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Espanha, final da década de 1930. A vitória iminente das tropas franquistas na Guerra Civil obriga milhares de pessoas a abandonar o país, numa perigosa viagem através dos Pirenéus. Entre eles, Roser Bruguera, uma jovem viúva, e Victor Dalmau, médico e irmão do falecido marido de Roser. Em França, conseguem embarcar no Winnipeg, um navio fretado pelo poeta Pablo Neruda que transportou mais de 2 mil espanhóis até ao Chile - essa "longa pétala de mar, de vinho e de neve" -, onde são recebidos como heróis, Victor e Roser integram-se com sucesso na vida social do país de acolhimento, durante várias décadas, até ao golpe de Estado que derruba Salvador Allende, parceiro de xadrez de Victor Dalmau. Os dois amigos de toda uma vida são de novo forçados ao exílio, mas, como diz a autora, "se vivermos o suficiente, todos os círculos se fecharão".
Isabel Allende propõe-nos uma viagem através da História do séc. XX, pela mão de personagens inesquecíveis que descobrirão que numa só vida cabem muitas vidas e que, por vezes, o difícil não é fugir, mas regressar.
O jovem soldado pertencia à Companhia do Biberão, a leva de miúdos recrutados quando já não havia homens jovens ou velhos aptos para a guerra. Victor Dalmau recebeu-o com outros feridos que retiravam à pressa e sem grande cuidado do vagão de carga, porque para tal não havia tempo, e que em seguida empilhavam como lenha, no chão de pedra e cimento da Estação do Norte, enquanto esperavam outro transporte que os levasse aos centros hospitalares militares do leste. Estava inerte, com a expressão beatífica de quem vira de perto a morte e já nada temia. Ninguém poderia dizer quantos dias passara, sacudido de uma maca para outra, de um acampamento de campanha para outro, de uma ambulância para outra, até que chegara à Catalunha naquele comboio. Na estação, vários médicos, enfermeiros e auxiliares recebiam os soldados, enviavam os feridos que inspiravam mais cuidados para o hospital e, seguidamente, classificavam os restantes de acordo com a localização dos ferimentos que apresentavam, assim: "Grupo A: braços; B: pernas; C: cabeça", e por aí adiante, pelo alfabeto fora. E assim os enviavam, com um cartaz ao pescoço, para a secção de tratamento correspondente. Os feridos chegavam às centenas. Era necessário diagnosticar e decidir em questão de minutos, todavia, o tumulto e a confusão eram apenas aparentes. Ninguém era deixado para trás, e todos recebiam o atendimento devido. Aqueles que necessitavam de uma intervenção cirúrgica eram reencaminhados para o antigo edifício de Sant Andreu, em Manresa, os que requeriam apenas tratamentos mais superficiais eram dirigidos para outros centros médicos, e outros mais valia deixá-los ali mesmo, porque nada havia já que pudesse ser feito por eles. As voluntárias humedeciam-lhes os lábios, murmuravam-lhes ao ouvido palavras de consolo e embalavam-nos como se fossem seus filhos, sabendo que, nesse instante, noutro qualquer lugar, uma outra mulher procedia do mesmo modo com os seus próprios filhos ou irmãos. Mais tarde, os maqueiros levá-los-iam para a morgue.
O soldadito apresentava um orifício no peito, e o médico, após tê-lo examinado superficialmente, e tendo-o achado já sem pulso, determinou que este se encontrava além de qualquer socorro e que já não necessitava de morfina ou de consolo. Na frente de combate tinham-lhe coberto a ferida com um trapo, sobre o qual tinham colocado um disco de metal para a proteger de qualquer contacto exterior. Sobre este rudimento, haviam-lhe envolvido o tronco com uma bandagem, mas isso ocorrera há alguns dias, algumas horas ou há algumas viagens de comboio... impossível saber.
Dalmau encontrava-se ali apenas para auxiliar os médicos. O seu dever era cumprir ordens, portanto, deveria abandonar o jovem e dirigir a sua atenção para outro ferido, mas pensou que se aquele rapaz sobrevivera ao choque, à hemorragia e ao transporte precário até chegar àquela estação, era porque teria uma vontade sobre-humana de viver, pelo que seria uma lástima que se rendesse à morte ali mesmo, ao alcance da praia.
Retirou cuidadosamente os trapos e reparou que a ferida se encontrava aberta e tão limpa como se alguém lha tivesse desenhado no peito. Não conseguiu entender como é que o impacto do disparo destroçara as costelas e parte do esterno, sem que lhe tivesse, sem mais, pulverizado o coração.
Ao longo dos quase três anos de prática na Guerra Civil de Espanha, primeiro, na frente de Madrid, depois em Teruel e, por último, no hospital de evacuação, em Manresa, Dalmau acreditava que já vira de tudo e cria estar já imunizado contra o sofrimento alheio, mas jamais observara um coração vivo. Presenciou, fascinado, os derradeiros batimentos, até que estes se foram tornando cada vez mais lentos e espasmódicos, acabando por cessar completamente, e o soldadito terminou por expirar sem uma convulsão sequer. Por um breve instante, Dalmau ficou imóvel, contemplando aquela cavidade rubra onde já nada vibrava. Entre todas as memórias da guerra, aquela seria a mais pertinaz e recorrente: aquele miúdo, de apenas quinze ou dezasseis anos, ainda imberbe, sujo de sangue e de batalha, estendido numa esteira, com o coração exposto ao ar. Nunca conseguiu explicar a razão que o levou a introduzir três dedos da mão direita no terrível ferimento, rodear aquele órgão imóvel e começar a apertá-lo ritmicamente, com a maior calma e naturalidade, durante um tempo impossível de recordar, talvez trinta segundos, talvez uma eternidade, até que sentiu que o coração principiava a reviver-lhe entre os dedos, primeiro com um tremor praticamente impercetível, depois, gradualmente, com mais vigor e regularidade.
- Bem, se eu não tivesse visto isso com os meus próprios olhos, não acreditava! - disse em tom assombrado um dos médicos que se aproximara sem que Dalmau o tivesse percebido.
De um brado, chamou os maqueiros e ordenou-lhes que levassem o ferido o mais rápido possível, advertindo-os de que se tratava de um caso especial.
- Onde aprendeu a fazer isso? - perguntou a Dalmau, assim que os maqueiros levaram o soldado que, apesar de continuar a aparentar uma palidez extrema, conservava a pulsação estável.
Victor Dalmau, homem de poucas palavras, informou-o de que estudara medicina durante três anos antes de ser incorporado na frente de combate como auxiliar médico.
- Mas onde raio aprendeu isso? - insistiu o médico.
- Em lado nenhum... mas pensei que não se perdia nada em tentar.
- Vejo que coxeia.
- Fémur esquerdo. Teruel. Estou a recuperar bem.
- Ótimo. A partir de agora vai passar a trabalhar comigo. Tê-lo aqui é um desperdício. Como se chama?
- Victor Dalmau, camarada!
- Comigo, nada de camaradas. E nem lhe passe pela cabeça tratar-me por tu. Vai tratar-me por senhor doutor. Estamos entendidos?
- Perfeitamente, senhor doutor. A mim, pode tratar-me por senhor Dalmau, mas desde já o aviso de que isto vai cair mal aos outros camaradas.
O médico sorriu entre dentes. A partir do dia seguinte, Victor Dalmau começou a exercer o ofício que marcaria toda a sua vida.
Soube mais tarde, tal como todo o pessoal, tanto de Sante Andreu como de outros hospitais, que a equipa de cirurgia passara dezasseis horas a ressuscitar um morto e que conseguira trazê-lo vivo da sala de operações. Um milagre, disseram muitos; consequência dos avanços da ciência e da férrea constituição de burro de carga do jovem, rebateram aqueles que haviam abdicado da crença em Deus e nos santos. Victor quis visitá-lo, fosse para onde fosse que o houvessem transferido, mas, devido à agitação daqueles tempos, foi-lhe impossível localizar o jovem e dar conta dos encontros e desencontros, dos presentes e dos desaparecidos, dos vivos e dos mortos. Durante algum tempo, parecia ter esquecido aquele coração que sustivera na sua mão, porque se lhe complicou a vida e porque problemas diversos o mantiveram ocupado, mas, anos mais tarde, do outro lado do mundo, começou a vê-lo em pesadelos, e, frequentemente, o rapaz visitava-o, com o seu aspeto pálido e triste, e o coração inerte, depositado numa bandeja. Dalmau não recordava, ou talvez nunca tivesse mesmo sabido o seu nome, pelo que decidiu chamar-lhe Lázaro, por razões óbvias. Ao contrário, o soldado nunca esqueceu o nome do seu salvador. Mal foi capaz de se sentar e de beber água sem ajuda, quando lhe contaram a proeza de um tal de Victor Dalmau, enfermeiro da Estação do Norte, que o restituíra ao mundo dos vivos, todos o bombardearam com perguntas; queriam certificar-se da existência do Céu e do Inferno, ou se seriam estes territórios meros artefactos concebidos pelos clérigos apenas com o intuito de assustar os crentes. Antes de terminada a guerra, o jovem recuperara do ferimento e, dois anos mais tarde, em Marselha, fizera uma tatuagem com o nome de Victor Dalmau no peito, abaixo da cicatriz.
Uma jovem miliciana, com a boina de lado, numa tentativa de compensar a fealdade do uniforme, aguardava Victor Dalmau à porta da sala de operações, e, mal este saiu, com uma barba de três dias e a bata manchada de sangue, entregou-lhe um papel com uma mensagem das telefonistas. Dalmau passara muitas horas em pé e doía-lhe a perna, e acabava de se aperceber, pelos ruídos cavernosos do seu estômago, de que não comia nada desde o amanhecer. Nos últimos tempos, trabalhava como uma mula de carga, mas congratulava-se com o facto de poder aprender com os melhores cirurgiões de Espanha. Noutras circunstâncias, um estudante como ele não teria qualquer hipótese de se aproximar deles sequer, mas, naqueles tempos de caos e de urgência, assolados pela guerra, os títulos académicos e os estudos valiam menos que a experiência, e isso ele tinha de sobra, segundo opinião do diretor do hospital, quando o converteu em seu assistente de cirurgia. Nesse tempo, Dalmau conseguia trabalhar quarenta horas consecutivas, sobrevivendo apenas de tabaco e de café de chicória, sem prestar atenção ao mal-estar causado pela perna. Essa perna livrara-o da frente de combate. Graças a ela, podia fazer a guerra a partir da retaguarda. Ingressara no Exército Republicano em 1936, como praticamente todos os jovens da sua idade, partindo com o seu regimento para as defesas de Madrid, parcialmente ocupada pelos nacionalistas, como passaram a denominar-se as tropas sublevadas contra o Governo. Recolhia e tratava os feridos, pois, graças aos seus estudos de medicina, tinha mais utilidade ali do que a empunhar uma espingarda nas trincheiras. Depois, foi enviado para diversas outras frentes. Em dezembro de 1937, durante a Batalha de Teruel, sob um frio glaciar, Victor Dalmau deslocava-se numa ambulância heróica, prestando primeiros socorros aos feridos, enquanto o motorista, Aitor Ibarra, um basco imortal que cantarolava incessantemente e se ria com estrépito para fintar a morte, fazia os máximos esforços para conduzir por entre caminhos destruídos. Dalmau acreditava que a boa estrela do basco, que saíra ileso de mil peripécias, bastaria para os dois. Para escaparem aos bombardeamentos, era frequente conduzirem de noite, e, quando não se via a luz da lua, ia alguém à frente com uma lanterna a assinalar o percurso - isto em caso de existir algum caminho -, enquanto Victor socorria os feridos com os escassos meios de que dispunha à luz de outra lanterna. Desafiavam o terreno semeado de perigos e as temperaturas de muitos graus abaixo de zero, avançando sobre o gelo a passo de caracol, afundando-se na neve, empurrando a ambulância para subir encostas, ou para a retirar de buracos ou de crateras provocadas pelas explosões, sulcando destroços de metal retorcido e cadáveres petrificados de mulas, sob a fuzilaria dos nacionalistas, ou sob as bombas da Legião Condor, que percorriam o cenário de guerra em constantes voos rasantes. Nada disto conseguia distrair Victor Dalmau, concentrado apenas na tarefa de manter vivos os homens ao seu cuidado, que muitas vezes se esvaíam em sangue a olhos vistos, contagiado, em grande medida, pelo estoicismo demente de Aitor Ibarra, que conduzia sem jamais se alterar, com uma piada sempre na ponta da língua e adequada a cada ocasião.
Da missão na ambulância, Dalmau foi transferido para o hospital de campanha, instalado numas cavernas de Teruel, a fim de o proteger dos bombardeamentos, onde se trabalhava à luz de velas, de candeias de azeite e de lamparinas de querosene. Enfrentavam o frio com o auxílio de braseiros que dispunham debaixo das mesas de cirurgia, ainda que tal precaução não impedisse que os instrumentos médicos, congelados, se lhes colassem continuamente às mãos. Os médicos operavam o mais depressa possível todos os que podiam enviar para os centros hospitalares, sabendo, no entanto, que muitos não resistiriam à viagem. Os outros, a quem não havia ajuda que valesse, limitavam-se a esperar a morte com a ajuda de morfina, quando a havia, mas sempre muito racionada. Também o éter se racionava. Se nada mais houvesse para acalmar os homens que, vítimas de ferimentos atrozes, bramavam de dor, Victor dava-lhes aspirinas, dizendo-lhes que se tratava de um recente e potentíssimo medicamento americano. As bandagens eram lavadas com gelo e neve derretida para depois serem reutilizadas. A mais ingrata das tarefas era, no entanto, construir as piras para incinerar os braços e as pernas amputadas. Victor nunca conseguiu habituar-se ao cheiro da carne queimada.
Foi em Teruel que reencontrou Elisabeth Eidenbenz, que conhecera na Frente de Madrid, onde ela chegara como voluntária de uma associação de apoio a crianças vítimas de cenários de guerra. Era uma enfermeira suíça de vinte e quatro anos, com um rosto de virgem renascentista e a coragem de um guerreiro empedernido. Em Madrid, estivera a um passo de se apaixonar por ela, o que teria acontecido, se a jovem lhe tivesse dado a mínima oportunidade, mas nada nem ninguém a desviava da sua missão: mitigar o sofrimento das crianças naqueles tempos brutais. Durante os meses em que estiveram separados, a suíça perdera a inocência virginal que tinha quando chegara à Espanha. Endurecera-se-lhe a personalidade, lutando contra a burocracia militar e contra a estupidez humana. Reservava toda a sua compaixão e doçura para as mulheres e para as crianças a seu cuidado. Certa ocasião, numa pausa entre dois ataques do inimigo, Victor encontrou-a perto de um dos camiões de abastecimento de alimentos.
- Olá, companheiro! Lembras-te de mim? - cumprimentou-o Elisabeth, com o seu castelhano enriquecido dos sons guturais provenientes do alemão.
Como não haveria de se lembrar? Ao vê-la, ficou sem palavras. Parecia-lhe ainda mais madura e bela que antes. Sentaram-se num cais de cimento, ele a fumar, ela a beber chá de um cantil.
- E o que é feito do teu amigo Aitor? - inquiriu ela.
- Anda por aí! Sempre debaixo de fogo e sem um arranhão sequer! Não tem medo de nada!
- Dá-lhe um abraço meu!
- O que tencionas fazer quando a guerra terminar? -perguntou-lhe Victor.
- Ir para outra guerra qualquer. Há sempre uma guerra a acontecer... E tu?
- Se estiveres de acordo... podíamos casar-nos - sugeriu ele, a voz a vacilar de timidez.
Ela sorriu e, por momentos, voltou a ser a donzela renascentista de outros tempos.
- Nem louca! Não tenciono casar-me contigo nem com ninguém. Não tenho tempo para o amor.
- Talvez mudes de ideias... Achas que nos voltaremos a ver?
- De certeza... se escaparmos desta! Conta comigo, Victor, para tudo o que precisares.
- O mesmo digo eu. Posso dar-te um beijo?
- Não.
Naquelas grutas de Teruel, Victor aprimorou o sangue-frio e adquiriu um conhecimento médico que universidade alguma poderia dar-lhe. Aprendeu, entre outras coisas, que o ser humano se habitua a tudo: ao sangue, ao muito sangue, ao fedor da gangrena, às operações executadas sem anestesia, à sujidade, ao rio interminável de soldados feridos, e, não poucas vezes, de mulheres e crianças, ao peso de um cansaço secular corroendo a vontade, e, pior ainda, à insidiosa certeza de que tanto sacrifício poderia ser evitado. E foi ali, enquanto recolhia mortos e feridos vítimas de um bombardeamento, que foi atingido por um desmoronamento inesperado, do qual saiu também ferido: a perna esquerda partida. Foi atendido por um médico inglês das Brigadas Internacionais. Qualquer outro teria optado por uma rápida amputação, mas o inglês começara o turno pouco antes e conseguira descansar algumas horas. Deu algumas ordens incisivas à enfermeira e começou a pôr os ossos fraturados no devido lugar.
- Estás com sorte, rapaz! Ontem chegaram os mantimentos da Cruz Vermelha e vamos poder anestesiar-te -disse-lhe a enfermeira, enquanto lhe aproximava do rosto uma máscara impregnada de éter.
Victor atribuiu aquele acidente ao facto de, na ocasião, Aitor Ibarra não se encontrar junto dele, por isso a sua boa estrela não foi capaz de o proteger. Foi Aitor que, juntamente com outras dezenas de feridos, o conduziu ao comboio que haveria de levá-lo a Valência. Seguia com a perna imobilizada por duas tábuas amarradas em jeito de tala improvisada, já que não dispunham de meios para o imunizarem das restantes feridas. Ia envolto numa manta, tiritando de febre e de frio, torturado por cada estremecimento do comboio, mas grato, pois, ainda assim, encontrava-se em melhores condições que a maioria dos homens que com ele partilhavam o chão do vagão. Aitor dera-lhe os seus últimos cigarros, bem como uma única dose de morfina, advertindo-o de que só deveria recorrer a ela num caso de extrema necessidade, pois, tão cedo, não receberia mais nenhuma.
No hospital de Valência felicitaram-no pelo bom trabalho do médico inglês. Disseram-lhe que, se não adviessem complicações de maior, a perna ficaria como nova, ainda que ligeiramente mais curta do que a outra. Mal as feridas começaram a cicatrizar, e logo que conseguiu ficar de pé apoiado numa muleta, enviaram-no, engessado, para Barcelona. Deixou-se ficar em casa dos pais, a jogar intermináveis partidas de xadrez com o seu velhote, até ficar em condições de se mexer sem ajuda. Voltou, então, a trabalhar, desta vez num hospital da cidade, onde atendia a população civil. Era como estar de férias, pois, comparado com o que vira e vivera na Frente, aquilo mais parecia um paraíso de higiene e de eficiência. Ali permaneceu até à primavera seguinte, quando o enviaram para Sant Andreu, em Manresa. Despediu-se dos pais e de Roser Bruguera, uma estudante de música que estes haviam acolhido, e de quem começara a gostar como de uma irmã, sentimento que se fortalecera durante as semanas que ali passara em convalescença. Essa jovem, simples e gentil, que passava longas horas devotada ao estudo do piano, era a companhia ideal de que Marcel Lluís e Carme Dalmau necessitavam desde que os filhos tinham partido.
Victor Dalmau desdobrou o papel que a miliciana lhe entregara e leu a mensagem que a mãe lhe enviara. Ainda que o hospital distasse apenas sessenta quilómetros de Barcelona, não a via há sete semanas, porque não tivera um único dia livre que lhe permitisse apanhar um autocarro até casa. Uma vez por semana, geralmente ao domingo, sempre à mesma hora, ela telefonava-lhe e, também nesse dia, enviava-lhe um presente: um chocolate dos membros das Brigadas Internacionais, um salpicão, uma barra de sabão adquirida no mercado negro e, por vezes, cigarros, que, na sua opinião, constituíam o maior dos tesouros, uma vez que não conseguia viver sem nicotina. Victor perguntava-se como a mãe os conseguia obter. O tabaco era um bem de tal maneira raro e apreciado que o inimigo costumava lançá-lo dos aviões, juntamente com baguetes de pão, para assim fazer mofa da fome e da situação de necessidade que os republicanos enfrentavam, e simultaneamente alardear do clima de abundância que se vivia do lado das tropas nacionalistas.
Portanto, uma mensagem da mãe a uma quinta-feira só poderia significar uma emergência. Dizia: "Liga-me para a Central Telefónica". Calculou que a mãe estaria à espera há mais ou menos duas horas, tempo que demorara na sala de operações, antes de receber o recado. Desceu aos gabinetes da cave e pediu a uma das telefonistas que fizesse uma chamada para a Central Telefónica de Barcelona.
Carme pôs-se em linha e, com uma voz entrecortada por ataques de tosse, disse ao mais velho dos filhos que fosse a casa o mais rapidamente possível, pois o pai estava a morrer.
- Mas... o que lhe aconteceu?! - exclamou Victor. - Da última vez que o vi pareceu-me estar bem!
- É o coração. Não aguenta mais. Avisa também o teu irmão para vir despedir-se, porque pode deixar-nos a qualquer momento.
Demorou cerca de 30 horas a localizar Guillem na Frente de Madrid, e, quando finalmente conseguiram entrar em contacto por meio de rádio, entre uma algazarra de estática e de uma chiadeira descomunal, o irmão explicou-lhe que de momento lhe seria impossível obter permissão para se deslocar a Barcelona. A sua voz soava tão distante e exausta que a Victor foi difícil reconhecê-lo.
- Qualquer um capaz de empunhar uma arma é imprescindível, Victor! Sabes bem! Os fascistas estão em número superior e têm melhor armamento... mas não passarão - disse Guillem, repetindo o lema popularizado por Dolores Ibárruri, justamente chamada La Pasionaria, devido à sua infatigável capacidade de inculcar fanático entusiasmo junto dos republicanos.
As tropas rebeldes haviam ocupado a maior parte do território de Espanha, contudo, ainda não tinham conseguido tomar Madrid, cuja acirrada defesa, rua a rua, casa a casa, se convertera no símbolo da guerra. Contavam com as tropas coloniais de Marrocos, os temidos mouros, bem como com a bestial ajuda de Mussolini e de Hitler, mas a resistência dos republicanos fora, até então, capaz de bloquear a invasão à capital. No início da guerra, Guillem combatera em Madrid, integrado na Coluna Durruti. Nessa altura, os exércitos dos dois lados enfrentavam-se na zona universitária da cidade, tão próximos um do outro que, em alguns lugares, apenas os separava a largura de uma rua. Conseguiam ver-se os rostos inimigos e insultarem-se mutuamente sem terem de elevar demasiado a voz. Segundo Guillem, entrincheirado num dos edifícios, o impacto dos obuses perfurava as paredes das faculdades de Letras, de Filosofia, de Medicina e da Casa de Velásquez. Não havia forma de se defenderem eficazmente dos projéteis, mas, dizia, estimava-se que três volumes de filosofia sobrepostos seriam capazes de deter as balas. Estivera presente aquando da morte do lendário anarquista Buenaventura Durruti, que, antes de apresentar batalha em Madrid com parte da sua Coluna, propagara e consolidara a revolução por terras de Aragão. Morreu atingido por um disparo à queima-roupa em pleno peito, em circunstâncias pouco claras. O que restava da Coluna foi dizimado. Pereceram mais de mil milicianos e, entre os poucos sobreviventes, Guillem foi um dos que saíram ilesos. Dois anos volvidos, após ter lutado em diversas outras frentes, tinham voltado a enviá-lo para Madrid.
- O pai compreenderá se não puderes vir, Guillem. Estamos à tua espera. Vem mal possas. Ainda que não o vejas com vida, a tua presença será um grande consolo para a mãe.
- Imagino que Roser esteja com eles.
- Sim, está.
- Dá-lhe um abraço meu. Diz-lhe que as suas cartas me acompanham sempre e que me desculpe por não lhe responder regularmente.
- Ficaremos à tua espera, Guillem. Tem cuidado contigo. Despediram-se com um breve adeus, e Victor, com o
estômago do tamanho de uma ervilha, rogava para que o pai vivesse mais algum tempo, para que o irmão regressasse inteiro, para que a guerra terminasse de uma vez e para que se salvasse a República.
O pai de Victor e de Guillem, Marcel Lluís Dalmau, passara cinquenta anos a lecionar música, formara a pulso e dirigira a Orquestra Sinfónica Juvenil de Barcelona, chegando a compor cerca de uma dezena de concertos para piano, que ninguém interpretava desde o início da guerra, e um punhado de canções que nesses tempos se contavam entre as favoritas dos milicianos. Conheceu Carme, a sua mulher, quando tinha ela quinze anos e trajava ainda o austero uniforme de colegial, sendo ele já professor de música e doze anos mais velho. Carme era filha de um estivador e estudava num colégio de freiras, que a preparavam para o noviciado desde a mais tenra infância e que jamais lhe perdoaram o facto de ter deixado o convento para ir viver em pecado com um boémio ateu, anarquista, quem sabe maçon, para quem nada significava o sagrado vínculo matrimonial. Marcel e Carme viveram em pecado durante vários anos, até à iminente chegada de Victor, seu primogénito. Então, e só então, decidiram casar-se, para o preservarem do estigma de filho bastardo, que nesses tempos se traduzia numa série de entraves para toda a vida.
- Se pudéssemos ter tido os nossos filhos agora, não nos teríamos casado - proclamava Marcel, num lance de inspiração, quando ia ainda a guerra no início. - Na nossa República, ninguém é ilegítimo.
- Nesse caso, eu ficaria grávida depois de velha, e os nossos filhos ainda andariam de fraldas - respondia-lhe Carme.
Guillem e Victor Dalmau receberam a educação escolar numa escola laica e cresceram numa pequena casa no Raval, um típico lar de modesta classe média, no qual a música do pai e os livros da mãe substituíam toda e qualquer forma de religião. O casal Dalmau não militava em nenhum partido político, mas a desconfiança que ambos nutriam em relação a toda a autoridade e a qualquer Governo alinhava-os com o movimento anarquista. Além do gosto pela música nos seus mais variados géneros, Marcel Lluís inculcou nos filhos o interesse pela ciência e a paixão pela justiça social. A primeira levou Victor a estudar medicina, a segunda constituiu o ideal absoluto de Guillem, que desde criança se sentia revoltado com o mundo, predicando contra os latifundiários, os comerciantes, os industriais, os aristocratas e os padres, sobretudo contra estes últimos, com um fervor messiânico tal que superava em muito os argumentos racionais. Era alegre, extrovertido, robusto e atrevido, sempre o eleito das raparigas, que em vão se esforçavam por seduzi-lo, já que a ele pouco lhe importava o efeito que lhes causava, dedicado de corpo e alma à prática de desportos, noitadas e amigos. Desafiando a vontade dos pais, aos dezanove anos alistou-se numa das primeiras milícias de trabalhadores em defesa do Governo Republicano contra os fascistas rebeldes. Tinha vocação de soldado e nascera para empunhar armas e para comandar outros homens, em geral menos decididos do que ele. O seu irmão Victor, ao contrário, assemelhava-se a um poeta, com a sua estatura delgada, o cabelo indomável, o seu eterno ar de preocupação, sempre com um livro entre as mãos, sempre silencioso. Na escola, Victor suportava a implacável troça dos outros rapazes:
- A ver se vais para padre, paneleirote!
Era então que intervinha Guillem, apesar de três anos mais novo, mais robusto e sempre pronto a bater-se a soco por uma causa justa. Guillem abraçou a revolução como se de uma namorada se tratasse. Havia encontrado a suprema causa pela qual valia a pena, se necessário fosse, dar a própria vida.
Os conservadores e a Igreja Católica, que tinham investido dinheiro, propaganda e prédicas apocalípticas desde os púlpitos, foram derrotados nas eleições gerais de 1936 pela Frente Popular, uma coligação de partidos de esquerda. Espanha, profundamente convulsionada pelo triunfo republicano que ocorrera cinco anos antes, dividiu-se como se um violento golpe a houvesse fendido ao meio. Com o argumento da necessidade de impor a ordem e de pôr cobro a uma situação que julgava caótica, ainda que na verdade estivesse longe de o ser, a direita começou imediatamente a conspirar com os militares para provocar a queda do Governo legítimo, formado por liberais, socialistas, comunistas, sindicalistas, e sustentado pelo apoio eufórico de trabalhadores, camponeses e pela maioria dos estudantes e dos intelectuais. Guillem terminara com dificuldade o ensino secundário e, segundo o seu pai, amante de metáforas, tinha o físico de um atleta, a coragem de um toureiro e o cérebro de um miúdo de oito anos. O ambiente político era perfeito para Guillem, que aproveitava qualquer ocasião para bater-se com os seus adversários, ainda que lhe custasse articular as suas convicções ideológicas. E assim continuaria até ingressar nas milícias, onde a doutrinação política se considerava tão importante como o adestramento no manejo das armas. A cidade estava, pois, dividida. Os extremos apenas se juntavam para se confrontarem. Havia bares, bailes, desportos e festas frequentados por partidários de esquerda, e outros distintos para os partidários da direita. Antes de ser miliciano já lutava. Depois de cada rixa com um ou outro grupo de fidalgotes emproados, Guillem regressava a casa, dorido mas feliz. Os pais não suspeitavam que saía para queimar colheitas e roubar gado das herdades dos grandes proprietários, a incendiar, a golpear e a vandalizar, até ao dia em que apareceu em casa com um candelabro de prata. A mãe arrebatou-lho de um puxão e, se fosse mais alta, ter-lhe-ia aberto a cabeça com ele, mas, por sorte, apenas o atingiu nas costas. Carme obrigou-o então a confessar o que outros já sabiam, e que eles, pais, se negavam a admitir: que o filho se dedicava, entre outras malfeitorias, a profanar igrejas e a violentar freiras e padres, ou seja, fazendo exatamente aquilo que sustentava a propaganda dos nacionalistas:
- Semeia ventos, que hás de colher tempestades! Vais acabar por me matar de vergonha, Guillem! Vais agora mesmo devolver isso!
Cabisbaixo, Guillem saiu com o candelabro envolto em papel de jornal.
Em julho de 1936, ocorreu o levantamento militar contra o Governo democrático. A sublevação foi encabeçada pelo General Francisco Franco, cujo aspeto insignificante ocultava um temperamento frio, vingativo e brutal. O seu sonho mais ambicioso era devolver à Espanha as pretéritas glórias imperiais e o seu objetivo mais premente era acabar definitivamente com a desordem que a democracia originara e governar com mão de ferro, sob a égide das Forças Armadas e da Igreja Católica. Os revoltosos contavam ocupar o país em sensivelmente uma semana, mas depararam com a resistência obstinada dos trabalhadores, organizados em milícias, decididos a defender a todo o custo os direitos adquiridos com a República. Começava então a época do desabrido ódio, da vingança e do terror, que haveria de custar a Espanha um milhão de vítimas. A principal estratégia dos comandados de Franco era a de derramar a maior quantidade possível de sangue e de semear o medo, única forma de extirpar qualquer indício de resistência por parte da população vencida. Nessa altura, Guillem Dalmau estava pronto para participar em pleno na Guerra Civil. Agora já não se tratava de roubar candelabros. Era tempo de empunhar armas.
