Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
LOJA DE ANTIGUIDADES
Tomo II
Kit, já que nesta conjuntura, não só conseguimos tempo para respirar e acompanhar o seu destino, como também as exigências destas aventuras se adaptam tão bem ao nosso desejo e ao nosso gosto que nos obrigam imperiosamente a seguir o curso que mais nos apetece, como o estimado leitor pode imaginar, enquanto se iam desenrolando os acontecimentos narrados nos últimos quinze capítulos, Kit ia-se familiarizando cada vez mais com Mr. e Mrs. Garland, com Mr. Abel, com o pónei e com Bárbara. E pouco a pouco, acabou por considerar cada um e todos eles como seus amigos íntimos e a Vivenda Abel, em Finchley, como a sua própria casa.
Mas, espere o leitor um momento, as palavras estão escritas e podem prosseguir, mas se derem a entender que a mesa farta e o alojamento confortável que Kit havia encontrado na sua nova residência lhe faziam menosprezar a frugalidade e a pobreza da sua antiga casa, então elas cumprem mal a sua função e estão a cometer uma injustiça. Quem seria tão cuidadoso como Kit, com aqueles que havia deixado em casa, embora fossem apenas uma mãe e duas crianças pequenas?
Que pai orgulhoso alguma vez relatou com tanto ardor as maravilhas do seu filho prodígio, como Kit, que à noite nunca se cansava de contar à Bárbara sobre o pequeno Jacob? E segundo as afirmações de Kit, alguma vez houve uma mão tão boa como a sua, ou alguma vez tinha havido tanto consolo, no meio da pobreza, como na da família de Kit, se é legítimo tirar esta conclusão das suas palavras entusiásticas! E demoremo-nos um pouco mais aqui, e observemos que, se alguma vez o afecto e o amor da família são enternecedores, é entre os pobres. As correntes que ligam os ricos e os orgulhosos à sua casa podem ser forjadas sobre a terra, mas aquelas que unem o pobre ao seu humilde lar são de metal nobre, ostentando a marca do Céu.
O homem de alta linhagem pode gostar das mansões e das terras herdadas, como se fossem parte de si próprio, como trofeus do seu nascimento e do seu poder, mantendo com elas ligações de orgulho, de riqueza e de triunfo. Mas o afecto do pobre pela casa onde mora, onde outros moraram no passado e outros irão morar no futuro, conserva uma raiz mais valiosa, profundamente enterrada num solo mais puro. Os seus deuses domésticos são de carne e sangue, sem qualquer liga de ouro, prata, nem pedras preciosas. Ele não tem quaisquer bens, senão os afectos do seu próprio coração, e quando eles se estendem a paredes e a soalhos nus, apesar dos farrapos, da árdua faina e das magras refeições, esse homem recebe de Deus o amor pelo seu lar, e a sua rude choupana torna-se um lugar sagrado.
Oh! Se aqueles que dirigem os destinos das nações ao menos se lembrassem disto... se ao menos pensassem como é difícil aos muito pobres criar no seu coração aquele amor do lar, de onde brotam todas as virtudes domésticas, vivendo em densos e esquálidos amontoados onde se perdeu a decência social ou, melhor, nunca a houve... se eles ao menos se desviassem das amplas ruas e das grandes casas e procurassem melhorar as miseráveis habitações das vielas, onde apenas passa a pobreza, muitos humildes telhados apontariam com mais verdade para o céu do que o mais imponente campanário que agora se ergue orgulhosamente no meio do pecado, do crime e de terríveis doenças, troçando deles, pelo seu contraste. E em asilos, hospitais e cárceres, vozes cavas pregam, dia a dia, esta verdade que tem sido proclamada durante anos.
Não se trata de uma questão trivial, de um brado da plebe trabalhadora, de uma simples questão de saúde e de conforto das gentes que se possa desprezar, como um escarro que se cospe, nas noites de quarta-feira. É no amor do lar que nasce o amor da nação. E quem, em tempos de aflição, é mais ou melhor patriota? Aqueles que veneram a terra, e possuem as suas florestas e os seus rios e o seu solo e tudo aquilo que ela produz, ou aqueles que amam o seu país, sem lavrarem um palmo de terra, em todo o seu vasto domínio?
Kit desconhecia todos estes problemas, mas sabia que a sua antiga casa era muito pobre e que a nova era muito diferente, mas recordava-a sempre com grande carinho e afectuoso cuidado, escrevendo à mãe muitas cartas, que dobrava en quatro e fazia acompanhar de um xelim ou de dezoito pences ou outra pequena quantia que a liberalidade de Mr. Abel lhe permitia.
Por vezes, quando se encontrava próximo, tinha oportunidade de a visitar, e então grande era a alegria e o orgulho da mãe, muito ruidosa a satisfação do pequeno Jacob e do bebé, e cordiais as felicitações de toda a viela, que escutava com admiração as histórias da Vivenda Abel e que nunca se cansava de ouvir contar as suas maravilhas e magnificências.
Embora Kit gozasse da maior estima da senhora e do senhor e de Mr. Abel e de Bárbara, a verdade é que ninguém da família revelava por ele tão notável predilecção como o teimoso pónei que, embora sendo o mais obstinado e o mais pertinaz pónei da face da Terra, nas mãos de Kit se tornava o mais meigo e o mais dócil dos animais.
É verdade que, exactamente na medida em que se tornava tratável por Kit, ficava completamente indomável para qualquer outra pessoa, como se a todo o custo estivesse decidido a conservá-lo na família, e que, mesmo quando conduzido pelo seu favorito, não deixava, por vezes, de fazer muitas e variadas travessuras e caprichos, com grande perturbação dos nervos da velha senhora. Mas como Kit acudia sempre, dizendo que era apenas uma maneira dele se divertir ou de mostrar a sua afeição pelos donos, Mrs. Garland deixou-se gradualmente convencer, acabando por ficar tão convicta que, se alguma vez o pónei, na sua excitação, tivesse virado a carruagem, ela teria acreditado plenamente que ele havia feito isso na melhor das intenções.
Kit, para além de em pouco tempo se ter transformado numa perfeita maravilha em tudo o que dizia respeito à cocheira, em breve se revelou um jardineiro muito razoável, um pronto auxiliar dentro de casa e um criado indispensável a Mr. Abel que, cada dia lhe dava mais provas da sua confiança e do seu apreço.
E também Mr. Witherden, o notário, o olhava com um ar amigável, e até Mr. Chuckster condescendia, por vezes, em lhe fazer um ligeiro aceno, ou honrá-lo com aquela forma especial de saudação que consiste em colocar o polegar sobre a ponta do nariz, ou acolhê-lo com alguma outra saudação condescendente e divertida.
Num dia de manhã, Kit conduziu Mr. Abel ao escritório do notário, como por vezes fazia, e depois de ele ter descido, dispunha-se a conduzir o pónei para uma cavalariça de aluguer que havia próximo, quando aquele mesmo Mr. Chuckster surgiu à porta do escritório, gritando: - Aí-í-í-í! - prolongando o último som durante muito tempo, para atemorizar o pónei e assegurar a supremacia do homem sobre os animais inferiores.
- Pára aí, meu janota - gritou Mr. Chuckster dirigindo-se a Kit. - Lá dentro estão a precisar de ti.
- Será que Mr. Abel se esqueceu de alguma coisa? - disse Kit, ao descer.
- Não faças perguntas, janota - respondeu Mr. Chuckster.
- Entra e logo vês. Aí, então, não paras? Se este pónei fosse meu, cortava-o aos bocados.
- Tem de ser mais simpático com ele, se faz favor - disse Kit, - senão ele fica irrequieto. E é melhor não continuar a puxar-lhe as orelhas, que eu sei que ele não gosta disso.
Mr. Chuckster não se dignou responder a esta admoestação, mas, dirigindo-se a Kit com ar altivo e distante e tratando-o por «mocinho», pediu-lhe que se despachasse e voltasse o mais depressa possível. O «mocinho» obedeceu e Mr. Chuckster enfiou as mãos nos bolsos, tentando dar a impressão de que não estava a tomar conta do pónei, encontrando-se ali, por acaso, a passar o tempo.
Kit raspou cuidadosamente os pés, pois ainda não tinha perdido o respeito pelas resmas de papéis e pelas caixas de estanho, e bateu suavemente à porta do escritório que foi imediatamente aberta pelo próprio notário.
- Oh! Entra, Christopher - disse Mr. Witherden.
- É este o rapaz? - perguntou um senhor idoso, mas de especto vigoroso e franco, que se encontrava na sala.
- É este - respondeu Mr. Witherden. - Conheceu, por acaso, o meu cliente, Mr. Garland, aqui mesmo à porta. Tenho razões para crer que ele é um bom rapaz e o senhor pode acreditar no que ele disser. Deixe-me apresentar-lhe Mr. Abel Garland, o jovem patrão dele, que é praticante no meu escritório, cavalheiro, e meu amigo íntimo, meu amigo muito íntimo, cavalheiro - repetiu o Notário puxando do seu lenço de seda e passando-o delicadamente pelo rosto.
- Um seu criado, senhor - respondeu o cavalheiro desconhecido.
- Eu é que certamente sou um seu criado, senhor - respondeu Mr. Abel, cortesmente. - O senhor desejava falar com o Christopher?
- Desejava, sim. Dão-me licença?
- Mas, certamente.
- O meu assunto não é confidencial, ou seria preferível dizer que não precisa de ser confidencial - afirmou o desconhecido, verificando que Mr. Abel e o notário se preparavam para se retirar. - Está relacionado com um negociante de antiguidades a quem ele esteve ligado e por quem tenho um enorme interesse. Já há muitos, muitos anos, que não vinha a este país, cavalheiros. Por isso, se os meus modos e o meu trato revelarem alguma falha, espero que me desculpem.
- Não há necessidade de se desculpar, cavalheiro. Necessidade nenhuma - responderam o notário e Mr. Abel igualmente.
- Andei a indagar junto da vizinhança do seu antigo patrão - contou o desconhecido - e soube que este rapaz estivera ao serviço dele. Descobri onde morava a sua mãe e foi ela quem me indicou este escritório, como sendo o sítio mais próximo para o encontrar. É esta a razão de me apresentar hoje aqui.
- Agrada-me muito, cavalheiro - afirmou o Notário. - qualquer que seja a razão que me proporcione a honra da sua visita.
- O cavalheiro fala como um mero homem mundano - replicou o desconhecido - e penso que o senhor é mais do que isso. Por isso, peço-lhe que não rebaixe o seu verdadeiro carácter fazendo-me cumprimentos que não têm qualquer significado.
- Hum! - exclamou o notário pigarreando. - O senhor fala sem rodeios.
- E negoceio sem rodeios - replicou o desconhecido.
- Talvez seja a minha longa ausência e a minha inexperiência que me levem a tirar esta conclusão, mas se nesta parte do mundo são poucas as pessoas que falam sem rodeios, imagino que haverá ainda menos capazes de negociar sem rodeios. Se a minha maneira de falar o ofendeu, cavalheiro, espero que o meu modo de negociar lhe dê satisfação.
Mr. Witherden pareceu um pouco desconcertado com o modo como o senhor de idade conduzia o diálogo. Quanto a Kit, olhava para ele com a boca aberta de pasmo, receoso da forma como ele iria falar consigo, se se dirigia a um notário com aquela liberdade e aquele à-vontade. No entanto, foi sem qualquer aspereza, embora com alguma irritabilidade e alguma precipitação, inerentes ao seu temperamento, que se voltou para Kit, dizendo-lhe:
- Se pensas, meu rapaz, que ao proceder a estas indagações sou movido por outro intuito que não o de ser útil e de recuperar aqueles que procuro, fazes-me uma grande injustiça e enganas-te a ti próprio. Peço-te que não te iludas, confia em mim. O facto é que, cavalheiros - acrescentou ele, voltando-se de novo para o notário e para o seu pupilo, - me encontro numa situação muito penosa e absolutamente inesperada. Vim a esta cidade acarinhando um projecto que me era muito querido, e esperando não encontrar nenhum obstáculo ou dificuldade que se opusessem à sua realização. Subitamente, vejo-me impedido e paralisado, pouco antes da realização do meu objectivo, devido a um mistério que não consigo desvendar. Todos os esforços que tenho empreendido serviram apenas para o tornar ainda mais secreto e obscuro, e temo que, se referir directamente o assunto, aqueles que procuro ansiosamente fujam ainda mais de mim. Asseguro-lhes que, se me puderem dar alguma colaboração, não se hão-de arrepender. Se soubessem quanto estou necessitado dela, e como podem libertar-me de um grande peso!
Havia uma tal simplicidade nesta confiança que encontrou uma rápida resposta no coração generoso do notário, o qual, com a mesma simplicidade, respondeu que o desconhecido não havia feito um pedido em vão, e que se lhe pudesse ser útil, o faria com a maior prontidão, Kit foi então submetido a um interrogatório, no qual o cavalheiro desconhecido lhe fez minuciosas perguntas sobre o seu antigo patrão e a jovem, o seu modo de vida solitário, os seus hábitos reservados e a sua estrita reclusão. A ausência do velho de noite, a existência solitária da jovem durante esse tempo, a doença do velho e o seu restabelecimento, o modo como Quilp tomara posse da casa e o súbito desaparecimento dos seus moradores, tudo foi alvo de muitas perguntas e respostas. Finalmente, Kit informou o cavalheiro de que o imóvel estava agora para ser arrendado, e que na porta havia uma tabuleta informando todos os interessados que se dirigissem a Mr. Sampson Brass, solicitador em Bevis Marks, o qual poderia, talvez, fornecer mais pormenores.
- Não preciso perguntar onde é - disse o cavalheiro abanando a cabeça. - Moro lá.
- Mora em casa do advogado Brass? - exclamou Mr. Witherden com certa surpresa, já que conhecia profissionalmente o cavalheiro em questão.
- Assim é - respondeu ele. - Arrendei-lhe um quarto, um dia destes, principalmente por ter visto essa mesma tabuleta. Pouco me importa onde vivo, e tinha uma secreta esperança de conseguir obter ali algumas informações confidenciais, que não seria possível alcançar noutro sítio. Sim, vivo em casa do Brass, é uma vergonha para mim, não é?
- Isso é uma simples questão de opinião - respondeu o notário encolhendo os ombros. - Ele é considerado como de carácter algo duvidoso.
- Duvidoso? - repetiu o outro. - Agrada-me saber que há alguma dúvida sobre ele. Julgava que isso já tinha ficado esclarecido há muito tempo. Mas permite-me que lhe dê duas palavras, em particular?
Mr. Witherden assentiu, e dirigiram-se ambos para o gabinete particular do notário, onde permaneceram em secreta conversação durante cerca de um quarto de hora, voltando então ao escritório. O desconhecido, que havia deixado o chapéu na sala de Mr. Witherden, parecia, nesse breve espaço de tempo, ter estabelecido com ele relações muito amigáveis.
- Não te vou demorar mais - disse ele metendo uma coroa na mão de Kit, e olhando para o notário. - Hei-de voltar a falar contigo. Agora, nem uma palavra sobre isto, a não ser aos teus patrões.
- A minha mãe gostava muito de saber, cavalheiro... disse Kit, hesitante.
- Gostava de saber o quê?
- Qualquer coisa... se não houvesse inconveniente... sobre Miss Nell.
- Gostava? Então podes dizer-lhe, se ela conseguir guardar segredo. Mas, atenção, nem uma palavra a mais ninguém. Não te esqueças. Tem cuidado.
- Vou ter cuidado, senhor - disse Kit. - Muito obrigado, senhor, e muito bom dia.
Ora aconteceu que o cavalheiro, na sua preocupação de insistir com Kit para não contar a ninguém o que se havia passado entre eles, o seguiu até fora da porta, repetindo a sua recomendação, e aconteceu ainda que, naquele momento, os olhos de Mr. Swiveller estavam voltados naquela direcção, avistando o seu misterioso amigo com Kit.
Foi tudo um simples acaso, que ocorreu do seguinte modo. Mr. Chuckster, um cavalheiro de gostos requintados e de espírito fino, pertencia àquela Loja dos Gloriosos Apoios, na qual Mr. Swiveller era um Membro Perpétuo.
Mr. Swiveller, ao passar na rua para efectuar algum recado a Mr. Brass e avistando um membro da Gloriosa Confraria com os olhos fitos nun pónei, atravessou a rua para lhe apresentar a saudação fraternal a que os Membros Perpétuos estão obrigados, pelos estatutos do seu sagrado ofício, para animar e encorajar os seus discípulos. Mal tinha acabado de lhe dar a sua bênção, seguida de um comentário de ordem geral sobre o estado actual e as perspectivas do tempo quando, erguendo os olhos, reparou no cavalheiro solitário de Bevis Marks em animada conversa com Christopher Nubbles.
- Olá! - exclamou Dick. - Quem é aquele?
- Veio esta manhã falar com o meu patrão - respondeu Mr. Chuckster. - Para além disso, nunca o vi mais gordo.
- Sabe, pelo menos, o nome dele? - perguntou Dick.
A isto, Mr. Chuckster respondeu, com uma linguagem elevada, própria de um Glorioso Apoio, que não sabia, fosse «perpetuamente abençoado».
- A única coisa que sei, meu caro amigo - continuou Mr. Chuckster passando os dedos pelo cabelo, - é que é por causa dele que estou aqui há vinte minutos, e por isso fiquei-lhe com um ódio mortal e eterno, e era capaz de operseguir até aos confins da eternidade, se vivesse o suficiente para isso.
Enquanto assim discorriam, o alvo da sua conversa, que não pareceu ter reconhecido Mr. Richard Swiveller, voltou a entrar em casa, e Kit desceu os degraus, aproximando-se deles. Mr. Swiveller submeteu-o ao seu interrogatório, sem melhores resultados.
- É um cavalheiro muito simpático, senhor - respondeu Kit. - É a única coisa que sei dele.
Mr. Chuckster ficou irritado com esta resposta, e sem aplicar a sua observação a nenhum caso concreto, declarou em termos gerais que era preciso partir a cabeça dos janotas e apertar-lhes o nariz. Sem manifestar a sua comunhão de sentimentos, Mr. Swiveller, após alguns momentos de reflexão, perguntou a Kit qual o caminho que seguia, e ao ser informado, declarou que também is para esse lado, pelo que se permitia abusar da sua generosidade, pedindo-lhe uma boleia. Kit bem gostaria de ter recusado tal honra, mas como Mr. Swiveller já se havia instalado no assento ao seu lado, não tinha meio de o fazer, senão expulsando-o à força.
Assim, partiu rapidamente, e tão rapidamente que interrompeu as despedidas entre Mr. Chuckster e o seu Grão-Mestre, causando alguns incómodos àquele cavalheiro, já que o pónei, impaciente, lhe pisou os calos.
Como Whisker estava cansado de esperar e Mr. Swiveller revelou a sua amabilidade, estimulando-o ainda mais com assobios estridentes e animados gritos, seguiram guizalhando com demasiada velocidade para permitir que se entabulasse conversa, e tanto mais porque o pónei, excitado pelas admoestações de Mr. Swiveller, começou a revelar uma especial predilecção pelos postes de iluminação e pelas rodas das carroças, assim como uma grande vontade de correr pelo passeio e de se esfregar pelos tijolos que formavam as paredes.
Por isso, só quando chegaram à cavalariça, e depois de se conseguir arrancar a carruagem de uma entrada muito estreita para onde o pónei a havia arrastado, parecendo querer levá-la consigo para dentro das suas baías habituais, então é que Mr. Swiveller teve oportunidade de falar.
- É um trabalho duro - disse Richard. - E se fôssemos beber uma cerveja?
A princípio Kit recusou, mas passados uns momentos acedeu, e dirigiram-se juntos ao bar próximo.
- Vamos beber à saúde do nosso amigo... como é que ele se chama? - perguntou Dick, erguendo a caneca brilhante e espumosa. - Aquele que estava esta manhã a falar contigo. É que eu conheço-o, sabes. É bom homem, mas excêntrico... muito excêntrico... Aqui vai, à saúde do... como é que ele se chama?
Kit acompanhou-o no brinde.
- Ele vive na minha casa - prosseguiu Dick. - Quero dizer, na casa onde está instalada a firma, na qual sou uma espécie de... sócio-gerente. É difícil arrancar-lhe qualquer coisa, mas gostamos dele... gostamos dele.
- Tenho de ir andando, senhor, se me dá licença - disse Kit afastando-se.
- Não estejas com tanta pressa, Christopher - respondeu o seu protector. - Vamos brindar à tua mãe.
- Obrigado, senhor.
- É uma excelente mulher, a tua mãe, Christopher - declarou Mr. Swiveller. - «Quem corria para me agarrar, quando eu caía, beijando a ferida, para a sarar? A minha mãe.» Uma mulher adorável. Ele é um homem generoso. Temos de conseguir que ele faça alguma coisa pela tua mãe. Ele conhece-a, Christopher?
Kit abanou negativamente a cabeça e, olhando com ar furtivo para o seu inquiridor, agradeceu-lhe, escapulindo-se antes de ele ter tempo de dizer mais nada.
- Hum! - exclamou Mr. Swiveller com ar pensativo. - Isto é estranho. Que quantidade de mistérios ligados à casa de Brass! Mas eu não vou dizer nada a ninguém. Até agora, tenho confiado em toda a gente, mas agora vou tornar-me independente. Tudo isto é estranho, muito estranho!
Depois de reflectir maduramente durante algum tempo, com uma expressão de profunda sabedoria, Mr. Swiveller bebeu um pouco mais de cerveja e chamou um rapazito que o tinha estado a observar. Vazou sobre o cascalho as últimas gotas que lhe restavam, em jeito de libação, e ordenou ao garoto que entregasse a caneca vazia no bar, com os seus cumprimentos, recomendando-lhe, sobretudo, que levasse uma vida sóbria e temperada, abstendo-se de todas as bebidas intoxicantes e excitantes.
Depois de lhe ter dado aquele conselho moral pelo serviço, o que, como prudentemente lhe fez notar, era muito melhor que umas moedas de meio «penny» o Perpétuo Grão-Mestre dos Gloriosos Apoios enfiou as mãos nos bolsos e partiu em ar de passeio, mas ainda meditabundo.
Durante todo aquele dia, e embora tivesse de esperar por Mr. Abel até ao fim da tarde, Kit manteve-se afastado da casa da mãe, decidido a não antecipar, com a menor aproximação, os prazeres do dia seguinte, para os saborear, depois, em toda a sua deliciosa agitação. Amanhã era o dia maior e o mais desejado de toda a sua vida. Amanhã terminava o seu primeiro trimestre, era o dia de receber, pela primeira vez, uma quarta parte do seu salário anual de seis libras, constituída pela enorme quantia de trinta xelins. Amanhã ia ter meio-dia de feriado, dedicado a um turbilhão de divertimentos, e o pequeno Jacob ia comer ostras e ia ao teatro.
Todas as circunstâncias se combinavam em favor desse dia. Não só Mr. e Mrs. Garland tinham prevenido que não pensavam descontar-lhe do ordenado o seu enxoval, e que iam pagá-lo integralmente, em toda a sua enorme grandeza. Não só o cavalheiro desconhecido tinha aumentado o seu capital em mais cinco xelins, o que constituía uma perfeita dádiva de Deus, e por si só já era uma fortuna. Não só aconteceram todas estas coisas, que ninguém poderia ter imaginado, nem esperado nos sonhos mais loucos, mas também naquele dia terminava o trimestre da Bárbara. Naquele mesmo dia acabava o trimestre da Bárbara! Também ela tinha meio-dia de feriado, tal como Kit, e a mãe da Bárbara ia participar também na festa e tomar chá com a mãe de Kit, para ficarem a conhecer-se.
Naquela manhã, Kit pôs-se a olhar pela janela ainda muito cedo, para ver para onde é que as nuvens deslizavam e se certificar de que Bárbara estava também à janela, se não tivesse feito serão até muito tarde, pondo goma e passando a ferro pedacinhos de musselina, franzindo-os depois em folhos, e cosendo-os em seguida noutros tecidos, criando magníficos trajes para vestir no dia seguinte.
Mas, apesar de tudo, ambos se haviam levantado muito cedo, com pouco apetite para o almoço e ainda menos para o jantar. E encontravam-se num estado de grande excitação, quando apareceu a mãe da Bárbara, louvando e contando como o tempo estava bonito lá fora, embora trouxesse um guarda-chuva muito grande, já que as pessoas como a mãe da Bárbara raramente gozam um feriado sem a companhia do seu guarda-chuva, e mais excitados ficaram, quando ouviram tocar a campainha, para irem lá acima receber o salário do seu trimestre, em ouro e prata.
E então, Mr. Garland disse amavelmente: - Christopher, toma lá o teu dinheiro, mereceste-o bem.
E Mrs. Garland disse também amavelmente: - Bárbara, aqui está o teu, estou muito contente contigo.
Depois Kit assinou orgulhosamente o seu nome no recibo, e Bárbara escreveu o seu, toda trémula, e foi bonito ver Mrs. Garland oferecer um copo de vinho à mãe da Bárbara, e ela proferiu com sinceridade: - Deus a abençoe, minha senhora, porque é uma boa senhora, e também ao senhor, pela sua bondade, e Bárbara, gosto muito de ti. Aqui vai à sua, Mr. Christopher.
Levou muito tempo a bebê-lo, como se fosse um copo enorme, e as luvas conferiam-lhe um ar distinto, e depois riram-se tanto, ao contarem todas estas coisas, dentro da diligência, e compadeciam-se das pessoas que não tinham feriado!
Mas voltemos à mãe de Kit. Não teria qualquer pessoa julgado que ela provinha de boas famílias, e que toda a sua vida tinha sido uma senhora? Ali estava ela, pronta para receber as suas visitas, com um tal aparato de serviço de chá que teria feito inveja a uma loja de porcelanas, e o pequeno Jacob e o bebé estavam impecáveis, de tal modo que as suas roupas pareciam novas e sabe Deus como já eram velhinhas!
E ainda não se tinham eles sentado havia cinco minutos, já ela estava a dizer que a mãe de Bárbara era exactamente o género de senhora que esperava, e a mãe da Bárbara replicou que a mãe de Kit era a própria imagem daquilo que ela esperava, e a mãe de Kit felicitou a mãe da Bárbara pela filha que tinha, e a mãe da Bárbara felicitou a de Kit pelo filho que tinha, e a própria Bárbara ficou encantada com o pequeno Jacob, e nunca um menino se exibiu tanto no momento oportuno, nem fez tais amigos como ele.
- E nós as duas somos também viúvas! - exclamou a mãe da Bárbara. - Fomos mesmo feitas para nos conhecermos uma à outra.
- Não tenho a mínima dúvida a esse respeito - respondeu Mrs. Nubbles. - E que pena não nos termos conhecido antes.
- Mas sabe, é também um prazer tão grande - afirmou a mãe da Bárbara - termo-nos conhecido através dos nossos filhos, que isso já é uma grande compensação, não acha?
A mãe de Kit mostrou-se plenamente de acordo, e assim, ao passarem dos efeitos para as causas, acabaram naturalmente por falar dos seus defuntos maridos, comparando acontecimentos da vida, morte e funeral dos mesmos, descobriram diversas circunstâncias espantosamente coincidentes.
Assim, o pai da Bárbara era exactamente quatro anos e dez meses mais velho do que o de Kit, e um deles falecera numa quarta-feira e o outro numa quinta-feira, ambos tinham sido dotados de um óptimo temperamento e eram muito atraentes, além de várias outras extraordinárias coincidências.
Como estas recordações acabariam por ensombrar o esplendor do feriado, Kit desviou a conversa para assuntos neutros e, assim, dentro em pouco já estavam todos a conversar com a mesma alegria e animação de antes. Kit contou, entre outras coisas, como fora o seu emprego anterior e referiu a extraordinária beleza de Nell, de quem já havia falado milhares de vezes a Bárbara.
Mas esta última circunstância não pareceu interessar sobremaneira as suas interlocutoras, ao contrário do que ele pensara, e até a sua mãe observou, olhando ao mesmo tempo, casualmente, para Bárbara, que embora de facto Miss Nell fosse muito bonita, não passava de uma criança, e havia muitas jovens tão bonitas como ela. E Bárbara retorquiu discretamente que era da mesma opinião e que lhe parecia que Mr. Christopher devia estar equivocado, com o que Kit ficou muito surpreendido, sem conseguir encontrar qualquer razão para ela duvidar das suas palavras.
Também a mãe da Bárbara comentou ser muito vulgar os jovens mudarem aos catorze ou quinze anos, e embora tivessem sido muito bonitos antes, tornavam-se muito feios. E confirmou esta verdade com muitos e convincentes exemplos, principalmente o de um jovem que, sendo um construtor civil de futuro brilhante, havia dedicado especial atenção a Bárbara, mas que esta ignorou totalmente, o que, embora tudo tivesse acontecido pelo melhor, ela chegara a pensar que tinha sido uma pena. Kit respondeu que também pensava o mesmo, e disse-o com sinceridade, ficando depois surpreendido por ver Bárbara repentinamente muito silenciosa e por a mãe o fitar como se ele não devesse ter dito aquilo.
Mas já era boa altura de pensar na ida ao teatro, a qual exigia grandes preparativos de xailes e toucas, para não falar já das laranjas atadas dentro de um lenço, e das maçãs dentro de outro, o que levou algum tempo a preparar, já que a fruta estava sempre a rolar para fora pelos cantos. Finalmente ficou tudo pronto, e partiram rapidamente. A mãe de Kit levava ao colo o bebé, que estava muito bem disposto, Kit segurava numa mão o pequeno Jacob, e com a outra conduzia Bárbara, uma situação que levou as duas mães, que seguiam atrás, a comentar que pareciam quase uma família, observação esta que fez ruborizar Bárbara, levando-a a exclamar: - Então, minha mãe!
Mas Kit disse-lhe que não precisava de se preocupar com o que elas diziam, e de facto não precisava, se soubesse como estava longe dos pensamentos de Kit qualquer intenção de namoro. Pobre Bárbara!
Finalmente chegaram ao teatro, o Astley. E mal tinham decorrido dois minutos depois de terem alcançado a porta, ainda fechada, já o pequeno Jacob estava espalmado, o bebé sofrera vários abalos, o guarda-chuva da mãe de Bárbara fora arrastado várias jardas para longe dela e restituído por cima de vários ombros, e Kit batera com o lenço cheio de maçãs na cabeça de um homem, por ter empurrado a mãe com desnecessária violência, originando um grande burburinho.
Mas após terem conseguido sair da bilheteira, correndo depois, como para fugir à polícia, com os bilhetes na mão e, sobretudo, depois de se encontrarem bem dentro do teatro e sentados em lugares tão bons que não poderiam ter encontrado melhor, mesmo que os tivessem escolhido e reservado antecipadamente, tudo aquilo foi considerado como uma granda piada e uma parte essencial do divertimento.
Meu Deus, como era belo o Teatro Astley, com as suas pinturas, os seus dourados e os seus espelhos! E um vago odor de cavalos revelando as maravilhas que se seguiriam, a cortina que ocultava deslumbrantes mistérios, a serradura branca e limpa sobre a pista, a companhia de actores a entrar a a ocupar os seus lugares, os rabequistas olhando des-
cuidadamente para eles enquanto afinavam os instrumentos, como se não quisessem que a peça tivesse início e já a conhecessem de antemão!
E que fulgor irrompeu sobre eles, quando aquela longa e brilhante fileira de luzes se foi erguendo, lentamente, e que febril excitação, quando se ouviu a campainha, e a música irrompeu gravemente, com as entradas vigorosas dos tambores e os suaves efeitos dos ferrinhos!
E bem podia a mãe de Bárbara dizer à de Kit que na galeria é que se via bem e que gostaria de saber se era muito mais cara do que os camarotes, e bem podia Bárbara hesitar entre rir ou chorar, em toda a sua alvoroçada excitação.
Até que por fim começou a peça! Os cavalos, que o pequeno Jacob acreditou logo, desde o início, que eram verdadeiros, as damas e os cavalheiros, que ele não conseguia acreditar serem reais, já que nunca vira nem ouvira nada parecido, os tiros, que obrigavam Bárbara a fechar os olhos, a dama abandonada, que provocou lágrimas a Bárbara, o tirano, que a fez tremer, o homem que entoou a canção com a aia da dama, dançando o seu refrão, e a fez rir, o pónei que se empinou ao avistar o assassino, recusando-se a andar sobre as quatro patas, até ele ser levado preso, o palhaço que exibia uma grande familiaridade com o militar de botas, a dama que saltou sobre vinte e nove fitas, caindo sã e salva sobre a garupa do cavalo, tudo era maravilhoso, esplêndido e espantoso.
O pequeno Jacob aplaudia, até ficar com as mãos doridas, Kit gritava «bis» no final de cada número, mesmo no final dos três actos da peça e, no seu arrebatamento, a mãe da Bárbara batia com o guarda-chuva no chão até este ficar quase gasto até ao pano.
No meio de todos estes encantamentos, Bárbara parecia reter ainda no pensamento o que Kit havia dito à hora do chá, pois ao saírem do teatro perguntou-lhe com um sorriso contrafeito se Miss Nell era tão bonita como a dama que saltara sobre as fitas.
- Tão bonita como ela? - exclamou Kit. - É duas vezes mais bonita.
- Oh, Christopher! Tenho a certeza de que a dama é a mulher mais bela que alguma vez existiu! - afirmou Bárbara.
- Que disparate! - retorquiu Kit. - Ela era bem bonita, não o nego. Mas não te esqueças da forma como estava vestida e pintada, e que isso faz uma grande diferença. Ora tu, Bárbara, és muito mais bonita do que ela.
- Oh, Christopher! - exclamou Bárbara, baixando os olhos.
- Sem dúvida que és - declarou Kit - e a tua mãe, também.
Pobre Bárbara!
E o que era tudo isto, mesmo tudo isto, comparado com a extraordinária prodigalidade que se seguiu, quando Kit, entrando numa marisqueira com o à-vontade de quem lá vivia e sem olhar sequer para o balcão nem para o homem por trás do mesmo, conduziu os seus acompanhantes para um compartimento, um compartimento reservado, com cortinas vermelhas, uma toalha branca e um galheteiro completo, ordenando a um impetuoso cavalheiro de barbas, que servia à mesa e que lhe chamava a ele... a ele, Christopher Nubbles, «senhor», que trouxesse três dúzias de ostras, das maiores, e que se despachasse!
Foi assim mesmo, Kit disse àquele cavalheiro que se despachasse e ele não só respondeu que sim, senhor, como também cumpriu, reaparecendo de facto, pouco depois, a correr, trazendo o pão mais macio e a manteiga mais fresca e as maiores ostras jamais vistas. Então Kit disse àquele cavalheiro: - Uma caneca da cerveja - assim, tal e qual, e o cavalheiro, em vez de lhe responder: - O senhor está a falar comigo? - disse apenas: - Caneca de cerveja, cavalheiro? Com certeza, cavalheiro.
Depois retirou-se e foi buscá-la, colocando-a na mesa, dentro de um suporte apropriado, como aqueles que os cães dos cegos levam na boca, pela rua, para guardarem as moedas de meio «penny». E quando ele se retirou, tanto a mãe de Kit como a da Bárbara afirmaram que ele era um dos jovens mais elegantes e mais corteses que alguma vez haviam visto.
Entregaram-se então à ceia com o maior zelo. E Bárbara, tolinha, a dizer que não conseguia comer mais de duas, e dificilmente se acreditaria na insistência que foi necessária para ela comer quatro, embora a mãe dela e a de Kit a ultrapassassem de longe, comendo, e rindo, e divertindo-se tanto, que Kit se sentia contente de as ver, e comia e ria igualmente, contagiado por toda aquela alegria.
Mas o maior milagre da noite foi o pequeno Jacob, que comia as ostras como se tivesse sido nascido e criado nelas, salpicando a pimenta e o vinagre com uma discreção muito para além da sua idade, e no final construiu uma gruta sobre a mesa com as cascas. E havia ainda o bebé, que nunca pregou olho durante toda a noite, permanecendo sentado com toda a confiança, procurando enfiar uma grande laranja na boca e olhando atentamente as luzes do lustre. Ali estava ele, sentado ao colo da mãe, muito direito, observando o gás sem pestanejar, e fazendo covinhas na pele macia da sua carinha com uma casca de ostra, de tal modo que mesmo um coração de pedra teria ficado cheio de ternura.
Numa palavra, nunca houve ceia mais feliz, e quando Kit, para acabar, encomendou um copo de uma qualquer bebida quente, propondo um brinde à saúde de Mr. e Mrs. Garland, antes de o passar em volta, não havia seis pessoas mais felizes neste mundo.
Mas toda a felicidade tem um fim. Daí o nosso grande prazer, quando sentimos que ela está próxima. E como já era tarde, concordaram que era tempo de regressar a casa. Assim, depois de se terem desviado um pouco para acompanharem Bárbara e a mãe em segurança até à casa de uns amigos, onde iriam passar aquela noite, Kit e a mãe deixaram-nas à porta, não sem primeiro terem combinado encontrar-se cedo, no dia seguinte, para regressarem a Finchley, e de fazerem muitos planos de divertimentos para o próximo trimestre.
Em seguida, Kit pôs o pequeno Jacob às cavalitas, deu o braço à mãe e um beijo ao bebé, e encaminharam-se todos alegremente para casa.
Kit, dominado por aquela vaga espécie de penitência que os feriados despertam no dia seguinte, levantou-se ao nascer do Sol com a sua crença nos divertimentos da noite anterior um pouco abalada pela fresca brisa do dia e o regresso ao trabalho e às ocupações quotidianas, para ir ao encontro de Bárbara e da sua mãe no local combinado.
E, com cuidado para não despertar os seus familiares ainda a descansar de toda a gitação da véspera, a que não estavam habituados, colocou o dinheiro em cima da chaminé, escrevendo umas palavrinhas a giz, chamando a atenção da mãe para o facto e informando-a que o mesmo era deixado pelo seu respeitoso filho. E foi-se embora, com o coração mais pesado do que os bolsos, mas nem por isso muito oprimido.
Oh! Estes feriados! Porque deixam sempre uma certa tristeza atrás de si? Porque não conseguimos fazê-los retroceder uma ou duas semanas nas nossas memórias, colocando-os assim a uma cómoda distância, onde os podemos contemplar com uma calma indiferença ou um agradável esforço da lembrança? Porque pairam à nossa volta, como o sabor do vinho da véspera, evocando tonturas e fadiga, e aquelas boas intenções para o futuro que constituem o eterno pavimento de um vasto domínio sob a Terra, mas que sobre ela só duram geralmente até próximo da hora do almoço?
Assim, não é de admirar que Bárbara tivesse uma dor de cabeça, nem que a mãe se mostrasse um tanto rabugenta ou depreciasse ligeiramente o Teatro Astley, dizendo que o palhaço era mais velho do que haviam pensado na noite anterior. Kit não ficou surpreendido ao ouvi-la. Porque havia de se surpreender?
Ele já tivera um certo pressentimento de que os inconstantes actores daquela deslumbrante visão já tinham feito a mesma coisa na noite anterior e tornavam a fazer o mesmo naquela noite e na seguinte, e durante semanas e meses seguidos, embora ele não estivesse presente. E esta é a diferença entre ontem e hoje. Todos nós vamos para o teatro, ou vimos de lá.
Porém, o próprio Sol é fraco quando nasce, mas vai ganhando força e coragem à medida que o dia avança. Assim foram gradualmente recordando os acontecimentos cada vez de modo mais agradável, até que, assim conversando, caminhando e rindo, chegaram a Finchley tão animados que a mãe de Bárbara declarou nunca se ter sentido tão pouco cansada, nem tão bem disposta, e Kit disse que o mesmo se passava consigo.
Bárbara, que havia permanecido em silêncio durante todo o caminho, disse que era também o seu caso. Pobre Bárbarazinha! Como estava silenciosa.
Chegaram ao seu destino tão cedo que Kit lavou e enxugou o pónei, pondo-o tão bonito como um cavalo de corrida, antes de Mr. Garland descer para almoçar. E a sua pontualidade e o seu zelo foram altamente elogiados pela senhora baixinha, pelo senhor e por Mr. Abel. À hora habitual, ou melhor dizendo, ao minuto e ao segundo habituais, já que era a imagem da pontualidade, Mr. Abel saiu para apanhar a diligência com destino a Londres, e Kit e o senhor baixinho foram trabalhar no jardim.
Esta não era a menos agradável das ocupações de Kit, já que num dia bonito como este parecia uma verdadeira família. A senhora baixinha sentada ali próximo, com o cesto da costura sobre uma mesinha, o senhor baixinho a cavar, ou a podar, ou a desbastar com uma grande tesoura, ou a ajudar Kit de um ou outro modo numa grande azáfama, e Whisker contemplando-os a todos placidamente do seu terreiro.
Hoje iam podar a parreira, por isso Kit subiu até meio de uma curta escada e começou a cortar e a martelar afincadamente, enquanto o senhor baixinho, muito interessado no trabalho, lhe ia chegando pregos e tiras de pano à medida que Kit precisava deles. A senhora baixinha e Whisker olhavam-nos como habitualmente.
- Então, Christopher - disse Mr. Garland, - lá arranjaste um novo amigo, hem?
- Como disse, senhor? - perguntou Kit olhando de cima da escada.
- Fizeste um novo amigo no escritório, foi Mr. Abel quem mo disse - continuou o senhor.
- Oh! Sim senhor. Ele foi muito generoso comigo, senhor.
- Folgo muito de o saber - respondeu sorrindo o senhor baixinho. - E está disposto a ser ainda mais generoso, Christopher.
- Realmente, senhor! É muita amabilidade a dele, mas eu não quero - declarou Kit batendo energicamente um prego obstinado.
- Ele está muito interessado - prosseguiu o senhor baixinho - em contratar os teus serviços... toma cuidado com o que estás a fazer, senão cais e magoas-te.
- Contratar os meus serviços, senhor? - gritou Kit interrompendo o seu trabalho e dando meia volta na escada como um hábil acrobata. - Ora, senhor, ele não deve estar a falar a sério.
- Oh! Mas é que está mesmo - respondeu Mr. Garland.
- E disse-o a Mr. Abel.
- Nunca tal ouvi! - murmurou Kit, olhando para os seus patrões com ar desolado. - Admira-me muito, mesmo muito.
- Sabes, Christopher - disse Mr. Garland. - Este assunto é muito importante para ti e deves compreendê-lo e estudá-lo sob esse ponto de vista. Esse senhor pode pagar-te mais do que eu, embora, penso eu, não consiga cultivar as melhores relações entre amo e criado, nem ser mais amável e mais confiante, mas pode certamente dar-te mais dinheiro, Christopher.
- Bem - disse Kit, - sendo assim, senhor...
- Espera um momento - interveio Mr. Garland. - E não é tudo. Sei que foste um fiel servidor dos teus antigos patrões, e se este senhor conseguir encontrá-los, como é seu propósito, por todos os meios ao seu alcance, não tenho a mínima dúvida de que, estando ao serviço dele, receberias a tua recompensa. Para além de - prosseguiu o senhor baixinho dando maior relevo às suas palavras, - para além de poderes vir a ter o prazer de contactar novamente com as pessoas a quem pareces estar afeiçoado de modo tão intenso e tão desinteressado. Deves pensar em tudo isto, Christopher, para não tomares uma decisão rápida ou precipitada.
Quando este último argumento se infiltrou rapidamente no seu pensamento, parecendo a concretização de todas as suas esperanças e desejos, Kit sentiu um remorso, uma momentânea angústia em manter a resolução que já havia tomado. Mas foi apenas um momento. Logo em seguida declarou resolutamente que o cavalheiro devia procurar outra pessoa, como devia de facto ter feito logo.
- Ele não tem o direito de pensar que eu me deixava assim arrastar - afirmou Kit virando-se de novo, depois de mais algumas marteladas. - Ele pensa que sou tolo?
- É capaz de pensar, Christopher, se não aceitares a sua oferta - respondeu Mr. Garland com ar sério.
- Então que pense, senhor - replicou Kit. - Que me importa o que ele pensa? Por que me havia de importar com o que ele pensa, senhor, se sei que tolo seria eu, e pior do que tolo, se abandonasse os melhores patrões que jamais houve ou poderá haver, que me agarraram na rua, miserável e cheio de fome, mais miserável e mais cheio de fome do que alguma vez possam pensar, para ir trabalhar para ele ou para qualquer outro? Se Miss Nell voltasse, minha senhora - acrescentou Kit voltando-se repentinamente para a sua patroa, - isso então era outra coisa, e se ela precisasse de mim, talvez pedisse à senhora para, de vez em quando, me deixar ir trabalhar para ela, quando tudo estivesse feito aqui.
Mas agora percebo que, quando voltar, há-de ser tão rica como o meu antigo patrão sempre disse que ela seria. E sendo uma senhora jovem e rica, o que é que ela poderia querer de mim? Não, não - prosseguiu Kit abanando tristemente a cabeça. - Ela nunca mais há-de precisar de mim, e Deus a abençoe, espero que nunca precise, embora, para além disso, gostasse de a voltar a ver!
Nesse momento, Kit espetou um prego na parede com muita força, com muito mais força do que era necessário, e em seguida tornou a dar meia volta.
- E depois há o pónei, senhor - disse Kit. - O Whisker, minha senhora, e ele sabe tão bem que estou a falar dele, que até já começou a relinchar. Ele deixava mais alguém aproximar-se, senão eu? E o jardim, senhor, e Mr. Abel, minha senhora. Mr. Abel ia agora separar-se de mim, senhor, ou havia alguém que gostasse mais do jardim, minha senhora? A minha mãe ficava inconsolável, senhor, e até o pequeno Jacob ia perceber e chorar baba e ranho, minha senhora, só de pensar que Mr. Abel ia separar-se de mim tão depressa, depois de me ter dito ainda há poucos dias que esperava que continuássemos juntos durante muitos anos...
Não se sabe durante quanto tempo Kit iria permanecer ali na escada, dirigindo-se ora ao patrão ora à patroa e quase sempre dizendo o nome de um, mas virando-se para o outro, se Bárbara não tivesse aparecido naquele momento, a correr, dizendo que estava ali um mensageiro do escritório com um bilhete, e, ao entregá-lo ao patrão Bárbara olhava pasmada o ar palrador de Kit.
- Oh! - exclamou o senhor depois de o ler. - Pede ao mensageiro que chegue aqui. - Bárbara saiu no seu passo ligeiro para cumprir as ordens que recebera, e o senhor, voltando-se para Kit, declarou que o assunto estava encerrado, e que Kit não sentia maior relutância em se separar deles do que eles em se separarem de Kit, sentimento que a senhora repetiu, com grande generosidade.
- Apesar disso, Christopher - acrescentou Mr. Garland olhando de relance o bilhete que tinha na mão, - se o senhor precisar de ti, uma vez por outra, durante cerca de uma hora, ou mesmo por um dia, nós temos de consentir em ceder-te e tu tens de concordar em ir. Oh! Aqui está o jovem cavalheiro. Como está, senhor?
Esta saudação era dirigida a Mr. Chuckster que, com o chapéu muito descaído para um dos lados da cabeça e o cabelo todo saído para fora dele, se aproximava com ar de superioridade.
- Espero que esteja bem, senhor - respondeu o cavalheiro. - Espero que esteja bem, minha senhora. É uma bela casa de campo. E um bonito campo, efectivamente.
- Penso que veio buscar o Kit para ir consigo? - perguntou Mr. Garland.
- Tenho ali uma carruagem alugada, à espera, para isso mesmo - respondeu o escriturário. - E com um baio formidável, senhor. Se é conhecedor de cavalos...
Mr. Garland, declinando ir admirar o baio formidável, com o pretexto de não ser muito entendido no assunto, pelo que não apreciaria totalmente a sua beleza, convidou Mr. Chuckster a participar numa ligeira refeição, à maneira de almoço, e como este cavalheiro aceitasse prontamente, depressa surgiram algumas comidas frias, acompanhadas de cerveja e vinho, para o revigorar.
Durante esta refeição, Mr. Chuckster desenvolveu todas as suas capacidades para maravilhar os seus anfitriões e impressioná-los com a sua convicção da superioridade intelectual daqueles que vivem na cidade.
E, com esse intuito, conduziu a conversa para os pequenos escândalos do dia, um domínio em que era justamente considerado pelos seus amigos como um prodígio.
Estava assim em condições de relatar as circunstâncias exactas da controvérsia que opunha o Marquês de Mizzler a Lord Bobby e que, segundo parecia, fora originada por uma discussão sobre uma garrafa de champanhe, e não sobre uma empada de pombo, conforme erradamente relatavam os jornais. E Lord Bobby também não havia dito ao Marquês de Mizzler: «Mizzler, um de nós dois está a mentir e não sou eu», conforme incorrectamente afirmado pelas mesmas fontes, mas sim: «Mizzler, sabe onde me pode encontrar e, com os diabos, procure-me se precisar de mim», o que, como era natural, mudava completamente o aspecto desta interessante questão, colocando-a sob uma óptica muito diferente.
Deu-lhes a conhecer também o valor exacto da quantia abonada pelo Duque de Thigsberry a Violetta Stetta, da Ópera Italiana e que, segundo parecia, lhe era paga trimestral e não semestralmente, como se havia dado a entender ao público, e que excluía e não que incluía, conforme grotescamente afirmado, jóias, perfumes, pó para o cabelo de cinco lacaios e dois pares de luvas de pelica, por dia, para um pagem.
Depois de ter solicitado aos senhores que ficassem tranquilos quanto àquelas questões absorventes, pois podiam confiar na exactidão do seu relato, Mr. Chuckster entreteve-os com intrigas do teatro e as últimas notícias sobre a vida da família real. E assim concluiu uma brilhante e fascinante conversa, que mantivera sozinho e sem qualquer colaboração, durante mais de três quartos de hora.
- E agora que o cavalito já retomou o fôlego - declarou Mr. Chuckster erguendo-se com elegância, - creio que são horas de ir andando.
Nem Mr. Garland nem a sua esposa levantaram qualquer objecção quanto à sua decisão de se ir embora, pensando, sem dúvida, que uma pessoa como ele era indispensável na sua adequada esfera de acção e, assim, pouco depois Mr. Chuckster e Kit iam a caminho da cidade, Kit empoleirado na boleia ao lado do condutor, e Mr. Chuckster instalado solitariamente lá dentro, com as botas enfiadas nas duas janelas dianteiras.
Quando chegaram ao escritório do notário, Kit entrou e Mr. Abel pediu-lhe que se sentasse e aguardasse, pois o cavalheiro que precisava dele tinha saído e talvez se demorasse ainda algum tempo. E esta previsão verificou-se rigorosamente certa, pois Kit teria almoçado e tomado chá e teria lido todos os assuntos mais ligeiros no «Anuário Forense» e na «Lista dos Correios» e adormecido muitas vezes, antes de aparecer o cavalheiro que já conhecia. Finalmente lá apareceu, cheio de pressa.
Durante algum tempo ficou encerrado no gabinete de Mr. Witherden, juntamente com este, e Mr. Abel foi também chamado para assistir à conferência, antes de Kit, extremamente admirado com o que eles poderiam pretender de si, ter sido convocado para comparecer.
- Christopher - disse-lhe o cavalheiro voltando-se imediatamente para ele, assim que ele entrou. - Encontrei o teu antigo patrão e a tua jovem patroa.
- Não me diga, senhor! Encontrou mesmo? - perguntou Kit com os olhos brilhantes de alegria. - Onde estão eles? Como estão? Estão... estão perto daqui?
- Estão muito longe daqui - respondeu o cavalheiro abanando a cabeça. - Mas vou partir hoje para os trazer de volta, e quero que vás comigo.
- Eu, senhor? - exclamou Kit, surpreendido e cheio de alegria.
- O sítio indicado por aquele homem dos cães - disse o cavalheiro desconhecido voltando-se para o Notário - fica... a que distância fica daqui, umas sessenta milhas?
- Entre sessenta e setenta.
- Hum! Se viajarmos pela malaposta durante toda a noite chegaremos lá a boa hora amanhã de manhã. Agora a única questão é que, como não me conhecem, e a jovem, que Deus a abençoe, pensa que qualquer estranho que os siga constitui uma ameaça à liberdade do avô, assim que melhor posso fazer do que levar este rapaz que eles os dois conhecem e se lembram bem, como garantia das minhas boas intenções?
- Naturalmente que é o melhor - respondeu o notário.
- Leve Christopher, não hesite.
- Desculpe, senhor - interveio Kit, que tinha ouvido aquele discurso, com uma expressão céptica no rosto. - Mas se é essa a razão, receio que se eu for seja pior ainda. Miss Nell, senhor, essa conhece-me e confiava em mim, tenho a certeza. Mas o patrão, não sei porquê, ninguém sabe, não podia ver-me depois que esteve doente, e a própria Miss Nell disse-me para não me tornar a aproximar dele, nem deixar que ele me visse. Receio bem que se eu também for, fique tudo estragado. Gostava muito de ir, mas é melhor não me levar consigo, senhor.
- Outro problema! - gritou impetuosamente o cavalheiro. -Já houve alguém que tivesse que enfrentar tantas dificuldades como eu? Não haverá mais ninguém que eles conhecessem, ninguém mais em quem eles confiassem? Na solidão em que eles viviam, quem é que agora me pode ajudar?
- Há alguém, Christopher? - perguntou o Notário.
- Não há ninguém senhor - respondeu Kit. - Ou talvez sim, a minha mãe.
- Eles conheciam-na? - perguntou o cavalheiro solitário.
- Se a conheciam, senhor! Ela andava sempre para lá e para cá. Gostavam tanto dela como de mim. E de que maneira, senhor, ela até contava que eles voltassem lá para nossa casa.
- Então, onde diabo é que está essa mulher? - perguntou impacientemente o cavalheiro, agarrando no chapéu. - Porque é que ela não está aqui? Porque é que ela nunca está quando se precisa mais dela?
Numa palavra, o cavalheiro solitário ia sair precipitadamente do escritório, determinado a agarrar na mãe de Kit, obrigando-a a entrar numa malaposta e levá-la à força. Mas este novo tipo de rapto foi evitado, com alguma dificuldade, graças aos esforços conjuntos de Mr. Abel e do notário, que o retiveram expondo-lhe as suas objecções, e convencendo-o a consultar Kit sobre as possibilidades de ela poder e estar disposta a empreender uma tal viagem, com uma tão breve antecedência.
Isto suscitou algumas dúvidas da parte de Kit, algumas impetuosas demonstrações por parte do cavalheiro solitário e muitos discursos apaziguadores por parte do notário e de Mr. Abel. O desfecho deste episódio foi que Kit, após ponderar bem no caso e de o estudar cuidadosamente, prometeu, em nome da mãe, que dentro de duas horas ela estaria pronta para empreender a viagem e comprometendo-se a trazê-la ali, equipada e preparada para a viagem, antes de ter expirado aquele prazo.
Uma vez tomado este compromisso, que era bem arriscado e nada fácil de cumprir, Kit não perdeu tempo, saindo a correr, para tomar as necessárias medidas à sua imediata realização.
Kit abria caminho por entre as ruas apinhadas, furando pelo meio da multidão, precipitava-se através de estradas transbordantes de movimento, mergulhava em becos e travessas, parando e voltando-se sem motivo, até chegar defronte da velha loja de antiguidades onde parou, em parte por hábito, em parte por estar sem fôlego.
Era o entardecer de um triste dia de Outono, e para Kit a casa nunca apresentara um aspecto tão lúgubre, naquele sombrio crepúsculo. As janelas partidas, os caixilhos bolorentos que gemiam, a casa deserta era como uma barreira sombria, dividindo as luzes brilhantes e a azáfama da rua em duas intermináveis linhas.
E erguendo-se ali, no meio da neblina, fria, escura e deserta, constituía uma melancólica visão, contrastando com as brilhantes perspectivas que o rapaz havia idealizado para os seus antigos moradores, surgindo como uma desilusão ou uma desgraça. Kit gostaria que lá dentro crepitassem chamas pelas chaminés vazias, luzes cintilassem e brilhassem através das janelas, pessoas se movimentassem animadamente de um lado para o outro, vozes conversassem alegremente, em harmonia com as novas esperanças que nasciam dentro dele. Não era que esperasse que a casa apresentasse um aspecto diferente. Ela bem sabia que não podia ser. Mas surgindo assim no meio da corrente dos seus animados pensamentos e das suas esperanças, interrompia o fluxo da mesma, lançando sobre ela dolorosa sombra.
Porém, Kit não era, felizmente para ele, suficientemente erudito nem meditativo para se preocupar com maus presságios pairando ao longe, e como não possuía referências mentais que ajudassem a sua visão neste domínio, via apenas a casa sombria, em desagradável contraste com os seus anteriores pensamentos. Assim, e quase desejando não ter passado por ela, embora sem saber porquê, continuou na sua correria, com maior velocidade, para compensar os poucos momentos que havia perdido.
«Se ela agora não estiver em casa», pensava Kit ao aproximar-se da humilde casa da mãe, «e se não conseguir encontrá-la, aquele impaciente cavalheiro vai ficar bem zangado. E não há dúvida, está tudo às escuras e a porta está trancada. Ora, Deus me perdoe o que eu digo, mas se é por causa da Little Bethe, oxalá esta fosse para o... para bem longe», disse Kit, falando consigo mesmo e detendo-se para bater à porta.
Bateu segunda vez, sem obter qualquer resposta de dentro de casa, mas uma mulher do outro lado da rua veio espreitar, e perguntou quem andava à procura de Mrs. Nubbles.
- Sou eu - respondeu Kit. - Ela está... na -Little Bethel», não está? - prosseguiu Kit proferindo com certa relutância e desdém o nome da detestada igreja.
A vizinha acenou afirmativamente com a cabeça.
- Então, peço-lhe o favor de me dizer onde fica - disse Kit, - porque é um assunto urgente e tenho que ir buscá-la, mesmo que ela estivesse no púlpito.
Mas não era fácil conseguir a morada daquele sagrado aprisco, já que nenhum dos vizinhos pertencia ao rebanho que para lá se encaminhava, e poucos sabiam mais do que o nome. Por fim, uma alcoviteira conhecida de Mrs. Nubbles e que a tinha acompanhado à capela uma ou duas vezes, quando as devoções haviam sido antecedidas por uma agradável chávena de chá, forneceu a necessária informação, e Kit, assim que a obteve, voltou de novo à sua correria.
«Little Bethel» podia ficar mais próxima e podia localizar-se numa rua menos íngreme, embora, neste caso, o reverendo cavalheiro que presidia à congregação não tivesse oportunidade de tecer a sua alusão preferida sobre as vias tortuosas para lá se chegar, o que lhe permitia compará-la ao próprio Paraíso, em contraste com a igreja paroquial e com a larga estrada que conduzia à mesma. Finalmente, Kit conseguiu encontrá-la, com alguma dificuldade, parando à porta para retomar o fôlego e entrar depois na capela com a devida compostura.
Num aspecto, o nome não fora mal escolhido, pois tratava-se efectivamente de uma pequena capela, uma das mais minúsculas, com um reduzido número de banquinhos e um pequeno púlpito, onde um cavalheiro pequenino, sapateiro de profissão e clérigo por vocação, proferia numa voz nada fraca, um sermão nada pequeno, se calcularmos a dimensão do mesmo pelo estado do seu auditório que, sendo um conjunto já de si pequeno, era constituído por um número ainda menor de ouvintes, pois a maioria tinha adormecido.
Entre estes últimos contava-se a mãe de Kit que, sentindo extrema dificuldade em manter os olhos abertos após as fadigas da noite anterior, e encontrando nos argumentos do pregador um forte apoio e um incentivo para os fechar, havia cedido ao torpor que se apoderara dela, adormecendo, embora não tão profundamente que de vez em quando não soltasse um ligeiro e quase inaudível gemido, como corroborando as doutrinas do orador. Ao seu colo, o bebé dormia quase tão bem como a mãe, e o pequeno Jacob, cuja pouca maturidade o impedia de reconhecer neste longo alimento espiritual menos de metade do interesse que nele haviam despertado as ostras, alternava um profundo sono com uma atenta vigília, conforme era dominado pela sua tendência para cabecear, ou pelo terror de alguma alusão pessoal naquele discurso.
«E agora aqui estou», pensou Kit deslizando para o banco vazio mais próximo do da mãe e que ficava do outro lado da estreita nave. «Como é que vou conseguir chegar junto dela, ou convencê-la a vir embora? É como se estivesse a vinte milhas de distância. Ela não vai acordar enquanto não estiver tudo acabado, e lá está outra vez o relógio a dar horas! Se ele ao menos se calasse por um minuto, ou se cantassem...»
Mas eram poucas as perspectivas de que algum destes acontecimentos pudesse vir a realizar-se durante as próximas horas. O pregador continuou, explicando-lhes aquilo que pretendia para os convencer, antes de terminar, e era notório que aquele que cumprisse apenas metade das suas promessas, esquecendo a outra metade, seria uma boa pessoa, pelo menos durante esse tempo.
No seu desespero e inquietação, Kit olhou em redor da capela, acontecendo observar então, num pequeno banco em frente da mesinha do sacristão, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam, Quilp!
Kit esfregou os olhos duas ou três vezes, mas continuava a ver a figura de Quilp. E era efectivamente ele, sentado, com as mãos nos joelhos e o chapéu entre eles, sobre um pequeno suporte de madeira, com o seu habitual sorriso trocista no rosto turvo e o olhar fixo no tecto. Sem dúvida que ele não tinha visto Kit nem a sua mãe, parecendo ignorar totalmente a presença de ambos, e, no entanto, Kit não pôde deixar de sentir imediatamente que a atenção daquele astuto mafarrico incidia sobre eles e sobre mais ninguém.
Mas, embora estupefacto com a presença do anão entre os «Little Bethelites», e com uma certa apreensão de que seria o prenúncio de algum contratempo ou aborrecimento, foi obrigado a dominar o seu espanto e a tomar providências activas para retirar a mãe, já que a noite se aproximava e a situação começava a tornar-se grave. Por isso, quando o pequeno Jacob voltou a acordar, Kit dispôs-se a atrair a sua atenção errante, o que não era muito difícil, bastou espirrar para o conseguir, fazendo-lhe sinal para despertar a mãe.
Mas teve pouca sorte, pois exactamente naquele momento o pregador, ao desenvolver com maior vigor um tema do seu discurso, debruçou-se sobre o púlpito de tal modo que lá dentro pouco mais ficou para além das pernas. E gesticulando veementemente com a mão direita, e segurando-se com a esquerda, fitava, ou parecia fitar, o pequeno Jacob bem nos olhos, ameaçando-o com o seu olhar tenso e com a sua atitude, pelo menos assim parecia à criança, que se mexesse nem que fosse um músculo, ele, o pregador, lhe «cairia em cima» literalmente e não em sentido figurado.
Nesta terrível situação, distraído pelo súbito aparecimento de Kit e hipnotizado pelo olhar do pregador, o infeliz Jacob, sentado muito direito e absolutamente incapaz de fazer um movimento, sentia uma grande vontade de chorar, mas receava fazê-lo, fitando o seu pastor com os seus olhos infantis que pareciam querer saltar-lhe das órbitas.
«Se é preciso fazê-lo abertamente, então faço-o», pensou Kit. E assim pensando, saiu silenciosamente do seu banco, dirigindo-se ao da mãe e, como Mr. Swiveller teria comentado se estivesse presente, «arrancou-lhe» o bebé sem proferir uma palavra.
- Silêncio, minha mãe! - murmurou Kit. - Venha comigo, preciso de lhe dizer uma coisa.
- Onde é que eu estou? - perguntou Mrs. Nubbles.
- Nesta abençoada «Little Bethel» - respondeu o filho, de mau humor.
- Abençoada, realmente! - exclamou Mrs. Nubbles tomando-o à letra. - Oh! Christopher, como foi edificante, hoje!
- Pois foi, eu sei - respondeu Kit apressadamente.
- Mas venha-se embora, mãe, está toda a gente a olhar para nós. Não faça barulho, traga o Jacob, está bem assim.
- Pára aí, Satanás, pára aí! - gritou o pregador, quando Kit ia a retirar-se.
- O senhor está a dizer para parares, Christopher - disse-lhe a mãe em voz baixa.
- Pára, Satanás, pára! - bradou novamente o pregador.
- Não tentes a mulher que inclina o seu ouvido para ti, mas escuta a voz Daquele que te chama. Ele leva um cordeiro do rebanho! - gritou o pregador ainda mais alto, apontando para o bebé. - Ele está a arrebatar um cordeiro, um querido . cordeiro! Anda como um lobo, pela calada da noite, a seduzir os tenros cordeirinhos!
Não havia ninguém no mundo com melhor temperamento do que Kit, mas ouvindo aqueles excessos de linguagem, e também sob a excitação das circunstâncias em que se encontrava, virou-se para o púlpito, com o bebé nos braços, exclamando, em voz alta:
- Não, não estou. Ele é meu irmão.
- Ele é meu irmão! - gritou o pregador.
- Não é! - respondeu Kit indignado. - Como pode dizer uma coisa dessas? E faça o favor de não me chamar nomes. Que mal é que eu lhe fiz? Não teria vindo buscá-los, se não tivesse de o fazer, pode estar certo disso. Não queria perturbar nada, mas o senhor não me deixou. Agora tenha a bondade de insultar Satanás e o seu rebanho tanto quanto quiser, e faça o favor de me deixar em paz.
Dizendo isto, Kit saiu da capela seguido pela mãe e pelo pequeno Jacob, encontrando-se ao ar livre, com uma vaga lembrança de ter visto as pessoas despertarem, olhando espantadas, e de Quilp ter permanecido durante todo o tempo na mesma atitude, sem desviar os olhos do tecto nem parecer prestar a menor atenção a nada do que se passava.
- Oh, Kit! - exclamou a mãe, levando o lenço aos olhos.
- O que tu foste fazer! Nunca mais lá posso voltar... nunca mais!
- Folgo muito de o saber, minha mãe. O que é que houve no pouco divertimento da noite passada, que a tornasse tão deprimida e pesarosa esta noite? É a sua maneira de ser. Se um dia está feliz e contente, no dia seguinte vem aqui dizer, juntamente com aquele sujeito, que está arrependida. Maior vergonha para si, minha mãe, digo-lhe eu.
- Cala-te, meu filho! - exclamou Mrs. Nubbles. - Sei que não estas a falar a sério, mas estás a dizer palavras pecaminosas.
- Não estou a falar a sério? Mas é que estou mesmo!
- retorquiu Kit. - Minha mãe, eu não creio que a inocente alegria e a boa disposição sejam consideradas maior pecado no Céu do que colarinhos de camisas, e aqueles sujeitos revelam-se quase tão justos e sensatos por pretenderem eliminar umas como por deixarem ficar os outros, isto é o que eu penso. Mas não vou dizer mais nada sobre o assunto se prometer não chorar, acabou-se. Leve o bebé, que é mais leve e dê-me o pequeno Jacob, e enquanto formos andando, e temos de andar muito depressa, vou-lhe contando as novidades que trago e que lhe vão causar uma certa surpresa. Assim! Agora está bem. Agora sim, parece nunca ter visto a «Little Bethel» em toda a sua vida e espero que nunca mais volte a vê-la. Aqui tem o bebé, o pequeno Jacob vem para as minhas costas e agarra-se bem ao meu pescoço, e sempre que um cura da «Little Bethel» te chamar querido cordeiro, ou disser que o teu irmão é o diabo, responde-lhe que isso é a coisa mais verdadeira que ele já disse em todos os doze meses do ano, e que se ele próprio tivesse um pouco mais de cordeiro e menos de vinha-de-alhos, não sendo assim tão cáustico e azedo, gostaria muito mais dele. É isto que tens de lhe dizer, Jacob.
E assim conversando desta maneira, meio a brincar meio a sério, e animando a mãe, assim como as crianças e a si próprio, graças ao simples processo de resolver estar bem disposto, Kit ia-os conduzindo rapidamente, e no caminho para casa contou o que se havia passado no notário e a razão por que se tinha intrometido nas solenidades da «Little Bethel».
A mãe de Kit ficou um tanto amedrontada, ao saber o serviço que lhe solicitavam, acabando por cair numa confusão de ideias, entre as quais as mais notórias eram constituir uma grande honra e dignidade viajar numa malaposta e ser moralmente impossível deixar as crianças sozinhas. Mas esta objecção e muitas outras, baseadas no facto de determinadas peças de vestuário estarem para lavar e de várias outras serem inexistentes no guarda-roupa de Mrs. Nubbles, foram superadas por Kit, que a todas elas opunha a alegria de reencontrar Nell e o prazer que seria trazê-la em triunfo.
- Só temos dez minutos, mãe - disse Kit quando chegaram a casa. - Está aqui uma chapeleira. Meta-lhe dentro aquilo que quiser e vamo-nos já embora.
Contar aqui como Kit enfiou então para dentro da caixa toda a espécie de coisas que, mesmo numa remota contingência, não iriam ser necessárias, e como deixou de fora tudo o que provavalmente poderia ter alguma utilidade; como convenceram uma vizinha a vir ficar com as crianças e como estas choraram, primeiro, desconsoladamente e, depois, riram entusiasmadas ao ser-lhes prometida toda a espécie de brinquedos impossíveis e inauditos. Como a mãe não cessava de os beijar e como Kit não conseguia ficar irritado por isso.
Contar tudo isto levaria mais tempo e mais espaço do que dispomos. Assim, omitindo todos estes assuntos, basta referir que, decorridos poucos minutos após o prazo das duas horas, Kit e a mãe chegaram à porta do notário, onde uma carruagem estava já à espera.
- Com quatro cavalos, imagine-se! - exclamou Kit extremamente surpreendido com os preparativos. - Vai ser em grande, minha mãe! Aqui está ela, senhor. Aqui está a minha mãe. Está pronta.
- Ainda bem! - respondeu o cavalheiro. - Olhe, minha senhora, não esteja nervosa, vai ser bem tratada. Onde está a mala com a roupa nova e as coisas que vão ser precisas?
- Está aqui - respondeu o notário. - Coloca-a lá dentro, Christopher.
- Muito bem, senhor - disse Kit. - Já está tudo pronto, senhor.
- Então, vamos - declarou o cavalheiro solitário. E dando imediatamente o braço à mãe de Kit, ajudou-a a subir para a carruagem com toda a delicadeza que se possa imaginar e sentou-se ao lado dela.
Os degraus foram recolhidos, a porta fechou-se, as rodas começaram a girar rapidamente e assim partiram com os chocalhos badalando e a mãe de Kit debruçada numa das janelas, a agitar um lenço húmido e a gritar muitas recomendações para o pequeno Jacob e para o bebé, sem que ninguém ouvisse uma palavra do que ela dizia.
Kit ficou parado no meio da estrada a observá-los com lágrimas nos olhos, provocadas não pela partida a que assistia, mas pelo regresso por que ansiava. E pensava: «Eles partiram a pé, sem ninguém com quem falar ou que lhes dissesse uma palavra amável de despedida, mas vão regressar puxados a quatro cavalos, com este cavalheiro rico, amigo deles, e todas as suas preocupações terminaram! Ela nem se há-de lembrar que me ensinou a escrever...»
Em seguida, fosse o que fosse que Kit ficou a pensar demorou o seu tempo, já que permaneceu a contemplar as filas dos candeeiros acesos muito depois de a carruagem ter desaparecido, só entrando quando o notário e Mr. Abel, que também haviam permanecido cá fora até deixarem de ouvir o ruído da carruagem, terem inquirido várias vezes por que razão ele ali permanecia.
Convém-nos deixar agora Kit por alguns momentos, pensativo e esperançado, para seguirmos o destino da jovem Nell, retomando o fio da narrativa no ponto onde a interrompemos alguns capítulos atrás.
Era a hora do entardecer, num daqueles passeios em que Nell, seguindo as duas irmãs a distância, sentia com humildade, na sua simpatia por elas e no reconhecimento das suas provações, algo semelhante à sua própria solidão de espírito, um conforto e um consolo que tornavam aqueles momentos uma profunda alegria, embora o suave prazer que produziam fosse daquela natureza que nasce e morre em lágrimas.
Num desses passeios errantes, à hora tranquila do crepúsculo, quando o céu, a terra, o ar, a sussurrante água e o som de distantes sinos clamavam identidade com as emoções da solitária jovem, inspirando-lhe pensamentos serenos, mas não do mundo infantil nem das suas alegrias singelas, numa dessas deambulações que constituíam agora o seu único prazer e alívio de preocupações, a luz desvanecera-se em escuridão e o dia mergulhou na noite, mas a jovem continuava a vaguear entre as trevas, sentindo uma ligação com a Natureza tão calma e serena quanto o ruído de vozes e o clarão de brilhantes luzes teriam constituído realmente uma solidão.
As irmãs tinham regressado a casa e ela ficara sozinha. Ergueu então o olhar para as brilhantes estrelas, contemplando-nos tão suavemente do vasto universo do espaço e, ao fitá-las, verificava que novas estrelas surgiam aos seus olhos, e mais longe, e ainda mais longe, até que toda a amplidão do espaço cintilava de brilhantes esferas, erguendo-se cada vez mais e mais alto no espaço imensurável, no seu número sempre eterno e na sua existência imutável e incorruptível.
Debruçando-se sobre o tranquilo rio, viu-as cintilando, na mesma ordem majestática que a pomba as vislumbrou através das águas diluviais que cobriam os cumes das montanhas lá muito em baixo e a humanidade morta, à profundidade de um milhão de braças.
A jovem sentou-se debaixo de uma árvore, com a respiração presa pela serenidade nocturna e pelo séquito das suas maravilhas. A hora e o local convidavam à meditação e com uma serena esperança, talvez mais resignação do que esperança, meditou no passado, no presente e no que estava ainda para vir.
Entre o velho e ela tinha surgido gradualmente uma separação, mais penosa do que qualquer outro sofrimento anterior. Ausentava-se sozinho sempre ao cair da noite e muitas vezes também durante o dia, e embora ela soubesse muito bem onde ele ia e porquê, sabia-o demasiado bem pelo constante esvaziar da sua magra bolsa e pelo seu olhar selvático, ele esquivava-se a todas as perguntas, mantendo uma reserva feroz e evitando mesmo a sua presença.
Estava, assim, sentada a meditar tristemente nesta mudança e como que associando-a a tudo o que estava à sua volta, quando o distante sino da igreja bateu as nove horas. Ao ouvir as badaladas, ergueu-se e volveu pelo mesmo caminho, dirigindo-se com ar pensativo para a cidade.
Tinha alcançado uma pequena ponte de madeira que, atravessando o rio, dava acesso a um prado para onde ela se encaminhava, quando subitamente avistou uma luz avermelhada e olhando com mais atenção verificou que provinha do que parecia ser um acampamento de ciganos, que tinham feito uma fogueira a um canto, a pouca distância do caminho, e estavam sentados ou deitados em redor dela.
Como a jovem era demasiado pobre para ter qualquer receio deles, não alterou o curso dos seus passos. Mesmo que o quisesse, teria de efectuar um enorme desvio. Apressou o passo, seguindo sempre em frente.
Ao aproximar-se do local, olhou para a fogueira, impelida por uma tímida curiosidade. Entre a fogueira e ela, estava um vulto cujos contornos bem definidos à luz das chamas a fizeram deter-se subitamente. Depois, como se se tivesse dissuadido a si própria, convencendo-se de que não podia ser a pessoa que tinha pensado, continuou a caminhar.
Mas naquele preciso momento a conversa, qualquer que ela fosse, e que decorria perto da fogueira, prosseguiu, e a voz que falou, embora a jovem não conseguisse distinguir as palavras, era-lhe tão familiar como a sua própria.
Ela virou-se e olhou para trás. O vulto, que antes permanecera sentado, havia-se erguido e estava agora de pé, inclinado sobre um pau, e apoiando nele as duas mãos, posição esta que não lhe era menos familiar do que o som da voz que falara. Era o seu avô.
O seu primeiro impulso foi chamá-lo, mas o segundo foi de curiosidade em saber quem eram os seus companheiros e por que razão se tinham reunido ali. Sentindo uma vaga apreensão e cedendo à grande ansiedade assim despertada, aproximou-se do local sem avançar, porém, em campo aberto, mas deslizando lentamente ao longo de uma sebe.
Aproximou-se assim da fogueira até uma distância de poucos pés, ocultando-se entre uns arbustos, donde podia ver e ouvir sem grande risco de ser notada.
Não havia mulheres, nem crianças, ao contrário do que acontecia noutros acampamentos de ciganos que tinham avistado durante as suas caminhadas, mas apenas um cigano, um homem alto e robusto que, de braços cruzados, estava encostado a uma árvore a certa distância, olhando por baixo das suas negras pestanas, ora para a fogueira, ora para três outros homens que ali se encontravam, escutando atentamente a conversa deles, embora com disfarçado interesse.
Dos três homens, um era o seu avô, e os outros dois, conforme distinguiu, os principais jogadores de cartas da hospedaria, naquela agitada noite da tempestade, o homem a quem haviam chamado Isaac List e o seu rude companheiro. Perto dali estava montada uma daquelas tendas baixas e arqueadas vulgares entre o povo cigano, mas estava ou parecia estar vazia.
- Então, não se vai embora? - perguntou o homem corpulento, olhando para o avô da jovem, do chão onde estava sentado com ar negligente. - Ainda há pouco estava com tanta pressa! Ande, vá-se embora, se quiser. Você é senhor de si próprio, ou não é?
- Não o irrites - respondeu Isaac List, que estava do outro lado da fogueira, agachado como uma rã, e se tinha contorcido de tal modo que todo o seu corpo parecia vesgo. - Ele não queria ofender.
- Vocês fazem de mim um miserável, roubam-me, e além disso ainda se divertem à minha custa e troçam de mim! disse o velho virando-se de um para outro. - Vocês os dois põem-me doido.
A total indecisão e fraqueza do velho, que parecia uma criança, contrastava com os olhares astutos e perspicazes daqueles em cujas mãos ele tinha caído e afligiam o coração da jovem. Mas conteve-se, para observar tudo o que se passava e não deixar escapar um olhar nem uma palavra.
- O diabo que o carregue! O que é que quer dizer com isso? - exclamou o indivíduo corpulento, soerguendo-se ligeiramente, apoiado no cotovelo. - Fazemos de si um miserável? Você é que nos fazia miseráveis, se pudesse, não era? É o que vocês são, seus jogadores lamurientos, insignificantes e mesquinhos. Quando perdem, fazem-se de mártires, mas quando ganham, não acham que os outros o são. Quanto a roubar! - gritou o homem erguendo a voz. - Diabos o levem, o que é que quer dizer com uma linguagem tão baixa?
Aquele que falara deitou-se de novo a todo o comprimento, dando dois curtos pontapés de raiva como para exprimir melhor a sua incontrolada indignação.
Era evidente que, por qualquer razão especial, um se comportava como um valentão enquanto o outro se apresentava como apaziguador, ou melhor, teria sido evidente para qualquer pessoa, excepto para o pobre velho, já que eles trocavam olhares abertamente, tanto entre si como com o cigano, que arreganhava os dentes brancos até estes brilharem de novo, aprovando a galhofa.
O velho permaneceu alguns momentos entre eles com ar desamparado e depois, virando-se para aquele que o havia criticado, disse-lhe:
- O senhor mesmo acabou ainda agora de falar em roubar. Não seja tão severo comigo. Falou nisso, não falou?
- Não falei em roubar em relação a nenhum dos presentes! Honra entre... entre cavalheiros, senhor! - respondeu o outro, que pareceu estar prestes a concluir a frase de modo embaraçoso.
- Não sejas mau para ele, Jowl, - disse Isaac List. - Ele está muito arrependido por ter ofendido. Vamos lá, continua com aquilo que estavas a dizer, anda lá.
- Eu sou um alegre cordeirinho de bom coração, sou mesmo - exclamou Mr. Jowl - aqui sentado, com a idade que tenho, a dar conselhos quando sei que não vão ser ouvidos, e a única paga que tenho são insultos. Mas é assim que tenho passado a minha vida. A experiência nunca empederniu o meu generoso coração.
- Não te disse já que ele está arrependido? - objectou Isaac List. - E que quer que continues a conversa.
- Mas quer mesmo? - disse o outro.
- Sim - disse o velho num gemido, sentando-se e baloiçando-se de um lado para o outro. - Continue, continue. É inútil resistir, não consigo, continue.
- Então, vou continuar - prosseguiu Jowl, - desde o ponto em que a interrompi quando você se levantou tão precipitadamente. Se está convencido de que a sorte vai mudar agora, que deve ir mesmo, e se acha que não possui os meios suficientes para a tentar, e é assim mesmo, pois você sabe bem que nunca tem fundos suficientes para se aguentar durante toda uma partida, aproveite aquilo que parece mesmo posto no seu caminho para esse efeito. É como pedir emprestado, depois paga quando puder.
- Naturalmente que sim - interveio Isaac List. - Se essa boa senhora dos bonecos de cera tem dinheiro, o guarda dentro de uma caixa de lata quando se vai deitar, e não fecha a porta à chave com medo dos incêndios, parece ser uma coisa fácil. Parece uma verdadeira Providência, sem dúvida... mas eu cá tive uma educação religiosa.
