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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LOLA E ALGUMAS OUTRAS / Régine Deforges
LOLA E ALGUMAS OUTRAS / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Lola ou a garota de meias pretas de Saint-Germain-des-Prés, 13
Lili e os chás-dançantes, 17
Léone ou o buffet da gare de Lyon, 29
Lucette ou a bela leiteira da rua Mouffetard, 45
Laura ou o canteiro de obras da rua de Chazelles, 61
Lise ou uma noite de inverno em Montmartre, 71
Lucienne ou a apaixonada da galeria Vérot-Dodat, 91
Louise ou o bairro de Javel em 1968, 99
Ludovine ou o confessionário de Saint-Sulpice, 113
Lucie ou os portões da praça Dauphine, 125
Lydie ou a casinha do décimo quarto, 137
Léopoldine ou a motorista de Belleville, 155
Laurence ou o músico negro da rua Saint-Denis, 169
Lilas ou o mês de agosto na rua de Buci, 183

Em que armadilha caí no dia em que pensei: "Eu também poderia escrever histórias como essas que lhe agradam..."(*1) Claro, eu sabia que escrever livros eróticos, pelo menos do jeito que eu gosto, era difícil, muito difícil. Mas estou convencida, talvez seja o editor quem fala, de que todo escritor deveria escrever seu erótico.
Com isso ele descobriria muitas coisas sobre si mesmo e sobre seu trabalho. É uma loucura o que consegui descobrir sobre mim ao escrever minhas historinhas.
Como todo mundo, tenho duas ou três fantasias a que me apego, que preservo, que cultivo como um jardim secreto. Gosto de reencontrá-las nos livros, de contá-las a mim mesma à noite, antes de dormir. Quanto a vivê-las... é outra coisa; escrevê-las era

(*1). Início do admirável texto de Pauline Reage: Une filie amoureuse (J.-J. Pauvert).

dar-lhes vida, dar-lhes uma realidade. Tudo isso fez com que, mal um amigo editor me falou: "Você deveria escrever um livro desses", eu dissesse a mim mesma: "Por que não?"
As duas ou três histórias iniciais não me apresentaram muitos problemas, a não ser que eu avançava demais em certas cenas ,deixando-me levar por uma crueza de palavras e de situações que me surpreendia. Escrevia "porco" como outros escrevem "precioso". Era muito excitante escrever; ler, era lamentável. Palavrões não fazem meu gênero. Gosto deles nos livros dos outros, mas aqui, eu não conseguia empregá-los. Então, comecei tudo de novo, vigiando-me; pelo menos, tentei. Mas isso é autocensura, dirá você. Não. É trabalho do escritor tentar aproximar-se ao máximo da forma que ele acha que deve dar à sua obra. Será que eu consegui?
Não sei. Mas ao escrever algumas destas histórias, senti um prazer sensual. Muitas vezes fiquei perturbada pelas aventuras que aconteciam com minhas heroínas, às vezes tive inveja delas. Graças a elas redescobri que Paris era a cidade-mulher por excelência, cujo sexo é apraça Dauphine, que entre ela e as mulheres havia uma cumplicidade evidente, que em nenhum outro lugar como lá uma mulher pode viver sua sexualidade como bem entende, escandalosa ou reservada, perversa ou inocente.
As margens do Sena ainda abrigarão por muito tempo os amantes que nelas vão sonhar, acariciar-se, sem se incomodar com as luzes dos bateaux-mouches que às vezes batem no corpo semidespido de uma garota: "Sempre desejei incrivelmente encontrar à noite, num bosque, uma mulher bela e nua..." Acho que André Breton gostaria dessa beleza extraída da noite.

 

 


 

 


LOLA ou a garota de meias pretas de Saint-Germain-des-Prés

Eu adivinhava, na penumbra, Que tiravas tuas meias.

R-J. Toulet

Lola chegou esta manhã pelo primeiro avião proveniente de Londres. Foi imediatamente para o velho hotel da ma Jacob, de que gosta muito, o hotel d'Angleterre.
Desfeitas as malas, vestidos arranjados, sai para um passeio pelo bairro mais inteligente de Paris. Onde encontrar uma concentração de livrarias, de antiquários,
de galerias tão grande quanto no sexto distrito? Pela rua dos Saints-Pères, sempre esfuziante, ela chega ao passeio à margem do rio. Ainda é muito cedo para os
bouquinistes. Isso não tem importância, ela está em Paris por alguns dias e, depois, o tempo está tão bonito. A doçura da manhã do fim do mês de outubro convida
ao passeio ocioso. O ar tem o frescor exato para tornar a caminhada agradável. Ela se apóia no parapeito da ponte do Carrossel. Como esta cidade é linda! Que harmonia entre o céu, as pedras e a água! Parece que o tempo devia parar agora. Como a mão do homem levou esta paisagem ao mais alto grau de perfeição! Ela sabe- infelizmente - como isso é frágil e basta muitas vezes uma decisão imbecil para estragar para sempre uma cidade. Mas, apesar "dos erros de seus prefeitos, Paris defende-se e, embora mutilada selvagemente em alguns pontos,
consegue preservar para seus apaixonados os encantos que puseram tantos poetas a seus pés. Ao entrar na gare d'Orsay, transformada em sala de leilões(*2), Lola
ri
diante da banalidade dos seus pensamentos. Os quatro pontos de exposição abertos ao público exibem fabulosas coleções de borboletas, desenhos dos séculos XVII XVIII, porcelanas e lacas da China, a biblioteca de um amador, alguns belos quadros do início do século XIX. Hoje são os desenhos que interessam a Lola. Ela veio
a Paris por conta de um rico colecionador inglês. O leilão acontecerá amanhã depois do almoço.

Ela passeia subindo de novo pelo bulevar SaintGermain. Diminui os passos diante do Café de Flore, entra para folhear revistas de arquitetura na Hune, e acomoda-se
no terraço dos Deux Magots, diante da igreja Saint-Germain-des-Prés. Pede um café e se deixa levar pelo bem-estar desse final de manhã de outono.

Ainda há pouca gente no terraço, o lugarzinho está calmo. De repente anima-se. Lola olha a hora no campanário: vinte para o meio-dia, é a saída da escola da rua
Saint-Benoit: a escola Jacques-Prévert.

(*2). Agora em museu.

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Em pequenos grupos, as crianças passam rindo e aos encontrões, felizes com a liberdade reencontrada. Seu olhar pára sobre duas garotas que conversam animadamente.
Uma se parece com todas as outras garotas de doze anos, usando jeans e uma camiseta grande demais para ela, meio descabelada. Mas a outra!... a outra? é uma
fantasia
ambulante! Sua mãe deve ser de uma inocência muito grande, ou de uma enorme perversidade, porque vestir uma criança dessa forma é querer perturbar todos os homens
que sonham olhando a fotografia da filha de Trina Ionesco e todos os que depois de Nabokov, e mais recentemente Louis Malle, se dizem que afinal de contas...
garotinhas... por que não?

Lola percebe um movimento atrás de si, seguido de um pires que rola para perto dela sem quebrar. Apanha-o diante do homem que se levantou, e estende-o para ele.
Ele agradece e volta ao seu lugar. Ela percebe que ele desdobra um jornal. Seus olhos voltam para as garotas. Continuam lá, conversam animadamente. Lola observa
com atenção "apequena fantasia". Seus cabelos louros estão trançados e arrepanhados no alto da cabeça, o que lhe confere um arzinho de madona pré-rafaelita; usa
um vestido preto que lembra os aventais de outrora, atenuado por uma larga gola branca. Suas pernas magras estão envoltas em preto. Lola sente que, como ela, o
homem do pires está ocupado com as duas garotas, adivinha que está atento ao menor movimento da pequena. Inconsciente dos olhares pousados nela, a garota coça
o alto da coxa, rebolando, o que põe em relevo suas ancas

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salientes e magrelas. Agora ela sentou no banco. Lola sente ao mesmo tempo uma grande perturbação e vontade de dar uma palmada no traseiro da garota. Tem a impressão
de ouvir atrás de si uma respiração ofegante. Volta-se a meio. O homem está fascinado pela garota, como se estivesse à espera de um movimento que lhe revelará
alguma coisa íntima. O jornal aberto está pousado em seus joelhos, escondendo uma das mãos. O que adivinha, agita Lola, que cena as coxas e não consegue reprimir
um gemido. Lola sabe que o homem e ela estão pensando a mesma coisa: "Será que ela vai se abaixar?" As garotas deixam o banco e se vão, passando diante das mesas
deles. Ao chegar diante de Lola, a garota deixa cair sua pasta, de onde escapam esferográficas, lápis, borrachas, um compasso, um esquadro, o material completo
de uma aluna perfeita. Ela se inclina rindo e recolhe os objetos que rolam. Lola ouve um roçar de papel, um breve suspiro. Adivinha que para o homem tudo terminou.

Lola deixa o dinheiro de sua consumação sobre o mármore da mesa e levanta-se. O homem também se levanta, o olhar ainda meio vago. Eles se olham e sorriem um para
o outro, cúmplices, sem dizer nada, felizes, e cada um vai para seu lado.

A garota usava mesmo meias pretas.

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***

LILI ou os chás-dançantes


Ah, não reduza as chamas;
Reanime meu coração entorpecido
Volúpia, tortura das almas!

Charles Baudelaire


Lili tem mais de cinqüenta anos. Há vinte anos freqüenta os chás-dançantes, os dancings e outros lugares onde se dança.

O fechamento do chá-dançante do Claridge tinha sido um rude golpe para ela. Há quase quinze anos ela ia lá duas vezes por semana. Gostava daquele lugar de clientela,
pensava, mais chique do que a da Coupole, do Royal-Lieu, do Balaj o -muito acanalhado - e do Tango - popular demais. Às quatro horas da tarde, terças e sextas-feiras,
exceto nos dois meses de verão que passava em Deauville, ela estacionava seu carro nos Champs-Élysées e dirigia-se com passos firmes para o célebre hotel. Sentia
sempre o mesmo prazer ao voltar a entrar no saguão, ao ser cumprimentada pelos porteiros e ascensoristas. Estava em território conhecido. Olhava-se nos vidros da
galeria, orgulhosa de seu talhe ainda jovem e esguio, certa de

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sua elegância e do charme de seus grandes olhos negros, que se tornavam mais sombreados ainda devido ao louro cuidadosamente mantido de sua vaporosa cabeleira naturalmente
ondulada. Caminhava lentamente para a sala de dança, cumprimentando, na passagem, seu par favorito de tango, depois o que dançava tão voluptuosamente a rumba, depois
o general que valsava como seu ançestral deve ter valsado em Viena durante o Congresso, depois o pequeno Georges (era assim que o chamavam há uns quinze anos),
e o belo Victor, de trajes um tanto berrantes, pelo qual todas as damas estavam doidas: Maryse, que não tinha rival dançando o charleston, Roberte, que, diziam,
vivia de seus encantos, Hortense, que lia nas linhas da mão, a Condessa, cuja ira era temida pelo pessoal. Estendendo a mão a um, abraçando outro, Lili chegava
ao vestiário, mantido por Georgette, que comandava com arrogância todo mundo, clientes e auxiliares. Georgette estava lá desde 1933. Ah, ela tinha visto coisas!
Ninguém precisava contar-lhe! Conhecia as alegrias e as desgraças de quase todos os freqüentadores, ou porque a tinham tomado como confidente, ou porque tinha
surpreendido uma conversa. Ela servia também de caixa de correio e ajudava de boa vontade os velhos clientes momentaneamente sem dinheiro.

- Boa-tarde, Georgette, como está a pressão hoje? • - Sempre muito alta, madame Lili. E a senhora, sua circulação?

- Vai bem, vai bem.

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Antes de entrar na sala, Lili sempre verificava a maquilagem e o penteado. E era de cabeça erguida, com um sorriso nos lábios, que ela atravessava a soleira.

A orquestra tocava a introdução. Raoul, o maitre d' Miei, aproximava-se de Lili:

- Boa-tarde, madame Lili. A senhora está com ótima aparência... Seu vestido é de uma elegância!... Reservei uma mesa...

Há quinze anos, duas vezes por semana, ele dizia a mesma coisa. No primeiro ano aquilo a deixava irritada; agora, fazia parte de um ritual que a menor mudança
perturbaria.

Lili ocupava seu lugar, na beira da pista, não muito longe, nem muito perto da orquestra, pedia um chá da China, instalava-se o mais confortavelmente possível na
cadeira dourada e, apoiando-se negligentemente no tampo de mármore da mesa, ficava olhando ao redor.

A grande sala enchia-se pouco a pouco, velhos conhecidos vinham cumprimentá-la. Poucas caras novas. Ainda não seria desta vez que se deixaria seduzir, pensava
ela, rindo. E, no entanto... quantas aventuras vivera naquele lugar aparentemente tão distinto, oh! não tantas como em outros lugares, mas mesmo assim! ... Lembrava-se
emocionada do dia em que um jovem ator, então desconhecido, hoje famoso, a arrastara, após um slow nos limites da decência, para o elevador, onde lhe tinha apertado
os seios e o sexo com violência. A seguir, para a rouparia do último andar do hotel onde, apoiando-se na mesa de passar

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roupa, levantando sua saia e tirando sua calcinha, a tinha penetrado com um vigor que lhe arrancara um grito. Para maior comodidade, sem dúvida, ele a tinha deitado
segurando as nádegas dela. Enquanto fazia amor, ele a insultava. E ainda agora a recordação daqueles palavrões fazia com que apertasse as coxas voluptuosamente.
Ele a tinha acompanhado de volta ao seu lugar, beijara-lhe a mão e se fora. Tinham-se encontrado de novo duas ou três vezes e, a cada vez, tinha feito amor às
escondidas e apressadamente, ou nos corredores do hotel, ou de pé num elevador, ou embaixo de uma mesa da sala de conferências, em cima do enorme tapete verde.
Lili tinha receio de ser surpreendida e, ao mesmo tempo, isso aumentava seu prazer. Depois, ele tinha desaparecido. Ela só voltou a vê-lo nas telas.

Mas aquele tempo tinha passado. Desde o fim da guerra ela tinha visto desaparecerem muitos desses locais dedicados à dança e aos encontros fortuitos! Existiam menos
de dez. Por quanto tempo ainda? E no entanto... Esses locais deveriam ser preservados, declarados de utilidade pública. Eram necessários tanto para os ricos como
para os pobres, para os jovens e para os velhos, para os homens e para as mulheres, para os que tinham muitas diversões e para os que não tinham o suficiente,
para os que vinham para dançar e para os que só vinham para paquerar. Eram o refúgio de todos os solitários, que sentiam falta de uma companhia, nem que fosse
só enquanto durava uma dança. O militar ia lá de pileque, a

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empregadinha ia procurar um namorado, o aposentado, um pouco de juventude, o provinciano, o ar de Paris, a dama em idade madura, um gigolô, e este, uma cliente,
o representante comercial ia passar uma hora agradavelmente entre dois encontros, os comerciantes, um instante de relaxamento depois de uma semana atarefada, o
funcionário, esquecer as chateações do chefe de repartição. Todos, quando entravam no Bal de la Marine, na Boule Rouge, no Tango, na Coupole, no Balajo, no Java,
no Tahiti, no Bal Nègre, no Mikado e em outros locais, durante uma hora ou duas livravam-se de suas preocupações. Tinham a impressão, ao som do acordeão ou do
violino, que sua pobre vida, tão monótona, tão banal, ia transformar-se. Durante a execução de um tango cantado por um péssimo imitador de Carlos Gardel, eles se
viam no pampa ou nos bairros boêmios de Buenos Aires, rainha da pradaria ou rei do tango. A valsa alegre transformava a costureirinha numa jovem vienense arrebatada
por um belo oficial. A rumba evocava belos rapazes morenos, de ancas estreitas e vigorosas, modeladas porcalças insinuantes, e lindas moças, tão lascivas que bastava
um simples gesto para fazêlas deitar-se "sobre a areia mais doce do que um leito". A fava tornava o mais insignificante empregado de banco tão rabugento e brutal
como um apache que poderia ter saído de um romance de Charles-Henry Hirch, e a funcionária dos correios transformava-se numa gigolette que ninguém passava para
trás. Ah, que dizer dos estragos de La java bleue, nos bailes de sábado à noite?

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Durante um passo doble, a gorda Germaine se transformava em andaluza e o pequeno Riri tinha os encantos de um toureiro.

Mas a rainha das danças, a que tinha unanimidade e reunia na pista com a iluminação repentinamente reduzida, jovens e velhos, quem sabia dançar e quem não sabia,
era o slow. Lá, o que importava não era a dança, nem a habilidade do parceiro, mas sua presença física. Bastava mexer-se um pouquinho. Aliás, a afluência era
tamanha que não era possível fazer figurações. Não se tratava de passos complicados, de dançarinos a evitar, de ritmo a seguir, mas apenas do face-a-face de duas
criaturas que não se conheciam, unidas diante dos olhos de todos numa cópula coletiva, durante alguns minutos. Todos ficavam atentos: o homem que pouco a pouco
aperta seu braço, a mulher que espreita uma reação íntima e que depois, tendo-a constatado - com satisfação -, afasta-se com ar de estar chocada ou, ao contrário,
aproveitando-se da impunidade da dança e do lugar, esfrega-se naquela saliência com ares de que nem se importa com isso. O parceiro, encantado, acentua sua pressão.
Não é raro que a dama sinta um estremecimento do objeto, depois mais nada, quando não é o ar falsamente desenvolto do cavalheiro que, de repente, mal a dança terminou,
desaparece
na direção das toaletes.

É sempre durante um slow que a gente combina um encontro num hotel vizinho. Lili nunca agiu de outra forma e, conforme o lugar, consegue prender na sua rede,
por uma hora ou duas, o amante ideal,

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seja ele desinteressado ou não. O fato de algumas vezes ter pago os favores de seus amantes nunca lhe causou o menor problema e, em certos casos, ela achou isso
mais agradável e mais confortável. Não há necessidade de fingir paixão, tudo está claro: "Eu pago, você beija." E depois, isso às vezes ajuda rapazes muito gentis!
Onde ela tinha lido que o autor do Con d'Irene tinha ganho a vida, durante um tempo, em chás-dançantes? Mas, com maior freqüência, Lili não precisava abrir seu
porta-moedas para ser amada. Não faltam cinqüentões, nem mesmo alegres sexagenários, que seu cabelo louro, seus seios fartos e suas pernas finas por si só atraem.
Não que Lili procure sistematicamente uma aventura cada vez que vai dançar, não, isso faz parte das coisas possíveis, desejadas mesmo. Isso acrescenta um toque
picante à dança banal: "Com este ou com aquele?O magro alto ou o pequeno atarracado? O jovem cheio de espinhas ou o cavalheiro de ar importante, que tenta sem
sucesso encolher a barriga?" Ela faz disso um jogo.

Hoje ela está com um humor divertido. Depois de um almoço bem regado na Coupole e de um filme não muito ruim num cinema do bairro, ela desce cantarolando a escada
da famosa cervejaria que leva ao dancing. Por mais que seja freqüentadora habitual do lugar, sente um leve aperto no coração ao entrar no enorme salão: mulheres
sós, não muito jovens, muito bem penteadas, estão sentadas muito eretas diante de uma menta com água ou de um chá, esperando que a orquestra comece. Para Lili,
aí está a

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própria imagem da solidão: aquelas mulheres esperando. E a cada vez, ela tem um movimento quase de revolta, um desejo de fugir diante da idéia de juntar-se a elas.
Daquelas mulheres sentadas desprende-se tamanha tristeza, tal submissão, que mais de uma vez ela teve vontade de pegá-las pelos ombros e sacudilas. Mas não fez
isso, lembrando-se da resposta que há alguns anos recebera de uma mulher morena, nem bonita nem feia, nem jovem nem velha, a quem tinha perguntado:

- Por que é que você vem aqui? - Onde quer que se vá quando se está só, se tem vontade de dançar e se tem a minha idade?

Isso tinha sido dito com tal amargura, que Lili não tinha insistido.

Para afastar essa lembrança sinistra, Lili pede um uísque. Pouco a pouco a sala se enche. Chega a primeira orquestra: é a dos tangos e das danças mais lentas.
Os músicos usam camisas brancas, calças pretas e cintos de flanela vermelha (pelo menos Lili gosta de pensar que é flanela vermelha). A orquestra se acomoda,
toca o prefixo e ataca uma ária arrastada, comprometida com o foxtrote, a marcha e a rumba. Os homens levantam-se ao mesmo tempo e começam ao redor da sala, entre
as mesas, uma espécie de balé que consiste em observar as fêmeas possíveis e exibir-lhes sua imponência de macho. Uma a uma, as mulheres se levantavam. Lili recusa
todas as propostas. Ela gosta de aguardar uma ou duas danças para avaliar as qualidades dos dançarinos. Nada de muita excitação.

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- Dança, madame? Uma voz apenas perceptível murmurou o convite. Ela levanta a cabeça e não acredita nos seus olhos. De pé, diante dela, muito delicado, com uma
pele fresca de garota, cabelos aparados de militar em licença, está um rapazinho acanhado esperando sua resposta.

Levantando-se, ela sorri gentilmente. Na pista, ele não é tão acanhado e segura sua parceira com toda a autoridade de um homem maduro. Lili deixa-se levar. Os
cabelos muito curtos do rapaz ainda cheiram a xampu, que se junta ao odor de menino limpo que ele exala. Ela se comove com o corpo esguio e nervoso que se encosta
contra o dela. O frescor da sua pele lhe dá vontade de mordê-lo. Ela não resiste ao desejo de prender em sua mão a nuca raspada. Ao contato, o rapaz faz um movimento
rápido. Achando que não lhe agradou, ela retirou a mão.

- Não, não é isso, a senhora me fez cócegas... Mas eu gosto muito - acrescentou um momento depois.

Ela põe a mão de volta e seus dedos percorrem a nuca. Ele resmunga de satisfação.

Entre uma dança e outra, eles não voltam ao seu lugar, ficam de pé na beira da pista, conversando enquanto esperam o reinicio. Quando a orquestra foi substituída,
saíram de comum acordo.

Ela faz o que jamais tinha feito, convida-o a á à sua casa beber alguma coisa. Ele aceita.

No segundo uísque, ele se atira em cima dela. Ela o afasta, rindo, mas ele volta como um cãozinho.

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Então, ela não resiste mais aos beijos gulosos e desajeitados do rapaz, ajuda-o quando ele tenta desabotoar seu sutiã. Ele enterra a cabeça entre os seios meio
pesados, mas muito doces, de Lili. Por sua vez, ela o despe. Seu sexo ergue-se belamente em meio aos pêlos ruivos. Seu corpo magro é ainda o de um adolescente
e sua pele... ela não pára de aspirar, de cheirar nos cantos mais escondidos, deliciada, como uma gata inspecionando seus filhotes. O garoto, tão doce, tão miúdo,
tão delicado, de sexo pequeno, tão orgulhoso, tão arrogante, parece um bebê. Se ele fosse mais velho, ela lhe diria isso rindo, mas ele é tão jovem. A menor alusão
à sua idade pode irritá-lo e fazê-lo fugir. E ela não quer isso. Eles fazem amor, ela lhe faz amor, docemente, e o garoto, confiante, deixa-se levar até o prazer.

Privilégio dos jovens, ele manifesta de novo um desejo evidente. Desta vez, Lili pensa mais em si mesma e sente um prazer tão confundido com ternura que lhe vêm
lágrimas aos olhos.

Após esse segundo assalto, o pequeno adormece. Lili não consegue fugir de uma emoção que ela acha deslocada, incongruente, idiota. Que é que ele tem de diferente
dos outros jovenzinhos que encontrou no decorrer dos anos? Ao acordar, certamente vai pedir dinheiro. Quando se tem vinte anos, só se vai aos dancings abertos
à tarde com uma finalidade: bajular-uma coroa, que pagará por acreditar que ainda é desejável. Lili censura-se por esses pensamentos maldosos e principalmente
por estar sentindo ternura por aquele gigolô.

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O gigolô abre os olhos, sorri e, puxando Lili, prova-lhe mais uma vez que ela é desejável. "Quer retribuir-me pelo meu dinheiro", pensa, antes de entregar-se
ao prazer que toma conta dela.

Quando sai do banheiro, penteada, levemente maquilada, envolta num gandoura de lã branca, o rapaz já está vestido. Ela remexe na sua bolsa e lhe estende várias
notas de cem francos. O rapaz recua com um gesto de raiva, corando.

- Por quem me toma? Ora, ele fala como uma mulher que é abordada na rua.

- Pegue, para comprar cigarros. Ele se aproxima, quase encostando, e olha para ela indignado:

- Eu é que deveria pagar-lhe. Mas não tenho meios.

Inclina-se, beija-lhe a mão e sai. Ela fica lá, como uma idiota, as notas na ponta da mão estendida. Queria correr atrás dele, pedir-lhe perdão por sua falta
de jeito. Dizer-lhe que gostaria de vê-lo de novo. Vai à janela, vê o rapaz atravessar a rua e desaparecer na boca do metrô.

- Obrigada, garoto - murmura. Põe as notas de novo na bolsa, senta-se diante da penteadeira e se olha longamente, sem indulgência, sem piedade. Uma lágrima escorre
no seu rosto, deixando um traço claro sobre a maquilagem.

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***

LÉONE ou o buffet da gare de Lyon


Descobrimos muito tarde que a maravilha está no momento.

François Mitterrand


Tudo começou no restaurante da gare de Lyon, o Train Bleu.

As férias de Natal estavam começando. Os acessos à estação eram invadidos por uma multidão apressada, que se acotovelava carregada de valises, sacos e pares de
esquis. Léone, que tinha ido acompanhar sua mãe e seus filhos, estava pagando a corrida do motorista de táxi, que resmungava contra os engarrafamentos que acabavam
de enfrentar.

- E eles se queixam do preço do combustível, mesmo a dez francos o litro não deixariam de encher o tanque... Ah, realmente só a aposentadoria!

Léone deu-lhe uma boa gorjeta para acalmá-lo e ver um sorriso aparecer no rosto cansado do velho.

- Obrigado, jovem senhora. Boa viagem. Sua mãe tinha conseguido encontrar um carregador,

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as duas crianças esperavam, calmas, diante da promessa de jantar no restaurante antes de subirem para o vagão-leito. Elas mereciam, tão excitadas estavam
por essa ruptura com a calma de sua vida cotidiana.

Seguiram o carregador até o elevador que os levou ao restaurante. Ao passar sob o relógio, seu filho lembrou-se de um episódio de Adèle Blansec, de Tardi, que
o impressionara consideravelmente. As duas crianças ficaram boquiabertas com a suntuosidade barroca do lugar. Aprofusão de dourados, as paredes e o teto pintados
com cenas coloridas, os nus, o aspecto teatral das pesadas forrações de veludo grená, carrinhos aquecidos, em prata cuidadosamente polida, desses que levam uma
variedade impressionante de doces, o que acabou por seduzi-los completamente.

O maitre instalou-os confortavelmente e trouxe-lhes o menu. Sophie, do alto dos seus cinco anos, declarou em tom decidido que não tomaria sopa, queria escargots.

- À noite é muito pesado - diz a avó. - Não faz mal, mamãe - diz Léone -, estamos em férias.

Sophie lança um olhar cúmplice e agradecido à mãe. Quanto a Jacques, mais velho, ele escolhe um salsichão quente e um chouriço "com um montão de batata frita",
esclarece. Léone e sua mãe, mais razoáveis, contentaram-se com um consommé e um grelhado, acompanhados por um honesto bordeaux.

Feito o pedido, o vinho servido em seguida,

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Léone se concede um momento de descontração, acendendo um cigarro e tomando lentamente um copo de vinho.

Dois homens jovens, ao redor dos trinta, com expressão feliz, bonitos, carregados de bagagens, foram sentar-se no outro lado do corredor, escolheram o menu e fizeram
seu pedido. Depois, como Léone, acenderam um cigarro e olharam em volta. Ambos a notaram ao mesmo tempo e tiveram o mesmo sorriso alegre e maravilhado. Léone
também esboçou um sorriso. Ela tinha consciência de que estava bonita envolta em lã negra e macia, que punha em destaque sua pele clara e seus cabelos de um louro
acinzentado. Voltou a cabeça, mas continuou a sentir o olhar dos dois homens sobre ela. Seu filho também percebeu o jeito deles e disse num tom ciumento de proprietário:

-Por que é que aqueles dois estão olhando para você?

- É porque acham que mamãe é a mais bonita - disse Sophie, agarrando-se à mãe como se quisesse mostrar que Léone era dela e de mais ninguém. Vendo isso, Jacques
levantou-se e foi, por sua vez, abraçar a mãe. Ela os apertou contra si, rindo, feliz com o contato de seus corpos jovens, tão cheios de vida.

- Crianças de sorte - murmurou em tom alto um dos homens.

Era uma coisa banal, mas o som da voz agradou a Léone.

Os garçons trouxeram os pratos. Jacques voltou ao seu lugar e atacou guloso seu salsichão quente,

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enquanto Sophie se atarefava com a pinça de escargots. Durante alguns minutos, comeram em silêncio.

De tempos em tempos, Léone levantava a cabeça e olhava para a mesa vizinha. A cada vez, ela surpreendia o olhar de um ou outro dos dois amigos pousado nela. Pouco
apouco, sentiu-se invadida por uma perturbação crescente. "Que pena eu não estar sozinha... os dois são bonitos, seria difícil escolher... mas, escolher por quê?...
Sou uma perfeita idiota, de qualquer modo, eles vão partir... Bem que eu gostaria de partir também!... E, no entanto, é bom passar alguns dias sozinha em Paris...
É estranho como esses rapazes me agradam... É recíproco, eu também agrado a ambos... que fazer?... Bem que gostaria de voltar a vê-los... saber onde moram... mas
não posso dirigir-lhes a palavra, principalmente diante de mamãe e das crianças... Oh, a vida é malfeita!..."

Pegou um cigarro. Uma chama brilhou. Um dos homens lhe estendia o fogo. Ela acendeu o cigarro e agradeceu com um gesto de cabeça.

Tiraram os primeiros pratos e trouxeram as carnes. Cada vez mais perturbada, ela respondia com monossílabos às perguntas das crianças. Sophie puxou-a pela manga:

- Você não está me ouvindo, em que está pensando?

