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O HOMEM DE 96 ANOS estava sentado em sua confortável poltrona apreciando um livro sobre Joseph Stalin. Nenhuma grande editora quis chegar perto do manuscrito repleto de devaneios, pois ele era completamente parcial, elogiando o sádico líder soviético. Porém, a opinião positiva sobre Stalin, apresentada naquele livro autopublicado, agradava muito ao velho. Ele o comprara com o autor, que logo em seguida foi internado em um manicômio. Não era possível ver as estrelas sobre a grande propriedade do velho por causa de uma tempestade que se deslocava do oceano ali perto rumo ao continente. Embora ele fosse rico e vivesse em meio ao luxo, suas necessidades pessoais eram relativamente simples. Ele vestia agora um suéter desbotado com décadas de uso e o colarinho da camisa estava abotoado até em cima, cingindo o pescoço grosso e cheio de papadas. As calças baratas caíam folgadas sobre suas pernas esqueléticas e inúteis. Ouvindo a chuva começar a cair com seu martelar hipnótico sobre o telhado, ele se recostou na poltrona, contente por mergulhar na mente de um louco que matara dezenas de milhões de pessoas que tiveram o azar de viver sob seu jugo cruel. De vez em quando, o velho ria de algum trecho, em especial dos mais horrendos, e balançava a cabeça concordando com os métodos dos discípulos de Stalin para a eliminação das liberdades civis. Para ele, o ditador soviético possuía todas as qualidades de liderança necessárias para tornar um país grandioso e, ao mesmo tempo, fazer o mundo tremer aterrorizado. O velho abaixou os óculos e olhou para o relógio.
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Quase onze horas. O sistema de segurança era acionado precisamente às nove, com todas as portas e janelas monitoradas. Sua fortaleza estava segura. Houve o estrondo de um trovão e as luzes falharam. Piscaram mais duas vezes e se apagaram. Na sala de equipamentos eletrônicos no andar de baixo, a bateria do sistema auxiliar havia sido removida, fazendo-o parar de funcionar quando o fornecimento de energia foi interrompido. Todas as janelas e portas caram instantaneamente sem proteção. Dez segundos mais tarde, o enorme gerador auxiliar foi ativado e restabeleceu o uxo de energia e o sistema de segurança. Porém, nesse meio-tempo, uma câmera digital fora lançada por uma janela aberta, que foi trancada um segundo antes de o sistema voltar a ser ativado. Desconhecendo tudo isso, o velho esfregava a careca com manchas de sol e marcas de feridas. A pele de seu rosto despencara havia muito tempo, criando uma expressão
constantemente zangada. O corpo, ou o que restava dele, sofrera uma degradação semelhante. O velho dependia da ajuda dos outros para desempenhar as tarefas mais simples. Mas pelo menos ainda estava vivo, enquanto muitos dos seus irmãos de combate, talvez todos, já haviam morrido, a maioria de maneira violenta. Isso o deixava com raiva. A história mostrava que pessoas inferiores tinham uma inveja perpétua dos mais elevados. Por m, ele largou o livro. Na sua idade, só eram necessárias três ou quatro horas de sono por dia e ele sentia necessidade delas naquele momento. Chamou a atendente apertando o botão azul no pequeno dispositivo circular que usava sempre em volta do pescoço. Havia mais dois botões ali, para o médico e para o segurança. Ele tinha inimigos e doenças, mas a atendente era sobretudo uma questão de prazer. A mulher entrou. Barbara era loura e estava vestindo uma minissaia branca que marcava seus quadris e uma regata que oferecia ao velho uma visão completa dos seios quando ela se inclinava para ajudá-lo a se sentar na cadeira de rodas. Como condição para dar o emprego, ele exigira que ela usasse roupas ousadas. Homens ricos podiam fazer o que quisessem. Seu rosto enrugado se aninhou no suave decote da mulher e lá cou. À medida que os braços fortes da atendente o faziam escorregar para a ampla cadeira, as mãos dele se insinuaram por debaixo da saia. Os dedos do velho roçaram a parte posterior das coxas da mulher até tocarem suas nádegas. Ele apertou com força cada uma delas e gemeu extasiado. Barbara não reagiu porque era bem paga para aturar as apalpadas do velho. Ela o empurrou na cadeira de rodas até o elevador e os dois subiram juntos até o quarto. A atendente o ajudou a se despir, desviando o olhar daquele corpo decaído. Mesmo com toda a fortuna, ele não conseguia forçá-la a tar sua nudez. Décadas atrás, ela certamente teria olhado para ele, e também feito muito mais. Se quisesse viver. Agora, ela apenas o ajudava a vestir o pijama. De manhã, ele seria lavado e alimentado, como um bebê. O ciclo estava completo: do berço ao berço e, depois, ao túmulo. – Fique aqui comigo, Barbara. Quero olhar para você – disse ele em alemão. Esse era o outro motivo pelo qual o velho a contratara: ela falava sua língua nativa. Nas redondezas, poucos sabiam falá-la. Ela se sentou, cruzou as pernas longas e bronzeadas e manteve as mãos sobre o colo, sorrindo de vez em quando porque era paga para fazer aquilo. Barbara deveria ser grata a ele por poder trabalhar naquela casa grande, onde as tarefas eram fáceis e ocasionais, caso contrário precisaria se prostituir nas ruas da vizinha Buenos Aires por alguns trocados por dia. Por m, o velho acenou e ela logo se levantou e fechou a porta atrás de si. Ele se recostou nos travesseiros. Provavelmente, Barbara iria para seu quarto, tiraria as roupas, entraria debaixo do chuveiro e se esfregaria com força suciente para tirar do corpo a imundície do patrão. Essa imagem o fez rir em silêncio. Mesmo acabado, ele ainda conseguia surtir algum efeito nas pessoas. Ele se lembrava muito bem dos dias gloriosos em que apenas o som de seus passos
ressoando no chão de concreto já aterrorizava todos no campo de concentração. Aquilo que era poder. Todo dia ele se sentia invencível. Todas as suas ordens eram executadas sem hesitação. Seus subordinados enleiravam os vermes com suas roupas imundas, de cabeça baixa, mas, ainda assim, podendo ver o brilho das magnícas botas e o poder do uniforme dele. Brincando de Deus, ele decidia quem morreria e quem caria vivo. Porém, não era nenhum privilégio ser um sobrevivente, pois a recompensa era um inferno na Terra, tão doloroso, miserável e degradante quanto ele pudesse torná-lo. O velho se deslocou para a esquerda, empurrou o painel da cabeceira e o soltou. O pedaço de madeira se moveu para fora, como uma porta, e sua mão trêmula digitou a combinação na porta do cofre escondido ali atrás. Ele tirou uma foto lá de dentro, voltou a se recostar no travesseiro e a observou. Fora tirada havia 68 anos. Sua mente ainda estava naquela época, embora seu corpo a tivesse abandonado. Ele tinha pouco menos de 30 anos na foto, mas haviam lhe dado uma grande responsabilidade por causa de sua inteligência e crueldade. Era alto e esguio e os cabelos louros contrastavam com o rosto bronzeado e de traços fortes. Ele estava muito bonito, todo fardado e com suas condecorações, embora tivesse que admitir que quase nenhuma delas fora de fato conquistada. Ele nunca participara de um combate, pois nunca conseguira reunir coragem. As massas sem talento podiam disparar os canhões e morrer nas trincheiras. As habilidades dele lhe permitiram car em um terreno mais seguro. Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver o que ele já havia sido um dia. Ao seu lado na imagem, estava o grande homem em pessoa. De estatura baixa, mas colossal sob todos os outros aspectos, com o famoso bigode preto acima da boca expressiva. O velho beijou o seu eu mais jovem na foto e o magníco Führer, completando seu ritual noturno. Recolocou a foto no esconderijo e pensou nos anos desde a sua fuga da Alemanha, meses antes da chegada dos Aliados e da queda de Berlim. Sua ida para a Argentina havia sido arranjada com antecedência, pois ele previra o desfecho inevitável da guerra, talvez antes mesmo dos superiores. Ele passara décadas se escondendo e, mais uma vez, usara seus talentos para construir um império com exportações de minerais e madeira na nova pátria, esmagando sem piedade toda a concorrência. Ainda assim, ele sentia saudade dos velhos tempos, nos quais a vida e a morte de outro ser humano estavam em suas mãos. Ele dormiria confortavelmente aquela noite, como em todas as outras, com a consciência limpa. Quando já sentia as pálpebras pesarem, foi surpreendido pelo barulho da porta se abrindo. Através da penumbra do quarto, viu a silhueta dela sobressaindo na escuridão. – Barbara!
2
ELA AVANÇOU APÓS TRANCAR a porta atrás de si. À medida que a moça se aproximava da cama, ele pôde ver que ela estava usando apenas um roupão de algodão que mal cobria as coxas e mergulhava entre os seios. Sua pele à mostra estava bronzeada, exceto nos quadris pálidos. Ela havia soltado os cabelos, que balançavam na altura dos ombros, e estava descalça. Ela deslizou para o lado dele na cama. – Barbara! – exclamou ele, seu coração começando a bater mais rápido. – O que você está fazendo aqui? – Eu sei que você me quer – respondeu ela em alemão. – Posso ver nos seus olhos. Ele choramingou enquanto Barbara pegava sua mão e a enava dentro do roupão, perto dos seios. – Mas eu sou um velho, não posso satisfazê-la. Eu... eu não posso. – Vou ajudar você. Vamos com calma. – Mas e o guarda? Ele está do outro lado da porta. Não quero que ele... Ela lhe acariciou suavemente a cabeça. – Eu disse que era seu aniversário e que eu era seu presente. – Ela sorriu. – Disse para ele nos dar pelo menos duas horas. – Mas meu aniversário é só daqui a um mês. – Eu não podia esperar. – Mas eu não consigo. Eu quero você, Barbara, mas estou velho demais! Ela se aproximou e tocou aquela parte do corpo do velho que não era tocada havia décadas. Ele gemeu. – Não faça isto comigo. Estou dizendo que não vai funcionar. – Sou paciente. – Mas por que você me quer? – Você é um homem muito rico e poderoso. E dá para ver que você já foi muito bonito. Ele se agarrou àquela afirmação. – Eu fui. Eu fui. Tenho uma foto. – Me mostre. Me mostre – murmurou ela em seu ouvido enquanto movia a mão dele para cima e para baixo dentro do roupão. Ele pressionou o painel, tirou a foto e a passou para ela. O olhar de Barbara se deteve na imagem dele e de Adolf Hitler.
– Você parece um herói. Você foi um herói? – Fiz meu trabalho. Fiz o que me foi pedido. – Tenho certeza de que você era muito bom no que fazia. – Nunca mostrei essa foto a ninguém. – Fico lisonjeada. Agora, deite. O velho obedeceu e Barbara montou em cima dele, abrindo o roupão para expor todo o corpo. Também removeu do pescoço dele o dispositivo para chamadas de emergência. Ele começou a protestar. – Não queremos apertar acidentalmente os botões – explicou ela, inclinando-se para colocar o aparelho em um lugar afastado, seus seios próximos ao rosto do velho. – Não queremos ser interrompidos. – Sim, você tem razão. Nada de interrupções. Barbara pôs a mão no bolso e pegou uma pílula. – Trouxe isto para você tomar. Vai ajudar isto aqui. – Apontou para a virilha dele. – Mas não sei se eu deveria. Meus outros remédios... A voz dela tornou-se ainda mais grave. – Vai durar horas. Você vai me fazer gritar. – Meu Deus, se fosse mesmo possível... – É só engolir isto aqui – ela mostrou a pílula – e, depois, me possuir. – Será que a pílula vai mesmo funcionar? – Nunca me deixou na mão. Agora, tome. Barbara deu o remédio ao velho, serviu um copo d’água de uma jarra da mesinha de cabeceira e o observou tomar o líquido com sofreguidão. – Está crescendo? – perguntou ele com avidez. – Espere um pouco. Tenha paciência. Enquanto isso, preciso mostrar uma coisa. Do bolso do roupão, ela tirou a pequena câmera que pegara quando o sistema de segurança fora desativado. – Barbara, estou me sentindo esquisito. – Não se preocupe. – Chame o médico. Aperte o botão para chamá-lo. Agora. – Está tudo bem. É apenas o efeito da pílula. – Mas não estou sentindo meu corpo. E minha língua... – Está parecendo maior? Meu Deus! A pílula deve estar surtindo efeito na sua língua e não na parte certa. Vou dar queixa ao fabricante. O velho gorgolejou alto. Tentou apontar para a boca, mas seus membros não respondiam mais. – Aperte o bot... Ela afastou ainda mais o dispositivo de chamadas, fechou bem o roupão e sentou-se ao seu lado.
– Estas são as fotos que eu quero que você veja. Ligou a câmera. Na pequena tela, surgiu um rosto em preto e branco. – Este menino se chamava David Rosenberg – falou ela, apontando para a face jovial mas esquelética. As bochechas encovadas e os olhos vítreos indicavam que a morte estava próxima. – Ele não conseguiu chegar ao bar mitzvah. Você sabia disso antes de ordenar a morte dele, Herr Huber? Ele já tinha passado dos 13 anos, mas é claro que, nos campos de concentração, os ritos de passagem judeus não eram observados. O velho agora gorgolejava baixinho, seu olhar aterrorizado ainda fixo na foto. Barbara apertou um botão e o rosto de uma jovem apareceu no visor. – Esta é Frau Helen Koch. Morreu com um tiro de rie na barriga, disparado por você antes do seu primeiro cigarro da manhã. Pelo que se sabe, ela sofreu por apenas três horas antes de expirar enquanto seus subalternos impediam todas as tentativas de ajuda por parte dos amigos judeus de Frau Koch. Na verdade, você matou duas pessoas naquela manhã, já que ela estava grávida. O velho agarrava as cobertas, tando o dispositivo de chamadas, sem conseguir mexer o corpo. Barbara moveu a cabeça dele para o lado e a segurou no lugar para que ele fosse obrigado a olhar a tela. – Você precisa se concentrar, coronel. Lembra-se da Frau Koch, não é? Não se lembra? E de David Rosenberg? Não se recorda? Ele enfim piscou em sinal de confirmação. – Eu mostraria as fotos das outras pessoas que você condenou à morte, mas, como são mais de cem mil, não temos tempo. – Barbara puxou uma foto do bolso do roupão. – Tirei esta do porta-retratos que ca sobre o piano na sua linda biblioteca. – Ela segurou a imagem em frente ao rosto do velho. – Encontramos seu lho, sua lha, seus netos e bisnetos. Todas essas pessoas inocentes. Está vendo o rosto delas? Exatamente como David Rosenberg, Helen Koch e todos os outros. Se eu tivesse tempo, contaria com riqueza de detalhes como cada um deles vai morrer hoje à noite. Na verdade, sete já foram abatidos só por causa da ligação que tinham com você. Está vendo, Herr Coronel, queríamos ter certeza de que não sobrariam monstros para se reproduzir. Ele começou a chorar, sua boca emitindo breves gemidos. – Muito bem, muito bem, tenho certeza de que são lágrimas de alegria, Herr Coronel. Talvez pensem que nosso sexo é tão bom a ponto de fazer você chorar. Agora, está na hora de dormir, mas continue a encarar a foto. Não desvie o olhar. Anal de contas, é a sua família. Quando ele fechou os olhos, ela lhe deu um tapa, forçando-o a abrir os olhos. Inclinou-se e sussurrou no ouvido do velho em outro idioma. Os olhos dele se arregalaram. – Está reconhecendo, Herr Huber? É iídiche. Tenho certeza de que você ouvia essa frase com frequência nos campos. Caso você não saiba a tradução, o signicado é “Apodreça no
inferno”. Barbara pressionou o travesseiro sobre o nariz e a boca do velho, mas não lhe cobriu os olhos para que a imagem da família condenada fosse sua última visão. Ele nada podia fazer à medida que o oxigênio ia se esgotando. – Esta é uma morte muito mais suave do que a que você merece – disparou ela enquanto o peito do velho subia e descia cada vez mais rapidamente, os pulmões buscando o ar que já não estava ali. Depois que o homem arquejou pela última vez, Barbara removeu o travesseiro e colocou a foto de Huber de uniforme no bolso do roupão, junto com a pequena câmera. Eles não haviam matado sua família e não tinham intenção alguma de fazer isso. Eles não matavam inocentes. Mas queriam que ele acreditasse, em seus estertores, que causara a destruição dos entes queridos. Eles sabiam que a morte do velho coronel jamais se equipararia ao horror da carnificina executada sob suas ordens, mas aquilo era o melhor que podiam fazer. Barbara fez o sinal da cruz e sussurrou: – Que Deus entenda por que fiz isto. Mais tarde, ela passou pelo guarda, um jovem argentino arrogante, a caminho do seu quarto. Ele lhe lançou um olhar lascivo. Ela retribuiu o sorriso enquanto rebolava, deixando que ele vislumbrasse sua pele clara por baixo do fino roupão. – Avise quando for seu aniversário – provocou ela. – Amanhã – respondeu ele na mesma hora, tentando segurá-la, mas ela se esquivou. Ainda bem, pois não vou estar aqui. Ela foi direto para a biblioteca e devolveu a foto ao porta-retratos. Uma hora mais tarde, as luzes piscaram de novo e se apagaram. O mesmo hiato de dez segundos ocorreu antes que o gerador entrasse em ação. A janela de Barbara se abriu e voltou a se fechar. Toda vestida de preto, com um gorro de tricô sobre os cabelos, ela desceu por uma calha, contornou o perímetro de segurança, escalou o muro alto que circundava a propriedade e entrou em um carro que estava à sua espera. Não era tão difícil, já que as medidas de segurança da propriedade haviam sido concebidas sobretudo para manter as pessoas do lado de fora, e não do lado de dentro. O motorista, Dominic, um jovem esguio de cabelos encaracolados e escuros, olhos grandes e tristes, pareceu aliviado. – Brilhante trabalho, Dom – elogiou ela com sotaque britânico. – A sincronia dos cortes de energia foi perfeita. – Pelo menos os meteorologistas acertaram na previsão da tempestade. Foi um bom disfarce para a minha artimanha de engenharia. O que ele disse? – Falou com os olhos. Ele sabia. – Parabéns. Foi o último, Reggie. Regina Campion – Reggie para os íntimos – se recostou no banco do carro e tirou o gorro, soltando os cabelos tingidos de louro. – Você está enganado. Ele não foi o último.
– Como assim? Não há outros nazistas vivos, pelo menos não do tipo dele. Huber foi o último filho da puta. Ela sacou a foto de Huber e Hitler do bolso e a observou enquanto o carro seguia em velocidade pelas estradas escuras dos arredores de Buenos Aires. – Mas sempre haverá monstros. E nós precisamos caçar todos eles.
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SHAW ESPERAVA QUE O homem tentasse matá-lo e foi o que aconteceu. Quando vislumbravam no futuro a prisão e a pena de morte, algumas pessoas costumavam car um tanto irritadas. Pouco depois, o sujeito estava estirado no chão, inconsciente, com as marcas do soco de Shaw em seu rosto. O encarregado de dar cobertura a Shaw logo apareceu para prender o homem. Shaw riscou mentalmente da sua lista de afazeres matar um fanático sem coração que usava crianças – sem que elas soubessem – para explodir pessoas que não acreditavam no mesmo deus. Dez minutos mais tarde, estava em um carro a caminho do aeroporto de Viena ao lado de seu chefe, Frank Wells. Ele não só parecia um canalha cruel como realmente era. Além do porte enorme, falava como se estivesse rosnando. Usava ternos baratos, que se amassavam com facilidade, e um chapéu de aba na fora de moda. Shaw achava que Frank nascera na época errada. Ele teria se dado bem nas décadas de 1920 e 1930, perseguindo criminosos como Al Capone e John Dillinger com uma submetralhadora Thompson e sem um mandado de prisão por perto nem uma cópia dos direitos da pessoa detida. Ele tinha mais de 50 anos, só que parecia mais velho, com a barba por fazer, a grande papada e cerca de 80 anos de azedume e raiva acumulados. Ele e Shaw tinham uma relação de amor e ódio que, levandose em conta a expressão negativa no rosto de Wells, estava agora na fase do ódio. Shaw até conseguia entender esse sentimento. Frank continuava a usar chapéu dentro de carros e ambientes fechados não só para esconder sua careca, mas também para ocultar a marca de um projétil de pistola disparado por Shaw. Não fora a melhor maneira de começar uma amizade saudável. Porém, aquele confronto quase letal era o único motivo para eles estarem juntos naquele momento. – Você demorou um pouco para perceber os movimentos de Benny – criticou Frank enquanto mastigava um charuto apagado. – Considerando que Benny bin Alamen é o terceiro terrorista mais procurado do mundo, acho que posso me parabenizar. – Só estou comentando, Shaw. Pode ser útil na próxima vez. Shaw não respondeu, em grande parte porque estava cansado, e olhou pela janela para as belas avenidas de Viena. Ele estivera várias vezes na capital austríaca, berço de alguns dos maiores talentos musicais da história. Infelizmente, suas viagens eram sempre a trabalho e sua lembrança mais vívida da cidade não era a de um concerto emocionante, mas a de quase
ter morrido por causa de uma bala de alto calibre que passara bem perto da sua cabeça. Ele deslizou a mão pelos cabelos, que enm tinham voltado a crescer depois que ele os raspara para uma missão recente. Shaw tinha pouco mais de 40 anos e quase 2 metros de altura e estava totalmente em forma, mas já surgiam alguns os brancos. Até mesmo para ele, os últimos seis meses haviam sido... difíceis. Como se lesse sua mente, Frank perguntou: – Então, o que aconteceu com você e Katie James? – Ela voltou a ser jornalista e eu voltei a fazer o que faço. Frank baixou a janela, acendeu o charuto e deixou que a fumaça saísse pela abertura. – Só isso? – Por que haveria algo além disso? – Vocês passaram por algumas coisas complicadas juntos. Isso tende a unir as pessoas. – Bem, não uniu. – Ela me ligou, sabia? – Quando? – Um tempo atrás. Disse que você foi embora sem se despedir. – Eu não sabia que existia uma lei exigindo despedidas. E por que ela não ligou para mim? – Ela disse que tentou, mas que você havia mudado o número. – Tudo bem, talvez eu tenha mudado mesmo. – Por quê? – Porque eu estava a fim. Mais alguma pergunta pessoal? – Vocês estavam dormindo juntos? Aquele comentário fez com que Shaw se retesasse. Frank, talvez percebendo que fora longe demais, olhou para a pasta em seu colo e disse rapidamente: – Tudo bem, vamos decolar daqui a trinta minutos. Podemos analisar o próximo trabalho no avião. – Ótimo – comentou Shaw em tom monótono. Ele abriu a janela do seu lado e respirou o ar da manhã. Como costumava agir durante a noite, muitos dos seus “trabalhos” terminavam nas primeiras horas da manhã. Trabalho para um lugar que não existe oficialmente, que é classificado como uma agência, fazendo coisas pelo mundo que ninguém jamais saberá que eu fiz. A política da “agência” permitia que seus membros chegassem até a fronteira da legalidade – muitas vezes, cruzando-a; algumas vezes, eliminando-a. Os países que apoiavam a agência de Shaw, cedendo dinheiro e cuidando da logística, faziam parte da antiga cúpula do G8 e, portanto, eram consideradas as sociedades mais “civilizadas” do mundo. No meio ocial, eles nunca poderiam utilizar táticas brutais, muito menos letais, logo contornavam o problema criando e alimentando em segredo uma fera híbrida que devia alcançar os objetivos estipulados a qualquer custo. Em geral, nem direitos pessoais nem o benefício do auxílio jurídico importavam.
Frank examinou Shaw por um momento. – Mandei flores para o túmulo de Anna. Surpreso, Shaw virou-se para ele. – Por quê? – Ela era uma boa mulher. E, por algum motivo, estava louca por você. Esse foi o único defeito que consegui encontrar naquela mulher: sua falta de discernimento em relação aos homens. Shaw voltou a olhar pela janela. – Você nunca mais vai encontrar uma pessoa tão boa. – É por isso que nem estou me dando o trabalho de procurar, Frank. – Eu já fui casado. Shaw fechou a janela e se recostou. – O que aconteceu? – Ela não está mais viva. Era mais ou menos como Anna. Casei-me com alguém de um nível muito superior. Isso nunca acontece duas vezes. – Você pelo menos conseguiu se casar. Eu nunca tive essa chance. Frank deu a impressão de que ia dizer algo mais, porém cou em silêncio. Os dois permaneceram calados até chegarem ao aeroporto.
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O GULFSTREAM LEVANTOU VOO embalado por ventos suaves. Após o avião ter se estabilizado, Frank pegou o arquivo com os itens de sempre: fotos, históricos, análises e recomendações de ação. – Evan Waller – começou Frank. – Canadense, 63 anos. Shaw pegou a xícara de café preto com uma das mãos e a foto com a outra. A imagem mostrava um homem com a cabeça totalmente raspada. Parecia forte e em forma, e suas feições eram incisivas e bem angulosas. Os olhos irradiavam uma espécie de brilho assassino. O nariz comprido começava praticamente no meio da testa e descia reto como uma echa até a parte superior da boca. Era uma boca cruel, se é que isso existia. Sem dúvida, aquele homem era cruel, perigoso. Caso contrário, Shaw não estaria olhando para a sua foto. Ele nunca ia atrás de santos, apenas de pecadores violentos. – Ele está bem para a idade – comentou Shaw, deixando que a foto caísse sobre a mesinha. – Há duas décadas, pelo menos, ele está envolvido em qualquer coisa que possa gerar muito dinheiro. Na superfície, ele é impecável. Negócios legítimos, discrição, doações a obras de caridade, ajuda a países do Terceiro Mundo na área de infraestrutura. – Mas...? – Mas descobrimos que, por trás da sua fortuna, está o tráco de pessoas, em especial de jovens asiáticas e africanas sequestradas aos montes por seu pessoal e, em seguida, vendidas para a prostituição no Ocidente. É por isso que ele se interessa tanto pelo desenvolvimento do Terceiro Mundo. É a sua fonte. E seus negócios legítimos lavam o dinheiro dessas atividades. – Tudo bem, isso o qualifica a receber uma merecida visita minha. Frank se levantou, preparou um bloody mary no pequeno bar da aeronave e colocou um talo de aipo no copo. Voltou a se sentar enquanto mexia o coquetel com uma colher comprida. – Waller escondeu bem os detalhes. Demoramos a descobrir seus podres, que, ainda assim, não podem ser usados contra ele em um tribunal. Com certeza o cara é corrupto, mas conseguir provar isso é outra história. – Então por que estamos nos dando o trabalho de ir atrás dele se não podemos prendê-lo? Isso só vai servir para alertá-lo. Frank balançou a cabeça.
– Não se trata de capturar e processar. Trata-se de capturar e delatar. Nós o pegamos e o convencemos de que é do interesse dele nos informar sobre seu novo ramo de atividade, que acabamos de descobrir. – Qual? – Comércio de material nuclear com fundamentalistas islâmicos que estão entre os criminosos mais procurados do mundo. Ele os dedura e obtém um acordo. – Que tipo de acordo? – Basicamente, ele se safa. – Para continuar a escravizar garotinhas? – Estamos falando de evitar um holocausto nuclear, Shaw. É uma barganha que o alto escalão se dispõe a fazer. Pelo menos, vamos interromper suas operações por um tempo. Mas ele mantém a liberdade e o dinheiro que escondeu pelo mundo todo. – Portanto, ele volta a operar normalmente. Sabe, às vezes não sei direito com qual demônio estamos de fato lidando. – Nós lidamos com todos eles, só que de maneiras diferentes. – Tudo bem. Então, qual é o plano? – Descobrimos que ele vai tirar férias no sul da França no intervalo entre o planejamento dos holocaustos nucleares. Alugou uma mansão em Gordes. Conhece? – Shaw negou e Frank completou: – É um lugar lindo, pelo que dizem. – Viena também é, pelo menos é o que ouvi dizer. E tudo o que vejo são os esgotos, os pronto-socorros e o necrotério. – Ele viaja com segurança pesada. – Costuma ser assim. Como seria a extração? – Rápida e limpa, é claro. Mas os franceses estão totalmente às escuras neste caso. Não podemos esperar ajuda alguma deles. Se você pisar na bola, está ferrado. – Nenhuma surpresa. – O cronograma é apertado. – O cronograma é sempre apertado. – É verdade – admitiu Frank. – Então, nós o raptamos e pressionamos, depois esperamos que ele fale? – Nossa tarefa é apenas capturá-lo. Outros se encarregarão de fazê-lo falar. – Certo. E eles vão deixá-lo ir embora? – questionou Shaw com nojo. – Os caras de terno é que estabelecem as regras. – Você está de terno. – Corrigindo: os caras que usam ternos caros estabelecem as regras. – Tudo bem, mas, como você deve se lembrar, na última vez que estive na França, as coisas não correram muito bem. Frank deu de ombros. – Então, vamos analisar os detalhes.
Shaw terminou de beber seu café. – Tudo depende dos detalhes, Frank. E de bastante sorte.
5
REGGIE CAMPION SAIU DO apartamento em Londres no seu Smart amassado e com dez anos de estrada e rumou para o norte, deixando Leavesden para trás e seguindo por mais alguns quilômetros. Após serpear por estreitas estradinhas vicinais, ela entrou em uma via de terra que permitia apenas a passagem de um carro por vez, e, no m, chegou a um trecho com colunas de pedra cobertas por líquens que ostentavam o nome “Harrowseld” , indicando a propriedade na qual ela se encontrava naquele momento. Seu olhar, como de costume, acompanhou o caminho de cascalho que levava a uma mansão caindo aos pedaços. Algumas pessoas armavam que Rudyard Kipling já alugara aquela propriedade. Reggie duvidava, embora acreditasse que aquele lugar teria agradado o escritor que criara histórias de aventura tão maravilhosas e repletas de intrigas. Era um imóvel amplo, com instalações precárias, portas e passagens secretas, torres de pedra com aposentos congelantes, uma enorme biblioteca, corredores sem saída, um sótão cheio de artefatos dignos de museus e também muito lixo, uma adega apertada com garrafas mofadas de vinho geralmente intragável, uma cozinha antiquada com goteiras no teto e os desencapados que soltavam faíscas, além de anexos em número suciente para abrigar batalhões do Exército ao longo de mais de cem hectares de campos abandonados. Apesar de ser uma casa antiga, fedorenta e, em sua maior parte, inabitável, Reggie a adorava. Se tivesse dinheiro, iria comprá-la. Mas nunca teria o suficiente para isso. Ela costumava pernoitar ali. Insone, percorria a mansão escura por horas a o. Foi numa dessas ocasiões que ela acreditou sentir a presença de outras pessoas que também tinham Harrowseld como lar, embora não estivessem mais entre os vivos. Por ela, caria o tempo inteiro ali. Seu apartamento era pequeno, básico, situado em uma parte ruim da cidade e, mesmo assim, gerava um custo maior do que podia pagar. Reggie havia reduzido os gastos com alimentação e vestuário para conseguir sobreviver. Sem dúvida, ela não escolhera aquela carreira por causa do retorno financeiro. Após estacionar o carro diante da antiga cocheira transformada em garagem e ocina, ela viu que várias pessoas já haviam chegado. Ela usou a chave para abrir a porta do vestíbulo da mansão e ouviu o toque de um pequeno sino. Um instante depois, um homem musculoso e de ombros largos, com pouco menos de 1,80 metro e na casa dos 30 anos, surgiu de um aposento interno. Em uma das mãos, ele segurava uma xícara de chá e, na outra, um revólver 9 milímetros, apontando-o para o peito de Reggie. Estava vestindo calças de
veludo cotelê justas, uma camisa branca de botões com as mangas arregaçadas e mocassins de couro preto sem meias, apesar do frio úmido que era normal em Harrowseld mesmo no verão. Suas sobrancelhas escuras e espessas quase se uniam e seus cabelos castanhos e desalinhados caíam sobre a testa. Ao vê-la, ele colocou a arma no coldre preso ao ombro, sorriu e tomou um gole de chá. – Oi, Reg – cumprimentou Whit Beckham. – Devia ligar quando chegasse no portão. Quase atirei em você. Eu ficaria mal por semanas se fizesse isso. Seu forte sotaque irlandês se atenuara ao longo dos últimos anos e agora Reggie conseguia entender quase tudo o que ele dizia sem o serviço de um tradutor. Ela tirou a jaqueta e a pendurou em um gancho de madeira na parede. Usava jeans desbotados, um suéter leve de gola rulê cor de vinho e botinas pretas. Seus cabelos haviam voltado ao tom castanho-escuro original, mantidos junto à nuca por uma presilha de tartaruga. Ela estava sem maquiagem e, embora só tivesse 28 anos, era possível ver, sob a luz que entrava pelas janelas, as rugas começarem a se formar em volta de seus olhos grandes e intensos. – Meu celular nunca pega aqui, Whit. – Acho que está na hora de mudar de operadora, então – aconselhou ele. – Chá? – Café, quanto mais forte melhor. O voo foi longo e não dormi muito. – É para já. – Ótimo, obrigada. Dom está aqui? Não vi a moto dele. – Acho que ele estacionou em uma das garagens. E não é uma simples moto. – O que é, então? – Uma moto de corrida. Tem a ver com cilindradas e coisas do tipo, entende? – Interessante. Brinquedos dos homens. Whit a encarou. – Você está bem? Reggie forçou um sorriso. – Estou incrível. Nunca estive melhor. Depois da primeira vez, só melhora. Ele franziu a testa. – Isso é mentira. – Quem disse? – Não esqueça que Huber matou centenas de milhares de pessoas e se safou por mais de sessenta anos. – Li os mesmos relatórios que você, Whit. O ímpeto dele pareceu arrefecer. – Bem, talvez você precise descansar. Recarregar as baterias. – Minhas baterias estão carregadas. Só com o longo voo e alguns drinques, o coronel Huber foi apagado da minha memória. Whit sorriu.
– Tem certeza de que não está surtando? – Tenho, mas obrigada por perguntar. Quem está aqui? – Os de sempre. Ela olhou para o relógio. – Começaram cedo? – Trabalho novo, todos ficam meio excitados. – Inclusive eu. – Tem certeza? – Não seja idiota. Vá pegar meu café.
6
REGGIE CAMINHOU POR PASSAGENS que cheiravam a mofo até chegar a portas duplas de madeira com pirogravuras de livros em cada um dos lados. Ela entrou na biblioteca. Havia três paredes de livros com escadas que corriam em trilhos de latão manchados. Uma quarta parede estava coberta de velhas fotos e retratos de homens e mulheres mortos fazia muito tempo. Destacava-se no aposento uma lareira de pedra que ia do chão ao teto, uma das poucas que funcionavam bem naquela casa. Mesmo assim, costumava lançar fumaça para dentro do aposento. Reggie parou para se aquecer diante das chamas antes de se virar e olhar os que se encontravam ao redor da grande mesa em estilo espanhol, que cava no centro do cômodo. Ela acenou com a cabeça para cada uma das pessoas, todas mais velhas do que ela, exceto Dominic, que parecia relaxado na outra extremidade da mesa. Em seguida, seu olhar se xou no senhor à cabeceira. Miles Mallory usava calças e paletó de tweed, uma gravataborboleta torta, uma camisa amassada com uma das pontas do colarinho virada para cima, sapatos confortáveis de bico quadrado e meias que não chegavam a cobrir suas canelas gorduchas e sem pelos. Sua enorme cabeça era circundada por uma linha de cabelos grisalhos desalinhados que havia meses não eram cortados. Sua barba, no entanto, estava bem aparada e apresentava um pequeno pedaço creme perto do queixo. Os olhos eram verdes e inquisidores; os óculos, de armação preta e grossa; as bochechas, caídas; a boca, pequena e petulante; os dentes, manchados de tabaco e um pouco tortos. Em sua mão direita, havia um pequeno cachimbo curvo e ele estava ocupado em enchê-lo com uma mistura fétida de tabaco, que logo empestearia a sala. – O senhor parece empolgado, professor Mallory – comentou Reggie em tom agradável. – Já elogiei o jovem Dominic. Permita-me agora ser o primeiro a parabenizá-la por seu excelente trabalho na Argentina. – Sinto muito, professor, mas me antecipei ao senhor – replicou Whit, entrando no aposento e entregando a Reggie uma xícara de café tão quente que ainda soltava vapor, embora a cozinha ficasse a cerca de um quilômetro da biblioteca. – Ah, tudo bem – disse Mallory, simpático. – Permita-me, então, ser o segundo. Reggie tomou um gole de café. Ela nunca se sentia à vontade falando do que zera mesmo com pessoas que a tinham ajudado. No entanto, matar alguém que exterminara tantas pessoas não suscitava as emoções humanas costumeiras. Para ela, bem como para todos ao
redor daquela mesa, seus alvos haviam perdido todo e qualquer direito por causa dos atos odiosos perpetrados. Era como discutir o abate de um cão raivoso. Mas talvez aquela fosse uma comparação injusta, pensou Reggie. Para o cachorro. – Obrigada. Porém, infelizmente, tenho certeza de que, apesar de tudo, Herr Huber vai descansar em paz. Mallory retrucou com frieza: – Duvido muito que o coronel esteja descansando neste momento. As chamas, sem dúvida, queimam muito. – Se é o que o senhor diz... Teologia nunca foi meu ponto forte. – Ela se sentou em uma cadeira. – Mas Huber agora é passado. Vamos seguir em frente. – Sim – concordou Mallory com avidez. – Sim. Exatamente. Agora, seguimos em frente. Whit deu um sorriso mordaz. – Vamos ver se conseguimos domar o monstro mais uma vez sem nos sujarmos. Mallory fez um sinal com a cabeça para a mulher magra e de cabelos claros sentada à sua direita. – Liza, por gentileza. Ela distribuiu várias pastas de papel pardo cheias de cópias de documentos presas por elásticos vermelho-sangue. – Sabe, professor – disse Whit –, todos esses dados cabem em um pen drive e podem ser exibidos em nossos laptops. É muito mais conveniente do que transportar tudo isso no meu carro. – Laptops podem ser perdidos e danificados. Até mesmo violados. “Hackeados”, acho que é o termo preciso – replicou Mallory com uma ponta de indignação, mas também com o ar inseguro de uma pessoa para a qual os computadores permanecem um enigma. Whit levantou a pasta. – Papel também pode ser roubado com uma certa facilidade, ainda mais 10 quilos de documentos. – Bem, vamos ao que interessa – falou Mallory com rispidez, ignorando o comentário. Ele segurou a foto de um homem na casa dos 60 anos, de nariz comprido, cabeça raspada e uma expressão que suscitava medo. – Evan Waller – apresentou Mallory. – Acredita-se que tenha nascido no Canadá há 63 anos, mas essa informação é incorreta. Tem a reputação de um empresário honesto. Mas... – Mas qual é a verdade por trás disso? – cortou Whit, tirando o revólver do coldre e o colocando sobre a mesa. Se Mallory cou incomodado porque Whit interrompeu ou mostrou a arma, não o demonstrou. Seus olhos brilharam quando ele prosseguiu: – Evan Waller, na verdade, é Fedir Kuchin. Quando ele olhou à sua volta e não percebeu nenhuma reação no grupo, cou decepcionado.
– Nascido na Ucrânia, ele entrou para o Exército e, depois, para a polícia secreta nacional que se reportava diretamente à KGB. Essa revelação também não gerou nenhum comentário, então Mallory acrescentou irritado: – Vocês nunca ouviram falar do Holodomor? – Ele olhou para a extremidade oposta da mesa. – Dominic, sem dúvida na universidade falaram sobre isso – acrescentou, suplicante. Dominic balançou a cabeça com uma expressão de dor por ter decepcionado o velho. – Holodomor é uma palavra ucraniana que signica “morrer de fome” . Stalin matou quase dez milhões de ucranianos no início da década de 1930 por inanição em massa. Isso corresponde a quase um terço das crianças da Ucrânia. – Como ele conseguiu fazer isso? – perguntou Whit, enojado. – Stalin enviou tropas e agentes da polícia secreta que levaram todos os animais, alimentos, sementes e ferramentas, em especial na região do rio Dnieper, conhecida por ser o celeiro da Europa. Depois, fechou as fronteiras para evitar fugas e reabastecimento, e também para impedir que as notícias chegassem ao resto do mundo. Não havia internet naquela época, óbvio. Cidades inteiras morreram de fome; quase um quarto da população rural do país se extinguiu em menos de dois anos. – Stalin rivalizava com Hitler em termos de atrocidade – comentou Liza Kent, categórica. Com quase 50 anos, ela parecia muito antiquada com seus sapatos grosseiros, saia longa e blusa branca com babados. Os cabelos louro-claros, entremeados de mechas grisalhas, eram muito nos e estavam cortados à altura dos ombros, mas ela os prendia em um coque apertado. O rosto não tinha traços notáveis e os penetrantes olhos cor de âmbar cavam escondidos atrás de lentes grossas engastadas em uma armação muito conservadora. Liza passaria despercebida em quase qualquer lugar. De fato, ela havia trabalhado no serviço secreto britânico por doze anos, realizando operações de contrainteligência de alto nível em três continentes, e tinha uma bala de rie romena perigosamente alojada perto da espinha dorsal. Aquele ferimento a forçara a se aposentar antes do tempo, com uma pensão modesta do governo. Ela logo se cansou de zanzar pelo seu pequeno jardim e se juntou ao professor. – Por que ele fez isso? – questionou Dominic. – Por que Stalin matava, é isso que você quer saber? – perguntou Mallory em tom agressivo. – Por que uma cobra ataca? Ou por que um tubarão-branco devora sua presa com selvageria? Era o que ele fazia, em uma escala maior do que qualquer outra pessoa antes ou depois dele. Um louco. – Mas Stalin também era um louco com um motivo – interveio Reggie, correndo o olhar pela mesa. – Ele estava tentando eliminar o nacionalismo ucraniano. E também evitar que os fazendeiros resistissem à coletivização da agricultura. Dizem que não há nenhum ucraniano vivo que não tenha perdido um parente por causa do Holodomor. Mallory sorriu, satisfeito.
– Você é uma ótima estudiosa de história, Reggie. Ela lançou um olhar duro para Mallory. – Isso não é história, professor, é horror. Whit parecia confuso. – Não estou entendendo. Tudo isso aconteceu na década de 1930, certo? Se ele só tem 63 anos, o tal Waller, ou Fedir Kuchin, nem havia nascido naquela época. Mallory uniu as pontas dos dedos. – Beckham, você acha que o genocídio parou só porque Stalin morreu? O regime comunista persistiu durante várias décadas após o último suspiro do monstro. – É aí que Fedir Kuchin entra em cena? – indagou Reggie em voz baixa. Mallory se recostou na cadeira e assentiu. – Ele se alistou no Exército ainda jovem e teve uma ascensão relativamente rápida. Por causa de sua inteligência excepcional e crueldade inabalável, ele logo foi recrutado para fazer trabalhos de espionagem e acabou na polícia secreta, na qual galgou posições até se tornar um déspota. Isso aconteceu mais ou menos na época em que o Exército Vermelho encontrou um adversário à altura e começou sua derrocada no Afeganistão. Além disso, outros países-satélites da União Soviética, como a Polônia, começaram a fazer pressão para se libertarem e persistiram até a queda do comunismo. Kuchin recebia ordens do Kremlin para fazer todo o possível para esmagar qualquer tipo de oposição. Embora seus superiores tenham recebido grande parte do crédito, ele se tornou o homem em campo que manteria Kiev alinhada a Moscou. E chegou muito perto de atingir seu objetivo. – Como? – perguntou Whit. Em resposta, Mallory abriu o dossiê e sinalizou para que os outros fizessem o mesmo. – Leiam o primeiro relatório e, em seguida, vejam a série de imagens que o acompanha. Se isso não responder à pergunta, acho que nada será suficiente. Por alguns minutos, a sala cou em silêncio, exceto por uns poucos arquejos toda vez que alguém se sobressaltava com as fotos. Reggie fechou o dossiê com as mãos trêmulas. Ela encarara muitos monstros, mas o nível de maldade ainda conseguia surpreendê-la e abalá-la. Tinha medo de que um dia isso não acontecesse mais e ela perdesse sua humanidade. Às vezes, receava já tê-la perdido. – A versão dele do Holodomor – comentou Whit em uma voz sumida. – Só que ele espalhou toxinas pelo ar e por reservatórios de água, e milhares de pessoas foram forçadas a entrar em poços para serem queimadas vivas. Filho da puta! – E Kuchin esterilizou milhares de garotas – acrescentou Reggie baixinho, as rugas em volta dos seus olhos se intensicando. – Para que elas nunca pudessem gerar homens para lutar contra os soviéticos. Mallory bateu com o dedo no dossiê. – Além de centenas de outras atrocidades desse tipo. Como em geral acontece com homens perspicazes, Kuchin viu a derrocada se aproximando antes de seus superiores.
Forjou a própria morte e fugiu para a Ásia e, de lá, para a Austrália. Seguiu para o Canadá, onde construiu uma nova vida com documentos falsos e um carisma que conseguiu ocultar sua natureza sádica. O mundo acha que ele é um empresário honesto e altamente bemsucedido, e não o carniceiro e criminoso de guerra que de fato é. Foram necessários três anos para reunir este dossiê. – E onde ele está agora? – perguntou Reggie, encarando uma foto do dossiê que mostrava os restos de uma vala comum repleta de esqueletos de crianças. Mallory deu um trago no cachimbo e uma nuvem de fumaça se levantou sobre sua cabeça. – Neste verão, ele vai passar as férias na Provence. No vilarejo de Gordes, para ser mais exato. – Fico imaginando qual deve ser a sensação... – disse Reggie, olhando para o nada. – Que sensação, Reg? – indagou Whit, curioso. Ela fitou mais uma vez a foto dos pequenos esqueletos. – A sensação de morrer em um lugar tão bonito quanto a Provence, é claro.
7
A LONGA REUNIÃO SÓ TERMINOU ao entardecer, mas Reggie ainda tinha trabalho a fazer. Ela saiu da mansão dilapidada e cou observando o terreno por alguns instantes enquanto escurecia. Desde que o quartel-general da organização de Miles Mallory se estabelecera ali, Reggie começara a ler sobre aquele lugar. Originalmente, um castelo feudal se erguia no local onde cava a casa. As terras vizinhas haviam sido o feudo do rico dono da propriedade, que governava seu povo sempre de armadura, preparado para, a qualquer momento, fender um ou dois crânios com seu machado. Mais tarde, o castelo ruiu e, em seu lugar, ergueu-se a mansão. Os feudos tinham se dissolvido e os nobres substituíram a armadura e o machado pela ameaça de prisão aos agricultores que arrendavam as terras e não pagavam as contas. A propriedade permanecera na mesma família por várias gerações, sendo herdada por primos distantes dos donos originais, cuja renda nunca chegou perto do nível necessário para manter o terreno. Durante as duas guerras mundiais, Harrowseld – Reggie nunca descobriu uma explicação denitiva sobre a origem do nome – foi usada como hospital para soldados feridos. Depois, cou abandonada por décadas até que o governo foi obrigado a assumi-la e realizar consertos mínimos. Mallory descobriu o lugar e trapaceou para poder usá-lo. Para o resto do mundo, tratava-se meramente de um ponto de encontro informal para acadêmicos excêntricos cujo trabalho era tão esotérico quanto inócuo. Reggie passou pelas colunas de madeira de buxo, que cheiravam a urina. Embora já fosse o m da primavera, sentia uma brisa gelada às suas costas à medida que avançava. Fechou o zíper da grande e surrada jaqueta de couro, que havia pertencido ao irmão mais velho, morto aos 12 anos já com 1,85 metro. Reggie se sentia frágil, como uma vidraça rachada que se desintegraria com qualquer impacto. Depois de caminhar cerca de 500 metros, ela abriu a porta daquilo que, um dia, fora a estufa. Nenhum jardineiro entrava ali havia décadas e o ambiente estava tomado pelo cheiro de turfa, húmus e plantas apodrecendo. Reggie passou por vidro estilhaçado e tábuas soltas que tinham caído do teto. Sombras se estendiam em todas as direções à medida que o sol ia se pondo nos campos ingleses. A brisa estava cada vez mais fria, penetrando pelas pequenas ssuras nas janelas e paredes, fazendo com que ondulassem as teias de aranha e farfalhassem os resquícios em decomposição daquele paraíso dos horticultores. Reggie foi até a porta dupla em um dos cantos da estufa e abriu o pesado cadeado que a
trancava. Dentro, puxou a corrente que acendia a lâmpada e uma luz fraca iluminou a passagem à sua frente; o cheiro forte de terra úmida deixou-a um pouco enjoada. Por um bom tempo, Reggie caminhou por um declive de 20 graus antes de o túnel se nivelar. Não tinha a menor ideia de quem o escavara, e por quê, mas, naquele momento, aquele era um lugar útil. Ela chegou ao m da passagem, onde vários colchões tinham sido colocados em pé, um atrás do outro. Sobre uma pequena mesa posicionada contra uma parede lateral de terra, havia uma pilha de papéis, um pequeno ventilador a pilha e diversos abafadores de ouvido e óculos de proteção. Reggie pegou a folha superior e, usando um clipe, prendeu-a a uma corda suspensa entre duas paredes. Pôs um par de abafadores em torno do pescoço e colocou os óculos. Na folha de papel, estava a imagem enegrecida de um homem com círculos negros à sua volta. Reggie se afastou 10 metros, sacou a pistola do coldre preso ao cinto, vericou o carregador, pôs os abafadores, cou na sua posição preferida para atirar, mirou e disparou toda a munição. Havia pouquíssima ventilação ali e o odor acre da artilharia logo foi absorvido por suas narinas. Partículas de terra deslocadas pela descarga da arma caíram pelas rachaduras das tábuas gastas do teto. Ela tossiu, sacudiu a mão para dissipar a fumaça e a poeira e seguiu em frente para examinar sua pontaria, parando por um instante para ligar o ventilador, que começou a se mover preguiçosamente, demorando a levar embora a névoa. Aquilo que era um estande de tiro de primeira classe! Sete dos onze projéteis se cravaram onde ela queria, no torso. Todos teriam atingido órgãos vitais se o alvo fosse real. Dois acertaram a cabeça, que ela também havia mirado. Um tinha ido parar a apenas um milímetro da zona vital. O último errara o alvo por uma margem inaceitável. Ela substituiu o alvo por um novo, recarregou a arma e repetiu a operação. Dez em onze. Outra vez. Todos os onze. Mais uma vez. Nove em onze. Apesar dos esforços do ventilador, uma fumaça espessa tomara conta do túnel e os pulmões de Reggie estavam congestionados. – Merda! – grunhiu ela enquanto tentava dispersar a névoa escura com a mão. Reggie calculou que errara os últimos tiros porque não havia sido capaz de respirar nem enxergar o maldito alvo. Percorreu lentamente o caminho de volta até a estufa, esperando que algum dia pudesse utilizar um estande de tiro apropriado. Mas o túnel era o único lugar no qual o som dos disparos não chegava aos ouvidos de quem poderia contatar a delegacia de polícia local. Acadêmicos esotéricos não costumavam ter uma queda por armas de fogo. Ela ficou surpresa ao ver Whit em pé ao lado da saída. – Achei que você estaria aqui embaixo. Como está sua pontaria? – perguntou ele. – Terrível – respondeu, fechando e trancando as portas. Ele se apoiou em uma bancada com tampo de vidro que antigamente era usada para mudas. O frio estava aumentando e sua respiração saiu como vapor. – Bem, não se preocupe com isso. Em geral, sua arma não é um revólver. Você faz mais o
tipo “garota que usa faca e travesseiro”. Já eu sou o homem da 9 milímetros. Ela franziu a testa diante daquela grosseria. – Whit, você sabe mesmo como ser um idiota às vezes. – Não estou fazendo pouco de ninguém. É que você é a pessoa mais tensa que já conheci. – Então, você precisa sair mais. Na verdade, sou bem relaxada. – O que você acha do tal Fedir Kuchin? – Acho que logo iremos ao seu encontro na Provence. – Planejamento meio curto. Eu preferiria mais tempo. Ela deu de ombros. – Segundo o que o professor disse, a víbora não costuma sair da toca com muita frequência. Essa talvez seja nossa única oportunidade. – Seu disfarce precisa ser de primeira. Esse sujeito tem os meios para fazer investigações pormenorizadas. – Nosso pessoal sempre foi bem-sucedido – retrucou ela, e esperou, sentindo que ele tinha algo mais a dizer. – Quero entrar em campo – explicou ele. Fez uma pausa, provavelmente para observar a reação dela. – Talvez você possa se aproximar do professor e falar com ele. Reggie pôs a pistola dentro do coldre e limpou a mão em um pano que havia pegado de cima de uma bancada. – O plano ainda se encontra no estágio preliminar. Temos tempo para isso. – Você sabe como Mallory pensa. Para ele, você é sempre a primeira opção. – Você já liderou missões, Whit – replicou ela com firmeza. – Sim, antes que você chegasse. Não me interprete mal, não estou pondo a culpa em você. Você é excelente, brilhante. E, como em geral vamos atrás de velhos, faz sentido termos uma mulher na liderança para que eles baixem a guarda. Mas eu também não sou ruim. Não escolhi este trabalho para ficar carregando malas o tempo todo. Quero estar dentro. Ela pensou a respeito por alguns instantes. – Vou falar com o professor. Kuchin não é um nazista de 90 anos que vai ser enganado por um rostinho bonito e um pedaço de coxa, não é? Whit sorriu e se aproximou, olhando-a de cima a baixo. – Não se menospreze, Reg. Essas coisas funcionam para a maioria dos homens. Jovens e velhos. Ela sorriu e deu um tapinha de leve em sua bochecha. – Obrigada pela oferta, mas pode cair fora. Antes que Whit pudesse dar outro passo em sua direção, Reggie passou por ele e tomou o caminho de volta para a mansão. Resolveu parar no cemitério da propriedade, que cava a uma distância respeitável da casa principal, após um grupo de bétulas, cercado por uma sebe de teixo. As lápides estavam escurecidas e o frio parecia mais intenso naquele lugar, como se os cadáveres ali embaixo pudessem de alguma maneira estender sua inuência
gélida até a superfície. Ela se postou em frente a um túmulo e, como de costume, leu em voz alta os dizeres na lápide: – “Laura R. Campion, nascida em 1779, falecida em 1804. Um anjo que voltou para o céu.” Reggie não sabia se tinha algum parentesco com Laura R. Campion ou se o segundo nome da mulher era Regina. Ela estava com 25 anos apenas quando morreu, o que não era incomum naquela época. Talvez tivesse morrido ao dar à luz, como acontecia com muitas mulheres. Ao descobrir aquela lápide enquanto caminhava pela propriedade uma manhã, Reggie começou a procurar avidamente outros Campions enterrados ali. Não havia mais ninguém da família, embora outros sobrenomes se repetissem. Ela pesquisou Laura R. Campion na internet e na biblioteca, mas não encontrou nada. omas Campion fora um poeta nascido no século XVI e uma de suas obras mais conhecidas se referia a uma mulher chamada Laura, mas Reggie não conseguia ver nenhuma ligação. Enquanto retornava para a casa, ela pensou em sua família, pelo menos na que ela teve. Pelo que sabia, ela era a única sobrevivente. Sua árvore genealógica era um pouco complicada. Por esse motivo, havia um buraco em seu peito, uma zona totalmente morta. Toda vez que ela tentava entender o que a motivava a viajar pelo mundo para perseguir o mal, aquela zona a repelia, nunca permitindo ser fechada, nunca permitindo que ela respirasse livre. Reggie pegou suas coisas na mansão e tomou a estrada de volta para Londres. Haveria mais reuniões em Harrowseld. Relatórios da inteligência e históricos mastigados ao máximo. Um plano enm surgiria e eles o renariam, tentando eliminar todos os possíveis erros. Quando os preparativos estivessem completos, ela viajaria à Provence e tentaria matar outro monstro. Nessa equação simples, Regina Campion teria que encontrar todo o consolo que a vida lhe reservava.
8
SHAW ESTAVA EM PARIS e havia chegado ao m de um dia intenso de preparativos. Vestiu uma bermuda e uma camiseta branca larga e foi correr às margens do Sena, passando pelo Jardim das Tulherias, o Museu de l’Orangerie, o Grand Palais e a Avenue de New York antes de atravessar uma ponte, que cruzava o famoso rio que corta Paris, e, alguns minutos mais tarde, chegar à larga base da torre Eiffel. Shaw desacelerou, percorrendo o espaço verde antes de aumentar de novo o ritmo. Por m, foi dar na região de Saint-Germain, na margem esquerda, onde estava localizado seu pequeno hotel. Ele normalmente preferia o Quartier Latin quando se encontrava na cidade, mas Frank havia tomado outras providências. Após tomar banho e trocar de roupa, ele foi jantar com Frank perto do Museu d’Orsay. Os dois escolheram uma mesa de canto na área externa do restaurante, que era separada da calçada por vasos de plantas retangulares pendurados em altas divisórias de ferro batido. Antes de ir embora, Frank deu a Shaw um pedaço de papel. – O que é isto? – Um número de telefone. – De quem? – Apenas ligue. Frank enou o chapéu na cabeça e saiu andando. Shaw viu-o parar junto à porta para acender um dos seus pequenos charutos antes de desaparecer às pressas entre a massa humana que caminhava ao longo da movimentada rua. Shaw voltou ao hotel enquanto tentava se animar absorvendo a magia de uma das cidades mais encantadoras do mundo, mas o efeito foi o oposto. Fora em um hospital em Paris – no qual ele lutava por sua vida após ter o braço quase amputado por um neonazista – que ele soubera da morte de Anna. E isso logo após ela ter aceitado seu pedido de casamento. Anna era uma linguista brilhante e dissera “sim” em vários idiomas. Shaw até havia ido à cidadezinha na Alemanha onde sua família morava para pedir ao pai da moça sua mão. Então, ela morrera. O caminho de Shaw o levou à margem do rio. Ele foi até a ilha da catedral de Notre-Dame. A igreja passara por uma limpeza havia pouco tempo, séculos de fuligem removidos com água pressurizada. Por algum motivo, Shaw a preferia suja. Ele consultou o relógio. Eram quase 21h e a igreja fechava às 18h45 nos dias de semana. Turistas ainda circulavam por ali
tirando fotos do exterior e deles mesmos à frente do prédio. Ele não era um homem particularmente religioso e nem sabia ao certo por que estava ali. Para rezar? Bem, ele estava sem sorte. Deus, ao que parecia, encerrara o expediente naquela noite. Shaw voltou ao quarto do hotel, sentou-se em uma pequena cadeira e tirou do bolso o pedaço de papel. Pegou o celular e digitou o número. – Alô? Shaw não ouvia aquela voz havia meses. Despreparado, apertou o botão para encerrar a ligação. Maldição, Frank. Shaw pensara que o telefone tinha algo a ver com a missão atual. Mas não tinha. Aquela era a voz de Katie James. Ele se deitou na cama e olhou para o teto azul-claro. O último dia que os dois passaram juntos não fora como Shaw havia desejado. Bem, talvez tivesse sido, já que, ao amanhecer, ele deixou o hotel em Zurique onde estavam hospedados, pegou o transfer para o aeroporto e partiu no primeiro voo disponível; o destino não era importante. Katie acordou, desceu para encontrá-lo no café da manhã e, provavelmente, cou fora de si quando ele não apareceu. Ela telefonou, mas ele nunca retornou as ligações. Shaw mudara de número. Ele não sabia por que havia feito tudo aquilo. Ele nunca tinha fugido de nada nem de ninguém até então. Mas acordara em uma manhã fria na Suíça e sentira que precisava ficar sozinho. Então, simplesmente fugi. Shaw olhou mais uma vez para o pedaço de papel. Deveria pelo menos dar a Katie a oportunidade de soltar os cachorros em cima dele. Porém, uma hora se passou e ele não se mexeu. Ele se sentou e digitou o número. – Oi, Shaw – disse ela. – Como você sabia que era eu? – Você ligou há mais de uma hora e desligou. – Você não tinha como saber que era eu. Meu número é bloqueado. – Mesmo assim, eu sabia que era você. – Como? Você não recebe outros telefonemas? – Não neste telefone. Só dei este número a Frank, para que ele pudesse dá-lo a você. – Certo – falou ele lentamente. – Então, por que você não tentou ligar de volta? Era só apertar o botão de discagem para o meu número. – Pensei que era melhor deixar que você pensasse a respeito. Como você está? – Você não quer gritar comigo? – Por quê? Adiantaria alguma coisa? Aquela não parecia a Katie James que ele conhecia. Ela era pura emoção, com os sentimentos à flor da pele, transparecendo em suas matérias jornalísticas. Aquela mulher era
impulsiva, bem diferente dele, e Shaw, ao mesmo tempo, a desaprovava e admirava por isso. Ou pelo menos ele achava que era bem diferente. Na verdade, perto dela, ele podia ser bem espontâneo. Shaw se levantou e foi até a janela que dava para o pátio com pavimentação de pedra do hotel enquanto a noite caía sobre Paris. – Estou bem. E você, como está? – Voltei a trabalhar por conta própria. Recebi algumas ofertas de emprego, mas nenhuma de fato me interessou. – Só porcarias? – The New York Times, Der Spiegel na Alemanha, até a Rolling Stone. Só baixo nível. – Achei que você quisesse voltar ao jogo. – Acho que eu estava enganada. Como está Frank? – Na mesma. – Então, ao que parece, você voltou ao seu jogo. – Acho que sim – murmurou ele. – Onde você está? – Trabalhando. – Por enquanto, estou em São Francisco. Então, quando você acha que vai ter uma folga? – Não tenho certeza. – Não tem certeza se vai sobreviver ao próximo trabalho ou é alguma outra coisa? Ele não respondeu. – Bem, se algum dia quiser conversar, você tem meu número. – Katie... – O que foi? Shaw podia ouvir a respiração dela se acelerando. – Foi bom ouvir sua voz. – Juízo. E lembre: você não precisa fazer tudo o que Frank manda. Ela desligou e Shaw jogou o telefone na cama.
9
DOMINIC BAIXOU O COPO de cerveja e deu um tapinha no braço de Reggie. – Desculpe, Dom, o que você estava dizendo? – perguntou ela, envergonhada. Eles estavam em um restaurante a alguns quarteirões do apartamento dela em Londres e Reggie começou a pensar em outras coisas enquanto ele falava. – Sei que Whit falou com você sobre a próxima operação. – Ele me parou do lado de fora do estande de tiro. Ele disse a você que ia falar comigo? – Na verdade, eu sugeri que ele a procurasse. – Por que eu? Ele poderia ter ido falar com o professor. – Ele e Whit nem sempre se dão bem. Reggie franziu atesta. – Nenhum de nós se dá bem com todo mundo o tempo inteiro. É a nossa natureza. Ela tomou um gole de chá e brincou com um biscoito em seu prato. Fora, o dia era cinzento; chuviscava e um vento forte golpeava a janela, como se tentasse entrar. Na frente deles, um fogo fraco crepitava na lareira coberta de fuligem. Reggie sabia que, se o tempo continuasse daquele jeito ao longo do verão, metade de Londres tentaria suicídio e a outra metade pensaria seriamente a respeito. Em circunstâncias normais, uma viagem para a quente e ensolarada Provence seria uma dádiva. Em circunstâncias normais. – Você sabe que ele queria uma posição de destaque na missão contra Huber e o professor se opôs? Reggie se inclinou para a frente e falou em voz baixa: – Estamos falando de Huber. Whit e suas armas não iriam funcionar naquela situação. O velho nazista queria peitos e bunda, não um irlandês irritadiço com tatuagens e uma Glock. Dominic arqueou uma sobrancelha. – Whit tem tatuagens? Reggie suspirou. – Pare com isso, Dom. Estou cansada. – Mas, talvez, no caso de Kuchin, Whit possa participar. – Eu disse a Whit que falaria com Mallory e é o que vou fazer. – Ela olhou para Dominic por cima da xícara. – E você? Que papel quer desempenhar? Dominic deu de ombros. – Andei lendo sobre o Holodomor desde a nossa primeira reunião. Estou com muita
vontade de pegar esse canalha. – Só não se deixe levar pelas emoções. Isso faz com que você perca o foco e é aí que os erros acontecem. – Como você consegue se desligar? Como consegue não sentir nada? Reggie se aproximou, arregalou seus belos olhos e sorriu, sedutora. – Vou dizer como: toda vez que Huber punha a mão na minha bunda, eu ngia que era você me apalpando, Dom. Foi assim que eu resisti. Ela pegou um pedaço de biscoito com a língua. Ele piscou e corou, confuso. Reggie riu. – Estou brincando. Decidi seguir o conselho de Whit e relaxar um pouco. Sério, quando ele fazia aquilo, não estava tocando em mim, mas passando a mão em Barbara, sua boneca alemã. Tive de interpretar aquele papel para eliminá-lo. Um passo de cada vez. Foi apenas um papel. Foi assim que cheguei até o m. Se eu me deixasse levar pelas emoções e perdesse o controle, ele teria se safado. Essa é a melhor motivação para nunca perder o controle. Não permitir que eles vençam. Dominic tomou o resto da cerveja. – Qual era a sensação? Ela olhou inexpressivamente para ele. – Quando ele enfiava a mão na minha saia? – Não, eu estava me referindo a quando... Você sabe. – Para dizer a verdade, não pensei muito a respeito. Apenas agi. – Até agora, nunca tive que fazer isso. Só estava pensando. – Deixe para pensar nisso quando chegar a hora, Dom. Cada um faz de uma maneira diferente, mas você vai dar cabo do serviço, tenho certeza. Ele ficou calado por um instante, então disse em voz baixa: – Os outros caçadores de nazistas os entregavam à polícia para que fossem julgados. Por que não fazemos a mesma coisa? Reggie falou quase sussurrando: – Esses são apenas os casos que você lê nos jornais. Você acha mesmo que não existem grupos que entregaram os alemães diretamente aos israelenses? E acha que os judeus os levaram a julgamento? As pessoas estão perdendo o interesse. Os americanos têm uma divisão do Departamento de Justiça dedicada aos nazistas. Reduziram verba e pessoal porque todos acreditam que a maioria dos partidários de Hitler estão mortos. Como se o maldito Terceiro Reich tivesse o monopólio do mal. Vi genocídios na África, na Ásia e no Leste Europeu que estão além da imaginação. O mal não tem fronteiras geográcas. Quem pensa de outra maneira é um idiota. Depois de alguns momentos de silêncio, Dominic mudou de assunto: – Então, como você vê o plano? Reggie olhou séria para ele.
– Não quero discutir isso em um lugar público. – Desculpe. Vou para Harrowsfield hoje à noite. Ela relaxou. – Eu também. O professor quer começar cedo. E o casal no apartamento em cima do meu está transando feito louco toda hora. Só ouço “Oh, oh, isso, isso!” . Ponho o volume do rádio no máximo, mas, ainda assim, estou enlouquecendo. Quer ir junto comigo no carro? – Não, vou na minha moto. – Sua moto de corrida? – perguntou ela com um toque de ironia. – O quê? Ah, Whit falou para você. – Está muito chuvoso para viajar sobre duas rodas, não é? – Tenho equipamento apropriado. – Ele acrescentou, pensativo: – Gosto mais de Harrowsfield do que da minha casa em Richmond. – Que bom que vou ter uma boa noite de sono. – A gente se vê lá, então. Preciso abastecer antes. Tchau. Enquanto eles se levantavam, Reggie pôs uma mão no ombro dele. – Dom, quando chegar a hora, pense que a justiça enm será feita. Assim você vai car bem. Eu prometo.
10
NA MANHÃ SEGUINTE, REGGIE acordou cedo. Sentou-se na cama em seu quarto no terceiro andar de Harrowseld e sentiu um arrepio. Aquela parte da casa não era aquecida. Ela olhou pela janela. A chuva havia passado e Reggie teve a impressão de ver alguns raios de sol atravessando as nuvens. Lavou o rosto com água da torneira, colocou um agasalho de ginástica e os tênis e saiu da mansão pela porta dos fundos para dar uma corrida. Oito quilômetros mais tarde, suada e respirando com regularidade, ela voltou para a casa. O cheiro de café, ovos e bacon pairava no ar, vindo da cozinha. Ela tomou um banho rápido, suportando o último minuto apenas com água fria enquanto o velho encanamento rangia em protesto contra seu uso. Vestiu uma calça jeans e um suéter preto de gola V com uma camiseta branca por baixo e calçou sapatos rasteiros, descendo até o térreo. Às vezes, podia haver até vinte pessoas em Harrowseld, mas, naquele dia, ela sabia que o número estaria mais perto de dez. Alguns deles eram historiadores que estavam trabalhando na biblioteca e em uma série de escritórios tanto no primeiro quanto no segundo andar. O único objetivo de todos eles era identicar o próximo monstro que a equipe iria caçar. Havia linguistas mergulhados em alguns idiomas de terras nas quais o novo mal estava à espreita. Outros pesquisadores se debruçavam sobre antigas mensagens telegrácas, registros diplomáticos surrupiados e relatos manuscritos de atrocidades de países do Terceiro Mundo. A tarefa se tornara mais difícil, ela sabia. Os nazistas conservavam documentos minuciosos. Os sádicos subsequentes, operando em diversos lugares, não tinham o mesmo hábito de deixar rastros de sua maldade onipresente. Mallory avaliara com muito cuidado todas as pessoas que trabalhavam ali. Obviamente, não havia um recrutamento formal. Não era possível colocar um anúncio no jornal procurando justiceiros que não tivessem problema para matar pessoas que mereciam ter aquele fim. Mallory entrara em contato com Reggie na universidade onde ele dava aulas como professor visitante. Após uma espécie de cortejo que durou um mês, ele tocou no assunto de punir os nazistas que haviam fugido da Alemanha antes da queda. Quando ela concordou, entusiasmada, com aquele objetivo, ele foi um pouco mais além, comentando sobre a possibilidade de poupar ao mundo um julgamento e de desempenhar os papéis de juiz, jurado e algoz. Mais alguns meses se passaram enquanto Reggie pensava a respeito. Ela voltou a procurá
lo por conta própria com mais perguntas e o professor as respondeu até certo ponto. Ao sentir um empenho maior da jovem, ele lhe apresentou alguns integrantes do grupo. Whit e Liza, no caso. Mais um mês se passou e, então, Mallory mostrou a Reggie alguns recortes de jornal sobre um velho que fora encontrado esfaqueado em sua luxuosa residência em Hong Kong. Embora aquele fato nunca tivesse se tornado público, o professor revelou que aquele homem havia sido identicado como ex-comandante de um campo de concentração, um dos braços direitos de Heinrich Himmler. Eles conversaram até tarde da noite sobre a ética envolvida em uma ação daquele tipo. Apesar de isto nunca ter sido dito com todas as letras, Reggie suspeitava que o professor e as outras pessoas que ela conhecera por meio dele estivessem por trás do assassinato. Àquela altura, ela estava desesperada para participar. Foi só então que Mallory levou-a a Harrowseld. Ela foi submetida a uma bateria de avaliações para determinar se tinha a constituição psicológica necessária para integrar a equipe. Reggie superou aquele obstáculo com facilidade, demonstrando uma frieza que surpreendeu até a ela mesma. Depois, teste de aptidão física. Ela foi pressionada até alcançar níveis de força e resistência que nunca soube que possuía. Com os pulmões quase estourando, ela forçou seu corpo abatido a atravessar terrenos traiçoeiros que ela não imaginava que pudessem existir no bucólico campo inglês. Whit Beckham cou ao seu lado a cada passo, embora já tivesse passado por aquilo quando se aliou ao grupo. Em seguida, houve o treino especializado: armas, artes marciais e técnicas de sobrevivência em uma miríade de condições desafiadoras. Na sala de aula, ela aprendeu como pesquisar sobre um alvo e estudar os elementos de fundo para obter informações valiosas. Aprendeu a falar e escrever em diversas línguas, a mentir com desembaraço, a interpretar papéis e saber identicar quando outras pessoas faziam o mesmo. Reggie também se tornou capaz de seguir alguém tão sorrateiramente a ponto de só ser descoberta ao se aproximar do alvo. Essa e dezenas de outras habilidades foram-lhe inculcadas tão fundo que ela não precisava mais pensar a respeito. Findo o treinamento, ela atuou como agente de apoio em três missões, duas lideradas por Whit e uma por Richard Dyson, um experiente exterminador de nazistas que depois se aposentara. A primeira missão de Reggie como líder envolvia um velho austríaco residente na Ásia que havia ajudado Hitler a matar centenas de milhares de pessoas só porque eram judias. Ela penetrou em seu círculo tornando-se a babá do lho de sua jovem esposa. O monstro se casara cinco vezes. Ficara rico por meio do roubo de antiguidades durante a guerra, tendo um patrimônio grande o suciente para levar uma vida de grande luxo mesmo após vários divórcios. Tinha um lho, um garoto de 5 anos concebido mediante inseminação articial. Reggie suspeitava que o velho nazista havia escolhido um doador de esperma branco, louro e alto. Em um mês de trabalho, o homem deu em cima dela algumas vezes. Um dia, quando estava bêbado, ele disse que Reggie poderia se tornar a esposa número seis se jogasse bem suas cartas. Certa noite, ela combinou visitá-lo em seu quarto – de acordo com a sua vontade, ele
e a mulher mantinham boudoirs separados. O velho estava alcoolizado de novo e foi manipulado por Reggie com facilidade. Após lhe atar os braços e as pernas e amordaçá-lo, ela pegou as fotos de suas vítimas e lhe mostrou, uma exigência estrita de todas as missões. No fim da vida, os monstros precisavam saber que a justiça enfim fora feita. No início, o medo que ele demonstrou a divertiu. Mas, na hora de terminar o trabalho, Reggie hesitou. Ela nunca chegou a falar disso com ninguém. Nem com Whit e muito menos com o professor. Suas palavras encorajadoras para Dominic também tinham deixado de fora aquela parte da sua história pessoal. O monstro olhou para ela com uma expressão de súplica. Durante o treinamento, haviam dito que aquele momento chegaria. E também avisaram que nenhum treinamento no mundo poderia prepará-la plenamente para aquela situação. E eles tinham razão. Sua determinação parecia abandoná-la a cada lágrima derramada por um homem que, naquele momento, era apenas um velho indefeso. Quando abaixou a faca, ela viu o alívio em seus olhos. Ela poderia dizer que o disfarce havia sido descoberto e que a missão fora um fracasso. Ninguém jamais saberia a verdade. Duas coisas impediram que isso acontecesse: a expressão de escárnio que aorou nos olhos do homem ao vê-la titubear e o retrato de Daniel Abramowitz, de 2 anos, com um buraco de bala em sua cabecinha. A foto provinha dos arquivos do próprio monstro, reunido ao longo dos anos em que ele dirigira o campo de concentração. Reggie mergulhou a faca em seu peito até o cabo bater no esterno do velho. Empurrou a faca para cima, forçou-a para baixo e, por m, moveu-a para os lados, cortando várias artérias e destruindo as cavidades cardíacas, como lhe tinham ensinado. A expressão de escárnio desaparecera do rosto do velho. Por um tempo, enquanto ainda havia vida nele, Reggie viu em seu semblante ódio, medo, raiva, medo novamente e, por m, o simples olhar vítreo da morte. – Que Deus entenda por que fiz isto – sussurrou ela. Aquelas palavras se tornaram um ritual para ela ao final de cada missão. Reggie nunca mais hesitou.
11
EQUILIBRANDO UMA XÍCARA DE chá quente em uma das mãos, Reggie carregava na outra um prato com linguiças fritas, uma maçã fatiada e torradas com manteiga. Quando entrou na biblioteca, o professor Mallory levantou os olhos de um livro grande escrito em polonês, pegou o cachimbo e sorriu. – Acho que ouvi você chegar ontem à noite. Seu carro faz um barulho diferente. – Chama-se escapamento escangalhado. Reggie sentou-se ao lado do professor, fez uma espécie de sanduíche com as torradas e as linguiças, deu uma mordida e tomou o chá. – Onde está Whit? – Acho que ele ainda não chegou. Mas espero que esteja aqui em breve. – Quero conversar com o senhor a respeito do pessoal para a missão Kuchin. Mallory pôs o livro de lado. Sua gravata-borboleta ainda estava torta, mas, naquela manhã, as pontas do colarinho da camisa apontavam para onde deveriam e, ao que parecia, ele havia penteado os cabelos. – Alguma ideia? – perguntou ele. – Acho que Whit deveria desempenhar um papel de destaque. – Ele pediu que você falasse comigo? – Não exatamente. – Eu sei que é difícil para você. E para ele. – Como assim? – Bem, você o superou na liderança em campo, Regina. O professor era o único do grupo que se referia a ela pelo nome. – Não vejo as coisas dessa forma. – Mas elas são dessa forma. – Sabe, professor, para ser sincera, o senhor poderia ter mais tato. Ele sorriu por causa daquela leve repreensão. – Se você tentar maquiar a verdade ou atenuar os fatos, apenas aumentará as chances de chegar a uma conclusão errada. – Whit é de grande valia para o grupo. – Concordo plenamente com você. Se fôssemos no encalço de mulheres, talvez ele fosse o líder. Só que nossos alvos em geral são homens com tendências heterossexuais.
– Ele já caçou homens. Com êxito. – Êxito no sentido de que os alvos foram eliminados. Mas gostamos de atuar em segredo. Por exemplo, se deixássemos provas do motivo pelo qual pusemos m à vida daquelas pessoas e essas provas se tornassem públicas, você sabe o que aconteceria? – Seria ainda mais difícil encontrar os alvos restantes. Porém, não há mais nazistas. – Isso não invalida o argumento. E permita-me corrigi-la: não há mais nazistas dos quais temos conhecimento. Novos dados podem gerar mais trabalho nesse campo. Mas veja o caso de Kuchin: se dermos cabo dele e a informação vazar, outros carniceiros do Leste Europeu disfarçados... e há pelo menos uma dúzia deles... ficariam em estado de alerta. – Mas não divulgamos o motivo das mortes. Essa informação nunca se torna pública. – Só que essa não é a única maneira de avisar alguém. – Não estou entendendo o que o senhor quer dizer. – Seu primeiro alvo como líder foi o velho austríaco que se casou cinco vezes. Você o amarrou e fez seu trabalho, mas revirou a casa e forçou uma tranca para parecer que havia sido um assalto. Além disso, você não deu no pé, mas cou na casa durante as investigações para que ninguém suspeitasse de você. Agora, vamos falar de Whit. Antes de você entrar no grupo, em uma missão como líder, ele matou um ex-chefe da Gestapo com um tiro na genitália. Ele deveria ter injetado no sujeito um veneno que se dissolve no corpo em dois minutos e não pode ser detectado. Whit arma que o frasco do veneno quebrou. Não é necessário ser um gênio para calcular que disparar uma bala nas partes íntimas de um homem e deixá-lo sangrar até a morte é algo típico de uma vingança. Na verdade, isso poderia ter posto em risco alvos futuros. – Talvez o frasco tenha realmente quebrado. Nem tudo corre como previsto em campo. O olhar afável sumiu do rosto de Mallory. – Ah, desculpe, me esqueci de uma informação crucial: Whit pintou uma suástica na testa do homem e teve a petulância de me perguntar se eu achava que era sutil demais. Reggie conteve um sorriso. – Ah. – A imprensa internacional se esbaldou e tornou nosso trabalho seguinte muito mais difícil. O Sr. Beckham e eu tivemos uma discussão a respeito. – Imagino. – No caso de Huber, já sabemos que eles acham que ele morreu depois de tentar fazer sexo com a bela Barbara e que ela fugiu com medo de uma represália. Ninguém está investigando, pois o velho tinha 96 anos e, ao que parece, morreu extremamente feliz. – O professor não conseguiu deixar de sorrir. – Mas temos uma vantagem neste caso. O mundo não faz ideia de que Evan Waller é Fedir Kuchin. Mesmo que ele seja assassinado em circunstâncias misteriosas, outras pessoas como Kuchin nem devem notar. O professor negou com a cabeça.
– Não, não. Não podemos contar com isso. Haverá a imprensa. Haverá investigações. Alguém talvez reconheça o homem. Ele tem sido muito discreto há décadas. Mesmo em seu trabalho supostamente lantrópico, ninguém o vê. É tudo feito através de intermediários. De qualquer forma, não podemos atrair atenção indesejada para o assunto. – Bem, não posso ngir que z sexo com o homem e, depois, constatar que ele morreu, como aconteceu com Huber. Há limites para o que posso fazer. Talvez um empresário como ele tenha outros inimigos em quem possamos jogar a culpa. O que sabemos sobre outras transações dele? Mallory deu de ombros. – Não muito. Nosso pessoal tinha outras prioridades. Estavam procurando Kuchin, e não um empresário possivelmente desonesto. Acredito que ele tenha outros interesses que satisfaçam sua natureza malvada, mas não sei quais são e não temos tempo para investigá-los agora. Reggie se recostou na cadeira. – Ainda acho que Whit deveria participar dessa missão. Kuchin parece capaz de tomar conta de si mesmo. Não vou conseguir subjugá-lo sozinha. No nal das contas, terá que ser um trabalho de equipe. – É verdade, nossas presas estão cando mais jovens e fortes, não é? – O professor coou a barba. – Concordo em grande parte com você. Vamos precisar de força nesse caso. E, embora tenha alguns pontos fracos, Whit sem dúvida tem músculos. Pode dizer isso a ele. – Por que o senhor mesmo não diz? – perguntou Reggie, irritada. Mallory pareceu confuso por um instante. – Não nos damos tão bem assim. Bom, vamos analisar alguns detalhes antes que a reunião comece oficialmente. – Por que o senhor faz isto, professor? – indagou ela de repente. – O quê? Você está falando do meu hábito de fumar este cachimbo fedorento? – O senhor não é judeu. Nunca mencionou nenhum ente querido que tenha sofrido nas mãos de alguma dessas vis criaturas. Então, por quê? Ele olhou para Reggie, impassível. – Um homem precisa de um motivo para buscar justiça? – Satisfaça minha curiosidade. – Hoje, não. Talvez outro dia. Posso é dizer uma coisa: você vai gostar da sua pequena morada na Provence. – É mesmo? Por quê? – Trata-se de uma mansão de cinco andares com uma vista extraordinária do vale do Luberon, e você pode ir andando até o pacato vilarejo de Gordes em menos de cinco minutos. Terrivelmente cara. O aluguel é mais caro que o do meu chalé. E esta não é a melhor parte. – Qual é, então?
– Fica bem ao lado de onde Fedir Kuchin vai se alojar.