Se anteriormente Guillem procurava qualquer pretexto para se envolver em desacatos, com o estalar da guerra já não necessitava. Deixou de cometer atrocidades, pois assim lho impediam os firmes princípios que em sua casa lhe haviam sido inculcados, mas nem por isso defendeu as vítimas, por vezes inocentes, dos desmandos dos seus camaradas. Foram perpetrados milhares de assassínios, sobretudo de padres e de freiras, e isso obrigou muitos apoiantes da direita a procurarem refúgio em França para escaparem das hordas vermelhas, como lhes chamava a imprensa. De imediato, os partidos políticos da República ordenaram a suspensão de tais atos de violência, por contrários ao ideário revolucionário, mas estes continuaram a verificar-se. Entre os soldados de Franco, a ordem que vigorava era exatamente a oposta: dominar e castigar a fogo e sangue.
Entretanto, sempre absorto nos seus estudos, Victor, que cumpria vinte e três anos, vivia ainda em casa dos pais, até que foi recrutado pelo exército republicano. Enquanto ali viveu, levantava-se de manhãzinha e, antes de ir para a universidade, preparava o pequeno-almoço aos pais, a sua única contribuição nas tarefas domésticas. Regressava sempre já entrada a noite, faminto, pronto a devorar o que quer que a mãe lhe tivesse preparado: pão, sardinhas, tomate e café, e prosseguia com os estudos. Mantinha-se à margem da paixão política dos pais e da exaltação do irmão.
- Estamos a fazer história! Vamos retirar a Espanha de um feudalismo secular. Somos o exemplo da Europa: somos a resposta aos fascismos de Hitler e de Mussolini! - predicava Marcel Lluís Dalmau aos filhos e aos seus companheiros de tertúlias numa tasca de má morte, tenebrosa de aspeto, mas elevada de espírito, chamada O Rocinante, onde diariamente se juntavam os mesmos clientes para jogar dominó e beber vinho carrascão.
- Toca a acabar com os privilégios da Igreja e da oligarquia, e dos latifundiários e de todos os que exploram o povo. É nosso dever defender a democracia, companheiros, mas lembrem-se de que nem tudo é política. Sem ciência, nem indústria, nem desenvolvimento tecnológico, não há progresso possível, da mesma forma que, sem arte e sem música, a alma não existe! - afirmava, convicto.
Por princípio, Victor estava de acordo com o pai, mas procurava escapar das suas arengas, que, com poucas variantes, consistiam na repetição das mesmas máximas. Com a mãe também não falava desse assunto. Limitava-se a ajudá-la a alfabetizar os milicianos na cave de uma cervejaria. Carme fora professora da instrução primária durante muitos anos e acreditava ser a educação tão importante como o pão, e que qualquer um que soubesse ler ou escrever tinha a obrigação de transmitir a outros esse conhecimento. Para ela, as aulas que ministrava aos milicianos eram pura rotina, mas para Victor representavam um enorme suplício:
- São uns burros! - concluía, frustrado, após passar duas horas sem conseguir que passassem da letra A. - Nem sequer sabem o alfabeto!
- Queria ver como te arranjavas tu se te pusessem a manejar um arado! - retorquia-lhe a mãe.
Espicaçado por ela, que receava que Victor se convertesse numa espécie de eremita e que continuamente o alertava para a necessidade de criar laços com a Humanidade, Victor aprendeu desde cedo a tocar algumas canções conhecidas na guitarra. Possuía uma suave voz de tenor, em contraste com o físico desengonçado e com a expressão reservada. Entrincheirado na guitarra, disfarçava a timidez. Evitava as conversas banais que tanto o aborreciam e dava, assim, a impressão de estar a participar do convívio. As raparigas, em geral, não se interessavam por ele até que o ouviam cantar. Então, a pouco e pouco, iam-se aproximando e acabavam a cantarolar com ele. Entre cochichos, decidiam que, bem vistas as coisas, o mais velho dos Dalmau até era bastante bem-parecido, se bem que não se pudesse comparar com o irmão Guillem.
A pianista que mais se destacava entre os alunos de música do professor Marcel Dalmau era Roser Bruguera, uma jovem oriunda de Santa Fé que, sem a generosa ajuda de Santiago Guzmán, não teria passado de uma pastora de cabras. Guzmán pertencia a uma família de ilustre linhagem, ainda que empobrecida por diversas gerações de fidalgos indolentes e gastadores, que depauperaram até ao tutano a fortuna e as terras. Vivia os seus derradeiros anos, retirado numa propriedade situada num descampado semeado de montes pedregosos, mas cheia de recordações afetivas. Pese embora a avançada idade, dado que já em tempos do rei Afonso XII era professor catedrático de História na Universidade Central, mantinha-se ativo. Saía diariamente, ora sob o sol inclemente de agosto, ora sob o gélido frio de janeiro, a caminhar horas a fio, acompanhado do cajado de peregrino, do velho chapéu de couro e do seu cão de caça. A sua mulher, prisioneira nos labirintos da demência, encontrava-se reclusa em casa, dedicada a pintar quadros aberrantes. Na terra, chamavam-lhe a Tola Mansa, e, de facto, não causava problemas de maior, salvo a sua tendência de caminhar rumo ao horizonte até se perder e o hábito de pintar as paredes com os próprios excrementos. Roser contava mais ou menos sete anos de idade, ainda que ninguém soubesse com exatidão a data do seu nascimento, quando, certo dia, Santiago a viu apascentando umas cabras famélicas. Bastou-lhe trocar algumas frases com a criança para logo se aperceber que se encontrava diante de uma mente atenta e curiosa. O catedrático e a pastora estabeleceram uma estranha amizade baseada nas lições de cultura dadas por ele e incentivadas pelo desejo de aprender que a menina manifestava.
Um dia de inverno, em que a encontrou abrigada numa cova com as suas três cabras, encharcada até aos ossos, tiritando de frio e corada de febre, Santiago amarrou as cabras e carregou a criança ao ombro como se de um fardo se tratasse, grato por esta ser tão leve. Ainda assim, o esforço quase lhe rebentou o coração, e, volvidos apenas alguns passos, abandonou o intento. Decidiu deixar a criança ali mesmo e foi chamar um dos seus jornaleiros, que a carregou até casa. Ali chegados, ordenou à cozinheira que desse de comer à menina, à criada que lhe preparasse um banho e uma cama e ao moço da estrebaria que fosse primeiro chamar o médico e depois recolher as cabras, para evitar que alguém as roubasse.
O médico determinou que a miúda padecia de gripe e que se encontrava seriamente subnutrida. Além disso, também tinha sarna e piolhos. Uma vez que ninguém apareceu na propriedade de Guzmán a perguntar pelo paradeiro da criança, nem naquele dia nem nos seguintes, deram por adquirido que seria órfã, até que a alguém ocorreu perguntar-lho diretamente, ao que esta respondeu que tinha família e que vivia do outro lado do monte. Apesar do seu corpo de passarinho, a menina revelou ser bem mais resistente do que aparentava. Deixou que lhe rapassem o cabelo por causa dos piolhos e suportou estoicamente o tratamento para a sarna. Comia com voracidade e manifestava um temperamento estranhamente equânime, dadas as circunstâncias extremas em que fora encontrada. Durante as semanas que passou naquela casa, desde a delirante patroa até ao mais insignificante dos criados, todos lhe ganharam afeto. Não havia memória de ter jamais habitado uma criança naquela sombria mansão de pedra, por onde deambulavam gatos semisselvagens e uma prole de fantasmas de outras épocas. De todos os moradores, o mais encantado era o velho professor, que assim revivia o privilégio de cultivar uma mente ávida. Todavia, a estadia da menina não podia prolongar-se indefinidamente. Dom Santiago esperou que esta se recuperasse totalmente e que ganhasse algum peso, antes de se dirigir ao outro lado do monte, disposto a dizer umas quantas verdades àqueles pais negligentes.
Fazendo ouvidos de mercador às súplicas da mulher, e com a criança devidamente agasalhada, levou-a na charrete, até que alcançaram uma cabana térrea de barro, tão miserável como outras que abundavam naquelas paragens. Os camponeses sobreviviam mendigando migalhas de fome, lavrando a terra como ancestrais servos da gleba. O catedrático encrespou a gritos os moradores da casa, e logo apareceu um bando de crianças assustadas, seguidas por uma bruxa vestida de preto, que não era, como Santiago primeiramente supusera, a bisavó, mas a mãe de Roser. Aquela gente jamais recebera a visita de uma carruagem puxada por cavalos tão reluzentes, pelo que ficaram perplexos assim que Roser desceu do carro acompanhada por um cavalheiro de tão distinta aparência.
- Venho falar-lhe sobre esta criança! - anunciou Santiago, naquele tom autoritário que costumava utilizar na faculdade, e que tanto atemorizava os alunos. Mas, antes que pudesse acrescentar fosse o que fosse, a mulher agarrou Roser pelos cabelos e começou a recriminá-la por ter abandonado as cabras, intercalando os gritos com bofetões. Foi quando compreendeu a inutilidade de chamar à razão aquela mãe azeda e, de um ímpeto, traçou o plano que haveria de mudar a vida da menina.
Roser passou o resto da infância na propriedade de Guzmán, oficialmente como protegida da família e como criada pessoal da senhora, mas também como aluna do patrão. Em troca de ajudar as criadas em casa e de distrair e alegrar os dias da Tola Mansa, recebeu hospedagem e educação. O historiador partilhou com ela a sua biblioteca, ensinou-lhe mais do que teria aprendido em qualquer escola e pôs à sua disposição o piano de cauda da mulher, uma vez que esta já não era capaz de se recordar da serventia e da razão de ser daquele monólito negro. Roser, que passara os seus sete primeiros anos sem ter conhecido outra música além da do acordeão dos bêbedos nas noites de São João, revelou ser dotada de um ouvido extraordinário. Na casa havia uma grafonola, mas, ao verificar que a sua protegida era capaz de reproduzir no piano as melodias assim que as escutava, Dom Santiago encomendou de Madrid um gramofone moderno e uma coleção de discos. Em pouco tempo, Roser Bruguera, cujos pés não alcançavam ainda os pedais do piano, conseguia tocar todos os discos de olhos fechados. Deslumbrado, ele contratou uma professora de piano em Santa Fé. Mandava-a às aulas três vezes por semana e vigiava pessoalmente o cumprimento dos exercícios e deveres de casa. Para Roser, capaz como era de tocar qualquer coisa de memória, não fazia o menor sentido aprender a ler música nem passar horas a fio a praticar as mesmas escalas, mas cumpria as tarefas por respeito ao seu mentor.
Aos catorze anos, superava já largamente a professora e, aos quinze, Dom Santiago instalou-a numa residência católica para raparigas em Barcelona, para que aí estudasse música. Por sua vontade, tê-la-ia mantido a seu lado, mas o dever de educador falou mais alto e prevaleceu sobre os seus sentimentos paternais. Segundo ele, a jovem recebera do Divino um talento especial, e a sua função neste mundo consistia em ajudar Roser a desenvolvê-lo. Nesses tempos, a Tola Mansa começou a apagar-se, acabando por morrer serenamente. A Santiago, solitário naquele casarão imenso, começavam a pesar os anos. Teve de renunciar às suas caminhadas com o seu cajado de peregrino, e passava o tempo a ler, sentado em frente à lareira. Quando o cão morreu, não quis substituí-lo por outro, para o caso de morrer antes dele e não deixar o animal sem dono.
O seu ânimo azedou ainda mais com o surgimento da Segunda República, em 1931. Mal se conheceram os resultados das eleições gerais, favoráveis à esquerda, o rei Afonso XIII partiu para o exílio em França, e Dom Santiago, monárquico, ultraconservador e católico, constatou que o seu mundo se desmoronava.
Nem por sombras toleraria os Vermelhos, e tão-pouco tencionava adaptar-se à sua vulgaridade. Aqueles desalmados não passavam de uns lacaios dos soviéticos que andavam a queimar igrejas e a fuzilar padres. A história de todos serem iguais, dizia, podia argumentar-se como mero exercício teórico, mas, se posto em prática, seria uma aberração. "Perante Deus, não somos iguais. Se assim não fosse, Ele não teria criado as classes sociais, bem como outras distinções naturais entre os seres humanos." A reforma agrária expropriou-lhe as terras, que, apesar de não terem muito valor, sempre haviam pertencido à sua família. Os camponeses, de um momento para o outro, passaram a dirigir-se-lhe sem tirarem o chapéu nem baixando os olhos. Essa arrogância dos seus inferiores doía-lhe ainda mais que a terra perdida, pois constituía uma afronta à sua dignidade e à posição que desde sempre ocupara no mundo. Despediu os criados que há tempos imemoriais o serviam, mandou empacotar a biblioteca, as obras de arte, as suas coleções e as suas lembranças, e fechou o casarão a sete chaves. O recheio da casa encheu três camiões; todavia, não lhe foi possível levar os móveis mais volumosos nem o piano, visto que não cabiam no apartamento de Madrid. Meses mais tarde, o alcaide republicano de Santa Fé confiscou a casa para ali instalar um orfanato.
Entre os graves agravos que Santiago sofreu nesse tempo, contava-se também a mudança que sofrera a sua protegida. Sob a má influência de alguns revoltosos da universidade, sobretudo a de um tal professor Marcel Lluís Dalmau, comunista, socialista ou anarquista, a ele tanto lhe dava, enfim, um desses perversos bolcheviques, a sua Roser convertera-se numa Vermelha. Abandonara a residência e vivia com umas galdérias que se vestiam como soldados e praticavam o amor livre, como se chamava naquele tempo à promiscuidade e à imoralidade. Era verdade que Roser jamais lhe faltara ao respeito, isso reconhecia, mas, uma vez que esta se atrevera a não ouvir os seus conselhos, vira-se obrigado a suspender-lhe toda e qualquer ajuda. Por carta, a jovem agradeceu-lhe de todo o coração o muito que por ela fizera, prometendo seguir sempre o elevado caminho dos princípios que ele lhe inculcara, e acrescentou que trabalhava de noite numa padaria e de dia prosseguia os estudos de música.
Dom Santiago Guzmán, instalado no seu apartamento de Madrid, onde quase não se conseguia circular por entre tantos móveis e objetos, isolado do ruído e da sordidez das ruas por espessos reposteiros de felpa em tons de sangue-de-boi, não se apercebeu como germinava o mais terrível rancor no seio do país, um rancor que levava séculos medrando e alimentando-se da miséria de uns e da prepotência de outros. Morreu solitário e furioso no seu apartamento do Bairro de Salamanca, quatro meses antes da sublevação das tropas de Franco. Manteve-se lúcido até aos últimos momentos, e de tal forma resignado à ideia da morte, que redigiu o próprio obituário, pois não queria que algum néscio viesse a publicar calúnias sobre a sua pessoa. Não se despediu de ninguém, talvez pela razão simples de que ninguém próximo lhe sobrasse já no mundo, mas lembrou-se de Roser Bruguera, e num nobre gesto reconciliatório, deixou-lhe o piano de cauda, que permanecia embalado no fundo de um quarto no novo orfanato de Santa Fé.
O professor Marcel Lluís Dalmau distinguiu rapidamente Roser entre os demais estudantes. No intuito de transmitir aos alunos quanto sabia de música e da vida, propagava-lhes ideias políticas e filosóficas, que viriam a influenciá-los muito mais do que alguma vez imaginaria. Nesse aspeto, Santiago Guzmán tivera razão. Por experiência, Dalmau desconfiava dos alunos dotados de excessiva facilidade para a música, porque, como afirmava amiúde, ainda não se tinha deparado com nenhum Mozart.
Já conhecera casos idênticos ao de Roser, jovens com ouvido e capacidade para tocar qualquer instrumento, que se tornavam preguiçosos, convencidos de que esse talento lhes bastava para dominar a arte e, por isso, podiam descurar o estudo e a disciplina. Era comum acabarem a tocar em bandas populares, em festas, hotéis e restaurantes, para ganhar a vida, convertidos em meros tocadores de casamentos, como ele lhes chamava. Propôs-se, assim, salvar Roser Bruguera dessa calamidade, colocando-a debaixo da sua asa. Ao inteirar-se de que a jovem se encontrava só em Barcelona, abriu-lhe as portas da sua casa, e mais tarde, quando soube que ela herdara um piano e que não tinha onde colocá-lo, retirou os móveis da sala de estar para aí o instalar, e jamais pôs objeções às intermináveis escalas que a jovem tocava quando diariamente os visitava após as aulas. Carme, a sua mulher, cedia a Roser a cama de Guillem, que estava na guerra, para que dormisse algumas horas, antes de, às três da madrugada, se dirigir à padaria para levar ao forno os pães que deveriam servir-se ao romper do dia. Assim, por tantas vezes dormir sobre a almofada do filho mais novo dos Dalmau, respirando o vestígio daquele cheiro de homem viril e saudável, a jovem enamorou-se dele, sem que a distância, o tempo ou a guerra a dissuadissem daquele amor impossível. Roser passou a fazer parte da família tão naturalmente como se fosse do seu próprio sangue. Converteu-se na filha que os Dalmau sempre desejaram. Viviam numa casa modesta, um pouco lúgubre, bastante deteriorada por longos anos de uso sem manutenção, mas espaçosa. Quando os seus dois filhos foram para a guerra, Marcel Lluís convidou Roser para viver com eles. Desta feita, podia economizar nos gastos, trabalhar menos horas, praticar piano sempre que quisesse e, além disso, ajudar a sua mulher com as tarefas domésticas. Apesar de muito mais jovem que o marido, Carme sentia-se mais velha, pois ultimamente andava sempre ofegante e a arfar, enquanto ele tinha vitalidade de sobra.
- Já quase não tenho forças para as aulas dos milicianos... e quando deixarem de ser necessárias, não terei alternativa senão morrer - suspirava Carme.
No primeiro ano do curso de medicina, Victor diagnosticou que a mãe tinha os pulmões com a textura, a porosidade e o aspeto de uma couve-flor.
- Caramba, Carme, se morreres, será por causa do tabaco - repreendia-a o marido sempre que a ouvia tossir, sem se dar conta da quantidade de tabaco que ele próprio consumia e sem adivinhar que a morte o alcançaria primeiro.
Foi por isso que Roser Bruguera, muito apegada à família Dalmau, permaneceu junto do professor quando este sofreu o enfarte. Deixou de ir às aulas, embora continuasse a trabalhar na padaria, revezando-se com Carme para atender às suas necessidades. Durante as horas mortas, distraía-o com concertos de piano, que enchiam a casa de música e acalmavam o moribundo. Como ali se encontrava, ouviu de viva voz as últimas recomendações do professor ao filho mais velho:
- Quando eu aqui já não estiver, Victor, serás tu o responsável pela tua mãe; suspeito que Guillem morrerá em combate... porque a guerra está perdida, filho - disse-lhe, entre longas pausas, para inspirar com dificuldade.
- Não diga isso, pai!
- Tive a certeza em março, quando bombardearam Barcelona. Eram aviões italianos e alemães. Temos a razão do nosso lado, mas isso não evitará a derrota. Estamos isolados, Victor.
- As coisas ainda podem reverter-se se a Inglaterra, a França e os Estados Unidos intervierem.
- Esquece isso. Os Estados Unidos não vão ajudar-nos. Disseram-me que Eleanor Roosevelt tentou convencer o marido a intervir, mas o Presidente tem a opinião pública contra.
- Não deve ser uma opinião generalizada, pai. Não vê que vieram tantos rapazes da Brigada Lincoln, dispostos a morrer por nós?
- São uns idealistas, Victor. Desses existem muito poucos no mundo. Muitas das bombas que nos caíram em cima em março eram de fabrico americano.
- Pai, se não o sufocarmos aqui, o fascismo de Hitler e de Mussolini vai alastrar por toda a Europa. Não podemos perder a guerra. Isso significaria o fim de tudo o que o povo alcançou e o regresso ao passado, à miséria feudal em que vivemos durante séculos.
- Ninguém virá em nosso auxílio. Ouve bem o que te digo, filho. Até a União Soviética nos abandonou. A Espanha já não interessa a Estaline. Quando a República cair, a repressão será infernal. Franco impôs o seu programa de limpeza, quer dizer, o terror máximo e o ódio total, enfim, a mais sangrenta das vinganças. Não negoceia nem perdoa. As suas tropas cometem atrocidades indescritíveis.
- Também nós! - exclamou Victor, que já vira muito.
- Como te atreves a comparar? Na Catalunha haverá um banho de sangue. Não viverei tempo suficiente para ver, mas quero morrer tranquilo. Promete-me que levarás a tua mãe e Roser para o estrangeiro. Os fascistas vão apanhar Carme de ponta porque alfabetiza os soldados. Já fuzilaram gente por muito menos. De ti vão vingar-se porque trabalhas num hospital do Exército, de Roser simplesmente porque é uma rapariga. Sabes o que fazem com as mulheres jovens, certo? Oferecem-nas aos mouros. Já pensei em tudo. Vão para França até as coisas ficarem mais calmas e até poderem regressar. Na minha escrivaninha vais encontrar um mapa e algumas poupanças. Promete-me!
- Sim, pai. Prometo - respondeu Victor, ainda que sem a menor intenção de cumprir.
- É importante que entendas isto, Victor. Não é uma questão de cobardia, mas de sobrevivência.
Marcel Lluís Dalmau não era o único pessimista em relação à situação da República, mas ninguém se atrevia a expressar abertamente tais sentimentos, pois a pior das traições seria a de fomentar o pânico ou a descrença junto de uma população já extenuada e que já tanto sofrera.
No dia seguinte, enterraram o professor Marcel Lluís Dalmau. Quiseram fazê-lo discretamente, pois os tempos não estavam para manifestações de luto, mas a notícia foi-se espalhando. Compareceram ao cemitério de Montjuíc os seus companheiros d'O Rocinante, colegas da faculdade e antigos alunos já de certa idade, isto porque os mais jovens se encontravam, sem exceção, ou numa das frentes de combate ou debaixo de terra. Carme, trajando luto rigoroso, do véu às meias negras, caminhou atrás do caixão daquele que fora o homem da sua vida, apoiada em Victor e em Roser. Não houve orações, discursos ou lágrimas. Os alunos despediram-se do mestre tocando o segundo andamento do quinteto de cordas de Schubert, cuja melancolia se prestava à ocasião, e, seguidamente, entoaram uma das canções dos milicianos, da autoria do velho professor.
II.
1938,
Nada, nem mesmo a vitória,
poderá apagar a terrível cratera do sangue...
Pablo Neruda
"Terras ofendidas"
"Espanha no coração"
Terceira Residência.
Roser Bruguera viveu o seu primeiro amor em casa do professor Dalmau. Quando este a convidou para viver com a sua família, sob o pretexto de a ajudar nos estudos, ambos sabiam que este motivo escondia, na verdade, um gesto mais caritativo que didático. O professor suspeitava que a sua aluna favorita se alimentava mal e que necessitava do apoio de uma família, especialmente de alguém como Carme, cujo instinto maternal encontrava escasso eco em Victor e absolutamente repercussão nenhuma em Guillem. Isto ocorreu no ano em que, farta do regime militar imposto na residência para meninas respeitáveis, Roser decidiu mudar-se para Barceloneta, um bairro de pescadores, para o único quarto que conseguiu a um preço acessível, com mais três raparigas pertencentes às milícias populares. Contava dezanove anos, e as outras jovens, sendo quatro ou cinco anos mais velhas do que ela, levavam-lhe pelo menos uns vinte de vantagem no que dizia respeito a experiência e mentalidade. As milicianas, que viviam num mundo completamente diferente do de Roser, chamavam-lhe noviça e a maior parte do tempo deixavam-na de parte, limitando-se a dividir com ela um quarto com quatro beliches. Roser dormia numa das camas superiores. Um par de cadeiras, um lavatório, um jarro e um bacio, um aquecedor a querosene, pregos nas paredes em jeito de cabides para pendurar a roupa e um quarto de banho comum, usado pelos trinta e tantos inquilinos do edifício - era tudo de quanto dispunham. Eram raparigas alegres e atrevidas, que aproveitavam em pleno a liberdade que se vivia nesses tempos tumultuosos, que se vestiam de uniforme, com as botas e a boina regulamentares, mas que, por outro lado, pintavam os lábios e enrolavam o cabelo com a ajuda de um ferro aquecido num braseiro de carvão. Treinavam-se com paus ou com espingardas emprestadas e aspiravam a serem admitidas na Frente para poderem defrontar-se cara a cara com o inimigo, em lugar de terem de cumprir com os entediantes trabalhos de transporte, abastecimento, cozinha e enfermaria, que lhes eram destinados, sob o pretexto de que o armamento soviético e mexicano utilizado na Frente era mais apropriado para os homens e que seria subaproveitado em mãos femininas. Alguns meses mais tarde, quando as tropas nacionalistas ocupavam mais de dois terços do território de Espanha, e continuavam a avançar, as jovens viram satisfeita a vontade de estarem na vanguarda. Duas foram violadas e degoladas durante um ataque das tropas de Marrocos, a terceira sobreviveu aos três anos de Guerra Civil e a mais seis da Segunda Guerra Mundial, vagueando, clandestina, entre um lugar e outro da Europa, até que, finalmente, em 1950, conseguiu emigrar para os Estados Unidos. Acabou por residir em Nova Iorque, onde se casou com um intelectual judeu que lutara na Brigada Lincoln, mas a sua vida faz parte de outra história.
Guillem Dalmau era um ano mais velho que Roser Bruguera. Enquanto ela fazia jus à alcunha de noviça, com os seus vestidos antiquados e com a sua seriedade austera, ele era jactancioso e desafiador, como se fosse dono do mundo. A ela, no entanto, bastaram-lhe alguns instantes na sua presença para perceber que, sob aquela aparência insolente, se ocultava um coração infantil, romântico e um tanto imaturo. De cada vez que Guillem regressava a Barcelona, aparecia mais sério e compenetrado. Já pouco ou nada restava daquele rapaz inconsequente que roubava candelabros. Era, agora, um homem maduro, sempre de sobrolho franzido, que albergava uma tremenda carga de violência contida, pronta para rebentar à menor provocação. Geralmente, dormia no quartel, mas passava uma ou duas noites em casa dos pais, acima de tudo esperando encontrar-se com Roser. Felicitava-se por, até à data, ter evitado as ligações sentimentais que tanto angustiavam os outros soldados, separados de famílias e namoradas. A guerra absorvia-o por completo e não se permitia qualquer tipo de distração, mas a discípula do seu pai não representava uma ameaça à sua independência de solteiro, constituindo apenas uma inocente diversão. Roser podia considerar-se atraente, dependendo do ângulo e da luz, mas, ao mesmo tempo, nada fazia por parecê-lo, e essa simplicidade natural fazia vibrar uma misteriosa corda na alma de Guillem. Estava habituado ao efeito que provocava nas mulheres em geral, e apercebeu-se de que sucedia o mesmo com Roser, ainda que ela se revelasse incapaz de qualquer gesto de coqueteria. Esta miúda está apaixonada por mim! E como não haveria de estar?, coitada!, se não conhece outra vida além do piano e da padaria! Em breve lhe passará..., pensava para consigo.
- Cuidado, Guillem! Esta rapariga é sagrada! Se te apanho em alguma falta de respeito com ela... - advertiu-o o pai.
- Pai! Como é que foi pensar numa coisa dessas? Ela é como se fosse minha irmã!
Mas felizmente não era. A julgar pela forma como os pais se preocupavam, Roser ainda devia ser virgem, uma das últimas sobreviventes pertencentes a essa rara espécie na Espanha republicana. Não lhe passava pela cabeça aproveitar-se dela. Isso, de forma nenhuma!, mas ninguém podia repreendê-lo ou negar-lhe um mínimo gesto de ternura, um tímido encontro das pernas sob a mesa ou um convite para o cinema, para a poder tocar na penumbra, enquanto ela chorava, emocionada pelo filme, tremendo de timidez e de desejo. Para carícias mais ousadas, tinha as suas camaradas, milicianas livres, mais descontraídas e experientes.
Terminadas as breves licenças em Barcelona, Guillem retornava à frente de combate, concentrado apenas em sobreviver e em vencer, mas era-lhe cada vez mais difícil abstrair-se da expressão carente e límpida de Roser Bruguera. Não admitia, nem no mais reservado recanto do seu coração, como ansiava pelas suas cartas, pelos embrulhos de guloseimas que lhe enviava ou pelas meias e cachecóis que lhe costurava. Era dela a única fotografia que sempre trazia consigo. Roser estava de pé junto a um piano, talvez durante um concerto. Trajava um vestido em tons de escuro, simples, com mangas curtas e uma saia talvez um pouco mais comprida do que o habitual, e uma gola de renda. Enfim, um disparatado vestido de colegial que lhe ocultava as curvas. Nessa fotografia a preto e branco, Roser despontava, distante e desbotada, uma mulher sem graça, idade ou expressão. Era, pois, necessário entrever o contraste entre os seus olhos cor de âmbar e o negro do seu cabelo, o seu nariz reto de esfinge, as suas sobrancelhas expressivas, as suas orelhas salientes, os seus dedos longos, o seu aroma de sabão, pormenores que não deixavam de surpreender Guillem, que o assaltavam de repente, e que, sem aviso, lhe invadiam o sono. Esses pormenores eram distrações que, contudo, podiam custar-lhe a vida.
Nove dias decorridos do funeral do seu pai, numa tarde de domingo, Guillem Dalmau chegou a casa de surpresa, transportado por um desengonçado veículo militar. Roser correu ao seu encontro enquanto secava as mãos num pano de cozinha e, por momentos, não foi capaz de reconhecer o homem magro e combalido que duas milicianas amparavam em braços. Não o via há quatro meses. Quatro meses alimentando-se apenas com a ilusão das esparsas frases que esporadicamente ele lhe escrevia, relatando os sucessos de Madrid, sem qualquer expressão de carinho. Mensagens como relatórios, escritas em folhas arrancadas de um caderno, garatujadas numa letra infantil:
Por aqui, tudo igual. Presumo que saibas como temos estado a defender a cidade. Os muros estão esburacados como coadores pelos disparos dos morteiros. Há escombros por toda a parte. Os fascistas têm armamento italiano e alemão. Estão tão perto que, por vezes, conseguimos sentir o cheiro dos cigarros que fumam. Patifes! Ouvimos o que dizem. Gritam para nos provocar, mas estão cheios de medo, exceto os mouros, que são piores que hienas e não têm receio de nada. Preferem as facas de talhante às espingardas, a luta corpo a corpo e o sabor do sangue. Chegam-lhes reforços diariamente, mas até agora não avançaram nem um metro. Falta-nos água e eletricidade, a comida escasseia, mas vamo-nos arranjando como podemos. Estou bem. Metade dos prédios estão destruídos. É impossível retirar todos os cadáveres. Ficam para ali amontoados, de qualquer maneira, estendidos até ao dia seguinte, quando passa o pessoal do depósito de cadáveres. Também não foi possível evacuar todas as crianças. Se visses como são teimosas algumas mães!
Recusam-se a obedecer e a separar-se dos filhos. Quem as entenda! Como vão as tuas aulas de piano? E como estão os meus pais? Diz à minha mãe que não se preocupe comigo.