Léone abraçou a menina. - Pensava que vou ficar triste sem você. Esforçou-se por mostrar que estava interessada nas perguntas de sua mãe, que se preocupava em
saber como a filha passaria as festas, e pelas de Jacques, que

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se perguntava se teria o mesmo monitor do ano passado, e se poderia ir ao cinema à tarde.

Novamente, seus olhos encontraram os dois homens. Desta vez, sustentou o olhar deles. Lia ali um desejo semelhante ao seu, imediato, brutal e transparente. Sentiu-se
corar e virou a cabeça. Apresença deles tornava-se cada vez mais forte, as batidas do seu coração aceleraram-se, suas mãos ficaram úmidas, parecia-lhe que a parte
inferior de seu corpo se transformava em chumbo. Lampejos de lucidez faziam com que se achasse louca, doente, maníaca sexual. Pegou outro cigarro e quebrou três
palitos de fósforo, um atrás do outro, sem conseguir acendê-lo. O que já lhe havia acendido o outro cigarro levantou-se, um leve tremor fazia a pequena chama
vacilar.
Léone apoiou sua mão na do rapaz para levá-la à altura do cigarro. A chama do isqueiro apagou-se com a respiração de Léone.

- Perdoe - disse, erguendo os olhos para ele. Sua emoção chegou ao auge diante do rosto pálido e comovido do homem. Este acendeu o isqueiro novamente. Léone aspirou
a fumaça profundamente, com verdadeiro alívio.

- Obrigada. Ele voltou ao seu lugar, disse algumas palavras ao amigo, que sorriu olhando para ela... A chegada do carrinho de doces foi uma festa. As crianças
queriam de tudo: musse de chocolate e babá ao rum, ovos nevados e uma torta de framboesa, um sorvete de cassis e um bolo de chocolate, merengues glaçados e uma
torta de maçã; não conseguiram decidir-se, tal

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como seus dois vizinhos, que apanharam duas sobremesas sob o olhar admirado das crianças. Léone pediu um café, o que lhe valeu, da parte dos dois amigos, comentários
divertidos a respeito das mulheres que querem manter alinha. Embora não passassem de banalidades, Léone ria, feliz por esse contato fortuito que terminaria na
plataforma da estação.

Aproximava-se a hora. Léone pediu a conta e um carregador. Eles se ofereceram para levara bagagem, mas quando viram a quantidade, desistiram, rindo.

-Para onde vocês vão? -perguntou um deles. - Para Morzine - disse Sophie. - Que sorte, nós também vamos - disseram, numa sintonia tão perfeita que os três explodiram
numa gargalhada.

A mãe olhava para Léone com ar de reprovação, e as crianças, com ar ciumento. Chegaram diante de seu vagão-leito. O fiscal abriu a porta de separação entre a cabine
da avó e a das crianças. Estas passaram de uma à outra, gritando e pulando. Léone foi para o corredor e avistou os dois homens, no outro extremo do vagão, vindo
na direção dela. A mesma emoção sentida no restaurante voltou a invadi-la, agora com mais violência. Ela foi forçada a admitir que estava desejando os dois, que
era o desejo conjugado de ambos que excitava o seu. "Totalmente depravada", pensou. Felizmente, tudo acabaria ali: eles em Morzine ou em outro lugar qualquer,
ela em Paris. Uma pontada de tristeza tomou conta dela ao pensamento de ficar sozinha em Paris, numa Paris cinzenta, fria e úmida do mês de dezembro, enquanto

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os outros partiam rumo à neve e às férias, talvez ao sol. - Estávamos procurando você... Quer vir
tomar uma taça de champanha conosco? -Não, obrigada, não é possível, logo o trem vai partir.

- Mas temos muito tempo até Morzine. -Eu não vou, só vim acompanhar as crianças. - Oh, não... A conjugação perfeita com que falaram, sua expressão tão violentamente
desapontada comoveram Léone de tal forma, que ela se escondeu atrás do riso.

-Não façam essa cara, parece que acabaram de perder seu melhor amigo.

- É quase isso - murmurou o mais moreno. - Venha conosco - disse o outro -, é bobagem passar o Natal em Paris.

- Isso mesmo, venha, por que não? - Mas não posso, meu trabalho... - Você telefona amanhã para dizer que está doente.

Sophie tinha acompanhado toda a conversa com uma expressão séria, olhando ora para a mãe, ora para os rapazes. Segurou a mão da mãe.

-Eles têm razão, seria muito bom se você fosse conosco. -Você sabe que não é possível, querida. Vá ver
sua avó.

-Venha, gostaríamos tanto de conhecê-la melhor. Se não puder ficar as férias todas, venha por dois ou três dias.

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- Não, juro que não posso. E depois, eu não teria nada para vestir. Não posso ir para a neve com estes trajes.

Com um gesto de mão, mostrou-se: seus sapatos pretos de salto não poderiam substituir as sólidas botas de esquiar, e suas finas meias cinza-escuras, o macacão
impermeável; quanto às luvas de pelica, ficariam rasgadas ao primeiro contato com a neve.

-Não tem importância, a gente compra lá o que lhe falta.

Ela não respondeu. Os três se olharam em silêncio, completamente tomados pelo desejo de jogar-se uns nos braços dos outros, acariciar-se, amar-se. Léone teve uma
reação de raiva: "Eles têm razão, que é que eu tenho de importante para fazer em Paris? Ia ficar porque não estava com vontade de viajar com mamãe e as crianças...
Mas... partir assim, com pessoas que a gente nem conhece?... Tudo o que sei sobre eles é que estão loucos para me beijar ... me deixam nervosa com isso... e depois,
que é que mamãe iria pensar se eu ficasse sem mais nem menos... ela não é burra... e as crianças? ... oh, a chateação das crianças... se eu fosse?... não posso,
não estou com minha escova de dentes... não poderia tirar a maquilagem... estaria uma beleza amanhã de manhã... mas, eles são tão atraentes... por que não ceder
ao desejo deles... e ao meu... então?..."

- Madame, deve descer, o trem vai partir. O fiscal desviou-a de suas reflexões. Ela acenou despedindo-se dos dois homens e entrou no compartimento para abraçar
a mãe e os filhos. Como a cada

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partida, Sophie derramou algumas lágrimas, que logo secaram com os beijos de Léone. Jacques quis abrir a janela que dava para a plataforma, a mãe dissuadiu-o
por
causa do frio. Abraçou todo mundo mais uma vez e desceu do trem. O fiscal fechou a porta atrás dela.

Como a maioria das pessoas, ela detestava despedidas naplataforma da estação, davam-lhe vontade de chorar. Sem esperar a partida do trem, atirando os últimos beijos
com aponta dos dedos, dirigiu-se para a saída. Passou na frente do vagão dos dois amigos, que estavam de pé sobre o estribo.

- Venha, você pode voltar amanhã. Ela parou, o corpo inclinado na direçãõ deles, dividida entre o desejo de pular para o trem e a preocupação com as conveniências.

- Gostaria muito, mas... O trem teve um leve sobressalto e arrancou lentamente. Ela movimentou-se como se fosse subir. Maquinalmente, caminhava ao lado dele, como
alguém que quer retardar o momento da ruptura com um ser amado que parte para uma longa viagem.

- Venha... Ela se sentiu erguida, ou melhor, puxada por duas mãos fortes e se viu no trem, que tomava velocidade, entre os dois homens, que olhavam para ela com
um misto de satisfação e impaciência.

-Mas é um seqüestro... vocês estão loucos! Mas o som de sua voz, os olhos brilhantes e alegres, a boca entreaberta e úmida desmentiam suas palavras.

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Devoravam-se com os olhos, sem dizer palavra, sem um gesto, encantados por estarem juntos, envolvidos pelo enorme desejo que os reunia.

O encanto não se quebrou com a chegada do fiscal, que não pareceu surpreso por ter uma passageira extra. Havia uma cabine vazia. Léone quis pagar sua passagem,
eles não deixaram. Pediram mais uma garrafa de champanha.

- Para comemorar nossa viagem. Eles se apresentaram: Gérard, Dominique. Ela só guardou os primeiros nomes.

- Eu sou Léone. - Bebamos à saúde de Léone. Ergueram os três copos. O champanha estava morno, mas não tinha importância: era apenas o símbolo do acordo entre
eles.

Debruçados na janela do corredor, eles olhavam em silêncio, sem prestar atenção, o desfile de prédios escuros, furados aqui e ali pela luz das janelas, dos tristes
arrabaldes parisienses. Gérard passou o braço ao redor da cintura de Léone, enquanto Dominique a segurava pelos ombros. Sem vergonha, nem falso pudor, Léone se
entregava ao calmo bem-estar que a invadia junto com o calor dos dois homens. Ficaram muito tempo assim, saboreando a certeza dos prazeres que estavam por vir.
Logo, as luzes se espaçaram e só restava o vazio escuro dos campos.

Entraram num dos seus compartimentos e ajudaram Léone a tirar seu manto. Ela ficou de pé, os braços pendentes, confiante, calma. Apenas sua respiração estava um
pouco
acelerada. Dominique a

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puxou para si, beijando docemente seu rosto, seu pescoço. Ela sentiu o corpo dele retesar-se contra o seu, ofereceu os lábios e o primeiro beijo foi tão voluptuoso
que ela pensou que ia desmaiar de felicidade. Gérard virou-a para si e, por sua vez, beijou-a com uma voracidade brutal. Ela gemeu. Enquanto Gérard prolongava
seu abraço, sentiu que Dominique fazia deslizar o fecho do seu vestido. Sem interromper o beijo deles, fez os braços da jovem mulher escorregarem para fora do
vestido, que caiu molemente aos seus pés. Pisou em cima dele e ficou com uma combinação curta de seda de um cinza clarinho, debruada com renda ocre. As mãos dos
dois homens alisaram aquela doçura. Esfregaram-se nela e ela sentiu contra o ventre e as nádegas o sexo enrijecido de ambos. Ela se remexeu para senti-los melhor.
Parecia-lhe que estavam ficando mais duros. Gérard deixou sua boca e, sentando-se no beliche, baixou as alças da combinação e do sutiã de Léone. Os seios apareceram,
firmes, esplêndidos. Gérard enterrou o rosto naquela massa perfumada. Recuou para apreciá-los melhor. O balanço do trem agitava-os, dando-lhes vida própria, os
bicos rijos pareciam pedir beijos e mordidas.

- Como você é bonita! Léone puxou a cabeça de Gérard contra o peito. Ele abocanhou gulosamente um bico, ela deu um grito.

- Oh, perdão, machuquei você? - Não, não, continue. Gérard voltou à sua carícia, a que Léone se abandonou, saboreando.

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Dominique contemplava o espetáculo da boca de Gérard passando de um seio a outro, enquanto suas mãos apertavam com força aquele peito magnífico. Ele tirou a combinação
já amassada e a calcinha já úmida. Levou-a ao nariz. Léone estava nua entre os dois homens ainda vestidos, conservando só a cinta-liga, as meias e o sapato. Dominique
não agüentou mais. Tirou seu sexo para fora e, arqueando Léone contra ele, segurando-a pelas ancas, penetrou nela. Ela fingiu que ia escapar, mas o rapaz segurou
firmemente sua presa, penetrando-a ainda mais. Seu sexo devia ter um tamanho respeitável, porque ela se sentiu invadida como nunca tinha sido antes. Ela se mexia
devagar, murmurando:

- Eu te amo, você é gostoso. A boca e as mãos de Gérard machucavam ainda mais os seios dela, o sexo de Dominique ficou cada vez mais veemente, um prazer forte,
selvagem, tomava conta de Léone, que gozou gritando quando Dominique se derramou em seu ventre. Gérard arrancou-a do corpo de seu amigo e deitou-a no beliche.
Tirou freneticamente todas as suas roupas, que caíram esparramadas pela cabine, e atirou-se sobre Léone. Possuiu-a sem a menor consideração. Ela nem teve tempo
de espantar-se por sentir novamente prazer, que gozaram juntos, com um mesmo grito.

Léone achava que o tempo tinha parado. Seu corpo, feliz, flutuava. O balanço do trem completava a ilusão.

- Estou com sede - murmurou.

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Dominique lhe deu um pouco de champanha quente, que ela bebeu num gole só. Ele lhe passou uma toalha molhada pelo corpo, o que ela agradeceu, e ajudou-a a tirar
a cinta-liga e as meias. Ele, por sua vez, despiu-se.

Gérard resmungou. Estava visivelmente com dificuldades de ereção, e Léone e Dominique puseram-se a rir.

-Tome, um pouco de champanha lhe fará bem. Ele pegou a garrafa das mãos de Dominique e bebeu no gargalo. A espuma escorreu de sua boca ao longo do pescoço e perdeu-se
entre os pêlos do peito. Ele arrotou, desculpando-se, acendeu um cigarro, que estendeu a Léone, e ofereceu um a Dominique. Recostados no beliche, as pernas pendentes,
encostados um no outro, fumaram em silêncio.

Foi Dominique quem interrompeu o devaneio, deslizando para o chão entre as pernas de Léone. Sua língua quente e hábil conseguiu tirá-la de seu agradável torpor.
Ela resmungou, apertando a cabeça do rapaz com força contra seu ventre. Com a mão livre, procurou o sexo de Gérard que, sob seus dedos, despertou. De joelhos sobre
o beliche, ele aproximou seu sexo da boca de Léone, que o lambiscou como um gato lambendo leite. Dominique a fez descer do beliche e, levantando-a, enfiou-a no
seu membro. Gérard, maravilhado, acariciava-se lentamente. Os três gozaram ao mesmo tempo.

Léone adormeceu em meio a uma frase. Mas seu sono não durou muito. Foi acordada por um sexo se remexendo nela. Mais tarde, um dos rapazes a sodomizou.

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Ela não teve tempo de pensar e já estava gozando de novo, prolongadamente.

Ao amanhecer, quando o fiscal bateu à porta para anunciar a chegada à estação de Morzine, parecia-lhe que nunca mais conseguiria ficar de pé, de tanto que seu
corpo
estava dolorido. Dolorido, mas feliz. Deu um grito de horror quando se olhou no espelho. As olheiras iam até a metade do rosto, os lábios estavam inchados de
tantas mordidas e beijos, os cabelos revoltos lhe davam a aparência de uma bacante.

- Não posso sair assim. Estou com uma aparência de quem fez...

- Sim - disseram os dois em coro, rindo. Ela ergueu os ombros e tentou mostrar-se apresentável. Seus companheiros não estavam com melhor aparência. Quando ela acabou
de vestir-se, eles a puxaram para si.

-Você está arrependida? Foi a primeira vez que fizemos amor com a mesma mulher, juntos.

- Eu também, foi a primeira vez - disse ela, meio envergonhada.

Dominique levantou-lhe o rosto. - Principalmente, não se deve ter vergonha. Sentimos amor à primeira vista por você e você por nós, é maravilhoso.

Ela deu um beijo no rosto dos dois, como se faz com amigos de quem se gosta muito, ou com os filhos.

- Sim, foi maravilhoso. -Então você fica? - perguntou Gérard. -Não, não posso. Vou alugar um táxi até Genebra e de lá pego o primeiro avião para Paris.

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Eles insistiram, mas entenderam que sua decisão fora tomada.

- Vigiem a saída de mamãe e das crianças, não gostaria que me vissem neste estado.

Gérard ficou à espreita, enquanto Dominique e Léone continuaram encostados, de mãos dadas. Léone sentia que poderia ligar-se àquele rapaz carinhoso, gentil, de
belos olhos azuis, que fazia amor tão bem. Mas sua vida já era tão cheia que não havia lugar para uma nova história. Ela se levantou.

Gérard voltou, tinha conseguido um táxi e vira a família partir em outro.

- Tem certeza de que não quer que a acompanhemos até Genebra?

- Não, não vale a pena, não gosto de despedidas.

Entrou no táxi, voltou-se para um último aceno. Dominique corria atrás do carro. Ela percebeu que estava gritando: "Seu nome, seu endereço." Virou-se, sorriu
e acomodou-se
confortavelmente. Dentro do carro estava quente, a paisagem coberta de neve era linda ao amanhecer, o motorista dirigia bem e não falava. Imagens da noite voltaram-lhe
à memória, dando-lhe um arrepio de prazer. Sentia-se como no início dos tempos: sem pecado. Dormiu até Genebra, com um sorriso de beatitude nos lábios.

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***

LUCETTE ou a bela leiteira da rua Mouffetard


Minha boca toma teus seios brancos
como pequenos queijos redondos
Dará a honra abjeta de chupões sem veneno.

Apollinaire


- Está fresca, está fresca, está fresca... - Vamos, senhoras, dois por cinco francos, dois...

- Oh! Como está bonito, como está bonito... -Pegue, senhorita, minha chicória é lindacomo seu rosto.

- Quem quer meu belo peixe?... Vejam estes olhos... parece que acabou de ser pescado...

- Eis uma carne bem vermelha para dar forças ao seu namorado, minha bela.

-Veja, senhor, meu belo camembert, feito com carinho... macio e delicado...

- Não tão macio e delicado como você, mam' zelle Lucette - diz, entrando na leiteria o anão que perambulava pelo mercado vendendo limões e cobiçando o corpo exuberante
daquela que, da igreja de Saint-Médard à praça da Contrescarpe, era conhecida como a Bela Leiteira.

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Incontestavelmente, Lucette era a rainha da rua Mouffetard, sua pele cor de creme, seus louros cabelos crespos, os lábios fartos cuidadosamente pintados, sempre
entreabertos sobre seus dentes de bebê, ou deixando, quando ria, entrever uma língua espessa, úmida e rósea, os olhos muito negros sublinhados por um traço grosso
de rímel, o narizinho pequeno de narinas abertas, o pescoço curto e roliço pedindo mordidas, os braços gordos ornamentados com covinhas nos cotovelos, animados
por mãos rechonchudas com unhas de um vermelho que combinava com o dos lábios, os seios enormes, entre os quais um dedo ficaria apertado, e que pareciam querer
fazer saltar os botões do impecável guarda-pó branco que mal continha as espáduas arredondadas, conferindo-lhe um ar de beleza fresca e generosa. Carregando o
conjunto, duas pernas meio pesadas, com os pés calçados com sapatos pretos que estalavam alegremente e que, no inverno, ela forrava com uma sapatilha de pele de
carneiro.

Sua simples presença na loja dava ao pior camembert a aparência de ter vindo direto das fazendas normandas, os ovos pareciam guardar ainda o calor do ninho, os
queijos de cabra tinham um cheiro bom de cabrito; quanto ao leite, tinha-se a impressão de que bastava empurrar a porta dos fundos da loja para entrar num estábulo
modelo, onde se encontravam as melhores vacas à espera daquela mão de unhas vermelhas para entregar-lhe seu leite. As donas-de-casa avaliavam a qualidade dos produtos
pelo seu rosto jovial. Aliás, não estavam erradas, porque

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Lucette tinha como ponto de honra manter a tradição de qualidade, que tinha feito a reputação da leiteria no tempo de seus avós, depois no de seus pais.

Nas manhãs de domingo, não era preciso pedir aos maridos do bairro que fossem comprar a manteiga ou o queijo esquecido pela esposa. Eles tentavam, com elogios
pesados e desajeitados, mas o lema de Lucette era o mesmo do seu cunhado policial: "Jamais durante o serviço."

Espantou Jeannot, o anão, batendo com o pano de limpar o balcão.

-Largue do meu pé, você sabe que eu não gosto. Saltando e rindo, o anão saiu da loja fazendo um gesto obsceno na direção de Lucette, que, caindo na gargalhada,
fingiu que ia levantar o guarda-pó para mostrar seu traseiro.

- Oh, a bela lua! Oh, a bela lua! - gritou Jeannot aplenos pulmões, embrenhando-se na rua de l' Arbalète.

- Ah, é isso !A gente não se aborrece na sua casa - disse um homem gordo e bonito, com um uniforme de açougueiro, subindo correndo os três degraus que separavam
a loja da rua.

- Ei, não... Bom-dia, senhor Victor... é outra vez Jeannot, esse sujeitinho.

- Tenho certeza, mam' zelle Lucette, de que você teve alguma coisa a ver com isso.

- Que está pensando, senhor Victor? Fez um trejeito, com ar de menininha apanhada em flagrante brincando de doutor com um garoto da sua idade.

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- Não faça essa cara, o que você merecia é que lhe dessem umas palmadas no traseiro como se faz com uma menina mal-educada.

- Ora, senhor Victor, o senhor não se atreveria. - Espere um pouco, você vai ver. E pôs-se a persegui-la através da loja. Felizmente, àquela hora da manhã ainda
havia pouca gente. Ela só conseguiu escapar de Victor refugiando-se atrás da caixa, protegidapelo corpo gordo de sua mãe, cujas múltiplas papadas sacudiram quando
ela riu.

- Vamos, crianças, vocês não têm vergonha?... Senhor Victor, o senhor não está mais em idade para isso. Que é que sua mulher vai dizer?... Saia, Lucette, você
está me fazendo cócegas... Quer sair daqui?

Vermelha e ofegante, Lucette saiu de seu esconderijo depois que fez o belo Victor prometer que ficaria calmo.

- Está certo, fico, mas, em troca, venha tomar um gole comigo... Tudo isso me deu sede.

Lucette olhou ao redor, viu que não havia mais nenhum cliente e voltou-se para a mãe.

- Vou tomar um café, faz tanto tempo que não tomo um. Vá na frente, senhor Victor, eu o encontro.

Passou para aparte de trás da loja sob o olhar falsamente indiferente dos empregados. Ajeitou os cabelos, olhando-se no espelho rachado pendurado sobre a pia,
tirou seu batom do bolso do guarda-pó e passou-o nos lábios com a precisão dada pelo hábito, tirou as calças de náilon rosa, que escondeu atrás do retrato de
casamento de seus avós, e entrou na loja, onde não havia nenhum freguês.

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- Até já. Atravessou a porta da leiteria balançando as ancas fortes sobre as quais o guarda-pó branco ficava repuxado, deixando ver a dobra dos joelhos.

A doçura do ar daquela manhã primaveril a enchia de satisfação. As flores da florista tinham cores ainda mais vivas e mais alegres do que nos outros dias, um
cheiro adocicado de cravo-da-índia e baunilha saía da minúscula casa do vendedor de especiarias. Ao passar diante da peixaria, voltou a sentir o bafio de algas,
de maresia e de lama que o mar exalava quando baixava, no pequeno porto bretão onde passava suas férias desde criança. Da drogaria saíam odores misturados, de
água sanitária, de desinfetantes e de sabonetes perfumados. O cheiro insípido, frio e meio enjoativo vinha do belo açougue de Victor. Na caixa, reinava a mulher
do açougueiro, gorda, com um coque negro complicado, a pele de um branco fosco tornado ainda mais branco pela acne, o batom grená e a maquilagem nas pálpebras
de um azul agressivo que, no entanto, não conseguia enfraquecer o azul quase lilás de suas pupilas, conversando com seu amante, o padeiro. Lucette, sem parar,
cumprimentou-a com um aceno.

- Bom-dia, madame Germaine. - Bom-dia, senhorita Lucette. Vai passear?... Lucette fingiu não entender e entrou na taberna, onde Victor a esperava diante de seu
primeiro petit bordeaux do dia. O dono, um auvergnês com um gorro enfiado na cabeça, a eterna guimba de cigarro nos lábios, o corpo rodeado por um enorme avental

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azul, aproximou-se de Lucette com um pano sujo na mão.

- E para você, minha pequena, um café como sempre?

- Não, pai Bernard, hoje estou com vontade de mudar. Vou beber um vinhozinho branco não muito seco.

- É uma boa idéia, acabo de receber um vinhozinho de Loire, nem muito seco, nem doce demais, e quero ouvir sua opinião.

O vinho de Touraine revelou-se tão saboroso que Lucette bebeu outro copo com um prazer guloso que fez suas narinas ficarem arrebitadas e os olhos brilharem um
pouco mais.

- Quando fica com essa expressão, mam' zelle Lucette, não sei o que me impede de saltar em cima de você.

- Quer calar a boca, senhor Victor. Lucette se enterrou na banqueta de molesquine vermelho usada e remendada em vários pontos, que pai Bernard, às vésperas de
aposentar-se e ir para seu Auvergne natal, recusava-se a mudar há mais de dez anos, alegando que isso talvez não agradasse ao seu sucessor. Seu movimento repuxou
mais o guarda-pó branco, cujo Ultimo botão estava desabotoado, deixando entrever acima das meias uma nesga de coxa tão roliça, tão branca, que a mão de Victor
a agarrou sem pensar. As coxas abriram-se e seus dedos enfiaram-se no matagal do sexo entreaberto. Ela afastou frouxamente a mão enorme, com falanges ornadas de
longos pêlos negros e

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unhas encardidas de sangue coagulado. Ele resmungou.

- Putinha! - Vamos, senhor Victor, está louco, aqui não. - Onde você quer então? Eu não agüento mais. Faz uma semana que você me embroma. Normalmente, é você
quem reclama.

- Não se zangue, senhor Victor, eu estava naqueles dias.

- E daí? Não seria a primeira vez. Lembro-me que um dia, eu estava...

- Oh, cale-se - murmurou ela, corando até os ombros, tapando com a mão gorducha a boca de lábios vermelhos do senhor Victor.

Ele consultou o relógio. - Bom Deus. Preciso ir, o açougue deve estar cheio de gente, apatroa vai resmungar de novo. Então, que decide?

- Irei depois do almoço, lá pelas duas horas, ao seu galpão.

- Poderíamos encontrar um cantinho mais confortável e agradável, você sabe! Não entendo o que é que lhe agrada naquele lugar atulhado de cepos velhos, de bacias
cheias de ossos e restos, de panos sujos.

- Pode ser, mas gosto muito do seu canto. Ele pagou a consumação, apertou a mão de pai
Bernard e, pegando Lucette pelo cotovelo, olhou-a com um ar sonhador e terno.

- Como você pode ser depravada, apesar de tudo... Conto com você, até já...

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No quente começo de tarde, a rua Mouffetard, em outras horas tão movimentada, parecia entregue a uma sesta profunda. Todos os estabelecimentos, exceto a tabacaria,
estavam fechados. Toldos de um verde desbotado cobriam as frutas da mãe Tétard, telas protegiam de eventuais moscas a mercadoria do droguista, os expositores móveis
das lojas de frios, dos açougues, da peixaria tinham sido levados para dentro dos estabelecimentos. A rua parecia mais larga. Raros transeuntes faziam o vazio
e o silêncio da rua salientar-se. Soaram duas horas no campanário de SaintMédard.

Lucette saiu de uma portinhola pintada de verde-escuro que levava aos andares superiores do prédio, cujo térreo era ocupado pela leiteria. Tinha trocado seu guarda-pó
de trabalho por um vestido curto florido. As cores um tanto vivas do tecido combinavam com a lourice da bela jovem que personificava tão bem a primavera parisiense
em todo o seu alegre deboche.

Os pedreiros de um canteiro de obras vizinho, descendo a rua com seus sanduíches na mão, assoviaram para ela, tentando, entre piadas grosseiras, barrar-lhe o caminho.
O riso claro de Lucette respondia ao deles enquanto ela desaparecia sob a abóbada úmida que levava ao galpão do açougueiro. Atravessou um pátio atulhado de latas
de lixo, sobre cujas tampas cinco ou seis gatos faziam uma conferência. Levantaram-se ao ouvir o barulho dos saltos de Lucette, uns ameaçaram fugir, mas desistiram.
Um deles, mais atrevido, veio roçar-se nas suas pernas.

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Ela se abaixou para coçar-lhe a cabeça, e ele agradeceu com um ronronar tão forte que quebrou o silêncio do patiozinho. À entrada de outro corredor, ela estremeceu,
de tal forma o arzinho úmido e gelado que escapava por baixo da porta evocava "a palha úmida das masmorras" dos romances-folhetins de que sua avó tanto gostava
e nos quais ela tinha, por assim dizer, aprendido a ler. Caminhou cautelosamente pelo corredor escuro, de lajes com frestas, para desembocar no pátio principal,
inclinado para o centro, onde um buraco de esgoto recebia as águas avermelhadas do açougue. Ela pisou sobre o rego onde escorria um líquido coberto por uma espuma
rosada. Bateu três vezes com a aldrava de bronze numa porta de madeira muito bonita e muito velha, reforçada por enormes pregos que nenhuma ferrugem parecia conseguir
atacar, e que se abriu logo, sem o menor rangido. Lucette enfiou-se rapidamente pela porta entreaberta, que se fechou atrás dela.

- Enfim, você! Dois braços fortes fecharam-se sobre Lucette, que, surpresa e dolorida pela brutalidade do abraço, soltou um grito.

- Afaste-se, você está louco!... está me machucando!...

Victor nem se importou com os protestos de Lucette, enterrava a boca que cheirava a carne grelhada do almoço e a vinho no pescoço dela, depois entre os seios,
que apalpava como devia apalpar um boi para avaliar a qualidade do animal. Um dia, aliás, querendo elogiar Lucette pela beleza e maciez

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da sua pele, ele lhe dissera, no auge de um abraço amoroso:

-Ah, que bela carne!... Em vez de irritar Lucette, aquilo a tinha excitado consideravelmente. Era ela que insistia para que ele não lavasse o sangue de suas mãos
antes de acariciá-la. Uma vez, pouco faltou para que ficasse louca de prazer quando, premido pelo tempo, ele a empurrou para cima do cepo do açougue sem sequer
se dar ao trabalho de afastar a carne que ia destrinchar e, levantando-lhe as pernas à altura dos ombros, a tinha possuído com uma força que fazia a pesada mesa
tremer. Ela tinha sentido, ao contato daquela carne morta, que exalava um cheiro insípido, e a do homem, de quem escorriam gotas de um suor acre e salgado, uma
volúpia jamais atingida. Depois, quando passava por açougueiros, com as roupas, as mãos e, às vezes, o rosto respingados de sangue, carregando enormes quartos
de carne sangrenta, ela sentia um orgasmo rápido que a deixava com as pernas bambas.