12
EVAN WALLER RECLINOU-SE NA cadeira e leu a planilha pela quinta vez. Ele adorava números: sua mente ágil entendia suas complexidades, transformando dados em conclusões precisas. Ele tomou sua decisão, levantou-se, serviu-se uma dose pequena de Macallan’s e a bebeu. Pôs o copo sobre a mesa, pegou uma pistola e encarou o homem amarrado à cadeira. – Anwar, o que devo fazer com você? Diga. Sua voz era profunda, culta, com traços do Leste Europeu. O tom era o de um pai decepcionado com o filho malcriado. Anwar era um homem baixo com um corpo volumoso e ácido esparramado na cadeira, braços e pernas bem amarrados. O rosto redondo normalmente apresentava uma coloração marrom-clara, mas agora hematomas amarelos e arroxeados se agrupavam em suas bochechas, testa e maxilar. Um corte à faca ia da bochecha esquerda até sua narina partida. O sangue ali havia coagulado e enegrecido. Os cabelos escuros estavam emplastrados na cabeça apenas com o suor causado pelo medo. – Por favor, Sr. Waller, por favor. Isso nunca mais vai acontecer, senhor. Eu juro. – Mas como posso conar em você agora? Diga. Gosto dos seus serviços, mas preciso saber como retomar a confiança. – Foi ela. Ela me incentivou. – Ela? Conte. Anwar deixou que uma gota de sangue escorresse da boca e caísse sobre as calças antes de responder: – Minha mulher. A vadia gasta dinheiro como se fosse água. O senhor me paga bem, mas nunca é suficiente para ela. Nunca! Waller se sentou em uma cadeira em frente ao prisioneiro. Depositou a arma sobre a mesa e fez uma expressão de curiosidade. – Então, foi Gisele que o incentivou a me roubar para cobrir os gastos dela? – perguntou Waller e bateu as mãos. O som foi como o de um tiro e Anwar se encolheu. – Desde o início, eu tinha minhas dúvidas a respeito dela, Anwar. Eu falei para você, não falei? – Eu sei, senhor. Eu sei. E, como sempre, o senhor tinha razão. Se não fosse por ela, eu nunca teria feito essa coisa horrível. Aquilo me deixou enojado. Porque o senhor tem sido muito bom para mim. Como um pai. Melhor do que um pai. – Mas você é um homem. E muçulmano. Deveria ser capaz de controlar sua mulher. Faz
parte da sua cultura. Da sua fé. – Mas ela é um demônio! Uma vadia cruel. Ninguém pode controlá-la. Eu tentei, mas ela bate em mim! O senhor mesmo já viu as marcas. Waller anuiu. – Bem, de fato, ela é muito maior do que você. Mesmo assim, você é um homem, e eu desprezo homens fracos. – E ela me trai com outros homens. E mulheres! – Que nojento – disse Waller com tom de indiferença. – Você sabe onde ela está? Anwar balançou a cabeça. – Não a vejo há uma semana. Waller se recostou e abriu as mãos. – Se a encontrarmos, o que você sugere? Anwar cuspiu no chão de concreto. – Que o senhor a mate. – Então, você troca a vida dela pela sua, é isso? – Eu juro, Sr. Waller, eu nunca teria pensado em trair o senhor. Foi aquela vadia. Ela me obrigou. Ela me enlouqueceu. O senhor precisa acreditar em mim. Precisa! – Eu acredito, Anwar, eu acredito. Waller se levantou, deu alguns passos, fechou o punho e o enou na cara já inchada de Anwar. O homem caiu para o lado e seu peso morto se manteve sobre a cadeira graças apenas às amarras. Waller o suspendeu pelo cabelo ensebado. – Agora você foi bem punido. Você é valioso para mim. Muito valioso. Não posso me dar ao luxo de perdê-lo. Mas essa será a última vez que irei perdoá-lo, entendeu? Anwar, com o sangue gotejando da boca, murmurou: – Entendi. Juro que entendi. Obrigado. Não mereço tanta piedade. – Em seguida, começou a soluçar. – Chorar não é coisa de homem, Anwar. Pare imediatamente. Anwar sufocou o último soluço e levantou a cabeça. Seu olho direito estava inchado; o esquerdo, quase fechado. Waller sorriu. – Preciso fazer uma revelação. Você vai achá-la interessante, tenho certeza. Localizamos sua mulher. Gisele está em nosso poder. – Vocês estão com ela? – perguntou Anwar, estupefato. – E concordo com você, ela é um demônio. Uma mulher concebida por Deus para enlouquecer os homens. Você quer vê-la e dizer o que acha dela antes de nós a matarmos? – Seria um grande prazer para mim – murmurou Anwar sem entusiasmo. – Ou talvez você quisesse ter essa honra? Uma bala no cérebro da megera? Talvez faça muito bem a você. Uma catarse. Algo que fortalece o caráter. Anwar vacilou.
– Sou um contador. Não tenho coragem. – Tudo bem, tudo bem. Só pensei em fazer a oferta. – Waller virou-se para um de seus seguranças. – Pascal, traga a mulher para que ela encare o marido enganado. Pascal, um homem na casa dos 30 anos, pequeno e em forma, saiu por outra porta. Pouco depois, a porta se entreabriu e Anwar pôde ver a cabeça de sua mulher surgir na abertura. Sua pele normalmente escura agora estava muito pálida, seus olhos arregalados de terror. – Sua vadia desgraçada! Demônio! Veja o que você aprontou. Você... você... Anwar hesitou à medida que a porta foi se abrindo mais e Pascal entrou segurando pelos cabelos escuros a cabeça cortada. O guarda-costas não sorriu ao ver o horror no rosto do homem. Apenas agarrou a parte traseira da cabeça e a levantou, de acordo com as instruções recebidas antes do patrão. – Meu Deus. Meu Deus. Não, não pode ser! – Anwar olhou para Waller e, em seguida, voltou a fitar a cabeça da esposa. – Não pode ser. – É isso mesmo, Anwar. É isso mesmo. Mas, agora, você pode voltar a trabalhar feliz. Anwar soluçou por mais alguns instantes antes de levantar a cabeça e soltar um suspiro angustiado, mas de alívio. – Obrigado, Sr. Waller. Alá agradece ao senhor. – Não preciso das bênçãos do seu Alá, Anwar. Waller levantou a pistola e a apontou para a cabeça do homem, xando o olhar primeiro na mira da arma e, depois, no alvo. Anwar se retraiu. – Mas o senhor disse... – Eu menti. A bala atingiu o cérebro de Anwar como um torpedo. Waller relaxou e, em seguida, disparou outro tiro, que penetrou na pele um pouco à esquerda do primeiro ferimento. Pôs a arma sobre a mesa e se serviu com calma mais uma dose de uísque. Bebendo lentamente enquanto atravessava a sala, ele se virou e encarou dois de seus empregados. – Lembrem-se desta vez que o corpo de um homem de 100 quilos precisa do dobro do próprio peso para permanecer debaixo d’água – avisou. – Sim, Sr. Waller – disse um dos homens com nervosismo. – E derretam a maldita arma. – Agora mesmo, senhor. – E, Pascal, livre-se disso – acrescentou o chefe, apontando para a cabeça da mulher. – Até mais. Waller saiu da sala e se acomodou em um Hummer preto blindado que partiu depressa no momento em que ele avelou o cinto de segurança. Um Escalade o seguia e outro Hummer ia à frente. Ele havia descoberto que o contador “de conança” estava desviando parte do seu substancial uxo de caixa. Era um desfalque de pouca importância, menos de 0,1 por cento,
e não causara danos nanceiros a Waller, mas, de qualquer forma, era algo imperdoável. Fazer vista grossa seria um sinal de fraqueza. No ramo de Waller, os concorrentes e empregados sempre procuravam sinais de fragilidade. Se encontrassem, seu risco de vida se agigantava. Ele entendia muito bem aquela lição porque fora dessa maneira que começara a fazer negócios anos antes. Seu mentor deixara passar um pequeno deslize. Três meses mais tarde, estava sendo devorado por lobos na costa noroeste do Pacíco e Waller assumira o comando. Nas duas décadas seguintes, sempre houve consequências quando alguém o traiu. Ele não queria ser devorado por lobos. Preferia ser o predador. Waller olhou para a pessoa sentada ao seu lado. Alan Rice tinha 39 anos, formara-se em uma prestigiosa universidade na Inglaterra e deixara os corredores da academia para ajudar Waller a administrar seu império. Alguns homens eram atraídos pelo lado negro só porque era ali que eles podiam prosperar. Rice era esbelto e tinha cabelos brancos precoces. Embora suas feições fossem delicadas, sua mente era vigorosa, brilhante. Homens como Rice não costumavam se contentar em ser o segundo na linha de comando. Mas ele também havia ajudado a triplicar os negócios em pouco tempo e recebera mais responsabilidades proporcionais ao seu talento. Waller era a única gura indispensável na empresa, mas Rice já vinha se tornando imprescindível também para a administração. Waller flexionou a mão enluvada. – O coice da pistola machucou? – perguntou Rice, notando o movimento. – Não. Eu só estava pensando na última vez que havia matado alguém. – Albert Clements – disse Rice de pronto. – Seu representante australiano. – Exatamente. É algo que me intriga. Pago muito bem a eles, mas, ainda assim, nunca parece suficiente. – Quando se tem milhares, se quer centenas de milhares. Quando se tem milhões, se quer dezenas de milhões. – E eles devem achar que sou um idiota que vai deixá-los impunes. – Não. Apenas acham que são mais espertos. – Você se acha mais esperto do que eu, Alan? Rice se virou para trás e olhou para o prédio que eles haviam acabado de deixar. – Sou mais inteligente do que o homem que você acabou de matar, porque não tenho desejo algum de morrer nas suas mãos. E isso aconteceria se eu tentasse enganá-lo. Waller assentiu, mas ele não ficara muito convencido. Rice pigarreou e prosseguiu: – Soube que a Provence é linda nesta época do ano. – Raramente a Provence não é linda. – Passou muito tempo lá? – Minha mãe era francesa, de uma cidadezinha chamada Roussillon, onde estão alguns dos maiores depósitos de ocre do mundo. Muitos pintores famosos, como Van Gogh, foram até
lá para obter os pigmentos terrosos para suas paletas. E, ao contrário de muitos outros vilarejos da Provence, as construções ali não são de pedra branca nem cinza, mas em tons fortes de vermelho, laranja, marrom e amarelo. Se eu fosse pintor, me mudaria para Roussillon para captar aquelas imagens usando apenas suas cores. Eu e minha mãe passamos momentos felizes lá. – Já esteve lá depois de adulto? – Em Roussillon, não. – Por que não? – Meu pai morreu lá quando eu tinha 12 anos. – O que aconteceu? – Ele caiu de uma escada e quebrou o pescoço. – Um acidente? – É o que acham. Rice pareceu surpreso. – Não foi um acidente? – Tudo é possível. – Então, sua mãe... Waller pôs sua mão grande no ombro estreito de Rice e o apertou de leve. – Eu não disse que foi minha mãe, disse? Ela era meiga e boa. Algo do gênero teria sido impensável para sua alma pura. – Certamente. Entendo. As órbitas dos olhos de Waller pareceram ficar mais profundas. – Entendeu mesmo, Alan? – Ele retirou a mão e puxou um bilhete do bolso. – Vi que uma jovem americana está alugando a mansão ao lado da minha. – Acabamos de descobrir. No entanto, duvido que ela represente uma ameaça. – Não, não, Alan. Ainda não sabemos o que ela representa. A proximidade em si já é suficiente para levantar suspeitas, não é mesmo? – Você tem razão. Vou descobrir tudo o que puder – garantiu Rice. – Você vai visitar Roussillon? Fica longe? – Nada na Provence é longe. – Então você vai? – Talvez. – Só não se torne vítima de um acidente. – Por favor, não se preocupe comigo. Meu pai era desleixado e fraco. O filho dele não é.
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– VOCÊ FALOU COM ELA, não foi? – perguntou Frank. Shaw levantou os olhos dos papéis que examinava. – Com quem? – Não se faça de bobo. Katie! – Como você sabe? – Porque você está pensativo demais. Se eu soubesse que você ia car assim, nunca teria lhe dado aquele maldito número. Como ela estava? – Bem. – Sobre o que vocês conversaram? – O que você tem a ver com isso? – Nada. Esqueça. Desculpe por me importar. Tudo bem, vamos voltar a Evan Waller. – Não gosto do plano. Tem buracos demais. Surpreendentemente, Frank aquiesceu. – Concordo. O que você sugere? – Simplicá-lo. O início deve ser simples, assim, se as coisas forem se complicando, ainda será possível administrá-las. Se já começarmos de forma complexa e houver algum previsto, não vai ser nada bom, porque há detalhes demais que podem dar errado. – Sabemos onde ele mora em Montreal, mas nunca recebemos a autorização dos superiores para agir lá. O lugar é público demais, há grandes chances de danos colaterais e o sujeito não segue um horário preciso. Ele se desloca como um fantasma, sempre trocando de rota e variando a rotina. – Então, precisamos encontrar um momento na Provence no qual ele obedeça a um cronograma e os danos colaterais sejam mínimos. Os dois homens olharam para a planta da mansão em que Waller ia se hospedar. Na parede, havia uma tela de plasma com mais dados, inclusive todas as rotas de entrada e saída da área-alvo. Frank apertou um botão do controle remoto que estava sobre a mesa à sua frente e uma série de imagens surgiu no monitor. – Ele sempre viaja com esses caras, todos tipos da pesada. E esses são apenas os que conhecemos. Talvez haja mais. – Ele vai mandar uma equipe de reconhecimento, blindar o local e, depois, se instalar –
acrescentou Shaw enquanto estudava os guarda-costas, cada um parecendo mais cruel do que o outro. – Até que ponto as informações sobre o itinerário da viagem são confiáveis? – São muito conáveis. Nós as conseguimos através de conversas telefônicas, e-mails e transações de cartão de crédito. Shaw levantou a cabeça. – Americanos? Eles têm o melhor hardware e software para isso. – Digamos que devo aos chefes da ANS e da CIA um excelente jantar. Frank pegou alguns documentos e falou sobre eles: – Este é o plano de voo. Ele vai de Montreal a Paris em seu jatinho particular, depois reabastece e continua até o aeroporto de Avignon. Um voo curto. Em geral, ele viaja em um comboio de três veículos. Os carros de aluguel foram reservados em Avignon. Shaw apertou um botão no laptop e outra imagem apareceu, uma fotograa da rua em que estava localizada a casa alugada de Waller. – Existe uma mansão ao lado. – Já foi alugada para alguém. – Para quem? – Fiz um levantamento preliminar. Turista. Parece absolutamente limpa. – Mas bem ao lado? – Gordes é um destino muito popular e essas mansões são muito procuradas. Não podíamos evitar que fossem alugadas sem levantar suspeitas. Mas não importa. Não vamos agir em Gordes. Grandes chances de danos colaterais. Shaw olhou para outra tela de computador que mostrava um itinerário parcial de Evan Waller e se endireitou na cadeira. – Como você sabe que ele vai às cavernas de Les Baux? – Ele obteve uma permissão especial para o tour e nós acessamos os dados. – Por quê? Não são abertas ao público? – Bem, o Sr. Waller queria um tour particular. Fechado ao público. Para isso, desembolsou uma grana. O local é administrado pela iniciativa privada. Eles podem fazer o que querem. Quando vimos o pagamento sendo feito, invadimos o sistema e descobrimos o cronograma. Portanto, sabemos a data exata em que ele estará lá. Shaw se virou na cadeira para olhar para outro computador cujo disco rígido estava limpo, exceto pelo soware de fábrica, que incluía um navegador. Eles o usavam apenas para se conectar à internet. Apertou algumas teclas e leu os resultados. – Certo. Já ouvi falar desse lugar. É uma galeria que exibe fotos; projeções nas paredes de pedra, tour narrado, documentário gravado e assim por diante. Eles escolhem um artista diferente a cada ano. – Ele cou ruminando essa nova informação. – Acho que temos o local da nossa extração. Shaw virou o laptop para que Frank visse a tela. Eram informações sobre o espaço expositivo.
– As cavernas têm uma entrada, várias salas e poucos funcionários, portanto é fácil se perder ou car desorientado. Interrompemos a fonte de energia e a equipe de extração já estará no local com equipamento óptico e armas com tranquilizantes poderosos. Separamos o chefão dos capangas e lá vamos nós. Frank pensou a respeito. – Também limita os danos colaterais. Precisaremos de agentes em campo para conrmar todos os detalhes. – Sem dúvida. Mas que lugar é melhor para se pegar um rato do que em um buraco? – Mas se a operação falhar, o cara vai pegar seu jatinho e cair fora da França. Shaw se recostou na cadeira. – Não é perfeito, mas é o melhor que podemos fazer nessas circunstâncias. O tour é o único momento em que temos certeza do seu paradeiro. Não vejo como podemos errar.
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O PLANO DE EXTRAÇÃO ESTAVA pronto. As cavernas haviam sido meticulosamente inspecionadas. Shaw também as visitaria quando chegasse lá. Antes disso, ele estudou plantas detalhadas das partes externas e internas do local até memorizá-las. Waller iria lá menos de uma semana após sua chegada à Provence; seu tour particular começava às dez da manhã em ponto. Depois de cada longo dia de trabalho, que incluía a escolha dos integrantes da equipe e a preparação deles, Shaw voltava para o hotel, se trocava, dava sua corrida e, em seguida, caminhava sozinho pelas ruas de Paris até a escuridão car mais densa e sua energia esmorecer. Uma noite, ele resolveu comer em um café em frente ao Jardim de Luxemburgo, um lugar que Anna Schmidt adorava. Eles costumavam passear pelos jardins de mãos dadas, observando as crianças que brincavam com seus barquinhos de madeira na grande fonte central, e depois sentavam-se para olhar as pessoas que passavam. Shaw não podia mais voltar àquele local porque, para ele, era solo sagrado, que não podia ser pisado de novo. Mas ele havia se aventurado perto o suciente para ver à distância algumas das ores. Foi o mais longe que ele conseguiu ir antes de sentir um aperto no peito e seus olhos marejarem. Ele acabara de pedir a comida quando examinou o restaurante, inspecionando cada mesa. Um hábito que se repetia havia décadas, tão natural para ele quanto respirar. Perdeu o fôlego por um instante quando a viu em pé perto da porta que dividia os dois salões. Katie James não parecia tão magra quanto da última vez que ele a vira, o que era um bom sinal, pois ela precisava ganhar um pouco de peso. Seus cabelos naturalmente louros, antes arrepiados e escuros, haviam crescido e quase tocavam seus ombros. Ela estava usando uma saia branca, sapatos com 5 centímetros de salto sem meias e uma blusa de manga comprida azul-escura. Ela nunca vestia blusa sem manga por causa da ferida de bala no antebraço esquerdo. Enquanto ela ia em sua direção, ele percebeu que a maquiagem não cobria totalmente suas olheiras. Ela era uma mulher bonita e muitos homens no salão se viraram para olhá-la. Mesmo suscitando a ira das mulheres com quem estavam jantando, valia a pena poder admirar Katie. Ela sentou-se à sua frente, sem esperar um convite. – Você parece bem – comentou e olhou para os cabelos dele. – Um pouco grisalho? – Um pouco. Você voltou à forma. Mas eu até que gostava do penteado escuro e arrepiado.
– Shaw fez uma pausa. – Como você sabia onde eu estava? – Ele mesmo respondeu: – Frank. Qual é o interesse dele? Não sabia que ele se importava com a minha vida pessoal. – Acho que ele nunca se importou até Anna ser assassinada. – Ele me disse que você telefonou. – Eu não teria telefonado para ele se você tivesse retornado minhas ligações. – Desculpe por ter sumido. – Não havia nenhum compromisso. Somos donos dos nossos narizes. Meu único problema foi não ter certeza de que você estivesse vivo. Por isso liguei para Frank. Para me certicar de que você estava bem. Shaw se sentiu ainda mais culpado. – Estou bem. Voltei a trabalhar. Está tudo certo. Eu disse isso para você ao telefone. – Eu queria ver com meus próprios olhos. Ele baixou o olhar para a mesa. – Você já jantou? – Não estou com fome. A recusa de Katie surpreendeu Shaw. – Katie. Ela se levantou. Os dois se encararam por um instante. – Boa sorte, Shaw. Katie esperou que ele dissesse algo. Porém, Shaw permaneceu em silêncio. Ela se virou e foi embora. Shaw cou sentado por um bom tempo, debatendo o que fazer. Por m, ele jogou alguns euros sobre a mesa, saiu às pressas do restaurante e perscrutou a movimentada rua. Mas Katie já havia sumido de vista.
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JÁ ERA MAIS DE MEIA-NOITE quando Reggie desceu sorrateiramente para a biblioteca em Harrowseld. A chuva martelava as janelas e um vento frio entrava pela chaminé, alimentando o fogo débil. Ela fechou a porta atrás de si, sentou-se diante da longa mesa e pegou um dossiê. Sob a luz de uma única luminária, estudou o rastro assassino de Fedir Kuchin pela centésima vez. As atrocidades, é claro, não haviam mudado, mas se xaram ainda mais em sua mente. Ela já sabia as estatísticas de cor e podia visualizar os inúmeros rostos das vítimas. As imagens das valas, descobertas muito depois de Kuchin ter fugido, pareciam estar impressas em suas córneas. Reggie pegou uma foto granulada – todas eram granuladas, como se a morte violenta nunca pudesse ter um fragmento colorido – e examinou o rosto ali retratado. O coronel David Huber tivera seus David Rosenberg e suas Frau Kocher, que Reggie havia selecionado em meio a incontáveis outras para mostrar ao homem no momento de sua morte. Também havia diversas evidências da crueldade insana de Fedir Kuchin. A foto que ela estava olhando naquele momento era de um homem com um sobrenome impronunciável. Ele não havia sido rico nem bem-relacionado. Morava a quase mil quilômetros de Kiev. Era um simples fazendeiro com uma família grande e trabalhava longas horas para sustentá-la. Seu crime contra o Estado fora se recusar a entregar os amigos à KGB, mais especicamente a Fedir Kuchin. Como punição, jogaram gasolina e atearam fogo nele na frente da esposa e dos lhos. O homem queimou até virar ossos e cinzas enquanto os familiares eram forçados a assistir, ouvindo seus gritos. Reggie pegou outro documento. Originalmente escrito em ucraniano, o texto fora traduzido em outro pedaço de papel. Tratava-se da ordem que condenava o fazendeiro à morte. A assinatura de Fedir Kuchin aparecia bem grande e vistosa no pé da página, como se ele não quisesse deixar dúvida a respeito de quem havia sido o mandante do horrível assassinato. Por m, Reggie pegou outra foto antiga. Era do próprio Fedir Kuchin. Ela segurou o papel pelas beiradas, como se estivesse com medo de tocar na imagem. Ele usava um uniforme com o colarinho aberto. Em uma das mãos, segurava uma pistola; na outra, uma garrafa. Era uma foto posada. Naquela época, ele tinha cabelos escuros, com um pronunciado bico de viúva, penteados para trás. Seu rosto não mudara muito ao longo do tempo. Porém, foram os olhos que chamaram a atenção de Reggie. Ela sentiu como se
estivesse enveredando por um caminho sombrio, perdendo-se numa escuridão da qual não parecia possível fugir. Endireitou-se na cadeira e, lentamente, pôs a foto sobre a mesa, cobrindo-a com uma pilha de papéis. Nos trinta minutos seguintes, ela examinou dezenas de fotos de mortos. Os documentos davam a impressão de serem apenas ordens de compra para equipamentos ou comida. No entanto, eram comandos para matar outros seres humanos, em três vias copiadas por papel carbono. Morte por tiro. Morte por fogo. Morte por gás. Morte por espada. Morte por enforcamento. Tudo muito organizado. Ainda bem que havia aquelas cópias, pensou Reggie. Sem elas, teria sido quase impossível localizar e, em seguida, punir homens como Kuchin. – Leitura extra, minha cara? Assustada, Reggie olhou à sua volta. O professor Mallory estava à porta usando um velho e esfarrapado roupão quadriculado, segurando um livro. – Não ouvi o senhor entrar – disse ela, obviamente perturbada por não ter notado a presença dele. – Bem, tenho passos leves, apesar do meu tamanho e do meu reumatismo, e você estava muito concentrada. Mallory se aproximou e fitou os papéis e fotos com um olhar inquisidor. – Eu não estava conseguindo dormir. Muitas vezes, não consigo dormir – admitiu Reggie. Ele se sentou em uma cadeira de couro gasto perto da lareira. – Eu bem sei. – O que o senhor está fazendo de pé? Também tem insônia? – Não, Regina. Insônia, não. – Ele fez uma careta de dor enquanto se recostava. – A próstata aumentada, receio. Se tivesse escolha, optaria pela insônia. – Sinto muito. Ele olhou para o dossiê que ela segurava. – Então, no que você está pensando? Alguma ideia brilhante? – Ele é um homem sem remorso. Assinou milhares de ordens de execução como se assinasse uma conta de bar. – Concordo com você, mas isso nós já sabemos. Ele se levantou, pôs outro pequeno tronco no fogo, voltou a se sentar na poltrona e abriu um livro. – O que o senhor está lendo? – perguntou Reggie. – Em uma noite inóspita como esta? Agatha Christie, é claro. Ainda co curioso para saber se as “pequenas células cinzentas” de Hercule Poirot vão dar conta do trabalho novamente. Isso muitas vezes parece me inspirar, por mais inferior que meu cérebro seja em relação ao do pequeno belga. Reggie se levantou e cou parado na frente do fogo. Antes de descer, vestira uma calça jeans e uma blusa de moletom, mas os pés estavam descalços e ela agora sentia frio.
– Tem uma coisa, professor. Ele ergueu os olhos. A tempestade açoitava a janela e uma rajada do vento raivoso desceu pela chaminé. Reggie se afastou da lareira e se sentou em uma banqueta na frente do professor. – Que coisa? – perguntou ele. – Kuchin é um homem religioso. Mallory fechou o livro e assentiu. Sacou o cachimbo do bolso e começou a enchê-lo com tabaco. – Professor, se o senhor não se importa, esse cheiro me deixa enjoada. – Por que você nunca disse isso? – indagou ele, surpreso. – Acho que eu não queria magoá-lo. – Ela riu baixinho. – Acredito que, depois de tudo o que já fiz, isso deve parecer estranho. Mallory permaneceu sério. – O que é estranho? Você ter uma enorme compaixão? Imagino que essa faceta da sua personalidade seja um dos principais motivos para você fazer este trabalho. Reggie atalhou apressadamente. – Bem, de qualquer forma, reli as anotações do caso. Kuchin vai à igreja todos os domingos e faz grandes doações para causas religiosas. Mallory voltou a guardar o cachimbo. – É verdade. Já vi isso acontecer com homens como ele. Procurar redenção, alívio, até mesmo se proteger. É uma loucura que pessoas desse tipo acreditem que algum deus bondoso queira se meter com eles depois da morte. – Assassinos, o senhor quer dizer? Mallory logo percebeu a mensagem subliminar. – Você não tem nada a ver com os Fedir Kuchin do mundo, Regina. – Engraçado, em certos dias, é difícil notar a diferença. Mallory se levantou tão depressa que deixou o livro cair. Foi andando a passos largos até a mesa, pegou uma foto e jogou-a nas mãos de Reggie. Era a imagem dos restos mortais do fazendeiro. – Aí está a diferença, Regina. Tomou a mão dela, apertou-a com firmeza e olhou no fundo de seus olhos. – Agora me fale da igreja.
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ELES ESTAVAM SENTADOS EM um automóvel fora do aeroporto Charles de Gaulle. Em breve, um avião levaria Shaw para Avignon. O plano era que ele casse lá alguns dias antes de seguir para Gordes, que ficava a menos de uma hora de distância de carro. – Amy Crawford já está na Provence – informou Frank. – Já trabalhei com ela antes. É uma excelente agente de campo. – Analisou o plano todo? – Na minha cabeça, é perfeito. Vamos ver se funciona. Frank fez menção de acender um charuto, mas Shaw o interrompeu. – Espere até eu estar a 20 mil pés de altitude. Preciso de oxigênio extra neste instante. Frank guardou o charuto. – Nervoso? Não é do seu feitio. – Vi Katie outro dia. – Está falando sério? Onde? – Bem aqui em Paris. Você não sabia? – Palavra de escoteiro. Não estava a par de nada. – Deixe disso, Frank. Ela apareceu no restaurante onde eu estava jantando. Como você acha que ela conseguiu fazer isso? – Você já parou para pensar que ela é uma jornalista de primeira? Ela sabe investigar. – Certo. – Shaw não acreditava nem um pouco. – O que ela queria? Shaw não respondeu de imediato porque, na verdade, não tinha uma resposta. O que ela queria? Apenas se certificar de que eu estava bem? Mas eu já dissera isso ao telefone. – Shaw? Ele percebeu que Frank o observava e não parecia feliz. – Você parecia estar no mundo da lua. Está partindo para uma missão contra um sujeito muito assustador e já está se distraindo? Isso não é nada bom. – Ela não disse o que queria. E só ficou um minuto. Frank segurou o braço dele. – O quê? Quer dizer que você não a convidou para jantar? Ela percorreu essa distância toda para chegar até aqui e... – Como você sabe a distância que ela percorreu?
Frank fez uma careta e afundou no assento. – Por que você está fazendo isso? – questionou Shaw. – Fazendo o quê? – resmungou Frank. – Na metade do tempo você age como se não desse a mínima para o fato de eu estar vivo ou morto. Na outra metade, parece brincar de cupido. – Minha mãe fazia a mesma coisa comigo. Deve ser genético. – Não somos parentes, Frank. – Em certos aspectos, somos mais próximos do que parentes. E quem mais você tem? Shaw desviou o olhar e cou batendo com o passaporte contra a coxa. Quem mais ele tinha? Só Frank. Meu Deus, que pensamento deprimente! – Então, por que você acha que ela veio me ver? – É óbvio: ela queria que você dissesse para ela ficar. – Você tem certeza? – Não precisa ser um gênio para deduzir. E, não, ela não me falou isso, se é o que você quer saber. – Nada pode acontecer entre mim e ela, Frank. – Bem, ao que parece, algo já aconteceu. – Anna nem bem morreu e... – A questão não é essa. Você acha que uma mulher inteligente como Katie não sabe o que você sente por Anna? Ela sabe que você não vai correr para a cama com ela. Sabe que talvez você nunca vá para a cama com ela. E acho que ela nem está a m disso. Pelo menos, não agora. – Ah, agora você é psicanalista? – Só estou fazendo uma observação sensata. – Então, o que ela quer? – Vocês dois compartilharam muita coisa. Passaram pelo inferno juntos. Ambos saíram dessa emocionalmente em frangalhos. Acho que ela só quer ser sua amiga. – Bem, tenho uma novidade para você: meu tipo de trabalho não permite amizades. Shaw bateu a porta do carro atrás de si e saiu andando para tomar o avião para Avignon. Frank observou-o se afastar até desaparecer em meio à multidão que entrava no aeroporto. Ele disse ao motorista para ir embora. Pegou o charuto, fez menção de acendê-lo, mas acabou guardando-o de novo no bolso do paletó. – Às vezes, você não sabe a sorte que tem, Shaw – murmurou ele.
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FEDIR KUCHIN ERA UM homem muito inteligente, mais inteligente do que todos eles haviam imaginado. Não apenas fora mais esperto do que o professor Mallory, mas também levara a melhor sobre Reggie e sua equipe na Provence. O fracasso teria um alto preço. Reggie olhou para os corpos de Whit e Dominic. Whit estava decapitado, Dominic não tinha mais rosto. Reggie fora forçada a se ajoelhar no centro da sala gelada enquanto Kuchin e seus seguranças a cercavam. Não havia escapatória daquela vez. Levantou a cabeça e olhou para o rosto comprido e cruel enquanto ele acariciava seu queixo com uma das mãos. Ela o teria atacado, mas suas mãos e pernas estavam amarradas. Concentrou-se nos corpos de seus colegas mortos para não sentir o toque do monstro em sua pele. Kuchin emitiu um riso satisfeito e profundo que pareceu durar minutos. – Você achava que seria tão fácil? – perguntou. – Achava mesmo? Depois de todos esses anos me escondendo, você acreditou que alguém como você poderia me pegar? Você é uma amadora que foi enviada para fazer o trabalho de um profissional. A carícia se transformou em um tapa forte e Reggie caiu de costas, batendo com a cabeça no chão de concreto. Ele a levantou pelos cabelos e aproximou o rosto do dela, quase o tocando. – Diga-me o seu nome. Seu nome de verdade. – Por quê? – murmurou ela. – Porque gosto de saber essas coisas. – Não, não vou dizer. Kuchin a golpeou na boca com a arma, deixando dois dentes frouxos e quebrando um terceiro. Ela sentiu o gosto de sangue e engoliu parte do molar estilhaçado. – Não. Ele a acertou na barriga e Reggie se dobrou. Pisou em sua mão direita, quebrando dois dedos. Esmagou seu joelho esquerdo com outro golpe. – Agora! – Reggie – balbuciou ela enquanto o sangue escorria pelo rosto. – Reggie do quê? – Reggie Campion. – Muito bem, Reggie Campion, agora você vai saber. – Saber o quê?
– Como é morrer na bela Provence. Kuchin fez um sinal para um dos seus homens, que avançou com um recipiente plástico nas mãos. Reggie pôde sentir o gosto da gasolina que era despejada em cima dela, congestionando as narinas e irritando os olhos. Ela queria ser corajosa, mas não conseguiu se conter: – Não, por favor! Não! Como uma criança. Patética. Fraca. Kuchin sorriu, pegou o fósforo do bolso, riscou-o no salto do sapato e o ergueu para que ela o visse. – Não! Não! – gritou ela. – Eu achava que você seria uma adversária mais digna, Reggie – disse Kuchin. – Não, por favor, não me mate! – Desta vez o monstro vence, Reggie Campion. Kuchin soltou o fósforo sobre a cabeça de Reggie, que foi tomada pelas chamas.
Com um grito abafado apenas pelas cobertas sobre o rosto, Reggie pulou da cama e aterrissou no chão. Ela se debatia para combater as chamas imaginárias. Depois, voltando a si, cou imóvel por vários minutos. Conseguiu se arrastar até o banheiro para vomitar no vaso e, então, tombou de costas nos ladrilhos frios. Reggie permaneceu caída ali, arquejando, esperando que o enjoo diminuísse. Por m, levantou-se com esforço, cambaleou até a janela e observou o terreno de Harrowseld. Quando a hora de partir em missão se aproximava, ela preferia passar mais tempo em seu próprio apartamento a car na propriedade, mas o casal ativo no andar de cima ainda não havia se saciado. Então, ela fora para a velha mansão. Porém, ao se afastar de Londres, tinha sentido uma ponta de inveja. Quando fiz sexo pela última vez? Não consigo nem me lembrar... Patético. A chuva havia passado, mas o ar ainda estava frio. Reggie levantou a janela e se debruçou para fora, respirando fundo enquanto o efeito nauseante do pesadelo ia diminuindo. Estou tendo pesadelos com um sujeito que ainda nem enfrentei. Isso não é nada bom, Reggie. Nada bom. A pior parte tinha sido a visão de Whit e Dominic mortos. Seus medos não signicavam que aquilo se tornaria realidade. Ela precisava pôr a cabeça no lugar. Reggie colocou jeans, tênis e uma blusa de moletom esfarrapada com capuz onde se lia “Oxford” e saiu pela porta dos fundos da cozinha. Não sabia ao certo se Whit havia voltado para casa ou dormido na mansão. Não queria que ele, nem qualquer outra pessoa, a visse daquele jeito. Em poucos minutos, ela chegou ao cemitério e, mesmo no escuro, levou apenas alguns segundos para localizar a lápide de Laura R. Campion. Parou na frente do túmulo com as mãos nos bolsos.
Como não tinha nenhum parente vivo, Reggie começou a pensar naquele lugar como uma espécie de refúgio em momentos de estresse e incerteza. Mesmo sabendo ser loucura, ela achava que, para tentar fugir do terror que sentia, era necessário ir até o cemitério no meio da noite e car olhando o túmulo de uma mulher morta havia mais de duzentos anos com a qual, aparentemente, não tinha ligação alguma. – Eu devo ser mesmo um pouco louca – disse baixinho – para fazer o que faço. Mas era bastante compreensível, falou a si mesma, ter medo de um homem como Fedir Kuchin, que queimava crianças vivas sem pensar duas vezes. Um homem que matava milhares de pessoas de uma vez só usando métodos terríveis. Seria loucura não ter medo. Do outro lado do cemitério, cava uma pequena capela arruinada. Suas paredes de blocos de pedra estavam enegrecidas pelo tempo, o teto, parcialmente desabado e as grossas portas de madeira em arco haviam se tornado frágeis devido à ação dos cupins e da deterioração. Reggie entrou e caminhou em direção ao altar. De vez em quando ia até ali para tirar o trabalho da mente e para ouvir os pássaros que tinham feito ninho nas velhas traves da estrutura. Não havia vitrais, apenas janelas simples que foram quebradas ou que apenas se desintegraram. Através daquelas aberturas, entravam os sons do bosque em volta. Ao contrário de Fedir Kuchin, havia muito tempo que ela deixara de acreditar em um poder superior que guiava a todos. Aquilo acontecera por um simples motivo: um deus onisciente, todo-poderoso e benevolente nunca permitiria que monstros caminhassem sobre a Terra matando quem eles quisessem. Então, para ela, a mera presença daquelas pessoas no mundo eliminava qualquer possibilidade de um ser supremo benigno. Muitas pessoas a contestaram. Reggie ouvia pacientemente as armações ponderadas e, em seguida, discordava de suas conclusões. Eles tinham mais dois dias para nalizar tudo e, depois, ela partiria para a Provence. Antes que aquilo acontecesse, ela e o professor resolveriam como proceder. A vida ou a morte de Fedir Kuchin dependeria do fato de eles tomarem ou não a decisão certa. Percebendo tudo o que estava em jogo, e apesar de sua descrença, Reggie se ajoelhou no altar, uniu as mãos e começou a rezar para que, mais uma vez, o bem derrotasse o mal. Não custava tentar.
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A MANSÃO EM QUE EVAN Waller se hospedaria custava mais de 20 mil euros por semana e ele a alugara por um mês, pagando adiantado, ou pelo menos foi isso que a imobiliária disse a Shaw. A casa de seis quartos cava perto das colinas de Gordes e tinha cinco andares, aos quais só se podia ter acesso por uma única escada interna de pedra, em caracol. Nos fundos, havia uma piscina de água salgada, uma área para refeições ao ar livre sob uma pérgula de madeira, uma espaçosa cozinha externa e uma churrasqueira a gás. O dono reformara a mansão recentemente e todos os eletrodomésticos, inclusive o fogão industrial, eram novos. Shaw sabia tudo isso porque vinha se encontrando com a agente imobiliária em seu escritório de Gordes, passando-se por um inquilino em potencial para o ano seguinte. A mulher era educada e dava todas as informações necessárias. – Não perca tempo – avisou. Apesar de ser britânica, ela falava muito bem francês. – Ontem mesmo, outra pessoa também esteve aqui querendo alugar a casa no ano que vem. – É mesmo? – perguntou Shaw. – Quem? A mulher arqueou as sobrancelhas. – Isso é condencial. Mas trata-se de uma jovem americana muito bonita e, obviamente, rica. Essas mansões são as melhores da região e seu preço está fora do alcance da maioria. O mesmo construtor reformou a mansão ao lado. Não são idênticas por dentro, mas há muitas semelhanças, inclusive a escada de pedra em caracol que interliga todos os andares. Isso é que é confidencialidade, pensou Shaw. – Mas, se a casa está alugada, como você disse, onde está o inquilino? A mansão está vazia. A mulher hesitou. – Sim, ele alugou pelo mês inteiro. Pagou adiantado. – Então, é um homem? A mulher parecia aborrecida consigo mesma. – Sim, mas seu nome é confidencial. – Claro. – De qualquer maneira, ele ainda não chegou. Muito estranho. Quer dizer, pagar milhares de euros por algo que você nem está usando? Bem, acho que não devo me intrometer. Os ricos são esquisitos, não é mesmo? Mas você mesmo deve ser rico, se está pensando em alugar uma mansão daquelas. – Eu prosperei na vida – disse Shaw com modéstia. – Podemos falar em inglês, se você
preferir, embora seu francês seja muito melhor do que o meu. Ela se mostrou satisfeita e aliviada. Seu comportamento e tom mudaram instantaneamente e seu sotaque britânico logo se tornou evidente. – Bem, é gentileza sua dizer isso. Estou tendo aulas há um mês para conseguir fazer aquele som arrastado do “r” , mas ainda não posso armar que peguei o jeito. Os franceses falam de maneira tão bonita, não é? Mas isso está acabando com minha garganta. – Com a minha também. – De todo modo, como a casa está vazia, eu poderia levá-lo para dar uma olhada, mas não queremos invadir o lugar e encontrar o Sr. Waller de cuecas, não é mesmo? – Ela deu um risinho. – Então é o Sr. Waller. A mulher pareceu chateada. – Não acredito que eu falei isso. Tudo bem, esse é o nome do homem, mas não saia espalhando por aí. Nosso trabalho é confidencial. – Claro. Pode deixar. Obrigado. Shaw a deixou e foi andando até o lugar onde estava hospedado, um pequeno hotel que também tinha um spa. Gordes cava situado no precipício do platô de Vaucluse, com as colinas do Luberon à frente, e se podia ir das mansões do vale até lá por uma escadaria escavada na rocha, um percurso que demorava quase o mesmo que a viagem de carro por uma estrada bem sinuosa. O vilarejo de estruturas de pedra branca e cinza se agarrava aos ancos da rocha como abelhas a uma colmeia. Duas construções mais altas o coroavam: a igreja católica com seu longo campanário e um castelo medieval que abrigava parte do governo municipal. Shaw ligou para Frank e o inteirou das novidades. Desde a sua chegada, zera um reconhecimento metódico de cada edifício digno de nota na cidade. Agora, provavelmente conhecia Gordes melhor do que muitos dos seus habitantes mais antigos. Ele e May Crawford deveriam se encontrar no dia seguinte, mas os dois estavam em contato desde a chegada à Provence. Havia várias opções de lugar para se almoçar no vilarejo, portanto ele leu com calma os cardápios impressos em folhas brancas e axados na fachada dos estabelecimentos. Acabou escolhendo o L’Estaminet Café, perto do centro da cidade, e complementou a refeição com uma taça de Rhône, que era muito popular naquela região. Por outro lado, era quase impossível encontrar vinho italiano, pensou. Seu sorriso desapareceu quando ela surgiu. Embora o local estivesse repleto de turistas, por algum motivo Shaw sentiu que aquela devia ser a americana que a agente imobiliária havia mencionado: jovem, bonita e rica. Ela tinha pouco menos de 30 anos e cabelos com mechas louras. A pele estava bronzeada, com um tom amendoado, e grandes sardas cor de café se destacavam nos ombros. Usava um vestido leve de verão com a frente bordada, permitindo que se visse um pouco do decote; sandálias de couro cobriam seus pés longos e nos. Shaw só conseguiu vê-la de perl
enquanto ela era acompanhada até seu lugar. Mas, ao pôr a bolsa na cadeira ao lado, a moça se virou por um instante na direção dele. O que viu não correspondia a suas expectativas e seu cérebro demorou a registrar os dados. O rosto da mulher não era perfeito: o nariz comprido e no demais, e também arrebitado; os olhos um pouquinho grandes em relação ao rosto; as bochechas levemente chatas. Porém, de alguma maneira, todos esses elementos juntos a tornavam muito mais memorável do que se suas feições fossem perfeitas. Mulheres bonitas, em especial no sul da França, não eram uma raridade, mas alguém que não se encaixasse à perfeição em uma categoria costumava ser inesquecível. O corpo era atlético: os ombros, bem desenvolvidos, as pernas, longas e torneadas. Shaw calculou que a moça tivesse 1,70 metro, ainda que parecesse mais alta, devido ao porte esguio. De qualquer forma, diante dos quase 2 metros de Shaw, ela ainda era miúda, como praticamente qualquer pessoa. Enquanto continuava a pensar a respeito, ele se deu conta do que havia chamado sua atenção: ela parecia séria demais para alguém tão jovem. Apesar de já ter terminado a refeição, Shaw, curioso, decidiu car e tomar um café e uma taça de sorvete de morango. Teve a impressão de que a mulher olhara em sua direção uma ou duas vezes, mas talvez fosse sua imaginação. Por m, pagou a conta e foi embora. Caso tivesse se virado, teria se certicado de que ela o notara: seu olhar o seguiu por muito tempo após ele ter fechado a porta. Shaw saiu caminhando pelas ruas com calçamento de pedras irregulares, mas sem perder de vista a fachada do restaurante. Vinte minutos depois, a moça saiu pela porta, olhou ao redor e tomou o caminho que a levaria para as mansões. Essa rota incluía um atalho de degraus de pedra curtos e gastos que economizava um minuto, eliminando uma descida em zigue-zague. Ele a seguiu, imaginando onde a mulher estava hospedada. Ficou surpreso ao vê-la abrir a porta da casa ao lado da que abrigaria Waller. Isso se somava ao fato de que ela também zera perguntas sobre a outra mansão. Embora Frank não tivesse descoberto nada de suspeito, era melhor car de olho naquela moça. Surpresas nunca eram boas, especialmente se prejudicavam Shaw.
19
NO DIA SEGUINTE, SHAW viajou 15 quilômetros e se encontrou com Amy Crawford perto das ruínas de um velho forte que, como toda construção do tipo, cava no topo de uma colina. Crawford era baixa, mal batia no peito de Shaw. Mas conhecia muitas artes marciais, corria maratonas e podia matar ou incapacitar com as mãos e com os pés. Embora sua proeza física fosse soberba, era a frieza em campo que havia chamado a atenção de Shaw e feito com que ele a escolhesse para fazer parte da equipe. Eles dirigiram separadamente até a velha pedreira onde estavam localizadas as cavernas em Les Baux e zeram o tour. Shaw gravou tudo com uma minicâmera escondida na camisa para poder analisar depois. – É bom trabalhar de novo com você – comentou Crawford enquanto voltavam para os carros. – Também é um prazer. – Com base na planta baixa, a extração deve acontecer sem problemas. O sujeito não poderia ter escolhido um lugar mais conveniente para nós. – E ele deve saber disso. Portanto, ele e seus seguranças estarão em alerta máximo. Teremos dois segundos de surpresa. É incrivelmente raro termos esse tipo de informação detalhada sobre um alvo. Precisamos agir com perfeição. – Entendido. Shaw gesticulou para que ela entrasse no Audi de duas portas e se sentou no banco do carona. – Faça um resumo completo: quero me certificar de que estamos em sintonia. Crawford colocou as mãos sobre o volante. – O tour particular começa às dez horas. Experiências anteriores mostram que ele viajará com um mínimo de quatro e um máximo de seis guarda-costas com coldres e Glocks. Chegam à entrada. O guia é um dos nossos. Ele tem um transmissor de áudio no como um folículo capilar e uma microcâmera no crachá que vai nos informar sobre os deslocamentos em tempo real. Vai se certicar de que o uxo coincide o máximo possível com o cronograma. Todos os atendentes terão sido previamente removidos do local. Cinco minutos para ler o material de orientação axado nas paredes e mais cinco para ouvir a introdução gravada, ou seja, serão no máximo 10h10. A primeira sala demora cinco minutos. A segunda, dois. A terceira, quatro. Ou seja, serão 10h21. A quarta sala é o ponto
zero. Sessenta metros por sessenta metros, boa cobertura nas paredes frontal e esquerda. A equipe de extração já está posicionada. A energia está programada para ser cortada sessenta segundos depois da chegada deles ao ponto zero. Sete atiradores com equipamento óptico e ries disparadores de dardos guiados a laser. Os pontos de mira são pescoço, braço ou coxa, pois talvez eles utilizem uma proteção corporal. Nosso homem na sala de controle da energia começa a contagem de cinco segundos assim que a transmissão em vídeo mostrar o último guarda-costas do grupo cruzando a soleira da sala quatro. A senha “vermelho” aparece em nossos capacetes um segundo antes de a energia ser cortada. Os disparos devem começar na marca de um segundo para evitar qualquer reação que possa perturbar os tiros. Você leva nosso alvo principal enquanto eu derrubo o homem ao lado dele, os outros atiradores atingem os homens em seus setores predeterminados, afastando-se do alvo principal. Tudo resolvido em dois segundos. – Saída? – Duas passagens, uma a leste e outra a oeste, partem dessa caverna. A passagem oeste descreve um círculo de volta até a entrada. A passagem leste tem 200 metros de comprimento e vai dar em uma saída de emergência que nos leva para o outro lado da pedreira. Ali, existe uma estrada de fuga. O veículo à espera será uma ambulância. Uma maca com rodinhas estará na passagem leste. Alvo carregado na ambulância; isso não vai demorar mais do que trinta segundos. O mesmo tempo para carregá-lo pela passagem. A ambulância parte assim que as portas traseiras estiverem fechadas. A pista de decolagem ca quarenta minutos ao sul deste lugar. Alvo e equipe de extração saem do espaço aéreo francês antes que os guarda-costas acordem e se perguntem o que diabos aconteceu. Shaw anuiu com ar de aprovação. – E, depois, passamos para a próxima missão. – Essa também é a história da minha vida – falou ela hesitante, observando-o. – O quê? – perguntou ele, notando sua agitação. – Só um boato. Sempre me perguntei se era verdade. Shaw olhou-a sem entender. – O quê? – insistiu ele. – Você deu mesmo um tiro na cabeça do Sr. Wells? – Tivemos um pequeno desentendimento. Ela sorriu. – Gosto do seu estilo. – No fundo, Frank não é um mau sujeito. É só ver além dos seus cem quilos de raiva e disfunção. – Sério? – Não, na verdade, não.
20
NO DIA SEGUINTE, SHAW observou com interesse a mulher misteriosa fazendo compras em Gordes. Homens de todas as idades olhavam enquanto ela passava usando um chapéu de sol e uma saia na altura dos joelhos que a brisa sorrateira de vez em quando levantava, deixando à mostra parte das coxas. Fingindo observar as vitrines pelas ruas, Shaw via os homens se aproximarem dela falando francês, italiano, grego e inglês – pelo menos foram as línguas que ouviu. Eles ofereciam ajuda com as compras e com o idioma, ou então sugeriam que ela tirasse a roupa na privacidade de seus quartos. A moça declinou educadamente todas as ofertas. De fato, ela não precisava de ajuda nenhuma. Falava muito bem francês e conhecia o preço das coisas. E sabia barganhar. Shaw a viu pechinchar com sucesso por uma blusa, um prato decorativo azul e amarelo, uma garrafa de vinho e uma dúzia de ores de abobrinha que deviam ser fritas mais tarde. Naquela noite, ele estava sentado em um café ao ar livre em Gordes, tentando decidir o que jantar, quando foi surpreendido pela aproximação da mulher. – Parlez-vous français? – Oui, je parle français. Mais mon anglais est meilleur. Ela abriu um sorriso. – Meu inglês também é muito melhor do que o meu francês. Posso me sentar com você? Comi sozinha das últimas vezes e, embora no início tenha sido divertido, é algo que cansa rápido. Shaw fez sinal para que ela se sentasse. – Por favor. Antes de pegar um cardápio, a mulher tirou o chapéu e o colocou na cadeira ao lado. – O que parece bom? – perguntou ela, levantando os óculos escuros, embora os raios do sol poente a atingissem diretamente no rosto. – Frango à puttanesca. Ou o velho filé com fritas e salada; esse não falha. – Vamos pedir vinho? – Estamos na Provence. Acho que é obrigatório tomar. Eles zeram o pedido ao garçom, que logo trouxe a garrafa de vinho tinto selecionada e duas taças, serviu-o e os deixou a sós. – Devo estar parecendo muito atirada – comentou ela. – Abordá-lo dessa maneira... – Não sei se o adjetivo “atirado” ainda pode ser usado para homens ou mulheres.
– Vamos começar pelo início: meu nome é Jane Collins. Janie para os amigos. A moça esticou a mão e ele a apertou com uma expressão divertida. – Bill. – Americano? Ele assentiu. – E você? – O que diz no meu passaporte. – Sou de Washington. – E o que você faz na capital da nossa nação? – O mínimo possível. Eu era um lobista, mas vendi minha rma e decidi ver um pouco do mundo além do Capitólio. – Você tem família? – Deixe-me interpretar o pai orgulhoso. – Shaw sacou a carteira e lhe entregou a foto de um casal de crianças fornecida por Frank. – Michael e Alli. Eles estão nos Estados Unidos. Ela devolveu a foto. – Lindos. Então, sua mulher não está com você? – Somos divorciados. – Ele pôs a foto no bolso da camisa. – A foto é um pouco antiga. Os dois já são adolescentes agora. – Você deve ter começado cedo; não parece tão velho assim. – Continue tomando vinho, gosto de como ele afeta sua visão. E você? Qual é sua história? – Nada muito empolgante. Meu pai ganhou muito dinheiro. Ele e minha mãe morreram cedo demais e eu era filha única. – Lamento. Acho que o dinheiro não serve de recompensa. – Nunca achei que servisse e estava certa. Eu era jovem quando os dois faleceram, mas ainda sinto falta deles. – Entendo. – Mas a vida segue em frente. – Ela desviou o olhar por um instante antes de voltar a encará-lo. Deu um sorriso fraco e acrescentou: – Sou rica, gosto de viajar, ver lugares diferentes. Este lugar é lindo. Há quanto tempo você está aqui? – Há alguns dias. – E depois? – Itália e Grécia. Mas estou indo com calma. Minha vida inteira seguiu um plano muito corrido. Estou fazendo as coisas devagar agora. – Onde você está hospedado? Shaw se mexeu na cadeira, inquieto. – Bem, no fim das contas, talvez seja possível usar o adjetivo “atirado”. Ela corou. – Certo, essa eu mereci. Costumo fazer perguntas em excesso e falar demais de mim mesma para estranhos.
– Tendo a concordar. É melhor não car falando por aí que você é rica. Muitos malandros podem tirar proveito dessa informação. – Acho que você tem razão. – Por que você está sozinha? Não tem amigos que gostariam de viajar com você? Tenho certeza de que você viaja de primeira classe. – Os amigos têm empregos. Essa é a desvantagem de não precisar trabalhar para ganhar a vida. – Acho que a maioria das pessoas conseguiria aguentar esse fardo – comentou ele com delicadeza. – Bem, nós poderíamos sair juntos. – Você nem me conhece. – Claro que conheço. Você é o... – Bill – completou ele. Ela bateu de brincadeira no braço de Shaw. – De Washington. Um ex-lobista divorciado com dois lindos lhos adolescentes. Viu, minha memória não é tão ruim assim. – Certo, Jane... – Janie para os amigos. – Tudo bem, Janie, mas vá devagar com as pessoas. – Tenho quase 30 anos – replicou ela, acanhada. – Era de se esperar que eu já tivesse aprendido a lição. – Algumas pessoas nunca aprendem. – Então, onde você aprendeu a falar francês? – Como você sabe que eu sei falar? Com as poucas palavras que eu disse, não daria para conseguir um emprego na ONU. Seu francês parece de um nativo. Onde você aprendeu? – Fiz um curso de imersão por seis meses antes de vir para cá. É incrível o que dá para fazer quando não se trabalha. Shaw levantou a taça de vinho e a encostou na dela, brindando. – Estou ansioso para descobrir. A comida chegou e eles continuaram a conversar durante o jantar. Dividiram a conta e pagaram em dinheiro. Depois, passearam pela rua. A maioria das lojas estava fechada àquela hora, mas a brisa morna era agradável e havia muitas pessoas batendo perna. Era possível escutar a música de um bar fora do centro da cidade. – Quanto você mede? – perguntou ela, examinando-o. – Quase 2 metros. – Você devia ser o lobista mais alto de Washington. – Não, tem uns ex-jogadores da NBA tentando conseguir alguns dólares por lá. Um deles mede 2,13 metros. O coitado precisa se abaixar ao passar por cada porta para ir a reuniões e ganhar o pão de cada dia.
– Bem, eu sigo por aqui – disse ela. Shaw apontou para trás. – E eu, por ali. – Talvez a gente se esbarre por aí de novo. – Cidade pequena, grandes chances. Ela sorriu. – Vou ser bem mais reticente da próxima vez. Shaw retribuiu o sorriso. – E eu vou ser bem menos crítico. Reggie Campion voltou no mesmo instante para a mansão, onde deu um telefonema. Falou sobre o encontro com Bill ao professor Mallory e forneceu uma descrição detalhada dele. – Descubra o que puder. Alguma coisa há nesse cara. – Certo, Regina. Mas talvez não seja nada. – Ou talvez seja tudo. Confio no meu instinto. Alguma notícia sobre Waller? – Tudo como previsto. – Então, meu trabalho já está bem-encaminhado, exceto se essa novidade se transformar numa complicação. Tem certeza de que está tudo certo com o meu disfarce? – Já está há algum tempo. Um dos nossos benfeitores é o dono de uma empresa de tecnologia com programas de alto nível e acesso a inúmeros bancos de dados. Ele nos permitiu entrar pela porta dos fundos para fazer tudo de que precisávamos. Todas as informações que você memorizou estão registradas em todos os lugares em que se pode pesquisar. Registro civil nos EUA, um número de Seguridade Social americano, contas bancárias, histórico educacional, diplomas, histórico dos pais. Ah, gostou da sua página no Facebook? – Incrível. Tenho amigos legais. E devo dizer, professor, que o senhor sabe mais sobre computadores do que deixa transparecer. – Não passo de um velho trapaceiro. Apenas regurgito o que me dizem. – Se é o que o senhor diz... – Não se exceda. – É a única maneira de eu me manter viva.
A não mais do que 800 metros dali, Shaw estava sentado em sua cama tirando uma série de digitais do revestimento especial que recobria a foto falsa dos lhos que ele havia entregado a “Janie” . Usando um equipamento portátil, escaneou-as, enviou por e-mail para Frank e, em seguida, telefonou. – Parece uma gata – comentou Frank depois que Shaw passou as informações. – Não gosto que “gatas” apareçam quando tenho uma missão a cumprir, especialmente se estão hospedadas na mansão ao lado do meu alvo. E ela também já andou fazendo perguntas
sobre a casa de Waller. – Mas, pelo que você disse, ela é meio desmiolada. – Não podemos saber ao certo. Ela pode estar fingindo. – Já disse que nosso levantamento preliminar não acusou nada. Está ficando paranoico? – Não, Frank. Sou paranoico há muito tempo.
21
– VOCÊ ACREDITA EM DEUS? – perguntou Waller a Alan Rice. Eles haviam acabado de descer do avião depois de um longo voo e agora viajavam no banco traseiro de um Escalade alugado, a caminho de uma reunião. Rice estava olhando para a tela do laptop, na qual números passavam em grande velocidade. Se cou surpreso com a pergunta do patrão, não demonstrou. – Na verdade, não penso nisso desde criança. Waller pareceu interessado. – E se pensasse a respeito agora? – Eu diria que, em todo caso, é melhor se garantir, embora eu deva admitir que não tenho feito isso muito bem. Waller se mostrou decepcionado. – É mesmo? – Mas com a ressalva de que devemos contar com os esforços individuais para conseguir o que queremos na vida em vez de ficar rezando para alguma coisa que não podemos ver. Waller pareceu ter gostado da resposta. – Pelo que me consta, você não é praticante de nenhuma crença, certo, Evan? – Pelo contrário. Rezo de manhã e à noite e vou à igreja toda semana. Acredito em Deus de todo o meu coração, assim como minha mãe e minha avó acreditavam. Os franceses adoram a boa vida, mas são muito pios, sabe. – Mas não entendo... Waller o interrompeu com um aceno. – Não condeno os outros por não acreditar em Deus ou, como você diz, por “se garantir” . Em algum momento, eles vão precisar encarar Deus. – Ele olhou para Alan. – Você vai precisar encarar Deus em algum momento. Rice voltou o olhar para a tela do computador antes que soltasse uma frase infeliz ou zesse uma expressão facial reveladora. Então você também precisa encarar Deus. E acho que rezar duas vezes por dia e ir à igreja não vai livrá-lo do inferno. Essas palavras teriam custado sua vida. – Então, e hoje à noite? – perguntou ele. Waller balançou lentamente a cabeça e baixou um pouco a janela para deixar entrar um pouco de ar.
– Outra opressão religiosa, na verdade. Os homens com quem vamos nos encontrar acreditam que todas as pessoas que eles matam na vida vão servi-los na morte e que virgens os aguardam no paraíso. Apenas por causa desse conceito, esperava que mais homens se convertessem ao islamismo. – Talvez se convertessem, se as mulheres não mandassem nos maridos. – Alan, você está afiado como nunca esta noite. Rice disse em tom sério: – Essa é uma atividade muito diferente para você. Lidar com terroristas islâmicos? – Você não está cansado das putas asiáticas? Quantas unidades são necessárias para satisfazer as virilhas da civilização ocidental masculina? – Aparentemente, mais do que podemos obter. Mas o montante de dinheiro é colossal e constante. É o que move o fluxo de caixa de todas as nossas outras empreitadas. – Um homem precisa de novos desafios. – Mas urânio enriquecido? Para fazer um dispositivo nuclear? Ele pode explodir tanto em Montreal quanto em Nova York. Eu não confiaria muito na pontaria deles. – O mundo precisa de uma sacudida, você não acha? Anda parado demais. Previsível demais. As mesmas pessoas ocupando cargos no poder há tanto tempo... – Eu não sabia que você se interessava por geopolítica. – Tem muitas coisas a meu respeito que você desconhece. Mas acho que chegamos. Rice olhou pela janela e viu o edifício assomar no seu campo de visão. A viagem de avião fora muito turbulenta nos vinte minutos nais, pois eles haviam aterrissado em meio a uma tempestade e o percurso de 50 quilômetros na área rural não diminuíra seu enjoo. As pessoas com as quais eles se encontrariam estavam embrulhando seu estômago por outro motivo. Seu chefe, é claro, não se deixava abalar por nada. Qualquer pessoa que procurasse peças para uma arma nuclear para poder detoná-la e matar o maior número possível de pessoas obviamente era louca. Rice podia aceitar que seu patrão fosse em parte maluco, mas havia aprendido a sobreviver perto do homem. As pessoas no encontro daquela noite eram uma entidade desconhecida. Ele gostaria que Waller não tivesse insistido para que o acompanhasse. Quando Rice tentou recusar o pedido, Waller deu uma resposta curta e grossa como sempre. – O braço direito não pode selecionar seus encontros. E os medrosos não podem ser braços direitos. Infelizmente, não tenho serventia alguma para as outras partes do seu corpo, Alan. As palavras eram jocosas; o tom em que foram ditas, não. Então, Rice entrou no avião e cruzou vários fusos horários para ajudar seu patrão a negociar a morte de milhares de pessoas. – Como você quer começar a reunião? – perguntou Rice. – Vamos cumprimentá-los e sorrir. Se eles quiserem, comemos e bebemos. Depois,
negociamos. A propósito, não mostre a sola dos sapatos para eles: é um grande insulto. – Mais alguma coisa que eu deva saber? – Sim, a mais importante de todas. Rice olhou para Waller, na expectativa. – Se for necessário sair correndo, trate de correr muito. Rice pareceu abalado. – Você acha que isso pode acontecer? – Não sei. Mas não cono em homens do deserto que usam hattahs e querem explodir o mundo. – Então por que estamos aqui? – Eu falei que um homem precisa de desafios. – Você acha mesmo que vamos precisar sair correndo? – Talvez. Se isso vier a acontecer, certifique-se de que eu esteja na sua frente. – E se você não estiver? – Vou atirar em você e passar por cima do seu cadáver.
22
A CASA ERA GRANDE, EM estilo contemporâneo e cava a quilômetros de qualquer outra moradia. Foram recebidos no portão de entrada por um homem trajando um terno escuro de alfaiataria inglesa e um turbante. Ele revistou os dois e a arma de Waller foi confiscada. – É uma Heckler and Koch 9 milímetros personalizada – disse ao árabe. – Espero recebê-la de volta nas mesmas condições, ou seja, perfeita. Se o homem compreendeu, não deu sinal algum disso. – E meus homens? – Waller indicou os seis sujeitos parrudos atrás dele que haviam continuado com suas armas. Em um inglês entrecortado, o árabe respondeu que eles podiam entrar e também car com as armas. Waller estranhou, mas não falou nada. Rice ergueu a cabeça e olhou para a fachada escura. – Não parece ser a casa de alguém – comentou esperançoso. Enquanto caminhavam em direção à construção, Waller replicou: – Ah, eles estão em casa. Tenho certeza de que seremos muito bem-acolhidos. – Como você pode ter tanta certeza? – Apenas tenho. Seus nervos é que não devem estar deixando você pensar direito. – Por que será, não é? – sussurrou Rice. A iluminação interna era tão fraca que Rice precisou apertar os olhos para enxergar os cantos mais distantes dos grandes cômodos. Com os guarda-costas atrás, Waller e Rice seguiram o homem de turbante pela casa. O antrião parou na frente de uma grande porta dupla que parecia ser feita de aço inoxidável. Depois, abriu-a e gesticulou para que os outros passassem adiante. Ao entrarem, viram um homem sentado atrás de uma mesa redonda no meio do cômodo, vestindo uma túnica larga conhecida como thobe. Apenas uma luminária de mesa rompia a escuridão. Seu corpo era meio atarracado, embora o rosto fosse no. A barba estava bem aparada e ele não usava nada na cabeça. – Sentem-se – pediu, apontando as cadeiras em volta da mesa. Waller se demorou examinando a sala, avaliou posições táticas e, em seguida, gesticulou para que os guarda-costas se postassem em vários pontos. Acomodou-se em uma cadeira e estudou o homem. – Eu esperava mais gente – comentou.
– Tenho autorização – disse o homem em um inglês claro. Waller notou o brilho do suor em seu rosto, o modo como seu olhar vagueava pela sala. O árabe voltou a prestar atenção nos visitantes. – UAE – falou ele. – Urânio altamente enriquecido – completou Waller. – Como você pode obtê-lo? Waller pareceu confuso. – Isso já foi explicado. – Explique de novo. – O Acordo de Compra de UAE entre a Rússia e os Estados Unidos, rmado em 1993 – começou Waller em tom monótono, como se estivesse dando uma aula. – É uma maneira de os russos desmantelarem seu estoque de armas nucleares e reduzirem o urânio a uma forma que será usada em reatores nucleares e outros processos não armamentistas. Posso entediálo com termos como hexauoreto de urânio, resíduos de urânio empobrecido, componentes de mistura e coisas do gênero, porém o mais importante é que os russos têm 500 toneladas de UAE e concordaram em vendê-las aos americanos. Até agora, os ianques receberam cerca de 400 toneladas, perfazendo uma média de 30 toneladas por ano. Todo o processo é monitorado por ambos os lados, exceto o desmantelamento inicial e a separação do UAE das armas de metal do resto das armas nucleares. Os russos executam esse procedimento sozinhos. Assim, é possível que certas pessoas com contatos tenham acesso a um pouco de ouro nuclear. – E você tem esses contatos? – perguntou o homem. Mais uma vez, Waller pareceu perplexo. – Se eu não tivesse, não estaria aqui negociando com você. – Ele ergueu o celular. – Você pode verificar com um telefonema. – De quanto estamos falando? – Em relação às armas ou ao UAE? – Ao UAE. Waller notou que o árabe esfregava os dedos excessivamente. O homem percebeu o olhar e escondeu a mão embaixo da mesa. – Quinhentas toneladas do material podem ser usadas para armar cerca de trinta mil ogivas nucleares, ou seja, mais ou menos a quantidade que os soviéticos possuíam no auge da Guerra Fria. Meus contatos podem contrabandear cerca de 90 quilos de UAE. É o suciente para duas ogivas capazes de devastar uma cidade grande ou para armar vários dispositivos menores improvisados que podem ser usados contra vários alvos. – Então é muito valioso? – Digamos que o Irã está gastando bilhões de dólares para construir as instalações e dominar a tecnologia e os processos para, no nal, alcançar o que estou oferecendo a você esta noite. A única coisa mais valiosa na Terra talvez seja o plutônio, que é impossível de se
conseguir. Em um movimento brusco, o muçulmano se inclinou para a frente. – Qual o preço? Waller olhou para Rice mais uma vez, depois voltou a encarar o árabe. – Você diz que tem autorização para fechar negócios? – Parafraseando-o, não estaria aqui se não tivesse. – E qual é seu nome? – Isso não é importante. O preço? – Duzentos milhões de libras esterlinas transferidas para a minha conta. Waller estava prestes a dizer algo mais quando o homem falou: – Fechado. Waller olhou para o tronco do muçulmano e, em seguida, farejou o ar. Deixou o celular cair e se abaixou para pegá-lo. No momento seguinte, Rice caiu de costas enquanto Waller levantava a mesa e a empurrava para cima do árabe. Depois, pegou o braço de Rice e gritou para os seus seguranças: – Corram! Rice foi jogado por uma janela e um estilhaço de vidro rasgou sua calça e penetrou na coxa. Algo caiu em cima dele, tirando-lhe o fôlego. Em seguida, ele foi puxado e arrastado enquanto ofegava e a perna ferida jorrava sangue. A onda de impacto da explosão da casa o atirou para longe. Destroços começaram a cair do céu, mas Waller o protegia com o próprio corpo, respirando com diculdade. Depois que acabou a chuva de tábuas, tijolos, cacos de vidro e pedaços de móveis, Waller e Rice lentamente se sentaram. – Que diabos foi isso? – perguntou Rice enquanto agarrava a perna ferida. Waller se levantou e tirou o pó da roupa. – O idiota era um homem-bomba. – Como você sabia? – O thobe é sempre largo, mas o dele era justo demais, porque bananas de dinamite são volumosas. Seu olhar estava meio turvo, apesar de fixo em nós, pois ele não prestava atenção na conversa. Ele escondia algo e é uma reação humana comum achar que, se você não olhar de verdade para alguém, aquela pessoa não vai enxergar o que se passa com você. O mesmo instinto pode ser observado em cachorros. – Olhar meio turvo? – Ele deve ter sido drogado para levar a cabo a missão, anal, quem de fato quer se explodir, mesmo que seja para encontrar virgens no paraíso? E também tinha o cheiro. – Que cheiro? – A dinamite é colocada em pedaços de madeira banhados em água. Tem um aroma peculiar. Também senti um leve cheiro de metal. Provavelmente estilhaços dentro do invólucro amarrado em volta da sua barriga, cujo objetivo é causar o máximo de danos no
ponto de origem. Deixei meu telefone cair para poder olhar embaixo da mesa. Havia uma bolsa ao lado dele com uma bateria e os ligados ao explosivo que detonaria a bomba costurada em volta do seu corpo. Costurada para que ele não pudesse removê-la com facilidade. É por isso que ele pôs a mão embaixo da mesa, para segurar o detonador. E o cara não se levantou para nos cumprimentar. Muito incomum para um muçulmano. Mas bananas de dinamite são pesadas e ele deve ter cado com medo de que víssemos algo suspeito. – Ele encolheu os ombros resignado. – Eu deveria ter percebido muito antes. Agora, vamos dar uma olhada nessa perna. Waller se agachou, rasgou a calça de Rice e examinou a ferida mais de perto. – Desculpe por ter sido obrigado a empurrar você para fora da janela. – Meu Deus, Evan, você salvou minha vida. – Está sangrando, mas o corte não foi tão profundo a ponto de atingir uma artéria. – Tem certeza? – Já vi ferimentos como este. Se tivesse atingido uma artéria, você não estaria consciente porque teria perdido quase todo o sangue a esta altura. – Ele usou tiras das calças de Rice para fazer um curativo improvisado. – Vamos levá-lo a um médico assim que possível. Waller olhou para a casa e viu um dos seus seguranças cambaleando em sua direção. Foi correndo até o homem e pegou-o no braço. – Pascal, você está ferido? – Não, só um pouco atordoado. Pascal era grego, magro, com quase 1,80 metro, pele morena e cabelos escuros e encaracolados. Tinha nervos de aço e parecia estar sempre ligado. Capaz de correr o dia inteiro e atirar com precisão, nunca se movia depressa quando a cautela era necessária e ninguém corria mais rápido do que ele se a situação exigisse alta velocidade. Era o menor dos homens de Waller e também o mais durão. Como Pascal fora morar com Waller quando tinha apenas 10 anos, o patrão o treinara para ser o chefe dos seguranças. Não tão inteligente quanto Rice para administrar os negócios, mas, ainda assim, uma peça inestimável. – E os outros? – Tanner e Dimitri morreram. A cabeça de Dimitri foi arrancada, indo parar em um canteiro de ores. O resto dos homens está bem, só com hematomas. Mas a explosão destruiu um dos caminhões. Waller olhou para a massa enfumaçada perto da porta principal. O Escalade havia sofrido o impacto da explosão, felizmente evitando que os outros veículos fossem danicados. Gritos ecoaram à esquerda e Waller e Pascal correram nessa direção. Da escuridão, surgiram três pessoas. Duas lutavam contra uma e, por m, a venceram. O prisioneiro era o homem com o belo terno que os havia levado para dentro da casa. – O lho da puta estava tentando fugir, Sr. Waller – disse um dos seguranças, que segurava o braço do árabe atrás das costas.
Waller esticou o braço e agarrou o pescoço do homem. – Quer que eu o mate a tiros, Sr. Waller? – perguntou Pascal. – Não, não, Pascal. Quero conversar com ele antes. Waller encarou o homem. – Você é peixe pequeno. O homem que se explodiu também era um peixe pequeno, que pode ser descartado porque não é valioso. Mas você é valioso. Quero saber quem autorizou isto. Entendeu? O árabe balançou a cabeça e começou a falar rapidamente em seu idioma nativo e Waller respondeu na mesma língua, divertindo-se com o choque nos olhos do homem antes de ordenar que os seguranças recolhessem os restos mortais de Tanner e Dimitri. – Mais uma coisa. – Waller enou a mão no bolso do prisioneiro e sacou a 9 milímetros conscada. – Gosto muito desta arma. Gosto tanto que vou usá-la para matar você depois que descobrir tudo o que preciso saber.
– Um médico vai nos encontrar na pista de decolagem para dar um jeito na sua perna – informou Waller, sentado ao lado de Rice no carro. – Por que eles tentaram nos explodir? – Ainda não sei. Mas vou descobrir e, depois, revidar com muito mais força. Rice balançou a cabeça e deu um riso silencioso. Waller olhou para ele. – O que foi? – Estava pensando que, depois de tudo isso, você de fato precisa dessas férias na Provence.
23
SHAW SE DEITOU NO topo da rocha achatada na extremidade de Gordes e consultou o relógio. Era uma da manhã. Ônibus de turistas chegavam durante o dia inteiro, despejando seus passageiros, que cavam tirando fotos daquele panorama de tirar o fôlego. Shaw também estava ali por causa da vista, só que das mansões de Waller e Janie Collins. Seu binóculo de visão noturna transformava massas sólidas, como pessoas, carros e vasos de plantas, em esquemas tridimensionais, e o resto se tornava uma espécie de verde líquido. Só havia uma luz acesa na casa da mulher, enquanto a de Waller estava totalmente às escuras. Não era de surpreender, já que ele ainda não chegara. Shaw não via Janie Collins havia dois dias, mas seu interesse por ela só tinha aumentado. Deslocou-se um pouco para aliviar a pressão da rocha pontiaguda contra o ombro. Um movimento lá embaixo o deixou de novo em alerta. Ele focou o binóculo e observou enquanto ela surgia na luz e se dirigia para a escuridão, penetrada com clareza invejável por seu dispositivo óptico. Janie estava descalça e usava um roupão. Quando ela o tirou, Shaw viu que, por baixo, havia um maiô. Janie pôs óculos de natação, prendeu os cabelos e mergulhou com destreza. Ela se deslocava com braçadas precisas. Ao chegar à outra extremidade, deu uma virada olímpica e retornou. Depois de cinco voltas, Shaw percebeu que Janie contava as braçadas. A luz ambiente era fraca, não havia luar e a iluminação da casa não alcançava a beira da piscina, portanto, ela não tinha como ver as bordas para saber quando virar. Trinta voltas mais tarde, Janie ainda não havia reduzido a velocidade. De vez em quando, Shaw precisava esfregar os olhos porque seus movimentos metódicos eram hipnóticos, como o vaivém de um metrônomo. A luz que se acendeu fez com que Shaw desviasse a atenção da mulher para a mansão ao lado. Quando o homem entrou no campo de visão, Shaw percebeu que não se tratava de Waller. Não dava para ver as feições com tanta clareza assim, mas era alguém maior e muito mais corpulento do que o canadense. Shaw deduziu que ele fazia parte de uma equipe de segurança. Como previsto por Frank, os guarda-costas de Waller revistariam o lugar e, depois, o blindariam, talvez cando de sentinela até que o chefe chegasse. Era o mesmo protocolo usado pelo serviço secreto dos Estados Unidos. Shaw viu o homenzarrão todo vestido de preto sondar o espaço externo, apontando a pistola para os cantos escuros, e depois se encolher e olhar para trás. Em alguns segundos,
ele passou pela piscina na parte dos fundos do terreno de Waller e escalou o muro entre as propriedades para espiar do outro lado. Shaw logo voltou a tar Janie. Ela acabara de nadar e estava subindo a escada da piscina. Tirou o maiô molhado, deixou-o cair no deque, pegou a toalha e se secou antes de enrolá-la no corpo. Shaw desviou o olhar para o homem no muro. Mesmo com o dispositivo eletrônico, não conseguia ver com clareza suciente as feições do homem, mas imaginou que ele estivesse satisfeito com aquela mostra de nudez feminina. Sem dúvida o segurança relataria a Waller aquela informação apetitosa. Sem perceber, “Janie” talvez tivesse cometido um erro muito grave. Uma hora mais tarde, a mansão de Waller cou às escuras e Shaw cou observando a casa de Janie. Ele se retesou. No canto mais escuro, perto de uma alcova, pensou ter visto algum movimento. Será que era Janie? Ou será que um dos homens de Waller havia entrado no quintal dos fundos enquanto Shaw estava concentrado na mansão adjacente? A mente de Shaw fervilhava. Será que a mulher havia trancado a porta corrediça de vidro? Shaw achou que não. Ela conava demais nos outros, revelava informações pessoais em excesso. Naquele momento, ele esqueceu as vagas suspeitas levantadas a respeito da moça, que devia ser uma herdeira jovem e ingênua descansando ao lado de um psicopata que traficava garotas. Shaw se levantou às pressas e saiu correndo. Estava usando uma Vespa para seus deslocamentos, mas o barulho do pequeno motor seria problemático àquela hora da noite. Atravessou as ruas desertas de Gordes, passou pela praça da cidade, tomou um atalho ao lado da igreja, cruzou um beco e desceu outra escadaria envelhecida que reduzia ainda mais o tempo do percurso. Ao passar por um anteatro no qual aconteciam concertos durante os meses mais quentes, ele pulou os últimos degraus de pedra que o deixariam a 10 metros das duas mansões. Olhou além de uma ponta de pedra que formava a única saliência daquela parede de rocha lisa. A mansão de Janie ficava à direita. A de Waller, à esquerda. Havia um compacto Renault vermelho de duas portas vazio na frente da casa de Janie. Diante da entrada de Waller, estava um furgão Citroën prateado com dois homens dentro. Um deles devia ser o sujeito que Shaw vira fazendo o reconhecimento pouco antes, mas não dava para ter certeza. Calculou que a linha de visão deles tinha um ponto cego. Andou devagar, testando a validade da suposição. As duas sentinelas não se mexeram. Dobrou uma esquina e atingiu um ponto no qual podia ter acesso aos fundos da casa de Janie. O muro tinha 1,80 metro, mas, ao contrário da parede entre as duas mansões, havia longas pedras cimentadas verticalmente na parte superior que acrescentavam 50 centímetros à altura, provavelmente devido à proximidade de uma via pública. Assim, era impossível olhar por cima dele. E difícil escalá-lo, como Shaw constatou quando tentou transpor aquela barreira. Desistiu, voltou para a rua, tirou a jaqueta, com a qual cobriu suas mãos escoriadas, e voltou a subir. Passou para o outro lado em uma questão de segundos, caindo na grama macia sem fazer barulho. Agachou-se e se localizou. Estava no quintal lateral
margeado por roseiras e buganvílias. A área da piscina cava um pouco mais acima e podia ser acessada por um pequeno lance de degraus de pedra à esquerda. Ele tornou a vestir a jaqueta, o binóculo guardado no bolso. Shaw tentou não pensar no que Frank diria se pudesse vê-lo naquele instante. Estava pondo em risco toda a missão. E tinha plena consciência disso. Porém, também sabia que não podia deixar um capanga de Waller atacar aquela moça. Então, atravessou o pequeno gramado e subiu os degraus às pressas. Sentiu o cano da arma na cabeça um pouco antes de ela ser destravada.
24
A PESSOA ESTAVA PERTO DEMAIS, a poucos centímetros de distância, não abrindo espaço suciente para se esquivar de um contra-ataque repentino. Esse foi o primeiro erro. O segundo foi não ter puxado o gatilho e o matado logo. O polegar de Shaw o travou, impedindo o disparo. Seus outros quatro dedos agarraram o cano, puxando a arma para baixo e apontando-a para o chão. O erro nal foi não ter soltado a pistola. Ele a puxou, inclinou o corpo para a frente e o adversário passou voando por cima da sua cabeça, aterrissando com força na grama. Shaw roubou a arma, montou sobre a pessoa e apontou a pistola para a cabeça do adversário. – Janie? Ela estava de tênis, roupão e, pelo que Shaw podia ver, não muito mais do que isso. Com os cabelos caídos sobre o rosto, arfava, provavelmente por causa do impacto com o solo. Uma joelhada no rim esquerdo causou uma dor aguda nas costas de Shaw. Ele caiu de lado e cou encolhido na grama. Os dois se levantaram devagar. Shaw continuou segurando a arma. – Que diabos você está fazendo aqui? – perguntou ela, olhando ora para a arma, ora para o rosto do homem. – Vi luzes acesas na mansão ao lado. Então, pensei ter visto um homem pulando o muro para o seu terreno. Ela olhou em volta. – De onde você viu tudo isso? Shaw apontou para as colinas. – Eu estava dando um passeio. Lá de cima, dá para ver claramente sua mansão. – Como você sabia onde eu estava hospedada? – indagou ela com rispidez. Ele pareceu encabulado. – Tudo bem, eu confesso: segui você até a sua casa na noite em que jantamos, mas só porque queria ter certeza de que você chegaria bem. Você sabe, uma mulher rica viajando sozinha... Fiquei preocupado. – Ele levantou a arma. – Estou um pouco surpreso por você ter uma destas. – Como você disse, sou rica e estou viajando sozinha. E tenho porte de arma. – É mesmo? – Ele devolveu a arma à moça. – Achei que a França fosse muito rígida quanto a isso.
– O dinheiro resolve muitos problemas – afirmou ela friamente. Shaw esfregou as costas. – Deixe-me adivinhar: além de um curso de idiomas de imersão, você também tem tempo para praticar artes marciais. Janie desarmou a pistola e a colocou no bolso do roupão, fechando-o ainda mais apertado. – Ouvi algo no quintal dos fundos, mas não vi nenhum homem pular o muro. Quer dizer, sem contar você. – Mas você deve ter visto as luzes se acenderem na casa ao lado. E tem um furgão lá na frente com dois homens. Ela olhou para o muro que separava as duas mansões. – Talvez sim... não tenho certeza. – Ela voltou a olhar para ele. – Então, dá para ver minha casa lá das colinas? – Dá. Os ônibus param lá todos os dias e os turistas tiram fotos das mansões, do vale e das montanhas. Por algum motivo, Shaw sentia que Janie já sabia de tudo aquilo. Isso e o fato de ela estar com uma arma nas mãos reacenderam suas suspeitas. – Sua piscina é a única que pode ser vista totalmente. A da casa ao lado ca quase toda escondida por uma garagem e algumas árvores. Janie olhou para a água escura. – A piscina? – Ela lhe lançou um olhar acusador. – Então, você me viu nadando? E o que fiz depois? Shaw não hesitou. – Só avistei o sujeito. Por isso desci até aqui, para ter certeza de que você estava bem. Eu teria batido na porta da frente, mas vi os caras da casa ao lado e eu não sabia ao certo o que estava acontecendo. E já é mais de uma da madrugada. – Sim. Estou surpresa por você ainda estar acordado. – É, também quei surpreso em ver você. Acho que ainda estou no fuso dos Estados Unidos. Você tem certeza de que não viu ninguém? – Tenho, e as portas estão todas trancadas. – Ela fez uma pausa. – Eu não sabia que lobistas eram tão bons com defesa pessoal e armas. Shaw deu um risinho. – Foi tudo sorte. Quando senti o cano na minha cabeça, meio que surtei. A última vez que disparei uma arma foi aos 13 anos. Era um rie calibre 22 e os alvos eram latas em cima das estacas de uma cerca. Mas onde você aprendeu a ser tão sorrateira? Nem ouvi você se aproximar. Shaw achava impossível que alguém o surpreendesse daquele jeito. – Fiz balé. Caminho com suavidade. Como Janie não disse mais nada, ele tocou-a de leve no braço e comentou: – Fico feliz que você esteja bem. É melhor eu ir agora.