- Jesus! Meu Deus, Guillem! O que te aconteceu? - exclamou Roser, ainda do umbral da porta, recorrendo com o susto ao aparentemente esquecido vocabulário aprendido na sua educação católica.
Guillem não foi capaz de lhe responder. A cabeça pendia-lhe sobre o peito e não conseguia suster-se de pé. Nesse instante, também da cozinha, surgiu Carme. O grito que lançou foi desgarrador. Subiu-lhe do mais fundo, até que alcançou a garganta e a prostrou num ataque de tosse.
- Calma, camaradas. Não está ferido. Está apenas doente -disse em tom firme uma das milicianas.
- Por aqui - indicou Roser, conduzindo-as ao quarto que ocupava, e que antes pertencera a Guillem.
As milicianas estenderam-no sobre a cama e retiraram-se, voltando um minuto depois com a sua mochila, o cobertor e a espingarda. Despediram-se com um breve cumprimento e votos de melhoras. Enquanto Carme se debatia num arranque desesperado de tosse, Roser retirou ao doente as botas rotas e as meias imundas, esforçando-se por conter as náuseas que o seu cheiro lhe provocava. Nem pensar em levá-lo ao hospital, nesse tempo um foco de infeções, ou em tentar chamar um médico, uma vez que todos estavam demasiado ocupados com os feridos de combate.
- Carme, precisamos de lhe dar um banho. Está imundo! Dê-lhe água. Vou num instante à Central Telefónica ligar ao Victor - disse a jovem, que não pretendia ver Guillem despido, encharcado em urina e excrementos.
Pelo telefone, Roser explicou os sintomas a Victor:
- Febre altíssima; dificuldades respiratórias; diarreia; geme quando lhe tocamos. Deve ter imensas dores na barriga e em todo o corpo. Já sabes como ele é. Nunca se queixa.
- Tem tifo, Roser. A epidemia está instalada entre os combatentes. É transmitido pelas pulgas e pelos piolhos, pela água estagnada e pela falta de higiene. Tentarei passar aí amanhã para o ver, mas o hospital está a rebentar pelas costuras. Todos os dias chegam-nos dezenas de feridos. Por agora, tudo o que podem fazer é tentar hidratá-lo e baixar-lhe a febre. Envolvam-no em toalhas húmidas e deem-lhe a beber água fervida com um pouco de sal e de açúcar.
Guillem Dalmau passou duas semanas sob os cuidados de Roser e da mãe, e vigiado desde Manresa pelo irmão, a quem Roser telefonava diariamente para o informar do seu estado e para receber instruções de como evitar o contágio. Deveriam, em primeiro lugar, exterminar os piolhos da roupa. O melhor era queimá-la e desinfetar tudo com lixívia, utilizar louça distinta para Guillem e lavar as mãos sempre que lhe tocavam. Os três primeiros dias foram críticos. A febre subiu até aos quarenta graus, delirava e tinha convulsões provocadas pelas náuseas e pelas dores de cabeça. Sacudia-o uma tosse seca e as fezes eram um líquido esverdeado com a aparência de sopa de ervilhas. Ao quarto dia a febre baixou, mas não conseguiram acordá-lo. Victor aconselhou-as a sacudirem-no até o obrigarem a beber um pouco de água e a deixarem-no dormir o resto do tempo. Precisava de descansar e de se recuperar.
A tarefa de cuidar diretamente de Guillem recaiu sobre Roser, pois Carme, devido à idade e à precária condição dos seus pulmões, era mais vulnerável ao contágio. Enquanto Roser passava o dia em casa, lendo ou bordando junto à cama de Guillem, Carme saía para as lições de alfabetização e para as filas de racionamento. Roser continuou a trabalhar na padaria. Agora o pagamento era feito em pão.
As rações de lentilhas reduziram-se a meia tigela diária por pessoa, já não se viam gatos para estufar nem pombas para cozer. O pão trazido por Roser não passava de um tijolo áspero e escuro, duro e com sabor a serrim. O óleo convertera-se num bem de luxo. Era misturado com óleo para automóveis para durar mais. As pessoas cultivavam legumes nas banheiras e nas varandas. Trocavam-se jóias de família por arroz e por batatas.
Ainda que Roser tivesse cortado com a sua família, mantinha contacto com alguns camponeses da região e, dessa forma, conseguia obter verduras, um ou outro ocasional pedaço de queijo de cabra, ou um salpicão, nas raras ocasiões em que se matava um porco. O salário de Carme não chegava para o mercado negro, onde escasseavam os produtos comestíveis. Dava ajusta para comprar cigarros e sabão. Em face da imperiosa necessidade de fortalecer Guillem, Carme decidiu abrir mão das poupanças do marido e mandou Roser a Santa Fé, para comprar qualquer coisa com que se pudesse fazer uma sopa mais substancial. Sabia que Marcel Lluís destinara esse dinheiro para enviar a família para longe de Espanha, mas, na verdade, nenhum deles pensava na possibilidade de emigrar. O que fariam em França ou em qualquer outro lado? Não podiam abandonar a sua casa, o seu bairro e a sua língua, os parentes e amigos. A probabilidade de ganharem a guerra diminuía a olhos vistos e, no íntimo, todos começavam a resignar-se à possibilidade da obtenção de uma paz negociada e de se sujeitarem à repressão dos fascistas. Mesmo isso seria preferível ao exílio. Franco, por muito cruel que fosse, não iria fuzilar a totalidade da população da Catalunha. Assim, Roser decidiu investir o dinheiro na compra de duas galinhas vivas e viajou de volta a Barcelona com elas atadas dentro de um saco que ocultou sob o vestido, para que não lhas roubasse um qualquer desesperado, ou para que não fossem confiscadas pelos soldados. Julgando-a grávida, cederam-lhe um lugar sentado no autocarro, e ela tentou ocultar o volume que transportava o melhor que pôde, rezando para que as aves não começassem a mover-se. Carme cobriu o chão de um dos quartos com papel de jornal e ali instalaram as galinhas. Alimentaram-nas à base de migalhas e de desperdícios que retiravam da taberna O Rocinante e alguma cevada e centeio que Roser furtava da padaria. As aves recuperaram rapidamente do trauma da viagem e Guillem começou a poder contar com um ou dois ovos para o pequeno-almoço.
Alguns dias volvidos, e o doente recobrara a disposição de regressar à vida, mas as suas forças apenas lhe permitiam sentar-se na cama a ouvir, desde a sala, o piano de Roser, ou a permanecer atento enquanto ela lhe lia romances de mistério. Nunca fora um bom leitor. Quando na escola, passava de ano sempre a duras penas, graças aos esforços da mãe, que lhe via os trabalhos de casa, ou graças a Victor, que, geralmente, era quem os fazia. Na Frente de Madrid, quando se aborrecia durante os longos momentos de espera em que nada sucedia, seria estupendo contar com a presença de Roser para que lhe lesse. Ali havia livros de sobra, mas, a ele, as letras cedo principiavam a rodopiar nas páginas. Nas pausas de leitura, falava a Roser da sua vida de soldado, dos voluntários que chegavam de mais de cinquenta países distintos, dispostos a lutar e a morrer numa guerra que não lhes dizia respeito, dos membros americanos da Brigada Lincoln, que sempre se colocavam na vanguarda e eram os primeiros a tombar.
- Dizem que são mais de trinta e cinco mil homens e algumas centenas de mulheres. Vieram para Espanha a dar combate ao fascismo, Roser... Vê lá tu como é importante esta guerra!
Contava-lhe sobre a falta de água, de eletricidade, de latrinas; contava-lhe dos passeios semeados de escombros, da abundância do lixo, da poeira e dos vidros partidos.
- Durante as horas mortas, ensinamos e aprendemos. Ali, a minha mãe estaria como um peixe na água, a alfabetizar os rapazes que não sabem ler nem escrever. Muitos nunca foram sequer à escola.
Mas guardava para si a memória dos ratos e dos piolhos, das fezes, da urina e do sangue, dos camaradas feridos que tinham de esperar horas a fio esvaindo-se enquanto não chegavam os maqueiros, da fome sofrida e dos pratos metálicos com feijões empedernidos, e do café frio; da irracional coragem de alguns, que, indiferentes a tudo, se expunham às balas, ou do terror de outros, sobretudo dos recém-chegados, os mais jovens, os pertencentes à Companhia do Biberão, que, felizmente não calharam na sua Companhia, caso contrário teria morrido de enfado. Muito menos admitia a Roser as execuções em massa perpetradas pelos seus camaradas, de como atavam dois a dois os prisioneiros inimigos, de como os conduziam em camiões a um descampado, onde os fuzilavam sem mais delongas e os enterravam em valas comuns. Nada menos que dois mil, só em Madrid.
Começara o verão. Anoitecia mais tarde e o dia espreguiçava-se em horas sonolentas. Guillem e Roser passavam tanto tempo na companhia um do outro que chegaram a conhecer-se profundamente. Por muito que lessem ou que conversassem, aconteciam longos silêncios, nos quais predominava uma cálida sensação de intimidade. Depois de jantar, Roser recostava-se na cama que agora dividia com Carme, até às três da madrugada, hora em que se dirigia à padaria para preparar o pão que, sempre racionado, se repartia ao amanhecer.
Tanto os jornais como as notícias transmitidas pela rádio ou pelos altifalantes instalados nas ruas eram otimistas. Os hinos dos milicianos atroavam o ar, bem como os inflamados discursos de La Pasionaria: mais vale morrer de pé do que viver de joelhos. Não se admitia o avanço do inimigo. Falava-se em retiradas estratégicas. Também se passava por alto o racionamento e a escassez de quase tudo, desde alimentos a medicamentos. Victor Dalmau contava à família uma versão mais realista das coisas. Conseguia avaliar o andamento da guerra a julgar pelos comboios a abarrotar de feridos e pela cifra dos mortos, que aumentava tragicamente no hospital onde trabalhava. "Tenho de voltar para a Frente", insistia Guillem, mas mal conseguia apertar as botas, voltava a deixar-se cair, exausto, sobre a cama.
Os rotineiros afazeres de cuidar de Guillem, a braços com o tifo, a necessidade de o lavar com o auxílio de uma esponja ou de o alimentar com colherzitas de papa como se fosse uma criança, de lhe esvaziar o bacio, de lhe vigiar o sono, e de novamente ter de lavá-lo e alimentá-lo, e de lhe esvaziar o bacio, numa interminável rotina de apreensão e de amor, confirmaram a Roser que era este o único homem que seria capaz de amar. Não haveria outro. Estava certa disso.
Ao nono dia de convalescença, ao vê-lo com bastante melhor aparência, Roser apercebeu-se de que rapidamente terminariam os pretextos para que ele continuasse de cama, onde podia tê-lo apenas para si. Em breve Guillem seria obrigado a regressar à Frente. Tinham sido a tal ponto elevadas as baixas sofridas no último ano, que o Exército Republicano estava a recrutar adolescentes, velhos, bem como os presos mais perigosos, a quem se dava a escolher entre a Frente de combate ou a perspetiva de apodrecer na cadeia. Roser anunciou a Guillem que estava na hora de se levantar e que o primeiro passo seria um bom banho. Aqueceu água na maior panela de que dispunham, meteu Guillem na selha de lavar a roupa, ensaboou-o dos pés à cabeça e lavou-o e secou-o até o deixar corado e reluzente. Conhecia-o tão bem que já não se sentia constrangida perante a sua nudez. Por seu turno, Guillem esquecia qualquer pudor na presença dela. Nas suas mãos, era como se regressasse à infância. Quando tudo isto terminar, vou casar-me com ela!, decidiu consigo mesmo, num impulso de profunda gratidão. Até à data, nada estava mais distante do seu pensamento que assentar raízes e casar. A guerra salvara-o da contingência de planear um futuro, qualquer que fosse. Não nasci para a paz..., pensava, Melhor ser soldado do que trabalhar numa fábrica... Além disso, o que iria eu fazer sem estudos e com este meu temperamento?! Mas Roser, com a sua frescura e inocência, com a sua sólida bondade, entranhara-se-lhe na pele. A sua imagem acompanhava-o nas trincheiras, e quanto mais a recordava, mais dela necessitava, e a cada passo ela lhe parecia mais bela. O seu encanto era simples e discreto, como todo o seu ser. Nos piores momentos, quando padecia de tifo e se afogava num pântano de temor e sofrimento, aferrava-se a Roser para se manter à superfície. Na sua mente delirante, a única bússola era aquele rosto diligente, inclinado sobre si. A única âncora eram aqueles olhos intrépidos, que subitamente sabiam tornar-se brandos e alegres.
Com aquele primeiro banho na selha de lavar a roupa, após uma tão longa agonia, Guillem regressou de vez ao mundo dos vivos. Ressuscitaram-no o contacto da esponja ensaboada, a espuma no cabelo, os baldes de água morna, as mãos de Roser sobre o seu corpo, mãos de pianista, mãos fortes, ágeis, precisas. Rendeu-se por completo, agradecido. Ela secou-o, vestiu-lhe um pijama que pertencera ao seu pai, cortou-lhe a barba, o cabelo e as unhas, que tinham crescido como garras. Apesar do rosto encovado e das fundas olheiras, Guillem já não aparentava o espantalho que chegara a casa, arrastado pelas duas milicianas. Seguidamente, Roser aqueceu o café que sobrara do pequeno-almoço, ao qual acrescentou um sorvo de conhaque, para que ele se refizesse plenamente.
- Estou pronto para sairmos para dançar! - sorriu Guillem, assim que se viu ao espelho.
- Estás mas é pronto para voltar para a cama! - determinou Roser, entregando-lhe uma chávena. - Comigo! - acrescentou.
- O que é que disseste?
- Disse exatamente o que tu ouviste. ;
- Não estarás por acaso a pensar em...
- Estou a pensar no mesmo em que tu devias estar a pensar... - retrucou ela, tirando o vestido pela cabeça.
- O que estás a fazer, rapariga? A minha mãe pode voltar a qualquer momento.
- É domingo. A esta hora, a tua mãe está a dançar sardanas na praça, e depois vai para a fila da Telefónica para falar com Victor.
- Mas posso contagiar-te...
- Se não aconteceu até agora... Basta de desculpas! Mexe-te! - ordenou-lhe Roser, despindo o soutien e as cuecas, enquanto o empurrava para entrar na cama.
Nunca estivera nua diante de um homem, mas toda a timidez se lhe sumira, naquele tempo de racionamentos, de estado de alerta permanente, de suspeitar continuamente de vizinhos e mesmo de amigos, com o anjo da morte sempre a rondar como um espectro. A virgindade, virtude tão suprema no colégio de freiras, aos vinte anos, pesava-lhe como um defeito. Nada era seguro. O futuro não existia. Apenas dispunha desse momento, antes que novamente a guerra lho arrebatasse.
A temida derrota acabou por se consolidar de vez na Batalha do Rio Ebro, que se iniciou em julho de 1938. Haveria de durar quatro meses e de se saldar num rasto de trinta mil mortos, entre os quais se contava Guillem Dalmau, que caiu pouco tempo antes da fuga em massa dos vencidos. A situação dos republicanos era angustiante. A única esperança era a de uma intervenção da França e da Grã-Bretanha a seu favor, mas sucediam-se os dias sem qualquer sinal de que tal se viesse a verificar. Com o objetivo de ganhar tempo, concentraram os seus esforços, bem como o grosso das suas tropas, na tarefa de atravessar o Rio Ebro, penetrar em território inimigo e retomá-lo, apoderar-se do seu armamento e mostrar, assim, ao mundo, que a guerra se encontrava longe de estar perdida, e que com a indispensável ajuda, Espanha poderia vencer o fascismo. Oitenta mil homens foram sigilosamente transportados durante a noite até à margem oriental do rio, com a missão de o atravessar e de defrontar o inimigo, muito superior, quer em número quer em armamento. Guillem fora incorporado nas Brigadas Mistas da 45ª Divisão Internacional, juntamente com voluntários americanos, canadianos e ingleses... a vanguarda, a força de choque, denominada pelos próprios como carne para canhão. Combatiam num terreno acidentado, sob um verão inclemente. Com o inimigo pela frente, o rio na retaguarda e os aviões alemães e italianos por cima.
A princípio, o ataque-surpresa conferiu uma relativa vantagem aos republicanos. À medida que iam chegando à margem, os combatentes atravessavam o rio em embarcações improvisadas, arrastando consigo as aterrorizadas mulas que carregavam o equipamento. Os engenheiros construíam pontes móveis, que, continuamente bombardeadas de dia, eram prontamente reconstruídas durante a noite. Na vanguarda, Guillem tinha de passar dias sem comida e sem água, sempre que a distribuição falhava, semanas sem poder tomar um banho, dormindo sobre um solo pedregoso, sofrendo de diarreias e de insolação, continuamente exposto ao fogo inimigo, e aos ratos e aos mosquitos, que comiam quanto encontravam e atacavam os que tombavam. À sede e à fome, às cólicas e ao cansaço supremo, acrescia o calor extremo do verão. Estava tão desidratado que já nem transpirava, com a pele tão queimada, fendida e negra como couro de lagarto. Passava longos turnos de cócoras, com a espingarda a postos e os dentes rangendo, tenso cada nervo do seu corpo, esperando a morte...
até que, por fim, as pernas deixavam de lhe obedecer. Supôs que o tifo o debilitara de tal modo que já não era o mesmo soldado de outrora. Os seus camaradas iam caindo a um ritmo aterrador, e ele perguntava-se quando chegaria a sua vez. Os feridos eram evacuados durante a noite em veículos sem luzes, para evitar a metralha dos aviões. Alguns estavam tão gravemente feridos que imploravam um tiro de misericórdia, pois a mera possibilidade de cair nas mãos do inimigo era mil vezes pior do que morrer. Os cadáveres que não conseguiam retirar antes que começassem a feder sob aquele sol impiedoso eram simplesmente cobertos com pedras, ou queimados como os das mulas e dos cavalos, pois era impossível cavar valas naquele solo de penhascos, duro como cimento. Guillem tinha de se expor a balas e granadas para alcançar os corpos e identificá-los, e recuperar um ou outro bem pessoal dos mortos que se enviasse às respetivas famílias.
Entre os combatentes, ninguém entendia a estratégia de se deixarem morrer nas margens do Ebro, uma vez que tentar avançar no território controlado por Franco não só era inútil, como o custo de vidas para manter cada posição conquistada era absurdo. Todavia, manifestar desagrado era considerado um ato de traição ou visto como uma imperdoável cobardia que se pagava caro. Guillem era comandado por um voluntário americano, possuidor de uma coragem de leão, que fora estudante universitário na Califórnia e que se juntara à Brigada Lincoln. Sem ter experiência militar, demonstrou ser feito para a guerra. Tinha a têmpera de um soldado nato e sabia dar ordens. Os seus homens veneravam-no.
Guillem fora dos primeiros voluntários a integrar as milícias de Barcelona, quando imperava o ideal socialista da igualdade, que a revolução estendera a cada setor da sociedade, incluindo o Exército, onde ninguém se encontrava acima de outrem. Os oficiais conviviam com o restante da tropa sem qualquer privilégio. Comiam a mesma comida e usavam o mesmo uniforme. Nada de hierarquias, de protocolos ou de continências. Nada de tendas de campanha ou de veículos especiais para os superiores. Nada de botas bem engraxadas, nem de ajudantes reverentes, nem de cozinheiros particulares, como ocorria nos exércitos convencionais, entre os quais, provavelmente, o de Franco. Essa situação foi desaparecendo ao longo do primeiro ano de guerra, à medida que se foi esbatendo o ímpeto revolucionário. Guillem, agastado, verificou como em Barcelona regressavam a pouco e pouco os rituais burgueses de convivência social, o classismo, a prepotência de uns e a subserviência de outros, as "luvas", a prostituição, os privilégios dos ricos a quem nada faltava, nem alimentos, ou tabaco, ou roupa da última moda, enquanto o restante da população amargava com a escassez e o racionamento. Além disso, observou também mudanças entre os militares. O Exército Popular, que funcionava segundo um regime de serviço militar obrigatório, incorporou as milícias compostas por voluntários, impondo a hierarquia e as regras de disciplina convencionais. Apesar disso, o oficial americano continuava a acreditar na vitória do ideário socialista. Para ele, a igualdade não só era possível, mas tida e assumida como algo inevitável. Assim, cultivava-a e praticava-a como uma religião. Os homens sob o seu comando tratavam-no como se de um deles se tratasse, sem que, no entanto, jamais questionassem as suas ordens. O americano aprendera espanhol suficiente para conseguir traduzir as orientações relativas à campanha do Ebro, que recebia em inglês. O plano consistia em tentar defender Valência e restabelecer o contacto com a Catalunha, separada do restante território republicano por uma estreita franja que os nacionalistas haviam ocupado. Guillem nutria por ele um profundo respeito, e tê-lo-ia seguido para qualquer parte, sem que quaisquer explicações fossem necessárias. A meio de setembro, o americano foi atingido pelas costas e caiu junto a Guillem sem um lamento sequer. Continuou, ainda assim, a encorajar os seus homens até ficar inconsciente. Guillem, com a ajuda de outro soldado, colocou-o atrás de um monte de escombros para que ficasse resguardado, até que os maqueiros viessem durante a noite para o levarem para um posto de primeiros socorros. Dias depois, Guillem soube que, no caso de se salvar, o brigadista ficaria inválido. Desejou-lhe, de todo o coração, uma morte rápida.
O oficial americano tombara apenas uma semana antes de o Governo Republicano anunciar a retirada dos combatentes estrangeiros, na esperança de que Franco, que contava com o auxílio de tropas alemães e italianas, procedesse do mesmo modo. Tal não sucedeu. O americano, enterrado à pressa numa vala comum, não chegou a desfilar com os seus camaradas pelas ruas de Barcelona, aplaudidos por uma população agradecida, numa cerimónia emocionante, de que se haveriam de recordar para o resto das suas vidas. As palavras de despedida mais memoráveis foram as proferidas por La Pasionaria, cujo incandescente entusiasmo sustivera a esperança dos republicanos o tempo todo. Chamou-lhes cruzados da liberdade, heróis, valentes, idealistas e determinados, que haviam de corpo e alma abandonado o seu país e os seus lares pela honra de morrer por Espanha. Nove mil desses cruzados ficariam para sempre sepultados em solo espanhol. Terminou dizendo-lhes que, após a vitória, regressassem a Espanha, onde encontrariam amigos e uma segunda pátria.
A propaganda franquista, transmitida por altifalantes ou por panfletos lançados de avião, intimava à rendição, prometendo paz, justiça e pão. Porém, todos os combatentes sabiam que entregar-se significava ir parar com os ossos a uma qualquer prisão ou a uma vala comum, que teriam de ser eles próprios a escavar. Corria o boato de que, nas povoações ocupadas por Franco, as viúvas e as famílias dos fuzilados eram obrigadas a pagar as balas utilizadas nas execuções... e fuzilados havia-os aos milhares. Tanto sangue corria que, no ano seguinte, os camponeses trejuravam que as cebolas eram vermelhas e que por vezes se encontravam dentes humanos no interior das batatas. Mesmo assim, a tentação de se entregar ao inimigo em troca de pão fez com que não poucos desertassem, em geral os recrutas mais jovens. Certa ocasião, Guillem viu-se obrigado a dominar pela força um rapaz de Valência que, em pânico, perdera a cabeça. Advertiu-o de que o mataria caso abandonasse a sua posição, fazendo com que regressasse ao seu posto. Conseguiu acalmá-lo sem que ninguém se tivesse apercebido do ocorrido. Trinta horas mais tarde, o jovem estava morto.
No meio daquele inferno, onde faltavam até os bens mais básicos, aparecia de quando em vez uma ambulância trazendo o saco do correio. Aitor Ibarra tomara a seu cargo essa tarefa com o objetivo de levantar o moral dos combatentes. A correspondência particular era uma das últimas prioridades naquela campanha do Ebro, e, na realidade poucos homens a recebiam: os brigadistas internacionais, devido à distância, e os espanhóis, principalmente os que provinham da zona Sul, devido ao facto de serem originários de famílias analfabetas. No entanto, Guillem Dalmau tinha quem lhe escrevesse. Aitor costumava dizer, em jeito de brincadeira, que arriscava a pele para levar correspondência a um único destinatário. Por vezes entregava-lhe um volumoso maço de cartas amarradas com um cordel. Havia sempre uma ou duas cartas da mãe ou do irmão, mas a maior parte era de Roser, que diariamente lhe escrevia um ou dois parágrafos até completar um par de páginas, que, depois de colocar num envelope, levava ao correio militar, cantarolando a mais popular das canções milicianas: "Si mi quieres escribir, / ya sabes mi paradeiro: / Tercera Brigada Mixta, /primem linea de fuego."(1)
1. Se me quiseres escrever, /já sabes onde me encontro: / Terceira Brigada Mista, /primeira linha de fogo. (N. do T.)
Não imaginava que Aitor Ibarra cumprimentava sempre Guillem entoando a mesma canção, ou outra semelhante, quando lhe entregava as cartas. O basco cantava até durante o sono, para espantar o medo e para seduzir a sua boa estrela.
As tropas de Franco avançavam inexoravelmente após terem conquistado a maior parte do país. Depressa se tornou evidente que a Catalunha também cairia. O terror foi-se apoderando da cidade. As pessoas preparavam-se para fugir, e muitos já o haviam feito. Em meados de janeiro de 1939, Aitor Ibarra chegou ao Hospital de Manresa conduzindo um desengonçado camião, transportando dezanove feridos graves. No início da viagem eram vinte e um, mas dois morreram durante o percurso e os seus cadáveres ficaram pelo caminho. Vários médicos civis haviam abandonado os seus postos e os resistentes esforçavam-se por evitar que o pânico tomasse conta dos pacientes do hospital. Também os membros do Governo Republicano tinham optado pelo exílio, com a perspetiva de continuar a governar a partir de Paris. E isso foi o golpe de misericórdia que acabou de minar a já depauperada confiança da população. Nessa altura, as tropas nacionalistas encontravam-se a menos de uns escassos vinte e cinco quilómetros de Barcelona.
Aitor não dormia há cinquenta horas, de modo que, assim que entregou a sua destroçada carga, caiu exausto nos braços de Victor Dalmau, que saíra para receber o camião. Este acomodou-o na sua alcova real, como chamava ao catre de campanha, ao bacio e à lamparina de querosene que constituíam a parca decoração do seu alojamento. Decidira mudar-se permanentemente para o hospital, a fim de poupar tempo. Algumas horas mais tarde, quando abrandou a frenética atividade da sala de operações, Victor levou ao amigo uma tigela de sopa de lentilhas, uma linguiça fumada que a mãe lhe enviara nessa semana e uma taça de café de chicória. Não foi tarefa fácil despertar Aitor. Entontecido de cansaço, o basco comeu avidamente, e em seguida relatou detalhadamente a Victor os sucessos da Batalha do Ebro, que, aliás, este já ouvira através dos feridos que iam chegando ao longo dos últimos meses. O Exército Republicano fora dizimado e apenas restava esperar pela derrota final.
- Durante os cento e treze dias de combate, tinham perecido mais de dez mil homens dos nossos, e não sabemos quantos foram feitos prisioneiros nem quantas as baixas entre a população civil nas povoações bombardeadas... isto para não falar das baixas sofridas pelo inimigo... - acrescentou o basco.
Tal como o professor Marcel Lluís Dalmau previra, mesmo antes de morrer, a guerra estava perdida. Não haveria uma paz negociada, como pretendia o Governo. Franco apenas aceitaria uma rendição incondicional. "Não te fies na propaganda franquista. Não haverá clemência nem justiça. Isto vai ser um banho de sangue como foi no resto do país. Estamos completamente fodidos!"
Para Victor, que vivera com Aitor momentos desesperados sem que o sorriso desafiante, as canções ou os gracejos o abandonassem, a expressão sombria do amigo revelou-se mais esclarecedora do que qualquer palavra. O basco retirou da mochila um cantil de bolso e, vertendo um pouco do seu conteúdo no café aguado, entregou-o a Victor.
- Toma isto, vais precisar... - desde que chegara, tentava encontrar a forma mais suave de dar a Victor a má notícia, mas, no fim, apenas conseguiu dizer-lhe sem mais rodeios que Guillem caíra no dia 8 de novembro.
- Como? - foi tudo quanto Victor conseguiu perguntar.
- Uma bomba na trincheira. Desculpa, Victor. Prefiro poupar-te os pormenores...
- Diz-me como - insistiu Victor.
- A bomba despedaçou vários soldados. Não foi sequer possível reconstituir os corpos. Apenas enterrámos os seus restos...
- Então, não conseguiram identificá-los...
- Não propriamente, Victor. Mas sabia-se quem estava naquela trincheira, e Guillem era um deles.
- Mas ainda não é certo, pois não?
- Receio que sim - disse o basco, retirando da mochila uma carteira meio queimada.
Victor abriu cuidadosamente a carteira, que estava a ponto de se desintegrar, e de lá extraiu a identificação militar de Guillem, bem como uma fotografia milagrosamente intacta que mostrava uma jovem junto a um piano de cauda. Permaneceu junto do amigo, sentado aos pés da cama, sem articular palavra durante alguns minutos. Aitor não se atreveu a abraçá-lo como teria desejado, limitando-se a esperar a seu lado, imóvel e em silêncio.
- É a namorada dele. Roser Bruguera. Tencionavam casar no fim da guerra - foi tudo o que Victor finalmente conseguiu dizer.
- Lamento, Victor. Vais ter de lhe dar a notícia.
- Está grávida de seis ou sete meses. Não poderei dizer-lhe até ter a certeza de que Guillem morreu realmente.
- De que certezas precisas mais, Victor? Ninguém sobreviveu naquele buraco.
- Pode ser que na altura do bombardeamento ele não estivesse na trincheira.
- Nesse caso, estaria vivo e bem longe, com a carteira no bolso. E nós já teríamos tido notícias dele. Já passaram dois meses... Não te parece que a carteira é uma prova suficientemente convincente?
Nesse fim de semana, Victor foi a casa dos pais, onde a mãe o esperava com um arroz negro acabado de fazer, graças a uma tigela de arroz conseguida no contrabando, um punhado de dentes de alho e a um polvo que comprara no porto com o relógio que pertencera ao marido. O produto da pesca era diretamente confiscado para uso dos soldados, sendo o restante utilizado em hospitais e infantários, ainda que fosse do conhecimento público que tais alimentos abundavam tanto nas mesas dos políticos como nos restaurantes e hotéis de luxo. Ao ver a mãe tão envelhecida e sumida pelas preocupações, e Roser radiante, ostentando um pronunciado ventre, onde se lia a íntima luminosidade das mulheres grávidas, Victor não foi capaz de lhes dar a notícia da morte de Guillem. Ainda por cima, encontravam-se de luto devido ao falecimento recente de Marcel Lluís. Várias vezes tentou, mas as palavras sempre se lhe congelavam no peito. Decidiu, assim, esperar por melhor oportunidade: depois de Roser dar à luz ou logo que terminasse a guerra. Com o bebé nos braços, pensou, tanto a dor de Carme, por perder o seu filho, como a de Roser, ao ver-se privada do seu amor, seriam certamente mais suportáveis.
III.
1939,
Passaram-se todos os dias de um século,
e seguiram-se depois as horas rentes ao teu exílio...