No começo da sua ligação, Victor divertia-se com o que ela chamava "suas manias". Agora, às vezes, isso lhe dava vontade de mandá-la às favas. Mas sempre voltava
aos seus amáveis sentimentos: Lucette tinha uma bunda e seios como ele gostava. De tudo quanto se lembrava, nunca tinha visto outros tão fartos e tão firmes ao
mesmo tempo. Imagine mamas com bicos de um rosa tão delicado que pareciam os de uma vitela, eriçando-se à menor carícia, transbordando de duas mãos juntas - e
que mãos, mãos de açougueiro! -, com um rego tão acolhedor

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que mais de uma vez tinha introduzido nele seu sexo. Quanto à bunda!... ah, que bunda!... o açougueiro precisaria ser poeta para prestar-lhe uma homenagem digna
de sua opulência, de sua doçura, de sua firmeza, de sua alvura, de seu perfume. A bunda de Lucette tinha cheiro de creme fresco, de palha do estábulo, de feno
na manjedoura. Charme suplementar, a menor batida, por mínima que fosse, deixava nela uma marca comovente. E freqüentemente, por brincadeira ou por castigo, Lucette
recebia palmadas de seu amante ou chicotadas com o largo cinto de suas calças, que faziam as nádegas passar do rosa mais delicado ao vermelho mais vivo.

Ele a levou para um canto mal iluminado do galpão onde estavam alguns colchões velhos e almofadas forradas com tecido indiano. Nas paredes úmidas, gravuras de
cores fortes representavam divindades hindus. Na terra de um vaso de flores viúvo de suaplanta, ardiam bastõezinhos de incenso. Era ali que Victor se refugiava
para escapar da gritaria da sua mulher e ler à luz de velas livros sobre o Oriente. O maior desejo desse homem era ir à Índia. Ele tinha lido inúmeras obras sobre
esse país, seus costumes, seus usos, suas religiões. Podia citar sem erros os nomes de províncias e cidades: Ahménabad, Madura, Yanaon, Lucknow, Assam, Madras
ou Pondichéry. Votava um respeito imenso à memória de Gandhi. Sabia muito bem que havia algo de estranho nesse amor da parte de um açougueiro por um país que,
devido à sua profissão, o relegaria à classe dos párias. Mas negava-se a parar para pensar no que

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chamava de detalhes. Sua mulher e seus amigos estavam tão chateados com sua "fixação", que pouco a pouco ele se calou a respeito do seu desejo de viajar e parou
de comentar suas leituras. Levou muito tempo antes de se atrever a falar sobre isso com Lucette. Para sua surpresa e grande prazer, ela o escutou com uma atenção
apaixonada, encheu-o de perguntas, leu os livros que ele aconselhou e sonhou com ele sobre esse país distante. Inscreveram-se em cursos noturnos para aprender
inglês a fim de não terem problemas nesse país de línguas e dialetos múltiplos. Levados pelo seu sonho, faziam progressos rápidos. Ambos, apesar da censura de
seus conhecidos, guardavam dinheiro com vistas à grande viagem. Porque Victor tinha sido tão convincente que Lucette fizera seu o sonho de seu amante. Chegado
o momento, declaravam-se capazes de convencer suas respectivas famílias a aceitarem sua partida.

Depois da última visita de Lucette, o açougueiro tinha acrescentado um novo elemento à decoração de seu refúgio: tinha pendurado em cima de sua cama um largo
tecido indiano, preso por pregos às traves do galpão, e caindo em pregas desajeitadas ao redor do espaço delimitado. O conforto do lugar foi ainda mais acentuado
por um velho tapete chinês comprado num belchior da praça da Contrescarpe.

Quando abriu a cortina assim formada e revelou a Lucette o encanto e o aspecto sedutor dos nômades do desertO do cantinho "deles", ela bateu palmas como uma criança
e atirou-se em seus braços para agradecer-lhe.

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A luz das velas fazia ressaltar o rosa dos tecidos. Para comemorar as transformações, o açougueiro tinha disposto sobre uma bandeja, indiana também, uma garrafa
de champanha e dois copos. Beberam lentamente, com ar sério, olhando-se nos olhos. O cheiro penetrante do jasmim envolvia-os, quase conseguindo fazer com que o
cheiro repugnante hanimal desaparecesse do galpão.

Victor despiu sua amante com uma lentidão aque não estava acostumado. Quando finalmente ela lhe apareceu, tão roliça, tão branca, iluminada pela chama bruxuleante
das velas, ele ficou ajoelhado a seus pés como se em adoração. Num gesto travesso ela desgrenhou sua cabeleira escura.

- Dispa-me também. Ela se mostrou menos competente e mais impaciente do que ele. Quando ficou nu, sexo empinado, ela recuou para contemplá-lo melhor. Uma vez mais,
ela admirou seus ombros largos e seu torso recobertos por espessa pelagem negra, suas coxas peludas de lutador japonês e suas mãos impressionantes pelo tamanho
e pela força. Assim como estavam, um diante do outro, formavam um par de uma beleza formidável, feita de opulência e músculos.

Ele a deitou sobre as almofadas, alisou-lhe os Bancos como faria com um belo animal, e penetroua sem mais demonstrações de carinho.

- Como você está apressado... - Tenho tanta vontade de te abraçar... No entanto, fez-lhe amor com uma delicadeza inesperada para um colosso como ele, preocupado

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com o prazer dela. Foi recompensado pelos gritos e suspiros da bela leiteira. Satisfeito, gozou entre murmúrios.
Ficaram muito tempo sem se mexer, em silêncio, estendidos um contra o outro. Ele se ergueu primeiro para acender um cigarro e pôr uma fita num velho gravador a
pilhas. A música indiana invadiu o "quarto" deles. Ficaram novamente em silêncio durante um longo tempo, distantes mas próximos, já que sonhavam com a mesma coisa.
Ele disse:

-Fui a uma agência de viagens, tenho todas as informações, todos os preços. Se meus cálculos estão certos, podemos partir logo, por cinco ou seis meses.

Lucette ergueu-se sobre os cotovelos, os olhos brilhantes, o rosto corado, uma maravilhosa felicidade tornava-a encantadora.

- Não! Você tem certeza?... -Total. Já avisei a Germaine que vou tirar umas longas férias e encontrei um bom açougueiro para me substituir. Comece a preparar
sua mãe e sua mala.

Ela encostou a cabeça no ombro confortável do amante, os olhos subitamente cheios de lágrimas. Puxando-a pelos cabelos, ele a forçou a levantar a cabeça.

- Grande boba, pare, senão eu também vou começar a chorar.

O senhor Victor, o homem mais forte do bairro, estava dizendo a verdade, assoou o nariz e enxugou os olhos numa ponta da cortina.
Pareciam duas crianças agitadas com o presente

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de um brinquedo longamente cobiçado: não conseguiam acreditar.

A fita terminou, trazendo-os de volta à realidade. - Como a espera vai parecer longa! - disse Lucette, começando a vestir-se.

- Sim, mas você verá, depois... - Victor, você ainda está sonhando... Está na hora de abrir a loja...

A voz longínqua da tolerante madame Germaine arrancou-os de seu sonho, mas não de sua alegria. Separaram-se felizes.

Na rua Mouffetard, que tinha recuperado um pouco da animação da manhã, uma jovem bonita, gorda e loura respondia maquinalmente aos cumprimentos das pessoas do
bairro, distante daquele recanto de Paris que ela amava e que, agora, não enxergava mais.

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***

LAURA ou o canteiro de obras da rua de Chazelles


Você conhece a alegria singular que pode existir em dar a um homem a mulher que a gente ama.

Joë Bousquet


Durante toda a noite, Laura sentiu seu amante irritado, distraído, tenso. Não se atreveu a perguntarlhe as razões de sua atitude. Tenta lembrar-se de uma bobagem
que possa ter dito, de uma gafe que tenha cometido, não encontra nada. Entretanto, a noitada tinha começado tão bem.

Tinham jantado em Bougival, num restaurante de que ambos gostavam: ele, pela excelente cozinha, e principalmente pelas incontáveis sobremesas, ela, pela decoração
e pelas hortênsias azuis das belas noites de verão. Tinham bebido champanha rosé porque era o que ela preferia, embalados pelo murmúrio dos chafarizes cujo ruído
refrescante os fazia esquecer o calor daquele dia de agosto.

A princípio, conversaram pouco. Ao segundo copo de champanha, ele perguntou a Laura como tinha passado o dia.

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- A manhã, na piscina Deligny e a tarde num cinema climatizado dos Champs-Elysées.

Ele sorriu, aprovando a palavra "climatizado". E ele, o que tinha feito? Tinha passado na galeria que estava preparando uma exposição das suas telas para a rentrée.
Era importante para ele que tudo estivesse bem, pois era sua primeira grande exposição em Paris. Esperava obter o mesmo sucesso que tivera em Londres, Munique
e Nova Iorque. Em seguida, tinha dado uma volta pelo Louvre para receber, dizia, uma lição de humildade.

-E foi proveitosa? -Meu Deus, não! Caíram na gargalhada. Ele estava tão convencido de seu talento, que dificilmente suportava a crítica.

Sob a mesa, ele tinha prendido as pernas dela entre as dele. Isso a chateava um pouco, mas ela gostava de sentir-se prisioneira, entravada por ele em seus movimentos.
Já eram amantes há três anos, viam-se quase todos os dias, mas não viviam juntos. Isso às vezes entristecia Laura que, como a maioria das mulheres, queria ter
seu homem para ela, só para ela.

Fora com ele que, aos vinte e cinco anos, ela tinha descoberto o prazer, com espanto e reconhecimento. Ela não imaginava que outro homem pudesse lhe dar um prazer
igual. Além de amá-lo, ela também lhe era fiel. Tinha algum mérito nisso. Não apenas era cortejada, como seu amante lhe chamava a atenção para os olhares inequívocos
dos homens que encontravam quando estavam juntos.

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- Veja, aquele, não é sedutor? Ele está devorando você com os olhos, tenho certeza de que lhe fará amor muito bem...

Ou, se ela estava sentada no tamborete de um bar: - Levante um pouco a saia, não vê que aquele infeliz lá embaixo vai ter um torcicolo tentando ver suas coxas?
Seja caridosa.

Obediente e risonha, ela puxava a saia. Ou ainda quando, numa boate da moda, um desconhecido a convidava para dançar, ele não só aforçava a aceitar como, na volta,
lhe fazia perguntas como:

- Você o fez ficar teso? Não diga que não, veja acara dele. Ele pôs a mão nas suas nádegas, você está com uma expressão perturbada.

Corada de vergonha, ela pedia que se calasse, dizia que era vulgar, que não gostava dela, já que se conduzia daquela forma, que, se continuasse, ela iria embora.

- Você não vai fazer nada, você gosta que lhe falem assim.

Era verdade, ela sentia uma moleza estranha quando ele lhe chamava a atenção para o olhar dos outros homens sobre ela ou quando, sob os olhos dele, dançava nos
braços de outro.

Um dia, excedendo-se, ela lhe disse: - Afinal você quer parar?Parece que você quer que eu o engane.

- Já começou, que é que você está querendo? Será que estaria me enganando se fizesse amor com outro homem com meu consentimento e na minha frente?

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- Na sua presença... Diante de seu ar estarrecido, ele pôs-se a rir. - Falemos de outra coisa, você ainda é uma criança.

Falaram de outra coisa. Mas muitas vezes, depois, Laura pensou naquele diálogo, sentindo uma perturbação que achava pervertida. Um dia, porém, ela conduziu a conversa
para o assunto.

-É verdade que não se importaria se me visse fazendo amor com outro homem?

Ele olhou-a, divertido. - Já não disse isso? Aliás, você vai ver. Um peso caiu sobre suas costas. Ela queria fazer perguntas, "onde? quando? como? por quê?" Em
vez disso, ficou pregada na cadeira, com uma sensação de calor intenso, que começava na cintura e pouco a pouco invadia o peito, os ombros, o pescoço e o rosto.

- Não core assim, você está mais excitada ainda.

Ela fez uma careta provocante. -Não continue, senão eu levo você já. Ela se encolheu na cadeira. Seus seios, que ficaram pesados de repente, doíam.

Outra vez, com um de seus amigos, um pintor americano de passagem por Paris, ele falou de um rendez-vous, às margens da estrada próxima a Versalhes, que era freqüentado
por escritores, jornalistas, atores e gente mundana que ia lá com colegas, esposas ou amantes, mais raramente com prostitutas, que emprestavam com prazer a quem
quisesse.

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- Elas concordam? - perguntou Laura num tom débil.

- Evidentemente - disse o amigo americano, erguendo os ombros. E acrescentou: - Você devia levar Laura lá, isso a faria perder a timidez.

- Tenho pensado nisso - disse seu amante rodeando-lhe os ombros com o braço.

Ela sentiu uma raiva súbita pelo idiota. Logo os dois homens puseram-se a falar do que lhes interessava mais: sua pintura. Voltaram para casa cedo. Aquela noite,
ele lhe fez amor com brutalidade, com maldade, pareceu-lhe.
Voltaram de Bougival passando pelo Bois de Boulogne, onde a longa procissão de carros com passageiros em busca de aventuras provocou comentários sarcásticos da
parte de Laura...

- Cale-se, você não sabe do que está falando. Ele diz isso tão secamente que ela não tem nada para responder. Num tom mais calmo, ele a convida para tomar alguma
coisa num bar fresco e tranqüilo da porta Champerret. Lá eles beberam champanha, muito champanha.

- Venha, vamos dar uma volta, aqui está sinistro.

Embarcam no carro e rodam calmamente. Passam diante do parque Monceau e param na rua de Chazelles.

- Que está acontecendo? Para onde vamos? Ele dá volta ao carro e abre-lhe a porta: - Desça.

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Ela desce e olha ao redor. É uma rua bem tranqüila, de prédios burgueses, um dos quais ainda está em construção, sua fachada moderna contrasta com a arquitetura
dos outros. Ele pega no seu braço e dão alguns passos na rua. Indica-lhe uma porta de aparência modesta, por onde entram e saem casais. Ela adivinha aonde ele
a está levando e pára.

- Não quero. Ele também pára, volta-se. Seus olhos estão muito claros, a voz cheia de autoridade:

- Não se faça de difícil. Você sabe muito bem que está com vontade.

Ela sabia que ele tinha razão, mas preferia morrer a confessar.

- Muito bem, se isso o diverte, continue - disse, fazendo pose.

Ela entrou no corredor estreito. Agora, ele é quem a seguia. Os homens voltaram-se para aquela moça bonita. Ela reconheceu um deles:

- Boa-noite, tudo bem? O outro virou o rosto contrariado, sem responder ao seu cumprimento. Atrás dela o amante começou a rir.

-Nesse tipo de lugar, não é preciso mostrar que conhece as pessoas.

Respondeu que para ela tanto fazia, que pouco se importava com aqueles pobres diabos que nem sequer eram capazes de assumir suas lastimáveis fantasias.

-Acalme-se, você parece um gato raivoso.

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Enquanto ele conversa com uma matrona gorda que parece ser a diretora do lugar, ela senta num canto de uma peça mal iluminada, forrado em papel florido desbotado,
mostrando traços de umidade em vários pontos. Nas paredes, de tristes espelhos trincados e embaçados, uma péssima reprodução do Verroutiré, de Fragonard, um nu
de um rosado agressivo como os que se vê no trottoir do bulevar Sébastopol, uma tapeçaria em cores vulgares representando uma cena de caça, provavelmente executada
pela graciosa dama da recepção e, acima de uma porta, a marca deixada por um crucifixo. Isso fez Laura rir. Poltronas desconfortáveis e desiguais estão dispostas
sem elegância. Estão quase todas ocupadas por homens e mulheres silenciosos e aborrecidos, tornados tristes e cinzentos pela luz sinistra que sai de um lustre
empoeirado.

"É a antecâmara da libertinagem. Parece que a gente está na sala de um dentista de província. Mas lá, pelo menos, há revistas que se podem folhear", pensa Laura,
não mais perturbada.

O amante vem ao seu encontro. Seguem uma camareira que sobe a escada na frente deles. Nos corredores, cruzam com pessoas mais ou menos despidas. Laura observa que
quase todas as mulheres são bonitas e os homens, insignificantes.

A camareira os deixa numa espécie de vestiário, em cujas paredes há cabides com roupas. No chão, sapatos estão espalhados. Perto deles, um homem ainda jovem
se despe febrilmente. Laura observa que ele põe as meias dentro dos seus sapatos.

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- Parece o vestiário de uma equipe de futebol - diz, irônica.

O amante, já despido, abraça-a. - Dispa-se. Ela quer tirar sua cinta-liga de renda branca e as meias. Ele a convence a não fazer isso, dizendo que fica mais
bonita assim. Envolve-a nos braços, beijaa carinhosamente, murmurando que a ama. Faz calor, e entretanto ela treme de frio. Ele a leva para uma grande peça, mobiliada
apenas com uma imensa cama baixa, sobre a qual vários casais fazem amor, rodeados por homens e mulheres nus, bebendo e acariciando-se. Laura faz um movimento
de recuo. O amante apuxa e derruba-a sobre a cama. Com medo de ficar sozinha, entregue às mãos daqueles desconhecidos, ela arrasta seu amante consigo. Ele a beija
longamente nos lábios, estende-se em cima dela e a penetra.

- Menina mentirosa, eu sabia que você estava louca por vir a um lugar como este.

Ela sente-se corar e esconde o rosto no seu ombro, fechando os olhos com força.

O amante sai de dentro dela, ela tenta retê-lo, mas outro corpo toma seu lugar, ela tenta livrar-se, mas seu amante está ali, perto dela e a beija:

-Estou aqui, meu amor, estou aqui. Laura jamais soube quantos homens fizeram amor com ela, só se lembra dos contínuos gemidos que saíam dos seus lábios, de algumas
palavras:

- Magnífica. - Que amante, bravo, meu caro.

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- Que queda de rins - disse um homem, voltando-a, enquanto outro lhe mordiscava os seios.

Quanto mais o tempo passa, mais ela tem a impressão de que seu corpo se transforma numa massa compacta de prazer. A voz do amante chega-lhe cada vez mais distante.
Em determinado momento, ela se sente levantada e atirada numa água perfumada.
Ajudado por duas mulheres jovens, o amante a enxuga, depois a veste.
Com voz fraca, ela pede alguma coisa para beber. Bebe três taças de champanha uma atrás da outra, isso a faz recobrar a consciência. Olha ao redor.

Uma mulher aproxima-se e a beija. - Você é maravilhosa. Ela sai, amparada pelo amante.

Na rua, diante do canteiro de obras, ele a beija apaixonadamente. Ela não corresponde ao beijo.

- Você me quer? - Beije-me. - Aqui? Agora? - Sim. Ele a arrasta para o canteiro. Em certos pontos a terra está fofa, ele a deita delicadamente, levanta-lhe
a saia. Ela está nua, suas roupas íntimas ficaram com seus amantes ocasionais. Ele a beija entre as coxas, lambe seu sexo carinhosamente.

- Vem. Ele a penetra docemente. - Mais forte... mais forte... Ele acelera os movimentos.

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- Mais forte, mais forte... Ele tem a impressão de que está transpassando o corpo dela.

- Mais forte... ah... Ela se empina de prazer, ele mal consegue mantêla embaixo dele. Solta um grito que lhe enche a boca, enquanto ele desaba sobre ela gemendo.

Quando se levantam, estão cobertos pelo pó fino e cinzento do canteiro. Voltam para casa calmamente, atravessando uma Paris adormecida, felizes.

A partir desse dia o comportamento de Laura mudou: ela pensava que só um amante podia proporcionar-lhe prazer; a noite na rua de Chazelles mostrou-lhe que não era
nada disso. Claro, ela continua a amá-lo, mas agora vê os outros homens com interesse guloso. Adquiriu, perante si mesma, uma autonomia maior, não admite mais que
a guiem como antigamente. Isso às vezes irrita seu amante.

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***

LISE ou uma noite de inverno em Montmartre


Às vezes volto a usar seu vestido
E tenho seus seios e tenho seu ventre.

Paul Eluard


Lise faz parte dessas raras mulheres que gostam de passear sozinhas, à noite, pelas ruas de Paris.
O que parece totalmente banal para um homem jamais o é quando se trata de uma mulher, principalmente se ela é jovem e bonita. Sua presença na noite avançada logo
parecerá suspeita aos transeuntes. Se ela está num bairro de prostitutas, sem dúvida é uma puta, se está em outro lugar, é puta também, só que paquera por prazer.
Entre as duas não há diferença. Não passa pela cabeça de ninguém, homem ou mulher, que ela possa estar lá, assim, para passar o tempo, sentir o ar de Paris, distrair-se
olhando ao redor, flanar, seja lá o que for.
Uma mulher passeando sozinha é suspeita, especialmente se, como Lise, responde aos sorrisos, às perguntas inconvenientes e, visivelmente, tem um ar de quem pouco
se importa com o mundo. Numa noite

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como aquela não é hora nem tempo para levar um gato a passear, ainda mais uma garota bonita. Está frio, a neve da tarde deixou no chão uma papa inominável. Pouca
gente em Pigalle.

Lise tomou um gole num bar da ruaFrochot, não sem dificuldade, porque a dona obstinava-se em dizer-lhe que não serviam mulheres desacompanhadas. Diante da expressão
irônica de Lise olhando para as moças sumariamente vestidas e muito decotadas que esperavam um eventual cliente, ela lhe serviu com má vontade um péssimo porto.

Aos poucos, o vinho adocicado reaqueceu Lise, que entreabriu seu mantô. Ela estava vestida com uma roupa de caxemira preta, com uma generosa abertura de um lado,
mas fechada até o queixo. Tinha sentado no bar, descobrindo as longas pernas envoltas em meias cinza fumê com costura. Seus escarpins altos de camurça preta estavam
sujos de lama. Ela levantou a perna para esfregar com o dedo molhado uma mancha na meia. O movimento revelou uma liga preta. Isso fez as moças rirem; há muito
tinham relegado aquele enfeite à categoria de acessório; só servia para os fetichistas. Quanto a elas, só usavam collants, era mais cômodo, e depois, a gente é moderna
ou não é.

Lise acendeu um cigarro, não para fazer gênero, mas porque se sentia bem. Estendeu o maço à garota sentada perto dela, que aceitou. Mergulharam de novo em seus
sonhos. Nenhum homem tinha cruzado a soleira da porta ainda.

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-Não vai ser uma noite boa - falou a proprietária.

- Claro que vamos nos chatear - disse a vizinha de Lise, olhando para ela.

-Até que horas vocês ficam aqui? -Oh! Depende, três, quatro horas. Agora eu trabalho à noite. Mas os clientes estão escassos. Logo chegam as festas.

Lise sorriu; era exatamente como lhe tinha dito o chofer de táxi que a levara à praça Pigalle.

- Quer beber alguma coisa? - perguntou Lise. A moça pediu uma taça de champanha; Lise, mais um porto.

Olhou para a garota, que era jovem e bonita. Notava-se claramente que tinha sangue negro, o que lhe dava uma cor quente, valorizada por um minivestido de renda
de lã de um rosa forte, quase fosforescente, que ia até embaixo das nádegas e descobria seus seios tão redondos, tão empinados, que não pareciam verdadeiros.

- Tim-tim - disse, erguendo a taça. - Meu nome é Pinda, nasci em Cuba. E você?

-Lise, nasci em Paris. Feitas as apresentações, elas ficaram absortas contemplando as garrafas do bar...

Foi Pinda quem tentou retomar a conversa. -Está esperando alguém?... Não é sempre que se vê uma mulher como você aqui... Você quer uma garota?... Eu gosto muito
de fazer amor com uma mulher, é mais doce... A menos que você prefira uma

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orgia, tenho um amigo, cubano como eu, que tem um sexo... A gente lhe faz um preço... pequenino como você... Ou você prefere assistir a um espetáculo pornô?...
O porteiro tem um monte de endereços para todos os gostos... Talvez você seja maso... gosta que lhe batam?... Não, você não tem jeito disso... Já sei, você gosta
de cães. Nada mais fácil,Aldo tem um dobermann especialmente treinado para isso. Tem uma boa clientela, parece que depois de provar não se consegue ficar sem...
Não? Veja, eu também não. Não que não goste disso, mas tenho medo de cães, principalmente dos grandes. Não acho mais nada. Afinal, o que é que você quer?

- Nada. Pinda olhou para ela desconfiada: aquela garota não era normal. Alguém vai, numa noite que não convida um cristão a sair, sozinha, a uma boate de putas
se não procura nada?

- Você é jornalista, pelo menos? Lise sacudiu a cabeça negativamente, rindo, e levantou-se perguntando onde ficava o toalete. Quando ela saiu, Pinda ajeitava o
cabelo diante da pia. Voltou-se e roçou os lábios de Lise com sua língua rosada e pontuda.

- Você é linda, tem certeza de que não quer? Lise, por sua vez, beijou os lábios de Pinda, que cOrrespondeu ao beijo, acariciando-lhe os seios.

Quando saíram, as moças, diante dajuke-box, estavam dançando para passar o tempo, ternamente enlaçadas, segurando-se pela cintura ou pelo pescoço,

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apertando os seios erguidos por sutiãs contra os seios de seu par e balançando-se sobre os saltos enormes que lhes arqueavam a cintura e a barriga das pernas.
Pinda e Lise juntaram-se a elas. As garotas divertiram-se esfregando-se em Lise, que se prestava com prazer às manobras delas. Ciumenta, Pinda puxou-a contra si,
esfregando seu corpo no dela num requebro a que homem algum conseguiria resistir. Dançaram duas ou três músicas assim, de uma forma tão lasciva que a patroa lhes
chamou a atenção.

- Um pouco de decência, senhoras. Isso provocou risinhos bobos, infantis. Como aquelas garotas de repente ficaram todas com uma expressão feliz! Havia algo de
colegial no riso delas. De fato, estavam na hora do recreio. Os homens, os clientes, não estavam lá para lembrar-lhes que seus corpos estavam à venda e deviam
curvar-se aos seus caprichos mais exigentes. Lise percebia tudo aquilo e começava a sentir-se uma delas. Aliás, era uma de suas velhas fixações: prostituir-se.
Não é uma coisa muito cara, nem muito original, muitas mulheres têm o mesmo sonho. Lise desconfiava que seu desejo tinha muito de literário e que a realidade
devia ser sórdida na maioria das vezes. Apesar disso, disse a si mesma que gostaria de tentar, pelo menos uma vez. Mas com quem falar sobre isso? Jamais ousaria
confessar uma coisa dessas ao seu amante e menos ainda a uma garota como Pinda.

Três homens acabavam de empurrar a porta do bar. Uma garota ajudou-os a tirar o sobretudo. Tinham

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cara de provincianos que estavam em Paris para um congresso ou uma exposição. A um gesto da patroa, as moças deixaram de dançar e, a contragosto, dirigiram-se
para os homens, os seios empinados, as ancas rebolando. Sentaram-se ao lado deles, risonhas, provocantes.

Mais um homem, depois outro entraram. O ambiente da sala mudou, as garotas também. Acabou-se a brincadeira, ao trabalho. Lise sentiu a mudança da atmosfera e caminhou
para o bar, pagou sua despesa, pegou seu mantô das mãos de Pinda.

- Você vai voltar? - perguntou a jovem, abraçando-a.

O tempo tinha melhorado bastante. Lise estava com fome. Disse a si mesma que uns frutos do mar regados a um vinho branco bem seco, como ela gostava, seriam bem-vindos.
Dirigiu-se à praça Clichy, parando de quando em quando para olhar as fotografias expostas diante das boates de strip-tease. Porteiros galonados, de olhar cafajeste,
gabavam a mercadoria. Mas Lise conhecia aquele tipo de lugar. Uma noite em que estava sozinha, divertira-se passando por quase todas as boates do bulevar. Depois
de três ou quatro, tinha entendido: eram quase sempre as mesmas garotas que passavam de uma boate a outra com dez ou vinte minutos de intervalo. Isso a tinha
divertido, depois entristecido, ela fazia outra idéia daquela "nobre arte". Claro, não era lá que o famoso dono do Crazy Horse Saloon ia procurar suas vedetes.
Antes de chegar ao Charlot, o verdadeiro, não o outro,

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ela foi abordada uma boa dezena de vezes. Ouviu as mais divertidas propostas, sendo a mais comum:

- Vamos puxar um fumo? Chegou ao restaurante sem maiores problemas, conseguiu logo uma mesa com vista para todo o salão, o que lhe confirmou que havia uma exposição
qualquer. De agricultura, talvez, porque bom número de fregueses ostentava aquele rosto bronzeado ou cor de tijolo e a testa branca, o que na maioria das vezes
indica o homem do campo. O corte de suas roupas também era uma indicação. Lise teve um movimento de calorosa simpatia para com eles. Lembrava-se das mãos calosas
e, afinal, tão delicadas dos agricultores da sua infância.

Fez seu pedido, frisando que queria o vinho imediatamente. Foi satisfeita; o sommelier trouxe-lhe, com cuidados excessivos, um vinho de Nantes seco e perfumado,
que ela aspirou e degustou com uma expressão de satisfação que encheu de alegria o amável sommelier. A bandeja de frutos do mar chegou logo. Como sempre, tinha
exagerado: os ouriços-do-mar, os belons, as marennes, as claires, as lulas, os mexilhões, as praires davam folgadamente para dois. Mas isso não assustou Lise,
que estava com um apetite devastador e com vontade de fazer um festival gastronômico.

A visão da enorme bandeja sobre a mesa de uma jovem só e miudinha foi saudada pelos clientes vizinhos que, guardanapo no pescoço, lutavam com suas lagostas ao
vapor.

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- Muito bem, não precisamos fingir para a senhorita!

Sorrindo, Lise ergueu o copo para eles. E ouviu-se através da sala: "A sua saúde, senhorita", "À sua, senhores". Depois todos voltaram aos seus pratos.

Lise acabou com abandeja sob o olhar admirado dos garçons e de seus vizinhos. Ovos nevados e um café duplo completaram o banquete.

