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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LILIAN E GREGORIO / Denise Flaibam
LILIAN E GREGORIO / Denise Flaibam

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O trajeto da entrada da cidade até o campus da universidade Frei Nicolai não é demorado, mas parece levar uma eternidade.
Téo está comigo, dirigindo com tranquilidade. Estava falando sobre o hospital e os colegas de trabalho. Quando avistamos a placa de Bem-Vindos, Téo para de falar para admirar a paisagem. Penso na Mônica e sorrio com a certeza de que minha irmã caçula adoraria este lugar. Se tivesse vindo comigo, conseguiria tirar fotos incríveis de cada pedaço de terra pelos quais o carro passa para chegar ao campus; demora cerca de meia hora, normalmente, para esse trajeto ser feito. Hoje tem muito trânsito, já que é domingo antes do início do semestre, um primeiro de fevereiro quente e abafado, e quase todo mundo fez como eu: deixou para voltar na última hora.
Os prédios são antigos e as casas mais ainda. As ruas asfaltadas são ladeadas por pequenas árvores e as calçadas estão cheias de estudantes, familiares e moradores.
Lagoa Feliz é meu lar e minha cidade favorita do mundo, mas Rouxinol tem um que de inesquecível. Um toque de familiaridade diferente que te faz querer ficar aqui para sempre; especialmente quando você se acostuma com a cidade universitária, que é tão linda e clássica.
O meu antigo campus ficava no bairro dos Beija-Flores, onde o prédio de Engenharia e outras vertentes de Exatas está localizado.
Depois que voltei pra casa em Julho, a secretaria acertou a papelada para o trancamento da minha matrícula. Conversei com meus pais e tirei umas semanas para arejar os pensamentos e tomar algumas decisões. Quando me senti confiante de novo, voltei para Rouxinol para conversar sobre transferência de curso.
A Frei Nicolai tem uma política de “extravestibular”, o que significa que os alunos interessados em transferir seus cursos precisavam prestar uma prova e esperar o edital para saber se conseguiram espaço dentro do curso escolhido – o que depende do número de vagas, ligado às desistências ou abandonos. Enfim, uma burocracia. No meu caso, me inscrevi para essa prova extra, fiz e fiquei esperando o resultado no edital do site.
E algumas vagas abertas em Artes Cênicas me colocaram no curso.

Agora é um novo ano, meu campus fica próximo de um jardim gigantesco, cheio de árvores altas e velhas, bem em frente à biblioteca universitária. E a ansiedade está me roendo inteira.
Teatro é uma paixão que está comigo desde que me entendo por gente. No colégio, eu me enfiava em toda e qualquer peça, nem que fosse para interpretar uma árvore – e sempre ouvi elogios da professora mesmo fazendo papéis inanimados. Não só a atuação, mas a montagem, os bastidores, o trabalho de roteiro e interpretação das peças, tudo me fascina. Quando as coisas começaram a dar errado na faculdade no ano passado, quando percebi que precisava ir embora para parar e pensar, decidi que o meu curso era um ponto importante. E Engenharia sempre pareceu errado.

 


 


O Téo seguiu confiante e exultante para a sua faculdade de Medicina, um orgulho para os meus pais, para o colégio, para os parentes distantes, todo mundo. O meu lado, no entanto... Eu tinha todo o apoio dos meus pais, do colégio e dos meus parentes distantes, mas sempre pareceu desconexo com o que eu gostava de estudar.

Depois da minha crise existencial, eu me abri com o Téo e falei sobre minhas escolhas estarem relacionadas aos caminhos que ele tinha escolhido. Nunca pensei que o veria tão surpreso quanto vi naquele momento.

– Você fez Engenharia por minha causa?

– Você sempre pareceu tão certo e decidido. Achei que seria melhor trilhar o que você tinha trilhado.

– Ah, Lílian. – o abraço de urso dele foi sufocante. – Eu sou o cara dos métodos, sabe disso. Planejo tudo e mantenho planos emergenciais para caso o planejamento saia errado. Eu nunca pensei que... Ser essa pessoa acabaria influenciando alguém, quanto mais você, garota maravilha. Estou orgulhoso por te ver aceitar novos riscos, e por ter decidido o que era melhor para o seu futuro. Você nunca foi sombra de ninguém, Lílian, sempre foi a própria estrela.

Salto do carro quando Téo estaciona em frente ao campus Vagalume. Uma fonte de pedra enfeita a frente das escadarias do lugar. Alguns tijolos do prédio estão carcomidos pelo tempo, a grama precisa ser aparada, mas é agradável. É familiar. É novo e excitante.

Pego a minha mochila, e o Téo se oferece para levar as malas. Nossa corrida até o outro lado da rua me dá visão para a quantidade de gente chegando. Aquele lugar tem outros cursos além de Artes Cênicas, por isso a bagunça.

Precisei abandonar a vaga na república perto do prédio de Engenharia quando voltei pra Lagoa Feliz; se eu não tivesse onde morar agora que o semestre começou, meus pais teriam uma síncope. Já foi o ó do borogodó convencer a mamãe a não tirar meu piercing com um ímã, imagine fazê-la acreditar que estava tudo sob controle quando eu não tinha um teto sobre a minha cabeça.

Graças aos céus pela Samira. Além de melhor amiga, ela me aceitou como colega de apartamento.

Samira tinha se tornado minha companheira de aventuras ali na faculdade. Chegamos no mesmo semestre, dividimos o mesmo táxi da rodoviária pra cá, e descobrimos que ela estudaria Artes Cênicas enquanto eu ia lá para o campus dos estudantes de Exatas. A cidade não era grande demais, no entanto, então o contato se tornou constante. Nós almoçávamos juntas, íamos à biblioteca em horários semelhantes e descobrimos gostos em comum, como o Verão e filmes de terror trash. Dali pra frente nos tornamos inseparáveis.

Sam é muito exaltada, e por isso uma pessoa tão especial e insubstituível. Ela ficou magoada quando soube que eu tinha trancado a faculdade e precisava de um tempo, mas seu apoio foi incondicional. Ela prometeu que estaria ali por mim caso eu resolvesse voltar, e que também estaria mesmo que eu continuasse em Lagoa Feliz para sempre.

Algumas crises podem parecer bobas quando vistas de fora, mas é difícil explicar o que me dominou naquela época. O medo de ter feito uma besteira irreparável comigo mesma unido à besteira absurda que fiz com outra pessoa. As situações à minha volta não ajudaram a melhorar meu humor, não importava o quanto tentasse. Mônica me disse que sempre me admirou pela minha força e determinação, e eu tinha perdido aquilo. Agora parece que está tudo sob controle.

O prédio da Samira tem fachada branca e cinco andares. É meio velho, com portas antigas que rangem e janelas que emperram quando você precisa fechar, mas é bonito.

– Parece civilizado. – Téo brinca.

– Ei. Que universitário, em sã consciência, é civilizado?

– Eu era.

– Você era, é e sempre será um grande nerd, Teodoro. – Empurro seu ombro e sigo em frente.

Cumprimento o porteiro, Ulisses, um senhor bigodudo de seus cinquenta anos que sempre lembra o nome de todo mundo.

– Menina Lílian, bem-vinda! E quem é esse?

– Oi! Esse aqui é meu irmão, Téo. – sorrio. – A Sam tá no apartamento?

– Tá sim. Eu vou ligar e avisar que você chegou. – aceno agradecida. – Ah, o elevador pifou!

O peso da mochila parece maior, e o Téo franze as sobrancelhas ao avistar a escadaria.

– Você não precisa ficar, eu posso subir sozinha. – Ele já fez muito por mim vindo até aqui. A cidade onde está morando agora fica no litoral e é bem longe.

– Quem chegar por último é a mulher do padre. – Téo é charmoso, inteligente e muito respeitável, mas também consegue ser um paspalho quando quer. Em meio a risos, eu o sigo, mas perco a corrida. Ele treina para maratonas, eu só corro no nosso bairro.

O apartamento da Sam fica no quarto andar e é um dos meus lugares favoritos aqui da cidade, apesar das memórias que ele guarda.

Samira me recebe quando bato na porta, e eu largo a mochila para gritar e me jogar sobre ela do mesmo jeito que ela faz comigo.

– VOCÊ VOLTOU!

– EU SEI!

– EU SENTI TANTA SAUDADE!

– EU TAMBÉM!

Ela se afasta e arregala os olhos na direção do Téo.

– Quem é esse? – Seu sussurro é admirado e pouco discreto. Téo finge que não ouve.

– Meu irmão mais velho.

– O médico?

– Esse mesmo.

– Se eu cair da escada agora ele me socorre? – Sam brinca e eu lhe dou um beliscão. Téo fica vermelho. Ele coça a nuca e estaciona as malas no batente da porta, gesticulando para mim.

– Agora que está devidamente entregue, deu minha hora.

Téo tem o melhor abraço do mundo, e eu o recebo quando vou me despedir. Ele me faz prometer que vou ligar toda sexta-feira no horário combinado e que não vou deixar a Mônica no vácuo, já que ela costuma ficar rabugenta e desconta isso nas ligações dele.

Observo o meu irmão descer as escadas e aceno uma última vez antes de ser puxada pela Samira. Ela segura meus ombros e observa meu rosto com profunda desconfiança.

– Sua maluca. Seu cabelo tá mais curto!

– É. – toco um cacho na altura do meu ombro e sorrio. – Eu mudei um pouco.

– Fica ótimo em você. – ela pisca um olho, se adiantando para me ajudar com a mochila. – Mas o piercing ainda está aí. – O fato de ele representar um momento de rebeldia assim como também representa uma memória dolorosa me faz estacar no batente da porta. Eu suspiro, desviando um olhar triste para Samira, que volta para me abraçar de novo.

– Sam? Você sabe se ele...

– Nós não falamos sobre esse assunto nesta casa! – Ela exalta decidida, fechando a porta atrás de mim.

Samira adotou um visual hippie-punk-emo-tudo-junto-e-misturado durante a minha ausência. Os longos cabelos escuros estão trançados com miçangas e algumas mechas coloridas. A franja reta cobre suas sobrancelhas finas, e os olhos estreitos, herança japonesa, estão maquiados com muito rímel.

O vestido preto quase se arrasta no chão e contrasta com a calça de moletom. Esse visual diz que Samira não tinha pretensão de sair de casa hoje, especialmente se combinado com as pantufas do Elmo.

Tiro as sapatilhas quando alcanço o tapete, sorrindo pelo conforto que ele proporciona. Olhar para a sala me traz um choque de nostalgia, mas também de mágoa. Tem muita energia aqui, muitas memórias que não podem ser deixadas pra trás. Do mesmo jeito que me lembro da maciez do sofá sob o meu corpo, me lembro de dividi-lo com outro corpo, numa época em que tudo parecia menos complicado. Meus olhos esbarram num porta-retratos e sorrio para Sam porque aquela foi a primeira foto que tiramos ali em Rouxinol; ela com o cabelo preso em dezenas de tranças, sorrindo como uma maníaca, e eu fazendo careta. Atrás de nós, uma praça familiar que agora causa desconforto em meu coração.

– Para de lembrar. – Sam joga uma almofada em minha direção, e eu me esquivo a tempo.

– E então, cadê o Apolo?

Meu segundo melhor amigo, Olavo Pereira, é o estudante de Física mais dedicado do planeta Terra. E odeia o primeiro nome. Demoramos mais ou menos uma semana para decidir um apelido, já que, no Ensino Médio, Olavo era chamado de coisas como Desentupidor de Privada ou Toupeira, e queríamos fazer jus a alguém tão brilhante quanto ele. Apolo pareceu sugestivo, já que é o nome do deus grego do sol. E, bem, o Olavo é brilhante.

– Na biblioteca, é claro. – Samira revira os olhos, entediada. – O semestre nem começou e ele já foi buscar uns livros pra estudar.

– Bom, considerando o curso que ele escolheu pra vida, até que faz sentido.

– Eu não contei que você ia voltar. – Sam abre um sorriso. – Ninguém sabe.

– Por que o suspense?

– Porque adoro surpresas.

– Combina com ele de se encontrar em algum lugar pra fazer uma surpresa com classe!

– Ok, sete horas lá no Mesa pra Dois. – Ela avisa depois de mandar uma mensagem. Os restaurantes daqui não têm exatamente os nomes mais criativos.

Vou até o meu quarto, cômodo que antes pertencia às muitas colegas de apartamento que a Samira já teve, e sorrio para o ambiente vazio, pronto para ser redecorado, tentando focar naquele ultimato de evitar lembranças. Esse quarto tem muitas lembranças.

Sam me deu sinal verde pra fazer o que quiser com as paredes, contanto que não envolva quebrá-las ou colar pôsteres de Crepúsculo nelas – foi só uma fase.

Coloco a mala e a mochila na cama e abro as venezianas, deixando a luz da tarde colorir o quarto. Espio a praça lá embaixo e o caminho que vários estudantes estão tomando – eu deveria ir até meu prédio para buscar os horários, mas estou cansada e com vontade de deixar só para amanhã. Ainda tenho um último dia de folga, e quero recuperar aquelas semanas perdidas com meus amigos.

Meus olhos esbarram em um grupo de pessoas no banco de madeira do outro lado da rua e algo retumba em meu peito, com força. Dois garotos têm violões em seus colos, e eles riem e cantam qualquer coisa acompanhados de uma menina com um triângulo e uma moça com uma flauta. Mas ele não está entre essas pessoas; ele nunca estava acompanhado. Rodeado de gente, sim, mas nunca com pessoas conhecidas seguindo seus passos. Era só ele e a sua melodia. E a dor que sinto me faz fechar as cortinas e respirar fundo.

A presença dele ainda está em mim, nas lembranças e nos momentos e nos toques que rememoro conforme deixo alguns bloqueios caírem. Faz tão pouco tempo, mas parece tanto mais.

Coisas boas podem desmoronar com tanta facilidade.

– Alô! – Samira bate no batente para chamar a minha atenção. – Tudo bem? – Seu olhar se suaviza.

– Sim. – sorrio com sinceridade. – E então, vai me ajudar a desmontar a bomba que minha mãe fez quando montou minha mala? Só Deus sabe como abrir isso.

– Para a sua sorte, minha querida amiga, eu sou especialista em desmontar malas. – Samira esfregou as mãos animadamente. – Vamos fazer desse quarto a morada de Lílian, aquela que finalmente retorna!


Aquele com a praça

 

AGORA


Apolo está nos esperando na esquina do restaurante, e seu rosto exibe pelo menos dez expressões de choque antes que eu o arrebate em um abraço de urso. Posso ser magra, mas sou forte, e o Téo foi um ótimo professor na arte dos abraços. Apolo finalmente retribui com emoção.

– Você!

– Eu!

– Cara, como assim? O que você tá fazendo aqui? – Ele se afasta para me encarar. Depois mira em Sam um de seus olhares enfezados. – Sua mentirosa.

– Eu não menti. Você nunca perguntou quando a Lílian voltava.

– Eu não sabia que essa possibilidade estava na mesa! – Ele exalta. Ergo as mãos para apaziguar a discussão.

– O que importa é que sim, eu voltei! E agora é pra ficar. – Faço uma reverência animada, recebendo mais um abraço do Apolo antes que ele se afaste de vez. Seus momentos emocionados são rápidos e pouco expressivos na maioria das vezes, mas eu e Sam achamos que, quanto mais Apolo se solta, menos recluso ele fica. Sua timidez é forte, mas nossa animação é contagiante.

– Tem mesa livre lá dentro? – Samira espia pela janela frondosa do restaurante, e nós a imitamos. Não são nem sete e quinze e o restaurante está lotado; basta dar a volta na esquina para encontrar uma fila aguardando na entrada. Bufo um fio de cabelo para longe do rosto.

– E agora?

– Bom, tem o Batata da Hora. – sugiro. – Ainda tem, né? – Os comércios aqui costumam fechar com a mesma rapidez com que abrem.

– Tem sim, mas também deve estar cheio. Fica perto do prédio de Biologia. – Samira cruza os braços. – Bela ideia nós tivemos.

– Ei, eu não tive nada a ver com isso. – Apolo resmunga.

– Eu sugeri um restaurante, a Lílian que escolheu o mais badalado. Mas tá bem, nós somos universitários independentes, podemos comprar a nossa própria comida num supermercado! – Samira sentencia. Quero comentar sobre os desastres culinários que já causamos em sua cozinha, mas me abstenho ao perceber que minha fome é tamanha a ponto de aceitar os riscos. – Apolo, você sabe fazer omelete, não sabe?

– Sei. – ele franze as sobrancelhas. – Mas o único supermercado próximo daqui fica na esquina com o sapateiro. – Engulo em seco, ciente de que os dois estão me olhando profundamente agora. Aquele lugar fica próximo do lugar que eu não quero visitar nem em sonhos; aquele que não é desagradável por existir, mas por ter existido no passado que eu deveria esquecer. – Quero dizer... Não sei o que esperar, pode ser que ele nem esteja lá, mas...

– Espera. – seguro o seu braço, mirando um olhar sério sobre Sam. – Ele voltou?

– Hã...

– Samira.

– Ele voltou. Faz umas duas semanas. – Meu coração despenca sobre a calçada, minha garganta seca, o mundo se torna um furacão de emoções conflitantes. Ele está aqui. Ele não deveria estar aqui. – Nós o vimos umas... Três vezes? – Ela encara Apolo, que acena positivamente.

Quero perguntar tudo. Quero saber como ele está, como parece estar. Quero saber se ele ainda frequenta a praça, se ainda tem o violão, quero saber sobre suas expressões, sobre seus olhares. Quero saber se o sorriso dele ainda existe, se meus amigos falaram com ele, se ele perguntou sobre mim.

Mas não posso fazer isso quando estou tentando superar. Quero esquecer que ele fez parte de mim, que me entregou seu sorriso e um pedaço da sua felicidade e eu arruinei tudo. Preciso ser forte e determinada como a minha irmã diz que sou, e fingir que a volta dele não me quebra como está quebrando.

– Terra para Lílian.

Pisco e volto a mim. Apolo e Samira estão me encarnado, chacoalhando as mãos em frente ao meu rosto.

– Ela realmente voltou. – Apolo sorri.

– Senti falta desses seus devaneios.

Abraço os dois com força. Samira reage imediatamente, mas Apolo treme, sem jeito. Fecho os olhos e me lembro da Mônica, do seu sorriso confortador, dos meus pais, com sua presença acalentadora. Lembro dos trigêmeos e das gargalhadas alegres que eles me dedicaram pouco antes de eu embarcar de volta pra cá. Lembro do Téo com o seu abraço de urso me dizendo o quanto estava orgulhoso de mim. Um passo de cada vez e você vai perceber que a Lílian de antes é a mesma de agora.

Nós vamos até o supermercado. Meu coração retumba mais e mais forte conforme a esquina se aproxima, e as luzes da praça ficam mais evidentes. Tem um aglomerado de pessoas nela, e eu sei o que isso significa.

Eu conheço esse trajeto como a palma da minha mão. Sei exatamente quais falhas a calçada tem, quantos quadrados de pedra ela possui. Sei que o meio-fio enche de água quando chove, e você pode tomar uma esguichada dos veículos apressadinhos. Sei que os bancos da praça são de madeira velha e que os canteiros de flores costumam atrair muitas abelhas durante a primavera. Sei que, uma vez, um rapaz de olhar marcante tocou uma música sobre olhos azuis e roubou o coração de uma garota apressada no mesmo instante.

Samira puxa algum assunto desconexo, contando sobre um incidente ocorrido em seu apartamento. Eu me distraio, especialmente quando ela comenta a cena em que o Apolo encontrou a antiga colega da Sam transando com o namorado. Considerando que Apolo não gosta nem de ouvir falar de sexo, fico com pena e o abraço em solidariedade. Ele se mostra constrangido com a lembrança, exaltando a sua indignação pela falta de decoro e de noção pela moça ter deixado a porta destrancada. Às vezes ele confunde os cômodos no apartamento da Sam, e ter ido até lá pensando que era o banheiro gerou todo um trauma emocional.

Apolo sugere que atravessemos a rua quando a praça fica próxima demais, e aceito sua sugestão. Não desvio o olhar para as pessoas ao redor dos bancos de madeira; sei que um deles está ocupado porque, apesar dos burburinhos, escuto o arranhar das cordas de um violão. Quero espiar, mas me controlo. Não posso fazer isso agora, não depois de um sermão emocional. Preciso ser a Lílian confiante, determinada e focada.

Essa Lílian só dura alguns minutos, no entanto. Depois que saímos do supermercado, com Apolo e Samira discutindo sobre as compras em excesso, eu estaco na calçada. Meus amigos se enrolam para devolver o carrinho ao guardador, e eu perco meu olhar no rapaz do outro lado da rua.

Gregório está com os braços apoiados no capô de um carro, acompanhado de duas figuras familiares. Mila, sua melhor amiga e irmã de criação, e a namorada dela, Patrícia, não me dirigem a atenção porque discutem sobre alguma coisa, e o Gregório as ignora porque me observa; um misto de surpresa e resolução cobre seu rosto. Ele está diferente, e ao mesmo tempo igual. Os cabelos estão mais curtos, a barba está feita. Seus olhos claros são um poço de sentimentos infinitos e eu quero tudo aquilo de volta, todas as emoções de uma vez só.

O pior de tudo, a coisa que mais me desmorona, é que não encontro rancor. Não encontro raiva, frustração ou decepção. A expressão do Gregório é limpa e sincera, e ele parece tranquilo. Vejo seus lábios apertados, as sobrancelhas levemente franzidas, mas nada extraordinário, nada que grite sobre a nossa separação. Sei que minha expressão é muito mais perdida, sei que fraquejo muito mais; isso porque fui eu quem causou a ruptura.

Mas eu esperava algo mais emotivo da parte dele, uma emoção mais fácil de lidar. Aceitação não; não quero isso.

– Lílian. – Apolo toca o meu ombro e segue o meu olhar e eu engulo em seco e desvio a atenção. – Vamos pra casa.


Aquele com o garoto melancólico

 

ANTES


Existe um ditado sobre festas universitárias, mas eu não consigo me lembrar dele. Qualquer coisa envolvendo música e bebida demais e que isso pode gerar amnésia? Bem, hoje teve muito de ambas as coisas.

Apolo não veio porque ele nunca vem. Samira está na pista de dança, que costumava ser a sala de estar de uma das estudantes de Medicina. E eu estou caminhando em direção ao jardim, sentindo o chão girar debaixo do meu corpo, estranhando o fato de não ter controle sobre minhas pernas. Andar costumava ser mais fácil.

O quintal da casa onde a festa acontece tem um parquinho infantil, e tem alguém deitado no gira-gira. Pensar no gira-gira faz a minha visão rodopiar, e soluço com a ânsia de vômito. Maldita seja a Samira e a sua insistência para eu provar aquela bebida azul. Ou era verde?

Caminho em direção ao solitário do gira-gira e pairo sobre ele no exato momento em que seus pés tocam o chão. Deitado sobre o brinquedo, o garoto tira o braço de cima dos olhos, me estendendo um olhar desconfiado. São os olhos mais lindos que eu já vi. Não sei se a cor é verdadeira porque está escuro e eu estou pra lá de Bagdá, mas são intensos. Verdes como a grama do jardim de casa, pontilhados por gotas de ouro, contornados por um tom mais escuro. São melancólicos, também. O tipo de olhar mais solitário do mundo.

As sobrancelhas do estranho se franzem. Primeiro na desconfiança do seu olhar, então em uma espécie de reconhecimento. As linhas do seu rosto se suavizam, e a boca fina, antes estreitada em uma careta desgostosa, forma o princípio de um sorriso.

– Ah, a moça apressada. – Ele diz, e volta a cobrir o rosto com o braço.

Espera. O quê?

– Espera. O quê? – Endireito a postura para inquiri-lo sobre aquilo, e de repente o chão desaparece sob meus pés. Quando dou por mim de novo, estou sentada na grama com a bunda dolorida pelo tombo. O estranho voltou a me olhar, e desta vez parece divertido com o que vê. Isso; deleite-se com a minha embriaguez momentânea.

– Quer ajuda?

– Não. – Faço uma careta. Não bebi tanto a ponto de não me lembrar como se fica de pé. Não é possível que aquele líquido verde fosse tão destrutivo assim. Ou era laranja?

Suspiro resignada, estendendo os braços à minha frente, como meus irmãos pequenos fazem quando caem e não conseguem se levantar.

Bom, o fato de eu lembrar que tenho irmãos pequenos já é um bônus para a minha perda de memória.

O estranho do gira-gira balança a cabeça e se senta, para então ficar de pé. Ele segura meus pulsos com gentileza e me puxa com força, esperando que eu me firme para então me soltar. Ele é um pouco mais alto que eu, mas seus ombros encurvados diminuem um pouco a distância. Suas mãos estão mais geladas que as minhas, o que é explicado pelo fato de ele estar deitado aqui no sereno.

– Por que não está na festa?

– Eu não fui convidado. – Ele dá de ombros, voltando a se sentar. Sento-me ao seu lado. Mais alguns segundos de pé e eu voltaria ao chão.

Ele não deve ter mais do que vinte e cinco anos. Além dos olhos verdes, tem barba rala e um rosto bem... Interessante. Muito bonito, mesmo para os meus parâmetros desnorteados. O corte de cabelo é uma bagunça, e as mechas castanhas, que terminam na altura do queixo, estão meio molhadas nas pontas.

Ele repele os fios empurrando-os para trás, e noto um conjunto de pulseiras artesanais enfeitando seu pulso, além do princípio de uma tatuagem no dorso da sua mão.

– O que quis dizer com “a moça apressada”? – Pergunto novamente. Ele apoia os braços nas pernas, inclinando o corpo para frente, e então volta o rosto para mim.

Suas feições são harmoniosas, delicadas e extremamente frágeis. Não dá pra explicar se é efeito do álcool ou da minha desinibição, mas sofro um ímpeto que me faz desejar tocá-lo.

– Eu te vi outro dia. – faço uma careta pensativa, me esforçando para me lembrar do rosto dele. Pode soar um clichê idiota, mas eu me lembraria de ter visto um cara desses. – Você passou correndo pela praça, parecia com pressa.

Eu corro muito, então a fala dele não é exatamente específica. Minhas corridas matinais incluem várias praças, e não consigo me recordar do rosto dele em nenhuma específica.

Ele dá de ombros, desviando o olhar do meu.

– Não, espera! Eu nunca presto atenção ao meu redor quando estou correndo. – não sei por que digo isso. O álcool deve estar mexendo com o meu emocional. – Meu nome é Lílian. – estendo a mão e um sorriso. Os olhos verdejantes do estranho me encaram abertamente, mas não me sinto amedrontada por eles. Mais tentada a abraçá-lo, talvez. – Esse é o momento em que você diz seu nome...

– Gregório. – Olha para a minha mão e para o meu rosto seguidamente. Acho que ele não vai me cumprimentar e que seu nome foi o máximo da noite, mas então seus dedos frios tocam os meus, e meu sorriso se amplia pela consideração. A pele dele é tão pálida quanto a minha, com veias mais evidentes. Meu olhar desvia da sua mão para o seu rosto e então para o pescoço, onde um colar de contas pode ser avistado sob a gola da camisa.

Gregório solta a minha mão e endireita a postura.

– Então... Você veio de penetra na festa. – Cantarolo.

– É. – ele me encara de soslaio. – Mas me arrependi. Não tem muito que fazer por aqui.

– Isso é porque você nem entrou na festa.

– Não gosto de festas.

– Então por que veio?

– Você nunca para de falar? – Ele resmunga. Ergo os ombros.

– Não quando estou bêbada.

Gregório sorri. É tão rápido que eu quase não consigo ver, mas os cantos da sua boca se curvam e ele baixa o rosto, deixando que o cabelo bagunçado cubra as feições. É tão lindo que me faz querer abraçá-lo – de novo.

Lembrete mental: nunca mais tomar nada que a Samira colocar em um copo para mim. Especialmente bebidas de cor laranja. Ou era rosa?

Gregório fica de pé de repente, coloca as mãos nos bolsos da calça jeans, que é velha e tem rasgos nos joelhos, e me encara por cima do ombro.

– Eu preciso ir.

– Mas você nem foi pra lá. – Aponto para a festa, onde um batidão começa a tocar. Faço uma careta e sou acompanhada por ele.

– Talvez outro dia.

– Talvez. – Repito, mais porque o álcool me deixa desnorteada do que por ser necessário para o diálogo esquisito que estamos travando. Gregório dá dois passos pelo jardim e então vira o corpo completamente na minha direção.

– Você vai ficar bem aí? Sozinha?

Franzo as sobrancelhas.

– Só estou esperando pra ver se a bebida vai me fazer vomitar. – apoio o queixo sobre os joelhos depois de abraçar minhas pernas, fazendo a minha melhor expressão resignada. Gregório continua parado, indeciso. A consideração dele me faz sorrir. – C’est la vie.

Por algum motivo, quero que ele fique. Quero que o estranho que acabei de conhecer se torne menos estranho, que o álcool vá embora para que minha vista embaçada me deixe vê-lo melhor. Quero que o invasor da festa sente ao meu lado de novo e que converse comigo, ou que me deixe falar sozinha. Quero ver os seus olhos de perto de novo e quero encontrá-lo nas minhas lembranças.

Gregório hesita mais alguns instantes, e eu me sinto esperançosa.

Então Samira aparece na varanda, mais louca que o Batman, ergue as mãos e grita meu nome bem alto.

– Melhoras para a sua ressaca. – Gregório aperta os lábios num sorriso que acaba rápido demais. Eu aceno, mas ele já se foi.


Aquele com a melodia

 

ANTES


Minhas corridas começam ao amanhecer. Não gosto de acordar cedo, mas gosto de me exercitar. Gosto tanto que, às vezes, desperto antes do celular apitar. Hoje não é diferente; a república está silenciosa, então faço meu trajeto até o banheiro na ponta dos pés. Troco o pijama por uma camiseta de mangas curtas, calça legging preta e calço um par de tênis de corrida – eles já estão velhos e gastos, o que significa que estão sendo bem usados.

Prendo meus cabelos em um rabo-de-cavalo. Os fios compridos pesam sobre o elástico e me lembram de que eu pretendia cortá-los antes das aulas começarem; já estamos na segunda semana de fevereiro, veja bem. Minha memória não funciona muito bem pra coisas assim.

Exercícios matinais me deixam alerta, e acontecem no único momento de paz e quietude do meu dia. A única hora em que eu posso correr por aí sozinha, e deixar meus pensamentos focados no nada.

Saio da república e encontro uma manhã abafada, com nuvens pesadas no céu.

Passo pelo bairro onde está o prédio de Engenharia cronometrando o tempo da corrida. Dez minutos e eu já cheguei à esquina da padaria Jardim Azul, onde vejo movimento por trás da janela esfumaçada. O padeiro daqui faz o melhor misto quente de todo o mundo, e fico tentada a fazer a volta quando acabar a corrida. Eu estou me exercitando porque gosto de correr, não porque quero emagrecer.

Alguns corredores passam por mim, entretidos com seus fones de ouvido. A quietude da cidade é mais interessante. Poucas buzinas de carros nas ruas, quase nenhuma conversa nas calçadas. Comércios fechados, casas apagadas, tudo tão silencioso.

Gosto de barulho. Gosto de ouvir pessoas rindo, da sensação de estar em meio a um grupo de conhecidos, até mesmo de desconhecidos, e de poder conversar com todos eles. Existe toda uma energia agradável quando se está perto de outras pessoas, uma sensação eletrizante. Mas também existe qualquer coisa relaxante em correr por aí com nada além do seu próprio tempo e dos seus próprios pensamentos, sem estar apressada e nem estressada com tudo.

Meu relógio marca meia hora de corrida quando atravesso uma praça. Não costumo prestar atenção em detalhes dos meus arredores quando estou me exercitando. Fico atenta a qualquer obstáculo à minha frente, mas tudo que passa por mim costuma ser um borrão. O som de uma música, no entanto, me faz diminuir os passos até parar.

Moça apressada.

É muito cedo para alguém estar aqui, sentado no banco da praça, tocando um violão. Mas ainda assim eu o vejo, acompanhado por uma garota loura e um rapaz negro, e alguma coisa descompassa o meu coração. Estou longe o suficiente para não ser notada, mas perto o bastante para notá-lo.

A gola em V da camiseta preta expõe um colar de contas; as mangas estão arregaçadas até os cotovelos, expondo um pouco mais das tatuagens que eu me lembro de ter visto na festa. Seus dedos trilham as cordas do violão, que tem dois arranhões sobre a superfície de madeira. Tem vários anéis em suas mãos, além das pulseiras coloridas em seus pulsos. Um leve sorriso desenha seus lábios enquanto ele dedilha uma música desconhecida, e o que antes era um descompasso dentro de mim vira alguma coisa descontrolada.

Volto a correr, deixando a praça para trás. Não tem motivo algum para eu ter parado para observar o Gregório, além do fato de ele ser tão lindo. E desconhecido.

Um completo desconhecido.

Balanço a cabeça só para perceber que dei a volta no quarteirão e estou correndo na direção da praça novamente.

Consigo ouvir a voz dele de onde estou. A canção é em inglês, o timbre é grave e rouco e incrível e eu paro há alguns metros, cruzando os braços pelo desconforto repentino, porque quero assistir. Tudo bem, eu voltei até aqui depois de ter prosseguido a minha corrida, então não tem nada de errado em assistir, certo? É só isso e depois eu volto para casa.

Gregório canta sobre olhos azuis e um amor perdido e eu estou tão distraída com a maneira com que seu rosto se suaviza durante a melodia que não vejo um cara vindo na minha direção. Num instante estou de pé e no outro estou estatelada no chão de cimento, tão desnorteada pelo tombo que nem sinto a dor do machucado.

– Caramba, desculpa! – o universitário que me derrubou tira os fones de ouvido, no rosto uma expressão de choque absoluto. Quase igual à minha. – Você tá bem? Quer que eu chame alguém? – Pisco os olhos. Por sorte, não bati com a cabeça e nem me machuquei tanto a ponto de não conseguir andar. Meus joelhos e palmas das mãos foram os locais de impacto, e me sento no chão para observar a pele ralada.

Que bela maneira de começar a semana.

– Tá tudo bem. – ergo um sorriso sem graça. Ele parece desesperado por eu não conseguir me levantar. – Sério, eu estou bem. Só tá ardendo um pouquinho, mas vai passar. – garanto, ficando de pé para mostrar como eu me recuperei magicamente. – Qual o seu nome?

– Breno.

– Então, Breno, tô de boas. Pode confiar. – Limpo as mãos na calça legging só para me arrepender em seguida. A dor faz lágrimas embaçarem minha vista.

– Ah, meu Deus, você vai chorar! Eu devia ter olhado pra onde estava indo! Me desculpe, sério, eu posso te carregar até o seu...

– Eu tô bem! – me desespero. – De verdade, olha. Só ralei as mãos.

– Isso que dá ter tanta pressa. – Viro na direção da voz e prendo um sorriso. Gregório está parado próximo da gente, com as mãos nos bolsos da calça jeans, e observa o coitado do Breno com curiosidade. Quando estava bêbada, não tinha reparado em como os seus olhos eram verdes e impactantes. Ou até tinha, mas me esqueci disso por causa da bebida.

– Oi. – Cumprimento, e sua atenção volta pra mim.

– Gata, fala comigo. – franzo as sobrancelhas com a maneira com que o Breno me chama. – Quer que eu ligue pra uma ambulância? – Reviro um olhar abismado.

– Pode ir. Eu juro que estou ok. Vou passar um mertiolate quando chegar em casa, sem ressentimentos. – Ergo o polegar e o meu melhor sorriso, e após mais alguns segundos de hesitação, o Breno vai embora. Ele corre sem olhar para trás, tão rápido quanto o diabo fugindo da cruz.

Gregório continua parado, me olhando. E em qualquer outra situação isso seria bizarro, mas com ele parece... Normal. Seus olhos são sinceros e o modo como ele coça o queixo demonstra um pouco de desconforto.

– Oi. – digo de novo. – Lembra de mim?

– Eu ia perguntar a mesma coisa.

– Eu não tinha bebido tanto assim. – meus joelhos ardem, as palmas das minhas mãos estão em carne viva, mas de alguma maneira o olhar dele é distrativo. – Eu não sabia que essa era a sua praça.

– Não tenho uma praça. – comenta com bom humor. – Só gosto desta em particular.

– Porque muitas pessoas distraídas se acidentam aqui e você pode rir delas?

Os lábios dele se curvam rapidamente. É o tipo de sorriso raro que poderia fazer um dia nublado como esse se iluminar.

– Você foi a primeira.

– Eu estava distraída. – Resmungo, saltitando para sentar no banco mais próximo. Gregório me acompanha e até estende a mão para ajudar, mas eu recuso. Tirando a ardência nas mãos e nos joelhos e a certeza de que vou ter que usar short mais tarde, porque calças e pele ralada não combinam, estou bem.

Gregório fica de pé à minha frente, com as mãos nos bolsos. Qualquer coisa em sua postura dita o seu desconforto, mais evidente do que antes. Gostaria de saber se ele demonstra isso porque não queria estar aqui ou se é involuntário.

– Seus amigos foram embora? – Pergunto. Ele franze as sobrancelhas.

– Que amigos?

– As duas pessoas sentadas com você minutos atrás. – ele continua com a expressão confusa. – Vai me dizer que eu estou vendo gente morta? – Gregório aperta os lábios e abaixa o rosto, escondendo o riso rápido.

– Não conheço os dois, mas eles gostaram do que eu estava tocando.

– Ah. – ele parecia tão à vontade com os dois. – Você escreveu aquela música?

– Não. É de uma das minhas bandas favoritas. – Gregório se balança sobre os próprios pés. Acompanho o gesto abertamente, erguendo o olhar para o rosto envergonhado dele alguns instantes depois.

Mônica costuma dizer que eu interpreto bem as pessoas, mas, com esse cara, é difícil chegar a uma conclusão. O modo como Gregório se porta, como sustenta o olhar sobre o meu, ainda que sua atenção pareça alheia... Ele é esquisito. Mas é um esquisito bom, do tipo que traz comichões aos meus nervos.

Gregório passa uma das mãos pelo cabelo bagunçado, afastando os fios de seu rosto. Meu sorriso é sincero e aberto, e alguma surpresa cruza seu olhar quando digo:

– Achei ótima, se quer saber. Claro que eu preferia ter aproveitado mais dela, mas o chão não quis dividir minha atenção com você. – resmungo ao fim, estendendo minhas mãos machucadas em um gesto de conformismo. – Você vem sempre aqui?

Gregório arqueia uma das sobrancelhas, e então me surpreende com uma gargalhada. É discreta, e ele aperta os lábios para esconder, mas não abaixa o rosto e nem desvia o olhar do meu. Acabo rindo junto, mais pelo descontrole do momento do que por ter achado graça; argh, que vergonhoso.

– Desculpa. Foi sem querer.

– Eu venho aqui toda manhã. – responde com sutileza, me pegando desprevenida de novo. Pisco repetidas vezes, observando seus olhos verdes migrarem para o banco em que ele estava sentado. – Gosto da quietude dessa praça. E nunca tem ninguém nesse horário.

– Você estuda por aqui?

– Estudo no Vagalume. – me lembro do prédio cheio de cursos voltados para a área de humanas. – Terceiro semestre de Música. E você?

– Cheguei faz pouco tempo. Engenharia Civil. – ele faz uma careta de dor e eu reviro os olhos. – Não é tão ruim assim.

– Se você gosta de números e de dor de cabeça.

– A dor de cabeça é opcional. E geralmente vem depois das festas. – retruco vitoriosa, recebendo um aceno bem humorado. Gregório olha por cima do ombro, parecendo apressado, e me pergunto se toda aquela conversa não está acontecendo só porque eu não sei parar de falar. As pessoas que convivem comigo se acostumam com essa minha qualidade, mas outras nem tanto. – Acho que é melhor eu voltar. O mertiolate me espera.

– Há alguns anos você não diria essa frase com tanta calma.

– Nem me fale. – estreito os olhos. – Minha infância está cheia de lembranças de tombos e de eu correndo e gritando enquanto meus pais tentavam me sentar pra limpar os machucados. Bons tempos.

Outro sorriso ilumina seu rosto, o que me leva a encará-lo por tempo demais. Suas feições estão relaxadas, e seu olhar pacífico é tão confortador que me faz esquecer qual era o meu propósito segundos atrás. Gregório pode ser um desconhecido, mas seu olhar é familiar. Agradável a ponto de parecer com o de alguém que sempre esteve ao meu lado.

Ele desvia a atenção primeiro, voltando a olhar para a calçada atrás de nós.

– Nos vemos depois? – Não entendo porque pergunto isso.

Gregório me encara. Os contornos escuros dos seus olhos criam harmonia com a cor vibrante das íris. Consigo ver pontinhos castanhos em meio à cor predominante, e não tinha percebido que estava perto dele a ponto de conseguir observar tanta coisa.

– Quer que eu te acompanhe até a sua casa?

Dou uma olhada nas minhas legging, arruinadas pelo tombo, e em minhas mãos, também arruinadas pelo tombo.

– Se não se importar em passar pela padaria comigo. – Dou de ombros, lanceando um sorriso divertido. Ele parece curioso.

– Tem mertiolate lá?

– Vou comprar um misto quente.

Começo a caminhar quando respondo a sua pergunta, e sua expressão migra de curiosidade para surpresa. Gosto do jeito como suas sobrancelhas grossas se franzem em resposta ao seu olhar e a maneira adorável com que seus lábios se apertam antes que ele se pronuncie.

– Às seis e quinze da manhã?

– Seis e dezessete. – Corrijo, mirando o meu relógio. De repente me lembro de que não cheguei a completar uma hora de corrida pretendida naquela manhã, mas nada do pretendido está acontecendo comigo desde que parei para ouvir a canção do Gregório. Não que isso seja ruim. Definitivamente não é ruim. – Nunca é cedo demais para um bom misto quente.

Ele começa a caminhar ao meu lado, seus passos certos e menos apressados, o violão pendurado em seu ombro por uma alça de tecido. Gregório é alguns centímetros mais alto que eu, uns dez ou quinze provavelmente. Diferente da Mônica e do Tampa, puxei o lado do papai e fiquei um pouco mais alta que o resto da família, alcançando os meus gloriosos 1,65 aos dezessete anos. Foi o máximo que eu consegui. Daí para frente estaquei nessa altura. Mesmo com os ombros encurvados, Gregório precisa abaixar o olhar para encontrar o meu, e há qualquer coisa intimidante e deliciosa na diferença entre nossas alturas.

– Você costuma encarar as pessoas tempo demais assim mesmo ou comigo é diferente? – Gregório pergunta. Aperto os lábios em um bico inconformado e me envergonho pela indiscrição; ela nunca foi um problema até agora.

– Foi mal.

Gregório balança a cabeça, me entregando uma expressão simpática.

– Não foi uma reclamação.

– Pode dizer se ficar incomodado. Não quero causar nenhuma má primeira impressão.

– Uma das minhas primeiras impressões de você foi achar que vomitaria no meu pé. – ele brinca. Samira e aquela bebida colorida ainda me assombravam. – Mas foi boa, se quer saber. – Algo em seu tom de voz me desconcerta. O garoto de sorriso raro me observa com sutileza, nada além de traços amigáveis em seu rosto, e as palavras que estavam em minha cabeça viram geleia de repente.

– Obrigada por levantar o meu astral a respeito daquela festa. – Estremeço.

– Foi ruim?

– Bom, depois que você foi embora, eu realmente vomitei. E aí capotei no banheiro do segundo andar. – aperto os olhos com as lembranças da dor nas costas que tive ao acordar na manhã seguinte. – Foi horrível.

– Mas você se divertiu?

– É. – dou de ombros. – Em teoria, sim.

– Então valeu a pena.

Dedico um sorriso agradecido, mas Gregório desvia a atenção quando eu o encaro. Ele continua com as mãos nos bolsos e aquela aura desconexa de quem não está se sentindo bem com uma situação.

– Você escreve músicas também?

A pergunta sai de repente. Não quero que ele fique desconfortável. Por algum motivo, não quero que ele vá embora tão cedo.

– De vez em quando, mais por pressão da minha irmã do que por vontade. – Gregório pondera. – O pessoal que assiste parece gostar desse festival eclético.

– E você segue algum ritmo específico? – Ok, eu não sou a maior especialista em música, mas estou tentando ser legal. Percebo, pelo olhar de soslaio que ele me lança, que minha pergunta não foi das mais bem orquestradas.

– Gosto bastante de indie. – Gregório ergue os ombros, e seu tom de voz expõe um pouco de timidez. – E você? Quais seus preferidos?

– Eu não sei muito sobre música. Conheço as normais.

Sua careta mistura incredulidade à diversão. Ele fica sem fala por alguns instantes, depois cai na gargalhada.

A melodia da sua canção não é nada se comparada a da sua risada. O som é doce e natural, uma extensão do sorriso. Eu queria ter o talento da Mônica de capturar momentos importantes com um clique de fotografia, porque o riso desse rapaz desconhecido é inesquecível.

– O que é uma música normal? – Estou tão surpresa por vê-lo sorrindo enquanto pergunta aquilo que me sinto meio aturdida.

– Hã... Sabe? Legião Urbana. Barão Vermelho. Os Stones.

– E anormal?

– Bom, meu pai acha que o Restart criou uma mancha irreparável sobre a história da música, e eu meio que concordo com ele.

Gregório para de repente, e eu paro junto, o que faz com que meu ombro esbarre no seu e a distância curta entre nossos corpos se torne um pouco menor. Os olhos dele trilham o meu rosto rápida e intensamente, e engulo em seco quando os vejo descer em direção à minha boca.

Gregório se afasta e acena para alguma coisa atrás de mim. Eu noto que a padaria, o motivo pelo qual estamos andando juntos, está aberta.

– Você vem comigo?

Ele dá de ombros e me segue.

O espaço não é grande, mas é confortável. Jardim Azul tem as paredes azuis, o chão azul e a bancada verde limão. Seria horrível se não fosse tão familiar.

O atendente é o neto do dono, um garoto de seus quinze anos que sempre fica vermelho quando eu o cumprimento. Um mês e alguns dias não foram o bastante para ele se acostumar com a minha presença aqui; sorrio e aceno em sua direção e o garoto desaparece atrás do caixa.

– Lílian! – a voz altiva do dono da padaria me sobressalta. Umberto vem de trás da bancada com o seu barrigão e seu sorriso de avô, e me dá um abraço como sempre faz desde que eu salvei o seu gato de cair de uma árvore, na semana em que me mudei para cá. As marcas dos arranhões do bicho estão em mim até hoje. – Como vai a minha turista favorita? – ele me apelidou assim e não há santo que tire a imagem de turista de mim; talvez os sinais sejam o fato de eu vir de uma cidade tão pequena e eu me sentir deslocada quanto a atravessar a rua com um semáforo controlando o trânsito. – Quem é? – Umberto gesticula para a porta. Eu sorrio na direção do Gregório, que meneia a cabeça de volta.

– Um cara que eu achei na praça. – Brinco.

– Ah claro. – Umberto não parece se importar com a estranheza da resposta. – Vai querer o de sempre, imagino?

– Por favor. – Aperto a mão sobre a barriga, faminta. Ele faz o melhor misto quente que existe no mundo, e que minha mãe não me ouça falando isso.

Eu venho tanto aqui que já abri até uma conta, e assino a cartela de pedidos marcados quando o neto dele me estende através do vidro do caixa. Sorrio para o garoto, tentando ser simpática, mas ele fica ainda mais vermelho que o meu cabelo e some debaixo do tapume verde limão. Seu Umberto volta minutos depois, me entrega a embalagem com o lanche e deseja uma boa semana para mim e para o garoto que eu achei na praça.

Quando eu chego à calçada, com Gregório em meu encalço, é que percebo a mancada.

– Ai, cacete, eu me esqueci de te oferecer um lanche! – exalto. Mamãe sempre disse que a coisa mais educada a se fazer por alguém que acabou de conhecer é oferecer comida; é a melhor maneira de conquistar a simpatia de uma pessoa. – Desculpa, sério. Você quer? Eu volto lá pra buscar.

– Lílian, tudo bem. – é a primeira vez que ele diz o meu nome, e o fato de a sua voz ser tão suave e baixa me tira um pouco da concentração. – Eu não estou com fome.

– Tem certeza? Todo mundo está sempre com fome.

Gregório sorri.

– Não estou, de verdade.

– Está recusando o melhor misto quente do mundo.

– Eu prometo que volto para experimentar. – Ouço alguma coisa vibrando e ele para o que estava dizendo para tirar o celular do bolso. Desvio a atenção educadamente, ainda que minha sempre presente curiosidade me faça ouvi-lo dizer coisas como “eu sei” e “falei que eu não poderia ir aí” e finalmente um “não” muito seco. Quando ele desliga, tudo de sereno em sua expressão é derrubado por seriedade.

– Tudo bem? – Pergunto. Hesito. E então assumo que quero saber se está tudo bem.

– Tudo. – a voz dele mente e seu olhar também. Mas eu sou só a moça apressada que ele acabou de conhecer, e ele é só o garoto com uma voz incrível que cruzou meu caminho. – Olha, eu tenho que ir. Tudo bem você voltar pra casa sozinha?

– De boa. – faço um gesto despreocupado. – Nos vemos depois? – Gregório já se afastou um pouco, o olhar preocupado com qualquer coisa que eu não entendo e possivelmente não vou entender. Seu rosto é tão lindo e sombrio, e eu queria tanto que ele ficasse um pouco mais.

– Até mais, Lílian.


Aquele com o anfiteatro

 

AGORA


Ligo a Playlist Aleatória e deixo que a primeira música estoure nos fones de ouvido. A voz marcante da Adele é um incentivo pra me acordar, e, mesmo baqueada por ter ficado até as duas da manhã conversando com Apolo e Samira, não me arrependo.

A última semana tem sido assim, estranha e familiar, com uma rotina nova extremamente parecida com a antiga. A sensação de ter perdido muito tempo ficando o semestre passado em casa é muito forte. Samira foi até minha cidade no aniversário da Mônica, e também conversamos por Whatsapp, mas é diferente. É diferente saber que ela estará ao meu lado dia e noite daqui pra frente, que eu vou encontrá-la na cozinha nos cafés da manhã, almoços e nos jantares em que conseguirmos fazer alguma coisa além de miojo cozido. Samira é uma das melhores coisas que me aconteceu desde que vim para a faculdade, e estou sorrindo ao pensar que, na construção dessa nova rotina, ela ainda será parte importante dela.

Meu relógio marca oito horas, o que significa que já tem trânsito na rua, pessoas apressadas nas calçadas e universitários correndo para os seus respectivos prédios. A maioria dos cursos no prédio Vagalume acontece de dia, por isso o movimento. Não me apresso porque estou com tempo e também porque tudo está caminhando para as aulas normais, sem surpresas como tinta no cabelo e outros trotes autorizados. A professora que leciona Comunicação e Expressão avisou que usaria as primeiras semanas de aula para conversar conosco sobre nossas experiências. Ela se senta no palco, com seu visual excêntrico e seus penteados saídos do universo de Star Wars, e deixa o papo rolar. Só vai começar a trabalhar o conteúdo quando “se sentir conectada com cada um”.

Algumas pessoas do meu curso me cumprimentam, e me apresso pelas escadas da entrada porque preciso entregar as chaves do apartamento para a Samira antes de ir pra aula. Ela saiu mais cedo porque tinha se esquecido de fazer um trabalho, mas vai voltar antes de mim, e nós só temos uma chave já que... Bem, eu sempre perco as reservas.

Samira está na sala de Interpretação, que fica no segundo andar, o que me força a subir mais dois lances de escadas até me encontrar num corredor cheio de gente desconhecida.

Vejo a turma de calouros de Ciências Humanas na sala do projetor e... Ele.

Gregório caminha em minha direção com a mochila pendurada em um ombro. A camiseta branca com as mangas arregaçadas até os cotovelos deixa as tatuagens e as pulseiras coloridas expostas. Uma das suas mãos está escondida no bolso da calça jeans, toda esfarrapada com os rasgos nos joelhos, e a outra enroscada na alça da mochila. Vejo anéis em quase todos os seus dedos; dedos esguios e delicados, de toque gentil e abrasador. Dedos que trilharam minha pele como os seus lábios também o fizeram; de repente, me esqueço das suas mãos para observar seu rosto, tão familiar e doloroso. Os cabelos castanhos curtos e os seus olhos de um verde intenso e incendiário. Sua expressão, sucinta e pouco aberta, os lábios macios cerrados em uma linha tensa.

Engulo em seco, incapaz de desviar o olhar. Algo em mim me faz querer fugir, mas eu planto meus pés no chão, firmando a atenção sobre ele; sobre todo ele. Gregório desvia o olhar primeiro, apressando os passos até a escada. A rejeição desliza como gelo por minha espinha, mas acompanho seu caminhar, a curva de seus ombros estreitos, a familiaridade na maneira com que ele se move, até que o garoto que eu amo me deixa para trás.

Respiro fundo, consciente de que o corredor ainda está cheio de gente e de que ninguém pareceu notar a pausa no tempo. Gregório veio e se foi e só eu percebi isso; apresso-me até a sala de Interpretação e vejo Samira de pé sobre uma das cadeiras, recitando alguma coisa da peça que eles tiveram que escrever. Aceno para ela e ela mantém a personagem enquanto desce e corre até mim para pegar a chave.

– Ó, belíssima senhora minha dos cabelos cor de fogo. – seus cabelos estão presos num coque elaborado, tem um bigode torto sob o seu nariz e ela vestiu um paletó para finalizar a fantasia de homem. – Não gostarias de ficar para tomar uma xícara de café?

Quero perguntar se o trabalho foi inspirado em Chaves, mas me seguro. Apesar da situação engraçada, a comichão em meus nervos pelo encontro com Gregório transparece em meu rosto. Samira desfaz o olhar de atriz para voltar a ser minha melhor amiga.

– Tudo bem, Lí? – Ela pergunta assim que entrego a chave, no rosto uma expressão preocupada. O professor, atrás dela, anota alguma coisa na prancheta de avaliação.

– Ó sim, meu grandiosíssimo e elegante senhor. – respondo em voz alta, dando uma piscadela para ela. – Tudo muito agradável, obrigada pela pergunta. Mas devo partir agora.

Faço um sinal com a mão, avisando que conversaremos mais tarde, e ela acena antes de voltar ao personagem.

A ida até o anfiteatro se torna um borrão. Não sei se faço isso rápido demais, ou se minha mente ainda está focada no reencontro a ponto de distorcer tudo o que se passa ao meu redor. Só sei que num minuto estou no corredor e um pouco depois estou descendo as escadas de uma das melhores construções aqui da cidade.

O anfiteatro do prédio Vagalume é enorme, tem cheiro de madeira antiga e limão e dezenas de fileiras de bancos estofados em volta do palco. Alguns colegas da minha turma já chegaram e tomaram os assentos da primeira fileira, e encontro a professora Helena, ou Lena, como prefere, sentada na beira do palco. Ela está vestindo algo do departamento de figurino, como em toda aula. Um vestido florido com um caimento justo ao seu corpo curvilíneo. A saia termina um pouco acima dos calcanhares, e ela pareceria bizarra se não fosse tão característico dela ficar linda em situações esquisitas. Os cabelos presos em um penteado à lá Padmé contrastam com o rosto limpo de maquiagem.

– Lílian! – me surpreendo ao ser chamada. – Vem aqui pra eu contar a novidade!

Desconfiada, me aproximo do palco.

– Já contei pra todo mundo.

– E fica repetindo pra todo mundo que chega. – Um engraçadinho comenta.

– Fico mesmo. – Lena sorri pouco abalada pelo tom dele. – O reitor escolheu essa turma pra apresentação da Festa de Boas-Vindas.

– Apresentação?

– Exatas. – O engraçadinho cantarola. Lanço um olhar enfezado em sua direção; acho que o nome dele é Gustavo. Sua missão na vida é fazer comentários chatos durante todas as aulas. Meu apelido virou Exatas depois que descobriram que eu já fazia parte deste ambiente estudantil, só que no campus de Engenharia.

– Todo ano, uma turma de Artes Cênicas fica responsável por uma apresentação curtinha no salão dos espelhos. É uma coisa bem solta e divertida, você pode ajudar na produção se não quiser se arriscar na interpretação tão cedo. – arqueio as sobrancelhas. – O tema que vamos usar neste semestre é de Sonhos de uma Noite de Verão porque eu amo a Titânia, então já vou começar designando essa peça para vocês estudarem e usarem alguns artifícios na apresentação da festa.

– Vamos ter quanto tempo?

– Uns trinta minutos, mais ou menos.


?


– Ai que inveja! – Samira exalta. – No primeiro semestre eu tive que ficar vendendo algodão doce vestida de palhaço.

– Eu lembro. – Rio abertamente.

– Você ri porque ficou lá na barraca do beijo. – ela para de repente, arregalando os olhos ao mencionar o assunto proibido. Eu engulo em seco e desvio a atenção para o sanduíche que acaba de ser entregue em minha mesa. – Desculpa.

– Não precisa se desculpar. Eu é que estou sendo idiota. – resmungo. – Já faz muito tempo. Por que ainda sinto a foça em mim? – ela arqueia as sobrancelhas, prestes a responder o óbvio. – Não diga.

– Não vou dizer.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Samira enche o seu X-Tudo com muita mostarda e ketchup, e eu me contento em tentar fazer o cachorro-quente ficar estático na minha mão para abocanhar um pedaço.

– Eu vi o Gregório de novo. – Confesso. Samira engasga com o refrigerante.

– O quê? Quando?

– Hoje, um pouco antes de falar com você.

– Ah, por isso aquela cara de cachorro que caiu da mudança.

– Ei, eu não estava...

– Ele falou com você?

– Não. – bufo um fio da minha franja para longe do rosto, e apoio o queixo na mão para encarar o olhar questionador da Sam. – Ele só passou por mim dramaticamente.

– Ele faz muito isso.

– Samira, você soube dele enquanto eu estava fora? Qualquer coisa?

– Eu juro Lílian, não ouvi nada. Ok que o cara não tem muitos conhecidos, mas ele sumiu mesmo. Só voltou um pouco antes de você. – ela ergue os ombros, prendendo os olhos ao X-Tudo. Algo em sua postura me diz que Samira está escondendo alguma coisa. Ela belisca o lábio inferior com as unhas, colocando ainda mais ketchup no seu lanche já encharcado. – OK. ELE FALOU COMIGO, TÁ BEM?

Eu nunca precisei pressionar a Samira pra ouvir uma confissão. O simples ato de observá-la mentir já desmonta sua determinação em continuar com a mentira.

– Ele falou o que com você?

– Ele me encontrou no campus mais ou menos uma semana antes de você voltar. – Samira se inclina sobre a mesa, como se sussurrasse um segredo. – Eu fiquei chocada. “Gregório?”. Ele não disse nada por um tempo, só me olhando com aquela carinha. Sério, Lílian, como você aguentava ficar olhando pra ele sem abraçá-lo pelo menos umas três vezes? O cara parece um filhote. – meu coração retumba com força com a lembrança dos olhares perdidos de Gregório e de como eu me encontrava neles. – Enfim, ele perguntou se eu estava bem. Eu disse que estava. Perguntei se ele estava bem. Ele deu de ombros.

– SAMIRA!

– TÁ! Ele perguntou de você.

O ar fica rarefeito de repente. Estamos na parte baixa da cidade, mas o oxigênio me aperta e eu não consigo absorvê-lo.

– O que ele queria saber?

– Se você estava bem, se ia voltar. Eu disse que sim e que talvez. – Samira franziu as sobrancelhas. – Foi uma boa resposta?

– Foi. – estou desnorteada demais para responder outra coisa. – Por que ele queria saber?

– Vai ver ele quer acertar as coisas. Pode ter sentido saudade de você e da sua paixão esquisita por filmes de terror. Vai ver ele te quer, se entende o que eu quero dizer. – Ela ergue as sobrancelhas e sorri maliciosamente, e eu poderia rir e esganá-la pela piada boba, mas essa ideia ferve o meu sangue. De raiva ou de desejo, não sei dizer. Gregório costumava ser uma incógnita, até que se tornou inevitável. De repente, ele se tornou passado, e agora se faz presente. O que está acontecendo?

Quando você sabe que ama tanto alguém a ponto de sentir o seu coração partir? Isso acontece antes ou depois de perceber que já pode ser tarde demais?

– Musas. – me sobressalto quando Apolo puxa a cadeira do meu lado. – Desculpe, você estava devaneando e eu atrapalhei o momento?

Apolo está vestindo a camiseta do avesso, de novo. A calça jeans larga está presa no quadril por um cinto, e sua mochila pesa no chão com a quantidade de livros que ele está carregando. Observo sua pele bronzeada, os olhos cor de âmbar e os cachos bagunçados do cabelo castanho e abraço os seus ombros carinhosamente.

– Obrigada por atrapalhar o momento.

Ele franze as sobrancelhas com força.

– Perdi alguma coisa? – Gesticula para Samira em busca de ajuda. Ela sorri abertamente e balança a cabeça.

– Então, você estava falando sobre a apresentação! – Ela puxa, me distraindo e distraindo o Apolo.

– Que apresentação?

– Da festa.

– Que festa?

– Olavo. – Samira revira os olhos. – Em que mundo você vive?

– Neste aqui, até segunda ordem. Ah, ok, a festa de boas-vindas, também conhecida como uma sequência do Carnaval. Você vai se apresentar lá?

– Vou. – suspiro. – Não sei o que vou fazer, mas fiquei com a parte da produção, então vou esperar as ordens da chefia.

– Eu acho que vocês deveriam fazer uma remodelagem na história. Trazer para o mundo moderno. – Samira começa a desenvolver suas ideias mirabolantes, e começo a anotar algumas delas pra passar para quem ficou responsável pela adaptação. Nós nos perdemos em meio às sugestões e até o Apolo se intromete, deixando o seu livro de Elétrica de lado pra nos ajudar com algumas tiradas. A distração é suficiente para nos atrasar em quinze minutos para as respectivas aulas.