Pablo Neruda
"Artigas"
Canto Geral.
No dia em que começou o êxodo de Barcelona, em finais de janeiro, ao qual chamariam posteriormente de A Retirada, estava tanto frio que a água se congelava nos canos, e tanto os animais como os carros ficavam pregados ao gelo; o céu, encapelado de nuvens negras, aparentava a coloração de um luto profundo. Foi um dos invernos mais rigorosos de que havia memória. As tropas franquistas aproximavam-se descendo o Tibidabo, e o pânico apoderou-se da população. Centenas de prisioneiros nacionalistas foram arrancados das suas celas e fuzilados à pressa. Os soldados, muitos dos quais feridos, empreenderam uma marcha forçada rumo à fronteira com a França, caminhando atrás de milhares e milhares de civis, famílias inteiras, avós, mães, crianças, recém-nascidos, levando o pouco que podiam, alguns em camionetas, outros de bicicleta, carroça, montados a cavalo ou no lombo de mulas, a maioria a pé, arrastando os seus bens em sacos, uma trágica procissão de desesperados. Para trás deixavam as casas fechadas com os haveres mais queridos. Os animais de estimação seguiam os donos durante algum tempo, mas rapidamente se perdiam, vítimas do alvoroço e da pressa da retirada, ficando para trás.
Victor Dalmau passara a noite a supervisionar a evacuação dos feridos que podiam suportar o transporte nos poucos veículos disponíveis, em camiões ou em comboios. Por volta das oito da manhã, apercebeu-se de que devia cumprir com as instruções do pai, e tentar salvar Roser e a mãe, mas, por outro lado não podia abandonar os seus doentes. Acabou por conseguir encontrar Aitor Ibarra e convenceu-o a levar as duas mulheres. O basco possuía uma velha motorizada alemã com sidecar que constituíra o seu mais valioso tesouro em tempos de paz, mas nos últimos três anos não a usara devido à falta de combustível, pelo que a mantinha a salvo na garagem de um amigo. Dadas as circunstâncias, considerou que se impunham medidas extremas e roubou dois bidões de gasolina do hospital. A mota fez jus à excelente técnica de construção germânica e, à terceira tentativa, arrancou como se não tivesse permanecido por tanto tempo sepultada nas profundezas de uma garagem. Às dez e meia da manhã, Aitor apareceu em casa dos Dalmau, envolto num ruído atroador e na fumarada proveniente do tubo de escape, ziguezagueando a muito custo por entre a multidão que se aglomerava nas ruas na urgência da fuga. Carme e Roser já o esperavam, pois Victor conseguira avisá-las. As indicações que lhes deu eram muito claras: que não se separassem de Aitor Ibarra, que atravessassem a fronteira e que, uma vez do outro lado, entrassem em contacto com a Cruz Vermelha para localizarem uma tal de Elisabeth Eidenbenz, uma enfermeira da sua confiança. Ela seria quem os reuniria quando todos se encontrassem a salvo.
As duas mulheres haviam empacotado roupas quentes, algumas fotografias de família e alguns mantimentos.
Até aos últimos instantes, Carme duvidava da imperiosa necessidade de partir. Dizia que não há mal que sempre dure, e que talvez pudessem esperar e ver no que paravam as coisas. Dizia também não ser capaz de recomeçar, do nada, uma vida noutro país, mas Aitor dissuadiu-a, contando-lhe como procediam os fascistas quando ocupavam uma cidade: em primeiro lugar, bandeiras por toda a parte e uma missa solene na Praça Central, cuja assistência era obrigatória; os vencedores seriam recebidos por uma multidão a estalar em vivas, uma multidão de inimigos da República, que permanecera dissimulada durante três anos, e por outros que, devido ao puro pânico, pretendiam cair nas boas graças dos captores, fazendo-lhes crer que nunca haviam participado da revolução. Cremos em Deus, cremos em Espanha, cremos em Franco! Veneramos Deus, veneramos Espanha, veneramos o generalíssimo Francisco Franco! E logo começava a purga. Os combatentes eram detidos, independentemente de estarem ou não feridos, bem como outras pessoas denunciadas como colaboradores ou suspeitas de participação nalguma atividade considerada antiespanhola ou anticatólica. E essa purga incluía membros de sindicatos, de partidos de esquerda, praticantes de outras religiões, agnósticos, maçons, professores, cientistas, estudiosos de esperanto, filósofos, estrangeiros, judeus, ciganos, e assim continuava a lista interminável dos perseguidos.
- As represálias são uma barbaridade, Dona Carme! Sabia que separam as mães dos filhos e que os entregam a orfanatos de freiras para serem educados na verdadeira fé e nos valores da pátria?
- Os meus já são velhos de mais para isso...
- Foi apenas um exemplo. O que pretendo demonstrar-lhe é que não lhe resta alternativa senão acompanhar-me, porque é evidente que a si a vão fuzilar... por andar a alfabetizar revolucionários e por não frequentar a igreja.
- Olhe, meu jovem: já tenho cinquenta e quatro anos e esta tosse de tísica. Não conto viver muito mais tempo. Que tipo de vida me espera no exílio? Prefiro morrer na minha terra, em minha casa, com ou sem Franco no comando.
Aitor passou os quinze minutos seguintes, em vão, a tentar convencê-la, até que Roser interveio:
- Venha connosco, Dona Carme. Eu e o seu neto precisamos de si. Daqui a algum tempo, quando estivermos instalados e quando soubermos como estão as coisas aqui em Espanha, pode voltar, se quiser.
- Tu és muito mais forte e muito mais determinada do que eu. Vais safar-te muito bem sozinha... E não chores, rapariga!
- Como não hei de chorar?! O que hei de fazer sem a senhora?
- Então está bem. Mas ficas a saber que apenas o faço por ti e pela criança. Se fosse por mim, ficaria aqui a dar o peito às balas!
- Basta, senhoras! - interrompeu Aitor. - Temos de nos apressar!
- E o que faremos com as galinhas?
- Solte-as. Garanto-lhe que alguém as apanhará. Agora, toca a andar!
Roser pretendia viajar na mota, sentada atrás de Aitor, mas, tanto este como Carme convenceram-na a ir no sidecar, onde havia menos perigo de magoar o bebé ou mesmo de sofrer um aborto. Carme, envolta em vários xailes e num manto de Castela pesado como uma carpete, instalou-se no assento de trás. Era tão leve que, sem o peso da capa, certamente não conseguiria segurar-se nem manter-se na mota. Avançavam lentamente pelo meio de uma multidão de gente, de animais de carga e dos mais diversos meios de transporte, a cada passo resvalando e derrapando no caminho polvilhado de geada, defendendo-se dos desesperados que, a cada passo, tentavam à força agarrar-se à mota.
A fuga de Barcelona apresentava um cenário dantesco de milhares e milhares de seres humanos tiritando de frio, uma turba que pouco a pouco se converteu numa penosa procissão que avançava ao ritmo dos amputados, dos feridos, das crianças e dos velhos. Todos os doentes do hospital capazes de se moverem por si juntaram-se ao êxodo, devendo os outros ser transportados de comboio ou de camião até onde fosse possível. O resto não teria outra sorte senão enfrentar as lâminas e as baionetas dos mouros. Pouco depois, deixaram para trás a cidade e encontraram-se em campo aberto. Das pequenas aldeias surgiam os camponeses, alguns com os seus animais e com as carroças apinhadas de embrulhos, e logo se juntavam àquela massa em movimento. Os que ainda dispunham de algum bem de valor logo o trocavam pela possibilidade de seguirem a bordo de qualquer veículo. O dinheiro não valia nada. As mulas e os cavalos arquejavam sob o peso da carga, alguns caíam sem fôlego. Então, os homens atrelavam-se aos arneses e eles mesmos puxavam as carroças com o auxílio das mulheres, que empurravam os veículos pela retaguarda. Pelo caminho ficava um cemitério dos objetos que já ninguém conseguia carregar, desde malas até mobílias. Também iam ficando para trás os feridos e os mortos. Ficavam ali, no lugar em que caíssem, pois ninguém parava para os socorrer. A compaixão esgotara-se. Cada qual olhava apenas por si próprio ou pelos seus. Os aviões da Legião Condor sobrevoavam baixo a semear a morte, e deixavam atrás de si uma esteira de sangue que se misturava com a lama e o gelo do caminho. Muitas das vítimas eram crianças. A comida escasseava. Os mais precavidos haviam levado algumas provisões, que apenas lhes chegaram para um ou dois dias. Os demais viam-se obrigados a suportar a fome, a não ser que algum camponês estivesse disposto a vender-lhes algum alimento. Em silêncio, Aitor amaldiçoava-se por ter deixado as galinhas em casa.
Centenas de milhares de refugiados tentavam, assim, escapar para França, onde os esperava uma campanha de ódio e de terror. Ninguém queria acolher aqueles estrangeiros, aqueles vermelhos, seres repulsivos, sujos, fugitivos, desertores, delinquentes, como lhes chamava a imprensa. Seres que viriam a propagar epidemias, cometer roubos e violações, e, podendo, desencadeariam uma revolução comunista. Ao longo dos últimos três anos, tinham chegado a França, a conta-gotas, espanhóis que tentavam fugir da guerra e que eram recebidos de forma muito pouco amistosa, mas que se foram distribuindo pelo país, de forma que eram praticamente invisíveis. Com a derrota dos republicanos, tudo fazia supor que o fluxo de refugiados aumentaria. As autoridades esperavam um número indeterminado de exilados, no máximo de dez ou quinze mil, cifra que alarmava já a direita francesa. Ninguém poderia ter previsto que, em poucos dias, entraria em território francês cerca de meio milhão de espanhóis, sumidos no mais profundo estado de choque, terror e privação. A primeira medida das autoridades francesas foi a de proceder ao encerramento provisório das fronteiras, enquanto não se encontrava uma solução para o problema.
Nesse dia anoiteceu cedo. Choveu um pouco, ainda assim, o suficiente para empapar as roupas e para converter o solo num lamaçal. Para piorar as coisas, a temperatura desceu vários graus abaixo de zero, acompanhada por um vento cortante, que penetrava até aos ossos. Os viajantes não tiveram alternativa senão cessar a marcha, pois não era possível prosseguir sem luz. Pernoitaram onde e conforme puderam, abrigados sob mantas húmidas, as mães tentando aquecer os filhos, os homens tentando proteger o melhor que podiam as suas famílias e os velhos rezando. Aitor Ibarra acomodou as duas mulheres no sidecar da mota, indicando-lhes que não saíssem dali.
Retirou um cabo do motor para evitar que lha roubassem e foi em busca de um recanto oculto onde pudesse aliviar-se. A diarreia perseguia-o há vários meses, como acontecia com quase todos que haviam estado na Frente. A certa altura, o facho de luz da sua lanterna caiu sobre uma mula imóvel que talvez tivesse as patas partidas ou que simplesmente ali tivesse caído, exausta. Tirou a pistola e matou-a com um tiro na cabeça. Aquele disparo isolado, muito diferente do som da artilharia inimiga, atraiu alguns curiosos. Aitor estava habituado a seguir ordens, não a dá-las, mas, nesse momento, foi bafejado por um inesperado tom de comando, organizou os homens para que esfolassem e desmembrassem o animal, e as mulheres, a quem incumbiu de assar a carne em pequenas fogueiras, que não chamassem a atenção dos aviões. A ideia espalhou-se pela multidão, e, de quando em quando, aqui e ali escutava-se um ou outro tiro. Levou a Carme e a Roser dois pedaços daquela carne duríssima e duas taças de água previamente fervida numa das fogueiras.
- Imaginem que é um carajillo - brincou, acrescentando uma porção de conhaque a cada taça. - Só falta o café!
Guardou um pouco de carne, confiando que o frio a preservaria, e meia baguete de pão que adquirira em troca dos óculos de um aviador italiano que havia morrido. Supôs que aqueles óculos já tinham passado de mão em mão pelo menos vinte vezes antes de chegarem às suas, e que assim continuariam, às voltas pelo mundo, até se desintegrarem.
Carme negou-se a comer aquela carne, afirmando que semelhante sola de sapato lhe partiria os dentes, dando a sua porção a Roser. Em silêncio, planeava, ao abrigo da escuridão da noite, fugir sem que os seus companheiros de viagem se apercebessem. Quase não conseguia respirar com aquele ar gelado. Cada inalação provocava-lhe um ataque de tosse, doía-lhe o peito e ofegava a cada passo.
- Tomara que a pneumonia me leve de uma vez por todas - murmurava.
- Não diga isso, Dona Carme! Pense nos seus filhos! - repreendeu-a Roser, que a ouvira.
- Bem... se não for de pneumonia, morrer congelada não deve ser assim tão mau - cavilava Carme.
Lera algures que assim se suicidavam os anciãos no Polo Norte. Gostaria de conhecer o neto ou a neta ainda por nascer, mas esse desejo ia-se-lhe evaporando do pensamento como um sonho cada vez menos plausível. Apenas importava que Roser chegasse a França sã e salva, que desse à luz em segurança e que em breve se reunisse com Guillem e com Victor. Não queria ser um peso para aqueles jovens. Na sua idade, seria um estorvo. Sem ela, chegariam mais longe e deslocar-se-iam mais depressa. Roser adivinhou as suas intenções, pois nessa noite vigiou-lhe todos os movimentos, até que caiu, rendida pelo cansaço, e adormeceu, encolhida. Não sentiu Carme quando esta se afastou, silenciosa como um felino.
Aitor foi o primeiro a aperceber-se da sua ausência. Sem acordar Roser, ainda o dia não rompera, e já ele fora procurar Carme pelo meio daquele amontoado de sofrida humanidade. Com a lanterna, ia iluminando o chão para evitar pisar alguém. Calculava que também para Carme o avanço fora difícil, e que, portanto, não deveria estar longe. A primeira luz surpreendeu-o a vaguear por entre aquela amálgama de gente e de ruídos, chamando-a por entre outras vozes que também gritavam os nomes de familiares perdidos. Uma menina de uns quatro anos, com a voz rouca de tanto chorar, encharcada e roxa de frio, agarrou-se-lhe às pernas. Aitor limpou-lhe as lágrimas, lamentando não ter com o que agasalhá-la, e levou-a aos ombros, com a esperança de que alguém a pudesse identificar, mas ali ninguém se preocupava com o destino dos outros.
- Como te chamas, minha linda?
- Nuria - murmurou a pequena.
Distraiu-a como pôde, cantarolando aquelas canções dos milicianos que todos conheciam, e que ele trazia impregnadas nos lábios desde há alguns meses.
- Canta comigo, Nuria - disse-lhe. - Cantar diminui a tristeza.
Mas a menina continuou a choramingar. Caminhou com ela aos ombros durante algum tempo, avançando com dificuldade e sempre chamando Carme, até que se deparou com um camião parado na margem do caminho, onde duas enfermeiras distribuíam pão e leite às crianças. Quando lhes explicou que a menina perdera a família, disseram-lhe que deixasse a criança com elas. As restantes crianças que se encontravam próximas do camião também estavam perdidas. Uma hora mais tarde, e sem ter conseguido encontrar Carme, Aitor regressou ao lugar onde deixara Roser. Então aperceberam-se de que Carme partira sem sequer levar consigo o manto de Castela.
Com o raiar do dia, aquela multidão desesperada pôs-se em marcha como uma longa mancha obscura e lenta. O boato de que a fronteira fora fechada e de que uma quantidade cada vez maior de gente se concentrava frente aos postos fronteiriços foi-se espalhando, contribuindo para aumentar o pânico. Levavam já muitas horas sem comer, e as crianças, bem como os velhos e os feridos, encontravam-se cada vez mais debilitados. Centenas de veículos, desde carros de mão a camiões, jaziam abandonados na berma do caminho, ou porque os animais de tração já não fossem capazes de puxar os primeiros ou devido à falta de combustível indispensável aos segundos. Aitor decidiu que deveriam abandonar a estrada, uma vez que ali se encontravam praticamente imobilizados pelo congestionamento da multidão, e aventurar-se através das montanhas, em busca de um ponto de passagem menos vigiado. Roser negou-se a prosseguir sem Carme, mas ele convenceu-a de que certamente Carme alcançaria a fronteira com o resto da turba e voltariam a reunir-se em França. Permaneceram assim, discutindo a questão durante um bom tempo, até que Aitor perdeu a paciência e ameaçou partir sem ela e deixá-la ali, entregue à sua sorte. Roser, que não o conhecia, acreditou que o basco falava a sério. Aitor, que quando rapaz costumava fazer caminhadas na montanha com o pai, deu consigo a pensar que daria tudo para ter o velhote ao seu lado naquele momento. Não foi, porém, o único a ter a mesma ideia. Diversos grupos tomavam já a rota das montanhas. Se o trajeto era duro para Roser, com a sua proeminente barriga de grávida, a ciática e as pernas inchadas, sê-lo-ia ainda pior para as famílias com crianças e com velhos, isto para não falar nos soldados feridos ou amputados, muitos envoltos ainda em bandagens ensanguentadas. A mota apenas lhes serviria enquanto houvesse algum caminho transitável, e o basco duvidava que Roser, no seu estado, fosse capaz de empreender o restante do percurso a pé.
Conforme calculara, o veículo subiu às montanhas até onde pôde, engasgando-se e tossindo fumo, até que por fim parou. A partir desse ponto deviam continuar a pé. Antes de ocultar a mota entre os arbustos, Aitor deu um beijo de despedida àquela máquina, que considerava mais fiel do que uma leal esposa, prometendo-se que, assim que possível, voltaria para a buscar. Roser, com as suas diminutas posses, ajudou-o a organizar e a distribuir os embrulhos, que depois amarraram às costas. Tiveram de abandonar a maior parte, conservando somente o essencial: roupa quente, sapatos suplentes, alguns alimentos e o pouco dinheiro francês que Victor, sempre precavido, havia dado a Aitor. Roser cobriu-se com o manto de Castela e calçou dois pares de luvas, pois devia tentar, a todo o custo, preservar as mãos, caso pretendesse voltar a tocar piano.
Começaram a subir. Roser avançava lentamente, mas com determinação, e sem nunca se deter, ajudada nos trechos mais difíceis por Aitor, que cantava e gracejava incessantemente para a animar, como se houvessem apenas saído para um piquenique. Os poucos viajantes que como eles haviam optado por aquele caminho, e que tinham conseguido alcançar aquela altitude, iam surgindo, e passavam ao largo, com um breve cumprimento. Rapidamente se encontraram completamente sós. O estreito caminho de cabras, resvaladiço devido ao gelo, desapareceu. Os pés afundavam-se-lhes na neve. Seguiam sempre contornando rochas e troncos caídos, bordeando o abismo. Um passo em falso seria suficiente para uma queda de cem metros. As botas de Aitor, que, tal como os binóculos, haviam pertencido a um inimigo que tombara em combate, estavam gastas, mas protegiam-no mais eficazmente que o calçado de cidade de Roser. Pouco tempo depois, nenhum dos dois conseguia sentir os pés. A montanha, imponente, branca, vestida de neve, erguia-se escarpada e ameaçadora contra um céu encoberto. Aitor receava ter-se perdido e pensou que, na melhor das hipóteses, levariam alguns dias a alcançar território francês e, a menos que pudessem juntar-se a outro grupo de refugiados, não o conseguiriam. Maldisse em silêncio a sua ideia peregrina de ter abandonado a estrada, mas tranquilizou Roser, afiançando-lhe que conhecia aquela região como a palma das próprias mãos.
Ao entardecer, avistaram uma luz bruxuleante, e, com um último esforço, conseguiram chegar a um pequeno acampamento. Ao longe, distinguiam os vultos de figuras humanas, e Aitor decidiu aproximar-se, correndo o risco de se tratar de soldados pertencentes aos nacionalistas. A alternativa seria passarem a noite enterrados na neve. Deixou Roser para trás e foi espreitar furtivamente. Divisou quatro tipos magros e barbudos, vestidos de andrajos, um dos quais com a cabeça envolta numa bandagem. Não tinham botas, uniformes, cavalos, ou sequer tendas de campanha. Eram apenas uns mendigos que em nada aparentavam ser soldados, quando muito, um grupelho de bandidos. Por precaução, engatilhou a pistola oculta sob o casaco, uma Luger de fabrico alemão, verdadeiro tesouro nos tempos que corriam, que obtivera meses antes, numa das suas mirabolantes trocas, e foi-se aproximando, com gestos amistosos. Um dos homens, armado com uma espingarda, saiu-lhe ao caminho, seguido de perto por outros dois que portavam escopetas, todos tão desconfiados e receosos como ele próprio. Mediram-se com reserva e a certa distância. Num golpe de inspiração, Aitor saudou-os, primeiro em catalão e depois em eusquera. "Bona nit!(2) Kaixol Gabon!"(3). Após uma pausa, que a Aitor pareceu interminável, o chefe dos homens deu-lhe as boas-vindas: "Ongi etorri, burkide!"(4). Aitor percebeu que eram seus camaradas, provavelmente desertores. Sentiu fraquejarem-lhe os joelhos de alívio. Os homens aproximaram-se cercando-o, mas, ao constatarem a sua atitude pacífica, cumprimentaram-no com palmadas nas costas.
- Chamo-me Eki. Este é o Izan e o irmão, Julen - explicou o que trazia a espingarda. Aitor apresentou-se e acrescentou que viajava acompanhado por uma mulher grávida. Prontificaram-se a acompanhá-lo quando foi buscar Roser. Conduziram-na praticamente em braços ao mísero acampamento, que aos recém-chegados parecia um palácio sumptuoso, pois havia um teto de lona, lume crepitante e alguma comida.
A partir daí, a noite passou-se entre a partilha de más notícias, latas de grão aquecidas no lume e o pouco álcool que restava no cantil de Aitor, que também ofereceu aos seus anfitriões o pedaço de pão e a carne de mula que ainda conservava na mochila.
2. Significa "Boa noite" em catalão. (N. do T.)
3. Saudação equivalente à anterior, mas no idioma basco. (N. do T.)
4. Expressão também na língua basca: "Bem-vindo, companheiro!" (N. do T.)
- Guardem as vossas provisões - determinou Eki. - Far-vos-ão mais falta do que a nós.
E acrescentou que no dia seguinte esperavam um montanheiro que lhes traria alguns mantimentos. Aitor insistiu em retribuir a generosa hospitalidade e deu-lhes o seu tabaco. Nos últimos dois anos, só os ricos se podiam dar ao luxo de fumar cigarros de contrabando, os demais tinham de se contentar com uma mistura de palha e de fetos que desaparecia num sopro. A bolsa de tabaco inglês de Aitor foi recebida com religiosa solenidade. Enrolaram os cigarros e fumaram extasiados e em silêncio. Acomodaram Roser na tenda, com uma botija de água quente para lhe aquecer os pés gelados, e ali lhe serviram a sua ração de grão. Enquanto ela se sumia no sono, Aitor contou aos recém-companheiros a queda de Barcelona, a iminente derrota da República e o caos da retirada rumo a França.
Os outros receberam as notícias sem surpresa, pois já as esperavam. Haviam sobrevivido ao bombardeamento de Guernica pelos temíveis aviões da Legião Condor, que tinham arrasado completamente a histórica cidade basca, deixando no seu rasto não mais que ruínas e mortandade, e tinham também escapado ao fogo das bombas lançadas sobre os bosques próximos, nos quais se haviam refugiado. Lutaram até ao fim no corpo do Exército de Euskadi, durante a Batalha de Bilbau. Antes de a cidade cair em mãos inimigas, o alto-comando basco organizara a evacuação de civis para França, enquanto os soldados continuaram a guerrear repartidos por diversos batalhões. Um ano volvido, Julen e Izan souberam que o pai e o irmão mais novo, presos num calabouço franquista, tinham sido fuzilados. Eram os últimos sobreviventes de uma família numerosa. Assim, decidiram desertar à menor oportunidade. A democracia, a República e a guerra já não faziam para eles qualquer sentido. Já nem sabiam ao certo por que lutavam. Vagueavam por bosques e por serras escarpadas sem se deterem mais que uns poucos dias num mesmo lugar, sob o comando tácito de Eki, que conhecia bem os Pirenéus.
Durante as últimas semanas, à medida que se precipitava o fim da guerra, tinham-se encontrado com outros grupos de homens que também fugiam. Em parte nenhuma estariam a salvo. Em França não seriam tratados com a consideração devida a um exército vencido e em retirada, nem tão-pouco na condição de refugiados. Eram e sempre seriam vistos como desertores. Esperava-os serem deportados para Espanha e entregues às mãos de Franco, pelo que andavam em pequenos grupos, sem terem para onde ir, alguns escondendo-se em cavernas ou nos terrenos mais inacessíveis, tentando manter-se a salvo até que a situação se normalizasse. Outros, imbuídos de algo similar a uma determinação suicida, insistiam em continuar uma luta de guerrilha contra o devastador poderio do exército vencedor, negando-se a aceitar a derrota definitiva do ideal revolucionário pelo qual tanto se tinham batido e tanto tinham sacrificado. Menos ainda podiam aceitar que esse ideal fora, desde o princípio, um sonho. Esse não era, porém, o caso daqueles dois irmãos das montanhas, desiludidos de todo, nem o de Eki, apenas preocupado com o afã de sobreviver, agarrado à esperança de um dia regressar para junto da mulher e dos filhos.
O homem que tinha a cabeça vendada parecia ser ainda muito jovem, e nunca participava nas conversas. Segundo Aitor apurou, tratava-se de um asturiano que ficara combalido e toldado com um ferimento em combate. Entre um e outro gracejo, os outros explicaram a Aitor que não podiam livrar-se dele como pretendiam, pois era dono de pontaria incrível, sendo capaz de atingir uma lebre de olhos fechados. Nunca falhava e nunca desperdiçava uma bala. Era graças a ele, diziam, que, de quando em vez, conseguiam comer um pouco de carne. A prová-lo, tinham uns coelhos prontos para servirem de moeda de troca por outros mantimentos que o tal montanheiro lhes traria no dia seguinte. A Aitor não passou despercebida a brusca ternura com que todos tratavam o asturiano, como se fosse uma criança atrasada. Supuseram que Aitor e Roser eram casados e insistiram para que este ocupasse um lugar no interior da tenda, o que deixaria dois deles expostos à intempérie.
- Faremos turnos - disseram, e negaram-se a aceitar que Aitor fizesse também turno com eles. - Que tipo de anfitriões seríamos? - protestaram, em coro.
Aitor deitou-se, assim, junto de Roser, ela enrolada como um novelo, a proteger o ventre, ele abraçando-a por trás, para a manter quente. Doíam-lhe os ossos, estava alquebrado e temia pela segurança e até pela vida daquela futura mãe. Sentia-se responsável por ela, conforme prometera a Victor Dalmau. Durante a escalada da montanha, Roser insistira que estava bem, que se sentia forte e que ele não se preocupasse com ela.
- Cresci nos montes a criar cabras, tanto no inverno como no verão. Estou habituada à intempérie. Não penses que me canso assim tão facilmente.
Ela deve ter-lhe percebido a apreensão porque, tomando-lhe a mão, colocou-a sobre o seu ventre, para que ele sentisse o movimento.
- Não te preocupes, Aitor. O meu bebé está seguro e contente - disse, entre dois bocejos.
Aquele basco, que vira já tanta morte e tanto sofrimento, tanta violência e tanta maldade, chorou dissimuladamente com o rosto escondido no cabelo da jovem cujo perfume jamais esqueceria. Chorou por ela, que era viúva, por Guillem, que não vivera para conhecer o filho nem voltaria a abraçar a mulher, chorou por Carme, que partira sem se despedir, chorou por si mesmo, porque se sentia exausto e porque, pela primeira vez na vida, duvidava da sua boa estrela.
No dia seguinte, o montanheiro chegou cedo. Avançava lentamente, montado num velho cavalo. Apresentou-se como Ángel, afirmando que esse nome lhe assentava que nem uma luva, pois era o anjo dos desertores e dos fugitivos. Trazia as ansiadas provisões: alguns cartuchos para as espingardas e uma garrafa de aguardente, que serviria para matar o tempo e para desinfetar o ferimento do asturiano. Quando lhe mudaram o curativo, Aitor observou, com assombro, que este tinha um corte profundo e que o crânio afundara ligeiramente na zona do impacto. Pensou que só o intenso frio poderia ter evitado a infeção e que aquele homem devia ter uma constituição de ferro para estar ainda vivo. O montanheiro confirmou-lhes a notícia de que a França, de facto, fechara as fronteiras desde há dois dias e que havia centenas de milhares de refugiados a aguardar, meio mortos de frio e de fome - guardas armados impediam a passagem.
Ángel dizia ser pastor, mas Aitor não se deixou enganar. O homem tinha todo o ar de ser contrabandista, tal como fora o seu pai, um ofício bem mais rentável que o de apascentar cabras. Esclarecido esse ponto, o contrabandista afirmou ter conhecido o velho Ibarra. Por aquelas paragens, disse, todos os que se dedicavam à profissão se conheciam. Os pontos de passagem através da montanha eram poucos e as dificuldades muitas, e o clima era tão rigoroso e temível como as autoridades de ambos os lados da fronteira. Nessas circunstâncias, a solidariedade era um bem indispensável.
- Não somos nenhuns delinquentes. Apenas prestamos um serviço necessário, como certamente o teu pai te terá explicado. É a lei da oferta e da procura.
Dito isto, assegurou-lhes que era impossível chegar a França sem o auxílio de um guia, pois os franceses haviam reforçado os postos fronteiriços, o que os obrigaria a usar uma passagem secreta, extremamente perigosa em qualquer época do ano, principalmente no inverno.
Ele conhecia bem o caminho, porque, no princípio da guerra, diversas vezes o percorrera para conduzir brigadistas internacionais a território espanhol.
- Eram bons rapazes, aqueles estrangeiros... mas muitos não passavam de uns meninos de cidade, e alguns ficaram pelo caminho.
Qualquer um que se atrasasse ou que caísse numa ravina, ali ficava. Ofereceu-se para os levar até ao outro lado e aceitou que o pagamento fosse feito em moeda francesa.
- A sua mulher pode ir no meu cavalo. Nós iremos a pé! -disse a Aitor.
A meio da manhã, depois de terem partilhado uma mistela só a muito custo bebível, que tentava fazer as vezes de café, Aitor e Roser despediram-se dos companheiros e dispuseram-se a prosseguir viagem. O guia avisou-os de que não parariam enquanto houvesse luz, e de que, caso conseguissem aguentar o ritmo da marcha, poderiam passar a noite seguinte num abrigo de pastores. Aitor vigiava-o continuamente, sempre alerta, não fosse dar-se o caso de o guia pretender assaltá-los. Naquelas paragens isoladas e inóspitas, podia muito bem degolá-los. Mais do que o dinheiro, valiam as suas botas, a pistola, o canivete e o manto de Castela. Caminharam horas e horas calados, enregelados, extenuados, com os pés afundando-se na neve. De quando em vez, Roser também os acompanhava a pé, para aliviar o cavalo, que o dono cuidava como se fosse um parente mais velho. Pararam uma ou duas vezes para descansar, beber neve derretida e comer os restos de carne de mula e de pão.
Mal começou a escurecer, e a temperatura desceu a ponto de não lhes ser possível abrirem os olhos devido à nevasca que lhes fustigava as pálpebras, Ángel assinalou-lhes um promontório que se recortava ao longe. Era o refúgio anunciado.
