e que não tivesse tentado romper sua amizade com a Henrietta. Doía-lhe que sua prima não tivesse desdenhado quem fora sua amiga. Acaso a ninguém importava que tivessem cerceado sua vida com a mesma efetividade que se lhe tivessem atravessado o coração com uma bala? Acaso todos pensavam que tinha estado divertindo-se lindamente no continente? Não obstante, seus protestos começavam a ser irritantemente patéticos inclusive a seus próprios ouvidos. Ficou em pé, beijou a mão a sua mãe e se despediu para começar com seus afazeres cotidianos.
Sua antiga vida se esfumou, não poderia recuperá-la jamais. Seus anos de vagabundagem e libertinagem tinham chegado a seu fim. Tinha chegado o momento de que se lavrasse uma nova vida. E essa nova vida, como não, implicava viajar a Londres em um futuro próximo. O que não tinha ainda muito claro era quando o faria.
Estava em casa há uma semana quando Horace Blake lhe fez uma visita. Blake era um dos vizinhos que estavam em Londres e que acabava de chegar no dia anterior. Era mais velho alguns anos de idade, mas sempre tinham mantido uma relação bastante estreita. Depois de um afável apertão de mãos, ocuparam as duas poltronas que flanqueavam a chaminé da biblioteca, com copos de licor nas mãos.
-Bom, Rosthorn -disse Blake com um sorriso depois de ter trocado algumas brincadeiras e comentários sem importância-, Disseram-me que continua sendo o mesmo Don Juan de sempre.
Gervase arqueou as sobrancelhas. Nunca tinha sido um Don Juan.
-É a fofoca de Londres -continuou seu amigo. - Inclusive se apostam em todos os clubes para ver se vai pedir a mão da moça ou não ou para ver se Bewcastle vai aceitar, no caso de que o faça. Teve uma briga com ele, não? Refiro a antes de partir.
Ah! Isso queria dizer que tinha acontecido. Não se tinham liberado das más línguas da alta sociedade depois de tudo.
-Poderia dizer-se que sim -respondeu-. Suponho que refere a lady Morgan Bedwyn, não, Blake? Tive a honra de acompanhá-la de retorno a casa desde Bruxelas porque precisava voltar com urgência para trazer as notícias da morte de seu irmão.
-Ah, sim! -replicou Blake-. Lorde Alleyne Bedwyn. Uma lástima, pobre moço. dentro de uns dias vai se celebrar uma missa em sua lembrança na igreja do Saint George, em Hanover Square. É uma sorte que lady Morgan possa aferrar-se à desculpa do luto para ficar em casa até que os rumores sosseguem. De verdade dançou com ela a sós uma noite em meio de um bosque, Rosthorn? E a separou dos Caddick quando estes tinham a intenção de trazê-la com eles a Inglaterra? E a beijou em plena rua em Bruxelas? E te passou os dias na coberta do navio com ela, com o braço sobre seus ombros? E a abandonou assim que pôs um pé em chão inglês? Poderá considerar-se afortunada se Bewcastle não a encerrar durante os próximos dez ou vinte anos em pão e água.
Ao que parecia, a idéia lhe era muito engraçada, já que se pôs-se a rir enquanto fazia girar o licor de sua taça antes de tomar o de um só gole.
O assunto tinha criado tanta expectativa como ele tinha esperado que o fizesse, talvez mais.
Que tinha dançado com ela a sós no meio do bosque? Que a tinha beijado em plena rua? Que a tinha afastado? Perguntou-se até que ponto estaria sofrendo lady Morgan por culpa do escândalo. Tinha a impressão de que a moça se limitaria a estalar os dedos, a erguer o queixo e a arquear aquelas suas sobrancelhas tão arrogantes, em aberto desafio às más línguas para que se empregassem a fundo. Embora, como não, tinha que lutar com o Bewcastle e, conhecendo duque, não faria nem pingo de graça.
Mudou o assunto da conversa e a visita se prolongou outra meia hora antes que acompanhasse a seu convidado a cavalo até a cerca da propriedade. Retornou a sós com seus pensamentos.
Tinha chegado o momento, compreendeu.
Deixou o cavalo aos cuidados de um cavalariço nos estábulos e se apressou a retornar à casa. Subiu os degraus da escadaria de dois em dois e encontrou a sua mãe a sós em seu gabinete privado, tal como esperava. Quando o viu, deixou a costura e esboçou um cálido sorriso.
-Mamam -disse-, acredito que deveria retomar seus planos de passar uma semana em Londres para ir às lojas e se relacionar com suas amizades. Pickford House demorará alguns dias para estar preparada, mas posso mandar a alguém com a ordem de que se ponham mãos à obra imediatamente. Quanto demorarão Henrietta e você em estar preparadas? Três dias?
Sua mãe ficou em pé de um salto com os olhos resplandecentes e as mãos unidas sobre o peito.
-Você também virá, mon fils? -perguntou-lhe-. Jamais estive tão contente. Passearei por toda Londres pelo braço do cavalheiro mais bonito do mundo!
Gervase foi ao Bedwyn House o dia posterior à missa em comemoração a lorde Alleyne Bedwyn. Deu algumas discretas batidinhas com a aldrava de latão da porta e ofereceu seu cartão de visita ao mordomo, a quem lhe pediu especificamente ver o duque do Bewcastle e quem o deixou no vestíbulo à espera de uma resposta.
A casa estava em silêncio. Durante os cinco minutos que esperou, ou melhor que o fizeram esperar, não houve nem rastro da presença de outras pessoas na casa, salvo pelo criado de librea que permanecia no vestíbulo em silêncio. Quando o mordomo retornou, fez-lhe um régio gesto com a cabeça e o convidou a segui-lo. Conduziu-o até uma biblioteca situada no piso térreo, decorada com um estilo muito masculino e com suas quatro paredes recobertas do chão até o teto com estante repletas de livros. O extremo mais afastado estava dominado por uma enorme escrivaninha de carvalho com uma toalha de mesa de couro. Umas amaciadas poltronas de couro e um sofá dispostos frente a uma grande chaminé de mármore completavam o mobiliário.
Bewcastle estava sentado atrás da escrivaninha. Não se levantou enquanto ele cruzava o aposento, mas seus olhos prateados não perderam nenhum só de seus movimentos. A distribuição do aposento era deliberado, compreendeu Gervase. dispôs-se desse modo com o fim de que os criados, os membros da família que fossem convocados para dar explicações por alguma maldade, os solicitantes, os humildes peticionários e os convidados indesejados fossem muito conscientes de sua própria insignificância à medida que se aproximavam da augusta presença do homem que ostentava todo o poder do qual eles careciam.
Supôs que ele entrava na categoria dos convidados indesejados. A tentação de descer o olhar ao tapete persa enquanto se aproximava do escritório foi muito forte; mas, em troca, obrigou-se a cravar os olhos em seu antigo amigo sem fraquejar. Preferia que o pendurassem antes que acovardar-se sem ter pronunciado nenhuma só palavra.
-Bewcastle? -saudou-o com cordialidade e sem perda de tempo assim que esteve perto.
-Rosthorn -A mão do duque segurava o cabo de um monóculo que pendia de uma fita de seda negra que levava ao pescoço-. Sem dúvida alguma, está a ponto de me explicar o propósito desta visita.
Não o convidou a tomar assento. Era um ardil concebido com o propósito de fazer que se sentisse inferior e compreendesse o indesejado que era sua visita, é obvio. Franziu ligeiramente os lábios e esboçou um sorriso torcido para lhe fazer saber que se deu conta.
-A morte de seu irmão te teve muito ocupado durante as duas últimas semanas -disse-.De qualquer forma, suponho que não terá passado por cima que lady Morgan Bedwyn se converteu no alvo de uma série de comentários muito desagradáveis.
-Há muito poucas coisas relacionadas com minha família que eu passo por cima - replicou Bewcastle-. Se tiver vindo com a intenção de me pôr ao dia a respeito dos assuntos mais candentes que circulam pelos salões de Londres, já pode economizar o trabalho. Que tenha um bom dia.
Gervase riu entredentes e apoiou as Palmas das mãos na escrivaninha. Houve um tempo no qual invejara a atitude distante e a aparente naturalidade com a que Bewcastle deixava claro o poder que ostentava e com a que conseguia subjugar a todo aquele que se cruzava em seu caminho. Tinha desejado ser como ele e inclusive tinha tentado imitá-lo.
Naquele tempo era um jovenzinho muito néscio. Nunca tinham sido amigos íntimos. Ele não era mais que o membro mais jovem de sua coorte de seguidores, um moço que nem sequer tinha descoberto seu próprio potencial, suas debilidades nem sua personalidade. Mas já não o intimidava alguém que, no fim de contas, não era mais que um homem.
-Os comentários concernem a sua irmã e a mim -prosseguiu-. Passei um tempo com ela em Bruxelas, em um primeiro momento porque freqüentávamos os mesmos círculos sociais e depois porque tanto sua acompanhante como sua criada a abandonaram e necessitava o amparo de alguém que garantisse sua segurança.
-Que garantisse sua segurança -repetiu Bewcastle em voz baixa-. Você?
-Acompanhei-a de retorno a Inglaterra porque ela precisava vir e porque não contava com ninguém mais para fazê-lo -disse-. Sim, durante umas semanas passei muito tempo em sua companhia, o que despertou o interesse das más línguas que vivem de qualquer indício de indiscrição.
-Devo lhe agradecer pela atenção que ofereceu a lady Morgan e os comentários aos que a tem exposto, de forma bastante deliberada se não me equivoco? -perguntou o duque, erguendo as sobrancelhas com arrogância. - Pode se sentar a esperar que lhe agradeça isso, Rosthorn. Não me cabe a menor duvida de que sir Charles Stuart se teria encarregado de ajudar a lady Morgan se você não o tivesse feito; e de um modo muito mais apropriado.
Por estranho que parecesse, naquele tempo nem sequer lhe tinha passado pela cabeça essa possibilidade. Não obstante, era certo. Ao fim e ao cabo, lady Morgan era a irmã de um dos funcionários ao cargo de sir Charles. E também era a irmã de um duque. Sorriu com certa ironia.
-O passado, evidentemente, não pode mudar-se -replicou-. E, pelo menos, vim para lhe pedir a mão de lady Morgan Bedwyn, para assinar um acordo matrimonial consigo e para lhe solicitar permissão de poder falar com ela em pessoa.
Nove anos antes se perguntou se a austera embora formosa fachada que apresentava Bewcastle albergava em seu interior um coração ou se pelas artérias e as veias que a alimentavam corria gelo em lugar de sangue. O mesmo se perguntou nesse momento, enquanto se via submetido ao escrutínio desse olhar gélido e desapaixonado. O monóculo ducal estava erguido a meio caminho do olho ducal.
-Lady Morgan Bedwyn -disse, pronunciando as palavras com precisão e rompendo desse modo o que tinha sido um longo silencio- não será sacrificada por caus das fofocas. E tampouco lhe será oferecida em sacrifício, Rosthorn.
Gervase se endireitou e apertou os lábios.
-Possivelmente -começou- a dama tenha algo que dizer a respeito.
-A dama -replicou Bewcastle- não terá a oportunidade de dizer nada. Que tenha um bom dia, Rosthorn.
Gervase não se moveu. Quanto devia alterar o duque o mero fato de ter tido que lhe conceder essa entrevista. Quanto devia exasperá-lo o fato de que sua irmã se convertera no alvo das fofocas mais apimentadas, que seu nome se visse relacionado com o seu. Por um instante, saboreou a satisfação que todo isso lhe reportava e se imaginou o que aconteceria cedia à tentação de lhe atirar o golpe de graça.
"Deitei-me com ela. Comentou-lhe isso, Bewcastle? Não? Vá! Nesse caso, talvez queira reconsiderar sua resposta, não acha?"
Entretanto, não estava preparado para chegar a esse extremo. Ela não o merecia. Nenhum ser humano passaria por semelhante situação em suas mãos.
-Não se importa que a estejam caluniando? -perguntou-. Não se importa que se o presente a oportunidade de sossegar os rumores? Nem que essa oferta provenha de um homem elegível até para uma dama com uma posição social tão elevada como a de lady Morgan Bedwyn? Nem tampouco o fato de que ela talvez deseje considerá-la?
-Lady Morgan Bedwyn está sob minha tutela -respondeu o duque, levando o monóculo ao olho para observar a seu visitante de cima abaixo-. E o seguirá estando durante dois anos e meio. Volto a te desejar um bom dia, Rosthorn.
-Durante o tempo que passei com ela, tive a clara impressão de que era uma dama com opinião própria -afirmou-. Eu gostaria de saber o que opina ela com respeito a minha proposta matrimonial. É muito possível que a recuse. Para falar a verdade, isso foi o que me disse quando lhe informei de minha intenção de falar consigo assim que chegássemos a Inglaterra. Mas eu gostaria de ver que lhe oferece a oportunidade de decidir por si mesma.
-Até que lady Morgan alcance a maioridade -assinalou Bewcastle ao mesmo tempo que estendia um braço para puxar o cordão da campainha do serviço-, é minha responsabilidade decidir que ofertas matrimoniais, e já houve várias, merecem sua consideração. Esta não se encontra entre elas. Fleming -Seus olhos se desviaram até um lugar situado atrás dele-. O conde do Rosthorn parte. Acompanha-o à saída.
Gervase assentiu com a cabeça e olhou ao duque com um sorriso torcido antes de dar meia volta e atravessar o aposento até deixar atrás ao mordomo, que estava de pé junto à porta. Continuavasem haver rastro de outros residentes no vestíbulo, salvo o criado de librea. perguntou-se se lady Morgan se inteiraria de que tinha estado em sua casa e de que tinha pedido sua mão em casamento. Estava certo de que não.
Colocou o chapéu ao sair à rua e calçou as luvas enquanto esperava que seu recém contratado lacaio chegasse com seu novo tílburi do lugar onde o tinha deixado estacionado, junto à calçada do parque que ocupava o centro da praça. Devia considerar seu seguinte movimento.
Evidentemente, não tinha por que haver um seguinte movimento. Bewcastle estava aborrecido e devia encontrar o modo de lutar com o escândalo que se convertera na fofoca dos salões de Londres. Tinha recusado uma oferta matrimonial para sua irmã. Assim como tinha feito ela. E lady Morgan tinha sido cortante em sua negativa quando trouxe à luz o assunto em Bruxelas. Mas a coisa não acabava aí, decidiu enquanto se acomodava no alto assento do tílburi e agarrava as rédeas. Ao menos, no referente ao Bewcastle. E tampouco no referente a lady Morgan Bedwyn.

 

Capítulo 13

 


Judith e Rannulf estavam planejando retornar ao Leicestershire e convidaram Morgan a que fosse com eles. A idéia lhe era atraente por vários motivos. Poderia ver sua avó, já que esta vivia com eles. Poderia passar mais tempo com o pequeno William, a quem adorava. E poderia afastar-se de todos os eventos da temporada social, já que muitos deles lhe estavam vetados por causa do luto. Embora tampouco gostaria de participar. Sua primeira temporada social tinha sido muitíssimo menos espantosa do que esperava, certo, mas tinha chegado o momento de virar a página.
Entretanto, houve uma coisa, uma só coisa, que a ajudou a tomar a decisão de ficar até o final, de seguir em Londres até que Wulfric estivesse preparado para retornar ao Lindsey Hall, onde passariam o verão. E foi o descobrimento de que o capitão lorde Gordon havia dito a verdade: corriam um sem-fim de rumores espantosos sobre ela e o conde do Rosthorn. A opinião generalizada assegurava que tinha caído em desgraça e devia afastar-se da sociedade para esconder sua desonra, já que o homem que tinha manchado sua honra não se ofereceu a restaurar seu bom nome levando-a ao altar sem demora.
Tinha descoberto a desagradável verdade enquanto tomava o chá em casa da Freyja e Joshua o dia posterior à missa em memória de seu irmão. Fazia a pergunta e todos os membros de sua família (Wulf não estava presente) admitiram que era verdade. Tinham oculto pela única razão de que estava muito alterada pelo do Alleyne e não queriam acrescentar mais sofrimento a sua dor.
A verdade teve o mesmo efeito que um trapo vermelho que se agitasse frente a um touro. Não ia partir de Londres nem esconder-se da alta sociedade pelo mero fato de que todos esperavam que o fizesse. E sua família, é obvio (com a habitual exceção do Wulfric, que não sabia nada do assunto), aplaudiu sua decisão.
De modo que na manhã seguinte saiu para cavalgar pelo Hyde Park. Lady Chastity Moore e o visconde do Meecham também formavam parte do grupo. Fazia um dia maravilhoso e ela necessitava do exercício depois da desacostumada inatividade das duas últimas semanas. E, sobretudo, Rotten Row era o lugar de moda para os passeios a cavalo matutinos e, portanto, o lugar perfeito onde mostrar-se. Até as pessoas que estavam de luto podiam cavalgar.
Quando entraram em Rotten Row, deu uma olhada a seu redor com o queixo em alto, olhando nos olhos a todas as pessoas com as que se cruzava e saudando com a cabeça aos conhecidos.
Ninguém, comprovou com interesse, deu-lhe as costas. Mas, claro estava, ela era lady Morgan Bedwyn e formava parte de um grupo de cavaleiros eminentemente respeitáveis. Outros podiam fingir que estavam saudando o resto do grupo e que não tinham reparado em sua presença.
Isso não bastava.
-Quem galopa comigo até o final do Rotten Row? -perguntou.
-Tirou-me as palavras da boca, Morg -respondeu Freyja.
-Encanto -começou Joshua com um suspiro exagerado-, suponho que se a proibisse de fazer algo semelhante por causa de seu estado, sentiria-se obrigada a que a corrida fosse de ida e volta, não é? Sim, já imaginava.
Freyja o tinha fulminado com seu olhar mais altivo e além disso contava com a enorme vantagem do proeminente nariz dos Bedwyn para olhá-lo por cima dela.
As duas incitaram seus cavalos rapidamente sem acrescentar nada mais e saíram a galope. Morgan se inclinou sobre o pescoço de seu cavalo e experimentou a maravilhosa sensação da velocidade e do potencial perigo. Claro que Rotten Row não era perigoso. A avenida estava em magníficas condições. Os Bedwyn, a quem adoravam montar rapidamente estendidos, costumavam tomar rotas muito piores em suas freqüentes corridas através do campo. Mas mesmo assim era estupendo desfrutar de novo do ar livre.
Galoparam pelo Rotten Row e se mantiveram cotovelo com cotovelo quase todo o caminho, até que Freyja açulou a seu cavalo e se adiantou ao aproximar-se das portas do Hyde Park Córner, ganhando por uma cabeça. Quando refrearam aos cavalos, ambas riam a gargalhadas. Nesse momento um grupinho de cavalheiros entrou a cavalo pelas portas, que se encontravam a certa distância delas, e Morgan os olhou com o queixo em alto para obrigá-los a saudá-la ou a lhe dar as costas diretamente. Mas seus olhos se detiveram em um dos cavaleiros.
Um cavaleiro que a estava olhando com uma expressão risonha e indolente nos olhos, e a quem achou tão entranhadamente familiar que esteve a ponto de esquecer que estava zangada com ele.
O cavaleiro se separou do grupo e se aproximou até ela.
-Lady Morgan -Tirou o chapéu e a saudou com uma inclinação de cabeça.
-Lorde Rosthorn -Lhe faltava o fôlego pela carreira, disse-se.
De repente, Freyja se esticou em sua montaria.
-Freyja -Olhou a sua irmã com os olhos brilhantes-. Tenho a honra de lhe apresentar ao conde do Rosthorn. Minha irmã, a marquesa do Hallmere, milord.
O conde inclinou de novo a cabeça e Freyja lhe correspondeu com rígido desdém.
-Não sabia que estava na cidade -lhe disse Morgan.
-Pois aqui estou -replicou ele-. Cheguei do Windrush anteontem.
No dia da missa por seu irmão. Isso explicava por que não tinha assistido e por que não tinha ido vê-la durante as duas semanas passadas. Entretanto, estava há dois dias na cidade. Nesse momento lamentou lhe haver sorrido com tanto entusiasmo pouco antes.
-Espero que em seu lar estejam todos bem -disse, em um alarde de decorosa dignidade.
-Assim é -Seu olhar risonho estava cravado nela como se estivessem compartilhando uma brincadeira privada, e isso a levou a pensar em seu primeiro encontro, quando chegou à conclusão de que lorde Rosthorn era um libertino e um descarado.
Então o resto do grupo já as tinha alcançado e teve que fazer as apresentações de rigor. Como era de esperar, todos os homens se crisparam. depois de tudo, esse era o cavalheiro que tinha provocado os infames rumores que corriam sobre ela. Eve se mostrou amável e efusiva como era de esperar, também Judith e Chastity se mostraram muito civilizadas. Lorde Rosthorn esteve encantador.
Os cavaleiros que o acompanhavam tinham entrado no Rotten Row a essas alturas e eles não tinham mais remédio que retornar por onde tinham chegado. O conde se colocou a seu lado quando empreenderam a marcha e sua família formou um formidável círculo protetor em torno deles. Foi precisamente nesse momento quando caiu na conta de que o encontro estava despertando muita curiosidade no resto dos cavaleiros, quem desfrutaria contando-o em todos os salões de Londres com o passar do dia.
As circunstâncias lhes permitiram entabular uma conversa medianamente privada.
-Chérie -lhe disse ele em voz baixa-, Sentiu falta de mim?
-Importava para ela ? -mais do que estava disposta a admitir, inclusive para si mesma. Vê-lo de novo lhe tinha provocado uma entristecedora sensação, tinha despertado seus sentidos, suas lembranças. A seus olhos era um homem bonito, atraente e viril. Um amigo muito querido. E também um amante a quem tinha perdido fazia muito tempo. O ar entre eles parecia crepitar da emoção-. estive muito ocupada com outros assuntos para lhe dedicar mais de um pensamento fugaz, lorde Rosthorn.
-Ah! -levou uma mão ao coração um instante-. Me destroçou. Eu senti sua falta.
Morgan lhe lançou um olhar altivo e receoso. Voltava a paquerar com ela, a rir dela, como se não tivesse passado absolutamente nada desde aquela infame janta campestre no bosque do Soignes.
-Seriamente? -perguntou-lhe com voz fria, inclusive desinteressada-. Chegou a Londres anteontem, não, lorde Rosthorn? Nesse caso, suponho que não estava no Bedwyn House quando você foi ver-me ontem.
-Suponho que assim foi, chérie -conveio ele-. Certamente eu não a vi, embora estive cinco minutos esperando no vestíbulo até que seu irmão me fez entrar na biblioteca.
Morgan desprezou a atitude altiva e o olhou estupefata.
-Foi ver o Wulfric ontem?
Tinha cumprido o que dissera em Bruxelas? Tinha pedido sua mão?
-Assim é -respondeu ele-. Mas, enfim, ordenou a esse sóbrio mordomo dele que me pusesse de patinhas na rua e isso teria feito o tipo se eu não tivesse saído correndo antes de que pudesse arregaçar-se sequer. Bewcastle não me deu permissão para cortejá-la, chérie.
-Não lhe deu permissão? -repetiu, soprando pelo nariz. Acabava de esquecer que tampouco ela queria que a cortejasse-. E lhe explicou o motivo? Suponho que se deve a que o culpa de todos os estúpidos comentários que correm sobre nós.
-Talvez -Lhe sorriu-. Ou talvez porque minha reputação estava um pouco deslustrada inclusive antes de envolvê-la em um escândalo.
-Isto é absurdo -disse ao mesmo tempo que dava uma olhada a seu redor e percebia uma vez mais de que se encontravam em um lugar muito público e de que tinham chegado virtualmente ao final do Rotten Row-. Não tem nem pés nem cabeça.
-Preocupa-me que sua reputação tenha ficado manchada, chérie -assegurou lorde Rosthorn-. Se pudesse, poria- remédio à situação.
-Mas é absurdo -repetiu-. Ninguém sabe até que ponto valorizei sua amizade em Bruxelas.
-Mas fomos algo mais que amigos, MA petite -acrescentou ele, baixando a voz.
-Lorde Rosthorn -replicou-, seria melhor que ambos nos esquecêssemos disso.
-Ah! -exclamou-. Está pedindo o impossível, não lhe parece?
Foi um alívio ver que já tinham chegado ao final do caminho. Seus escassos minutos em relativa intimidade tinham acabado. Rannulf tinha o olhar cravado no conde e Aidan avançou até colocar-se junto a ela. Os acompanhantes de lorde Rosthorn o aguardavam a escassa distância.
O conde se dirigiu a Freyja.
-Lady Hallmere -disse-, talvez você opine como minha mãe, que assegura que a melhor defesa contra o escândalo e os rumores é um ataque. Ela estaria encantada de recebê-la manhã pela tarde para tomar o chá, acompanhada de lady Morgan e lady Chastity e, é obvio, de lady Eve e lady Judith. Soube que conhece minha mãe, milady.
Freyja o olhou com aprovação.
-Assim é -lhe assegurou-. E neste caso concreto coincido com sua mãe, por muito que despreze os rumores. Estou segura de que sabe que Morgan só tem dezoito anos e acaba de ser apresentada em sociedade, lorde Rosthorn. Iremos ao Pickford House para tomar o chá amanhã pela tarde.
-E eu também irei -disse Eve-. Por favor, milord, agradeça à condessa do Rosthorn por seu amável convite.
-Rannulf e eu retornamos ao Leicestershire amanhã -explicou Judith-. Se não se importar, diga a sua mãe que sinto muito não poder aceitar seu convite, lorde Rosthorn.
Morgan não disse nada.
-Nesse caso, desejo-lhes que tenham um bom dia -disse lorde Rosthorn a modo de despedida-. Lady Morgan? -tocou a aba do chapéu com o chicote e se reuniu com seus amigos sem olhar para trás.
Por que tinha recusado Wulfric sua proposta?, perguntou-se Morgan. Ao fim e ao cabo, era o conde do Rosthorn. Não um dom Juan. E não deveria esquecer o estúpido escândalo no qual se haviam visto envolvidos.
-Seguimos com o passeio ou vamos ficar olhando ao conde do Rosthorn toda a manhã? -perguntou Freyja.
-Foi ver o Wulfric ontem -comentou Morgan, sem afastar a vista dele -.pediu minha mão, mas Wulf recusou sua proposta.
Como não podia ser de outro modo, todos os Bedwyn tinham uma opinião a respeito.
-Pois acaba de ganhar pontos a meus olhos -disse Rannulf.
-Refere ao Rosthorn ou ao Wulfric? -quis saber Joshua.
-E Wulf nem sequer lhe disse, Morg? Típico dele -afirmou Freyja com desdém.
Eve sorriu.
-É encantador.
-Eu adoro seu sotaque francês -acrescentou Chastity.
-É muito bonito, não é verdade? -perguntou-lhes Judith ao mesmo tempo que lançava um sorriso malicioso a Rannulf.
-É muito velho para Morgan -replicou este com contundência-. Você não gosta dele, não é verdade, Morg?
-Não o entendem -disse ela-. Ninguém o entende. Foi... É meu amigo -Mesmo assim, não podia tirar da cabeça a veemência com a qual tinha procurado consolo em sua casa aquela noite e a veemência com a que ele o tinha devotado. Não houve nada romântico, nem terno, não houve amor nem sequer amizade. Mas houve algo que os uniu, e era incapaz de esquecê-lo sem mais. Não compreendeu que poderia ter concebido um filho durante o encontro até que lhe chegou a menstruação uma semana antes. Se tivesse sido o caso, sua vida teria mudado para sempre.
Por absurdo que parecesse, estava à beira do pranto.
-Vamos cavalgar outra vez pelo Rotten Row, Morgan -lhe sugeriu Aidan-. Assim poderá me contar tudo o que aconteceu em Bruxelas. E por que Rosthorn é seu amigo.
-Vai escutar me? -perguntou-lhe com secura. Ninguém escutava de verdade, e muito menos quando a pessoa que falava tinha só dezoito anos.
Entretanto, tinha sido injusta com o Aidan. Seu irmão sempre tinha sido muito seco, inclusive sério, em sua relação com outros. Continuava sem sorrir muito apesar de estar felizmente casado com Eve. Não o tinha visto muito enquanto crescia porque sempre tinha estado fora com seu regimento, combatendo aos franceses. Mas sempre o tinha adorado, talvez mais que ao resto de seus irmãos. Cada vez que voltava para casa, arrumava tempo para estar com ela, para fazer coisas que gostava, como pintar ao ar livre sem a incômoda presença de sua preceptora, que não deixava de olhá-la por cima do ombro enquanto pintava. E sempre a tinha escutado como se fosse uma pessoa, não como sua pesada irmã pequena.
-Escutarei-a- respondeu com seriedade-. Vamos. Daremos um passeio.
Gervase retornou a casa para tomar o café da manhã em lugar de ir ao White"s tal como tinha sido sua intenção a princípio. Sua mãe e Henietta já estavam sentadas à mesa. Deu um beijo a sua mãe na face e um apertão no ombro a sua prima antes de sentar-se e deixar que o mordomo lhe enchesse o prato.
-Amanhã à tarde virão algumas damas para tomar chá com você, mamam -comentou de passagem depois de trocar os comentários de rigor.
-Sério, mon fils? -perguntou ela-. E poderei saber de antemão quem são?
-A marquesa do Hallmere com sua irmã -respondeu-, lady Morgan Bedwyn, sua cunhada, lady Bedwyn, e a prima do Hallmere, lady Chastity Moore.
-Ah, Gervase -replicou sua mãe-, é um grupo de damas formidável. E acredito que uma delas é a jovem cujo nome está vinculado ao seu de uma forma absolutamente aduladora.
-Já vejo que escutou os rumores -disse ele enquanto cortava uma salsicha-. São todos infundados. Tive a honra de lhe oferecer meu amparo quando sua acompanhante retornou a Inglaterra e a deixou em Bruxelas. Lady Morgan ficou ali para atender aos feridos e esperar notícias de seu irmão, que partiu para o Waterloo com a missão de entregar uma carta urgente ao duque do Wellington, mas não retornou. Depois que lhe notificarem a morte de lorde Alleyne Bedwyn, tive a honra de acompanhá-la, a ela e a sua criada, de volta a Inglaterra.
-E, mesmo assim -o interrompeu sua mãe-, os rumores são espantosos. Ninguém me disse nada diretamente, é obvio, mas a Henrietta a entretiveram com uma sórdida e detalhada recontagem dos fatos durante o concerto que aconteceu ontem à noite em casa da senhora Ertman. Não é assim, ma chérie?
-Neguei-me a acreditar que tivesse agido de forma desonrosa, Gervase -disse sua prima-. Defendi-o na medida do possível sem conhecer os fatos.
-Obrigado -Sorriu-. Me ocorreu aplacar o rumor demonstrando a todo mundo que se dá bem com lady Morgan Bedwyn e com sua família, mamam. Poderia convidar também a outras damas a tomar o chá.
-Como as damas do comitê organizador do Almack’s, por exemplo? -sugeriu sua mãe com uma nota sarcástica na voz-. Gervase, por que não pediu a mão da moça? Isso seria o correto depois de ter manchado seu bom nome, embora não fosse essa sua intenção.
- Fiz isso - assegurou-. Bewcastle recusou minha proposta e nem sequer me permitiu cortejá-la.
-Não lhe permitiu isso? -Sua mãe o olhou durante um bom tempo com expressão de aço, esquecendo a torrada que tinha no prato-. E lhe foi satisfatório enfrentar a ele, Gervase? Foi para ele satisfatório recusá-lo? Não mudou nada, não se solucionou nada?
Estava tentando desentranhar suas próprias intenções desde o dia anterior. Tinha sido uma surpresa encontrar-se com lady Morgan tão cedo, embora tinha planejado procurá-la. E assim que a viu, lhe ocorreu o modo de suavizar, talvez, o escândalo. Seria muito conveniente que sua mãe recebesse a lady Morgan e a sua irmã à vista de outras damas. E ao mesmo tempo enfureceria ao Bewcastle, que se veria no dilema de permitir a assistência de sua irmã ou de lhe fazer um desaforo a uma dama do calibre social de sua mãe.
Ver lady Morgan no parque lhe tinha provocado uma onda de ternura. Assim como uma reação física muito potente que ultrapassava muito a mera atração.
Tinha a possuído. Tinha estado em seu interior. Conhecia-a. Entretanto, a avalanche de sentimentos não lhe fez nem um pingo de graça. Teria gostado de utilizá-la sem remorsos para vingar-se do Bewcastle. Mas ela era uma pessoa, e com independência dos sentimentos que despertava nele, caía-lhe bem. Inclusive a admirava.
-Pedi sua mão porque tinha comprometido à dama -explicou-. Bewcastle rechaçou a proposta por motivos dos que não me fez partícipe.
Sua mãe continuou olhando-o com seriedade.
-E sente algo por esta dama, Gervase? -perguntou-lhe-. Estão seus sentimentos por ela mais à frente da honra? Afeiçoou-se a ela?
-Sim, tenho-lhe carinho -admitiu-. Mas não imagine que é uma poética história de amor, mamam. Ela é muito jovem e eu já estou de volta de tudo. Fomos amigos em Bruxelas, obrigados pelas circunstâncias. E aqui na Inglaterra, onde ela está com sua família e eu com a minha, não podemos reviver essa amizade. Meu único desejo é limpar sua reputação.
Mas sua mãe levou as mãos ao peito e o estava olhando com um sorriso deslumbrante.
-Não sabe o que diz, Gervase -lhe assegurou-. Que idiotas são os homens! Sente algo por lady Morgan Bedwyn, a quem não vi na vida. Mas o vou remediar. Amanhã a receberei nesta casa e o farei saber se a considero digna de meu filho ou não. Se me dessem a oportunidade, escolheria a qualquer outra mulher antes de uma Bedwyn, mas o amor nem sempre pode se escolhe de forma racional. Por fim se escutaram minhas orações, por fim vou ver, felizmente, casado a meu primogênito.
Gervase apelou da ajuda de sua prima com um olhar silencioso. Henrietta lhe sorriu.
-Não o envergonharei com uma demonstração de entusiasmo, Gervase -lhe disse-,mas quero que saiba que nada me alegraria mais que vê-lo por fim feliz.
Chastity partiu com lorde Meecham, já que foram tomar o café da manhã com a irmã do visconde. Freyja e Joshua acompanharam os outros ao Bedwyn House. Wulfric se reuniu com eles à mesa antes de que tivessem começado a comer.
-Encontramo-nos com o conde do Rosthorn no parque -anunciou Freyja. Jamais tinha sido partidária de andar às escondidas. - E nos convidou , em nome da condessa, para tomar o chá amanhã à tarde no Pickford House. Eve e Morgan irão em minha carruagem, Wulf, assim não é preciso que dê nenhuma ordem.
-Muito considerado de sua parte, Freyja -replicou seu irmão ao mesmo tempo que colocava o guardanapo no regaço-. Sem dúvida, Joshua e Aidan deram permissão a você e ao Eve para que aceitem o amável convite. Eu não recordo ter dada permissão para que Morgan as acompanhe.
-Como se necessitasse a permissão do Joshua para fazer o que gosto! -replicou Freyja, fulminando a seu marido com o olhar como se as retrógradas palavras tivessem saído de seus lábios-. E por que vai negar a permissão à Morgan, Wulfric?
-Suponho que sua pergunta é retórica -replicou ele enquanto erguia levemente a sobrancelha para indicar ao mordomo que lhe servisse o chá-. O conde do Rosthorn não é companhia apropriada para nenhum membro desta família. Carece da reputação de um cavalheiro e a despreocupação de que tem feito demonstração na hora de envolver ao Morgan em um escândalo desnecessário o demonstra. Preferiria que enviasse suas desculpas à condessa.
-Em minha opinião, Wulf -interveio Rannulf enquanto Morgan tomava ar para falar-, deveríamos nos mostrar cordiais com lady Rosthorn pelo bem de Morgan. Se se correr a voz de que a condessa a convidou a sua casa, os rumores sossegarão por si mesmos sem dúvida alguma. Logo serão substituídos por algo muito mais suculento.
-Receio que tenho que lhe dar razão -disse Joshua-. E também me vejo na obrigação de recordar que Freyja continua sendo a madrinha de Morgan até que chegue o fim a primeira temporada social. Se lhe parece adequado aceitar o convite e levar Morgan ao Pickford House, deve considerar um convite irreprochável.
Wulfric estava dando boa conta de um enorme café da manhã, como se estivessem tratando de um assunto da mesma irrelevância que o tempo.
-Incomoda-me muito que todo mundo fale de mim como se eu não estivesse presente para fazê-lo por mim mesma -disse ela ao mesmo tempo que soltava o garfo e a faca na mesa sem muitos cuidados, já que, de qualquer forma, não tinha comido nada-. Wulf, se tiver alguma objeção, seja objetiva ou pessoal, contra o conde do Rosthorn, dê-a sem rodeios. Se não for assim, a única coisa que pode esgrimir em seu contrário é que permaneceu a meu lado em Bruxelas quando os Caddick me abandonaram, que me acompanhou a casa da senhora Clark e que se encarregou de mudar meus pertences. E depois pôs a minha disposição seu tempo e seu esforço para tentar averiguar o que tinha acontecido ao Alleyne. E me acompanhou sempre que precisava respirar um pouco de ar e fazer exercício depois de estar atendendo aos feridos para que não me visse obrigada a fazê-lo sozinha. E que, uma vez que o ajudante de sir Charles Stuart me comunicou que tinham encontrado a carta que levava Alleyne, contratasse uma criada e me trouxe para casa em pessoa, embora não acredito que tivesse pensado retornar a Inglaterra tão logo. Essas são suas razões para acusá-lo de não ser um cavalheiro, Wulf? Essas foram suas razões para rechaçar a proposta que fez ontem e para lhe negar a permissão de me cortejar?
-Bravo, Morg! -exclamou Rannulf.
Judith lhe tinha pego a mão que tinha sobre a mesa. Deu-lhe uns tapinhas para reconfortá-la.
-Ah-replicou Wulfric, erguendo a vista do prato um instante-, assim que o deixou cair durante a conversa, não?
-Sim -lhe respondeu-. Teria rejeitado a ele, Wulf. Não parou para pensá-lo? Nunca aceitaria que um homem se visse obrigado a casar-se comigo por uma questão de honra. E nunca aceitarei a um homem ao que não queira com toda minha alma. Mas me incomoda muito que nem sequer me desse a oportunidade de escolher meu futuro. Incomoda-me muitíssimo..
Seu irmão a olhou em silencio com as sobrancelhas arqueadas.
-Talvez tenha esquecido, Morgan -lhe disse enquanto levava a taça de chá aos lábios fazendo demonstração de um pulso abominavelmente firme-, que tem dezoito anos e que até que alcance a maioridade sou eu quem tem que tomar as decisões importantes concernentes a seu futuro.
-Como vou esquecê-lo? -exclamou ao mesmo tempo que arrojava o guardanapo sobre a mesa depois de ter descartado a idéia de fingir que ia comer-. Isso quer dizer que sou proibida de ir a casa da condessa para tomar chá? Que me vai encerrar em meu quarto a pão e água?
Wulfric deixou seus talheres na mesa e a olhou com frieza.
- As manhas de criança sempre me pareceram muito tediosas -disse-. Mas, tal como Joshua acaba de assinalar, Freyja é sua madrinha durante esta primeira temporada. Se ela acreditar que é uma relação apropriada para você, não tenho nada mais a acrescentar.
-Acredito que é uma decisão magnífica, Wulfric -replicou Eve, coisa que atraiu o surpreendido olhar de seu irmão-. É evidente que quer evitar que Morgan seja enganada por um homem sem princípios, mas o mais importante é sossegar de algum modo o absurdo escândalo que surgiu.
-Certamente -respondeu ele.
-Além disso -continuou sua cunhada-, Morgan é tão sensata como qualquer de nós e estou segura de que sempre se comportará de um modo adequado a seu sobrenome e a sua posição social.
-Postos a pensá-lo, isso não tranqüiliza muito, não acha, Eve? -replicou Rannulf com um sorriso.
-Planejamos levar as crianças a ver monumentos esta tarde -disse Aidan-. Becky quer ver o pagode dos jardins do Kew. Davy quer ver os leões da Torre. Alguma idéia de como podemos agradar aos dois?
A conversa tomou outros roteiros e Morgan agarrou a faca e o garfo para atacar seu café da manhã depois de lançar um olhar agradecido ao Aidan, que lhe valeu uma piscada como resposta.