Tem alguma coisa irônica a respeito do destino. Ele existe e, não importa o quanto tente, vai atrapalhar a sua vida. Você pode fugir, mas não pode se esconder. Pode achar que as coisas são coincidências, mas na verdade elas só estão ali porque precisam acontecer.

Quando eu e Samira voltamos ao Vagalume, correndo desembestadas, aos risos, diminuo os passos ao notar um pequeno aglomerado de pessoas no começo da escadaria.

Alguém está sentado nos degraus, tocando violão.

Ele fazia isso durante os almoços. Eu sempre podia encontrá-lo nesses degraus, debaixo da sombra de uma das árvores plantada no jardim ao lado.

Eu reconheceria aquela voz mesmo à distância, porque ela foi minha durante vários meses. Aquela voz cantou para mim. O dono dela falou comigo, contou suas histórias e seus medos. Aquela voz fez do meu nome um sussurro rouco que, quando recordado, cobre meus braços de arrepios. O dono dela me amou e partiu o meu coração, assim como eu parti o dele.

Não é justo que ele esteja no caminho agora. Não é justo que eu tenha que vê-lo de novo. Não é justo pensar assim.

Samira segura a minha mão quando começamos a subir os degraus, mas a música já terminou. Algumas pessoas se afastam depois de aplaudir, e eu desvio o olhar no instante em que Gregório olha na minha direção.

Ele está sentado displicentemente, o violão apoiado em uma das pernas. Sob a gola da camiseta, vejo o colar de contas e um cordão a mais. Um cordão de tecido extremamente familiar. Um cordão que, escondido dentro da camiseta, guarda um segredo que eu entreguei para ele. Arrependimento cruza meu peito porque lembro que escondi o que eu ganhei. O segredo que ele me deu está enterrado na minha mala, debaixo de toneladas de livros e de arrependimentos.


Aquele com as boas-vindas

 

ANTES


A Festa de Boas-Vindas – quase uma parte dois do Carnaval que já passou -, acontece no finzinho de fevereiro e é um marco em Rouxinol. Ela vai começar daqui algumas horas, e fui uma das convocadas a ajudar na comissão organizadora. Não tinha entendido como uma aluna de Engenharia poderia contribuir com a arrumação das sacolas de algodão-doce ou na preparação para a barraca do beijo, mas fiquei animada para ajudar e acabei fazendo mais do que deveria. O sentimento era parecido com o da época do aniversário da Lagoa, lá na minha cidade. Essa reunião de pessoas desconhecidas para fazer alguma coisa maior acontecer.

A festa consiste em uma desculpa para termos um sábado livre, onde a cidade praticamente para por causa das boas-vindas; tanto para os calouros quanto para os veteranos.

O parque de Rouxinol recebeu as barracas de doces, salgados, beijos e desafios, e todo o dinheiro arrecadado será doado para uma instituição de caridade daqui da região. A festa não custa nada para a universidade, exceto um sábado inteiro de arrumações, e todas as comidas e montagem de barracas extras fica por conta de doações e do nosso trabalho. O parque de diversões cede seus brinquedos para a arrecadação também.

A animação tem aumentado com o passar dos dias, apesar da carga horária dos estudos já estar me assombrando um pouco, e a expectativa com a chegada do sábado me deixou pilhada na manhã de sexta. Não corri em nenhum desses dias, mais por falta de tempo e disposição do que por falta de vontade, o que significa que não encontrei Gregório desde o meu tombo fenomenal.

Eu o vi rapidamente no passar dos dias, mas não deu pra cumprimentá-lo ou para conversar. Em uma das vezes, ele estava sentado no gramado do prédio Vagalume com um grupo de pessoas, rindo de alguma coisa enquanto escrevia num caderno velho. E minha nossa, o sorriso dele. Tudo bem, eu fiquei admirando o Gregório de longe, mas não tem mal algum em fazer isso. Com a camiseta verde, a postura descansada e os cabelos desgrenhados cobrindo as laterais do rosto, ele estava lindo debaixo daquele dia quente e ensolarado. De longe, observei a tatuagem em seu antebraço, exposto pela manga arregaçada da camiseta. Não consegui identificar o que era, mas achei bonita de qualquer jeito.

Tatuagens sempre foram alvo de meu fascínio, apesar do presente e insuperável medo de agulha. Depois de levar cinco pontos na cabeça por cair da árvore do quintal aos seis anos, o trauma meio que fica para sempre.

Da segunda vez, Gregório passou por mim na Biblioteca Municipal. Eu tinha uma pilha de livros, tanto de matérias que eu precisava estudar quanto de ficções que minha mente exigia para que eu me distraísse, e Gregório estava com o olhar baixo e fones de ouvido ligados ao celular. Não nos esbarramos nem nada do tipo, então não achei educado interromper o seu momento musical só para falar oi. Apesar de querer muito. Aproveitei que ele não olhou para mim para me fingir distraída com os livros, só para o caso de ele olhar quando eu estivesse de costas.

Solto um guincho quando Samira puxa meu cabelo, me trazendo de volta à realidade.

Ela puxou tanto os fios para fazer um rabo-de-cavalo firme que sei que meu couro cabeludo vai estar dormente quando finalmente soltar o cabelo, mas o resultado ficou legal; o penteado deixou minha franja meio solta e o rabo ficou na lateral direita da minha cabeça. Samira fez alguma coisa que conseguiu deixar meu rosto ainda mais pálido, e a única cor em destaque é o vermelhão que a sua marca de beijo deixou na minha bochecha. Aparentemente, todo mundo que vai ser voluntário na barraca do beijo precisa de um desses; é meio que uma marca de guerra.

Coloco os brincos em formato de coração e amarro a faixa cor-de-rosa no meu braço direito; cada faixa tem uma cor e representa determinado tempo de ajuda nas barracas.

Enquanto visto o short jeans e amarro os cadarços do all star, penso em como a Mônica reagiria se eu contasse sobre meu trabalho voluntário de hoje. Ainda não tive tempo de ligar lá para casa desde a sexta-feira retrasada, com toda a correria de começo de semestre e a organização das boas-vindas, mas estou ansiosa para dividir essa experiência com a Mô; já imagino o seu rosto ficando vermelho feito os seus cabelos e a indignação tomando conta do seu olhar. Ela não é muito adepta a contatos físicos extremos, mas sei que vou conseguir histórias engraçadas por causa de hoje.

Todo mundo que vai ajudar foi obrigado a usar uma camiseta com o logo da universidade costurado no peito. Samira sugeriu os penteados altos pra diminuir a insolação; a coitada vai passar três horas do dia com maquiagem de palhaço na cara, vendendo algodão doce. Ela não está tão animada para hoje quanto eu.

A festa começa às 11 horas, mas o trânsito nos obriga a ir caminhando até lá. Combinamos de encontrar o Apolo no meio do caminho, e o avistamos antes que nos veja. Ele está vestido de roqueiro, ou pelo menos tentou, com um colete de couro e calças cheias de rasgos e uma bandana vermelha prendendo os seus cachos para cima da testa. Se ele conseguir sobreviver a esse calor com essa roupa vou considerar um milagre.

Samira o assusta, agarrando-o por trás, e a visão da maquiagem de palhaço dela arranca um gritinho agudo de Apolo. Ele tem pavor a qualquer coisa relacionada a circo, motivo pelo qual não está animado para ir ao parque temático hoje; pelo menos três brinquedos tem ambientação circense.

– Você está especialmente assustadora hoje, Sam. – Apolo estremece quando ela se afasta para olhá-lo melhor. Samira responde com um sorriso enviesado, seus cabelos coloridos presos em diversas marias-chiquinhas. – E você está especialmente ruiva, Lílian.

– Faço o meu melhor. – Dou de ombros.

– Acho que vai ter mais gente esse ano. – Apolo reclama. – Viu que tem carro estacionando por aqui? Estamos a seis quarteirões do parque!

– Não é você que vai ficar vendendo algodão doce pra turista. – Samira resmunga inconformada.

– Ei, eu vou beijar desconhecidos – Faço uma careta, apesar de achar toda a ideia da barraca de beijos engraçada.

A caminhada até o parque de diversões leva uns dez minutos, e começamos a encontrar várias famílias e estudantes conforme nos aproximamos do terreno onde o parque foi construído.

Eu ainda não tinha vindo aqui e fico surpresa pelo tamanho do lugar; estava esperando algo mais modesto, para ser sincera. Um lugar com um carrossel caindo aos pedaços e talvez uma roda gigante para crianças, mas é o contrário. Tem um Chapéu Mexicano, uma roda gigante realmente gigante e dois carrosséis coloridos e temáticos.

Os portões de entrada estão lotados de visitantes, provavelmente familiares e amigos dos universitários, e sinto um frio na barriga de arrependimento por não ter chamado a minha galera. Tento dizer a mim mesma que meus pais não ficariam confortáveis dividindo um mesmo espaço enquanto cuidam para que os trigêmeos não se percam naquele parque enorme, e que a Mônica não gostaria de nenhum dos brinquedos, já que ela tem não é fã de altura, mas o frio incômodo na consciência continua.

Passamos pelo pessoal comprando os ingressos, já que universitários ganham crachá de passe livre, e Samira dispara em direção ao seu grupo. Eles se reúnem em frente a um boliche ao ar livre, e tábuas com algodão doce são distribuídas entre quem já chegou. Ela me acena e deseja boa sorte de longe, e percebo que ainda tenho uma hora livre até assumir o meu turno na barraca do beijo.

– Então... – empurro o ombro de Apolo, porque ele também tem um tempo livre até seguir para a sala dos espelhos. O pessoal da turma de Física foi convocado a ajudar com alguma montagem especial da apresentação de lá. – Você ainda não disse como foi o seu encontro de ontem.

Apolo encolhe os ombros.

– Não foi. Eu perdi hora e me esqueci de avisar a moça. Ela deve estar puta da vida comigo. – Ele coça a nuca. Olavo é uma figura, e você passa a conhecê-lo completamente depois de poucas horas de convivência. Ele não tem nada a esconder, nada de problemático na personalidade, nenhum traço desproporcional à sua já familiar desastrosa simpatia. Apolo é transparente como vidro, e acho que a garota do encontro não se importaria com a mancada dele se o conhecesse o suficiente como eu.

– Tudo bem. Você vai ter outras oportunidades.

Ele estreita os olhos, nem um pouco convencido.

Perambulamos pela entrada do parque, e fico encantada com os detalhes dele. Tudo parece muito vivo, os brinquedos vibram energia, e imagino que vá ficar ainda mais animado quando o público for liberado para entrar.

Vejo vários universitários apressados correndo pelas barracas que foram montadas entre as atrações fixas do parque. Monitores já se posicionam em seus devidos lugares, e estou dando a volta no primeiro carrossel, que é grande, com enfeites dourados e cavalos coloridos, quando um grupo barulhento de pessoas passa por nós.

Todos estão vestidos de hippies, com saias longas, camisetas coloridas, coletes e lenços presos nos cabelos. Uma garota, com um par de óculos cor-de-rosa de aros redondos, está entregando flores. Ela tem uma cesta onde recebe o dinheiro de uma pessoa, e um buquê enorme de margaridas em cima da cesta. Ela tira um botão dali e passa para uma moça parada um pouco à nossa frente, e a moça agradece dando um beijo entusiasmado no namorado ao seu lado.

Quando a garota das flores vem na minha direção, encaro Apolo com assombro. Ele ergue os ombros, visivelmente surpreso.

– Lílian?

– Sou eu.

– A moça apressada? – Solto um bufo surpreso e divertido.

– Eu mesma.

A garota faz uma mesura teatral e me estende uma margarida.

– Seria mais poético se fosse um lírio. – ela diz entristecida. – Oi fofo. Uma flor pra você. – O rosto de Apolo ganha um tom vermelho gritante, mas a desconhecida sai dali antes que ele diga alguma coisa.

Encaro a flor em minhas mãos e meu coração perde uns dois compassos por causa dela. Só uma pessoa pode ter mandado. Só um cara se refere a mim como “moça apressada”. Mantenho o cabo da margarida preso aos meus dedos conforme encaro Apolo, desnorteada e eufórica. Ele parece desnorteado também.

Olho em volta discretamente, procurando por Gregório, mas ele não está em lugar algum. Ele me viu sem que eu o visse, e há qualquer coisa excitante a respeito dessa expectativa. Saber que ele está aqui, agora, me deixa entusiasmada. Não entendo por quê. Ele é só um desconhecido. Um desconhecido com os olhos mais lindos que já vi. Mas um desconhecido.

Encaro Apolo, que, dias atrás, também era um desconhecido. Samira, ao longe, tão minha amiga que de repente parece estranho lembrar que mês passado eu mal a conhecia. A vida não é feita de experiências desconhecidas? Por que ficar animada com a ideia de reencontrar Gregório pode ser uma coisa precipitada ou ruim? Ele só me mandou uma flor.


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A barraca do beijo é extensa, com um toldo vermelho cobrindo a parte da frente. Está um calor dos infernos aqui, mas temos água fresca que o pessoal do parque providenciou, e sombra. Não são muitas mordomias, mas pelo menos o dia está sendo divertido.

Minha flor está num copo com água bem ao meu lado, e eu estou me refrescando quando um garoto com a camiseta da turma de formandos de Engenharia Civil estende uma nota de dois reais. Melissa, ao meu lado, recebe o dinheiro e dá um beijo rápido na boca dele; dois segundos, nada desesperador demais. Tudo bem, um dos caras que veio meia hora atrás estava todo suado e a Tatiana pareceu querer vomitar depois de beijá-lo, mas é por uma boa causa. Até agora, dei sorte. Beijei quatro caras e duas moças e todos foram simpáticos; é uma barraca do beijo, claro que o clima aqui é meio esquisito. As pessoas pagam pra ganhar um beijo. Mas, ei, quem sou eu pra julgar? Tem um cara pintado de ouro correndo seminu pelo parque distribuindo panfletos de uma palestra de Medicina. Eu quero muito perguntar para o Téo se ele fez isso em algum momento da vida dele.

Estou de costas para a entrada da barraca quando Tatiana solta um gritinho entusiasmado, e me viro pra ela enquanto bebo um grande gole de água, querendo saber o que causou aquela reação.

Uma fila de cinco amigos se formou, e reviro os olhos discretamente porque imagino que eles vão ficar se digladiando e fazendo comentários bobos enquanto ganham os beijos.

O que vem até mim é baixo, tem cabelos pretos e pele pálida. Ele ergue os óculos de grau que usa e aperta a boca contra a minha com força demais, quase me fazendo dar um passo para trás. Quando ele se afasta, resisto ao impulso de reclamar sobre o beijo desajeitado. O próximo é mais delicado e rápido, e ele faz algum comentário a respeito da cor do meu cabelo quando meus olhos esbarram na figura parada atrás dele. Encontro um par de olhos verdes intensos no fim da fila e quase me afogo com o ar.

– Oi. – Gregório ergue uma mão, parecendo sem graça. O universitário que ganhou o meu último beijo solta um muxoxo decepcionado e se afasta, deixando que Gregório pare a poucos centímetros de mim. Tatiana está encarando ele abertamente, como fez com o loiro sarado que veio aqui mais cedo. Gregório não tem nada de sarado, mas é muito mais bonito que o loiro. Os dois botões da camiseta da universidade estão abertos, me dando visão da pele pálida abaixo do pescoço, onde o colar de contas se esconde.

Ergo os olhos para o seu rosto.

– Oi! – minha voz sai exaltada demais. – O que... Veio fazer aqui? – Não sei se é o som que ecoa pelos alto-falantes do parque, mas parece que alguém está rufando tambores perto demais das minhas orelhas.

– Bom. É a barraca do beijo, certo? – ele arqueia as sobrancelhas. Eu desvaneço, apoiando o braço na bancada da maneira mais displicente que consigo demonstrar. Ele me mandou uma flor mais cedo. Quero perguntar o significado daquilo. – Aqui. – Gregório me estende uma nota de dez. Dez reais! Dois significam dois segundos, então dez reais quer dizer que ele quero me beijar por dez? Ou talvez mais?

Meus olhos vão da nota para a sua boca, involuntariamente. Gregório tem lábios convidativos, o inferior mais cheio que o superior, e eles se curvam num sorriso envergonhado quando noto que minha observação foi óbvia demais.

– Eu queria falar com você, na verdade. – Se ele tivesse jogado um balde de água fria sobre a minha cabeça, o efeito seria o mesmo da fala. Aceito a nota e guardo no potinho de arrecadação e gesticulo para o Gregório seguir até a lateral da barraca, de modo que as curiosas não ouçam a nossa conversa. Uma conversa.

Os olhos de Gregório esbarram no copo onde eu deixei a margarida, e um novo sorriso ilumina todo o seu rosto.

– Você recebeu a flor.

– Ah, foi você que mandou? – finjo surpresa. – Obrigada! Eu nunca tinha... Ganhado flores antes. – Tudo bem, a minha tia me presenteia com arranjos de flores em toda ocasião especial, mas isso não conta.

Gregório passa a mão pelo cabelo, afastando os fios do seu rosto, e fico surpresa por já ter grifado mentalmente aquele gesto como um dos meus favoritos. O modo como seus dedos se entrelaçam nos fios rebeldes tem um charme natural, alguma coisa que me faz pensar como seria se eu enroscasse meus dedos no seu cabelo.

– Então?

– O quê? – Pisco repetidas vezes. Ele falou alguma coisa enquanto eu o admirava.

Gregório solta uma risada sem graça.

– Eu queria saber se você gostaria de almoçar comigo. – noto o nervosismo na maneira com que ele aperta a mão sobre a nuca, e depois a esconde no bolso da calça. – Não tem problema se tiver planos. Foi só uma ideia.

– Claro. – Sorrio, e seus olhos sorriem de volta. Ele espia alguma coisa por cima do meu ombro, e viro para notar que Tatiana e Melissa estão olhando atentamente para nós dois. Faço uma careta indignada e elas aquiescem, voltando a conversar entre si. – Nos encontramos aqui à 13h?

Gregório anui com um aceno, sem dizer nada, e gira nos calcanhares quando eu me despeço. Ele se vai da mesma maneira com que chegou, subitamente, me deixando para trás com um sorriso idiota no rosto.

– Ah meus santos, ele é uma gracinha! – Melissa exalta.

– Não é aquele garoto que sempre toca violão no prédio Vagalume?

– Nossa, sim! Jesus de Nazaré, sim. Ele é tão gostoso, e a voz dele é incrível.

– Ele é só um cara que eu conheci por acaso. – Sussurro, sorrindo na direção que Gregório tomou. Seja menos óbvia, Lílian.


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Gregório chega alguns minutos antes do fim do meu turno na barraca do beijo, mas não parece incomodado em ter que esperar. Ele arruma um canto ao lado do tablado de madeira, se senta na sombra de uma árvore e começa a batucar o banquinho que deixamos de lado.

Espio rapidamente, admirada com a facilidade com que ele encontra um ritmo, seus dedos esguios estalando contra a superfície de madeira para criar uma música agradável. Não conheço os batuques, então não sei dizer ele acabou de inventar ou se é alguma melodia famosa, mas gosto do que estou escutando.

É nesse instante que Gregório ergue o olhar, sombreado pelos fios bagunçados do seu cabelo, e me estende um sorriso tímido. Sustento a atenção por mais alguns instantes, então retribuo o gesto e volto a me concentrar no fim da minha tarefa. Tatiana pediu para eu separar o dinheiro arrecadado até agora e organizar os valores dos beijos, mas em determinado momento do dia tivemos tantos beijoqueiros que acabei me perdendo na contabilidade. Coloco todo o dinheiro dentro de uma lata fechada e entrego para a monitora, uma formanda da turma de Medicina. É a minha deixa para escapar pela lateral da barraca, dando espaço para o garoto que vai assumir o meu lugar.

Paro próxima ao Gregório, bebendo o resto da minha garrafa de água enquanto observo um pequeno grupo de garotas que se reuniu à volta dele, assistindo o seu pequeno espetáculo improvisado.

Cruzo os braços e me encosto ao tablado da barraca, intrigada com o seu perfil; as mangas da camiseta da universidade são curtas, de modo que posso assistir os músculos firmes e discretos dos seus braços trabalhando conforme ele desenvolve a música. Três anéis em sua mão direita fazem um som característico quando acertam a madeira, e Gregório só os usa em determinado momento da melodia. Outros dois da mão esquerda têm o mesmo efeito. Agora que estou perto, consigo distinguir as formas da tatuagem em seu braço direito; um relógio esfumaçado sobe pelo dorso de sua mão, e fumaça espiralada cresce pelo antebraço em direção ao cotovelo junto a alguns desenhos aleatórios. Dali para cima, a camiseta esconde o resto da arte.

As pulseiras coloridas em ambos os pulsos são muitas. Algumas são feitas de tecido, outras trançadas com contas e conchas, e outras são de couro com algum símbolo desenhado nelas. Fico curiosa a respeito de todas. Se foi ele que fez, se foram presentes, o que elas representam. Com exceção do seu nome e da sua paixão por músicas, não sei nada a respeito de Gregório. E fico surpresa por querer saber mais.

Quando ele termina a música, a pequena plateia aplaude, chamando a atenção de mais passantes. Gregório se levanta e faz uma mesura discreta, avisando, sem nada dizer, que o espetáculo acabou. Duas meninas que acompanharam o batuque permanecem, entusiasmadas, e fico longe enquanto elas dizem alguma coisa para o Gregório. Ele abaixa o rosto e, de costas para mim, vejo seus ombros estremecerem debaixo do tecido fino da camiseta. Imagino que esteja rindo. Eu gostaria de vê-lo rir.

Pego o copo com a minha flor e me aproximo deles. Hesitante, a princípio, e depois sem entender o porquê dessa hesitação. Eu sou só uma estranha, assim como aquelas garotas.

– Gostei do show. – Tombo a cabeça de lado para espiá-lo, e Gregório se vira para mim, surpreso.

– Eu não sabia que estava assistindo.

– Eu tinha um camarote. – aponto para a barraca, crispando um sorriso divertido. As garotas ao nosso lado parecem um pouco enfezadas por perder a atenção do Gregório. – Escuta, eu vou dar um pulinho na lanchonete, quer se encontrar comigo lá? Você está meio ocupado aí.

– Não, eu só... – ele fica sem jeito, olhando de mim para elas e vice-versa. Uma das garotas diz que elas estão com pressa, e as duas se retiram aos risinhos. Gregório fica um pouco vermelho, e a sua expressão é uma das mais adoráveis que já vi até agora. – Não sou muito bom nisso. – Ele coça a nuca.

– Não é muito bom em falar com garotas ou em receber a admiração do público?

– Um pouco dos dois. – Gregório coloca as mãos nos bolsos, me encarando de soslaio conforme começamos a caminhar.

A tarde continua abafada, com um céu limpo de nuvens. O parque está lotado agora, a ponto de pararmos em alguns momentos para as pessoas passarem. Gregório não diz nada pelos minutos seguintes, e eu penso em diversas coisas para puxar assunto, mas nenhuma delas parece relevante o suficiente. Fiquei abobalhada por causa desse garoto todo esse tempo e agora não consigo manter um diálogo civilizado com ele?

– Qual era aquela música? – Pergunto. E depois percebo como essa pergunta soa idiota.

– Qual música?

– Aquela que você estava batucando.

– Eu acabei de inventar. – Ele soa modesto, como se realmente fosse nada demais.

Faço uma careta impressionada, no que ele responde com um sorriso grato.

– Em que você ajudou hoje? Ou seu turno ainda não começou?

– Peguei o mesmo horário que você. Estava ajudando o pessoal com o teatro na sala dos espelhos. – Gregório mantém os passos leves, próximo a mim, mas não tanto quanto eu gostaria. Há qualquer coisa frágil na maneira com que ele se porta.

– Queria ter visto. – Confesso.

– Mas estava presa pelos lábios de alguém? – Ele brinca.

– Foi divertido.

– LÍLIAN! – Estaco com o grito estridente que vem até mim. Gregório para subitamente por minha causa, e seu braço esbarra no meu; ele desvia o olhar antes que eu o encare.

Samira corre até nós. Com a maquiagem de palhaço borrada e o cabelo um emaranhado de fios coloridos, ela parece mais assustadora do que o desejado. Isso sem contar a careta furiosa.

– Você deveria ter me encontrado no boliche há vinte minutos!

– Eu deveria?

– Eu te mandei uma mensagem!

Aperto a mão em minha boca, fingindo surpresa.

– Ops. – Eu nem liguei o celular hoje, fato que não vai deixar a Samira feliz.

– Eu apareci de repente, foi mal. – Gregório intervém. Samira pisca repetidas vezes, primeiro chocada, então confusa e intrigada e finalmente admirada.

– E você é...?

– Gregório.

– Ah. AH. O Gregório. – o dito cujo franze as sobrancelhas e crispa os lábios, migrando seus olhos intensos para mim, em busca de explicações. – Oi, Gregório. Prazer. Meu nome é Samira, mas pode me chamar de Sam. – Samira estende a mão, e Gregório não hesita em aceitar o cumprimento, rápido e sucinto. Diferente daquela vez em que nos conhecemos na festa, o aperto de mãos entre eles não parece significar várias coisas. É só um cumprimento.

– Eu vou procurar o Apolo agora, já que você arranjou companhia. – Samira resmunga na minha direção.

– Ei.

– Você pode ficar com a gente se quiser. – Arregalo os olhos quando Gregório diz aquilo. Ele está se esforçando muito para ser simpático. Será que ele achou a Samira bonita? Não que eu me importe. A Sam é maravilhosa. Se o Gregório quiser ficar com ela e ela quiser ficar com ele, têm a minha benção. Eu não vou me perturbar por isso.

– Não, obrigada. – Samira se despede em seguida, direta e reta como sempre. Ergo os ombros para Gregório, pedindo desculpas pela cena.

– Eu sou o Gregório?

Tudo bem, contei sobre o incidente na praça para a Sam, e ela criou todo um cenário romântico de filme antigo envolvendo nós dois. Eu disse que tinha sido só um encontro casual, mas Samira acredita demais em destino e em como ele faz as coincidências da vida acontecerem. Primeiro a festa, depois o parque. Não pode ser à toa.

Depois de hoje, ela não vai calar a boca.

É a minha vez de coçar a nuca, sem graça.

– Eu contei sobre o tombo da praça e você estava na história. – Explico displicentemente. Não consigo convencer a mim mesma, quem dirá ao Gregório. Tudo bem, eu estou atraída por ele, não é nada demais.

– Obrigado por se lembrar de mim. – ele faz uma mesura brincalhona, então olha em volta, para a multidão que nos cerca. Fico surpresa com a facilidade com que me esqueci deles. – Você queria ir até a lanchonete. Ainda está com fome?

– Morta de fome.

Ele ri abertamente. O riso expõe seus dentes, brancos e alinhados, e chega até o seu olhar. Estende a mão para mim, me convidando a acompanhá-lo. Sua pele é fria, o toque discreto e sutil. Meus dedos se fecham ao redor dos seus, e Gregório hesita por um instante antes de imitar o movimento.

Ele me guia pelo corredor de entrada do parque, caminhando contra o fluxo de pessoas que chegam para as atrações, e a diferença entre nossas alturas e o fato de eu estar segurando a sua mão com força para não me soltar dela deslizam um calafrio delicioso por meus braços. Estou confiando em um estranho para me guiar para algum lugar, mas, ao mesmo tempo, estou confiando no Gregório para me levar até algum lugar. Parece suficiente para manter meus pensamentos calmos, ainda que animados.

– Para onde estamos indo? – Cruzamos as catracas de saída, mostrando nossos crachás para os monitores, o que nos permite voltar a qualquer momento. Gregório me espia por cima do ombro.

– Para a melhor sorveteria daqui.

Quando chegamos à calçada, Gregório solta a minha mão, o que me decepciona. Embora eu não demonstre. Minha pele formiga onde a sua tocou.

– Ei. – eu o chamo. – Por que me convidou pra sair?

Seu olhar dança sobre o meu rosto, analisando cada traço dele. Engulo em seco, nervosismo descarregando comichões sob minha pele, e fico um pouco menos ansiosa quando vejo Gregório engolir em seco.

– Gosto do seu jeito de falar.

Rio, meio incrédula e meio admirada.

– Me chamou pra sair porque eu sou tagarela?

O rosto pálido de Gregório ganha um pouco de cor, e meu riso aumenta de intensidade porque a cena é estranhamente adorável. Como todo o pouco que conheço dele.

– Foi a coisa mais inusitada que já me disseram. – confesso. Gregório passa a mão pelo cabelo, arrastando os fios para trás com ela. – Eu gostei. – ele solta um suspiro aliviado, e então treme um sorriso agradecido para mim. – Você não fala muito. – Observo.

Começamos a caminhar novamente, lado a lado na calçada estreita. Gregório dá de ombros.

– Prefiro me expressar através de outros meios. – Olhares, músicas e raros sorrisos. Eu penso, mas não digo. Penso em outras maneiras possíveis para ele se expressar; lembro-me do seu toque em minha mão e imagino seus dedos trilhando minha pele com a mesma delicadeza com que trilhavam as cordas do violão. Minhas bochechas pegam fogo. Por que estou imaginando isso?

Alcançamos a sorveteria mencionada por ele. Gregório sobe os degraus de entrada e gesticula para que eu o siga; ainda não tinha passado por aqui, então não conhecia o lugar. É pequeno e modesto, com um arco-íris de cores pálidas nos ladrilhos da parede. Pequenas mesas para casais estão enfileiradas do lado direito, e o balcão com os sorvetes, do lado esquerdo. Gregório não faz como eu naquele dia na padaria, exaltando sorrisos e abraços ao dono da sorveteria, mas acena de longe, com uma simpatia contida.

– O milk-shake daqui é o melhor do mundo. – Gregório me confessa.

– Ah é? A minha cidade tem um especialmente delicioso. – rebato. – Desafio a sua sorveteria.

– Como eu vou saber que você está dizendo a verdade?

– Vai ter que confiar em mim. – ergo os ombros dramaticamente. Gregório baixa a cabeça, escapando da minha observação. Esse jeito escorregadio de esconder seus sorrisos e de interromper olhares me intriga e me deixa ainda mais curiosa. – Ok, qual o melhor milk-shake daqui?

Gregório faz o pedido para o atendente, e indica uma das mesas para que nos sentemos. É tão... Inesperado estar aqui, em um encontro, com o garoto que de repente se tornou uma figura importante aos meus pensamentos. Parece meio súbito, mas causa um frio agradável no meu estômago.

Ficamos em silêncio por alguns minutos, e Gregório começa a tamborilar os dedos sobre o tampo da mesa numa sequência ritmada. Ele tem o olhar perdido no balcão de sorvetes, e aproveito a distração para imitá-lo. Gravo o ritmo do batuque e repito, trazendo a sua atenção até mim. Ele arqueia as sobrancelhas e eu respondo com um sorriso.

O atendente nos traz dois copos enormes de milk-shake, e uma porção de fritas de brinde.

– Ah, batata fria com milk-shake, minha maior fraqueza. – mergulho uma delas no copo de vidro, e Gregório me observa com uma expressão de bom humor. – O quê? Vai me dizer que não gosta?

– É estranho.

– É bom. – retruco, repetindo a ação com mais três batatas. Dou um gole no milk-shake em seguida, e preciso resistir ao impulso de suspirar. Ok, esse supera o de Lagoa Feliz num placar de dez a zero. Fecho os olhos em deleite, e encontro um sorriso vitorioso no rosto de Gregório ao abri-los. Deus, esse menino precisa sorrir mais. Alguma coisa no curvar dos seus lábios traz mais poesia ao mundo. – Não faça essa cara, eu não dei o meu veredito.

– A sua expressão já disse tudo.

Reviro os olhos, mas continuo bebendo. Gregório volta a tamborilar os dedos, e eu volto a imitá-lo. Nossos olhos se encontram em certo momento, e eu me perco no ritmo. Mesmo abaixando o rosto para sorrir, ele não se desconcentra.

– De onde vem todo esse amor pela música?

Ele olha para a mesa, então para mim. Eu me lembro do dia em que o encontrei nos jardins, sozinho, e o mesmo tipo de expressão perdida toma conta das suas feições agora; o mesmo olhar solitário. Fico arrependida pela pergunta.

– Tem alguma coisa universal e libertadora nela. – Gregório mexe o canudinho do milk-shake, as palavras calmas e bem calculadas. – Não sei... Eu me sinto incluído quando estou cantando ou compondo. Mesmo quando estou batucando a mesa. – ele sorri para o chão. – É meu jeito de conversar com o mundo.

Estou com um sorriso bobo sem me lembrar de quando ele nasceu em meus lábios.

– Eu queria assistir alguma canção sua sem me estatelar no chão.

Gregório prende o olhar ao meu.

– Eu participo de uma competição de karaokê no pub aqui da cidade. – ele diz. – Se quiser, posso te arranjar uns convites.

– Sério? Eu adoraria. – Isso é um segundo encontro? Paro a pergunta em meus pensamentos. Pode ser um segundo encontro, ou só um convite amigável. Eu não sei entender os olhares dele tão bem quanto achei que soubesse; eles são abertos, mas misteriosos. São transparentes, mas sombrios. Gregório fala através de suas expressões, mas ainda conheço muito pouco dele para entendê-las.

Claro que isso não me impede de manter o sorriso idiota no rosto conforme Gregório paga pelos milk-shakes. Também não me impede de lembrar que precisamos voltar para o parque, o que pode quebrar toda a magia do encontro inesperado que estava rolando aqui.

Pensar no parque traz outra memória à minha mente. Uma ideia boba e provavelmente apressada e estúpida, mas importante. Toco o braço de Gregório quando ele toma o caminho do parque, virando-o para mim.

– Você foi até a barraca. – ele cinge as sobrancelhas, claramente confuso. – Mais cedo, você foi até a barraca de beijos, fez a doação, mas não pediu um beijo. Por quê?

Ele fica sem graça.

– Eu queria falar com você.

E eu o beijo.

Assim, de repente. Com a mão ainda sobre o seu braço, fico na ponta dos pés e aperto meus lábios contra os seus. Eles são tão macios quanto eu tinha fantasiado mais cedo, e a barba rala pinica a pele do meu rosto. Inspiro profundamente, sentindo sua boca tremer sob a minha. Eu me precipitei demais. Interpretei sua postura da maneira errada. Eu estraguei tudo roubando um beijo que ainda não deveria acontecer.

Dou um passo para trás no instante em que sua mão encontra a minha nuca. Gregório enrosca os dedos entre os fios do meu cabelo, pressionando meu rosto contra o seu gentilmente.

Ele entreabre os lábios junto à minha respiração. Meus pés perdem um pouco de controle, então aperto a mão em seu braço, sentindo a pele fria e rígida. Gregório guia minha mão livre até o seu pescoço, deslizando os dedos pela extensão do meu braço. A sensação da trilha suave me desmorona.

Algo na maneira com que ele me toca descarrega fios de energia por cada nervo do meu corpo, alguma coisa na sutileza da sua presença, na doçura com que ele me segura, na firmeza com que sua boca se aperta à minha. Estou sem fôlego quando minha língua encontra a sua, e de repente estou tão próxima que consigo ouvir o seu coração batendo junto ao meu. Seus dedos contra a pele sensível da minha nuca bagunçam qualquer coisa já desnorteada na minha mente, e eu perco um pouco da sanidade quando ele alcança minha cintura, um lugar onde o tecido da camiseta está torto e erguido. A sensação da carícia arranca um ofego de mim.

Gregório é um delicioso enigma, e seu beijo me arrebata como sua voz me arrebatou. Nada parece súbito agora que eu o beijo, nada parece fora do lugar. Seus lábios descarregam um incêndio em cada parte do meu corpo, e meus dedos parecem doer, querendo tocá-lo mais e mais.

É tudo inesperado e excitante, uma experiência nova que vicia no instante em que acontece. Gregório tem gosto de sorvete e de uma adorada surpresa. Esqueço-me dos seus olhares solitários debaixo do seu toque abrasador. Esqueço-me do timbre de sua voz quando sua boca toma a minha. Esqueço-me do pouco tempo que existe entre nós, porque ele é o Gregório e isso é tudo que importa.

Ele se afasta primeiro, no que parecem mil anos depois. Seu nariz roça contra o meu, e entreabro os olhos para encontrar os dele fechados. Minha mão bagunçou o seu cabelo a ponto de empurrar fios para frente, sombreando suas feições. Seus traços parecem mais suaves nesse instante. Tem serenidade na maneira com que as linhas do seu rosto relaxam. Ele ergue as pálpebras, me encarando com confusão. Quero entender por que ele parece confuso, mas estou tão próxima, sua respiração ainda se misturando à minha, que preciso resistir ao impulso de beijá-lo de novo.

– Você tinha esquecido o seu beijo. – Sussurro ofegante. Gregório ri, ainda abraçado a mim, e a sensação do seu riso contra o meu corpo é extasiante.

– Que bom que eu me esqueci. – Ele responde, apoiando a boca na lateral do meu rosto. Sua voz tem um tom de descontrole, assim como a maneira trêmula com que os dedos ainda seguram a minha nuca. Engulo em seco, soltando o seu braço para encará-lo. Seus olhos são um incêndio, um mar revolto difícil de entender. O verde das íris parece ainda mais vibrante que antes, e seu olhar devora o meu com o mesmo desejo que seu beijo demonstrou.

– Temos que voltar para o parque.

– Temos.

– Você está achando isso estranho? – Preciso perguntar. Preciso ter certeza de que não estou entendendo tudo errado.

– Nem um pouco. – Ele abaixa o rosto para sorrir, e a nossa proximidade faz com que cada centímetro seu paire sobre mim. Seus lábios estão a um impulso louco de distância. Eu poderia tê-los de novo, aqui e agora, se ficasse sobre a ponta dos pés. Mas resisto.

– Sexta-feira. – Murmuro. A respiração de Gregório descompassa.

– Sexta-feira.


Aquele com ideia do musical

 

AGORA


Não. Não, não, não. Agora não. Aqui não. Estaco no topo da escadaria do anfiteatro, observando a reunião de alunos conhecidos e de voluntários desconhecidos lá embaixo; lembro das sugestões dos meus colegas, a maioria votando por um musical improvisado na apresentação da festa de boas-vindas. Não fiquei muito animada com a ideia porque nunca dá pra adivinhar quão afinada é uma pessoa, e eu duvidava que os engraçadinhos da fileira da frente tivessem alguma habilidade musical. Claro que a professora se adiantou e disse que conhecia um pessoal de outros cursos que podiam ajudar, e claro que o Gregório era um deles.

Graças aos céus por Samira e seus cinco anos de aula de piano. Ela também está aqui para ajudar a minha turma, e acena lá de baixo. Não vou me abalar. Não vou me importar. Não vou demonstrar nada além de uma simpatia casual.

Gregório está sentado na beira do palco, alheio ao fato de haver tantas pessoas assistindo a sua música. Ele dedilha as cordas do violão com destreza, traçando uma melodia familiar; acho que é Legião Urbana. O jeito com que ele se inclina sobre o instrumento, a delicadeza em sua expressão, tudo isso é tão familiar que me faz querer chorar. Conforme desço as escadas, observo seus olhos semicerrados, as sobrancelhas franzidas em concentração, a mordida discreta que ele dá no lábio inferior.

– Isso vai dar super certo. – Pulo de susto ao perceber que Samira surgiu ao meu lado.

– O quê? Ter que preparar a apresentação com o amor da minha vida ali no palco? Vai ser supimpa. – Retruco.

– Pelo menos você vai produzir e não estrelar. – Samira dá de ombros. Claro, porque a ideia de ter uma caloura sentada ao lado de Gregório enquanto ele a ensina a atingir o tom certo me deixa relaxada.

Vou até a professora Lena, que discute com alguns alunos a respeito da história – antes decidida, agora em pauta novamente. Parece haver alguma ideia em adaptar Romeu e Julieta em vez de Sonhos, e eu paro o papel no meio do caminho de entrega quando escuto aquilo, deixando a mão da professora no ar.

– Espera. Vocês vão usar Romeu e Julieta?

Minha colega de turma, Rebeca, com seus cabelos louros trançados e os óculos de grau muito grossos, me encara como se eu tivesse deixado o cérebro cair na escada.

– É.

– Mas, Lena, já organizamos tudo...

– Os papeis, Lílian querida. Obrigada. – Ela pega o roteiro da minha mão antes que eu tenha chance de dizer mais alguma coisa, me dando a deixa para sair dali. Com a música do Gregório de fundo, eu dou as costas para o palco, buscando pela Samira.

Ela está sentada na segunda fileira, de frente com o piano, e o observa como um objeto de estudo científico. Sento ao seu lado, enfezada, e ela finalmente desvia o olhar para mim quando nota que estou puxando o zíper da bolsa com força demais.

– O quê?

– Eu odeio Romeu e Julieta. – Resmungo, lanceando um olhar irritado na direção da professora. Queria poder fazê-la mudar de ideia com um pensamento, mas também posso tentar com argumentos plausíveis.

– Por quê? É romântico.

– É errado! Por que eles não pularam o muro de Verona e fugiram na calada da noite, em vez de ficar falando juras de amor pela sacada?

– Porque eles eram adolescentes apaixonados.

– Exato. O Romeu nem tinha crescido um par de bolas...

– Ahem.

Aperto os lábios numa careta quando vejo Samira prender o riso. Em meio à discussão, não notei que o anfiteatro tinha se silenciado. E eu nunca tinha reparado como exclamações se transformam em ecos altos graças às paredes especiais que essa sala tem. Minha discussão calorosa acabou se tornando um monólogo para todos os meus colegas.

Ergo os ombros quando vejo o olhar abismado da professora.

– Eu mantenho a minha opinião. – Digo pouco abalada. Não vou ajudar essa galera a montar uma peça espetacular para uma história tão superestimada.

– É Romeu e Julieta. Um clássico! – Rebeca soa embasbacada.

– Isso não muda o fato de ser um relacionamento tosco.

– Mas... O que você... Como... – Ela fica vermelha, diversos tons da cor, enquanto balbucia aquelas coisas.

– Olha, nós tínhamos uma adaptação legal até agora, o roteiro já estava esquematizado, até o jogo de luzes estava montado. – Gustavo, sentado na outra fileira, sai em minha ajuda. – Não acho que mudar agora seja uma boa ideia.

– Obrigada. – Ergo a mão em sua direção.

– E também porque ninguém merece “Ó Romeu, meu Romeu, onde estas?”. – Samira ergue o tom dramático, arrancando risos de algumas pessoas. Rebeca não parece achar engraçado. Lanceio minha atenção até Gregório. Ele assiste toda a cena com um sorriso discreto, um dos braços apoiado sobre a perna, o outro atrás do corpo. A postura dele desprende conforto, e ele me encara antes que eu consiga fingir que não era em sua figura que estava minha atenção.

– Nós poderíamos adaptar! – Rebeca fica de pé para tentar ganhar um ar mais temível. – Poderíamos arrumar os “pontos soltos” e as falhas de Romeu e Julieta.

– É um clássico. – retruco indignada. – É errado e sempre vai estar errado. Você não pode simplesmente... Apagar as merdas que eles fizeram. – minha respiração perde a intensidade de repente. Sinto como se o anfiteatro ficasse menor, como se os olhares de todos os meus colegas julgassem o que está em meus pensamentos agora. As lembranças que eu queria refrear. As certezas que eu não consigo deixar de lado. – Você não pode fingir que eles não cometeram o erro. Tiraria a essência da história. – Engulo em seco, me encolhendo na cadeira. Ninguém parece se importar, mas a pessoa que eu sei que se importa é a única que não quero encarar agora.

Samira fica de pé, ganhando o foco.

– As músicas já estão esquematizadas, professora. Acho besteira atrasar a turma assim, seus planos são grandiosos demais pra ter um problema no cronograma. – A bajulação funciona perfeitamente. Lena acorda para a vida, piscando repetidas vezes e exaltando que sim, Samira tem razão, aquele devaneio nos fez perder bons vinte minutos de ensaio!

Procuro Gregório no palco, mas ele já está de pé, de costas para mim. Faço qualquer penteado em meu cabelo para manter as mãos e a cabeça ocupada, ciente de que o meu discurso foi aleatório para todos ali, menos para ele.

Gregório entendeu o que eu estava querendo dizer; eu tinha partido o coração dele. Não tem como voltar no tempo e desfazer isso. Não dá pra fingir que foi uma história ruim, apagar, e começar de novo.

– Você está bem? – Viro quando Samira toca o meu braço.

– Por que não estaria?

– Porque seu cabelo está parecendo um penteado de Star Wars, e não do jeito bom. – solto o que quer que tenha feito com os fios. – Ele não para de olhar pra cá. – Samira comenta casualmente, mordendo a unha do dedão enquanto passeia o olhar pelos arredores.

– Quem?

– O Gregório. – Congelo onde estou.

– Por que ele está olhando pra cá?

– E eu tenho cara de adivinha por acaso? – ela resmunga. – Deve ser pelas coisas que você falou, sabe? Toda profunda e arrependida.

– Eu soei arrependida?

– Até usou o seu olhar de cachorrinho caído da mudança. – solto um gemido envergonhado. Samira pisca um olho para mim. – Ele desviou o olhar agora, é seguro. – quando viro na direção dele, Samira belisca meu pulso. – Não. – Mas é tarde demais.

Gregório salta do palco para o chão no instante em que eu o olho, e então ele está olhando de volta para mim. Ele diz qualquer coisa rápida para a professora, avisando que já volta, e tiro aquele instante para admirar suas feições. Cada mínimo detalhe delas.

Ele está longe, mas não o suficiente para eu me controlar. Ele está perto, mas não o suficiente para que eu possa tocá-lo. Seus olhos verdes passeiam por meu rosto quando se aproxima, descarados e entristecidos; ele me conhece tão bem. Cada pedaço de mim. Ele sabe o que escondo nos meus pensamentos, porque Gregório é esse tipo de pessoa. Ele entendia meus olhares, meus sussurros, meus beijos. Ele entendia meus gestos como se fossem palavras. Ele conversava comigo através do seu toque e da sua presença. Mas está distante, agora, por minha causa.

Ele caminha pela escadaria, passando pela minha fileira apressadamente, dois degraus de cada vez.

Observo os fios castanhos do seu cabelo, a ponta do cordão debaixo do tecido da sua camiseta, o movimento ágil das suas pernas. Quando a porta do anfiteatro se fecha num baque, eu pulo no meu assento, porque ele se foi e eu continuo atenta à sua presença.


?


Fui salva pelo gongo. Ou pela professora Lena. Ela me leva até o camarim para buscar fantasias antigas que não vão ser mais usadas, e me pede para ajudar a Natália, responsável do figurino, com o que quer que ela precise nas próximas horas. O que faz de mim uma assistente; eu vou até a lanchonete buscar água, e depois volto lá porque a Natália percebeu que estava com fome e queria um sanduíche. Eu vou até a sua mochila buscar agulhas, e depois volto para buscar outro tipo de agulhas. “Lílian, eu disse que eram as agulhas de cabeça-chata, pelo amor de Deus!” ela guincha da terceira vez. E eu erro de novo, o que me força a fazer o caminho de volta pela quarta vez.

Em todas essas vezes, o Gregório está no palco, ajudando o pessoal que vai se apresentar a encontrar seus tons – ou o mais próximo possível disso. Ele voltou rápido depois daquele encontro tenso de olhares, e não virou na minha direção nenhuma vez mais.

Uma das garotas, Fran, está de pé ao lado dele, próxima demais para a minha sanidade ficar em paz com isso. Estou caminhando na direção da mochila da Natália, que coincidentemente está num assento da primeira fileira, mas meus olhos estão nos dois. O que explica meu tropeção e a queda que se seguem, com um baque tão alto que faz todo mundo parar suas tarefas para me olhar.

– Ai. – Sento no degrau, meu joelho vibrando pela dor da pancada. Não me constranjo pela atenção de todo mundo porque estou acostumada com esse tipo de situação, mas fico encabulada pelo olhar do Gregório. Deus, se eu não estivesse tão ansiosa, diria que ele está preocupado.

Quando me levanto, as atividades voltam ao normal.

Gregório continua sua explicação para a Fran, e ela se inclina na direção dele; ele hesita. Eu noto a sua hesitação. Se a Fran prestasse atenção nos trejeitos do Gregório, veria que ele está desconfortável com aquela proximidade. Com os braços cruzados, ele parece prestes a pular do palco para escapar.

– Ei, Fran. – não sei por que eu grito o nome dela, mas surte efeito. Ela se afasta do Gregório, curiosa, e o rosto doce do meu garoto melancólico perde aquele ar nervoso. Eu não o encaro, apesar de me sentir encarada mais uma vez. – Pode me ajudar a entender que diabos é uma agulha de cabeça-chata? – Ela não perde tempo e vem até mim, o que me faz pensar que, realmente, a Fran não estava atenta aos trejeitos do Gregório. Para ela, é normal se aproximar assim de um garoto bonito que está conversando contigo.

Quando a Fran chega, vejo Samira gesticulando loucamente na minha direção. Ela estava sentada no piano, aguardando instruções do Gregório e do outro monitor, mas quebra a regra de se manter quieta ao me chamar. Peço licença para a Fran, que diz que não se importa em procurar as agulhas enquanto isso.

Com uma careta indignada e mancando um pouco pela dor, me aproximo até encostar as mãos no palco, ficando na ponta do pé não dolorido para ouvir o que Samira tinha a dizer.

– Como é mesmo aquela música?

Faço uma careta maior ainda.

– Que música?

– A do Coldplay.

– Samira?!

– Ai, saco, aquela que você ouviu quando estava na foça. – eu ouvi várias músicas durante o meu período de tristeza. – Sobre consertar...

– Você disse o nome agora mesmo.

– Fix?

– Fix You. Meu Deus.

Acabo de virar de costas para voltar à minha tarefa quando minha melhor amiga faz o inesperado:

– Ei, Gregório! – permaneço de costas, caminhando calmamente em direção à mochila. Fran está com a agulha em mãos, sorrindo vitoriosa na minha direção. Nada a temer, nada a pensar. Não estou sentindo nenhum olhar nas minhas costas. – A Lílian sugeriu uma música pra aquecer o pessoal, posso tocar?

Filha da puta.

– Qual música? – É a primeira vez que ouço a voz dele desde que retornei. A primeira vez desde que nós deixamos de ser nós. O timbre familiar e rouco me perturba, mas daquele jeito bom. Uma comichão em meus nervos, um calafrio que desce do topo até a base da minha espinha, o abraço de um sentimento caloroso que eu estava tentando manter guardado.

– Ih, esqueci o nome. – apoio as mãos no encosto da cadeira, deixando uma Fran confusa ao meu lado. – Lílian, ajuda aqui?

Eu posso fugir ou eu posso encarar essa. O fato de meu coração ainda estar descompassado depois de ter ouvido a voz do Gregório me diz que é melhor eu pular fora, mas a necessidade de olhá-lo e dizer que eu retirava o que tinha dito antes, que eu queria tentar consertar tudo, me fez espiar por cima do ombro.

– Você sabe qual é. – Exalto para Samira, lançando um olhar mortífero na sua direção. Todo mundo está olhando para mim. Gregório está olhando para mim. De repente me lembro de uma coisa que a Mônica me disse quando eu estava passando aquele tempo em casa; na situação, ela estava se referindo ao Enzo, também conhecido como o amor da sua vida. Aqui, ela se enquadra para mim. Às vezes eu o amo tanto que só quero fugir dele. – A gente falou sobre ela, você lembra. Ih, olha, acabou a agulha de cabeça-chata, vou ter que buscar mais. – Pesco a agulha que a Fran tem em mãos, pouco me importando quando ela solta uma exclamação confusa, e mantenho a postura relaxada, grata por ter dado as costas para todo mundo, impossibilitando que me vejam.

Subo as escadas com a minha confiança abalada e uma perna manca, mas consciente de que é a melhor decisão. Eu não posso agir como a Lílian de sempre; que leva na brincadeira, sobe no palco e canta junto com a Samira. Não posso olhar para o Gregório, mencionar aquela música e fingir que está tudo bem. Não está tudo bem.

Estou na porta quando ouço o piano. Gregório se sentou num banco alto ali no palco, e a iluminação o deixa mais pálido, familiar e lindo do que em várias das minhas memórias. Outro acorde e então ele reconhece a música e começa a acompanhar a Samira e é Fix You, e dói como o diabo.

Uma colega de turma grita ao lembrar a canção, e o pessoal que está ali para ensaiar começa a cantar, alguns mais desafinados do que outros, quando Samira desenvolve o ritmo.

E eu faço o que não fazia em muito tempo. Com o pretexto de buscar a agulha que já tenho em mãos, eu fujo.


Aquele com a roupa de fada

 

AGORA


– Você precisa falar com ele.

– Não preciso não. – Samira está na cozinha e eu estou estirada no sofá. O tempo mudou bruscamente. Está chovendo sem parar, e a frente fria trouxe um vento desagradável. Que péssimo fim de semana para fazer uma festa de boas-vindas.

– Vocês ficam se olhando como se tivessem perdido alguma coisa importante um no outro, é de dar pena.

Sento para encará-la, e ela me lança um olhar indignado por cima dos óculos de leitura. Samira está tentando fazer uma pizza caseira, mas meus sentidos de aranha dizem que a massa vai resultar em carvão. Ela está com todos os ingredientes dispostos à sua frente na bancada da cozinha, e prepara o começo da mistura quando a campainha toca.

– Quem é? – Eu grito.

– Michael Myers!

– O ator ou o assassino?

– O assassino, claro.

– Entra logo, Apolo, tá destrancado! – Samira resmunga em voz alta. Ela sempre fica de mau humor quando está tentando cozinhar, talvez por saber que o resultado vai ser um desastre.

Apolo está vestindo uma jaqueta dois números maior que as usuais. A barra da calça está encharcada, e ele só não se molhou inteiro por causa do guarda-chuva.

– E se fosse realmente o Michael Myers? – Ele me pergunta, e eu sorrio. Apolo criou esse jogo bobo e sem sentido de começar questionamentos com “e se” e você tem que responder com outra pergunta.

– E se hoje estivesse sol?

– E se a Madonna nunca tivesse cantado Like a Virgin?

– E se eu me chamasse Joaquina?

– Ai, já chega vocês dois. – Samira resmunga.

– Frio. – Apolo se no sofá e puxa a minha mantinha em sua direção, no que eu puxo de volta para não congelar. – A gente não ia pedir pizza?

– A Sam quis fazer.

– Ih.

– Eu ouvi isso. – ele se encolhe diante do comentário enfezado. – Sua fantasia já está pronta?

Ah, sim. A professora Lena não deixou nenhum aluno da turma aparecer na festa de boas-vindas sem estar vestido a caráter, o que significa que, amanhã, eu serei uma fada. Independente do fato de a minha tarefa estar ligada a não deixar as caixas de som falharem nem a iluminação ficar fora de sequência, eu vou estar vestida como uma fada.

Olho para o uniforme de guerra estendido sobre a poltrona e estremeço. É uma fantasia ótima para o calor, não para chuva e vento frio. Só de pensar em vestir aquela meia-calça fina ou de usar o vestido de cetim já me dá calafrios. Samira falou que vai tentar improvisar luvas e uma jaqueta para esquentar os meus braços, mas não sei até que ponto a Lena vai nos deixar fugir do figurino original.

– Lílian. – deito no sofá para ouvir o chamado do Apolo. Ele foi para o chão e está meio agachado no tapete, fugindo dos ouvidos atentos da Samira. – A Priscila me chamou para sair.

Priscila é uma das garotas da turma do Apolo. Eles já ficaram por um tempo, antes de eu trancar a faculdade e sumir, então mostro surpresa por saber que ainda tem uma faísca.

– Amanhã, depois da festa. Em um barzinho qualquer aqui da cidade. – ele engole em seco. – Você pode ir comigo?

– Está me chamando pra ser a sua vela?

– Por favor. – ele encolhe os ombros. – Eu não quero sair com ela, mas acabei aceitando porque ela foi legal comigo. E não posso cancelar em cima da hora por causa dos convites pra entrar no bar. Eu consegui um a mais e estava pensando em pedir a ajuda da Sam, mas... – ele hesita. Apolo está plenamente ciente da paixonite que Samira tem por ele, apesar de ela fingir que desconhece o conhecimento dele. – Ajude-me, Obi-Wan Kenobi, você é minha única esperança.

Reviro os olhos.

– Tudo bem, mas você vai esperar eu trocar aquela roupa de fada horrorosa por alguma coisa quente. – Sussurro de volta. Apolo me aperta num abraço esmagador e rouba a minha mantinha em seguida, fugindo com ela em direção ao quarto.

Resignada, caminho até a bancada e me sento numa das banquetas, encarando a gororoba esquisita que a Samira está amassando.

– O que vocês estavam sussurrando? – Ela pergunta desconfiada.

– Apolo queria a minha opinião sobre um encontro mal sucedido.

– Os encontros dele sempre são mal sucedidos.

– Ei, eu ouvi isso! – Ele guincha lá do quarto.


?


Eu nunca senti tanto frio em toda a minha vida.

Meus pés estão congelando, minhas mãos estão congelando e eu parei de sentir o meu nariz há mais ou menos meia hora. O salão dos espelhos deve ter ar condicionado vinte e quatro horas por dia, só isso explica esse clima antártico.

Samira conseguiu, com um milagre, trocar a meia-calça fina da fantasia por uma mais grossa da mesma cor, e arranjou um cardigã num tom de azul-esverdeado que combinou com o vestido de fada. Eu sou uma das únicas que se rebelou contra o uniforme de verão para o dia chuvoso que está fazendo, mas a professora não achou ruim.

Cheguei mais cedo para começar a arrumar a decoração e estou de pé num banquinho, tentando não saltitar para esquentar meu corpo, enquanto espero a Natália trazer alguns fios de luz para pendurar no topo de um espelho baixo. Meu corpo está todo distorcido no espelho do outro lado do corredor.

Quando desço e movo o banquinho para o outro lado, a porta do salão se escancara, soprando vento e um pouco de chuva para aquela parte do lugar.

– Argh, odeio chuva. Odeio frente fria. – Abraço meus braços, saudosa da quentura que a minha manta oferecia naquela manhã chuvosa. Eu poderia estar no apartamento, dormindo debaixo de uma coberta felpuda, mas não. Estou aqui, vestida de fada, tremendo dos pés à cabeça.

– Eu disse que não ia dar certo trazer essa caixa de som. Olha só, você tá todo ensopado! – A porta se abre mais uma vez e a voz familiar da professora Lena vem de lá. Espio pelo corredor para ver quem chegou com ela e claro que é o Gregório.

Ele deixa a caixa de som, coberta por uma lona preta, ao lado da porta de entrada, e sacode o cabelo encharcado como se fosse um cachorro. Duas garotas próximas dali dão gritinhos ao receberem esguichos de água, e recebem o sorriso de desculpas dele em retorno.

– Se importa de ajudar as meninas com os fios de luz, querido? Aqui dentro está quentinho, aí você tem tempo de se secar. – Quentinho? Não sei se fico indignada com a mentira descarada ou com o fato de ela ter convidado o Gregório, justamente ele, para ajudar.

Parece que algumas situações existem para testar a minha habilidade de manter a calma. Quando Gregório começa a andar na nossa direção, o tempo congela por alguns segundos, se tornando um infinito oceano de momentos.

Meu olhar vai do seu rosto, com os fios de cabelo molhados grudados em sua testa, para a camiseta branca presa ao seu tronco. Gregório é magro, mas sua barriga tem o princípio de um abdômen trincado. Discreto e atraente, como tudo nele. O modo como o tecido claro gruda em sua pele me tira um pouco do ar, porque faz com que eu me lembre das vezes em que o vi sem camisa, das vezes em que toquei e beijei cada centímetro dele. Sim, está quente aqui dentro. De repente o salão dos espelhos virou uma fornalha.

Gregório se aproxima de nós, as botas de trilha, esfarrapadas como o jeans que ele usa, fazendo sons molhados conforme seus passos adentram o salão. Seus olhos esbarram em mim e se prendem a mim, e eu quase cambaleio para fora do banquinho por causa da intensidade neles presente.

Vejo o seu peito subir e descer com um pouco de descontrole enquanto ele desliza a observação pelo meu corpo, me tocando sem se aproximar.

O vestido que estou usando é justo no tronco, e a saia leve é feita de várias camadas de cetim, o que a deixa esvoaçando ao meu redor quando ando. O pessoal do figurino fez um belo trabalho usando tecidos de todas as cores, transformando as fadas em um arco-íris ambulante. O busto em formato de coração aperta meus seios e o decote é discreto, mas nem tanto. Samira me ajudou a passar pó brilhante no meu colo, e eu nem precisaria de blush nas bochechas, porque o olhar do Gregório colore o meu rosto com o mais vibrante vermelho.

Eu reconheço a sua expressão, o desejo na maneira com que ele engole em seco, o leve franzido entre suas sobrancelhas. Seu lábio inferior está preso em uma mordida, e, céus, eu queria pular desse banco e arrancar dele um beijo que faria todos os espelhos daqui se quebrarem.

Natália joga uma toalha na direção dele, e Gregório a pega habilmente. Descongelada, eu desvio a atenção até a minha tarefa, determinada a colocar os últimos fios de luz antes que Gregório tenha a chance de ajudar. Se ele ficar tão próximo de mim com aquela camiseta molhada e aquele olhar faminto, não sei como vou reagir.

– Onde eu posso pegar outro pano pra secar essa bagunça? – Ouço Gregório perguntar, e sua voz rebate ainda mais descontrole em meus nervos.

– Lílian, pode buscar um pano? – Natália está pendurada num dos espelhos, lutando para encaixar o fio de luz no topo dele. – Eu estou no meio de uma coisa.