- Sabes, Isaac - disse o amigo com mais animação e aproximando-se do velho, ao mesmo tempo que fazia sinal ao cigano para não interferir. - Sabes, Isaac, é que há gente estranha a entrar e a sair a toda a hora do dia, nada mais plausível do que alguém esconder-se debaixo da cama da boa senhora ou fechar-se dentro do armário, sem dúvida que as suspeitas iriam recair muito longe e bem afastadas do alvo. Eu dava-lhe a desforra, até ao último «farthing» que ele trouxesse, qualquer que fosse a quantia.
- E conseguias fazer isso? - insistiu Isaac List. - O teu banco é assim tão forte?
- Tão forte! - replicou o outro, com fingida arrogância.
- Olhe aqui, cavalheiro, dê-me essa caixa que está aí debaixo da palha.
Este discurso era dirigido ao cigano, que entrou na tenda baixa, gatinhando, e que depois de mexer e remexer apareceu com um cofre. O homem que acabara de falar abriu-o com uma chave que trazia por dentro da roupa.
- Estás a ver isto? - perguntou, agarrando no dinheiro e deixando-o cair novamente para dentro do cofre, por entre os dedos, como se fosse água. - Estás a ouvir? Conheces o tilintar do ouro? Toma, guarda-o lá outra vez e não tornes a falar em bancos, Isaac, enquanto não tiveres um que seja teu.
Isaac List protestou, aparentando uma grande humildade, que nunca havia duvidado do crédito de um cavalheiro tão notório pela sua honradez como Mr. Jowl, e que havia aludido ao cofre, não para satisfazer as suas dúvidas, pois não podia ter nenhumas, mas para ter o prazer de contemplar uma tal fortuna que, embora para alguns não fosse mais do que um prazer irreal e visionário, para uma pessoa nas suas circunstâncias era uma fonte de grande satisfação, ultrapassada apenas se a depositasse com toda a segurança nos seus próprios bolsos.
Embora Mr. List e Mr. Jowl falassem entre si, era notório que observavam atentamente o velho que, com os olhos fitos nas chamas, parecia meditar sobre estas, mas escutava ansiosamente, como revelava um certo movimento involuntário da cabeça, ou uma contracção do rosto de vez em quando, tudo o que eles diziam.
- O meu conselho - disse Jowl, deitando-se de novo com ar indiferente - é simples, e de facto já o dei. Faço-o como amigo. Por que razão ia ajudar uma pessoa no modo de ganhar talvez tudo aquilo que eu tenho, se não o considerasse um amigo? Sei que uma tal preocupação com a felicidade dos outros é talvez ridícula, mas é a minha maneira de ser, não consigo ser de outro modo, por isso não me censures, Isaac List.
- Eu, censurar-te? - respondeu o sujeito a quem ele se dirigia. - Por nada deste mundo, Mr. Jowl. Quem me dera poder ser tão generoso como tu. E como dizes, ele podia restituir o dinheiro se ganhasse, mas se perdesse...
- Não deves sequer pensar numa coisa dessas - afirmou Jowl. - Mas supondo que isso acontecesse, e nada é menos provável, por tudo aquilo que sei quanto à sorte, ora sempre é melhor perder o dinheiro dos outros do que o nosso, ou não?
- Ah! - gritou Isaac List, com ar arrebatado. - O prazer de ganhar! A alegria de agarrar no dinheiro, as brilhantes e reluzentes moedas de ouro, e deixá-las cair dentro do nosso bolso! A satisfação do triunfo final, e pensar que não hesitámos, nem retrocedemos, mas fomos ao encontro dele! O... mas, não se vai embora, pois não, cavalheiro?
- Vou mesmo fazê-lo - declarou o velho que se havia posto de pé, dando dois ou três passos apressados, como para se retirar, mas voltando de novo, em igual precipitação.
- Vou arranjá-lo, até ao último «penny».
- É assim mesmo! - gritou Isaac levantando-se de um salto e batendo-lhe no ombro. - E respeito-o por ter ainda um espírito tão jovem. Ah! Ah! Ah! O Joe Jowl já deve estar meio arrependido do conselho que lhe deu. Agora bem se pode rir dele. Ah! Ah! Ah!
- Ele dá-me a minha desforra, não se esqueça - disse o velho apontando impetuosamente para ele com a sua mão enrugada. - Não se esqueça, é apostar moeda contra moeda, até à última que houver no cofre, quer sejam muitas quer poucas. Não se esqueça disso!
- Sou testemunha - respondeu Isaac. - Terei o cuidado de zelar pela justiça entre vocês.
- Dei a minha palavra - declarou Jowl com fingida relutância. - E vou mante-la. Quando é que se realiza a partida? Bem gostava que já tivesse sido feita. Hoje à noite?
- Primeiro, preciso de arranjar o dinheiro - disse o velho.
- E só vou tê-lo amanhã...
- E porque não já esta noite? - insistiu Jowl.
- Agora já é tarde, ficava todo afogueado e atrapalhado declarou o velho. - Tem que ser feito com cuidado. Não, amanhã à noite.
- Seja então amanhã - assentiu Jowl. - Aqui está uma pinga, para reconfortar. Boa sorte para o melhor dos homens! Enche lá!
O cigano trouxe três copos de folha e encheu-os de aguardente até à borda. O velho virou-se, murmurando algumas palavras antes de beber. A jovem ouviu-o pronunciar o nome dela, juntamente com um anseio tão ardente que parecia exalar uma agonia de súplica.
«Deus tenha piedade de nós!» - exclamou a jovem dentro da sua alma. «Deus nos ajude, nesta hora de provação! O que hei-de fazer para o salvar?»
O resto da conversa decorreu em voz mais baixa e de modo muito conciso, respeitando apenas à execução do plano e às melhores precauções a tomar para afastar as suspeitas. Em seguida, o velho apertou a mão dos seus tentadores e retirou-se.
Eles ficaram a observar a sua figura curva e dobrada, afastando-se lentamente, e quando ele voltava a cabeça e olhava para trás, o que acontecia frequentemente, acenavam-lhe com a mão ou gritavam-lhe algumas breves palavras de encorajamento. E só depois de o verem desaparecer gradualmente, até ele não ser mais do que um simples ponto ao longe, na estrada, só então se voltaram um para o outro e ousaram rir à gargalhada.
- Ora bem - disse Jowl, aquecendo as mãos na fogueira conseguimos finalmente. Deu mais trabalho a convencê-lo do que eu tinha pensado. Já foi há três semanas que começamos a meter-lhe isto na cabeça. Quanto é que pensas que ele nos vai trazer?
- Seja o que for que ele traga, dividimos em partes iguais entre nós - respondeu Isaac List.
O outro concordou. - Temos de trabalhar depressa - afirmou. - E depois cortar relações com ele, senão podem suspeitar de nós. Vigilância é a palavra de ordem.
List e o cigano concordaram. Depois de se terem divertido, todos os três, durante algum tempo, com a loucura da sua vítima, puseram de lado o assunto, considerando-o suficientemente tratado, e começaram a falar num calão que a jovem não conseguia compreender. Porém, como a sua conversa parecia incidir sobre assuntos de grande interesse para eles, a jovem considerou que era a melhor altura para escapar sem ser notada.
E assim, foi-se afastando, caminhando lenta e cuidadosamente, encostada às sebes, abrindo caminho por entre elas ou atravessando valas secas, até poder alcançar a estrada, já fora do seu raio de visão. Em seguida, correu para casa tão depressa quanto podia, dilacerada e ferida pelos espinhos e pelas urzes, mas com o coração ainda mais dilacerado, e atirou-se para cima da cama extremamente perturbada.
A primeira ideia que lhe surgiu no espírito foi fugir, fugir imediatamente, arrastá-lo dali para fora, e antes morrer de miséria à beira da estrada do que expô-lo novamente a tão horríveis tentações. Em seguida lembrou-se que o roubo só iria ser cometido na noite seguinte, e que havia ainda tempo para reflectir e resolver o que fazer.
Depois ficou agitada pelo terrível receio de que ele pudesse estar a cometê-lo naquele momento, sentindo medo de ouvir brados e gritos cortando o silêncio da noite, e angustiada por terríveis pensamentos do que ele pudesse ser tentado e induzido a fazer, se fosse descoberto em flagrante, tendo apenas de enfrentar uma mulher. Era uma tortura insuportável. Dirigiu-se furtivamente para o quarto onde se encontrava o dinheiro, abriu a porta e espreitou para dentro. Deus seja louvado! O avô não estava lá e ela dormia profundamente.
Voltou para o seu quarto e tentou preparar-se para dormir. Mas quem conseguia dormir... dormir! Quem poderia repousar tranquilamente, dominado por tais angústias? Cada vez se apoderavam mais dela. Meio despida, com o cabelo em desalinho, dirigiu-se precipitadamente para a cama do velho e, segurando-o com força pelo pulso, despertou-o do seu sono.
- O que é isto? - gritou ele erguendo-se na cama e fitando o rosto da jovem como se fosse um espectro.
- Tive um sonho horrível - declarou a jovem com um vigor que só podia ter sido inspirado por aqueles terrores.
- Um sonho terrível e pavoroso. Já o tive uma vez, há uns tempos atrás. Sonho com anciãos de cabelos brancos, como o avô, a roubarem o ouro às pessoas adormecidas, de noite, em quartos escuros! Levante-se, levante-se! - O velho tremia todo, com as mãos levantadas, como se estivesse a rezar.
- Não me reze a mim! - disse-lhe a jovem. - Não me reze a mim, mas ao Céu, para nos livrar dessas coisas. Este sonho é demasiado real. Não consigo dormir, não posso ficar aqui, não posso deixá-lo sozinho, sob um tecto onde surgem sonhos destes. Levante-se! Temos de fugir!
Ele contemplava-a como se ela fosse um fantasma, e bem poderia ter sido, apesar de todo o seu aspecto terreno, tremendo cada vez mais.
- Não há tempo a perder, não quero perder um só minuto
- declarou a jovem. - Levante-se! Venha daí comigo!
- Esta noite? - murmurou o velho.
- Sim, esta noite - respondeu a jovem. - Amanhã à noite já será tarde demais! Amanhã o sonho vai voltar outra vez. Só a fuga nos pode salvar. Levante-se!
O velho ergueu-se do leito, com a testa orvalhada do suor que o medo lhe havia provocado, e com a cabeça inclinada diante da jovem, como se ela fosse um anjo mensageiro enviado para o conduzir onde devia, aprontou-se para a seguir. Ela agarrou-o pela mão e assim o levou. Quando passavam diante da porta do quarto que ele havia pensado roubar, a jovem estremeceu, fitando o avô bem nos olhos. É difícil descrever a palidez do seu rosto e a expressão do seu olhar quando a jovem o contemplou!
Ela levou-o até ao seu quarto e, sempre segurando-o pela mão, como se receasse libertá-lo um só instante, reuniu os seus poucos haveres e pendurou o cesto no braço. O velho tirou-lhe a sua sacola das mãos e amarrou-a ao ombro. Ela havia trazido também as coisas dele. Em seguida levou-o para fora.
Os seus passos trémulos soavam apressados através de ruas estreitas e de arrabaldes apertados e tortuosos. Depois treparam penosamente pela íngreme colina, encimada por um velho castelo pardacento, sem nunca olharem para trás uma única vez.
Mas ao aproximarem-se das muralhas arruinadas, a Lua ergueu-se em toda a sua doce glória, e a jovem depois de contemplar aqueles muros veneráveis pelos anos, engrinaldados de hera, musgo e erva ondulante, olhou para trás, para a cidade adormecida lá no fundo do vale, para o rio distante, serpenteando num rasto de luz, e para os montes longínquos. E assim, embevecida nesta contemplação, abrandou um pouco a pressão sobre a mão do avô, e rebentando em lágrimas agarrou-se-lhe ao pescoço.
Uma vez passada a sua momentânea fraqueza, a jovem fortaleceu de novo a resolução que até então tinha sido o seu apoio, e tentando manter-se firme no seu convencimento de que vinham a fugir da desgraça e do crime, e que só da sua firmeza dependia a salvação do avô, sem a ajuda de conselhos ou de uma mão amiga, insistiu com o avô para que continuasse a avançar, e não voltou a olhar para trás.
Enquanto ele, subjugado e confundido, parecia humilhado perante ela, ocultando-se e retraindo-se como se estivesse na presença de um ser superior, a jovem notava dentro de si um sentimento novo, que fortalecia o seu carácter, inspirando-lhe uma energia e uma confiança como ela nunca havia sentido. Agora, a responsabilidade já não era partilhada. Era sobre ela que recaía todo o fardo das suas duas existências, e a partir de então tinha de pensar e agir pelos dois. «Salvei-o», pensou ela, «nunca me posso esquecer disso, em todos os perigos e aflições.»
Em qualquer outra ocasião, a lembrança de ter abandonado a amiga que os tinha tratado com tanta amabilidade, e sem uma palavra de justificação, o pensamento de, na aparência, serem culpados de deslealdade e ingratidão, e mesmo o facto de se ter separado das duas irmãs, teria sido para ela motivo de grande dor e arrependimento.
Mas agora, todas as outras considerações desapareciam, na incerteza e na ansiedade da sua vida errante e solitária, e o próprio desespero da sua situação constituía para ela um estímulo e uma incitação.
E à luz branca do luar que conferia ainda maior palidez ao delicado rosto da jovem, onde a inquietação se misturava já à atraente graça e ao encanto da juventude, o olhar brilhante, a expressão elevada, os lábios comprimidos numa firme decisão e coragem, a figura esbelta e firme, mas porém tão frágil, falavam por si só. Mas falavam só ao vento sibilante que passava carregando o seu fardo, levando-o talvez até à almofada de alguma mãe, vagos sonhos de uma infância que se desvanecia ao florescer, e repousando no sono que não conhece o despertar.
A noite afastava-se rapidamente, a Lua descia, as estrelas iam-se tornando pálidas e indistintas, e a madrugada, fria como elas, vinha-se aproximando devagarinho.
Depois, ao longe, por trás de uma colina, surgiu o Sol majestoso, empurrando à sua frente as névoas, como espectros, e libertando a Terra das suas formas espectrais, até voltar a surgir a escuridão. Quando ele subiu mais alto no céu e os seus raios alegres difundiam calor, os vianjantes deitaram-se para dormir sobre uma ladeira, à beira de água.
Mas Nell continuava a segurar o braço do avô, e já este há muito dormia profundamente, ainda ela o vigiava com um olhar incansável. Mas acabou por ser vencida pela fadiga, abrandou os dedos, apertou-os de novo, tornou a abrandá-los, e adormeceu ao lado do avô.
Foi despertada por um som confuso de vozes que se cruzaram com os seus sonhos. Um homem de aparência muito rude e grosseira estava de pé diante deles, e outros dois olhavam, dentro de um barco muito comprido e possante que se havia aproximado da margem enquanto eles dormiam. O barco não tinha remos nem velas e era rebocado por uma parelha de cavalos, que com as suas cordas frouxas e ensopadas dentro de água, estavam a descansar no caminho.
- Olá! - exclamou o homem rispidamente. - O que é que há aqui?
- Estávamos só a dormir, senhor - respondeu a Nell. - Caminhámos toda a noite.
- Mas que par de estranhos viajantes para caminharem toda a noite - comentou o homem que se havia dirigido a eles. - Um é um pouco velho demais para isso e o outro um pouco jovem demais. Para onde é que vão?
Nell hesitou, apontando ao acaso para Ocidente, após o que o homem lhe perguntou se se referia a uma determinada cidade, cujo nome indicou. Nell, para evitar mais perguntas respondeu: - Sim, é para aí mesmo.
- E de onde é que vieram? - perguntou a seguir. Como esta pergunta era fácil de responder, Nell indicou o nome da aldeia onde vivia o seu amigo mestre-escola, por ser o que tinha menos probabilidade de os homens conhecerem ou de suscitar mais perguntas.
- Julguei que alguém vos tivesse roubado, ou maltratado, podia acontecer - disse o homem. - É tudo. Bom dia.
Nell retribuiu a saudação, com grande alívio por ele ter partido, ficando a observá-lo enquanto ele montava num dos cavalos, continuando a puxar o barco. Não se tinha ainda distanciado muito, quando voltou a parar, e um dos homens acenou para ela.
- Chamou-me? - perguntou Nell correndo para eles.
- Podem vir connosco, se quiserem - respondeu um dos que estavam no barco. - Nós também vamos para lá.
A jovem hesitou um momento. E, tal como antes já receara mais do que uma vez, pensou que os homens que havia surpreendido com o avô poderiam segui-los, sempre na cobiça do roubo, e readquirindo a sua influência sobre ele, a sua seria desprezada. Assim, se fossem com aqueles homens, perderiam certamente todos os seus vestígios naquele sítio, pelo que se decidiu a aceitar a oferta. O barco aproximou-se novamente da margem, e antes de ela ter tempo de reflectir mais no assunto, já estava dentro do barco com o avô, deslizando suavemente pelo canal.
O Sol brilhava agradavelmente na água cintilante, sobre a qual por vezes caía a sombra das árvores, outras vezes deslizava num campo aberto atravessado por rios, ou era rodeada por colinas férteis e arborizadas, campos cultivados e quintas resguardadas por detrás de muros. De quando em quando, por entre as árvores, espreitava uma aldeia, com o modesto pináculo da sua torre, os seus telhados de colmo e as suas empenas.
Mais de uma vez avistaram, à distância, alguma cidade, com grandes torres de igrejas que mal se viam entre o fumo e as altas fábricas ou oficinas no meio do casario, e pelo tempo que permaneciam no horizonte, verificavam como se moviam lentamente. Seguiam quase sempre entre campos baixos e planícies abertas e, à excepção daquelas localidades distantes, e de alguns homens de vez em quando a trabalhar no campo, ou vagueando indolentemente sobre as pontes para os ver passar lá em baixo, nada perturbava a sua monótona e solitária rota.
Quando ao fim da tarde pararam numa espécie de cais, Nell ficou muito desanimada ao saber por um dos homens que só chegariam ao seu destino no dia seguinte e que, se não trazia mantimentos, o melhor era comprá-los ali.
Só lhe restavam alguns pences, tendo já comprado um pouco de pão o mais barato que lhe fora possível, mas mesmo assim tinha de ser muito prudente, já que se dirigiam para um sítio totalmente desconhecido e não possuíam quaisquer outros recursos. Por isso, as únicas coisas que conseguiu comprar foram um pequeno pão e um pouco de queijo, voltando de novo para o barco. Passado cerca de meia-hora, durante a qual os homens estiveram a beber na taberna, continuaram a viagem.
Os homens trouxeram cerveja e bebidas alcoólicas para o barco, e como já haviam bebido largamente antes, e voltaram a beber depois, em breve ficaram embriagados e quezilentos. Nell, esquivando-se a penetrar na pequena cabina, muito escura e suja, apesar de os homens a convidarem reiterada mente, tanto a ela como ao avô, preferiu ficar sentada ao ar livre ao lado do velho, ouvindo os seus turbulentos hospedeiros com o coração em sobressalto, e quase desejando ter ficado a salvo em terra, embora isso a tivesse obrigado a caminhar toda a noite.
Eles eram, do facto, muito barulhentos e extremamente violentos entre si, embora suficientemente corteses para com os seus dois passageiros. Assim, quando rebentou uma discussão entre o piloto e o seu colega da cabina sobre quem se havia lembrado primeiro de ter a delicadeza de oferecer cerveja a Nell, e quando a discussão se transformou numa briga, em que ambos se espancavam mutuamente de um modo terrível, com grande terror da jovem, nenhum deles fez incidir a sua irritação sobre ela, bastando a cada um descarregá-la sobre o seu adversário, que além dos socos era mimoseado com uma série de cumprimentos quase ininteligíveis para a jovem, felizmente para esta.
Finalmente, o diferendo ficou resolvido do seguinte modo: o homem que havia saído da cabina atirou o outro de cabeça lá para dentro e tomou o leme nas mãos, sem revelar a menor perturbação ou a causar ao seu amigo que, sendo de estatura razoavelmente forte e perfeitamente habituado a estas ninharias, se pôs a dormir tal como estava, de barriga para baixo, e decorridos poucos minutos já ressonava tranquilamente.
Nesta altura já a noite tinha caído de novo, e embora a jovem sentisse frio por se encontrar pobremente vestida, os seus pensamentos encontravam-se bem longe da sua dor e da sua inquietação, tentando activamente arranjar uma maneira de conseguir a subsistência de ambos. A mesma coragem que lhe havia dado forças na noite anterior apoiava-a e sustinha-a agora também. O avô dormia a salvo, deitado ao seu lado, e o crime que a sua loucura o incitara a cometer não chegara a ser realizado. Esta era a sua consolação.
Como todos os acontecimentos da sua existência breve mas acidentada lhe surgiam ao espírito, enquanto assim viajavam! Incidentes ligeiros nunca recordados até agora, rostos vistos uma vez e esquecidos desde então, palavras ditas e pouco escutadas na ocasião, cenas passadas havia um ano misturando-se e ligando-se com as de ontem, lugares familiares que, das sombras do passado, se destacavam de outros, os quais vistos de perto se revelavam os mais improváveis e os mais díspares.
Por vezes surgia no seu espírito uma estranha perplexidade sobre o motivo por que ali se encontrava, o sítio para onde ia e as pessoas com quem estava. A imaginação ditava-lhe observações e perguntas que pareciam tão nítidas aos seus ouvidos, que ela se voltava sobressaltada, como pretendendo responder. Todas as fantasias e contradições habituais no estado de vigília e de perturbação e de uma agitada mudança de lugares assaltavam a jovem.
Enquanto assim estava, absorta nestes pensamentos, aconteceu olhar o rosto do homem que estava no convés e em quem a embriaguês, após a sentimentalidade, se transformava em turbulência. Retirando da boca um pequeno cachimbo, todo coberto com um fio, enrolado nele para a sua melhor conservação, solicitou à jovem que o obsequiasse com uma canção.
- A menina tem uma voz muito bonita, uns olhos muito lindos e uma memória muito boa - afirmou o cavalheiro.
- A voz e os olhos já os apreciei. Quanto à memória tenho a minha opinião formada, e nunca me engano. Agora cante-me uma canção, e já.
- Parece-me que não sei nenhuma - respondeu Nell.
- Sabe umas cinquenta canções! - retorquiu o homem num tom tão sério que não admitia quaisquer objecções. - Cinquenta, é quantas sabe. Cante-me lá uma, a mais bonita. Dê-me uma canção, já.
Não sabendo quais seriam as consequências de irritar o seu amigo, e tremendo com receio de o fazer, a pobre Nell cantou-lhe uma cantiguinha que havia aprendido em tempos mais felizes e de que o homem gostou tanto que quando ela terminou lhe pediu, no mesmo tom categórico, que lhe cantasse outra. E tão entusiasmado ficou que berrou a plenos pulmões um coro, embora sem qualquer melodia e sem quaisquer palavras, deficiências estas que eram amplamente compensadas pelo espantoso vigor com que era entoada. O som da sua actuação vocal despertou o outro homem que, surgindo a cambalear no convés e apertando a mão do seu adversário de há pouco, jurou que o canto era o seu orgulho e alegria e a sua maior satisfação, não desejando melhor distracção.
Com uma terceira solicitação, mais imperiosa do que as outras duas anteriores, Nell viu-se obrigada a obedecer, e desta vez o coro era composto não só pelos dois homens em conjunto, como também pelo terceiro a cavalo que, estando impedido pela sua situação de participar mais activamente nos festejos da noite, berrava quando os companheiros o faziam, troando assim pelos ares. Deste modo, cantando, com poucas interrupções, as mesmas canções uma e outra vez, a fatigada jovem manteve-os bem dispostos durante toda aquela noite.
E muito camponês, despertado do seu mais profundo sono pelo dissonante coro trazido pelo vento, escondia a cabeça debaixo das mantas, tremendo ao ouvi-lo.
Por fim amanheceu. E mal tinha acabado de surgir a luz do dia, quando começou a chover torrencialmente. Como a jovem não conseguia suportar os intoleráveis vapores da cabina, os homens, em recompensa pela sua actuação, taparam-na com pedaços de lona e com uns restos de oleado que conseguiram mante-la razoavelmente a seco e proteger também o avô. À medida que o dia avançava, a chuva aumentava. Ao meio-dia caía mais densa e abundante do que nunca, sem dar a menor esperança de querer abrandar.
Gradualmente iam-se aproximando do sítio para onde se dirigiam. A água apresentava-se mais volumosa e mais suja, e eram frequentes as barcaças que se cruzavam com o seu barco. Caminhos feitos de cinza de carvão e cabanas construídas com tijolos de cor berrante indicavam a vizinhança de uma grande cidade fabril, ao passo que ruas e casas dispersas, assim como o fumo de fornos distantes, revelavam que já se encontravam nos seus arredores.
Surgiram em seguida telhados amontoados e edifícios aglomerados, ressoando com a agitação das máquinas e ecoando vagamente os seus apitos e a sua trepidação, e altas chaminés vomitando um vapor preto que ficava a pairar, formando uma nuvem densa e desagradável por cima das casas e escurecendo o ar. Ouvia-se o estrépito de martelos a bater no ferro, o clamor de ruas azafamadas e de multidões ruidosas e tudo isto foi aumentando gradualmente até que os vários sons se misturaram num único som indistinto anunciando o termo da viagem.
O barco entrou no cais que lhe estava destinado. Os homens ficaram imediatamente atarefados. A jovem e o avô, depois de terem aguardado em vão para lhes agradecer ou inquirir para onde deveriam ir, caminharam através de uma ruela suja, desembocando numa rua apinhada de gente, ficando ali no meio do rumor e da agitação, sob a chuva que caía, e sentindo-se tão estranhos, desnorteados e confusos como se tivessem vivido há mil anos atrás e se tivessem erguido de entre os mortos, indo ali ter por algum milagre.
A multidão precipitava-se em duas correntes opostas, sem dar sinais de interrupção ou exaustão, atenta aos seus próprios problemas e sem se preocupar, nas suas especulações comerciais, com o ruído das carroças e carros carregados com diversas mercadorias, o resvalar das patas dos cavalos sobre o pavimento molhado e viscoso, o barulho da chuva nas vidraças e guarda-chuvas, os empurrões dos peões mais impacientes e todo o ruído e tumulto de uma rua apinhada de gente, em altura de muito movimento.
Enquanto isso, os dois pobres forasteiros, aturdidos e desnorteados naquela azáfama à qual eram alheios, olhavam tristemente, sentindo, no meio da multidão, uma solidão só comparável à sede do marinheiro naufragado que, atirado de um lado para o outro pelas ondas do mar encrespado, com os olhos vermelhos de olhar a água que o rodeia por todos os lados, nem um pingo de água tem para refrescar a sua língua ardente.
Retiraram-se para um arco baixo, para se abrigarem da chuva, e observavam os rostos dos que passavam, tentando descobrir, num só que fosse, um raio de esperança. Uns franziam o sobrolho, outros sorriam, alguns falavam consigo próprios. Outros ainda gesticulavam, como que a antecipar uma conversa que iriam encetar. Alguns apresentavam a expressão astuciosa de quem ia negociar ou conspirar, alguns pareciam ansiosos ou inquietos, outros abatidos e melancólicos. Nalguns semblantes estava escrito o sucesso, noutros a ruína.
Era como se estivessem a penetrar no íntimo das pessoas, à medida que elas iam passando. Em sítios movimentados, cada indivíduo tem um objectivo próprio e está convencido que os outros têm o seu, estando o carácter e intento escritos visivelmente no rosto de cada um. Nos passeios públicos e nos salões de uma cidade, as pessoas vão para ver e para serem vistas e mais uma vez a mesma expressão é, invariavelmente, cem vezes repetida. Os rostos das pessoas que trabalham aproximam-se mais da verdade e deixam-na transparecer mais claramente.
Caindo naquele género de abstracção que uma tal solidão provoca, a criança continuou a olhar a multidão que passava com um misto de interesse e espanto, quase se esquecendo da sua própria situação. Mas o frio, a humidade, a fome, a necessidade de repouso e a dificuldade em encontrar qualquer sítio onde pudesse descansar a cabeça dorida, depressa a devolveram aos seus pensamentos no ponto donde tinham divagado. Nenhum dos que passavam parecia aperceber-se deles, e ela também não se atreveu a interpelar alguém. Ao fim de certo tempo, abandonaram o seu refúgio contra o tempo e misturaram-se na multidão.
Caía a noite. Continuaram a vaguear para cima e para baixo, já com menos gente à volta, mas com a mesma sensação de solidão no seu íntimo e a mesma indiferença pelo que os rodeava. As luzes nas ruas e nas lojas faziam com que se sentissem ainda mais desolados, pois contribuíam para que a noite e a escuridão parecessem avançar mais rapidamente. Tremendo de frio e humidade, doente de corpo e de alma, a criança necessitava de maior firmeza e capacidade de decisão para continuar a arrastar-se.
Porque teriam eles vindo a esta cidade barulhenta, quando havia tantos locais tranquilos no campo, onde, pelo menos, poderiam ter passado fome e sede com menos sofrimento do que no meio daquela agitação sórdida? Eram apenas um átomo numa montanha de miséria, cuja simples vista lhes aumentava o desespero e o sofrimento.
A criança tinha não só de aguentar as provações da sua condição de pobreza, como também de suportar as repreensões do avô que começava a murmurar que o tinham tirado da sua última morada e exigia que voltassem para lá.
Estando agora sem vintém, e sem qualquer hipótese de alívio, voltaram para trás, pelas ruas desertas e dirigiram-se ao cais, esperando encontrar o barco onde tinham viajado, e que os deixassem pernoitar no barco, nessa noite. Mas mais uma vez ficaram desiludidos, visto o portão estar fechado e alguns cães ferozes os obrigarem a retirar-se.
- Temos de dormir ao relento esta noite, avô - disse a criança numa voz débil, após este revés. -Amanhã pediremos esmola e iremos para algum sítio tranquilo no campo, onde tentaremos ganhar o nosso pão nalgum trabalho humilde.
- Porque é que me trouxeste aqui? - respondeu o velho asperamente. - Não suporto estas ruas sem ar. Viemos de um lugar sossegado. Porque me forçaste a partir?
- Porque não quero voltar a ter aquele sonho - disse a criança com uma firmeza momentânea que se desfez em lágrimas. - Temos de viver entre gente pobre para que ele não volte. Querido avô, é velho e fraco, eu sei, mas olhe bem para mim. Nunca mais me queixarei, se o não fizer também, mas acredite que estou a sofrer.
- Ah, pobre criança, sem casa, sem mãe, a vaguear! exclamou o velho, juntando as mãos e olhando, como se fosse a primeira vez, para o seu rosto ansioso, o seu vestido enxovalhado da viagem, os pés feridos e inchados. - Será possível que, de tanto te querer bem, te tenha feito chegar a isto? Será que fui um homem feliz em tempos e que perdi toda a felicidade, para isto?
- Se estivéssemos agora no campo - disse a criança, fingindo-se bem disposta enquanto caminhavam à procura de um abrigo - encontraríamos uma boa e velha árvore estendendo os seus braços verdejantes como se nos amasse, e acenando e murmurando como se desejasse ver-nos adormecer, pensando nela enquanto nos velava. Se Deus quiser, em breve estaremos lá. Amanhã ou depois de amanhã, no máximo... e, entretanto, até foi bom termos vindo até cá, pois estamos perdidos na multidão e na confusão deste lugar e se algumas pessoas más nos perseguissem, certamente perderiam o nosso rasto. Valha-nos isso! Olhe, há ali um vão, escuro mas seco e quente, vá lá, pois o vento aqui não sopra... Que é isto?
Dando um pequeno grito, a pequena recuou perante um vulto que saía de repente do nicho escuro onde se propunham pernoitar e que parou a olhar para eles.
- Fale outra vez - disse o vulto, - conheço a sua voz.
- Não - respondeu timidamente a criança - somos forasteiros, e como não temos dinheiro para pernoitar, vínhamos descansar aqui.
Havia uma luz fraca a alguma distância, a única que se encontrava por ali, uma espécie de pátio quadrado, mas o suficiente para mostrar o quanto este era pobre e miserável. A pessoa fez-lhes sinal para entrarem, ao mesmo tempo que se colocava junto à luz, para mostrar que tencionava esconder-se ou tirar partido da escuridão.
O vulto era o de um homem miseravelmente vestido e enfarruscado o que, por contraste com o tom da pele, o fazia parecer mais pálido do que realmente era. No entanto, era naturalmente muito franzino e macilento, como o demonstravam a face encovada, as feições angulosas e um certo ar de sofrimento paciente. A sua voz era áspera por natureza, mas não brutal, e embora o rosto já descrito anteriormente fosse sombreado por cabelos longos e escuros, a expressão não era nem feroz nem cruel.
- Como é que se lembraram de vir descansar aqui? - disse ele. - E porque motivo - acrescentou, dirigindo-se à criança
- precisam de um lugar para descansar a estas horas da noite?
- Os nossos infortúnios são a causa de tudo - respondeu o avô.
- Repare - disse o homem olhando atentamente para Nell, - como ela está molhada. As ruas húmidas não são lugar para ela.
- Sei isso bem, valha-me Deus. Mas que posso fazer?
O homem olhou para Nell outra vez e tocou-lhe ao de leve na roupa, donde a água corria em pequenos fios.
- Posso dar-vos calor - disse o homem após uma hesitação, - mas mais nada. A minha casa fica ali - disse ele apontando a porta de onde tinha saído. - Mas ela estará melhor e mais segura do que aqui. O lume está num sítio desconfortável, mas podem lá passar a noite em segurança se confiarem em mim. Vêem aquela luz vermelha além?
Levantaram os olhos e viram um clarão vermelho no céu escuro, o reflexo pálido de uma fogueira distante.
- Não é longe - disse o homem. - Querem que os leve lá? Vocês iam dormir em cima de tijolos frios; posso dar-vos uma cama de cinzas quentes, nada melhor do que isso.
Sem esperar mais resposta do que a que lhes via nos olhos, pegou em Nell ao colo e disse ao velho que o seguisse.
Levando-a com a mesma ternura e a mesma facilidade com que levaria um bebé, guiou-os com passo rápido e seguro através do que parecia ser o bairro mais pobre e miserável da cidade, sem se afastar das sarjetas a transbordar e das bicas de água, sem alterar o seu rumo, desprezando esses obstáculos e seguindo o seu caminho pelo meio deles. Avançavam assim, em silêncio, há cerca de um quarto de hora e já se tinha perdido de vista o clarão que ele tinha indicado e que provinha das vielas escuras e estreitas por onde tinham vindo, quando subitamente este lhes apareceu novamente, emergindo da alta chaminé de um edifício mesmo à sua frente.
- É aqui - disse ele parando em frente de uma porta para pousar Nell no chão e lhe pegar na mão. - Não tenham medo. Ninguém vos fará mal.
Era necessária muita confiança nesta afirmação para os levar a entrar, e o que viram lá dentro não lhes diminuía as apreensões. Num edifício espaçoso, de tecto alto, sustentado por pilares de ferro com grandes orifícios negros na parte superior das paredes, abertos para o exterior. Nesta sala, que ecoava com o bater dos martelos e o roncar das fornalhas, à mistura com o silvar do metal levado ao rubro ao ser mergulhado em água e centenas de estranhos e fantásticos ruídos, neste lugar tenebroso, movendo-se como demónios entre chamas e fumo, alguns homens trabalhavam como gigantes, afogueados e atormentados pelo fogo vivo e manuseando enormes ferramentas. Uma pancada mal dada teria certamente esmagado o crânio de qualquer operário. Outros, repousando entre montes de carvão e cinza, com o rosto voltado para a negra abóbada por cima deles, dormiam ou recuperavam das suas lides. Outros ainda, abrindo as portas em brasa das fornalhas, deitavam combustível para as chamas, que se precipitavam e roncavam e o lambiam como se fosse óleo. Outros ainda estiravam no chão, com um barulho ensurdecedor, grandes folhas de aço brilhante que emitiam um calor insuportável e uma luz intensa como a que brilha nos olhos dos animais selvagens.
No meio deste espantoso cenário e barulho ensurdecedor, o velho e a criança foram conduzidos pelo seu guia até um recanto escuro do edifício onde noite e dia ardia uma fornalha, pelo menos foi o que perceberam pelo movimento dos lábios, pois apenas o podiam ver falar, não ouvir. O homem que tinha estado de guarda ao fogo e cuja tarefa terminava, retirou-se alegremente e deixou-os com o seu amigo. Este estendeu a pequena capa de Nell sobre um monte de cinzas, e indicando-lhe onde podia pendurar a roupa molhada, fez sinal a ela e ao velho para que se deitassem e dormissem.
Quanto a ele, instalou-se numa esteira em frente da porta da fornalha, e apoiando o queixo nas mãos, pôs-se a vigiar o fogo que brilhava através das grades de ferro e as cinzas brancas, à medida que caíam no seu túmulo brilhante e ardente.
O calor da sua cama, apesar de dura e humilde, aliado à extrema fadiga em que se encontrava, depressa fizeram com que o barulho do lugar se desvanecesse aos ouvidos fatigados da criança, não demorando a embalar-lhe o sono. E com a mão pousada sobre o pescoço do avô deitado a seu lado, sonhou.
Ainda era noite quando acordou. Não sabia, porém, se tinha dormido muito ou pouco. Viu, no entanto, que estava protegida, tanto do ar frio que pudesse vir de fora, como do calor abrasador, por algumas peças de roupa dos operários, e olhando para o seu amigo que estava sentado exactamente na mesma posição, a olhar fixamente para o fogo, e mantendo-se tão imóvel que nem parecia respirar, ela estava no estado intermédio entre a vigília e o sono e, ao olhar para a figura imóvel do amigo, quase receou que ele tivesse morrido ali sentado. Levantou-se, pois, devagar e aproximando-se dele, arriscou-se a falar-lhe ao ouvido.
Ele mexeu-se e olhando para o sítio que ocupava antes, como que para se assegurar que se tratava realmente da criança que estava junto dele, fitou-a com um ar interrogador.
- Receei que estivesse doente - disse ela. - Os outros homens estão todos ocupados e o senhor está tão quieto.
- Deixam-me sozinho - respondeu o homem. - Conhecem o meu feitio. Riem-se de mim mas não me fazem mal. Vês aquele ali? É meu amigo.
- O fogo? - disse a criança.
- Vive há tanto tempo como eu - respondeu o homem.
- Conversamos e pensamos juntos toda a noite.
A criança olhou para ele, admirada, mas já ele tinha dirigido os olhos para o mesmo sítio e de novo meditava.
- É como um livro para mim - disse ele - o único livro que até agora aprendi a ler... e conta-me muitas histórias. Conta-me muitas histórias antigas. É como música. Eu reconheceria a sua voz entre mil, e além disso há outras vozes no seu roncar. E tem imagens, também. Não imaginas quantos rostos estranhos e quantas cenas diferentes eu descubro nos carvões em brasa. Aquele fogo representa as memórias de toda a minha existência.
A rapariga, curvada para escutar as suas palavras, não podia deixar de reparar no brilho dos seus olhos enquanto falava e meditava.
- Sim - disse ele, com um vago sorriso, - era o mesmo de quando eu era criança e gatinhava em volta dele até adormecer. Era o meu pai que o vigiava, então.
- O senhor não tinha mãe? - perguntou a criança.
- Não, tinha morrido. As mulheres trabalham muito por aqui. Matou-se a trabalhar, disseram-me. E tal como as pessoas, o fogo, desde então, tem continuado a dizer-me o mesmo. Deve ter sido verdade. Sempre o acreditei.
- Foi então criado aqui? - disse a pequena.
- De Verão e de Inverno - respondeu ele. - A princípio, em segredo, mas quando me descobriram, deixaram-me cá ficar. E assim o fogo tomou conta de mim... Sempre o mesmo fogo. Nunca se apaga.
- É amigo dele? - perguntou a criança.
- Claro que sou. O meu pai morreu à sua frente. Vi-o cair... ali mesmo onde as cinzas estão agora a arder., e espantei-me - fiquei admirado por o fogo não o ajudar.
- E tem estado aqui desde então? - perguntou a criança.
- Desde então comecei a vigiá-lo; mas houve um intervalo... e foi muito triste e muito frio. E no entanto ele nunca parou de arder, e quando eu voltei roncava e saltava como nos dias em que brincávamos. Podes imaginar, ao olhar para mim, que criança é que eu era e, contudo, eu era uma criança como tu, e quando te vi na rua, esta noite, fizeste-me lembrar como eu era depois de ele morrer, e senti vontade de te trazer para ao pé do fogo. Pensei novamente nesses velhos tempos, quando te vi a dormir agora. Deita-te outra vez, pobre criança, deita-te outra vez.
Com isto levou-a até ao rude leito e, cobrindo-a com a roupa com que se vira aconchegada ao acordar, voltou para o seu assento, onde permaneceu imóvel, a não ser para alimentar a fornalha. A pequena continuou a observá-lo durante algum tempo, mas cedo cedeu ao sono que a dominava, e naquele lugar estranho e escuro, deitada num monte de cinzas, dormiu tão profundamente como se o lugar fosse um quarto nobre de um palácio e a cama um leito de penas.
Quando acordou novamente, o dia brilhava através das altas aberturas nas paredes e, incidindo em raios oblíquos até metade, parecia tornar o edifício ainda mais escuro do que à noite. O barulho continuava e as fogueiras implacáveis continuavam a arder tão ferozmente como dantes, pois poucas alterações havia, quer de noite, quer de dia, que trouxessem repouso ou silêncio ao lugar.
O amigo da criança repartiu o pequeno-almoço com ela e com o avô, escassa refeição de café e de pão caseiro, e perguntou para onde é que se se dirigiam. Ela disse-lhe que procuravam qualquer local no campo, que fosse distante de cidades ou mesmo de outras aldeias, indagando, hesitante, que estrada deveriam seguir.
- Pouco sei do campo - disse ele abanando a cabeça, pois aqueles que, como eu, passam a vida em frente de uma fornalha, raramente saem a respirar o ar puro. Mas lá para diante, há lugares assim.
- E ficam longe daqui?
- Sim, decerto. Como poderiam ficar perto, e ser frescos e verdejantes? A estrada é iluminada ao longo de milhas e milhas pelas nossas fogueiras. É tão negra e estranha, que de noite mete medo.
- Já que aqui estamos, temos de continuar - disse a pequena corajosamente, ao ver que o velho tinha ficado preocupado com esta informação.
- Gente rude... atalhos que não foram feitos para pés pequeninos como os teus... um caminho triste e escabroso... Não há forma de desistires, minha filha?
- Não, de maneira nenhuma - exclamou Nell relutante.
- Se nos indicar o caminho, é um grande favor. Senão, peço-Ihe que não tente dissuadir-nos do nosso propósito. Não
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sabe, certamente, o perigo de que fugimos e as razões que nos levaram a isso. Caso contrário, não tentaria deter-nos.
- Deus me livre disso! - disse o seu rude protector, olhando da criança ansiosa para o avô que, baixando a cabeça, fixava os olhos no chão.
- Da porta, vou mostrar-vos o caminho. Gostaria de poder fazer mais alguma coisa.
Em seguida, indicou-lhes a estrada que deviam seguir para sair da cidade, e que rumo deviam tomar, depois de a terem atingido. Prolongou tanto as suas explicações que a criança, agradecendo fervorosamente, se afastou, sem ouvir mais nada.
Mas ainda não tinham atingido a esquina do beco, o homem correu atrás deles e, apertando a mão da pequena, entregou-lhe qualquer coisa, duas moedas de um «penny», velhas, amachucadas e enegrecidas pela fuligem. E quem sabe, se aos olhos dos anjos, não brilhariam com o mesmo brilho das oferendas de ouro, cuja história está gravada nos túmulos?
E assim se separaram. A criança conduzindo a sua preciosa carga para longe do crime e da vergonha, o operário com um novo interesse pelo lugar onde os seus hóspedes tinham dormido, e a ler novas histórias no fogo da sua fornalha.
Nunca, em todo o seu vagabundear, tinham desejado tão ardentemente, nunca tinham ansiado e suspirado tanto pela liberdade e pelo ar puro do campo, como agora. Não, nem mesmo naquela memorável noite em que, depois de abandonarem a sua casa, se tinham entregue à mercê de um mundo estranho, deixando para trás todas as coisas mudas e insensíveis que conheciam e amavam. Nem mesmo então tinham desejado a fresca solidão das florestas, dos montes e dos campos como agora, em que o ruído, a sujidade e o bafo da grande cidade fabril exalando miséria e fome, os cercava, parecendo excluir toda a esperança e tornar a fuga impossível.
«Dois dias e duas noites!» - pensou a criança. - «Ele disse que teríamos de passar dois dias e duas noites entre cenários como este. Oh! Vivamos ao menos até alcançarmos de novo o campo, livremo-nos destes locais horríveis, ainda que seja só para nos deitarmos e morrer, agradecendo a Deus a sua misericórdia!»
Acalentando estes pensamentos e com o vago intento de viajar o mais possível entre riachos e montes, onde apenas vivesse gente pobre e simples e onde se pudessem manter ajudando humildemente no trabalho das quintas, livres dos horrores donde fugiam, a criança, sem outros recursos além da oferta do pobre homem, e sem mais ânimo senão aquele que brotava do seu próprio coração, e da noção da verdade e justiça dos seus actos, apelou para toda a sua força de vontade para esta última caminhada e prosseguiu resolutamente a sua tarefa.
- Temos de ir muito devagar hoje, avô - disse ela, à medida que avançavam penosamente através das ruas. - Os meus pés estão feridos e doem-me os membros da humidade de ontem. Notei que ele, enquanto olhava para nós, pensava nisso mesmo, quando disse que nos demoraríamos na estrada.
- É um caminho triste este que ele nos indicou - retorquiu o avô com ar lastimoso. - Não haverá outra estrada? Porque não me levas por outro caminho?
- Mais para além - disse a pequena firmemente, - há sítios onde poderemos viver em paz, sem tentações para fazer o mal. Tomaremos a estrada que prometa conduzir-nos lá e não sairemos dela, nem que seja cem vezes pior do que os nossos temores nos levam a crer. Não é verdade, avô?
- Tens razão - respondeu o velho, com voz e ar vacilantes. - Tens razão. Sigamos, Estou pronto. Estou inteiramente pronto, Nell.
A criança caminhava com mais dificuldade do que queria fazer crer ao seu companheiro, pois as dores que lhe atacavam as articulações não eram vulgares, e cada esforço as aumentava. Não lhe arrancaram, porém, a menor queixa ou olhar de sofrimento; e embora os dois viajantes avançassem muito devagar, o facto é que avançavam. Por fim, depois de ultrapassarem a cidade, começaram a ver que já estavam no bom caminho.
Passado um longo subúrbio de casas cor de tijolo vermelho, algumas com pequenos relvados, onde a fuligem e o fumo das fábricas escurecia as folhas mirradas e as flores murchas e enfezadas, e onde a vegetação enfraquecia e murchava sob o bafo quente das fornalhas, fazendo, com a sua presença, com que as casas parecessem ainda mais insalubres e doentias do que a própria cidade, passado um comprido subúrbio, plano e irregular, foram entrando aos poucos numa região desolada onde não se via crescer uma erva sequer, onde nem um botão dava a sua promessa de Primavera, onde nada que fosse verde podia viver a não ser à superfície de charcos estagnados, que aqui e ali fermentavam ao Sol, na beira negra da estrada.
Avançando sempre à sombra deste lugar fúnebre, a sua influência depressiva ia-se insinuando nos seus espíritos, enchendo-os de grande melancolia. Por todos os lados e até onde a vista alcançava na distância soturna, altas chaminés, apertando-se umas contra as outras e apresentando aquela eterna repetição do mesmo cenário feio e sombrio que é o horror dos sonhos opressivos, vomitavam a sua praga de fumo, obscurecendo a luz e empestando o ar melancólico. Sobre montes de cinzas, à beira da estrada, mal cobertos por algumas tábuas ou sob alpendres de telhas desmanteladas, viam-se estranhos maquinismos a girar e a torcer-se como seres torturados, fazendo retinir as suas cadeiras de ferro, guinchando de tempos a tempos no seu rápido rodopiar como se estivessem em enormes tormentos, e na sua agonia fazendo tremer o chão.
Aqui e ali apareciam casas em ruínas, amparadas por restos de outras que se tinham desmoronado, sem telhado, sem janelas, negras, desoladas, e mesmo assim habitadas. Homens, mulheres e crianças de aspecto macilento e com as vestes em farrapos, tratavam das máquinas, alimentavam o fogo tributário, pediam esmola na estrada ou, seminus, deitavam olhares furiosos das casas sem portas. Depois seguiam-se mais daqueles monstros raivosos como pareciam na sua ferocidade, no seu ar indomável, dando gritos agudos e girando sem parar.
E em frente, por detrás, à direita e à esquerda, a mesma interminável perspectiva de torres de tijolo, expelindo sem cessar o seu vómito negro, crestando todas as coisas vivas ou inanimadas, velando a face do dia, envolvendo todos estes horrores numa nuvem densa e escura.
E a noite neste lugar horrível! Noite, quando o fumo se transformava em fogo, quando cada chaminé esguichava a sua labareda, e sítios que tinham sido negras cavernas durante o dia, brilhavam como ferro em brasa, com vultos movendo-se de um lado para o outro dentro das suas mandíbulas incandescentes, e chamando-se mutuamente com gritos roucos. Noite, quando o ruído de cada estranha máquina era agravado pela escuridão, em que as pessoas que estavam junto deles pareciam mais ferozes e selvagens, em que bandos de trabalhadores desempregados marchavam pelas estradas ou então, à luz de archotes, se reuniam à volta dos seus dirigentes, que em linguagem dura lhes falavam das injustiças que sofriam e os incitavam com terríveis gritos e ameaças, em que homens tresloucados, armados de espadas e tições, desprezando as lágrimas e as súplicas das mulheres que tentavam detê-los, saíam a espalhar o terror e a destruição, preparando mais seguramente a sua própria desgraça do que outra qualquer.
Noite em que, aos solavancos, se viam passar carretas cheias de caixões de madeira tosca, pois as doenças contagiosas e a morte tinham ceifado vidas humanas, em que órfãos choravam e mulheres enlouquecidas gritavam e lhes seguiam o rasto. Noite, em que alguns pediam pão e outros vinho para afogar as mágoas, em que uns, desfeitos em lágrimas, e outros, com andar vacilante e olhares raiados de sangue, voltavam para casa meditando. Noite que, ao contrário daquilo que Deus lhe manda, não trazia à terra nem paz, nem silêncio, nem sinais de sono tranquilo. Quem poderá imaginar o terror de uma noite assim para uma criança errante?
E, contudo, deitou-se, sem nada entre ela e o firmamento, e sem nenhum temor por si, pois isso já tinha passado, ergueu uma prece pelo pobre velho. Sentia-se tão fraca e esgotada, tão calma e submissa, que não teve um pensamento para as suas próprias necessidades, mas pediu a Deus que encontrasse um amigo para ele. Tentou recordar-se do caminho que tinham percorrido e olhou na direcção da fogueira junto da qual tinham dormido na noite anterior. Esquecera-se de perguntar o nome do pobre homem, o amigo deles, e quando se lembrou dele nas suas preces, pareceu-lhe ingratidão não voltar a olhar para o sítio onde se encontrava de vigia.
Um pão de um «penny» fora tudo o que tinham comido nesse dia. Era muito pouco, mas a própria fome foi esquecida na estranha tranquilidade que a envolvia. Deitou-se muito suavemente, e adormeceu com um sorriso plácido no rosto. Não era como um sono, e no entanto devia ser, senão como teria aqueles sonhos durante toda a noite?
Veio a manhã. A criança achava-se muito mais fraca, mesmo com os sentidos da vista e da audição diminuídos, mas não se queixou. Talvez não se tivesse queixado, mesmo que não tivesse o incentivo para se calar, viajando a seu lado. Desesperava de alguma vez serem libertos daquela região desolada. Experimentava a vaga sensação de estar muito doente, talvez a morrer, mas não existia nela nem medo nem ansiedade.
Uma repugnância pela comida, de que não se apercebeu senão depois de terem comprado um pão com o seu último «penny», impediu-a de partilhar até esta pobre refeição. O avô comeu vorazmente, para sua grande satisfação.
O caminho deles desenrolava-se por cenários semelhantes aos de ontem, sem variações nem melhorias. Havia o mesmo ar carregado, difícil de respirar, o mesmo terreno ressequido, a falta de objectivos, a miséria e a angústia de sempre. Os objectos pareciam mais confusos, o barulho mais difuso, o trilho mais escabroso e desigual. Por vezes Nell tropeçava, mas depois despertava, no esforço que fazia para não cair. Pobre criança! A causa estava nos seus pés cansados.
Para a tardinha, o avô queixou-se amargamente de fome. Ela aproximou-se de uma das choças miseráveis que havia à borda da estrada e bateu à porta.
- Que querem daqui? - perguntou um homem esquelético, abrindo-a.
- Por caridade, um bocadinho de pão!
- Vêem aquilo? - replicou o homem com voz áspera, apontando para uma espécie de fardo que estava no chão. - É uma criança morta. Eu e mais quinhentos companheiros fomos despedidos há três meses. É o terceiro filho que me morre. Acham que posso dispensar algum bocado de pão, por caridade?
A pequena afastou-se e a porta fechou-se sobre ela. Impelida pela absoluta necessidade, bateu a outra, que ficava ao lado da primeira que, cedendo à leve pressão da sua mão, se abriu.
Parecia que viviam nessa choupana duas famílias pobres, pois viam-se duas mulheres em cantos diferentes da mesma dependência, rodeadas de filhos seus. A meio da casa estava um indivíduo com ar grave, vestido de preto, que parecia ter acabado de entrar e que dava a mão a um rapaz.
- Mulher - dizia ele, - aqui tens o teu filho surdo-mudo. Podes agradecer-me ter-to restituído. Trouxeram-no à minha presença esta manhã, acusado de furto. Se se tratasse doutro rapaz as coisas iriam correr pior, podes ter a certeza. Mas como tive pena da sua condição e pensando que talvez não tivesse recebido boa educação, consegui trazê-lo de volta. Toma mais cuidado com ele de futuro.
- E o meu filho, não mo entrega? - disse a outra mulher, levantando-se de repente e fazendo-lhe frente. - Não me entrega o meu filho que foi acusado da mesma falta?
- Era surdo-mudo, mulher? - perguntou o cavalheiro com severidade.
- Então não era, meu senhor?
- Bem sabes que não.
- Era, sim! - exclamou a mulher.
- Era surdo, mudo e cego: tudo o que havia de mais inocente desde o berço. O filho dela talvez não tivesse tido melhor educação! E então o meu? Onde é que o meu a recebeu? Quem havia de o ensinar? Onde podia ele recebê-la?
- Acalma-te, mulher - disse o homem. - O teu filho estava na posse de todas as suas faculdades.
- Estava - exclamou a mulher. - E por isso era mais fácil de desencaminhar. Se salvou este garoto, por que não sabia distinguir o bem do mal, por que razão não salvou o meu, que nunca teve quem lhe ensinasse a diferença entre as duas coisas. Os senhores têm tanto direito de castigar o filho dela, que Deus privou do ouvido e da fala, como têm de castigar o meu, que vocês próprios mantiveram na ignorância.
Quantas raparigas e rapazes, e quantos homens e mulheres também, vos são levados, e não têm pena deles que são surdos-mudos de entendimento, e continuam assim, e são punidos, de corpo e alma, enquanto que os senhores discutem uns com os outros se eles devem ou não aprender isto ou aquilo?... Seja justo, senhor, restitua-me o meu filho!
- Estás desesperada! - disse o cavalheiro, puxando da caixa de rapé. - Tenho pena de ti.
- Estou desesperada - replicou a mulher, - porque o senhor me pôs assim. Devolva-me o meu filho para ele trabalhar para estas crianças. Seja justo, senhor! Assim como teve compaixão deste rapaz, restitua-me o meu também!
A pequena vira e ouvira o suficiente para perceber que aquele não era o sítio indicado para pedir esmola. Devagarinho afastou o velho da porta, e prosseguiu o seu caminho.
Cada vez com menos esperança e menos forças, mas decidida a não revelar, por palavras ou gestos, o seu estado de fraqueza, e com uma decisão inquebrável de andar enquanto tivesse energia, a criança teimava em continuar a marcha, no intuito de compensar a lentidão dos seus passos, sem parar sequer para descansar, como devia. Escurecia, embora não fosse ainda noite fechada, quando depois de uma caminhada através da mesma paisagem triste, chegaram a uma cidade de grande movimento.
Fracos e desanimados como estavam, as ruas eram-lhes insuportáveis. Depois de terem batido a algumas portas pedindo auxílio, e serem repelidos, decidiram sair o mais rapidamente possível da localidade, a ver se os habitantes de qualquer casa isolada dos arredores teriam mais compaixão do seu estado de fraqueza.
Iam-se arrastando ao longo da última rua, até que a criança sentiu aproximar-se o momento em que as suas forças debilitadas não aguentariam mais. Nesta altura, passou-lhes à frente, seguindo no mesmo sentido, um caminhante com uma mochila às costas e apoiado a um cajado, ao mesmo tempo que ia lendo um livro que tinha na mão.
Não era fácil alcançá-lo e pedir-lhe auxílio, pois ele caminhava depressa e tinha um certo avanço. A certa altura, porém, ele parou para olhar mais atentamente qualquer passagem do livro. Animada por um raio de esperança, a criança correu à frente do avô e chegando junto do desconhecido, sem que os seus passos o despertassem, começou, com voz débil, a pedir a sua ajuda!
O homem voltou a cabeça. A criança juntou as mãos, deu um grito de angústia e caiu desmaiada aos seus pés.
Era o pobre mestre-escola. Nem mais nem menos do que o pobre mestre-escola. Quase tão comovido e surpreendido ao ver a criança, como ela tinha ficado ao reconhecê-lo, ficou durante um momento silencioso e confundido por esta aparição inesperada, sem ter a presença de espírito para a levantar do chão.
Mas recuperando rapidamente a presença de espírito, atirou com o cajado e o livro, e deixando-se cair sobre un joelho ao lado dela, procurou, pelos simples meios que lhe ocorreram, chamá-la a si, enquanto o avô, de pé, sem fazer nada, torcia as mãos e implorava à neta com muitas expressões de carinho que lhe falasse, nem que fosse uma só palavra.
- Está completamente exausta - disse o mestre-escola, erguendo o olhar para o velho. - Você abusou demasiado das forças dela, amigo.
- Está a morrer de fome - replicou o velho. - Nunca supus, até agora, que estivesse tão fraca e doente.
Deitando-lhe um olhar meio de repreensão meio de compaixão, o mestre-escola pegou na criança ao colo e pedindo ao velho que apanhasse o seu cestinho e o seguisse imediatamente, levou-a dali a toda a pressa.
Havia uma pequena hospedaria ali perto, para onde ele parecia dirigir-se quando fora tão inesperadamente interpelado. Dirigiu-se rapidamente para ali com o seu fardo e, correndo para a cozinha, gritou aos circunstantes ali reunidos que abrissem caminho por amor de Deus, e depositou a pequena numa cadeira em frente da lareira.
Os fregueses, que se levantaram em confusão ao verem entrar o mestre-escola, fizeram o que as pessoas geralmente fazem em semelhantes circunstâncias. Cada qual aconselhava o seu remédio preferido, que ninguém trazia, cada qual gritava por mais ar, ao mesmo tempo que lhe tiravam o ar que havia, apertando o cerco em volta do objecto da sua compaixão, e todos se interrogavam por que razão ninguém fazia o que eles próprios podiam fazer.
No entanto, a dona da hospedaria que tinha mais expediente e actividade do que qualquer um deles, e que tinha tido, além disso, uma percepção mais rápida do que se tinha passado, depressa apareceu a correr com brande e água quente, seguida da criada que trazia vinagre, amoníaco, sais aromáticos e outros estimulantes do mesmo género, os quais, bem administrados, restabeleceram a criança a ponto de poder agradecer aos presentes, numa voz fraca, e de estender a mão ao pobre mestre-escola, que a olhava com ar preocupado. Sem permitirem que ela emitisse outra palavra, as mulheres levaram-na imediatamente para a cama, e depois de a agasalharem, banharam-lhe os pés frios e embrulharam-nos em flanela e mandaram chamar o médico.
O médico, um senhor de nariz rubicundo, com muitas medalhas penduradas dum colete de cetim às riscas pretas e brancas, chegou a toda a pressa, e sentando-se ao lado da cama da pobre Nell, puxou do relógio e tomou-lhe o pulso. Depois, olhou-lhe para a língua, depois tomou-lhe o pulso outra vez, e enquanto fazia isso, olhava para o copo de vinho meio vazio, como que em profunda abstracção.
- Eu devia dar-lhe... - disse por fim o médico - uma colher de chá, de vez em quando, de brande com água quente.
- Ora, é isso exactamente o que lhe temos estado a dar! disse a estalajadeira, encantada.
- Também seria conveniente - observou o médico, que tinha visto a bacia de lavar os pés sobre o degrau da escada
- também seria conveniente - repetiu ele em tom de oráculo. - meter-lhe os pés dentro de água quente e embrulhá-los em flanela. E seria igualmente conveniente - continuou, cada vez mais grave - dar-lhe qualquer coisa leve para cear... a asa de um frango assado...
- Ora valha-me Deus, senhor! Estão justamente a assar um na cozinha, neste mesmo instante! - exclamou a senhora
E assim era, de facto, pois o mestre-escola tinha dado ordem para o prepararem, e ia em tão bom andamento que o médico o podia ter cheirado. E talvez o tivesse feito.
- Pode, depois - disse o médico, levantando-se com ar grave - dar-lhe um copo de vinho do Porto, se ela gostar de vinho.
- E uma torrada, senhor? - sugeriu a estalajadeira.
- Sim - disse o médico, no tom de quem se digna fazer uma concessão. - E uma torrada... de pão. Mas tenha muito cuidado em que seja apenas de pão, por favor, minha senhora.
E com esta última recomendação, pronunciada lentamente e com ar portentoso, o médico retirou-se, deixando a casa inteira maravilhada com aquela sabedoria que se assemelhava tanto à deles. Toda a gente disse que ele era um médico muito hábil e que sabia compreender perfeitamente a constituição de cada um. E há razão para supor que assim fosse.
Enquanto lhe preparavam a ceia, a criança teve um sono repousante do qual tiveram de a acordar, quando a ceia ficou pronta. Dando sinais de grande inquietação ao saber que o avô se encontrava no andar de baixo, por recear ficarem separados, ele ceou com ela.
E como ela continuasse inquieta, fizeram uma cama ao velho num quarto interior, e para lá se retirou mais tarde. Por sorte, a chave da porta estava do lado que dava para o quarto de Nell. A pequena deu-lhe a volta, depois de a estalajadeira se ter retirado, e meteu-se na cama com o coração tranquilo.
O mestre-escola ficou sentado durante muito tempo a fumar cachimbo junto à lareira da cozinha, que estava deserta, a pensar, com expressão muito satisfeita, na feliz circunstância que o tinha levado tão oportunamente a ajudar a criança, e na sua simplicidade, iludindo o melhor que podia as perguntas curiosas da estalajadeira que se mostrava extremamente interessada em ter um conhecimento mais profundo sobre a vida de Nell. O pobre mestre-escola era tão franco e tão pouco versado em astúcia e logro que ela teria conseguido imediatamente saber o que queria, não fosse o caso de ele desconhecer o que ela queria saber, e assim lho disse. A estalajadeira, nada satisfeita com isto, que considerou uma engenhosa evasão à pergunta, retorquiu que ele lá teria as suas razões. Deus a livrasse de se meter na vida dos seus fregueses, não tinha nada com isso, a sua vida já lhe chegava bem. Tinha apenas feito uma pergunta delicada, na certeza de que obteria uma resposta delicada. Estava muito satisfeita. Talvez preferisse que ele lhe tivesse dito que não pretendia ser comunicativo, porque assim as coisas teriam desde logo ficado claras. Não tinha, no entanto, o direito de estar ofendida, claro. Ele sabia melhor que ninguém o que devia dizer. Ninguém o podia negar por um momento sequer. De forma alguma!
- Asseguro-lhe que falo a verdade - respondeu o mestre-escola. - Pela minha salvação, que falo a verdade.
- Acredito que fale a verdade - ripostou a estalajadeira - E desculpe-me se o afligi. Mas a curiosidade é o defeito do meu sexo, como sabe.
O estalajadeiro coçou a cabeça, como se pensasse que o defeito não era só do sexo feminino, mas foi impedido de o dizer, mesmo que fosse esse o seu intento, pela resposta do mestre-escola.
- Nem que me interrogassem horas a fio! De bom grado vos responderia, devido à bondade de que deram mostras esta noite - disse ele. - Assim, só vos peço que cuidem bem dela amanhã de manhã e avisem-me cedo sobre o seu estado. Fica assente que eu pago pelos três.
E separando-se deles nos termos mais amigáveis, um pouco menos devido à última troca de palavras, o mestre-escola foi para a sua cama e o estalajadeiro e a mulher para a deles.
A informação dada pela manhã foi que a criança estava melhor, mas estava ainda muito fraca e precisava de um dia de repouso e cuidados, antes de poder continuar a viagem. O mestre-escola recebeu esta comunicação com perfeito bom humor, observando que tinha um dia à sua frente, dois dias, até, e que podia permitir-se essa espera. Como a doente à tarde já se poderia sentar no quarto dela, a certa hora, saiu a passear com o seu livro, e só voltou à hora marcada.
Nell não podia conter as lágrimas quando se encontraram sozinhos, e diante do seu rosto pálido e figura emagrecida, o bondoso mestre-escola verteu algumas lágrimas também, dizendo ao mesmo tempo em linguagem muito enérgica que era uma tolice fazê-lo e que podia muito facilmente evitar-se, desde que se tentasse.
- Mesmo no meio de todas estas bondades - disse a criança, - sinto-me incomodada por pensar que somos um fardo para si. Como é que poderei alguma vez agradecer-lhe? Se não o tivesse encontrado assim, tão longe de casa, decerto que morreria e ele teria ficado só.
- Não falemos em morrer - disse o mestre-escola, - e com respeito a fardos, fiz a minha fortuna a partir do dia em que dormiram em minha casa.
- Sério? - exclamou a pequena, alegremente.
- Oh, é verdade - respondeu o seu amigo. - Fui nomeado escrivão e mestre-escola de uma aldeia muito longe daqui... e muito longe da minha velha aldeia, como pode supor... com o ordenado de trinta e cinco libras por ano. Trinta e cinco libras!
- Estou contente - disse a criança, - estou muito contente.
- Vou a caminho de lá - continuou o mestre escola. - Pagaram-me o aluguer da diligência... na imperial! Deus seja louvado, foram muito generosos comigo. Mas como falta muito tempo para me apresentar, decidi ir antes a pé. Estou tão satisfeito por o ter feito!
- E nós então... temos tantas razões para estar satisfeitos!
- Sim, sim - disse o mestre-escola, mexendo-se inquieto na cadeira. - Isso é verdade! Mas... para onde vão, donde vêm, que têm feito desde que me deixaram, que tinham feito antes disso? Vamos, diz-me. Pouco conheço do mundo e talvez tu me possas aconselhar em assuntos sobre os quais devia ser eu a aconselhar-te a ti, mas sou sincero e tenho razoes, não o esqueceste, decerto, para gostar muito de ti. Senti desde então que o meu afecto por aquele que morreu se transferiu para ti, que estiveste ao seu lado. Se este - acrescentou levantando os olhos - é o belo fruto que nasce das cinzas, que a sua paz prospere dentro de mim, assim como eu tratarei com ternura e desvelo desta jovem!
A bondade simples e franca do honesto mestre-escola, a afectuosa sinceridade das suas frases e olhares, incutiram na criança uma confiança nele que a mais requintada arte da perfídia e da dissimulação nunca teriam conseguido despertar. Ela contou-lhe tudo. Que não tinham amigos nem familiares, que tinha fugido com o velho para o salvar do manicómio e de todas as misérias que temiam, que estava a fugir agora para o salvar dele próprio, e que gostaria de encontrar um asilo em qualquer lugar, remoto ou primitivo que fosse, onde nunca entrasse a tentação a que ele havia sucumbido, nem se repetissem os desgostos e apuros por que acabavam de passar.
O mestre-escola ouvia-a com espanto. «Que criança! - dizia ele para si. - E tem esta criança presevado heroicamente, apesar de todos os perigos, lutando contra a miséria e o sofrimento, sustida apenas pela sua forte afeição, e pela consciência do que é a rectidão! Terei ainda de aprender que os sofrimentos mais árduos e suportados com mais coragem são aqueles que não têm registo em quaisquer anais terrenos, e que se experimentam dia a dia! É realmente de espantar a história desta criança!»
O que mais pensou e disse não importa. Ficou assente que Nell e o avô o acompanhariam até à aldeia para onde se dirigia, e que ele tentaria obter-lhes alguma humilde ocupação com que pudessem subsistir.
- Havemos de ter êxito - disse o mestre-escola alegremente. - A causa é demasiado boa para falhar.
Combinaram prosseguir a viagem na tarde seguinte, pois devia então chegar à hospedaria um carro de mercadorias, para mudar de cavalos, cujo trajecto se fazia, em parte, pela mesma estrada que eles tinham de tomar. Contavam que o cocheiro, mediante uma pequena gorjeta, arranjasse um lugar para Nell. De facto, assim que o carro chegou, depressa se fez o negócio, e na devida altura lá partiu o veículo, com a criança confortavelmente instalada entre a bagagem mais macia, enquanto o avô e o mestre-escola iam a pé, ao lado do cocheiro, e a estalajadeira e toda a boa gente da estalagem gritavam as suas despedidas.
Que doce, voluptuoso e sonolento era viajar assim, enterrada naquela montanha movediça, escutando os guisos dos cavalos, o estalar ocasional do chicote do cocheiro, o suave rolar das grandes rodas largas, o roçagar dos arreios, as alegres boas-noites dos viajantes que passavam trotando em cavalinhos de passo miúdo, tudo tornado deliciosamente indistinto graças ao espesso toldo, que se diria destinado à preguiça, até finalmente se adormecer! E até o próprio adormecer, ainda que com ideias confusas, à medida que a cabeça abanava de um lado para o outro, sobre a almofada, enquanto se ia avançando sem incómodos nem fadigas e ouvindo todos estes sons como música de sonho, a embalar os sentidos, o acordar lento, até se olhar pela cortina da frente entreaberta pela brisa, para o céu frio e brilhante de estrelas sem fim e para a lanterna do cocheiro, bailando como fogo-fátuo, para os lados, para as árvores disformes e negras e para a frente, para a longa estrada nua subindo mais e mais até estacar bruscamente num cume elevado e abrupto, como se terminasse ali e como se tudo para além fosse céu, e a paragem na hospedaria para se tomar uma pequena refeição, ser ajudada a descer e entrar numa sala com lareira e luzes acesas a fazerem piscar os olhos, e recordar agradavelmente que a noite estava mais fria! Que deliciosa viagem aquela no carro de mercadorias!
Depois o continuar da viagem, de começo tão vivo, e logo a seguir tão embalador, o despertar de um sono quando a malaposta passou por eles como um cometa, com as lanternas derramando o seu clarão e o barulho das patas dos cavalos e deixando vislumbrar o guarda da retaguarda, de pé para conservar os pés quentes, e um senhor com um barrete de peles e de olhos esbugalhados, como se estivesse louco ou estupefacto, a paragem nas barreiras, cujo guarda se tinha deitado, as pancadas na porta, até ele responder com um grito abafado de debaixo da roupa, do quartinho por cima onde brilhava uma luzinha débil, e daí a pouco descer de barrete de dormir, tremendo de frio, para abrir o portão de par em par, enquanto fazia votos para que os carros de mercadorias desaparecessem da estrada, a todas as horas da noite. O intervalo áspero e frio entre a noite e o dia, a longínqua tira de luz, que se alargava, e se espalhava, e passava de cinzento a branco e daí para amarelo e de amarelo para vermelho-fogo, a chegada do dia com toda a sua alegria de vida, homens e cavalos à charrua, pássaros nas árvores e nas sebes e rapazes em campos solitários assustando-os com matracas. O chegar à cidade, pessoas atarefadas nos mercados, carrocinhas e cabrioles em volta do pátio da taberna, lojistas à porta dos estabelecimentos, homens passeando cavalos na rua, para cima e para baixo, para venda, porcos chafurdando e grunhindo na sujidade, ou fugindo com compridas cordas atadas às pernas e enfiando-se por drogarias donde os expulsavam à vassourada, a diligência nocturna mudando de cavalos, os passageiros mal dispostos, gelados, mal encarados e descontentes, com uma barba de três meses crescida numa noite, o cocheiro, por contraste, fresco como uma alface e simpático... onde se viu uma viagem com tantos encantos como aquela feita naquele carro?
Por vezes caminhando a pé durante uma milha ou duas enquanto o avô seguia no veículo, e até, por vezes, convencendo o mestre-escola a tomar o seu lugar e adeitar-se para descansar um pouco, Nell viajou alegremente até chegarem a uma grande cidade, onde o carro chegou e aí passaram a noite. Passaram uma grande igreja, nas ruas havia grande quantidade de casas antigas, construídas com uma espécie de adobe e enfeitadas com vigas escuras que lhes conferiam um aspecto singular e muito antigo. As portas também eram baixas e arqueadas, algumas com portais de carvalho e bancos fora do vulgar, onde os antigos habitantes se sentavam nas tardes de Verão. As janelas eram guarnecidas de vidros em forma de pequenos diamantes, que pareciam piscar os olhos aos transeuntes como se tivessem falta de vista. Há muito que tinham perdido de vista o fumo e as chaminés, excepto aqui ou ali, isoladamente, quando alguma fábrica, edificada no meio do campo, empestava o ar à sua volta como uma montanha ardente. Passada esta cidade, entraram novamente no campo e começaram a aproximar-se do seu destino.
No entanto não ficava tão perto que não tivessem de passar outra noite na estrada. Não que isto fosse absolutamente necessário, mas o mestre-escola, quando se aproximaram da aldeia, teve a noção da sua dignidade de escrivão, e não quis entrar com os sapatos empoeirados e o fato amachucado da viagem. Era uma bela manhã de Outono quando chegaram ao local da sua colocação. Parou pois a contemplar os seus encantos.
- Olhem... lá está a igreja! - exclamou em voz baixa, deliciado, o mestre-escola. E aquele velho edifício, mesmo ao lado, é a escola, aposto. Trinta e cinco libras por ano nesta magnífica terra!
Admiraram tudo. O velho pórtico cinzento, as janelas com umbreiras salientes, as veneráveis pedras tumulares, semeadas pelo cemitério verdejante, a velha torre e até o próprio catavento. Os telhados de colmo das choupanas, dos celeiros e das casas de habitação, espreitando por entre as árvores, ao longe o ribeiro que chegava à azenha e formava uma cascata, mais longe as velhas montanhas azuis do País de Gales. Era por um lugar assim que a criança tinha ansiado nos antros tenebrosos e miseráveis dos seus trabalhos. No seu leito de cinzas e no meio dos esquálidos horrores pelos quais tinham passado, estas cenas tinham estado sempre presentes. Belas, sem dúvida, mas não tão belas como a doce realidade. Pareciam desfazer-se na distância vaga e aérea, à medida que as perspectivas de voltar a vê-las iam sendo cada vez mais fracas. Mas quanto mais recuavam, mais as amava e desejava.
- Tenho de os deixar por alguns minutos - disse o mestre-escola interrompendo o silêncio em que, na sua felicidade, tinham mergulhado. - Tenho de entregar uma carta e fazer algumas perguntas, como sabem. Onde querem que os leve? Aquela hospedaria, além?
- Preferimos esperar aqui - respondeu Nell. - O portão está aberto. Sentamo-nos no átrio da igreja, até que volte.
- E é um bom sítio - disse o mestre-escola encaminhando-se para lá e desembaraçando-se do seu saco que colocou num banco de pedra. - Estejam descansados, que voltarei com boas notícias e não me demorarei muito!
Assim, o bom do mestre-escola colocou um par de luvas novo em folha que trazia no bolso e lá foi à pressa, cheio de ardor e entusiasmo.
A pequena seguiu-o com os olhos até a folhagem o ocultar da sua vista, depois encaminhou-se com passo vagaroso para o cemitério, tão solene e tranquilo que o restolhar do vestido nas folhas caídas que atapetavam o caminho e amorteciam os seus passos parecia quebrar o silêncio do ambiente. Era um local muito antigo e espiritual. A igreja fora construída há muitas centenas de anos atrás, e em tempos tivera um convento ou mosteiro anexo, pois viam-se ainda de pé arcos em ruínas, restos de janelas circulares e fragmentos de paredes enegrecidas, ao passo que na terra do cemitério e cobertos de terra se misturavam outros pedaços do velho edifício, que se haviam desmoronado, como se também exigissem e quisessem misturar as suas cinzas com o pó dos homens. Logo ao lado destas pedras tumulares de idade venerável, e formando parte das ruínas que certas obras tinham tornado habitáveis numa época mais recente, havia duas pequenas moradias com janelas embutidas e portas de carvalho quê, vazias e desoladas, caminhavam rapidamente para a ruína.
A atenção da criança cravou-se exclusivamente nestas duas casas. Não sabia porquê. A igreja, as ruínas, as sepulturas antigas, tinham pelo menos iguais direitos à curiosidade do forasteiro. Porém, logo que pôs os olhos em cima das duas habitações, Nell não conseguiu voltar-se para mais nada. Mesmo depois de ter dado a volta à cerca e ter regressado para junto do pórtico, sentou-se pensativamente à espera do seu amigo num ponto de onde podia continuar a observá-las, olhando fascinada naquela direcção.
A mãe de Kit e o senhor solitário, cujo rasto é aconselhável seguir quanto antes, não vá esta história ser acusada de inconstante, e de abandonar criminosamente as suas personagens em situações incertas e duvidosas, a mãe de Kit e o cavalheiro solitário, viajando a toda a velocidade na sua carruagem de duas parelhas, cuja partida da porta do notário já presenciámos, depressa deixaram para trás a cidade, levantando chispas das pedras da larga estrada real.
A boa mulher, não pouco embaraçada com a novidade da situação e com certa apreensão maternal, quem sabe se a essas horas o pequeno Jacob ou o bebé, ou ambos, não teriam caído ao lume, escorregado pela escada abaixo, ficado esborrachados atrás da porta ou escaldado as goelas ao tentarem matar a sede pelo bico da chaleira, mantinha-se em silêncio inquieto, e cruzando, através da janela, o olhar com os guardas das barreiras, dos cocheiros, das diligências e doutros, sentia-se, na nova dignidade da sua posição, como um gato-pingado num enterro, o qual, não experimentando grande desgosto com a perda do defunto, reconhece, da janela do coche funerário, os seus conhecidos de todos os dias, mas é forçado a conservar a devida compostura e uma indiferença aparente a todos os objectos exteriores.
Ser, porém, indiferente à companhia do senhor solitário equivaleria a ter nervos de aço. Jamais houve carruagem que conduzisse, nem cavalos que puxassem homem tão agitado como ele. Nunca se sentava por mais de dois minutos seguidos, estava constantemente a estender os braços e as pernas, a levantar as vidraças e a deixá-las cair violentamente, ou a espetar a cabeça para fora de uma janela, retirá-la para dentro e a espetá-la por outra.
Levava, além disso, na algibeira, um acendedor de construção desconhecida. Assim que a mãe de Kit fechava os olhos, lá estava o cavalheiro a fazer brr, brr, fzzz, a consultar o relógio com o auxílio do acendedor, e deixando as fagulhas caírem no meio da palha como se não houvesse a possibilidade de serem os dois assados vivos antes de os rapazes poderem parar os cavalos. Cada vez que paravam para a muda, lá saltava ele da carruagem, sem baixar os degraus, irrompendo no pátio da estalagem como um foguete, puxando do relógio à luz dos candeeiros e esquecendo-se de olhar para ele antes de o guardar de novo, e fazendo, de um modo geral, tantas extravagâncias, que a mãe de Kit estava positivamente com medo dele.
Depois, assim que os cavalos estavam atrelados, entrava para a carruagem como um Arlequim, e antes que tivessem percorrido uma milha, lá apareciam o relógio e o acendedor ao mesmo tempo, e a mãe de Kit lá ficava outra vez acordada, sem esperanças de conciliar o sono, por pouco que fosse, durante aquela jornada.
- Sente-se bem? - dizia o senhor solitário depois de uma dessas façanhas, voltando-se de repente.
- Perfeitamente, meu senhor, muito obrigada.
- Tem a certeza? Não tem frio?
- De facto, está um pouco fresco senhor - respondia a mãe de Kit.
- Eu bem o calculava! - exclamava o cavalheiro solitário, baixando uma das vidraças da frente. - Ela precisa de um
pouco de aguardente e água! É claro que precisa. Como pude eu esquecer uma coisa dessas? Eli, lá! Parem na primeira estalagem e peçam um copo de aguardente quente e água.