– Talvez seja melhor ver se os homens ainda estão lá fora – falou ela, indo em direção à casa. Shaw a seguiu calado, notando a mancha de grama na parte de trás do roupão. A casa estava escura e ela não acendeu nenhuma luz enquanto ambos se deslocavam. Ele percebeu que Janie tinha uma ótima visão noturna. Chegaram ao aposento na parte frontal da mansão, cuja porta dupla de carvalho se abria para o exterior. O teto do cômodo era abobadado, com escoras curvas de madeira em um estilo comum nas velhas casas europeias. As paredes internas eram grossas, com um revestimento de estuque, e mantinham o ambiente fresco ou aquecido conforme a necessidade. O mobiliário era eclético, caro e abundante ao ponto de dar uma leve impressão de entulhamento, mas também de aconchego. À esquerda, Shaw notou a escada de pedra em caracol que dava acesso aos outros pisos. Muito espaço para uma só pessoa. Eles se aproximaram da porta e Shaw a observou afastar uma cortina da estreita janela ao lado da porta. Olhou por cima do ombro da moça. Ficou aliviado ao ver que o Citroën ainda estava lá, com dois vultos nos bancos da frente. Janie fechou a cortina e recuou um passo, virando-se para ele. – Obrigada pela preocupação, Bill. – De nada. Você tem alguma ideia de quem são esses sujeitos? Ela balançou a cabeça. – Talvez seja melhor avisar a polícia. – Talvez – concordou Shaw. Ele não tinha nenhuma intenção de fazer isso e algo o fez suspeitar de que ela também não. – Bem, é melhor eu ir embora. Você se importa se eu sair pelo mesmo caminho que usei para entrar? Esses sujeitos parecem barras-pesadas demais para o meu gosto. Janie assentiu sem prestar muita atenção, olhando para o rosto dele. – Tenho certeza de que você poderia dar conta dessa situação perfeitamente. Ela o seguiu até os fundos e Shaw usou a jaqueta como proteção para subir no muro. Quando ele chegou lá em cima, Janie comentou: – Quem sabe a gente não se encontra em breve? – É. Sinto que, depois desta noite, criamos um laço. Ela pareceu forçar um sorriso. – Concordo. – Estou planejando tomar café com croissants na pequena padaria da aldeia por volta das nove amanhã de manhã. Por que não nos encontramos lá? Assim que ele sumiu atrás do muro, Reggie tirou o roupão, deixando à mostra shorts escuros e uma camiseta azul-marinho. Esperou por um tempo antes de entrar na mansão e sair por uma porta no nível inferior que dava na via pública. Encontrando o mesmo ponto cego que Shaw havia descoberto, ela passou pelos homens do furgão e começou a segui-lo. Ele pegou o atalho para o vilarejo e foi percorrendo devagar as ruas sinuosas de volta para o
hotel. Se sabia da presença de Reggie, não deu nenhuma indicação. Ela interrompeu a perseguição quando Shaw adentrou o hotel. Pelo menos agora sabia onde ele estava hospedado. Retornou à mansão pelo mesmo caminho. Encontrou o roupão no mesmo lugar onde o havia deixado, em cima de uma mesa, e pegou a arma com cuidado, colocando-a em um saco plástico. As digitais de Bill estavam no cano. Revistou o lugar de cima a baixo depois de trancar todas as portas. Satisfeita, vestiu uma camiseta comprida, subiu na cama e fez uma ligação. Whit respondeu no segundo toque. Sua voz não parecia sonolenta. Ele e Dominic estavam em um chalé isolado a cerca de 15 quilômetros. Ela o informou sobre os eventos da noite. – Não gosto desse cara – opinou Whit. – Havia de fato dois homens na frente da casa. – Sim, mas você ainda não sabe de que lado ele está. Acho que podemos deduzir que ele não é nenhum lobista americano. Toda a missão pode estar a perigo agora. – Não acho que ele trabalhe para Waller, se é isso que você quer dizer. Ele não teria me indicado os seguranças e, depois, me avisado sobre o homem espiando. – Se ele não está com Waller, com quem está afinal? – Não sei. Tenho as digitais dele na minha arma e vou mandá-las para você. Vamos ver se conseguimos alguma informação. – Tudo bem, posso pegá-la amanhã. Mas, Reg, já é muito difícil enfrentar Kuchin. Não queremos outra encrenca. Ela desligou o telefone e se cobriu com o lençol. Mas não conseguiu dormir. Levantou, foi até a janela, abriu-a e olhou para fora. No último andar da mansão, tinha uma vista excelente de Gordes. Lá em cima, estava um homem alto com o qual acabara de lutar. Ele podia tê-la matado, mas não o fez. Reggie nunca vira ninguém tão rápido. Nem Dominic nem Whit. Nem ela mesma. Quem é ele? – Droga – murmurou antes de fechar a janela e se jogar na cama com um longo gemido. Aquela complicação era a última coisa de que precisava naquele momento, se, de alguma maneira, fosse atrapalhar a captura de Kuchin. Reggie demorou mais uma hora para pegar no sono.
Em seu quarto, Shaw havia acabado de falar com Frank, relatando o que acontecera. Em seguida, tirou a roupa até car só de cuecas, mas não conseguiu dormir. Deitado, ele às vezes sentia diculdade em respirar por causa de um ataque violento ao seu pescoço desferido por um homem chamado Caesar. Os músculos de Shaw eram longos e brosos e, na verdade, ele era mais forte do que parecia. Só que o gigante Caesar era ainda mais poderoso. No entanto, em seu confronto, Shaw fora auxiliado por fontes inesperadas. Amor. Ódio. Raiva. Mas sobretudo ódio e raiva. O resultado era que ele estava lá e Caesar, não. Levantou-se e abriu a janela para deixar que um pouco de ar fresco entrasse. Não era
possível ver as mansões lá embaixo, mas podia visualizá-las em sua mente. Então, quem era aquela mulher e por que ela estava ali? Talvez fosse apenas quem dizia ser. Uma viajante rica e solitária poderia mesmo carregar uma arma – não era algo absurdo. E a pesquisa sobre ela no banco de dados não dera nenhum resultado. De súbito, uma imagem se insinuou em sua mente e ele tentou afastá-la: o maiô sendo tirado, revelando o torso longo e bronzeado e as nádegas lisas e bem delineadas. Ele foi tomado pela culpa. Voltou para a cama e, enfim, pegou no sono.
25
EVAN WALLER FECHOU OS olhos e deixou que seus pensamentos voltassem vinte, trinta anos no tempo. Em sua mente, a imagem do legítimo empresário canadense com empreendimentos criminosos ocultos desapareceu e a alma do ucraniano Fedir Kuchin veio à tona como uma serpente descartando uma pele desbotada por outra nova. Seu olhar correu pelo braço nu, procurando um ponto adequado. Tensionou o bíceps, apertando ainda mais o elástico em torno do músculo. As veias do antebraço incharam e ele escolheu uma para espetar a agulha. Pressionou o êmbolo e o coquetel personalizado uiu para dentro do seu corpo: alguns esteroides, alguns medicamentos, um pouco do seu próprio elixir obtido a alto preço no Extremo Oriente. Algo absolutamente único. Como deveria ser, pensou. O que era bom para o resto das pessoas não era bom o suficiente para ele. Waller respirou fundo e sentiu o corpo se inamar. Sorriu, se recostou e, então, a adrenalina entrou em ação. Ele pulou, fez polichinelos, exões, mais alguns polichinelos e, em seguida, fez um exercício de barra por dez vezes, sorrindo a cada repetição. Depois, se deixou cair no chão coberto por esteiras, sem fôlego, e se olhou no espelho. Para um homem de 63 anos, estava em excelente forma. Aliás, mesmo para um homem de 53 ou até mesmo 33 anos, segundo os fracos padrões ocidentais. Ele tinha pequenos pneus que se insinuavam na cintura e o abdômen não era mais sólido como uma rocha, porém a barriga era seca e, quando a tensionava, os músculos cavam duros. As coxas estavam um pouco mais nas, mas os braços e ombros ainda eram robustos. Ele esfregou a cabeça calva e observou os pelos grisalhos que recobriam o peito. Independentemente do que ele tomasse, de quanto exercício zesse, da distância que corresse, seu corpo continuava a envelhecer. Em parte, Waller cava satisfeito, pois ninguém ainda conseguira matá-lo. Por outro lado... bem, ele estava envelhecendo. E isso não era bom. Tomou banho, esfregando o braço para eliminar a marca da picada no braço. Envolto em um roupão, percorreu sua cobertura em Montreal. A vista era fabulosa através das janelas com materiais à prova de bala de última geração. O presidente dos Estados Unidos usava uma tecnologia semelhante em sua limusine e na Casa Branca. Inserida no espesso vidro, também havia uma membrana que distorcia a imagem vista de fora. Quem olhasse do exterior avistaria Waller quase 20 centímetros à direita de sua localização real. Cinco minutos mais tarde, já seriam mais de 30 centímetros à esquerda. A deturpação era dinâmica, para que ninguém pudesse mirá-lo com perfeição. Pelo menos em tese.
Diante da noite fresca de verão, ele olhou para o peito à procura do revelador ponto vermelho da mira do franco-atirador. Poderia haver alguém lá fora capaz de calibrar a imagem ilusória e estilhaçar a excepcional barreira que Waller erguera entre si próprio e seus inimigos. Mas ele não recuou para a sombra. Se o queriam tanto assim, podiam tentar. Porém, era melhor que o derrubassem com o primeiro tiro, pois não teriam uma segunda oportunidade. Em seu mundo, sobrevivia quem tinha mais ímpeto para matar. Era o que os muçulmanos logo descobririam. O homem que eles haviam capturado não durou muito. Depois de trinta minutos sozinho com Waller e sua pequena caixa de ferramentas, o sujeito contou tudo o que era necessário saber. Bem, quase tudo. Ele sabia os nomes das pessoas que tinham ordenado sua morte e onde estavam. E havia mais um sujeito, Abdul-Majeed, o ponto de contato inicial que guiou Waller pelo caminho que quase resultara na sua morte. Waller não era facilmente enganado, mas Abdul conseguira. O que o muçulmano capturado não foi capaz de dizer era por que haviam tentado matar Waller. Ele não sabia, ou pelo menos foi o que jurou em seu último grito antes de morrer. Aquela era a pergunta mais intrigante de todas. Será que ele era o alvo de alguma outra força? Waller vestiu calças escuras e uma camisa de seda branca e desceu pelo elevador particular até a garagem onde sua equipe o esperava. Ele não permitia que ninguém entrasse em seu apartamento, nem mesmo o pessoal da limpeza. Nem mesmo o conável Pascal. Aquele era seu santuário particular. Eles se acomodaram nos utilitários e partiram. Rumaram para o norte e a metrópole logo deu lugar a espaços mais abertos. Waller tamborilava no vidro, observando as grandes árvores que passavam na escuridão. Pensou ter visto um alce perto da estrada, mas o vulto sumiu na mesma hora. Seu pai caçava animais para comer na zona rural da Ucrânia, onde havia crescido. Agora, o lho caçava seres humanos por prazer e lucro. Aquela era uma excursão desse tipo. Havia muitas correntes de ar frio no interior do edifício. Por causa do isolamento térmico ruim, as janelas estavam embaçadas. Waller pôs um casaco pesado e entrou pela porta aberta por um de seus seguranças. O espaço era grande, do tamanho de um armazém, com vigas no teto que desapareciam na escuridão. Seis pessoas estavam alinhadas no centro, com agasalhos pretos e capuzes nas cabeças, os pés acorrentados, as mãos atadas nas costas. A mais alta mal chegava ao peito de Waller. – Como está a perna? – perguntou ao homem esbelto que surgiu das sombras. Aparentemente, Alan Rice havia se recuperado da explosão, mas, mesmo no escuro, sua pele parecia mais pálida do que o normal e ele mancava um pouco. – Nada que um analgésico não resolva. – Quantas temos hoje? Rice abriu o pequeno laptop e a luz da tela brilhou como uma pequena fogueira em meio às trevas. – Neste carregamento, 98. Sessenta por cento da China, vinte por cento da Malásia, dez do
Vietnã, quatro da Coreia do Sul e o resto é uma mistura de Mianmar, Turcomenistão, Cazaquistão e Cingapura. – Quanto estamos conseguindo atualmente por unidade? Rice digitou no teclado. – Vinte mil dólares americanos. Um aumento de cinco por cento em relação ao ano passado, embora a crise econômica tenha afetado alguns dos nossos compradores. Essa é uma média. Conseguimos mais pelas malaias e coreanas e menos pelas centro-asiáticas. – Gostos internacionais? – indagou Waller enquanto caminhava em torno das guras encapuzadas. Estalou os dedos e um foco iluminou o pequeno grupo. – Preconceito com as mulheres da antiga União Soviética? – questionou em tom de desaprovação. – Bem, as mulheres que estamos recebendo de lá são muito esqueléticas – explicou Rice. – E ainda há o fator de exotismo ligado às asiáticas do Extremo Oriente. – Na verdade, sempre achei as mulheres do Leste Europeu as mais bonitas do mundo. Waller olhou para Pascal, que estava com as mãos entrelaçadas à frente do corpo, e não atrás, de maneira que a arma pudesse ser sacada do coldre com mais rapidez se necessário. Só de ver Pascal já sentia uma espécie de conforto, não apenas por causa de sua habilidade em protegê-lo. Pascal era seu filho. Seu lho bastardo concebido com uma grega que Waller conhecera durante uma viagem. Obviamente, Pascal não sabia disso. Waller não tinha nenhum apego emocional ao rapaz, nada que se assemelhasse a amor ou devoção. No entanto, se sentira obrigado a ajudar o garoto, em especial porque não zera nada pela mãe. Ela morrera na miséria, deixando apenas o lho órfão. Waller permitiu que isso acontecesse apenas por ter perdido o interesse pela mulher, que era bonita, mas não passava de uma camponesa simplória e sem instrução. Então, pegou Pascal, na época com 10 anos, treinou-o e o transformou no guerreiro feroz que trabalhava para ele e o protegia de qualquer mal. Sim, Pascal conquistara sua posição no pequeno exército de Waller. – Pascal, de que tipo de mulher você gosta? As do Leste Europeu ou as asiáticas? O guarda-costas não hesitou: – As mulheres gregas são as coisas mais sensuais que Deus criou. Para mim, as gregas são as melhores de todas. Waller sorriu, levantou um dos capuzes, revelando uma garota chinesa. Ela mal tinha 14 anos e tremia de frio e medo. Estava com uma venda nos olhos e uma ta adesiva tapava sua boca, abafando os gemidos, embora não houvesse ninguém por perto que fosse se importar caso ela gritasse. – Então, 1,96 milhão pelo presente carregamento? – perguntou Waller. – Correto. Menos as despesas. O ganho líquido ainda ultrapassa 1,6 milhão. Tudo em dólares americanos, que, até o momento, ainda é a moeda de base. Porém, tenho protegido o câmbio das reservas do nosso uxo de caixa com iuanes e rupias indianas como medida de
segurança. Waller se virou para Rice. – As margens diminuíram. Por quê? – Principalmente por causa do custo do combustível dos navios. Elas não viajam no Queen Elizabeth II. Optamos pela embarcação barata e as transportamos em contêineres de carga, mas, ainda assim, sai caro. E temos que usar dois barcos para um carregamento por causa da logística e para evitar detecção. Só isso dobra o custo do combustível. Precisamos fornecer coisas básicas como comida e água e subornar tripulantes para que deixem entrar oxigênio nos contêineres de vez em quando. Mas não há outra maneira. O transporte aéreo é problemático demais e ainda está para ser inventado um carro capaz de atravessar o Pacífico. Mesmo assim, é um lucro líquido invejável. Waller assentiu enquanto continuava a caminhar em volta das mulheres. – Quantos carregamentos estamos recebendo? – Quatro por mês, com mais ou menos o mesmo número de unidades em cada um deles. Descobrimos que essa quantidade preenche bem os contêineres e só perdemos de dois a três por cento da carga na viagem devido a inanição, desidratação e doenças, entre outros fatores. Está bem abaixo do padrão de tráco humano, que apresenta uma perda média de doze por cento. – Por que selecionou estas seis? Rice deu de ombros. – As melhores em termos de aparência e saúde. Mas é claro que você tem a última palavra. De qualquer forma, fizemos uma triagem preliminar meticulosa. – Respeito seus esforços. Rice se aproximou. – É melhor do que negociar com maníacos de turbante. – Você acha? – indagou Waller em tom jocoso. – Eu achei divertidíssimo. E me deu outro objetivo de vida: exterminar até o último deles. Rice falou tão baixo que só Waller pôde ouvir: – Você acha isso sensato, Evan? Aquelas pessoas são mesmo loucas. Elas nos matam, se matam, matam qualquer pessoa. – Mas é aí que está o desao. Quero Abdul-Majeed em particular. Ele era o encarregado e não estava lá. Isso signica que é o traidor. E sua traição custou dois dos meus melhores homens, que Deus proteja as almas deles. Como Rice vira Dimitri e Tanner matarem seis pessoas, duvidava que estivessem com Deus. – Mas por que eles fariam isso? Você tinha o que eles queriam. – Pretendo fazer essa mesma pergunta quando encontrar o caro Abdul. O BlackBerry de Pascal emitiu um bipe e ele leu a mensagem, chamando a atenção de Waller. – Sim, Pascal?
O homem avançou e sussurrou no ouvido de Waller, que sorriu. – Os muçulmanos voltaram para ficar. – Algum progresso? – indagou Rice. – É o que parece – respondeu Waller brevemente. Ele encarou cada um dos seguranças, que estavam em pé no escuro com as mãos entrelaçadas na frente do corpo. Haviam sido recrutados nas Forças Armadas de vários países, conservando a mesma disciplina. Aquilo agradava a Waller, pois ele também já usara uma farda. Seu olhar se deteve em Rice. – Seria decepcionante saber que tenho um traidor entre meus homens. Rice conseguiu reunir um pouco de coragem sob aquele olhar fulminante e retrucou: – Não olhe para mim. Por que eu o trairia se também acabaria indo pelos ares? – Uma reação adequada. Por enquanto. Waller levantou os capuzes do resto das moças, examinou-as como se estivesse em um leilão de gado e, por m, escolheu a menor. Agarrou seu braço magro e a puxou. Os pés da garota tropeçaram nos grilhões. – Isolamos acusticamente um cômodo lá em cima – informou Rice. – Carpete e móveis novos também. Quer que as algemas e correntes sejam retiradas? – Não. Me dê duas horas e, depois, mande alguém fazer uma faxina. Assim que Waller se afastou o bastante para não ouvir, um dos guardas se aproximou de Rice. – O Sr. Waller não se preocupa? – Com o quê? – perguntou Rice em tom seco. O homenzarrão parecia constrangido. – Você sabe, aids, doenças sexualmente transmissíveis, coisas assim. – Todas essas mulheres são virgens. Esse é um dos motivos, Manuel. – Mesmo assim, ralé do Terceiro Mundo. Nunca se sabe. Rice olhou para a escada que seu chefe percorrera com a garota. – Não acredito que ele realmente faça sexo com elas. – O que ele faz, então? – Para falar a verdade, nem quero saber.
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REGGIE JÁ ESPERAVA NA confeitaria quando Shaw chegou. Com o cabelo preso embaixo de um boné de beisebol dos Red Sox, ela usava shorts jeans, uma camiseta azul-clara e tênis de corrida. Ele estava de calça social, mocassins e camisa de manga comprida. Os dois se acomodaram nas pequenas cadeiras do lado de fora. Reggie tomou um gole de café e o avaliou. – Você ainda se veste como um lobista, mesmo estando na Provence – comentou, em um tom brincalhão. Shaw sorriu e se recostou. Atrás deles, um homem lavava as ruas com uma mangueira. A água avançava pelas ruas de paralelepípedos, descia pelos desgastados degraus de pedra e, por fim, serpenteava pela colina em veios cada vez mais fracos. – É difícil se livrar de hábitos antigos. – Ele deu uma mordida no croissant. – Mas deixei as gravatas e os paletós no armário. – Onde você está hospedado? É justo que eu saiba, já que você sabe onde estou. – Em um hotel e spa naquela direção – respondeu ele, apontando. – Estou pensando em fazer uma massagem mais tarde. Ele tomou café, amassou o papel em que seu doce veio embalado e o jogou em uma lata de lixo próxima. – Aqueles caras ainda estão por lá? – O Citroën estava lá hoje de manhã, mas só com um homem dentro. Não sei se eles ficaram lá a noite toda. Parece mesmo algo misterioso – falou ela com ar inocente. – Como estão suas costas? – Bem. Como está seu rim esquerdo? – Não tão bem assim, na verdade. Por isso estou pensando na massagem. – Da próxima vez, lembre-se de telefonar antes de escalar meu muro. – Engraçado, aquelas mansões em geral são alugadas por todo o verão. Mas a que ca ao lado da sua está vazia desde que eu cheguei. Ela forçou um sorriso. – Você é um bisbilhoteiro. Está obcecado com as mansões agora? Você também foi muito bisbilhoteira. – Não, é só curiosidade. Cogitei alugar uma, mas era cara demais para mim. – Achei que todos os lobistas fossem ricos.
– Se não fosse pelo divórcio, eu seria um homem muito rico. Ainda estou bem financeiramente, mas perdi metade. – Duvido que eu algum dia vá me casar. – Por quê? Não quero parecer vulgar, mas você seria um ótimo partido para um cara jovem. – Por que jovem? – Bem, você é jovem. A maioria das pessoas se casa com gente da mesma faixa etária. – Quantos anos você tem? – indagou ela sorrindo. – Sou velho demais para você. – Você está se enaltecendo e se menosprezando ao mesmo tempo. Estou impressionada. – É um talento que aprimorei ao longo dos anos. Espero que sua arma esteja em um lugar seguro. Se o pessoal da limpeza aqui a encontrar, você terá que responder a algumas perguntas da polícia local. – Está em um lugar muito seguro, obrigada pela preocupação. – Então, vamos jantar amanhã? – Amanhã à noite, não posso. Que tal depois de amanhã? – Tudo bem. Aqui na cidade? – Não, tem uma aldeia aqui perto com um pequeno restaurante que dá vista para o vale. Você anda de caiaque? Shaw pareceu surpreso pela mudança repentina de tópico. – Já andei. Por quê? – Tenho uma reserva hoje com uma empresa de caiaques em Fontaine de Vaucluse. Soube que o rio lá é lindo. Gostaria de ir comigo? Temos que partir daqui a mais ou menos uma hora. Shaw terminou o café e pensou rápido. – Tudo bem. Só preciso pôr uma roupa mais apropriada. – Um calção de banho seria perfeito. – Bem, meu objetivo é car dentro do barco. Mesmo no verão, aposto que aquela água é fria. – Nunca se sabe, você precisa estar preparado para o inesperado. Depois que eles se despediram, Shaw a observou descer a rua, mas se escondeu em um beco ao ver o homem que espiara Janie na noite anterior. Não tinha certeza se ele a estava seguindo. Shaw ainda não sabia o que pensar sobre a moça. E aquilo o incomodava. Apesar de seu plano de ação ser bem elaborado, não fazia a menor ideia de qual seria o resultado. Sua retaguarda estava exposta e ele se sentia perdido. Naquele momento, ao que parecia, Shaw ia andar de caiaque. E achava melhor seguir o conselho de Janie e se preparar para o inesperado.
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– ACHO QUE NUNCA VI A água tão clara – comentou Reggie, à frente de Shaw no caiaque, enquanto remavam. Ele usava um longo calção de banho e uma camiseta larga com um colete salva-vidas por cima. Reggie vestia o sutiã listrado de um biquíni e shorts aderentes brancos tão nos que a calcinha cava visível por baixo. Na cabeça, o mesmo boné dos Red Sox, só que virado para trás. – Você é boa nisso – comentou Shaw, observando os músculos denidos de “Janie” em ação. Os movimentos dele estavam sincronizados com os de Reggie, exceto quando Shaw tinha que usar o remo como leme para que o caiaque zesse as curvas do rio, cuja correnteza era surpreendentemente rápida. No fundo podia-se ver uma vegetação em vívidos tons de verde e roxo, além de algo que pareciam algas. Shaw se sentiu em um grande aquário. – Gosto de água. Quando eu morava em Boston, sempre que podia, estava no rio Charles. – Certo, então você escondeu o jogo. Agora, não me sinto tão mal por não ser capaz de acompanhar o seu ritmo. – Você está se saindo bem. Shaw mergulhou a mão na água. Estava muito fria. Ele com certeza iria ficar no barco. Havia outros cinco caiaques no grupo, mas Shaw e Reggie logo tinham se distanciado de todos, exceto de um. Era o de Whit e Dominic, que, vestidos como turistas e falando francês em voz alta, pareciam se divertir com os remos. Enquanto segurava uma câmera e ngia lmar Whit, que fazia gracinhas, Dominic conseguiu gravar cerca de dois minutos de closes de Shaw. Eles tiveram que parar em várias pequenas represas e os guias os ajudaram a transportar os caiaques até o outro lado. Houve uma corredeira que navegaram com facilidade antes de terminar o percurso e subir na van da empresa de turismo para serem levados ao ponto de origem. Shaw e Reggie sentaram-se na frente; Whit e Dominic, na traseira. O automóvel foi chacoalhando por estradas de terra sinuosas marcadas pelos rastros de outros veículos até chegar mais uma vez ao asfalto. Reggie só olhou para trás uma vez, piscando o olho direito para Whit. Ele respondeu apertando de leve a bolsa em seus braços. Dentro, estava a arma com as digitais de Shaw. Como combinado, ele a havia tirado do carro dela enquanto os outros reuniam o equipamento para o passeio de caiaque.
Shaw e Reggie saltaram da van e entraram no Renault vermelho da moça. Ele teve que se encurvar e dobrar as pernas em ângulos estranhos para se acomodar no exíguo espaço. – Os carros europeus não são mesmo para pessoas altas – disse Reggie, solidária. – Vou sobreviver. A volta para Gordes demorou menos de vinte minutos. – Pode ir direto para a sua mansão – falou ele. – Posso ir andando até meu hotel. – Que tal um mergulho e almoço antes? Você já está com a roupa adequada. Shaw hesitou, analisando tudo o que aquilo poderia acarretar. – Tudo bem. Claro. Pararam em frente à mansão de Reggie. Shaw olhou para a entrada da casa ao lado. – Não estou vendo o Citroën. – Não estava mais aí quando fui pegar você. – Interessante. Vi um dos caras andando pela cidade hoje de manhã. – É mesmo? Você falou com ele? Shaw lançou-lhe um olhar estranho. – Não, ele parecia meio barra-pesada, tipo um mafioso. Reggie abriu a porta, desativou o sistema de segurança e o fez entrar pelos fundos. Entregou-lhe uma toalha e o ltro solar, apontando para os seus antebraços, que já estavam um pouco vermelhos por causa do passeio de caiaque. – Pois é, todos aqueles anos passados dentro de um escritório... – lamentou-se ele. Os dois saíram para a área da piscina. Ela tirou os shorts e os tênis e ele se livrou da camiseta e da sandália. Por trás dos óculos escuros, Shaw avaliou por um instante a condição física de Reggie e cou impressionado. Não havia um grama de gordura no corpo dela e seus músculos eram enxutos e definidos. Ela mergulhou na piscina e, depois, voltou à tona deslocando-se na água com movimentos fluidos. Fez um gesto de cabeça para a direita. – Aquela é a parte funda. Quatro metros. Não quero que você, com seus 2 metros, bata a cabeça. Shaw mergulhou e emergiu ao lado dela. – Vou nadar um pouco – falou Reggie. E foi o que ela fez nos vinte minutos seguintes, fazendo as viradas olímpicas no momento exato. Ele a acompanhou por um tempo e, então, saiu da piscina, se enxugou, deitou-se sob o lindo sol da Provence e a ficou observando. Quando saiu da piscina, Reggie torceu o cabelo, pegou uma toalha e olhou para cima. – Que diabos você está fazendo? Shaw estava em pé sobre a mesa de jantar com tampo de pedra que cava sob uma pérgula de madeira ao lado do muro que separava as duas mansões. A parede era alta, porém, no nível em que se encontrava, ele conseguia espiar do outro lado com facilidade.
– Vigiando os capangas da casa ao lado. Reggie atravessou às pressas a superfície de lajotas e o puxou com força. Ele ngiu estar se divertindo. – O que foi? O rosto dela estava avermelhado, a testa franzida de raiva. – Não faça mais isso. – Por quê? Você não tem curiosidade? – Foi você que viu o cara me espiando. E disse que o homem na cidade hoje de manhã parecia barra-pesada. Um maoso. Não quero que eles quem com raiva de mim. Estou de férias. – Tudo bem, tudo bem. Faz sentido. Que tal almoçarmos? Estou morrendo de fome. Ela se recompôs e continuou a se enxugar. – Estava pensando em uma salada de camarão, pão para mergulhar no azeite e uma garrafa de vinho branco. Comprei tomate, pepino e coração de alcachofra no mercado. – Parece ótimo. Faça-me trabalhar. Sei como me virar em uma cozinha. Posso ser o ajudante do melhor dos chefs. Na verdade, não, mas posso fatiar legumes. – Pode deixar que vou pôr você para trabalhar. Reggie vestiu os shorts, mas não cobriu a parte superior do biquíni. Torceu o cabelo para trás e o prendeu com um elástico vermelho. Shaw notou que ela parecia mais voluptuosa com seu vestido de verão. E também pensou que “Janie” não passara no seu pequeno teste. Ele tinha cado em pé em cima da mesa – um lugar que, segundo seus cálculos, só podia ser visto por uma pessoa nos fundos do terreno ao lado – só para ver a reação dela. Reggie dissera as coisas certas, mostrado uma preocupação normal em se misturar com gente “barra-pesada” . Mas Shaw era um agente havia muito tempo e seu instinto dizia que as emoções que acompanharam aquelas palavras não se encaixavam tão bem. Ela estava com medo, mas por outro motivo. Ele a ajudou a preparar o almoço e ambos comeram do lado de fora. Na maior parte do tempo, a conversa foi inócua e nenhum deles mencionou a trama que se desenvolvia na casa ao lado. Mais tarde, Shaw voltou para o hotel e logo vericou as três pequenas armadilhas que sempre montava para ver se alguém estivera lá. Ficavam em pontos nos quais a arrumadeira não tocaria durante suas tarefas normais: a gaveta da escrivaninha, o armário e uma de suas bolsas. Ele se sentou na cama. Das três, duas haviam sido mexidas. Enquanto estava com “Janie” , alguém tinha revistado o quarto.
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WALLER TOMOU BANHO E usou uma lâmina de barbear para eliminar alguns os errantes da cabeça. Ele não era naturalmente careca, mas havia começado a raspá-la como um recurso de disfarce quando fugiu da Ucrânia. Sabia que quase nada mudava tanto a aparência quanto cabelos acrescentados ou subtraídos. Depois de se aplicar outra injeção do elixir especial, cruzou a cobertura, chegando a um armário embutido no m de um corredor. Girou em sentido anti-horário a maçaneta do lado direito de uma das portas e um painel de madeira correu, revelando um teclado digital. Digitou o código de quatro algarismos. Houve um clique e a parte anterior do armário se deslocou para a frente graças a um mecanismo hidráulico. Waller atravessou o vão, e a porta, ativada por um sensor de movimento, fechou-se atrás dele. Um exemplo elegante de um trabalho habilidoso. O apartamento tinha mais de 900 metros quadrados, sem contar aquele espaço “secreto” no centro da casa, o principal motivo para ele não permitir que ninguém entrasse no apartamento. Não podia correr o risco de que alguém o descobrisse. Tratava-se de uma parte da estrutura original da cobertura, vazia, de concreto. O homem que construíra aquela “caixa-forte” para ele era de origem ucraniana, leal e já morto, de causas naturais. Waller raramente matava os verdadeiros amigos. Ele mesmo decorara o lugar. Caixas de aço inoxidável com trancas eletrônicas haviam sido entregues por meio de um mensageiro seguro e Waller as desembalara sozinho naquele santuário. Ele estava diante de um velho armário de metal com “Fedir Kuchin” gravado em uma pequena placa axada à porta. Tirou lá de dentro seu uniforme. Ainda lhe caía muito bem, pensou, embora casse apertado em lugares nos quais a ação do tempo tinha levado a melhor. Na cintura, prendeu o coldre com uma antiga Makarov PM-53 9x18. Aquela fora a arma portátil padrão dos militares da União Soviética durante quarenta anos, até o colapso completo do império soviético em 1991. Pôs na cabeça o quepe azul com guarnições douradas e a estrela vermelha soviética no meio, depois se olhou no espelho pendurado em uma das paredes. O tecido arranhava e não deixava a pele respirar muito bem, mas, para ele, era a mais fina das sedas. Todo paramentado como um agente da KGB, foi levado de volta para um passado que, já então, ele sabia que seria o ponto alto de sua existência. Tocou as faixas e insígnias no lado esquerdo do paletó. Três Medalhas de Serviço Irrepreensível à KGB, distinção de Agente
Exemplar da Segurança Estatal e graduação pela Universidade de Leningrado, além de outro emblema indicando que ele estudara no prestigioso Instituto Andropov. Também havia medalhas por serviço em combate, obtidas com seu sangue no Afeganistão, dentre outros lugares. Seus inimigos podiam chamá-lo com razão de muitas coisas terríveis, mas não de covarde. Embora nascido em uma aldeia de pescadores a apenas 600 quilômetros de Kiev, Waller sempre se considerou um soviético, e não um ucraniano. Seu mentor na KGB havia sido um coronel-general de três estrelas conhecido como o “Carniceiro de Kiev” . Também nascera na Ucrânia, mas jurara delidade a Moscou. Tudo o que Waller sabia a respeito de contrainteligência, repressão a insurgências e defesa do estilo de vida soviético fora aprendido com aquele homem. Waller tinha uma foto dele na parede e, ao lado, a bandeira soviética com sua foice e martelo dourados e a estrela no canto superior representando o Partido Comunista. Marchou até o centro do cômodo, enrijeceu-se e saudou aquele grande soviético que morrera baleado por causa de seu glorioso serviço. Sentindo-se um pouco tolo por causa da atenção dispensada a um homem já morto havia tanto tempo, se sentou diante de uma velha mesa de metal no estilo da década de 1950 usada no escritório da KGB em seu país de origem. Velhos documentos e formulários com cópias em papel carbono estavam empilhados ordenadamente em cima da escrivaninha. Arquivos de metal enleiravam-se em uma das paredes. Dentro daqueles repositórios modestos, havia todos os dossiês do seu longo serviço que ele conseguira levar consigo. Vez por outra, ia até ali para revisitar aquelas “conquistas” e reviver as glórias passadas. Na verdade, pouco se importava com sua vida atual. Waller era rico, mas dinheiro nunca havia sido uma prioridade. Nascera pobre, crescera na pobreza e se unira àqueles que defendiam seu estilo de vida. No entanto, até os gurões do Partido Comunista só tinham “luxos” como um apartamento com seu próprio banheiro ou um carro. A recompensa nem se comparava à do capitalismo. Mas, agora, é isto que sou: um capitalista. A mesma coisa contra a qual lutei durante todos aqueles anos. Bem, devo admitir que os americanos tinham razão. O tráco de garotas para prostituição o entediava. Ele começara a negociar com os muçulmanos em especial porque assim poderia reviver um pouco do passado, quando sua atividade e suas ordens afetavam milhares de pessoas. Naquele momento, era apenas um empresário, como tantos outros. Ganhava muito dinheiro, vivia com grande luxo, mas, se morresse amanhã, quem se importaria? Seu nome não guraria em nenhum livro de história. Seus superiores na KGB haviam levado boa parte do crédito por seu trabalho. Eles eram imortais. Em comparação, Waller era bastante comum. Entretanto, algumas pessoas sabiam o que ele zera. E, por isso, precisou fugir, se esconder como um rato. Não tinha muita escolha, se quisesse viver. Já vira o que havia acontecido aos companheiros não tão ágeis. Alguns foram destroçados por hordas furiosas que passaram a vida toda presas em seu
próprio país. Ele entendia as emoções perfeitamente, só não queria sofrer as consequências. Waller abriu outra gaveta, tirou lá de dentro um velho livro e o folheou, revelando páginas e mais páginas de desenhos feitos por suas próprias mãos. Ele sempre fora um bom desenhista, tendo aprendido com a mãe, que ganhara a vida como artista de rua, primeiro na França, depois em Kiev, antes de terminar em uma aldeia de pescadores que cava congelada cinco meses por ano, casada com um homem que não a amava. Waller nunca soube toda a história do casal e o que os havia unido. Naquele volume estavam várias pessoas que ele assassinara, os rostos mortos ou agonizantes reproduzidos em carvão, nanquim ou simplesmente lápis. Não havia cor ali. Não era necessária para os mortos. O outro livro que tirou em seguida da escrivaninha talvez surpreendesse algumas pessoas que conheceram o velho Fedir Kuchin. Ele sopesou a Bíblia na mão. A União Soviética se opunha a qualquer tipo de religião organizada. “O ópio do povo” , como Marx havia escrito. Porém, a mãe de Waller era francesa e católica devota e criara o lho com suas crenças religiosas, apesar de todo o perigo. Lia a Bíblia para o garoto todas as noites enquanto o marido, bêbado, dormia. O que agradou de início a Waller nas leituras foi a violência contida em um livro que em tese pregava paz e amor. Muitas pessoas eram exterminadas com métodos que nem mesmo Fedir Kuchin já adulto teria usado. Durante o Pai-Nosso, que recitavam toda noite, a mãe sempre enfatizava uma frase: “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.” Waller sabia muito bem a que mal ela estava se referindo: o marido. Sua pobre mãe era boa até o último o de cabelo. Porém, o que ela não entendia a respeito do mal, o lho compreendia muito bem. Com a motivação adequada, qualquer pessoa era capaz de cometer crueldades terríveis, atos de insensata selvageria e horrenda violência. Uma mãe mataria para proteger o lho e vice-versa. Um soldado mata para proteger seu país. Waller havia matado para proteger tanto sua mãe quanto seu país. Era bom naquilo, entendia a mentalidade necessária. Não era insensível à violência; ele a respeitava. Não a usava casualmente. Mas, quando o fazia, não podia negar: gostava do processo. Aquilo fazia dele uma pessoa má? Talvez. Será que sua mãe o teria considerado mau? Claro que não. Ele matara pelo país, pela mãe e pela própria sobrevivência. Quando as pessoas o atacavam, revidava. Um conjunto de regras mais justo não podia ser concebido. Ele era o que era, sincero consigo mesmo, ao passo que a maioria das pessoas levava uma vida de fachada, sua verdadeira essência soterrada por mentiras. Elas sorriam para o amigo antes de enar a faca em suas costas. Segundo esses parâmetros, quem era o verdadeiro malvado? O leão rugia antes de atacar, a cobra deslizava em silêncio antes de enterrar as presas. Eu sou o leão. Ou, pelo menos, costumava ser. De um armário, ele tirou um velho projetor, colocou-o sobre a mesa e o conectou à tomada. Em seguida, abriu a gaveta da escrivaninha e pegou um rolo de lme. Posicionou-o na máquina, apontou-a para uma parede de concreto e ativou-a depois de desligar as luzes. Apareceram imagens em preto e branco com mais de trinta anos. Um jovem Fedir Kuchin
todo uniformizado entrava em cena. Waller sorriu orgulhoso ao se ver jovem. Kuchin marchou até o centro de uma propriedade com altas cercas de arame farpado e guaritas visíveis por toda parte. Disse algo e alguns soldados zeram surgir uma dúzia de pessoas, empurrando-as com os canos das armas e forçando-as a se ajoelhar diante de Fedir. Havia quatro homens, três mulheres e o resto eram crianças. Kuchin se inclinou e falou algo a cada um deles. Sentado na cadeira, Waller articulou as mesmas palavras. Aquela era uma de suas lembranças favoritas. Kuchin levou as crianças para o canto, afastando-as dos adultos. Do bolso, tirou balas e as deu às crianças assustadas vestidas com trapos e até chegou a afagar a cabeça de uma menina. Do bolso do uniforme, Waller tirou um velho disco de chocolate daquela mesma ocasião, décadas atrás. Enquanto as crianças famintas devoravam os doces, Kuchin foi até os adultos, sacou a pistola e os executou com uma bala na nuca. As crianças se lançaram aos gritos para abraçar os pais mortos e ele atirou, disparando por último na espinha de uma menina que amparava a cabeça da mãe morta. Na imagem nal, Kuchin tirava um doce comido pela metade dos dedos mortos de um menino estatelado na lama e o engolia. Quando o rolo de lme chegou ao m e a parede cou clara de novo, Waller se recostou na cadeira com o mesmo nível de orgulho e satisfação que costumava sentir diariamente naqueles tempos. Aquele havia sido seu trabalho e ele o executara muito bem. Melhor do que qualquer outra pessoa na Ucrânia. Tirou o uniforme e voltou a pendurá-lo no armário com cuidado, alisando o tecido. Antes de apagar as luzes e sair, voltou a olhar para a bandeira e a foto do seu mentor. Quero algo digno de mim. Algo que seja de fato importante. Apagou a luz, fechou a porta e voltou para a única vida que lhe restava. Em breve, partiria para a França. Talvez encontrasse lá algo que suscitasse de novo seu interesse.
29
REGGIE OUVIU A BUZINA do lado de fora. Consultou o relógio: estava atrasada. Olhou para a rua lá embaixo e viu Shaw sentado em sua Vespa perto da porta de entrada. Vestia calças cáqui e uma camisa branca de algodão para fora das calças. Nos pés, mocassins sem meias. Ela bateu na janela e levantou dois dedos. Terminou de se vestir às pressas e pôs os brincos. Em seguida, ajeitou o cabelo no espelho, embora não fosse fazer muita diferença depois de andar na scooter. Alisou a frente do vestido. Tinha escolhido uma roupa justa por causa do tipo de transporte; não queria uma saia esvoaçando sobre sua cabeça enquanto eles corriam pelas estradas rurais do sul da França. Depois de passar o batom, ela correu escada abaixo. Trancou a porta e acenou para Shaw. – Você está linda – elogiou ele. – O objetivo era esse – rebateu ela. – Você está muito bonito com esse visual descontraído. Nada a ver com um lobista. Estou impressionada. – Muito bem, pois esse era o meu objetivo. Ela subiu na garupa, pegou o capacete que Shaw lhe estendeu e o prendeu. – Bela scooter – disse, acariciando o metal azul-claro. – É a melhor maneira de se deslocar aqui. Segure-se. Reggie agarrou a cintura dele e se apoiou em suas costas. Shaw sentiu uma descarga de eletricidade correr espinha abaixo. Até estremeceu um pouco. – Tudo bem? – perguntou ela. – Tudo. Só estou meio dolorido de tanto remar. Partiram a cerca de 20 quilômetros por hora. Quando chegaram à estrada principal, ele acelerou e dobrou a velocidade. – Tudo bem, para onde? – indagou ele, olhando para trás. – Bato à esquerda ou à direita nas suas costas – respondeu ela, e ele anuiu para indicar que entendera. Quinze minutos mais tarde, estavam subindo uma colina íngreme e o motor de 125 cilindradas da Vespa gemia em protesto. Shaw encontrou um lugar para estacionar e eles tiraram os capacetes e os prenderam à moto. Caminharam até o restaurante, que cava a apenas meio quarteirão, e se sentaram do lado de fora, em um terraço com vista para o vale. – Boa escolha – comentou Shaw enquanto contemplavam o panorama.
– A comida também é maravilhosa. Fizeram o pedido e, por hábito, caram observando as mesas em volta. Por m, se encararam. – Então, você é divorciado e tem dois filhos? Eles estão com a mãe? – No momento, sim, mas a guarda é compartilhada. Shaw partiu um pedaço de pão, o embebeu em azeite fresco e, depois, tomou um gole de vinho. – E você? Só sei que você é rica. Ela franziu o nariz. – Isso é quase tudo. Estou envolvida com algumas obras de caridade. Na maior parte do tempo, viajo à procura de alguma coisa, acho. Só não sei bem o quê. Tomou um gole de vinho e prendeu os cabelos atrás da orelha. Seu olhar não se deteve em Shaw, mas se xou além dele. Por algum motivo, Reggie estava tendo diculdade para interpretar seu papel. – Você parece que está pensando muito – falou ele. – Relaxe, você está de férias. Ela passou os dedos pela borda da taça de vinho. – Então, quem você acha que são as pessoas na mansão ao lado da minha? Shaw encolheu os ombros. – Eu tenho uma ideia. Ela chegou um pouco para a frente e lhe lançou um olhar de expectativa. Ele notou e sorriu. – Ei, não é nenhuma grande revelação, está bem? Veriquei com a imobiliária na cidade, mas não são eles que cuidam daquela casa, logo não sabiam nada a respeito. Shaw não estava disposto a admitir que falara com a corretora responsável nem que sabia que Reggie havia feito o mesmo. – Tudo bem. E daí? – instigou Reggie. – Talvez seja um político. Deve ter mandado antes os seguranças. Coisa do gênero. Eu via isso o tempo todo em Washington. Reggie se recostou, tentando não parecer decepcionada. – Ou talvez seja alguém muito rico, até mais rico do que eu. – Certo, certo. Como Bill Gates ou Warren Buffett. – Ou um mafioso. Você disse que o tal sujeito parecia barra-pesada. – Bom, Bill Gates não deve contratar seguranças com cara de frouxo. Precisam ser intimidadores. Faz parte do trabalho. – Acho que você tem razão. – Vamos ter que esperar e ver quem vai aparecer. Os pratos chegaram e, durante a refeição, a conversa se voltou para outros assuntos. Retornaram a Gordes duas horas mais tarde, a luz do dia já se esvaindo. Quando entraram na estradinha secundária que levava à mansão de Reggie, um homem de terno preto e
camiseta branca parou na frente deles, bloqueando a passagem. Shaw teve que parar tão de repente que Reggie se chocou contra ele e quase caiu da scooter antes de se endireitar. Shaw levantou o visor do capacete e olhou para o sujeito. Ele era poucos centímetros mais alto do que Janie, mas dava para ver que era musculoso, com cabelos encaracolados, queixo pontudo, olhos atentos, mãos fortes e aparentemente ágeis. Shaw sabia que o homem era destro porque o coldre de ombro estava à esquerda, sob um compartimento do paletó. – Aonde vocês vão? – perguntou Pascal com amabilidade. – Estou levando a moça para casa – respondeu Shaw. – E como esta é uma via pública, nem sei por que estamos tendo esta conversa. Shaw pôde perceber Reggie se encolhendo um pouco atrás dele. Sentiu uma de suas unhas entrando em sua pele. Pascal se virou e olhou para as duas mansões. – É a senhora que está alugando aquela mansão? – indagou ele, apontando para a casa à direita. Reggie não levantou o visor. – Sim. O homem a olhou de cima a baixo, desde o capacete até suas longas pernas. – Então é Jane Collins? Reggie abriu o capacete. – Como você sabe disso? – A corretora de imóveis foi muito útil. – Isso é invasão de privacidade. – Não – replicou Pascal, calmo. – Faz apenas parte do meu trabalho. – E que trabalho seria esse? – quis saber Shaw. – Digamos que faço gestão de segurança. – Podemos ir agora? – interveio Reggie. – Claro, só vou segui-los e me certificar de que vão chegar bem. – Acho que ela não precisa de ajuda – rebateu Shaw. – Não, tudo bem – falou rapidamente Reggie. Shaw seguiu devagar até a mansão; o farol único da scooter ia iluminando o caminho enquanto o homem os acompanhava. Eles puderam ver que, além do furgão Citroën nos fundos, dois grandes utilitários haviam de alguma maneira cruzado as ruelas que saíam da estrada principal para Gordes sem quebrar os retrovisores. A mansão também estava com todas as luzes acesas; Shaw pôde ver vultos passando atrás de uma janela. Eles desceram da Vespa e Reggie abriu a porta. O bipe do sistema de segurança soou. Pascal havia parado perto da scooter e balançou a cabeça em sinal de aprovação. – É uma boa ideia usar o sistema de alarme, senhora. Segurança nunca é demais. – Você quer que eu entre, Janie? – perguntou Shaw enquanto Pascal ainda os observava. Ela hesitou e olhou para o outro homem.
– Não, tudo bem. Estou cansada. Obrigada pelo jantar. Reggie fechou a porta e Shaw retornou à scooter. – Mulher atraente – comentou Pascal. Shaw já conhecera agentes mundo afora que eram exatamente como aquele sujeito, capazes de superar atletas altos e musculosos. Naquele tipo de trabalho, o essencial não era força, nem mesmo velocidade, mas resistência. A tartaruga sem dúvida vencia ali. Esses caras podiam brigar com os melhores, acertar um alvo minúsculo a 400 metros de distância, mudar de planos no meio do caminho, ler mapas complicados num minuto, passar despercebidos quando necessário e esmagar os adversários como um rolo compressor no momento certo. No m, tudo se relacionava a sobrevivência. Era por isso que Shaw nunca foi de levantar muitos pesos, mas costumava gastar o solado do tênis subindo e descendo colinas. Isso, uma boa pontaria e nervos de aço faziam toda a diferença entre voltar para casa a salvo ou ir parar em um caixão para o resto da eternidade. Ele se livrou desses pensamentos quando Pascal se aproximou e falou: – Precisa de mais alguma coisa? Caso contrário, gostaria que você fosse saindo para eu tomar conta desta área. Nenhuma ameaça clara, muito prossional, pensou Shaw. O sujeito era bom. Anal, um homem como Waller podia se proporcionar o que havia de melhor. Shaw voltou até seu quarto de hotel e ligou para Frank. – Certo – disse Frank depois de ser inteirado dos fatos. – O jogo começou. Mantenha-me informado. Shaw trocou de roupa, esperou três horas e voltou a sair depois de pegar no cofre do hotel o equipamento de visão noturna, que parecia uma câmera comum. Foi se esgueirando pelas ruas escuras de Gordes. Normalmente, Shaw teria cado satisfeito com a chegada do alvo à cidade, e bem no tempo previsto. Embora a mansão tivesse sido alugada e a excursão particular a Les Baux estivesse acertada, os planos sempre podiam mudar e não havia garantia alguma de que Waller de fato fosse aparecer na Provence. Shaw não estava satisfeito. O alvo estava lá, mas Janie Collins também. Shaw suspeitava que nada de bom podia vir daquilo.
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REGGIE SE OLHAVA NO espelho enquanto tirava a maquiagem com um pano úmido, vestindo uma camiseta verde comprida e uma calcinha branca. Seus cabelos, soltos, caíam sobre os ombros. Ela apagou a luz e foi até a janela que dava para a frente da casa. O furgão e um dos utilitários ainda se encontravam lá. A segunda caminhonete havia partido cerca de vinte minutos antes; Reggie ouvira a ignição, porém não chegara a tempo de ver quem estava dentro do veículo. Mandara uma mensagem de texto ao professor e a Whit dizendo que os homens de Kuchin tinham chegado. Usara uma linha segura, mas, de qualquer forma, pareceria insignicante a quem por acaso a interceptasse: “Querida Carol, a vista aqui é ainda mais linda do que eu pensava. Vou me levantar cedo para ver o sol raiar.” Ela entrou no quarto e abriu uma fresta de janela, que se moveu para fora como uma porta. Dali, podia enxergar uma parte do terreno dos fundos da propriedade ao lado. Ficou surpresa ao identicar a silhueta de um homem sentado em uma cadeira perto da extremidade da piscina, fumando o que parecia ser um charuto. As luzes estavam apagadas, mas o luar clareava bastante. É ele. É Fedir Kuchin. Se Reggie tivesse uma arma, poderia acabar com a vida daquele homem naquele instante. Mas eles não agiam daquela forma. Viu o homem se encolher. Será que ele a vira? Aquilo teria sido praticamente impossível. Ela não estava em sua linha de visão e não havia luzes atrás de si. Ainda assim, resolveu recuar, mas deixou a janela aberta, calculando que, se a tentasse fechar, Kuchin perceberia que alguém o observava. Reggie respirou fundo, tirou a camiseta e a calcinha, vestiu o biquíni e desceu a escada. Abriu a porta de correr nos fundos e foi até a piscina escura. – Certo – disse ela baixinho –, lá vamos nós. Deslizou para dentro d’água, tomou impulso e começou a nadar.
Das colinas, Shaw observava as duas mansões através do equipamento de visão noturna. Viu Reggie em pé diante da janela e, depois, se inclinando para espiar a casa ao lado. Passou a olhar o homem no quintal da outra casa. Evan Waller estava lá sentado, fumando um
charuto com dois dos seus seguranças por perto. Shaw deu zoom. Seu aparelho não emitia nenhum sinal, portanto não achava que seria agrado. Mesmo que eles tivessem um equipamento igual, Shaw observava tudo através de uma fresta entre duas rochas. A probabilidade de que o avistassem naquelas condições era pequena demais para gerar preocupação. Waller falava ao celular, fazendo movimentos vagarosos. Alguns minutos se passaram e Shaw estava prestes a interromper a vigilância quando viu Reggie sair pela porta dos fundos de biquíni e com uma toalha na mão. – Ah, pare com isso – falou Shaw. – Você sabe que o safado já andou espiando. Como se tivesse ouvido Reggie sair, Waller se levantou e foi até o muro que separava as duas casas. Um dos seus guarda-costas se juntou a ele e apontou para a mansão de Reggie. Shaw aumentou um pouco mais o zoom. Era o mesmo cara que a espiara antes. Provavelmente, estava fazendo um relato pormenorizado do incidente. A resolução do equipamento de Shaw era boa, mas não o suciente para ele enxergar Waller sorrindo. Porém, mesmo sem a imagem para confirmar, tinha certeza de que isso estava acontecendo. Shaw estremeceu quando o segurança se abaixou e formou um degrau com as mãos. Waller subiu para espiar o outro lado. Reggie ainda estava nadando e Shaw esperava que ela não saísse até que os dois homens voltassem para dentro. Suas esperanças se esvaíram quando ela parou o exercício, subiu os degraus e pegou a toalha. Waller ainda olhava por cima do muro. Àquela altura, o lho da puta devia estar babando. Ou talvez estivesse se perguntando se a moça seria uma boa aquisição para seu negócio de prostituição. Shaw voltou a olhar para Reggie. Não tire a roupa, Janie. Não. Parecia que ela o tinha ouvido. Ainda de biquíni, ela se secou, enrolou a toalha no corpo e entrou na casa. Ninguém que a estivesse observando seria capaz de ver o ponto à prova d’água que ela usava agora no ouvido direito para receber as comunicações de Dominic. Shaw não era o único nas colinas a observar as duas mansões naquela noite. Waller desceu rapidamente e os dois homens foram para dentro. Shaw deixou seu posto de observação e voltou andando para o hotel. Suava, embora a noite estivesse fresca. Ligou para Frank e contou o que havia acabado de ver. O chefe não estava tão preocupado quanto ele. – A garota não me interessa. A única coisa que importa é que ele vá a Les Baux como planejado. – Ele acrescentou em tom de ameaça: – E é melhor que essa também seja sua única preocupação, Shaw. Shaw desligou o telefone. Ele era um prossional, estava fazendo aquilo havia séculos. Só perdera o controle uma única vez, quando se interessara por algo além da missão. Aliás, quando ele se interessara por alguém.
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USANDO UM VESTIDO DE verão, sandálias e um lenço azul vivo em volta dos cabelos, Reggie destrancou a porta da mansão, saiu e quase esbarrou em um homem. Quando olhou para ele, constatou que parecia mais intimidador pessoalmente do que nas velhas fotos. Vestia uma camisa branca de manga curta para dentro das calças pretas, mostrando que estava em forma. Embora fosse um sessentão, conservara boa parte da musculatura da juventude: ombros largos, braços e coxas denidas. Mas o que chamou a atenção de Reggie foram os olhos. Ela havia encarado muitos carniceiros, mas o poder no olhar de Fedir Kuchin estava em outro patamar: parecia capaz de arrancar de sua alma todos os segredos que ela sempre guardara. Em comparação, os velhos nazistas eram crianças assustadas. Kuchin estendeu a mão. – Parece que sou seu vizinho. Evan Waller. O sotaque ucraniano já havia sumido, enterrado sob décadas de inflexão canadense. Reggie lhe apertou a mão e os longos dedos de Waller cobriram os dela. – Jane Collins. Ele estava incomodamente próximo. Era 10 centímetros mais baixo do que Shaw, mas, ainda assim, bem mais alto do que ela. – Soube que você teve um pequeno desentendimento com um dos meus seguranças ontem à noite. A culpa é toda minha. Fique tranquila, não acontecerá de novo. Eu gostaria de me desculpar. Poderíamos talvez jantar hoje? Na minha mansão ou no charmoso vilarejo no topo da colina? Seu corpanzil parecia pressioná-la enquanto ela pensava a respeito. Reggie viu dois guarda-costas atrás de Kuchin os observando. Um deles estava com um sorrisinho. Provavelmente, era o que a vira nua perto da piscina, pensou. A luxúria masculina era tão fácil de decifrar... E havia também o homem mais baixo da noite anterior. Por algum motivo, ela suspeitava mais dele do que do sujeito maior. – Bem, é muita gentileza sua, mas... Ele sorriu de maneira gentil ao interrompê-la: – Não, não, antes que você rejeite minha oferta, pense a respeito. Nem permiti que você trancasse sua porta antes de importuná-la. Desculpe. Aguardo sua resposta mais tarde. – Ele olhou para a cesta de palha de Reggie. – Vejo que você está indo fazer compras.
Ela assentiu. – Duas vezes por semana, acontece uma feira maravilhosa no centro do vilarejo. Tem de tudo, desde roupas até hortaliças. – Bem, preciso examinar essa feira. Você se importaria se eu a acompanhasse? A manhã está linda e eu gostaria de esticar as pernas. – Você acabou de chegar? Kuchin lhe deu o braço e Reggie foi forçada a caminhar ao seu lado. Seu ato foi delicado, parecendo natural, mas ela não viu nenhuma opção viável de resistência que não fosse puxar o braço. – Um voo longo, sim. Moro no Canadá, minha terra natal. Antes, estive em Hong Kong. Outra viagem ainda mais longa. Você já esteve lá? Reggie negou com a cabeça. – Uma cidade com mais energia do que qualquer outra. – Ele sorriu. – E um lugar no qual é possível obter tudo o que se quer. Mas você é americana, certo? Está acostumada a obter o que quer. – Por que você acha que sou americana? – perguntou ela, fingindo um ar de suspeita. – Apenas uma dedução baseada em seu sotaque e aparência. Estou errado? – Não, sou americana mesmo. – Então, somos vizinhos também nesse sentido, devido a nossas origens. Vejo algo de providencial nisso. – Quando voltei para casa ontem à noite, descobri que seus seguranças sabiam meu nome. Kuchin fez um gesto despreocupado com a mão livre. – Procedimento padrão de segurança. Sou um homem muito rico. Levo uma vida muito chata e, que eu saiba, não tenho inimigos. Mas a empresa que dirijo insiste nessas precauções. – Ele riu. – Anal de contas, sou canadense: um povo pacíco e trabalhador. – Ele lhe deu um tapinha no braço. – Posso garantir que não haverá mais invasões à sua privacidade. É mesmo?, pensou Reggie. Quer dizer que não vão mais me espiar enquanto nado? Ela não tinha um equipamento de visão noturna, mas, de esguelha, agrara Kuchin observando-a de cima do muro na noite passada. E Dominic conrmara esse dado pelo ponto eletrônico. Alertados pela informação de Shaw sobre o guarda bisbilhoteiro, eles armaram um posto de observação a cerca de 500 metros de onde Shaw a vigiava nas colinas. No entanto, Dominic e Shaw não sabiam um da presença do outro. – Você tem certeza disso? – perguntou Reggie. – Seu segurança pareceu muito persistente. Kuchin deu um sorriso radiante e lhe acariciou o braço. – Sim, tenho certeza. Ele trabalha para mim. E posso ver que você é uma jovem muito agradável, com a qual me sinto bastante seguro. Estou louca para provar que você está enganado, Fedir, pensou Reggie. – E soube que você estava com um homem na noite passada. Por favor, diga que ele é
apenas um conhecido, assim posso ter esperança de vê-la de vez em quando enquanto estiver aqui. – Eu o conheci recentemente. – Maravilha. Então, nada de marido nem namorado de longa data? – Não. Ela o encarou fingindo perplexidade. Kuchin interpretou aquele olhar exatamente da maneira que ela desejava. – Não, não. Sou solteiro, mas eu poderia ter lhos da sua idade, minha querida. Apenas faça a vontade de um velho que deseja a companhia inocente de uma jovem bonita e nada mais. – Você não parece tão velho – comentou Reggie. – Você acabou de deixar meu dia bem mais feliz. – E tem certeza a respeito desse “nada mais”? – Você está brincando comigo, não é? – Um pouco, talvez. – Ótimo. É um bom começo. Você já esteve na Provence antes? – Uma vez. – Eu já estive mais vezes. Se me permite, eu gostaria de lhe mostrar alguns dos belos lugares aqui perto. O Palais des Papes, ou Palácio dos Papas, em Avignon, o melhor exemplo de aqueduto romano de toda a França em Pont du Gard, as cavernas de Les Baux, a beleza de Roussillon e os vinhedos ao norte. Na verdade, conheço um café em Gigondas cujos doces valem a viagem. – Meu Deus, você não perde tempo mesmo, Sr. Waller. – E para que viver se perdermos tempo? Para mim, a vida é preciosa. Eu corro, corro, corro porque sei que um dia tudo vai se acabar. E, por mais dinheiro, casas bonitas ou quaisquer outras coisas que tenhamos, tudo desaparecerá ao nosso último suspiro. E, por favor, me chame de Evan. Você me deixa sem graça usando meu sobrenome. – Bem, Evan, vamos começar com a feira e, depois, veremos. O que você acha? – Perfeitamente lógico. – Ele apertou o braço de Reggie, indicando que seu “nada mais” era mentira. – Então, vamos à feira. Reggie entendeu o que o professor quis dizer ao falar do charme daquele homem. Se não conhecesse seu passado, poderia achá-lo intrigante, até mesmo fascinante. Mas ela o conhecia e, assim, podia car imune a seu carisma. E, daí a pôr m na vida daquele homem, o caminho era curto.
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SHAW TENTAVA AVANÇAR EM meio à multidão na feira. Havia centenas de vendedores, alguns com simples cestas tiradas de velhos e minúsculos carros e armadas sobre mesas instáveis, outros com leiras intermináveis de produtos em mostradores organizados. Matando tempo por ali havia uma hora, ele já tomara duas xícaras de café e comera um croissant de amêndoas e estava prestes a ir embora por uma rua comprida e estreita quando os viu se aproximando. Seu primeiro impulso foi se esconder atrás de uma arara de vestidos de algodão e chapéus femininos, mas resolveu apenas se agachar, como se examinasse um par de botas de couro em uma prateleira. Por trás dos óculos escuros, seus olhos focavam os dois. À sua esquerda, Janie Collins e Evan Waller caminhavam pela rua de braços dados. Ela carregava uma cesta e Shaw podia ver que já comprara algumas coisas. Dois passos atrás deles, estavam os seguranças. Um era o tampinha da noite anterior, o outro parecia ter quase 2 metros e mais de 120 quilos. Shaw esquadrinhou as outras ruas, portas e até telhados para ver se havia outros guarda-costas por perto. Não viu nenhum. Se houvesse, ele os teria visto. Que diabos ela está fazendo com ele? Esse cara não perde tempo mesmo. Shaw começou a segui-los, mas bem de longe, usando a cobertura das pessoas e objetos à venda sempre que eles se viravam. Aquele era um dos poucos momentos em que sua altura era uma desvantagem. Refugiando-se perto de uma barraca de caixinhas de música e camisetas, Shaw examinou Waller. E cou impressionado, tanto com sua boa forma quanto com seu jeito conante. Kuchin estava entretendo Janie com anedotas e, por algum motivo, o estômago de Shaw se retorcia toda vez que ele a via rir de uma das observações do canadense. Por um instante, Shaw achou que Waller tivesse olhado em sua direção enquanto ele estava exposto diante de uma barraca de jaquetas de couro, mas, logo depois, o homem levou Janie para outro lugar. Observou Waller comprar um colar artesanal e, depois, o colocar no pescoço dela, os dedos lhe tocando suavemente a pele. Vinte minutos mais tarde, com a cesta cheia e seguido pelas sentinelas silenciosas, o casal retornou devagar para suas mansões enquanto Shaw os analisava, mas isso de nada serviu. Voltou correndo ao hotel e ligou para Frank. – A mulher está brincando com fogo e pode se queimar – comentou Shaw. – Deve haver
uma maneira de protegê-la desse cara. – Calma aí, Shaw. Achei que tivéssemos conversado sobre isso. Não mandamos você para a Provence para proteger uma americana rica. Você está aí para dar cabo de Waller, ponto final. – Não podemos deixar o cara... – Fazer o quê? Aproveitar-se dela? – Frank riu. – Sério, você é uma figura. Shaw se sentou na cama e esfregou o polegar no indicador com tanta força que até fez barulho. – Ele pode matá-la. Ou sequestrá-la e transformá-la em uma prostituta. – Claro. Ele mata ou rapta uma jovem americana rica que está hospedada na mansão vizinha só para a polícia aparecer e investigar? Não mesmo. E por que ele faria isso se pode conseguir na Ásia tantas órfãs de 14 anos quanto quiser? O cara está de férias. Ele descobre que, na casa ao lado, tem uma garota bonita que nada nua. Provavelmente, só quer ir para a cama com ela. – E você não vê problema nenhum nisso? – Isso não é problema meu. Você discorda? Shaw hesitou. Ele não tinha certeza do que achava. Aliás, talvez tivesse, mas estava com medo de falar, pelo menos para Frank. – E se ela estragar a operação? – Como? – Não sei... Que tal cancelarmos tudo? – Você enlouqueceu? – berrou Frank. – Se não o pegarmos desta vez, talvez ele não apareça de novo até Londres ou Nova York explodirem com uma bomba atômica. Concentre-se na operação, Shaw, e pare com essas bobagens. Shaw desligou e soltou um pequeno gemido. Depois daquela missão, ele nunca mais voltaria à França.
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REGGIE SE INCLINOU PARA tirar a foto de uma abelha em um caule de lavanda. Pôs a câmera no bolso de trás do jeans branco e foi em direção à abadia de Sénanque. Fundada por monges cistercienses no século XII, cava a cerca de 30 quilômetros de Gordes e se chegava até ela por estradas sinuosas que atravessavam montanhas e, em tese, tinham duas pistas, mas só davam espaço para um carro de cada vez. Ela caminhou rumo ao velho edifício ao qual, durante séculos, homens se dirigiram para aprender as complexidades de sua fé. Atualmente, a abadia abrigava uma capela, uma livraria e loja de suvenires e um espaço para eventos. Monges ainda viviam lá e produziam vários itens para vender, como mel e licores. O terreno era coberto de campos de lavanda, famosos na Provence, embora Reggie tivesse passado no caminho por plantações de girassóis também impressionantes. Todavia, ela não tinha ido até lá por causa dos aspectos hortícolas. Estava ali por causa de um encontro. Aquele lugar fora escolhido em especial porque ninguém poderia segui-la até ali. Caminhos tortuosos de uma só pista faziam isso por você. Reggie acompanhava um grupo de turistas, mas depois tomou o rumo da loja enquanto eles se dirigiam à capela. O local era abafado e um único ventilador rateava no teto, conseguindo apenas deslocar bolsões de ar quente e viciado de um ponto para o outro. Uma máquina no pequeno saguão vendia cappuccino e Coca. Ela se dirigiu à seção onde havia grandes livros sobre a Provence, e vários, é claro, tinham campos de lavanda na capa. Enquanto folheava um livro sobre a história da abadia, seu celular vibrou. Vericou a mensagem de texto, que dizia “seis horas” . Pôs o volume de volta no lugar, pegou outro e se virou casualmente. Whit estava atrás dela, vericando uma pequena talha que representava o edifício da abadia e podia ser comprada por 15 euros. Usava agora boné de beisebol, óculos escuros e jeans surrados, exibindo uma barba crescida e os fones do iPod enados nos ouvidos. Ele pôs o objeto no lugar e saiu. Reggie esperou por um minuto e o seguiu após ter comprado o livro que estivera folheando. Viu-o perto de um muro de pedra baixo que se estendia na parte frontal do edifício com a câmera nas mãos à frente do rosto. Ele levantou a cabeça e a encarou. – Você poderia tirar minha foto na frente da abadia? – perguntou. Reggie sorriu.
– Só se você tirar a minha também. Eles se alternaram fotografando um ao outro e, depois, começaram a caminhar juntos. – Alguma novidade sobre meu amigo Bill? – indagou ela baixinho. – Negativo. As digitais não deram em nada. Nem as fotos. Deve ser um bom moço. Seu nome completo, a propósito, é William A. Young. – “A” é abreviatura de quê? – Não conseguimos descobrir. – Acha que ele vai perceber que vocês dois estiveram no quarto dele? – Fomos muito meticulosos e pusemos tudo de volta exatamente no mesmo lugar. O passaporte é americano, o endereço bateu. Há vários lobistas chamados William Young registrados nos Estados Unidos. Não podemos investigar todos com o tempo de que dispomos. Seria uma perda de tempo. Não vejo nada podre. – Ou o disfarce dele é tão bom quanto o meu. – Ou o cara de fato é quem diz ser, Reg. – Ele escalou um muro e me desarmou. Um lobista? Aquilo pareceu perturbar Whit. – Bem, ele é um homem grande. Mas entendo seu argumento. O que você quer fazer? – Não tenho certeza. O que o professor acha? – O gênio deixou que você, com sua grande experiência no ramo, decidisse. – Ótimo. E o que você acha? – Acho que precisamos pegar Kuchin e uma mudança de planos agora com base em informações inconsistentes pode estragar tudo. Então, mantemos o plano original e, se algo concreto vier à tona, mudamos o curso. – Como vai Dom? – Animado e pronto para agir. Então, quais são suas primeiras impressões sobre o velho Fedir? – As mesmas que eu tinha antes. Ele sabe se impor. Ele olhou para Reggie, cético. – Você não foi seduzida, certo? – Pelo monstro? Nem um pouco. – Na verdade, não estou falando de Kuchin. Ela lançou um olhar irritado a Whit, que sorriu com malícia. – Alto, misterioso e escalador de muros? – Vou fingir que não ouvi isso – retrucou ela friamente. – Não estou tentando dizer a você o que fazer... – Então, pare por aí, Whit. – Só tome cuidado. – Olha quem está falando. – O que você quer dizer com isso?
– Depois de atirar no saco de um alvo, você pintou mesmo uma suástica na testa dele com o próprio sangue? – Sou um artista. – Certo. Vou voltar. – Então, jantar com nosso amigo ucraniano hoje? – Sim. – Será que o Sr. Alto e Misterioso vai rondar vocês? – O vilarejo é pequeno. – Bem, só não se meta em um ménage à trois. Pode complicar as coisas. E, antes que você pergunte, sim, estou falando por experiência própria. – Whit, às vezes não sei como tolero você. – Deve ser meu charme. – Quem disse que você tem? Ele pareceu ofendido pela pergunta. – Sou irlandês, ora! Está no nosso DNA.
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REGGIE HAVIA INSISTIDO PARA que eles comessem em um dos restaurantes em Gordes, e não na mansão dele, e Waller por fim aceitara. – Você é tenaz – comentou ele com um leve tom de bronca. – Não, só estou fazendo algo sensato. Não conheço você de verdade. E meus pais não iam querer que eu fosse desacompanhada à sua casa, mesmo que apenas para jantar. – Seus pais são sábios. – Eles eram mesmo. – Entendo. Sinto muito. – Eu também – replicou Reggie com firmeza. Os dois haviam subido juntos até o vilarejo e escolhido uma mesa do lado de fora de um restaurante, circundada por uma grade de ferro de um metro de altura. Como de costume, os seguranças de Waller ocuparam uma mesa próxima, mas Pascal não estava ali naquela noite. – Eles sempre vão aonde você vai? – perguntou Reggie ao observar os homens armados. – É um dos preços a serem pagos pelo sucesso – respondeu Waller, abrindo os braços, como se nada pudesse fazer. Ele usava um blazer azul com um lenço branco no bolso, calças cáqui, camisa de seda branca e mocassins azulões que deixavam à mostra os pálidos tornozelos. O ar ainda não refrescara e havia uma linha de suor em sua testa. Reggie optara por uma saia azul-clara, sandálias brancas, blusa amarela e um lenço do mesmo tom em volta dos cabelos. Assim, ela não transpirava. – Seria difícil imaginar alguém tentando machucar outra pessoa aqui – falou Reggie enquanto terminava seu último pedaço de carne. Waller tomou um gole de vinho e a avaliou com o olhar. – Este lugar é sereno, bucólico. Lindo. – Ele sorriu. – Como você. A um aceno de Waller, o garçom trouxe uma segunda garrafa do mesmo vinho e o serviu. Reggie pegou a taça cheia e começou a girar o líquido, observando como a bebida reetia a luz da vela acesa em um recipiente no centro da mesa. – Você mencionou que poderia ter filhos da minha idade. Você tem filhos? Ele fez um gesto despreocupado. – Não, eu só estava falando hipoteticamente. Acho que sempre estive ocupado demais para
ter filhos. – Esposa? – Se eu tivesse uma agora, ela estaria viajando comigo. – Agora? Então, você já foi casado? – Já. – Ela faleceu ou vocês se divorciaram? – Perguntas, perguntas – disse ele em tom casual, mas seu olhar era sério. – Sinto muito. Só estava curiosa. – Ambas as coisas. – O quê? – A primeira morreu e a segunda se separou de mim. – Ele lhe deu um tapinha na mão. – Você me lembra minha primeira esposa. Ela também era linda. E teimosa. – Como ela se chamava? Waller fez menção de dizer algo, mas ficou calado. – Isso é passado. Não gosto de viver no passado. Vivo o presente e olho para o futuro. Vamos terminar este maravilhoso bordeaux e, depois, passear e admirar tudo o que é francês.
Mais tarde, de braços dados, ele a acompanhou até a rua da qual haviam partido. Reggie voltou a olhar para os guarda-costas e Waller percebeu. – Suponho que, para você, seja necessário, mas eu não gostaria de ser obrigada a viver assim. – Mas você é rica. Viaja para ótimos lugares, aluga mansões luxuosas em um dos locais mais bonitos do planeta. Não tem medo de ser sequestrada? Ou até mesmo assassinada por causa do seu dinheiro? – Não carrego dinheiro, a menos que você leve em conta uns poucos euros. Se quiserem meus cartões de crédito, não precisam me matar por causa disso. E, se me sequestrarem, não haverá ninguém para pagar o resgate. Está vendo, eu seria um alvo muito impróprio. – Talvez você tenha razão. O homem com quem você tem saído seria um competente guarda-costas. – Bill parece que sabe se cuidar. – Ah, então ele se chama Bill. Sobrenome? – Ele não me disse – respondeu Reggie com sinceridade, pois fora Whit que descobrira. Isso pareceu animar Waller. – Então você não é tão amiga assim dele. Eu estou aqui há pouco tempo e você já conhece o meu sobrenome. – Não é uma competição, Evan. – Claro que não – observou ele, sem convicção.
– E você tem idade para ser meu pai, como você mesmo disse. – Na verdade, tenho idade para ser seu avô, ou quase isso. Ele soltou o braço de Reggie e apontou para a igreja. – Há uma em cada vilarejo que você visitar aqui. – Uma igreja? É, acho que sim. – As pessoas usam a religião para muitas coisas, sobretudo para explicar suas próprias deficiências. – Essa é uma teoria incomum. – Livros escritos por pessoas tolas que não querem assumir o controle da própria vida e buscam a providência divina para explicar seus desejos. – Para guiá-las, você quer dizer? – Não, para dar desculpas. Quando as pessoas de fato fazem algo com sua própria vida, o impulso vem daqui. – Waller bateu no próprio peito. – Elas não precisam de homens de batina para saber o que pensar e para quem rezar. E, acima de tudo, para quem dar dinheiro. – Presumo que você não vá muito à igreja. Ele sorriu. – Pelo contrário. Estou lá toda semana. E dou muito dinheiro à igreja. – Por que você faz isso se acha que é tudo besteira? Waller deu o braço a ela mais uma vez. – Porque vem do meu coração. Eu acredito. E há muita coisa boa na fé. Muita. Minha mãe teria ido para um convento se sua vontade tivesse sido respeitada. Ainda bem que não foi o que aconteceu, senão eu não estaria aqui. Eu a amava muito. Reggie se virou e o viu olhando diretamente para ela. – Vou fazer um tour particular à mostra de Les Baux esta semana. Você já ouviu falar a respeito? – Sim, li alguma coisa sobre. – Goya é o artista selecionado este ano. – Goya? Não é uma escolha muito alegre. – É verdade que muitas das suas obras-primas são soturnas, mas não deixam de ser visões magníficas da alma humana. – Elas retratam o mal – armou Reggie, e desviou o olhar do homem que, na sua opinião, era um dos mais maléficos que ela já havia perseguido. – Mas o mal é um grande componente da alma. O potencial para o mal está à espreita dentro de todos nós. – Não acredito nisso – rebateu Reggie, nervosa. – Recuso-me a acreditar nisso. – Você pode se recusar, mas isso não signica que tenha razão. – Ele fez uma pausa. – Gostaria que você me acompanhasse nesse tour. Poderemos discutir mais sobre esse tópico. – Vou pensar e aviso – disse ela depois de um tempo. Waller sorriu daquela suave reprimenda, inclinou-se e lhe beijou o dorso da mão. – Gostei do nosso jantar, Janie. Agora, como tenho assuntos a resolver, desejo-lhe boa
noite. Ele foi embora com os seguranças atrás. Reggie cou parada no meio da rua, tentando desesperadamente decifrar o último olhar de Waller. – Perturbada? Ela se virou. Shaw estava encostado em uma pilastra na frente da igreja.
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EVAN WALLER SUBIU NO utilitário preto e os três carros partiram, jogando pó da estrada em um casal de idosos que subia devagar a colina para Gordes. Ele se recostou e tou a tela do telefone. O e-mail era breve e direto, o que lhe agradava. – Quanto tempo? – perguntou ao motorista. – O GPS diz cinquenta minutos, Sr. Waller. Estradas ruins. – Faça em quarenta. O homem pisou no acelerador e falou ao microfone: – Andem mais rápido. Os outros dois automóveis aceleraram de imediato. Trinta e nove minutos mais tarde, os três veículos passaram de uma estrada de duas pistas para outra de pista única e, por m, seguiram um longo caminho até uma pequena casa de pedra em meio a árvores frondosas. O quintal estava sujo, o telhado, em mau estado, as paredes, meio desmoronadas. Era evidente que ninguém morava ali havia muito tempo. E não existiam mais construções em um raio de quilômetros. Waller abriu a porta do utilitário e saltou, esperando apenas alguns segundos para que os guarda-costas liberassem a área após uma vericação visual, embora já estivesse postado no local um homem, que saiu da casa quando os carros chegaram. Waller entrou seguido de dois seguranças; os outros dois ficaram do lado de fora para vigiar o perímetro. O cômodo era pequeno, escuro e cheirava a fezes e mofo, mas Waller não se incomodou. Ele já passara por coisa muito pior. No meio do aposento, havia uma mesa estreita com cerca de 2 metros de comprimento que, por estar em pé, quase tocava o teto baixo. As duas pernas de cima encostavam-se na parede, funcionando como apoio; as demais tinham sido serradas. Um homem nu com cabelos escuros e barba comprida se encontrava amarrado com os braços e as pernas abertos sobre a mesa. Waller olhou para Pascal, que estava em um canto escuro, fitando o prisioneiro. – Bom trabalho, Pascal. – Ele tentou fugir, Sr. Waller, mas não sabia como. Waller andou até o homem nu. Sob a luz de duas lanternas, não conseguiu distinguir sua expressão. Aquilo enraiveceu Waller. Sinta medo ou ódio, mas sinta algo. Deu-lhe um tapa no rosto ensanguentado. – Está acordado, Abdul-Majeed? Parece que você não está aqui de verdade.
– Estou acordado. Estou vendo você. E daí? Waller sabia que, com aquela atitude indiferente, o muçulmano quis tomar coragem e frustrar a expectativa do seu captor, como se Waller fosse o prisioneiro e não o contrário. Na verdade, não surtiu efeito algum. Anwar, o contador, fora ocidentalizado. Abdul ainda era rude, um homem do deserto para o qual privações extremas eram a norma. Waller respeitava pessoas assim, mas só até certo ponto. – Está com saudade de Kandahar, Abdul-Majeed? Ou prefere a beleza da Provence? O homem deu de ombros. – Gosto desta sala. É melhor do que a que tenho em Kandahar. Mas, de novo, e daí? Waller recuou um passo e sorriu. Ele tinha que admirar pelo menos aquela coragem. – Não gosto de ser traído. – Você não entende os métodos muçulmanos, então. Não foi traição. Foi negociação. Precaução. E o Islã como um todo foi traído pelo Ocidente muitas vezes. Então, por que você seria diferente? – Estou aqui de férias, mas preciso me afastar dos prazeres porque você tentou me tirar do trato. – São apenas negócios. Não leve para o lado pessoal. – Desculpe, mas sempre levo para o lado pessoal quando alguém tenta me explodir. – Então, você é sensível demais. – Por que você fez aquilo? – Você mentiu para nós. – Não minto quando o assunto são negócios. – Um canadense? Você tem urânio enriquecido? – questionou, com escárnio. – Não mesmo. Você é um espião. Foi por isso que tentamos matá-lo. – Na verdade, tenho urânio altamente enriquecido. É uma diferença crucial. E, se você não acreditava, por que se deu o trabalho de negociar comigo? – Eu não acreditava, mas outras pessoas do meu grupo acreditavam. Eles cometeram o erro e coube a mim limpar a sujeira. – Mas eles tinham razão e você estava enganado. – Mais uma vez, isso é o que você diz. Os americanos são donos do seu país. Todo mundo sabe disso. O Canadá é um satélite do grande Satã. Um cão não sai do lado do dono. Waller se virou para os seguranças e indicou com um gesto rápido a porta. Eles saíram, Pascal por último. Antes de sumir, apontou para uma maleta de metal apoiada no chão em um canto escuro da sala, trocando um olhar de cumplicidade com o patrão. Waller se voltou para o prisioneiro e puxou os cabelos imundos do homem. – Isso tudo é só porque você acha que sou canadense? Você é tão burro assim? Os olhos de Abdul lampejaram com interesse pela primeira vez. – Porque eu acho que você é canadense? Quer dizer que você não é? – Não, não sou.