Esbaforida e tentando não demonstrar indignação, eu desço do banco e aceno em concordância. A Natália não consegue me ajudar nem quando eu preciso.

Meus passos são firmes demais, ou apressados demais, e num minuto eu estou de pé e no outro estou deitada no chão, olhando para o teto preto do salão de espelhos. A dor chega até atrás da minha cabeça um instante depois.

– Nossa. – Fecho os olhos. Ele queria um pano para secar o chão. O chão molhado em que eu escorreguei. Jesus, Lílian, como você ainda não se matou? Lembro-me da voz do Téo me dizendo isso, alguns anos atrás, em um dos meus muitos acidentes domésticos.

– Ai minha mãezinha amada, você tá bem? – Natália vem até mim, tomando cuidado onde pisa. Por sorte, todos os meus colegas estão espalhados demais pelo salão, de modo que só ela e Gregório assistiram o tombo.

Gregório, aliás, se ajoelha ao meu lado no instante em que eu levanto o rosto.

Ele examina a minha cabeça e então o chão, provavelmente procurando por alguma poça de sangue, o que não seria novidade na carteira do meu plano de saúde.

– Foi muito vergonhoso? – Sussurro, buscando seu olhar. Gregório parece surpreso pelo contato, e me encara com um que de preocupação. Será que acha que eu só estou falando com ele porque bati a cabeça?

– Não. Já vi tombos piores. – ele sorri, e isso me quebra. – Acha que está bem pra ficar de pé?

– Sim. – Tento apoiar as mãos no chão para me levantar, mas ele as segura antes disso. O toque é incendiário, desliza eletricidade sob a minha pele, faz a chuva e o frio irem embora, deixando apenas a sua presença calorosa. Seus dedos se enroscam aos meus como nas muitas vezes que ele me tocou; cautelosamente, entendendo a minha reação, e então me segurando com a firmeza que eu desejo. Gregório me põe de pé num puxão delicado, e seguro as suas mãos contra as minhas por mais alguns segundos.

– Suas mãos estão congelando. – Ele acaricia a palma delas com seu toque. Apesar de ter sido Gregório a tomar chuva, sou eu perdendo de dez a zero para o tempo lá fora.

– Eu odeio frio. Você sabe. – Resmungo, e o sorriso dele se ergue um pouco mais. Gregório desliza a carícia para o meu pulso, e estou bastante ciente de que ele pode sentir a minha pulsação ficando mais rápida e ansiosa.

– Vou pedir pra professora pegar um pouco de gelo pra você. Ai, nossa, hoje não é dia de ter uma concussão, Lílian, nós precisamos da sua cabeça inteirinha aqui pra ajudar! – Natália sai em passos largos dizendo mais um monte de coisas sobre a apresentação. Eu gostaria de corrigir e dizer que a culpa dessa minha expressão desnorteada é o olhar do garoto que eu amo, mas Gregório se afasta antes que eu tenha a chance de formular alguma frase.


?


Samira me entrega uma mochila com as minhas roupas quando a apresentação está quase no fim. Nós estamos atrás dos espelhos, assistindo o facho de luz que acompanhou Oberon e Titânia durante toda sua discussão. O som não deu problema durante os trinta minutos de apresentação, e a gravação da música também não falhou – ninguém quis se arriscar a cantar ao vivo.

A professora Lena está parada ao meu lado, emocionada e saltitante, vestida de fada só porque quis participar com a gente. Apesar de todo o trabalho e de todas as situações constrangedoras, esse primeiro mês que se passou foi agradável pra criar um clima de familiaridade entre a nossa turma; eu já me sinto parte de um grupo. A ideia de trabalhar com eles em mais projetos daqui para frente não me deixa nervosa, mas ansiosa.

A apresentação tem fim e a professora Lena chama todos os alunos, que estavam espalhados por vários corredores de espelhos, para um grupo apertado de modo a receber os aplausos de quem estava assistindo. Para um salão tão pequeno, coube muita gente aqui.

Procuro Gregório com o olhar, mas ele já deve ter ido embora. Depois de ajudar com as caixas de som e com o ajuste do equipamento, ouvi a professora dizendo que estava dispensado; ele não tinha porque ficar.

O salão é fechado para que a gente desarrume a montagem da floresta nos espelhos e, com a ajuda de todo mundo, levamos uns vinte minutos para deixar tudo como estava. Lena nos dispensa para ir até a festa e participar de outras atividades, e eu peço um segundo para me trocar atrás de um dos espelhos. Lá fora está frio e os banheiros químicos costumam ser um problema; Apolo quer se encontrar comigo daqui a pouco para que eu o acompanhe como castiçal em seu encontro, e preciso tirar essa aparência de fada de mim.

Deixo a meia-calça de lã, mas visto minha calça jeans por cima. O fecho do vestido me atrapalha, e estou concentrada em soltá-lo quando a porta de entrada abre e uma voz diz:

– Professora?

– Aqui, Gregório. – Encaro o teto, perguntando ao meu cupido ou quem quer que cuide da minha vida amorosa um sonoro por quê?

– Precisa da minha ajuda?

– Sim, por favor. Se puder separar todo o equipamento da sala de música em um canto, o inspetor vem aqui mais tarde buscar todas as coisas. – ela se afasta de onde eu estou, e eu permaneço congelada, tentando fingir que não estou ali. – Lílian, você já terminou aí?

– Já! – Minto. Agora estou vestindo meia fantasia de fada e meia roupa de humana, que soma o total de uma Lílian desnorteada. Saio de trás do espelho como quem não quer nada, com a mochila pendurada no ombro, e a professora me lança um olhar confuso.

– Mas você ainda está com a fantasia.

– Ah é, eu só estava com frio nas pernas. – Dou de ombros.

– Ótimo. Pode nos ajudar a trazer todas as caixas? – Inspiro silenciosa e profundamente e largo a mochila em um canto. Tudo o que eu não precisava, neste momento, é ter que permanecer aqui por mais tempo.

Lena nos guia pelo labirinto de espelhos, e me finjo interessada num fiapo de tecido que escapa da barra do vestido para não observar nossos reflexos distorcidos. São muitas imagens do Gregório para pouca eu. Levamos duas caixas de som de tamanho mediano até a entrada do salão, e estamos voltando para buscar a terceira quando a professora avisa que “já volta, porque vai buscar o inspetor”.

Gregório me encara, e eu o encaro de volta. O cabelo dele ainda está úmido por ter tomado chuva de novo, e a camiseta branca prende à sua pele em alguns lugares. Ouço o meu coração retumbando dentro da minha cabeça enquanto observo os dois cordões em seu pescoço; um que sempre foi seu, e o outro que eu lhe dei. O segundo significa tanto para nós dois que eu me sinto extremamente mal por não ter resgatado o meu do fundo da mala. Gregório me entregou um segredo e isso deveria estar comigo sempre.

– Você ainda usa o meu segredo.

Gregório segura o cordão entre os dedos, puxando-o para fora da camiseta. O pingente que eu ganhei da minha avó, de um colar que eu nunca usei, foi o que eu escolhi para dar. Ele significava muito para mim, assim como o garoto que o carrega.

– Você não está com o meu. – Ele murmura de volta, o olhar sombrio e solitário sobre o objeto entre seus dedos.

Respiro fundo, confusa e arrependida.

Gregório começa a andar, seguindo pelo corredor em direção ao labirinto de espelhos. Eu vou atrás, determinada.

– Nós podemos conversar?

Ele não me dá atenção.

– Gregório. – Apresso os passos e tomo a dianteira, parando à sua frente. Ele estaca em resposta, a expressão confusa em um primeiro instante, então irritada.

– Sobre o que você quer conversar?

– Sobre nós.

Gregório bufa e me dá as costas, mas eu sou teimosa o suficiente para dar a volta nele e empurrá-lo, impedindo que ele volte pelo corredor.

– Você me procurou semanas atrás. – prossigo, e ele parece chocado e magoado pela revelação do meu conhecimento sobre isso. – A Samira não sabe guardar segredos. – explico. – Eu sinto a sua falta. E eu quero pedir desculpas por tudo que...

– Não.

– Gregório. – Sussurro o seu nome. Por um segundo, acho que ele vai se afastar. Que vai se embrenhar no labirinto de espelhos e que vai desaparecer como fez nas últimas vezes. Mas ele dá um passo à frente, e sua presença é tão confortante quanto familiar.

– Por que você se importa, Lílian? – Sua fala não é mais do que um murmúrio perdido. Ele paira o olhar sobre o meu, mas não tem nada além de solidão dentro dele. Quero saber se ele se refere a nós e à minha insistência. Quero saber se o tom dele é desamparado porque ele também se importa, ou se é porque está cansado.

– Eu deixei o seu segredo guardado porque fiquei com medo de perder como eu tinha te perdido. – abaixo o rosto, encarando o colar com o meu pingente contra a sua pele pálida. Vejo o peito dele subir e descer com a respiração pesada, sinto o calor do seu corpo próximo do meu. – Gregório, me desc...

– Por favor. – ele implora. – Agora não.

A rejeição machuca. O fato de ele não querer as minhas desculpas traz um frio desagradável ao meu peito, uma sensação de que eu estava certa aquele tempo todo. Não adianta tentar consertar uma coisa quebrada, não quando essa coisa éramos nós dois.

– Isso me deixa tão... confuso. Eu sinto tanto a sua falta, Lírio. – Ergo o rosto para ele, confusa com a sua fala, pelo apelido bobo de antigamente. Gregório dá mais um passo à frente, e um suspiro é tudo o que existe entre o seu rosto e o meu.

Eu o beijo.

Seguro o seu rosto entre as minhas mãos e fico na ponta dos pés para alcançar sua boca, e a doçura dela contra a minha me faz sentir em casa.

Gregório se afasta.

– Desculpe. – minha voz é um sussurro. Gregório me encara com calma, as sobrancelhas levemente franzidas. – Não é justo com você. Eu não devia ter feito isso.

Seus dedos gentis afastam alguns fios de cabelo do meu rosto, e então ele segura a lateral para me beijar de volta. Um mero toque dos seus lábios e eu estou em chamas; Gregório dá um passo para frente, e eu para trás, e de repente a superfície fria de um espelho toca a pele das minhas costas. Gregório entreabre a boca, e eu o beijo de volta com tanta força que arranco um gemido seu. Ele não me deixa retribuir por tempo suficiente, porque afasta os lábios para passeá-los pelo contorno do meu queixo, fazendo com que eu erga o rosto para que ele alcance meu pescoço. Gregório beija a base, o calor da sua respiração contra a minha pele.

Minhas unhas estão apertando seus braços antes que eu consiga me conter, e ele aperta os lábios contra os meus depois disso. Esse beijo dita saudade. Gregório morde meu lábio de leve, delicado, torturante, e eu me aperto contra o seu corpo, ansiando por ele.

Sua língua toca a minha, e de repente o beijo desesperado se torna febril. Gregório pressiona os dedos sobre a lateral do meu rosto, uma firmeza gentil, os anéis frios contrastando com a quentura que escorre por minha pele.

Estou sem controle sobre minhas mãos, e minhas pernas derretem sob mim. Ele desce o toque lento pela lateral do meu corpo, trilhando e apertando as partes que mais me tiram a sanidade. Quando ele chega à minha perna, sua outra mão repete o caminho, e de repente minhas pernas estão em volta do seu quadril e minhas costas estão apertadas contra o espelho e eu entreabro os olhos para ver centenas de nós refletidos no corredor do labirinto.

Gregório aperta nossos corpos, e um arquejo escapa da minha boca ao senti-lo. Trilho o contorno do seu queixo e ele fecha os olhos debaixo do meu toque. Há qualquer coisa serena em suas feições, mas é uma serenidade desamparada. Gregório apoia a testa contra a minha, a ponta do seu nariz acaricia a ponta do meu, e sua expressão se torna um mar de saudade.

– Me beije como se eu nunca tivesse partido o seu coração. – Faço o pedido egoísta. Seu corpo todo está preso ao meu, suas mãos apertadas sobre as minhas coxas, seu desejo intrincado ao que incendeia meus pensamentos e cobre meus nervos, mas eu espero. Preciso ter certeza de que seu coração está tão quebrado quanto o meu.

O beijo seguinte é gentil e fervoroso.

Gregório pressiona nossos lábios com força e carinho, escreve uma poesia em mim; seu toque trilha o contorno dos meus seios, apertando-me com tanta força que estou prestes a me fundir com os batimentos do seu coração. Suas mãos voltam até minhas coxas e eu desvaneço quando seu polegar trilha o interior delas, aventurando-se mais e mais e me tocando com força e familiaridade até que o mundo parece estar em chamas.

A porta se escancara lá na frente do salão. Sinto como se todos os espelhos à nossa volta se estilhaçassem. Gregório me ajuda a ficar de pé e se afasta, empurrando o cabelo para trás enquanto me encara com um olhar assombrado.

Seu toque está em cada parte de mim, e meu corpo parece latejar ansiando pelo fim do incêndio que ele tinha começado.

Gregório engole em seco e desvia o olhar, pegando a caixa que faltava ser levada para a entrada. Passo os dedos pelo meu cabelo, afastando os fios do meu rosto. Noto um pouco do brilho que estava em mim na camiseta e nos braços e provavelmente nos lábios do Gregório e suspiro.

– Ah, aí estão vocês! – quero me esconder dentro de um espelho quando a professora aparece no fim do corredor. Ela não parece notar que houve uma combustão no recinto. – Gregório, querido, Deus te abençoe pela ajuda.

Ele solta a caixa, põe as mãos nos bolsos da jaqueta e se recusa a encontrar o meu olhar, mesmo que eu procure o seu. Gregório se despede da Lena e sai pela porta, apressado. Bufando, pego a mochila e vou atrás dele.

– Ei! – está chovendo um dilúvio aqui fora, e ele para debaixo da chuva para me encarar. – Você não respondeu minha pergunta. Podemos conversar? – Não quero sair de debaixo do toldo, mas se ele não vier até aqui, vou fazer isso.

– Lílian. – Ele suspira o meu nome, frustrado. Em passos firmes, eu me enfio debaixo do toró, parando bem à sua frente, como em momentos atrás. Apesar da lembrança dos seus toques, eu quero manter o foco e consertar as coisas. Quero que nossos beijos sejam mais do que acidentes no salão dos espelhos. Quero poder olhar para o Gregório sem me importar com a dor que isso causa em seu coração.

– Eu quero consertar as coisas. – minha voz sai mais irritada do que determinada, mas algo em seu olhar se acende, menos perdido do que antes. – Quero consertar a gente. Por favor, Gregório, me diz que eu não estou te entendendo errado. Diz que aquele beijo significou alguma coisa.

– Você sabe que significou tudo. – Seu olhar grita sobre o meu, e eu sorrio para surpreendê-lo.

– Eu estava errada sobre não poder reescrever as coisas.

– Lílian. – o tom de voz dele faz algo em mim desmoronar. – Eu ainda... Não consigo. Desculpe.

Eu me arrependo por ter trazido isso à tona. A fragilidade, o medo e a tristeza no rosto dele me quebram.

– Eu não posso, desculpe.


Aquele com o pub

 

ANTES


Entrego o convite para o segurança na porta, que é ninguém menos que um colega da minha turma de Engenharia, e sou recebida por um ambiente cheio de gente e de barulho. Está fresquinho aqui dentro, diferente do clima abafado lá fora.

Samira vai me encontrar mais tarde. Aparentemente, ela conhece um cara que conhece um cara e descolou um ingresso também. Sam passou parte da tarde num elaborado trabalho descolorindo algumas mechas do seu cabelo, então quer arrumá-lo decentemente antes de vir para cá.

Encontro uma mesa vazia, daqueles tipos que mal comportam três pessoas sentadas em volta. Corro até lá e ocupo um dos bancos, procurando um rosto conhecido em meio às pessoas espalhadas pelo recinto.

O palco lá na frente está vazio, iluminado por roxo e azul. Várias dessas mesas, e outras maiores, espalham-se pelo primeiro piso, que fica a dois degraus extensos de distância. O segundo é ocupado por poltronas individuais em grupos de quatro, e todas estão cheias, seja por grupos de amigos como por namorados. O último degrau é onde eu estou. Com o queixo apoiado na mão, bufo a franja para longe do meu olho. Não vejo o Gregório em lugar algum.

Será que ele vai me dar um bolo? Achou que eu fui insistente e precipitada demais? Será que ele não gostou do meu beijo?

Uma moça vestindo o uniforme do pub se aproxima da minha mesa. Ela está com o cabelo preso, tem um avental preto em frente à calça azul fluorescente e veste uma regata branca.

– Oi. Vai querer alguma coisa ou só veio participar do show?

– Eu quero uma cerveja, por favor.

– Por minha conta. – Pulo quando um braço se estende atrás da minha cadeira. Por cima do ombro, encaro um rosto familiar.

– Hã... Oi! – O cara que me atropelou lá na praça está parado ao meu lado.

Eu faço uma careta confusa porque não entendo a sua presença, assim como não me lembro do seu nome.

Ele está muito bem vestido para quem veio a um pub assistir um karaokê. A camisa polo é vermelha e fica bem contra a sua pele bronzeada, os olhos são escuros e seu cabelo é preto como carvão. Seus braços são fortes, e ele parece bastante ciente e orgulhoso disso. Especialmente pela maneira com que flexiona o bíceps apoiado na minha mesa.

– Não se lembra do meu nome, né? – Ele pergunta sem graça, e eu franzo o nariz ao sorrir.

– Desculpa.

– Breno.

– Lílian. – Estendo a mão e ele a aceita de imediato. O cumprimento é firme e educado.

– Está esperando alguém? – Breno recua um pouco.

– Estou. – ergo os ombros. – Mas nenhum sinal dele.

– Ah, é um ele.

– É. Mas, ei, pode ficar à vontade e sentar aí enquanto isso. Assim eu não fico sozinha. – espero que ele não interprete isso como alguma tentativa de ganhar a sua atenção. Eu realmente só estou sendo simpática. Breno sorri e agradece, tomando o assento à minha frente; ele é muito mais alto do que eu, e a postura firme deixa sua coluna ereta, ganhando mais alguns centímetros. – E então... Eu ganhei uma bebida? Por quê?

– Bom, eu nunca compensei por ter te derrubado. – ele apoia os antebraços na mesa, inclinando um pouco o corpo na minha direção. – Você é nova aqui na universidade, né?

– Sim. Primeiro semestre. – Ergo um brinde invisível, porque minha bebida ainda não chegou.

– Ah, bom.

– Ah bom por quê?

– Eu me lembraria de ter te visto. – Reviro os olhos dramaticamente, arrancando um riso sonoro dele. Breno tem um sorriso grandioso, e é bonito o suficiente para me deixar desnorteada. Mas tem outro sorriso, um mais raro, que pertence a outro rapaz, e é atrás dele que eu estou agora.

– Lílian! – fico de pé quando ouço o grito. Samira está acenando para mim da porta de entrada, se certificando de que sou eu – ela deve ter esquecido as lentes de contato – para vir até nós. Ela esbarra em meia dúzia de passantes antes de me alcançar, esbaforida, mas incrivelmente bem arrumada. Seu cabelo liso está armado por cachos desfiados, e as cores pálidas das mechas recentes misturam-se ao tom escuro natural. Seu vestido de lantejoulas é furta-cor, então cintila as luzes que colorem o pub. De salto ela quase fica maior do que. Quase.

– Achei que fosse demorar mais.

– Eu também. – ela empurra um fio para longe do rosto. – Mas desisti de esperar o calor tirar a umidade do meu cabelo, então usei o secador. – os olhos dela passeiam pelo pub e então param sobre Breno, meio deslocado no banco que ocupa. Eu lhe lanço um olhar de desculpas. – Ué?

– Samira, esse é o Breno. – Eles se cumprimentam sucintamente, e vejo o olhar da Samira se demorando sobre os braços fortes dele.

– Eu já ouvi falar sobre o Breno? – Ela sussurra, os olhos brilhando em interesse.

– O Breno é o cara da praça.

– Achei que o cara da praça fosse o Gregório.

– Não, o outro cara!

– O que derrubou ela. – Breno nos interrompe com um sorriso divertido. – Olá.

– Ah, sim, ela mencionou você. – Samira me lança um olhar carregado, provavelmente me odiando por não ter mencionado que o cara que esbarrou em mim era gostoso. A culpa não era minha se eu estava abalada demais com meus joelhos ralados pra reparar na beleza dele; até porque o Gregório também estava lá. E ele é mais bonito.

Noto que, durante meu devaneio, os dois engataram uma conversa sobre desastres acidentais e corridas matinais – Samira é uma mentirosa e eu vou beliscá-la mais tarde por fingir que gosta de se exercitar. Quando a garçonete traz minha cerveja, Samira e Breno pedem mais duas para eles, e eu estou prestes a me incluir na conversa quando vejo a figura que estive procurando desde que cheguei.

Gregório está parado num corredor lateral ao palco, com as mãos nos bolsos da jaqueta esfarrapada. Ele se balança nos calcanhares e tem uma expressão pensativa no rosto, e tento entender o que o detém naquele canto escuro até que ele ergue o olhar para mim. E arregala os olhos quando percebe que está sendo observado.

Sorrindo, eu peço licença para meus acompanhantes, que mal parecem notar o meu sumiço, e ziguezagueio entre as pessoas para chegar até aquele corredor. Luzes em neon numa placa ao fundo indicam os sanitários, além do camarim dos músicos. Deve ser de lá que o Gregório veio.

Paro do lado oposto ao dele, me encostando à parede. Cruzo os braços com mais displicência, buscando o seu olhar.

– Oi. – ele diz, me encarando discretamente. – Eu não quis atrapalhar.

– Você não atrapalha nada. – sorrio. – Eu já estava de vela ali de qualquer maneira. – ergo a cerveja e arqueio as sobrancelhas. – Você chegou faz muito tempo?

– Meia hora.

Faço uma careta indignada.

– Eu estava te procurando!

– Não achei que você viria. – a sinceridade dele me pega desprevenida. Todo o humor da minha expressão se esvai, substituído por surpresa. – Ninguém gosta muito desse lugar, e as sextas-feiras têm atrações mais legais aqui pela cidade.

– Mas aqui estou. Me conta sobre esse pub. Como funcionam as apresentações?

O canto esquerdo da sua boca se curva sutilmente, e Gregório balança a cabeça ao se aproximar de mim. Meu corpo todo responde à proximidade, especialmente ao me lembrar do beijo em frente à sorveteria. Esbarro o olhar sobre seus lábios e viro um gole da cerveja, porque não estou pronta para resistir a esse garoto sem um pouco de álcool em mim.

– Eles fazem um campeonato de karaokê nas sextas-feiras. – Gregório apoia o ombro na parede ao meu lado, de modo que seu rosto paire a uma distância enlouquecedora do meu. Faço a minha melhor expressão de concentração, desviando o olhar para o palco iluminado e vazio. Gregório espia por cima do ombro para continuar a explicação: - Hoje, por exemplo, vai ser o campeonato do pensa-rápido.

– Que consiste...?

– Eles vão dizer uma palavra. Você só tem que se lembrar de uma música que tenha essa palavra e apertar a buzina que vão colocar na sua mesa. Aí é só cantar.

– Na frente de toda essa gente?

Ele sorri na minha direção.

– Basicamente isso. – seu olhar tem um que de desafio. – Você tem vergonha?

– Eu não sou exatamente a Whitney Houston.

Gregório cruza os braços ao gargalhar. Ele se inclina um pouco mais contra a parede, diminuindo a distância entre nós.

– Eu também não gosto muito de me apresentar para um público.

– Mas você é um cantor!

– É desconfortável. – ele franze o nariz adoravelmente. – Mas eu tenho um segredo.

– E pode dividir comigo?

O sorriso dele fica misterioso.

– Existe o jeito certo de se dividir um segredo. – ele se aproxima mais. A ponta dos seus coturnos toca na das minhas sandálias. Nossos corpos estão separados por um espaço tão mínimo que qualquer pessoa observando de longe poderia achar que estamos nos beijando. – Você precisa de um objeto especial, e precisa sussurrar esse segredo para guardá-lo no objeto. Assim, só a pessoa que possui esse amuleto conhece o que está escondido nele.

– Quem te ensinou isso?

– Minha mãe. – Os olhos verdes dele ficam sombrios.

– Eu não trouxe nenhum objeto especial comigo. – lamento, tentando desviar sua atenção para longe daquele mar lamurioso. Parece funcionar, mesmo que sutilmente. – Espera. – busco nos bolsos da minha jardineira, certa de que o botão extra está ali. Minha mãe sempre me fez prometer que nunca o tiraria, já que se chamava botão extra por um motivo extremamente importante: ele te salvava de situações constrangedoras. – Aqui. – ergo o pequeno objeto entre meus dedos. – Acha que serve?

A expressão de Gregório se suaviza e fica encantada. O novo sorriso é diferente de tudo o que eu vi até agora.

– O quê?

– Você é surpreendente. – ele murmura. O olhar se prende ao meu. – Feche os olhos. – o pedido descarrega uma quantidade anormal de energia pelo meu corpo, mas eu o faço. Gregório se aproxima um pouco mais, o suficiente para que sua boca roce contra a lateral do meu rosto, mas não o bastante para me tocar com ela. Ele segura o botão entre os dedos cheios de anéis e sussurra: - Pense na última coisa que mais te fez feliz e se esqueça do resto.

Eu me afasto.

– Pra você é fácil falar, é profissional naquilo. – Aponto para o palco, recebendo o riso dele em retorno.

– Seu segredo. – Ele me estende o botão, e eu o recebo com um sorriso de desculpas.

– Obrigada. – Seguro sua mão antes que Gregório se afaste. Ele observa nossos dedos entrelaçados e demora a atenção sobre eles, o que faz com que eu me pergunte sobre estar agindo da maneira certa. Ainda é muito difícil ler esse garoto.

Quando recebo o seu olhar de volta, no entanto, há tanta ansiedade e desejo que quase perco o equilíbrio.

Meu celular vibra no bolso de trás.

– Alô?

– Lílian?

– Mônica? – Curvo a cabeça.

– Eu não acredito que você não me tem no seu identificador de chamada. – rio abertamente, pedindo licença para Gregório com um “já volto”. – Pra quem você falou que já volta?

– Mônica, por que você está me ligando a essa hora? Aconteceu alguma coisa?

– Ah. – quase consigo imaginar o seu rosto nesse momento. O tom de voz diz que ela está envergonhada pela pergunta, e eu sorrio em consideração e saudade. – Eu só queria conversar, já que você não ligou desde a semana retrasada. – Fecho os olhos com força, me recostando na parede do corredor.

– Desculpa. – sussurro. – Eu me perdi aqui.

– Não, que isso! – ela ergue a voz. – Eu estou feliz por saber que você tá se encontrando nesse lugar novo. Deve ser muito legal.

– É bem legal. – sorrio, alegre por ter reencontrado o seu tom entusiasmado. – O curso é meio puxado, mas eu já estava preparada. Eu te falei da Sam e do Apolo né? Eles são tão legais, Mô. Preciso apresentar vocês. Tem muita coisa acontecendo que eu preciso te contar!

– Eu imagino. Todo mundo aqui está com saudade.

– Os trigêmeos estão bem?

– O Henrique caiu na semana passada, mas nada grave. – ela conta. – A Susana ainda quer me sufocar com um travesseiro e o Tampa acha que cresceu três centímetros, mas na verdade foram dois.

– O papai e a mamãe?

– Brigando por causa da torradeira. – eu e ela rimos no mesmo instante. A saudade de me deitar no sofá ao seu lado durante uma das nossas importantes maratonas de filmes de terror – mesmo que Mônica nunca assistisse nada sem um travesseiro na frente do rosto – me deixa um pouco entristecida. Eu gostaria de tê-la ali, comigo, como sempre foi. – Você ainda tá aí?

– Estou pensando.

– Você faz muito isso.

– Olha quem fala!

– Onde você está nesse momento?

– Em um pub. – espio a esquina do corredor e vejo Gregório conversando com um casal. Pelas vestimentas, eles parecem trabalhar aqui. Ele me encara por cima do ombro e aperta os lábios em um sorriso encorajador. – Tem uma noite de competição de música ou algo assim.

– E você está acompanhada? – Reviro os olhos pelo tom malicioso.

– Não. – não sei por que minto, mas a resposta sai curta e rápida. Talvez o fato de ser muito recente, de o Gregório ainda ser uma incógnita; esses detalhes impulsionem algum autocontrole em mim. Não quero falar para a Mônica, porque isso significa que ela vai ficar sonhadora e ansiosa para saber das novidades. E eu não sei se vou ter alguma novidade em qualquer momento das próximas semanas; eu e ele só nos beijamos uma vez. Foi ótimo, mas também não foi nada demais. Não a ponto de eu contar para a Mônica assim, subitamente. – A Samira está aqui, mas ela me trocou pelo cara que me atropelou na praça.

– Alguém te atropelou?

– Eu esqueci de contar? – vejo o Gregório começar a acompanhar o casal pelo corredor e fico um pouco decepcionada por ser deixada para trás. – Bom, eu fui fazer a minha caminhada matinal há um tempinho e...

– AI MEU DEUS, HENRIQUE, DESCE JÁ DAÍ! A MAMÃE VAI TE MATAR E DEPOIS ME MATA JUNTO! – afasto o celular da orelha, ouvindo um zumbido em consequência daquele grito agudo. – Eu te ligo mais tarde, preciso... – A ligação cai. Se estivéssemos em um filme de terror, esse seria o momento em que acontece um gancho de tensão e a música desesperadora começa a tocar. Mas é só a vida dos Garcia, e o Henrique deve estar se pendurando em algum móvel enquanto a Mônica tem que cuidar dele e dos outros dois bagunceiros.

Estou sorrindo para o celular ao pensar naquelas quatro pestes quando Gregório para ao meu lado.

– Tudo bem? – O olhar dele é um pouco curioso sobre o meu rosto, no que eu respondo com uma careta bem humorada.

– Irmã caçula. E irmão se pendurando em um móvel enquanto os outros dois sobressalentes provavelmente aprontam alguma coisa. – Ele crispa os lábios e então sorri.

– São todos mais novos que você?

– Tem um mais velho. – penso em Téo e acho engraçado como a sua ausência não machuca tanto quanto a da Mônica. Deve ser porque ele sempre puxava o meu cabelo e me empurrava nas brincadeiras. – Daí tem os quatro caçulas. Trigêmeos e uma que assumiu o turno de babá do momento.

– Era seu trabalho?

– Ufa. – Brinco.

Quando Gregório para na beira da escadaria, com as mãos nos bolsos de novo, vejo uma moça subir no palco para anunciar a disputa. Olho para Gregório e minha respiração fica um pouco descontrolada pela distância entre nossos rostos; estou da altura dele agora que tem um degrau de diferença entre nós.

Ouço um assovio agudo desviando a minha atenção, e Samira gesticula para mim, me chamando de volta para a mesa. Eu faço o inusitado: seguro o braço de Gregório com as duas mãos, puxando-o na direção dos bancos reservados para nós dois. Ele se vira surpreso, mas não se desvencilha nem se livra do meu toque, o que me deixa sorrindo feito boba até que cheguemos à mesa.

– Entregaram essa buzina aqui. – Samira exclama logo que nos sentamos. Gregório ocupa o assento bem ao meu lado, mas sua postura é tão desconfortável que dá dó. – Eu não faço ideia do motivo...

– A palavra é: deserto. – A moça do palco anuncia.

Samira aperta a buzina antes que eu consiga pará-la, e todo o pub cai no silêncio. Gregório morde o lábio inferior e abaixa a cabeça para rir, no que minha melhor amiga exibe um olhar assustado.

– Hã... – O holofote do palco cai sobre nós, e eu estreito os olhos para Samira. Breno, ao lado dela, não parece se importar. Ele realmente está tentando pensar em alguma música com aquela palavra.

– Who the fuck wants to die alone all dried up in the desert sun? – Me surpreendo quando Gregório ergue o rosto e canta aquela frase. Nada em suas feições demonstra nervosismo ou deslocamento. Ele está à vontade, como em poucas das vezes que o vi assim. Sua voz é aquele poema incrível do qual eu me lembro, suave e melódica, e ele baixa o olhar sobre o meu quando canta o trecho seguinte: - My heart is breaking for my sister and the con that she called "love". But when I look into my nephews eyes... – No silêncio do pub, Gregório não precisa de um microfone para ser ouvido. A moça do palco parece reconhecer a música, porque faz um gesto para o pianista, o rapaz que estava conversando com o Gregório há pouco tempo, e ele dedilha algumas notas no teclado do piano elétrico.

– Eu não conheço essa música. – Sussurro para Gregório, recebendo um sorriso brincalhão de volta.

– Man, you wouldn't believe the most amazing things that can come from... Some terrible lies. – a garota no palco continua, erguendo os braços para que as pessoas a acompanhem: - Oh, woah. – O ritmo já chegou às fileiras abaixo de nós, e meus olhos esbarram nas mãos de Gregório, agora apoiadas sobre suas pernas, e no tamborilar bem cronometrado dos seus dedos.

Pela minha careta de confusão, ele se inclina na minha direção e cantarola o começo da música, fugindo do que todo mundo está cantando:

– Some nights, I stay up cashing in my bad luck; some nights, I call it a draw. Some nights, I wish that my lips could build a castle[1]. – Tento imaginar qual é a memória feliz em sua mente agora, enquanto ele canta sem inibições. O que existe em sua mente para tirar o nervosismo do seu olhar verdejante, que recai sobre o meu com mais intensidade do que eu sei aguentar.

– AH, eu conheço essa música! – Exalto, e minha voz se sobressai a de todos. Gregório suspira e ri, e algo na proximidade em que nos encontramos ou na maneira rouca e suave com que ele cantou para mim faz minhas bochechas ficarem vermelhas. A maioria das pessoas ao nosso redor para em meio às risadas, no que a moça do palco declara a partida ganha pela nossa mesa.

– É fácil assim? – Samira gira a buzina em mãos, armando uma expressão vitoriosa. – Vai ser moleza.

– É, eu percebi como você estava preparada para a competição. – Retruco.

– Viu? – Gregório cutuca o meu braço de leve, me surpreendendo pelo contato e pela irreverência em seu olhar. – Não é tão difícil.

– Você tem um repertório cheio de músicas. Eu conheço... Algumas. – Ele balança a cabeça enquanto ri.

– Posso te ajudar com isso. – Algo na sua fala traz um arrepio aos meus braços. Estreito os olhos, curiosa, mas a moça do palco já está de volta ao microfone, anunciando a próxima canção.


?


Já passa da meia-noite e o calor abafado de antes se transformou numa brisa insistente; ok, agora estou me arrependendo de não ter vestido calças. Saímos do pub para uma calçada vazia, com a noite estrelada acima de nós.

Gregório sopra uma mecha do cabelo para longe do rosto quando Samira encosta ao meu lado.

– Eu vou pegar carona pra casa com o bonitão. – Ela sussurra.

– Mas o seu apartamento fica a duas quadras daqui.

– Ele não precisa saber disso. – Samira me entrega o seu sorriso mais malicioso, no que eu reviro os olhos e desejo boa sorte. Breno se demora esperando por minha amiga, e me dedica um sorriso e um aceno entusiasmado antes de se dirigir para o sedan estacionado a alguns carros de distância. Longe ou não, Samira vai ter uma viagem confortável.

– Me manda uma mensagem quando chegar lá! – Sibilo. Meu caminho até a república é um pouco mais demorado, mas quero ter certeza de que a Sam chegou bem. Ela ergue o polegar em concordância e se vai.

– Então... – giro nos calcanhares para encarar Gregório. Ele inclina a cabeça de lado, me examinando com curiosidade. – Você quer passear comigo por algumas quadras até a república?

– Sem problema.

A caminhada começa silenciosa. Mantenho-me à esquerda dele, próxima o bastante para sentir o seu perfume, uma colônia suave e amendoada, mas longe o suficiente para ser educada.

– Eu ainda não acredito que você não conhece Bon Jovi. – Ele diz de repente, as sobrancelhas franzidas em indignação. Eu abro a boca, mas acabo rindo porque não sei o que dizer.

– Eu tive uma infância cheia de músicas aleatórias. Meus pais nunca foram fãs de uma banda específica para me iniciar na religião de adoração a uma delas. – Tento me defender, mas Gregório só mexe a cabeça, absolutamente chocado.

– É Bon Jovi!

– Aposto como você não sabe quem é George Romero! – Retruco, sentindo as orelhas queimarem. Ok, é um pouco vergonhoso. Muito vergonhoso. Qual é, eu queria ser maneira e conseguir cantar todas aquelas músicas igual à Samira fez, mas, de todas, eu só acertei Faroeste Caboclo. Tudo porque meu pai adorava músicas com mais de seis minutos de duração, e havia poucas que se encaixavam nessa Playlist.

Gregório ergue as mãos, fingindo rendição.

– Você conhece Queen?

– Ah! – escondo o rosto nas mãos, ouvindo sua gargalhada em resposta. – Sim, eu conheço Queen. E Beatles e os Stones. Eu ouvi muito de muita coisa, por isso é difícil identificar. – Cruzo os braços em uma pose defensiva, mas estou um pouco feliz, ainda que moralmente humilhada, por estar conseguindo tantas reações abertas do Gregório. O fato de ele ainda estar sorrindo diz muito sobre o que estamos vivendo, o que quer que seja isso.

– Once upon a time, not so long ago... [2]– faço uma careta. – Tommy used to work on the docks. Union's been on strike, he’s down on his luck. It's tough. So tough. – Reviro os olhos, apesar de apreciar o show particular. Preciso impedir o sorriso bobo de surgir no meu rosto, porque Gregório está cantando para mim. Só para mim. Não tem mais ninguém na rua, e nem no mundo, de repente, e o garoto que antes tinha o olhar mais solitário de todos está sorrindo na minha direção.

– Eu não sei cantar! – ergo as mãos, caso ele queira que eu tente acompanhar. – Mas posso começar a recitar O Corvo, se você preferir.

Gregório perde a pose musical e ri mais uma vez. Observo o leve franzir em seu nariz e admiro o modo como ele inclina a cabeça para trás.

Então Gregório faz uma coisa que me surpreende. Seus braços rodeiam minha cintura, assim, de repente, e ele apoia a testa contra a minha. Tão súbito que tira meu fôlego e minha razão, me deixando de olhos arregalados para a mínima distância entre o seu rosto e o meu.

Debaixo da luz do poste acima de nós, e das estrelas ainda mais acima, o verde os olhos dele se torna uma paleta de tons infinitos. Eu ainda estou estática, congelada em seu abraço, o que faz com que Gregório se afaste um pouco.

– Tudo bem? – Ele pergunta, se referindo a nós, a essa situação, a tudo que nos envolve.

Eu aceno positivamente.

– Estou muito feliz por ter invadido aquela festa. – Gregório confessa, me roubando um sorriso eufórico. O rosto dele está sério e concentrado quando se afasta de novo, e seus olhos estão em minha boca com a ansiedade e a hesitação de antes. Seguro o seu rosto entre minhas mãos e fico na ponta dos pés, mas paro um pouco antes de beijá-lo, deixando que Gregório veja que está tudo bem. Que eu também quero isso.

Ele me beija.


Aquele com o café

 

AGORA


A apresentação da festa de boas-vindas me trouxe três consequências: um resfriado longo e desconfortável, a certeza de que eu ainda estou apaixonada por Gregório e a assombração do seu beijo.

Samira diz que a melhor terapia para uma ressaca amorosa e para um resfriado incurável é uma boa xícara de café. Como o apartamento dela não tem nada nos armários e nem na geladeira – o que me fez anotar um bilhete gigante anunciando que precisamos fazer compras – saímos para um dia muito nublado em busca de um pouco de conforto que a bebida quente vai proporcionar.

Estou agasalhada e ainda assim sinto frio; sei que não é sensato sair de casa com febre, até porque uma brisa vira uma ventania congelante dada a minha temperatura corporal, mas eu não aguento mais ficar naquele quarto. E a Samira, aparentemente, é imune ao que quer que eu tenha, então ela me abraça e me acompanha até o café mais próximo.

Tentei melhorar a minha cara, mas a ponta do nariz está vermelha contra a palidez doentia do meu rosto. Estou com olheiras horríveis e meu cabelo é um ninho de ratos, por isso prendi da melhor maneira possível. A calça de agasalho é a mesma do meu pijama porque não tive coragem de trocá-la antes de sair. Só não vim de pantufas porque ia congelar meus pés. Minhas mãos estão ficando dormentes conforme caminhamos pela calçada e os bolsos do moletom não são suficientes pra esquentar.

O episódio no salão dos espelhos é um tormento. Eu não sei se o que existe nos meus pensamentos é remorso ou decepção, mas imagino que seja uma mistura dos dois. Arrependimento por ter deixado Gregório escapar sem conseguir falar com ele direito e decepção por ele não ter ficado e conversado. Também tem um pouco daquele tilintar debaixo da minha pele, os fios de eletricidade que me conectam a lembrança do beijo. Por um tempo significativo, Gregório foi tudo o que meu corpo conheceu, e então ele se foi. O fato de ter retornado com tanta força e desejo me perturba. Achei que isso tinha passado; achei que aquele semestre longe tivesse servido para eu aceitar a sua ausência.

E de repente ele estava me beijando e as estrelas despencavam sobre a minha cabeça e eu era a Lílian de antes, totalmente apaixonada.

Fungo e tombo a cabeça no ombro da Samira, que me abraça com mais força. Ela ouviu toda a história do salão dos espelhos sem fazer grandes comentários, e depois ficou enlouquecida porque o Gregório não tinha o direito de me beijar daquele jeito e ir embora sem conversar. Apesar de achar que a confusão dele era compreensiva, também me senti assim. Ele havia me beijado, afinal, com mais saudade do que eu era capaz de entender.

Espirro no instante em que Samira abre a porta do Café com Leite, o estabelecimento com o nome menos criativo de Rouxinol, mas que tem o melhor café com leite que já provei. Apesar do tempo chuvoso, está abarrotado de universitários e algumas famílias, todos espremidos nas poucas mesas coloridas que tem ali dentro. Nenhuma da varanda está ocupada, até porque ninguém é louco de ir lá fora tomar chuva.

– Se eu soubesse que ia ter essa fila teria ido até o mercado comprar café. – Samira resmunga, fechando o guarda-chuva com força demais. Espirro de novo, escondendo o rosto na manga do moletom. Não sei dizer com certeza se meu rosto está muito quente ou se minhas mãos é que estão frias demais. – Fica aqui, ô Rudolf. – Samira aperta meus ombros para que eu não me mexa. Fico estática no canto de uma mesa e lanço um olhar de desculpas para o casal que está terminando de juntar o lixo na bandeja. Sento numa das cadeiras logo que eles saem, respirando aliviada por ter onde descansar enquanto a Samira pega nossos cafés.

Checo o celular, mas não tem nenhuma mensagem nova. Mamãe me mandou várias receitas de sopas e xaropes caseiros para ajudar o resfriado a passar e tia Rosa abarrotou meu Whatsapp com mensagens preocupadas. Papai só perguntou se eu tinha tomado chuva e por que eu tinha tomado chuva. Eu não respondi já que lógico que não diria que estava resfriada por ter ficado parada debaixo de um toró vendo o amor da minha vida me deixar para trás.

Mônica está na chácara do Enzo neste fim de semana, o que significa que seu celular não vai captar sinal. É engraçado e inesperado ver a minha irmãzinha desenvolvendo um relacionamento longo assim; não que eu alguma vez tenha duvidado da sua habilidade de se apaixonar, mas mais pela maneira com que ela estava driblando a ansiedade e se tornando mais corajosa a cada dia que passava. O fato de toda a cidade agora ter conhecimento do seu namoro com Enzo, uma aposta e um grande nome do futebol na região, o garoto de ouro de Lagoa Feliz, me alegra. Ela ama aquele menino e ele ama minha irmã e é o que importa.

Respiro pela boca, porque meu nariz está tão trancado quanto o de alguém que recebeu um soco forte na cara. Samira não avançou nem uma pessoa na fila do caixa quando as portas se abrem e três pessoas passam por ela; uma eu reconheço de vista, a outra por várias interações entre nós e a terceira porque é o Gregório, e meu coração descompassa.

Tento mostrar uma postura saudável e confiante, mas estou encolhida em meu casaco, tentando desesperadamente esquentar minhas mãos congeladas. Gregório não me vê imediatamente, mas se vira no instante em que estou soprando meus dedos.

Só alguns metros nos separam, mas seu olhar dita uma distância muito maior. O beijo do salão de espelhos se torna um sonho perdido, seus toques e a profundidade do seu desejo contra mim desaparecem no meu consciente, e tudo o que resta é aquela dúvida insistente: Gregório estava cedendo também? Aquilo tinha significado tanto pra ele quanto pra mim?

Para derrubar ainda mais minha tentativa de postura decidida, espirro e tusso e escondo o rosto nas mangas do moletom porque vários olhares indignados se viram na minha direção. Talvez seja melhor esperar lá fora, no frio e na chuva.

Patrícia, namorada da Mila, passa por mim e me dirige um sorriso constrangido. Ela sempre foi muito expressiva e cheia de vida. Nós nunca chegamos a conversar, mas sempre que interagimos, foi com simpatia. Agora parece se conter por causa do clima que existe entre mim e o seu amigo. Eu não a culpo, por isso sorrio de volta. Alguma coisa muda na expressão dela, me surpreendendo, porque franze as sobrancelhas, lança um olhar rápido na direção do Gregório e vem até mim.

– Oi Lílian. Tá tudo bem? Você parece meio mal.

– É. – fungo. – Tomei chuva outro dia.

– Ah é, eu fiquei sabendo. – Ela arregala os olhos e eu estreito os meus, querendo saber o quanto foi dividido com ela. E qual a escala de sentimentos que Gregório demonstrou ao contar sobre o nosso beijo; eu chorei no colo da Samira. Será que ele chorou no colo da Patrícia e da Mila?

Gregório está parado próximo de nós duas, mas não o suficiente. Ele tem os braços cruzados e parece tão agasalhado quanto eu; luvas escondem os dedos que incendiaram minha pele dias atrás, e o cachecol de lã cobre o segredo que eu lhe dei. Ei, será que ele também pegou um resfriado?

– Você tá sozinha aqui? – Patrícia pergunta, e preciso piscar para encará-la de novo.

– Não. Minha amiga foi comprar café. – gesticulo para Samira e seus cabelos coloridos, de costas para nós. – Café ajuda a curar resfriados. – E corações partidos, penso ao encarar Gregório de novo. Ele não me devolve a atenção.

Sopro minhas mãos, indignada comigo mesma. Que ótima ideia sair de casa com febre.

Patrícia se despede finalmente e dá um tapinha no ombro do Gregório, incitando-o a segui-la. A amiga deles já arranjou uma mesa ao fim da cafeteria, e acena chamando pelos dois.

Franzo as sobrancelhas quando Gregório hesita. Ele finalmente ergue o rosto para mim, e há qualquer coisa preocupada em seu olhar que me deixa sem fala. Ele me observa como se eu estivesse prestes a rachar.

Talvez esteja assim pelo que aconteceu na festa. Talvez seja o arrependimento surgindo, aquele que tinha me deixado em dúvida. Talvez seu olhar seja de pena, e não de consternação.

Quando Gregório tira as luvas e as estende para mim, no entanto, a fragilidade das minhas emoções migram para as minhas ações. Eu não consigo reagir à gentileza repentina.

– Você sempre sentiu muito frio. – Ele sussurra, e eu aceito com a expressão mais abobalhada que consigo formar. A voz dele está um pouco fraca; Gregório também está resfriado. E se importa o bastante para se lembrar de um detalhe sobre mim. Quando o tempo virava assim e as frentes frias traziam seus dezoito graus para Rouxinol – e eu e toda minha frágil resistência ao clima me senti no Alasca -, eu roubava os bolsos e as luvas do Gregório para esquentar as mãos, e às vezes o surpreendia apertando as palmas geladas na pele quente das suas costas. Ele sempre tirou sarro do fato de eu ser fraca contra temperaturas frias e me esquecer das roupas certas para sobreviver a esse clima. O fato de ele estar zombando disso mesmo agora, depois de tudo, me faz rir sem graça.

– Obrigada. – Minha voz está esquisita, mas agradecida. Ele meneia a cabeça, soltando as luvas quando eu as pego. São de lã, meio esfarrapadas, mas confortáveis, e o fato de terem estado em contato com sua pele me deixa ansiosa.

Tusso de novo, fazendo uma careta quando sinto um arranhar na garganta. Qual era a receita da mamãe pra prevenir dor de garganta mesmo?

– Você está bem mesmo, Lílian?

Eu amo a maneira com que ele diz o meu nome. Como se todas as músicas do mundo fossem condensadas em três sílabas. Como se toda a poesia que ele expressa em suas canções se transformassem em uma única palavra. Gregório pode se esquivar de mim, mas eu o conheço bem o suficiente agora. Conheço o bastante dele para entender seus olhares e os sons da sua voz; a hesitação não significa que ele queira se afastar. Significa que ele está tentando e falhando.

– Não. – sussurro, prendendo meu olhar ao seu. – Mas vou ficar. – Prometo, e espero que ele entenda que não falo sobre o resfriado, mas sobre nós dois.


Aquele com o filme de terror

 

ANTES


A frente fria chegou sobre Rouxinol como me avisaram que aconteceria; março é um mês instável. Às vezes faz calor, às vezes faz frio. Às vezes faz os dois. Um surto de gripe pesada caiu sobre vários pontos da cidade, e choveu tanto em um dia que as aulas foram canceladas já que dois campus alagaram por causa de qualquer problema envolvendo o encanamento.

Apolo pegou a gripe primeiro. Ele ficou sozinho no apartamento que dividia com dois colegas de turma, e espalhou a gripe para os rapazes também. Depois, Samira obrigou o nosso adoentado amigo a passar uns dias na casa dela, e admitiu para mim que estava fazendo aquilo porque queria ter certeza de que ele seria bem tratado. A colega de quarto dela estava viajando e só voltaria em quinze dias, o que dava tempo de sobra para Apolo ocupar o quarto extra.

Claro que, trazendo o Apolo para perto, Samira adoeceu, e coube a mim passar uns dias no apartamento dela para garantir que nenhum dos dois afundasse para sempre na cama de tanto espirrar. Quando os dois ficaram bem e o surto de gripe e a frente fria passou – em menos de uma semana, no caso -, aí foi a minha vez de adoecer.

Mamãe diz que eu tinha tendências a não seguir multidões. Quando usavam rosa, eu gostava de laranja. Quando todo mundo ficava doente, eu estava pulando em poças de água. E quando todo mundo estava bem, eu estava de cama.

O que é o caso do momento.

Samira teve que ir para casa dos pais nesse fim de semana, e Apolo está ocupado batendo a cabeça na parede em intervalos regulares durante o seu estudo, o que significa que estarei sozinha pelos próximos dois dias. Sam me deixou uma panela com sopa e fez questão de comprar remédios para todo e qualquer sintoma que eu possa a ter – até o momento, febre e tosse foram os piores que me aconteceram, e eu espero que não saia disso. Eu aceitei a sua oferta de ficar no apartamento, até porque as meninas da república não pareciam felizes em ter que dividir o ar com uma gripada.

Agora, sozinha aqui, enrolada na minha mantinha enquanto espero a água do café esquentar, penso que talvez a república não seja uma má ideia. Pelo menos lá eu tenho companhia.

Bufo e fungo e espirro quando meu celular começa a tocar. Desligo a água e meio me arrasto meio corro até a bancada da cozinha, espiando o número que está me ligando. Sorrio tanto que meu rosto dói, mas é por um ótimo motivo.

– Oi. – Tento disfarçar a voz gripada.

– Oi. – Gregório diz do outro lado. – Por que você parece doente? – A gente não se vê desde o domingo passado, quando fiquei sentada ao lado dele na praça enquanto ele tocava músicas aleatórias que eu definitivamente nunca tinha ouvido na vida. Ele não me disse quais eram originais e quais eram covers e tentou me fazer adivinhar, mas riu tanto quando eu disse que uma desconhecida dos Beatles era a original dele que eu parei de brincar.

Depois do furdunço da festa de boas-vindas, março chegou com trabalhos e seminários e outros tipos de trabalhos e nenhum de nós teve tempo de conversar mais do que por alguns minutos, quanto mais se encontrar.

– Porque eu acho que estou. – brinco. – É aquela gripe maldita que pegou todo mundo.

– Você tá na casa da sua amiga? Samira?

– É. – olho em volta, para o apartamento vazio e silencioso. – Ela foi passar o fim de semana com os pais e deixou esse lugar para ser meu santuário da saúde. Acho que vai funcionar. Já estou pensando em arranjar uns filmes de terror horrendos e me afundar no sofá.

– Não querendo me gabar nem nada, mas eu faço o melhor chá de cura que já existiu. Posso te fazer companhia se você quiser. – Meu coração se torna um rufar desenfreado.

– Seria legal, Gregório. – sorrio junto ao seu nome, esperando que ele ouça a emoção que existe em mim. – Você conhece o prédio Laranjeira? Fica perto da Vagalume.

– Conheço sim. Qual andar?

– Segundo. – espio o relógio. Quatro horas da tarde significa que ele acabou de sair da última aula. – Vou deixar o porteiro avisado sobre você.

– Só preciso dar uma passadinha em casa antes de ir. Te vejo em uma hora. – Ele se despede, me deixando com aquele sorriso imbecil descontrolado no rosto.

Não significa grande coisa. Até porque, para significar, eu precisaria estar fisicamente bem e saudável, o que definitivamente não é o caso. Mas me arrasto até o banheiro de qualquer maneira, franzindo o nariz para meu reflexo; Samira me ajudou a secar o cabelo no dia anterior, o que significa que as ondas estão cheias de frizz e ele é um emaranhado armado ao redor do meu rosto. Rosto, que, aliás, já teve dias melhores.

Não tenho tantas sardas quanto a Mônica ou a mamãe. Contudo, com a palidez causada pela gripe, elas estão evidentes em minha pele, correndo pela extensão do nariz em direção às bochechas. Meus lábios também estão pálidos e até minhas sobrancelhas parecem mais claras; eu nunca me senti tão fantasmagórica quanto agora.

Fico exausta só de pensar em me arrumar, e decido trocar o pijama por uma roupa comum só para fins de parecer um pouco mais humana. Gregório está vindo para cá ciente da minha gripe, não tenho que me livrar da manta e nem da minha cara de pastel.

Tremo debaixo da calça jeans e da camiseta de mangas compridas que coloco, e me enrolo na mantinha novamente enquanto arrasto minhas meias em direção à sala. Ligo num reality show qualquer, me encolho no sofá e fico nessa posição pela próxima hora e alguns minutos seguintes, indignada pela má qualidade do meu café. Eu costumo fazer ótimos cafés!

Quando Gregório bate à porta, anunciando sua chegada, faço uma cara feia por ter que me mexer. Solto a trava e me escondo do ar frio lá de fora quando ele entra. A gola da jaqueta erguida cobre seu pescoço, mas a ponta do nariz vermelha e a maneira com que ele aperta os lábios dizem que ele também tem pouca resistência a climas frios.

– Oi. – Gregório prende um sorriso ao me olhar de cima abaixo. Sei que pareço um esquimó, mas não me importo. – Desculpe pela demora.

– Sem problema. – Saltito de volta ao sofá, sentando no lugar de antes, que ainda está quentinho. Espio Gregório entre os espaços da manta que aperto ao meu redor e noto que ele está meio deslocado ali na entrada do apartamento. – Fica à vontade. A Sam disse que mi casa es su casa durante esse fim de semana, então o mesmo vale pra você.

– Posso usar o fogão da sua amiga?

– Pode.

– Ah, você tinha mencionado filmes de terror horrendos. – Ele tira dois DVD’s de dentro do casaco fechado e me estende as capas. A Hora do Pesadelo e A Noite dos Mortos-Vivos foram os escolhidos; estou sorrindo quando ergo o olhar para ele, mas Gregório já se afastou em direção à cozinha.

– São seus? – Pergunto, apoiando o queixo no encosto do sofá. Ele me olha por cima do ombro.

– São. Eu nunca assisti.

Minha careta deve ser hilária, porque ele cai no riso.

– Como você tem esses filmes em casa e nunca assistiu?

Gregório ergue os ombros enquanto prepara o chá. Estou tão estupefata que espero ele terminar a tarefa antes de continuar com o questionamento. Meu celular toca o alarme, me lembrando do horário do xarope, e faço uma careta insatisfeita enquanto caminho até a bancada da cozinha para beber aquele troço nojento. Gregório coloca duas xícaras sobre a pia, e há qualquer coisa na maneira como ele se movimenta, com cautela e delicadeza, que faz eu me esquecer do xarope para admirar sua silhueta.

O cabelo é um emaranhado de mechas repicadas, e ele empurra uma que insiste em cair sobre seu olho esquerdo quando abaixa o rosto. Seus ombros estão curvados debaixo da jaqueta e seus dedos tamborilam sobre a pia enquanto ele espera a água terminar de ferver.

Desvio o olhar com destreza quando Gregório me espia, fingindo estar atenta ao vidro do xarope. Mordo o lábio para esconder o sorriso, me sentindo uma adolescente boba e apaixonada.

Estaco com a constatação, quase derrubando a embalagem.

Apaixonada?

Como vou saber que sentimento é esse? Não parece cedo demais pensar uma coisa dessas? Foram o quê? Algumas semanas de convivência? Quem eu sou agora, Bella Swan?

Balanço a cabeça e bebo o xarope. Deve ser coisa da febre, alguma alucinação causada pela gripe no meu corpo. Um dos efeitos colaterais dos remédios que venho tomando com certeza inclui pensar que está apaixonada.

– Tudo bem? – Gregório para do outro lado da bancada, me estendendo uma xícara cheia de chá fumegante.

– Tudo. – Minto.

– Essas linhas... – ele toca minha testa, suavizando o franzido que havia ali. – Não dizem isso. – Gregório sorri por trás da própria caneca, soprando o chá para dar um gole.

Beberico para ver se não está quente demais, e depois de alguns sopros já se torna uma bebida morna reconfortante. O gosto é delicioso.

– Eu nunca bebi um chá com um gosto tão bom. – confesso, arrancando um sorriso orgulhoso dele. – O que tem nele?

– Mel, açúcar, hortelã e segredos de família.

– Vai ter que sussurrar para me dizer qual é esse segredo? – O sorriso dele diminui, mas seu olhar fica mais alegre.

– Se você quiser.

Sorrio para a caneca antes de voltar até o sofá. Se o Gregório pode fazer suspense com os próprios sentimentos, eu também posso tentar.

Ele vem até mim, pedindo licença para se sentar ao meu lado. Estica suas pernas no tapete à nossa frente, enquanto eu puxo as minhas para cima do assento, abraçando-as com uma das mãos. Continuo a beber o chá enquanto o encaro, e noto um ligeiro tremor na linha de sua mandíbula quando seus olhos verdejantes se viram para mim.

– Eu não tenho televisão em casa. – Gregório explica, provavelmente fazendo referência ao motivo de nunca ter visto os filmes que trouxe.

– Você... O quê? – Me viro no sofá, ficando de frente para ele.

– Não tenho televisão.

– Como você faz maratonas de filmes? Como você assiste Netflix? Como você acompanha as novelas?

– Bom, eu não faço. – Gregório dá de ombros, meio que se desculpando. Minha indignação parece diverti-lo. – Quando quero ver algum filme, vou na casa da Patrícia ou assisto pelo notebook. Mas nada de televisão.

– Mas todo mundo sempre quer ver filmes! E o computador não é a mesma coisa! Sempre tem algo bom passando na televisão. Você nunca ficou estirado no sofá por tanto tempo seguido que a Netflix te perguntou se você ainda estava ali? – Gregório ri, apesar de as minhas exclamações serem extremamente pertinentes, e o riso ilumina todo o seu rosto. Ele tomba a cabeça no encosto do sofá atrás da gente, e eu acompanho o contorno do seu perfil, a barba rala se esgueirando sob seu queixo em direção ao pescoço. O colar de contas está enroscado debaixo da gola da camisa, e dois botões abertos me dão visão da sua pele pálida. Gregório relaxa a postura, mas eu estou perto o suficiente para observar a tensão na linha da mandíbula, o jeito seco com que ele engole, e desvio o olhar para a televisão, com receio de estar sendo intrusiva demais. Apoio o queixo em meu joelho, de repente ciente de todo o silêncio ao nosso redor, com exceção da discussão no reality show.

Seus dedos tocam os meus. Estou com as mãos apoiadas sobre os joelhos, e Gregório segura uma delas delicadamente. Observo a sua palidez contra a minha, constatando, com surpresa, que a dele é mais evidente. As primeiras linhas da tatuagem que sobem pelo seu braço estão aparentes sobre o dorso da sua mão.

Seu toque é gentil e carinhoso. Ele acaricia minha palma, a frieza dos anéis que usa contrastando com a minha temperatura febril.

– Tudo bem? – Gregório vira o rosto no apoio do sofá, me encarando com aqueles olhos de jade. Sorrio em resposta.

– Para de me olhar assim.

– Assim como?

– Como se fosse me beijar.

Gregório crispa os lábios em um sorriso divertido, se endireitando no sofá para me observar mais abertamente.

– Como sabe que eu quero te beijar?

– Porque eu também quero. – ergo os ombros e me afasto. – Mas estou gripada e contagiosa. Você já está em risco por respirar o mesmo ar que eu, não vamos abusar da sorte.

– Eu não fico gripado. O chá me protege.

– Tá, garoto bolha, mas só para garantir. – Levanto e coloco A Hora do Pesadelo no DVD, porque é um sacrilégio pensar que esse garoto nunca assistiu um clássico. Freddy Krüeger não criou todo um reinado de terror para ser deixado de lado assim.

Gregório cruza os braços e me lança um olhar de soslaio, a expressão bem humorada conforme eu fecho as venezianas da sala e faço um “bu” incrivelmente maduro. Volto a me sentar quando o filme começa a rodar.

