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LONGA NOITE SEM LUA / John Steinbeck
LONGA NOITE SEM LUA / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LONGA NOITE SEM LUA

 

Por volta das 10:45 já estava tudo acabado. A cidade estava ocupada, os defensores derrotados, a guerra terminada. O invasor preparara-se para a campanha tão cuidadosamente quanto o fizera para outras maiores. Naquela manhã de domingo, o policial e o agente postal da cidade saíram para pescar no barco do Sr. Corell, o estimado proprietário do armazém local. Ele lhes emprestara o seu bem cuidado barco a vela, para o dia inteiro. Os dois estavam ao mar, a vários quilômetros da costa, quando passou por eles, calmamente, a pequena e escura embarcação transportando os soldados. Como autoridades locais, o problema lhes dizia respeito. Assim, eles se apressaram em voltar à cidade. Mas é claro que o batalhão já se apoderara inteiramente da cidade quando eles finalmente conseguiram chegar ao porto. O policial e o agente postal nem mesmo conseguiram entrar em seus escritórios, no prédio da municipalidade. Como insistissem em seus direitos, foram declarados prisioneiro? de guerra e trancafiados na cadeia municipal.

As tropas locais, num total de uma dúzia de homens, também estavam ausentes naquela manhã de domingo, O Sr. Corell, o estimado proprietário do armazém local, oferecera-lhe um almoço, além de alvos, cartuchos e prêmios para uma competição de tiro a realizar-se a 10 quilômetros da cidade, nas colinas, num lindo bosque. Que por sinal também era de propriedade do Sr. Corell. As tropas locais, constituídas de rapazes altos e fortes, mas um tanto ou quanto canhestros, ouviram os aviões e viram os pára-quedas a distância. Retomaram imediatamente à cidade, em passo acelerado. Ao chegarem, o invasor já flanqueara a estrada com metralhadoras. Com muito pouca experiência de guerra e absolutamente nenhuma de derrota, abriram fogo com seus rifles. As metralhadoras pipocaram por um momento, e seis dos bravos soldados viraram corpos sem vida, crivados de balas. Três outros ficaram à beira da morte, também crivados de balas. Os outros três fugiram para as colinas, levando seus rifles.

Às 10:30, a banda de música do invasor pôs-se a tocar canções lindas e sentimentais na praça da cidade, enquanto os habitantes, de bocas escancaradas, olhos atônitos, paravam para escutar, espiando os homens de capacetes cinzas, armados de submetralhadoras.

As 10:38, os seis corpos crivados de balas foram enterrados. A esta altura, os pára-quedas já estavam convenientemente dobrados e o batalhão ia se aprovisionar no vasto armazém do Sr. Corell, junto ao cais, em cujas prateleiras havia cobertores e camas de lona em quantidade suficiente para um batalhão.

Às 10:45, o velho Prefeito Orden recebeu o pedido formal para que concedesse uma audiência ao Coronel Lanser, dos invasores. A audiência foi marcada para as 11:00 em ponto, no palácio de cinco cômodos do prefeito.

A sala de recepção do palácio era agradável e confortável. As cadeiras douradas, com seus estofamentos antigos, um pouco puídos pelo uso, enfileiravam-se de um lado a outro, empertigadas e imóveis, como um excesso de criados sem nada para fazer. Uma lareira de mármore, em arcada, abrigava uma fornada de carvões em brasa, sem chamas, emitindo um calor agradável. A um canto da lareira havia um balde grande, cheio de carvão. No consolo da lareira, flanqueado por vasos, havia um relógio grande de porcelana, cheio de querubins a fazerem acrobacias. O papel de parede da sala era vermelho-escuro, com figuras em dourado. O madeiramento aparente era branco, muito bonito e bem limpo. Os quadros nas paredes indicavam uma grande preocupação com o espantoso heroísmo dos cachorros grandes, diante de crianças em perigo. Não havia inundação, incêndio ou terremoto que pudesse fazer mal a uma criança, contanto que houvesse sempre um cachorro grande por perto.

Ao lado da lareira estava sentado o velho Dr. Winter, com sua barba, sua simplicidade e sua serenidade, historiador e médico da cidade. Ele a tudo observava, rolando os polegares incessantemente. O Dr. Winter era um homem tão simples que somente alguém muito perspicaz seria capaz de perceber que ele era profundo também. Olhou para Joseph, o serviçal do prefeito, para verificar se ele notara o movimento dos seus polegares.

—        Onze horas? — perguntou o Dr. Winter. Joseph respondeu, distraidamente:

—        Sim, senhor. O bilhete dizia onze horas.

—        Você leu o bilhete?

—        Não, senhor. Mas Sua Excelência leu-o em voz alta para mim.

Joseph pôs-se então a verificar as cadeiras douradas, para ver se alguma saíra do lugar, desde que ele as arrumara pela última vez. Joseph normalmente amarrava a cara para os móveis, esperando sempre que se mostrassem impertinentes, rebeldes ou empoeirados. Num mundo em que o Prefeito Orden era o condutor de homens, Joseph comandava os móveis, a prataria e a louça. Joseph era idoso, magro e compenetrado. Sua vida era tão complicada que somente alguém muito perspicaz seria capaz de perceber que ele era um simples. Ele nada via de surpreendente no fato de o Dr. Winter estar mexendo os polegares sem parar. Mas achava o gesto irritante. Joseph desconfiava de que alguma coisa muito importante estava acontecendo, com todos aqueles soldados estrangeiros na cidade e o exército local morto ou capturado. Mais cedo ou mais tarde, Joseph teria que formar uma opinião a respeito de tudo aquilo. O que ele não gostava era de frivolidades, polegares rolando, móveis insubordinados. O Dr. Winter deslocou sua cadeira alguns centímetros do lugar apropriado e Joseph ficou esperando, impacientemente, pelo momento em que poderia devolvê-la a seu lugar. O Dr. Winter repetiu:

—        Onze horas... E então eles estarão aqui. Uma gente pontual, Joseph, que se preocupa com o tempo.

Sem ter escutado, como de hábito, Joseph disse:

—        Sim, senhor.

—        Uma gente que se preocupa com o tempo... — repetiu o médico.

—        Sim, senhor.

—        Com o tempo e com as máquinas.

—        Sim, senhor.

—        Eles correm atrás de seu destino, como se temessem que ele não fique à espera. E vão empurrando com os ombros este mundo tumultuado.

E Joseph disse, então:

—        Tem toda razão, senhor.

Simplesmente porque estava cansado de dizer "Sim, senhor".

Joseph não aprovava esse rumo da conversa, já que não o ajudava a formar uma opinião a respeito do que quer que fosse.

Se, mais tarde, naquele mesmo dia Joseph comentasse para a cozinheira: "Uma gente que se preocupa com o tempo, Annie", isso não faria o menor sentido. Annie perguntaria: "Quem?" e, depois: "Por quê?", terminando por dizer: "Isso é bobagem, Joseph." Joseph já tentara, em ocasiões anteriores, levar as opiniões do Dr. Winter lá para baixo, sempre sem êxito: Annie invariavelmente concluía que não passavam de bobagem.

O Dr. Winter levantou os olhos dos polegares em movimento e ficou observando Joseph a disciplinar as cadeiras.

—        O que o prefeito está fazendo, Joseph?

—        Está se vestindo para receber o coronel, senhor.

—        E você não está ajudando-o? Vestindo-se sozinho, ele sempre fica mal vestido.

—- Madame está ajudando-o, senhor. Madame quer que Sua Excelência se apresente da melhor forma possível. Ela...

Joseph estacou por um instante, corando diante de sua gafe. Corrigiu-se prontamente:

—        Madame está aparando os cabelos das orelhas de Sua Excelência, senhor. Faz cócegas. Por isso ele nunca me deixa fazê-lo.

—        É claro que faz cócegas — disse o Dr. .Winter.

—        Mas madame insiste.

O Dr. Winter riu subitamente. Levantou-se e estendeu as mãos para o calor da lareira, do que Joseph se aproveitou para correr agilmente por trás dele e recolocar a cadeira no lugar de onde ela nimca deveria ter saído.

—        Nós somos maravilhosos — comentou o Dr. Winter. — Nosso país está caindo, nossa cidade foi conquistada, o prefeito está para receber o conquistador. E madame se preocupa em agarrá-lo pelo pescoço para cortar os cabelos de suas orelhas.

—        É que estavam grandes demais, senhor. E o mesmo acontece com as sobrancelhas. Sua Excelência detesta quando lhe arrancam os fios das sobrancelhas. Diz que dói. Duvido muito que madame o consiga.

—        Mas ela irá tentar.

—        Ela quer que ele pareça o melhor possível, senhor.

Um rosto espiou para dentro da sala, pelo vidro da porta.

Logo em seguida houve uma batida. Parecia que um pouco do calor e da luz do dia deixava a sala, dando lugar ao crepúsculo. O Dr. Winter   olhou para o relógio   de porcelana e comentou:

—        Eles estão chegando antes da hora. Deixe-os entrar,

Joseph.

Joseph foi até a porta e abriu-a. Um soldado entrou, vestido num capote comprido. Usava capacete e empunhava uma metralhadora. Olhou rapidamente ao redor e depois deu um passo para o lado. Por trás dele estava parado um oficial. O uniforme do oficial era comum e as divisas do posto só apareciam nos ombros.

O oficial entrou na sala e olhou para o Dr. Winter. Parecia mais um retrato exagerado de um fidalgo inglês. Tinha uma postura relaxada, o rosto vermelho e o nariz grande, mas até que era simpático. Parecia tão infeliz em seu uniforme quanto a maioria dos generais britânicos. Parou logo depois de entrar, ficou por um momento olhando para o Dr. Winter e depois disse:

—        É o Prefeito Orden, senhor? O Dr. Winter sorriu.

—        Não. Sou o médico da cidade e amigo do prefeito. O oficial disse:

—        E onde está o Prefeito Orden?

—        Está se vestindo para recebê-lo. É o coronel, não é?

—        Não, não sou! Sou o Capitão Bentick.

Ele se inclinou ligeiramente na direção do Dr. Winter, que retribuiu a reverência. O Capitão Bentick continuou, como se estivesse um tanto constrangido com o que tinha de dizer:

—        Nossos regulamentos militares, senhor, exigem que revistemos qualquer sala, à procura de armas, antes de o oficial-comandante nela entrar. E não vai nisso nenhuma falta de respeito, senhor.

Ele virou a cabeça ligeiramente e gritou para trás, por cima do ombro:

—        Sargento!

O sargento avançou rapidamente para Joseph, apalpou-lhe os bolsos e disse:

—        Nada, senhor.

O Capitão Bentick disse ao Dr. Winter:

—        Espero que nos perdoe.

O sargento aproximou-se então do Dr. Winter e apalpou-lhe os   bolsos também. Suas mãos estacaram bruscamente no bolso interno do casaco. Enfiou a mão no bolso rapidamente e tirou uma caixa de couro preto, achatada, levando-a até o Capitão Bentick. O oficial abriu a caixa e encontrou lá dentro alguns instrumentos cirúrgicos dos mais simples: dois bisturis, algumas agulhas cirúrgicas, grampos, uma seringa hipodérmica. Fechou a caixa e devolveu-a ao Dr. Winter. O Dr. Winter comentou:

—        Como pode ver, sou mesmo um médico de roça. Certa vez tive que realizar uma apendicectomia com uma faca de cozinha. Desde então eu sempre carrego esses instrumentos comigo.

O Capitão Bentick disse:

—        Creio que existem algumas armas de fogo aqui, não é mesmo?

Ele abriu um caderninho de capa de couro que trazia no bolso e consultou-o.

—        Estou vendo que sabem de tudo — disse o Dr. Winter.

—        Sabemos, sim. Nosso agente local está trabalhando aqui há bastante tempo.

—        Suponho que não vai dizer quem é ele, não é mesmo?

—        Sua missão já está concluída. Creio que não há mal algum em dizer. Seu nome é Corell.

O Dr. Winter ficou perplexo.

—        George Corell? Mas isso parece impossível! Afinal,

ele fez muita coisa por esta cidade. Até mesmo instituiu um concurso de tiro ao alvo nas colinas, esta manhã!

À medida que ia falando, o Dr. Winter foi começando a arregalar os olhos, começando a compreender o que acontecera. Foi lentamente que ele fechou a boca, demorando algum tempo para voltar a falar:

—        Agora estou entendendo por que ele instituiu o concurso. É isso mesmo! Mas George Corell... parece impossível!

A porta à esquerda se abriu neste momento e o Prefeito Orden entrou; vinha escavando o ouvido direito com o dedo mínimo. Estava usando o traje oficial para a manhã, com o colar distintivo do cargo ao pescoço. Tinha um bigode branco, bem grande, espalhado, e mais dois menores, por cima de cada olho. Os cabelos brancos tinham sido tão escovados, havia bem pouco tempo, que ainda se viam alguns fios lutando para se libertar da pressão que os curvara, procurando ficar em pé novamente. Ele era prefeito fazia tanto tempo que encarnava, para os habitantes da cidade, a própria imagem da Prefeitura. Até mesmo os adultos, quando viam a palavra "prefeito", impressa ou manuscrita, não conseguiam pensar em outra imagem que não a do Prefeito Orden. Ele e o cargo formavam uma unidade única e indivisível. O cargo lhe dera dignidade, ele fizera com que o cargo adquirisse uma alma.

Por trás dele apareceu madame, pequena, encarquilhada e vigorosa. Ela considerava que criara aquele homem, que fora ela quem o idealizara assim como ele era. E tinha certeza de que poderia fazer um trabalho ainda melhor, se assim fosse necessário. Apenas uma ou duas vezes, em toda a sua vida, ela o compreendera por inteiro, como um todo. Mas a parte dele que ela conhecia, conhecia bem, a fundo, em todos os meandros. Não havia qualquer apetite ou aflição, negligência ou fraqueza sua que ela desconhecesse. Mas jamais lhe percebera ou sentira qualquer pensamento, sonho ou anseio. E, no entanto, por diversas vezes em sua vida, ela vira as estrelas.

Ela contornou o prefeito e segurou-lhe a mão, arrancando o dedo mínimo do ouvido ultrajado, da mesma forma como tiraria o polegar da boca de um bebê.

—        Não acredito de jeito nenhum que doa tanto quanto está dizendo — disse ela.

Depois, virando-se para o Dr. Winter, acrescentou:

—        Ele não quis deixar eu dar um jeito nas sobrancelhas.

—        É que dói muito — alegou o Prefeito Orden.

—        Pois está bem. Se você prefere ficar com esse aspecto horrível, então não há nada que eu possa fazer.

Ela endireitou o laço da gravata dele, que já estava mais do que direito.

—        Fico contente que esteja aqui, doutor — disse ela. — Quantos acha que virão?

Foi só então que ela correu os olhos ao redor e deparou com o Capitão Bentick.

—        Oh, o coronel!

O Capitão Bentick disse:

—        Não, madame, estou apenas preparando tudo para a chegada do coronel. Sargento!

O sargento, que estava revirando almofadas e olhando atrás dos quadros, aproximou-se rapidamente do Prefeito Orden e tateou-lhe os bolsos.

—        Desculpe, senhor, mas é o regulamento — disse o Capitão Bentick.

Ele olhou novamente para o cademinho em sua mão e acrescentou:

—        Excelência, creio que tem armas de fogo aqui. Duas, não é mesmo?

—        Armas de fogo? Ah, sim... Tenho uma espingarda e um rifle de caça. Sabe, eu já não caço tanto quanto antigamente. A temporada começa e vai se arrastando, e eu termino não saindo para uma caçada. Já não vejo tanto prazer nisso como antes.

O Capitão Bentick insistiu:

—        E onde estão essas armas. Excelência?

O prefeito cocou o rosto, tentando se lembrar.

—        Ora, acho...

Virou-se para madame:

—        Elas não estavam no fundo daquele armário lá do quarto, junto com as bengalas?

—        Estão, sim. E todas as roupas que estão naquele armário cheiram a graxa. Gostaria que guardasse as armas em algum outro lugar.

O Capitão Bentick falou:

—        Sargento!

E o sargento seguiu imediatamente para o quarto. O capitão desculpou-se:

—        É uma obrigação das mais desagradáveis. Lamento muito.

Ele se virou e fez uma pequena reverência para o Dr. Winter.

—        Obrigado, doutor. O Coronel Lanser estará aqui dentro de pouco tempo. Muito bom dia!

E saiu pela porta da frente, seguido pelo sargento, levando a espingarda e o rifle de caça em uma das mãos, a metralhadora apoiada no braço direito.

Madame disse:

—        Por um momento pensei que ele fosse o coronel. Até que é um rapaz simpático.

O Dr. Winter disse, sardonicamente:

—        Não, ele veio aqui só para proteger o coronel. Madame estava pensando.

—        Quantos oficiais acha que virão?

Lançou um olhar para Joseph e viu que ele estava prestando atenção à conversa, descaradamente. Sacudiu a cabeça e franziu-lhe o rosto. Joseph recomeçou a limpar o pé de todos os móveis.

Madame repetiu a pergunta:

—        Quantos acha que virão?

O Dr. Winter puxou uma cadeira, num gesto abusivo, sentando-se novamente, antes de falar:

—        Não tenho a menor idéia.

Ela tornou a franzir o rosto para Joseph.

—        Estivemos conversando sobre isso. Devemos oferecer-lhes chá ou um copo de vinho? Se devemos, eu preciso saber quantos serão. Se não soubermos, como iremos fazer?

O Dr. Winter sacudiu a cabeça e sorriu.

—        Não faço a menor idéia. Já faz muito tempo que não conquistamos ninguém e nem somos conquistados por ninguém. Não sei o que é adequado ou não.

O Prefeito Orden tomara a enfiar o dedo no ouvido que cocava. E disse:

—        Pois eu acho que não devemos. Não creio que as pessoas vão gostar. E não quero beber vinho com eles. Não sei por quê.

Madame apelou para o Dr. Winter:

—        Antigamente, as pessoas — os chefes, naturalmente — não trocavam cumprimentos e bebiam um copo de vinho?

O Dr. Winter assentiu.

—        Era esse realmente o costume.

Sacudiu a cabeça lentamente, antes de contmuar:

—        Mas talvez as coisas fossem diferentes naqueles tempos. Reis e príncipes se dedicavam à guerra, da mesma maneira como os ingleses se dedicam ao esporte da caça. Assim que a raposa está morta, eles se reúnem para tomar um café da manhã em sua homenagem. O Prefeito Orden provavelmente está certo. As pessoas podem não gostar de vê-lo tomando vinho com o invasor.

—        O povo está mais preocupado com outras coisas, ouvindo a música lá na praça — disse madame. — Aimie me contou. E se o povo está reagindo assim, por que não podemos adotar um procedimento de gente civilizada?

O prefeito fitou-a com firmeza por um momento. A voz era um pouco áspera quando ele disse:

—        Madame, com a sua devida permissão, não teremos vinho. As pessoas estão confusas neste momento. Viviam em paz havia tanto tempo que ainda não estão acreditando na guerra. Mas em breve irão compreender tudo o que aconteceu e não mais estarão confusas. Não podemos também esquecer que seis rapazes desta cidade foram mortos esta manhã. Eles não irão nunca mais comemorar coisa alguma. As pessoas não travam guerras por esporte.

Madame inclinou-se ligeiramente. Em sua vida, houvera algumas ocasiões em que o marido se transformara no prefeito. Ela aprendera a não confundir o prefeito com o marido.

O Prefeito Orden consultou seu relógio. Quando Joseph entrou, trazendo uma bandeja com café, ele pegou distraidamente uma xícara.

—        Obrigado, Joseph.

Tomou um gole e virou-se para o Dr. Winter, dizendo, em tom quase de desculpas.

—        Eu deveria estar a par de tudo, mas... Sabe quantos homens o invasor tem?

—        Não muitos. No máximo uns 250. Mas todos estão armados de metralhadoras.

O prefeito tomou outro gole de café e fez uma nova tentativa:

—        E como está a situação no resto do país?

O Dr. Winter deu de ombros.

—        Não houve resistência em lugar nenhum? — insistiu o prefeito, desanimado.

Novamente o Dr. Winter deu de ombros.

—        Não sei! Os fios do telégrafo devem ter sido cortados. Não temos qualquer notícia do resto do país.

—        E os nossos rapazes, os nossos soldados?

—        Não sei.

Joseph entrou na conversa:

—        Ouvi dizer...   isto é, Annie ouviu...

—        O que, Joseph?

—        Seis homens foram mortos, senhor, a tiros de metralhadoras. Annie ouviu dizer que outros três foram feridos e capturados.

—        Mas eram 12!

—        Annie ouviu dizer que os outros três escaparam. O prefeito virou-se bruscamente para   ele.

—        E quais os três que escaparam?

—        Não sei, senhor. Isso, Annie não soube.

Madame verificou se havia poeira numa mesinha, passando o dedo por cima. Depois, disse:

—        Joseph, quando eles chegarem, fique perto da campainha.

Talvez queiramos alguma coisa. E vista o seu outro casaco, Joseph, aquele que tem botões.

Ela pensou por um momento.

—        E assim que acabar de fazer o que lhe for mandado, Joseph, saia dí! sala. Causa uma péssima impressão a sua presença por aqui, escutando as conversas. É algo por demais provinciano.

—        Sim, madame.

—        Não vamos servir vinho, Joseph. Mas você pode arrumar alguns cigarros naquela cigarreira de prata. E na hora de acender o cigarro do coronel, não risque o fósforo no seu sapato. Risque na própria caixa de fósforos.

—        Sim, madame.

O Prefeito Orden desabotoou o casaco, olhou novamente para o seu relógio, tornou a guardá-lo e abotoou outra vez o casaco, um botão acima da casa correspondente. Madame postou-se diante dele e corrigiu.

O Dr. Winter perguntou:

—        Que horas são?

—        Cinco para as 11.

—        Eles são pontuais. Chegarão aqui na hora marcada. Quer que eu me retire?

O Prefeito Orden pareceu ficar surpreso.

—        Ir embora? Não, não, fique aqui.

Ele riu baixinho e disse, em tom de desculpas:

—        Estou com um pouco de medo... Isto é, não com medo, mas um pouquinho nervoso. Faz muito tempo que não somos conquistados e...

Ele parou para escutar. A distância, podia-se ouvir uma banda tocando uma marcha. Todos se viraram na mesma direção e ficaram escutando. Madame disse, então:

—        Lá vêm eles. Espero que não sejam muitos, pois a sala é pequena.

O Dr. Winter comentou, sardonicamente:

—        Madame preferiria o Salão dos Espelhos, em Versailles?

Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes, olhando ao redor, já imaginando onde poderia situar cada invasor.

—        É uma sala muito pequena... — disse ela, novamente.

A música foi num crescendo, para logo depois voltar a diminuir. Houve uma batida delicada na porta.

—        Mas quem pode ser, numa hora destas? Vá ver quem é,

Joseph, e mande voltar mais tarde. Estamos muito ocupados.

Bateram novamente. Joseph foi até a porta e entreabriu-a, apenas uma fresta, que tratou logo de aumentar. Um vulto cinza, de capacete e luvas, estava parado na porta.

—        Apresento os cumprimentos do Coronel Lanser — disse ele. — E o Coronel Lanser solicita uma audiência com Sua Excelência.

Joseph abriu toda a porta. O ordenança de capacete entrou e correu os olhos rapidamente pela sala, pondo-se depois de lado.

—        O Coronel Lanser! — anunciou ele, então.

Um segundo vulto de capacete apareceu na porta e entrou na sala. Podia-se ver o seu posto apenas pelas divisas nos ombros. Por trás dele vinha um homem um tanto baixo, num terno preto. O coronel era um homem de meia-idade, pálido, de rosto duro, aparência cansada. Tinha os ombros quadrados de um soldado, mas os olhos careciam da expressão vazia do soldado normal. O homenzinho que o acompanhava parecia muito enfatuado, de faces cotadas, olhinhos negros, uma boca sensual.

O Coronel Lanser tirou o capacete e fez uma pequena reverência.

—        Excelência!

Curvou-se também para madame.

— Madame!

Depois, disse ao ordenança:

—        Feche a porta, cabo, por gentileza.

Joseph fechou a porta rapidamente e lançou um olhar triunfante para o soldado. Lanser, por sua vez, lançou um olhar inquisitivo para o Dr. Winter, e o Prefeito Ordcn apressou-se em dizer:

—        Esse é o Dr. Winter.

—        Uma autoridade? — perguntou o coronel.

—        Um médico, senhor. E, pode-se dizer também, o historiador local.

Lanser inclinou-se ligeiramente na direção do médico.

—        Dr. Winter, não tenho a intenção de ser impertinente, mas haverá uma página em sua história que talvez...

O Dr. Winter sorriu.

O Coronel Lanser virou-se ligeiramente na direção do seu companheiro.

—        Creio que já conhecem o Sr. Corell.

O prefeito disse:

—        George Corell? Mas claro que o conheço. Como vai, George?

O Dr. Winter disse, bruscamente, em tom formal:

—        Excelência, nosso amigo, George Corell, foi quem preparou a cidade para a invasão. Nosso benfeitor, George Corell, mandou nossos soldados para a colina, no momento da invasão. Nosso convidado para jantar em muitas ocasiões, George Corell, forneceu ao invasor uma relação de todas as armas de fogo que existiam na cidade. É esse o nosso bom amigo George Corell!

Corell ficou furioso.

—        Eu me empenho pelas coisas em que acredito! E isso é uma coisa honrada!

A boca de Orden estava entreaberta de surpresa. Ele olhou, desolado, de Winter para Corell.

—        Isso não- pode ser verdade! Não é verdade, não é, George? Você sentou-se à minha mesa, tomou vinho comigo. Ora, você até me ajudou a planejar o nosso hospital! Isso não pode ser verdade!

Ele fitava Corell firmemente. E Corell retribuía o olhar com uma expressão belicosa. Houve um longo silêncio. Depois, o rosto do prefeito foi aos poucos se contraindo, numa expressão formal e rígida. Ele se virou para o Coronel Lanser e disse:

—        Não desejo falar coisa alguma na presença desse cavalheiro.

Corell disse:

—        Pois saiba que eu tenho o direito de estar aqui. Sou um soldado como todos os outros. A única diferença é que não uso uniforme. O prefeito repetiu:

—        Não desejo falar coisa alguma na presença desse cavalheiro.

O Coronel Lanser disse, então:

—        Poderia deixar-nos a sós, Sr. Corell?

—        Eu tenho o direito de estar aqui!

Lanser repetiu, agora um tanto asperamente:

—        Poderia deixar-nos a sós, Sr. Corell? Ou será que pensa que é meu superior?

—        Não, senhor.

—        Então, por favor, retire-se.

Corell lançou um olhar furioso para o prefeito, depois, virou-se e saiu rapidamente pela porta da frente. O Dr. Winter soltou uma risadinha e comentou:

—        Isso vai dar um ótimo parágrafo em minha história.

O Coronel Lanser fitou-o friamente, mas não disse nada.