 

 

Capítulo 14

 


Gervase decidiu que ao ano seguinte devia ocupar o lugar que lhe correspondia por direito na Câmara dos Lordes. Todos seus pares se encontravam ali e se sentiam inclinados a tratá-lo com distante cortesia no melhor dos casos; como a alguém, talvez, que não levava muito a sério suas responsabilidades. Os cavalheiros com os que se acotovelava eram, por regra geral, antigos companheiros de juventude que continuavam levando uma vida ociosa, embora a essas alturas já tinham passado a um plano no qual estavam aborrecidos e enfastiados de tudo.
E que o tinham elevado ao pedestal por suas andanças no continente e pelas circunstâncias que tinham rodeado sua volta a Inglaterra. A manhã que se encontrou com lady Morgan no Hyde Park, ele mesmo lhe tinha confessado a sua mãe que se sentia enfastiado de tudo. Também estava aborrecido e fazia nove anos sem fazer nada. Mesmo assim, tinha a impressão de ser muitíssimo mais velho, ao menos em experiência, que seus acompanhantes, a quem tinha deixado de considerar seus amigos. Tinha chegado o momento, ou isso supunha, de assentar cabeça e de ganhar o respeito de seus pares. Incomodava-lhe muitíssimo que tivesse que ganhá-lo a pulso, que lhe tivessem arrebatado tanto seu bom nome como nove anos de sua vida; entretanto, se deixasse levar-se pela amargura, só conseguiria perder mais tempo. Não obstante, Bewcastle era seu calcanhar de Aquiles. Parecia incapaz de esquecer seu desejo de o prejudicar. Sua mãe tinha convidado a algumas damas de seu círculo de amizades para tomar o chá no Pickford House na mesma tarde que ele convidara às Bedwyn. Em um primeiro momento, nem lhe passou pela cabeça somar-se à reunião. Foi sua mãe quem lhe assinalou quão apropriado seria que o fizesse.
-É importante que os vejam juntos - explicou-, guardando as aparências e sob o olhar benevolente de sua mamam.
De modo que Gervase entrou no salão enquanto as damas tomavam o chá. A sala parecia estar repleta de mulheres vestidas na última moda; era bastante intimidante ser o único homem da reunião. Sua mãe estava sentada em um sofá colocado perto da chaminé junto a lady Morgan, cuja juventude e beleza ficavam ressaltadas pela cor negra de seu vestido. Fez-lhes uma reverência a ambas, beijou a mão de sua mãe e, depois de perguntar a lady Morgan por sua saúde, deu meia volta para conversar com o resto das presentes.
Embora não houvesse nenhuma pausa como tal nas conversas, supôs que todos os olhos tinham estado pendentes de sua aproximação a lady Morgan Bedwyn e todos os ouvidos se haviam aguçado para não perder nenhuma só das palavras que trocaram. Não lhe havia a menor dúvida de que esse encontro seria o assunto de conversa da noite nos jantares, no teatro, nos bailes e nos salões.
Teriam posto fim ao escândalo? Ou se esperava um anúncio formal de compromisso antes de que as duas partes implicadas no escândalo fossem admitidas novamente no redil?
Durante a meia hora seguinte, Gervase pôs muito cuidado em trocar algumas palavras com todas e cada uma das presentes. Descobriu que gostava da marquesa do Hallmere apesar de sua altivez e que também gostava de sua incomum embora atraente aparência; era baixa e tinha uma exuberante e indomável juba loira, sobrancelhas escuras e o proeminente nariz que também caracterizava a seus irmãos. Falaram sem disfarces de um bom número de questões e não se incomodou em ocultar o fato de que o estava avaliando pelo bem de sua irmã.
Lady Bedwyn era uma dama agradável, amigável e bonita que o surpreendeu quando agradeceu à criada que se aproximara para retirar a bandeja do chá com um cálido sorriso. Lady Chastity Moore era uma jovem sensata e bonita.
As Bedwyn foram as últimas em partir.
-Gervase, a marquesa do Hallmere nos convidou, a Henrietta, a você e a mim, ao baile que vai celebrar dentro de três dias - disse sua mãe-. Não é maravilhoso?
Olhou à marquesa um tanto surpreso. Não esperava que depois da atuação dessa tarde, planejada para sossegar os rumores, os Bedwyn queriam respirar mais encontros entre lady Morgan e ele.
-O baile é em honra do compromisso do Chastity com o visconde do Meecham –lhe explicou a marquesa-. Os dois queriam que o cancelássemos pela recente morte de meu irmão, mas Hallmere e eu decidimos que seria injusto. Assim continua em pé.
-Estaremos encantados de ir, senhora -assegurou ele enquanto olhava de soslaio a lady Morgan, que continuava em seu papel de grande dama arrogante, o mesmo que levava interpretando toda a tarde. Esboçou um sorriso torcido só para ela.
-Evidentemente -acrescentou a marquesa, lhe lançando um olhar penetrante; um olhar que devia ser coisa de família, decidiu-, os Bedwyn não poderão dançar já que estamos de luto.
A dama ficou em pé para partir e sua irmã, sua cunhada e lady Chastity a imitaram na hora.
Gervase percebeu que sua mãe entrelaçava o braço com o da marquesa e de que Henrietta se colocava entre lady Bedwyn e lady Chastity. De modo que ele, rindo -interiormente pela evidente manobra, ofereceu o braço a lady Morgan. Sua mãe, concluiu, devia aprovar à moça.
Houve um lapso de uns dois minutos de tempo no qual se encontraram virtualmente sozinhos, já que sua mãe se deteve com o resto das damas na parte superior da escadaria para apontar um detalhe de um retrato familiar.
-Incomodaria-lhe que fosse ao baile que celebram sua irmã seu cunhado, chérie? - perguntou.
-Não, por que ia incomodar me? -Seus olhos o olharam com um brilho peculiar e deduziu que os Bedwyn deviam ter mantido uma acalorada discussão sobre sua pessoa.
-Qual a opinião do duque do Bewcastle sobre o convite para que você viesse ao chá esta tarde? -quis saber.
-Estou aqui, não? -replicou ela.
-E qual opinião dele sobre que eu vá ao baile? -voltou a perguntar.
-Pelo que sei -respondeu lady Morgan-, não está a par. Por que ia estar? Não é ele quem o organiza.
-Mas, depois de tudo -assinalou-, talvez não concorde. Nem sequer poderei dançar uma valsa com você, chérie.
-Qual é o motivo de que Wulfric se oponha de forma tão cortante a sua corte, lorde Rosthorn? -perguntou-lhe ela, virando a cabeça para lhe lançar uma dessas olhadas tão penetrantes-. Ao fim e ao cabo, é um conde e, se nos atemos às normas que regem a sociedade em que vivemos, você se comportou como um cavalheiro honorável e pediu minha mão em matrimônio. Por que meu irmão o odeia tanto?
-Chérie -respondeu-, por que ia odiar ao homem que converteu a sua irmã no alvo de todas as fofocas? Não pode tratar-se de um simples rechaço? Sente-se desiludida, então? Teria aceito minha proposta?
-Sabe muito bem que a teria rejeitado - respondeu ela com expressão desdenhosa.
Gervase lhe sorriu.
-Nesse caso, Bewcastle fez um favor a ambos -replicou-. Salvou-lhe de um momento embaraçoso e a mim de acabar com o coração destroçado. Com a pergunta oficialmente sem formular e, portanto, sem resposta oficial, ainda restam esperanças.
-Está-se comportando de um modo ridículo -protestou lady Morgan, franzindo o cenho-.Preferia quando era meu amigo da alma.
Já tinham saído à rua e o resto das damas os tinha alcançado. Ajudou a lady Morgan a subir à carruagem do marquês do Hallmere e se virou para fazer o mesmo com as demais.
-Mon fils -lhe disse sua mãe, que o agarrou pelo braço quando a carruagem se sacudiu antes de se por em marcha-, é uma criatura absolutamente encantadora. Estarei muito contente de ceder o título a lady Morgan Bedwyn.
-Asseguro, mamam -replicou ao mesmo tempo que lhe dava uns tapinhas na mão e piscava um olho a Henrietta-, que não se verá obrigada a fazer semelhante sacrifício. Bewcastle recusou minha proposta, se por acaso não o recorda.
Mas não lady Morgan, pensou. Ainda não. E ia voltar a vê-la sob o escrutínio da alta sociedade. Em um baile, nada mais e nada menos.
Observou como se afastava a carruagem com os olhos entrecerrados. Havia-lhe dito que não poderia dançar uma valsa com ela porque estava de luto? Isso estava por ver-se.
Morgan tinha saído para cavalgar todas as manhãs. Tinha assistido a missa com sua família. Tinha visitado algumas galerias de arte com o Eve e Aidan, com quem também tinha ido ao Gunter’s na tarde que levaram os meninos para que tomassem um sorvete. E, é claro, tinha tomado o chá no Pickford House, onde ficou surpresa ao descobrir outras convidadas além das damas de sua família.
Até o momento ninguém lhe tinha dado as costas abertamente. Embora as convidadas ao chá lhe tinham parecido um tanto distantes, também era certo que se comportaram com suma educação. E ninguém tinha tido muitas oportunidades de desprezá-la, já que a condessa do Rosthorn não se afastara dela em toda a tarde. A dama lhe tinha parecido encantadora. Também tinha o ligeiro sotaque francês que caracterizava a seu filho. Claro que um baile era outra coisa muito distinta. Ali descobriria se o escândalo tinha afetado a sua posição no beau monde. Embora o assunto não lhe importasse. Se a alta sociedade estava cansada de sua presença, ela estava até o pescoço de todos eles ou isso se dizia. Morriade vontade para que a temporada acabasse para retornar a casa, à estabilidade do Lindsey Hall. Embora, admitia para si mesma quando baixava a guarda, ia parecer um tanto aborrecido e monótono depois de tudo o que lhe tinha acontecido desde que partira da propriedade na primavera.
Arrumou-se com muito esmero para o baile. Não podia usar nenhum de seus vestidos mais bonitos, é obvio; claro que quase todos eles eram brancos e os aborrecia. Não poderia dançar; claro que dançar com todos esses jovenzinhos que estavam acostumados a pulular pelos salões de baile londrinos nunca lhe tinha chamado a atenção. Observou como sua nova criada dava os últimos retoques a um coque no alto da cabeça de onde caíam uma profusão de caracóis, alguns dos quais lhe emolduravam o rosto e lhe acariciavam o pescoço, e decidiu que gostava da forma em que lhe arrumava o cabelo.
Não poderia dançar. Recordou com nostalgia a valsa que dançou debaixo da piscante luz das lanternas e das estrelas no bosque do Soignes e sentiu uma pontada de remorso por desejar repetir a experiência quando fazia tão pouco tempo que Alleyne os tinha deixado. Ele tinha ido a esse jantar. Tinha-lhe dado uma boa reprimenda por permitir que o conde do Rosthorn monopolizasse seu tempo.
Era incapaz de assimilar que jamais voltaria a vê-lo.
Eve e Aidan viajavam de costas ao cocheiro na carruagem ducal; ela, em troca, o fazia frente a eles, ao lado do Wulfric. Enquanto sua família conversava, perguntou-se se Wulfric saberia que o conde do Rosthorn estava convidado para o baile.
Ao longo dos últimos dias tinha chegado à conclusão, embora havia custado bastante, de que estava ligeiramente apaixonada por ele. Não, isso era enganar-se a si mesma. Sentira-se atraída por ele desde o começo. E depois, quando descobriu ao homem inteligente e compassivo que se escondia atrás dessa fachada de libertino, chegou a respeitá-lo e a apreciá-lo. E por último, quando foi a ele aflita pela reação que lhe produziu a morte do Alleyne, tinham compartilhado a maior das intimidades. Embora não tinha sido esse fato em concreto o que a tinha levado a apaixonar-se por ele, sim que a tinha ajudado a compreender que se estava enganando ao pensar no conde do Rosthorn como em um amigo e nada mais. Era muito mais que um amigo. A carruagem se deteve depois da fileira de veículos que aguardavam seu turno para chegar às portas de entrada da mansão de Joshua, em Berkeley Square.
-Sem dúvida, Freyja e a tia Rochester farão os acertos pertinentes para te apresentar esta noite a algum cavalheiro de sua idade, Morgan -lhe disse Wulfric-. Nossa posição social é, ao fim e ao cabo, muito preeminente para que uma simples fofoca a converta em uma indesejável. Talvez não possa dançar, mas poderá passear e conversar com os ditos cavalheiros.
- Desde que nenhum deles seja o conde do Rosthorn, suponho -replicou.
Seu irmão virou a cabeça para olhá-la com as sobrancelhas arqueadas.
-Está convidado - informou- junto com a condessa e a senhorita Clifton, sua prima.
-Ah! -exclamou Wulfric em voz baixa-. Curioso que ninguém tenha resolvido por bem me informar deste detalhe até agora.
-Por que teriam que fazê-lo? -perguntou ela-. O baile foi organizado por Freyja e Joshua.
-Certamente -replicou seu irmão, baixando ainda mais a voz.
Deu-se conta nesse momento, de que o conde do Rosthorn não tinha respondido a sua pergunta, mas sim a tinha evitado antes de mudar de assunto. Tinha perguntado pelos motivos do Wulfric para odiá-lo.
-É conveniente, Wulf -interveio Aidan-, que vejam Morgan e Rosthorn juntos em um evento desta natureza para acabar de uma vez por todas com o escândalo.
Um lacaio abriu a portinhola da carruagem e desdobrou os degraus. Wulfric a ajudou a descer até o tapete vermelho que tinham estendido sobre os degraus de entrada e a calçada.
Evitou o olhar daqueles penetrantes olhos prateados. Ergueu o queixo e esboçou um sorriso enquanto seu irmão a acompanhava ao interior da mansão, passavam pela linha de recepção e entravam no salão de baile, onde a deixou aos cuidados da tia Rochester, mais formidável que nunca, vestida de cetim negro e com um monstruoso turbante da mesma cor adornada com plumas. Inclusive o cabo de seus óculos engastados com pedras preciosas era negro. Preparou-se para suportar o que esperava que fosse uma noite tediosa. E, de fato, não começou com pé direito. Sua tia apresentou a dois cavalheiros, um atrás do outro, que eram justo o tipo de jovenzinhos desajeitados, cobertos de acne e incapazes de articular palavra que sempre imaginou que conheceria durante sua primeira temporada. Cavalheiros de sua mesma idade, ou com alguns anos a mais quando muito, com quem se supunha que devia sentir-se confortável e a quem também se supunha que deveria considerar como possíveis candidatos a marido.
Isso bastou para que lhe desse vontade de gritar, sobretudo porque nem sequer podia dançar para fazer com que o tempo passasse mais depressa e, em troca, via-se obrigada a permanecer sentada em um sofá, primeiro com um cavalheiro e depois com o outro, e a manter uma conversa tão forçada e sem substância que em duas ocasiões foi o santo ao céu em metade de uma frase. Mesmo assim, as boas maneiras a obrigavam a sorrir e a abanar o rosto enquanto aparentava que não tinha passado melhor na vida.
Foi no meio da segunda dança do baile quando o conde do Rosthorn fez sua aparição, acompanhado de sua mãe e sua prima. Estava esplêndido, decidiu, ao vê-lo vestido de cinza, prata e negro. Entretanto, nem sequer podia permitir o luxo de que seus olhos se dessem um festim com ele. Era muito consciente dos murmúrios que sua chegada tinha suscitado no salão. Sua chegada já tinha causado bastante sensação por si, mas nesse momento os dois protagonistas do escândalo mais caloroso estavam no mesmo salão. O baile da Freyja seria considerado um êxito terminante no dia seguinte.
O conde desapareceu enquanto sua mãe e sua prima se uniam a um grupo de pessoas. Não obstante, retornou ao final da peça e atravessou o salão com sua mãe para saudar a tia Rochester.
-Ah! É você, Lisette? -perguntou a tia Rochester, que levou os óculos ao rosto enquanto o conde fazia uma reverência-. Não a vi nesta temporada. Supus que tinha ficado no Windrush. O que faz para se manter tão jovem?
-É muito amável -respondeu a aludida-, mas isso o diz porque não me viu de perto, e muito menos à luz do dia, mon amie. Posso me sentar consigo? Henrietta está com uns amigos.
- Lady Morgan, mon enfant, mesmo vestida de negro eclipsa ao resto das damas do baile. Me permita que lhe dê um beijo na face - Uma vez que o fez, a condessa se virou para sua tia-. Com sua permissão, tenho o prazer de te apresentar a meu filho, o conde do Rosthorn.
A tia Rochester o observou através dos óculos , e as plumas de seu toucado só se moveram um centímetro no máximo em resposta à apresentação.
-Você é o patife que contratou os serviços de uma criada para minha sobrinha sem lhe perguntar sequer se enjoava durante as travessias em navio, não? -perguntou a lorde Rosthorn-. E o mesmo que depois se passou toda a viagem na coberta enquanto que a moça jogava o fígado no camarote, conforme soube.
-Caramba, senhora! -exclamou o conde-. Me declaro culpado. Mas o que ia fazer? Ficar também em meu camarote e me fingir indisposto? Deixar a lady Morgan em Bruxelas aos cuidados de uma dama que estava a ponto de partir a Paris para reunir-se com seu marido? Lady Morgan precisava retornar ao seio de sua família.
-Lorde Rosthorn foi incrivelmente amável comigo, tia -interveio Morgan, consciente de novo de que, embora ninguém parecia estar prestando especial atenção a seu reduzido grupo, em realidade todos estavam pendentes do que acontecia. Era uma arte no que se sobressaíam todos os membros da alta sociedade; ser capazes de fazer duas coisas de uma vez.
Assim era como as más línguas se mantinham afiadas.
-Senhora -disse o conde do Rosthorn à tia da jovem-. Com sua permissão, eu gostaria de convidar a lady Morgan a dar um passeio pelo salão de baile.
Wulfric não estava no salão de baile, comprovou ela depois de dar uma rápida olhada ao aposento. Conteve o fôlego enquanto abanava o rosto com atitude despreocupada. A tia Rochester era uma acompanhante muitíssimo mais formidável que lady Caddick.
-Muito bem, jovem -replicou depois de submetê-lo a um novo escrutínio com os óculos. Só era uma amostra de afetação, é obvio, como o uso que fazia Wulfric de seu monóculo. Poucas coisas escapavam a esses dois pares de olhos sem necessidade de lente alguma-. Estarei observando.
-Lady Morgan? -disse ele, lhe fazendo uma reverência. Sua expressão era educada e séria, mas o conhecia o bastante bem; para passar por cima do brilho risonho de seus olhos.
-Obrigado, lorde Rosthorn -Fechou o leque e aceitou o braço que lhe oferecia, pondo especial cuidado em manter uma expressão distante, ligeiramente aborrecida, ligeiramente altiva.
-Está desfrutando da velada, chérie? -perguntou-lhe.
-Estou a ponto de morrer de aborrecimento -respondeu-. me Conte algo divertido.
-Caramba! -exclamou-. Receio que o que vou dizer lhe não ajudará muito, mas lhe romperá o coração. A próxima peça será uma valsa.
-Ah-Exalou um suspiro-. Que cruel.
Depois do insuportável aborrecimento e da inatividade que tinha suportado durante toda uma hora, estava desejando dançar.
-Passearemos como um casal de octogenários gotosos -seguiu lorde Rosthorn-, enquanto comentamos como é escandalosa a valsa.
Morgan lhe sorriu.
-Cai-me bem a condessa do Rosthorn -lhe disse-. É encantadora e muito amável.
-Você também lhe cai bem, chérie -Inclinou um pouco a cabeça para aproximar-se dela.
- Agora que retornei a casa, está ansiosa por ver-me assentar a cabeça com uma esposa e algumas crianças.
-Sério? -Sentiu que lhe ardiam as faces. Voltava a paquerar com ela? E tão descaradamente, além disso.
-Sim, a sério -respondeu-. Me estou dando conta de que as mães podem ser um aborrecimento se se vive com elas. A minha acredita que um cavalheiro com título e fortuna não deveria continuar solteiro à avançada idade de trinta anos.
-Sério? -Lorde Rosthorn tinha trinta anos. Era doze anos mais velho que ela. Deveria lhe parecer uma diferença insolúvel.
-Além disso, não acredita que uma dama de dezoito anos seja uma noiva muito jovem para semelhante cavalheiro -prosseguiu.
-Lorde Rosthorn -lhe disse-, sua conversa raia a indecência.
-Não me diga... -Inclinou a cabeça um pouco mais-. Só porque seu irmão disse que não? Embora tenhamos sido bons amigos? E amantes?
Sua voz tinha adotado um sotaque muito francês.
-Resultaria-lhe mais proveitoso, lorde Rosthorn -replicou Morgan com brusquidão – que mudasse suas atenções a uma dama que as recebesse bem. E a uma dama a quem possa amar.
-Ah! Mas minha mãe acredita que é a você a quem amo -protestou-. E Henrietta é da mesma opinião. Começo a pensar que talvez estejam certas, chérie.
Morgan era muito consciente de que o coração estava a ponto de sair-se o do peito. Seus batimentos de coração lhe troavam nos ouvidos. Percebeu que a pista de baile estava repleta de casais e de que a música começaria a soar em uns instantes. Chastity ia dançar a valsa com lorde Meecham. Ambos se olhavam sorridentes, alheios ao resto dos presentes.
Alegrava-se muitíssimo de que a moça tivesse encontrado ao amor de sua vida nessa primavera. Chastity tinha sofrido uma infância muito difícil e solitária.
-Este não é o momento nem o lugar para ter semelhante conversa, lorde Rosthorn - recriminou-o. - Tomara pudesse dançar -A música tinha começado.
-Pode fazê-lo-a corrigiu ele, que se tinha detido ao chegar às portas do salão-. Se o desejar, dançaremos a valsa.
-Não -replicou-. Sabe que não posso.
-Não aqui, em público -concordou lorde Rosthorn-. Mas, e se o fizermos em privado?
Olhou-o com as sobrancelhas arqueadas e voltou a abrir o leque enquanto os bailarinos passavam girando a seu lado.
-Há uma sala de espera junto ao salão de refresco que está fechada ao público –disse ele-. Podemos dançar ali sem que ninguém se inteire do que estamos fazendo. Se alguém perceber a nossa ausência, suporá que saímos do salão em busca de uma limonada.
-Mas a tia Rochester se dará conta -protestou.
Entretanto, a tentação era poderosa. Não só porque desejava dançar a valsa, porque ele fosse o conde do Rosthorn e porque ela acabara de perceber que talvez estivesse apaixonando por ela da mesma maneira que ela se estava apaixonando por ele. Também porque estava aborrecida. Voltava a sentir-se engessada pelas aparências e pelas restrições que lhe impunha sua acompanhante depois da liberdade e da sensação de ser uma pessoa responsável com um propósito na vida que tinha desfrutado em Bruxelas. As últimas semanas de intenso sofrimento tinham parecido intermináveis. E só desfrutaria um pouco. Ninguém saberia.
Poderia dançar a valsa de novo. Nesse mesmo instante. Com o conde do Rosthorn.
-Vamos, chérie – apressou-a, aproximando outra vez a cabeça para olhá-la com uma expressão risonha-. Deve dançar a valsa comigo.
Voltou a aceitar seu braço e ele a levou do salão de baile antes de que pudesse convencer-se a si mesmo de que devia agir com mais decoro.
Era um aposento quadrado, não muito amplo, com um sofá e algumas poltronas junto às paredes. Gervase o tinha descoberto pouco antes e tinha suposto que se preparara para o uso daqueles convidados que desejassem descansar em tranqüilidade uns instantes. Assim que o descobriu, apagou as velas e fechou a porta. Tinha sido um achado afortunado. Uma sala privada lhe seria de muita mais utilidade que o balcão, sua primeira escolha.
Nesse momento acendeu as velas do suporte da chaminé e se virou para observar a sua acompanhante. Tinha deixado a porta ligeiramente entreabierta depois de convidá-la a entrar. O que deveria fazer, pensou enquanto a moça o olhava com um sorriso, era levá-la de volta ao salão sem perda de tempo, antes que alguém abrisse a porta e fosse muito tarde.
Gostava muito de Lady Morgan para lhe fazer isso. Não o merecia absolutamente.
-Preste atenção -disse, em troca, e estendeu os braços para ela-, não é uma melodia muito rápida. Acredito que podemos dançar aqui sem tropeçarmos nos móveis nem acabar nos pegando contra as paredes.
Ela se aproximou enquanto ria entredentes e, assim que a teve perto, agarrou-a pela cintura e lhe pegou a mão direita. Lady Morgan colocou a outra mão no ombro. De repente, se apercebeu que a privacidade da sala multiplicava grandemente a intimidade que a posição da valsa já tinha por si. Chegou-lhe o aroma a violetas. E recordou a última vez que estiveram a sós em um quarto. Dançaram em silêncio, envoltos pela tênue luz das velas e da intimidade da sala de espera enquanto que no exterior reinavam a música, as risadas e as vozes. Lady Morgan jogou a cabeça para trás e lhe sorriu uma vez mais. Devolveu-lhe o sorriso. Talvez não ninguém os descobrisse. Talvez e depois de tudo se livrasse das conseqüências do ato tão terrível que estava cometendo. Aproximou-a de seu corpo ao cabo de uns minutos. Levou-a mão que segurava ao peito e insistiu que a deixasse sobre o lugar onde pulsava seu coração antes de cobri-la com a sua. Imediatamente a mão que descansava sobre seu ombro se transladou a sua nuca, lady Morgan girou a cabeça e, com um suave suspiro, apoiou a face sobre o complicado nó de sua gravata e assim continuaram dançando, pegos por completo.
Seu corpo magro era a quinta essência da delicadeza feminina. Sua proximidade lhe era familiar e íntima.
-Chérie -lhe murmurou ao ouvido pouco depois. Ela se separou de sua gravata para olhá-lo no rosto. Seus olhos tinham uma expressão sonhadora e estavam entrecerrados pelo efeito da música, da luz das velas e do quente toque de seus corpos.
-Sim -sussurrou, entreabrindo os lábios.
Gervase inclinou a cabeça, beijou-a e deixou de dançar. Rodeou a cintura com um braço enquanto que com o outro lhe segurava a cabeça. Ela o abraçou com força e arqueou o corpo.
Seus lábios se separaram um pouco mais sob a pressão de sua boca, e a paixão e o apreço se apoderaram deles de repente. Afundou-lhe a língua na boca e, em resposta, ela o abraçou com mais força e expressou sua aprovação com um gemido. A mão que lhe rodeava a cintura foi subindo até encontrar um seio sobre o qual posou.
Foi nesse momento que o assaltou o pânico. Não! estava-se deixando levar pela paixão enquanto a traía. Ela não tinha feito nada para merecer o que estava planejando lhe fazer. Não podia seguir adiante. Tinha que tirá-la dessa sala sem que ninguém se desse conta e levá-la de retorno ao salão a toda pressa, antes de que alguém percebesse de que tampouco estavam no salão de refrescos. De repente, sentiu-se invadido pela necessidade de salvá-la e de salvar-se a si mesmo.
Soltou-a e ergueu a cabeça.
Muito tarde.
A porta estava aberta e um grande grupo de convidados os observava sem dissimulação enquanto que outros passavam ao longo devagar, muito educados talvez para deter-se para olhar descaradamente.
O duque do Bewcastle, que tinha uma mão na maçaneta, já tinha entrado na sala, e não demorou para fechar a porta de repente a suas costas.