Não passava de uma construção de pedregulhos sobrepostos à laia de tijolos, com uma estreita abertura por porta, por onde introduziram à força o cavalo, para evitar que se congelasse ao relento. O interior, de teto baixo e abobadado, era mais amplo do que fazia crer quando visto do exterior. Havia uns quantos toros de madeira, alguns utensílios rudimentares de cozinha, um par de machados, um monte de palha e um reservatório de água. Aitor acendeu uma fogueira para cozinhar um dos coelhos de Ángel, que também retirara do seu alforge enchidos, queijo duro e um pão escuro e ressequido, ainda assim melhor do que o pão de guerra que Roser fazia na padaria. Depois de comerem e de alimentarem o cavalo, estenderam-se sobre a palha, envoltos em mantas, alumiados pelo fogo.
- Amanhã, antes de continuarmos, devemos deixar este abrigo tal como o encontrámos. Teremos de cortar lenha nova e de encher o reservatório de neve. Outra coisa, gudari(5): não vais precisar da arma. Posso ser contrabandista, mas não sou assassino. Podes dormir tranquilo - disse Ángel.
A travessia dos Pirenéus durou três intermináveis dias e três noites, mas, graças a Ángel, não se perderam nem tiveram de dormir ao relento. Ao fim de cada jornada, encontravam sempre algum lugar onde pernoitar. A segunda noite passaram-na na choupana de dois carvoeiros, com um cão com aspeto de lobo. Os homens, que ganhavam a vida a juntar lenha para obter carvão, eram rudes e pouco hospitaleiros, mas concordaram em dar-lhes guarida em troca de um determinado pagamento.
- Cuidado com estes tipos, gudari! São italianos! - advertiu Ángel a Aitor num sussurro.
5. Palavra no idioma basco. Entre outros significados, era a designação dada aos membros do exército do Governo Basco, durante a Guerra Civil Espanhola. Em contexto isolado, e no singular, significa guerreiro. (N. do T.)
Foi motivo bastante para o basco, que logo entabulou conversa com eles com base nas poucas canções que conhecia naquele idioma. Uma vez superado o desconforto e as suspeitas iniciais, descontraíram, comeram, beberam e instalaram-se a jogar com um baralho de cartas muito surrado. Roser demonstrou ser imbatível. Aprendera a jogar à bisca no colégio das freiras, facto que muito divertiu os anfitriões. De bom grado perderam o pedaço de salame que haviam apostado. Depois, Roser adormeceu recostada nuns sacos estendidos no chão, com a cabeça enterrada na pelagem do cão, que se enroscara nela em busca de calor. Na manhã seguinte, despediu-se dos dois carvoeiros com três beijos no rosto, como impunha o costume, garantindo-lhes que nem dormindo num colchão de penas se teria sentido mais confortável. O cão acompanhou-os durante um trecho do caminho, sempre junto a ela.
Durante a tarde do terceiro dia de marcha, Ángel anunciou-lhes que a partir dali deviam continuar o caminho sós, pois estavam em segurança. Era apenas uma questão de continuar a descer.
- Sigam pela encosta da montanha e irão encontrar um casebre em ruínas, onde podem pernoitar.
Com estas palavras, entregou-lhes um pouco de pão e de queijo, recebeu o pagamento pelos seus préstimos e despediu-se deles com um breve abraço.
- A tua mulher vale ouro, gudari. Cuida bem dela. Já levei por estas montanhas muitos homens, de soldados calejados a criminosos, mas nunca encontrei ninguém como ela, que aguentasse sem um único ai. Ainda por cima tão grávida!
Quando, cerca de uma hora mais tarde, alcançaram o casario, apareceu-lhes um homem armado com uma espingarda. Detiveram-se, imóveis e com a respiração suspensa... Aitor com a pistola engatilhada atrás das costas. Durante uns instantes, que pareceram uma eternidade, contemplaram-se a uma distância de cinquenta metros, até que Roser se decidiu a avançar, gritando que eram refugiados. Ao compreender que um dos forasteiros era uma mulher, e que os visitantes estavam mais assustados do que ele, o homem baixou a arma e chamou-os em catalão:
- Veniu, veniu! No usfaré res.(6)
Não eram os primeiros nem seriam os últimos refugiados que por ali passavam, disse-lhes, e acrescentou que nessa mesma manhã o seu filho partira para França, temendo ser capturado pelos franquistas. Conduziu-os a uma choupana com o chão de terra, à qual faltava parte do teto, oferecendo-lhes a comida que lhe sobrara da última refeição, e finalmente puderam dormir sobre um catre humilde mas limpo, anteriormente pertença do rapaz que se evadira. Algumas horas mais tarde, chegaram mais três espanhóis que também receberam guarida daquele bom homem. Ao amanhecer, deu-lhes a beber um caldo de água quente, sal, uns pedacitos de batatas e umas ervas, que, segundo ele, ajudavam a suportar o frio. Antes de partirem, e de lhes indicar o caminho que deveriam seguir, o homem ofereceu a Roser os últimos cinco torrões de açúcar que possuía, dizendo serem para tornar mais doce a viagem do bebé.
O grupo, encabeçado por Roser e Aitor, dirigiu-se para a fronteira. A marcha estendeu-se por todo o dia, e, conforme lhes dissera o catalão que os hospedara, ao cair da noite, alcançaram um cume do qual avistaram algumas casas com as luzes tremeluzindo. Souberam de imediato que se encontravam em França, pois em Espanha ninguém ousava acender qualquer luz, temendo os bombardeios da aviação. Continuaram a descer nessa direção, até que desembocaram numa estrada onde rapidamente foram abordados por um veículo da garde mobile, a Polícia rural francesa, a quem, de boa vontade, se entregaram, pois encontravam-se já a salvo,
6. Frase em catalão: "Venham, venham! Não vos farei mal." (N. do T.)
nos braços da França solidária, a França da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, a França governada por um Governo de esquerda e presidida por um socialista. Os polícias revistaram-nos sem cerimónias e prontamente retiraram a Aitor a pistola, o canivete, bem como o pouco dinheiro que levavam. Os restantes espanhóis que integravam a expedição iam desarmados. Conduziram-nos ao armazém de um moinho de cereais, convertido em alojamento improvisado para abrigar os refugiados, que chegavam às centenas. O local estava a rebentar pelas costuras, homens, mulheres e crianças, apertados, aterrorizados, meio sufocados pela falta de ventilação e pela poalha do grão que flutuava no ar. Para aliviar a sede, contavam com uns bidões de água de duvidosa potabilidade. Em vez de latrinas, havia apenas uns precários buracos escavados do lado de fora do armazém, onde deviam acocorar-se, sempre vigiados. As mulheres choravam de humilhação enquanto os guardas gozavam. Aitor insistiu em acompanhar Roser, e os guardas, em face do seu avançado estágio de gestação, acederam. Depois, num recanto que lhes oferecia um pouco mais de privacidade, dividiram o último pedaço de pão e o salame fumado que lhes restava, enquanto ele tentava, a todo o custo, protegê-la dos avanços dos mais famintos e desesperados. Começou a espalhar-se a notícia de que aquelas instalações eram apenas um lugar de trânsito e de que em breve seriam enviados para um centro de retenção administrativa. Na realidade, não sabiam o que significava aquela designação.
No dia seguinte, levaram as mulheres e as crianças em camiões militares. Registaram-se cenas de grande agitação e pânico entre as famílias, até porque os polícias acalmavam os ânimos recorrendo a bastonadas. Roser abraçou Aitor, agradecendo-lhe o muito que fizera por ela, afiançou-lhe que iria correr tudo bem e afastou-se, dirigindo-se tranquilamente para o camião que lhe fora designado.
- Vou voltar para te buscar, Roser! Prometo! - conseguiu ainda gritar-lhe Aitor, antes de cair prostrado, blasfemando.
Enquanto a maior parte da população civil escapava como podia rumo à fronteira com a França, seguida pelo exército vencido, Victor Dalmau, os médicos mais obstinados que permaneciam ainda nos seus postos e alguns voluntários transportaram os feridos em comboios, ambulâncias e camiões. As condições eram de tal modo deficitárias que o diretor do hospital se viu obrigado a tomar a dilacerante decisão de deixar para trás os feridos mais graves, uma vez que, de qualquer dos modos, não subsistiriam à viagem, isto para garantir mais vagas aos que tinham ainda hipóteses de sobreviver. Assim partiram, apinhados em vagões de gado, em desengonçados veículos, estirados pelo chão, enregelados, sacudidos de um lado para o outro, extenuados, os combatentes recém-operados, feridos, cegos, febris, amputados, corroídos de tifo, de disenteria ou de gangrena. O pessoal médico, desprovido dos mais elementares meios para aliviar aquele sofrimento, apenas podia oferecer-lhes água, palavras de consolo e, por vezes, caso algum moribundo o solicitasse, orações.
Victor passara mais de dois anos a trabalhar junto dos médicos mais experientes. Aprendera muito na frente de batalha e nos hospitais, onde já ninguém lhe perguntava pelas suas habilitações. Ali apenas a dedicação contava. Ele próprio se esquecia de que lhe faltavam ainda vários anos para se graduar, e, aos pacientes, dizia ser médico, para lhes transmitir uma maior sensação de segurança. Vira feridas pavorosas, assistira a amputações a sangue frio, ajudara moribundos a partir e acreditava ser dotado de uma pele coriácea, impenetrável a todo e qualquer sofrimento. Mas aquele trajeto funesto a bordo dos camiões de transporte de feridos acabou por quebrar toda a sua cordura. Quando os comboios chegavam a Girona, ali permaneciam, parados, à espera da chegada de outros transportes. Depois de trinta e oito horas sem comer nem dormir, enquanto tentava dar água a um rapaz adolescente que lhe morria nos braços, algo no seu interior implodiu. Rasgou-se-me o coração!, cavilou... e, nesse preciso instante, entendeu o significado profundo que aquela frase encerrava. Imaginou ouvir um fragor de vidros que se quebravam e sentir que, do seu ser, a sua essência se vertia inexoravelmente, deixando-o vazio, sem passado nem memória, sem consciência do presente e sem qualquer esperança no futuro. Concluiu que aquela sensação devia ser semelhante à dos homens que não conseguira socorrer e que diante dele se haviam esvaído em sangue. Demasiada dor e demasiada vileza naquela guerra entre irmãos. Mais valia sair derrotado de uma vez do que continuar a matar e ir morrendo.
A França observava, incrédula, como junto às suas fronteiras se aglomerava aquela imensa multidão abatida, que apenas tentava pôr-se a salvo dos militares armados e das temíveis forças do Senegal e da Argélia, que os perseguiam a cavalo, com os seus turbantes, as suas espingardas e os seus chicotes. O país estava a transbordar, vítima desse êxodo de indesejados, como começaram a ser denominados oficialmente. Ao terceiro dia, sob a pressão e a indignação internacionais, o Governo permitiu a entrada das mulheres, das crianças e dos velhos. Depois, a pouco e pouco, foram entrando os civis, e, por último, os combatentes que desfilavam no mais supremo estado de fome e de fadiga, mas cantando e erguendo bem alto o punho, enquanto entregavam as suas armas. Formaram-se grandes pilhas de espingardas de ambos os lados da estrada. Em marcha forçada, foram conduzidos a diversos campos de refugiados, improvisados à última hora para abrigar os espanhóis.
- Allez! Allez-y!(7) - exortavam-nos os guardas, montados a cavalo, por entre insultos, ameaças e chicotadas.
Quando já ninguém se lembrava deles, foram trazendo os feridos que haviam ficado para trás e que haviam sobrevivido. Entre eles estavam Victor e os poucos médicos e enfermeiros que os tinham acompanhado a França. Foram admitidos no país com mais facilidade do que as anteriores levas de refugiados, mas não tiveram melhor acolhimento. Não poucas vezes, os feridos eram atendidos de má catadura, em escolas, estações, ou até em plena rua, pois os hospitais locais não tinham condições logísticas para os receber, e, de resto... mais ninguém os queria. Entre a massa dos indesejáveis, eram estes os mais necessitados de tudo. Não havia suficientes recursos nem pessoal médico para atender a tantos pacientes. Permitiram a Victor continuar a tratar dos homens sob sua responsabilidade, o que lhe concedeu uma certa liberdade.
Depois de ser separada de Aitor, Roser foi conduzida, juntamente com outras mulheres e crianças, para o campo de refugiados de Argelès-sur-Mer, a trinta e cinco quilómetros da fronteira, onde já se encontravam milhares de espanhóis. Era uma praia cercada e vigiada por polícias e por tropas senegalesas. Areia, mar e arame farpado. Roser compreendeu que ali não passavam de meros prisioneiros, abandonados à sua sorte, e disse para si mesma que iria sobreviver, fosse como fosse. Se resistira à dura travessia das montanhas, iria suportar o que o futuro lhe tivesse reservado, pela criança que dentro de si germinava e pela esperança de voltar a encontrar-se com Guillem. Os refugiados permaneciam expostos ao frio, à intempérie e à chuva, sem as mínimas condições de higiene.
7. Frase em francês: "Toca a andar. Mexam-se! Despachem-se!" (N. do T.)
Não contavam sequer com água potável ou com latrinas. Dos poços que a custo conseguiam escavar, brotava uma água salgada, turva e contaminada de fezes, de urina e dos cadáveres que não eram retirados a tempo. As mulheres tentavam permanecer em grupos para se defenderem do assédio sexual dos guardas e de alguns refugiados, que, após terem perdido tudo, tinham também perdido a mais elementar noção de decência. Com as mãos, Roser escavou um buraco para se conseguir deitar e se proteger do vento de tramontana, um vento gélido que trazia consigo uma areia abrasiva que cegava e se enfiava por todas as partes do corpo, que rasgava a pele, produzindo chagas que depressa infecionavam. Uma vez por dia eram distribuídas tigelas de um caldo aguado de lentilhas, café frio, e por vezes passavam camiões que lhes lançavam baguetes de pão. Os homens lutavam de morte para as apanhar. As mulheres e as crianças recebiam algumas migalhas, caso alguém se apiedasse deles e estivesse disposto a partilhar a sua porção. Muitos morriam. Trinta ou quarenta por dia. Morriam primeiro as crianças de disenteria, seguiam-se os velhos, vítimas de pneumonia, e depois, todos ao acaso, por tudo e por nada, ao menor sopro, iam morrendo as suas mortes. Durante a noite, faziam-se turnos para que uns ficassem incumbidos de, a intervalos de dez ou quinze minutos, despertarem os outros, para que não morressem congelados. Uma mulher que escavara o seu abrigo junto ao de Roser amanheceu abraçada ao cadáver da filha, de apenas cinco meses. A temperatura descera abaixo de zero. Outros refugiados levaram o corpo da menina para o sepultarem num lugar mais afastado da praia. Roser não largou a mãe, que permanecia muda e imóvel, sem lágrimas, o olhar perdido no horizonte. Nessa mesma noite, a mulher entrou no mar e nadou para longe, até que se afogou. Não foi a única. Muito tempo mais tarde, o mundo haveria de trazer à luz o saldo de vidas perdidas naqueles campos de refugiados.
Ali morreram cerca de quinze mil pessoas, vítimas de inanição, maus-tratos, de fome e de toda a sorte de doenças diversas. Em cada dez, nove crianças pereceram.
Finalmente, as autoridades instalaram as mulheres e as crianças num lado da praia separado do dos homens por duas filas cerradas de arame farpado. Começaram também a chegar materiais para a construção de barracões, que os próprios refugiados eram obrigados a erigir. Ordenaram aos homens que construíssem os abrigos para as mulheres. Roser solicitou permissão para falar com o oficial responsável pelo campo e convenceu-o a organizar a distribuição dos poucos alimentos existentes, para que as mães não tivessem de lutar por alguns escassos pedaços de pão para os filhos. Nessa altura, chegaram duas enfermeiras da Cruz Vermelha a distribuir vacinas e leite em pó, dando instruções de que a água devia ser fervida e filtrada com um pano antes de prepararem os biberões para os recém-nascidos. Também traziam mantas, roupa quente para as crianças, bem como uma lista de nomes de várias famílias francesas dispostas a empregar algumas espanholas como domésticas ou em indústrias de pequena produção. Mas davam preferência às mulheres que não tivessem filhos. Por intermédio das duas enfermeiras, Roser enviou uma mensagem a Elisabeth Eidenbenz, na esperança de que esta se encontrasse em França. "Digam-lhe que sou cunhada de Victor Dalmau e que estou grávida."
Primeiramente, Elisabeth acompanhara os combatentes na Frente, e posteriormente, assim que a derrota se tornou iminente, acompanhou a massa de fugitivos rumo ao exílio. Cruzou a fronteira com a sua bata branca e o seu uniforme azul sem que ninguém a pudesse deter. Recebeu o recado de Roser entre centenas de petições e de pedidos de ajuda, e talvez não lhe tivesse dado prioridade, não fora o nome de Victor Dalmau. Recordava com certa ternura aquele homem tímido que tocava guitarra e que pretendera casar com ela.
Perguntara-se amiúde o que fora feito dele, e era um consolo imaginá-lo vivo. No dia seguinte a ter recebido a mensagem, dirigiu-se a Argelès-sur-Mer para resgatar Roser Bruguera. Conhecia de sobra as deploráveis condições em que se vivia nos campos de concentração, mas, mesmo assim, comoveu-a a visão daquela jovem desgrenhada e suja, pálida, com olheiras profundas, os olhos inflamados da areia, e tão magra que o avultado ventre parecia flutuar e existir independentemente do corpo. Apesar do seu estado, Roser apresentou-se-lhe altiva, com voz segura, e intacta a sua dignidade de sempre. Nada nas suas palavras revelava angústia, como se estivesse em pleno domínio das circunstâncias adversas que a rodeavam.
- Victor deu-nos o seu nome, senhorita. Disse que nos serviria de elo para que nos reencontrássemos.
- Quem está contigo?
- De momento, estou sozinha, mas em breve chegarão Victor e Guillem. Ele é o pai do bebé. Talvez venha também a mãe deles e um amigo... Aitor Ibarra. Assim que chegarem, diga-lhes, por favor, onde estou. Espero que consigam encontrar-me antes de a criança nascer.
- Roser, não podes ficar aqui. Estou a tentar ajudar as mulheres grávidas e as que têm bebés de peito. Nenhum recém-nascido consegue sobreviver nestas circunstâncias.
Contou-lhe que tinha criado uma instituição para receber as futuras mães, mas que, como era grande a procura e limitado o espaço, tinha um palacete abandonado em Elne debaixo de olho, onde pretendia fundar uma maternidade adequada... um oásis para as mães e os seus bebés em meio de tanta aflição e sofrimento. Era, porém, necessário reconstruí-lo, tarefa que iria demorar meses.
- Mas tu não podes esperar, Roser. Tens de sair daqui
imediatamente.
- Mas... como?
- O diretor sabe que virás comigo. Aliás, para eles não há o menor problema. A única coisa que lhes importa é livrarem-se dos refugiados o quanto antes, estão a tentar que sejam repatriados. Quem conseguir trabalho livra-se dessa sentença. Vamos.
- Há tantas mulheres e crianças aqui... e grávidas também.
- Farei tudo o que puder. Em breve voltarei com ajuda. E assim foi. No exterior do campo, esperava-as um carro
com o dístico da Cruz Vermelha. Elisabeth determinou que, antes de tudo, Roser precisava de se alimentar, e levou-a ao primeiro restaurante que lhes surgiu. Os poucos clientes que ali estavam a essa hora não dissimularam a sua repulsa perante aquela mendiga imunda e malcheirosa que acompanhava a resplandecente enfermeira. Roser comeu todo o pão da mesa antes de servirem o ensopado de frango. A jovem suíça conduzia o carro como se de uma bicicleta se tratasse, ziguezagueando por entre os outros veículos, subindo os passeios e ignorando arbitrariamente os sentidos de prioridade e os sinais de trânsito, que considerava de observância facultativa, e assim chegaram em pouco tempo a Perpignan. Instalou Roser na casa que funcionava como maternidade, e onde residiam mais oito mulheres jovens, umas prestes a dar à luz, outras já com os seus recém-nascidos nos braços. Receberam-na com aquele afeto desprovido de sentimentalismo tão característico dos espanhóis. Deram-lhe uma toalha, sabão e champô, e disseram-lhe que deveria tomar um bom banho, enquanto elas tentariam arranjar roupas que lhe servissem. Uma hora mais tarde, Roser apresentou-se diante de Elisabeth, limpa, com o cabelo ainda molhado, vestindo uma saia negra, uma curta túnica de lã, que mal lhe cobria o ventre, e sapatos de salto alto. Nessa mesma noite, Elisabeth levou-a a casa de um casal de ingleses quakers com quem colaborara na Frente de Madrid, tentando arranjar roupa, alimento e proteção para as crianças vítimas do conflito.
- Ficarás com eles o tempo que for necessário, Roser. Pelo menos até dares à luz. Depois se verá. São pessoas muito boas. Os quakers estão sempre onde mais se necessita. São uma espécie de santos... os únicos que respeito e em que acredito!
IV.
1939,
Louvo os hábitos e as virtudes
de pequenos burgueses suburbanos.
Pablo Neruda
"Subúrbios".
Coração Dourado.
O Reina del Pacífico zarpou do porto chileno de Valparaíso em inícios de maio, chegando a Liverpool vinte e sete dias depois. Na Europa, a primavera dava lugar a um verão incerto, ameaçado pelos tambores de uma guerra inevitável. Uns meses antes, as principais potências europeias haviam assinado o Acordo de Munique, que Hitler não tinha a menor intenção de cumprir. O mundo ocidental observava, petrificado, a expansão dos nazis. A bordo do Reina del Pacífico, todavia, os ecos do conflito que se avizinhava chegavam abafados pela distância e pelo ruído dos seus motores a diesel, que impulsionavam aquela cidade flutuante de 17 702 toneladas ao longo de dois oceanos. Para os 162 passageiros de segunda classe, e para os 446 que viajavam em terceira, a travessia tornava-se incómoda com o passo do tempo, mas, a bordo da primeira classe, os inconvenientes característicos de uma navegação de longo curso desapareciam sob um ambiente refinado, onde os dias passavam num ápice, e o ímpeto das vagas não afetava o prazer da viagem. Na coberta superior praticamente não se ouviam os motores. Ali prevaleciam os sons delicados de música ambiente, da conversa em vários idiomas falados pelos 280 passageiros e do contínuo ir e vir de marinheiros e oficiais fardados de branco da cabeça aos pés, de camareiros com uniformes cravejados de botões dourados, de uma orquestra e de um quarteto feminino de cordas, e do incessante retinir de copos de cristal, louça de porcelana e talheres de prata. A cozinha apenas descansava durante a hora que precedia o amanhecer.
Na sua suite de dois quartos, dotada de dois quartos de banho, sala e terraço privativo, Laura del Solar gemia de frustração, tentando enfiar-se à força numa cinta elástica, enquanto o seu vestido de gala esperava estendido sobre a cama. Tinha-o reservado para essa noite, a penúltima da viagem, em que todos os passageiros de primeira classe faziam sair dos baús a mais elegante das toilettes e das jóias. A sua modista de Santiago já havia alargado em seis centímetros o seu traje drapeado de cetim azul, desenhado por Chanel, encomendado em Buenos Aires, mas, depois de várias semanas de navegação, deixara de lhe servir. Frente ao espelho de cristal biselado, o marido, Isidro del Solar, compunha o nó da gravata branca do traje de cerimónia com expressão satisfeita. Menos guloso e mais disciplinado que a mulher, conseguira manter-se em forma e, aos cinquenta e nove anos, era ainda um homem com boa figura. Diferentemente do que ocorrera com Laura, deformada pela maternidade e pelo consumo de doces, ele pouco mudara ao longo dos anos desde que se haviam casado. Laura deixou-se cair numa poltrona forrada de tecido de Gobelins, desolada, a cabeça inclinada e os ombros esmorecidos.
- O que se passa, Laurita?
- Importa-se se não o acompanhar esta noite, Isidro? Dói-me terrivelmente a cabeça.
O marido plantou-se-lhe diante, com aquela expressão de supremo aborrecimento que, invariavelmente, acabava por derrotá-la.
- Tome umas aspirinas, Laurita. Não se esqueça de que hoje temos o jantar do comandante. Conseguimos uma mesa de destaque. Foi uma epopeia subornar o mordomo para arranjar o lugar. Seremos oito pessoas, pelo que a sua ausência será muito notada.
- Mas sinto-me tão mal, Isidro...
- Peço-lhe que faça um esforço. Para mim é um jantar de negócios... muito importante. Vamos dividir a mesa com o senador Trueba e com dois empresários ingleses interessados em comprar a minha lã. Lembra-se de que já lhe falei deles? Já tenho uma primeira oferta de uma fábrica de uniformes militares de Hamburgo, mas é muito difícil entendermo-nos com os alemães.
- Não creio que a esposa do senador Trueba esteja presente.
- É uma mulher muito extravagante. Dizem que fala com os mortos! - acrescentou Isidro.
- Toda a gente fala com os mortos de vez em quando, Isidro!
- Que disparate, Laurita!
- A verdade é que o vestido deixou de me servir...
- E o que importam uns quilos a mais? Ponha outro vestido. Fica linda de qualquer forma! - disse ele, no tom indiferente de quem estava habituado a repetir o mesmo galanteio centenas de vezes.
- Como não hei de engordar, Isidro? Desde que estamos a bordo não fazemos outra coisa a não ser comer, comer e comer...
- Bem... podia ter feito algum exercício... por exemplo, nadar na piscina!
- Nem pense que eu me ia mostrar a esta gente em fato de banho!
- Não posso obrigá-la, Laurita, mas insisto: este jantar é muito importante e a sua presença também o é. Não me deixe na mão. Vou ajudá-la a apertar o vestido. Ponha aquele colar de safiras. Ficará muito bem!
- É demasiado ostensivo!
- Nada disso! É até modesto, se o compararmos com outras jóias que têm desfilado aqui no barco - disse Isidro, abrindo o cofre com uma chave que retirara de um bolso do casaco.
Subitamente sentiu saudades do seu terraço de camélias e de Leonardo a brincar naquele refúgio, onde podia isolar-se e resguardar-se do egoísmo e da incessante atividade do marido, a rezar e a bordar em paz. Isidro del Solar era o seu fado, mas o casamento pesava-lhe como um fardo. Dava consigo a invejar a sorte da irmã mais nova, a doce Teresa, freira de clausura, absorta na meditação, nas leituras sagradas e nos bordados de enxoval para as jovens da alta sociedade. Uma existência consagrada a Deus, sem padecer dos seus problemas, sem ter de se preocupar com os melodramas dos filhos e dos parentes, de ter de supervisionar as empregadas domésticas, de perder tempo com visitas sociais, de ter de cumprir com o papel de esposa dedicada. Isidro era omnipresente. O universo girava em torno dele, de todos os seus desejos e caprichos. Assim haviam sido o seu avô e o seu pai. Assim eram, em suma, todos os homens.
- Anime-se, Laurita! - disse Isidro, lutando com o diminuto fecho da jóia que tentava ajustar-lhe no pescoço. - Quero que se divirta e que esta viagem seja memorável!
Memorável fora a viagem que tinham feito há alguns anos a bordo do recém-inaugurado Normandie, um transatlântico com um imenso restaurante com capacidade para 700 comensais, com candeeiros e vitrais desenhados por Lalique, com decoração art déco e com o seu jardim de inverno povoado de gaiolas de pássaros exóticos. Em apenas cinco dias entre França e Nova Iorque, os Del Solar tinham-se deparado com um luxo desconhecido no Chile, onde a sobriedade era tida como suprema virtude. Quanto maior era a fortuna de cada um, mais cuidado era necessário para a ocultar. Apenas os emigrantes árabes enriquecidos à custa do comércio faziam alarde da sua riqueza... mas Laura não os conhecia. Esse tipo de gente estava condenado a permanecer fora dos seus círculos sociais, e sempre assim seria. Fora com o seu marido numa espécie de segunda lua de mel, a bordo do Normandie, após ter deixado os cinco filhos a cargo dos avós, da precetora inglesa e das demais empregadas da casa. O resultado foi uma gravidez inesperada. Estava certa de que fora nessa travessia que haviam concebido Leonardo, pobre inocente. O Bebé nascera vários anos depois de Ofélia, até então a mais nova da família.
Ainda que o Reina del Pacífico não pudesse competir em matéria de luxo com o Normandie, não estava nada mal. Laura tomava o pequeno-almoço na cama, como sempre fazia, arranjava-se por volta das dez da manhã e dirigia-se à capela do navio, onde assistia à missa. Por vezes ia apanhar ar na ponte, onde tinha uma espreguiçadeira reservada, e logo um empregado se apressava a servir-lhe uma sopa de carne de vaca acompanhada de diversos aperitivos. Depois chegava a hora do almoço, sempre constando de pelo menos quatro pratos, e depois era o chá, sempre acompanhado de pãezinhos e de doces variados. Apenas lhe sobrava tempo para dormir uma sesta e para jogar uma partida de canasta, antes de ter de se vestir para os cocktails e para o jantar, onde devia sorrir perpetuamente e demonstrar atenção às conversas alheias. Depois vinha o baile, de presença obrigatória. Isidro era um bom dançarino, e tinha um bom ouvido para a música, mas ela movia-se com a graciosidade de um elefante numa loja de porcelanas. À ceia da meia-noite, servia-se champanhe, foie gras, caviar e sobremesas várias. Laura abstinha-se dos três primeiros, mas não conseguia resistir aos doces. Na noite anterior, o chef, um francês excêntrico, presenteara os hóspedes com uma orgia de chocolate, cuja principal atração era uma fonte que brotava chocolate derretido pela boca de um peixe de cristal.