A porta da direita abriu-se nesse momento e Annie, de cabelos cor de palha e olhos vermelhos, enfiou a cabeça para dentro da sala e disse, com raiva na voz:

—        Há uma porção de soldados lá nos fundos, madame. Eles estão simplesmente parados lá.

—        Eles não vão entrar — informou o Coronel Lanser. — É apenas um procedimento militar.

A voz de madame era mais fria que gelo:

—        Annie, quando tiver alguma coisa para dizer, mande Joseph trazer o recado.

—        Eu não sabia. E eles tentaram entrar. Sentiram o cheiro do café.

—        Armie!

—        Está bem, madame — disse ela, retirando-se em seguida.

—        Posso sentar-me?

E o coronel explicou o pedido:

—        Estamos há bastante tempo sem dormir.

O prefeito estremeceu, parecendo ele próprio ter despertado de um sono profundo naquele instante.

—        Claro, claro. Sente-se, por favor!

O coronel olhou para madame e ela se sentou primeiro, acomodando-se numa cadeira, com uma expressão de cansaço. O Prefeito Orden continuou em pé, com uma expressão distante. O coronel começou:

—        Queremos que haja o mínimo de problemas possível.

Espero que compreenda, senhor, que isto é mais um empreendimento comercial que outra coisa qualquer. Precisamos da mina de carvão daqui, assim como da pesca. Procuraremos fazer com que tudo corra bem, como o mínimo de atritos necessário.

O prefeito disse:

—        Não recebi nenhuma notícia. O que está acontecendo no resto do país?

—        Tomamos o país inteiro. Foi tudo muito bem planejado.

—        Não houve resistência em parte alguma?

O coronel assumiu uma expressão compassiva.

—        Eu desejaria que não tivesse havido. Mas houve de fato alguma resistência, tendo como resultado apenas um derramamento de sangue desnecessário. Nós planejamos tudo cuidadosamente.

Orden insistiu em sua questão:

—        Mas houve resistência?

—        Houve. Mas foi uma insensatez resistir. Assim como aconteceu aqui, toda a resistência foi rapidamente esmagada. Foi muito triste e uma insensatez absurda.

O Dr. Winter deixou-se impregnar também pela ansiedade do prefeito.

—        Pode ter sido uma insensatez, mas eles resistiram, não é?

—        Apenas uns poucos. E todos morreram. O povo, de um modo geral, está calmo.

O Dr. Winter explicou:

—        É que o povo ainda não compreendeu direito o que aconteceu.

—        Mas está começando a compreender — declarou o Coronel Lanser. — E tenho certeza de que não cometerá nenhuma insensatez.

Ele pigarreou e sua voz tornou-se subitamente enérgica

—        Agora, temos que tratar de negócios. Estou realmente muito cansado, mas, antes de dormir, devo tomar algumas providências.

Ele se inclinou para a frente e continuou:

—        Sou mais engenheiro que soldado. Na verdade, tudo isso é mais um trabalho de engenharia do que uma conquista. O carvão deve continuar a ser extraído e embarcado. Temos técnicos para supervisionar toda a operação, mas a população local é que continuará a trabalhar nas minas. Isso está claro? Podem ficar tranqüilos, que não seremos excessivamente rigorosos.

—        Compreendi perfeitamente — disse o Prefeito Orden. — Mas suponhamos que o povo não queira continuar a trabalhar nas minas de carvão?

—        Espero que isso não aconteça, pois não haverá outra alternativa. Precisamos do carvão, de qualquer maneira.

—        Mas se os mineiros se recusarem?

—        Não irão fazê-lo. O povo daqui é ordeiro, não vai querer criar problemas.

Ele ficou esperando uma resposta do prefeito. Como nenhuma viesse, perguntou:

—        Não é isso mesmo, senhor?

O Prefeito Orden retorceu o colar, pensativo.

—        Não sei, senhor. O povo é de fato ordeiro, sob o seu próprio governo. Não sei se o será também, sob as ordens de um outro governo. Espero que compreenda que isto é um terreno absolutamente desconhecido para todos nós. Afinal, há 400 anos que mantemos o nosso governo, ininterruptamente. O coronel apressou-se em dizer:

—        E, como sabemos disso, vamos manter o governo de vocês. Assim sendo, continuará no cargo de prefeito, acatando as ordens que lhe dermos. Estará encarregado também de punir e recompensar. Dessa forma, o povo não irá causar problemas.

O Prefeito Orden olhou para o Dr. Winter e perguntou-lhe:

—        Em que está pensando?

—        Em uma porção de coisas. Não sei o que vai acontecer e será interessante descobrir. Mas acho que pode haver problemas. O povo pode não gostar da nova situação.

—        Eu também tenho minhas dúvidas.

O Prefeito Orden virou-se para o coronel e acrescentou:

—        Senhor, embora eu faça parte do povo, não sei como ele irá reagir. Talvez os senhores saibam melhor do que eu. Alguns povos aceitam líderes impostos e obedecem-nos cegamente. Mas meu povo elegeu-me. Foi ele quem me levou ao cargo que ocupo, do qual poderá da mesma forma tirar-me. E talvez aconteça exatamente isso, se julgar que passei para o outro lado. Eu simplesmente não sei o que poderá acontecer.

O coronel disse:

—        Estará prestando um grande serviço a seu povo, se o mantiver quieto e em ordem.

—        Um serviço?

—        Isso mesmo, um serviço. Seu dever é proteger o povo de qualquer perigo. E sua gente correrá perigo, se se rebelar contra as nossas ordens. Temos que obter o carvão, de qualquer maneira. Nossos líderes não nos dizem como, mas querem que o façamos, custe o que custar. Por isso, tem que proteger o seu povo. Tem que convencê-lo a trabalhar nas minas, para assim mantê-lo em segurança.

—        Mas suponhamos que eles não queiram essa segurança?

—        Então deve pensar por eles.

Foi com orgulho na voz que o Prefeito Orden declarou:

—        Meu povo não gosta que outros pensem por ele. Talvez seja diferente do seu povo, nisso. Posso estar confuso com relação a muitas coisas neste momento, mas disso tenho certeza absoluta.

Joseph entrou na sala neste instante, esbaforido, inclinando-se para a frente, ansioso, à espera de autorização para falar. Madame disse:

—        O que é, Joseph? Vá buscar a cigarreira de prata com os cigarros.

—        Perdão, madame. Perdão, Excelência.

—        O que .você quer? — indagou-lhe o prefeito.

—        É Annie, senhor. Ela está ficando furiosa.

—        Qual é o problema? — perguntou madame.

—        Annie não está gostando nada dos soldados que estão lá nos fundos.

O coronel perguntou:

—        Eles estão causando problemas?

—        Eles estão olhando pela porta para Annie — informou Joseph. — E ela detesta isso.

—        Eles estão apenas cumprindo ordens. Não estão fazendo mal algum.

—        É que Annie detesta que fiquem olhando para ela, senhor.

Madame disse:

—        Joseph, diga a Annie para tomar cuidado.

—        Sim, madame.

Joseph saiu. O coronel baixou os olhos, parecendo mais cansado do que nunca.

—        Mais uma coisa. Excelência. Seria possível que eu e meu estado-maior ficássemos sediados aqui?

O Prefeito Orden pensou por um momento, antes de responder:

—        Ê uma casa pequena. Existem outras maiores, mais confortáveis.

Joseph voltou, trazendo a cigarreira de prata. Abriu-a e estendeu-a para o coronel. O coronel pegou um cigarro e Joseph acendeu-o aparatosamente. O coronel aspirou fundo.

—        O problema não é esse — disse ele, finalmente. — É que descobrimos que, nos lugares em que o nosso alto comando local vive sob o mesmo teto que a maior autoridade da cidade, há mais tranqüilidade.

—        Está querendo dizer que o povo fica então pensando que existe uma colaboração muito grande?

—        Creio que é isso mesmo.

O Prefeito Orden lançou um olhar desolado para o Dr. Winter, que nada podia fazer por ele e limitou-se a sorrir constrangido. Orden disse, suavemente:

—        Tenho permissão para recusar essa honra?

—        Lamento muito, mas isso não será possível. Há ordens expressas do nosso líder.

—        O povo não vai gostar.

—        Sempre o povo! O povo está desarmado. O povo não tem que dar palpite, não vai dizer nada.

O Prefeito Orden sacudiu a cabeça, lentamente.

—        Creio que não sabe de nada, senhor.

Pela porta, veio o barulho de uma voz irada de mulher, um baque surdo, o grito de um homem. Joseph entrou correndo na sala.

—        Ela jogou água quente nos soldados — disse ele. — Está muito zangada.

Ordens foram dadas lá atrás, o barulho de pés pisando firme. O Coronel Lanser levantou-se, lentamente.

—        Será que não tem qualquer controle sobre os seus criados, senhor? — perguntou ele.

O Prefeito Orden sorriu.

—        Muito pouco. Ela é uma boa cozinheira, quando está feliz. Houve alguém machucado, Joseph?

—        A água estava fervendo, senhor.

 

O estado-maior do Coronel Lanser estabeleceu seu quartel-general no segundo andar do pequeno palácio do prefeito. Eram cinco homens, além do coronel. Havia o Major Hunter, um homenzinho obcecado por números. Sendo um indivíduo cegamente obediente, ele achava que todo mundo deveria sê-lo também ou então não merecia viver. O Major Hunter era engenheiro. Exceto em tempo de guerra, ninguém jamais pensaria em lhe dar o comando de homens. Pois, para ele, seus homens não passavam de algarismos, que somava, diminuía e multiplicava à vontade. Ele era mais um aritmético do que um matemático. O humor, a música e o misticismo da alta matemática jamais lhe haviam penetrado os pensamentos. Para ele, os homens podiam variar em altura, peso ou cor, assim como o 6 se diferencia do 8. Afora isso, contudo, praticamente não havia qualquer outra diferença. Ele já fora casado diversas vezes e não compreendia por que suas esposas haviam ficado muito nervosas pouco antes de abandoná-lo.

Já o Capitão Bentick era um homem chegado à família, um apaixonado por cachorros, crianças rosadas e Natal. Já era velho demais para ser um capitão, mas uma curiosa falta de ambição mantivera-o nesse posto. Antes da guerra, ele admirava intensamente os fidalgos rurais ingleses. Chegava ao ponto de só usar roupas inglesas; criava cachorros ingleses; fumava num cachimbo inglês, com uma mistura especial que era enviada de Londres; assinava as revistas inglesas que falavam sobre o campo; louvava as virtudes da jardinagem; discutia interminavelmente os méritos dos setters ingleses. O Capitão Bentick ia passar todas as suas férias em Sussex e gostava de ser tomado por um inglês, em Budapeste ou Paris. A guerra mudara tudo isso, exteriormente. Mas ele passara tanto tempo a sugar um cachimbo e a carregar uma bengala que não podia renunciar tão bruscamente. Certa vez, cinco anos antes, ele escrevera uma carta ao Times sobre a relva que morria por negligência nas Midlands, assinando-a como Edmund Twitchell, Esquire.(1). Mais importante, porém, fora que o Times publicara a carta.

Se o Capitão Bentick já era velho demais para ser um capitão, o mesmo não se podia dizer do Capitão Loft. Este era tudo o que se podia imaginar num capitão. Vivia e respirava o seu posto. Não havia um só momento em que relaxasse a sua condição de militar. Uma ambição inexorável impulsionava-o pela carreira militar acima. E ele subia como a nata para cima do leite. Batia os calcanhares tão perfeitamente quanto um dançarino. Conhecia todos os meandros e requintes dos regulamentos militares e fazia questão de usá-los a todos. Os generais tinham medo dele, porque ele sabia mais do que eles sobre a conduta militar impecável. O Capitão Loft pensava e acreditava que um soldado era o desenvolvimento máximo da vida animal. Se em algum momento pensava em Deus, via-o como um velho e honrado general, retirado das fileiras, grisalho, vivendo das recordações de batalhas passadas e indo, todos os anos, depositarem coroas nos túmulos dos seus homens mortos em ação. O Capitão Loft acreditava piamente que todas as mulheres se apaixonavam perdidamente por um uniforme, e não podia entender que assim não fosse. No curso normal dos acontecimentos, ele seria um "brigadeiro-general aos 45 anos e veria seu retrato nos jornais, ladeado por mulheres altas, pálidas, um tanto masculinizadas, com chapeuzinhos rendados”.

Os Tenentes Prackle e Tonder eram oficiais ainda verdes, educados na política do dia, acreditando cegamente no novo sistema inventado por um gênio, de tal porte que eles nem se davam ao trabalho de verificar os resultados. Eram jovens sentimentais, que se entregavam com a mesma facilidade às lágrimas e à fúria. O Tenente Prackle carregava uma madeixa de cabelos presa ao costado de seu relógio de bolso, envolta num pedaço de cetim azul. Os cabelos estavam sempre se soltando e obstruindo o mecanismo do relógio. Por isso ele usava também um relógio de pulso. Prackle era um dançarino perfeito, o par ideal» um jovem alegre e divertido. Apesar disso, ele sabia amarrar a cara como o Líder, mostrar-se pensativo como o Líder. Odiava a arte degenerada e, pessoalmente, com as próprias mãos, destruíra diversas telas representativas dessa manifestação. Nos cabarés, fazia às vezes desenhos a lápis de seus companheiros, tão bons que freqüentemente lhe diziam que devia se dedicar à arte. Prackle possuía diversas irmãs louras, das quais sentia-se tão orgulhoso que certa ocasião chegara a provocar um imenso tumulto, ao julgar que elas haviam sido insultadas. As irmãs ficaram um. tanto perturbadas, especialmente por medo de que alguém resolvesse provar os insultos. O que, aliás, não teria sido difícil. O Tenente Prackle passava quase todas as suas horas de serviço sonhando em seduzir a irmã loura do Tenente Tonder, uma jovem rechonchuda que adorava ser seduzida por homens mais velhos, cujos cabelos não fossem tão emaranhados quanto os do Tenente Prackle.

O Tenente Tonder era um poeta, um poeta amargurado, que sonhava com o amor perfeito, ideal, de jovens nobres por moças pobres. Tonder era um romântico soturno, com uma visão tão ampla quanto a sua experiência. As vezes ele murmurava baixinho versos vazios, para imaginárias mulheres lúgubres. Ele ansiava pela morte no campo de batalha, os pais chorando ao fundo, o Líder triste mas bravo, lamentando a morte da juventude do país. Ele imaginava sua morte com bastante freqüência, iluminada por um sol poente deslumbrante, a cintilar nos destroços de equipamentos militares, os homens de pé ao seu redor, em silêncio, de cabeças abaixadas, enquanto lá no alto galopavam as Valquírias, de seios imensos, mães e amantes ao mesmo tempo, uma trovoada wagneriana soando ao fundo. E ele já tinha inclusive preparado as suas palavras de moribundo.

Assim eram os homens do estado-maior invasor, cada um brincando de guerra como crianças brincando de amarelinha. O Major Hunter pensava na guerra como um trabalho aritmético a ser feito, para que pudesse voltar ao seu lar assim que terminasse. O Capitão Loft encarava-a como a única empresa digna de um jovem bem criado. Os Tenentes Prackle e Tonder viam-na mais como uma fantasia, algo em que nada havia de real, de concreto. E até aquele momento a guerra fora para eles realmente uma brincadeira — excelentes armamentos e um planejamento impecável, contra homens desarmados e sem qualquer plano. Eles não haviam perdido nenhuma batalha, tinham sofrido muito pouco. Sob pressão, eram capazes de covardia ou coragem, como quaisquer outros homens. De todos, somente o Coronel Lanser sabia como era a guerra de fato, a longo prazo.

Lanser estivera na Bélgica e na França, 20 anos atrás, e procurava não pensar no que sabia: que a guerra é traição e ódio, absurdos de generais incompetentes, tortura, carnificina, doença, exaustão, até que finalmente tudo acaba e a situação continua a mesma, a não ser pelo surgimento de novos ódios e novos cansaços. Lanser dizia a si mesmo que era um soldado, que recebia ordens e tinha que cumpri-las. Procurava afastar para longe as memórias terríveis da outra guerra e a certeza de que essa terminaria da mesma maneira. Por isso mesmo é que, 50 vezes por dia, ele repetia a si mesmo que aquela guerra seria diferente.

Nas marchas militares, nas multidões, nos jogos de futebol e na guerra, os contornos se tornam vagos, as coisas reais ficam irreais, um nevoeiro invade as mentes das pessoas. A tensão e o excitamento, o cansaço, o movimento, tudo se funde e se confunde num sonho único, prolongado, vago. Quando tudo termina, é difícil recordar como foi que matou outros homens, como pôde ordenar que eles fossem mortos. E então outras pessoas, que não estavam lá, dizem-lhe como foi e você se limita à murmurar, vagamente: "É, sim, acho que foi assim mesmo."

O estado-maior invasor ocupou três quartos do segundo andar do palácio do prefeito. Em dois quartos armaram as suas camas de lona e fizeram os dormitórios. No terceiro, que ficava diretamente acima da sala de recepção, no andar térreo, fizeram uma espécie de clube dos oficiais, um tanto desconfortável. Constava apenas de umas poucas cadeiras e uma mesa. Era ali que escreviam e liam suas cartas. Era ali que conversavam, pediam café, planejavam, analisavam. Nas paredes, entre as janelas, havia quadros de vacas, lagos e casas de fazenda. Pelas janelas podia-se contemplar quase toda a cidade, até o cais, com inúmeras embarcações atracadas, as barcaças de carvão num dos lados, prontas para partir rumo a alto-mar. A cidadezinha se esgueirava por entre ruas estreitas, passava pela praça central, seguia até a beira do mar. As traineiras estavam ancoradas no meio da baía, as velas dobradas. Da praia vinha o cheiro forte de peixe secando ao sol.

No centro do quarto improvisado em clube dos oficiais havia uma mesa grande, ao lado da qual estava sentado o Major Hunter. Apoiada em seu colo e na beira da mesa havia uma prancheta. Com uma régua-tê e um esquadro, ele projetava um novo desvio para a estrada de ferro. Mas a prancheta não estava muito firme e o major ia ficando cada vez mais irritado por causa disso. Por cima do ombro, ele berrou:

—        Prackle! Silêncio.

—        Tenente Prackle!

A porta do quarto ao lado se abriu e o tenente apareceu, o rosto meio coberto por creme de barbear. O pincel de barba estava em sua mão.

—        Pois não?

O Major Hunter sacudiu bruscamente a sua prancheta.

—        O tripé da prancheta não veio na bagagem?

—        Não sei, senhor. Não olhei.

—        Pois quer ir olhar, por favor? Já é ruim o bastante ter que trabalhar com esta luz. Vou ter que passar tudo a limpo, antes de cobrir com nanquim.

Prackle disse:

—        Assim que acabar de fazer a barba, irei olhar, senhor.

Irritado, Hunter disse:

—        Esse desvio é muito mais importante do que a sua aparência. Veja se encontra o tripé agora. Ele está num tubo de lona, parecido com uma sacola de tacos de golfe.

Prackle desapareceu dentro do quarto. A porta da direita se abriu e o Capitão Loft entrou. Estava de capacete, binóculo de campanha, coldre com um revólver na cintura e diversas outras bolsinhas de couro espalhadas pelo corpo. Começou a remover os equipamentos no momento mesmo em que entrou.

—        Bentick está mesmo doido — foi dizendo ele. — Saiu agora mesmo para a rua, em serviço, usando um quepe!

Loft pôs o binóculo em cima da mesa; depois, tirou o capacete e a máscara contra gases. Uma pequena pilha de equipamentos começou a se formar em cima da mesa. Hunter disse:

—        Não deixe essas coisas aqui em cima. Tenho que trabalhar. E por que ele não deveria usar um quepe? Ainda não houve nenhum problema. Eu também não gosto desses capacetes. São muito pesados e não se podem ver as coisas direito.

Loft se empertigou.

—        É um erro sair sem capacete. É ruim para o nosso relacionamento com o povo daqui. Devemos manter uma postura militar permanentemente, estar sempre alerta, jamais relaxar. Caso contrário, estaremos simplesmente atraindo problemas para nós mesmos.

—        O que o leva a pensar assim?

Loft ficou ainda mais empertigado. Estava impávido, em sua certeza. Não havia quem não sentisse vontade de, algum dia, dar um soco no nariz de Loft, pela certeza que ele tinha a respeito de tudo.

—        Não sou eu que penso assim. Estou apenas dizendo o que consta do Manual X-12 sobre a conduta que se deve observar nos países ocupados. Foi tudo meticulosamente previsto. Você devia...

Ele parou de falar por um instante e mudou a frase:

—        Todos deveriam ler o X-12 com muita atenção.

—        Eu me pergunto se as pessoas que o escreveram já estiveram algum dia num país ocupado — comentou Hunter. — As pessoas daqui são inofensivas. Parecem ser dóceis e obedientes.

Prackle voltou à sala, o rosto ainda meio coberto com o creme de barbear. Carregava um tubo marrom de lona. Atrás dele vinha o Tenente Tonder.

—        É isto aqui? — perguntou Prackle.

—        Exatamente. Desembrulhe e arme para mim, está bem?

Prackle e Tonder   se puseram a armar o tripé dobrado.

Depois, testaram-no e puseram-no perto de Hunter. O major atarraxou a prancheta no tripé, virou-a para a esquerda, depois para a direita, verificando se estava firme. Finalmente, sentou-se atrás, resmungando. O Capitão Loft disse:

—        Sabe que está com o rosto coberto de creme de barbear, tenente?

— Sei, sim, senhor. Eu estava fazendo a barba quando o major me pediu que encontrasse o tripé.

— Pois então é melhor ir agora. O coronel não gostaria de vê-lo desse jeito.

— Oh, não, ele não se importaria! Ele não dá importância a coisas assim.

Tonder estava olhando por cima do ombro de Hunter, que trabalhava na prancheta. Loft disse:

— Talvez ele não se importe, mas, de qualquer maneira, não parece certo.

Prackle tirou um lenço do bolso e removeu o creme de barbear que estava em seu rosto. Tonder apontou para um pequeno desenho no alto da folha sobre a qual o major trabalhava.

—        Linda ponte a que fez aqui, major. Mas onde diabo vamos construir uma ponte?

Hunter olhou para a ponte e depois virou a cabeça ligeiramente, fitando Tonder por cima do ombro.

—        Hem? Oh, não! Essa não é nenhuma ponte que vamos construir.

—        Por que então está desenhando-a?

Hunter pareceu ficar um tanto embaraçado.

—        É que lá em casa, no quintal dos fundos, tenho uma ferrovia em miniatura. Fiz um pequeno regato na passagem dos trilhos. Ia fazer também uma ponte para o trenzinho passar por cima, mas não cheguei a construí-la. Achei que poderia projetá-la enquanto estava fora.

O Tenente Prackle tirou do bolso uma página em rotogra-vura toda dobrada e abriu-a. Era à fotografia de uma moça, pernas de fora, um vestido provocante, meias transparentes, um corpete baixo. Olhava para a câmara, por cima de um leque preto rendado. O Tenente Prackle suspendeu a fotografia e disse:

—        Ela não é um espetáculo?

O Tenente Tonder contemplou a fotografia com olhos críticos, antes de comentar:

—        Não gosto dela.

—        E o que não gosta nela?

—        Simplesmente não gosto. Por que está guardando sua fotografia?

—        Porque ela me agrada muito e garanto que a você também.

—        Pode estar certo de que não.

 

—        Está querendo dizer que não sairia com ela, se pudesse? Tonder pensou por um momento, antes de responder:

—        Isso mesmo.

—        Pois então você está inteiramente louco. Prackle foi até uma das cortinas.

—        Vou prendê-la aqui e deixar você admirá-la por algum tempo.

Ele prendeu a fotografia na cortina. O Capitão Loft, que estava começando a reunir nos braços o seu equipamento, disse:

—        Não creio que aí seja um lugar conveniente, tenente.

É melhor tirá-la. Não causaria uma boa impressão aos moradores locais.

Hunter levantou os olhos da prancheta.

—        O que não causaria uma boa impressão?

Ele acompanhou o olhar de Loft até a fotografia.

—        Quem é ela? — indagou então.

—        É uma atriz — explicou Prackle. Hunter examinou a fotografia atentamente.

—        Você a conhece?

Tonder disse:

—        Ela é uma vagabunda.

—        Então você a conhece também? — perguntou-lhe Hunter.

Prackle olhava firmemente para Tonder e indagou-lhe:

—        Como é que sabe que ela é uma vagabunda?

—        Ela se parece com uma vagabunda.

—        Mas você a conhece pessoalmente?

—        Não. Nem quero conhecer.

Prackle já ia dizer: "Então como é que pode afirmar uma coisas dessas?", quando Loft interveio:

—        É melhor tirar essa fotografia daí. Se quiser, pregue-a em cima de sua cama. Esta sala é fim lugar mais ou menos oficial.

Prackle fitou-o com uma expressão insubordinada, mas não chegou a dizer nada, pois o Capitão Loft tratou de acrescentar:

—        E isso é uma ordem, tenente.

O pobre Prackle dobrou a fotografia e guardou-a novamente no bolso. Tentou jovialmente mudar de assunto.

—        Há algumas garotas bem bonitas aqui nesta cidade. Assim que as coisas ficarem mais calmas e tudo estiver correndo normalmente, vou tratar de travar conhecimento com elas.

—        Seria bom você ler o X-12 — disse Loft. — Há todo um capítulo referente aos assuntos sexuais.

E com isso ele saiu, carregando todos os seus equipamentos. O Tenente Tonder, que continuava a espiar por cima do ombro de Hunter, disse:

—        Mas isso está muito bom... Os vagões carregados de carvão vão direto da mina para o navio!

Hunter lentamente tirou a atenção do seu trabalho para comentar:

—        Temos que acelerar o ttansporte do carvão. É um trabalho difícil, complicado. Por isso é que agradeço o fato de os moradores desta cidade serem tão calmos e sensatos.

Loft voltou à sala, sem o equipamento. Parou junto à janela, olhando para o porto, e depois para a mina de carvão. Finalmente, disse:

—        Eles são calmos e sensatos porque nós somos calmos e sensatos. Acho que nos podemos atribuir o crédito por isso. Esse é o motivo pelo qual eu tanto insisto na estrita observância dos regulamentos. Eles foram meticulosamente estudados.

A porta se abriu e o Coronel Lanser entrou, tirando o capote no caminho. Os quatro oficiais que lá estavam receberam-no com a cortesia militar devida, de forma não muito rígida, mas o suficiente para manter as aparências. Lanset disse:

—        Capitão Loft, poderia ir substituir Bentick? Ele diz que não está se sentindo bem, que está um pouco tonto.

—        Sim, senhor. Posso lembrar entretanto, senhor, que eu saí de serviço ainda há pouco?

Lanser olhou-o fixamente.

—        Espero que não se importe de ir, capitão.

—        Absolutamente, senhor. Eu falei apenas para deixar registrado.