 

 

 

Capítulo 15

 

Em um primeiro momento, Morgan se sentiu culpado. Estava de luto e tinha reduzido ao mínimo suas aparições sociais por respeito à memória do Alleyne, e mesmo assim tinha sucumbido à tentação de dançar uma valsa. Em seguida sentiu uma intensa vergonha. Wulfric e a metade da alta sociedade a tinham visto abraçando ao conde do Rosthorn. Pouco depois a invadiu a euforia. Ele também devia sentir algo por ela. Em último lugar a assaltou a fúria. Como se atrevia Wulfric a surpreendê-los como se fossem um par de meninos travessos e desobedientes? Enfim, para falar a verdade, os quatro sentimentos a assaltaram quase de uma vez.
-Não tem por costume bater nas portas, Wulf? -perguntou-lhe, olhando-o com altivez.
Seu irmão tinha o monóculo no olho e estava olhando o braço com o que lorde Rosthorn lhe rodeava a cintura com afã protetor. Não o afastou. Wulfric fez caso omisso de sua pergunta.
-Já lhe pedi a mão de lady Morgan, Bewcastle -disse lorde Rosthorn-. Amanhã pela manhã irei ao Bedwyn House para pedi-la de novo. Acredito que estará de acordo comigo em que este não é nem o momento nem o lugar adequados para discutir o assunto.
Sua voz era fria e cortante. Mal havia rastro de seu sotaque francês. A expressão do Wulfric só deixava entrever seu gélido controle.
-Devo felicitá-lo, Rosthorn -disse seu irmão-. Me superou de momento.
-Isto é ridículo! -exclamou ela, afastando-se dos braços de lorde Rosthorn-. Só estávamos dançando uma valsa e depois nos beijamos de mútuo acordo, devo acrescentar.
Os olhos do Wulfric se cravaram nela. E se por acaso isso não fosse bastante desconcertante por si, ainda tinha o monóculo no olho. De verdade acabava de dizer que só estavam dançando a valsa e beijando-se? Somente?
Entretanto, antes de que Wulfric pudesse dizer algo, a porta se abriu para deixar passar Freyja, que os olhou com as sobrancelhas arqueadas.
-Esperava encontrá-los em meio de um duelo pelo menos com Morgan desmaiada em um canto - disse-. Ao que parece, nosso baile está destinado a ser a fofoca da cidade durante muitos dias. Mas o que poderia esperar-se de um baile organizado pelo Josh e por mim? Lorde Rosthorn, é certo que o viram beijando a minha irmã aqui dentro? Certamente, é um escândalo e me vejo obrigada a recorrer a toda minha força de vontade para não sofrer um desmaio. Wulf, parece ter tragado um iceberg inteiro. Morgan, você parece a viva imagem de lady Macbeth. Lembro que estamos fazendo este baile em honra de lady Chastity Moore e de lorde Meecham e não vou permitir que se converta em um circo.
-Milady -disse lorde Rosthorn com uma reverência-, acabo de informar a sua excelência de que tenho a intenção de fazer uma visita formal manhã pela manhã ao Bedwyn House com o propósito de pedir a mão de lady Morgan Bedwyn.
-Não me cabe a menor duvida de que tanto Wulf como Morgan terão muito que dizer a respeito quando chegar esse momento -replicou Freyja-. Mas isso será amanhã, não esta noite.
-Isto é absurdo -afirmou Morgan.
-Certamente que o é - concordou sua irmã enquanto atravessava a sala para tomá-la pelo braço-. Mas, ao mesmo tempo, é muito sério. Depois disto, a alta sociedade estará disposta a afundá-la na mais ignominiosa desgraça e, por muito que nos pese, é um monstro ao qual inclusive os Bedwyn têm que apaziguar em certas ocasiões. Ponhamos boa cara a este novo contratempo. Morg, retornaremos juntas ao salão de baile e daremos um par de voltas como se não tivesse passado nada estranho. É uma lástima que não tenha o nariz dos Bedwyn. Nestas situações é uma enorme vantagem. Mas pode sorrir. Assim faça isso.
Sempre tinha sido muito difícil resistir a Freyja quando mostrava sua atitude mais formidável. Nessa ocasião nem sequer o tentou. Saiu da sala sem olhar aos dois homens que deixava atrás e sorriu.
Deu-se conta de que Wulfric saía atrás delas e as seguia de perto.
Na manhã seguinte Morgan viu chegar o conde do Rosthorn em seu tílburi e o observou subir com passo firme os degraus de entrada, bater na porta e desaparecer no interior depois de uns instantes de espera. Estava sentada no parapeito da janela de seu dormitório, abraçando-as pernas. Encerrou-se ali de forma deliberada com o propósito de estar sozinha e preparar-se para o que se avizinhava.
Porque precisava preparar-se. Sua mente e suas emoções giravam sem controle. Todos tinham querido falar com ela, tanto na noite anterior como nessa manhã. Todos tinham querido lhe dar sua opinião, um conselho, ou ambas as coisas.
A tia Rochester, furiosa a mais não poder, fizera um espaço na noite anterior a fim de lhe informar de que era uma vergonha para o sobrenome Bedwyn. Os Bedwyn, disse, sempre tinham tido fama de ser desmedidos e pouco convencionais, mas nunca vulgares. Acabaria arrependida de sua incursão na vulgaridade, prosseguiu, quando estivesse casada com um libertino muito mais velho para ela que a descuidaria e lhe esfregaria seu harém de amantes pelo nariz. Segundo suas predições, teria muita sorte se alguma das damas de mais prestigio voltasse a recebê-la em sua casa antes de cinqüenta anos.
Freyja lhe tinha dado sua opinião durante o espantoso passeio pelo salão de baile, enquanto pensava que lhe gretaria o rosto de tanto sorrir.
-Alleyne sempre dizia que acabaria nos eclipsando a todos -afirmou-. Para falar a verdade, o que eu fiz o ano passado com o Josh foi muito mais grave que dançar uma valsa em uma sala de espera e beijar o com a porta aberta para que todos nos vissem. Claro que em seu caso as coisas foram muito mais à frente. Durante o mês passado seu comportamento foi especialmente indiscreto, não acha? E o desta noite se leva a palma. Alleyne estava certo. Entretanto, escuta o que vou dizer, Morg. Não vou negar que o tipo é terrivelmente atraente, mas se comporte como uma autêntica Bedwyn até o final. Não aceite sua proposta de matrimônio amanhã a menos que esteja completamente segura de que é o homem com quem quer passar o resto de sua vida.
-Lorde Rosthorn é um homem encantador, e também muito bonito – Isso foi o que disse Chastity, também na noite anterior-. Além disso, foi muito amável consigo na Bélgica. Não a culpo por querer dançar a valsa com ele esta noite, Morgan. Eu teria sido incapaz de resistir a dançar com o Leonard embora me tivessem proibido isso. Ama-o? Acredito que deve fazê-lo se lhe permitiu que a beijasse. Estou desejando vê-la tão feliz como eu o sou.
-Quando me casei com o Aidan o ano passado contra a opinião de todos meus seres queridos, fiz-o pelos motivos equivocados - Essa foi a opinião de Eve, quando retornaram a casa depois do baile-. Tive a incrível sorte de que nos apaixonássemos em pouco tempo. Porque de igual maneira poderíamos ter acabado sendo infelizes durante o resto de nossas vidas. Morgan, se casar-se com lorde Rosthorn, assegure-se de que não o faz pelo rebote do escândalo, mas sim porque sabe que não poderá ser feliz com nenhum outro homem.
-Esqueça do escândalo, Morgan - Aidan também encontrou seu momento-. Se não quiser a Rosthorn, diga-lhe e manda-o passear. Venha passar o verão conosco, comigo, com Eve e com as crianças, e depois vai ao Lindsey Hall para passar o inverno. Quando chegar a primavera, todos a recordarão como mais um dos obstinados e desmedidos Bedwyn –Seus penetrantes olhos escuros estavam cravados nela e não perdiam detalhe-. Claro que se o quiser, diga. Perdoaremos-lhe a indiscrição desta noite e o receberemos na família com os braços abertos.
Wulfric tinha esperado à manhã e ela tinha passado a noite dando voltas, quase em claro. Convocou-a na biblioteca antes que descesse para tomar o café da manhã. Atravessou o aposento sob o escrutínio de seu irmão, sentado do outro lado da escrivaninha. Como se negava a tomar o caminho fácil, segurou seu olhar todo o tempo.
-Sente-se -disse Wulfric e ela o fez na beira de uma cadeira de madeira dourada enquanto ele se reclinava em sua poltrona e, depois de apoiar os cotovelos nos braços, uniu as mãos pelas pontas dos dedos e levou os indicadores aos lábios-. De momento nada é irrevogável, Morgan -lhe disse-, embora nesta ocasião me sinto obrigado a discutir os termos do contrato matrimonial com o conde do Rosthorn e, portanto, a permitir que a corteje. Ontem à noite admitiu ter participado voluntariamente no acontecido, daí que me veja forçado a suportar estes desagradáveis trâmites. Entretanto, ocupo uma posição social preeminente e, por extensão, você também. Aconselho-a que lhe dê um não terminante. Se o fizer, jamais voltaremos a falar deste assunto. Voltaremos juntos ao Lindsey Hall em menos de uma semana ou, se o preferir, pode ir ao Oxfordshire com o Aidan um pouco antes.
Então, não ia haver recriminações, nem sequer um sermão humilhante? Retorceu as mãos no colo, um pouco decepcionada. Era muito mais fácil lutar com o Wulf quando podia desafiá-lo de algum modo.
-Responderei a lorde Rosthorn conforme achar conveniente -replicou. Tinha estado toda a noite perguntando-se se a amava. Estava quase segura de que ela sim o fazia.
-Enganaram-na, Morgan -disse Wulfric depois de contemplá-la em silencio durante tanto tempo que a tirou do sério -. Rosthorn não a quer. Em realidade, odeia-me.
- Grande tolice! -exclamou, zangada-. É você quem o odeia por ter feito algo que teria aplaudido se se tratasse de sir Charles Stuart. Está sendo muito irracional.
Aqueles olhos prateados se cravaram nos seus.
-Perguntei-lhe isso em uma ocasião -seguiu ela-, mas não me respondeu. Perguntei a ele e evitou a pergunta. Por que o odeia? Não tem nada que ver comigo, não é? Conheciam-se antes que o exilassem.
Os silêncios longos nunca enervavam ao Wulfric. De modo que se negou a sentir-se afetada pelo silêncio que seguiu a sua pergunta. Cravou o olhar nos olhos de seu irmão e esperou.
-Violou a uma dama -respondeu ele- e lhe roubou algo. Rosthorn, e refiro a seu pai, expulsou-o da Inglaterra e lhe disse que não retornasse jamais.
-O que? -Estendeu um braço e se agarrou à beira da escrivaninha como se estivesse a ponto de cair.
-Descobriram-no no dormitório da vítima, em sua cama, durante um baile -prosseguiu Wulfric-. Não foi muito diferente ao que aconteceu ontem à noite e é provável que o motivo também fosse similar.
Morgan tinha a boca seca. Tentou umedecer os lábios apesar da secura da língua.
-Como sabe que não foi consentido? -perguntou-. Porque o de ontem à noite sim que foi.
-Foi contra a vontade da dama em questão -respondeu Wulfric-. Essa mesma noite se ia anunciar seu compromisso com outro homem. Entretanto, estava muito envergonhada para continuar com esses planos, embora esse homem estava disposto a aceitá-la. Rechaçou a proposta de matrimônio que o filho do Rosthorn lhe fez no dia seguinte. Separou-se da vida social e nunca se casou apesar de sua posição, de sua riqueza e de sua beleza, coisas que possuía com acréscimo. Sua vida ficou arruinada.
-Não penso em acreditar nisso - disse, ficando em pé-. Todos sabemos até que ponto se exageram este tipo de coisas ao passar de boca em boca. Como sabe que o que me contou é certo?
-Eu era o homem com quem se teria comprometido -respondeu seu irmão em voz baixa-. Eu fui uma das três pessoas (junto com o pai dela e com o Rosthorn) que os surpreenderam em seu dormitório. Muito tarde, como descobriu.
Morgan o olhou, aniquilada. Wulfric tinha estado a ponto de comprometer-se? E tinha sofrido um golpe tão duro? De mãos do atual conde do Rosthorn? Era muita informação para assimilar de repente.
-Talvez interpretou mal a cena -lhe disse.
-Dificilmente.
-Aconteceu faz nove anos -insistiu.
-Sim.
Olharam-se o um ao outro; ela lançava faíscas pelos olhos, Wulfric continuava tão frio como o gelo.
-Um homem assim -prosseguiu seu irmão depois de um longo silencio- não deveria aproximar-se menos de um quilômetro de minha irmã. Mas se penetrou muito habilmente em seu coração e de uma maneira tão pública que me vejo obrigado a permitir que a corteje. Pois não vou proibir que lhe faça uma proposta, tampouco vou proibir que a aceite. Em caso contrário, sei muito bem que poderia se sentir obrigada a me desafiar e acabaria arruinada por toda a vida depois de fugir com ele. O que posso fazer é confiar em que vai tomar a decisão adequada no que respeita a sua felicidade.
Continuou olhando-o durante um bom tempo antes de abandonar a biblioteca sem dizer nenhuma só palavra mais.
Daí que estivesse sentada no parapeito da janela, sabendo que lorde Rosthorn tinha chegado e nesse preciso momento estava na biblioteca com o Wulfric, discutindo um contrato matrimonial. Não sabia quanto duravam essas negociações. Mas ao longo da próxima meia hora, ou de uma hora quando muito, alguém bateria em sua porta e ela teria que obrigar a suas pernas a retornar à biblioteca. Teria que enfrentar a ele. Ao homem que violou à mulher que Wulf amava. Tinham-nos surpreendido juntos na cama. E o testemunho da dama e suas posteriores ações pareciam confirmar que não se entregara voluntariamente. O homem que tinha paquerado com ela, com lady Morgan Bedwyn, de forma escandalosa e extravagante antes da batalha do Waterloo.
O homem que a tinha apoiado e lhe tinha devotado sua companhia e seu amparo durante os dias posteriores à batalha. O homem com quem tinha feito amor depois de saber que não restavam esperanças de que Alleyne tivesse sobrevivido.
O homem que a tinha levado a casa, ao reconfortante seio de sua família.
Ao homem a quem tinha chegado a amar, ao homem que tinha começado a acreditar que a amava. Invalidava o acontecido nove anos atrás a impressão que tinha dele e os sentimentos que despertava nela? Tinha violado a uma mulher. Não podia acreditá-lo. Mas como não ia fazer o? Wulfric tinha sido testemunha e não era um homem dado a tergiversar as provas deliberadamente.
Nunca tinha estado tão confusa como nesse momento.
A chamada chegou quarenta minutos mais tarde das mãos de sua criada. O sobressalto fez que desse um pulo antes de ficar em pé e alisar as saias de seu vestido negro. Endireitou os ombros e levantou o queixo.
O conde do Rosthorn ia explicar lhe umas quantas coisas.
O duque do Bewcastle fez esperar ao Gervase vinte minutos em uma sala de espera antes de fazê-lo passar à biblioteca. Ali seguiu um breve e frio encontro no qual falaram de negócios como se as cláusulas carecessem de uma dimensão pessoal. Bewcastle admitiu ter aconselhado a lady Morgan que rejeitasse a proposta de matrimônio. Mas ao final se levantou e saiu do aposento, deixando-o só com a vista cravada nos lenhos da chaminé apagada.
Tinha passado a noite embargado por uma fria satisfação.
E também tentado esquecer o poderoso sentimento de culpa. Movido por sua obsessão por vingar-se do Bewcastle, tinha acabado comportando-se quase tão mal como todos supuseram que o fez nove anos antes. Quase tão mal? Pior. Marianne se tinha procurado sua própria ruína.
Lady Morgan não o tinha feito.
Deu meia volta e levou as mãos às costas quando a porta voltou a abrir-se e lady Morgan entrou na biblioteca, deixando atrás a um criado.
Parecia muito tranqüila, pensou, embora estivesse muito pálida.
Tinha os ombros erguidos e o queixo em alto. Franziu o cenho ao recordar o abraço que compartilharam na noite anterior. Não tinha sido premeditado. Não tinha formado parte do plano. Sua intenção tinha sido que os surpreendessem dançando uma valsa em uma sala de espera fechada. Isso teria bastado para avivar as chamas do escândalo.
O abraço tinha acontecido porque sim.
-Bom, chérie -disse-. Aqui estamos.
Caminhou para ele e se deteve apenas a dois passos do lugar que ocupava sem que seus olhos o abandonassem nem um momento. Tinha esperado que se comportasse com acanhamento? Que se ruborizasse?
-Se está pensando em prostrar-se de joelhos e fazer que isto se converta em um momento encantador -replicou ela-, será melhor que não se incomode, lorde Rosthorn. Quero saber o que se passou há nove anos.
Ah! Teria contado Bewcastle? Ao menos sua versão dos fatos, claro estava. Era muito provável. Que melhor maneira de assegurar-se de que rejeitasse sua proposta?
-Houve uma indiscrição com uma dama, chérie -lhe explicou-. Diria que não é nada com o que tenha que importunar sua linda cabecinha se acreditasse que desse modo ia conseguir algo -Lhe sorriu.
Mas ela nem se alterou ao escutar a sabida brincadeira.
-Me responda antes a uma pergunta -disse-. A violou?
Sim, era evidente que Bewcastle tinha estado muito ocupado. Virou-se de novo para a chaminé.
-Quer um sim ou um não? -perguntou a sua vez-. Pois o darei. Não. Não o fiz.
-Suponho, lorde Rosthorn - prosseguiu ela com um ligeiro tremor na voz-, que quero uma resposta mais elaborada. Se não foi uma violação, o que foi? Surpreenderam-no com a dama em uma situação irremediavelmente comprometedora. Ela o acusou de havê-la forçado. Rechaçou sua proposta de matrimônio. Afastou-se para sempre da vida social. Já vê que conheço os detalhes básicos. Quero que me explique como é possível que não seja culpado.
Gervase suspirou e voltou a levar as mãos às costas.
Lady Morgan já estava inteirada do pior e era melhor assim. Em realidade não queria casar-se com ela, verdade? Um matrimônio entre eles não a beneficiaria absolutamente. Já tinha conseguido o que se tinha proposto e, a verdade, a vitória não servia de nada.
Apoiar qualquer ação na vingança era estúpido e infantil. Nunca resolvia nada, só intensificava o ódio. Bewcastle também tinha sido uma vítima. Esquecia às vezes.
Embora não se virou, percebeu que lady Morgan tinha atravessado o aposento até colocar-se atrás da escrivaninha para olhar pela janela.
-Conhecia a dama em questão desde há bastante tempo -lhe contou-. Passava temporadas perto de casa e era amiga de minhas irmãs e minha prima. Suponho que enquanto crescíamos me apaixonei um pouco por ela. Era linda. Mas nunca me passou pela cabeça a idéia de cortejá-la a sério. Era muito jovem. Além disso, era amigo do Bewcastle Ou ao menos me movia na periferia de suas amizades, com a esperança de que me admitisse em seu círculo mais íntimo, e ele começou a cortejá-la quando foi apresentada em sociedade.
-Nem sequer sabia que Wulf tinha considerado a idéia de casar-se -comentou ela-Até hoje. Suponho que a amava.
-Seu pai era um marquês -explicou ele-. O matrimônio, evidentemente, teria sido uma união excelente para sua filha. E decidiu apoiá-lo com unhas e dentes. foram anunciar o compromisso durante um grandioso baile no apogeu da temporada.
-Nunca nos disse nada -replicou lady Morgan.
Gervase virou um pouco a cabeça e a viu sentada na poltrona que Bewcastle tinha desocupado pouco antes.
-Entretanto, havia um problema -prosseguiu-. Ela não queria casar-se com ele. Mas era um homem muito poderoso, igual a seu pai. O marquês tinha jogado por terra todas suas objeções e a ameaçou com todo tipo de repercussões se não se comportasse como devia durante a corte e se não o aceitasse quando lhe propusesse matrimônio.
-Como sabe? -Olhou-o do outro extremo da estadia com os olhos arregalados por algo que bem podia ser fúria.
-Ela me contou -respondeu. - Nessa noite dançou comigo e na metade da peça me tirou do salão de baile, aduzindo que tinha que me dizer algo. Levou-me a seu gabinete privado e desabafou comigo. Estava muito alterada. Disse-me que iriam anunciar o compromisso depois do jantar e que assim que isso acontecesse não haveria forma de escapar do matrimônio com o duque. Disse-me que antes preferia a morte. Suplicou-me que a ajudasse.
-O que lhe disse você? -Viu-a colocar as mãos na escrivaninha ao mesmo tempo que soprava pelo nariz.
-O que ia dizer lhe? -encolheu os ombros-. Nem sequer sei se lembro as palavras exatas. Aconselhei-lhe que falasse imediatamente com seu pai e com o Bewcastle, suponho, que lhes dissesse com firmeza que não estava de acordo com esse matrimônio. Lembro que me ofereci para falar em pessoa com o Bewcastle apesar de que nossa relação não fosse tão estreita para chegar a esse extremo. Em seguida recordo que despertei com um sobressalto quando a porta de seu dormitório se estampou contra a parede e que Bewcastle entrou com fúria, seguido de perto por meu pai e o do Marianne.
-A porta de seu dormitório? -repetiu ela.
-Estava na cama -lhe esclareceu-, total e escandalosamente nu. Igual a Marianne. Os lençóis estavam enrugados como se tivesse acontecido uma desmedida orgia sobre eles e bem debaixo. Marianne chorava, presa da histeria. E eu suponho que contemplava a cena piscando como um imbecil.
Havia tornado a cravar o olhar na chaminé, de modo que não soube se acreditava ou não.
Era uma história bastante incrível, para falar a verdade. Esse foi o motivo de que ninguém acreditasse naquele tempo embora tampouco se defendera em um primeiro momento. Encontrou-se paralisado pela impressão e por seu maldito código de honra. Um cavalheiro não ousava contradizer abertamente a uma dama.
-Houve consentimento mútuo? -perguntou-lhe. Gervase olhou à chaminé com uma rouca gargalhada-. Ou foi uma violação? Acredito que naquele momento Marianne estava muito histérica para responder com coerência aos gritos de seu pai e eu não disse nada. Era muito consciente da expressão horrorizada e escandalizada de meu pai e do frio escrutínio do Bewcastle.
-O que foi? -perguntou lady Morgan com brusquidão.
-Sou da firme opinião de que nenhuma opção se ajusta aos fatos -respondeu-. Não tinha bebido muito, mas embora o tivesse feito, não teria podido esquecer por completo algo assim, não é? Além disso, se tivesse bebido tanto, teria estado incapacitado por muitas inclinações amorosas que tivesse naquele momento. Suponho que alguém me deu um narcótico.
-Marianne?
Encolheu os ombros.
-Não se acusa a uma dama de algo assim -respondeu-. Nem tampouco de mentir quando por fim se tranqüilizou o bastante para assegurar que a tinha tomado pela força. Mas se ela me deu um narcótico, o plano foi mais que efetivo. Certamente, não houve anúncio de compromisso, nem nessa noite nem em nenhuma outra.
Levantou um braço e o apoiou no suporte da chaminé, por cima de sua cabeça. Uma proposta de matrimônio muito estranha a que estavam protagonizando, sim. Claro que no fundo era o que tinha esperado. Era um alívio poder falar do assunto com ela abertamente.
-Isso explicaria à perfeição por que o odeia Wulfric, lorde Rosthorn -disse ela enquanto ficava em pé e rodeava a escrivaninha para aproximar-se de novo-. Mas ele afirma que você o odeia. É que acreditou que você o fez movido pelo ódio que lhe professava e não por amor para a dama?
Gervase riu entre dentes e se virou para enfrentá-la. Pobre moça. Mal era uma menina quando tudo aconteceu. Não deveria ver-se envolvida à força nesse embrulho e a essas alturas. Poderia perdoar-se alguma vez? Duvidava-o muito.
-A cena ao completo foi como um melodrama atroz -disse-. Bewcastle saiu do dormitório enquanto o marquês do Paysley continuava gritando a sua filha e ameaçando me matar-me, e meu pai assegurava que no dia seguinte eu iria pedir a mão de Marianne em casamento. Saí do dormitório atrás do Bewcastle, com a intenção de lhe explicar a situação sem chamar mentirosa ao Marianne em sua presença, mas não pude alcançá-lo nas escadas e Henrietta me entreteve quando cheguei ao térreo. Estava lívida, muito alterada e queria saber o que tinha acontecido. Bewcastle estava no vestíbulo e a ponto de abandonar a casa quando por fim o alcancei. Estava rodeado por um grupo de amigos comuns, e é obvio por numerosos criados e algum ou outro convidado. Sentia-me transtornado pelo desconcerto, a fúria e a humilhação. Armei-me de coragem e em um alarde de nobreza convoquei ao Bewcastle a me desafiar a duelo se quisesse ressarcir-se.
-Houve um duelo? -perguntou lady Morgan com os olhos arregalados de novo.
-Bewcastle me olhou como só ele sabe fazê-lo -respondeu ele depois de rir entre dentes-; como se olhasse a um simples verme. Levou o monóculo ao olho. Disse-me que tinha como norma bater-se em duelo só com cavalheiros. Acrescentou que me daria chicotadas se voltava para ver-me depois dessa noite. E depois partiu e outros ficaram me recriminando com seus olhares.
Lady Morgan o olhou em silêncio um bom tempo.
-E depois seu pai o exilou -disse-. Acaso se negou a propor matrimônio ao Marianne?
-Não me deram a oportunidade -respondeu-. E Marianne tampouco pôde me recusar.
Ainda estava me arrumando quando meu pai foi me buscar no dia seguinte. Levava uma carta aberta na mão e trazia uma expressão carrancuda que jamais tinha visto nele. Nem sequer a noite anterior. Era do Paysley, e nela exigia que devolvesse o broche que tinha levado do dormitório de Marianne. Ao que parecia, era uma valiosa herança familiar que só saía da caixa forte da família em poucas ocasiões, mas que tinham entregue ao Marianne com a intenção de que o usasse durante o que esperavam que fosse seu anúncio de compromisso.
-Não -Lady Morgan tinha franzido o cenho-. Isso sim que é absurdo, por cima de todo o resto. Você não teria feito algo assim.
-Obrigado, chérie -Lhe sorriu-. Entretanto, eu vi esse broche. No chão, quando Bewcastle esteve a ponto de pisá-lo enquanto saía do dormitório. Agachou-se para recolhê-lo e o deixou em uma mesa e eu saí atrás dele. Assim o disse a meu pai essa manhã e o convenci de que me deixasse falar com o Bewcastle para que confirmasse minha inocência. Não estava no Bedwyn House. Encontrei-o no White’s, rodeado virtualmente pelo mesmo grupo de amigos da noite anterior. Soltei minha petição diante de todos os pressente, e ele voltou a levar o monóculo ao olho enquanto perguntava se alguém conhecia jovenzinho insolente que estava na porta.
Depois disso, fez caso omisso de minha presença e me escapuli sem chamar a atenção. Naquela época eu era muito jovem e muito estúpido, chérie. Meu pai lhe escreveu, mas Bewcastle se limitou a responder com uma lacônica missiva em que alegava não saber nada de nenhum broche. E assim, tal como lhe conto, ficou selada minha desgraça. Acusaram-me de ser o violador de uma inocente e um vil ladrão e depois me condenaram. Meu pai fez o que acreditou que devia fazer.
Lady Morgan o observou um bom tempo.
-Acredito em você - disse ao final-. E também acredito no Wulfric. Meu irmão viu e escutou o que pareciam provas irrefutáveis de sua culpabilidade, embora se deixasse levar pelo rancor quando se negou a lhe conceder o álibi que, desculpava-o do desaparecimento do broche. Suponho que quis castigá-lo pelo que lhe tinha feito. Mas acredito que é inocente.
-Obrigado, chérie.
Não resistiu quando agarrou uma de suas mãos e a levou aos lábios. Ela era a única pessoa que tinha acreditado em sua inocência. Por estranho que parecesse, sentia-se à beira das lágrimas. Também era a mesma pessoa a que ele tinha traído.
-Assim voltamos para motivo que me trouxe até aqui -disse.
-Preferiria que não me fizesse a pergunta -replicou ela.
-Sério, chérie? -perguntou-lhe-. Não deseja casar-se comigo?
-Não deveríamos considerar a idéia do matrimônio quando você se vê obrigado a me propor isso e eu a aceitá-lo -respondeu-. Não deveríamos deixar que a sociedade nos dite o que temos que fazer com o resto de nossas vidas. É absurdo.
-Entretanto -replicou ele-, talvez a sociedade e eu estejamos de acordo neste assunto.
-Tudo foi muito precipitado -protestou lady Morgan com o cenho franzido-. Aconteceram muitas coisas durante estes dois meses. Você foi meu amigo, embora em uma ocasião ambos permitíssemos que as coisas fossem mais longe do que deviam. Tenho-lhe carinho, lorde Rosthorn, e acredito que é possível que você sinta o mesmo por mim. Mas quero algo mais do casamento.
-Amor? -Olhou-a com um sorriso zombador.
-Quero passar o verão no Lindsey Hall -disse ela, mudando de assunto-. E acredito que você quererá retornar ao Windrush para retomar a vida que lhe arrebataram faz nove anos.
Ambos deveríamos fazer o que queremos, livres de um compromisso que talvez acabemos por lamentar.
Ia deixar que partisse sem mais? Onde estava a felicidade que deveria estar sentindo?
-E a próxima primavera? -perguntou-. Voltaremos a nos ver?
-Talvez sim -respondeu ela-. Talvez não. Devemos permitir que o futuro se desenvolva a seu desejo. Agradeço-lhe que tenha vindo, lorde Rosthorn, mas lhe rogo que não me faça a pergunta. Não suportaria lhe dizer que não pelo carinho que lhe tenho, mas me veria obrigada a fazê-lo de qualquer forma.
-Chérie -Ainda a tinha presa à mão. Voltou a levá-la aos lábios e a reteve um instante. Deu-lhe um apertão e fechou os olhos-. Me parte o coração.
E o mais absurdo de tudo era a impressão de que o estava dizendo a sério.
Antes de que pudessem acrescentar algo mais, escutou-se uma batidinha na porta e depois se abriu para deixar passagem a uma lady Eve Bedwyn contrita e envergonhada.
-Sinto-o -disse-, mas Wulfric estava decidido a retornar já que considera que passou mais tempo do que acha conveniente. Convenci-o para que me deixasse vir em seu lugar.
Sentarei no canto mais afastado com um livro e não ouvirei nem escutarei nada. Farei o possível para passar inadvertida.
Lady Morgan já tinha retirado sua mão.
-Não tem que fazê-lo, Eve -disse-. Lorde Rosthorn já parte.
Lady Eve o olhou com expressão interrogativa.
-Não quer passar ao salão e tomar algo com a família? -perguntou-lhe.
Gervase lhe fez uma reverência.
-Não, senhora, embora o agradeço -respondeu-. Tenho que partir.
- Ah! -exclamou-. Sinto muito.
-Não sinta -replicou lady Morgan-. Nos despedimos nos melhores termos, Eve. Lorde Rosthorn e eu somos amigos.
Depois disso não ficou mais remédio que despedir-se com algumas reverências e partir. Enquanto se afastava do lugar em seu tílburi, sendo livre de novo, chegou à conclusão de que fazia anos que não se sentia tão mal.

 


Capítulo 16

 