Para ela, esta viagem não passava de mais uma das imposições do marido. Se fossem umas verdadeiras férias, teria preferido uma temporada na sua propriedade no sul do país, ou na sua casa de praia em Vina del Mar, onde os dias transcorriam lânguidos e ociosos: longos passeios, o chá servido à sombra das árvores e terços rezados com as crianças e os criados. Para Isidro, aquela viagem à Europa representava a oportunidade de estabelecer novas e produtivas relações sociais, bem como de instituir novos vínculos comerciais. Trazia uma programação predeterminada para cada capital que visitavam. Laura sentira-se defraudada e enganada. Na realidade, aquela não era uma viagem de férias. Isidro era um visionário, tal como ele próprio se definia. No seio da família de Laura, tal qualidade afigurava-se suspeita, pois a facilidade para ganhar dinheiro graças à participação em aventuras comerciais era característica dos novos-ricos, os parvenus, os arrivistas. Apenas toleravam esse defeito em Isidro devido à sua indubitável boa linhagem espanhola-basca. Nada de sangue árabe ou judeu! Provinha de um ramo dos Del Solar de intocável estirpe, exceto pelo seu pai, que, já homem maduro, se apaixonara por uma professora de instrução primária, tendo com ela dois filhos antes que tudo fosse descoberto. A sua enorme família, bem como outras da mesma posição social, cerrara fileiras em torno da esposa e dos filhos legítimos, mas ele negara-se a abandonar a amante. O escândalo destruiu-o. Isidro contava quinze anos e nunca mais voltara a ver o pai, que, embora vivendo na mesma cidade, havia descido vários degraus na rígida hierarquia social de então, desaparecendo do seu antigo meio. O drama era sobejamente conhecido por todos, mas ninguém comentava o ocorrido. Os irmãos haviam socorrido a esposa abandonada, dando-lhe uma pensão mínima, e empregaram Isidro, o mais velho dos filhos, que se viu obrigado a deixar o colégio para começar a trabalhar. O rapaz, no entanto, revelara-se mais inteligente e enérgico que toda a sua parentela junta, tendo, no espaço de poucos anos, realcançado a situação económica à qual pertencera. Orgulhava-se de jamais ter pedido a alguém fosse o que fosse. Aos vinte e nove anos, pedira a mão de Laura Vizcarra, alicerçado na sua boa reputação, e devido ao facto de ser proprietário de vários negócios tidos como aceitáveis no seu meio social: criação de ovelhas na Patagónia, importação de antiguidades provenientes do Peru e do Equador, facto que lhe atribuía poucos lucros, mas grande prestígio. A família da noiva, descendente direta de Dom Pedro Vizcarra, governador interino daquela colónia durante o século XVI, era um clã católico, ultraconservador, de mentalidade tacanha e inculta. Os seus membros viviam, nasciam, casavam-se e morriam entre si, sem que lhes passasse pelo pensamento a ideia de se misturarem com pessoas alheias ao seu meio, e sem qualquer interesse em conhecer as novas tendências que despontavam naquele século. Eram, de todo, impermeáveis à ciência, à arte e à literatura. Isidro apenas foi aceite, pois conquistou a simpatia de todos, e conseguiu provar que era remotamente aparentado com os Vizcarra por via materna.
A bordo do Reina del Pacífico, passou os vinte e tantos dias de navegação cultivando os seus contactos e praticando desporto. Jogava ténis de mesa e tinha aulas de esgrima. Começava o dia dando algumas voltas pelo convés, em marcha rápida, e terminava-o por volta da meia-noite, na companhia de conhecidos e de amigos, no bar ou no salão de fumadores, que, por hábito, as damas não frequentavam. Os homens falavam de negócios, mas sempre com fingida indiferença, pois não era de bom-tom mostrar grande interesse quando o tema de conversa era dinheiro. Por outro lado, as questões de política eram discutidas fervorosamente. Inteiravam-se das principais novidades internacionais através do jornal de bordo, duas páginas impressas com as notícias que chegavam por telégrafo, e que eram distribuídas todas as manhãs aos passageiros. Chegada a tarde, careciam já de atualização. Tudo se alterava vertiginosamente. O mundo, tal como o haviam conhecido, mergulhava numa confusão sem precedentes. Comparativamente com a Europa, o Chile era ainda um paraíso atrasado e distante. Era um facto que, no momento, tinha um Governo de centro-esquerda, e que o Presidente pertencia ao Partido Radical e era maçon, detestado pela direita, um político cujo nome não se pronunciava entre as "famílias bem". Mas iria durar pouco. A esquerda, mercê do seu realismo rancoroso e da sua vulgaridade, não tinha futuro. Os donos do Chile encarregar-se-iam de lhe pôr termo. Isidro fazia as refeições na companhia da esposa e com ela assistia aos espetáculos da tarde. A bordo, ofereciam-se sessões de teatro, música, cinema, circo, ventríloquos, conferências de hipnotizadores e de videntes, que provocavam um profundo fascínio entre as mulheres e comentários jocosos entre os homens. Expansivo e bon vivant, Isidro assistia a tudo com um charuto numa das mãos e um copo na outra, sem se deixar afetar pela atitude da esposa, escandalizada perante tanta forçada alegria, que tresandava a pecado e a dissipação.
Laura olhou-se ao espelho, evitando, a custo, as lágrimas. O vestido ficaria esplêndido noutra mulher, noutro corpo, pensava. Ela não o merecia... como, aliás, não se considerava merecedora de tudo quanto possuía. Era consciente da sua situação privilegiada, da boa sorte de ter nascido no seio da família Vizcarra, de ter casado com Isidro del Solar, e de tantas outras regalias obtidas misteriosamente, sem que para tal tivesse de empreender qualquer esforço. Sempre se sentira protegida. Sempre tivera quem a servisse e quem prouvesse as suas necessidades. Dera à luz seis filhos e jamais mudara uma fralda ou preparara um biberão. Dessas tarefas encarregava-se a boa Juana, que supervisionava tanto as amas como as empregadas. Juana criara, assim, todas as crianças da família, inclusive Felipe, que, em breve, cumpriria vinte e nove anos. A Laura nunca ocorrera perguntar a Juana quantos anos tinha ou há quantos trabalhava em sua casa. Tão-pouco se recordava de quando e de como ali chegara. Deus dera-lhe demasiado. E porquê a ela? Não fazia a menor ideia. E o que lhe pediria em troca? Essa dívida pendente com a divindade atormentava-a. A bordo do Normandie, por simples curiosidade, fora espreitar às instalações da terceira classe, ainda que violando as instruções recebidas, sempre no sentido de os passageiros não se misturarem com viajantes de outras classes, principalmente por razões de higiene, conforme rezava o aviso afixado na porta da sua suite. Se se desse o infeliz acaso de alastrar uma epidemia de tuberculose, ou de qualquer doença contagiosa, poderiam ficar todos de quarentena, explicou-lhe o oficial que a repreendeu pelo sucedido. Laura, porém, conseguira ver o suficiente para comprovar o que presenciara sempre que se deslocara, na companhia de outras senhoras católicas, a praticar ações de caridade nas povoações dos arredores: os pobres eram diferentes, tinham outra cor, um cheiro estranho, o cabelo sem brilho e a roupa gasta e desbotada. Quem seriam os integrantes da terceira classe? Não pareciam miseráveis nem desesperados como os indigentes de Santiago, ainda que apresentassem a mesma cor pardacenta. Porquê eles e não eu?, perguntava-se Laura, num misto de alívio e de vergonha. A pergunta insistiu em ficar ali, a pairar-lhe no pensamento como um ruído incómodo.
No Reina del Pacífico, a divisão de passageiros pelas diferentes classes era feita tendo em linha de conta critérios semelhantes aos adotados no Normandie, mas aqui o contraste parecia menos dramático, em parte porque os tempos haviam mudado, e em parte porque este navio era menos luxuoso. Os passageiros que viajavam na classe turística, como agora se denominava aos que tinham o seu lugar nas cobertas inferiores, provenientes do Chile, do Peru e outros portos do Pacífico, eram funcionários públicos, estudantes, pequenos comerciantes, ou imigrantes que regressavam à Europa para visitarem as suas famílias. Laura apercebeu-se de que estes se divertiam muito mais do que os de primeira classe, desfrutando de um ambiente muito mais festivo e descontraído, com cantorias, bailes, concursos vários, jogos e cerveja abundante. Ninguém era obrigado a vestir um tweed para almoçar, seda para o chá e traje de gala para o jantar.
Nessa penúltima noite de viagem, em frente ao espelho, enfiada no seu traje, perfumada e com o colar que herdara da mãe, Laura só queria tomar o seu cálice de xerez com umas gotas de valeriana e enfiar-se na cama a dormir, durante meses, até ao fim da viagem... até se encontrar de regresso a casa, com os seus quartos frescos e arejados, na sua intimidade. E sentia sobretudo saudades de Leonardo. Era um suplício passar tanto tempo longe do filho. Temia que quando regressasse talvez ele não a reconhecesse. A sua memória era frágil, aliás, como tudo nele. E se adoecesse? Melhor nem pensar nisso. Deus dera-lhe cinco filhos normais, e, por último, enviara-lhe aquela alma pura... Dormir... dormir... dormir... A frustração queimava-lhe o peito. Sentia um grunhido sufocado na garganta. No fim de contas, eu é que tenho sempre de ceder. Faça-se sempre a vontade de Isidro... primeiro ele, segundo ele e terceiro ele! Não se cansa de mo repetir, ainda por cima como se tivesse muita piada!, e o pior é que eu aceito sem protestar... Quem me dera ficar viúva!
Devia combater esses pensamentos recorrentes com orações e penitências. Desejar a morte de outra pessoa constituía um pecado mortal. Isidro tinha mau génio, era verdade, mas era um bom marido e um excelente pai. Não merecia tal, de mais a mais, partindo da sua esposa, aquela que jurara lealdade, fidelidade e obediência. Queres ver que, além de gorda, estou a enlouquecer?, suspirou, e achou aquela conclusão divertidíssima, a ponto de lhe provocar um sorriso de satisfação, que o marido interpretou como um sinal de aquiescência.
- Assim já gosto mais, minha querida! - e dirigiu-se para o quarto de banho a cantarolar.
Ofélia entrou na suite dos pais sem bater à porta. Aos dezanove anos, continuava a ser uma jovem impertinente. Quando começaria a crescer?, perguntava-se o pai, sem conseguir zangar-se, uma vez que, dos seus descendentes, Ofélia, além de ser a sua favorita, era a única que se lhe parecia, audaz e teimosa, impossível de dobrar. A rapariga não tinha vocação para os estudos. Quando no colégio, apenas concluíra o ensino regulamentar, pois as freiras desejavam a todo o custo livrar-se dela. Havia aprendido muito pouco durante os doze anos de escolaridade, mas lá se arranjava para dissimular a sua ignorância com simpatia, e graças a um instinto que lhe ditava que se mantivesse em silêncio e observasse. A sua boa memória não lhe foi suficiente para passar a História ou aprender as regras de multiplicação, mas sabia de cor as letras de todas as canções que passavam na rádio. Era distraída, coquete e demasiado atraente. O pai temia que fosse presa fácil de homens sem escrúpulos. Todos os oficiais de bordo, bem como metade da tripulação civil masculina, incluindo os anciãos, traziam-na debaixo de olho. Disso tinha certeza. Mais do que um lhe comentara o talento que a filha possuía, referindo-se às aguarelas que esta pintava no convés do navio; claro estava que não a rondavam apenas pelo prazer de admirar os seus insípidos quadritos, mas por outros motivos bem diversos. Isidro esperava vê-la casada em breve. Desta forma, passaria a ser da responsabilidade de Matias Eyzaguirre - farinha de outro saco, como dizia -, e poderia, enfim, respirar tranquilo. Por outro lado, seria preferível esperar mais um pouco... caso se casasse demasiado jovem, cedo se converteria, como as irmãs, numa matrona azeda.
Partindo do Chile, no Sul remoto da América, a viagem à Europa era uma epopeia longa e cara, luxo ao alcance da bolsa de poucas famílias. Os Del Solar não se contavam entre as maiores fortunas chilenas, como talvez teriam sido, no caso de o pai de Isidro não ter dissipado toda a herança que recebera antes de abandonar a família. Ainda assim, andavam lá perto. Em todo o caso, no Chile, a posição social dependia muito mais da linhagem do que do dinheiro. Diferentemente de muitas famílias ricas, mas de mentalidade provinciana, Isidro acreditava que era fundamental conhecer o mundo. O Chile era uma espécie de ilha, a norte delimitada pelo mais inóspito dos desertos, a este pela impenetrável Cordilheira dos Andes, a oeste pelo Oceano Pacífico e a sul pelo gelado continente da Antártida. Justificadamente, os chilenos viviam voltados para o próprio umbigo, enquanto lá fora o século XX se precipitava vertiginosamente sobre o resto do mundo num galope desenfreado. Para ele, viajar era um investimento necessário. Aos dois filhos mais velhos, enviou-os para os Estados Unidos e para a Europa, mal tiveram idade suficiente, e desejara ter oferecido a mesma possibilidade às filhas, não se tivesse dado o caso de elas terem casado antes de ter encontrado uma oportunidade adequada para realizar a sua vontade. Não iria cometer o mesmo descuido com Ofélia. Deveria retirá-la do seu ambiente de reclusão e de poeira católica em Santiago e dar-lhe um banho de cultura. Congeminava secretamente um plano que nem sua mulher conhecia, que consistia em deixar Ofélia num colégio para raparigas em Londres, ao terminarem a viagem de regresso. Um ou dois anos de educação britânica assentar-lhe-iam como uma luva. Poderia, além disso, melhorar o seu inglês, que desde menina estudara com as precetoras e com alguns professores privados, como ocorrera, aliás, com o resto dos seus filhos, menos Leonardo, por razões óbvias. O inglês, pensava, seria o idioma do futuro, a menos que a Alemanha se apoderasse da Europa. Um colégio em Londres era do que a sua filha estava a precisar, antes de se casar com Matias Eyzaguirre, o seu eterno prometido, que começava a construir um futuro promissor na carreira diplomática.
Ofélia ocupava o segundo quarto da suite, separado do dos seus pais por uma porta comunicante. Durante dias reinara o mais absoluto caos no seu camarote. Baús, malas e chapeleiras abertas, roupa, sapatos e cosméticos espalhados por todo o lado, raquetes de ténis e revistas de moda juncando o chão. Sempre atendida por criados para qualquer necessidade, a jovem flutuava pelo mundo semeando confusão, sem nunca se perguntar quem arrumaria ou limparia a desordem que deixava à sua passagem. Bastava o toque de uma sineta para que alguém aparecesse prontamente a servi-la. Para essa noite, escolhera um vestido provocador, justo e decotado, que causou uma exclamação de enfado ao seu pai:
- Onde arranjou esse vestido tão ordinário? Não me diga
que é a última moda!
- Papá, não quer ver-me de hábito como a tia Teresa, pois
não?
- E não seja insolente! O que iria pensar Matias se a visse
nesses preparos?
- Ficaria de boca aberta, papá! Aliás, como sempre! E não se iluda, papá! Não penso casar-me com ele!
- Então não deveria dar-lhe esperanças.
- É muito beato...
- Preferia que fosse ateu?
- Não o quero nem pintado de ouro, papá! Mamã, vinha pedir-lhe emprestado o colar da avó, mas vejo que o vai usar. E fica-lhe muito bem!
- Ponha-o a menina, Ofelita! Vai ficar-lhe melhor a si do que a mim - apressou-se a dizer a mãe, levando prontamente as mãos ao fecho da jóia.
- De maneira nenhuma, Laura. Já não me ouviu dizer que faço questão que o use esta noite? - interrompeu-a secamente o marido.
- Que importância tem, Isidro? Vai ficar melhor à menina.
- Se importa ou não, decido eu. Importa, sim! E basta! Ofélia, ponha um lenço ou vista um casaco. Está muito decotada... - acrescentou, recordando-se da vergonha que passara durante o baile de máscaras que se realizara a bordo, quando sulcavam o Equador. Ofélia surgiu transformada em odalisca, trajando um véu sobre o rosto e uma túnica bastante reveladora das formas que abrigava.
- Faça de conta que não me conhece, papá. Felizmente, não terei de me sentar à sua mesa com aqueles velhotes enfastiantes. Espero ficar numa mesa com tipos com boa pinta!
- Não seja vulgar! - respondeu-lhe o pai, antes de ela sair com um gesto de dança de flamenco.
O jantar oferecido pelo comandante pareceu eterno a Laura e a Ofélia del Solar. Após a sobremesa, um vulcão de gelado coberto de merengue, e com uma chama acesa no centro, sob o pretexto de dores de cabeça, a mãe retirou-se para os seus aposentos. Ofélia deixou-se ficar no salão, dançando swing ao som de potentes e arrebatadores trompetes. Bebeu demasiado champanhe e terminou a noite num recanto escondido do convés, aos beijos com um oficial escocês de cabelos cor de cenoura e mãos atrevidas. E ali a encontrou o seu pai:
- Pelo amor de Deus! Os desgostos que me dá. Não sabe que as histórias têm asas? Matias vai tomar conhecimento disto antes de atracarmos em Liverpool. Vai ver...
Em Santiago, na casa da Rua Mar del Plata, respirava-se um alento de férias prolongadas. Os patrões tinham partido há quatro semanas e já nem sequer o cão sentia a sua falta. Se bem que aquela ausência não fizesse com que os empregados da casa descurassem os seus deveres, ninguém se afadigava demasiado. O rádio, em tom atroador, emitia radionovelas o tempo todo, boleros e relatos de desafios de futebol, e havia tempo até para dormir uma sesta. Até Leonardo parecia satisfeito, e ainda que muito apegado à mãe, deixara de perguntar por ela. Era a primeira vez que se separavam, e, longe de o lamentar, a criança aproveitava para explorar à sua vontade os recantos proibidos daquela mansão gigantesca: a cave, a cavalariça, a arrecadação e o sótão. Felipe, o filho mais velho, a cargo da casa e do irmão, assumia essas funções com displicência, não só por não ser dotado de vocação de chefe de família, mas também porque o preocupavam problemas mais interessantes e urgentes. A política pegava fogo com a questão dos refugiados espanhóis, de forma que para ele tanto dava se às refeições se servia caranguejo ou apenas uma sopa aguada, ou que o Bebé dormisse com o cão. Não conferia a contabilidade do armazém, e caso lhe pedissem instruções de como proceder, invariavelmente respondia que fizessem o que sempre se fazia quando era o seu pai a decidir.
Juana Nancucheo, mestiça, com sangue crioulo dos índios mapuches do sul do país, de idade indeterminável, baixa de estatura, mas robusta e sólida como as árvores ancestrais dos bosques de onde provinha, de longa trança e pele citrina, de temperamento brusco mas leal, presidia os destinos da lida doméstica da casa com pulso firme desde tempos imemoriais.
Dirigia sem vacilar todo o pessoal, desde as criadas de quarto, a cozinheira, a lavadeira, o jardineiro e o homem encarregado das tarefas mais pesadas: encerar o chão, apanhar lenha, carregar o carvão e tratar das galinhas. Ninguém sabia o seu nome; era simplesmente "o moço dos recados". O único que escapava à vigilância de Juana era o chauffeur, que vivia nos fundos da garagem e respondia diretamente perante os patrões. Segundo ela, esse facto permitia-lhe esticar frequentemente a corda. Tinha-o debaixo de olho. Estava certa de que o homem não era de fiar e que, às escondidas, trazia mulheres para o quarto.
- Nesta casa há demasiados empregados - costumava lamentar-se Isidro del Solar.
- E quem quer despedir, patrão? - contestava-lhe ela.
- Ninguém... digo apenas por dizer - retratava-se ele de imediato.
- Até tem uma certa razão... - admitia Juana com os seus botões.
As crianças tinham crescido e na casa havia vários quartos fechados. As duas filhas mais velhas estavam casadas e já com filhos; o segundo filho vagava pelas Caraíbas a estudar as alterações climatéricas, ainda que, segundo Juana, a tais fenómenos não era necessário estudá-los, mas suportá-los simplesmente; e Felipe, que se mantinha solteiro, mas vivia na sua própria casa. Restava apenas a menina Ofélia, que em breve se casaria com o jovem Matias, tão cavalheiro, tão gentil, tão apaixonado por ela, e o Bebé, o seu anjinho... e esse ficaria sempre junto de si, pois nunca cresceria como os demais.
Os patrões já haviam viajado outras vezes, antes de Leonardo ter nascido, e quando as crianças eram ainda pequenas, e, tal como agora, ela ficara totalmente responsável pelo cuidado da casa. Nessa altura, desempenhara as suas funções sem ouvir sequer uma chamada de atenção, mas desta vez os patrões haviam decidido deixar Felipe no comando dos destinos familiares e domésticos, como se ela fosse uma tola inútil que já não servisse para nada. Tantos anos a trabalhar para aquela família, para agora receber aquele insulto como paga por tanta dedicação, ruminava. Sentia vontade de fazer as malas e de partir em busca da sua sorte noutras paragens, mas a verdade é que não tinha para onde ir. Deveria contar uns seis ou sete anos quando a ofereceram a Vicente Vizcarra, o pai de Laura, como retribuição de um favor. Fora no tempo em que o senhor Vizcarra negociava com madeiras finas, mas desse tempo já nada sobrava, bem como dos fragrantes bosques mapuches, há muito derrotados pelos machados e pelas serras. Haviam sido substituídos por árvores vulgares, plantadas em fileiras regulares como soldados vegetais, apenas para cumprirem a desconsolada função de estarem ali. Juana não passava de uma miúda descalça, que apenas entendia um punhado de palavras em espanhol. A sua língua nativa era o mapudungún. Apesar do seu as-peto de criatura selvagem, Vizcarra aceitou tomá-la a seu serviço, pois uma recusa constituiria uma enorme ofensa ao seu devedor. Levou-a para Santiago e entregou-a ao cuidado da sua esposa, que por sua vez a colocou sob a vigilância das outras empregadas da casa, a fim de que estas a instruíssem nas mais elementares lides domésticas. O resto Juana foi aprendendo sozinha, graças à sua capacidade de observar e à sua vontade de obedecer. Quando Laura, uma das filhas do senhor Vizcarra, se casou com Isidro del Solar, mandaram Juana com Laura para o seu novo lar. Juana calculava que nesse tempo devia contar uns dezoito anos, ainda que, como ninguém a registara, legalmente nem sequer existisse. Desde o princípio, Laura e Isidro confiavam nela cegamente, tendo-lhe atribuído a função de governanta da casa. Um dia, gaguejando, atreveu-se a perguntar aos patrões se poderia receber um pequeno salário, que a perdoassem por pedir tal coisa... apenas para pequenos gastos.
- Mas como é que te vamos pagar um salário se tu és da família? - foi quanto ouviu por resposta.
- Peço desculpa, mas não sou da família. Faço apenas parte do pessoal da casa... - E foi assim que Juana Nancucheo começou a receber um salário modesto, que gastava em guloseimas para as crianças e num par de sapatos novos por ano, poupando o resto. Ninguém conhecia melhor do que ela cada membro da família. Era a guardiã dos segredos. Quando nasceu Leonardo, e se tornou facto notório que era diferente das outras crianças, com a sua expressão eternamente doce, Juana prometeu a si mesma que viveria o tempo necessário para cuidar dele até aos últimos momentos. O Bebé tinha graves problemas de coração e, segundo os médicos, não viveria muito. Todavia, o instinto e o abnegado carinho de Juana contrariavam esse prognóstico sombrio. Com paciência e dedicação, ensinou-o a comer sozinho e a utilizar o quarto de banho. Outras famílias escondiam as crianças como ele, envergonhando-se delas e considerando-as uma punição divina. Mas, graças a ela, com Leonardo foi diferente. Desde que se encontrasse limpo, e sem gritos nem birras, os pais apresentavam-no a quem quer que fosse como um filho entre os demais.
Felipe, o mais velho dos filhos, era a luz dos olhos de Juana Nancucheo, e continuou a sê-lo, mesmo após o nascimento de Leonardo, pois consagrava a ambos diferentes tipos de amor. A Felipe considerava-o o seu mentor, o baluarte que cuidaria dela na velhice. Sempre fora um bom rapaz. Era advogado, mas a sua verdadeira vocação eram as artes, as tertúlias e a troca de ideias... nada que servisse de muito nesta vida, como dizia o pai. Ensinara Juana a ler, a escrever e a fazer contas à mão, à medida que ele próprio ia aprendendo no colégio católico onde eram educados os filhos das famílias mais conservadoras e ilustres do país. Isso uniu-os numa firme cumplicidade. Juana encobria-lhe as travessuras e ele mantinha-a informada do mundo. "O que anda a ler agora, menino Felipe?", "Espera que termine o livro e logo te conto a história... é de piratas!", ou: "Este não te interessa, Juana. É sobre os fenícios, que viveram há já muito tempo, e hoje em dia ninguém se importa com eles. Não sei por que raio é que os padres insistem em que aprendamos estas idiotices." Felipe crescera em idade e em altura, mas continuou a contar-lhe as suas leituras e a explicar-lhe as coisas do mundo, e, mais tarde, aconselhou-a a investir as suas poupanças em ações, as mesmas que Isidro del Solar comprava. Tinha para com Juana gestos ternurentos: sorrateiramente introduzia-se no seu quarto e deixava-lhe sob o travesseiro caramelos ou algum dinheiro. Por seu turno, Juana passava a vida em cuidados com a saúde de Felipe. Era um rapaz frágil, apanhava um resfriado à mínima corrente de ar e sofria de indigestões quando, por qualquer motivo, se enervava, ou se a comida fosse pesada. Felipe era, à sua maneira, tão ingénuo como Leonardo: incapaz de perceber qualquer traço de maldade ou de falsidade nas pessoas. Era distraído e tudo perdia, ou de tudo se esquecia. Tinham-no por idealista. E, sendo um coração mole, frequentemente se aproveitavam dele, não poucas vezes emprestando dinheiro que jamais lhe devolviam, ou contribuindo para causas nobres, mas que Juana considerava inúteis, pois, como dizia, o mundo não tinha remédio. Razão tinha ele em nunca se ter casado. Que mulher iria aguentar os caprichos dos homens, em geral tão pouco razoáveis? Isidro del Solar, de igual forma, não via com bons olhos os ímpetos de generosidade do filho, que iam muito além de meros impulsos de caridade, e que, segundo ele, lhe afetavam a clareza do pensamento. "Qualquer dia aparece-nos por aqui a dizer que se tornou comunista!", suspirava. As discussões que mantinham eram terríveis. Terminavam sempre abruptamente, e tudo por assuntos alheios à família, como o estado do país ou do mundo, coisa que, sustentava Juana, a nenhum dos dois incumbia. Após um desses confrontos particularmente violento, Felipe decidiu mudar-se para uma casa que alugara a seis quarteirões de distância. Juana ficou escandalizada, pois um filho que se preze apenas deve deixar a casa paterna para casar, nunca antes, mas o resto da família aceitou o sucedido sem dramas. No entanto, Felipe não cortou o contacto com os Del Solar. Almoçava diariamente em casa dos pais, e era necessário preparar-lhe a dieta e cuidar para que a sua roupa estivesse sempre devidamente passada como ele gostava. Juana ia a casa de Felipe a fim de vigiar o trabalho das suas empregadas, duas índias preguiçosas e desleixadas, o que, para ela, significava apenas um aumento de trabalho. Na sua opinião, melhor seria que Felipe tivesse ficado em casa dos pais, no seu quarto de solteiro. O conflito de Felipe com o pai parecia eternizar-se, mas uma grave crise hepática de Laura fez com que se reconciliassem.
Juana lembrava-se perfeitamente da causa que originara aquela última discussão, pois fora algo que convulsionara o país até aos alicerces, e ainda era assunto de debate nas rádios. Ocorrera na primavera do ano anterior, tempo de eleições presidenciais. Havia três candidatos: um, o favorito de Isidro del Solar, um milionário conservador com fama de especulador, outro do Partido Radical, de cariz mais doutrinário, advogado e deputado, no qual Felipe tencionava votar, e um outro, um general que fora já Presidente, como ditador, e era apoiado, entre outros, pelo partido dos nazis. Este último não agradava a nenhum dos membros da família Del Solar. Quando pequeno, Felipe possuía uma coleção de soldadinhos de chumbo, réplicas do exército prussiano. Mas perdeu toda a simpatia pelos alemães assim que Hitler alcançou o poder.
- Já viste como os nazis desfilam pelas ruas de Santiago, Juana? Com o punho erguido e aqueles uniformes pardos! Que coisa tão ridícula!
Sim. Claro que ela já os vira... e sabia da chegada desse tal de Hitler apenas porque Felipe lhe falara dele.
- O seu pai estava convicto da vitória do candidato que
ele apoiava...
- Sim, porque aqui ganha sempre a direita. Os apoiantes do general, inconformados com o resultado das eleições, tentaram, sem sucesso, provocar um golpe de Estado.
- Disseram na rádio que mataram um grupo de jovens
à queima-roupa.
- Não passava de uma mão-cheia de nazis exaltados, Juana. Tomaram as instalações da Universidade do Chile e outro edifício mesmo em frente do Palácio Presidencial. A polícia e os militares reprimiram-nos rapidamente. Renderam-se e estavam desarmados, mas mataram-nos do mesmo modo. Tinham ordens de não poupar a vida a nenhum deles.
- O seu paizinho diz que foi bem feito... de tão imbecis
que foram!
- Ninguém merece isso, Juana. O meu pai devia ter mais cuidado com aquilo que diz. Foi uma matança indigna do povo chileno. O país está revoltado. E esse gesto custou as eleições à direita. Agora temos um Presidente radical. Como sabes, quem ganhou foi Pedro Aguirre Cerda.
- E o que significa isso, menino Felipe?
- É um homem de ideias progressistas. Segundo o meu pai, é um esquerdista. Aliás, é assim que ele designa todos os que não pensam como ele.
Para Juana, os conceitos de esquerda e de direita eram direções a seguir nas ruas e não características das pessoas, e o nome daquele Presidente nada significava. Não pertencia, além do mais, a nenhuma família conhecida.
- Pedro Aguirre Cerda representa a Frente Popular, formada por partidos de centro e de esquerda, como ocorreu em França e em Espanha. Lembras-te de que te falei da Guerra Civil Espanhola?
- Sim... e isso quer dizer que pode acontecer o mesmo aqui?
- Espero que não, Juana. Se pudesses votar, deverias votar no Pedro Aguirre Cerda. Um dia as mulheres poderão votar. Garanto-te!
- E o menino Felipe em quem votou?
- Em Pedro Aguirre Cerda. Era o melhor candidato.
- O seu paizinho não gosta dele.
- Mas eu gosto... e tu também!
- Eu não percebo nada dessas coisas...
- Mas deverias procurar informar-te. A Frente Popular representa os trabalhadores, os camponeses, os mineiros do norte do país e as pessoas como tu.
- Eu não sou nenhuma dessas coisas... e o menino Felipe também não. Eu sou empregada doméstica.
- Tu pertences à classe trabalhadora, Juana!
- Que eu saiba, o menino é de classe alta. Não entendo porque foi votar nos trabalhadores.
- Falta-te instrução, Juana. O Presidente diz que governar é educar. Prometeu educação grátis e obrigatória para todas as crianças chilenas, saúde pública para todos. Melhores salários. Fortalecer o poder dos sindicatos... o que te parece?
- Para mim é tudo igual.
- Mas que insensível! Como é que podes dizer que para ti tanto se te dá! Fez-te muita falta não teres ido à escola.
- O menino Felipe é muito instruído, mas nem sequer sabe tomar conta de si. E aproveito para lhe dizer que não me traga gente para almoçar aqui em casa sem avisar. A cozinheira fica furiosa e eu não quero passar vergonhas... nem que andem por aí a dizer que não sabemos receber como Deus manda.
Além disso, muito intelectuais hão de ser também os seus amigos..., mas bebem as bebidas do seu pai sem permissão. Só quero ver o que ele vai dizer quando voltar e se aperceber de tudo o que falta na garrafeira!