Era inútil a mãe de Kit protestar que não precisava de nada disso. O senhor solitário era inamovível e, sempre que tinha esgotado as atitudes e gestos de inquietação, ocorria-lhe, invariavelmente, que a mãe de Kit precisava de aguardente e de água.
Assim viajaram até perto da meia-noite, hora a que pararam para cear. Para esta refeição o cavalheiro solitário encomendou tudo o que havia na hospedaria, e porque a mãe de Kit não comesse tudo ao mesmo tempo, nem provasse de tudo, meteu-se-lhe na cabeça que devia estar doente.
- Está fraca - disse o senhor solitário, que por si não fazia outra coisa senão andar na sala, para trás e para diante. -Já sei o que tem, minha senhora. Está fraca!
- Muito obrigada pelo cuidado, meu senhor, mas não estou.
- Sei que está. Tenho a certeza disso. Arranco esta pobre mulher ao seio da família, com um minuto de antecedência, e ela acaba por enfraquecer à minha vista! Que bela pessoa eu sou! Quantos filhos tem, minha senhora?
- Dois, meu senhor, além de Kit.
- Rapazes, minha senhora?
- Sim, meu senhor.
- Já são baptizados?
- Apenas meio baptizados, senhor.
- Serei padrinho de ambos. Lembre-se disso, faça favor, minha senhora. É melhor tomar um pouco de vinho quente.
- Não era capaz de beber uma gota sequer.
- Mas tem de beber. Vejo que necessita dele. Já me devia ter lembrado disso.
Correndo imediatamente à campainha e pedindo vinho quente com tanta impetuosidade como se ele destinasse a alguém aparentemente asfixiado, o cavalheiro solitário obrigou a mãe de Kit a ingerir um grande copo de líquido, a uma tal temperatura que as lágrimas lhe corriam pela cara abaixo e, em seguida, empurrou-a novamente para dentro da carruagem, onde ela, possivelmente devido aos efeitos do agradável calmante, depressa ficou insensível à inquietação do seu companheiro, adormecendo profundamente.
E os felizes efeitos desta receita não foram transitórios, pois embora o trajecto fosse maior do que o cavalheiro solitário tinha previsto, ela só acordou já era dia claro e já a carruagem rodava com grande barulho sobre a calçada de uma cidade.
- É aqui! - exclamou o seu companheiro, baixando todas as vidraças. - Dirijam-se às figuras de cera!
O sota levou a mão ao chapéu e metendo as esporas no cavalo para que avançasse com mais brilho, fez com que os quatro irrompessem num galope airoso e atravessassem as ruas com um barulho que espantava as pessoas e abafava as vozes sóbrias dos relógios da cidade que batiam as oito e meia. Avançaram até uma porta à volta da qual se juntava uma multidão e ali pararam.
- Que é isto? - perguntou o senhor solitário, espetando a cabeça para fora. - Aconteceu aqui alguma coisa?
- É um casamento, senhor, um casamento! Viva!
O cavalheiro solitário, bastante desorientado por se encontrar no meio de tanta confusão, desceu com a ajuda de um dos postilhões e deu a mão à mãe de Kit, para a ajudar a descer. À vista disto o povo gritou:
- Aqui está outro casamento!
E gritavam e saltavam de alegria.
- Esta gente endoideceu, parece-me - disse o senhor solitário, abrindo o caminho com a sua suposta noiva por entre o ajuntamento. - Arredem, ouvem? E deixem-me bater à porta!
Qualquer coisa que faça barulho satisfaz uma multidão. Uma dúzia de mãos sujas bateram à porta por ele e raramente alguém produziu ruído tão ensurdecedor do que nesta ocasião. Tendo prestado voluntariamente este serviço, a populaça afastou-se, preferindo que fosse ele a suportar sozinho as consequências.
- Pronto, senhor, que deseja? - disse um homem de enorme laço branco na lapela, abrindo a porta e escancarando-a com um ar extremamente estóico.
- Quem se casou aqui, meu amigo? - perguntou o cavalheiro solitário.
- Casei-me eu.
- Você? E com quem, em nome do diabo?
- Que direito tem de fazer essa pergunta? - retorquiu o noivo, olhando-o dos pés à cabeça.
- Que direito? - gritou o senhor solitário, segurando com mais força o braço da mãe de Kit, pois era evidente que a boa mulher se preparava para fugir. - Um direito com que você nem sonha. Escutem, boa gente, se este sujeito se casou com uma menor... isso não é válido! Onde está a criança que aqui tem, meu bom amigo? Chama-se Nell. Onde está ela?
Ao fazer esta pergunta, que a mãe de Kit repetiu em eco, alguém num quarto ali perto deu um grito, e uma senhora forte, de vestido branco, correu até à porta e apoiou-se ao braço do noivo.
- Onde está ela? - exclamou a senhora.
- Que notícias me traz? Que lhe sucedeu?
O cavalheiro solitário recuou e olhou para o rosto da ex-Mrs. Jarley, que nessa manhã casara com o filósofo Jorge, causa da eterna raiva e desespero de Mr. Slum, o poeta, com uma expressão de perplexidade, desapontamento e incredulidade, ao mesmo tempo. Por fim, gaguejou:
- Eu é que pergunto onde ela está! Que quer dizer com isso?
- Oh senhor! - exclamou a noiva. - Se veio cá para lhe fazer algum bem, porque não veio há uma semana atrás?
- Ela... morreu? - disse a pessoa a quem a noiva se dirigia, empalidecendo muito.
- Não, a desgraça não é assim tão grande.
- Bendito seja Deus! - exclamou o senhor solitário, com uma voz fraca. - Dêem-me licença que entre.
Afastaram-se para o deixar entrar, e depois fecharam a porta.
- Peço-lhes que vejam em mim, boa gente - disse ele voltando-se para os recém-casados, - uma pessoa para quem a própria vida não conta mais que a daqueles que procura. Eles não me reconheceriam. As minhas feições são-lhes estranhas, mas se algum deles ou ambos estão aqui, levem esta boa mulher convosco e deixem que eles a vejam primeiro, pois ambos a conhecem. Se têm escrúpulos em o fazer, por qualquer suspeita ou por recearem por eles, julguem das minhas intenções quando virem que eles reconhecem a sua velha e humilde amiga.
- Eu sempre o disse! - exclamou a noiva. - Eu sabia que ela não era uma criança vulgar! Ai, meu senhor! Não está na nossa mão ajudá-lo, pois tudo quanto se podia fazer o fizemos em vão.
Com isto, contaram-lhe, sem disfarces nem encobrimentos, tudo quanto sabiam acerca de Nell e do avô, desde o seu primeiro encontro com eles até à altura da sua súbita desaparição, acrescentando, o que era inteiramente verdade, que tinham feito todos os esforços possíveis para lhes descobrir o rasto, mas sem resultado.
De princípio, muito alarmados quanto à sua segurança, assim como por causa das suspeitas a que eles próprios poderiam vir um dia a ficar expostos, em consequência da sua partida abrupta. Insistiam na idiotia do velho, na inquietação revelada pela criança sempre que ele se ausentava, na gente com que parecia dar-se, e na crescente depressão que gradualmente tinha invadido a pequena, afectando-lhe tanto a saúde como o moral. Não tinham meios de averiguar se ela teria dado pela falta do velho, de noite, e sabendo, ou conjecturando sobre para onde ele se teria dirigido, o teria seguido, ou se tinham abalado de casa juntos.
O que se lhes afigurava certo é que muito poucas probabilidades havia de voltarem a ter notícias deles, e que além disso nenhumas esperanças restavam de que eles regressassem, quer a sua fuga tivesse sido originada pelo velho, quer pela criança.
Tudo isto o cavalheiro solitário ouviu com o ar de um homem completamente derrubado pela dor e pela desilusão. Verteu lágrimas quando falaram do avô e pareceu profundamente aflito.
Para não prolongar demasiado esta parte da nossa narrativa e no intuito de resumir tão longa história, diremos, em poucas palavras, que antes de terminada a entrevista, o senhor solitário concluía que era evidente que lhe tinham contado a verdade e, por esse facto se esforçou por contemplar os noivos com uma prenda, em reconhecimento da sua bondade para com a criança desaparecida. Eles, porém, recusaram-se firmemente a aceitar fosse o que fosse.
No fim, o feliz casal lá partiu na campana, para passar a lua-de-mel numa excursão campestre, enquanto o cavalheiro solitário e a mãe de Kit para ali ficavam, tristes em frente da porta da sua carruagem.
- Para onde quer que o conduza, meu senhor? - perguntou o cocheiro.
- Leva-me à... - disse o senhor solitário.
Por sua vontade não acrescentaria «estalagem», mas em atenção à mãe de Kit, lá foram para a estalagem.
Já corriam boatos. Que a rapariguinha que costumava mostrar as figuras de cera era filha de gente importante, havia sido raptada aos pais em pequenina e só agora tinha sido descoberta. As opiniões divergiam, pois uns diziam que ela era filha de um príncipe, outros de um duque, enquanto outros afirmavam que o pai era um conde, visconde ou barão. Todos, porém, concordavam num ponto principal: que o cavalheiro solitário era o pai dela. E toda a gente se inclinou para vislumbrar um pouco da sua pessoa, nem que fosse só a ponta do seu nobre nariz, quando ele se afastou, desanimado, na sua carruagem de duas parelhas.
O que ele teria dado para saber, e que desgostos se teriam poupado, se tivesse sabido que naquele momento, tanto a criança como o avô, estavam sentados junto ao pórtico da velha igreja, aguardando pacientemente o regresso do mestre-escola.
O rumor popular referente ao cavalheiro solitário e à sua missão, passando de boca em boca e tomando foros de maravilhoso à medida que era discutido, pois os boatos, ao contrário da pedra rolante do provérbio, colhem musgo no seu vaguear para cima e para baixo, foram a causa de o facto de ele se apear à porta da hospedaria ser tido como um espectáculo estimulante e atraente que dificilmente se podia deixar de admirar.
Juntou-se grande número de ociosos que, tendo ficado desocupados com o encerramento da exposição de figuras de cera e o fim da cerimónia nupcial, consideravam a sua chegada simplesmente um acto da Providência e, por isso, a saudavam com viva alegria.
Não participando de modo algum no sentimento geral, mas antes patenteando o ar deprimido e fatigado de quem desejava meditar sobre as suas desilusões em silêncio e a sós, o cavalheiro desconhecido desceu e ajudou a mãe de Kit a descer com uma cortesia lúgubre, que deixou nos espectadores uma viva impressão. Depois disto, ofereceu-lhe o braço e acompanhou-a até dentro de casa, enquanto alguns diligentes criados de mesa corriam à frente, como batedores, para desimpedir o caminho e mostrarem o quarto, já pronto para recebê-los.
- Qualquer quarto serve - disse o cavalheiro solitário.
- Que seja perto, é o suficiente.
- Aqui, senhor. Tenha a bondade de vir por aqui.
- Talvez o senhor preferisse este quarto? - disse uma voz, ao mesmo tempo que uma portinhola oculta por debaixo da escada se abria de repente e surgia uma cabeça a espreitar.
- Está às suas ordens. O senhor é tão benvindo como flores em Maio ou lenha no Natal. Quer este quarto? Dê-me a honra de o aceitar. Faça-me esse favor.
- Nosso Senhor me valha! - exclamou a mãe de Kit, recuando extremamente surpreendida. - Vejam lá uma coisa destas!
Ela tinha razão em estar surpreendida, pois a pessoa que fazia o amável convite era, nem mais nem menos, que Daniel Quilp.
A portinha pela qual ele tinha enfiado a cabeça ficava perto da despensa, e Quilp ali ficou fazendo mesuras com uma cortesia grotesca, tão à-vontade como se a porta fosse a da sua própria casa. Dir-se-ia o génio do mal da adega surgindo de debaixo da terra para qualquer obra maléfica, enquanto com a sua proximidade ia pondo quebranto a todas as pernas de carneiro e frangos assados das vizinhanças.
- Quer dar-me a honra? - perguntou Quilp.
- Prefiro estar só - respondeu o cavalheiro solitário.
- Oh! - disse Quilp. E de um pulo meteu-se para dentro, batendo com a porta, como a figura de um relógio holandês quando dá horas.
- Olhe que ainda ontem à noite o deixei em Little Bethel, senhor! - segredou a mãe de Kit.
- Sério? - perguntou o seu companheiro de viagem.
- Quando é que aquele sujeito aqui chegou, rapaz?
- Chegou esta manhã na malaposta da noite, senhor.
- Hum! E quando se vai ele embora?
- Isso é que não sei dizer. Quando a criada de quarto lhe perguntou se ele desejava uma cama, primeiro começou a fazer-lhe caretas, e depois quis beijá-la.
- Peça-lhe que venha aqui - disse o cavalheiro solitário.
- Diga-lhe que gostaria de trocar algumas palavras com ele. Peça-lhe que venha imediatamente, ouviu?
O homem ficou atónito ao receber estas ordens, pois o cavalheiro não só, à vista do anão, tinha demonstrado tanto espanto como a mãe de Kit, como, sem mostrar por ele o menor receio, não se preocupara em esconder a sua antipatia e repugnância. Partiu, contudo, a executar o recado, voltando logo a seguir acompanhado do anão.
- Um seu criado, senhor - disse o anão.
- Encontrei o seu mensageiro a meio caminho. Julguei que me permitisse apresentar-lhe os meus cumprimentos. Espero que se encontre bem. Espero que se encontre perfeitamente. Houve uma breve pausa, durante a qual o anão, com olhos semicerrados e rosto franzido, aguardou uma resposta. Não obtendo nenhuma, adoptou modos mais familiares.
- A mãe de Cristóvão! - exclamou ele. - Uma senhora tão bondosa e tão digna! É o bendito retrato do filho! Como está a mãe do Cristóvão? A mudança de ares e de ambiente fez-lhe bem? E os pequenos? E o Cristóvão? Estão crescidos? Estão desenvolvidos? Fazem-se dali uns cidadãos honrados, eh?
Fazendo a voz subir vários decibéis a cada pergunta, Mr. Quilp acabou num guincho, assumindo o aspecto ofegante que lhe era habitual e que, quer fosse provocado, quer natural, produzia como resultado banir do seu rosto qualquer expressão, transformando-o, no que se referia a qualquer indício ou disposição do seu espírito, num perfeito espaço em branco.
- Mr. Quilp - disse o cavalheiro solitário.
O anão pôs a mão na sua grande orelha saliente e simulou a mais perfeita atenção.
- Nós dois já nos encontrámos...
- Sem dúvida! - exclamou Quilp abanando a cabeça.
- Oh, sem dúvida, meu caro senhor! Tanta honra e prazer... e ambas as coisas... a mãe de Cristóvão... ambas as coisas... não são para esquecer. De maneira nenhuma!
- Deve lembrar-se que, no dia em que cheguei a Londres, encontrei vazia e deserta a casa onde me dirigi, que alguns vizinhos me indicaram a sua pessoa e que eu o fui visitar, sem ser para descansar nem para refazer as forças.
- Que rapidez com que tudo isso se fez, que ponderação e que energia! - disse Quilp, lisonjeando, à maneira do seu amigo Mr. Sampson Brass.
- Encontrei-o... - continuou o cavalheiro solitário, - inexplicavelmente na posse de tudo o que, ainda recentemente, havia pertencido a outro homem, e esse, que até à altura em que você invadiu a sua propriedade, era considerado rico, ficou subitamente na miséria e viu-se expulso de sua casa.
- Tínhamos um mandato para isso, meu bom senhor - respondeu Quilp - tínhamos o nosso mandato. E não diga que ele foi posto fora. Saiu por sua própria vontade. - Desapareceu de noite, senhor.
- Não importa - disse o cavalheiro solitário, irritado.
- Não estava lá.
- Pois, não estava lá! - retorquiu Quilp, com a mesma fleuma exasperante. - Realmente não estava lá. A única dúvida era saber para onde fora. E esta questão ainda subsiste.
- Agora, que devo pensar de si... - perguntou o cavalheiro solitário, olhando para ele severamente - que nesta altura, claramente disposto a não fornecer informação alguma... sim, esquivando-se e ocultando-se visivelmente por detrás de toda a sorte de velhacarias, enganos e subterfúgios... segue agora os meus passos?
- Eu, a segui-lo? - exclamou Quilp.
- Então, não segue? - volveu o seu interlocutor num estado de extrema irritação. - Não é verdade que você estava há poucas horas a umas sessenta milhas daqui, na capela onde esta boa mulher vai fazer as suas orações?
- Parece-me que ela também lá estava! - disse Quilp sempre com toda a calma. - Se eu fosse mal educado, poderia dizer que se o senhor sabe tudo isso, é porque também anda a seguir os meus passos. Sim, estava na capela. E então? Tenho lido que os peregrinos, antes de partir em viagem, tinham o costume de ir rezar a uma capela para regressarem sãos e salvos. Homens prudentes! As jornadas são muito perigosas... especialmente na parte de fora das carruagens. As rodas saltam fora, os cavalos assustam-se, os cocheiros guiam depressa demais, as carruagens voltam-se... Vou sempre rezar a uma capela antes de partir em viagem. É a última coisa que faço em semelhantes ocasiões, palavra!
Não era preciso grande penetração para perceber que Quilp mentia com todo o descaramento, embora no rosto, voz e gestos parecesse dizer verdade com a firme constância de um mártir.
- Em nome de tudo que nos possa levar à loucura, homem - disse o infeliz cavalheiro solitário. - Não terá você, por qualquer razão pessoal, tomado a seu cargo a minha missão? Não sabe com que objectivo aqui vim? E se sabe, não poderá esclarecer um pouco a questão?
- O senhor pensa que eu sou algum mágico? - replicou Quilp encolhendo os ombros. - Se o fosse, leria a minha própria sina e faria fortuna.
- Ah, dissemos tudo o que tínhamos a dizer, bem vejo. - retorquiu o outro atirando-se impaciente sobre um sofá.
- Faça o favor de nos deixar. - Com todo o gosto. Mãe de Cristóvão, minha boa alma, adeus! Uma boa viagem de regresso, cavalheiro. Hum!
Com estas palavras de despedida, ao mesmo tempo que se espalhava pelas suas feições um sorriso indescritível, que parecia composto de todas as caretas monstruosas de que os homens e os macacos são capazes, o anão recuou lentamente e fechou a porta atrás de si.
- Oh! - disse ele, depois de entrar novamente no seu próprio quarto e se ter sentado numa cadeira com os cotovelos espetados para fora. - Oh, estás aí, meu amigo? Palavra?
Sorrindo como se estivesse extremamente contente, e recompensando-se pelo constrangimento que impusera ao seu semblante, torcendo-o em todas as variedades de fealdade inimagináveis, Mr. Quilp balançando-se dum lado para o outro na cadeira e afagando ao mesmo tempo a perna esquerda, caiu em certas meditações, das quais talvez seja necessário relatar a substância.
Primeiro, analisou as circunstâncias que o tinham conduzido até ali, e que, em resumo, eram estas. Tendo na tarde anterior passado pelo escritório de Sampson Brass, estando este cavalheiro ausente e a sua douta irmã também, encontrou Mr. Swiveller que, nesse momento, no intuito de humedecer a argila de que era feito, como se costuma dizer, a borrifava copiosamente com genebra e água quente sobre o pó das leis.
Mas, da mesma forma que a argila, quando humedecida em demasia, fica com uma consistência fraca e desigual, quebrando-se em pontos inesperados e retendo mal as impressões sem conservar firmemente qualquer marca, assim a argila de que era feito Mr. Swiveller, tendo embebido uma considerável quantidade de líquido, encontrava-se num estado movediço e escorregadio, a tal ponto que as várias ideias nela impressas rapidamente perdiam o seu carácter distintivo e derretiam-se umas nas outras.
Não é raro o barro humano, quando nestas condições, ter-se em alto valor, sobretudo no que respeita à sua grande prudência e sagacidade, e Mr. Swiveller, especialmente, avaliando em elevado grau estas qualidades, teve oportunidade de observar que tinha feito estranhas descobertas a respeito do cavalheiro solitário que morava por cima, mas que estava resolvido a guardá-las no seu seio, e que nem torturas nem carícias jamais o convenceriam a revelá-las.
Mr. Quilp exprimiu a sua inteira aprovação relativamente a este propósito, e pondo-se de um só fôlego a incitar Mr. Swiveller a fazer mais alusões, depressa percebeu que o cavalheiro solitário tinha sido visto em comunicação com Kit, e nisto consistia o segredo que jamais seria revelado. De posse destas informações, Mr. Quilp supôs logo que o cavalheiro solitário lá de cima devia ser o mesmo indivíduo que o fora visitar, e tendo-se assegurado, graças a algumas perguntas adicionais, que a sua suposição era exacta, facilmente concluiu que o objectivo do seu diálogo com Kit era a recuperação do seu velho cliente e da criança.
Ardendo em curiosidade para saber em que pé estavam as coisas, resolveu lançar-se sobre a mãe de Kit, visto ser ela a pessoa menos capaz de resistir às suas manhas e, consequentemente, aquela que mais probabilidades tinha de revelar o que ele queria ouvir. Assim, despedindo-se abruptamente de Mr. Swiveller, dirigiu-se apressadamente para casa dela.
Como a boa mulher não estivesse em casa, perguntou por ela, como o próprio Kit fez pouco depois, a uma vizinha, que lhe indicou a capela para onde logo se dirigiu, no intuito de a esperar à saída do ofício.
Não estava sentado há mais de um quarto de hora na capela, de olhos piedosamente fitos no tecto e a rir-se, no íntimo, da graça que era estar ali, quando viu aparecer o próprio Kit.
Ao anão, vigilante como um lince, bastou um olhar rápido para perceber que ele vinha ali com um fim determinado. Aparentemente abstracto, como vimos, e fingindo uma profunda distracção, não lhe passou despercebido nenhum pormenor da sua atitude, e quando ele se retirou com a família, saiu atrás dele como uma bala. Disfarçadamente, seguiu-os até casa do notário, onde soube do destino da carruagem por um dos postilhões, e tendo conhecimento de que, de uma rua ali perto, ia partir para o mesmo local uma diligência rápida nocturna, precisamente à hora que estava prestes a bater, precipitou-se sem mais demora para o escritório das diligências e ocupou um lugar no tejadilho do carro.
Depois de passar e tornar a passar pela carruagem na estrada, e ser ultrapassado por ela uma quantidade de vezes no decurso da noite, consoante as suas paragens eram mais curtas ou mais longas, ou variava a rapidez do seu andamento, chegaram à cidade quase ao mesmo tempo. Quilp, sem perder a carruagem de vista, misturou-se com a multidão, informou-se da missão do cavalheiro solitário e, na posse de tudo o que lhe convinha saber, afastou-se rapidamente, chegou antes dele à hospedaria, onde teve a entrevista que acabámos de relatar e onde agora, fechado no seu pequeno quarto, revia à pressa todos estes acontecimentos.
- Estás aí, não é verdade, meu amigo? - repetiu, mordiscando avidamente as unhas. - Suspeitam de mim e põem-me de lado, e Kit é o agente confidencial, hem? Receio ter de me desfazer dele. Se esta manhã tivéssemos vindo com eles para cima - continuou ele depois de pensar um momento - estava pronto a experimentar um bom ajuste de contas. Podia muito bem ter tirado um bom lucro. Se não fossem estes hipócritas do rapaz e da mãe, metia este sujeito orgulhoso na minha rede com tanta facilidade como ao nosso velho amigo... o nosso amigo comum, ah! ah!... E a rosada e roliça Nell. Em todo o caso, é uma oportunidade de ouro que não se pode perder. Em primeiro lugar, tratemos de os descobrir, e sempre hei-de encontrar maneira de o sangrar de parte do seu dinheiro supérfluo, meu caro senhor, enquanto houver grades nas prisões, trancas e cadeados, para fechar em segurança o seu amigo ou parente. Detesto gente virtuosa! - disse o anão despejando um copázio de aguardente e fazendo estalar os lábios. - Ah! Detesto-os a todos!
Isto não era uma mera e vã fanfarronice, mas sim uma confissão sincera dos seus verdadeiros sentimentos, pois Mr. Quilp, que não gostava de ninguém, a pouco e pouco tinha acabado por detestar toda a gente que, de longe ou de perto, se relacionasse com o seu arruinado cliente.
O próprio velho, porque tinha conseguido enganá-lo e iludir a sua vigilância. A pequena, porque era objecto da comiseração e constantes remorsos de Mrs. Quilp. O cavalheiro solitário, devido à sua aversão por ele, Quilp. Kit e a mãe, mortalmente, pelas razões já dadas. Além do sentimento de geral oposição a eles, sentimento inseparável do seu desejo voraz de enriquecer à custa desta alteração de circunstâncias, Daniel Quilp odiava-os a todos.
Nesta amável disposição de espírito, Mr. Quilp estimulou-se a si e aos seus ódios com mais aguardente, e depois de mudar de alojamento retirou-se para uma taberna obscura, em cujo abrigo se entregou ao estudo de todas as possíveis pesquisas que pudessem levar à descoberta do velho e da neta. Mas tudo foi em vão. Não conseguiu obter o mais leve vestígio ou indicação.
Tinham abandonado a cidade de noite, ninguém os vira partir, ninguém os encontrara na estrada, nenhum cocheiro de carruagem, carroça ou carro de mercadorias tinha visto quaisquer viajantes com aqueles sinais, ninguém os tinha encontrado ou ouvido falar neles. Convencido, finalmente, de que eram, de momento, inúteis quaisquer esforços nesse sentido, nomeou dois ou três batedores, com promessas de choruda recompensa no caso de lhe fornecerem alguma informação, e voltou para Londres na diligência do dia seguinte.
Agradou deveras a Mr. Quilp verificar, quando tomou lugar no tejadilho do veículo, que a mãe de Kit se encontrava sozinha no interior, e desta circunstância extraiu, no decurso da viagem, um grande divertimento, porquanto a posição isolada que ocupava lhe permitia apavorá-la com muitas e extraordinárias importunações, tais como pendurar-se, com risco da própria vida, na borda da diligência, e fitar Mrs. Nubbles com os seus enormes olhos redondos, que a ela pareciam ainda mais horríveis, pelo facto de ele estar de cabeça para baixo, passar, desta forma, de uma janela para a outra, apear-se agilmente, quando mudavam os cavalos, e enfiar a cabeça pela janela com uma pavorosa careta, etc. Estas engenhosas torturas tiveram tal efeito sobre Mrs. Nubbles que, durante todo esse tempo, se sentiu absolutamente incapaz de resistir à convicção de que Mr. Quilp representava, em corpo e alma, o Poder Maligno, tão vigorosamente atacado em Little Bethel, o qual, devido aos seus pecados, a ida ao Teatro Astley e as ostras que comera, se mostrava agora travesso e desaforado.
Kit, tendo sido informado por carta do regresso da sua mãe, esperava-a na estação das diligências, e grande foi o seu espanto quando viu, entortando os olhos por cima do ombro do cocheiro, como um demónio familiar, invisível a todos menos aos seus olhos, a bem conhecida cara de Quilp.
- Como estás, Cristóvão? - grasnou o anão de cima da diligência. - Olha, Cristóvão, a mãe está lá dentro.
- Então, como veio ele aqui ter, mãe? - segredou Kit.
- Não sei como, nem porquê, meu querido - respondeu Mrs. Nubbles, apeando-se com a ajuda do filho. - O que sei é que me aterrorizou os sete sentidos todo o santo dia.
- Ah, sim? - exclamou Kit.
- Não acreditarias, não - respondeu sua mãe. - Mas não lhe digas palavra, pois não creio que ele tenha alguma coisa de humano. Chiu! Não te voltes, como se estivesse a falar nele. Está a entortar os olhos para mim, con a luz da diligência a bater-lhe em cheio, que até mete medo!
Apesar da recomendação da sua mãe, Kit voltou-se rapidamente para ver. Mr. Quilp olhava as estrelas, serenamente absorto na contemplação do firmamento.
- Ai, nunca vi criatura mais velhaca! - exclamou Mrs. Nubbles.
- Mas vem-te embora. Não lhe fales por nada deste mundo.
- Falo sim, mãe. Que disparate! Oiça lá, o senhor...
Mr. Quilp, fingindo-se sobressaltado, voltou-se sorrindo.
- Você deixe a minha mãe em paz, ouviu? - disse Kit. Como se atreve a arreliar uma pobre mulher como ela, sozinha, a ponto de a deixar triste, como se sem você ela não tivesse já bastantes razões para isso? Não tem vergonha de si mesmo, seu monstro?
- Monstro! - disse Quilp sorrindo intimamente. - O anão mais feio que se pode ver, em qualquer lado, por um «penny»... monstro... - Ah!
- Se torna a mostrar-se atrevido com ela - continuou Kit pondo a mala aos ombros, - digo-lhe, Mr. Quilp, que não respondo por si. Não tem o direito de fazer o que faz. Nunca nos metemos consigo. Isto não é a primeira vez, mas se alguma vez a tornar a arreliar ou assustar, embora isso me repugne, dado o seu tamanho, obriga-me a bater-lhe.
Quilp não pronunciou nem uma palavra em resposta, mas avançando a ponto de os seus olhos ficarem a duas ou três polegadas do rosto de Kit, olhou fixamente para ele, recuou a pequena distância sem desviar o olhar, aproximou-se novamente, recuou outra vez, e assim por diante uma meia dúzia de vezes, como uma cabeça fantasmagórica.
Kit não arredou pé, como se esperasse um ataque imediato, mas verificando que destes gestos nada resultava, fez estalar os dedos e afastou-se. A mãe, afastando-o o mais que podia, não deixava de olhar ansiosamente por cima do ombro, a ver se Quilp os seguia, ao mesmo tempo que ia ouvindo as notícias que o filho lhe dava acerca do pequeno Jacob e do bebé.
A mãe de Kit podia ter-se poupado o trabalho de olhar tanto para trás, pois nada mais distante da ideia de Quilp do que qualquer intenção de os perseguir, a ela ou ao filho, ou de renovar a querela com que se tinham separado.
Seguiu o seu caminho, assobiando de vez em quando alguns fragmentos de uma ária, e com um semblante composto e inteiramente tranquilo, foi gingando alegremente em direcção a casa, à medida que avançava, com a visão dos receios e terrores de Mrs. Quilp que, não tendo sido previamente prevenida da sua ausência, estava sem dúvida nessa altura num estado de extrema inquietação, a desmaiar constantemente de aflição e dor.
Esta engraçada probabilidade agradou de tal maneira à índole do anão, afigurou-se-lhe tão refinadamente divertida, que o fez rir durante todo o caminho, até as lágrimas lhe correrem pela cara abaixo.
E mais de uma vez, ao passar por alguma travessa, dava largas à sua alegria, largando um grito agudo que tinha o condão de aterrorizar o transeunte solitário que, longe de esperar tal coisa, porventura caminhasse na sua frente, e isto aumentava-lhe o gáudio, pondo-o extremamente alegre e bem disposto.
Neste afluxo de boa disposição, Mr. Quilp chegou a Tower Hill. Aí, levantando os olhos para a janela da sua sala de visitas, pareceu-lhe notar mais luz do que é costume haver numa casa em que se chora uma ausência. Aproximando-se mais, e escutando atentamente, pode ouvir várias vozes conversando animadamente, entre as quais distinguiu não só a da esposa e a da sogra, mas também vozes de homem.
- Ahhh... - exclamou o ciumento anão. - Que é isto? Recebem visitas, enquanto eu estou fora?
Uma tosse abafada vinda de cima foi a resposta. Apalpou as algibeiras em busca da chave, mas tinha-se esquecido dela. O único recurso era bater à porta.
- Uma luz no corredor - disse Quilp espreitando pelo buraco da fechadura. - Uma pancada leve, e com sua licença, minha senhora, talvez me possa introduzir à socapa. Vamos lá!
Uma pancada muito leve e surda não obteve resposta de dentro. Mas após segunda aplicação da aldraba, tão leve como a primeira, a porta foi aberta devagarinho pelo rapaz do cais, a quem Quilp tapou no mesmo instante a boca com uma das mãos e empurrou para a rua com a outra.
- Olhe que me esgana patrão - murmurou o rapaz.
- Largue-me, ouviu?
- Quem está lá em cima, cão? - retorquiu Quilp, no mesmo tom. - Diz-me. E não levantes a voz, ou esgano-te de verdade.
O rapaz apenas pode apontar para a janela e responder com um riso abafado, denunciador de um gozo tão intenso que Quilp o agarrou pelo pescoço, e talvez tivesse cumprido a sua ameaça, ou pelo menos feito grandes progressos nesse sentido, se o rapaz não se tivesse agilmente esgueirado das suas mãos e entricheirado por detrás do poste mais perto. Perante isto, após algumas tentativas infrutíferas para o agarrar pelo cabelo, o patrão foi obrigado a parlamentar.
- Respondes-me ou não? - disse Quilp. - Que é que se passa lá em cima?
- Você não me deixa falar! - replicou o rapaz. - Eles... ah, ah, ah... eles pensam que o senhor... que o senhor morreu. Ah, ah, ah!...
- Que morri? - exclamou Quilp, dando largas a um riso sinistro. - Ah sim? Isso é verdade, cão?
- Pensam que o senhor se afogou - respondeu o rapaz, que recebera na sua natureza maliciosa uma forte influência do patrão. - A última vez que o viram foi à beira do cais, e julgam que caiu à água. Ah, ah!
A perspectiva de desempenhar o papel de espião em tão deliciosas circunstâncias e de os desapontar a todos entrando vivo por ali dentro deu mais prazer a Quilp do que lhe podia ter dado o maior golpe de sorte. Não ficou menos lisonjeado que o seu esperançoso ajudante, e durante alguns minutos, ali ficaram os dois a rir e a abanar a cabeça um para o outro, de cada lado do poste, como um par inigualável de ídolos chineses.
- Nem uma palavra - disse Quilp dirigindo-se para a porta em bicos dos pés. - Nem um som, nem um ranger de tábua ou um tropeção numa teia de aranha. Afogado, hem, Mrs. Quilp? Afogado!...
Dizendo isto soprou a vela, tirou os sapatos e subiu aos apalpões até lá acima, deixando o seu jovem amigo extasiado no passeio.
Como a porta do quarto de cama que dava para a escada estivesse aberta, Mr. Quilp entrou silenciosamente e colocou-se atrás da porta de comunicação, entre aquela divisão e a sala que, estando entreaberta para arejar mais, e com uma frincha muito útil, de que muitas vezes se tinha servido para espiar, e que tinha além disso alargado com a sua navalha, permitiu-lhe não só ouvir, mas também ver distintamente o que se passava.
Aplicando o olho neste sítio conveniente, viu Mr. Brass sentado à mesa com pena, tinta e papel, e o garrafão de rum, o seu próprio garrafão, o seu Jamaica especial, colocado convenientemente à mão, com água quente, limões perfumados, açúcar branco em torrões e tudo o mais que era preciso.
Sampson, com este material escolhido, e de modo algum insensível aos seus atractivos, tinha preparado um enorme copo de ponche fumegante, mexia-o, nesse momento, com uma colher de chá, e contemplava-o com um ar em que um leve assomo de tristeza lutava fracamente com uma alegria suave e deliciosa. À mesma mesa, com ambos os cotovelos em cima dela, encontrava-se Mrs. Jiniwin, já não sorvendo perfidamente às colheres de chá o ponche dos outros, mas tomando grandes goles de uma enorme taça que tinha a seu lado, enquanto a filha, que não tinha propriamente cinzas na cabeça nem uma sarapilheira pelas costas, guardava, contudo, uma atitude de pesar, muito decorosa e conveniente, e se reclinava numa poltrona, suavizando a sua dor com uma dose menor do mesmo líquido aveludado.
Também estavam presentes dois homens da beira-rio que carregavam consigo certos aparelhos chamados redes de arrasto, e até estes rapazes tinham sido contemplados com um respeitável copo por cabeça, e como bebiam com grande satisfação, e tinham naturalmente um ar alegre, o nariz vermelho e as faces borbulhentas, a sua presença mais aumentava do que prejudicava aquele decidido ar de contentamento que era a grande característica da reunião.
- Se eu pudesse envenenar o rum da querida velhinha murmurou Quilp - morreria feliz.
- Ah! - disse Mr. Brass cortando o silêncio e volvendo os olhos para o tecto com um suspiro. - Quem sabe se ele não estará agora mesmo a olhar para nós! Quem sabe se ele não nos estará a observar de qualquer sítio, com olhar atento! Oh meu Deus!
Aqui Mr. Brass deteve-se para beber metade do seu ponche e depois continuou, olhando para a outra metade com um sorriso triste à medida que falava.
- Quase me parece ver - disse o notário abanando a cabeça
- os seus olhos brilhando lá em baixo, no fundo do meu licor. Quando tornaremos a ver uns olhos como os dele? Nunca mais, nunca mais! Agora estamos aqui - disse ele erguendo o copo em frente dos olhos - daqui a um minuto estaremos além - e emborcou o seu conteúdo batendo enfaticamente com a mão um pouco abaixo do peito - no túmulo silencioso. Pensar que estou aqui a beber o seu próprio rum! Parece um sonho!
No intuito, sem dúvida, de confirmar a realidade da sua posição, Mr. Brass empurrou o seu copo na direcção de Mrs. Jiniwin, enquanto falava, a fim de que ela o tornasse a encher. Em seguida, voltou-se para os marinheiros presentes.
- A pesquisa não deu então nenhum resultado?
- Nenhum, patrão. Mas acho que se ele aparecer nalgum lado, deve vir para terra pelos lados de Grinidge, amanhã na maré baixa, hem, compadre?
O outro cavalheiro concordou, observando que o esperavam no hospital, onde muitos pensionistas estavam ansiosos por falar com ele assim que chegasse.
- Então, nada nos resta senão resignarmo-nos... - disse Mr. Brass. - Resignarmo-nos e esperar. Seria uma consolação ter o seu corpo. Seria um triste conforto.
- Oh, sem dúvida! - concordou Mrs. Jiniwin, pressurosa.
- Uma vez que o tivéssemos, ficaríamos absolutamente tranquilos.
- Com respeito ao anúncio descritivo - disse Sampson Brass pegando na pena - é um triste prazer lembrar os seus sinais. Agora com respeito às pernas...?
- Tortas, pois claro! - volveu Mrs. Jiniwin.
- Acha que de facto eram tortas? - disse Brass num tom insinuante. - Parece que estou a vê-las subir a rua, muito afastadas, metidas em calças de nanquim, um pouco encolhidas e sem presilhas. Ah! Em que vale de lágrimas nós vivemos! Digamos então tortas, não é verdade?
- Parece-me que o eram um bocadinho - observou Mrs. Quilp, com um soluço.
- Pernas tortas - disse Brass escrevendo ao mesmo tempo que falava. - Cabeça grande, corpo curto, pernas tortas...
- Muito tortas - sugeriu Mrs. Jiniwin.
- Não diremos muito tortas minha senhora. - disse Brass piedosamente. - Não sejamos duros com as fraquezas do defunto. Foi-se, minha senhora, para onde as suas pernas nunca serão discutidas... Contentar-nos-emos com tortas, Mrs. Jiniwin.
- Calculei que queria a verdade - disse a velha senhora.
- Nada mais.
Abençoados os teus olhos, como eu te amo! - murmurou Quilp. - Lá vai ela outra vez. Só quer ponche!
- Isto é uma ocupação... - disse o notário depondo a pena e esvaziando o copo. - que parece trazê-lo perante os meus olhos como o fantasma do pai de Hamlet, no próprio traje que usava nos dias úteis. O seu jaquetão, o seu colete, os seus sapatos e peúgas, as suas calças, o seu chapéu, o seu espírito e o seu humor, as suas manias e o seu guarda-chuva, tudo isso aparece diante de mim como uma visão da minha juventude. A sua roupa branca! - disse Mr. Brass sorrindo amavelmente para a parede. - A sua roupa branca, sempre de um tom especial, pois tal era o seu desejo e a sua fantasia... com que nitidez estou a ver, neste momento, a sua roupa branca!
- É melhor continuar - disse Mrs. Jiniwin com impaciência.
- É verdade, minha senhora, é verdade - exclamou Mr. Brass. - As nossas faculdades não devem congelar-se de dor. Agora surge a questão do que diz respeito ao seu nariz.
- Chato - disse Mrs. Jiniwin.
- Aquilino! - gritou Quilp, espetando a cabeça de fora e esmurrando o próprio nariz com o punho cerrado. -Aquilino, sua megera! Está a ver? Chama a isto chato? Vê? Hem?
- Oh, esplêndido, esplêndido! - exclamou Brass por mera força do hábito. - Esplêndido! Que engraçado que ele é! É um homem realmente notável... tão extremamente fantástico! Que espantoso poder para apanhar as pessoas desprevenidas!
Quilp não deu a menor atenção a estas amabilidades, nem ao ar de indecisão e susto em que o notário se sumiu gradualmente, nem aos gritos da esposa e da sogra, nem ao facto de aquela ter fugido da sala a correr, nem ao desmaio desta.
Sem tirar os olhos de Sampson Brass, avançou até à mesa, e pegando no copo dele, bebeu o seu conteúdo. Depois deu a volta, até despejar os outros dois, e agarrando no garrafão e apertando-o debaixo do braço, fitou o notário com um sorriso estranho.
- Ainda não, Sampson! - disse Quilp. - Ainda não!
- Oh, muito bem, realmente! - exclamou Brass recobrando um pouco o ânimo. - Ah, ah, ah! Oh, muito bem! Não há um só homem neste mundo que fosse capaz de arcar com semelhante situação. É uma posição extremamente difícil de aguentar! Mas ele tem uma tal dose de bom humor, uma dose de tal maneira surpreendente!
- Boa noite! - disse o anão acenando com a cabeça expressivamente.
- Boa noite, senhor, boa noite - exclamou o notário, recuando, de costas para a porta. Este é um dia de regozijo, um dia extremamente feliz. Ah, ah, ah! Muito engraçado, realmente, muito engraçado!
Esperando que a jaculatória de Mr. Brass morresse ao longe, pois ele continuou a despejá-la pelas escadas abaixo, Quilp avançou em direcção aos dois homens, que permaneciam numa espécie de estupor.
- Estiveram pesquisando o rio todo o dia, cavalheiros? disse-lhes o anão, abrindo a porta para trás com grande cortesia.
- E ontem também, patrão.
- Valha-me Deus, muito trabalho tiveram! Queiram considerar vosso tudo quanto encontrarem sobre o... cadáver. Boa noite!
Os homens entreolharam-se, mas como não estavam, evidentemente, dispostos a discutir o assunto naquele momento, lá foram saindo da sala a arrastar os pés. Efectuada esta rápida limpeza, Quilp fechou as portas à chave, e sem largar o garrafão, pôs-se, de ombros encolhidos e braços cruzados, como a personificação de um pesadelo, a olhar para esposa desmaiada.
As desavenças conjugais são geralmente discutidas por ambas as partes interessadas em forma de diálogo, no qual a dama desempenha pelo menos metade do papel.
As de Mr. e Mrs. Quilp, no entanto, eram uma excepção à regra geral, visto os reparos que trocavam se limitarem a um longo solilóquio da parte deste cavalheiro, talvez com algumas palavras de súplica da senhora, que não iam além de um monossílabo trémulo, pronunciado com longos intervalos e num tom muito submisso e humilde.
No caso presente, Mrs. Quilp não se atreveu a persistir por muito tempo nem sequer nesta humilde defesa. Quando recuperou do desmaio manteve-se num silêncio lacrimoso, escutando humildemente as reprimendas do seu amo e senhor.
Mr. Quilp despedia-as com a maior animação e rapidez e com tantas contorções de membros e de feições que até a própria esposa, razoavelmente acostumada ao seu desempenho a tal respeito, estava quase fora de si de susto. Mas o rum da Jamaica e o prazer de lhe ter ocasionado um profundo desapontamento esfriaram pouco a pouco a ira de Mr. Quilp, que passou de uma cólera violenta a um tom trocista e brincalhão, em que acabou por se fixar.
- Com que então julgaste que eu tinha morrido ou desaparecido, não é verdade? - disse Quilp. - Pensaste que eras viúva, hem? Ah, ah, ah, sua marota!
- Acredita, Quilp - volveu a esposa, - tenho muita pena...
- Quem o duvida? - exclamou o anão. - Tens muita pena? Pois claro que tens. Quem duvida de que tenhas muita pena?
- Não quero dizer que tenho pena de que tivesses voltado para casa vivo e de saúde - disse a mulher, - mas lamento muito ter sido levada a crer tal coisa. Estou contente por te ver, Quilp, acredita que estou.
Na verdade, Mrs. Quilp parecia bastante mais contente de ver o seu senhor do que seria de esperar e demonstrava um tal interesse pela sua integridade física que, levando tudo em conta, era bastante inexplicável. Esta circunstância, contudo, não teve qualquer efeito sobre Quilp, a não ser a de o pôr a dar estalos com os dedos junto dos olhos da sua esposa com muitos risinhos de triunfo e troça.
- Como pudeste estar longe tanto tempo, sem me dizeres uma palavra ou mandares-me notícias tuas, para eu saber alguma coisa de ti? - perguntou soluçando a pobre mulherzinha. - Como pudeste ser tão cruel, Quilp?
- Como pude ser tão cruel? Cruel? - exclamou o anão.
- Porque estava nessa disposição. Estou nessa disposição agora. Hei-de ser cruel sempre que me apetecer. Vou-me embora outra vez.
- Outra vez!
- Sim, outra vez. Vou-me embora. Parto já. Faço tenções de ir viver onde me der na veneta... no cais... no escritório... vou levar a vida alegre de um solteirão. Tu foste viúva antecipadamente, diabo! - gritou o anão. - Vou ser solteirão de verdade.
- Com certeza não estás a falar a sério, Quilp - soluçou a esposa.
- Digo-te - disse o anão exultando com o seu projecto. que vou ser um solteirão, um estarola de um solteirão. E hei-de ter o meu quarto de solteiro no escritório, e depois vai até lá se te atreveres. E toma cuidado que eu não te salte em cima novamente fora de horas, pois eu hei-de espiar-te, e ir e vir como uma toupeira ou uma doninha. Tom Scott... onde está Tom Scott?
- Aqui estou, patrão. - gritou a voz do rapaz assim que Quilp levantou a vidraça.
- Espera aí, cão - respondeu o anão, - para levares a maleta de um solteirão. Faça a mala, Mrs. Quilp. Bata à porta da querida velhota, para que ela a ajude, bata. Olá, aí! Olá!
Com estas exclamações, Mr. Quilp agarrou no ferro do fogão e, dirigindo-se à pressa para a porta do cubículo onde dormia a boa senhora, bateu até ela acordar num terror inexprimível, julgando que o seu amável genro tencionasse realmente assassiná-la, como vingança pelas suas pernas que ela caluniara.
Impressionada com esta ideia, assim que se viu bem acordada, pôs-se a gritar com toda a força e ter-se-ia precipitado sem mais demora da janela abaixo ou atravessado uma clarabóia vizinha, se a filha se não tivesse apressado a elucidá-la e a implorar a sua ajuda.
Um pouco mais sossegada com a explicação do serviço que era chamada a prestar, Mrs. Jiniwin apareceu dentro de um roupão de flanela, e tanto a mãe como a filha, tremendo de frio e de terror, pois a noite já ia alta, obedeceram às instruções de Mr. Quilp num submisso silêncio.
Prolongando os preparativos o mais possível, e isto para seu maior gozo, o excêntrico cavalheiro superintendeu ao acondicionamento do seu guarda-roupa e depois de lhe acrescentar, com as próprias mãos, um prato, uma faca, um garfo, uma colher, uma chávena para chá e um pires, além de outros pequenos utensílios caseiros da mesma natureza, atou as correias da mala, pô-la aos ombros, e saiu sem dizer palavra, com o garrafão, que nem uma só vez havia largado, bem apertado debaixo do braço.
Entregando o fardo mais pesado aos cuidados de Tom Scott, quando chegou à rua Quilp bebeu um gole do garrafão para se animar, e dando uma carolada no rapaz, pôs-se a caminho do cais, onde chegou entre as três e as quatro da manhã.
- Magnífico! - disse Quilp, depois de apalpar o caminho até ao escritório de madeira e abrindo a porta com uma chave que trazia sempre consigo. - Estou aqui esplendidamente! Chama-me às oito, cão.
Sem outra despedida ou explicação mais formal, agarrou na maleta, fechou a porta nas costas do criado, e trepando como uma bola para cima da secretária, enrolou-se como um ouriço-cacheiro numa velha cobertura de barco e não tardou em adormecer.
Tendo sido acordado de manhã à hora indicada, o que conseguiu com uma certa dificuldade, depois das suas últimas fadigas, Quilp ordenou a Tom Scott que fizesse no pátio uma fogueira com bocados de madeira velha, e que preparasse café para o pequeno-almoço.
Para melhor completar esta refeição, entregou-lhe algumas moedas, para a compra de pãezinhos quentes, manteiga, açúcar, arenques de Yarmouth e outros artigos de mercearia. Deste modo, daí a alguns minutos fumegava sobre a mesa uma saborosa refeição. Com este conforto substancial, o anão regalou-se à vontade, e sentindo-se altamente satisfeito com este modo de vida livre e aciganado sobre o qual sempre meditara, como meio de lhe proporcionar, em qualquer altura que decidisse servir-se dele, uma agradável libertação dos laços matrimoniais e uma óptima maneira de ter Mrs. Quilp e a mãe num estado de incessante ansiedade e expectativa, tratou de melhorar o seu retiro, tornando-o mais cómodo e confortável. Com este fito, foi a um local ali perto onde se vendiam artigos de pesca, e comprou uma rede em segunda mão, que mandou pendurar, à moda dos pescadores, no tecto do escritório. Também mandou instalar, na mesma barraca carunchosa, um velho fogão de navio, com um cano ferrugento para expelir fumo através do telhado, e tendo completado estes arranjos, contemplou-os com inefável encanto.
- Tenho uma casa de campo como Robinson Crusoe - disse o anão olhando para a sua instalação. - Um sítio solitário, ignorado, no género de uma ilha deserta, onde posso estar completamente só, quando tenho negócios em curso e ao abrigo de todos os espiões e escutas. Aqui não há ninguém perto de mim, a não ser ratazanas, mas são umas companheiras clandestinas e discretas. Viverei alegre como um grilo, no meio destas fidalgas. Procurarei uma que se pareça com o Cristóvão e envenená-la-ei... Ah! Ah! Ah!... No entanto há os negócios... não convém esquecer os negócios no meio dos prazeres, e a verdade é que o tempo tem voado esta manhã.
Ordenando a Tom Scott que o esperasse e não se pusesse de cabeça para baixo, nem desse cambalhotas, nem sequer andasse sobre as mãos, sob pena dos mais severos tormentos, o anão atirou-se para dentro de um barco e, atravessando para o outro lado do rio, encaminhou-se a passo rápido para a casa onde morava Mr. Swiveller, em Bevis Marks, onde chegou justamente na ocasião em que este cavalheiro se sentava para almoçar sozinho, na sua saleta escura.
- Dick! - disse o anão enfiando a cabeça pela porta.
- Meu querido, meu pupilo, luz dos meus olhos, eh, eh!
- Ah, você está aí? - respondeu Mr. Swiveller - como está?
- Como está o Dick? - retorquiu Quilp. - Como está a nata dos amanuenses, hem?
- Ora, bastante azeda, meu caro senhor - respondeu Mr. Swiveller. - Muito próxima do estado de queijo.
- Que aconteceu? - perguntou o anão, avançando. - Sally ter-se-ia mostrado desagradável? «De todas as raparigas elegantes, não há nenhuma como...» Hem, Dick?
- Sem dúvida - respondeu Mr. Swiveller, saboreando o seu almoço com grande gravidade. - Não há nenhuma como ela. Sally é a esfinge da vida privada.
- Você está em baixo - disse Quilp, puxando uma cadeira. - Que é que aconteceu?
- Não me dou bem com as leis - respondeu Dick. - Não são bastante húmidas e está-se demasiado limitado. Tenho estado a pensar em fugir.
- Ora! - disse o anão. - Para onde fugiria você, Dick?
- Não sei - respondeu Mr. Swiveller. - Para Highgate, julgo eu. Talvez os sinos tocassem: «Volta para trás, Swiveller, Lord Mayor da cidade de Londres». O nome de Whittington era Dick. Quem me dera que houvesse menos gatos.
Quilp olhou para o seu companheiro com os olhos semicerrados numa expressão cómica de curiosidade e esperou pacientemente mais explicações, nas quais, no entanto, Mr. Swiveller não mostrava ter nenhuma pressa de entrar, pois ingeriu um jantar muito demorado em profundo silêncio e finalmente, empurrando o prato, recostou-se para trás na cadeira, cruzou os braços e fitou melancolicamente o fogo, onde ardiam algumas pontas de charuto, que espalhavam um fragrante aroma.
- Talvez você queira um bocado de bolo - disse Dick voltando-se por fim para o anão. - Sirva-se à vontade. Deve gostar...
- Que quer você dizer? - perguntou Quilp.
Mr. Swiveller respondeu tirando da algibeira um embrulho pequeno e muito gordurento, que desdobrou lentamente, mostrando um bocadinho de pudim de ameixas de aspecto extremamente indigesto e guarnecido com uma pasta de açúcar branco com polegada e meia de altura.
- Que julga você que isto é?
- Parece bolo de noiva - respondeu o anão, arreganhando os dentes.
- E de quem julga que é? - perguntou Mr. Swiveller esfregando o bolo no seu nariz com uma calma terrível. - De quem?
- Não...
- Sim - disse Dick. - É a mesma. É escusado mencionar o seu nome. Agora já não existe esse nome. O seu nome é Cheggs, Sofia Cheggs.
Com esta adaptação extemporânea de uma canção popular às aflitivas circunstâncias do seu próprio caso, Mr. Swiveller dobrou novamente o embrulho, amassou-o entre as palmas das mãos, enfiou-o novamente no seio, abotoou o casaco sobre ele, e sobre tudo isto cruzou os braços.
- Agora espero que o senhor esteja satisfeito - disse Dick
- e espero que Fred também esteja satisfeito. Foram sócios no mal, espero pois que isto lhes agrade. Era este então o triunfo que eu devia saborear, não é verdade? Parece aquela velha dança campestre, onde há dois cavalheiros para uma dama, e em que um a tem e o outro não, mas aparece atrás dela a fazer os passos. Mas é o Destino, e o meu é esmagador!
Disfarçando o secreto prazer que sentia na derrota de Mr. Swiveller, Daniel Quilp adoptou o meio mais seguro de o apaziguar, tocando a campainha e mandando vir uma provisão de vinho rosado, isto é, do seu habitual fornecedor, que bebeu com grande alacridade, desafiando Mr. Swiveller a fazer várias saúdes, metendo Cheggs a ridículo e elogiando a felicidade dos homens solteiros. Foi tal a impressão causada em Mr. Swiveller, juntamente com a reflexão de que ninguém se podia opor ao seu destino, que num curto espaço de tempo a sua disposição melhorou de uma forma surpreendente, habilitando-o a dar ao anão um relato da recepção do bolo que, segundo parecia, tinha sido levado a Bevis Marks pelas duas sobreviventes manas Wackles, em pessoa, e entregue à porta do escritório com muitos risinhos e alegria.
- Ah! - disse Quilp. - Não tarda que chegue a nossa altura de rir. E isto faz-me lembrar... falou no jovem Trent... onde está ele?
Mr. Swiveller explicou que o seu respeitável amigo tinha pouco antes aceitado um lugar de responsabilidade numa casa de jogo ambulante, e se encontrava presentemente ausente numa «tournée», entre os espíritos aventureiros da Grã-Bretanha.
- É pena - disse o anão, - pois eu vim, realmente, para saber dele. Veio-me uma ideia, Dick. O seu amigo do lado de lá...
- Qual amigo?
- Do primeiro andar.
- E depois?
- Talvez o seu amigo do primeiro andar o conheça, Dick.
- Não, não conhece - disse Mr. Swiveller abanando a cabeça.
- Não, não porque nunca o viu - respondeu Quilp, - mas se os puséssemos em contacto, quem sabe, Dick, feitas as devidas apresentações, se não serviria tão bem como a pequena Nell ou o seu avô... quem sabe se assim não se faria a fortuna do jovem e, através dele, a sua, hem?
- Pois sim, mas a verdade - disse Mr. Swiveller - é que eles já se puseram em contacto.
- Já? - exclamou o anão olhando desconfiado para o seu companheiro, - Por intermédio de quem?
- Por intermédio de mim - disse Dick um pouco atrapalhado. - Eu não lhe falei nisso da última vez que lá foi?
- Bem sabe que não - respondeu o anão.
- Creio que tem razão - disse Dick. - Não, não falei, agora me lembro. Ah, é verdade! Pu-los em contacto nesse mesmo dia. Quem o sugeriu foi Fred.
- E que resultado deu?
- Ora, em vez de o meu amigo romper em soluços, ao saber quem era Fred, em vez de o braçar ternamente e lhe dizer que era seu avô, ou sua avó, disfarçada, que era sem dúvida o que nós esperávamos, ficou terrivelmente zangado. Chamou-lhe todos os nomes imagináveis, disse que em grande parte era culpa sua que a pequena Nell e o velho cavalheiro estivessem reduzidos à pobreza, não sugeriu que bebêssemos qualquer coisa, e... em resumo, pôs-nos fora da sala.
- Isso é estranho - disse o anão reflectindo.
- Assim o dissemos na altura um para o outro - respondeu Dick secamente. - mas é absolutamente verdade.
Era evidente que Quilp estava perplexo com esta informação, e sobre ela meditou durante algum tempo, num silêncio mal humorado, levantando repetidamente os olhos para o rosto de Mr. Swiveller e observando penetrantemente a sua expressão. Como, no entanto, não conseguisse ler nele qualquer coisa que o levasse a crer que tinha falado menos verdade, e como Mr. Swiveller, entregue às suas próprias meditações, suspirasse profundamente e se tornasse claramente sentimental sobre o assunto de Mrs. Cheggs, o anão depressa pôs termo à conferência, retirando-se e deixando o espoliado entregue às suas melancólicas ruminações.
- Já se puseram em contacto, hem? - dizia o anão para si enquanto caminhava sozinho pelas ruas. - O meu amigo passou-me à frente. Não o levou a nada, e portanto não tem grande importância, salvo na intenção. Ainda bem que perdeu a amada. Ah! ah!... O idiota não deve abandonar as leis, por enquanto. Onde ele está, tenho-o seguro, sempre que precisar dele para os meus fins pessoais e, além disso, é um bom espião, embora não o saiba, contra Brass. Quando está embriagado diz tudo quanto vê e ouve. És-me útil, Dick, e não me custas mais do que uma bebida de vez em quando. Não sei ao certo se não valeria a pena, futuramente, para me conceituar junto do estrangeiro, que Dick descobrisse as suas intenções sobre a criança, mas por agora, se me dá licença, ficaremos os melhores amigos do mundo.
Seguindo estes pensamentos e ofegando, conforme o seu costume, à medida que avançava, Mr. Quilp atravessou novamente o Tamisa, fechou-se no seu palacete de solteirão que, devido ao facto da chaminé recém-instalada depositar fumo dentro do quarto e não tirar nenhum para fora, não estava tão agradável como alguém mais dedicado o poderia ter desejado.
No entanto, tais inconvenientes, em vez de indisporem o anão contra o seu novo domicílio, pelo contrário, agradavam ao seu feitio. Por isso, depois de ter jantado muito bem a sua refeição encomendada da taberna, acendeu o seu cachimbo e fumou contra a chaminé, até que dele próprio nada fosse visível, através do nevoeiro, para além de dois olhos vermelhos e extremamente inflamados, e por vezes um vago vislumbre da cabeça e do rosto, quando por qualquer violento ataque de tosse agitava um pouco o fumo e espalhava as espessas espirais que o obscureciam.
Foi no meio desta atmosfera, que infalivelmente teria sufocado qualquer outro homem, que Mr. Quilp passou muito alegremente a tarde, recreando-se todo esse tempo com o cachimbo e o garrafão, e distraindo-se de tempos a tempos com uma berraria melodiosa, que pretendia ser uma canção, mas que não tinha a mais leve semelhança com qualquer trecho de música vocal ou instrumental jamais inventada pelo homem. Assim se divertiu até perto da meia-noite, hora a que se instalou na sua rede com a maior das satisfações. O primeiro som que lhe feriu os ouvidos pela manhã, quando semiabrindo os olhos e vendo-se tão perto do tecto, lhe veio sonolentamente a ideia de que decerto durante a noite se tinha transformado em mosca ou varejeira, foi um soluçar abafado e choros no quarto. Espreitando cautelosamente por cima da rede, viu Mrs. Quilp, a quem depois de ter contemplado em silêncio por algum tempo, pregou um valente susto, berrando de repente:
- Eh, lá!
- Oh, Quilp! - exclamou a sua pobre mulherzinha, olhando para cima. - Assustaste-me tanto!
- Era isso mesmo que eu pretendia, minha sirigaita - respondeu o anão. - Que queres daqui? Estou morto, não é verdade?
- Oh, peço-te que venhas para casa! Vem para casa!
- disse Mrs. Quilp soluçando. - Nunca mais tornaremos, Quilp! E afinal, foi apenas um erro nascido da nossa aflição.
- Da vossa aflição! - riu o anão. - Sim, eu bem sei... da vossa aflição pela minha morte. Irei para casa quando me apetecer, digo-te eu. Irei para casa quando me apetecer, e sairei quando me apetecer. Hei-de ser a tua sombra negra, ora aqui, ora ali, dançando sempre à tua volta, aparecendo quando menos me esperares, e mantendo-te num constante estado de inquietação e irritação. Vais-te embora?
Mrs. Quilp apenas se atreveu a fazer um gesto de súplica.
-Já te disse que não! - berrou o anão. - Não! Se te atreveres a voltar aqui novamente, sem que te mande vir, ponho cães de guarda no pátio para te rosnarem e morderem... ponho armadilhas para ladrões, habilmente modificadas para apanhar mulheres... arranjo pistolas que explodirão quando pisares o arame e te farão aos bocadinhos. Vais-te embora?
- Peço-te que me perdoes. Volta para casa! - disse a esposa, ansiosa.
- Nã-ã-ã-ão! - berrou Quilp. - Só na altura em que me apetecer, e então voltarei quantas vezes quiser, e não darei contas a ninguém das minhas idas e vindas. Vês a porta ali. Vais-te embora?
Mr. Quilp proferiu esta última ordem num tom de tal modo enérgico, e além disso acompanhou-a com um gesto tão repentino, indicativo da intenção de saltar para fora da rede, e ainda com o barrete de noite enfiado, levar a mulher às costas para casa através da via pública, que ela desapareceu como uma flecha.
O seu respeitável senhor estendeu o pescoço e os olhos até ela ter atravessado o pátio, e então, bastante satisfeito de lhe ter sido proporcionada esta oportunidade de levar a sua avante e afirmar a inviolabilidade do seu castelo, rompeu num riso imoderado e deitou-se de novo a dormir.
O brando e generoso proprietário do palacete do solteirão continuou a dormir pelo dia fora no meio dos congeniais acompanhamentos da chuva, da lama, da imundície, da humidade, do nevoeiro, até tarde, altura em que, chamando o seu criado Tom Scott para o ajudar a levantar e preparar o pequeno-almoço, abandonou o leito e fez a «toilette». Desempenhada esta tarefa e terminada a refeição, dirigiu-se novamente para Bevis Marks.
A visita não se destinava a Mr. Swiveller, mas ao seu amigo e patrão Mr. Sampson Brass. Mas como ambos os cavalheiros não se encontrassem em casa, o mesmo sucedia à vida e luz da justiça Miss Sally, que não se encontrava no seu posto.
O facto da sua deserção conjunta era participado, a todos que ali viessem, por um pedaço de papel com a caligrafia de Mr. Swiveller, preso ao puxador da campainha e que, não dando ao leitor qualquer indicação da hora do dia a que fora escrito, lhe dava a vaga e pouco satisfatório informação que aquele cavalheiro «estaria de volta dentro de uma hora».
- Deve haver uma criada, julgo eu - disse o anão batendo à porta de casa. - Ela serve.
Depois de um intervalo suficientemente longo, a porta abriu-se e logo se ouviu uma vozinha dizendo-lhe:
- Quer fazer o favor de deixar cartão ou recado?
- Hem? - disse o anão olhando para baixo, coisa completamente nova para ele, para a criadinha.
A isto, a criança, usando a mesma linguagem que usara aquando do seu primeiro encontro com Mr. Swiveller, repetiu:
- Quer fazer o favor de deixar cartão ou recado?
- Escreverei um bilhete - disse o anão, empurrando-a para o lado e entrando no escritório, e vê bem que o teu patrão o receba assim que chegar a casa.
Mr. Quilp trepou para cima de um banco alto para escrever o bilhete, enquanto a criadinha, muito bem ensinada para semelhantes emergências, observava com os olhos esbugalhados, pronta para o caso de ele subtrair, um biscoito que fosse, a precipitar-se para a rua e dar o alarme à polícia.
Quando Mr. Quilp dobrava o bilhete, que escrevera depressa, pois era curto, deu com o olhar da criadita. Fitou-a demorada e atentamente: - Como estás? - disse o anão humedecendo um biscoito e fazendo horríveis caretas.
A criadinha, talvez assustada com o seu aspecto, não deu resposta que se ouvisse, mas pelo movimento dos lábios, parecia repetir intimamente a mesma fórmula de expressão relativa ao bilhete ou ao recado.
- Tratam-te mal aqui? A tua patroa é uma fera? - perguntou Quilp com uma gargalhada.
Em resposta à última pergunta, a criadinha, com uma expressão de infinita malícia misturada com medo, crispou os lábios até formarem um pequeno orifício redondo e abanou energicamente a cabeça.
Se havia no ar particularmente astucioso do seu gesto alguma coisa que fascinasse Mr. Quilp, ou na expressão da sua fisionomia algo que, por qualquer motivo, lhe chamasse a atenção, ou se lhe ocorreu, por fantasia, fitar a criadinha até a desorientar, o certo é que apoiou os cotovelos firmemente sobre a secretária e, empurrando as bochechas para cima com as mãos, pôs-se a olhar para ela com fixidez.
- Donde és tu? - perguntou ele após longa pausa, acariciando o queixo.
- Não sei.
- Que nome tens?
- Nenhum.
- Que disparate! - retorquiu Quilp. - Como é que a tua patroa te chama, quando precisa de ti?
- Diabinho - disse a criança.
E no mesmo fôlego, como se receasse que a interrogassem mais, acrescentou:
- Mas não quer fazer o favor de deixar um cartão ou um recado?
Estas respostas invulgares podiam, naturalmente, ter provocado mais perguntas. Quilp, no entanto, desviou os olhos da criadita, sem pronunciar mais palavra, esfregou o queixo com um ar mais pensativo do que antes, e curvando-se sobre o bilhete, como se se propusesse endereçá-lo com escrupulosa e impecável correcção, olhou para ela, disfarçada mas muito atentamente, por baixo das sobrancelhas espessas.
Como resultado desta observação dissimulada, escondeu o rosto nas mãos e riu sorrateira e silenciosamente, até cada veia do rosto lhe intumescer, a ponto de quase rebentar. Puxando o chapéu sobre a testa, para disfarçar o seu júbilo e os seus efeitos, atirou com a carta à criança e retirou-se apressadamente.
Uma vez na rua, movido por secreto impulso, desatou a rir, levando as mãos às ilhargas, e como se quisesse apanhar mais um vislumbre da pequena, pôs-se a espreitar por entre as grades poeirentas, até ficar completamente estafado. Por fim, tomou o caminho de regresso ao ermo, que ficava a um tiro de espingarda do seu retiro de solteirão, e chegado à sua casa de Verão, encomendou chá para três pessoas, para essa tarde.
O objectivo, tanto da sua diligência como do bilhete que escrevera, fora o de convidar Miss Sally Brass e o seu irmão a tomarem parte nesse pequeno encontro, no referido local.
Não estava precisamente o género de tempo em que é costume as pessoas tomarem chá em casas de campo, muito menos em casas de campo em adiantado estado de ruína e situadas na margem lodosa de um grande rio em maré baixa.
No entanto, foi neste retiro selecto que Mr. Quilp deu ordens para que fosse preparada uma refeição fria, e foi sob o seu tecto fendido, por onde entrava água que, na devida altura, ele recebeu Mr. Sampson e a sua irmã Sally.
- Sei que aprecia os encantos da Natureza - disse Quilp, arranhando os dentes. - Não acha isto encantador, Brass? Não é invulgar, simples e primitivo?
- É realmente encantador - respondeu o notário.
- Fresco? - disse Quilp.
- Nem por isso, meu caro senhor - respondeu Brass, a bater os dentes.
- Talvez um pouco húmido, insalubre... - volveu Quilp.
- Apenas o bastante para se tornar agradável, cavalheiro - retorquiu Brass. - Nada mais, nada mais.
- E Sally? - disse o anão encantado. - Gosta?
- Gostará mais - respondeu a enérgica senhora, - quando tiver o seu chá. Por isso tomemo-lo e não seja maçador.
- Doce Sally! - exclamou o anão, estendendo os braços como se a quisesse abraçar.
- Gentil, encantadora, irresistível Sally!
- É realmente um homem notável! - disse Mr. Brass, à parte.
- É positivamente um trovador, positivamente um trovador.
Estas expressões lisonjeiras eram pronunciadas de maneira assaz distraída e confusa, pois o infeliz notário, além de estar terrivelmente constipado, tinha-se molhado à vinda e teria de boa vontade feito algum sacrifício pecuniário, se pudesse ter trocado o incómodo lugar onde se encontrava por um quarto aquecido, onde pudesse enxugar-se à lareira.
No entanto, Quilp, que, à parte a satisfação dos seus caprichos diabólicos, devia a Sampson algum reconhecimento pelo papel que tinha desempenhado na cena do luto, notou estes sintomas de mal-estar com um regozijo que ultrapassava toda a expressão, e retirou deles um secreto prazer que o mais caro banquete nunca lhe teria proporcionado.
Também vale a pena observar, como demonstração de uma pequena faceta do carácter de Miss Sally Brass, que, embora por si tivesse suportado de muito má vontade o desconforto do ermo e se tivesse provavelmente retirado antes de o chá aparecer, assim que notou o patente mal-estar e constrangimento do irmão, experimentou uma terrível satisfação e começou a divertir-se à sua maneira. Embora a chuva entrasse pelo telhado e pingasse sobre as suas cabeças, Miss Brass nenhuma queixa proferia, mas antes presidia ao chá com imperturbável compostura.
Enquanto Mr. Quilp, na sua ruidosa hospitalidade, se sentava sobre um barril de cerveja vazio, gabando o sítio como o mais belo e confortável dos três reinos, e elevando o seu copo, bebia ao seu próximo encontro naquele risonho lugar, Mr. Brass, com a chuva a pingar-lhe para dentro da chávena, fazia uma tristre tentativa para melhorar a disposição e parecer à vontade, e Tom Scott, que se encontrava de serviço à porta, debaixo de um guarda-chuva, rejubilava com as agonias do notário e quase rebentava a rir.
Enquanto tudo isto se passava, Miss Sally Brass, desprezando a chuva, que gotejava sobre a sua feminina pessoa e o seu elegante traje, mantinha-se sentada placidamente, com a bandeja do chá à sua frente, contemplando a infelicidade do irmão com absoluta tranquilidade de espírito, e pronta, num amável esquecimento de si própria, a ficar ali toda a noite, assistindo aos tormentos que a avareza do notário o levava a suportar, iníbindo-o de mostrar qualquer reação.
E tudo isto deve ser relatado, pois de contrário a ilustração seria incompleta, apesar de ela nutrir, do ponto de vista comercial, a mais profunda estima por Mr. Sampson e se indignar fortemente, se acaso ele tivesse contrariado de qualquer forma o seu cliente.
No auge desta buliçosa alegria, Mr. Quilp, despedindo por um momento o seu demónio familiar, com um qualquer pretexto, retomou de repente o seu modo habitual e, descendo do barril, pôs a mão sobre a manga do notário.
- Uma palavra - disse o anão, - antes que continuemos. Sally, escute-me por um minuto.
Miss Sally aproximou-se mais, como habituada a ter, como o seu anfitrião, conferências sobre negócios, os quais era preferível manter em segredo.
- Negócios - disse o anão, olhando do irmão para a irmã.
- Negócios muito particulares. Juntem as cabeças quando estiverem sós.
- Pois decerto, cavalheiro - redarguiu Brass, tirando para fora o seu livro de notas e um lápis. - Anotarei os tópicos, se me dá licença, meu caro senhor. Documentos notáveis, acrescentou o notário levantando os olhos para o tecto - documentos muito notáveis. Ele expõe os seus pontos de vista tão claramente que é um prazer ouvi-lo. Não conheço Lei do Parlamento que o iguale em clareza.
- Vou privá-lo desse prazer - disse. - Ponha de parte esse livro. Não queremos nenhuns documentos. Isso. Há um rapaz chamado Kit...
Miss Sally concordou com a cabeça, dando a entender que sabia quem era.
- Kit! - disse Mr. Sampson. - Kit! Ah! Já ouvi o nome, mas não me recordo bem...
- Você é lento como uma tartaruga e mais estúpido que um rinoceronte - volveu o seu amável cliente, com um gesto de impaciência.
- Que divertido que ele é! - exclamou o obsequioso Sampson. - O seu conhecimento de História Natural é verdadeiramente espantoso. Um verdadeiro bufeão!
Não há dúvida de que Mr. Brass tinha a intenção de ser amável, e pode-se supor, com alguma razão, que queria dizer bufão, mas acrescentou-lhe uma vogal supérflua. Fosse como fosse, Quilp não lhe deu tempo para se corrigir, pois encarregou-se ele próprio desse trabalho, dando-lhe uma pancada na cabeça com o guarda-chuva.
- Deixemo-nos de discussões - disse Miss Sally segurando-lhe na mão. - Eu já lhe mostrei que o conheço, é quanto basta, querido irmão.
- Ela vai sempre na vanguarda! - disse o anão, batendo-lhe nas costas e olhando desdenhosamente para Sampsom. Não gosto de Kit, Sally.
- Nem eu - respondeu Miss Brass.
- Nem eu - disse Sampson.
- Ora, é isso mesmo! - exclamou Quilp. - Metade do nosso trabalho já está feito. Este Kit é uma das tais pessoas sérias, dos tais caracteres sem mancha, um cão metediço, um hipócrita, um espião de duas caras e de maus fígados, um rafeiro vil para todos os que lhe dão de comer e, para além disso, um cão que ladra e refila contra todos os outros.
- Terrivelmente eloquente! - exclamou Brass, com um espirro. - Absolutamente pasmoso!
- Vamos direitos ao assunto - disse Miss Sally - e não falemos tanto.
- Tem mais uma vez razão! - exclamou Quilp, com outro olhar de desprezo para Sampson. - Sempre a primeira! Oiça, Sally, ele é um cão que ladra e refila contra todos e sobretudo contra mim. Enfim, tenho umas contas a ajustar com ele.
- Isso é o bastante, cavalheiro - disse Sampson.
- Não, não é o bastante, meu caro senhor - disse Quilp sarcasticamente.
- Faz-me o favor de me ouvir até ao fim? Além de ter que ajustar contas com Kit, ele neste preciso momento, atravessa-se-me no caminho, pondo-se entre mim e um objectivo que, doutro modo, podia vir a ser uma mina de ouro para todos nós. Fora disso, repito que me irrita e que o detesto. Agora vocês conhecem o rapaz e podem adivinhar o resto. Descubram os meios de o afastar do meu caminho e ponham-nos em execução. Posso contar com isso?
- Pode contar, cavalheiro - disse Sampson.
- Então dê-me a sua mão - retorquiu Quilp.
- Sally, minha filha, a sua também. Tenho a mesma confiança, ou mais, em si do que nele. Aí vem Tom Scott. A lanterna, cachimbos, mais grogue e passaremos uma bela noite.
Nem mais uma palavra, nem mais nenhum olhar se trocou que se referisse, levemente que fosse, à verdadeira razão do seu encontro. O trio estava bem acostumado a trabalhar de sociedade, pois estava ligado por laços de interesse e vantagens mútuas, e nada mais era preciso. Retomando o seu modo turbulento, com a mesma facilidade com que se desfizera dele, Quilp num instante se transformou no pequeno e desenfreado selvagem que era alguns segundos antes.
Eram já dez horas da noite, quando a amável Sally ajudou o seu amado e adorável irmão a abandonar o ermo, pois nessa altura já necessitava de toda a ajuda que o frágil corpo da irmã lhe pudesse prestar, visto que o seu andar, por qualquer razão desconhecida, era menos firme e as suas pernas se iam constantemente a baixo nos sítios mais inesperados. Vencido, apesar dos seus últimos e prolongados sonos, pelas fadigas dos últimos dias, o anão tratou de se arrastar quanto antes até à sua elegante residência, onde pouco depois dormia na sua rede, deixando entregue aos seus sonhos, nos quais talvez figurassem as pacíficas personagens que deixámos no átrio da velha igreja.
E é tempo de voltarmos para junto deles, que lá nos esperam.
Ao fim de longa espera, o mestre-escola apareceu no portão do cemitério, dirigindo-se a eles a toda a pressa e fazendo tilintar na mão, à medida que avançava, um molho de chaves ferrugentas.
Com a alegria e a pressa, quando chegou ao átrio tinha perdido completamente o fôlego, e a princípio apenas conseguiu apontar para o velho edifício, que a pequena estivera contemplando tão atentamente.
- Vêem aquelas duas casas velhas? - disse ele por fim.
- Sim, decerto - respondeu Nell. - Estive a olhar para elas durante quase o tempo todo que o senhor se ausentou.
- E terias olhado para elas com mais curiosidade ainda, se tivesses podido adivinhar o que tenho para dizer - disse o seu amigo. - Uma daquelas casas é minha.
Sem dizer mais nada, ou dar tempo à pequena de responder, o mestre-escola tomou-lhe a mão, e com o rosto honesto radiante de satisfação, conduziu-a até ao sítio de que falava.
Pararam em frente da porta baixa em arco. Depois de experimentar em vão várias chaves, o mestre-escola encontrou uma que servia na enorme fechadura, à qual deu a volta, chiando, permitindo assim que ele os introduzisse em casa.
A dependência em que entraram era uma sala abobadada que em tempos fora grandiosamente ornamentada por hábeis arquitectos e conservava ainda, no seu belo tecto de arcos em ogiva e magníficos rendilhados de pedra, alguns restos apreciáveis do seu antigo esplendor. Ainda se via a folhagem esculpida na pedra, imitando a arte da Natureza, como que a lembrar quantas vezes as folhas lá fora tinham nascido e tombado, ao passo que elas viviam imutáveis.
Nas figuras partidas que suportavam o peso do fogão de sala, embora mutiladas, ainda se distinguiam restos do que tinham sido - muito diferentes do pó lá de fora. Pareciam tristes, ao lado da lareira vazia, como seres que tivessem sobrevivido à sua espécie e lamentassem o seu envelhecimento demasiado lento.
Em tempos remotos, pois até as alterações eram antigas naquele lugar antigo, haviam levantado uma divisória de madeira numa parte da dependência, a fim de formarem um gabinete de dormir, para o qual a luz entrava por uma janela tosca, ou antes nicho, recortado na espessa parede.
Este tabique, juntamente com os dois assentos de cada lado da larga chaminé, tinha, em qualquer data imemorável, feito parte da igreja ou do convento, pois o madeiramento de carvalho, adaptado à pressa ao seu fim actual, pouca alteração havia sofrido na sua forma primitiva, e apresentava à vista um amontoado de fragmentos de ricas obras de talha de velhos púlpitos de frades.
Uma porta aberta que dava para um pequeno quarto ou cela, cheio dos reflexos da luz que se filtrava através das folhas de hera, completava o interior dessa parte das ruínas.
Não era inteiramente destituído de mobília. Algumas cadeiras esquisitas, cujos braços e pernas pareciam ter mirrado com a idade. Uma mesa, um verdadeiro espectro da sua raça. Uma velha arca, enorme, que em tempos contivera os arquivos da igreja. Outros utensílios domésticos de estranho aspecto, e uma reserva de lenha para o Inverno, estavam espalhados em volta, dando provas evidentes de a casa haver sido ocupada numa época pouco distante.
A criança olhou em volta, com aquele sentimento respeitoso com que contemplamos o trabalho de gerações que se converteram em simples gotas de água no grande oceano da eternidade. O velho seguira-os, mas os três mantiveram-se em silêncio por alguns momentos, respirando a custo, como se temessem quebrar o silêncio mesmo com este íntimo som.
- Que lindo que isto é! - disse a pequena em voz baixa.
- Quase temia que pensasses o contrário - volveu o mestre-escola. - Tremeste quando aqui entrámos, como se o achasses frio ou triste.
- Não foi por isso - disse Nell olhando em volta com um leve arrepio. - De facto, não lhe posso dizer o que foi, mas quando vi o exterior do pórtico da igreja, tive a mesma sensação. Talvez fosse por ser tão velho e sombrio.
- Um lugar tranquilo para se viver, não te parece? - disse o seu amigo.