Waller tirou o blazer e arregaçou a manga da camisa, revelando uma marca na parte interna do braço que não podia ser vista facilmente quando ele estava vestido. Ergueu-a em frente ao rosto do muçulmano. – Está vendo isto? Sabe o que significa? Abdul balançou a cabeça. – Não conheço essas marcas. Waller apontou para cada uma delas. – São letras do alfabeto. – Isso não é inglês. Meu inglês é bom. Não sei o que é isso. – É ucraniano. É uma variação do alfabeto cirílico. Faz referência ao Quinto Diretório Supremo. A tarefa dele era fornecer segurança interna contra os inimigos da União Soviética. Eu adorava meu trabalho. Tanto que o marquei a fogo em minha pele. Abdul arregalou os olhos. – Você é ucraniano? Waller abaixou a manga da camisa e voltou a vestir o blazer. – Na verdade, sempre me considerei acima de tudo um cidadão soviético. Mas talvez isso seja apenas uma distinção desnecessária. E a Ucrânia era o repositório de boa parte do arsenal nuclear da antiga União Soviética. Está entendendo agora? Ainda tenho muitos contatos lá. – Por que não nos disse isso? – chiou Abdul. Waller puxou uma cadeira e se sentou. – Não é responsabilidade minha fornecer meu histórico pessoal, mas apenas urânio altamente enriquecido para explodir boa parte de uma grande cidade americana. Você sabe mesmo o que é UAE, Abdul-Majeed? – É a arma de Alá. – Não, não tem nada a ver com Alá – retrucou Waller com desprezo. – Urânio é um mineral encontrado em todo o mundo em quantidades mínimas. Foram os alemães, durante o governo de Hitler, que perceberam seu potencial peculiar, por meio da ssão precisa, para destruir pessoas e propriedades. Você sabia que é possível pegar com a mão urânio altamente enriquecido e só sentir efeitos adversos anos mais tarde? Eu já z isso. Burrice minha, é claro, mas, quando eu era jovem e tolo, era uma tentação ter tanto poder nas mãos, embora os efeitos tóxicos talvez acabem me matando antes da hora. Fez uma pausa e prosseguiu: – São necessários 50 quilos da substância para criar uma detonação nuclear. Mas seria preciso quase uma tonelada, ou vinte vezes a mesma quantidade, de urânio levemente enriquecido para produzir uma única bomba. E muito menos plutônio, cerca de 10 quilos, para fazer o mesmo. Mas, ao contrário do UAE, ele tem que vir do reprocessamento de material nuclear de reatores. E nenhum país permitiria que terroristas o obtivessem porque é como uma impressão digital: o dispositivo explosivo levaria a assinatura química do país.
– Você prometeu material suciente para uma bomba nuclear do tamanho de uma mala – alegou Abdul. Waller balançou a cabeça, desapontado. – Sabe, se você quer entrar para o ramo do terrorismo nuclear, deveria gastar algum tempo estudando ciência de verdade. Bombas nucleares que cabem em uma mala são papo furado, coisa de lmes de Hollywood e políticos paranoicos. Na verdade, a bomba é do tamanho de um utilitário. Talvez possa ser menor, mas, quanto menor o dispositivo, maiores os custos de manutenção, por mais ilógico que isso possa parecer. Seria necessário um homem muito forte para carregar uma mala que pesa centenas de quilos, e o núcleo atômico não duraria muito. O que eu prometi foi uma quantidade suciente de urânio altamente enriquecido processado por técnicas de centrifugação a gás para criar o núcleo de um dispositivo atômico. Urânio físsil contendo mais do que 85 por cento de urânio 235. Ou seja, próprio para armamentos. Também posso oferecer, por um preço reduzido, urânio usável em armamentos, que só tem vinte por cento de U-235. A explosão será muito menor, porém, ainda assim, grande, causando precipitação radioativa. Waller se deslocou pela sala, mas ainda olhando para o muçulmano. – Também posso oferecer assistência técnica. Por exemplo, embrulhar o núcleo físsil da arma em um reetor de nêutrons para reduzir bastante a massa crítica, o que é bom quando se quer o maior poder explosivo possível. É um equilíbrio delicado. Uma quantidade excessiva de isótopos de U-238 e a reação em cadeia que proporciona à substância sua capacidade de ssão da massa se torna inviável. Então, nada de explosão nem de radioatividade. Pela primeira vez, Abdul pareceu impressionado: – Você sabe muito sobre o assunto. – Sim, eu sei muito sobre o assunto – zombou Waller. – Vivi na Ucrânia quando o país era uma grande arma atômica esperando para ser utilizada. Trabalhei em instalações nucleares. – Acrescentou em tom ameaçador: – E torturei cientistas suspeitos de vender os segredos do próprio país aos americanos e seus aliados. Foi uma escola muito valiosa para mim. – Então estávamos enganados a seu respeito. Podemos seguir adiante com nosso trato. Waller fez uma expressão de divertimento. – Ah, você acha mesmo? Depois de ter tentado me matar? – Por que não? Você não morreu. Está tudo explicado. Você vai ganhar muito dinheiro. – Bem, nem sempre o mais importante é o dinheiro. E nem tudo está explicado. Por exemplo, sei que não foi você que tomou a decisão de me matar porque não é importante o suficiente para isso. Quero os nomes dos mandantes. Abdul sorriu. – Isso você nunca vai saber. – Você alguma vez já foi torturado? Perdoe-me por me recusar a usar o ridículo termo “interrogatório reforçado”. Prefiro ir direto ao ponto.
O afegão se mostrou entediado. – Privação do sono, afogamento simulado, choque com aguilhões, música alta. – Não, você não está me entendendo. Perguntei se você já foi torturado, e não afagado pelo que hoje em dia é chamado de tortura. Waller abriu a maleta de metal e pegou vários instrumentos. – Dizem que os alemães sabiam como torturar as pessoas e, de fato, eles eram bons nisso. Hoje, os israelenses têm a reputação de ser os melhores interrogadores e armam que não torturam, mas usam recursos psicológicos. Quanto a mim, acredito que os soviéticos eram únicos nesse ramo. Tínhamos os melhores franco-atiradores e também os melhores interrogadores. E eu sou antiquado. Não tenho paciência para os últimos apetrechos tecnológicos. Uso métodos testados e comprovados para extrair o que quero com base em um fato. – Que fato? – perguntou o muçulmano em voz baixa. Waller virou-se para ele. – O fato de que as pessoas são merdas. Você é um merda, Abdul-Majeed? Acho que vamos descobrir hoje à noite.
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– POR QUE EU ESTARIA perturbada? – indagou Reggie. Como ela ficou parada, Shaw se aproximou. – Desculpe, acho que me enganei. Como foi o jantar? – Foi agradável. Ele entende bastante de vinhos. Tem bom papo. – Não tenho dúvidas. – Algum problema? – Eu disse que um dos homens dele estava espionando você. Depois, eles bloqueiam a rua como se fossem donos... – Evan se desculpou – atalhou ela. – Ah, esse é o nome dele? – Sim. Ele me falou o sobrenome também, Waller. Ao contrário de você. – Young. Bill Young. – Ele fez uma pausa. – Alguém revistou meu quarto no dia em que fomos andar de caiaque. Reggie pareceu genuinamente surpresa com aquela notícia e passou a respeitar ainda mais Shaw, assim como a suspeitar mais dele. – Levaram alguma coisa? – Não que eu tenha percebido. – Por que alguém faria isso? Shaw deu de ombros. – Gordes está se mostrando mais empolgante do que eu achei que seria. Eles começaram a caminhar. À frente, perto da praça do vilarejo, alguns adolescentes tocavam guitarras e bateria e um pequeno grupo se aglomerara ao redor para ouvir a música e jogar dinheiro em um cesto. – Ele me perguntou sobre você – disse Reggie. – Sobre mim? Por quê? Ela sorriu. – Acho que ele queria saber se você era um concorrente. – E o que você respondeu? – Que eu mal o conhecia. O que é verdade. – Você também não o conhece – salientou Shaw. – Ele parece ser legal. Quer dizer, é velho demais para mim. – Reggie lhe deu um tapinha
no braço. – Ele é até mais velho do que você. – Por algum motivo, acho que a diferença de idade não é importante para um sujeito como ele. – Bem, acho que essa decisão cabe a mim, e não a ele. Se eu lhe disser para se afastar, tenho certeza de que vai obedecer. – Ele não parece ser do tipo que aceita um “não” como resposta. – Mas você nem o conhece. Nem o encontrou. – Ele falou sobre o trabalho? – É um empresário. – Bem, isso pode significar um monte de coisas. – Tenho certeza de que vai car tudo bem. Anal de contas, estamos na Provence. O que ele vai fazer? Shaw desviou rapidamente o olhar, sua têmpora latejando. – Você está bem? – O jantar não caiu bem. – Quer voltar para o hotel? Posso retornar sozinha para a mansão. – Não, eu a acompanho. Eles pegaram um atalho e chegaram à casa alguns minutos mais tarde. – Parece que o rapaz saiu esta noite – ironizou Shaw, olhando para as vagas vazias na frente da mansão de Waller. – Ele saiu às pressas após o jantar – observou Reggie. – Falou que tinha negócios a tratar. – Sujeito ocupado. – Ele vai a Les Baux ver a exposição de Goya e me convidou para ir junto. Shaw sentiu um frio na espinha. – E o que você respondeu? – perguntou, com rispidez excessiva. Reggie olhou-o, perplexa. – Que ia pensar e diria depois. Sem pensar direito, ele disparou: – Você não precisa fazer isso. – Por que não? – Porque você vai comigo a Les Baux. Amanhã. Quero ver a mostra. Queria ter convidado você antes. – É mesmo? – indagou ela, cética. – Podemos passar o dia juntos. Almoçar em Saint-Rémy, por exemplo. – Por que você está fazendo isso? Também acha que é algum tipo de competição? Não sou um troféu. – Eu sei que não, Janie. Se você preferir ir com ele, vou entender perfeitamente. É só que... – O quê? – Eu só queria passar mais tempo como você. Só isso. Nenhuma explicação mirabolante.
Apenas ficar com você. As feições de Reggie se abrandaram e ela acariciou o braço de Shaw. – Como posso recusar um convite feito dessa maneira? – Ela sorriu. – Está marcado. Agora, a pergunta crucial: scooter ou carro? – É meio longe para a scooter, então acho que o seu Renault seria bem melhor. Pode ser às nove? Apareço na sua casa. – Vou até a cidade e pego você – propôs ela e Shaw a olhou com ar de curiosidade. – Só acho que seria mais fácil assim. Podemos pegar direto a estrada principal. – E Waller não saberia de nada. – Isso mesmo. – Posso tomar conta de mim mesmo. – Claro que sim, Bill. – Ela fez uma pausa. – Eu também posso.
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WALLER PÔS UM DISCO adesivo preso a um o longo e no na lateral do pescoço de Abdul. Depois, conectou o fio a um pequeno monitor à bateria e o ligou. – O que é isso? – perguntou o muçulmano, nervoso. – Não se preocupe. Serve só para medir a pulsação. Não tenho energia elétrica suciente aqui para extrair a verdade de você com eletrochoques, meu amigo. Mas há outros métodos. Waller pôs uma faixa em torno do braço do prisioneiro e, em seguida, conectou o o que saía dela ao mesmo dispositivo de antes. – E isto mede a pressão arterial. – Por que você precisa disso? – Porque quero ter certeza de que vou interromper a dor antes de matá-lo, é claro. Abdul se retesou e começou a murmurar uma canção. – Então, seu deus é poderoso? – questionou Waller, fazendo referência à letra entoada. – Vamos ver até que ponto, no seu caso. Abdul não respondeu e continuou a cantar. Waller verificou os sinais vitais na tela. – Sua pulsação já chegou a 98 e sua pressão está alta, e eu ainda nem comecei. Você precisa desacelerar a respiração; acalme-se, meu amigo. – Você não vai me fazer falar! – gritou o prisioneiro com ar desafiador. Waller tirou ta adesiva da maleta e a passou pela testa, pelo queixo e pelos ombros do muçulmano, dando várias voltas em torno da mesa. O resultado foi que Abdul não podia se afastar nem um centímetro da madeira. – Sabe por que estou fazendo isso? – perguntou Waller. – Para que você não possa induzir sua própria inconsciência quando a dor se tornar forte demais. Conheci homens que quebraram o crânio para fugir da dor. Cometi esse erro uma vez e nunca mais o repeti. A tortura não funciona se não é possível sentir dor. Waller tirou mais itens da maleta, pôs um deles no bolso e voltou para a mesa. – Dizem que o suplício de um único cálculo renal passando pelo corpo é maior do que o do parto. Nunca dei à luz, é claro, mas já tive cálculos renais e a dor é de fato intensa. Ele calçou as luvas de látex, baixou o olhar para as partes íntimas de Abdul e pegou um tubo de vidro bem fino com 20 centímetros de comprimento. – Isto fará as vezes de cálculo renal. Respire fundo. Depois, relaxe. A respiração do muçulmano se acelerou e o rosto se tensionou.
– Você não vai me fazer falar! – repetiu várias vezes aos berros. Waller inseriu metodicamente a pipeta no pênis do homem, usando um martelo de borracha para finalizar a introdução. Abdul gritava de dor a cada milímetro. – Na verdade, não é mais do que um cateter. Agora vem a parte dolorosa. Ele tirou o alicate de pressão do bolso e olhou para o prisioneiro. – Só preciso de nomes. – Vá para o inferno! – Como você é original. Waller regulou a pressão do alicate e o colocou na posição que desejava, quebrando o tubo de vidro dentro do homem. Dessa vez, o berro foi muito mais alto do que antes. Os seguranças de Waller, que esperavam do lado de fora, se entreolharam e se afastaram, nervosos. Só Pascal cou perto da porta, sempre alerta. – Você está sangrando em um lugar desagradável, Abdul – disse Waller, olhando para o resultado do trabalho. A resposta foi uma sequência de xingamentos em árabe. – Sim, sim, meu pai e minha mãe já estão mortos, obrigado – ironizou Waller. As lágrimas rolavam pelo rosto contorcido de Abdul, os músculos do maxilar se intumesciam e tremiam. O pescoço amarrado se esticava em agonia, deixando todas as veias e artérias visíveis. Sua aição era tão grande que, se Waller não lhe tivesse prendido a cabeça à mesa, ele teria batido com o crânio na madeira para rachá-lo. Waller continuou calmamente. – Aprendi pashto e um pouco de dari durante a desastrosa invasão dos soviéticos ao seu país. São idiomas difíceis de aprender, mas não tanto quanto o inglês, que tem tantas exceções que nem sobram regras. – Ele vericou o monitor. – Pulsação, 130. Já vi muito mais altas. De fato, quando corro, chega a 140, e tenho 63 anos. Você é jovem, isso não é nada. Mas sua pressão está 15 por 9. Um pouco precária. Bem, vamos ver. Pôs o alicate em outra posição e a pelve do homem se deslocou para cima puxando as tas adesivas que o atavam enquanto ele berrava de dor mais uma vez. – Pulsação, 175. Tudo bem, agora acredito que tenho sua atenção. Estávamos falando de nomes. – Você vai me matar mesmo se eu disser – alegou Abdul, arfando. – Bem, isso é um progresso. Muito bem. Estamos mais próximos de uma negociação. Você quer simplesmente ir embora? Se eu o liberar, você poderia avisar as pessoas que me traíram. Não é uma proposta válida. – Então eu morro? – Eu não falei isso. Waller prendeu o alicate em outro lugar, esmagando uma parte especialmente sensível da anatomia do muçulmano.
Mais uma vez, os gritos de Abdul ressoaram em cada canto do pequeno aposento, ameaçando matar Waller, decapitá-lo, estripá-lo, voltar para assombrá-lo, trucidar todas as pessoas que algum dia já tivessem sido importantes para ele. – Entendo sua raiva, meu amigo, mas ela não nos leva a lugar algum – disse o ucraniano e olhou para baixo. – Você está sangrando mais, Abdul, mas isso não põe sua vida em risco, não se preocupe. Waller foi novamente até a maleta e tirou um pequeno instrumento. Ergueu-o para que o muçulmano o visse. – Um bisturi. É muito delicado e ecaz. Faço uma incisão aqui e aqui. – Ele encostou a lâmina em dois pontos do pescoço de Abdul. – E você se esvai em sangue em minutos. Mas não é o que eu quero, então faço isto. Furou um dos olhos de Abdul, que se contorceu de agonia, aos berros. Waller examinou o monitor. – Pulsação, 195. Isso é insustentável, meu amigo. E sua pressão também me preocupa. Você sofrerá um derrame se não se acalmar. Temo por sua saúde. Baixou o olhar para o homem, que soluçava. – Quer que eu agora use a privação do sono ou toque o que eles chamam de rap? – Ele se abaixou um pouco mais. – O que foi? Está implorando? O quê, para matá-lo, meu amigo? Não, não. Não sou um homem violento. Sou um homem justo. E não mato. Em vez disso, faço o trabalho em etapas. O bisturi entrou de novo em ação e parte da orelha esquerda do prisioneiro caiu no chão sujo. Waller verificou o monitor. – Mais de 200 de pulsação e a pressão arterial não está nada boa. Estou falando para se acalmar, mas você não me escuta. Você é teimoso demais. – Ele se virou para o muçulmano. – Vou deixar que você descanse um pouco. Depois, o interrogatório de verdade vai começar. Se você achou isso doloroso, Abdul, acho que vai ficar decepcionado. Foi só o começo. Waller tirou da maleta um instrumento que parecia um grande ralador de queijo, só que as pontas cortantes eram mais longas, pareciam letais e cavam sobre suportes giratórios, para que pudessem funcionar bem em diferentes ângulos e superfícies. – Sei que você pode ver o que estou segurando, mas talvez não esteja entendendo do que se trata. Portanto, vou fazer uma pergunta: qual é o maior órgão do seu corpo? – Waller ngiu esperar uma resposta. – Está dizendo que não sabe? Então, vou falar: é a pele. Sim, a pele é o maior órgão do corpo. Muitas pessoas não se dão conta disso. Os adultos têm em média quase 2 metros quadrados de pele no corpo, pesando até 4 quilos. Sim, 4 quilos. Bem, com esta ferramenta, posso raspar toda a pele do seu corpo em menos de uma hora. Não costumo me vangloriar em vão. Já z isso antes. Mão rme e um método eciente, é só do que você precisa. Começo pelo rosto e vou descendo. A pele sai em tiras longas, você vai ver. Sem contar o rosto e os braços, que são um pouco problemáticos e requerem mais tempo.
Uma vez quase tirei um único rolo de pele do torso até os pés. Infelizmente, o procedimento foi interrompido perto dos joelhos. A mulher tinha joelhos muito ossudos. Fiquei decepcionado, é claro, mas ainda assim me orgulhei do feito. Waller continuou após uma pausa: – Bem, como você não pode car se debatendo enquanto executo essa tarefa, vou injetar isto em você – explicou, retirando da maleta um pequeno frasco de líquido e uma seringa. – Os soviéticos criaram isto na década de 1970. Paralisa o corpo, mas permite que a pessoa tenha plena consciência de tudo. Está entendendo? Você não vai sentir nada quando eu arrancar a pele, mas será capaz de ver tudo. Por isso eu deixei que você casse com um olho. Assim, não perde um segundo do procedimento. O efeito passa em algumas horas. Então, bem, você vai sentir muita coisa. – Por favor, por favor – soluçou Abdul. Waller sorriu. – Então, não quer ser escalpelado? Sabia que um homem pode segurar os próprios intestinos durante horas se eles forem retirados do corpo da maneira certa? Seria de imaginar que a pessoa sangraria até a morte, mas não é verdade. Você vai morrer por outro motivo, mas não por causa da perda de sangue, pois eu sei o que estou fazendo. Costumo enar os intestinos na boca da vítima, pelo menos o que couber. Talvez eu seja sensível demais, mas acho maldade esperar que um homem moribundo segure os próprios intestinos. Você tem vinte segundos para decidir o que prefere, senão eu vou decidir por você. E, para ser sincero, tenho certa preferência por pele. Por fim, com gemidos que só eram interrompidos por soluços, Abdul-Majeed anunciou: – Vou revelar o que você quer saber. Waller voltou a sorrir. – Bom, vou lhe dizer uma coisa antes: sei quem ordenou minha morte. Essas pessoas já estão mortas, na verdade. Deixei você por último. – Então por que está fazendo isto comigo? – gritou o prisioneiro. – Porque eu podia. E é bom praticar. Senão, as habilidades vão diminuindo. Você disse que eu não ia fazer você falar. Mas eu consegui. – Ele abandonou o tom casual ao acrescentar: – E se alguém o ataca, meu amigo, você precisa revidar, senão vão achar que você é fraco. E eu sou muitas coisas, mas fraco não. – Então me mate – esbravejou o homem desfigurado. – Acabe com isso. Waller se demorou tirando a braçadeira, o monitor de pulsação e os alicates de pressão, guardando-os em seguida na caixa. – Você não é importante o suciente para que eu perca mais tempo. Mande lembranças de mim a Alá. E diga que quei me perguntando por que ele não veio socorrer você. Talvez, assim como eu, ele também tivesse algo melhor a fazer. – Ele ergueu o bisturi. – O que estou prestes a fazer agora é um ato de misericórdia, Abdul-Majeed. Você vai entender por que em breve. Waller furou o outro olho do muçulmano. – Seria o cúmulo da crueldade
permitir que você visse o que acontecerá a seguir. Os gritos de terror do homem o seguiram porta afora. Os seguranças se postaram em alerta quando viram o chefe sair do chalé. Waller acenou com a cabeça. – Já acabei. Pascal e outro guarda-costas correram até um utilitário que havia estacionado poucos minutos antes. Abriram a porta traseira e tiraram de lá dois pit bulls ferozes. Usando varas metálicas para controlá-los, os homens levaram com diculdade as feras ofegantes até a entrada da casa. Depois, soltaram os mosquetões presos às varas, tiraram as focinheiras e empurraram os animais vão adentro, batendo a porta. Enquanto Waller subia agilmente no carro, os rosnados dos cães em ataque e os berros de Abdul-Majeed se sobrepunham ao som do motor do automóvel. Ele pôs os fones de ouvidos e escolheu uma música alegre no iPod, já pensando na bela jovem com a qual jantara naquela noite. Estava ansioso para reencontrá-la. Em breve.
38
O AR ESTAVA FRESCO, MAS estranhamente pesado. Reggie nunca vira uma escuridão tão densa como a daquele lugar. Sua pequena lanterna era o único auxílio para guiá-la. Por duas vezes, esbarrou em objetos duros, esfolando o braço e machucando um dedo do pé. Continuou descendo, fazendo pausas frequentes para apurar os ouvidos. Ao passar por uma porta, ela sentiu algo a agarrando e deu um grito de susto. – Shhh. Você vai acordar os mortos. Uma luz lampejou em um rosto ao lado dela, revelando o sorriso de Whit. – Que diabos você estava pensando para aparecer assim do nada? Se eu tivesse uma arma, teria atirado em você. Whit desviou a luz do próprio rosto. – Desculpe, Reg. Acho que este lugar a afeta. Você fica meio boba. – Está tudo limpo pelo menos? – indagou ela, séria, sua respiração já voltando ao normal. – Nenhuma alma viva. Veja com seus próprios olhos. Ele iluminou ao redor e Reggie pôde enxergar o que se escondia ali. Criptas. Os dois estavam nas catacumbas da igreja católica de Gordes. Desde que Reggie apresentara sua estratégia ao professor Mallory em Harrowseld, eles haviam pensado na igreja como ponto central do plano. Whit e Dominic tinham explorado o interior e caram extasiados ao descobrir que ali havia tudo de que precisavam para capturar sua presa. – Quantas você calcula? – perguntou ela. – Não sei. Não me dei o trabalho de contar. Mas são muitas. – Bem, mostre a passagem que você encontrou. Essa é a parte crítica. Whit a conduziu de volta pelo caminho que ela havia trilhado, até que surgisse a interseção de duas galerias: a primeira era a que os dois tinham percorrido e que levava até as catacumbas; a segunda ia para a esquerda. Caminharam pelo comprido corredor mal iluminado por algumas lâmpadas de luz instável, viraram à esquerda e desceram uma longa série de degraus velhos até passarem por uma porta e chegarem ao subterrâneo do outro lado de Gordes, perto das mansões. – Foi brilhante sua ideia de usar a religião – elogiou ele. – Só será brilhante se realmente funcionar. Onde está Dom? – No nosso quarto. Ele está com a mão coçando para pegar o cara.
– Você deve acalmá-lo. Eu já disse a ele que é assim que os erros acontecem. E, com um cara como Kuchin, não podemos nos dar ao luxo de cometer nenhum erro. Eles voltaram às catacumbas. – Onde está Bill? – indagou Whit. – Por que a pergunta? – Vi vocês conversando mais cedo. Só queria saber. – Você estava me espionando? – Não, só dando cobertura. Parceiros fazem isso, sabia? – Tudo bem, parceiro, vamos a Les Baux amanhã ver a mostra de Goya. – Você acha prudente? – Por que não seria? – Porque você poderia usar esse tempo para se engraçar ainda mais com Kuchin, não é? Isso era verdade, pensou Reggie. Porém, ela queria ir a Les Baux. Ou talvez apenas quisesse ir com Bill a Les Baux. Whit parecia ler seus pensamentos. – Você vive falando de foco, Reg. Então, por que não põe em prática o que tanto prega? – questionou, exaltado. Ela o olhou com raiva. – Trate de se preocupar com Dom e consigo mesmo. E foi você que se distanciou da missão da última vez que liderou uma. – Como? Dando um tiro no saco de um nazista e pintando o símbolo de Hitler na sua testa? Eu já disse, sou um artista. – Não, você só tornou nosso trabalho mais difícil. – Ah, então você concorda com a teoria do professor sobre manter a discrição para que os outros filhos da puta não se escondam ainda mais? – Não a considero apenas uma teoria. – Bem, então pense no seguinte: você não acha que esses caras que caçamos já se escondem o bastante? Não acha que eles sabem que alguém vai atrás deles? O professor quer discrição? Eu acho que deveríamos gritar aos quatro ventos. Quero que esses canalhas saibam que estamos chegando. Quero que percam o sono pensando na morte pavorosa que vão ter. Quero que se borrem de medo, exatamente como aconteceu com as pessoas que eles trucidaram. Para mim, isso faz parte da diversão. – O que nós fazemos não é diversão, Whit – retorquiu ela, embora sua expressão indicasse que as palavras do colega a tinham abalado. – Bem, talvez essa seja a principal diferença entre nós. Os dois se encararam na penumbra até que Reggie perguntou: – Você já tem o veneno? – O suciente para matar dez Fedir Kuchin. Whit correu os olhos pelo espaço em torno. – Para mim, este é um bom lugar. Amarre-o naquela pedra. Leia a história da vida dele e,
depois, use o veneno. Já decidiu como quer mostrar ao babaca seus terríveis feitos? Essa é a última parte, pelo que me consta. – Quase lá. E em seguida? – Certo, essa merda de discrição. – Ele iluminou uma cripta na parede. – O topo daquela ali está bem solto. Eu e Dom tivemos de ralar muito, mas conseguimos. Só tem ossos no fundo, com espaço suciente. Veriquei no vilarejo e eles não usam mais as catacumbas. Duvido que achem o cara antes de ele também virar um monte de ossos. Gostou da ideia? – Sim. E tenho certeza de que o professor vai ficar muito satisfeito. – Não faz parte do meu trabalho satisfazê-lo. Reggie lhe agarrou o braço. – Precisamos estar do mesmo lado. Há muita coisa em jogo. Whit se soltou do aperto dela. – Posso discordar de algumas coisas, mas, na hora H, faço meu trabalho. Tudo bem? – Ok. – Enquanto isso, aproveite Les Baux com o seu bonitão. Whit a deixou sozinha. Esperou alguns minutos e, então, percorreu o caminho de volta. Mesmo depois da meianoite, Gordes era linda e parecia segura. Não havia ninguém nas ruas escuras, mas ela retornou tranquilamente para a mansão. Provavelmente estava sendo observada ao se aproximar da casa de Kuchin. Os seguranças vigiavam o chefe a todo segundo. O que Reggie não sabia era que alguém a vigiava quando ela deixou a igreja. E dessa vez não era Shaw.
39
ERA UMA HORA MAIS cedo na Inglaterra. Em Harrowseld, o professor Mallory estava sentado à frente de uma escrivaninha no escritório adjacente ao seu quarto, pronto para trabalhar a noite toda em um novo projeto a ser executado após o encerramento bem-sucedido do caso Fedir Kuchin. Pitou o cachimbo e soltou nuvens de fumaça em direção ao teto manchado. Um chuvisco começou a cair e o professor parou de fazer anotações em seu caderno, recostando-se na cadeira, perdido em pensamentos. Ouviu alguém bater à porta. – Sim? – Sou eu, professor – anunciou Liza. Mallory se levantou da cadeira enquanto a porta se abria. Ela estava de chinelos e usava uma camisola longa com um roupão de lã bege por cima. Seus longos cabelos caíam até os ombros. – Está tudo bem? – perguntou ele. Liza se sentou em um pequeno sofá gasto de couro em frente ao professor e ele voltou a sua cadeira. – Acabei de falar com Whit. Ele e Reggie conrmaram o local e os detalhes da fase nal foram acertados. – Excelente. – Mallory a observou. – Mas você parece preocupada. – Foi algo na voz de Whit. Ele parecia aborrecido. Então, liguei para Reggie. Ela também parecia irritada, mas, quando a pressionei, se recusou a falar sobre o motivo. Tentei contatar Whit de novo, mas ele não atendeu. – Você acha que eles se desentenderam? – É o que parece. E não podia ter acontecido em um momento pior. Mallory pôs o cachimbo de lado, caminhou até a janela e olhou através do vidro molhado de chuva. – Telefonou para Dominic também? – Não, ele e Whit estão no mesmo quarto, então achei que ele não poderia abrir o jogo. E não quero criar ainda mais tensão. Mallory entrelaçou as mãos atrás das costas e lançou um olhar taciturno para a escuridão. – Eu deveria ter previsto isso. Devia ter mandado Caldwell ou talvez David Hamish no lugar dele. Whit está ressentido, muito mais do que eu imaginava, pelo visto.
– Você acha que isso vai interferir no desempenho de suas funções? – Se eu soubesse, não estaria preocupado, não é? Ela olhou para a escrivaninha. – Fazendo serão novamente? – Parece que penso melhor depois que escurece. – Alguma novidade sobre o financiamento? Surpreso, Mallory se virou. – Por quê? O que você ouviu? – As pessoas sabem que é preciso muita verba para manter este lugar funcionando. Não fazemos isto por dinheiro, mas as pessoas recebem salário. E tem a manutenção disto aqui. E também as despesas das missões. O aluguel da mansão onde Reggie está hospedada é inacreditável. É um acúmulo de fatores. Mallory permaneceu em silêncio por um tempo. Suspirou e voltou a se sentar. – As coisas estão apertando, não vou negar. Mas o aluguel da mansão não é um problema. Um cavalheiro de origem ucraniana com recursos consideráveis assumiu o custo. E tenho mais um ou dois possíveis investidores. Tudo tem que ser feito com discrição, obviamente. – Claro. – Liza acrescentou: – Qual foi a última vez que você tirou férias, Miles? – Férias? – Ele soltou um risinho. – Eu poderia ser incrivelmente piegas e dizer que o que faço aqui são férias, mas vou evitar esse discurso. – Sério, Miles, qual foi a última vez? Seu olhar ficou distante. – Acho que Margaret ainda estava viva. Fui a Roma. E Florença. Ela sempre adorou a estátua de Davi. Ficava sentada olhando para a escultura por horas a o. Minha querida esposa era uma grande admiradora de Michelangelo. Foi uma visita agradável. Ela adoeceu depois da nossa volta. Morreu seis meses mais tarde. – Se bem me lembro, isso foi há oito anos. – Sim, acho que sim. O tempo passa rápido. – Todos aqui vivem sob pressão, alguns mais do que outros. Você é nosso líder. Não podemos nos dar ao luxo de perdê-lo. – Estou bem. Tão em forma quanto possível para um velho professor sedentário e acima do peso. – Ele olhou à sua volta. – Adoro este lugar, esta espelunca. Regina também. Eu a ouço caminhar à noite. – Ela costuma visitar o cemitério. Você sabia? Mallory anuiu. – Especialmente o túmulo de Laura R. Campion. Não há nenhuma ligação com ela, pelo que pude descobrir. Porém, Regina parece atraída por essa mulher. Liza lançou um olhar penetrante para o professor. – Houve algum motivo especial para você ter recrutado Reggie? Ele a encarou com seriedade.
– Não. Ela superou todos os obstáculos, mas tudo começa com um simples palpite da minha parte. Nesse aspecto, Regina Campion não tinha nada de excepcional. Liza o observou por alguns segundos antes de desviar o olhar. – E o tal americano... – começou Mallory. – Bill Young. – Sim, isso não é bom. Uma distração. Talvez mais. Não temos muitas informações sobre o homem. Qualquer um pode se passar por um ex-lobista. Liza correu a mão pelo cinto do roupão. – É verdade. A propósito, Whit também relatou que Reggie irá amanhã a Les Baux com o americano. Mallory pareceu surpreso. – Les Baux? Para quê? – Whit não sabia o motivo. Ele acha que Reggie deveria estar se aproximando mais de Kuchin. – Concordo. Acho que vou ligar para ela agora. – Não faça isso, Miles. – Mas... – Ela está sob forte pressão, mas Reggie é nossa agente de campo com o instinto mais apurado. Acho que podemos confiar nela. Ela merece, não? Mallory hesitou, tenso, mas por fim relaxou. – Muito bem. Concordo com essa avaliação – falou secamente. Liza se levantou e fitou a escrivaninha. – Suponho que você esteja trabalhando na próxima missão. – Nunca é bom ficar parado. – Bem, vamos rezar para que Reggie e os outros voltem vivos para poder começar tudo outra vez. Ela saiu do escritório em silêncio. Mallory cou olhando na direção da porta por alguns instantes e, então, voltou à mesa, remexeu na gaveta e pegou a foto que havia recebido de Whit. Sentou-se e começou a examinar o retrato de Bill Young. Um pressentimento perturbador surgiu em sua mente. E o motivo era aquele homem. Mallory conava em Reggie, mas tudo tem um limite. E nada podia interferir na captura de Kuchin. Era uma missão importante demais. Pensou um pouco antes de se decidir. Tirou o celular do bolso e digitou uma mensagem de texto. Ele não era tão inepto com aparelhos eletrônicos quanto aparentava. Guardou o telefone e se recostou na cadeira, esperando ter feito a coisa certa. Às vezes, naquele tipo de trabalho, só era possível contar com os próprios instintos. Quando você tinha razão, tudo dava certo. E quando você estava enganado? Bem, às vezes pessoas inocentes morriam.
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A VIAGEM DE CARRO DE Reggie e Shaw para ver a mostra de Goya consistiu em um percurso sinuoso por montanhas e uma série de curvas fechadas de embrulhar o estômago. A topograa havia mudado completamente quando eles rumaram para sudoeste. A área era dominada por pedreiras de rochas calcárias, lembrando a Shaw os promontórios alvos de Dover, na Inglaterra. – Extraordinário – comentou Reggie, contemplando o interior das cavernas. Os dois se encontravam nos arredores de Les Baux, no topo da cadeia montanhosa de Alpilles, em uma velha pedreira com visão panorâmica do Vale do Inferno. Tratava-se de um lugar inusitado para uma experiência artística. Todas as paredes que ela e Shaw podiam ver estavam iluminadas e as obras-primas de Francisco José de Goya y Lucientes os encaravam em toda a sua glória pictórica. Havia retratos típicos da realeza espanhola, mas também as Majas nuas e vestidas que causaram tanto alvoroço quando foram reveladas, e em seguida conscadas durante a Inquisição espanhola por serem obscenas. As pinturas também eram expostas no chão. Caminhar sobre obras consagradas provocava uma certa inquietação, porém, depois de alguns minutos, todos cavam fascinados com o espetáculo. Música temática ecoava pela penumbra, mas sem um áudio narrativo de acompanhamento. Nas paredes, havia textos com informações sobre a carreira de Goya. As imagens mudavam constantemente: em um momento, Reggie e Shaw estavam banhados por cores fortes; em outros, os tons se tornavam mais escuros, dando-lhes um ar de sobriedade. Alguns poucos atendentes uniformizados espalhavam-se pelo ambiente, não para direcionar os visitantes, mas apenas para repreender quem tentasse tocar a rocha. Quando os dois chegaram à seção que retratava os últimos e mais sombrios trabalhos de Goya, Reggie cou em silêncio. Shaw examinou o catálogo que haviam recebido na entrada, só que era muito básico e não explicava aquelas pinturas. – Bastante lúgubre – disse ele a Reggie enquanto uma melodia triste chegava a seus ouvidos. – Aquele se chama Três de maio de 1808 – comentou ela, indicando a pintura que retratava soldados franceses atirando em espanhóis indefesos. – Comemora a resistência espanhola à invasão napoleônica. – Você estudou história da arte?
Ela balançou a cabeça. – Não, apenas me interesso pelo assunto. Reggie olhou para o homem de camisa branca na obra, os braços levantados em sinal de rendição ou, mais provavelmente, de desao. Seu olhar capturava todo o horror da situação. Ele e todas as pessoas ao redor estavam prestes a morrer. – Quando eu disse a Waller que Goya não era uma escolha muito alegre, ele fez uma observação estranha. – Qual? – Embora tenha concordado que as pinturas são soturnas, ele falou que também eram visões magníficas da alma humana. E acrescentou algo que me causou arrepios. Ela hesitou, como se não quisesse continuar aquela conversa. – O que ele disse? – insistiu Shaw. – Que o potencial para o mal está à espreita dentro de todos nós. – Ela se virou para Shaw. – Eu disse que não acreditava naquilo. Você acredita? Shaw não respondeu. – Deixa pra lá. Não importa. – Ela voltou a olhar para a pintura. – Esse quadro inspirou trabalhos posteriores de Manet e Picasso. Pessoas se trucidando. Que inspiração! Reggie se abraçou, tremendo. A temperatura havia caído bastante assim que eles entraram na Cathédrale d’Images, como era conhecido o lugar. A seção seguinte da mostra era da época em que Goya, mais velho, se tornara surdo e doente, sofrendo, segundo relatos, de um mal que destruía sua mente. As chamadas “Pinturas negras” tinham um ar de pesadelo. Uma série de águas-tintas intituladas Os desastres da guerra eram apavorantes. Depois, vinha Saturno devorando um filho, retratando uma criatura monstruosa, desfigurada, comendo um corpo ensanguentado e sem cabeça. – Será que eles distribuem antidepressivo na saída? – perguntou Shaw em um tom não totalmente jocoso. – É importante ver isto, Bill – observou Reggie. – Por quê? – Senão, vamos continuar a repetir os mesmos erros. Guerra, mortes violentas, miséria: tudo causado pelo homem e possível de ser evitado. – Bem, parece que continuamos a cometer os mesmos erros de qualquer maneira. – Você serviu às forças armadas? – indagou ela de repente. – Não. O mais perto que já cheguei de uma batalha foi o paintball na faculdade – respondeu ele, impassível. – Sorte a sua. – Sim, é verdade. A última tela era Pátio com lunáticos. Como Reggie explicou, a obra retratava os desafortunados internos de um asilo do século XVI. Ela cou imóvel observando a imagem e, então, Shaw viu uma lágrima rolando por seu rosto.
– Ei, Janie, talvez a gente deva voltar para a luz do dia e ir almoçar em um bom restaurante em Saint-Rémy. Ela não pareceu tê-lo escutado. Quando Shaw lhe tocou o ombro, porém, Reggie deu um pulo e se virou para ele. Seus olhos estavam vermelhos e marejados. Escolhendo as palavras com cuidado, Shaw disse: – Você conhece alguém... quero dizer, não em um lugar assim, é claro, mas alguém que teve algum... problema? Ela não respondeu; apenas lhe deu as costas e percorreu o caminho de volta. Depois de um tempo, ele a seguiu às pressas. Reggie parou em frente à primeira pintura da mostra, A maja nua. A morena despida estava deitada sobre um divã com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. – Gosto mais desse tipo de pintura – comentou Shaw. – Pelo menos, mais que a do monstro canibal. – É incrível como eles conseguem projetar essas imagens nas paredes. Os olhos de Reggie haviam secado e sua voz voltara ao normal. – Bem, eles provavelmente usam um equipamento básico de projeção, talvez até algo como um computador e um PowerPoint. – Então é fácil de fazer? – Acho que sim, mas não sou um especialista. – Ele sorriu. – Por quê? Você está planejando sua própria mostra? Reggie o encarou com um olhar enigmático. – Nunca se sabe. – Ela lhe deu o braço. – E quanto àquele almoço? No caminho para a saída, eles passaram por uma velha fortaleza escavada na montanha e Reggie a apontou. – A Fortaleza do Rei. Construída diretamente na pedra em uma posição perfeita para proteger o local. – Certo. Você já serviu às forças armadas? – perguntou Shaw. – Não, só leio muito. E aquelas aulas de imersão em francês incluíam um panorama geral da história da Provence. O forte dava para o Vale do Rei, ali embaixo. Os monarcas provinciais reinavam sobre seus feudos daqui de cima. – Os governantes estão sempre no topo e o resto das pessoas, lá embaixo. A separação é a chave. É a única coisa que impede a anarquia, ou a democracia, dependendo do seu ponto de vista como governante ou governado. – Isso foi muito filosófico, Bill. – Tenho meus momentos. Eles comeram do lado de fora de um pequeno café em Saint-Rémy. Depois, visitaram o Palácio dos Papas em Avignon e foram pegos por uma pancada de chuva ao voltarem para o carro, estacionado em uma garagem subterrânea próxima. Atravessaram correndo o pátio de pedras, encharcados e aos risos. Shaw usou o blazer para proteger ambos.
– Acho que é por isso que gosto de homens grandes – disse Reggie, levantando os olhos para o grande paletó sobre sua cabeça. Quando chegaram a Gordes, seus cabelos e roupas já estavam quase secos. O celular de Reggie vibrou no momento em que pararam na frente do hotel de Shaw, indicando que uma mensagem de texto acabara de chegar. Ela olhou a tela e o guardou de novo sem fazer comentários. – Deixe-me adivinhar: Evan Waller quer saber onde você esteve o dia inteiro – Shaw disse. – Está com ciúme? – Não, não sou do tipo possessivo. Mas acho que não posso dizer o mesmo dele. – Mas você nem o conhece. – Já conheci muitos caras como ele. Lembra que conversamos sobre isso? – Sim, mas é bom saber que você se importa. Shaw pôs a mão no braço de Reggie. – Sério, Janie. Tome cuidado com esse cara. Ele emite uma energia negativa. – Vou tomar cuidado. Quer jantar comigo mais tarde? – Ainda não se cansou de mim? – indagou ele sorrindo. – Ainda não – respondeu ela em tom malicioso. – Tudo bem. Na cidade ou em outro lugar? – Que tal eu cozinhar para você? Ele pareceu um pouco surpreso. – Na sua casa? Claro. Mas só se você me deixar levar o vinho. – Fechado. Às oito? Shaw subiu para o quarto, abriu a porta e estacou. O homem sentado na cadeira ao lado da escrivaninha o encarava.
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DEPOIS DE DEIXAR SHAW no hotel, Reggie saiu novamente de Gordes, passou por sua mansão, entrou na estrada principal e foi em frente. Ela se certicou de que não estava sendo seguida e, vinte minutos mais tarde, chegou ao destino. Dominic a vira se aproximar e esperava ao lado da porta. – Vejo que Whit se instalou bem aqui – comentou, ao entrar no chalé e ver a bagunça. – A propósito, onde ele está? – Fora, trabalhando na missão. Disse para eu ficar aqui. – Acabei de receber uma mensagem de texto do professor. Por isso estou aqui. Ele queria saber se tem algum problema. E tem? Dominic puxou as mangas da blusa de moletom para cobrir os braços. – Soube que você e Whit andaram batendo boca. Reggie se sentou na beirada de uma cadeira. – O que diabos ele contou? – Você quer a versão dele sem cortes ou a editada? – O que ele falou, Dom? – Nas palavras dele, você “perdeu a cabeça por causa daquele sujeito e provavelmente vai ferrar tudo”, só que ele não usou a palavra “ferrar”. – É o que você acha? – Você saiu com ele hoje, certo? – E vou encontrar de novo com ele à noite. – Reg... – E quer saber por quê? – Por que você não me esclarece? – perguntou ele com sarcasmo. – Vejo que você anda passando tempo demais com Whit. Esse tom não combina com você, Dom. – Talvez você não concorde com Whit em tudo, mas os instintos dele são muito bons. – Não, na verdade são excelentes. Mas eu também tenho instintos. E, desta vez, Whit está enganado. – Por quê? Os dois se voltaram e viram Whit na soleira que levava à pequena cozinha. – Achei que você tivesse saído – disse Reggie.
Whit avançou e se sentou no sofá perto de Dominic. – Saí e, agora, voltei. Continue falando. Está sendo muito interessante. – Ah, Bill sabia que alguém havia revistado seu quarto. – É mesmo? O cara é melhor do que eu imaginava. Preciso ter isso em mente. – armou Whit, ainda encarando-a. – Faça isso. Pelo menos em missões futuras. – Vamos voltar a esta missão. E ao seu relacionamento com o querido Billy. – Tudo bem, vou explicar para você. Tenho pouco tempo para pegar Kuchin. Toda a missão depende de ele ir aonde eu quero em um determinado dia, a uma certa hora. Whit tirou a jaqueta e a jogou sobre uma mesinha em um canto. – Vá direto à parte que não conhecemos e tememos, ou seja, a relação entre você e o maldito Billy! – O ciúme é a maneira mais rápida de sgar um homem – falou Reggie. – Kuchin acha que estou passando tempo demais com Bill e ca incomodado. Ele já reagiu dessa maneira. Isso me põe em vantagem. Ele vai forçar a barra: “Janie, venha a este lugar lindo comigo, aceite meu convite para um jantar maravilhoso, beba esse vinho espetacular...” E chegaremos ao ponto em que Kuchin irá aonde eu sugerir, sem hesitação. Portanto, ter Bill por perto facilitou muito meu trabalho. Não preciso dar em cima de Kuchin, o que é muito bom, pois um homem como ele percebe esse tipo de coisa em noventa por cento das vezes. Kuchin acha que está vindo atrás de mim, é uma história totalmente diferente. E baixou a guarda. – Ela fez uma pausa. – Mas se vocês dois, especialistas em relacionamentos, têm um método melhor, sou toda ouvidos. Dominic olhou para Whit, que ainda encarava Reggie. – Então tudo isso está ligado à missão? – questionou Whit. – Sempre esteve. Tudo o que faço na minha maldita vida se relaciona a alguma missão. Se você parasse de pensar com a cabeça errada, veria isso claramente. Ou será que entendi mal sua última observação em Harrowsfield? Como foi mesmo? – Um pedaço de coxa e um rostinho bonito, ou algo assim – respondeu ele com um sorriso sarcástico. – Do que vocês estão falando? – perguntou Dominic, olhando para os dois. – Não é nada, Dom – respondeu Reggie. – Vocês estão tendo um caso? – insistiu ele. Whit riu. – Não é por falta de tentativas, pelo menos da minha parte, mas a Irmã Reggie aqui não quer saber de nada disso. – Seu sorriso logo desapareceu. – Tudo bem, Reg, o que você acabou de dizer faz sentido. Ciúme. – Ciúme – repetiu ela, fitando-o. – Funciona com a maioria dos homens. Whit desviou o olhar. – Estou com fome. Você quer alguma coisa?
– Não, mas tenho um pedido. Ele se endireitou, demonstrando interesse. – Diga. – Preciso de novos equipamentos. Dominic a encarou desconfiado. – Que tipo de equipamento? – Um que projete imagens em uma parede. Vocês conseguem para mim? – Não vejo problema – falou Dom. – Avignon tem grandes lojas de produtos eletrônicos. – Então compre o mais rápido possível. Whit pareceu confuso. – O que você tem em mente? Ela se levantou. – Você vai ver. Quando Reggie se aproximou da mansão, avistou Fedir Kuchin no meio da estrada estreita, com os braços abertos para recebê-la. Com vontade de mandar uma bala no meio dos olhos dele, suspirou, forçou um sorriso e saiu do carro.
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SHAW FECHOU A PORTA atrás de si e disse com raiva: – Que diabos você está fazendo aqui, Frank? Não há encontros pessoais durante uma operação, você sabe disso. Frank Wells permaneceu sentado na cadeira, com uma expressão ligeiramente aflita. – Você foi a Les Baux hoje. – Sim, e daí? – Por que você fez isso? – Porque Waller havia convidado Janie para ir com ele em seu tour particular e eu não podia deixar que isso acontecesse. – Shaw ergueu a mão antes que Frank retrucasse algo. – Não é nada pessoal. É que seria uma dor de cabeça logística tê-la no caminho quando fôssemos fazer a extração. – Bem, tenho más notícias. Por isso estou aqui. Não queria falar pelo telefone. Shaw soltou a chave do quarto sobre a mesa e se jogou na cama. – Que más notícias? – A operação está sendo suspensa. Amy Crawford e a equipe de execução já pegaram um avião e saíram do país. Shaw se levantou tão depressa que quase bateu com a cabeça no teto baixo. – O quê? Por quê? – As coisas mudaram. – Mudaram? Como podem ter mudado? Waller está tentando vender armas nucleares e alguns malucos querem comprá-las para explodir uma parte do mundo. Como é possível que isso mude? – Ele não está mais tentando vendê-las. Na verdade, talvez até tenha matado as pessoas com as quais iria negociar. – Como você sabe disso? – Foram encontrados em um lago dois corpos que coincidem com as descrições dos islâmicos que negociavam com Waller. Ambos apresentavam sinais de tortura. E também captamos conversas nas linhas de comunicação que indicam que os muçulmanos não trabalham mais com nosso psicopata canadense e cortaram todas as relações com ele. – Como você sabe que ele os matou? – Não temos certeza, mas acabamos de saber que foi pelos ares uma casa onde acreditamos
que Waller se encontrasse com um terrorista de escalão médio. Waller talvez tenha perdido alguns dos seus seguranças; ao menos o séquito que trouxe para cá é diferente do que em geral o acompanha nas viagens. Achamos que os muçulmanos o traíram, tentando matá-lo, e ele retaliou. Essa é nossa teoria, e devemos estar certos. Não consigo ver esse cara matando os loucos das armas nucleares para salvar o mundo. Waller só liga para dinheiro. – Mas, Frank, como podemos saber se ele não vai tentar de novo com um grupo diferente de compradores? – Não acredito que isso vá acontecer. Waller já chamou atenção demais e é esperto o bastante para car quieto. Vai voltar para seu círculo de escravidão sexual por alguns anos. Enquanto isso, seu acesso ao U-235 também vai acabar minguando. Ele deve obter o material do estoque que os russos estavam desmantelando e enviando para os americanos de acordo com um tratado de desarmamento. Em alguns anos, esse suprimento vai se esgotar. Por isso, nossos superiores acham que não vale mais a pena executar a operação. – Mas era uma operação de sequestro e delação. Waller ainda podia nos levar até a célula terrorista. – Não se ele matou todos. O cara que de fato nos interessava, Abdul-Majeed, desapareceu completamente. Nosso serviço de inteligência concluiu que Waller o pegou. Logo, não sobrou ninguém para ele delatar. – Mas ele é um criminoso. Você acabou de dizer que ele vai voltar para o tráco de mulheres. É preciso detê-lo. Frank se levantou. – Isso não nos diz respeito. Estamos ocialmente partindo. – Ele estendeu um pacote para Shaw. – Aqui está sua nova missão. Voo amanhã cedo para Madri, depois ca no Rio de Janeiro por um tempo. Você vai receber as informações no caminho, mas tem algo a ver com chineses e alguns líderes antidemocráticos e violentos daquele hemisfério. Um agente da América do Sul se encontrará com você e fornecerá maiores detalhes. Frank deixou o pacote sobre a mesa ao ver que Shaw não tinha a intenção de pegá-lo e apenas balançava a cabeça. – Amanhã de manhã? Não há tempo suficiente para eu arrumar as coisas aqui. Frank parou a meio caminho da porta e se virou para ele. – Arrumar as coisas? O que você precisa arrumar? – Me dê mais uma semana, Frank. – Uma semana? Esqueça. Suas ordens estão naquele pacote. Você parte amanhã. Está tudo arranjado. – E se eu não for? Frank se aproximou dele. – Você vai mesmo resistir? – Acho que vou ser obrigado. – Por causa dela? Você não tinha dito que não se importava?
– Eu disse que não era nada romântico. Mas não posso deixá-la sozinha com Waller. Seria como assinar sua sentença de morte. – Pare com isso. Já conversamos sobre esse assunto. O cara não vai tentar nada com ela. Estamos na Provence. E ela não é uma garotinha abandonada que veio de uma choupana na província de Guandong. Não faz parte da área de atuação dele. – Se o cara a quiser, vai pegá-la. Eu sei disso. E tenho quase certeza de que ele a quer. Então, arrume uma desculpa para os chefões. Me dê mais tempo. Mas Frank já lhe dera as costas. – Esteja no voo amanhã, Shaw. E pare de brincar de anjo da guarda. Não combina muito com você. Shaw fechou a porta com um chute assim que Frank saiu.
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– SENTI SUA FALTA, JANIE. Waller tomou a mão da moça. – Tenho certeza de que muitas coisas o mantiveram ocupado. – Se me permite perguntar, aonde você foi hoje? Reggie deu um suspiro. – Fui a Les Baux ver a mostra sobre Goya. O sorriso de Waller desapareceu. – Que pena. Como expliquei, eu esperava levá-la até lá. – Sinto muito – disse ela secamente. – E você foi sozinha? – Evan... – Entendo. Tenho certeza de que vocês dois se divertiram muito – atalhou ele com um quê de amargura. – Desculpe, foi uma decisão tomada por impulso. Há muitos outros locais que podemos visitar por aqui. Ele pareceu se animar. – Você tem razão. Gostaria de jantar comigo hoje? Na minha casa? Seria uma honra. Contratei um chef local. – Na verdade, já tenho planos. Bill virá aqui e vamos cozinhar na minha casa. – Então, Bill virá aqui. Entendo. Suponho que você não possa cancelar o compromisso com Bill. – Não, mas não tenho planos nem para amanhã nem para o dia seguinte. – Então, permita-me solicitar desde agora sua companhia para os próximos dias. Podemos ir a Roussillon pela manhã. Reggie fingiu pensar a respeito. – Acho que não tem problema, mas vamos com calma, dia a dia. – Excelente. Waller se inclinou e beijou a mão da moça. Um homem esbelto saiu da mansão de Kuchin e foi na direção deles. Reggie notou que ele mancava um pouco. Trajava calças azuis e um colete amarelo sobre uma camisa branca. Kuchin se endireitou.
– Ah, Alan, quero lhe apresentar esta linda jovem. Alan Rice, Jane Collins. Eles trocaram um aperto de mãos. – Alan é meu sócio. Trabalha o tempo todo, mas consegui convencê-lo a passar pelo menos um breve período aqui comigo. – Foi uma boa decisão, Alan – afirmou Reggie. – Há poucos lugares como a Provence. – É o que Evan vive me dizendo. – Bem, aproveite a sua estada. – É o que estou planejando fazer. Mais tarde, Reggie estava sentada em sua cama, olhando para o chão. Dali a alguns dias, tudo aconteceria. E, naquele meio-tempo, ela não podia cometer nenhum erro, tinha que agir de maneira impecável e, mesmo assim, as coisas podiam dar errado. Fedir Kuchin estava nas suas mãos. Mas ela fazia aquele trabalho havia tempo suciente para saber que as aparências enganam. Ele sem dúvida era astuto, portanto, Reggie não podia presumir que o iludira totalmente. Kuchin representava de maneira admirável o papel do pretendente mais velho, mas talvez não passasse disso, apenas um papel. Ela pôs o rosto nas mãos. A carreira que escolhera não era nada fácil. Não dava mesmo para confiar em ninguém. Além disso, um pensamento não parava de assombrá-la. O potencial para o mal está à espreita dentro de todos nós. Embora tivesse discordado da opinião de Kuchin, na verdade conseguia ver alguma verdade naquilo. De fato, em certo nível, o que ela fazia podia ser considerado maléco. Juiz, júri, carrasco. Quem era ela para tomar aquelas decisões? O que lhe dava aquele direito? E havia também o motivo pelo qual escolhera aquela vida. A imagem do irmão morto lampejou em sua mente. Apenas 12 anos, tão inocente... Uma perda trágica. Reggie correu para o banheiro, abriu a torneira e jogou água no rosto. Precisava parar de pensar naquelas coisas. Precisava se concentrar. Ela estava jogando Bill contra Kuchin para o bem da missão. Todo o tempo que passava com qualquer um dos dois homens era por causa da missão, disse a si mesma. Bill Young era apenas uma peça do tabuleiro, nada mais, nada menos. Sua mente se desconectou por um segundo e, quando suas sinapses recomeçaram a operar, a revelação quase a deixou enjoada. Se Kuchin achar que estou mesmo interessada em Bill, talvez ele... Uma parte de Reggie era fria e calculista e lhe dizia que danos colaterais acabavam acontecendo e, se a missão fosse bem-sucedida, justificavam o sacrifício. A outra parte sentia repulsa pela possível morte de um inocente só para que ela pudesse acertar o alvo. Aquilo, a seu ver, era a síntese do próprio mal que alegava combater. Dê um jeito nisso, Reggie. No entanto, ela já havia posto todas as engrenagens em movimento. Como pará-las agora?
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REGGIE TOMOU BANHO, esfregando-se com tanta força que parecia que iria arrancar a pele. Em seguida, vestiu uma calça jeans e uma camiseta, desceu rapidamente a escada, pegou a cesta de feira e subiu a colina até a cidade. Saiu por uma porta dos fundos que dava para a trilha de pedras para não encontrar com o vizinho. Uma hora mais tarde, voltou com a cesta cheia de ingredientes para o jantar. Depois, arrumou a cozinha, lavou as mãos, pôs uma saia branca e uma regata azul leve. Permaneceu descalça, pois gostava de sentir o frescor dos ladrilhos. Demorou-se embelezando os cabelos e o rosto diante do espelho do banheiro e levou cinco minutos para escolher a pulseira e os brincos. Enquanto se aprontava, ela parou de súbito, observando o rosto maquiado, os olhos aumentados pelo delineador e pelo rímel. É para provocar ciúme. Jogar um contra o outro. Nada mais do que isso. A voz de Whit ressoou em sua mente: “Então, tudo isso está ligado à missão?” Reggie continuou a encarar seu reexo. Tudo está sempre ligado à missão. Mais um monstro eliminado. Era tudo o que ela queria. E não importava como chegaria lá. O som da campainha a sobressaltou. Ela consultou o relógio. Oito horas em ponto. Terminou de se arrumar, desceu correndo a escada em caracol e abriu a porta da frente. Shaw segurava duas garrafas. – O vendedor de vinhos da cidade jurou que estes eram os dois melhores tintos que ele tinha, levando-se em conta que eu queria impressionar uma mulher requintada e rica. Reggie pegou uma das garrafas e olhou o rótulo. – Ele tinha razão. Estou impressionada. Devem ter custado uma pequena fortuna, mesmo na Provence. – Nunca deixei que o dinheiro atrapalhasse a diversão. E, como lobista, estou acostumado a barganhar. Ela cou na ponta dos pés e lhe beijou a bochecha. Shaw a seguiu até a cozinha, observando o movimento de seus quadris. – Você sente falta do trabalho? – perguntou ela. – Na verdade, não. Eu só recebia uma quantidade exorbitante de dinheiro para ganhar ainda mais dinheiro para pessoas que já tinham dinheiro demais. – Já organizei tudo. Seus instrumentos estão à espera. – Ela apontou para uma faca
serrilhada e uma tábua de corte ao lado de uma pilha de legumes e tomates. – Tudo bem, mas antes algo para matar a sede. Ele pegou o saca-rolha na bancada, abriu uma das garrafas, serviu duas taças e entregou uma a Reggie. Os dois brindaram e tomaram um gole. Shaw deixou o copo de lado e segurou a faca. – O que vamos ter hoje? – perguntou, começando a cortar a comida. – O prato principal é um cozido de galinha, tomates e legumes com alguns temperos secretos. E um prato de queijos, torradas e azeitonas recheadas para beliscarmos antes. Depois, salada, pão e azeite, e uma pequena sobremesa cremosa que comprei na padaria porque não sou boa de forno. O café, é claro, será feito em uma cafeteira francesa. – Parece incrível. – Sabe, por mais que Goya seja deprimente, me diverti muito hoje. Shaw observou-a mexendo o cozido. – Eu também. Deve ter sido a companhia. Reggie franziu a testa. – Certo. Para ser franca com você, Evan me pediu para ir com ele a Roussillon amanhã. Shaw terminou de cortar um tomate em cubinhos e passou para o aipo. – Você vai? – Eu disse que iria, mas acho que vou sozinha no meu carro. – Certo. – Você não parece estar muito bem. – Se dependesse de mim, você não se meteria com esse sujeito. – Mas não depende de você. – Eu sei. – Você acha mesmo que ele não é confiável? – Digamos que não quero que você sofra as consequências caso eu tenha razão. Ela sorriu. – Bem, vou me consolar pensando que você estará aqui para me proteger. Os movimentos de Shaw ao cortar os vegetais se tornaram tão ferozes que Reggie perguntou: – Algum problema? Ele soltou a faca e enxugou as mãos em um pano de prato. – Tive uma mudança de planos. Tenho... tenho que ir embora amanhã. Voltar para casa. – Ir embora? Por quê? – indagou ela, pálida – Um problema com o meu filho. – Meu Deus, sinto muito. É grave? – Ele não está doente nem nada do gênero. É mais emocional do que físico, porém sou o pai e é algo importante o suciente para que eu interrompa os momentos maravilhosos que estou vivendo aqui.
– Por isso gosto de você: dá prioridade às coisas certas. Shaw desviou o olhar, envergonhado por aquele elogio imerecido. – Portanto, não vou estar aqui para proteger você. – Eu só estava brincando. Não é seu trabalho me proteger. Ao olhar de novo para Reggie, Shaw notou que ela voltara a atenção para o fogão. E havia algo diferente em sua expressão. Será que era alívio? Será que estava feliz por ele ir embora?
Eles conversaram sobre amenidades durante o jantar e não se demoraram muito no café e na sobremesa. – Espero que tudo fique bem com seu filho – desejou ela enquanto os dois tiravam a mesa. – Também espero que tudo fique bem com você. – Pare de se preocupar tanto. Vou car bem – replicou ela, pensando “E, agora, você também vai ficar numa boa”. Depois, já à porta, Reggie disse: – Bem, acho que é isso. – Cuide-se. – Ele fez uma pausa. – O tempo que passamos juntos signicou para mim mais do que você pode imaginar. – Na verdade, tenho uma ótima imaginação. Shaw pensou que ela fosse parar por ali, mas, então, Reggie o envolveu com os braços e ele retribuiu. O abraço dela parecia um pouco forte e demorado demais. Talvez o dele também. Reggie o beijou perto dos lábios e Shaw tentou alcançar sua boca na tentativa seguinte. Os dois ouviram alguém pigarrear e viram um dos seguranças de Waller fitando-os. Reggie falou em um tom suficientemente alto para que o homem ouvisse: – Mais uma vez, lamento que você tenha que ir embora amanhã, Bill. Boa viagem de volta aos Estados Unidos. Então, fechou a porta. Shaw olhou para a aldrava de latão em forma de cabeça de leão por um bom tempo. Por que diabos ela dissera aquilo? Olhou ao redor e viu o sorriso triunfante do segurança. A notícia de sua partida iminente sem dúvida chegaria logo aos ouvidos do chefe. – Bela noite – observou o homem. Shaw subiu a trilha escura até Gordes. Pegou um atalho e subiu os velhos degraus de dois em dois. O avião partia de Avignon às oito da manhã. Como a cidade cava a uns cinquenta minutos de carro, ele teria que partir de manhã cedo. E Janie Collins iria a Roussillon com um homem que ganhava uma fortuna tracando garotas e que queria vender material nuclear para fanáticos. Podia optar por não ir, mas os subordinados de Frank viriam no seu encalço e ele precisaria fugir, logo não poderia ajudar Janie. Não conseguia ver saída para aquele dilema. Mas, na verdade, como Frank havia salientado, Shaw não era o guarda-costas da moça.
Estava ali por causa de uma missão. A missão fora cancelada e ele seria utilizado em outro lugar. Já dera as costas a Katie James, uma mulher que arriscara a vida por sua causa. Então, por que sentia vontade de car e defender a honra, e talvez a vida, de uma mulher que mal conhecia? Era um comportamento irracional, e Shaw sempre fora conhecido por ser uma pessoa lógica. Mas também não podia ignorar seus sentimentos. Então, em um rompante de extrema lucidez, tudo fez sentido. A mansão vizinha, a arma, o golpe nos rins e o fato de ela continuar a nadar sabendo que era vigiada. Por m, a estratégia de jogá-lo contra Waller. Por algum motivo, ela estava armando para aquele sujeito. Mas, ao mesmo tempo, fez com que o segurança de Waller soubesse que Shaw iria embora. Para garantir que Kuchin não lhe fizesse nenhum mal. Ela o estava protegendo. Absorto nesses pensamentos perturbadores, nem teve tempo de bloquear o golpe que acertou em cheio sua nuca. Caiu no chão, cortando os joelhos e cotovelos nas pedras. Ainda tentou se levantar, mas foi derrubado de novo, dando de cara no chão. Sentiu que o amarravam, suspendiam e jogavam em um pequeno compartimento. Depois, tudo ficou escuro.
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REGGIE SE LEVANTOU CEDO; o dia ainda começava a alvorecer. Abriu a janela do quarto e olhou para fora. Por hábito, observou a mansão ao lado, mas não viu atividade alguma. Mesmo assim, tinha certeza de que os seguranças de Evan estariam de guarda do lado de fora. Roussillon de dia e jantar na casa dele à noite... Ela detestava tudo aquilo, mas podia ser um auxílio incomensurável para a missão. Não via a hora de pôr fim à vida de Kuchin. Após tomar banho, vestiu-se e saiu da mansão pela porta lateral. Havia algo que ela queria fazer. Não, era algo que precisava fazer. Subiu a colina até Gordes. Algumas poucas pessoas já circulavam, inclusive o homem que limpava as ruas com uma mangueira. Ele acenou com a cabeça ao vê-la passar. Reggie atravessou a praça da cidade e fez a curva da estrada; o hotel se localizava à esquerda. Cruzou as portas de vidro e cumprimentou um funcionário de aspecto sonolento na recepção. – Pode ligar para o quarto de Bill Young, por favor? – indagou em francês. – Diga que é Janie Collins. O homem, idoso e magro, com cabelos brancos cheios e bochechas ácidas, parecia um pouco mal-humorado e até desconfiado. – É muito cedo, minha jovem. Duvido que ele já tenha acordado. – Ele está me esperando – mentiu. – A esta hora? – Vamos tomar o café da manhã juntos. O recepcionista não parecia convencido, mas ligou para o quarto. – Ninguém atende – informou ele, desligando. – Talvez ele esteja no banho. – Talvez – replicou o homem, cético. – Poderia ligar de novo daqui a alguns minutos? – Suponho que sim, se for necessário. – É necessário – afirmou Reggie com educação, mas de maneira firme. O funcionário voltou a tentar cinco minutos mais tarde. – Ainda nenhuma resposta – disse ele em um tom que indicava que a conversa havia chegado ao fim. – O senhor o viu sair? – Não.
Reggie teve um estalo. – Ele ainda não fechou a conta do quarto, certo? – Por que ele faria isso se ia tomar o café da manhã com a senhorita? – Os planos às vezes mudam. – Ele não fechou a conta. Pelo menos, não durante o meu expediente. – Pode verificar o registro anterior ao seu expediente? O homem suspirou, mas obedeceu. – Não, ele não fechou a conta. – Então, o senhor poderia ir até o quarto dele? – Por quê? – Para ver se ele está bem. Talvez esteja doente ou tenha sofrido uma queda. – Duvido muito... – Americanos costumam abrir processos por qualquer coisa. Se ele estiver se sentindo mal e o senhor não for checar, apesar de eu ter pedido, o hotel poderá ter um grande prejuízo. Suas palavras surtiram o efeito desejado. O recepcionista pegou uma chave e subiu a escada. Reggie começou a segui-lo. – Aonde a senhorita acha que vai? – perguntou ele. – Tenho prática em medicina. Se ele estiver machucado, posso ajudar. Eles subiram às pressas. O funcionário bateu à porta e chamou algumas vezes. – Abra a porta! – mandou Reggie. – Isso iria contra as normas do hotel. – Ah, deixa disso! – exclamou ela, pegando a chave e o empurrando para o lado. Reggie abriu a porta e entrou no quarto com o homem logo atrás. O quarto estava vazio, mas ainda com todos os pertences de Shaw. – A cama não foi desfeita – observou ela, lançando um olhar acusatório para o recepcionista. – Não é minha responsabilidade determinar se todos os hóspedes estão no hotel – retrucou ele com indignação. Reggie pensou rápido. O funcionário chegara à meia-noite e Bill havia deixado a mansão por volta das onze. Era uma caminhada de cinco minutos. E se ele nunca tivesse chegado até ali? Mas ela se certicara de que o segurança de Waller soubesse da partida de Bill. Não haveria motivo para... – Com licença – falou o recepcionista. Distraída, Reggie demorou a perceber que o homem estava com a mão estendida para pegar a chave. Ela a entregou. – O senhor deve avisar a polícia – aconselhou. – Acho que não é necessário. Talvez ele não tenha voltado ao hotel na noite passada porque tinha algo melhor a fazer – replicou, encarando-a com malícia. – Anal, estamos na Provence.
– Posso revistar o quarto para tentar descobrir o paradeiro dele? – Se a senhorita fizer isso, pode ter certeza de que vou chamar a polícia. Exasperada, Reggie passou por ele, desceu a escada e deixou o prédio. Já ia retornar para a mansão quando ouviu pneus cantando. Ao se virar, notou que um carro havia parado na frente do hotel. Escondeu-se nas sombras e observou três homens saírem do veículo, um deles com um chapéu antiquado, e entrarem correndo na recepção. Não se atreveu a se aproximar porque o motorista tinha ficado no automóvel. Alguns minutos mais tarde, os homens voltaram, um deles carregando algo. Reggie logo reconheceu a mala do quarto de Bill Young. O carro passou perto e ela pôde ver, pela janela do carona, o homem de chapéu ao telefone, falando rápido, parecendo descontente. Reggie entrou no hotel. O funcionário estava sentado atrás do balcão, mudo. – Vi aqueles homens entrarem – disse ela. – Esta é a pior manhã da minha vida – resmungou o velho. – O que eles queriam? O homem se levantou. – O que eles queriam? O que eles queriam? A mesma coisa que você. Quem é o homem que todos vocês procuram? – Eles falaram alguma coisa para o senhor? – Não. – Então, por que o senhor deixou que eles levassem aquela mala? Com voz trêmula, o funcionário respondeu: – Porque eles estavam armados. Agora, saia!
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SHAW DESPERTOU AOS POUCOS e, logo, se retesou. Pela dor, parecia que sofrera um traumatismo craniano. Tentou exionar braços e pernas, mas estavam habilmente amarrados. Quanto mais puxava, mais cava preso. Por m, se resignou e permaneceu sentado, imóvel. À medida que seus olhos se acostumavam à escuridão, Shaw percebeu que o cômodo era pequeno e estava vazio. Não havia janelas, portanto, ele devia estar em um porão ou em um velho armazém. O chão era uma laje de concreto. A única luz do ambiente vinha de debaixo da porta que ficava bem à frente. Cada batida do seu coração era acompanhada por um latejar da cabeça. Ele merecia aquilo tudo, pois tinha deixado que alguém se aproximasse e o atingisse com tanta facilidade. Baixara a guarda porque estava pensando no que não devia. Só havia dois motivos para que Evan Waller o raptasse: estava com ciúme e queria eliminar o rival; havia descoberto quem Shaw realmente era. O primeiro não parecia muito plausível, sobretudo porque Janie o zera saber que Shaw ia embora. Mas, se Waller o tivesse desmascarado, por que ainda não o matara? Talvez quisesse se divertir primeiro. Talvez quisesse torturá-lo, a exemplo do que fizera com os terroristas. Shaw levantou um pouco a cabeça quando a porta se abriu e um homem entrou. Só era possível ver uma silhueta. – Você está acordado? – perguntou ele. – Estou. – Está com fome ou sede? – Estou. Shaw calculou que, se fosse desamarrado para comer ou beber, talvez tivesse uma oportunidade de fugir. O homem se aproximou, mas não parecia ser um dos seguranças de Waller. Ele segurava uma garrafa d’água em uma das mãos e, na outra, um objeto. Retirou a tampa, mas não desamarrou Shaw: apenas levou o gargalo até seus lábios e o deixou beber. – E, só para a sua informação, você está em linha de tiro. Shaw divisou alguém na escuridão atrás do homem. A garrafa foi afastada e surgiu um pedaço de pão. – Pão e água? – indagou Shaw. – Melhor do que nada.
– Você se importaria de dizer por que afundaram meu crânio e me sequestraram? – Para o seu próprio bem. – Não acredito. – Isso pouco me importa. – Tudo bem, mas e agora? – Agora, trate de car sentado aí e se acalmar. Vamos tratar você bem: comida e água sempre que quiser. – Com toda essa água, vou precisar mijar. O homem apontou para a esquerda. Shaw viu a privada nas sombras. – É só me avisar. – Simples assim? – Como eu disse, se acalme e logo você vai sair daqui. – Onde está Waller? – questionou Shaw em um tom incisivo. – Quem? – Você sabe de quem estou falando. O homem não falou nada. Saiu e trancou a porta atrás de si, deixando Shaw pensativo. Ele cou se balançando para a frente e para trás e logo descobriu que a cadeira estava presa ao chão. Tudo bem planejado. Será que estava muito longe de Gordes? Não fazia a menor ideia de quanto tempo ficara inconsciente. Talvez nem estivesse mais na França. Se aqueles caras não eram subordinados de Waller, quem eram, então? Não, é claro que eles estavam com o ucraniano, apesar de aquele homem ter ngido ignorância. Tentou imaginar a reação de Frank quando não visse Shaw no aeroporto. Ele iria ao hotel e concluiria que fora passado para trás. Shaw se recostou na cadeira e respirou fundo. Não havia saída. E Janie provavelmente estava com Waller naquele momento. Ou talvez estivesse morta.
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– VOCÊ PARECE PREOCUPADA. Reggie encarou Waller durante o passeio pelas ruas de Roussillon. Haviam ido até lá em carros separados; ela seguira a caravana de veículos do empresário. Roussillon tinha todo o charme de um típico vilarejo provençal, só que a maioria dos edifícios apresentava mais tons de ocre. – Só estou cansada. Não dormi muito na noite passada. – Espero que nenhuma perturbação esteja tirando seu sono. Ele estava usando uma calça jeans, uma camisa branca de algodão para fora da calça e sandálias de couro. Um chapéu-panamá cobria sua cabeça calva, protegendo a pele pálida. Era um visual elegante e despojado que, por algum motivo, incomodou Reggie. – Provavelmente, só jet lag tardio. Este vilarejo é mesmo lindo. As cores são muito diferentes de tudo o que já vi. – Minha mãe nasceu aqui – falou ele com orgulho. – A Provence me recorda a infância. Reggie parou em frente a uma janela, como se examinasse sua pintura, mas, na verdade, tentava imaginar como Fedir Kuchin conseguira escapar da Cortina de Ferro e ir para aquele lugar quando criança, ou melhor, como seus pais conseguiram e o levaram. As viagens eram muito restritas naquela época. Seu pai devia ser do alto escalão do Partido Comunista para ter tanta liberdade. Ela também se perguntava como uma francesa de uma aldeia rural da Provence havia se casado com um comunista ucraniano. Talvez Kuchin estivesse mentindo. Era mais provável. – Gostou da pintura? – perguntou Waller. Reggie continuou a observar a tranquila cena de porto retratada ali. – É muito mais agradável do que as obras do Señor Goya. – Ah, mas esse pintor nunca terá a reputação de Goya. Ele, sim, prestou um importante serviço ao mundo. Ela se virou para Waller. – Como assim? – Ele viveu em tempos difíceis. Guerra, pobreza, crueldade. Por isso, pintou pesadelos. Como eu disse, ele lembrou ao mundo que o mal existe. Essa é uma lição importante que nunca devemos esquecer, mas que esquecemos o tempo todo. – Você vivenciou essas coisas?
– Li a respeito e acho que devem ser evitadas, se possível. – Mas às vezes não é possível. – Você é americana, logo é de se esperar que diga isso. Vocês são uma superpotência, podem fazer o que quiserem. Reggie teve a impressão de ver uma centelha de inveja nos olhos de Kuchin, mas devia ser só sua imaginação. Ele lhe deu o braço. – Soube que o caro Bill nos deixou. Por pouco, Reggie não retirou o braço. – Ele teve que voltar para casa. Algum problema de família. – Então, farei o que puder para preencher qualquer lacuna. Ela lhe lançou um olhar penetrante e forçou um sorriso. – Não faça promessas que não podem ser cumpridas. – Eu nunca faço isso. – Bem, onde você e sua família ficavam quando estavam aqui? – Vou lhe mostrar. Continuaram a caminhar e atravessaram o centro da cidade. A cerca de 250 metros dali, Waller a levou por uma escadaria antiga e parou diante de um pequeno chalé com uma porta de madeira e duas janelas na fachada. – Aqui. – É muito singela. – Meu pai morreu nesse chalé. – Meu Deus, sinto muito. – Tenho certeza de que ele também sentiu. Waller voltou a lhe dar o braço. – Agora, vamos almoçar. Por aqui. Está tudo planejado. Precisamos comer algo leve porque o jantar será substancioso. – Vejo que você gosta de ficar no controle. – Existem líderes e seguidores. É a ordem natural das coisas. Você quer que um seguidor lidere ou que um líder siga? – Acho que depende de aonde você quer chegar. – Você é uma jovem exótica. – Já ouvi coisas piores. – Foi um elogio. Waller segurou o braço dela com mais força. Durante o passeio, Reggie se viu consumida pela preocupação. Será que Kuchin havia feito algum mal a Bill? Nesse caso, matar o monstro não seria suciente. Nada seria, se um homem inocente tivesse morrido por sua causa.
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– PRECISO MIJAR! – GRITOU Shaw na escuridão. – Agora! Um minuto se passou e ele achou que ninguém fosse responder. Mas a porta se abriu e o mesmo homem de antes apareceu. – Falei sobre a privada ali no canto. – Acho que não a consigo acertar daqui. O carcereiro deu um passo à frente. – Então, acho que vou ter que desamarrar você. – Acho que sim. – Linha de tiro – relembrou o homem. – Certo, entendi. Shaw manteve o olhar xo nele, com os músculos retesados, a mente avaliando cada ângulo e ponto de ataque possível aos dois alvos. Colocaria o carcereiro entre si e o atirador e daria um jeito de sair dali. Era o plano mais sólido que conseguia conceber naquelas circunstâncias. Porém, ele não teve chance de executá-lo. O homem espetou a seringa em seu braço, por cima da camisa. Quando acordou, Shaw estava no chão com os braços embaixo do corpo. Levantou-se devagar, exionando os membros, tentando fazer com que o sangue circulasse. Usou o vaso sanitário e olhou ao redor. No cômodo, só havia mais a cadeira e um colchão em um canto. Mediu o espaço com passos: 2,5 x 2,5. Cerca de 6 metros quadrados e um teto não muito mais alto do que Shaw. As paredes eram de pedra, sólidas, sem fendas na argamassa; o chão, uma laje única. Ele levantou a mão e constatou que o teto era de gesso. Um rangido às suas costas fez com que Shaw se virasse e visse uma bandeja de comida sendo introduzida por uma portinhola que ele não havia notado antes. Levou-a até o colchão, sentou-se e comeu, bebendo toda a água com dois longos goles. Não havia talheres nem pontas afiadas. O prato era de isopor, a garrafa, de plástico. Alguns minutos mais tarde, ele ouviu uma voz atrás da porta: – Empurre para cá. Ficou de pé e passou a bandeja pela portinhola. A fresta mal chegava a 8 centímetros e foi preciso deitar a garrafa d’água. Em seguida, voltou a andar pelo cubículo, examinando cada centímetro. Seu olhar se deteve no vaso sanitário. Levantou a tampa da caixa de descarga e
pôs a mão dentro. Em um minuto, soltou um longo pedaço de metal. Caminhou até a porta e examinou a fechadura. Modelo de segurança. Era uma complicação, mas não um impedimento. Jogando-se na cadeira, Shaw começou a moldar com o metal o instrumento necessário para o serviço. Bem, na verdade dois instrumentos, já que se tratava de uma fechadura de segurança. Não fazia ideia da hora, se era dia ou noite. Seu relógio fora conscado e ele começara a contar os segundos em sua cabeça. Trabalharia com a noção de que a refeição servida era almoço ou jantar e contaria o tempo a partir dela. Não era um método perfeito, mas melhor do que nada. Partiu o metal ao meio, modelou os pedaços pressionando-os contra as paredes e foi em silêncio até a porta. Ficou na escuta por um instante, o ouvido direito encostado nos 5 centímetros de espessura da madeira – medida que calculou com base na portinhola. As dobradiças dela cavam na parte externa e não lhe serviam de nada. O embate era apenas entre ele e a fechadura. Shaw cou de quatro e abriu uma pequena fresta. Procurou ouvir sons de respiração, de movimento, de um coração batendo rápido demais. Escutou um pé se arrastando pelo chão. Shaw recuou para a cadeira, continuando a contar os segundos. Precisava sair dali, depressa. Mas, obviamente, isso não ia acontecer. Desacelere, vá com calma. A pressa provoca falhas. O único problema com essa losoa era que Janie talvez não tivesse muito tempo. Mesmo que não fosse o mandante do seu sequestro, Waller estava livre para fazer o que quisesse com ela. E Shaw sentia o estômago embrulhar só de pensar nas intenções daquele sujeito. Paciência, Shaw. Paciência. Ele passou os dedos nos pedaços de metal e manteve a contagem dos segundos.
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– HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ trabalha com Evan? – perguntou Reggie. Estava no terraço da mansão de Waller, na companhia de Alan Rice, contemplando o pôr do sol. Ele tomava uma taça de vinho, trajando calças cáqui e uma camisa larga com um lenço vermelho em volta do pescoço. Se queria parecer distinto, errara a mão, pensou Reggie, bebendo seu gim-tônica. Ela havia escolhido uma saia que chegava até os joelhos, uma blusa e sapatos de salto baixo. Os cabelos estavam úmidos e soltos sobre os ombros. O passeio a Roussillon fora relativamente sossegado e Waller se mostrara delicado e atencioso, tratando-a como uma princesa. Dava para entender como uma mulher desavisada podia ser enganada. No entanto, toda vez que olhava para aquele homem, só conseguia visualizar as vítimas indefesas de sua mente doentia. Só que era preciso sorrir e ser brincalhona e até sedutora. – Quase quatro anos – respondeu Rice, pondo a taça sobre uma mesa e apoiando os braços na mureta de pedra que circundava o terraço e se erguia até a altura do seu peito. – Ele é um empresário brilhante. – Ele parece ser muito talentoso em tudo. Muito experiente. – Esta é a palavra exata: experiente. – Como vocês dois se conheceram? – Eu trabalhava em uma empresa em Nova York. Ele esteve lá a negócios e me encantou, como faz com todos. Uma coisa levou à outra. E vim trabalhar para ele. – Presumo que seja desafiador. – Sem dúvida. O Sr. Waller não suporta tolos. A pressão por um bom desempenho é grande. Mas você aprende muito. – Bem, então você provavelmente precisava de umas férias. Vejo que você está mancando. Algum ferimento? – Caí no chuveiro e machuquei o joelho um tempo atrás. Está sarando. Pouco depois, Waller apareceu e Rice logo desapareceu, voltando para dentro da casa. Ele tomou um gole do coquetel e comentou: – Acredito que Rice estivesse sendo uma boa companhia. – Sim. Ele adora trabalhar para você. – Tenho sorte por tê-lo comigo – falou Waller, sentando-se no sofá. Ele gesticulou para que Reggie fizesse o mesmo.