– Você não tem medo dessas coisas? – A pergunta dele me deixa curiosa. Seu rosto está contornado pelas luzes da televisão, e me chame de idiota se quiser, mas ele está ainda mais bonito do que normalmente.

– Do Freddy? Nah, eu acho o Michael Myers muito pior. – Na televisão, o primeiro dito cujo prepara a famosa manopla com garras mortíferas, mas Gregório ainda não olhou na sua direção.

– O ator?

– O serial-killer maluco. – Gregório franze as sobrancelhas. – Máscara sinistra? Não te lembra de nada? – aperto a mão sobre o peito. – Você precisa de salvação.

Ele ainda está sorrindo quando Freddy crava as unhas no tecido, e me encolho para rir quando o Gregório se assusta.

– Acho que alguém aqui tem medo dessas coisas, e não sou eu. – Brinco.

– Eu... – ele hesita, estreitando os olhos na minha direção. – Não sou familiarizado com filmes desse tipo. Acho que o único terror que assisti na vida foi A Bruxa de Blair.

– Ah, ótima escolha.

– Eu tinha dez anos.

– Continua uma ótima escolha.

Ele balança a cabeça e ri suavemente. Ajeita a postura no encosto do sofá, escorregando um pouco no assento. O silêncio entre nós dois permeia por mais algumas cenas, mas dou uma espiadela no Gregório de vez em quando, só para ter certeza de que o seu medo não é nada desesperado demais. Vai saber se o garoto tem pavor de filmes desse gênero?

Ele cruza os braços com força na cena em que o Johnny Depp é arrastado para dentro da cama. Com um sorriso no rosto, observando a tensão na postura do Gregório, eu pulo para o seu lado, esbarrando meu corpo no seu. Ele se sobressalta levemente e me encara com confusão.

– Essa parte é um pouco assustadora. – Minto. Calmamente, Gregório descruza os braços e passa o esquerdo sobre os meus ombros, trazendo o meu corpo para perto. Um suspiro extasiado escapa de mim; eu já fui abraçada centenas de vezes. Por namorados, amigos, pela minha família. Mas o conforto que esse garoto passa, a sensação que tenho ao me aconchegar em seu ombro, com a cabeça apoiada na lateral do seu queixo, isso é tão diferente de tudo. Eu sinto a sua presença no fundo do meu coração, e essa sensação faz meus batimentos ficarem fora de controle. Sempre posso culpar o filme, mas não é nele que está minha atenção.

Sua mão sobre meu ombro tem um aperto firme, mas incrivelmente cauteloso. Ele acaricia aquela área com leveza, fazendo desenhos invisíveis sobre mim. Passo a manta por cima dele, apertando meu braço ao redor do seu tronco. Sinto o seu coração próximo de mim. Consigo ouvir os batimentos acelerados, assim como sei que ele ouve os meus.

– Lílian. – respiro fundo pela nota rouca em sua voz. Diferente da minha, horrenda por causa da gripe, a dele é atraente. – Você está me torturando.

Rio, abaixando o rosto contra o seu peito. O colar de contas está ao alcance de minha visão, e são tantas compondo a peça que me distraio observando as cores e os símbolos discretos gravados nelas.

Gregório se assusta e pula no sofá, e eu caio na gargalhada. Ele me lança um olhar indignado, no que eu escondo o rosto em seu pescoço, fugindo da careta.

– Não é legal rir assim dos outros.

– Desculpe. – me afasto com o riso preso entre os lábios. – Foi engraçado.

– Esse filme é horrível.

– É um clássico adorado por gerações!

– Medonho.

– É a intenção. – Forço um bico. Apesar da sua expressão séria, vejo o canto de sua boca tremendo para sorrir.

Seus olhos desviam em direção aos meus lábios e eu viro o rosto no instante em que ele se aproxima. Gregório paira próximo a mim, tão próximo que sua respiração faz cócegas sobre a minha pele. Ele ergue as mãos em rendição.

– Sem beijos enquanto eu estiver contagiosa.

Gregório pega a minha mão de novo, acariciando meus dedos entre os seus, e beija o dorso dela. O gesto é simples e delicado, mas causa um formigamento em cada centímetro do meu corpo. Seus lábios são quentes, diferentes do gelo que é o seu toque, e eu me esqueço de respirar por aqueles míseros segundos.

Quando vira minha mão e desliza os lábios até meu pulso, apertando outro beijo ali, eu me esqueço dos meus próprios pensamentos. Debaixo da sua boca, minha pulsação se torna um ritmo desenfreado, reagindo à sutileza marcante do seu beijo.

– E eu estou te torturando, né? – Murmuro. Minha respiração está mais descontrolada do que o esperado, e o sorriso que cresce no rosto de Gregório é o mais tímido e doce possível.

Eu o abraço de novo, me aconchegando em seus braços, já perdida quanto ao filme. Minha pele, antes febril, está em chamas agora.

– Lílian? – Eu adoro como ele diz o meu nome.

– Sim?

– Obrigado por ter me chamado para vir aqui hoje. – Seu braço ao redor dos meus ombros é de um carinho sem fim, e eu ergo o meu rosto para buscar seus olhos. A cor verdejante parece delicada, intensificava pela penumbra da sala.

– Obrigada por ter vindo. – Aperto um beijo sob seu queixo, sentindo a barba rala pinicar minha boca, e ele está sorrindo quando eu me afasto.


Aquele com o fim de semana em casa

 

AGORA


Quando o ônibus estaciona na rodoviária de Lagoa Feliz – um terminal pequeno, com cores vivas e uma extrema necessidade de reformas – vejo minha tia Rosa e a Mônica paradas próximas de um Fusca azul. Tia Rosa comprou esse carro há alguns meses, em um leilão beneficente, e foram os mil reais mais bem gastos da vida dela, segundo a própria. O Fusca ainda precisa de reparos, algumas trocas de peças e muito possivelmente uma pintura nova, mas é adorável.

Arrastando a minha mochila pelo corredor, e completamente exausta depois de uma não total recuperação do resfriado, desço do ônibus e corro até minhas pessoas favoritas, abraçando as duas de uma vez. Mônica perde o equilíbrio, tia Rosa cai na risada e eu me sinto em casa.

– Só tem três meses que você voltou pra universidade, calma. – Mônica brinca, se afastando para me lançar um dos seus sorrisos mais radiantes.

Ela continua baixinha, doce e fofa como sempre foi, mas o tempo de reorganização para mim foi de extrema mudança para a Mônica. Ela aceitou a vaga no curso de Fotografia na faculdade particular da cidade vizinha, de modo que não precisou se mudar de casa e nem deixar toda a rotina de lado para se aventurar num dia a dia desconhecido. Apesar de ter passado na USP, sei que Mônica não se importa muito por ter perdido a vaga; ela se sente bem aqui. Ela gosta de casa, gosta de ter gente conhecida sempre por perto. No quesito bravura, ela se arrisca muito menos do que eu – e talvez por isso tenha muito menos decepções na vida.

Tia Rosa continua a mesma. Livre, leve e radiante. Ela me disse que se inscreveu para um seminário de floricultura em Gramado, que acontece no próximo mês. As poucas oportunidades para o ramo que a nossa cidade oferece, outros lugares oferecem de monte. Tia Rosa sempre tentou se conter quanto à sua paixão pelas flores, mas sinto que essa intrépida aventura dela tem a ver com esse amor. Ela não fez faculdade, diferente da mamãe, e não seguiu o que nossos avós tinham em mente para o seu futuro, e nem por isso é menos feliz. O sorriso dela está sempre aberto e alegre, e tenho em mente que quero ser um pouco como a tia Rosa quando crescer.

– Deixa a Lílian sentir saudade da gente. – tia Rosa retruca. – Nós sentimos saudade também.

– Você melhorou do resfriado?

Fungo em resposta.

– Os xaropes milagrosos da mamãe não me curaram como prometia a propaganda, mas foram úteis. – Um par de luvas também ajudou, penso. As luvas que Gregório me deu ainda estão guardadas comigo, e eu as trouxe na mochila por que... Não sei. Não entendi o que me levou a colocar as luvas dentro da mochila, mas elas estão aqui mesmo assim. Aperto a alça sobre meu ombro involuntariamente, receosa quanto a pensar nesse assunto. Esse é o fim de semana da família.

– Então, vamos direto pra casa ou você quer passar em algum lugar primeiro? – tia Rosa gira as chaves do Fusca nos dedos, tentando fazer pose. Mônica me encara divertidamente. – O quê?

– Vamos pra casa, tia.


?


Os trigêmeos estão correndo pelo gramado da frente de casa quando a tia Rosa estaciona seu Fusca na rua. Susana me vê primeiro e faz uma pose de super-herói antes de disparar na minha direção; Henrique a intercepta antes disso, e os dois rolam na grama para ver quem me alcança primeiro. Tampa é quem faz isso, porque ele estava muito em escondido atrás de um arbusto, e se joga sobre o meu corpo com força o bastante para me desequilibrar.

– Tampinha! – Abraço seu corpo magrelo e o jogo por cima do ombro, porque ele é leve o suficiente para que eu consiga fazer isso. Mônica, atrás de mim, bufa.

– Seria muito mais fácil se eu conseguisse carregar um deles. – Já que ela não se mudou para o campus da universidade, a tarefa de vigiar os três pestinhas durante as tardes em que a mamãe está trabalhando continua. O que significa que a Mônica ainda luta para manter a sanidade.

– Você se recusa a fazer exercícios físicos. – Retruco, encarando-a por cima do ombro. Ela empina o queixo.

– Enquanto eu viver, não me mexerei mais do que o necessário.

– Isso porque o seu namorado é um astro do futebol.

– Ei, ele é o atleta, não eu.

– Onde ele está, aliás? – Com Tampa meio escorregando meio tentando se livrar da minha prisão, eu me viro e começo a caminhar de costas. O rosto da Mônica ganha um tom avermelhado quando fala do Enzo.

– Aqui na cidade. Ele disse que passa mais tarde pra falar um oi. A gente combinou de sair.

– Mônica e o Enzo estão se beijando... – Susana canta.

– Vou colocar laxante na sua sopa. – Mônica ameaça, recebendo um olhar incrédulo do Henrique. Tampa se empertiga e ergue o rosto para me encarar.

– O que é laxante?

– Uma coisa que a sua irmã não vai ter acesso. – Viro para a porta novamente, e encontro minha mãe parada no hall de entrada. Diferente das últimas vezes em que eu cheguei aqui de repente, ela não tem nenhum olhar estranho ou atitude contida a me oferecer. Com seus cabelos acaju volumosos presos em um rabo e um sorriso grandioso, mamãe me recebe em um dos seus abraços de urso, técnica herdada pelo Téo, apertando um beijo na minha testa. Ela está toda suja de farinha.

– O que você está fazendo?

– Ah, você não vai acreditar! – ela exalta animada. – A prima da vizinha da dona Gertrudes, que ia fazer o buffet do casamento da filha da dona Gertrudes, caiu da escada e quebrou as duas pernas!

Dou um passo para trás e lanço à tia Rosa um olhar desconfiado.

– E onde isso é uma boa notícia?

– A dona Gertrudes contratou sua mãe pra fazer o buffet. – tia Rosa explica, os olhos castanhos estreitados na direção da mamãe. – Ela está com um prazo muito curto, mas ainda assim aceitou.

– Eu gosto de desafios. – mamãe esfrega as mãos sujas de massa e depois respira fundo. – Falta tanta coisa. – Ela lamenta.

– Seria muito mais fácil se você me deixasse ajudar... – Tia Rosa cantarola, passando por ela em direção à cozinha.

– O papai não veio?

– Seu pai não mora mais aqui.

– Mas eu estou aqui! – Ele vem da cozinha, erguendo as mãos numa saudação animada. Mamãe bufa, e volta a me apertar em um abraço.

Os cabelos grisalhos do papai e sua barba rala lhe dão a aparência de bicho grilo aposentado que ele tanto gosta. Descalço e com uma camiseta esfarrapada, ele parece bastante à vontade para alguém que não mora mais aqui.

– Minha garota rebelde. – Ele dá um peteleco na ponta do meu nariz, provavelmente se referindo ao piercing que a mamãe gosta de ignorar, e me rouba para os seus braços.

O conforto de estar aqui é indescritível. A certeza de que, não importa o que haja lá fora, não importa o que eu sinta longe de casa, essas pessoas sempre vão estar me esperando para me apoiar deixa tudo mais tranquilo. O abraço do papai é um dos melhores do mundo, e me prolongo ao apertar o rosto contra a sua camisa, sentindo saudade do seu cheiro de café.

– Tudo bem? – Ele se afasta para me observar. Seus olhos são iguais aos meus. Apesar de adorar a herança ruiva da família da mamãe, sempre me senti orgulhosa por ter sido a única a herdar os olhos do papai. Gosto de ter conexões únicas com todo mundo aqui; Mônica e eu somos melhores amigas, Téo é a voz da minha consciência, a mamãe me dá os melhores conselhos sobre roupas, tia Rosa sabe conversar sobre filmes de terror como ninguém, e os trigêmeos são meus pestinhas. O papai, no entanto, é meu ídolo. O cara que me apoia, mesmo quando está me dando bronca.

– Tudo ótimo. – me afasto para encará-lo. – Ei, achei que você ia viajar pra assistir daquele festival de música!

– Eu ia, mas os ingressos esgotaram. Seria perda de tempo e de gasolina. – ele dá de ombros. – Já marquei o próximo no calendário. Fica um pouco longe daqui, mas esse eu não perco!

Vamos até a cozinha, lugar que parece alvo de uma bomba atômica. Tem farinha e potes com massas, molhos e outras coisas espalhados pela bancada. O fogão tem três panelas borbulhando com mais coisas que não consigo identificar, e mamãe está equilibrando quatro potes de leite condensado em mãos quando passamos pela porta.

Ela bufa e passa o dorso da mão pela testa, sujando a pele de farinha. Papai me lança um olhar divertido, mas não comenta nada. Os trigêmeos já correram para o jardim, e Mônica bate o pé na varanda enquanto tenta chamar a atenção de um deles. Minha tia se senta à frente da bancada de mármore, distraída com um catálogo de flores.

– Lembram quando eu disse que “conseguia me virar sozinha e não precisava da sua ajuda, obrigada”? – Mamãe exalta, apertando as mãos nos quadris. Seu rosto tem uma daquelas expressões de quem está pensando demais, calculando todos os possíveis erros para as receitas que precisa preparar.

– Acho que o que você disse se parecia mais com “saiam da minha cozinha e fiquem calados na sala ou faço assado de vocês”. – papai retruca com bom humor. Ele recebe um dos olhares cálidos e furiosos da mamãe de volta, mas não vacila a máscara de diversão. – Muito bem, Madalena. Em que este humilde servo lhe pode ser útil?

– A Lílian é a estudante de Teatro por aqui. – Tia Rosa brinca.

– Posso ajudar? – Arregaço as mangas da camiseta, e um sorriso aberto se ergue no rosto da mamãe. Faz tanto tempo que eu não a vejo sorrir assim que quase sinto vontade de chorar.

– Eu quero ajudar a fazer o bolo! – Mônica choraminga lá de fora, pendurando-se na janela da varanda para nos observar. – Você prometeu.

– Eu cuido dos trigêmeos. – Tia Rosa ergue as mãos em sinal de rendição, mas não parece muito infeliz por ter que deixar a cozinha. Acho que ela já entendeu que seus dotes culinários não vão além de miojo queimado. Mamãe nunca iria deixar a tia Rosa tocar nos seus croissants.

– Vem pra cá, Mônica. E vocês – papai e eu nos entreolhamos quando mamãe gesticula na nossa direção – mão na massa.


?


Deixo a mochila sobre a minha cama, agora ocupada por uma pilha de roupas lavadas. Mamãe moveu uma bicicleta ergométrica aqui para cima, além de quadros velhos que ela nunca vai pendurar – provavelmente compras feitas pelo papai – e o pedaço do tampo de uma mesa de vidro com uma rachadura no meio. Deve ter sido obra dos trigêmeos. Minhas paredes estão vazias desde que voltei para a faculdade e levei meus pôsteres comigo. Vários dos meus livros ficaram por aqui, e passeio os dedos pelas lombadas quando paro em frente à estante.

– Você está com um ar dramático muito forte. – me assusto com a presença na soleira da minha porta. Mônica cruza os braços e estreita os olhos na minha direção. – Um tempinho na faculdade de Artes Cênicas e já está pronta para estrelar os melhores roteiros de drama?

– Cala a boca, dentuça. – Pego uma almofada da cama e jogo na sua direção. Mônica se atrapalha toda para impedir que acerte seu rosto, mas vem na minha direção abraçada a ela.

– Tudo bem, Lí? – Seu olhar preocupado me deixa decepcionada. Desde que eu abandonei a universidade, meses atrás, buscando um pouco de sossego para a mente e para o coração, minha irmãzinha me olha como se eu fosse a caçula que precisa da sua ajuda. Sempre fomos eu e Mônica contra o mundo.

– Tudo. – sorrio, sentando na cama e incitando-a a me imitar. – Argh, Mônica, não me olhe assim. Eu só tive aquele deslize meses atrás, não foi grande coisa.

– É que eu me acostumei a te ver sempre feliz. – ela confessa. – E fiquei com medo de não saber lidar com a outra você.

– Ainda sou a Lílian de sempre. Só com um coração meio machucado. – Faço drama e me jogo no colchão atrás de mim para tirar a preocupação do rosto dela. Funciona após alguns instantes, no que Mônica revira os olhos e se joga ao meu lado. Seus cabelos são mais escuros que os meus, e o contraste dos nossos fios embrenhados me faz sorrir.

– Você viu o Gregório?

A pergunta dela me faz desviar o olhar para o teto. Meu coração descompassa e eu me lembro das luvas dele, guardadas na mochila, e também me lembro de que recuperei o colar onde guardei o seu segredo. Estou com ele num dos bolsos da calça, protelando quanto a colocá-lo junto ao meu coração. O dono desse segredo já está me perturbando o suficiente.

– Vi. – Estendo a pronúncia do “i”, deixando que a Mônica entenda como quiser.

Ela se apoia nos cotovelos e me lança um dos seus olhares mais longos e julgadores.

– O quanto dele você viu? Tem nudez envolvida?

– Ai, Mônica, não, e eu não falaria disso com você de qualquer maneira! – aperto a almofada em seu rosto por um segundo, rindo enquanto ela protesta e se esquiva, e depois me afasto, ficando de bruços para encará-la. – Eu o vi várias vezes no passar desses três meses. Vezes demais. Eu não te contei porque era muita emoção pra pouca eu, e precisei ter certeza do que estava sentindo pra trazer à tona numa conversa.

– E já sabe o que está sentindo?

– Não! – afundo o rosto no colchão. – Eu amo ele, pra caralho. Nós até nos beijamos, mas...

– UOU, ESPERA AÍ! – ela guincha. – Se beijaram? Quando?

– Na festa de boas-vindas.

Mônica fecha a cara.

– Parece que essa festa teve vários acontecimentos não mencionados.

– Eu disse que estava guardando pra te contar de uma vez!

– Ok, vocês se beijaram, e aí?

– E aí que ele foi embora e não me deixou pedir desculpas por ter sido uma idiota. E ele também foi idiota por me beijar de volta. Somos muito idiotas.

– Ele não te procurou depois disso?

– A gente se esbarrou mais algumas vezes, e numa delas ele me deu um par de luvas.

– Que presente mais... Bizarro.

– Não, palerma, foi porque eu estava com febre e com frio. – E porque ele sempre cuidou de mim.

– Você ainda ama muito ele. – Mônica não pergunta, ela afirma.

– Demais.

– Lílian, você é a pessoa mais determinada e corajosa que eu conheço. Não deixa o cara se afastar assim, vai atrás dele.

– Eu estou tentando.

– Não o suficiente. – Ela rebate, me lançando um arquear de sobrancelhas desafiador.

– Quer que eu faça o que, bata na porta da casa dele e peça desculpas?

– Ué, por que não?


Aquele com o aniversário

 

ANTES


O clima mudou bruscamente com a chegada de abril, de novo, e está calor no dia do meu aniversário. Talvez os céus tenham resolvido agir bondosamente comigo, uma vez que é uma data tão especial – ou nem tanto. Eu nem me lembro da última vez que comemorei. Com Mônica e os trigêmeos é toda uma pompa e circunstância, mas desde o incidente com o meu cabelo e as velas do bolo, nada de festas para a Lílian. A meu pedido, é claro.

O sobrado onde o Gregório mora fica na esquina de uma rua sem saída, cercado por outros sobrados coloridos. A aparência singela e a cor amarela delicada fazem da casa do Gregório um lugar adorável logo de cara. Não tem jardim depois da cerca alta, mas ele me disse que o quintal lá atrás compensa essa falta.

Subimos três degraus para acessar a porta, e ele se enrosca com a chave, porque o lugar todo é velho e enferrujado. Sinto-me estranha por estar visitando a casa dele assim, de repente, mas também é confortável. É o Gregório, afinal. Um nome que se tornou importante em pouco tempo.

Ele mencionou que mora com a irmã de criação, Mila, mas que ela não está na cidade nesse fim de semana. O que nos dá privacidade. Não que eu esteja pensando nisso como um fator importante.

O corredor de entrada é apertado, e alguns passos adiante já tem os primeiros degraus de uma escada. Gregório me encara por cima do ombro e gesticula para que eu o siga; o corredor termina em uma porta de madeira clara, abrindo espaço para uma cozinha mais espaçosa. Avisto uma poltrona onde deveria haver uma mesa de jantar, e uma mesa de plástico em frente ao móvel. Um notebook desligado está esquecido em cima do tampo; discreta e rapidamente, passeio os olhos pelas prateleiras de aparência antiga, pela pia arrumada e pela geladeira que parece ter saído de um filme dos anos 50.

– A tia da Mila nunca trocou a mobília, e agora ela gosta de coisas de aparência clássica. – Gregório está com as mãos no bolso da calça, os ombros inclinados com um que de timidez. Sorrio em resposta à sua postura.

– É bonitinho.

Ouço latidos barulhentos vindos lá de fora e me afasto da porta da varanda involuntariamente. Gregório se desencosta da parede e vai até lá.

– Você tem medo de cachorros?

– Não se eles não tiverem medo de mim.

– Então vai gostar desse pessoal. – Ele abre a porta e deixa passar três furacões cheios de pelo. O primeiro que o alcança é enorme e muito alegre, e salta sobre Gregório para lamber a sua cara. Ele segura as patas dianteiras do cão num abraço e recebe as lambidas de boas-vindas. Eu queria ter uma câmera em mãos para registrar o sorriso genuíno do Gregório.

Os outros dois cachorros abanam o rabo e o rodeiam, à espera do momento de receber um abraço.

– Lílian, essa é a Velma. – O “cão” na verdade é uma fêmea. Como se me notasse, finalmente, a cachorra larga o seu amado dono e vem na minha direção, toda grande e assustadora, e eu me encolho em direção à parede enquanto ela fareja minhas pernas. Seus companheiros de latido a acompanham, e eu estou cercada por um grupo farejador antes que consiga pensar numa reação apropriada. Péssimo dia para não usar calça jeans. – Os outros dois são filhotes dela. Scooby e Panqueca. Eles gostam de carinho, de biscoitos e de estranhos. – Em resposta a isso, Velma lambe meu tornozelo e se senta, obediente e educada, balançando o rabo para mim. Seus filhotes, tão grandes quanto a mãe, a imitam.

– Posso fazer carinho?

– Deve. – Gregório ri, dirigindo-se a pia para lavar a baba do rosto.

Tudo bem, eu nunca tive um cachorro, mas não significa que eu não saiba lidar com um. Ou três. Sonhei com as vezes em que meus pais me surpreenderiam e me dariam um filhotinho de presente, mas nunca aconteceu. Ganhei bolsas, casacos e até um guarda-chuva com as cores do arco-íris, mas nada de cachorro.

– Oi gente. – num primeiro instante, o focinho da Velma parece próximo demais do meu rosto, e ela é grande o suficiente pra conseguir abocanhar o meu nariz em uma só mordida, mas me arrisco mesmo assim. Coço atrás da sua orelha e ela abana o rabo com mais força, e de repente está rolando no chão para que eu acaricie sua barriga. Ela parece um urso de pelúcia de tão fofa e amigável. Os outros dois se aproximam, querendo atenção também. – Ela tá meio gorducha. – Observo, erguendo o olhar para Gregório. Ele está com o quadril apoiado na pia, os braços cruzados em frente ao peito, e me olha com divertimento.

– Ela está esperando filhotinhos.

– Ah. – eu nunca dou uma dentro. – Mil perdões, Velma. – sussurro, ainda que ela não entenda meu deslize. Gregório ri de mim, e seu riso é contagioso. – E já tem esses dois aqui?

– Ela gosta dos seus filhotes.

Velma lambe o meu rosto e eu caio sentada com a força com que ela me empurra em busca de mais carinho.

– Você não tem um cachorro? – A pergunta me surpreende.

– Nunca tive. – Gregório se ajoelha à minha frente. Scooby e Panqueca se jogam no chão para receber carinho dele, mas a Velma é quem o ganha. Ela não hesita em me abandonar em busca do Gregório; nem posso julgá-la por isso. – Meu pai é alérgico. E minha mãe diz que os trigêmeos quebram vasos o suficiente para uma vida, então nada de cães. – Gregório sorri compreensivamente para mim.

– E aqui?

– As meninas da república enlouqueceriam. Elas já ficaram fulas com a cacatua que uma das novatas trouxe pra morar lá. – Ergo os ombros.

– Sinto muito.

– Ah, não tem problema. Algum dia eu consigo um quintal grande o suficiente pra ter várias Velmas.

Meu celular toca bem nesse instante, quebrando o contato visual que Gregório estabeleceu comigo. Pigarreio e fico de pé, caminhando até o corredor.

– Alô?

– Põe no viva-voz. – É o meu pai quem está do outro lado da linha.

– Por que eu deveria fazer isso?

– Porque eu estou pedindo.

Faço como solicitado.

– FELIZ ANIVERSÁRIO! – O som de sete vozes diferentes ecoa pela casa toda do Gregório. Escondo o rosto numa das mãos enquanto desligo o viva-voz com a outra, trazendo o telefone de volta para a minha orelha.

– Eu já disse que não gosto...

– Tá, tá, Mortícia Adams, mas é seu aniversário e nós vamos gritar para você se lembrar.

– Eu me lembrava disso, ok?

– E você por acaso está em algum pub com todos os seus amigos comemorando esse marco histórico em sua vida? – Reviro os olhos para o tom dramático do papai.

– São duas da tarde, pai.

– Pois é. Como eu disse: você precisa ser lembrada.

– Ah Deus, ok, tudo bem, obrigada pela lembrança!

– Tenta ligar pra Mônica naquela tecnologia chamada... Como é mesmo que se chama? Aquela que a gente usa as câmeras pra vermos o seu rosto maduro e envelhecido. Ah, enfim, liga a câmera depois, ok garota maravilha? – Ele não me chamava assim há muito tempo, por isso sorrio.

– Vou tentar. Duvide o quanto quiser, mas a Samira quer sair comigo hoje à noite para “comemorar”.

– Eu ouvi as suas aspas!

– Tchau pai. Tchau família.

Quando desligo e me viro, Gregório está parado contra o batente da porta da cozinha. Um dos ombros se encosta ali, e seu corpo está meio inclinado com displicência. Ele não deve querer parecer atraente me olhando daquele jeito, mas não muda o fato de que está bastante atraente.

– Seu aniversário?

– Pois é. – Franzo o nariz.

– Por que não disse?

– Eu não gosto. – Caminho até o outro lado da porta, me encostando ao batente com menos confiança com que ele o faz. Estamos frente a frente agora, com pouca distância entre nossos corpos.

– Quem não gosta do próprio aniversário?

– A Lílian. – tento imitar o tom de decepção do papai sempre que respondia a essa pergunta para pessoas de fora da família. – Olha, teve um “incidente” no passado. E eu não gosto de lembrar dele e nem da data fatídica, que coincide com o dia em que vim ao mundo. Então... Nada de aniversário. – Gregório tem as sobrancelhas franzidas com diversão. – Eu gosto de Natal e da Páscoa, se serve de consolo.

– A gente podia ter saído pra fazer alguma coisa mais legal.

– É, mas eu gostei de vir aqui. – Os três cães vêm até a gente. Velma apoia o focinho frio na minha perna e eu acaricio sua cabeça em resposta. Quando ergo o olhar para o Gregório, ele está sorrindo abertamente para mim, e meu coração se descontrola por isso.

Engulo em seco e sorrio de volta, revirando os olhos pela reação boba. Estico a mão e seguro a sua, trazendo-o para mim.

Gregório me beija sem hesitação, apertando meu corpo contra a madeira do batente atrás de mim. Sua mão se solta para segurar meu rosto, e a outra desliza pela curva da cintura, pressionando minhas costas para que eu me aproxime ainda mais. Seus lábios e seu toque torturam a minha mente e meu corpo, e o beijo passa de intenso para fervoroso no instante em que seus dentes prendem meu lábio inferior numa mordida. Minhas mãos, antes soltas, apertam os lados do seu rosto, meus dedos se embrenham em seu cabelo, minhas unhas arranham a pele do seu pescoço, sua língua envolve a minha e de repente eu não consigo sentir nada além da pressão de cada contorno do seu corpo grudado ao meu.

Seus dedos deslizam sob meu queixo, delineando o arco do meu pescoço, incendiando minha pele por onde passam. Gregório trilha a linha da minha clavícula e abaixa a alça da minha camiseta com delicadeza, passeando a ponta das unhas sobre meu ombro. Seu toque é tão sensível e doce quanto enlouquecedor.

Ele se afasta de repente, e sinto o seu sorriso contra a minha boca. É então que escuto, ao fundo, latidos altos, e percebo que todo o beijo abafou o fato de que a Velma quer atenção. Indignada, e ainda presa ao abraço do Gregório, eu me viro na direção dela:

– Ele é meu agora, sossega aí.

Gregório apoia o nariz sobre a minha bochecha, e eu quero me virar para ver seus olhos, seu sorriso e sua presença marcante, mas a maneira com que ele relaxa contra mim é tão deliciosa que não movo um músculo.

– Eu preciso dar comida pra eles. Senão a Velma nunca vai parar de latir. – Ele se distancia enfim, caminhando com leveza em direção à varanda. Os três mosqueteiros caninos o seguem fielmente, e eu observo sua silhueta desvanecer em direção a um pequeno rancho no quintal enorme quando meu celular vibra com uma mensagem.


Sam diz:

ONDE VC TÁ?


No Gregório.


Sam diz:

Literal e eroticamente falando ou só geograficamente?


Meu DEUS, SAM. Só geograficamente.


Sam diz:

Vc bem que queria eroticamente.

Enfim, a gente vai se encontrar pra ir até o Señor México mais tarde? Eu quero meus tacos.


Samira não se conformou ou aceitou o fato de eu não querer comemorar o meu aniversário, então decretou que sairíamos para comer tacos. Ela disse que conhece o melhor restaurante do mundo e que ele fica no Shopping Center aqui de Rouxinol; pedi garantias de que não haveria nenhum momento envolvendo os “parabéns” e só então topei participar dessa comemoração desnecessária.

Ainda que tacos sejam sempre uma boa ideia.


Eu te encontro lá, pode ser? Acho que sei chegar.


Sam diz:

Vai levar o gostosão?


– Quem é gostosão? – Grito e jogo o celular para cima, fazendo malabarismo para recuperá-lo. Gregório cai na gargalhada.

– Não é legal espiar conversas assim.

– Ah, eu sou o gostoso?

Estreito os olhos em sua direção. Ele fecha a porta da varanda, crispando um sorriso discreto para mim. Alguma coisa em seu olhar faz minha pulsação acelerar.

– Quero te mostrar uma coisa. – Ele estende a mão. Lembro-me da sua hesitação a princípio, aquele ímpeto de desviar o olhar ou de esconder as mãos ou mesmo de me impedir de ver seus sorrisos. O fato de ele estar tão próximo, agindo tão simpática e abertamente, me deixa nas nuvens.

Seguro seus dedos, mandando uma rápida mensagem a Sam dizendo que “nos vemos mais tarde”, e Gregório os entrelaça. Estou apaixonada pelo seu toque, totalmente sem controle pela sutileza dele.

Subimos as escadas em silêncio, e meu coração fica mais descompassado em antecipação. Não que estarmos aqui signifique alguma coisa; pode não ser nada demais. Quando me lembro do nosso beijo, da maneira com que ele pressionou meu corpo, da doçura e do desejo em seu toque, no entanto, não parece não ser nada demais.

O corredor do andar de cima tem quatro portas. Uma delas está entreaberta e me deixa ver um banheiro pequeno, de azulejos verdes. A outra está trancada e tem placas de PROIBIDO TRANSPASSAR por toda ela.

Gregório segue para a porta ao fim do corredor, que tem vista para os fundos da casa; seu quarto. Ele gira a maçaneta e abre a passagem, mas para ao meu lado antes de entrar. De nervosa para fascinada em poucos segundos, eu o encaro com os olhos arregalados.

– Você que fez?

A parede esquerda do quarto tem um gigantesco mapa do mundo colado em toda a sua superfície. Foram recortes de diversos mapas de cores e formatos diferentes, minuciosamente encaixados para que nenhum contorno ficasse fora do lugar. Nenhum móvel se encosta ali, deixando todo o espaço artístico livre para ser apreciado. Lembro-me da Mônica e das organizações metódicas com as suas fotos preferidas e imagino o quanto ela acharia incrível ao ver o que esse garoto fez com o mundo.

– Ainda faltam alguns pedaços. – Estou tão fascinada pelas cores de um pedaço da Rússia que me surpreendo com a presença próxima do Gregório. Ele parou ao meu lado, as mãos nos bolsos da calça, e seus olhos estão fixos na parte inferior do mapa; realmente, uma parte da Oceania está incompleta, e ele ainda não finalizou a Antártida. 90% do mapa já foi suficiente para me deixar sem fala, imagine quando ele finalizar? – Você gostou?

– Caralho. – recebo um riso contido dele. – É lindo! Eu nunca tinha visto nada assim. É quase uma peça de museu. – Dou um passo à frente, de cara para a parede, e estico o rosto para olhar para cima. Na linha da minha visão, os contornos do Reino Unido podem ser vistos em cores envelhecidas, com outra parte colorida feito um arco-íris. – Meu pai costumava me levar a uns museus bizarros com artes desconhecidas muito incríveis. Ele diz que as melhores peças são aquelas que você pode apreciar à menor distância possível, porque elas continuam cheias de significado e beleza.

Quando me viro na sua direção, Gregório parece extasiado. Ele respira fundo e aperta uma mão sobre a nuca, talvez envergonhado pelos meus elogios. Seus olhos se tornam difíceis de ler, mas eu sorrio mesmo assim.

O resto do seu quarto não é extraordinário, mas é tão arrumado quanto o mapa. Aproveito quando Gregório se retira para atender ao telefone e zapeio o olhar por cada centímetro do cômodo. Sua cama ocupa a parede oposta, e uma cômoda com uma pilha de livros em seu tampo está ao lado. O guarda-roupa é pequeno e ocupa o espaço entre a cama e a parede da janela. O violão está apoiado ao lado do guarda-roupa. As janelas dão visão para o jardim e para a parte baixa de Rouxinol, e percebo que caminhei involuntariamente até ali, apreciando o ambiente.

Quando paro ao lado da janela, os objetos sobre a cômoda dele chamam minha atenção; um par de meias, uma gaita, um porta-retratos sem foto e uma caixinha de remédios tarja-preta sem prescrição. Aqueles tipos de avisos “tomar a cada quatro horas” que minha mãe sempre pintava em rosa berrante quando eu voltava do hospital com uns pares de analgésicos e antibióticos. Esse não tem isso, mas está quase cheio de cápsulas.

Ouço os passos do Gregório e desvio o olhar. Envergonhada pela atitude bisbilhoteira, giro nos calcanhares e o encontro ainda a me observar com aquele olhar indecifrável e o sorriso sincero.

– Você toca gaita?

– Perdão? – Ele arqueia as sobrancelhas.

– Tem uma gaita aqui. E um violão. Mas o violão eu já te ouvi tocar.

Gregório cruza os braços e se aproxima.

– É, eu sei tocar gaita.

– Que escolha de instrumento curiosa. Foi inspirado pelo Júlio? – ele ri alto ao sacar a referência e balança a cabeça. – Ei, qual é o seu lugar favorito? – Aponto para o mapa. Talvez eu esteja nervosa, e talvez esteja falando muito porque é minha maneira de reagir ao nervosismo. É a maneira dos Garcia, segundo a minha mãe.

– Não tenho um lugar favorito. – Ele ergue os ombros, a postura brincalhona.

– Não tem nenhum país ou cidade que você queira conhecer mais do que todos os outros? – Estreito o olhar em sua direção.

– Eu gosto muito da Argentina e do Uruguai. Mas não deixe os outros saberem. – Gregório sussurra ao fim. Sua fala se torna a causa do meu sorriso seguinte. – E você? Tem algum lugar favorito?

– Você vai rir de mim. – Franzo o nariz. Gregório se senta na cama, apoiando os braços sobre as pernas. Suas sobrancelhas formam uma expressão desafiadora.

– Vamos ver.

Reviro os olhos e sento ao seu lado, apoiando as mãos atrás do meu corpo. Inclinada desse jeito, consigo observar todo o mundo na parede do seu quarto.

- Romênia. – ele tomba a cabeça para me encarar. – Sabe? O castelo do Drácula e toda a lenda de terror clássica que ganhou fama lá. Adorava essa história. Quando eu era pequena, pedi um castelo assombrado de aniversário. Daqueles da Barbie, só que temático.

– Eu não sou especialista em castelos da Barbie, mas acho que nunca fizeram um assombrado.

– É. Meus pais montaram pra mim. – A lembrança me faz sorrir e querer chorar. Endireito minha postura e enrolo os fios do meu cabelo para desviar a atenção. Droga de emocional instável.

– Deve ter ficado incrível. – Sorrio de lado quando Gregório busca o meu olhar.

– Ficou assustador.

– Romênia então. – Gregório se deita, e eu me viro para observá-lo. Seus olhos verdes estão em mim, intensos e misteriosos. – Achei que você fosse o tipo de garota que prefere a Inglaterra.

– Não tem nada muito assustador lá, que eu saiba. – conquisto um dos seus sorrisos abertos em resposta. – Você quer viajar ao redor do mundo?

– Ah, quero. – o olhar dele fica perdido, sonhador. Tiro as minhas sandálias e cruzo as pernas sobre o colchão, analisando a delicadeza na expressão serena dele. – Tem tanta coisa incrível e desconhecida pra ser descoberta. – seu sussurro me faz sorrir, e encaro o mapa incompleto com essa ideia em mente. – Estou falando como um protagonista de história motivacional. – Gregório ri de si mesmo, cruzando as mãos sobre a barriga. Observo as linhas da tatuagem que começam no dorso da mão direita, a pele pálida debaixo do desenho, os contornos das veias em destaque ali. Observo seus dedos esguios, os anéis enfeitando alguns deles, e suas unhas curtas e lascadas. Observo a manga da jaqueta esfarrapado e subo o olhar pelo seu braço.

– Algumas coisas desconhecidas são incríveis. – Minha atenção recai sobre seu rosto no instante em que os olhos verdes procuram os meus. Respiro fundo, sentindo aquela comichão nos nervos, o fascínio ansioso de momentos atrás. Inclino meu tronco para frente enquanto Gregório faz o mesmo, apoiando-se nos cotovelos para me alcançar. Ele estica um dos braços e segura o meu rosto em seu toque gentil. Meus cabelos soltos escorregam para frente, sombreando suas feições.

Antes de me beijar, Gregório apoia a testa e a ponta do nariz contra as minhas, e seus lábios desenham em minha boca as palavras que ele murmura:

– Feliz aniversário, Lílian.

O beijo começa doce, tímido e contido. A maciez dos seus lábios é a mesma de que me lembro, e é estranho sentir saudade de um beijo que trocamos não faz nem tanto tempo assim, mas eu sinto.

Descruzo as pernas e inclino o corpo sobre o seu, e Gregório enrosca os dedos nas mechas do meu cabelo, prendendo os fios atrás da minha orelha numa carícia delicada. Quando ele entreabre minha boca com a sua, eu já me esqueci de respirar.

Apoio as mãos no colchão e meu corpo está acima do seu, o calor da sua pele me causando calafrios. Gregório desce o toque por meu pescoço, a ponta dos dedos acariciando a pele exposta do meu ombro e então do meu braço, desviando para a cintura. Ele me surpreende ao girar nossos corpos na cama, invertendo as posições. Estou sorrindo quando nossas bocas se separam, e ele sorri gentilmente. Os fios bagunçados do seu cabelo caem pelas laterais do rosto, seus olhos são de um verde sombrio acalentador agora que ele está sobre mim, e eu consigo sentir os batimentos do seu coração sob minhas mãos. Acelerados em um ritmo frenético, como os meus. Eles batem em uníssono, como um eco. Talvez eu tenha ficado surda pela emoção do momento ou talvez nossos corações realmente acompanhem um ao outro.

Gregório respira profundamente, me acariciando com o seu olhar. Ele abaixa o rosto e eu busco os seus lábios, mas eles tocam a lateral do meu queixo, a pele abaixo dele, trilhando beijos pela linha da minha mandíbula com uma sutileza enlouquecedora. Quando Gregório beija sob minha orelha, sua respiração quente tocando aquela área, perco o fôlego em resposta. Meus olhos estão fechados, mas consigo sentir o seu sorriso. Sinto a sua barba fazendo cócegas conforme sua boca se aventura pela extensão da minha clavícula, passando pela alça da camiseta até a ponta do meu ombro. As mãos estão imóveis, mas sinto seu toque em cada centímetro do meu corpo.

Ele volta o caminho de beijos pela linha do meu colo, lento e torturante, mas cuidadoso. Quando a boca chega ao meu pescoço, ergo o rosto para deixá-lo me tocar ali. A trilha segue até parar sob meu queixo, e a doçura e o calor dos seus lábios, a maneira com que ele desenha palavras na minha pele, o incêndio que cria em minhas veias traz um sentimento indescritível. Meu peito estremece com a respiração quando entreabro os olhos e encontro Gregório a me encarar. Seus lábios entreabertos são um convite, e eu não me demoro pensando demais.

Eu o beijo com o fervor e a ansiedade e o carinho que quero demonstrar. Eu o beijo com a mesma doçura com que ele beijou minha pele, com a mesma gentileza com que seu toque se espalha por meu corpo. Gregório solta um pouco do peso sobre o meu corpo e eu me afasto para engolir em seco, completamente ciente do seu desejo. Ele apoia a testa sobre a minha, os olhos um incêndio verdejante, sussurrando palavras que a sua voz não dita.

Seguro as bordas da sua jaqueta, e alguma coisa se ilumina em seu olhar, assim como um ligeiro tremor que percorre seu corpo. Um sorriso tímido toma conta do seu rosto.

Ajudo Gregório a tirar a peça e me surpreendo com a ansiedade para tocar a sua pele. Ele ainda está com a camiseta, mas seus braços estão nus e é o bastante para mim, por agora. É o bastante do garoto que sequer mantinha o olhar sobre mim até algumas semanas atrás.

Como alguém tão desconhecido se tornou tão importante para mim?

Ergo o rosto e o beijo de novo, apreciando a lentidão com que ele entreabre os lábios, com que sua língua toca a minha, com que os movimentos sutis do seu corpo descarregam calafrios em minha espinha. Gregório se aproxima ainda mais, e de repente uma de suas mãos escorrega pela lateral do seu corpo, de repente seus dedos estão na barra da minha camiseta e eu o sinto tocar minha barriga, e estremeço debaixo do toque.

– Tudo bem? – Ele se afasta do beijo, me encarando com profunda preocupação.

– Eu tenho cócegas. – Confesso, mas apoio minha mão sobre a sua para mostrar que tudo bem. Quando seus dedos chegam à base do meu sutiã, arfo em meio ao beijo. Gregório escorrega as unhas sob o contorno do meu seio, e então seu toque fica mais urgente, seu corpo se aperta mais contra o meu, e o desejo intrínseco em meus nervos escorrega por todo o meu corpo para se concentrar no baixo-ventre, minhas veias queimando com a energia que esse garoto descarrega por cada centímetro de mim.

Meu coração perdeu o ritmo e está descontrolado, e Gregório com certeza pode senti-lo. Conforme seu toque explora a minha pele, ergo a mão e apoio a palma sobre o seu peito, muito mais sutil e delicadamente do que as carícias dele, mas o bastante para que seu coração responda a mim. Seus dedos deslizam por minha barriga e aí eu me esqueço de tudo que faz de mim um ser pensante. Quando ele escorrega a mão até cós do meu short, soltando o botão, um ofego escapa dos meus lábios.

É quando o telefone toca.

Gregório não interrompe o beijo imediatamente. Sua mão se afasta de mim, apoiando-se no colchão para que ele se erga. Sinto um sorriso em seu beijo conforme ele diminui a intensidade, até que um mero roçar de lábios o tira de mim.

– Desculpe. – Sussurra. Viro o rosto e encaro o celular que treme e apita por causa de um alarme. O visor mostra o aviso de “Dalila”.

Gregório se senta e desliga o alarme, e eu fico deitada, encarando as estrelas que minha visão cria. Se existe uma galáxia no teto do Gregório ou se foi ele o responsável por dar origem a ela, eu não sei dizer. Mas meu corpo não quer que ele se vá.

Engulo em seco e viro de lado, observando suas costas. O tecido da camiseta se estica pela maneira com que ele apoia os braços nas pernas, e eu me sento para apoiar o queixo em seu ombro.

Alguma sutileza do momento dita que eu posso fazer isso, que Gregório abriu espaço suficiente para que eu o toque sem hesitação.

– Tudo bem?

Ele vira o rosto para mim, tão próximo que me faz querer beijá-lo de novo, e sorri de canto.

– Quanto tempo você tem até sair com a sua amiga? – Acho que ele vai querer voltar de onde paramos, e por isso me empertigo.

– Umas quatro horas, mais ou menos. Por quê?

– Quero te levar em uma festa.


Aquele com o asilo

 

ANTES


Diferente das manhãs corridas e das noites agitadas, a tarde é um período entre as pressas em Rouxinol. É o momento em que poucas pessoas estão nas calçadas, especialmente em bairros mais afastados como o do Gregório. Um momento em que a brisa e os passarinhos são tudo o que você vai ouvir.

Não seguro a mão do Gregório enquanto andamos porque a cena no quarto foi uma coisa completamente fora da realidade. Ainda tem muito desse garoto que eu não sei ler. A lembrança do seu beijo e do seu toque e das suas carícias deixam os fios de cabelo da minha nuca arrepiados. Mesmo depois de me recompor ainda sinto que vou perder o controle sobre as minhas pernas.

Sei que ainda tenho muito a aprender sobre o Gregório. E quero aprender, todo e cada detalhe. Quero saber o que os seus olhares dizem e o que os seus sorrisos me contam, que segredos seus beijos escondem, quais deles Gregório pode sussurrar para mim, e quais ele precisa entalhar em minha pele com suas carícias.

Tropeço numa pedra solta da calçada e resmungo, porque meus joelhos ainda ostentam as cicatrizes da queda na praça.

– Tudo bem aí? – Gregório vira um sorriso divertido para mim.

– Só mais um obstáculo no caminho de Lílian Garcia. – brinco. – Nada com que se preocupar.

Ele respira fundo e desvia o olhar para a rua, e eu fico pensando se o aquele momento no quarto vai criar alguma estranheza entre nós. Foi intenso e tudo mais, mas não quero sua hesitação de novo. Quero seus sorrisos e sua presença.

– Ei, para onde estamos indo, afinal? Eu estou vestida adequadamente para uma festa?

– Eu queria fazer uma surpresa.

– Da última vez que tentaram me fazer uma surpresa no meu aniversário, nada acabou bem. – Sussurro misteriosamente. Um riso contido e curiosidade cobrem seu rosto.

– Não vai contar o que aconteceu?

Mordo o lábio inferior, tentando esconder a minha careta vitoriosa. Cruzo os braços atrás de mim e acelero o passo para ficar de frente para Gregório, recebendo um arquear de sobrancelhas curioso em resposta.

– Pra te contar isso, vou ter que sussurrar.

Ele tira uma moeda de cinco centavos do bolso do casaco e gira nos dedos, estendendo para mim.

– Já tem o seu objeto mágico.

Dou um passo à frente, a ponta das minhas sandálias contra a dos seus sapatos. Seus olhos verdes parecem mais intensos sob o sol da tarde. Observo os fios bagunçados do seu cabelo e a barba rala e os lábios que foram meus por minutos infinitos.

Ergo a moeda até pairar próxima da minha boca e fico na ponta dos pés. Um pedaço de metal e alguns centímetros é o que me separa de roubar do Gregório um novo beijo; o olhar dele diz que o desejo é recíproco.

– Meu irmão mais velho queimou o meu cabelo na vela do bolo quando eu era pequena. – sussurro e depois rio abertamente, porque é ridículo que essa lembrança ainda me traga sensações de trauma. Gregório parece bastante surpreso. – É sério. O Téo aproximou meu cabelo da vela enquanto eu olhava pra uma foto, e de repente eu estava pegando fogo. Não me machuquei nem nada, mas tive que usar corte de tigela por um ano inteiro. Foi triste.

Gregório estica a mão e eu fico sem entender por alguns instantes, até que me recordo da moeda e a entrego para ele.

– Obrigado pelo seu segredo. – seu sorriso seguinte é bem humorado. – Não acredito que seu irmão fez isso com você.

– Eu era a cobaia das experiências malignas do Téo. – estreito os olhos quando voltamos a caminhar. – E era boazinha demais pra gritar por socorro.

Gregório balança a cabeça e mantém o olhar divertido enquanto prosseguimos pela calçada. Na esquina, esperando pelo sinal abrir, ele me estende o seu braço. Ergo o olhar para entender o convite e sorrio pela simplicidade do gesto; seguro seu braço com as duas mãos quando nos apressamos pelo cruzamento livre de veículos, independente do sinal fechado. Gregório não tem nenhum sinal de tensão ou hesitação na postura quando recomeça a caminhada, o que me deixa sorridente e extasiada pelo resto do trajeto. Eu caminho assim com a Samira e o Apolo o tempo todo. De mãos dadas, de braços dados, abraçada aos ombros deles ou até mesmo montada de cavalinho. Mas, de novo, com o Gregório é tudo diferente. É uma experiência nova.

– Quando é o seu aniversário? – Gregório arqueia as sobrancelhas pela minha pergunta súbita. Estamos na Vila Velha agora, um bairro mais afastado, com morros cansativos e construções antigas. A Prefeitura e a Câmara dos Vereadores ficam na praça central daqui, e tem vários restaurantes caros e butiques e lojas de joias no calçadão. Não é exatamente um lugar onde imagino haver uma festa em que os convidados considerem aceitável uma garota ruiva entrar vestindo shorts e uma camiseta verde de franjinhas.

– Por quê? Quer colocar fogo no meu cabelo?

Faço uma careta indignada e tento me afastar, mas estou rindo quando Gregório solta minhas mãos para rodear minha cintura com o seu braço. Agora, a proximidade entre nós torna difícil até andar.

– Eu tô brincando.

– Não é engraçado usar o segredo dos outros para fazer piadinhas. – Resmungo.

– Desculpe. – ele pede com sinceridade. – Vou usar esse segredo apenas em datas especiais.

– Você tem sorte de ser tão bonitinho. – Estreito os olhos na sua direção, recebendo o seu riso em resposta.

Nossa caminhada conjunta, uma vez que ele continua me abraçando, nos leva até uma esquina e então um morro bastante íngreme. Lembro-me dos comentários que a Samira fez sobre essa parte da cidade, sobre como ela odiou ter se matriculado numa academia daqui porque ficou exausta no caminho até a academia, em vez de ter se exaurido fazendo os exercícios pagos. Ela cancelou a matrícula logo na primeira semana – pelo menos conseguiu o dinheiro de volta.

– Tem certeza de que eu estou vestida adequadamente pra uma festa? – Sussurro para Gregório, e ele me encara com um dos seus olhares enigmáticos.

– Confie em mim. – Pisca um olho na minha direção.

Meu celular toca antes que eu possa desenvolver mais alguma pergunta. Vejo o número da Samira no identificador e estranho ela estar entrando em contato tão cedo; tecnicamente, combinamos de fingir que não sei sobre nosso encontro no restaurante mexicano para que ela possa ao menos gritar SURPRESA com a minha chegada.

– Oi?

– Problema. – Samira adora me preocupar com suas frases curtas.

– O que aconteceu? – paro de andar, causando um olhar curioso em Gregório. – Tudo bem?

– Tudo ótimo, nada grave. Quero dizer, é, sim, grave. O Apolo tá com intoxicação alimentar e me pediu pra vir com ele no hospital, e aparentemente o coitado vai ficar tomando soro e o que mais queiram fazer de experiência nele, o que significa que eu não vou poder sair daqui porque você sabe como ele é medroso e idiota e cagão pra tudo que envolve hospitais e... Ai, eu sou uma péssima amiga. De um lado eu sou uma ótima amiga, porque vim com o Apolo até aqui, mas do outro eu sou horrível porque vou mancar com você no dia em que você veio a este mundo, o dia em que a gente ia comer tacos, eu nem...

– Sam. – estou rindo ao dizer o seu nome. – Não tem problema nenhum. Você sabe que eu nem queria comemorar esse aniversário mesmo.

– Não é questão de querer, é questão de precisar. – reviro os olhos. – Alguém precisa cantar parabéns pra você hoje, senão sua vida vai ser triste e sem sentido até o próximo ano.

– Obrigada pelos votos.

– Você ainda tá no Gregório?

– Eu estou com ele, sim.

– Passa o celular.

– Eu não vou...

– Lílian!

Afasto o celular e estendo na direção do Gregório, que me encara com absoluta confusão. Dou de ombros, sem saber como explicar. Nunca dá pra explicar a Sam.

– Alô? – acho engraçada a maneira com que o Gregório franze as sobrancelhas, os vincos de confusão em sua testa migrando para uma expressão surpresa. Seus olhos me observam atentamente, e depois ele acena, como se o que quer que Samira esteja falando ali faça sentido. – Entendi. Claro, pode ser sim.

Ele me entrega o celular de volta, mas a Sam já desligou. Fico abismada pela falta de consideração dela, mas minha curiosidade fala mais alto.

– O que ela te disse?

– Quer que eu cante parabéns pra você. – Gregório prende um sorriso. – Conhece essa música?

– Não perde uma oportunidade, né?

Ele volta a me estender o braço e eu volto a abraçá-lo. O resto da subida se torna pouco cansativa, talvez pela companhia ou pela leveza dos nossos passos. No topo do morro, a rua segue até mais bifurcações, mas é ali que paramos. A primeira esquina tem um casarão antigo, com o maior quintal que já pensei ver, e Gregório toca o interfone no portão enquanto me lança um olhar hesitante.

– Lugar bonito. – Comento também hesitante. Não sei o que tem ali dentro. Não sei o que é essa casa. Mas o Gregório está aqui e quis dividir isso comigo, então não me importo com o que vem pela frente.

– Quem é? – A voz no interfone chama nossa atenção.

– É o Greg.

– Greg? Tipo Chris e Greg? – Arqueio as sobrancelhas dramaticamente, recebendo um olhar divertido de volta. O portão estala e Gregório o empurra, esperando que eu passe para me seguir. Um caminho de pedras brancas em meio à grama leva para a varanda da frente, que é espaçosa, cheia de cadeiras de balanço. Na porta, uma moça com um vestido branco bastante parecido com o da Marilyn Monroe acena para que nos apressemos.

Ela deve ser um pouco mais velha que eu. Tem cabelos num tom de louro-escuro, e os cachos caem soltos por seus ombros estreitos. Ela tem a constituição de uma bailarina, pequena e de feições finas, com grandes olhos azuis expressivos.

– Onde você estava? – Ela exclama quando chegamos à base da varanda. Olho em volta, só para ter certeza de que não é comigo que a desconhecida está falando.

– Eu me perdi na hora. – Gregório coça a nuca, e eu abaixo o rosto porque de repente me lembro do motivo pelo qual ele se atrasou. – Eles já arrumaram todo o lugar?

– O papa é católico? – a loira retruca em meio a um sorriso. Depois me encara e franze as sobrancelhas, finalmente percebendo que eu sou a deslocada ali. – Eu te conheço?

– Acho que não.

– Meu nome é Andreia, mas todo mundo aqui me chama de Baby. – quero perguntar se é por causa de Dirty Dancing, mas ela explica antes disso: - É por causa de Dirty Dancing. Sabe como é, pais que gostam de dançar, eu aprendi a gostar de dançar, deu nisso. – ela gesticula para si mesma, depois desce a escada saltitante e puxa Gregório pelo braço. – Anda logo, eles querem música.

Ah, então é isso que o Gregório faz aqui. Estranho ele não ter ele trazido o violão, mas sigo os dois mesmo assim, surpresa por ele interagir tão abertamente com a tal de Andreia. Não que eu esteja na defensiva ou sentindo ciúme, é mais uma curiosidade inesperada.

Apesar de deslocada no cenário, eu quero saber que lugar é esse, afinal.

A resposta vem em forma de uma placa decorativa logo na entrada. Os dizeres LAR DE REPOUSO estão em destaque, seguidos por uma descrição emocionada de um ambiente agradável para entes queridos encontrarem lazer e sossego, longe da cidade grande. O lugar é realmente sossegado, e o fato de ter uma festa em plena tarde de sexta-feira diz qualquer coisa sobre diversão.

Noto que estaquei em frente à placa quando Gregório volta apressado do fim do corredor e segura a minha mão, entrelaçando os nossos dedos.

– Vem comigo. – O seu sorriso é alegre, e eu fico animada por vê-lo assim. Sigo ele até o fim do corredor, e duas portas dão passagem para um salão amplo. Meus olhos absorvem toda a cor e exuberância da decoração; o pessoal do curso da Samira ia ficar extasiado com o que os senhores e senhoras fizeram com este lugar. Tem dourado e prateado nas toalhas de mesa, nas cadeiras, panos pendurados sobre as janelas e alguns entalhes das paredes; imagino que subir em escadas não seja muito adequado para velhinhos. – Legal né?

Gregório está ao meu lado, e observa o lugar com a mesma admiração com que eu faço. Com mais familiaridade, eu diria, como se ele soubesse das coisas boas que acontecem aqui. Fico feliz porque ele não soltou minha mão, e extasiada porque seu dedão acaricia minha pele, um movimento quase involuntário.

– Muito. Hoje é algum dia especial ou algo assim?

– Não. Toda sexta-feira tem festa temática, eles fazem uma votação pra decidir sobre o quê. – Gregório aponta em uma direção, e encontro um grupo de uns dez, talvez doze idosos conversando com a garota do vestido da Monroe.

– Eu definitivamente não estou vestida para estar aqui. – comento com bom humor, encarando meu short e minha camiseta com tristeza. – Acho que vão me expulsar.

– Eu não estou muito diferente. – Gregório dá de ombros, com sua camiseta vermelha de mangas curtas e sua calça jeans esfarrapada. – Eles dão um jeito nisso.

– Oficina da Moda e coisa assim?

– É. – Ele desvia o olhar no instante em que uma senhora passa pela porta atrás de nós. Ela tem cabelos louros marcados por mechas brancas, e a trança elaborada evidencia o rosto de feições doces e simpáticas, mas de olhar afiado.

– Onde é que está... Andreia! – ela gesticula, mas Andreia não a escuta. – Eu que uso aparelho auditivo e ela que é surda. – a idosa reclama conosco, arrancando um sorriso aberto de Gregório. Devo estar com a maior careta boba, até porque a expressividade e soltura dele nesse ambiente me deixam chocada. – Gregório, meu bem, traga a Andreia aqui, sim? Esses sapatos estão me matando.

Gregório se vira na minha direção e diz que já volta, soltando a minha mão com uma lentidão abrasadora. Respiro fundo e observo seus movimentos conforme ele se afasta até o outro canto do salão; quando volto a olhar, a idosa está me encarando com as sobrancelhas franzidas.

– Você é a nova estagiária daqui?

– O quê? Ah, não. Não. – sorrio sem graça, sem saber como me apresentar. – Sou uma intrusa, na verdade.

– Veio com o Gregório?

– Sim. – cruzo os braços, repentinamente envergonhada. – Espero que não seja um problema.

– Ah não, as festas são abertas para o público. Mas nunca tivemos um público. – a senhora não soa amarga ao dizer aquilo, ainda que um pouco entristecida. – Meu nome é Dalila.

– Lílian. – Estendo a mão para um cumprimento. Ela aperta minha mão entre as suas. Suas unhas são grandes e bem feitas, pintadas de um vermelho vivo. As minhas, sem cor e roídas.

– Que nome bonito, menina. – Dalila elogia, me fazendo sorrir sem graça.

– Foi sugestão da minha tia. Lírio é a flor favorita da minha mãe. – comento sem saber exatamente por que. Dalila tem um olhar simpático que te faz querer puxar conversa, o tipo de presença confortante de uma avó. – Então, o baile é de quê?

– Nós não chegamos a um consenso para hoje. Alguns queriam a Roma antiga, outros preferiam os anos 50. Então decidimos que poderiam vir do que quisessem, contanto que fossem trajes formais e a decoração se fizesse em dourado e prateado. E o menino Gregório vai cantar para a gente. – Dalila soa orgulhosa ao explicar os trâmites do evento de hoje, e fico admirada com a preparação e o cuidado que eles tiveram ao preparar tudo. Se toda sexta-feira tem uma festa, então o resto da semana é usado para decidir o que vai acontecer nela. Parece uma ótima maneira de ocupar o tempo.