- Oh, sim - respondeu a criança, juntando as mãos fervorosamente, - um lugar tranquilo e feliz... para se viver e aprender a morrer!
Teria acrescentado ainda alguma coisa se a intensidade dos seus pensamentos não lhe fizesse fraquejar a voz, forçando-a a emitir sons apenas balbuciados pelos seus lábios.
- Um lugar para se viver, para se aprender a viver e para se granjear saúde do espírito e do corpo - disse o mestre-escola - pois esta velha casa é vossa.
- Nossa? - exclamou a criança.
- Sim - volveu o mestre-escola, - por muitos e felizes anos, assim o espero. Serei o vosso vizinho mais próximo... Logo na porta ao lado... Mas esta casa é vossa.
Tendo-se desembaraçado da grande surpresa que lhes reservava, o mestre-escola sentou-se, e puxando Nell para o seu lado, contou-lhe como soubera que aquela antiga casa fora ocupada durante muito tempo por um velho com quase cem anos de idade, que guardava as chaves da igreja, a abria e fechava para os ofícios, e a mostrava aos forasteiros.
Como este tinha morrido há poucas semanas, sem que se tivesse ainda encontrado ninguém para lhe preencher o lugar, e como, tendo sabido tudo isto em conversa com o coveiro, que estava retido na cama com reumatismo, se aventurara a mencionar os seus companheiros de viagem, e tendo isto sido recebido favoravelmente por essa alta personagem, se enchera de coragem e, seguindo os seus conselhos, propusera o assunto ao pastor.
Numa palavra, como resultado das suas diligências, Nell e o avô deviam comparecer no dia seguinte perante o mencionado pastor, e como a aprovação a obter, consoante os seus modos e o seu aspecto, não passava de um simples pró forma, desde já podiam considerar-se nomeados para o lugar vago.
- É-lhes concedido um pequeno subsídio - disse o mestre-escola. - Não é muito, mas chega para viver neste local retirado. Juntando os nossos fundos, arranjar-nos-emos muito bem. Não há nada a temer.
- O Céu o abençoe e o encha de prosperidade! - soluçou a criança.
- Amem, minha querida - respondeu o seu amigo alegremente, - e a todos nós, como tem feito e há-de continuar a fazer, conduzindo-nos através da dor e das atribulações até esta existência tranquila. Mas agora temos de ir ver a minha casa. Vamos lá!
Dirigiram-se para a outra habitação. Experimentaram as chaves ferrugentas, como antes, até que por fim, encontrando a que convinha, abriram a porta carcomida. Conduzia a uma dependência abobadada e velha como aquela de onde vinham, mas menos espaçosa e tendo apenas um aposento contíguo. Não era difícil de adivinhar que a outra casa era a que pertencia, de direito, ao mestre-escola e que este, por consideração por eles, tinha escolhido para si a menos cómoda. Como a casa anexa, continha as peças de mobília estritamente indispensáveis e tinha também a sua pilha de lenha para o lume.
Tornar estas habitações tão habitáveis e cheias de conforto quanto possível, era agora a agradável tarefa que os aguardava. Não tardou que cada uma delas tivesse o seu fogo crepitando alegremente na lareira e avermelhando a velha parede sem cor com um intenso e saudável clarão. Nell, usando activamente a agulha, remendou os cortinados esfarrapados, tapou os buracos que o tempo tinha aberto nos bocados de alcatifa no fio, tornando-os homogéneos e decentes. O mestre-escola varreu e alisou o chão em frente da porta, aparou a relva comprida, endireitou a hera e as plantas trepadeiras que mostravam as pontas pendentes em melancólico abandono, e deu por fim às paredes exteriores um ar alegre de lar.
O velho, umas vezes ao seu lado, outras ao lado da neta, prestou a ambos auxílio, sentindo-se feliz em andar daqui para ali executando pequenos e pacientes serviços. Também os vizinhos, à medida que voltavam do trabalho, ofereciam a sua ajuda, ou mandavam os filhos com pequenos presentes ou empréstimos daquilo que os estranhos precisavam. Foi um dia atarefado. E chegou a noite, e encontrou-os pasmados de que ainda houvesse tanto que fazer e anoitecesse tão cedo.
Cearam juntos, na casa que, daqui por diante, se poderá chamar da pequena, e depois de acabarem, juntaram-se em volta do fogão e quase em segredo, os seus corações estavam demasiado tranquilos e felizes para se exprimirem em voz alta, discutiram os seus planos futuros.
Antes de se separarem, o mestre-escola leu alto algumas orações, e em seguida, cheios de gratidão e felicidade, despediram-se por aquela noite.
À hora silenciosa em que o avô dormia sossegadamente no seu leito, e todo o ruído havia cessado, a pequena, que se demorara diante das cinzas quase apagadas, pensou na sua existência passada, como se tivesse sido um sonho de que só agora acordava. O clarão da chama que morria reflectia-se nos painéis de carvalho, cujos topos esculpidos se viam vagamente no tecto escuro. As velhas paredes, onde sombras estranhas vinham e desapareciam a cada tremular da chama, a presença solene, ali dentro, daquela decrepitude que cai sobre as coisas inertes, mesmo as de natureza mais resistente, e lá fora, e por todos os lados à volta, a morte.
Tudo isto lhe trazia à mente pensamentos profundos, mas despidos de terror ou alarme. Uma mudança se apoderara dela a pouco e pouco, desde que havia começado a sua vida de solidão e de desgostos. De um corpo sem forças e de um ânimo fortalecido nascera um espírito purificado e diferente. No seu seio tinham desabrochado ideias e esperanças benditas, que são apanágio dos humildes e dos pobres.
Não havia ninguém que visse a frágil e débil figurinha, quando ela se afastou silenciosamente do fogão e se foi encostar pensativa à vidraça aberta. Só as estrelas podiam contemplar o seu rosto erguido e ler nela a sua história. O sino da igreja bateu as horas com um som lúgubre, como se se tivesse entristecido de tanto conviver como os mortos e de avisar inutilmente os vivos. As folhas caídas e a relva agitavam-se sobre as sepulturas. Tudo o mais estava quieto e adormecido.
Alguns dos que dormiam um sono sem sonhos deitados à sombra da igreja, tocavam a parede como se se agarrassem a ela em busca de conforto e protecção. Outros tinham preferido descansar sob a sombra movediça das árvores, outros junto do caminho, a fim de que os passos se aproximassem deles, outros ainda entre as sepulturas das criancinhas. Alguns tinham desejado repousar sob o próprio terreno que tinham pisado nos seus passeios diários. Outros onde o sol poente brilhasse sobre as suas campas. Outros onde a sua luz os banhasse ao nascer.
Talvez que nenhuma dessas almas encarceradas houvesse conseguido separar-se por completo, em pensamento, do seu velho companheiro. Se alguma o tinha feito, continuava a sentir por ele um amor como aquele que os cativos sentem pela cela onde estiveram por muito tempo presos e cujos apertados limites, ao partirem, ainda contemplam afectuosamente.
Passou-se muito tempo antes que a criança fechasse a janela e se aproximasse do seu leito. Mais uma vez a mesma sensação de algumas horas atrás. Era um sentimento momentâneo, semelhante ao medo, mas que desapareceu logo, sem deixar qualquer vestígio. Mais uma vez sonhou que se via a si própria, o tecto se abria, e uma coluna de rostos luminosos, subindo lá longe para o céu, como vira uma vez numa velha gravura bíblica, olhavam para baixo, para ela, adormecida. Era um sonho doce e belo. O cenário tranquilo, lá fora, parecia o mesmo, salvo haver música no ar e um som de asas de anjos. Decorrido algum tempo, apareceram as freiras e ali ficaram, de mãos dadas, por entre as campas. E então o sonho tornou-se vago e dissipou-se.
Com a luminosidade e alegria da manhã, voltaram os trabalhos do dia anterior. A reminiscência dos seus pensamentos agradáveis, a restauração das suas energias, da sua alegria e das suas esperanças. Trabalharam alegremente, arrumando e arranjando as duas casas, até ao meio-dia, hora a que foram visitar o pastor.
Era um sujeito idoso, de coração simples e espírito tímido e humilde, acostumado a viver retirado, e pouco sabendo do mundo, que tinha abandonado há muitos anos, para se vir instalar naquele lugar. A esposa falecera na casa onde ele ainda morava, e ele, há muito que tinha perdido de vista quaisquer cuidados ou aspirações terrenas.
Recebeu-os com muita bondade e mostrou logo interesse por Nell, perguntou-lhe o nome, a idade, onde nascera, as circunstâncias que ali a tinham levado, e assim por diante. O mestre-escola já tinha contado a história da pequena. Não tinha outros amigos, nem casa onde viver, disse, e vinham compartilhar a sorte dele. Amava a pequena como se fosse sua filha.
- Bem, bem - disse o pastor. - Seja como o senhor deseja. Ela é muito nova.
- Mas velha na adversidade e nas atribulações, senhor redarguiu o mestre-escola.
- Deus a ajude. Deixem-na descansar e esquecê-las - disse o velho pastor. - No entanto, uma igreja velha é um sítio triste e sombrio demais para uma pessoa tão nova como tu, minha filha.
- Ah, não é não senhor, retorquiu Nell. Creio que não penso assim.
- Preferia vê-la dançar à noite no largo da aldeia - disse o velho pastor pondo a mão sobre a cabeça da pequena e sorrindo tristemente - a vê-la sentada à sombra das nossas abóbadas carcomidas. Temos de olhar por isto e cuidar de que o seu coração não se deixe abater entre estas solenes ruínas. O seu pedido está atendido, meu amigo.
Após mais algumas palavras bondosas, retiraram-se, dirigindo-se para a casa da pequena. E ainda ali se encontravam a conversar sobre a sua boa sorte, quando apareceu outro amigo.
Era este um velhinho que vivia no presbitério e ali habitava, assim o souberam depois, desde a morte da esposa do pastor, ocorrida quinze anos antes. Tinha sido seu colega de estudos e sempre seu amigo íntimo. Ao ter notícia do desgosto que o enlutara, viera consolá-lo, e desde então, nunca mais se tinham separado. O velhinho era o espírito activo daquele lugar, era aquele que resolvia todos os mal-entendidos, o promotor de todos os divertimentos, o catalizador da generosidade do amigo e, além disso, pessoalmente muito caridoso.
Era, em suma, o mediador universal, o consolador, o amigo. Nenhum dos simples aldeões se tinha lembrado de perguntar o seu nome ou, quando o souberam, de o memorizar. Talvez devido a alguns rumores sobre os seus títulos universitários, rumores que se tinham espalhado quando ele ali chegara, ou talvez por ser solteiro e sem laços de família, tinham-no designado por -o bacharel».
O nome agradou-lhe, ou serviu-lhe tão bem como qualquer outro, e desde então ficara sendo conhecido pelo bacharel. E fora o bacharel, pode-se acrescentar, quem, com as suas próprias mãos, tinha lá posto a reserva de lenha que os caminhantes haviam encontrado na sua nova residência.
O bacharel, para o designar-mos pelo seu nome habitual, levantou pois o ferrolho, mostrou à porta, por um momento, a sua carinha redonda e insinuante, e entrou na sala com o ar de quem não entrava ali pela primeira vez.
- O senhor é Mr. Marton, o novo mestre-escola? - perguntou, cumprimentando o bondoso amigo de Nell.
- Sou, sim senhor.
- O senhor vem bem recomendado e folgo em vê-lo. Teria ido ontem ao seu encontro, se não tivesse tido de atravessar os campos a cavalo, para levar um recado de uma mãe doente à sua filha, que está a trabalhar a algumas milhas daqui. Só agora voltei. É a nossa jovem guarda da igreja? Não é menos bem-vindo, amigo, por causa dela ou por causa deste senhor de idade, nem pior mestre-escola por ter aprendido a caridade.
- Esteve doente ultimamente - disse o mestre-escola em resposta ao olhar que o visitante deitou a Nell, depois de lhe ter beijado a face.
- Sim, sim. Vejo que esteve - respondeu ele. - Aqui houve sofrimento e mágoa.
- Isso é verdade, senhor.
O cavalheiro velhinho olhou para o avô e de novo para a criança cuja mão tomou ternamente na sua, ali a conservando.
- Serás mais feliz aqui - disse ele. - Pelo menos, faremos o possível por isso. Já aqui fizeram grandes melhoramentos. Isto é trabalho das tuas mãos?
- Sim, senhor.
- Podemos fazer mais alguns... Talvez não maiores em si, mas com meios mais eficazes - disse o bacharel. - Ora deixem-me ver.
Nell acompanhou-o até aos outros quartinhos, e através de ambas as casas, onde ele verificou faltarem algumas pequenas comodidades, que se comprometeu a fornecer, a partir de uma certa colecção de sobras que tinha em casa e que deveria ser uma colecção muito variada e extensa, pois compreendia os artigos mais díspares que se possam imaginar.
No entanto, veio tudo, e sem perda de tempo, pois o velhinho, desaparecendo por uns cinco ou dez minutos, voltou daí a pouco carregado com velhas prateleiras, tapetes, cobertores e outros utensílios domésticos, e seguido de um rapaz que trazia uma carga idêntica. Tendo tudo isto sido deitado para o chão em promíscuo amontoado, tornou-se necessária uma certa dose de trabalho para se arrumar, dispor e guardar tudo aquilo, e era evidente que a superintendência desta tarefa dava grande prazer ao velho, mantendo-o durante algum tempo muito vivo e activo.
Quando nada mais restava fazer, disse ao rapaz que corresse a chamar os seus companheiros de escola, a fim de formarem diante do seu novo mestre e serem formalmente passados em revista.
- É a melhor tropa de rapazes que alguma vez se possa desejar, Marton - disse ele voltando-se para o mestre-escola, depois de o rapaz desaparecer. - Mas não lhes dou a perceber que penso assim. Isso é que não, de maneira nenhuma.
O mensageiro voltou depressa, à cabeça de uma longa fila de garotos, grandes e pequenos, que, confrontados pelo bacharel, à porta de casa, se desfizeram em requintes de cortesia, retrocendo os chapéus e as boinas, apertando-os entre as mãos até ficarem reduzidos até às mais ínfimas dimensões, e fazendo todo o género de mesuras e vénias, que o velhote contemplava com extrema satisfação, ao mesmo tempo que expremia a sua aprovação com muitos acenos de cabeça e sorrisos.
De facto, o seu agrado pelos rapazes não era, de modo algum, tão escrupulosamente disfarçado como ele tinha levado o mestre-escola a crer, porquanto se traduzia por meio de inúmeros murmúrios e observações confidenciais, perfeitamente audíveis a qualquer deles.
- Este rapaz da frente, mestre-escola - disse o bacharel é o John Owen. Um bom rapaz, franco e com bom fundo, mas demasiado descuidado, brincalhão e estouvado. Este rapaz, meu caro senhor, partiria o próprio pescoço com prazer, privando os pais da sua alegria... Aqui entre nós, quando o vir atrás das lebres como um galgo, saltando vedações e valetas, escorregando pelo talude da pedreira pequena, nunca mais o esquecerá. É magnífico!
Repreendido John Owen por este modo, sem que deixasse de ouvir claramente as palavras à parte, foi escolhido outro rapaz pelo bacharel.
- Olhe, aquele rapaz, senhor - disse ele - vê aquele malandro? Chama-se Richard Evans, senhor. Um rapaz único para aprender, dotado de uma boa memória, um entendimento rápido e, além disso, com boa voz e ouvido para cantar os salmos. Lá nisso é o melhor que temos entre nós. Todavia, meu caro senhor, este rapaz há-de acabar mal. Não morrerá na sua cama. Costuma adormecer durante o sermão... e para lhe dizer a verdade, Mr. Marton, eu também fazia o mesmo quando tinha a idade dele, estou certo de que isto era natural na minha constituição e que não o podia remediar.
Edificado este esperançoso aluno com esta terrível reprimenda, o bacharel voltou-se para outro.
- Mas com respeito a exemplos que se devem evitar disse ele, - com respeito a rapazes que deviam constituir um aviso e um freio para todos os seus companheiros, aqui temos um, e espero que não o poupe. Este de olhos azuis e cabelo claro. Isto é um nadador, meu caro senhor... este sujeito... um mergulhador, Deus nos salve! Isto é um rapaz, meu caro senhor, que teve o capricho de mergulhar em dezoito pés de água, com roupa vestida, e salvar o cão de um cego, que se estava a afogar com o peso da coleira e da corrente, enquanto o dono torcia as mãos à beira da água, chorando a perda do seu guia e amigo. Mandei ao rapaz dois guinéus anonimamente, meu caro senhor - acrescentou o velhote no seu peculiar murmúrio, - assim que soube do caso, mas nunca lhe conte nada disso, pois ele não tem a mais leve ideia de que vieram de mim.
Tendo disposto assim do culpado, o bacharel voltou-se para o outro e deste para outro, e assim por diante, através de todo o bando, pondo para sua conveniente repressão dentro dos devidos limites, a mesma ênfase cortante no que se refiria às respectivas tendências, por mais queridas e indubitavelmente afins do seu próprio preceito e exemplo.
Perfeitamente persuadido, no final, de que os tinha deixado acabrunhados pela sua severidade, mandou-os embora com um pequeno presente e a recomendação de irem sossegadamente para casa, sem pulos, nem brigas, nem desvios por outros caminhos, comunicando logo em seguida ao mestre-escola, no mesmo segredar audível, que não lhe parecia ter jamais obedecido a uma ordem dessas quando era rapaz, nem que a sua vida tivesse dependido disso.
Acolhendo estes pequenos indícios da maneira de ser do bacharel como outras tantas garantias e facilidades na missão que ia encetar, o mestre-escola separou-se dele com o coração feliz e uma alegre disposição, considerando-se um dos homens mais felizes do mundo.
As vidraças das duas velhas casas avermelharam-se de novo nessa noite com o reflexo das chams alegres que ardiam no interior. E o solteirão e o seu amigo, parando a contemplá-las, quando voltavam do seu passeio à tardinha, falaram baixinho da linda criança e olharam em volta do cemitério com um suspiro.
Nell, a pé logo de manhã, depois de desempenhar os seus deveres domésticos e arrumar a casa do bom mestre-escola, embora muito contra vontade deste, que lhe queria poupar esse trabalho, tirou, do prego ao lado da lareira, um molhinho de chaves que o bacharel lhe entregara, solenemente na véspera, e saiu sozinha, para visitar a velha igreja.
O céu estava sereno e luminoso, o ar claro, perfumado com esse aroma fresco das folhas acabadas de cair, tão agradável aos sentidos.
O riacho vizinho, cintilante, corria num murmúrio melodioso, o orvalho brilhava sobre os montículos verdejantes, como lágrimas vertidas por espíritos bons sobre os defuntos.
Brincavam crianças por entre as campas, escondendo-se, risonhas, umas das outras. Tinham consigo uma criança de tenra idade, que haviam deixado a dormir sobre a campa de uma criança, numa caminha de folhas.
Era uma sepultura recente, um lugar de repouso, talvez de alguma criaturinha que, dócil e paciente na sua doença, se houvesse muitas vezes sentado a vê-las brincar, e que agora, ao espírito daquelas crianças, parecesse continuar ali.
Nell aproximou-se e perguntou a uma das crianças de quem era aquela campa. A criança respondeu que aquilo não era uma campa, era um jardim, o do seu irmão.
Mais verde, dizia ela, que todos os outros jardins, e os pássaros gostavam mais daquele jardim, porque o seu irmãozito costumava dar-lhes de comer. Quando acabou de falar olhou-a com um sorriso, e depois de se ajoelhar e agachar por um momento com a cara contra a relva, desapareceu a pular alegremente.
Nell passou pela igreja levantando o olhar para a velha torre, transpôs a cancela e entrou na aldeia. O velho coveiro que, apoiado a uma muleta, apanhava ar à porta da sua casita, deu-lhe os bons dias.
- Está melhor? - perguntou a pequena, parando para lhe falar.
- Estou - respondeu o velho. - Graças a Deus, estou muito melhor.
- Em breve estará completamente bom.
- Com a ajuda do Céu e com um pouco de paciência. Mas entre, entre!
O velho abriu caminho, a coxear, e preveniu-a do degrau, que ele próprio venceu com uma certa dificuldade, introduzindo-a na sua casinha, e prosseguiu.
- É apenas um quarto, como vê. Há um outro lá en cima, mas a escada tornou-se mais custosa de subir nesti últimos anos, e nunca me sirvo dela. No entanto, estou a pensar em a utilizar de novo no próximo Verão.
A pequena espantou-se de que um velho de cabelos brancos como ele, e ainda mais com o ofício que tinha, pudesse falar tão livremente do tempo. Ele viu os olhos dela percorrerem as ferramentas penduradas na parede e sorriu.
- Aposto - disse ele - em como julga que tudo isso é usado para abrir covas.
- Realmente, admirei-me de que necessitasse de tanta coisa.
- E razão tinha para isso. Eu sou jardineiro. Cavo terra e planto coisas para viverem e crescerem. Nem toda a minha obra se decompõe e apodrece na terra. Vê aquela pá. ali ao meio?
- Aquela muito velha... toda cheia de mossas? Vejo.
- Essa é a pá do coveiro e bastante uso teve como pode ver. Somos gente saudável, aqui, mas ela tem feito muito trabalho. Se essa pá pudesse falar agora, contar-lhe-ia muita empreitada inesperada que fizemos juntos, mas eu estou esquecido de tudo isso, pois a minha memória é fraca... Isso não é nada de novo - acrescentou ele à pressa. - Sempre foi assim...
- Há flores e arbustos que também podiam falar de outras empreitadas - disse a criança.
- Há, sim, e árvores grandes. Mas não estão distantes do trabalho de coveiro como pensa.
-Não?
- No meu espírito e na minha memória não estão... Tal como eles agora são - disse o velho. - Não há dúvida de que até muitas vezes ajudam. Suponhamos que eu planto esta ou aquela árvore, para este ou aquele. Lá se ergue ela, a lembrarme que ele morreu. Quando olho para a sua grande sombra e me recordo do que ela era no tempo dele, isso ajuda-me a calcular a idade do meu outro trabalho, e já posso dizer muito aproximadamente quando lhe abri a cova.
- Mas com certeza também deve recordar alguém que esteja vivo - disse a pequena.
- Um vivo para cada vinte mortos - retorquiu o velho.
- Uma esposa, um marido, pais, irmãos, irmãs, filhos, amigos... Uns vinte, pelo menos. Por isso a pá do coveiro está tão gasta e cheia de amolgadelas. Tenho de arranjar uma nova... para o Verão.
A pequena olhou rapidamente para ele, julgando que ele estivesse a gracejar a propósito da sua idade e da sua doença, mas o coveiro estava a falar a sério.
- Ah! - disse ele após um curto silêncio. - Esta gente nunca aprende, não há meio de aprender. Se nós, que remexemos a terra, onde nada cresce e tudo se decompõe, é que pensamos nestas coisas... é que pensamos nelas como deve de ser, quero eu dizer. Esteve na igreja?
- Vou lá agora - respondeu a criança.
- Há lá um poço muito antigo - disse o coveiro, - exactamente por baixo da torre sineira. É um poço muito fundo e negro, que faz eco. Há quarenta anos, bastava deixar cair o balde até o primeiro nó da corda passar a roldana, para ouvirmos bater na água fria e escura. Mas a água a pouco e pouco foi baixando, e dez anos depois teve de se dar um segundo nó e largar mais corda, de contrário o balde vinha leve e vazio. Noutro espaço de dez anos, a água baixou de novo, e deu-se terceiro nó. Dez anos depois, o poço secou, e agora, se se largar o balde e deixar correr a corda quase toda, até os braços ficarem cansados, ouve-se, de repente, bater e raspar no fundo com um baque tão surdo e longínquo, que o coração nos palpita mais forte e a gente dá um salto para trás, como se fosse cair lá dentro.
- Um sítio perigoso para dele nos aproximarmos às escuras! - exclamou a criança que, atenta aos gestos e ás palavras do velho, se julgava já à beira do poço.
- Que é aquilo senão um túmulo? - perguntou o coveiro.
- Sim, que é senão isso? E de entre os velhos, qual deles, sabendo tudo isto, se quer lembrar, ao findar a Primavera, de que as suas forças fraquejam e a vida lhe vai fujindo? Nem um!
- O senhor tem muita idade? - perguntou a criança, involuntariamente.
- Vou fazer setenta e nove... no Verão.
- Ainda trabalha quando está bom?
- Se trabalho! Pois com certeza. Há-de ver o meu jardim, aqui a dois passos. Olhe para aquela janela além. Fui eu próprio que preparei e tratei aquele bocado de terra, sozinho, com as minhas mãos. Para o ano, por este tempo, mal poderei ver o céu. A ramaria há-de ter crescido bastante.
Além disso, tenho o meu trabalho para as noites de Inverno.
Ao mesmo tempo que falava, abria um armário próximo e retirava de lá algumas caixinhas delicadamente esculpidas e feitas de madeira velha.
- Há certas pessoas finas que admiram os tempos antigos e apreciam tudo o que é antigo - disse ele, - por isso, gostam de comprar estas lembranças da nossa igreja e das nossas ruínas. Umas vezes faço-as de bocados de carvalho que andam espalhados por aqui e por ali, outras de pedaços de caixões que as abóbadas abrigaram durante muito tempo. Olhe aqui... esta caixinha é desse género. As dobradiças são feitas de bocados de chapa de latão, que em tempos tiveram qualquer coisa escrita, mas agora não se consegue ler. Nesta altura do ano poucas tenho, mas estas prateleiras hão-de estar cheias... no Verão.
A criança admirou e elogiou o seu trabalho, e pouco depois despediu-se. Enquanto se afastava, ia pensando na estranha circunstância de aquele velho extrair, das suas observações e de todos os fenómenos que o rodeavam, uma moral inflexível, e nunca se lembrar de a aplicar a si mesmo. Ao mesmo tempo que insistia na incerteza da vida humana parecia, tanto em palavras como em actos, julgar-se imortal.
As reflexões não se limitavam porém a isto. Ela tinha o bom senso suficiente para pensar que, graças a uma sábia e misericordiosa disposição, a natureza humana era assim mesmo, e que o velho coveiro, com os seus projectos para o próximo Verão, não era mais que um tipo da espécie humana.
Embebida nestas meditações, chegou à igreja. Nada mais fácil que dar com a chave da porta exterior, pois cada chave tinha presa a si, como marca, uma tira de pergaminho amarelado. A simples volta na fechadura produziu um som cavo, e quando a pequena entrou com passos hesitantes, os ecos por estes provocados fizeram-na sobressaltar.
Tudo nas nossas vidas, bom ou mau, nos afecta por contraste. Se a paz da pequena aldeia produzira em Nell uma forte comoção, depois de os caminhos numerosos e agrestes que tinham ficado para trás e através dos quais ela caminhara com os seus pezitos frágeis, qual não era agora a impressão sentida, ao encontrar-se sozinha dentro daquele edifício solene, onde a própria luz, vinda através das janelas embutidas, parecia velha e cinzenta, e onde o ar, odorante de terra e bolor, se afigurava atacado de declínio, purificado pelo tempo de todas as suas partículas mais grosseiras, e soprando através das arcadas das naves e das colunatas, como o hálito dos séculos idos!
Ali estavam o pavimento quebrado, gasto há tantos anos por pés piedosos, e cujos vestígios o tempo apagara, passando por sobre as pegadas dos fiéis, deixando apenas pedras despedaçadas. Ali estavam a trave apodrecida, a abóbada meia aluída, as paredes minadas a desfazerem-se em pó, o pequeno fosso térreo, o túmulo majestoso em que o epitáfio já não se via, tudo, mármore, pedra, ferro, madeira e pó, num monumento único de ruínas. A obra-prima e a medíocre, a mais banal e a mais rica, a mais majestosa e a menos imponente, ambas saídas das mãos de Deus e do Homem, tudo ali se encontrava num nível comum, tudo contava uma história comum.
Parte do edifício tinha sido uma capela senhorial, e aqui havia efígies de guerreiros nos seus leitos de pedra com as mãos dobradas e as pernas cruzadas. Eram aqueles que tinham combatido nas Guerras Santas, equipados com as suas espadas e nas armaduras em que tinham vivido.
Alguns destes cavaleiros tinham as suas armas, elmos, cotas de malha, suspensas das paredes e de ganchos ferrugentos. Embora quebrados e delapidados, mantinham contudo ainda a antiga forma e algo do seu aspecto antigo. Deste modo, os feitos violentos sobrevivem aos homens na terra e os vestígios das guerras e carnificinas sobreviverão sobre formas lúgubres muito depois daqueles que contribuíram para a desolação não serem mais do que partículas de terra.
A criança sentou-se no seu local silencioso do costume, entre as figuras inteiriçadas sobre túmulos. Elas tornavam-nas ainda mais silenciosas do que ela se lembrava, e olhando à sua volta com uma expressão de temor, temperada por um deleite calmo, sentiu que estava agora feliz e em paz.
Tirou a Bíblia da prateleira e leu. Então, deixando-a cair no colo, pôs-se a pensar nos dias de Verão e no belo tempo de Primavera que havia de vir, nos raios de sol que incidiriam oblíquos sobre as figuras adormecidas, nas folhas que iriam rodopiar junto à janela e brincar no chão sobre a forma de sombras cintilantes, no canto dos pássaros e nos rebentos e botões que iriam brotar lá fora, no ar doce que ali iria pairar, agitando ao de leve as cortinas esfarrapadas lá de cima.
Que interessava se o local despertava pensamentos de morte! Morresse quem morresse, ela continuava sempre a mesma. Essas visões e esses sons continuariam sempre tão risonhos como sempre. Nenhuma dor existiria pelo facto de se dormir entre eles.
Nell saiu da capela com passos muito lentos e olhando por vezes para trás, e chegando a uma porta baixa, que parecia conduzir à torre, abriu-a e às escuras subiu a escada em caracol. Enquanto subia, ora olhava através dos estreitos orifícios para o local que tinha deixado, ora tinha uma visão rápida e imperfeita dos sinos poeirentos. Por fim chegou ao topo da subida e ficou de pé no torreão.
- Oh! A glória do súbito clarão de luz, a frescura dos campos e bosques que se estendiam de ambos os lados e iam ao encontro do céu, o gado a pastar nos campos, o fumo que, saindo por detrás das árvores, parecia nascer da terra verdejante, as crianças ainda a pularem lá em baixo, tudo tão bonito e feliz. Era como se passasse da morte para a vida, estava mais próxima do Céu.
As crianças tinham-se ido embora, quando ela passou ao átrio e fechou a porta. Ao passar pela escola, podia ouvir o forte sussurro das vozes. O seu amigo tinha, nesse dia, dado apenas início aos seus labores diários. O barulho tornou-se maior, e olhando para trás, viu os garotos a saírem em bandos e a dispersarem-se com gritos de alegria, a brincar uns com os outros. «Ainda bem!» pensou a criança. «Estou contente por eles terem passado pela igreja.» E parou para imaginar como aquele ruído ecoaria lá dentro e como soaria docemente aos ouvidos, parecendo morrer aos poucos.
Nesse dia voltou, sim, outra vez à velha capela e no mesmo lugar, leu a partir do mesmo livro, entregue a pensamentos amenos. Mesmo quando já estava a escurecer e as sombras da noite que caía tornavam o ambiente mais solene, a criança ainda ali permanecia como que enraizada ao lugar, sem medo e sem vontade de se mover.
Encontraram-na finalmente e levaram-na para casa. Estava pálida mas muito feliz, até que se separaram para ir dormir, e então, quando o pobre mestre-escola se curvou para a beijar, pensou que sentiu uma lágrima no seu rosto.
O bacharel, entre as suas várias ocupações, encontrava na velha igreja uma fonte constante de interesse e distracção. Tinha por ela aquele orgulho que os homens sentem pelas maravilhas do seu pequeno mundo, e tinha-se dedicado ao estudo da sua história.
Passava muitos dias de Verão entre as suas paredes, e muitas noites de Inverno junto à lareira do presbitério, e assim, com o seu estudo, enriquecia ainda mais aquele lugar cheio de história e de lenda.
Ele não era um desses espíritos rigorosos que buscam inflexivelmente a verdade, despindo-a de todas as roupagens com que o tempo e as imaginações exacerbadas a vestiram, tornando-a por vezes mais bela, servindo, como a água da nascente, para acrescentar novas graças às belezas já existentes, e que ora mostram ora sugerem apenas, e que, para acordar o interesse e o desejo em vez da languidez e da indiferença, e tendo, ao contrário dessa classe de gente antipática e endurecida, um prazer imenso em ver a deusa coroada com a grinalda de flores do campo que a tradição tece para o seu porte delicado, flores que, muitas vezes, nas suas formas mais simples se tornam mais frescas ainda.
Ele pisava ao de leve aquela poeira centenar, tentando não destruir os vestígios de gentes de outros tempos, pois poderiam ocultar algum bom sentimento ou afecto do coração humano. Assim, em relação a um ataúde de pedra tosca, que ao longo de muitas gerações, segundo se suposera, albergara os ossos de certo barão que havia ferido, matado e pilhado em terras estrangeiras, tinha regressado triste e arrependido para morrer na sua terra, o que alguns historiadores modernos tinham provado não ser verdade, uma vez que o dito barão, segundo eles garantiam, tinha morrido a batalhar, rangendo os dentes e praguejando até ao seu último fôlego, mas o nosso amigo bacharel mantinha firmemente a veracidade da velha lenda, e que o barão, arrependido de todo o mal que tinha feito, tinha realizado grandes obras de caridade e morrido santa e humildemente, e que se alguma vez um barão fora para o céu, era este, que certamente repousava em paz.
Do mesmo modo, quando os mencionados historiadores discutiram e contestaram que um certo túnel secreto fosse o túmulo de uma certa senhora de cabelos brancos que fora enforcada e esquartejada por ordem da gloriosa rainha Isabel, devido a ter socorrido um pobre padre que tinha desmaiado de sede e de fome à sua porta, ele mantinha solenemente, contra quem quer que fosse, que a igreja ficava mais santificada pelas cinzas daquela pobre mulher, e que os seus restos tinham sido recolhidos, durante a noite, em quatro das portas da cidade, para ali trazidos em segredo e ali depositados.
O bacharel, que nesses momentos ficava muito agitado, negava a glória da rainha Isabel e assegurava a glória, incomensuravelmente maior, da mais humilde mulher do seu reino, que possuía um coração compassivo e terno.
Concordava, no entanto, plenamente com a voz corrente que negava que a pedra lisa que se encontrava junto à porta fosse a campa de um avarento que deserdara o seu filho único e deixara o seu dinheiro à igreja para comprarem dois sinos novos. Não podia ser, semelhante criatura não podia ter nascido naquela terra. Numa palavra, ele desejava que cada pedra e cada tabuleta de metal perpetuassem apenas acções que merecessem ser lembradas. Quanto às outras, de boa vontade as esqueceria. Poderiam ser sepultadas em chão sagrado, mas bem fundo, e nunca mais deveriam ser lembradas.
Foi dos lábios de um mestre como este que a criança aprendeu os seus simples deveres. Impressionada já, para além daquilo que pode ser explicado, por aquela construção silenciosa e pela serena beleza do lugar onde esta se erguia, a idade majestosa rodeada pela eterna juventude, parecia-lhe, quando ouvia estas coisas, que aquele era um lugar consagrado a todas as bondades e a todas as virtudes. Era um mundo aparte, onde o pecado e a tristeza não chegavam; um tranquilo lugar de repouso onde o mal não tinha entrada.
O bacharel contou-lhe a história de quase todas as sepulturas e pedras tumulares, e em seguida levou-a até à velha cripta, que agora não era mais do que uma triste caverna, mostrou-lhe como era iluminada no tempo dos frades, e como por entre as velas dos candelabros pendurados do tecto, por entre os incensórios oscilantes a perfumar tudo de incenso, os paramentos refulgentes de ouro e prata, os quadros, os tecidos preciosos, as jóias, tudo a brilhar e a cintilar debaixo das arcadas românicas, muitas vezes, noutros tempos, à meia-noite, se ouviam cânticos entoados por velhas vozes, enquanto silhuetas encapuchadas se ajoelhavam e rezavam à volta, desfiando os seus rosários de contas.
Em seguida, conduziu-a para um piso ainda mais abaixo, e mostrou-lhe, lá no alto das velhas paredes, as pequenas galerias onde se dizia que as freiras deslizavam silenciosas, mal se deixando ver nos seus hábitos escuros, ou paravam, como sombras tristes, a escutar as rezas.
Mostrou-lhe ainda os túmulos dos guerreiros, alguns com estátuas jacentes, e explicou-lhe a forma como tinham usado aqueles pedaços de armaduras que estavam penduradas por cima. Como isto tinha sido um elmo, aquilo um escudo, aquilo uma luva de ferro, como tinham manejado aquelas enormes espadas e derrubado homens com aquelas massas de ferro.
A pequena guardou no seu espírito tudo aquilo que lhe era dito, e quando à noite sonhava com esses tempos antigos e depois acordava, levantava-se da cama, olhava para fora, para a igreja na escuridão, e quase imaginava que iria ver as janelas iluminadas, e ouvir o órgão tocar, e o som de vozes por entre o vento que soprava.
O velho coveiro depressa melhorou, e andava por ali outra vez. Também ele ensinou à garota muitas outras coisas, embora de outro género. Já não podia trabalhar, mas um dia foi preciso abrir uma cova, e ele veio vigiar o homem que a abria. Estava muito conversador e a criança, primeiro de pé ao lado dele e depois sentada aos seus pés sobre a relva com o seu rosto pensativo levantado para ele, começou a conversar.
Ora o homem que estava a fazer a tarefa do coveiro era um pouco mais velho do que ele, embora muito mais activo, mas era surdo. Quando o coveiro que, com grande dificuldade, talvez tivesse conseguido caminhar uma milha em meia dúzia de horas, trocava com ele alguma observação sobre o seu trabalho, a criança não pôde deixar de notar que ele o fazia com uma espécie de piedade impaciente pela doença do outro, como se fosse ele próprio o homem mais saudável e mais forte do mundo.
- Lamento que isto tenha de ser feito - disse a criança aproximando-se. - Não ouvi que tivesse morrido ninguém.
- Ela vivia noutra aldeia, minha querida - respondeu o coveiro. - A três milhas daqui.
- Era nova?
- Sim, sim - disse o coveiro, - não tinha mais de sessenta e quatro anos, acho eu. David, ela teria mais de sessenta e quatro anos?
Mas David, que cavava energicamente, não ouviu nada da pergunta. O coveiro, como não conseguia tocar-lhe com a muleta, e não tinha forças para se levantar sem ajuda, para o chamar atirou-lhe com um pequeno torrão de terra ao barrete de dormir vermelho que trazia.
- O que foi agora? - disse David olhando para cima.
- Que idade tinha a Becky Morgan? - perguntou o coveiro.
- A Becky Morgan? - repetiu David.
- Sim - respondeu o coveiro, acrescentando num tom meio irritado meio compadecido, que o velho não ouviu.
- Estás a ficar muito surdo, Davy, muito surdo mesmo. O velho parou o que estava a fazer, limpou a pá com um
pedaço de ardósia que ali tinha para esse fim, raspando ao mesmo tempo a essência sabe Deus de quantas Becky Morgans, e pôs-se a pensar no assunto.
- Deixa-me pensar - disse ele. - Ontem à noite escreveram sobre o caixão, seriam setenta e nove?
- Não, não - disse o coveiro.
- Eram, sim - retorquiu o velho com um suspiro. - Eu até me lembro de ter pensado que ela era quase da nossa idade. Sim, eram setenta e nove.
- Tens a certeza de que não te enganaste nalgum número, Davy? - disse o coveiro dando sinais de alguma emoção.
- O quê? - disse o velho. - Diz lá isso outra vez.
- Ele está muito surdo. Está mesmo muito surdo
- exclamou o coveiro petulantemente. - Tens a certeza de que eram esses os números?
- Claro! - respondeu o velho. - Como é que não havia de ter?
- Está completamente surdo - murmurou o coveiro de si para si. - Acho que está a ficar pateta.
A criança ficou intrigada, a pensar no que o levaria a pensar assim, uma vez que o velho parecia tão lúcido como ele, e era infinitamente mais robusto, mas como o coveiro não disse mais nada sobre o assunto ela depressa se esqueceu e retomou a conversa.
- Estava-me a contar - disse ela - que fazia jardinagem. Nunca planta nada aqui?
- No cemitério? - respondeu o coveiro. - Eu não!
- Eu vi ali algumas flores e arbustos - acrescentou a pequena. - Há por ali alguns, está a ver? E pensei que talvez tivessem sido plantados por si, embora estejam realmente pouco desenvolvidos.
- Vão crescendo como Deus quer. - disse o velho. - E Ele, na sua bondade, não deixa que floresçam aqui.
- Não compreendo.
- Olha - disse o coveiro. - quer dizer que elas assinalam as campas daqueles que tinham amigos muito ternos e dedicados.
- Eu sabia! - exclamou a criança. - Fico muito contente por saber isso.
- Sim - volveu o velho - mas olha para elas. Vê como baixam a cabeça, e se curvam, e murcham. Não adivinhas porquê?
- Não - respondeu a criança.
- Porque a memória daqueles que estão sepultados por baixo também não dura muito tempo. Ao princípio tratam deles de manhã, à tarde e à noite. Depois começam a vir menos. De uma vez por dia passam a uma vez por semana, de uma vez por semana passam a uma vez por mês, depois começam a vir com intervalos irregulares, e acabam por não vir de todo. Tenho visto as mais delicadas flores de Verão durarem menos do que a lembrança dos que morrem.
- Fico triste por saber isso - disse a criança.
- Ah! As pessoas finas que vêm aqui vê-los dizem todas a mesma coisa, - respondeu o velho abanando a cabeça. Mas eu digo outra coisa. «É um bonito costume que vocês têm cá na terra, plantar nas campas, mas é triste ver estas flores todas murchas e mortas», dizem-me algumas vezes. Eu então peço-lhes desculpa, e digo-lhes que isso para mim é um bom sinal, significa que os vivos estão felizes. E é verdade. A natureza é assim.
- Talvez aqueles que choram os seus mortos aprendam de dia a olhar para o céu azul, e à noite para as estrelas, e a pensar que os seus entes queridos estão aí, e não nas sepulturas - disse a criança com emoção.
- Talvez - disse o velho algo inseguro. - Pode ser.
- Que seja como eu creio, ou não seja - murmurou a criança. - Vou fazer deste lugar o meu jardim. Não pode ter mal nenhum, trabalhar aqui dia após dia, e estou certa de que me há-de ajudar a pensar em coisas agradáveis.
A sua face corada e os seus olhos húmidos passaram despercebidos ao coveiro, que se voltou para o velho David e o chamou pelo nome.
Era claro que a idade de Becky Morgan continuava a intrigá-lo, embora a criança não conseguisse compreender a razão disso.
Ao fim de o chamar repetidamente, pelo nome, duas ou três vezes, conseguiu atrair a atenção do velho. Este, fazendo uma pausa no seu trabalho, apoiou- se na pá e levou a mão ao seu duro ouvido.
- Chamaste-me?
- Estive a pensar, Davy - respondeu o coveiro apontando para a sepultura. - Acho que ela devia ser um bocado mais velha do que tu e do que eu.
- Setenta e nove - respondeu o velho abanando tristemente a cabeça. - Estou a dizer-te aquilo que vi.
- Viste? - respondeu o coveiro. - Pois sim, Davy, mas as mulheres nem sempre dizem a verdade acerca da idade que têm.
- Isso também é verdade - disse o velho com um brilhozinho nos olhos. - Podia ser mais velha.
- Tenho a certeza de que era. Ora, lembra-te de como ela parecia mais velha. Tu e eu parecíamos uns rapazes ao pé dela.
- Realmente parecia velha - acrescentou David. - Tens razão. Ela realmente parecia velha.
- Lembra-te de como ela parecia velha, já há tantos anos, e diz-me se ela podia agora ter só setenta e nove... a nossa idade! - disse o coveiro.
- Era pelo menos cinco anos mais velha! - exclamou o outro.
- Cinco! - retorquiu o coveiro. - Dez! Uns bons oitenta e nove! Lembro-me de quando a filha dela morreu. Tinha oitenta e nove anos, nem um a menos, e quer agora passar por dez anos mais nova. Oh! Vaidade humana!
O outro velho não se deixou ficar atrás, e fez também algumas reflexões morais sobre este tema fértil, e entre um e outro conseguiram juntar provas de tal forma esmagadoras que acabou por se levantar a dúvida de que ela não tivesse a idade que lhe atribuíam mas que tivesse sim atingido a idade patriarcal de uma centena de anos. Quando chegaram a uma conclusão satisfatória o coveiro, com a ajuda do seu amigo, levantou-se para se ir embora.
- Está frio, para se estar aqui sentado. E eu tenho de ter cuidado, enquanto não vem o Verão - disse ele preparando-se para se afastar a coxear.
- O quê? - perguntou o velho David.
- Está muito surdo, coitado! - exclamou o coveiro. - Adeus!
- Ah! - disse o velho David. - Está a ir- se abaixo muito depressa. Está a envelhecer muito depressa.
E assim se despediram, cada um deles convencido de que o outro estava mais acabado do que ele próprio, ambos muito consolados com a mentirinha que tinham inventado, respeitando Becky Morgan, cujo falecimento deixava de ser um sinal desagradável do destino que os esperava a eles também, e que não teriam de enfrentar senão daí a uma boa meia dúzia de anos.
A criança ficou ainda por alguns minutos, observando o velho que tirava a terra para fora da cova com uma pá, parando muitas vezes para tossir e tomar fôlego, e murmurando ainda para si mesmo, com um risinho seco, que o coveiro estava a envelhecer muito depressa.
Depois a criança afastou-se, e enquanto caminhava pensativa pelo cemitério encontrou inesperadamente o mestre escola, que estava sentado ao sol sobre uma campa, a ler.
- Nell! Estás aqui? - disse ele alegremente fechando o livro. - Fico muito contente por ver que vieste cá para fora apanhar ar. Receava que estivesses ainda dentro da igreja, vejo-te lá tantas vezes...
- Receava? - respondeu a criança sentando-se ao lado dele. - Não é um bom lugar para se estar?
- Sim, sim, mas também te quero ver alegre algumas vezes. Não, não abanes assim a cabeça nem me faças um sorriso tão triste.
- Não é triste. Havia de conhecer o meu coração. Não olhe para mim como se me visse sempre triste. Agora já não há criatura na terra que seja mais feliz do que eu.
Cheia de uma terna gratidão, a criança pegou-lhe na mão e estreitou-lha entre as suas. - É a vontade de Deus! - disse ela depois de guardarem um momento de silêncio.
- O quê?
- Tudo isto - respondeu ela. - Tudo isto à nossa volta. Mas qual de nós é que está triste agora? Veja, eu por mim estou a sorrir.
- Também eu - disse o professor.
- Sorrio só de pensar que ainda havemos de rir muitas vezes neste mesmo lugar. Não estavas ali a conversar?
- Sim - respondeu a pequena.
- Sobre qualquer coisa que te pôs triste?
Houve uma longa pausa. - O que foi? - perguntou o mestre-escola carinhosamente. - Vá lá, conta-me, o que foi?
- Fico triste, fico muito triste - disse a criança desfazendo-se em pranto. - Quando penso que aqueles que morrem à nossa volta são esquecidos tão depressa.
- E tu pensas - disse o professor notando o olhar que ela deitara em volta - que uma campa não visitada, uma árvore seca, uma ou duas flores secas, são sinais de esquecimento ou de fria negligência? Não pensas que, longe daqui, podem ser praticadas acções através das quais eles podem ser lembrados melhor? Nell, Nell, podem haver pessoas no mundo que neste momento estejam ocupadas, e que através das suas boas acções e bons pensamentos estejam a homenagear os que aqui estão, embora as suas sepulturas nos pareçam abandonadas?
- Não me diga mais nada - apressou-se a dizer a garota.
- Não me diga mais nada, eu já sei, e estou a sentir tudo isso. Como é que pude esquecer-me, quando pensava em si?
- Não há nada! - explicou-lhe o seu amigo. - Não, há nenhuma coisa boa ou inocente, que morra e seja esquecida. Temos de acreditar nisso, ou não acreditar em nada. Um bebé, uma criança que ainda mal balbucia, e que morra no seu berço, há-de continuar a viver nos melhores pensamentos daqueles que a amaram, e há-de ter o seu lugar, através deles, nas acções de redenção do mundo, embora o corpo dessa criança possa estar transformado em cinzas ou até no fundo do mar. Nenhum anjo se junta às hostes do Céu que, através daqueles que o amaram na terra, não execute neste mundo a sua obra abençoada. Esquecidos! Oh, se pudéssemos conhecer a origem de todas as boas obras feitas na terra, como a própria morte havia de nos parecer bela! Quanta caridade, piedade e pura afeição veríamos nascer de sepulturas poeirentas!
- Sim - disse a criança. - É verdade, eu sei que é. Quem poderá sentir isso tanto como eu, em quem o estudante que vi morrer vive de novo! Querido, querido e bom amigo, se soubesses o conforto que me tens dado!
- O pobre mestre-escola não respondeu, mas inclinou-se silenciosamente sobre ela, porque o seu coração estava cheio de comoção.
Continuavam sentados no mesmo sítio quando se aproximou o avô. Ainda não tinham conversado muito, o relógio da igreja avisou que eram horas de começar a escola, e o professor foi-se embora.
- Um bom homem - disse o avô seguindo-o com o olhar.
- Um homem bondoso. Este tenho a certeza que nunca nos fará mal, Nell. Finalmente aqui estamos seguros, hem? Havemos de ficar aqui para sempre. A pequena abanou a cabeça e sorriu.
- Ela precisa de descansar - disse o velho acariciando-lhe o rosto. - Está muito pálida, muito pálida. Já não é como era.
- Como era, quando? - perguntou a criança.
- Ah! - disse o velho. - Deixa ver... quando? Quantas semanas passaram? Posso contá-las pelos dedos? Vamos esquecer esse tempo. Já passou, e é melhor assim.
- Muito melhor, querido avô - respondeu a criança. Vamos esquecer. E se algum dia nos lembrarmos, que seja como de um sonho mau que passou.
- Chiu! - disse o velho fazendo com a mão um gesto brusco e olhando por cima do ombro dela. - Não fales mais desse sonho, e dos desgostos que nos trouxe. Acabaram-se os sonhos maus. Isto é um lugar sossegado, e aqui não há sonhos maus. Não vamos pensar mais nisso, e eles não hão-de perseguir-nos mais. Olhos encovados, faces cavadas, chuva, frio, fome e todos os horrores, temos de esquecer tudo isso se quisermos viver tranquilos aqui.
- Louvado seja Deus! - disse a criança para si mesma.
- Por esta mudança tão boa!
- Eu vou ser paciente - disse o velho. - Vou ser humilde, agradecido e obediente, se me deixares ficar contigo. Mas não fujas de mim. Não te vás embora sozinha. Deixa-me ficar ao pé de ti. Eu prometo que vou ser sempre sincero e fiel, Nell.
- Eu, ir-me embora sozinha? - respondeu a pequena em tom alegre. - Havia de ter graça! Olhe, avôzinho querido, vamos fazer deste lugar o nosso jardim. Porque não? É um bom sítio, amanhã mesmo começamos, e vamos trabalhar juntos, lado a lado.
- Óptima ideia! - exclamou o avô. - Agora vê lá, temos de começar já amanhã.
Nunca houve ninguém tão contente como o velho quando no dia seguinte começaram o seu trabalho. Nem ninguém tão inconsciente de tudo o que aquele lugar significava. Arrancaram a erva alta e as urtigas das campas, apararam os arbustos, desbastaram as raízes, mexeram a terra de forma a torná-la macia e limparam-na das folhas e das ervas. Estavam ainda no ardor do seu trabalho quando a criança, levantando a cabeça, viu que o bacharel estava sentado ali perto e os observava em silêncio.
- Um bom trabalho! - disse ele acenando com a cabeça, quando Nell o cumprimentou. - Fizeram isto tudo esta manhã?
- É ainda muito pouco - disse a criança de olhos baixos.
- Comparado com o que tencionamos fazer.
- Bom trabalho, bom trabalho - disse o bacharel.
- Mas vocês só arranjam as sepulturas das crianças e dos jovens?
- Havemos de cuidar também das outras quando chegar a altura - disse ela em voz baixa e voltando a cabeça.
Isto tinha sido apenas um pequeno incidente, mas fosse propositado, casual, ou ditado por uma simpatia inconsciente da garota para com a juventude, impressionou o avô, que parecia não ter ainda pensado nisso. Olhou um pouco agitadamente para as sepulturas, em seguida olhou ansiosamente para a garota, depois puxou-a para junto de si e pediu-lhe que parasse um pouco para descansar.
Havia qualquer coisa, algo que há muito ele tinha esquecido, e que lhe surgia agora muito esbatido na memória. Não desaparecia, como havia acontecido com outras ideias mais marcantes, antes teimava em lhe vir ao pensamento, repetidas vezes, nesse dia e nos dias seguintes.
De uma outra vez, estavam eles ainda a trabalhar, a garota reparou que ele se voltava muitas vezes para ela e a olhava com ar inquieto, como se estivesse a tentar resolver alguma dúvida que o fizesse sofrer, ou a tentar concentrar pensamentos dispersos, e insistiu com ele para que lhe dissesse o motivo, mas ele disse-lhe que não era nada, nada, encostou a cabeça dela ao braço dele, acariciou-lhe o lindo rosto com a mão e murmurou que ela estava a ficar mais forte de dia para dia, e que em breve seria uma mulher.
Daí em diante, nasceu no espírito do velho uma solicitude pela pequena que jamais adormecia ou o abandonava. Existem cordas no coração humano, cordas estranhas e caprichosas, que só vibram incidentalmente. Mantêm-se mudas e insensíveis aos apelos mais apaixonados e tocantes, e acabam por responder ao toque mais leve e casual.
Nos espíritos mais insensatos e pueris dá-se por vezes um conjunto de reflexões em cadeia, raramente conduzidas pelo saber ou pela razão, mas que por vezes se revelam, como tem acontecido com algumas importantes verdades, apenas por um acaso, e quando o seu descobridor tem em mente objectivos perfeitamente banais e simples. A partir daí, o velho nunca mais se esqueceu da dedicação da garota e da sua fragilidade.
A partir do momento em que se dera aquele Pequeno incidente, ele, que a vira a trabalhar a seu lado de tantas dificuldades e privações, pensava nela apenas como uma companheira do infortúnio que ele próprio experimentava duramente, e não a lamentava mais do que a si próprio, sentiu de repente brotar em si um sentimento de gratidão por tudo o que lhe devia, e a consciência de todas as atribulações pelas quais ela estava a passar.
A partir daí, nunca mais, nem num momento de inadvertência, ele teve um pensamento de preocupação por si próprio, pelo seu próprio conforto, nenhum pensamento egoísta que distraísse a sua mente do terno objecto do seu amor.
Seguia-a de um lado para outro, à espera que ela se cansasse e se viesse apoiar ao seu braço, sentava-se na frente dela, ao canto da chaminé, feliz por olhar para ela, até ela levantar a cabeça e sorrir para ele como antigamente.
Ocupava-se discretamente das tarefas caseiras que lhe pareciam demasiado pesadas para a neta, levantava-se, nas noites frias e escuras, para a ouvir respirar enquanto dormia, e por vezes ficava durante horas acocorado junto da cama dela, apenas para lhe segurar ao de leve na mão. Aquele que tudo sabe é o único a conhecer as esperanças, os medos, os pensamentos de profunda afeição que passavam, por aquela mente confusa, e as mudanças que se tinham dado naquele pobre velho.
Por vezes, já então tinham passado algumas semanas, a criança, prostrada, embora não especialmente cansada, passava serões inteiros ao canto da chaminé. Nessas alturas, o mestre-escola ia buscar alguns livros e lia para ela em voz alta. Era raro passar uma tarde em que o bacharel não aparecesse para ler um pouco também. O velho sentava-se a ouvir, não compreendendo muito bem aquilo que ouvia, mas com os olhos postos na criança. E se ela sorria ou se alegrava com a história, ele dizia que era uma boa história e começava a gostar do livro. Às vezes, nas conversas que tinham à tardinha, o bacharel contava uma história que lhes agradava, como as histórias sempre agradam, o velho tentava, com dificuldade, guardá-las na memória... Não, mais do que isso. Quando ele se ia embora o velho ia muitas vezes atrás dele, e pedia-lhe humildemente que lhe repetisse esta ou aquela passagem, de forma a ajudá-lo a obter um sorriso de Nell.
Mas estas ocasiões eram raras, felizmente. A garota preferia estar lá fora, a passear no jardim. Vinham também grupos de pessoas visitar a igreja, e os que vinham falavam a outros a respeito da pequena, e encaminhavam outros grupos, e assim, naquela altura do ano, tinham grupos quase todos os dias.
O velho seguia-os a pouca distância dentro do edifício, escutando a voz que tanto amava. E quando os visitantes se despediam de Nell ele misturava-se com eles para apanhar fragmentos das suas conversas, ou com o mesmo intuito quando eles passavam deixava-se ficar ao portão, com a sua cabeça grisalha descoberta. Todos eles elogiavam a criança, a sua beleza e inteligência, e ele ficava orgulhoso de os ouvir, mas o que seria que eles diziam, que lhe oprimia o coração, que o fazia chorar, soluçar sozinho nalgum canto? Ora... se até perfeitos estranhos, sem nenhum sentimento por ela para além do interesse do momento, que partiriam e na semana seguinte já teriam esquecido a sua existência, até esses se apercebiam, sentiam pena dela, até esses se despediam do avô compadecidos e se afastavam a murmurar entre si.
Até as pessoas da aldeia, e todas elas gostavam da pobre Nell, até elas sentiam a mesma coisa por ela, uma ternura misturada com compaixão que aumentava de dia para dia. Até os rapazes da escola, estouvados como eram, gostavam dela. O mais maroto de entre eles ficava triste se no caminho da escola não a via no seu lugar do costume e desviava-se do seu caminho para ir às grades da janela perguntar por ela.
Se ela estava na igreja talvez eles espreitassem, discretamente, pela porta entreaberta, mas não lhe dirigiam a palavra a não ser que ela se levantasse e fosse falar com eles. Existia um sentimento geral que a elevava acima de todos eles.
E assim era também ao Domingo. Os que se encontravam na igreja eram, todos eles, gente humilde, porque o castelo onde a família importante da terra tinha vivido estava agora vazio e em ruínas, e num raio de dez quilómetros não havia senão gente pobre. Ali, como por todo o lado, toda a gente se interessava por Nell. Juntavam-se à volta dela, antes e depois do culto, as crianças pequenas agarravam-se-lhe às saias, e as pessoas de idade interrompiam os seus mexericos para a cumprimentarem alegremente. Ninguém, fossem novos ou velhos, seria capaz de passar pela pequena sem lhe dar uma palavra amiga. Muitos, que vinham de cinco quilómetros e mais de distância, lhe traziam pequenos presentes, e os mais humildes desejavam-lhe felicidades.
Ela tinha procurado as crianças que tinha visto a brincar no cemitério. Uma delas, aquele garoto que tinha falado do irmão, era o seu amiguinho favorito, e muitas vezes se sentava ao lado dela na igreja, ou subia com ela até ao cimo do campanário. Ficava encantado sempre que a ajudava, ou pensava que ajudava, e depressa se tomaram bons amigos de brincadeira.
Aconteceu que um dia, estava Nell a ler no seu lugar do costume, o garoto veio a correr para ela com os olhos cheios de lágrimas, e depois de a olhar, desesperado, por um momento, deitou-lhe avidamente os braços ao pescoço.
-O que foi? - perguntou Nell tranquilizando-o. - O que é que aconteceu?
- Ainda não foste! - exclamou o pequeno abraçando-a mais ainda. - Não, não, ainda não!
Ela olhou surpreendida para ele, afastou-lhe os cabelos do rosto, beijou-o e perguntou-lhe o que é que ele queria dizer com isso.
- Eu não quero que te vás embora, que passes a ser um anjo, minha querida Nell! - exclamou o rapaz. - Nós não os vemos, não vêm brincar connosco, nem conversar... deixa-te ser como és, que é muito melhor!
- Não percebo! - disse a garota. - Explica-me o que é que queres dizer com isso.
- E porque andam a dizer... - disse o rapazito olhando-a no rosto - que antes que os passarinhos voltem a cantar vais estar no meio deles. Mas não vais, pois não? Não nos deixes, Nell! Eu bem sei como o céu é bonito, mas não nos deixes!
A pequena deixou cair a cabeça e tapou o rosto com as mãos.
- Ela não pode suportar a ideia! - exclamou o rapaz exultando por entre as lágrimas. - Não hás-de ir! Tu bem sabes como nós havíamos de ficar tristes. Minha querida Nell, diz-me que vais ficar connosco. Oh! Por favor, por favor, diz-me que sim!
O garotinho juntou as mãos e caiu de joelhos aos pés dela.
- Ao menos olha para mim, Nell - disse o rapaz. - Diz-me que ficas. Assim já sei que eles estão enganados, e já não choro mais. Não me queres dizer que sim, Nell?
A garota continuava com a cabeça caída e o rosto mergulhado nas mãos, e não se ouvia mais nada para além dos seus soluços.
- Os anjos são bons - continuou o rapazito - e ao fim de pouco tempo haviam de compreender, e de ficar contentes por tu teres ficado aqui connosco. O Willy foi-se embora para junto deles, e à noite, na nossa caminha, sinto muito a falta dele, mas ele não sabia disso, porque se soubesse nunca me teria deixado, tenho a certeza.
A pequena continuava sem lhe saber responder, soluçava e sentia o coração despedaçar-se.
- Porque é que te hás-de ir embora, querida Nell? Eu bem sei que não havias de te sentir feliz quando soubesses que nós tínhamos ficado a chorar a tua perda. Dizem que o Willy agora está no céu, e que lá é sempre Verão, mas eu sei que ele fica triste quando me sento sobre a sua campa, e ele não me pode vir beijar. Mas se fores para junto dele, Nell... disse o garotinho acariciando-a e encostando o seu rosto ao dela - gosta dele, por amor de mim. Diz-lhe que eu ainda gosto muito dele, e que também gostava muito de ti, e quando eu pensar que vocês estão um com o outro, e se sentem felizes, hei-de tentar suportar tudo muito melhor, e nunca te hei-de dar desgostos, nem fazer maldades. A sério que não!
A pequena deixou que o rapazinho lhe pegasse nas mãos e as pusesse à volta do pescoço dele. Houve um silêncio por entre lágrimas, mas daí a pouco ela olhou para ele com um sorriso, e numa voz serena e doce prometeu-lhe que ficaria e seria sua amiga enquanto que o Céu lho permitisse. Ele bateu palmas de alegria e agradeceu-lhe muitas vezes. Em seguida ela pediu-lhe que não contasse a ninguém o que tinha acabado de se passar entre eles, e ele prometeu solenemente que nunca o faria.
E de facto não o fez, pelo menos que Nell tivesse conhecimento, mas passou a ser o companheiro de todos os seus calmos passeios e das suas meditações, e nunca mais voltou a tocar no assunto, porque percebia que a tinha magoado, embora não soubesse porquê. Mas não parecia ter ficado completamente sossegado, pois muitas vezes, à noitinha, já escuro, vinha até junto da sua porta e chamava-a timidamente para saber se ela estava bem. Ela respondia-lhe que sim, convidava-o a entrar, e ele vinha sentar-se num banquinho aos pés dela, e ali ficava, pacientemente, até que viessem buscá-lo e o levassem para casa.
Também era certo que mal despontava a manhã o encontravam a rondar a casa, para saber se ela estava bem. E fosse ela para onde fosse, da manhã, à tarde ou à noite, ele abandonava os seus amigos de jogos e brincadeiras para lhe vir fazer companhia.
- É um bom amiguinho - disse um dia o velho coveiro a Nell. - Quando o irmão dele mais velho morreu... dizer mais velho parece uma coisa esquisita, porque tinha só sete anos... lembro-me de que foi para ele um grande desgosto.
A garota lembrou-se das palavras do mestre-escola, e sentiu como eram verdadeiras até em relação a uma criança tão pequena.
- Creio que ele se tornou numa criança um pouco triste
- disse o velho. - Embora seja também por vezes muito alegre. Aposto que tu e ele já estiveram à escuta ao pé do poço.
- Não estivemos - respondeu a criança. - Tenho receio de me aproximar. Não tenho ido muitas vezes para esse lado da igreja, e não conheço bem o piso.
- Vem comigo - disse o velho. - Eu conheço-o desde que era rapaz. Vem!
Desceram os estreitos degraus que conduziam até à crip- ta, e pararam a meio da arcada sombria, num ponto lúgubre.
- É aqui - disse o velho. - Dá-me a tua mão, enquanto tiras a tampa, não vás escorregar e cair lá dentro. Eu já sou muito velho, quero dizer... tenho reumatismo, não me posso curvar.
- Que sítio escuro e horrível! - exclamou a criança.
- Espreita! - disse o velho apontando lá para dentro. A criança obedeceu, e olhou para dentro do buraco.
- Parece um túmulo! - disse o velho.
- Pois parece - respondeu a pequena.
- Tenho pensado muitas vezes - disse o coveiro. - Isto deve ter sido escavado para tornar este lugar ainda mais sombrio, e para tornar os frades mais santos. Mas vai ser entulhado e fechado.
A criança continuava a olhar pensativamente para o poço.
- Vamos a ver... - disse o coveiro - quais serão as alegres cabeças sobre as quais a terra se irá fechar, quando impedirem a luz de entrar aqui dentro. Só Deus sabe. Vão fechá-lo na Primavera.
«Os passarinhos voltam a cantar na Primavera» - pensou a criança encostando-se ao parapeito da janela e olhando o pôrdo-sol. - «A Primavera! A estação mais feliz e mais bonita!»
Um dia ou dois depois do chá que Quilp lhe oferecera no ermo, Mr. Swiveller entrou no escritório de Sampson Brass à hora do costume e, encontrando-se sozinho naquele Templo de Probidade, pousou o chapéu sobre a secretária e, tirando da algibeira um pedaço de crepe preto, entreteve-se a enrolá-lo à volta e a prendê-lo com alfinetes como se fosse uma fita de chapéu. Quando terminou de colocar este novo enfeite olhou complacente para a sua obra e voltou a pôr o chapéu, muito descaído para cima de um olho, para reforçar o seu ar enlutado.
Tendo terminado estes preparativos, e dando-se por satisfeito, enfiou as mãos nos bolsos e começou a caminhar de um lado para o outro do escritório com passos cadenciados.
- Tem sido sempre assim comigo - disse Mr. Swiveller.
- Sempre! Desde sempre! Desde a infância que os meus maiores desejos nunca são realizados. Nunca amei uma árvore ou uma flor que não fossem as primeiras a morrer. Nunca desejei uma doce gazela que me acarinhasse com os seus olhos escuros e aveludados que assim que elas me conheciam e começavam a gostar de mim iam a correr casar com um vendedor de hortaliça.
Esmagado por estes pensamentos, Mr. Swiveller parou de repente junto à cadeira dos clientes e deixou-se cair nos seus braços abertos.
- E isto... - disse Mr. Swiveller com uma espécie de calma irónica. - É a vida, acho eu! Ora, claro! E porque não? Eu dou-me por satisfeito. Vou usar... - disse Richard tirando de novo o chapéu e olhando para ele com uma ferocidade que mostrava claramente que só razões de carácter económico o impediam de o esborrachar a pontapé, - vou usar este símbolo da perfídia feminina, em lembrança daquela com quem não me cruzarei nunca mais, aquela em quem nunca mais confiarei, aquela que iria envenenar o resto dos meus dias. Ah! Ah! Ah!
Talvez seja conveniente explicar, para que não pareça existir uma incongruência no fecho deste solilóquio, que Mr. Swiveller não o terminou com uma alegre gargalhada, que certamente estaria em desacordo com as suas solenes reflexões, mas antes, teatralmente, terminou a sua actuação com aquilo que em melodrama é chamado «uma gargalhada de vilão», porque parece que os vilões riem sempre por sílabas, e são sempre três, nem mais uma nem menos uma, o que é uma característica curiosa destas personagens, digna de menção.
Mal esse riso sinistro acabava de se extinguir no ar, e ainda Mr. Swiveller estava, com um ar muito aborrecido, sentado na cadeira dos clientes, quando ouviu um toque de campainha ou, para tomarmos em consideração o estado de espírito de Mr. Swiveller, um dobre a finados. Abrindo rapidamente a porta, deparou-se-lhe o rosto expressivo de Mr. Chuckster, e entre este e ele próprio foi trocada uma saudação fraternal.
Que diabo de hora para você vir para este velho matadouro pestífero! - disse o visitante apoiando-se sobre uma perna e abanando a outra descontraidamente.
- É verdade - respondeu Dick.
- Pois é! - retorquiu Mr. Chuckster com aquele ar brincalhão que lhe ficava tão bem. - Eu também acho! O meu amigo sabe que horas são? Nove e meia da manhã!
- Não quer entrar? - perguntou Dick. - Estou só. Swiveller «solus». «Eis a hora dos sortilégios.»
- «Horas nocturnas!»
- «Em que os cemitérios se entreabrem»
- «e as campas deixam sair os seus mortos.»
Depois desta citação em forma de diálogo, cada um deles tomou a sua atitude, e regressando à prosa entraram para o escritório. Estes momentos de entusiasmo eram vulgares entre os Gloriosos Apoios, e eram a base, o elo que os mantinha unidos e os elevava acima deste mundo frio e triste.
- E como tem passado o meu amigo? - disse Chuckster puxando um banco. - Tive de vir para estes lados tratar de uns assuntos particulares, e não podia passar por aqui sem vir deitar uma olhadela, mas palavra de honra, não estava à espera de o encontrar. Ainda é tão cedo!
Mr. Chuckster expressou os seus agradecimentos, e como pelo decorrer da conversa se depreendia que estava de boa saúde, e que Mr. Chuckster estava nas mesmas invejáveis condições, um e outro, de acordo com um solene preceito da velha Irmandade a que pertenciam, se puseram a cantar um fragmento de «Está tudo bem», rematado com um belo efeito musical.
- E que novidades me conta? - perguntou Richard.
- A cidade está tão parada, meu caro amigo - respondeu Mr. Chuckster, - como a tampa de um forno holandês. Novidades é coisa que não há. A propósito: aquele seu inquilino é uma pessoa muito estranha. Consegue baralhar a mais arguta inteligência! Nunca vi um indivíduo assim!
- O que é que ele fez agora? - perguntou Dick.
- Por Júpiter, meu caro senhor! - respondeu Chuckster puxando de uma caixa de rapé oblonga com a tampa curiosamente ornamentada com uma cabeça de raposa. - Aquele homem é impossível de compreender. Imagine você que ele agora fez amizade com o nosso escriturário. Não é que isso tenha mal nenhum, mas ele é uma pessoa tão lenta, tão branda... afinal, se ele queria um amigo, porque é que não escolheu um que soubesse uma coisa ou duas, e cujos modos e convívio lhe pudessem ser de alguma utilidade? Eu tenho os meus defeitos, senhor - disse Mr. Chuckster.
- Não, não - interpôs Swiveller.
- Oh, sim, tenho, tenho os meus defeitos, não há ninguém que conheça os seus defeitos tão bem como eu conheço os meus - disse Mr. Chuckster. - Mas não sou piegas. Os meus piores inimigos... todos os homens, senhor, têm os seus inimigos, e eu tenho os meus... nunca me acusaram de ser piegas. E digo-lhe uma coisa. Se eu não tivesse mais qualidades, aquelas qualidades que geralmente fazem com que um homem ganhe a estima de outro, do que o nosso escriturário, era melhor ir roubar um queijo de Cheshire, atá-lo ao pescoço, e deitar-me a afogar. Morreria no opróbio, como vivera, mas fazia-o, dou-lhe a minha palavra de honra.
Mr. Chuckster fez uma pausa, bateu ao de leve com o nó do dedo indicador na cabeça da raposa, mesmo em cima do nariz, olhou fixamente para Mr. Swiveller como se lhe quisesse dizer que, se pensava que ele ia espirrar, se enganava redondamente.
- E não contente, veja o senhor - disse Mr. Chuckster - com fazer amizade com Abel, travou também conhecimento com a mãe e o pai dele. Assim que regressou daquela louca perseguição passa lá a vida, passa realmente lá a vida. E ainda protege o rapazola presumido! O meu amigo vai ver como ele vai passar a andar constantemente de aqui para lá. E no entanto, para além das fórmulas habituais de cortesia, não creio que tenha trocado comigo meia dúzia de palavras. Agora, pela salvação da minha alma - disse Mr. Chuckster abanando a cabeça gravemente como as pessoas fazem para indicar que as coisas foram longe demais. - Tudo isto é uma questão tão mesquinha que se eu não me preocupasse com o patrão e não soubesse que ele não era capaz de se desenvencilhar sem mim, seria obrigado a cortar relações, não teria alternativa.
Mr. Swiveller, que se sentou noutro banco, em frente de Mr. Chuckster, avivou o lume excedendo-se em simpatia, mas não disse nada.
- Quanto ao rapazola presumido, senhor - prosseguiu Mr. Chuckster assumindo ares de profeta, - vai ver que ele ainda acaba mal. Na nossa profissão aprendemos alguma coisa sobre a natureza humana e, pode acreditar, o rapaz que voltou para trabalhar, para acabar de ganhar o xelim que lhe tinham dado, não tarda muito que venha a mostrar- se como realmente é. É um reles gatuno, senhor. Não pode ser outra coisa.
Mr. Chuckster, que estava muito exaltado, teria provavelmente prosseguido com o mesmo assunto, e em tom mais enérgico, se não tivesse ouvido uma pancada na porta, que parecia anunciar a visita de alguém que vinha em negócios, e o assustou de uma forma que não condizia nem um pouco com a sua declaração de há pouco. Mr. Swiveller, ouvindo o mesmo som, fez o seu banco rolar sobre uma perna para debaixo da secretária, onde enfiou o atiçador do fogão que, no meio da confusão, se esquecera de largar, e gritou:
- Entre!
E quem havia de ser senão o próprio Kit, que fora a causa da ira de Mr. Chuckster? Nunca um homem recuperou a sua coragem tão depressa, nem tomou um aspecto tão feroz, como Mr. Chuckster quando viu quem era. Mr. Swiveller olhou para ele por um momento fixamente, depois saltou do banco, tirou o ferro do fogão do sítio onde estava escondido, e começou a fazer exercícios de esgrima com todos os ataques e defesas possíveis, tomado de um autêntico frenesi.
- O cavalheiro está em casa? - perguntou Kit muito surpreendido com esta recepção pouco comum.
Antes que Mr. Swiveller pudesse responder- lhe, Mr. Chuckster aproveitou a ocasião para protestar indignadamente contra a forma como a pergunta fora formulada, que lhe pareceu desrespeitosa e arrogante, uma vez que o inquiridor, vendo ali presentes dois cavalheiros, deveria ter- se referido ao outro cavalheiro ou, uma vez que não era impossível que aquele que procurava fosse de condição inferior, deveria ter mencionado o seu nome, deixando que os seus interlocutores determinassem a forma como deveria ser tratado.
Mr. Chuckster observou ainda que tinha razões para crer que esta forma de se dirigir lhe era especialmente endereçada, e que ele não era homem para admitir abusos de confiança, o que certas pessoas convencidas, que ele não fazia questão de mencionar ou descrever em detalhe, poderiam verificar à sua própria custa.
- Refiro- me ao cavalheiro lá de cima - disse Kit voltando-se para Dick Swiveller. - Ele está em casa?
- Porquê? - acrescentou Dick.
- Porque se estiver, eu trago uma carta para ele.
- De quem? - perguntou Dick.
- De Mr. Garland.
- Oh! - disse Dick muito delicadamente. - Então o senhor pode entregar-ma a mim. E se tem de esperar pela resposta, fará o favor de esperar no corredor, meu caro senhor, que é uma divisão arejada e bem ventilada.
- Muito obrigado - respondeu Kit. - Mas fiquei de lha entregar pessoalmente, se o senhor não se importa.
A excessiva ousadia desta resposta deixou Mr. Chuckster de tal forma atordoado, e de tal forma preocupado com a honra do seu amigo, que declarou que, se determinadas razões oficiais o não detivessem, seria capaz de matar Kit ali mesmo. Estava muito ressentido por aquilo que considerava uma afronta, e dadas as extraordinárias circunstâncias agravantes de que esta se revestia, teria de receber a aprovação de qualquer júri inglês que, ele não duvidava, não deixaria de dar um veredicto de Homicídio Justificado, acompanhado dos maiores elogios ao carácter e à moral do vingador.
Mr. Swiveller, que não estava tão irritado com a situação, estava um pouco envergonhado com a atitude do amigo, e bastante baralhado, sem saber o que fazer, uma vez que Kit parecia perfeitamente calmo e bem humorado. Nessa altura ouviu-se a voz do cavalheiro solitário chamar energicamente cá para baixo.
- Não veio uma pessoa à minha procura? - perguntou o hóspede.
- Veio sim senhor - respondeu Dick. - É claro.
- E onde é que ele está? - trovejou o cavalheiro solitário.
- Está aqui - respondeu Mr. Swiveller. - Então, rapaz? Não ouviste que te mandavam subir? És surdo?
Kit, ao que pareceu, achou que não valia a pena entrar noutra discussão, e subiu a escada rapidamente deixando os Gloriosos Apoios mudos, a olhar um para o outro.
- Eu não lhe disse? - perguntou Mr. Chuckster. - O que é que você acha?
Mr. Swiveller, que no fundo não era má pessoa, e na conduta de Kit não via propriamente uma vilania de enormes proporções, não sabia muito bem o que responder. Foi no entanto aliviado do seu estado de consternação pela entrada de Mr. Brass e da sua irmã Sally, chegada essa perante a qual Mr. Chuckster se retirou precipitadamente.
Mr. Brass e a sua bela companheira pareciam, durante o seu frugal pequeno-almoço, ter estado a conversar sobre qualquer assunto de grande interesse e importância. Quando isto acontecia, apareciam geralmente no escritório cerca de meia hora mais tarde do que o habitual, muito sorridentes, como se a conferência que tinham tido tivesse tranquilizado as suas mentes e alumiado o seu acidentado caminho. No momento presente, pareciam particularmente satisfeitos. Miss Sally dava mostras dos seus modos mais untuosos, e Mr. Brass esfregava as mãos com um ar extremamente feliz e jovial.
- Então, Mr. Richard? - perguntou Mr. Brass. - Como é que estamos esta manhã? Estamos frescos e alegres, Mr. Richard, hem?
- Muito bem, senhor - respondeu Dick.
- Optimo! - disse Brass. - Devíamos sentir-nos alegres como cotovias, Mr. Richard. Não é verdade? Vivemos num mundo muito agradável, senhor. Muito agradável. Existem nele pessoas más, mas se não existissem também não haveria lugar para bons advogados. Houve correio esta manhã, Mr. Richard?
Mr. Richard respondeu negativamente.
- Ah! - disse Brass. - Não tem importância. Se hoje o volume de negócios é pequeno, amanhã será maior. Uma ambição moderada é a chave da felicidade na vida. Também não veio ninguém?
- Apenas um amigo meu. - respondeu Dick. - Que nunca nos falte...
- Um amigo - acrescentou rapidamente Mr. Brass. - Nem uma garrafa para lhe oferecer. Não é o que diz a canção? É uma bela canção, Mr. Richard. Uma bela canção! Gosto muito de espírito que ela encerra. Ah! Ah! O seu amigo é o rapaz do escritório de Witherden, não é? Sim, que nunca nos falte um... e não veio mais ninguém, Mr. Richard?
- Só uma visita para o hóspede - respondeu Mr. Swiveller.
- Ai sim? - exclamou Brass. - Uma visita para o hóspede, hem, Mr. Richard?
- Sim - disse Dick um tanto desconcertado com a excessiva boa disposição do patrão. - Está agora lá em cima com ele.
- Com ele, agora? - exclamou Brass. - Ah! Ah! Então deixemo-los estar, satisfeitos e à vontade, trá lá lá. Não acha, Mr. Richard? Ah! Ah!
- Oh, sim, claro - respondeu Dick.
- E quem é - perguntou Mr. Brass mexendo nos seus papéis - a visita do nosso hóspede? Não é uma senhora, espero eu! Mr. Richard, hem? A moral desta casa, você compreende... e quando uma mulher bonita resolve fazer uma loucura... etc... hem, Mr. Richard?
- É um outro rapaz, que também pertence a Witherden, mais ou menos - disse Richard. - Chamam-lhe Kit.
- Kit, hem? - disse Brass. - É um nome esquisito, é nome de rebeca de mestre de dança, hem, Mr. Richard? Ah! Ah! Então Kit está lá em cima, hem? Oh!
Dick olhou para Miss Sally, admirado que ela não tentasse moderar a excessiva exuberância de Mr. Sampson, mas como ela não o fazia, parecendo pelo contrário dar-lhe o seu acordo tácito, depreendeu que eles tinham certamente acabado de enganar alguém e de cobrar a conta.