Ela obedeceu, ficando tão próxima dele que seus joelhos quase se tocavam. – Qual é seu ramo de negócios? – O ramo que dá dinheiro. – Acho que você é movido pelo lucro – disse ela com frieza. – Quando você cresce sem dinheiro, o lucro pode ser uma força motivadora. – Mas você veio para a Provence na infância. Sua situação não devia ser tão desesperadora assim. Viajar do Canadá até aqui não devia ser barato, nem mesmo naquela época. Waller lhe lançou um olhar impenetrável, mas, por um momento terrível, Reggie achou que tivesse ido longe demais. – Obviamente, isso não é da minha conta – acrescentou ela às pressas. – Não, não tem problema. Como eu disse, minha mãe era francesa, assim não precisávamos pagar hospedagem. Tínhamos o chalé da família. E, naquela época, vínhamos de barco, terceira classe. E, depois, uma viagem de trem, também em terceira classe. Era muito barato, mas não muito confortável. – Entendo. – Uma vez na Provence, a forma como chegamos aqui se torna irrelevante. Waller se levantou e contemplou a vista deslumbrante do vale do Luberon. – É glorioso. Reggie se juntou a ele. – É, sim. Minha mãe teria dito que Deus estava em boa forma quando criou a Provence. – Uma mulher religiosa, suponho. – Católica, como eu. – No leito de morte, minha mãe me disse: “Nunca renuncie à sua fé em Deus. Ela o amparará nos bons momentos, mas em especial nos maus.” Uma sábia mulher. – E a fé o amparou nos bons e maus momentos? – Não há vida sem dores. Agora, sou rico, mas nem sempre foi assim. Eu já... – Ele se interrompeu e sorriu. – Acho que o jantar está pronto. Você se sentará ao meu lado. Alan nos acompanhará. Pergunte a ele sobre sua teoria a respeito dos vinhos franceses e californianos. É muito interessante, mesmo que totalmente equivocada. Porém, ainda assim, vale a pena ouvir. Os dois foram para a sala de jantar. Após a refeição, tomaram mais alguns drinques e a sobremesa foi servida no pátio inferior, ao lado da piscina. Rice permaneceu por poucos minutos, retirando-se de repente. Reggie não sabia se aquilo fora combinado. Waller fitava a água. – Você tem uma piscina na sua mansão, certo? Reggie assentiu. – Eu nado. Aliás, eu deveria nadar alguns quilômetros para queimar as calorias da comida. Ele fez um gesto de desdém com a mão. – Ridículo. Você está em excelente forma.
– Você também não tem muita gordura. – Faço o que posso – disse ele com modéstia. – Os americanos comem muita porcaria, mas você não caiu nessa armadilha. – O fato de ser rica me proporciona certas vantagens de que muitos americanos não dispõem. Posso me dar ao luxo de comer corretamente e, quando tenho tempo, me exercitar. – Aqui, um camponês pode ir à feira e comprar ingredientes frescos por poucos euros. E eles vão andando, ou seja, se exercitam. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Mas não julgo ninguém. Ao ouvir essa declaração, Reggie sentiu o rosto corar. Felizmente, Waller não a estava olhando. Você só julgou centenas de milhares de pessoas e as mandou para a morte. Ela se levantou. – Obrigada por este dia maravilhoso. – Você não vai embora. Reggie estremeceu, sem saber se aquilo fora uma pergunta ou uma ordem. – O dia foi longo. – Mas ainda é cedo. – Talvez para você. – Eu gostaria muito que você ficasse. – Tenho certeza de que vou encontrá-lo em breve. E nem sempre as pessoas conseguem o que querem. Ele ficou de pé. – Não vai reconsiderar? Eu gostaria de conhecê-la melhor. – Preciso nadar. – Você pode nadar aqui. – Boa noite, Evan. Eu sei onde fica a saída. – Poucas pessoas se arriscariam a discordar de mim. – Não estou discordando de você. – Mas... Ela ficou na ponta dos pés e deu um beijo rápido em seu rosto. – Na verdade, tudo se resume ao momento oportuno. Depois de fechar a porta da mansão, Reggie cuspiu no chão e esfregou a boca.
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– SIM, WHIT, ENTENDO A situação com bastante clareza, talvez até melhor que você. Mallory estava sentado atrás da escrivaninha em seu escritório em Harrowseld, tentando acender o cachimbo ao mesmo tempo que segurava o telefone contra o ouvido com o braço esquerdo. – Tomei a providência que julguei mais prudente. O professor fez uma pausa, ouvindo o palavrório do irlandês aborrecido. Mallory enm conseguiu acender o cachimbo e, por um instante, tragou avidamente. Apagou o fósforo e o deixou cair sobre a mesa, onde continuou a fumegar. – Não consigo entender como isso reduziu o capital humano à sua disposição, mas, se você necessita de reforços, posso mandá-los amanhã. Você tem quatro homens para a parte externa e vocês três podem cuidar da interna. Acha insuciente? – Ele parou de falar e escutou. – Sim, falei com Regina, e não, ela não está a par. Por quê? Os detalhes nais foram acertados? Entendo. Equipamento de projeção. – Outra pausa para ouvir. – Sim, acho que seria conveniente. Certo. Sim, é só me avisar. Mallory desligou o telefone e pitou o cachimbo. Ergueu o olhar e viu Liza na porta. – Problemas? – perguntou ela. – Nada que não possa ser resolvido. Whit está um pouco exaltado, mas vai passar. Liza franziu a testa. – Estamos próximos demais do dia D para que alguém fique exaltado, não? – Vai dar tudo certo, Liza, não se preocupe. – E você não está preocupado? – Fico sempre preocupado até o meu pessoal voltar para cá são e salvo. Mas está tudo sob controle e o plano é sólido. Regina pensou em um adendo que acho que vai funcionar muito bem. – Seu plano tem uma falha. – Nenhum plano é perfeito, e tivemos de arquitetar esse às pressas. – Mas eles não estão cientes da possível falha. Você sabe que não estou de acordo. – Sem esse elemento, não teríamos chance de pegar Kuchin. – Sim, mas ele pode determinar se o “seu pessoal” voltará são e salvo. – Estou ciente dos riscos – retrucou Mallory, um pouco indignado. – Você está, mas eles, não.
– Em tudo o que fazemos, há um risco inerente. – Às vezes, eu me pergunto... – O quê? – Ficamos aqui sentados na aconchegante casa de campo inglesa, planejamos essas coisas e, depois, os mandamos para executar nossos planos. – Eles participam da formulação dos planos. – Boa noite, professor. Liza deixou Mallory pitando raivosamente até terminar o tabaco. Ele guardou o cachimbo no bolso do paletó e permaneceu imóvel, taciturno, em sua velha cadeira de couro.
Whit cou sentado olhando para o telefone. Às vezes, não conseguia entender Mallory. Aliás, quase nunca. O professor o havia incumbido de uma tarefa em um momento crítico da missão e o irlandês não gostou nada daquilo. Ficar de babá de Bill Young não fazia parte do serviço. Pôs o celular no bolso e atravessou o corredor pisando duro. – Dê-me a chave, Niles – ordenou ao homem que estava de guarda. Ele lhe entregou a chave e bateu à porta, gritando: – Afaste-se! Sacou sua arma e a apontou para a porta enquanto Whit introduzia a chave, abrindo-a com um clique, e se postava na entrada do cômodo. Shaw estava em pé, encostado na parede oposta, encarando-o. – Está pronto para me soltar? – Sente-se – ordenou Whit. Shaw olhou para a arma que o mirava, foi devagar até a cadeira e se sentou. Whit avançou um pouco. – Sabe, você me parece familiar – observou Shaw. – Eu pareço com muitos homens. – Então, como posso ajudá-lo? – Você pode me dizer o que está fazendo na França? – Estou de férias. Por que você está aqui? Whit apoiou-se na parede. – Lobista de Washington que sabe escalar muros e desarmar pessoas? Acha mesmo que vamos acreditar nisso? Shaw ficou calado por um bom tempo. – Sou um lobista aposentado. E eu deveria estar voltando para os Estados Unidos para car com o meu filho. Você, obviamente, se opôs. – Você parece jovem demais para estar aposentado. – Ganhei dinheiro e quis parar. Isso é crime? É por isso que você me deu um golpe na cabeça e está me mantendo prisioneiro aqui?
– Como já disse, acalme-se e tudo ficará bem. – Sim, mas e quanto a Janie Collins? – Quem? Shaw cruzou os braços e examinou o outro homem. – O que vocês estão planejando? – Não sei do que você está falando. – Mas vocês estão trabalhando juntos. Whit balançou a cabeça. – Mais uma vez, não sei do que você está falando. – Claro que sabe. Eu falei a Janie que era um lobista aposentado. Escalei o muro da casa dela e a desarmei. Ninguém mais sabia disso. – É fácil descobrir essas coisas. – Não é, não. E por que você investigaria isso? – Então, não vai me dizer por que está aqui? – Você primeiro. – Tudo bem, você vai apodrecer aqui. Whit lhe deu as costas para ir embora. Shaw hesitou, mas falou: – Cuidado com Waller, ele não é quem vocês pensam. Whit se virou. – Que diabos você sabe sobre ele? – Mais do que vocês, ao que parece. A propósito, acabei de me lembrar onde nos vimos. O passeio de caiaque. Você estava nos seguindo. Vocês estão atrás de Waller, não? – Não sei o que você anda fumando. – Ele é um cara perigoso. – É mesmo? Shaw sabia que não deveria fazer aquilo, mas sua preocupação com Janie suplantou os instintos profissionais de sigilo. – Waller comanda um esquema global de prostituição. Ele pega mulheres na Ásia e na África e as vende como escravas sexuais no Ocidente. Como a revelação não pareceu interessar muito Whit, Shaw acrescentou: – Ele também tentou vender urânio para alguns fundamentalistas islâmicos antes de matálos depois de um desentendimento. – Terroristas? – exclamou Whit. – Provavelmente o passaram para trás e ele os fez pagar. Esse cara não é or que se cheire. E está de olho em Janie, embora eu já tenha percebido que esse não é o verdadeiro nome dela. Seja lá o que vocês planejaram, é melhor levarem em conta a possibilidade de Waller acabar descobrindo algo. E é melhor começar a se preocupar para que Janie não desapareça. – E por que você está me dizendo isso?
– Acho que você sabe por quê. Se ele pegar Janie, está tudo acabado. Whit bateu a porta atrás de si e a trancou. Shaw ouviu os dois homens conversando do lado de fora, depois, passos se afastando. Sentou-se na cadeira. Seus instintos iniciais não eram totalmente incorretos. Janie Collins não era quem dizia ser. Mas não queria interferir na missão de Shaw, nem sequer tinha conhecimento dela, ao que parecia. Desconaram de Shaw, mas não sabiam por que ele estava ali. Seus objetivos se cruzavam. Mas por que desejavam pegar Waller? E como planejavam levar a cabo seu plano? Shaw olhou ao redor. Precisava sair dali mais do que nunca. Tinha um mau pressentimento de que o plano deles, fosse lá qual fosse, não era sucientemente bom. E havia uma grande probabilidade de eles serem mortos por Waller.
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REGGIE CONTOU AS BRAÇADAS, fez a virada olímpica e prosseguiu na direção inversa. Estava nadando tão rápido que se desconcentrou e acabou batendo com a cabeça na borda. Subiu até a superfície, esfregou o local dolorido e olhou ao redor. A mansão de Waller estava às escuras e não havia espiões no muro que separava as duas propriedades. Foi até a escada e saiu da piscina. Secou-se com a toalha, pegou o celular e encaminhou-se para a casa. Ao ver a mensagem de texto no telefone, se sobressaltou. AGORA. Era a indicação de alerta máximo. Ela subiu correndo para o quarto, onde fez uma ligação. – Precisamos nos encontrar – disse Whit. – Um encontro? Quando? – Imediatamente. – É uma da madrugada. – Agora, Reg. – O que aconteceu? – Um novo desdobramento do qual você precisa saber. – Sério, Whit... – O lugar de sempre. – Ele desligou. Ela se vestiu às pressas e apagou todas as luzes como se estivesse indo para a cama. Desceu a escada, abriu a porta dos fundos, certicou-se de que não havia ninguém e saiu pela trilha escura. Alguns minutos mais tarde, vendo que ninguém a seguia, chegou ao ponto de encontro. Quase gritou ao sentir uma mão em seu ombro. Whit saiu da escuridão com uma expressão dura. – Que diabos está acontecendo? – perguntou Reggie, apertando o próprio peito. – Toda vez que preciso sair sorrateiramente da casa é uma oportunidade para que eles quem desconfiados. – Não tinha outro jeito – disparou Whit, sentando-se no banco de pedra. – Tudo bem, claro que é algo importante. Desembucha. – Recebemos novas ordens do professor. – O quê? – Aliás, eu recebi ordens do professor e já as executei.
Reggie o encarou, surpresa. – Do que você está falando? – Ele nos mandou tirar o seu amigo da equação. – Meu amigo? – Bill Young. – O quê? Vocês não... – Ele está bem. Nós o raptamos. Ele está descansando. – Vocês estão loucos? Ele... – A decisão não foi minha, está bem? E o professor não queria que você soubesse. Mas eu não gosto dessa situação. Então, vim contar para você. – Por que Mallory quis que você raptasse Bill? Ele estava indo embora da França. – Eu não sabia disso – retrucou, irritado. – Não tive oportunidade de contar. – Não devia fazer diferença. O professor queria tirá-lo do caminho e, provavelmente, foi uma boa decisão, pelo que acabei de descobrir. – Do que você está falando? – indagou Reggie, com cautela. – Seu amigo não é o que parecia ser. – Ele fez uma pausa. – Acho que ele é um policial ou algo assim. Talvez seja da contrainteligência, Interpol, coisa do gênero. Reggie se sentou ao lado de Whit. – Por quê? – Pelo que ele disse. Reggie desviou o olhar. – Você não parece chocada. – Eu sabia que Shaw havia sumido do hotel. Quando fui vericar, vi alguns homens entrarem no quarto e levarem suas coisas. O recepcionista me falou que eles estavam armados. – Bem, obrigado por me dizer isso. – Conte-me tudo. Desde o momento em que vocês o pegaram. Whit fez o relato e prosseguiu: – Ele nos aconselhou a ter cuidado, seja qual for nosso plano. Informou-nos que Kuchin comanda um esquema internacional de escravas sexuais, raptando garotas da Ásia e da África para vendê-las no Ocidente, e que tentou vender urânio para terroristas islâmicos. – Espere um minuto. Ele sabe que Waller é Kuchin? – Acho que não. Pelo menos, nunca usou esse nome. De qualquer maneira, Young contou que Kuchin acabou matando os muçulmanos. Ele acha que houve algum desentendimento. E acredita que Kuchin está de olho em você e é melhor carmos em alerta para você não desaparecer. Para ele, é muito provável que Kuchin descubra pelo menos parte do que pretendemos fazer. – Whit se recostou. – Acho que meu julgamento sobre ele estava errado. Na verdade, estávamos trabalhando do mesmo lado, mas não sabíamos.
– Mas se ele não sabe do passado de Kuchin, por que está atrás dele? – Talvez por causa da questão do terrorismo ou da escravidão sexual. – E ele está bem? – A não ser por um pequeno galo na cabeça, sim. O cara é durão, mas nós já sabíamos disso, não é? – Obrigada por me contar, Whit. – Nada de segredos, certo? Mas, Reg, o que Young disse me deu uma ideia. – Qual? – Kuchin matou todos esses muçulmanos. Podemos usar isso a nosso favor. – Como? Ele se inclinou para a frente. – Da seguinte maneira...
52
SHAW SE AFASTOU DA porta, frustrado. Tentar abrir uma fechadura de segurança na escuridão quase total usando apenas um pedaço de metal só podia provocar frustração, pensou ele. Havia mais de 86 mil segundos em um dia. Como contara mais de cem mil segundos – e quase enlouquecera –, concluiu que estava na metade do dia ou da noite. Deu um passo à frente e cou escutando com o ouvido grudado na porta. Nenhum passo, nenhuma respiração. No entanto, uma porta sólida se achava entre ele e a liberdade. Se tentasse arrombá-la, eles o estariam esperando com armas em punho. Voltou a se jogar na cadeira e tentou pensar em outro modo de fugir. Sua motivação para se libertar havia mudado, mas só um pouco, na verdade. Se aqueles homens eram colegas de Janie, ela não estava sozinha. Se Waller tentasse fazer algo, pelo menos ela teria apoio. Mas Shaw tinha certeza de que os homens não eram policiais. O sujeito com o qual conversara pareceu surpreso ao saber dos terroristas. Por que iriam matá-lo, então? E, se eles não eram agentes da lei, por que o mantiveram vivo? Um tiro na cabeça e uma cova rasa no meio do nada teriam feito mais sentido. Confuso, Shaw se sentou na cadeira e cou mexendo nos dois pedaços de metal inúteis. Se Frank o visse naquela situação... Fitando o vaso, algo lhe ocorreu. Ele olhou para a porta e voltou a analisar a privada. Inspecionando a ferramenta improvisada em suas mãos, pensou que talvez fosse possível.
– E como foi sua natação? – perguntou Waller. Eles estavam subindo para o vilarejo de Gordes na tarde seguinte. – Refrescante. Você gostou do que viu? Ele pareceu surpreso. – Como? – Pensei ter visto alguém espiando por cima do muro. Deduzi que fosse você, mas acho que poderia ter sido um dos seus seguranças. Ela olhou para trás, na direção de Pascal e de outro guarda-costas que os seguiam. – Não era eu – replicou Waller em um tom seco. – E não foi nenhum dos meus seguranças. – Então, talvez eu esteja enganada. – Está, sim.
Reggie não sabia ao certo por que o havia provocado. Não, ela sabia, sim. Era melhor do que arrancar os olhos dele. Tracante de escravas sexuais. Terrorista. Ela inspirou calmamente e conseguiu dar um sorriso. – A grande feira é amanhã. É bem maior do que a que você viu. – Estou ansioso para vê-la. Depois das compras, eles passaram de novo na frente da igreja. – Você já esteve aí dentro? – indagou Reggie. – Ainda não, virei à missa no domingo. – Eu entrei. É linda. Quer vê-la? Waller hesitou e olhou para os dois seguranças. – Tudo bem. Só por alguns minutos. Precisamos ir comer. Estou com fome. E, após a feira amanhã, quero levá-la a Pont du Gard para ver o aqueduto e jantar lá por perto em um restaurante delicioso. No dia seguinte, Gigondas. – Você já planejou tudo! – Claro. A resposta brusca foi suavizada por um sorriso. Desceram a rua estreita e abriram a porta da igreja. Dentro, o ar estava mais frio. Avançaram pela nave e viram a escada que levava ao campanário, o ponto mais alto de Gordes. Os dois guarda-costas ficaram esperando perto da porta, no interior. Ao se aproximarem do altar, Reggie e Waller se ajoelharam e zeram o sinal da cruz. Um padre idoso apareceu e foi falar com eles em francês. Reggie respondeu antes que o homem se afastasse. – Ele só perguntou... – começou a explicar. – Sim, eu sei, meu francês é tão bom quanto o meu inglês, talvez até melhor – replicou Waller. – A igreja está fechada, mas só vamos ficar aqui alguns minutos. Reggie olhou ao redor. – Séculos de devotos passaram por aqui. É notável. Em voz baixa, Waller comentou: – É uma glória estar na presença de um poder assim. – Poder para o bem – acrescentou Reggie enquanto fitava a cruz no altar. – Em uma igreja, o que mais poderia ser? – Não vou à missa tanto quanto deveria. – Viremos juntos no domingo. – Não vai ser possível, pois vou embora no sábado. Ele pareceu atordoado. – Para onde? – Para casa, para os Estados Unidos. – Você não pode mudar de planos? – Por quê?
– Porque eu estou pedindo. Quero passar mais tempo com você aqui. – Mas o aluguel da minha mansão vai acabar. – Eu cuido disso. Vou estendê-lo ou você pode ficar na minha mansão. – Evan, não acho que... Ele agarrou o braço de Reggie. – Eu cuido disso. Ela fez uma expressão de dor por causa da pressão e Waller a soltou. – Você me enfeitiçou. Perto de você, eu perco a cabeça. Preciso tomar cuidado comigo mesmo. – Talvez eu deva fazer o mesmo – retrucou ela, tentando dar um sorriso. – Mas é sério, precisamos passar mais tempo juntos. E, depois, quando eu estiver de volta ao Canadá, será fácil ir até os Estados Unidos. Poderemos nos ver lá. – Você mal me conhece. – Julgo rapidamente as pessoas. Na verdade, elas não são nenhum mistério para mim. Waller riu de uma maneira que fez Reggie estremecer. Porém, ela tinha mais uma coisa a fazer. Fora por isso que o levara até ali. – Está na hora de voltarmos. Tenho algumas coisas a fazer de carro depois do almoço – falou ela. Waller se voltou para iniciar o caminho de volta. – Não. – Reggie assumiu um ar travesso e brincalhão, uma interpretação que ela treinara em frente ao espelho da mansão. – Descobri um atalho. – O quê? – Me siga. Ela se encaminhou para a escada que levava ao nível inferior. – Aonde você está indo? – perguntou ele. A moça se virou. – Um atalho, como eu disse. – Reggie olhou para Pascal, que a observava. – Ele também pode vir – acrescentou com uma risada. – Não estou levando você para uma emboscada, venha. Ela começou a descer os degraus. Waller acenou para Pascal com a cabeça e eles a seguiram. Reggie os esperava ao pé da escada e os foi conduzindo pelas entranhas daquele lugar sagrado. Olhando para trás, notou que Pascal mantinha uma das mãos perto da arma. Um minuto mais tarde, ela abriu a porta com um empurrão, saiu para a luz do dia e apontou para a esquerda. – Viu? Um atalho colina abaixo. Essa passagem foi aberta diretamente na pedra. As mansões estão situadas logo no fim desses degraus. Waller parecia surpreso e impressionado. – Já passei por esta porta antes e fiquei me perguntando onde daria. – Agora, você sabe – disse ela.
Agora, você sabe.
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– QUERO VÊ-LO – AFIRMOU REGGIE. – Essa não é uma boa ideia – retrucou Whit. Eles estavam de novo na livraria da abadia de Sénanque. – Não me importa se você não acha uma boa ideia. Quero que você me leve para falar com ele. – O professor sabe... – Não estou me sentindo tão solidária a ele neste momento. Me leve para ver Bill.
Shaw estava sentado na cadeira quando ouviu as batidas. – Afaste-se da porta – disse uma voz. Ela se abriu e Shaw piscou para ajustar a vista ao novo nível de luz. Então, viu-a ali em pé. – Sinto muito. Eu não tinha ideia do que acontecera com você. – Bem, agora me solte. – Isso não vai acontecer – interveio Whit, dando um passo à frente e postando-se ao lado dela. Shaw notou outros dois homens na soleira. Não estavam com revólveres em punho, provavelmente porque Reggie pedira, mas ele presumiu que estivessem armados. – Me diga o que está acontecendo – pediu Shaw. – Talvez eu possa ajudar. – A mesma resposta da última vez. Shaw o encarou. – Você contou a ela sobre Waller, sobre seu histórico? – Sim, contou – respondeu Reggie. – E algo que você disse vai nos ajudar. – O quê? – Não posso contar. – Por que vocês estão atrás dele? – Por que você estava atrás dele? – replicou ela. Shaw ficou em silêncio. – Terrorismo? – sugeriu ela. – Waller é um vilão. Precisava ser eliminado. É tudo o que eu posso falar. – E por que você estava indo embora se ele não foi eliminado? – questionou ela.
Shaw olhou para Whit. – Para quem vocês trabalham? Interpol? Mossad? MI6 talvez? Reggie fez menção de responder, mas Whit soltou um grunhido alto. – Ninguém que você conheça – disse ela por m. – Então, por que você estava indo embora? – A operação foi cancelada – respondeu Shaw. – Porque Waller matou os terroristas? Isso não signica que ele não vai tentar negociar de novo com outras pessoas. – Eu não dou ordens, apenas as sigo. – Assim como nós – disparou Whit. – Como você descobriu sobre mim? – indagou Reggie. – Pouco antes de eles golpearem meu crânio, tudo se encaixou. A última peça foi seu aviso ao segurança de Waller de que eu não seria mais um problema. – Eu não queria que algo acontecesse com você. – Quando vocês vão executar o plano? – Shaw quis saber. – Muito bem, visita encerrada – interrompeu Whit. Shaw o ignorou e continuou a encarar Reggie. – Por que você veio me ver? – Para dizer que sinto muito. – Escute, se Waller conseguir passar à frente... – Ele é muito bom, sem dúvida – cortou ela. – Mas nós também somos. É o que fazemos. – O quê? – Assim que tudo estiver terminado, você será libertado ileso. – Reggie fez uma pausa. – Vi alguns homens saindo do hotel com suas coisas. Um deles usava um chapéu e não parecia feliz. – Tenho certeza de que ele não está muito feliz comigo. – Podemos contatá-lo, dizer que você está bem, que não é culpa sua. – Eu cuido disso. Mas deixe-me fazer uma pergunta: se vocês fracassarem e Waller matálos, o que vai acontecer? Whit deu um sorriso sarcástico. – Você dá um jeito de sair daqui. Não será muito difícil para um cara durão como você, certo? Shaw não desistiu: – Me falem do plano e eu apontarei os furos. Whit balançou a cabeça. – E, depois, você escapa e estraga tudo? Não mesmo. – Mas... – começou Reggie. – Não, Reg – vociferou Whit e, em seguida, fez uma careta ao perceber seu erro. Shaw a encarou.
– Reg de Regina? – Mais uma vez, obrigada – disse ela, esticando a mão. Whit fez menção de interrompê-la, mas Shaw já havia apertado a mão dela, sentindo os dedos em chamas. Ao olhar para Reggie, ele percebeu que ela estava tendo a mesma sensação. Eles se dirigiram para a saída e, antes que a porta se fechasse, Shaw pôde ver o olhar de Reggie fixo nele. – Espero que vocês peguem o filho da puta – gritou. Shaw correu até a porta e cou ouvindo. Só conseguiu captar uma palavra com clareza: “feira”. Resmungou e deu um tapa na madeira, frustrado.
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– UÉ, EVAN NÃO ESTÁ aqui com você? Reggie se virou e viu Alan Rice observando-a. Ele atravessou a rua principal de Gordes e se juntou a ela. – Achei que o objetivo dele fosse monopolizar cada minuto do seu tempo. No entanto, você está aqui, livre e sozinha. – Acho que ele tinha algo melhor a fazer no momento. Além disso, eu tinha alguns compromissos. Só vim aqui comprar umas coisinhas. – Você tem tempo para um café? – Ele apontou para uma cafeteria em uma transversal atrás dela, perto do museu Pol Mara, situado na praça do vilarejo. – As nuvens encobriram o sol e está um pouco frio. Um java não cairia mal. Os dois se sentaram na parte interna do estabelecimento, pediram as bebidas e Rice só quebrou o silêncio quando as xícaras chegaram. – Evan está encantado com você. Sem dúvida você percebeu. – Gosto da companhia dele. Ele é um homem agradável. – Não, na verdade, ele não é um homem agradável, Srta. Collins. – Como? – indagou Reggie, parecendo surpresa. – Achei que você trabalhasse para ele. – Eu trabalho e, portanto, o conheço muito bem. Ele é um empresário extremamente bemsucedido. Mas “agradável” é um adjetivo que não se encaixa. – E por que você está me dizendo isso? – Quero ter certeza de que você sabe onde está se metendo. – Eu não sabia que estava me metendo em algo. – Posso assegurar que Evan não vê as coisas dessa maneira. – O que você sugere que eu faça? – Você poderia ir embora da Provence. – Na verdade, estou planejando partir no sábado. Se eu for, você acha mesmo que o empresário extremamente bem-sucedido com uma natureza possessiva apenas deixaria pra lá? Rice tomou um gole de café e ficou brincando com a colher. – Talvez. – Esse tipo de coisa já aconteceu antes com Evan? – Você quer dizer com outras mulheres? Sim, já.
– E o que aconteceu com as outras mulheres? – Na verdade, não sei. – Você não está sendo muito convincente. – Engraçado, pois estou dizendo a verdade. – Quem você está protegendo, no fim das contas? A mim ou ao seu patrão? – Achei que eu tivesse sido claro. Estou protegendo Evan. No fundo, não a conheço tão bem assim. – Aprecio sua franqueza. Então, você o está protegendo dele mesmo? – Essa é uma maneira de ver as coisas. – Bem, para mim, essa é a única maneira de ver as coisas. – Afinal, você vai embora? Agora? Não espere até sábado. Reggie se levantou e pôs alguns euros sobre a mesa para pagar seu café. – Acho que não. Fiz planos para ir à feira com ele amanhã e é minha intenção mantê-los. Rice ficou de pé. – Ir embora agora seria a coisa mais inteligente que você poderia fazer. Confie em mim. – Esse é o problema, Alan: estou tendo diculdade de conar em qualquer pessoa neste momento.
Alguns minutos mais tarde, Rice estava ao lado de uma esteira ergométrica, onde o patrão fazia sua corrida diária. Waller secou o rosto com uma toalha e bebeu de uma garrafa d’água enquanto aumentava a inclinação do aparelho. – Você parece perturbado, Alan. – Acabei de ter uma conversa com nossa amiguinha. – “Nossa amiguinha”? – Jane Collins. Waller desacelerou a máquina e reduziu a inclinação. – Por que você fez isso? – Estou preocupado. – Com o quê? Nós a investigamos, lembra? – Sim, e você mesmo viu os relatórios. – Então, qual é o problema? – Vejo como você olha para ela. Waller reduziu ainda mais a velocidade, para o ritmo de uma caminhada rápida. – Você vê como eu olho para ela? – questionou. – Por favor, não fique aborrecido, Evan. É só que, no passado, você... No instante seguinte, Rice estava caído no chão, o sangue escorrendo da boca. Waller se encontrava ao seu lado, de pé, com a mão cortada. Ele se abaixou e ergueu o empregado. – Vá pôr gelo nisso antes que comece a inchar – recomendou calmamente.
– Eu só estava tentando proteger você – balbuciou Rice, segurando o maxilar. – Se eu estivesse precisando de proteção, seria admirável. Mas não estou. – Ele lhe lançou um olhar feroz. – Você é meu colaborador, Alan. É um subalterno. Nunca se esqueça do seu lugar. Você não está, nem nunca estará, no mesmo nível que eu. Entende? – Entendo. Waller pôs um braço sobre seus ombros. – Muito bem, então não falaremos mais sobre isso. Rice saiu do cômodo. Waller cou olhando pela janela, pensativo. Nunca permitiria que alguém questionasse seu julgamento ou sua autoridade. Rice chegara perto disso. Se alguém tivesse ouvido aquela conversa, Waller provavelmente teria ordenado que seu braço direito fosse executado. De qualquer forma, ele demonstrara um grau de independência alarmante. Porém, será que havia alguma verdade em suas palavras? Ele precisava de proteção contra si mesmo? Sim, estava fascinado por Jane Collins; muitos homens também cariam assim. A proximidade contribuía muito. No entanto, não se tratava apenas disso. Ela estava resistindo; agora era uma questão de honra ter sucesso. Jane era independente, sincera, teimosa e relutava em ser comandada ou manipulada. Waller queria desesperadamente possuí-la. E o faria. Disso ele tinha certeza.
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REGGIE SE LEVANTOU CEDO e nadou na piscina antes da alvorada. Em geral, fazia algo prazeroso no m da missão, pois talvez fosse o último dia da sua vida. A água estava fria e ela avançava contando as braçadas e regulando a respiração. Não se deu o trabalho de vericar se alguém a espiava. Isso não era mais importante. Reggie encerrou a atividade, entrou em casa, subiu a escada em caracol até o banheiro e tirou o biquíni. Virou-se rapidamente para olhar o canto oposto do cômodo, certa de que ouvira algo, vira um vulto... Mas não havia nada. Trancou a porta e tomou banho, deixando que a água quente escorresse pelo corpo na esperança de que sobrepujasse os calafrios. Ficava sempre nervosa com a proximidade do momento em que a pessoa que ela planejava matar descobria sua verdadeira identidade. Bill Young veio à sua mente. Reggie sabia que não devia ter ido vê-lo. Porém, algo dentro dela, em um lugar inexplorado havia muito tempo, a forçara a agir daquela maneira. Enm, nada daquilo teria relevância alguma depois daquele dia, nem os sentimentos dela, nem os dele. Eles nunca mais se veriam. Reggie se olhou no espelho, recordando a centelha entre os dois quando suas mãos se tocaram. O modo como ele a olhara. Todo o autocontrole a que ela precisava recorrer apenas por estar perto de Bill. Pare, Reggie. Pare agora mesmo. Secou os cabelos e pôs calças, uma camisa larga por cima de uma regata e um lenço na cabeça. Escolheu calçar tênis porque a ajudariam caso tivesse que correr. O lenço podia ser usado como um garrote. Porém, se ela precisasse usar esse recurso, suas chances de sobrevivência seriam muito pequenas. As imagens das vítimas de Fedir Kuchin deslaram em sua mente. O dia de hoje é por todos vocês. Reggie olhou pela janela para a trilha com calçamento de pedras lá embaixo. Algumas pessoas já começavam a subir a colina para a feira. Pareciam alegres, ansiosas, animadas. Ela também se sentia assim; bom, talvez ainda não alegre. Pequenos carros e furgões passavam devagar, entulhados de mercadorias. Em seguida, surgiram Whit e Dom, separados, carregando grandes bolsas. Nenhum deles ergueu o olhar em sua direção. Os dois logo saíram do seu campo de visão. O elemento que Whit acrescentara ao plano era brilhante, pensou. Tudo o que ela precisava fazer era executá-lo da forma adequada. Fechou a janela, desceu a escada e preparou o café da manhã. Ficou imóvel diante da
xícara, da torrada e dos ovos fritos, respirando ritmadamente para afastar o nervosismo, revisando o plano várias vezes a m de minimizar quaisquer erros. Reggie se encontrara mais uma vez com Whit e Dom e analisara cada detalhe da missão. O equipamento que Dom havia comprado em Avignon era perfeito. Tudo estava pronto para ser transportado. Os dois a parabenizaram pela ideia. “É um show bem adequado para o velho Kuchin” , dissera Whit. – Um show adequado – repetiu Reggie, lavando a xícara e os pratos e os colocando de volta no armário. Caminhou até o terraço e contemplou o nascer do sol, incendiando o céu. A cadeia de montanhas e a planície foram ganhando vida. O nervosismo de Reggie se atenuou, a respiração voltou ao normal e as feições se tornaram resolutas. Estava na hora. Se aquele era seu último dia, também seria o último de Fedir Kuchin, Reggie jurou a si mesma. Algumas coias valiam o preço a ser pago.
Em Harrowseld, Miles Mallory estava ao telefone. A chamada provinha de um local a poucos quilômetros de Gordes e havia sido feita por Niles Jansen, que lhe dava informações desagradáveis. – Ela foi mesmo ver esse homem? – perguntou Mallory, indignado. – Ele sabe que estamos atrás de Kuchin? – Jansen respondeu. – E ele faz parte de alguma agência de espionagem? – O professor ouviu por um instante. – Espere meu telefonema. Preciso pensar um pouco. Desligou e se recostou na cadeira. Whit havia sido incrivelmente insensato ao contar a Reggie que Bill Young estava sob a custódia deles. O plano era libertar o homem após o término da missão. Mas Mallory não sabia mais se aquela ainda era uma opção válida. Se alguém descobrisse o que eles faziam... Pegou o cachimbo do bolso, tou-o e, em seguida, o atirou para o outro lado da sala, onde o cabo se partiu ao se chocar contra a lareira. Telefonou de volta para Jansen. Sua mensagem foi seca: – Seja qual for o resultado da missão, ele não pode permanecer vivo. Aja agora. Encerrou a ligação, inclinou-se para a frente e pôs o rosto nas mãos. – Miles. Ele ergueu o olhar e viu Liza o observando. – O que há de errado? – perguntou ela. Mallory balançou a cabeça, fez menção de falar, mas, por m, baixou os olhos e encarou o chão, as mãos inertes pendendo à sua frente, como se tivesse acabado de sofrer um derrame. – Miles! – Agora não, Liza. Por favor, agora não.
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NILES JANSEN VERIFICOU O pente da Glock 17, no qual cabiam 19 balas. Já havia trabalhado como apoio em três missões com Whit e Reggie, mas nunca recebera ordens para fazer algo como aquilo. Estava nervoso, mas determinado. Introduziu uma bala na arma e tirou do bolso uma seringa marcada com uma etiqueta de veneno. Como se encontrava sozinho, o plano era algemar o prisioneiro à cadeira para que o líquido fosse administrado. O homem pensaria ser apenas outra solução narcótica. Seria fácil. Jansen começou a atravessar o corredor, mas, então, estacou, incapaz de acreditar no que via. Estava vazando água por baixo da porta trancada e pela portinhola. Ele saiu correndo, aos berros: – O que diabos aconteceu? – O cano do vaso sanitário quebrou e esta merda de quarto está inundando. Estou com água pela cintura – gritou Shaw em resposta. – Onde fica o registro? – Afaste-se da porta. – Como? Não posso me mover. O edifício inteiro vai desmoronar. Estou gritando há uma hora. Jansen foi até a porta e sacou suas chaves. O plano era abrir a porta e ir rapidamente para o lado enquanto a água jorrava. De repente, a porta foi arrombada e aterrissou em cima de Jansen. Shaw soltou o pesado vaso sanitário que havia usado para abrir caminho à força, pegou a arma do homem e o pôs de pé com um puxão. Quando a seringa caiu no chão, inclinou-se e a pegou, encarando Jansen. – Isto seria usado em mim? Não houve resposta. Shaw sacudiu o homem. – Estou prestes a mandar um balaço na sua cabeça. Isto seria usado em mim? – Ele encostou o cano da arma na testa de Jansen. – Responda agora! – Eu estava apenas seguindo ordens. – De quem? De um dos outros caras daqui? Da mulher? – Não. Eles não sabem. Shaw deixou o homem inconsciente com um soco de esquerda, extravasando toda a raiva que sentia naquele momento. Em seguida, o jogou no chão e pôs a seringa no bolso. Voltou para a cela, fechou a água e saiu correndo. Obviamente, a água não chegara até a cintura,
mas subira o suciente para atingir o nível da portinhola e começar a vazar. Shaw havia usado uma garrafa plástica para tapar o buraco que surgira quando ele retirara o vaso usando suas ferramentas improvisadas. Carregou Jansen no ombro com a arma em riste à sua frente, para caso mais alguém aparecesse. Usou o o de uma luminária para amarrá-lo, pegou seu celular e as chaves do carro, abriu a porta da frente com um chute, pulou o pequeno lance de escada e entrou em um carro cinza estacionado na frente da casa. Dez segundos mais tarde, estava voando pela estrada. Digitou o destino às pressas no GPS do automóvel. Gordes. Shaw verificou o relógio do painel, que também indicava a data. Dia de feira. Talvez ainda desse tempo. Ele acelerou e chegou a uma estrada principal. Teclou um número no telefone. Frank atendeu. Ao ouvir Shaw, começou a gritar. – Cale a boca, Frank, e escute. – Eu é que devo escutar? Shaw, vou acabar com... – Eles vão matar Waller. – O quê? Quem? Shaw informou a Frank tudo o que havia acontecido. – Tenho quase certeza de que vai acontecer hoje. Preciso de reforços. – Não temos ninguém. Evacuamos todo o nosso pessoal. – Não temos ninguém? – Passei o tempo inteiro tentando livrar sua cara. Os superiores acham que você surtou por causa da garota. Estão furiosos. – Não posso fazer isto sozinho. Preciso de ajuda. Waller tem muitos homens. Frank ficou em silêncio. – Ei! – gritou Shaw. – Fale comigo! – Temos uma pessoa na área. – Quem? – Eu. – Por que você ainda está aqui? – Esqueça, o que importa é que estou. – Por quê, Frank? – Porque eu estava procurando você. Está satisfeito agora? Então, como você quer agir? – Da seguinte maneira... Shaw explicou rapidamente. – Você confia mesmo nessa mulher? – questionou Frank. – Até certo ponto, sim. Como confio em qualquer outra pessoa. – Bem, espero que você esteja certo.
Shaw desligou e pisou fundo no acelerador. O motor gemeu em protesto enquanto o carro disparava pelos campos da Provence. Ao chegar à entrada de Gordes e ver o trânsito, largou o carro e subiu correndo a estrada sinuosa. Alcançou a rua lateral que levava até as duas mansões e notou que não havia nenhum segurança em frente à casa de Waller, um indício de que ele não estava ali. Shaw olhou para a la de carros e furgões cheios de mercadorias que se encaminhavam para a feira. Aproximando-se de uma picape que transportava araras de roupas e chapéus, tirou do bolso alguns euros e comprou um colorido poncho e um chapéu de tecido com abas alargas, ganhando um par de óculos escuros do próprio motorista. Já disfarçado, Shaw subiu na traseira do automóvel e pegou carona até a cidade. Lá, ele se deslocou rapidamente em meio à multidão, abaixando-se para que sua altura não desse na vista. Correu os olhos por todos os cantos à procura de Reggie, Waller ou qualquer outra pessoa conhecida. Por m, ao passar por uma ruela lateral, ele avistou o que procurava e recuou. Esperou por um tempo, pegou o celular e ligou para Frank, dizendo-lhe o que fazer. Em seguida, verificou a arma que roubara. Nunca se entrava em combate sem fazer algo tão básico. A Glock 17 fora concebida na década de 1980 por Gaston Glock, um austríaco que nunca havia construído uma arma, mas que tinha muito conhecimento acerca de polímeros sintéticos avançados. Assim foi criada, digamos, a primeira pistola de plástico do mundo, que venceu a H&K, a SIG Sauer, a Beretta, a Browning e a sosticada Steyr na concorrência para armar o Exército da Áustria. O sucesso mundial foi imediato e avassalador. Setenta por cento dos policiais nos Estados Unidos a carregavam em seu coldre. No entanto, a Glock 17, assim como todas as armas, não era infalível. Shaw cou surpreso por não ter percebido aquilo antes. O cano estava rachado, provavelmente por causa da colisão com a porta e o vaso. A sorte é que ele não precisara dispará-la, pois a pistola explodiria nas suas mãos. Uma Glock podia funcionar mesmo molhada, mas nenhuma arma avariada é segura. Frank estava a pelo menos trinta minutos de distância, mas Shaw não podia esperar. A única opção era seguir em frente. E foi o que ele fez.
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– ESTA FEIRA É MUITO cheia – observou Waller enquanto caminhava ao lado de Reggie pelas ruas estreitas de Gordes. – Pode causar certa claustrofobia. Ele olhou para trás. Seus dois seguranças abriam caminho por entre vendedores e clientes, esforçando-se para acompanhar o ritmo do casal. Reggie, com a cesta na mão direita, caminhava com passo ligeiro. Já havia comprado alguns itens, inclusive seis guardanapos costurados à mão de um homem cuja mercadoria cava em um velho furgão com pneus em péssimo estado. Ele zera um ótimo preço e até dera a Reggie um brinde que estava no fundo da cesta, mas que podia ser facilmente alcançado: uma pistola Beretta. – Bem, a feira de sábado é a maior. – Estou vendo. Você quer que eu carregue a cesta? – Nunca pergunte isso a uma mulher no meio de um surto de compras – respondeu Reggie, arrancando uma risada de Waller. – Rendo-me à experiência consumista do sexo frágil – disse ele, levantando as mãos em sinal de rendição. – Obrigada. Ela olhou para o lado e viu o sinal. No momento combinado, um carro começou a avançar devagar em meio à multidão e a massa foi se afastando para permitir que o veículo passasse. Reggie contou os segundos com seus passos. Precisava ser extremamente precisa. – Estranho – comentou ela, observando um par de sandálias pendurado em uma barraca. – O quê? – perguntou Waller. A moça apontou para trás dele. – Nunca vi muçulmanos aqui antes. Waller virou-se depressa e olhou para o outro lado da rua, onde dois homens barbados usando túnicas e turbantes saíam do automóvel. – Meu Deus, aquilo são armas? – exclamou Reggie. Waller procurou seus guarda-costas, mas vários estouros ressoaram e a rua se encheu de uma fumaça densa. As pessoas gritaram e saíram correndo às cegas, entrechocando-se e esbarrando em barracas. Waller chamou pelos seguranças, mas não conseguiu vê-los em lugar algum. Ambos estavam no chão, pois tinham recebido tiros certeiros na nuca. Uma jovem passou por eles aos berros e os artigos em sua cesta de compras se espalharam pela rua. Por toda parte, havia gritos e sons de passos acelerados. Outros dois disparos foram
ouvidos e a fumaça se tornou ainda mais escura. Os dois muçulmanos surgiram da névoa, empunhando armas e usando máscaras de proteção sobre o rosto, e bloquearam completamente a rua. – Merda! – praguejou Waller ao vê-los se aproximando. – Evan, você conhece esses homens? – Precisamos sair daqui. Agora! Reggie segurou a mão dele. – Rápido. Conheço um caminho. Correram por uma rua lateral e foram dar na torre da igreja. – Não tem saída! – gritou Waller, furioso. – Tem, sim, mas precisamos atravessar a igreja. Chegaremos do outro lado do vilarejo. Lembra-se do caminho que mostrei a você antes? É a única rota de fuga. Por isso Reggie lhe mostrara a trilha, para que Waller soubesse que era segura. Fora uma manobra arriscada, mas, sem ela, não daria para assegurar que ele a seguiria. Para acelerar a fuga, foi disparada uma bala sobre a cabeça deles. Waller se virou e viu um dos muçulmanos correndo em sua direção. – Meu Deus, eles estão atirando em nós! – berrou Reggie. – Continue em frente – exortou Waller, segurando-a pelo ombro e empurrando-a para a frente. – Vamos para a maldita igreja, depressa! Reggie abriu a porta com um empurrão e Waller a seguiu. Ele arrastou uma pesada cômoda e a usou para bloquear a passagem antes de se voltar para o altar. – Quem são esses homens? – perguntou Reggie, ofegante. – Agora não é hora. Ande! Reggie e Waller desceram correndo a escada. Passaram por uma porta, que ele logo trancou. Percorreram outro lance e chegaram a uma área aberta, mas escura. Aquele era o momento crítico, Reggie sabia. A passagem que eles haviam percorrido antes para sair da igreja cava à esquerda. Contava com o fato de que, em circunstâncias extremas, Waller não se lembraria. Ela dobrou à direita. Ele se virou e olhou para as escadas ao ouvir um estrondo vindo lá do alto. – Eles entraram na igreja! – exclamou Waller. – Vamos, Evan. Reggie o puxou pela passagem da direita até chegarem na câmara. As paredes, o teto e o chão explodiram em um clarão. Waller protegeu o rosto do brilho. Ao se voltar para Reggie, viu-a apontando uma pistola em sua direção. – Bem-vindo ao inferno, Fedir Kuchin – falou ela.
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MÃOS FORTES AGARRARAM KUCHIN, o puxaram e amarraram sobre uma cripta. Ele olhou lentamente ao redor. Whit, Dom e Reggie o rodearam. – Quem são vocês? – indagou ele com calma. – Estou um pouco decepcionado por ele não estar mais impressionado – observou Whit. – Somos pessoas que sabem quem você de fato é – respondeu Reggie, encarando o ucraniano. Ela já não interpretava mais o papel da ingênua americana Janie Collins: voltara a ser Reggie Campion, disposta a dar fim naquele homem. – Fedir Kuchin – acrescentou Dominic. – O verdadeiro carniceiro da Ucrânia. – E trouxemos de volta algumas das suas vítimas – prosseguiu Reggie. – Antes de fazer com você o que você fazia com elas – completou Whit. – Embora em geral sejamos pessoas muito agradáveis, estamos nos esforçando muito para ser cruéis com você. Whit abriu os braços. Kuchin tou o teto e as paredes, que estavam cobertos pelas projeções. Nada que Goya pudesse ter concebido teria igualado o horror capturado naquelas fotograas de homens, mulheres e crianças moribundos. Em uma rocha, havia a imagem de uma vala comum com os ossinhos das crianças enterradas ali. – Uma atrocidade atrás da outra – comentou Reggie. – Não se afobe. Queremos que você volte a vivenciar o passado. – Quem são vocês? – insistiu Kuchin. – Que importância tem isso? – rebateu Whit. – Porque quero saber quem vou matar no futuro. Em um futuro próximo. – Não acho que isso vai acontecer – replicou Whit. – Então você está cego. Reggie apontou para uma parede onde estavam projetados corpos empilhados. – O massacre de Sebastopol. Ela indicou uma fotograa no teto, de rostos descarnados por trás de uma cerca de arame farpado. – O campo de torturas em Ivano-Frankivsk Oblast, no oeste da Ucrânia. Uma terceira imagem mostrava semblantes esqueléticos de mulheres e crianças deitadas na terra. – Kotsuri em Volyn Oblast – apresentou Dominic. – Você se baseou no Holodomor nesse
caso, não foi? Matando fazendeiros de fome. Kuchin permaneceu olhando as projeções. Quando os encarou, não demonstrava sinal algum de remorso. – Não há necessidade de me mostrar nada disso. Lembro-me muito bem de tudo. – Ele sorriu. – Até o último esqueleto, para dizer a verdade. – Muito bem, danem-se as fotos – disparou Whit. – Vamos acabar logo com isto e jogar os ossos dele na caixa. Ele apontou para uma cripta junto à parede com a tampa aberta. – É ali que seu esqueleto vai car, Fed. Espero que você goste de apodrecer na velha Gordes para toda a eternidade. Fedir o ignorou e continuou a fitar Reggie. – Eu deveria ter sido mais cauteloso. Nunca cone em uma mulher bonita quando ela... como se diz mesmo?... dá uma de difícil. – Veja as imagens – falou Reggie. – E, se você for mesmo tão religioso quanto alega, faça as pazes com Deus. – E como será o golpe nal? Arma de fogo, faca? – Ele inclinou a cabeça. – Vai me estrangular com as próprias mãos? Mas você ousa se aproximar tanto assim de mim agora? Posso sentir o cheiro do medo que você tem de mim. Não, acho que você vai se manter distante. – Você não é o primeiro monstro e sem dúvida não será o último. – Nunca me misture com outros – rosnou Kuchin. – Sou único. – Bem, você não será o único ali dentro – armou, fazendo um gesto em direção à cripta. – Há outra ossada. Fico triste por esse coitado ter que dividir o espaço com alguém da sua laia. O clique de várias armas fez com que Whit congelasse e murmurasse um palavrão. Reggie se virou aos poucos e viu os homens em pé, mirando-os. Reconheceu dois deles: eram guarda-costas de Kuchin. A testa dela estava na linha de tiro de Pascal. – Abaixe a arma. Agora. Reggie se agachou e a pôs no chão. – Chute-a para longe. Ela obedeceu. Alan Rice saiu do seu esconderijo e lançou um olhar impenetrável para Reggie. – Desamarre-o. Agora – ordenou. Ela começou a andar, mas Whit interveio: – Não, eu desamarro. Quando ele terminou o serviço, Kuchin se endireitou, esfregando pulsos e tornozelos, fez um sinal de agradecimento com a cabeça e, em seguida, deu um soco na barriga de Whit, fazendo-o se curvar. Um chute em sua cabeça o jogou contra a cripta, onde o sangue se
misturou com a poeira secular. Dominic e Reggie se lançaram na direção de Whit, mas Pascal disparou um tiro na frente deles e os dois estacaram. Kuchin estendeu a mão e recebeu de Pascal uma pistola. Voltou-se para Reggie e comentou: – Você parece saber muito a meu respeito. O suciente para mandar dois terroristas muçulmanos atrás de mim. Suponho que fossem impostores cujo único objetivo era me fazer vir para cá. Reggie ficou em silêncio, com a respiração acelerada. – Não quer responder? – Ele indicou as imagens na parede. – Você me traz até aqui com um pretexto falso para me mostrar tudo isso? E, depois, para me matar? E não quer se explicar? O sorriso de Kuchin sumiu no momento em que ele agarrou o pescoço dela e o apertou em um ponto próximo à jugular. Reggie mordeu o lábio, mas não emitiu som algum. Ele aumentou a pressão e ela sentiu o sangue e o oxigênio se esvaindo do cérebro. Por m, Reggie segurou-lhe o braço e tocou em um ponto nevrálgico que fez sua mão afrouxar. Assim que Kuchin a soltou, ela arquejou e caiu para trás. Apoiou uma das mãos na parede e se reergueu, sempre o encarando. – Impressionante – falou ele. – Mas se você não conseguisse aguentar tão pouca dor, acho que não estaria fazendo esse trabalho. – Kuchin encarou Dominic. – Você usou o termo “carniceiro” . Acha que sou perigoso? A segunda onda do Holodomor? Na verdade, gosto dessa descrição. Kuchin encostou o cano da pistola na testa de Dominic e puxou o gatilho. Reggie gritou e seu companheiro se encolheu, mas logo abriu os olhos. Não havia ferimento. Ele pareceu confuso. Kuchin estava furioso. – Nunca me entregue uma pistola sem uma bala, Pascal. Carregou a arma e a posicionou na mira, sem pressa, se sentindo no controle da situação. E esse foi um erro de cálculo crucial. Um movimento à sua direita o fez desviar a atenção de Dominic por um segundo vital. Shaw pulou do seu esconderijo com os dois cotovelos levantados horizontalmente na altura do peito. Um dos seguranças foi atingido com tanta força contra a parede de pedra que caiu, inconsciente. Com o elemento-surpresa a seu favor, Shaw continuou a avançar e golpeou Pascal no pescoço, fazendo-o se estatelar de cara no chão, ofegando, e sua arma foi para longe. Shaw chutou a parte de trás de sua cabeça, que ricocheteou contra a rocha, e o nocauteou. Desnorteado, Alan Rice gritou e disparou sua arma, quase acertando a cabeça de Kuchin. A bala se alojou no antebraço de Dominic, que gemeu e foi ao chão. Whit se jogou, acertando o esterno de Kuchin e derrubando-o. A arma do ucraniano deslizou pelo chão.
Shaw atacou Rice e o atirou contra uma cripta. O homem deslizou inconsciente, com sangue escorrendo pelo nariz quebrado. Kuchin se levantou enquanto todos tentavam pegar armas ou se esconder em meio às imagens que tremeluziam nas paredes. Com toda aquela movimentação humana, o espetáculo assumiu o aspecto de uma bizarra performance artística. Reggie abaixou-se para alcançar sua pistola, mas Kuchin lhe deu um chute no rosto, cortando a bochecha com o salto do sapato. Whit se lançou contra o magnata pela segunda vez, mas desta vez ele estava preparado: se esquivou e atingiu o adversário com uma cotovelada. Kuchin se apoderou da Beretta de Reggie e só não baleou a cabeça dela porque Shaw acertou um soco direto no queixo do ucraniano de 110 quilos, arremessando-o para longe. Ele desabou de costas, cuspiu um dente e tentou car de pé, mas estava atordoado demais pelo golpe. Shaw pôs uma arma no cinto, pegou outra pistola do chão e a jogou para Whit, que havia se levantado, segurando o rosto. O agente se inclinou, agarrou o braço de Reggie e a puxou para cima. Com a outra mão, ergueu Dominic. – Precisamos sair daqui. Agora! – Não antes de matar aquele canalha! – gritou Whit. Kuchin conseguiu se endireitar e saiu correndo das catacumbas. – Ei! – berrou Whit e seguiu o ucraniano, acompanhado pelos outros. – Pare! – esbravejou Shaw, segurando Whit, que já se preparava para atirar. – Ele tem outros seguranças e eles provavelmente estão vindo para cá. Assim que Shaw acabou de falar, outros três homens armados apareceram na escada e abriram fogo. O sonolento vilarejo de Gordes não devia ver tanta violência desde os tempos dos romanos, dois milênios antes. – Por aqui! – orientou Reggie. Ela os guiou até a passagem que dava na porta perto da mansão. Kuchin correu na direção dos guarda-costas e berrou: – Peguem-nos, mas não matem a mulher! Shaw se virou e atirou nos homens. A bala ricocheteou nas paredes de pedra, retardando o avanço deles. Whit pegou um estreito tubo metálico no bolso, retirou a tampa e o jogou para trás. Uma fumaça densa obstruiu a visão de seus perseguidores. O grupo fugiu sob uma chuva de balas. Como convém ao ambiente de uma igreja, todos eles rezavam em silêncio.
59
– POR AQUI – DISSE Reggie a Shaw. – Tem outra saída. – A que vai dar perto das mansões? – perguntou Shaw. Reggie o encarou. – Como você sabe? – Sei fazer reconhecimento de área. Mas aquela porta se abre para uma rua. – E Kuchin a conhece. Tive que mostrar aquele caminho para convencê-lo a ir à igreja hoje. Só que, desta vez, o levei para as catacumbas. – Então aquela saída não serve por dois motivos. – Ele observou Dominic, que corria inclinado, segurando o braço ferido. – Você vai conseguir? Reggie tirou o lenço da cabeça e o amarrou em volta do ferimento. – Eu consigo – armou Dominic, fazendo uma careta. – E então? Não podemos voltar, a menos que a nossa intenção seja abrir caminho a tiros, e aqueles caras têm muito mais munição do que nós. Shaw apontou para a esquerda. – Por ali. Whit lhe segurou o braço. – Não existe nada ali. Eu verifiquei. – No fim da câmara, existe uma porta secreta escavada na pedra que leva ao velho forte. – Como você sabe disso? – Lendo um pouco de história. – O quê? – Os padres católicos muitas vezes tinham que fugir para salvar suas vidas. Como nós estamos fazendo. Vamos! Ao chegarem ao nal da passagem, Shaw puxou uma pedra na metade inferior da parede e uma pequena fenda apareceu. Ele fez força e velhas dobradiças rangeram enquanto a porta se abria. Os três atravessaram o vão e Shaw fechou a porta atrás de si. À medida que os guiava por uma galeria escura e cheirando a mofo, Shaw apertou algumas teclas do celular e a mensagem eletrônica foi enviada. Passaram por outra porta e chegaram a uma câmara na qual a luz do sol penetrava através de frestas no bloco de pedra sobre suas cabeças. Estavam no velho forte. Shaw abriu mais uma porta e eles adentraram um pátio. Um carro parou cantando pneus e
Whit apontou a arma para o motorista. – Ele está comigo – avisou Shaw, pondo uma das mãos na pistola de Whit. Frank abriu a janela do carona e disse: – A cidade inteira está enlouquecida. Shaw e Reggie ajudaram Dominic a se sentar no banco traseiro e se acomodaram também ali. Whit cou ao lado de Frank, que pisou fundo no acelerador, fazendo com que o automóvel saísse em alta velocidade, deixando marcas de pneu no antigo calçamento de pedras. – Muito bem, Shaw, comece a falar – mandou Frank, manobrando pelas ruas estreitas e colina abaixo, rumo às mansões. – Seu nome é Shaw? – perguntou Reggie, virando-se para ele. Shaw encarou o reflexo de Frank no retrovisor. – Eles prenderam Waller, mas os seguranças dele prepararam uma emboscada. Eu estava lá para ajudar. – “Ajudar”? – exclamou Whit. – Estaríamos todos mortos se não fosse por você. – Bem, ainda podemos ser mortos. Nesse instante, um dos guarda-costas de Waller saiu por uma porta da igreja, vindo da passagem que Reggie e Kuchin haviam utilizado quando a visitaram pela primeira vez. O homem os avistou e abriu fogo. Todos se abaixaram e o para-brisa se estilhaçou. O carro colidiu com o segurança, lançando-o longe. Frank levantou a cabeça. – Ei, Shaw. – O que foi? – Você pode dirigir? – Por quê? – Porque o filho da puta me acertou! Ao ver o sangue no paletó de Frank, Shaw se lançou para a frente e assumiu a direção. Acelerando, encarou Frank, que estava caído ao lado de Whit. – É grave? Frank verificou o ferimento. – Não pegou na barriga. Acho que me atravessou. É difícil dizer. Whit olhou para o encosto do banco do motorista. – Foi isso mesmo. Aqui está a bala. – Ele a ergueu. – Aguente firme, Frank, e me diga aonde ir – pediu Shaw. – Pista de pouso particular, 60 quilômetros ao sul daqui. Avião esperando. Frank deu as direções e, depois, cou em silêncio, com a respiração irregular e o rosto se acinzentado. Reggie e Whit tiraram o paletó de Frank, rasgaram sua camisa e analisaram o ferimento. – Procure um kit de primeiros socorros no porta-luvas – disse Reggie. Havia apenas uma caixa de lenços umedecidos esterilizados. Ela os usou para limpar a
ferida e, com tiras da camisa de Frank, buscou estancar o sangramento e proteger a lesão. Em seguida, recostou-se. – É tudo o que posso fazer por enquanto – falou, recostando-se no banco traseiro. – Ele precisa de cuidados médicos. – Tem um médico no avião – murmurou Frank. Shaw se virou para ele. – Conhecendo você, achei que fosse uma boa ideia. Shaw pegou um pacote de antisséptico e o jogou para Reggie. – Para o seu rosto. Waller o acertou em cheio com o sapato. Ela desinfetou o rosto da melhor maneira possível e cuidou do braço ferido de Dominic. Uma sirene fez com que eles se sobressaltassem. – Viatura logo atrás de nós – informou Whit, olhando o retrovisor. – Merda, não podemos parar e explicar – praguejou Shaw, e acelerou. Dez quilômetros depois, o som da sirene havia sumido em meio aos campos provençais. – Você é um ótimo motorista – elogiou Whit. – Ainda bem que eles não conseguiram bloquear a estrada, senão eu seria apenas um ótimo prisioneiro. Enm chegaram à pista de pouso particular. Estacionado perto do avião, estava um Range Rover preto reluzente. O médico a bordo do jato limpou a ferida de Frank e cuidou do braço de Dominic, pondo-o de volta no lugar com uma tala feita de dois pequenos pedaços de madeira e muito esparadrapo. – Ele precisa ser engessado – avisou o médico. – Não tenho o material para isso aqui. Shaw ajudou Reggie a fazer um curativo no rosto enquanto Whit os observava impassível em um canto da luxuosa cabine. – Estamos prontos para decolar assim que o senhor autorizar – disse o copiloto a Frank, que se sentava lentamente, esfregando o braço no ponto em que o médico injetara o analgésico. – Isso não vai acontecer. Whit estava de pé, apontando uma arma. – Vocês dois podem ir – falou ele, indicando Shaw e Frank. – Mas nós três vamos pegar aquele novo veículo e avançar por nossa conta. – Não é uma boa ideia – replicou Shaw. – Para nós, é. Não sei, e não quero saber, quem vocês são. Obrigado pela assistência, mas vocês seguem o seu caminho e nós seguimos o nosso. Sem ressentimentos, prometo. – Vocês nunca vão conseguir fugir – armou Frank, tentando se levantar, mas Shaw o impediu. – Na verdade, acho que temos boas chances. – Vocês vão precisar de um refém – falou Shaw. – Sem isso, vocês não têm chance alguma contra esse sujeito aqui. – Apontou para Frank. – Ele dispõe de muitos recursos, mas também não quer me perder. Isso dá uma vantagem para vocês.
Whit pareceu cético. – Quer dizer que você quer ser nosso refém? Você está maluco. – Então, vocês não têm chance – disparou Shaw. Whit enfiou o dedo no peito de Shaw. – Fique fora disso. Reggie se interpôs entre os dois. – Ele tem razão, Whit. – Não vou levar seu namoradinho só porque você... Shaw pôs Reggie de lado e deu um passo na direção de Whit. – Você nem conseguiu fazer um levantamento decente de um lugar. Deixou que eles armassem uma emboscada e estaria morto se não fosse por mim. Você mesmo reconheceu. Agora, precisamos sair do país. Sem um avião, vamos ter que arrumar outro jeito. Eu dou conta porque já fiz isso centenas de vezes. E você? Whit olhou constrangido para Reggie. – Ele tem razão, não estamos preparados – disse Dominic. Whit ficou irritado, mas acabou cedendo: – Tudo bem, mas, se você tentar alguma coisa... – Está bem – concordou Shaw, se dirigindo à porta. – Shaw! – gritou Frank. – Você não pode fazer isso. Nem sabe quem eles são! – Manterei contato, Frank. Espero que você fique bom logo. Os quatro saíram do avião. Ao entrarem no Range Rover, Whit perguntou a Shaw: – Como você conseguiu fugir? – Com a ajuda de um vaso sanitário, um pouco de água e força bruta. E é melhor chamar alguém para acordar e desamarrar seu companheiro. – Uau! – exclamou Whit, impressionado.
60
A MANSÃO DE FEDIR KUCHIN estava vazia. Nenhum utilitário na frente, nenhuma janela aberta, nenhum charuto aceso no quintal dos fundos. Com as malas feitas, os homens feridos foram reunidos e todos partiram. Após um telefonema, o jatinho os pegou, não no aeroporto comercial de Avignon, mas em um terminal particular. A 20 mil pés de altitude, Kuchin olhava para a paisagem francesa da janela do avião, que ia abrindo caminho pelo ar calmo até atingir um nível de estabilidade. Ao seu lado, Alan Rice segurava uma compressa de gelo contra o rosto e mantinha outra presa ao joelho direito. Pascal e outros dois seguranças que haviam sido atacados pelos falsos muçulmanos cuidavam dos próprios ferimentos. O homem que fora atropelado tinha a perna quebrada. A boca e o maxilar de Kuchin estavam muito inchados devido ao golpe de Shaw, e ele perdera dois dentes. O magnata recusara qualquer atendimento médico, até mesmo um analgésico, e permaneceu sentado na poltrona, observando lá embaixo as terras francesas desaparecendo rapidamente. Eles estão em algum lugar lá embaixo. E sabem quem eu de fato sou. – Em meio a toda a agitação, você não explicou como conseguiu me resgatar, Alan – falou, movendo devagar a boca lesionada. Rice removeu a compressa de gelo com cuidado e encarou Kuchin. – Segui a mulher até a igreja uma noite. – Por quê? – Porque eu não confiava nela – respondeu ele simplesmente. – Por isso a testei. – Você a testou? – Quando ngi alertá-la. Menti e disse que você já se apaixonara por outras mulheres. Eu queria ver se ela agiria racionalmente e deixaria você em paz. Mas não foi o que ela fez. Além disso, esse passeio tarde da noite me deixou ainda mais desconado. Também não gostei da maneira como ela jogou você contra o outro homem. – Você a seguiu? E como você foi parar nas catacumbas? – Também vi com quem ela se encontrou naquela noite. Mandei que o seguissem. – Fez tudo isso sem me contar? – Eu queria ter certeza, Evan. Não queria cometer um erro. Sou um homem esperto, no sentido de que morro de medo de você. Kuchin se recostou na poltrona.
– E depois? – Nós os vimos entrar na igreja e descer até as catacumbas. Aproveitamos que eles saíram para pegar alguma coisa e entramos lá e camos à espera. Eu estava com muito medo porque eles tinham armas e eu nunca usei uma. Você viu como atirei mal hoje. – Você salvou minha vida. – Fico feliz por ter ajudado. Se eu soubesse do que se tratava, nunca teria deixado você ir à feira com ela. Quando percebi o que estava acontecendo, já era tarde demais. Eles foram inteligentes. Achei que dois guarda-costas seriam sucientes, mas, obviamente, eu me enganei. – Então errei ao bater em você? – Você tinha todo o direito. Eu parecia ter extrapolado meus limites. – Fiquei surpreso com sua atitude. – Imagino. Mas eu só estava tentando protegê-lo. Kuchin se virou para a janela e ficou observando uma nuvem. – Sinto muito, Alan. Fiz um mau julgamento. Eu salvei sua vida, assim estamos quites. – Graças a Deus, terminou tudo bem. – “Terminou”? Não, não terminou. – Você vai atrás deles? – Você tem alguma dúvida? – Não, nenhuma – respondeu Rice, nervoso. – O homem alto... Ele não parecia fazer parte daquele grupo. – Mas ele estava lá. – Acho que ele seguiu você até a igreja. – Me seguiu? Kuchin passou um dedo pela mandíbula ferida. Falar era doloroso, mas ele estava concentrado em outra coisa. – Você ouviu como eles me chamaram? – O nome? – Fedir Kuchin. – Sim, ouvi. Rice pôs o saco de gelo sobre o rosto e tentou respirar normalmente. – Você sabe quem é? – Não, não sei. Kuchin cou ao mesmo tempo satisfeito e decepcionado. Inclinou-se para a frente e retirou um objeto de sua pasta. Era uma bolsa envolta em plástico. Dentro, havia uma arma. – Esta é a pistola que a mulher deixou na igreja. Quero que tentem encontrar digitais, mas acho que não seremos bem-sucedidos. Quando a peguei, devo ter comprometido as impressões. Mas se trata de um modelo relativamente novo e podemos vericar os números no pente, no cano e na culatra.
– É provável que tenham removido os números de série com um ácido ou os raspando. – Você sabe mais sobre armas do que parece, Alan. Sim, é verdade, mas há uma coisa chamada microimpressão. É utilizado um laser para imprimir os números microscopicamente na culatra e no percussor, dentre outros lugares. Não são tão fáceis de remover. Se pudermos rastrear a arma, talvez possamos localizar a mulher. – Você a quer mesmo, não? – Falhamos na vericação do histórico dela. Quero que você descubra tudo o que puder sobre quem ela é. Kuchin parou de esfregar o maxilar e pegou o laptop encontrado nas catacumbas, que fora usado para as projeções. Ligou-o, digitou algumas teclas e começou a ver as imagens do seu trabalho na Ucrânia. Ele viu que Rice espiava por cima do seu ombro mas logo desviou o olhar. Por m, desligou o computador e o guardou. Em seguida, pegou um pequeno caderno na bolsa e o abriu. Em uma das páginas, havia o início de um esboço. Segurando um pedaço de carvão, a mão de Kuchin se moveu pelo papel e o rosto de Janie Collins começou a surgir com mais clareza.
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– EM PRIMEIRO LUGAR, AONDE vocês querem ir? Shaw dirigia ao lado de Whit. Reggie e Dominic estavam no banco traseiro do Range Rover. Dominic havia adormecido por causa dos analgésicos. Reggie e Whit se entreolharam. – Esta é uma pergunta válida, não? – indagou Shaw, tamborilando no volante. – Assim co sabendo mais ou menos qual direção tomar. – Norte – respondeu Reggie quando Whit a encarou. – Norte? – perguntou Shaw. – Paris? Normandia? Calais? – Mais ao norte. Shaw olhou para Whit. – Canal da Mancha? Mar do Norte? Você moram em um barco? – Engraçadinho. – Quer dizer que são britânicos? Puxa vida! – exclamou Shaw em tom sarcástico. – Lembre-se: eu sou irlandês, e não britânico – retorquiu Whit. – Mas vou deixar passar. Desta vez. Você tem alguma ideia de como atravessar o Canal da Mancha? Talvez este carro seja anfíbio. – Vocês têm passaportes? – Ficaram para trás. Mas podemos dar uns telefonemas e logo conseguir novos. Na verdade, não sei para que precisamos de você. – Porque eu sei o que estou fazendo. E não subestime a polícia francesa. Whit balançou a cabeça lentamente. – Não subestimo ninguém, muito menos você. – Dê o telefonema. Diga que vamos nos encontrar em Reims daqui a quatro horas. Quando estivermos perto, ligamos e escolhemos o local. – Você conhece a França? – questionou Whit. – Até falo o idioma razoavelmente – falou Shaw. – Sorte a sua. Whit combinou de se encontrar com um dos agentes do grupo que tinha os documentos falsos. – Tudo bem, resolvido. E agora? – Recoste-se no banco e relaxe.
Whit manteve a arma empunhada. – E depois de Reims? – Como não podemos arriscar um aeroporto, o trem que cruza o Canal da Mancha até a estação de St. Pancras é a rota mais direta. Por isso precisamos de passaportes. Se não der certo, vamos para o leste e cruzamos o canal de barco. Talvez da Bélgica ou de Amsterdã. – O controle de passaportes é bastante rigoroso na Gare du Nord – observou Reggie. – É verdade, mas a segurança nos aeroportos é ainda mais. E há menos saídas em um aeroporto se algo der errado. E muitas delas têm vários seguranças armados. – Tudo bem, o trem. E depois? – Vamos improvisando. – Para quem você trabalha? – indagou Reggie, inclinando-se para a frente. – Para Frank, o sujeito que está no avião. Isso é a única coisa que vocês precisam saber. – Então vocês são policiais – concluiu Whit. – Eu não descreveria nosso trabalho dessa maneira. – Espiões. – Sem comentários. – O que sobra? – Eu. Whit sorriu e olhou para Reggie. – Estou começando a gostar do grandão, Reg. Sério mesmo. Shaw, exército de um homem só, o negócio é o seguinte: se chegarmos à Inglaterra sãos e salvos, você segue seu caminho e nós seguimos o nosso. – Quem vai protegê-los de... qual é mesmo o nome dele? Kuchin? – Você obviamente não sabe quem ele é – disse Reggie. – E deveria? – Existiu um homem chamado Mykola Shevchenko. Da KGB. Era conhecido como o Carniceiro de Kiev, mas Kuchin era seu principal assistente. Foi ele que massacrou centenas de milhares de inocentes com os métodos mais brutais possíveis. Shevchenko foi executado por um pelotão de fuzilamento após a queda do Muro, mas Kuchin fugiu. – Acho que a história só se lembra dos chefões, e não de quem puxava o gatilho – comentou Shaw. – Então, vocês estão atrás desse sujeito por causa disso. Qual é a conexão? Algum de vocês é ucraniano? – Sim, por parte de mãe – falou Whit com um sorriso irônico. – Ah, e respondendo a sua outra pergunta, podemos nos proteger sozinhos. Shaw lhe lançou um olhar cético. – Vocês fizeram um ótimo trabalho até aqui. – Às vezes os planos dão errado, as coisas não funcionam, imprevistos acontecem. – Sem essa! Foi um fiasco do começou ao fim – disparou Shaw. – Bem, vocês também estavam lá para pegá-lo e desistiram sem nem tentar. Nós pelo
menos tentamos – rebateu Whit. – A decisão não foi minha. – Onde vocês iam atacá-lo? – perguntou Reggie. Shaw hesitou. – Les Baux, nas cavernas. Ela refletiu. – Provavelmente, um lugar melhor do que o que nós escolhemos. – Ei! – interveio Whit. – Fizemos o melhor possível. E sua aparição não melhorou as coisas – acrescentou, encarando Shaw. – Talvez não tenhamos jatinhos sosticados, mas em geral damos conta do recado. – Se é o que você diz... Mas, se vocês acham que podem se proteger desse cara sem ajuda, estão enganados. Perguntem a uns muçulmanos mortos. – Isso não me importa. E quer saber? Vou atrás dele de novo. E, desta vez, vamos conseguir pegá-lo. – Vocês vão morrer. – Por que você não cala a boca e dirige? – resmungou Whit e se virou para a frente, malhumorado. Shaw olhou para Reggie pelo retrovisor. Vai ficar tudo bem, articulou ele com os lábios. Mas, no mesmo instante em que dizia aquelas palavras, Shaw sabia que estava mentindo. Ele voltou a olhar para a estrada.
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O AVIÃO DE KUCHIN JÁ estava no meio do Atlântico. Rice acessara o perl falso de Janie Collins no Facebook e pesquisara outras informações sobre seu passado. Tudo fora apagado. Temeroso, ele informou Kuchin. – Também não imprimimos cópias das páginas – completou Rice com voz trêmula. – Portanto, não temos fotos da moça. – Eu tenho uma foto dela – declarou Kuchin surpreendentemente. – Tirei uma foto quando vocês dois conversavam no terraço antes do jantar. – Você estava desconfiado? – Não, queria uma foto de uma mulher bonita. – E acrescentou, sarcástico: – Mas, agora, tenho suspeitas. – Não temos nada sobre Bill Young. Àquela altura, Kuchin havia desenhado esboços de Reggie, Shaw, Whit e Dominic. Sua percepção e memória eram impressionantes. Ele os mostrou a Rice, que fez um sinal de aprovação com a cabeça. – Perfeitos, Evan. Você é um artista e tanto. – Quero os três esboços dos homens transferidos para um formato digital ou seja lá qual for o nome que dão a isso. Será que assim é possível fazer uma busca em um banco de dados fotográfico? – Acho que sim. – Então, mãos à obra. Junto com a foto da mulher, é claro. Acesse todos os bancos de dados que pudermos pagar para usar. – Entendido. Mas, se você tem uma foto da mulher, por que também a desenhou? Kuchin ignorou a pergunta: – Não gosto de deixar a Europa. Os sotaques dos homens eram inconfundíveis, especialmente o do irlandês. – Inclusive o do lobista? – Não, ele é diferente. – Kuchin esfregou a mandíbula. – Já fui golpeado antes, mas nunca com tanta força assim. Estou surpreso por meu maxilar não estar quebrado. Um homem forte. Um homem perigoso. – E nocauteou Manuel com a maior facilidade. E, depois, atacou Pascal como se ele fosse feito de papelão, e você sabe como Pascal é bom. E me atirou longe como se eu fosse uma
criança. O braço dele parecia de aço. – Na verdade, não foi a força dele que me impressionou – replicou Kuchin. – Existem muitos homens fortes, até mais fortes do que ele. Fiquei impressionado foi com sua rapidez e habilidade. Havia três homens armados... quatro, contando você, Alan. Eram três homens que têm larga experiência com armas. Mesmo assim, ele conseguiu vencê-los. – Ele também teve sorte, sem dúvida. – Sempre há um elemento de sorte. Mas foi um acaso ou ele criou essa situação de sorte? É mais provável que tenha sido a segunda opção. Ele surgiu com os cotovelos levantados horizontalmente, uma técnica de combate clássica em lugares fechados, que permitiu que ele atacasse rápido e com força máxima, pois podia usar seu peso e o ímpeto do torso e dos quadris. E é melhor golpear com o cotovelo dobrado do que com o punho. Há muitos ossinhos na mão que podem se partir e inutilizá-la. Já o cotovelo é formado por apenas três ossos relativamente grandes e articulados. O cotovelo sofre maior risco de ruptura quando está estendido. Se você cair com a palma da mão para baixo e o braço esticado, o cotovelo é que vai sofrer o impacto da queda. Mas, se você dobrar o braço – Kuchin mostrou como –, esses pontos de estresse desaparecem e a resistência e a força de ataque são formidáveis. – Você parece saber muito. – Sei o suficiente. E ele ficou se deslocando o tempo todo, tornando muito difícil mirar. – Se ele é tão bom assim, talvez seja melhor deixar isso de lado. Kuchin o encarou, decepcionado. – Eles me amarraram a uma cripta. Iam me colocar em um túmulo com ossos velhos. Violaram território sagrado em uma igreja católica. Meu ataque precisa ser mais forte do que o deles. Portanto, daqui em diante, essa é a única coisa em que vou me concentrar. – Mas e os negócios? – É para isso que tenho você. Ele pôs um braço em volta dos ombros estreitos do outro homem e deu um aperto. Rice soltou um leve gemido, pois todo o seu corpo estava dolorido devido ao encontro com Shaw. – Você vai fazer um bom trabalho. E, se eu vir algum sinal de que você está extrapolando sua autoridade ou tentando me substituir no comando, lembre-se de que os cachorros que usei com Abdul-Majeed ainda estão à minha disposição. – Evan, e quanto àquele nome, Fedir Kuchin? – indagou Rice, nervoso. – Se eu fosse você, nunca mais pensaria nisso.
O avião não aterrissou em Montreal. Kuchin havia ordenado uma mudança no plano de voo. Eles desceram em uma longa faixa de asfalto que Kuchin construíra bem mais ao leste, na província canadense de Terra Nova e Labrador. Rice olhou pela janela enquanto o avião taxiava.
– Evan, o que está acontecendo? Por que estamos aterrissando aqui? – Eu não vou seguir para Montreal. O avião, sim. Ele se levantou e vestiu um sobretudo. – Mas por que aqui? – E você não vai embora neste avião. Rice empalideceu. – Não estou entendendo. – Infelizmente, não há outra saída. Meu jato pode ser seguido com facilidade. – Vou ter que dirigir até Montreal? É muita estrada. – São mais de mil quilômetros. Mas você terá um motorista e não vai precisar percorrer todo esse caminho. Em Goose Bay, vou contratar outro avião para levá-lo até Montreal. Você vai chegar lá em tempo para um jantar tardio. Mas não irá para casa nem para o escritório. Vai car em um esconderijo fora da cidade. Conduzirá os negócios de lá. E dois dos meus seguranças ficarão com você o tempo todo. Entendido? – Claro. Você acha que essas precauções são mesmo necessárias? – Levando em consideração que quase fui jogado em uma cripta nas catacumbas de uma igreja em Gordes, acho que são. – Ele pôs uma das mãos sobre o ombro do assistente. – Estarei monitorando de perto seu progresso. Você pode car no avião. Mandarei o veículo até você. A porta do jatinho se abriu, Kuchin desceu a escada, entrando em um Escalade à sua espera, e, em seguida, o carro se afastou. Ele manteve o olhar decididamente voltado para a frente. Se aquelas pessoas sabiam que ele era Fedir Kuchin, qual seria o próximo passo delas? Como estavam dispostas a matá-lo, não acreditava que tivessem ligação com uma organização ocial como a Interpol ou o FBI. Nem mesmo com o sucessor da KGB, o Serviço Federal de Segurança da Rússia. Esse órgão já perseguira antigos alvos soviéticos, que foram mandados para a prisão ou executados depois de um julgamento público. Apesar disso, pensou Kuchin com desprezo, um ex-oficial da KGB estava no comando do país. A democracia podia ser nojenta. Porém, e se estivesse enganado e elas fossem de algum órgão ocial? Poderiam pegá-lo e desmantelar tudo. Talvez esperassem que o jatinho pousasse em Montreal. Bem, ele estaria vazio e ele conava que os pilotos não revelariam sua localização, pois os dois trabalhavam para sua organização havia muitos anos e Kuchin sabia onde suas famílias moravam. Ele construíra um complexo em um lugar remoto a quase 40 quilômetros dali. Ao longo dos anos, Kuchin tinha acumulado milhares de hectares, erigindo sua casa no meio da tundra mais gélida e escarpada fora da Sibéria. Era um terreno inóspito, mas, ainda assim, lhe transmitia conforto e acolhimento. Junto com Rice, já havia desenvolvido muitos modelos de negócios de sucesso naquele lugar ao longo dos últimos quatro anos. Ali, ele podia refletir. E planejar o contra-ataque.