Lise sentia-se farta, um pouco bêbada, talvez. Achou que o ar fresco da noite lhe faria bem. Fazia tempo que não subia até o Sacré-Coeur. Atravessou a ponte acima
do cemitério Montmartre, entrou à direita, na rua Joseph-de-Mais tre e dobrou à esquerda, na rua Lepic. Era meia-noite, a lua brilhava. O tempo estava bom. Caminhava
devagar, atenta aos movimentos do seu corpo durante a subida. Encontrou pouca gente. Antes de chegar à praça du Tertre, teve vontade de rever a alameda des Brouillards,
cheia de lembranças que, dez anos depois ainda a emocionavam. Foi naquela alameda, numa noite de primavera em que o perfume das alfenas se torna afrodisíaco e
pungente,
que Lise fez amor pela primeira vez, de pé, deitada, morrendo de medo de ser vista, com seu primeiro amante. Ele tinha vinte e dois anos, ela dezoito, e estavam
loucamente apaixonados. Por sorte, ele lhe tinha revelado o prazer imediatamente, deixando-a maravilhada pelo que ela chamava de "presente de Deus". Encantamento
renovado a cada vez, que a fazia obedecere concordar com todos os desejos eróticos dele, mas sempre com um misto de curiosidade e medo.

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Ficou surpresa com o prazer que sentia ao contato frio e rugoso da pedra da balaustrada contra a qual, saia levantada, ele a apertava. Penetrou-a facilmente, de
tal forma seu sexo estava úmido de desejo. Ergueu-a e andou pela alameda, fazendo um movimento de rotação com seu sexo dentro dela que a fez gemer cada vez mais
alto, depois gritar de prazer. Quando a pôs no chão, teve que ampará-la tamanha a violência do seu gozo. Por muito tempo ela ficou imóvel e trêmula, agarrada nele.
Voltaram a pé para casa e fizeram amor o resto da noite. Era nisso que Lise pensava, ao acariciar a pedra do parapeito.

A lembrança deixou-a comovida e perturbada, um pouco triste também. Que tinha acontecido com aquele primeiro amor? Um dia, de comum acordo, sem gritos, sem lágrimas,
tinham-se separado. Não estavam cansados um do outro, não, tinham necessidade de outros horizontes. Nunca mais se viram.

Ela reiniciou sua caminhada e chegou à praça du Tertre, sem suas mesas, seus guarda-sóis, suas pinturas, devido ao tempo ruim. Entrou no café que fica na esquina
da praça. Os perdidos na noite começaram a chegar. Ela pediu um café e bebeu-o lentamente no balcão. É um dos raros lugares de Paris onde ninguém se espanta com
a presença de uma mulher sozinha. Muitas vão lá, atrizes, putas, garçonetes dos restaurantes dos arredores, bêbadas, todo um pequeno mundo noturno misturado, com
travestis de queixo azulado, cantores que há muito passaram da idade da aposentadoria, numa fraternidade aparente, nascida da solidão, da noite avançada e do
medo do dia.

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Lise sentia-se bem naquele lugar acolhedor, quente e barulhento. Pediu uma dose de vodca, que ela mesma levou para uma mesa que acabara de ficar livre. Um torpor
feito de lassidão, de álcool, do ruído das vozes, da fumaça dos cigarros incontáveis, invadiu-a pouco a pouco.

Um travesti cheio de plumas entrou bruscamente e deixou-se cair numa cadeira diante de Lise, ofegante.

- Oh lá, lá! Por pouco os tiras não me pegaram - disse, sacudindo um boá meio desplumado no nariz de Lise - e com essa droga de sapatos, não é facil correr rua
acima.

- Reanime, Conchita - disse-lhe o garçom, trazendo-lhe um café e uma dose de rum.

Conchita bebeu o rum num gole só e fez sinal ao garçom para trazer outro. Graciosa, ela abafou um leve arroto e bebeu o café, em pequenos goles, com o dedo mindinho
levantado.

- Posso? - disse, estendendo a mão para o maço de cigarros de Lise. Esta aquiesceu e ofereceulhe o fósforo.

Sem a barba, que começava a pintar no queixo e nas faces, a roupa um pouco habillée demais, a capa de veludo grená enfeitada com um boá verde-claro combinado
com os escarpins salpicados de lama e o penteado meio sofisticado, Lise poderia enganar-se quanto ao sexo do seu interlocutor. Mas enquanto bebia seu café e seu
rum, Lise simpatizou com ele e teve vontade de conversar.

- Você vem sempre aqui?

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Lise ficou meio confusa com a banalidade de sua pergunta.

-Não é do bairro, é? É a primeira vez que vejo você. Espera alguém? Não? Você é como eles - mostrou a sala com um gesto circular -, está chateada, está com medo
e não sabe de quê, então anda largada por aí para esquecer que existe, que ninguém espera por você ou, se espera, você não tem vontade de voltar para casa. Deixa
pra lá, eu sei. Um dia, sem mais nem menos, sem dar conta, você está cheio da vida que leva, da chatice da sua mulher ou do seu marido, das crianças, do seu trabalho
idiota, rodeado por imbecis, tendo que obedecer a estúpidos. Você não sonha mais com nada, você não acredita em nada. Eu, você não vai acreditar, fui casado com
duas belas jovens, militava no Partido e, aos domingos pela manhã, vendia L' Humanité nas praças. Nas manifestações, eu faziaparte do comando. Nas eleições, colava
cartazes,
assistia aos debates, enfim, era um verdadeiro militante. E depois, aconteceram as eleições. Espere, eu não disse que foi o fracasso da união das esquerdas que
fez de mim um travesti, não seria honesto da minha parte, eu já tinha tendências. Muitas vezes, nas manifestações mais violentas, eu tinha medo de receber uma
pancada mais forte e ir parar no hospital e lá ser despido e ouvir piadas, porque por baixo dos jeans, eu tinha uma cinta, meias pretas e uma calcinha linda.
Que é que você quer, gosto de roupas íntimas bonitas. Vocês, mulheres, têm a sorte de poder todos os dias vestir essas sedas, esses cetins. Aprimeira vez, eu
devia ter onze, doze anos, minha irmã mais velha

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estava tomando banho e tinha arrumado cuidadosamente no seu quarto roupas íntimas novinhas, que tomei nas mãos só pelo prazer de apalpar aqueles tecidos finos.
Comecei a tremer e senti meu peruzinho endurecer, como quando eu lia as Playboy e as Lui de meu irmão. Sem pensar, despi-me e pus primeiro a cinta-liga, um pouco
grande para mim, as meias - ah, as meias, que maravilha, que doçura! Também eram grandes demais e flutuavam ao redor da barriga das minhas pernas. Quando pus
as calcinhas, um espasmo me sacudiu. Foi este o momento que minha irmã escolheu para sair do banheiro, nua. Ela parou na soleira da porta de boca aberta, muda,
depois caiu na gargalhada. Ria tanto, que seus olhos se encheram de lágrimas que lhes escorriam pelo rosto. Virou a cabeça tentando acalmar-se, mas cada vez que
me olhava, seu riso louco a fazia mais bela. Louco de raiva e humilhado, tirei a fina lingerie, joguei-a no chão e pisei em cima dela gritando de raiva. Meu vandalismo
acabou num instante com o riso da minha irmã, que me deu um pescoção que me fez rodopiar. Isso me acalmou, e nos olhamos encabulados. Ela juntou suas roupas amassadas
e me mandou ficar de joelhos diante dela e pedir desculpas. Minha cabeça ficou na altura de seu sexo. Pus os braços ao redor da cintura dela e meu rosto nos seus
pêlos dourados, ainda úmidos da água do banho. Puxando-me pelos cabelos, ela ergueu minha cabeça e me disse com uma expressão doce e terrível: "Da próxima vez
vou te bater na bunda, nu, na frente de todo mundo." Diante da ameaça, meu peru levantou de novo. Minha irmã

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percebeu e, empurrando-me com o pé, voltou-me as costas com desprezo, dizendo:

- Porquinho. Depois, conheci minha mulher e me casei. Logo tivemos dois filhos. Minha mulher também era militante, do tipo inconseqüente e idiota, ou melhor, intransigente.
Fazíamos amor como dois missionários, e ainda por cima poucas vezes. Precisávamos guardar nossas energias para o Partido. Achei que eu estava sobrando. Então,
sufocava dentro de mim meus gostos bizarros. De tempos em tempos, quando passava na frente de uma loja de lingerie, era tomado por um desejo irresistível. Entrava
para comprar umas calcinhas lilás debruadas com renda preta, ou ligas vermelhas, ou verdes, cintas-liga, sutiãs com as pontinhas abertas, as meias mais finas, e
corria para o primeiro café que aparecesse; perguntava onde ficava o banheiro e me despia para vestir o que tinha comprado. Enquanto durava a operação, eu me retesava
como um veado. Ajustado o último colchete, eu ejaculava como um animal. Despia-me e saía, feliz, em paz.

O mais difícil era esconder as compras da minha mulher. Para ela, que só usava roupas de algodão brancas, adescoberta seria um choque horrível. Colocava-as, cuidadosamente
embaladas em plástico, no fundo das minhas caixas de ferramentas, certo de que ninguém as descobriria, pois era proibido mexer nas minhas coisas.

De tempos em tempos - ah, mas não com muita freqüência! - eu ia trabalhar com minhas roupas íntimas mais bonitas. Que volúpia! Ria às escondidas

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do que pensariam de mim alguns colegas. Mas, estava cheio de precisar esconder-me, ficava cada vez mais taciturno; até que minha mulher acabou percebendo. Eu
a repreendi brutalmente, censurei sua frieza, sua falta de curiosidade, de criatividade erótica. Ela me olhava como se eu tivesse ficado louco. Só o que encontrou
para me dizer foi: "Você deve estar com febre", e pôs a mão na minha testa. Repeli-a. Saí e fiquei três dias fora de casa. Foi assim que entrei em contato com caras
iguais a mim. Alguns tinham ido mais longe em seu desejo de feminilidade: à noite, vestiam-se totalmente de mulher, alguns tinham implantado seios, e sua maior
alegria era quando um homem - um homem de verdade - os confundia com uma mulher. Muitos deles nunca tinham tido relações homossexuais, assim como eu. Na verdade,
gostariam mesmo é de ser lésbicas.

Quando voltei para casa, minha mulher não falou nada, a não ser que havia uma reunião em la Villette com vistas às eleições. Durante um mês, a vida correu como
antes, só que a união das esquerdas tinha explodido e eu começava a pensar que Rocard, Fabre, Mitterrand e Marchais eram todos traidores e mancomunados. Minha
mulher acompanhava os acontecimentos com paixão, falando dos traidores socialistas com um rancor militante que me fazia rir. O tempo passou, voltei a encontrar
meus amigos travestis da praça das Abadessas. Foi um deles que me emprestou meu primeiro vestido, meus primeiros sapatos de salto, uma peruca ruiva, e me maquilou.
Quando fiquei pronto, ele me levou para o espelho

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do armário do seu quarto de hotel e, lá, tive uma reação idiota, voltei-me para olhar para a garota bonita que estava atrás de mim. Meu companheiro desatou a rir,
orgulhoso de seu trabalho. Fiquei assombrado. Então, era eu a fina criatura de longas pernas - precisa depilá-las, falou meu colega - envoltas em meias pretas,
de rosto delicado, emoldurado por cabelos ruivos compridos, boca vermelha e sensual. Não parava de admirar-me sob todos os ângulos. Enquanto me examinava, não
percebi que entrava em ereção e que isso fazia uma saliência estranha na frente da minha saia.

O companheiro agarrou meu pênis e disse: - Bonita como você é, e com um mastro desses, você vai fazer um estrago entre as bichas de Pigalle.

Não tinha pensado nisso, e sacudi os ombros. Ele me envolveu num xale e me levou à casa de Dany para jantar e mostrar-me. Lá, estávamos à vontade, ninguém além
dos travestis e seus clientes. Pessoas do mesmo mundo que eu. Como novidade, fiz muito sucesso. Pus-me a rir como uma garota com cócegas. Minha transformação
profunda começava.

Mandei depilar as sobrancelhas, as pernas e as axilas, deixei meus cabelos crescerem. Minha mulher fingia que não notava nada.

Um dia, por acaso, assisti a uma bela briga com a polícia militar; eu não estava tomando parte na manifestação, pois o Partido não tinha convocado. De repente,
parei, como que fascinado, diante de uma visão grandiosa. Aquele bando de homens com capacetes, armados com longos cassetetes, tinha-se

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transformado num grupo de sujeitos que continuavam com capacetes e cassetetes, mas vestidos de renda, com luvas, cinta-liga, camisolas transparentes, calcinhas
rosa, verdes, pretas, vermelhas, brancas, azuis. Alguns detalhes comoventes - tendo puxado um fio das suas meias, tentavam prendê-lo com o dedo úmido de saliva.
Diante da extensão dos estragos, atacavam cada vez mais, furiosos. Como eram bonitas aquelas bundas esticando a seda ou a renda, aquelas coxas aveludadas sob as
meias, aquelas cinturas apertadas!... Um movimento da multidão me empurrou e me trouxe de volta à realidade. Mas não fiquei menos persuadido de que, sob o pesado
uniforme, alguns, como eu, usavam meias e cinta-liga. Muito mais homens do que se pensa têm esta mania inocente.

Um dia após as eleições, a atitude da minha mulher, dos meus camaradas, militantes ou não, tornou-se insuportável para mim. Todos me pareciam hipócritas, fora
da realidade, da "sua" realidade. Deixei minha família sem maiores explicações, a não ser um "Estou cheio" definitivo. Encontrei um quarto num hotelzinho dama
Durantin e, depois do trabalho, eu ia para lá, fazia uma toalete minuciosa, perfumava-me com Shalimar, fazia a barba, me maquilava longamente, escolhia com cuidado
minha roupa íntima, de cor variando conforme meu humor, enfiava minhas meias fumê, é a cor de que mais gosto, e calçava cada vez com mais facilidade meus sapatos
de salto. Completava o conjunto com uma fina combinação que casava com o restante das peças íntimas e com um vestido preto ou azul. Na época, eu só tinha

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dois. Agora tenho um guarda-roupa bem mais completo. Vou mostrá-lo a você. O ponto final era a escolha da peruca, pois meus cabelos ainda não estavam longos como
eu gostava. Tinhadeixado de lado o ruivo, muito vulgar, pelo castanho com reflexos dourados, achando que valorizavam mais minhapele. Você não acha?

Lise não tinha podido dizer uma palavra, aliás, nem tentou, estava muito interessada, para não dizer fascinada, pelo que lhe contava ele ou ela, já não sabia
mais... a pessoa que estava diante dela. Isso lhe lembrou uma noite... passeando entre dois números do palco do Alcazar, ela tinha sido abordada por um travesti
que fazia parte do espetáculo, exageradamente maquilado de branco e preto, de fabulosos cílios postiços, envolto num incrível vestido de paetês, com plumas na
cabeça e uma voz tão forte que a gente não podia se enganar quanto ao seu sexo. "A abordagem" tinha sido tão banal como a de qualquer outro macho na rua:

-Passeando, hein? Tão bonita e sozinha? Posso lhe oferecer um trago depois do espetáculo?... - e outras bobagens do gênero.

Tudo isto dito enquanto a puxava para um canto do palco. O espanto de Lise foi tamanho que ela se deixou levar e conseguiu apenas balbuciar:

- Mas... você se interessa por mulher? Ele caiu na gargalhada, tomou-lhe a mão e pousou-a sobre seu sexo.

- Veja, e grudou-se nela. Com efeito, Lise não podia ignorar que ele se

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comportava como qualquer homem que estivesse com desejo de fazer amor. Ela nunca tinha ficado tão perturbada. Achava que estava a par de muitas coisas, mas, agora,
sentia-se completamente superada. Todo seu universo erótico balançava. "Então travestis, tão femininos, podiam ser homens iguais aos outros?" Aproveitando-se
do seu espanto, o rapaz tinha levantado a saia dele e começava a levantar a dela.

"Mas eu não quero", dizia Lise a si mesma, deixando-se levar, paralisada. Livrou-se graças a uma amiga, cantora da casa, que lhe disse:

- Ora, Lise, que é que você está fazendo aqui? Seus amigos estão procurando você por toda parte.

Voltando a si, desprendeu-se do rapaz despeitado que marcara um encontro com ela para depois do espetáculo.

A cantora levou-a ao seu camarim para que se penteasse e, principalmente, limpasse o rosto que estava lambuzado com a maquilagem do outro. Vexada, Lise explicou-lhe
o que acabara de acontecer e sua descoberta, o que fez sua amiga rir.

Mais tarde, ela se surpreendeu rindo da própria ingenuidade.

Lise olhava com atenção para o homem que estava à sua frente, sentindo-se cheia de simpatia por ele.

- E que você faz agora?

- Deixei meu trabalho. Estava ficando impossível, meus antigos colegas me olhavam com ar de gozação. Um dia, um deles conseguiu
surpreenderme quando ajustava as meias. Começaram a desconfiar

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de alguma coisa. Preferi ir embora. Agora trabalho numa boate de pederastas da rua des Martyrs, cuido do vestuário. Ganho muito mais do que antes. Mando dinheiro
para minha mulher regularmente. Tenho boas amigas, divertimo-nos muito juntos. Às vezes, torno a vestir meus trajes masculinos e arranjo uma puta, apenas para
não perder o hábito. Porque, acredite se quiser, eu continuo sendo homem. Pouco me importam os implantes, as operações, o transsexualismo, como dizem. Gosto mesmo
é de usar roupas femininas, imitar mulheres bonitas. Se a sociedade fosse mais bem constituída, cada um deveria poder vestir-se como quer, como se sente à vontade.
Acredite, tudo andaria melhor nos canteiros de obras, nos escritórios, se os sujeitos que ficam excitados com isso pudessem andar vestidos de mulher.

Essas profundas considerações a respeito de uma nova sociedade ideal deixaram-no sonhador, amenos que isso se devesse às várias doses de rum que tinha bebido
durante seu longo monólogo.

Lise também tinha bebido muito e começava a se sentir cansada. Consultou o relógio. Estava lá há mais de três horas.

Deixou seu companheiro, absorto demais em seus pensamentos para perceber sua partida, aproximou-se do bar e pagou a despesa deles. Lá fora, a neve tinha começado
a cair de novo, pousando sobre Montmartre um grande silêncio. Lise ergueu o rosto para receber a carícia fria dos flocos, enquanto se dirigia para o táxi que estava
estacionado diante da igrejinha de São Pedro.

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***

LUCIENNE ou a apaixonada da galeria Vérot-Dodat


Toda mulher, neste mundo, pede Ou a riqueza ou a grandeza:
Eu digo que o homem teso
É o único que tem algum direito sobre meu coração.

O prazer das Damas
(Canção da sala da guarda)


Os raros comerciantes da galeria Vérot-Dodat conheciam bem a silhueta de Lucienne e seus hábitos. Todas as semanas, há cinco anos, ela entra na loja do restaurador
de relógios e carrilhões antigos, antiquário mundialmente conhecido em sua especialidade e colecionador de objetos religiósos, alguns dos quais no mínimo curiosos,
que invadiram não só a minúscula lojinha, mas também o apartamento ao qual se chega por uma escada de caracol. São só santos retorcidos, em êxtase, os cabelos
despenteados, as roupas curiosamente em trapos, olhos fechados diante de doces mistérios, a boca entreaberta como se para conservar beijos divinos; monges de olhar
lúbrico flagelando feiticeiras brancas; padres de lábios gulosos, a mão escondida na batina, aconselhando belas pecadoras tomadas de remorsos; mártires de seios
queimados ou arrancados; virgens atiradas aos

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leões, em posturas obscenas; mulheres fustigadas por uma soldadesca musculosa e seminua; São Sebastião com feridas semelhantes a bocas, os olhos erguidos para
o céu e parecendo dizer: "Mais"; jovens e efebos com mãos de carrascos; crianças esquartejadas, queimadas, afogadas, para a maior glória de Deus e o prazer de
Raoul, senhor daquele lugar.

Lucienne sempre entra na galeria pela rua JeanJacques Rousseau e sai pela rua de Bouloi. Em cinco anos, jamais quebrou este ritual.

Assim como nem uma só vez foi visitar Raoul sem levar-lhe um presente, geralmente um bordado, um desenho, um livro de iluminuras feito por ela, enfim, tudo o
que uma mulher habilidosa apaixonada pelo trabalho bem-feito pode oferecer a um homem que ama.

Daqui a alguns dias será Natal; por isso Lucienne fez questão de que seu presente estivesse à altura do acontecimento. Estende a Raoul um embrulho muito grande,
cuidadosamente embrulhado em papel de seda e amarrado com fitas rosadas.

- Feliz Natal, meu nobre. Raoul tomou-lhe o embrulho das mãos e lhe dá dois grandes beijos no rosto, ainda frio pelo ar de inverno.

- Você não devia, Lucienne, vou brigar com você. Estou sempre dizendo que não vou aceitar seus presentes. Não faço isso com medo de magoar você...

- Mas, é meu presente de Natal - diz, com uma vozinha fraca, interrompendo-o.

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Raoul beija-a outra vez, enternecido e desarmado.

Abre o embrulho com cuidado. A princípio, pensa que é uma toalha de mesa comum, mas desdobrando um guardanapo, depois outro, começa a rir de felicidade e, quando
desdobra a toalha, seu riso é de delírio: Lucienne superou-se a si mesma. Em cada um dos doze guardanapos, bordados em ponto de haste, fatos eretos, sexos femininos
abertos, fechados, louros ou morenos. Quanto à toalha, é uma obra-prima: uma vasta orgia se desenrola diante dos olhos maravilhados de Raoul, que bate palmas
como uma criança. Uma lágrima de satisfação corre pelo rosto de Lucienne, feliz por ver seu presente tão apreciado. Raoul abraça-a pela cintura e começa a dançar
no exíguo espaço deixado pelos relógios e os santos. Por pouco ele não esbarra num relógio Luís XV de parede, que lhe foi confiado pelo museu do Louvre. Isso
o acalma um pouco.

- Querida amiga, vamos estrear esta obraprima na noite de Natal, conto com você.

- Você sabe que não é possível, preciso cuidar dos meus filhos. Fica para outra vez, virei tomar um chá com você e falaremos disso e daquilo. A propósito, sabe,
na vinda, fui ao banheiro dos homens na estação Louvre do metrô e vi um... enorme... enorme mesmo... deste tamanho no mínimo!...

Fez um gesto tão amplo, que Raoul ficou sonhando!

-Ah, você está exagerando! - Não, eu lhe garanto que até tive medo. Era

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grosso como meu braço, cheio de veias, e retesava com tanta força que a ponta estava roxa. Oh, como fiquei com inveja. Um pau como aquele não anda circulando
pelos banheiros - acrescentou, com um muxoxo de entendida.

Raoul inclina a cabeça com ar afirmativo, como alguém que também entende do assunto.

Ficam um momento em silêncio, entregues ao seu devaneio povoado de falos cada vez mais gigantescos. Juntos, dão um suspiro tão forte que ambos desatam a rir.

Lucienne rearrumou seu gorro de astracã, examina sua bolsa para ver se está bem fechada, enfia as luvas, ajusta o mantô, também de astracã, e, depois de um último
beijo em Raoul, sai em direção à rua du Bouloi.

Raoul fica olhando sua amiga afastar-se com seu passo lento de mulher velha, sempre espantado com tamanha regularidade em sua obsessão, com tal juventude nas suas
fixações. Era o sexo dos homens, seus paus, como ela dizia com voz gulosa.

Raoul a conhecera quando ainda trabalhava na Biblioteca Nacional e ele ia fazer pesquisas sobre relojoeiros do século XVII. Um dia, abrindo um enorme e antigo
volume, teve a surpresa de encontrar uma carta de amor, tão obscena e escrita num inglês dos mais elegantes, que ficou atordoado. Como não tinha nenhum nome, imaginou
que tinha sido esquecida por um leitor precedente. Mas quando, no dia seguinte, num outro livro, tão venerável quanto o

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da véspera, encontrou outra carta, ainda mais explícita do que a anterior, e mais, com um desenho erótico enfeitando a margem, começou a pensar que o destinatário
daquelas cartas podia ser ele. Olhou ao redor discretamente. A única coisa que se ouvia era o ruído de páginas viradas. A assistência, pouco numerosa, estava imersa
num torpor estudioso. Os funcionários pareciam ter passado da idade de entregar-se a semelhantes manifestações. Seu limitado horizonte deixou Raoul perplexo e sonhador.
Fechou o livro, toda a vontade de estudar o tinha abandonado.

- Não está encontrando o que procura? - perguntou-lhe a honrada bibliotecária.

Raoul sorriu, ouvindo a pergunta. Não podia, é claro, falar com aquela senhora de cabelos brancos - com idade para ser sua mãe, se não sua avó, sem dúvida às
vésperas da aposentadoria, sobre as duas cartas encontradas nos livros entregues por ela. Sem dúvida tinha, nos reservados, um admirador, ou admiradora - nada lhe
tinha permitido identificar o sexo do autor - tímido demais para se declarar, e que se utilizava deste meio prático para declarar sua paixão. Romântica, a idéia
seduziu Raoul.

-Tem alguém nos reservados? - perguntou à velha senhora, que continuava de pé perto dele.

- Não, todo mundo está aqui. Raoul olhou novamente em volta e o que viu não lhe deu nenhuma pista. Os três homens de serviço, vestindo o uniforme cinzento de
costume, realmente não tinham o menor sex-appeal; um era baixinho, barrigudo e careca; o outro, de cabelos esfiapados,

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era sacudido por tiques que o fizeram pensar em Malraux; quanto ao terceiro, sua barbicha branca e respeitável, seu pincenê preso por um cordão preto, rosto que
saltara direto das páginas de um livro de Anatole France ou Paul Bourget desencorajavam qualquer idéia devassa.

Quanto às mulheres, não era melhor; além da bibliotecária quase aposentada, a inevitável solteirona, seca e intratável, que só se encontra, parece, em certas repartições
públicas.

Desencorajado, Raoul ergueu os ombros e levantou-se.

- Até amanhã, senhor - disse a velha senhora com um sorriso amável.

No dia seguinte, um compromisso imprevisto impediu-o de ir à biblioteca. No segundo dia, viajou para a Itália por algum tempo. Só duas semanas mais tarde retomou
seu lugar, completamente esquecido das cartas.

Esperou muito tempo até conseguir o livro pedido. Foi a própria bibliotecária quem o trouxe.

- O senhor ficou muito tempo ausente - disse, pondo o livro diante dele sobre uma estante.

Raoul agradeceu-lhe e começou a folhear o livro. Não tardou a encontrar a terceira carta, na qual lhe diziam a que ponto sua ausência tinha sido dolorosamente
sentida, em termos tão crus que ele recuou. As palavras eram tão precisas, as descrições tão obscenas, que Raoul sentiu seu sexo levantar-se. E nem sequer ficou
surpreso quando uma mão o pegou.

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Sentada perto dele, o rosto quase brilhando, a bibliotecária o massageava delicadamente.

O espanto de Raoul foi tão grande, que ele desentesou de repente. Achou que devia desculpar-se diante do ar decepcionado da velha senhora.

- Venha encontrar-me nos banheiros do andar de cima - disse ela, levantando-se.

O estupor deixava Raoul sem reação. Então, era ela quem escrevia as cartas?

Não conseguia acreditar. No entanto, nesse terreno poucas coisas poderiam surpreendê-lo, mas, agora, sentia-se ultrapassado. Tanto atrevimento e tanta naturalidade
num lugar onde menos esperava encontrar aquele tipo de manifestação. A idade e a autoridade da senhora fizeram com que se sentisse como um garotinho diante da
sua professora.

E, pensando nisso, achou sua atitude mesquinha e estúpida. Não é por estar velha que uma pessoa deixa de interessar-se pelas coisas do amor; o que acontece é
o contrário. Vamos, uma boa ação, ninguém dirá que recuei diante de uma proposta amorosa. Por sua vez, levantou-se.

Ela esperava diante da pia. Quando ele entrou, ela fechou a porta com uma chave enorme. Em seguida, sem uma palavra, ajoelhou-se e começou a tirar o sexo de Raoul
de dentro das calças. Raoul não estava muito orgulhoso com seu aspecto enrugado, mas, aparentemente, isso não preocupou a velha senhora que, tomando-o na boca,
deu início a uma felação como ele jamais tinha visto. Logo seu sexo começou a reviver e adquiriu proporções respeitáveis.

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Satisfeita, a bibliotecária recuou para contemplar sua obra.

- Oh, que pau lindo, como se entesa bem! Eu sabia que você era um bom menino, dotado de uma pica grossa.

A contragosto, Raoul sentiu-se lisonjeado. Pegou o rosto da futura aposentada entre as mãos e agitou-se dentro de sua boca até o gozo. Ela sorveu com uma expressão
gulosa. Raoul ajudou-a a levantar-se. Ela tirou de um de seus inúmeros bolsos um lenço branco e limpou-lhe o sexo carinhosamente.

Divertido e feliz, levou-a para jantar num bistrô da rua Richelieu e, lá, ela lhe contou sua vida. Desse dia em diante, ficaram amigos. Mas nunca mais aceitou
suas carícias. A princípio, ela ficou triste, contudo, pouco a pouco ela o transformou em confidente de suas maluquices, e ele não deixava de contar-lhe algumas
de suas próprias aventuras, só quando envolviam "paus". As outras não lhe interessavam.

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***

LOUISE ou o bairro de Javel em 1968


Que coração poderia suportar o encanto inexorável Da noite explodindo no firmamento fatal Sem arrancar de dentro de si um grito puro como uma arma?

Valéry


O bairro do cais de Javel, da ponte Mirabeau ao lado do décimo quinto distrito, a rua des Cevennes e o cais André Citroën exercem sobre Louise uma atração que
seus amigos não conseguem compreender, principalmente depois do fechamento, em 1968, e depois da demolição, em 1970, do célebre baile da Marine. No entanto, é
desde aquela época que Louise não consegue passar por esse canto de Paris sem sentir um aperto no coração e uma contração de desejo nas entranhas.

Arrastada por belas amigas, freqüentadoras assíduas das exposições de Censier, da Sorbonne ou do Odéon, embriagada pelo perfume das romãs do bulevar Saint-Germain
e do bulevar Saint-Michel, que se misturava ao odor da terra parisiense que, como diz Rictus: "Na primavera, cheira a merda e a lilaces...",

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perturbada com aqueles jovens machos suados, defendendo suas barricadas ou enfrentando, com paralelepípedos nas mãos, as hordas negras dos repressores,
de capacete, botas, com elmos de cavaleiros medievais baixados sobre rostos que ela imaginava cruéis e viris, cassetetes em punho, outro objeto de fantasia, confusa
e assustada, Louise já não sabia bem onde se situava moral, intelectual e politicamente. A única coisa que sabia é que não queria mais ficar alheia à festa, mas
dela participar distribuindo panfletos, vendendo L'Enragé e outras folhas editadas pelas ruas de Paris, ou desfilando ante a convocação dos sindicatos e dos partidos.