Lanser relaxou e soltou uma risadinha.

—        Gosta que tudo o que faz fique devidamente registrado, não é?

—        Não faz mal nenhum, senhor.

—        E quando seu nome estiver mencionado uma porção de vezes nas ordens do dia, então poderá ganhar mais uma fitinha para o seu peito.

—        São os marcos de uma carreira militar, senhor.

Lanser suspirou.

—        Tem razão, acho que são mesmo. Mas não serão os fatos mais importantes de que irá se lembrar, capitão.

—        Como assim, senhor?

—        Talvez compreenda mais tarde o que estou querendo dizer.

O Capitão Loft tornou a se enfiar em seus equipamentos, rapidamente.

—        Sim, senhor.

Em seguida, saiu. Seus passos ecoaram pelos degraus de madeira. Lanser ficou observando-o descer, com um sorriso nos lábios. Depois, murmurou:

—        Lá vai um soldado nato.

Hunter levantou os olhos, equilibrou o lápis na prancheta e disse:

—        Ou seja: um idiota nato.

—        Não é bem assim. Ele é um soldado da maneira como muitos homens seriam políticos. Não vai demorar muito para ele chegar ao alto comando do nosso exército. E então irá olhar a guerra de cima e de longe. Assim, haverá de sempre adorá-la.

O Tenente Prackle perguntou:

—        Quando acha que a guerra estará acabada, senhor?

—        Acabada? O que está querendo dizer com isso? O Tenente Prackle procurou explicar-se:

—        Quando a nossa vitória será completa, senhor? Lanser sacudiu a cabeça.

—        Não sei. O inimigo ainda resiste, em diversas partes do mundo.

—        Mas nós iremos destruí-lo, senhor.

—        É mesmo?

—        Não vamos, senhor?

—        Claro que vamos. Nos sempre o destruímos. Animado, Prackle indagou:

—        Se tudo estiver tranqüilo no Natal, senhor, será que irão conceder licenças?

—        Não sei, tenente. As ordens para conceder licenças terão que ser enviadas do quartel-general em nosso país. Quer estar em casa no Natal, não é?

—        Eu gostaria, senhor.

—        Pois talvez possa, tenente, talvez possa.

O Tenente Tonder disse:

—        Quando a guerra terminar, senhor, será que vamos renunciar à ocupação?

—        Não sei. Por quê?

—        É que aqui é um lugar muito bonito, senhor, com gente muito boa. Nossos homens — alguns deles, pelo menos — talvez gostassem de viver aqui.

Em tom de pilhéria, Lanser disse:

—        Viu algum lugar de que gostasse, tenente?

—        Há algumas fazendas muito boas por aqui, senhor. Acho que, se juntassem umas quatro ou dnco, daria um ótimo lugar pata se iniciar uma colônia.

—        Sua família não tem terras, não é, tenente?

—        Não, senhor. Perdemos tudo na inflação.

Lanser já estava cansado de falar com crianças. E disse, então:

—        Ainda temos que combater numa guerra antes de pensarmos nisso, tenente. Ainda temos que tirar o carvão daqui. Acha que podemos esperar até que tudo esteja terminado, antes de requisitarmos essas fazendas? Além do mais, as ordens para isso terão que partir lá de cima. O Capitão Loft poderá explicar-lhe tudo.

Ele mudou sua atitude, ao acrescentar:

—        Hunter, o seu aço chegará aqui amanhã. Poderá começar a colocar os trilhos ainda esta semana.

Houve uma batida na porta e uma sentinela abriu-a.

—        O Sr. Corell deseja falar-lhe, senhor.

—        Mande-o entrar — disse o coronel, virando-se em seguida para os outros e explicando: — É o homem que fez todo o trabalho preliminar aqui.   Talvez tenhamos algumas dificuldades.

—        Ele fez um bom trabalho? — indagou Tonder.

—        Fez, sim. E talvez isso o tenha feito um tanto impopular junto aos habitantes locais. E também não sei se ele será popular entre nós.

—        Ele certamente merece crédito pelo que fez, senhor — observou Tonder.

—        Claro que merece. E tenha certeza de que ele irá reivindicá-lo.

Corell entrou, esfregando as mãos. Irradiava boa vontade e camaradagem. Ainda estava vestido com o seu terno escuro, mas tinha agora na cabeça uma faixa branca de atadura, presa por esparadrapos, formando uma cruz. Avançou até o centro da sala e disse:

—        Bom dia, coronel. Eu deveria tê-lo procurado ontem, logo depois do incidente que ocorreu lá embaixo. Mas eu sabia que deveria estar muito ocupado.

—        Bom dia — disse o coronel.

Depois, sacudiu a mão, apontando para os outros oficiais.

—        Esse é o meu estado-maior, Sr. Corell.

—        Homens excelentes — comentou Corell. — Fizeram um bom trabalho. Mas é verdade que eu procurei preparar o terreno da melhor forma possível.

Hunter baixou os olhos para a sua prancheta, pegou uma pena, molhou-a na tinta de nanquim e começou a cobrir os traços a lápis. Lanser disse:

—        Fez um bom trabalho, Sr. Corell. Mas eu preferiria que não tivesse matado aqueles seis homens. Eu bem que gostaria que aqueles soldados não tivessem voltado.

Corell abriu os braços e disse, tranqüilamente:

—        Seis homens é um índice de baixas muito pequeno para uma cidade deste .tamanho. E que ainda por cima tem uma mina de carvão.

Foi com firmeza que Lanser declarou:

—        Não sou avesso a matar pessoas, quando isso é necessário e serve para liquidar de vez um problema. Mas às vezes é melhor não fazê-lo.

Corell estivera examinando os outros oficiais, furtivamente. Lançou um olhar para os tenentes e depois disse:

—        Será que... talvez... não poderíamos conversar a sós, coronel?

—        Podemos, se prefere assim. Tenente Prackle, Tenente Tonder, poderiam fazer a gentileza de voltarem para o seu quarto?

O coronel dirigiu-se novamente a Corell a acrescentou:

—        O Major Hunter está trabalhando. E ele não escuta coisa alguma nessas ocasiões.

Hunter levantou os olhos da prancheta e sorriu, logo tornando a baixá-los. Os dois jovens tenentes se retiraram. Assim que eles saíram, Lanser disse:

—        Pronto, podemos falar agora. Não quer sentar-se?

— Obrigado, senhor.

Corell sentou-se atrás da mesa. Lanser olhou para a ban-dagem na cabeça dele e depois disse, abruptamente:

—        Eles já tentaram matá-lo?

Corell tateou a bandagem com as pontas dos dedos.

—        Está se referindo a isto? Oh, não! Foi uma pedra que caiu do alto de um penhasco, lá nas colinas, esta manhã.

—        Tem certeza de que não foi atirada por ninguém?

—        O que está querendo dizer, coronel? O povo daqui não tem nada de violento. Há mais de 100 anos que não travam uma guerra. Eles esqueceram completamente como é que se luta.

—        Você viveu entre eles. Deve saber melhor do que eu.

Ele deu um passo na direção de Corell e continuou:

—        Mas se você está em segurança aqui, então esse povo é diferente de qualquer outro no mundo inteiro. Já ajudei a ocupar outros países antes. Estive na Bélgica 20 anos atrás. E também na França.

Ele sacudiu a cabeça ligeiramente, como se procurasse clarear os pensamentos, acrescentando, um tanto rispidamente:

—        Fez um bom trabalho, pelo qual muito temos que lhe agradecer. Mencionei o seu trabalho em meu relatório.

—        Obrigado, senhor.   Fiz o melhor que pude.

A voz um pouco cansada, Lanser disse:

—        E agora, o que vamos fazer? Gostaria de voltar para a capital? Podemos embarcá-lo numa barcaça de carvão, se estiver com pressa, ou então num destróier, se não se incomodar de esperar um pouco.

—        Mas eu não quero voltar, coronel. Quero continuar aqui.

Lanser examinou-o atentamente, antes de dizer:

—        Infelizmente, não disponho de homens em quantidade suficiente. Não poderei assim proporcionar-lhe uma escolta adequada.

—        Mas eu não preciso de uma escolta. Já lhe disse que o povo daqui não é violento.

Lanser tornou a olhar para a bandagem na cabeça dele. Hunter levantou os olhos da prancheta e observou:

—        Seria melhor que começasse a andar só de capacete.

Ele voltou a concentrar-se em seu trabalho. Corell inclinou-se para a frente.

—        Eu queria falar-lhe especialmente sobre um problema, coronel. Achei que poderia ajudá-lo com a administração civil.

Lanser foi até a janela e olhoif para fora. Depois, virou-se bruscamente e disse:

—        Qual é a sua idéia?

—        Precisa ter vana. autoridade civil na qual possa confiar. Achei que talvez o Prefeito Orden pudesse ser afastado do seu cargo e... bem, se eu tomasse o lugar dele, a administração civil e a militar poderiam operar na mais estreita colaboração.

Os olhos de Lanser pareceram se arregalar, se iluminar. Ele se aproximou de Corell e disse, rispidamente:

—        Por acaso mencionou isso em seu relatório?

—        Bom, sim, é claro... em minha análise. Lanser interrompeu-o:

—        Por acaso já conversou com algum dos moradores da cidade, além do prefeito, depois da nossa chegada?

—        Ainda não. Eles estão um pouco aturdidos. Não esperavam por uma coisa dessas.

Ele soltou uma risadinha divertida e acrescentou:

—        Não esperavam mesmo...

Mas Lanser insistiu no ponto que queria abordar;

—        Então não sabe realmente o que eles estão pensando, não é?

—        Ora, eles estão simplesmente surpresos, um pouco aturdidos. Quase como se estivessem sonhando.

—        Mas não sabe o que eles estão pensando a seu respeito, não é?

—        Tenho muitos amigos aqui. Conheço todo mundo.

—        Alguém comprou algimia coisa em seu armazém esta manhã?

—        Bom, é claro que os negócios estão em ponto morto. Ninguém está comprando coisa nenhuma.

Lanser relaxou subitamente.   Foi até uma cadeira, sentou-se, cruzou as pernas. E disse, calmamente:

—        O seu ramo do serviço é muito difícil e exige muita bravura. Deveria ser regiamente recompensado.

—        Obrigado, senhor.

—        Chegará o momento em que terá de enfrentar o ódio deles.

—        Posso perfeitamente suportá-lo, senhor. Afinal de contas, eles são o inimigo.

Lanser hesitou por um longo momento e por fim disse, suavemente:

—        Não poderá contar nem mesmo com o nosso respeito.

Corell levantou-se de um pulo, bruscamente.

—        Mas isso é contrário às palavras do Líder! O Líder disse que todos os ramos do serviço são igualmente honrosos e meritórios.

Lanser continuou, indiferente ao protesto:

—        Espero que o Líder saiba de tudo. Espero que ele seja capaz de ler os pensamentos dos soldados.

Uma pausa, curta, depois a continuação, em tom quase de compaixão:

—        Deveria ser regiamente recompensado...

Por um momento os pensamentos de Lanser vagaram para longe dali, mas ele logo se recuperou.

—        Mas agora vamos ser mais objetivos. Estou no comando, aqui. Minha obrigação é tirar e despachar para o nosso país todo carvão que for possível. Para tanto, preciso manter a ordem e a disciplina. E, para isso, é indispensável que eu saiba o que o povo daqui está pensando. Devo antecipar qualquer revolta e tomar as providências necessárias. Entende isso, não é?

—        Poderei descobrir tudo o que desejar saber, coronel. Como prefeito daqui, serei bastante eficaz.

Lanser sacudiu a cabeça.

—        Não tenho ordens expressas a esse respeito. Assim sendo, sou obrigado a basear-me em meu próprio julgamento da situação. E creio que nunca mais tornará a saber o que está acontecendo por aqui. Ninguém jamais voltará a lhe dirigir a palavra, a se aproximar de seu armazém, exceto aqueles que vivem pelo dinheiro, que podem viver pelo dinheiro. E creio também que, sem uma escolta, irá correr grande perigo. Eu ficaria satisfeito se voltasse para a capital, a fim de receber as devidas recompensas pelo seu excelente trabalho.

—        Mas meu lugar é aqui, senhor — objetou Corell. — Aqui é que construí a minha vida. Eu disse tudo isso em meu relatório.

Lanser continuou, como se não tivesse ouvido:

—        O Prefeito Orden é mais que um simples prefeito. Ele representa o povo. Sabe o que os habitantes locais estão fazendo, sabe o que estão pensando, sem que precise perguntar. Porque ele pensa como todos os demais. Observando-o, poderei saber o que a população está pensando. Ele deve permanecer em seu cargo. Essa é a minha decisão.

—        O trabalho que eu fiz aqui, senhor, merece um tratamento melhor do que o de ser despachado para longe.

—        Concordo — disse Lanser, lentamente. — Mas, dentro dos nossos planos mais amplos, só poderá causar prejuízos. Se ainda não é odiado, isso não demora a acontecer, inevitavelmente. Em qualquer revolta que possa ocorrer, por menor que seja, será o mais visado, o primeiro que irão matar. É por isso que eu suguo que trate de voltar, imediatamente.

A voz de Corell estava tensa:

—        Dará permissão para que eu aguarde a resposta ao relatório que enviei para a capital?

—        Claro que sim. Mas recomendo que volte o mais breve possível, por sua própria segurança. Falando com toda franqueza, já não tem mais valor aqui. Mas... bom, deve haver outros planos em que poderá ser aproveitado, outros países a serem trabalhados. Talvez seja designado para atuar em outra cidade, em outro país. Terá que conquistar novamente a confiança da população, começando tudo de novo. E talvez lhe confiem uma cidade bem maior do que esta, de importância estratégica. Irei recomendá-lo pelo excelente trabalho que realizou aqui.

Os olhos de Corell estavam brilhando de satisfação.

—        Obrigado, senhor. É verdade que trabalhei arduamente em minha missão aqui. E talvez esteja certo. Mas solicito permissão para aguardar uma resposta da capital.

A voz de Lanser era tensa, o tom áspero, os olhos pareciam duas fendas mínimas.

—        Passe a usar capacete, não ande em lugares desertos, não saia de casa à noite e, acima de tudo, não beba. Não confie em nenhum homem, em nenhuma mulher.

Corell olhou para o coronel, com uma expressão de pena.

—        Acho que não está entendendo nada, coronel. Tenho uma casinha aqui. E uma linda moça à minha espera. Ela gosta de mim. As pessoas daqui são simples, pacíficas, ordeiras. Eu as conheço muito bem.

—        Elas não são nada pacíficas. Quando será que vai aprender isso? Não têm nada de amigáveis. Será que não consegue entender? Nós invadimos este país. E foi justamente você, pelo que eles consideram como uma traição, que preparou o terreno para a invasão.

O rosto de Lanset estava agora vermelho, a voz cada vez mais alta:

—        Será que não pode compreender que estamos em guerra com essas pessoas?

Um tanto presunçosamente, Gjrell disse:

—        Nós já as derrotamos.

O Coronel Lanser levantou e sacudiu os braços, desanimado. Hunter levantou os olhos da prancheta e estendeu uma das mãos para protegê-la. E disse:

—        Cuidado, senhor. Estou passando o nanquim agora. Não gostaria de ter que começar tudo novamente.

Lanser baixou os olhos para ele e disse:

—        Desculpe.

Continuou quase sem interrupção, como se estivesse dando uma aula:

—        A derrota é uma coisa momentânea. Uma derrota não perdura por muito tempo. Nós fomos derrotados e agora estamos atacando. A derrota nada significa. Será que não pode entender isso? Sabe por acaso o que eles estão sussurrando por trás das portas fechadas?

—        O senhor sabe?

—        Não, mas desconfio. Insinuantemente, Corell disse, então:

—        Está com medo, coronel? Será que o comandante da ocupação deve ter medo?

Lanser afundou numa cadeira e murmurou:

—        Talvez seja mesmo isso.

A voz impregnada de repulsa, ele acrescentou:

—        Estou cansado dessas pessoas que nunca estiveram numa guerra, mas que sabem de tudo a respeito.

Pensativo, apoiando o queixo na mão, ele continuou:

—        Lembro-me de uma velha que conheci em Bruxelas. Tinha um rosto meigo, os cabelos brancos. Não chegava a um metro e meio de altura. As mãos eram delicadas, mãos de velha. As veias, quase pretas, destacavam-se na pele muito branca. Estava sempre com um xale preto, os cabelos tinham matizes azulados, de tão brancos. Costumavam cantar para nós as nossas canções nacionais, numa voz trêmula e suave. Sabia sempre onde encontrar um cigarro ou uma virgem.

A mão que segurava o queixo caiu subitamente e ele estremeceu, como se de repente despertasse bruscamente.

—        Não sabíamos que o filho dela fora executado. Quando finalmente a fuzilamos, ela já tinha matado 12 homens, com um alfinete de chapéu. Ainda o guardo em minha casa. Tinha um botão de esmalte na ponta, com um passarinho, vermelho e azul.

—        Mas ela acabou sendo fuzilada, não é? — disse Corell.

—        É claro que a fuzilamos.

—        E os assassinatos cessaram?

—        Não, não cessaram. Quando finalmente batemos em retirada, a população cercou todos os que se extraviaram. Alguns foram queimados vivos, outros tiveram os olhos arrancados. Houve alguns que foram crucificados.

Corell disse, em voz em alta:

—        Não são coisas que se devam di2er, coronel.

—        E não são nada agradáveis de recordar.

—        Não deveria estar no comando, coronel, se está tão apreensivo assim.

Lanser respondeu, suavemente:

—        Acontece que eu sei como lutar, entende? E quando se sabe, pelo menos não se cometem erros tolos.

—        Fala assim também para os seus jovens oficiais? Lanser sacudiu a cabeça.

—        Não. Eles não acreditariam em mim.

—        Então por que está dizendo para mim?

—        Porque o seu trabalho aqui já terminou. Lembro-me de uma ocasião...

Enquanto ele falava, ouviram-se passos a subir a escada correndo. A porta foi aberta bruscamente. Uma sentinela olhou para dentro, sendo logo empurrada para o lado pelo Capitão Loft, que entrou na sala. Loft estava rígido, tenso, militar da cabeça aos pés.

—        Houve problemas, senhor.

—        Problemas?

—        Tenho que comunicar que o Capitão Bentick foi morto.

—        Bentick!

Novos passos soaram na escada. Dois homens entraram na sala, carregando uma maça sobre a qual havia um corpo, coberto por uma manta.

—        Tem certeza de que ele está morto? — indagou Lanser.

—        Absoluta, senhor.

Os tenentes vieram do quarto, as bocas um pouco abertas, com uma expressão assustada. Lanser apontou para a parede ao lado das janelas e ordenou:

—        Ponham-no ali.

Depois que os homens se foram, Lanser ajoelhou-se ao lado do corpo e levantou a ponta da manta, tornando a baixá-la imediatamente. Ainda ajoelhado, ele olhou para Loft e perguntou:

—        Quem fez isso?

—        Foi um mineiro.

—        Por quê?

—        Eu estava lá, senhor.

—        Pois então apresente seu relatório! Mas que diabo, homem, fale logo de uma vez!

Loft empertigou-se e disse, formalmente:

—        Eu acabara de substituir o Capitão Bentick, como o coronel ordenara. O Capitão Bentick já se preparava para voltar quando tive um problema com um mineiro recalcitrante, que queria deixar o trabalho. Ele gritou alguma coisa sobre o fato de ser um homem livre. Quando lhe ordenei que voltasse ao trabalho, ele correu para mim com a sua picareta. O Capitão Bentick tentou interferir.

Loft fez um gesto rápido na direção do corpo. Lanser, ainda ajoelhado, assentiu, lentamente.

—        Bentick era um homem curioso — murmurou ele. — Adorava os ingleses. Adorava tudo o que era deles. Não creio que ele gostasse muito de guerrear... Capturou o homem?

—        Sim, senhor.

Lanser levantou-se lentamente e falou, mais para si mesmo:

—        Vai começar tudo novamente. Fuzilaremos esse homem e faremos 20 novos inimigos. É a única coisa que sabemos fazer, a única coisa que sabemos...

Prackle falou:

—        O que foi que disse, senhor?

—        Nada, absolutamente nada. Eu estava apenas pensando...

Ele se virou para Loft e disse:

—        Por favor, apresente minhas saudações ao Prefeito Orden e peça-lhe que me receba imediatamente. É muito importante.

O Major Hunter levantou os olhos do seu trabalho, limpou cuidadosamente a ponta da caneta e guardou-a numa caixa forrada de veludo.

Na cidade, as pessoas andavam tristemente pelas ruas. De seus olhos desaparecera o brilho de perplexidade, mas o brilho de ódio ainda não se manifestara. Na mina de carvão, os mineiros empurravam os vagonetes sombriamente. Os comerciantes I 'continuavam por trás dos balcões e serviam os fregueses, mas ninguém dizia coisa alguma. As pessoas se falavam apenas por monossílabos. Todos pensavam na guerra, cada um pensava em si mesmo, no passado que fora tão bruscamente transformado.

           Na sala de recepção do palácio do Prefeito Orden, um pequeno fogo ardia na lareira e as luzes estavam acesas, pois lá fora fazia um dia cinzento, o frio era intenso. A própria sala também sofrerá uma mudança considerável. As cadeiras estavam todas empurradas para trás, as mesinhas fora do caminho. Pela porta da direita, Joseph e Annie se esforçavam em levar lá para dentro uma mesa de jantar, grande e quadrada.   Seguravam a mesa de lado. Joseph estava dentro da sala e o rosto vermelho de Annie aparecia pela porta escancarada; Joseph manobrou as pernas da mesa para o lado e gritou:

—        Não empurre, Annie! Agora!

—        Está bem, está bem...

O nariz de Annie estava vermelho, todo o seu rosto estava vermelho, ela estava furiosa. Annie estava sempre um pouco zangada, e os soldados, aquela ocupação absurda, em nada haviam contribuído para acalmá-la. Na verdade, o que durante muitos anos fora considerados simplesmente como maus humor era agora.

Subitamente, encarado como uma emoção patriótica. Annie conquistara alguma reputação, como expoente da liberdade, ao jogar água fervendo nos soldados. O que ela teria feito com qualquer um que fosse perturbá-la na porta de sua cozinha, Mas, como por acaso eram os soldados invasores, ela se transformara numa heroína. E já que a ira fora o princípio do seu sucesso, Annie partia para a conquista de novos sucessos, lançando-se a uma raiva crescente e constante.

—        Não arraste o fundo — disse Joseph. A mesa entalou na porta.

—        Firme! — disse Joseph.

—        Estou firme — resmungou Annie.

A mesa foi depositada no chão, lentamente, Joseph deu um passo para trás e examinou a posição. Annie cruzou os braços, fitando-o furiosamente. Ele experimentou uma perna da mesa e disse:

—        Não empurre, Annie. Não empurre com tanta força.

E sozinho ele puxou a mesa para dentro da sala. Annie

seguiu-o, de braços cruzados.

—        E agora vamos levantá-la — disse Joseph.

Finalmente, Annie ajudou-o   a colocar a mesa sobre   as quatro pernas e a levá-la para o centro da sala.

—        Pronto — disse Annie. — Se Sua Excelência não tivesse pedido, eu não teria feito isso. Que direito eles têm de vir para cá e ficar mudando as mesas de um lugar para outro?

—        Que direito eles tinham de vir para cá, em primeiro lugar? — disse Joseph.

—        Nenhum.

—        Nenhum mesmo — repetiu Joseph. — Eles não têm direito nenhum, mas mesmo assim vieram, com suas metralhadoras e seus pára-quedas.

—        Eles não têm direito nenhum, Joseph. E para que diabo estão querendo uma mesa aqui? Isto não é sala de jantar!

Joseph pegou uma cadeira e colocou-a junto à mesa, na distância certa.

—        É que eles vão realizar um julgamento aqui — explicou de. — Vão julgar Alexander Morden.

—        O marido de Molly Morden?

—        Ele mesmo.

—        Por ter esmigalhado aquele homem com a picareta?

—        Isso mesmo.

—        Mas Alex é um bom homem! Eles não têm direito de julgá-lo. No aniversário de Molly, ele deu para ela um vestido vermelho lindo. Por que eles se acham no direito de julgar Alex?

—        Porque ele matou aquele homem.

—        Mas é que o homem ficou dando ordens para Alex. Foi o que me contaram. E Alex não gosta que ninguém fique dando ordens para ele. Afinal, ele já foi do conselho municipal e o pai dele também. E Molly Morden faz um bolo delicioso.

A voz de Annie era piedosa. Ela fez uma pequena pausa antes de acrescentar:

—        Mas o glacê dela fica um pouco duro. O que eles vão fazer com Alex?

—        Vão fuzilá-lo — informou Joseph, sombriamente.

—        Mas eles não podem fazer isso!

—        Pegue as cadeiras, Annie. Podem, sim. E é justamente o que vão fazer.

Annie sacudiu o dedo esticado diante do rosto de Joseph e disse, em tom furioso:

—        Lembre-se das minhas palavras: ninguém vai gostar nada, se eles fizerem alguma coisa a Alex. Todo mundo gosta de Alex. Ele alguma vez já fez mal a alguém, antes? Vamos, responda!

—        Não.

—        Pois aí está! Se eles fizerem alguma coisa a Alex, as pessoas não vão gostar, vão ficar furiosas. Eu mesma vou ficar furiosa.

—        E o que você vai fazer?

—        Ora, eu vou matar alguns deles pessoalmente!

—        E então eles irão fuzilá-la também.

—        Que fuzilem! As coisas podem ir muito longe, Joseph, se eles começarem a fuzilar as pessoas daqui. Garanto que nenhum deles vai poder sair de noite.

Joseph ajustou uma cadeira na cabeceira da mesa e, de um jeito curioso, transformou-se num conspirador. Foi baixinho que disse:

—        Annie...

Ela estacou, percebeu que havia algo pelo tom de voz dele, aproximou-se.

—        Você é capaz de guardar um segredo, Annie?

Annie fitou-o com admiração, pois ele nunca antes tivera qualquer segredo.

—        Sou, sim. O que é?

—        William Deal e Walter Doggel escaparam ontem à noite.

—        Escaparam? Para onde?

—        Foram para a Inglaterra, de barco. Annie suspirou, de satisfação.

—        E todo mundo já sabe disso?

—        Quase todos. Menos...

Ele sacudiu o polegar erguido para o teto.

—        A que horas eles partiram? Por que eu não soube de nada?

—        Você estava muito ocupada.

O rosto e a voz de Joseph eram frios.

—        Conhece aquele Corell?

—        Conheço.

Joseph chegou mais perto dela.

—        Pois eu acho que ele não vai viver por muito tempo mais.

—        O que está querendo dizer com isso, Joseph?

—        As pessoas estão falando... Annie suspirou novamente, de tensão.

—        Hã...

Joseph finalmente tinha opiniões.

—        As pessoas estão começando a se agrupar. Não estão gostando nada de serem conquistadas. Vão acontecer coisas. Fique de olhos bem abertos, Annie. Haverá muitas coisas para você fazer.