Não se fez a menor alusão ao conde do Rosthorn. Como se não tivesse posto um pé na casa essa manhã, como se não tivessem esperado que aparecesse para pedir sua mão em casamento. Todos adotaram uma atitude decididamente alegre. Eve e Aidan estavam planejando retornar a sua casa ao cabo de uns dias. Queriam que os acompanhasse.
-Podemos passar umas semanas no Distrito dos Lagos -comentou Eve-. Certamente recordará que tínhamos pensado ir o ano passado, Morgan, mas no final fomos a Cornualha quando acreditamos que Joshua necessitava de nosso apoio. Este ano voltaremos a tentá-lo. Nós adoraríamos que nos acompanhasse, não é verdade, Aidan?
-As crianças ficarão muito contentes, Morgan -disse seu irmão.
Freyja e Joshua chegaram à tarde. De algum jeito se tinham informado de que não haveria anúncio de compromisso algum.
-Retornaremos a casa assim que o Parlamento feche suas portas -disse Freyja-. Nenhum médico londrino pôde me convencer de que sofro indisposições matinais ou qualquer outro dos maravilhosos sintomas que sem dúvida alguma padeceria em meu estado de ser uma dama apropriadamente delicada. Além disso, os dois temos saudades de Penhallow e terá que organizar as bodas do Chastity. por que não vem conosco, Morg? Poderá pintar tudo o que não pôde pintar o ano passado.
- Diga que sim, Morgan -insistiu Joshua com um sorriso-. Talvez sua presença consiga refrear um pouco a minha esposa, porque se não, certamente passará o tempo subindo e descendo colinas, remando no mar e me provocando ataques de ansiedade um dia sim e outro também. Devo recordar a todos que os dois nos encontramos em estado delicado.
Wulfric anunciou que tinha intenção de retornar ao Lindsey Hall logo que as sessões parlamentares chegassem a seu fim.
- Como já foi apresentada em sociedade, Morgan -prosseguiu-, poderá fazer visitas assim como recebê-las e se encarregar de alguns dos compromissos sociais que me afligem; a menos que prefira passar o verão no Distrito dos Lagos ou em Cornualha, é obvio.
Wulf nunca se queixou de que os compromissos sociais o afligissem, pensou.
-Ao que parece -replicou-, tenho tantas opções que acabarei paralisada pela indecisão.
Entretanto, todos os planos para mantê-la ocupada eram futuros, um detalhe que não lhe tinha escapado. Ninguém tinha mencionado passeios matutinos a cavalo pelo Hyde Park, saídas às compras por Oxford Street ou pelo Bond Street, visita a biblioteca ou qualquer outra atividade que não teria levantado a menor curiosidade apesar do luto que guardava.
Havia, como não, caído na mais absoluta desgraça. Não só se comportara de um modo repreensível em Bruxelas e tinha demonstrado uma falta de respeito mais que vulgar tanto para seu sobrenome como para sua posição social (parafraseando à tia Rochester) em Londres, mas também se negara a reparar o dano da única maneira que a sociedade aceitava. Negara-se a casar-se com o conde do Rosthorn. Por que o tinha feito?
A pergunta a atormentou durante todo o dia. Acreditava que o amava. Depois de escutar o relato do acontecido nove anos atrás e de compreender a terrível injustiça em que tinha tido que viver esses nove anos, esteve mais segura que nunca de seus sentimentos.
Por que o tinha rechaçado então? Acaso tinha esperado que tentasse persuadi-la, que lhe declarasse seu amor em termos mais enérgicos? Esses joguinhos não eram com ela. Possivelmente teria feito o correto, decidiu depois de dar boa noite e retirar-se cedo a seu dormitório, deixando à família reunida no salão. Uma vez que sua criada a ajudou a despir-se, sentou-se no parapeito da janela e abraçou as pernas tal como fizera essa manhã.
Possivelmente teria tomado a decisão correta. Sua vida tinha sido um torvelinho de mudanças desde a primavera. Como podia tomar uma decisão racional sobre algo tão transcendental como o matrimônio? Além disso, talvez não o amasse de verdade. Ao fim e ao cabo, talvez só fora amizade e gratidão o que sentia por ele e afinidade.
Mal recordava os detalhes do interlúdio em seus aposentos de Bruxelas. Tinha sido algo desmesurado, apaixonado e surpreendente e incrivelmente satisfatório em seu momento. Ainda lhe dava um tombo o coração ao recordar o que tinham compartilhado. Mas tinha sido amor? Não, verdade? Naquele tempo tinha necessitada de consolo e ele o tinha dado; porque eram amigos e talvez se apreciavam um pouco mais do que era normal entre amigos. Mas o tinha recusado. Talvez não voltasse a vê-lo nunca mais. E inclusive se o fizesse, ao cabo de um ano ou dois talvez se limitassem a trocar um breve e distante gesto a modo de saudação, como se fossem dois estranhos.
Não poderia suportar. Por que o tinha rejeitado?
Apoiou a fronte nos joelhos, fechou os olhos e fez o que sempre apaziguava sua mente e acalmava suas emoções tal como tinha descoberto fazia vários anos. concentrou-se no som de sua respiração, concentrou-se nesse som como se não tivesse nada mais que fazer nem que pensar. Tinha tomado uma decisão e a partir desse momento entraria em águas desconhecidas. O passado, passado estava; o futuro estava por chegar e esse momento presente ficava suspenso entre ambos estados como um ditoso presente. De fato, era a única realidade. Não obstante, o mau da introspecção era que as vezes o efeito protetor que exercia sobre a mente desaparecia de repente e a verdade penetrava para fazer-se ouvir assim que deixava de escutar sua respiração.
Tinha-lhe impedido de formular a pergunta porque ela não tinha terminado de fazer as suas. Tinha-lhe dado medo continuar perguntando. Tinha tido tanto medo, para falar a verdade, que até esse preciso momento nem sequer tinha admitido para si mesma a existência dessas outras perguntas.
Ergeu a cabeça e cravou a vista na escuridão que reinava do outro lado da janela. Possivelmente, pensou, porque sabia as respostas, mas podia afastá-las sempre que não se expressassem com palavras. Mas desde quando tinha tido medo de enfrentar à verdade? Desde Bruxelas, quando durante uma semana inteira se negara a aceitar a morte do Alleyne? Quando tinha tido medo de perguntar apesar de saber que as respostas a destroçariam? Desde essa mesma manhã? Desde quando se convertera em uma covarde que se ocultava em seu dormitório, que preparava sua volta ao Lindsey Hall, sua marcha ao Distrito dos Lagos ou a Cornualha, que fingia que o bom senso e a maturidade eram o que a tinham levado a recusar um compromisso matrimonial essa manhã?
O amor não tinha sentido, não existia como tal, quando o objeto do mesmo não era o que se pensava, quando nunca o tinha sido.
Passou muito tempo antes de que se metesse na cama e tombasse com os olhos cravados no dossel, consciente de que voltaria a passar a noite em claro como a anterior. O que em realidade gostava de fazer, descobriu, muito consciente do silêncio que reinava na casa e do fato de que todos deviam estar deitados, era desafogar-se com uma manha de criança das boas.
Mas, enfim já não era uma menina.
Na manhã seguinte, Morgan observou ao Eve durante o café da manhã. Talvez sua cunhada parecesse um pouco diminuída e tímida, mas ela sabia que um ano antes tinha desafiado ao Wulf, à tia Rochester e ao Aidan dispondo em segredo que seu vestido de apresentação à rainha era negro para honrar a memória de seu irmão (recentemente falecido na guerra naquela época), em lugar de levar outra cor, como Wulfric tinha decretado. E depois o tinha desafiado de novo ao teimar em retornar a sua casa e assim fazer frente a uma crise familiar quando lhe tinha ordenado que ficasse para assistir a um importante jantar no Carlton House. Era certamente curioso o enorme respeito que Wulf professava a sua cunhada, apesar de ser a filha de um mineiro galês.
Isso dizia muito do caráter de Eve.
Entretanto, desprezou a idéia de lhe pedir que a acompanhasse.
Aquilo era algo que devia fazer sozinha.
E assim, menos de uma hora depois, logo que Wulfric partiu para a Câmara dos Lordes e todos os outros estavam imersos em seus respectivos afazeres cotidianos, saiu pela porta principal com sua criada atrás, e pôs-se a andar para o Pickford House. Se se cruzasse com algum conhecido pelo caminho, decidiu, saudaria-o com gesto régio, desejaria-lhe bom dia e santas páscoas. Que outros se comportassem como quisessem. Importava-lhe um nada a possibilidade de cruzar-se com meia dúzia de pessoas e que todas lhe negassem a saudação.
Entretanto, encontrou-se precisamente com lady Caddick e com o Rosamond, que foram a algum lugar dando um passeio. Quando se cruzaram, o busto da condessa se inchou ao mesmo tempo que enrugava o nariz e se virava para sua filha.
-Cheiro a pescado podre, Rosamond -disse-. É espantoso que inclusive nas zonas mais elegantes de Londres seja impossível livrar-se dos maus aromas.
-Bom dia, senhora - saudou-a ela-. bom dia, Rosamond.
Sua amiga lhe lançou um olhar desesperado e se teria detido, ou isso pareceu a ela, a não ser porque sua mãe a agarrou pelo braço e a levou a rastros.
O episódio lhe teria feito graça se não tivesse recordado nesse momento o motivo pelo qual tinha saído. Continuou caminhando com passo vivo e bateu na porta do Pickford House antes de acovardar-se.
A condessa do Rosthorn não estava em casa, informaram-lhe. Mas a senhorita Clifton estaria encantada de recebê-la. Enquanto sua criada se afastava para o interior da mansão, Morgan seguiu ao mordomo escada acima, até uma saleta mais pequena que o salão onde tinha tomado o chá uns dias antes. Henrietta Clifton ficou em pé com uma expressão surpreendida no rosto assim que o mordomo a anunciou.
-Lady Morgan -disse-, entre e sente-se. Sinto muito que minha tia Lisette não esteja aqui para recebê-la. Ela também o sentirá quando o souber.
A julgar por seu aspecto, a senhorita Clifton rondava os trinta. Seu aspecto era bastante comum e tinha um ligeiro peso a mais. Embora suas maneiras fossem muito agradáveis e lhe caía bem.
-Suponho que sou a última pessoa a que esperava receber hoje -disse enquanto se sentava.
-Minha tia e eu nos sentimos um pouco desiludidas e também um tanto surpreendidas, quando Gervase nos disse que tinha recusado sua proposta -replicou a senhorita Clifton-Tinha a sensação de que fariam um bom casal, e desejo de todo coração que meu primo seja feliz. Mas suponho que teve um bom motivo para rejeitá-lo.
-Então, você não lhe deu as costas faz nove anos? -perguntou-lhe.
A senhorita Clifton se ruborizou.
-Ah! Assim está à corrente do que aconteceu Não, ninguém jogou a culpa ao Gervase, salvo meu tio -respondeu-. Ninguém esperava sua reação. Estes nove anos foram terrivelmente tristes para mim. Quer tomar algo?
-Em realidade -respondeu Morgan-, vim para falar com lorde Rosthorn. Se não esta em casa, esperarei-o até que retorne.
-Com o Gervase? -perguntou a senhorita Clifton com a surpresa novamente gravada no rosto, coisa que não era estranhar.
-Há algo que esqueci de lhe dizer ontem -respondeu-. Por favor, não me diga que não o esperam até a noite.
-Nem sequer saiu que casa -a tranqüilizou sua interlocutora enquanto ficava em pé-. Deseja falar com ele em particular?
-Sim, por favor -respondeu.
-Nesse caso, irei buscá-lo-se ofereceu a senhorita Clifton, que abandonou a saleta antes de que ela pudesse mudar de opinião. Embora já fosse muito tarde para isso de qualquer modo.
Lorde Rosthorn apareceu menos de um minuto depois. Entrou na saleta e deixou que fosse um criado quem fechasse a porta atrás dele. Aproximou-se dela com os braços estendidos e expressão carrancuda.
-O que aconteceu? -perguntou-lhe-. O que ocorre? Alguém lhe está fazendo a vida impossível? Bewcastle?
-Não aconteceu nada -respondeu ao mesmo tempo que ficava em pé e rodeava a cadeira onde tinha estado sentada de modo que ficasse entre eles. Ele deixou cair os braços-. Lorde Rosthorn, por que me convidou a dançar no baile dos Cameron?
Seus olhos a estudaram uns instantes.
-Era a dama mais bonita da festa com diferença, chérie -respondeu-. Assim que a vi, decidi que tinha que conhecê-la.
-Tente de novo -replicou ela, sustentando seu olhar. - E desta vez experimente dizer a verdade. Aquela noite não dançou com ninguém mais. Tenho dezoito anos. Levava o vestido branco típico de uma jovem que acaba de ser apresentada em sociedade. A seus olhos, os de um libertino de grande experiência, devia ser uma menina. Sabia quem era eu antes de que nos apresentassem?
O indício de um sorriso apareceu nos lábios e nos olhos de lorde Rosthorn.
-Sim.
-E não lhe desagradou saber que era a irmã do duque do Bewcastle? -quis saber.
-Não -respondeu-. Dancei a valsa com você, não é certo?
-Por que o fez? -perguntou.
Uma parte de si mesmo ainda albergava a esperança de haver-se equivocado. Mas sabia que não era assim. Só precisava ouvi-lo dizer.
-Teria sido melhor que não tivesse vindo hoje ver-me, chérie -disse ele em voz baixa, com a cabeça um pouco inclinada-. Inclusive chegados a este ponto seria muito melhor que aceitasse a explicação mais simples. Mas não o fará, não é? Tenho a impressão de que jamais aceitará o caminho fácil na vida. Dancei a valsa com você, ma petite, porque era a irmã do duque do Bewcastle.
Morgan se aferrou ao espaldar da cadeira com uma mão. Ergueu o queixo.
-E o jantar campestre no bosque do Soignes? -quis saber.
-Porque era a irmã do duque do Bewcastle -respondeu ele.
-Tinha a intenção de manchar minha reputação?
-Não -respondeu-. Somente queria que minhas atenções ficassem patentes aos olhos de todos e, talvez, cometer uma pequena indiscrição para que a alta sociedade começasse a falar de nós o bastante para que os rumores chegassem a Londres e aos ouvidos do Bewcastle.
Sentia-se como se não tivesse adivinhado a verdade antes de que ele a confirmasse, como se se enfrentasse a ela pela primeira vez. Tinha-lhe feito tanto dano sua resposta, que não acreditou poder sentir nada mais. Recordou que lhe tinha permitido paquerar com ela aquela noite e que lhe havia devolvido a paquera, pensando que controlava tanto a situação como a ele.
Recordou o beijo que lhe tinha permitido lhe dar.
Não tinha entendido as regras do jogo o mínimo. Não tinha tido a menor oportunidade de ganhar.
Só tinha sido uma marionete em suas mãos.
Esteve tentada de deixar as coisas assim. Entretanto, ele seguia olhando-a do centro da saleta com esse sorriso torcido que tantas vezes tinha visto em Bruxelas e que tinha pontuado de atraente e zombador.
Nesse instante soube que essa era a expressão do desprezo que lhe inspirava sua juventude, sua ignorância e sua linhagem.
-E o baile dos duques do Richmond? -prosseguiu-. Esperou até que todos os oficiais se fossem me consolar. Ou só foi uma tática para aplainar o caminho que levaria a escândalo?
-Ah, chérie! -exclamou-. Naquele momento necessitava de consolo.
-E depois necessitava que alguém me acompanhasse da casa dos Caddick a casa da senhora Clark e viceversa -continou, fulminando-o com o olhar-. E depois necessitava que alguém encontrasse Alleyne. E um paladino que apoiasse minha causa quando os Caddick se negaram a ficar em Bruxelas. Naquele tempo lutou por mim com tanta firmeza e indignação, lorde Rosthorn… E depois necessitava que alguém me acompanhasse pela cidade quando não estava atendendo aos feridos. Enquanto isso, estávamos alimentando o escândalo e, enquanto isso, você era meu amigo. Meu melhor amigo! O mais engraçado é que me acreditava muito amadurecida. Alterava-me ver que outras pessoas de minha idade, inclusive mais velhas, não tinham tanto arrojo, não tinham o controle de seus destinos. Você me enganou. Isso foi o que me disse Wulfric ontem antes que você chegasse ao Bedwyn House, mas me neguei a fazer caso -A essas alturas se aferrava ao espaldar da cadeira com ambas as mãos.
-O que posso dizer em minha defesa? -perguntou-lhe lorde Rosthorn-. Me sinto horrivelmente culpado no que a você se refere. Mas não por tudo o que tenho feito. Não da batalha do Waterloo.
Morgan rodeou a cadeira e se plantou diante desta quando caiu na conta de que poderia interpretar que se estava escondendo atrás dela.
-E a noite que fui a seus aposentos -prosseguiu, apertando os punhos a ambos os lados do corpo-, alterada e emocionada pelas notícias do Alleyne.
-Non, ma chére -replicou ele, erguendo as mãos com as Palmas para ela, como se quisesse proteger-se de um ataque.
-Acreditei que fui eu a instigadora do acontecido -confessou-. E ainda acredito assim, mas só porque me enganou e me manipulou para que confiasse em você mais que em qualquer outra pessoa deste mundo. Deve ter desfrutado lindamente!
-Non, ma petite.
Morgan ergueu a mão direita e lhe deu um sonoro bofetão na face.
-É claro que sim! -gritou-. Não o negue. Sim, sim, sim, oui, oui, oui. É inútil que me minta, utilize o idioma que utilizar.
-Como você diz -replicou lorde Rosthorn, baixando as mãos ao mesmo tempo que a marca avermelhada de sua mão se fazia evidente em sua face esquerda.
-Utilizou-me -lhe recriminou-. abusou que mim, odiou-me e fingiu que eu lhe importava. É um canalha da pior espécie.
-Sim -concordou o conde do Rosthorn-. Talvez o seja.
Ainda sentia os efeitos do bofetão na mão, que lhe ardia e lhe palpitava, mas se consolava com a certeza de que a face devia lhe doer muito mais.
-Suponho que o encontro no Hyde Park -seguiu- e o chá com sua mãe formavam parte de um engenhoso plano para envergonhar ao Bewcastle e obrigá-lo a consentir que me cortejasse. E o baile? Como soube que havia uma sala de espera fechada ao público perto do salão de baile? Como é que cometeu o descuido de deixar a porta entreaberta uma vez que entramos? E por que nos deixamos arrastar pela paixão enquanto dançávamos a valsa e acabamos sendo descobertos de forma tão conveniente um em braços do outro? Assim foi como o planejou.
O olhar de lorde Rosthorn continuava cravado nela.
-Planejei-o -admitiu.
Ergueu a mão esquerda e lhe atirou um bofetão na outra face. Com os lábios franzidos em uma careta desdenhosa e soprando pelo nariz, observou a expressão de dor que crispou o rosto do conde, embora ele não fizesse o menor esforço por defender-se.
-E ontem atirou o golpe de graça -prosseguiu-. Me contou sua história e ganhou minha compaixão. Não há nada como o relato das injustiças e os atropelos que se suportaram para granjeá-la compaixão de outros. E suponho que fui eu quem lhe colocou a cereja ao bolo quando me neguei a que me fizesse a pergunta. Fui eu quem o liberou. Você trouxe o caos a minha vida, a de Wulfric e a de toda minha família e fui eu quem permitiu que se fosse gloriosamente para desfrutar com a lembrança de seu triunfo.
-Está certa, chérie -concordou ele em voz baixa ao ver que estava aguardando uma réplica.
-Pois aí é onde se engana, lorde Rosthorn -Lhe lançou um olhar furioso ao mesmo tempo que apontava o chão com uma mão-. De joelhos. Mudei que opinião. Me faça a pergunta. E saiba que se negar, não regularei esforços para que todo Londres e toda a Inglaterra saibam que você desconhece o significado da honra e da decência. Ainda tenho certa influência. Minha família é muito poderosa.
Lorde Rosthorn voltou a inclinar a cabeça e seu olhar recuperou o brilho risonho.
-Quer que lhe proponha matrimônio? -perguntou-lhe-. depois de tudo o que disse? Para lhe dar a satisfação de me rejeitar? Seria uma crueldade inenarrável que me negasse, suponho. Muito bem.
Fincou um joelho no chão frente a seus pés e ergueu o olhar ao mesmo tempo que lhe agarrava as mãos. Seu olhar tinha perdido o brilho risonho de momentos atrás. Estava-a olhando com o que no dia anterior teria tomado por ternura.
-Lady Morgan Bedwyn -começou-, concederá-me a grande honra de me aceitar em casamento?
Morgan juntou toda a altivez de que foi capaz e desceu a vista para olhá-lo sem fazer o menor esforço por ocultar o desprezo que sentia. Manteve-o à espera. Saboreou o momento.
-Obrigada, lorde Rosthorn -respondeu por fim-. Sim.
Ele continuou olhando-a, encantado.
-Perdi algo? -perguntou-lhe.
-Duvido muito que seja surdo -replicou ela-, assim devo supor que não perdeu nada.
Já pode levantar-se.
Lorde Rosthorn ficou em pé devagar. O brilho risonho tinha retornado a seus olhos.
-Vai castigar me casando-se comigo para me recordar todos os dias de minha vida que sou um canalha, chérie? -perguntou-lhe.
-Aí se engana de novo -respondeu-. aceitei sua proposta de casamento. Não tenho a menor intenção de me casar com você.
O brilho risonho de seu olhar se intensificou.
-Ah! -exclamou-. Agora entendo com toda clareza.
-Pensava afastar-se alegremente depois de ter desatado sua vingança sobre todos nós -disse Morgan, jogando a cabeça para trás para olhá-lo nos olhos-. Enquanto que eu fugia para o campo para esconder minha desgraça. Nem pensar, lorde Rosthorn. Deve ter esquecido que sou uma Bedwyn. Ainda não acabei com você. E não penso me esconder e agachar a cabeça pelo mero fato de ter sido muito ingênua e tola para não distinguir um sem-vergonha. Você é meu noivo. Enchera-me de atenções e serei o objeto de sua absoluta devoção até que eu resolva romper o compromisso.
-É magnífica quando se zanga, chérie - disse ao mesmo tempo que entrelaçava as mãos às costas e se inclinava para ela-. Cortejarei-a até que mude de opinião com respeito a romper o compromisso.
- Engana-se uma vez mais -replicou ela-. Serei eu quem lhe fará a corte, lorde Rosthorn. Farei que se apaixone por mim e depois lhe romperei o coração.
-Já conseguiu o primeiro, ma petite -confessou-, e sem dúvida alguma conseguirá o segundo se não tiver piedade de mim.
-Ou, talvez -disse Morgan-, farei que me odeie e depois me casarei com você de qualquer modo. Jamais estará seguro de meus sentimentos nem de minhas intenções. Mas estará preso enquanto gostar. E se se negar, se puser fim a nosso compromisso, encarregarei-me de que voltem a expulsá-lo da Inglaterra e esta vez para o resto de sua vida.
Lorde Rosthorn a olhava com expressão risonha.
O busto do Morgan subia e descia pela agitação.
A porta se abriu.
-Lady Morgan, ma chére! -exclamou a condessa do Rosthorn ao entrar na saleta-.Henrietta me disse que estava aqui com o Gervase e que não havia nenhuma criada para guardar as aparências. ocorreu algo que a tenha alterado? Repreendi energicamente a meu filho depois do baile dos Hallmere, me crie. Eu não gostei absolutamente do que fez.
-Mamam -interveio o aludido, que a pegou pelo braço enquanto a olhava com esse sorriso que apenas alguns dias antes lhe tinha afrouxado os joelhos-, Morgan acaba de me fazer o homem mais feliz do mundo.
-É certo, senhora -acrescentou ela com um sorriso deslumbrante-. Gervase me pediu que me case com ele e lhe disse que sim.
Quando olhou a seu noivo, este inclinou a cabeça e a beijou nos lábios enquanto sua mãe os olhava extasiada e expressava sua sorte em francês com as mãos entrelaçadas sobre o peito.
Como não podia ser menos, devolveu-lhe o beijo.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 17

 

Gervase se perguntava se Morgan seria consciente de que a temporada social virtualmente tinha acabado quando insistiu em que se comprometessem. Talvez tivesse imaginado que podiam ir juntos a um bom número de eventos sociais (ela altiva e vitoriosa e ele, felizmente solícito a seus pés), antes de rechaçá-lo publicamente para levar a cabo sua vingança. O fato de que acabaria salpicada por um escândalo ainda maior não a deteria, estava certo.
Entretanto, a temporada social estava a ponto de finalizar. O anúncio do compromisso se publicou nos periódicos matinais do dia seguinte, e ambas as famílias celebraram chás e jantares. Cavalgaram juntos pelo parque algumas manhãs e inclusive uma tarde deram um passeio em seu tílburi pelo Hyde Park, à hora mais concorrida. Embora pouco mais podiam fazer. Muitas famílias já tinham deixado a cidade e foram para o campo.
Sua mãe e Henrietta estavam encantadas pelo estranho giro dos acontecimentos; de fato, sua mãe estava entusiasmada. A família do Morgan também parecia agradada e se mostravam muito amáveis. Bewcastle mostrava uma gélida cortesia. Morgan estava radiante de felicidade, mesmo que estivessem a sós. Claro que, como não podia ser de outro modo, sempre estavam à vista de alguém. Mesmo se não estivesse certo das circunstâncias, poderia ter chegado a acreditar que estava loucamente apaixonada por ele. Embora não estivesse certo de que não o estivesse e, por sua vez, de que não ele também não estivesse. Não obstante, sabia que essa felicidade se assemelhava a um escudo impenetrável que não podia atravessar e do qual ninguém mais era consciente.
Perguntava-se o que lhes proporcionaria o verão. Morgan tinha deixado muito claro a todo aquele que lhes tinha perguntado a respeito que não tinham planos imediatos de bodas. Desejavam desfrutar de um tempo de seu compromisso, afirmava. E era ele quem devia encarregar-se de fazer realidade seus desejos. Sua mãe, Henrietta e ele estavam convidados para jantar no Bedwyn House, e lady Bedwyn acabava de comentar que seu marido e ela estavam planejando visitar o Distrito dos Lagos.
-Morgan estava considerando a idéia de nos acompanhar -disse lady Eve-. Continua sendo assim, Morgan? -Olhou ao Gervase com curiosidade.
-Não, por favor -respondeu ele-. Não poderia suportar estar tanto tempo separado de minha noiva e estou certo de que Morgan pensa igual. - A aludida estava sentada a seu lado.
Virou a cabeça e a olhou com um sorriso-. Não vai ao Distrito dos Lagos, não é, chérie? Virá comigo ao Windrush?
-É claro que virá conosco! -exclamou sua mãe do outro extremo da mesa, como se tudo se combinara de antemão muito antes-. Estou desejando apresentar a minha futura nora a todos nossos amigos e vizinhos. Já escrevi a minhas filhas para lhes contar a feliz noticia. Estou muito certa de que também quererão ir ao Windrush para conhecê-la e para ver o Gervase de novo. Estou planejando uma grande festa de noivado, Uma festa no jardim ou um baile. Ou talvez ambas as coisas.
-Talvez, mamam -sugeriu Gervase-, a família do Morgan nos conceda a honra de nos acompanhar para somar-se às celebrações.
-Que idéia tão deliciosa, mon fils! -disse ela, levando-as mãos ao peito enquanto esboçava um sorriso radiante para todos os pressentes-. Eu mesma o teria proposto se me tivesse me dado tempo. Lady Bedwyn? Lady Hallmere? Bewcastle? Por favor, venham conosco ao campo.
Gervase virou a cabeça e sorriu de novo à Morgan ao mesmo tempo que lhe acariciava a mão que tinha sobre a mesa com a ponta dos dedos.
-Agrada-lhe, chérie? -perguntou-lhe em voz baixa-. A idéia de que passemos o verão juntos, em seu futuro lar, para que possa conhecer toda minha família e a seus futuros amigos e vizinhos?
-Agrada-me sobremaneira -Lhe brilharam os olhos. Gervase descobriu que estava desfrutando enormemente. Alegrava-se muitíssimo de que ela tivesse decidido contra-atacar. No referente ao Morgan, sentia-se horrivelmente culpado. Embora nem todas as acusações que tinha feito eram certas, sim, a tinha utilizado com toda deliberação e de um modo abominável. Depois de que ela o despachasse do Bedwyn House o dia que foi pedir sua mão, mergulhou-se em uma profunda tristeza. Embora naquele momento voltou a ser um homem livre e suspeitava que ela não tinha descoberto a verdade que encerrava seu comportamento, sentia-se muito mal pelo engano e pelo escândalo no qual a tinha envolvido.
Não obstante, ela estava contra-atacando de uma forma totalmente inesperada e fascinante. Tinha prometido utilizá-lo até que estivesse pronta para abandoná-lo. Obteria que se apaixonasse por ela e depois lhe romperia o coração. Ou obteria que a odiasse e depois o obrigaria a casar-se com ela tal qual.
Estava encantado com a situação. E, ao mesmo tempo, agradecia à Providência por lhe ter dado a oportunidade de emendar de algum modo seus enganos. Não sabia como ia fazê-lo. Talvez tudo se reduzisse a permitir que Morgan cumprisse suas ameaças. Mas não se humilharia, decidiu. Não ia deixar se castigar simplesmente porque merecesse o castigo. Morgan não gostaria. Participaria do jogo que ela tinha posto em marcha. Se ela ganhava limpamente, aceitaria a derrota com esportividade. Mas não a deixaria ganhar. Não lhe tinha a menor dúvida de que Morgan lhe cuspiria em um olho se tentasse fazer algo semelhante. Jogaria seu jogo do amor para ganhar, disse-se.
Embora ainda não tivesse considerado o que implicava exatamente ganhar.
Tinham atrasado sua viagem ao Distrito dos Lagos no ano anterior para ir a Penhallow, na Cornualha, quando Freyja se comprometeu, explicou lady Eve com uma gargalhada. Assim que esse ano deviam fazer o mesmo pelo Morgan. Estava Aidan de acordo com ela? Ao que parecia, lorde Aidan estava. E dado que não sabia quando voltaria a abandonar a Cornualha uma vez que retornasse a sua casa devido a seu estado de boa esperança, lady Hallmere pensou que seria uma verdadeira lástima não ver o futuro lar do Morgan enquanto tivessem a oportunidade.
Hallmere esteve de acordo em que uma semana em Kent seria muito agradável, Bewcastle declinou o convite depois de agradecer a sua mãe com suma elegância.
E assim ficou decidido. Passariam o verão no Windrush.
-Suponho -disse Morgan na manhã seguinte enquanto cavalgavam pelo Rotten Row por diante de lorde Aidan e sua esposa- que planeja me envergonhar ao convidar a nossas respectivas famílias a passar o verão no Windrush e fazer uma grandiosa celebração por nosso compromisso. Não me envergonho com facilidade, Gervase.
-Sei, chérie -replicou-. Mas sou eu quem vai ficar envergonhado, não? São minha família, meus criados, meus arrendatários e meus vizinhos quem vão presenciar a intensidade de meu amor por você e quem depois me compadecerão quando me abandonar.
-Uma descrição muito acertada -declarou ela.
-A menos -continuou Gervase com um sorriso ao mesmo tempo que aproximava seu cavalo ao dela, de modo que seus joelhos quase se roçaram - que possa convencê-la para que tenha piedade de mim, encanto.
-Isso não vai acontecer - assegurou ela ao mesmo tempo que esboçava um radiante sorriso e estendia o braço com descaramento para lhe roçar um instante a coxa.
-Vou levá-às compras depois - disse. - Devo comprar jóias, chérie. Grande fiasco de noivo seria se não lhe comprasse um presente de compromisso, não lhe parece?
-Não me interessam as jóias -respondeu Morgan-. O que vou fazer com elas quando nos separarmos? Nem sequer poderia suportar vê-las.
-Então, o que? -perguntou-lhe-. Ainda não posso lhe comprar roupa. consideraria-se escandaloso.
- Tintas e todos os apetrechos para pintar -respondeu ela depois de um instante de reflexão-.Não trouxe minhas coisas a Londres e estou desejando voltar a pintar. Pintarei no Windrush. Pode comprar um cavalete, tinta, pincéis, tecidos, papel, lápis-carvão e qualquer outra coisa que me ocorra daqui a uma hora.
-Pinta? -quis saber-. É boa?
-Que pergunta mais estúpida -replicou ela-. Como vou saber se sou boa ou não? E o que importa isso? Pinto porque eu adoro, porque devo fazê-lo. Pinto porque desse modo me inundo na realidade, atravesso a superfície e chego ao coração das coisas. Não sou uma aficionada, uma dama que pinta quadros bucólicos em paisagens pitorescas para conseguir que alguém se apaixone loucamente por mim e acabe prostrado a meus pés.
-Ah! -Estalou a língua-. Pois então farei de tripas coração, chérie, e tentarei não me prostrar a seus pés. Tintas e pincéis. Será tudo da melhor qualidade e em quantidades enormes para que o mundo saiba quanto a quero.
Morgan o olhou com um sorriso que parecia brotar do fundo de sua alma ou ele acreditou nisso.
-Obrigado, Gervase -disse-. Ai, obrigado. Adoro-o!
Olhou-a um instante, extasiado. Era formosa, estava cheia de vida e toda essa formosura e vitalidade estavam pendentes dele. Era quase impossível pensar que suas palavras fossem falsas. E justo então ela pôs-se a rir.
Wulfric retornava a Lindsey Hall no mesmo dia que Morgan partia para o Windrush com o Aidan, Eve, Freyja e Joshua. Mal havia dito nada sobre o compromisso; embora, depois de que o contasse a sua volta da Câmara dos Lordes no mesmo dia que se produziu, ele levou o monóculo ao olho e a observou em silencio durante o que lhe pareceram cinco minutos, embora em realidade nem sequer tivesse sido um.
Não obstante, falou com ela em particular antes de que saísse para subir à carruagem.
-Não há nada irrevogável até que termine as bodas -lhe disse-. Morgan, rogo que considere se o está fazendo pelo mero fato de que eu te aconselhei que não o fizesse.
-Que ridículo é, Wulf -replicou, zangada-. Me vou casar com o Gervase porque quero fazê-lo. E que saiba que está muito equivocado com ele. Não violou Marianne. Estendeu-lhe uma armadilha porque não queria casar-se com você.
Desejou não ter dito dessa maneira, mas já era muito tarde para mudar as palavras. Wulfric a olhou com expressão dura e sombria.
-Tinha-a por uma pessoa menos crédula -disse-. Às vezes me esqueço de como é jovem.
-E foi muito cruel de sua parte fingir que não tinha visto o broche -declarou-, e que não o tinha deixado sobre a mesa quando saía do dormitório do Marianne seguido pelo Gervase.
Viu-o assentir com a cabeça muito devagar.
-Certamente, está apaixonada -disse-. Só me cabe esperar que tenha mudado nestes nove anos, embora até o momento as provas sugerem o contrário. Entretanto, Morgan, quero que saiba algo antes de que vá. Sua felicidade me importa muito mais que ter razão. Pense em sua felicidade sem ter em conta minha opinião.
Sempre tinha querido ao Wulfric. Não recordava a seus pais. Wulfric tinha sido como um pai para ela toda a vida e sempre se havia sentido incrivelmente segura sob seu cuidado e seu guia. Sempre tinha sabido que fazia o melhor para ela. Entretanto, nunca tinha pensado que a quisesse, nem que quisesse a Freyja ou a seus outros irmãos. Sempre o tinha tido por um homem incapaz de toda emoção, incluída a fúria. Nesse momento lhe assombrou descobrir que talvez sim se preocupasse Não só por sua segurança, sua posição e sua reputação, mas também por ela. E quase lhe escaparam umas frases de consolo, uma explicação a respeito da natureza de seu compromisso, uma promessa de que logo acabaria tudo e de que por fim poderia esquecer-se do Gervase Ashford, conde do Rosthorn. Mas se dissesse algo, era muito provável que lhe proibisse ir ao Windrush, onde estaria exposta a um novo escândalo. Um escândalo muito pior que os anteriores. Guiada por um impulso, aproximou-se dele e o abraçou.
-Vou ser feliz -lhe disse-. E você se alegrará em ver-me feliz. Já o verá.
-Bom, enfim -replicou com tom frio e possivelmente envergonhado-. Eve e Aidan a estão esperando, Morgan.
A última hora da tarde estavam perto do Windrush Grange, em Kent, e Morgan contemplava a paisagem pelo guichê com grande interesse. A propriedade era enorme. A carruagem avançou por uma avenida serpeante e rodeada de árvores durante ao menos dois quilômetros antes de que a mansão aparecesse ante seus olhos. Era uma construção de aspecto muito evocador com seus tijolos vermelhos e seus telhados a duas águas. Estava rodeada de extensos prados e de floridos jardins.
-É magnífica, Morgan -disse Eve do outro assento-. Que emocionante deve ser isto para você!
-É-o -concordou ela.
Tinha passado uma semana desde a última vez que viu o Gervase. Um período de tempo no qual seu ressentimento e sua zanga para com ele tinham aumentado. Se a semana que tinham passado em Bruxelas depois da batalha do Waterloo não existisse, repetia-se sem cessar, talvez nesse momento não o odiaria tanto. Ao fim e ao cabo, antes e depois desse período concreto, não se tinha esforçado em ocultar sua intenção de paquerar com ela. Mas durante os dias posteriores ao Waterloo se convertera na pessoa mais importante de sua vida e se sentia horrivelmente traída. Não obstante, a semana que concluía também tinha sido terrivelmente insípida. Tinha-sentido falta dele, tinha sentido falta de seu sorriso irônico, suas brincadeiras e seu atraente sotaque francês.
E o odiava muitíssimo mais porque sem dar-se conta se apaixonara por ele em algum momento concreto dos últimos meses e lhe estava custando bastante amoldar suas emoções à realidade de seu caráter e à natureza de sua relação.
Uma vez que a carruagem passou sob uma pérgula coalhada de flores e entrou no amplo espaço empedrado frente à mansão, viu que a porta dupla folha que coroava os degraus com forma de ferradura estava aberta. Dois criados trajados com librea estavam descendo os degraus, cada um por um lado; um terceiro criado vestido de negro, que devia ser o mordomo, montava guarda junto à porta; e uma imensa quantidade de pessoas, ou isso lhe pareceu, entre as que se incluíam Gervase e a condessa, saiu nesse momento pela porta e desceu os degraus a toda pressa atrás dos criados.
Assim que é isso, pensou Morgan com uma mescla de felicidade e nervosismo, era o que tinha provocado. Inspirou fundo para serenar-se e sorriu. Tudo era muito desconcertante. Gervase a ajudou a desembarcar da carruagem e depois ofereceu a mão à Eve para fazer o mesmo. As outras carruagens (que levava Freyja e Joshua e a que levava Becky, Davy e sua babá) detiveram-se atrás da sua para deixar sair a seus ocupantes. Morgan se encontrou rodeada pelos braços da condessa e depois lhe apresentaram ao reverendo Pierre Ashford e a sua esposa, Emma; a lorde e lady Vardon (a irmã do Gervase, Cecile); e a sir Harold Spalding e sua esposa, a outra irmã do Gervase, Monique. Os cavalheiros lhe fizeram uma reverência, assim como Emma. As irmãs, que compartilhavam a efusividade francesa de sua mãe, abraçaram-na e elogiaram sua beleza. Enquanto isso, Gervase assumiu o trabalho de saudar os Bedwyn e apresentá-los a sua família. As crianças (uma autêntica horda, ou isso lhe pareceu) corriam a seu redor sem nenhuma babá à vista que restringisse seu entusiasmo, salvo a aia Johnson.
Houve muito ruído e muitas risadas. Os criados estavam descarregando a bagagem da carruagem que fechava a comitiva. O sol estival iluminava a alegre gritaria. Gervase lhe agarrou uma mão e depois a outra.
-A semana foi interminável, ma chére -disse ao mesmo tempo que levava a mão direita aos lábios-. Bem-vinda ao Windrush -Se levou a mão esquerda aos lábios-. Bem-vinda a casa.
Enquanto suas irmãs exclamavam entusiasmadas e outros dos presentes expressavam sua satisfação com discretos murmúrios, Gervase se inclinou para ela e a beijou nos lábios.
-Cada dia me pareceu uma semana, Gervase -replicou ela, lhe apertando as mãos com força-. Estou muito contente de ter chegado por fim.
Agradava-lhe que continuasse flertando descaradamente com ela, disse-se enquanto aceitava o braço que lhe oferecia e punham-se a andar escada acima para o interior da mansão. Se ele tivesse se convertido em uma criatura triste, contrita e abatida desde que o obrigara a comprometer-se com ela, talvez o tivesse perdoado e tivesse liberado, embora sem dúvida tivesse desprezado mais do que já o fazia, é obvio.
E cada dia lhe tinha parecido uma semana, admitiu para si mesma.
A semana tinha sido realmente interminável. Gervase tinha tentado manter-se ocupado com os assuntos da propriedade e tinha passado bastante tempo com seu administrador (que também tinha sido o de seu pai), fosse no escritório ou ao ar livre, visitando a granja que abastecia à mansão. Não obstante e como sempre tinha sabido, seu pai se encarregara de tomar as decisões mantendo-se a par em todo momento dos assuntos da propriedade. E era evidente que seu administrador o admirava muitíssimo. Seu nome era mencionado constantemente na conversa (Seu Muito ilustre fez isto, Seu Muito ilustre acreditava aquilo, Seu Muito ilustre jamais teria permitido o outro), até tal ponto que teve vontade de gritar ao tipo que seu Muito ilustre era ele.
Entretanto, não podia competir com seu pai. Sabia pouquíssimo do assunto. Demoraria muito para aprender tudo. Enquanto isso, dependia de seu administrador.
Tinha discutido com a Henrietta e, em menor grau, também com sua mãe. Uma noite perguntou de passagem a sua prima onde tinha passado a tarde e quando lhe disse que tinha ido ver Marianne, lhe perguntou com bastante brutalidade se lhe parecia leal para sua pessoa continuar com essa amizade. Em seguida, quando lhe recordou que o acontecido entre Marianne e ele tinha passado nove anos antes, perdeu o controle e assegurou que sabia muito bem quanto tempo tinha passado. Tinha vivido no exílio todos esses anos. Henrietta acabou indo para seu quarto feita em lágrimas e sua mãe lhe indicou em voz baixa que talvez tivesse chegado o momento de esquecer o passado.
O problema era que não podia perdoar seu pai.
Não podia perdoar Marianne.
Não podia perdoar Bewcastle.
E começava a ter problemas para perdoar Henrietta.
Compreendeu que estava muito mal. Sentia-se consumido por uma amargura que tinha acreditado esquecida até há muito pouco tempo, até que posou os olhos em lady Morgan Bedwyn no baile dos Cameron em Bruxelas, de fato.
E por isso lhe alegrava a distração de ter tantos convidados em casa. Embora ver Morgan de novo o alegrava muitíssimo mais. Sua intenção talvez fosse a de atormentá-lo. De fato estava convencido disso. Mas ao menos estimularia sua mente e seus sentidos. E o faria rir. A noite de sua chegada converteu a entrega de seu presente de compromisso em um espetáculo. Todos a observaram enquanto desembrulhava um pacote atrás de outro e exclamava encantada por seu conteúdo, que ela mesma tinha escolhido em Londres, mas que ele tinha ordenado que empacotassem e enviassem ao Windrush. Quando terminou, aproximou-se dele, jogou os braços em seu pescoço e lhe deu um beijo na face.
Se os Bedwyn estavam escandalizados por seu atrevido comportamento, não o demonstraram. Sua família estava encantada.
E lhe fez muita graça. Tinha a esperança de que lhe permitisse vê-la pintar.
O clima quente e ensolarado que reinava no dia de sua chegada se repetiu no dia seguinte. Gervase propôs um lanche campestre junto ao lago de tarde e ali foram todos em ruidoso grupo, inclusive os meninos. Pierre e Emma chegaram da vicaría com o Jonathan. Brincaram um bom tempo de esconde-esconte para começar e depois Joshua (todos os Bedwyn tinham pedido que os chamassem por seus nomes de batismo) e Harold tiraram os barcos e deram uma volta em todos enquanto Emma e Eve jogavam na margem com algumas das crianças . Deram boa conta do chá que os criados levaram e depois quase todos os adultos se dispuseram a vadiar nas mantas que tinham estendido sob um enorme carvalho enquanto os meninos prosseguiam com seus jogos.
-Damos um passeio, chérie? -sugeriu ao Morgan.
Ela se agarrou a seu braço e a conduziu pela alameda que corria perpendicular ao lago.
-O que é isso daí? -quis saber ela, apontando o lugar.
-Um mirante - respondeu-. É um refúgio tranqüilo para um dia chuvoso e tem vista magnífica em todas as direções. Talvez com o passar dos anos você goste de e sentar ali para ler.
-Para escapar de todas as crianças que haverá no quarto infantil, suponho –replicou ela.
-Ou das constantes demandas de um marido apaixonado -sugeriu.
-Mas não adivinharia o dito marido apaixonado meu paradeiro? -perguntou ela.
-Acredito, chérie -respondeu-, que o dito marido a perseguiria e a convenceria de que em realidade queria escapar das visitas que se apresentaram para perturbar nossa privacidade.
-Encantador -disse ela-. Há algum outro lugar parecido na propriedade? Seria injusto que não pudesse fazê-lo duvidar ao menos sobre o lugar escolhido nesse dia em concreto.
-Há uma gruta -respondeu-. Está no final do atalho agreste, mas passa inadvertida para quem não sabe de sua existência. Levarei-a um dia. Possivelmente goste de pintar ali.
-Pois não acredito que você gostasse muito -replicou Morgan enquanto prosseguiam seu passeio pela reta alameda cujas árvores os protegiam dos intensos raios do sol-. Me abstraio por completo quando pinto.
-Mas eu tenho toda a paciência do mundo -lhe assegurou-. Me sentarei e esperarei, e quando terminar de pintar, ajudarei-a a relaxar antes de levar suas coisas à casa para que não se canse.
-Seriamente?
-Faremos amor ali -lhe disse- e também no mirante, e nas zonas mais recônditas que limitam o lago.
- Os barcos me pareceram interessantes -comentou ela.
-E nos barcos também -conveio-. Nos dois. Assim decidiremos qual é o mais cômodo e qual balança melhor.
Ela virou a cabeça ao mesmo tempo que ele e seus olhares se encontraram. puseram-se a rir.
-Perdoou-me já, chérie? -perguntou-lhe.
Entretanto, ela se limitou a soltar outra gargalhada e a olhar a seu redor com um enorme suspiro que bem parecia de felicidade.
-Que formoso é tudo isto! -exclamou-. eu adoro o verão.
Já tinham chegado ao mirante. Sua intenção não tinha sido a de deter-se ali, mas sim de dar meia volta e retornar com os outros. Entretanto, não estavam obrigados a fazê-lo. Estavam oficialmente comprometidos. Tanto sua família como a de Morgan fariam portanto vista grossa cada vez que passassem longos momentos a sós. Abriu a porta e se voltou a um lado para deixá-la passar.
Fazia calor ali dentro, embora não tanto como devia esperar, já que estava protegido pela sombra de duas árvores muito altas. Era uma estrutura circular com um muro de pedra que chegava até a cintura e janelas por cima, coroada por uma cúpula de madeira grafite. O perímetro da estadia estava ocupado por um amplo banco estofado com couro e no centro estava colocada uma mesa redonda de carvalho.
Morgan não se sentou imediatamente. Contemplou a longa alameda que tinham percorrido e depois se virou para observar o atalho muito mais estreito e ladeado de flores que conduzia à mansão, a fina fileira de árvores que deixava entrever parte do atalho agreste e, por último, o rio que discorria até o lago.
-Quanta beleza -disse, e se sentou.
-Muita, chérie - Sorriu antes de sentar-se a seu lado. Tinha abandonado o luto. Já se dera conta no dia anterior, quando a viu chegar. Naquele momento levava um bonito vestido de musselina celeste com um chapéu de palha adornado com flores.
-O que sente ao voltar a estar entre sua família? -perguntou-lhe.
-Sinto-me estranho -respondeu-. Monique e Cecile eram meninas a última vez que as vi. Agora estão casadas e têm filhos. Pierre era pouco mais que um menino. E agora tenho dois sobrinhos e três sobrinhas.
-Entristece-o ter perdido grande parte de suas vidas? -perguntou ela de novo.
Gervase meditou a resposta. Mas que sentido tinha negá-la?
-Sim -respondeu-. É como se tivesse retornado da morte com a esperança de que todo mundo tivesse passado esses nove anos chorando minha ausência, e tivesse descoberto que continuaram com suas vidas, me demonstrando desse modo que eu não era indispensável ao fim e ao cabo. É uma queixa estúpida. Por que sempre assumimos que somos tão importantes para outros? Ninguém é insubstituível, nem sequer aqueles aos que nos sentimos mais unidos.
-Falta um membro de sua família -disse ela-. O que sente por seu pai, Gervase?
Ele cravou o olhar no atalho que levava a mansão.
-Era um marido e um pai exemplar -respondeu-, e parece que um latifundiário modelo.
Admirava-o muito. Estávamos muito unidos. Sempre acreditei que era seu favorito embora nos queria muitíssimo a todos. Jamais me mostrei rebelde como fazem outros e nunca me deixei levar pelo desenfreio apesar de que eu gostava de causar sensação em Londres e cultivar a amizade de homens influentes, como Bewcastle.
-Sua rejeição deve ter sido demolidora -disse ela.
-Poderia dizer-se que sim -A olhou e riu entredentes sem rastro de humor-. Nenhum de nós tinha feito nada que o decepcionasse até aquele momento. Fomos uma prole especialmenteaborrecida, chérie. E por isso, suponho, reagiu ao que acreditou que eu tinha feito com a ira implacável de um homem que jamais tinha tido que enfrentar a algo semelhante.
- Continua odiando-o? -perguntou.
-É muito tarde para isso -respondeu, depois de soltar um silencioso sorriso . - Está morto.
-Onde está enterrado? -quis saber ela-. No cemitério do povoado?
-Sim -respondeu.
-Esteve lá? -perguntou-lhe.
Negou com a cabeça. A vicaría estava junto à igreja e ao cemitério, e tinha estado ali em várias ocasiões. Também tinha ido à igreja. Mas sempre tinha evitado olhar o cemitério.
-Iremos juntos -Morgan colocou a mão sobre a sua.
-De verdade? -voltou a rir entredentes.
-E Marianne? -quis saber-. O que aconteceu com ela? Sabe?
-Vive a pouco mais de cinco quilômetros daqui -respondeu-. Se quer saber mais dela, fala com Henrietta. Continuam sendo amigas.
-Ah! -exclamou ela-. Isso deve incomodá-lo.
-Por que ia fazê-lo? -replicou-. Nove anos é muito tempo e são vizinhas. Sempre foram amigas.
-Gervase -lhe disse-, tudo isto foi terrivelmente doloroso para você. Mais do que pensava a princípio.
A mão de Morgan ainda continuava sobre a sua. Cobriu-a com a mão livre.
-Mas me nego a ser uma vítima, chérie -confessou-. Construi uma vida no continente sem ajuda de ninguém. Vi lugares que jamais teria visto de outro modo, conheci a pessoas muito interessantes e tenho feito coisas que jamais teria feito se minha vida tivesse continuado seu aborrecido e inocente curso. Conheci você.
-E isso é algo que acabará lamentando -lhe assegurou. - Mas acredito que esse é o modo de suportar a vida, verdade? Acreditar que tudo tem um motivo positivo, que não há tempo perdido a menos que nos neguemos a aprender a lição que encerra esse tempo que nos parece perdido. Assim melhoramos como pessoas.
-Ou pioramos.
Ficaram sentados longo tempo antes de empreender a volta à mansão juntos, imersos em um silêncio estranhamente agradável, com as mãos unidas e os ombros tão perto que quase se roçavam. Se relaxasse, podia chegar a imaginar que estavam de novo em Bruxelas, durante aquela semana em que o tempo pareceu ficar suspenso e em que todas suas energias e todas suas emoções tinham estado pendentes dela, de sua coragem, de sua força e de sua iminente dor.
Morgan lhe tinha prometido que conseguiria que se apaixonasse por ela. Isso era o que estava fazendo nesse momento? Se fosse assim, estava conseguindo.
Ou tudo era sincero?
Não havia modo de saber.