Naquele dia, tratava-se de apoiar os operários da Citroën em greve: "operários-estudantes, a mesma luta."

Louise e suas amigas tinham vindo no carro de Michèle, a única que ainda tinha combustível. Todas tinham adotado um uniforme de combate: jeans, camisas quadriculadas,
lenço no pescoço para se proteger do gás lacrimogêneo, e sapatos rasos para correr mais depressa diante do ataque da polícia. Todas, menos Louise, que detestava
o que chamava de disfarce, ou, conforme o caso, de uma usurpação de uniforme. Afinal de contas, não passavam de revolucionárias de salão. Ela via inconveniência
naquelas roupas que, achava, não passavam de uma moda.

Por isso, Louise estava vestida como de costume: uma saia-envelope plissada, um pulôver leve, meias e sapatos mais adequados para dançar do que para participar
de manifestações, bolsa a tiracolo, tudo

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preto e iluminado por um blazer de um vermelho gritante: "As cores da anarquia", tinha declarado Anne num tom de provocação, ela, que estava apertada aponto de
não poder respirar num jeans que tinha escolhido propositadamente dois números menor do que o seu. Louise limitou-se a rir.

Por sorte, Michèle encontrou um lugar não muito longe da fábrica, perto da Imprensa Nacional, sob o olhar zombeteiro e os gracejos dos operários do livro, eles
também em greve.

A rua Balard estava escura de gente. Uma multidão jovem, excitada, alegre e entretanto séria. Slogans explodiam diante dos operários silenciosos por trás dos portões
fechados da fábrica. Bandeiras vermelhas e pretas agitavam-se; aqui e ali algumas bandeirolas, quase se esperava ver lampiões acesos na doce noite que acabava
de cair, e ouvir uma ária de acordeão ou de harmônica.

Fazia bem uma hora que Louise e suas amigas estavam lá, repetindo slogans, cantando "A internacional", mas nada acontecia, tudo estava calmo, como se a doçura
da noite impedisse muita agressividade. Até os policiais estavam encafuados no fundo de seus carros. Louise começava a aborrecerse e a sentir dor nos pés. Olhou
o relógio, quase onze horas. Chegaria atrasada. Tinha marcado encontro com seu amante numa ruazinha (não conseguia lembrar o nome), entre a rua Balard e o cais
AndréCitroën. Olhou ao redor, procurando as amigas. Não as vendo, saiu com uma pressa repentina, abrindo caminho entre a multidão, que se afastava gentilmente

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diante daquela moça bonita, com um grande coque negro.

Encontrou a ruazinha, que estava deserta. Parou e sacudiu a cabeça como um cavalo que acabam de livrar dos arreios. A multidão assustava-a, e era sempre uma libertaçãO
quando se sentia só. Entrou na rua escura e mal pavimentada, iluminada apenas pelas luzes de um pequeno café de onde saíam ruídos de copos, do ar-condicionado,
da algazarra das conversas. Sobressaltou-se diante do vulto alto saído da sombra de uma porta, que lhe barrou o caminho. A alegria espantou o medo: era seu amante.
Num ímpeto, ela colou seu corpo ao dele, esfregando-se como um jovem animal, mordiscando-lhe o pescoço, aspirando seu perfume, para chegar à boca da qual se
apoderou, gemendo. Ele correspondeu ao beijo, apertando-a contra si, machucando um seio cujo bico logo se eriçou. Parecia que os dois corpos não poderiam separar-se;
entretanto, ele a afastou e segurou-apelo braço, ofegante, o coque prestes a desmanchar.

- Calma, menina, calma - disse, rindo, e levando-a para seu carro.

Mal sentou, ela se jogou de novo contra ele, desabotoando-lhe a camisa para melhor sentir sua pele. Ele, abrindo-lhe a saia, descobriu as meias, depois o alto
das coxas que pareciam ainda mais brancas em contraste com as ligas e as meias pretas. Uma mão instalou-se na fenda quente e úmida, enquanto a outra erguia o
pulôver e soltava o sutiã. Seus lábios prenderam o bico de um seio e o puxaram lentamente.

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Louise tinha a impressão de que toda a sua atenção, todo o seu prazer estavam concentrados naquela carne macia deliciosamente torturada. Mas logo o prazer correu
através de seu corpo, suas coxas se abriram, seu ventre avançou para os dedos que a vasculhavam. A calcinha fina era uma muralha que atrapalhava cada vez mais,
o amante tirou-a, abrindo-lhe as coxas ao máximo. Tomada por um sobressalto de pudor, lembrando-se de repente que estava num cano, estacionado numa rua a dois passos
de milhares de pessoas cujos gritos chegavam até ela, tentou fechálas; ele se opôs, abrindo-as ainda mais. Naquele momento ela se sentiu mais do que nua: oferecida.

- Tenho medo - murmurou. -Eu sei, mas está gostando. Ela se sentiu corar. Sim, gostava de estar aberta daquele jeito, arriscando-se a ser vista a qualquer momento.
Dois homens acabavam de sair do café, pararam perto da porta em que Louise estava apoiada. Um deles já estava com o próprio sexo na mão, e acariciava-o lentamente
olhando para suas coxas abertas. Louise gemeu, tentou fugir do amante, este a segurou, aumentando a sucção dos lábios e introduzindo os dedos na sua vagina molhada.
Então ela se entregou, deixando-se invadir por um prazer cada vez maior, nem sequer se sobressaltou quando sentiu uma mão forte e rugosa apertar-lhe o outro seio,
só gemeu mais alto. O homem a estava machucando, arranhando-a profundamente, mas a dor se transformou num prazer tão violento que ela gritou, molhando a mão do
seu amante. Quando reabriu os

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olhos, a rua estava deserta e o amante lhe beijava as pálpebras carinhosamente. Não ficou sabendo se tinha sonhado com a presença dos dois homens.

- Aqui, aqui, devagar, está bem, querida... Como gosto do seu prazer!...

Ele puxou a cabeça dela para seus joelhos. Louise entendeu o que ele esperava dela. Puxou o fecho da calça. O sexo duro, quente e perfumado de seu amante pareceu
precipitar-se contra ela. Tomou-o entre os lábios docemente, provocando-o com os dentes e com a língua. O amante puxou a cabeça de Louise e seu sexo penetrou-lhe
na boca, quase enchendo-a, estava engrossando mais ainda. Louise percebeu que ele ia gozar logo. E quando, em longos jatos, ele se derramou na sua boca, ela gozou
junto com ele, pela segunda vez.

Descansaram por muito tempo, o corpo e o coração cheios de felicidade.

Louise estava linda, a cabeça recostada no encosto do banco, os cabelos desfeitos espalhados ao seu redor, emoldurando-lhe o rosto pálido, ressaltando o contorno
cheio dos seus lábios. Abriu os olhos, pousou no amante um olhar de amor agradecido, e disse:

-Estou com fome. Ele riu, arrumando-se, não permitiu que ela voltasse a pôr sua calcinha, que enfiou no seu bolso.

- Reservei uma mesa não muito longe daqui, no Bistrô 121. Gostou?

O jantar foi delicioso e muito agradável. Falaram pouco sobre os acontecimentos e muito sobre si

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mesmos. Quando saíram, era quase uma hora da manhã, o ar tinha uma transparência estranha, uma brisa leve fazia as folhas dos plátanos do bulevar farfalharem.

-E se fôssemos ao baile da Marine? - falou Louise.

-Está com vontade de se acanalhar? - disse o amante.

Isso os fez rir. Entraram no carro e pararam no cais, bem perto do baile, cujo letreiro de neon azul clareava a noite.
O salão estava lotado e enfumaçado. A orquestra tocava, numa penumbra propícia aos apertões furtivos, um tango antigo. Os dançarinos formavam uma massa sombria
em movimento. Louise pensou em matas espessas agitadas pelo vento. Um empregado, guimba nos lábios, acomodou-os em uma mesa já ocupada. Pediram duas cervejas.
A música parou e uma luz, que feria os olhos, acendeu. Era o intervalo. Garotas com as maçãs do rosto vermelhas, olhos muito brilhantes e axilas úmidas vinham,
rindo e empurrando-se, sentar de novo nos seus lugares. Os homens foram aglomerar-se ao redor do bar. Sós, alguns pares não se separaram.

A multidão que estava lá era bem diferente da que fazia manifestações há pouco. Aparentemente, nenhuma preocupação política agitava seu pensamento, todos estavam
lá para divertir-se, beber e paquerar; os Séguy, os Cohn-Bendit, os Mitterrand ou os de Gaulle que ficassem para os filhos dos burgueses que achavam que estavam
fazendo uma revolução

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só porque atiravam paralelepípedos sobre os guardas, gritando: "Polícia repressiva". Aqui, falava-se de motos, futebol, bebedeiras, e principalmente sobre
a bunda das garotas. Estas eram as coisas sérias que ajudavam, uma vez por semana, antes da greve geral, a suportar o trabalho detestado e mal pago, o contramestre
ou o mestre-de-obras, os pais ou a esposa, em resumo, a suportar a sociedade. O resto, bem sabiam que, de qualquer modo, seriam sempre eles que se fariam beijar
quando a festa acabasse.

Uma turma de uns dez rapazes, todos de blusão de couro com tachas, entrou barulhentamente, chamando a atenção. Houve um murmúrio meio assustado entre as garotas
próximas:

- É preciso prestar atenção, é a turma de Choisy.

Aos empurrões e cotoveladas, abriram passagem até o bar, em que se apoiaram olhando para o salão com ar zombeteiro e satisfeito de quem acaba de fazer uma proeza.
Depois de ter olhado longamente para a multidão, voltaram-se com desprezo, pedindo cervejas, que beberam no gargalo. A espuma escorria-lhes pelo queixo. A orquestra
voltou, tocando o que achava ser um tuíste. Os dançarinos voltaram a invadir a pista, menos numerosos do que durante o tango.

Louise encostou-se ao seu amante, feliz por estar lá. Um dos rapazes vestidos de couro aproximou-se, convidando-a para dançar. Ela ia recusar, quase chocada por
ter sido escolhida, uma vez que estava com outro homem, mas o amante a empurrou para ele.

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Ela se levantou a contragosto. Logo a seguir, ele começou a dançar de um modo bem particular. Nada a ver com o requebro dos outros, ao contrário, era um ondular
lento e insinuante no ritmo da dança e ao mesmo tempo sem nenhuma relação com ela. Ela tentou separar-se, furiosa com tanto descaramento, mas o rapaz a manteve
firme contra si, acentuando a pressão do seu ventre contra o de Louise. Quase em seguida, ela sentiu seu sexo endurecer. Uma onda de prazer invadiu-a tão brutalmente
que ela sentiu as pernas amolecerem embaixo dela, ele a segurou, um sorriso satisfeito nos lábios. Então foi ela que se esfregou nele, ofereceu-lhe seus lábios.
O beijo dela foi tão brutal, que seus dentes feriram a boca do rapaz. O gosto de sangue aumentou seu desejo. Os braços apertados ao redor da nuca meio desajeitada
que cheirava a couro, a fumo, a cerveja, a suor e a lavanda; Louise, esquecendo seu amante, não pensava em mais nada a não ser no desejo animal e brutal que a
invadia.

O homem tinha enfiado a mão sob a cintura da sua saia, constatou que ela estava sem calcinha. Resmungou de satisfação, amassando as nádegas nuas da moça. Louise
tentou, molemente, afastar a mão dele. Seu fraco movimento de recusa conseguiu, claro, fazê-lo retirar a mão, para, levantando a frente da sua saia, segurar seu
sexo aberto e úmido, que ele apertou, para seu maior prazer.

A luz diminuiu de intensidade, a música também. A orquestra tocava um slow. Todo o corpo de Louise estava atento aos movimentos dos dedos do rapaz quando, de
repente, ela se lembrou do

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amante. Que iria pensar dela? Não precisou inquietar-se com a resposta, ele estava atrás dela, pôs as mãos nos seus seios e, dançando nesta posição, ela sentiu
o monte duro do sexo dele contra sua espinha. Então, abandonou-se completamente ao prazer desses dois homens retesando-se por ela. Imagens de uma obscenidade
louca desfilaram atrás de suas pálpebras cerradas.

Seu amante lhe mordiscava as orelhas, murmurando palavras que em outros momentos ateriam feito tremer de vergonha. Disse ao rapaz algo que Louise não entendeu.
Este fez um sinal com a cabeça. Os dois homens não esperaram que a dança terminasse para arrastar Louise. O rapaz, habituado com aquele tipo de lugar, foi na
frente. Louise, com um braço ao redor da cintura do amante, deixou-se levar, sem fazer uma só pergunta, confiante. Foram para o subsolo. O rapaz dirigiu-se a uma
porta com a indicação "toaletes". Louise retesou-se e parou, pensando: "Oh, ali não!" Olhou para o amante com ar de súplica. Mas ele não estava mais rindo, parecia
mais pálido, mais duro ainda. A angústia invadiu-a. A mão dele empurrou-a com firmeza para dentro dapeça mal iluminada, com paredes de azulejos brancos, dos quais
faltavam alguns, o que acentuava o aspecto deteriorado do local. Um tabique a meia altura separava o setor dos homens. Três portas de um e outro lado, cheias
de furos para os voyeurs. Um cheiro forte flutuava ao redor deles. O rapaz abriu uma das portas do lado reservado às mulheres, o cheiro ficou mais violento
ainda. Louise só queria uma coisa, fugir, todo desejo

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desvanecido. O rapaz já tinha aberto suas calças, soltando o sexo longo, nodoso e moreno. Seu amante debruçou-a sobre o vaso. Para não cair, Louise teve que apoiar-se
nas bordas úmidas; a náusea lhe subia aos lábios quando ele ergueu sua saia, entregando suas nádegas, seu ventre ao desejo do desconhecido.

- Que bunda linda! -murmurou o rapaz, passeando seu sexo ao longo do rego, abrindo-o bem.

Pareceu hesitar entre penetrar pela frente ou por trás. Num golpe brutal, penetrou no sexo assim aberto. Foi tudo tão rápido, que Louise deu um grito de surpresa
e de raiva. Tentou fugir daquele membro duro que se chocava com o fundo do seu ventre, causando-lhe a cada golpe uma dor surda. Mas apresa estava segura. Lágrimas
rolaram pelo rosto de Louise, ao longo do nariz, marcando seu rosto com traços negros de rímel. Seu amante, acocorado perto do vaso, levantou-lhe a cabeça, lambendo
suas lágrimas e beijando-a de vez em quando. Levantou-se, desabotoou, por sua vez, as calças, e fez sinal para o rapaz de que queria tomar seu lugar. Bom jogador,
este retirou-se rindo e foi postar-se perto da cabeça de Louise, que voltou a levantar, segurando-a pelos cabelos desfeitos, e, forçando-lhe os lábios, enfiou-se
em sua boca no mesmo instante em que o sexo de seu amante forçava-lhe brutalmente a bunda. Ela não esperava ser possuída por lá, e sua dor foi tanta que teria
desabado se ele não a estivesse segurando firmemente contra si. Contudo, ele esperou que a dor passasse, depois delicadamente, ternamente, confirmou sua posse. Pouco
a pouco, o corpo de Louise se distendeu,

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as nádegas se abriram, permitindo que seu amante penetrasse profundamente. Sua boca ao redor do sexo do rapaz tornou-se gulosa, deixou de sentir o desconforto
da sua posição, o cheiro repugnante, a humilhação de serforçada daquela forma: era só uma mulher ávida de prazer, entregue a quem quissesse possuí-la.

Os dois homens e Louise gozaram ao mesmo tempo. No espaço de um minuto, o cheiro insípido do esperma sobrepujou o odor do local. Seu amante saiu dela docemente.
Um fio de sangue escorreu ao longo de suas coxas. O esperma do rapaz tinha um gosto acre e picante. Enxugou-se nos cabelos de Louise, não por desprezo, mas assim,
tudo naturalmente. Ajudou-a a levantar e, erguendo-lhe o rosto, beijou-a carinhosamente nos lábios. Essa delicadeza, depois daquela brutalidade, era tão inesperada
que as lágrimas voltaram a correr pelo rosto de Louise, mas, agora, sem vergonha nem tristeza. O rapaz saiu depois de uma última carícia. O amante ajudou Louise
a arrumar a roupa. Ela não ousava encará-lo. Que iria pensar dela? Por que - ele e ela - tinham-se comportado daquela forma? Não fazia parte dos hábitos deles.
Claro, ele às vezes falava do prazer que Louise poderia sentir fazendo amor com vários homens ao mesmo tempo. Mas, a cada vez, ela não o deixava continuar, tapando-lhe
a boca com a mão, mais perturbada do que gostaria de admitir para si mesma.

Louise lavou o rosto, fez um bochecho com a água da pia e enxugou-se com a saia. Mulheres entravam

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e saíam, olhando-a com ar de reprovação ou cúmplices. Desistiu de pentear os cabelos emaranhados. Subiram e, de comum acordo, saíram e caminharam na direção
da ponte de Grenelle. Ela se apoiou no parapeito, olhando o Sena correr entre os reflexos escuros e brilhantes. Parecia-lhe que a água corrente, a doçura da noite
a purificavam. Purificála? Mas de quê? Ela não tinha sentido prazeres tão variados, tão completos, tão puros em sua perfeição, que por si só a purificavam? Encorajada
por esse raciocínio, encarou seu amante, que estava com um ar meio preocupado.

Mas diante de seu rosto liso, de seu olhar quase infantil, ele se sentiu absolvido. Inclinando-se diante dela, beijou-lhe a mão. Olharam-se com a intensidade
dos que se amam e procuram penetrar um no outro através do olhar, para melhor possuí-lo e fundir-se nele. O que sentiam era tão forte que lhes parecia que um
laço tangível, feito de carne, de nervos e de sangue os unia.

Carros da polícia atravessaram a ponte na direção da Maison dela Radio, despertando-os para a realidàde dos tempos.

Voltaram através das ruas desertas. Apenas algumas viaturas policiais circulavam. Chegaram em casa no momento em que a noite começava a clarear com a chegada
de um novo dia.

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***

LUDOVINE ou o confessionário de Saint-Sulpice


Espero Deus com voracidade.

Arthur Rimbaud


O bairro de Saint-Sulpice há muito tempo se dedica à literatura e aos "artigos de devoção". Tanto os escritores mais renomados como os mais obscuros sempre o freqüentaram,
seja em busca de inspiração nos jardins do Luxemburgo, pertinho de lá, ou, manuscrito embaixo do braço, à cata de um editor. Há menos de dez anos, ainda cruzavam
com padres, religiosas e religiosos de hábito. Mas hoje é preciso ter um olho experiente para distingui-los entre os passantes. Ludovine nunca se engana. Criada
em pensionatos católicos, ela distingue imediatamente o padre ou o jesuíta ou o dominicano pelo andar, pelo olhar que nada vê, pela contenção do corpo, por uma
leve curvatura dos ombros, mais evidente nos religiosos que, quando são idosos, têm o alto do corpo dobrado, com a cabeça enfiada no pescoço e salientando-se com
relação ao peito, como a de algumas aves.

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Deformações que adquiriram pelas centenas de horas passadas de joelhos, rezando pelos pecados do mundo.

Sem que saiba verdadeiramente por que, aquele bairro a atrai, não só por causa dos sebos da rua do Sena, antes que se transforme na rua de Tournon, com suas butiques
de moda, mas talvez devido a um certo ar provincial, acentuado pelos magazines da rua Saint-Sulpice. Quando, vindo da casa Lolié, na rua do Sena, ela dobrava
à direita na rua Saint-Sulpice, não deixava de parar por muito tempo diante davitrine do especialista em roupas para eclesiásticos e religiosos. O ascetismo dos
hábitos ali mostrados não ficava nada a dever aos da China popular. O terno cinza do pároco não teria desorientado a guarda vermelha; o corte da roupa religiosa
era tão ruim quanto o do uniforme revolucionário. Só a cor não era a mesma. As roupas, tristemente dispostas sobre manequins sem cabeça, tinham a mesma graça dos
sacos de batatas vazios. O tecido, feito para durar muito, lembrava-lhe as tardes de inverno de sua infância, quando a irmã Saint-André lhe fazia repetir sua lição,
com o ruído irritante da sua unha arranhando maquinalmente a sarja negra do vestido comprido. As blusas brancas cuidadosamente abotoadas a fizeram pensar nas
pensionistas songamongas que, depois da missa de domingo, cochichavam entre si num canto do pátio de recreação. Grossos sapatos de feltro preto, cinza ou xadrez
preto e cinza aguardavam os pés inchados que suportavam as pernas pesadas envoltas em grossas meias de algodão cinzento, tão graciosas quanto

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uma perneira na panturrilha peluda de um soldado de infantaria da guerra de 14. As chamadas meias estavam empilhadas impecavelmente não muito longe dos sapatos.
Na vitrine da esquerda, o canto da roupa íntima. Que dizer do equívoco daquela roupa de dormir em lã cinzenta dos Pireneus, e da perturbação que provocava aquela
de lã cor de vinho, com um cordão do mesmo tom cheio de nós na cintura? Quanto à em padrão escocês, em dois tons de cinza, era um delírio ! Ludovine nunca se
atreveu a atravessar a soleira daquele lugar respeitável, com medo de ser tomada por um ataque de riso desrespeitoso.

Pouco mais adiante fica a lojinha do vendedor de círios, velas diversas e artigos de culto. É lá que ela se abastece de pequenas velas de cera natural, com um
cheiro de mel tão bom que lhe recorda a beleza ingênua das igrejinhas gregas. Ela pára também diante da vitrine da livraria Cayla, onde os livros expostos mostram
muito bem suas opiniões políticas. Foi lá que ela comprou, a preço proibitivo, a edição original de Bagatelles pour un massacre, de Celine.

Atravessa a rua e pára diante das edições Alsatia. Lá, também, a gente não pode se enganar quanto à evocação profunda da casa. Veja, reeditaram Le Prince Eric,
Le Bracelet de vermeil, La Tache de vin com capas novas. Ela sente saudade das velhas. Felizmente o editor conservou as ilustrações originais de Joubert, a quem
os livros devem grande parte do seu sucesso. Ilustrações sobre as quais duas gerações de garotos sonharam, e que foram motivo de inúmeras poluções noturnas. Ludovine
ainda se lembra da sua

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alegria quando, abrindo uma mala encostada no fundo do celeiro completa dos Signes de piste. Passou o verão todo ocupada em devorar o conteúdo da mala, lendo
e relendo Le Prince Eric, por quem se apaixonou. A descrição da morte de Eric tinha sido seu primeiro pesar verdadeiro.

Ludovine se perguntou se tinha usado um modelo para imaginar no que se havia transformado o príncipe Eric. Teria morrido como seu herói em Dunquerque, em junho
de 1940, ou teria envelhecido tranqüilamente? Talvez ela tenha passado por ele mais de uma vez sem reconhecê-lo. Pensando nisso, sentiu-se frustrada, logo depois
aliviada, dizendo a si mesma que os heróis de romance mortos aos vinte anos permanecem eternamente jovens.

Sobe pela rua Garancière e passa diante do imponente edifício das edições Plon, que publicam com a mesma satisfação o general de Gaulle e Gérard de Villiers...
À direita, na rua de Vaugirard, uma livraria que parece abandonada e uma encantadora lojinha de cartões-postais, bonecas e brinquedos antigos, quase sempre
cheia de amigos da vendedora, pessoa alegre e acolhedora, mas que quase sempre se tem a impressão de estar incomodando. Depois vem a rua Servandoni, que conservou
todo o seu charme provinciano e a tranqüilidade própria das velhas ruas situadas próximas a igrejas. É uma rua cara a Ludovine. É uma rua que encontrou muitas vezes
em romances. Entre outros, em Paul Bourget, tão injustamente esquecido. E depois, principalmente, era lá que Chateaubriand ia visitar o abade Séguin. Sem ele,

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Lavie de Rancéjamais teria existido. Ela nunca pensa, sem profunda emoção, naquelas linhas sobre o amor, na tristeza de não mais amar e que, apesar de tudo, contêm
uma forma de esperança.

"É uma nova ligação que começa ou uma velha ligação que acabou? Não importa: é o amor que morre antes do objeto amado... Somos obrigados a reconhecer que os sentimentos
do homem estão expostos ao efeito de um trabalho oculto; febre do tempo que produz a lassidão, rouba nossos amores e muda nossos corações como muda nossos cabelos
e nossa idade. Entretanto, existe uma exceção nessa enfermidade das coisas humanas; às vezes acontece que numa alma forte um amor dura o bastante para transformar-se
em amizade apaixonada, para tornar-se um dever, para adquirir as qualidades da virtude; então ele perde seu desfalecimento natural, e vive de seus princípios
imortais."

Ludovine tinha parado, perdida em seus pensamentos: "Saberei, eu também, suportar com dignidade e elegância as transformações do amor?" Solta um profundo suspiro,
cheio de melancolia e recomeça sua caminhada em direção à praça Saint-Sulpice. A praça Saint-Sulpice, desde a construção do estacionamento subterrâneo, adquiriu
"pele" nova. Seu chão é ou pavimentado ou recoberto por grandes lajes de pedra. A fonte resplandece sob as mil gotinhas de seus jatos d'água. As pequenas castanheiras
esforçam-se em vão para enraizar-se na terra magra. E, em algumas tardes de verão, uma feira de objetos usados e

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livros antigos vem alegrar o lugar um tanto severo com suas barracas de madeira pintadas de verde e seus objetos velhos e coloridos. Ela atravessa a praça ensolarada
e senta-se no terraço do café que fica na esquina da rua des Canettes. Lá se discute muito literatura, edição, entre autores, adidos de imprensa ou funcionários
das edições Robert Laffont, que vão beber alguma coisa nos vizinhos. Ludovine pede leite gelado.

Ao lado do café, ela nota a vitrine da lojinha onde todos os anos, na época de Natal, sua mãe a levava com sua irmã para completar seu presépio ou para substituir
as estatuetas que tinham sido quebradas no ano anterior. Menina, ela sentia tal prazer naquela escolha delicada, que muitas vezes, no momento das arrumações,
depois do dia de Reis, ela deixava cair um ou dois dos pequenos personagens mais usados. A cada ano a mãe a repreendia por sua falta de jeito:

- Já que é assim, no próximo ano não faremos presépio. Pior para vocês. De qualquer forma, Marguerite e você já estão muito crescidas. Não são mais bebês.

E a cada ano sua irmã punha-se a chorar, a suplicar à mãe que, é claro, acabava por ceder.

Também se lembrava da solicitude do dono da loja que, quando as via entrar, deixava o canto escuro que lhe servia de escritório e vinha na direção delas esfregando
as mãos com um ar ao mesmo tempo obsequioso e indecente. Durante o tempo que durava a difícil escolha das duas garotas, ele não tirava os olhos da mãe delas.
Ludovine lembra-se perfeitamente

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do dia - ela devia ter oito anos - em que sua mãe lhe comprou uma carrocinha com toldo remendado, puxada por um cavalo, na qual estavam pendurados uma minúscula
bota de palha e pequenos potes de argila, seguida por um bando de ciganos, e em que o dono da loja, continuando a olhar para sua mãe, tinha introduzido a mão na
sua calcinha. Ela tinha ficado tão surpresa, que quase deixara cair a carrocinha. Claro, a mãe ralhou com ela, dizendo que devia ter mais atenção. Ludovine ainda
possui a carrocinha.

Ludovine sente-se bem, feliz sob o sol ainda quente, perdida em suas lembranças. Esquecida de onde está, ela se espreguiça calmamente, arqueando o corpo, fazendo
ressaltar os seios e esticando as pernas, num movimento que faz o vestido subir para o alto das coxas, mostrando as presilhas das meias. A impressão de estar
sendo observada faz com que tome consciência da provocação do seu gesto. Um homem jovem, bonito, sentado não muito distante, olha para ela divertido. Ela puxa
a saia para baixo.

- Que pena, estava lindo. Ela está perturbada. Todo seu prazer de estar lá desapareceu por causa do comentário daquele imbecil. Os homens não entendem nada de
comportamento feminino: sempre falam demais. Ela chama o garçom e paga seu copo de leite. Levanta-se sem saber para onde ir. Dá uma olhada na vitrine Saint-Laurent
e lamenta não ver com freqüência homens vestidos assim. Volta sobre seus passos e compra Le Monde, depois acha que foi um gesto idiota: vai ficar

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com as mãos sujas de preto. No ponto de ônibus, um grupo de religiosas japonesas esperam o 63, entram nele com gritinhos insuportáveis aos ouvidos tão franceses
de Ludovine. Atravessa a rua, enfia as mãos na água gelada da fonte e olha para a igreja inacabada em que Camille e Lucile Desmoulins se casaram e dirige-se para
lá. Sobe lentamente os degraus, empurra a porta estofada em couro e entra.

Ludovine conhece quase todas as igrejas de Paris. É mais forte do que ela, não pode passar na frente de uma igreja sem entrar e acender uma vela. Isso diverte seus
amigos que, sabendo que ela é atéia, lhe perguntam o que é que vai procurar lá. Ludovine não sabe. Não é paz, nem recolhimento, porque, numa igreja, ela quase
sempre fica inquieta, à espreita. Talvez sinta um pouco de medo, o que não é de estranhar. Depois do calor lá de fora, o frescor a surpreende. Aquela igreja é
realmente escabrosa, ela não entende como alguém possa rezar verdadeiramente lá. Numa capela lateral, um padre acabou de celebrar a missa diante de dois ou três
fiéis. Ludovine se ajoelha. Sente um olhar em sua nuca. Sem se voltar, adivinha que é o rapaz do café que a seguiu. Em outra ocasião, isso a teria posto fora
de si, mas, agora, diverte-a, estava começando a aborrecer-se. Os fiéis se vão: a missa acabou, o padre sumiu na sacristia. Uma porta bate. A igreja está vazia.
Soa meio-dia no relógio do campanário, o pó dança na luz. Ludovine se levanta, deixando seu jornal, e se dirige para o fundo da igreja; o homem a segue. Aproxima-se
dela, que pára e olha para ele longamente. Ele é bonito, uma mecha de

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cabelos louros cai sobre seus olhos de um belo azul, ele a joga para trás com um movimento de cabeça. Usa um blusão de couro avermelhado, uma camisa branca aberta
e um jeans lembra um pouco o príncipe Eric. Isso a faz rir.