Era o penúltimo sábado do mês, dia da reunião do Clube dos Indignados, o grupo de tertúlia dos companheiros de Felipe, como lhes chamava Juana Nancucheo. Normalmente reuniam-se na casa de Felipe, mas agora, devido à ausência dos pais, Felipe recebia-os na casa da Rua Mar del Plata, onde a comida era sempre excelente. Apesar de não gostar daquela turba de gente, Juana esforçava-se por conseguir ostras frescas e por lhes servir os mais apurados e apetitosos guisados da cozinheira, uma mulherona de mau génio, mas dotada de uma excelente mão para a cozinha. Os amigos de Felipe eram membros do Clube de la Unión, como todos os membros pertencentes à sua classe. Ali se discutiam não só problemas pessoais, como também assuntos financeiros e a situação política do país. Mas aqueles salões lúgubres, com painéis de madeira escura e poltronas de felpa, com os seus lampadários de vidrilhos, eram um cenário que se prestava pouco às animadas discussões filosóficas dos Indignados. Além disso, o Clube de la Unión admitia apenas homens... e o que seria daquelas tertúlias sem a presença refrescante de algumas mulheres solteiras e de espírito livre, artistas, escritoras, aventureiras de gabarito, entre as quais se contava, a título de exemplo, uma amazona de apelido croata, que viajava sozinha para lugares remotos que nem sequer constavam dos mapas? O tema recorrente dos últimos três anos fora a Guerra Civil Espanhola, nos últimos meses incidindo sobre a situação dramática dos refugiados republicanos que, desde janeiro, esperavam e iam morrendo indefinidamente nos campos de concentração franceses. O êxodo em massa de catalães rumo à fronteira com a França coincidiu com o pior terramoto de que havia memória na história do Chile. Ainda que Felipe se considerasse um racionalista incurável, viu nessa coincidência um chamamento à compaixão e à solidariedade. O terramoto deixou um saldo de vinte e tal mil mortos e umas quantas cidades arrasadas, mas, comparativamente, a Guerra Civil Espanhola, com o seu rasto de centenas de milhares de mortos, feridos e refugiados, era uma tragédia de muito maiores dimensões.
Nessa noite contavam com um convidado especial, Pablo Neruda, que aos trinta e quatro anos era considerado o melhor poeta da sua geração, um feito notável, tendo em linha de conta que no Chile os poetas proliferavam como as ervas daninhas. Alguns dos seus Vinte Poemas de Amor tinham-se convertido em peças do repertório indispensável do folclore popular, e até os analfabetos o recitavam. Neruda era um homem do Sul, nascido da chuva e da madeira, filho de um ferroviário, que declamava os seus versos numa voz cavernosa e que se definia como frontal e determinado. Personagem polémico devido à sua celebridade e à sua simpatia pela esquerda, principalmente pelo Partido Comunista, no qual futuramente viria a militar, havia sido cônsul na Argentina, na Birmânia, no Ceilão, em Espanha e, mais recentemente, em França, porque os sucessivos Governos preferiam mantê-lo afastado da pátria, segundo postulavam os seus adversários políticos e literários. Em Madrid, onde estivera até pouco tempo antes de rebentar a Guerra Civil, travou conhecimento e fez amizade com intelectuais e poetas, entre outros, Federico Garcia Lorca, assassinado pelos franquistas, e António Machado, morto em França, numa aldeia próxima da fronteira durante a retirada. Publicara um livro louvando as façanhas dos combatentes republicanos, Espanha no Coração, quinhentos exemplares numerados, impressos pelo Exército Miliciano do Este na Abadia de Montserrat, em plena guerra, impressos no papel que então se encontrava disponível, ou feito do que havia mais à mão, desde uma camisa ensanguentada até uma bandeira inimiga. O livro também fora publicado no Chile, em edição corrente, mas Felipe possuía um dos exemplares originais. "E o sangue das crianças corria pelas ruas / assim mesmo, somente como sangue de crianças. / [...} Vinde ver o desfile do sangue pelas ruas. / Vinde ver / o desfile do sangue pelas ruas. Vinde ver o desfile do sangue / pelas ruas!" Neruda amava Espanha de todo o coração, e detestava de tal forma o fascismo, e tão profundamente se preocupava com a sorte e com o futuro dos republicanos vencidos, que conseguira convencer o Presidente a admitir alguns deles no Chile, desafiando, assim, a intransigência da oposição, principalmente os partidos de direita e a Igreja Católica. E fora justamente para falar desse tema que fora convidado para aquela reunião dos Indignados. Estava de passagem por Santiago, após várias semanas a angariar ajuda económica para os refugiados na Argentina e no Uruguai. Como dizia a imprensa da direita, outros países ofereciam dinheiro, porque ninguém queria acolher aqueles vermelhos, violadores de freiras, assassinos, gente belicosa, judeus e ateus sem escrúpulos, que fariam tremer a segurança e a paz do país.
Neruda anunciou aos Indignados que partiria nos próximos dias para Paris como cônsul para os assuntos de emigração espanhola.
- No consulado chileno da França não me vêem com bons olhos. São todos uns agentes infiltrados da direita, decididos a sabotar a minha missão! - disse o poeta. - O Governo envia-me sem um tostão no bolso, e tenho de conseguir um barco. A ver como me arranjo...
Explicou que tinha ordens para escolher trabalhadores especializados que pudessem ensinar os seus ofícios a trabalhadores chilenos, gente pacífica e honesta. Nada de políticos, jornalistas ou intelectuais potencialmente perigosos.
Segundo Neruda, a política e os critérios de imigração chilenos sempre haviam sido segregacionistas. Existiam instruções internas segundo as quais os cônsules deveriam negar vistos a pessoas pertencentes a diversas etnias, e provenientes de determinadas nacionalidades, por exemplo, a ciganos, negros, judeus e orientais, designação sobremaneira vaga, onde cabiam diversas nacionalidades sem distinção. Além da xenofobia, havia agora a exigência política: nada de comunistas, socialistas nem anarquistas, mas como estes ditames não se encontravam especificados por escrito, ainda havia alguma margem de ação. Neruda tinha uma tarefa hercúlea pela frente. Devia financiar e preparar um barco para o transporte, selecionar os emigrantes e garantir-lhes os meios indispensáveis ao seu sustento, no caso de não disporem no Chile de parentes ou amigos que os recebessem. Tratava-se de três milhões de pesos que deveriam ser depositados no Banco Central antes do embarque.
- De quantos refugiados estamos a falar? - perguntou-lhe Felipe.
- Serão cerca de mil e quinhentos... talvez mais. Não podemos trazer apenas os homens e deixar para trás as mulheres e as crianças.
- E quando chegarão?
- No final de agosto ou no início de setembro.
- Ou seja, temos mais ou menos três meses para organizar tudo... conseguir-lhes ajuda económica, trabalho e habitação. Também é preciso levar a cabo uma campanha para contrariar a propaganda direitista, e mobilizar a população e a opinião pública em favor destes espanhóis - advogou Felipe.
- Isso não será difícil. A simpatia popular está com os republicanos. A maior parte da população espanhola residente no Chile, nomeadamente os catalães e os bascos, está disposta a ajudar.
Cerca da uma hora da manhã, os Indignados deram por concluída a reunião e Felipe foi no seu Ford deixar o poeta na casa onde este se encontrava hospedado. Ao regressar, deparou-se com Juana, que o esperava com um bule de café fumegante.
- O que se passa, Juana? Já devias estar a dormir.
- Estive a ouvir o que diziam os seus compinchas...
- Estiveste a espiar-nos?
- Parecem uns mortos de fome... isto para não falar no que bebem... e essas mulheres de olhos pintados ainda bebem mais do que os homens. Não passam de uma chusma de ordinários. Nunca cumprimentam nem agradecem.
- Não acredito que estiveste à minha espera este tempo todo só para me dizeres isso.
- Não... estive à sua espera para me explicar porque é que esse poeta é tão famoso. Pôs-se para aí a recitar e nunca mais se calava... uma tolice qualquer sobre peixes com casacos e olhos de crepúsculo. Vá lá entender-se essa maluquice!
- São metáforas, Juana. É poesia!
- E se fosse brincar com a sua avó, que Deus a tenha? Como é que eu não havia de saber o que é poesia? Poesia é a minha língua: o mapudungún. Aposto que o menino Felipe não sabe isso, nem esse Neruda! Há muitos anos que não ouço a minha língua, mas lembro-me perfeitamente do som de cada palavra. Poesia é tudo o que fica na cabeça e jamais se esquece...
- Assim como a música é tudo o que se pode assobiar e cantarolar, verdade?
- Foi o menino Felipe quem mo explicou.
Isidro del Solar recebeu o telegrama do filho no último dia da sua estadia no Savoy, depois de um mês inteiro na Grã-Bretanha, em companhia da mulher e da filha.
Em Londres visitaram todos os pontos turísticos obrigatórios, foram a óperas, ao teatro, a corridas de cavalos e a diversos concertos. O embaixador do Chile na Inglaterra, outro dos numerosos primos de Laura Vizcarra, colocou à sua disposição um carro oficial para poderem passear no campo e visitarem as universidades de Oxford e de Cambridge. Também fez com que fossem convidados para um almoço num castelo de um duque ou de um marquês, não tinha a certeza, pois no Chile há muito que os títulos nobiliárquicos haviam sido abolidos e já ninguém os recordava. O embaixador instruiu-os nas regras de comportamento, de vestuário e de etiqueta. Deveriam fingir que os criados não existiam, mas era de bom-tom saudar os cães, deviam também abster-se de comentar a comida, mas extasiar-se com a beleza e o aroma das rosas, usar roupa simples, com um aspeto gasto. Nada de folhos nem de gravatas de seda, pois no campo a nobreza trajava modestamente. Foram à Escócia, onde Isidro acordara um negócio de exportação da sua lã da Patagónia, e também a Gales, onde pensava conseguir o mesmo, ainda que sem resultados promissores.
Às escondidas da mulher e da filha, Isidro visitou uma conceituada escola de boas maneiras para raparigas que datava do século XVII, uma mansão apavorante situada mesmo defronte dos jardins do Palácio de Kensington. Ali, Ofélia deveria aprender etiqueta, como relacionar-se socialmente, a receber convenientemente os convidados, como escolher um menu apropriado para cada ocasião, bem como regras de conduta: postura, apresentação pessoal e decoração da casa, entre outras qualidades feminis que lhe faziam muita falta. Uma lástima que a sua mulher não tivesse aprendido nada disso, pensava Isidro... Seria um negócio bem rentável fundar um desses estabelecimentos no Chile para refinar tantas donzelas que vicejavam por aquelas bandas. Futuramente, tencionava estudar seriamente essa possibilidade. Por agora, manteria ocultos os seus planos a Ofélia, pois teria um ataque de birra e estragar-lhes-ia o resto da viagem. Tencionava comunicar-lhe a notícia apenas no final, quando já não houvesse tempo nem hipótese para histerismos.
Estavam no salão de abóbadas de cristal do hotel, uma perfeita sinfonia resplandecente, dourada e marfim, a tomar o indispensável chá das cinco, em chávenas de porcelana trabalhada, quando se lhes dirigiu um empregado trajando uniforme de almirante, trazendo o telegrama de Felipe: "Exilados do poeta ocuparão quartos. Juana não liberta as chaves. Mande instruções." Ele leu três vezes a missiva e passou-a, incrédulo, à sua mulher e a Ofélia.
- O que significa esta merda?
- Por favor, não fale assim diante da menina.
- Espero que o Felipe não tenha dado em maricas - murmurou.
- O que pretende fazer? - inquiriu Laura.
- Mandá-lo para o raio que o parta!
- Será melhor não dizer nada. Com o tempo tudo se arranja. Não se zangue, Isidro.
- A que se refere o meu irmão? - perguntou Ofélia.
- A nada que nos interesse - replicou-lhe o pai.
Um telegrama de conteúdo idêntico esperava-os no hotel em Paris. Isidro, a muito custo, conseguia ler o Le Figaro, pois apenas aprendera alguns rudimentos de francês no liceu, mas como não falava inglês, durante a sua estada em Inglaterra não acompanhara as notícias. Pela leitura do jornal, inteirou-se de que o Partido Comunista Francês, juntamente com o Departamento de Evacuação de Refugiados Espanhóis, adquirira um barco de transporte chamado Winnipeg, e estavam a prepará-lo para enviar cerca de dois mil exilados para o Chile. Quase teve uma apoplexia. Era só o que faltava... ainda por cima naqueles tempos tão desgraçados, grunhiu. Primeiro, um Presidente do Partido Radical, depois, o terramoto apocalíptico... e agora queriam encher o país de comunistas!
Foi então que este novo telegrama se lhe revelou em todo o seu sinistro sentido: Felipe não pretendia nada mais, nada menos do que meter aquela corja na sua própria casa. Bendita Juana, que não o permitia.
- Explique-me o que significa isso dos exilados, papá! - insistia Ofélia.
- Pois bem, minha querida, é assim: houve em Espanha uma revolução de gente muito má, uma coisa horrível... e os militares ergueram-se na defesa dos valores da moral e da pátria. E venceram, claro está!
- E o que é que ganharam?
- A Guerra Civil. Salvaram Espanha. E os exilados de que fala Felipe são os cobardes que perderam e que fugiram para França.
- E porque fugiram eles?
- Porque perderam e porque, se ficassem, teriam de sofrer o merecido ajuste de contas.
- Parece-me que há muitas mulheres e crianças entre os refugiados, Isidro. O jornal fala em centenas de milhares -interveio Laura timidamente.
- E o que interessa isso? O que é que o Chile tem que ver com tudo isto? É tudo culpa daquele comuna do Neruda. E o Felipe não tem juízo nenhum! Nem parece meu filho! Vou dizer-lhe umas quantas coisas quando voltarmos!
Laura aferrou-se a estas contingências imprevistas para insistir na necessidade e na urgência de voltarem para Santiago o mais breve possível, antes que Felipe fizesse alguma loucura, mas o jornal informava que o barco apenas levantaria ferro em agosto. Assim, teriam tempo de sobra para irem às termas de Évian, para visitarem Lourdes e o templo de Santo António de Pádua, como pagamento das frequentes promessas de Laura. Iriam também ao Vaticano receber a bênção particular do Papa Pio XII, que custara a Isidro uma boa quantia, e o oportuno auxílio de alguns conhecimentos.
Tudo isto antes de voltarem a Inglaterra. Ali deixaria Ofélia inscrita na escola de boas maneiras, à força, se necessário, e embarcaria com a esposa no Reina del Pacífico de regresso ao Chile. Em suma, uma viagem perfeita!
Segunda Parte
Exílio, Amores e Desencontros.
V.
1939,
Saibamos guardar a raiva, a dor e as lágrimas.
Saibamos preencher a desolação e o vazio,
e que a fogueira da noite recorde
a luz das falecidas estrelas.
Pablo Neruda
"José Miguel Carrera (1810)"
Canto Geral
Victor Dalmau passou vários meses no campo de Argelès-sur-Mer, sem suspeitar que Roser também ali estivera. Não tivera notícias de Aitor, mas acreditava que este conseguira retirar a sua mãe e Roser de Espanha em segurança. Nessa altura, a população do campo de refugiados era, na sua maioria, composta por milhares de soldados republicanos, sujeitos à miséria, à fome e às humilhações e maus-tratos constantes dos seus carcereiros. As condições permaneciam desumanas, mas pelo menos o mais inclemente período, o inverno, já passara. Os prisioneiros iam encontrando formas de sobreviverem sem enlouquecer. Organizavam encontros revolucionários, divididos em partidos políticos, como ocorria durante a guerra. Cantavam, liam tudo quanto lhes ia parar às mãos, alfabetizavam quem de tal necessitava, publicavam um jornal que consistia numa folha escrita à mão, que circulava de leitor em leitor, e tentavam preservar a dignidade mínima, cortando o cabelo e livrando-se dos piolhos uns aos outros o melhor que podiam, e lavando a roupa no mar. Dividiram o campo em ruas que batizaram com nomes poéticos, criaram, na areia e no lodo, a ilusão de praças como as que existiam em Barcelona, inventaram uma orquestra sem instrumentos para tocar música clássica e popular, bem como restaurantes que serviam comida invisível, descrita em detalhes assombrosos pelos cozinheiros, e que os demais saboreavam de olhos fechados. Com os poucos materiais que iam conseguindo, ergueram barracões e choupanas. Viviam em suspenso na expectativa das notícias do mundo de fora, que estava a um passo de mergulhar no abismo de uma nova guerra, e contemplavam a possibilidade distante de alcançarem a liberdade. Alguns, os mais qualificados, conseguiam tornar-se funcionários do campo, ou empregados numa ou noutra fábrica, mas, a maior parte deles, antes de terem sido convertidos em soldados, haviam sido lavradores, lenhadores, pescadores, pastores, e em França não encontravam nenhum ofício que soubessem desempenhar. Enfim, suportavam a pressão contínua das autoridades para que fossem repatriados, e, nalguns casos, chegavam mesmo a ser conduzidos enganados até à fronteira com Espanha.
Victor permaneceu ali juntamente com um pequeno grupo de médicos e de enfermeiros, pois naquela praia infernal tinha uma missão: estar ao serviço dos doentes, dos feridos e dos loucos. Perseguia-o a lenda de que fizera voltar à vida o coração de um rapaz morto na Estação do Norte. Esse feito granjeava-lhe a confiança cega dos pacientes, ainda que ele lhes repetisse uma e outra vez que para as doenças de mais gravidade deveriam recorrer aos médicos. As horas do dia não lhe chegavam para desempenhar cabalmente tudo quanto a sua tarefa lhe exigia. O tédio e a depressão, flagelos de que padecia a maior parte dos refugiados, não o afetavam. Pelo contrário, encontrava no seu trabalho uma exaltação similar à felicidade. Estava tão magro e debilitado como o resto da população do campo, mas nunca sentia fome, e em mais do que uma ocasião cedera a sua parca ração de bacalhau seco a outrem. Os seus camaradas diziam que se alimentava de areia. Trabalhava desde o amanhecer, mas como ao cair da noite ainda lhe sobrasse algum tempo livre, pegava na guitarra e cantava. Poucas vezes tivera oportunidade de o fazer durante a Guerra Civil, mas ainda se lembrava das canções românticas que a sua mãe lhe ensinara, a fim de combater a timidez, bem como de algumas cantigas revolucionárias que eram acompanhadas em coro pelos demais. A guitarra pertencera a um jovem andaluz que lutara sempre agarrado a ela, que a levara para o exílio de Argelès-sur-Mer, e que com ela permanecera até fins de fevereiro, quando uma pneumonia o conduzira a melhor destino. Como fora Victor quem dele cuidara nos seus últimos dias, o jovem deixara-lhe a guitarra por herança. Era dos poucos instrumentos musicais existentes no campo. Havia muitos outros de faz-de-conta, cujos sons eram imitados e reproduzidos pelos homens dotados de bom ouvido.
Por essa altura, foi-se tornando menor a concentração humana no acampamento. Os velhos e os doentes iam morrendo e eram enterrados num cemitério adjacente. Os mais afortunados conseguiram vistos para emigrar rumo ao México e à América do Sul. Muitos soldados se incorporaram à Legião Estrangeira, pese embora o boato corrente de que ali se praticava uma disciplina brutal, e de que nas suas fileiras albergava terríveis criminosos, porque qualquer coisa era preferível a permanecer naquele campo de concentração. Os que preenchiam os requisitos foram integrados na Companhia de Trabalhadores, criada para substituir a força laboral francesa, mobilizada para a guerra. Mais tarde, outros partiriam para a União Soviética, para lutarem no Exército Vermelho, ou para se incorporarem na Resistência francesa. Destes, muitos morreriam em campos de extermínio nazi, outros nos gulags de Estaline.
Certo dia de abril, quando o insuportável gelo do inverno dera lugar à primavera, e já se adivinhavam os primeiros dias quentes de verão, chamaram Victor ao gabinete do comandante do campo, pois tinha uma visita. Tratava-se de Aitor Ibarra. Um Aitor trajando sapatos brancos e um largo chapéu de palha. Custou-lhe muito reconhecer Victor no espantalho esfarrapado em que este se tornara. Abraçaram-se, emocionados e de olhos húmidos.
- Não sabes como me custou encontrar-te, meu irmão. Não apareces em nenhuma lista. Pensei que estivesses morto.
- Quase... E tu? Como é que apareces assim vestido de chulo?
- De chulo não, de empresário, queres tu dizer. Já te conto.
- Primeiro diz-me o que é feito da minha mãe e de Roser. Aitor informou-o então do desaparecimento de Carme.
Fizera pesquisas diversas sem obter nenhum resultado concreto. Apenas averiguara que Carme não tornara a Barcelona e que a casa dos Dalmau fora ocupada. Viviam ali outras pessoas. Ao contrário, no que dizia respeito a Roser, as notícias eram boas. Resumiu-lhe a saída de Barcelona, a travessia através dos cumes dos Pirenéus e de como foram separados ao chegarem a França. Não soube do seu paradeiro durante um tempo.
- Eu fugi do campo mal pude, Victor. Não entendo como é que não tentaste fazer o mesmo.
- Muito simples... porque senti que era preciso aqui.
- Com essa mentalidade, camarada, vais estar sempre fodido!
- Eu sei, eu sei, mas o que queres que faça? Enfim... voltemos a falar de Roser.
- Localizei-a sem dificuldade, mal consegui recordar-me do nome daquela tua amiga enfermeira. Com tantos sobressaltos, tinha-se-me apagado do pensamento. Roser esteve aqui neste mesmo campo e saiu graças à intervenção de Elisabeth Eidenbenz. Vive com uma família de Perpignan, que a recebeu, trabalha como costureira e também dá aulas de piano. Teve um rapaz forte e saudável, que já tem mais de um mês e meio, e que é bem bonito, por sinal!
Aitor refizera a sua vida fazendo o que antes fazia, ou seja, negociando. Durante a guerra conseguia sempre obter os bens mais apreciados, cigarros e morfina, por vezes até mesmo sapatos e açúcar, bens que depois trocava por outros, num ir e vir de formiga, e sempre com uma boa margem de lucro. Também arranjava certas preciosidades, como a pistola alemã e o canivete americano que tanto haviam impressionado Roser. Desses dois itens jamais se desprendera, e ainda se sentia despeitado sempre que recordava o momento em que lhos haviam confiscado. Conseguira pôr-se em contacto com uns primos seus que haviam emigrado para a Venezuela, que se dispuseram a recebê-lo e a conseguir-lhe trabalho. Graças à sua habilidade inata, juntara dinheiro suficiente para a passagem e para o visto.
- Partirei dentro de uma semana, Victor. Temos de sair da Europa o quanto antes. Vai cair-nos em cima outra guerra mundial, e suspeito que vá ser ainda pior que a primeira. Mal chegue à Venezuela, vou tratar das burocracias para que também possas juntar-te a mim, e depois mando-te a passagem.
- Não posso deixar aqui Roser com a criança...
- Também os levarei, evidentemente, homem!
A visita de Aitor deixou Victor sem palavras durante alguns dias. Tinha a sensação de uma vez mais se encontrar prisioneiro, suspenso numa espécie de limbo, sem controlo algum sobre o próprio destino. Depois de horas e horas a caminhar na praia para lá e para cá, medindo e pesando a sua responsabilidade para com os doentes do campo, decidiu que era tempo de dar prioridade ao vínculo que o unia a Roser e à criança. Era tempo de pensar nele próprio e de decidir a sua vida e o seu futuro. No dia 1 de abril, Franco, caudilho de Espanha, assim se autointitulava desde dezembro de 1936, dera por terminada a guerra que durara novecentos e oitenta e oito dias. A França e a Grã-Bretanha tinham reconhecido a legitimidade do seu Governo. A pátria estava perdida. Não havia esperança de regressar. Victor tomou um banho no mar, esfregando-se com areia, à falta de sabão, pediu a um camarada para lhe cortar o cabelo, e, após ter-se barbeado cuidadosamente, solicitou o seu visto para levantar a caixa de medicamentos que a cada semana lhe fornecia um hospital local. A princípio ia sempre acompanhado por um guarda, mas depois de assim procederem durante alguns meses, permitiram-lhe que o fizesse só e sem vigia. Saiu como de costume, sem qualquer problema, e dessa vez não regressou. Aitor deixara-lhe algum dinheiro, que Victor gastou na primeira refeição digna desse nome desde janeiro, num fato cinzento, em duas camisas e num chapéu, tudo roupas usadas mas em bom estado, e num par de sapatos novos, lembrando-se do que dizia a sua mãe: bem calçado, bem-parecido. Apanhou boleia com um camionista, e assim se apresentou em Perpignan, no escritório da Cruz Vermelha, a perguntar pela sua amiga. ,
Eidenbenz recebeu-o na sua maternidade improvisada, com um recém-nascido em cada braço, tão atarefada que mal se recordou do breve início de romance entre ambos, que, em rigor, nem chegara a acontecer. Ele, porém, não a esquecera. Ao vê-la com aquele olhar límpido, no seu uniforme branco, achou-a perfeita, e pensou como fora imbecil ao imaginar que ela se interessaria por ele. Ela não tinha vocação de apaixonada, mas sim de missionária. Ao reconhecê-lo, entregou as crianças aos cuidados de outra enfermeira e abraçou-o com genuíno afeto.
- Como estás diferente, Victor... deves ter sofrido muito...
- Nem por isso... sofri menos que muitos. Tive sorte, apesar de tudo. Pelo contrário, tu estás perfeita, como sempre.
- Achas?
- Sim. Como fazes para te conservares sempre assim, serena, impecável e sorridente? Conheci-te em plena guerra e continuas imutável, como se este tempo atribulado em que vivemos não te afetasse.
- Victor, os tempos difíceis apenas me obrigam a ser forte e a trabalhar ainda mais arduamente. Vieste ver-me para saber de Roser, certo?
- Sim. Nem sei como agradecer-te tudo o que fizeste por ela, Elisabeth.
- Não tens de me agradecer. Vamos ter de fazer horas até às oito, quando ela termina a última aula de piano do dia. Não vive aqui. Está hospedada em casa de uns amigos quakers que me ajudam a conseguir recursos para financiar a maternidade.
Assim fizeram. Elisabeth apresentou-o às mães que viviam na casa e depois mostrou-lhe as instalações. Seguidamente, como ainda tinham tempo livre, sentaram-se a tomar chá acompanhado de biscoitos, enquanto punham a conversa em dia sobre as dificuldades com que um e outro se haviam deparado desde a Frente de Teruel, último lugar em que se tinham visto. Perto das oito, Elisabeth levou-o no seu carro, mais atenta à conversa do que ao volante. Victor deu consigo a pensar quão irónico seria ter sobrevivido às agruras do campo de concentração para vir morrer ali, esmagado como um verme, a bordo do carro daquele amor platónico.
A casa dos quakers ficava a uns vinte minutos de distância, e foi a própria Roser quem lhes abriu a porta.
Ao ver Victor, lançou um grito e levou as mãos ao rosto como que tomada por uma assombração, e ele, à falta de palavras, apertou-a nos seus braços. Recordava-a delgada, de cintura fina e de peito plano, o rosto longilíneo e as sobrancelhas densas, o género de mulher desprovida de vaidade, que com o passo do tempo se tornaria cada vez mais seca e com traços mais marcadamente masculinos. Vira-a pela última vez em fins de dezembro, com um ventre proeminente e o rosto polvilhado de acne. A maternidade conferira-lhe um aspeto mais brando, atribuindo-lhe curvas suaves onde antes houvera apenas ângulos, e tinha a pele e o cabelo brilhantes, e os seios grandes como resultado da recente amamentação do filho. O reencontro foi de tal forma emotivo, que até mesmo Elisabeth, que estava habituada a presenciar cenas dilacerantes, se comoveu. Quanto ao sobrinho, pareceu a Victor indescritível. Todos os bebés daquela idade, segundo ele, se assemelhavam a Winston Churchill. Era gordo e calvo. Porém, um olhar mais atento revelou-lhe alguns traços familiares, como os olhos negro-azeitona dos Dalmau.
- Como se chama ele? - perguntou a Roser.
- Por agora, chamamos-lhe simplesmente Menino. Estou à espera de Guillem para lhe pormos um nome definitivo e para o registarmos.
Estava na hora de dar a Roser a má notícia, mas uma vez mais lhe faltou a coragem.
- Porque não lhe chamas Guillem?
- Porque Guillem me disse que jamais algum dos seus filhos levaria o seu nome. Não gostava dele. Tínhamos combinado que se fosse um rapaz se chamaria Marcel e se fosse uma menina seria Carme, isto em homenagem aos teus pais. Portanto, assim será. Vou esperar por Guillem e depois decidimos.
A família de quakers, constituída por pai, mãe e duas crianças, convidou Victor e Elisabeth para jantarem com eles nessa noite. Para ingleses que eram, a refeição estava até bastante aceitável. Além disso, falavam um bom espanhol, pois haviam vivido em Espanha durante a Guerra Civil, ajudando organizações de apoio a crianças, e atualmente prosseguiam a sua missão, continuando a trabalhar com os refugiados. Dedicariam sempre as suas vidas a isso, disseram, porque, tal como sustentava Elisabeth, haveria sempre uma guerra a eclodir em qualquer parte do globo.
- Estamos-vos muito agradecidos - disse-lhes Victor.
- Graças ao vosso auxílio, temos o nosso menino a salvo e connosco. No campo de Argelès-sur-Mer, temo que nem ele nem Roser teriam sobrevivido. Esperamos não abusar da vossa hospitalidade por muito mais tempo.
- Não tem de quê, senhor. Roser e o bebé já são praticamente da família. Que pressa tem em partir?
Victor contou-lhes então do seu amigo Aitor Ibarra e do seu propósito de emigrarem para a Venezuela, assim que ele os pudesse ajudar. Parecia a única hipótese viável.
- Se pensam mesmo em emigrar, talvez seja de considerar a hipótese de irem para o Chile - interveio Elisabeth.
- Vi algures a notícia de um barco que em breve levará emigrantes espanhóis para lá.
- E onde fica o Chile? - inquiriu Roser.
- No cu do mundo, segundo me parece - informou Victor. No dia seguinte, assim que encontrou o recorte com
a notícia, Elisabeth enviou-o a Victor. Por conta do seu Governo, o poeta Pablo Neruda estava a preparar um barco chamado Winnipeg para transportar exilados para o seu país. Elisabeth deu-lhe dinheiro para comprar uma passagem de comboio até Paris e tentar a sorte com o poeta.
Valendo-se de um mapa da cidade, Victor conseguiu encontrar a Avenida Motte-Picquet, nº 2, perto de Les Invalides, onde ficava a Embaixada do Chile. Havia fila à porta, cuja entrada era controlada por um porteiro de maus modos. Eram também hostis os funcionários do interior do edifício, incapazes de responder ao mínimo cumprimento sequer. A Victor, tudo isso lhe pareceu de mau agoiro, assim como de mau agoiro era o ambiente pesado e tenso que naquela primavera se respirava em Paris. Hitler ia engolindo vorazmente territórios europeus, uns após outros, e a nuvem negra da guerra pairava já sobre todas as cabeças, a obscurecer o céu. Das pessoas que esperavam vez para serem atendidas, todas falavam espanhol e quase todas ostentavam nas mãos o mesmo recorte de jornal que Victor lera. Quando chegou a sua vez, indicaram-lhe uma escadaria, que nos primeiros pisos se apresentava imponente, feita de mármore e bronze, para desembocar, estreita e mais pobre, numa espécie de águas-furtadas. Não havia elevador, e Victor teve de ajudar um espanhol ainda mais coxo do que ele, pois perdera uma perna e apenas conseguia subir com grande dificuldade, agarrado ao corrimão.
- É verdade que só aceitam comunistas? - perguntou-lhe Victor.
- Pelo menos é o que dizem... Tu o que és?