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 18

 

Morgan era a menor de seis irmãos. A vida tinha sido muito buliçosa enquanto cresciam. Recordava sobre tudo os jogos amalucados, extenuantes e com freqüência perigosos que compartilhavam com os vizinhos, os Butler, os filhos do conde do Redfield. O problema era que todos tinham crescido muito antes que ela e os últimos anos tinham sido relativamente solitários. Até há muito pouco tempo tinha estado ocupada com seus estudos na sala-de-aula. Tinha muito pouca experiência no trato com adultos. Durante a primavera só tinha sido uma mocinha imersa em sua apresentação em sociedade.
Daí que adorasse estar no Windrush. Estava rodeada por sua família e pela do Gervase. E não era uma a mais; era o centro de atenção. Visitavam os vizinhos, eles lhes devolviam as visitas, e já não era a jovenzinha lady Morgan Bedwyn, mas a noiva do conde do Rosthorn. Todo mundo estava entusiasmado com a perspectiva da festa ao ar livre e do baile que a condessa trabalhava em excesso para preparar para celebrar seu compromisso. A mansão e os prados formavam um amplo e maravilhoso cenário onde organizar atividades estivais nas quais ela por fim podia participar plenamente.
Às vezes se esquecia de que tudo era uma farsa, de que a ira e o afã de vingança eram os culpados da falsa posição que ocupava. Não tinha percebido do muito que tinha sofrido Gervase por uma antiga injustiça. Quando lhe falou da questão em Bruxelas sem entrar em muitos detalhes, simplesmente pensou que uma vez revogado o exílio poderia retornar a Inglaterra, assumir suas obrigações como conde do Rosthorn e viver feliz e contente. Entretanto, semelhante hipótese tinha sido pouco imaginativa de sua parte. Ao Gervase tinham arrebatado sua juventude em um sentido bastante literal. Era um homem que tinha passado nove anos perambulando sem rumo fixo, criando uma impressionante, e sem dúvida bem merecida, reputação como libertino, mas também era um homem a quem lhe tinham arrebatado a vida que deveria ter sido sua no país onde tinha nascido.
Gervase transbordava ódio e amargura, embora reprimia grande parte de ambos os sentimentos. E ela continuava muito ressentida pelo que lhe tinha feito. Jamais poderia perdoá-lo. Jamais poderia voltar a confiar nele. Mas o ódio era um sentimento contrário a sua natureza. E como ia passar uma temporada no Windrush, bem poderia tentar fazer algo positivo. Becky quis ir brincar com Jonathan num dia frio e fechado, embora todo mundo preferia ficar na mansão. Morgan se ofereceu para levá-la ao vicariato e, é obvio, Gervase as acompanhou. Pierre não estava em casa, já que tinha saído para visitar um doente, mas Emma sim e se mostrou encantada de que seu filho tivesse alguém com quem brincar porque estava ocupada na cozinha ajudando a sua governanta a fazer geléia.
-Não as incomodaremos - assegurou Morgan-. Sairemos para dar um passeio e voltaremos mais tarde para recolher Becky.
O passeio se converteu em uma série de visitas a vários vizinhos do povoado que trabalhavam para Gervase.
-Tenho que conhecer minha gente, chérie - explicou ele-. Ainda me sinto como um estranho entre desconhecidos. Não, é pior; sinto-me como um impostor. Quando as pessoas me pedem algum favor, a primeira coisa que me passa pela cabeça é enviá-los para falar com meu administrador, como se eu carecesse da autoridade necessária para tomar esse tipo de decisões. E quando aceito a fazer algo, como arrumar o telhado da escola, que se converte em um coador cada vez que chove, em seguida me sinto culpado e me pergunto se meu administrador me chamará a atenção quando se inteirar.
Gervase riu entredentes, mas ela percebeu que estava falando de algo muito real.
Não imaginava o administrador do Wulfric atrevendo-se a dar sua opinião embora seu irmão lhe tivesse ordenado que espalhasse sal pelos campos de trabalho. Claro que Wulf tinha estado preparando-se desde os doze anos para sua futura posição e tinha aceitado o ducado com dezessete anos.
-Apreciam-lhe -disse. - Sua gente o aprecia, Gervase.
E era certo. Falava com eles, ria com eles e os escutava. Respondiam a sua simpatia, que parecia autêntica quando se relacionava com eles.
-Acredito, chérie -replicou ele-, que me apreciam porque sabem que podem me dirigir como desejam. Assim que me vêem, recordam o versículo da Bíblia: "Peçam e lhes dará".
-O que tem que fazer é calcular os lucros que gera Windrush -lhe aconselhou-. Tem que estudar os livros de contas e falar com seu administrador. A generosidade está bem, mas se der o que não pode se permitir, ao final todos sofrerão e você ficará na ruína.
-Sim, senhora -A olhou com expressão risonha.
-Suponho que já o está fazendo -replicou.
-Assim é - assegurou-. E também estou começando a me dar conta da irresponsabilidade que cometi ao me manter um ano inteiro afastado da propriedade desde que aceitei o título e herdei tudo isto. Mas se não o tivesse feito, chérie, jamais a teria conhecido.
-Para os dois teria sido melhor se não o tivesse feito -replicou ela com aspereza.
Gervase pôs-se a rir baixo.
Retornaram ao vicariato pela rua principal do povoado, uma hora depois de terem saído. O céu continuavam aberto e o vento ainda soprava com força, mas ao menos não o tinham de frente.
-Quero ver o cemitério -disse ela ao passar bem ao lado.
-Faz muito frio -protestou Gervase-. Vamos ao vicariato para ver se tiramos uma xícara de chá de Emma. Talvez Pierre já tenha tornado.
-Quero ver o cemitério -repetiu, virando-se para olhá-lo no rosto. Seu semblante era bastante sombrio e a alegria tinha desaparecido de seu olhar. - Não pode evitá-lo durante o resto de sua vida, Gervase. E se essa é sua intenção, dará-se conta de que com o passar do tempo cada vez lhe será mais difícil.
-Quem te colocou essa absurda noção na cabeça? -perguntou ele, lhe erguendo o queixo com um dedo enluvado.
- Mostre-me as tumbas de seus antepassados - pediu.
Parecia apropriado que o dia fosse frio e cinza. Ao menos, pensou, seu pai tinha uma tumba. Wulfric tinha a intenção de erigir um monumento à memória do Alleyne no cemitério de sua família, mas todos seriam dolorosamente conscientes de que seus restos descansavam em alguma tumba desconhecida na Bélgica.
Gervase não perdeu tempo com percursos históricos pelo cemitério, tal como ela tinha esperado que fizesse. Conduziu-a sem demora a uma lápide de mármore cuja resplandecente brancura proclamava sua recente colocação. Havia flores no chão, diante da lápide. Cecile e Monique tinham estado ali no dia anterior.
"Aqui jazem os restos mortais do George Thomas Ashford, sexto conde do Rosthorn…"
Depois seguia um epitáfio que elogiava suas virtudes e recordava que foi amado por todos os que o conheceram.
Contemplaram a lápide em silêncio, um junto ao outro, com o vento açoitando suas costas.
-Teve notícias dele depois que saiu da Inglaterra? -quis saber ela.
-Não -respondeu Gervase.
-Escreveu-lhe?
-Todas as semanas durante seis meses -respondeu-. As vezes mais de uma carta na semana. Cartas nas quais lhe rogava, nas quais ventilava minha raiva, minha indignação e minha fúria, nas quais desafogava minha frustração. Continham todo o leque de emoções humanas. E não, jamais respondeu a uma só delas. Minha mãe me escrevia de vez em quando, embora suas cartas costumavam demorar ao menos um ano em chegar até minhas mãos. E também o fizeram Pierre e minhas irmãs, mas só durante os dois ou três primeiros anos.
-Deve ter sofrido - disse ela.
-Meu pai? -Olhou-a com expressão interrogante-. Que ele sofreu?
- Disse-me que eram muito unidos -explicou-, que o queria. Devia ter acreditado no pior de você para agir como o fez. Devia estar absolutamente convencido.
Agiu com dureza e com precipitação, é evidente. Mas uma vez que tomou sua decisão, deve ter se sentido obrigado a mantê-la. Suponho que desejou encontrar a maneira de voltar atrás.
-Havia uma maneira -protestou Gervase-. Poderia ter acreditado em mim. Poderia ter confiado em mim.
-Ele é o desafortunado - disse-. Já é muito tarde para que reconheça que possivelmente cometeu um engano. Já é muito tarde para que descubra ou que admita que o amor possivelmente seja uma emoção muito mais forte e resistente que todas essas emoções negativas com as quais não só castigamos às pessoas que as provocam, mas também a nós mesmos. Se tivesse sabido com antecipação que ia morrer e tivesse tido tempo de lançar um olhar atrás, estou certa de que teria dado algo para tê-lo diante e poder perdoá-lo.
-Para poder me perdoar - repetiu ele em voz baixa.
-E talvez para que você o perdoasse também - continuou. - O amor e o ódio podem ser emoções entristecedoras e em muitas ocasiões é difícil distinguir uma da outra. Se não o tivesse querido com toda sua alma, acha que teria sido tão duro com você e consigo mesmo?
Gervase colocou uma mão sobre a lápide e lhe deu um ligeiro golpezinho antes de começar a golpeá-la repetidamente e com mais força.
-O que está insinuando? -perguntou-lhe. - Que o perdoe? Acaso importa? Se me puser a lançar juramentos ao ar ou a suplicar perdão à terra, escutará-me? foi-se.
-Mas você não -replicou-. Se se põe a lançar juramentos ao ar, o veneno se assentará em seu coração. Se perdoar, se purificará. -
Gervase virou a cabeça para olhá-la e pôs-se a rir.
-Quantos anos tem, chérie? -perguntou-. Dezoito ou oitenta?
-Passei muito tempo só -lhe disse-. Talvez não tenha vivido muito, mas compreendo muitas coisas sobre a vida.
Era uma Bedwyn dos pés à cabeça. Era atrevida, pouco convencional e não se deixava acovardar de qualquer jeito nem por outros nem pela vida. Mas também era diferente do resto. Sempre tinha sabido disso. Sua natureza tinha uma faceta solitária e mística que raras vezes mostrava a outros.
Gervase continuava dando golpezinhos à lápide. Já não a estava olhando.
-Nesse caso, deveria fazê-lo -acessou com outra gargalhada-. É estranho que tenha passado todos estes anos convencido de que é a outro homem a quem odeio acima de tudo, não acha? Um homem que não significava nada para mim e a quem podia odiar sem problemas.
-Mas é meu pai, Meu pai, Imagina sequer o que suporia que Bewcastle te fizesse o que meu pai me fez? Foi como uma morte em vida que me julgassem tão mal, que me voltassem as costas, que me expulsassem de seu lado por completo. Se alguma vez tiver filhos Se...
Nesse momento se voltou e se afastou até deter-se certa distância, com uma mão apoiada no antigo muro de pedra da igreja e a cabeça encurvada. Tremiam-lhe os ombros.
Morgan não foi atrás dele.
Retornou uns minutos depois. Em lugar de olhá-la a ela, seus olhos percorreram a tumba e a lápide.
-Suponho que sofreu -disse-. Embora jamais albergasse a menor duvida, deve ter sofrido. Mas é impossível que não tivesse dúvidas. Suponho que se viu apanhado em uma situação que ele mesmo tinha provocado, e o orgulho (ou a certeza de que tinha feito o correto) manteve-o apanhado durante o resto de sua vida. Descansa em paz papai.
Viu que lhe brilhavam os olhos pelas lágrimas contidas quando se virou para ela e tentou sorrir.
-Está satisfeita, chérie? -perguntou-lhe com um tom zombador.
Morgan se aproximou e lhe rodeou a cintura com os braços. Ele a abraçou com força, inclinou a cabeça e a beijou.
O que tinha a morte que impulsionava aos vivos a aferrar-se à vida e a outros com umdemonstração de paixão?, perguntou-se. Moveu as mãos e estendeu os dedos sobre suas costas ao mesmo tempo que separava os lábios e aceitava a ardente invasão de sua língua. Apoiou-se contra ele e sentiu a dureza de sua virilidade, a úmida intimidade de seu beijo.
Mas o que sentia não era paixão. Ao menos não era esse cego e urgente impulso sexual que sabia que estava incitando ao Gervase. Era ternura, Uma ternura profunda que lhe afrouxava os joelhos e lhe inundava o coração. Era muito consciente de tudo o que acontecia seu redor, incluído o fato de que esse lugar do cemitério em concreto ficava oculto da rua graças a dois vetustos discos.
Era consciente de quem era ele e do que lhe tinha feito, e também do que ela pretendia lhe fazer a modo de represália. Mas de momento nada disso importava. Esse instante era diferente, como se não formasse parte do curso habitual da vida e seus acontecimentos, como na noite que foi a seus aposentos em Bruxelas depois que descobrira a verdade sobre o Alleyne.
Gervase ergueu a cabeça pouco depois e lhe sorriu enquanto a observava com as pálpebras entreabertas.
-Se esta for sua maneira de conseguir que me apaixone mais de você, chérie -disse-, é um plano completamente bom. Mas tenho tempo. Ainda resta uma semana para o baile. Uma semana para tentar que se apaixone por mim. E também conto com o resto do verão.
Morgan se afastou dele e alisou as saias do vestido coberto pelo casaco.
-Estou gelada até os ossos por culpa do vento -disse-. É hora de voltar para o vicariato.
Ele riu entredentes.
Passaram-se dois dias de chuvas intermitentes, vento frio e céu nublado. Passaram a maior parte do tempo na mansão, jogando bilhar, cartas ou charadas. Uma das tardes se entretiveram jogando longa e ruidosamente esconde-esconde com as crianças e não houve nem um só lugar da mansão que ficasse restringido. Também leram e conversaram.
Gervase arrumou para dedicar um pouco de tempo a seu administrador, embora nem por isso abandonou a seus convidados. Como era inevitável, o assunto do telhado da escola saiu de novo à luz. Tinha decidido que as reparações começassem imediatamente, antes que entrasse o inverno. Seu administrador se mostrou muito respeitoso e sutil, mas lhe fez saber de todas formas que o defunto conde costumava estudar esses gastos tão elevados durante ao menos um ano antes de tomar uma decisão.
Gervase o olhou diretamente nos olhos.
-Eu sou Rosthorn agora -lhe recordou-. Depois de estudar os benefícios deste ano e subtrair os gastos, sem esquecer o risco de que a colheita talvez não seja tão abundante como promete, cheguei à conclusão de que as reparações não vão deixar me na ruína. E a julgar pela inspeção que eu mesmo fiz do telhado, diria que tais reparações deviam ter sido levadas a cabo há muito tempo, contando com esse ano de cuidadoso estudo. Por favor, encarregue-se dos preparativos.
-Sim, milord -concordou o administrador com o que lhe pareceu um considerável respeito-. Me encarregarei de que se levem a cabo sem demora.
Depois de tudo, pensou, talvez chegasse a sentir-se confortável com sua nova vida e acabaria por desterrar o fantasma de seu pai.
O verão retornou depois desses dois dias e com ele voltaram o céu azul, o sol e o calor. Assim puderam retomar as atividades ao ar livre: passeios matutinos a cavalo, caminhadas ou visitas à tarde e inclusive um mergulho de cabeça no lago, durante o qual descobriu que todos os Bedwyn nadavam como peixes e expressavam seu entusiasmo gritando. Embora o mesmo se podia dizer de suas irmãs e seus cunhados.
Não obstante, a tarde que Monique e Cecile propuseram e ao final planejaram uma excursão a um castelo próximo, Morgan anunciou que ficaria no Windrush.
-Necessito de um pouco de paz -disse a todos durante o café da manhã-. Preciso estar a sós. Preciso pintar. Gervase me comprou todos esses apetrechos para pintar como presente de compromisso e não tive a oportunidade de utilizá-los.
Ergueu-se um coro de protestos e propostas de lugares aos que poderiam ir se Morgan não gostava da idéia do castelo, mas Aidan ficou do lado de sua irmã.
-Morgan é diferente do resto de nós, simples mortais -disse-, que necessitamos de companhia e de atividade a todas as horas do dia. Sempre necessitou um pouco de tempo e espaço para si mesma antes de poder relacionar-se de novo com outros.
-Onde vai pintar, Morgan? No lago? -perguntou Cecile.
-Talvez no mirante -respondeu-. Ainda não decidi.
A excursão se levaria a cabo sem ela, decidiram. Gervase esperou que todos abandonassem a sala de refeição matinal para falar em particular com ela.
- Acho que você gostaria da gruta, chérie -disse-. Ensinarei o caminho para você. Mas está um pouco afastada e necessitará que alguém leve o cavalete e todo o resto. Posso trabalhar de criado para você?
-Arrumarei isso sozinha -respondeu ela.
-E posso ficar consigo se prometer não falar nem incomodá-la de nenhuma outra maneira? -pediu-lhe.
-Está bem! -exclamou Morgan depois de uns instantes de reflexão.
Presentou-o com um sorriso encantador enquanto lhe colocava a mão no braço-. Ao fim e ao cabo, como não vou querer que meu noivo me acompanhe? É um lugar bonito? Eu também tentarei me pôr o mais bonita possível e talvez por fim consiga fazer de você um pretendente prostrado a meus pés.
Gervase sorriu. Essa era a atitude que mais gostava dela, quando lutava contra ele e o mantinha em brasas. E se dava estupendamente. Depois da tarde do cemitério, sua atitude se suavizou e tinha chegado a perguntar-se se o teria perdoado e estaria disposta a aceitar sua corte. Ao que parecia, não tinha resumido tão facilmente. Na tarde anterior, enquanto nadavam, mostrou-se muito brincalhona e alegre com ele, salpicando-o e gritando cada vez que se mergulhava e aparecia logo diante dela. Em um momento de distração se jogou sobre ele e o arrastou ao fundo do lago. De retorno à superfície permitiu beijá-la e quando emergiram, seus lábios esboçavam um deslumbrante sorriso. Entretanto, voltou para a mansão dando os braços para Joshua e Aidan, conversando alegremente com eles como se ele não existisse.
Já não se perguntava se estava apaixonado por ela.
Conhecia a resposta.
Estava.
Puseram-se em marcha depois que os outros foram em excursão. Imediatamente, a propriedade se converteu em um lugar silencioso e tranqüilo. Gervase pegou o cavalete, vários tecidos e um caderno de desenho; Morgan pegou as tintas, os pincéis e o lápis-carvão.
Estava linda com um chapéu de palha de aba longa que não lhe tinha visto nunca e um guarda-pó folgado (que também formava parte de seu presente) que protegia um vestido de musselina estampado.
O atalho agreste não era ruim, já que de fato sempre estava bem cuidado e em perfeito estado. Internava-se entre as árvores e as suaves colinas para leste da mansão e em alguns pontos era escuro e encerrado, perfumado nesses lances pelo aroma da erva e dos rododendros, enquanto que em outros se abria sem prévio aviso ao campo aberto e oferecia uma linda vista da propriedade e da campina que a rodeava. Havia pavilhões e bancos rústicos para agradar aos que passeavam, mas os deixaram atrás. O atalho terminava em um desses pavilhões, uma construção pequena com um banco de pedra em seu interior. Mas oculta à vista e acessível depois de um breve trecho entre as árvores que se erguiam sobre a colina se encontrava a gruta, seu lugar preferido de toda a propriedade, seu refúgio privado durante a infância.
Tinha sido escavada em um banco de terra à beira mar de bosque e era a cova perfeita para albergar a um punhado de jovens piratas, assaltantes de caminhos ou espiões. Entretanto, era seu entorno o que a fazia tão especial. O rio corria a escassos metros das dunas à beira mar. Um salgueiro chorão se inclinava sobre a água junto à gruta e o braço gordinho de um querubim de pedra segurava sobre sua cabeça um jarro de pedra, de tal forma que seu conteúdo caía ao rio riscando um arco eterno. Tanto a árvore como o querubim estavam rodeados por enormes pedras cobertas de musgo e por centenas de flores silvestres. O banco de terra à beira mar onde se abria a gruta era plano e estava coberto de erva.
Era a primeira vez desde sua volta que punha um pé no lugar. Alegrou-lhe ver que continuavam cuidando-o com tanto esmero.
-É lindo! -exclamou Morgan.
Gervase lhe sorriu ao mesmo tempo que deixava as coisas no chão e abria o cavalete. Sabia de antemão que apreciaria o lugar.
Viu-a fechar os olhos e inspirar fundo.
-A beleza está mais à frente do plano visual -disse, e abriu os olhos-. Escuta o som da água, Gervase. Mas tampouco é o som em si. É a vista, o som, o aroma e Ah! Algo que se entra aqui - levou uma mão ao coração-. Sente-o?
-Este é o lugar ao qual costumava vir quando precisava recuperar o ânimo - confessou.
-Sim - Virou a cabeça e lhe sorriu por debaixo da aba do chapéu-. Para recuperar o ânimo. Há certos lugares muito adequados para esse fim, não é? Lugares nos quais alguém se sente mais unido a que? A uma sensação de paz? Ao sentido da vida? A Deus?
-É a primeira vez que piso neste lugar desde minha volta -disse-. Mas, chérie, você precisa estar a sós. Precisa pensar. E deve fazê-lo. Eu vou sentar me aqui, com as costas junto à parede da gruta para meditar sobre o estado de minha alma. Inclusive pode ser que durma enquanto o faço, mas tentarei não roncar. Faça como se não estivesse aqui.
-Muito bem -replicou ela-. Tinha uma preceptora a quem queria muitíssimo (ainda sinto falta dela), mas cada vez que pintava, ela insistia em olhar por cima de meu ombro para me dizer como deveria fazê-lo. Esteve a ponto de me deixar louca. Pobre senhorita Cowper.
Gervase se sentou na erva com as costas apoiada contra a parede e se enterrou o chapéu até os olhos. Além disso, afastou o olhar e a cravou no querubim de pedra para que não se sentisse coibida. Não era uma mera aficionada, havia-lhe dito, e acreditava. Começava a dar-se conta de que o caráter de sua noiva era imensamente profundo apesar de sua juventude. Percebeu que não começava a pintar imediatamente. Ao contrário, preparou tudo, sentou-se na erva próxima à margem do rio e rodeou as pernas com os braços. Assim que esteve seguro de que se esqueceu de sua presença, cravou os olhos nela. Qualquer um que aparecesse pelo caminho acreditaria que não estava fazendo nada, que se tinha esquecido de pintar, seduzida pelo agradável calor do dia. Entretanto, ele sabia que não era assim. Sabia que não só estava procurando com os olhos algo bonito que pintar, mas sim estava esperando que o entorno lhe falasse à sua alma de artista.
"Morgan é diferente do resto de nós, simples mortais, que necessitamos de companhia e de atividade a todas as horas do dia."
Isso era o que havia dito Aidan sobre ela no café da manhã.
"Ai de nós, simples mortais, que necessitamos de companhia e de atividade a todas as horas do dia."
Essa descrição encaixava perfeitamente com ele, pensou, ou com a pessoa em que se convertera durante os passados nove anos. Uma vez que compreendeu a seriedade do problema no qual se encontrava, teve medo de ficar em um mesmo lugar muito tempo; medo de estar sozinho; medo de afastar-se dos lugares onde houvesse uma multidão de pessoas; medo de não poder flertar com toda mulher bonita que se cruzasse em seu caminho e de não deitar-se com quantas pudesse convencer, de modo que suas noites estivessem tão freneticamente ocupadas como seus dias.
Do que tinha tido medo exatamente? De si mesmo? Do silêncio?
O silêncio reinava nesse momento. Claro que não era um silêncio absoluto, tal como ela acabava de assinalar. Se se concentrava, podia escutar que o silêncio estava inundado com os sons da natureza. Mas era um silêncio no qual sua alma podia descansar.
Sua alma não tinha descansado desde há muitos anos.
Ele se tinha encarregado de enterrá-la o mais fundo possível para não ter que aceitar o vazio de sua existência. Morgan ficou em pé e colocou um tecido no cavalete, cuja direção ajustou a seu gosto.
Preparou os pincéis, as tintas e a paleta e começou a pintar com tanta concentração como a que tinha demonstrado enquanto estava sentada. Supôs que se esquecera de verdade de sua presença, de modo que pôs muito empenho em não fazer nenhum movimento que pudesse distrai-la.
Um cenário bonito com uma artista bonita e um pretendente prostrado a seus pés. Certamente que sim. Empenharia-se em castigá-lo até as últimas conseqüências? Era bastante resolvida para fazê-lo.
Como demônios ia fazê-la mudar de opinião?

 


Capítulo 19

 