Annie perguntou:

—        E o que me diz de Sua Excelência? O que ele vai fazer? Qual é a posição de Sua Excelência?

—        Ninguém sabe, Annie. Ele não diz nada para ninguém.

—        Ele jamais ficaria contra a gente.

—        Ele não está dizendo nada...

A maçaneta da porta à esquerda girou nesse momento e o Prefeito Orden entrou na sala. Parecia velho e cansado. Atrás dele vinha o Dr. Winter. Orden disse:

—        Está ótimo, Joseph. Obrigado, Annie. Fizeram um bom serviço. .

Os dois saíram e Joseph olhou para trás, pela porta aberta, por um momento, antes de fechá-la.

O Prefeito Orden foi até o fogo na lareira e virou-se, para esquentar as costas. O Dr. Winter puxou a cadeira na cabeceira 'da mesa e sentou-se.

—        Por quanto tempo mais conseguirei manter esta posição? — disse Orden. — O povo já não mais confia em mim e o inimigo também não confia. Às vezes eu me pergunto se tal situação não será insustentável.

—        Quanto a isso, nada posso dizer. Mas confia em si mesmo, não é? Não há qualquer dúvida em sua própria mente, não é?

—        Dúvida? Não... Eu sou o prefeito. Há muitas coisas que eu não compreendo, é verdade...

Ele fez uma pausa, apontando para a mesa.

—        Não compreendo, por exemplo, por que eles têm que realizar o julgamento aqui. Pois será aqui que irão julgar Alex Morden por assassinato. Lembra-se de Alex? Ele é casado com aquela moça muito bonita, Molly.

—        Sei quem é. Ela costumava dar aulas na escola primária. Claro que me lembro dela. Ela é muito bonita e não gostava de ir dar aulas, embora precisasse. O fato é que Alex matou realmente um oficial. Ninguém contesta isso.

A voz do Prefeito Orden era amargurada:

—        Não, ninguém contesta. Mas por que eles precisam julgá-lo? Por que não o fuzilaram logo de uma vez? Não se trata de uma questão de dúvida ou certeza, de justiça ou injustiça . Não há nada disso aqui. Por que eles precisam julgá-lo... e ainda por cima na minha casa?

—        Eu diria que é para dar uma demonstração. A idéia é muito comum: quando se tem a aparência de uma coisa, não se precisa ter a coisa em si. Por exemplo: tínhamos um exército, soldados com armas, só que não era um exército de verdade. Os invasores vão realizar o julgamento na esperança de convencer a população de que se fez justiça. Afinal, Alex realmente matou o oficial.

—        Estou entendendo...

—        E se a condenação sair desta casa, de onde o povo espera sempre a justiça...

Ele foi interrompido pela abertura da porta à direita. Uma mulher entrou. Devia ter em torno de 30 anos e era bastante bonita. Tinha os óculos na mão. Estava vestida com simplicidade, mas de maneira impecável. Parecia extremamente nervosa e foi logo dizendo:

—        Annie me disse para entrar direto, senhor.

—        Claro, claro — disse o prefeito. — Você é Molly Morden.

—        Sou, sim, senhor. Estão dizendo que Alex vai ser julgado e fuzüado.

Orden baixou os olhos para o chão, enquanto Molly continuava:

—        Dizem que o senhor é que irá condená-lo. Que serão suas as palavras que o enviarão para a morte.

Orden levantou os olhos bruscamente, aturdido.

—        Como? Quem disse isso?

—        É o que todo mundo na cidade está dizendo.

Ela estava muito empertigada, tensa. A voz era meio suplicante, meio inquisitiva, quando perguntou:

—        Não faria uma coisa dessas, não é, senhor?

—        Como as pessoas podem saber o que eu não sei? — disse Orden.

—        Isso é um grande mistério — comentou o Dr. Winter. — Um mistério que tem perturbado os governantes pelo mundo inteiro: como o povo sabe das coisas. E, pelo que me disseram, é um mistério que está agora perturbando os invasores, que não entendem como as notícias podem se espalhar, apesar de toda a censura, como a verdade sobre as coisas consegue libertar-se de qualquer controle. É de fato um grande mistério.

Molly levantou os olhos. A sala parecera subitamente ficar mais escura. Ela parecia estar apavorada.

—        Ê uma nuvem — disse ela. — No caminho para cá, senti o prenuncio de neve no ar. Mas ainda é muito cedo para isso.

O Dr. Winter foi até a janela e contemplou o céu, de olhos semicerrados.

—        Tem razão. É uma nuvem grande. Mas talvez passe sobre nós, sem ficar.

O Prefeito Orden acendeu um abajur, que projetou apenas um pequeno círculo de luz. Apagou-o novamente e disse:

—        Uma luz acesa durante o dia é algo extremamente solitário .

Molly aproximou-se dele novamente.

—        Alex não é um assassino — disse ela. — É verdade que ele é um homem impulsivo, temperamental, mas jamais infringiu qualquer lei. È um homem muito respeitado.

Ordem pôs a mão no ombro dela e disse:

—        Conheço Alex desde que ele era um garotinho. Conheci o pai e o avô dele. O avô era um caçador de torsos, nos velhos tempos. Sabia disso?

Molly ignorou a pergunta.

—        Então, não vai condená-lo?

—        Não.   Como eu poderia condená-lo?

— Mas estão dizendo que vai, só para manter a ordem.

O Prefeito Orden postou-se atrás   de uma cadeira, segurando-se no encosto, com as duas mãos.

—        E é ordem que as pessoas estão querendo, Molly?

—        Não sei. Antes de mais nada, elas querem ser livres.

—        E sabem por acaso como conquistar essa liberdade? Sabem que métodos se podem usar contra um inimigo armado?

—        Não, acho que não.

—        Você é uma moça inteligente, Molly. Você por acaso sabe?

—        Não, senhor. Mas acho que as pessoas sentem que estarão derrotadas, se se mostrarem dóceis. Elas querem mostrar a esses soldados que não foram derrotadas, que não estão batidas.

—        Mas não têm qualquer chance numa luta — disse o Dr. Winter. — Não se podem enfrentar metralhadoras com as mãos nuas.

Orden disse:

—        Quando souber o que eles pretendem fazer, Molly, virá me dizer?

Ela o fitou, desconfiada.

—        Sim...

—        O que você está querendo dizer é "não". Estou vendo que não confia em mim, Molly.

—        E o que vai acontecer com Alex?

—        Eu não irei condená-lo. Ele não cometeu nenhum crime contra o nosso povo.

Molly agora estava hesitante.

—        E será que eles...   será que eles irão matar Alex? Orden fitou-a demoradamente,   antes de murmurar:

—        Oh, minha cara criança... Ela se manteve muito rígida.

—        Obrigada.

Orden aproximou-se e ela disse, a voz quase sumida:

—        Não me toque. Por favor, não me toque. Por favor...

Ele baixou a mão, desolado. Por um momento ela ainda ficou imóvel, depois virou-se bruscamente e saiu da sala.   Ela acabara de fechar a porta quando Joseph entrou.

—        Com licença, senhor, mas o coronel deseja falar-lhe. Eu disse que o senhor estava muito ocupado, pois sabia que ela estava aqui. E madame deseja falar-lhe também.

—        Diga a madame para entrar.

—        Não sei como se pode dirigir uma casa dessa maneira — começou ela. — Tem mais gente aqui do que a casa suporta. Annie passa o tempo todo furiosa...

—        Silêncio!

Madame ficou aturdida com a reação do prefeito.

—        Não sei o que...

—        Silêncio! — repetiu ele. — Sarah, quero que você vá para a casa de Alex Morden. Está me entendendo? Quero que você fique com Molly Morden, enquanto ela precisar de você. Não fale nada, apenas fique com ela.

—        Mas tenho uma porção de coisas para fazer e...

—        Sarah, eu quero que você fique com Molly Morden. Não a deixe sozinha. Agora, vá.

Ela demorou a compreender.

—        Entendo... Irei agora mesmo. Quando estará tudo acabado?

—        Não sei. Mandarei Annie até lá, quando tiver acabado.

Ela o beijou de leve no rosto e saiu. Orden foi até a porta e disse:

—        Joseph, receberei o coronel agora.

Lanser entrou. Estava com um uniforme bem passado, com uma pequena adaga toda enfeitada na cintura.

—        Bom dia. Excelência. Gostaria de conversar informalmente.

Ele lançou um olhar para o Dr. Winter e acrescentou:

—        E gostaria de falar-lhe a sós.

Winter encaminhou-se lentamente para a porta. No momento em que estendeu a mão para a maçaneta, Orden disse:

—        Doutor! Winter virou-se.

—        Pois não?

—        Voltará aqui no fim da tarde?

—        Vai precisar de mim para alguma coisa?

—        Não. Apenas não gosto de ficar sozinho.

—        Estarei aqui.

—        Outra coisa, doutor: acha que Molly estava bem?

—        Creio que sim. Talvez próxima de um ataque histérico.

Mas ela resistirá. É uma mulher forte, de boa cepa. Afinal, é

uma Kenderly.

—        Eu tinha esquecido. É isso mesmo, ela é uma Kenderly.

O Dr. Winter saiu da sala, fechando a porta gentilmente."

Lanser ficara esperando, de modo cortês. Observou a porta se fechar.   Olhou para a mesa e para as cadeiras dispostas ao seu redor.

—        Não preciso lhe dizer, senhor, como lamento tudo isso.

Gostaria que não tivesse acontecido.

O Prefeito Orden fez-lhe uma pequena reverência e Lanser continuou:

—        Eu o aprecio, senhor, e o respeito. Mas tenho um trabalho a fazer. Espero que compreenda a minha posição Orden não respondeu, limitando-se a fitar Lanser nos olhos.

—        Não agimos sozinhos nem por nossa própria conta.

Entre uma frase e outra, Lanser fazia uma pausa, esperando por alguma reação. Mas não havia nenhuma.

—        Há regulamentos que nos são impostos, regulamentos elaborados na capital. E esse homem matou um oficial.

Finalmente, Orden resolveu falar:

—        E por que não o fuzilaram na mesma hora? Era o me lhor momento para fazê-lo.

Lanser sacudiu a cabeça.

—        Mesmo que eu concordasse, sabe perfeitamente que isso não faria a menor diferença. O objetivo fundamental de qualquer punição é assustar e dissuadir o criminoso em potencial. Assim, como a punição visa mais aos outros que ao próprio punido, é preciso que ela seja amplamente divulgada. E até mesmo dramatizada.

Lanser enfiou um dedo por trás do cinto e mexeu na adaga. Orden afastou-se e olhou pela janela, para o céu escuro lá fora.

—        Acho que vai nevar esta noite—

—        Prefeito Orden, sabe que as ordens que temos são irrevogáveis. Temos que obter o carvão de qualquer maneira. Se o seu povo não se mostrar ordeiro, teremos que restabelecer ai ordem pela força.

Sua voz foi se tomando mais firme a cada palavra:

—        Devemos fuzilar pessoas, se tal for necessário. Se quer poupar ao seu povo muito sofrimento, deve ajudar-nos a manter a ordem. O meu governo considera uma medida sensata que toda e qualquer punição emane da autoridade local. Isso contribui consideravelmente para a manutenção da ordem.

Orden disse, baixinho:

—        Então as pessoas já sabiam. É de fato um mistério.

Em voz mais alta, ele acrescentou:

—        Está querendo então que eu dê a sentença de morte para Alexander Morden, depois do julgamento que será realizado aqui?

—        Isso mesmo. Se o fizer, irá evitar muito derramamento de sangue desnecessário, depois.

Ordem foi até a mesa, puxou a cadeira que estava na cabeceira e sentou-se. E subitamente ele parecia ser o juiz e Lanser o réu. Tamborilou com os dedos em cima da mesa e disse:

—        O senhor e seu governo são incapazes de compreender. No mundo inteiro, o seu governo e o seu povo são os únicos com um registro de derrota após derrota, ao longo dos séculos.

E cada vez o motivo é sempre o mesmo: são totalmente incapazes de compreender os outros povos. Fez uma pausa rápida.

—        O princípio que alega, coronel, não funciona. Em primeiro lugar, porque eu sou apenas o prefeito. Não tenho direito de promulgar uma sentença de morte. Não há ninguém nesta comunidade que tenha tal direito. Se eu o fizesse, estaria infringindo a lei, da mesma forma como o senhor o fez.

—        Eu infringi a lei?

—        Matou seis homens quando aqui chegou. Pelas nossas leis, são todos culpados de homicídio. Por que insiste nesse absurdo de se ater à lei, coronel? Entre nós, não existe mais lei. Estamos em guerra. Será que não percebe que terá de matar a todos nós, ou quando chegar a ocasião, nós mataremos a todos vocês? Vocês destruíram a lei quando aqui chegaram e uma nova lei ocupou o lugar vago. Será que não entende isso?

Lanser disse:

—        Posso sentar-me?

—        Por que pergunta, coronel? Isso não passa de outra mentira. Se desejasse, poderia obrigar-me a ficar de pé.

—        Não. Quer acredite ou não, é a verdade: pessoalmente, sinto o maior respeito pelo senhor e pelo seu cargo.

Por um momento ele apoiou a testa na mão, antes de continuar .

—        Mas o que eu penso, senhor, eu, um homem de alguma idade e algumas memórias, não tem a menor importância. Posso concordar com o senhor, mas isso não faria a menor diferença. O sistema militar e político no qual estou enquadrado possui certas tendências e hábitos que são invariáveis.

—        E essas tendências e hábitos provaram ser errados, em todos os casos, desde o início do mundo.

Lanser riu, amargurado.

—        Eu, um homem que tem algumas recordações amargas, posso até concordar com o senhor, posso até acrescentar que uma das tendências desse sistema militar é a incapacidade de aprender, a incapacidade de ver além da carnificina, que é o seu objetivo imediato. Mas não sou um homem que possa ser orientado por suas recordações e experiências. Assim sendo, não me resta outra alternativa. O mineiro tem que ser fuzilado publicamente, porque a teoria é de que, dessa forma, os outros irão então se abster de matar os nossos homens.

—        Neste caso, não temos mais nada que conversar.

—        Temos, sim.   Queremos que nos ajude. Orden ficou em silêncio por um momento.

—        Podemos fazer uma coisa. Quantos homens havia nas metralhadoras que mataram os nossos soldados?

—        Acho que não mais do que 20.

—        Certo. Se vocês os fuzilarem, então condenarei Morden.

—        Não está falando sério!

—        Pode estar certo de que estou.

—        Isso é impossível.  E sabe disso perfeitamente.

—        Sei, sim. Mas o que me pede é igualmente impossível.

—        Creio que eu já sabia disso. No final das contas, Corell terá mesmo que ser o prefeito.

Ele levantou os olhos rapidamente e perguntou:

—        Ficará para o julgamento?

—        Ficarei. Dessa forma, Alex não estará tão sozinho. Lanser fitou-o longamente e sorriu com tristeza.

—        Nós assumimos uma tarefa difícil, não acha?

—        Tem razão — disse o prefeito. — A única missão impossível, a única coisa que ninguém jamais conseguirá fazer.

—        Qual?

—        Quebrar o espírito do homem permanentemente.

Orden baixou a cabeça na direção da mesa. Sem levantar os olhos, ele disse:

—        Já começou a nevar. A neve não esperou pela noite.

Gosto do cheiro frio e suave da neve.

Por volta das 11 horas, a neve caía pesadamente, em flocos grandes e macios. O céu já não era mais visível. As pessoas se apressavam pelas ruas, por entre os flocos de neve. A neve ia se acumulando diante dos portas, na estátua da praça pública, sobre os trilhos que iam da mina de carvão até o cais. A neve ia se acumulando e os vagonetes derrapavam ao serem empurrados.   E sobre a cidade pairava uma escuridão que era ainda mais sombria que a nuvem, pairava uma depressão intensa e um ódio crescente. As pessoas não mais ficavam nas ruas por muito tempo, cruzando logo as portas, que no mesmo instante se fechavam. E parecia haver olhos que espreitavam de trás das cortinas.   Quando os militares passavam pelas ruas ou a patrulha percorria a rua principal, os olhos acompanhavam-nos, sombrios, carregados de ódio. Nas lojas, as pessoas iam comprar uma ou outra coisa para o almoço. Pediam o que desejavam, pagavam, recebiam o troco. Ninguém trocava sequer um bom dia com o vendedor.

Na sala de recepção do pequeno palácio, as luzes estavam acesas e iluminavam a neve que caía lá fora. O tribunal estava em sessão. Lanser sentava-se à cabeceira da mesa, com Hunter à sua direita, Tonder em seguida. Na outra extremidade estava sentado o Capitão Loft, com uma pequena pilha de papéis à sua frente. No outro lado da mesa, estavam o Prefeito Orden, à esquerda do coronel, e Prackle, a seu lado, tomando anotações num bloco. Perto da mesa havia dois soldados de pé, de baionetas caladas, capacetes, mais parecendo estátuas de madeira, de tão impassíveis. Entre eles estava Alex Morden, um homem corpulento, de testa larga, olhos fundos, nariz grande e afilado. O queixo era firme, a boca ampla e sensual. Tinha ombros largos e cintura estreita. Cruzava e descruzava as mãos algemadas, caídas à sua frente. Vestia uma calça preta, uma camisa azul, aberta no pescoço, um casaco escuro, lustroso de tanto uso. O Capitão Loft lia um dos papéis à sua frente:

—        Quando ordenamos que voltasse ao trabalho, ele recusou e quando a ordem foi repetida, o prisioneiro atacou o Capitão Loft com a picareta que tinha nas mãos. O Capitão Bentick interpôs seu corpo e...

O Prefeito Orden tossiu delicadamente. Loft parou de ler e ele disse, então:

—        Sente-se, Alex. Um dos soldados pode puxar uma cadeira para ele.

O soldado virou-se e puxou uma cadeira, sem questionar. Loft disse:

—        O regulamento determina que o prisioneiro deve ficar de pé.

—        Deixe-o sentar — disse Orden. — Só nós saberemos. Pode dizer em seu relatório que ele ficou de pé.

—        Não se devem falsificar relatórios.

—        Sente-se, Alex — repetiu Orden.

Alex sentou-se, repousando as mãos algemadas no colo.

—        Mas isso é contrário...

Loft não continuou, porque o coronel interveio nesse momento:

—        Deixe-o ficar sentado.

O Capitão Loft pigarreou.

—        O Capitão Bentick interpôs seu corpo e recebeu um golpe na cabeça, que esmigalhou seu crânio. Há um relatório médico anexado. Desejam que eu o leia?

—        Não é necessário — disse Lanser. — Seja o mais breve possível.

—        Tais fatos foram testemunhados por diversos soldados nossos, cujos depoimentos estão também anexados. Este tribunal militar considera que o prisioneiro é culpado de homicídio e recomenda a sentença de morte. Devo ler os depoimentos dos soldados?

Lanser suspirou.

—        Não.

Ele se virou em seguida para Alex e perguntou:

—        Não nega que tenha matado o capitão, não é? Alex sorriu, tristemente.

—        Eu o acertei. Mas não sei se o matei. Orden disse:

—        Muito bem, Alex!

Os dois se fitaram, como amigos.

—        Está querendo insinuar que ele foi morto por outra pessoa? — disse Loft.

—        Não sei nada a respeito. Sei apenas que o acertei e logo em seguida alguém me acertou também. Não me lembro de mais nada.

O Coronel Lanser disse:

—        Deseja apresentar alguma explicação? Não consigo imaginar coisa alguma que possa alterar a sentença, mas estamos dispostos a escutar.

—        Com o devido respeito — disse Loft —, acho que o coronel não deveria dizer tal coisa. Isso dá a entender que este tribunal não é imparcial.

Orden riu secamente. O coronel olhou para ele e sorriu, insistindo em seguida:

—        Deseja dar alguma explicação?

Alex levantou uma das mãos para gesticular e a outra veio junta. Ele pareceu ficar embaraçado, tornou a recolhê-las a seu colo.

—        Eu estava furioso — disse ele. — Tenho muito mau gênio. Ele disse que eu tinha de trabalhar de qualquer maneira. E eu sou um homem livre. Fiquei furioso e acertei-o. Acho que bati com toda força. Só que acertei no homem errado. Ele apontou para Loft e acrescentou:

—        Era esse o homem que eu queria acertar.

—        Não faz a menor diferença a quem você desejava acertar — disse Lanser. — Qualquer um teria sido a mesma cçisa. Está arrependido do que fez?

Ele se virou para os outros e explicou:

—        Seria ótimo se pudéssemos mencionar no relatório que ele se arrependeu.

—        Arrependido? — disse Alex. — Não, não estou arrependido. Ele me ordenou que fosse trabalhar... a mim, um homem livre! Já fui conselheiro desta cidade. E ele disse que eu tinha que ir trabalhar, de qualquer maneira!

—        Mas se a sentença for de morte, não ficará então arrependido?

Alex baixou a cabeça, procurando de fato pensar honestamente .

—        Não, não ficarei. Está querendo saber se eu faria tudo de novo?

—        Exatamente. Pensativo, Alex murmurou:

—        Não, acho que não estou arrependido. Lanser disse:

—        Ponha no relatório que o prisioneiro estava sufocado de remorsos. A sentença é automática.

Ele se virou para Alex:

—        Está entendendo, não é? O tribunal não tem alternativa. Considera-o culpado e condena-o a ser fuzilado imediatamente. Não vejo qualquer motivo para torturá-lo mais ainda com este julgamento. Capitão Loft, há alguma coisa que eu tenha esquecido?

—        Esqueceu de mim — disse Orden.

Ele se levantou, empurrou a cadeira para trás, aproximou-se de Alex. E Alex, pelo hábito, levantou-se também, respeitosamente .

—        Alexander, eu sou o prefeito eleito.

—        Eu sei, senhor.

—        Alex, esses homens são invasores. Apossaram-se no nosso país pela surpresa, pela traição e pela força.

O Capitão Loft disse:

—        Senhor, isso não devia ser permitido.

—        Silêncio! — disse Lanser. — É melhor ouvir às claras, pu prefere que seja sussurrado, sem que nada saibamos?

Orden continuou, como se não tivesse havido qualquer interrupção:

—        Quando eles chegaram, o povo ficou um pouco confuso.

E eu também fiquei. Não sabíamos o que fazer, não sabíamos o que pensar. O que você fez foi o primeiro ato lúcido. Sua ira particular foi o início de uma ira pública. Sei que se comenta na cidade que estou agindo de acordo com esses homens.

Posso mostrar à cidade mais tarde que não é isso o que está acontecendo. Mas você, Alex, você... Você vai morrer. E quero que saiba agora.

Alex baixou a cabeça, ergueu-a logo a seguir.

— Eu sei, senhor.

Lanser disse:

— O pelotão de fuzilamento já está pronto?

— Está lá fora, senhor.

         — Quem vai comandá-lo?

— O Tenente Tonder, senhor.

Tonder ergueu a cabeça, o queixo firme, prendendo a respiração. Orden perguntou, suavemente:

—        Está com medo, Alex?

—        Estou, senhor.

—        Não posso dizer-lhe que não tenha medo. Eu também sentiria. Como também sentiriam esses...   deuses da guerra.

—        Chame o pelotão — ordenou Lanser.

Tender levantou-se rapidamente e foi até a porta.

—        Eles já estão aqui, senhor.

Ele escancarou a porta, deixando que os outros vissem os homens de capacete, lá fora. Orden disse:

—        Vá agora, Alex. E saiba que esses homens não terão descanso, absolutamente nenhum descanso, até que todos tenham ido embora ou estejam mortos. A sua morte fará com que o povo se una, se transforme numa só pessoa. É uma triste certeza e sei que não representa nenhum consolo para você. Mas é o que irá acontecer. E não lhes daremos nenhum descanso...

Alex fechou os olhos. O Prefeito Orden inclinou-se e beijou-o no rosto.

—        Adeus, Alex.

Um dos soldados pegou Alex pelo braço. Ele continuava de olhos fechados. Escoltaram-no para fora da sala. O pelotão fez meia-volta e se afastou, marchando sobre a neve, que abafava o ruído dos passos.

Os homens em torno da mesa estavam em silêncio. Orden olhou para a janela e viu um pequeno ponto redondo no vidro, onde a neve fora removida por uma mão ágil. Ele olhou para o lugar por um momento, fascinado, depois afastou os olhos, rapidamente. E disse para o coronel:

—        Espero que saiba o que está fazendo.

O Capitão Loft arrumava os seus papéis. Lanser perguntou-lhe:

—        Na praça, capitão?

—        Na praça, senhor. A execução deve ser pública.

—        Espero que saibam o que estão fazendo — repetiu Orden.

—        Quer saibamos ou não, é assim que terá de ser feito — disse o coronel.

O silêncio voltou a dominar todos os presentes, que ficaram escutando, à espera. Não demorou muito. Ao longe, soaram tiros. Lanser suspirou. Orden levou a mão à testa e encheu os pulmões de ar, até o máximo que pôde. Depois, houve um grito lá fora. O vidro da janela se partiu, de fora para dentro. O Tenente Prackle virou-se abruptamente, levando a mão ao ombro e olhando-o.

Lanser levantou-se de um pulo, gritando:

—        Já começou! Está muito ferido, tenente?

—        Meu ombro...

Lanser assumiu o comando.

—        Capitão Loft, deve haver pegadas na neve. Quero que todas as casas sejam revistadas, à procura de armas de fogo. Quero que todo homem que tenha em seu poder uma arma de fogo seja aprisionado como refém.

Ele se virou para o Prefeito Orden e disse:

—        E o senhor ficará sob custódia. E, por favor, compreenda uma coisa: iremos fuzilar cinco, dez, cem, quantos forem necessários, por cada um dos nossos.

Orden disse, calmamente:

—        Um homem que tem algumas recordações...

Lanser parou de falar no meio de uma ordem. Virou-se outra vez para o prefeito, lentamente, e fitou-o. Por um momento, os dois se compreenderam. Mas Lanser logo endireitou os ombros e disse, asperamente:

—        Um homem sem quaisquer recordações!

E continuou a dar ordens:

—        Quero que todas as armas que existem na cidade sejam recolhidas. Prendam quem quer que resista. E depressa, antes que as pegadas se apaguem!

Os oficiais pegaram seus capacetes, afrouxaram os coldres para poderem sacar mais facilmente suas pistolas. Orden foi até a janela quebrada e murmurou, tristemente:

—        O cheiro frio e suave da neve...

Os dias e as semanas foram se arrastando, transformaram-se im meses. A neve caía e se derretia, caía e se derretia, até que finalmente caiu e ficou. Os prédios escuros da cidadezinha exijiam chapéus e sobrancelhas brancos, havia trincheiras escavadas ia neve, dando passagem até as portas. No cais, as barcaças de carvão chegavam vazias e partiam carregadas. Mas o carvão já não saía do fundo da terra com tanta facilidade. Os mineiros cometiam enganos. Eram desajeitados, lentos. As máquinas quebravam misteriosamente; era preciso bastante tempo para consertá-las. O povo do país conquistado se refugiava num silêncio sombrio, à espera do momento da vingança. Os homens que tinham sido traidores, que haviam ajudado os invasores — muitos acreditavam que assim agindo estavam contribuindo sara a criação de um Estado melhor, para uma forma de vida ideal —, descobriram que o controle que exerciam não era tão seguro assim, que as pessoas que antes conheciam intimamente não mais lhes falavam, olhavam-nos com frieza.