- Terá a bondade, Mr. Richard - disse Brass pegando numa carta que estava sobre a sua secretária. - De ir rapidamente levar isto a Peckham Rye? Não tem resposta, mas é confidencial, e convinha que fosse entregue em mão. Ponha na conta do escritório a carruagem de regresso. Não poupe o escritório esprema tudo o que puder. Divisa de escriturário, não é, Mr. Richard? Ah! Ah!
Mr. Swiveller despiu solenemente o seu jaquetão náutico, vestiu o casaco, tirou o chapéu do bengaleiro, meteu a carta na algibeira e saiu.
Logo a seguir Miss Sally levantou-se e, sorrindo docemente para o irmão, que respondeu com um aceno de cabeça e tocando no nariz, saiu também.
Logo que Sampson Brass se viu sozinho deixou a porta do escritório aberta, sentou- se mesmo defronte, de forma a poder ver qualquer pessoa que descesse a escada e se dirigisse para a porta da rua, e começou a escrever rápida e alegremente.
Enquanto isto, numa voz muito pouco musical, ia cantarolando alguns trechos que pareciam referir- se a uma união entre a Igreja e o Estado, já que eram um misto de hinos religiosos e do «God save the King».
E assim, durante um longo período de tempo, o notário de Bevis Marks ficou a escrever e a cantarolar. Só parava, de tempos a tempos, para se pôr à escuta com o seu ar astuto, e como não ouvia nada punha-se a cantar mais alto e a escrever mais devagar.
Por fim, durante uma destas pausas, ouviu a porta do quarto do hóspede abrir-se e fechar-se, e o som dos passos de alguém que descia as escadas. Então Mr. Brass parou completamente de escrever, e com a caneta na mão pôs- se a cantarolar o mais alto que podia, abanando a cabeça para um lado e para o outro como um homem que tivesse dado à música toda a sua alma, e sorrindo com um ar perfeitamente seráfico.
Foi para este espectáculo tocante que as escadas e os harmoniosos sons conduziram Kit. Quando este chegou junto da porta Mr. Brass parou de cantar mas não de sorrir, acenou-lhe amavelmente, e ao mesmo tempo fez-lhe sinal com a pena para que entrasse.
- Kit - disse Mr. Brass da forma mais amável que se possa imaginar. - Como estás?
Kit, um pouco desconfiado, respondeu polidamente e já tinha a mão no trinco da porta quando Mr. Brass o chamou delicadamente.
- Não te vás ainda embora, por favor, Kit- disse o notário com o ar misterioso de quem tinha algum negócio para tratar.
- Chega aqui, por favor. Oh! Santo Deus! Santo Deus! Quando olho para ti - disse o notário descendo do seu banco e pondo-se de costas para a lareira, - lembro-me do rosto mais lindo que os meus olhos já viram. Lembro-me de te ver lá, umas duas ou três vezes, quando tomámos posse da loja. Ah, Kit, meu amigo, os cavalheiros da minha profissão têm por vezes de cumprir deveres muito tristes! Não tenhas inveja de nós! Não tenhas, realmente!
- Não tenho, não senhor. As pessoas como eu não percebemos nada dessas coisas!
- A nossa única consolação, Kit - continuou o notário olhando para ele com um ar tristemente pensativo. - É que não podemos mudar o vento, podemos abrandá-lo um pouco. Podemos amaciá-lo, digamos assim, para as ovelhas tosquiadas.
«Tosquiadas!», pensou Kit. «E bem tosquiadas!», mas não o disse.
- Naquela ocasião, Kit - disse Mr. Brass, - naquela ocasião à qual acabo de aludir, travei uma dura batalha com Mr. Quilp, que é um homem muito duro, para obter dele alguma indulgência. Podia ter perdido o meu cliente. Mas a luz da virtude inspirou-me e eu venci.
«Afinal ele não é tão mau como isso...», pensou o ingénuo Kit, enquanto o notário apertava os lábios como um homem que estivesse em luta com os seus melhores sentimentos.
- Eu respeito-te, Kit - disse Brass com emoção. - Observei a tua conduta o suficiente para te respeitar, embora a tua condição seja humilde e os teus meios sejam modestos. Eu não olho para o colete, olho para o coração. Os quadrados do colete são apenas as grades da gaiola. O coração é o passarinho. Ah! Quantos desses meigos pássaros não vivem numa situação de permanente conflito, sendo obrigados a pôr o bico de fora das grades e a picar a humanidade!
Esta imagem poética, que Kit interpretou como uma alusão especial ao seu próprio colete axadrezado, deixou-o enternecido. A voz e os modos de Mr. Brass também contribuíam para isso, pois ele falava com a bondosa serenidade de um eremita, e só lhe faltava uma corda à volta do seu casacão ensebado e uma caveira em cima da chaminé para a sua transformação ser completa.
- Bem! Bem! - disse Sampson sorrindo como uma boa pessoa que se compadecesse das suas próprias fraquezas ou das dos outros. - Mas isso agora não vem ao caso. Isto é para ti - enquanto falava apontava para duas moedas de meia coroa que estavam sobre a mesa.
Kit olhava para as moedas e para Sampson, e hesitava.
- Para ti - disse Brass.
- Da parte de...
- Não interessa da parte de quem - replicou o notário.
- Pensa que são da minha parte, se quiseres. Temos amigos excêntricos lá em cima, Kit, e não devemos fazer muitas perguntas nem falar demais, percebes? Aceita-as, e pronto. E, aqui entre nós, não me parece que sejam as últimas que vais receber do mesmo sítio. Espero bem que não. Adeus, Kit. Adeus!
Agradecendo muito, e censurando-se por ter suspeitado de uma pessoa que, afinal, logo na primeira conversa, demonstrava ser um homem muito diferente daquilo que ele julgara, Kit pegou no dinheiro e foi-se embora para casa. Mr. Brass ficou a aquecer-se junto à lareira e retomou simultaneamente os seus exercícios vocais e o seu sorriso seráfico.
- Posso entrar? - perguntou Miss Sally, espreitando da porta.
- Sim, claro - respondeu-lhe o irmão.
- E então? - perguntou Miss Brass.
- Sim - respondeu Sampson. - Eu diria que podemos considerar a coisa como feita.
A indignada apreensão de Mr. Chuckster não era sem fundamento. De facto, a amizade entre o cavalheiro solitário e Mr. Garland não só não esfriara mas depressa crescera e florescera desmedidamente. Depressa passaram a conviver constantemente, e como o cavalheiro solitário estivesse neste momento a passar menos bem de saúde, provavelmente em consequência da agitação que vivera e do posterior desapontamento por que passara, tinham agora motivo para uma correspondência ainda mais assídua. Assim, um dos membros do pessoal de Abel Cottage, de nome Finchley, ia e vinha de lá para Bevis Marks quase todos os dias.
Como o pónei tinha agora retirado todos os disfarces, e sem cerimónia nenhuma se recusava a ser guiado por qualquer outra pessoa que não fosse Kit, acontecia que viesse o velho Mr. Garland, ou viesse Mr. Abel, Kit tinha de os acompanhar.
Com isto Kit ascendera à posição de portador de todas as mensagens e recados. Assim, e enquanto que o cavalheiro solitário não melhorou, Kit ia a Bevis Marks todas as manhãs com a regularidade de um carteiro.
Mr. Sampson Brass, que sem dúvida tinha as suas razões para estar de olho alerta, rapidamente aprendeu a distinguir o trotar do pónei e o rodar da charrete ao virar da esquina. De cada vez que estes sons chegavam aos seus ouvidos pousava imediatamente a sua pena e punha-se a esfregar as mãos cheio de contentamento.
- Ah! Ah! - exclamava ele. - Cá está o pónei outra vez. Belo pónei! E tão dócil... hem, Mr. Richard? Você não acha?
Dick respondia-lhe qualquer coisa à toa e Mr. Brass, erguendo-se sobre a última trave do seu banco de forma a melhor espreitar por cima da gelosia, punha-se a observar os visitantes.
- O velho outra vez! - exclamava ele. - Um cavalheiro muito digno, Mr. Richard. Uma expressão encantadora, meu amigo. Tão calmo! Todo ele respira benevolência! É como eu imagino o Rei Lear, quando era senhor do seu reino, Mr. Richard. Bem humorado, de cabelos brancos, um pouco calvo, um pouco crédulo... Ah! Um bom tema de meditação, senhor. Muito bom!
Em seguida, já Mr. Garland se tinha apeado e começado a subir a escada, Sampson acenou para Kit e sorriu-lhe através da janela e a seguir saiu para a rua para o cumprimentar e entabular uma conversa parecida com esta:
- Está admiravelmente bem tratado, Kit - Mr. Brass dizia isto e acariciava o pónei. - Faz-te honras! E como ele está lustroso e brilhante! Parece que foi literalmente envernizado de alto a baixo!
Aqui Kit levou a mão ao chapéu, sorriu, acariciou o pónei por sua vez e expressou a sua convicção de que Mr. Brass não havia de encontrar muitos como aquele.
- Que belo animal! - exclamou Brass. - E que inteligente!
- Valha-o Deus! - replicou Kit - Ele percebe tudo o que o senhor está a dizer tão bem como qualquer cristão.
- A sério? - exclamou Brass que já tinha ouvido a mesma coisa, no mesmo sítio, dita pela mesma pessoa e com as mesmas palavras uma dúzia de vezes, mas mesmo assim paralisou de espanto. Santo Deus!
- Eu não imaginava, da primeira vez que vi este pónei, sabe o senhor - disse Kit satisfeito por o advogado mostrar tanto interesse pelo seu amigo - que ele e eu viríamos a ser amigos tão íntimos.
- Ah! - acrescentou Mr. Brass, a transbordar de princípios de moral e virtude. - Um excelente tema de meditação para ti, excelente! Um tema de justo orgulho e satisfação, Christopher. A honestidade é o melhor caminho, isso foi uma coisa que eu descobri por mim. Esta manhã perdi quarenta e sete libras e dez xelins por ter sido honesto, mas hei-de recuperá-las, hei-de recuperá-las.
Mr. Brass fez um ar manhoso, coçou o nariz com a ponta da sua pena e olhou para Kit com lágrimas nos olhos. Kit pensou que se alguma vez houve um homem honesto, contra a sua própria aparência, esse homem era Sampson Brass.
- Um homem - disse Sampson - que perde quarenta e sete libras e dez xelins apenas por ser honesto, é um homem invejável. Se tivessem sido oitenta libras, a sua satisfação ainda devia ser maior. Cada libra perdida representa cem vezes mais em felicidade ganha. Há uma voz que me fala dentro de mim, Christopher - exclamou Mr. Brass sorrindo e batendo no peito - e que canta, e toda ela é alegria e felicidade.
Kit ficou tão impressionado com esta conversa, de tal forma ela ia ao encontro dos seus próprios sentimentos, que nem sabia o que dizer. Entretanto, surgiu Mr. Garland. Foi ajudado com toda a deferência por Mr. Sampson Brass a subir para a charrete, e o pónei, depois de abanar várias vezes a cabeça, e tendo permanecido três ou quatro minutos fincado ao chão com as suas quatro patas, como se tivesse decidido nunca mais sair daquele sítio, ficando ali até ao fim dos seus dias, de repente, e sem avisar, desatou a correr a uma velocidade de doze milhas à hora.
Então, Mr. Brass e a irmã, que tinha vindo juntar-se-lhe junto à porta, trocaram um estranho sorriso, que não era nem por sombras um sorriso agradável, e em seguida voltaram para junto de Mr. Swiveller que durante a ausência deles se tinha divertido a fazer pantomimas, e estava agora sentado à secretária, muito quieto e afogueado, raspando violentamente coisa nenhuma com um canivete partido.
Sempre que Kit vinha sozinho, sem a charrete, Sampson Brass lembrava-se de qualquer coisa que era preciso fazer, e mandava Mr. Swiveller, se não de novo a Peckham Rye, de qualquer forma a outro local bastante distante, de onde não deveria estar de volta antes de passadas duas ou três horas, ou possivelmente um período mais longo ainda, uma vez que este cavalheiro, para dizer a verdade, não era conhecido pela sua celeridade nestas ocasiões, mas antes por prolongar o tempo até ao limite dos possíveis.
Logo que Mr. Swiveller saía, Miss Sally retirava-se, Mr Brass abria a porta do escritório, punha-se a entoar alegremente a sua cantilena e afivelava o seu sorriso mais seráfico.
Quando Kit descia as escadas era convidado a entrar no escritório, Mr. Brass tinha então agradáveis e edificantes conversas, uma ou outra vez pedia-lhe que olhasse pelo escritório enquanto ele se ausentava por um momento, e dava-lhe depois uma ou duas moedas de meia coroa. Isto acontecia com tanta frequência que Kit, que não duvidava de que elas viessem do cavalheiro solitário, uma vez que este já tinha presenteado generosamente a sua mãe, tinha por ele uma grande admiração e comprava pequenos presentes para a mãe, para o pequeno Jacob, para o bebé, e até para Bárbara, de forma que não se passava dia em que um deles não recebesse uma pequena lembrança.
Enquanto estes factos se passavam dentro e fora do escritório de Sampson Brass, Richard Swiveller, que muitas vezes lá ficava sozinho, começou a sentir que o tempo lhe pesava. Assim, e a fim de preservar a sua boa disposição, e de impedir que as suas faculdades enferrujassem, arranjou um quadro de «cribbage» e um baralho de cartas, e passou a jogar «cribbage» com um «morto», com vinte, trinta, por vezes cinquenta mil libras de cada lado, para além de numerosas apostas de grandes quantias.
Como estes jogos se passavam em silêncio, apesar das enormes quantias que envolviam, Mr. Swiveller começou a pensar que nas tardes em que Mr. e Miss Brass saíam, e saíam agora muitas vezes, ouvia uma espécie de ronco, ou ressonar, vindo do outro lado da porta, e pensou, depois de reflectir um pouco, que devia vir da criadinha que, de viver naquele ambiente húmido, tinha uma constipação crónica. Uma noite, olhando atentamente nessa direcção, distinguiu perfeitamente um olho que brilhava pelo buraco da fechadura. Não tinha agora, dúvidas de que as suas suspeitas eram fundadas. Aproximou-se então da porta, devagarinho, e saltou-lhe em cima antes que ela desse por isso.
- Oh! Eu não fiz por mal, não, palavra que não - exclamou a criadinha debatendo-se como uma pessoa de muito maior estatura. - Aborreço-me tanto lá em baixo... por favor não vá fazer queixa de mim, não vá!
- Confessa! - disse Dick. - Não é verdade que estavas à espreita para te entreteres?
- Sim, é verdade - respondeu a criadinha.
- Há quanto tempo é que andas a espreitar por ali? - perguntou Dick.
- Oh, desde que o senhor começou a jogar com aquelas cartas, e muito antes.
A vaga lembrança de algumas brincadeiras extravagantes com que havia aliviado um pouco o cansaço do trabalho, e às quais a criadita sem dúvida tinha assistido, deixaram Mr. Swiveller um tanto desconcertado, mas ele não era uma pessoa particularmente sensível a essas coisas, e por isso depressa se recompôs.
- Está bem. Entra - disse ele após breve reflexão. - Isso, senta-te aí, eu vou ensinar-te a jogar.
- Oh! Não me atrevo - respondeu a criadinha. - Miss Sally matava-me, se soubesse que eu tinha vinda cá acima.
- Tens a lareira acesa lá em baixo? - perguntou Dick.
- Sim, mas é uma coisinha pouca - respondeu a criadita.
- Miss Sally não pode matar-me a mim se souber que eu estive lá em baixo, por isso vou eu até lá. - disse Richard guardando as cartas no bolso. - Mas como tu estás magra! Porque é que estás assim?
- A culpa não é minha.
- Estavas capaz de comer um pedaço de pão com carne?
- perguntou Dick pegando no chapéu. - Sim? Ah, bem me parecia. Já alguma vez provaste cerveja?
- Bebi um golinho, uma vez - disse a criadinha.
- Bonito! - exclamou Mr. Swiveller levantando os olhos para o tecto. - Ela nunca provou cerveja! Um golinho não chega para se provar. Mas que idade tens tu?
- Não sei.
Mr. Swiveller abriu muito os olhos, e por um momento pareceu absorto em pensamentos. Em seguida disse à pequena que tomasse conta da porta até ele voltar, e desapareceu.
Voltou logo a seguir, seguido pelo empregado da taberna que trazia numa mão um prato de pão com carne, e na outra uma grande caneca cheia de uma mistura bem cheirosa que deitava uma agradável fumarada, e que era receita especial que Mr. Swiveller tinha ensinado ao patrão numa altura em que a sua conta era bastante grande e ele estava desejoso por reconquistar a sua amizade. Chegaram, Mr. Swiveller aliviou o rapaz da sua carga, disse à rapariguita que fechasse a porta, para evitar surpresas, e seguiu atrás dela até à cozinha.
- Pronto! - disse Richard colocando o prato na frente dela.
- Em primeiro lugar limpa a mesa, e já vais ver o que te espera.
A criadita não precisou de segundo convite, e num instante o prato ficou vazio.
- Agora - disse Dick estendendo-lhe a caneca. - Bebe um golo disto. Mas tem cuidado, porque não estás habituada. Então, é bom?
- Oh! Se é! - respondeu a criadinha.
Mr. Swiveller pareceu muito satisfeito com esta resposta e bebeu também um grande golo olhando fixamente para a sua companheira. Terminados estes preliminares, começou a ensinar-lhe o jogo que ela depressa aprendeu, pois era muito esperta.
- Agora - disse Mr. Swiveller enquanto punha duas moedas de seis pences num pratinho, cortava o morrão à miserável vela e cortava e dava as cartas - esta é a parada. Se ganhares, ganhas tudo. Se eu ganhar, ganho tudo. E para isto se tornar mais real e mais agradável, vou tratar-te por Marquesa, estás a ouvir?
A criadita concordou com um aceno de cabeça.
- Então, Marquesa - disse Mr. Swiveller, - vamos a isto! A Marquesa, que segurava as cartas com força, com ambas
as mãos, pensava em qual havia de jogar, e Mr. Swiveller, com a atitude alegre e elegante que semelhante companhia exigia, bebeu outro golo da caneca enquanto esperava que ela jogasse.
Mr. Swiveller e a sua parceira jogaram várias rodadas ganhando ora um ora outro, até se esgotarem as três moedas de seis pences, até ao esvaziar gradual da caneca, e até baterem as dez horas. Só nessa altura aquele cavalheiro resolveu reparar que o tempo voava, e retirar-se antes que Mr. Sampson e Miss Sally Brass estivessem de volta.
- E com este fim em vista, Senhora Marquesa, peço licença a Vossa Senhoria para guardar o jogo e para me retirar da vossa presença assim que terminar a minha caneca, observando apenas, Senhora Marquesa, que uma vez que a vida é como um rio que corre, não me importo que corra depressa, Senhora minha, enquanto existir cerveja como esta, e enquanto uns olhos como esses alumiarem as vagas que passam. Senhora Marquesa, à sua saúde. Vai perdoar-me eu estar de chapéu, mas o palácio é húmido, e o chão de mármore está, se me permite a expressão, encharcado.
Como precaução contra este último inconveniente, Mr. Swiveller estava já há um bocado sentado com os pés pousados sobre a grade do fogão, e foi nesta atitude que proferiu estas observações apologéticas, e saboreou lentamente as últimas gotas de néctar.
- O Barão Sampson Brass e a sua bela irmã estão, diz-me Vossa Senhoria, no teatro? - perguntou Mr. Swiveller deixando cair o braço esquerdo pesadamente sobre a mesa, e levantando a voz e a perna direita como um vilão de opereta.
A Marquesa acenou que sim com a cabeça.
- Ah! disse Mr. Swiveller com um assustador franzir de sobrolho. - Está bem, Senhora Marquesa. Mas não faz mal. Haja vinho... - e ilustrava estes excertos melodramáticos estendendo a caneca humildemente a si próprio, recebendo-a altivamente, bebendo-a sofregamente e estalando os lábios ferozmente.
A rapariguita, que não estava, como Mr. Swiveller, a par das convenções teatrais, uma vez que nunca tinha ido ver uma peça, ou ouvido falar de semelhante coisa a não ser por acaso, através das frinchas das portas e outros sítios proibidos, estava realmente alarmada com estas demonstrações para ela tão originais, e o susto estava-lhe de tal forma estampado no rosto que Mr. Swiveller achou que era preferível trocar os seus modos de vilão por outros mais de acordo com a vida real, e perguntou:
- Eles saem muitas vezes, e deixam-te ficar aqui?
- Oh, sim, pode acreditar que sim - respondeu a criadinha.
- Miss Sally pela-se por essas coisas, é verdade.
- Miss Sally o quê? - perguntou Dick.
- Pela-se por essas coisas - respondeu a Marquesa. Após reflectir um momento, Mr. Swiveller resolveu que
não valia a pena corrigi-la, pois era evidente que a cerveja lhe tinha soltado a língua, e as oportunidades que tinha de conversar com ela eram tão poucas que era preferível não ligar a uma coisa de tão pouca importância.
- Às vezes vão visitar Mr. Quilp - disse a criadita com um ar malicioso. - Saem muitas vezes, valha-me Deus!
- Mr. Brass também gosta de sair? - perguntou Dick.
- Não, nem metade do que ela gosta - disse a criadita abanando a cabeça. - Valha-me Deus, ele nunca faz nada sem o conselho dela.
- Ah, não faz, pois não? - perguntou Dick.
- É Miss Sally quem manda nele - disse a criadita. - Ele está sempre a pedir-lhe conselhos, e segue-os muitas vezes. Valha-me Deus, o senhor não ia acreditar, as vezes que ele faz o que ela diz...
- Imagino - disse Dick - que eles devem falar muito um com o outro, falar sobre muitas pessoas, sobre mim, por exemplo, hem, Marquesa?
A Marquesa fez que sim com a cabeça, com uma energia extraordinária.
- E dizem bem? - perguntou Mr. Swiveller.
A Marquesa continuou a abanar a cabeça, mas agora de um lado para o outro, com uma veemência tal que parecia em riscos de deslocar o pescoço.
- Hum! - murmurou Dick. - E seria um abuso de confiança relatar-me o que é que eles dizem do humilde indivíduo que tem a honra de...
- Miss Sally diz que o senhor é um rapaz engraçado - respondeu-lhe a sua nova amiga.
- Mas olhe, Marquesa, que isso não é dizer mal. A alegria, Marquesa, não é uma coisa má, ou degradante. O velho Rei Cole, ele próprio, era uma alma alegre, se é que podemos fazer fé nas páginas da história.
- Mas ela também diz... - acrescentou a sua companheira - que o senhor não merece confiança.
- Ora, realmente, Marquesa... - disse Mr. Swiveller com ar pensativo - algumas senhoras e cavalheiros, não direi pessoas do meu nível, mas comerciantes, minha senhora, comerciantes, fizeram a mesma observação. O humilde cidadão que é dono da taberna ali defronte, inclinava-se fortemente para essa opinião, esta noite, quando lhe encomendei o banquete. É um preconceito muito comum, Marquesa, e, no entanto, não sei porquê, porque em tempos me foi confiada uma quantia bastante elevada, e posso dizer orgulhosamente que a minha confiança nunca foi desmerecida enquanto essa quantia esteve na minha posse, nunca. Calculo que Mr. Brass seja da mesma opinião?
A sua amiga mais uma vez concordou com um aceno de cabeça, com um ar matreiro que parecia dar a entender que as opiniões de Mr. Brass sobre o assunto eram ainda mais fortes que as da irmã. Depois, parecendo cair em si, acrescentou com ar de súplica: - Mas não vá denunciar-me, nunca, que eles são capazes de me matar com pancada.
-Marquesa! - disse Mr. Swiveller levantando-se. - A palavra de um cavalheiro vale tanto como o seu crédito, às vezes até vale mais, como no caso presente, em que o seu crédito parece ser algo duvidoso. Sou seu amigo, e os dois havemos de voltar a jogar muitas vezes neste mesmo salão. Mas, Marquesa... - acrescentou Richard detendo-se a caminho da porta, e voltando-se lentamente para a criadinha, que o seguia com uma vela. - Calculo que deve ter o hábito de refrescar os olhos constantemente nos buracos das fechaduras, para saber tudo isto.
- Eu só queria... - respondeu a Marquesa a tremer - saber onde é que eles guardam a chave do armário, era só isso, e se tivesse descoberto, não havia de tirar muito, era só o suficiente para matar a fome.
- Quer dizer que não a encontrou? - perguntou Dick. - É claro que não, se tivesse encontrado estaria mais gorda. Boa noite, Marquesa, adeus, e se for para sempre, então, adeus para sempre. E não se esqueça de pôr a corrente na porta, Marquesa, não vá acontecer alguma coisa.
Com esta despedida, Mr. Swiveller saiu para a rua. E sentindo que «tinha a sua conta-, pois a mistura que bebera era bastante forte e subia à cabeça, decidiu sensatamente recolher aos seus aposentos e meter-se na cama. Por isso lá foi para casa, e uma vez que os seus alojamentos, que ele continuava a mencionar no plural, não ficavam longe do escritório, depressa se achou sentado na sua cama onde, descalçando uma bota e esquecendo-se da outra, caiu em profunda meditação.
Esta Marquesa - disse Mr. Swiveller cruzando os braços é uma pessoa extraordinária. Rodeada de mistérios, sem conhecer o sabor da cerveja, ignorando o seu próprio nome, o que não é tanto de admirar, e observando o mundo à sua maneira através de buracos de fechaduras... será que pode ser esse o seu destino, ou será que o traçado deste foi desviado por algum intruso? Eis um mistério indesvendável!
Quando, meditando, chegou a esta conclusão tão importante, deu-se conta de que lhe faltava descalçar uma bota, o que fez com grande solenidade, abanando a cabeça gravemente, e soltando um profundo suspiro.
Estas botas - disse Mr. Swiveller pondo o barrete de dormir exactamente da mesma maneira como punha o chapéu lembram-me o lar familiar. A mulher de Cheggs joga «cribbage» e outros jogos. Ela come-lhes as papas em cima da cabeça, de jogo para jogo eles tentam animá-la, e quando conseguem dela um sorriso pensam que ela já se esqueceu, mas não. Por esta altura, posso dizer - disse Richard olhando complacentemente no espelho o seu perfil do lado esquerdo, onde se vislumbrava a sombra de um bigode, - por esta altura já ela deve estar bem arrependida. É bem feita!
Passando desta disposição dura para outra terna e patética, Mr. Swiveller gemeu um pouco, pôs-se a andar furiosamente de um lado para o outro e fez mesmo uma tentativa de arrancar o cabelo. Pensando melhor, preferiu arrancar a borla do seu barrete de dormir. Por fim, com um ar desolado, despiu-se e meteu-se na cama.
Alguns homens, feridos como ele estava, ter-se-iam entregue à bebida. Mas como Mr. Swiveller já há muito se lhe tinha entregue, quando soube que Miss Sophy Wackles estava para ele para sempre perdida, entregou-se à sua flauta. Pensou, após madura reflexão, que esta era uma boa, séria e triste ocupação, que não só condizia com os seus pensamentos, mas era ainda de molde a inspirar nos seus vizinhos sentimentos de compaixão. Em prosseguimento desta resolução, puxou então uma mesinha para junto da cama, dispôs da melhor maneira a vela e o seu pequeno, oblongo livro de música, tirou a flauta do seu estojo e começou a tocar cheio de tristeza.
A canção era «Vai-te embora tristeza», uma composição que, tocada numa flauta, na cama, muito lentamente, e ainda por cima por um cavalheiro que mal sabia manejar o instrumento, e repetia cada nota várias vezes antes de encontrar a nota seguinte, não fazia um efeito dos melhores.
E no entanto, ao longo de metade da noite, ou mais, Mr. Swiveller tocou a mesma música vezes sem conto, umas vezes deitado de costas com os olhos postos no tecto, outras vezes meio saído para fora da cama, a fim de consultar o livro. Não parava, a não ser de vez em quando, por um minuto ou dois, para tomar fôlego e continuar o seu monólogo sobre a Marquesa, e recomeçar em seguida com renovado vigor.
E foi só depois de ter esgotado os seus vários temas de meditação, soprado para dentro da flauta até à exaustão todo o sentimento que a cerveja lhe inspirava e quase enlouquecido as pessoas da casa, os vizinhos do lado e os do outro lado da rua, que fechou a flauta no estojo, apagou a vela e, sentindo-se grandemente aliviado, se virou na cama e adormeceu.
Quando acordou de manhã sentia-se muito mais fresco. Após praticar mais meia hora com a flauta, receber delicadamente uma ordem de despejo da senhoria, que com esse propósito permanecia na escada desde manhã cedo, regressou a Bevis Marks onde a bela Sally estava já no seu posto, e cujo rosto irradiava uma luz suave como a do luar.
Mr. Swiveller cumprimentou-a com um aceno de cabeça e trocou o casaco pela jaqueta náutica, que geralmente levava algum tempo a vestir, porque lhe estava apertada nas mangas e ele só conseguia enfiar após uma série de contorsões. Ultrapassada esta dificuldade, sentou-se à secretária.
- Oiça lá! - disse Miss Sally quebrando bruscamente o silêncio. - Você não viu por aí uma lapiseira de prata esta manhã, viu?
- Não encontrei muitas na rua - respondeu Mr. Swiveller.
- Vi apenas uma, uma lapiseira forte, de aspecto respeitável, mas como ia em companhia de um canivete já de idade e de um jovem palito, com quem conversava animadamente, pareceu-me indelicado cumprimentá-la.
- Bom, mas viu? - replicou Miss Sally. - A sério, viu ou não?
- Que pergunta mais parva para você me fazer! - disse Mr. Swiveller. - Eu não acabei de chegar?
- Pois, mas o que eu sei - respondeu Miss Sally - é que desapareceu esta semana, num dia em que a deixei em cima da secretária.
<Olá!->, pensou Richard. «Espero bem que isto não tenha sido obra da Marquesa!»
- E também havia uma faquinha de abrir cartas – disse Miss Sally. - Faziam conjunto. Foram um presente do meu pai, há muitos anos, e desapareceram as duas. Você não deu pela falta de nada, deu?
Mr. Swiveller levou instintivamente as mãos à jaqueta, para se assegurar de que era de facto uma jaqueta, e não uma casaca. Satisfeito por constatar que era a sua jaqueta, o único bem que possuía em Bevis Marks, respondeu negativamente.
- Isto é muito desagradável, Dick - disse Miss Brass puxando da caixa do rapé e deliciando-se com uma pitada.
- Mas aqui entre nós, entre amigos, sabe, se Sammy descobrir uma coisa destas, nunca mais se cala. E algum dinheiro do escritório, que ficou por aí, também levou sumisso. Lembro-me de três moedas de meia coroa que desapareceram em diferentes ocasiões.
- Não pode ser - exclamou Dick! - Pense bem no que está a dizer, minha menina, porque isto é um assunto muito sério. Tem a certeza? Não poderá estar enganada?
- Tenho a certeza e não pode haver engano nenhum respondeu Miss Sally enfaticamente!
-Então, com os diabos», pensou Dick pousando a sua pena. «A Marquesa está em maus lençóis!»
Quanto mais Dick pensava no assunto, mais provável lhe parecia que a desgraçada criadita fosse a culpada. Quando ele pensava na pouca comida que lhe davam, na forma como ela vivia, abandonada, sem instrução e como a necessidade e as privações lhe tinham aguçado a natural astúcia, não lhe restavam dúvidas.
E, no entanto, sentia tanta pena dela, e achava tão desagradável que uma questão destas viesse perturbar o seu conhecimento e amizade, que pensou, e pensou com toda a sinceridade, que de bom grado daria cinquenta libras para que a Marquesa fosse ilibada.
Enquanto ele estava mergulhado em profundas e sérias reflexões sobre o assunto, Miss Sally permanecia sentada, abanando a cabeça com um ar de grande dúvida e mistério.
Nessa altura ouviu-se a voz do seu irmão Sampson, cantarolando alegremente, e instantes depois este cavalheiro fazia a sua aparição, sorrindo com ar virtuoso.
- Mr. Richard, meu caro senhor, muito bom dia. Cá estamos outra vez, prontos para começar um novo dia, depois de fortalecermos o nosso corpo com uma boa noite de sono e um bom pequeno-almoço, e de espírito fresco e bem disposto. Cá estamos, levantámo-nos com o Sol para trilharmos o nosso caminho, o nosso dever diário, e como ele cumprirmos o nosso dever de todos os dias, com benefícios para nós e vantagens para os nossos semelhantes. Eis uma pensamento encantador, meu caro senhor, um pensamento encantador!
Enquanto com estas palavras se dirigia ao seu escriturário, Mr. Brass entretinha-se a observar ostensiva e minuciosamente à luz uma nota de banco de cinco libras que tinha trazido na mão.
Mr. Richard não se podia dizer que ouvisse estas observações com verdadeiro entusiasmo, e então o patrão desviou os olhos para ele e reparou que o seu rosto denotava perturbação.
- O senhor não está muito animado - disse Mr. Brass.
- Mr. Richard, é com alegria que nos devemos dedicar ao trabalho e não com tristeza. Torna-nos, Mr. Richard, meu amigo...
Aqui a casta Sally soltou um ruidoso suspiro.
- Ora essa! - disse Mr. Sampson. - Tu também? Passa-se alguma coisa? Mr. Richard, meu caro senhor...
Dick, olhando por um instante para Miss Sally, viu que esta lhe fazia sinais para que ele pusesse o irmão ao corrente da conversa que tinham acabado de ter. Como a sua própria posição também não era muito agradável, até que, de uma forma ou de outra, o assunto ficasse resolvido, ele assim fez. Miss Brass, usando com largueza da sua caixa de rapé, corroborou a sua narrativa.
O rosto de Sampson entristeceu e a ansiedade espelhou-se-lhe no semblante. Em vez de dar largas ao seu aborrecimento pela perda do dinheiro, como Miss Sally imaginara, dirigiu-se para a porta nos bicos dos pés, abriu-a, espreitou para fora, fechou-a silenciosamente, voltou nos bicos dos pés e disse em voz segredada.
- Isto é um caso muito extraordinário e desagradável, Mr. Richard, meu caro senhor. Um caso muito desagradável. A verdade é que eu próprio já por várias vezes dei por falta de dinheiro, pequenas quantias, de cima da minha secretária. Evitei falar no assunto, esperando que um acaso pusesse o culpado a descoberto, mas não foi o que aconteceu. Não foi o que aconteceu, Sally... Mr. Richard, meu amigo... isto é um caso particularmente lamentável!
Enquanto Sampson falava, pousou a nota sobre a secretária, no meio de vários papéis, como se nada fosse, e enfiou as mãos nos bolsos. Mr. Swiveller apontou para a nota, e disse-lhe que não a deixasse ali.
- Não, Mr. Richard, meu caro senhor - respondeu Brass com emoção. - Tirar dali a nota, Mr. Richard, meu caro senhor, implicaria uma suspeita em relação a si. E em si, meu amigo, eu tenho uma confiança sem limites. Vamos deixá-la ali ficar, meu caro senhor, se não se importa, e em caso algum a tiraremos do sítio onde está.
Enquanto isto dizia, Mr. Brass deu-lhe duas ou três palmadinhas no ombro, de uma forma extremamente amigável, e pediu-lhe que acreditasse que confiava na honestidade dele tanto como na dele próprio.
Embora noutras circunstâncias Mr. Swiveller pudesse ter considerado estas palavras como um cumprimento muito duvidoso, nas circunstâncias presentes sentiu-se muito aliviado por lhe garantirem que não suspeitavam dele. Respondeu da forma mais conveniente, e em seguida Mr. Brass apertou-lhe a mão, após o que caiu em profunda meditação, e Miss Sally fez outro tanto. Também Richard ficou pensativo. Temia a cada momento que acusassem a Marquesa, mas também não conseguia acreditar na sua inocência.
Estavam nesta atitude há já alguns minutos, quando Miss Sally de repente deu um murro na mesa e gritou:
- Acertei!
Tinha realmente acertado, e por acaso até fizera saltar uma lasca de madeira, mas não era a isso que se referia.
- Então? - exclamou Brass ansioso. - Diz lá!
- Ora! - replicou ela com ar triunfante. - Não há uma pessoa que tem entrado aqui muitas vezes nas últimas três ou quatro semanas? Essa pessoa, por tua culpa, não tem às vezes cá ficado sozinho? E queres convencer-me de que essa pessoa não é o ladrão?
-Mas quem é essa pessoa? - disse Brass.
- Ora, como é que ele se chama? Não é Kit?
- O empregado de Mr. Garland?
- Claro!
- Nunca! - exclamou Brass. - Nunca! Eu nem quero ouvir! Não me contem uma coisa dessas! - disse Sampson abanando a cabeça e gesticulando com ambas as mãos como se quisesse livrar-se de dez mil teias de aranha. - Não há ninguém que me faça acreditar numa coisa dessas! Nunca!
- Eu digo... - repetiu Miss Brass tomando outra pitada de rapé - que é ele o ladrão.
- E eu... - respondeu Sampson violentamente - digo que não é! Que queres tu dizer com isso? Como é que podes dizer isso? Não sabes que ele é o rapaz mais honesto e mais decente que alguma vez existiu, e que tem uma reputação perfeitamente limpa? Entre, entre!
Estas últimas palavras não eram já dirigidas a Miss Sally, embora fossem pronunciadas no mesmo tom dos indignados protestos que as tinham antecedido. Dirigiam-se a alguém que tinha batido à porta do escritório, e Mr. Brass mal tinha acabado de as dizer, quando apareceu à porta o próprio Kit.
- Por favor, o cavalheiro está lá em cima?
- Sim, Kit - disse Brass ainda inflamado de honesta indignação e franzindo as sobrancelhas para a irmã. - Sim, Kit. Está. Tenho muito prazer em ver-te, Kit. Muito prazer mesmo, Kit! Passa por aqui outra vez, quando te fores embora, Kit. Aquele rapaz um ladrão! - exclamou Brass quando ele desapareceu. - Com aquela expressão franca e honesta! Eu era capaz de lhe confiar ouro em pó. Mr. Richard, faça o favor de ir imediatamente à Wrasp & Co., em Broad Street, saber se receberam instruções para comparecer perante Carkem & Painter. Aquele rapaz, um ladrão! - troçou Sampson corado de agitação. Serei eu cego, surdo, ou tolo? Ou será que não sei avaliar a natureza humana, quando a tenho na minha frente? Kit, um ladrão? Bah!
Sampson Brass atirou com esta interjeição final na direcção de Miss Sally com infinito desdém e desprezo, e a seguir enfiou a cabeça dentro da mesa, como se com isso quisesse afastar este mundo miserável da sua vista, e desafiá-lo com o tampo entreaberto da secretária.
Quando, passado um quarto de hora ou coisa parecida, e depois de cumprir a sua missão, Kit desceu do quarto do cavalheiro solitário, Mr. Sampson Brass estava sozinho no escritório. Não cantarolava como era seu hábito, nem estava sentado à secretária. Podia ver-se através da porta que estava de pé, de costas para a lareira, e com uma expressão tão estranha que Kit pensou que ele se tivesse sentido mal de repente.
- Aconteceu alguma coisa, senhor?
- Se aconteceu? - exclamou Brass. - Não, porque é que havia de ter acontecido?
- O senhor está tão pálido que quase não o conhecia.
- Ora, ora, isso foi imaginação tua - exclamou Brass baixando-se para remexer as cinzas. - Nunca me senti melhor, Kit, nunca na vida me senti melhor. E alegre também. Ah! Ah! E o nosso amigo lá de cima, tem passado bem?
- Muito melhor - disse Kit.
- Fico muito satisfeito de ouvir isso - acrescentou Brass.
- Ora, graças a Deus, bem posso dizê-lo. Um perfeito cavalheiro. Digno, libera), generoso, não dá trabalho nenhum, um inquilino admirável. Ah! Ah! Mr. Garland também tem passado bem, espero eu, Kit, e o pónei, o meu amigo, o meu amigo especial, sabes... Ah! Ah!
Kit fez um relato satisfatório de como iam as coisas em Abel Cottage. Mr. Brass, que parecia muito desatento e impaciente, subiu para o seu banco, fez-lhe sinal para que se aproximasse e segurou-o pela aba do casaco.
- Tenho estado a pensar, Kit - disse o notário. - Que talvez pudesse ajudar a tua mãe a ganhar algum dinheiro. Tens mãe, penso eu? Tenho ideia de me teres contado...
- Oh! Sim, senhor, claro que sim.
- É viúva, não é? E trabalhadora?
- Nunca houve uma mulher mais trabalhadora e uma mãe melhor do que aquela, senhor.
- Ah! - exclamou Brass. - Isso é comovedor, muito comovedor. Uma pobre viúva a lutar para manter os filhos com decência e conforto, isso é um quadro delicioso da bondade humana. Pousa o teu chapéu, Kit.
- Muito obrigado, senhor. Mas tenho de me ir já embora.
- Mas de qualquer maneira podes pousá-lo, enquanto aqui estás - disse Mr. Brass tirando-lho das mãos e baralhando os papéis sobre a secretária, enquanto procurava um lugar para colocar o chapéu. - Eu estava a pensar, Kit, que nós muitas vezes temos casas de clientes nossos para alugar e outros negócios semelhantes. Ora, como sabes, nós somos obrigados a manter nessas casas uma pessoa para tomar conta, e muitas vezes são pessoas pouco merecedoras, em quem não podemos confiar. Então não era melhor se lá puséssemos uma pessoa de confiança, tendo ao mesmo tempo o prazer de saber que estamos a praticar uma boa acção? Não era muito melhor darmos o lugar a essa digna mulher, a tua mãe? Com pouco trabalho tinha alojamento, e um bom alojamento, para quase todo o ano, e ainda um salário semanal, que lhe proporcionaria uma vida mais confortável do que a que tem neste momento. Ora o que é que te parece? Vês alguma objecção? O meu único desejo é ser-te útil, Kit, mas se vês, não hesites em mo dizer francamente.
À medida que ia falando, Brass deslocou por duas ou três vezes o chapéu e voltou a vasculhar nos papéis, como se estivesse em busca de alguma coisa.
- Como é que eu podia ver alguma objecção a uma oferta tão bondosa, senhor? - respondeu Kit de todo o coração.
- Não sei como hei-de agradecer-lhe, senhor. Não sei!
- Ora pronto! - disse Brass voltando-se de repente para ele, e aproximando o seu rosto do de Kit com um sorriso tão horrendo que o rapaz, apesar da gratidão que sentia, recuou assustado. - Pronto, está combinado.
Kit olhou-o um pouco confuso.
- Está combinado, digo-te eu - acrescentou Sampson esfregando as mãos e dissimulando-se por detrás dos seus habituais modos untuosos. - Ah! Ah! Tu vais ver, Kit. Vais ver! Mas Santo Deus! - disse Brass. - Que tempo que Mr. Richard está a demorar! Muito gosta ele de passear! Importas-te de olhar um bocadinho pelo escritório enquanto vou lá acima? É só um minuto. Não demoro mais de um minuto, Kit.
Falando sempre, Mr. Brass saiu do escritório, regressando pouco depois. Mr. Swiveller voltou quase ao mesmo tempo. Kit saiu rapidamente, tentando recuperar o tempo perdido, e cruzou-se à saída com Miss Brass.
- Ora! - disse Sally sarcasticamente no momento em que entrava, seguindo-o com o olhar. - Lá vai o teu amiguinho, Sammy. Hem?
- Sim, vai - respondeu Brass. - Meu amiguinho, sim, se não te importas. Um bom rapaz, Mr. Swiveller. Um óptimo rapaz!
- Hum! - troçou Miss Brass.
- Sou eu que te digo, meu estupor irritante - disse Sampson zangado. - Era capaz de apostar a minha vida na honestidade dele. Será que não vamos acabar com isto? Estarei condenado a ser para sempre irritado e atormentado pelas tuas mesquinhas suspeitas? Não tens respeito pelo verdadeiro mérito, espírito maligno? Se é lá por causa disso, mais depressa suspeitaria da tua honestidade do que da dele.
Miss Sally puxou da caixa do rapé e tomou uma longa, lenta pitada, sem desviar os olhos do irmão.
- Ela dá comigo em maluco, Mr. Richard - disse Mr. Brass.
- Faz-me exasperar até ao limite do que se pode suportar. Estou todo acalorado, todo excitado, cavalheiro, eu sei. Isto não são maneiras de se estar num escritório, cavalheiro, não são os modos mais convenientes, mas ela faz-me perder as estribeiras.
- Porque é que não o deixa sossegado? - perguntou Dick.
- Porque é mais forte do que ela, meu amigo - replicou Brass. - Porque irritar e incomodar são coisas que fazem parte da sua natureza, cavalheiro, e ela tem de agir de acordo com a sua natureza, porque senão era capaz de cair doente. Mas não faz mal - disse Brass. - Não faz mal. Eu consegui levar a minha avante. Provei a minha confiança no rapaz. Ele ficou outra vez a tomar conta do escritório. Ah! Ah! E é bem feita, minha víbora!
A bela donzela tomou outra pitada de rapé e guardou a caixa na algibeira sem desviar os olhos do irmão e sem perder a compostura.
- Ele ficou outra vez a tomar conta do escritório - disse Brass triunfante. - Tem a minha confiança, e há-de continuar a tê-la. Ele... Que diabo... onde é que está...
- O que é que você perdeu? - perguntou Mr. Swiveller.
- Santo Deus! - exclamou Brass apalpando todas as algibeiras, uma após outras, procurando dentro da secretária, e por cima e por baixo desta, remexendo os papéis como um louco. A nota, Mr. Richard. A nota de cinco libras. O que é que lhe pode ter acontecido? Deixei-a aqui... Valha-me Deus!
- O quê? - exclamou Miss Sally levantando-se, batendo as mãos e atirando com os papéis para o chão. - Desapareceu! Quem é que tinha razão, afinal? Quem era? As cinco libras não têm importância, o que são cinco libras? Ele é honesto, perfeitamente honesto, seria uma vergonha suspeitarmos dele. Não corram atrás dele. Não, não, por nada deste mundo!
- Desapareceu mesmo? - perguntou Dick olhando para Brass tão pálido como este.
- Palavra de honra, Mr. Richard, meu amigo - disse o notário agitadamente, passando nova busca às suas algibeiras.
- Receio que as nossas suspeitas... Não há dúvida de que desapareceu. Que havemos de fazer?
- Não corram atrás dele - disse Miss Sally tomando nova pitada. - Não corram atrás dele de forma nenhuma. Dêem-íhe tempo para se ver livre da nota, ouviram? Seria uma crueldade desmascará-lo.
Mr. Swiveller e Sampson Brass olharam primeiro para Miss Sally, em seguida um para o outro parecendo desorientados, e em seguida, como que empurrados por um impulso comum, pegaram nos seus chapéus, precipitaram-se para a rua e correram pelo meio da estrada afastando todos os obstáculos como se dessa corrida dependesse a sua própria vida.
Acontecia que também Kit tinha feito o trajecto a correr, embora não tão depressa, e tendo saído com alguns minutos de avanço, estava já a uma grande distância. Eles, no entanto, como sabiam exactamento qual o trajecto que ele seguira, e continuavam a avançar a toda a velocidade, conseguiram alcançá-lo num momento em que parara para respirar fundo e se preparava para largar de novo a correr.
- Pára! - exclamou Sampson pousando- lhe uma mão sobre um ombro, enquanto Mr. Swiveller o agarrava pelo outro. - Mais devagar, cavalheiro! Vai com pressa?
- Sim, vou - disse Kit olhando para um e para outro com grande surpresa.
- Eu... eu... mal posso acreditar - disse Sampson ofegante. - Mas desapareceu do escritório uma coisa de valor. Espero que não saiba o que é.
- Saber o que é? Ora essa, Mr. Brass! - exclamou Kit tremendo da cabeça aos pés. - Não está a pensar que...
- Não, não - apressou-se a responder Mr. Brass. - Eu não penso nada. Não digas que eu afirmei semelhante coisa. Voltas connosco para trás sem fazer barulho?
- Claro que sim! - respondeu Kit. - Porque é que não havia de voltar?
- Claro! - disse Brass. - Porque não? Espero que não venhas a ter de engolir essas palavras. Se soubesses o problema que tive esta manhã para te defender, Christopher, havias de estar arrependido.
- E eu estou certo de que é o senhor que se vai arrepender de ter suspeitado de mim - retorquiu Kit. - Vamos lá então, depressa!
- Claro! - exclamou Brass. - Quanto mais depressa melhor. Mr. Richard, tenha a bondade de lhe pegar por esse braço, eu pego-lhe por este. Não é fácil seguirmos os três assim, ao lado uns dos outros, mas tem de ser, atendendo às circunstâncias. Não pode deixar de ser.
Kit, de branco que estava, fez-se muito vermelho, e depois ficou muito pálido outra vez, quando se viu assim agarrado, e por um momento pareceu disposto a debater-se. Entretanto caiu em si, e lembrou-se de que, se criasse alguma resistência, seria provavelmente agarrado pelos colarinhos e arrastado pelas ruas. Assim, limitou-se a repetir, com grande sinceridade e com os olhos cheios de lágrimas, que eles haviam de se arrepender daquilo, e deixou-se levar.
Pelo caminho, Mr. Swiveller a quem a presente situação desagradava profundamente, aproveitou a primeira oportunidade para lhe segredar ao ouvido que se ele confessasse a sua culpa, nem que fosse só com um aceno de cabeça, e prometesse não voltar a fazer a mesma coisa, ele estava disposto a facilitar-lhe a fuga. Bastar-lhe-ia dar uma boa canelada em Sampson Brass, e fugir para um pátio qualquer. Mas Kit rejeitou indignado esta oferta, e Mr. Richard não podia fazer outra coisa que não fosse continuar a segurá-lo com toda a força até chegarem a Bevis Marks e o levarem à presença da encantadora Sally, que tomou a precaução de trancar a porta.
- Ora bem - disse Brás, - se estivermos perante um caso de inocência, Christopher, e conseguirmos aclarar completamente os factos, será melhor para todos. Por isso, se consentires em ser revistado - acrescentou ele, e para demonstrar o tipo de revista a que se referia, ia voltando os canhões das mangas do casaco - será melhor para ambas as partes.
- Reviste-me - disse Kit com altivez, levantando os braços. - Mas o senhor ouça o que lhe digo. Há-de arrepender-se de tudo isto até ao último dia da sua vida.
- É certamente uma situação muito desagradável - disse Brass com um suspiro, enquanto mergulhava a mão num dos bolsos de Kit e -pescava» de lá uma colecção variada de pequenos objectos. - Muito desagradável! Aqui não há nada, Mr. Richard. Está tudo em ordem. Aqui também não, nem no colete, Mr. Richard, nem nas abas do casaco. Folgo muito!
Richard Swiveller, com o chapéu de Kit nas mãos, observava com grande interesse esta operação, e no seu rosto esboçava-se um leve sorriso ao ver Brass fechar um olho e com o outro espreitar para dentro de uma das mangas do pobre rapaz, como se esta fosse um telescópio. Nessa altura Sampson, voltando-se bruscamente para ele, disse-lhe que revistasse o chapéu.
- Está aqui um lenço - disse Dick.
- Isso não tem mal nenhum, cavalheiro - acrescentou Brass encostando o olho à outra manga, e falando como se observasse uma paisagem longínqua. - Não há mal nenhum em ter um lenço, cavalheiro, embora me pareça que a Faculdade de Medicina certamente não considera que seja um princípio muito saudável, Mr. Richard, uma pessoa trazer o lenço dentro do chapéu. Ouvi dizer que aquece demasiado a cabeça, mas sob outro ponto de vista não há motivo nenhum para que um lenço não seja guardado dentro de um chapéu.
Nesse momento, uma exclamação de Richard Swiveller, de Miss Sally e do próprio Kit, veio cortar a palavra ao notário. Voltou a cabeça e viu Dick que, na sua frente, exibia a nota de banco.
- No chapéu? - gritou Brass.
- Debaixo do lenço e entalado no forro - disse Dick espantado com o que havia descoberto.
Mr. Brass olhou para ele, depois para a irmã, para as paredes, para o tecto, para o chão, para todos os lados menos para Kit, que permanecia imóvel e estupefacto.
- E é este... - exclamou Sampson juntando as mãos - o mundo que gira sobre o seu próprio eixo, que recebe a influência da Lua e das revoluções dos corpos solares que giram à sua volta, e outros jogos semelhantes! Será esta a natureza humana? Oh natureza, natureza! É este o desgraçado que eu, cheio de boa vontade, ia beneficiar, e a quem, neste momento, lamento tanto que o meu desejo seria deixá-lo ir embora! Mas... - acrescentou Mr. Brass com redobrada energia
- eu próprio sou um homem de leis, e devo dar o exemplo. Tenho de fazer aplicar as leis do meu ditoso país. Sally, minha querida, perdoa-me e agarra-o desse lado. Mr. Swiveller, meu amigo, faça-me o favor de ir depressa buscar um polícia. O meu momento de fraqueza já passou, senhor. Recuperei a minha força moral. Um polícia, por favor.
E ali estava Kit como que em êxtase, com os olhos esbugalhados e fixos no chão, indiferente tanto à trémula pressão com que Mr. Brass segurava um dos lados da sua gravata, como à enérgica força com que Miss Sally o prendia pelo outro lado da gravata, embora este último processo de detenção fosse algo incómodo, já que esta encantadora mulher, não só de vez em quando comprimia inoportunamente as articulações dos dedos contra a sua garganta, tinha-se lançado primeiro sobre ele, segurando-o tão ferozmente, que mesmo por entre a desordem e a perturbação dos seus pensamentos, não conseguia libertar-se de uma inquietante sensação de asfixia. E assim permaneceu entre ambos, numa posição de total submissão e passividade, até que Mr. Swiveller voltou acompanhado por um polícia.
Este funcionário estava naturalmente bem habituado a estas cenas, considerando todas as espécies de roubo, desde o pequeno furto até ao roubo por arrombamento ou ao assalto na estrada como assuntos normais de serviço, e para quem os criminosos eram como clientes que era necessário atender no armazém de venda por grosso ou a retalho, constituído pelo direito penal, e em cujo balcão ele se encontrava.
Ouviu a descrição dos factos relatados por Mr. Brass quase com o mesmo interesse e surpresa que um cangalheiro poderia revelar se o convidassem a escutar um relato circunstanciado da última doença de uma pessoa para quem os seus serviços profissionais tivessem sido solicitados, e prendeu Kit com a conveniente indiferença.
- É melhor irmos andando para o posto - declarou este subalterno ministro da justiça, - enquanto lá está um magistrado. Vou precisar que venha connosco, Mr. Brass, e a... - e dizendo isto, olhou para Miss Sally, com uma certa dúvida se ela seria un grifo ou outro monstro fabuloso.
- A senhora, não é? - perguntou Sampson.
- Ah! - retorquiu o polícia. - Sim... a senhora. E também o jovem que encontrou a propriedade.
- Mr. Richard, cavalheiro - disse Brass, com voz pesarosa.
- Uma triste obrigação. Mas o altar da nossa pátria, cavalheiro.
- Penso que querem ir numa carruagem de aluguer? interrompeu o polícia segurando Kit, que os outros captores haviam libertado, com ar indiferente, pelo braço, ligeiramente acima do cotovelo. - Tenha a bondade de mandar chamar uma.
- Mas deixem-me dizer uma palavra - gritou Kit erguendo a cabeça e deitando um olhar suplicante em redor. - Deixem-me dizer uma palavra. Sou tão culpado como qualquer um de vós. Juro, pela minha alma. Um ladrão, eu! Oh, Mr. Brass, o senhor conhece-me bem. Tenho a certeza que me conhece bem. Não está certo que faça uma coisa destas.
- Dou-lhe a minha palavra, senhor policia... - disse Brass. Mas aqui o polícia interrompeu-o com o princípio natural de que -palavras leva-as o vento», comentando que as palavras não eram mais do que papa para bebés e crianças de colo, e que juramentos é que eram comida para homens robustos.
- É bem verdade, senhor polícia - concordou Brass, no mesmo tom pesaroso. - Absolutamente certo. Juro-lhe, senhor polícia, que até há poucos minutos, quando se realizou esta fatal descoberta, tinha uma tal confiança neste rapaz que era capaz de lhe confiar... uma carruagem de aluguer, Mr. Richard, cavalheiro. O senhor anda muito devagar.
- Há alguém que me conheça - gritou Kit, - que não confiasse em mim... que não confie em mim? Perguntem seja a quem for se alguém alguma vez duvidou de mim, se alguma vez roubei um simples «farthing- a alguém! Alguma vez fui desonesto quando era pobre e faminto? Era agora que ia começar a ser? Oh, pensem no que estão a fazer. Como posso agora olhar para os amigos mais queridos que alguma vez um ser humano teve, com esta horrível acusação sobre mim?
Mr. Brass respondeu que teria sido bom que o preso tivesse pensado nisso antes, e preparava-se para fazer mais alguns tristes comentários, quando se ouviu o cavalheiro solitário perguntar no cimo da escada o que é que tinha acontecido e qual o motivo de todo aquele barulho e desassossego.
Kit fez um movimento involuntário para a porta, na ânsia de responder em seu favor, mas foi rapidamente impedido pelo polícia, e viu com angústia Sampson Brass precipitar-se sozinho para fora e contar a história à sua maneira.
- E ele também mal pode acreditar - disse Sampson, ao voltar. - Ninguém acreditava. Oxalá eu pudesse duvidar das provas dos meus sentidos, mas os seus depoimentos são irrepreensíveis. Não vale a pena interrogar os meus olhos - exclamou Sampson, pestanejando e esfregando os olhos
- Insistem no seu primeiro relatório, e assim hão-de continuar. Vamos, Sally, estou a ouvir a carruagem na Marks. Põe a tua touca e vamos embora. É uma triste missão! Um verdadeiro funeral moral!
- Mr. Brass - dissw Kit. - Faça-me um favor. Leve-me primeiro a casa de Mr. Witherden.
Sampson abanou a cabeça, com ar indeciso.
- Leve-me - pediu Kit. - Está lá o meu patrão. Por amor de Deus, leve-me lá primeiro.
- É que... não sei... - gaguejou Brass que talvez lá tivesse as suas razões para querer mostrar-se tão justo quanto possível aos olhos do Notário. - Como estamos em questão de tempo, senhor polícia?
O guarda, que durante aquele tempo estivera filosoficamente a mordiscar uma palha, respondeu que se partissem imediatamente, teriam tempo suficiente, mas se continuassem ali a hesitar teriam de seguir logo para a «Mansion House» e, finalmente, manifestou a sua opinião de que aí é que era importante, e era tudo.
Mr. Richard Swiveller chegou na carruagem, permanecendo impassível lá dentro, sentado no lugar mais confortável, de frente para os cavalos.
Mr. Brass ordenou ao agente de autoridade que levasse o preso e declarou-se pronto a partir. Então o polícia, segurando sempre Kit do mesmo modo, empurrou-o ligeiramente à sua frente, para o conservar diante de si à distância de cerca de três quartos do comprimento de um braço, como manda a profissão, e atirou-o para dentro do veículo, entrando logo atrás dele.
Miss Sally entrou a seguir e, encontrando-se assim quatro pessoas dentro, Sampson Brass subiu para a boleia e mandou partir o cocheiro.
Kit, ainda completamente aturdido por aquele repentino e terrível revés que ocorrera na sua vida, olhava fixamente pela janela da carruagem, quase na esperança de avistar algum fenómeno monstruoso na rua, que lhe pudesse dar razão para acreditar que estava a sonhar. Mas, ai dele! Tudo era demasiado real e familiar. A mesma sucessão de ruas, as mesmas casas, as mesmas filas de pessoas, correndo lado a lado em diferentes direcções pelo pavimento da rua, a mesma azáfama de carroças e de carruagens, os mesmos bem conhecidos objectos nas montras.
O próprio ruído e a própria precipitação apresentavam uma regularidade que nenhum sonho alguma vez podia reflectir.
Embora a ocorrência fosse como um sonho, era mesmo verdadeira. Estava ali acusado de roubo. A nota fora encontrada na posse dele, embora estivesse inocente em pensamento e acções, e assim o levavam preso.
Seguia absorvido nestas tristas congeminações, pensando com angústia na mãe e no pequeno Jacob, e sentindo que mesmo a consciência da sua inocência seria insuficiente para lhe dar ânimo na presença dos seus amigos se estes o considerassem culpado. À medida que se iam aproximando da casa do Notário, o pobre Kit sentia que cada vez mais a esperança e a coragem o abandonavam, ia olhando gravemente pela janela sem ver nada, quando subitamente, como por artes mágicas, avistou o rosto de Quilp.
E como ele olhava de soslaio com uma expressão maldosa! Estava a olhar pela janela aberta de uma taberna. E o anão tinha-se deitado de tal modo sobre ela, com os cotovelos sobre o peitoril e a cabeça assente sobre ambas as mãos, que pela sua posição e por estar retesado por um riso mal contido, parecia assoprado e inchado para o dobro da sua largura normal.
Mr. Brass, ao reconhecê-lo, parou imediatamente a carruagem, mesmo em frente dele. O anão então, tirou o chapéu, cumprimentando o grupo com uma cortesia odiosa e grotesca.
- Ah! - gritou. - Então para onde vai, Brass? Para onde vai agora? E a Sally também vai? A doce Sally! E o Dick? O simpático Dick! E o Kit? O honesto Kit!
- Ele está extraordinariamente contente! - disse Brass para o cocheiro. - Está mesmo muito alegre! Ah, cavalheiro, é um caso triste! Nunca mais acredito na honestidade, cavalheiro.
- Porque não? - replicou o anão. - Porque não, seu advogado velhaco, porque não?
- Perdeu-se uma nota no nosso escritório, contou Brass, abanando a cabeça. - Foi encontrada dentro do chapéu dele, senhor... antes tinha lá ficado sozinho... não há qualquer engano, a cadeia das provas está completa... não falta um único elo.
- O quê! - exclamou o anão, empinando metade do corpo para fora da janela. - O Kit é um ladrão? O Kit é um ladrão! Ah! Ah! Ah! É o ladrão mais feio que se pode ver em qualquer lado por um «penny-. Hem, Kit, hem? Ah! Ah! Ah! Levam o Kit preso, antes de ele ter tempo e oportunidade de me bater! Hem, Kit, hem? - E assim dizendo rebentou em estridentes gargalhadas, com grande terror do cocheiro, e apontou para a vara de um tintureiro próximo, onde um fato, balançando ao vento, se assemelhava vagamente a um homem pendurado numa forca.
- Vais acabar assim, Kit! - gritou o anão, esfregando as mãos com força. - Ah! Ah! Ah! Que desilusão para o pequeno Jacob e para a querida mãezinha! Brass, mande chamar o pastor da «Bethel» para o confortar e consolar. Hem, Kit, hem? Siga, cocheiro, siga. Adeusinho, Kit. Desejo-te as maiores felicidades. Não desanimes. Dá os meus cumprimentos aos Garlands... aqueles queridos senhores. Diz-lhes que perguntei por eles, não te esqueças! Que Deus os abençoe e a ti e a toda a gente, Kit. Que Deus abençoe todo o mundo!
E com estes votos e estas despedidas, proferidas num rápido turbilhão até eles ficarem fora do alcance da sua voz, Quilp deixou-os partir. E quando deixou de ver a carruagem, retirou a cabeça para dentro e rebolou-se no chão num arrebatamento de gozo.
Quando chegaram ao Notário, o que não demorou muito, já que haviam encontrado o anão numa travessa muito próxima do escritório, Mr. Brass desceu. Em seguida abriu a porta da carruagem, e com semblante tristonho, pediu à irmã que o acompanhasse ao escritório com o fim de preparar as boas pessoas que lá se encontravam para a triste notícia que as aguardava.
Miss Sally obedeceu, e ele pediu então a Mr. Swiveller que fosse também com eles. F. assim se dirigiram para o escritório. Mr. Sampson de braço dado com a irmã e Mr. Swiveller sozinho, atrás.
O Notário estava diante da lareira no escritório que dava para a rua, conversando com Mr. Abel e Mr. Garland sénior, enquanto Mr. Chuckster, sentado à secretária a escrever, ia apanhando os bocadinhos da conversa que chegavam até ele. Mr. Brass observou a cena através do vidro da porta, enquanto rodava a maçaneta. E ao verificar que o Notário o havia reconhecido, começou, ainda fora da porta, a abanar a cabeça e a suspirar profundamente.
- Senhor - disse Sampson, tirando o chapéu e beijando dois dedos da sua luva da mão direita, de pele de castor.
- Chamo-me Brass, Brass de Bevis Marks, senhor. Tive o prazer e a honra, senhor, de ter participado consigo em pequenas questões testamentárias, em que defendi a parte contrária. Como está, senhor?
- O meu escriturário toma conta de qualquer assunto de que venha tratar, Mr. Brass - disse o Notário, afastando-se.
- Obrigado, senhor - respondeu Brass. - Certamente, obrigado. Permita-me, senhor, que lhe apresente a minha irmã... É também do nosso ofício, senhor, embora do sexo fraco... muito útil no meu escritório, posso assegurar-lhe, senhor. Mr. Richard, senhor, tenha a bondade de se aproximar, se faz o favor... Não, realmente - continuou Brass interpondo-se entre o Notário e o seu gabinete particular, para onde ele começava a retirar-se, e falando com modos de pessoa ofendida. - Realmente, senhor, tenho mesmo de lhe solicitar o obséquio de lhe dar uma ou duas palavras.
- Mr. Brass - respondeu o outro em tom enérgico, - estou ocupado. Está a ver que estou ocupado com estes senhores.
Se transmitir o seu assunto a Mr. Chuckster que está ali, ele presta-lhe toda a atenção.
- Senhores - disse Brass, colocando a mão direita sobre o colete e olhando para o pai e para o filho com um sorriso lisonjeiro. - Senhores, apelo para vós... realmente. Senhores, peço que considerem. Sou um homem de leis. Tenho direito ao título de «gentleman» por decreto do Parlamento. Conservo esse título graças ao pagamento anual de doze libras esterlinas, para manter o certificado. Não sou um desses tocadores de música, actores de teatro, escritores de livros ou pintores de quadros que se arrogam de uma categoria que as leis deste país não reconhecem. Não sou nenhum saltimbanco, nem nenhum vagabundo. Se alguém intentar uma acção contra mim em juízo, tem de me tratar por senhor, senão a sua acção ficará nula e sem nenhum efeito. Apelo para vós. Isto é uma maneira respeitosa? Realmente, senhores...
- Bem, então tenha a bondade de dizer o que pretende, Mr. Brass - disse o Notário.
- Senhor - respondeu Brass, - assim farei. Ah, Mr. Witherden! Mal sabe que... mas não me vou afastar do assunto. Creio que um destes senhores se chama Garland.
- Chamam-se ambos - disse o Notário.
- Deveras? - exclamou Brass com uma expressão demasiado bajuladora. - Poderia ter visto pela extraordinária semelhança de ambos. É um grande prazer para mim ter a honra de travar conhecimento com dois cavalheiros destes, embora numa situação muito penosa. Um dos senhores tem um criado chamado Kit?
- Têm ambos - respondeu o Notário.
- Dois Kits? - perguntou Brass sorrindo. - Meu Deus!
- Un Kit, senhor - replicou Mr. Witherden irritado, - que está ao serviço de ambos os senhores. O que é que se passa com ele?
- Aconteceu o seguinte, senhor - respondeu Brass, baixando a voz para impressionar. - Esse jovem, senhor, em quem eu depositava uma confiança inigualável e ilimitada e a quem tratava sempre em pé de igualdade... esse jovem cometeu esta manhã um furto no meu escritório e foi quase apanhado em flagrante.
- Isso deve ser alguma calúnia! - exclamou o Notário.
- Não é possível - disse Mr. Abel.
- Não acredito em nada disso! - exclamou o senhor de idade.
Mr. Brass olhou-os com ar indulgente e respondeu:
- Mr. Witherden, senhor, as suas palavras poderiam dar azo a uma acção em juízo, e se eu fosse uma pessoa de baixa condição, que não pudesse suportar a difamação, instaurava um processo por ofensas. De qualquer forma, senhor, sendo aquilo que sou, limito-me a refutar essas palavras. Respeito o sincero ardor do outro senhor, e é para mim verdadeiramente penoso ser o mensageiro de tão desagradáveis notícias. Não me teria sujeitado a esta penosa situação, posso assegurar-vos, se o próprio rapaz não tivesse pedido para vir aqui primeiro, e eu acedi ao seu desejo. Mr. Chuckster, senhor, tenha a bondade de bater à janela, fazendo sinal ao polícia que está à espera dentro da carruagem.
Ao ouvirem estas palavras, os três senhores entreolharam-se empalidecendo, e Mr. Chuckster, obedecendo ao pedido, saltou do banco com a excitação de um profeta inspirado cujos vaticínios haviam sido cumpridos no decurso do tempo, e escancarou a porta para dar entrada ao infeliz preso.
E que cena então ocorreu quando Kit entrou, e irrompendo com a tosca eloquência que a Verdade finalmente lhe inspirou, invocou o Céu em testemunho da sua inocência, e que não sabia como a propriedade viera a ser encontrada na sua pessoa! Que confusão de falas antes de as circunstâncias serem relatadas e as provas apresentadas! Que silêncio mortal quando tudo foi dito, e os seus três amigos trocaram olhares de dúvida e de espanto!
- Não seria possível - disse o Notário após um longo silêncio - a nota ter caído dentro do chapéu por algum acaso... como ao pegar nuns papéis de cima da secretária, por exemplo? Mas verificou-se que isso era absolutamente impossível. Mr. Swiveller, embora uma testemunha involuntária, não pode deixar de provar de modo concludente que, pela posição em que foi encontrada, devia ter sido ocultada deliberadamente.
- É muito lamentável - disse Brass, - extremamente lamentável, sei bem. Quando ele for levado a tribunal, terei todo o gosto em solicitar clemência para ele, atendendo ao seu bom carácter anterior. É verdade que me faltou dinheiro antes, mas isso não significa que ele o tivesse tirado. As conclusões, até prova em contrário, são contra ele... muito contra ele... mas todos nós somos cristãos, não é verdade?
-Julgo - disse o polícia olhando em redor - que nenhum aqui dos senhores pode declarar se ele tem andado com mais dinheiro ultimamente? O senhor sabe, por acaso?
- Ele de vez em quando tem dinheiro, de facto - respondeu Mr. Garland, a quem o guarda se havia dirigido. - Mas era-lhe dado pelo próprio Mr. Brass, conforme ele sempre me dizia.
- Sim, naturalnente - disse Kit, com ansiedade. - E o senhor pode confirmar isso!
- Hem? - gritou Brass, olhando de um rosto para outro, com uma expressão pasmada e estúpida.
- Aquele dinheiro, as meias-coroas que me dava... do hóspede - afirmou Kit.
- Oh, meu Deus! - exclamou Brass, abanando a cabeça e franzindo carregadamente o sobrolho. - Isto é um caso grave, parece-me, é de facto um caso muito grave.
- O quê! Não lhe deu nenhum dinheiro, por mando de ninguém, senhor? - perguntou Mr. Garland com grande ansiedade.
- Eu, dar-lhe dinheiro, senhor? - respondeu Sampson.
- Ora, isso é demasiado descaramento. Senhor polícia, meu bom amigo, é melhor irmos andando.
- O quê? - gritou Kit, angustiado. - Ele nega isso? Perguntem-lhe, suplico que lhe perguntem. Perguntem-lhe que diga se o deu ou não!
- Deu, senhor? - perguntou o Notário.
- Digo-lhes uma coisa, senhores - respondeu Brass com a maior gravidade. - Não é deste modo que ele se defende, e se de facto os senhores têm algum interesse nele, o melhor é aconselharem-no a seguir por outro caminho. Se lhe dei dinheiro, senhor? Naturalmente que nunca lhe dei dinheiro nenhum.
- Senhores! - bradou Kit, que tivera repentinamente uma inspiração. - Patrão, Mr. Abel, Mr. Witherden, os senhores todos! Ele deu-o! Não sei o que possa ter feito para o ofender, mas isto é uma intriga para me desgraçar. Afirmo, meus senhores, que é uma intriga, e seja o que for que vier a resultar dela, hei-de dizer com o meu último suspiro, que foi ele mesmo quem pôs a nota dentro do meu chapéu! Olhem para ele, meus senhores... vejam como ele muda de cor. Qual de nós é que parece culpado? Ele ou eu?
- Estão a ouvi-lo, meus senhores? - disse Brass, sorrindo.
- Os senhores ouviram-no. Ora este caso desperta a vossa atenção por estar a assumir um carácter hostil, ou não? Acham que é um caso de deslealdade, ou de mera criminalidade normal? Talvez que. se ele não tivesse dito isto na vossa presença, e fosse eu a contá-lo, talvez achassem isto também impossível, hem?
E com estes comentários pacíficos e sarcásticos Mr. Brass refutou a vil difamação do seu carácter. Mas a virtuosa Sally, agitada por sentimentos mais fortes, e sentindo talvez no seu íntimo um mais zeloso respeito pela honra da família, saltou do lado do irmão e, sem qualquer prévio indício do seu propósito, atirou-se ao preso com toda a fúria.
O rosto de Kit teria sem dúvida passado um mau bocado se o cauteloso polícia, adivinhando o seu intento, não tivesse afastado Kit para o lado no momento crítico, deixando assim Mr. Chuckster exposto a algum risco. Como aquele cavalheiro se encontrava casualmente junto do alvo que despertara o ódio de Miss Brass, e como a fúria, tal como o amor e a fortuna, é cega, a formosa sedutora atirou-se a ele, arrancando-lhe um colarinho postião pela raiz e desgrenhando-lhe furiosamente o cabelo, antes que os esforços de todos conseguissem fazê-la compreender o seu erro.
O polícia, advertido por este desesperado ataque e pensando, talvez, que seria mais satisfatório, para efeitos de justiça, que o preso comparecesse inteiro diante de um magistrado, em vez de comparecer feito em bocados, levou-o de volta para a carruagem, sem mais dificuldades e, ademais, insistiu para que Miss Brass viajasse fora.
A encantadora criatura, após uma breve e acalorada discussão, acabou por aceder àquela proposta, e assim tomou o lugar do seu irmão Sampson na boleia, enquanto este concordou, com certa relutância, em ocupar o lugar dela no interior do veículo. Uma vez concluídas estas acomodações, dirigiram-se para o gabinete do magistrado a toda a velocidade, seguidos pelo Notário e pelos seus dois amigos, noutra carruagem.
Só Mr. Chuckster ficou para trás, com grande indignação sua, pois considerava a prova que poderia ter dado, relativamente ao facto de Kit ter voltado para concluir o serviço pelo qual já havia recebido um xelim, como tão importante e essencial quanto ao seu carácter hipócrita e insidioso, que entendeu ser esta omissão quase igual a uma traição.
No gabinete do magistrado encontraram o cavalheiro solitário que tinha seguido imediatamente para lá e que os aguardava com enorme impaciência. Mas nem cinquenta cavalheiros solitários juntos poderiam valer ao pobre Kit que, ao fim de meia hora, estava citado para julgamento.
Um guarda amistoso que o acompanhou até à prisão foi-lhe dizendo pelo caminho que não havia razão para ficar oprimido, já que as sessões do tribunal iam começar em breve e era bem provável que o seu pequeno caso ficasse resolvido e que ele fosse deportado com todo o conforto em menos de quinze dias.
Digam os moralistas e os filósofos o que quiserem, é muito discutível se um culpado sentiria, naquela noite, metade do sofrimento de Kit inocente. O mundo, como está sempre a cometer muitas injustiças, consola-se demasiadas vezes com a ideia de que se a vítima da sua falsidade e da sua maldade tiver a consciência tranquila, não deixará de suportar as suas provações e, de uma maneira ou de outra, obter finalmente justiça. «Neste caso», afirmam os autores dessa injustiça, «embora certamente não o esperássemos, ninguém ficará mais satisfeito do que nós».
Mas o mundo faria bem em reflectir que a injustiça é, em si própria, para qualquer espírito generoso e bem formado, um insulto, de todos o mais intolerável, cruel e o mais difícil de suportar, e que, por essa mesma razão, muitas consciências puras se perderam e muitos corações fortes se despedaçaram, e a consciência dos seus méritos só agravou os seus sofrimentos e os tornou mais insuportáveis.
No entanto, no caso de Kit, o mundo não estava em falta. Mas Kit estava inocente, e sabia-o, e sentindo que os seus melhores amigos o consideravam culpado, que Mr. e Mrs. Garland haviam de o julgar um monstro de ingratidão, que Bárbara havia de associar o seu nome a tudo o que era mau e criminoso, que o próprio pónei iria julgar-se abandonado e que talvez mesmo a sua mãe acabasse por ceder às convincentes aparências que militavam contra ele, acreditando que ele era o miserável que parecia ser, sabendo e tendo consciência de tudo isto, sentiu pela primeira vez uma angústia indescritível e pôs-se a andar de um lado para o outro dentro da pequena cela onde tinha ficado encerrado durante a noite, torturado pelo sofrimento.
E quando a violência destas emoções havia diminuído um pouco e ele tinha começado a ficar mais tranquilo, um novo pensamento surgiu no seu espírito com uma angústia quase igual à anterior. A jovem, a brilhante estrela da sua vida singela, que sempre surgia nos seus pensamentos como um sonho belo, ela, que transformara a parte mais pobre da sua vida na melhor e mais feliz, ela, sempre tão amável, tão atenciosa e tão generosa, se alguma vez soubesse disto, o que é que não iria pensar!
Quando esta ideia lhe surgiu, as paredes do seu cárcere como que desapareceram, aparecendo em seu lugar a antiga casa tal como costumava apresentar-se nas noites de Inverno. A lareira, a mesinha de jantar, o chapéu e o casaco do velho, a sua bengala, a porta semiaberta que dava para o quartinho da jovem, tudo estava lá.
A própria Nell estava lá, e ele, ambos rindo animadamente como tantas vezes acontecia, e ao chegar a este ponto Kit não aguentou mais, atirou-se para cima da sua miserável cama e começou a chorar.
Foi uma noite muito longa, que parecia não ter fim. Mas ele dormiu e sonhou. Sonhou que estava em liberdade, e andava a vaguear de um lado para o outro, ora com uma pessoa, ora com outra, mas sempre com o vago receio de que o mandassem voltar para a prisão, não aquela prisão, mas outra, uma imagem indistinta, não de um local, mas de uma ânsia e de uma mágoa, uma coisa opressiva e sempre presente, e contudo impossível de definir. Amanheceu, finalmente, e lá estava o cárcere. Frio, escuro, lúgubre e muito real.
Mas fora deixado sozinho, o que lhe dava uma certa consolação. Podia passear em liberdade em determinada hora, num pequeno pátio calcetado, e soube pelo carcereiro, que viera abrir-lhe a cela e indicar-lhe onde se podia lavar, que todos os dias havia uma hora certa para visitas, e que se algum dos seus amigos viesse visitá-lo, viriam buscá-lo, conduzindo-o até à grade.
O homem, depois de lhe ter dado estas informações juntamente com uma tijela de lata com o seu almoço, voltou a fechá-lo à chave. Depois continuou a andar pelo corredor de pedra, retinindo ao abrir e fechar outras portas, e despertando inúmeros ecos que durante muito tempo ficaram a ressoar pelo edifício, como se também eles estivessem presos e não conseguissem sair.
Este carcereiro deu-lhe a entender que, assim como alguns outros, estava alojado à parte dos restantes presos, por se considerar que não estava completamente corrompido e irrecuperável, e por nunca ter estado antes hospedado naquela mansão. Kit sentiu-se grato com aquela benevolência e sentou-se a ler atentamente o catecismo da Igreja embora o soubesse de cor, desde a infância, até que ouviu a chave na fechadura e o carcereiro entrou outra vez.
- Olha lá - disse ele, - anda daí.
- Para onde, senhor? - perguntou Kit.
O homem limitou-se a responder-lhe laconicamente «visitas», e agarrando-o pelo braço, exactamente do mesmo modo que o guarda havia feito no dia anterior, conduziu-o através de vários corredores sinuosos e de fortes portões até uma passagem, deixando-o ficar aí junto de uma grade, e retirou-se.
Para lá desta grade havia outra, exactamente igual, a uma distância de cerca de quatro ou cinco pés. No espaço entre as duas grades, estava sentado um carcereiro a ler o jornal. E do lado de fora da segunda grade, Kit, com o coração a palpitar, avistou a mãe com o bebé ao colo, a mãe de Bárbara com o seu inseparável guarda-chuva, e o pequeno Jacob, coitadinho, com os olhos muito arregalados, como se estivesse à procura de um pássaro ou de um animal selvagem, pensando que os homens estavam ali por puro acaso e que nada tinham a ver com as grades.