- Quando ri assim, você parece uma garotinha. Que tagarela incorrigível. Diante dos supercílios franzidos de Ludovine, adivinha que ela está irritada. Aproxima-se
dela, quase tocando-a. Ela é mais baixa e tem que levantar a cabeça para olhar para ele. Põe seus lábios docemente sobre a boca levantada para ele. Os lábios
de Ludovine se entreabrem, pedindo um beijo mais profundo. A língua do rapaz se mostra hábil, depois gulosa. O rapaz afasta-se e olha para ela em êxtase. Sorri
diante do muxoxo decepcionado de Ludovine. Puxa-a para uma capela escura no fundo da qual há um confessionário. Abre a porta do habitáculo reservado ao padre,
senta-se, põe Ludovine sobre seus joelhos e fecha a porta atrás deles.

Ludovine passou os braços ao redor do pescoço do rapaz e beija-o avidamente, enquanto as mãos dele se esforçam para libertar os seios, O vestido não favorece,
ele desiste do sutiã e levanta a saia. A calcinha de Ludovine já está úmida, tenta tirá-la.

- Não, prefiro ficar com ela. Obediente, ele abre o botão do seus jeans, o ruído do fecho de correr lembra o guincho de um rato. O sexo brotou, como se projetado.
Ludovine segurou-o.

- Ah, que beleza! O rapaz ergue Ludovine e a senta sobre suas pernas. A ponta do seu sexo encontra logo a delicada

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abertura. Ludovine dá um gritinho quando ele a penetra. Suas mãos estão apoiadas nos dois lados do confessionário, permitindo que ela mesma comande a cadência.
Pára por instantes, o coração batendo à idéia de que possam ser surpreendidos, mas o desejo é mais forte do que o medo. Quando o rapaz se derrama dentro dela,
mal consegue abafar os gemidos.

Estão lá, suados, esgotados, felizes, um odor selvagem impregna o ambiente. Ludovine não pode deixar de pensar que aquilo pode provocar idéias esquisitas ao padre
que entrar lá depois deles.

Levanta-se desajeitada, chateada com a exigüidade do lugar. Enxuga-se com uma ponta da camisa do rapaz e olha através da janelinha gradeada para ver se o caminho
está livre. Saem. A seda do seu vestido está toda amassada, suja em alguns pontos, seus cabelos estão despenteados, ela se sente corar. Parece-lhe ver um vulto
esgueirar-se atrás de uma coluna: sem dúvida, um voyeur.

O rapaz também está com os cabelos em desalinho, parece mais jovem. Agora está com um ar acanhado e comovido. Puxa Ludovine contra si.

- Como você é bonita. Obrigado. Este simples obrigado toca direto no seu coração. - Obrigada a você também. Caminham abraçados para a saída. A luz ofuscante do
meio-dia faz seus olhos piscarem. Os sinos começam a tocar.

- Você não acha que estão tocando pelo nosso casamento?

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Ela ri. Ficam um longo tempo de pé nos degraus, o corpo feliz, o espírito ausente.
No final da escada, despedem-se e se vão, ele para Montparnasse, ela rumo ao Odéon, seguidos pelo cantar dos sinos.

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***

LUCIE ou os portões da praça Dauphine

É, não há engano quanto a isso,
o sexo de Paris que se desenha sob suas sombras.

André Breton (Pont-Neuf)
La Clef des champs


Elegantemente calçada com finos sapatos negros de salto presos por uma tira ao redor do tornozelo, a costura das meias bem reta, Lucie atravessava lentamente a
faixa de pedestres de Pont-Neuf, indo ao encontro do seu amante.

Era um daqueles belos fins de tarde de outono, de sol ainda quente, que diminuía o passo e enlanguescia o espírito, que faz o coração transbordar de emoção diante
da beleza de Paris, sublimada por uma luz única no mundo. Em tanta beleza havia uma promessa de paz, de felicidade. Parecia que nada de mau, de feio, poderia acontecer
a Lucie.

No meio da primeira parte da ponte, ela parou, apoiou as costas no parapeito e olhou para o Louvre, a passarela das Artes ainda mutilada, os plátanos enferrujados,
o Sena com reflexos rosados e castanho-avermelhados. Uma brisa doce e leve levantava

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seus cabelos encaracolados, aureolando-a com um halo dourado. Um encantamento vindo do além a invadiu, pondo-lhe nos lábios as orações de sua infância e nos olhos
lágrimas de felicidade. A criança, sem dúvida também comovida, mexeu-se dentro dela demoradamente. Ela pôs a mão sobre a barriga e lhe falou docemente:

- Como te amo, meu querido, como tenho pressa de te ver, de sentir teu corpo quente e vivo. Ao mesmo tempo, gostaria de te guardar para sempre no meu ventre,
de não interromper este diálogo. Cada um dos teus movimentos para mim é uma frase, sei quando estás bem, quando estás mal, quanto te aborreces quando me ocupo
demais com outra pessoa, quando bocejas, quanto te espreguiças, quando te zangas, quando estás com ciúme. Estamos tão bem, nós dois.

Os motoristas reduzem a marcha diante do belo quadro. Lucie reiniciou sua caminhada, esfregando a pedra do parapeito num gesto maquinal, gesto que repetia sempre
que atravessava uma ponte, como se para apropriar-se dela ou pagar um pedágio. Estando bastante adiantada, tomou o passeio dos Orfèvres para melhor sentir o sol,
passou diante do palácio da Justiça e dobrou na direção da praça Dauphine, onde se sentou num banco à sombra das castanheiras.

Como André Breton, ela considerava aquela praça como o sexo de Paris e, sem a menor dúvida, um dos recantos mágicos da capital.

Lucie ia lá com freqüência, em todas as estações, exceto no inverno, quando a praça a assustava e

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quando uma forte corrente de ar desencorajava qualquer passeio, a menos que estivesse coberta de neve. Nesses momentos, o lado teatral da praça tornava-se evidente.
Naquele inverno branco, desde o cair da noite, as árvores escuras ermas estavam prestes a marchar para a conquista do anel arrebatado por Bilbo le Hobbit, os bancos
pareciam enormes insetos que tinham tomado a aparência de bancos para poder deslocar-se sem problemas, as fachadas dos altos prédios acendiam aqui e ali seus
olhos de expressão inquiridora; as magras sebes do fundo da praça pareciam uma fila de troles em movimento, e, mesmo o palácio da Justiça, que ficava cinzento
diante de tanta brancura, transformava-se em nuvem que ocultava os cavaleiros negros.

Os raros transeuntes pareciam hesitar em pisar naquele imaculado tapete úmido e frio, sem dúvida temendo alguma armadilha, ficavam parados na entrada da praça
impressionados com o silêncio, com a calma aparente do lugar, numa noite de neve. Às vezes, nessas noites, Lucie tinha encontrado o fantasma de Manon Phlipon,
voltando apressada para sua casa no cais. Teria sido uma noite daquelas, em que os ruídos, os gritos foram abafados, que a futura madame Roland tinha sido violentada
por um empregado do seu pai? Será que, como Lucie, ela tinha encontrado o diabo sob um portão? Lucie estava convencida de que a praça Dauphine era um dos locais
prediletos do Maligno, porque, embora não acreditasse em Deus, ela acreditava no diabo. E nada jamais conseguira mudar sua opinião. Ela tinha suas razões.

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Numa tarde de inverno, tendo a neve parado de cair, Lucie, então com dezessete anos, caminhava animadamente pelo passeio dos Grands-Augustins. Acabava de deixar
a praça Saint-Michel, onde tinha comprado uns livros e dirigia-se para o metrô de PontNeuf, para voltar para casa. De repente, teve a impressão de uma presença
atrás dela. Voltou-se, nada. Ela ergueu os ombros e apressou o passo. Pouco adiante, ela não só sentiu uma presença, mas pensou ouvir uma espécie de gracejo.
"Ando lendo muitos romances de terror", pensou. Entretanto, seu coração começou abater mais forte. Esforçou-se para não correr, chamando-se de boba e medrosa.
Ela não tinha sonhado, um sopro ardente roçou-lhe o pescoço, ela deu um gritinho, parou, voltou-se, nada. "Tomei café demais."

Na frente dela, apoiada a uma caixa de correio, a silhueta alta e negra de um homem envolto numa longa capa. "Enfim alguém", pensou. Passou pelo homem depois
de um breve olhar que, entretanto, foi suficiente para que ela nunca mais esquecesse aquela figura. Imagine um rosto comprido e pálido, de lábios finos, porém
ávidos, de testa alta e saliente, de longa cabeleira lisa e negra, de pontas onduladas, descobrindo as orelhas espantosamente pontudas e, principalmente, os olhos
brilhantes, com um clarão insuportável e um ar de maldade. Lucie foi tomada por um desejo louco de correr, mas não conseguiu, parecia-lhe, ao contrário, que caminhava
cada vez mais lentamente. Atrás dela, o homem pusera-se a caminhar.

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Finalmente, as luzes da Pont-Neuf. O homem a ultrapassou diante da fonte Wallace, na esquina do passeio, e ficou na frente dela.

- Posso ajudá-la? - disse, estendendo as mãos metidas em luvas pretas para os livros que ela apertava contra si.

Ela sacudiu a cabeça negativamente, agarrando-se aos livros como a uma bóia, incapaz de dizer uma palavra. Parecia-lhe que os olhos do desconhecido se aproximavam
dela, um calor repentino invadiu seu corpo ao mesmo tempo que uma moleza estranha. O homem continuava olhando para ela, fez um movimento na sua direção e sua
capa se entreabriu. Ele usava uma espécie de collant preto, uma blusa de malha negra de gola alta e botas de couro preto. Isso lembrou a Lucie uma ilustração
de um romance de Frédéric Soulié representando Lúcifer. Ela foi tomada de tremor e olhou intensamente para... o Diabo. A constatação foi tão evidente que foi
como se ela tivesse falado; isso o fez rir, um riso inquietante que lhe pareceu conter toda a crueldade do mundo, e tomou-a pelo braço. Demasiado subjugada para
soltar-se, entorpecida pelo calor da capa em que ele a envolveu, deixou-se levar através da Pont-Neuf e da praça Dauphine. Não era muito tarde, sete ou oito horas
da noite, talvez, mas a ponte, a praça inexplicavelmente estavam vazias de seus carros e pedestres. Um silêncio pesado e ameaçador, que descia de um céu baixo
e manchado aqui e ali de rastros amarelados, pesava sobre Paris.

Nenhuma das palavras que ele pronunciou chegou

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ao cérebro de Lucie. Ela se deixava levar, o espírito completamente ausente, tendo como única sensação consciente aquele calor que a envolvia toda e espalhava
sobre ela um estranho bem-estar. A neve estava alta na praça, molhando seus tornozelos. Ele a empurrou para o côncavo de um portão que se abriu a um simples toque.
A pesada porta se fechou lentamente. A escuridão era total, depois das luzes dos lampiões. Ele a tomou nos braços, mordiscando-lhe o pescoço, as orelhas. Cada
beijo, cada mordida provocava um calor suplementar. Ele desabotoou lentamente o mantô dela e, quando acabou, enfiou a mão embaixo do seu pulôver, soltou habilmente
apresilha do sutiã e, um depois do outro, agarrou-lhe os seios. Os bicos endureceram sob as mãos ardentes que a acariciavam sem contemplação: ela gemeu e sentiu
seu ventre contrair-se. Ele aumentou a pressão dos dedos e torceu os bicos até o limite do suportável. Isso provocou em Lucie uma explosão que afez cair contra
ele. Ele a levantou, procurou seus lábios e deu-lhe um beijo fantástico. Lucie nunca tinha sido beijada assim; na época, seus flertes contentavam-se com beijos
desajeitados, babados, que a deixavam mais enojada do que excitada. Mas agora, um desconhecido, o diabo ainda por cima, revelava-lhe o prazer que há em abandonar
sua boca a outra boca, em deixar-se comer, em comer o outro, em pôr língua contra língua, salivas misturadas, em sentir viver não só seus lábios, mas a garganta,
o nariz, as faces, a testa, até a ponta dos cabelos. Um beijo assim lhe daria a impressão de sair da terra, estar num mundo sem gravidade onde cada

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gesto se desenrola com uma lentidão harmoniosa. Lucie devolveu o beijo.

E nada mais havia a não ser dois corpos fabulosamente felizes, arfando um contra o outro, momentaneamente unidos na inocência do prazer.

Lucie, cujo cérebro voltara a funcionar, não sentia mais o menor medo. Ao contrário, sua felicidade era tal que ela gostaria que tudo parasse agora, na escuridão
de um portão da praça Dauphine.

De repente, a luz invadiu seu refúgio, quebrando lentamente o encantamento que tinha sido tecido em torno deles. Só ficou uma mulher assustada diante de um desconhecido
que a tinha violentado, mesmo que para Lucie aquela violência tivesse representado a oportunidade para a descoberta do outro, do prazer das carícias do outro,
e um homem alto, vestido de preto, parecendo o diabo das lendas que, naquele momento, piscava os olhos na luz com uma expressão irritada. Pegou Lucie pela mão
e a fez sair.

A neve tinha voltado a cair. Um silêncio mágico, uma imobilidade sobrenatural recobriam a pequena praça. Tudo parecia à espera. Até o vento, como se estivesse
à espreita, tinha calado. Contornaram o cais des Orfèvres. As luzes amareladas de dois bistrôs, por trás dos vidros embaçados, lançavam na neve um clarão acolhedor.
Lucie soltou-se da mão do Diabo e entrou correndo no posto de descanso dos caminhoneiros. Os clientes, velhos freqüentadores do lugar, mal levantaram a cabeça
à sua entrada, mas estremeceram com a golfada de ar frio vinda de fora. Lucie

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refugiou-se naponta do balcão e pediu um café e uma ficha de telefone. A cabine dava para a sala e, pelo vidro, ela podia ver o Diabo olhando para dentro do café.
Ele a viu e olhou-a, pareceu-lhe, com uma expressão triste: virou-se e discou o número da sua casa.

- Alô, papai? Você pode vir me buscar? - Por favor, estou com medo... Oh, não ria!... Venha logo.

- O Diabo está lá fora me esperando.

-Claro que não, não estou brincando... Oh, papai, venha, venha logo, estou com tanto medo!...

- Num café, no cais des Orfèvres... quase na esquina...

- Certo, não vou sair daqui, obrigada, venha correndo.

Lucie pôs o fone no gancho lentamente e ficou um longo momento sem se atrever a se virar, nem a sair.

Um freguês, batendo no vidro com impaciência, tirou-a de sua letargia. Decidiu-se a deixar seu precário abrigo e, apoiando-se com mão trêmula no balcão, bebeu
com uma careta o café que tinha esfriado. Não ousava olhar para fora, com medo de ver a alta silhueta negra, e ao mesmo tempo temendo não vê-lamais lá. Com um
esforço enorme, voltou acabeça:

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ele continuava lá. Ela teve uma sensação de pânico, misturada com satisfação.

Pediu mais café. Queimou-se ao primeiro gole e quase deixou cair a xícara. Pousando-a, derramou um pouco de café, que o dono da casa enxugou maquinalmente.

Que é que seu pai estava fazendo? De carro não era muito longe.

A porta abriu-se, um homem alto, ainda jovem, entrou.

- Papai... Lucie atirou-se em seus braços, como uma garotinha que continuava sendo. Por cima do ombro do pai, viu a silhueta negra afastar-se. Sentiu tanta pena
que seus olhos encheram-se de lágrimas, que não comoveram seu pai.

- Grande boba, como pode ficar num estado desses? Onde está seu diabo?

- Foi embora. Erguendo os ombros, o pai pagou os dois cafés e a ficha de telefone. - Venha logo, sua mãe vai ficar preocupada.

O banco em que Lucie estava sentada ficava bem em frente ao famoso portão. Ela achou estranho que aquela aventura tivesse voltado à sua mente numa bela tarde
de outono. Fechou os olhos para melhor saborear a tranqüila felicidade de estar cheia.

Repetiu a palavra mentalmente: cheia. Por que só a empregavam com relação aos animais? Isso pareceu-lhe injusto. Era a expressão exata do que

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sentia: estava cheia. Cheia pela criança que carregava e pelo amor que a tinha posto lá. Pensou no pai do bebê, uma ternura amorosa invadiu-a. Tinham trocado seu
primeiro beijo, numa tarde de verão, no cais des Grands-Augustins. E aquele beijo, recordava-se agora, lhe tinha lembrado - oh, fugitivamente! -o beijo do Diabo
dos seus dezoito anos. Como ela era jovem e inocente naquela época! Sorriu à lembrança daquela inocência, tão pronta a entregar-se a um homem hábil ou ao Diabo.

Seu amante nada tinha de diabólico, mas era diabolicamente hábil. Riu de si mesma diante da associação. Mas ela estava tão bem, sentiu-se completa.

Levantou-se e chegou à Pont-Neuf passando pelo cais de l'Horloge. Depois do frescor das castanheiras na praça Dauphine, o calor das pedras da ponte proporcionou-lhe
um bem-estar ainda maior. Olhou para a estátua de Henrique IV, cujo braço estendido segura, parece, uma estátua de Napoleão. Lucie espera vivamente que isso não
seja apenas uma lenda. Caminha calmamente em direção à Samaritaine: nunca se acostumará com a feiúra daqueles prédios; a cada vez, sente a mesma inútil irritação.

Aquela silhueta alta?... É ele. Lucie teve um movimento de corpo para pôr-se a correr. O peso da sua barriga a reconduziu a um ritmo justo, mais compatível com
o seu estado e mais digno. Ele caminhava devagar, como se para fazê-la suspirar, ela se impacientou: ele poderia apressar-se! Mas não, ele avançava no mesmo passo,
seguro de si, da acolhida. Ela se jogou contra ele, feliz. Ele levantou-lhe a

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cabeça e beijou-a demoradamente. Deram meiavolta. Ela o levou na direção do portão, empurrou-o. Ele entrou e olhou para ela assombrado.

- Abrace-me, beije-me. Sorrindo, ele a apertou contra si.

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***

LYDIE ou a casinha do décimo quarto


Deitem-se estendidos, um pouco mais depressa, um pouco mais depressa do que isso, no tapete. Caminho sobre seus corpos, rei vadio, avanço, sujo suas vestes,
e sua pele, e seu coração. Desenhos engraçados do Aubusson servil. Em nome de Deus, nada de revolta, capachos. Se tivesse pensado em pôr meus sapatos com pregos,
ou esporas. Esporas não seria mau. Rrran, rrran da barriga da perna; patipan do salto. Suas goelas.

Aragon


Lydie é chefe de serviço num ministério. Jean, que trabalha junto ao ministro, acha o tempo muito longo. Até o dia em que Lydie o chama ao seu gabinete. Ele fica
imediatamente impressionado por aquela linda mulher meio exigente, com um belo e impecável coque, de rosto cheio e severo e, entretanto, iluminado por admiráveis
olhos de um verde-claro irisado, de expressão ao mesmo tempo irônica e cruel. Diante dela, Jean sente-se transparente. Hoje, o dia está lindo, um sol de maio
inunda o gabinete, pela janela aberta sobe um odor de grama recém-cortada vinda do jardim das Tulherias. Lydie olha para ele, quase com ternura.

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- Leve este dossiê ao ministro e volte aqui. Na volta, ele a encontra na soleira da porta do seu gabinete, enluvada, a bolsa debaixo do braço.

- Venha, vou levá-lo para almoçar no Bois. Jean balbucia, corando repentinamente, as mãos úmidas, o coração batendo... e segue-a docilmente.

O guardador do estacionamento foi buscar seu carro. Ela se põe ao volante e entra com autoridade no tráfego do pátio do Louvre.

O tempo está agradável, a beleza do céu venceu a habitual agressividade dos automobilistas; dirigem lentamente, quase serenos. Há muita gente nos Champs-Élysées,
as mulheres tiram do armário suas roupas claras, os homens voltam-se para elas, encantados com a leveza dos tecidos que deixa adivinhar as formas. Avenida du Bois,
as castanheiras deixam cair suas flores brancas ou rosadas, os chafarizes fazem a relva brilhar e nascer alguns arco-íris. Rodam calmamente para o Cascade. Lydie
não parou de fazer perguntas a Jean sobre a sua vida, seus amigos, seus gostos literários e culinários. Ele respondeu da melhor forma possível, ainda intimidado.
No restaurante, há uma mesa reservada em nome de Lydie. Obviamente ela é conhecida do pessoal. Cerimoniosamente, um maítre d'hôtel apresenta-lhe o menu. Ela faz
o pedido sem pedir a opinião de Jean, escolhe o vinho:

- Um champanha natural, você gosta? Jean aquiesce, subjugado por aquela autoridade. Durante toda a refeição, ela conduz a conversa com desenvoltura e vivacidade.
Jean tenta responder-lhe

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no mesmo tom, mas, diante de seu sorriso zombeteiro, prefere encolher-se num silêncio respeitoso. Sempre tagarelando, Lydie insinua o joelho entre as pernas
do rapaz. Corando, ele aperta as coxas sobre aquela perna provocante. Lydie pede um charuto e licores. É num estado de bem-estar e de abandono que ele entra no
carro, e é sem surpresa que ouve Lydie dizer:

-Este tempo não é bom para trabalhar, vou levar você à minha casa.

O apartamento de Lydie, numa ruazinha calma de la Muette, parece-lhe ao mesmo tempo severo e voluptuoso.

Jean deixou-se cair numapoltrona funda e baixa, diante de Lydie, que está recostada no canapé. Sua saia-envelope está entreaberta, revelando uma coxa forte, modelada
por uma meia fina de um cinza bem clarinho, segura por uma liga rosa e preto, que se destaca sobre a pele muito branca. Diante desse quadro, Jean sente seu sexo
endurecer.

- Levante-se, quem lhe deu licença para sentar na minha frente?

Mais do que o sentido das palavras, a maldade do tom fez com que Jean se levantasse com uma pressa desajeitada que fez Lydie rir.

-Venha para perto de mim. Fique de joelhos... Acaricie-me...

Subjugado, Jean obedeceu. - Não assim, como você é desajeitado... Chupe-me... aí, está bem...

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Lydie geme, segura a cabeça do rapaz contra seu sexo. Goza bruscamente sob sua língua. Com o pé, empurra-o brutalmente.

- Tire a roupa. Finalmente, pensa ele, tirando apressado suas roupas, que espalha ao redor de si.

- Junte as roupas e ponha-as cuidadosamente sobre uma cadeira.

Jean fez um gesto irritado. - Quem decide sou eu e você deve obedecer. Quando digo arrume suas roupas, você deve arranjálas. Quando digo chupe-me, você deve me
chupar. Sei o que é bom para você. Venha.

Ela o puxa pelo sexo, que voltou a amolecer. Masturba-o sem delicadeza. Logo, o rapaz entra de novo em ereção. Ela acelera seu movimento. Jean tem a impressão
de que seu sexo vai explodir entre aquelas mãos peritas. Invade-o uma vontade louca de possuir aquela mulher de pernas abertas e ventre úmido, de gestos autoritários,
de voz dura e zombeteira. Ela parece adivinhar seu desejo.

- Não tenho vontade de fazer amor com você, você é muito apressado. A única coisa que importa é o meu prazer, o seu não me interessa. Seu único prazer deve ser
o meu, e para isso você deve ser lento, contido e modesto.

Jean, perplexo, a escuta, estranhamente perturbado e com uma grande angústia.

- Por esta vez, permito que você tenha seu prazer diante de mim e que goze. Mexa-se. Diante de seu gesto negativo, Lydie levanta-se

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e lhe dá duas bofetadas. Os olhos do rapaz enchem-se de lágrimas de raiva, humilhação e dor.

- Mexa-se, putinha. Jean olha para ela horrorizado, fascinado. Sua mão fecha-se sobre seu sexo.

- Isso, está bom, continue, querida, mais rápido.

Jean fechou os olhos para melhor esconder a vergonha e o prazer que extrai daquela situação, que chega ao paroxismo quando ele sente um dedo de Lydie forçar suas
nádegas. Goza, soltando um grito.

-Tome, enxugue-se. Ele abre os olhos, a cabeça baixa, e segura uma bola de tecido rosa e preto que Lydie lhe alcança. É a calcinha ainda úmida e perfumada pelo
seu prazer.

- Agora, vista-a. A partir de hoje, quem vai se ocupar com suas roupas íntimas sou eu... Está bem... Você está bonitinha...

Vestido, de olhos baixos, Jean espera. - Já vi você demais. Saia. Amanhã o vejo no
ministério.

No dia seguinte, chegando à sua mesa, Jean encontra um envelope com seu nome sobre sua pasta. Seu coração bate quando reconhece a arrogante letra autoritária.
Com as pernas de repente moles, senta-se para abri-lo e lê: "Querida (mais tarde acharemos um nome para você),

"Não tenha ilusões. Sei quem você é e o que procura.

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"A partir de hoje, você não terá outra amante a não ser eu, outra vontade a não ser a minha.

"Para começar, você vai pedir e conseguir licença de uma semana. Imediatamente, sem passar em sua casa, você deve ir ao endereço anexo. A casa a que você deve dirigir-se
é a última no fundo da alameda. Você estará lá exatamente às quatorze horas. Uma doméstica a receberá e me relatará sua pontualidade. Longe da minha presença,
você deverá obedecer-lhe como a mim mesma. A menor falta resultará em punições severas. Irei lá no final da tarde para lhe dar minhas ordens. Quando eu chegar,
você deverá se pôr de joelhos e manter os olhos baixos - devem ficar sempre assim na minha presença. Você me chamará de Ama. Rasgue e queime esta carta."

Jean põe a carta sobre a mesa, está pálido e respira com dificuldade. Maquinalmente, rasga a folha no cinzeiro e queima-a. "Como foi que ela conseguiu adivinhar?"
Levanta-se, o sexo inchado lhe dói, caminha de um lado para outro. "Não, não irei, é loucura." Entretanto, ele sabe que irá, que não pode deixar de ir. Volta
a sentar-se, põe a cabeça entre as mãos e chora, os ombros sacudidos pelos soluços.

A porta da sala ao lado da sua se abre. Enxuga os olhos, assoa-se ruidosamente. "Que cara devo ter!" Sai da sala, vai ao lavabo e passa água fria no rosto. A
imagem que vê no espelho perturba-o: está com olheiras e com os lábios inchados como se tivesse feito amor a noite toda.

O táxi pára diante de um prédio comum da rua

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Didot. Jean atravessa um corredor, depois toma uma pequena alameda ladeada por pavilhões de pedra cercados por jardinzinhos minúsculos. Torce o pé na pavimentação
irregular. Como gostaria de voltar atrás! A última casa está cercada por um muro alto. Toca a campainha do portãozinho verde, olhinhos para o relógio: quatorze
horas e cinco minutos!... Está atrasado!... O portão se abre imediatamente. Uma mulher sem idade, de rosto bonachão, mas com olhinhos vivos e maldosos, faz sinal
para que entre. Ela torna a fechar o portão. O jardim parece maior do que o das outras casas. Segue a mulher e entra depois dela. Descem alguns degraus. Atravessam
uma grande peça de aspecto muito masculino, meio salão, meio biblioteca. Nas paredes, um Balthus muito bonito, um quadro do poeta Henry Bataille representando
a atriz Ivonne de Bray apoiada na cabeceira de uma cama, duas aquarelas de Lévine, um admirável pastel de Bacon, um desenho de Sempé, uma pequena tela de Gustave
Moreau e maravilhosos desenhos eróticos do século XVIII. Não tem tempo para levar sua inspeção adiante. Ela abre uma porta e deixa-o numa pequena peça branca sem
janelas, tendo como todo mobiliário um pequeno armário, uma mesa e uma cadeira de madeira encerada. Um banheiro, branco também, a completa.

- Tire a roupa. Ele tem uma reação de revolta. -Dispa-se de suas roupas. Encontrará com que se vestir no armário. Eis as instruções de madame para hoje.

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E lhe estendeu um envelope. Corando de vergonha, Jean tira a roupa sob o olhar indiferente da doméstica. Quando está nu, ela junta suas roupas, pega seus sapatos
e sai fechando-o a chave sem dizer uma palavra.

Jean rasga o envelope e lê: "Querida, "Você chegou. Seja bem-vinda a esta casa que - dizem - outrora foi uma das casinhas do marquês de Sade. Verdadeiro ou falso,
farei com que não perca a reputação de importante local sádico. Tenho razão, não é? Numa época como a nossa é preciso saber proteger os vestígios do passado e
dar-lhes vida novamente, através de algumas festinhas adequadas. Você está convidada para uma dessas festas.

"No armário você encontrará trajes adequados a sua nova condição. Quando estiver convenientemente vestida, toque a campainha para que Juliette (é seu nome verdadeiro)
vá verificar sua apresentação. A seguir, na gaveta da mesa você encontrará um caderno escolar, um lápis e uma borracha. Quero que você escreva, sem trapacear,
sua primeira experiência de travesti, de dominação (não tente me fazer acreditar que nunca aconteceu, você é bastante submissa para não ter sido mais do que isso
antes). Obedeça e será tratada como lhe convém. Quero que, à minha chegada, você me entregue o caderno de joelhos. Ao trabalho."

No armário, Jean encontra um corpete de renda preta com fitas vermelhas, uma calcinha preta bordada

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em vermelho, meias pretas finíssimas, com costura, e altos e magníficos escarpins de verniz vermelho.

O corpete tem colchetes na frente e é amarrado atrás. À medida que fecha os colchetes um a um, seu sexo vai-se levantando. O pênis sob a renda parece estranho,
ele o acaricia de mansinho. Enfia as meias e acha que vai gozar com o contato de tanta doçura, prende-as cuidadosamente às ligas. Veste a calcinha e põe os escarpins
que são exatamente do seu tamanho.