Morgan estava no rio, dentro da água. Sabia que a água era uma entidade em si mesma com propriedades únicas que a diferenciava de qualquer outra coisa. Mas não era independente dessas outras coisas. Necessitava do sol e do céu para renovar-se. entregava-se à erva e ao salgueiro que se inclinava sobre ela. Era incolor por dentro e por fora. E ao mesmo tempo tomava emprestados as cores de seu entorno: o cinza e o marrom do leito pedregoso do rio; o verde do salgueiro; o brilho do sol. E nesse mesmo dia à tarde, nessa noite, no dia seguinte, na semana seguinte, no inverno seguinte, teria um aspecto totalmente diferente.
Não havia rio, nem erva, nem salgueiro; ao menos não havia nada que mantivesse uma forma permanente que a mente compreendesse ou que pudesse ser representado sobre o tecido. Essa era a maravilhosa provocação da pintura: captar a alegria quando se cruza no caminho, tal como o expressou o poeta William Blake. Perguntou-se se Gervase conheceria sua poesia. Tinha que perguntar-lhe -
Também era a provocação da vida, não? Era impossível conhecer alguém por completo. As pessoas estavam em permanente mudança; diferentes pessoas em diferentes momentos e em diferentes circunstâncias e influências. E sempre em crescimento, sempre em renovação. Era de todo impossível conhecer outro ser humano. Era de todo impossível conhecer-se a si mesmo.
Quando por fim acabou de pintar, afastou-se do tecido para olhá-lo, quase como se estivesse vendo-o pela primeira vez. A senhorita Cowper ficaria horrorizada, pensou. O que tinha diante não era uma bucólica representação pictórica do rio e do salgueiro.
De repente, recordou que Gervase estava com ela e virou a cabeça. Viu que continuava sentado no chão com as costas apoiada na parede exterior da gruta, o chapéu enterrado sobre os olhos, uma perna estirada para frente e a outra dobrada com o pé firmemente plantado no chão.
Parecia relaxado e contente. Estava-a observando com os olhos entrecerrados.
-Quanto tempo estamos aqui? -perguntou.
-Uma hora? Duas? -encolheu os ombros. - Não importa, chérie. ronquei muito?
-Acreditei que era um grilo com rouquidão -respondeu com um sorriso-. Não acredito que tenha ficado adormecido.
-Estive desfrutando de meu papel de pretendente prostrado a seus pés -assegurou-, embora ninguém tenha prestado a menor atenção em mim. Posso ver o que pintou?
-Não estou segura de que esteja feito para os olhos das pessoas -respondeu ao mesmo tempo que voltava a olhar o tecido com expressão dúbia-. Mas sim, se quer vê-lo...
Gervase ficou em pé e cruzou a distância que os separava. Colocou-lhe um braço nos ombros em atitude despreocupada enquanto se plantava diante do cavalete. Guardou silêncio um bom tempo.
-Se fosse a senhorita Cowper quem a estivesse vendo -disse ela-, agora mesmo estaria me perguntando por que não incluí o querubim e as flores, já que teriam dado um toque de cor e de interesse decorativo à pintura. Diria-me que um quadro no que só sai água e um salgueiro carece de interesse.
-A senhorita Cowper deve ser imbecil -replicou ele.
Mordeu o lábio, contente mas com certo remorso por saber-se responsável pelo insulto para sua antiga preceptora.
-Por que tenho a impressão de estar debaixo da água e entre as mesmas raízes da árvore?
Ah!, pensou. Ninguém, nem sequer Aidan, tinha chegado a compreendê-la de verdade. Seus irmãos se mostravam tolerantes com sua necessidade de pintar e também orgulhosos de seu estilo excêntrico e insólito, mas nenhum deles a compreendia de verdade. A senhorita Cowper se desesperou tentando lhe ensinar a técnica correta e as habilidades para observar corretamente o entorno.
-São as pinceladas -respondeu-. Não as suavizei -E tudo se funde com o resto de elementos -seguiu Gervase-, se é que se pode chamar "fundir-se" a isso. A luz do sol está na água, os ramos das árvores estão unidas ao céu e a água, às raízes do salgueiro. Tudo está unido.
-E eu também estou, pintando tudo do interior - explicou-lhe - e você, me observando. Tudo, tudo está unido.
Nesse momento se sentiu um pouco ridícula por ter falado com o entusiasmo próprio de uma menina. Entretanto, Gervase continuou ali de pé, observando sua pintura com os olhos ligeiramente entrecerrados sem afastar o braço de seus ombros.
-Posso ficar com a pintura, chérie? -perguntou-lhe.
-De verdade a quer? -perguntou ela por sua vez.
-Pendurarei-a em meu dormitório para poder vê-la todos os dias. Assim, quando me romper o coração e me abandonar, recordarei que sempre estaremos unidos.
Separou-se dele e se entregou à tarefa de limpar os pincéis e a paleta antes de tirar o guarda-pó, a essas alturas ligeiramente manchado de tinta. Afastou-se um pouco e se sentou na erva. Dobrou as pernas e as abraçou. A brilhante luz do sol lhe esquentava os braços. Percebia o aroma das flores, a água e a erva. Percebia os gorjeios dos pássaros e o zumbido dos insetos. Uma mariposa branca passou voando em frente a ela, de caminho para as flores.
Gervase se reuniu com ela. Deitou-se de lado, atirou o chapéu a suas costas e se apoiou em um cotovelo. Arrancou uma fibra de erva e a utilizou para lhe fazer cócegas no rosto. Ela o afastou com um tapa e virou a cabeça entre gargalhadas para olhá-lo.
-Se continuar rindo com os olhos todo o tempo -advertiu-o-, não demorará para ter pés de galinha.
-Melhor isso que ter o cenho franzido eternamente, chérie -replicou ele.
Em regra geral era um sorriso zombador. Mas talvez tivesse razão, decidiu Morgan. Por muito amargurado e triste que tivesse estado (e de certa forma continuava estando), tinha conseguido de algum modo aprender a rir do mundo e de si mesmo em lugar de passar a vida franzindo o cenho, consumido pelo ódio.
Percebeu que o tinha estado observando em silêncio quando o viu soltar a fibra de erva e elevar a mão até sua face antes de lhe acariciar os lábios com o polegar.
Nesse momento deveria ter ficado em pé e recolhido suas coisas para retornar à mansão. Mas não queria partir. Ainda não. Além disso, tinha jurado atormentá-lo, não? A mão que lhe acariciava a face se mudou a sua nuca e puxou-a. Seus lábios se encontraram em um beijo terno e tão quente como o sol.
-Mmmm -murmurou ele, lhe esfregando o nariz com a seu.
-Mmmm -suspirou ela de uma vez.
Suas bocas se encontraram de novo, entreabertas nessa ocasião, incitantes ao mesmo tempo que curiosas. Gervase lhe lambeu os lábios.
E ela o imitou. Imediatamente, sentiu que sua língua penetrava entre seus lábios e lhe acariciava o céu da boca. Uma pontada de violento desejo lhe endureceu os mamilos e dali passou a suas entranhas.
Gervase se sentou na hora, tirou-lhe o chapéu de palha e a abraçou. Nesse instante, foi consciente do calor do verão, da luz do sol que os envolvia e da natureza a seu redor. E do homem a quem desejava mais que tudo na vida conforme parecia. Mas que idiota era. Sem saber muito bem como tinha chegado a essa posição, encontrou-se deitada no chão, com os braços estendidos para puxar Gervase. A paixão os envolveu.
Beijou-lhe o rosto, os olhos, as orelhas, a garganta e a pele que ficava à vista sobre o decote quadrado de seu vestido. Enquanto lhe enterrava os dedos no cabelo e arqueava as costas para esfregar-se contra seu corpo, Gervase lhe desceu o vestido e deixou seus seios ao ar. Acariciou-os com as duas mãos e lhe esfregou os mamilos com os polegares até que acreditou morrer de desejo. Só então os levou a boca e sugou com força, lhe arrancando um gemido, mescla de prazer e dor.
-Mon amour -murmurou ele antes de voltar a beijá-la na boca-. Je t"adore. Je t"aime.
-Gervase... -sussurrou ela por sua vez-. Gervase...
Tampouco lhe ocorreu detê-lo quando a soltou para colocar as mãos por debaixo de suas saias. O que estava acontecendo já tinha passado antes, mas com tal urgência e rapidez que depois ardia em desejos de repeti-lo para poder saborear o momento. Com ele. Com Gervase. Não pensaria em tudo o que tinha ocorrido depois e que faria com que esse momento se tornasse indesejável. Não pensaria em nada.
Suas mãos a despojaram da roupa interior, das meias e dos sapatos antes de fazer o mesmo com sua jaqueta, seu colete e sua camisa. E depois lhe ergueram as saias. Uma delas foi subindo pela face interna de sua coxa enquanto que a outra a abandonava. Viu-o apoiar-se sobre o braço e observá-la com os olhos entrecerrados. Era muito bonito, decidiu, com esses ombros largos e esse torso musculoso ligeiramente coberto de pêlo. Percebia seu aroma, uma mescla de sabonete e homem.
Voltou a beijá-la muito devagar, lentamente, enquanto a mão que a acariciava descobria o caminho até sua entreperna e a explorava antes de penetrá-la com um dedo e depois com dois. Morgan sentiu sua própria umidade. Escutou os sons que provocava e compreendeu que era a resposta física de seu corpo, um convite para que tomasse. Dobrou uma perna sem afastar o pé da cálida erva e a deixou cair para um lado. Os dedos do Gervase a penetraram ainda mais e foi consciente do gemido que escapou de sua garganta enquanto seus músculos aprisionavam esses dedos em seu interior.
-Chérie -murmurou ele-. Mon amour -Afastou a mão para desabotoar as calças e se colocou sobre ela, com as pernas entre as suas.
Morgan lhe pôs os pés no cano das botas e ergueu os quadris enquanto ele introduzia as mãos debaixo deles. Sentiu o toque de seu duro membro na entrada de seu corpo e se arqueou ao mesmo tempo que a penetrava com uma certeira investida.
Não havia dor, descobriu, só uma maravilhosa sensação de plenitude. Se pudesse, seguraria esse momento para sempre, decidiu, consciente uma vez mais da luz do sol, dos pássaros e do chapinhar da água que caía no rio desde a fonte. Mas a necessidade, o doloroso desejo, a urgência por alcançar certo clímax, arrancou-os do momento. Gervase se retirou até sair dela quase por completo e voltou a penetrá-la de novo uma e outra vez, até que percebeu o rítmico som resultante da fricção de seus corpos. Era muito diferente da última vez. Nessa ocasião não havia frenesi nenhuma urgência desmedida. Tudo era lento, pausado, e reclamava os cinco sentidos. Além disso, sabia que essa era uma experiência compartilhada. Ela não era só uma mulher que estava encetada em um ato carnal com um homem. Ele não era só um homem que estava utilizando o corpo de uma mulher para saciar seu desejo.
Era muito consciente de que ele era Gervase, o homem ao que amava quase desde a primeira vez que o viu. E ele era consciente, devia sê-lo, de que ela era Morgan. Nesse instante, Gervase ergueu a cabeça sem mudar o ritmo de seus convites. Enquanto ela respondia elevando os quadris em resposta, ele a observou um instante com o olhar transbordante de paixão e lhe murmurou algo em francês.
Eram um homem e uma mulher que estavam fazendo amor.
Claro que a demonstração física do amor não era algo que pudesse analisar-se objetivamente durante muito tempo. Era uma experiência sensorial, de desejo, paixão, ânsia e prazer compartilhados. E assim o descobriu quando, pouco depois, o intenso desejo que tomou conta dela se estendeu por todo seu corpo até fazer-se quase insuportável. Perdeu o compasso de seus movimentos e se esticou, tentando alcançar algo que nem atinava a nomear.
Não obstante, em lugar de deter-se, Gervase voltou a segurá-la pelos quadris e a imobilizou enquanto investia com mais força e se afundava nela até o fundo. Foi nesse momento, enquanto gritava convencida de que não poderia suportar nem um minuto mais, quando o desejo se transformou em algo totalmente distinto e tão inesperado que só pôde abraçar-se a ele e deixar-se arrastar para um lugar desconhecido para ela até então.
Gervase se moveu de novo, uma, duas, três vezes mais, e depois se enterrou nela com um suspiro e Morgan percebeu uma súbita calidez em seu interior.
Imediatamente, deixou-se cair sobre ela, relaxado, ofegante e com um excitante aroma procedente da mescla do sabonete e o suor.
-Mon amour… -murmurou de novo junto a seu ouvido.
Pouco tempo depois, descobriu que ficou adormecida. Gervase jazia a seu lado, com um braço estendido que fazia as vezes de travesseiro para ela. As saias voltavam a lhe cobrir as pernas e a camisa de Gervase, estendida ao descuido sobre ambos, protegia-os dos intensos raios do sol. Tinha o chapéu de palha sobre o rosto.
Virou a cabeça para olhá-lo. Estava observando-a.
-Isso não esteve nada bem de minha parte, chérie -lhe disse.
-De sua parte? -repetiu ela, erguendo as sobrancelhas-. Achei que tinha sido mútuo.
-Ah, então estava certo! -Elevou a cabeça para beijá-la na ponta do nariz-.Fixaremos a data das bodas. Parece-lhe bem a princípios de outono? Não estou certo de poder esperar muito mais.
Morgan sorriu lentamente.
-"Mon amour. Je t"adore. Je t"aime" -disse em voz baixa, repetindo suas palavras-."Não estou seguro de poder esperar muito mais." Decepcionaste-me, Gervase. Tão fácil foi obter a vitória?
Endireitou-se, amarrou as fitas do chapéu sob o queixo e vestiu a roupa interior, as meias e os sapatos. Foi um imenso alívio comprovar que não lhe tremiam as mãos.
Quando ficou em pé, percebeu que ele continuava estendido de costas, com a camisa ainda sobre o peito, os braços nus e as mãos enlaçadas sob a cabeça. Observava-a com um sorriso indolente nos lábios.
-Aqui me tem, totalmente abatido, esmagado, aniquilado -disse-. Mas não me pode negar uma coisa, chérie: desfrutou de cada momento.
Morgan arqueou as sobrancelhas com arrogância.
-É claro que o fiz - assegurou-lhe. - Você não desfrutou de todos os momentos que passou com cada uma das mulheres com as que esteve no continente?
Ele riu entredentes.
-Mon amour -lhe disse-, je t"adore.
Morgan agarrou todas suas coisas salvo o cavalete e o tecido recém pintado e, com o queixo em alto, subiu o íngreme dunas à beira mar e o transpôs para chegar ao atalho agreste.
Tinha ganho a batalha, ou acreditava nisso, pelos cabelos. Embora a guerra ainda não tinha terminado. Tinha ido ao Windrush com a intenção de jogar com ele e atormentá-lo antes de demonstrar o muito que o desprezava rompendo o compromisso para envergonhá-lo diante de sua família e de seus vizinhos. Mas não tinha planejado que isso acontecesse.
Tremiam-lhe um pouco as pernas. Ainda tinha os mamilos sensíveis e era consciente de uma espécie de ardência na entrepierna. Bastante agradável, talvez, embora preferiria em muito não estar experimentando-o absolutamente.
Claro que não podia acusá-lo de havê-la seduzido nem violado, não é? Ficou surpreendida, inclusive um tanto decepcionada, quando ele não a seguiu na hora. Ao chegar à casa, olhou por cima do ombro para as árvores que se erguiam atrás dos prados, mas continuava sem haver rastro dele.
Provavelmente estaria dormindo onde o tinha deixado, junto à gruta.
Desfrutando do sono justo dos presunçosos.
Menos mal que não o tinha perto. Porque a idéia de lhe arrancar a cabeça dos ombros de um golpe lhe era muito sedutora.
Gervase tinha deixado o planejamento da festa e do baile em mãos de sua mãe, de suas irmãs e de sua prima. Os trabalhadores da propriedade em pleno, assim como os habitantes do povoado e qualquer pessoa que vivesse nos arredores, por mais humilde que fosse sua condição, tinham sido convidados à festa, que se celebraria nos prados do Windrush e incluiria partidas de críquete, corridas e outras competições, sem esquecer uma enorme quantidade de suculenta comida e bebida. O baile para os vizinhos e arrendatários das classes altas se celebraria nessa mesma noite. Todo mundo tinha aceito o convite, assegurou-lhes sua mãe essa manhã durante o café da manhã, na manhã seguinte a sua excursão à gruta. Haveria bastante gente para encher o salão de baile, embora não pudesse rivalizar com as concorridas festas londrinas, é obvio.
Gervase cometeu o engano de pedir a lista de convidados e sua mãe enviou um criado a seu gabinete privado, por ela. Estava sentado à cabeceira da mesa, olhando os nomes, quando Cecile se colocou atrás dele para olhar por cima de seu ombro.
-Estava fora com as crianças enquanto mamam, Monique e lady Eve redigiam os convites -disse, a modo de explicação.
Interessavam-lhe muito mais os nomes que faltavam que os que estavam na lista. Tinha esquecido de mencionar a sua mãe que certa pessoa não seria convidada sob nenhuma circunstância, claro que tampouco teria devido preocupar-se. O nome não estava ali, comprovou com considerável alívio.
-Muito bem -disse Cecile em voz muito alta-. Vejo que não convidou Marianne Bonner, mamam. Parece-me estupendo. Não entendo como tem o descaramento de viver tão perto do Windrush.
Gervase deixou a lista na mesa com os nomes para baixo enquanto os membros de sua família se olhavam desconfortáveis e os Bedwyn guardavam um educado silêncio carregado de curiosidade.
-Eu acho que deveria ser convidada, Gervase -disse Henrietta-. Já é hora de esquecer o passado. Além disso, nenhum de nossos vizinhos sabe o que aconteceu. Mas certamente se darão conta de que passa algo estranho e começarão a fazer especulações quando virem que Marianne é a única vizinha em quilômetros ao redor que não está presente.
-Não pode estar falando a sério, Henrietta -comentou Monique.
-Pois sim que o faço -replicou sua prima com voz um tanto trêmula.
-Acho que esta conversa se dará por concluída -interveio ele de forma contundente- assim que explique à família de Morgan que a dama em questão me ofendeu há anos, antes de que partisse da Inglaterra, e ainda não foi perdoada.
-Os esqueletos de outras famílias sempre me foram aborrecidos -alegou Freyja-.Quando vamos sair para cavalgar tal como nos prometeu, Gervase? Josh diz que não posso saltar nenhuma sebe sob nenhuma circunstância, assim suponho que terá que escolher uma rota que nos proporcione alguma ou outra cerva em seu lugar.
-Encanto -protestou o dito enquanto lançava a sua esposa um olhar agradecido-,disse sebes e cercas, mas deveria ser justa. O que disse, e estou convencido de que me corrigirá se me engano, foi que suspeitava que se lhe proibisse saltar as sebes e as cercas, você iria atrás deles com total deliberação.
-Pois eu serei um pouco mais direto, Freyja -interveio Aidan nesse momento-. Se lhe ocorrer lançar um só olhar a uma sebe ou a uma cerva (as cercas também estão incluídas), desde este momento até pôr-do-sol, encarregarei-me pessoalmente de torcer-lhe o pescoço.
Todos os reunidos à mesa puseram-se a rir, incluída Freyja, e o embaraçoso momento passou.
Mas não ficou esquecido.
-Suponho disse Morgan mais tarde, já montados a cavalo enquanto passeavam pela campina- que está decidido a viver aqui toda a vida, a alguns quilômetros de Marianne, sem vê-la sequer.
-Exato -lhe assegurou com firmeza-. Talvez seja algo que um Bedwyn não faria, chérie, mas este Ashford tem toda a intenção de fazê-lo.
-Mas Henrietta tem razão -protestou ela-. Não demorará para correr a voz de que há uma disputa entre vocês e o assunto jamais se esquecerá.
-Se não gostar dos rumores -replicou-, pode mudar-se para outro lugar.
Harold Spalding, seu cunhado, colocou-se nesse momento ao lado do Morgan, disposto a falar com ela, de modo que ele se colocou entre o Becky e Davy, que se tinham somado ao passeio a cavalo. Entreteve-os um momento antes de avançar até colocar-se junto à Freyja e entabular conversa com ela.
-Sempre aborreci a idéia de me arrastar pelo campo a lombos de um cavalo -lhe disse com um suspiro- e ainda não caí de nenhum. Mas a vida se converte em algo tedioso quando se está em estado de gravidez, Gervase. Não lhe parece que é um eufemismo ridículo? A vida se converte em algo tedioso quando se está esperando um bebê. Em algo tedioso, mas também em algo incrivelmente emocionante -acrescentou com uma gargalhada.
A conversa lhe recordou o que o tinha mantido toda a noite acordado: podia ter deixado grávida à Morgan na tarde anterior. Em realidade, não lhe importaria absolutamente celebrar um matrimônio apressado e ter um menino no quarto infantil ao cabo de nove meses. Mas talvez a ela sim. Era impossível sabê-lo com certeza. Não cabia dúvida de que o tinha em brasas. Nem sequer estava convencido de que uma gravidez a obrigasse a casar-se. Possivelmente só conseguisse reafirmá-la em sua decisão. A mera idéia lhe punha os cabelos em pé. Mais de três horas depois de ter saído e antes de retornar aos terrenos da propriedade, descobriu-se de novo a seu lado. E definitivamente não se esqueceu do assunto.
-Gervase -lhe disse Morgan-, não acha que deveria fazer uma visita à Marianne? E enfrentar a ela? Perguntar-lhe por que o fez?
-Não! -respondeu, olhando-a nos olhos-. Fez uma das suas com o do cemitério. Mas com isto não.
-Mas agora se alegra de ter ido ao cemitério -protestou-. Fez as pazes com seu pai. Já não tem que continuar odiando-o.
-É impossível que faça as pazes com Marianne, chérie - assegurou-. No que a mim respeita, o assunto está resolvido.
Viu-a abrir a boca para protestar, mas pensou melhor. Limitou-se a assentir com a cabeça. Embora guardasse silêncio alguns minutos.
-Pois eu não penso dá-lo por resolvido -disse-. Meu irmão também sofreu por causa desse incidente.
Gervase não replicou. Deixar correr as coisas ia contra o caráter de Morgan, sobre tudo quando implicavam a seus seres queridos ou a alguém que ela quisesse muito. E queria muito ao Wulfric. Além disso, havia algo que levava lhe rondando a cabeça um tempo. E que não a deixava tranqüila desde a cena do café da manhã.
Nessa noite prepararam uma mesa para jogar às cartas no salão. Os que não jogavam entabularam uma conversa muito animada. Henrietta se sentou ao piano, situado no outro extremo da sala, e lhes amenizou a noite. Morgan se aproximou dela e se colocou atrás da banqueta, observando a partitura até que acabou de tocar.
-Henrietta -lhe disse em voz baixa-, você estava presente a noite que ia anunciar se o compromisso de meu irmão com lady Marianne Bonner, não é?
Henrietta a olhou por cima do ombro com expressão inquieta.
-Sim, é claro -respondeu. - Éramos vizinhos. Bom, mais ou menos, porque o marquês do Paysley costumava passar temporadas no Winchholme. Era normal que convidasse a todos ao baile. A Gervase, ao tio George e a mim, quero dizer. Monique e Cecile ainda não tinham sido apresentadas em sociedade e a tia Lisette teve que partir a toda pressa ao Windrush porque chegou uma nota avisando de que Cecile estava indisposta. Minha acompanhante era a tia Bertha, a irmã de meu tio.
-Deve ter sido horrível para você - disse ao mesmo tempo que se sentava no extremo da banqueta-. Refiro ao que aconteceu no baile.
-Sim -Henrietta fechou a partitura e uniu as mãos sobre o regaço-. Foi. Horrível.
-Como souberam aonde tinham ido Marianne e Gervase? -perguntou ao mesmo tempo que se inclinava um pouco para frente para olhar a sua interlocutora no rosto-. Era um baile muito concorrido, como souberam sequer que estavam juntos? E o que lhes fez pensar que estavam no dormitório de Marianne? Por que entraram todos em tromba, ao parecer sem deter-se sequer a bater na porta? Por que foram precisamente eles, Wulfric, o pai do Gervase e o pai do Marianne?
A expressão da Henrietta não variou absolutamente.
-Não sei -respondeu.
-Mas não lhe perguntou isso alguma vez? -quis saber ela-. Alguma vez perguntou a seu tio?
-Não -respondeu Henrietta-. Nunca.
-E não sente curiosidade agora? -insistiu enquanto a observava com atenção. Era impossível que não sentisse curiosidade.
-Suponho que sim -admitiu enquanto passava uma mão sobre as teclas sem pressionar nenhuma delas-. É possível que alguém os visse subir a escadaria. Algum criado.
-Henrietta -prosseguiu, aproximando-se dela-, acha que Gervase fez o que disseram no momento que fez? Acha que traiu a meu irmão e que depois roubou ao Marianne uma herança familiar de valor incalculável?
Quando ergueu o olhar, a expressão da Henrietta estava com algo parecido ao pesar.
-Não, é claro que não -respondeu-. É claro que não.
-Então -continuou ela-, acha que foi Marianne quem o traiu? Quem lhe deu algum narcótico, meteu-o na cama e enviou a alguém para que avisasse ao Wulfric, ao pai do Gervase e a seu pai e tudo porque não teve a coragem de dizer ao Wulfric no rosto que não pensava casar-se com ele?
- A coragem não teve nada que ver a corrigiu-a, nem tampouco a covardia. Morgan, você não conheceu o marquês do Paysley. Não tem nem idéia de quão déspota era. E não conhecia o duque do Bewcastle e o tirano que... -Ao dar-se conta do que havia dito, levou uma mão à boca e se ruborizou intensamente-. Peço-lhe desculpas.
-Sim que conheço o Wulfric e seu comportamento tirânico -lhe disse-. Mas apesar de tudo, Henrietta, é um homem justo. Sei que jamais obrigaria a uma dama a casar-se com ele contra sua vontade. Para que? Teria que viver com ela durante o resto de sua vida. Falou que todas estas coisas com Marianne, não é? Gervase diz que continuam sendo amigas.
-Não falamos muito do assunto -respondeu Henrietta-. É muito doloroso para as duas.
-Entretanto, continuou sendo sua amiga apesar do que fez e sabendo das terríveis conseqüências que teve para seu primo? E isso sem mencionar a humilhação que certamente sabe que todo o assunto supôs para meu irmão - recriminou.
-A verdadeira amizade é difícil de romper.
-Eu não me sentiria muito caridosa para com uma amiga que tivesse destroçado a vida de um familiar e que o tivesse condenado a nove anos de exílio -replicou, incapaz de dissimular de todo o desdém que sentia-. Acredito que nossa amizade teria passado à história em um abrir e fechar de olhos.
-Não entende -protestou Henrietta.
-Não - concordou - não entendo. Mas sinto muito. Não tinha a intenção de discutir com você. É que senti a necessidade de compreender o passado, de saber por que Gervase foi o eleito para suportar semelhante sofrimento. E por que meu irmão se viu obrigado a sofrer essa humilhação.
-Não sei -insistiu sua interlocutora, e Morgan se surpreendeu ao dar-se conta de que tinha os olhos cheios de lágrimas.
-Quero ver a dama em questão -disse-. Quero falar com ela. Acompanhará-me, talvez amanhã, e fará as apresentações?
-Acha que é acertado? -perguntou por sua vez Henrietta.
-Não tenho a menor idéia -confessou-. Mas se não me acompanhar, irei sozinha. Virá?
Henrietta tomou uma funda baforada de ar que soltou com um suspiro.
-Se não houver mais remédio -respondeu-. Está bem. Ao fim e ao cabo, vai viver aqui quando se casar com Gervase. O normal seria que lhe fizesse uma visita em algum momento. Só espero que não haja nenhuma discussão.
- Valha-me Deus! -exclamou ela-. Eu também espero.
Sorriu ao Monique e ao Eve, que se aproximavam do piano nesse momento.

 


Capítulo 20

 


O dia seguinte amanheceu chuvoso, embora com o passar das horas se foi limpando até ficar uma tarde sem chuva, embora nublada e fresca. Freyja, Joshua, Cecile e lorde Vardon puseram os barcos no lago enquanto que Eve, Aidan, Monique e sir Harold preferiram levar as crianças a dar um longo passeio. A condessa passou a tarde do mesmo modo que tinha passado a manhã, dando os últimos retoques aos preparativos da festa e do baile junto com a cozinheira, a governanta e o mordomo. Gervase, que tinha saído com o administrador depois de tomar o café da manhã, ainda não tinha retornado.
Morgan e Henrietta pegaram a carruagem para ir ao Winchholme, que estava a pouco mais de cinco quilômetros de distância. Embora os caminhos estivessem empapados, não eram intransitáveis. O sol inclusive se deixava ver entre as nuvens quando chegaram à pitoresca casa, cujo jardim estava tão coalhado de rosas que Morgan percebeu seu intenso e adocicado aroma muito antes que a carruagem se detivesse. Mal tinha trocado uma palavra durante o trajeto com sua acompanhante, já que ambas tinham estado mergulhadas em seus pensamentos. Lady Marianne Bonner as recebeu na porta da casa. Morgan observou à dama com curiosidade enquanto saudava a Henrietta com um beijo na face e um forte apertão de mãos. Embora tivesse deixado atrás a flor da juventude, sua beleza era inegável; dos brilhantes cachos loiros de seu cabelo, passando por um voluptuoso corpo de proporções perfeitas, até seus pés calçados com uns pequenos escarpines. Quando seu olhar posou sobre ela, viu que tinha os olhos muito azuis.
Essa, pensou, era a mulher com a que Wulfric tinha estado a ponto de casar-se. Essa era a mulher a quem tinha amado. Porque tinha que tê-la amado. Como todos os Bedwyn, Wulfric acreditava firmemente nos casamentos por amor. Não teria tido outra razão para contemplar o matrimônio, já que não necessitava da fortuna da dama nem a influência de seu pai e porque a existência de seus três irmãos o liberava em parte da urgência de gerar um herdeiro. Essa era a mulher que poderia haver-se convertido em sua cunhada.
Ambas se saudaram com uma reverência enquanto Henrietta fazia as apresentações; Marianne se ruborizou, o que incrementou seu atrativo.
-Encantada de conhecê-la, lady Morgan -disse.
-O mesmo digo, lady Marianne -replicou ela.
A dama as conduziu a uma saleta muito acolhedora situada no andar térreo e que dava para as roseiras. As portas francesas estavam fechadas porque o dia não estava quente, mas se imaginava perfeitamente quão fragrante seria a saleta durante um quente dia do verão, quando se pudessem abrir as portas de par em par.
A saleta estava ocupada pela senhora Jasper, a tia de lady Marianne, embora saiu para descansar depois de que a apresentassem. Era uma mulher entrada em anos, cuja presença no Winchholme contribuía para guardar as aparências, já que era impensável que uma dama solteira vivesse sozinha. O acerto devia ser muito conveniente para as duas.
Enquanto tomavam o chá, mantiveram uma amena conversa a respeito de um bom número de assuntos. Entretanto, enquanto ela procurava o modo de trazer à luz o assunto que a tinha levado a ver lady Marianne, esta o tirou por iniciativa própria. De repente teve muito claro que a tinham avisado com antecipação de sua visita. Henrietta devia lhe haver enviado uma nota em algum momento da manhã.
-Soube que esteve perguntando a Henrietta detalhes do que deveria ter sido meu baile de compromisso, lady Morgan -disse ao mesmo tempo que soltava o prato que tinha nas mãos.
Ela também deixou a xícara e o prato sobre a mesa e uniu as mãos sobre o regaço. Henrietta e lady Marianne estavam sentadas no canapé. Ambas a olhavam com evidente receio e um intenso rubor cobria as faces da última.
-Perguntei a Henrietta se sabia como era possível que o defunto conde, seu pai e meu irmão descobrissem que você e Gervase estavam juntos em seu dormitório - declarou. – É impossível que tivessem suspeitado algo tão escandaloso no transcurso normal de um baile. Quem o disse? Quem os mandou ali?
-Nunca me expus -respondeu lady Marianne.
Entretanto, Morgan a estava observando atentamente.
-Temo que não acredito -replicou sem disfarces-. Tinha toda a intenção de que a descobrissem. Deu ao Gervase algum tipo de narcótico e o levou desde seu gabinete até seu dormitório. Tinha a intenção de simular que se deitou com ele para que não a obrigassem a casar-se com Wulfric, com meu irmão. Mas como foram descobri-la se ninguém sabia que estavam juntos nem onde encontrá-los? Seu plano só podia ter êxito se contava com a ajuda de um cúmplice.
Lady Marianne lhe devolveu o olhar, ruborizada e com expressão desafiante e também culpada.
-Está-me chamando mentirosa, lady Morgan? -perguntou-lhe.
Henrietta lhe colocou uma mão no braço e deixou escapar um gemido angustiado.
-Wulfric devia amá-la -continuou Morgan-. Conheço-o muito bem. Nenhum outro motivo o teria feito expor o matrimônio. Devia sentir-se profundamente ferido, além de horrivelmente humilhado, pelo que viu naquele quarto ou pelo que acreditou ver. E Gervase acabou ferido de um modo muito mais espantoso. Hoje apenas se recuperou, embora esteja nisso. A ferida continua aberta, e suas cicatrizes jamais desaparecerão de tudo. É impossível que possa emendar o que fez. Mas ao menos pode dizer a verdade.
Lady Marianne abriu a boca para falar, mas Henrietta se adiantou. Afastou o olhar delas enquanto falava.
-Fui eu -confessou-. Eu disse aos três. Disse-lhes que Gervase tinha obrigado Marianne a subir a seu dormitório.
Morgan compreendeu que estava suspeitando-o desde o dia anterior. No fundo tinha esperado enganar-se, porque descobrir que tinha traído alguém de sua própria família seria muitíssimo pior para o Gervase que a traição de uma vizinha a que considerava sua amiga. Mas por que?
Lady Marianne passou uma mão pelo rosto enquanto a cor a abandonava.
-Planejamo-lo juntas -explicou Henrietta-. O pai de Marianne a tinha intimidado e a tinha ameaçado para que aceitasse primeiro a corte do duque do Bewcastle e depois sua proposta de matrimônio. Se o anúncio do compromisso se fizesse público, já não haveria mais com voltar atrás. Não teria encontrado o modo de evitar as bodas. Foi para mim a quem acudiu, presa do desespero, e juntas traçamos o plano.
-Para que Gervase caísse na armadilha e sofresse essa terrível desgraça? -perguntou-lhe, horrorizada-. Para que parecesse que tinha violado a lady Marianne? Escolheu a seu próprio primo, Henrietta?
-Não me sentia parte da família! -exclamou, ficando em pé e afastando-se um pouco do canapé enquanto rebuscava um lenço no bolso de seu vestido-. Havia Monique e Cecile, menores que eu, cuja vivacidade e beleza superficial as convertiam nas preferidas de todos. E depois havia Gervase, que passava o dia metendo-se comigo e tentando me buscar pares e pretendentes durante aquela espantosa temporada social. O que queria, a única coisa que sempre quis, era ir para casa. Não Windrush, mas para casa, com minha mãe e com meu pai.
Mas estavam mortos.
-Ai, Henrietta -sussurrou lady Marianne, aflita por sua amiga.
-Sinto muito -disse a aludida depois de assoar o nariz e voltar a sentar-se no canapé-.Superei isso há muitos anos e também compreendi como tinha sido injusta com a família que me tinha dado amor e carinho. Agora os quero muito a todos. Mas a juventude nos torna muito egoístas e egocêntricos. Ao menos, assim foi em meu caso.
-Deve entender, lady Morgan -interveio lady Marianne-, que minha única idéia era me liberar do duque do Bewcastle sem que meu pai pudesse me jogar a culpa de nada. O fato de que Gervase fosse meu vizinho e meu amigo o fazia perfeito para o plano. Supus que no dia seguinte poderia explicar-lhe tudo e que ele me entenderia e talvez explicasse em particular ao duque; eram amigos, sabe?
-Não podia explicar você mesma a Wulfric? -quis saber.
-Eu... -Fechou os olhos e negou com a cabeça-. Não, não podia. Deve entender que só tinha dezoito anos. Não me sinto orgulhosa do que fiz. De fato, torturou-me depois. Mas era muito jovem.
-Eu tenho dezoito anos -replicou Morgan em voz baixa.
Ambas a olharam em silêncio.
-E o broche? -perguntou-lhes. - Roubaram-no de verdade?
Lady Marianne negou com a cabeça.
-Meu pai me teria obrigado a me casar com Gervase - explicou-. Não poderia me ter negado. Havia lhe dito que me tinha violado. E ele tampouco poderia haver-se negado, já que pedir minha mão em matrimônio era uma questão de honra para ele. Tive que pensar com rapidez e o que fiz foi tão deplorável como estúpido. Queria explicar tudo a Gervase quando as coisas se acalmassem, mas já se tinha ido. Jamais, nem em sonhos, imaginei que tudo aquilo acabasse tendo conseqüências tão nefastas. Estive a ponto de perder a amizade da Henrietta. Zangou-se muitíssimo comigo por causa do broche.
-Mas não lhe ocorreu explicar ao pai de Gervase? -perguntou Morgan de novo-.
Aquele dia foi o último em que viu seu filho. Morreu acreditando-o um violador e um ladrão.
-Sempre esteve tão orgulhoso do Gervase, sempre o quis tanto -interveio Henrietta-.Como ia imaginar que chegaria a castigá-lo e desse modo, além disso? Foi horrível. Era como um pesadelo do qual não podia despertar.
-E não lhe ocorreu fazer o honrado e confessar que tinha participado do plano? -perguntou-lhe sem deixar de olhá-la.
Semelhante amostra de covardia era algo tão alheio a sua natureza que lhe era difícil de compreender, muito menos de perdoar, em outra pessoa.
-Morgan -lhe disse Henrietta-, não há nada, absolutamente nada, que possa me dizer que eu não me haja dito milhares de vezes; que Marianne não se haja dito a si mesma. Não é fácil viver com os remorsos quando se é consciente do que se fez, quando se é consciente de que fez mau, de que vários inocentes acabaram sofrendo conseqüências tão catastróficas. Agradeço a Deus todos os dias que Gervase tenha retornado e que tenha encontrado a felicidade a seu lado. Mas isso não compensa o que fiz, nem me redime.
-Não, não o faz -concordou Morgan, que entendeu nesse instante por que Henrietta se alegrava tanto por eles.
Durante longo tempo, olhou a ambas as conspiradoras enquanto tentava imaginar o que teria impulsionado a duas mocinhas a recorrer a medidas tão drásticas. A juventude, a ingenuidade e o desafio à autoridade? Seguidas do temor pelas conseqüências que lhes conduziria uma confissão posterior? Mas o que teria levado a Henrietta a participar da trama? Tinha-o feito movida pelo desprezo para um primo que a obrigava a aceitar pares de dança e inclusive pretendentes porque não era capaz de atrai-los por si mesma? Ainda não tinha acabado de formular a última pergunta em sua mente quando compreendeu tudo com uma clareza meridiana. Acabava de ser apresentada em sociedade. Tinha levado uma vida resguardada enquanto estava na sala-de-aula, onde só lhe tinham ensinado aquilo que se considerava essencial para a educação de uma dama, uma educação que se viu ampliada pelo pouco que tinha podido solicitar de seus irrefreáveis irmãos e de uma irmã mais atrevida da conta, embora todos mordessem a língua quando ela estava presente. Mas mesmo assim o compreendeu.
É obvio!
Marianne e Henrietta eram muito mais que amigas. amavam-se. O matrimônio, para qualquer das duas, teria sido o pior dos desastres; o horror dos horrores que deviam evitar a toda custa.
E o tinham evitado a custa de que outros pagassem um terrível preço.
Estudou-as de novo e, embora ninguém dissesse nenhuma só palavra, percebeu que ambas sabiam que o tinha adivinhado. Por um muito breve instante, de forma quase imperceptível, suas mãos se roçaram sobre a almofada que descansava entre ambas. Morgan compreendia. Mas não as perdoava. Não podia perdoar, certo, mas as compreendia. E descobriu que tampouco podia odiá-las. ficou em seu lugar e imaginou que sua vida corria pelos roteiros que conformavam a vida de ambas. Não podia odiá-las nem condená-las. Mas podia odiar o que tinham feito.
-Se pudesse retroceder no tempo -disse lady Marianne com um suspiro-, desafiaria a meu pai e falaria cara a cara com o duque do Bewcastle. Ou talvez isso posso dizê-lo agora que estou a salvo de ambos. Entretanto, retroceder no tempo significaria retornar ao corpo, à mente e às emoções de uma moça tímida e assustada que era diferente, mas que não podia explicar essas diferenças a ninguém, salvo à única pessoa que compartilhava seus medos. Talvez nem sequer encontrasse a coragem para fazê-lo até sabendo o que sei hoje em dia.
-E se eu pudesse retroceder no tempo -acrescentou Henrietta-, falaria com o tio George e lhe explicaria o acontecido, embora me separassem de Marianne. Se pudesse retroceder no tempo e fazer as coisas de outro modo, não permitiria que Gervase sofresse tudo o que sofreu.
Mas não posso retroceder no tempo e talvez tampouco encontrasse a coragem para fazê-lo se fosse possível.
-Encontra agora -lhe disse Morgan.
-Meu tio está morto -replicou Henrietta-, igual ao pai de Marianne.
-Mas não Gervase -assinalou ela-. Nem Wulfric.
Lady Marianne ficou lívida de novo.
-Espera que me confesse com o duque do Bewcastle? -perguntou-lhe.
-Eu não espero nada -respondeu ela-. Wulfric é um homem forte. Por muito que sofresse naquele momento, a estas alturas estará recuperado. E o longo calvário do Gervase chegou a seu fim. Foi bastante forte para sobreviver sem que seu caráter sofresse muito e está forjando uma nova vida. Os dois seguirão adiante como gosto de pensar, sem ter em conta o que você faça. Eu não espero nada de você -ficou em pé-. Vou partir, Henrietta -disse.
Aludida-a titubeou.
- Leve a carruagem -lhe disse. - Se importaria retornar sozinha? Marianne me emprestará a sua quando quiser ir mais tarde. Precisamos falar.
Para ela foi um alívio fazer o caminho de volta a sós. A verdade era muito mais horrível do que tinha imaginado. Devia ser espantoso amar a alguém sabendo de que o mundo jamais perdoaria nem aceitaria esse amor. Ver-se obrigado a mantê-lo em segredo toda a vida. Entretanto, devia ser amor. Tinham sido fiéis durante anos; tinham cometido atrocidades em nome uma da outra; tinham traído a um primo e a um amigo, respectivamente; tinham conduzido um sofrimento incomensurável a outras pessoas; e tinham compartilhado a culpa depois.
Era impossível saber o que ela mesma seria capaz de fazer em semelhantes circunstâncias. Se Wulfric se empenhasse em negar a Gervase a permissão para cortejá-la, talvez o teria desafiado abertamente; talvez inclusive se teria fugido com ele. Ou no pior dos casos teria esperado três anos mais, até cumprir a maioridade, para não ter que contar com sua permissão absolutamente.
Marianne e Henrietta não tinham tido nenhuma dessas opções.
Não obstante, sua mente mudou de assunto de repente.
Que teria fugido com ele? Que teria esperado três anos?
Não ia casar se com o Gervase muito menos; e por decisão própria.
Devia pôr fim à farsa em breve. Possivelmente o faria durante o baile. Isso seria espetacular e também deliberadamente cruel. Depois do baile, então. Pouco depois. Diria-lhe em particular que a coisa tinha chegado a seu fim e que partiria do Windrush com a Freyja ou com o Aidan. Com isso bastaria. Sua partida deixaria uma boa dose de vergonha e ela levaria consigo sua boa dose de desolação.
Sentiria algo por ela? Em certas ocasiões tinha a impressão de que assim era e, é obvio, não parava de lhe dizer que a amava. Sabia que a paixão que mostrava no plano físico era real. As palavras que tinha murmurado enquanto faziam o amor na gruta não podiam ser fingidas. Mas, de qualquer modo, não era suficiente. Em Bruxelas se convertera em uma parte muito importante de sua vida enquanto que ele a tinha estado utilizando sem olhar para alcançar seus objetivos. Não podia lhe perdoar algo assim. E, se o fizesse, já não poderia voltar a confiar nele. Fechou os olhos enquanto a carruagem estralava sobre os buracos de um caminho ainda enlameado. Que estranha era a vida. Se Marianne e Henrietta não se deixaram levar pelo desespero e não tivessem agido de forma tão desonrosa aquela noite em que ela só tinha nove anos, Gervase jamais teria atravessado o salão de baile dos Cameron em Bruxelas para conhecê-la. Nem se teria fixado nela. Ela, certamente, não se teria fixado nele. Gervase não se teria deixado seduzir pela idéia de cair na desonra para vingar-se. E ela jamais se teria apaixonado por ele. Tudo estava unido. Sim, tudo, tudo estava unido!