Mas o pequeno Jacob avistou imediatamente o irmão e estendeu os braços através das grades para o abraçar, verificando, porém, que não conseguia aproximar-se e que estava longe, com a cabeça em cima do braço com o qual se segurava a uma das barras, começou a chorar de modo comovente. Em seguida, a mãe de Kit e a da Bárbara, que se haviam dominado o mais possível, irromperam também a soluçar e a chorar. O pobre Kit não pôde conter as lágrimas e nenhum deles conseguia pronunciar uma palavra.
Durante este intervalo de tristeza, o carcereiro continuava a ler o seu jornal com olhar divertido, era evidente que estava na secção das anedotas, até que, levantando casualmente a cabeça por um momento, como para, através da contemplação, penetrar melhor na própria essência de alguma pilhéria mais subtil do que as outras, pareceu aperceber-se pela primeira vez de que estava alguém a chorar.
- Ora, minhas senhoras, minhas senhoras! - disse ele virando-se, surpreendido. - Aconselho-as a não estarem assim a perder tempo. É que aqui o tempo está racionado. E também não devem deixar essa criança fazer tanto barulho. É contra o regulamento.
- Sou a pobre mãe dele, senhor - disse Mrs. Nubbles por entre soluços e inclinando-se com humildade. - E este é o seu irmão, senhor. Oh, meu Deus, meu Deus!
- Ora bem! - replicou o carcereiro dobrando o jornal em cima dos joelhos para conseguir ler melhor a parte superior da coluna seguinte. - Agora não há nada a fazer. E não é ele o único nestes apuros. Não devem fazer esse alarido todo por causa disso!
E assim dizendo, continuou a sua leitura. O homem não era cruel ou desumano por natureza. Mas tinha acabado por considerar o crime como uma espécie de enfermidade, como a escarlatina ou a erisipela. Acontecia que umas pessoas adoeciam com ela, outras não.
- Oh, meu querido Kit - exclamou a mãe, que fora caridosamente aliviada do peso do bebé pela mãe da Bárbara. - Como posso ver-te aqui, meu pobre filho!
- Não vai acreditar que eu tenha feito aquilo de que sou acusado, minha querida mãe? - gritou Kit com voz sufocada.
- Eu, acreditar! - exclamou a pobre mulher. - Eu, que desde o berço nunca te ouvi dizer uma mentira nem fazer uma má acção, e que nunca tive um momento de desgosto por tua causa, a não ser pelas magras refeições que tu comias com tão boa disposição e tanta satisfação que me conseguias fazer esquecer como era pouco, quando penso como tu eras amável e sensato, embora fosses apenas uma criança! Eu, acreditar numa coisa dessas de um filho que tem sido uma consolação para mim, desde a hora em que nasceu até agora, e que não houve uma única noite que tivesse ido para a cama zangada com ele! Eu, acreditar numa coisa dessas de ti, Kit!
- Então, louvado seja Deus! - exclamou Kit, agarrando-se às grades com tanta força que estas abanaram. - Então já posso suportar isto, minha mãe. Seja o que for que vier a acontecer, hei-de sentir sempre uma centelha de felicidade no meu coração ao lembrar-me do que disse.
Ao ouvir isto, a pobre mãe irrompeu novamente a chorar, assim como a mãe da Bárbara. E o pequeno Jacob, que nesta altura já havia conseguido juntar os seus pensamentos dispersos, percebendo bem claramente que Kit não podia sair para passear, se lhe apetecesse fazê-lo, e que atrás das grades não havia pássaros, leões, tigres nem outras curiosidades naturais, não havia efectivamente mais nada, senão o seu irmão enjaulado, o pequeno Jacob juntou as suas lágrimas às das duas mulheres, tão discretamente quanto possível.
Então a mãe de Kit, enxugando os olhos, mas, pobre mulher, molhando-os mais do que enxugando-os, agarrou num cestinho que estava no chão, e dirigindo-se humildemente ao carcereiro, pediu-lhe o favor de lhe prestar um momento de atenção. O carcereiro, que naquele momento, estava no auge e na excitação de uma anedota, fez-lhe um gesto com a mão para estar calada mais um momento, por amor de Deus. E não recolheu a mão, conservando-a na mesma posição de advertência até ter acabado de ler o parágrafo, interrompendo-se então durante alguns instantes, com um sorriso, como a significar: «Este editor sempre me saiu um brincalhão... é mesmo divertido!- Em seguida, perguntou-lhe o que é que ela queria.
- Trouxe aqui uma coisinha para ele comer - disse a boa mulher. - Por favor, senhor, ele poderia ficar com isto?
- Pode, sim. Não há nada no regulamento que o impeça. Dê-mo quando se for embora, que me encarrego de lho dar.
- Não, por favor, senhor... não se zangue comigo, senhor... Eu sou mãe dele, e o senhor também já teve mãe... gostava tanto de o ver comer alguma coisa, assim já podia ir-me embora muito mais contente ao vê-lo mais reconfortado.
E novamente as lágrimas brotaram dos olhos da mãe de Kit, da mãe da Bárbara e do pequeno Jacob. Quanto ao bebé, exultava de alegria e ria todo contente, julgando, segundo parecia, que toda aquela cena tinha sido inventada e preparada para sua satisfação pessoal.
O carcereiro pareceu achar o pedido estranho e fora do vulgar, mas apesar disso pousou o jornal, e aproximando-se da mãe de Kit, pegou no cesto, e depois de inspeccionar o seu conteúdo, entregou-o a Kit, voltando novamente para o seu lugar.
É fácil de imaginar que o preso não tinha grande apetite, mas sentou-se no chão e pôs-se a comer tanto quanto podia, e a cada bocado que metia na boca, a mãe soluçava e chorava de novo, embora mais suavemente, revelando a satisfação que lhe causava ver o filho a comer.
Enquanto assim comia, ia inquirindo ansiosamente pelos patrões, e se tinham manifestado alguma opinião sobre ele. Mas tudo o que conseguiu saber foi que o próprio Mr. Abel levara a notícia à mãe, na noite anterior, com grande cuidado e delicadeza, mas sem se manifestar quanto à sua inocência ou culpa. Estava Kit a arranjar coragem para perguntar por Bárbara à mãe desta, quando apareceu o carcereiro que o tinha trazido, um segundo surgiu por trás das visitas e o terceiro, o do jornal, gritou: - Acabou o tempo! - acrescentando, ao mesmo tempo - venham agora os seguintes.
- Dizendo isto, voltou a mergulhar na leitura do jornal.
Kit foi levado rapidamente, com a bênção da mãe e o grito do pequeno Jacob ainda a ressoar-lhe nos ouvidos. Quando ia a atravessar o outro pátio, com o cesto na mão e conduzido pelo primeiro guarda, apareceu outro que lhes disse que esperassem e voltou depois, trazendo uma caneca de cerveja.
- Este é Cristopher Nubbles, que entrou a noite passada acusado de roubo, não é? - perguntou.
O colega respondeu que era aquele mesmo o franganote em questão.
- Então, aqui está a tua cerveja - disse o outro homem para Christopher. - Porque é que estás a olhar? Não tem lá nenhuma porcaria dentro.
- Queira desculpar - disse Kit. - Quem é que ma enviou?
- Ora, foi o teu amigo - respondeu o homem. - Diz que quer que a recebas todos os dias. E hás-de recebê-la, desde que ele a pague.
- Q meu amigo? - repetiu Kit.
- Parece que estás confuso - respondeu o homem. - Aqui está a carta dele. Toma- a lá.
Kit agarrou nela e, quando já estava outra vez encerrado na sua cela, leu a carta, que dizia o seguinte:
«Bebe esta taça. Verás que cada uma da suas gotas contém um encanto contra os males dos mortais. Refiro-me ao cordial que cintilou para Helena! Mas a sua taça era uma lenda, e esta é verdadeira (da Barclay & Co). Se alguma vez a receberes vazia, queixa-te ao Director. O teu, R.S.»
- R.S.! - exclamou Kit depois de reflectir um momento.
- Deve ser Mr. Richard Swiveller. É uma grande generosidade da parte dele e agradeço-lhe de todo o meu coração.
Na janela do escritório situado no cais de Quilp, tremeluzia uma luz débil que, vista através da neblina nocturna, se assemelhava a um olho doente, vermelho e inflamado.
Esta luz preveniu Mr. Sampson Brass, que se aproximava cautelosamente da cabana de madeira, que o seu excelente proprietário, o seu estimado cliente, se encontrava lá dentro. E certamente estava, e aguardava, com a sua habitual paciência e doçura de temperamento, a entrevista, que constituía o motivo que assim levava Mr. Brass a penetrar naquele belo domínio.
- Que lugar traiçoeiro! Uma pessoa nem vê onde põe os pés, numa noite escura como esta - murmurou Sampson, ao tropeçar pela vigésima vez nalguns pedaços de madeira espalhados ao acaso, e ficando a coxear de dor. - Parece-me que aquele rapaz cada dia espalha as coisas pelo chão de maneira diferente, propositadamente para ferir e magoar uma pessoa, a não ser que seja o próprio patrão a fazê-lo com as suas próprias mãos, o que é mais do que provável. Detesto vir aqui sem a Sally. Dá mais protecção do que uma dúzia de homens.
Mr. Brass, ao proferir este cumprimento aos méritos da bela ausente, interrompeu-se, olhando hesitante a luz por cima do ombro.
- O que é que ele estará a fazer? - murmurou o advogado, erguendo-se em bicos de pés e tentando aperceber-se do que se estava a passar lá dentro, o que era impossível, à distância a que se encontrava. - Deve estar a beber, para se tornar mais colérico e furioso, e inflamar a sua ruindade e a sua maldade até à ebulição. Tenho sempre receio de vir aqui sozinho, quando ele já emborcou uma boa conta. Parece-me que ele não se importava nada de me estrangular, deitando-me depois ao rio, quando a maré estivesse mais alta. Era como se matasse um rato... nem sei mesmo se ele não achava isso uma boa piada. Olha! Agora está a cantar!
Não havia dúvida que Mr. Quilp estava entretido com um exercício vocal, embora fosse mais salmodiar do que cantar e consistindo na repetição monótona e muito rápida de uma frase, em que prolongava a última palavra num tom mais alto, culminando num lúgubre berro. E o tema da sua actuação também não aludia ao amor, guerra, vinho, lealdade ou a qualquer outro dos tópicos habituais de uma canção, mas referia-se a um assunto pouco frequente em música ou geralmente não tratado em baladas.
A letra era a seguinte: «O digno magistrado, depois de verificar que o preso tinha alguma dificuldade em convencer o júri a acreditar na sua história, citou-o para julgamento nas próximas sessões e ordenou que se procedesse aos habituais registos para instauração do processo.»
Todas as vezes que chegava à última palavra, e depois de esgotar todas as maneiras possíveis de a realçar, Quilp irrompia em estridentes gargalhadas e recomeçava.
- É terrivelmente imprudente - murmurou Brass depois de ter escutado duas ou três vezes aquele salmodiar, que se ia sempre repetindo. É muito imprudente! - Oxalá ele fosse mudo! Oxalá fosse surdo! Oxalá fosse cego! Diabos o levem!
- exclamou Brass quando o salmodiar recomeçou. - Oxalá ele morresse!
Depois de ter assim proferido estes cordiais votos a favor do seu cliente, Mr. Sampson compôs as feições na sua habitual expressão bajuladora, e esperando até que as gargalhadas voltassem e desaparecessem de novo, aproximou-se da cabana de madeira, batendo à porta.
- Entre! - gritou o anão.
- Como está esta noite, senhor? - perguntou Sampson espreitando para dentro. - Ah! Ah! Ah! Como está, senhor? Oh, meu Deus, mas como está original! Está mesmo espantosamente original!
- Entre lá, seu tolo - respondeu o anão - e não fique aí a abanar a cabeça e a mostrar os dentes. Entre, sua falsa testemunha, seu perjuro, seu subornador de testemunhas, entre!
- Como está de tão bom humor! - exclamou Brass fechando a porta atrás de si. - Está com uma espantosa veia cómica! Mas não é um pouco imprudente, senhor...?
- O quê? - interpelou Quilp. - O quê, Judas?
- Judas! - exclamou Brass. - Mas que extraordinário espírito! Que humor tão brincalhão! Judas! Oh, sim... meu Deus, que engraçado! Ah! Ah! Ah!
Durante todo este tempo, Sampson esfregava as mãos, fitando com cómico espanto e algum temor uma grande figura de proa de algum velho navio que, de olhos esbugalhados e nariz achatado, estava encostada à parede, num canto junto do fogão, como um duende ou um odioso ídolo, a quem o anão prestasse culto.
Sobre a cabeça tinha um pedaço do costado de um navio, cortado de forma a assemelhar-se vagamente a um tricórnio e que, juntamente com o desenho de uma estrela no lado esquerdo do peito e umas dragonas nos ombros, indicava que pretendia representar a efígie de algum famoso almirante. Mas sem esses acessórios, qualquer observador seria levado a supor tratar-se da imagem autêntica de algum ilustre tritão ou de um grande monstro marinho.
Como inicialmente era demasiado grande para a casa que agora ornamentava, tinha sido serrado pela cintura. Mas mesmo assim, chegava do ao chão ao tecto. E inclinado para a frente, com aquele aspecto meio espantado e aquela expressão de importuna cortesia que caracterizam geralmente as figuras de proa, parecia reduzir tudo o resto às dimensões de pigmeus.
- Conhece-o? - perguntou o anão observando o olhar de Sampson. - Está a ver a semelhança?
- Hem? - exclamou Brass, inclinando a cabeça para o lado e ligeiramente para trás, como costumam fazer os entendidos. - Agora que estou a olhar outra vez para ele. imagino estar a ver um... sim, há alguma coisa naquele sorriso que me faz lembrar... e, no entanto, palavra de honra, eu...
Ora a verdade era que Sampson, que nunca vira nada que se assemelhasse minimamente àquele fantasma real, sentia-se perplexo. Por isso, estava indeciso se Mr. Quilp o achava igual a si próprio, tendo-o assim adquirido como um retrato de família, ou se lhe dava prazer considerá-lo como a imagem de algum inimigo, mas não permaneceu muito tempo na dúvida, pois enquanto estava a examiná-lo com aquele ar conhecedor que as pessoas assumem quando contemplam, pela primeira vez, imagens que deviam saber de quem são mas não sabem, o anão atirou fora o jornal de onde havia retirado as frases que havia transcrito e salmodiado, e agarrando numa barra de ferro ferrugenta que utilizava como atiçador do lume, aplicou uma tal pancada no nariz da figura que esta se pôs novamente a baloiçar.
- Não é parecio com Kit... não é o seu retrato, a sua imagem, a sua própria pessoa? - perguntou o anão, infligindo uma série de pancadas no rosto insensível da figura e cobrindo-o de mossas. - Não é o modelo exacto e a cópia daquele cachorro... não é... não é... não é? - E cada vez que repetia a pergunta batia na grande estátua, até o suor lhe escorrer pelo rosto com a violência do exercício.
Embora esta cena pudesse ser muito cómica observada na segurança de uma galeria, tal como uma tourada é um espectáculo cómodo para aqueles que não se encontram na arena e uma casa a arder é melhor do que uma peça de teatro para quem não vive próximo dela, havia, nos modos enérgicos de Mr. Quilp, qualquer coisa que levou o seu conselheiro legal a sentir que o escritório era demasiado pequeno e tremendamente solitário para apreciar devidamente os seus humores.
Por isso, enquanto o anão estava entregue àquelas demonstrações, permanecia tão afastado como podia, lamuriando um débil aplauso, e quando ele acabou, sentando-se de novo de pura fadiga, aproximou-se mais obsequioso do que nunca.
- Verdadeiramente excelente! - exclamou Brass. - Eh! Eh! Oh, muito bem, senhor. Realmente - disse Sampson olhando em redor como para chamar a atenção do maltratado almirante. - Ele é um homem absolutamente notável... é mesmo!
- Sente-se - disse-lhe o anão. - Comprei o cachorro ontem. Tenho estado a abrir-lhe furos com uma verruma e a espetar-lhe garfos nos olhos e a gravar o meu nome sobre ele. Estou a pensar queimá-lo, depois.
- Ah! Ah! - exclamou Brass. - É realmente muito divertido!
- Venha cá! - disse Quilp, fazendo-lhe sinal para se aproximar. - O que é que é imprudente, hem?
- Nada, senhor... nada. Quase nem vale a pena falar no assunto, senhor, só que me pareceu que aguela canção, embora em si mesma extraordinariamente divertida, estava talvez um pouco...
- Estava um pouco quê? - perguntou Quilp.
- Mesmo nos limites ou, poder-se-ia dizer, confinando ligeiramente com os limites da imprudência, talvez, senhor - respondeu Brass, fitando timidamente os olhos manhosos do anão que, voltados para as chamas, reflectiam o seu clarão vermelho.
- Porquê? - perguntou Quilp, sem erguer os olhos.
- Ora, é que sabe, senhor - respondeu Brass, arriscando-se a uma maior familiaridade. - O facto é que, senhor, aquelas combinaçõesinhas entre amigos para fins extremamente louváveis em si mesmos, mas que a Lei designa como conluios... está a compreender-me, senhor... ficam melhor resguardados e conservados entre amigos.
- Eh! - exclamou Quilp, erguendo os olhos e com uma expressão absolutamente vaga. - O que é que quer dizer com isso?
- Cautela, extrema cautela, toda a necessária cautela! prosseguiu Braas, acenando com a cabeça. - Nem uma palavra, senhor, mesmo aqui... era isso o que pretendia dizer, senhor.
- O que é que você pretende realmente dizer, seu espantalho atrevido, o que é que quer dizer? - retorquiu Quilp. Porque é que me vem falar em combinações? Eu combino alguma coisa? Sei alguma coisa das suas combinações?
- Não, não, senhor. Naturalmente que não, de modo nenhum - respondeu Brass.
- Se você continua assim a piscar os olhos para mim e a abanar a cabeça dessa maneira - disse o anão olhando em volta, como que procurando o atiçador do lume, - ainda lhe dou cabo dessa sua cara de macaco.
- Não se exalte assim, senhor, peço-lhe - respondeu Brass dominando-se prontamente. - Tem toda a razão, senhor, toda a razão. Não devia ter falado no assunto. É muito melhor não falar nisso. Tem toda a razão, senhor. Vamos mudar de assunto, por favor. O senhor queria saber do nosso hóspede, segundo me disse a Sally. Ele não voltou a aparecer, senhor.
- Não? - disse Quilp, aquecendo um pouco de rum numa pequena caçarola e vigiando-o para evitar que transbordasse, ao ferver. - E porque não?
- Porque, senhor... - respondeu Brass - ele... meu Deus, Mr. Quilp, senhor...
- O que é que há? - perguntou o anão, interrompendo-se com a mão no ar, quando ia levar a caçarola à boca.
- Esqueceu-se da água, senhor - disse Brass. - E... queira desculpar-me, senhor... mas está muito quente, a queimar.
Sem se dignar responder a esta objecção, senão pelo próprio acto, Mr. Quilp aproximou a caçarola quentíssima dos lábios, bebendo deliberadamente todo o seu conteúdo, numa quantidade aproximada de meio «pint» e que, poucos momentos antes, quando a retirara do lume, borbulhava e chiava violentamente. Depois de beber este suave estimulante e de agitar o punho na direcção do almirante, ordenou a Mr. Brass que prosseguisse.
- Mas primeiro - disse, com o seu habitual sorriso manhoso, - beba também uma pinga... uma bela pinga... uma pinga boa, quente, ardente!
- Pois, senhor... - replicou Brass. - mas se tivesse aí uma gota de água, que pudesse arranjar sem grande dificuldade...
- Aqui não há uma coisa dessas! - exclamou o anão. -Água para advogados! Chumbo derretido e enxofre, quer
você dizer, pez e alcatrão bem quentes, a fazer bolhas... isso é que é bom para eles... hem, Brass, hem?
- Ah Ah! Ah! - exclamou Mr. Brass rindo-se. - Oh, é muito sarcástico! E, no entanto, é como fazer cócegas... também tem o seu lado agradável, senhor!
- Beba isto - ordenou o anão que já tinha aquecido mais rum. - Beba de uma só vez e não deixe ficar lá nada, chamusque as goelas e sinta-se feliz.
O infeliz Sampson sorveu algumas gotas da bebida alcoólica que imediatamente se destilou em lágrimas abrasadoras que lhe rolaram pelo rosto e caíram novamente dentro da caçarola, colorindo-lhe o semblante e as pálpebras de um vermelho escuro e provocando-lhe um violento ataque de tosse, no meio do qual se conseguia ainda ouvir a sua voz, afirmando com a persistência de um mártir. - Realmente belo!
- E enquanto ele se debatia ainda com esta indescritível aflição, o anão continuou a conversa.
- Então, o hóspede... o que é que se passa com ele?
- Está ainda, senhor - respondeu Brass, entre os intervalos de tosse, - está em casa da família Garland. Desde o dia do interrogatório do réu só veio lá a casa uma vez. Comunicou a Mr. Richard que, depois do que se tinha passado, já não podia suportar estar lá em casa, que se sentia infeliz lá, e que se considerava como sendo, de certo modo, um pouco responsável pela ocorrência. Um excelente hóspede, senhor. Espero que não o tenhamos perdido.
- Ora! - exclamou o anão. - Nunca pensa em mais ninguém, senão em si próprio. Porque é que não reduz os gastos... poupe, amealhe, economize!
- Ora, senhor - respondeu Brass, - dou-lhe a minha palavra de que Sally é mais poupada do que qualquer outra mulher. É mesmo verdade, Mr. Quilp.
- Ponha os seus ossos de molho, homem, molhe o outro olho, beba! - exclamou o anão. - Você empregou um escriturário para me obsequiar.
- Encantado, certamente, senhor, sempre que precisar... replicou Sampson. - Sim, senhor, assim foi.
- Então, pode agora despedi-lo - disse Quilp. - Aí tem uma maneira de começar a economizar.
- Despedir Mr. Richard, senhor? - exclamou Brass.
- Tem mais algum escriturário, seu papagaio, para estar a fazer essa pergunta? Sim.
-Juro-lhe, senhor - disse Brass, - que não estava à espera que me dissesse isso...
- Como é que podia estar - disse Brass, com um riso escarninho - quando eu mesmo não estava? Quantas vezes preciso de dizer que lho levei para poder estar sempre com o olho nele e saber onde ele estava, e que tinha concebido uma intriga, um plano, uma pequena brincadeira? A essência e o cerne desta era o facto de o velho e neta, que parece que se sumiram pelo chão abaixo, serem de facto tão pobres como ratos mortos, ao passo que ele e o seu belo amigo pensavam que eles eram ricos.
- Percebi isso perfeitamente senhor - respondeu Brass. Perfeitamente.
- Então está bem, cavalheiro - replicou Quilp. - E percebe agora que eles não são pobres, que não podem ser, se têm gente como o seu hóspede à procura deles e a esquadrinhar o país de lado a lado?
- Claro que percebo, senhor - disse Sampson.
- Claro que percebe - vociferou o anão, com ar malévolo.
- Claro que percebe que, sendo assim, não interessa o que possa acontecer a esse sujeito? Claro que percebe que ele não tem qualquer utilidade para mim, nem para si, para qualquer outro efeito?
- Disse muitas vezes à Sally, senhor - respondeu Brass, que ele não servia para nada lá no escritório. Não se pode confiar nele, senhor. Pode acreditar-me, mesmo nos assuntos mais comezinhos do escritório que lhe foram confiados, o sujeito dava com a língua nos dentes, mesmo depois de ter sido expressamente prevenido. O importúnio que aquela criatura tem sido, senhor, ultrapassa tudo o que se possa imaginar, e de que maneira. Nada, a não ser o respeito e as obrigações que lhe devo, senhor...
Era óbvio que Sampson estava para desfiar uma lisonjeira arenga, se não fosse interrompido a tempo, por isso Mr. Quilp bateu-lhe cortesmente no alto da cabeça com a pequena caçarola, pedindo-lhe o obséquio de se calar.
- É bem prático, senhor, bem prático - disse Brass esfregando a cabeça e sorrindo. - E extremamente agradável, imensamente agradável!
- Importa-se de me ouvir? - retorquiu Quilp. - Ou daqui a pouco torna-se ainda mais agradável. Não há qualquer hipótese de o seu camarada e amigo voltar. Soube que o safado foi obrigado a fugir, por alguma velhacaria que fez, e teve de ir para o estrangeiro. Que apodreça por lá.
- Naturalmente, senhor. Está absolutamente correcto. Impressionante! - exclamou Brass, fitando de novo o almirante, como se ele fosse um terceiro interlocutor. - Extremamente impressionante!
- Odeio-o - declarou Quilp entre dentes - e sempre o odiei, por motivos de família. Além disso, era um rufião intratável. De contrário, teria sido de alguma utilidade. Esse sujeito é um simplório e um leviano. Já não o quero para nada. Que se enforque, ou morra afogado, ou à fome, que vá para o diabo!
- Naturalmente, senhor - respondeu Brass. - Quando é que deseja que ele... Ah! Ah!... faça esse passeiozinho?
- Quando terminar o julgamento - respondeu Quilp. Assim que tiver acabado, mande-o à sua vida.
- Assim se fará, senhor - respondeu Brass. - Naturalmente. Vai ser um choque para Sally, senhor, mas ela sabe dominar os seus sentimentos. Ah, Mr. Quilp, tenho pensado tantas vezes que se a Providência tivesse querido que o seu caminho se tivesse cruzado com o de Sally um pouco mais cedo na vida, que abençoados resultados teriam brotado de tal união. O senhor nunca chegou a conhecer o nosso querido pai, pois não? Era uma pessoa encantadora. A Sally era o seu orgulho e a sua alegria. Teria fechado os olhos mais feliz, o Foxey, lá isso tinha, se tivesse conseguido encontrar um tal companheiro para ela, Mr. Quilp. O senhor estima-a?
- Amo-a - rosnou o anão.
- O senhor é uma pessoa muito bondosa - respondeu Brass. - não há dúvida. O senhor manda mais alguma coisa, para eu anotar, além desta questãozinha de Mr. Richard?
- Mais nada - replicou o anão agarrando na caçarola. Vamos beber à saúde da encantadora Sally.
- Se o pudéssemos fazer com alguma coisa que não estivesse a ferver tanto, senhor - pediu Brass humildemente, talvez fosse melhor. Penso que ela ficará mais satisfeita quando lhe der a conhecer a honra que lhe fizemos, se souber que a bebida estava um pouco menos quente que a anterior, senhor.
Porém, Mr. Quilp fez orelhas moucas a estas admoestações. Sampson Brass, nesta altura já nada sóbrio e obrigado a tomar a mesma forte bebida, verificou que, em vez desta contribuir para o seu restabelecimento, produzia agora um efeito novo, que era o de fazer girar o escritório, que rodopiava com grande velocidade, fazendo subir e descer o chão e o tecto, de maneira aflitiva.
Após um breve período de letargia, recuperou a consciência, verificando estar em parte debaixo da mesa e em parte debaixo da grade do fogão. Como esta não era a posição mais cómoda que podia ter escolhido para si próprio, conseguiu pôr-se de pé, cambaleando e, agarrando-se ao almirante, olhou em redor, à procura do seu anfitrião.
A primeira impressão que Mr. Brass teve foi que ele se tinha ido embora, deixando-o ali sozinho, talvez fechado à chave, durante a noite. Porém, um intenso cheiro a tabaco despertou-lhe outra sucessão de ideias. Ergueu os olhos e viu o anão a fumar deitado na rede de baloiço.
- Adeus, senhor - exclamou Brass em voz débil. - Adeus, senhor.
- Não quer passar aqui a noite? - perguntou o anão, espreitando para fora. - Passe cá a noite!
- Não posso mesmo, senhor - respondeu Brass, quase desfalecendo de náusea e com a atmosfera sufocante da casa.
- Se tivesse a bondade de me dar uma luz, para poder ver o caminho através do pátio, senhor.
Quilp saltou num instante, não com as pernas primeiro, ou a cabeça ou os braços, mas com o corpo todo de uma vez.
- Com certeza - disse ele agarrando numa lanterna que era agora a única luz que havia. - Tome cuidado ao andar, meu querido amigo. Veja bem como põe os pés entre os pedaços de madeira, porque todos os pregos ferrugentos estão virados para cima. E há um cão na azinhaga. Mordeu um homem a noite passada, e uma mulher na noite anterior, e na quinta-feira passada matou uma criança, mas foi a brincar. Não se aproxime muito dele.
- De que lado da estrada é que ele está, senhor? - perguntou Brass perfeitamente aterrorizado.
- Mora do lado direito - respondeu Quilp, - mas às vezes esconde-se do lado esquerdo, pronto a saltar. Não é muito certo. Tome muito cuidado consigo. Nunca mais lhe perdoo se não tomar cuidado. Agora a luz apagou-se... deixe lá... sabe o caminho, é em frente!
Quilp tinha ocultado a luz disfarçadamente, segurando-a contra o peito e depois ficou ali rindo-se à socapa e vibrando dos pés à cabeça, num arrebatamento de gozo, a ouvir o advogado que ia tropeçando através do pátio e caindo de vez em quando pesadamente no chão. Por fim lá conseguiu sair do local, e o anão deixou de o ouvir.
O anão voltou a fechar-se à chave e saltou novamente para a rede.
O eficiente cavalheiro que havia dado a Kit a consoladora notícia quanto à resolução do seu pequeno caso no «Old Bailey», e quanto às probabilidades de o mesmo ficar arrumado muito em breve, revelou-se muito certo no seu prognóstico. As sessões começaram ao fim de oito dias.
Um dia depois, o Grande Júri pronunciou um Libelo Acusatório contra Christopher Nubbles por crime, e decorridos dois dias desse veredicto, o supracitado Christopher Nubbles foi intimado a declarar-se Culpado ou Inocente de uma Acusação de que ele, o referido Christopher, havia desviado criminosamente e roubado da residência e escritório de Sampson Brass, «gentleman», uma nota bancária de cinco libras emitida pelo Governador e pela Companhia do Banco de Inglaterra, em contravenção dos Estatutos promulgados e estipulados sobre o caso e contra a paz do nosso Soberano e Senhor, o Rei, da sua coroa e dignidade.
A esta acusação, Christopher Nubbles declarou-se inocente, em voz baixa e trémula, e aqui, aqueles que costumam fazer julgamentos apressados pelas aparências e que gostariam de ver Christopher, se inocente, declará-lo alto e bom som, deverão compreender que a prisão e a ansiedade subjugam os corações mais fortes, e que, para quem esteve encerrado e fechado à chave, embora apenas durante dez ou onze dias, vendo apenas paredes de pedra e algumas poucas faces empedernidas, a repentina entrada numa grande sala cheia de vida é uma circunstância perturbante e assustadora.
A isto há que acrescentar que a vida sob uma peruca é. para uma larga camada de pessoas, muito mais aterradora e impressionante do que vida com o cabelo normal.
E se acrescentarmos ainda a tudo isto a natural emoção de Kit ao avistar os dois Mr. Garlands e o jovem notário, com os seus rostos pálidos e ansiosos, talvez não seja motivo de tanta admiração que ele tivesse fraquejado e não se tivesse sentido completamente à vontade.
Embora nunca mais tivesse visto nenhum dos Mr. Garlands nem Mr. Witherden, desde que fora preso, tinha-lhe sido dado a entender que eles haviam nomeado um advogado para o defender. Por isso, quando um daqueles cavalheiros de peruca se levantou, dizendo: - Sou a favor do preso, Senhor Doutor Juiz. - Kit inclinou-se para ele, e quando outro cavalheiro de peruca se levantou, dizendo: - E eu sou contra ele, Senhor Doutor Juiz. - Kit ficou trémulo e inclinou-se também para ele. E como ele desejou ardentemente no seu coração que o que era a seu favor sobrepujasse o outro e o envergonhasse imediatamente!
O advogado que era contra ele foi o primeiro a falar e estava incrivelmente bem disposto, já que no último julgamento havia quase conseguido a absolvição de um jovem que tivera o azar de assassinar o pai. E pode-se ter a certeza que ele falou bem alto, dizendo ao júri que, se absolvesse aquele preso, iria sentir tanta ansiedade e aflição como a que havia dito ao outro Júri que iria certamente experimentar, se condenasse o outro preso. E depois de ter contado tudo sobre o caso e que nunca vira nada pior, interrompeu-se por uns momentos, como quem tem uma coisa terrível a comunicar.
Em seguida afirmou ter tido conhecimento de que o seu douto amigo, e aqui olhou obliquamente para o advogado de Kit, iria tentar contestar o depoimento daquelas puras e imaculadas testemunhas que iria chamar à sua presença, mas esperava e confiava sinceramente que o seu douto amigo tivesse maior respeito e veneração pelo carácter do queixoso, pois como bem sabia, não existia, nem nunca havia existido mais honroso membro da mais honrosa profissão a que ele estava vinculado. Depois perguntou se o Júri conhecia Bevis Marks. E se realmente conhecia, e esperava que efectivamente conhecesse, atendendo à reputação do Júri, então conhecia certamente as históricas e exaltantes associações estavam ligadas àquele local tão extraordinário! E acreditava o Júri que uma pessoa como Brass podia residir num local como Bevis Marks, se não possuísse um carácter virtuoso e absolutamente recto? E depois de ter desenvolvido muito esta questão, lembrou que era um insulto à compreensão do Júri tecer quaisquer comentários sobre aquilo que tão claramente devia saber sem a sua ajuda e, portanto, chamava imediatamente Sampson Brass ao banco das testemunhas.
Apareceu então Mr. Brass, muito alegre e bem disposto, e depois de se inclinar perante o Juiz, como quem tivera o prazer de o haver visto antes, esperando que ele estivesse muito bem desde o seu último encontro, cruzou os braços, olhando para o seu advogado, como a dizer-lhe: «Aqui estou eu, cheio de provas, basta inquirir!» E o advogado começou logo a inquiri-lo e com grande discrição, recolhendo as provas a pouco e pouco e apresentando-as bem claras e nítidas aos olhos de todos os presentes.
Depois, foi a vez do advogado de Kit se encarregar dele, mas nada conseguiu e, depois de muitas e longas perguntas e de muitas breves respostas, Mr. Sampson Brass saiu em glória.
A seguir a ele veio Sally, igualmente fácil de conduzir pelo advogado de Mr. Brass, mas muito obstinada para o de Kit. E, em resumo, o advogado de Kit não conseguiu arrancar-lhe mais nada, senão uma repetição do que ela já havia dito antes, só que desta vez com mais violência por ser contra o seu cliente, e por isso deixou-a ir embora, um tanto perplexo. Então o advogado de Mr. Bass convocou Richard Swiveller, que surgiu imediatamente.
Nessa altura segredaram ao ouvido do advogado de Mr. Brass que esta testemunha estava disposta a mostrar-se benévola para com o preso, o que, para dizer a verdade, ele até gostou de saber, já que que era considerado hábil naquilo que é designado familiarmente por chacota. Por isso, começou por pedir ao funcionário que verificasse bem se a testemunha beijava a Bíblia e em seguida agarrou-se-lhe afincadamente.
- Mr. Swiveller - disse o advogado para Dick, depois de este contar a sua história com evidente relutância, e tentando suavizá-la o mais possível - por favor, onde é que jantou ontem? - Onde é que jantei ontem? - Sim, cavalheiro, onde é que jantou ontem... foi perto daqui? - Oh, de facto foi, mesmo no outro lado da rua. - «De facto. Foi. Mesmo no outro lado da rua», repetiu o advogado de Mr. Brass, relanceando os olhos pelo tribunal. - Sozinho, cavalheiro? - Desculpe? diz Mr. Swiveller sem perceber a pergunta. - Sozinho, senhor? - repetiu o advogado de Mr. Brass com voz de trovão.
- Jantou sozinho? Convidou alguém, cavalheiro? Vamos lá!
- Oh, convidei de facto - respondeu Mr. Swiveller sorrindo.
- Tenha a bondade de banir a frivolidade, cavalheiro, que é imprópria do local onde se encontra, embora talvez tenha razões para estar grato por se encontrar apenas nesse lugar.
- declarou o advogado de Mr. Brass com um movimento de cabeça como insinuando que as docas são a legítima esfera de acção de Mr. Swiveller. - E preste-me atenção. Andou por aqui ontem, nervoso, por se estar a aproximar a hora deste julgamento. Jantou mesmo do outro lado da rua. Convidou uma pessoa. Ora, essa pessoa era algum irmão do réu? - Mr. Swiveller dispunha-se a explicar. - Sim ou não, cavalheiro? brada o advogado de Mr. Brass. - Mas permita-me que... Sim ou não, cavalheiro. - Sim, foi, mas... - Sim, foi! Sim, foi! - grita o advogado, interrompendo-o de imediato. - E que bela testemunha você me saiu!
O advogado de Mr. Brass sentou-se então. O de Kit, sem saber bem como estava realmente o caso, teve receio de prosseguir o assunto. Richard Swiveller retira-se, confuso. O Juiz, o Júri e a sala imaginam-no a vaguear com um sujeito dissoluto e de má cara, barba comprida, com seis pés de altura.
Na realidade tratava-se do pequeno Jacob, com a barriga das pernas ao léu e o resto do corpo embrulhado num xaile. Mas ninguém conhece a verdade, todos pensam tratar-se de um testemunho viciado... e tudo isto graças ao engenho do advogado de Mr. Brass.
Em seguida compareceram as testemunhas abonatórias, e aqui o advogado de Mr. Brass voltou a brilhar. Verificou-se que Mr. Garland não tivera qualquer carta de referência sobre Kit, nenhuma recomendação, senão a da sua própria mãe, e que ele fora despedido repentinamente pelo seu anterior patrão por razões desconhecidas. - Realmente, Mr. Garland - disse o advogado de Mr. Brass - para uma pessoa com a sua idade, o senhor é, para dizer o mínimo, singularmente imprudente, parece-me.
O Júri foi da mesma opinião e declarou Kit culpado. Foi levado embora, protestando humildemente a sua inocência. Na sala as pessoas voltaram a acomodar-se nos seus lugares, com renovada atenção já que no julgamento que se seguia iam ser interrogadas várias mulheres como testemunhas, e corriam rumores de que o advogado de Mr. Brass ia fazer um grande gáudio ao acareá-las com o réu.
A mãe de Kit, pobre mulher, estava à espera junto da grade, ao fundo das escadas, acompanhada pela mãe da Bárbara que, virtuosa alma, não fazia mais nada para além de chorar e segurar no bebé. Seguiu-se uma triste entrevista. O carcereiro, leitor de jornais, contou-lhes tudo.
Não lhe parecia que a deportação fosse para toda a vida, porque havia ainda tempo para provar o bom carácter de Kit e isso não deixaria de pesar a seu favor. Admirava-se porque é que ele teria feito uma coisa daquelas. - Ele nunca fez isso!
- exclamou a mãe de Kit. - Então está bem - respondeu o carcereiro, - não vou contradizê-la. Mas agora é a mesma coisa, quer o tenha feito, quer não.
A mãe de Kit conseguiu segurar a mão dele através das grades, apertando-a muito, e só Deus e aqueles a quem Ele deu tanto amor sabem com quanta angústia. Kit recomendou-lhe que mantivesse a coragem e, com o pretexto de mandar erguer as crianças para as beijar, Kit suplicou à mãe de Bárbara, num murmúrio, que a acompanhe a casa.
- Há-de aparecer algum amigo que nos defenda, minha mãe - exclama Kit. - Tenho a certeza. Se não for agora, será daqui a pouco tempo. Há-de vir a saber-se que estou inocente, minha mãe, e hei-de voltar outra vez. Tenho grande fé nisso. Tem de explicar ao pequeno Jacob e ao bebé como tudo se passou, pois se eles pensassem que alguma vez fui desonesto, quando crescerem o suficiente para o compreenderem, ficava com o meu coração despedaçado ao sabê-lo, nem que me encontrasse a muitas milhas de distância. Oh! Não há aqui nenhum cavalheiro generoso que tome conta dela?
A mão que Kit segurava na sua escorregou, pois a pobre mulher caiu desmaiada no chão. Richard Swiveller surgiu rapidamente, abrindo caminho à cotovelada por entre os curiosos, pegou nela com alguma dificuldade, com um braço à maneira dos raptores nas peças de teatro e, fazendo um aceno a Kit, ordenou à mãe da Bárbara que o siguisse, pois tinha uma carruagem à espera, e levou-a rapidamente dali. Pois bem, Richard conduziu-a a casa. E ninguém saberá que espantosos absurdos em citações de canções e poemas ele foi dizendo pelo caminho. Conduziu-a a casa e lá ficou até ela se restabelecer. Como não tinha dinheiro para pagar a carruagem, voltou em grande estilo para Bevis Marks, ordenando ao cocheiro, porque era sábado à noite, que esperasse à porta enquanto ia «trocar dinheiro».
- Mr. Richard, cavalheiro! - disse Brass com ar prazenteiro.
- Boa noite.
Embora o caso de Kit, tivesse parecido monstruoso a Mr. Richard, naquela noite tivera uma meia suspeita de que o seu afável patrão havia cometido alguma grande vilania. Talvez fosse apenas a desgraça que acabara de presenciar que tivesse feito nascer esse impulso na sua natureza descuidada. Mas, fosse como fosse, sentia-se muito convicto disso, e assim, referiu num mínimo de palavras o que pretendia.
- Dinheiro! - exclamou Brass, tirando a bolsa para fora. Ah! Ah! Certamente, Mr. Richard, certamente, cavalheiro. Toda a gente tem de viver. O senhor não tem troco de uma nota de cinco libras, pois não?
- Não - respondeu Dick friamente.
- Oh! - disse Brass. - Aqui o tem o dinheiro exacto. Assim poupa-se trabalho. Com todo o gosto, naturalmente... Mr. Richard, senhor...
Dick, que estava já a chegar à porta, voltou-se.
- Não precisa - disse Brass - de ter a maçada de voltar a aparecer aqui, senhor.
- O quê?
- Olhe, Mr. Richard - disse Braas enfiando as mãos nos bolsos e baloiçando-se de um lado para o outro, em cima do banco. - A verdade é que uma pessoa com as suas aptidões é mal empregada, muito mal empregada neste nosso campo, tão árido e tão bafiento. É terrivelmente enfadonho... chocante. Diria talvez que o teatro ou o exército, Mr. Richard, ou algo muito elevado no sector dos géneros alimentícios autorizados, seria o género de actividade que capaz de valorizar o génio de um homem como o senhor. Espero que nos venha visitar de vez em quando. Tenho a certeza que Sally ficará encantada. Ela tem imensa pena de ficar sem o senhor, Mr. Richard, mas resigna-se, graças ao seu sentido do dever para com a sociedade. É uma mulher admirável, senhor! Há-de ver que o dinheiro está absolutamente certo. Há um vidro partido na janela, senhor, mas não lhe descontei nada por isso. Sempre que nos separemos dos amigos, Mr. Richard, que seja com liberalidade. Que sentimento delicioso, senhor!
Mr. Swiveller não respondeu uma palavra a estas observações incoerentes, mas voltou atrás para ir buscar a jaqueta náutica, e enrolando-a numa bola bem apertada, olhou fixamente para Brass, como se sentisse uma certa vontade de lha atirar para cima. Mas limitou-se a metê-la debaixo do braço, saindo do escritório, em absoluto silêncio. Logo que fechou a porta, voltou a abri-la, olhando para dentro com a mesma solene gravidade e, acenando uma vez com a cabeça, lentamente, como se fosse um fantasma, desapareceu.
Pagou ao cocheiro e voltou as costas a Bevis Marks, cheio de grandes propósitos de confortar a mãe de Kit e ajudar o próprio Kit.
Mas a vida de cavalheiros como Richard Swiveller, dedicados a tais obséquios, é extremamente incerta. A excitação espiritual dos últimos quinze dias, agindo sobre um organismo já afectado por anos de excitação, com bebidas alcoólicas foi demasiado para ele. Nessa mesma noite Mr. Richard foi atingido por uma grave doença e vinte e quatro horas depois sobreveio-lhe uma violenta febre.
O infeliz Richard, remexendo-se de um lado para o outro sobre o seu abrasador e desconfortável leito, atormentado por uma sede feroz que nada conseguia aliviar, incapaz de encontrar, em qualquer mudança de posição, um momento de paz ou de tranquilidade e sempre divagando com pensamentos angustiantes sem qualquer lugar de descanso, não descortinando uma visão ou um som reveladores de qualquer frescura ou repouso, nada, senão a pesada e eterna fadiga, sem qualquer alteração que não fosse a inquieta agitação do seu desgraçado corpo e os fatigantes delírios do seu espírito inabalável, com uma ansiedade sempre presente.
Era uma sensação de algo que ficara inacabado, de um terrível obstáculo que era preciso transpor, de uma grande preocupação de que não se conseguia libertar e que perseguia o seu atormentado cérebro, ora sob uma forma ora sob outra, sempre vaga e indefinida, mas reconhecendo sempre o mesmo fantasma, qualquer que fosse a forma que ele assumisse, ensonbrando todas as visões como um remorso, e tornando o sono um pesadelo.
E assim jazia, consumindo-se e debilitando-se lentamente até que, finalmente, quando parecia debater-se e lutar para se erguer, sendo dominado por demónios, mergulhou num profundo sono, sem sonhos.
Despertou com a sensação de um muito bem-aventurado repouso, melhor do que o próprio sono, e começou gradualmente a recordar parte do que sofrimento e que longa noite teria sido e se não teria delirado por duas ou três vezes. No meio destas meditações, aconteceu levantar a mão, ficando espantado ao verificar como pesava e, ao mesmo tempo como estava delgada e débil. Mas manteve-se indiferente e feliz sem se interessar mais pelo assunto, permanecendo na mesma semi-sonolência, até que a sua atenção foi despertada por uma tosse.
Isto fê-lo duvidar se teria fechado a porta à chave na noite anterior e ficou ligeiramente surpreendido por ter companhia dentro do quarto. No entanto, faltava-lhe a energia para seguir esta sequência de pensamentos e inconscientemente, num delicioso repouso, pôs-se a contemplar umas faixas verdes na roupa da sua cama, associando-as estranhamente a retalhos de fresca relva, ao passo que o espaço amarelo entre elas formava como que os passeios de areia, e constituindo assim uma longa perspectiva de bem ordenados jardins.
Andava ele a vaguear em imaginação por estes terraços, e tinha-se mesmo perdido por entre eles, quando voltou a ouvir a mesma tosse. Este som fez retrair os passeios, restituindo-lhes a sua forma de simples faixas e Richard, erguendo-se ligeiramente na cama, abriu a cortina com uma mão e espreitou para fora.
Era certamente o mesmo quarto, e ainda iluminado por uma vela. Mas qual não foi o seu espanto ao ver todos aqueles frascos, bacias e peças de roupa estendidas junto da lareira, e outros objectos habituais no quarto de um doente, tudo muito limpo e bem arranjado, mas muito diferente de como havia deixado quando se fora deitar! E também a atmosfera, impregnada do fresco aroma de ervas e de vinagre, o soalho acabado de ser aspergido. Mas... o quê? A Marquesa?
Era ela, a jogar às cartas sozinha, sentada à mesa. Ali estava, concentrada no jogo, tossindo de vez em quando, mas baixinho, como se receasse perturbar o doente, baralhando as cartas, cortando o baralho, distribuindo as cartas, contando-as, jogando-as, cumprindo todos os mistérios do jogo como se os tivesse praticado desde o berço!
Mr. Swiveller contemplou a cena durante alguns instantes, depois deixou cair a cortina e voltou a pousar a cabeça na almofada.
«Estou a sonhar», pensou Richard, «é bem evidente. Quando me deitei, as minhas mãos não eram de casca de ovo, e agora quase posso ver à sua transparência. Se não é um sonho, devo ter acordado por engano numa das Mil e Uma Noites, em vez de uma noite de Londres. Mas não há dúvida de que estou a dormir. Não há a mínima dúvida.»
Neste momento, a criadinha voltou a tossir.
«Que extraordinário!», pensou Mr. Swiveller, «Nunca antes sonhei com uma tosse tão real. De facto, não me lembro de alguma vez ter sonhado com uma tosse ou com um espirro. Talvez faça parte da filosofia dos sonhos, nunca se sonhar com isso. Lá está outra vez... e outra, esta agora... estou a sonhar muito depressa!»
Mr. Swiveller, depois de reflectir por alguns momentos, resolveu beliscar o seu próprio braço, para examinar o seu verdadeiro estado.
«Isto é ainda mais estranho!», pensou. «Quando me vim deitar, tinha um certo aspecto roliço e agora não há nada que possa segurar. Vou ver outra vez.»
O resultado desta nova inspecção convenceu Mr. Swiveller de que os objectos que o rodeavam eram reais, e de que não havia dúvida que ele os estava a ver com os olhos bem abertos.
- É uma história das Mil e Uma Noites, é o que é - disse Richard. - Estou em Damasco, ou no Grande Cairo. A Marquesa é um génio e apostou com outro génio sobre quem era o mais belo jovem do mundo e o mais digno de desposar a Princesa da China, por isso arrebatou-me, com o quarto e tudo, para fazer a comparação. Talvez que a princesa ainda cá esteja - disse Mr. Swiveller, virando-se languidamente sobre a almofada e olhando para o lado da cama junto da parede.
- Não, já partiu.
Não se sentindo ainda totalmente satisfeito com esta explicação, pois mesmo considerando que fosse correcta, apresentava-se ainda envolta num certo mistério e nalguma dúvida, Mr. Swiveller tornou a erguer a cortina, decidido a aproveitar a primeira oportunidade para chamar a atenção da sua companheira.
E em breve surgiu essa oportunidade. A Marquesa repartiu as cartas, voltou um valete, mas esqueceu-se de contar os habituais pontos. Vendo isto, Mr. Swiveller gritou, com quantas forças tinha: - O valete vale dois pontos!
A Marquesa deu um salto, batendo as palmas. «As Mil e Uma Noites, sem dúvida», pensou Mr. Swiveller, «batem sempre as palmas, em vez de tocarem uma campainha. Agora vão chegar os dois mil escravos negros com cântaros cheios de jóias à cabeça.
No entanto, parece que ela só bateu as palmas de alegria, pois, imediatamente a seguir, começou a rir e depois a chorar, declarando, não em puro árabe mas em inglês vulgar, que «estava tão contente que nem sabia o que havia de fazer».
- Marquesa - disse Mr. Swiveller, pensativamente, - faça o obséquio de se aproximar. Primeiro que tudo, tenha a bondade de me informar onde posso encontrar a minha voz e, depois, o que foi feito da minha carne?
A Marquesa limitou-se a abanar tristemente a cabeça, irrompendo de novo a chorar, perante o que Mr. Swiveller, que estava muito enfraquecido, sentiu os olhos igualmente húmidos.
- Começo a perceber, Marquesa - pelos seus modos e pelo aspecto de tudo isto, - disse Richard, ao fim de uns momentos e sorrindo, com os lábios trémulos - que tenho estado doente.
- Esteve realmente doente! - replicou a criadinha, enxugando os olhos. - E que disparates tem estado para aí a dizer!
- Oh! - disse Dick! - Tenho estado muito doente, Marquesa?
- Quase morto - respondeu a criadinha. - Nunca julguei que chegasse a pôr-se bom. Mas graças a Deus está!
Mr. Swiveller permaneceu em silêncio durante longos momentos. Mas gradualnente começou de novo a falar, perguntando quanto tempo estivera assim.
- Faz amanhã três semanas - respondeu a criadinha.
- Três quê? - perguntou Dick.
- Semanas - replicou a Marquesa, com ênfase. - Três longas e vagarosas semanas.
A simples ideia de ter chegado a tal extremo fez Richard recair em novo silêncio, tornando a estender-se na cama. A Marquesa, depois de lhe compor melhor a roupa da cama, e sentindo que as mãos dele e a testa estavam frias, uma descoberta que a encheu de alegria, voltou a chorar e, em seguida, foi preparar chá e umas torradinhas muito finas.
Enquanto ela estava assim ocupada, Mr. Swiveller contemplava-a cheio de gratidão, muito surpreendido por ela se ter adaptado tão bem, e atribuindo a origem desta atenção a Sally Brass, a quem ele, no seu íntimo, nunca teria palavras suficientes para agradecer. Quando a Marquesa acabou de fazer as torradas, estendeu uma toalha limpa sobre uma bandeja e trouxe-lhe umas torradas bem tostadinhas e uma grande tijela de chá fraco, com o qual, segundo disse, o doutor tinha informado que ele podia refrescar-se, quando acordasse.
Colocou-lhe almofadas por trás para ele se encostar, se não tão habilmente como se tivesse sido enfermeira profissional durante toda a vida, pelo menos com a mesma ternura. E ficou a contemplar o doente com indescritível satisfação, enquanto este ingeria a sua magra refeição, interrompendo-se de vez em quando para lhe apertar a mão, comendo com um apetite e um prazer que as melhores iguarias deste mundo não teriam despertado, em quaisquer outras circunstâncias. Depois de ter arrumado a bandeja e arranjado a cama de novo, sentou-se à mesa para tomar também o seu chá.
- Marquesa, como está a Sally? - perguntou Mr. Swiveller. A criadinha franziu o rosto, numa expressão da mais embaraçada dissimulação e abanando a cabeça.
- O quê, não a tem visto ultimamente? - perguntou Dick.
- Se a tenho visto! - exclamou a criadinha. - Valha-o Deus. Eu fugi!
Mr. Swiveller voltou a estender-se de novo na cama, assim permanecendo durante cerca de cinco minutos. Mas, ao fim desse tempo, voltou a sentar-se lentamente na cama e perguntou:
- E onde é que vive, Marquesa?
- Onde vivo! - exclamou a criadinha. - Aqui!
- Oh! - disse Mr. Swiveller. - E assim dizendo, voltou a deitar-se tão subitamente, como se tivesse sido atingido por um tiro. Assim permaneceu, imóvel e incapaz de pronunciar uma palavra, enquanto ela acabava de comer, arrumando depois tudo nos seus lugares e varrendo a lareira. Em seguida, fez-lhe sinal para que trouxesse uma cadeira para junto dele, e depois de se recostar mais uma vez, recomeçou a falar.
- Com que então, fugiu? - disse Dick.
- Fugi - respondeu a Marquesa. - E eles puseram um «núncio» sobre mim.
- Desculpa lá, puseram o quê? - perguntou Dick. - O que é que eles fizeram?
- Puseram um «núncio» sobre mim... um «núncio»... nos jornais - respondeu a Marquesa.
- Ah, sim, sim - respondeu Dick. - Um anúncio.
A criadinha acenou com a cabeça e pestanejou. Tinha os olhos tão vermelhos das vigílias e do pranto que nem a Musa da Tragédia teria pestanejado com mais firmeza. E o mesmo pensou Dick.
- Conta-me cá - disse ele, - como é que pensaste em vir para aqui.
- Ora, já vê - respondeu a Marquesa - quando o senhor se foi embora fiquei sem nenhum amigo, porque o hóspede nunca mais voltou, e depois não sabia onde é que o poderia encontrar a si ou a ele. Mas uma manhã, quando estava...
- Quando estavas perto do orifício da fechadura? - insinuou Mr. Swiveller, ao vê-la hesitar.
- Pois, então - disse a criadinha com um aceno de cabeça,
- quando estava perto do orifício da porta do escritório, onde me viu e me ajudou, ouvi uma pessoa contar que morava aqui, era a senhora em casa de quem o senhor estava hospedado, e disse que o tinham trazido muito mal e se não havia ninguém que pudesse vir tratá-lo. Mr. Brass disse: «Isso é assunto que não me diz respeito» e Miss Sally disse: «É um sujeito divertido, mas é um assunto que não me diz respeito.» E a senhora foi-se embora e bateu com a porta ao sair, posso dizer-lhe. Por isso fugi nessa noite e vim para aqui e disse que o senhor era meu irmão, e acreditaram-me, por isso tenho estado aqui desde então.
- Esta pobre Marquezinha está exausta! - exclamou Dick.
- Não, não estou - respondeu - nada mesmo. Não se preocupe comigo. Eu gosto de ficar a pé e dormi muitas vezes, graças a Deus, numa dessas cadeiras. Mas se visse como tentou saltar pela janela e se ouvisse como costumava cantar e discursar, nem acreditava... estou tão contente por o senhor ter melhorado, «Senhor Saúde».
- Sou realmente um «Saúde»! - disse Dick pensativamente.
- Ainda bem que sou um «Saúde». E creio bem que teria morrido, minha Marquesa, se tu não estivesses aqui.
Nesta altura, Mr. Swiveller agarrou na mão da criadinha e como estava muito fraco, conforme já referido, ao esforçar-se por exprimir os seus agradecimentos poderia ter ficado com os olhos tão vermelhos como os dela, se esta não tivesse mudado rapidamente de assunto, obrigado-o a deitar-se e insistindo para que se mantivesse muito sossegado.
- O doutor disse para o senhor ficar muito sossegado, e para não se fazer barulho, nem nada. Agora descanse e depois voltamos a falar. Fico aqui sentada ao pé de si. Se fechar os olhos, pode ser que adormeça. Vai ficar muito melhor, se dormir.
E, dizendo isto, a Marquesa puxou uma mesinha para junto da cama e, sentando-se, começou a preparar cuidadosamente uma refrescante bebida com a destreza de vinte farmacêuticos juntos. Richard Swiveller, que se sentia realmente fatigado, caiu numa sonolência, mas acordou ao fim de meia hora, perguntando que horas eram.
- Acabaram de dar as seis e meia - respondeu a sua amiguinha, ajudando-o a sentar-se novamente.
- Marquesa - disse Richard, passando a mão pela testa e voltando-se subitamente, como se só naquele momento lhe tivesse ocorrido tal pensamento, - o que é feito de Kit?
- Foi condenado à deportação por muitos anos - informou ela.
-Já partiu? - perguntou Dick. - A mãe dele... como está... o que é feito dela?
A pequena enfermeira abanou negativamente a cabeça, respondendo que não sabia nada deles. - Mas se tivesse a certeza disse ela muito devagar. - que ficava sossegado e não tornava a cair noutra agitação, podia contar-lhe uma coisa... mas era melhor não contar agora.
- Conta, sim - pediu Dick. - Para me distrair.
- Oh! Distraía mesmo? - disse a criadinha, ar receoso
- Parece-me bem que não. Espere até estar melhor e depois conto.
Dick olhou muito sério para a sua amiguinha, e os seus grandes olhos, encovados pela doença, reforçaram de tal modo a expressão do seu rosto que a criadinha ficou amedrontada e suplicou-lhe que não pensasse mais no assunto. Mas o que ela já havia revelado, não só havia excitado a sua curiosidade, como também o tinha inquietado seriamente, por isso insistiu para que ela lhe contasse imediatamente o pior.
- Oh! Não é nada pior - disse a criadinha. - Não tem nada a ver consigo.
- Tem alguma coisa a ver com... é alguma coisa que tenhas ouvido através de fendas ou de orifícios de fechaduras... e que não devias ter ouvido? - perguntou Dick ansiosamente.
- É - respondeu a criadinha.
- Em... em Bevis Marks? - continuou Dick rapidamente
- Conversas entre o Brass e a Sally?
- Sim - exclamou novamente a criadinha.
Richard Swiveller estendeu o seu braço magro fora da cama e, agarrando-a pela cintura, puxou-a para si e ordenou-lhe que lhe contasse tudo e com sinceridade, senão não respondia pelas consequências, pois não conseguia suportar aquele estado de excitação e de expectativa. Ela, vendo a sua grande agitação e compreendendo que os efeitos de adiar a revelação podiam ser muito mais prejudiciais do que os que pudessem resultar de a fazer imediatamente, prometeu obedecer, desde que o doente se mantivesse perfeitamente tranquilo e se abstivesse de se levantar bruscamente ou de se agitar.
- Mas se começar a agitar-se - disse a criadinha - desisto. É assim como lhe digo.
- Não podes desistir antes de começares - disse Dick
- Começa lá, minha querida. Fala, irmã, fala. Diz, lindo papagaio... Oh, diz-me quando e onde, suplico-te, Marquesa.
Incapaz de resistir a estas ardentes súplicas que Richard Swiveller proferia em catadupas e com tanta veemência como se fossem da mais solene e fantástica natureza, a sua companheira começou a contar:
- Ora bem! Antes de fugir, costumava dormir na cozinha, onde nós jogávamos às cartas, sabe. Miss Sally costumava guardar a chave da porta da cozinha no bolso, e à noite ia sempre lá abaixo buscar a vela e apagar o lume. Depois de fazer isto ia-se embora e eu tinha que me deitar às escuras, fechava a porta por fora, tornava a guardar a chave no bolso e eu ficava ali fechada à chave até ela vir de manhã muito cedo, para me abrir a porta. Tinha muito medo de ficar assim fechada, porque se houvesse um fogo, eles eram capazes de se esquecerem de mim e só pensarem neles, sabe como é. Por isso, sempre que via alguma chave velha e ferrugenta em qualquer lado, agarrava-a e experimentava-a a ver se servia na porta, e por fim acabei por encontrar uma entre a poeira da cave que servia mesmo.
Nesta altura, Mr. Swiveller fez um violento movimento de protesto com as pernas. Mas como a criadinha se interrompeu imediatamente, ele acalmou-se e, alegando um momentâneo esquecimento do seu acordo, rogou-lhe que continuasse.
- Eles davam-me muito pouco que comer - disse a criadinha. - Oh! Não pode imaginar como me davam pouco. Por isso costumava vir cá fora à noite, depois de eles se terem ido deitar, para procurar no escuro, às apalpadelas, migalhas de bolacha ou de -sandes» que o senhor pudesse ter deixado ficar no escritório, ou até mesmo cascas de laranja, para pôr dentro de água fria e fingir que era vinho. Já alguma vez experimentou casca de laranja com água?
Mr. Swiveller respondeu que nunca tinha experimentado esse saboroso licor, e solicitou de novo à sua amiga que retomasse a narrativa.
- Se fingir com muita força, é bem bom - disse a criadinha
- mas se não souber fingir, parece logo que lhe falta alguma coisa. Ora bem, às vezes saía depois, outra vezes antes de eles se irem deitar, e uma ou duas noites antes de todo aquele barulho no escritório, quero dizer, quando levaram o rapaz, subi as escadas e Mr. Brass e Miss Sally estavam ainda sentados à lareira. Digo-lhe a verdade, vim escutar outra vez para saber da chave do guarda-comidas.
Mr. Swiveller ergueu os joelhos juntos, formando assim um grande cone com a roupa da cama e deixou transparecer no rosto uma expressão de grande preocupação. Mas como a criadinha se interrompeu, levantando o dedo, o cone desapareceu tranquilamente, embora a expressão preocupada persistisse.
- Estavam lá os dois - prosseguiu a criadinha, - sentados junto da lareira e falando baixinho. Mr. Brass estava a dizer para Miss Sally: «Acho que é uma coisa arriscada e pode causar muitos sarilhos, não gosto nada disso.» E ela então, disse, sabe as maneiras dela: «És o homem mais medroso, mais cobarde, mais fraco que já conheci, eu é que devia ter sido o irmão e tu a irmã. Quilp não é a nossa principal ajuda?». «Naturalmente que é», respondeu Mr. Brass. «E não estamos nós», continuou ela, «sempre a desgraçar alguém, em matéria da negócio?». «Claro que estamos», disse Mr. Brass. «Então, que importância é que tem», disse ela, «desgraçar esse Kit, se o Quilp assim o quer?» -Naturalmente que não importa», disse Brass. Depois ficaram a cochichar e a rir durante muito tempo, dizendo que não havia nenhum risco se tudo fosse bem feito, depois Mr. Brass tirou a carteira do bolso e disse: «Ora bem», aqui está ela, a nota de cinco libras do próprio Quilp. Fica então assim combinado. Sei que o Kit vem cá amanhã de manhã. Enquanto ele estiver lá em cima, tu sais daqui e eu afasto Mr. Richard. Quando apanhar o Kit sozinho, entretenho-o a conversar comigo e ponho esta propriedade dentro do chapéu dele. E, além disso, hei-de fazer de modo que Mr. Richard a encontre lá, para servir de testemunha. E se isso não conseguir afastar o Christopher do caminho de Mr. Quilp e se não satisfazer o seu rancor, é porque o Diabo anda aqui». Miss Sally riu-se e disse que era esse o plano, e como eles pareciam vir a sair, tive medo de ficar ali mais tempo e vim-me embora para baixo. Pronto, foi isto! Gradualmente, a criadinha tinha ficado tão agitada como Mr. Swiveller, e portanto não fez nenhum esforço para o acalmar quando ele se sentou na cama, perguntando precipitadamente se tinha contado aquilo a alguém.
- Como é que podia contar? - respondeu a pequena enfermeira. - Quase tinha medo de pensar nisso e esperava que o jovem saísse em liberdade. Quando ouvi dizer que foi declarado culpado de uma coisa que não tinha feito, o senhor já se tinha ido embora e o hóspede também, embora tivesse tido medo de lho dizer, mesmo que ele ainda lá estivesse. E desde que aqui cheguei o senhor não tem estado no seu perfeito juízo e, assim, de que servia estar-lhe a contar isto?
- Marquesa - disse Mr. Swiveller, agarrando no seu barrete de dormir e atirando-o para o outro extremo do quarto, se me fizer o favor de se retirar durante alguns momentos, para ver como está a noite, eu vou-me levantar.
- Não deve pensar sequer em fazer uma coisa dessas - exclamou a sua enfermeira.
- Devo, sim - respondeu o doente, olhando à volta do quarto. - Onde é que está a minha roupa?
- Oh, graças a Deus, o senhor não tem roupas! - respondeu a Marquesa.
- Minha senhora! - exclamou Mr. Swiveller muito espantado.
- Fui obrigada a vendê-la toda para poder comprar as coisas que lhe foram receitadas. Mas não se preocupe agora com isso - insistiu a Marquesa quando Dick se voltou a deixar cair sobre a almofada. - Está muito fraco para se pôr de pé.
- Receio bem que tenhas razão - disse Richard, com ar triste. - O que é que eu posso fazer! O que é que se há-de fazer!
Após reflectir um pouco, ocorreu-lhe naturalmente que o primeiro passo a dar era comunicar imediatamente com um dos Mr. Garlands. Era muito possível que Mr. Abel não tivesse ainda saído do escritório.
Em menos tempo do que demora a dizê-lo, a criadinha ficou com a morada, escrita a lápis num pedaço de papel, assim como a descrição verbal do pai e do filho, que lhe iria permitir reconhecer qualquer um deles sem grande dificuldade, e de uma recomendação especial para ter cuidado com Mr. Chuckster, devido à conhecida antipatia que aquele cavalheiro nutria por Kit. Armada assim com aqueles fracos poderes, saiu apressadamente, incumbida de trazer o velho Mr. Garland ou Mr. Abel em pessoa ao quarto.
- Julgo - disse Dick quando ela fechou a porta devagarinho, espreitando novamente para dentro, para se assegurar de que ele ficava bem - julgo que não ficou nada, nem sequer um colete?
- Não, nada.
- É uma situação embaraçosa - disse Mr. Swiveller - em caso de incêndio, mesmo um guarda-chuva dava algum jeito, mas fizeste muito bem, querida Marquesa. Tinha morrido, se não fosses tu.
Felizmente que a criadinha era de natureza perspicaz e rápida, pois, de contrário, a consequência de ser mandada sozinha para as proximidades do local onde era mais perigoso ela aparecer teria provavelmente sido a reposição da suprema autoridade de Miss Sally Brass sobre a sua pessoa.
No entanto, a Marquesa, consciente do risco que corria, assim que saiu de casa penetrou na primeira ruela que lhe apareceu e, sem qualquer referência quanto ao sítio que constituía o objectivo da sua viagem, a sua primeira preocupação foi colocar bem duas milhas de distância entre si e Bevis Marks.
Uma vez conseguido este objectivo, começou a dirigir-se para o escritório do Notário para onde facilmente conseguiu orientar-se, tendo tido a esperteza de perguntar a vendedoras de maçãs e a vendedores de ostras às esquinas das ruas, evitando as lojas bem iluminadas e as pessoas bem vestidas, para não correr o risco de despertar as atenções.
Tal como um pombo-correio ao ser largado pela primeira vez num local desconhecido bate as asas ao acaso no ar durante uns breves momentos, antes de se lançar para o ponto que lhe está destinado, assim a Marquesa foi esvoaçando à roda e à roda até se considerar em segurança, avançando então rapidamente para o porto do seu destino.
Não levava nenhum gorro na cabeça, apenas uma grande touca que, em tempos antigos tinha sido usada por Sally Brass e cujo gosto, em matéria de toucados, era, conforme já se viu, de alguma excentricidade. E os seus sapatos, muito grandes e gastos, voavam-lhe de vez em quando dos pés, sendo difíceis de encontrar entre a multidão dos transeuntes, prejudicando-lhe assim a caminhada, em vez de a ajudar.
De facto, a pobre criança sofreu tantos incómodos e atrasos por ter que andar a tactear na lama e nas valetas à procura destes artigos de vestuário e recebeu tantos empurrões, encontrões, cotoveladas e de tal modo foi atirada de um lado para o outro, que quando chegou, esgotada e exausta, à rua onde morava o Notário, não pôde conter as lágrimas.
Mas já era um grande alívio ter conseguido lá chegar, e principalmente por avistar ainda luz na janela do escritório, o que lhe dava uma certa esperança de não estar muito atrasada. Por isso, a Marquesa enxugou os olhos com as costas da mão e, subindo cuidadosamente os degraus, espreitou através do vidro da porta.
Mr. Chuckster estava de pé atrás da tampa da sua secretária, concluindo os últimos preparativos do final do trabalho, como puxar os punhos da camisa para baixo e o colarinho para cima, endireitar o pescoço mais graciosamente sobre o tronco e compor discretamente as suíças com a ajuda de um espelhinho triangular. Diante das cinzas da lareira encontravam-se dois cavalheiros, um dos quais ela pensou, e muito bem, ser o Notário, e o outro, que estava a abotoar o sobretudo, naturalmente prestes a sair, era Mr. Abel.
Tendo assim efectuado as suas observações, a pequena espia aconselhou-se com os seus botões e resolveu aguardar na rua até Mr. Abel sair, pois assim não haveria a preocupação de ter de falar diante de Mr. Chuckster e sentiria menor dificuldade em comunicar o seu recado. E, tendo tomado esta decisão, escapuliu-se rapidamente e, atravessando a rua, sentou-se no degrau de uma porta mesmo em frente.
Mal acabara de se sentar quando apareceu um pónei a bailar pela rua, com os movimentos das pernas desencontrados com os da cabeça. O pónei trazia um pequeno faetonte atrás de si, dentro do qual estava um homem, mas não parecia minimamente perturbado nem pelo faetonte nem pelo homem, erguendo-se nas patas traseiras, parando, avançando, voltando a parar, recuando ou andando de lado, sem o mínimo respeito por eles, obedecendo apenas ao seu capricho e comportando-se como o animal mais livre de toda a criação. Quando chegaram à porta do Notário, o homem exclamou, muito respeitosamente: «Aí, então!», dando a entender que, se pudesse arriscar-se a manifestar algum desejo, era que parassem ali.
O pónei parou por uns instantes. Em seguida, como se lhe tivesse ocorrido que parar obedientemente quando lhe mandavam podia estabelecer um inconveniente e perigoso precedente, arrancou imediatamente, chocalhando em trote rápido até à esquina da rua, virou-se, voltou para trás, parando então por sua própria iniciativa.
- Oh! que belo animal que tu me saíste! - exclamou o homem que, a propósito, não se arriscou a mostrar como era verdadeiramente enquanto não se achou em segurança no chão. - Bem gostava de te dar a recompensa, lá isso gostava.
- O que é que ele tem estado a fazer? - perguntou Mr. Abel, apertando um xaile à roda do pescoço, enquanto descia degraus.
- O suficiente para dar cabo de uma pessoa - respondeu o cavalariço. - É o pior patife... aí, então, paras?
- Ele nunca mais vai ficar sossegado, se lhe chamar nomes - disse Mr. Abel, entrando e pegando nas rédeas. - É muito bom, se se souber lidar com ele. É a primeira vez que sai desde há um certo tempo, pois ficou sem o seu condutor habitual e não queria andar com mais ninguém, até esta manhã. As luzes estão bem? Assim está bem. Agradecia que estivesse aqui amanhã para o levar. Boa noite!
E depois de ter executado um ou dois estranhos pulos, de sua total invenção, o pónei cedeu à brandura de Mr. Abel e partiu trotando suavemente.
Mr. Chuckster tinha permanecido à porta durante todo este tempo, e a criadinha teve receio de se aproximar. Portanto, nada mais lhe restava do que pôr-se a correr atrás da carruagem, gritando para Mr. Abel parar. Quando a alcançou, estava sem fôlego e não conseguia fazer-se ouvir.
O caso estava a ficar desesperado, pois o pónei apressou o andamento. A Marquesa pendurou-se atrás durante alguns momentos, mas sentindo que não ia conseguir aguentar-se mais tempo, e que teria de desistir, trepou, com um violento esforço, para o assento traseiro, e ao executar esse movimento, deixou cair um sapato, perdendo-o assim para sempre.
Mr. Abel, que estava pensativo e que tinha já bastante que fazer com o pónei, lá seguia, balouçando-se de um lado para o outro, sem olhar à roda e sem sonhar que estranha personagem tinha atrás de si, até que a Marquesa, depois de ter recuperado uma parte do fôlego e de se ter recomposto da perda do sapato e aclimatado à posição inusitada, lhe proferiu ao ouvido:
- Oiça, senhor!
Voltando rapidamente a cabeça, Mr. Abel parou o pónei e exclamou com algum receio: - Meu Deus, o que é isto?
- Não tenha medo, senhor - respondeu a pequena mensageira, ainda ofegante. - Oh, corri tanto atrás de si!
- O que é que queres de mim? - perguntou Mr. Abel.
- Como é que entraste aqui?
- Entrei por trás - respondeu a Marquesa. - Oh, por favor, continue a andar, não pare, peço-lhe que vá para a cidade. Peço-lhe que vá depressa, porque é importante. Há lá uma pessoa que deseja vê-lo. Mandou-me aqui para lhe pedir que fosse imediatamente, porque sabia tudo sobre o Kit e ainda o podia salvar e provar a sua inocência.
- O que é que estás a dizer, menina?
- A verdade, juro-lhe pela minha honra. Mas peço que siga, depressa. Já vim há tanto tempo que ele deve pensar que me perdi.
Mr. Abel involuntariamente incitou o pónei. Este, levado por alguma secreta simpatia ou por um novo capricho, largou em grande trote, não abrandando, e renunciando a executar quaisquer exercícios excêntricos até chegarem à porta de Mr. Swiveller onde, maravilha das maravilhas, consentiu em parar quando Mr. Abel o refreou.
- Vê? É naquele quarto lá em cima - disse a Marquesa apontando para uma luz débil. - Venha!
Mr. Abel, que era uma das pessoas mais simples e mais reservadas que podiam existir e, naturalmente tímido, hesitou, pois tinha ouvido contar casos de pessoas atraídas para lugares estranhos, onde eram roubadas e assassinadas em circunstâncias muito semelhantes a estas e, tanto quanto sabia, levados por guias muito semelhantes à Marquesa. Porém, a sua estima por Kit foi mais forte. Por isso, confiando o Whisker a um homem ali parado, à espera disso mesmo, deixou que a sua companheira o agarrasse pela mão, levando-o através de uma escada escura e estreita.
Não foi pequena a sua surpresa ao achar-se no quarto de um doente, mal iluminado, com um homem que dormia tranquilamente na cama.
- Não é bom vê-lo aqui deitado tão tranquilo? - murmurou a sua guia, cheia de convicção. - Oh! Havia de dizer o mesmo, se o tivesse visto há dois ou três dias.
Mr. Abel não respondeu e, a dizer a verdade, mantinha-se bem afastado da cama e muito próximo da porta. A sua guia, que pareceu compreender a relutância dele, espevitou a vela e, com ela na mão, aproximou-se da cama. Quando chegou junto do doente, este ergueu-se bruscamente e Mr. Abel reconheceu, naquelas feições debilitadas, o rosto de Richard Swiveller.
- Mas o que é isto? - exclamou Mr. Abel carinhosamente, correndo para ele. - Tem estado doente?
- Muito doente - respondeu Dick. - Ia quase morrendo. E o senhor poderia vir a saber que o seu Richard tinha ido no caixão, se não fosse a boa amiga por quem o mandei chamar. Dê-me de novo a sua mão, Marquesa, por favor. Sente-se, senhor.
Mr. Abel pareceu ficar muito surpreendido ao ouvir o título da sua guia, mas puxou uma cadeira e sentou-se junto da cama.
- Mandei-o chamar, senhor, mas ela explicou-lhe a razão?
- perguntou Dick.
- Disse, sim. Estou absolutamente espantado com tudo isto. Nem sei mesmo o que dizer ou pensar - respondeu Mr. Abel.
-Já vai saber daqui a pouco - continuou Dick. - Marquesa, sente-se aqui na cama, sim? Conte agora a este senhor tudo o que me contou e com todos os pormenores. Não diga nada, agora, senhor.
E a história foi novamente contada, exactamente como antes, sem qualquer desvio ou omissão. Richard Swiveller manteve os olhos fixos no seu visitante durante toda a narrativa e, logo que a mesma ficou concluída, voltou a falar.
- Ouviu tudo e não se vai esquecer. Sinto-me demasiado tonto e adoentado para aconselhar alguma coisa, mas o senhor e os seus amigos hão-de saber o que fazer. Depois de todo este tempo, cada minuto é uma eternidade. Se alguma vez na vida voltou para casa depressa, hoje é um desses dias. Não perca tempo a dizerme nada, mas vá já.
Ela está sempre aqui, quando precisarem dela, e quanto a mim, pode estar bem certo de me encontrar sempre em casa, durante uma ou duas semanas, e por mais de uma razão. Marquesa, a luz! Se perder mais um minuto a olhar para mim, nunca mais lhe perdoo!
Não foram necessárias mais admoestações nem mais incitamentos. Num instante, Mr. Abel partia. E a Marquesa, quando voltou depois de lhe alumiar o caminho até ao fundo da escada, contou que o pónei partira a todo o galope, sem qualquer espécie de objecção.
- Ainda bem! - exclamou Dick. - É amável da parte dele e, a partir de agora, vou passar a glorificá-lo. Mas agora vai cear alguma coisa e beber uma caneca de cerveja, tenho a certeza que deve estar cansada. Vá, beba lá uma caneca de cerveja. É tão bom para mim vê-la beber como se eu próprio pudesse fazê-lo.
E só esta afirmação conseguiu convencer a pequena enfermeira a permitir-se um tal luxo. Depois de comer e beber, com enorme satisfação de Mr. Richard Swiveller, e de lhe ter feito uma saúde, arrumou tudo em boa ordem, embrulhou-se num velho cobertor e deitou-se sobre um pequeno tapete, junto da lareira.
Nessa altura, já Mr. Swiveller murmurava no seu sono: «Espalha, pois, espalha os juncos e faz com eles um leito. E aqui permaneceremos até ao alvorecer da manhã. Boa noite, Marquesa!»
De manhã, ao acordar, Richard Swiveller apercebeu-se gradualmente do sussurro de vozes no quarto. Olhando para fora das cortinas, avistou Mr. Garland, Mr. Abel, o Notário e o cavalheiro solitário, todos à volta da Marquesa e falando-lhe com grande empenho, embora em voz baixa, receando, sem dúvida, perturbá-lo.
Não perdeu tempo em lhes dar a conhecer que tal precaução era desnecessária e os quatro cavalheiros aproximaram-se da cama. O velho Mr. Garland foi o primeiro a estender-lhe a mão, perguntando-lhe como se sentia.
Dick ia a responder que se sentia muito melhor, embora ainda fraco como não podia deixar de ser, quando a sua pequena enfermeira, abrindo caminho por entre os visitan-, tes e comprimindo-se contra a sua almofada, como que ciosa da interferência, lhe colocou o almoço em frente, insistindo para que comesse, antes do esforço de falar ou de prestar atenção ao que lhe queriam dizer.
Mr. Swiveller, que sentia um apetite devorador, e que toda a noite havia sonhado bem nítida e claramente com costeletas de carneiro, cervejas duplas e outras iguarias semelhantes, achou que mesmo o leve chá e as secas torradas constituíam uma tentação tão irresistível que acedeu a comer e a beber, sob uma condição.
- E essa condição é - declarou Dick, retribuindo o aperto de mão de Mr. Garland - que me responda sinceramente a esta pergunta, antes de eu comer ou beber alguma coisa: já é demasiado tarde?
- Para concluir a tarefa que ontem tão bem começou? perguntou o velho senhor. - Não. Tranquilize o seu espírito quanto a esse ponto. Não é tarde, garanto-lhe.
Aliviado com esta notícia, o doente voltou-se para a sua comida com forte apetite, embora, naturalmente, o seu prazer não fosse maior do que aquele que a sua pequena enfermeira parecia sentir ao vê-lo comer assim.