E a morte estava no ar, à espreita, esperando o momento propício. Ocorriam acidentes na ferrovia que se apegava às montanhas, ligando a cidadezinha ao resto da nação. Subitamente despencavam avalanchas sobre os trilhos. Nenhum trem podia partir sem que antes os trilhos fossem meticulosamente inspecionados. As pessoas eram fuziladas em represália, mas isso não fazia a menor diferença. Volta e meia, um grupo de jovens fugia dali, seguindo para a Inglaterra. E os ingleses bombardeavam a mina de carvão e causavam alguns danos, matando tanto aos amigos quanto aos inimigos. E isso também não fazia a menor diferença. O ódio implacável foi crescendo com o inverno, um ódio frio, silencioso, um ódio que aguardava o momento de se manifestar. O suprimento de alimentos passou a ser controlado, sendo fornecido apenas aos que eram obedientes, fazendo com que toda a população se tornasse submissa, apaticamente. Mas os alimentos só podiam ser negados até um determinado ponto, pois um homem morrendo de fome não pode trabalhar numa mina de carvão, não tem forças para empurrar um vagonete carregado de carvão.   E o ódio se aprofundou nos olhos das pessoas, bem abaixo da superfície.

            Agora era o conquistador que estava cercado, eram os soldados do batalhão que se viam no meio de inimigos silenciosos, nenhum homem podia relaxar sua guarda, por um momento sequer. Se o fizesse, desaparecia no mesmo instante e seu corpo era sepultado sob uma camada de neve. Se ele ia sozinho visitar uma mulher, desaparecia misteriosamente. Se bebia demais, também desaparecia. Os soldados do batalhão só podiam cantar em grupo, só podiam dançar em grupo. E aos poucos foram deixando de dançar e as músicas que cantavam passaram a expressar apenas as saudades de casa. Conversavam apenas sobre amigos e parentes que os amavam, sonhavam apenas com o aconchego e o amor que os aguardavam em casa. Um homem pode ser um soldado por muitas horas durante o dia, por muitos meses durante o ano. Mas quando ele quer ser um homem novamente, deseja a companhia de uma moça, sente vontade de beber, de ouvir música, de rir, se divertir. E quando tais coisas lhe são negadas, tornam-se então irresistivelmente desejáveis.

Os soldados só pensavam em voltar para casa. Passaram a odiar o lugar que haviam conquistado. Passaram a tratar a população asperamente — e recebiam o mesmo tratamento. E, aos poucos, foi começando a surgir um temor nos conquistadores, o medo de que aquilo jamais terminasse, de que nunca pudessem relaxar a vigilância permanente nem voltar para casa, o medo e que um dia pudessem ser batidos e ser então caçados pelas montanhas como coelhos, pois os conquistados em momento algum relaxavam em seu ódio. As patrulhas, vendo luzes, ouvindo risadas, eram imediatamente atraídas. Mas, ao se aproximarem, as risadas cessavam, a alegria se desvanecia, as pessoas mostravam-se apáticas e obedientes. Os soldados, sentindo o cheiro de comida quente nos pequenos restaurantes, entravam e pediam-na, só para descobrirem que estava salgada demais ou com muita pimenta.

Os soldados liam então as notícias que vinham de casa e dos outros países conquistados. Eram sempre boas e por algum tempo eles acreditavam nelas. Mas logo depois já não acreditavam mais. Cada homem abrigava o terror no coração.

— Se o nosso país fosse derrotado, se desmoronasse por completo, não nos diriam nada. E então seria tarde demais, pois o povo daqui não nos pouparia, mataria a todos nós.

E eles se recordavam das histórias que tinham ouvido dos homens se retirando da Bélgica, batendo em retirada na Rússia. E os mais instruídos recordavam a trágica e frenética retirada de Moscou, quando o forcado de cada camponês da região ficara manchado de sangue, quando a neve ficara juncada de cadáveres.

Eles sabiam que, quando fossem derrotados, se relaxassem a vigilância ou dormisse demais, o mesmo aconteceria ali. E tinham um sono inquieto, passavam os dias muito nervosos. Faziam perguntas que seus oficiais não podiam responder, porque eles próprios também não sabiam. Também nada lhes diziam — e eles igualmente não acreditavam nos relatórios que vinham de casa.

Assim, sucedeu que os conquistadores passaram a ter medo dos conquistados. Seus nervos ficaram à flor da pele. De noite, atiravam em sombras. Por toda parte eram acompanhados por um silêncio frio, carregado de ódio. E chegou a ocasião em que três soldados enlouqueceram na mesma semana — passaram uma noite e um dia inteiro a gritar desesperadamente, sendo mandados de volta para casa. Outros poderiam também ter enlouquecido, se não tivesse corrido a notícia de que os insanos recebiam uma morte misericordiosa ao chegarem em casa. O que era algo terrível em que se pensar. O medo foi se insinuando nos corações de todos os homens, invadindo os alojamentos, que se tomaram imensamente tristes. e o medo se alojou também nos corações das patrulhas, que se tornaram imensamente cruéis.

O ano acabou, outro começou, as noite se tornaram mais longas. Já estava escuro às três horas da tarde; não voltava a haver luz até as nove horas da manhã seguinte. As luzes não cintilavam alegremente na neve lá fora, pois os regulamentos determinavam que todas as janelas ficassem às escuras, como proteção contra os bombardeios. Apesar de todas as precauções, sempre aparecia uma luz perto da mina de carvão, quando os bombardeiros ingleses se aproximavam. Às vezes, as sentinelas atiravam em quem quer que estivesse segurando um lampião; certa ocasião, mataram uma moça que segurava uma lanterna. Mas isso de nada adiantava. Os fuzilamentos não resolviam problema algum.

Os oficiais eram um reflexo dos seus soldados — mais controlados porque tinham recebido um treinamento mais completo, mais atilados porque tinham mais responsabilidades. Mas os mesmos medos estavam um pouco mais arraigados neles, as mesmas angústias e saudades enchiam um pouco mais os seus corações. E eles estavam também submetidos a uma dupla tensão, pois os conquistados vigiavam-nos implacavelmente, à espera de que cometessem algum erro, e seus próprios homens também os vigiavam, em busca de alguma demonstração de fraqueza. Assim, eles estavam por demais tensos, à beira de um colapso. Os conquistadores sofriam agora um terrível assédio espiritual. E todos sabiam, tanto os conquistados como os conquistadores, o que iria acontecer quando ocorresse a primeira ruptura.

O conforto parecia agora ter desaparecido por completo do segundo andar do palácio do prefeito. As janelas estavam cobertas de papel preto, bem esticado; por toda parte havia pilhas de equipamentos preciosos, que não podiam correr qualquer risco.

Como máscaras contra gases e outros. A disciplina ali estava pelo menos um pouco relaxada, como se os oficiais soubessem que isso era indispensável, para que a máquina não quebrasse. Sobre a mesa havia dois lampiões de querosene, que emitiam uma luz brilhante e intensa. Projetavam grandes sombras nas paredes. O zumbido era constante, como uma correnteza invisível.

O Major Hunter continuava com seu trabalho. A prancheta agora estava permanentemente montada, pois as bombas destruíam o seu trabalho quase tão depressa quanto era concluído. O Major Hunter não lamentava absolutamente que tal acontecesse — para ele, construir era a sua própria vida. E ali ele tinha a oportunidade de construir mais do que podia projetar ou realizar. Ele se sentava diante da prancheta, a luz por trás. A régua-tê subia e descia pela prancheta, o lápis não parava um só momento.

O Tenente Prackle, com o braço ainda numa tipóia, estava sentado numa cadeira de espaldar reto, por trás de uma mesa, na parte central, lendo uma revista ilustrada. O Tenente Tonder se encontrava na extremidade da mesa, escrevendo uma carta. De vez em quando ele levantava os olhos da carta e fitava o teto, em busca de palavras para exprimir o que desejava.

Prackle virou uma página da revista e disse:

—        Posso fechar os olhos e ver nitidamente cada loja desta rua.

Hunter continuou com seu trabalho, Tonder escreveu mais algumas palavras. Prackle continuou;

—        Há um restaurante bem aqui atrás. Não aparece nesta fotografia. O nome dele é Burdens.

Hunter comentou, sem levantar os olhos da prancheta:

—        Eu conheço o lugar. Eles serviam um excelente escalope.

—        Serviam mesmo — confirmou Prackle. — Tudo lá era muito bom. Não havia nada que não prestasse. E o café...

Tonder levantou os olhos de sua carta e disse:

—        Mas agora eles não devem estar servindo café... nem escalopes.

—        Quanto a isso, nada posso dizer. Mas sei que eles serviam e voltarão a servir. E havia lá uma garçonete...

Ele descreveu o corpo dela com a mão boa.

—        Era uma loura e tanto...

Ele tornou a olhar para a revista, nostálgico.

—        Ela tinha... isto é, tem... os olhos mais estranhos que eu já vi. Pareciam estar sempre úmidos, como se ela tivesse acabado de rir ou chorar.

Ele olhou para o teto e murmurou:

—        Saí com ela uma vez. Não sei por que não voltei lá com mais freqüência. Agora me pergunto se ela ainda trabalha lá...

Tonder comentou, sombriamente:

—        Provavelmente, não. Deve estar trabalhando em alguma fábrica.

Prackle riu.

—        Só espero que eles não estejam também racionando as garotas por lá.

—        E por que não?

Em tom ligeiramente zombeteiro, Prackle disse:

—        Você não se importa muito com as mulheres, não é?

—        Eu gosto delas pelo que elas são. Mas não deixo que se intrometam em minha outra vida.

Prackle insistiu, provocando:

—        Pois a impressão que eu tenho é de que elas não deixam de atormentá-lo por um instante sequer.

Tonder procurou mudar de assunto:

—        Detesto esses malditos lampiões. Major, quando acha que aquele gerador estará consertado?

—        Já deve estar quase pronto. Destaquei alguns dos meus melhores homens para cuidar dele. É de agora em diante vou dobrar a guarda por lá.

—        Conseguiu agarrar o homem que o arrebentou? — indagou Prackle.

—        Pode ter sido qualquer um dos cinco que agarramos nas proximidades.

Ele fez uma pausa, pensativo.

—        É muito fácil arrebentar um gerador, se se sabe como fazê-lo. Basta provocar um curto-circuito e o gerador se arrebenta por si mesmo. Mas a luz deverá ser restabelecida a qualquer momento.

Prackle ainda olhava para a revista.

—        Quando será que seremos substituídos? Eu bem que gostaria de ir passar algum tempo em casa. Não gostaria também de ir descansar alguns dias em casa, major?

Hunter levantou os olhos do seu trabalho, com uma expressão desolada.

—        Mas claro que sim!

Ele se recuperou prontamente e acrescentou:

—        Já construí este desvio quatro vezes. Não sei por que uma bomba sempre cai aqui. Estou cansado desse trecho. Tenho que mudar o caminho todas as vezes, por causa das crateras. Não há tempo para enchê-las. O chão está duro demais, de tão congelado. Seria um trabalho insano.

Subitamente a luz elétrica voltou a se acender e Tonder, automaticamente, inclinou-se e apagou os dois lampiões. O zumbido desapareceu da sala.

—        Graças a Deus! — disse Tonder. — Esse zumbido estava mexendo com os meus nervos. Dava-me a impressão de que havia gente sussurrando por aqui.

Ele dobrou a carta que estava escrevendo e disse:

—        É estranho que não estejamos recebendo muitas cartas. Recebi apenas uma, nas duas últimas semanas.

—        Talvez ninguém esteja lhe escrevendo — comentou Prackle.

—        Talvez...

Tonder virou-se para o major.

—        Se algo tivesse acontecido em nossa terra, algo de ruim, será que eles nos comunicariam? Será que eles nos diriam, se tivesse morrido gente ou algo assim?

—        Não sei.

—        Como eu gostaria de ir embora deste buraco esquecido de Deus! — exclamou Tonder.

—        Pensei que quisesse ficar vivendo aqui depois da guerra — disse Prackle, imitando a seguir a voz de Tonder: — Juntar quatro ou cinco fazendas, criando um bom lugar para se estabelecer, uma espécie de propriedade familiar. Não era isso o que desejava? Não queria ser uma espécie de senhor do vale? Convivendo com essa gente boa e simpática daqui, lindos gramados, cervos para caçar, filhos... Não era isso o que queria, Tonder?

Tonder subitamente apertou a cabeça com as mãos e disse, com uma vo^ carregada de emoção:

—        Pare com isso! Não fale desse jeito! Não quero nada com essa gente horrível daqui! São apáticos, distantes, nunca olham para a gente!

Ele estremeceu.

—        Eles nunca falam. Respondem como mortos-vivos. Essa gente horrível limita-se a obedecer. E as garotas, como são geladas!

Houve uma batida leve na porta e Joseph entrou, com um balde cheio de carvão. Atravessou a sala silenciosamente e pôs o balde no chão, tão suavemente que não fez barulho algum. Virou-se sem olhar para ninguém e encaminhou-se novamente para a porta. Prackle disse, em voz alta:

—        Joseph!

Joseph virou-se, sem responder, sem levantar os olhos, limitando-se a uma pequena reverência. Falando ainda mais alto, Prackle perguntou:

—        Joseph, ainda tem vinho ou conhaque?

Joseph sacudiu a cabeça. Tonder levantou-se, o rosto contorcido de raiva, e berrou:

—        Responda, seu suíno! Responda com palavras!

Joseph não levantou os olhos. A voz não tinha qualquer inflexão:

—        Não, senhor. Não, senhor, não tem vinho. Mas furioso ainda, Tonder berrou:

—        E também não tem conhaque?

Sempre olhando para baixo, Joseph tomou a falar, em qualquer inflexão na voz:

—        Também não tem conhaque, senhor. Ele ficou parado, perfeitamente imóvel.

—        Quer mais alguma coisa? — berrou Tonder.

—        Licença para me retirar, senhor.

—        Pois saia então!

Joseph virou-se e saiu da sala, em silêncio. Tonder tirou um lenço do bolso e enxugou o rosto. Hunter fitou-o e disse:

—        Não devia deixar que ele o irritasse com tanta facilidade.

Tonder afundou na cadeira e comprimiu as têmporas com as mãos, murmurando, em voz trêmula:

—        Eu quero uma mulher... Eu quero voltar para casa... Nesta cidade há uma moça linda. Vejo-a constantemente. Ela é loura e mora ao lado do depósito de ferro velho. É ela que eu quero.

—        Você precisa se controlar, Tonder — disse Prackle. — Tome cuidado com os seus nervos.

Neste exato momento as luzes se apagaram novamente e a sala ficou mergulhada na escuridão. Enquanto os outros riscavam fósforos e procuravam acender os lampiões, Hunter disse:

—        Pensei que tivesse agarrado todos eles. Deve ter sobrado um. Mas não posso estar correndo para lá o tempo todo.

Tenho excelentes homens de serviço lá.

Tonder acendeu o primeiro lampião e depois o outro. Hunter falou-lhe então, com firmeza:

—        Tenente, fale conosco tudo o que sentir vontade de falar. Mas não deixe que o inimigo o ouça falando desse jeito. Não há nada que deixe essa gente mais satisfeita do que saber que os seus nervos estão à flor da pele. Portanto, não deixe jamais que eles o ouçam falar assim.

Tonder sentou-se novamente. A luz batia em cheio no seu rosto. O zumbido dos lampiões voltava a preencher a sala.

—        Ê isso! — disse ele. — O inimigo está em toda parte! Em cada homem, em cada mulher, até mesmo nas crianças. O inimigo está em toda parte! Eles nos olham pelas frestas das portas. Por trás de cada cortina há sempre um rosto atento, escutando. Nós os derrotamos, nós vencemos em toda parte. E agora eles se limitam a esperar e obedecer. Estão sempre esperando... Conquistamos metade do mundo. Será que a mesma coisa está acontecendo em outros lugares, major?

—        Não sei.

—        É esse o problema: nós não sabemos. Os relatórios dizem que está tudo sob controle. Os países conquistados recebem alegremente, de braços abertos, os nossos soldados, a nova ordem.

Sua voz aos poucos ia mudando, tornando-se cada vez mais baixa, mais suave, quase um murmúrio:

—        Mas o que dizem os relatórios a nosso respeito? Será que dizem que a população daqui nos recebeu de braços abertos, está nos amando, jogando flores em nosso caminho? Oh, essa gente horrível, à nossa espera, na neve lá fora!

—        Agora que já descarregou, sente-se melhor? — perguntou Hunter.

Prackle, que estivera tamborilando baixinho na mesa com a mão boa, disse:

—        Ele não deveria falar desse jeito. Deveria guardar as coisas que sente para si mesmo. Afinal de contas, ele é um soldado, não é? Então, devia se portar como tal.

A porta se abriu silenciosamente e o Capitão Loft entrou. Havia neve em seu capacete, em seus ombros. O nariz estava vermelho, a gola do capote levantada, cobrindo as orelhas. Ele tirou o capacete e a neve caiu no chão. Passou a mão pelos ombros, derrubando a neve que ali estava.

—        Mas que coisa difícil! — murmurou ele.

—        Mais problemas? — perguntou Hunter.

—        Há sempre problemas. Estou vendo que eles conseguiram acertar novamente seu gerador. Mas, lá na mina, acho que dei um jeito na situação, pelo menos por algum tempo.

—        Qual foi o seu problema, agora?

—        As mesmas coisas de sempre, o atraso nos trabalhos, um vagonete quebrado, obstruindo a passagem... Mas peguei o homem que arrebentou o vagonete e fuzilei-o na hora. Acho, contudo, que agora encontrei a solução. Ocorreu-me de repente. Obrigarei cada homem a extrair uma cota de carvão. Não posso deixá-los sem comida, caso contrário eles não terão forças para trabalhar. Mas encontrei outra solução. Se não houver carvão, não forneceremos comida para suas famílias. Faremos os homens comerem na mina, de forma a que não possam dividir o que receberem com as famílias. Isso deve resolver o problema. Ou eles trabalham direito ou seus filhos não terão o que comer. Acabei de dizer-lhes isso.

—        E o que eles disseram?

Loft cerrou os olhos, numa expressão furiosa.

—        O que eles disseram? O que é que eles dizem sempre? Nada! Absolutamente nada! Mas veremos agora se o carvão vai ou não sair daquela mina, direitinho!

Ele tirou o capote e sacudiu-o. Seus olhos pousaram na porta de entrada e ele viu que estava aberta uma fresta. Encaminhou--se silenciosamente até lá, abriu a porta com um safanão, tornou a fechá-la.

—        Pensei que tivesse fechado a porta direito, ao entrar.

—        E fechou — disse Hunter.

Prackle ainda estava folheando as páginas da revista. Sua voz estava normal novamente quando disse:

—        São armas gigantescas essas que estão usando lá no leste. Nunca vi nenhuma delas. Já viu, capitão?

—        Já. E vi também elas serem disparadas. São armas fabulosas. Nada pode resistir-lhes.

—        Capitão, tem recebido muitas notícias de casa? — indagou Tonder.

—        Algumas.

—        E está tudo bem por lá?

—        Está tudo correndo às mil maravilhas! Nossos exércitos estão avançando por toda parte, praticamente sem encontrar qualquer resistência.

—        Os ingleses ainda não foram derrotados?

—        Estão sendo derrotados em cada batalha que travam conosco.

—        Mas continuam a lutar?

—        Apenas uns poucos ataques aéreos, não mais do que isso.

—        E os russos?

—        Já estão liquidados. Tonder insistiu:

—        Mas eles continuam a lutar?

—        Apenas algumas escaramuças, não mais do que isso.

—        Então, acabamos de ganhar completamente, não é, capitão?

—        Tem razão, vencemos.

Tonder fitou-o atentamente, perguntando:

—        Acredita nisso, não é, capitão? Prackle interveio na conversa:

—        Não deixe que ele comece tudo novamente! Loft franziu o rosto para Tonder.

—        Não estou entendendo aonde quer chegar.

—        O que estou querendo saber é o seguinte: se vencemos, poderemos voltar para casa dentro de pouco tempo, não é?

—        Bom, a reorganização vai demorar algum tempo — explicou Hunter. — A nova ordem não pode ser posta em prática da noite para o dia, não é mesmo?

—        Talvez demore por toda a nossa vida? — insistiu Tonder.

Prackle voltou a objetar:

—        Não deixem que ele comece tudo novamente!

Loft aproximou-se de Tonder e disse:

—        Tenente, não estou gostando do tom com que está fazendo suas perguntas. Não estou gostando nada do seu tom de dúvida.

Hunter levantou os olhos e disse:

—        Não seja muito rigoroso com ele, Loft. Ele está cansado. Todos nós estamos cansados.

—        Pois eu também estou cansado, mas não me deixo dominar por dúvidas que constituem uma verdadeira traição.

Hunter insistiu, bastante firme:

— Estou lhe dizendo para parar de atormentá-lo! Sabe onde está o coronel?

—        Está preparando o seu relatório. Vai pedir reforços. O trabalho é maior e mais difícil do que imaginávamos.

Excitado, Prackle perguntou:

—        E será que ele vai receber os reforços?

—        Como é que eu posso saber?

Tonder sorriu e murmurou:

—        Reforços! Ou talvez substitutos. Talvez possamos passar algum tempo em casa.

Ele fez uma pausa, pensativo. E, sempre sorrindo, logo continuou:

—        Talvez eu possa andar pelas ruas e as pessoas me cumprimentem, digam "Olá". E, quando eu passar, comentem: "Lá vai um soldado." Talvez as pessoas se sintam satisfeitas por mim, talvez se sintam satisfeitas de mim. E terei amigos ao meu redor, poderei virar as costas a um homem sem sentir qualquer medo.

—        Não comece novamente! — berrou Prackle — Não deixem que ele se descontrole outra vez!

Num tom enojado, Loft disse:

—        Já temos bastantes problemas sem que os nossos oficiais comecem a enlouquecer.

Mas Toüder continuou:

—        Acha realmente que vão mandar outros homens para nos substituírem, capitão?

—        Eu não disse isso.

—        Mas disse que era possível.

—        Eu disse que não sabia. Olhe, tenente, nós conquistamos a metade do mundo. Precisamos policiá-lo, por algum tempo. Sabe disso perfeitamente.

—        E a outra metade?

—        Eles continuarão a lutar por mais algum tempo, mesmo sem qualquer esperança.

—        Então vamos ter que nos espalhar pelo mundo inteiro.

—        Por algum tempo.

Prackle voltou a falar, nervosamente:

—        Gostaria que o obrigassem a se calar. Façam-no parar com isso!

Tonder tirou um lenço do bolso e assoou o nariz. Riu, embaraçado, e pôs-se a falar como um homem que estivesse fora de si:

—        Tive um sonho engraçado. Isso é, acho que foi um sonho. Talvez tenha sido um pensamento. Um pensamento ou um sonho.

Prackle insistiu:

—        Faça-o parar, capitão! Tonder indagou:

—        Capitão, esta cidade está conquistada?

—        Qaro que está.

Havia agora um tom de histeria na risada de Tonder. Ele disse:

—        A cidade foi conquistada e estamos com medo; foi conquistada e estamos cercados.

A risada tornou-se estridente.

—        Eu tive um sonho... ou um pensamento. Tive um sonho, lá fora, na neve, com sombras por toda parte, rostos escondidos por trás das portas, das janelas, à espreita. Tive um sonho... ou um pensamento.

—        Façam-no parar! — berrou Prackle. Tonder murmurou:

—        Sonhei que o Líder estava louco.

Loft e Hunter riram ao mesmo tempo. Loft disse:

—        O inimigo já descobriu quão louco ele está. Vou ter que escrever essa para casa. Os jornais vão publicá-la. O inimigo já aprendeu quão louco o Líder está.

Tonder continuou a rir.

—        Conquista após conquista, afundando cada vez mais no melaço...

Ele ria tanto agora que engasgou, tossindo no lenço.

—Talvez o Líder esteja mesmo louco. As moscas conquistam o papel pega-moscas! As moscas capturam mais 400 quilômetros de papel pega-moscas!

A risada dele ia agora numa histeria crescente. Prackle inclinou-se e sacudiu-o com a mão boa.

—        Pare com isso! Pare com isso! Você não tem direito de falar assim!

Loft finalmente percebeu que a risada era histérica, adiantou-se e desferiu uma bofetada no rosto de Tonder.

—        Tenente, pare com isso!

A risada continuou e Loft esbofeteou-o novamente.

—        Pare com isso, tenente! Está me ouvindo? Pare com isso!

Subitamente, a risada de Tonder cessou e a sala ficou mergulhada em silêncio, quebrado apenas pelo zumbido monótono dos lampiões. Tonder olhou aturdido para a própria mão, levou-a ao rosto dolorido, tomou a fitá-la. A cabeça descaiu na direção da mesa e ele murmurou:

—        Eu quero voltar para casa...

Havia uma ruazinha não muito longe da praça da cidade, onde se juntavam telhados pontiagudos e pequenas lojas. A neve fora removida das calçadas e da rua, mas se acumulava junto às cercas, escorregava pelos telhados, indo bater nas janelas fechadas das pequenas casas. Nos jardins, havia caminhos abertos no meio da neve. A noite era fria e escura; não se via, por trás das janelas fechadas, luz alguma que pudesse atrair os bombardeiros. Ninguém estava pelas ruas, pois o toque de recolher era rigoroso. As casas mais pareciam fragmentos escuros, a se destacarem no meio da neve. De vez em quando a patrulha de seis homens descia a rua, cada homem segurando uma lanterna, olhando por toda parte, atentamente. O barulho dos passos era abafado, as botas rangiam com a umidade. Eram vultos indistintos, enfiados em capotes grossos, com toucas de lã por baixo dos capacetes, cobrindo as orelhas, descendo até a boca e o queixo, para agasalhá-los contra o frio intenso. Caía alguma neve, muito pouca, quase como uma chuva de arroz.

Os homens da patrulha iam falando enquanto andavam, falando das coisas com que sonhavam, de carne e sopa quente, de manteiga, da beleza das moças, dos sorrisos delas, dos lábios, dos olhos. Falavam dessas coisas e às vezes falavam também do ódio que sentiam pelo que estavam fazendo, da solidão que lhes era imposta.