O sol voltava a brilhar com força no dia seguinte. Passaram a manhã explorando o atalho agreste e mais tarde foram passear em barco e inclusive nadar. Entretanto, o calor e o exercício fizeram racho na maioria dos meninos, que a meio-dia se refugiaram no quarto infantil para dormir a sesta ou para jogar tranqüilamente. Os adultos se dispersaram em vários grupos pela casa e pelo exterior. Morgan estava no jardim com Emma, que acabava de chegar pouco antes caminhando do vicariato, enquanto Jonathan jogava sem afastar do banco onde estavam sentadas. Gervase observava o trio da janela da biblioteca depois de ter ficado ao dia com a correspondência que tinha estado esperando-o dois dias sobre a escrivaninha. Gostava de comprovar que sua família e os Bedwyn, de um caráter muito mais exuberante, davam-se tão bem. Gostava, particularmente, que Morgan tivesse sido aceita no Windrush e que ela parecesse encantada com a propriedade e com a gente que a habitava.
Depois do baile a convenceria para que o perdoasse, custasse-lhe o que lhe custasse. Ia propor lhe matrimônio a sério. Estava a ponto de sair ao jardim para reunir-se com as damas e brincar um momento com seu sobrinho quando percebeu que uma carruagem se aproximava pela avenida. Não a reconheceu, nem sequer quando esteve perto. Talvez deveria sair e receber ao recém-chegado em pessoa, pensou. Entretanto, houve algo que o refreou.
Morgan e Emma elevaram uma mão a modo de saudação quando a carruagem passou junto a elas, mas o veículo continuou sua marcha até deter-se sob a janela da qual ele olhava. Viu que apeava uma dama seguida de uma criada.
De repente ficou com a boca seca. No dia anterior Morgan tinha saído na carruagem com a Henrietta, mas não lhe disse aonde ia. E não lhe tinha perguntado. Embora tivesse feito suas conjeturas. "Pois eu não penso dá-lo por resolvido -lhe disse no dia anterior-. Meu irmão também sofreu por causa desse incidente." E Marianne acabava de chegar ao Windrush. Aferrou-se à esperança de que estivesse ali para ver sua mãe ou a Henrietta; por muito mal gosto que denotasse a visita estando ele em casa. Viu-a subir os degraus com forma de ferradura que davam acesso à mansão e desaparecer em seu interior. Morgan tinha a vista cravada na janela. Seus olhares se cruzaram por um instante antes de que ele se voltasse. Isso também formava parte de sua vingança? Teria ido Marianne vê-lo? Negaria-se a recebê-la. Assim simples.
E nesse momento escutou que o mordomo batia na porta antes de abri-la para lhe perguntar se desejava receber a lady Marianne Bonner. Abriu a boca para dizer que não. Teria ido suplicar seu perdão? Não podia fazê-lo. Algumas coisas eram imperdoáveis. Coisas como utilizar, difamar e enredar em um escândalo a uma jovem inocente, movido simplesmente pelo ressentimento que guardava a seu irmão. "Perdoa nossas ofensas, como também nós perdoamos aos que nos ofendem." Nunca se tinha tido por um homem particularmente religioso. Mas as palavras cruzaram sem mais por sua cabeça.
-Faça-a entrar - disse com brusquidão, e se dispôs a esperar em frente à janela com expressão séria e as mãos enlaçadas às costas.
Marianne tinha sido linda quando jovem; loira, de olhos azuis e com uma figura muito feminina e delicada. A maturidade lhe tinha reportado um atrativo ainda maior. Seu corpo tinha adquirido curvas muito voluptuosas e os anos tinham dotado de caráter a seu rosto, algo que de certo modo aumentava sua beleza. Voltou a perguntar-se, tal como o fizera anos antes, por que se tinha negado de forma tão terminante a casar-se com o Bewcastle, que tinha sido (e continuava sendo) um dos solteiros mais cobiçados da Grã-Bretanha. Não tinha chegado a explicar-lhe em seu gabinete privado antes de que o invadisse o estupor que lhe provocou a bebida que tinha preparado.
Nesse momento o saudou com uma reverência e lhe respondeu com uma breve inclinação de cabeça.
-Lorde Rosthorn -lhe disse-, obrigada por me receber.
Ao escutar sua trêmula voz compreendeu, não sem certa satisfação, que estava muito nervosa.
-Senhora -replicou ele-, não acredito que tenhamos nada importante que nos dizer o um ao outro.
Não a convidou a sentar-se.
-Tem muita razão -concordou. - Não lhe darei nenhuma explicação sobre meu comportamento daquela noite. Estou certa de que faz muito tempo que compreendeu por que o fiz. E tampouco posso lhe dar nenhuma desculpa. Minha relutância a me casar com o duque do Bewcastle, ou com qualquer outro homem em realidade, e o temor que me inspirava meu pai não são desculpas que justifiquem o que lhe fiz nem o que permiti que lhe ocorresse depois, embora não tivesse previsto tais conseqüências. Uma desculpa é insuficiente e pode ser que inclusive seja insultante considerando todo o tempo que permiti que sofresse. Mas Gervase, é a única coisa que posso lhe dar. Tomara tivesse algo mais. Tomara pudesse retroceder no tempo e mudar o passado, mas isso é algo que ninguém pode fazer. Assumo minha culpa e não apelarei em minha defesa. Porque não tenho defesa alguma.
-Poderia partir daqui -lhe disse-, de modo que não tenhamos que viver na mesma zona durante o resto de nossas vidas.
Viu que Marianne empalidecia de repente. Inclusive cambaleou um pouco e esteve a ponto de correr para sustentá-la ou para lhe aproximar uma cadeira. Entretanto, não demorou para recuperar-se da impressão.
-Poderia fazê-lo -aceitou. - Esse castigo lhe pareceria justo, Gervase? Talvez tenha razão. Talvez seja justo; olho por olho, exilo por exílio. Muito bem, se esse for seu desejo...
-Não chega ao olho por olho -a corrigiu-. me obrigaram a partir e a deixar atrás tudo que me era querido neste mundo.
-Ai, Gervase! -exclamou ela-. Meu caso seria o mesmo. Isso é o que quer que faça?
Tinha os olhos cheios de lágrimas, mas as conteve. E tampouco baixou a cabeça nem afastou o olhar dele. Continuou olhando-a atentamente com o cenho franzido.
"Minha relutância a me casar com o duque do Bewcastle, ou com qualquer outro homem em realidade..."
"Ai, Gervase! Meu caso seria o mesmo."
Partir do Winchholme lhe era um castigo equiparável a seu exílio do Windrush? Mas ela não deixaria a ninguém atrás, como tinha feito ele.
Salvo alguns amigos.
Ou talvez uma amiga em particular.
Quem tinha sido a cúmplice de Marianne naquele baile? Se quisesse que o plano tivesse êxito, devia contar com a ajuda de uma. Sempre o tinha sabido, mas tinha suposto que se tratava de um criado ou de alguém que queria granjear sua amizade. Teria sido Henrietta? Isso explicava tudo, não? Mas queria sabê-lo com certeza? Estava disposto a fazer a pergunta?
-Algo que descobri muito recentemente por experiência própria, Marianne -lhe disse-, é que o perdão não se obtém pelos méritos realizados. SE fosse assim, não o necessitaríamos, não acha? Eu também mudaria certas coisas do passado se pudesse, mas evidentemente é impossível. E, por maus que tenham sido estes últimos nove anos, não posso dizer que tenha sido uma total perda de tempo. Sou um homem diferente ao que abandonou a Inglaterra poucos dias depois do baile de outrora. Aprendi a me sentir confortável com esta nova personalidade. Conheci minha futura esposa enquanto estava no exílio. Se as coisas tivessem sido de outra maneira, jamais a teria conhecido; e isso é algo que não quero imaginar nem em meus piores pesadelos. Desejou não ter pronunciado essas palavras em voz alta. Morgan ia abandoná-lo. Ainda não estava seguro de que tivesse mudado de opinião. Mas eram certas, ao fim e ao cabo. Se tivesse a oportunidade de retroceder no tempo e apagar esses nove anos, se tivesse a oportunidade de começar de novo no mesmo dia do baile e evitar o incidente com Marianne talvez não mudasse nada.
-Não é necessário que sinta culpa de nada -lhe disse.
Marianne tampou o rosto com as mãos. Tremiam-lhe horrivelmente.
- Escrevi uma carta ao duque do Bewcastle -disse-. Era o mínimo que podia fazer por você. Agora saberá que você não teve nada que ver nos acontecimentos daquela noite, que o que acreditou ver não foi mais que uma farsa. É importante que conheça a verdade, sobre tudo agora que vai casar se com sua irmã.
-Vá! -exclamou.
-Vou -disse ela-. Obrigado de novo por me conceder uns minutos de seu tempo, Gervase.
-Marianne -a chamou de forma impulsiva enquanto ela dava meia volta-, somos vizinhos, tanto se gostamos ou se não, e o mais provável é que o sejamos o resto de nossas vidas. Suponho que deveríamos tentar nos comportar com civismo. Virá ao baile amanhã de noite?
Era muito possível que acabasse arrependendo-se. Mas não acreditava. Era o civismo o que mantinha engraxadas as engrenagens da sociedade para que esta seguisse seu curso.
-Obrigada -lhe disse enquanto se ruborizava-. Não estou certa, mas obrigada.
E partiu. Ficou onde estava até que escutou que a carruagem se punha em marcha. Aguardou um tempo prudente, o justo para que desaparecesse pela avenida. Não obstante, quando se aproximou da janela, descobriu que o jardim estava vazio. Não havia nem rastro doe Morgan. E a necessitava com desespero.

 

 

 


Capítulo 21

 


A chegada de lady Marianne Bonner ao Windrush pegou Morgan de surpresa. Até esse momento pensava que no máximo chegaria uma carta remetida por ela. De repente sentiu uma ligeira apreensão: não tinha falado ao Gervase nem de sua visita ao Winchholme nem dos descobrimentos que tinha feito ali. Quando levantou a vista para a janela da biblioteca e o viu ali de pé, observando a chegada de Marianne, tinha-lhe parecido ver uma intensa dor em seus olhos, produto de sua imaginação, talvez, já que estava muito longe para distinguir a expressão de seu olhar. Logo que Emma e Jonathan retornaram ao vicariato uns minutos depois, ela se afastou da casa.
Encaminhou-se para o lago, mas escutou vozes e risadas procedentes desse lugar, de modo que mudou de direção e entrou na alameda que conduzia ao mirante. Sentou-se no interior e deixou a porta aberta para que entrasse a brisa da tarde. Partir desse lugar ia ser muito doloroso. O único lar que tinha conhecido era Lindsey Hall, no Hampshire, e em termos gerais sempre tinha sido feliz ali apesar de ter passado os últimos anos morta de impaciência, poderia dizer-se, por crescer e assim conseguir certo grau de independência. Entretanto, no ano anterior tinha passado uns dias no Grandmaison Park, no Leicestershire, o lar de sua avó materna, com motivo das bodas do Rannulf e Judith e depois tinha ido ao Penhallow, na Cornualha, o lar do Joshua, para celebrar o compromisso da Freyja. E tinha chegado à conclusão de que gostaria de ter um lar próprio, um que não fosse o do Wulfric. Adorava Windrush. Adorava a mansão e a propriedade, a campina que a rodeava, a família, os vizinhos. E poderia ser seu para o resto de sua vida. Poderia ser a senhora de tudo aquilo. Era a noiva do conde Rosthorn. Mas não passaria daí. Quando chegasse o novo ano, teria que começar a considerar as atenções de outros pretendentes E haveria muitos, sabia, apesar do escândalo no que se havia visto envolvida nesse ano; um escândalo que seria maior quando rompesse seu compromisso. Ao fim e ao cabo, era lady Morgan Bedwyn, a irmã do duque do Bewcastle.
Viu que Gervase se aproximava do mirante pelo atalho que o conectava com a casa. Marianne devia haver partido já. Não levava chapéu e seu cabelo se agitava ao vento, de modo que parecia mais jovem, alegre e bonito. Caminhava com passos largos e decididos já que a tinhavisto sentada no interior. Nesse momento recordou a alegria que lhe provocavam suas visitas quando estava em casa da senhora Clark, a tranqüilidade com que passeava e conversava com ele, como se formasse parte de si mesma em lugar de ser um ente separado. E aquela última tarde, quando as notícias procedentes da embaixada a mergulharam em um estado de histeria, buscou-o de forma inconsciente e se jogou em seus braços em busca de consolo.
Custava-lhe muito acreditar, embora ele mesmo o tinha confessado, que a tinha estado utilizando em todo momento e sem olhar para alcançar seus fins. Um sem-fim de conhecidos tiveram que vê-los juntos em numerosas ocasiões, tudo cuidadosamente orquestrado por ele. Entretanto, ela não se dera conta de nada. Toda sua atenção estava posta no cuidado dos feridos e em sua preocupação pelo Alleyne e em solicitar força e consolo do apoio diário que lhe demonstrava seu querido amigo.
E nesse momento? Como interpretaria Gervase sua determinação de lhe romper o coração ou de humilhá-lo ao menos? Resultaria-lhe cômica? Seguiria decidido a casar-se com ela porque sabia que isso enfureceria ao Wulfric? Ou porque assim demonstraria a ela que era capaz de convencê-la e seduzi-la até sabendo a verdade sobre ele? Como ia encontrar as respostas a suas perguntas? Como ia confiar de novo na palavra de um homem como ele? Tomara não tivesse feito amor com ele junto à gruta. Tinha sido um terrível engano sobretudo porque seu corpo lhe pedia mais.
-Cada vez que a olho, ma chére -disse ele quando chegou à porta aberta-, parece-me mais formosa. Esse tom de rosa lhe assenta bem. Aqui está seu pretendente, prostrado a seus pés - Sorriu ao mesmo tempo que entrava no mirante com uma mão no coração.
Quando falava dessa maneira era impossível saber se estava sendo sincero. Era a mesma atitude despreocupada e zombadora que costumava adotar em seus primeiros encontros em Bruxelas. O homem que se escondia atrás dessa fachada tinha sido um completo desconhecido naquele tempo. Tão desconhecido como o era nesse momento. Devia ser sua juventude, decidiu, e o fato de que ele tivesse doze anos mais de experiência que ela. Não o conhecia absolutamente. Com o passar dos dias se foi convertendo em um desconhecido.
-O que lhe disse? -perguntou-lhe com um sorriso sem fazer caso a suas palavras. Gervase se sentou no banco de couro frente a ela e estendeu um braço sobre o espaldar. O sorriso que esboçou gotejava o antigo cinismo e o desdém que ela conhecia.
-Acredito que sabe muito bem o que me disse, chérie -respondeu ele-. Parece ser que vou ser absolvido de toda culpa ante o duque do Bewcastle. Escreveu-lhe. Suponho que lhe ordenou que o fizesse e também que viesse a prostrar-se de joelhos ante mim.
-Eu não lhe ordenei nada -replicou-, nem sequer a aconselhei. Simplesmente expressei meu desejo de descobrir a verdade. Suponho que me mostrei um pouco desdenhosa quando tentou desculpar-se aduzindo que naquela época tinha dezoito anos.
-É obvio -disse, olhando-a com expressão indolente-, você jamais teria se comportado dessa maneira, não é, chérie. Teria enfrentado a seu pai e ao pretendente indesejado e lhes teria deixado muito clara sua postura olhando-os diretamente nos olhos. Mas você é feita de uma massa muito dura, lady Morgan Bedwyn. Suponho que a cúmplice de Marianne foi Henrietta.
-Disse-lhe isso? -perguntou-lhe.
-Não -riu baixo-. E suponho que você tampouco vai dizê-lo. Estou certo de que quando era pequena sofreu inexprimíveis torturas nas mãos de seus irmãos mais velhos. Mas apostaria algo a que jamais foi em busca do Bewcastle para delatar suas maldades.
-Nunca tive necessidade de fazê-lo -replicou-. Havia outras formas, muito mais satisfatórias, de lutar com eles. Nunca gostaram de encontrar sal no café nem açúcar na comida. Nem suas botas novas flutuando na fonte. Nem descobrir que suas jaquetas preferidas ficaram sem botões.
Gervase se pôs-se a rir de novo.
-Henrietta sempre foi uma menina difícil -confessou-. Suponho que é compreensível que odiasse estar aqui e rejeitasse todos nossos esforços para ajudá-la. Tinha doze anos quando seus pais morreram, e não nos tinha visto nenhuma só vez quando precisou viver conosco. Era uma menina suscetível. Se tentávamos que participasse de nossos jogos, nos fazia saber de todos os modos possíveis o muito que se aborrecia, tanto conosco como com o que estávamos fazendo. Entretanto, quando não a incluíamos, zangava-se, ficava a fazer manha e conseguia que nos sentíssemos culpados por ter deixado de lado a pobre órfã. Durante sua apresentação em sociedade, fiz todo o possível para que não lhe faltassem pares nos bailes nem convites de meus amigos para passear pelo parque ou ir ao teatro. Não me agradeceu isso. Suponho que não a entendíamos. Eu certamente não a entendia. Morgan se deu conta de que a estava olhando detidamente apesar de ter as pálpebras entrecerradas.
-Pois agora parece contente -disse-. Acredito que adora a sua mãe. E também tem sua amizade com Marianne.
Devolveu-lhe o olhar sem pestanejar e trocaram um imperceptível sorriso muito eloqüente. Perguntou-se se ele sentiria perturbado com o que tinha descoberto a respeito de sua prima. Ela não estava. O amor era um bem muito precioso para rechaçá-lo ali onde se encontrasse.
-Se foi Henrietta -disse-, sentiria-se muito doído? Muito zangado? Poderia deixar que continuasse vivendo aqui?
-Se foi Henrietta -repetiu ele-, suponho que teve seus motivos. Suponho que sofreu provavelmente muito. Seria duro viver com semelhante culpa, não acha, chérie?
Continuava olhando a da mesma maneira.
-Para uma pessoa com consciência -respondeu-, sim.
-Ah, a consciência -Gervase sorriu-. Alguns não temos disso. convidei ao Marianne ao baile de amanhã. Agrada-lhe? Está orgulhosa de mim?
-Sim me agrada -respondeu-. Era o mais sensato.
-Foi muito diligente, chérie -disse ele-, ao me animar a olhar e iluminar os cantos mais escuros de minha vida. Passou grande parte de seu tempo me ajudando a enfrentar o passado para que não volte a escurecer meu presente e meu futuro. Por que?
-É absurdo carregar com as culpas do passado quando o passado está morto e enterrado-lhe disse-. Como se pode desfrutar do presente ou trabalhar para um futuro se não deixar de olhar atrás com ânimo pessimista?
-E, entretanto -replicou ele-, você também carrega com certas culpas, chérie. Nega-se a aceitar que sua perspectiva do passado no que a mim respeita talvez seja um pouco distorcida. Rejeita a felicidade do presente e a possibilidade de que juntos consigamos uma vida satisfatória. Insiste em olhar atrás com ânimo pessimista, tal como você disse.
Morgan ficou em pé de um salto, colocou as mãos na mesa que havia entre eles e se inclinou para ele.
-Sim, claro! -exclamou-. Este é o tipo de argumento que esperaria de você, Gervase. Algo para me confundir e me manipular a seu desejo. O que disse não se pode aplicar a meu caso. E está se enganando quando afirma que rejeito a felicidade do presente. Serei feliz quando abandoná-lo. Adula a si mesmo quando diz que olho atrás com pessimismo. Quando lançar o olhar pra trás, sentirei-me incrivelmente aliviada de ter descoberto a verdade sobre você a tempo para me liberar de uma vida miserável. Mas não lançarei o olhar para trás muito freqüentemente. Por que ia fazê-lo? Estes meses não tiveram a menor importância.
-Chérie, é adorável quando se zanga -disse ele.
Rodeou a mesa a toda pressa, mas quando chegou até ele já estava preparado, como era de esperar. Gervase apanhou sua mão direita quando estava apenas a dois centímetros de seu rosto e a esquerda, a uns seis. Sustentou-as e pôs-se a rir baixo.
-Mas o que é isto, mon amour? -perguntou-. Esqueceu suas intenções de conseguir que me apaixone perdidamente por você?
Inclinou a cabeça para aproximar-se mais a ele.
-Antes paqueraria com um sapo -lhe respondeu-. Antes faria o amor com o demônio.
-Non, chérie -riu dela e continuou lhe segurando os pulsos. Isso não está nada bem. Se há algo que admirei sempre em você, é sua honradez. Entretanto, acaba de mentir duas vezes. Como ia paquerar com um sapo? E o que ia fazer o demônio com seu tridente enquanto faz amor consigo? Em realidade, acredito que é melhor esquecer o assunto. Há um sem fim de possibilidades escandalosas, não acha?
-Talvez, Gervase -disse Morgan em voz baixa, aproximando-se um pouco mais a ele-, deva distrair sua mente desses pensamentos tão picantes -E o beijou nos lábios.
Um momento depois estava sobre seu regaço, com as mãos livres e abraçados o um ao outro. Imersos em um abraço apaixonado.
Gervase lhe desatou o laço do chapéu e o jogou na mesa. Baixou-lhe o sutiã para deixar ao descoberto seus seios. Ela trabalhou em excesso com os botões da jaqueta e do colete para poder colocar os braços por debaixo e sentir o excitante calor de seu corpo através da camisa. Beijaram-se com um feroz desejo e uma ternura se desesperada.
Não obstante, ambos eram conscientes, é obvio, de que estavam no mirante e à vista de qualquer um que se aproximasse. Seu abraço se manteve dentro dos limites do decoro, embora com muita dificuldade.
Gervase insistiu com ela para apoiar a cabeça em seu ombro quando o beijo chegou a seu fim ao mesmo tempo que colocava os pés sobre a mesa para que não abandonasse seu regaço.
-Quando vi que não estava no jardim depois de que Marianne se fora, acreditei que talvez não pudesse encontrá-la, chérie -lhe confessou-. Não tem nem idéia do muito que necessitava de você nem do muito que me alegrei ao vê-la aqui sentada.
Morgan desejava acreditar em suas palavras com desespero. Entretanto, voltou a ser terrivelmente consciente de sua juventude e da vasta experiência do Gervase. Até há muito pouco tempo tinha ignorado, total e despreocupadamente, suas verdadeiras intenções. Sua inocência não voltaria a lhe jogar essa má passagem outra vez.
-Eu também me alegrei ao vê-lo -disse-. Mas pensava que podia estar zangado comigo.
-Zangado? -Levantou-lhe o queixo com um dedo e a olhou nos olhos-. Quando se converteu em meu anjo da guarda?
Nem pensar. Isso era muito extravagante, pensou.
-Ah, sim? -Suspirou e voltou a pôr a cabeça sobre seu ombro.
-Desde o começo, chérie -respondeu ele-. Um anjo de beleza e de elegância, um anjo de bondade e de compaixão, um anjo de amor.
Morgan suspirou de novo e lhe deixou uma série de beijos no queixo.
-Isso quer dizer que me quer?-perguntou-lhe.
-Quero-a, ma chére -respondeu ele, baixando a cabeça para falar contra seus lábios-.Te quero com toda minha alma. Beijaram-se devagar e com ternura, e depois se olharam nos olhos com um sorriso.
-E você, mon amour? -quis saber ele-. Me quer?
Ela continuou sorrindo.
-Não -respondeu-. A verdade é que não. Nem sequer um poquinho. Continue falando. Seu coração romperá quando for?
O olhar do Gervase se tornou risonha e ela teve a impressão de que o muito descarado se estava divertindo lindamente.
-É obvio, ma chére -respondeu-. Deixarei crescer o cabelo, minha saúde declinará até morrer e você virá, chorará sobre minha tumba e suas lágrimas regarão as rosas plantadas por minha mãe. Ou talvez apareça ali diante, rindo-se com desdém e pisoteie todos os casulos. Seria tão desumana? Chegaria a esses extremos?
-Nem muito menos -respondeu ao mesmo tempo que ficava em pé e alisava as rugas do vestido antes de voltar a por o chapéu. - Reagiria com total indiferença. Alguém me comunicaria a notícia de sua morte, eu lançaria o olhar atrás por um instante e depois encolheria os ombros e admitiria tê-lo conhecido. E depois prosseguiria com o que estivesse fazendo.
Ele pôs-se a rir entre dentes e ficou em pé.
-Está se convertendo em uma consumada mentirosa -disse-. Mas sempre será adorável. Que tal lhe parece- que nos comportemos de forma civilizada e retornemos à casa juntos apesar de que tenho a sensação de que acabamos de discutir? Claro que teremos que falar de algo. O tempo, talvez? Ah, já o tenho. Façamos predições sobre o tempo que teremos amanhã para a festa. Choverá ou fará sol? Você o que acha, chérie? O que faremos se chover?
Morgan aceitou o braço que ele ofereceu uma vez fora do mirante e pôs-se a andar pelo atalho a seu lado.
-Sabe perfeitamente que sua mãe tem um plano alternativo se o dia sair chuvoso -respondeu.
-Ah-disse ele-, adeus a esse assunto de conversa. Agora toca a você escolher, chérie.
Durante uma parte da manhã pareceu que a condessa teria que pôr em prática o plano alternativo. Entretanto, chegado o meio-dia a temida chuva não tinha feito ato de aparição e as nuvens tinham desaparecido, dando passagem a um sol radiante. A tarde foi agradavelmente quente sem ser abafadiça.
Os convidados chegaram ao Windrush procedentes de vários quilômetros ao redor. Houve corridas, jogos de habilidade e força, incluindo uma competição de arco e flecha, e uma partida de críquete nos prados. Corridas de botes no lago e depois passeios de barco para as crianças com Aidan e sir Harold nos remos. Passeios de ponei pelos atalhos e alameda. Visitas guiadas pelo salão de baile (que já estava decorado para a noite) e a galeria de retratos para todos aqueles adultos que estivessem interessados. E também houve comida e bebida em abundância, espalhadas por mesinhas cobertas com antigas toalhas brancas e colocadas no terraço ou, se preferisse uma opção mais informal, podia-se comer nas mantas estendidas nos prados ou junto ao lago.
Gervase se misturou com seus convidados e conversou amigavelmente até com os mais humildes, assim como Morgan, embora não estivesse acostumada a misturar-se com as classes mais baixas. Voltou a recordar o surpreendida que se sentiu no ano anterior no Penhallow ao descobrir que Joshua, marquês do Hallmere, tratava a todos seus criados, a seus jornaleiros e a outras pessoas de classe inferior à sua como se fossem seus amigos. Recordou também os dias e as noites que passou em casa da senhora Clark atendendo aos feridos com a certeza de que as distinções sociais eram meros acidentes de nascimento, que os soldados que tinham saído das classes mais baixas de Londres (com um sotaque que lhe era quase ininteligível) eram tão valiosos como qualquer duque ou marquês ou príncipe. Deu-se conta de que as mulheres se desfaziam em reverências enquanto que os homens a saudavam com a cabeça ou levavam a mão à frente. Os meninos a olhavam com os olhos (e às vezes com as bocas) totalmente abertos. Mas todos lhe devolviam o sorriso quando ela lhes sorria. E quando participou do concurso de arco e flecha, o resto dos participantes (todos homens) explodiu em vivas e se reuniu um grande número de espectadores (mulheres quase em sua totalidade).
-Faz muito que não pratico -disse enquanto esticava o arco para seu primeiro disparo. O alvo parecia alarmantemente pequeno e muito longínquo. Não sobressaiu apesar de que em tempos fora imbatível com um arco ao menos nos arredores do Lindsey Hall. Mas tampouco ficou em evidência. Dos nove participantes, ficou em terceiro lugar e ganhou uma ovação no processo. Quando se afastou, estava ruborizada e tinha os olhos brilhantes.
A corrida a três pernas estava a ponto de começar, com sete casais de meninos e uma de adultos: Gervase e Monique. Receberam os vivas dos meninos e as brincadeiras de algum ou outro arrojado adulto, quem expressava seu bom humor a gargalhadas.
Morgan também pôs-se a rir quando Joshua deu o sinal de saída e os adultos ficaram na cabeça antes de cair ao chão com um espetacular embrulho de braços e pernas, um grito muito feminino e um grito muito masculino que lhe deixaram muito claro que tudo tinha sido deliberado.
Ficaram em pé como puderam enquanto os cinco casais de meninos que ficavam em carreira os superavam e voltaram a ficar na frente para repetir a mesma operação quando estavam a menos de um metro da meta. Três casais de meninos se proclamaram ganhadores entre aplausos e risadas.
Morgan sentiu de repente que alguém lhe jogava o braço pelos ombros e se encontrou com o Aidan, que lhe deu um breve apertão contra seu flanco.
-Feliz? -perguntou-lhe seu irmão.
Ela assentiu com a cabeça e lhe sorriu.
-Não acabo de acreditar o muito que cresceu -disse ele-. Parece que foi ontem quando era uma menina. E agora é uma mulher e se converteu na beleza que sempre soubemos que seria.
-Espero que presenteie à Eve com tantos elogios. -Pôs-se a rir.
Aidan apontou com a cabeça ao Gervase, que estava dando os prêmios aos vencedores e moedas aos perdedores.
-Escolheu bem -lhe disse-. É um bom homem.
-Sim -Morgan o contemplou um instante. Não levava chapéu, estava um pouco despenteado e seu semblante irradiava alegria e vitalidade-. O é.
-Devo te confessar que estava um pouco preocupado -disse seu irmão, lhe dando um apertão no ombro-. Todos estávamos. Por isso aceitamos vir, como apoio moral em caso de que o necessitasse. Me alegro de que não lhe tenha feito falta, mas não me arrependo de ter vindo. Pode ser feliz com esta gente, Morgan.
-Sim -concordou -, sei.
-Huy! -exclamou-. Freyja está mostrando ao Davy como se lançam as ferraduras. Pergunto-me quem dos dois vai competir. Será melhor que vá ver o que se está passando. Foi muito mais tarde, depois que levara Jonathan até os poneis para que pudesse acariciar a um e o convencesse para que desse uma volta nele enquanto ela o segurava, quando a condessa se aproximou dela e a puxou pelo braço.
-Esteve tão ocupada que as pernas não lhe sustentarão esta noite no baile, chérie -disse-. Venha se sentar no terraço um momento. Está linda com esse amarelo claro. Tão radiante como a primavera.
-Deve estar encantada com o êxito da festa, senhora -disse ela-. Todo mundo parece estar gostando muito.
-Tudo é em sua honra, chérie -lhe recordou a condessa-. Em sua honra e no de Gervase, para celebrar seu compromisso. É evidente que todo mundo o quer, como sempre o quiseram e como eu sabia que voltariam a querê-lo. E todo mundo a adora. Deve começar a me chamar "mamam", e esquecer esse "senhora" tão formal. Fará-o, ma petite?
-Sim, mamam -Morgan lhe sorriu quando se sentaram a uma das mesas e um dos criados se apressou a lhes levar chá e massas.
Sua vingança ia ser muitíssimo mais horrível do que tinha imaginado a princípio, compreendeu. Seria a ela a quem culpariam de tudo, posto que ia ser a encarregada de romper o compromisso e era a estranha na família. Mas Gervase sofreria uma enorme humilhação. Não queria fazê-lo.
Que imprudente tinha sido por culpa de sua impulsividade! Deveria ter-se conformado com a discussão que mantiveram no Pickford House, com o fato de lhe dizer na cara que sabia tudo, com o fato de tê-lo obrigado a confessar a verdade. Teria que ter-se conformado vendo-o prostrar-se de joelhos a seus pés para lhe pedir matrimônio. Já teria sido todo um triunfo olhá-lo com desdém e lhe dizer que não.
Não obstante, isso era o que ele esperava.
Não obstante e como bem lhe disse, ainda não tinha acabado com ele.
Tinha chegado esse momento?
Chegaria alguma vez?
Mas não tinha tempo para entreter-se nem com seus pensamentos nem com seu dilema.
Tinha que falar com a condessa e, além disso, Freyja e Emma se reuniram com elas pouco depois, uma vez que os convidados começaram a retornar a suas casas. O salão de baile tinha o aspecto e a fragrância de um jardim especialmente exuberante, pensou Gervase quando entrou para dar uma olhada e consultar o programa com a orquestra, cujos membros já estavam sentados no estrado colocado no outro extremo do salão, afinando os instrumentos. As flores abrangiam todos os tons de púrpura, fúcsia e rosa, e estavam misturadas com uma profusão de samambaias e outras plantas verdes. Sabia que os arranjos florais eram obra da Henrietta quase em sua totalidade. Sua prima sempre tinha tido muito bom olho para as cores e a decoração. Essa noite se superou a si mesma.
Essa manhã tinha ido vê-lo antes do café da manhã, depois que ele voltara de dar um passeio. A confissão de que tinha participado dos sucessos que tiveram lugar nove anos antes o pegou de surpresa. Inclusive se ofereceu para partir de Windrush se assim o desejasse, embora não lhe disse aonde iria. Naquele momento não se sentia muito caridoso para com ela. Não obstante, deixou-se guiar pelo instinto. Cruzou a sala, deu-lhe um forte abraço que claramente a pegou despreparada e lhe disse que não fosse tola, que tinha chegado o momento de enterrar o passado e de seguir com suas vidas. Depois, sorriu-lhe enquanto ela enxugava as lágrimas com um lenço.
-Além -lhe disse-, mamam está decidida a mudar-se ao Cherry Cottage depois de meu casamento. Suponho que quererá ir viver com ela.
-Sim, farei-o, Gervase -lhe assegurou sua prima-. Obrigada por sua generosidade. depois de seu casamento...
Cherry Cottage era uma casa situada nos subúrbios do povoado que seu pai tinha alugado a um coronel reformado e já falecido. Sua viúva se mudara. Henrietta não lhe tinha dado nenhuma explicação sobre os motivos que a tinham impulsionado a colaborar com Marianne para lhe estender a armadilha, e ele não a pediu. Não ia negar que a idéia de que fossem um casal lhe era muito chocante, sobre tudo porque lhe tinham causado muitíssimo dano, mas em definitiva o que houvesse entre elas só era de sua incumbência. Não lhe importava o mínimo. Perdeu o fio de seus pensamentos quando os Bedwyn apareceram em grupo, os cavalheiros vestidos de negro com camisas e gravatas brancas; Eve, de lavanda e Freyja, de luto rigoroso. Entretanto, ele só tinha olhos para Morgan, que estava esplêndida com um vestido de resplandecente cetim prateado, parcialmente coberto por uma rodeada túnica bordada da mesma cor. Levava o cabelo recolhido no alto da cabeça e adornado com cordões prateados;
Meio oculto sob o decote do sutiã se via um medalhão de prata. Suas luvas e seu leque eram brancos.
Ele levava o mesmo traje, prateado, cinza e branco, que usara no jantar campestre do bosque do Soignes. Tinha duvidado ao escolhê-lo, porque nenhum dos dois necessitava de um aviso daquela noite. Mas tinha decidido correr o risco. Superar o passado não implicava negá-lo muito menos. Isso não solucionaria nada.
Esperava, com desespero, que pudessem superar o passado. Saudou-a com uma reverência e lhe pegou na mão para levá-la aos lábios. Lhe respondeu com um sorriso avassalador sob os atentos olhares de suas famílias, já que os seus tinham aparecido justo atrás dos Bedwyn.
-Pelo amor de Deus!-exclamou Freyja-. Fazem um casal deslumbrante.
O resto dos convidados começou a chegar pouco depois. Gervase os recebeu na entrada, acompanhado por sua mãe e por Morgan. Embora já os conhecia de antes, impressionou-lhe ver que recordava seus nomes, assim como certos detalhes sobre todos eles. Era evidente que todo mundo a admirava muito, não só por sua beleza e por ser a irmã de um duque, mas também por sua elegância, educação e encanto.
Sua vingança, pensou, ia ser colossal. Se não conseguisse fazê-la desistir, claro estava. Tal como sua mãe havia predito, o salão de baile estava agradavelmente concorrido uma vez que chegaram todos os convidados (entre quem se incluía Marianne Bonner e sua tia anciã, a senhora Jasper), mas não tanto para ser entristecedor. Morgan e ele foram os encarregados de abrir o baile com uma alegre contradança. Depois continuaram dançando com diferentes pares ao longo da noite e jantaram em mesas diferentes. Demonstraram um comportamento irrepreensível, é obvio, mas nem as mais estritas regras londrinas proibiam dançar uma segunda vez com o mesmo par. Tinha ordenado à orquestra que a única valsa da noite devia soar depois do jantar.
-Chérie? -chamou-a ao mesmo tempo que a saudava com uma reverência enquanto ela conversava com um grupo de vizinhos-. Dançará a valsa comigo?
Colocou a mão no seu braço sem dizer nada e deixou que a levasse a pista de baile.
-Está vestido como na noite do bosque do Soignes -disse-. Naquele tempo pensei que escolheu umas cores tão claras porque quase todos os cavalheiros levariam casacas vermelhas.
-Tinha toda a razão, chérie -lhe disse-. Quem ia desejar passar desapercebido em seu próprio baile?
-Surpreende-me que tenha posto a mesma roupa esta noite -confessou ela.
-Seriamente? -perguntou-lhe enquanto inclinava a cabeça para ela e a rodeava com os braços à espera das primeiras notas da valsa-. E também a surpreende que a tenha convidado a dançar a valsa comigo? A última vez que o dançamos foi no baile de sua irmã em Londres sós em uma sala de espera. A vez anterior foi em meu jantar campestre a sós durante uns minutos diante de cem pares de olhos. E antes dessa ocasião, no baile dos Cameron, onde nos conhecemos.
-Não necessito que me recorde isso -replicou ela-. Mas me alegro de que o tenha feito. Isso me facilitará as coisas amanhã ou depois de amanhã, quando Aidan, Eve, Freyja e Joshua se vão e eu resolva partir com eles.
A música começou e ele a guiou muito devagar pelos primeiros passos da valsa.
-Fará isso, chérie? -perguntou-lhe sem deixar de olhá-la nos olhos-. Partirá com eles? Deixará-me? Para não voltar para ver-me?
-Sabe que o farei -Ela jogou a cabeça para trás mas não afastou o olhar.
Colocou-lhe a mão na cintura com mais firmeza e executou um giro ao mesmo tempo que alongava os passos. Ela se pôs-se a rir, encantada. Havia dito à orquestra as melodias que deviam tocar. A julgar pela súbita e encantada expressão de seus olhos, soube que reconhecia a que estavam tocando nesse momento. Era a mesma valsa que dançaram aquela primeira vez. Dançaram em silencio sem deixar de olhar-se nos olhos em nenhum momento. Conduziu-a entre os restantes casais, às vezes com passos rápidos, outras mais devagar, girando e girando, até que sentiu que em seus lábios aparecia um sorriso e viu o rubor que cobria as faces de Morgan e o brilho que resplandecia em seu olhar.
Não voltaram a falar até que houve uma pausa na música.
-Dança a valsa muito bem, Gervase -disse Morgan, afastando os braços dele até que voltasse a soar a música-. E também sabe fazer outras coisas muito bem. É um perito na paquera e no que segue à paquera. Jurou-me que conseguiria que me apaixonasse por você. Suponho que disso se trata tudo. Como mesmo na primeira vez. Sem mais intenção que a de me manipular, me fazer mudar de opinião e me derrotar embora para isso tenha que se casar comigo. Cronologicamente falando, só sou um pouco mais velha do que era em Bruxelas no dia do baile dos Cameron, mas ganhei muitíssimo em experiência. Há ocasiões nas quais odeio-o com todas minhas forças.
-O ódio é uma melhora com respeito à indiferença de ontem, chérie -replicou-. Não lhe ocorreu pensar que quero que se apaixone por mim porque eu estou apaixonado por você?
Ela meneou a cabeça com impaciência e levantou a mão até seu ombro quando a música começou a soar de novo.
-Partirei com meus irmãos quando se forem -repetiu ela.
O problema era, pensou Gervase, que podia estar dizendo-o a sério. Seu orgulho não lhe permitiria mudar de opinião. Nem tampouco o fariam sua recém descoberta maturidade e precaução. Tinha-lhe feito um dano atroz. E ele tinha muito poucos argumentos com os quais defender-se. Alguns , certo; mas não muitos.
O fato de que a quisesse com toda a alma não equivalia a defesa.
Não voltaram a falar até que a valsa chegou a seu fim. Ainda restava uma contradança, mas lógicamente não podiam dançá-la juntos.
-Chérie -lhe disse-, deverá dar um passeio comigo quando acabar o baile?
-Esta noite? -Olhou-o com as sobrancelhas arqueadas-. Onde? Fora?
-Fora -disse, assentindo com a cabeça.
-Para que? Para que possa me seduzir? -Olhou-o com altivez-. Está louco?
-Só desesperado, chérie -respondeu-. Me está acabando o tempo e me dou conta de que está decidida a endurecer seu coração e a me castigar com o abandono. vamos falar. Me conceda a oportunidade de fazê-la mudar de opinião. Juro por minha honra que não a tocarei luxuriosamente sem sua permissão. Me dê uma oportunidade.
-Por sua honra? -repetiu ela em voz baixa e arqueando as sobrancelhas com desdém-.De qualquer forma, não há modo de que me faça mudar de opinião.
Viu-a franzir o cenho, e por um instante viu algo em seus olhos que lhe deu esperanças apesar de suas palavras. Uma sombra de dúvida, de vulnerabilidade, de tristeza.
-Me dê uma oportunidade de qualquer modo -pediu.
A música tinha cessado e o resto dos casais estava abandonando a pista de baile. Se ficassem ali, não demorariam para chamar a atenção ao cabo de uns instantes. Sabia que se não lhe respondia nos escassos momentos que restavam, seria muito tarde para ele. Teria perdido ela.
-Muito bem -disse ela-. Mas é inútil.
Sorriu e lhe agarrou a mão para colocá-la no braço.