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– ESTAMOS FERRADOS – murmurou Shaw, observando o interior da estação de trem. Usando chapéu, óculos escuros e, apesar do calor, um agasalho volumoso, ele penetrara na imensa agitação da Gare du Nord e constatara que inúmeros policiais caminhavam entregando fotos dele aos transeuntes. Reggie, Whit e Dominic, também disfarçados, o seguiram separadamente e depararam com a mesma cena. Shaw apontou para uma policial que andava próximo a uma das portas de entrada. Em suas mãos, havia uma imagem colorida de outra pessoa. Reggie logo se reconheceu. – Merda. Depois de conrmar que aquelas eram as únicas fotos sendo distribuídas, Shaw saiu da estação. Os outros se juntaram a ele, perto de uma fila de carrinhos de bagagem. – E agora? – indagou Dominic. – Acho que nós três tentamos a sorte e você – ele indicou Shaw – pode tentar sozinho em outro lugar. – Discordo – opinou Shaw. – Não me importa se você discorda. – Use o cérebro, Whit. É mais fácil pegar quatro pessoas juntas. Eles têm a minha foto e a de Reggie, mas não as de vocês dois. Vocês pegam o trem e voltam para Londres. Reggie e eu chegaremos lá de outra maneira. – Nem pensar – rebateu Whit. – Ele tem razão, Whit – disse Reggie. – É melhor nos dividirmos. Se eles nos pegarem, azar. Mas seria burrice deixar que pegassem todos nós de uma só vez. Whit não se deixou convencer. – Parece que você está fazendo de tudo para ficar com esse cara. Shaw se encostou na parede da estação e questionou: – Por que você não deixa que ela decida sozinha, Whit? Ou isso vai contra a política da empresa? – Por que você não cala a boca? Você não sabe nada sobre nós. – Não por falta de interesse. – Se pegarmos o trem, como vocês vão voltar para a Inglaterra? – perguntou Whit a Reggie.
– Por Amsterdã – respondeu Shaw. – Podemos pegar uma balsa lá. Conheço uma pessoa. Ela não faz perguntas e duvido que a polícia vá atrapalhar. – Whit, você e Dom pegam o maldito trem – acrescentou Reggie. – Dom precisa tratar do braço o quanto antes. Um pouco mais de duas horas em um trem é muito melhor do que ficar dias tentando atravessar o Canal da Mancha em um barco. – Você está falando sério mesmo? Vai ficar com esse cara mesmo sem saber quem ele é? – Ele salvou nossas vidas. E desobedeceu ordens para vir conosco. Preciso saber mais? Whit olhou para ela e Shaw e, em seguida, se virou para Dominic em busca de apoio. Porém, o companheiro ficou encarando o chão. – Tudo bem – cedeu Whit. – Façam o que quiserem. Talvez eu encontre com vocês na Inglaterra, talvez não. Mando um recado quando eu acabar com Kuchin. Ele lhes deu as costas e voltou a entrar na estação. Dominic o seguiu. Shaw encarou Reggie. – Ele é sempre tão simpático assim? – Ele é um homem, certo? Não faz parte da psicologia masculina ser simpático quando você não consegue o que quer! – retrucou ela, gritando as últimas palavras para que Whit ouvisse, mas ele e Dominic já tinham desaparecido na Gare du Nord. Reggie saiu andando na direção oposta. Cinco minutos mais tarde, ela e Shaw estavam em um carro azul-escuro roubado com facilidade, pois o motorista havia esquecido as chaves no banco da frente. Depois de percorrer três quarteirões, Shaw estacionou e saiu. Tirou a placa do automóvel e colocou no lugar a do Range Rover, que ele havia pegado antes. – Os policiais vão vericar modelo e marca antes da placa – explicou a Reggie. – Range Rover, e não Ford. E quando forem atrás do carro roubado... – Será o contrário: placa antes de modelo e marca. Então, rumo à Holanda? – Exato. Durma um pouco. – E se você ficar com sono? – Isso não vai acontecer – respondeu Shaw.
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JÁ NA BIBLIOTECA EM Harrowseld, Whit terminou de fazer seu relato. A seu lado, estava sentado Dominic, com o braço engessado, e à frente, Mallory e Liza. O professor batia distraidamente com o novo cachimbo na velha mesa enquanto sua assistente se mantinha de cabeça baixa, concentrada, pressionando os lábios, fitando as próprias mãos. – Você tem certeza de que esse sujeito alto... Qual é mesmo o nome dele? – indagou Mallory. – Shaw – respondeu Whit. – Será que esse tal Sahw não armou uma cilada para vocês? – Ele nos salvou, professor. Por que ele iria sabotar a operação para, em seguida, entrar em cena e nos livrar dela? – Talvez ele seja exatamente quem diz que é – opinou Liza. – Um agente de outra organização que estava atrás de Kuchin por outro motivo. – O tráco de material nuclear – concordou Mallory. – Sim, suponho que essa seja a explicação mais lógica. Uma coincidência inconveniente, perseguir o mesmo canalha ao mesmo tempo, mas por motivos diversos. – Não acho que tenha sido uma coincidência – comentou Liza. – Eles sem dúvida tiveram o mesmo raciocínio que nós: atacar Kuchin durante as férias porque provavelmente não teriam outra oportunidade. – E nenhuma notícia de Regina? – perguntou Mallory. Whit balançou a cabeça. – Ainda não. Neste momento, eles devem estar em um barco, vindo para cá. Pelo menos, espero que estejam. – Mas não para Harrowseld, certo? – indagou Mallory, alarmado. – Espero que ela não chegue acompanhada. – Ela não é boba – afirmou Whit, mas desviou o olhar. – Whit, você precisa falar para Reggie vir sozinha. Ela não pode trazer esse homem. – Estou tentando contatá-la, mas ela não atende o maldito telefone. – Então, é necessário tentar com mais afinco. Você precisa ir atrás dela. Whit pareceu furioso. – Ir para onde? Procurar no terreno de Harrowseld ou no mundo inteiro? Ela é que se meteu nessa enrascada, logo pode sair dela por conta própria.
– Acho que esse comportamento não nos ajuda em nada – repreendeu Mallory. – Bem, não estou nem aí para o que o senhor acha – rebateu Whit. – Precisamos nos acalmar – interveio Liza. – Um pouco de chá, talvez? Whit bufou. – Chá? Ora, Liza, me dê uma garrafa de Locke’s 8 anos de malte único e, depois, talvez eu me acalme o suficiente para ouvir esse velho gagá. – Acho que devemos conar em Reggie – manifestou-se Dominic, encarando os outros. – Eu confio nela. Ele se recostou e esfregou o braço ferido, aparentemente exausto após o breve discurso. – Dominic tem razão – disse Liza. – Vocês querem mesmo correr esse risco? – perguntou Mallory. – Sacricar tudo pelo que trabalhamos? – E acrescentou para Whit: – Você se lembra de como cou preocupado com ela e esse tal Shaw. Ela talvez possa ser persuadida. Ficar cega de... Bem, você entendeu. O irlandês se mostrou desconfortável. – Ela afastou essas preocupações com uma explicação perfeitamente razoável. E o fato é que o filho da mãe estava em nossas mãos. A missão deveria ter sido um sucesso. – Mas vocês foram vítimas de uma emboscada – alegou Mallory. – Aqueles homens sabiam onde estávamos. Eles nos pegaram no momento certo. Quero saber como aquilo aconteceu. Aliás, preciso saber. – Talvez vocês tenham cometido um erro – sugeriu Liza. – Eles podem ter desconado e seguido um de vocês. Assim, descobriram tudo. – Ninguém sabia que eu e Dom estávamos envolvidos. E não havia como seguir Reggie quando ela ia nos visitar no chalé. – Vocês se encontraram na igreja uma noite – lembrou Dominic. – Esse pode ter sido um furo – admitiu Whit. – Mas precisamos ter certeza. – E Kuchin ainda está solto – falou Mallory. – A missão não foi cumprida, professor. Não consigo respirar sabendo que ele ainda está vivo. – E tenho certeza de que Fedir Kuchin está pensando a mesma coisa a nosso respeito – complementou Liza. – Foi o que Shaw disse – acrescentou Dominic. – Ele queria nos proteger de Kuchin. – E eu disse que não precisávamos da proteção dele – retrucou Whit. – E não precisamos mesmo. – Para quem ele trabalha, afinal? – perguntou Liza. – Eles possuem um avião, portanto não têm um orçamento apertado como o nosso – respondeu Whit com uma ponta de inveja. – Não gosto nada disso – comentou Mallory após um longo silêncio. – Não sei se estou mais preocupado com Fedir Kuchin ou com esse Shaw. – Acho que devemos nos preocupar com os dois – opinou Whit.
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COM AS MÃOS NA barriga, meio encurvada, Reggie pisou no cais, ajoelhou-se e beijou as tábuas ensebadas enquanto a balsa se afastava em meio a vagalhões. O piloto era um holandês que Shaw conhecia havia anos, mas ele não quis revelar a Reggie como isso se dera. O local de chegada era um ponto de desembarque da Segunda Guerra Mundial esquecido no meio do nada. Shaw e Reggie demoraram quase três dias para voltar à Inglaterra, passando boa parte do tempo dentro da embarcação, que avançava lentamente pelas águas turbulentas. – Obrigada, Jesus – murmurou Reggie. – A viagem de barco foi mesmo um pouco desconfortável – observou Shaw, ajudando-a a se levantar. – Um pouco desconfortável?! Reggie sentiu o enjoo se intensicar e achou que fosse vomitar de novo, mas conseguiu se aprumar e soltou um longo suspiro, apoiando-se no ombro de Shaw. – Pensei que fôssemos parar no fundo do mar. – A última viagem de barco que z foi uma travessia do mar da Irlanda, que também estava bem agitado. A mulher que estava comigo não parava de vomitar, como você. Deve ser uma coisa feminina. – Quem era? – perguntou Reggie, caminhando determinada, mas com passos incertos, ao lado de Shaw. – Faz muito tempo. – Como você sabia deste lugar? – Já me foi útil algumas vezes no passado. – Uma bela lacuna na segurança das nossas fronteiras. – Todo país tem pelo menos uma. Quando eles chegaram à área gramada perto do píer, Reggie vericou o celular. A bateria estava quase no m e não havia nenhum sinal. Ela não tinha conseguido informar ninguém sobre seu paradeiro. – Droga! Que maravilha. – Minha bateria está carregada e tenho sinal. Passe o número que eu ligo. – Nada disso. Depois você vai ficar com o número gravado no seu telefone. – Este telefone não é meu. É de um dos seus colegas, o que eu nocauteei com uma privada.
– Você abriu a agenda de contatos? – Não. – Você está mentindo. – Talvez eu esteja. – Posso ficar com ele? Preciso de um telefone. – Mais tarde, talvez. Como Shaw era quase 30 centímetros mais alto e pesava uns 50 quilos a mais do que ela, Reggie não insistiu, mas apenas olhou para a escuridão ao redor. – Onde estamos? – A algumas horas de Londres. Providenciei um veículo. Para onde você quer ir agora? – Acho que devemos nos separar. – Não é uma boa ideia. Kuchin pode... – Ele pode fazer muitas coisas, mas nos pegar não é uma delas. Whit tinha razão: iremos atrás dele outra vez. Shaw a segurou pelo braço. – Ele quase matou vocês sem nem saber que estavam atrás dele. Agora que ele está em alerta, vocês não têm chance alguma de pegá-lo. – Já quase o pegamos uma vez. – Você já parou para pensar por que não deu certo? – O quê? – Como aqueles caras conseguiram emboscar vocês? Reggie se afastou dele. – Como eu vou saber? – Você precisa saber. Eles obtiveram informações sigilosas. Estavam esperando vocês. Deve haver um agente duplo. – Impossível. – Então me dê outra explicação plausível. – Cometemos algum erro em campo e eles nos pegaram. Fui à igreja antes para me encontrar com Whit e repassar o plano. Alguém pode ter me seguido. – Por que suspeitariam de você? – Você mesmo vive falando das qualidades de Kuchin. Ele deve suspeitar de todo mundo. – Quando estava amarrado à cripta, Kuchin disse que iria matar todos, mas, por seu tom de voz, dava para perceber que ele já esperava a morte. Além disso, se ele estava desconfiado, por que entrou na igreja com você? – Usamos a informação sobre os muçulmanos que você nos passou para dar a ele um motivo para entrar lá. – Simples assim? – É, simples assim – insistiu ela, na defensiva. – E funcionou. – Se alguém havia seguido você até a igreja e sabia do plano, por que deixou que ele fosse
posto em prática? Assim, Kuchin nunca estaria em perigo. Reggie fitou o mar escuro e tranquilo por um instante. – Não tenho como responder a isso. Não sei o porquê. – Mas a resposta, seja lá qual for, não é algo positivo. Se existe um traidor em seu grupo, Kuchin irá atrás de vocês com facilidade. Reggie fechou os olhos por um momento e esfregou as têmporas, demonstrando cansaço. – Ouça, você disse que arrumou um veículo. Pode me levar a Londres? É madrugada e estou cansada, suja e ainda enjoada demais para pensar com clareza. Shaw a observou antes de dar de ombros. – Claro, o veículo está logo ali. “Logo ali” , na verdade, era uma caminhada de quase um quilômetro por um terreno acidentado em meio ao breu até uma estrada. Perto de uma leira de árvores, estava uma moto com as chaves embaixo do assento. Ele jogou para Reggie um capacete extra. – Não é uma Vespa, mas serve. Ela se agarrou a Shaw no caminho de volta à cidade. Ao chegarem em Londres, o céu começava a car róseo e trabalhadores matutinos já percorriam as ruas ainda vazias. Alguns poucos táxis e um ônibus articulado também passaram. Reggie bateu no ombro de Shaw e apontou para uma esquina. Ele desacelerou e parou perto da entrada do metrô. Ela saltou e devolveu o capacete. – Tem certeza de que não quer ficar comigo? – Na primeira parada para pôr gasolina, eu fugiria pela janela do banheiro. Por que não poupar tempo e fazer logo o que deve ser feito? Ele sacou o celular do bolso da jaqueta e o atirou para ela. – Bonne chance. – Então é isso? Não vai mais tentar me convencer? Só vai me desejar boa sorte? Shaw percebeu que uma parte dela queria car. Mas ele não estava muito a m de se envolver em uma discussão. – Apenas mais uma missão. Ele deu a partida na moto. – Obrigada por salvar nossa pele, Shaw – agradeceu ela com uma ponta de culpa. – Como eu disse, apenas mais uma missão. Reg. Shaw passou a marcha com o calcanhar, soltou a embreagem e se afastou enquanto Reggie descia devagar a escada para o metrô.
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REGGIE CORREU OS OLHOS por seu pequeno e precário apartamento em Londres. Havia uma cama com dossel, uma velha cômoda que fora da sua mãe, um tapete quadrado esfarrapado, uma mesa com duas cadeiras de encosto reto, um fogareiro elétrico, um frigobar, uma estante de um metro de altura repleta de livros e duas janelas sujas que davam para os fundos de outro edifício encardido. Em um vaso, estava uma planta morta, vítima da onda de calor que atingira Londres enquanto ela viajava, transformando o cômodo em um forno, pois não havia ar-condicionado central. O banheiro coletivo cava no fundo do corredor. Os vizinhos acordavam cedo, logo precisava chegar ao chuveiro às seis da manhã para não tomar uma ducha gelada. Tenho 28 anos e ainda pareço estar na universidade. A água estava fria, pois ela havia chegado tarde em casa. Vestiu as únicas roupas limpas que estavam no armário. Pôs as peças sujas em uma sacola com a intenção de levá-las mais tarde à lavanderia do andar inferior. Como cara um tempo fora, a geladeira não continha nada comestível. Tomou café da manhã em um bar, consumindo sem pressa ovos, café e um croissant bem amanteigado. Ela carregara o celular e enviara uma mensagem de texto a Whit. A resposta foi imediata: todo o grupo conseguira sair da França são e salvo. Um deles até fora à mansão, recuperara os pertences de Reggie e os levara de volta à Inglaterra. Whit queria saber onde estava Shaw e escreveu: “Certique-se de que ele não conseguirá encontrar Harrowseld.” Reggie respondeu com um e-mail, dizendo que Shaw fora embora e que ela se certificaria de não estar sendo seguida. Caminhando pela rua, Reggie esticou os braços e exionou as pernas para se livrar das cãibras. A viagem havia sido terrível, o barco balançando de um lado para o outro o tempo todo. Shaw aguentou facilmente aquele suplício; não cou enjoado em nenhum momento. Permaneceu sentado diante de uma mesa, lendo um livro e até comendo, e passava para ela toalhas e um balde quando necessário, o que acontecia com certa frequência. Volta e meia, Reggie olhava para Shaw em busca de solidariedade, mas não era correspondida. Passou a se sentir culpada pelas tentativas. Naquele trabalho inclemente de espionagem, era necessário ser forte e não reclamar. Exatamente como Shaw. Já ela não resistia bem a travessias marítimas. Pelo menos, estava de volta à Inglaterra sã e salva, bem como toda a sua equipe. Embora não tivessem capturado Kuchin, as coisas poderiam ter sido muito piores.
Reggie foi de metrô até Knightsbridge. Ela se apresentaria em Harrowseld, mas, antes, precisava acessar seu pequeno cofre alugado em uma empresa especializada em armazenar objetos de valor. O local era monitorado por câmaras de circuito interno e equipado com os últimos dispositivos tecnológicos de segurança, como scanners biométricos e cartões de acesso. Além disso, cada caixa estava ligada diretamente à delegacia de polícia mais próxima. Todo esse esquema custava quase 100 libras por ano e, para Reggie, valia cada penny. Ela entrou no edifício e passou por todas as barreiras até a caixa-forte. Sozinha, acessou seu cofre particular e retirou o conteúdo. Certicando-se de car postada entre a câmara no teto e os itens sobre a mesa, se sentou e começou a ler informações que já sabia de cor. Para Reggie, tratava-se de um ritual. Depois de cada missão, ela ia até ali e sempre seguia o mesmo procedimento. Em todas as outras vezes, havia sido bem-sucedida. Aquele era seu primeiro fracasso, sua primeira derrota. Mas, ainda assim, lá estava ela. Era algo importante. Os artigos de jornal eram velhos e amarelados. Com o tempo, o papel se desintegraria por completo, mas as informações contidas em suas páginas nunca seriam apagadas da mente de Reggie. Em certos dias, ela desejava que desaparecessem. Robert O’Donnell, 36 anos. A foto em preto e branco do homem estava desbotada, mas Reggie não tinha diculdade em reconhecê-lo. Anal de contas, era seu pai. Ele morrera no dia em que a lha zera 7 anos. A manchete do Daily Mail cobria os fatos básicos e acrescentava um toque de exagero, como de costume. Morre o mais famigerado assassino em série de Londres desde Jack, o Estripador! Não era bem o que uma garotinha gostaria de ler sobre o pai no próprio aniversário. Vinte e quatro vítimas, todas mulheres entre 13 e 30 anos, tinham sido mortas pelo sádico pai de Reggie. Essas eram as vítimas conhecidas. Ele foi comparado ao serial killer americano Ted Bundy, executado mais ou menos naquela época. Um homem charmoso e bonito que atraía mulheres para a morte. Só que Bundy não era casado e não tinha lhos. Era um solitário. O’Donnell tinha um bom emprego, uma esposa amorosa, um casal de lhos. No entanto, ao longo dos anos, ele matara pelo menos vinte pessoas com tal ferocidade e depravação que policiais veteranos que encontraram alguns dos corpos precisaram fazer terapia para superar os horrores testemunhados. Mesmo depois de as investigações não deixarem margem para dúvidas sobre os fatos, Reggie ainda não conseguia aceitar que o homem que a criara era o mesmo daquelas terríveis matérias. Ela olhou para outro recorte, um artigo escrito no quarto aniversário de morte do seu pai. Havia uma foto de página inteira dele em seus últimos dias. Sua expressão era de uma criatura inumana. Mas Reggie também via no rosto do pai algo que a aterrorizava ainda mais. Meus olhos. Meu nariz. Minha boca. Meu queixo. Fisicamente, ela era muito mais parecida com o pai do que com a mãe. Mas apenas fisicamente.
O m da violenta vida do pai havia sido arrasadora, pois também marcou o nal de outras duas vidas, das pessoas mais importantes para Reggie: a mãe e o amado irmão mais velho. O irmão é que fora o herói. Aos 12 anos, tendo descoberto o que o pai zera, Lionel O’Donnell procurou a polícia. De início, os ociais não acreditaram nas elucubrações de uma criança. Tinham recebido diversas pistas, a maioria falsa, e estavam bastante pressionados. Foi só mais tarde que eles perceberam que o garoto tinha razão. Àquela altura, era tarde demais. Toda a família morreu em um único dia. O pai, furioso, descobriu a traição do lho e também matou a esposa. Reggie teria o mesmo fim, mas os policiais chegaram a tempo. Ela ainda tinha pesadelos. Aparentemente, eles nunca acabariam. Reggie passou para outro artigo e começou a tremer assim que viu a foto. A menina estava de maria-chiquinha. Os olhos eram inexpressivos e a boca pequena formava uma linha na, sem demonstrar emoção alguma. Mais de vinte anos depois, Reggie se esforçava para lembrar o que sentira ao ser fotografada naquele dia. Onde ela estava, quais eram seus pensamentos. Seu olhar seguiu para a legenda: Única sobrevivente da família, Jane Regina O’Donnell, 7 anos. As semanas, meses e até anos seguintes foram um turbilhão de eventos. A família da mãe a acolheu. Eles deixaram o país. Novas vidas foram estabelecidas. Nunca se disse nada sobre o passado, nada sobre a mãe nem o irmão e, sobretudo, nada a respeito do monstruoso pai. No entanto, Reggie, usando o sobrenome de solteira da mãe, acabou voltando para a cidade na qual foram cometidas as atrocidades. Sua identidade havia sido enterrada bem fundo. Ela não era mais uma garota de 7 anos com olhar inexpressivo. Era Reggie Campion, uma mulher feita, com a missão de reconstruir uma vida a partir das catastrócas ruínas do passado. Porém, Reggie se perguntava naquele momento – não pela primeira vez – se Mallory sabia quem ela de fato era. E se ele a tivesse abordado por causa disso? Apesar de nunca ter dado sinal algum de que conhecia a verdadeira história, o professor era o tipo de homem que não demonstraria aquilo. Havia outros itens na caixa, mas ela decidiu ver apenas mais dois. Um era uma foto da sua mãe, uma mulher miúda e loura, simplória, não muito inteligente nem curiosa, que amava incondicionalmente os lhos. O segundo item era um retrato do irmão, Lionel, que procurara a polícia e pusera m ao reinado do monstro em Londres, embora isso tivesse lhe custado a própria vida. Mesmo aos 12 anos, era alto, mas não tanto quanto o pai, que media 1,93 metro e pesava mais de 90 quilos. Ele havia puxado as feições da mãe: cabelos claros, olhos azul-escuros, a boca em geral curvada em um sorriso. Mas não naquela fotograa. Ali, Lionel estava no caixão. Reggie não sabia de onde aquela imagem havia saído, mas a descobrira anos antes e agora não conseguia jogá-la fora. Era doentia, macabra; ela sabia disso. Mas também era uma lembrança do sacrifício do irmão para livrar todos eles do mal.
Reggie recolocou os itens no lugar, trancou o cofre e o pôs de volta na parede da caixaforte. Voltou ao apartamento, fez a mala e partiu para Harrowsfield em seu carro. No caminho, ela só pensava em como pegar Fedir Kuchin. Bem, não exatamente. Outro homem alto de cabelos escuros também continuava a se intrometer em seus pensamentos. Onde será que Shaw estava?
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ASSIM QUE REGGIE PASSOU pelo vilarejo de Leavesden e enveredou pelas estradas sinuosas que levavam até Harrowseld, o sol desapareceu atrás de nuvens escuras. Pelo menos as condições meteorológicas correspondiam ao seu humor. Atravessou o portão da propriedade, estacionou o carro, respirou fundo e entrou na casa. Ela telefonara e informara o horário previsto para chegar, assim o professor, Whit, Liza e Dominic a esperavam na biblioteca. Ao cruzar o hall, viu Niles Jansen, o colega que Shaw havia nocauteado no chalé na Provence, e lhe atirou o telefone que o agente tinha pegado. – Como está? – perguntou ela, indicando o grande hematoma em seu rosto. – Parece que fui atingido por um tanque. – Na verdade, acho que foi isso mesmo que aconteceu. Reggie respirou fundo para se acalmar e abriu a porta da biblioteca. Sentada de um lado da mesa, de frente para todos os outros, relatou minuciosamente tudo o que lembrava do tempo passado em Gordes e dos dias passados com Shaw. – E você não descobriu nada mais a respeito dele? – perguntou Mallory, sem se dar o trabalho de esconder sua incredulidade. – É difícil fazer um interrogatório decente quando você está botando os bofes para fora. E ele não é do tipo que fornece muitas informações. É alguém muito experiente. Fora isso, qualquer coisa é especulação. – Mas a organização dele é oficial, ao contrário da nossa – ressaltou Mallory. – O que signica que todos nós podemos ser acusados de tentativa de homicídio, apesar de todo o bem que zemos – complementou Whit. – Kuchin poderia nos processar e provavelmente ganharia a causa. Talvez seja o caso de procurarmos advogados. – Isso não tem graça, Whit – disparou Liza. – Toda a nossa operação pode estar em perigo. – Shaw não sabe onde estamos – armou Reggie. – É claro que nunca pensei em trazê-lo aqui. – Foi o que imaginei – comentou Whit, e acrescentou, encarando Reggie: – E Dom disse que devíamos confiar em você. Reggie lançou um olhar de gratidão para Dominic antes de se virar para Mallory. – Mas, com os recursos de que dispõem, eles podem nos localizar, pois nos conhecem muito bem. – Sugiro que todos vocês fiquem em Harrowsfield até segunda ordem – falou Mallory.
Whit e Dominic anuíram. – Tenho algumas coisas a resolver – declarou Reggie –, mas, depois, voltarei para ficar. Mallory assentiu. – Muito bem, resolvido. Agora, passemos a questões mais importantes: Fedir Kuchin e sua lastimável sobrevivência. – Iremos atrás dele, como conversamos ontem – falou Whit. – Após muita deliberação, concordo com o Sr. Shaw – comentou Mallory, causando surpresa. – Concorda com ele em que sentido? – perguntou Reggie, que não participara da conversa do dia anterior. Whit se pronunciou: – Seu amigo armou que Kuchin virá atrás de nós. Portanto, ao invés de irmos atrás dele, devemos nos proteger. – Também conversamos sobre isso pouco antes de nos separarmos – lembrou Reggie. Mallory se levantou, foi até a lareira vazia, onde, com algumas pancadas, tirou os restos de fumo do cachimbo. – Tenho certeza de que conversaram. De fato, parece que essa outra organização é capaz de dar cabo do Sr. Kuchin melhor do que nós. – Mas eles não vão fazer isso – rebateu Whit. – Eu já disse ao senhor. Eles estão pulando fora. Aparentemente, não se importam com o fato de Kuchin vender garotas como prostitutas. Depois que o homem abandonou as negociações de material nuclear, cou tudo bem para esses caras. – Isso foi antes de eles descobrirem a identidade de Waller. – O professor olhou para Reggie. – Você contou a Shaw que Waller é Fedir Kuchin, certo? – Contei. Mas ele não conhece Fedir Kuchin. Mallory acendeu o cachimbo. – Não importa. Ele vai pesquisar. Quando souber que o Carniceiro de Kiev está à solta, sua organização irá atrás do monstro ou noticará outra agência mais apropriada para essa tarefa. – Então, simplesmente entregamos de bandeja para eles todo o nosso trabalho? – perguntou Reggie. – Por que eles deveriam enfrentar Kuchin? Mallory a encarou com interesse. – Você quer saber por que Shaw precisa enfrentar Kuchin? Reggie corou. – Não foi isso que eu disse, professor. – E não há garantia alguma de que eles irão atrás dele – protestou Whit. – Talvez eles tenham outras prioridades. – Não há garantia em nada do que fazemos, Whit. E acho que isso é o melhor que podemos fazer. Pelo menos por enquanto.
– Bem, eu discordo. – Discordâncias não me incomodam, desde que não se transformem em ações unilaterais. – Bem, e se Kuchin ficar livre? – Há muitos homens como ele por aí. Não vou pôr em risco a possibilidade de abater todos eles para pegar apenas um. – Mas já mostramos a ele toda a merda do passado. Agora, só precisamos matar o canalha. Um tiro de espingarda de longe. Veneno no café da manhã. Furar o babaca na rua com um guarda-chuva de ponta envenenada, como fizeram com aquele búlgaro. Mallory balançou a cabeça. – Mas sua morte e seu passado serão investigados e o mundo saberá que ele é o Carniceiro de Kiev. E os outros ficarão em estado de alerta. – Os outros? – zombou Whit. – O senhor acha que esses babacas trocam correspondência entre si? “Escute, colega, os caras do bem estão caçando você a tiros.” Nunca aceitei essa lógica, professor, e não é agora que vou aceitá-la. O senhor está falando para deixá-lo livre para sempre? – Não, eu falei que podemos deixar que outros cuidem disso por enquanto. Reggie interveio: – Concordo com Whit. O problema é que agora Kuchin vai se esconder em um lugar tão remoto que nunca seremos capazes de encontrá-lo. Ele provavelmente tem esconderijos por todo o mundo. – Temos recursos limitados, e esse é mais um motivo para passarmos a outra pessoa. Mas, por agora, acho que vocês deveriam relaxar e se reorganizar. Dominic precisa se curar sicamente. – Mallory se voltou para Reggie e, depois, para Whit. – E você precisa se curar de outra maneira. – Minha mente está lúcida como sempre – murmurou Whit. – Eu não estava necessariamente falando de você – replicou Mallory. – Ah, o problema é comigo? – exclamou Reggie, irritada. – Todos precisam descansar – disse Mallory, demonstrando cansaço. – Mesmo estando na mira do psicopata ucraniano? – indagou Whit. – Sim, mesmo assim – concluiu o professor, levantando-se e saindo da sala. – Ele está sob muita pressão – defendeu-o Liza. – Todos nós estamos sob muita pressão – retrucou Reggie. – A operação na Provence custou muito caro – Liza continuou. – E está cada vez mais difícil conseguir verba. Miles passa boa parte do tempo à procura de benfeitores. Whit franziu a testa. – Tudo bem, vou reduzir meu salário. Ah, esqueci que não ganho um tostão para arriscar minha vida. – Eu não estava falando nesse sentido, Whit – falou Liza. – Acho que nenhum de nós está conseguindo se expressar direito – interveio Dominic.
Whit ficou de pé. – Isso é o que você pensa, Dom. Eu disse exatamente o que queria. Antes que alguém pudesse falar algo, ele saiu da biblioteca, batendo a porta.
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REGGIE NÃO QUIS BUSCAR refúgio no estande de tiro subterrâneo, sobretudo porque não acreditava que seu estômago pudesse aguentar o fedor do local. Entretanto, não queria permanecer na casa, em meio àquela atmosfera fria, e decidiu caminhar pela propriedade, indo parar, é claro, no cemitério, diante da lápide de Laura R. Campion. Ela visitara os túmulos da mãe e do irmão apenas uma vez, anos antes, e nunca fora até o do pai. Porém, lá estava de novo em frente à cova de uma desconhecida. Você está ficando louca, Reg? Esta é a sensação?... Foi isto que aconteceu com meu... pai? Havia muito tempo, ela se convencera de que o pai tinha enlouquecido, pois essa era a única explicação para o que ele zera. Mas, no fundo, sabia que isso não era verdadeiro e ficava aterrorizada. – Você enlouquece? – perguntou-se ela em voz alta. – Ou será que já nasce mau? Ou mata porque lhe dão essa chance? – Todas as três coisas – respondeu uma voz. Reggie quase tropeçou ao se virar, sua mente reconhecendo a voz, mas sem entender como a ouvira ali. Shaw estava ao lado de uma sebe de teixos próxima ao cemitério. – Como...? – começou a falar, mas ele pôs um dedo sobre os próprios lábios e avançou. Shaw parou perto dela. – É bom ver você de novo também. – Como diabos você chegou aqui? – O telefone que devolvi para você. GPS. – Impossível. Desabilitamos todos os chips de GPS nos telefones quando estamos em missão para evitar esse tipo de coisa. – Eu sei. Por isso tive que colocar outro durante a viagem de barco. Reggie gemeu e levou a mão à testa. – Não acredito que fui tão idiota. – Você não é idiota; é excelente. Mas eu também sou. Reggie olhou ao redor, nervosa. – E se eles o encontrarem aqui? – O quê? Vão me matar? – Não fazemos isso – retrucou ela, séria.
– É mesmo? Ele tirou do bolso a seringa tomada de Niles no chalé. – O que você está fazendo com isso? – perguntou ela, sem entender. – Eles iam me matar com isto, Reggie. – Impossível. Nunca falamos a ninguém... – O cara que eu nocauteei disse que a ordem veio de outra pessoa. – Ele voltou os olhos para a mansão. – Talvez alguém no casarão? – Shaw, isso é impossível. – Vocês carregam isto com vocês? – Esse veneno era para Kuchin. Mas já tínhamos uma seringa conosco. – Então, por que uma segunda? – Caso alguma coisa acontecesse com a primeira, imagino – respondeu ela sem muita convicção. – Ou caso alguém atrapalhasse. Como eu. – Isso é absurdo. Ele disse que alguém tinha dado ordens para matar você? – Não tenho o hábito de inventar coisas desse tipo. Para que eu faria isso? Reggie se afastou dele e se jogou em um desgastado banco de pedra no canto do cemitério. Shaw uniu-se a ela, levantando o colarinho para se proteger do ar frio que havia voltado com toda a força à Inglaterra, como se quisesse compensar os raros dias de calor. – O plano era deixar você ir embora assim que acabássemos com Kuchin. – Os planos mudam se essa for a vontade da pessoa certa. Quem aqui tem esse tipo de poder? Involuntariamente, Reggie lançou um olhar para a mansão. – Então eu tinha razão. Eles estão lá. Você tem um nome? – Por quê? Você vai entrar lá e prendê-lo? – Certo, é um homem. O problema é que não tenho autoridade para prender ninguém. – O que vai fazer? Matá-lo? Se for atrás dele, você também terá que matar muitas outras pessoas. – Inclusive você. – Sim – confirmou ela sem hesitar. – Logo, minhas opções são limitadas. – Ele deu a Reggie a seringa. – Apenas se certique de que a pessoa que você vai espetar com isso deve morrer. Porque não há como voltar atrás. – Por que você veio até aqui? – Acho que queria ver a concorrência com meus próprios olhos. Belas instalações. Meu escritório sempre ca a 40 mil pés de altitude ou em terra rme, em um local bem movimentado. – Só por isso? – Ah, tinha mais um motivo. Eu queria ter certeza de que você não continuava botando os bofes para fora. Sinto-me um pouco responsável por isso. E acho que não fui tão solidário
com você quanto deveria quando estávamos atravessando o mar. Reggie deu um sorriso tímido. – Bem, para dizer a verdade, ainda estou meio tonta, mas voltando ao normal. – Ela fez uma pausa para guardar a seringa. – Seu chefe sabe que você está aqui? – Nem sempre estamos em sintonia. Ela olhou mais uma vez na direção da casa. – Eu entendo você. Quanto tempo você vai ficar na Inglaterra? – Depende. – Do quê? – De você aceitar ou não jantar comigo hoje. Se você aceitar, carei aqui pelo menos mais um dia. Se não, caio fora agora mesmo. Reggie desviou o olhar. – Sair é um problema? – Na verdade, todos nós ganhamos uma pequena folga. Mas se alguém vir você... Whit ou... – Ninguém vai me ver. Vou sair pelo mesmo caminho que usei para chegar. Ganho a vida me esgueirando por aí. Mas, por segurança, vamos nos encontrar em Londres por volta das oito hoje à noite. – Ele lhe deu o nome de uma ruela nos arredores de Trafalgar Square. – Depois, podemos decidir aonde ir. – Tenho que responder agora? – Sim, senão vou pegar um avião hoje à noite. E duvido que eu vá voltar, Reggie. – Você não dá muito tempo para que uma garota se decida. – Não, não mesmo. – Tudo bem. Mas sobre o que vamos conversar durante o jantar? – Ah, tenho certeza de que vai haver um assunto de interesse mútuo. E talvez até seja divertido. – Ele passou os olhos pelo cemitério. – Quem sabe você se alegra um pouco. Parece que está precisando. – Você deve achar estranho eu ficar olhando túmulos. – Não. – Por que não? – Eu faço a mesma coisa.
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FEDIR KUCHIN NÃO TINHA nada em mãos. Frustrado, andava de um lado para o outro em seu chalé de 280 metros quadrados perto de um oceano cuja temperatura nunca passava muito de 10 graus, mesmo em agosto. O humor de Kuchin estava diretamente ligado ao fracasso de Alan Rice, que comprara o acesso a dezenas de bancos de dados, porém a foto e as imagens digitalizadas dos desenhos ainda não haviam surtido resultado. Todos os outros rumos investigativos tentados também não deram em nada. Ele abria e fechava as mãos, tenso, tentando vislumbrar alguma saída. Por m, Kuchin vestiu uma parca e saiu. Levou consigo um rie, uma mira telescópica e alguns cartuchos de munição. Era verão, mas, pelo clima, nem parecia. Não estava frio o suciente para nevar, porém, o terreno o fez lembrar da sua Ucrânia natal. Talvez esse tivesse sido o motivo para ele construir uma casa ali, isolada de tudo. Havia dois guardacostas em outro edifício, a 500 metros da casa, apesar da ausência de perigo. Sem contar o perigo de ser atacado ou pisoteado por um alce ou uma rena. Vinham à mente de Kuchin lembranças de um garotinho seguindo o pai corpulento que saía para trabalhar pescando em um rebocador comercial no mar de Azov, uma área de 40 mil quilômetros quadrados cujo ponto mais profundo tinha menos de 15 metros. Era o mar mais raso do mundo. Por esse motivo, sua água se renovava rapidamente. No entanto, isso não a mantinha limpa. Quando Kuchin era criança, os poluentes de fábricas e da exploração de petróleo e gás eram ali despejados. Na década de 1970, peixes mortos e mutantes se acumulavam aos milhares nas margens, vítimas das toxinas e venenos radioativos produzidos pelo homem. Nadar ali atualmente seria suicídio. Porém, todas as crianças do vilarejo de Kuchin passaram os verões naquelas águas, cuja temperatura subia para 30 graus em julho. No inverno, o mar cava congelado por meses a o e as crianças pegavam seus patins caseiros e apostavam corrida até serem chamadas de volta pelas mães para jantar. Kuchin até se recordava de quando cava de bruços, lambendo o gelo, aos 7 anos. Kuchin soubera que o mar de Azov corria o risco de se tornar um mar morto e que a pesca prossional seria proibida por vinte anos. Não era uma medida tão rígida quanto parecia. Durante quarenta anos, a renda da pesca fora reduzida a quase zero porque toda a vida marinha estava morta. Mas ele conseguia se lembrar com clareza do pai limpando com uma faca os peixes que pegara para o consumo da família, fatiando percas, esturjões e cavalas que
seriam fritos pela mãe em uma grande frigideira de ferro com temperos e ingredientes secretos que as mulheres francesas pareciam conhecer naturalmente. Ao sul do lugar onde Kuchin se encontrava, cava o estreito de Belle Isle, em frente à região de Terra Nova. Ele havia caminhado até lá várias vezes e observado os cargueiros que atravessavam o exíguo canal. Antes de atingir a idade adulta, a vida de Kuchin esteve inextricavelmente ligada à água, ainda que poluída. Era um milagre não ter morrido de algum terrível câncer causado pelo Azov. Naquele momento, talvez houvesse tumores se desenvolvendo em seu corpo, envolvendo de maneira silenciosa, mas letal, os órgãos, destruindo vasos sanguíneos, invadindo o cérebro. Apesar dos perigos da infância, o fato de ter crescido naquele lugar lhe proporcionara uma sede de sucesso inesgotável. Kuchin realizara tudo o que desejava, portanto a situação atual era inaceitável. Caminhou até Belle Isle e contemplou o mar, a rota mais rápida até a Europa para os navios que vinham do canal de São Lourenço ou dos portos dos Grandes Lagos. Entretanto, o gelo que perdurava ali durante dez meses, a neblina e os vendavais tornavam aquele ponto um dos mais traiçoeiros para a navegação. De qualquer forma, o estreito também podia apresentar visões maravilhosas, como cachalotes dando saltos espetaculares e icebergs que se soltavam das geleiras da Groenlândia, sendo arrastados para o sul pela corrente de Labrador antes de começarem a se desfazer nas águas mais quentes ao largo da costa. E, é claro, o nome da região signica “Bela Ilha” . Ela cava situada na ponta oriental do canal, mais ou menos na metade do caminho entre os territórios de Labrador e Terra Nova, que, juntos, formam a província canadense. Beleza no meio do nada, pensou Kuchin. Ele acreditou, mesmo que por um breve momento, ter descoberto beleza na Provence. Uma mulher que o intrigara, o enfeitiçara e que talvez Kuchin fosse gostar de entreter durante mais do que uma única noite sem deixar um rastro sangrento. No entanto, a beleza quase o havia matado. Embora a mulher não lhe devesse lealdade alguma, ele se sentia traído e, assim, sua raiva se intensificava. Kuchin caminhou até o topo de um pequeno outeiro com o estreito às suas costas e a terra à sua frente, plana até onde a vista conseguia alcançar. Terra Nova era conhecida como “A Rocha”. Sua região leste fizera parte do norte da África. A última glaciação havia desbastado quase toda a terra da costa meridional, deixando-a com mais pedra do que qualquer outra coisa, por isso o apelido. Labrador, a parte mais a leste do Escudo Canadense, tem aproximadamente o triplo do tamanho de Terra Nova, mas apenas cinco por cento de sua população. O clima é classicado como tundra polar. De fato, ursos-polares rondam as áreas costeiras e a proporção é de vinte renas para cada ser humano. Ali, Kuchin podia escalar grandes montanhas, pescar em baías isoladas, esquiar em tundras áridas e apreciar ordes. Muitas vezes os desladeiros eram íngremes e a correnteza, enganadoramente rápida. Kuchin ergueu o rie, olhando através da mira fabricada pela Zeiss, a mesma empresa que
fornecera equipamentos para o Terceiro Reich. O aparelho tinha tudo o que um atirador experiente podia esperar de um dispositivo de alta qualidade daquele tipo, inclusive anéis de vedação e selagem a nitrogênio antineblina, tudo em um objeto leve com um campo de visão aprimorado. Para caçar animais grandes, o consenso geral era de que pelo menos 1.400 joules eram necessários à bala. Para os animais ainda maiores, como alces, o número aumentava para cerca de 2.400. Kuchin estava usando projéteis alongados com culote tronco-cônico capazes de derrubar qualquer ser humano e praticamente qualquer quadrúpede. Kuchin havia mandado construir aquele rie de acordo com as suas especicações. A arma era leve para facilitar o transporte e o manuseio. Lutando contra o próprio ego, optara por menos poder de fogo, logo coice mais fraco e maior precisão. O ucraniano não poupara gastos no cano, anal aquele era um elemento fundamental para a única coisa que importava: atingir ou não o alvo. O pequeno coiote caminhava a quase 200 metros de distância, deslocando-se rapidamente pelo terreno plano. Ainda era cedo para o animal estar procurando alimento, pensou Kuchin, mas, naquele lugar, nunca dava para ter certeza. “Mate quando puder” era um bom lema para um local tão desolado como aquele. Devia ser uma fêmea, notou, examinando através da lente o pequeno peito e a constituição física do bicho. Kuchin cou deitado de bruços no chão, sustentando o peso da arma com os cotovelos. Estabilizou-se, empunhando-a pelo cabo e pela parte inferior do cano, mas diminuindo a tensão dos músculos. Aquela era a receita mágica do franco-atirador de sucesso e do caçador de longo alcance: rme, mas relaxado, com pulsação e respiração tranquilas, sem tremor e sem pressa. A coronha se mantinha estável contra o bíceps; o indicador, encostado sobre o guarda-mato e o gatilho. Com um puxão, a bala dispararia pelo cano alongado, sulcos e ranhuras marcados em sua cápsula metálica pela força da rápida expulsão. O projétil de um quarto de grama cobriria a distância entre o homem e o animal a uma velocidade aproximadamente seis vezes maior que a de um jato comercial. Kuchin mirou o coiote, mas não puxou o gatilho. Apenas baixou a arma. Sem saber que estivera tão perto da aniquilação, o animal continuou andando devagar até estar quase fora do campo de visão. O magnata percorreu a passos lentos os quilômetros solitários de volta até seu chalé. Ele nunca gostara de matar animais. Também não se interessava muito por pesca, apesar de ter sido o ofício do seu pai. Apenas os seres humanos motivavam Fedir Kuchin a puxar o gatilho, a acender o fósforo em poços cheios de gás, a chutar o banco que dava apoio à vítima pendurada por uma corda ou a enfiar a faca no peito de alguém. Ele era assim, ponto final. Kuchin voltou para o chalé, pendurou a parca em um gancho ao lado da porta, trancou o rie no armário de armas e voltou à sua escrivaninha. Havia uma luz piscando em seu telefone. A mensagem na gravação dissipou todos os pensamentos ruins que ele tivera durante a maior parte do dia.
Era Alan Rice. – Nós o encontramos.
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REGGIE AMAVA TRAFALGAR SQUARE. Para ela, aquela praça parecia denir tudo o que era britânico em um único e belo ponto geográco. Lá estava, sobre sua coluna de granito com 46 metros de altura, lorde Nelson, salvador do império britânico sempre exaltado por sua morte heroica na batalha de Trafalgar. E, embora nenhuma criança em idade escolar soubesse mais quem era Nelson ou o que ele zera, a estátua ainda era um testemunho da natureza indomável dos ingleses. Porém, também havia os grandes e desagradáveis pombos. Embora Nelson sempre fosse limpo e a cidade tivesse tomado providências para livrar a área daquelas criaturas aladas e de seus arrulhos, as aves eram uma força inexorável, portanto o pobre almirante costumava estar coberto por cocô. Na praça, seres humanos de todos os tipos caminhavam, se sentavam, dançavam, gritavam, comiam, bebiam, faziam performances, tiravam fotos, liam, flertavam com os outros e, de vez em quando, tarde da noite, transavam. Ao redor, passavam táxis coloridos cobertos de publicidade e ônibus articulados vermelhos. Era a mistura perfeita de serenidade histórica e novidade radical, e Reggie cou ali, absorvendo tudo, esquecendo por um momento que ia se encontrar com um homem perigoso. Embora parecesse um pouco absurdo, levando-se em conta que havia outras preocupações bem mais importantes, Reggie cou muito nervosa por não saber o que vestir. Lavou todas as roupas e selecionou um vestido verde-claro simples apertado na cintura, que mostrava seu bronzeado e parava muitos centímetros acima dos joelhos. Era decotado na frente, mas não muito. Pensou em usar um sutiã que aumentava seus seios, mas acabou se decidindo por um modelo mais modesto. Preferiu não usar também um suéter porque o tempo em Londres não estava como em Leavesden. O céu estava claro, a temperatura havia atingido 20 graus, alegrando toda a cidade, e a leve brisa do sul aquecia. Reggie escolhera sapatos de salto alto, que a deixariam apenas 20 centímetros mais baixa que Shaw. Ela prendera os cabelos para cima, deixando que alguns os caíssem em torno do seu longo pescoço. Um conjunto de grandes brincos e colar de água-marinha comprado anos antes na Tailândia completavam seu visual. Ao percorrer a ruela onde Shaw havia marcado o encontro, Reggie vericou furtivamente sua maquiagem no retrovisor de uma moto, ngindo admirá-la. Como Shaw era alto, seria fácil encontrá-lo mesmo com tantas pessoas ao redor. Mas a rua também tinha muitos pontos de observação escondidos. Era provável que ele a estivesse espiando naquele exato
momento. Depois de um momento de indecisão, pensou: Ah, que se dane, é o jeito. Deu uma pirueta, com um salto rmemente plantado na calçada enquanto acenava em todas as direções como uma miss. Aquele ato a fez esquecer por um tempo dos problemas. Anal, era uma linda noite de verão e ela estava na sua cidade favorita. O toque no ombro a fez dar um pulo. Reggie se virou para Shaw e notou que ele também havia se vestido com capricho: calças cinza com um vinco bem marcado, camisa polo branca e um blazer azul-marinho. Seus cabelos curtos estavam brilhantes e ele zera a barba. O cheiro de Shaw a fez se lembrar da praia exuberante na Tailândia onde comprara o colar e os brincos. Ela sentiu tão forte o aroma de bálsamo, areia, oceano, árvores que até cou um pouco tonta. – Você está linda. – Chega de enjoo, prometo. – Ela bateu no chão com os saltos pontiagudos. – Estou em terra firme. Shaw olhou ao redor antes de encará-la mais uma vez. Reggie pôde perceber naquele único movimento que ele havia avaliado e arquivado todas as ameaças em potencial no banco de dados do cérebro. – Você gosta de frutos do mar? – perguntou ele. – É minha comida preferida. – Conheço um restaurante em Mayfair. – Parece ótimo. Shaw hesitou por um momento e, depois, estendeu o braço. Reggie rapidamente o enlaçou antes que ele mudasse de ideia, contente com sua indecisão. A incerteza humanizava uma pessoa, pensou. Ela aumentou um pouco a pressão no braço de Shaw para mostrar que ele havia agido bem. – Não ca muito longe daqui. A noite está bonita, podemos ir andando. – Ele olhou para os sapatos dela. – Você consegue? Podemos pegar um táxi se você quiser. – Consigo. Na volta, talvez não. – Posso carregá-la. Desceram a Haymarket Street, atravessaram Piccadilly Circus e rumaram para Mayfair. – São apenas mais algumas quadras – informou Shaw enquanto eles caminhavam devagar. – Fica na altura da Grosvenor. – Estou bem. Ele olhou para Reggie. – Parece estar bem mesmo. Ela interpretou a observação enquanto olhava para os outros casais à sua volta fazendo exatamente a mesma coisa que eles. – É legal fingir ser normal. É uma situação meio estranha. – Nas nossas profissões, estes momentos são raros e devemos aproveitar.
O restaurante cava no meio da quadra e um toldo verde escondia parcialmente sua linda porta de mogno. Dentro, o teto era alto, os assentos das cabines tinham espaldares de couro, as toalhas de mesa estavam engomadas e os guardanapos sobressaíam de dentro das taças de cristal. Sobre armários de madeira que se erguiam até a altura do peito, havia bandejas de lagostas, camarões, mexilhões de conchas pretas e pernas de caranguejos dispostas em círculos concêntricos. Shaw zera uma reserva e uma jovem indiana curvilínea – em um vestido justo que revelava sua calcinha o dental – os levou até uma mesa nos fundos. Reggie percebeu que Shaw quis se sentar de frente para a porta de mogno. – Linhas de tiro bem estabelecidas? – perguntou, brincalhona. – Sim. A menos que aquela bandeja de lulas cozidas atrapalhe o tiro. – Tenho a impressão de que você não está brincando. Os dois pegaram os cardápios. – Alguma sugestão? – indagou ela. – Qualquer coisa que tenha barbatanas, guelras e/ou uma concha é afrodisíaca. Ela largou o menu. – Por que você não escolhe para mim? Shaw olhou por cima do seu cardápio. – Indecisa? – Na verdade, cautelosa. Prefiro me submeter à opinião de alguém mais experiente. – Essa observação pode ser interpretada de várias maneiras – observou ele, com franqueza. – É verdade. Mas, por enquanto, vamos limitá-la à comida. Shaw pôs o menu de lado. – Então, serão dois Primavera Frutti di Mare. Pediram a comida e um vinho branco. O garçom sacou a rolha e serviu um pouco para degustação. Shaw aprovou com um gesto com a cabeça. O homem encheu as taças, pôs uma cesta de pães e o azeite entre eles, colocou a garrafa em um invólucro térmico e os deixou sozinhos. Shaw levantou sua taça e Reggie brindou. – Será que o faz de conta de um momento normal já está acabando? – perguntou ela, resignada. – Quase, mas ainda resta um pouco. – Amo Londres – comentou Reggie, olhando à sua volta. – Há muito o que se amar aqui – concordou Shaw. – Posso fazer uma pergunta? Ele ficou em silêncio, mas a encarou, na expectativa. – Lá no cemitério em Harrowsfield, você falou que costuma observar túmulos. Por quê? – Não túmulos, mas túmulo, no singular. – De quem?
– Fica na Alemanha, em um vilarejo a uma hora de carro de Frankfurt. – Mas eu perguntei de quem é o túmulo, não onde fica. – É de uma mulher. – Shaw estava visivelmente tenso. – Presumo que vocês dois fossem íntimos. – Bastante. – Pode me dizer o nome dela? – Anna. Agora acho que o faz de conta de fato acabou.
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FEDIR KUCHIN ESTAVA IMPACIENTE, irritadiço, mais uma vez andando de um lado para o outro, formando um perfeito retângulo com seus passos. Um jatinho alugado havia acabado de aterrissar a 40 quilômetros dali. Em sua mente, visualizava Alan Rice em um utilitário, vindo ao seu encontro com informações que Kuchin desejava mais do que tudo. Mas ele precisava esperar. Quarenta quilômetros por estradas medíocres. Uma hora, talvez mais, se o tempo piorasse, como previsto. – Está tudo bem, Sr. Waller? Kuchin parou de andar e viu Pascal na soleira, de jeans, botas, camisa de anela e jaqueta de couro. Ele sempre usava jaqueta, ocultando uma arma. Pascal puxara à mãe na estatura e nas feições. A Grécia havia sobrepujado a Ucrânia. Naquele momento, o segurança estava desgurado pelas manchas roxas e amarelas dos hematomas provocados pelo homem alto nas catacumbas de Gordes. – Só estou pensando, Pascal. Os outros chegarão em aproximadamente uma hora. – Sim, senhor. – Como você está se sentindo? – Nada mal. O rapaz era forte, Kuchin não podia negar. Mesmo se seu braço estivesse pendurado apenas por um apo de pele, ele só pediria uma aspirina ou, o que era ainda mais provável, não pediria nada. Ele é durão, como o pai. O caso havia sido breve, mas memorável. Kuchin fora de férias à Grécia como recompensa por seu bom trabalho na Ucrânia. Naquele dia, o sol brilhava como ele nunca vira na União Soviética. Kuchin levou uma mulher para a cama e, juntos, zeram um lho. Ele não estava no momento do parto, mas escolheu o nome do lho. Pascal era um nome masculino francês que estava associado à Páscoa, ao Pessach. A opção fora uma homenagem à avó francesa, que também era judia, embora tivesse se convertido ao catolicismo ainda pequena. Kuchin nunca falara a ninguém da etnia da mãe nem de suas crenças religiosas. Nas esferas de poder da União Soviética, aquilo não seria bem-visto. – Você faz um ótimo trabalho, Pascal – disse Kuchin. Examinando as feições do outro homem, como costumava fazer às vezes, Kuchin imaginou ter visto uma sombra de si mesmo. Ele enviara o lho a vários conitos mundo afora como
mercenário. Pascal fora treinado por algumas das melhores mentes militares. Lutara em lugares como Kosovo, Eslováquia, Bósnia, Honduras, Colômbia e Somália. E sempre voltara para o pai com um sorriso no rosto e mais experiência gravada no seu DNA. Kuchin também ensinara ao lho alguns velhos truques do ofício, com um certo orgulho paterno, mas não tanto. Anal, ele era um bastardo, ainda que fosse o único descendente. O rapaz não era inteligente o bastante para dirigir os negócios, mas, sim, para proteger quem os geria. – Obrigado, senhor. Se precisar de alguma coisa, é só me avisar. Pascal se retirou e Kuchin esfregou as cicatrizes no pulso, causadas por uma linha de pesca de 10 libras que o havia cortado profundamente na infância. Aquela era a maneira de o pai o ensinar a obedecer. Em geral, as lições eram acompanhadas de gritos embriagados e socos possantes. Ele cava pendurado como um dos peixes capturados pelo pai, com os pés mal tocando o chão gelado. Aquilo durava horas, até que Kuchin achava que seus tendões da perna e do calcanhar fossem se romper. Suas costas também carregavam marcas de agressão. Um cinto, uma correia, uma vara de pescar cujas guias metálicas penetraram em sua pele pré-pubescente e a feriram como um exército de mil vespas. Aquelas eram as escolhas do pai, as lições de vida para o filho único. Sua bondosa mãe sempre lutava por ele e até atacava o marido, muito maior, cujo porte foi transmitido ao lho. Por sua lealdade a Kuchin, a mulher era tratada com ainda mais crueldade. Horas depois dos atos violentos, os dois permaneciam deitados no chão, abraçados, tratando as feridas, partilhando lágrimas, falando baixinho em francês para que o homem não ouvisse, senão certamente voltaria a ficar furioso. Kuchin havia mentido a Alan Rice e, mais tarde, a Janie Collins ou quem quer que ela fosse. Seu pai não morrera por causa de uma queda no chalé em Roussillon. Aliás, ele nunca estivera em Roussillon nem na França. Uma família pobre da Ucrânia rural naquela época nunca teria dinheiro nem permissão para viajar ao exterior. Não conseguiriam chegar à fronteira. Faltariam os documentos adequados e um motivo válido para deixar o império soviético. Teriam sido executados ali mesmo, seus corpos abandonados como lixo jogado de um caminhão, uma mensagem para os que estivessem pensando em desobedecer. E, Kuchin admitia, aquela mensagem podia ser muito eficaz. Mais tarde, ele mesmo se utilizou dela. Foi só depois de ascender ao cargo na KGB que Kuchin pôde viajar para fora do país, privilégio permitido apenas aos agentes mais leais como ele. Recebeu uma autorização especial para levar a mãe à sua cidade natal. Àquela altura, ela já estava muito envelhecida, restando-lhe poucos anos de vida. O chalé se achava vazio e Kuchin, embora não tivesse muito dinheiro na época, encontrou uma maneira de comprá-lo. A mãe passou cinco anos felizes ali até morrer. O lho a visitava quando podia. Ela o chamava por um nome francês que, em seu estado mental degradado, acreditava ser o verdadeiro. Soviético até os ossos, Kuchin teria matado qualquer homem que o chamasse daquela maneira, mas, por ser sua mãe, velha e decadente, apenas assentia, derramava algumas lágrimas e lhe segurava a mão
murcha, respondendo às perguntas como um francesinho bondoso tentando tranquilizar a amada maman. Kuchin olhou pela janela do chalé em direção à costa, não muito distante. Seus ouvidos captaram o ruído de borracha esmagando cascalho do outro lado da casa. Ele consultou o relógio. Alan Rice deveria chegar em no máximo vinte minutos. Voltou a contemplar as águas próximas e lhe veio outra lembrança, dessa vez uma feliz. O mar de Azov era raso demais para o seu plano. Por isso, muitas décadas antes, em uma noite sem lua de outubro, Kuchin, já crescido e muito forte, um estimado membro do temido Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, ou KGB, arrastou o pai para fora do seu barraco, colocou-o em um barco e partiu para águas profundas. Pelo estreito de Kerch, eles adentraram o mar Negro, de área dez vezes maior que a do Azov. Seu ponto mais profundo tinha mais de 2 mil metros. Kuchin ancorou o barco e, com três camaradas que foram ajudá-lo, usou a linha de pesca mais forte que conseguiu encontrar para amarrar o velho. Os olhos do Sr. Kuchin se arregalaram de terror ao perceber o que iria acontecer. Presos à linha e aos pesados cabos de metal enrolados em volta de sua cabeça e seus ombros estavam dois tambores de 190 litros cheios de areia. Aquela era uma das técnicas de desova favoritas das forças de segurança soviéticas. Kuchin encarou o pai pela última vez. Os papéis haviam se invertido. Naquele momento, o grande se tornara pequeno e a criança se tornara um homem forte, mais do que capaz de derrotar o monstro que o punira implacavelmente por tanto tempo. Falou com o pai em dois idiomas. Primeiro, disse as palavras em francês, que sabia que o velho, com grande rancor, podia compreender; depois, em ucraniano, para que o lho da mãe entendesse com total clareza. Em seguida, os tambores foram atirados por cima da amurada e, segundos mais tarde, os cabos se retesaram e o velho, gritando aterrorizado, foi puxado para o mar. Logo, estava tudo terminado. Kuchin assumiu o timão e os levou de volta ao lugar de onde haviam partido. Só uma vez ele olhou para trás, para o lugar no qual o homem que o atormentara passaria os últimos segundos de sua vida. Depois, virou-se para a frente e não pensou mais nele. O utilitário surgiu no seu campo de visão. Alan Rice chegava com a informação prometida. Para Fedir Kuchin, era hora de localizar e pegar outro adversário que ousara prejudicá-lo.
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– VOCÊ NÃO USOU O jatinho da empresa, certo? – perguntou Kuchin. – Não. Como você me orientou, aluguei um avião particular em nome de uma das empresas de fachada que temos. Impossível chegarem a mim ou a você. – E ficou fora da cidade, em um lugar seguro? – Sim, como você instruiu. Conduzi os negócios através de linhas de telefones e de dados seguras. – Ele fez uma pausa. – Acha que tem alguém atrás de mim? – Não, eles estão atrás de mim, mas podem usar você para ajudar na busca. Eu podia tê-lo matado ou escondido. Escolhi a segunda opção. Rice começou a se sentir mal. Kuchin lhe agarrou o braço. – Agora, o relatório. – Foi fascinante como conseguimos descobrir isto. A tecnologia é mesmo notável. Começamos usando... Kuchin ergueu a mão em sinal de advertência. – Alan, vá direto ao ponto. – Não descobrimos nada nos bancos de dados em que podíamos entrar. Sem dúvida, se tivéssemos acesso a alguns arquivos dos Estados Unidos ou da Interpol, os resultados seriam diferentes. Fomos obrigados a fazer buscas alternativas, só que os uxos de dados eram imensos e os protocolos de acesso ao servidor, complexos, mas... – Direto ao ponto – atalhou Kuchin. Rice se apressou. – Utilizamos imagens de segurança pós-expediente. – Imagens de segurança pós-expediente? Explique. – Hoje em dia, há câmeras de observação por toda parte. Não estou falando de pessoas andando por aí com celulares, tirando fotos quando uma celebridade faz alguma besteira e postando-as na internet. Estou falando de câmeras em caixas eletrônicos, ruas, prédios comerciais, tribunais, aeroportos, estações de trem e milhões de outros lugares. Londres é uma câmera gigante, em especial por causa do pedágio para se entrar de carro no centro da cidade. Existem trilhões de bytes de imagens por aí que vão acabar em servidores enormes. O trabalho da polícia cou mais fácil. Praticamente qualquer crime, pelo menos em uma área pública, pode ser filmado. – Mas como isso nos ajuda? Havia câmeras desse tipo em Gordes? – perguntou Kuchin,
cético. Rice abriu seu laptop e o pôs sobre uma mesinha de centro. – Não, usamos outra abordagem. Você precisa entender que boa parte desses dados não é armazenada localmente. Não existe capacidade para isso, ainda mais no caso de pequenas empresas e municípios de médio porte, e o gasto é enorme mesmo para grandes empresas e grandes cidades. Então, o que as pessoas fazem diante de uma necessidade para a qual não estão equipadas ou que é cara demais? – Terceirizam o serviço para firmas que se especializam naquele ramo. – Exato. Portanto, uma grande parte da armazenagem desses dados é centralizada em gigantescos complexos de servidores em todo o mundo. Pense em arquivos organizados por país, estado, cidade, bairro ou divididos taticamente por prédios do governo, bancos, escritórios comerciais, instalações militares e dezenas de outras subcategorias. O normal é que as imagens quem guardadas durante anos, ou até para sempre. Não é como ter bilhões de fotos empilhadas em algum lugar, pois é tudo digital. O espaço de armazenamento não é tão grande. – E não dá para saber quando algum daqueles dados poderá ter valor. – Exato. Digamos que exista uma imagem de um funcionário se encontrando do lado de fora de um prédio com a mesma pessoa durante semanas. Talvez não queira dizer nada naquele momento, porém, dois anos mais tarde, quando segredos da empresa são roubados, talvez essas gravações possam ajudar a montar uma acusação de espionagem industrial contra o funcionário. – Entendo. Prossiga. – Anos atrás, alguns empresários viram oportunidades nesse ramo nascente e aproveitaram para criar grandes empresas globais, pois perceberam que havíamos nos tornado a sociedade do Grande Irmão. Agora, essa é a chave para o nosso propósito: certas pessoas em algumas dessas empresas logo perceberam que as imagens armazenadas tinham valor para muitos outros usuários além dos clientes originais. Isso porque uma câmera capta muitas coisas que vão além do motivo original pelo qual ela foi instalada. Por exemplo, se você sabe que alguém esteve em um determinado local em um dado momento e quer uma lmagem comprometedora daquela pessoa, é bem provável que houvesse ali um olho eletrônico e que essa imagem esteja em algum servidor. – Então, os funcionários dessas empresas estão vendendo as imagens. – Exato. Eles divulgam discretamente que, por um bom preço, podem realizar vericações e disponibilizar a imagem. Às vezes, é a própria empresa que negocia com terceiros. Ao que parece, a lei é vaga em alguns países, ou pelo menos inconsistente no que se refere aos usos que podem ser feitos das informações armazenadas, permitindo que as companhias façam isso. E os clientes originais ou não se importam ou, o mais provável, desconhecem os usos suplementares dos dados. Rice parou um instante e prosseguiu:
– E foi aí que entramos em cena. Enviamos a foto da mulher e as imagens digitalizadas dos desenhos a uma conhecida plataforma de servidores que cobre vários países na Europa. Eles rastrearam todos os arquivos de que dispunham. Da primeira vez, não obtivemos nenhum resultado. Mas, da segunda vez, sim. – E qual foi o resultado? Rice digitou algumas teclas e virou a tela para Kuchin. – Obtivemos um único resultado positivo, mas foi melhor do que nada. Zurique. Do lado de fora de um hotel, sete meses atrás – explicou Rice. Kuchin se inclinou para a frente e examinou a imagem. Sem dúvida, era o homem alto. – Mas quem é ele? – Ainda não sabemos. Kuchin deu um tapa na mesa. – Então, isso não serve de nada para mim! – Espere, Evan, por favor. Tem mais. Olhe para a mulher ao lado. Kuchin obedeceu. Era uma loura alta e esbelta. Notou que o braço da mulher estava junto à mão de Shaw. Ele encarou Rice. – Eles estão juntos? – É o que parece. Vericamos com o hotel. Não queriam dar informação alguma sobre nenhum deles, logo passamos a imagem dela pelos bancos de dados. – E obtiveram um resultado positivo? – Mais do que isso. – Rice lhe entregou uma pasta, mas Kuchin não a abriu. – Sei que você prefere papel a digital. – O nome dela? – Katie James.
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– NÃO PODEMOS PELO MENOS comer antes de o momento do faz de conta terminar? – perguntou Reggie, séria. – Isso significa tanto assim para você? – Na verdade, sim. Shaw lançou um olhar para o garçom que rondava a mesa. – Tudo bem, este não é mesmo um bom lugar para conversar sobre assuntos sérios. A comida chegou e eles falaram sobre amenidades. Outra garrafa de vinho, só que tinto, foi pedida e consumida por inteiro. Tomaram café e dividiram uma sobremesa que levava coco e pedaços de glacê branco por cima. Shaw pagou a conta com um cartão de crédito. – A. Shaw? – indagou Reggie, espiando o nome no pedaço de plástico. – “A” de quê? – Absolutamente nada. Ele assinou na linha pontilhada e os dois se levantaram e foram embora. A noite ainda estava quente, pelo menos para os padrões de Londres, embora Reggie desejasse naquele momento ter trazido um suéter. Notando que ela estava com frio, Shaw tirou o paletó e o jogou sobre seus ombros. Ficou parecendo um vestido. – Quarenta e seis extralongo? – indagou ela, segurando o tecido. – Algo assim. Como estão seus pés? – Depende do lugar para onde estivermos indo. – Meu hotel fica naquela direção. Dez minutos de táxi. Ela fez uma expressão de surpresa. – Seu hotel? – Ou podemos ir para a sua casa. – Por que só essas duas opções? – Também podemos ir a outro lugar público, conversar a respeito, com esperança de que ninguém nos ouça. Reggie pensou no casal assanhado no apartamento de cima. – Minha casa não é muito silenciosa. – Meu hotel é. – Onde fica? – É o Savoy. Foi reaberto recentemente. Linda vista do rio. Muito bom. – E aquele seu papo de ser “atirado”? Ir para o seu quarto a esta hora da noite parece se
encaixar nessa categoria. – Isso foi antes; agora a situação é outra. Podemos pegar um táxi. Fica na Strand. – Sei onde fica. – Então vamos. Um taxista que tinha “O Conhecimento” – que é como os londrinos se referem ao mapa mental da cidade que os motoristas devem aprender ao longo dos anos – os levou depressa por Piccadilly até a Haymarket, circundou lorde Nelson e seus pombos e entrou na Strand. – Sempre me perguntei por que o único lugar onde as pessoas dirigem na direita em toda a Grã-Bretanha é a pequena rua que leva à entrada do Savoy. – É porque o átrio do hotel era estreito demais para que os cocheiros chegassem até a porta se permanecessem à esquerda. – Shaw a olhou, surpreso. Reggie disparou: – O que foi? Sou inglesa, afinal de contas. Os dois entraram no saguão, subiram um lance de escadas e tomaram um elevador até o quarto de Shaw. Ele fechou a porta, largou as chaves sobre a mesa e indicou uma cadeira para Reggie enquanto se sentava na beirada da cama. – Malditos saltos altos! – Ela tirou os sapatos e esfregou os pés doloridos. – E agora? – Agora, falamos de sobrevivência. – A sua ou a minha? – Ambas, se tivermos sorte. – Seu chefe não pareceu estar muito a m de trabalhar conosco. Ele mais parecia querer nos prender. – É o que ele deveria ter feito? As feições de Reggie se endureceram. – Não vou pensar por ele. Shaw abriu o cofre do quarto, que cava dentro de um armário, puxou uma pasta e folheou algumas páginas. – Fedir Kuchin. Andei lendo sobre ele. – Eu poderia ter lhe poupado esse trabalho. Temos montanhas de documentos sobre o monstro. – As pessoas achavam que ele estava morto, que tivesse sido assassinado em um levante na Ucrânia anos antes da queda do Muro. – Estratégia de fuga cuidadosamente orquestrada. Vários deles fizeram isso. Shaw olhou para ela por cima da pasta. – “Vários deles”? O que exatamente você e seus camaradas fazem em Harrowsfield? – Algo que eu não posso revelar a você. Jamais. – Você vai ter que revelar a alguém. – Por quê? Você já contou ao seu chefe sobre o lugar? – Não contei nada a ele sobre coisa alguma. O que estou dizendo é que você talvez vá precisar de um amigo neste caso.
– E você é esse amigo? – ironizou ela. – Eu não disse isso. Não conheço o suciente dessa história para saber se quero ser seu amigo ou não. – Você quer dizer que pode acabar se voltando contra nós? – Apenas me conte. Reggie se levantou e começou a andar descalça de um lado para o outro, contraindo e alongando os dedos do pé sobre o carpete macio, tentando se livrar da cãibra. – Não é tão simples assim. Nada neste caso é simples, Shaw. – Cabe a você simplificar ou não. – Ah, pare com isso, você sabe que isso é papo furado. – Talvez seja, mas estou achando difícil encontrar palavras para convencê-la a conar em mim. Pensei que tinha conquistado um pouco da sua confiança em Gordes. – Isso foi antes; agora a situação é outra – falou ela, repetindo os dizeres anteriores de Shaw. – Acho que arriscar a vida não tem mais o mesmo peso de antigamente. Reggie parou de andar e se sentou ao lado dele na cama. Olhou para o chão e suspirou. – Não é verdade. – Então, qual é o problema? Sei que Kuchin é um vilão. – Mas você sabe o que íamos fazer com ele. – Parece bastante óbvio. – Presumo que você não siga essas regras. – Não, a menos que seja uma questão de vida ou morte. – É uma filosofia muito diferente. – Como eu já disse, não tenho autoridade para prender ninguém. – Certo, claro. Ela se levantou, foi até a janela e abriu a cortina. – A vista mais bonita de Londres – opinou Shaw, se juntando a Reggie. Feliz pela mudança momentânea de assunto, Reggie apontou para uma estrutura iluminada ao longe. – Você já foi à London Eye? – Uma vez, mas só porque um sujeito que eu estava seguindo resolveu dar uma volta. Reggie apontou para outra construção. – Você sabia que Claude Monet pintou um retrato da ponte de Waterloo de uma das sacadas aqui do Savoy? E que Fred Astaire dançou no terraço? – Não, eu não sabia. Reggie fechou a cortina e se virou para ele. – Mas a história mais estranha que já ouvi sobre o Savoy tem a ver com um gato chamado Kaspar. É o morador mais antigo daqui. Toda vez que realizam um jantar no Savoy com 13 convidados, Kaspar ocupa o 14o lugar.
– Isso porque, segundo a superstição, a primeira pessoa que se levanta em um grupo de treze pessoas morre? – Exato. Acho que Agatha Christie até escreveu um livro a respeito. – Mas comer com um gato? – Kaspar é uma escultura de madeira, o que o torna uma companhia inestimável, nem que seja por sua discrição e silêncio. – Bela história – elogiou Shaw. – Não é? – Quantos outros Kuchins vieram antes? – Você está perguntando isso só porque falei “vários deles”? Ótimo raciocínio. – Não exatamente. – Por quê, então? – Ninguém age tão bem assim de primeira. – Não sei até que ponto somos bons. Gordes foi uma grande sucessão de erros, como você disse. – Sempre há imprevistos em campo, por melhor que tenha sido o planejamento. Mas, a meu ver, vocês têm dois grandes problemas, que talvez estejam ligados. Ela voltou a se sentar na cama e encarou Shaw. – Muito bem. Quais? – Primeiro, vocês caem em emboscadas. Isso signica que vocês permitem que alguém os espione ou que existe um agente infiltrado. – E o segundo? – Kuchin ainda está à solta. E, a menos que o sujeito destas páginas – ele deu uma batidinha no dossiê – tenha amolecido, ele não vai esquecer essa história. Se ele matou os terroristas muçulmanos, é porque ainda tem um ímpeto assassino. Se ele também tem um espião no meio de vocês, as coisas se tornam ainda mais problemáticas. – Mas, se ele tivesse um espião, como poderíamos tê-lo levado até as catacumbas? – Não tenho certeza. Seja como for, a questão é: o que vocês vão fazer? – Para dizer a verdade, esse é um território novo para nós. – Eu gostaria de ajudá-los. – Você não sabe no que estaria se metendo, confie em mim. – Isso é tudo o que estou pedindo: que você confie em mim. – Nunca conei em ninguém. Às vezes, não cono nem em mim mesma – falou ela, perturbada. Shaw se sentou ao lado de Reggie na cama. – Como você acabou envolvida nisso tudo? – E como você acabou trabalhando nesse ramo? – rebateu ela, com raiva. – Foi algo contra a minha vontade. – Pois é, eu escolhi meu caminho.
– Então, também escolho seguir o mesmo caminho com você. – Por quê? Por que me ajudar? – Não tenho muitas oportunidades de ajudar os outros. Quando surge uma chance, tento não perdê-la. A raiva de Reggie esmoreceu e ela tocou no rosto de Shaw. – Quem foi Anna? – Uma mulher com a qual eu me importava, como eu já disse. – Sinto muito. – Eu também. – Eu não sou a Anna, Shaw. Os olhos dele brilharam. – Eu sei disso. Ninguém pode substituir Anna. Shaw fez menção de falar algo mais, porém Reggie cobriu sua boca com a mão. – Por favor. Não. Reggie deslizou a mão até a bochecha dele. – Reggie? Ela balançou a cabeça, cou de pé, abriu o zíper do vestido e o tirou, cando à frente dele apenas de calcinha e sutiã. Era como se estivesse esperando que Shaw a mandasse parar. Ele a cou olhando. Por m, pôs a mão em seu quadril e o apertou de leve. Reggie o deitou na cama com um empurrão e montou por cima. Ela atacou-lhe a boca, mordendo seu lábio inferior, beijou seu pescoço e seu rosto antes de voltar faminta para a boca enquanto ambos tiravam a roupa. Havia energia, raiva, desespero e até violência contida no embate entre os dois. Reggie e Shaw estavam ensopados de suor, pois o novo sistema de climatização do Savoy não conseguia dar conta de todo o fogo daquele encontro sôfrego. No nal, os dois se jogaram emaranhados na cama, o cabelo dela nos olhos de Shaw, o joelho dele entre as pernas de Reggie, cujo braço arqueado circundava a cabeça do amante. Ela acariciou seu rosto e o beijou. Shaw estava de olhos fechados, a respiração voltando lentamente ao normal. – Parece que você também não fazia isto havia muito tempo – disse ela, ainda ofegante. Shaw se desvencilhou dela e se recostou na cabeceira da cama. – Eu disse algo errado? – Não foi nada do que você fez, Reggie. Ela o envolveu com o próprio corpo e cou enrolando com o dedo um dos pelos do seu peito. – Não seria legal se pudéssemos ficar assim um pouco? Talvez por alguns anos? – Acho que enjoaríamos, não? – Na verdade, gostaria de experimentar. Não consigo imaginar isso, pensou Shaw.
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ACORDARAM TARDE DEPOIS DE um sono profundo. Tomaram banho juntos, revezando-se para ensaboar um ao outro, e zeram sexo sob a ducha quente. Reggie se vestiu e se sentou na cama ao lado de Shaw, que estava apenas de roupão. – Então, onde ficamos depois de tudo isto? – perguntou ela, perscrutando-lhe o rosto. – Não tenho certeza. Ainda não resolvemos o que fazer em relação a Kuchin. E você não me disse o suficiente para que eu possa ajudá-la. – Na verdade, eu estava falando sobre o sexo. – E quando Shaw a encarou, um pouco perplexo, ela acrescentou: – Acho que deve ser típico das mulheres querer saber essas coisas. Suponho que vocês, homens, apenas aceitem as coisas pelo que parecem ser. – Foi incrível, mas ainda preciso entender sua operação. – Muito sensível da sua parte. Mas, se eu falar, você terá que contar a outras pessoas. Isso não pode acontecer. – E a questão da confiança? – Como eu disse, não confio facilmente em alguém. – Nem eu. Mas acho que confio em você. – Você acha? – Bem, no momento, eu pareço mais confiável do que você. – Então, você acredita que Kuchin virá atrás de nós e que talvez haja um espião na nossa organização? – Mesmo que não haja nenhum traidor, Kuchin chegará até vocês. – Não concordo. Nosso disfarce era excelente. – Vocês não sabem até que ponto o disfarce era bom porque ainda não foi testado. E esse cara vai testá-lo. Além disso, vocês não deixaram a área limpa. Tiveram que sair às pressas. Algumas coisas podem ter cado para trás. Pessoas podem ter ouvido ou visto algo. Agora, ele está planejando o tempo todo como pegar vocês. – Como você sabe disso? – Porque é o que eu estaria fazendo. – É reconfortante saber que você e ele pensam da mesma maneira. Kuchin virá atrás de você também. – Certo. Por isso, devemos trabalhar juntos. Assim, quem sabe, o pegamos antes que ele nos pegue.
– Sua organização não está mais interessada. Você deixaria seu pessoal de lado para fazer isso? – Se necessário, sim. – O tal Frank não me pareceu muito tolerante nem compreensivo. – E não é mesmo. – Então, por que fazer tudo isso? – Porque não quero viver sempre na expectativa de que esse cara venha atrás de mim. Reggie o olhou com ar interrogativo. – Esse é o único motivo? – Vamos dar um passo de cada vez. – Mas você acha que alguém do meu lado está preparado para dar cabo de você. Não vou ajudar você a se vingar dos meus colegas. – Mesmo que eles fossem me matar? – Como você disse, vamos dar um passo de cada vez – respondeu ela com frieza. – Harrowsfield. – O que é que tem? – Leve-me até lá. Reggie fez uma expressão de espanto. – O quê? – Leve-me até lá. – Você cou maluco? Quer que eu chegue lépida e fagueira e diga: “Oi, pessoal, aqui está o Shaw. Não sei ao certo quem ele é, mas vamos tomar um chá e ser agradáveis?” – Deixo a explicação por sua conta. – Você não pode estar falando sério. – Pelo contrário. – E se eu me recusar? – Darei um telefonema e a situação não será mais responsabilidade minha. Todos vocês caem. Ela se levantou devagar e o encarou. – Você faria isso comigo? Depois do que acabou de acontecer nesta cama? E no banho? – Primeira regra do nosso trabalho: deixar de lado a parte pessoal. Só amadores se esquecem dela, ou talvez nem a entendam. – Então, você só transou comigo por capricho? E agora ainda me ameaça? Seu canalha! Reggie tentou esbofeteá-lo, mas ele lhe agarrou a mão. – O que você parece não entender, Reggie, é que estou pondo minha vida em jogo para ajudar você. As probabilidades de ele chegar primeiro a vocês são muito maiores. Me ofereço para fazer tudo ao meu alcance para detê-lo. Mas, para que eu possa fazer isso, você precisa conar em mim. Não encaro com leviandade o que aconteceu entre nós neste quarto. Se essa explicação não é boa o suciente para você, vá em frente e bata em mim. Mas
use toda a força que puder. Será sua única oportunidade. Shaw soltou a mão dela e esperou. Os dois se encararam em silêncio por um tempo. Por fim, Reggie ordenou: – Vista-se. Preciso passar na minha casa para trocar de roupa. E você vai pelo menos me oferecer um café da manhã à inglesa antes de eu ser crucificada em Harrowsfield.
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SHAW TOMOU TRÊS XÍCARAS de café e Reggie comeu provavelmente o maior café da manhã da sua vida. – O sexo abre seu apetite? – indagou Shaw. – Não foi o sexo. – O que foi, então? – Culpa. – Não há motivo para culpa. – Talvez para você. Eu tenho muitos motivos para me sentir péssima. Eles tomaram o metrô até o apartamento de Reggie. Shaw cou na rua, esperando-a colocar uma calça branca, uma camisa jeans e sapatos rasteiros. Entraram no carro dela e foram até Leavesden. A cabeça de Shaw batia no teto do carro e seus joelhos estavam pressionados contra o painel. Reggie estava satisfeita com seu óbvio desconforto. Ao passarem pela estrada que levava até duas antigas colunas, ela disse: – Shaw, não sei se estou fazendo a coisa certa. – Respire fundo e continue a dirigir em linha reta. Pararam na frente da casa e saltaram. Shaw sentia que eles estavam sendo observados enquanto se dirigiam à porta de entrada, que se abriu antes que Reggie colocasse a mão na maçaneta. Whit parecia pronto a atirar nos dois. – Não acredito que você trouxe esse cara aqui. Você está louca? – Ela não teve escolha – respondeu Shaw. – Era eu ou a polícia. – Como você sabia deste lugar? – perguntou Whit. – É difícil manter segredos hoje em dia. – Whit – falou Reggie –, todos nós precisamos sentar e conversar. – Você passou dos limites. – Ele apontou para Shaw. – Esse cara vai acabar conosco. – Use a cabeça, Whit – interveio Shaw. – Se eu quisesse acabar com vocês, por que estaria aqui? Poderia simplesmente ter mandado a polícia. Whit olhou para ele, depois para Reggie e voltou a encarar Shaw. – Então, que diabos você quer? – Ajudar. – Ah, está certo, você é a maldita fadinha que traz pó de pirlimpimpim para os bons
meninos e meninas? – Não me importa o que você pensa. Vim aqui para falar com quem dirige esta “operação” , e sei que não é você. Saia do caminho ou tente me deter. Whit tou os quase 2 metros de Shaw, os ombros largos e músculos bem denidos visíveis por baixo da camisa. – Tudo bem, entre. Mas não diga que não avisei. Assim que Shaw avançou, Whit tentou sacar a arma. Shaw o esmagou contra a parede com o ombro, tirou a arma da sua mão, lhe deu uma rasteira e pisou na lateral da sua cabeça. Puxou o pente, travou a arma, tirou a bala que estava na posição de tiro e a pôs no bolso junto com o pente antes de jogar a pistola vazia de volta para Whit. Depois, abaixou-se, pegou o outro homem pelos ombros e o ergueu. – Se vocês querem pegar Kuchin, vamos precisar pôr esta operação para funcionar. – Que operação? – A que aparentemente vamos planejar com ele – respondeu Reggie. – Você não me parece muito contente – observou Whit, esfregando o ombro machucado. Reggie olhou para Shaw: – Como ele mesmo disse, não tive escolha. Onde está o professor? – Bem aqui. Todos se viraram para o hall. Mallory apontava sua pistola para Shaw. – Poderia vir aqui, Sr. Shaw? Acho que precisamos ter uma conversinha. E aviso logo que a arma está carregada e que tenho uma boa pontaria. Shaw não hesitou, atravessando a porta. – É exatamente o que eu quero, professor. E espero descobrir por que o senhor achou necessário mandar que um dos seus soldados rasos me injetasse uma quantidade de botulina suficiente para matar um rinoceronte.