Vai ao banheiro e tem um choque delicioso vendo sua imagem refletida por inteiro no espelho. É demais, ele se masturba e goza brutalmente. Fica muito tempo apoiado
contra a pia, a cabeça vazia, o coração batendo. Lava-se e consegue acomodar o sexo sob o corpete. Toca a campainha. Juliette não devia estar longe, porque chega
quase imediatamente.

- Vire-se. Ela pega os laços do corpete e ata-os! Jean acha que nunca mais voltará a respirar, de tal forma seu peito e sua cintura estão comprimidos.

-A cintura das moças nunca é fina demais. Como previsto, ele encontra um caderno escolar, um lápis, uma borracha e um apontador. Na capa rosa, há a imagem de Joana
d'Arc. Quando era criança, ele tivera cadernos daquela marca.

Abre-o, pega o lápis e escreve.

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O CADERNO DE JEAN

"Chegava o Regimento onde tinha feito meu serviço militar. No escritório, uma secretária reina, literalmente. Bela, viva, feroz, autoritária. Uns dez anos mais
velha do que eu. Intolerante, sobriamente vestida, terrível.

"Dois dias mais tarde, ela me convida para almoçar. Acaminho do restaurante, ela me dá suas luvas para segurar. E, de repente, minhas pernas se transformam em chumbo.
Este simples gesto me arrebata. No restaurante, ela fala e eu fico fascinado, mudo. Ela fala por dois, ela me invade, ri, diverte-se, me trata com intimidades.
Acabado o almoço, ela me diz:

"Venha, vamos tomar café lá em casa. "Tento recusar, debilmente: preciso trabalhar. Mas, acima de tudo estou com medo, muito medo da fraqueza que me invade. Trato-a
por senhora, estou perturbado.

"Para chegar à casa dela, há umaescada íngreme. Subo na frente. Sinto-me meio ridículo, mas violentamente excitado.

"Seu café é bom, verdadeiro café turco, como eu gosto. Relaxo um pouco. Trato-a por você, olho seus velhos livros. A emoção passou. E de repente:

"- Quero ver você nu. "Já não sei mais como tudo realmente aconteceu. Lembro-me dos cadarços que não queriam ceder, lembro-me principalmente de ter terminado pelas
meias, erro que hoje não voltaria a cometer.

"Meu sexo está teso, meus braços, pendentes;

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meus olhos, vazios. Ela continua vestida e calada. Fuma sem pressa. E diz:

"- O que é que lhe daria prazer, agora? "Então, uma frase me escapa: estava formada na minha cabeça desde o começo.

"- Usar uma de suas calcinhas. "Imóvel, apavorado, aguardo. "- Ah, sim! Por quê? "Balbucio, trato de vestir-me, de dar o fora. Não tenho outro desejo a não
ser quebrar aquela tensão. Ela me segura pelo pulso, me machuca.

"- Não se mexa! "E me enfia nas pernas nuas uma das suas calcinhas que apanhou na cômoda."

Jean pára, olhando para o vazio. Aponta seu lápis, apaga um erro, corrige e continua a narrativa.

CONTINUAÇÃO DO CADERNO DE JEAN

"E eis como, numa tarde de maio, em duas horas, a realidade do meu mundo interior virou do avesso como uma luva. Bastou que ela me olhasse, sem complacência, para
que eu me grudasse a ela como uma criança de peito. Agora sei que será necessário esse olhar para que eu volte a sentir aquela reviravolta extrema.

"Na manhã seguinte, ao chegar ao escritório, ainda sei isso. Minhas pernas estão bambas. Enfiei a calcinha da dama numa sacolinha de papel: não tinha

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tido coragem de usá-la de novo. Acho que seria errado.

"Quando o telefone toca, sei que é ela, que só pode ser ela. E sua voz estala: 'Estou esperando.' Peguei um dossiê para manter as mãos ocupadas, mas tambémpara
esconder a sacolinha incriminadora. Ela está na sua sala. Não sei se ela é bonita, jamais o soube. Mas sua maneira de olhar direta, intensamente, me fascina. Ela
domina sem esforço. Sorri com uma espécie de indulgência, estendendo-me um embrulho achatado, amarrado com uma fita, feminino, e um envelope:

"- Tome, vá. Isso aí é minha calcinha? Dê aqui. Vamos.

"No embrulho, encontro uma calcinha rosa, delicada, um primeiro presente e uma carta.

"- Ontem, você usava a minha, hoje, é a sua. Hoje é sexta-feira, verei você segunda-feira ao meio-dia, não antes. Não me telefone. Nestas três noites, isole-se
por alguns minutos para ajoelhar-se e me fazer uma oração.

"Como ela conseguiu acertar! "Essa palavra, a primeira de uma centena, iria tecer ao meu redor uma rede de devoções, obediências, submissões.

"Durante o fim de semana, tento sufocar minha enorme sensação de culpa. Ajoelho-me no banheiro transformado em oratório, a cabeça oca, o sexo ereto, os braços
pendentes...

Segunda-feira à tarde ela me chama à sua casa.

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"- Fique nu na frente do espelho. "Sinto-me só, dispo-me e arrumo minhas roupas cuidadosamente sobre uma cadeira.

"- Olhe para mim... Notei você ao primeiro olhar. Não sabia qual era seu 'negócio', mas agora sei. Aliás, adivinho logo com todos os homens. Venha cá.

"Volto-me, ela está em pé, de combinação. Ela me guia, meus braços escorregam pela barriga das suas pernas, minha cabeça embaixo da sua saia.

"Ela goza logo, de repente, e eu fico ali, úmido, contra o sexo apaziguado. Os minutos passam, não me atrevo a mexer-me, sinto um prazer fantástico nessa interrupção
dos sentidos: não vejo nada, não ouço nada. Sinto que jamais vou penetrar nela, e estou feliz.

"Ela se separa, deixa-me, lábios arroxeados. "- Agora vamos cuidar de você. Para começar, quero que suas axilas estejam raspadas na próxima vez que você vier.

"Na manhã seguinte, a Dama me fez usar, sob minhas calças, uma cinta-liga preta e meias com costura. Foi numa das toaletes assépticas de um escritório de Montparnasse
que as enfiei pela primeira vez, avidamente. Estava nu até a cintura, pus uma calcinha preta com uma flor bordada ao lado esquerdo. Depois prendi na cintura a
cinta-liga e levei vários minutos para prender o fecho nas costas: só mais tarde descobriria o jeito de fazer isso pela frente e girar a cinta. Finalmente, com
um pé em cima do vaso sanitário, enfiei a primeira meia na minha perna. Prazer elétrico e violento. As meias eram finas, esqueci o

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ridículo do tornozelo peludo para enxergar apenas os reflexos chamalotados."

Jean está tão absorto em seu trabalho que não ouve a porta abrir-se.

Sobressalta-se, ouvindo a voz de Lydie. - Então, querida, não cumprimenta sua Ama? Jean levanta-se da cadeira e se põe de joelhos, de cabeça baixa.

- Trabalhou direitinho? Dê-me o caderno e venha para a sala.

Ele se levanta e pega o caderno em cima da mesa. Um fogo alto clareia a peça. Lydie deixa-se cair num grande canapé de couro amarelado. Ela faz um sinal para
que Jean se aproxime. - Acaricie-me.

Jean se a ajoelha e levanta o vestido de sua ama, enquanto ela começa a ler o caderno.

Lydie acabou a leitura. Fica imóvel por alguns instantes, os olhos semicerrados, uma mão sobre a cabeça de Jean, que continua aninhada entre suas coxas. Seu peito
arfa cada vez mais depressa. Solta um gritinho, se contorce afastando Jean.

Jean olha para ela, emocionado e orgulhoso do prazer que acaba de proporcionar. Sob a emoção, seu sexo ereto foge da calcinha. Ele tenta pô-lo de volta, mas
não consegue.

- Você empina bem, mas aqui não vai lhe adiantar de nada. Levante-se... Você é uma garota muito bonita, suas pernas são lindas e retas... Vá para seu

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quarto, querida, pegue seu caderno e continue sua história.

CONTINUAÇÃO DO CADERNO DE JEAN

"Na época eu morava na rua d' Alésia; a Dama, na rua des Plantes. Era a coisa mais natural do mundo que ela me mantivesse escravizado em casa.

"Saía cedo do escritório, ia para casa, e num instante ficava nu. Os minutos que se seguiam eram os mais lindos do mundo. Iapara o banheiro e me lavava. Minhas
axilas estavam raspadas (mantive-as assim por muitos anos). E depois me vestia. Para tanto, seguia as ordens escritas da Dama: meus acessórios habituais estavam
cuidadosamente arrumados numa sacola, guardada num armário que ela fecharia a chave ao chegar. Apanhava na primeira gaveta da cômoda esta ou aquela peça íntima
indicada por ela. Verificava a retidão perfeita da costura das meias, punha uma combinação fazendo conjunto com a calcinha e a cinta-liga, e, finalmente, um de
seus vestidos, nossos manequins não eram muito diferentes. Completava meu traje com escarpins altos e elegantes. Então, punha-me à espera.

"Esperava-a de pé, contra aporta fechada. O elevador parava no andar. Pelo olho mágico, eu avia sair. Abria e me ajoelhava. Ela me apertava contra seu ventre.

"Durante dois anos, várias horas por semana, vivi ajoelhado à sombra de uma mulher e amei alucinadamente. Nunca protestei, nunca me rebelei. Logo

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esqueci que ficava ridículo vestido de mulher. Aliás, eu não era uma garota, eu era uma boca dócil.

"Logo, eu não tinha mais a mínima vida privada. Estava às ordens dela, e só uma razão precisa conseguia dar-me liberdade: um almoço, uma reunião, um week-end.

"Eu só pensava nela. Conhecia seus passos, seus gestos, suas palavras. E sempre o mesmo ritual se realizava, ramificava-se e me transformava em servidor do seu
prazer."

Jean está com sono. Seus olhos se fecham a contragosto. A porta se abre, ele pensa: "É ela", mas é Juliette, trazendo uma bandeja e, dobrado sobre o braço, um
cobertor.

- Aqui está o seu almoço. Depois você vai dormir ali.

Aponta para o chão e sai, fechando a porta a chave.

Jean come com apetite. Estende-se no chão, enrola-se no cobertor e adormece feliz, com um sorriso nos lábios.

Um leve pontapé o desperta. É Juliette, que lhe estende uma cinta modeladora branca, um sutiã sem alças e uma calcinha combinando, longas meias cinza fumê e escarpins
altos e pontudos de verniz preto.

- Faça sua toalete, vista-se, madame o espera. A água morna lhe fez bem. Juliette pôs um aparelho de barbear sobre a penteadeira da pia. - Raspe as axilas...
ponha talco... a barba não.

O quarto de Lydie está mergulhado numa semi

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penumbra. Juliette deixa Jean ao pé da cama e abre as cortinas. A peça ilumina-se de repente. "O dia está bonito", pensa Jean.

Lydie ergue-se resmungando. - Já, que horas são? - Oito horas, madame. A pequena está aqui. - Está bem, que venha. Jean aproxima-se da ampla cama desfeita. Adura
luz da manhã acentua os cinqüenta anos de Lydie. Em vez de desencorajá-lo, isso enternece Jean. É com naturalidade que se ajoelha, toma a mão de sua Ama e beija-a
respeitosamente, afetuosamente. Através dos olhos semicerrados, Lydie observa-o, atenta e enternecida. "Preciso tomar cuidado, senão essa pequena vai me levar a
fazer bobagens." Retira a mão sem brutalidade.

- Levante-se e caminhe, quero olhar para você. Jean se levanta, anda até a porta, depois volta. - Bom... muito bom... dê uma volta... roupa bonita... o branco
lhe cai bem... quase melhor do que o preto... embora o preto... a pequena prostituta está se achando bonita... Venha.

Jean vem, ajoelha-se e espera. Lydie joga longe o lençol. Usa uma camisola de seda rosa enfeitada com renda de cor creme. A camisola está erguida sobre suas coxas
fortes.

- Venha fazer sua Ama gozar. Abre bem as pernas, que se fecham sobre a cabeça de Jean. Começa então para Jean e Lydie um longo período

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de felicidade, em que cada um encontra no outro aquilo que procurava. Ela telefona para o ministério dizendo que ficará ausente uma semana. De dia, passeiam
de mãos dadas ao longo do cais, nos jardins de Bagatelle, nas ruazinhas do Quartier Latin, igual a todos os casais de namorados, com uma única diferença: Jean
usava permanentemente sob a roupa uma cinta bem justa e meias. A noite era reservada às suas fixações. Ele aceitou da parte dela todas as humilhações, todas as sevícias,
feliz por ser um objeto entre suas mãos.

Quando, no fim da semana, ela o mandou para casa, ele explodiu em lágrimas e, atirando-se aos seus pés, suplicou-lhe que o deixasse ficar. Ela prometeu que ele
voltaria logo e que sua saída da casa dela não significava que estava lhe dando a liberdade, muito ao contrário. Ele deveria escrever diariamente seus feitos
e atos, usar sob suas roupas masculinas uma cinta das mais justas e meias. Traje que ela verificaria no gabinete sempre que tivesse vontade.

Quando aporta da rua Didot se fechou atrás dele, sentiu um enorme desespero diante da rua e da sua liberdade reencontrada. Mas sua cintura apertada lembrou-lhe
sua condição de homem-objeto e tranqüilizou-o. Pela rua d'Alésia, chegou à rua des Plantes, atravessou a avenida du Maine. Na rua Froidevaux, entrou no cemitério
de Montparnasse e caminhou sonhador entre as tumbas. Pensou no sargento Bertrand e felicitou-se por ter uma fixação afinal de contas banal. Isso o fez sorrir.

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***

LÉOPOLDINE ou a motorista de Belleville


Oh meus amantes, Naturezas simples, Mas que temperamentos!

Verlaine


"O dia anuncia-se lindo", pensa Léopoldine fechando a chave o portão gradeado da sua casa na vila dos Lilás. Desce a ruazinha em declive abotoando seu leve casaco
de lã branca. O som de seus passos ecoa no silêncio daquele amanhecer de verão. A aurora mal está surgindo. Como todos os dias, o cachorro de pai Berthier põe
a enorme cabeça entre as barras da grade de ferro para receber sua carícia e as palavras amigas que Léopoldine nunca deixa de dizer-lhe. Entretanto, ela não gosta
muito de cachorros, principalmente desde a desagradável aventura por que tinha passado uma de suas colegas que, para sentir-se protegida, comprou um enorme pastor
alemão e acabou no hospital com a metade do nariz arrancada. Mas aquele, ela o tinha visto crescer e sabe que, apesar de seus latidos furiosos contra os estranhos
à vila, é incapaz de fazer o menor mal.

Àquela hora, a rua de Mouzaia está deserta. Os

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revérberos brilham fracamente no dia que nasce, através das folhas dos plátanos. Vila de la Renaissance, há luz no andar térreo da casa de bonecas de Colette,
sua melhor amiga. Se não tivesse medo de encontrar Maurice, o marido policial, ela bem que entraria e aceitaria um café. Mas Maurice, cada vez que a vê, não consegue
deixar de lhe passar as mãos nas nádegas, como no tempo em que era chefe do grupinho cujo ponto de encontro era a cascata do parque des Buttes-Chaumont, onde
faziam suas reuniões sentados nas pedras à beira d'água.

-Ah, que tempo bom! - suspira ela. Na rua de l'Égalité, tudo dorme ainda. Mais uns passos e ela está diante da porta da sua garagem, na rua de la Liberté. Criança,
quando passeava com seu pai, ou quando ele a acompanhava até o metrô do Danube, a mãozinha agarrada à dele e ele lhe falava da Comuna, ela bebia cada uma de suas
palavras. Palavras como: Liberté, Égalité, Fraternité apareciam com freqüência em suas falas e ela estava feliz por ver que, no seu quarteirão, as ruas tinham
aqueles nomes tão bonitos. Seu pai... como ela tinha amado aquele operário de tipografia, apaixonado por seu trabalho e por Victor Hugo. Era por causa desse amor
que ela se chamav a Léopoldine, Léo para os amigos. Tinha aprendido a ler em Os miseráveis e Trabalhadores do mar, o que lhe tinha valido seus primeiros pesadelos
na infância, mas também um gosto acentuado por histórias que não têm fim, o que irritava um pouco a senhorita Jeanne, a velha bibliotecária da rua Campans que
a vira crescer.

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- Não se julga a literatura pelo número de páginas - resmungava ela.

A porta da garagem abre-se sem ruído. O carro pega à primeira volta da chave. Ela sai lentamente. Léopoldine deixa o motor ligado e vai fechar a porta. Agora
já amanheceu. Um galo saúda com fortes cocoricós o novo dia, os melros lhe respondem. Todo o pequeno mundo animal de Belleville acorda enquanto batem os primeiros
postigos.

Léopoldine se dirige para a praça de Rhin-etDanube, de um charme provinciano. Pára seu táxi na frente do café de Victor, que acaba de abrir. Todas as manhãs, nos
dias em que trabalha, ela vai lá tomar seu café e fumar o primeiro cigarro. Ela gosta daquele lugar onde, criança, ia com seu pai. O dono, filho de Victor, Christian,
fazia parte do grupo; juntos, fizeram a primeira comunhão na igreja de São Francisco de Assis, aliás, pouco faltou para que fosse seu primeiro amante, mas ela
tinha preferido Pierre, que a fazia rire cujos olhos azuis a deixavam transtornada. Pobre Pierre, tinha morrido naArgéliapouco após seu casamento. Muitas vezes
brigara com ele: "Como é que alguém pode ter a idéia de bancar o herói, de se deixar matar, quando tem vinte e cinco anos e uma mulher bonita o ama?" Durante
muito tempo Christian tinha esperado tomar o lugar de Pierre, até o dia em que casou com José e, com quem logo teve três garotos, dos quais um, Pierre, era afilhado
de Léopoldine.

O empregado acaba de varrer o salão, o ar ainda cheira a serragem e poeira molhada que, pouco a pouco,

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mistura-se com o cheiro do café. Christian está atrás do balcão, as mangas da camisa arregaçadas nos antebraços peludos, o corpo envolto num largo avental
azul-marinho. Ele se debruça para abraçar Léopoldine.

- Dormiu bem, Léo? Você está fresca como uma rosa. Hum... você está com um cheirinho bom... - diz, esfregando o nariz no pescoço da amiga, que se afasta rindo.

- Pare, você me faz cócegas. Me dê meu café. Ele empurra na direção de Léopoldine uma cesta de croissants quentinhos e prepara um café duplo "bem forte" para
ela e "um pequeno, não tão forte" para ele. Bebem lentamente o líquido fumegante, sem falar, olhando-se com amizade. Para que palavras entre eles? Léopoldine
sempre sabe quando alguma coisa não vai bem para Christian. Quanto a ele, está sempre lá quando ela precisa dele. É assim desde o jardim de infância.

- Bem, preciso ir. Dê um beijo em sua mulher. As crianças vão bem?... Vou tentar escrever para Pierrot hoje ou amanhã à noite. Tchau.

-Até amanhã, Léo... -Até amanhã, Christian... No carro, Léopoldine liga o rádio, a voz monótona da operadora invade o espaço.

- 21, ru a deJavel... 13, rua de Savoie... 107, rua Didot... 23, rua du Faubourg-Saint-Denis... 20, rua Dauphine... 43, avenida Théophile Gautier... 15, rua Linné...
37, rua Manin... Rua Manin, que sorte, é ali perto.

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- Bom-dia, aqui 313, estarei na rua Manin em três minutos.

- Entendido, 313. Diante do número 37 da rua Manin, um homem dos seus cinqüenta anos, um tanto corpulento, vestido com um terno de três peças escuro com riscas
brancas, o paletó um pouco comprido demais, como os que agora usam todos os funcionários do Estado, os homens de negócios próximos do poder, e alguns vigaristas
de colarinho branco, segurando uma pasta contra si, ar inquieto como o de quem está com medo de chegar atrasado a um encontro importante ou de perder seu trem
ou avião. Léopoldine optapelo avião. E não se engana.

- Para Orly-Oeste, meu avião parte dentro de uma hora.

-Vai dar certo. Felizmente a esta hora ainda não há muito tráfego.

Chegam vinte minutos antes dapartida do avião. Finalmente descontraído, o homem de terno com três peças dá uma boa gorjeta a Léopoldine.

Ela arranca. Uma batida no seu vidro afaz parar. - Jean! Sai do carro e se atira nos braços de um homem que aparenta ter uns trinta anos.

- Vá estacionar o táxi, vou levá-la comigo. -Você está louco, não posso. Aonde é que você vai?

- Para Bordeaux, mas volto à noite. Não quer almoçar comigo? Faz tanto tempo que você não vai me dar banho.

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Puxou Léopoldine contra si e lhe apalpa os seios, murmurando-lhe alguma coisa ao ouvido, sob o olhar irritado do policial de serviço.

Ela o afasta, rindo e censurando-o. - Que droga você está fazendo. Concordo à noite, mas na minha casa. Jantaremos lá. Nove horas?... Está bem?...

Está bem, linda. Nove horas na sua casa. Ele a beija depois de mais uma bolinação. É com os olhos brilhando que Léopoldine entra no carro. Jean é mesmo um sujeito
engraçado.

Ela o conheceu como cliente no aeroporto de Roissy, ele estava chegando de Nova Iorque, desenvolto e bronzeado, numa manhã fria e chuvosa de janeiro. Seu sorriso,
suas perguntas sem nexo, insolentes, sua lábia de vendedor escuso e apressado de repente tinham feito com que o inverno ficasse suportável. Ao primeiro sinal vermelho,
ele tinha passado para o lado dela e foi com a maior naturalidade que ela aceitou tomar um café na casa dele. Como ela, ele morava numa casa, mas num quarteirão
mais chique do que o dela, na vila Molitor. Após pagar acorrida, ele tocou a campainha. Um velho mordomo veio abrir a porta. Seu rosto iluminou-se quando reconheceu
seu patrão.

-Bom-dia, senhor Jean. Finalmente chegou, já não é sem tempo, estava começando a ficar cansado, sozinho, nesta casa grande e sinistra.

-Apresento-lhe Jean, que cuida de mim como uma mãe e faz o papel de babá, de secretário, de

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mordomo, de companheiro, de confidente e de amigo - disse Jean, abraçando os ombros do velho e beijando sua careca.

- Quer parar, senhor Jean. Há trinta anos que lhe digo que não gosto que me beijem na cabeça.

-Pára de resmungar, velho maluco. Prepare um café para nós.

Um tanto intimidada, Léopoldine olha ao redor: lindos quadros em suas molduras douradas estão pendurados por todos os lados. Alguns estão uns contra os outros,
no chão, encostados às paredes por falta de espaço.

- Às vezes eu sou meio marchand de quadros. Venha.

Sobe na frente dela uma escada larga e abre uma porta. Léopoldine solta um grito de admiração. Duas paredes altas estão cobertas de livros ricamente encadernados.

- Papai é que teria sido feliz aqui. Jean sorri a essa reflexão ingênua. Puxa Léopoldine contra si e beija-lhe a testa. Ela levanta os olhos com uma expressão
de surpresa.

- Fique à vontade. Olhe os livros enquanto preparo meu banho e esperamos o café.

Ela tira sua grossa jaqueta de pele de carneiro. Nesse momento, o velho Jean entra acompanhado por um cheiro bom de café. Põe a bandeja sobre uma longa mesa com
pés trabalhados em relevo, que parece fazer as vezes de escrivaninha. Sai, levando ajaqueta de Léopoldine. O fogo brilha na lareira, iluminando a peça que ficou
escura devido ao mau tempo.

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Jean volta, envolto num roupão branco felpudo. Serve o café nas xícaras.

- Quanto de açúcar? - Um cubinho. Obrigada. Ele senta no chão, diante da lareira, com a xícara na mão.

- Venha sentar aqui comigo. Ela senta. Olham as chamas em silêncio, bebendo o café em pequenos goles. Pouco apouco o calor entorpece Léopoldine, que se estende,
deita a cabeça sobre as coxas de Jean e se deixa embalarpelo crepitar do fogo. Aos poucos, um grande bem-estar a invade, acentuado pelas carícias de Jean nos
seus seios. Ela sente o sexo dele endurecer contra sua cabeça. Um desejo doce e profundo nasce no fundo de seu ventre. Instintivamente, suas pernas se abriram.
Sua respiração acelerou-se, seus seios empinaram-se. Ela se vira um pouco e abre as abas do roupão. O sexo longo e delgado empurra suas narinas. Ela se levanta
e prende-o entre os lábios. Jean dá um suspiro de contentamento, depois resmunga decepcionado quando Léopoldine torna a levantar-se.

-Tenho tanta vontade de fazer amor. Ajude-me. Ela estica uma perna, depois a outra, para que ele tire suas botas, enquanto ela despe o pulôver e desabotoa o sutiã.
Jean dá um grito de admiração diante do peito enorme, de longos bicos, que parece transbordar do torso não muito largo de Léopoldine. Esta tem muito orgulho dos
seus seios que, apesar da sua idade e da opulência deles, se mantêm firmes. A saia cai. Ela só usa agora uma cinta-liga simples, azul,

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prendendo as meias de lã verde-escuro. Não usa calcinha. Seus pêlos espessos são suficientes para vestila. Jean se pôs de joelhos diante dela, agarrando as nádegas
brancas e firmes.

- Oh, não, isso não, estou doida para fazer amor!

Ele a puxa para o fundo do cômodo e a atira sobre uma cama enorme, coberta de peles, que ela não tinha notado devido à pouca luz.

Ela goza depressa, prendendo Jean entre suas pernas. Ele se afasta para olhá-la.

- Como você é bonita, você gosta de ser beijada?

- Continue, por favor, eu ainda estou com vontade. Há muito tempo eu não fazia amor.

Ele obedece, atento e carinhoso. O prazer de ambos explode ao mesmo tempo.

Jean adormeceu, é acordado por uma carícia cuja doçura prolonga a volúpia do sono. A boca e a língua de Léopoldine têm tal habilidade que, logo, ele cai novamente
numa bem-aventurada sonolência profunda.

Ela se deixa cair contra ele, enxugando os lábios com as costas da mão.

Ele olha para o relógio da lareira. - Logo é meio-dia... Estou com uma fome... E você?... A gente toma um banho e depois vai comer ostras no Prunier.

- Meio-dia. E eu não fiz nada.

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- Eu contrato uma diária com você. Vamos de táxi ao Prunier.

Ela sacode a cabeça negativamente, rindo. - Você é louco... Paciência, tiro um dia de férias; e depois, estou com vontade de comer ostras.

Tomam banho juntos, a banheira é bastante grande para dois. Logo o banheiro se transforma numa piscina. Fazem amor de novo, dentro da água, dizendo que são duas
focas. Quando chegam ao restaurante, são duas horas. O maitre se precipita:

- Sua mesa está livre, senhor Jean. A quantidade de ostras, ouriços,praires e outros moluscos que Léopoldine devorou fez Jean dar gritos de admiração. Eles comem
e bebem como se estivessem em jejum há vários dias. Saem do restaurante meio altos. São quase quatro horas.

Voltam ao táxi e retomam o caminho da vila Molitor, onde passam o resto do dia na cama.

Depois desse dia memorável, viram-se com freqüência, mas ficam às vezes semanas, se não meses, sem se ver. Mas a cada vez é uma festa.

O jantar dessa noite faz a felicidade de Léopoldine. Ela pensa no menu e pergunta-se o que poderá fazer, principalmente porque a maior parte do comércio está fechada
por causa das férias. Ora, ela vai dar um jeito! Embora ele seja guloso, ela sabe muito bem que não é por sua cozinha, aliás excelente, que ele virá. É engraçado.
É o único de seus clientes-amantes que foi à casa dela. Ela gosta dos outros, claro, mas Jean é diferente, ele a deixa intrigada. Ela não entende como aquele homem
jovem, rico e bonito se

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interessa por ela, que não é jovem nem bonita. O tamanho dos seus seios, não, isto não basta. Seu desejo de amor, mas isto não é tão raro. Talvez sua disponibilidade,
sua falta de ciúme, sem bom humor?

-Perto de você me sinto bem. Você sabe que é a primeira motorista de táxi?

Isso a fizera rir. Ele também riu quando ela lhe disse que, em contrapartida, ele não era seu primeiro amante-cliente... Curioso, ele pedira detalhes e tinha
se mostrado surpreso com a falta de imaginação dos homens que a paqueravam. Olhou-a admirado quando ela lhe contou que muitas vezes era ela quem tomava a iniciativa.

- Que é que você quer, se um homem me agrada, eu deixo isso bem claro. Ele que decida se lhe convém.

-E você faz isso com freqüência? - Não, não tanto assim! É raro eu encontrar um homem que me faça pensar: "É, com ele bem que eu faria amor."

Jean estacionou seu carrão na rua de Bellevue. Como sempre, está atrasado. Leva uma champanha magnum. Quando Léopoldine abre a porta, ele é envolvido por um aroma
apetitoso.

- Oh, que cheirinho bom! À mesa, estou morrendo de fome.

Põe a garrafa de champanha no chão e ergue Léopoldine. Perdem o equilíbrio e caem nas lajes da minúscula entrada. Ele tenta levantar a saia de Léopoldine e tirar
sua calcinha.

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- Largue-me... Você já está atrasado, tudo vai passar do ponto.

- Estou com fome de você. Ela se debate, tenta fugir, mas ele cai sobre ela com todo seu peso.

- Você está me sufocando. Enquanto isso ele consegue abrir suas calças e deixa sair seu sexo ereto. Léopoldine luta um pouco mais, depois cede, suspirando.

- Não venha me dizer que não está querendo - diz ele, penetrando-a.

Gozam muito depressa, como os que não fazem amor há muito tempo e estão loucos um pelo outro.

Ele a ajuda a levantar. Ela está corada e despenteada.

- Devo estar com uma cara... meu Deus, meu assado de carneiro.

Precipita-se para a cozinha, com a calcinha na mão, e é com ela que tira o assado do forno.

-Ainda bem, cheguei a tempo. Eu jamais o perdoaria se o assado tivesse passado do ponto.

O jantar está delicioso, o champanha, quase gelado demais. Pela janela aberta entram as últimas notas anunciando o fim das emissões de televisão, o latido de um
cão, o riso de uma garota, o perfume dos gerânios e dos goivos do minúsculo jardim de Léopoldine.