Havia uma casinha ao lado do depósito de ferro velho, uma casinha com o mesmo aspecto que as outras, a usar a sua touca de neve exatamente como as outras. Nenhuma luz saía por suas janelas fechadas, as portas estavam trancadas. Mas lá dentro havia uma luz acesa na pequena sala. Á porta do quarto estava aberta, assim como a porta da cozinha. Encostada na parede dos fundos, havia uma pequena estufa de ferro, dentro da qual ardia um pequeno fogo de carvão, Era uma sala aconchegante e confortável, embora pobre, o chão coberto por um tapete puído, as paredes cobertas por um papel já antigo, creme, com antiquadas flores-de-lis douradas. Na parede dos fundos havia dois quadros: um, mostrando um peixe morto numa travessa; o outro, com um galo silvestre empoleirado num galho. Na parede da direita havia um quadro mostrando Cristo a andar sobre as ondas, na direção dos pescadores desesperados. Havia duas cadeiras de espaldar reto, um sofá com uma capa colorida. No meio da sala havia uma mesinha redonda, sobre a qual estava um lampião de querosene, com uma cúpula florida. Â luz que se disseminava pela sala era suave, aconchegante.

Numa velha cadeira de balanço, estofada, ao lado da mesa, estava sentada Molly Morden, sozinha ali dentro. Ela estava desfiando a lã de uma velha suéter azul e enrolando o fio num novelo, já bastante grande. Sobre a mesa, a seu lado, estava a cestinha de tricô, com as agulhas e uma tesoura grande. Os óculos estavam sobre a mesa, pois Molly não precisava deles para tricotar. Ela era bonita, de aparência jovem, muito bem arrumada. Os cabelos dourados estavam presos no alto da cabeça por uma fita azul. Suas mãos trabalhavam rapidamente. Enquanto trabalhava, ela de vez em quando lançava um olhar para a porta do pequeno vestíbulo, onde havia outra porta que se abria para a rua. O vento assoviava suavemente pela chaminé. Mas era uma noite tranqüila, todos os ruídos amortecidos pela neve.

Subitamente, ela parou o trabalho. As mãos ficaram imóveis. Ela olhou para a porta, escutando. O barulho dos passos da patrulha soou lá fora, na rua. Podiam-se ouvir as vozes dos homens, muito baixas. O barulho logo se desvaneceu na noite escura e fria. Molly puxou um novo fio da suéter e enrolou-o no novelo. E parou novamente. Havia um barulho na porta, seguido por três batidas curtas. Molly largou o trabalho em cima da mesa e foi até a porta.

—        Quem é?

Ela girou o ferrolho da porta e abriu-a. Um vulto todo encapuzado entrou. Era Annie, a cozinheira, de olhos vermelhos, envolta numa manta. Ela entrou rapidamente, como se tivesse muita prática em deslizar através de portas e vê-las se fecharem às suas costas. Parou, o nariz vermelho, fungando, e correu os olhos pela sala.

Molly disse:

—        Boa noite, Annie. Eu não a esperava hoje. Tire o agasalho e esquente-se um pouco. Está muito frio lá fora.

—        Os soldados trouxeram o inverno mais cedo — disse Annie, — Meu pai sempre dizia que uma guerra traz consigo o mau tempo. Ou que o mau tempo sempre traz uma guerra em sua esteira. Nunca me lembro direito.

—        Tire as suas coisas e venha para perto da estufa.

—        Não posso — disse Annie, solenemente. — Eles estão vindo para cá.

—        Quem está vindo?

—        Sua Excelência, o Dr. Winter e os dois jovens Anders.

—        Aqui? Mas por quê?

Annie estendeu a mão, na qual havia um pequeno embrulho.

—        Pegue isso. Roubei do prato do coronel. É carne.

Molly desembrulhou o pequeno bolinho de carne e colocou-o na boca. Falou, enquanto mastigava:

—        Pegou algum para você?

—        Sou eu quem cozinha, não é? Eu sempre tiro algum para mim.

—        Quando é que eles vem?

Annie fungou.

—        Os Anders vão partir para a Inglaterra. Não têm outro jeito. Estão escondidos agora.

—        Mas por quê?

—        Foi o irmão deles, Jack, o fuzilado de hoje, por ter arrebentado aquele carrinho. Os soldados estão procurando pelo resto da família. E você sabe o que eles costumam fazer, nesses casos.

—        Eu sei, Annie, eu sei muito bem como eles agem. Mas sente-se um pouco.

—        Não há tempo. Tenho que voltar e dizer a Sua Excelência que está tudo bem aqui.

—        Alguém viu você entrar aqui, Annie? Annie sorriu, orgulhosamente.

—        Não. Sou muito boa em me esgueirar por aí.

—        Como é que o prefeito vai conseguir sair? Annie riu.

—        Joseph vai se deitar na cama dele, para o caso de alguém resolver olhar. E vai estar vestido no camisolão de Sua Excelência, bem ao lado de madame!

Ela tornou a rir e acrescentou:

—        E é bom que Joseph fique deitado muito quietinho! Molly comentou:

—        É uma noite horrível para se pôr ao mar.

—        É melhor do que ser fuzilado.

—        Também acho. Mas por que o prefeito está vindo para cá?

—        Não sei. Ele quer conversar com os Anders. Só vim lhe avisar. Agora, tenho que ir.

—        E eles vão demorar, Annie?

—        Talvez meia hora, talvez 45 minutos. Eu virei na frente. Ninguém dá muita importância a cozinheiras velhas.

Ela se encaminhou para a porta. Parou no meio do caminho, virou-se bruscamente e, como se acusasse Molly de ter pronunciado as últimas palavras, disse, truculentamente:

—        Eu não sou tão velha assim!

E saiu pela porta, fechando-a.

Molly voltou para o seu tricô por algum tempo. Depois, levantou-se novamente, foi até a estufa e levantou a tampa. O brilho do fogo iluminou seu rosto. Ela remexeu o fogo c acrescentou alguns pedaços de carvão, fechando a estufa em seguida. Mas, antes que tivesse tempo de tornar a sentar, alguém bateu na porta. Ela atravessou a sala, murmurando para si mesma:

—        O que será que ela esqueceu? Junto à porta, perguntou:

—        O que deseja?

Uma voz de homem respondeu:

—        Não pretendo fazer-lhe mal...

Molly abriu a porta e o Tenente Tonder seguiu-a. Molly disse:

—        Quem é você? O que deseja? Não pode entrar aqui desse jeito. O que está querendo?

O Tenente Tonder estava vestido com um capote cinza. Entrou na sala e tirou o capacete, dizendo, em tom suplicante:

—        Não pretendo fazer-lhe mal algum. Por favor, deixe-me ficar um pouco...

Ela fechou a porta e ele disse:

—        Moça, eu quero apenas falar-lhe, nada mais. Quero ouvi-la falar. Nada mais do que isso.

—        Vai querer me violentar?

—        Não, moça. Deixe-me apenas ficar um pouco e depois irei embora.

—        O que deseja, afinal?

Tonder tentou explicar:

—        Será que não pode compreender... Será que não pode acreditar em mim? Só por algum tempo, será que não podemos esquecer esta guerra? Só por algum tempo... Será que não podemos conversar um pouco... Como gente?

Molly fitou-o demoradamente e depois um sorriso aflorou a seus lábios.

—        Não sabe quem eu sou, não é?

— Eu já a vi na cidade. E sei que é adorável. E sei que quero falar-lhe.

Molly continuou sorrindo. E disse, suavemente:

—        Não sabe quem eu sou...

Ela se sentou novamente na cadeira de balanço, enquanto Tonder ficava de pé, como uma criança, parecendo muito constrangido. Molly disse, baixinho:

—        Você se sente solitário. É isso, não é?

Tonder passou a língua pelos lábios e falou, ansiosamente:

—        É isso mesmo. Você é capaz de compreender. Eu sabia que compreenderia.

As palavras dele saíam aos tropeções.

—        Eu me sinto solitário ao ponto de estar quase doente. Eu me sinto terrivelmente solitário em meio a toda essa quietude, a tanto ódio.

E, suplicante, ele acrescentou:

—        Não podemos conversar, só um pouquinho?

Molly pegou o seu tricô, lançando um olhar rápido para a porta da rua.

—        Pode ficar, mas apenas por 15 minutos. Sente-se, tenente.

Ela olhou novamente para a porta. A casa estalou. Tonder ficou subitamente tenso e perguntou:

—        Há alguém aqui?

—        Não. O barulho foi provocado pelo peso da neve no telhado. Eu já não tenho mais homem para tirar a neve do telhado.

Tonder disse, gentilmente:

—        Quem fez isso? Fomos nós? Molly assentiu, o olhar distante.

—        Sim.

Ele se sentou.

—        Sinto muito. Eu gostaria de poder fazer alguma coisa por você. Mandarei tirar a neve do seu telhado.

—        Não. Por favor, não.

—        Por que não?

—        Porque todo mundo iria pensar que eu tinha passado para o lado de vocês. Iriam me escorraçar. E eu não quero sei escorraçada.

—        Eu compreendo. Imagino o que poderia acontecer. Vocês todos nos odeiam. Mas tratarei de protegê-la, se me permitir.

Molly compreendia agora que estava no controle da situação e seus olhos se estreitaram, um tanto cruelmente.

—        Por que pede a minha autorização? Você é um conquistador. E conquistadores não precisam pedir. Simplesmente se apossam de tudo o que desejam.

—        Não é isso o que eu estou querendo. Não é assim que estou querendo.

Molly riu, ainda um'pouco cruelmente.

—        Quer que eu goste de você, não é, tenente?

E ele respondeu, com a maior simplicidade:

— É...

Tonder ergueu a cabeça, com um brilho nos olhos.

—        Você é linda, tem uns cabelos maravilhosos... Oh, faz tanto tempo que não vejo a simpatia estampada no rosto de uma mulher!

—        Está vendo alguma no meu? Ele a examinou atentamente.

—        Eu quero ver.

Molly finalmente baixou os olhos.

—        Está querendo me fazer uma declaração de amor, não é, tenente?

E ele disse, meio desajeitado:

—        Eu quero que goste de mim. Não faz idéia do quanto eu quero que goste de mim! E claro que quero ver isso estampado em seus olhos. Já a vi muitas vezes na rua. Fico observando-a passar. Dei ordens para que não fosse molestada. Nunca foi molestada, não é?

—        Não, nunca fui. Obrigada.

As palavras de Tonder safam se atropelando:

—        Até mesmo escrevi um poema para você. Gostaria de vê-lo?

Sardonicamente, Molly perguntou:

—        É muito grande? Terá que ir embora daqui a pouco.

—        Não, é um poema muito pequeno.

Ele enfiou a mão no bolso da túnica e tirou um papel dobrado, estendendo-o para Molly. Ela se inclinou para perto do lampião, pôs os óculos e leu:

'Seus olhos, em profundos paraísos, me dominam e se recusam a me largar; um mar de pensamentos azuis estonteantes me inunda o coração."

Ela dobrou o papel, largou-o no colo.

—        Foi você quem escreveu isso, tenente?

—        Fui.

A voz dela era zombeteira:

— Para mim?

Tonder estava intranqüilo.

—        Sim.

Molly fitava-o com firmeza, sorridente.

—        Não foi você quem escreveu isso, não é, tenente?

Ele retribuiu o sorriso, como uma criança surpreendida numa mentira.

—        Não, não fui eu.

—        E sabe quem foi que escreveu?

—        Sei. Foi Heine. É o poema Mit deinen blauen Augen. Sempre gostei muito dele.

Ele riu, embaraçado. Molly riu também. De repente, os dois estavam rindo juntos. Ele parou de rir tão subitamente quanto começara. Uma expressão desolada surgiu em seus olhos.

—        Parece que nunca ri assim em toda a minha vida. Eles nos disseram que as pessoas iriam gostar da gente, iriam nos admirar. Mas isso não aconteceu. As pessoas apenas nos odeiam.

Tonder mudou de assunto de repente, como se disputasse uma corrida contra o tempo.

—        Você é linda, tão linda quanto um riso solto...

—        Está começando a me fazer uma declaração de amor, tenente. E terá que ir embora dentro de instantes.

—        Talvez eu queira mesmo lhe fazer uma declaração de amor. Um homem precisa de amor. Um homem morre, sem amor. Suas entranhas vão murchando, o peito parece ressequido. Eu me sinto tão só...

Molly levantou-se. Olhou nervosamente para a porta e foi até a estufa. Ao voltar, o rosto era duro, havia um brilho impiedoso em seus olhos.

—        Quer ir para a cama comigo, tenente?

—        Eu não disse isso! Por que está falando assim?

Molly disse, cruelmente:

—        Talvez eu esteja querendo deixá-lo repugnado. Eu já fui casada. Meu marido está morto. Já não sou mais uma virgem.

A voz dela era amargurada.

—        Eu quero apenas que goste de mim... — murmurou Tonder.

—        Eu sei. É um homem civilizado. Sabe que o ato de amor é mais completo, melhor, se existe também algum afeto.

—        Não fale assim! Por favor, não fale assim...

Molly olhou rapidamente para a porta e disse:

—        Somos um povo conquistado, tenente. Vocês nos tiraram até a comida. E eu sinto fome. Gostaria ainda mais de você se me conseguisse alguma comida.

—        O que está querendo dizer com isso?

—        Será que eu o enojo, tenente? Talvez eu esteja tentando fazê-lo. Meu preço: dois salsichões.

—        Não pode falar assim!

—        Não foi assim que aconteceu com as moças da sua terra, tenente, depois da última guerra? Um homem podia escolher qualquer uma delas, por um ovo ou uma fatia de pão. Está me querendo de graça, tenente? Ou acha que o preço é muito alto?

—        Você me enganou por um momento. Também me odeia, afinal, não é? Eu pensei que talvez isso não acontecesse.

—        Não, eu não o odeio. Estou com fome e... Odeio-o!

—        Eu lhe darei qualquer coisa que precisar, mas...

Ela o interrompeu:

—        Quer que se chame de outra coisa, não é? Não quer uma prostituta. Não é isso o que ia dizer?

—        Eu não sei mais o que eu queria dizer. Do jeito que você fala, parece que tudo se resume a ódio.

Molly riu.

—        Não é nada agradável sentir fome. Dois salsichões, dois lindos e gordos salsichões, podem ser a coisa mais preciosa do mundo!

—        Não fale assim! Por favor!

—        Por que não? É a verdade.

—        Não é verdade! Não pode ser verdade!

Ela o fitou em silêncio por um momento, depois voltou a sentar-se, baixou os olhos e disse:

—        Não, não é verdade. Eu não o odeio. Também me sinto solitária. E a neve pesa cada vez mais no telhado.

Tonder levantou e aproximou-se dela. Tomou uma das mãos de Molly entre as suas e disse, suavemente:

—        Por favor, não me odeie. Eu sou apenas um tenente. Não pedi para vir aqui. Você não pediu para ser minha inimiga. Sou apenas um homem, não um conquistador.

Os dedos de Molly envolveram sua mão por um instante. E ela disse, gentilmente:

—        Eu sei disso, eu sei...

—        Temos pelo menos algum direito à vida, em meio a tanta morte.

Ela levou a mão ao rosto dele, antes de murmurar:

— Sim...

—        Tomarei conta de você. Temos algum direito à vida, em meio a tanta carnificina.

Tonder pôs a mão no ombro dela. Subitamente, Molly ficou rígida, arregalando os olhos, como se acometida por alguma visão. Ele tirou a mão e perguntou:

—        Mas, o que aconteceu? O que houve?

Os olhos dela fitavam um ponto qualquer à sua frente, fixamente. Tonder repetiu:

—        O que é?

Molly murmurou, um fio de voz:

—        Eu o vesti, como a um garotinho para o seu primeiro dia na escola. E ele estava com medo. Abotoei-lhe a camisa, procurei consolá-lo. Mas não havia como confortá-lo. E ele estavacom medo.

—        Sobre o que está falando?

Molly ignorou-o, continuando a falar, como se visse o que estava descrevendo:

—        Não sei por que eles o deixaram vir até em casa. Ele estava atordoado. Não sabia muito bem o que estava acontecendo. Nem mesmo me beijou quando partiu. Estava com medo, mas se portava com muita bravura, como um garotinho que segue para o seu primeiro dia na escola.

Tonder levantou-se.

—        Está falando do seu marido.

—        Isso mesmo, é dele que estou falando. Fui procurar o prefeito, mas ele nada podia fazer. E depois ele se foi, não com muita bravura, não em passos muito firmes. E foi você quem o levou, foi você quem o fuzilou. Tudo pareceu mais fantástico do que terrível, na ocasião. Naquele momento, eu quase não acreditei que estava realmente acontecendo!

—        Era seu marido!

—        Era... Eu não acreditei realmente, na ocasião, mas agora, na quietude desta casa, eu acredito. Agora, sentindo a neve pesar lá no telhado, eu acredito. E na solidão que precede o romper do dia, na cama fria, eu sei que foi verdade, que aconteceu mesmo...

Tonder ficou parado diante dela. Seu rosto era a própria imagem da desolação, da tristeza.

—        Boa noite — disse ele. — Que Deus a guarde. Posso voltar?

Molly olhava para a parede à sua frente e para sua recordação. E murmurou:

—        Não sei...

—        Eu voltarei.

—        Não sei...

Ele a contemplou por mais um instante e depois saiu da casa, em silêncio. Molly continuou olhando para a parede.

—        Que Deus me guarde!

Ela continuou imóvel, a olhar para a parede. Á porta se abriu silenciosamente e Annie entrou, Molly nem mesmo a viu. Annie disse, desaprovadoramente:

—        A porta estava aberta.

Molly virou-se para ela, lentamente, os olhos ainda arregalados.

—        Ah, sim, é você, Annie...

—        A porta estava aberta. Vi um homem saindo. Parecia ser um soldado.

—        E era, Annie.

—        Havia um soldado aqui?

—        Havia.

Desconfiada, Annie perguntou:

—        E o que ele estava fazendo aqui?

—        Ele veio até aqui para me dedarar seu amor.

—        O que está acontecendo com você, Molly? Não se juntou a eles, não é? Não está do lado deles, como aquele Corell, não é?

—        Não, Annie, eu não estou do lado deles.

—        Se o prefeito estiver aqui e eles voltarem, será culpa sua se alguma coisa acontecer. Será culpa sua!

—        Ele não vai voltar. Eu não o deixei voltar.

Mas Annie continuava desconfiada e disse:

—        Posso dizer a eles que entrem, agora? Acha que é seguro?

—        É seguro, sim. Onde é que eles estão?

—        Estão lá fora, atrás da cerca.

—        Diga-lhes que entrem.

Enquanto Annie saía, Molly levantou-se, alisou os cabelos e sacudiu a cabeça, procurando voltar à vida outra vez. Houve um ruído na porta. Dois jovens altos e louros entraram na sala. Vestiam jaquetões de marinheiro e camisas de lã por baixo. Nas cabeças, tinham gorros de li. Eram fortes, os rostos curtidos pelo sol e pelo vento. Pareciam quase gêmeos. Eram Will e Tom Anders, os pescadores.

—        Boa noite, Molly. Você já soube do que aconteceu?

—        Annie me contou. Está uma noite horrível para partirem. Tom disse:

—        É melhor do que numa noite clara. Os aviões podem avistar-nos numa noite clara. O que o prefeito está querendo falar com a gente, Molly?

—        Não faço a menor idéia. Lamento o que aconteceu com o irmão de vocês.

Os dois ficaram calados, parecendo constrangidos. Finalmente, Tom disse:

—        Você sabe como são essas coisas, Molly, melhor do que a maioria.

—        Sim, Tom, eu sei.

Annie apareceu novamente na porta e disse, num sussurro rouco:

—        Eles já estão aqui!

O Prefeito Orden e o Dr. Winter entraram. Tiraram os casacos e os chapéus, deixando-os em cima do sofá. Orden foi até Molly e beijou-a na testa.

—        Boa noite, querida.

Ele se virou em seguida para Annie:

—        Fique de vigia junto à porta, Annie. Dê uma batida quando a patrulha se aproximar, uma quando se afastar, duas em caso de perigo. Deixe a porta de fora ligeiramente entreabet-ta, para poder ouvir se alguém se aproximar.

—        Sim, senhor.

Atmie retirou-se para o pequeno vestíbulo junto à porta da ma, fechando a porta que dava para a sala.

O Dr. Winter aproximou-se da estufa e estendeu as mãos. para esquentá-las. E disse:

—        Recebemos o aviso de que vocês dois iam partir esta noite.

—        Não há outro jeito — disse Tom.

Orden assentiu.

—        Eu sei. Mas ouvimos dizer também que pretendem levar o Sr. Corell junto com vocês.

Tom riu, um tanto amargurado.

—        Achamos que seria justo. Afinal, é o barco dele que vamos levar. Ele tem direito ao passeio. E não é nada bom vê-lo andando tranqüilamente pelas nossas ruas.

A voz de Orden estava impregnada de tristeza:

—        Eu gostaria que ele já tivesse ido embora daqui. Levando-o, vocês vão aumentar os riscos que correm.

—        Não é nada bom vê-lo andando tranqüilamente pelas nossas ruas — disse Wili, ecoando as palavras do irmão. — Não é bom para a nossa gente vê-lo aqui.

Winter perguntou:

—        E vocês têm condições de agarrá-lo? Ele não está tomando todas as precauções possíveis?

—        Ele está sendo bastante cauteloso, mas acho que poderemos agarrá-lo, sem maiores problemas. À meia-noite, ele geralmente vai para casa. Ficaremos escondidos atrás do muro. Vamos pegá-lo antes que entre em casa, levando-o em seguida para o barco, que está no ancoradouro ao lado da casa. Nós estivemos hoje no barco, aprontando-o para a viagem.

—        Eu preferia que não o fizessem — disse Orden. — Isso só vai aumentar o perigo que vocês vão correr. Se ele fizer qualquer barulho, a patrulha irá se aproximar imediatamente.

—        Ele não fará qualquer barulho — assegurou Tom. — E a melhor coisa que pode acontecer é ele desaparecer no mar. Se isso não acontecer, alguma pessoa da cidade poderá querer liquidá-lo e eles irão então matar uma porção de gente. Por isso é melhor ele desaparecer no mar.

Molly estava outra vez tricotando, quando perguntou:

—        Vão jogá-lo na água? Will corou.

—        Ele é que vai cair no mar, Molly.

Em seguida, ele se virou para o Prefeito Orden e perguntou:

—        Queria falar conosco, senhor?

—        Queria, sim. O Dr. Winter e eu estivemos pensando... Está se falando muito em justiça, injustiça, conquista e outras coisas. Nosso país foi invadido, mas não creio que tenha sido conquistado.

Houve uma batida súbita na porta. Todos se calaram. As agulhas de tricô de Molly ficaram imóveis, a mão estendida do prefeito parou em pleno ar. Tom, que estava no ato de colar a orelha, deixou a mão esquerda ali, parando de coçar. Ficaram todos imóveis, os olhos fixados na porta. Ouviram então, fracos a princípio, depois mais fortes, os passos da patrulha, o rangido das botas na neve, a conversa dos soldados. Eles passaram pela casa e os passos foram se perdendo na distância. Houve uma segunda batida na porta. Todos relaxaram.

Orden disse:

—        Annie deve estar sentindo muito frio lá fora.

Ele abriu a porta da sala que dava para o vestíbulo e passou o seu casaco, que fora pegar no sofá, para Annie.

—        Ponha isso nos ombros, Annie.

Tornou a fechar a porta e disse:

—        Não sei o que eu faria sem ela. Annie consegue ir a toda parte, vê tudo, ouve tudo.

—        Vamos ter que partir muito em breve, senhor — observou Tom.

Winter disse, então:

—        Eu gostaria que abandonassem o plano de levar o Sr. Corell.

— Não podemos fazê-lo. Não é nada bom vê-lo andando tranqüilamente pelas nossas ruas.

Tom olhou para o Prefeito Orden, com uma expressão in-terrogativa. Orden então começou a falar, lentamente:

—        Vou procurar falar com a maior simplicidade possível. Esta é uma cidade pequena. Portanto, a justiça e a injustiça estão relacionadas com coisas pequenas. O irmão de vocês foi fuzilado, Alex Morden foi fuzilado. Temos que nos vingar de um traidor. O povo está furioso, mas não tem como lutar. Tudo se reduz a pequenas coisas, não se trata de idéia contra idéia.

Winter comentou:

—        É estranho ouvir um médico falar em destruição. Mas acho que todos os povos dominados têm vontade de resistir. Estamos desarmados. Nossos espíritos e nossos corpos não são suficientes para a luta. O espírito de um homem desarmado não pode enfrentar uma metralhadora.

Will Anders indagou:

—        Por que está dizendo tudo isso, senhor? O que deseja de nós?

—        Queremos lutar contra eles e não podemos — disse Orden. — Eles agora estão recorrendo à fome para subjugar a nossa gente. Á fome sempre traz a fraqueza. Vocês dois estão de partida para a Inglaterra. Talvez ninguém lhes dê ouvidos, lá. Mas, se o fizerem, transmitam o nosso pedido, o pedido de uma cidade pequena como a nossa, para que nos dêem armas com que possamos lutar.

Foi Tom quem falou agora:

—        Estão querendo armas?

Novamente houve uma batida na porta e todos na sala ficaram paralisados. Outra vez se ouviu o barulho da patrulha passando, só que desta vez ia correndo. Will aproximou-se rapidamente da porta. Os passos acelerados chegaram diante da casa. Ouviram-se ordens abafadas; a patrulha seguiu adiante, Houve outra batida na porta.

Molly disse:

—        Eles devem estar atrás de alguém. Quem será, desta vez?

—        Temos que partir imediatamente — disse Tom, inquieto. — Deseja armas, senhor? Quer que pecamos a eles que mandem armas?

—        Não. Digam-lhes o que está acontecendo aqui. Estamos sendo vigiados. Qualquer coisa que façamos pode dar margem a represálias violentas. Se fosse possível, gostaríamos de ter armas simples, armas secretas, para uma espécie de guerrilha. Explosivos, dinamite para explodir os trilhos da estrada de ferro, granadas e, se possível, até mesmo veneno.

Ele fez uma pausa, recomeçando em tom veemente:

—        Esta não é uma guerra honrosa. É uma guerra de traição e de assassinato. Vamos usar os mesmos métodos que foram usados contra nós! Que os bombardeiros ingleses lancem suas bombas grandes na mina e nas instalações. Mas que lancem também bombas pequenas, que possamos usar depois, que possamos esconder debaixo dos trilhos, nos reservatórios de água. Estaremos então armados, armados secretamente. Os invasores nunca saberão quais de nós estarão armados. Que os bombardeiros lancem para nós armas simples, fáceis de esconder. Estaremos então prontos para a luta!

Winter observou:

—        Eles nunca saberão onde iremos atacar. As patrulhas nunca irão descobrir quais de nós estarão armados!

Tom enxugou o suor da testa.

—        Se conseguirmos chegar até lá, senhor, diremos tudo isso. Mas... bem, ouvi dizer que na Inglaterra ainda há homens no poder que não se atrevem a entregar armas nas mãos do povo.

Orden pareceu ficar aturdido.