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KUCHIN HAVIA PASSADO O dia inteiro estudando o dossiê sobre Katie James. Ao terminar, chamou Rice. – Um monte de informação, mas muito pouco que possa nos indicar onde ela está neste momento. – Ela tinha um apartamento em Nova York, mas perdeu o emprego, não conseguiu mais pagar o aluguel e foi despejada. Não deixou o novo endereço. Pelo que eu soube, ela costuma usar as casas de ex-colegas mundo afora para se hospedar durante alguns dias ou semanas. – Lembro-me, é claro, do seu último artigo. – Katie James foi uma peça-chave para desmascarar aquela conspiração. Até hoje a verdade ainda não foi totalmente revelada. – Foi acobertada – armou Kuchin com autoridade. – Porque a verdade constrangeria pessoas importantes. É sempre assim. Rice indicou a montanha de papéis. – Bem, para mim, por melhor que ela seja como jornalista, não investigou todo o episódio sozinha. – Bill Young a teria ajudado? Por isso eles estavam juntos em Zurique? – É uma hipótese. – Talvez haja outras mais plausíveis. Mas elas não me importam. Precisamos encontrá-la. – Posso pôr algumas pessoas para trabalhar nisso. Vericar listas de passageiros em voos e transações com cartões de crédito. – Não, eu cuido disso. – Mas... Kuchin se levantou, segurando o dossiê com a mão direita. – Alan, eu disse que você devia se concentrar nos negócios. Eu me preocuparei com isto até que a questão esteja resolvida. Nenhuma atividade incomum nos escritórios, certo? – Atividade incomum? – Alguém mostrando um interesse extraordinário pelo meu paradeiro? – Não que eu tenha visto ou ouvido. O movimento de sempre. – Então, é possível que eu volte com o jatinho. Kuchin parecia estar falando mais consigo mesmo do que com Rice.
– Tudo bem, Evan. Afinal, você está pagando pelo avião. – Eu sei disso. Estarei pronto para partir daqui a uma hora. Avise aos pilotos. Kuchin arrumou uma mala pequena. Um dos privilégios de voar em um avião particular é poder levar qualquer coisa a bordo. Armas, explosivos, vítimas. Ele já havia transportado tudo isso. Ao terminar, Kuchin digitou uma tecla no telefone. – Pascal? – Sim, Sr. Waller. – Vou a Montreal. Quero você comigo. – Sim, senhor. Estou pronto para partir. – Como você sabia? – É meu trabalho, senhor. O fiel servidor. – Cinco minutos. – Sim, senhor. Rice esperava ao lado da porta quando Kuchin saiu com sua sacola e sua pasta. – O avião está pronto. O voo até Montreal não é muito mais longo do que a viagem de carro da pista de aterrissagem até aqui. – Excelente. Ligo para você no momento da aterrissagem. – Você vai me ligar? – perguntou Rice, espantado. – Sim, você vai ficar aqui. – Mas eu achei que... Os negócios. – Acesso por computador; há uma torre de telefonia celular aqui perto, portanto, o serviço é muito bom. Você pode trabalhar daqui, não? – Sim, mas... – Ficarei em contato. – Kuchin avançou, seguido por Pascal. A aeronave decolou pouco mais de uma hora depois. Enquanto o Gulfstream atravessava o céu, Kuchin se acomodou diante de uma mesa e espalhou sobre ela o dossiê de Katie James. Em sua carreira na KGB, ele fora encarregado de encontrar muitas pessoas, que nunca queriam ser encontradas, pois seriam torturadas, mortas ou, mais provavelmente, as duas coisas. Por isso, aprendera muitas das artimanhas dos “desaparecidos” . Mas isso havia acontecido décadas antes. As coisas tinham mudado. Existiam novas maneiras de encobrir os próprios rastros. Porém, Kuchin pensava ter pelo menos uma vantagem. Katie James talvez não soubesse que alguém estava em seu encalço. Nesse caso, talvez nem estivesse se escondendo. Sete meses antes em Zurique. Último endereço conhecido em Nova York. Se ela foi de Nova York para a Suíça, viajou de avião. Depois disso, Kuchin não sabia para onde nem de que maneira ela podia ter viajado. Mas os meios de transporte eram limitados. Avião. Trem. Carro. E o método de pagamento também, é claro. Transações de cartão de crédito,
atividade via e-mail. Nesses casos, haveria registros. Eles aterrissaram e, no caminho até a cidade, Kuchin fez uma ligação. Ele não ia para a cobertura, que podia estar sendo vigiada. O ucraniano tinha outro esconderijo na cidade. – Vou precisar da sua ajuda, Pascal – falou ao término do telefonema. – Tudo o que for necessário, Sr. Waller. Pode deixar que eu me encarrego. – Também cuida do homem alto? – Sim, senhor. Peço desculpas por ele ter me surpreendido. Eu devia ter previsto, mas não tivemos muito tempo para organizar tudo aquilo. – Justamente, gostaria de saber como tudo foi organizado. – Algumas horas antes de o senhor sair para ir à feira com a moça, o Sr. Rice chamou a mim e ao Manuel. Disse que talvez houvesse um problema e que queria se certicar de que estava tudo bem. – Ele falou por que achava que havia um problema? – Ele suspeitava daquela mulher. Eu comentei que, nesse caso, deveríamos falar com o senhor. – E o que ele respondeu? – Que queria ter certeza. Ele sabia que o senhor gostava da moça e não queria estragar tudo caso estivesse errado. Não queria que o senhor casse com raiva dele. Disse que o senhor já havia demonstrado insatisfação. – Muito bem, entendo. Prossiga. – Fomos à igreja. Vericamos o altar e coisas assim. Depois, o Sr. Rice falou que precisávamos ir ao porão. – As catacumbas? – Acho que sim. Fomos até lá e, de início, não encontramos nada, mas o Sr. Rice percebeu que uma das criptas estava destampada. Vimos alguns equipamentos montados lá embaixo. Um gerador, luzes e mais algumas coisas. O Sr. Rice disse que caríamos ali para ver se algo aconteceria. – E aconteceu. – Porém, não vi o grandalhão. Ele apareceu do nada. – Pascal esfregou a cabeça. – Bela pancada. Estou ansioso para retribuir. – Mas, primeiro, precisamos encontrá-lo. – Kuchin mostrou uma foto de Katie James. – Esta mulher é o único elo que temos com ele. Trata-se de uma jornalista. Muito famosa, mas ninguém a viu recentemente. Se conseguirmos descobrir seu paradeiro, talvez possamos achá-lo. – O senhor quer que eu comece a procurar? – Primeiro, vou fazer algumas investigações. Concentrar as buscas. Depois, você entra em cena. – Sim, senhor. Kuchin tou a imagem. Katie era uma mulher muito bonita. Velha e branca demais para
ser uma de suas mercadorias, mas, ainda assim, atraente. Ficou se perguntando qual era a relação dela com aquele homem. Esperava que fosse bastante próxima. O suciente para atraí-lo até ela.
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SHAW SE ACOMODOU EM uma cadeira na biblioteca. Não havia fogo na lareira. O dia estava quente; o céu prenunciava uma tempestade. Reggie e Whit caram ao lado da porta. Mallory, ainda empunhando a pistola, se sentou à frente de Shaw. Liza, em pé, se apoiava com uma das mãos sobre a longa mesa. Dominic, com o braço ferido, estava encostado a uma parede do outro lado. Todos olhavam para Shaw. – Se o senhor puder manter essa arma apontada para baixo até ter a intenção de usá-la, eu agradeceria – disse Shaw. – Ela tem uma trava de segurança no cabo e é conhecida por ter um gatilho sensível. Mallory abaixou um pouco a arma. – Que diabos ele quis dizer com botulina? – perguntou Whit, encarando o professor. Antes que Mallory pudesse responder, Reggie deu um passo à frente, tirou a seringa da bolsa e a pôs em cima da mesa. – Por muito tempo considerado o veneno mais tóxico do mundo – explicou ele em tom pedante. – Embora tenha infinitos usos médicos, inclusive cosméticos, sob o nome de Botox. – A morte é rápida, mas terrivelmente dolorosa – completou Shaw sem desviar o olhar do rosto do professor. – Não seria assim no seu caso. Note que a seringa tem duas soluções em compartimentos separados, mas com uma barreira semipermeável. O elemento adicional é um potente anestésico. Você teria ficado inconsciente. Não teria sentido nada. – Enquanto morria. – Bem, sim – admitiu Mallory. – Afinal de contas, esse era o objetivo. – Miles! – exclamou Liza. – Onde você estava com a cabeça? Não fazemos isso com inocentes. – Bem, eu não sabia até que ponto o Sr. Shaw era, ou para ser sincero, é inocente. Ele havia tomado conhecimento da nossa operação e dos nossos planos em relação a Fedir Kuchin. Permitir que fosse solto depois disso me pareceu algo no mínimo problemático. – Mas ordenar a morte dele? – questionou Reggie em tom glacial. – Não somos assassinos... Ela se interrompeu e cou pálida. Whit, Dominic e Liza não conseguiram se entreolhar. Eles pareciam estar tendo o mesmo pensamento. Na verdade, somos assassinos. – Foi um julgamento que z no afã da batalha – retorquiu Mallory. – Não foi fácil e houve
alguns erros de cálculo. – Bem, isso faz com que eu me sinta melhor – ironizou Shaw. – Mas aqui estou eu, são e salvo. – Sim, os planos às vezes dão errado. – Mas deixe-me dizer o que faria com que eu me sentisse ainda melhor. – O quê? – Gostaria que o senhor abaixasse mesmo essa arma. Antes que eu seja obrigado a fazer algo. Os dois se encararam, medindo forças só pelo olhar. Por m, Mallory pôs a arma sobre a mesa, com o cano virado para uma parede. – Kuchin – disse Shaw. – Ele está vivo e à caça. – Nosso disfarce era muito bom – observou Mallory. – Muito bom não é suciente. Li o relatório sobre ele. Uma mente como aquela possui um caráter obsessivo que vai muito além da razão ou da previsibilidade. Precisamos partir do princípio de que ele está atrás de todos nós e irá nos encontrar em algum momento. Quando isso acontecer, o que vocês irão fazer? – Matá-lo – respondeu Whit. – O que deveríamos ter feito logo de cara. Eu poderia ter enfiado uma bala na cabeça dele se você não tivesse me impedido. – Para falar a verdade, também estaríamos mortos se Shaw não estivesse lá – lembrou Reggie. Whit lhe lançou um olhar sombrio. – Isso faz parte do risco. Eu estava disposto a aceitá-lo. Achei que você também estivesse. – Falar sobre o passado não ajuda a enfrentar o futuro – interveio Shaw, que continuava a fitar Mallory. – Vocês estão preparados para enfrentar o futuro? O professor se recostou na cadeira. – O que você sugere? – Preciso de todas as informações que vocês têm sobre Kuchin. Se conseguirmos chegar até ele primeiro, eu me encarrego do resto. – E o que isso quer dizer exatamente? – questionou Whit. – Deduzo que vocês tenham provas de que ele é Fedir Kuchin e de que cometeu todos aqueles crimes. – Temos. – Então ele será julgado e condenado. – Não é assim que trabalhamos aqui, Sr. Shaw – retrucou Mallory. – Bem, eu trabalho de uma maneira um pouco diferente. Mas imagino que exista um tribunal na Ucrânia que se interessaria muito em cuidar desse caso. Duvido que Kuchin fosse sair vivo do país. – Talvez isso seja verdade, mas, para ser sincero, não sei se nossas provas subsistiriam em um tribunal de justiça. Moralmente, sim, mas a lei parece não se importar mais com esse
tipo de coisa. Bem, vamos ao que interessa: se ele fosse julgado e condenado, nosso envolvimento teria que ser revelado? – Não vejo motivo para isso. – A questão é se podemos confiar ou não em você. – Ah, pelo amor de Deus, Miles – impacientou-se Liza. – Se ele quisesse acabar conosco, não faltaram oportunidades. – Ela tem razão – concordou Reggie. – Shaw não precisava ter vindo até aqui comigo. Ele já havia encontrado este lugar. Mallory pareceu interessado por esse novo dado. – Por que você quer nos ajudar? – É muito simples: Kuchin merece. Se eu puder ajudar vocês a pegá-lo, ficarei muito feliz. – E as pessoas para quem você trabalha não se incomodam? – Não pedi a permissão delas. – E isso não é um problema? – Não, a menos que vocês o tornem um. – Shaw se levantou. – Agora, já gastamos tempo demais com esta conversa. Temos um acordo? Pegamos Kuchin e ele é julgado por um tribunal? Mallory olhou para os outros. – A menos que alguém tenha uma objeção, podemos lhe dar as boas-vindas à equipe. Shaw tirou o cartucho de Whit do bolso e o jogou para ele. Depois, voltou-se para Reggie. – Na verdade, prefiro pensar que se trata de um cargo temporário.
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– OBRIGADO POR ME AJUDAR, meu amigo – disse Kuchin ao apertar a mão do outro homem e lhe tocar o ombro em sinal de gratidão. Eles estavam no esconderijo de Kuchin nos arredores de Montreal. O outro sujeito tinha o porte e o jeito conante de quem provavelmente andava sozinho e sem medo por ruas escuras em cidades estranhas. Quinze anos antes, quando ele ainda não abrira seu próprio negócio, aquele homem ocupava a posição que naquele momento era de Pascal. – Senti uma urgência na sua voz, Evan. Temos uma longa história. Kuchin serviu um drinque e o empurrou para o outro lado da mesa. O homem tomou um gole, segurou o copo com as duas mãos e informou: – Ela deixou um rastro. Não tão claro, mas há algumas coisas que podemos usar. Kuchin se sentou com ar de expectativa. O homem esvaziou o copo, limpou a boca e abriu uma pasta. – Registros de cartão de crédito e viagem. De Zurique, ela foi com a Swissair para Frankfurt, onde alugou um carro. A quilometragem mostra que dirigiu a algum lugar que não ca a mais de uma hora da cidade. Mesmo assim, trata-se de um raio de busca muito vasto. Ela se hospedou em um pequeno hotel em Wisbach. Não sabemos por que esteve lá nem o que fez. Vou precisar pôr alguns homens em campo para obter essas informações. – Primeiro, quero ouvir o resto. – De Frankfurt, ela viajou para Paris. Ficou lá quatro dias. Depois, cruzou o Canal da Mancha até Londres. Não sabemos onde ela cou em Londres. Não há registros de cartão de crédito nesse período. – De vez em quando, ela fica na casa de amigos, quando eles não estão, ao que parece. – Faz sentido. Nesse caso, não haveria nenhum registro. Ela voltou para os Estados Unidos. Nova York, Washington, São Francisco. Não conseguimos encontrar nenhum registro de que trabalhou para alguém nesse período. – E quanto ao celular? É possível rastreá-lo por GPS. – Tentamos essa abordagem. Parece que ela desabilitou o chip de GPS. E a triangulação entre antenas de telefonia celular em casos como esse não é muito conável. Não tenho os recursos do FBI ou da ANS. Acho que ela não quer ser encontrada. – O que você tem de mais recente? – Há várias semanas, ela estava em Paris.
Kuchin inclinou-se para a frente. – O que mais? – Nada mais. Nenhum hotel. Nenhuma compra de comida com o cartão. Ou ela só usa dinheiro vivo ou se alimenta de restos das latas de lixo. Não cou lá muito tempo. Foi embora de Paris no dia seguinte e voltou aos Estados Unidos. Vi pessoalmente a reserva do voo e a documentação. E ela apareceu nas câmeras de segurança do aeroporto Charles de Gaulle naquele dia. – Então voltou para São Francisco? – Não, para Washington. Veriquei as companhias aéreas, trens, ônibus e carros alugados saindo da cidade e não encontrei nada. Bem, ela pode ter usado documentos falsos, mas talvez ainda esteja por lá. – E nada de hotel. – Não. Talvez outro amigo a hospede. – Talvez – repetiu Kuchin, pensativo. – Washington não é tão grande assim, se comparada a outras cidades. Posso mandar alguns dos meus subordinados para passar um pente fino e ver se ela aparece. Kuchin balançou a cabeça. – Não. Isso não será necessário. Eu assumirei a caça de agora em diante. O outro homem se levantou. – Continuarei a passar qualquer informação que surgir. Tenho marcadores inseridos no sistema. Se ela comprar uma passagem de avião, alugar um carro, usar o cartão de crédito ou débito, ou ativar o chip de GPS, eu ficarei sabendo, e você também. Depois que o homem foi embora, Kuchin se sentou na cadeira e cou pensando. No momento, estava com muitos problemas. Embora estivesse acostumado com situações daquele tipo, ele era um homem que gostava de concentração. No entanto, às vezes não era possível ter o que se desejava. Ainda assim, seu foco devia ser Katie James. Era o único elo que eles tinham. Kuchin precisava encontrar aquela mulher.
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DOIS DIAS HAVIAM SE passado. Shaw estivera em cada canto de Harrowseld, observando o pessoal rastrear o próximo alvo e tendo conversas longas e detalhadas com Mallory, Liza, Reggie, Whit e Dominic. Até se aventurou a ir ao estande de tiro subterrâneo com Reggie. Lá, ele a viu acertar na mosca mais de noventa por cento das vezes, mesmo com um muro de fumaça a separando da silhueta que constituía seu alvo. – Estou impressionado – comentou Shaw enquanto eles voltavam. – Como você consegue? – Lembro a posição do alvo. – Bem, na vida real, os alvos quase nunca ficam parados. Passaram pelo cemitério no caminho de volta até a casa. Shaw parou diante do túmulo de Laura R. Campion. – Parente? – perguntou ele. Reggie lhe revelara seu sobrenome. – Duvido. – Você vem muito aqui? – Mais do que deveria – admitiu ela. Reggie se sentou no velho banco e Shaw ficou em pé ao seu lado. – Então você vem até aqui, ca olhando para o túmulo de alguém que você nem sabe se é um parente e acha isso saudável? – Não seja implicante. Todo mundo tem suas esquisitices. – Tudo bem, mas e a sua família? – O que tem ela? – perguntou Reggie, na defensiva. – Eles estão vivos? – Não. E como estão os seus lhos? Resolveu aquele problema com seu garoto nos Estados Unidos? – Minhas primeiras lembranças são de uma freira velha e gorda em um orfanato. Nunca me casei. Não tenho filhos. – Desta vez é a verdade? – É. – Mas existe um túmulo nos arredores de Frankfurt. Anna? Shaw inclinou a cabeça, fitando o chão. – Mas eu conhecia a mulher que está naquele túmulo. – Como eu disse, é uma esquisitice minha. Eu gostaria de saber mais sobre ela.
– Sobre quem? A mulher no meu túmulo ou no seu? – Sobre as duas. Shaw ficou observando o voo de um pássaro. – O que aconteceu com a sua família? – Todos morreram – respondeu ela, ríspida. – Simplesmente, morreram – acrescentou, com mais suavidade. – Acontece. A cada segundo, a cada dia. – Sua expressão se alterou. – Então, o que você aprendeu sobre nós? – Que vocês têm sorte de estarem vivos. Reggie franziu a testa. – Como assim? – Vocês até podem ser bons em campo, apesar de eu só ter testemunhado o fracasso em Gordes. Mas este lugar não tem um perímetro de segurança, há pouca proteção interna e a maioria das pessoas que conheci nunca passaria em uma vericação básica de segurança. Whit, por exemplo, é um agente em ruínas. E seu destemido líder, o professor Mallory, parece uma reencarnação de C. S. Lewis com tendências homicidas. – Na verdade, acho que ele prefere Tolkien. – Isso não muda a situação. Vocês estão caminhando sobre gelo fino. Reggie se levantou. – Quer saber de uma coisa? Sempre fomos bem-sucedidos. Até você aparecer. – Se eu não tivesse aparecido, vocês estariam mortos – lembrou ele. – Certo. Você quer que eu me ajoelhe e ateste sua superioridade? Não temos grandes orçamentos nem aviões e toda essa parafernália, mas damos conta do trabalho. – Na maioria das vezes, vocês dão conta do trabalho – corrigiu-a Shaw. Reggie desviou o olhar e enrubesceu. Quando voltou a encará-lo, ela perguntou: – Quer lançar mais algum insulto sobre mim, já que você está tão afiado hoje? – Não são insultos. São críticas. Você perguntou o que eu pensava e eu respondi. Se você não quisesse saber, não deveria ter perguntado. – Você é inacreditável mesmo – observou ela, irritada. – Algum problema? Sua atitude está me parecendo um pouco hostil. – Nenhum problema. Como você disse, é apenas um trabalho. Esse é o único motivo para você estar aqui. Um maldito trabalho. Certo? “Cargo temporário” , acho que foram suas palavras, com ênfase em “temporário”. – E também disse que não vou para a cama com alguém levianamente. – É, foi o que você me disse. – E estava falando sério. – Tenho certeza disso. – Estou aqui para ajudar você. Isso não conta? – Acho que você também está aqui para pegar Kuchin e ter certeza de que não vai precisar ficar em alerta o resto da vida. Não finja que é tudo por altruísmo.
– Francamente, já preciso car em alerta de qualquer maneira. E ele não foi o pior canalha que enfrentei. – E você sempre foi bem-sucedido? Shaw olhou de relance para o túmulo. – Nem sempre. Um minuto de silêncio se passou e a expressão de Reggie enfim se suavizou. – Escute, acho que exagerei. Também estou confusa e, para ser sincera, um pouco abalada com o que aconteceu. – Ela olhou ao redor. – Harrowseld e o que fazemos aqui são tudo o que tenho, Shaw. Você deve achar isso patético, mas é assim que as coisas são. E, se eu perder tudo, não sei bem o que iria fazer. – Então, precisamos nos certificar de que você não vai perder nada. – Acho que logo vou saber, não? – Na verdade, nós dois vamos saber.
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FEDIR KUCHIN CONTEMPLOU O mar de luzes na rua pela janela do quarto do hotel. Ele dissecava mentalmente a cidade. Washington era dividida em quatro partes. O setor mais popular entre os turistas era o quadrante noroeste, onde cavam a maioria dos monumentos e a Casa Branca. Era uma área relativamente segura. Porém, havia áreas violentas menores pelo restante da cidade. Ele cara sabendo que três por cento dos endereços correspondiam a setenta por cento dos crimes. Boa parte deles estava relacionada a drogas e gangues, obrigando o chefe de polícia a utilizar cada vez mais recursos nessas regiões. Kuchin voltou a se sentar e estudou o mapa da cidade, seccionando-o como já havia feito em outras batalhas. Washington ocupava uma área razoavelmente extensa, porém não era a metrópole mais populosa do país. Mesmo assim, quase seiscentas mil pessoas moravam lá e um número muito maior ia e vinha todo dia dos subúrbios para trabalhar. Ele não achava que Katie James estivesse em uma das áreas de alta criminalidade, logo sua busca se restringia. No distrito comercial cava a maioria dos hotéis. Para permanecer lá, ela precisaria usar um cartão de crédito, portanto essa área podia ser eliminada. Em volta do Capitólio, para o qual os quadrantes convergiam, havia bairros residenciais: um possível esconderijo para Katie. Também existiam áreas nobres em Georgetown, a oeste, ao longo da Massachusetts Avenue, ou Embassy Row como era conhecida, bem como na região da Connecticut Avenue e da Rua 16, rumo à fronteira com o estado de Maryland. Kuchin dispunha de uma quantidade limitada de homens e não pretendia usá-los com eficiência. Ele estava hospedado no Hay-Adams Hotel, atrás do Lafayette Park, que cava em frente à Casa Branca, junto com seis homens, dentre os quais Pascal. Em sua opinião, o mais importante era a prossão da mulher: jornalista. O que faziam os jornalistas? Viajavam, escreviam matérias, faziam entrevistas e conversavam com os seus patrões de vez em quando. O problema é que Katie não parecia estar empregada naquele momento. Kuchin analisou a lista. De qualquer maneira, ela talvez trabalhasse. Se assim fosse, havia algumas possibilidades. O The Washington Post era o jornal mais famoso da cidade. Katie trabalhara lá anos antes e, desde então, zera algumas colaborações como freelancer. Mas já fazia algum tempo que isso não acontecia. A sede do periódico cava na Rua 15. Kuchin pôs um homem lá com uma foto da jornalista. Outro homem vigiava o escritório do e New York Tribune, que cava a duas quadras do Post. Katie tinha ganhado dois Pulitzers pelo jornal, mas Kuchin
soube que a repórter se desentendera com os chefes. Mesmo assim, era uma base que precisava cobrir. Os prédios do The New York Times e da CNN cavam na Rua 1, um no quadrante noroeste, o outro no nordeste. Ambos podiam ser vistos do Capitólio. De acordo com o dossiê, Katie também trabalhara para o Times e zera reportagens para a CNN durante os primeiros anos da guerra do Afeganistão. Havia muitas outras organizações jornalísticas na cidade, mas, para Kuchin, aquelas eram as que mais provavelmente atrairiam a atenção de uma jornalista com a reputação de Katie. Kuchin andava de um lado para o outro, pensativo. Esperaria alguns dias para ver se aquela estratégia daria algum resultado. Também torcia para que a mulher usasse um cartão ou habilitasse o chip de GPS do celular. Nesse caso, seu contato o alertaria. Ele também tinha outra lista dessa mesma fonte, contendo quatro nomes de amigos de Katie que trabalhavam no mesmo ramo e moravam na região de Washington. Duas dessas pessoas, Roberta McCormick e Erin Rhodes, estavam no país, logo dicilmente Katie se esconderia na casa delas. As outras duas se encontravam no exterior e Kuchin enviara os homens remanescentes para as residências delas. Ele pensou mais uma vez em tudo. As peças estavam na melhor posição possível. Agora, tratava-se de esperar. Apesar da sua experiência em combate, nunca teve paciência para isso. Foi dar uma volta. Passou pela Casa Branca, parou e a contemplou através da grade de ferro batido. Trinta anos antes, Kuchin e seus companheiros soviéticos zeram tudo o que puderam para depor o presidente americano. O capitalismo era maléco; as liberdades pessoais eram ainda mais contraproducentes. Marx tinha razão, Lenin ainda mais e Stalin e sua prole haviam aperfeiçoado o sistema. Porém, todos eles se enganaram, é claro. O muro do comunismo ruiu, Kuchin fugiu e, naquele momento, vivia como um rei na terra do seu ex-inimigo, usando as mesmas ferramentas do livre mercado contra as quais lutara. Bem, ou você se adapta ou morre, pensou. Kuchin olhou para um agente uniformizado do Serviço Secreto que parecia interessado demais nele. Afastou-se da grade e caminhou rumo à Rua 15, inspirando o ar quente e observando grupos barulhentos de turistas com suas estúpidas câmeras. Seu celular vibrou. – Sim? – Ela acabou de usar um cartão de débito – informou seu contato. – Esquina das Ruas M e 30, em Georgetown. Estou esperando a conrmação fotográca da câmera do caixa eletrônico. Kuchin telefonou imediatamente para o homem mais próximo àquele local e, em seguida, correu de volta para o hotel. Em cinco minutos, dirigia um utilitário alugado, rumo a Georgetown. O trânsito estava ruim, com cruzamentos congestionados. Kuchin tamborilou no vidro, ansioso. O telefone tocou. Ele ainda se achava a pelo menos dez minutos de distância.
– Sim? – Nenhum sinal dela, senhor – informou Manuel. – Chame o resto das equipes. Estabeleça um perímetro de dez quarteirões a partir do caixa eletrônico. Quatro homens vasculham cada centímetro quadrado a partir desse ponto. Dois homens de carro percorrem um circuito fora do perímetro, um em sentido horário e o outro na direção inversa. Chegarei assim que possível. Ela acabou de sacar dinheiro, portanto é provável que vá gastá-lo com alguma coisa. Veriquem todas as lojas ou restaurantes que acharem apropriados. Kuchin pôs o telefone de volta no paletó. Não acreditava que a encontrariam naquela primeira busca. Seria fácil demais, sorte demais. Coisas assim só acontecem em lmes. Mas eles pelo menos tinham um perímetro. E, como poucas pessoas no mundo, Kuchin sabia vasculhar uma área delimitada.
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– FALE-ME DO AMIGO DE Kuchin – pediu Shaw. – Que amigo? – perguntou Reggie. – O magrelo de cabelo branco que atirou no braço de Dominic. Era tarde da noite e eles conversavam em um cômodo pequeno no segundo andar em Harrowseld, uma espécie de escritório que Reggie dividia com Whit. Era apertado e entulhado. Reggie estava sentada na única cadeira disponível e Shaw empoleirava-se desconfortavelmente sobre uma pequena caixa de papelão. Lá fora, chuviscava. – Alan Rice. É sócio de Kuchin. – O que mais? – Só falei com ele umas poucas vezes. Mas teve uma coisa esquisita. Shaw se endireitou. – Diga palavra por palavra. – Bem, não consigo me lembrar das frases exatas, mas foi um alerta. Sobre Kuchin. Obviamente, ele usou o nome Evan Waller. – Mas como foi esse alerta? – Ele disse que o chefe podia se alterar um pouco na presença de mulheres, que isso já havia acontecido antes. Kuchin se tornava obcecado. Ou seja, Rice queria que eu desse o fora, para o meu próprio bem. – Então, ele estava preocupado com a sua segurança? – Aparentemente, sim, embora ele tenha dito que era para proteger o chefe. – Interessante. – Por quê? – Porque acho que Rice tentou matar o chefe nas catacumbas em Gordes. Reggie o encarou, chocada. – O quê? Por que você acha isso? – Em uma situação crítica, você dispara contra ameaças primárias, Reggie, e não contra alvos secundários. – Não entendi. – Rice apontou para Whit, que não estava perto de Kuchin. Por outro lado, Dominic se encontrava uns 30 centímetros à direita de Kuchin. Quando acertei o primeiro cara, Rice se virou e me viu. Um segundo depois, acertei o segundo cara, o menor. Ele poderia ter me
matado ali mesmo, pois estava a apenas 1,5 metro de distância, com uma linha de tiro desimpedida. Em vez disso, ele girou e atirou no chefe. – Mas ele acertou Dominic. – Provavelmente porque não é um bom atirador. É muito mais difícil do que parece acertar alguém a 3 metros. Mas aquela bala não pegou no cérebro de Kuchin por um triz. Ele não me eliminou quando pôde e tentou matar o próprio chefe. – Mas isso não faz sentido. Por que ele tentaria matar Kuchin? Ele estava lá para salvá-lo. – Ou para que os outros assim pensassem. – Que importância teriam os outros se Kuchin acabasse morrendo? – Pense bem. Os homens de Kuchin ainda estariam vivos. Talvez não aceitassem muito bem que o ator coadjuvante matasse o protagonista na frente deles. Tinha que parecer um acidente. E se Kuchin sobrevivesse aos disparos? – Você acha que ele sabia da sua presença? E que você tentaria impedir que Kuchin nos matasse? – Duvido muito. Ele pode ter entrado pensando que fosse de fato salvar o chefe. Talvez viu você saindo da igreja uma noite e cou desconado. Ao me ver surgir, ele arquiteta um segundo plano em uma questão de segundos. Em meio à confusão, ele dispara, todo mundo se agita, há uma troca de tiros e Kuchin/Waller acaba morto. Em seguida, Rice herda os negócios. – É possível. – Vocês rastrearam Kuchin. Como? – Este prédio está cheio de pessoas que fazem isso. Pesquisadores, linguistas, acadêmicos. – Não, não estou falando de descobrir que Evan Waller era Fedir Kuchin. Como vocês souberam que ele estaria em Gordes naquele período? – Nosso pessoal obteve esses detalhes e os passou a nós para organizarmos a missão. É assim que operamos. Não sei como eles obtêm essas informações. Uma fonte interna, talvez? – Alan Rice poderia ser o informante de vocês? – Já disse: não sei como conseguimos esses dados. Como vocês sabiam que ele estaria em Gordes? Vocês têm algum agente infiltrado? – Não. Todas as nossas informações vieram de satélites que monitoram ligações telefônicas, dos recibos de cartões de crédito e de outros equipamentos de alta tecnologia. Reggie sentiu inveja. – Deve ser legal. – Só é legal se funciona. Será que Mallory sabe quem é a fonte interna? Reggie hesitou. – Talvez, mas acho que ele não a revelaria a você. Ele gosta de manter as coisas em segredo. – Talvez ele tenha que revelá-las se quiser continuar a fazer seu trabalho. – Você iria fechar nossas portas, nos mandar para os tribunais? – Só estou me referindo mais uma vez ao meu argumento inicial: se não o pegarmos
primeiro, Kuchin vai pegar todos vocês. – Então, por que não vamos perguntar ao professor? Shaw consultou o relógio. – É quase uma da madrugada. Você acha que ele está acordado? – O professor dorme menos até do que eu. Provavelmente, vamos encontrá-lo na biblioteca. – Ele sofre de insônia? – Não, na verdade ele tem próstata aumentada. Shaw apenas balançou a cabeça.
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MALLORY ESTAVA EM SEU escritório, vestido formalmente, e parecia seguro de si, com as pontas dos dedos unidas sobre a escrivaninha. Seu olhar cou passando de Reggie para Shaw quando o homem fez a pergunta. – Desconheço a identidade dessa pessoa – respondeu, secamente. – Mas foi um informante? – insistiu Shaw. – Sim. Às vezes os usamos. – Mas, se o senhor não sabia quem era, como podia confiar na tal fonte? – Eu me senti conante para seguir em frente. Talvez fosse nossa única oportunidade de chegar até Kuchin. – Conante? – exclamou Reggie. – Para arriscar nossas vidas caso o senhor estivesse enganado? – Eu disse que isso acabaria causando problemas para você, Miles. Todos se viraram e viram Liza na soleira, de calças e suéter comprido. Ela também não tinha ido se deitar. Lançou um olhar duro para o professor e se sentou em uma cadeira diante dele, passando a encarar Shaw e Reggie. – Miles e eu discutimos esse assunto algumas vezes, não foi? – Você expressou sua opinião com toda a clareza – observou ele diplomaticamente. – Minha opinião era que não devíamos mandar uma equipe com base em informações de uma fonte anônima. – Mas essa fonte nos deu informações corretas sobre as movimentações de Fedir Kuchin – ressaltou Mallory. – Ele de fato viajou até Gordes, até aquela mansão, e com a equipe de segurança que nos foi relatada. – Mas, ainda assim, confiar nessa pessoa... – Que motivo ela teria para nos enganar? – interrompeu o professor. – Que tal matar vocês quando descobrisse que queriam eliminar o chefe dela? – sugeriu Shaw. – Não foi assim que as coisas aconteceram. A pessoa nos procurou. – Como ele sabia a maneira de chegar até nós? – questionou Reggie. – Existem algumas maneiras – respondeu Mallory. – Viabilizadas por quem? – perguntou Shaw. – Por mim.
– E o senhor nunca pensou em nos falar dessas vias? – Reggie quis saber. – Não parecia relevante. Até agora, nunca deu errado. Trabalhamos com o modelo que produz resultados. E descobrir a história de alguém é apenas uma parte da equação. Ainda precisamos chegar até essa pessoa. Para isso, precisamos de informações. – Bem, depois do que aconteceu em Gordes, parece que o modelo deu errado, Miles – comentou Liza. – Não existem provas concretas disso – rebateu ele. – Alguém sabia que nós estaríamos nas catacumbas com Kuchin. – Se você bem se lembra, Regina, essa foi uma sugestão que você fez para mim por causa da fé de Kuchin. Mas a escolha das catacumbas foi feita já em Gordes. Nossa fonte anônima não teria como saber. – Mas poderia ter nos seguido até lá se soubessem que estávamos atrás de Kuchin e quisessem nos deter. – Não entendo por que uma pessoa nos ajudaria a chegar até Kuchin para, no último minuto, tentar nos deter. – Talvez não tenha sido nada disso – interveio Shaw. Todos se voltaram para ele, surpresos. – Explique-se – disse Mallory. – Alan Rice poderia ser sua fonte. Ele quer que Kuchin morra, mas por um motivo pessoal: assumir o império criminoso do ucraniano. Talvez tenha tentado matar o chefe no momento em que apareci, mudando seu plano anterior. Mas, agora, não estou tão seguro disso. – Se essa era sua intenção, por que ele não nos deixou matar Kuchin? – questionou Liza, curiosa. – Por que tentar nos impedir? – Se alguém mata Kuchin e o joga em uma cripta, ninguém sabe o que aconteceu. Isso cria incerteza. Os empreendimentos não podem seguir adiante com uma nova liderança porque todos esperam que o chefe volte. Ou outras pessoas podem querer tomar o poder. Não ca claro. Estando lá e tentando salvar o chefe, Rice ganha muito crédito junto às tropas. E o rei está morto. Rice desponta como sucessor lógico. – Isso não parece muito lógico – desdenhou Mallory. – Eu estava naquelas catacumbas – continuou Shaw. – Vi Rice tentar acertar Kuchin. Ele tentou matar o chefe. – É possível que seu informante seja Rice? – perguntou Reggie. O professor deu de ombros. – Acho que sim. Como eu disse, ele permaneceu anônimo. – Se o que você está dizendo é verdade, Shaw – indagou Liza –, como isso nos ajuda na caça a Kuchin? – Se Rice é o informante, podemos usar esse dado contra ele para chegar até seu chefe. Ele já deve estar um pouco nervoso, anal Kuchin está vivo. – Shaw olhou para Reggie. – Vocês
disseram o nome verdadeiro dele naquela noite. Rice deve ter escutado. Duvido que Kuchin esteja muito feliz com isso. Rice talvez pense que está com os dias contados. – Mas como podemos chegar até Alan Rice? – Kuchin tem uma série de negócios legítimos. Rice deve ajudá-lo na administração. A sede do império de Kuchin ca em Montreal. Ele tem uma cobertura no centro da cidade. Posso ir ao Canadá e começar a mexer alguns pauzinhos. – Você? – perguntou Reggie. – Sim, eu. Reggie encarou o professor. – O que o senhor acha? – Que tal se Whit também for? – sugeriu Mallory, mas Shaw negou. – Não trabalhamos muito bem juntos. E ele é esquentado; não seguiria minhas ordens. – Eu vou – afirmou Reggie. – Não é uma boa ideia – rebateu Shaw. – Por quê? – Porque não, acredite. – Discordo – opinou Mallory. – Acho que ela deve ir. – Não é o senhor que está no comando. Eu estou. – É do nosso interesse organizar tudo isso – alegou Mallory. – E, sobretudo, tenha em mente que, se você pode nos destruir, o inverso também é verdadeiro. – Como assim? – Ao que parece, você também trabalha para uma organização secreta. Se a nossa existência vier à tona, garanto que o mesmo acontecerá a vocês. Shaw reetiu a respeito, escondendo seus verdadeiros sentimentos atrás de uma máscara imperscrutável. – Vou pensar no assunto. – Não demore muito. Como você mesmo disse, Kuchin está vindo atrás de nós.
Shaw e Reggie voltaram de carro para Londres. Ela o deixou no Savoy. – Quer que eu suba? – perguntou. – Só para conversar – acrescentou depressa. – Hoje, não. Tenho muito em que pensar. Talvez outra noite. Claramente desapontada, ela foi embora. Shaw tomou o elevador até o quarto. Abriu a porta. Acendeu a luz. – Como vai, Shaw? Frank estava sentado à escrivaninha. Dava para ver que, por baixo da camisa, bandagens envolviam sua cintura. Shaw não ficou surpreso em ver o chefe. Tirou a jaqueta e a pôs sobre a cama. – Acho que estamos ferrados, Frank. – As coisas não estão saindo de acordo com o nosso plano?
Shaw se jogou no colchão. – Não mesmo.
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KATIE JAMES DEU ALGUMAS garfadas na comida chinesa, mas logo perdeu o apetite. Um desperdício dos 20 dólares que sacara. Jogou os recipientes no lixo, pôs o talher na lavalouça, lavou as mãos e cou vagando pela sala de estar. A casa estava escura; nos últimos dias, era assim que ela preferia. Nos últimos dias? Na verdade, nos últimos meses. Sentou-se em uma cadeira e observou as fotos da sua amiga com a família na parede à frente. Levantou-se, foi até os retratos e tocou em cada um deles, passando os dedos na cabeça de cada criança. As imagens evoluíam de bebês para bochechudos alunos do jardim de infância, tornavam-se secundaristas altos e chegavam à idade adulta, já com lhos, a julgar pelas fotos recentes de crianças pequenas. Katie nunca se casara, a não ser com a própria carreira. Nunca tivera lhos; nem chegara perto disso, para dizer a verdade. Ela tinha dois Pulitzers e um ferimento a bala no antebraço. Vira o mundo à custa dos outros. Talvez fosse lembrada por muito tempo por suas reportagens. Prossionalmente, se destacara; na vida pessoal, fora um fracasso. Aquela era uma história antiga, da qual ela não era a única vítima, se é que podia ser considerada uma vítima. Quando tinha 13 anos, a única coisa que ela queria era ser mãe e ter uma casinha com um gramado e uma árvore, de preferência uma macieira, porque sempre gostara de maçãs. Em certo momento, ela optara por documentar uma crise mundial atrás da outra e acumular milhões de milhas de companhias aéreas nessa busca obstinada. De repente, Katie sentiu frio, embora fosse uma noite de verão, ou seja, quente e úmida o bastante para que uma simples caminhada em ritmo acelerado zesse uma pessoa suar. Jogou um suéter sobre os ombros e ficou parada em meio à escuridão. Pelo menos, ela tinha parado de beber. Nem uma gota sequer havia meses. Nem mesmo na manhã em que Shaw a deixou em Zurique sem dizer uma palavra. Ela se surpreendeu. Aquela era a situação propícia para ter uma recaída. Ela cou mais dois dias na cidade, ligou repetidamente para Shaw e, em seguida, telefonou para Frank uma dezena de vezes até ele enfim atender. – Ele está sofrendo – explicou Frank. – Dê um tempo a ele. E foi o que Katie fez. Por semanas. E, depois, dois meses. Tentou ligar de novo, mas o número havia mudado.
Mais um telefonema para Frank, que lhe passou informações sobre Shaw. Katie soube que ele voltara a trabalhar, isto é, a arriscar a vida em situações perigosas mundo afora. Toda vez que o telefone tocava, achava que era Frank ligando para comunicar a morte de Shaw. Isso porque ela não acreditava mais que ele algum dia retornaria suas ligações. Frank voltou a ajudá-la, dando a Shaw o número de um celular especial. Na primeira vez, Shaw desligou ao ouvir sua voz. Ela não chegou a car surpresa, apenas um pouco decepcionada. Na segunda vez, a conversa foi breve, mas ao menos eles se falaram. Katie viajou para Paris. Dica de Frank. Ao ver Shaw sentado sozinho, ela permaneceu imóvel, observando-o; ele ainda não a tinha visto. Viu como Shaw dividia a sala em partes, procurando possíveis riscos. Era a única forma de ele viver. Eles nunca haviam transado, embora tivessem dividido um quarto uma vez. Nem tinham se beijado. Nunca se aproximaram de verdade, pelo menos não por iniciativa dele, pensou. Ela não tinha certeza quanto a si mesma. Bem, talvez tivesse. Era tudo muito confuso. Katie não sabia ao certo quando se apaixonara por Shaw. Fora antes de ele abandoná-la em Zurique. Talvez tivesse sido naquela noite em Wisbach, na Alemanha, perto do cemitério onde Anna estava enterrada. Ele não fora capaz de retribuir seu amor, não naquele momento. Talvez nunca fosse. Ela olhou as fotos na parede mais uma vez. E se não tivesse ido embora do restaurante tão abruptamente? Mas Shaw não tentara detê-la. Se ele a tivesse seguido até lá fora, ela teria voltado, desesperada para que conversassem. Mas não foi o que aconteceu. Katie se aproximou da janela e olhou para fora. Havia alguns transeuntes, casais em sua maioria, passeando de mãos dadas. O som de risos chegava até seus ouvidos. Um carro passou fazendo barulho, em uma velocidade alta demais para as estreitas ruas daquela área residencial. Katie não fazia ideia de quanto tempo caria ali. Ou de qual seria seu próximo destino. Ela tirou o celular do bolso, pensou em ligar de novo para Frank, à cata de notícias sobre Shaw. Hesitou, com o dedo sobre o teclado, mas não o tocou. De que adiantaria?, pensou. Foi para a cama com a impressão de que o dia seguinte não seria melhor.
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– AS COISAS PARECIAM BASTANTE claras para mim – falou Frank. – Bem, fora o fato de eu ter levado um tiro. Pus fotos suas e da moça na estação de trem, como combinamos. Isso fez com que vocês quatro se separassem como desejávamos, já que o irlandês era um perigo. Você colocou o chip de GPS no celular que pegara, fez a viagem de barco, tentou obter mais informações da moça e devolveu o telefone. Deixamos que ela se acomodasse, você a seguiu até o quartel-general e se infiltrou na organização. Simples. – Fiz tudo isso e passei todas as informações para você. – Eu sei. E está lá dentro há alguns dias agora. Faça um novo relatório. Shaw o informou sobre o que tinha visto e ouvido nas últimas 48 horas. – De fato eles fazem isso há algum tempo. – Frank tirou um apo do paletó amassado. – Sabe, suspeitávamos de algo assim. – Como? Frank abriu o frigobar escondido em um armário e pegou um refrigerante, abrindo a garrafa e tomando um gole. – Nazistas mortos – explicou. – O quê? – O fato de eles serem nazistas nunca foi conrmado por nós, mas uma série de homens com 90 anos morreram de maneira estranha em vários lugares do mundo nos últimos cinco ou seis anos. Alguns na América do Sul, para onde os mandachuvas do Terceiro Reich migraram depois que Hitler se suicidou. – Por que isso aparecia no nosso radar? – Porque alguns deles se envolveram com coisas que se aproximavam muito da nossa jurisdição. Em duas ocasiões, descobrimos seus passados em Berlim. Mas os caras já haviam morrido e não fazia muito sentido prosseguirmos. Parabéns aos seus amigos por eliminarem esses babacas. – Por eles serem justiceiros? – Por levarem a justiça até onde ela não existia antes. É mais ou menos o que fazemos aqui, Shaw. – Nunca recebemos ordens para matar ninguém. – Não, mas você acha que todos os sujeitos que encontramos e entregamos à Justiça são submetidos a um júri?
– Sei que isso não acontece. – Então, vamos voltar ao que interessa. Qual é o problema agora? Shaw falou do ultimato de Mallory: – Ou Reggie me acompanha na caça a Kuchin ou eles também vão nos desmascarar. Frank terminou o refrigerante. – Só isso? Nenhum problema. Leve-a com você. Shaw não acreditou. – Não quero ir atrás daquele canalha com ela ao meu lado. É perigoso demais. – Mas a vantagem é que, se você a deixar sozinha, talvez Kuchin a localize enquanto você o está procurando. E, dessa vez, ele vai terminar o trabalho. Frank jogou a garrafa vazia no lixo, tirou um pacote de amêndoas do bolso e começou a comê-las ruidosamente. Shaw parecia estar pouco à vontade. – Você discorda? – perguntou Frank. – Não, mas qual é o objetivo principal disto tudo? – Diga qual você acha que é e eu confirmo ou não. – Pegar Kuchin? Mas achei que os chefões não estivessem mais ligando para isso. Ele apenas voltou a transformar garotas em prostitutas para ganhar dinheiro. Nada mais de cogumelos nucleares. Foi o que você falou. Frank terminou as amêndoas antes de responder. – Bem, a atitude deles não mudou com relação a esse assunto. Mas eles estão interessados nesse novo desdobramento aqui na Inglaterra. – Por quê? – Por quê? – indagou Frank, incrédulo. – Outra organização fazendo coisas que podem ter repercussões globais? Hummm, pense um pouco a respeito. – Na verdade, não tem nada a ver conosco – retrucou Shaw, de maneira pouco convincente. – Você acha mesmo, Shaw? Então, deixe-me esclarecer a situação: esse pessoal está atrás não apenas de “monstros” do passado, mas também do presente. Você disse que eles fazem pesquisas na África, Ásia e América do Sul, embora não tenham revelado sobre quem. – E daí? Frank jogou o pacote vazio de amêndoas na lixeira e limpou as mãos nas calças. – Vou explicar: canalhas depostos às vezes voltam ao poder. Se esses britânicos matarem um ditador recentemente deposto, as coisas logo poderão ficar cabeludas. – Quem se importa se eles perseguem pessoas assim? Você não considera isso bom? – Eu estava falando dos nazistas. Eles não vão voltar ao poder. – Não entendo a diferença. – Não seja ingênuo. Se esse pessoal matar um monstro no Oriente Médio ou na América do Sul, poderemos ter revoluções indesejáveis. Está entendendo?
– Na verdade, não. Se eles já foram depostos... – Como eu falei, eles às vezes voltam. E, dependendo de quem os depôs, talvez seja do nosso interesse garantir que eles voltem porque os idiotas que o puseram para fora podem ser piores ainda. Posso citar dezenas de exemplos históricos, se você quiser. Mas não teremos essa opção se eles estiverem mortos. – Meu Deus, isso é loucura. Frank se levantou. – Não discordo de você, mas o que nós pensamos não importa. Somos apenas soldados rasos. Vá atrás de Kuchin e leve a garota com você. Assim, você poderá trabalhar com eles e descobrir ainda mais a respeito das operações dessa organização. Daremos apoio primário, tudo o que você precisar. – E quando o pegarmos, se é que isso vai acontecer? – perguntou Shaw. – Ele vai receber o que merece. – E Reggie e o pessoal dela? Frank pôs o chapéu e foi até a porta. – Eles vão receber o que merecem. – Frank, deve haver uma alternativa. Frank o observou. – Me diga uma coisa. – O quê? – Você já dormiu com ela, não é? – O quê? – perguntou Shaw, surpreso. – Estávamos vigiando este lugar, gênio. Uma noite, vocês chegaram meigos e carinhosos e só apareceram de novo no café da manhã. – Frank acrescentou amargamente: – Você não merecia Anna. Nem Katie James, seu filho da puta. – Frank... – Já facilitei muito a sua vida. Agora, faça o seu trabalho, Shaw. Frank bateu a porta ao sair.
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OITO HORAS MAIS TARDE, Shaw e Reggie estavam em um jato particular rumo a Montreal. A 39 mil pés de altitude, ele pegou alguns documentos, os espalhou sobre a mesa e fez um sinal para que ela se acomodasse à sua frente. Ambos usavam roupas informais: Reggie, jeans e uma camiseta de manga comprida; Shaw, calças cáqui e uma camisa escura de manga curta. – Bela maneira de viajar – comentou ela, admirando o interior do Gulfstream V. – Temos muito trabalho a fazer e pouco tempo, portanto mãos à obra – replicou ele em um tom que só poderia ser descrito como um latido. Reggie se sentou. – Qual é o seu problema? – No momento, a lista é longa demais. Vamos nos concentrar neste aqui. Ele indicou a planta baixa. – A cobertura de Kuchin no centro de Montreal. – Vamos arrombá-la?– perguntou ela, brincando. – Alguma objeção? Reggie o encarou, incrédula. – Achei que fôssemos encontrar Alan Rice e pressioná-lo para descobrir se ele é o informante. E, depois, usá-lo para chegar até Kuchin. – Essa é uma possibilidade. Mas... e se ele não for o informante? O que vamos fazer? – Mas só pode ser ele. – Nada disso. Se elaborarmos todos os nossos planos com base nessa hipótese, somos idiotas. Idiotas mortos. Bem, também temos o endereço de Rice. O problema é que, se o procurarmos primeiro e ele não for o cara, Kuchin ficará de sobreaviso. – Ele já não está de sobreaviso? Achei que o encontro nas catacumbas tivesse sido suficiente para deixar o homem alerta para o resto da vida. – Você está analisando o quadro supercialmente, Reggie – criticou Shaw, em um tom condescendente. – Então, professor, por que você não explica tudo para mim, já que meu pobre cérebro não consegue? – O fato de a Interpol ainda não ter batido à porta de Kuchin indica que vocês não eram de uma organização ocial. Ele deve achar o mesmo de mim. A Interpol e o FBI chegam
com distintivos e uma força esmagadora. Nós não tínhamos nada disso. Por enquanto, ele não considera que sua liberdade está em risco, apenas sua vida. Isso vai impactar seu modo de agir daqui em diante. Ele vai se esconder, mas não tanto quanto se estivesse sendo perseguido pelo FBI ou por outra organização oficial. – Certo, entendo. – Muito bem. Ainda assim, temos que ser cautelosos. Enquanto trama contra nós, ele deve deduzir que estamos no seu encalço. – Você acha mesmo? – Um sujeito como ele não sobreviveu na KGB todos aqueles anos sem saber como antecipar as próximas jogadas dos adversários. Na União Soviética, era muito mais provável que você fosse eliminado não pelo Ocidente, mas por alguém do próprio escritório de olho no seu trabalho, apartamento ou carro, mesmo que ele estivesse sempre quebrando. Portanto, Kuchin sem dúvida está se preparando para uma segunda investida por parte de vocês. Reggie analisou os documentos. – O que vamos fazer? – Ataque em duas frentes; Kuchin primeiro. – Como? – Entramos na cobertura dele, revistamos o lugar e, com sorte, conseguimos obter alguma informação sobre o seu paradeiro atual. – Como saber que ele não está na cobertura? – Temos pessoas que a estão vigiando. Ele não aparece por lá desde que partiu para a França. – Espere um pouco: se vocês sabiam onde ele estava o tempo todo, por que não o pegaram em Montreal? Por que ir atrás dele em Gordes? – Isso é confidencial. – Besteira. Você fala de conança, mas, ao que parece, não se trata de uma via de mão dupla. Shaw se recostou. A exigência dela, vistas as circunstâncias, não era estapafúrdia. – Ele tinha mais guardas em Montreal. E não seria bom um tiroteio na rua. Também tivemos alguns problemas com os canadenses anteriormente; eles não são nossos melhores amigos. As férias na Provence eram uma opção muito melhor: podíamos pegá-lo em uma caverna. Satisfeita, Reggie observou os desenhos. – Ele deve ter um sistema de segurança sofisticado em casa. – Tem mesmo, mas já penetramos em sistemas melhores. – E qual é o meu papel? – Fazer o que eu mandar. – Tudo bem, vou car na traseira do avião. Me avise quando quiser me dar outra bronca.
Virei correndo como um cachorrinho. Shaw segurou o braço de Reggie, que se preparou para lhe desferir um soco. – Sinto muito – desculpou-se ele. Reggie abaixou a mão. – Tudo bem. – Seu tom era mais de perplexidade do que de conciliação. Shaw adivinhou o que ela estava pensando. – Escute, eu não queria que você viesse. Achei que fosse perigoso demais. Kuchin quase pegou você uma vez. – Eu me ofereci como voluntária. Mas, se você não queria que eu viesse, por que estou aqui? – Você ouviu Mallory. Se você não viesse, ele revelava tudo. – Pare com isso, é impossível que você tenha acreditado nessa ameaça. Ele estava blefando. – Ela se aproximou. – E você sabia disso, não é? Você só não queria que eu me machucasse. – As pessoas à minha volta tendem a se machucar, Reggie. – Mais uma vez, por que estou aqui? – Acho que Frank levou a ameaça a sério. Ele insistiu para que você viesse. Reggie examinou os planos sobre a mesa. – Não serei um peso morto, Shaw. Farei todo o possível para ajudar. – Eu agradeço, mas... – Também não quero que você se machuque. – Minha segurança não deve ser uma preocupação para você. – Mas é. Estou dando cobertura para você. Você vai fazer o mesmo por mim? – Claro. – Se tivermos que escolher entre a minha sobrevivência ou a morte de Kuchin, diga ao monstro que me encontrarei com ele no inferno. Não o deixe escapar, Shaw. Mesmo que isso signifique que eu não vá voltar. Você promete isso para mim? Shaw não respondeu.
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O CAMINHÃO DEU MARCHA A ré até a plataforma atrás do prédio alto. As ordens de serviço foram devidamente analisadas e as assinaturas necessárias, obtidas. As duas grandes caixas foram descarregadas e colocadas na área de armazenamento. A nota dizia que, lá dentro, estavam algumas antiguidades que pertenciam a um morador do prédio que caria fora durante todo o verão. Os caixotes deviam ser guardados e abertos apenas quando o dono voltasse. Algumas horas mais tarde, a plataforma foi trancada e o supervisor e sua equipe foram embora. Trinta minutos se passaram até que a lateral de uma das caixas tombou para a frente e Shaw apareceu. Usando um pequeno feixe de luz, ele ajudou Reggie a sair do esconderijo. Ambos vestiam-se de preto e tinham vários equipamentos pendurados nos cintos. – Pronta para agir? – sussurrou Shaw. Ela assentiu. Ele pôs um headset e o ligou. – Você está aí, Frank? – Positivo. Diga para a sua parceira ativar o vídeo. Frank havia deixado a Inglaterra em outro avião para organizar o apoio de que eles precisariam para entrar na cobertura de Kuchin. Shaw fez um sinal com a cabeça para Reggie, que colocou em volta do peito uma faixa que tinha no centro um disco com aproximadamente 8 centímetros de diâmetro e uma lente de vidro. Ela apertou um botão na lateral e uma luz vermelha se acendeu. – Tudo certo? – perguntou Shaw a Frank. – Tudo. Vídeo ativado. Prossigam para a área-alvo. O elevador foi acessado com um cartão clonado que Shaw inseriu na fenda. Mais uma vez, a voz de Frank ressoou: – A vigilância por vídeo do prédio está em um circuito monitorado, mas congelamos remotamente as câmeras de segurança no elevador de serviço e na parte externa do apartamento de Kuchin. O elevador não costuma ser usado após o expediente, logo os guardas não esperam nenhuma mudança nessa câmera nem fora do apartamento de Kuchin, já que ele está viajando. Mas eles fazem rondas periódicas. A próxima é daqui a sessenta minutos. Depois disso, vocês estarão por conta própria.
Pegaram o elevador até o último andar e alcançaram um pequeno saguão com uma porta de aço e um console de segurança na parede ao lado do portal. Shaw olhou para a câmera de vigilância no canto e acenou, rezando para que Frank tivesse de fato conseguido congelar a imagem. Fez sinal para que Reggie enquadrasse o painel. – Conseguiu ver? – indagou Shaw, usando o microfone. – Trata-se de um sistema de reconhecimento de retina, como sabíamos. – Eu vi. Diga para ela se aproximar para enxergarmos melhor e confirmarmos o fabricante. Shaw gesticulou para que Reggie ficasse bem em frente ao aparelho. – Tudo bem, já deu – disse Frank. – Prepare o laser, Shaw. Vamos cortar a energia do prédio em cinco segundos. Há uma bateria auxiliar para o sistema de segurança, mas, logo depois da queda, vamos provocar um pico de energia calibrado que vai queimá-la. Temos que restabelecer a energia depressa para não desencadear uma resposta de emergência. – Entendido. Shaw puxou a caneta de laser do cinto e o apontou direto para o leitor. – Ao meu sinal – anunciou Frank. – Cinco, quatro, três... Logo após a contagem, a energia do prédio se foi e eles caram totalmente às escuras. Shaw acendeu o laser e o apontou direto para o aparelho. O feixe vermelho atingiu o disco de vidro, preenchendo-o com um tom carmesim. A energia voltou logo depois. A porta se abriu. Reggie olhou para Shaw enquanto ele guardava o laser. – Uma pequena falha nesse sistema que descobrimos há algum tempo. Energia cortada, energia restabelecida e, naquele milissegundo da ativação, o equipamento lê um feixe de laser configurado com uma frequência específica como se fosse uma retina autorizada. – Impressionante – comentou ela, admirada. – Não é bem uma falha, na verdade. – Como assim? – Temos um bom relacionamento com algumas empresas importantes. Fazemos algumas coisas para elas de vez em quando e elas deixam umas brechas como essa para nós. Reggie balançou a cabeça. Shaw empurrou a porta para abri-la totalmente. – Cinquenta e nove minutos. Mãos à obra. Shaw tirou do bolso um conjunto de lâminas miniaturizadas de plantas baixas e as examinou usando uma lanterna pequena. – Fique longe das janelas – avisou. – Talvez Kuchin tenha vigias em outro prédio. Mesmo sem nenhuma luz acesa, podemos ser vistos com o equipamento de vigilância certo. – Que pena. – Por quê? – Eu queria dar uma olhada na vista. Revistaram o apartamento com rapidez e método, se arrastando toda vez que precisavam se aproximar das janelas. Após trinta minutos, não haviam encontrado nada de útil.
Ficaram parados no meio do quarto de Kuchin. Reggie estava decepcionada, mas Shaw parecia intrigado. – O que foi? – perguntou ela. – Usei o laser para demarcar a área do apartamento conforme íamos avançando, mas, de acordo com as plantas, estão faltando 140 metros quadrados. – Como é possível? Shaw ficou cinco minutos analisando parâmetros. – Está faltando o núcleo central – concluiu ele, por fim. – Como assim? – No bloco central desta cobertura, existe um espaço oculto grande demais para ser o sistema de aquecimento, ventilação e ar-condicionado. Em lugares como este, em geral ca no teto. Vasculharam mais um pouco e chegaram ao nal do corredor, onde havia um elaborado armário embutido. – Tenho a impressão de que há um eixo giratório em algum lugar aqui. – comentou Shaw. – Está vendo, Frank? – completou. – Sim, concordo com você. Temos menos de trinta minutos. Comecem a inspecionar tudo. Quatro minutos mais tarde, Reggie girou uma maçaneta no sentido anti-horário e fez com que o painel de digitação do código de entrada aparecesse. Shaw tirou um tubo metálico do cinto e o borrifou. Jogou sobre ele uma luz azul que revelou digitais em algumas teclas. – Descobri os quatro dígitos. – Shaw acoplou um pequeno dispositivo à ação do painel, o ativou e encarou Reggie. – O fato de conhecermos os quatro dígitos que compõem o código reduz muito as possibilidades de combinação. – Sim, eu sei. Depois, só é necessário descobrir a ordem. O que é feito com uma associação rápida dos números. Os algarismos 4-6-9-7 caram congelados na tela e a porta do armário se abriu com um clique, revelando um espaço escuro. – Vamos ver o que o Sr. Kuchin esconde aqui dentro – disse Shaw.
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KUCHIN ESTAVA SENTADO EM uma cadeira em seu quarto de hotel. Sua estratégia não funcionara. Seus subordinados tinham esquadrinhado todo o perímetro e não havia sinal de Katie James. Todos eles ainda se encontravam em posição, mas o último comunicado de Pascal fora desanimador. Eles não tinham mais onde procurar. Ou aquela mulher se escondera em algum lugar da cidade ou partira. Nenhuma dessas possibilidades agradava ao ucraniano. Pegou um pequeno estojo que continha uma seringa com sua mistura especial e a injetou. Normalmente, sentiria pelo menos uma descarga momentânea de euforia, de invencibilidade. Aquilo também parecia fazê-lo pensar com mais clareza, algo de que precisava naquele momento, com todas as suas forças. Porém, nada aconteceu. Kuchin cou ainda mais deprimido e jogou a seringa vazia do outro lado do quarto, que bateu na parede e se quebrou. A última vez que sofrera uma derrota havia sido na Ucrânia, quando fora obrigado a forjar a própria morte e fugir da sua pátria antes que as massas se vingassem dos anos de terror. Pelo menos, era assim que denominavam aquele período. Ele considerava um dever, um trabalho. Talvez o destino. Embora tivesse a boa vida de um capitalista ocidental de sucesso, na qual as liberdades pessoais eram muito prezadas, Kuchin, no fundo do coração, sempre acreditaria que apenas uma minoria seleta deveria governar todos os outros. E a maneira de pôr isso em prática era através de um poder usado seletivamente e com ecácia. As pessoas, em sua maioria, só eram capazes de ser seguidoras. Mesmo no Ocidente, só uma pequena minoria enriquecia e alcançava posições de liderança. No comando na Ucrânia, Kuchin podia identicar, em cinco minutos, quais dos seus subalternos seriam para sempre ovelhas e quais seriam os poucos pastores. E ele nunca se enganara. Sim, o Ocidente era a parte do mundo na qual havia oportunidade para todos. Kuchin ria com sarcasmo dessa ideia. Ele fora um líder em sua terra natal e se tornara um líder no Ocidente. Um seguidor lá também seria um seguidor aqui. Ovelhas não mudavam porque lhes eram oferecidas oportunidades. E, agora, você vai ser derrotado de novo? Ele não podia car ali indenidamente. Não podia manter seus funcionários ali por tempo indeterminado, suscitando suspeitas. Washington talvez fosse a cidade mais vigiada do mundo. Havia policiais, espiões, agentes federais, olhos que sondavam e investigavam por
toda parte. Se estavam procurando Kuchin, ele talvez estivesse se mostrando demais. No entanto, se fosse embora sem Katie James, não teria nada. Seria vencido. Kuchin pegou o controle remoto e ligou a TV . Passava o noticiário e a matéria principal era sobre as diculdades dos americanos e seus aliados no Afeganistão. Ele sorriu, mas também teve lembranças amargas da devastadora derrota do seu país naquela terra distante. A repórter tinha por volta de 50 anos. Não era uma daquelas jovens oxigenadas de pernas compridas que liam o teleprompter sem nunca ter chegado perto das zonas de guerra. As frases daquela mulher eram sucintas e bem embasadas e ela dava a impressão de saber do que estava falando. Kuchin deduziu que Katie James, embora fosse mais jovem e bonita, tinha os mesmos atributos. Pelo que pesquisara, ela estivera em todos os focos de conito mundo afora nos últimos quinze anos. Sem teleprompter. Kuchin voltou a se concentrar na TV . Estava ansioso para descobrir que tipo de problema os americanos enfrentavam. Pelo menos aquilo o faria esquecer as suas próprias preocupações por um tempo. – Sou Roberta McCormick, falando ao vivo de Cabul – disse a repórter, nalizando o segmento. O nome ficou congelado por um instante na mente de Kuchin. Roberta McCormick? Ele pulou da cadeira e atravessou correndo o quarto até a escrivaninha, onde estava sua pasta. Abriu-a e achou a lista. Lá estavam os nomes e endereços das pessoas que moravam em Washington e eram colegas de Katie James. Kuchin postou alguns homens vigiando duas das residências porque os donos haviam saído do país. Os outros dois supostamente estavam na cidade, portanto, não designara vigilância alguma. Correu os olhos até o último nome. Roberta McCormick. Ela estava em Cabul, a milhares de quilômetros de distância. Morava em Georgetown, perto da Rua R, que cava logo além do perímetro estabelecido por Kuchin. O marido de McCormick havia morrido, seus lhos eram crescidos. Ela morava sozinha. Mas talvez sua casa não estivesse vazia naquele momento.
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– MEU DEUS! – EXCLAMOU Reggie, observando o aposento secreto. – Parece que voltei à Guerra Fria – comentou Shaw. As luzes haviam se acendido automaticamente quando eles entraram. – Cacete! – disparou Frank, vendo através da câmera de Reggie. – Esse cara tem problemas. – Você acha mesmo? – ironizou Shaw, olhando para a bandeira soviética, os velhos armários, a escrivaninha desgastada e os arquivos à sua volta. – Reggie, dê uma volta pelo cômodo para que Frank possa registrar tudo. Ela obedeceu, ficando o mais perto possível dos objetos. Shaw abriu um dos armários e viu o uniforme que Kuchin havia usado quando trabalhava com a KGB. Em seguida, vasculhou os arquivos e pegou documentos que mostravam algumas das atrocidades que o monstro cometera contra homens, mulheres e crianças inocentes. Reggie captou tudo com a câmera. Também encontraram o rolo de lme e o projetor. Foram necessários alguns minutos para armar tudo. Assistiram o vídeo sem dizer nada. Frank também não pronunciou uma palavra sequer. Reggie desligou a máquina. – Não consigo assistir mais – anunciou ela enquanto o rosto da criança morta ia sumindo. Shaw viu lágrimas no rosto dela. Guardou o projetor, mas pôs o rolo em sua bolsa. – Precisamos ver mais alguma coisa, Frank? – perguntou ele. – Não, podem ir embora – respondeu o chefe com a voz embargada.
Alguns minutos mais tarde, Shaw e Reggie caminhavam pelas ruas de Montreal. Um carro os pegou e os levou para um prédio comercial a cerca de 800 metros, onde Frank os esperava. Ficaram sentados em silêncio por um tempo, cabisbaixos. – Tudo bem, isto conrma muita coisa – falou Shaw. – O cara é um psicopata. Não que tivéssemos alguma dúvida. – Mas como o que descobrimos pode nos ajudar a pegá-lo? – questionou Reggie. Shaw encarou Frank. – E Alan Rice? – O avião voltou da França. Aterrissou no aeroporto de Montreal. Nem Rice nem Kuchin
estavam a bordo. E Rice não está em casa, no escritório ou em nenhum outro lugar que saibamos. Ou está morto ou, mais provavelmente, se escondendo. Para prosseguirmos, precisaríamos envolver as autoridades locais e não queremos fazer isso. Pelo menos não por enquanto. Talvez até piore as coisas. – Então, não podemos usar Rice? – perguntou Reggie. – É Kuchin ou nada, ao que parece. – Mas onde ele está? Nós nos arriscamos ao invadir o apartamento e saímos de lá com as mãos abanando. – Não há sinal dele desde a França – disse Frank. – Ele tem um avião particular, portanto é possível que nunca tenha saído da França, ou a aeronave fez uma parada não programada no caminho para o Canadá. O avião está no solo desde então. Mas ele poderia facilmente alugar outro com um nome falso. – Ele poderia estar em qualquer lugar. – Mas agora temos provas do seu envolvimento com a KGB na Ucrânia – assinalou Frank. – Já sabíamos disso – retrucou Reggie. – Não sou advogada, mas acho difícil um tribunal admitir as provas que temos porque nossa invasão não foi autorizada. – Ela tem razão – concordou Shaw. Frank não pareceu convencido. – Talvez sim, talvez não. Esse lho da mãe pode receber o tratamento reservado a criminosos de guerra em Haia, e as regras sobre provas nesse caso são um pouco diferentes. E o material ainda está na cobertura dele. Talvez possamos alertar a polícia canadense ou a Interpol e eles pegam tudo com belos mandados oficiais. – Tudo bem, ele vai ser julgado à revelia – disparou Reggie. – Ninguém disse que seria fácil – observou Frank. – Você achou que entraria naquele apartamento e encontraria a chave secreta até ele? – Não, mas eu esperava que algo nos ajudasse. Qual é o nosso próximo passo? – perguntou, olhando em expectativa para Shaw e Frank. – Continuamos a procurar mais um pouco – respondeu Frank vagamente. – Maravilha. Sabe, vocês têm toda essa tecnologia avançada e poderosa com laser, podem cortar a energia de um arranha-céu inteiro apertando um único botão, mas, às vezes, acho que a nossa abordagem sem tantos recursos é mais eficaz. – Não foi mais eficaz em Gordes – lembrou Frank. – Bem, pelo menos não desistimos como vocês zeram – retrucou. Ela se levantou e saiu pisando duro. Depois que a porta foi batida, Frank comentou: – Droga, achei que os britânicos fossem mais descontraídos. – Ela não tem nada de descontraída. Mas está certa. Kuchin continua distante. – Bem, ele também não deve estar próximo de nós. – Não tenho tanta certeza assim.
– Você sabe de alguma coisa? Shaw não respondeu. Ele não sabia de nada, não ao certo. Mas tinha um instinto que quase nunca falhava e, naquele momento, estava em alerta total.
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KATIE JAMES DESPERTOU AOS poucos. Um barulho aqui, um pensamento ali, um pesadelo que parecia muito real, até palpável. Por m, ela se levantou, pegou um copo d’água, se acomodou em uma poltrona, acendeu uma lâmpada e pegou um livro policial. O toque do telefone a assustou. Katie consultou o relógio. Era quase meia-noite. Ficou pensando se deveria atender ou não. Anal, aquela casa não era sua. Mas talvez fosse Roberta ligando. Olhou para o identicador de chamadas no visor. Nada. Hesitou, mas acabou atendendo. – Alô. – A Roberta está? – Quem está falando? – Você é Roberta? Que estranho. Se a pessoa conhecia Roberta, também conhecia sua voz. – Quem está falando? – insistiu, mas a ligação foi interrompida. Nervosa, ela rapidamente vericou que as portas da frente e dos fundos estavam trancadas. Pegou um atiçador da lareira, voltou para o quarto e fechou a porta. Podia ligar para Shaw com um simples toque na tecla de rediscagem. Mas ele devia estar a milhares de quilômetros de distância, sem poder protegê-la. E talvez nem quisesse mesmo. A mão tapou sua boca antes que ela pudesse gritar. O atiçador foi arrancado da sua mão junto com o celular. O cheiro era horrível, fazendo suas narinas se fecharem. Katie apagou.
Sua cabeça latejava com força. Abriu os olhos e logo os fechou ao deparar com as fortes luzes acima. Gemeu, sentindo-se enjoada. Fez mais uma tentativa e dessa vez conseguiu mantê-los abertos. Sentou-se e congelou ao ver um homem a observando. Ele estendeu a mão. – Espero que você esteja melhor – disse Kuchin. Ela não tomou a mão dele. Ficou parada, observando o entorno. Só havia iluminação onde ela estava; o restante se encontrava às escuras. Sentiu um solavanco embaixo do corpo, depois outro. Olhou para baixo. Estava em uma poltrona cujo encosto fora inclinado até formar uma cama. Outro solavanco. Seus ouvidos sintonizaram aquele zunido familiar. Ao
longo de quantas milhas ela ouvira aquele barulho? Ela estava em um avião. Katie se endireitou e esticou as pernas na direção do corredor. O homem recuou um pouco para permitir o movimento. – Posso fazer uma pergunta óbvia? – indagou ela. Ele se sentou em uma poltrona à frente. – Por favor. – Quem é você e por que estou aqui? – Duas boas perguntas. Quem eu sou não é relevante para você. O porquê de você estar aqui pode ser interessante. Kuchin lhe entregou um pedaço quadrado de papel brilhante. Katie o pegou e descobriu ser uma foto. Ela e Shaw em Zurique. Sua mão sobre o braço dele. O máximo de intimidade a que eles chegaram. Shaw. É por isso que estou aqui. Ela levantou a cabeça e devolveu o retrato. – Ainda não estou entendendo. – Sua boca diz isso, seus olhos dizem algo diferente. É tarde demais para essa tática. Você o conhece e vice-versa. E eu também gostaria de conhecê-lo. Aposto que sim. – Por quê? – Ele é um homem interessante. – Não sei onde ele está. Kuchin suspirou. No momento seguinte, Katie estava estirada no chão da cabine, com sangue escorrendo do rosto. Seu cérebro ainda tentava processar o que acontecera quando ela foi puxada pelos cabelos e jogada de volta na poltrona. Katie afundou no assento, segurando o rosto e tentando estancar o sangue que fluía do nariz. Sentiu algo roçando a bochecha. Kuchin estava lhe dando uma toalha. – Perdoe-me. Sou impulsivo. Preciso desesperadamente me encontrar com o seu amigo. Ele está me devendo algo. – O quê? – perguntou devagar, por causa da boca machucada. – Mais uma vez, não é relevante para você. – Não sei onde ele está. Estou dizendo a verdade. – Mas você pode entrar em contato com ele. – Não, não posso. Eu... Ela se interrompeu ao ver que Kuchin segurava seu celular. – É interessante termos encontrado dois celulares. Um deles você estava segurando e outro na sua bolsa. O da bolsa parecia um telefone qualquer; contatos, e-mails e agenda comuns. Mas este aqui não tinha nada disso. Na verdade, de acordo com o registro de chamadas,
você só recebeu dois telefonemas neste aparelho. Bem, esse homem que estou procurando, o seu amigo... tenho a impressão de que ele é o tipo de homem que daria um telefone assim para você. – Não foi ele – replicou Katie, limpando o rosto. – Então não tem problema se eu ligar de volta para este número? Só para ver quem atende? Katie baixou a cabeça por um instante, tentando tomar fôlego e controlar os nervos. Que diabos Shaw fez para irritar um cara como esse? – Vou interpretar seu silêncio como uma afirmação. – Ele não vai vir. – Eu acho que vai. – Por quê? – perguntou Katie, desolada. Kuchin olhou para a foto de Shaw e Katie. – Acho que você sabe por quê.
90
SHAW ESTAVA DEITADO NO sofá quando tudo aconteceu. Fitou o identicador de chamadas. Reconheceu o número. Era o telefone que Frank dera a Katie. Afundou de novo no sofá. Não ia atender. Para quê? Estava tomado pela culpa por ter dormido com Reggie. Frank o acusara de desrespeitar a memória de Anna, e talvez tivesse razão. Shaw não sabia ao certo como aquilo havia acontecido. Só sabia que desejara tudo. Desejara aquela mulher como nenhuma outra. Talvez nem mesmo Anna. Ele não conseguia explicar; nem tinha energia para tentar. O celular parou de tocar. Ele se sentou e coçou a cabeça, sentindo-se ainda mais culpado por não ter atendido. O telefone voltou a tocar. Tudo bem, ele tinha uma chance de se redimir. – Alô. – Bill Young? A voz das catacumbas. Muito próxima; parecia estar diante do seu rosto. Shaw quase nunca sentia medo. Não porque fosse imprudente ou se considerasse invulnerável. O medo paralisante fora erradicado da sua psique por meio de um processo acelerado de evolução. Ele passava boa parte do tempo em situações perigosas. Se casse paralisado todas as vezes, já estaria morto. Aqueles que não se deixavam dominar pelo medo costumavam viver para encarar mais um dia. Ele era um desses homens. Naquele momento, Shaw sentiu medo, como não acontecia havia muito tempo. Mas não por si mesmo. – Como você conseguiu este número? Ele já sabia a resposta, mas esperava, irracionalmente, estar enganado. A voz que ouviu em seguida destruiu essa possibilidade. – Shaw, fique longe. Não faça o que este sujeito disser. Fique longe. Katie parecia estar aterrorizada, mas também determinada. Com aquelas poucas palavras, Shaw se lembrou de como ela era corajosa. Mesmo ao lado de um dos maiores psicopatas de todos os tempos, ela lhe dizia para a deixar morrer. Frank tinha razão: ele não a merecia. – Sr. Shaw? – falou Kuchin. – Como você chegou até ela? – Não importa. Ela está comigo. Agora, quero você e aquela mulher. – Só posso responder por mim mesmo.
– Você e aquela mulher – repetiu Kuchin. – E você vai soltar Katie? Certo, claro. Eu vou. Só eu. – Se for só você, nem se dê o trabalho. Sua amiga aqui não estará viva para cumprimentálo. – Não sei onde ela está. – Então, sugiro que você tente encontrá-la de qualquer maneira. – E se eu não conseguir? – Tenho uma maleta, Sr. Shaw. É da época em que eu vivia no meu país natal. Nela, estão algumas ferramentas muito persuasivas que utilizo de vez em quando. Usei-as há pouco com um conhecido. Ele não pareceu ter gostado muito. Não costumo utilizar essa maleta com muita frequência, mas abrirei uma exceção para a sua amiga se você não zer o que estou mandando. Filmarei meu trabalho e mandarei para você. – E se eu conseguir encontrá-la? O que vai acontecer? – Voltarei a ligar para esse número daqui a duas horas. – É pouco tempo. – Daqui a duas horas – repetiu Kuchin. – Direi exatamente como e quando tudo vai acontecer. E aconselho que você não deixe esta conversa ir além de você e “Janie” . Essa tática seria inútil e causaria a morte da sua amiga da maneira mais dolorosa possível. Você viu as belas imagens nas catacumbas. Sabe do que sou capaz. – Ouça... Kuchin desligou. Shaw encarou o telefone como se fosse uma granada sobre a qual ele precisava se jogar para salvar todas as outras pessoas. Mas, aparentemente, ele não podia salvar ninguém. E Reggie? Ele não conseguiria pedir aquilo a ela. Ele não pediria. Quando Kuchin ligasse de novo, Shaw diria que havia encontrado Reggie. Eles marcariam um encontro. Ele iria sozinho, daria uma desculpa e faria todo o possível para que Katie saísse dali viva. Isso era tudo o que conseguia pensar. Shaw ouviu uma batida na porta. – Sim? – Foi a única palavra que conseguiu dizer. – É Reggie. Podemos conversar? Merda. – Eu estava me preparando para dormir. – Por favor. Ele hesitou, mas, por m, abriu a porta e fez sinal para que Reggie entrasse. Ela o olhou com ar de curiosidade. – Você está bem? Parece prestes a vomitar. – Estou bem. Ela se sentou em uma cadeira e ele, no sofá. – O que foi? Reggie começou a falar, mas ele não a escutava. Shaw sabia que Kuchin era esperto demais
e não cairia no seu plano. Ele ia querer uma prova de que Reggie também iria. Pediria para falar com ela. Shaw nunca conseguiria salvar Katie, a menos que... – Shaw? Shaw? Ele levantou a cabeça e viu Reggie em pé ao lado, cutucando seu ombro. – Sim? – perguntou, meio atordoado. – Você não ouviu uma palavra sequer. – Sinto muito. Este não é um bom momento. Reggie percebeu que ele segurava rme o celular e lançou um olhar desconado para Shaw. – O que está acontecendo? – perguntou Reggie. – Nada. Ela se ajoelhou na frente dele e pôs as mãos sobre seus joelhos. – Algo está acontecendo e você vai me dizer o que é. Shaw mal conseguia formar as palavras. As imagens de Katie e Kuchin estavam marcadas de forma indelével em sua mente. – Não é nada. Vou dar um jeito. – Dar um jeito no quê? – insistiu ela. – Por favor, você poderia me deixar sozinho? – É ele, não é? – Quem? Reggie agarrou seus ombros fortes e os sacudiu. – Pelo amor de Deus, fale comigo! Shaw se levantou abruptamente, fazendo com que ela caísse sentada, e saiu andando. – Eu disse que vou dar um jeito. Ela se ergueu e o seguiu. – Como? – Vou pensar em algo. – Ele está com alguém, não está? Alguém importante para você. Shaw se virou; suspeitas terríveis atravessavam sua mente, mas nenhuma delas fazia sentido. – Como você... – Eu adivinhei. Você nunca sentiria medo por si mesmo. Então, só podia ser por outra pessoa. Como ele conseguiu chegar até ela? Shaw sentou na beirada da cama. – Não sei. – Quem é? – Katie James. – Já ouvi falar dela. – Jornalista. – Isso mesmo. Ele está com ela? Você tem certeza?