– Gente! – Andreia sobe em uma cadeira para que todos prestem atenção nela. – Eu quero uma trilha sonora enquanto o Gregório vai mudar essa roupa horrorosa!

Dalila bate palmas e tira alguma coisa da bolsa – um CD, eu me surpreendo. Nasci nos anos 90, mas faz muito tempo que não vejo um desses. Acho que meu pai ainda coleciona, mais por gostar de empilhar tralhas do que pelo prazer de guardar álbuns das suas bandas favoritas, que eu nem sei quais são.

Andreia vem em nossa direção, e Gregório se dispersa das senhoras que conversavam com ele para vir na minha direção. Com as mãos nos bolsos da calça e o rosto meio baixo, adoro o jeito como ele me olha, as íris claras sombreadas pelos fios bagunçados do seu cabelo. As senhoras que conversavam com ele estão me espiando nada discretamente, e engulo em seco, me sentindo numa inusitada reunião de família.

– Lembra a história da Oficina da Moda? – ele questiona brincalhão. – Vem comigo.


?


É engraçado entrar em um quarto do asilo e encontrar toda uma revolução de guarda-roupa, mas é exatamente isso que acontece. Tem vestidos, ternos e outras vestimentas jogados em cada canto desse lugar. A cama está abarrotada de tecidos variados, e eu nem sei identificar os modelos que compõem as peças.

Gregório agradece a senhora que nos trouxe aqui, uma mulher baixinha, de corpo magro e olhar amigável, vestida com uma toga romana. Ela se chama Ivete e tem o maior acervo de roupas que existe no mundo, segundo a própria. Eu insisti que não precisava me trocar, mas ela disse que ninguém pode participar de uma festa temática fugindo do tema.

Quando Ivete fecha a porta e nos deixa a sós, imagino que ela tenha muita confiança na ideia de dois jovens sozinhos em um quarto. Claro que, com todo o pessoal lá embaixo, nada demais vai acontecer, mas o princípio é desconcertante.

– Então... – começo, observando a bagunça de roupas por todo o quarto. Um biombo com desenhos chineses ocupa a parede direita, e tem vestidos jogados sobre ele também. Vou até lá, puxando uma peça verde-musgo. Parece muito com alguma coisa que a Cher usou em sua vida, com plumas e paetês por todo o vestido. – Que estilo cai melhor em mim? – Ponho a roupa em frente ao corpo e pisco os olhos para Gregório, no que ele balança a cabeça e pega um colete da pilha infinita.

– Todos, eu diria. – O comentário dele me deixa boba. Sorrindo, eu devolvo o vestido da Cher para o biombo e continuo a minha busca. Um espelho enorme está pendurado ao lado da cama, e eu pego uma saia rodada longa, de tecido leve, e apoio na frente do meu quadril para ver o efeito. Atrás de mim, enquanto estou distraída, Gregório tira a camisa.

E o universo desaparece do meu conhecimento por alguns segundos.

Não me viro para examiná-lo abertamente porque alguma coisa na rapidez com que ele se troca, ou na hesitação ao manter o rosto baixo me impedem de invadir seu espaço. Baixo o rosto, alisando o tecido da saia, e então ergo apenas o olhar. Gregório é magro e atraente. A barriga lisa tem leves trincas, o que me faz suspirar. Tudo bem, ele não é nenhum modelo de academia, mas não deixa de ser gostoso por isso. É ainda mais.

A tatuagem que cobre seu braço direito se estende para a linha da clavícula, mas acaba antes de alcançar o tronco. São linhas do tempo e palavras cruzadas e espirais de fumaça. O desenho é harmonioso, e faz um contraste fantástico com a palidez dele.

Quando Gregório se vira de lado, encontro uma cicatriz discreta atrás do seu ombro. É uma risca estreita e fina, mas bastante perceptível sobre sua pele. Outra aparece mais embaixo, na linha das costelas, e perco uma terceira na lateral da sua cintura quando Gregório se vira de novo.

O colar de contas coloridas pende de seu pescoço, acompanhando a curvatura do seu peito. Quando ele respira, calma e lentamente, acompanho o movimento do seu corpo, e meus olhos descem por seu tronco enquanto ele desamassa a camisa que vai vestir; engulo em seco ao chegar no cós da calça, acompanhando o desenho perfeito da linha da sua cintura, o leve tremor em sua pele quando ele respira de novo. Ergo o olhar no reflexo, e vejo que Gregório me observa de volta.

Alguma coisa na fragilidade da sua figura me faz querer me aproximar, me faz querer tocá-lo com a mesma delicadeza e desejo com que ele me tocou mais cedo, dedilhar cada centímetro da sua pele, sentir o calor dela sob minhas mãos. Mas, ao mesmo tempo, seu olhar implora por aquela distância. Ele faísca sobre mim, pede o afastamento.

Viro o rosto, surpresa por notar que estava apertando com força demais a saia em minhas mãos, e continuo de costas enquanto procuro alguma coisa para usar. Qualquer coisa. Só preciso ocupar minha atenção. Lembro-me das suas cicatrizes e me pergunto as memórias que elas carregam; as minhas têm muitas lembranças. Algumas são desconfortáveis, mas a maioria é inesquecível. Gostaria de ser próxima o suficiente dele para indagar sobre suas histórias.

– Aqui. – Me assusto quando Gregório aparece ao meu lado e me estende uma peça. A camiseta que ele escolheu tem listras vermelhas e marrons, e o colete que vestiu por cima dá um ar de personagem perdido de algum filme antigo. Agradeço com um sorriso trêmulo e vou para trás do biombo, embasbacada pela minha timidez. Onde está o autocontrole de que tanto me orgulho?

Tiro o short e a camiseta e estremeço quando minha pele entra em contato com o vestido fino. A saia leve e rodada cobre minhas pernas e termina sobre os joelhos, e a parte de cima se ajusta ao meu tronco quando prendo as alças atrás do meu pescoço. A parte de trás é presa por um zíper e, para ser sincera, eu me aproveito disso.

Saio de trás do biombo segurando a parte da frente do vestido, ainda que as alças façam isso por mim, e ergo o cabelo com a mão livre. Gregório está sentado na cama, mas dirige a sua atenção para mim com um que de fascínio. De repente, fica difícil respirar.

– Ajuda? – Peço com um sorriso sem graça, ficando de costas para ele. Engulo em seco quando Gregório para trás de mim, sua presença doce e marcante distribuindo arrepios por minha pele. Quando ele alcança o zíper, um pouco abaixo da minha cintura, preciso congelar para não estremecer. O movimento para fechar o vestido o deixa mais próximo de mim do que eu imaginava, e não sei se Gregório faz isso de propósito, mas sorrio quando solto meu cabelo por cima do ombro.

– Não acho justo te ajudar a colocar o vestido. – Sua voz acaricia minha pele.

Gregório dá mais um passo à frente, e o curto espaço entre nós é enlouquecedor. Viro o rosto para procurar seu olhar, mas ele abaixa a boca sobre meu ombro, beijando aquele espaço com uma lentidão incendiária. Suspiro e fecho os olhos, apreciando o contorno dos seus lábios sobre a minha pele. O beijo segue para o lado, acompanhando a linha da minha clavícula, e de repente sua boca encontra meu pescoço e eu estremeço com a carícia dos seus lábios. Sua respiração esquenta minha pele, a barba faz cócegas, e suas mãos tocam as laterais do meu braço enquanto sua boca segue para trás da minha orelha, arrancando um arquejo de mim.

– Você não pode me beijar assim e achar que vai ficar tudo bem. – Sussurro. Gregório desenha o seu sorriso em minha pele, mas me impede de vê-lo. Seus beijos continuam para cima até pararem no topo da minha cabeça, e ele me abraça por trás, apertando cada centímetro do seu corpo contra o meu. Rodeio seus braços com os meus, cobrindo suas mãos, entrelaçando nossos dedos com a familiaridade que de repente se torna indispensável em cada momento que divido com ele.

– Tem uma festa esperando lá embaixo, aniversariante.

– Argh, eu não faço aniversários.

A risada dele ressoa por todo o meu corpo.

– Vem. – Ele se solta do nosso abraço, mas continua segurando minhas mãos. Caminhando de costas para a porta, ele me encara com intensidade e algum sentimento mais profundo e indecifrável.

– Essa festa já atrapalhou a gente duas vezes. – resmungo, abraçando-o quando chegamos à escada. Gregório ri discretamente. – Não estou gostando disso. – Ele apoia a boca próxima da minha orelha e murmura:

– Eu posso te compensar por isso mais tarde. – A implicação descarrega eletricidade pelos meus nervos, e me mantenho abraçada a ele para impedi-lo de ver o sorriso extasiado em meu rosto. Dois comentários arrepiantes em tão pouco tempo me fazem pensar se Gregório está realmente disposto a me compensar por isso mais tarde; se ele quer me ajudar a tirar esse vestido.

De volta ao salão, qualquer música animada está tocando no rádio. As cortinas foram fechadas, então o clima de festa noturna comportada paira no ar.

Fico extasiada com a beleza e a vida deste lugar. Gregório se despede porque precisa assumir seu papel na encenação de hoje, e tiro algumas fotos com o celular porque sei que a Mônica vai adorar saber sobre isso; só preciso me lembrar de mandar pra ela mais tarde. Vejo uma senhora sentada na primeira mesa próxima do palco improvisado e a reconheço de momentos atrás; é a Dalila, com seu olhar afiado e sorriso amistoso. Ela gesticula para mim e eu me apresso em sua direção, sentando-me na cadeira ao lado da sua.

– Que vestido mais adorável! – Ela dá um tapinha no meu rosto. Gregório está próximo da gente, mas não o suficiente para nos ouvir. Ele e Baby conversam alguma coisa enquanto arrumam o equipamento de som; um violão diferente do seu, mais desgastado e antigo, o aguarda.

– A festa está incrível. – Elogio. Dalila anui e agradece.

– Nós sempre fazemos o melhor. Uma pena ter só você como expectadora.

– Ah, a Baby e o Gregório...

– São parte daqui também. Andreia é estagiária e o Gregório é bom demais pra esse mundo. – Dalila me entrega um sorrisinho divertido, e eu desvio o olhar, envergonhada por motivos que não entendo. Velhinhas e sua capacidade de ler mentes.

– Vocês nunca pensaram em convidar o público? Acho que se mais pessoas soubessem sobre a festa, mais gente viria. – O comentário sai com naturalidade, mas me arrependo por ele. Talvez eles não estejam dispostos a dividir a paz daqui com desconhecidos. Talvez nem seja permitido, e eu aqui incitando rebeliões a um bando de idosos.

– Nunca tentamos, para ser sincera. – Dalila arma uma expressão pensativa. – Mas pode ser uma ideia.

– Ah, eu conheço um bando de gente que adoraria participar e ajudar em festas temáticas. – Gente como a Samira, que com certeza se tornaria amiga de todos os idosos hospedados aqui. Sam adora conversar com pessoas mais velhas, adora dividir experiências e, principalmente, ganhar novas histórias para guardar. O que o pessoal daqui mais tem é história, afinal.

– Oi gente. – Baby está parada em frente ao microfone, ao lado do Gregório. Ela tem um sorriso radiante no rosto, como se estivesse anunciando um show para uma grande plateia. Acho que plateias menores importam tanto quanto as singelas. – Hoje é um dia especial. – arregalo os olhos na direção do Gregório, que tem um sorriso preso em seus lábios. Ah não, ele não fez isso. Ele não contou! – Um dia especial para uma pessoa especial, e nós estamos aqui não só pra agitar essa festa como vocês gostam, mas para homenagear essa pessoa. – respiro fundo e desvio o olhar, desacostumada a esse tipo de emoção. Faz anos desde que alguém tentou me surpreender em um aniversário, anos desde que cantaram parabéns para mim. E não foi legal. – Dalila, hoje é seu dia! – Um balde de água fria na minha cabeça teria me surpreendido menos. Migro o olhar embasbacado para Dalila, que fica de pé e acena como se estivesse em um desfile. Gregório, no palco, me lança uma piscadela.

Ele nunca entregaria o seu segredo para outra pessoa, idiota.

Fico arrependida por ter duvidado dele, mas as pessoas adoram surpresas! A Samira podia tê-lo ameaçado no telefone, ele podia ter decidido cantar parabéns no palco para aproveitar o microfone e o violão. Várias possibilidades se estendem ali para explicar minha desconfiança; Baby bate o dedo no microfone, mas dá espaço para Gregório assumir o lugar.

– Oi. – Eu adoro o sorriso aberto dele. Adoro como seu rosto fica mais iluminado, seus olhos mais vivos e sua postura mais radiante. Gregório sorri e o mundo sorri de volta para ele. Dalila se aproxima do palco e Gregório se abaixa para segurar sua mão e beijá-la; esse menino consegue ser mais adorável? – Feliz aniversário.

Seus olhos esbarram nos meus por um segundo, mas é o bastante para me desconcertar. Ele pode não estar falando diretamente comigo, mas seu olhar passa a mensagem.

Alguns instantes de silêncio e então Gregório começa a dedilhar as cordas do violão, produzindo uma melodia doce pouco familiar para mim. Dalila a reconhece imediatamente, porque bate palmas e ri com vontade.

– Minha música!

Gregório acena e baixa o olhar, concentrando-se nos acordes ou fugindo da atenção de todos ali. Ele me contou seu segredo sobre os palcos, a história de imaginar alguma coisa boa e feliz e mantê-la em seus pensamentos enquanto toca, e imagino que esteja procurando alguma coisa boa e feliz para pensar enquanto se prepara para cantar.

– Hey there Delilah, what's it like in New York City? [3]I'm a thousand miles away, but girl tonight you look so pretty. Yes, you do. Times Square can't shine as bright as you. I swear it's true.

Eu realmente não reconheço a música, mas pouco me importo, porque a voz do Gregório é maravilhosa e a emoção que a canção cria naquele salão faz o passeio ter valido a pena. Essa pode não ser uma homenagem para mim, mas me sinto incluída nela. Não gosto do meu aniversário, mas gosto de como ele trouxe um dia inesquecível até mim.

Observo a maneira concentrada e familiar com que o Gregório dedilha as cordas do violão, seus dedos indo e voltando ao montar os acordes. Ele está com os olhos fechados agora, a boca próxima do microfone, o rosto sereno enquanto conta sobre a confusão de alguém obviamente apaixonado.

– Give this song another listen, close your eyes, listen to my voice. It's my disguise. I'm by your side. – Observo Dalila dançando com um senhor de terno e bigode bem aparado. Outro casal animado com passos bastante ensaiados valsando pela pista de dança improvisada. Uma senhora solitária dançando abraçada a um vaso de flores e um velhinho de cadeira de rodas girando em círculos com um sorriso no rosto. Gregório está de olhos fechados, mas deveria abri-los para ver o efeito que tem nas pessoas.

A música prossegue calma e adorável e eu gostaria de perguntar o nome, então faço uma anotação mental para fazer isso quando estiver sozinha com o Gregório. Não quero que mais ninguém saiba da minha falta de conhecimento musical, independente de ser uma canção famosa ou não.

Gregório termina de cantar e recebe os aplausos sonoros de todo mundo aqui, inclusive os meus. Ele me lanceia um sorriso leve e desvia a atenção até a Baby. Quando ela chama todos os presentes para combinar os horários do bingo da festa de hoje, Gregório se aproxima da beirada do palco e eu o imito. Ele se abaixa, apoiando um joelho no chão, e inclina o corpo para conversar comigo sem erguer a voz.

– Escolhe uma música.

– O quê? – pisco repetidas vezes. – Não sei nada sobre músicas. – Ele ri e balança a cabeça.

– Não se lembra de nenhuma específica? Uma que goste mais que as outras?

– Eu gosto de várias músicas, mas não sei os nomes.

– Quero cantar alguma coisa pra você.

Meu coração vira a bateria de uma escola de samba, e meu sorriso deve ser bobo e desengonçado, porque o dele fica sem graça.

– Achei que a Sam tivesse te feito prometer a cantar parabéns.

– Canção muito superestimada. – ele revira os olhos em brincadeira. – Vamos lá, qualquer coisa que apareça aí. Prometo até Backstreet Boys.

– Ai credo.

– Ah, eles você conhece?

– Minha irmã passou por essa fase. – estreito o olhar, buscando alguma coisa em minha memória. Penso nos discos que o papai colecionava e nos poucos que ele colocava para tocar, penso nas músicas favoritas da mamãe, que ela sempre repetia em nossas viagens de carro. Eu nunca sabia o nome das canções, mas adorava ouvi-las aleatoriamente. Pareciam importantes, um marco na vida dos meus pais e, portanto, na minha. – Ok, Beatles, pode ser?

– Hm, estamos fazendo progresso.

– Cala a boca. – escondo um sorriso, evitando olhar para o dele. – Eu não tenho uma favorita deles, mas Here Comes the Sun é uma das melhores.

Algo se acende no olhar do Gregório. Ele fica de pé, faz uma reverência na minha direção e se adianta para falar alguma coisa pra Baby. Fico parada e observo enquanto ele ajeita o violão e os senhores e senhoras da plateia param os burburinhos de conversa para ouvir a música.

Durante os primeiros segundos, aquela sensação nostálgica de reconhecimento, a mesma que certamente causou o olhar encantado no rosto do Gregório, toma conta de mim. Pela primeira vez, eu conheço a canção! Era uma das favoritas da minha mãe. Me faz sentir falta de casa.

A voz do Gregório é tão incrível que eu poderia compor uma canção, independente do meu talento para poetizar acontecimentos e emoções, só para ouvi-lo cantar aquilo. Adoro como o seu corpo relaxa enquanto sua voz rouca e marcante assume comando, como sua postura parece completamente à vontade ali no palco, cantando sentimentos com a mesma sutileza com que conversa com você.

– Little darling, the smiles returning to the faces. Little darling, it seems like years since it's been here.[4]

Não escondo o sorriso por reconhecer o trecho. Queria gravar isso para mostrar para minha mãe, mas não sei quando vou voltar pra casa na atual situação das provas, e nem sei se ela se importaria. Será que ainda é a música favorita dela?

Quando ergo o olhar, Gregório está me observando. Ele repete o refrão com entusiasmo, e o que antes vacilava em mim, com a lembrança repentina de casa, desvanece num riso encantado. Dalila é a primeira a uivar com animação quando Gregório termina a música, e os aplausos são um pouco mais altos desta vez. Ele faz uma mesura educada e entrega o violão para a Baby, retirando-se do palco improvisado.

– Pode me dar seu autógrafo? – Exalto assim que ele chega na mesa, dramatizando o meu melhor tom histérico. Gregório bebe um pouco de água da garrafa na mesa e mantém o olhar misterioso sobre meu rosto.

– Só preciso te avisar que eu vim com uma garota incrível aqui hoje. – Ele brinca, se aproximando com cautela. Reviro os olhos, jogando a cautela pelos ares. Seguro as bordas do colete que ele colocou mais cedo e roubo um beijo rápido, aproveitando que todos no recinto estão distraídos com a cantoria da Baby. Os lábios dele têm gosto de uma melodia desconhecida, absolutamente atraente. Quando me afasto, o verde das suas íris está sombreado por um forte brilho de desejo. – Feliz aniversário de novo.


Aquele com as luvas

 

AGORA


O fim de semana está sossegado porque a maioria dos moradores foi viajar, aproveitando o feriado do Dia do Trabalho dessa sexta, mas o clima calmo não impede a Samira de sair saltitando pelas ruas conforme seguimos nosso caminho.

O comércio nessa parte da cidade só costuma ficar agitado durante as férias, ou quando o pessoal rico da universidade tem tempo e disposição pra vir almoçar em restaurantes caros e qualquer outra coisa que pessoas com dinheiro façam por aqui.

Eu vim pra cá porque estou com saudade do pessoal do asilo; eles se tornaram pessoas importantes durante minha primeira estadia em Rouxinol, e me senti mal por ir embora sem me despedir. Quando desci do ônibus na rodoviária mais cedo, determinada a tomar alguma atitude a respeito do Gregório e das suas luvas, percebi que tinha mais nessa história que eu havia deixado em branco com a minha partida.

A Samira entrou no plano de supetão, e aceitou me acompanhar.

Ela está toda pilhada com a apresentação do seminário – o grupo dela escolheu falar sobre Iracema, do José de Alencar. Eles fizeram resumos sobre a obra, sobre o autor, sobre a ambientação, o conteúdo histórico, a relevância, Sam bateu a cabeça na parede e gritou com os quatro ventos durante dias sobre como aquela havia sido a pior ideia da sua vida. E ah, eles precisaram roteirizar uma cena. De acordo com os relatos, ela vai ser encenada ao fim do seminário, com direito a caracterização e tudo.

Subindo o morro que leva até o lar de repouso, me arrependo por ter colocado um livro na bolsa – eu estou enferrujada com as minhas corridas matinais, o que significa que meu corpo desacostumou a subir ribanceiras com a inclinação dessa em que me encontro.

Samira está tão absorta nas falas da sua personagem que nem se lembra de reclamar sobre esse percurso; observo minha amiga discretamente, contente por ter sua companhia. Sam usou um dia para se livrar das mechas coloridas, então seu cabelo está entremeado por fios brancos. Ela ainda não decidiu a cor que vai usar neles, mas se diz bastante satisfeita com o visual Cruella De Vil.

– Eu falei alguma coisa errada? – Samira me pergunta.

– Não. – arregalo os olhos. – Por quê?

– Você está me encarando.

– Eu estou te admirando.

– Ah, obrigada.

Também me arrependo de ter trazido o par de luvas que Gregório me deu; são só luvas. Eu podia muito bem colocar em um envelope e deixar na porta da casa dele. Ei, eu preferia as suas mãos, mas já que não posso tê-las, obrigada pelos acessórios.

Patética.

O comentário da Mônica me assombra mais do que eu gostaria, assim como a certeza de que toda essa enrolação não é do meu feitio. Por que o Gregório me bagunça tanto assim? Um coração quebrado é tão confuso desse jeito?

Suspiro e respiro fundo ao parar em frente ao portão do asilo. Toco o interfone e aguardo, admirando o quintal que se tornou familiar por alguns meses.

– Quem é?

– A Lílian.

Silêncio do outro lado do interfone.

– A Lílian?

– Acho que sim? – Samira me lança uma careta confusa, e o silêncio que se repete me deixa apreensiva. Era bobagem achar que eu seria bem-vinda ali depois de tanto tempo longe?

O portão estala e entreabre, me fazendo respirar aliviada. Quando o fecho atrás de mim e gesticulo para Sam seguir em frente, fico surpresa ao avistar a figura um pouco desconfiada da Baby parada na varanda. Ela continua a mesma enfermeira-estagiária-líder-das-atividades carismática de antes, com sua pouca altura e a presença radiante. Hoje é sábado, o que significa que a festa temática já aconteceu. Por isso suas jeans e camiseta do lar de repouso; por isso é estranho eu estar parada ali com cara de pastel, sem saber exatamente como me pronunciar.

– Oi! – Samira toma as rédeas da situação, dando um pulinho para chamar a atenção. Baby direciona um olhar curioso na direção da minha amiga, admirando suas roupas coloridas e as mechas pálidas entremeadas em seu cabelo. – Meu nome é Samira.

– Andreia, mas todo mundo me chama de Baby.

– Por causa do filme?

– Depende de que filme está falando. Se for aquele com um porquinho, eu posso te chutar daqui a três segundos.

– Não! – Samira fica horrorizada, e eu prendo o riso pela careta divertida da Baby. – O da dança. Eu sempre esqueço o nome. Não sou boa com filmes dos anos oitenta.

– O da dança. – Baby estreita os olhos teatralmente, se fingindo ofendida, mas desvia a atenção até mim bem a tempo.

– Faz tanto tempo que eu não te vejo! – ela me recebe em um abraço e não pergunta nada sobre o desaparecimento. – Você está bem, Lílian? – seu tom dá a entender que ela se preocupou com a minha ausência.

– Tudo bem agora. – garanto com um sorriso. – Como vai todo mundo?

– Ah. – meu coração se aperta com o olhar entristecido. – A Ivete tá de cama, um resfriado horrível pegou ela de jeito. Mas fora isso, todo mundo bem. – seu sorriso vacila um pouco. Baby olha por cima do ombro e então de volta pra mim. – Você sumiu.

– É. – suspiro, endireitando os ombros. Sabia que teria que me explicar, mas nem sei como fazer isso. – Tive alguns problemas. Vários, na verdade. Tudo somado a umas crises de identidade, odiar o meu curso e estar com saudade de casa. Precisei parar tudo por aqui durante uns meses pra arrumar minha cabeça. Vim aqui pra falar oi e me desculpar por desaparecer.

– Não tem que se desculpar. – Baby faz um gesto para que eu suba as escadas. – Todo mundo se preocupou, mas soubemos que você não estava confortável aqui e precisou ir embora por um tempo.

– Quem disse?

Ela não responde. Nem precisa.

Samira abraça meu braço para mostrar apoio. Eu sorrio em agradecimento. Olho em volta no hall familiar e aceno para a atendente atrás da bancada da secretaria.

– Lugar interessante. – Sam me diz. – Minha avó está num asilo desse tipo também. Ela adora o lugar; tem jogos e visitantes excêntricos com palestras sobre plantas, artesanato e tricô. Ela odiava tricô antes de ir pra lá, e agora faz tantos suéteres e cachecóis quanto seu estoque de lã permite.

– Lílian. – nós duas estacamos com o chamado da Baby. Ela para à nossa frente, bloqueando o caminho para o salão. Samira segura minha mão. – O Gregório...

– Está aqui. Eu sei. – engulo em seco, dizendo a mim mesma que não é nada demais. – Só quero falar um oi rápido, sério. Depois vou embora, tenho três roteiros para decorar e uns trabalhos pra fazer. E a Sam ainda precisa comprar tintas pras mechas dela. – Gesticulo brincalhona. Samira entra no compasso.

– Sabe como é, não consigo decidir entre o azul e o roxo.

– Quer que eu anuncie vocês?

– Não, tudo bem. – dou de ombros. – Vou fazer surpresa. – Mas não uma surpresa grande demais. Sabe como é, tem gente com problemas do coração por aqui.

Hesitante, agarrada à alça da minha bolsa e ao braço da Samira, eu caminho até o salão.

Baby puxa papo com a atendente às minhas costas, as vozes do salão ficam mais altas conforme me aproximo, e me lembro de que os sábados são dias de rodas de histórias. O que significa que os senhores e senhoras que participam dessa atividade se reúnem num círculo social, sentam-se em cadeiras confortáveis e dividem suas histórias com os outros membros do grupo. Gregório costumava ser um expectador, mas se tornou parte do clube. Ele gostava de cantar alguma coisa ou só tocar uma música ao fim das reuniões, coisa que todos os participantes adoravam.

Quando passo pelas portas, eles estão longe demais para me notar imediatamente. Samira comenta baixinho sobre a beleza do salão, e eu concordo com um aceno. Avisto Heitor e a senhora Georgina, a querida Dalila, com suas roupas elegantes e o colar de pérolas. Vejo Laerte e seu bigode bem aparado, Pedro e a dona Nina, ainda casados, ainda apaixonados.

E vejo Gregório, sentado de lado para a porta, de modo que seu perfil familiar me faz prender um suspiro. Ele está vestindo uma camiseta branca de mangas compridas, e as mangas estão arregaçadas na altura dos cotovelos. O modo com que ele se inclina sobre as pernas, apoiando os antebraços nas coxas, a curvatura das costas, os ângulos do seu rosto, tudo isso me faz hesitar. Mas então me lembro do beijo na sala dos espelhos, do seu toque nas tantas vezes em que ele me entregou seu coração, me lembro dos seus sorrisos, da sua voz e do amor que dedicamos um ao outro. As luvas dele pesam em minha bolsa, mais pelo significado do que por eu precisar devolvê-las.

– Lílian, você não vai lá? – Samira sussurra.

– Vou esperar a história acabar.

– Eu vim aqui esperando grandes emoções, garota. É bom você cumprir com o prometido. – Ela sibila contra meu ombro para abafar a voz.

Espero ali onde eles não podem me ver. Dalila está falando alguma coisa sobre o seu neto, uma história a respeito da última visita que ele fez para ela – durante o feriado do Ano Novo. O que significa que faz bastante tempo. Ela não soa ingrata ou amargurada, no entanto, e divide o causo com a familiar simpatia de que eu me lembro.

– É um doce de rapaz, o meu Tiago. – Dalila continua. Me escoro no batente da porta, cruzando os braços para continuar ouvindo a história. – Ele está procurando um lugar para abrir sua confeitaria, e a região é muito cruel com esse tipo de comércio, então é difícil receber suas visitas tão constantemente. Ainda mais com os dois empregos chatos que meu neto aguenta pra guardar seu suado dinheirinho. Ele conseguiu um tempinho no feriado do fim do ano para passar os dias aqui, vocês lembram, não lembram? – Vários membros do grupo assentem e se animam.

– Doce Tiago, tão doce quanto seus bolos! – dona Nina exalta.

– Meio destrambelhado, se minha memória não está falhando como acho que está. – Laerte entra na conversa, e eu prendo um riso pelo seu comentário.

– Não chame meu neto de destrambelhado, seu destrambelhado. – Dalila resmunga. – Gregório querido, acho que você foi o único que não conseguiu conhecê-lo.

– Não deu mesmo, mas vai dar certo na próxima visita. – A voz do Gregório causa aquele rebuliço descontrolado em mim. Me desencosto da porta, pensando que talvez tenha sido uma má ideia vir até ali sem me anunciar. Samira me ergue um olhar apreensivo; ela tinha se oferecido para trazer as luvas ou para entregar ao Gregório no intervalo de uma aula, mas eu tinha explicado meus motivos e ela decidiu me apoiar na iniciativa perturbada que é tentar arrumar as coisas. – Eu estava em casa na época.

– Não, ele não foi o único. – os olhos de Heitor, aumentados pelos óculos fundo de garrafa, estão fixos em mim. Engulo em seco, balançando a cabeça levemente, puxando Samira para me tornar a sombra dela, tentando fazer com que ele não continue o que está prestes a dizer: – A Lílian também não estava aqui.

É isso. Ele solta a bomba, larga o microfone, e todas as outras expressões possíveis para criar um silêncio mórbido. Não dura mais que uns segundos, pelo menos até todos se virarem em suas cadeiras para me olhar, reconhecimento e surpresa e exaltação ganhando suas feições. Sorrio hesitante para Samira e dou um primeiro passo para dentro da sala, sem pensar demais.

Dalila e Nina avançam na minha direção e de repente estou dentro da sala, sendo puxada e abraçada pelas senhoras de quem tanto senti falta. Cumprimento os outros com um pouco de timidez, ciente de que aqueles meses longe de tudo isso criaram uma camada de estranheza entre nossa convivência. Até porque o Gregório está aqui, e nós não estamos juntos. Ninguém precisa ser matemático para calcular o que aconteceu entre nós.

Ainda não olhei para ele desde que fui anunciada. Suas luvas em minha bolsa, a lembrança da cena na sala dos espelhos, a conversa que tive com a Mônica, tudo isso forma um redemoinho de ideias na minha cabeça. E eu sou conhecida por agir antes de pensar; pensar muito me faz agir de menos. Engulo em seco e abraço a hesitação, migrando o olhar de Dalila para o rapaz sentado sozinho no círculo de cadeiras.

Gregório está com o olhar baixo, encarando o chão. Seus cílios longos tocam as maças do rosto e seu lábio inferior está preso em uma mordida. Ele respira fundo uma, duas, três vezes e enfim acompanha a minha atenção. Seus olhos translúcidos são enigmáticos, mas não melancólicos. Meu maior medo era encontrar tristeza neles, mas ela não está ali agora.

Observo a tensão na linha da sua mandíbula, a pressão com que ele aperta os lábios em uma linha reta. Seu olhar tremula e desvia do meu para Dalila, migrando para os outros idosos, para Samira e de volta para o meu.

– Você engordou um pouquinho, Lílian querida. – arregalo os olhos quando Nina dá um tapa carinhoso na minha bunda. Gregório abaixa mais o rosto para esconder seu riso. – Está mais esbelta.

– É. Minha mãe adora fazer doces. – sorrio sem graça. – Sabe como é. Uma temporada em casa, uns quilinhos a mais dentro da calça. Minha tia sempre diz isso.

– Sua tia está certa, e você mais ainda por aproveitar! Ah, que saudade da comida da minha mãe.

– Sua mãe morreu há quarenta e dois anos, Nina. – Seu marido, o doce e divertido Pedro, abraça os ombros dela e beija o lado do seu rosto.

– Mas ela fazia o melhor ensopado de pato de todos. – Nina contrapõe, e sei que está tendo um dos seus devaneios.

– E você quem é? – Dalila cruza os braços, esperando a resposta da Sam. Ela se apresenta com um pouco de hesitação, mas o sorriso confiante e simpático de sempre. – A Lílian já tinha mencionado você por aqui.

– E ela falou muito dos senhores pra mim! – Samira se anima. – Eu adoro as histórias daqui. Suas festas, principalmente! Queria muito participar e ajudar com algumas, se não for problema. Sextas-feiras costumam ser um dia de grande tédio lá no meu apartamento e organizar festas é a melhor coisa que poderia acontecer comigo.

– Mas que vontade de falar! – Dalila mostra admiração. – Nunca recebemos ninguém com tanto interesse em ajudar, pelo menos não desde a Baby e o Gregório... – Dalila se vira para Nina e Pedro e Samira aproveita para me dar um beliscão.

– Ai. Por que fez isso?

– Eu distraio essa galera. Vai, vai, vai! – Ela guincha e me empurra na direção da roda, onde Gregório está sentado sozinho.

Tudo bem, preciso fazer o que vim para fazer. Não é grande coisa. Abro o zíper da bolsa e vasculho as poucas coisas ali dentro, fingindo-me muito ocupada. Paro em frente ao Gregório, respiro fundo, e baixo o olhar até encontrar a atenção dele.

– Oi. – Digo, porque é o máximo de desenvoltura que encontro no vocabulário. Gregório está próximo demais; seu perfume, sua presença, a maneira tímida e contida com que ele se porta. Inclinado como está, consigo ver o cordão de contas coloridas pendendo de seu pescoço, e o cordão com o meu segredo. Meus olhos admiram as mangas gastas da sua camiseta velha, a maneira com que ele mexe os dedos em nervosismo sobre as pulseiras em seus pulsos. – Eu me esqueci de devolver isso.

Estendo as luvas. Um vinco de confusão surge entre as sobrancelhas dele, então compreensão. Ele as aceita de volta, e poderia ter feito isso sem me tocar, mas de alguma maneira estende a mão a ponto de roçar seus dedos nos meus. Escorrego o olhar até seu toque, mas Gregório se afasta antes que eu o observe.

– Obrigado. – Ele se levanta e hesita à minha frente, ciente do pouco espaço entre nós e da estranheza desconfortável que isso gera. Nunca foi assim. Não deveria ser assim.

Ele dá um passo para o lado e segue para fora da roda, encaminhando-se para uma mesa onde estão sua mochila e seu violão. E eu vou atrás, porque sou a Lílian, afinal de contas. Determinada e teimosa e confusa até o último fio de cabelo.

Paro atrás dele, mas Gregório fala antes que eu me pronuncie:

– Você nunca desiste.

– Alguns dizem que é minha melhor qualidade.

Ele ri suavemente, mas seu riso não é espontâneo. Parece mais frustrado.

– Lílian.

– Gregório. – engasgo, me lembrando do beijo na sala dos espelhos. Foi a mesma sequência de sentimentos. – Nós precisamos conversar. – É estranho falar com ele enquanto suas costas estão no meu campo de visão, mas não o obrigo a fazer de maneira diferente. Sinto o seu nervosismo na maneira com que seus ombros estão tencionados. – Eu sei que essa insistência é chata, mas eu também sei que você não me daria toda essa atenção se não quisesse resolver isso.

– Isso o quê?

– Nós. – ele vira o rosto de soslaio, seus olhos claros perscrutando os meus. – Podemos conversar quando a reunião aqui acabar?

Gregório engole em seco e muda a atenção para o grupo, que nos aguarda. Eles ainda estão conversando, distraídos com suas vidas, para a nossa sorte. Seria constrangedor ter que explicar por que dois jovens apaixonados não podem se acertar; porque eu fui babaca, senhoras e senhores.

Acho que Gregório vai recusar. Pela maneira com que ele cruza os braços, o modo como se vira para mim, toda a sua linguagem corporal diz que ele não quer estar ali. Mas seus olhos e sua expressão dizem mais do que o seu corpo, e é neles que eu acredito; algumas vezes, Gregório conversava comigo através dos seus olhares. Em outras, na maneira com que pressionava seu corpo sobre o meu. Eu me acostumei a cada palavra não dita, e ainda sei traduzi-lo.

Um sorriso involuntário nasce em meu rosto, porque a esperança me deixa radiante. Esperança de que, talvez, ainda haja uma chance. Uma chance de consertar o que foi quebrado; uma chance de começar de novo.

– Você ainda gosta de café? – Ele pergunta, e eu não contenho um suspiro de alívio.

– O papa ainda é católico?

– Olha, Lílian. Eu não sei o que...

– Ei. – minha vontade de tocá-lo é abismal, mas me contento a dar um passo à frente, diminuindo o espaço entre nós. Gregório não demonstra desconforto, e eu estou satisfeita com essa proximidade. – Eu só quero conversar. Só quero que a gente se acerte, independente do que isso signifique.

O retumbar em meu coração é medo, percebo. Medo de que nós nos acertemos, mas não do jeito que meu corpo e mente anseiam. Aquele medo egoísta que volta a me assombrar, o medo de ter o coração consertado para uso algum. Meu coração é do garoto à minha frente, mas ele pode se recusar a aceitá-lo de volta.

– Tudo bem. – Contenho um suspiro e o sorriso, me contentando com um aceno animado. Gregório passeia o olhar por meu rosto, mas sou obrigada a quebrar o contato quando Samira se joga em meus ombros.

– EU AMO ESSE LUGAR!


?


– Você tem certeza de que vai ficar bem? – Samira para do lado de fora do Café com Leite, espreitando a fachada do estabelecimento com um olhar desconfiado. Pela décima vez desde que saímos do asilo, eu respondo que sim, ficarei bem. E que ela não precisa se preocupar, porque tenho tudo sob controle. Só vou conversar com o Gregório, colocar as tampas nas panelas, como diz a minha tia. Resolver os problemas que precisam de solução. – Eu vou estar em casa se precisar de mim. É bem perto.

– Eu sei Sam.

– É só que... Eu fico preocupada. Porque você gosta muito dele.

Reviro os olhos e sorrio.

– E ele obviamente ainda gosta muito de você.

– Você cobra a consulta por hora, doutora? Porque eu não trouxe meu talão de cheque.

– Tudo bem, tudo bem. Vou te deixar seguir o caminho da vida, seja lá qual for. – ela ergue as mãos e se afasta dois passos antes de voltar a armar a expressão preocupada. – Mas, sério, Lílian. Se achar que essa situação está saindo longe do desejado, se achar que vai chorar e precisar correr, é só me ligar e eu venho pra cá.

– Sam, é o Gregório. – suspiro. – Independente do que fique acertado aqui, ele ainda é uma das melhores pessoas que a gente já conheceu.

– Ele realmente é.

– Então vai ficar tudo bem, eu prometo.

Samira se afasta com toda a sua pose dramática e espero até que ela suma na esquina do quarteirão para avançar até a cafeteria. Tem pouca gente aqui, apesar da tarde agradável para uma boa xícara de café. Gregório chegou antes de mim e está sentado na mesa mais distante, de costas para a porta, de modo que posso observá-lo antes que ele me note; não tem nada de diferente nele de horas atrás, mas ainda assim cria aquela sensação de que estou perdendo detalhes. Esse afastamento criou a estranheza que eu quero apagar, e acho que a conversa de hoje é importante para isso.

Meu coração está esperançoso, mas minha mente nem tanto. Só o fato de ele ter aceitado se sentar aqui comigo para que possamos nos resolver já é bom. Já mostra que um coração quebrado pode ser sim reparado; eu não sei dizer se é para novo uso ou só para que deixe de machucar, mas espero descobrir.

– Oi. – pigarreio ao seu lado, atraindo sua atenção. Gregório está com um caderno aberto em mesa, e ele para de tamborilar a ponta do lápis nas folhas quando eu me anuncio. Seus olhos se arregalam um pouco em surpresa e eu sorrio sem graça. – Posso me sentar?

– Claro. – Respiro fundo, porque antes era tão fácil chegar aqui, sentar ao lado dele, ler suas canções ou suas anotações para as provas. Era tão fácil assisti-lo estudando e observar a maneira com que sua concentração se perdia em meio às páginas brancas do caderno inseparável; agora é desconfortável olhar e me sentir uma intrusa.

– Então. – Espalmo as mãos sobre a mesa, arqueando as sobrancelhas ao avistar mais um copo de café ao lado do dele. Gregório segue o meu olhar e gesticula.

– Peguei pra você.

– Ah. – Minha eloquência se esvai.

- Acho que ainda não mudou de opinião sobre o bom e velho café puro?

– Ah, não. – meu sorriso estremece um pouco. Estou me sentindo uma completa idiota. Por estar aqui, por tentar, por achar que mereço uma segunda chance de amá-lo. – O insuperável café puro jamais deixará de ser meu favorito.

Suspiro profundamente e observo enquanto Gregório fecha o seu caderno e o guarda na bolsa. Ele parece nervoso também, pela maneira com que afasta os fios de cabelo da testa, como seus dedos hesitam antes de puxar o zíper da mochila. Seus olhos estão em todo lugar, sem focar em lugar algum, e isso indica que toda essa situação é extremamente desconfortável para ele.

– Desculpe. – disparo, porque não sei bem como começar. Suas íris claras recaem sobre as minhas, indecisão pairando sobre suas feições. – Gregório, me desculpe, por favor. Desculpe por ter ouvido o seu segredo e ainda assim ter quebrado ele, por... Por ter sido impulsiva e incompreensiva com coisas que eram tão importantes pra você. – cruzo as mãos sobre a mesa e foco nelas, porque é difícil observar o rosto dele agora. – Desculpe por ter te magoado. Eu só... Estava tentando ajudar. Do meu jeito, você sabe. E não era isso que você precisava e eu nem percebi. Eu usei o seu segredo e te machuquei por isso.

Tenho medo de perder as pessoas que eu amo. Ele tinha me sussurrado. E eu tinha me esquecido de toda a sua fragilidade quando tentei ajudá-lo a ficar bem. Corações se quebram por diversos motivos, e nem todos eles são grandes coisas. Às vezes você só diz a coisa errada na hora errada, e isso basta para causar um dano enorme. Gregório tinha me confidenciado toda a sua vida, todo o seu passado. Ele tinha me mostrado suas cicatrizes e tinha me deixado beijá-las, tinha contado sobre os seus medos e seus traumas, sobre os problemas que o acompanhavam desde que algumas delas foram causadas em sua pele. Eu senti as cicatrizes em seus braços, em suas costas. Gregório era tão frágil quanto elas, e eu achei que saberia lidar com isso. Não foi bem assim.

Eu não deveria estar chorando, mas sinto uma lágrima escorrer mesmo assim. Abaixo o rosto, fugindo do silêncio que se estende entre nós.

Eu tentei consertar as coisas antes e estraguei tudo. Quem disse que agora vai ser diferente? Quem disse que eu não vou estragar tudo de novo?

Ouço o som do ranger de uma cadeira e me apavoro, porque significa que ele está indo embora. Mas então a cadeira ao meu lado se arrasta no chão e o barulho do seu corpo se sentando no estofado velho me traz alívio; viro o olhar em sua direção, vendo-o meio embaçado por causa das lágrimas.

– Ei. – Gregório cobre minhas mãos com uma das suas. Sinto a frieza dos anéis familiares e o toque gélido da sua pele. – Eu também te magoei.

– Se formos medir quem fez a maior babaquice aqui, rapaz, acho que o troféu é meu. – Rio em meio a um soluço, trazendo um pequeno sorriso ao rosto dele.

– É, mas todo mundo pisa na bola.

– Não com você. – sussurro. – Não é justo.

– Eu não sou de cristal, Lílian. – seu tom é suave e seu olhar mais ainda. O fato de ele me olhar com tanta serenidade é o que mais me perturba. – Não vou ficar espatifado no chão só porque você me magoou.

– Você pode me perdoar?

– Você pode me perdoar?

– Argh, Gregório. – bufo. – A única coisa que você fez foi ir embora depois de eu ter te machucado.

– Lílian. – Gregório insiste, buscando o meu olhar.

– Eu te perdoo. É claro que perdoo. – ele só foi embora porque eu causei aquilo. Não vou bancar a inocente e fingir que a culpa não é minha, porque é. Por isso eu estou aqui agora. Por isso estou lutando pra consertar o que eu rachei. – Agora é a sua vez. – Solto as minhas mãos para entrelaçar meus dedos aos seus, ansiosa por ele não se esquivar do toque.

– Eu te perdoo também, Lírio. – Fecho os olhos ao som da sua voz, e apoio minha testa em seu ombro involuntariamente. Só preciso pensar. Pensar no que vai acontecer daqui pra frente, no que seremos a partir de agora. Eu não sei se o Gregório tem resposta para isso, se está disposto a construir alguma.

– O que vamos fazer?

– Eu não sei. – a sinceridade dele me desmorona, mas também faz com que minha mente aceite. Eu sabia que isso aconteceria. – O que você acha que devemos fazer?

Nos beijarmos e fazer amor até que o mundo acabe? Espero não ter dito isso em voz alta.

Inspiro profundamente, absorvendo o perfume familiar da sua jaqueta, admirando as falhas no tecido quando viro o rosto e observo o arco das suas costas.

– Eu acho que podemos ir com calma. – Gregório sussurra hesitante. Eu temia por isso, mas sabia que estava vindo. – Eu não sei... Eu ainda não me organizei direito. Todos esses pensamentos e emoções, é confuso demais.

– Eu sei.

– E aquele dia no salão de espelhos... – Ele aperta mais nossos dedos, e eu desvaneço com a lembrança.

– Não quero ficar longe de você. – Confesso.

– Eu também não.

Eu me afasto e limpo as lágrimas com a mão livre. Não é momento pra isso, não tem espaço pra choro.

– Então é isso, temos um voto unânime. Vamos tentar... De novo.

– Desde o começo? – Ele se vira na cadeira, me observando um toque de nervosismo.

– Bom... – faço uma careta, pensando exatamente em como me portar. A Lílian de sempre. O que a Lílian de sempre representa? Espontaneidade? – Oi, eu sou a Lílian. Você vem sempre aqui? – Pode não ter sido nada demais, mas tira a seriedade e a tensão do momento, o suficiente para que o Gregório ria abertamente. E os céus sabem como eu senti falta desse riso.

Ele hesita ao me estender a mão, assim como hesitou na festa onde eu o encontrei no parquinho, no que parecem anos atrás. Ele para um instante e então me cumprimenta, mantendo os olhos em nossas mãos unidas novamente.

– Gregório. Prazer em te conhecer.


Aquele com o blecaute

 

ANTES


– Eu ainda não consigo acreditar nisso. – retruco em voz alta. – Como você não conhece Psicose? Todo mundo conhece Psicose.

– Eu conheço a trilha sonora.

– Mas não a cena? – Fico ainda mais indignada, e o riso dele não deixa a situação engraçada. Gregório coloca os copos sobre a bancada do apartamento e ergue os ombros, parecendo pouco arrependido por ter confessado o crime.

Nunca assistiu Psicose, em que mundo esse garoto vive? Arrisquei pegar um novo resfriado e ser assassinada pela Samira quando perdi hora e tive que correr da república até o apartamento. Sam precisava ir até a rodoviária às oito horas para pegar o ônibus, e minha corrida deixaria o Flash no chinelo. A colega de quarto dela agora é uma ex-colega de quarto, porque ela deixou o apartamento faz uma semana. Estou cuidando do cômodo enquanto a Samira procura outra pessoa para ocupar. Quando cheguei ao seu apartamento para receber as chaves de guardiã, Samira passou correndo por mim com a sua mala e me deu um tapa na cabeça. Quando ela voltar de casa, vou responder à altura.

Convidei o Gregório para vir aqui por que... Bom, o dia está tedioso, e a semana foi um inferno. Estamos no meio de abril, mas tem provas e trabalho o suficiente para parecer o purgatório onde o tempo nunca passa. Eu vi o Gregório uma vez, tocando violão na escadaria do prédio Vagalume, enquanto eu corria para uma prova de Cálculo. Nós conversamos pelo Facebook e por algumas mensagens no decorrer dos dias, mas as aulas dele também estão puxadas. Eu já nem sei mais o que estou fazendo da vida com a quantidade de seminários e relatórios e ansiedade antecipada para as provas que já foram marcadas. Preciso desse dia para relaxar, porque amanhã vai ser totalmente dedicado a um trabalho em grupo.

– Você está criando métodos para me torturar só porque eu nunca vi Psicose? – Pisco e volto a mim quando Gregório diz aquilo. Fiquei parada esse tempo todo esperando o micro-ondas apitar, e ele já apitou faz um tempo. Gregório apoiou os braços na bancada e está meio inclinado na direção dela, e o seu olhar é bem humorado sobre o meu confuso.

– Sim. Acho que vou te fazer comer pipoca com pimenta.

– Eca, quem come isso?

– A Sam. – procuro o pote de pimenta no armário só para prosseguir com a brincadeira. – Ela gosta de qualquer tipo de comida com pimenta. Chocolate com pimenta, alface com pimenta, pimenta com pimenta.

– Imagino que ela gostaria de morar no México.

– Um dos sonhos da vida dela é experimentar a pimenta mais ardida do mundo. Aquela que dizem que faz sua língua sangrar e tudo mais.

– Que sonho de vida mais estranho.

– Ei, eu não julgo ninguém. Quero visitar o castelo do Drácula, lembra?

Gregório assente com uma careta.

– Qual o seu sonho de vida mais bizarro? – arqueio as sobrancelhas, parando do outro lado da bancada para esvaziar o pacote de pipoca. Gregório franze as sobrancelhas enquanto pensa. – Vamos lá, me conte seus segredos mais picantes.

– Não gosto de pimenta.

– Ah, está contratado, começa na quinta-feira. – Recebo sua gargalhada em retorno.

– Eu não tenho sonhos de vida bizarros.

– Nenhum?

– Pelo menos eu acho que não.

– Ah, não sonha em nadar pelado em alguma praia famosa, roubar a lancha em um porto e navegar até a guarda costeira prender você, ficar acordado até tarde no telhado de um prédio desconhecido só pra ver as estrelas nascendo e depois sumindo acima de você?

Ele faz um bico no que parece uma expressão curiosa.

– São todos sonhos seus?

– São. – sorrio orgulhosa. – Eu criei uma lista interminável, mas realizo muitos poucos deles. Quase nadei pelada em uma praia famosa uma vez, mas meus pais viram e enlouqueceram. Acho que eu tinha uns... Cinco anos?

– Meu Deus. – Ele ri incrédulo, e eu abraço o balde de pipoca enquanto dou a volta na bancada e caminho até o sofá. Psicose já está nos aguardando. Gregório não parece muito animado para essa maratona, mas ele nunca se anima para assistir nada que eu indico. Tudo bem, todos são filmes de terror grotescos e medonhos, mas ainda nem chegamos no gênero de possessão demoníaca.

A chuva lá fora fica mais forte a ponto de eu precisar aumentar o volume da televisão para ouvir o filme. Eu deixo as pantufas que emprestei da Samira fora do tapete dela e cutuco o Gregório para tirar os sapatos também; não me importo em dividir o sofá com ele. Também não me importo se ele resolver deitar agarradinho comigo.

– Então... – Gregório começa. Ele criou essa mania de falar durante determinados momentos do filme, porque sabe que vai começar um diálogo e vai poder se distrair das cenas tensas. Eu tentei parar esse ciclo vicioso, mas lá pela terceira sessão de Sexta-Feira 13, desisti. Ele não aguentou A Hora do Pesadelo e nenhum filme que veio depois daquele. Gregório tem medo de qualquer coisa, mas não admite, e eu sou boa o bastante para não tirar vantagem e nem ficar zoando a respeito disso. – A Dalila perguntou se você estaria interessada em ajudar a organizar a próxima festa.

– Ela perguntou? – quase pulo no sofá em animação. Aí paro ao perceber o sorrisinho dele. – Você fez isso de propósito.

– Fiz o quê?

– Falou da Dalila. Você sabe que eu adorei aquela mulher! Qual a ideia pra festa?

– Eles não sabem ainda, mas eu tinha pensado em fazer a feira de adoção no mesmo dia. Vão abrir o asilo ao público, várias famílias vão participar. Seria o momento perfeito pra dar casas pros cães e gatos do canil daqui. – Gregório quase parece um desenho animado muito fofo quando fala de bichinhos. Dá vontade de morder toda a cara dele.

– Vou falar com a Samira. Se tem alguém que sabe organizar uma festa, é ela. Eu sou ótima seguindo ordens e arrumando bandeirolas. Uh, quem sabe dá pra fazer alguma coisa com tema dos anos 60 ou 70?

– Não me obrigue a passar gel no cabelo.

– Você ficaria ótimo com o cabelo pra trás. – tento esticar a mão, mas ele se esquiva, inclinando-se sobre o braço do sofá para fugir de mim. – Pode fugir agora, mas quando eu convencer a Samira e a Dalila a fazer uma festa inspirada em Grease, você não escapa.

– A Dalila vai querer me vestir de Danny.

– Você conhece o nome dele?

– Sim, eu já vi o filme.

– Em que universo paralelo eu fui parar? – aperto a mão sobre o peito. – Gregório Völkers assistiu a um filme?

– Eu assisti vários filmes. – ele revira os olhos, apoiando os braços no encosto do sofá. – Só não... Os que você gosta.

– Os de terror.

– É.

– Medroso. – Tusso para abafar a palavra, mas ele crispa um sorriso desafiador.

– Julga a garota que não sabe diferenciar Steven Tyler de Mick Jagger.

– Os dois são extravagantes e gritam muito. – ergo os ombros. – Não pode me culpar por confundir. Agora foco no filme! – e ele realmente foca. Faz algumas perguntas sobre a ambientação e a história, já que ficamos tagarelando no começo, e eu continuo achando um absurdo inexplicável que ele não conheça a trama sinistra desse clássico. – É Hitchcock!

– Saúde.

Franzo o nariz e o Gregório ri alto, pedindo desculpas. O vento uiva lá fora e a tempestade fica pior um pouco antes da famosa cena do chuveiro, o que ajuda a criar a tensão em que o Gregório se encontra.

Observo sua silhueta, a maneira pouco relaxada com que ele cruza os braços sobre o peito, seus pés batendo no chão incessantemente conforme o filme avança. Penso em lhe dar um susto quando a faca aparece em cena, e é quando a luz acaba. Quem acaba tomando um susto sou eu, no fim das contas.

Samira disse que a rede de energia nesta parte da cidade é muito antiga, o que prejudica a vida de todo mundo quando se tem blecautes assim. A companhia elétrica demora pra vir arrumar, o que deixa todas as casas e apartamentos e comércios suspensos do mundo pós-apocalíptico.

Uma espiada pela janela, para o breu que está lá fora e a chuva forte que desaba sobre o mundo, me diz que vamos ficar assim por muitas horas. Provavelmente a noite toda. Eu trouxe o Gregório aqui para um filme e o sentenciei à era mesozoica.

– Seria mais engraçado se tivesse faltado energia no filme também. – Gregório brinca. Eu não consigo encontrá-lo no sofá, nem sequer um vislumbre da sua figura. Tateio o ar enquanto volto para o tapete e o faço com rapidez demais, o que leva meu dedinho do pé de encontro à quina do sofá.

Caio sentada no chão.

– O que foi esse baque?

– Meu dedo. – Choramingo. Minha mãe costuma me chamar de ímã para acidentes, então imagine um ímã para acidentes no meio da escuridão. – O sofá entrou no meu caminho.

– Tenho certeza que sim. – Gregório se ajoelha à minha frente. Minha visão já se adaptou um pouco ao breu do apartamento, então encontro suas feições quando ele se aproxima bastante. – Oi. – Um sorriso ilumina seu rosto e o meu também.

– Eu não sei onde a Sam guarda seu kit de primeiros socorros. – Brinco.

– Não sei se um dedo topado precisa de tantos cuidados.

– Não, é pra depois. Sabe? A escuridão, possíveis acidentes. O apartamento tem vários locais de impacto, eu vou encontrar todos até a luz voltar. – Arquejo quando Gregório segura meu pé. Ele pede desculpas e toca meu dedo com carinho; mesmo doendo um pouco, eu não reclamo. Suas mãos são frias e familiares e eu adoro a sensação delas em mim.

– Acho que você vai sobreviver. Tem alguma lanterna por aqui?

– Tem.

– E você sabe onde?

– Não. – prendo um riso desajeitado. – Eu sou a pessoa menos preparada para um blecaute, desculpe por ser sua companheira de apocalipse.

– Não estou reclamando. – Gregório brinca, pondo-se de pé à minha frente. – Vem. Eu te ajudo a não bater em nenhum lugar e você me ajudar a encontrar a lanterna. Deve ter alguma na cozinha. – Seguro suas mãos, como no dia da festa, e ele me iça para cima. Enganchando a mão em minha cintura e passando meu braço por seus ombros, Gregório me ajuda a mancar em direção à cozinha, bem mais lentamente e com mais cautela do que eu usei para chegar até o sofá.

Não sei se é culpa da escuridão, mas observar o Gregório sob a penumbra deixa a situação mais emocionante. Os traços do seu rosto estão discretos e quase imperceptíveis, mas consigo desenhá-los com a mente. Consigo me lembrar da curva sutil do seu queixo, a linha reta no perfil do seu nariz, a maneira adorável com que aquela mecha rebelde sempre cai sobre seu olho. Próxima dele como eu estou agora, completamente à vontade sob o seu toque e a sua presença, fico tentada a ignorar a escuridão e puxá-lo para um beijo nesse abismo interminável que se tornou o corredor entre a sala e a cozinha.

– Se você fosse a Samira, onde guardaria uma lanterna?

– Eu não guardaria. A Sam não se lembra de comprar essas coisas. – me apoio na bancada enquanto o Gregório acende a tela do celular, com a iluminação fraca por causa da pouca bateria, e vai até o primeiro armário. – Ai tem temperos e um pacote de batatas fritas. No armário de cima... Acho que é onde ela guarda o café e o açúcar. Às vezes o sal, quando ela se esquece de colocar no armário de temperos.

– Se você conhece esse lugar tão bem, por que eu estou procurando?

– Porque eu machuquei meu pé e você é meu cavaleiro de armadura brilhante. Tenta o armário de baixo, na esquerda, eu não lembro o que tem nele.

Leva pelo menos cinco minutos, mas ele encontra uma lanterna. Sem pilhas, o que nos força a voltar até o sofá, tirar as pilhas do controle da televisão e torcer para que caibam na lanterna; e cabem. Quando o feixe de luz branca recai sobre o tapete, um pouco dele também cobre nossos rostos. Um sorriso ilumina o Gregório, e eu não penso muito no impulso que me guia, só ajo.

Seguro o seu ombro e pressiono um beijo rápido sobre seus lábios, sentindo-o tencionar a postura e então relaxar.

– Todo cavaleiro de armadura brilhante ganha um desses quando encontra lanternas?

– Ah sim. Se fosse um candelabro, você ganharia dois beijos. – Brinco, próxima o suficiente para que nossas respirações se misturem.

Nós não nos afastamos. Um minuto se passa e ainda estamos assim, meio iluminados pela fraca luz da lanterna, próximos o bastante para nos beijarmos, mas sem que alguém tome uma iniciativa. Tento entender o seu olhar, mas ele perscruta meu rosto de maneira ilegível.

– Lílian.

– Hm?

Gregório não diz mais nada, só me beija. Um beijo sutil, rápido e sôfrego que me faz inclinar o rosto na sua direção, mas não me dá tempo suficiente para responder com toda a emoção que quero. Quando ele se afasta, tem um que de indecisão pairando em suas feições. Gregório ergue a mão e afasta alguns fios de cabelo, enroscando-os atrás da minha orelha. Pressiona seu nariz contra o meu, doce e levemente, e segura meu rosto com a mesma leveza.

– Eu ia dizer alguma coisa. – Ele brinca.

– Imaginei.

– Não vou conseguir lembrar. – Eu adoro o seu toque, adoro a maneira com que seus dedos se enroscam no meu cabelo. Adoro a sutileza com que ele me observa, marcante em toda a sua discrição. Mesmo sob a penumbra do blecaute e a luz da lanterna, Gregório ainda tem essa aura atraente e doce e incrível, e eu não quero me afastar dele nem por um segundo. Eu não consigo vê-lo perfeitamente, mas consigo sentir sua presença. Seu coração bate junto ao meu, ritmado e um pouco frenético. O nervosismo transpassa na maneira com que ele me toca, e eu quero que ele continue me tocando.

Seguro o seu rosto como fiz nas outras vezes, já familiarizada com a maneira mais agradável para beijá-lo. Fico na ponta dos pés e me arrependo, porque meu dedinho ainda dói. Então saltito na ponta de um dos pés e Gregório está sorrindo quando me abraça, rodeando minha cintura com o braço livre; ele me ergue um pouco do chão e rouba meu fôlego, e de repente eu seguro as bordas da sua camiseta, volto ao chão e o puxo para me seguir.

– Lílian.

– Sim?

– Você acha que...

– Devemos andar por aí no escuro? Não. – continuo segurando o seu corpo, mas me estico para recuperar a lanterna. Lanço o feixe para o corredor lateral, iluminando as portas dos quartos; meu coração perde um pouco do ritmo. Antes acelerado, agora está desesperado e fora de controle. – Pronto, agora sim.

– Lílian. – Eu amo como ele sussurra o meu nome.