E ele tomou a sua refeição segurando com a mão esquerda a torrada ou a chávena do chá e dava uma dentada ou bebia um gole, conforme o caso, e na direita retinha, bem apertada, a mão da Marquesa. E interrompia-se constantemente, a intervalos, no acto de engolir, apertando, ou mesmo beijando a mão que tinha presa na sua, com uma intenção perfeitamente séria e com a maior gravidade. E todas as vezes que ele punha alguma coisa na boca, para comer ou para beber, o rosto da Marquesa iluminava-se de modo indescritível, mas sempre que ele lhe manifestava uma dessas provas de gratidão, as suas feições ensombravam-se e começava a soluçar.
Ora, tanto com o sorriso de alegria, como com as lágrimas dessa mesma alegria, a Marquesa não podia evitar voltar-se para os visitantes com um olhar suplicante, como a querer dizer: «Estão a ver este sujeito, como posso eu não estar assim?», e eles, assim transformados em figurantes activos da cena, respondiam igualmente com o olhar: «Não, naturalmente que não».
Como esta pantomima se realizou durante todo o almoço do doente, desempenhando este, embora pálido e debilitado, um papel importante na mesma, pode bem pôr-se a questão se, em qualquer repasto onde nenhuma palavra, boa ou má, foi pronunciada desde o início até ao final do mesmo, se exprimiu tanto através de gestos, em si próprios tão triviais e insignificantes.
Finalmente, e para dizer a verdade em poucas palavras, Mr. Swiveller tinha despachado tanta quantidade de torradas e de chá como recomendava a prudência, nesta fase da sua recuperação. Mas os cuidados da Marquesa não se ficaram por aqui.
De facto, desaparecendo por uns instantes e voltando pouco depois com uma bacia de límpida água, lavou-lhe o rosto e as mãos, escovou-lhe o cabelo, numa palavra, arranjou-o tão bem como era possível numa pessoa nas condições dele, e tudo isto com rapidez e eficiência, como se ele fosse um rapazinho e ela uma enfermeira adulta. Mr. Swiveller submetia-se a estas várias atenções com uma espécie de gratidão e de espanto para além do que as palavras podem exprimir.
Quando, finalmente, os preparativos ficaram completos e a Marquesa se retirou para um canto afastado para tomar o seu magro almoço, que naquela altura já estava completamente frio, ele desviou o rosto durante alguns momentos e fez o gesto de apertar as mãos no ar.
- Senhores - disse Dick, recuperando-se após esta pausa e virando-se de novo - queiram desculpar-me. Quem esteve tão mal como eu, fatiga-se facilmente. Mas agora já estou bem e em condições de falar. Faltam cadeiras aqui, além de outras pequenas coisas, mas se fizerem o favor de se sentar sobre a cama...
- Podemos fazer alguma coisa por si? - perguntou amavelmente Mr. Garland.
- Se pudessem transformar a Marquesa numa genuína e verdadeira Marquesa, agradecia que o fizessem imediatamente. Mas como não podem e como a questão não é o que podem fazer por mim, mas sim o que podem fazer por alguém que merece e precisa mais do que eu, peço-lhe, senhor, que me informe sobre o que pensa fazer.
- É exactamente por causa disso que estamos agora aqui,
- respondeu o cavalheiro solitário, - pois daqui a pouco irá ter outra visita. Receávamos que ficasse preocupado se não soubesse por nós mesmos as diligências que pensávamos empreender, e por isso viemos primeiro aqui, antes de fazermos alguma coisa.
- Agradeço-vos, senhores - respondeu Dick. - Qualquer pessoa no estado desesperado em que me vêem sente-se naturalmente preocupado. Mas não quero interrompê-lo, senhor.
- É que bem vê, meu bom amigo - disse o cavalheiro solitário, - que, embora não tenhamos qualquer dúvida sobre a veracidade desta revelação que tão providencialmente se veio a saber...
- Está a referir-se à dela? - perguntou Dick, apontando para a Marquesa.
- Refiro-me à dela, naturalmente. Embora não tenhamos qualquer dúvida de que, utilizando-a devidamente, conseguiríamos a imediata absolvição e a libertação do pobre rapaz, temos grandes dúvidas se, por si só, nos permitiria atingir Quilp, o principal autor desta vilania. E posso dizer-lhe que esta dúvida foi confirmada quase numa certeza pelas melhores opiniões que conseguimos ouvir sobre o assunto, neste breve espaço de tempo. Certamente concordará connosco que, conceder-lhe nem que seja a mais remota possibilidade de escapar, se o pudermos evitar, seria monstruoso. Sem dúvida está de acordo connosco que, se alguém tiver de escapar, seja qualquer outra pessoa que não ele.
- Sim, naturalmente - respondeu Dick. - Se alguém tiver de escapar, mas juro-lhe que seria com relutância que veria escapar alguém. Mas como foram feitas leis para todas as categorias de culpa, para refrear o vício, tanto nos outros como em mim ... «et-cetera», não vê o caso desta maneira?
O cavalheiro solitário sorriu, como se a maneira como Mr. Swiveller havia posto a questão não fosse a mais óbvia e começou a explicar-lhe que estavam a pensar recorrer, primeiro, a um estratagema, e que o seu intuito era tentar extorquir uma confissão da doce Sally.
- Quando ela verificar tudo aquilo que nós sabemos e como o soubemos, e até que ponto ela própria já está comprometida - prosseguiu ele - temos grande esperança de, através dela, podermos punir eficazmente os outros dois.
Se conseguirmos isso, ela poderá ficar impune, o que pouco nos importa.
Dick ouviu este projecto com muito pouco agrado, objectando tão acaloradamente como lhe foi possível que lhes ia ser mais difícil lidar com a sua velha camarada, isto é, Sally, do que com o próprio Quilp, que ela se ia revelar uma vítima bem inflexível e inauspiciosa a qualquer tentativa de intromissão, amedrontamento ou lisonja, que era feita de bronze, não se fundindo nem moldando facilmente, numa palavra, que não conseguiriam levar a melhor com ela, acabando por sair vencidos. Mas foi em vão que insistiu com eles para pensarem noutro plano.
Dissemos que o cavalheiro solitário havia exposto as intenções de todos, mas deveria ter-se referido que eles falaram em conjunto, e que se por acaso um deles se calava por um momento, ficava ansioso e arquejante, esperando a oportunidade de voltar a falar. Em resumo, tinham atingido aquele auge de impaciência e anseio em que é impossível convencer ou raciocinar com alguém e teria sido mais fácil fazer recuar o mais impetuoso vento que alguma vez soprou do que convencê-los a reconsiderar a sua decisão.
Por isso, depois de contarem a Mr. Swiveller que nunca tinham abandonado a mãe nem os irmãos de Kit, que também nunca haviam abandonado o próprio Kit, tendo sido incansáveis na tentativa de conseguir uma redução da pena, que tinham ficado completamente perturbados entre as fortes provas da sua culpa e a efémera esperança de se provar a sua inocência, e que ele, Richard Swiveller, podia ficar descansado porque tudo iria ficar resolvido até ao fim do dia.
Depois de lhe contarem tudo isto, acrescentando muitas outras palavras amáveis e cordiais para ele próprio e que se torna desnecessário citar, Mr. Garland, o Notário e o cavalheiro solitário despediram-se num momento muito crítico, pois Richard Swiveller teria certamente sofrido outro ataque de febre, cujas consequências poderiam ter sido fatais.
Mr. Abel ficou para trás, olhando constantemente para o relógio e para a porta do quarto, até que Mr. Swiveller foi despertado de um breve sono pelo ruído da queda de um gigantesco fardo de cima das costas de um carregador para o patamar lá fora, e que parecia ter abanado a casa, fazendo tilintar também os frasquinhos dos remédios na prateleira. Assim que este som chegou aos ouvidos de Mr. Abel, este ergueu-se, correu precipitadamente para a porta, abrindo-a.
E vejam só! Ali estava um homem possante, com um enorme cesto que foi arrastado para dentro do quarto e de onde, depois de aberto, brotaram tais tesouros de chá, café, vinho, biscoitos, laranjas, uvas, galinhas prontas para cozer, geleia de mão de vaca, farinha de araruta, sagu e outros saborosos reconstituintes, que a criadinha, que nunca pensara que pudessem existir tais coisas fora das lojas, ficou como pregada ao chão sobre o seu único sapato, com a água a escorrer-lhe ao mesmo tempo dos olhos e da boca, e sem conseguir articular palavra.
Mas o mesmo não se passava com Mr. Abel, nem com o homem possante que esvaziou o cesto, grande como ele era, num instante, nem com uma simpática senhora de idade que surgiu tão inesperadamente que poderia ter vindo também dentro do cesto, que era suficientemente grande para isso.
Logo atarefada, andando de um lado para o outro, nas pontas dos pés e em silêncio, ora aqui, ora acolá, ora em toda a parte ao mesmo tempo, começou a despejar a geleia em chávenas e a preparar canja em pequenas caçarolas e a descascar laranjas, cortando-as em bocadinhos para o doente, e a dar constantemente à criadinha copos de vinho e bocadinhos de tudo um pouco, enquanto não preparava uma refeição mais substancial para a fortalecer.
Todos estes acontecimentos foram tão inesperados e surpreendentes que Mr. Swiveller, depois de comer duas laranjas e um pouco de geleia, e quando viu sair o homem possante com o cesto vazio, deixando claramente toda aquela abundância ali para seu usufruto, de bom grado se deitou, adormecendo de novo, absolutamente incapaz de compreender aquelas maravilhas que lhe baralhavam as ideias.
Entretanto, o cavalheiro solitário, o Notário e Mr. Garland dirigiram-se para um determinado café e ali redigiram uma carta que enviaram a Miss Sally Brass, solicitando-lhe, em termos breves e misteriosos, que honrasse com a sua presença um amigo desconhecido que desejava conversar com ela o mais rapidamente possível. A comunicação conseguiu o seu objectivo tão bem que, decorridos dez minutos após o mensageiro ter regressado e informado que ela havia sido entregue, aparecia a própria Miss Brass.
- Sente-se, minha senhora, faça favor - disse-lhe o cavalheiro solitário que estava sozinho na sala.
Miss Brass sentou-se com um ar muito rígido e glacial, não parecendo nada surpreendida, como realmente não estava, pelo facto de o hóspede e o seu misterioso correspondente serem uma única e a mesma pessoa.
- Não esperava ver-me aqui? - perguntou o cavalheiro solitário.
- Não me detive muito a pensar no assunto - respondeu a beldade. -Julguei que fosse negócio, de um ou outro modo. Se é sobre o quarto, terá de avisar devidamente o meu irmão, como sabe... ou então pagar. Isso resolve-se facilmente. O senhor é uma pessoa responsável e, num caso destes, dinheiro legal ou cheque são praticamente a mesma coisa.
- Estou-lhe muito grato pela sua boa opinião - respondeu o cavalheiro solitário - e estou absolutamente de acordo com esses sentimentos. Mas não é sobre esse assunto que desejo falar consigo.
- Oh! - exclamou Sally. - Então faça favor de dizer o que pretende. Deve ser matéria profissional, não?
- Está efectivamente relacionado com a Lei.
- Muito bem - respondeu Miss Brass. - Falar com o meu irmão ou comigo é a mesma coisa. Posso receber quaisquer ordens ou dar-lhe qualquer conselho.
- Como há outras partes interessadas, além de mim – disse o cavalheiro solitário erguendo-se e abrindo a porta de outra sala - é melhor conferenciarmos juntos. Está aqui Miss Brass, cavalheiros!
Mr. Garland e o Notário entraram, com ar muito sério, puxaram duas cadeiras, uma de cada lado do cavalheiro solitário, formando uma espécie de cerca em redor da doce Sally e engaiolando-a assim num canto. Se fosse o seu irmão Sampson que se encontrasse nestas circunstâncias, teria certamente revelado alguma perturbação ou ansiedade, mas ela, absolutamente tranquila, puxou da sua caixinha de estanho, tirando calmamente uma pitada de rapé.
- Miss Brass - disse o Notário, tomando a palavra nesta grave conjuntura - nós somos profissionais, entendemo-nos bem, e quando queremos, podemos dizer o que pretendemos em muito poucas palavras. Aqui há um tempo, a senhora pôs um anúncio sobre uma criada que fugiu?
- Bem - respondeu Miss Sally ruborizando-se subitamente
- e então?
- Foi encontrada, minha senhora. - respondeu o Notário, tirando o lenço do bolso e brandindo-o com um movimento floreado. - Foi encontrada.
- Quem é que a encontrou? - perguntou Sally precipitadamente, - Fomos nós, minha senhora nós os três. Foi só a noite passada, pois de contrário já lhe teríamos mandado dizer.
- Então agora já ouvi - declarou Miss Brass cruzando os braços com ar decidido, como estando pronta a negar alguma coisa até à hora da sua morte. - E o que é que têm a dizer? Alguma coisa que ela lhes meteu na cabeça, certamente. Provem-no, é só isso. Provem-no. Posso dizer-lhes, se não o sabem, que é a rapariga mais falsa, mais mentirosa, mais ladra e mais diabólica que alguma vez existiu. Trouxeram-na aqui? - perguntou, olhando rapidamente à sua volta.
- Não, não está aqui agora - respondeu o Notário. - Mas está em perfeita segurança.
- Ah! - exclamou Sally, agarrando uma pitada de rapé de dentro da caixa com tanta raiva como se estivesse a arrancar o nariz da própria criadinha. - Mas garanto-lhes que desta vez ela vai ficar em boa segurança.
- Assim o espero - declarou o Notário. - Quando verificou que ela fugiu, alguma vez lhe ocorreu que a porta da sua cozinha tivesse duas chaves?
Miss Sally tirou outra pitada de rapé e, inclinando a cabeça para o lado, fitou o seu interlocutor com uma estranha contracção ao canto da boca mas com uma expressão extremamente manhosa.
- Duas chaves - repetiu o Notário. - Uma das quais lhe permitia andar pela casa de noite, quando a senhora julgava que ela estava bem fechada à chave, e lhe permitia ouvir conversas confidenciais, entre as quais uma muito especial que vai ser relatada hoje perante um juiz e que irá ter oportunidade de a ouvir descrever. Essa conversa que a senhora e Mr. Brass trocaram na véspera do dia em que aquele infeliz e inocente rapaz foi acusado de roubo, por um terrível ardil, do qual digo apenas que pode ser qualificado com os epítetos que aplicou aquela desgraçada testemunhazinha, e por outros bem mais graves.
Sally tirou outra pitada. Embora o seu rosto estivesse admiravelmente calmo, era evidente que fora apanhada de surpresa e que aquilo de que ela esperava vir a ser acusada em relação à criadinha era algo muito diferente disto,
- Vamos, vamos, Miss Brass - disse o Notário. - Domina bem as suas emoções, mas vejo que compreende que, graças a um acaso que nunca imaginou, essa abjecta trama foi descoberta, e dois dos seus congeminadores têm que ser levados perante a justiça. Sabe bem os castigos e as penas a que está sujeita, por isso não me vou demorar sobre isso, vou antes apresentar-lhe uma proposta. A senhora tem a honra de ser irmã de um dos maiores tratantes ainda por enforcar que existem neste país, e se me é permitido dizê-lo a uma senhora, é, em todos os aspectos, bem digna dele. Mas ligado aos dois existe um terceiro, um patife chamado Quilp, o cérebro de toda esta diabólica intriga e que penso ser pior do que vocês os dois. Para podermos «tratar» dele, faça o favor de nos revelar toda a história deste caso, Miss Brass. Deixe-me lembrar-lhe que, ao fazê-lo a nosso rogo, fica numa posição segura e cómoda. A sua posição actual está longe de ser invejável, e não irá prejudicar o seu irmão, pois que, conforme já sabe, temos suficientes provas contra ele e contra si. Não vou dizer-lhe que esta proposta seja ditada pela clemência, pois, para lhe dizer a verdade, não temos qualquer consideração por si, mas é uma necessidade a que nos vemos obrigados, e aconselho-a a aceitá-la, por ser a melhor atitude a tomar. O tempo é precioso num assunto como este - acrescentou Mr. Witherden, puxando do seu relógio. - Queira comunicar-nos a sua decisão o mais rapidamente possível, minha senhora.
Miss Brass, com um sorriso no rosto e olhando alternadamente para cada um dos três senhores, tirou mais duas ou três pitadas de rapé, mas, como agora já tinha muito pouco, esfregou várias vezes com o polegar e o indicador por dentro da caixa, para conseguir juntar mais outra. Depois de ter tomado também esta e de guardar cuidadosamente a caixa no bolso, exclamou:
- Tenho que aceitar ou recusar imediatamente, não é verdade?
- É, sim - respondeu Mr. Witherden.
A encantadora criatura ia a abrir a boca para dar uma resposta, quando a porta se abriu precipitadamente, surgindo a cabeça de Sampson Brass.
- Peço desculpa - exclamou aquele cavalheiro precipitadamente. - Esperem um momento.
Assim dizendo e totalmente indiferente ao espanto despertado pela sua presença, deslizou para dentro, fechou a porta e, beijando a luva ensebada com um ar tão servil como se ela fosse ouro em pó, fez a mais abjecta das vénias.
- Sally - disse Brass, - cala-te, se fazes favor, e deixa-me falar. Senhores, penso que dificilmente me iriam acreditar, se eu conseguisse manifestar o prazer que sinto ao ver três pessoas desta envergadura numa feliz unidade de pensamento e em tal harmonia de sentimentos. Mas, embora eu seja um desventurado, senhores, e não só isso, até mesmo um criminoso, se é que podemos utilizar palavras tão duras perante as pessoas que aqui estão, também tenho os meus sentimentos, tal como qualquer outra pessoa. Ouvi falar de um poeta que disse serem os sentimentos o destino comum de todos nós. Mesmo que tivesse sido um porco, meus senhores, a proferir esse pensamento, teria sido, mesmo assim, imortal.
- Se não és um idiota, cala-te - disse-lhe Miss Brass, severamente.
- Sally, minha querida, obrigado - respondeu o irmão.
- Mas sei o que estou a fazer, minha querida, e vou tomar a liberdade de me manifestar em conformidade. Mr. Witherden, o senhor tem o lenço a cair do bolso... permita-me que...
E como Mr. Brass avançasse para resolver aquele insignificante acidente, o Notário recuou com ar repugnado. Brass que, além das suas habituais qualidades de sedução, apresentava ainda o rosto arranhado, uma pala verde por cima de um dos olhos e o chapéu seriamente amarrotado, interrompeu-se, olhando em volta com um sorriso lastimoso.
- Ele foge de mim - disse Sampson - mesmo quando eu lhe posso ainda causar remorsos. Pois bem! Ah! Mas eu sou um navio a afundar-se e os ratos, se me é permitida a palavra em relação a um cavalheiro que respeito e estimo acima de tudo, estão a fugir. Meus senhores, quanto à conversa aqui realizada há pouco, aconteceu ter visto a minha irmã dirigir-se para aqui e fiquei a pensar para onde é que ela iria. Como, por natureza, permitam-me que o diga, sou algo curioso, segui-a e tenho estado à escuta, desde então.
- Se não estás louco - interrompeu a irmã - cala-te e não digas mais nada.
- Sally, minha querida - retorquiu Brass com a mesma, cortesia - agradeço-te muito, mas vou continuar. Mr. Witherden, senhor, como temos a honra de partilhar a mesma profissão, para não me referir já ao outro cavalheiro que foi meu hóspede e que, como se pode dizer, usufruiu da hospitalidade do meu tecto, penso que me podiam ter dado em primeiro lugar o direito a recusar a proposta. Penso realmente assim. Agora, meu caro senhor - exclamou Brass notando que o Notário se preparava para o interromper - deixe-me falar agora, peço-lhe.
Mr. Witherden permaneceu em silêncio e Brass continuou.
- Se fizerem o favor de observar isto - disse ele erguendo a pala verde e revelando o olho terrivelmente descorado naturalmente que ficarão intrigados como é que isto aconteceu. E se examinarem também o meu rosto, hão-de querer saber qual foi a causa de todos estes arranhões. E se depois disto olharem para o meu chapéu, perguntar-se-ão porque é que ficou no estado em que o vêem. Meus senhores - disse Brass batendo violentamente com o punho no chapéu - a resposta a todas essas perguntas é só esta: Quilp!
Os três cavalheiros entreolharam-se, mas não disseram nada.
- Digo - continuou Brass olhando de lado para a irmã, como se estivesse a informá-la, e chispando ódio em violento contraste com a sua habitual doçura - que a resposta a todas estas perguntas é Quilp. Quilp que me atraiu para o seu antro infernal e que se regozija a olhar e a rir-se à socapa, enquanto eu fico a arder, a queimar-me, a moer-me e a estropiar-me. Quilp que durante as nossas relações nunca, nem uma única vez, me tratou de outro modo que não fosse como a um cão. Quilp que sempre odiei com todo o meu coração, e ultimamente ainda muito mais. Põe-se de fora neste assunto, como se não tivesse nada a ver com isso, tendo sido ele próprio a propô-lo. Não posso confiar nele. Penso que, numa dessas suas horríveis, desvairadas e arrebatadas brincadeiras, era capaz de confessar um assassínio, sem pensar nele próprio e desde que fosse para me aterrorizar. Ora continuou Brass agarrando novamente no chapéu, voltando a colocar a pala sobre o olho e agachando-se literalmente, numa atitude de extremo servilismo, - aonde é que isto me leva? Aonde é que pensam que isto me levou? São capazes de adivinhar ao certo?
Ninguém falou. Brass aguardou alguns momentos, com um sorriso afectado, como se tivesse apresentado um fino enigma, depois prosseguiu:
- Para abreviar, direi que me levou a isto. Se se descobriu a verdade, como claramente se verifica de maneira irrefutável, e a Verdade, meus senhores, a seu modo, é uma coisa bem sublime e grandiosa, pois tal como outras coisas sublimes e grandiosas, como as tempestades e outras, nem sempre gostamos de a ver, é melhor virar-me contra aquele homem do que permitir que ele se vire contra mim. Sei que estou arruinado. Por isso, se alguém tem de denunciar, mais vale que seja eu, para me aproveitar das vantagens. Sally, minha querida, tu estás em relativa segurança. Estou a relatar estas circunstâncias para meu próprio benefício.
E assim dizendo, Mr. Brass revelou rapidamente toda a história, responsabilizando tanto quanto possível o seu gentil patrão e apresentando-se a ele próprio como um carácter pio e santo, embora sujeito às fraquezas humanas, como reconhecia. E concluiu dizendo:
- Ora, meus senhores, não sou uma pessoa que faça as coisas por metade. Como diz o ditado, perdido por cem, perdido por mil. Podem fazer de mim o que quiserem e levarem-me para onde quiserem. Se desejarem isto por escrito, posso fazê-lo já. Os senhores hão-de ser benevolentes comigo, estou certo disso. Estou absolutamente convencido que vão ser benevolentes para comigo! São pessoas de bem e têm um coração sensível. Sujeitei-me a Quilp por necessidade, pois, embora a necessidade não tenha leis, tem os seus advogados. E é também por necessidade que me submeto aos senhores, por estratagema e também movido por uns sentimentos que desde há muito tempo andam a resolver-se dentro de mim. Castiguem Quilp, meus senhores. Inflijam-lhe uma boa punição. Esmaguem-no. Calquem-no debaixo dos pés. Ele tem feito o mesmo comigo, muitas e muitas vezes.
Tendo assim chegado ao termo do seu discurso, Sampson reprimiu a sua corrente de ódio, beijou de novo a luva e sorriu de um modo como só os parasitas e os cobardes fazem.
- E isto... - disse Miss Brass, erguendo a cabeça que até então tivera pousada nas mãos, e mirando Sampson dos pés à cabeça com um olhar de desprezo e de sarcasmo. - E isto é o meu irmão! Este é o irmão para quem tanto tenho trabalhado e labutado e que julgava que tinha alguma coisa de homem dentro dele!
- Sally, minha querida - replicou Sampson, torcendo debilmente as mãos, - estás a perturbar os nossos amigos. Além disso, estás... estás desiludida, Sally, e como não sabes o que hás-de dizer, estás a arriscar-te.
- Sim, mesquinho e cobarde que és - replicou a encantadora donzela. - Eu bem te percebo. Tiveste receio que me antecipasse a ti. Mas tu julgas que alguém me induzia a mim a dizer uma palavra? Havia de me recusar, nem que tentassem e me desafiassem durante vinte anos!
- Eh! Eh! - exclamou Brass com um sorriso afectado e que, na sua grande humilhação, parecia de facto ter trocado de sexo com a irmã e transferido para ela alguma centelha de virilidade que ainda possuísse. - Pensas assim, julgas talvez isso, mas terias agido de modo muito diferente, minha boa amiga. Não deves ter esquecido a máxima de Foxey, o nosso venerado pai, meus senhores: «Desconfiai sempre de todos.» Esta é a máxima que nos deve acompanhar sempre na vida! Se não estavas quase pronta a comprar a tua segurança quando eu apareci, desconfio que já o tinhas feito, nesta altura. E por isso fi-lo eu próprio, poupando-te o trabalho e a vergonha. A vergonha, meus senhores - acrescentou Brass, permitindo-se revelar alguma emoção, - se houver alguma, é minha. É melhor poupar uma mulher a isto.
Respeitando a melhor opinião de Mr. Brass, e principalmente a autoridade do seu grande progenitor, pode-se pôr humildemente em dúvida se o elevado princípio moral formulado por este último cavalheiro e que havia influenciado o seu descendente, será sempre prudente, ou acompanhado na prática pelos resultados pretendidos.
Esta é indubitavelmente uma dúvida, arrogante e audaciosa, tanto mais que muitas distintas personagens, chamados homens do mundo, indivíduos sagazes, instruídos e perspicazes, peças fundamentais no negócio e noutras actividades, têm feito e fazem diariamente deste axioma a sua estrela polar e a sua bússola.
Todavia pode-se insinuar docemente a dúvida. E como exemplo, pode-se referir que se Mr. Brass não fosse excessivamente desconfiado e se não tivesse espreitado e escutado à porta, deixando a cargo da irmã a condução da conversa em nome de ambos ou, mesmo espiando e escutando, se não estivesse numa tal precipitação para se antecipar a ela, o que não teria acontecido, se não fosse a sua desconfiança e a sua suspeita, teria provavelmente ficado em muito melhor situação, no final.
Assim, há-de acontecer sempre que estes homens do mundo que andam através dele com a sua armadura, defendem-se tanto do bem como do mal, para não referir a incomodidade e o absurdo de estar sempre em guarda, armado de um microscópio, e de andar com uma cota de malha nas mais inocentes ocasiões.
Os três cavalheiros trocaram impressões à parte, durante alguns momentos. No final da sua conversa, que foi muito breve, o Notário apontou para o material de escrita que se encontrava sobre a mesa, informando Mr. Brass que se desejasse fazer alguma declaração por escrito, podia fazê-lo. Ao mesmo tempo, sentia-se obrigado a comunicar-lhe que iria necessitar em breve da sua presença perante um Juiz de Paz e que tudo o que tinha dito e feito tinha sido tudo com perfeita liberdade de acção.
- Meus senhores - disse Brass tirando as luvas e rastejando em espírito pelo chão, na frente deles! - Saberei justificar a benevolência com a qual confio vir a ser tratado. E como, sem benevolência, agora que a descoberta está feita, eu seria dos três aquele que ficava em pior posição, podem crer que vou fazer uma confissão completa. Mr. Witherden, senhor, sinto uma espécie de fraqueza no meu espírito... se me fizesse o favor de tocar a campainha e pedir um copo de uma bebida quente e forte, terei o melancólico prazer, apesar de tudo o que se passou, de beber à sua saúde. Tinha alimentado a esperança - afirmou Brass, olhando em volta com um sorriso triste - de ainda um dia ver estes três senhores com os pés debaixo da mesa de mogno da minha humilde sala em Marks. Mas as esperanças fogem. Meu Deus!
Neste momento, Mr. Brass sentiu-se tão extremamente perturbado que não conseguiu dizer nem fazer mais nada enquanto não chegou o seu estimulante. Depois de o ter ingerido, e com grande desenvoltura numa pessoa em tal estado de agitação, sentou-se para escrever.
Enquanto o irmão estava assim ocupado, a encantadora Sally andava de um lado para o outro na sala, em grandes passadas varonis, ora com os braços cruzados, ora com as mãos agarradas atrás das costas, parando por vezes para tirar a sua caixa de rapé e morder a tampa. Continuou a passear para um lado e para o outro, até ficar completamente fatigada, sentando-se então numa cadeira perto da porta, onde adormeceu.
Supôs-se, desde então, que essa sonolência era uma fraude ou um estratagema, já que conseguiu escapulir-se sem ser notada, por entre a penumbra da tarde. Se foi uma retirada intencional e acordada, ou uma saída sonâmbula de quem caminha a dormir, poderá ser objecto de controvérsia, mas num ponto, e de facto o principal, todos estão de acordo: qualquer que fosse o estado em que ela partiu, a verdade é que não voltou.
Já se fez referência à penumbra da tarde, podendo-se assim deduzir que a tarefa de Mr. Brass demorou algum tempo. E só ficou concluída ao anoitecer. Mas quando, finalmente, aquela digna figura terminou a sua confissão e os seus três amigos seguiram numa carruagem de aluguer até ao gabinete particular de um Juiz.
Este, depois de ter prestado uma calorosa recepção a Mr. Brass e de o deter num local seguro para assegurar o prazer de voltar a vê-lo no dia seguinte, despediu os restantes com a consoladora garantia de que no dia seguinte não deixaria de ser emitido um mandado de captura contra Mr. Quilp, e que com o devido requerimento e a declaração de todas as circunstâncias, endereçados ao ministro, que felizmente se encontrava na cidade, se obteria sem dúvida a absolvição e a rápida libertação de Kit.
E agora parecia que a odiosa carreira de Quilp estava a aproximar-se do fim, e que o castigo, que muitas vezes caminha lentamente, principalmente quando é mais pesado, seguia o seu rasto com um faro seguro e infalível, aproximando-se rapidamente dele. A sua vítima, sem ouvir os seus passos furtivos, segue o seu curso em imaginário triunfo. Mas ele continua a segui-lo de perto e, uma vez em acção, nunca mais pára.
Terminada a sua missão, os três cavalheiros dirigiram-se rapidamente para os aposentos de Mr. Swiveller, verificando que o seu restabelecimento se estava a processar tão auspiciosamente que conseguira levantar-se durante meia hora e conversar animadamente.
Mrs. Garland já regressara a casa pouco tempo antes, mas Mr. Abel ainda lá se encontrava. Depois de lhe terem contado tudo quanto se tinha passado, os dois Mr. Garlands e o cavalheiro solitário deram-lhe as boas noites, como por prévio acordo, deixando o doente sozinho com o Notário e a criadinha.
- Como está muito melhor - disse Mr. Witherden, sentando-se ao lado da cama, - posso arriscar a transmitir-lhe uma informação que me foi comunicada no âmbito da minha profissão.
A ideia de qualquer notícia de âmbito profissional vinda de uma pessoa ligada às leis não pareceu criar em Richard qualquer expectativa agradável. Talvez na sua mente a relacionasse com uma ou duas dívidas em relação às quais já havia recebido várias cartas ameaçadoras. E foi com expressão sombria que respondeu:
- Naturalmente, senhor. Espero, porém, que não seja nada muito desagradável?
- Se o pensasse, teria escolhido melhor altura para a transmitir - replicou o Notário. - Mas, primeiro, deixe-me dizer-lhe que os meus amigos que aqui estiveram hoje nada sabem disto e que a sua generosidade para consigo foi absolutamente espontânea e sem qualquer ideia de retribuição. Pode ser bom que uma pessoa descuidada e despreocupada saiba isso.
Dick agradeceu-lhe e disse que esperava que assim fosse.
- Tenho andado a fazer algumas investigações a seu respeito - disse Mr. Witherden - sem pensar que viria a encontrá-lo nas circunstâncias que nos aproximaram. O senhor é sobrinho de Rebecca Swiveller, solteira, já falecida, natural de Cheselbourne, em Dorsetshire.
- Falecida! - gritou Dick.
- Falecida. Se o senhor tivesse sido outro género de sobrinho viria a receber, assim diz o testamento e não tenho qualquer razão para duvidar dele, vinte e cinco mil libras. Assim, foi-lhe concedida uma renda anual de cento e cinquenta libras. Mas parece-me que, mesmo assim, posso felicitá-lo.
- Pode, senhor - respondeu Dick, chorando e rindo ao mesmo tempo. - Pois, se Deus quiser, ainda havemos de transformar a pobre Marquesa numa sábia! E há-de andar com trajes de seda e ter prata de sobra ou eu nunca mais me torne a levantar desta cama!
Mr. Quilp, longe de suspeitar dos acontecimentos fielmente narrados no último capítulo, e não sonhando sequer com a mina que explodira debaixo dos seus pés, pois para evitar que ele fosse alertado para o processo em curso, tudo foi feito no maior sigilo, conservava-se encerrado no seu ermitério, sem a menor suspeita, e extremamente satisfeito com os resultados das suas maquinações.
Como estava ocupado a conferir umas contas, ocupação esta a que muito convinha o silêncio e a solidão do seu retiro, havia dois dias que não se afastava do seu antro. Ao terceiro dia desta actividade, estava ainda a trabalhar arduamente e com pouca disposição de sair.
Era o dia a seguir à confissão de Mr. Brass, e portanto aquele que ameaçava a restrição da liberdade de Mr. Quilp e aquele em que lhe ia ser feita a comunicação de alguns factos muito desagradáveis e indesejáveis. Sem ter a percepção intuitiva da nuvem que pairava sobre a sua casa, o anão encontrava-se no seu habitual estado prazenteiro. E, quando se apercebia que estava demasiado absorvido no trabalho, então, com o devido respeito pela sua saúde e pela sua mente, quebrava a monótona rotina com um berro ou um uivo ou alguma outra inocente descontracção desta natureza.
Como habitualmente, tinha ao seu serviço Tom Scott que, agachado junto da lareira, à maneira de um sapo, de vez em quando, quando o patrão estava de costas voltadas para ele, imitava as caretas dele com extaordinária exactidão. A figura de proa ainda não havia desaparecido, continuando no mesmo lugar.
O rosto apresentava-se horrivelmente queimado devido à frequente aplicação do atiçador do lume em brasa e enfeitada ainda com um prego de mais de duas polegadas espetado na ponta do nariz. Sorria porém suavemente com o resto das suas feições menos dilaceradas, parecendo assim, tal como um resoluto mártir, provocar o seu atormentador a cometer novos ultrajes e insultos.
O dia, mesmo nos bairros mais altos e mais iluminados da cidade, apresentava-se húmido, escuro, frio e triste. Aquele sítio baixo e pantanoso estava coberto de nevoeiro, penetrando todos os cantos e recantos uma nuvem espessa e densa. Tudo se tornava indistinto a uma ou duas jardas de distância.
O farol e as fogueiras de aviso sobre o rio revelavam-se impotentes sob esta cortina de névoa, e se não fosse um frio intenso e penetrante no ar e, de vez em quando, o grito de algum barqueiro desnorteado, pousando os remos e tentando distinguir onde se encontrava, o próprio rio poderia situar-se a milhas de distância.
A névoa, embora lenta e vagarosa a deslocar-se, era subtilmente penetrante. Não havia abafo de pele ou lã que conseguisse impedir a sua entrada. Parecia penetrar nos próprios ossos dos retraídos viajantes, atormentando-os com frio e dores.
Tudo estava húmido e viscoso. Só as quentes chamas a desafiavam, saltando e brilhando alegremente. Era um dia para se estar em casa, aconchegado junto do fogo, a contar histórias de viajantes que se haviam perdido com um tempo assim em charnecas e pântanos, e apreciar mais do que nunca o doce calor do lar.
Como sabemos, o anão gostava de ter junto de si uma lareira, e quando se sentia satisfeito, gostava de se divertir sozinho. Não sendo de modo nenhum insensível ao conforto de se encontrar dentro de casa, ordenou a Tom Scott que enchesse o pequeno forno de carvão, e pondo de lado o seu trabalho durante o resto do dia, dispôs-se a ficar jovial.
Assim, acendeu mais candeias e colocou mais achas na fogueira. Depois de ter comido um pedaço de carne que cozinhou de modo um tanto selvagem, à maneira de um canibal, preparou uma grande tijela de ponche quente, acendeu o cachimbo e sentou-se confortavelmente para passar o resto da tarde.
Nesse momento, sentiu umas discretas pancadas na porta.
Depois de as tornar a ouvir duas ou três vezes, abriu a janelinha devagar, e metendo a cabeça para fora, perguntou quem era.
- Sou só eu, Quilp - respondeu uma voz feminina.
- Só tu! - exclamou o anão, esticando o pescoço para ver melhor a visita. - E o que é que cá vens fazer, velha pileca? Como ousas aproximar-te do castelo do papão, hem?
- Trago-te notícias - respondeu-lhe a esposa. - Não te zangues comigo.
- São notícias boas e agradáveis, notícias que fazem saltar e dar estalos com os dedos? - perguntou o anão. - Aquela querida jarreta já morreu?
- Não sei que notícias são, nem se são boas ou más respondeu a mulher.
- Então é porque ela ainda está viva - respondeu Quilp. e não tem nada. Volta para casa, ave de mau agoiro, volta para casa.
- Trouxe-te uma carta - continuou a humilde mulher.
- Atira-a pela janela e vai à tua vida - disse Quilp interrompendo-a - senão vou aí fora e arranho-te toda.
- Não, mas por favor, Quilp, escuta-me, peço-te! - insistiu a submissa esposa, em lágrimas.
- Fala lá, então - bradou o anão, com um sorriso mau. Depressa e em poucas palavras. Fala, estás a ouvir?
- Entregaram-na esta tarde em nossa casa - disse Mrs. Quilp, tremendo. - Foi um rapaz que disse não saber de quem era, deram-lha para a entregar, e com a recomendação de que te fosse dada imediatamente, porque era muito importante. Mas por favor - acrescentou, quando o marido estendeu o braço para a agarrar, - por favor, deixa-me entrar. Não sabes como estou molhada e cheia de frio, nem quantas vezes me perdi ao vir aqui com este denso nevoeiro. Deixa-me enxugar ao lume durante cinco minutos. Vou-me logo embora, assim que tu digas, Quilp. Juro-te que vou.
O seu amável marido hesitou alguns momentos. Depois, reflectindo que talvez precisasse de dar alguma resposta à carta e que ela poderia ser a portadora, fechou a janela, abriu a porta e mandou-a entrar. Mrs. Quilp obedeceu de bom grado e, ajoelhando-se junto da lareira para aquecer as mãos, entregou-lhe um pequeno embrulho.
- Ainda bem que estás molhada - disse Quilp puxando-lhe o embrulho de repelão e olhando-a de soslaio. - Ainda bem que tens frio. Ainda bem que te perdeste. Ainda bem que tens os olhos vermelhos de chorar. Sinto o meu coração alegre ao ver o teu narizinho tão atormentado e gelado.
- Oh, Quilp! - exclamou a mulher, soluçando. - Como és cruel!
- Então julgavas que eu tinha morrido? - gritou Quilp franzindo o rosto, numa extraordinária sucessão de caretas.
- Pensavas que ia ficar com o dinheiro todo para casar com quem te apetecesse! Ah! Ah! Ah! Pensavas?
Estes sarcasmos não suscitaram qualquer resposta da pobre mulher que permaneceu ajoelhada, aquecendo as mãos ao lume e soluçando, para grande prazer de Mr. Quilp. Mas enquanto olhava para ela, rindo-se à socapa, extremamente divertido, reparou por acaso que Tom Scott também estava divertido.
Não querendo aquela insolente participação na sua alegria, o amo agarrou-o imediatamente pelo colarinho, arrastou-o até à porta e, após uma breve escaramuça, atirou-o para o pátio com um pontapé.
Para retribuir aquela atenção, Tom pôs-se a andar com as mãos no chão e os pés no ar até à janela, e se é permitida a expressão, olhou para dentro com os sapatos, além de matraquear com eles no vidro, como um espectro que fosse presságio de morte.
Como é natural, Mr. Quilp não perdeu tempo em recorrer ao infalível atiçador de lume e com este, após algumas fugas e emboscadas, mimoseou o seu jovem amigo com um ou dois cumprimentos tão inequívocos que ele fugiu precipitadamente, deixando-o na posse total do campo.
- Então bem! Agora que esta pequena questão está resolvida - disse o anão calmamente - vou ler a minha carta. Hum! - murmurou, ao olhar para o endereço. - Conheço bem esta letra. É da bela Sally!
Abriu-a e leu o seguinte, escrito em letra de lei, redonda e clara:
«Sammy foi iludido e quebrou o segredo. Sabe-se tudo. É melhor não aparecer, porque há-de ser visitado por gente estranha. Têm estado muito sossegados até agora, porque querem colhê-lo de surpresa. Não perca tempo. Eu não perdi. Não me encontram em lado nenhum. Se fosse a si, fazia o mesmo. S.B., anteriormente residente em R.M.»
Para descrever todas as transformações que o rosto de Quilp sofreu ao ler a carta meia dúzia de vezes, seria necessário inventar uma nova língua que nunca tivesse sido escrita nem falada para ter bastante força de expressão. Durante um bom bocado não proferiu uma única palavra mas, após um longo silêncio, durante o qual Mrs. Quilp esteve quase paralisada de medo pelo olhar dele, conseguiu pronunciar com dificuldade:
- Se o tivesse aqui! Se ao menos pudesse tê-lo aqui...
- Oh, Quilp! - exclamou a mulher. - O que foi? Estás zangado com quem?
- Eu afogava-o - continuou o anão, sem lhe prestar atenção. - Era uma morte demasiado fácil, demasiado breve e demasiado rápida... já que o rio corre aqui tão perto. Oh! Se o tivesse aqui! Bastava levá-lo até à margem, com modos lisonjeiros e amáveis, agarrá-lo pela botoeira do casaco... brincando com ele... depois, com um súbito empurrão, fazê-lo cair dentro de água! Diz-se que os afogados vêm três vezes à superfície. Ah! quem o pudesse ver essas três vezes, escarnecendo-o, quando a cabeça dele surgisse à tona de água... oh, que enorme prazer seria!
- Quilp! - exclamou a mulher, gaguejando e arriscando-se a tocar-lhe no ombro. - O que é que aconteceu?
Ela estava tão aterrorizada com o prazer dele ao descrever aquela cena, que mal conseguia fazer-se entender.
- Que inexorável patife! - exclamou Quilp, esfregando as mãos muito lentamente e apertando-as fortemente uma contra a outra. -Julguei que a sua cobardia e a sua subserviência constituíam a melhor garantia do seu silêncio. Oh, Brass, Brass! Meu querido e bom amigo, meu afectuoso, meu fiel amigo, meu lisonjeiro, meu encantador amigo, se ao menos te tivesse aqui comigo!
A mulher, que se havia afastado para não parecer que escutava o que ele estava a resmungar, arriscou-se a aproximar-se novamente dele e preparava-se para falar, quando ele se precipitou para a porta, gritando por Tom Scott. Este, lembrando-se da suave admoestação que havia recebido antes, achou prudente aparecer imediatamente.
- Ouve lá! - exclamou a anão puxando-o para dentro. -Acompanha-a a casa. E não venhas cá amanhã, porque isto está fechado. E não voltes cá enquanto não receberes notícias minhas ou não me vires. Estás a perceber?
Tom acenou com a cabeça de mau humor e fez sinal a Mrs. Quilp para seguir à sua frente.
- Quanto a ti - disse o anão, dirigindo-se a ela - não perguntes por mim, não me procures, não digas nada a meu respeito. Não estou morto, esposa minha, e isso há-de consolar-te. Ele toma conta de ti.
- Mas Quilp, o que foi que aconteceu? Para onde vais? Diz-me mais alguma coisa.
- Digo que - respondeu o anão, agarrando-a pelo braço.
- e faço também aquilo que é melhor para ti, que fique por fazer e por dizer, se não te fores já embora.
- Aconteceu alguma coisa? - exclamou a mulher. - Oh! Diz-me!
- Sim - rosnou o anão. - Não. Que importa o que foi. Já te disse o que tens a fazer. E ai de ti se não o fizeres ou se me desobedeceres nem que seja num milímetro. Agora vai-te embora!
- Vou-me embora, vou já, mas primeiro responde-me a uma coisa - disse a mulher, hesitante. - A carta está relacionada com a querida Nell? Tenho de te perguntar isso... tenho mesmo, Quilp. Não podes calcular o arrependimento que tenho tido dia e noite por ter enganado aquela criança. Não sei que mal é que fiz com isso, mas muito ou pouco, fi-lo por tua causa, Quilp. A minha consciência teve um pressentimento nessa altura. Peço-te que respondas à minha pergunta.
O anão, irritado, não deu qualquer resposta e, voltando-se, agarrou na sua arma habitual com tal fúria que Tom Scott empurrou a sua protegida com força à sua frente, tão depressa quanto podia. E fez bem, pois Quilp, quase fora de si de raiva, perseguiu-os até à azinhaga próxima e podia ter continuado a sua perseguição se o denso nevoeiro, que parecia cada vez mais espesso, não os tivesse ocultado da sua vista.
- Vai ser uma noite boa para viajar anónimo - disse ele regressando lentamente, quase sem fôlego após a corrida.
- Espera. Podemos arranjar melhor isto aqui. Está demasiado hospitaleiro e acessível.
E com grande esforço, fechou os dois velhos portões que estavam enterrados bem fundo na lama, e trancou-os com uma pesada viga. Em seguida, sacudiu o cabelo emaranhado dos olhos e experimentou os portões. Estavam fortes e seguros.
- Salta-se bem o tapume entre este cais e o outro a seguir - disse o anão, depois de tomar estas precauções. - Há também uma azinhaga por trás. É por aí que vou sair. Uma pessoa precisa de saber bem o seu caminho para o encontrar esta noite, neste belo sítio. Parece-me que não tenho que recear visitas indesejáveis, enquanto isto durar.
Voltou para o seu covil, vendo-se quase obrigado a apalpar para encontrar o caminho, de tal modo tinha escurecido e o nevoeiro havia aumentado. Depois de meditar algum tempo junto da lareira, pôs-se atarefadamente a preparar a sua rápida partida.
E enquanto ia reunindo vários objectos necessários, enfiando-os à força dentro dos bolsos, nunca deixou de falar sozinho, em voz baixa, conservando sempre os dentes cerrados, tal como os rangera ao acabar de ler a missiva de Miss Rrass.
- Oh, Sampson! - exclamou num murmúrio. - Boa e digna criatura... Se te pudesse abraçar! Se te pudesse ao menos estreitar nos meus braços e apertar as tuas costelas, como hei-de apertar se algum dia te tiver bem agarrado. Que encontro será o nosso! Se os nossos caminhos alguma vez se voltarem a cruzar, Sampson, havemos de nos cumprimentar de uma maneira que não será fácil de esquecer, acredita. Desta vez, Sampson, quando tudo corria tão bem e tudo tinha sido traçado com tanto rigor! Foste tão solícito, tão contrito, tão bondoso. Oh, se estivéssemos outra vez frente a frente aqui dentro, meu advogado cobarde, como um de nós ficaria bem contente!
Interrompeu-se então e, levando a tijela de ponche aos lábios, bebeu um grande gole, como se fosse água límpida e refrescante na sua boca ressequida. Em seguida, pousando-a abruptamente, retomou os preparativos e prosseguiu o seu monólogo.
- E Sally - disse ele, com os olhos brilhantes, - a mulher tem coragem, determinação, força... estava a dormir, ou ficou paralisada? Podia tê-lo apunhalado ou envenenado em segurança. Ela podia ter visto o que ia acontecer. Porque é que só me informou quando já era demasiado tarde? Porque é que não adivinhei o que se passava naquele coração, quando ele estava sentado além, mesmo ali, com aquela cara branca e a cabeça vermelha e aquele riso repugnante? O coração dele devia ter deixado de bater nessa noite, se soubesse o que lá estava escondido. E não haver um remédio para acalmar uma pessoa, pondo-a a dormir, nem um fogo para a fazer arder!
Bebeu outro gole de ponche e, agachando-se junto do fogo, com um aspecto feroz, continuou a murmurar:
- E tudo isto, assim como todos os outros aborrecimentos e inquietações que tenho tido ultimamente, se deve àquele velho caduco e à sua querida netinha... dois viajantes cobardes e miseráveis. Mas ainda hei-de ser o seu génio mau. E tu, doce e honesto Kit, tão virtuoso e inocente, tem cuidado. Quando odeio, mordo. Eu odeio-te, meu querido amigo, e com boas razões, e por muito orgulhoso que estejas hoje, há-de chegar a minha vez... O que é aquilo?
Ouviu-se uma pancada no portão que ele tinha fechado. Uma pancada forte e violenta. Depois um silêncio, como se a pessoa que estava a bater tivesse interrompido para escutar. Em seguida o mesmo barulho, mais violento e importuno do que antes.
- Tão depressa! - disse o anão. - E tão zelosos! Lamento ter de desiludi-los. Ainda bem que estou absolutamente preparado. Obrigado, Sally!
Enquanto falava, apagou a vela. Na violenta tentativa de diminuir o brilho das chamas, derrubou o fogão que tombou para a frente, caindo com estrondo sobre as brasas incandescentes que havia expelido ao cair, deixando a casa escura como breu. O barulho ao portão continuava, Quilp foi apalpando o caminho até à porta e saiu para o ar livre.
Nesse momento cessaram as pancadas no portão. Eram cerca de oito horas da noite, mas a hora morta da noite mais escura teria parecido claro dia comparada com a espessa nuvem que então havia descido sobre a terra, ocultando tudo de vista. Deu alguns passos em frente, como se entrasse na sombria bocarra de uma caverna, Depois, julgando que se enganara, mudou de direcção e permaneceu imóvel, sem saber para onde se voltar.
- Se baterem outra vez - disse ele tentando perscrutar as trevas que o rodeavam - posso guiar-me pelo som. Vamos. Batam lá mais uma vez!
Pôs-se a escutar atentamente, mas o ruído não voltou a fazer-se ouvir. Naquele local ermo nada se ouvia, senão um espaçado ladrar de cães, ao longe. E este som chegava de muito longe, ora vinha de um lado, ora era respondido de outro. E também não servia de orientação, porque muitas vezes vinha dos navios, como ele bem sabia.
- Se conseguisse encontrar uma parede ou uma vedação - disse o anão estendendo os braços e avançando lentamente, - já sabia para onde me devia dirigir. Esta era uma boa noite, escura como o diabo, para ter aqui o meu querido amigo. Se pudesse realizar este único desejo, não me importaria nada que nunca mais voltasse a brilhar a luz do dia.
Mal acabara de proferir estas palavras, quando vacilou e caiu, e logo a seguir estava a debater-se com a água fria e escura.
Apesar do borbulhar e do ímpeto da corrente nos seus ouvidos, conseguiu ainda distinguir as pancadas de novo no portão, conseguiu ouvir o brado que se lhes seguiu, conseguiu reconhecer a voz. Apesar de se debater e chapinhar no meio da água, conseguiu perceber que eles se tinham perdido no caminho, voltando para o mesmo sítio de onde tinham vindo, que nem sequer se apercebiam que ele se estava a afogar. Estavam muito perto, mas não podiam tentar um esforço para o salvarem, porque fora ele próprio quem os fechara e os impedira de entrar.
Respondeu ao brado com um uivo que parecia fazer as centenas de chamas, dançando diante dos seus olhos, estremecerem e cintilarem, como se um golpe de vento as tivesse agitado. Mas foi em vão. A poderosa maré encheu-lhe a garganta e levou-o consigo na sua rápida corrente.
Mais outra luta de morte, voltou a subir à tona de água, debatendo-se com as mãos, e o seu olhar fixo e desvairado distinguiu um objecto escuro para junto do qual estava ser arrastado: o casco de um navio! Podia tocar na sua superfície macia e escorregadia com uma mão. Quis dar um grande grito, mas antes que tivesse podido soltá-lo, a água indomável foi mais forte, e empurrando-o por baixo do casco, arrebatou um cadáver.
A água brincou e divertiu-se com a sua horrível carga, ora esmagando-a de encontro às estacas cheias de lodo, ora ocultando-a na lama ou entre fétidos ervaçais, ora arrastando-a pesadamente sobre ásperos calhaus e cascalho, ora simulando cedê-la ao seu próprio elemento, e, no mesmo momento, atirando-a de novo para longe até que, farta daquele feio brinquedo, o atirou para um pântano, um local sinistro, onde piratas haviam cambaleado, presos por correntes, muitas vezes, em noite de Inverno, deixando-o aí ficar a descorar. E ali ficou, sozinho. O céu estava vermelho de fogo e a água que o tinha arrastado até ali tingia-se de cor sombria ao passar por ele. O local que aquele cadáver solitário, quando ainda homem vivo, abandonara tão recentemente, era agora uma ruína em chamas. E aquele clarão reflectia-se um pouco no seu rosto. O cabelo, agitado pela fresca brisa, brincava sobre a sua cabeça, numa espécie de escárnio da morte, um escárnio com que o próprio morto se teria deliciado em vida, e as suas roupas flutuavam indolentemente ao vento da noite.
Salas iluminadas, chamas brilhantes, rostos alegres, a música de vozes animadas, palavras de amor e boas-vindas, corações ternos e lágrimas de felicidade, como tudo isto era diferente! E era ao encontro de todas estas belas coisas que Kit se apressava. Sabia que estavam à espera dele e receava morrer de alegria antes de as alcançar.
Tinham-no preparado durante todo o dia. Primeiro, disseram-lhe que no dia seguinte não seguiria com os outros. Gradualmente, foram-lhe comunicando que tinham surgido dúvidas, que iam ser feitas investigações e que talvez, no fim de tudo, acabasse por ser absolvido. Finalmente, ao anoitecer, levaram-no para uma sala onde estavam reunidos alguns senhores.
Entre eles, o principal era o seu generoso patrão que avançou e lhe pegou na mão. Ouviu dizer que a sua inocência tinha ficado provada e que tinha sido absolvido. Não conseguia ver o orador, mas voltou-se na direcção da voz, e ao tentar falar, caiu inanimado.
Reanimaram-no e disseram-lhe que devia estar calmo e portar-se como um homem. Houve alguém que lhe disse que devia pensar na sua pobre mãe. E tinha sido exactamente por pensar tanto nela que a notícia o tinha afectado tão profundamente.
Amontoaram-se em volta dele, dizendo-lhe que a verdade já se sabia lá fora, e que toda a cidade e o país falavam com compaixão da sua desdita. Mas ele não conseguia ouvir isto. Até agora, os seus pensamentos não iam mais longe do que a sua casa. Ela já sabia? O que é que tinha dito? Quem lhe tinha dito? Não conseguia dizer mais nada.
Deram-lhe um pouco de vinho a beber e disseram-lhe boas palavras durante alguns momentos até ele ficar mais calmo e poder ouvir e agradecer. Estava livre, podia ir-se embora. Mr. Garland achava que, se ele se sentia melhor, era tempo de partirem. Os senhores juntaram-se em volta dele, apertando-lhe a mão.
Ele sentiu-se muito grato pelo interesse que revelavam para com ele e pelas suas amáveis promessas, mas já não conseguia falar outra vez e tinha grande dificuldade em manter-se de pé, mesmo encostado ao braço do patrão.
Quando passaram pelos escuros corredores, alguns carcereiros que aí estavam a prestar serviço felicitaram-no à sua maneira rude, pela sua libertação. O apreciador das notícias do jornal também lá estava, mas não se mostrou tão efusivo, as suas felicitações foram acompanhadas por um certo mau humor.
Considerava Kit um intruso, alguém que tinha conseguido ali entrar sob falsos pretextos e que tinha usufruído de um privilégio, sem ter as devidas habilitações. Pensava que ele podia ser muito bom rapaz, mas não tinha nada que estar ali e quanto mais depressa se fosse embora, tanto melhor.
A última porta fechou-se atrás deles. Já tinham passado o último muro e estavam agora ao ar livre, na rua em que tantas vezes pensara enquanto tinha estado encerrado dentro daquelas sombrias paredes, e que sempre tinha estado presente em todos os seus sonhos. Parecia mais larga e mais animada do que era.
A noite estava desagradável, mas aos olhos dele, como era agradável e alegre! Um dos cavalheiros, ao despedir-se dele, metera-lhe dinheiro na mão. Não chegou a contá-lo, mas ao passar pela caixa das esmolas para os presos pobres, voltou repentinamente para trás, deitando-o lá dentro.
Mr. Garland tinha uma carruagem à espera numa rua próxima, e entrando juntamente com Kit lá para dentro, ordenou ao cocheiro que siguisse para casa. A princípio, só podiam seguir a passo, e depois com archotes à frente, devido ao espesso nevoeiro. Mas à medida que se afastavam do rio, deixando para trás as áreas mais apertadas da cidade, já não precisavam de tantos cuidados, e podiam seguir mais depressa.
Na estrada, o mais rápido galope parecia a Kit demasiado lento, mas quando se aproximavam do final da viagem, pediu para irem mais devagar, e quando a casa surgiu à vista, pediu que parassem, só por um ou dois minutos, para ter tempo de respirar.
Mas agora não havia que parar, pois o senhor de idade falava-lhe com firmeza, os cavalos apressavam o passo e já estavam junto do portão do jardim. Logo a seguir encontravam-se à porta. Lá dentro ouviam-se vozes, ruído de pés. A porta abriu-se. Kit precipitou-se para dentro e viu a mãe abraçada ao pescoço dele.
Ali estava também a sempre fiel mãe da Bárbara, sempre com o bebé ao colo, como se nunca mais o tivesse largado desde aquele triste dia em que mal esperavam vir a ter uma alegria assim. Ali estava ela, abençoado seja Deus, desfeita em lágrimas e soluçando como nunca assim se viu, e ali estava a Bárbarazinha, a pobre Bárbarazinha, muito mais magra e mais pálida, e no entanto sempre tão bonita, tremendo como varas verdes e encostando-se à parede para não cair.
E ali estava Mrs. Garland, mais esmerada e mais amável do que nunca, caindo desmaiada, sem ninguém a socorrer, e ali estava Mr. Abel, assoando-se ruidosamente e querendo abraçar toda a gente, e ali estava o cavalheiro solitário, andando à volta de todos, e sem se fixar em nada por um só momento.
E ali estava o bom, o querido, o solícito pequeno Jacob, sentado sozinho ao fundo da escada, com as mãos sobre os joelhos, como um velho, e berrando assustadoramente, sem incomodar ninguém, e cada um e todos eles parecia que tinham perdido completamente o juízo, cometendo em conjunto e separadamente toda a espécie de loucuras.
E mesmo quando os restantes, de certo modo, já se tinham recomposto, e já falavam e riam, subitamente notou-se a falta da Bárbara, a bondosa, a amável, a tonta Bárbara. Foram dar com ela sozinha e desmaiada na sala das traseiras, após o desmaio teve um ataque de histeria, depois deste caiu novamente desmaiada e estava de facto tão mal, que apesar de uma quantidade mortal de vinagre e de água fria, tão mal estava no fim como ao princípio.
Depois, a mãe de Kit foi-lhe pedir que falasse com ela, e Kit assim faz, dizendo-lhe, com ternura: - Bárbara! - E a mãe da Bárbara insistiu. - É o Kit! - E Bárbara respondeu, sempre com os olhos fechados: - Oh! Mas é mesmo ele? - E a mãe da Bárbara assegurou: - Naturalmente que é, minha filha, agora já está tudo bem. - E para lhe confirmar melhor que estava são e salvo, Kit tornou a falar com ela.
Bárbara teve outro ataque de riso e depois outro ataque de choro, depois a sua mãe e a de Kit acenaram entre si e fingiram ralhar com ela, mas só para ela se recompor mais depressa, louvado seja Deus! E como eram matronas experientes e perspicazes em notar os primeiros sintomas da recuperação, consolaram Kit, asseguramdo-lhe que «agora é que era», mandando-o voltar para o sítio de onde tinha vindo.
Pois bem! Nesse sítio, que era a sala ao lado, havia garrafas de vinho e toda a espécie de coisas, expostas com tal imponência como se Kit e os seus amigos fossem da mais ilustre sociedade, e ali estava o pequeno Jacob comendo, segundo a expressão popular, à tripa-forra e a espantosa velocidade um bolo de passas feito em casa e sem perder de vista os figos e as laranjas que se seguem, aproveitando assim da melhor maneira o seu tempo, como se pode calcular. Assim que Kit apareceu, o cavalheiro solitário, nunca houve outro tão ocupado, encheu todos os copos até ao bordo e bebeu à saúde dele, dizendo-lhe que, enquanto ele vivesse, nunca lhe faltaria um amigo, e o mesmo disseram Mr. Garland e Mrs. Garland e Mr. Abel. Mas, para além desta honra e distinção, houve ainda mais.
Seguidamente, o cavalheiro solitário tirou do bolso um relógio de prata maciça, funcionando com precisão até ao rigor de meio segundo, e no verso do qual estava gravado o nome de Kit, ornamentado a toda a volta. Numa palavra, era o relógio de Kit, comprado expressamente para ele, e que ali mesmo lhe foi oferecido. E não podemos deixar de referir que Mr. e Mrs. Garland também tinham um presente para ele, e Mr. Abel declarou abertamente que também tinha um. E Kit sentia-se o mais feliz entre todos os felizes.
Mas havia um amigo que Kit ainda não viu, já que não era conveniente apresentá-lo no círculo da família por se tratar de um quadrúpede calçado de ferro. Por isso, logo que teve oportunidade de se escapulir, Kit correu para a cocheira. No momento em que pôs a mão na tranqueta, o pónei relinchou, na mais estrondosa saudação já alguma vez feita por um pónei, e ainda antes de ele ter transposto a soleira da porta, já o pónei andava aos pulos pela cocheira, pois não tolerava a indignidade de uma cabeçada, louco para lhe dar as boas-vindas.
E quando Kit se aproximou para o acariciar e lhe dar palmadinhas, o pónei pôs-se a esfregar o focinho no casaco dele, afagando-o mais carinhosamente do que pónei algum afagou alguém. É o coroar de toda aquela sincera e calorosa recepção, e Kit naturalmente pôs o braço à volta do pescoço do Whisker, abraçando-o.
Mas como é que Bárbara foi ali parar? E como está outra vez cheia de vida! Esteve a ver-se ao espelho, depois de ter recuperado os sentidos. Como é que a Bárbara foi para ali, de todos os sítios possíveis? Ora a verdade é que, enquanto Kit esteve ausente, o pónei não aceitava comida de mais ninguém a não ser dela. Assim, Bárbara, longe de imaginar que Christopher estivesse ali, vinha ver se tudo estava bem, encontrando-o ali inesperadamente. E como ficou ruborizada!
Talvez porque Kit já tivesse acariciado suficientemente o pónei, ou talvez porque haja coisas ainda melhores para acariciar do que póneis. Seja como for, deixou o pónei, voltado-se para a Bárbara e perguntou-lhe se estava melhor. Estava, sim.
Bárbara sentia-se muito melhor. Pensava que, e aqui Bárbara pôs os olhos no chão, ficando ainda mais ruborizada, pensava que ele a podia ter achado muito ridícula. - De modo nenhum - responde Kit. Bárbara ficou contente de o saber e tossiu. - Hem! - A tosse mais leve que é possível ter-se, apenas isso.
Que pónei tão discreto, quando lhe apetecia! Agora estava muito sossegado, como se fosse de mármore. E tinha um ar esperto, mas isso sempre ele teve. - Quase não tivemos tempo de dar um aperto de mão, Bárbara - diz Kit. Bárbara estendeu-lhe a mão, e como ela tremia, agora! Como Bárbara, tolinha, estava perturbada!
O comprimento de um braço! O comprimento de um braço não é muito. De qualquer modo, o da Bárbara não era muito comprido e, além disso, não estava esticado, mas ligeiramente curvado. Quando apertaram a mão, Kit estava tão perto dela que conseguiu aperceber-se de uma minúscula lágrima, tremendo numa pestana. Era natural que ele a visse, sem Bárbara dar por isso. Era natural que Bárbara erguesse involuntariamente os olhos e o surpreendesse.
Seria também natural que, naquele momento, Kit, sem qualquer impulso ou intuito prévio, beijasse Bárbara? Quer fosse quer não, ele fê-lo. Bárbara exclamou: - Que vergonha! - mas deixou-o fazer isso... duas vezes.
E poderia tê-lo feito três vezes, se o pónei não tivesse começado aos pulos e a abanar a cabeça, como se estivesse com um súbito ataque de riso. Bárbara fugiu assustada, embora não directamente para junto da sua mãe e da mãe de Kit, para que elas não notassem como tinha as faces vermelhas e lhe perguntassem a razão disso. A tímida Barbarazinha!
Quando a excitação de todo o grupo acalmou, e Kit e a mãe, Bárbara e a mãe, assim como o pequeno Jacob e o bebé cearam em conjunto, sem pressas, já que iam passar ali a noite, Mr. Garland chamou Kit, levando-o para uma sala onde pudessem ficar sozinhos, dizendo-lhe que tinha uma coisa para lhe contar que lhe ia causar grande surpresa. Ao ouvir isto, Kit ficou tão ansioso e tão pálido que o senhor apressou-se a acrescentar que a notícia ia ser agradável e perguntou-lhe se estava pronto para viajar na manhã seguinte.
- Viajar, senhor? - exclamou Kit.
-Juntamente comigo e com o meu amigo que está na sala ao lado. És capaz de adivinhar para quê?
Kit empalideceu ainda mais e abanou a cabeça.
- Oh, penso que és capaz. Penso que até já sabes. Experimenta lá.
Kit disse algumas palavras incoerentes e ininteligíveis, mas pronunciou claramente «Miss Nelly» três ou quatro vezes, abanando ao mesmo tempo a cabeça, como querendo significar que não havia esperança.
Mas Mr. Garland, em vez de lhe dizer: «Experimenta outra vez», como Kit estava certo que ia dizer, respondeu-lhe, muito sério, que tinha adivinhado.
- Conseguiu-se descobrir finalmente o local onde se refugiaram - afirmou. - E é esse o destino da nossa viagem.
Kit titubeou algumas perguntas, como «onde era, e como é que descobriram, e há quanto tempo, e se ela estava bem e se era feliz.»
- Feliz é ela, fora de dúvida - respondeu Mr. Garland. E quanto a estar bem, espero que em breve o esteja. Tem estado fraca e adoentada, mas está melhor, segundo notícias que recebi esta manhã, e estão muito confiantes. Senta-te, para ouvires o resto.
Quase sem se atrever a respirar, Kit obedeceu. Mr. Garland contou-lhe então que tinha um irmão, de que se devia lembrar de ouvir falar, e que havia um retrato dele, quando ainda jovem, pendurado na sala.
Este seu irmão vivia longe, no campo, juntamente com um velho clérigo seu amigo desde os tempos de juventude. E embora se estimassem muito, como irmãos que eram, não se viam havia muitos anos, comunicando apenas por carta, de vez em quando, sempre na esperança de chegar à altura de se poderem abraçar de novo. Mas iam deixando o presente deslizar imperceptivelmente, como é hábito das pessoas, permitindo que o futuro se transformasse em passado.
E contou como este seu irmão, de temperamento muito suave, tranquilo e tímido como Mr. Abel, era muito querido das pessoas simples entre as quais vivia e que tinham grande veneração pelo bacharel, como lhe chamavam, já que todas elas tinham já tido provas da sua generosidade e da sua benevolência.
Todas estas pequenas informações tinham chegado ao seu conhecimento gradualmente e no decorrer dos anos, já que o bacharel era uma daquelas pessoas que ocultam a sua generosidade, sentindo mais prazer em descobrir e exaltar as boas acções dos outros do que em proclamar as suas alto e bom som, embora muito mais meritórias.
Por essa razão, raramente falava dos seus amigos da aldeia, mas, apesar disso, afeiçoara-se tanto a dois deles, uma jovem e um velho, para quem havia sido particularmente generoso, que numa carta recebida havia poucos dias, escrevia detalhadamente sobre eles desde a primeira até à última linha, contando, de modo tão comovente, a sua vida errante e a sua mútua amizade, que poucas pessoas conseguiriam reter as lágrimas ao lê-la.
E assim ele, o destinatário dessa carta, foi imediatamente levado a crer que aqueles eram os viajantes tão procurados, que Deus havia encaminhado até ao seu irmão. E como tinha escrito a pedir mais informações para ficar totalmente esclarecido, e como a resposta chegara naquela manhã, confirmando a sua primeira impressão e transformando-a numa certeza. E assim, era este o motivo imediato da viagem que iriam efectuar no dia seguinte.
- Entretanto - disse Mr. Garland erguendo-se e pondo a mão sobre o ombro de Kit, - deves estar bem precisado de descansar, pois um dia como este é para arrasar o homem mais forte. Boa noite, e queira Deus que a nossa viagem seja bem sucedida.
Na manhã seguinte Kit não estava preguiçoso como era seu costume. Saltou da cama antes do nascer do dia e começou a preparar-se para a sua tão esperada viagem. A exaltação resultante dos acontecimentos da véspera, e a notícia inesperada que ouvira na véspera, perturbaram-lhe o sono durante as longas horas nocturnas, e provocaram-lhe sonhos que se agitavam de tal maneira à volta da sua almofada que foi um alívio para ele quando chegou o momento de se levantar.
Mas, se tivesse sido o início de algum grande empreendimento cujo objectivo já fosse visível, ou o começo de uma longa viagem a pé, sob a inclemência daquela estação do ano, e que iria terminar depois de passar por muitas provações, cansaço e sofrimento, se tivesse sido o dealbar de alguma penosa iniciativa, capaz de pôr à prova todas as suas faculdades de perseverança, resistência e força de ânimo, mas que, se fosse bem executada, terminaria no bem e na felicidade de Nell, o alvoroçado zelo de Kit não teria sido menor, o seu ardor e impaciência teriam sido, pelo menos, iguais.
Ele não era o único a estar excitado e ansioso. Ainda não tinha passado um quarto de hora desde que se levantara e já a casa se encontrava em grande alvoroço. Todos se empenhavam em fazer algo que facilitasse os preparativos.
O cavalheiro solitário não podia, é um facto, fazer nada por si só, mas era ele que vigiava todos os outros e era mais activo do que ninguém. O trabalho de fazer as malas e aprontar tudo prosseguia animadamente e quando o dia finalmente nasceu os preparativos para a viagem estavam prontos.
Então Kit começou a desejar que não tivessem sido tão despachados, pois a carruagem que tinha sido alugada para a ocasião não chegaria antes das nove horas, e nada mais havia para fazer, além de tomar o pequeno-almoço, durante a hora e meia que ainda faltava para a partida.
Sim, afinal sempre havia qualquer coisa. Havia Bárbara. Bárbara tinha com que se ocupar, é certo, mas tanto melhor, pois assim Kit podia ajudá-la e isso faria o tempo passar mais depressa do que qualquer outra coisa que se pudesse imaginar.
Bárbara não se opôs a este seu plano, e Kit, seguindo a ideia que lhe surgira subitamente de um dia para o outro, começou a pensar que Bárbara certamente gostava dele, e que não tinha dúvidas que ele também gostava de Bárbara.
Ora, Bárbara, para dizer a verdade, como convém e se deve, Bárbara parecia ser, entre todos os que viviam naquela pequena casa, quem menos se divertia com a agitação do momento; e quando Kit, com a sua habitual franqueza, lhe contou como estava contente e feliz, Bárbara ficou ainda mais soturna, e pareceu estar a divertir-se ainda menos do que antes!
- Não ficaste muito tempo em casa, Christopher - disse Bárbara, num tom de desprendimento impossível de descrever. - Estiveste tão pouco tempo em casa que não há razão, penso eu, para estares tão contente por te ires embora outra vez.
- Mas, para o fim que é - respondeu Kit, - trazer de volta Miss Nell! Voltar a vê-la! Só de pensar nisso! Também estou muito contente por pensar que a vais finalmente conhecer, Bárbara.
Bárbara não fez a mais leve alusão ao facto de não ficar particularmente satisfeita com este facto, mas expressou o que sentia de uma forma tão discreta, com um leve abanar de cabeça, que Kit ficou completamente desconcertado e, na sua ingenuidade, indagava-se por que razão se mantinha ela tão indiferente aos acontecimentos.
- Vais ver que ela tem a cara mais meiga e bonita que já se viu, digo-te eu - disse Kit esfregando as mãos. - Tenho a certeza que vais concordar comigo!
Bárbara sacudiu novamente a cabeça.
- Que se passa contigo, Bárbara? - perguntou Kit.
- Nada - exclamou Bárbara. E amuou, não de uma maneira carrancuda e antipática, mas o suficiente para realçar os seus lábios de cereja.
- Não há escola onde um aluno aprenda tão rapidamente, como aquela de que Kit se tornou aluno quando beijou Bárbara. Agora compreendia o que Bárbara queria dizer, num ápice aprendeu a lição de cor, ela era o livro e estava ali à sua frente, e isso era tão claro como se estivesse impresso.
- Bárbara - disse Kit, - não estás zangada comigo, pois não?
Claro que não estava! Porque havia ela de estar zangada? Que direito tinha ela de estar zangada? E que importância é que tinha que ela estivesse zangada ou não? Quem é que se importava com ela?
- Importo-me eu - disse Kit. - É claro que me importo! Bárbara não percebia de todo por que é havia de ser tão claro que ele se importasse.
Kit tinha a certeza que ela percebia. Não quereria ela pensar um pouco mais?
Sim, Bárbara pensaria outra vez. Não, continuava a não compreender porque era tão claro. Ela não percebia o que Christopher queria dizer. E, além disso, tinha a certeza de que naquele momento precisavam dela no andar de cima e ela tinha mesmo de se ir embora.
Bárbara, espera - disse Kit detendo-a delicadamente, vamos despedir-nos como amigos. Pensei sempre em ti nos meus momentos de aflição. Eu teria sido muito mais infeliz do que fui, se não tivesses sido tu.
Santo Deus, como Bárbara ficava bonita quando corava, e quando tremia como uma avezinha assustada!
- Palavra de honra que estou a dizer a verdade, Bárbara, mas não é da forma tão clara como eu gostaria de o fazer disse Kit com toda a sinceridade. - Se pretendo que fiques feliz por conheceres Miss Nell, é apenas porque gosto que fiques contente com as coisas que me agradam a mim. É só por isso. Quanto a ela, Bárbara, eu acho que era capaz de dar a minha vida só para a servir, mas tu própria serias da mesma opinião se a conhecesses como eu a conheço. Tenho a certeza que concordarias comigo!
Bárbara comoveu-se e arrependeu-se de ter parecido indiferente.
- Bem vês, habituei-me - disse Kit - a falar dela e a pensar nela como se ela fosse um anjo. Quando penso que vou voltar a vê-la, imagino-a a sorrir como era seu costume e a alegrar-se por me ver, estendendo a mão e dizendo «Olha, o meu velho Kit» ou outras palavras parecidas com essas, como ela costumava dizer. Imagino-a feliz, rodeada de amigos, a ser educada como merece e lhe compete. Quando penso em mim mesmo é apenas como seu velho criado, um criado que amava ternamente a sua boa, meiga e caridosa ama e que teria atravessado, e ainda o faria, qualquer perigo para a servir. Em tempos não consegui deixar de recear que, se ela regressasse acompanhada de amigos, se esquecesse ou se envergonhasse de ter conhecido um rapaz tão humilde como eu, e que, por isso, pudesse falar-me com frieza, o que me teria ferido, Bárbara, de uma forma tão profunda que não sei como descrevêla. Mas, voltando a pensar no caso, compreendi que estava cometer uma injustiça. Por isso continuei, como no início, à espera de voltar a vê-la como ela sempre foi. Com esta esperança, e sem me esquecer de como ela era, tenho julgado ser meu dever proceder sempre como se tivesse de lhe agradar e de ser sempre como eu gostaria que ela me visse se ainda fosse seu criado. Se me tornei melhor por este facto, e não creio ter piorado, estou-lhe grato e, por essa razão, a amo e respeito ainda mais. Isto é a pura e simples verdade, querida Bárbara, dou-te a minha palavra de honra!
Bárbara não tinha um temperamento impertinente ou caprichoso, e como estava cheia de remorsos, desfez-se em lágrimas. Até onde é que esta conversa poderia ter levado, não nos deteremos a indagar, pois neste momento ouviu-se o rodar da carruagem que chegava, e ao qual se seguiu um enérgico toque de campainha no portão do jardim, que fez recomeçar a agitação dentro de casa, que por momentos tinha estado como que adormecida, com uma vida e um vigor redobrados.
Simultaneamente com a equipagem, chegou Mr. Chuckster num carro de aluguer, com alguns documentos e um fornecimento de dinheiro para o cavalheiro solitário, em cujas mãos os entregou. Tendo cumprido a sua missão, juntou-se à família, entretendo-se a tomar o pequeno-almoço deambulando pela sala enquanto observava, com uma elegante indiferença, o processo de carregamento da carruagem.
- Pelo que vejo o Toleirão também toma parte nisto, meu senhor - disse Mr. Abel Garland. - Julguei que ele não tivesse participado na última viagem porque a sua presença não era bem aceite pelo velho búfalo.
- Por quem? - perguntou Mr. Abel.
- Pelo cavalheiro idoso - retorquiu Mr. Chuckster, um pouco atrapalhado.
- O nosso cliente prefere levá-lo agora - disse Mr. Abel, secamente. - Já não há necessidade de tomar essa precaução, pois o parentesco do meu pai com um cavalheiro em quem as pessoas que o procuram depositam toda a confiança, é garantia suficiente da natureza amigável da sua missão.
- Ah! - pensou Mr. Chuckster, olhando pela janela. - Todos menos eu! O Toleirão passa-me à frente, é claro. Por acaso não roubou aquela nota de cinco libras, mas não tenho a menor dúvida de que está sempre a preparar-se para fazer qualquer coisa daquele género. Eu sempre o disse, muito antes de isto ter acontecido. Que rapariga diabolicamente bonita, aquela! Palavra de honra, uma criaturinha espantosa!
Bárbara era o objecto dos comentários de Mr. Chuckster, e como ela se demorasse perto da carruagem (os preparativos para a partida estavam terminados), o cavalheiro revelou subitamente um enorme interesse pelos acontecimentos, o que o impediu de descer ao jardim, bamboleando-se, indo tomar posição a uma distância conveniente de onde pudesse observar.
Tendo grande experiência do sexo, e estando perfeitamente familiarizado com todos os pequenos artifícios a utilizar para encurtar caminho para os corações das mulheres, Mr. Chuckster, ao escolher o seu posto, pousou uma das mãos na anca, enquanto alisava o cabelo comprido com a outra. Esta é uma atitude favorita nos círculos elegantes e diz-se que produz excelentes resultados quando acompanhada de um gracioso assobio.
No entanto, a diferença entre a cidade e o campo é tal, que ninguém se apercebeu desta insinuante figura. Os desgraçados estavam inteiramente ocupados a despedir-se dos viajantes, a atirarem beijos uns aos outros, a acenarem com lenços e a fazerem outros gestos idênticos, vulgares e sem interesse. O cavalheiro solitário e Mr. Garland encontravam-se na carruagem e o postilhão na sela, enquanto Kit, bem agasalhado e coberto de abafos, se instalara no banco traseiro.
Estavam presentes Mrs. Garland, Mr. Abel e a mãe de Kit, bem como o pequeno Jacob, e a mãe de Bárbara mal se via em último plano, com o bebé ao colo, sempre acordado; e todos acenavam com a cabeça e com as mãos, saudavam ou gritavam -Adeus!» com toda a sua energia. Passado um minuto, já a carruagem se encontrava fora do alcance da vista, enquanto Mr. Chuckster ficava sozinho no local donde ela partira, com uma visão de Kit, de pé, na parte de trás da carruagem, acenando com a mão para Bárbara, e de Bárbara acenando para Kit, Bárbara cuja visão fazia os seus olhos, os olhos de Mr. Chuckster, brilharem intensamente, Chuckster, o conquistador, que tanto êxito tinha junto das mulheres da sociedade que o olhavam intencionalmente dos seus faetons, passeando nos parques, ao domingo.
Como Mr. Chuckster, estupefacto com este facto monstruoso, ficou durante algum tempo pregado ao chão, protestando intimamente que Kit era o Príncipe dos Patifes e o verdadeiro Imperador ou o Grande Mogol dos Toleirões, e como é que ele recuou desta revoltante circunstância até à velha questão da vilania do xelim, são questões que nada têm a ver com o nosso objectivo, que é seguir a carruagem e acompanhar os viajantes na sua fria e desconfortável viagem.
Estava um dia agreste. Soprava um vento cortante que os fustigava cruelmente, embranquecendo o chão endurecido, sacudindo a geada dos ramos das árvores e das sebes, fazendo-a rodopiar no ar como nuvens de poeira. Mas Kit não estava nem um pouco interessado no estado do tempo. O vento ao soprar transportava consigo vagas de frescura e liberdade, o que o tornava bem-vindo, apesar de ser áspero e cortante.
Enquanto o turbilhão de gelo arrancava galhos e folhas secas à sua passagem, arrastando-os atabalhoadamente, dirse-ia que a Natureza comungava dos mesmos desejos dos viajantes e estava tão apressada como eles. Quanto mais fortes eram as rajadas de vento, mais depressa parecia que eles avançavam.