– Absoluta. – E o que ele quer? – Ele me quer. – Ele hesitou, passando a língua pelos lábios. – E quer você. – Um pacote? – Eu disse que não sabia onde você estava. – Mas não foi suficiente, não é? – O que você acha? – Então, onde e quando? – Reggie, nem pense nisso. – Eu já estou dentro, Shaw. – Não vou deixar que você faça isso. – Você está brincando? Essa é a melhor coisa que podia ter acontecido. – O quê? – exclamou ele, chocado. – Não estou falando da sua amiga. Sinto muito por ela – respondeu Reggie rapidamente. – Mas nós nunca acharíamos Kuchin. Agora, estamos sendo convidados para ir até ele. Essa é a nossa oportunidade. A nossa chance. – Não se trata de um convite, Reggie. Ele vai nos matar. – Não, ele vai tentar nos matar – corrigiu ela. – E nós faremos o mesmo. – Bem, dadas as circunstâncias, ele tem mais chance. – Mesmo assim, é a nossa única oportunidade. – Se você for comigo, será assassinada de uma maneira sádica e dolorosa. Tem plena consciência disso? – Shaw apontou para a porta. – Saia. Porém, Reggie se sentou do lado dele. – Eu poderia dizer algo bonitinho ou ousado para mostrar que não estou com medo, embora esteja, mas acho que vou tentar dizer a verdade. Shaw teve sua atenção atraída. – Uma parte de mim nunca mais quer ver Kuchin. Nunca mais, Shaw. Eu o vejo o tempo todo. Acordo com ele na minha mente. Acho que ele está bem atrás de mim. Naquela noite, não morri por um triz. Vi o olhar dele. Não havia nada ali dentro. Kuchin não estava nem aí. Uma pessoa normal não faz algo do gênero. – E mesmo assim você quer ir? – Não posso viver enquanto esse cara estiver respirando. Essa é a questão. O que mais quero na vida é pegá-lo. Vou matá-lo com as minhas próprias mãos, se for necessário. Ele vai ter que me matar, senão nunca vou largar do pé dele. – O cara é monstruoso. – Ele é um monstro. Não é o primeiro e não será o último. E precisa ser enfrentado. – Por que diabos você faz isso? – Avise-me quando for a hora. Estarei pronta.
As duas horas se passaram e o telefone tocou pontualmente. Shaw tinha razão: Kuchin pediu para falar com Reggie. – Olá, pequena Janie – cumprimentou ele após ela conrmar que estava na linha. – Nosso último encontro foi interrompido. Estou ansioso para encontrá-la de novo. Reggie não falou nada; apenas devolveu o celular para Shaw. Todos os preparativos foram feitos. Eles partiriam no dia seguinte. Não diriam nada a ninguém. – Se você me desobedecer, ela morrerá muito antes que possa vê-la – alertou Kuchin. – Mas e se você estiver planejando matá-la de qualquer maneira? – rebateu Shaw. – Dou minha palavra de que, se vocês seguirem minhas instruções ao pé da letra, eu a libertarei ilesa. – Sua palavra? – perguntou Shaw, incrédulo. – Como ex-oficial da KGB. – Isso não quer dizer nada para mim. – Juro pela memória da minha mãe, então. Não tenho nada contra a sua amiga. Meu problema é com você e essa outra mulher. – Onde e quando? – Isso depende de onde vocês estão no momento. – No seu quintal: Montreal. Shaw achou ter ouvido Kuchin ofegar e sentiu prazer por surpreendê-lo. – Isso simplifica as coisas – falou o magnata e explicou os detalhes. Shaw desligou e encarou Reggie. – Você ainda está dentro? – Agora, mais ainda. A arrogância dele me irrita. Ele acredita que somos ovelhas indo mansamente para o abate. E não somos?, pensou Shaw.
91
NA TARDE SEGUINTE, REGGIE e Shaw se encontraram em um café na mesma rua do hotel onde estavam hospedados. Shaw consultou o relógio. – Uma hora. O endereço marcado fica a cinco minutos de táxi daqui. – Muito bem, então podemos pôr a conversa em dia – ouviu-se uma voz. Shaw se virou rapidamente. Whit estava em pé ao lado da mesa, com Dominic atrás. – Que diabos vocês dois estão fazendo aqui? – Vou considerar isso um convite para nos sentarmos – disse Whit, se acomodando. Dominic ficou à sua frente, apoiando o braço engessado sobre a mesa. – Você organizou isto? – perguntou Shaw a Reggie. – Liguei para eles e contei o que estava acontecendo. Foram eles que insistiram em tomar um avião até aqui. – Dormi a viagem toda – conrmou Whit enquanto alongava as costas. – Descansado para nossa pequena excursão. – Vocês não vão – rebateu Shaw. – Por que não? – Porque ele não está esperando quatro pessoas, só duas. E disse que, se eu não seguisse as instruções ao pé da letra, Katie morreria. – Pensamos nisso – armou Reggie. – Se eles não concordarem, Whit e Dominic cam para trás. – Ficam para trás? Provavelmente serão mortos. – A vida é minha – replicou Whit com arrogância. – Faço o que quiser com ela. Dominic assentiu. – Mas, se você está preocupado – sugeriu Reggie –, ligue para Kuchin e peça permissão. É só ver o número da última ligação recebida. Shaw tirou o celular do bolso e o observou por um instante antes de encarar Whit. – Vocês estão cientes de que, se ele aceitar, vocês não devem voltar vivos? Whit olhou de relance para o amigo. – Tudo bem para você, Dom? – Eu não estaria aqui se não estivesse de acordo. – Aí está a sua resposta – falou Whit.
Shaw telefonou. A resposta foi um pouco surpreendente. Kuchin pareceu feliz em acrescentar duas pessoas à sua lista. – Dou as boas-vindas a todos vocês – ironizou antes que Shaw desligasse, balançando a cabeça. – Tudo certo? – perguntou Reggie. – Ah, sim. Agora temos quatro funerais em vez de dois. Vamos estourar o champanhe.
Eles foram de táxi até o local do encontro. Era um armazém, nada impressionante para Shaw. – Sempre um maldito armazém. A porta estava destrancada. Eles entraram. Não havia ninguém lá, só um GMC Yukon XL marrom com a chave sobre o banco dianteiro e uma lista de instruções embaixo do para-sol. Shaw ficou surpreso, mas logo entendeu a estratégia. – Eles eliminaram a possibilidade de uma emboscada. Mas isto nos põe no controle, portanto não compreendo totalmente. Saíram de Montreal dirigindo em sentido nordeste. Duas horas mais tarde, entraram em uma estrada de uma única pista em uma área coberta por oresta e sem sinal algum de vida humana. Após percorrerem quase 200 metros naquela faixa de cascalho, o carro morreu de repente. Shaw tentou religá-lo, mas o motor não pegava. – Temos meio tanque de gasolina – observou Reggie, apontando para o medidor no painel. – Todo o resto parece normal. – O carro também é novo – acrescentou Whit do banco de trás. Shaw viu um botão acima do retrovisor. – E tem um sistema de segurança. – E daí? – indagou Reggie. – Eles podem controlar remotamente o automóvel em caso de emergência ou de você se trancar do lado de fora. Também podem desligar o motor se o carro tiver sido roubado. Se alguém manipulou o sistema ou o utilizou de forma indevida, podem cortar a energia do motor e não há nada que eu consiga fazer. – Acho que você tem razão – opinou Reggie, vendo duas picapes se aproximando, uma pela frente e outra por trás. Seis homens saltaram com SIGs, Glocks e MP5s apontadas para eles. Vinte minutos mais tarde, os quatro estavam pelados e em círculo dentro de um pequeno edifício de concreto. Haviam sido revistados manualmente e com um scanner. Em seguida, foram submetidos ao forte jato d’água de uma mangueira e os seguranças de Kuchin passaram várias vezes pentes de metal por seus cabelos, braços e pernas, deixando longas marcas vermelhas. Retiraram o gesso de Dominic e o jogaram fora, substituindo-o por uma tipoia.
Após terem se secado, os prisioneiros receberam roupas limpas: agasalhos em um tom amarelo-vivo, roupas de baixo e tênis com meias brancas. – Que diabos foi aquilo? – resmungou Whit enquanto se calçava. – Quase nos afogaram. Reggie estava se vestindo atrás de uma porta para ter um pouco de privacidade, embora todos já tivessem visto os outros nus. Shaw abotoou o agasalho, cujas mangas e pernas eram curtas demais para ele. Os tênis eram apertados para seus longos pés. – Dispositivos de vigilância. Hoje em dia, há rastreadores incorporados a folículos pilosos e pedaços de pele falsos. Por isso a mangueira e o pente. Whit cheirou a própria pele. – Havia algo mais misturado naquela água. Provavelmente causa câncer – disse irritado. – Ilusão sua achar que vai viver tanto assim – rebateu Shaw. Reggie se juntou a eles, já vestida. – Bem, vejo que você continua otimista. – Só estou sendo realista. – Por que esses agasalhos amarelos? – perguntou Dominic. – Meu palpite é que assim fica mais difícil nos perder de vista. – Nos perder de vista? – exclamou Whit. – Como diabos isso seria possível? – Acho que isso depende de nós, não? – perguntou Reggie.
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PASSARAM-SE ALGUMAS HORAS. Com as mãos algemadas, os pés acorrentados, a boca amordaçada e a cabeça encapuzada, eles foram amontoados em um utilitário com janelas de vidro fumê que percorreu um longo caminho. Shaw estava contando os segundos em sua mente. Embora não estivessem em grandes rodovias – pelo menos isso ele conseguiu perceber –, a velocidade era bastante estável, no mínimo 100 quilômetros por hora. Dava para deduzir pelo som do motor e pela intensidade do vento do lado de fora do carro. Quando o veículo enm parou, ele tinha uma medida aproximada. Nove horas. Não dava para saber a direção, mas não era provável que fosse o oeste, rumo a Montreal, ou o sul, rumo aos Estados Unidos. A segurança entre os EUA e o Canadá não era tão rígida, mas quatro guras encapuzadas e agrupadas em um automóvel teriam suscitado, ao menos, curiosidade. Caso contrário o controle das fronteiras estaria desacreditado. Portanto, tinham seguido para o norte ou o leste. Nove horas rumo ao leste a 100 quilômetros por hora e eles atravessariam o Maine, nos Estados Unidos, para chegar até New Brunswick ou, ainda mais além, até Nova Scotia. Quando a Yukon foi desligada, a cidade grande mais próxima era Québec. De lá até Halifax, em Nova Scotia, a distância era muito maior do que a supostamente percorrida. Por isso, Shaw concluiu que haviam seguido mais para norte do que para leste, margeando a fronteira com os Estados Unidos. Fora permitida uma parada para fazerem suas necessidades e, em seguida, partiram. Mais tarde, as portas do veículo se abriram e eles foram forçados a car de bruços, quase uns por cima dos outros. Por um terrível instante, Shaw achou que fosse o m. A hora da execução. Os outros respiravam em ritmo acelerado e deviam estar pensando o mesmo. Uma lona pesada foi jogada em cima deles e uma voz ameaçou: – Um ruído e sua amiga morre. As portas do veículo se fecharam e ele seguiu em frente. Depois, parou. Mais uma vez, as portas foram abertas. Som de conversa. Portas fechadas. O automóvel avançou vacilante e parou. Shaw percebeu que o terreno não era rme. Embora o motor estivesse desligado, a picape se movia, para cima e para baixo, de um lado para o outro. Ou estava em cima de algo que fazia esses movimentos. Alguns minutos se passaram e Shaw ouviu mais barulhos, como o toque de um sino e passos apressados. Houve uma oscilação rápida e a sensação de algo deslizando para longe, como um trem deixando a plataforma da estação. O primeiro solavanco desvendou o
mistério. Estamos em um barco. Provavelmente em uma balsa que transporta carros. A água agitada aumentava o desconforto da situação. Shaw ouviu Reggie gemendo ao lado e achou que ela fosse enjoar de novo, como havia acontecido na travessia de Amsterdã até a Inglaterra. E, então, a viagem acabou. Seguiram por terra durante mais algumas horas e houve outra parada. Eles foram puxados para fora do veículo e tiveram que marchar, ainda encapuzados e acorrentados, em la indiana. Foram conduzidos aos empurrões até assentos em um espaço connado. Shaw bateu com a cabeça no teto. Quando o motor foi acionado, o som do deslocamento de ar e o repuxo no estômago fizeram Shaw deduzir que estavam em um helicóptero. Ele continuou a contar os segundos e, ao mesmo tempo, calcular a velocidade. Transcorreram pelo menos dezoito mil segundos, ou cinco horas. Se estivessem viajando a mais de 200 nós, teriam percorrido mais de mil quilômetros, indo parar ou em New Brusnwick ou em Nova Scotia, caso o rumo fosse o norte, ou no Atlântico, caso fosse o leste. Porém, Shaw não acreditava na última opção, pois haviam pegado a balsa. Na picape, vindo de Montreal e passando por Québec, eles permaneceram na extremidade sul da faixa de água que corta aquela parte do Canadá e usaram o serviço da balsa para atravessá-la. Shaw sabia disso porque já tinha estado em uma delas. Ninguém se daria o trabalho de pegar um barco em direção ao norte para depois voltar a atravessar de helicóptero para o sul ou o leste. Se o destino nal fosse New Bruswick ou Nova Scotia, teriam pegado o helicóptero já na extremidade sul, em vez de usar a embarcação. Ela era utilizada por quem queria ir para o norte, em direção à baía de Hudson ou até mesmo ao Círculo Ártico, ou para o leste, rumo a Terra Nova ou Labrador. Quando o helicóptero aterrissou e eles saltaram, Shaw já tinha certeza de que não estavam no Círculo Ártico; o voo não havia sido longo o suciente e a aeronave não fora reabastecida. Ele não sabia que tipo de helicóptero era aquele, mas, para a maioria dos modelos, cinco horas de voo com tal número de pessoas a bordo representava quase o limite da autonomia. E estava quente demais. Shaw apostava que se achavam mais a leste do que a norte. O motor silenciou e pôde-se ouvir o barulho do oceano batendo contra a costa, ou seja, se tratava do litoral de Terra Nova ou Labrador. Um vasto território. De qualquer forma, essa informação não os ajudaria muito. Os capuzes e as mordaças foram nalmente removidos e os quatro observaram a paisagem, os olhos se ajustando aos novos níveis de luminosidade. Eles haviam saído de Montreal no m da tarde e naquele local o crepúsculo já se rendia à escuridão. Mais de um dia inteiro se passara, calculou Shaw. E o ronco no seu estômago confirmou. Eles foram postos em uma picape e transportados para longe. – Alguma ideia de onde estamos? – sussurrou Reggie para Shaw. – Cale-se! – ordenou o homem ao lado do motorista. Dez minutos mais tarde, luzes surgiram no campo de visão.
A casa era feita de sólidos troncos e tinha uma varanda coberta e um telhado de placas de cedro. Picapes estavam paradas à sua frente. A centenas de metros, Shaw viu outra construção, às escuras. Ao longe, conseguiu divisar vultos de montanhas. A extremidade setentrional dos Apalaches, imaginou. Ele estivera naquela região algumas vezes no passado, como parte do seu trabalho. Era soturna, desolada. Não havia nenhum policial por ali. A lei era o que determinasse alguém com uma arma, ou pelo menos com alguma superioridade. O carro estacionou. Eles foram desembarcados e andaram até a casa, ainda acorrentados e algemados. O primeiro homem que viram foi Pascal, com um sorriso de orelha a orelha. O segundo foi Alan Rice. O terceiro era o motivo para todos estarem ali. Fedir Kuchin entrou na sala. Estava vestido de maneira casual, com jeans e uma camisa de veludo cotelê, e calçava coturnos. Não sorria triunfante nem parecia irritado. Seus sentimentos eram impenetráveis. Aquilo deixou Shaw mais nervoso do que se o homem tivesse começado a atacá-lo. Era uma demonstração de autocontrole e preparação meticulosa. Mas para quê? A pessoa que ele viu em seguida o fez esquecer de Fedir Kuchin. Uma Katie James abatida lhe deu um sorriso fraco.
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INDEPENDENTEMENTE DO QUE ACONTECER, pensou Shaw ao olhar para Katie, vou matá-lo antes que tudo isto acabe. – Você está bem, Katie? – perguntou ele quando a jornalista começou a se aproximar, antes que Pascal a interrompesse. – Estou. Sinto muito. – Como assim? Você só está envolvida nisto por causa de m... A explosão foi tão inesperada que Rice se abaixou e até Pascal deu um salto. A bala por pouco não acertou a orelha de Shaw. Kuchin abaixou a arma e encarou Reggie e Shaw. – Obrigado pela atenção. A questão é simples. – Ele apontou a arma para Katie. – Ela era a isca. Agora, vocês estão aqui. – Desviou o olhar para Whit e Dominic. – Todos os quatro, inclusive o irlandês que estava tão ansioso para me colocar em uma cripta. – Continuo ansioso – desafiou Whit, conseguindo dar um sorriso. Kuchin virou-se para Reggie e encostou a arma em sua têmpora. – E a beldade que me tornou imprudente e ávido para agradar. Você me transformou em duas coisas que eu achava que não fosse: velho e tolo. – Muito prazer – disse Reggie, encarando-o, o toque frio da pistola parecendo não perturbá-la. Kuchin encostou o cano na testa dela e Shaw se retesou, como se fosse saltar. Mas o ucraniano afastou a arma. – Não será assim tão fácil – falou ele. – Você me fez passar por seu ritual. Pretendo ter a mesma oportunidade. Kuchin se voltou para Dominic. – E o sortudo. O homem que sobreviveu a um tiro à queima-roupa porque meu el colega Pascal me entregou uma arma descarregada. Kuchin encostou a pistola na testa de Dominic. E puxou o gatilho. A parte posterior da cabeça do homem explodiu para fora, atirando longe sangue, tecido e osso. – Dominic! – gritou Reggie, vendo seu companheiro cair de costas com os olhos arregalados e os lábios entreabertos. Whit lutou bravamente para chegar até Kuchin, mas, acorrentado como estava, tudo o que conseguiu foi desabar no chão de madeira. O magnata pisou em sua cabeça como teria feito
com um inseto. Shaw cou imóvel, tando o cadáver de Dominic e Reggie, cujo rosto estava banhado de lágrimas. Por fim, encarou Katie. Sinto muito, articulou ele, sem emitir som. O olhar da jornalista dizia que ela compreendia, mas como era possível? Como alguém podia entender aquilo? Kuchin pôs a arma em um coldre no cinto, impassível. Aparentemente, para ele não havia diferença entre estourar os miolos de um homem e falar sobre o tempo. – Ninguém tem tanta sorte assim duas vezes. Tirou o pé do rosto de Whit e fez sinal para os seguranças. O irlandês foi erguido, gritando obscenidades para Kuchin. Por fim, Whit ficou em silêncio, tremendo e olhando para o cadáver do amigo. – Vocês não podiam esperar algo diferente – comentou Kuchin. – Sabiam que, se viessem, morreriam. Não vai ser complicado. Gosto de simplicidade. Sempre gostei. – Como o gabinete no seu apartamento? – indagou Shaw. – É bastante simples. Escrivaninha, arquivo, armário com seu velho uniforme. E o rolo de filme. Kuchin se virou para encará-lo. Tirou a pistola do coldre e a encostou na testa de Shaw. – Tenho um plano, um plano muito bem-arquitetado. Mas posso mudá-lo a qualquer momento – ameaçou, puxando o percussor. Uma mão segurou seu braço. – Por favor – implorou Katie. – Por favor, não faça isso. – Prometi que, se você seguisse minhas instruções, ela seria libertada ilesa. – Estou contando com a sua palavra – disse Shaw. – Uma observação peculiar, já que estou com uma arma na sua cabeça. – Você jurou pela sua mãe. O fato de eu ter ido ao seu apartamento não muda as coisas. Kuchin hesitou, mas enfim guardou a arma e apontou para Katie. – Ela ficará aqui. Vocês quatro irão lá fora. – Ele indicou a janela. – Você fez as contas erradas – observou Shaw. – Só restaram três. – Foi por isso que matei aquele cara. Eu queria que vocês fossem só quatro e ele estava sobrando. Shaw encarou o ucraniano, confuso. Kuchin estalou os dedos e um de seus guarda-costas lhe entregou um agasalho amarelo e um par de tênis. – Alan, por favor, ponha isto – pediu ele. Rice deu um passo para trás e seu rosto ficou vermelho e, depois, empalideceu. – Evan? Kuchin atirou o agasalho e os tênis em cima de Rice, que conseguiu pegar a roupa, mas deixou que os calçados caíssem. – Evan? – repetiu ele, tremendo. – Você deveria ter mirado melhor na igreja, Alan. – Ele tocou a própria orelha. – Mesmo
assim, foi por pouco. Chegou a chamuscar a minha pele. – Mas aquilo foi um acidente. Eu estava apontando para ele. – Rice gesticulou em direção ao corpo inerte de Dominic. – Atirei nele. – Atirar nele foi um acidente. Não acertar em mim foi um pecado imperdoável. – Eu... eu não sei usar armas, você sabe disso. – Você está fazendo aulas de tiro há seis meses. Pascal, sob minhas ordens, andou seguindo você. E você também demonstrou ser um conhecedor de armas. Seu único erro foi acreditar que, por ser capaz de atingir um alvo de papel a 25 metros de distância, conseguiria matar um homem a 7 metros no meio de uma confusão. Você não conseguiu. E, assim, eu sobrevivi. – Você está enganado, Evan. Fiz as aulas para não decepcioná-lo caso acontecesse alguma coisa. Eu não queria decepcioná-lo. Você salvou minha vida. – Eu disse que monitoraria os negócios. Rice pareceu se recompor. – Mas eu não fiz nada. Sua investigação não mostraria nada. – Cada centavo foi justificado. – Então, não entendo por que tudo isto. – As tarifas de transporte de cargas não subiram, Alan. Na verdade, o preço do combustível caiu sessenta por cento no último ano. Os cargueiros ainda usam combustível, não é? Precisamos pesquisar um pouco, mas descobrimos a conta na qual o dinheiro foi parar. – Não, você está enganado. Os carregamentos chegaram em dois navios. Eu disse isso a você. – Era um navio só, mas você estava duplicando a conta de combustível. Sei disso porque seu colega nas docas confessou antes de Pascal lhe cortar a língua. Depois, você tentou me matar para assumir os negócios. – Não, Evan, não, eu... – Coloque a roupa e os tênis, Alan. Agora. Senão você vai levar uma bala na testa. Vou permitir que você escolha. Soluçando, Rice obedeceu, mas Pascal precisou ajudá-lo de tanto que ele tremia. Kuchin se virou para os outros. – Vocês terão uma hora de vantagem. Aconselho vocês a não correrem para o oceano e mergulharem, pois a temperatura da água é de aproximadamente 10 graus mesmo no verão. – Ele apontou para a janela à sua esquerda. – Aquela é a direção a ser tomada. Mas tenham em mente que este lugar já foi uma geleira. Há muitos ordes, sulcos profundos o bastante para que alguém que perdido ali para sempre, água que se desloca muito depressa e declives que se transformam de repente em precipícios. Também existem animais que atacam à noite. – Como você? – perguntou Reggie.
– Sobretudo eu. – Então, é algo semelhante a uma caçada? – Semelhante, não. É uma caçada. – Nós desarmados contra você e seus empregados? Grande caçada. – Não, todos vocês contra mim. – Mas você terá armas. – Claro que sim. – E se nós sobrevivermos? Acaba tudo? – Vocês não vão sobreviver. Estas terras são minhas por quilômetros. E as terras que não são minhas não são de ninguém. Não há nada lá fora. Nada. Exceto vocês e eu. – E Katie? – Contanto que vocês sigam minhas instruções, ela será libertada ilesa. – Eu quero ir com Shaw – disse Katie. Kuchin a ignorou e consultou o relógio. – Agora, vocês têm 59 minutos – observou, gesticulando para os seguranças, que soltaram as correntes. Shaw olhou para Katie pela última vez. Queria dizer algo, mas o quê? Ela também hesitava. Por fim, eles apenas trocaram um sorriso breve, mas sincero. Reggie arrastou Whit para longe do corpo de Dominic e os dois seguiram Shaw porta afora. Os três começaram a correr. Rice não se mexeu. – Alan? – disse Kuchin. – Por favor, Evan. Por favor, não faça isso – suplicou o ex-sócio. – Foi você mesmo que disse: pago milhares de dólares, mas eles querem milhões. Você queria mais, é simples assim. E não implore. Homens não imploram. Kuchin deu um tiro no chão perto de Rice, que deu um pulo e saiu correndo. Katie foi levada para outro cômodo e trancada lá. Kuchin ordenou a Pascal: – Prepare os cães.
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RICE PASSOU CORRENDO POR eles, mas logo cou para trás, massageando um ponto dolorido na altura das costelas. Ele não estava em boa forma. Seria um atraso para os outros, facilitando a vida de Kuchin. Inicialmente, Shaw pensou em abandoná-lo, mas, depois, outra ideia lhe ocorreu e ele desacelerou, pondo a mão embaixo do braço de Rice para ajudá-lo a avançar. – Mantenha um ritmo. Nem depressa nem devagar demais. – Tudo bem, tudo bem – disse Rice, ofegante, e começou a se mover de maneira mais sincopada. Percebendo a intenção de Shaw, Reggie cou um pouco para trás para se unir aos dois. Whit corria à frente com a cabeça abaixada, sem dúvida ainda pensando em Dominic. – O que você pode nos dizer sobre este lugar? – indagou Reggie. – Qualquer coisa que nos ajude. – Tipo o quê? – quis saber Rice. – Imagino que estamos em Terra Nova ou Labrador – falou Shaw. – Em Labrador, bem perto do litoral. – Como você sabia? – perguntou Reggie a Shaw. – Contei os segundos e calculei a distância. – Não há nada aí fora – interveio Rice. – Estamos ferrados. Estamos mortos. Passaram por um pequeno lago. Antes que Shaw pudesse reagir, Reggie empurrou Rice para as águas lodosas. Ele afundou e emergiu arfando. Ela voltou a mergulhá-lo e o segurou lá por um bom tempo. Quando retornou à superfície, Rice gritou: – Que diabos você está fazendo? – Podem ter colocado um rastreador em você. Água e aparelhos eletrônicos não se dão muito bem. – Boa ideia – elogiou Shaw. – Eu deveria ter pensado nisso. – Achei que Kuchin seria capaz de pôr um espião entre nós com a desculpa de punir um de seus funcionários. – Vamos seguir em frente – falou Shaw. – O que mais você pode nos dizer? – acrescentou, continuando a correr. – Ele também tem cães de caça que seguem qualquer rastro. – Outro motivo para terem pegado nossas roupas. Por causa dos cães.
– Ele já fez isto antes? Caçar pessoas? – Bem, sei que ele não caça animais. Uma vez me disse que detestava. Reggie fez uma careta. – Aí está a sua resposta: ele tem cães de caça, mas não caça animais. – Pelo menos não quadrúpedes – completou Shaw. – Ele é cruel e imprevisível. – A crueldade já deu para perceber. É a imprevisibilidade que me preocupa. – Shaw olhou à sua volta. – O caminho dos carros é nessa direção em que estamos indo? – É difícil dizer no escuro, mas acho que sim. – O que há por perto? – Nada. Bem, existe um campo de pouso a cerca de 40 quilômetros, mas, da última vez que veriquei, não tínhamos um avião. Goose Bay talvez seja a cidade mais próxima, mas ca bem longe. Horas de carro, dias a pé. – Ele tem armas aqui? – Ele tem um cofre cheio de armas na casa. – Você sabe a combinação? – Ah, claro. Está bem aqui no meu bolso. Shaw deu um tranco no braço de Rice, quase jogando-o no chão. – Podemos deixar você para trás, para que Kuchin acabe com a sua raça primeiro. É o que você quer? Ou você vai parar com as tiradas sarcásticas e nos ajudar? – Não sei de nada útil. Já estive aqui várias vezes, mas cheguei e parti de avião. Quase nunca saí da casa. Waller, Kuchin, seja lá qual for seu nome, conhece esta região melhor do que qualquer outra pessoa. – Muito tranquilizador – observou Reggie com ar soturno. – Se ele tem cães – disse Shaw –, precisamos dar um jeito nisso. Eles recomeçaram a correr. – Como? – questionou Reggie. – Mudar nosso cheiro. – Como se faz isso? – perguntou Rice, arfando. – Achei que cães não pudessem ser enganados. – Qualquer um pode ser enganado, até mesmo cães farejadores. E nós temos uma vantagem. – Qual? – Sinta o cheiro. – Qual? – Respire fundo. Ela e Rice obedeceram. O homem quase engasgou e Reggie franziu o nariz. – Ovos podres – falou ela. – Dióxido de enxofre – corrigiu Shaw. – Deve haver muitas rochas metamórcas por aqui.
Isso significa muito enxofre. Provavelmente, alguns lagos sulfurosos também. – E daí? – indagou Reggie. – Vamos nos envolver com esse cheiro. Assim, teremos o mesmo cheiro de todas as coisas por aqui. Não é um plano perfeito, mas talvez consigamos confundir os cães. Não temos muitas opções. Precisamos virar nossos agasalhos do avesso. A cor do forro chama menos atenção do que este amarelo fosforescente. Shaw correu para falar com Whit. Vinte minutos mais tarde, seguindo um odor mais forte, encontraram um lago raso. – Precisamos entrar aí? – perguntou Rice. – Se quiser viver um pouco mais, sim – rebateu Shaw. – Só não beba essa água. Encharcados, com frio e fedendo, eles continuaram rumo a oeste por mais um pouco até que Shaw os fez parar, frustrado. – Está tudo errado. – De que diabos você está falando? – questionou Whit, com os cabelos molhados caindo nos olhos. – Estamos tentando nos manter na dianteira. Ele está vindo, portanto temos que ir para lá. – Ele apontou à frente. – Isso é exatamente o que Kuchin quer. Ele nos disse para seguir nesta direção. Por que será? – Uma emboscada? – sugeriu Reggie. – Para nos levar a um lugar sem saída? – É nisso que estou pensando. Não acredito que ele lute sozinho contra nós. – E o que nós vamos fazer? – questionou Whit. – Sempre achei que fosse uma boa tática ir para a esquerda quando o seu adversário espera que você vá para a direita. – O que isso significa? – Vamos margear o terreno que acabamos de percorrer e voltar para a casa. – E se ele já previu isso e resolveu armar uma emboscada lá? – Então, ele merece vencer. – Ele vai vencer – choramingou Rice. De repente, Reggie estendeu a mão e apertou o pescoço de Rice. – Me diga uma coisa, seu merda: você estava passando a perna em Kuchin? Rice ficou em silêncio. Ela apertou mais forte. – Estava? – Estava. – E você tentou atirar nele? Com uma expressão de infelicidade, Rice assentiu. – Seu merda, por que você não acertou o filho da puta? Vamos embora.
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KUCHIN CAMINHAVA SOZINHO, o rie na mão direita, cano abaixado. Podia ouvir os latidos à sua frente. De qualquer forma, não importava se os animais conseguissem ou não encontrar um rastro. Os cheiros ali eram problemáticos por causa do terreno e da composição das rochas. Sem dúvida, um homem como Shaw tinha experiência em despistar até mesmo os cães farejadores mais treinados. Aquela era uma partida de xadrez e era necessário pensar no lance atual e nos quatro seguintes. Kuchin seguira traidores por lodo, lama, gelo e água na Ucrânia como parte de suas tarefas na KGB. Quase sempre fora bem-sucedido, auxiliado por um desejo interno de nunca admitir uma derrota. Era o mesmo atributo que havia alimentado sua rápida ascensão na agência de segurança. Os superiores adoravam homens como Kuchin porque assim eles faziam bonito para os superiores deles. Reetira por muito tempo sobre como fazer aquilo. Uma parte de si mesmo queria amarrar cada um deles nu a uma mesa, escalpelá-los, cortar seus intestinos e aplicar torturas que Abdul-Majeed nunca poderia ter imaginado. Mas, por m, Kuchin resolveu não fazer nada disso, em especial porque, ao contrário do muçulmano, eles haviam demonstrado coragem, confrontando-o diretamente, arriscando a própria vida. Não se esconderam e mandaram um lacaio drogado para matá-lo, como zera Abdul. Por esse motivo, Kuchin respeitava o grupo, ainda que com relutância. Já Rice eram outros quinhentos. Ele morreria de qualquer maneira, mas Kuchin o colocara junto com os outros apenas por uma questão de conveniência. Não pretendia perder muito tempo com o homem. Seu antigo braço direito não merecia isso. A única opção, portanto, era a caçada. Ali, no seu terreno, Kuchin lhes dera uma pequena vantagem. Ele não era tolo; sobreviveria a tudo aquilo. Já eles, não. Mas pelo menos teriam uma oportunidade de adiar um pouco a própria morte. Kuchin também não escaparia. Ele havia fechado um ciclo. Seu pequeno gabinete na cobertura fora descoberto. Deviam estar lá naquele instante reunindo todas as provas necessárias para mandá-lo a julgamento na Ucrânia, e o resultado inevitável seria a sua execução. Meus compatriotas vão me trucidar. Seus dias de esconderijo haviam terminado. Evan Waller estava morto. O executivo canadense era uma imitação pálida do homem que Fedir Kuchin de fato era. No nal, ele não correria. Não se esconderia mais. Teriam que capturá-lo ali, no seu último posto de defesa. Eles venceriam porque eram mais numerosos, mas Kuchin levaria muita gente junto.
Era uma maneira apropriada para um velho guerreiro sair de cena. Segundo as suas regras. Ele sorriu. Talvez, daquela maneira, enm acabasse entrando para a história. O verdadeiro Carniceiro de Kiev. Mas isso viria mais tarde. Ele tinha quatro vidas a eliminar naquela noite. Não esperava que os quatro fossem morrer facilmente, sobretudo Shaw e a mulher. Eles lutariam com vigor. Eram sobreviventes. Bem, ele também era. E pretendia deixar a mulher por último. Tinha planos especiais para ela. Sua morte seria a mais demorada. Kuchin levantou o rie e mirou uma rena a centenas de metros. Os soviéticos foram exímios matadores de longa distância no Afeganistão com seus franco-atiradores e helicópteros de ataque. Talvez tivessem ganhado a guerra se os americanos não tivessem equipado os mujahideens com bazucas e uma montanha de lança-granadas. Kuchin podia se consolar com o fato de que algumas daquelas mesmas armas estavam sendo usadas contra os americanos. Mas era apenas um pequeno consolo. Os simplórios afegãos haviam derrotado o poderoso Exército Vermelho e destruído uma superpotência. Se puxasse o gatilho, poderia matar o grande animal que passeava à sua frente em busca de alimento. Porém, como antes, ele não tinha interesse algum em extinguir aquela vida. Continuou a caminhar lentamente com os olhos bem abertos e todos os sentidos em alerta. Alan Rice havia sido uma decepção, mas, ao mesmo tempo, foi algo previsível. Kuchin assumira os negócios do seu mentor de maneira violenta, então por que deveria esperar uma atitude diferente? Pessoas ambiciosas pegam o que querem. A principal diferença era que Kuchin era o tipo de homem que podia atingir aquele objetivo. Rice não tinha habilidade nem ousadia sucientes para derrubar alguém como Kuchin. Por isso ele fora contratado. Nunca ponha ao seu lado um homem mais implacável. Kuchin sabia que eles estavam à sua frente, correndo, tentando estabelecer um ritmo. Em certo momento, questionariam suas próprias táticas, talvez até discutissem entre si. Isso os faria perder tempo, diminuiria a vantagem que ele lhes havia concedido. Talvez mudassem de sentido, acreditando que Kuchin os encaminhava para uma direção especíca. Essa possibilidade também fora incluída em seus cálculos, além de muitos outros fatores. Kuchin consultou o relógio iluminado. Como era verão e a região cava em uma latitude alta, a noite não duraria muito mais do que seis horas. Kuchin esperava que tudo acabasse antes. Os despojos seriam levados até o oceano, amarrados a pesos e jogados no mar para nunca mais serem vistos, exceto pelos animais marinhos que os devorariam. Ele voltou a erguer o rie, escorando-o no ombro, e vericou a retícula, que a maioria das pessoas conhecia apenas como “quadriculado” . Havia anos que Kuchin usava o modelo SVD Type, que era o preferido dos franco-atiradores russos. Porém, dois anos antes, conseguira uma Mira Óptica Avançada de Combate, bastante usada pelas forças armadas americanas. O atirador deveria car com os dois olhos abertos porque o cérebro automaticamente transplanta a imagem na retícula do olho dominante para a outra pupila. Assim, se poderia ter uma percepção normal de profundidade e um campo de visão completo. A terminologia era muito técnica, mas o importante era que Kuchin podia focar e eliminar um alvo muito
mais depressa do que antes. E, como ele tinha quatro alvos, os poucos segundos poupados seriam inestimáveis no campo de batalha. Aquela arma matava, com um único tiro, qualquer coisa. Mas Kuchin não queria que isso acontecesse. A lentidão era a tônica naquele caso. O tempo era tudo. Ele tinha todo o direito de estar furioso com pessoas que deram seu máximo para matá-lo. Mas era esperto demais para deixar que aquilo se tornasse pessoal demais. Quando as emoções dominavam a mente, o resultado costumava ser a derrota. Ele deixaria que habilidade e razão dominassem a caçada. A emoção e a alegria podiam vir mais tarde, quando tudo estivesse terminado e mais quatro pessoas tivessem morrido pelas suas mãos.
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APÓS DAREM MEIA-VOLTA E margearem a rota que tinham percorrido antes, Shaw e os outros conseguiram chegar à casa, que estava totalmente às escuras. Eles ouviram os latidos pela primeira vez havia quase uma hora, mas, depois, os sons se distanciaram. Reggie caíra em uma fenda de uma antiga geleira, mas conseguiram resgatá-la. Rice estava exausto e Shaw teve que ajudá-lo durante quase 2 quilômetros. Os quatro olharam para as trevas. Não havia picapes estacionadas na frente da casa. – Você acha que todos estão fora, ajudando Kuchin a nos procurar? – sussurrou Reggie. – O cara era da KGB. Seria loucura não deixar uma retaguarda – respondeu Shaw. – Então, como vamos fazer isto? – Com o elemento-surpresa. É tudo o que temos. Precisamos de armas. – Só isso? E a sua amiga? – Se ela estiver aí, nós a pegamos. – Shaw se virou para Whit. – Você cuida dos fundos. Vou tentar chegar até a frente. Se vir alguém, assobie baixo. – Isso vai nos entregar – replicou Reggie. – Bem, qual é a outra opção? Deixei o walkie-talkie junto da minha metralhadora. – Vai ter que ser um assobio mesmo – concordou Whit. – E nós? – perguntou Reggie, apontando para si mesma e Rice. – Se as coisas derem errado, saiam daqui. Sigam na direção da água e tentem fazer sinal para um navio. Reggie não pareceu satisfeita, mas cou em silêncio. Não gostava que Shaw desse as ordens, mas ele tinha mais experiência em situações daquele tipo. E Whit também estava se submetendo a seus comandos. Alguns minutos mais tarde, Shaw chegou à porta dos fundos e espiou pelo vidro. Ficou tenso quando viu Katie sentada em uma cadeira, amarrada. Parecia estar dormindo. Ele tentou usar a maçaneta. A porta estava trancada. Surpreendeu-se ao ver Whit se arrastando para dentro da sala. Ao avistar Shaw na janela, atravessou o cômodo agachado e abriu a porta. – Entrei por uma janela – explicou ele. – A casa parece vazia. Eles rapidamente acordaram e desamarraram Katie. – Onde diabos está todo mundo? – indagou Shaw, abraçando-a depressa. – Acho que estão todos lá fora, procurando vocês. Eles também tinham cachorros.
– Nós ouvimos. Whit passou os olhos pelo aposento e seu rosto se contorceu. – Onde está o corpo de Dominic? – Eles o levaram. Não sei para onde. Sinto muito. – É... – murmurou Whit. – Acho que Kuchin não previu que vocês fossem voltar e passar despercebidos – comentou ela. – Aparentemente, não. – E agora? – indagou Whit. – O cofre com as armas. Eles o encontraram e gastaram vinte preciosos minutos tentando arrombá-lo, mas sem sucesso. Shaw desistiu, largando o pé de cabra encontrado na garagem. Do outro lado daquela porta de 7,5 centímetros de espessura, provavelmente havia poder de fogo suficiente para tirá-los dali a salvo, mas ele não tinha como pegar nada. – Bem, acho que eles previram a possibilidade de voltarmos. – Você acha que é uma armadilha? – perguntou Whit. – Dar a impressão de que todos foram embora, deixar-nos entrar, pegar Katie e, depois, nos apanhar na saída? – Nada me surpreenderia a esta altura do campeonato. Mas eles poderiam ter nos matado com muita facilidade quando chegamos aqui. Vasculharam o resto da casa, mas Shaw só conseguiu duas facas serrilhadas na cozinha. Entregou uma delas a Whit. – Faca contra armas de fogo? – É o melhor que temos. Agora, vamos ver se encontramos um telefone ou algo que nos permita pedir ajuda. Nada. Nenhuma linha fixa ou móvel, nem mesmo um walkie-talkie ou computador. – Shaw! Era Reggie, perto da porta de entrada; Rice estava ao lado. – Estão chegando carros – avisou ela. – Precisamos dar o fora daqui. Eles correram para os fundos da casa e saíram. Faróis cortavam a escuridão. Era uma picape, mas não havia como saber quantos homens estavam dentro. Shaw pensou rápido. – Precisamos de um carro. Reggie perscrutou o entorno e apontou para a esquerda. – Whit pode levar Rice e Katie por ali e se esconder na margem daquele canal. Nós dois podemos voltar, pegar o carro e as armas que eles tiverem. Depois, chamamos os outros e vamos embora. – Tudo bem – concordou Shaw. Whit levou Katie e Rice para o monte atrás da casa. Shaw deu a volta por um lado do chalé e Reggie, pelo outro. Quatro homens saltaram do carro e se dirigiram para a casa. Shaw sabia que eles tinham no máximo trinta segundos antes que os guardas descobrissem que
Katie não estava mais lá. Os dois correram para o automóvel. – Merda – murmurou Shaw. Os seguranças tinham trancado as portas. Ele olhou pela janela. As chaves não estavam convenientemente penduradas na ignição. E também não havia nenhuma arma à vista. Reggie se juntou a ele. – Mesmo que eu conseguisse quebrar o vidro, não é fácil fazer ligação direta nos carros hoje em dia. E... Os dois ouviram gritos dentro da casa. Eles haviam descoberto que Katie não estava mais lá. – Vamos, Shaw! – exclamou Reggie. – Precisamos correr. – Vá, vá – disse ele, impulsionando-a. Ela olhou para trás uma vez e sumiu ao lado do chalé. – Se nós não temos um carro, vocês também não vão ter – falou Shaw. Ele usou a faca para rasgar os dois pneus do lado direito antes de sair correndo. Logo depois, a porta da frente foi escancarada e os homens saíram em disparada com as armas em riste. Alguns foram para as laterais do chalé e atiraram com as submetralhadoras. Balas zuniram acima da cabeça de Shaw, mas ele continuou correndo. Duvidava que os seguranças pudessem enxergá-lo. E havia pouca chance de que suas armas MP5 pudessem atingi-lo daquela distância, mas eles poderiam ter sorte. Shaw alcançou os outros e os quatro correram tão rápido quanto possível para longe da casa, ouvindo os xingamentos de frustração dos homens quando a picape avançou aos solavancos por causa dos pneus cortados. Com Shaw à frente, eles traçaram um círculo amplo em torno da propriedade e voltaram a se encaminhar para oeste. Cinco minutos depois, as luzes do chalé haviam desaparecido do campo de visão. – Por pouco – comentou Shaw; enm eles haviam parado de correr. – Por muito pouco e nosso esforço não resultou em nada. – Para onde agora? – perguntou Rice. – Agora, estamos atrás deles. Eles não devem estar esperando isso. – Devem estar, sim. Eles sabem que estivemos lá porque ela desapareceu – retrucou Reggie, indicando Katie. Shaw encarou Reggie. – Você quer levá-la de volta? Reggie empalideceu. – É claro que não! – Então, vamos ter que seguir em frente da melhor maneira possível. – E como vamos fazer isso? – atalhou Whit. – Ficando à espreita e os atacando de surpresa com facas?
– Nosso objetivo não é enfrentá-los, mas nos afastar e conseguir ajuda. Não pegamos o carro, logo precisamos procurar uma alternativa. Se eu tiver acertado nossa localização e o litoral car naquela direção, chegaremos ao estreito indo para o sul. Nesta época do ano, haverá navios passando por aquele canal, indo e vindo da Europa. Se sobrevivermos até o raiar do dia, talvez consigamos atrair a atenção da tripulação. Eles podem mandar um barco para nós. – Parece razoável – comentou Reggie. – Espero que, em algum momento, você me diga o que significa tudo isto – falou Katie. – Vou explicar, mas não agora. Em outro momento, sem dúvida. Devo isso a você. Katie pôs a mão sobre a de Shaw. Reggie desviou o olhar.
Eles haviam percorrido quase 1,5 quilômetro quando um som rompeu o silêncio e todos os seus planos foram por água abaixo.
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ALAN RICE GRITOU E agarrou a própria perna. Uma bala de alto calibre havia penetrado em sua carne e estilhaçado o fêmur. Ele caiu, saiu rolando e parou escorado por uma pequena rocha. Shaw jogou Katie de bruços atrás de uma elevação do solo. Whit e Reggie também se protegeram. Shaw tentou avistar algo. – Alguém viu a centelha do cano? – perguntou ele. Ninguém vira. – Rice, vá para trás dessa pedra! – Minha perna está fraturada! – Você vai ter mais fraturas se não for para trás da pedra. Arrastando-se, Rice já estava quase abrigado quando outro projétil lhe atingiu o ombro. – Merda! – exclamou Shaw. Ele deu um salto e correu em zigue-zague até Rice, puxando-o para trás da rocha. Os dois ferimentos sangravam muito e a consciência de Rice oscilava por causa da dor. O osso estava exposto na coxa, com fratura múltipla. Aparentemente, não rasgara a artéria femoral, senão Rice já teria morrido. Usando sua faca, Shaw rasgou uma tira de tecido do próprio agasalho e fez um torniquete improvisado, amarrando-o um pouco acima da coxa. O fluxo de sangue diminuiu só um pouco. – Vou morrer? – perguntou Rice, arquejando. – Vou tentar tirar você daqui. Você consegue ficar em pé? – Ele vai atirar em nós! Vai matar nós dois! Shaw olhou para Rice. Ele estava entrando em choque e não havia nada a ser feito. Ao ouvir o som dos cães, Shaw congelou. Daquela vez, não eram latidos, mas rosnados, que o deixaram arrepiado. Ele espiou por cima da rocha. – Shaw! – berraram Katie e Reggie ao mesmo tempo. Dois dos maiores e mais ferozes cães que Shaw já vira corriam em sua direção, avançando como se o terreno acidentado fosse um carpete liso. – Shaw, corra! – gritou Reggie. Ele agarrou a faca, processando suas possíveis ações. Ficou agachado, sem se levantar totalmente, porque não sabia se os cães eram uma armadilha para que ele casse ao alcance de um tiro. Um dos animais pulou para cima dele e Shaw o atacou com a faca, abrindo um talho no enorme peito do cachorro de 90 quilos, porém foi apenas um ferimento
superficial. Com o braço livre, empurrou o bicho, que fez um arco no ar e caiu com força no chão, mas não ficou estirado. Com velocidade e agilidade que nenhum ser humano podia equiparar, o cão rolou, se equilibrou no terreno rochoso, virou-se em uma fração de segundo, acelerou e pulou, colidindo frontalmente com Shaw e rasgando-lhe o braço. Shaw se levantou depressa porque, se casse no chão, não teria chance. Seu punho acertou o focinho do animal duas vezes, atordoando-o. Os impactos causaram aguilhoadas no braço e no ombro. Usou a faca de novo, fazendo o animal soltar ganidos. Por m, saltou sobre a rocha e saiu correndo, seus pés escorregando no gelo frágil. Shaw cou tenso, imaginando ser atingido por uma bala nas costas ou atacado por trás pelo cão. Em sua mente, ele se via sendo puxado e sentia a mandíbula e o hálito malcheiroso do animal mordendo seu pescoço, seguindo uma tática instintiva para rasgar os grandes vasos sanguíneos e matar a presa. Um verdadeiro pesadelo. Mas nada disso aconteceu e Shaw logo entendeu por quê. Rice soltou um grito de gelar os ossos. Shaw se arrependeu de olhar para trás. Ele já vira muita violência em sua vida, mais do que a maioria das pessoas. Mas nada como aquilo. Um dos cachorros estava com o braço de Rice na boca. O outro havia dilacerado o seu peito, espirrando sangue por toda parte. Shaw visualizou rapidamente o quadro de Goya em que um monstro comia um homem. Mas pinturas a óleo, mesmo criadas pela imaginação de um gênio, não podiam se equiparar ao horror do espetáculo real. Foi só então, com a maior parte do seu corpo destroçado, que Rice enfim morreu. Shaw alcançou os outros e todos correram o mais rápido possível. Ele praticamente carregava Katie enquanto os quatro escorregavam por aquele perigoso terreno que deveria ser percorrido em um ritmo comedido, cauteloso. Três quilômetros mais tarde, eles desabaram exaustos, arquejando muito. – Como? – questionou Whit, se sentando ainda ofegante. – Não sei – respondeu Shaw. – As manobras dele foram mais rápidas do que as nossas. Reggie se sentou lentamente. – Precisamos seguir em frente. Se for necessário pular no estreito e nadar até um barco, é o que vamos fazer. Se ficarmos aqui, vamos morrer. Whit enfiou a faca na terra. – Caia na real: estamos mortos. Da próxima vez, nós é que seremos atacados pelos cães. Não temos chance alguma, Reggie. Shaw se levantou, ajudando Katie a ficar de pé. – Reggie tem razão. Precisamos seguir em frente. – Você acha mesmo que isso vai fazer alguma diferença? – perguntou Whit. – Não, mas vou dar um pouco mais de trabalho para aquele filho da puta. E você? Revigorado, Whit guardou a faca no bolso e se ergueu com um pulo. Eles correram a toda velocidade rumo à água.
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O QUE SOBROU DE ALAN Rice foi varrido para dentro de sacos de lixo e levado embora. Os cães, saciados, com sangue escorrendo pelas mandíbulas, foram controlados com as hastes metálicas e receberam mais uma vez as focinheiras. Agachado, com o rie apoiado sobre as coxas, Kuchin observava tudo, já pensando nos próximos passos. Olhou para longe. Água. Uma condição para a sobrevivência. Eles deviam estar indo naquela direção. Era algo lógico. Na verdade, era a única opção. Kuchin podia matá-los facilmente, mas a questão não era essa. Podia ter atirado em Shaw no momento em que ele foi ajudar Rice ou depois de ele ter fugido dos cães. Porém, não importava quando eles iriam morrer, mas como. Kuchin ditaria as regras. Os quatro zeram o que fora previsto. O ucraniano se levantou e sorriu. É claro que eles não entenderiam de imediato o signicado daquela atitude. Mas Kuchin pretendia explicar antes de tudo acabar. Um eliminado, três a abater. Bem, dois eliminados se contasse o homem na casa, mas Kuchin não se importava muito com aquilo. Ele já havia planejado a ordem das mortes. A mulher seria a última. Não esquecera seu próprio desejo. Primeiro, a possuiria, depois a mataria. Não conseguia pensar em uma vingança melhor. E sua morte seria de longe a mais dolorosa de todas. Seu esfolador estava na mochila. Talvez Kuchin conseguisse bater o próprio recorde de menos de uma hora. Ele achava que sim. Em sua mente, já podia ouvir os gritos. – Pascal – chamou ele, e o rapaz logo apareceu ao seu lado. – Sim, Sr. Waller. – Acho que está na hora de seguirmos em frente. Kuchin contemplou o céu. O momento mais escuro da noite havia chegado e ido embora e a alvorada começava a despontar. – Eles devem estar indo para o estreito. Os navios. Pascal anuiu. – O canal é mais largo do que eles devem imaginar. E soubemos de uma massa de gelo utuante por lá ontem, no lado de Labrador. Todos os navios vão car bem mais ao sul. Os quatro não vão ver navio algum. – Acho que eles só vão se dar conta disso ao alcançarem o litoral. Vai estar mais claro. Eles vão fazer sinais e esperar. O cofre das armas estava intacto? – Sim, senhor. Vericamos após eles terem ido embora. Só por precaução, havíamos tirado
todas as armas e munições. Só levaram facas. O grandalhão usou a dele contra um dos cães, mas o animal parece estar bem. Kuchin alisou o cabo do rifle. – Uma faca... arma inofensiva contra isto aqui. – Posso pegar o atalho e fazê-los dar meia-volta na sua direção. Eles só poderão ir para o estreito. – Faça isso, Pascal. Encaminhe-os até mim. – Kuchin sacou um mapa de bolso e Pascal o iluminou. – Leve-os para cá. – Indicou um ponto no desenho. – É uma boa estratégia – comentou Pascal, balançando a cabeça em sinal de aprovação. Ele olhou para uma das picapes, onde estavam sendo colocados os sacos de lixo com os restos de Alan Rice. – Ele era um idiota. – Na verdade, ele era muito inteligente, e isso pode levar uma pessoa a fazer coisas muito idiotas. Na inteligência, há ambição. E, na ambição, há perigo. – Se o senhor diz, eu acredito. – Encaminhe-os até mim, Pascal.
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NÃO HAVIA NADA. NENHUM navio visível, mas também nenhuma luz na água que indicasse a proximidade de um. E, para complicar ainda mais, estava se formando uma neblina. Shaw olhou para os outros e para as pedras lá embaixo. – Podemos descer por aqui e nos esconder até que algo apareça. Os demais o fitaram, esgotados. – Adiar o inevitável? – questionou Whit. – Prero pensar que é a conquista de uma posição defensiva. Assim, ele terá que descer e tentar nos pegar. – Ou car aqui em cima e nos acertar um por um – replicou Reggie. – Nem vimos de onde ele atirou em Rice. Mas foi de muito longe. – Você tem uma ideia melhor? – perguntou Katie. Reggie encarou o chão, passando o tênis sobre uma rocha. – Na verdade, não. Shaw olhou para trás. – No que você está pensando? – indagou Reggie. – Ele previu nossas ações. Eu gostaria de retribuir. – Como? Ele tem todas as vantagens táticas e estratégicas. – E ele tem armas e cachorros que fariam o cão dos Baskervilles parecer um pequinês – acrescentou Whit. Shaw agachou e pensou a respeito. Observou o céu que ia clareando. – A neblina pode nos ajudar a nos esconder. Reggie concordou. – É possível, mas é bem provável que o sol a dissipe e quemos expostos. Podemos até descer por essas rochas, mas acho difícil depois subir de volta. E não há muita cobertura lá embaixo. Poderíamos estar no meio do caminho e ele, daqui, nos acertaria. – O único aspecto positivo – comentou Whit – é que os cães não vão conseguir ir até lá embaixo para fazer uma bela refeição. Katie se levantou. – Meu Deus, Shaw está tentando pensar em uma maneira para nos tirar daqui e tudo o que vocês conseguem fazer é... Shaw pôs a mão sobre a boca de Katie e olhou ao redor. Todos eles ouviram algo se
mexendo à direita, em cima deles. Shaw gesticulou para que os outros o seguissem. Foram para a esquerda, afastando-se do barulho. – Veja, Shaw! – exclamou Reggie, apontando para trás. Todos eles estacaram, vendo um saco descer pelo promontório pendurado por uma corda até o chão. – Peguem – ordenou uma voz. Todos ergueram os olhos. Pascal estava em pé no topo da elevação. Shaw e Whit automaticamente levantaram suas facas. Pascal sorriu e sacudiu a cabeça. A neblina ficava cada vez mais densa, quase o encobrindo. – Peguem. Isso vai ajudá-los. Observando-o com cautela, Shaw foi até o saco. Quando viu o que havia dentro, cou boquiaberto: uma arma e um celular. – O telefone está totalmente carregado. O sinal também é muito bom. O Sr. Waller mandou instalar uma torre a cerca de um quilômetro daqui. Liguem para quem quiserem. E o chip de GPS está ativado. – Por que você está fazendo isso? – perguntou Shaw. – Ele quer que eu os leve naquela direção – respondeu Pascal, apontando para o caminho que eles haviam percorrido. – A aproximadamente 1,5 quilômetro daqui, as duas trilhas convergem. A oeste, fica um terreno mais alto. Aposto que o Sr. Waller estará lá esperando. – Você não respondeu a minha pergunta – insistiu Shaw, vericando se todos os componentes da arma estavam em ordem. Pascal encarou Reggie e Whit. – Eu queria que vocês o tivessem matado em Gordes. Achei que as informações que passei para os seus colegas fossem sucientes. Mas Rice se intrometeu. Ele seguiu você até a igreja. – Ele indicou Reggie. – Você era o nosso contato? – perguntou Reggie, atônita. – Surreal! – exclamou Whit incrédulo. – Só fui saber dos planos de Rice quando já era tarde demais. Fui com ele até a igreja achando que poderia ajudá-los de alguma maneira. – Pascal olhou para Shaw. – Aí, ele apareceu e vocês não precisaram mais de mim. – Você queria que Waller morresse? – indagou Reggie. – Ele se chamava Fedir Kuchin quando minha mãe o conheceu. Sou grego e ele foi nos visitar na Grécia uma vez. Eu era pequeno. – Você o conheceu na infância? – perguntou Katie. – Ele é meu pai, embora nunca tenha se comportado como tal. Deixou minha mãe morrer sem nada. Nós, gregos, não perdoamos nem esquecemos algo assim. Kuchin acha que eu não sei quem ele é. Acha que não sou inteligente o bastante para deduzir. Kuchin acredita que, para mim, ele simplesmente foi à Grécia e resgatou um órfão. É verdade que ele me deu
comida e abrigo, além de me treinar. Mas minha mãe morreu por causa dele e nada pode compensar isso. Shaw fitou a arma. – Para que isto? – Para que vocês tenham uma chance. – Por que você mesmo não o mata? – falou Whit. – Tenho meus motivos. E ele é meu pai. Vou cuidar dos outros. E dos cães também. Vocês cuidam dele. Boa sorte – completou secamente, e sumiu. Todos se entreolharam. – O que você acha? – perguntou Katie. – Acredita nisso tudo? – Sim, claro. Ele nos deu uma arma de verdade e uma linha de comunicação. Vamos seguir em frente. – Digitou um número e Frank atendeu, com voz sonolenta. – Tenho um minuto para falar, Frank, e preciso que você se mexa como nunca na sua vida. Shaw explicou a situação a Frank e desligou. Passou os dedos pela arma e instruiu Katie: – Você e Reggie cam aqui com Whit. Vou levar a arma e matá-lo. Depois, volto para pegar vocês. – Ele não está sozinho, Shaw – interveio Reggie. – Talvez você precise de ajuda. – Você ouviu Pascal: ele vai cuidar dos outros. Whit balançou a cabeça. – Sim, mas ele está sozinho. Talvez o matem. E tem também os malditos cachorros. Vou com você. As mulheres podem ficar aqui e nos esperar. – Estivemos juntos o tempo todo – argumentou Reggie. – Não vejo motivo para nos separarmos agora. – Concordo – disse Katie. – Todos ou ninguém. – Isso não faz sentido – retrucou Shaw. – Se estivermos juntos, vamos facilitar muito o trabalho dele. – Ou dificultar – rebateu Reggie. – Depende do ponto de vista. – Tudo bem, por que não podemos ficar aqui e aguardar Kuchin? – indagou Whit. – Porque, se zermos isso, ele nos pegará. Mesmo de avião ou helicóptero, Frank vai demorar um tempo até chegar aqui. – Podemos armar uma emboscada. – O terreno aqui não é propício. Somos alvos fáceis. Pascal, por exemplo, nos surpreendeu. Se eu voltar para o lugar onde Kuchin está nos esperando, mas me aproximar por um ângulo diferente, talvez consiga pegá-lo desprevenido. E ele não sabe que tenho uma arma. – Não vamos car para trás, Shaw – armou Katie. – Enm nos encontramos e não vou deixar que você escape assim tão fácil. – Eu também vou – acrescentou Reggie. Shaw encarou Whit, à procura de apoio, mas o irlandês apenas deu de ombros. – Nunca ganhei uma discussão com uma mulher na minha vida. Não vai ser desta vez que
conseguirei. Shaw suspirou fundo e, com a arma em riste, partiu. Os outros o seguiram.
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KUCHIN HAVIA ESCOLHIDO O terreno, mas era um local que ninguém esperava, nem mesmo Pascal. Um lugar alto era quase sempre uma vantagem em um conito. Quase sempre. Ele apontou o rie, olhando através da mira, e tirou um pouco de sujeira do vidro. Puxou a luva para cima e consultou o relógio. Depois, se recostou e cou à espera, contando os segundos para ficar alerta. Quando ouviu os primeiros sons, não se mexeu. Apreendeu o ritmo dos passos e foi se movendo de acordo com eles, para que seus próprios ruídos pudessem ser encobertos. Levantou o cano e aproximou da mira o olho direito, dominante. A retícula fez seu trabalho. Alvo focado; não havia motivo para esperar. Kuchin atirou. – Merda! – gritou Whit, segurando a própria perna e caindo no chão logo atrás de Shaw. – Abaixem-se todos! – berrou Shaw. Todos se jogaram no chão. Reggie se arrastou até Whit para avaliar a gravidade do ferimento. Ele já estava rasgando o agasalho para tentar conter o sangramento. – A bala atravessou – grunhiu ele. – Acho que não atingiu o osso, mas dói demais. – Vamos tirar você desta – prometeu Reggie. Whit balançou a cabeça, o rosto empalidecendo. – Foi a mesma coisa que aconteceu com Rice. O canalha tem um método, Reg. Perna primeiro, tronco depois. – Ele gemeu em agonia, seu corpo convulsionando de dor. Com os lábios trêmulos, acrescentou: – Para terminar, os malditos cães. – Não vou deixar que isso aconteça. Ele a agarrou com o braço livre e pôs a faca em sua mão. – Se você ouvir os cães se aproximando, me mate antes que eles me alcancem. Prometa! – Ela o encarou, impotente. Whit a sacudiu. – Reggie, prometa! Não deixe que eles façam comigo o que fizeram com Rice. Ela baixou a cabeça e observou a faca; seus olhos estavam marejados. – Whit, não sou capaz. Não posso fazer isso. Ele reuniu forças para suplicar mais uma vez. – Se você não zer isso, Kuchin vencerá. E não podemos deixar que esse monstro vença, Reg, não é mesmo? – Ele voltou a se deitar, ofegando. Reggie apertou o cabo da faca e enxugou as lágrimas. – Tudo bem, eu faço. Se for obrigada.
Do ponto onde estava, agachado, Shaw perscrutava a paisagem adiante. A neblina se adensava. As formas das coisas eram alteradas, enganando a vista. Pela direção de onde viera o tiro, Shaw deduziu que Kuchin se encontrava em algum lugar à frente, mas, ainda assim, era uma área muito extensa. Talvez eles só tivessem uma chance. Falou a Katie para car onde estava e se arrastou até Reggie e Whit. Depois de examinar o rapaz ferido, entregou a arma a Reggie. Ela o encarou, intrigada. – Esta é nossa última chance, Reggie – explicou Shaw. – O único jeito de sairmos desta é localizá-lo. – Como? – Pela centelha do cano da arma. Não a vimos ainda, mas está escuro o bastante para que consigamos enxergar um clarão. – Como você pretende fazer isso? – Fazendo com que ele atire. – Eu sei, mas como? – Vou correr em linha reta bem na sua frente, da direita para a esquerda. Fique olhando para lá. O clarão virá daquela direção. Ele está próximo. Pude perceber pelo som do tiro. O disparo não veio de longe. – Shaw, você... Ele olhou para Whit, que continuava a gemer no chão. – Quando a centelha aparecer... – Shaw, não posso... Ele deu-lhe um tapa tão forte no rosto que sua bochecha ficou vermelha. – Não diga que não consegue fazer. Você vai fazer isto. Reggie cou atônita, mas não tão abalada. Seu olhar se endureceu. Shaw percebeu e abrandou um pouco a voz. – Você consegue, Reggie. Já vi você fazer a mesma coisa no estande de tiro. Quinze centímetros abaixo da centelha do cano. Três tiros bem próximos. Ele não está usando proteção porque não sabe que temos uma arma. Assim que tudo estiver terminado, você e Katie ajudam Whit a voltar até a costa. – Shaw lhe entregou o celular. – Fique ligando para ver onde Frank está, assim ele poderá se conectar ao GPS do telefone. Reggie passou a língua nos lábios. – Shaw... – Faça o que estou dizendo, Reggie. Ponha um fim nesta história. Por mim. Ela enfim assentiu e Shaw logo lhe deu as costas e permaneceu abaixado. – Shaw! – gritou Katie, se levantando e indo na sua direção. – Cuidado! Shaw olhou para a esquerda. O lho da puta tinha dado um jeito de mudar de posição tão silenciosamente quanto um fantasma. Sua aparência também era fantasmagórica, coberta pela névoa. Kuchin já apontava o rie. Com uma arma daquelas, era como atirar à queimaroupa. Não havia como errar.
Shaw abriu os braços uma fração de segundos antes do tiro e sentiu a bala passar de raspão, queimando a pele. Ele não entendeu como Kuchin fora capaz de errar daquela distância, de forma tão grosseira. Então, como uma avalanche, a verdade desabou sobre Shaw. – Katie! Ele se virou a tempo de vê-la tombando de costas devido à força do projétil que acabara de atravessá-la. Mechas louras voaram quando a bala saiu por suas costas e se estilhaçou em uma pedra. Katie caiu no chão e ficou imóvel. Kuchin estava a pouco mais de 10 metros de distância. Ele tou a mulher desfalecida e, depois, Shaw, que não conseguia desviar o olhar de Katie. – Eu falei que, se você seguisse minhas instruções ao pé da letra, ela seria libertada ilesa – falou Kuchin. – Mas você me desobedeceu. Voltou à casa e a resgatou. Quebrou nosso pacto. Ela morreu por sua causa, meu amigo. Shaw encarou Kuchin. Pela expressão do ucraniano, ele percebeu que tudo aquilo fora planejado. Nenhum guarda na casa, Katie sozinha. Uma picape chegando no m e uma saraivada de tiros para disfarçar. Não havia sido uma emboscada planejada. Ele queria que Shaw resgatasse Katie. Rompesse o acordo. E Shaw caiu direto na armadilha, como um idiota. Com uma fúria que ele só sentira uma vez na vida, Shaw disparou para a frente e, em quatro segundos, percorrera quase toda a distância até Kuchin com a faca em posição de ataque. Mas Kuchin tinha demorado menos ainda para levantar o rie e mirar cuidadosamente. O cérebro de Shaw estava focado na retícula da arma que nunca havia errado um alvo. Pouco antes que Kuchin disparasse, a névoa o encobriu completamente. Um tiro foi disparado. Depois, outro. E, para terminar, mais um. O rie caiu no chão enquanto Shaw ainda saltava. O sangue começou a jorrar dos três orifícios no peito do ucraniano. Os tiros haviam sido tão próximos que as três balas lhe dilaceraram o coração. Reggie baixou a pistola. O estande de tiro enfumaçado havia se mostrado útil. Ela memorizara a posição de Kuchin através da neblina. E, daquela vez, o alvo não se mexera. O homem caiu de joelhos, com os olhos esbugalhados, sem conseguir acreditar no que acabara de acontecer, embora já estivesse clinicamente morto. Os cientistas às vezes se referem a esse fenômeno como a “alma técnica” , a última conexão sináptica de um cérebro morto que deixava algum rastro de razão apesar de a vida física já ter chegado ao fim. Shaw se chocou com Kuchin e enou a faca em seu crânio com tanta força que acabou quebrando o cabo. O monstro caiu de costas com Shaw por cima desferindo socos cada vez mais rápidos, atingindo o cadáver até que não houvesse mais rosto, apenas uma massa disforme, fazendo seus dedos estalarem e cobrindo suas mãos de sangue. – Shaw, ele está morto! Está morto. Reggie tentou puxá-lo, mas ele a derrubou. Então, Shaw voltou à realidade e correu até Katie. Tentou vericar sua pulsação, mas não a encontrou. Montou nela e, repetidamente,
massageou seu peito e fez respiração boca a boca. Os pulmões se recusavam a se expandir. Por fim, com um gemido, o corpo de Katie estremeceu e ela inspirou fundo. Shaw olhou para Reggie, que estava ao seu lado. – Me ajude. Por favor. Enquanto Shaw acomodava a cabeça de Katie em seus braços, Reggie abriu a blusa da jornalista e inspecionou o ferimento. – A bala a atravessou. Passou muito perto do coração. Fez um curativo improvisado e estancou o sangramento da melhor maneira possível. Shaw ligou para Frank e contou o que havia acontecido. O chefe lhe disse que estava levando uma equipe médica. Katie respirava lentamente. Reggie se agachou e observou Whit, que estava deitado segurando a própria perna e gemendo baixinho. Desviou o olhar para o corpo massacrado de Kuchin e se lembrou de uma coisa. – Que Deus entenda por que fiz isto – murmurou Reggie, e fez o sinal da cruz. Quando notou que o braço de Shaw estava sangrando, Reggie arregaçou a manga do agasalho dele e viu a marca da bala. – Você desviou o tiro dele. – O quê? – perguntou Shaw. – O tiro bateu no seu braço antes de atingi-la. Você atrapalhou a trajetória. Ele devia estar mirando na cabeça de Katie. Kuchin achava que seria um tiro mortal. Shaw não mostrou interesse algum por aquela observação. – Ela foi baleada por minha causa. – Você salvou a vida dela. – Ainda não. – Shaw soluçou. – Ainda não. Ele abraçou Katie com toda a força, como se pudesse impedir que a vida a abandonasse. Como se pudesse evitar perdê-la.
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KATIE E WHIT FORAM tratados pela equipe médica no avião. Ao aterrissarem em Boston, os dois foram levados às pressas para um hospital de traumatologia. Shaw, Reggie e Frank caram sentados na sala de espera por horas, Frank bebendo vários copos do péssimo café das máquinas automáticas e Shaw encarando o chão. Os médicos apareceram para informar que Whit estava bem e se recuperaria. Mais horas se passaram. Um homem e uma mulher surgiram na sala de espera. Eram os pais de Katie. Shaw os reconheceu de uma foto que ela lhe mostrara uma vez. Ele era alto e magro, com cabelos predominantemente grisalhos. Ela se parecia com a lha: era esbelta e loura e tinha os mesmos olhos e o mesmo jeito de andar. Ambos pareciam exaustos e agitados e caram com a filha por uma hora. – Eles nos disseram que, se não fosse por você, ela teria morrido – falou o pai, depois que saiu do quarto. Shaw mal conseguiu levantar a cabeça para encará-lo. E não foi capaz de emitir palavra alguma. Voltou a olhar para baixo, paralisado pela culpa. – Obrigada – agradeceu a mãe de Katie. Shaw menteve a cabeça baixa. Compreendendo os sentimentos dele, Frank se levantou e acompanhou o casal para fora da sala, falando em voz baixa. Depois, retornou e se sentou ao lado de Shaw. – Coloquei-os em outra sala de espera. Eles estão ligando para o resto da família. – Como está Katie? – perguntou Reggie. – Ainda em perigo, ao que parece. Eles ainda não sabem a extensão dos danos. Mais horas se passaram. Frank trouxe comida da lanchonete, mas só ele e Reggie comeram. Shaw continuava a fitar o chão. Os pais de Katie saíram da UTI. Pela expressão nos seus rostos, as notícias eram boas. A mãe foi até Shaw. Daquela vez, ele se levantou e ela o abraçou. – Ela vai sobreviver. Está fora de perigo – disse, aliviada. O marido apertou a mão de Shaw. – Não sei o que aconteceu lá, mas quero agradecer do fundo do coração por você ter ajudado a salvar a vida da minha filha. Alguns minutos mais tarde, eles foram ligar para os irmãos de Katie e dar as boas notícias. Shaw ficou em pé, ainda cabisbaixo.
– Você ajudou a salvá-la, Shaw – afirmou Frank. Shaw fez um gesto de desdém com a mão. – Shaw, você precisa ir vê-la – falou Reggie. Ele balançou a cabeça. – Não. – Por que não? – Não tenho esse direito – murmurou Shaw entre os dentes e fechou e abriu os punhos como se quisesse socar a parede. – Ela quase morreu por minha causa. E os pais dela me agradeceram por ter salvado a sua vida. Isso não está certo. Nada disso está certo. Reggie segurou o rosto dele e o virou para si mesma. – Você precisa ir vê-la. – Por quê? – perguntou ele ferozmente. – Porque é o que ela merece. Os dois sustentaram o olhar um do outro pelo que pareceu uma eternidade. Reggie o soltou aos poucos e recuou. Shaw passou em silêncio por ela e deixou a sala de espera. Ele se pôs ao lado do leito de Katie. Tubos a cobriam, máquinas a circundavam. A enfermeira disse que ele só tinha um minuto e se afastou, deixando-os a sós. Shaw pegou a mão de Katie e a segurou com delicadeza. – Sinto muito. Por várias coisas. Shaw sabia que ela estava inconsciente, tomada por analgésicos, mas ele precisava falar tudo aquilo. Senão, explodiria. – Eu não devia tê-la abandonado em Zurique. Devia ter ido atrás de você em Paris. Eu... – Ele fez uma pausa. – Gosto de verdade de você. E... As lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto e ele deu um suspiro entrecortado, sentindo-se enjoado. Curvou-se e beijou a mão de Katie. Os dedos dela se fecharam em torno da mão de Shaw. Ela ainda não estava consciente, mas havia apertado sua mão. Ele percebeu que a enfermeira o observava da soleira. – Tchau, Katie – despediu-se, soltando-a finalmente.
102
– TEM CERTEZA DE QUE não quer que eu dirija? – perguntou Frank logo após sentar no banco do carona do carro alugado. – Tenho, sim. Shaw foi mais rápido do que deveria até o aeroporto. De tempos em tempos, Frank o olhava nervoso, mas parecia relutante em quebrar o silêncio. Por fim, disse: – Encontramos os restos dos seguranças de Kuchin, todos mortos, exceto Pascal. Não o achamos em lugar algum. – Sorte dele. Shaw permaneceu o tempo todo virado para a estrada à frente. – Tem certeza de que não quer car por aqui? Posso conseguir uma licença. Assim você estará aqui quando Katie sair do hospital. – A única coisa que vou fazer é ficar o mais longe possível dela. – Mas, Shaw... Ele pisou abruptamente no freio, cantando pneu. Soaram buzinas em protesto e os carros passaram zunindo ao seu lado. – Que diabos você está fazendo? – exclamou Frank, perplexo. O rosto de Shaw estava vermelho; seu corpanzil tremia como se ele estivesse tendo uma crise de abstinência de metanfetamina. – Ela quase morreu por minha causa. E não foi a primeira vez. Portanto, nunca mais vou chegar perto dela, Frank. Está entendendo? – Sim, sim, entendi. Frank já vira Shaw em quase todas as situações imagináveis, mas nunca daquele jeito. Naquela noite, Shaw e Frank embarcaram em um 777 da British Airways em Boston, que pousaria em Londres na manhã seguinte. Durante o voo, Frank assistiu a um lme, tomou alguns drinques, jantou, trabalhou um pouco e cochilou. Shaw cou olhando pela janela durante as seis horas e vinte minutos da viagem. Após aterrissarem, os dois passaram pela imigração em Heathrow e se encaminharam para a saída. – Shaw, estou de carro. Quer uma carona até a cidade? – Trate de me conseguir outra missão. Quanto antes melhor. Shaw continuou a caminhar cabisbaixo, sua sacola balançando ao seu lado.
Frank o observou por um instante e depois foi embora.
Shaw chegou a Londres uma hora mais tarde, de ônibus. Não foi para o Savoy. Ele não estava trabalhando. Não podia pagar do próprio bolso por aquele hotel. Foi para um quarto com um preço muito mais modesto em uma parte da cidade muito menos atraente. Assim que jogou a sacola no chão, seu celular tocou. Shaw nem se deu o trabalho de vericar o identicador de chamadas. Não ia falar com ninguém naquele momento. Saiu para comprar umas cervejas. Quando voltou, tomou duas, amassou as latas vazias com uma só mão e as jogou no lixo. O telefone tocou de novo. Ele bebeu outra cerveja, foi até a janela, contemplou a rua e viu passar um bando de gente que nunca conhecera pessoalmente Katie James e que nem sabia que ela estivera muito perto da morte. – Ela é uma pessoa incrível – falou Shaw para si mesmo. – Eu não a mereço. E ela sem dúvida não me merece. Shaw ergueu a lata e deu umas pancadinhas no vidro, pensando no momento em que Katie apertara sua mão. Fora maravilhoso, mas ele sabia que nunca mais teria aquela sensação. À meia-noite, o celular parou de tocar. Ele terminou a última cerveja, que, àquela altura, estava morna. Sem conseguir dormir, Shaw se levantou no meio da noite para vomitar na privada tudo o que havia bebido. Tomou banho, fez a barba, vestiu roupas limpas e saiu para achar um lugar aberto com café da manhã às quatro horas da madrugada. Como estava em Londres, sua busca chegou ao m depois de apenas dois quarteirões. Sentou-se nos fundos de um bistrô quase deserto e pediu o maior prato que eles serviam. A comida chegou, mas ele simplesmente cou olhando para ela. Tomou duas xícaras de café preto, deixou um bolo de cédulas britânicas sobre a mesa e foi embora. Caminhando ao longo do Tâmisa, Shaw encontrou o lugar onde ele e Katie estavam quando um tiro fora disparado e um homem caíra morto no rio. Aventurou-se por outra rua, onde Katie por pouco não morrera envenenada; ele conseguira salvá-la a tempo. Passou por um restaurante em que os dois haviam jantado. E, por m, o hotel no qual ele jogara o carrinho do café da manhã na parede e ela reagira servindo-lhe calmamente uma xícara de café. Aquela lembrança provocou um sorriso, logo transformado em soluços. Naquele mesmo encontro, Katie mostrara a marca do ferimento a bala em seu braço e lhe contara a história do menino afegão que tinha morrido porque ela fora longe demais em seu esforço para obter uma matéria. Katie havia largado tudo e cruzado o Atlântico para car com Shaw quando ele precisara. Ela sempre esteve presente quando necessário. Naquele momento, ela estava em um hospital, com um buraco no peito, por causa dele. Shaw foi cambaleando até um beco, se encostou em um prédio de tijolos sujo e chorou muito. Mais tarde, em Trafalgar Square, cou sentado, perto dos pombos, com os olhos
vermelhos e o rosto levantado em direção a lorde Nelson até seu pescoço doer porque não sabia o que mais tar. Londres voltava à vida, o ritmo dos passos e dos veículos ia aumentando. À medida que o sol subia, o ar se aquecia. Depois de tudo o que havia acontecido, era difícil acreditar que ainda era verão. Gordes, e até mesmo o Canadá, pareciam lembranças distantes. Shaw se levantou, olhou em volta, se perguntando para onde iria em seguida, mas logo se deteve. Do outro lado da praça, Reggie o observava. Shaw começou a andar na direção oposta, mas algo fez com que ele desse meia-volta e fosse em direção a ela. – Como você sabia que eu estaria aqui? – Um palpite de sorte. E liguei para Frank. Ele me disse que você havia voltado para Londres. – Como está Whit? – A perna está rígida, mas ele vai car bem. Fico feliz em saber que Katie também vai se recuperar. Shaw anuiu distraidamente. Reggie vestia o mesmo jeans branco que usara em Gordes, sandálias rasteiras pretas e uma blusa de algodão azul. Os cabelos estavam soltos, caídos sobre os ombros. Ela parecia mais velha, pensou Shaw. Todos eles pareciam mais velhos. Ele se sentia um ancião de 100 anos. – Tentei ligar, mas você não atendeu. – Acho que minha linha foi desligada. Shaw começou a andar com Reggie ao seu lado. – Obrigado por ter matado Kuchin. Foi um tiro e tanto. – Se eu tivesse sido mais rápida, Katie... Ele se afastou um pouco dela. – Não diga isso, Reggie. Ela permaneceu em silêncio enquanto os dois avançavam pela Strand. – Eles conseguiram achar o corpo de Dominic? – perguntou Shaw. – Não. E a pior parte é que os pais nunca saberão o que de fato aconteceu a ele. – Sinto muito. Ela olhou para baixo, pensativa, tentando encontrar as palavras certas. – Frank está negociando conosco para trabalharmos com você. Shaw estacou e a encarou, frio. – Comigo? – Não, eu quis dizer com ele. Com a organização dele – apressou-se em dizer. Shaw voltou a caminhar. – Não sei como isso seria possível. Ela voltou a falar rapidamente. – Precisaríamos mudar um pouco o modo como atuamos. Quer dizer, não podemos, bem, terminar as tarefas como costumávamos fazer. Mas ele disse que a nossa rede de informações
e as pesquisas de apoio poderiam ser úteis se combinássemos certos... Shaw ergueu a mão para que ela parasse de falar. – Não me interessa, está bem? Reggie ficou arrasada, mas respondeu: – Claro. Tudo bem. Entendo. Chegaram a um parque e Shaw se sentou em um banco. Reggie hesitou, sem saber se ele queria que ela zesse o mesmo. Por m, se acomodou, mas mantendo uma boa distância entre os dois, o que era difícil, devido ao tamanho de Shaw. – Acho que nunca agradeci por você ter salvado minha vida. – Shaw, você não precisa me agradecer. Eu não estaria aqui se não fosse por você. – Eu precisava verbalizar. – Tudo bem, você verbalizou. Agora, chega. Reggie cruzou as pernas e deu um suspiro exagerado. – Não tenho nada a ver com isso, mas... – Então, pare por aí. Passou-se um minuto de silêncio. – Não fomos mais do que amigos – explicou Shaw. – Mas ela signicava... ela significa muito para mim. Mais do que eu imaginava. – Tudo bem. – Uma lágrima escorreu pelo rosto de Reggie. – E a possibilidade de algum dia sermos mais do que amigos é algo que... Shaw balançou a cabeça, observou um menino acompanhado da mãe e, em seguida, desviou o olhar para a grama. – Mas, Shaw, ela vai ficar bem. Você pode... – Isso não vai acontecer – atalhou ele, com firmeza. Os dois ficaram calados por um tempo. – O que você vai fazer agora? – perguntou Reggie. – Alguns dias de folga perambulando por aqui até Frank me chamar de novo para trabalhar. – Você poderia ir para Harrowseld. Acho que Frank vai até lá amanhã para discutir algumas questões. E nós poderíamos... Ela se interrompeu quando Shaw se levantou de repente. – Não, Reggie. Sinceramente, acho que não daria. Ele lhe deu as costas. – Por favor, Shaw. Ele olhou para trás. – Sinto muito. – Mas podemos ir devagar... Lágrimas começavam a brotar. Irritada, ela as enxugou. Shaw se virou e Reggie se levantou. Os dois ficaram se encarando.
– Eu enterrei a pessoa mais importante da minha vida. E quase perdi outra mulher de que gosto muito. – Ele fez uma pausa e suspirou. – Não quero que você seja a terceira. Cuide-se, Reggie. Ela o observou desaparecer em meio à multidão enquanto Londres acordava. Reggie saiu andando na direção oposta. Ela não conseguiu reunir forças para dar mais uma olhada em Shaw. Se tivesse se virado, teria percebido Shaw parado, tando-a por muito tempo. Depois, ele deu meia-volta e continuou a caminhar.
David Baldacci
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