- A gente se sente tão bem aqui. Nota-se que você ama esta casa.

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-Nasci aqui. Aqui me sinto protegida. Amo esta casa, esta rua, este bairro...

-Apesar das velhas por trás das janelas? - Apesar das velhas por trás das janelas. Você entende? Este bairro tem alma... apesar dos imóveis de alta categoria,
como dizem os cretinos dos corretores... Vi ruas inteiras desaparecerem sob suas máquinas, ruas onde moravam amigos meus... Veja... a rua de Bellevue... se você
a tivesse conhecido antes... e a praça des Fêtes... é preciso não gostar das pessoas para fazer coisas como estas... Às vezes digo a mim mesma: "Você não deve
se apegar tanto a uma casa, a um bairro..." Mas, veja, nós, os filhos de Belleville e de Buttes Chaumont, somos todos assim.... Entretanto, quando éramos crianças,
ficávamos irritados com as velhas que nos espiavam por trás das vidraças, com os velhos que fingiam estar fumando seu cachimbo ou capinando o jardim, mas que
nos beliscavam as nádegas e diziam sujeiras à primeira oportunidade... Nas noites de verão, todo mundo sentava lá fora, trazíamos as cadeiras e ficávamos conversando.
As donas-de-casa trocavam receitas, pontos de tricô; os homens, palpites para as próximas corridas; as crianças brincavam de esconde-esconde e passavam de um jardim
para outro, gritando; os adolescentes pegavam-se as mãos às costas das mães, que ficavam menos atentas devido à doçura do ar ou por causa da última fofoca sobre
a vila S adiCarnot ou a Eugène-Leblanc, ou mais longe ainda, a vila Verlaine ou a Rimbaud... Você não acha que foi bom terem aproximado esses dois, mesmo num canto

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perdido de Paris?... Os mais espertos, entre os quais me incluía, iam para os Buttes... Foi lá que ganhei o primeiro beijo, sofri a primeira traição, e encontrei
meu primeiro amor também... Agora, a televisão matou tudo isso... Nas noites de verão, só se ouve o som dos aparelhos de televisão... Nem tomam mais a fresca...
Mas, o que é mais grave, começaram a ter medo... Basta um vulto desconhecido numa vila, no desvio de uma escada, para que comecem a tremer... às vezes chegam
até a chamar a polícia quando acham que viram uma pessoa suspeita, estranha à rua... É desnecessário dizer que caso se pareça com um gringo, eles não só chamam
a polícia como soltam os cães...

- Você está exagerando. - Talvez... Mas, apesar disso, gosto de todos. Em muitos aspectos, pareço-me com eles. Como eles, sou uma verdadeira parisiense. Na verdade,
quero dizer que sou apaixonada por minha cidade, pelo meu bairro. Por nada do mundo eu iria viver em outro lugar. Aqui, sinto-me à vontade... Como a noite está
gostosa hoje...

- Vamos passear? Você vai me mostrar "suas" ruas.

Léopoldine abraça Jean. - Vamos, sim. Vamos beber alguma coisa no bar de la Liberté. Mas primeiro me dê um beijo.

Na manhã seguinte, cedo, Jean deixou sua motorista de táxi, as pernas meio moles, dizendo a si mesmo que da próxima vez irá tomar um trago no bar de la Liberté.

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***

LAURENCE ou o músico negro da rua Saint-Denis

Oh negro nu Cujo olhar me sorri Como um belo desconhecido.

Appolinaire


Laurence arruma sua escrivaninha com um suspiro de alívio. Aquele dia lhe pareceu interminável. E o calor! Em agosto Paris tem mais charme, mas fica insuportável
por causa do calor. O suor escorre entre seus seios e ao longo das costas. Ah, um bom banho agora, não, uma ducha bem gelada! A perspectiva relaxa um pouco seu
mau humor. Na toalete, passa um pouco de água no rosto e nas axilas. Ela sorri para seu reflexo no espelho, ainda está bronzeada pela temporada na ilha de Ré.
Hoje à noite estará bonita para jantar com Jacques. Ah, Jacques! Ela começa a ficar cansada dos encontros às escondidas entre dois aviões, dois trens, duas mulheres,
a atual e a antiga, e os filhos dele!. Pergunta-se como conseguiu suportar aquela ligação durante três anos. Habitualmente, o mês de agosto em Paris era dedicado
a ela. Este ano surgiram complicações familiares: adeus jantares

169

campestres nos arredores da capital, casas de dança às margens do Marne, fins de semana em Deauville ou em Honfleur, passeios noturnos na floresta de Fontainebleau,
noites de amor sem se preocupar com as horas... Lágrimas vieram-lhe aos olhos à lembrança daqueles prazeres perdidos. "Isso não pode continuar!" Furiosa consigo
mesma e com seu amante, enxuga os olhos avermelhados, põe os óculos escuros, mal responde ao "até logo, senhorita Laurence" do velho vigia e sai do prédio fechando
a porta. O calor pegajoso que lhe bate no rosto acalma imediatamente sua cólera inútil e fatigante.

A avenida de l'Opéra está quase vazia. De repente, ela olha ao redor, desamparada. Não!... Não é possível!... Jacques!... Seu amante está na calçada do outro lado.
Ela atravessa correndo, um motorista mal consegue desviar-se e põe para fora a cara vermelha, gritando insultos. Laurence se atira nos braços que se estendem
para ela. Contra ele, ela esquece tudo: sua aparência descuidada, o calor, o mau humor. Beijam-se com ardor, como dois jovens apaixonados. Laurence fala de sua
alegria, sua surpresa de encontrá-lo ali.

- Estava querendo tanto você. Não podia esperar até a noite. Vamos para o nosso hotelzinho?

Ela concorda, rindo, feliz e orgulhosa por inspirar-lhe um desejo tão grande. Agarra-se no braço dele. Entram na rua des Petites-Champs.

O "hotelzinho" deles, como dizem - Laurence nunca soube seu nome - é um hotel miserável, atrás do Palais-Royal, que tinham descoberto por acaso

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durante uma de suas caminhadas, quando o desejo de fazer amor tomara conta de ambos. Depois, voltaram lá várias vezes.

A escada daquele prédio antigo, íngreme e estreita, é recoberta por um tapete vermelho, totalmente gasto no meio, rasgado aqui e ali, o que torna a subida difícil
e perigosa. Um ser sem idade, sem sexo e sem forma precede-os, levando toalhas de rosto de um branco duvidoso. A criatura pára, arfando, diante de uma das duas
portas do terceiro andar, consegue, após duas tentativas frustradas, girar a chave na fechadura. Resmungando, põe as toalhas sobre a cama e pega a gorjeta que
Jacques lhe estende, sem o menor agradecimento.

Depois do calor da rua, o frescor e a penumbra do quarto modesto lhes fazem bem. Os lençóis brancos têm um cheiro bom de lavanda. Ele ajuda sua amante a despir-se.
Como a cada vez, ele fica comovido com o corpo miúdo e encantador de Laurence. Ela está nua sob o vestido.

- Você não tem vergonha de sair por aí assim? É um convite ao estupro.

Ela foge, rindo, e atira-se na cama, braços e pernas abertos. Ele se despe lentamente, olhando para ela, como se quisesse prolongar a espera.

- Apresse-se - diz ela com impaciência. Finalmente, ele se deita ao lado dela, prende-a nos braços, acaricia docemente seus seios, seu ventre. Laurence se gruda
nele. - Possua-me, possua-me logo...

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- Calma, calma, minha doce menina, temos todo o tempo do mundo...

Mas Laurence não pensa assim, levanta-se, força o amante a estirar-se, senta-se a cavalo sobre ele. Faz o sexo dele penetrar nela lentamente, os olhos fechados
como se para melhor saborear a doçura que a invade. Quando o sente no mais profundo de si, ela dá um gritinho de vitória.

- Você é meu, eu sou sua amante, eu vou possuir você.

Ele a deixa agir. Como ela é bonita assim, os seios agitados, as costas arqueadas. Mas ele a prefere embaixo dele, dominada por ele. Vira-se sem sair dela e faz
amor quase com brutalidade. Abafa com seus lábios os gritos de Laurence.

Gozam juntos, demoradamente. Ela se acalma, murmurando:

- Como gosto de fazer amor com você! Quando abre os olhos, Laurence vê que a luz mudou. Olha para o amante adormecido e fica assombrada com a importância que ele
tem em sua vida. Sorri, pensando que toda sua felicidade está ali, naquele corpo nu, vulnerável, abandonado, momentaneamente sem agressividade e sem pensamentos.
Como o amor se mantém com tão pouco! Levanta-se, sonhadora, abre a torneira do bidê e se lava maquinalmente. O barulho da água o acorda. Olha para ela, sorrindo.

- Não olhe para mim, não gosto que você me veja assim.

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- Bobinha, você não tem razão, você é tão bonita.

Ele se levanta num salto e vai se lavar na pia. -Estou com fome. Aonde você quer jantar? - Não sei, onde você quiser. Ao ar livre seria bom, o tempo está tão
bonito. Mas quero passar em casa para trocar de roupa.

Deixam o quarto e descem a escada estreita, enlaçados pela cintura.

É tarde quando chegam à Closerie des Lilas. A mesa no terraço está à espera deles há um bom tempo. Laurence pede champanha "para festejar". Está alegre, animada,
tagarela. Pára no meio de uma frase, preocupada com o silêncio dele.

- Que é que você tem? Você não fala? Parece que está chateado.

- Não, não é isso. - Está com algum problema? - Sim, de certa forma. - O que é? Conte-me. - Você vai ficar de cara feia... Sou obrigado a partir amanhã cedo.

Um frio enorme cai sobre Laurence, que fica com o garfo no ar, sem apetite.

- Oh, não! Isso não!... Seus olhos enchem-se de lágrimas. Aquilo irrita Jacques que, sentindo-se culpado, a repreende.

- Você não vai dar espetáculo, vai? Laurence tenta conter as lágrimas. Mas tal é a mágoa e a decepção, que elas correm livremente sobre

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seu rosto. Baixa a cabeça e tenta enxugá-las o mais discretamente possível. Seu coração bate acelerado no peito oprimido. É num tom brando que ele lhe diz, oferecendo-lhe
a taça de champanha:

- Acalme-se. Tentarei voltar na semana que vem, e então sairemos por alguns dias.

- Não, não é verdade. Todos os anos é a mesma coisa. Todos os anos promessas de viagens, de férias jamais gozadas. Estou cheia das suas mulheres, dos seus filhos,
do seu trabalho. Estou cheia de atender aos seus chamados, de estar disponível enquanto você nunca está. De ter meu tempo sempre condicionado ao seu. De não ver
mais meus amigos porque você não gosta deles. Também não gosto dos seus, acho-os arrogantes, chatos e vulgares...

- Você não tem razão, eles gostam muito de você.

- Gostam muito de mim?... Ir para a cama comigo é tudo que lhes interessa, além do desejo de aborrecer você. Mas isso vai acabar. Enchi, entendeu, enchi.

Sem se dar conta, Laurence ergueu o tom de voz. Das mesas vizinhas olham para ela com ironia.

- Pobre garota, você está sendo ridícula. Laurence empalideceu diante do ar de desprezo e de raiva de seu amante. Reprime uma vontade louca de esbofeteá-lo e
virar a mesa. Naquele instante ela o odeia. Levanta-se, apanha sua bolsa e, com desdém:

- O senhor me aborrece, adeus. Sai como se levada por sua raiva. No bulevar

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Montparnasse, hesita quanto à direção a seguir. Jacques a alcança e pega-a bruscamente pelo braço.

- Pare com esta comédia. Venha. Ela se solta. - Não é comédia. Quero ficar só. Não quero
mais ver você.

Ele tenta pegar de novo seu braço. - Vá embora, deixe-me. Ela sai correndo em direção à encruzilhada Vavin.
Ofegante, pára e volta-se. Ele foi embora. Até que enfim, pensa ela. Recomeça a caminhar lentamente, calma, em paz, com um curioso sentimento de prazer triste.
Sente-se livre.
Caminha na direção das luzes da esquina, o corpo ainda sacudido por soluços, mas a cabeça fria. Atravessa o bulevar Raspail, hesita entre o Dôme e a Coupole. Há
muita gente nos terraços, ela volta sobre seus passos e entra na rua Delambre. O Rosebud parece-lhe o lugar ideal para passar sua noitada de mulher solteira e brindar
o que ela chama de "ruptura". Senta no bar do estabelecimento escuro. Pede um café e uma taça de champanha. Olha ao redor de si, pouca gente ainda, principalmente
americanos e alemães. Um homem sentado ao lado dela tenta puxar conversa, ela o examina de alto a baixo, acha que não é possível, e volta-se para o salão. Mas
nada nem ninguém atrai sua atenção. Aonde ir? Onde encontrar um lugar divertido? Lembra-se de uma boate antilhana no bairro, onde ela tinha ido duas ou três vezes
com amigos. Era um lugar alegre, simpático, com uma clientela de

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gentis martinicanos, que dançavam o beguine e o merengue como outros fazem amor, com precisão e volúpia. Ela se recorda de que uma noite, tendo bebido muitos
ti' punch, tinha flertado com o pianista de uma forma suficientemente provocante para que seus amigos, que não eram uns santinhos, lhe recomendassem um pouco mais
de compostura. É para criar coragem que ela pede outra taça de champanha?

Na pequena boate, reina um calor tropical. Os homens usam camisa aberta até a cintura. Sua pele negra está reluzente de suor. Quanto às mulheres, seus vestidos
são tão colados no corpo, que não escondem o mínimo detalhe da sua anatomia, fazendo-as parecer nuas. Elas dançam lascivamente ao ritmo da música antilhana. Laurence
acomoda-se a uma mesa livre, não muito longe da orquestra. O pianista reconheceu-a e lhe faz um aceno. Ela responde com um sorriso.

Um negro alto a convida e sai dançando um rebolado complicado. Laurence o segue com dificuldade. Ele a aperta contra si, e pouco apouco seu corpo repete os mesmos
movimentos de seu par, que evidentemente sente um grande prazer com a dança. A tal ponto, que ela se pergunta se ele não vai ter um orgasmo, ali, no meio da pista.
Felizmente, a música pára. Galante, ele a reconduz à sua mesa. Ela bebe num gole só o ponche de coco que pediu. Chama o garçom e pede outro.

- Por minha conta - diz o pianista ao garçom, sentando-se à mesa de Laurence.

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Começa uma conversa meio difícil. Eles não têm nada para se dizer.

- Meu nome é Georges, e o seu? - Laurence. - Laurence, que bonito! Vamos dançar? Levantam-se. E então, não há mais necessidade de falar. A dança por si só tem
um recado que Laurence entende muito bem e responde como convém.

- Vamos comer alguma coisa quando fechar? Perto da minha casa há um restaurante de uns companheiros meus, fica aberto a noite toda.

Até a hora em que o pianista encerrou seu trabalho, Laurence bebeu, dançou, riu, esqueceu. Mãos ávidas alisaram seu vestido. Está meio alta ao entrar no velho
calhambeque do músico. Ele estaciona no bulevar de Sébastopol. Puxa Laurence contra si e beija-a. Seus lábios grossos a surpreendem. Ela dá mordidinhas neles,
arrancando grunhidos do companheiro, depois empurra-o e desce do carro. Apesar da hora tardia, continua quente. Ela gira sobre si mesma, mostrando as pernas longas
e a ausência de calcinha. O negro aproxima-se e põe a mão entre as nádegas dela.

- Você está querendo, hein? Ela se esfrega naquela mão que procura entrar nela.

- Sim, mas daqui a pouco, estou com fome. Entram de mãos dadas no restaurante antilhano dos amigos de Georges. Bebem mais ponches, pedem casquinhas de siri e
chouriços apimentados.

Laurence fica atordoada com palavras e risos.

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Durante toda a noite, cada vez que lhe vinha a lembrança de Jacques, ela a espantava bebendo. Não quer mais pensar nele e, para provar a si mesma que tudo acabou,
ela irá para a cama com o bravo Georges. Com ele ou com outro, não importa que homem cuidará do caso, desde que seja um pouco gentil e não muito feio. Ele é mais
bonito do que feio, um corpo bem modelado; sua pele é lisa e, depois, vai ser a primeira vez que fará amor com um negro. A palavra negro gira na sua cabeça como
uma coisa obscena e ela se censura por isso. Como se quisesse pedir desculpas, ela se aperta contra ele.

- Vamos, estou com sono. Rua Etienne-Marcel, o dia nasce, róseo, prometendo ser tórrido. Laurence titubeia, ele a pega pela cintura, e sobem a rua Saint-Denis.
Algumas prostitutas corajosas ainda estão apoiadas nos muros diante daporta dos hotéis. É a um deles que George leva Laurence. Sacode os ombros como se para desculpar-se.

- É aqui que eu moro. No quarto andar, ela senta sobre os degraus, sem fôlego. Ele a ajuda a levantar e a carrega como faria como uma criança. Sua cabeça se apóia
no ombro forte. Dois andares acima, coloca-a de novo no chão para abrir sua porta. O sol, que acabou de nascer, entra pela janela aberta. O quarto é amplo e engraçado,
atulhado de instrumentos musicais, discos, revistas pornô, roupas atiradas por todo lado.

- Desculpe, está meio desarrumado. Junta apressadamente revistas, roupas, sapatos e enfia-os desordenadamente num armário. De cima

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da cama, tira alguns discos, latas de cerveja vazias, jornais rasgados, e um pijama furado, que joga embaixo dela. Olha ao redor, satisfeito.

-Viu, está tudo arrumado. Quer ouvir música? Seu conceito de ordem faz Laurence rir. Sim, gostaria de ouvir música. Ela se estira na cama enquanto um blue enche
o quarto.

Big boss man Cant't you hear me when! call Well, you ain't so big You' re just tall, that's all.

Laurence reconhece a canção que ouviu tantas vezes, cantada por Elvis ou Jerry Lee, mas não conhecia aquela voz incrivelmente sensual, quase obscena. Apanha a
capa do disco e lê: Jimmy Reed. O nome não lhe diz nada. Seu conhecimento acerca de blues é, realmente, muito limitado.

- É, garota, é a versão original. Bonito, não? Bem diferente do que os roqueiros brancos fizeram.

Despiu-se. Laurence olha-o com uma ponta de ansiedade. Ele é muito bonito, seu magnífico corpo negro destaca- se diante da janela sob o fundo rosado e cinza do
céu, a voz rouca do cantor de blues parece igual à dele. Ele também olha para ela, e seu sexo começa a erguer-se lentamente.

Big boss man Cant't you hear me when .I call Well, you ain't so big You' re just tall, that's all.

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Laurence olha fascinada para aquele falo escuro que se ergue para ela. Está emocionada com tanta força e beleza. "Como o pênis de um homem é bonito", pensa. Ela
não sente mais sono. Só tem um desejo, tocar, apoderar-se daquele pedaço de carne. Estende as mãos como uma criança diante de um brinquedo cobiçado. Georges aproxima-se
e ajoelha-se perto dela. Ela apanha aquele objeto duro, sua mão não consegue envolvê-lo. Leva-o aos lábios e encheo de beijos. Mas para Georges, o tempo das carícias
passou, o que ele quer é entrar nela, e lhe diz:

- Minha rolinha querida, vem que eu quero entrar em você.

Ele mais arranca do que tira o vestido de Laurence e penetra nela sem maiores preâmbulos. Suas dimensões são tais que Laurence se sente como uma borboleta espetada
num quadro. A sensação é tão exata, que ela não ousa se mexer com medo de ser rasgada. Ele goza rapidamente, deixando-a decepcionada. E ri vendo seu rosto desapontado.

- Não se preocupe, há três dias que eu não fazia amor e, depois, você ficou me excitando a noite toda, rebolando sua bundinha.

Ele muda o disco. Agora é um reggae que invade o quarto. Quando volta para a cama, está pronto para um novo assalto.

Quantas vezes ele a possuiu? Laurence teve a impressão de que eles não pararam.

Quando ela acordou, eram três horas da tarde. Sabiamente, decidiu que era tarde demais para

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comunicar- se com o escritório e, além do mais, com certeza já tinham notado sua ausência. Deixou para inventar uma desculpa no dia seguinte. E Jacques? Será que
tinha procurado por ela? Teria ido ao encontro de sua família? Seu coração ficou apertado ao pensar nisso. "Deixa pra lá, amanhã você se preocupa com isso e com
o resto."

Lavaram-se rindo. Antes de descer para tomar o "café da manhã", fizeram amor mais uma vez. No café da esquina, devoraram quatro ou cinco croissants e quatro ou
cinco cafés cada um, sob o olhar admirado das putas sentadas diante de um chope ou de uma menta com água.

- Bem, e daí, você precisa recuperar-se, menina.

Na calçada, ele pôs as mãos nos ombros dela e olhou-a com ternura.

- Vamos nos ver de novo? - Talvez... Ela foi embora, com a roupa amassada, sem olhar para trás. Os homens olhavam para ela, perturbados por aquela moça bonita
que obviamente tinha saído de uma cama. A travessia da Pont-Neuf foi difícil, o sol castigava. Em contraste com isso, a rua des Grands-Augustins pareceu-lhe fresca.
Ela parou na esquina com a rua Christine: seu amante caminhava em sua direção, pálido, o rosto sombreado pela barba, os olhos avermelhados. Tomou-a nos braços
e a manteve demoradamente apertada contra si. Laurence não fez um gesto.

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***

LILAS ou o mês de agosto na rua de Buci


Céu! Amor! Liberdade! Que sonho, oh pobre povo!

Arthur Rimbaud


"Luce sempre amara os homens de poder, a ponto de não se importar com sua idade, seus defeitos físicos, nem com sua vulgaridade ou falta de coração. Bastava que
na telinha aparecesse um líder político da direita ou da esquerda, um magnata da imprensa, um tubarão das finanças ou um barão da indústriapara que sua calcinha
logo ficasse úmida. Se a entrevista televisiva com o causador dessa emoção fosse mais longa, ela se deitava diante da televisão, as pernas bem abertas e se masturbava
até o orgasmo..."

Droga, não é nada disso. Lilas tira a folha da máquina, amassa-a com raiva e joga-a contra a parede. O gato pula e brinca um pouco com a bola de papel, que acaba
junto com as outras embaixo do canapé, de onde se esforça por tirá-las, sem sucesso. Desiste com um miado de desespero que arranca um pobre sorriso de sua dona.

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Nem você consegue divertir-se com isso. Lilas se espreguiça, levanta-se para beber um copo d'água na cozinha, mastiga um pedaço de chocolate, come um pêssego,
folheia um número antigo de Libération, mexe na terra do vaso de hortênsias, ajeita um quadro, liga para um colega e quem atende é a droga da secretária eletrônica,
contém-se para não ligar a televisão, abre a janela. "Felizmente o tempo está uma porcaria", pensa ela, parando na sua mesa atulhada de revistas pornôs; "para
achar idéias", coça a cabeça, lima uma unha, lê os classificados sado-masô: Todos os trabalhos. Homem cinqüentão 1 ,80m, delicado, submisso, cerebral, referências
verificáveis, faz todos os trabalhos domésticos e qualquer outra forma de servidão em casa de mulher ou casal autoritário, severo, que goste de ser obedecido
e, se necessário, de manter a disciplina com palmadas na bunda ou castigos corporais.

- Era disso que eu precisaria, de um sujeito que cuidasse da casa e sobre quem pudesse desrecalcar dando-lhe tapas na cara ou na bunda.

Ela imagina seu editor vestido de criada, de quatro, lavando as lajes da entrada, a bunda grande enfiada numa calcinha de cetim rosa com rendinha preta, os pêlos
de suas pernas magras atravessando o náilon das meias, a cintura grossa rodeada pela cinta-liga, a peruca enviesada na sua cabeça de intelectual cansado... Não vai
ser pensando nele, mesmo como escravo travestido, que ela conseguirá alinhavar sua história. Mas o que a levava a concordar em escrever uma novela erótica, ela,
que se tornara conhecida por

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romances mais próximos dos da condessa de Ségur ou de madame de Genestoux do que dos do marquês de Sade ou de Georges Bataille? Dinheiro?... sim, claro, ele lhe
escapava entre os dedos, mas isso não era suficiente... O tom irônico com que X lhe tinha falado?

- Em matéria de erotismo, você ficou entre Paul Bourget e Rachilde.

Pobre sujeito! Tinha certeza de que ele jamais tinha lido uma linha dos autores de Un divorce e Monsieur Vénus! Não, não tinha sido por causa daquele miserável!
Então?... Por quê?... Enquanto procura uma resposta, seria melhor que voltasse a trabalhar.

Lilas põe uma folha na máquina, fica um tempão com a cabeça apoiada na mão, o olhar vago, procurando reunir idéias, palavras, frases, que se repelem umas às outras.
À custa de um esforço que o leitor mais atento não consegue imaginar, põe os dedos no teclado.

"Monique felicitava-se por chegar à idade em que os prazeres do sexo se distanciam e com eles o medo da gravidez - ela nunca suportara a pílula - e das doenças
venéreas. Graças a Deus, essa nova peste chamada AIDS chegava no momento em que ela estava numa relação estável e em que seus sentidos saciados contentavam-se
com carícias do mesmo amante. Sentia pena dos rapazes e moças que chegavam à idade do amor nesta época perigosa..."

Mas em que estava se envolvendo?... "Pobre garota, você acha que é com histórias sobre mulheres na menopausa e sobre a AIDS que vai fazê-los entrar em ereção!"

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A bola de papel bateu no nariz do gato que, com uma patada desdenhosa, atirou-a para junto das outras. Uma enorme aflição apoderou-se de Lilas. Nunca, não conseguirá
nunca! Seu cérebro tinha parado de funcionar; uma lágrima grossa começa a correr pelo seu rosto redondo de criança. Acampainha do telefone a sobressalta. Precipita-se
para o aparelho como se fosse uma bóia.

-Alô. - Sou eu, querida, não grite tanto... Como vai você?... O trabalho vai indo bem? Estou ansioso para ler... Tenho certeza de que será genial... Vou desligar...
Não quero atrapalhar mais sua inspiração... ah, ah, ah, que bobagem!... Um beijo para você, amanhã eu ligo de novo.

Pobre idiota! Este editor de merda caiu direitinho! Se soubesse onde devia pôr a inspiração dele. Ela não agüentava mais, precisava sair, arejar a cabeça, respirar
algo diferente dos miasmas de pornografia barata. "Vou ver um desenho animado!..." Cada vez que se sentia lograda pela vida, Lilas ia correndo ver um desenho
animado, método seguro para fugir das realidades do universo dos adultos. "Rápido, uma ducha, um pouco de perfume, um minivestido... não, o longo, abotoado na
frente, sapatilhas, minha bolsa, dinheiro, minhas chaves, depressa!... Não consigo mais suportar este apartamento."

Lilas estava na rua. Era uma tarde pesada de agosto, vazia e cinzenta. No bulevar Saint-Germain, raros automóveis passavam lentamente. No Odéon,

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no Quartier Latin, nem um cinema anunciava desenhos animados; em compensação, ela podia escolher entre: "Sodomia no liceu", "Adolescentes em fogo" ou "Sexos enlouquecidos".
Se tivesse certeza de que aquilo lhe daria idéias!... Maquinalmente, olhou ao redor, depois decidiu-se. Era a primeira vez que entrava sozinha num cinema pornô.
Mal a porta da sala se fechou, ela entrou logo no essencial do assunto: na tela, em primeiro plano, um membro enorme forçava a bunda esplêndida de uma negra,
enquanto uma língua explorava os lábios rosados.

O coração de Lilas bateu mais depressa. Senta-se sem desgrudar os olhos da cena, morde os lábios secos e afunda na poltrona, que range. O ar está cheio de grunhidos,
de suspiros, de ruídos molhados. Uma garrafa de Coca substitui o sexo do homem, que penetra agora no sexo da mulher, cujos seios de bicos cor de violeta são sugados
pelos lábios de uma ruiva. Lilas enfiou a mão no corpete. Decididamente, as imagens são mais fortes do que as palavras.

Ela não se sobressalta quando outra mão junta-se à sua por cima do ombro. O hálito quente do desconhecido lhe faz cócegas na nuca. A sua direita, alguém sentou-se
comprimindo aperna contra a dela; à esquerda, desabotoam lentamente a saia do seu vestido, lentamente... muito lentamente. Lilas não tira os olhos da tela, principalmente
não procura ver o rosto dos que estão mexendo no seu corpo. Uma cabeça desliza entre suas coxas. Ah, ela esqueceu de pôr sua calcinha!... Seus dedos fecham-se
sobre um

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sexo fino e longo, depois num grosso, depois... já não sabe muito bem, foi invadida pelas imagens, pelos sons, pelas sensações, pelos cheiros, pelas línguas,
pelas mãos. Lilas goza e volta a gozar...

Quando se viu novamente na rua, o vestido amassado, os cabelos desgrenhados, o ventre úmido, os seios agradavelmente doloridos, o rosto corado, o corpo feliz e
o espírito apaziguado, já estava entardecendo, tinha chovido.

Voltou para casa devagar, caminhando pelos cais. Quase todas as barracas de livros usados estavam fechadas. Turistas de shorts e sacolas nas costas se acotovelavam
rindo; na Pont-Neuf, um grupo de japoneses teimava em tirar fotografias apesar da luz desfavorável; o 24 rodava livremente, vazio. Uma revoada de patos passou
na direção do Grand-Palais iluminados pelos raios de um sol pálido; uma canção da moda saía de um bateau-mouche totalmente iluminado.

Um carro conversível parou no sinal da passarela des Arts, dois rapazes a convidaram a subir, ela sorriu e fez um sinal negativo com a mão.

O gato lhe fez festas, ainda bem que não sentiu fome. Lilas deu-lhe comida, mordeu uma maçã, tirou o vestido, que atirou no cesto de roupa suja, deixou a água
quente do chuveiro escorrer demoradamente sobre seu corpo, enxugou os cabelos, penteou-os, envolveu-se num roupão de banho, serviu-se de um copo de leite, que
colocou sobre a mesa, espreguiçou-se, sentou, pôs uma folha de papel na máquina e começou a datilografar.

 

 

                                                                  Régine Deforges

 

 

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