– Eu. – Dou um passo para trás com o pé bom e o Gregório me segue. Há qualquer coisa vacilando em sua expressão; um pouco de medo, talvez. Isso me faz parar, e meu olhar talvez vacile em resposta ao dele.

– Melhor você não andar. – Ele estremece um sorriso e abraça minha cintura com os dois braços desta vez. Suas mãos escorregam por mim, apertando minhas costas, e seu sorriso desvanece quando minhas pernas rodeiam seu quadril. Eu o vejo engolir em seco e eu engulo em seco, e o que eram meus batimentos cardíacos se tornam uma coisa sem ritmo e sem controle.

Não sei quem de nós está mais nervoso, mas o fato de haver nervosismo me deixa mais alegre. Essa troca de emoções é espontânea, viva e intensa. Antes ele era só o cara que eu encontrei sem querer num parquinho qualquer, sozinho numa noite escura. E agora ele é o Gregório e isso é tão importante.

Seus dedos trilham o contorno da minha calça jeans, repousando sob minhas pernas, apertando com força e delicadeza. Seus olhos refletem pouco do feixe fraco da lanterna, mas me analisam com gentileza. Sorrio e seguro seu rosto com uma das mãos, desenhando o contorno do seu queixo, estudando suas feições sem conseguir vê-las completamente.

A sensação da sua barba contra a minha pele, então o arco do seu pescoço e o contorno do seu ombro é incrível. Quando dou por mim, estou indicando a porta do quarto de hóspede agora vazio, com exceção da cama e do armário. De repente, a lanterna está na cômoda ao lado da cama e eu me ajoelho no colchão. Tento entender o que esse silêncio significa, mas o sorriso do Gregório diz que está tudo bem.

Quando toco a barra da sua camisa, no entanto, ele recua. Leve e discretamente, mas sinto a sua barriga estremecer e vejo seus ombros encolhendo. Um estalo me faz lembrar da festa no asilo, do dia em que o vi sem camisa; ele tem cicatrizes nas costas, lembranças que eu ainda não conheço. Talvez eu esteja forçando demais, talvez o momento não peça por isso, não como eu imaginava.

Gregório segura meu rosto entre as mãos e seus olhos são tão profundos e têm uma certeza tão honesta que eu sorrio. Ele puxa a camiseta pela gola, tirando-a em um movimento rápido, e a peça vai parar no chão de carpete. Meus olhos estão em seu tronco, pálido e atraente, iluminado pela lanterna, nas linhas que desenham seu abdômen e os contornos da sua clavícula e a firmeza em cada detalhe. Seu peito sobe e desce com uma inspiração profunda, e eu arregalo os olhos ao voltar minha atenção para o seu rosto.

– Lílian?

– Hm?

Ele sorri abertamente, segura meu queixo e me beija. Seus dedos descarregam arrepios por minha pele conforme avançam sob meu rosto, em direção ao meu pescoço, aos meus ombros e meus braços, levando as alças da camiseta com eles. Respiro fundo e entreabro os lábios, deixando que o beijo gentil se torne voraz e ansioso, ainda que o toque de Gregório sobre mim desenvolva uma narrativa mais romântica. Ele escreve palavras em minha pele, conta as coisas que quer fazer. Suas mãos escorregam dos meus braços para a minha cintura e arrancam vários pensamentos irracionais da minha mente; a habilidade que esse garoto tem de falar comigo sem dizer uma palavra é absurda.

Eu o ajudo a tirar minha camiseta, e de repente tem essa aura de tensão ainda mais intensa sobre o cômodo. Sinto como se um forno tivesse sido ligado logo ao nosso lado, como se um cometa passasse deixando seu rastro sobre nós. Mesmo sob a pouca iluminação, consigo ver Gregório engolindo em seco, consigo ver suas íris dilatadas acompanhando cada detalhe meu.

Ergo o rosto e o beijo de novo, desta vez com mais leveza e carinho. Suas mãos voltam aos meus ombros, acariciando a pele ali, e as minhas trilham os contornos das suas costas. Não demora muito para sentir uma saliência em sua pele, uma linha longa que cruza o centro da sua espinha. Gregório ofega e se afasta imediatamente, arregalando os olhos para mim. Sua expressão diz que ele se esqueceu dela; que ele se esqueceu de todas as cicatrizes.

– Ei. – beijo seu queixo e seu pescoço e o local onde repousa o seu coração. – Eu também tenho. – seguro uma de suas mãos e a apoio sobre minhas costelas. Gregório mantém o olhar ansioso sobre o meu firme, e meu sorriso vacila um pouco sua máscara de confusão. – É só uma cicatriz. – Sussurro. Delicadamente, eu volto a tocá-lo, subindo as mãos por sua pele. Suas costas são marcadas por uma, duas, conto mais de sete cicatrizes. Irregulares em tamanho e grossura, são recortes e linhas que não mudam em nada o garoto à minha frente.

– Gregório?

– Hm?

Eu rio contra sua pele, apreciando os arrepios que correm por ela quando me afasto para encará-lo de novo. Seus olhos são duas esmeraldas, jades, todos os tipos de pedras preciosas com as nuances mais fascinantes da cor verde. Seu rosto é uma pintura imperfeita inesquecível, com falhas e com intrincados detalhes tão incríveis. Seus lábios são meus e eu os beijo uma, duas, três vezes, segurando seu pescoço e puxando-o para mim. Nós dois caímos sobre a cama, engalfinhados em nossos corpos, rindo e nos beijando, ouvindo a chuva lá fora e o céu desabando sobre nossas cabeças.

Gregório apoia os braços ao lado do meu corpo. Fico sem fôlego ao apreciar seu peso sobre o meu, a maneira irregular com que nossos corações retumbam nesse ambiente silencioso. Ele corre a ponta dos dedos pela lateral do meu rosto, brincando com as mechas do meu cabelo que ainda cobrem meus ombros. Gregório desce o toque pelo arco do meu pescoço e meu colo e meus seios e minha barriga e eu suspiro quando seus dedos chegam ao cós da calça jeans que estou usando.

Ele hesita e se afasta, mas eu desabotoo a peça porque minha respiração irregular não tem nada a ver com uma mudança de planos.

Gregório sorri e me ajuda a me livrar da calça, jogando-a do outro lado do cômodo com as outras roupas. Quando desabotoo a sua, sinto sua barriga estremecer próxima do meu toque, e ele tira a carteira do bolso de trás e a coloca sobre a cômoda, sussurrando para mim que tem uma camisinha de emergência, e eu respondo que é ótimo saber que ele é um garanhão conquistador e está sempre preparado para situações assim, e a sensação do seu riso ressoando pelo meu corpo, agora que cada centímetro seu é meu, é indescritível. Eu o beijo para dizer que estou feliz.

De repente, estamos conversando. De repente as roupas se tornam um monte de nada do outro lado do quarto; sua pele e a minha pele sempre estiveram unidas assim. De repente eu não preciso que ele diga nada além do sussurro rouco que ressoa o meu nome, não preciso de nenhuma palavra além do desenho delas em minha pele, conforme Gregório descreve uma trilha de beijos pelo meu colo e além. Entremeio meus dedos em seu cabelo, bagunçando os fios, e sua boca paira sobre o meu ventre quando eu me esqueço da tempestade lá fora e do mundo atrás dela.

Ele quase derruba a lanterna quando alcança a carteira para pegar a camisinha, e nos atrapalhamos para colocá-la, mais por causa da ansiedade e dos toques e dos beijos frenéticos do que por causa da escuridão. Gregório segura meu rosto com uma das mãos, o desejo deixando seus olhos ainda mais verdes – se é que isso é possível. Posso estar tão inebriada pelo momento que nem sei mais entender as cores.

Meu nome é uma promessa em sua voz rouca. É um segredo que ele sussurra, guardando-o consigo. Meu nome é uma coisa inexplicável, e meu coração dispara quando seguro seus braços e seu quadril se move sobre o meu.

Murmuro o seu nome de volta; meu segredo, minha promessa. Ele apoia o braço ao meu lado, e me beija quando se move novamente, desta vez com mais força, com mais delicadeza, com mais carinho e com um desejo intrínseco. Meu coração está junto ao dele e abro os olhos para a escuridão do teto acima de nós, me perdendo na imensidão de emoções que aquele momento proporciona.

Aperto os joelhos em seu quadril e minhas unhas em suas costas quando seu ritmo se torna constante e então aumenta e me causa tantos calafrios e arquejos que não sei conter nenhum dos sons que escapam de mim. Gregório sorri quando me beija, afastando alguns fios de cabelo que voltaram ao meu rosto, e eu sorrio e ofego e o beijo de volta, apoiando a testa sob a sua, mantendo os olhos abertos, procurando seu olhar.

De repente, a luz volta, mas não interrompe nada. Ela só brilha sobre nós, e contorna suas feições e as bochechas coradas e os lábios inchados pelos beijos; contorna o castanho das suas mechas e a maneira desordenada com que os fios recaem sobre seu rosto. Eu o beijo com mais força quando tudo se torna intenso e desorientador demais, quando meu corpo estremece e a minha consciência parece pairar sobre mim por alguns instantes, quando Gregório aperta as laterais do meu quadril e esconde o rosto em meu ombro para estremecer, me fazendo sorrir e abraçá-lo.

Quando ele se afasta para me encarar, ofegante e inebriado, assim como eu estou, eu o beijo mais uma vez, certa de que o meu amor por ele agora está escrito em cada linha do seu corpo, assim como o dele por mim está em minha pele.


?


– A luz já voltou. – Faz uns trinta minutos que a energia voltou, na realidade, mas só me pronuncio agora porque, bem... Eu não queria antes. Nem quero neste momento, mas o silêncio me faz puxar algum assunto.

– Eu notei. – Gregório ri. Ele afrouxa o abraço ao meu redor para que eu me afaste. Meu rosto fica corado quando o encaro, mas as luzes do quarto estão apagadas agora. A do corredor já ilumina o suficiente.

Ok, eu não era virgem há três anos. Já tive a minha cota de sexo. Alguns foram ruins, outros foram bons, e um até tinha sido ótimo. E pode soar um clichê absurdo, mas é a verdade: com o Gregório foi diferente. Um diferente bom, inesquecível. Um diferente que criou borboletas no meu estômago, que me faz sentir um friozinho na barriga agora que estou olhando para ele. Assim como toda e qualquer memória dividida com esse garoto, a noite de hoje foi especial. Seus toques e seus beijos e tudo, absolutamente tudo foi inesquecível.

– Lílian?

– Eu. – Mordo a boca e ergo o olhar para o seu rosto. Gregório está a poucos centímetros de mim, com seus olhos verdejantes e sua expressão serena.

– Você está bem?

– Estou. – arqueio as sobrancelhas e recebo o sorriso envergonhado dele de volta. – Só estou relembrando o fato de termos energia de novo. O que significa que podemos terminar aquela maratona.

– Ah não. – ele me ataca e eu solto um grito e uma gargalhada enquanto viramos um emaranhado de lençóis e pernas e então estou presa em seu abraço. Gregório afunda um beijo em meu ombro, seu cabelo fazendo cócegas em minha pele. – Nada de me trocar por um filme de terror.

– Não vou te trocar. Só estou dizendo que... Ok. – Quando o seu beijo fica menos divertido e muito mais quente, eu perco a fala e acho melhor encerrar por ali, antes que comece a balbuciar coisas incompreensíveis. Gregório sorri contra mim, entrelaçando nossas pernas enquanto nos ajeitamos no colchão. Abraço seus braços, deliciada pela maneira com que seu corpo se encaixa ao meu. Cada pedaço do meu coração ao alcance as suas mãos. – Você venceu desta vez.

– Obrigado.

Meus dedos se enroscam nas pulseiras que ele usa, e Gregório não protesta quando mexo nelas. Seus beijos caminham para trás da minha orelha, e a respiração quente dele ali tira meus pensamentos racionais.

– Você fez todas elas?

– Hm?

– As pulseiras.

– Ah sim, todas. – ele suspira, apoiando o nariz sobre meu ombro. – Elas são lembretes.

– Como os seus segredos?

– Tão importantes quanto.

Quero perguntar mais, mas consigo sentir a tensão na maneira com que ele repousa. Aquele território ainda é instável, independente do que aconteceu mais cedo. Ainda é invasivo para ele, e eu não me importo em esperar mais um pouco.

Gregório se afasta e me beija com doçura. Beija meu rosto e sob meu queixo e começa a beijar minha clavícula quando para e diz:

– Você ainda está pensando em continuar aquela maratona? – Eu me perco na resposta quando sinto seus lábios sobre minha barriga.

– Não sei. Por quê?

– Porque pensei em algo melhor para fazer com o nosso tempo. – Ele beija meu umbigo e me ergue um olhar malicioso.

– Você é muito... – Esqueço a palavra seguinte quando seus lábios escorregam mais para baixo. Esqueço-me dos sons e do mundo, porque Gregório está aqui, e isso é tudo que eu preciso.


Aquele com a viagem

 

AGORA


Lagoa Feliz tem uma competição de floricultura nas férias de Julho, de dois em dois anos. Os arranjos mais bonitos ganham um troféu, e você não precisa ser necessariamente uma florista para se inscrever nesse concurso. A tia Rosa participa desde sempre, e nós ficamos responsáveis por ajudá-la a não enlouquecer antes de apresentar o arranjo escolhido – porque ela faz uns cinquenta diferentes até decidir qual parece mais majestoso.

Quando cheguei, na sexta-feira da manhã, já estava oficialmente de férias. Pensei em usar o tempo livre em casa para cuidar dos trigêmeos, mas a tia Rosa tinha outros planos; planos que revolucionaram a nossa casa. O hall de entrada estava tomado por vasos de flores variadas, algumas tão altas e floridas que me deram coceira no nariz, e eu nem me lembro de ser alérgica.

Mamãe passou o fim de semana todo na cozinha, terminando uma encomenda gigantesca de bolos, docinhos e cupcakes. Papai cuidou dos trigêmeos – ou tentou, pelo menos, já que passou a maior parte do tempo carregando uma Susana pendurada de cabeça para baixo enquanto Henrique e Tampa se digladiavam no tapete para ver quem conquistava o controle remoto da TV. Tia Rosa usou a sexta para organizar todos os possíveis arranjos a serem feitos, o que deixou eu e a Mônica com a tarefa de fazer laços em fitas de cetim e erguer os polegares quando minha tia pedia alguma avaliação.

No sábado de manhã, a Mônica fugiu – de acordo com papai -, para a casa do Enzo, que não era um ursinho de pelúcia, ele sempre me lembrava disso. Ela só voltou à noite. Eu fui a cobaia solitária da tia Rosa durante o dia todo. Fiquei um bom tempo sentada nos jardins ajudando ela a selecionar flores perfeitas, e ali a minha bunda congelou de frio e de cãibra até o sol se pôr. No domingo, o cronograma se repetiu, exceto pelo fato de termos a ajuda extra do papai, da mamãe e da melhor amiga da tia Rosa, a Darlene. Darlene é a bibliotecária da cidade, e tem o visual mais geek e adorável de todos os tempos. Ela está sempre usando alguma camiseta com referências a filmes e séries clássicos, seus óculos mudam de aro todos os dias e ela nunca repete o mesmo penteado.

Minha primeira semana de férias foi todo esse esquema repetidas vezes. Conforme os arranjos ficavam prontos, minha tia os levava para a garagem e enfileirava para a avaliação final – ela faria um júri com toda a família para então levar as flores até o júri verdadeiro.

Samira e Apolo me mantiveram atualizada sobre suas vidas – Sam estava em Porto Alegre, visitando alguns parentes muito entusiasmados com a carreira artística dela (e ela ficou chocada, porque tinha achado que passaria horas sendo avacalhada por não ter escolhido um curso mais “pé no chão”). Apolo estava em casa, jogando RPG como se o mundo não existisse fora do seu quarto. Ele disse que queria se esquecer da faculdade e dos números até não ser mais possível voltar atrás.

Minhas atualizações diárias envolviam responder suas mensagens, tirar fotos e postar no Instagram – a última tinha eu soterrada em uma montanha de folhas secas. Foi o Henrique quem tirou e, bem, achei uma humilhação agradável. Uma das pessoas a curtir a foto foi o Gregório, e eu pensei que meu coração fosse sair pela boca quando a notificação apareceu. Nós não tínhamos nos falado desde que decidimos “começar de novo”, mas trocamos uns sorrisos e uns acenos na última semana de aula.

A segunda semana de férias começa com um problema. Depois que toda a família votou em um arranjo específico – um vaso enorme e enfeitado com orquídeas azuis e margaridas que virou um arco-íris cheiroso – rolou uma grande ansiedade para o sábado; o dia da competição.

O sábado chegou e aí vem a situação problemática.

Eu nunca me lembro bem das coisas que antecedem os meus acidentes. Geralmente existe esse momento de pânico, aí um apagão da memória, e eu acordo no hospital. É assim desde que me entendo por gente, e não acontece diferente desta vez.

Num momento, eu estava na floricultura da tia Rosa, ajudando-a a carregar um dos arranjos descartados para ser colocado à venda. Ouvi o Téo anunciar sua chegada – ele ia levar a tia Rosa para a competição -, e no outro momento eu tropecei? E há um terceiro momento, quando eu acordo no hospital. Minha mãe discute com o médico e o Téo tenta fazer com que ela fique calma, ambos parados na porta do quarto. Meu pai está do lado com os braços cruzados e sua típica expressão de “deixarei a Madalena falar”. Mamãe sempre teve melhores habilidades argumentativas que ele, hoje não é diferente. A discussão envolve eles me levarem para casa agora ou daqui à uma hora, que é o que o médico quer.

Mônica passa ao lado deles discretamente, com um copo de suco cor-de-rosa na mão, e acena ao me ver acordada. Eu resmungo e me viro na cama só para perceber que não consigo, porque meu pé está todo enfaixado e preso por uma tala. Ah, era só o que me faltava.

– Os remédios ainda estão fazendo efeito?

– Como é?

– Você estava toda molenga agora pouco, falando sobre seminários e figurinos e recitando Machado de Assis. – ela se senta na cadeira ao lado da minha cama e estende o copo de suco para mim. – Quer?

– Eu quero é sair daqui.

– Acho que só daqui uma hora. Mamãe está indo bem na discussão, mas o doutor parece irredutível. – Mônica bebe um gole do suco e seu canudo faz barulho, chamando a atenção dos nossos pais.

– Ah, bem-vinda de volta, Queda Amortecida. – papai me dá um tapinha no topo da cabeça e sorri orgulhoso pelo que imagino ser a releitura do nome da princesa Aurora. Se eu não estivesse tão emburrada comigo mesma, retrucaria sobre a piada ruim. – Como estamos?

– Engessada.

– Não, só enfaixada e imobilizada. – Téo cruza os braços naquela pose de especialista que ele adora exibir. Seu sorriso, no entanto, é de um irmão mais velho preocupado.

– Ela não quebrou, quebrou? – Mônica pergunta.

– Não. Luxou o tornozelo e trincou dois dedos do pé, mas vai sobreviver.

– Estava demorando muito pra você aparecer com um acidente. – Mônica brinca, recebendo olhares feios da mamãe. – O quê? É verdade. Sua filha é um desastre ambulante.

– O que aconteceu exatamente?

– Sua tia disse qualquer coisa sobre um arranjo muito pesado e um chinelo estourado e aí você e várias flores voando pelo ar. – Mamãe afofa o travesseiro atrás de mim enquanto conta os detalhes pouco explicativos.

– Mas ela disse tudo isso em meio a gritos exasperados e um choro agudo, então pode entender as nossas dúvidas. – Papai acrescenta.

– Onde ela está? Já disseram que eu estou bem?

– Claro, liguei pra Rosa agora pouco. Ela ainda está na competição, mas se voluntariou para cuidar dos trigêmeos.

– Coitada. – Téo, Mônica e eu dizemos isso ao mesmo tempo. Os sorrisos deles são iguais ao meu, e o riso seguinte também.

Uma hora depois, assino a papelada para me liberar, e o médico me faz prometer nenhum exercício ou pressão sobre o pé nas próximas três semanas – o que arruína completamente alguns planos da viagem para a praia no começo de Agosto.

A luxação vai ficar imobilizada por quatro semanas, talvez cinco, assim como os dois dedos trincados. Nenhum sapato apertado e nada de movimentos muito bruscos nas primeiras duas semanas. Mamãe faz uma breve parada na farmácia mais próxima de casa, comprando gaze e faixas limpas suficientes para um mês de estoque. Em casa, sempre tem que se estar preparado para tudo. Ainda mais com o Henrique herdando minha inabilidade de equilíbrio.

– Péssima época para cair da escada. – Resmungo, recebendo a ajuda do papai para sair do carro. Ele me estende os ombros, já que a muleta que temos para situações assim ficou no meu antigo quarto. Sim, a gente tem uma muleta reserva, esse é o nível de segurança para acidentes inesperados.

– Por quê? Tem uma época boa para cair da escada?

– Uma época que não envolva uma viagem para a praia já totalmente planejada. – Concluo, recebendo um aceno pensativo dele. Mamãe me lança um olhar indignado; ela odeia que eu fale dessas coisas em tom de brincadeira. Mas, honestamente, se ficasse me lamentando cada vez que tomo um tombo e me machuco feio, minha vida seria uma novela mexicana. – Eu ainda vou estar com essa droga de faixa. Como é que posso ajudar com uma festa na areia se não vou nem poder andar com os dois pés?

– Você pode fazer uma festa temática e ir vestida de pirata. – Mônica brinca. – Coloca uma perna de pau.

– Poupe-me de qualquer comentário engraçadinho. – Ergo a mão antes que papai faça algum acréscimo. Ele parece decepcionado por perder a oportunidade.

A porta de entrada se abre e tia Rosa voa em nossa direção. Ela ainda está com o vestido com estampa de bolinhos, mas seu cabelo é um emaranhado de cachos castanhos e seus olhos estão arregalados ao encararem minha perna enfaixada.

– Só uma luxação. – deixo os dedinhos trincados de fora do relato. Ela parece desespera o bastante só com um fato. – Eu sou mais resistente do que pareço.

– Graças aos céus por isso. – O comentário da mamãe me faz rir, então Téo, papai e a Mônica estão rindo também. Minha mãe faz uma careta, como se não pretendesse fazer piada com a situação, mas acaba dando de ombros, nos presenteando com um sorrisinho bem humorado sutil e rápido demais. Papai e ela se encaram por tempo demais, e eu os observo com um pouco de desconfiança até que a tia Rosa me interrompe:

– Eu deveria ter te ajudado com aquele arranjo horroroso.

– Tia, você estava carregando outros.

– É, mas você é tão miudinha e aquelas flores pesavam tanto.

– Tia, eu estou bem, juro. – abro o braço que não está apoiado no papai, fazendo uma pose do que espero ser felicidade genuína. – Essa perna enfaixada significa que todos vocês me servirão até eu ir embora, olha que coisa maravilhosa! – Mônica engasga com o resto do suco e papai crispa os lábios em uma expressão indignada. Tia Rosa parece tão preocupada que nem me surpreendo ao vê-la assentir e concordar com a brincadeira.

– Mas e o concurso, quem ganhou? – Papai exalta.

– Ah, não foi dessa vez. – Titia abaixa os ombros e tenta não parecer decepcionada. Mônica e eu trocamos um olhar condescendente.

– Pelo menos temos aqui a campeã do melhor tombo de escada.


?


Assisto enquanto a Samira corre de um lado para o outro no apartamento, resmungando consigo mesma, arrumando sua mala de última hora. Ela adora fazer essas coisas. Dado o meu pé imobilizado e a mobilidade reduzida, já separei tudo que precisava em uma mala antes de sair de Lagoa Feliz, o que significa que tenho tudo em mãos pra viagem. A Sam chegou dois dias antes de mim aqui em Rouxinol, mas não está nem um pouco pronta quando dá o horário da nossa partida.

Eu me ofereci pra ajudar, mas ela negou. Claro, o fato de o meu pé estar preso a uma tala e enfaixado não ajuda muito em qualquer arrumação de última hora que eu possa fazer. Já não dói tanto, mas ainda estou proibida de fazer esforço.

– Quanto tempo vai demorar pra você implorar pela minha ajuda? – Me inclino sobre o encosto do sofá para provocá-la.

– Não vou implorar.

Ela não precisa implorar porque o Apolo aparece. Ele está profundamente desgostoso com essa viagem. Odeia praia e acha que a areia é inconveniente, então só está indo porque o obrigamos. Tecnicamente, essa é a primeira semana de aula, mas é uma tradição da universidade todos os alunos faltarem para alguma viagem. Esse ano, a praia foi a escolhida. No ano passado, eu já estava de volta em casa quando todo mundo saiu para passear.

Apolo ajuda a Samira com as malas, porque no que ela é um pandemônio, ele é organizado. Quando tudo parece pronto, Sam se demora mais dez minutos checando todas as tomadas e luzes, ainda que o apartamento tenha poucos cômodos, e depois as duas pias e torneiras adjacentes, o chuveiro e as janelas, só para ter certeza de que nada pode explodir, inundar ou ser arrebentado durante nossa ausência. Enfim, ela decide que está tudo bem, então nós saímos, trancamos e escondemos uma chave reserva sob o extintor de incêndio do corredor – Sam sempre a prende ali com fita adesiva. Apolo leva as malas primeiro e depois volta para me ajudar a descer a escadaria, porque o maldito elevador nunca vai ser consertado.

Samira já tem uma carteira de motorista, e andou treinando muito durante as férias lá em Porto Alegre.

– Eu não me sinto muito seguro. – Apolo resmunga enquanto carrega a mala da Sam no porta-malas da caminhonete. O veículo foi emprestado pelos pais da Samira sob a condição de não ganhar nenhum arranhão. – Quero dizer... Você se sente bem com isso?

– Olha, a minha vida já é uma montanha-russa de emoções. – brinco, gesticulando para o meu pé. – A Sam no volante não deve ser maior perigo do que eu sozinha por aí.

Um carro passa por nós buzinando e acenamos para um grupo da turma do quinto semestre. A viagem até o condomínio de São Joaquim leva duas horas e alguns minutos tediosos, porque a Samira se perde mesmo com as indicações do GPS e sua certeza de estar fazendo o caminho certo. E eu e Apolo não somos exatamente os melhores guias do mundo, então nossas suposições se provam erradas.

– Eu sabia que devia ter pegado aquela travessa. – Samira resmunga, entregando seus documentos para o senhor da portaria. Vamos ficar hospedados na casa de uma colega de turma da Sam. As pessoas se dividiram entre alugar três casas, além dos quartos que essa menina ofereceu. Muita gente vai acabar dormindo na sala, mas fazer o quê?

– Se sabia, por que não pegou? – Brinco, baixando os óculos de aro redondo para fingir uma expressão séria.

– Porque vocês insistiram para eu virar naquela rodovia.

– Ah tá, como se você alguma vez ouvisse o que temos a dizer. – Me recosto no banco do passageiro e lanço um sorrisinho para o Apolo.

O carro é liberado e nós seguimos condomínio adentro, agora mais devagar porque as ruas são de terra e a Samira não quer nenhuma pedra voando e lascando a pintura da propriedade dos seus pais.

A casa tem uma varanda enorme com vista para a praia, e já tem muita gente montando acampamento no lugar onde a festa da fogueira vai acontecer mais tarde. Ela é uma tradição das turmas rebeldes matadoras de aulas e envolve várias atividades como recitar poemas, cantar ao ar livre e beber até cair.

Apolo me ajuda a chegar na casa e me deixa sentada em uma das redes da varanda enquanto a Samira arrasta as malas e grita pelo auxílio dele. Quando a Sam vem na minha direção e não na da casa, no entanto, eu estranho o seu olhar. Ela espiou a garagem dos carros antes e fez uma careta típica de más notícias; esqueceu alguma coisa, é meu primeiro e pior pensamento. Ela organizou metodicamente toda a festa da fogueira, o que significa que um item a menos no seu inventário é um item a mais na dor de cabeça de todo mundo.

– Por que essa cara? – Pergunto, me encolhendo na rede.

– Promete que não vai brigar comigo?

– Ah céus, o que você esqueceu?

– O quê?

– O quê? – repito confusa pela sua expressão. – Você não está com essa cara porque esqueceu alguma coisa?

– Não! – ela soa indignada pela minha falta de fé na sua memória. – É que o Gregório está aqui.

Pisco longa e demoradamente e então várias vezes seguidas e a Samira se senta ao meu lado enquanto absorvo a informação. Porque estar com o pé luxado e dois dedinhos trincados é pouca coisa; o amor da minha vida precisava vir nessa viagem também.

Tudo bem, eu estou calma. Nós fizemos as pazes, somos bons amigos agora. Bons amigos que já transaram bastante. Dois amigos que roubaram o coração um do outro. Bons amigos que trocaram os segredos mais importantes de suas vidas um com o outro. Nada grandioso demais, certo?

– Você quer gritar? – Samira passa a mão pelo meu ombro.

– Não, eu estou perfeitamente calma. Sou uma jovem adulta, posso lidar com isso.


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– Eu não posso lidar com isso.

Gregório está na orla da praia, acompanhado da Mila e da Patrícia, e tudo parece tanto com antigamente que eu senti a necessidade de me esconder atrás de um livro. E ligar para a Mônica, porque, segundo ela, minha irmãzinha tem as melhores soluções para os momentos de pressão emocional.

– Lílian, você me disse que tinha tudo sob controle.

– Isso foi até a gente fazer as pazes. Sabe aquele mundo de fantasia em que você cria várias alternativas para uma situação e todas são incrivelmente satisfatórias? Eu tinha várias para os meus sentimentos depois das pazes. Sentir vontade de me esconder atrás de um exemplar de Metamorfose não era uma delas.

Ouço a Mônica falando alguma coisa e uma voz abafada retrucando uma resposta.

– Quem está aí com você?

– O Rodolfo. Ele é ótimo em lidar com dramas pessoais. – eu me lembro dos conselhos preciosos que Rodolfo me deu sobre uma saia xadrez, tempos atrás, e espero que o mesmo possa se aplicar a um garoto que eu amo. – Olha, a gente acha que é melhor você deixar rolar. O cara obviamente ainda gosta de você.

– Não tem como rolar qualquer coisa. Nós pedimos desculpas e seguiu assim mesmo, não tem nada mais para acontecer. – o silêncio do outro lado da linha me irrita. – Ok, talvez tenha. Mas eu não quero fazer besteira de novo!

– Você não vai fazer besteira de novo.

– Como conselheira amorosa você é uma ótima surfista.

– Quem é sua conselheira amorosa? – me assusto e quase deixo o celular cair quando o Apolo se senta do meu lado. Ele balança toda a rede e eu me desequilibro, apoiando o pé enfaixado no chão em reflexo. A dor sobe pela minha perna e me faz ver estrelas. – Ai, Lílian, você não devia mexer esse pé.

– Não me diga! – Resmungo e me despeço da Mônica, prometendo que vou ligar mais tarde para informar o que aconteceu. Não que vá acontecer alguma coisa.

Quero dizer, olha só o Gregório. Ele está tão bem. Eu consigo até ver um sorriso no rosto dele. Não quero aparecer e acabar com esse clima leve, porque ainda tem esse troço entre nós dois, essa supernova de sentimentos que uma hora vai explodir para todos os lados. E eu com certeza vou estragar tudo.

– Eu não sei o que fazer.

– Você sempre sabe o que fazer. – Apolo brinca, abraçando meus ombros.

– Desta vez não. Desta vez é tudo de novo e eu tenho o total de zero ideias sobre como lidar com essa situação. Odeio isso. Odeio não entender o que o Gregório está fazendo, odeio não conseguir agir. – passo a mão pelo rosto. – É como se eu estivesse me apaixonando por ele pela segunda vez, Apolo.

– Você é a Lílian. – seu tom é animado e encorajador, e por isso eu sorrio. – Aquela dos mil e um conselhos, a garota que sempre sabe como sair de uma situação de risco. Você é minha amiga e, se quiser, eu fico com você o fim de semana todo só pra que não enfrente nenhum momento de desespero total, apesar de estar ansioso para te ver sem saber como agir.

– Obrigada pelo apoio. – estreito os olhos na sua direção. – Mas não, eu vou ficar bem. Além do mais, a Samira te joga para os tubarões se você não participar das atividades de hoje à noite.

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Aprecio os risos escandalosos do pessoal que está na praia, invejando seu caminhar livre sobre a areia. Algumas garotas entram no mar e gritam porque faz frio, mas ainda assim prosseguem pelas ondas. Samira está sentada nos ombros de um garoto do quarto ano de Filosofia, gritando coisas em um megafone, e o grupo responsável por obedecê-la durante o festival está correndo em círculos para arrumar tudo até a noite.

Respiro fundo quando o Gregório volta ao meu campo de visão. Está ventando bastante, então ele está usando uma jeans e camiseta de manga comprida, mas está descalço sobre a areia fofa. Eu adoro como o vento sopra as mechas do seu cabelo. Ele joga um pedaço de madeira sobre a pilha que, mais tarde, servirá para a fogueira, e recebe um soco de brincadeira da Patrícia quando passa para buscar mais. Gregório cruza os braços e olha em volta, e eu me forço a encará-lo, esperançosa quanto a receber sua atenção, mas estou longe e ele está distraído demais.

– E se você fosse lá falar com ele? – Apolo me cutuca.

– E se hoje fosse maio?

– E se faltassem cinco minutos para o fim do mundo?

– E se fosse o clube dos seis?

– E se a Beyoncé tivesse pedido desculpas?

– Uh. – faço uma careta. – Você realmente não brinca neste jogo, senhor. – Então acontece. Um pessoal se aproxima da casa, porque aqui estão os suprimentos e as bebidas e todo o material necessário para ninguém morrer de inanição, e o Gregório vem com eles. Apolo se levanta, porque é tarefa dele impedir que pés sujos de areia entrem na casa, assim como também distribuir garrafas de cerveja, refrigerante ou água mineral. Puxo o meu pé saudável para a rede e abraço meu joelho, franzindo os lábios para as faixas. Eu queria ser a pessoa que distribui garrafas para os outros. Queria ser a pessoa na areia junto com a Sam, obedecendo as suas ordens. Queria ser a pessoa próxima do Gregório enquanto ele ajuda com a montagem da fogueira ou dos bancos ou das barracas improvisadas. Mas sou só uma Lílian com o pé inchado.

– Oi. – arregalo os olhos ao erguer o rosto. Com as mãos nos bolsos, Gregório me entrega um meio sorriso. – Tudo bem?

Faço uma careta, fingindo que está tudo bem. Ele conversou comigo por mensagens alguns dias depois do meu acidente. Postei uma foto minha com a Mônica e meu pé enfaixado apareceu nela – à noite, Gregório entrou em contato para descobrir o que tinha acontecido, e claro que meu coração idiota quase parou por conta disso.

– A dor vai e vem. – ergo o pé. – A parte triste é a quarentena.

– Nenhuma chance de pular até a praia?

– Definitivamente não. O médico disse que pode entrar areia e aí vai ficar coçando e eu vou querer coçar, e se eu coçar vai machucar e a tala pode sair do lugar e aí é direto pro hospital. – dou de ombros. – Serei só eu e um belo exemplar de A Metamorfose esta noite.

– Devo questionar o seu gosto duvidoso para leitura?

– É um clássico. – finjo indignação. – E era o único disponível perto da minha mala, de qualquer maneira. É isso ou morrer de tédio, já que a 3G aqui é horrível.

Gregório abaixa o rosto para sorrir e uma sensação calorosa cobre meu peito. Esse sorriso e todos os significados dele são abertos e dizem muito para mim. Ele não está se contendo, nem se escondendo. Ele é o Gregório de antes. E eu machuquei o Gregório de antes.

– Grandes planos para a festa?

– Ah é. – ele coça a nuca, sem jeito. – A Samira me intimou a tocar violão e cantar algumas músicas, uma espécie de karaokê.

– Tipo aquele do pub?

– Exato. – o meu sorriso vacila e o dele parece desconfortável. – Enfim... Vai dar certo por umas duas músicas, aí o pessoal vai beber mais e vai esquecer todas as letras.

– Você diz isso por ter experiência em outras dessas comemorações?

– Precisamente. – Ele se balança sobre os pés descalços e eu me perco um pouco ao subir o olhar por sua silhueta. Aproveito a distração dele, com foco em uma discussão que ocorre na porta da varanda, e admiro a curva sob o seu queixo, a maneira atraente com que os primeiros botões da camiseta estão abertos sobre o seu peito. Avisto a corrente de contas e o meu segredo ali e me pergunto se Gregório notou que eu estou usando o seu segredo. Eu o tenho usado desde que fizemos as pazes, mas ele não comentou nada sobre isso.

De repente, seus olhos recaem sobre os meus e eu encontro dificuldade para montar uma frase.

– Lílian! – pulo de susto quando ouço a voz da Samira gritando meu nome. Ela vem na nossa direção, furiosa com o seu megafone, e puxa o Gregório pelo cotovelo. – Se não pode ajudar, não roube os meus ajudantes!

Meu rosto está vermelho porque todos ao meu redor ouviram e agora estão rindo, mas eu sorrio e sussurro um “foi mal” na direção do Gregório enquanto ele se vê arrastado pela fúria da minha melhor amiga. Gregório caminha de costas para a praia, seus olhos ainda presos aos meus, e seu sorriso, eu posso jurar, é de causar inveja nos céus.


Aquele com a mensagem na canção

 

AGORA


A Metamorfose não foi distrativo. Apesar de ter uma boa história arrepiante e de ser bastante parecido com o resumo que eu tinha ouvido uma vez da tia Rosa, Kafka não me prendeu o bastante para que eu esquecesse a festa da fogueira. Na verdade, foi o contrário. Enquanto as linhas iam e a história avançava, a noite também.

A varanda da casa passou de agitada e cheia de gente procurando latinhas de cerveja e outras bebidas, gritando e rindo e conversando comigo – por pena, todos sabem disso – para um mórbido mausoléu. Balanço a rede e me impeço de olhar para o movimento lá na praia; posso ver as rodas de dança, os recitais de poemas e até assisti o momento em que os perdedores do recital tiveram que entrar no mar gelado e pular algumas ondas. A Samira inventou todas essas brincadeiras, e a interação que isso está gerando parece bacana.

Bufo e me viro na rede, mas minha perna não deixa muitas posições confortáveis disponíveis. Mando algumas mensagens para a Mônica, para tia Rosa e até para minha mãe – ainda que eu saiba que ela raramente acessa as redes sociais. Nenhuma delas me responde; imagino que a Mônica esteja em um encontro com o Enzo, a tia Rosa com suas flores e a mamãe sem nem se lembrar de que existe comunicação por meio da internet. Meu pai viajou para outro festival de música – no Espírito Santo ou algo do tipo. Só ele e seu trailer.

De volta ao livro, avanço umas três páginas antes que um estardalhaço na praia chame minha atenção. Reconheço a voz da Samira testando o som e me ajeito na rede para tentar entender o que está acontecendo.

– Tá funcionando? – em meio a um som rouco e com falhas, Samira assume um microfone ruim. Ela bate no aparelho e ele produz um tinido agudo. – Opa, foi mal. Então, onze horas, é o momento do karaokê!

Meu coração acelera.

– Eu sei que nem todos estão animados com a ideia de sair cantando, mas pelo menos vamos ter um cara legal começando algumas músicas pra gente! – Samira soa enfezada. – Gregório, pode pegar o microfone. Tem uma pessoa longe da gente hoje, mas eu sei que ela quer te ouvir cantar. – Sam diz isso com cautela, e sei que está pensando que vou matá-la quando ela voltar para cá. Mas não vou. Fico agradecida pelo pequeno favor. Nunca é demais ouvir o Gregório cantando, não importa quão idiota e apaixonada essa fala soe.

Gregório não anuncia a música, nem a si mesmo. Ele nunca faz isso. Eu adorava imaginar quais eram as memórias boas em sua mente quando ele cantava, quando se esquecia de tudo ao seu redor para focar na letra, nos acordes e no que quer que o mantivesse calmo. Agora, não sei exatamente o que fantasiar. Não sei como foram os últimos meses dele, se alguma nova lembrança boa foi criada nesse meio tempo. Uma vez, Gregório me disse que gostava de me ver; que gostava de fechar os olhos e se lembrar do meu sorriso.

Sorrio ao me lembrar disso. Nesse exato momento, ele começa a cantar.

– I should have known better, than to let you go alone.[5] It's times like these. I can't make it on my own; wasted days and sleepless nights. And I can't wait to see you again. – Não me recordo da música nem do artista. Não me lembro de alguma vez ter ouvido Gregório cantando essa canção. Contudo, agora, ela parece importante. Tão importante e poderosa. Me faz lembrar das outras músicas que ele dividiu comigo, letras que contavam histórias parecidas com a nossa, melodias que dividiam mensagens que só eu e ele podíamos entender.

Respiro fundo porque queria poder ver seu rosto agora. Queria ler seu olhar e sua expressão e sua postura. Queria entender o que sua voz rouca e grave e tão apaixonante diz com essa letra.

– I find I spend my time waiting on your call. How can I tell you, babe? My back's against the wall, I need you by my side to tell me it's alright, ‘cause I don't think I can take anymore. – Sua voz para, mas a música precisa continuar. E ela continua, e a frase seguinte pergunta “isto é amor, o que eu estou sentindo?”. E tudo bem, eu posso não conhecer a canção, mas o que antes parecia uma indireta agora parece uma carta assinada, do tipo que praticamente joga a informação na minha cara. Gregório sabe que eu estou ouvindo, ele sabe que eu presto atenção nas mensagens. Ele tinha me dito que eu entendia mais das músicas do que muita gente que ele conhecia, então sabe que estou compreendendo essa em particular.

Passo a mão pelo cabelo, desesperada.

Ele está me amando de volta?

O tempo passa, mas o Gregório não reassume o microfone. O ganhador do karaokê, que acertou a música como sendo Is This Love? do Whitesnake, conquista o direito de continuar a próxima rodada. Ele puxa um pagode animado e alguém entra com um pandeiro, e eu estou dobrando as orelhas da página em que parei do livro quando vejo uma silhueta se aproximando da varanda.

Tento fazer a minha melhor cara de foco na Metamorfose. Não sei por que estou fingindo isso; não sei por que estou nervosa. Eu amo esse cara, e ele me ama. Por que tem que ser tão complicado?

Porque você já estragou tudo uma vez. Vai estragar de novo. Penso amargurada.

– Oi. – Ergo a atenção para o Gregório. Ele está com o violão pendurado num dos ombros, as mãos nos bolsos da jeans, os pés descalços trazendo areia para a varanda.

– Oi. – sorrio. Não consigo me conter. A música ainda está ecoando na minha cabeça, e ele está aqui, na minha frente. – Sem querer ofender nem nada, mas você não deveria estar comandando um karaokê?

– Ah. – Gregório coça a nuca e se vira para a praia. – Eu fugi.

– Poucos foram os que conseguiram escapar da Samira com vida. – brinco. – Quer sentar? – Puxo a minha perna intacta para fora da rede, deixando espaço para ele se sentar ao lado da enfaixada. Gregório hesita, mas acaba assentindo. Ele apoia o violão no pilar da varanda e se senta devagar; o movimento me faz estremecer. Gregório nota e apoia a mão sobre o meu joelho, estabilizando minha perna até ter se sentado, desestabilizando todos os meus nervos ao tocar minha pele.

– Desculpe. – Ele pede.

– Tudo bem. – respiro fundo, sem me conter ao observá-lo. Seus olhos estão em algum ponto da casa atrás de mim, mas não me incomodo com o nervosismo. – Por que veio aqui?

Ele arregala os olhos pela minha pergunta, mas não parece intimidado.

– Porque você estava sozinha.

– Kafka está comigo. – abraço o livro, recebendo um meio sorriso seu de volta. – Além do mais, você estava com os seus amigos.

– Eu sei, mas... Você não estava lá. – ele ergue os ombros. – E você sempre gostou desses karaokês, apesar de nunca conhecer as músicas. – fica um pouco difícil respirar quando o ouço falar assim. – Eu queria te fazer companhia.

Fico em silêncio porque não sei o que dizer. Seu tom suave, a sinceridade em sua voz, a maneira doce com que ele mantém o rosto baixo, mas o olhar sobre o meu. Tudo isso cria uma atmosfera adorável, um momento que rouba meu fôlego e a minha racionalidade. A confissão do Gregório é a causa do meu sorriso seguinte. Eu o amo tanto que gostaria de beijá-lo até que as estrelas caíssem do céu, e dói porque eu tenho medo de machucá-lo de novo.

– Canta pra mim.

Seus lábios tremem em um sorriso discreto. Ele se move e alcança o violão e se inclina sobre a rede para apoiar o instrumento em suas pernas, eu me movo para dar espaço, mas também para me aproximar dele.

– O que quer que eu cante?

– Uau, senhor, agora que você perguntou, eu realmente tenho comigo uma lista imensa de sugestões baseadas nos meus conhecimentos sobre blues e jazz e quem sabe um pouco de rock clássico. – brinco, eufórica por conseguir uma gargalhada dele. – Eu não sei os nomes das músicas.

– Sabe sim, você até tinha criado umas playlists.

Eu tinha. E ainda tenho. Quero dizer para o Gregório que escuto todas as músicas que ele me indicou, todas as que ele cantou para mim, mas acho que sabe. Pela maneira com que me olha, com seu meio sorriso, sei que ele sabe.

– Ok, você gostava dessa. – ele desiste, dedilhando os primeiros acordes. Reconheço a canção: - Tão natural quanto a luz do dia, mas que preguiça boa, me deixa aqui à toa.[6] Hoje ninguém vai estragar meu dia, só vou gastar energia pra beijar sua boca. – eu lembro bem dessa música. As lembranças também envolvem suas mãos no meu corpo e vários outros acontecimentos no curto espaço do seu colchão. – Fica comigo então, não me abandona, não. Alguém te perguntou como é que foi seu dia? Uma palavra amiga, uma notícia boa. Isso faz falta no dia a dia. A gente nunca sabe quem são essas pessoas. – me aproximo um pouco mais, cruzando a perna boa para que meu corpo fique na lateral do seu. Gregório me espia discretamente, sua voz rouca deslizando arrepios sob a minha pele. – Eu só queria te lembrar que aquele tempo eu não podia fazer mais por nós. Eu estava errado e você não tem que me perdoar. Mas também quero te mostrar que existe um lado bom nessa história, tudo que ainda temos a compartilhar. E viver e cantar, não importa qual seja o dia. Vamos viver; vadiar. O que importa é nossa alegria.

Ele para de tocar, colocando o violão ao lado da rede. Meu coração se descontrola e meus pensamentos são tudo e nada. Tento ler sua expressão; Gregório está sereno e extremamente relaxado. Seus olhos transparentes ditam o que seus gestos fazem em seguida. Gregório acaricia meu braço, e seu rosto paira próximo do meu, tão próximo que sua respiração faz cócegas em minha pele. Ele morde o lábio inferior, e preciso reunir todas as forças que existem para não fazer isso eu mesma. Gregório dedilha meu ombro com familiaridade e delicadeza, seu olhar me testando, me questionando.

– Eu sinto sua falta. – Ele confessa.

– Eu também. – A ponta do seu nariz aperta a do meu, e Gregório apoia a testa sobre a minha com uma doçura que faz calafrios subirem por meu corpo.

– Podemos fazer isso funcionar, Lílian? – Seus dedos chegam à base do meu pescoço e contornam minha nuca, apoiando-se ali. A pergunta é delicada e cautelosa, mas o fato de ele fazê-la dói.

– Podemos ir devagar. – Sussurro um pouco amedrontada, erguendo minha mão para apoiar em seu pescoço. Minhas unhas passeiam por seu cabelo.

Seu beijo é urgente, ansioso, cheio de significados, cheio de mensagens. Ele trilha uma poesia sobre mim, uma canção sem palavras. Gregório se inclina e eu me deito na rede, descruzando a perna para dar espaço. O peso do seu corpo contra o meu é tão delicioso, tão importante, tão natural que me faz sorrir entre o beijo. Sua mão livre desce até meu quadril, contornando minha perna, apertando minha pele. Gregório se afasta um instante e nós dois respiramos fundo. Observo seus olhos, tão claros e vidrados, e a alegria neles contida. Ele sorri sem graça em meio a um ofego, e eu rio porque nossa... Como eu senti falta desse sorriso.

Meu riso é nervoso, no entanto. Espero que ele vá com calma. Espero que não se entregue completamente. Eu não aguentaria magoar esse garoto de novo.

Ele se deita ao meu lado na rede, de repente, e mantêm nossos rostos próximos por aqueles mínimos centímetros irritantes. Franzo as sobrancelhas, tentando entender o que o afastou.

– Eu amo você. – A confissão dele me quebra. Pisco repetidas vezes, sem saber minha cara está assustada ou eufórica. Talvez uma mistura dessas duas emoções; Gregório já me disse aquilo. A primeira vez foi numa noite fria, em outra cidade, quando senti que ele desmoronaria. A força que Gregório encontrou para me dizer aquilo é a mesma de agora. Seus olhos estão limpos e sinceros. Seu rosto, relaxado e conciso.

Essas três palavras podem não significar grande coisa para muitas pessoas, podem ser juras de um amor jovem e apaixonado bobo que acaba depois de alguns meses, mas para o Gregório significam tudo. E vê-lo confessando para mim de novo, depois de tudo, faz meu coração se apertar.

Eu o beijo. Um beijo rápido e delicado. Aperto a mão sobre o seu coração, como da vez em que Gregório me entregou seu segredo.

– Eu sei. – brinco, sentindo seu sorriso contra os meus lábios. – Desse filme você entende a referência?

– Lílian. – Sussurra meu nome com alegria.

– Vai machucar você se eu disser? – Ele hesita, me encarando com confusão. – Você sabe o que eu sinto, mas não posso nomear meus sentimentos sabendo que posso te ferir de novo. – Ele desvia o olhar por um instante e eu acho que vai se afastar, que vai embora. Gregório me surpreende ao me abraçar no curto espaço entre nós. Minha perna machucada dói pela posição em que estou, mas pouco me importo.

Estou prestes a continuar, ansiosa para que ele diga alguma coisa, quando um calouro aparece sobre a rede, cobrindo a luz da varanda.

Ele grita qualquer frase desconexa porque está bêbado feito um gambá, e eu reviro os olhos e o mando embora. Gregório, ao meu lado, ri alto quando mais calouros e então alguns veteranos começam a vir para a casa, provavelmente em busca de mais bebidas.

– Acho que acabou o sossego.

– Vamos fugir.

– O quê?

– Fugir. – faço um aceno dramático para a praia. – Pra outro lugar, baby.

– Você acabou de recitar uma música?

– Surpreso?

– Impressionado. – Gregório observa as pessoas aleatórias migrando para a casa e faz uma careta. – Não, vamos ficar aqui.

– Aqui tipo... Na rede? Está frio. – quando ele se aproxima, prendendo o meu olhar ao seu, esqueço os outros argumentos. É dessa sensação que eu senti falta. O sentimento de pertencer a um momento inesquecível, de poder falar sobre poesias e canções e filmes de terror e ainda assim sentir que estou fazendo a diferença para a história de alguém. Gregório me faz sentir assim.

– Eu voltei pra casa. – ele comenta. Sua voz é baixa, um mero murmúrio tímido. Seu olhar é intenso e significativo. – No dia depois da apresentação. As coisas que você disse me fizeram pensar em como eu estava sendo egoísta, não dando uma chance para ela. – recuo instintivamente, odiando a minha fala ainda mais. Gregório segura minha mão, apoiando-a sobre seu coração de novo, impedindo que eu me afaste demais. Seus olhos são tudo, menos sombrios. – Eu fui egoísta, Lílian. E estava mentindo quando fingia que não me importava, que tinha aceitado aquele afastamento. Assim como a minha mãe foi egoísta por muito tempo, tentando agir como se nada tivesse acontecido. Eu queria a minha mãe de volta, e ela finalmente estava disposta a tentar, e eu não conseguia dar esse último passo. Você me ajudou.

Respiro fundo, ainda querendo fugir. Não queria ter sido a causadora de uma decisão tão brusca. Não queria que o Gregório tivesse resolvido voltar só porque agi por impulso e me intrometi em sua vida, dando palpite sobre um passado que eu pouco conhecia. Eu nunca tive o direito de ditar seus passos, independente de achar que comporiam o melhor caminho.

– E você falou com a sua mãe?

– Sim. – seus dedos se apertam um pouco mais sobre os meus, buscando apoio. Eu o dou. – Nós conversamos como não fazíamos há anos. Eu descarreguei tudo. Toda a culpa e a raiva, gritei a culpa que colocava nela por toda a negligência e pelo abandono. Mostrei as minhas cicatrizes, Lílian. – ele sussurra o fim contra a minha pele, beijando o canto do meu rosto em seguida. Sei o quando isso é importante. Suas cicatrizes são toda a história de abuso psicológico e físico resultados do passado turbulento, e Gregório tinha culpado a mãe ao me contar sobre a existência delas. O fato de ele ter gritado isso depois de tantos anos de silêncio é grandioso. – Ela entendeu a minha decepção. Pelo menos espero que sim. – Ele ri sem graça, e deposito um beijo delicado no canto dos seus lábios. – Nós estamos frequentando uma terapeuta juntos. Tem sido ótimo.

Esse garoto. O garoto que roubou meu coração, o garoto pelo qual eu me apaixonei duas vezes. Gregório é tão frágil e em consequência tão inquebrável.

Eu o amo, cada falha e cada sombra, cada sorriso e cada lágrima. Queria poder gritar essas palavras. Queria desenhá-las em sua pele, em seu coração, em seus pensamentos, mas me contenho. Seguro meus sentimentos ao me lembrar de que muita brusquidão me levou a agir impulsivamente antes, achando que era o melhor para ele. Não quero perder o Gregório de novo, não posso estragar tudo.

– Obrigada por dividir isso comigo.

Seus olhos percorrem meu rosto, e seu sorriso me alcança junto ao seu beijo seguinte.

– Obrigado por ter voltado.


?


Samira dá um tapinha em meu ombro.

Está amanhecendo. Tem algumas nuvens no céu, mas o dia promete ser quente igual ao anterior; eu odeio o gesso no meu pé e o mar zombando disso à distância.

Depois de tudo que aconteceu ontem – com o Gregório e os olhares dele falando mais do que qualquer confissão -, óbvio que eu não consegui dormir direito. Faz pouco tempo que levantei, e fiz o possível para sair do quarto e vir até a varanda sem causar estardalhaço. Minha sorte foi que o pessoal tinha dormido muito tarde, com a ajuda de muita bebida, então eles dificilmente acordariam com alguns passos altos pelo chão de madeira.

Eu me despedi do Gregório pouco depois das três da manhã. Ele estava exausto por causa da montagem da festa e da apresentação e, bem... Dos beijos e toques e de ficar conversando sobre aleatoriedades comigo quando eu ficava nervosa demais por tê-lo junto comigo.

A minha vontade mais real era de ter deixado aquela rede e puxado o Gregório até meu quarto. Meu maior desejo enquanto a gente se beijava era de reviver seus toques e seu corpo junto ao meu; contudo, a parte racional em mim mandou eu me segurar. Aquela mesma parte que ficava apitando meu cérebro, dizendo para ir devagar porque eu já tinha machucado demais esse garoto uma vez. E, não importa o que ele fale, o medo irracional de fazer de novo é que me freia.

É essa paranoia que me coloca na varanda nessa manhã. Esses pensamentos intensos que ficam buzinando minha calma e deixando meus nervos à flor da pele.

Quando a Samira abriu as portas da varanda e me encontrou ali, eu quase ergui as mãos em agradecimento. Ela se senta ao meu lado nos degraus e estica as pernas à frente; ainda tem maquiagem no seu rosto, um pouco de purpurina nas bochechas e sob os olhos cansados. Mas seu sorriso é tudo de animado.

– Ouvi dizer que o Gregório veio pra cá depois daquela serenata.

– Não foi uma serenata. – Não consigo evitar o riso ao observá-la. A careta da Sam é indignação pura.

– Só não foi mais óbvio porque ele não terminou dizendo “assinado, Gregório.”.

– Acho que teria problemas de direitos autorais se fizesse isso.

Samira empurra meu ombro de leve.

– E aí? O que vocês conversaram? – ela arregala os olhos. – Se é que conversaram.

– Samira! – guincho de volta. – A gente conversou. O Gregório contou várias coisas pra mim, principalmente sobre o período em que ele se afastou.

– E...

Suspiro. Evito olhar para a Sam porque ela consegue me ler muito bem; não preciso estender todas as informações para que entenda o cenário e os meus medos.

– Lílian. – Samira segura minha mão entre as suas. – Olha, eu não sou exatamente a rainha dos relacionamentos, mas sei lidar com pessoas. Mesmo com você, toda complicada e perfeitinha.

– Pelo amor de Deus, tá muito cedo pra um trocadilho assim.

– A questão é: o Gregório está aqui, entregando o coração dele de volta pra você. Dá pra ler em todo santo olhar que ele usa, Lílian. Ele te ama muito.

– Eu sei disso. Eu amo o Gregório mais do que dá pra explicar. E é por isso que tem essa vozinha na minha consciência me mandando segurar a barra, sabe? Já machuquei ele uma vez.

– E não vai fazer isso de novo.

– Como você sabe? – Ergo o rosto para ela, finalmente.

– Porque é errando que a gente aprende. Já dizia aquele velho ditado. – Sam sorri para mim, e esse sorriso é amigável e promete que as coisas vão dar certo. – Relacionamentos são construídos na base de confiança e de aceitação. O Gregório confia e acredita em você, aceita você. Só falta você fazer isso também.

Apoio a cabeça em seu ombro. Não quero dar voltas e voltas no mesmo assunto; a Samira está totalmente certa, mas ainda tem essa pontada no meu peito que me manda ter cuidado. Ainda tenho a lembrança do olhar magoado do Gregório de quando quebrei a confiança dele.

– Como estão as coisas no asilo? – Desvio a atenção da Sam de propósito. Ela faz um bico indignado, mas não resiste.

– Ótimas! A Dalila é uma entusiasta natural, aceita tudo que é projeto que eu e a Baby estamos planejando. Dá pra agitar muito aquele lugar. Na medida do possível e do seguro, claro, mas tem tanta coisa legal pra fazer com que eles se sintam menos sozinhos.

– Você sabe que pode contar comigo pra qualquer coisa, né?

– Eu já coloquei o seu nome como ajudante de quase todos os projetos. – Ela responde convicta.

E simples assim, pelo resto da manhã, nós conversamos sobre ideias e roteiros e montagens e qualquer coisa longe de problemas emocionais; simples assim, a Samira sorri e tudo é simples e parece que vai ficar bem.


Aquele com os filhotes

 

ANTES


Se tem uma pessoa mais animada para a feira de adoção – além do Gregório – essa pessoa é a Dalila. Claro que, teoricamente, o que era para ser um evento modesto no asilo acabou se tornando uma mega produção que chamou a atenção da cidade inteira. Se duvidar, até gente de fora vai aparecer.

Gregório decidiu não colocar os filhotes da Panqueca para adoção, apesar de a ideia ter ganhado força junto com eles. Sabe aquela história de amor à primeira vista? Quando os quatro cachorrinhos nasceram, o Gregório se apaixonou por eles. E aí criou toda uma filosofia sobre como seu quintal é enorme e tem um espaço totalmente inútil que pode ser reaproveitado para dar lar a mais quatro cachorros. E como ele e a Mila não pagavam aluguel nem nada do tipo, não teria problema algum gastar um pouco mais de dinheiro com os novos moradores. Não é como se o Gregório estivesse economizando para uma viagem internacional nem nada do tipo, ele gostava de morar em um lugar só. Com vários cachorros.

Samira ficou extremamente aborrecida e chateada por não conseguir vir, mas uma das suas professoras passou aquele tipo de trabalho monstruoso e gigantesco para ser entregue na segunda-feira e a coitadinha da Sam teve que se reunir com o pessoal do grupo logo cedo pra impedir que nada no trabalho atrase.

– Eu vou fazer uma apresentação tão arrasadora que a professora vai chorar e implorar perdão por ter me feito perder essa festa. – Ela me disse ontem em meio às lamúrias por não poder participar.

– Quando a Dalila e o pessoal do asilo te conhecerem, pode apostar que vão querer sua ajuda para as próximas festas.

– Você acha? – Os olhos dela tinham brilhado em expectativa.

– Eu tenho certeza.

Os jardins do asilo ganharam ares novos depois que o pessoal do canil concordou em ajudar com a feira. O esquema todo envolveu montagem de pequenas cercas de madeira onde os cães e gatos ficariam expostos, e os funcionários do canil municipal ficariam responsáveis pelas fichas de adoção – enquanto os moradores do asilo passeariam pela feira e ajudariam os visitantes a escolher os bichinhos.

A princípio, Baby e as administradoras do asilo quase não permitiram a realização do evento, mas Dalila e os outros bateram o pé para acontecer. Eles faziam suas festas para convidados fantasmas, então podiam pelo menos sediar a feira de adoção e receber mais visitantes do que os usuais.

Se ninguém viesse, ainda poderiam brincar com os bichinhos – esse foi o argumento principal entre eles. Gregório, claro, ficou entusiasmado. A feira se transformou em um marco, e talvez por isso esteja tão cheia; Gregório fez questão de espalhar panfletos pela cidade, pelos comércios, pelo campus da faculdade.

A promessa era de música ao vivo e de algumas barraquinhas de comida – todas preparadas pela Dalila, que tinha uma mão incrível para fazer doces. Ela me disse que o talento corre na família, e que seu neto, Tiago, era o melhor nesse ramo.

Tem pelo menos umas cinquenta pessoas aqui. Famílias, principalmente, mas universitários também. Ivete está conversando com duas garotas, e uma delas segura um cachorro de pelo branquinho nos braços. Dalila e Laerte discutem sobre a distribuição de tarefas, coisa que já foi acertada há vários dias, mas continua gerando controvérsias – são coisas bobas com as quais a gente nem tem que se preocupar, segundo a Baby. Dalila e Laerte adoram discutir por qualquer motivo.