Como era agradável investir contra elas, vencendo-as uma a uma. Vê-las erguerem-se, juntando esforços e fúria antes de avançarem contra eles, cederem por um momento enquanto passavam assobiando, e depois olhar para trás e vê-las afastarem-se a toda a velocidade, com o seu ruído rouco a morrer com a distância, e as robustas árvores a vergarem-se à sua passagem!
O vento soprou todo o dia, sem cessar. A noite estava clara e cheia de estrelas, mas o vento não tinha abrandado e o frio era cortante. Por vezes, quase no fim de um longo trajecto, Kit não podia deixar de desejar que fizesse um pouco menos de frio; mas quando paravam para mudarem de cavalos ele aproveitava para fazer exercício, na azáfama de pagar ao anterior postilhão e ir acordar o novo, correndo de um lado para o outro até que os cavalos estivessem atrelados, ele acabava por aquecer de tal maneira que sentia o sangue latejar e formigar nas pontas dos dedos. Então, achava que se a temperatura estivesse um grau mais elevada ele teria perdido metade do prazer e da alegria que a viagem lhe proporcionava.
E lá voltava ele a saltar alegremente para o seu lugar, cantarolando ao som da música alegre produzida pelas rodas da carruagem, enquanto iam rodando, afastando-se cada vez mais. Deixando para trás os citadinos nas suas camas aquecidas, eles prosseguiam o seu caminho pela longa estrada deserta.
Entretanto, os dois cavalheiros que viajavam no interior da carruagem, pouco dispostos a dormir, matavam o tempo conversando. Como ambos se encontravam ansiosos e cheios de esperança, a conversa facilmente versou sobre os motivos das respectivas viagens, e sobre as esperanças e os receios que os dois depositavam nelas.
Sobre as primeiras tinham muitas, dos últimos tinham poucos, nenhum talvez, a não ser um certo mal-estar indefinível que é inseparável de toda a esperança surgida subitamente, após prolongada expectativa.
Numa das pausas da conversa, e quando a noite já ia em meio, o cavalheiro solitário, que aos poucos e poucos se tinha tornado mais silencioso e pensativo, vírou-se para o seu companheiro e disse-lhe de repente:
- O senhor é bom ouvinte?
- Sou como a maioria dos outros homens, acho eu - retorquiu Mr. Garland, sorrindo. - Posso ser um bom ouvinte se o assunto me interessar. Se não me interessar posso fingir que estou a prestar atenção. Porque é que fez essa pergunta?
- Tenho uma história curta para contar - respondeu o amigo - e vou pô-lo à prova com ela. É muito curta.
Sem esperar resposta, pôrs a mão no braço do velho cavalheiro, e começou assim:
- Era uma vez dois irmãos, que se amavam ternamente. Faziam uma grande diferença de idades, cerca de doze anos. Não tenho a certeza, mas esse facto poderá ter insensivelmente contribuído para que se amassem mais. Embora o intervalo entre eles fosse grande, em breve se tornaram rivais. O afecto mais forte e profundo dos seus corações foi incidir sobre uma mesma pessoa.
- Foi o mais novo, havia razões para ele o pressentir e estar vigilante, quem primeiro se apercebeu deste facto. Não preciso de lhe dizer como ele se sentiu infeliz, a tortura que a sua alma conheceu, quão violenta foi a sua luta moral.
Em criança ele tinha estado muito doente. O irmão, forte e saudável, muitas vezes se privou de praticar os desportos de que gostava, para ficar pacientemente sentado à beira da sua cama, a contar-lhe velhas histórias até a sua pálida face se iluminar com um desusado contentamento, ou para o levar ao colo até ao jardim, onde, fiel e abnegadamente, fazia companhia e tratava do pobre rapaz que, pensativo, olhava o claro e radioso dia de verão, vendo à sua volta a natureza cheia de saúde, enquanto ele mal se podia mexer. Era o seu carinhoso e fiel enfermeiro.
Não posso alongar-me sobre tudo o que ele fez para que a pobre e fraca criatura o amasse, ou a minha história não teria fim. Mas quando chegou a hora da provação, o coração do irmão mais novo estava cheio dessas velhas recordações. O Céu deu-lhe força para recompensar os sacrifícios de uma juventude infeliz por meios próprios de uma maturidade reflectida. Ele deixou que o irmão fosse feliz. Nunca confessou a verdade e abandonou o país na esperança de morrer longe.
- O irmão mais velho casou com ela. Ela morreu passado pouco tempo, deixando-o com uma filhinha nos braços.
- Se reparar na galeria de retratos de qualquer família antiga, verá como as feições e a aparência, muitas vezes nos mais pequenos pormenores, vão passando de geração em geração, e como se vem a reencontrar a mesma rapariga de expressão meiga através de uma longa linha de retratos, sem que tenha envelhecido ou sofrido qualquer alteração, o Anjo Bom da raça, que os ampara sempre em todos os revezes e que os redime de todos os seus pecados.
- A mãe reviveu na filha. Pode imaginar com que devoção aquele que perdeu aquela mãe pouco depois de a ter tido para si, se apegou a esta criança, a imagem viva da mãe. Ela tornou-se uma mulher e deu o seu coração a um homem que não soube apreciar o seu valor. Pois bem! O pai, que tanto gostava dela, não a podia ver triste e a definhar. Talvez o genro fosse mais merecedor do que ele julgava. Era de esperar que tal viesse a acontecer com uma mulher como ela. Uniu-lhes as mãos e eles casaram-se.
- Através de todo o sofrimento que se seguiu a essa união, através de todo o frio desprezo e das afrontas imerecidas, através de todas as privações que ele lhe trouxe, através de todas as dificuldades da vida no dia-a-dia, demasiado sórdidas e lamentáveis para contar, mas horríveis de suportar, ela perseverou sempre, na mais profunda dedicação do seu espírito, e em toda a sua bondade, como só as mulheres o sabem fazer. Os seus meios de fortuna foram gastos até ao fim, enquanto o pai se encontrava quase reduzido à miséria pela mão do genro, e testemunhando, hora a hora, pois viviam agora todos sob o mesmo tecto, a infelicidade da filha e os maus tratos de que era vítima, embora ela nunca deplorasse a sua sorte, a não ser por ele.
Resignada e amparada por um forte afecto até ao fim dos seus dias, ela morreu três semanas depois de ter ficado viúva, deixando dois órfãos aos cuidados do pai. Um rapaz de dez ou doze anos e uma menina, um bebé apenas, igualmente desamparada como o fora a sua mãe naquela idade, de quem tinha as mesmas formas e feições.
- O irmão mais velho, avô destas duas crianças, estava agora alquebrado e muito cansado, menos devido ao peso dos anos do que pelo efeito da pesada mão do desgosto. Com o pouco que lhe sobrou das suas posses, começou a negociar primeiro em quadros e depois em antiguidades. Desde rapaz que ele tinha um vivo interesse neste tipo de objectos, e os gostos que tinha cultivado desde então, iriam a partir de então fornecer-lhe uma forma de subsistência precária e difícil.
- O rapaz cresceu igual ao pai, tanto no espírito como no corpo, enquanto a rapariga era o retrato da mãe, a tal ponto de o velho, quando a sentava sobre os joelhos e lhe olhava para os olhos azuis claros, julgar estar a acordar de um sonho, e ter de novo a sua filha pequenina consigo.
O rapaz era indomável e cedo começou a desprezar o tecto familiar e a procurar companheiros mais a seu gosto. O velho e a criança passaram a viver sós.
- Foi então que ele transferiu para esta criaturinha todo o afecto que tinha sentido pelas duas pessoas que estiveram mais próximas do seu coração e que lhe tinham sido mais queridas.
O rosto dela, constantemente na sua frente, lembrava-lhe, a todas as horas, a mudança demasiado prematura que presenciara num rosto semelhante, todo aquele sofrimento que ele tinha presenciado e conhecido e que se tinha abatido sobre a sua própria filha.
Quando a existência do neto, viciosa e depravada, lhe levava o dinheiro, do mesmo modo que o pai o fizera, chegando mesmo a causar-lhes apuros e privações temporários, foi então que ele começou a dar mostras e a ter sempre no espírito um terror mórbido da pobreza e da miséria. Não era por si que ele se preocupava. Todo o seu receio era pela neta. Era um espectro que, em casa, o perseguia continuamente de dia e de noite.
- O irmão mais novo tinha viajado por muitos países e fizera sozinho a sua peregrinação através da vida. O seu desterro voluntário tinha sido mal interpretado, e ele tinha suportado, não sem sofrimento, críticas e desfeitas, por ter feito aquilo que lhe despedaçara o coração e lhe ensombrara a vida com uma nuvem de tristeza. Fora disto, a comunicação entre ele e o irmão mais velho tinha sido difícil e incerta, e muitas vezes falhava. No entanto, os laços entre eles não estavam completamente quebrados, pois ele vinha a saber, com algumas lacunas entre cada notícia, tudo o que acabo de lhe contar.
- Então, sonhava, ainda mais do que antes, com a sua juventude feliz, embora ensombrada pela dor e pelas preocupações, e noite após noite ele voltava a ser rapaz e a estar ao lado do seu irmão. Arrumou os seus negócios com a maior rapidez, transformou em dinheiro todos os seus pertences e, com uma fortuna mais do que suficiente para ambos, com o coração aberto e as mãos estendidas, as pernas trémulas com uma emoção difícil de suportar para qualquer homem, ele chegou à porta do irmão num fim de tarde!
O narrador, cuja voz tremera às últimas palavras, emudeceu. - O resto - disse Mr. Garland apertando-lhe a mão - já o sei.
- Sim, - aquiesceu o amigo, depois de uma pausa - podemos poupar-nos o seguimento. Você conhece os fracos resultados das minhas buscas. Mesmo quando, graças a investigações feitas com o auxilio da máxima vigilância e sagacidade, soubemos que tinham sido vistos na companhia de dois pobres cómicos ambulantes, tendo ao fim de algum tempo chegado a descobrir os dois homens, e depois o local onde se escondiam, mesmo nessa altura, chegámos demasiado tarde. Oxalá não cheguemos outra vez atrasados!
- Não podemos estar - disse Mr. Garland. - Desta vez vamos conseguir.
- Tenho acreditado e estou esperançado que consigamos.
- respondeu o outro. - Continuo a acreditar e a ter esperança. Mas caiu um peso sobre o meu espírito, meu bom amigo, e a tristeza que se acumula à minha volta não cede nem à esperança nem à razão.
- Isso não me surpreende - disse Mr. Garland, - é a consequência natural dos acontecimentos que esteve a recordar, deste tempo e lugares horríveis, e acima de tudo, desta noite tempestuosa e triste. Uma noite lúgubre, não há dúvida! Escute! Oiça como o vento uiva!
A alvorada veio encontrá-los ainda no caminho. Desde que partiram, tinham parado aqui e além, para descansarem e tinham sofrido frequentes atrasos, especialmente naquela noite, por terem tido de esperar que lhes trouxessem cavalos folgados. Não tinham voltado a fazer paragens, mas o tempo continuava áspero e as estradas eram muitas vezes íngremes e escabrosas. Não chegariam ao destino antes de voltar a anoitecer.
Kit, enrijado pelo frio, continuava intrépito como um homem e, como tinha muito com que se ocupar, a manter o sangue em circulação, a imaginar o final feliz daquela aventurosa viagem, e a admirar-se com tudo o que o rodeava, pouco tempo lhe sobrava para pensar no desconforto. Apesar de a sua impaciência e a dos seus companheiros de viagem ir rapidamente aumentando à medida que o dia avançava, nem por isso as horas paravam. A luz daquele curto dia de Inverno em breve se desvaneceu, e voltou a escurecer quando ainda lhes faltava percorrer muitas milhas.
Ao anoitecer o vento abrandou. Os seus gemidos ouviam-se cada vez mais longe e mais baixo, e enquanto se arrastava pela estrada acima remexendo discretamente entre os arbustos secos de ambos os lados, mais parecia um enorme fantasma para quem a estrada fosse estreita e cujas vestes sussurrassem à medida que ele se movimentava. Gradualmente foi-se acalmando e começou então a nevar.
Os flocos caíam continuamente e cerrados. Em breve o chão estava coberto por uma camada de neve com algumas polegadas de espessura que espalhava em volta um silêncio solene. As rodas rodavam sem fazerem ruído e o bater sonoro das patas dos cavalos tornou-se num som abafado. A animação da marcha parecia ter-se aquietado lentamente, deixando algo de fúnebre no seu lugar.
Protegendo os olhos com a mão da neve que caía e lhe gelava nas pestanas, obscurecendo-lhe a vista, Kit tentou várias vezes vislumbrar o mais pequeno sinal de luzes à distância que anunciasse a aproximação de alguma pequena cidade.
Nessas alturas ele conseguia distinguir muitos objectos, mas nenhum com nitidez. Ora era o pináculo de uma igreja que surgia, que daí a pouco se transformava numa árvore, num celeiro, numa sombra projectada no chão pelas luzes da carruagem, ora eram cavaleiros, caminhantes, carruagens, que os precediam ou se cruzavam com eles em estreitos caminhos, e que ao aproximarem-se deles, também se transformavam em sombras. Um muro, uma ruína, uma empena sólida, surgiam ao longo da estrada, e quando avançavam na sua direcção parecendo que iam embater contra elas, verificavam que se tratava apenas da própria estrada.
Havia também curvas estranhas, pontes e lençóis de água que surgiam aqui e além, tornando o caminho duvidoso e incerto, embora prosseguissem na mesma estrada deserta, e estas coisas, à semelhança do que acontecia com as outras, transformavam-se em ténues ilusões.
Kit desceu vagarosamente do seu assento, pois as pernas estavam entorpecidas, quando chegaram a uma solitária estação de malaposta, e perguntou quanto é que ainda lhes faltava para chegarem ao seu destino. Era uma hora tardia para aquele lugar isolado e as pessoas já estavam deitadas, mas uma voz vinda de uma das janelas do andar superior da casa respondeu-lhe: - Dez milhas!
Os dez minutos que se seguiram pareceram uma hora, mas por fim surgiu uma figura a tremer de frio, trazendo os cavalos que tinham pedido e, após um breve intervalo, puseram-se de novo ao caminho.
Era uma estrada através dos campos, que após três ou quatro milhas se apresentava cheia de buracos e de sulcos de rodas, os quais, estando cobertos de neve, eram outras tantas armadilhas para os assustados cavalos, obrigando-os a avançar a passo. Para os três homens era praticamente impossível conciliarem a sua agitação interna com a lentidão a que a carruagem se movia, pelo que desceram e seguiram a pé atrás da carruagem. A distância parecia interminável e a caminhada era difícil.
Quando cada um deles já pensava com os seus botões que o cocheiro se tinha perdido, ouviu-se perto o sino de uma igreja tocar a meia-noite, e a carruagem parou. Ela tinha-se movido vagarosamente,-mas quando deixou de ranger sobre a neve, fez um silêncio tão profundo como se a um enorme estrondo se tivesse seguido uma quietude absoluta.
- Chegámos, cavalheiros. - disse o cocheiro desmontando do cavalo, e batendo à porta de uma pequena estalagem.
- Olá! Depois da meia-noite, aqui já é noite morta.
Bateram com força e demoradamente, mas nem assim conseguiram acordar os seus habitantes. Tudo permanecia escuro e silencioso como antes. Recuaram um pouco para olharem para as janelas, que eram simples rectângulos negros sobre a fachada branca da casa. Não surgiu qualquer luz. A casa podia estar desabitada, ou as pessoas terem morrido, pois parecia não ter qualquer sinal de vida.
Falaram todos ao mesmo tempo, em surdina, receando despertar novamente os ecos lúgubres que tinham acabado de provocar.
- Continuemos - disse o irmão mais novo - e deixemos este pobre homem acordá-los, se for capaz. Não fico sossegado enquanto não tiver a certeza de não ter chegado demasiado tarde. Continuemos, em nome de Deus!
Assim fizeram, deixando o postilhão encarregue de arranjar as acomodações que a casa pudesse oferecer, e continuando a bater à porta. Kit acompanhou-os, carregando uma pequena trouxa que pendurara na carruagem ao partirem de casa, e de que não se tinha esquecido por um momento, o pássaro na sua velha gaiola, tal como ela o tinha deixado. Nell ficaria contente por voltar a ver o seu pássaro, disso ele tinha a certeza.
A estrada seguia em declive, fazendo uma ligeira curva. À medida que avançavam, perderam de vista a igreja cujo relógio tinham ouvido, e a aldeia que se apinhava à sua volta. Ouviram-se novamente as pancadas na porta da estalagem que, devido ao silêncio reinante, ressoaram nitidamente, de um modo que os impressionou. Desejaram que o homem parasse de bater, ou terem-lhe dito para não quebrar o silêncio até eles terem regressado.
A velha torre da igreja surgiu-lhes pela frente, com uma aparência fantasmagórica, envolta num manto branco e gelado. Pouco depois encontravam-se junto dela. Era uma construção venerável, cinzenta, mesmo no meio da brancura da paisagem. Descortinava-se no campanário, meio encoberto pela neve e quase irreconhecível, um velho relógio de Sol. O próprio tempo parecia ter parado e envelhecido, como se à melancolia de cada noite não se seguisse um novo dia.
Ali perto havia um portão que dava acesso a mais do que um caminho que atravessavam o cemitério, e sem saberem qual deviam seguir, deixaram-se ficar onde estavam.
A rua da aldeia era perto, se é que se podia chamar rua a um aglomerado irregular de casas pobres de várias alturas e idades, em que algumas mostravam as fachadas enquanto outras mostravam as traseiras e outras ainda tinham as empenas voltadas para a rua, vendo-se aqui e ali um poste indicador ou um alpendre a atravancar o caminho. Um pouco adiante havia uma luz fraca na janela de uma casa, e Kit correu até lá para pedir que lhe indicassem o caminho.
Ao seu grito de chamamento respondeu a voz de um velho vinda do interior da casa, que surgiu à porta a enrolar um abafo à volta do pescoço para se proteger do frio, querendo saber quem é que andava lá fora, àquela hora tão pouco apropriada, e o que é que pretendiam dele.
- Tá um tempo dos diabos - resmungou ele - e não é noite para me fazerem levantar. A minha profissão não é daquelas que me obriga a levantar da cama a meio da noite. O trabalho que exigem de mim pode esperar, especialmente nesta altura do ano. O que é que quer?
- Não o teria feito levantar, se soubesse que é velho e que está doente - respondeu Kit.
- Velho! - repetiu o outro irritado. - Como sabe que sou velho? Não sou tão velho como talvez você imagine, meu amigo. Quanto a estar doente, pode ter a certeza que encontrará muitos jovens em muito pior estado de saúde do que eu. É pena que assim seja... não que eu seja saudável e forte para a minha idade, quero dizer, mas sim que eles são fracos e delicados. No entanto, peço-lhe perdão - disse o velho se lhe falei bruscamente. Vejo mal à noite, não é por causa da minha idade, nem de nenhuma doença, foi sempre assim, e por isso não reparei que é um forasteiro.
- Desculpe tê-lo feito sair da cama - disse Kit, - mas aqueles cavalheiros que pode ver junto do portão do cemitério também não são de cá, acabamos de chegar de longe e andamos à procura do presbitério. Pode indicar-nos o caminho?
- Posso, sim - respondeu o velho numa voz trémula.
- No próximo Verão faz cinquenta anos que sou coveiro aqui. Devem seguir pelo caminho da direita, meu amigo. Não são más notícias para o nosso pastor, espero?
Kit agradeceu e respondeu-lhe negativamente. No regresso para junto dos outros, uma voz de criança chamou-lhe a atenção. Olhando para cima viu uma criaturinha numa janela próxima.
- Que foi? - perguntou a criança, muito interessada. - O meu sonho tornou-se realidade? Por favor responde-me, quem quer que tu sejas, acorda e levanta-te.
- Pobre rapaz! - disse o coveiro, antes que Kit tivesse podido responder. - Como estás, meu querido?
- O meu sonho tornou-se realidade? - exclamou novamente a criança, numa voz tão ansiosa que teria impressionado o coração de qualquer ouvinte. - Não, isso nunca irá acontecer. Como é que podia acontecer? Como?
- Adivinho o que ele quer dizer - respondeu o coveiro.- Volta para a cama, meu querido!
- Ai! - exclamou a criança, numa explosão de desespero.
- Eu sabia que nunca iria acontecer, eu tinha a certeza disso, mesmo antes de ter perguntado. Mas toda esta noite, e a noite passada também já tinha sido assim. Sempre que adormeço regressa aquele sonho cruel.
- Tenta voltar a adormecer - disse o velho docemente.
- Ele desaparecerá com o tempo.
- Não, não, eu prefiro que ele fique - respondeu a criança. - Não tenho medo dele enquanto durmo, mas estou tão triste... tão triste...
O velho abençoou a criança que, desfeita em lágrimas, lhe deu as boas noites. Kit ficou novamente só.
Apressou-se a juntar-se aos outros, comovido com o que tinha ouvido, embora mais pela atitude da criança do que por qualquer outra circunstância, como se o que ela dissera ocultasse algo cujo significado lhe escapasse. Seguiram o caminho que o coveiro lhes indicara, e ao fim de pouco tempo chegaram ao muro do presbitério. Voltando-se para olhar em volta, viram, por entre edifícios em ruínas, a alguma distância, brilhar uma luz solitária.
Brilhava no que parecia ser uma janela em ogiva, e rodeada como estava pela densa sombra das paredes sobranceiras, cintilava como uma estrela. Brilhante e ténue como as estrelas por cima das suas cabeças, tão solitária e imóvel quanto elas, parecia pertencer àquelas eternas luzes celestiais e brilhar em uníssono com elas.
- Que luz será aquela! - exclamou o irmão mais novo.
- Certamente pertence à casa em ruínas onde eles vivem
- disse Mr. Garland. - Não vejo quaisquer outras ruínas por estes sítios.
- Não podem estar acordados a esta hora tão tardia retorquiu o irmão apressadamente.
Kit interveio directamente, pedindo que, enquanto batiam ao portão e esperavam que alguém o viesse abrir, o deixassem ir até à janela onde brilhava aquela luz, a fim de se certificar se haveria gente por perto. Tendo obtido a tão desejada autorização, partiu como uma flecha, quase sustendo a respiração devido à ansiedade, e segurando sempre a gaiola com o pássaro, foi direito ao local de onde vinha a luz.
Não era fácil andar pelo meio dos túmulos, e noutra ocasião ele teria ido mais devagar, ou teria contornado o cemitério seguindo pelo caminho. Indiferente aos obstáculos, ele apressou o passo sem nunca abrandar, e em breve se encontrava a uma distância de poucos metros da janela.
Aproximou-se tão silenciosamente quanto pôde, avançando até roçar com o fato a hera coberta de neve que trepava pela parede, e pôs-se à escuta. Não se ouvia qualquer ruído vindo do interior da casa. A própria igreja estava mergulhada no silêncio. Encostou a face ao vidro e continuou à escuta. Não. Contudo o silêncio era tão profundo, que ele teve a certeza que seria capaz de ouvir a respiração de alguém adormecido, caso estivesse alguém na sala.
Que circunstância mais estranha, uma luz acesa àquela hora da noite, num local onde não se encontrava ninguém.
A parte inferior da janela estava encoberta por uma cortina que o impedia de ver para dentro do quarto. Mas não se vislumbrava qualquer sombra através dela. Trepar pela parede e tentar espreitar pela parte superior da janela, teria sido muito perigoso, e teria provocado barulho, o que poderia assustar a criança, caso efectivamente ela morasse ali. Continuou persistentemente à escuta, mas nada mais conseguia descortinar além daquele silêncio opressivo.
Abandonou o local devagar, andando com cautela, circundou a casa em ruínas e chegou por fim a uma porta. Bateu. Do interior vinha um ruído estranho, difícil de definir. Pareciam os gemidos, em voz baixa, de alguém atingido por uma dor, mas não era esse o caso, pois o som era demasiado regular e constante. Ora parecia uma espécie de canto, ora um lamento.
Parecia, isto era, à sua fantasia, pois o som nunca parava nem se alterava. Não se parecia com nenhum outro som que ele tivesse alguma vez ouvido, e naquela toada havia qualquer coisa assustadora, arrepiante e sobrenatural.
O sangue de Kit gelou-lhe nas veias, como nunca tinha acontecido, mesmo quando viajara exposto à neve e à geada, mas voltou a bater à porta. Não houve resposta, mas o som continuou ininterrupto.
Pôs levemente a mão no ferrolho e encostou o joelho à porta. Não estava trancada por dentro e, cedendo à pressão, girou sobre os gonzos. Kit viu o reflexo de um lume projectado nas velhas paredes, e entrou.
O clarão vermelho e monótono da lenha a arder, pois não se encontrava qualquer candeeiro ou vela acesos na sala, revelou-lhe a presença de uma figura, sentada à lareira, de costas para ele, debruçada sobre a luz bruxuleante. A atitude era a de quem procurava aquecer-se. Era e ao mesmo tempo não era.
A figura estava curvada, com o corpo encolhido, mas as mãos não estavam estendidas em direcção ao lume, nenhum encolher de ombros ou arrepio que denotassem o prazer de se encontrar junto ao calor, e contrastassem com o frio cortante que estava lá fora.
Com as pernas juntas, a cabeça pendente, os braços cruzados sobre o peito e os dedos fortemente enclavinhados, a silhueta balouçava-se para a frente e para trás sobre o assento, sem descanso, acompanhando o movimento com o som lúgubre que Kit tinha ouvido.
A pesada porta fechou-se nas suas costas, com um ruído que o sobressaltou. A figura não falou nem se voltou para ver o que se passava, nem revelou, por qualquer outro meio, o mais ténue indício de ter ouvido o barulho. Tinha a aparência de ser um velho, a sua cabeça assemelhava-se, na cor, às cinzas que se desfaziam sob o seu olhar.
Tudo estava em consonância, a ténue luz, o lume em vias de se extinguir, a sala em ruínas, a solidão, a vida a definhar e a tristeza do ambiente. Cinzas, pó e ruínas!
Kit tentou falar, tendo chegado a pronunciar algumas palavras, embora não soubesse muito bem quais. O mesmo som lamuriento e terrível continuava sem parar, a cadeira balouçava constantemente, a silhueta abatida mantinha-se inalterável, alheia à sua presença.
Já tinha posto a mão na fechadura, quando qualquer coisa no vulto lhe chamou a atenção, no preciso momento em que uma acha se partiu e caiu, provocando uma chama mais viva. Regressou ao ponto onde tinha estado antes, avançou um passo, outro, outro ainda. Mais outro, e viu o rosto do vulto. Sim! Embora estivesse muito mudado, ele conhecia-o bem.
- Patrão! - gritou ele deixando-se cair sobre um joelho e agarrando a mão do velho. - Querido patrão. Por favor fale comigo!
O velho virou-se lentamente para ele, murmurando numa voz cavernosa:
- Mais outro! Quantos fantasmas já me visitaram esta noite!
- Não sou um fantasma, patrão! Sou apenas o seu antigo criado, em carne e osso. Agora conhece-me, com certeza! Onde é que está Miss Nell, diga-me, onde é que ela está?
- Todos dizem o mesmo! - exclamou o velho. - Todos fazem a mesma pergunta. Um espírito!
- Onde é que ela está? - perguntou Kit. - Oh, diga-me só isso, querido patrão, só isso...
- Ela está a dormir ... além ... lá dentro.
- Louvado seja Deus!
- Sim! Louvado seja Deus! - retorquiu o velho. - Tenho-lhe rezado longas noites a fio, tantas que já nem sei, enquanto ela dorme, que Ele bem o sabe. Escuta! Ouviste-a chamar?
- Não ouvi nada.
- Ouviste, pois! Escuta agora. Estás a dizer-me que não ouves chamar?
Ele levantou-se, e pôs-se novamente à escuta.
- Também não ouviste agora? - exclamou o velho com um sorriso triunfante. - Será que há alguém que conheça aquela voz tão bem como eu? Chiu! Chiu!
Fazendo-lhe sinal para não fazer barulho, dirigiu-se silenciosamente para outro quarto. Regressou após uma curta ausência, durante a qual Kit ouviu a voz dele a falar baixinho, com um candeeiro na mão.
- Ela continua a dormir - murmurou. - Tinhas razão, ela não chamou, a menos que o tenha feito a dormir. Já me tem chamado enquanto dorme. Quando me sento junto dela a observá-la, tenho-a visto mover os lábios, e sei, sem que ela mo tenha dito, que fala em mim. Receei que a luz pudesse ofuscá-la e acordá-la, por isso trouxe-a para aqui.
Ele falava mais consigo próprio do que com o visitante, mas quando colocou o candeeiro sobre a mesa, ergueu-o, como se impelido por uma recordação ou curiosidade momentânea, segurando-o à altura do rosto. Então, como se se tivesse esquecido por que razão fizera aquilo, voltou-se e colocou novamente o candeeiro sobre a mesa.
- Ela está profundamente adormecida - disse, - o que não é de admirar. Os anjos cobriram a terra com uma espessa camada de neve, para que a pegada mais leve se torne ainda mais leve. E até os pássaros morreram e já não a podem acordar. Ela costumava dar-lhes de comer. Apesar do frio intenso e da fome, as tímidas criaturinhas voavam para longe de nós, mas nunca fugiram dela!
Calou-se novamente para escutar, e assim se deixou ficar durante muito tempo, quase sustendo a respiração. Passada esta fantasia, abriu uma velha arca de onde tirou algumas peças de vestuário com tanto cuidado como se fossem de objectos vivos, alisando-os e escovando-os com a mão.
- Porque estás tão quieta e sossegada, querida Nell murmurou, - enquanto lá fora as framboesas esperam que as vás apanhar! Porque ficas tão quieta quando os teus amiguinhos nos vêm bater à porta e perguntam «onde está a Nell, a nossa querida Nell?» e soluçam e choram porque não te vêem. Ela sempre foi meiga com as crianças. Os mais endiabrados obedeciam-lhe porque ela os tratava com muita ternura!
- Kit não tinha forças para falar. Os olhos estavam marejados de lágrimas
- O vestidinho dela trazer por casa, aquele de que ela mais gostava! - soluçou o velho, apertando-o contra o peito, e acariciando-o com a mão trémula. - Vai dar pela sua falta quando acordar. Esconderam-no aqui por graça, mas ela há-de tê-lo de novo, há-de voltar a tê-lo. Eu não iria preocupar a minha querida, nem por todas as riquezas do mundo. Vê isto, estes sapatos, como estão gastos. Ela guardou-os para se recordar da nossa última longa viagem juntos.
Vê onde os pezinhos dela tocavam nus no chão. Depois vieram dizer-me que as pedras os tinham golpeado e magoado, mas ela nunca me disse nada. Não, não, Deus a abençoe! Só depois é que me lembrei que ela andava sempre atrás de mim. Devia ser para que eu não a visse coxear. E contudo, segurava a minha mão e parecia ser ela a guiar-me.
Ele apertou os sapatos contra os lábios, e voltando a colocá-los cuidadosamente no mesmo sítio, continuou a conversar consigo mesmo, olhando tristemente, de tempos a tempos, para o quarto que tinha visitado.
- Não era seu costume ficar deitada, mas nessa altura ela estava bem. Temos de ter paciência. Quando ela voltar a melhorar, levantar-se-á cedo, como era seu hábito, e sairá para os campos, a respirar o ar saudável da manhã. Muitas vezes tentei segui-la, mas as suas pequenas pegadas de fada não deixavam rasto sobre o chão orvalhado. Quem está aí? Fecha a porta. Depressa! Não há já bastante que fazer para afastar este frio de mármore e conservá-la quente?!
A porta tinha de facto sido aberta, entrando Mr. Garland e o seu amigo, acompanhados por duas outras pessoas. Estas eram o mestre-escola e o bacharel. O primeiro trazia uma luz na mão. Tinha apenas ido até à sua casa, encher a lamparina que se tinha apagado, no momento em que Kit entrou e encontrou o velho sozinho.
Ele acalmou-se novamente ao ver estes dois amigos, abandonando os modos zangados, se é que esta expressão se pode aplicar à maneira tão débil e tão triste como falara quando tinham aberto a porta. Voltou a sentar-se na cadeira onde tinha estado inicialmente, entregando-se, pouco a pouco, à sua anterior atitude, e à mesma toada plangente e incerta.
Não prestou a menor atenção aos estranhos. Tinha-os visto, mas não demonstrou o menor interesse ou curiosidade por eles. O irmão mais novo manteve-se afastado. O bacharel puxou uma cadeira para junto do velho, e sentou-se ao seu lado. Após um longo silêncio, atreveu-se a falar.
- Lá vai mais outra noite, e o senhor sem se deitar! - disse ele brandamente. - Estava esperançado que se lembrasse de cumprir o que me prometeu. Porque é que não vai descansar?
- O sono abandonou-me - respondeu o velho. - Foi todo para ela!
- Ela ficaria muito triste se soubesse que o senhor passa as noites en vigília - disse o bacharel. - Não quer que ela sofra, pois não?
- Não estou muito seguro quanto a isso. Se ao menos conseguisse que ela acordasse! Ela dorme há já tanto tempo... e, no entanto, reconheço que sou irreflectido ao dizer isto. É um sono descansado e feliz, não é?
- Certamente que é! - respondeu o bacharel. - Tenho a certeza absoluta que é!
- Ainda bem! e o despertar... - balbuciou o velho.
- Também será feliz. Muito mais feliz do que se possa dizer ou imaginar.
Observaram-no enquanto se soerguia e se dirigia em bicos de pés para o outro quarto onde o candeeiro tinha sido substituído. Eles ouviam-no enquanto falava rodeado pelas paredes silenciosas. Olharam uns para os outros e em todas as faces havia lágrimas. O velho regressou afirmando, num sussurro, que ela continuava a dormir, mas que lhe parecia que se tinha mexido.
Tinha sido a mão, disse ele, que se tinha deslocado um pouco, poucochinho, mas ele tinha a certeza absoluta que ela se tinha mexido, talvez à procura da dele. Já a tinha visto fazer a mesma coisa noutras ocasiões, ainda que mergulhada no sono mais profundo. Dizendo isto, deixou-se cair novamente na cadeira, e juntando as mãos acima da cabeça, deu um grito que os outros jamais esqueceriam.
O pobre mestre-escola fez sinal ao bacharel para que viesse para o outro lado, para lhe falar. Separaram-lhe suavemente os dedos, que ele tinha entrançados no próprio cabelo grisalho e apertaram-nos nos seus.
- Ele há-de ouvir-me - disse o mestre-escola, - tenho a certeza disso. Há-de ouvir a mim ou a si, se lhe pedirmos. Ela fazia-o sempre.
- Darei ouvidos a qualquer das vozes que ela gostava de ouvir - exclamou o velho. - Amo tudo o que ela amou!
- Bem sei - retorquiu o mestre-escola. - Tenho a certeza disso. Pense nela, pense em todas as tristezas e aflições que viveram juntos, em todas as provações, e nos prazeres tranquilos que juntos conheceram.
- Penso, penso. Não penso noutra coisa.
- Gostaria que esta noite não pensasse em mais nada, em nada a não ser nas coisas que lhe apaziguam o coração, meu querido amigo, e que o abrisse às velhas amizades e aos velhos tempos. Isto é o que ela mesma lhe diria, e é em nome dela que eu lho digo agora.
- Faz bem em falar baixo - disse o velho. - Assim não a acordamos. Gostaria de voltar a ver os olhos dela e de a ver sorrir. O seu rosto tem agora um sorriso juvenil, mas é estático, não muda. Gostaria que ele viesse e se fosse. Mas isso só acontecerá quando for a vontade de Deus. Não a vamos acordar.
- Não falemos dela a dormir, mas de como ela costumava ser quando ambos viajavam juntos, por terras distantes, de como ela era quando estava em casa, na velha casa donde fugiram juntos, de como ela era nos bons velhos tempos disse o mestre-escola.
- Ela estava sempre alegre, muito alegre - exclamou o velho, olhando-o fixamente. - Lembro-me, desde o princípio, de sempre ter havido nela qualquer coisa de meigo e de doce. Ela era um temperamento alegre.
- Temos ouvido dizer - acrescentou o mestre-escola que tanto nesse aspecto, como na sua bondade, ela se parecia com a mãe.
Ele continuou a olhá-lo com insistência, mas não respondeu.
- Ou talvez se parecesse também com alguma antepassada - disse o bacharel. -Já se passaram muitos anos, e a dor faz o tempo parecer mais longo, mas certamente não esqueceu aquela cuja morte contribuiu para que esta criança se tornasse tão querida para si, mesmo antes de saber se ela o merecia ou de conhecer as qualidades do seu coração. Digamos que conseguia fazer os seus pensamentos recuar até um tempo que se perdeu na distância, ao tempo da sua juventude, quando, ao contrário desta florzinha, o senhor não passava a sua adolescência sozinho. Digamos que conseguia lembrar-se, há muito tempo, de outra criança que o amava ternamente, quando o senhor era apenas uma criança. Lembra-se que tinha um irmão, há muito esquecido, que não vê há muito tempo, que se encontra há muitos anos longe de si, e que agora, finalmente, quando o senhor mais precisa dele, regressa para o confortar e consolar ...
- Que irá ser para ti aquilo que em tempos tu foste para ele - exclamou o mais novo, caindo de joelhos diante do irmão. - Que irá retribuir a afeição que lhe dedicaste há muitos anos, meu querido irmão, com um cuidado, uma solicitude e um amor constantes, para ser, ao teu lado, aquilo que nunca deixei de ser, mesmo quando havia oceanos a separar-nos. Para testemunhar a tua inabalável constância e os cuidados dos velhos tempos, os anos inteiros de desolação. Dá-me uma só palavra de reconhecimento, meu irmão, e nunca, nunca, nem nos melhores momentos da nossa juventude, quando não passávamos de uns pobres rapazes estouvados e planeávamos passar juntos o resto das nossas vidas... nunca fomos, nem metade, tão queridos e desvelados um com o outro como iremos ser doravante...
O velho olhou os rostos um a um e mexeu os lábios, mas não saiu qualquer som.
Se então nos encontrávamos unidos - continuou o irmão mais novo, - como não serão os laços que nos unem agora! O nosso amor e a nossa camaradagem começaram na infância, quando tínhamos a vida toda à nossa frente, e agora irão ser reatados, pois na realidade não passamos de umas crianças. À semelhança de muitos espíritos inquietos, que perseguiram a fortuna, a fama ou o prazer por esse mundo fora, e no fim da vida se retiram para o local onde viram a luz do dia, procurando em vão voltar a ser crianças antes de morrer, também nós, menos afortunados do que eles no nosso passado, mas mais felizes perto do fim das nossas vidas, também nós iremos regressar ao local da nossa infância... regressaremos a casa sem termos realizado nenhuma das esperanças porventura nascidas na idade adulta, sem levarmos connosco nada do que trouxemos, a não ser a nossa antiga amizade, sem termos salvado nada do naufrágio das nossas existências, a não ser aquilo que primeiramente as tornou queridas. Seremos, sem dúvida, umas crianças como éramos antigamente. E mesmo... - acrescentou com voz alterada - mesmo que tenha sucedido aquilo que receio nomear... mesmo que assim seja, querido irmão, não estaremos separados e restar-nos-á esse conforto na nossa grande dor.
Pouco a pouco, o velho foi recuando até ao quarto interior, enquanto ouvia estas palavras. Apontou na sua direcção, respondendo, com os lábios a tremerem:
- Vocês estão a conspirar para afastar dela o meu coração. Nunca o conseguirão, nunca, enquanto eu for vivo. Não tenho qualquer familiar ou amigo, a não ser ela, nunca tive e nunca terei. Ela é tudo para mim, nesta vida. Agora é demasiado tarde para nos separarem.
Fazendo-lhes sinal com a mão para que se fossem embora, e chamando-a docemente, entrou no quarto. Os outros, que tinham ficado para trás, juntaram-se, e depois de terem murmurado algumas palavras entre si, não isentas de emoção, nem fáceis de pronunciar, seguiram-no. Moveram-se tão cautelosamente que não se lhes ouviam os passos. Mas entre eles havia soluços e lamentos de dor e de luto.
Ela estava morta. Jazia em paz, deitada no seu pequeno leito. A solene quietude não era de espantar, agora.
Estava morta. Nunca houve sono tão belo e calmo, tão desprovido de sinais de dor. Parecia uma criatura acabada de criar por Deus, que apenas esperasse que Ele lhe insuflasse o sopro da vida, e não alguém que tivesse vivido e passado pela experiência da morte.
O leito estava guarnecido aqui e ali com groselhas de Inverno e folhas verdes, colhidas num local onde ela gostava de passear. «Quando eu morrer, ponham junto de mim qualquer coisa que tenha amado a luz e que tenha estado sempre sob o céu», tinham sido estas as suas palavras.
Estava morta. A querida, meiga, paciente, nobre Nell, estava morta. O seu pássaro, tão pequeno que a pressão de um dedo teria esmagado, agitava-se tristemente na gaiola, enquanto o coração forte da sua pequena dona estava mudo e imóvel para todo o sempre.
Onde estavam os vestígios das suas preocupações, sofrimentos e cansaços? Tinham desaparecido. A tristeza tinha de facto morrido com ela, mas em seu lugar tinham nascido uma paz e uma felicidade perfeitas, que se reflectiam na sua beleza tranquila e no seu repouso absoluto.
E, no entanto, o seu eu jazia ali, inalterável, apesar da mudança. Sim. A velha lareira sorrira sobre aquele rosto doce, que tinha passado, como num sonho, por momentos terríveis de miséria e preocupações.
À porta do pobre mestre-escola, numa tarde de Verão, diante da fornalha, numa noite fria e húmida, ao lado do leito tranquilo do rapazinho moribundo, mostrara sempre a mesma expressão doce e bela. Assim se reconhecem os anjos em toda a sua majestade, depois da morte.
O velho segurava entre as suas a pequena mão que apertava contra o peito, para aquecê-la. Era a mão que ela lhe estendera com o seu último sorriso, a mão que o tinha guiado em todas as suas andanças. De vez em quando beijava-a. Depois apertava-a novamente contra o peito, afirmando que agora estava mais quente, e quando fazia isto olhava, com ar torturado, para os que o rodeavam, como se lhes estivesse a implorar que a ajudassem.
Estava morta e já nada lhe podia valer, nem tinha necessidade de coisa alguma. Os velhos aposentos que ela parecera ter enchido de vida, mesmo quando a sua própria vida definhava- rapidamente, o jardim de que cuidara, os olhos que alegrara, os recantos silenciosos de tantas horas de meditação, os caminhos que percorrera como se tivesse sido apenas ontem, nunca mais a veriam.
- Não é... - disse o mestre-escola enquanto se inclinava, chorando, para lhe beijar a face, - não é na Terra que se faz a justiça do Céu. Pensem no que ela representa se a compararmos com o Mundo para onde voou o seu jovem espírito, e respondam-me: Se um desejo solenemente expresso sobre este leito pudesse trazê-la de volta à vida, qual de nós é que o pronunciaria?
Quando amanheceu, e eles puderam falar mais calmamente sobre o assunto da sua tristeza, ouviram contar os pormenores dos seus últimos momentos de vida.
Tinha morrido havia dois dias. Todos a rodeavam nessa altura, sabendo que o fim se aproximava. Ela finara-se pouco depois do nascer do dia. Eles tinham lido para ela e falado com ela no início da noite, mas ela adormeceu à medida que as horas iam passando. Compreendiam, pelo que ela murmurava vagamente nos seus sonhos, que estes eram sobre as suas viagens com o velho. Não eram cenas dolorosas, mas sim pessoas que os tinham ajudado e se tinham mostrado bondosas para com eles, pois repetia muitas vezes «Deus o abençoe!», com grande fervor. Ao acordar, apenas delirou uma vez, e a propósito de uma música maravilhosa que ela dizia que estava no ar. Só Deus sabe. Pode ser que fosse verdade.
Abrindo, por fim, os olhos, pediu que a beijassem ainda uma vez. Depois, olhou para o velho com um sorriso lindo, como nunca tinham visto antes, dizem, e jamais poderão esquecer, e pôs-lhe os braços à volta do pescoço. Só daí a pouco é que perceberam que ela estava morta.
Muitas vezes ela tinha falado nas duas irmãs que, dizia., eram como duas boas amigas para ela. Desejava que elas soubessem quanto gostava delas e de como as tinha observado a passearem juntas, à noite, à beira do rio. Gostaria de voltar a ver o pobre Kit, repetira várias vezes antes de morrer. Gostava que dissessem ao Kit o quanto gostara dele. E mesmo então, nunca falara ou pensara nele, sem o seu sorriso alegre e límpido de outrora.
Quanto aos outros, nunca murmurara ou se queixara, e com um espírito sereno e modos inalteráveis, exceptuando o facto de dia a dia se tornar mais fervorosa na sua gratidão para com eles, extinguiu-se como a luz numa noite de Verão.
O garoto que tinha sido o seu amiguinho chegou com o nascer do dia, trazendo uma oferta de flores secas e pedindo que as colocassem sobre o peito dela.
Era ele que tinha vindo à janela na noite anterior e falado com o coveiro, e viram vestígios sobre a neve de uns pés pequenos, no local onde ele permanecera, próximo do quarto onde ela tinha estado antes de se ir deitar. Ele imaginava, parecia, que os outros a tinham deixado sozinha, e não podia suportar tal ideia.
Ele falou-lhes novamente no seu sonho, que consistia em vê-la regressar à vida, tal e qual como ela tinha sido. Implorou que o deixassem vê-la, afirmando que ficaria muito quieto, e que não receassem que ele se assustasse, pois tinha ficado um dia inteiro junto do seu pequeno irmão quando ele morrera, e sentira-se feliz por ter podido ficar tão próximo dele.
Deixaram que o seu desejo se realizasse e, na realidade, ele cumpriu o que prometera e, à sua maneira infantil, foi um modelo para todos os outros.
Até este momento o velho tinha-se mantido silencioso, excepto com ela. Nem sequer se tinha afastado de junto do leito. Mas quando viu o seu pequeno amigo, comoveu-se de uma forma que os outros ainda não tinham visto, e deixou que o rapazinho se aproximasse. Então, apontando para o leito, começou a chorar pela primeira vez, e os que estavam perto, sabendo que a presença do rapaz lhe fazia bem, deixaram os dois sozinhos.
Acalmando o velho com a sua conversa simples sobre a morta, o rapazinho conseguiu convencê-lo a ir descansar, a dar um passeio ao ar livre, ou a fazer qualquer outra coisa que lhe apetecesse. E quando finalmente chegou o dia em que ela deveria desaparecer para sempre, o rapazinho afastou o velho, para que ele não visse que a separavam definitivamente dele.
Foram colher folhas frescas e groselhas para o seu leito. Era domingo, uma tarde de Inverno clara e luminosa, e enquanto atravessavam a rua da aldeia, as pessoas afastavam-se para os deixarem passar, saudando-os discretamente. Alguns apertavam carinhosamente a mão do velho, outros descobriam a cabeça quando o viam, e muitos diziam-lhe «Deus o abençoe!».
- Vizinha! - disse o velho, parando em frente da casa onde vivia a mãe do seu pequeno guia - porque é que quase toda a gente está vestida de preto hoje? Quase todos trazem uma tarja ou um lenço preto.
A mulher respondeu que não sabia.
- Ora, você mesma, também está de preto! - exclamou ele. - As janelas estão fechadas, o que nunca acontece durante o dia. Que se passa?
De novo a mulher respondeu que não sabia.
- Temos de regressar - disse o velho, apressadamente.
- Temos que descobrir o que está a acontecer.
- Não, não! - gritou o rapazinho, impedindo-o de andar.
- Lembra-se de me ter prometido que iríamos passear no velho caminho coberto de erva verde, onde ela e eu íamos tantas vezes, e onde o senhor nos encontrou mais do que uma vez a fazermos grinaldas para o jardim dela? Não volte para trás!
- Onde está ela agora? - perguntou o velho. - Responde-me.
- O senhor não sabe? - respondeu o rapaz. - Não acabámos de sair de junto dela?
- Sim, sim, é verdade. Saímos de ao pé dela, não foi?
Passou a mão pela sobrancelha, olhou distraidamente à sua volta e, levado por um pensamento súbito, atravessou a estrada e entrou em casa do coveiro, que se encontrava sentado à lareira na companhia do seu ajudante que era surdo. Ambos se ergueram, quando viram de quem se tratava.
O rapazinho fez-lhes um sinal rápido com a mão. Foi um instante, mas este facto, acrescido do olhar do velho, foi quanto bastou.
- Vão hoje enterrar alguém? - perguntou o velho ansiosamente.
- Não, não! Quem havíamos de ir enterrar? - respondeu o coveiro.
- De facto, ninguém! Têm razão, ninguém!
- Hoje é feriado para nós, meu senhor - respondeu o coveiro, brandamente. - Hoje não temos trabalho!
- Bem, assim sendo, eu vou contigo - disse o velho, dirigindo-se ao rapaz. - Tens a certeza do que me disseste? Não eras capaz de me enganar, pois não? Mudei desde a última vez que me viram, ainda que tenha passado tão pouco tempo.
- Siga o seu caminho, senhor - disse o coveiro, - e que o Céu esteja convosco!
- Estou pronto - disse o velho, humildemente. - Vamos, rapaz, vamos - deixando-se, assim, ser conduzido para longe.
Soou o sino que tantas vezes ela ouvira durante o dia ou durante a noite, como se aquele som tivesse vida. Tocou por ela, tão jovem, tão bonita, tão bondosa. Velhos decrépitos, jovens vigorosos, crianças débeis, todos saíram de suas casas, apoiados em muletas, no orgulho da força e da saúde, no pleno auge das suas promessas, na madrugada da vida, para se juntarem à volta da sepultura dela. Viamse velhos, quase cegos e com os sentidos muito entorpecidos, avós, que podiam ter morrido há dez anos e mesmo assim teriam morrido velhas, surdos, cegos, coxos, aleijados, mortos-vivos sob muitas formas e feitios, todos tinham vindo para assistir ao encerramento daquela sepultura precoce.
Que era a morte que aquela campa encerraria, comparada com aquela outra, que iria ainda arrastar-se e rastejar por cima dela?
Transportavam-na agora pelo caminho ladeado de povo, pura como a neve acabada de cair, e tal como esta, efémera na sua passagem pela terra. Transpôs pela última vez o pórtico, onde se sentara quando o Céu, na sua imensa misericórdia, a trouxera para aquele retiro de paz, e a velha igreja acolheu-a na sua penumbra silenciosa.
Levaram-na para um velho recanto, onde se tinha sentado vezes sem conta a meditar, e depuseram suavemente o fardo no chão. A luz jorrava sobre ele através dos vitrais duma janela onde os ramos das árvores sussurravam permanentemente no Verão, e onde os pássaros cantavam docemente ao longo dos dias. Cada lufada de ar que abanasse as ramadas das árvores banhadas de Sol, produziria trémulos cambiantes de luz sobre o túmulo dela.
Terra à terra, cinzas às cinzas, pó ao pó. Inúmeras foram as mãos jovens que deixaram cair a sua pequena grinalda, inúmeros foram os soluços abafados que se ouviram. Alguns, e não foram poucos, ajoelharam-se. Todos eram sinceros e verdadeiros na sua dor.
Terminado o serviço religioso, as pessoas enlutadas afastaram-se um pouco, e os aldeãos acercaram-se da sepultura antes que a pedra tumular fosse colocada. Um deles recordou-se de a ter visto sentada naquele mesmo local, com um livro caído no regaço, olhando pensativamente para o céu. Outro admirava-se que um ser tão frágil como ela fosse tão corajoso, nunca receando entrar sozinha na igreja, à noite, gostando de se deixar ficar por ali, no profundo sossego do local, e mesmo de subir a escada que conduzia à torre, sem o auxílio de outra luz que não fossem os raios de luar que entravam pelos buracos existentes na velha parede em ruínas.
Os mais velhos segredavam entre si que ela tinha visto os anjos e conversado com eles, e quando evocavam a sua figura, a maneira como falava, e a sua morte prematura, alguns concordaram que tal facto devia, efectivamente, ser verdadeiro. Assim, foram-se aproximando da sepultura em pequenos grupos, olhavam para baixo, cediam o lugar a outros, afastando-se em grupos de três ou quatro que cochichavam, até que a igreja se foi esvaziando, ficando apenas o coveiro e os amigos enlutados.
Viram tapar a cova e colocar a pedra. Depois, quando caiu o crepúsculo, e nenhum som perturbava já a sagrada quietude do lugar, quando o luar inundou de luz as campas e o monumento, os pilares, as paredes, o pórtico e, acima de tudo, parecia-lhes, se projectou sobre a campa dela, naquele sossego em que os fenómenos exteriores e os pensamentos íntimos proliferam em afirmações de imortalidade, e esperanças e temores terrenos são reduzidos a pó na sua frente, então, partiram de coração tranquilo e submisso, deixando a criança com Deus.
Ah! É difícil gravar no coração a lição que tais mortes nos ensinam, mas que ninguém a rejeite, pois é uma Verdade poderosa e universal com a qual todos têm a aprender.
Quando a Morte atinge os inocentes e os jovens, por cada corpo frágil de que ela liberta a alma palpitante, brotam centenas de virtudes, sob a forma de misericórdia, caridade e amor, que percorrem o mundo e o abençoam. Por cada lágrima vertida pelos mortais sobre essas campas verdejantes, nascerá algo de bom, algum carácter puro surgirá. Sob os passos da Destruidora brotam criações luminosas que desafiam o seu poder, e a sua senda tenebrosa transforma-se numa estrada de luz que conduz ao Céu.
Já era tarde quando o velho voltou para casa. No regresso, o rapaz tinha-o levado para a sua própria casa, alegando um pretexto qualquer. A longa caminhada e a falta de repouso durante os últimos dias fizeram com que adormecesse junto à lareira. Estava exausto, e tiveram o cuidado de não o acordar. Dormiu durante muito tempo, e quando acordou já a lua brilhava.
O irmão mais novo, preocupado com a sua prolongada ausência, encontrava-se à porta, à espera de o ver chegar, quando ele apareceu no caminho, acompanhado pelo seu pequeno guia. Avançou ao seu encontro, e obrigando docemente o velho a apoiar-se no seu braço, conduziu-o com passos lentos e trémulos para casa.
Ele dirigiu-se logo para o quarto dela. Não a encontrando, como esperava, voltou com ar desvairado à sala onde estavam os outros. Daí, correu para casa do mestre-escola, chamando por ela. Eles seguiram-no de perto, e depois de ele a ter procurado em vão, trouxeramno de volta para casa.
Com as palavras persuasivas que a piedade e o afecto podiam inspirar, conseguiram convencê-lo a que se sentasse junto deles e a ouvir o que tinham para lhe dizer. Em seguida, serviram-se de todos os pequenos artifícios que julgaram convenientes para preparar o seu espírito para o que iria ouvir, e insistindo, com muitas palavras sugestivas, no destino feliz a que ela fora conduzida, disseram-lhe, enfim, a verdade. No momento em que esta lhes saiu dos lábios, o velho caiu no chão como morto.
Durante longas horas tiveram poucas esperanças que ele sobrevivesse, mas a dor foi mais forte, e ele recuperou.
Se houver alguém que não conheça o vazio pavoroso que se segue à morte, a sensação de desolação que assalta mesmo os espíritos mais fortes, quando ao mesmo tempo se perde algo familiar e muito amado, essa associação entre os objectos inanimados e insensíveis, e aquele que evocamos, quando o Deus de cada lar se torna num monumento, e cada quarto num sepulcro, se houver alguém que nunca tenha passado por uma situação destas, dificilmente poderá imaginar como, durante muitos dias, o velho se consumiu de desgosto, a vaguear por aqui e por ali, como que à procura de alguma coisa, e sem achar conforto.
Toda a sua capacidade de raciocínio e de memória era inteiramente absorvida pela neta. Ele nunca percebeu, ou pareceu querer perceber, a presença do irmão naquele lugar. Mantinha-se apático perante todos os gestos de carinho ou de solicitude. Se lhe falavam a esse respeito, ou sobre qualquer outro assunto, excepto um, ele ouvia-os pacientemente durante algum tempo, depois dava meia volta e continuava a procurar como antes.
Nesse tal assunto, que ocupava a sua mente e as de todos os outros, era impossível falar-se. Morta! Ele não suportava ouvir pronunciar a palavra. A menor alusão a isso lançá-lo-ia num estado de descontrolo, como o que se seguira ao ter ouvido a palavra pela primeira vez. A que esperança se agarrava para continuar a viver, ninguém sabia. Mas não restavam dúvidas a ninguém de que ele estava esperançado em voltar a encontrá-la. Tinha ainda uma vaga e ténue esperança, adiada de dia para dia, enquanto a amargura ia minando o seu velho coração doente.
Pensaram em retirá-lo do cenário deste último desgosto, pois talvez uma mudança de ambiente o fizesse sentir-se melhor. O irmão aconselhou-se com aqueles que eram tidos como peritos nesta matéria, e eles vieram vê-lo. Alguns deles demoraram-se a conversar com o velho, quando ele estava disposto a conversar, e viam-no andar de um lado para o outro, só e em silêncio.
Levassem-no para onde quer que o levassem, diziam eles, o velho regressaria sempre àquele local. Não deixaria de pensar naquele lugar. Se o vigiassem cuidadosamente, e tomassem devidamente conta dele, o mais que podiam era fazê-lo prisioneiro, mas se ele tivesse quaisquer meios para poder fugir e voltar para ali, fá-lo-ia certamente, ou morreria pelo caminho.
O rapaz, a quem ele se submetera ao princípio, já não tinha qualquer influência sobre ele. Às vezes permitia que o garoto passeasse ao seu lado, ou dava pela sua presença a ponto de lhe dar a mão, ou parava para lhe beijar a face, ou acariciar-lhe a cabeça. Noutras ocasiões pedialhe delicadamente que se fosse embora, que não o suportava junto de si. Mas tanto quando estava só, como na companhia do seu dócil amigo, ou com aqueles que lhe teriam dado, fosse qual fosse o preço ou o sacrifício exigidos, algum consolo ou paz de espírito, se acaso se conhecessem os meios para tal, ele mantinha-se sempre o mesmo, não amando nem ligando qualquer importância a ninguém. Era um homem a quem tinham destroçado o coração.
Finalmente, um dia aperceberam-se que ele se tinha levantado muito cedo, levando consigo a mochila e o cajado, o chapelinho de palha de Nell e um pequeno cesto cheio com as coisas que ela costumava transportar, e se tinha ido embora. Quando se preparavam para o ir procurar onde quer que ele estivesse, chegou um rapaz da escola muito assustado, a dizer que o tinha visto, momentos atrás, na igreja, sentado sobre o túmulo dela.
Dirigiram-se apressadamente para lá, e chegados à porta sem fazer ruído, detiveram-se a observá-lo na atitude de quem espera pacientemente. Decidiram não o interromper, mas mantiveram-se à espreita durante todo o dia. Quando já estava muito escuro, ele levantou-se e voltou para casa, murmurando para si «Ela volta amanhã!».
No dia seguinte o velho dirigiu-se para o mesmo local, permanecendo aí desde o nascer do Sol até ao cair da noite, e ao deitar-se voltou a murmurar «Ela há-de voltar amanhã!».
E a partir de então, todos os dias, de manhã até à noite, ele esperava junto do túmulo dela que ela voltasse. Quantas visões de novas viagens por países maravilhosos, de lugares de repouso sob o firmamento infinito, de passeios pelos campos, pelos bosques e por caminhos que poucos conheciam, quantos sons daquela voz sempre presente, quantos vislumbres do seu vulto, do vestido esvoaçante, do cabelo a flutuar alegremente ao vento, quantas visões do passado e do que ele esperava viesse a ser o futuro desfilaram perante ele, naquela velha igreja, triste e silenciosa.
Ele nunca disse aos outros em que pensava nem onde ia. À noite sentava-se junto deles, ruminando com secreta satisfação, eles bem o compreendiam, sobre a fuga que ele e Nell empreenderiam antes que fosse outra vez noite e, mesmo assim, ouviam-no murmurar nas suas orações «Oh! Senhor, faz com que ela volte amanhã!»
A última vez foi num dia luminoso de Primavera. Ele não regressou à hora habitual, e foram à sua procura. Jazia morto sobre a pedra do túmulo de Nell.
Enterraram-no ao lado daquela que ele tanto amara, e, na igreja onde tantas vezes tinham rezado, meditado e passeado de mãos dadas, a criança e o velho repousam finalmente juntos.
A dobadoira mágica que, rolando à nossa frente, conduziu o cronista até aqui, abranda agora a velocidade e pára. Atingiu a meta. A corrida terminou.
Resta-nos apenas despedir as principais figuras da pequena multidão que nos acompanhou durante o trajecto, e terminar assim a nossa viagem.
Entre eles, em primeiro lugar, o afável Sampson Brass e a sua irmã Sally, de braço dado, reclamam a nossa melhor atenção.
Mr. Sampson, que tinha sido retido, como já se referiu, pela justiça cuja intervenção pedira, e tendo sido insistentemente convidado pelo juiz a prolongar a sua estada de tal modo que, não podendo recusar, ficou sob a sua protecção durante muito tempo, durante o qual o seu hospedeiro o guardou com tanto zelo, que ninguém mais lhe pôs a vista em cima, e nunca saía a não ser para fazer exercício num pequeno pátio empedrado. O seu feitio discreto e recatado era de tal modo apreciado por aqueles com quem lidava, e tão ciosos estavam da sua ausência, que requereram uma espécie de fiança amigável, a prestar por dois abastados proprietários, na quantia de mil e quinhentas libras cada um, para que ele não abandonasse o seu tecto hospitaleiro, pois receavam, parece, que ele pudesse ser solto sob quaisquer outras condições. Mr. Brass, tocado pelo sentido de humor resultante desta situação, e compreendendo plenamente o seu significado, escolheu, entre os seus muitos conhecimentos, dois amigos cujas posses reunidas não atingiam quinze pences, e apresentou-os como fiadores, pois tal fora o engraçado termo escolhido por ambas as partes. Como estes cavalheiros fossem rejeitados ao fim de vinte e quatro horas de comédia, Mr. Brass consentiu em ficar, e ficou efectivamente, até que um grupo de espíritos selectos denominado Grande Júri, que também entravam na brincadeira, o chamou a julgamento, por perjúrio e fraude, perante doze brincalhões que, por sua vez, o consideraram culpado no meio da mais chistosa das alegrias. A própria populaça entrou na comédia, pois quando Mr. Brass se deslocava num trem de aluguer para o edifício onde estavam reunidos os farsantes, esta saudou-o com ovos podres e gatos mortos, simulando pretender linchá-lo, o que em muito aumentou a comicidade da situação, e fez sem dúvida com que ele a apreciasse ainda mais.
Para explorar ainda mais a veia jocosa, Mr. Brass, por intermédio do seu advogado, alegou em sua defesa que fora levado a auto-incriminar-se, em troca de segurança e promessas de perdão, e reclamou a tolerância que a lei concede a naturezas tão confiantes que se deixam iludir a tal ponto. Após debate solene, este ponto, juntamente com outros de natureza técnica, cuja extravagância humorística seria difícil exagerar, foi apresentado aos juizes para que decidissem, tendo Sampson entretanto recolhido aos seus antigos aposentos. Finalmente, alguns pontos foram decididos a favor de Sampson e outros contra ele. O resultado foi que em vez de ser convidado a viajar durante algum tempo pelo estrangeiro, foi-lhe permitido agraciar a terra-mãe com a sua presença, sob determinadas restricções muito significativas.
Assim, ele deveria, durante um período de vários anos, residir numa mansão espaçosa onde também residiam vários outros cavalheiros a cargo do erário público, trajando sóbrios fatos cinzentos listados de amarelo, usando o cabelo cortado à escovinha, e alimentando-se basicamente de papas de aveia e sopas leves. Foi-lhe igualmente pedido que partilhasse com os restantes o exercício que consistia em subir constantemente um infindável lanço de escadas e, para que as suas pernas, pouco acostumadas a tal prova, não enfraquecessem, ele deveria usar um amuleto de ferro num dos tornozelos. Tomadas estas disposições, foi transferido, uma tarde, para os seus novos aposentos, tendo tido o privilégio de, juntamente com outros nove cavalheiros e duas senhoras, ser conduzido à sua nova residência numa das carruagens do próprio Reino.
Além destas penalidade sem importância, o seu nome foi rasurado e eliminado da Ordem dos Advogados, rasura esta que tem sempre sido sempre considerada, nestes últimos tempos, como uma grande degradação e aviltamento, denunciando o cometimento de alguma espantosa vilania, e de facto tal devia ser o caso, pois existem muitos nomes indignos que continuam tranquilamente inscritos nos seus melhores arquivos.
Em relação a Sally Brass, espalharam-se os mais contraditórios rumores. Alguns garantiam que se dirigira ao cais disfarçada de homem, e que se fizera marinheira. Outros afirmavam em segredo que se alistara como soldado no segundo regimento de infantaria, e que fora vista de uniforme e em serviço, apoiada na sua espingarda e a espreitar para fora da guarita, em St. James Park. Circularam muitos boatos como este, mas o que parece ser verdade é que após um período de cinco anos, durante os quais não há provas de que realmente alguém a tivesse visto, foram por várias vezes vistas duas criaturas miseráveis que ao escurecer surgiam por vezes das profundezas de St. Gilles, e se arrastavam, a cambalear, pelas ruas, encolhidos, a tiritar e a olhar para as ruas e para as valetas, à procura de restos de comida. Estes vultos não surgiam senão nas noites de frio e desolação, quando os terríveis espectros que durante o resto do tempo se escondem nos antros mais miseráveis e obscenos de Londres, debaixo de arcadas, em subterrâneos e noutros lugares sombrios, se aventuram pelas ruas como personificações da doença, do vício e da fome. Pessoas que sabiam segredavam que aqueles dois vultos eram Sampson Brass e a sua irmã Sally, e a partir desse dia, segundo se diz, ainda hoje, por vezes, em noites tenebrosas, eles passam pelos transeuntes que se afastam enojados.
Quando o corpo de Quilp foi encontrado, e isto só aconteceu alguns dias após ter desaparecido, foi feita uma investigação no local. Todos os indícios apontavam para um possível suicídio e, assim sendo, foi sepultado no centro de uma encruzilhada solitária, com uma estaca espetada no coração. Correu depois o boato de que esta horrível e bárbara cerimónia não tinha chegado a efectuar-se, e que os seus restos mortais tinham sido em segredo entregues a Tom Scott, mas também aqui as opiniões se dividiam, pois houve quem afirmasse que Tom os exumara à meia-noite, e os levara para um local indicado pela viúva. É provável que ambas as versões tivessem tido origem no simples facto de Tom ter vertido algumas lágrimas durante o inquérito, o que de facto aconteceu, por mais estranho que isso possa parecer. Manifestou, para além disso, um forte desejo de se atirar aos Juizes, e tendo sido agarrado e conduzido para fora do Tribunal, foi escurecer a sua única janela colocando-se de cabeça para baixo sobre o parapeito, até que um zeloso porteiro do tribunal conseguiu repô-lo na sua posição normal.
Tendo, após a morte do seu amo, ficado sozinho no mundo, resolveu percorrê-lo de cabeça para baixo e pés no ar, ganhando assim o seu sustento. Considerando, no entanto, o seu nome inglês como um obstáculo inultrapassável ao seu progresso neste ramo, decidiu adoptar o nome de um rapaz italiano que vendia estatuetas, que entretanto conhecera, e passou a fazer o pino com enorme sucesso perante numerosas audiências.
A pequena Mrs. Quilp nunca se perdoou do pecado que tão fortemente lhe pesava na consciência, e não conseguia lembrar-se do que fizera que não vertesse lágrimas amargas. Como o marido não tinha parentes, ela ficou rica. Ele não tinha feito testamento, porque se tivesse, ela certamente teria ficado pobre. Tendo feito o seu primeiro casamento ao gosto da mãe, resolveu fazer o segundo ao seu próprio gosto. Essa escolha recaiu sobre um jovem de boa aparência, que pôs como condição preliminar que Mrs. Jiniwin deixasse, a partir daí, de dormir lá em casa, após o casamento viveram sem mais discussões do que o normal, e levaram uma vida feliz com o dinheiro do falecido anão.
Mr. e Mrs. Garland e Mr. Abel continuaram como até aí, com excepção do que passamos a relatar em seguida, a seu tempo fizeram sociedade com o seu amigo notário, e nessa altura houve um grande jantar, um baile, e não se pouparam a despesas. Aconteceu que para este baile foi convidada a mais bela jovem que já se vira, de quem Mr. Abel se enamorou. Como isto aconteceu, ou como se deram conta, ou qual dos dois foi o primeiro a comunicar ao outro a sua descoberta, ninguém sabe, mas o que é certo é que casaram daí a algum tempo, como é certo que foram os mais felizes entre os felizes, e não é menos certo que o mereciam. E é agradável relatar que deram origem a uma família, porque a propagação da bondade e da benevolência é sempre um acrescento à aristocracia da natureza e um motivo de alegria para a humanidade em geral.
O pónei manteve o seu carácter independente e resoluto até ao último momento da sua vida, que foi invulgarmente longa, o que lhe mereceu o epíteto de «Old Parr» dos póneis. Andava muitas vezes para cá e para lá com o pequeno faonte, entre a casa de Mr. Garland e a do filho, e como velhos e novos conviviam muito, fizeram-lhe um estábulo novo na sua nova casa, para onde se dirigia sozinho com surpreendente dignidade. Condescendia em brincar com as crianças, à medida que estas iam crescendo o suficiente para cultivarem a sua amizade. Corria com elas para cima e para baixo no pequeno terreiro como um cão, mas apesar deste clima de intimidade, e de permitir certas pequenas liberdades como ser acariciado, que lhe observassem as ferraduras ou se lhe pendurassem na cauda, nunca permitiu a nenhum deles que o montasse ou o conduzisse, mostrando assim que a familiaridade também tem os seus limites, e que há coisas demasiado sérias para se brincar.
Já na velhice, não deixava de ser sensível a ternas amizades, pois quando o pastor morreu, e o bondoso bacharel veio viver com Mr. Garland, tornou-se logo muito amigo dele, deixando docilmente que este o conduzisse. Durante os seus dois ou três últimos anos de vida não trabalhou, e levou uma vida descansada, e o seu último gesto, como qualquer velho colérico, foi dar um coice no veterinário.
Mr. Swiveller foi recuperando muito lentamente da sua doença e, assim que começou a receber a sua renda, comprou para a Marquesa um belo guarda-roupa, e pô-la a estudar num colégio, em cumprimento da promessa que fizera no seu leito febril. Após muito pensar num nome que estivesse à altura dela, decidiu-se por Sophronia Sphynx, que lhe pareceu elegante e musical, e ainda por cima cheio de mistério. Assim baptizada, a Marquesa, em lágrimas, partiu para a escola escolhida e de lá, tendo rapidamente ultrapassado as suas companheiras, foi rapidamente transferida para uma outra de nível mais elevado. Seja dito em abono de Mr. Swiveller que embora as despesas com a educação da Marquesa o tivessem obrigado a viver um tanto apertadamente durante uma boa meia dúzia de anos, o seu zelo nunca fraquejou e considerava-se suficientemente recompensado com as informações que a directora lhe ia dando todos os meses quanto aos progressos da sua pupila. Esta directora tinha-o na conta de um cavalheiro com gostos literários um tanto excêntricos, e um grande talento para fazer citações.
Em resumo, Mr. Swiveller manteve a Marquesa neste estabelecimento até se tornar numa rapariga de cerca de dezanove anos, bonita, inteligente e de presença agradável, altura em que começou a pensar no que havia de fazer com ela.
Numa destas visitas periódicas, estava ele a matutar neste assunto, a Marquesa veio ter com ele, sozinha, mais sorridente e mais fresca do que nunca. Pensou então, embora não pela primeira vez, que seria delicioso se ela quisesse casar com ele! E então Richard pediu-a em casamento. O que quer que ela lhe tenha respondido, a resposta não foi negativa, e casavam uma semana depois. Isto deu a Mr. Swiveller o ensejo de vir a observar muitas vezes que afinal sempre havia uma noiva guardada para ele.
Havia em Hampstead uma pequena moradia para alugar, que no jardim até tinha um pavilhão de fumo, inveja do mundo civilizado, decidiram alugá-la, e quando terminou a lua-de-mel mudaram-se para lá.
Mr. Chuckster vinha quase sempre ao Domingo passar o dia com eles, aparecendo logo de manhã para o pequeno-almoço, e era ele quem lhes contava as novidades do mundo elegante. Continuou durante alguns anos a ser um inimigo figadal de Kit, defendendo que tivera melhor opinião dele quando ele fora acusado de roubar a nota de cinco libras do que depois de ter sido ilibado, uma vez que a sua culpabilidade teria tido algo de ousado e corajoso, enquanto que a sua inocência era apenas mais uma prova do seu carácter mole e hipócrita. Entretanto, aos poucos, lá se foi reconciliando com ele, e chegou mesmo a honrá-lo com a sua protecção, como a alguém que de algum modo se tivesse regenerado, e merecesse portanto ser perdoado. Mas nunca esqueceu ou perdoou o episódio do xelim, e considerava que se Kit tivesse regressado no dia seguinte para ganhar outra moeda, teria feito muito bem, mas regressar para acabar de ganhar aquilo que já lhe tinham dado, era uma nódoa no seu carácter que nenhuma penitência ou contrição poderiam alguma vez lavar.
Mr. Swiveller, que sempre tivera um temperamento de pensador e de filósofo, ficava por vezes no pavilhão de fumo, absorto em profundos pensamentos, e nestas alturas muitas vezes se punha a pensar no mistério que envolvia a origem de Sophronia.
A própria Sophronia acreditava ser órfã, mas Mr. Swiveller, juntando algumas vagas pistas, pensava muitas vezes que Miss Brass devia saber um pouco mais sobre o assunto. Além disso, lembrando-se do que Sophronia lhe tinha contado, acerca da estranha conversa entre Sally e Quilp, pensava que talvez esta última personagem, enquanto vivo, talvez também pudesse ter ajudado a resolver o enigma, se quisesse. Mas estes pensamentos não o deixavam nem um pouco preocupado, pois Sophronia era para ele a mais alegre, afectuosa e sensata das mulheres, e Dick, exceptuando uma ou outra pândega com Mr. Chuckster, que ela tinha o bom senso de encorajar, em vez de se opor, era para ela um marido dedicado e amigo de estar em casa. E juntos jogaram milhares de partidas de «cribbage». E diga-se também em abono de Dick, que embora nós a designemos por Sophronia, ele nunca deixou de a tratar por Marquesa, e que no aniversário do dia em que ele a descobrira no seu quarto de doente, Mr. Chuckster vinha jantar com eles, e faziam uma grande festa.
Os batoteiros Isaac List e Jowl, e o seu associado Mr. James Groves, de irrepreensível memória, prosseguiram com as suas actividades com um êxito variável, até que o falhanço de certa animosa empresa que levaram a cabo os separou em diferentes direcções, e o longo e forte braço da lei vibrou um duro golpe nas suas carreiras. Isto sucedeu devido à detenção de um seu novo associado, Frederick Trent, que assim se tornou o inconsciente instrumento do castigo deles e do seu próprio.
Quanto a este jovem, passou uma temporada no estrangeiro, sempre a fazer das dele, vivendo de expedientes, ou seja, abusando daquelas faculdades que, bem utilizadas, elevam o homem acima dos animais, mas mal utilizadas o rebaixam muito abaixo destes. Pouco tempo depois o seu corpo foi reconhecido em Paris, por um estranho que estava de visita ao hospital onde os corpos dos afogados ficam à espera que os venham reclamar, e apesar das marcas que lhe desfiguravam o rosto, e que pareciam ter sido causadas por uma qualquer briga. Mas o estranho não revelou a sua identidade até regressar a Inglaterra, e o seu corpo nunca foi reclamado, nem ninguém se preocupou com ele.
O irmão mais novo, ou o cavalheiro solitário, como ficou mais conhecido, quis retirar o pobre mestre-escola do seu exílio, e fazer dele seu companheiro e seu amigo, mas o humilde professor de aldeia sentia-se acanhado com a ideia de se aventurar numa cidade ruidosa, e além disso estava já afeiçoado à sua casa junto ao velho cemitério. Tranquilo e feliz na sua escola e na sua aldeia, e muito ligado ao rapazito que fora o amiguinho de Nell, continuou a viver a sua vida serenamente e em paz, e graças à gratidão do seu amigo, e não vale a pena falarmos muito sobre isso, continuou a ser mestre-escola, mas deixou de ser pobre.
Esse amigo, cavalheiro solitário ou irmão mais novo, como preferirem, tinha um imenso desgosto a pesar-lhe no coração, mas nem por isso se tornou misantropo, ou triste como um monge. Foi correr mundo, sempre amigo dos seus semelhantes. Por muito, muito tempo, o seu maior prazer foi refazer os caminhos que o velho e a criança tinham feito, até onde conseguia reconstituí-los, de acordo com a narrativa dela. Parava onde eles tinham parado, compadecia-se onde eles tinham sofrido, alegrava-se onde eles tinham sido felizes. Nenhuma das pessoas que lhes tinham feito bem escapou à sua gratidão. As duas irmãs do colégio, que teriam sido amigas de Nell, uma vez que também elas não tinham mais ninguém, Mrs. Jarley, Codlin, Short, a todos ele encontrou, e podem crer que até o fogueiro da fábrica não ficou esquecido.
Quando a história de Kit foi divulgada, isso trouxe-lhe um grande número de amigos e de ofertas de ajuda para o futuro. Não tinha a menor intenção, a princípio, de deixar o seu emprego em casa de Mr. Garland, mas este tanto o aconselhou, que acabou por considerar a possibilidade de aceitar no futuro outra colocação. Com uma rapidez que quase lhe cortava o fôlego, foi-lhe oferecido um bom emprego por um dos cavalheiros que o tinham julgado culpado do roubo, e tinha agido acreditando na sua culpa. Graças a esta generosa oferta, a sua mãe ficou também ao abrigo de necessidades, e sentia-se muito feliz por isso. Assim, como o próprio Kit muitas vezes dizia, a grande desgraça que lhe tinha acontecido tinha sido a origem da sua actual prosperidade.
Teria Kit ficado solteiro até ao fim da vida, ou teria casado? É claro que casou, e com quem casaria ele, senão com Bárbara? E o melhor de tudo é que casou tão depressa que o pequeno Jacob foi tio antes que as suas barrigas das pernas, já mencionadas neste livro, usassem calças compridas. E o mais engraçado foi que até o bebé, forçosamente, foi tio. Nem vale a pena descrever a alegria da mãe de Kit e da mãe de Bárbara nessa grande ocasião. Estavam de tal forma de acordo em relação ao casamento, como em relação a muitas outras coisas, que resolveram ir morar juntas, na melhor das harmonias, como boas amigas que eram. E como o Teatro Astley não terá ficado contente, de cada vez que a família toda lá ia, para a geral, uma vez em cada trimestre! A mãe de Kit dizia sempre que a última folga de Kit tinha contribuído para tudo aquilo, e que gostaria de saber o que diria o director se soubesse que eles tinham lá estado.
Quando Kit já tinha filhos de seis e sete anos, havia uma Bárbara no meio deles, e que linda Bárbara ela era! Também havia uma cópia exacta, um fac-símile do pequeno Jacob, tal como era nos tempos remotos em que o levaram a comer ostras pela primeira vez. É claro que também havia um Abel, afilhado do próprio Mr. Garland desse nome, e um Dick, que era o predilecto de Mr. Swiveller. O pequeno grupo juntava-se muitas vezes à noite em volta do pai, e pediam-lhe que contasse a história da boa Miss Nell que morrera. Kit fazia-lhes a vontade, e quando as crianças choravam por a história ter acabado, ele explicava-lhes que ela tinha ido para o céu, para onde iam todas as pessoas boas, e que também eles, se fossem bons como ela, podiam ter esperança de ir um dia também para lá, e de a verem e conhecerem, como ele tinha conhecido quando era rapaz.
Explicava-lhes depois como tinha sido pobre, e como ela o tinha ensinado a ler, o que de outra forma ele nunca teria tido possibilidades de aprender, e contava-lhes como o velho costumava dizer: «Ela está sempre a rir do bom Kit!» E ao ouvirem isto as crianças limpavam as lágrimas e riam também, por saberem que Nell assim fazia.
Por vezes levava-os até à rua onde ela tinha vivido, mas as construções modernas tinham-na modificado de tal maneira que não parecia a mesma rua. A velha casa há muito tinha sido demolida, e no seu lugar existia agora uma avenida rasgada.
A princípio, com a sua bengala, ele ainda conseguia desenhar um quadrado no chão, para lhes mostrar o local onde ela se erguera, mas daí a pouco tempo parecia já não saber exactamente onde era, e já só podia afirmar que tinha sido por ali perto, achava ele, mas que todas aquelas modificações o deixavam agora confuso.
Assim se modificaram as coisas em meia dúzia de anos, assim tudo tem um fim, como esta história que vos contei.
Charles Dickens
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