 

 

 

 

Capítulo 22


É tudo tão absurdo, pensou Morgan. O dia tinha sido uma agonia constante para ela, pelo mero fato de que tinha sido maravilhoso para todos outros. A celebração de seu compromisso com o Gervase tinha sido gloriosa.
Um compromisso que devia romper ao cabo de dois dias, quando Freyja e Aidan partissem do Windrush. Devia endurecer seu coração para não sucumbir aos argumentos que lhe gritavam que não o fizesse. Mesmo assim, tinha aceitado a lhe conceder esse tempo a sós com o único fim de tentar persuadi-la para que mudasse de opinião. E o ia tentar em uma noite fresca e coalhada de estrelas, depois de ter dançado uma valsa que tinha deixado suas emoções a flor da pele.
Estava quase segura do lugar ao qual ia levá-la, embora não pensava lhe perguntar. Não ia dizer nenhuma só palavra até que ele falasse, e Gervase parecia estar muito a gosto em silêncio enquanto caminhavam. A princípio acreditou que sua intenção era a de passear pelo prado ou, talvez, a de levá-la ao lago ou ao mirante, onde não estariam à vista das janelas da mansão.
Claro que semelhante segredo não era necessário. Gervase tinha anunciado diante de todo mundo que iriam dar um passeio e Aidan, apesar do olhar sério que lhes tinha lançado , tinha dito que não tinha nada de inapropriado que um casal comprometido se desse boa noite longe dos olhos da família.
Se esperava que o passeio fosse uma breve conversa durante a qual Gervase ia demonstrar todo seu encanto com a intenção de persuadi-la para que ficasse, por que se tinha mudado de roupa e pôs um cômodo vestido de passeio e uma capa abrigada?
Tinha medo de estar enganando-se a si mesma, tinha medo de suas próprias debilidades. Gervase levava uma lanterna consigo; desnecessário enquanto estivessem passeando pelas zonas limpas que estavam iluminadas pela lua e as estrelas, mas de grande ajuda quando se internaram no atalho agreste e o céu ficou virtualmente oculto sob o dossel conformado pelos ramos das árvores. Ajudou-a pegando-a pelo cotovelo para que não tropeçasse por causa do acidentado caminho. Além disso, não parecia disposto a tocá-la absolutamente.
Quando por fim chegaram à gruta depois de subir a colina e descer até o banco à beira mar em completa escuridão, salvo pela escassa luz da lanterna, estava muito zangada. Nem tanto com o Gervase como consigo mesma. Acaso não o conhecia essas alturas? Acaso não sabia que estava utilizando o poder de seu encanto para erodir sua força de vontade? Ou se equivocava? Tinha mudado desde que chegaram de Bruxelas? Seria tão tola para perdoar sem mais o que lhe tinha feito ali, em especial depois do Waterloo? Lhe rompia o coração cada vez que recordava a ternura que lhe tinha demonstrado aquela semana, quando acreditara que era seu melhor amigo e inclusive se convertera em seu amante. Tudo tinha sido um engano. Tudo. E não podia esquecê-lo de qualquer jeito. Virou-se para enfrentá-lo enquanto ele apagava a lantlerna; já não era necessário, pois a luz da lua iluminava a clareira e se refletia no rio.
-Suponho disse, e nesse instante caiu na conta de que estava virtualmente no mesmo lugar onde tinham feito amor poucos dias atrás- que pensou que este entorno é o bastante poético para que seu encanto me roube o uso da razão, não?
O entorno era romântico, terrivelmente romântico. A luz da lua brilhava sobre o jorro de água que caía do jarro do querubim.
-Isso quer dizer que me enganei, chérie? -perguntou ele com um suspiro exagerado-. Não vai ser tão fácil?
Foi o suspiro o que a tirou do sério. Acaso não levava alguma vez nada a sério? Tão seguro estava de que ia seduzi-la? Ou não lhe importava o mínimo?
-Vai ser impossível! -gritou enquanto apertava os punhos-. Não o entende, Gervase? É bonito, encantador e atraente. Está claro. Seria idiota se o negasse. Foram todas essas qualidades as que fizeram que me apaixonasse por você em Bruxelas, embora também soubesse que era um libertino e um Don Juan. Foram essas qualidades as que me levaram a cometer aquela indiscrição no baile da Freyja e as que me levaram a fazer o amor contigo faz uns dias. Mas também sou consciente do ódio e do cinismo de que é capaz, do calculista que pode ser. Sei que fui sua vítima, desde que nos conhecemos até a noite do baile da Freyja; talvez continue sendo. Como vou acreditar em você quando diz que me quer, que quer te casar comigo? Como vou confiar me no que me diz? Como quer que volte a confiar em você? Será melhor que voltemos para a casa agora mesmo e durmamos um pouco. Partirei do Windrush com minha família. Vou deixá-lo e esquecê-lo para sempre.
Gervase se tinha afastado e a estava observando, apoiado contra a parede de pedra da gruta. Tinha os braços cruzados diante do peito.
-Chérie -disse em voz baixa-, aceitou me conceder uma última oportunidade para convencê-la de que não me abandone, de que não me rompa o coração. Inclusive nesse momento, pensou, podia estar rindo-se dela. Como ia romper lhe o coração? Tanto a amava? Tinha medo de acreditar. Tinha medo de albergar esperanças.
Odiava o fato de ter só dezoito anos. Aborrecia isso.
-Muito bem -replicou, observando-o com toda a altivez que foi capaz de reunir-Fale. Mas estará esbanjando saliva.
Deu meia volta e se afastou um pouco, caminhando entre as flores, até deter-se e colocar uma mão em uma das frias e pétreas asas do querubim.
-Não posso negar que sou culpado, chérie -disse ele-. Embora foi sua beleza o primeiro que me chamou a atenção, também é certo que foi sua identidade o que me impulsionou a que nos apresentassem. Minha intenção era a de causar problemas e o consegui. Utilizei-a com total frieza e deliberação para provocar a seu irmão.
Ainda lhe doía recordar o jantar no bosque, sabendo como sabia que não formava parte de uma extravagante e escandalosa paquera de sua parte, mas sim foi fruto de um ódio transbordante.
-Mas eu gostava de você - prosseguiu- e comecei a me dar conta, muito tarde já, de que era algo mais que sua irmã. Não devia envolvê-la em algo que só concernia aos dois. Mas não ache que me estou justificando. Sou culpado e me sinto profundamente envergonhado.
Morgan estendeu o braço e colocou a mão sob a água que caía do jarro. Estava muito fria. Afastou-a, colocou-a entre as dobras da capa e a secou com a saia. Tentou pensar em algo mundano: na roupa que levaria durante a viagem a casa; se ia levar seus apetrechos pintura ou não; se iria ao Leicestershire, ao Oxfordshire ou a Cornualha ou se simplesmente iria ao Lindsey Hall e passaria o verão com o Wulfric.
-Quando a vi no baile dos duques do Richmond -seguiu Gervase-, mantive-me afastado, chérie, até que ficou sozinha depois de que os oficiais partissem. Parecia estar desamparada e perdida. Parecia necessitar de um pouco de consolo. Assim me aproximei com a intenção de consolá-la se estivesse em minha mão. Aproximei-me porque era você, não porque fosse a irmã do Bewcastle. Nem sequer pensei nisso.
-Já era muito tarde -replicou ela, inclinando a cabeça e fechando os olhos.
-Depois -continuou Gervase-, uns dias mais tarde, vi-a na Porta do Namur, quando pensava que já estaria bem longe da cidade. Estava suja, despenteada, ruborizada e linda enquanto atendia a um soldado que tinha perdido uma perna.
Desde esse momento para diante, desde esse preciso momento até que desembarcamos no Harwich, foi Morgan Bedwyn para mim e aprendi a valorizá-la, a admirá-la, a respeitá-la e inclusive a amá-la, embora não acredito que compreendesse realmente esse último sentimento naquele momento. Já não era a irmã do duque do Bewcastle, chérie. Era você mesma e, sem me dar conta, converteu-se no centro de meu mundo, no amor de minha vida. Aquela noite, quando foi a meus aposentos, não devia permitir que nosso abraço chegasse tão longe, mas já a amava e não me ocorreu nenhuma outra maneira de chegar até você, de desterrar sua dor. Nem sequer me dera conta de que o que sentia era amor até muito mais tarde, mas o era. Sou culpado de tudo o que aconteceu nos primeiros dias de nossa relação, mon amour, mas não do que aconteceu durante esses dias. Fui seu amigo e, ao final, seu amante.
Morgan esmagou as flores a seu passo enquanto se aproximava dele a toda pressa. Voltava a ter os punhos apertados.
-É mentira! -gritou-. Me está mentindo. Não faça isto, Gervase. Não o faça. Não posso suportar. E o que passou no baile da Freyja? Se me amava depois do Waterloo, se se arrependia de me haver utilizado como o fez, por que provocou aquela situação? Não posso confiar no que diz. Não posso confiar em você.
A essas alturas estava chorando e não se incomodou em ocultar os angustiantes soluços enquanto rebuscava um lenço com mãos trêmulas. Odiava às choronas. Ela nunca o tinha sido.
Gervase continuava com os braços cruzados.
-Tomara pudesse dizer que sou inocente igual a fui em Bruxelas depois do Waterloo - replicou-. Mas não posso. Fui a Londres para pedir sua mão, mas não fingirei que só me movia o amor que sentia por você quando enfrentei Bewcastle em sua biblioteca porque não estou seguro de que naquele momento soubesse que era amor o que sentia. Queria vê-lo furioso e desfrutar com essa imagem. E depois me obcequei procurando a forma de obrigá-lo a que me deixasse cortejá-la. Foi muito, muitíssimo depois, quando entendi a verdadeira razão dessa obsessão, uma razão que nada tinha que ver com meu desejo de lhe fazer mal, mas com o fato de que não suportava a idéia de perdê-la. Dava-me conta naquela sala de espera, em casa de sua irmã, quando comecei a dançar a valsa consigo e de repente acabei beijando-a. Foi naquele momento que o compreendi, quando soube que devia tirá-la dali antes de que o escândalo estalasse. Mas quando levantei a cabeça, vi o Bewcastle nos observando, e também vi outros convidados. Alguns tinham passado por diante da porta e outros estavam ali de pé, contemplando a cena sem perder detalhe. Assim era muito tarde para procurar o modo de cortejá-la de forma honrosa e ganhar seu amor.
Morgan inclinou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.
-E com isso - continuou ele- concluo a única defesa que posso alegar. Uma defesa lastimável no melhor dos casos. Não posso lhe pedir que me perdoe, chérie. Isso é muito podre e é muito superficial. Não mereço seu perdão. Mas asseguro, embora seja podre e superficial, que a quero com toda a alma e que passarei a vida amando-a e sendo seu amigo se me permitir isso. Só você pode decidir se me perdoa. E se pode confiar em mim.
Morgan se afastou até a margem do rio e começou a caminhar em direção oposta ao salgueiro e ao querubim. A paisagem se escureceu de repente e quando ergueu a cabeça viu que uma nuvem tinha oculto a lua. Entretanto, a nuvem se afastou enquanto a olhava, de modo que seu rosto ficou banhado pela luz.
Poucos dias atrás havia dito ao Gervase que devia perdoar a seu pai porque do contrário a sombra do ódio o atormentaria toda a vida. Havia-lhe dito que devia perdoar ao Marianne e a Henrietta porque do contrário a terrível dor que lhe tinham ocasionado o teria prostrado de joelhos toda a vida. Sabia que Gervase devia perdoar ao Wulfric; de igual forma que sabia que este devia perdoar ao Marianne. O ódio e o ressentimento eram venenos letais para a alma. Também sabia que ela mesma devia perdoar ao Gervase. Mas seria suficiente o perdão? Poderia confiar nele de novo alguma vez?
Ninguém podia viver muito tempo sem confiar em outros. Quanto dano podia fazer uma pessoa se passasse a vida receando de todo aquele que lhe aproximasse! E ela corria perigo de acabar assim. Tinha sido uma iludida sem remédio até há muito pouco. ia deixar se arrastar até o outro extremo? ia proteger se da possibilidade de sofrer para, no processo, rechaçar a felicidade presente e futura?
Os últimos dias em Bruxelas tinham sido reais. Gervase a tinha valorizado, admirado e respeitado. Tinha saído à busca do Alleyne por ela. Tinha-lhe feito amor porque queria compartilhar sua dor e lhe dar consolo. Tinha sido seu amigo. E seu amante. Tudo tinha sido real. Quando se virou para olhá-lo, descobriu que não se movera de onde estava. Jurou-se a si mesmo que não seria débil. Mas não era uma debilidade a intransigência em si mesma? Aproximou-se dele sem saber o que pensava lhe dizer. De modo que não disse nada. Aproximou-se até juntar-se a ele, até sentir o toque de suas coxas, apoiou a face no complicado nó de sua gravata e deixou que a força que emanava de seu corpo impregnasse nela. Ao cabo de uns instantes, notou que Gervase a rodeava com um de seus braços enquanto que os dedos da outra mão se enterravam em seu cabelo para lhe acariciar a nuca. E ao cabo de uns instantes mais, notou que inclinava a cabeça para apoiar a face contra seu cabelo.
-Sinto-o Morgan -disse-. Que ocas me parecem as palavras! Sinto-o muito, muitíssimo, ma chére.
-Se não me tivesse visto no baile dos Cameron e não tivesse averiguado que era a irmã do Wulfric -replicou ela-, jamais nos teríamos conhecido, Gervase. E essa é uma possibilidade que não quero nem imaginar.
Ele virou um pouco a cabeça para lhe dar um beijo no alto.
-Confio em você - prosseguiu Morgan, erguendo a cabeça-. De verdade.
Gervase a beijou, com doçura e delicadeza, e lhe devolveu o beijo com todo o desejo de alguém que se preparara para rejeitar o que mais amava e que acabava de descobrir que esse sacrifício era desnecessário. E depois a abraçou com força antes de soltá-la. separou-se da parede da gruta, puxou-a pelas mãos e fincou um joelho no chão.
-Morgan -lhe disse, erguendo o olhar- quero-a por tudo o que é agora e por tudo o que será. Admiro-a como mulher e como pessoa. Aprecio-a como amiga e como companheira. Amo-a por sua inteligência, por sua visão artística do mundo e por sua perspicácia sobre a vida e a alma. Adoro-a como amante. Alimentarei sua liberdade durante toda a vida se me aceitar. E, em troca, ofereço-me a você por inteiro. Concede-me a honra de se casar comigo?
Foi uma declaração teatral a mais não poder mas também maravilhosa e comovedoramente romântica. Não havia dito nada sobre possui-la, não havia dito nada a respeito de que não poderia viver sem ela, não havia dito nada que pudesse atá-la salvo o compromisso do matrimônio em si mesmo. E do amor, cujos laços ofereciam a liberdade sempre que fosse amor verdadeiro.
-Sim -respondeu.
Talvez deveria ter dito algo mais. Talvez deveria ter dito algo que igualasse sua declaração. Mas as lágrimas que não tinha derramado lhe tinham provocado um doloroso nó na garganta e no peito; além disso e no fim de contas, o monossílabo encerrava tudo o que teria que dizer.
Sim, seria sua amiga. Sim, seria sua amante. Sim, seria sua esposa. Juntos empreenderiam a busca da camaradagem, a união física e a sorte; e juntos alimentariam e sustentariam a individualidade e a liberdade do outro.
Gervase ficou em pé, agarrou-a pela cintura, levantou-a no ar e começou a dar voltas com ela enquanto jogava a cabeça para trás e uivava à lua. Morgan o imitou, mas rindo a gargalhadas. A risada, que brotou do mais profundo de seu coração, foi um bálsamo que a ajudou a recuperar o tesouro da juventude. Claro que ele se encarregou de que não durasse muito com seus beijos.
-Espero que haja trazido algo com que acender a lanterna - disse minutos depois.
- Se está nublando e o atalho agreste estará muito escuro.
-Nesse caso, não há mais que falar -replicou Gervase-. Não retornaremos até a alvorada e assim se acabou o problema, chérie.
-Faz frio -protestou.
-Não por muito tempo -lhe assegurou ele-. Fazer o amor é estupendo para entrar em calor, e tenho a intenção de lhe fazer amor provavelmente durante o que resta de noite. Porque apesar de que esta manhã tivesse muito poucas esperanças, que tudo terá que dizê-lo, não me afundei na miséria. Assim preparei o que esperava que fosse o expediente de nossa conversa particular, se pudesse convencê-la de que falássemos, claro está. Esta manhã, muito antes que alguém se levantasse, trouxe algumas mantas e as escondi na gruta. E aí estão.
Abriu a boca para protestar, indignada por sua presunção. Entretanto, ele meneou as sobrancelhas antes de compor uma expressão contrita e de repente descobriu rindo uma vez mais enquanto lhe jogava os braços ao pescoço.
-Isto -replicou- não é nem como suspeita o que Aidan tinha em mente quando me deu permissão para lhe dar boa noite aqui fora.
-Pois agora que o diz -comentou Gervase-, aposto o que queira a que se engana. Seu irmão teria que ser imbecil para não adivinhar minhas intenções, e não tenho a lorde Aidan Bedwyn por um imbecil.
Para ela era uma idéia surpreendente. De verdade se concedia tanta liberdade aos casais comprometidos?
Gervase já tinha tirado um montão de mantas dobradas do interior da gruta e estava estendendo uma sobre a erva. Em seguida, meneou as sobrancelhas de novo e abriu os braços. A noite era fresca, quase fazia frio, e as mantas lhes foram muito úteis, embora só de quando em quando, enquanto recuperavam o fôlego e deixavam que o mundo voltasse a girar sobre seu eixo à velocidade normal, segundo palavras do Gervase. Durante o resto da noite, até que a alvorada tingiu de cinza o horizonte e inclusive até que se viu um pouco de azul, fizeram amor de modo desenfreado, jovial e entusiasmado; e poderiam ter-se mantido quentes inclusive em cima de um iceberg no Ártico, também segundo palavras do Gervase.
Entraram às escondidas na casa pouco antes que os criados se levantassem. De fato, Morgan os escutou transitar antes de ficar adormecida.

 

 

Capítulo 23


Morgan foi a primeira a descer. Não deveria ter começado a vestir-se tão cedo. Tinha sido ridículo pensar que ia demorar para fazê-lo mais do que o normal só porque era o dia de suas bodas. Embora talvez nem sequer lhe tivesse passado isso pela cabeça. Simplesmente tinha sido incapaz de esperar mais. Estava tão emocionada e nervosa que se parasse a refletir sobre a importância da ocasião, bem podia acabar vomitando.
Deveria ter ficado em seu quarto de vestir. Recordava que no ano anterior, quando Freyja se casara com Joshua, todos se congregaram em seu quarto de vestir para comentar seu aspecto, lhe desejar boa sorte e abraçá-la antes de partir para a igreja, onde aguardaram decentemente sentados nos bancos a que ela aparecesse pelo braço de Wulfric. Entretanto, ela estava no piso térreo só, salvo por um silencioso criado que tinha perdido a compostura ao vê-la e lhe tinha sorrido. O vestíbulo do Lindsey Hall, conservado como se fora um salão de banquetes medieval, sempre tinha sido um de seus lugares preferidos. Rodeou a enorme e antiga mesa de madeira enquanto passava as mãos por sua Lisa superfície e contemplou os velhos pendões, os brasões e as armas que pendiam das paredes.
A importância do que ia acontecer a golpeou como um murro direto no estômago. Lindsey Hall deixaria de ser seu lar essa manhã. Seria o lar do Wulfric, mas não o seu. Já não voltaria a ser lady Morgan Bedwyn. Voltaria para essa casa como convidada, como lady Morgan Ashford, condessa do Rosthorn. Pôs-se a tremer e se perguntou por um instante se acabaria vomitando de verdade. Supunha que sua possível gravidez piorava um pouco as coisas. Ainda não estava certa, mas a menstruação, que deveria ter chegado duas semanas antes, seguia sem reflexos de aparecer.
Wulfric chegou ao vestíbulo procedente da galeria superior e arqueou as sobrancelhas ao vê-la. Inclusive se deteve para contemplá-la da cabeça aos pés e levou o monóculo ao olho.
-Espetacular -disse em voz baixa, um comentário surpreendente dada sua forma de ser.
Morgan se tinha decidido por um vestido branco com um recamado lavanda embaixo e nas mangas. Lavanda eram também as fitas que adornavam seu toucado e o talhe alto do vestido. Lavanda em memória do Alleyne, por quem tinha chorado depois de deitar-se. Era muito doloroso dar-se conta de que a vida seguia seu curso depois da morte de um ser querido tal como o faria se estivesse vivo. Salvo que se Alleyne não tivesse morrido, ela não teria ficado em Bruxelas e esse não seria o dia de seu casamento.
-Assim devo me separar alegremente do último membro de minha família e ceder-lhe a alguém que acredita que a necessita mais que eu, não? -perguntou Wulfric.
Seu irmão estava de um humor estranho. Quando os tinha necessitado? Entretanto, nesse instante caiu na conta de que ia ficar sozinho. Sentiria-se assim? Afetaria-lhe a solidão? Apressou-se a cortar a distância que os separava e lhe jogou os braços no pescoço seguindo um impulso, como fizera no Harwich.
-Vai amarrotar o vestido -disse Wulf com essa distante altivez tão sua enquanto a afastava depois de tê-la abraçado com tanta força que a deixou sem fôlego. Nesse momento teria chorado de boa vontade. Teria gritado de dor por ele, pelo Alleyne, pela tristeza que suportava a maturidade e o descobrimento de que as mudanças formavam parte da essência da vida, de que nada era permanente e imutável.
Entretanto, antes que pudesse fazer algo tão insólito ou potencialmente embaraçoso, Rannulf apareceu no vestíbulo levando pelo braço a sua avó, cujo aspecto era terrivelmente frágil embora tivesse insistido em fazer a viagem desde o Leicestershire para estar presente nas bodas. Judith estava com eles, e Aidan, Eve e as crianças seguiam de perto. Becky pôs-se a correr, deixando-os atrás, e se jogou em seus braços.
-Está linda, tia Morgan -griou. - Meu vestido de noiva será igualzinho ao seu quando for maior.
-Só Morgan poderia chegar como a primeira em suas bodas -disse Freyja, que apareceu no vestíbulo com o Joshua, fechando a comitiva.
-Fomos ao seu quarto de vestir, mas o pássaro já tinha pirado -comentou Joshua com um sorriso.
-É uma sorte que não tenha saído correndo para a igreja, Morg -disse Rannulf-. Teria chegado antes que Gervase e os Bedwyn jamais teriam superado semelhante vergonha.
-Está encantadora, minha querida Morgan -disse sua avó-. Aproxime-se e me dê um beijo.
A tia Rochester e seu marido também estavam pressentes.
-E agora devemos partir para a igreja, salvo Morgan e Wulfric -disse sua tia com aquele tom de voz tão estridente que conseguia pôr enérgicos aos Bedwyn-. Igualmente vergonhoso seria que nós chegássemos depois do Rosthorn, Rannulf.
Todos partiram do vestíbulo quase com a mesma rapidez com a que tinham aparecido, embora despertassem a fúria de sua tia porque se atrasaram para abraçá-la, alguns com uma força desmedida, como Rannulf. Judith o fez com os olhos coalhados de lágrimas.
Era real, pensou Morgan enquanto se virava e cravava a vista na silenciosa figura do Wulfric, tão elegante e austero vestido de branco e negro.
Era o dia de suas bodas.
Enquanto Gervase observava Morgan avançar pelo braço do Bewcastle pelo corredor central da igreja, mais formosa que nunca vestida de branco e lavanda, teve a sensação de que todo o acontecido durante esses últimos nove anos havia valido a pena pelo mero fato de havê-lo conduzido a esse preciso momento.
Que probabilidades tinha que estivesse acontecendo se sua vida tivesse sido diferente? Possivelmente a essas alturas já estivesse há anos casado com outra. E embora não fosse assim, talvez não se teria fixado em lady Morgan Bedwyn nessa primavera. Não, corrigiu-se, sem dúvida se teria fixado nela da mesma maneira que o tinha feito no baile dos Cameron. Mas não se teria aproximado de alguém tão jovem, tão inocente. E embora o tivesse feito, sem intenção de seduzi-la e cativá-la, talvez nem sequer teria chamado sua atenção.
Os caminhos da vida eram estranhos.
Morgan o estava olhando nos olhos com uma expressão transbordante de ternura, impaciência e amor. Que milagre tinha feito que o perdoasse? Sorriu e, embora minutos antes fosse muito consciente de que Pierre estava a seu lado, de que a igreja estava a transbordar de familiares e convidados, nesse instante só viu a ela.
Sua amada Morgan.
O final de seu longo e difícil arco íris. Bewcastle lhe tinha escrito no mesmo dia que recebeu a carta do Marianne. Sua nota tinha sido extremamente lacônica, mas em lhe assegurava que estava satisfeito com a explicação e reconhecia que tinha interpretado mal por completo o que viu nove anos antes. Também fazia menção ao broche, o qual sinceramente não recordava ter recolhido do chão nem deixado na mesa antes de sair do dormitório, embora devesse ter feito já que Marianne tinha admitido que jamais foi roubado.
O final do arco íris era muito doce e deslumbrante pela onda de alegria que sentiu enquanto Morgan e ele se giravam ao mesmo tempo para olhar ao reitor.
-Queridos irmãos... -começou.
E depois, antes de que pudesse apreciar sequer o que estava acontecendo, antes de que pudesse começar a concentrar-se, essa mesma voz os declarou marido e mulher.
O sorriso de Morgan o desarmou.
A sua, como bem sabia, estava mesclada com as lágrimas. Tinham estado a ponto, os dois, de deixar-se vencer pelas adversidades. Assinaram no registro, atravessaram a igreja juntos, deixaram atrás uma miríade de rostos sorridentes, e saíram à luz do sol entre os vivas dos assistentes e a chuva de pétalas de rosa lançada pelos Bedwyn, seus cunhados e alguns de seus sobrinhos. Retornaram ao Lindsey Hall em uma carruagem descoberta, adornada com fitas de cores e uma réstia de botas velhas, tiradas pela mão com força e olhando-se aos olhos como dois tolos apaixonados, embora se permitissem um longo e terno beijo assim que o povoado ficou bem longe.
-Feliz? -perguntou-lhe.
-Feliz -Morgan lhe devolveu o sorriso-. Este último mês me pareceu interminável.
Tinham passado todo esse tempo separados. Ela tinha retornado ao Lindsey Hall dois dias depois do baile para começar com os preparativos do casamento e dispor que se lessem os proclamas. Ele tinha ficado em Windrush e não foi ao Hampshire até no dia anterior. Acompanhado de sua família, hospedou-se no Alvesley Park, a uns quantos quilômetros do Lindsey Hall, aceitando assim o convite dos condes do Redfield e dos viscondes do Ravensberg.
-Me pareceram anos -conveio ele-. Mas te juro que nunca mais teremos que suportar uma separação tão longa, chérie. Nossa noite de pecaminosa indulgência teve conseqüências? - perguntou-lhe enquanto meneava as sobrancelhas de forma muito eloqüente depois de recordar a noite de paixão junto à gruta.
Entretanto, o gesto do Morgan se tornou sério enquanto o contemplava com esses formosos olhos totalmente abertos.
-Acredito que sim -respondeu.
-Como? -Deu-lhe um apertão nas mãos depois de lhe agarrar a que até esse momento tinha livre-. houve conseqüências?
Morgan esboçou um doce sorriso. Tinha as faces ruborizadas. Se antes lhe tinha parecido formosa, nesse momento não encontrava palavras que a descrevessem. Estavam muito perto da casa e deviam guardar as aparências. Só um enorme jardim circular com uma grande fonte no centro separava sua carruagem da entrada principal. E, para cúmulo do pior, havia alguém diante das portas Um cavalheiro. Gervase se perguntou momentaneamente se seria alguém a quem não tinham convidado à bodas ou um convidado que tinha saído da igreja antes deles e tinha retornado à casa a todo galope.
Embora para falar a verdade, nesse momento não lhe teria importado que todos os criados, do jardineiro até o último cavalariço, estivessem no terraço para recebê-los. Era um homem recém casado e acabava de descobrir que ia ser pai.
-Chérie -disse enquanto inclinava a cabeça para ela-. Mon amour. Ma femme.
-Sou tão feliz, Gervase -disse ela-, que nem sequer posso expressá-lo com palavras.
-Não tem que fazê-lo assegurou, lhe deixando uma chuva de beijos nos lábios-.
As vezes há outra forma de comunicação muito melhor, chérie.
E procedeu a demonstrar-lhe abraçando-a e beijando-a apaixonadamente enquanto jogava os braços no pescoço.
O cavalheiro que estava no terraço observou como a carruagem, que claramente transportava aos recém casados, rodeava a fonte e se aproximava da entrada enquanto os noivos, perdidos o um nos braços do outro, esqueciam o sentido do decoro e o mundo que os rodeava.

 

 

                                                   Mary Balogh         

 

 

 

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