—        Eu não tinha pensado nisso. Mas se tais pessoas ainda governam a Inglaterra e a América, então o mundo está irremediavelmente perdido, aconteça o que acontecer. Digam-lhes tudo o que acabamos de falar, se eles quiserem ouvir. Precisamos de ajuda, mas se a obtivermos...

O rosto de Orden subitamente parecia feito de pedra.

—        Se a obtivermos, então passaremos a nos ajudar a nós mesmos.

Winter disse:

—        Se eles nos mandarem dinamite para escondermos, para enterrarmos na terra, para que possamos usá-la quando for necessário, então o invasor jamais terá descanso. Jamais! Vamos explodir todos os suprimentos que eles receberem.

Todos na sala estavam excitados. Molly disse:

—        Podemos então lutar, impedir que eles tenham o menor descanso. Não os deixaremos dormir. Destruiremos os seus nervos, abalaremos todas as certezas que eles têm.

Will pergimtou:

—- Isso é tudo, senhor? Orden assentiu.

—        É, "Will. Isso é o que estamos querendo.

—        E se eles não quiserem nos dar atenção, senhor?

—        Vocês pelo menos terão tentado, assim como estão tentando escapar esta noite.

—        Isso é tudo, senhor?

A porta para o vestíbulo se abriu neste momento e Annie entrou na sala. Orden continuou:

—        Isso é tudo. Antes de vocês partirem, mandarei Annie ir na frente, para ver se o caminho está desimpedido,

Ele olhou para o lado e viu que Aimie estava na sala. Ela disse, então:

—        Há um soldado vindo para cá, senhor. Parece que é o mesmo que estava aqui com Molly, antes.

Os outros olharam para Molly. Annie acrescentou:

—        Tranquei a porta.

—        O que ele está querendo? — disse Molly. — Por que voltou?

Houve uma batida na porta externa. Orden aproximou-se de Molly e disse, baixinho:

—        O que está havendo, Molly? Você está em dificuldades?

—        Não, não! Saiam pelos fundos! Depressa, depressa! Bateram novamente na porta da rua. Uma voz de homem chamou, baixinho. Molly abriu a porta da cozinha e disse:

—        Depressa, depressa!

O prefeito parou diante dela.

—        Você está metida em alguma encrenca, Molly? Não fez nada, não é?

Annie disse, friamente:

—        Parece o mesmo soldado. Havia um aqui com Molly, antes de eu chegar.

—        Havia, sim — disse Molly para o prefeito. — Havia um soldado aqui.

—        E o que ele queria, Molly?

—        Ele queria fazer amor comigo.

—        Mas não fez, não é?

—        Não, não fez. Agora, vão embora. Eu saberei tomar conta de mim.

—        Molly, se você está em dificuldades, deixe que a ajudemos.

—        Ninguém pode ajudar-me a resolver esse problema — disse Molly. — Agora, vão embora logo de uma vez.

Ela praticamente empurrou-os pela porta afora. Annie ficou para trás. Olhou desconfiada para Molly e perguntou:

—        O que esse soldado está realmente querendo?

—        Não faço a menor idéia.

—        Não vai contar nada para ele, não é?

—        Não.

Um pouco atônita, ela repetiu:

—        Não...

Depois, rispidamente, declarou:

—        Não, Annie, não vou contar nada!

Annie franziu o rosto.

—        E é melhor mesmo não contar nada!

Annie saiu, fechando a porta. As batidas na porta -externa continuavam e podia-se ouvir uma voz de homem chamando, baixinho.

Molly foi até a mesa no centro da sala, sentindo que seu fardo era muito pesado. Olhou para o lampião, olhou para a mesa. Viu a tesoura grande, na cestinha de tricô. Pegou-a pelas lâminas, pensativa. De repente, horrorizada, descobriu que empunhava a tesoura como se fosse uma faca. Baixou os olhos para o lampião e a luz se espalhou por seu rosto. Lentamente, ela levantou a tesoura e escondeu-a dentro do vestido.

As batidas na porta continuavam. Ela ouviu a voz chamando-a. Inclinou-se sobre o lampião, soprou a chama. A sala ficou às escuras, exceto pelo brilho vermelho da estufa de carvão. Ela abriu a porta do vestíbulo.

A voz era tensa, mas meiga, quando ela disse:

—        Já estou indo, tenente, já estou indo!

 

Na noite escura, a lua em quarto minguante, muito branca, projetava bem pouca luz. O vento era seco e assoviava sobre a neve, um vento constante, não muito forte. A neve cobria a terra, com uma camada funda, compacta. As casas se aninhavam no meio da neve, as janelas escuras, fechadas, para impedir a entrada do frio. Não era muita a fumaça que saía pelas chaminés.

Na cidade, as calçadas estavam congeladas, cobertas por uma camada de neve espessa. O silêncio dominava as ruas, quebrado apenas pela passagem da patrulha enregelada e desolada. As casas estavam às escuras, se fundindo na noite. Ainda conservavam algum calor, à espera da manhã. Perto da entrada da mina, os soldados vigiavam o céu, experimentavam seus instrumentos, ficavam na escuta, em seus aparelhos. Era uma noite escura, mas sem nuvens, ideal para bombardeios. Em noites como aquela, as bombas desciam assoviando do céu e se fragmentavam em mil estilhaços. A terra estaria bem visível lá de cima, muito embora a lua parecesse projetar bem pouca luz.

Numa das extremidades da cidadezinha, no meio das pequenas casas, um cachorro ganiu, queixando-se do frio e da solidão. Ele ergueu o focinho para seu deus e apresentou um relato longo e detalhado da deplorável situação do mundo, no que lhe dizia respeito. Era um cantor experiente, uma garganta poderosa, com grande versatilidade de alcance e controle. Os seis homens da patrulha, percorrendo as ruas de um lado para outro, deprimidos, ouviram o lamento canino. Um dos soldados disse:

—        Acho que ele está ficando pior, a cada noite que passa.

Devíamos dar-lhe um tiro.

Outro respondeu-lhe:

—        Por quê? Deixe-o uivar. Parece-me um bom cachorro. Eu tinha um lá em casa que também gostava de uivar. Nunca consegui fazer com que ele perdesse o hábito. Eu não me importo com uivos.

Uma pausa curta e ele acrescentou, em tom desolado:

—        Levaram também o meu cachorro, junto com todos os outros.

O cabo comentou:

—        Não podíamos nos dar ao luxo de ter cachorros que estavam comendo os alimentos de que precisávamos.

—        Não estou me queixando. Eu sei que era necessário. Não tenho capacidade para planejar as coisas, como os nossos líderes fazem. Mas acho estranho que algumas pessoas daqui tenham cachorros. E elas ainda têm muito menos comida do que a gente. Mas são todos esqueléticos, não só as pessoas como os cachorros.

—        São todos uns tolos — disse o cabo. — É por isso que foram subjugados tão depressa. Não podem planejar o futuro, da maneira como fazemos.

—        Às vezes eu me pergunto se teremos cachorros novamente, depois que tudo terminar — comentou o soldado. — Talvez possamos buscar alguns cachorros na América ou em algum outro lugar e começar a criá-los de novo. Que espécie de cachorros será que existe na América?

—        Não faço a menor idéia — disse o cabo. — Provavelmente devem ser cachorros tão malucos quanto tudo o mais que eles têm por lá. Seja como for, talvez seja até melhor que não os tenhamos. É bem possível que não sirvam para nada, a não ser para o trabalho policial.

—        É bem possível — disse o soldado. — Ouvi dizer que o Líder não gosta de cachorros, que eles lhe provocam coceiras, acessos de espirro.

—        Você fica dando atenção aos maiores disparates — comentou o cabo. — Escutem!

A patrulha estacou bruscamente. De muito longe, vinha o zumbido de aviões.

—        Lá vêm eles — disse o cabo. — Bom, não há nenhuma luz acesa. Já fazia duas semanas que eles não vinham, não é?

—        Doze dias — informou o soldado.

Os soldados à entrada da mina ouviram também o zumbido dos aviões.

—        Eles estão voando alto — disse um sargento.

O Capitão Loft inclinou a cabeça para trás, a fim de poder ver pela borda do capacete.

—        Calculo que estejam acima de 6.000 metros de altitude — disse ele. — Talvez passem por nós.

—        Não são muitos — disse o sargento, escutando atentamente . — Não creio que haja mais de três aviões. Devo avisar à bateria?

—        Ponha-a em estado de alerta e depois se comunique com o Coronel Lanser... não, não ligue para ele. Talvez os aviões não estejam vindo para cá. Já estão bem perto e ainda não começaram a mergulhar.

—        Tenho a impressão de que estão circulando lá no alto, senhor. E parece-me que são apenas dois.

Em seus quartos, o povo também ouviu os aviões. Todos se revolveram em suas camas, escutando. No palácio do prefeito, o zumbido distante despertou o Coronel Lanser. Deitado de costas, ele ficou olhando para o teto escuro, de olhos arregalados. Prendeu a respiração, para ouvir melhor. Mas seu coração começou a bater tão forte que ele não pode ouvir nada. O Prefeito Orden ouviu os aviões em seu sono e o zumbido povoou seu sonho. E ele se remexeu e murmurou, sem acordar.

Lá no alto, os dois bombardeiros camuflados sobrevoavam a cidade, em círculos. Reduziram a velocidade. De cada avião começaram a cair pequenos objetos, centenas deles, um depois do outro. Mergulharam verticalmente por alguns metros; depois, pequenos pára-quedas se abriram. £ lentamente, silenciosamente, os pequenos embrulhos foram flutuando até o chão. Os aviões voltaram a acelerar, ganharam altitude, recomeçaram a voar em círculos, reduziram a velocidade. E mais algumas centenas dos pequenos pára-quedas foram lançadas. Depois, os aviões se afastaram, voltando pela direção da qual tinham vindo.

Os pequenos pára-quedas flutuaram como plumas, impelidos pelos ventos, espalhados em todas as direções, inteiramente dispersados. Flutuaram tão lentamente e aterrissaram com tanta suavidade que muitos dos cartuchos de dinamite de 25 centímetros ficaram de pé na neve. Os pequenos pára-quedas murcharam suavemente, ao lado deles. Destacavam-se nítidos, em meio à neve. Caíram nos campos brancos, nos bosques das colinas, nas árvores, ficaram suspensos nos galhos. Alguns caíram nos telhados da cidade, outros nos quintais. E houve um que foi cair bem na coroa de neve da estátua da praça, de St. Albert, o Missionário.

Outro deles foi cair na rua, bem na frente da patrulha. O sargento disse:

—        Cuidado! £ uma bomba-relógio!

—        Não é grande o bastante para isso — disse um soldado.

—        Mas não vamos chegar perto.

O sargento iluminou o objeto com a sua lanterna. Era um pequeno pára-quedas, não maior que um lenço, azul-claro. Pendurado nele, havia um pequeno pacote, de papel azul.

—        Não quero que ninguém toque nisso — disse o sargento.

— Harry, corra até a mina e chame o capitão. Vamos ficar de olho nessa maldita coisa.

A madrugada chegou e as pessoas que saíam de suas casas, no campo, viram as manchas azuis a se destacarem no branco da neve. Foram pegá-las. Abriram o embrulho e leram o que estava impresso no papel. Viram o presente e no mesmo instante cada uma se tomou furtiva, escondendo o cartucho debaixo do casaco e indo procurar algum lugar para ocultá-lo.

As crianças foram informadas do presente e se puseram a vasculhar os campos, numa terrível "caçada de ovos de Páscoa". Quando alguma criança de sorte deparava com a mancha azul, recolhia o "prêmio", escondia-o e depois informava aos pais. Algumas pessoas, amedrontadas, entregavam os cartuchos que encontravam aos soldados. Mas não foram muitas. Os soldados também se espalharam pela cidade, na mesma caçada aos ovos de Páscoa. Mas não eram tão bons nisso quanto as crianças.

Na sala de recepção do palácio do prefeito, a mesa de jantar, com as cadeiras ao redor, continuava no mesmo lugar em que fora colocada no dia em que Alex Morden havia sido fuzilado. A sala já não tiiüia mais a elegância do tempo em que a casa era o palácio do prefeito. As paredes, nuas por trás das cadeiras, pareciam desoladas. A mesa, sobre a qual estavam espalhados alguns papéis, fazia com que a sala parecesse um escritório. O relógio em cima da lareira marcava 9:00. O dia era escuro, com nuvens ameaçadoras, que haviam chegado com a madrugada.

Annie saiu do quarto do prefeito. Contornou a mesa, olhando para os papéis que lá estavam. O Capitão Loft entrou. Estacou bruscamente, ao ver Annie.

—        O que está fazendo aqui? — perguntou ele. Sombriamente, Annie falou:

—        Sim, senhor.

—        Eu perguntei o que está fazendo aqui!

—        Eu ia limpar a sala, senhor.

—        Deixe as coisas como estão e saía daqui!

—        Sim, senhor.

Annie ficou esperando que ele se afastasse da porta e depois saiu apressadamente da sala. O Capitão Loft virou-se para a porta aberta e disse:

—        Pode trazê-los.

Um soldado entrou, com o rifle pendurado no ombro pela alça. Trazia nos braços alguns pacotes azuis, dos quais pendiam os pára-quedas, também azuis. Loft disse:

—        Coloque-os em cima da mesa.

Cautelosamente, o soldado depositou os pacotes em cima da mesa.

—        Agora, suba e informe ao Coronel Lanser que eu estou

aqui, com essas... com essas coisas.

O soldado virou-se e saiu rapidamente da sala. Loft foi até a mesa e pegou um dos pacotes, com uma expressão de repugnância. Segurou o pará-quedas azul pela ponta, suspendeu-o acima de sua cabeça e largou-o. O pára-quedas se abriu e flutuou até o chão. Ele pegou o pacote novamente e examinou-o.

O Coronel Lanser entrou na sala neste momento, seguido pelo Major Hunter, que trazia nas mãos um pedaço de papel amarelo.

—        Bom dia, capitão — disse Lanser.

Ele foi até a cabeceira da mesa e sentou-se. Olhou por um momento para a pilha de cartuchos; depois, pegou um deles e suspendeu-o.

—        Sente-se, Hunter — disse ele. — Já examinou essas coisas?

Hunter puxou uma cadeira e sentou-se. Olhou para o papel amarelo que estava em sua mão e disse, distraidamente:

—        Ainda não. Houve três interrupções na ferrovia, num trecho de menos de 15 quilômetros.

—        Pois dê uma olhada nisso e me diga o que acha — pediu Lanser.

Hunter pegou um dos cartuchos e removeu-lhe o envoltório. Num dos lados havia um pequenino pacote. Hunter tirou um canivete do bolso e cortou o cartucho. O Capitão Loft ficou olhando por cima do seu ombro. Hunter cheirou o cartucho aberto e esfregou os dedos no que havia lá dentro.

—        Engraçado... — murmurou ele. — É apenas dinamite comum. Não posso dizer qual é a percentagem de nitroglicerina enquanto não fizer alguns testes.

Examinou a ponta do cartucho.

—        Tem uma cápsula de percussão comum, de fulminato de mercúrio, com um rastilho igual ao que se usa em demolições. Eu diria que a duração do rastilho é de um minuto.

Ele tornou a jogar o cartucho em cima da mesa e concluiu:

—        É dinamite comum, muito simples e ordinária. O coronel olhou para Loft.

—        Quantos acha que foram lançados?

—        Não sei, senhor. Pegamos cerca de 50, além de 90 pára-quedas vazios. Por algum motivo, as pessoas deixam os pára-quedas, depois de recolherem os cartuchos. E provavelmente há mais algumas centenas que ainda não descobrimos.

Lanser sacudiu a mão.

—        Isso não faz a menor diferença — disse ele. — Eles podem lançar tantos cartuchos quantos quiserem. Nada podemos fazer para impedi-los e não podemos usar o mesmo método contra eles. Afinal, eles não conquistaram ninguém.

Loft disse, selvagemente:

—        Podemos exterminá-los da face da Terra!

Hunter estava removendo a cápsula de percussão de um dos cartuchos. Lanser disse:

—        É... podemos fazer isso... Já examinou o invólucro, Hunter?

—        Ainda não tive tempo.

—        O negócio é realmente diabólico. O invólucro é azul tornando fácil vê-lo a distância. Abre-se o pacote e pronto... —   Ele   pegou um dos   pequenos embrulhos, pensativo.   — ...tem-se uma barra de chocolate. Não há quem não vá procurar. Aposto que até os nossos próprios soldados estão surrupiando os chocolates. As crianças devem estar procurando-os como se fossem ovos de Páscoa.

Um soldado entrou e colocou um pedaço de papel amarelo diante do coronel, retirando-se em seguida. Lanser olhou para o papel e riu asperamente.

—        Tem aqui uma coisa para você, Hunter. Houve mais duas explosões na sua ferrovia.

Hunter levantou os olhos do cartucho que estava examinando e perguntou:

—        Eles jogaram dinamite por toda parte?

Lanser parecia meio perplexo.

—        Isso é o mais estranho de tudo. Entrei em contato com a capital. Eles só lançaram esses cartuchos aqui.

—        O que acha que isso significa? — indagou Hunter.

—        É difícil dizer. Mas creio que pretendem fazer um teste aqui. Se der certo, lançarão cartuchos de dinamite por toda parte. Se não der, abandonarão o plano.

—        E o que pretende fazer?

—        De acordo com ordens da capital, eu devo reprimir impiedosamente qualquer tentativa de uso da dinamite, de maneira a que não a lancem em nenhum outro lugar.

Hunter disse, em tom de lamento:

—        Como é que vou consertar cinco interrupções na linha? Não disponho de trilhos suficientes para isso.

—        Acho que vamos ter que arrancar os trilhos de alguns desvios fora de uso — disse Lanser.

—        Vamos ficar com uma linha da pior qualidade.

—        Mas pelo menos ficaremos com uma.

O Major Hunter jogou o cartucho que estivera examinando em cima da pilha. Loft disse, então:

—        Temos que acabar com isso imediatamente, senhor.

Vamos prender e punir as pessoas que recolheram os cartuchos, antes que comecem a usá-los. Temos que dar uma demonstração de força agora, para que não fiquem pensando que somos fracos.

Lanser sorriu para ele e disse:

—        Vamos com calma, capitão. Verifiquemos primeiro qual é exatamente a situação, para depois pensarmos nos remédios necessários.

Ele pegou outro embrulho da pilha, abriu-o e tirou o chocolate. Provou-o e depois disse:

—        O negócio é ainda mais diabólico do que eu pensava. O chocolate é muito gostoso. Nem eu próprio consigo resistir. É um prêmio e tanto.

Pegou em seguida o cartucho de dinamite.

—        O que realmente pensa disso, Hunter?

—        O que já disse antes. £ um explosivo ordinário, mas muito eficiente para pequenos trabalhos. Muito bom, quando se sabe usá-lo. Bastante perigoso, quando não se sabe.

Lanser examinou as instruções impressas no verso do invólucro.

—        Já leu isso aqui?

—        Dei uma olhada — disse Hunter.

—        Pois eu li tudo e quero que preste atenção. Ouça. Lanser começou a ler o que estava escrito no papel:

—        "Ao povo inconquistado. Esconda isto. Não se exponha a qualquer perigo desnecessário. Vai precisar disto mais tarde. É um presente dos seus amigos para você, um presente que poderá depois dar ao invasor do seu país. Não tente fazer grandes coisas com isto. "

Lanser começou a pular várias frases.

—        Mais adiante está dito: "Procure as ferrovias no campo... trabalhe de noite... espere as composições de transporte..." E aqui está: "Instruções — Ponha o cartucho debaixo do trilho, junto do encaixe, e prenda bem; coloque lama ou neve por cima, para deixar bem firme. Depois que acender o pavio, conte devagar até 60, até a explosão."

Lanser levantou os olhos para Hunter, que se limitou a dizer:

—        Funciona.

Lanser voltou a olhar para o papel.

—        "Pontes: enfraquece, mas não destrói..." E mais adiante informa também como se agir no caso de torres de transmissão, reservatórios de água, caminhões... — Largou o papel azul. — Está tudo aí...

Loft gritou, furiosamente:

—        Temos que fazer alguma coisa! Deve haver alguma maneira de controlar a situação. O que diz o quartel-general?

Lanser apertou os lábios, enquanto os dedos brincavam distraidamente com um dos cartuchos.

—        Eu poderia dizer-lhe tudo que eles iam recomendar, antes mesmo que tivessem dito alguma coisa. Já recebi as ordens: "Arme minas nos pára-quedas e envenene o chocolate."

Lanser fez uma pausa, pensativo, antes de continuar:

—        Hunter, sou um bom soldado, um soldado leal. Mas, às vezes, quando ouço as idéias brilhantes do quartel-general, desejaria ser um civil, velho e aleijado. Eles sempre pensam que estão tratando com pessoas estúpidas. Não estou insinuando que isso é a medida da inteligência deles, não é mesmo?

Hunter parecia divertido.

—        Não está?

—        Não, não estou. Mas o que irá acontecer? Um dos homens pegará um cartucho e morrerá quando a nossa mina explodir. Um garoto comerá o chocolate e morrerá envenenado por estricnina. E depois?

Lanser baixou os olhos para as próprias mãos, em nova pausa.

—        Eles passarão a experimentar os pára-quedas de longe, com pedaços de pau compridos, antes de pegá-los. Experimentarão o chocolate nos gatos. Mas que diabo, major! Eles são inteligentes. Armadilhas estúpidas não irão apanhá-los duas vezes.

Loft limpou a garganta.

—        Senhor, considero essa maneira de falar derrotista. Temos que tomar alguma providência. Por que acha que os cartuchos de dinamite foram lançados apenas aqui, senhor?

—        Há duas explicações. Ou esta cidade foi escolhida ao acaso ou então estava havendo um meio qualquer de comunicação entre a população e o exterior. Sabemos que alguns dos rapazes daqui conseguiram fugir.

Loft repetiu, insistentemente:

—        Temos que tomar providências, senhor.

Lanser virou-se para ele.

—        Loft, acho que vou recomendá-lo para promoção ao alto comando. Quer entrar em ação antes mesmo de saber qual é o problema. Estamos diante de um novo tipo de conquista. Antigamente, era sempre possível desarmar um povo e mantê-lo na ignorância. Mas agora eles escutam seus rádios e nada podemos fazer para impedi-los. Nem mesmo conseguimos encontrar os rádios.

Um soldado apareceu na porta.

—        O Sr. Corell deseja vê-lo, senhor.

—        Mande-o esperar.

Lanser continuou a falar para Loft:

—        Eles leram os impressos. As armas caem do céu nas mãos deles. Agora é dinamite, capitão. Muito em breve podem ser granadas. Ou então veneno.

Loft estava começando a ficar nervoso.

—        Mas eles ainda não lançaram veneno.

—        Ainda não, mas isso irá acontecer. Pode imaginar o que acontecerá ao moral dos nossos homens, se a população começar a lançar em cima deles esses dardos com penas numa das extremidades e cianureto na outra? São armas fatais, silenciosas. Não se pode ouvir o barulho delas. Mas um simples arranhão é morte certa. E se os nossos homens souberem que o inimigo dispõe de arsênico? Iriam comer ou beber alguma coisa com tranqüilidade?

Hunter disse, secamente:

—        Está planejando a campanha do inimigo, coronel?

—        Não, estou apenas tentando prevê-la.

Loft disse:

—        Senhor, ficamos sentados aqui, conversando, quando devíamos estar vasculhando a cidade, à procura da dinamite. Se existe alguma organização entre a população, temos que descobri-la e destruí-la.

—        Tem razão, capitão. Temos que destruí-la... e impiedosamente. Assuma o comando de um destacamento, Loft. Ponha Prackle no comando de outro. Eu gostaria de ter mais alguns oficiais inferiores. Foi uma grande perda para nós a morte de Tonder. Por que ele não podia deixar as mulheres em paz?

—        Não me agrada a maneira como o Tenente Prackle está se comportando, senhor — disse Loft.

—        O que ele está fazendo?

—        Não está fazendo nada, senhor. Mas anda muito nervoso e deprimido.

—        Eu compreendo. É um problema sobre o qual já cansei de falar. Sabe, Loft, eu já poderia ser major-general, se não falasse tanto sobre isso. Treinamos os nossos jovens para a vitória e ninguém pode negar que eles são gloriosos quando ela sobrevém. Mas eles não têm a menor idéia de como agir na derrota. Nós lhes dizemos que eles são mais inteligentes e mais bravos que os outros jovens. E é um choque para eles quando descobrem que não é isso o que acontece.

Loft disse, asperamente:

—        O que está querendo dizer, ao falar em derrota? Nós não estamos derrotados.

Lanser fitou-o friamente por um longo tempo, sem dizer nada. Finalmente, os olhos de Loft bateram em retirada e ele disse:

—        Senhor.

—        Obrigado, capitão.

—        Não exige isso dos outros, senhor.

—        Eles não pensam nisso. Assim, não é um insulto. Mas partindo de você, vira um insulto.

—        Sim, senhor.

—        Vá, agora. E procure manter Prackle sob controle. Comece a revistar casa por casa. Não quero tiros, a menos que haja algum ato aberto de rebelião. Está bem claro?

—        Sim, senhor.

Loft assumiu posição de sentido, formalmente, antes de sair da sala. Hunter olhou para o Coronel Lanser, com uma expressão divertida.

—        Não acha que foi muito duro com ele?

—        Eu tinha que ser. Ele está assustado. Conheço os oficiais do tipo dele. Tem que ser disciplinado quando está assustado ou então desmorona por completo. Ele confia na disciplina, da mesma forma que outros homens confiam na simpatia. Agora, é melhor você voltar aos seus trilhos. Deve ficar esperando que será esta noite que eles irão realmente explodir as linhas, em diversos lugares. Hunter levantou-se.

—        É o que eu também penso que acontecerá. Já chegaram as ordens da capital?

—        Já.

—        E o que...

—        Já deve saber o que elas dizem — interrompeu-o Lanser. — São sempre as mesmas. Prenda os líderes, fuzile os líderes, prenda reféns, fuzile os reféns, prenda mais reféns, fuzile-os também...

A voz de Lanser fora ficando cada vez mais alta, mas de repente baixou para um sussurro:

—        ... E enquanto isso o ódio vai aumentando cada vez mais, o abismo entre nós vai se aprofundando.

Hunter hesitou, fazendo um gesto vago na direção do quarto do prefeito.

—        E já vieram ordens para executar alguém da lista de nomes?

—        Não, ainda não. Até agora as ordens são apenas para prendê-los.

—        Coronel, gostaria que eu recomendasse... não está por acaso cansado demais, coronel, com um princípio de estafa? Eu posso... posso enviar um relatório dizendo que está à beira de um esgotamento?

Por um momento, Lanser cobriu os olhos com a mão. Mas logo seus ombros se empertigaram, o rosto assumiu uma expressão dura.

—        Eu não sou um civil, Hunter. E já estamos com falta de oficiais. Você sabe disso perfeitamente. Agora, major, vá cuidar dos seus trilhos. Eu tenho que falar com Corell.