E aqui estou eu, cumprindo meu trabalho – que consiste em entregar os formulários de adoção para as pessoas que chegam, e direcioná-las aos balcões onde estão os funcionários do canil em caso de dúvida. A maioria nem olha pra minha cara e já vai correndo até os cercados onde estão os cães e gatos; todo mundo com aquele brilho no olhar de quem encontrou toda alegria do mundo em um lugar só.

Tenho dez minutos de descanso enquanto a Baby assume meu posto. Aproveito a sombra de uma das árvores e fico observando todo mundo; tem muitos sorrisos e muita gente feliz com a simplicidade da festa.

Um pouco pra direita, vejo um garoto sozinho. Ele deve ter a minha idade, talvez um pouco mais. É alto e esguio, os cabelos são curtos e de um tom castanho-claro; o sol reflete no aro dos óculos de grau e na pele branca.

Ele parece um pouco solitário. Quase como o Gregório no dia em que o conheci; respiro fundo e separo um panfleto. Quando paro ao seu lado, ele não repara na minha presença. Sigo a linha do seu olhar e encontro um dos cercados com filhotes. Gregório e Dalila estão ali, carregando um cachorrinho cada, enquanto conversam com um cara.

– São fofos, né?

O garoto se assusta comigo. Eu não o julgo; quem é que chega de repente assim e joga um comentário desses?

– Desculpa. Oi! – estendo o panfleto e um sorriso. Ele aceita os dois, mas parece um pouco tímido perto de toda a minha animação. – Você veio aqui pra adotar algum cachorrinho ou só pra aproveitar os bolos grátis? Eu não te julgaria se escolhesse a segunda opção.

Consigo um sorriso.

– Eu tô aqui com... – ele aponta para o cercado e para o garoto próximo da Dalila. Alto, de pele morena, cabelo curto e arrumado e com um sorriso radiante. – Ele. E sim, são fofos.

– Os meninos ou os cachorrinhos?

Dessa vez, consigo um riso envergonhado.

– Desculpa de novo. Eu sou muito palhaça quando tô conhecendo gente nova.

– Pedro. – ele estende a mão e eu aceito o cumprimento.

– Lílian. E eu estava falando que os filhotes são fofos, aliás. – Desvio o olhar até o cercado. O garoto com quem o Pedro veio está conversando com o Gregório. É um pouco difícil desviar o olhar quando o Gregório está sorrindo daquele jeito raro, de orelha a orelha, como se o mundo fosse feito de algodão doce. Eu nunca o vi tão feliz.

Pedro está me olhando quando volto ao mundo real. Ele dá uma risadinha simpática. Faço uma careta e escondo o rosto atrás de um panfleto porque o constrangimento é verdadeiro.

– Ei, relaxa. Os filhotes são muito fofos, impossível não ficar com coraçõezinhos nos olhos. – Minha gargalhada é quase escandalosa, mas agradeço internamente por ele me ajudar a escapar da vergonha. Eu não deveria ficar babando pelo Gregório durante meu horário de serviço.

– Eu nunca te vi por aqui. Você é da cidade?

– Não, a gente tá de passagem. O Guilherme viu um dos panfletos sobre a feira e fez um desvio do trajeto original pra vir pra cá. – Eu sei exatamente qual era meu olhar de momentos atrás porque o Pedro está exibindo o mesmo tipo enquanto fala do tal Guilherme. Aquela coisa de encantamento bobo apaixonado. É fofo demais.

– Vocês ganharam filhotes e bolo grátis. Parece um ótimo desvio de rota. – Ele concorda.

– Como negar essa combinação?

Lá no cercado, Guilherme está com um dos filhotes no colo. Ele olha em volta procurando alguma coisa, ou alguém, e para ao avistar o Pedro. A mesma expressão encantada e boba e completamente apaixonada toma o rosto dele. Guilherme acena e pede para o Pedro se aproximar.

– Eu vou...

– Vai. – sorrio. – Prazer em te conhecer, Pedro. Espero que a gente se veja de novo uma hora dessas!

Ele sorri animado.

– Até mais, Lílian.

Ele segue até o cercado com as mãos nos bolsos da calça jeans. Eu me arrependo de não pegar o seu contato, mas não parece que ele e o Guilherme vão embora tão cedo. Ainda vai dar pra conversar mais um pouco; talvez até dê pra encontrar eles em outro lugar.

Solto um grito agudo quando alguém me abraça por trás e me ergue do chão.

– Como você chegou aqui sem eu te ver? – Exclamo para o Gregório. Ele não me solta, mas dá a volta para ficar de frente comigo. Não sei reagir ao seu sorriso, não num primeiro momento. É todo honesto e feliz, cheio de vida. Eu queria gravar sua expressão e ficar repetindo para sempre na minha cabeça. Eu quero que o Gregório continue feliz assim pelo resto da sua vida. Ele merece essa felicidade. O mundo merece esse sorriso.

– O que foi?

– O que foi o que foi?

– Você está me olhando de um jeito engraçado. – Gregório se aproxima um pouco mais.

Balanço a cabeça pra tentar dissipar a minha cara boba congelada.

– É que os filhotes são tão fofos. – Minto em meio a um sorriso, pouco antes de ficar na ponta dos pés e beijá-lo.


Aquele com a família

 

ANTES


Eu deveria voltar para casa hoje, mas um problema chamado falta de nota em quatro matérias me segurou em Rouxinol. Então, na solidão do apartamento da Sam – que fica sob minha responsabilidade sempre que ela vai pra casa dos pais – eu tento me concentrar no livro de Desenho Técnico, ciente de que outros três me assombrarão até o fim do dia. Não são nem nove horas da manhã e eu já quero gritar para os céus que desisto!

Checo o celular, mas hesito e o abaixo sem encontrar novas mensagens. Minha mãe brigou comigo por não ter ligado na semana passada e nem na anterior, e eu tentei me retratar explicando sobre as festas do asilo e o fato de eu precisar fazer os trabalhos para não me prejudicar nas provas – já que eu tinha certeza que ia tirar nota baixa -, mas nenhuma das justificativas colou.

Ela tem tiques nervosos e ataques quando eu desapareço por um tempo, ainda que sem querer, e fiquei brava por ela nem sequer ouvir meus suplícios. Mônica está ocupada com a escola, então nossas mensagens foram breves, diferentes do usual. Papai não tem um celular, mas me ligou do telefone de casa na semana passada, só checando para ver se eu estava viva e bem.

Eu sinto tanta saudade deles que me obrigo a pegar o celular de novo e tento ligar em casa, só para me lembrar de que é sábado e que, nesse horário, não tem ninguém por lá. Os trigêmeos têm aula de natação de manhã, a Mônica disse que ia estudar na casa do Rodolfo e minha mãe e a tia Rosa ficariam na floricultura.

Uma mensagem pisca no visor e eu sorrio pela distração. E que distração.


Gregório diz:

Muito ocupada?


Defina ocupada.


Gregório diz:

Tá estudando pras provas? Esquece que eu te mandei isso.


Ei, vc não pode simplesmente mandar uma msg e pedir pra que eu esqueça. Vem aqui, seja a minha distração.


Gregório diz:

Preciso falar com você.


Respondi rápido que sim, ele podia vir, e de repente o mundo se transformou num redemoinho de lembranças sobre qualquer coisa que eu pudesse ter feito de errado. As famosas palavras “preciso falar com você”, combinadas com momentos de suspense, costumam causar danos psicológicos em todo mundo. Gregório ficou off depois de avisar que estava vindo, e eu tentei, em vão, focar nos livros para ignorar os palpitares insistentes de que tinha feito alguma coisa errada.

Mas não tinha feito nada. Estávamos indo muito bem, bem até demais. Contei ao Gregório sobre a minha família, sobre histórias constrangedoras da minha infância, expliquei sobre as cicatrizes dos meus muitos acidentes – ainda que ele não tivesse dividido sua história sobre as próprias cicatrizes. Não me importei com isso, é claro.

Gregório se portava com fragilidade quando o assunto virava para o seu lado; ele tinha esses trejeitos de demonstrar que estava desconfortável, e eu respeitava isso. Por isso o distraía comigo, porque ele parecia gostar de saber sobre mim. E, honestamente, eu adorava a sua atenção. Adorava a maneira com que seus olhos se acendiam e seu sorriso cobria o mundo quando eu contava minhas palhaçadas, amava ter seu abraço ao meu redor e seu riso sacudindo o meu corpo conforme meus relatos se tornavam mais embaraçosos. Gregório era tão atencioso, tão importante. Eu não entendi o quanto estava profundamente apaixonada por ele até parar para analisar nossas semanas juntos.

Então não, não tinha motivo para essa conversa ser sobre o nosso relacionamento. Além das horas de diálogos e histórias, Gregório e eu também dividíamos nosso tempo entre meus amigos e os dele – ainda que sua meio irmã fosse uma estudante de Medicina muito atrapalhada e atarefada, a namorada dela, Patrícia, era um doce – e também... Bem, vamos dizer que o dia do blecaute deu início a vários outros dias, tardes e noites em que eu percebi como era delicioso ter o Gregório só para mim. Inteiramente só para mim. Apesar da timidez, ele tinha alguma coisa em seu toque, na maneira com que me beijava, nas carícias sutis e arrepiantes, um conjunto de sensações que arrancava mais do que pensamentos irracionais de todo o meu corpo. Ele aprendeu a me tocar com delicadeza e com desejo, aprendeu a me beijar em lugares que incendiavam meu corpo só de lembrar, e eu aprendi a amá-lo com carinho e urgência.

A campainha do apartamento toca, e eu corro até lá, fingindo-me apressada pela saudade e não por curiosidade. Gregório está com uma mochila no ombro, o rosto baixo, e hesito diante do seu olhar.

– Tudo bem?

– Não exatamente. – Ele respira fundo, esperando que eu dê passagem para entrar. Gregório se senta no sofá, desajustado em meio ao cômodo que deveria ser mais familiar. Eu me sento ao seu lado, cruzando as pernas debaixo de mim, e seguro suas mãos entre as minhas. Está chovendo, então seus dedos estão gélidos contra os meus. Gregório não está usando nenhum dos vários anéis que sempre usa, mas vejo suas pulseiras sob a manga do casaco.

– O que aconteceu?

– Você pode vir para casa comigo? Hoje? – Franzo as sobrancelhas. Gregório ainda não me falou sobre sua família além de algumas informações básicas; sei que seu pai morreu quando ele era adolescente e que sua mãe mora numa cidadezinha próxima daqui.

– Tá tudo bem? – Me aproximo dele, apoiando meu joelho sobre sua perna, aproveitando o contato físico para mostrar que estou aqui. Gregório vira o rosto para mim e aperta a testa em meu ombro, desmoronando silenciosamente.

– Eu preciso de alguém ao meu lado quando voltar lá.

Afago seu cabelo, ansiosa por causa da sua respiração ruidosa. Ele beija meu pescoço com doçura, afastando-se em seguida.

– Desculpe. Você está ocupada e eu... – Seguro seu rosto com uma das mãos e o beijo rapidamente.

– Eu vou com você, claro que vou, Gregório. – sorrio com suavidade. – Você vai ficar o fim de semana todo por lá?

– Só hoje. – ele suspira, desviando o olhar quando se vê encarado. Ele faz isso quando está se sentindo mal. – Desculpe. Eu não queria te envolver nisso, mas preciso... Preciso de alguém comigo, e a Mila não pode. – Meu polegar faz carícias sobre sua barba rala, acompanhando a linha da mandíbula, e Gregório se recosta em minha mão.

- Não tem problema, sério. Você está me salvando do tédio, de qualquer maneira. – um rápido sorriso treme em seu rosto, mas desaparece antes de se fazer presente. – Vou trocar de roupa e a gente já vai.

Visto minha calça jeans, um par de tênis confortáveis, camiseta e minha jaqueta, porque sei que está frio lá fora. Enquanto tranço meu cabelo, estaco no fim do corredor, observando a figura absolutamente perturbada sentada no sofá. Gregório está com os cotovelos apoiados nos joelhos, os dedos puxando os cabelos para trás e o corpo inclinado para frente. Vou até ele e me ajoelho no tapete, grata por perceber que ele não recua diante da minha presença.

Há lágrimas em seus olhos quando se erguem sobre os meus.

– Ei. – apoio minhas mãos em suas pernas e minha testa contra a sua. – Quer falar sobre isso?

– Ainda não. – ele estremece. – Mas eu vou. Eu juro que vou.

– Tudo bem, Greg. – Ele sorri diante do apelido tosco que tenho usado.

– Obrigado, Lírio. – Meu sorriso responde ao seu, porque Gregório também inventou o apelido bobo em resposta. Não que seja tão tosco quanto o meu, principalmente quando ele murmura com a voz rouca e doce que tanto adoro.

Ele segura minha mão quando tranco o apartamento, já com a minha bolsa pendurada no ombro. Entrelaço nossos dedos e lhe dirijo um olhar de suporte, mas Gregório desvia o rosto antes de vislumbrá-lo.


?


Eu achava Lagoa Feliz pequena até conhecer Gertrudes. O nome da cidade, Gregório me disse, vinha da fundadora, uma freira simpática que se mudou para cá e começou uma fazenda, que deu origem a outra fazenda e então a várias casas e um centro comercial. Hoje, a cidade tem cerca de cinco mil habitantes e se sustenta praticamente sozinha, mas é comarca de Rouxinol.

A viagem de ônibus levou trinta minutos, e Gregório não soltou a minha mão em nenhum deles. Ele ligou sua playlist e me estendeu um fone de ouvido, apresentando muitas músicas inéditas. Eu obviamente não memorizei nenhuma delas, mas gostei da suavidade na expressão do meu garoto conforme elas passavam. As melodias o acalmavam do que quer que perturbasse sua mente, e eu estava feliz por apreciar isso.

Descemos em uma rodoviária minúscula e caminhamos por uma praça menor ainda. Gregório pareceu reduzir a velocidade dos passos quando tomou uma rua lateral; encontramos um conjunto de casas geminadas até o fim dela, onde uma pequena pousada aparecia em meio às construções idênticas. Gregório estacou em frente a ela. Seus dedos se apertaram mais firmemente ao redor dos meus, e eu respondi segurando seu pulso com a minha mão livre.

– Tá tudo bem? – Observo a linha tensa de sua mandíbula, a maneira com que Gregório aperta os lábios, olhando atentamente para a fachada da pousada. Mil pensamentos cintilam em seu olhar sério, e nenhum específico.

– Não. – ele baixa a atenção sobre mim. – Mas nunca está quando eu venho aqui.

– Gregório, você está me deixando preocupada.

– Não tem nada demais com esse lugar...

– Não é sobre esse lugar. – dou dois passos para tomar a sua frente. – É sobre você. Eu estou aqui contigo, me deixa ajudar.

– Não preciso de ajuda. – ele volta a se esquivar, soltando minha mão. – Eu só preciso que você fique ao meu lado, por favor.

Suspiro pesadamente, mas concordo e me afasto. Ele suaviza a expressão e esconde as mãos nos bolsos da jaqueta, indicando as escadas e seguindo em frente. Eu o acompanho com hesitação, preocupada com sua atitude.

Ele cresceu aqui; Gregório nasceu e cresceu aqui. Estou subindo os degraus que ele subia quando era criança, observando seu jardim, suas janelas, sua porta de entrada. Talvez seja assustador da minha parte, mas acho legal ter essa conexão, especialmente por ele ser tão importante para mim.

Entramos no hall e somos recebidos por um sininho preso à porta. Gregório se empertiga, ansioso. Uma mulher vem da recepção, e a semelhança entre eles é notável; Gregório tem seus olhos, e a maneira com que ele franze as sobrancelhas é idêntica à dela. Suas feições são parecidas, mas o cabelo dela é bem mais escuro, cortado curto na altura das orelhas. Tem um bebê no colo; é uma criança gorducha e fofa. Deve ter quatro meses. Ele resmunga e a mulher ajeita o cobertor sobre o seu corpo, ainda que o choque a impeça de desviar o olhar do garoto parado à porta.

– Hã... Oi. – me adianto, porque eu sou a Lílian e adoro quebrar situações constrangedoras. Mônica diz que eu tenho talento para isso. – Muito prazer, meu nome é Lílian. – Não sei se devo apresentar o Gregório, ainda mais pelo reconhecimento nos rostos dos dois.

– Oi Lílian. – a mulher exalta. Ela tem a voz rouca e carregada, mas um sorriso sincero no rosto cansado. – Estou cobrindo o turno da recepcionista, mas deveria estar dormindo. – ela realmente parece alguém que precisa de um bom sono, não que isso seja um problema. Deus sabe que minha mãe vivia com a cara amassada por causa dos trigêmeos. – Meu nome é Vanessa.

Sigo em frente, porque Gregório parece ter congelado no hall. Ele me segue e a porta se fecha atrás dele, deixando que o calor confortável do interior da pousada nos abrace. Aquele espaço tem cheiro de perfume e de bolo, e eu cruzo os braços, esperando algum diálogo entre as duas figuras atrás de mim, quando Vanessa deixa os modos de lado e puxa Gregório para um abraço firme, tomando cuidado com o bebê que carrega.

Gregório arregala os olhos e estaca, e não relaxa a postura em momento algum durante aquele gesto. Ele me encara por cima do ombro da mulher, e fico indecisa quanto a incentivá-lo a retribuir ou salvá-lo daquela cena que obviamente está fazendo mal.

– Senti saudade, filho. – aí tudo se encaixa, pelo menos a parte do reconhecimento. Não sei por que Gregório se sente desconfortável e nem porque a mãe demorou tanto a cumprimentá-lo, mas finjo ignorância e sorrio quando Vanessa volta a me olhar. – Ela é sua namorada?

A expressão do Gregório migra para surpresa.

– Sou sim. – o sorriso dele me faz responder com outro. – É um prazer finalmente conhecer a senhora.

– Ah, ele fala de mim? – Vanessa ri, mas ela parece sem jeito ao fazê-lo. Tento entrar no jogo:

– A senhora pode ser minha futura sogra, sabe como é. – Pisco e agradeço aos céus por ter herdado o bom humor ruim do meu pai, porque funciona com ela. Vanessa se afasta, anunciando que vai pedir para o cozinheiro preparar um café, e eu observo o Gregório olhar em volta, pouco familiarizado, e então apoiar as costas contra a parede, numa pose bastante infeliz.

Vou até ele e paro à sua frente, inclinando meu corpo na sua direção. Gregório me recebe em um abraço, escondendo o rosto em meu pescoço, sua respiração quente descarregando arrepios sobre minha pele. Ele cruza os braços em minhas costas, me prendendo ao seu calor.

– Obrigado.

Beijo o seu cabelo e o lado do seu rosto quando ele se afasta. Ouvimos passos vindos dos fundos e eu me afasto primeiro. Gregório volta a esconder as mãos nos bolsos, e penso em como ele parou de fazer isso na minha presença, como ele se acostumou a mim e se deixou relaxar comigo. Agora, sua postura indica tudo de desconfortável.

– Eu me esqueci de perguntar! Você quer café com açúcar e leite, Lílian? – Vanessa sorri com nervosismo ao olhar para o Gregório.

– Claro, adoraria. – desvio o olhar, esperando que o garoto ao meu lado se manifeste, mas o silêncio dele persiste até que a Vanessa retorne para a cozinha. – Ok, isso está meio estranho. – sussurro. – Quer conversar?

– Agora não. – ele responde, aumentando minha frustração. – Vem, vamos sentar.

Gregório segura minha mão, mas sou eu quem acaba guiando nós dois até a sala de recepção. É um cômodo bem pequeno, com um sofá de dois lugares e duas poltronas com estampa de flores. A lareira é antiga e rústica e combina bastante com o balcão de atendimento. Cortinas grossas cobrem as duas janelas frontais, e um carrinho de bebê está estacionado atrás do balcão.

Vejo alguns porta-retratos sobre o balcão, e um deles tem uma foto antiga de um garotinho bastante reconhecível. Antes que o Gregório me impeça, vou até lá e me abaixo para observar a fotografia; meio borrada, ela exibe um Gregório de seis, talvez sete anos no máximo. Ele está com uma panela de pressão na cabeça, e imita a pose do Superman. Viro na direção do dono da pose e prendo um riso ao ver sua expressão constrangida.

– Não sabia que você tinha uma veia de modelo. – brinco, me aproximando do sofá. – Quero dizer, claramente estamos vendo um talento aqui, senhoras e senhores.

Gregório esconde o sorriso ao abaixar o rosto, e eu aproveito para beijar o topo da sua cabeça. Ele abraça minha cintura com força, e algo em seu toque me diz que ele está desesperado. Sento ao seu lado, ainda abraçada a ele, e beijo o canto do seu rosto até ouvir passos vindos do corredor.

– Desculpem a demora, a Teresa queria mamar. – Vanessa aparece com uma bandeja, e eu me adianto para ajudá-la, porque a mulher está equilibrando tudo em uma mão enquanto carrega a filha na outra.

Depois que ela se acomoda numa das poltronas e eu volto ao meu lugar, aquele silêncio constrangedor cresce a proporções épicas. Eu preparo meu café e faço o do Gregório e da Vanessa também, tudo para me manter ocupada e não interferir no que quer que esteja acontecendo, ainda que nada pareça estar acontecendo. Pigarreio depois de beber minha xícara inteira, respirando fundo a fim de começar a falar. Gregório toma a frente antes de mim:

– Eu não pude vir antes. – o tom dele está contido, o olhar perdido. De repente, ele é aquele garoto melancólico que eu encontrei sozinho no parquinho da festa. – As datas das provas foram apertadas, e tive uns problemas com o trabalho.

– Tudo bem, querido. – Vanessa sorri ansiosa em busca do olhar dele, mas o filho não retribui. Sinto uma necessidade absurda de segurar a mão do Gregório, mas ele as cruzou e impede minha aproximação. – Como vai a faculdade? Tudo bem por lá?

– É, tudo bem. – É uma tortura. Eu estou quieta, me forçando a não interromper, mas sem entender o que se passa aqui fica difícil saber como reagir.

– E você, Lílian? – sorrio abertamente. – Cursa o quê?

– Engenharia Civil.

– Uau, curso impressionante.

– É. – Meu tom não sai tão animado quanto deveria.

– Não parece animada com ele.

Encolho um pouco os ombros, porque agora é a minha vez de ficar desconfortável com o assunto. Eu tento evitar pensar nisso, assim como evito falar a respeito.

– Não é exatamente o que eu queria, mas está servindo.

Gregório desvia o olhar até o meu. Eu já comentei o fato de estar insatisfeita com as provas e as matérias e basicamente tudo desse curso, mas ainda não cheguei ao ponto que nunca sai da minha cabeça. Ninguém além da Samira sabe sobre minhas indecisões, especialmente o motivo delas, mas não me sinto mal por não dividir isso. Gregório também me manteve no escuro a respeito de muitas coisas, e seu olhar agora não demonstra julgamento. Ele parece conformado.

Ouço o sininho e a porta da frente se abre, então uma voz masculina grave e alta exalta:

– Vanessa, o tapete da garagem encharcou de novo. Não sei o que fazer com essa joça! – um rosto altivo, de talvez seus trinta anos, surge na entrada da sala. O desconhecido está carregando umas dez sacolas de supermercado nos braços, mas parece prestes a derrubá-las quando nos vê. Quando vê o Gregório, principalmente. – Ah. Oi.

Ao meu lado, Gregório enrijece a postura e desvia o olhar, e noto seus dedos se fechando sobre o estofado do sofá. De maneira protetora, minha mão cobre a sua, mas seu toque não relaxa sob o meu.

– Oi! – eu e minha simpatia preparada para situações constrangedoras. – Muito prazer! Meu nome é Lílian.

– Esse é meu marido, João. – Vanessa fica de pé e vai até o marido, apertando o ombro dele com uma das mãos. – Querido, pode descarregar tudo isso na cozinha e ficar com a Teresa por lá? – João sorri compreensivo e assente. – Lílian... Se importa de me deixar a sós com o Gregório por enquanto? Só alguns minutinhos.

Aperto a mão dele em apoio e me levanto, evitando seu olhar porque sei que vou me arrepender de deixá-lo ali. Gregório está tão frágil que me dá vontade de abraçá-lo e não soltar mais, mas sua mãe parece realmente ansiosa para conversar com ele, e eu não estou aqui para me meter em assuntos familiares mais do que já me meti.

Sigo João na direção da cozinha e encontro um cômodo espaçoso com um cheiro forte de bolo e de café. João coloca Teresa num carrinho menor, para depois apoiar todas as sacolas sobre a mesa de centro. Ele suspira e apoia as mãos no quadril, me dirigindo um olhar sucinto antes de se encostar-se à bancada.

– Então... Namorada do Greg?

Não gosto muito do jeito como ele diz aquilo, mas sorrio e aceno me fazendo de doce e inocente.

– Achei que o garoto nunca fosse arranjar uma companheira. – João cruza os braços, pensativo. Arqueio as sobrancelhas, mordendo a língua para conter qualquer retruco. – Não me leve a mal, é só que com o histórico dele, todos os remédios e aquela bagunça por causa da tentativa de...

– Ei. – ergo a voz, sem entender porque fiz isso. O tom displicente do cara que conheço há pouco mais de cinco minutos me deixa desconfortável e irritada, especialmente por ele estar falando do Gregório. Não quero pensar nas informações pessoais que foram jogadas sobre mim com poucas palavras tão desimportantes, na quantidade de carga emocional que o João despejou sobre meus ombros sem sequer consultar o Gregório antes. Não quero pensar no fim da frase dele. – Eu não me importo.

– Desculpe. – João soa sincero. Não acho que ele tenha dito aquilo por maldade, só pareceu não se importar. – Ele é um bom garoto, sabe? Vanessa tem tentado de verdade, retomar o contato e tudo mais. Mas acho que não funciona quando só um lado quer, não é?

Um silêncio constrangedor cresce ali pelos minutos seguintes, e me ocupo brincando com a Teresa enquanto a conversa na sala não termina. Perco a conta do tempo que se passa quando João já terminou de guardar todas as coisas das sacolas, e nem a pequena Teresa parece mais interessada em prestar atenção nas minhas caretas.

Vanessa aparece, e sua expressão me diz que algo deu errado na conversa. Ela não está chorando, mas seus olhos estão tristes. O mesmo olhar perdido que o filho possui. Eu me ergo e hesito, sem saber como abordar a situação sem soar intrometida demais.

– O Gregório foi para o quarto doze, Lílian. – ela me estende um sorriso fraco, quase como se tivesse se esquecido da minha presença. – As chaves estão debaixo do tapete em frente à porta, se quiser ir até lá. Só espere um pouquinho. Dê um pouco de espaço pra ele.

– Tá tudo bem, Vanessa? – Essa pergunta se repetiu muito nas últimas horas. Meu coração acelera; por medo ou por nervosismo, não sei dizer. Só sei que toda essa situação é estranha e eu tenho receio quanto a lidar com ela, especialmente por não saber como fazer isso.

– Vai ficar. – Ela desvia o olhar.

Conto exatos dez minutos no relógio antes de levantar e sair da cozinha. Respiro fundo e tento me achar dentro daquela pousada; os quartos do primeiro andar terminam no número nove, o que me leva a subir a escada em espiral até o segundo andar. Hesito em frente à porta do quarto doze, e levo alguns minutos para alcançar a chave e encaixá-la na fechadura e entrar. Enrolo propositalmente, até porque não sei se o Gregório me quer ali.

Ele não está em lugar nenhum ali, mas me acalmo ao ouvir o barulho de água correndo. Sento na beirada da cama e espero. Meu coração está acelerado, mas se aperta ao ouvir o que parece ser um soluço. Ah, foda-se.

A porta do banheiro está entreaberta, e me aproximo de lá para encontrar sua silhueta debaixo do chuveiro, com vapor quente embaçando todo o cômodo apertado. Gregório está com as duas mãos apoiadas na parede, a cabeça baixa debaixo do jato de água, e alguma coisa no tremor em seus ombros me impele a entrar ali.

Ele não parece me ouvir, por isso me apresso. Fecho a porta do banheiro atrás de mim, tiro a camiseta e a calça e as roupas íntimas e paro em frente à porta do box. Gregório ergue o rosto e me espia por cima do ombro, os olhos vermelhos e os lábios trêmulos pelo choro. Meu coração se desespera e eu entro. Enrosco meus braços ao redor do seu peito em seguida, trazendo-o para mim.

– Eu estou aqui. – Sussurro, meus lábios apertados contra suas costas. Gregório prende suas mãos às minhas, mas mantém o rosto baixo, os soluços contidos, e eu quero tanto entender a sua dor que estou disposta a tomá-la para mim, contanto que ele me conte o que está acontecendo.

– Eu não entendo porque ela quer consertar tudo agora. – Sua voz está trincada, cheia de um desespero perdido. Beijo seu ombro, a linha da sua espinha descendo por sua nuca. Beijo a primeira cicatriz, sobre a omoplata, e trilho meus beijos sobre ela. Eu o beijo com delicadeza, tentando acalmá-lo, tentando mostrar minha presença com a facilidade que ele tem para mostrar a sua. Seu toque me diz que ele está comigo mesmo quando suas palavras não estão mais ali, e eu quero fazer o mesmo. Minhas mãos abraçam seu peito e sentem seu coração.

– Me deixe ver você. – peço, apertando meu corpo contra o seu, ansiosa por seu olhar, por sua voz, por sua presença. Ansiosa para fazê-lo esquecer do que quer que o esteja quebrando. – Gregório.

Ele se vira sem escapar do meu abraço. O cabelo está encharcado e cobre seu rosto. Seus lábios estão avermelhados, assim como a ponta do seu nariz, e seus olhos ficaram ainda mais claros e infinitos por causa das lágrimas. Beijo o seu rosto, cada mínimo centímetro dele, e seus lábios por último. A água está morna sobre nós agora, e me sinto mover em direção a parede conforme o beijo se torna mais urgente. Gregório entremeia seus dedos em meu cabelo molhado, afastando os fios do meu rosto como eu afasto os do seu. Ele me toca como se precisasse ter certeza de que estou ali, como se encontrasse algum apoio em mim.

– Eu te amo. – perco meu fôlego com aquelas palavras. Me afasto um pouco, buscando o seu olhar e encontrando tudo nele. Gregório aperta a mão ao redor da minha cintura, ansioso e febril, mas cuidadoso ao extremo. – Lílian...

Beijo o canto da sua boca, lentamente. Beijo o espaço sob seu queixo, a curva do seu pescoço, o espaço entre sua clavícula. Beijo seu peito e onde repousa seu coração, marcando nele as palavras que ele marcou em mim. Gregório fecha os olhos, e eu seguro o seu rosto e o beijo como se pudesse consertá-lo.


?


O roupão da pousada é extremamente confortável, por isso opto por continuar com ele em vez de me vestir. Gregório colocou a roupa de antes. Ele está deitado ao meu lado, o corpo virado na minha direção, e eu observo o seu rosto enquanto ele suspira.

Gregório estica a mão e pega alguma coisa de dentro da mochila; uma corrente. Nela, está pendurado um anel. Arregalo os olhos para ele e para o garoto que o segura. Gregório crispa um sorriso rápido.

– Não vou te pedir em casamento.

– Eu fiquei um pouco assustada.

– Lílian. – meu nome soa como um ultimato. – É meu segredo. Meu maior segredo. E eu quero entregar para você.

Arrasto meu corpo sobre o colchão, me aproximando ainda mais. Minhas pernas estão entrelaçadas às suas, e agora sua respiração faz cócegas em meu rosto.

– Minha mãe era alcóolatra. Foi por causa da bebida que ela conheceu meu pai. – Gregório começa, sua voz um sussurro mínimo. – Ele... Fazia coisas ruins com as pessoas, principalmente as mais próximas. Quando eu era bem pequeno, ele machucava a minha mãe. Depois, começou a me machucar. – me aproximo mais, ainda que não seja possível. Minha mão busca a dele, e entrelaço nossos dedos com ansiedade. Penso em suas costas e nas cicatrizes que cobrem sua pele pálida. – Meu pai dizia que eu não era homem suficiente para cuidar da família, que ficar em casa nunca me ensinaria a viver, então ele começou a me levar para os trabalhos que fazia. Ele me batia quando eu me recusava, e também quando eu aceitava ir junto. Dizia que as cicatrizes... Que elas me fariam bem, que seriam boas lembranças.

Eu não consigo reagir. Não consigo fazer mais do que intensificar o aperto em sua mão, do que desejar que ele pare de falar, porque sua voz está tremendo com a dor daquele segredo.

– Eu tinha... Treze anos quando aconteceu. Uns caras de outra cidade vieram pra cá porque meu pai estava devendo muito dinheiro e... Eu não me lembro bem. Eu me lembro de um beco, e do meu pai segurando minha mão quando dispararam a arma. Lembro de ver o corpo dele caindo e de não ter soltado a sua mão até que a polícia chegou. E eu me lembro de ter ficado feliz, Lílian, porque pelo menos ele pararia de me machucar. – Gregório fecha os olhos. – Depois disso, toda a merda começou de verdade. A minha mãe surtou, com toda a dependência financeira que ela tinha e a ideia de criar um filho sozinho... Ela sumiu, se escondeu nas bebidas. E eu... Eu me perdi por um tempo. – Gregório se senta e eu o imito porque tenho medo da distância repentina. Franzo as sobrancelhas quando ele segura minha mão e a leva até seu braço, até a pele escondida debaixo das pulseiras e das tatuagens. Ele não observa minha reação ao sentir as cicatrizes dali e fico um pouco grata por isso, porque o choque inicial me perturba. Penso na dor que o levou a fazer aquilo, nas coisas horríveis que deviam estar rondando seus pensamentos para escolher desaparecer. Meu coração se aperta e se dissolve e eu seguro o seu rosto entre minhas mãos, acariciando sua pele, o desenho de suas feições, abraçando o seu pescoço para trazê-lo até mim.

Cruzo minhas pernas ao redor do seu quadril, desesperada para tê-lo em meu abraço. Gregório responde com igual força, apertando as mãos em minhas costas, escondendo o rosto em minha pele, respirando profundamente.

– Eu procurei ajuda, mas nada deu certo. Eu tentei fingir que estava tudo bem, mas nunca esteve. Foi a Mila que me ajudou. Ela me tirou desse lugar, me deu uma casa nova. Uma família nova. Minha mãe só tentou consertar as coisas muito tempo depois, quando eu já estava bem. Ela me contou sobre esse tal de João e como ele estava sendo bom pra ela. Ela nem sequer se importou comigo antes disso, nem olhou pra trás pra ver se eu ainda estava inteiro quando começou a arrumar a própria vida.

– Gregório. Eu tenho certeza de que ela olhou. Ela parece tão disposta agora, tão arrependida. Talvez, se você tentasse...

– Lílian, não. – ele apoia a testa sobre a minha, os cílios longos tocando a sua pele. Gregório está quebrado, dividindo seus pedaços comigo. – Eu tenho medo de amar alguém e perder essa pessoa. Eu tenho medo da dor. Eu tenho tanto medo de ficar sozinho de novo.

– Eu te amo.

– Lílian.

– Quer que eu sussurre? – busco o seu olhar, mas não o encontro. – Em voz alta ou em segredo, Gregório, eu te amo. E você não vai me perder.

– Por favor.

– Ei. – beijo seus lábios, leve e rapidamente. – É meu segredo pra você. E o meu coração. – seguro o seu rosto com firmeza, querendo que ele acredite. Espero que ele acredite. – Eu amo você.


Aquele com o acidente

 

AGORA


Quando o celular começa a tocar às onze e quinze da noite, meu coração dispara. Sento na cama, percebendo que adormeci enquanto estudava Jorge Alencar, e me empertigo enquanto alcanço o aparelho. O visor indica que é a Mônica quem está me ligando, e aí sinto que vou explodir.

– Alô? – Por favor, esteja ligando porque viu um filme engraçado e precisava dividir comigo. Por favor, esteja ligando porque um dos trigêmeos aprendeu a tricotar e você quer dividir isso comigo. Por favor, esteja ligando porque está com saudade de me ter em casa durante as férias.

– Lílian. – Ela soluça o meu nome e então outra pessoa assume o telefonema, e todo o meu sistema nervoso congela em medo e em agonia e todos os piores pensamentos do mundo cobrem a minha consciência. Um zumbido toma conta da minha audição e eu preciso apoiar a cabeça numa das mãos para espantar a tontura.

– Lílian? – é o Téo. Ele já disse meu nome três vezes, mas não soa apressado. Acho que entende o que está acontecendo aqui, ainda que eu não queira saber o que está acontecendo do outro lado da linha. – Tudo bem?

– O que houve?

– Fica calma, está tudo bem. Você está calma? Respira fundo, lembra que está tudo bem. Papai sofreu um acidente. – minhas pernas e meus braços e meu corpo todo perde o sustento. Se eu não estivesse sentada, teria caído. – Lílian? Tá respirando?

– Eu tô respirando. – replico. Téo tem esse tom autoritário às vezes, do tipo que te deixa irritada com perguntas simples. – O que aconteceu? – Eu quero chorar, mas o choque não deixa. Eu quero correr para casa, mas não posso. Eu quero meus pais, mas eles estão longe.

– Ele estava indo pra um daqueles festivais de música. A pista estava escorregadia e o trailer capotou. Eu vou te passar o cenário geral amanhã porque não quero que se preocupe. O resumo é que o papai teve alguns ferimentos leves e quebrou alguns ossos. Mas ele está bem. – Téo repete com convicção, e eu sinto que ele quer garantir isso para si mesmo também. – Ouviu, maninha? Ele está bem.

– Eu vou... Eu vou pegar um ônibus. Deve ter algum indo pra Lagoa Feliz, ou pelo menos passando pela estrada. Eu vou... Lá na rodoviária, agora.

– Lílian, fica sentada. – Téo e sua voz autoritária me fazem obedecer. – Olha, o papai tá em cirurgia agora, vai demorar algumas horas para ele poder receber visita. Não adianta nada você pegar estrada à noite, especialmente se a previsão do tempo que eu vi estiver correta. A mamãe tá lá no hospital com ele e eu vou daqui a pouco, só fiquei com a Mônica e com os trigêmeos até a Fernanda chegar e me substituir. – Téo é pragmático. Ele tem um plano para tudo, faz planos até para bolar um plano. Nesse momento, em pânico e em choque e sem saber se estou dentro de um sonho, eu escuto sua voz e aceito tudo o que ele diz. – Por favor, me promete que vai esperar amanhecer. Pega o primeiro ônibus, mas espera amanhecer. A Mô te manda qualquer novidade por mensagem, e eu também. Mas preciso que você prometa que vai ficar aí em casa até amanhã. – Quero gritar que aqui não é a minha casa. Que esse apartamento vazio, sem a Samira, por causa do retiro familiar, não é meu lar. As paredes desse quarto, a cama, minhas coisas, tudo parece errado e assustador agora que eu me vejo sozinha, pensando e desejando voltar para casa.

– Tudo bem, Téo. Eu vou esperar amanhecer.

Ele agradece e se despede avisando que vai fazer chocolate quente com a tia Rosa para que os trigêmeos consigam dormir, e quem assume o telefone é a Mônica. Ela ainda está chorosa, sua voz parece a de quando ela caía ou ficava assustada, das vezes em que ela me procurava porque queria um abraço e a minha proteção. Eu deveria estar lá agora.

– Ele vai ficar bem. – é a primeira coisa que eu digo. Assim como o Téo, tentando me tranquilizar, falo isso porque preciso que a Mônica fique bem. – Ouviu? O papai é inquebrável.

– É. – ela soluça e ri. – Ele vai brincar com isso quando sair da cirurgia.

– Com certeza! Do mesmo jeito que ficou enchendo o meu saco quando eu machuquei meu pé. – sorrio e por um instante tudo fica bem, mas então olho em volta e estou sozinha de novo. – Mônica, amanhã eu estou aí, ok?

– Ok. – ela parece tão amedrontada do outro lado da linha. Eu deveria estar lá ao seu lado, ao lado de todo mundo.

– Tem alguém aí com você? – Ela sabe sobre quem eu estou perguntando.

– O Enzo disse que estava chegando. Ele vai passar a noite aqui com a gente. – suspiro aliviada. Quero que ela e todo mundo em casa tenham toda companhia do mundo essa noite; tudo para trazer conforto. – Lílian? Não fica sozinha. – ela sabe que a Samira está fora, e sabe que eu tenho passado a maior parte do tempo afundada nos livros. – Vai até ele. O Gregório te faz bem. Amanhã a gente se vê.

– Boa noite, Mônica.

Fico no escuro depois que a tela do celular se apaga. Fico assim por um tempo indeterminado, ouvindo o barulho da chuva lá fora e o silêncio do apartamento. Penso em ligar para a Samira, mas sei que ela já está dormindo há muito tempo agora. Apolo também. Penso em voltar a dormir e esperar pelo amanhecer para voltar pra casa, mas deitar faz minha cabeça toda girar.

Tento focar no que o Téo disse, em respirar e ficar calma, tento pensar que o papai está bem e que não foi nada demais, mas ele está em cirurgia, ele se machucou a ponto de precisar de cirurgia e eu não posso ir até lá agora. Minha família toda está longe e minha casa está longe e eu me levanto e me troco porque não posso continuar aqui.

O guarda-chuva não segura o toró que cai sobre minha cabeça e meus pés estão encharcados quando chego na metade do quarteirão. Eu tirei a tala e parei de usar faixas no pé na última semana de Agosto, por sorte; andar nesse temporal com muleta não ia dar certo.

Uns poucos carros passam por aqui, e eu estou tremendo, talvez de frio ou talvez de medo, quando o celular completa a ligação e a chamada começa. Leva cinco toques para ele me atender, e me sinto tão mal por despejar isso sobre o Gregório, tão mal por procurá-lo agora que ele está tão bem, agora que decidimos que vamos com calma, que entendemos que precisamos de espaço. Desde as férias e o começo do semestre, eu e Gregório mantivemos uma zona neutra no que quer que haja entre a gente, e estou prestes a estourar isso.

Quando ouço a voz dele, desmorono.

– Lílian?

– Você tá em casa?

– O que aconteceu?

– Posso... Posso ir aí?

– Claro, Lílian, meu Deus. Onde você tá? O que aconteceu?

Enquanto caminho em direção ao seu bairro, conto da ligação, do acidente, conto da Mônica e meu choro se torna uma torneira sem controle, e eu me sinto patética por estar soluçando e perdendo o fôlego no meio da rua, com uns poucos pedestres passando por mim e me encarando como se eu fosse a louca de Rouxinol. Gregório fala comigo, me mantém na linha, mas ouço o barulho de uma porta se fechando. Quando chego à esquina da sua casa, ainda no telefone, eu o vejo saindo do quintal sem guarda-chuva nenhum, completamente encharcado, no rosto um olhar de preocupação e então alívio quando me vê.

Abaixo o guarda-chuva, mas esqueço de desligar o celular enquanto corro em sua direção. Ele me recebe em um abraço, apertando o braço livre ao meu redor, me segurando e me consolando e me tocando com o seu silêncio acalentador.

Debaixo da chuva nessa noite estranha e sinistra, Gregório é meu lar.

– Acho que eu posso desligar agora. – ele diz em seu celular, e eu meio rio meio soluço ao ouvi-lo no meu. Desligamos os aparelhos, e eu ergo o guarda-chuva sobre nossas cabeças, independente de já estarmos encharcados. Seus olhos verdejantes perscrutam meu rosto, seu polegar escorrega por minhas bochechas, sua compreensão aquiesce meu coração. – Quer entrar?

Ele abraça meus ombros enquanto me guia pelo quintal. Somos recebidos por latidos altos quando cruzo a porta de entrada, e sorrio com familiaridade ao ver os muitos moradores caninos daquela casa. Panqueca, Velma e os filhotes que definitivamente não são mais filhotes vêm até mim, mas Gregório os impede de me derrubar. A presença deles é reconfortante; sei disso porque o ar se torna menos denso, meu coração fica mais leve. É um momento, mas é o bastante. Recebo a Velma em um abraço e deixo que os outros façam palhaçadas, e não olho para o Gregório, mas sinto que ele me observa e que o seu sorriso me toca.

Quando os cães se afastam, já menos curiosos, Gregório cobre meus ombros com uma toalha.

– Melhor? – ele pergunta.

Aceno, respirando profundamente como Téo havia me dito para fazer. Com calma. Está tudo bem, vai ficar tudo bem.

– Desculpe ter vindo assim. – evito o seu olhar. – Eu não queria ficar sozinha.

– Não precisa se desculpar. Eu estou aqui. – ele segura meu rosto com as duas mãos. – Vai ficar tudo bem. Amanhã você vai ver seu pai, e ele vai estar ótimo.

Gregório aperta meus ombros e beija minha testa e se afasta. Nós vamos até a cozinha, onde ele coloca água para ferver e começa a preparar um dos seus chás milagrosos. Sento e imediatamente sou rodeada por seus amigos caninos, e fico sorrindo, grata pela distração que é brincar com eles, até que o Gregório diz:

– Pode tomar um banho se quiser. Você sabe onde eu guardo as camisetas. – Ele sorri por cima do ombro e um calafrio gostoso e familiar me lembra das vezes em que dormi aqui, de quando a casa dele foi a minha também. Concordo com a sugestão e me dirijo sozinha até o andar de cima.

O quarto dele está arrumado como durante minhas últimas visitas, com menos coisas do que me lembro. Sorrio ao avistar seu violão e sua gaita, três caixas de comprimidos com prescrições específicas e não me demoro muito mais pegando uma camiseta para mim. Ao me virar, contemplo o mapa em sua parede e um sentimento alegre enche meu peito ao ver que Gregório voltou a trabalhar nele com foco total. Só falta a Antártida agora, porque o resto está preenchido.

Tomo um banho quente, enrolo o cabelo na toalha e visto a camiseta que peguei. De mangas compridas, ela é grande e cobre até a metade das minhas coxas. O resto das minhas roupas está molhado, então não tenho muito que fazer a respeito de meias e calças. Junto tudo em uma trouxa e penduro no cabide de toalhas. Quando saio do banheiro, a luz do quarto está acesa; Gregório trocou de roupa e está com o pijama. Sentado na beira da cama, ele ergue o olhar quando eu entro, agora secando o cabelo, e sorri um sorriso que faz todo o meu medo desaparecer.

– Você aumentou o mapa. – Comento, fechando a porta atrás de mim. Gregório contempla a parede e ergue os ombros.

– Eu estava demorando muito pra fazer isso.

– Ficou ótimo. – Sento ao seu lado, respirando profundamente. Só mais algumas horas e vai amanhecer. Só mais algumas horas e eu vou voltar para casa.

– O pessoal do asilo está ansioso pela peça. – Gregório diz, atraindo minha atenção. Samira organizou a primeira apresentação teatral com a ajuda dos moradores do asilo, e a professora de Interpretação deu sinal verde para uma encenação quase oficial lá no anfiteatro da faculdade. Quando voltar do retiro familiar, Samira já me deixou avisada de que vamos ter muito trabalho a fazer.

Estou ansiosa para isso, mas estou mais ansiosa para ver o meu pai. Estou mais nervosa para voltar pra casa, para abraçar a Mônica, para ficar ao lado da mamãe.

– Lílian. – Gregório segura minhas mãos e beija meus dedos, e percebo que estou chorando. – Quer conversar? – Ele cruza as pernas e me puxa para perto.

– Eu quero a minha família. Eu não sou nenhuma garota maravilha, não consigo ser forte sozinha.

– Você nunca esteve sozinha, Lírio. – Gregório beija minhas mãos de novo, e me lembro de um cenário onde ele estava desmoronando, e eu tentei ajudá-lo a ficar bem. – Você tem uma casa aqui, e tem outra lá. Merdas acontecem, Lílian. Aqui ou lá ou em qualquer outro lugar. Você nunca vai estar sozinha, e não vai perder sua força só porque quer alguém do seu lado. – Gregório se aproxima ainda mais, seus olhos intensos e compreensivos sobre os meus. – Você me ajudou a entender que ter alguém nem sempre significa estar com alguém. Eu tenho você o tempo todo. Tenho a Mila, tenho a minha mãe e a minha irmãzinha. Você tem a sua família, tem os seus amigos e sempre vai ter a mim. Você pode não estar ao lado deles agora, Lílian, mas todo mundo lá sabe que você está.

Lembro-me da voz do Téo. Da Mônica. Lembro-me da risada da Samira e do Apolo. Lembro-me da mamãe, dos trigêmeos e da tia Rosa. Lembro-me do papai, do seu sorriso, da sua presença. Lembro que está tudo bem, e que tudo vai ficar bem.

– Aqui. – Gregório pega uma caneca do criado-mudo e me estende. – Meu chá favorito.

– Eu conheço o segredo deste?

– Ainda não. Mas eu posso contar se quiser.

O sono começa a vir antes que eu termine o chá de camomila. Gregório arruma as cobertas e arranja mais um travesseiro, e se oferece para dormir no sofá, no que eu lhe dobro uma careta. Ele ri suavemente e se deita ao meu lado, e o conforto e a familiaridade e todas as sensações agradáveis que vêm com a sua presença me fazem virar o corpo em sua direção.

– Obrigada por ser o meu lar. – Sussurro. Ele também se vira para mim, e eu adoro como o colchão é pequeno, de modo que precisamos nos apertar para que eu não bata na parede e ele não caia no chão. Não existe espaço para afastamento aqui. Gregório sorri e beija minha testa, e eu amo cada segundo daquele gesto, porque é repentino e espontâneo e gentil.

– Obrigado por ter me ajudado a encontrar meu lar. – Ele roça a ponta do nariz na minha, e meu sorriso imita o seu. Por alguns segundos, através do nosso silêncio, tudo fica bem.


?


Lagoa Feliz parece cinzenta debaixo do amanhecer, então eu não me apresso. Mamãe e a tia Rosa me enviaram mensagens logo cedo avisando que o papai estava bem, descansando, e que mais tarde poderia receber visitas. Deu tudo certo na cirurgia do braço quebrado e vão liberá-lo pra voltar pra casa daqui uns dias. Mônica está em casa agora, e eu vou para lá para avisar que cheguei e que estou aqui.

Gregório segura a minha mão quando descemos do ônibus, e me entrega um olhar amigável.

– Cidade bonitinha.

– É um fim do mundo agradável. – Ele sorri.

– Você conheceu minha casa. Aquilo lá é o fim do mundo.

– Não posso rebater esse argumento.

Aprecio tudo de familiar no trajeto para casa, agraciada pelo sol que começa a desbravar a neblina fria, ansiosa ao ver as cercas da entrada e o jardim e o balanço na árvore do nosso quintal. A rua está vazia, mas a sensação é tão gostosa, tão calmante, que eu sorrio.

Acho a chave no terceiro vaso da varanda e entro no hall quentinho. Gregório me segue um pouco desajeitado, escondendo as mãos nos bolsos da jaqueta enquanto conhece meu lar. Ouço passos vindos da sala e então três pirralhos extremamente sonolentos entram no meu campo de visão.

– Mônica, a Lílian chegou! – Tampa berra, correndo em minha direção. Eu dou um passo para trás quando ele se joga no meu colo, seguido da Susana e do Henrique. Eles não estão tão desesperados ou chorosos quanto eu imaginei que estariam, o que significa que o acidente do papai realmente não foi grave. Suspiro aliviada ao receber seus abraços, grata pela sensação.

Mônica vem da sala também. Está vestida com seu pijama de ursinhos e a pantufa do Garibaldo, o cabelo parece uma juba descontrolada, e seu rosto fica em cinquenta tons de vermelho assim que vê o Gregório parado ao meu lado. Eu corro até ela, erguendo-a em um abraço apertado.

– Dentuça!

Ela resmunga alguma coisa debaixo do meu aperto, mas só a solto depois de matar a saudade. Mônica não reclama da força implicada no abraço, até porque seu sorriso é saudoso.

– Que bom que você voltou, Lílian.

– O Enzo não tá por aqui? – Olho em volta.

– Ele saiu agora cedinho por causa do treino, mas vai passar no hospital quando acabar.

– Você é o Gregório? – Tampa pergunta, e eu me viro para encontrar os trigêmeos rodeando o meu garoto.

– Acho que sim.

– E você gosta da nossa irmã?

– Tipo, muito?

– A Lílian é muito legal. Só pode ficar com ela se gostar muito dela. – Tampa continua. Gregório me ergue um olhar de socorro e eu prendo o riso.

– Posso garantir que gosto muito dela. – O sorriso dele é tão sincero que me desconcerta. Mônica me dá um beliscão no braço quando Henrique prossegue o interrogatório.

– Ele é lindo, Lílian! – Ela sibila.

– Eu sei.

– Não. Ele é tipo... Cara, muito lindo. Eu precisava da ajuda do Rodolfo aqui pra me ajudar a descrever o quanto ele é bonito.

– Mônica. – seguro seus ombros. – Eu sei bem disso.

Ela demora a desviar o olhar do Gregório, e só o faz porque mais uma pessoa vem até o hall de entrada. Fernanda deve estar aqui de babá, e parece exausta. Considerando que minha tia, que é a única que “consegue” colocar ordem na casa, ficou no hospital com a mamãe, só imagino o caos criado pelos trigêmeos durante a noite de ontem.

Fernanda e Téo se conheceram no Ensino Médio e estão juntos até hoje. Ela é um prodígio, mulher de ouro, cheia de conquistas e com um futuro brilhante pela frente. Ela é bastante contida, e por isso combina tanto com meu irmão; os dois se entendem de um jeito único, com olhares e sorrisos discretos.

– Lílian! – a gente não se vê faz uns meses, então aceito o seu abraço caloroso. – Que bom te ver por aqui!

Fernanda é alta e esguia e tem o tipo de postura que te deixa impressionada ao observá-la. Ela poderia muito bem ter seguido a carreira de modelo, mas preferiu a de Direito. Mamãe me disse que ela assumiu um cargo importante no escritório do pai, o que significa que a mulher vai crescer muito na vida.

Seus cabelos louros estão presos em um coque frouxo, ela está sem maquiagem e parece pálida, com olheiras evidentes, mas seu sorriso é largo e genuíno.

– Como está o papai?

– Bem e estável. – Fernanda diz.

– Já acordou e já quer ir embora do hospital. – Mônica completa. – Você conhece a figura. Mamãe foi pra lá agora pouco pra ficar de acompanhante.

– As visitas começam às nove horas. Vou comprar pão para o café da manhã, e maracujá para os seus irmãos. – Fernanda dobra um olhar horrorizado na direção dos trigêmeos, no que Mônica prende o riso. – Já volto, gente.

– Ei, pestes. – chamo a atenção dos trigêmeos. – Deixem o Gregório em paz, vão assistir televisão.

Não precisam de um incentivo maior para sair dali, correndo e livrando ele do resto das perguntas intermináveis. Mônica tenta disfarçar o olhar admirado na direção do Gregório, mas falha terrivelmente. Ela sempre teve esse problema com a discrição, apesar de não saber disso; Gregório é tímido demais para notar a observação intensa da minha irmã caçula, e por um minuto essa cena é tão incrível e perfeita que eu sorrio bobamente.

– Tudo bem, Lílian? – Gregório me pergunta.

– Vai ficar. – Garanto, recebendo um sorriso de volta.


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– Nunca pensei que viveria para te ver acordado tão cedo. – Surpreendo Téo no saguão do hospital, dando um cutucão em seu ombro para ganhar atenção. Ele é vinte centímetros mais alto do que eu, e sempre parece um pouco mais maduro e cansado a cada vez que o vejo – culpa da residência, segundo o próprio -, mas o sorriso que me entrega continua o mesmo bobão e palhaço de sempre.

– Sua falta de fé é perturbadora, maninha.

Ele me ergue em seu abraço de urso e eu relaxo com a familiaridade do gesto. Téo era um terror na minha vida, mas também uma peça extremamente essencial dela. Com sua pose de bom moço, a expressão sempre atenta e os olhos de ursinho, Téo é meu herói.

A barba rala cobre seu queixo, e o sorriso aberto continua iluminando suas feições quando ele se afasta.

– Me abraçando sem tentar arrancar um dente ou quebrar o meu nariz, quem diria. – ele retruca de novo, recebendo outro cutucão. Téo espia por cima do meu ombro, encontrando Gregório a uma distância segura. Ele insistiu em me acompanhar até o hospital e parece extremamente desconexo agora que está aqui. Quero voltar para trás e segurar sua mão, mas Téo me lança um de seus olhares questionadores. – Quem é?

– Meu... Hã... Não sei?

– O seu Não Sei tem um nome?

– Quem é você agora, o papai?

Téo arqueia as sobrancelhas.

– Gregório, esse é o meu irmão mais velho, Téo. – gesticulo na direção do ruivo curioso. Gregório vem até a gente com as mãos no bolso do casaco, mas cumprimenta meu irmão com um aperto firme e meio tímido. – Téo, esse é o...

– Não Sei. – o sorriso dele é cômico, e o olhar confuso do Gregório é ainda mais. – Prazer em te conhecer, Gregório. – Téo se vira quando a tia Rosa vem do corredor, acompanhada da Mônica. Duas pessoas podem entrar por vez no quarto compartilhado, e Téo e eu somos os próximos.

– Eu sou Não Sei? – Gregório sussurra próximo do meu ombro. Eu me viro com um sorriso aberto, encontrando qualquer tipo de paz em sua expressão. Antes de responder, no entanto, sou chamada pela enfermeira, e acompanho Téo em direção ao elevador. Gregório pisca um olho quando o espio, e realmente está tudo bem.

O caminho até o quarto é marcado pelos nossos passos e pelos barulhos de conversas em outros cômodos, graças ao horário de visitas. Papai está compartilhando o quarto com um velhinho que quebrou o quadril e outro que também se acidentou. Os dois estão dormindo quando entramos, mas papai tem uma expressão azeda; se o conheço bem, e conheço muito bem, ele não quer estar ali.

– Garota maravilha! – ele me saúda em voz baixa, e eu corro para o seu abraço, me contendo antes. Papai está com a testa enfaixada, o braço imobilizado e tem uma cinta prendendo-o à cama do hospital. – Eu tentei fugir, mas me pegaram. – Explica ao notar minha observação. – Madalena saiu agora mesmo pra conversar com a enfermeira, acho que vai sugerir me amarrar na cama. Não permita essa atrocidade!

– O senhor me deu um susto. – Puxo a cadeira e seguro sua mão livre, olhando Téo por cima do ombro.

– Em todos nós. – meu irmão concorda. – Mas o teimoso aí não quer ficar deitado e seguir as prescrições do médico.

– Você é o cara certinho dessa família, Teodoro. Eu te criei para seguir as regras que eu nunca seguirei. – papai revira os olhos dramaticamente, mas me entrega um sorriso divertido. – De qualquer maneira, pelo menos a comida daqui é boa.

– Continue usando a comida como incentivo para ficar aqui até ser dispensado. – Téo resmunga, mas sei que tem um tom de extrema preocupação na sua voz. Ele pode se esconder atrás de palavras rígidas e olhares concisos, mas é tão manteiga derretida quanto eu.

Papai aperta minha mão e atrai o meu olhar até seu rosto.

– Tudo bem, Lílian?

Estremeço um sorriso.

– Muita gente tem me perguntado isso nas últimas horas. – sussurro. – E quem sofreu o acidente foi você, pai. – Ele estreita os olhos, me analisando daquele jeito sabichão.

– Só queria ter certeza.

– Eu te garanto que está tudo bem. – Retribuo o aperto e o olhar desconfiado, recebendo seu riso em resposta.

A enfermeira entra no quarto em seguida, anunciando que precisa medir a pressão dele e mais alguns termos técnicos de checagem rápida, e então toda uma novela se desenrola, com o meu pai protagonizando as melhores cenas de drama mexicano. Ele só quer sair dali, seus filhos não dão liberdade, a ex-esposa fica trazendo sermões que ele não precisa ouvir, a vida é injusta, seu traseiro está coçando e tantas outras coisas mais.

Ficamos ali mais uns vinte minutos até que mamãe aparece na porta com um dos trigêmeos – ela vai fazer um revezamento relâmpago agora. Téo abraça meus ombros quando saímos do quarto e eu estranho a reação.

– Você vai puxar meu cabelo?

– Não.

– Me empurrar pela escada?

– Credo, Lílian. Não tenho mais dez anos.

Arqueio as sobrancelhas em respostas.

– Só quero abraçar minha irmãzinha.

Abraço sua cintura de volta, me apoiando melhor.

– Você sente falta de casa?

– O tempo todo. – respondo em um sussurro. – Sempre tenho medo de perguntar se é uma coisa só minha.

– Definitivamente não. Eu tenho sentido muita falta de casa nos últimos meses. Acho que é normal, né? – É bom ouvir isso do Téo; o cara independente, menino de ouro, aquele que sempre teve um futuro brilhante e extremamente bem planejado à sua frente, o tipo de futuro que ele nunca conseguiria trilhar ficando em Lagoa Feliz. O fato de ele também ter esses rompantes me diz que está tudo bem; que vai ficar tudo bem.


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– Você pode ficar aqui mais uns dias. – Gregório diz de repente. É madrugada, estamos deitados na minha cama, no meu quarto, em meio ao silêncio e à penumbra; com a porta aberta, porque foi a exigência da minha mãe.

Seus braços estão enroscados em minha cintura, seu rosto apoiado logo atrás do meu, de modo que sua respiração faz cócegas em meu pescoço. Ele entrelaçou suas pernas às minhas agora pouco e calafrios gostosos correm por minha espinha quando penso em como seu corpo se encaixa ao meu.

– Com a sua família.

– Eu posso, mas também não posso. Tem as provas. – Resmungo.

– Quer que eu roube os gabaritos pra você?

– Charmoso e delinquente? Quem diria. – Viro o rosto para espiá-lo. Gregório está com os olhos fechados, mas um sorriso se abre em seus lábios.

– Eu conheço um cara que conhece um cara.

Meu riso sacode nossos corpos, e então o silêncio volta a dominar o quarto. Aprecio o som da respiração do Gregório, a doçura do seu toque, a presença familiar – intensamente familiar, uma vez que esse é o meu quarto. O lugar onde eu cresci. O fato de ter o amor da minha vida deitado aqui comigo torna tudo mais gostoso; aquele tipo de momento que você quer congelar no tempo para nunca perder.

– Meus irmãos te assustaram? – Não resisto a perguntar.

Depois que voltamos do hospital, os trigêmeos não deixaram o Gregório em paz, independente das broncas. Mônica passou vários minutos babando nele, e depois se indignando comigo sobre o fato de eu nunca ter mencionado o quanto ele era bonito; quando o Enzo chegou, no entanto, toda a atenção da Mônica foi só dele. Téo e Fernanda foram os mais civilizados durante o jantar, e a mamãe não parou o interrogatório gentil, porém curioso a respeito de tudo do Gregório; isso até a tia Rosa chegar. Aí quem assumiu o interrogatório admirado foi ela. Porque, sim, minha tia achou o Gregório absurdamente lindo, quase um príncipe dos romances que ela adora ler.

– Eles não me fizeram assistir nenhuma maratona de filmes de terror, então não, não me assustaram. – viro-me na sua direção, estreitando os olhos em minha melhor careta indignada. Gregório está escondendo o riso. – Sua família é incrível, Lírio.

– Você ganhou várias admiradoras nela, aliás. – Crispo um sorrisinho divertido. Curiosidade e timidez cobrem a expressão dele.

– Ganhei?

– Ah é. Minha irmã e minha tia, principalmente. Minha mãe achou você “um doce de rapaz. E que olhar mais encantador! Lílian, sua descabeçada, você deveria trazê-lo aqui mais vezes!”. – Gregório esconde o rosto em meu pescoço, e preciso segurar a gargalhada que quase escapa de mim. Está muito quieto e meu riso escandaloso vai acordar todo mundo na casa.

– Por que você me apresentou como Não Sei para o seu irmão? – A pergunta dele é contida. Gregório se afasta e me dirige um olhar questionador, mas não me sinto pressionada.

– Por que... Bem, eu não sei? – sorrio sem graça. – Você é o meu Gregório, e eu não sei bem o que significa isso depois de tudo. Não sei como explicar.

Eu me odeio por ter falado aquilo, por ter exposto um pensamento que deveria ficar guardado quando estamos indo com calma. Nesse momento, Gregório não parece se importar. Ele beija meu rosto, roçando a ponta do nariz na minha.

– Gosto disso.

– De ser um Não Sei?

– Não. De ser o seu Gregório.


Aquele com a crise

 

ANTES


Rouxinol está toda enfeitada pela decoração de aniversário, tomada por bandeirolas com a bandeira da cidade. O prédio Vagalume virou, de fato, um vagalume, todo contornado por fileiras de luzes. Parece Natal, exceto pelo fato de estarmos no meio do ano.

Samira está sentada nos meus ombros e eu recebo a ajuda do Apolo para manter o equilíbrio. Ela cismou em colocar luzes na árvore do jardim do prédio dela, o que significa que eu vou ter vários músculos distendidos enquanto ela realiza a façanha.

– Só mais um pouco pra direita, Lílian! – A maluca exalta, e eu tropeço e me ajeito. Quando ela enfim consegue encaixar as fileiras de luzinhas, já não sinto mais meus ombros. Samira recebe ajuda do Apolo para descer e juntos nós três olhamos para cima; um pedaço ficou sem luz.

– Bom trabalho, Sam.

– Foi sarcasmo que eu ouvi na sua voz?

– Eu não seria sarcástica com algo tão óbvio. – brinco, empurrando seu corpo para o lado. – Deixa assim. Dá um toque especial.

Ela crispa os lábios em uma careta.

– Tem personalidade, é diferente das árvores da praça. – Apolo continua, sabendo que se Samira cismar com aquilo, vamos voltar à estaca zero e eu jamais recuperarei minha postura novamente.

Ela se dá por vencida, para a nossa alegria, e então volta para o apartamento para buscar os arranjos de flores. Os moradores do prédio dela fizeram uma votação e Samira foi bastante convincente a ponto de se tornar a decoradora oficial da árvore do jardim. Eu e Apolo somos os ajudantes.

– E se a Samira ficasse trancada no apartamento dela e não pudesse nos obrigar a enfeitar essa árvore? – Apolo brinca, empurrando meu braço.

– E se hoje fosse Natal?

– E se nevasse no Brasil?

– Tecnicamente neva no sul. – Interrompi a brincadeira, deixando-o pensativo e emburrado.

– Era pra você continuar.

Mostro a língua e puxo meu celular do bolso; nenhuma mensagem de casa.

Eu não deveria ficar surpresa, já que essa época do ano costuma ser corrida para a mamãe e para a tia Rosa, até mesmo para Mônica e os trigêmeos na escola, mas ainda sinto aquela pontada familiar.

– O telefone de casa estava tocando quando eu cheguei lá em cima. – Samira anuncia na porta do prédio. Apolo corre para ajudá-la com as caixas empilhadas em seus braços. – Era a dona do pub, ela queria ter certeza de que está tudo certo para a festa de despedida. – Samira foi chamada para organizar a despedida de um garoto do terceiro ano de Artes Cênicas. Aparentemente, ele vai viajar pelo mundo e se redescobrir, já que não está conseguindo se encontrar em Rouxinol. Sam riu quando me contou isso, mas não achei engraçado; alguma coisa no discurso dele me trouxe familiaridade. Uma sensação que eu entendo, mesmo não querendo entender.

– O Gregório vai mesmo cantar lá? – Samira estala dois dedos sobre o meu nariz, chamando minha atenção e provocando uma dor irritante.

– Ele disse que sim. – Gregório foi meio vago a respeito da decisão, mas ele tinha dito diretamente pra Sam que cantaria, então imagino que mantenha a palavra. Desde a visita à pousada da sua mãe, o que faz mais de uma semana, ele tem andado meio distante, quieto e sozinho como das primeiras vezes que o encontrei. E nada disso me faz sentir bem; pensar que aquele reencontro fez mal para o Gregório também me faz sentir mal. Ele pareceu querer se acertar com a mãe, mas havia aquele ressentimento agudo entre eles, quase uma teimosia. Ele não tomou uma iniciativa, e Vanessa se segurou muito. Nenhum dos dois deu um primeiro passo.

Fico com isso em mente pelo resto do dia, o que acaba me atrasando em duas tarefas na turma de Cálculo II. Não que eu já não esteja atrasada com tudo. Essas aulas se tornam um tormento cada vez maior a cada dia que passa; não aquele tipo de tormento agradável, desafios que você aceita com prazer.

Tem um tilintar insistente dentro de mim dizendo que eu estou tomando o caminho errado. Que Engenharia era algo do Téo, não meu. Que essas horas perdidas em aulas que em nada me agradam não vão servir para o futuro. Não para um futuro que eu quero, pelo menos.

É tanta coisa acontecendo que eu já nem vejo a hora passar. Gregório me manda uma mensagem, dizendo que tem pizza sobrando em casa e a Mila não está lá – o que é um convite extremamente tentador. Emburrada pelos trabalhos que preciso fazer para compensar minhas notas, recolho os livros essenciais na mochila e saio da república para o clima abafado do lado de fora. A caminhada até a casa do Gregório me faz suar e implorar por ar condicionado e sorvete logo que ele me recebe na porta.

– Eu tenho cubos de gelo. – Gregório brinca. Velma está dormindo em frente a um dos ventiladores da sala, e ela só me encara e abana o rabo antes de desistir de se mexer. Seus filhotes, no entanto, parecem pouco se importar com o calor. Todos eles. Os grandes e os pequenos. Scooby e Panqueca me derrubam no tapete fofo e os cinco tampinhas ainda não nomeados me enchem de lambidas e arranhões amigáveis. Eles são coisinhas adoráveis, felpudos e precisos demais para o mundo.

Gregório senta no sofá atrás de mim, e algo no seu sorriso contribui para esse momento confortável.

– Eu estava precisando disso.

– De sete filhotes babando em você?

– Engraçadinho. – estreito os olhos ao ouvir sua risada. – De algum relaxamento. Precisava me desligar de tudo. Esse curso vai ser a minha ruína. – Resmungo, querendo soar sarcástica e bem humorada, mas caindo mais para uma velha amargurada.

Gregório fica em silêncio por um tempo; arrasto minha bunda no chão para encará-lo, levando os filhotes no meu colo. Espalho os livros pelo chão, torcendo para que Velma e sua turma resolvam destruí-los, impedindo-me de prosseguir esse martírio. Gregório anuncia que vai preparar uma limonada, e todos os cachorros o seguem, o que me deixa sozinha com as dezenas de páginas a serem memorizadas e a certeza de que estou fazendo alguma coisa errada.

Respiro fundo, puxando Cálculo II para o meu colo. Por um motivo esquisito, as palavras estão embaçadas. Franzo as sobrancelhas em frustração, amassando as páginas enquanto as passo para frente, e só entendo o motivo da vista distorcida quando uma lágrima cai sobre um parágrafo grifado em rosa. Minha lágrima. Porque eu estou chorando e não tinha percebido. Estou chorando tanto a ponto de soluçar, e jogo o livro para longe de mim porque sei que ele, todos eles são o motivo. A Engenharia é o motivo, a faculdade é o motivo, a ideia de seguir um caminho que nem queria é o motivo.

Eu me lembro da última conversa com o Téo, quando ele estava todo exultante por causa da residência, incrivelmente feliz com tudo a respeito do que tinha feito até então. Lembro de ter ficado animada por ele e bastante confusa por mim; por que eu não estava passando por aquilo? Por que o Gregório, a Sam e o Apolo falam tanto sobre os seus cursos com aquela mesma alegria e eu estou chorando por um livro de Cálculo?

Não é frustração. Não é medo. É decepção. Porque eu não estou aqui pelos mesmos motivos que eles, não é o caminho que a Lílian de antes queria ter seguido. Eu estou aqui porque achei que poderia continuar sendo a garota maravilha, que seguir os passos do Téo me garantiria isso.

Ouço passos vindos da cozinha. Eles param um instante, então a presença do Gregório fica forte demais para ignorar.

Ele me observa com preocupação e um pouco de entendimento e talvez por isso eu desate a chorar ainda mais. Nem sei o que pensar. Em um instante estou abraçando a mim mesma e no outro Gregório me abraça, sentando-se ao meu lado, rodeando o meu corpo com o seu. Apoio o rosto em seu pescoço e ele o queixo no topo da minha cabeça e ficamos assim pelo que parece um tempo infinito. Talvez seja o meu estoque de lágrimas que dure muito, ou a certeza de que eu tomei uma decisão muito errada e perdi todo esse tempo com ela.

Gregório começa a cantarolar alguma coisa, mas meu turbilhão de emoções impede que eu entenda. Com os soluços acabando e a cachoeira de lágrimas se esvaindo, me afasto ao entender a canção.

– Você está cantando Hakuna Matata pra mim? – Minha voz sai fanha e rouca e um pouco bem humorada.

Ele faz uma careta inocente, apertando os lábios em um bico.

– Costuma ajudar.

Não consigo impedir a risada que escapa de mim, e ela sai desconexa a tudo o que estou sentindo. Esfrego o rosto para secar as lágrimas e fungo por causa do nariz entupido. Odeio chorar. Tem toda essa perda de controle envolvida, e a sensação de que o choro nunca vai parar.

– Quer falar sobre isso, Lírio? – Gregório passa o polegar sobre minha bochecha, a pele áspera e carinhosa e o toque tão acalentador que me fazem reclinar o rosto sobre sua mão.

Não quero falar sobre isso, mas me conheço o suficiente para saber que quanto mais guardar, pior vai ficar.

– Eu não sei o que estou fazendo. Tem semanas que eu já não sei mais o que estou fazendo, para ser sincera. – desvio o olhar para os filhotes brincando sobre o tapete, alheios ao caos que eu sou. – Sabe por que eu escolhi Engenharia? Porque era a segunda opção do Téo. Porque meus pais tinham ficado tão animados com a ideia de ter um engenheiro que mantiveram essa animação sobre mim, me incentivando a seguir esse caminho. Eu não sabia o que queria da vida mesmo, então que mal faria? O Téo já tinha projetado uma opção excelente pra mim, era só eu passar no vestibular. – suspiro. – Bom, eu passei. Todo mundo ficou tão feliz que nem parei pra pensar qual era o motivo da minha felicidade, e acho que foi pelos meus pais. Eu continuaria sendo a garota maravilha.

Gregório não diz nada, e eu agradeço aos céus por isso. O silêncio que se segue é tudo o que eu precisava para acalmar meus nervos, e o toque do meu garoto é o que meu coração queria para parar de bater tão rápido.

– Eu estou perdendo muito tempo, Gregório. – mordo o lábio inferior, com medo do que vem a seguir. – Nem sei o que diabos estou fazendo aqui. Posso voltar pra casa agora? Eles vão me receber? E se eu continuar e falhar? E se eu continuar e passar de ano e me formar e perceber o quanto odeio tudo o que escolhi?

– Você não está perdendo tempo, Lílian. Está vivendo. E viver tem a ver com escolhas erradas e com a sensação de ter tomado caminhos sem volta. Mas sempre tem volta. – ele ergue meu queixo e beija a ponta do meu nariz, trazendo um sorriso ao meu rosto. – A vida é sobre se enganar e voltar para trás ou seguir em frente ou mesmo permanecer onde está e parar de pensar um pouco.

Observo Gregório. Seus olhos verdes tão marcantes, olhos pelos quais me apaixonei. A maneira doce com que ele sorri, sem pretensões, sem grandes promessas, só uma presença e um apoio. Observo seus traços agora tão familiares e a maneira adorável com que ele está perto de mim, tão perto que nossos rostos quase se tocam.

Suas palavras poderiam ser tudo de verdade e de incrível e poderiam abrir novas portas para mim, mas não é o que está me esperando. Não é essa compreensão que eu vou encontrar se realmente desistir de tudo.

– Eu tenho medo de voltar e falar com eles e deixar de ser quem eles queriam que eu fosse.

– Lílian, eles são seus pais. Sua família.

Um riso amargo aflora de mim antes que eu o impeça.

– Não é tão simples.

– Vai ser simples se vocês conversarem.

– Não foi simples pra você. – Ouço minhas palavras e percebo a mancada absurda e desejo voltar no tempo só para calar minha própria boca. Gregório engole em seco e se afasta levemente, desviando o olhar. O mesmo tipo de hesitação e desconforto que encontrei nele quando nos conhecemos.

– É mais fácil para algumas pessoas. – Seu sussurro me desmorona. Antes que pareça errado, eu abraço seus ombros e aperto as mãos em sua nuca, enlaço minhas pernas em sua cintura e a força do abraço faz com que suas costas esbarrem no sofá.

– Desculpe. – sussurro, apertando um beijo em sua têmpora. – Desculpe, desculpe, desculpe, desculpe, desculpe. – continuo repetindo, ansiosa para que ele retribua o abraço, desesperada para que ele não me bloqueie de novo. Suas mãos se entrelaçam em minhas costas e por um instante está tudo bem de novo. – Eu não tinha o direito. – sinto quando ele move a cabeça e assente, mas o fato de não me responder continua a me quebrar. – Você é a última pessoa em quem eu deveria descontar qualquer frustração. – Me afasto e procuro o seu olhar e graças aos céus o encontro. Tem qualquer coisa magoada nas íris dele, o tipo de emoção dolorida que eu não queria rever.

Gregório respira fundo, um gesto resignado, e então me puxa para outro abraço.

– Tudo bem, Lírio.

Esse garoto e seu coração de ouro é o que me fazem voltar a chorar. De repente, tudo nos últimos minutos parece tudo errado e culpa minha e eu sou uma idiota completa.

– A stranger's light comes on slowly.[7] – Gregório canta, seus lábios roçando sobre a pele do meu ombro. – A stranger's heart without a home. You put your hands into your head. And then smiles cover your heart. – suas mãos me guiam para que eu me afaste. Só um pouco, o suficiente para que minha vista embaçada encontre seu olhar. Gregório desliza a ponta dos dedos sob meu queixo, seguindo a linha da mandíbula, enroscando atrás de minha orelha. Quando ele prossegue a canção, seus olhos são meus: – Fade into you... Strange you never knew. Fade into you. I think it's strange you never knew...

Apoio minha testa sobre a sua, respirando profundamente, sentindo a ansiedade se esvair conforme meu foco recai sobre a voz do Gregório.

– O que eu fiz pra merecer você? – Brinco, mas há um fundo de verdade na pergunta. Ele revira os olhos.

– Tropeçou perto de mim em uma festa.

Meu riso começa suave e então se torna uma gargalhada boba, no que o Gregório me acompanha. Ele está sorrindo enquanto beija meu rosto e minhas lágrimas e meu ombro e me abraça tão forte que sinto falta de ar. Mantenho o abraço por mais tempo, dizendo a mim mesma que naquele momento, posso fingir que está tudo bem. Ignorando todas as consequências do que quer que eu decida, das prováveis brigas e dos ressentimentos que estão por vir.

O tempo passa e minha crise também. Finalmente bebemos a limonada, que agora está quente porque o gelo acabou. Eu me distraio com os filhotes enquanto Gregório prepara os potes de ração deles, e depois que os guia para o jardim, ficamos sozinhos na sala de novo. Eu empilhei os livros-horrendos bem longe do alcance da minha vista, só para o caso de ter outro ataque de pânico por causa deles.

Gregório está com o braço sobre meus ombros quando digo:

– Eu quero fazer alguma coisa rebelde.

Ele se afasta, franzindo as sobrancelhas em minha direção.

– Tipo o que, roubar os planos da Estrela da Morte?

– Alguma coisa mais simples. – rio e reviro os olhos. – Eu quero sentir o que é deixar de ser a garota maravilha por um dia.

– Parece perigoso. – o sussurro dele é bem humorado. – Tem alguma coisa em mente? – Ele cruza os braços atrás da cabeça, relaxado enquanto me observa. Quase consigo sentir o sarcasmo em sua expressão. Meus olhos esbarram nas tatuagens cobrindo seu braço e as regras da mamãe se acendem nos meus pensamentos.

– Eu vou fazer uma tatuagem.


?


– Eu não vou fazer uma tatuagem. – Ouço o riso do Gregório atrás de mim. Ele gira as chaves da sua casa nos dedos, migrando o olhar para o expositor de artes na parede do estúdio. Foi aqui que todas as suas tatuagens ganharam vida. A tatuadora é uma velha amiga e encontrou um espaço na agenda para me encaixar. Ela nos recebeu com um largo sorriso no rosto e disse que só precisava de uns vinte minutos para terminar o cliente da vez e então eu seria a próxima.

– Sabe que ninguém vai te obrigar a entrar lá, né? – Ele aponta para a porta da sala fechada e se apoia na parede, cruzando os braços displicentemente.

– Meu pai tem uma tatuagem. Ele tinha um piercing no mamilo. Por que eu não posso fazer alguma coisa assim?

– Quer fazer um piercing no mamilo?

– Ai credo. – me arrepio só de imaginar. Agulhas são o terror da minha vida, a pior coisa que poderia acontecer comigo. Só a ideia de ter uma furando o meu... Ai não! – Mas um piercing na orelha, talvez? Ou no nariz? O que parece mais rebelde pra você?

– Você não tem medo de agulhas?

– Eu tenho, mas quero deixar de ter. Quero fazer alguma coisa radical, sentir as emoções que virão com isso.

– Lílian. – ele segura meus ombros e eu respiro fundo. Talvez hoje seja o meu dia de exaltações. – Sabe o que eu pensei quando fiz minha primeira tatuagem? Não pensei. Só fiz.

– Qual foi a sua primeira?

Gregório segura minha mão e apoia meus dedos sobre seu pulso. O braço marcado pelas cicatrizes, aquele que ele me mostrou na pousada. Prendo a respiração, temendo encontrar receio ou arrependimento em seu olhar, mas tudo que eu vejo é compreensão. E aceitação, daquela que me faz ter certeza de que ele me entregou esse e todos os outros segredos sem nem pensar em voltar atrás.

– E aí, já decidiu? – A tatuadora sai da sala e me entrega aquele sorriso animado de antes. Encaro Gregório, que arqueia as sobrancelhas em expectativa, e sorrio de volta.

– Só mudei de ideia quanto a uma coisa. Quero fazer um piercing.


Aquele com o coração partido

 

ANTES


Eu achei que tinha tudo sob controle. Achei que conseguiria voltar para casa, encarar meus pais, contar para eles como estava me sentindo em relação à faculdade. Estava esperando alguma reação negativa, comentários indignados quanto à minha decisão, mas no fim das contas não consegui nem sequer comentar sobre isso com eles. Nem mesmo com a Mônica; e eu tinha tanto para conversar com ela.

Fingi que tinha uma carona de volta para Rouxinol e acabei enfurnada na rodoviária de Lagoa Feliz por duas horas e meia até que o ônibus para a cidade universitária chegou. Talvez eu tenha chorado o suficiente para que uma velhinha parasse e me perguntasse se eu precisava de alguns lenços de papel – o que aceitei prontamente – e o bastante para que até o motorista do ônibus estendesse um olhar preocupado.

No fim das contas, eu chorei de volta para a universidade também. Graças à frustração, principalmente, porque eu tinha todo um discurso determinado para apresentar aos meus pais, explicando os motivos pelos quais eu trancaria a faculdade, até ajeitar a minha cabeça e entender o que queria de verdade para minha vida. Falaria sobre meus sentimentos, porque a coisa boa sobre eles é que sempre estiveram dispostos a me ouvir, eu é que nunca achei necessário me expor. Meu pai, principalmente, que sempre me estendia um abraço e um sorriso e um comentário engraçadinho nas horas mais complicadas. Nem mesmo ele foi capaz de me ajudar naquele dia, e em parte é minha culpa. Pela covardia, por chegar toda certa e sair de lá toda hesitante. Mas culpa deles também; da mamãe e seu olhar acusador quando viu o piercing no meu nariz, do papai e seu discurso contido. A garota maravilha tinha feito uma coisa errada e foi o importante a ser discutido, nada mais.

Gregório me disse que era só sentar e conversar, que com os meus pais tudo ficaria mais simples. Não foi nada simples, nem fácil ou agradável. Eu nem sequer tentei, e acabou como ironia para o fato de eu ter acusado o Gregório de fugir também.

Depois da tristeza vem a raiva. Quando chego a Rouxinol, o que me move em direção ao prédio da reitoria não é nada além de irritação pelo meu recuo. Quando sento na secretaria e espero para conversar com o coordenador do meu curso, tudo o que tem em mim é uma energia negativa bem grande e a certeza de que pode ser uma decisão estúpida, mas que eu vou tomá-la mesmo assim.


?


Não conto para a Sam sobre o trancamento da matrícula. Nem para o Apolo. Finjo que está tudo bem, que estou um pouco preocupada com as notas e fim de papo. Eles não me questionam porque tem os próprios problemas, e agradeço aos céus por isso. Sou uma péssima mentirosa.

O tempo passa e eu me perco. Em uma sexta-feira, antes do festival organizado pela Samira, estou na casa do Gregório. Mila e Patrícia foram ao cinema e Gregório me convidou porque não queria passar a noite sozinho. Levei o DVD de Chucky comigo, mas nem preciso dizer que não chegamos a ligar o aparelho.

Quando Gregório me beijou, senti alguma força ansiosa vinda dele. O tipo de ansiedade que o havia movido na pousada, buscando desesperadamente por um apoio, me tocando e me abraçando e falando comigo através das suas carícias. Eu pensei em parar tudo para conversar, mas também precisava daquilo. Daquele silêncio preenchido apenas por nossos ofegos e pelo farfalhar das roupas caindo pelo chão, do frio na barriga quando Gregório me ergueu em seu colo e me deitou em sua cama e de quando entrelaçou nossas mãos acima da minha cabeça, me beijando com uma doçura cálida e um desejo fervoroso. O corpo dele causou aquela sensação incrível no meu, e meus pensamentos foram nada e tudo de desimportante por alguns momentos, o que ajudou em muito com os meus nervos.

Gregório apoia a sua testa na minha, a respiração arfante escapando por seus lábios entreabertos, e sorri.

– Oi.

Eu o beijo em meio a um riso, sentindo toda a tensão da semana se dissipar através do seu abraço.

As horas se passam até que a noite vira madrugada. Gregório está dormindo ao meu lado, a expressão serena, e meu olhar passeia pelas sombras que a pouca luz do abajur cria sobre suas feições quando seu celular vibra na cômoda ao meu lado. Espio por curiosidade e vejo o nome da sua mãe na tela, junto de cinco chamadas perdidas vindas da mesma. Eu me sento e examino os horários – ela ligou a tarde toda, com intervalos regulares. Mas a insistência diz o que sempre diz dos pais: ela precisa conversar.

Ouço um suspiro exausto atrás de mim e me viro para encontrar Gregório observando o aparelho. Ele passa a mão pelo cabelo, visivelmente irritado, e se senta na cama.

– Não vai atender? – A pergunta me escapa.

– Eu não atendi nenhuma das outras. – a chamada se silencia enfim. Gregório continua olhando para o celular. – Não importa.

– Ei. – uso o meu tom mais suave. – Ela está tentando.

– Não importa. – Engulo em seco pelo modo como ele diz aquilo, especialmente por não conseguir encontrar a sua atenção.

– Gregório, talvez se...

– Lílian. – ele me corta e eu me calo. – Ela tentou há alguns meses, por poucos dias, e desistiu. Tentou há alguns anos, por uma semana, e desistiu. É isso que ela faz. Tenta por um tempo mínimo e desiste por um bem longo. É só para mostrar que ainda está por ai, não que se importa.

Eu entendo o seu ponto. Deus, como entendo. Voltei de uma viagem para casa onde deveria ter resolvido tudo, mas só fingi que tinha a vida sob controle. Deveria ter me exaltado com meus pais e contado a verdade, mostrado para eles como estava me sentindo mal e como essa não era a vida que eu queria, mas fechei a cara e dei as costas e sai de lá sem nem explicar o motivo da visita. Nem sequer falei com a Mônica, mal olhei para os trigêmeos. Não tenho falado com Téo exatamente para fugir do seu tom questionador. Eu entendo o que o Gregório diz mais do que ninguém, mas alguma coisa me move a ajudá-lo. Se não posso me ajudar, pelo menos posso tentar com ele.

– Ela sabe do festival?

– Lílian. – Meu nome, dessa vez, é um alento de frustração.

– Eu só estou dizendo que, talvez, se ela souber, pode vir aqui. Ver o que você faz. Entender o que você vive. Sabe? Se ela está tentando agora, talvez seja o momento de você tentar também. – Como eu sou hipócrita.

Sua hesitação e uma rápida observação me dizem que ele está considerando a ideia. Mas se dissipa.

– Não.

– Quer que eu...?

– Eu disse não.

Não o encaro porque sei que vou recuar. Vai haver melancolia ou raiva ou os dois e não quero encontrar isso no Gregório, não quando tudo estava bem. Eu e minha incrível habilidade de falar besteira.

Visto a camiseta dele, que é grande o suficiente para cobrir até meu joelho, e me dirijo até a porta.

– Vou fazer um chá. Quer um pouco?

– Não precisa. – Espio sua postura e me arrependo. Ele não está me olhando. Apoiou as costas na cabeceira da cama e tem o rosto virado para o teto, pensativo e solitário.

Saio do quarto porque a ideia de ter magoado o Gregório me apavora. A ideia de ter feito merda ao tentar ajudá-lo é assustadora. Enquanto desço as escadas na penumbra, devagar para não tropeçar e me matar – porque é bem capaz de eu fazer isso – penso em como achei que conhecia o lado sombrio do meu garoto. Mas também penso em como Gregório disse que não era tão fácil para ele quanto é para mim, como ele pareceu disposto por um segundo e então recuou, basicamente o que eu fiz em casa.

Preparo o chá e aproveito a quietude para pensar. Lembro-me de como a visita à pousada foi pouco efetiva, como Gregório e sua mãe basicamente se evitaram o tempo todo até ele voltar para cá, apesar de haver a sensação de que a conversa era ansiada. Penso em sua expressão agora pouco, quando quase cedeu. Enquanto volto para o quarto, assoprando a bebida quente, decido fazer uma coisa. Talvez seja estupidez ou a extrema necessidade de vê-lo reagir, mas preciso ajudar.

Gregório ainda está na mesma posição, mas seus olhos recaem sobre mim quando cruzo a porta. Bebo um gole de chá e hesito, pensando que talvez seja melhor deitar e dormir e fingir que essa discussão discreta não aconteceu. A expressão no rosto dele dita a mesma indecisão. Mordo o lábio inferior e deixo a caneca sobre a cômoda. Ainda está quente e aconchegante debaixo dos lençóis, mas é a presença do Gregório que torna tudo mais confortável. Quando me deito, ele faz o mesmo, e a cama é pequena o bastante para não deixar muito espaço entre nós.

Vejo quando ele engole em seco, quando hesita em me tocar. Algumas horas atrás, não havia um espaço da sua pele longe da minha, e agora isso. Penso em dizer alguma coisa, mas ele desvia o olhar.

– Boa noite, Lírio.


?


Eu estraguei tudo. Tomo ciência disso a partir do momento em que vejo o Gregório.

Impulsos geralmente funcionam errado comigo. Resultam em acidentes e decisões erradas. Eu nem sei por que ainda tento fazer isso, porque parece uma boa ideia na hora e depois se prova uma grande e burra empreitada. Foi assim com a faculdade; um impulso em achar que eu teria tudo sob controle sem nem saber o que estava fazendo, só seguindo as regras de estabilidade da mamãe. Um impulso e eu acabei tomando um caminho muito errado. E agora isso; uma ligação e um olhar e eu sei, eu sinto que estraguei tudo.

Quando liguei para a mãe do Gregório e contei sobre o festival, não tinha ideia do que poderia acontecer. Todo o meu foco estava em dar o primeiro empurrão, fazer alguma coisa por eles. Toda a minha atenção e ingenuidade estavam na mãe dele, na sua ausência e no motivo pelo qual ela se afastava. Eu nunca pensei que o problema seria o próprio Gregório. Que, tomando essa dianteira, acabaria desencadeando mais do que um reencontro, mas uma mágoa tão profunda e nítida que me fez engolir em seco assim que eles se encontraram.

A mãe dele veio para o festival, mas não me cumprimentou. Ela estava sozinha, em um canto do pub, observando tudo até encontrar o filho no palco. Gregório não a viu até terminar suas apresentações, e eu estava tão pilhada e nervosa que acabei não prestando atenção em música alguma.

Ele entenderia, certo? Entenderia que eu quis ajudá-lo? Ele veria minha atitude como uma coisa positiva?

Conforme essas perguntas martelavam minha cabeça, ansiedade me fez hesitar.

De repente, pensei em falar com a mãe dele e pedir para ela ir embora. Explicar que tinha sido um erro chamá-la sem avisar o Gregório, que aquilo poderia terminar mal, que talvez ela devesse tomar o primeiro passo sozinha, sem o incentivo de alguém que pouco sabia sobre os dois. Pensei também em chacoalhá-la pelos ombros e perguntar por que demorou tanto tempo para vir, por que esperou uma estranha ligar e comunicar sobre a apresentação do filho naquele importante festival para aparecer e assistir o que ele fazia. Pensei, principalmente, em pedir desculpas pela intrusão. Mas conforme a observava, suas feições determinadas e o sorriso largo ao ver Gregório cantando, me permiti aceitar que dali para frente não teria mais minha intervenção.

Eu havia dado o primeiro passo, ainda que estivesse tremendo a respeito dele. O resto era com eles.

Samira e Apolo não estavam em lugar nenhum. Eu queria pedir a companhia deles e queria estar com eles porque de repente fiquei com medo do que o Gregório pensaria. Tentei manter meu foco no sorriso da sua mãe e na ideia de que uma ajuda externa seria bem-vinda; ele tinha hesitado naquela noite. Quando eu perguntei sobre o convite, Gregório tinha hesitado. Aquele recuo discreto dizia que ele talvez tivesse pensando em chamar a mãe, talvez só não tivesse a coragem necessária para aquilo.

Roí tanto as unhas das mãos que quase acabei sem elas. Quando o palco se apagou para a preparação da outra banda, me encolhi no assento. Gregório veio da direção oposta, longe de mim e próximo demais da mãe; não demorou mais do que alguns momentos para que eles se vissem. Não demorou mais de um instante para que o sorriso dele se dissipasse. E não levou nem um milésimo de segundo para que eu me arrependesse profundamente do que havia feito.

Samira escolhe esse momento para se jogar nos meus ombros, tirando meu foco dos dois. Ela está rindo pelo meu susto, mas então sua expressão desvanece em preocupação.

– O que foi? – Sam segura meu braço. – Lílian, o que aconteceu?

– Eu estraguei tudo.

– Como assim, do que está falando?

Gregório e a mãe estão conversando. E não teria nada demais nisso se não fosse a postura dele, as mãos no bolso da jaqueta, o jeito como desvia o olhar. O mesmo tipo de atitude da primeira vez que nos encontramos; aquela mesma esquiva hesitante, a vontade de sair dali.

– Eu estou começando a ficar preocupada com o seu estado catatônico. – Sam me tira do transe, lançando um olhar desconfiado por cima do ombro. – Quem é aquela com o Gregório?

– A mãe dele.

– Ah. E por que ela está aqui?

– Porque eu convidei. – engulo em seco. – Eu fiz uma merda tão grande, Sam.

– Ok, estou sentindo uma tensão familiar bem óbvia nessa situação. Calma que a gente resolve. – Sam faz sua careta pensativa. – Quer que eu vá até lá? Distraia a mãe dele?

Penso na hipótese, mas desisto. Samira poderia muito bem quebrar a tensão da cena e livrar o Gregório daquilo, mas o erro já foi cometido. Eles já estão conversando. O máximo que posso fazer é não me meter mais.


?


Está frio do lado de fora e me arrependo de ter deixado o casaco com a Sam. Mas ela ainda tinha muito a fazer agora que o festival acabou, e eu precisava procurar pelo Gregório. Precisava conversar com ele, principalmente. Não o vejo desde que ele e a mãe saíram do pub, provavelmente para conversar – e, eu espero, para se acertar. O mínimo que seja.

Quanto mais penso no que fiz, mais me arrependo e me sinto intrusiva. Toda aquela história com a mãe e com o afastamento eram o segredo do Gregório, um trauma tão profundo e doloroso que me foi confidenciado em um dos seus momentos mais frágeis. E eu tratei isso como nada.

Quero tanto falar para ele que não foi minha intenção, que o desespero e todos esses dias atormentados me moveram a fazer alguma coisa pelo simples ato de ajudar. Gregório esteve sozinho esse tempo todo; eu só queria mudar esse cenário. Tentar, pelo menos.

Eu o encontro depois de longos minutos procurando. Ele está sentado no banco de uma praça bem iluminada próxima do pub. Alguns pedestres passam por ali, um casal vai até a barraca de um ambulante para comprar os doces que ele vende, e as caixas de som espalhadas pela praça deixam uma música suave ressoar pelo lugar silencioso.

Gregório está inclinado sobre o corpo, os braços apoiados sobre os joelhos. Não sei se sou muito silenciosa ou se ele me ignora, mas demora um tempo até que note minha presença. Fico parada próxima do banco por alguns instantes, tentando ler sua postura e congelando ao perceber que não consigo. Não sei o que há nele agora.

– Ela foi embora. – Gregório me assusta ao falar. Cruzo os braços com mais força. – Disse que não entendeu porque eu não a queria aqui.

Sento no canto do banco, distante para que minha proximidade não seja mais desconfortável do que já parece. Ouço um suspiro longo vindo dele e me impeço de observá-lo.

– Você me odeia? – A pergunta me escapa.

É impossível não buscar seu olhar. Quando o encontro, não tem muito para ler. Ressentimento e decepção, principalmente, mas nenhum ódio – e eu não sei como reagir àquilo.

– Você não tinha o direito, Lílian.

– Eu sei.

– Sabe mesmo? – frustração toma suas feições. – Achei que entendesse o conceito de segredo. – sua atenção recai sobre o colar em meu pescoço, onde eu o guardo. – Do meu, principalmente. – Sua voz fica mais baixa e mais magoada.

– Eu não queria... Gregório. Eu não queria que você se sentisse assim. Só achei que poderia ajudar.

– Ajudar com o quê? Chamando a minha mãe aqui, depois de todos esses anos de ausência? Achou que ela iria me pedir desculpas e que me abraçaria e tudo ficaria bem, com essa facilidade? Achou que eu a desculparia por ter me dado às costas quando eu mais precisava? – me encolho no banco. A verdade é que eu esperava por tudo isso; que os problemas dele pudessem ser resolvidos com essa simplicidade. Achei que valia a pena tentar porque o risco de falha não seria tão catastrófico. Acabei medindo os problemas do Gregório tal como medi os meus, só que os meus eram muito mais simples. Assustadores para mim, mas menos complexos. Menos perturbadores.

Achei que sabia ler tudo sobre o Gregório, mas a verdade é que eu estava me iludindo, achando que poderia ajudá-lo. O pouco que vi naquele dia da pousada nem começava a descrever o que havia nas memórias e no coração do Gregório. Suas cicatrizes e suas histórias eram tão mínimas em relação ao que ele sentia o tempo todo.

Então ele diz as palavras que estilhaçam meu coração:

– Eu nunca deveria ter te contado isso. Nada disso. Eu nem devia ter... – Vejo sua mão passar pelo cabelo quando ele para de falar, o gesto de irritação. Desvio o olhar porque sei que não tenho o direito de chorar agora, mas é impossível de frear.

Respiro fundo e abraço meus joelhos. Tudo desmorona de repente, junto com aquela frase.

Estou chorando quando ele fica de pé, as mãos escondidas nos bolsos do casaco. Gregório engole em seco e não me dirige o olhar, mas permanece à minha frente por alguns instantes.

– Você vai ficar bem? – Pergunto sem encará-lo.

– Por enquanto não.

– A gente vai...

– Não.

Gregório responde antes de se afastar, deixando-me para trás com o mesmo silêncio que usou quando ainda era um estranho para mim. Dessa vez, no entanto, o silêncio está acompanhado de um coração partido.


?


Depois disso, as coisas descarrilharam. Eu descarrilhei. Tudo o que parecia um amontoado de decisões estúpidas explodiu, e eu só queria ir para casa. O semestre tinha acabado, as férias estavam para começar e eu enrolei por um tempão para avisar sobre o trancamento do meu curso.

Samira e Apolo foram de total apoio, apesar do choque quando eu comuniquei minha decisão. Sam, principalmente, me abraçou e garantiu que tudo ficaria bem com o tempo, e eu acreditei nas suas palavras.

Procurei pelo Gregório, mas ele não me procurou e nem se deixou encontrar. Mila me contou que ele tinha ido “embora” por um tempo; um adeus definitivo ou um tchau e até mais ver acabaram se tornando nada, porque ele já tinha me dado as costas. E doeu. Deus, como doeu.

Doeu não poder ter me desculpado, não poder tê-lo abraçado e pedido que me perdoasse pelo erro estúpido. Eu tomei aquilo como um ponto final, uma mensagem silenciosa do garoto que conversava comigo através de olhares e sorrisos e seus toques abrasadores. Entendi aquilo como a certeza de que nós éramos finitos, e que eu havia quebrado o seu coração de uma maneira irreparável.

Para alguém de fora, pareceria besteira saber que ele havia deixado Rouxinol por causa da mágoa e da dor, mas aquele garoto carregava demais disso. Eu só havia pressionado uma ferida que não tivera tempo de cicatrizar, havia forçado a interação entre uma mãe e um filho quebrados demais para receber ajuda de fora.

Quando a Mônica me encontrou na Casa da Gelatina, acompanhada do papai e da sua presença confortante, eu percebi como precisava disso. Como precisava voltar e falar. Despejar tudo o que estava sentindo a respeito de tudo que tinha vivido naquele semestre; os meses pareciam tão pouco tempo, mas também uma vida. E eu tinha vivido demais sem saber exatamente como fazer isso. Longe de Rouxinol e do curso errado, eu senti falta da Sam e do Apolo e do Gregório, mas percebi que estar em casa me ajudaria a encontrar a trilha certa da minha vida.

Ou pelo menos tentar, sem maiores influências além de mim mesma.


Aquele com o Ano Novo

 

AGORA


– Então você vai passar o Ano Novo na sua casa? Traidora. – Samira grunhe do outro lado do telefone. Ela vem insistindo desde muito antes do Natal para que eu fosse até a casa de praia dos seus avós para fazer companhia, mas meus pais insistiram em ter toda a família aqui esse ano. Principalmente a mamãe. Desde o acidente, ela tem se mostrado especialmente preocupada com o papai, puxando a orelha dele para qualquer coisa que envolva se mexer e desobedecer às ordens do médico: o que ele tem feito muito.

O Natal foi ótimo. Téo e Fernanda vieram para cá, os pais dela também, então a casa estava abarrotada de gente, o que deixa tudo mais especial.

Mamãe trabalhou com afinco para fazer daquela a melhor ceia de Natal de todos os tempos, competindo com a Madalena do passado – o que significava que a competição seria violenta. Todo mundo foi forçado a ajudar, desde a faxina geral, começando pontualmente às seis da manhã, até os preparativos para o rango noturno. Mônica e eu revezamos para ver quem gritava mais com os trigêmeos, mas as pestes acabaram ajudando bastante. A mesa ficou toda enfeitada, os presentes debaixo da árvore encheram todo mundo de curiosidade e, quando o Téo finalmente chegou, nós arrastamos o papai da poltrona até a mesa e tudo virou uma balbúrdia. O Enzo não pôde ficar porque a mãe o queria com a família, mas ele deu um jeito de escapar à meia-noite e eu acabei abrindo a porta da varanda durante o beijo dele e da minha irmã. Ops.

O resto da noite foi cheio de conversas, dos trigêmeos assistindo ao especial de Natal do Bob Esponja e daquela sensação gostosa de que eu estava em casa.

Muito depois das duas horas da manhã, eu e a Mônica nos sentamos nas escadas da varanda e ficamos conversando sobre coisas aleatórias. A rua estava quieta, mas algumas casas ainda tinham as luzes acesas, apontando que a comemoração do Natal ia longe. O pessoal da nossa já tinha ido dormir, mas eu e a Mônica nos perdemos nos altos papos até que o sol começasse a raiar.

A semana passou voando, e nem deu tempo de assimilar que o Natal já tinha acabado e então já era véspera de Ano Novo.

Lagoa Feliz tem várias festas, mas uma das mais queridas é o Festival da Virada. Acontece na praça da lagoa, onde um grande palco é montado, a rua é interditada e todo mundo que quer comemorar a virada do ano em grande companhia migra para aquele lugar. Várias bandas são convidadas, artistas solo se apresentam, tem barracas de doces e salgados e toda a arrecadação é doada para uma instituição de caridade. Tia Rosa costuma expor suas flores lá, mas esse ano ela resolveu passar o dia 31 só com a família. Todos vamos para a praça porque é uma tradição dos Garcia, mas mamãe tem medido muito as consequências de levar o papai na cadeira de rodas. Ele ainda está todo engessado e, apesar das reclamações, não tem recebido muito mamão com açúcar. Tudo que a minha mãe diz é lei e ponto final.

O que é curioso porque, com a separação, papai não deveria se importar muito com as ordens dela. E ele se importa mais do que se importava quando eles estavam juntos.

– Eu já te expliquei a tradição. – continuo o diálogo, ainda que a Sam não se importe. Ela está sofrendo por estar sozinha, sem uma alma que entenda suas referências modernas. Os avós dela não ligam muito para qualquer tipo de tecnologia, o que significa que a Samira não tem WiFi por lá. – E minha mãe está toda dramática por causa do acidente do papai, então a insistência pra que eu ficasse foi de mais de oito mil.

– Eu deveria estar aí, parece muito mais legal.

– Você pode vir no ano que vem.

– Se eu sobreviver a esse tédio.

– Uau, já te falaram que você tem veia para o drama? Devia tentar a escola de artes.

– Engraçadinha. – ouço gritos vindos de longe e a Sam responde com mais gritos. – Ok, é minha deixa. Boa sorte para mim, boa diversão pra você. E feliz ano novo, Lírio!

Respondo e desligo e um sorriso se ergue em meu rosto. O apelido que a Sam usou foi proposital só para me deixar desnorteada, ela sabe disso.

Desde que eu e o Gregório “nos reaproximamos”, Sam e Apolo têm tirado uma com a minha cara. Eles não sabiam do apelido antigamente, mas agora sabem e usam isso contra mim.

Gregório vai passar o Ano Novo com a família. Sorrio com a ideia, orgulhosa por estar vendo esse avanço. Sem me intrometer, sem dar ideias, como prometi a mim mesma. Agora é com o Gregório e seu próprio caminhar; sou só uma expectadora, porque é o meu papel. Demorou tempo demais para que eu me tocasse disso.

Penso em ligar para ele enquanto desço as escadas, mas decido que não. Alguma coisa na incerteza do silêncio dele me diz que ele talvez não queira dividir isso comigo. Que ainda há um pouco de instabilidade quando se trata da minha presença nos seus assuntos pessoais. Afinal de contas, eu usei o seu segredo quando não deveria. Eu tentei consertar uma coisa que não podia ser consertada naquele momento. Dói pensar que ele está longe, mas é melhor que eu me mantenha afastada por enquanto.

Ele já esteve mais afastado. Depois da primeira briga, a fragilidade do nosso contato estourou de uma hora para outra. Eu não consegui pedir desculpas porque o Gregório foi embora, e ele foi embora porque precisava da privacidade e da solidão que minha presença não lhe davam. Dói lembrar do dia em que bati na porta da sua casa e a Mila me disse que ele tinha saído; saiu para onde?

Lílian, ele só pegou as malas e foi embora por um tempo. Foi a resposta dela, e meu coração se quebrou.

O fim desse semestre foi conturbado de matérias e, desde o acidente do papai, eu e o Gregório nos encontramos muito raramente. Ele estava respeitando a conversa que tivemos na rede da praia. Nós saímos para assistir filmes, conversamos bastante sobre o fim do ano – contei pra ele sobre a festa aqui de Lagoa Feliz e como todo mundo fazia parecer a Virada do Ano na praia de Copacabana – e até fui ao pub algumas vezes, mas me freei sempre que achei que algo fosse acontecer.

É um momento especial e o Gregório precisa do seu espaço.

– Qual o nome desse sorriso? – Arregalo os olhos quando papai para na minha frente.

– Samira.

– Mas não era Gregório o nome?

– Pai. – balanço a cabeça e dou meia volta para fugir dele. – Eu estava falando com a Sam e ela contou uma coisa engraçada. Nem conversei com o Gregório hoje.

– Hoje. – ele enfatiza. – Eu estou preparado para lidar e confortar minhas filhas apaixonadas. – Susana passa pela porta da cozinha bem nesse momento, toda suada e esbaforida pela brincadeira. Henrique e Tampa ainda estão lá fora, berrando. – Tem alguma coisa para me dizer, mocinha? – Papai sentencia.

– Sobre o quê? – Susana cruza os braços em resposta.

– Sobre garotos.

– Eca. – Papai ergue o braço bom para o céu.

– Obrigado! Ainda resta uma!

Mamãe passa por nós com um livro de receita em mãos e resmunga alguma coisa que com certeza é uma ofensa leve para o senhor meu pai. Ele finge que não ouve.

– Lílian, vai convidar o Gregório para o almoço amanhã? – Me surpreendo com a pergunta, até porque a mamãe parece verdadeiramente ansiosa pela resposta. É então que entendo que ter o Gregório aqui significa mais um prato à mesa, e ela precisa estar preparada para isso.

– Eu não... Sei? Quero dizer, ele mora bem longe daqui. Acho que não. Seria uma viagem cansativa, e eu nem consegui conversar com ele ainda. – dou de ombros, e meus pais me encaram como se eu tivesse quinze anos de novo. Aquele olhar de pessoa mais velha julgando jovem apaixonado. – Deixa pra outra ocasião especial.

Mamãe estreita os olhos e franze as sobrancelhas, mas aceita minha fala. Ela me põe para ajudar com a farofa enquanto anota alguns detalhes novos para o assado de amanhã, e o tempo passa voando até o momento em que o Téo passa pela entrada de casa. Os trigêmeos se jogam sobre ele – Tampa já tomou banho, mas Susana e Henrique estão suados e sujos de terra e a mamãe grita com eles por isso. Téo não se importa.

– A Fernanda não vem?

– Hoje não, ela vai passar a virada com os pais dela. – Téo entra na cozinha com o Tampa jogado sobre seu ombro. Seu sorriso é tudo de familiar e querido e eu estou muito feliz por estar em casa. – Oi gente.


?


– Se amarelo atrai dinheiro, dourado atrai o quê? – Mônica ergue a camiseta com nuances de dourado para me mostrar, e eu franzo o nariz.

– Muito dinheiro? E um visual brega.

Ela concorda e acaba aceitando que o vestido branco é a melhor opção. A peça fica bem nela, e combina com o seu estilo. A saia rodada é leve, tem silhuetas de gatinhos em um tom prateado e o decote é discreto. A câmera fotográfica está pendurada em seu pescoço e Mônica está pronta para o trabalho; o jornal da cidade contratou seus serviços de fotógrafa. Nem preciso dizer que todo mundo está exultante por isso.

Téo e os trigêmeos também estão de branco, o que me faz questionar minha escolha. Quero dizer, roxo e lilás são boas cores para usar na virada do ano, certo? A tia Rosa me garante que sim, até porque ela está com um vestido colorido. É ela quem dirige, porque a mamãe foi mais cedo para a praça pra ajudar o pessoal a organizar tudo. Papai foi junto só para reclamar.

Passa um pouco das sete horas, mas já tem muita gente reunida perto do palco. A equipe técnica está testando o som, e uma dupla sertaneja vai entrar daqui a pouco para se apresentar. Faixas brancas cobrem as copas das árvores e trilham caminhos entre elas, com estrelas e luas penduradas em alguns pontos. O coreto foi arrumado com um círculo de bancos brancos, onde algumas pessoas já estão sentadas, descansando. As barracas de comida e bebida estão longe de onde será o show, mas ainda não começaram a vender – fato que deixa meu estômago decepcionado.

Mônica me puxa para acompanhá-la enquanto ela começa a fotografar tudo. Adoro como seu rosto fica concentrado e ela parece tão séria e profissional nesses momentos, e também adoro tirar sarro disso – não agora, no entanto. Agora só quero apreciar esse momento e o vento fresco que passa pela praça. Respiro fundo, observando as barracas de brincadeiras montadas pelo caminho que seguimos.

Minha atenção esbarra em uma em particular. A barraca do beijo – que, aqui, consiste em um beijo no rosto, porque o padre está sempre andando pela festa e as pessoas são bastante recatadas numa cidade pequena como Lagoa Feliz.

Ainda assim, traz aquela sensação de flashback. Aquele frio na barriga quando me lembro de outra barraca do beijo, de quando o Gregório veio até mim e não me beijou. De quando eu o beijei pela primeira vez. Quando era tudo mais complicado e menos comunicativo e ainda assim parecia tão mais fácil. Ele era só um rapaz adorável com uma voz incrível e uma presença melancólica, não o cara por quem eu me apaixonei, aquele cujo coração eu quebrei, o garoto que me deixou consertar esses mesmos cacos.

Bufo com esses pensamentos. É só uma maldita barraca do beijo, não tem nada demais nisso. E o Gregório me perdoou; ele me beijou e me abraçou e me amou de volta. Aceitou o passado. Por que eu preciso remoer isso? Pelo medo de tê-lo de volta e estragar tudo de novo. Medo de ter encontrado um lar nesse novo Gregório, de ter recuperado o antigo, e de ainda assim ter a capacidade de arruinar as coisas entre nós. Porque sempre vai haver um momento pra eu escorregar, alguma ideia aparentemente genial que vai se mostrar um fiasco. E ele tem o tipo de coração bom demais para o mundo.

Gregório acabou de se encontrar na felicidade, quem sou eu para me aproximar demais?

Estou tão perdida em pensamentos que viro e esbarro em alguém, e só não vou ao chão porque a pessoa me segura. Ergo o olhar e encontro um Enzo assustado pelo esbarrão.

– Oi, cunhado.

Ele faz uma careta constrangida, mas sorri. Dá pra entender muito bem porque a Mônica nunca para de falar do sorriso dele.

– Viu a Mônica por aí?

– Ah. Ela estava aqui há um minuto. – olho em volta. – Deve ter se perdido nas fotografias.

Ele assente, e então fica um clima de silêncio constrangedor entre a gente. Daquele tipo em que as pessoas se conhecem e são simpáticas uma com a outra, mas ninguém sabe como puxar assunto. Eu me arrisco:

– Então, goleiro titular do municipal, em? – Enzo coça a nuca, visivelmente envergonhado, mas seu olhar está bastante alegre. – A Mônica não calou a boca sobre sua escalação.

– Sério? Ela nunca gosta de falar de futebol. – Seu riso é encantado.

– Olha, gostar ela não gosta, mas não dá pra negar que ela morre de orgulho por você. – Enzo procura minha irmã com o olhar admirado, mas a baixinha ainda não voltou pra cá.

– Ela está se saindo muito bem com as fotos, né? – ele cruza os braços, e agora é a sua vez de parecer orgulhoso. – Destaque no curso e tudo mais.

– Pois é! E aquela pirralha sempre reclamava por nunca ter ganhado nenhum troféu. Agora tem uma medalha.

– Quem sabe futuramente ela ganhe um Pulitzer. – a voz da Mônica às minhas costas me faz virar. Ela tem um sorrisinho bem humorado no rosto, e suas bochechas flamejam em vermelho assim que olha para o Enzo. – Oi você.

– Oi você. – Ele se adianta em um abraço, e eu pigarreio e saio no moonwalk, deixando os dois pombinhos a sós. Mas não antes de ver a fofura que eles são, lançando uma piscadela para a Mônica de longe.

Penso em ligar para o Apolo e encher o saco, já que ele está em casa, sozinho, apreciando uma boa partida de RPG. Apolo tem tudo contra a virada do ano e disse que nem tem motivo pra isso. Só prefere ficar sozinho com algum jogo do que na companhia das pessoas. Ele costuma ter sorte quando comemora o Ano Novo sozinho – o que não impede a mim nem a Samira de ligar para fazer companhia à distância.

Quando avisto minha família, paro onde estou. Os trigêmeos estão correndo em volta da barraca de pastel, meus pais discutem entre si e a tia Rosa e o Téo estão conversando com o Gregório.

O meu Gregório.

E não é uma ilusão nem um holograma porque eu saberia se fosse; ele é bem real. Ele é real e está aqui e eu respiro fundo porque, de repente, não tem mais ar em toda essa praça.

Gregório está com uma camiseta branca de mangas curtas, calça jeans esfarrapada e as botas que tanto adora. Ele está aqui, na minha cidade, conversando com a minha tia e com o meu irmão, e eu não entendo o que o mundo se tornou. É algum tipo de sonho? Eu cai quando esbarrei no Enzo e bati a cabeça? Só pode ser isso. O Gregório estava com a família, disse pra mim que ia passar a virada do ano lá na sua cidade natal.

É então que eu avisto, um pouco distante, sentados em um banco de madeira, seu padrasto e sua mãe com a bebê de colo. Ele trouxe a família para Lagoa Feliz!

Ok, toda a paranoia de antes volta com força total. Por que ele está fazendo isso? Por que o Gregório quer me aproximar até mesmo da sua família quando eu nem mereço?

Mônica e Enzo aparecem na minha frente quando me viro. Eles me encaram com confusão, então a Mônica espia atrás de mim e reconhece o Gregório e solta um “ah” bastante compreensivo.

– Por que você não está indo lá?

– Porque eu estraguei tudo.

– De novo? – Enzo solta.

– Ué, como você sabe sobre os meus relacionamentos?

– A Mônica gosta de falar.

Ela faz um bico indignado e depois me lança um olhar desesperado.

– Desculpa.

– Tudo bem. É só que... – bufo e suspiro e resmungo em voz baixa. – Eu estraguei tudo da última vez, com a família dele. E agora ele trouxe a família aqui? Quero dizer, qual é o problema desse garoto?

– Talvez ele só queira te apresentar pra família...? – Enzo comenta.

– Não consigo explicar. – Esfrego os olhos, frustrada comigo mesma. Eu nunca fui mulher de fugir das coisas, especialmente de um cara que eu gosto. Não só um cara que eu gosto, mas um que eu amo com todas as forças do universo. Ele está pertinho de mim, disposto, e eu quero escapar daqui porque estou com medo de fazer besteira de novo. Eu, que comecei aquela história de reaproximação. Eu, que pedi desculpas porque queria tentar de novo. Quem diria.

– Quer que a gente distraia o bonitão por um tempo? – Mônica apoia uma mão em meu ombro, sorrindo com compreensão. Ela, melhor do que ninguém, entende o que estou sentindo agora, e não há palavras para explicar minha gratidão.

– Bonitão? – Enzo faz uma careta abismada, no que minha irmã responde com um riso alto.

– Contra fatos não há questionamentos.

– Eu vou pra lá daqui a pouco, prometo. – aperto sua mão em retorno. – Obrigada, dentuça.

Me esquivo do festival quando a música começa a tocar no palco. Escapo pelo caminho na beira da lagoa, cumprimentando algumas pessoas que me reconhecem. A praça realmente está cheia de gente, e achar um lugar com privacidade para pensar ou parar de pensar – já que fazer isso tem me levado a toda essa paranoia – vai ser difícil.

Um parquinho do outro lado da praça parece o lugar ideal. Tem só uma família por aqui, o filho pequeno brincando no escorregador, e eu me dirijo até o gira-gira para deitar no banco de madeira e esfriar a cabeça. Não tem nuvens no céu, então as estrelas são tudo o que eu encontro.

É tão simples. Só preciso ir até lá, cumprimentar o Gregório, ser reapresentada para a família dele, esconder o carão porque a mãe dele provavelmente vai me reconhecer da mancada do ano passado. Posso fazer isso. Eu amo o Gregório; deveria ser mais simples.

Lílian, a garota que resolve os problemas só pra quebrar tudo depois.

– Ah, a moça apressada. – Congelo e me esqueço das estrelas, agora insignificantes lá no céu. Eu me sento, e essa pressa acaba me fazendo bater a cabeça no apoio de metal do gira-gira. Volto a me deitar, apertando a mão sobre a testa.

Gregório se abaixa ao meu lado e eu fujo do seu sorriso, mas deixo que ele afaste minha mão para ver a gravidade da trombada.

– Acho que vai ficar roxo.

– E inchado. Eu provavelmente vou carregar um chifre de unicórnio pelas próximas semanas.

– Eu tinha planejado um momento mais romântico. – Gregório brinca e eu suspiro. – Por que não está lá na festa? – Os flashbacks estão com tudo hoje, aparentemente. Ainda que esse seja proposital. Ele está usando o mesmo diálogo que eu usei quando nos conhecemos naquela festa, no que parecem ser milhões de anos atrás.

– Eu fugi. – confesso, mordendo o lábio em uma careta indecisa. Os olhos verdejantes do Gregório me observam atentamente. – De você.

– De mim. – Ele afirma com curiosidade.

Fecho os olhos, indignada com a minha incapacidade verbal.

– Gregório, você me perdoou.

– Sim. E você me perdoou.

– Cala a boca, você não fez nada de errado. – empurro seu rosto de brincadeira, recebendo seu riso em resposta. – A questão é... Ai, Deus.

– A questão é Deus?

– Você também vai ficar com um chifre de unicórnio na testa se não me deixar terminar. – o sorriso dele deveria me deixar sem palavras, mas acaba que me incentiva a continuar: - Eu só estou com medo de estragar tudo de novo. De te machucar. Tenho essa tendência a quebrar as coisas.

O olhar dele se suaviza e seu sorriso diminui, mas não desaparece. Ele abaixa um pouco mais o rosto, beijando a ponta do meu nariz. Seus lábios são quentes contra minha pele fria.

– Quando eu te vi pela primeira vez, correndo na praça? Foi uns dias antes da festa. Eu pensei: cara, essa é uma garota que arrasa corações. – engulo em seco. – E você realmente fez isso, Lílian. Você arrasou meu coração, no melhor sentido. Só os maiores amores conseguem fazer isso. Eu aceitaria essas sensações pelo resto da minha vida se você topasse se arriscar comigo de novo. Coisas quebradas podem ser consertadas. – Seus dedos acariciam os cantos do meu rosto levemente, aquele tipo de toque incendiário e familiar que meu corpo reconhece de imediato.

Seus olhos passeiam por meu rosto, parando sobre minha boca apenas um segundo antes que ele me beije. E o beijo é uma promessa, como sua presença e seu coração. Esse beijo diz que as coisas vão ficar tudo bem, mas podem escorregar no meio do caminho. Seus lábios desenham todo o seu amor contra os meus, e eu me ergo um pouco – sem bater a cabeça desta vez – só para me aproximar mais, acariciando a linha de sua mandíbula, sua nuca, embrenhando meus dedos em seu cabelo.

Gregório se afasta suavemente, quebrando o contato com a delicadeza que eu conheço. Seus olhos parecem ainda mais verdes debaixo das estrelas.

– Eu tenho um segredo antigo para você, Lírio.

Prendo a respiração, observando-o puxar o botão que eu lhe dei tempos atrás. Sei que é ele por causa da manchinha de esmalte no canto.

– Eu te amo. – Gregório sorri ao dizer essas palavras. Eu sorrio de volta, recebo o seu segredo e o retribuo com todo o coração.

 

 

                                                                  Denise Flaibam

 

 

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