Hunter sorriu. Encaminhou-se para a porta e abriu-a, dizendo então, para alguém que estava do lado de fora:

—        Sim, ele está aqui. — Virou a cabeça e disse para Lanser: — É Prackle. Ele deseja falar-lhe.

—        Mande-o enttar.

Prackle entrou, com uma expressão sombria, beligerante.

—        Coronel Lanser, eu gostaria...

—        Sente-se e descanse imi pouco, tenente. Seja um bom sddado.

Prackle relaxou imediatamente. Sentou-se e apoiou os cotovelos em cima da mesa.

—        Eu gostaria...

—        Não fale agora, tenente. Eu sei qual é o seu problema. Não imaginava que pudesse ser assim, não é? Achava que seria tudo maravilhoso, não é?

—        Eles nos odeiam, senhor. E nos odeiam profundamente.

Lanser sorriu.

—        De vez em quando fico em dúvida se sei mesmo como são essas coisas. Mas é preciso rapazes para se fazerem bons soldados. E rapazes sempre precisam de namoradas. É isso, não é?

—        É, sim.

—        E ela o odeia? — perguntou Lanser, bondosamente.

Prackle estava aturdido.

—        Não sei, senhor. Às vezes tenho a impressão de que da está amargamente arrependida de tudo.

—        E então você se sente deprimido, não é?

—        Eu não gosto daqui, senhor.

—        Você pensava que seria divertido, não é? O Tenente Tonder desmoronou, saiu sozinho e acabou sendo morto.   Eu poderia mandá-lo para casa. Quer que eu faça isso, mesmo sabendo que é necessário aqui? Prackle estava embaraçado.

—        Não, senhor, não quero.

—        Ótimo. Agora vou dizer-lhe uma coisa e espero que compreenda. Não é mais um homem, tenente, e sim um soldado. Seu bem-estar não tem a menor importância. Nem a sua vida. Se por acaso sobreviver, terá algumas recordações. E isso será praticamente tudo o que terá. Mas, até lá, terá que receber ordens e cumpri-las. A maioria das ordens será extremamente desagradável, mas isso está fora da sua competência. Não vou mentir-lhe, tenente. Eles deveriam tê-lo preparado para isso e não para ruas salpicadas de flores. Deveriam ter fortalecido sua alma com a verdade, em vez de iludi-la com mentiras. Mas aceitou a sua missão, tenente. Vai continuar nela até o fim ou largar tudo na metade do caminho? De uma coisa deve ter certeza, tenente: não podemos tomar conta de sua alma.

Prackle levantou-se.

—        Obrigado, senhor,

—        E quanto à moça, tenente, pode violentá-la, protegê-la ou casar-se com ela. Isso não tem a menor importância, contanto que a fuzile quando lhe for ordenado.

—        Sim, senhor. Obrigado, senhor.

—        Posso lhe garantir que é muito melhor saber de ludo, tenente, saber o que se pode esperar. Agora, tenente, pode ir. E se Corell estiver esperando lá fora, mande-o entrar.

Lanser ficou observando o Tenente Prackle retirar-se.

O Corell que entrou na sala logo depois não era mais o Corell jovial e sorridente de antes. O braço esquerdo estava numa tipóia, o rosto todo contorcido, numa expressão amarga.

—        Eu deveria ter vindo antes, coronel — disse ele —, mas sua falta de cooperação me fez hesitar.

—        Pelo que me recordo, estava esperando uma resposta ao seu relatório.

—        Eu estava esperando por muito mais do que isso. Recusou-me uma posição de autoridade, coronel. Disse que eu já não tinha nenhum valor. Não compreendeu que eu já estava nesta cidade muito antes de sua chegada. Preferiu manter o Prefeito Orden no cargo, -apesar dos meus conselhos em contrário.

—        Sem ele aqui, já poderíamos ter tido muito mais problemas do que tivemos.

—        É uma questão de opinião, coronel. Esse homem é o líder de uma população rebelde.

—        Não diga bobagem, Corell. Ele é apenas um homem simples.

Com a mão boa, Corell tirou um caderninho preto do bolso direito e abriu-o com os dedos.

—        Está se esquecendo, coronel, de que eu tenho as minhas fontes de informação, de que cheguei aqui muito antes da invasão. Devo informá-lo de que o Prefeito Orden tem estado a par de tudo o que vem acontecendo nesta comunidade. Na noite em que o Tenente Tonder foi assassinado, ele esteve na casa onde ocorreu o crime. Quando a moça fugiu para as montanhas, ficou na casa de um parente do Prefeito Orden. Segui sua pista até lá, mas ela já havia desaparecido. Sempre que algum homem consegue fugir, Orden esteve a par de tudo, quando não prestou uma ajuda decisiva. E desconfio inclusive de que ele participou, de alguma forma, do lançamento desses pequenos pára-quedas.

Á voz de Lanser era um tanto ansiosa:

—        Mas nada pode provar.

—        Não, não posso. Da primeira parte do que lhe disse, tenho certeza; da segunda, apenas desconfio. Mas talvez agora esteja disposto a me ouvir, coronel.

—        E o que sugere que façamos?

—        Minhas sugestões, coronel, são um pouco mais que simples sugestões. Orden deve ser mantido como refém. Sua vida deve ficar na dependência direta da tranqüilidade desta comunidade, condicionada a que não seja explodido nenhum dos cartuchos de dinamite que foram lançados de pára-quedas aqui.

Corell tomou a enfiar a mão no bolso e tirou um documento dobrado. Abriu-o e colocou-o diante do coronel.

—        Isto aqui, senhor, é a resposta ao meu relatório. Como poderá verificar, concede-me alguma autoridade.

Lanser deu uma olhada no documento.

—        Passou mesmo por cima da minha cabeça, não é? Ele fitou Corell com uma antipatia patente nos olhos.

—        Ouvi dizer que foi ferido. Como aconteceu?

—        Fui atacado na mesma noite em que o seu tenente foi assassinado. A patrulha salvou-me. Naquela noite, alguns homens fugiram no meu barco. E agora, coronel, preciso insistir mais veementemente para que o Prefeito Orden seja mantido como refém?

—        Ele está aqui, não fugiu. Como podemos mantê-lo como refém mais ainda?

Subitamente, de longe, veio o estrondo de uma explosão. Os dois olharam na direção do estrondo. Corell disse:

—        Aí está, coronel. E sabe perfeitamente que, se a experiência der certo aqui, logo haverá dinamite de sobra em todos os países invadidos.

Lanser repetiu, calmamente:

—        E o que sugere?

—        Exatamente o que acabei de falar. Orden deve ser mantido como refém, sob ameça de ser executado ao menor indício de rebelião.

—        E se eles se rebelarem e nós fuzilarmos Orden?

—        Então o Dr. Winter será o próximo na lista. Embora ele não ocupe nenhuma posição oficial, é a segunda pessoa em importância na cidade.

—        Mas ele não exerce nenhum cargo.

—        Não importa. A população confia nele.

—        E, depois que o fuzilarmos, o que acontecerá?

—        Então teremos uma autoridade incontestável. A rebelião estará esmagada. Depois que executarmos os lideres, não haverá mais rebelião.

Lanser perguntou, zombeteiro:

—        Acredita realmente nisso?

—        É assim que tem de ser.

Lanser sacudiu a cabeça lentamente e depois gritou:

—        Sentinela!

A porta se abriu e um soldado apareceu na porta.

—        Sargento, o Prefeito Orden e o Dr. Winter estão presos. Quero um homem a vigiar Orden permanentemente. E traga Winter até aqui, imediatamente.

—        Sim, senhor.

Lanser fitou Corell, pensativo, e murmurou:

—        Espero que saiba o que está fazendo. Espeto realmente que saiba o que está fazendo...

 

A notícia espalhou-se rapidamente pela cidade. Foi transmitida em sussurros, nas portas, por olhares expressivos.

—        O prefeito foi preso!

Por toda a cidade correu uma sensação de júbilo, de triunfo. As pessoas se encontravam, falavam rapidamente, separavam-se. As pessoas iam comprar comida e indignavam-se por cima do balcão, sussurrando alguma coisa para o caixeiro.

O povo saía para os campos, embrenhava-se pelos bosques, procurando a dinamite. E as crianças que brincavam na neve sempre encontravam a dinamite. Até elas já tinham agora instruções expressas. Abriam os embrulhos, comiam o chocolate, escondiam os cartuchos na neve e iam contar aos pais onde os haviam enterrado.

No campo, longe da cidade, um homem pegou um cartucho de dinamite, leu as instruções e murmurou para si mesmo:

—        Será que isso funciona?

Ele pôs o cartucho em pé na neve, acendeu o pavio e afastou-se, correndo. Contou muito depressa. Já estava cm 68 quando a dinamite explodiu. E ele disse, exultante:

—        Funciona!

E ele começou a procura por mais cartuchos.

Quase como se obedecesse a um sinal, o povo recolheu-se às suas casas, as portas foram fechadas, as ruas ficaram desertas. Na mina, os soldados revistavam cuidadosamente cada mineiro que descia no poço. Os soldados estavam cada vez mais nervosos. E porque estavam nervosos mostravam-se rudes, falavam rispidamente com os mineiros, que se limitavam a fitá-los com frieza. Mas, em seus olhos, havia um brilho feroz de triunfo.

Na sala de recepção do palácio do prefeito, a mesa estava limpa. Um soldado montava guarda à porta do quarto do Prefeito Orden. Annie estava ajoelhada diante da lareira, jogando pequenos pedaços de carvão no fogo. Subitamente, ela levantou os olhos para a sentinela e perguntou-lhe, truculenta:

—        O que vocês vão fazer com ele?

O soldado não respondeu.

Á porta externa se abriu e outro soldado entrou, segurando o Dr. Winter pelo braço. Ele fechou a porta e ficou encostado nela, do lado de dentro. O Dr. Winter disse:

—        Olá, Annie. Como está Sua Excelência? Annie apontou para a porta do quarto.

—        Ele está lá dentro.

—        Não está doente, não é?

—        Não, ele não parece estar doente. Vou ver se posse informar que o senhor está aqui.

Ela se aproximou da sentinela e disse-lhe, autoritariamente:

—        Informe a Sua Excelência que o Dr. Winter está aqui, entendeu?

O soldado não respondeu nem se mexeu. Mas a porta se abriu atrás dele e o Prefeito Orden apareceu. Ele ignorou a sentinela, contornando-o e passando para a sala. Por um momento, a sentinela pensou em obrigá-lo a voltar para o quarto, mas mudou de idéia e permaneceu em seu lugar, junto à porta, impassível. Orden disse:

—        Obrigado, Aimie. Não se afaste muito, está bem? Posso precisar de você.

—        Não vou sair da casa, senhor. Madame está bem?

—        Ela está arrumando os cabelos. Quer falar com da, Annie?

—        Sim, senhor.

Annie passou pela sentinela e entrou no quarto, fechando a porta. Orden disse:

—        Deseja alguma coisa, doutor?

Winter sorriu, sardonicamente, apontando para o soldado que o trouxera até ali.

—        Acho que estou preso. Foi o amigo ali que me trouxe até aqui.

—        Eu já imaginava que isso iria acontecer, mais cedo ou mais tarde. O que será que eles vão fazer, agora?

Os dois se fitaram demoradamente, cada um sabendo o que o outro estava pensando.

Como se prosseguisse uma conversa, Orden disse, então:

—        Mesmo que eu quisesse, nada poderia fazer agora para detê-los.

—        Eu sei disso. Mas eles não sabem.

E, como que complementando outra idéia já exposta antes, Winter acrescentou:

—        Eles constituem um povo obcecado pelo tempo. Só que o tempo deles está quase se esgotando. Eles pensam que, só porque possuem um único líder e uma única cabeça a dirigi-los, nós outros somos iguais. Eles sabem que serão destruídos se lhes cortarem as 10 cabeças que estão lá na cúpula. Mas nós somos um povo livre. Temos tantas cabeças quantas forem as pessoas que existirem. E, nos tempos de necessidade, os líderes proliferam entre nós como os cogumelos na estação das chuvas.

Orden pôs a mão no ombro de Winter e disse:

—        Obrigado. Eu já sabia disso. Mas é bom ouvi-lo dizer.

A gente humilde não se deixará abater, não é?

Ele examinou o rosto de Winter, ansioso. O médico tratou de tranqüilizá-lo.

—        Mas claro que não. Na verdade, eles se tomarão ainda mais fortes, como a ajuda vinda de fora.

A sala ficou em silêncio por um momento. O soldado mudou de posição, o cano do rifle batendo num botão da túnica. Depois, Orden disse:

—        Posso falar-lhe agora, doutor, e devo fazê-lo. Talvez não haja outra oportunidade. Tenho que me livrar de alguns pensamentos indignos que me passaram pela cabeça.

Ele tossiu e lançou um olhar para o soldado, mas este não deu a menor indicação de que ouvira.

—        Estive pensando em minha morte, doutor. Se eles seguirem o procedimento normal, deverão matar-me primeiro e depois ao senhor.

Como Winter ficasse calado, ele acrescentou:

—        Não será assim?

—        Acho que sim.

Winter encaminhou-se para uma das cadeiras. Quando ia sentar-se, viu que o estofado estava rasgado. Alisou-o com os dedos como se isso pudesse remendá-lo. E sentou-se ainda mais cuidadosamente, porque o estofamento estava rasgado.

Orden omtinuou:

—        Devo confessar que estive pensando em meios de escapar de conseguir salvar-me. Pensei até em suplicar por minha vida o que me deixa profundamente envergonhado.

Sem levantar os olhos, Winter disse:

—        Mas não o fez.

—        Não, não o fiz.

—        Nem vai fazer. Orden hesitou.

—        Não, não vou. Mas pensei em fazê-lo. A voz de Winter era extremamente gentil:

—        E como pode saber se todo mundo não pensa nisso? Como pode saber se eu também não pensei nisso?

—        Não sei por que o prenderam também, doutor. Acho que pensam em matá-lo também.

—        É o que eu também acho.

Winter começou a rolar os polegares, incessantemente.. Orden ficou em silêncio por um longo momento, antes de recomeçar a falar:

— Sabe. doutor, eu sou um homem simples, um homem humilde. E esta é uma cidade pequena. Mas deve haver uma centelha qualquer nos homens como eu que é capaz de transformar-se numa chama intensa. Tenho medo, tenho um medo terrível. Pensei em todas as coisas que poderia fazer para salvar minha vida, angustiado. Mas isso logo passou. Agora chego até a sentir, em certos momentos, uma alegria intensa, como se eu fosse maior e melhor do que sou na realidade. Sabe em que estive pensado ultimamente, doutor?

Ele sorriu, recordando-se.

—        Lembra-se do que estudamos na escola, da Apologia? Lembra-se do que Sócrates diz? "Alguém dirá: 'Não se sente envergonhado, Sócrates, de seguir um curso de vida que provável mente irá levá-lo a um fim prematuro?' Ao que posso responder: 'Estais completamente equivocado. Um homem que vale alguma coisa não se deve deixar levar pelas possibilidades de viver ou morrer. Ele deve apenas levar em consideração se o que está fazendo é certo ou errado."

Orden parou de falar, procurando recordar-se de tudo. O Dr. Winter estava agora inclinado para a frente e tratou de concluir a resposta de Sócrates:

—        "Se está desempenhando o papel de um homem justo ou não".

Winter também fez uma pausa, retornando ao passado. Depois, continuou:

—        Não creio que se tenha saído muito bem na ocasião. Nunca foi muito bom nessas coisas. E errou também na de núncia.

Orden riu.

—        Lembra-se disso?

—        E muito bem. Esqueceu também algumas palavras. Era a nossa formatura e você estava muito nervoso. Esqueceu de enfiar a camisa para dentro da calça. E não entendia por que todo mundo estava rindo.

Orden sorriu de si mesmo e disfarçadamente passou a mão pela cintura, para verificar se a camisa não estava, agora também, fora da calça.

—        Eu me sentia Sócrates naquele momento e estava denunciando a direção da escola. E com que veemência! Eu urrava furiosamente e via os diretores cada vez mais vermelhos.

—        Eles estavam prendendo a respiração para não rir, porque sua camisa estava fora da calça.

O Prefeito Orden riu.

—        Há quanto tempo foi isso? Quarenta anos...

—        Quarenta e seis.

O guarda que estava na porta do quarto aproximou-se silenciosamente do que estava na porta que dava para a rua. E começaram a falar baixinho, como crianças sussurrando durante a aula:

—        Há quanto tempo você está de serviço?

—        A noite inteira. Mal consigo ficar de olhos abertos.

—        Eu também. Recebeu alguma notícia de sua esposa na correspondência que chegou ontem?

—        Recebi uma carta. Ela manda lembranças para você. Disse que soubera que você tinha sido ferido. Ela não gosta muito de escrever.

—        Diga a ela que eu estou bem.

—        Certo... quando eu escrever.

O Prefeito Orden levantou a cabeça, olhando para o teto.

—        Será que eu vou conseguir me lembrar? Como é mesmo que começa?

Winter procurou reavivar-lhe a memória:

—        "E agora, ó homens... " Orden disse, baixinho:

—        "E agora, ó homens que me condenaram..."

O Coronel Lanser entrou na sala silenciosamente. Os guardas se empertigaram. Ouvindo as palavras de Orden, o coronel parou subitamente e ficou escutando. Orden olhava para o teto, na tentativa de recapturar as palavras esquecidas.

—        "E agora, ó homens que me condenaram, eu poderia fazer-lhes profecias, pois estou para morrer, e os homens, na hora de sua morte, são dotados do dom da profecia. E minha profecia é de que, todos vós, meus assassinos, imediatamente após a minha morte..."

Win ter levantou-se, dizendo:

—        "Partida."

Orden olhou para ele.

—        Como?

—        A palavra é "partida" e não "morte", cometeu o mesmo erro antes, há 46 anos.

—        Não, é "morte" mesmo.

Orden correu os olhos pela sala e viu o CoroneI Lonset ob-servando-o. Pergimtou-lhe:

—        Não é "morte"?

—        É "partida." "Imediatamente após a minha partida...

O Dr. Winter insistiu:

—        Está vendo? São dois contra um. A palavra é "partida."

Foi o mesmo erro que cometeu antes.

Orden olhou para um ponto à sua frente, um ponto que não estava situado fora de si mesmo, mas no fundo das suas recordações. E continuou:

—        "E minha profecia é de que, todos vós, meus assassinos, imediatamente após a minha morte, sofrereis uma punição muito mais severa do que a que me foi imposta."

Winter assentiu, o Coronel Lanser também. Ambos pareciam estar procurando ajudar Orden a se lembrar.

—        "Matais a mim porque desejais escapar ao acusador, não porque isso seja justo."

O Tenente Prackle entrou na sala neste momento, excitado, gritando:

—        Coronel Lanser!

O Coronel Lanser disse:

— Psiu!

E ergueu a mão para que ele ficasse quieto.

Orden continuou, suavemente:

—        "Mas as coisas não correrão como esperais; longe disso."

Sua voz foi se tornando cada vez mais firme, cada vez mais intensa, à medida que falava:

—        "Pois eu vos digo que haverá mais acusadores do que ora existem, acusadores que até agora eu tenho contido; e como eles são mais jovens, serão mais inconsiderados, irão ofender-vos mais ferozmente."

Ele franziu o rosto, procurando se lembrar. O Tenente Prackle aproveitou a pausa para informar:

—        Coronel Lanser, prendemos alguns homens portando dinamite.

—        Psiu!

Orden continuou:

—        "Se vós pensais que matando homens podeis impedir que censurem vossas vidas dedicadas ao mal, estais completamente enganados."

Ele franziu o rosto, pensando, e olhou para o teto; depois, sorriu, embaraçado, e disse:

—        Isso é tudo o què consigo recordar.

O Dr. Winter comentou:

—        Pois está muito bom, depois de 46 anos. E não se saiu tão bem assim, há 46 anos.

O Tenente Prackle voltou a interromper:

—        Os homens estavam carregando dinamite. Coronel Lanser.

—        Prendeu-os?

—        Sim, senhor. O Capitão Loft e...

—        Diga ao Capitão Loft para vigiá-los.

Lanser recuperou-se rapidamente e avançou até o meio da sala.

—        Orden, essas coisas têm que parar.

O prefeito sorriu-lhe, um pouco desolado.

—        É impossível impedi-las, senhor.

O Coronel Lanser declarou, rispidamente:

—        Eu o prendi como refém, como garantia do bom comportamento de sua gente. Essas são as minhas ordens.

—        Isso não irá impedir coisa alguma — disse Orden. — Creio que não pode compreender. Quando eu me tornar ima estorvo para o povo, ele agirá sem me levar em consideração.

—        Diga-me, com toda sinceridade, o que está pensando. Se o povo souber que será fuzilado, caso haja mais alguma explosão de dinamite, o que irá fazer?

O prefeito olhou para o Dr. Winter, desolado. Neste momento, a porta do quarto se abriu e madame saiu, trazendo o colar distintivo do cargo de prefeito. E ela disse:

—        Esqueceu isto. Orden disse:

—        Esqueci o quê? Ah, sim...

Ele abaixou a cabeça e madame enfiou-lhe no pescoço o colar. Orden disse, então:

—        Obrigado, querida. Madame queixou-se:

—        Está sempre esquecendo.

O prefeito olhou para a extremidade do colar, para o medalhão de ouro onde estavam gravadas as insígnias do seu cargo. Lanser insistiu:

—        E então, o que eles vão fazer?

—        Não sei. Mas acho que irão acender os pavios, aconteça o que acontecer.

—        E se lhes pedisse para não o fazerem?

Winter disse:

—        Coronel, esta manhã vi um garotinho construindo um boneco de neve. Três dos seus soldados observavam, para ver se ele não fazia uma caricatura do seu líder. O garotinho fez um boneco bastante parecido e os soldados destruíram-no.

Lanser ignorou-o e repetiu a pergunta:

—        E se lhes pedisse para não o fazerem?

Orden parecia semi-adormecido. De olhos quase fechados, ele procurava pensar. Finalmente, disse:

—        Não sou um homem muito bravo, senhor. Mas acho que eles irão acender os pavios, aconteça o que acontecer.

Ele parecia estar lutando para arrancar as palavras lá do fundo.

—        Espero que eles o façam. Se eu lhes pedisse para não o fazerem, eles apenas lamentariam a minha atitude.

Madame disse:

—        Mas o que está acontecendo?

—        Fique quieta um momento, querida.

—        Então, acha que eles vão mesmo acender os pavios? — insistiu Lanser.

Havia orgulho na voz do prefeito quando ele disse:

—        Tenho certeza de que vão. Não me resta alternativa entre viver ou morrer, mas... tenho pelo menos a alternativa de como morrer. Se eu lhes disser para não lutarem, eles ficarão tristes, mus lutarão assim mesmo. Se eu lhes disser para lutarem, eles ficarão contentes. E eu, que não sou um homem muito bravo, farei com que cada um deles se torne um pouquinho mais bravo.

Ele sorriu, como que pedindo desculpas.

—        Sabe, é muito fácil assumir tal atitude, já que o fim, para mim, será o mesmo, faça eu o que fizer.

Lanser disse:

—        Se você disser "sim", podemos dizer a eles que disse "não". Podemos contar que você implorou por sua vida.

Winter voltou a intervir, a voz furiosa:

—        Eles saberiam. Vocês não conseguem manter segredos.

Um dos seus homens se descontrolou uma noite dessas e disse que as moscas haviam conquistado o papel pega-moscas. Agora, toda a nação já sabe dessa história. Fizeram até uma canção. "As moscas conquistaram o papel pega-moscas..." Não podem guardar segredos, coronel.

Da direção da mina, veio o assovio estridente do apito. Uma súbita rajada de vento jogou neve contra as janelas. Orden segurou o medalhão de ouro e disse, calmamente:

—        Saiba, senhor, que não há nada que possa mudar o inevitável. Serão destruídos, expulsos daqui. Nosso povo não gosta de ser conquistado, senhor. E, por isso, não se deixará conquistar. Homens livres não podem começar uma guerra. Mas, uma vez que outros a comecem, podem continuar lutando, mesmo na derrota. Já os homens que seguem a um líder, que obedecem cegamente às ordens de um líder, como um rebanho, são incapazes de fazê-lo. Embora sejam eles que sempre ganham as batalhas, são os homens livres que ganham as guerras. Irá descobrir que não há escapatória para isso, senhor.

Lanser estava rígido, muito tenso.

—        Minhas ordens são claras. Onze horas é. o prazo fatal. Aprisionei reféns. Se houver violência, eles serão executados.

O Dr. Winter perguntou ao coronel:

—        E executará essas ordens, mesmo sabendo que elas estão fadadas ao fracasso?

—        Cumprirei minhas ordens, não importa o que possa acontecer, não importa o que eu pense delas. Mas creio que uma proclamação sua. Prefeito Orden, poderia salvar muitas vidas.

Madame voltou a intervir na conversa, queixosa:

—        Eu gostaria de saber que bobagens são essas de que estão falando.

—        Não se trata de bobagem, querida.

—        Mas eles não podem prender o prefeito!

Orden sorriu para ela.

—        Não, querida, eles não podem prender o prefeito. O prefeito é uma idéia concebida por homens livres. E uma idéia não pode ser presa.

Ao longe, soou o estrondo de uma explosão. O eco ficou rolando de um lado para outro das colinas. O apito da mina de carvão emitiu um alerta estridente. Orden ficou imóvel por um momento, muito tenso. Depois, sorriu. Houve uma segunda explosão, desta vez mais perto e mais forte, o eco se prolongando interminavelmente. Orden olhou para o seu relógio. Depois, tirou-o e ao colar e entregou-os ao Dr. Winter.

— O que aconteceu com as moscas? — perguntou ele,

—        As moscas conquistaram o papel pega-moscas — disse Winter.

Orden gritou:

—        Annie!

A porta do quarto abriu-se imediatamente.

—        Você estava escutando?

—        Sim, senhor.

Annie parecia embaraçada.

Uma terceira explosão soou, ainda mais perto. Ouviu-se o barulho de madeira rachada, de vidros estilhaçados. A porta atrás das sentinelas abriu-se violentamente. Orden disse:

—        Annie, quero que fique tom madame enquanto ela precisar de você. Não a deixe sozinha.

Ele abraçou madame e beijou-a na testa. Depois, encaminhou-se lentamente para a porta, onde o Tenente Prackle estava parado. Chegando à porta se virou e disse suavemente para o Dr. Winter:

—        "Críton, lembra-te de que devemos um galo a Esculápio." Irá se lembrar de pagar a dívida?

Winter fechou os olhos por um momento, antes de responder:

—        A dívida será paga.

Orden riu.

—        Dessa eu me lembrei, não esqueci...

Ele encostou a mão no braço de Prackle, que se desvencilhou bruscamente.

Winter assentiu, lentamente.

—        Você se lembrou... Fique tranqüilo, a dívida será paga.

 

                                                                                 John Steinbeck  

 

                      

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