- Republicano, simplesmente.
- Não compliques as coisas. O melhor é dizeres ao poeta que és comunista e pronto.
Num pequeno aposento escassamente mobilado com uma secretária e três cadeiras, recebeu-o Pablo Neruda. Era um homem ainda jovem, de olhar perscrutador e pálpebras de árabe, de ombros largos, ligeiramente encurvado, e parecendo mais robusto e a tender para um certo peso em excesso do que na realidade, como Victor pôde comprovar assim que este se levantou para se despedir. A entrevista durou uns escassos dez minutos e deixou-o com a sensação de que havia fracassado redondamente no seu intento. Neruda fez-lhe algumas perguntas de rotina, idade, estado civil, estudos e experiência de trabalho.
- Ouvi dizer que apenas estavam a selecionar comunistas - disse Victor, estranhando que o poeta não lhe tivesse perguntado da sua filiação política.
- Então ouviu mal. Aqui a coisa funciona por quotas: comunistas, socialistas, anarquistas e liberais. Decidimos depois, em conjunto com o Departamento de Evacuação de Refugiados Espanhóis. O critério mais importante a ter em conta é o carácter da pessoa e a utilidade que possa ter para o Chile. Estou a analisar centenas de pedidos, e assim que decida, comunicar-lho-ei. Não se preocupe.
- Senhor Neruda, caso a sua resposta seja em sentido afirmativo, peço-lhe o favor de ter em atenção que não viajarei sozinho. Uma amiga com um bebé de poucos meses virá comigo.
- Uma amiga... diz!
- Trata-se de Roser Bruguera, a namorada do meu irmão.
- Nesse caso, o seu irmão teria de vir ver-me também e preencher o impresso do pedido.
- Supomos que o meu irmão tenha morrido na Batalha do Ebro...
- Lamento muito. Mas entenda a minha posição: tenho de dar prioridade às relações familiares mais próximas.
- Entendo. Voltarei dentro de três dias.
- Mas em três dias, meu amigo, não terei uma resposta para lhe dar.
- Mas eu, sim! Muito obrigado!
Nessa mesma tarde, apanhou o comboio de regresso a Perpignan, onde chegou exausto quando era já noite cerrada. Pernoitou num quarto de hotel cheio de pulgas, onde nem sequer pôde tomar um banho, e no dia seguinte, mal despontou a manhã, apresentou-se no atelier de costura onde Roser trabalhava. Saíram os dois para poderem conversar mais à vontade. Tomando-a pelo braço, Victor conduziu-a até um banco isolado numa praceta próxima e contou-lhe a sua experiência na Embaixada do Chile, omitindo, porém, certos detalhes, como a má vontade dos funcionários chilenos e as escassas esperanças que lhe dera Neruda.
- Victor, se esse tal poeta te admitir, tens de ir de qualquer forma. Não te preocupes comigo...
- Roser... há uma coisa que eu já te devia ter dito há muito tempo, mas, de cada vez que tento, é como se uma mão de ferro me estrangulasse, e não consigo. Como quisera não ser eu a dizer-to...
- Guillem? É alguma coisa sobre Guillem? - perguntou ela, alarmada.
Victor assentiu, sem, no entanto, se atrever a dizer fosse o que fosse. Sem mais, apertou-a contra si num firme abraço e deixou-a chorar como uma menina desesperada, perdida, com o rosto afundado no seu casaco de segunda mão, até que Roser ficou rouca e sem lágrimas. Pareceu-lhe que estalava num pranto que por muito tempo contivera, e que, no fundo, a notícia que lhe trazia não constituía uma verdadeira surpresa, pois só assim se poderia explicar o prolongado silêncio de Guillem. Era verdade que muita gente se perdia na guerra, que as famílias e os casais se separavam e se desencontravam, mas certamente que o seu instinto já a advertira do sucedido. Ainda que ela não lhe pedisse qualquer prova, Victor mostrou-lhe a carteira meio destruída e a fotografia que Guillem sempre trazia consigo.
- Vês porque não posso deixar-te aqui, Roser? Tens de vir comigo para o Chile. Em França também haverá guerra e, acima de tudo, temos de proteger o teu filho.
- E a tua mãe?
- Ninguém voltou a vê-la desde que saímos de Barcelona. Imagino que se tenha perdido no meio daquela confusão. Se estivesse viva já teria entrado em contacto, ou comigo ou contigo.
Se por acaso voltar a aparecer, logo veremos a melhor forma de a ajudar. Por agora, tu e o teu filho são o mais importante. Entendes?
- Entendo, Victor. O que devo fazer, então?
- Desculpa, Roser, mas vais ter de te casar comigo.
Ela ficou a olhá-lo com uma expressão de assombro tal, que Victor não conseguiu conter um sorriso um tanto inapropriado para a solenidade que o momento impunha. Contou-lhe então o que Neruda lhe dissera sobre a prioridade que conferiam às famílias.
- Nós nem sequer somos cunhados, Roser.
- Casei com Guillem sem papéis e sem a bênção de um padre...
- Receio que neste caso isso seja irrelevante, Roser. Resumindo, és viúva sem o seres de facto. Vamos casar-nos hoje mesmo, se possível, e vamos registar o menino como filho de ambos. Para todos os efeitos, eu serei seu pai... para o que der e vier. E vou cuidar e gostar dele como se fosse meu filho, prometo-te. E o mesmo digo em relação a ti.
- Mas nem sequer estamos apaixonados!
- Estás a ser muito exigente, rapariga! Não te bastam o respeito e o carinho? Nos tempos que correm, parece-me que isso é mais do que suficiente. Nunca te vou impor uma relação que não pretendas, Roser.
- E o que significa isso? Que não vais dormir comigo?
- Exatamente. Não sou nenhum sem-vergonha.
E assim, num curto espaço de tempo, naquele banco de praça, tomaram a decisão que haveria de marcar o resto das suas vidas, e também a do bebé. Na pressa da retirada, foram muitos os que chegaram a França sem documentos, e foram também muitos os que os perderam pelo caminho e nas agruras dos campos de refugiados, mas Roser e Victor tinham ainda os seus. Os amigos quakers serviram de testemunhas do matrimónio, numa breve cerimónia realizada no Registo Civil. Para a ocasião, Victor engraxara os seus sapatos novos e usava uma gravata emprestada. Roser, com os olhos inchados de tanto chorar, mas aparentando tranquilidade, usava o seu melhor vestido e um chapéu primaveril. Após o casamento, registaram o bebé como Marcel Dalmau Bruguera. De todo em todo, esse teria sido o seu nome se o seu verdadeiro pai estivesse vivo. Celebraram com um jantar simbólico na maternidade de Elisabeth Eidenbenz, que culminou com um bolo coberto de chantilly. Como era da praxe, os esposos partiram o bolo e distribuíram-no pelos presentes.
Tal como prometera ao poeta, três dias volvidos, Victor regressou ao seu gabinete na Embaixada Chilena em Paris, e entregou-lhe o certificado de matrimónio, bem como o registo do bebé. Neruda ergueu o seu olhar de pálpebras sonolentas e contemplou-o durante alguns segundos, intrigado.
- Vejo que possui uma imaginação de poeta, meu jovem... Bem-vindo ao Chile - e dizendo isto, carimbou o pedido. - Diz aqui que a sua mulher é pianista.
- Exatamente. E também é costureira.
- No Chile temos costureiras de sobra, mas fazem-nos falta pianistas. Apresentem-se os dois no cais de Trompeloup, em Bordéus, na sexta-feira de manhã bem cedo. Partirão ao anoitecer.
- Mas não temos dinheiro para a passagem, senhor!
- Ninguém tem. Deixe ver como resolvemos isso. Ah! E esqueça também o dinheiro para o visto de residência no Chile. Alguns cônsules tentam fazer-se pagar por ele; considero repugnante receber dinheiro de refugiados. Isso também se arranjará em Bordéus.
Aquele dia 4 de agosto de 1939 ficaria para sempre gravado na memória de Victor Dalmau, de Roser Bruguera e de mais dois mil e tantos espanhóis que partiam para esse país longo e afilado da América do Sul, que se aferrava às montanhas para não se precipitar no mar, e sobre o qual pouco ou nada sabiam. Neruda havia de defini-lo como uma "longa pétala de mar, de vinho e de neve", com uma "cintura de espuma negra e branca", mas isso não teria sido suficiente para dar a conhecer àqueles desterrados o destino que os esperava. No mapa, o Chile afigurava-se-lhes sinuoso e remoto. A praça de Bordéus fervilhava de gente, uma multidão imensa que aumentava rapidamente, meio sufocada de calor sob um céu azul. Iam chegando comboios, camiões e outros veículos diversos apinhados de gente, a maioria saída diretamente dos campos de concentração, ainda debilitada, faminta e sem oportunidade ou tempo para ter tomado sequer um banho. Como os homens haviam permanecido durante vários meses separados das suas mulheres e crianças, os encontros de casais e de famílias davam-se num delírio dramático, transbordante de emoção. Penduravam-se nas janelas dos transportes, reconheciam-se e chamavam-se aos gritos, e abraçavam-se em lágrimas. Um pai, que julgara o seu filho morto no Ebro, dois irmãos que não sabiam nada um do outro desde a Frente de Madrid, um soldado tisnado pelo sol que acabava de reencontrar a mulher e os filhos, que não esperava voltar a ver. E tudo isto em perfeita ordem, com um instinto de disciplina que muito facilitou a tarefa dos guardas franceses.
Pablo Neruda, vestido de branco dos pés à cabeça, acompanhado de Delia del Carril, sua esposa, trajando igualmente de branco e com um grande chapéu de abas largas, dirigia as manobras de seleção, de identificação, e supervisionava a administração dos serviços e cuidados básicos de saúde, como um semideus, ajudado por outros cônsules, secretários e por diversos amigos instalados em compridas mesas. A autorização era despachada com a sua assinatura em tinta verde, e devidamente carimbada com o selo do Departamento de Evacuação de Refugiados Espanhóis. Neruda solucionou o problema da obtenção dos vistos com um visto coletivo. Os espanhóis agrupavam-se em pequenos grupos, tiravam-lhes uma fotografia, que revelavam cuidadosamente, e em seguida alguém ia recortando os rostos, que eram depois colados nas autorizações de cada um. Voluntários repartiam uma refeição ligeira e os mais indispensáveis acessórios de higiene individual. As trezentas e cinquenta crianças tiveram direito a uma refeição completa, cuja distribuição estava a cargo de Elisabeth Eidenbenz.
Era o dia da partida e, apesar disso, Neruda ainda não conseguira financiamento para custear aquele transporte em massa que o Governo do seu país se recusara a pagar, sob o pretexto da impossibilidade de justificar tal gasto face a uma opinião pública dividida e hostil. Então, inesperadamente apresentaram-se no cais algumas pessoas dispostas a pagar o valor de metade de cada passagem. Roser avistou-os de longe. Deixou o bebé nos braços de Victor, abandonou a fila de espera e correu para cumprimentá-los. Daquele grupo faziam parte os quakers que a tinham acolhido. Vinham como representantes da sua comunidade cumprir o dever que esta se propusera desde a sua criação no século XVII, o de servir a Humanidade e promover a paz. Roser repetiu-lhes o que ouvira dizer a Elisabeth: "Elisabeth tinha razão. De facto, vocês sempre estão onde mais são precisos".
Victor, Roser e o bebé foram dos primeiros a embarcar. Era um velho barco de cerca de cinco mil toneladas, que transportava mercadorias provenientes de África e que também fora utilizado para transportar tropas durante a Primeira Guerra Mundial. Fora concebido para albergar vinte marinheiros em trajetos curtos e agora haviam-no adaptado para levar mais de dois mil passageiros numa travessia de um mês. À pressa, tinham construído beliches triplos nos porões, e tinham dotado o barco de cozinha e de cantina, e de uma enfermaria com três médicos permanentemente disponíveis. Uma vez a bordo, designaram-lhes os respetivos dormitórios: Victor, na proa com os outros homens, Roser, na popa com as mulheres e crianças.
O embarque dos restantes afortunados passageiros durou várias horas. Em terra ficaram muitos refugiados que não conseguiram vaga. Assim que caiu a noite, e com a subida da maré, o Winnipeg levantou ferros. Uns choravam em silêncio no convés, enquanto outros, com a mão no peito, entoavam em catalão a canção do emigrante: "Dolça Catalunya, /pátria del meu cor, / quan de tu sallunya I d'enyorança es mor"(8). Talvez pressentissem que jamais voltariam à sua terra. Desde o cais, Pablo Neruda despedia-se, acenando-lhes com um lenço, até que se perderam de vista. Também para ele aquele dia seria inesquecível, tanto que anos mais tarde escreveria: "Que a crítica apague toda a minha poesia, se assim o entender. Mas o poema que hoje recordo ninguém poderá jamais apagá-lo.".
Os beliches eram exíguos como jazigos: acedia-se a eles subindo de gatas e os seus usuários tinham de permanecer deitados e imóveis, sobre pequenos colchões de palha, que lhes pareciam um luxo, se comparados com as covas de areia húmida dos campos de concentração. Havia um quarto de banho para cada cinquenta pessoas, e serviam-se as refeições em três rodadas que eram escrupulosamente respeitadas. Os que vinham de uma situação de miséria e de fome julgavam-se no paraíso. Tinham passado meses sem uma refeição quente, e no barco a comida era simples, mas saborosa e abundante. Podiam repetir o prato de legumes quantas vezes desejassem. Além disso, tinham sobrevivido,
8. Canção catalã composta a partir de um poema de Jacint Verdaguer, cuja tradução literal é impossível. "Ó doce Catalunha, / pátria do meu coração, / quando de ti nos apartamos, / é saudade a lonjura!" (N. do T.)
atormentados por todo o género de parasitas, pulgas e piolhos, e ali podiam lavar-se à-vontade com água fresca e sabão. Haviam estado prisioneiros da mais terrível desesperança, e agora navegavam rumo à liberdade! Até tabaco havia!, e cerveja e bebidas espirituosas, num pequeno bar, para quem as pudesse pagar. Quase todos os passageiros se ofereceram para colaborar nas tarefas de bordo, desde manejar as máquinas até lavar o convés. Victor voluntariou-se na enfermaria desde o primeiro dia. Os médicos deram-lhe as boas-vindas, entregaram-lhe uma bata branca e informaram-no de que diversos tripulantes apresentavam sintomas de disenteria, de bronquite e de que havia um ou dois casos de tifo que haviam escapado à deteção dos serviços de inspeção sanitária.
As mulheres organizaram-se para cuidar das crianças. Criaram um espaço no convés protegido por grades, destinado a jardim-de-infância e a escola. Desde o primeiro dia, estabeleceu-se um serviço de creche, jogos, artes, prática de exercício físico e aulas, uma hora e meia de manhã e outra hora e meia de tarde. Nos primeiros dias, Roser foi acometida por enjoos, como a maioria dos refugiados, mas assim que foi capaz de se manter de pé, prontificou-se a ensinar música às crianças, com um xilofone e com tambores improvisados com baldes. Durante uma das suas aulas, dirigiu-se-lhes o segundo oficial de bordo, um francês, militante do Partido Comunista, que lhe trazia a novidade de que Neruda fizera transportar para bordo um piano e dois acordeões, para seu próprio uso e para os demais que soubessem tocá-los. Alguns passageiros possuíam instrumentos musicais. Assim, dispunham de uma ou duas guitarras e de um clarinete. Desde essa altura, houve sempre música para as crianças e bailes e concertos para os adultos, isto para não falar do enérgico coro dos bascos.
Cinquenta anos mais tarde, Victor Dalmau, numa entrevista para a televisão, quando lhe foi pedido que falasse sobre a odisseia do exílio, referiu-se ao Winnipeg como o navio da esperança.
Para Victor Dalmau, a viagem constituiu um prazenteiro período de férias, mas, pelo contrário, Roser, que passara os últimos meses comodamente instalada em casa dos seus amigos quakers, a princípio sofreu bastante com o confinamento e com o mau cheiro. Não lhe passou sequer pela cabeça comentar isso com quem quer que fosse, pois seria o cúmulo da descortesia, e rapidamente se acostumou, a ponto de nem notar. Acomodou Marcel numa mochila e andava com ele às costas para todo o lado, até enquanto tocava piano. Por vezes revezava-se com Victor, que também o carregava sempre que não estivesse de serviço na enfermaria. Ela era a única capaz de amamentar o filho. As restantes mães, desnutridas como estavam, podiam contar com um eficiente serviço de biberões para os quarenta recém-nascidos que iam a bordo. Várias mulheres ofereceram-se para lavar a roupa e as fraldas do bebé de Roser, para que esta pudesse preservar as mãos. Uma camponesa calejada pelo trabalho pesado do campo e mãe de sete filhos examinava-lhe as mãos, maravilhada, sem entender como conseguia ela retirar música do piano sem olhar sequer as teclas. Aqueles dedos eram mágicos. O seu marido trabalhara na extração de cortiça antes da guerra. Quando Neruda lhe disse que no Chile não havia carvalhos, ele replicou-lhe secamente: "Pois, a partir de agora haverá.". Ao poeta pareceu-lhe a resposta uma tirada esplêndida, e não hesitou em embarcá-lo juntamente com operários, camponeses, pescadores, demais trabalhadores braçais e também diversos intelectuais, pese embora as instruções que recebera do Governo chileno: evitar gente dotada de pensamento e de ideias próprias.
Neruda fez orelhas moucas a essa ordem. Seria uma loucura completa deixar para trás quem tão heroicamente defendera as suas convicções. Secretamente, esperava que estes imigrados agitassem a modorra insular em que vivia o seu país.
A vida diária estendia-se até muito tarde no convés, porque no interior da embarcação a ventilação era má, e o espaço era tão exíguo que mal se podia circular. Os passageiros criaram um jornal que continha as principais notícias da atualidade, que pioravam dia após dia, à medida que Hitler ia conquistando mais e mais territórios. Aos dezanove dias de navegação, quando se soube do pacto de não-agressão entre a União Soviética e a Alemanha nazi, assinado a 23 de agosto, muitos comunistas que haviam lutado contra o fascismo sentiram-se profundamente traídos. As divisões políticas que tinham fraturado o Governo da República mantiveram-se a bordo, traduzindo-se, por vezes, em rixas e brigas por acusações e ressentimentos antigos, rapidamente sanadas por outros passageiros, antes da intervenção do Capitão Pupin, indivíduo de direita, sem a menor simpatia pelos passageiros a seu cargo, mas dotado de um inabalável sentido do dever. Os espanhóis, desconhecedores dessa faceta da sua personalidade, suspeitavam que este poderia traí-los, alterar o rumo da navegação e reconduzi-los à Europa. Observavam-no com a mesma atenção com que se debruçavam sobre o decurso da navegação. O imediato e a maioria dos marinheiros eram comunistas e também traziam Pupin debaixo de olho.
As tardes preenchiam-se com os recitais de Roser, coros, bailes, jogos de cartas e de dominó. Victor organizou um clube de xadrez para quem soubesse jogar e para quem quisesse aprender. O xadrez impedira-o de enlouquecer, tanto nas escassas ocasiões ociosas que se permitira desfrutar durante o tempo de guerra, como no campo de concentração, quando parecia que já não seria capaz de aguentar mais e o dominava a vontade de se deixar cair por terra e morrer, rendido. Nessas alturas, sempre que não tinha um adversário, jogava de memória contra si próprio com tabuleiro e peças invisíveis. A bordo também se realizavam conferências sobre ciência e outros temas, nunca sobre política, pois o compromisso estabelecido com o Governo Chileno era: abster-se de propagar ideologias capazes de instigar uma revolução; por outras palavras: "Meus senhores, não venham para aqui agitar-nos a capoeira!", resumiu um dos poucos chilenos que viajavam no Winnipeg. Os chilenos davam palestras aos emigrantes, preparando-os para o que iriam encontrar. Além disso, Neruda entregara um pequeno folheto a cada um, bem como uma descrição bastante realista do país:
Espanhóis,
Talvez de toda a vasta América, o Chile vos pareça a mais longínqua das regiões. Assim o foi também para os vossos antepassados. Muitos perigos e infortúnios tiveram de defrontar os conquistadores espanhóis. Durante trezentos anos, travaram duras batalhas contra os indomáveis araucanos, e dessa difícil sobrevivência sobreveio uma raça acostumada à precariedade e às dificuldades da vida. O Chile está muito longe de ser um paraíso. A nossa terra só recompensa quem a trabalha arduamente.
Estas, como outras advertências dos chilenos, a ninguém conseguiram assustar. Explicaram-lhes também que o Chile lhes abrira as portas graças ao Governo popular de Pedro Aguirre Cerda, que, para tal, desafiara os partidos da oposição, e aguentara a campanha de terror levada a cabo pela direita e pela Igreja Católica. "Ou seja, lá iremos encontrar os mesmos inimigos com que nos defrontámos em Espanha...", observou Victor. Isso inspirou vários artistas a pintarem uma gigantesca lona em homenagem ao Presidente chileno.
Inteiraram-se também de que o Chile era um país pobre, cuja economia se baseava principalmente nas indústrias mineiras, sobretudo a da extração do cobre, mas que também havia muita terra fértil, milhares e milhares de quilómetros de costa riquíssima para a pesca, bosques infinitos e uma grande profusão de zonas despovoadas, prontas para alguém se estabelecer e ali prosperar. A natureza era prodigiosa, desde o deserto lunar do Norte aos glaciares do Sul. Os chilenos estavam habituados à escassez e às catástrofes naturais, como os terramotos, que sempre deixavam à sua passagem um cenário de mortes e de destruição, mas isso pareceu aos desterrados um mal menor, se comparado com tudo quanto nos últimos tempos haviam vivido, e no que se tornaria Espanha sob a férula de Franco. Disseram-lhes que se preparassem para retribuir, pois iriam receber muito. Os chilenos tornavam-se generosos e prestáveis em face das desgraças coletivas. Estavam sempre dispostos a abrir os braços e as casas: hoje és tu, amanhã serei eu. Era este o lema vigente. Também aconselharam os solteiros a terem cautela com as mulheres chilenas, pois a quem deitavam o olho não tinha escapatória possível. Eram sedutoras, fortes e mandonas, uma combinação letal. Tudo isto lhes parecia um conto de fadas.
Ao segundo dia de viagem, Victor assistiu o nascimento de uma menina na enfermaria. Já vira as feridas mais atrozes e a morte causada por todos os meios, mas nunca se deparara com o começo de uma nova vida, e quando colocaram a recém-nascida sobre o peito da mãe, a muito custo conseguiu disfarçar as lágrimas. O capitão lavrou a ata de nascimento de Agnes América Winnipeg. Certa manhã, um homem que ocupava um dos beliches superiores no dormitório de Victor não apareceu para o pequeno-almoço. Julgando que dormia, ninguém o incomodou até à hora do almoço. Quando Victor se dispôs a acordá-lo, encontrou-o morto. Desta vez o capitão teve de lavrar uma certidão de óbito. Nessa mesma tarde, numa breve cerimónia, lançaram o corpo ao mar envolto numa lona. Os seus camaradas despediram-se dele, homenageando-o com uma canção dos tempos da guerra, que entoaram acompanhados pelo coro dos bascos.
- Já reparaste, Victor, como a vida e a morte caminham sempre de mãos dadas? - comentou Roser, comovida.
Os casais supriam o inconveniente da falta de privacidade utilizando os botes salva-vidas. Tinham de estabelecer turnos para o amor, da mesma forma que para tudo se impunha estabelecer turnos, e enquanto um casal desfrutava de alguns momentos num dos botes, um amigo montava guarda, a fim de prevenir os restantes passageiros e de distrair qualquer membro da população que se aproximasse. Quando se tornou do conhecimento geral que Victor e Roser eram recém-casados, mais do que um casal lhes cedeu o seu turno, que eles sempre recusavam com efusivas demonstrações de agradecimento. Mas, como levantaria suspeitas o facto de passarem o mês inteiro sem manifestar a mais leve urgência amorosa, dirigiram-se separadamente ao lugar dos amores, como faziam todos os casais, de acordo com um protocolo tácito, ela corada de vergonha, ele sentindo-se um idiota, enquanto um voluntário amável e solícito passeava Marcel ao longo do convés. O interior do bote era desconfortável, sufocante e cheirava intensamente a bacalhau podre, mas a simples possibilidade de poderem estar a sós e conversarem em sussurros uniu-os mais do que se tivessem feito amor. Estendidos um ao lado do outro, ela com a cabeça pousada no seu ombro, falaram sobre os ausentes, Guillem e Carme, que não queriam, nem por sombras, imaginar morta, e especulavam sobre a terra desconhecida que os esperava no fim do mundo, e planearam o futuro. Uma vez no Chile, tentariam estabelecer-se e conseguir trabalho, fosse no que fosse. Isso era o mais urgente. Depois poderiam divorciar-se e ambos seguiriam as suas vidas, livres. A conversa tornou-os melancólicos. Roser pediu-lhe que permanecessem sempre amigos, uma vez que ele era a única família que lhes restava, a ela e ao filho. Não se sentia pertencer à sua família de sangue em Santa Fé, que, aliás, visitara em raras ocasiões, desde que Santiago Guzmán a levara para viver em sua casa. Victor uma vez mais lhe reiterou a promessa de que seria um bom pai para Marcel.
- Enquanto eu puder trabalhar, nada vos faltará - acrescentou.
Todavia, ela não se referia a esse aspeto. Considerava-se completamente capaz de, por si só, sustentar ambos, mas preferiu guardar silêncio. Ambos evitavam aflorar assuntos de ordem afetiva.
A primeira escala foi na Ilha de Guadalupe, possessão francesa, para abastecer o navio de víveres e de água. Continuaram a navegar até ao Panamá, sempre alerta ante a possibilidade de se cruzarem com submarinos alemães. Ali se detiveram longas horas, sem saberem o que de anormal sucedera, até que ouviram através dos altifalantes que se defrontavam com problemas de índole burocrática. Isto quase gerou um motim a bordo, convencidos que estavam os passageiros de que o Capitão Pupin encontrara ali um pretexto justificativo para regressar a França. Designaram Victor e outros dois homens, devido à sua postura sempre irrepreensível, para falarem com o capitão e averiguarem o que estava a acontecer, e tentarem negociar uma solução. Pupin, de muito mau humor, explicou-lhes que a culpa do ocorrido era dos organizadores da viagem, que não haviam pago a taxa de travessia do canal, e por conta dessa imprudência, agora quem perdia tempo e dinheiro era ele próprio. Acaso saberiam eles quanto custava manter o Winnipeg? Levaram cinco longos dias para resolver o problema, cinco dias de angustiante expectativa, apinhados todos num calor tórrido, até que, por fim, lhes deram ordem de passagem, e adentraram-se na primeira das comportas. Victor, Roser e os demais passageiros e tripulantes observaram, maravilhados, aquele complexo sistema que os levava do Atlântico ao Pacífico. As manobras de navegação eram um prodígio de precisão, realizadas num espaço tão exíguo, que, caso pretendessem, ser-lhes-ia possível conversar com os homens que trabalhavam nas margens, de um e de outro lado do navio. Quando se apurou serem dois deles bascos, foram saudados pelo coro do barco, com um cântico em eusquera. A partir da passagem do Canal do Panamá, os refugiados sentiram o definitivo afastamento da Europa. O canal separava-os e afastava-os inexoravelmente da sua terra e do seu passado.
- Quando pensas que poderemos regressar a Espanha? - perguntou Roser a Victor.
- Em breve... Pelo menos assim espero. O caudilho não será eterno, mas tudo depende da guerra.
- Porque dizes isso?
- Porque a guerra será inevitável e é iminente. Será uma guerra de ideologias e de princípios. Uma guerra em que se defrontarão distintas formas de entender a vida e o mundo. Uma guerra de democratas contra nazis e fascistas. Uma guerra de liberdade contra autoritarismo.
- E não duvides de que Franco colocará Espanha do lado de Hitler. E a qual dos lados se unirá a União Soviética?
- Teoricamente, é uma democracia do proletariado, mas não confio em Estaline. Pode aliar-se a Hitler e converter-se num tirano ainda pior do que Franco.
- Os alemães são invencíveis, Victor.
- Isso é o que dizem... esperemos para ver.
Os viajantes ficaram surpresos com a ironia do nome, pois de pacífico aquele oceano pouco tinha. Roser, que, como muitos outros, se julgava curada e imune ao enjoo, viu-se novamente derrotada pela fúria das vagas, mas a Victor as náuseas afetaram-no pouco, pois passou a maior parte desse período na enfermaria ocupado com o nascimento de outro bebé. Depois de deixarem para trás a Colômbia e o Equador, entraram nas águas territoriais do Peru. A temperatura descera. Encontravam-se em pleno inverno do hemisfério sul, e uma vez que passou o tremendo calor, tornou-se mais suportável o confinamento vivido a bordo, o que melhorou consideravelmente o ânimo dos passageiros. Encontravam-se cada vez mais longe e a salvo dos alemães, e havia cada vez menos probabilidades de o Capitão Pupin decidir inverter o rumo da navegação. Iam-se aproximando do seu destino num misto de esperança e apreensão. Através das notícias que lhes chegavam pelo telégrafo, sabiam que no Chile as opiniões sobre o seu exílio se dividiam e que eram motivo de apaixonadas discussões no Parlamento e na Imprensa. Mas também se inteiraram de que havia um programa destinado a auxiliá-los na obtenção de trabalho e de alojamento, levado a cabo pelo Governo, por partidos de esquerda, por sindicatos e por associações de emigrantes espanhóis que ali haviam chegado muitos anos antes deles. Não estariam completamente desamparados.
VI.
1939-1940,
Delgada é a nossa pátria,
e em seu despido fio de lâmina
arde subtil nossa bandeira.
Pablo Neruda
"Sim, camarada! É tempo de ar livre!"
O Mar e os Sinos.
Em fins de agosto, o Winnipeg aportou em Arica, primeiro porto da costa norte do Chile. Diferentemente da ideia que os refugiados vinham alimentando sobre os países sul-americanos, nada de florestas luxuriantes ou de praias povoadas de coqueiros, mais parecia o Sara. Tinham-lhes dito que chegariam a uma terra de clima temperado, e deparou-se-lhes o lugar mais seco do mundo. Desde o mar alto avistavam a costa, e ao longe uma cordilheira de montanhas difusas como pinceladas de aguarela, contrastando com um céu limpo cor de alfazema. Assim que o barco se deteve, aproximou-se uma lancha tripulada por funcionários dos serviços de imigração e do departamento consular. Quando subiram a bordo, o capitão do Winnipeg disponibilizou-lhes prontamente o seu gabinete para que ali procedessem a entrevistar os passageiros, dar-lhes os respetivos documentos de identificação, bem como os vistos de residência, e informá-los do local do país que lhes fora destinado, segundo as suas profissões.
Victor e Roser, com Marcel nos braços, apresentaram-se no diminuto camarote do capitão e foram recebidos por um jovem funcionário consular, Matias Eyzaguirre, que carimbava e assinava os vistos e os documentos necessários.
- Aqui está indicado que irão residir na província de Talca - explicou-lhes. - Mas isto de atribuir previamente uma residência aos refugiados é uma idiotice e um preciosismo do pessoal da Imigração. No Chile há liberdade absoluta de movimento. Podem ir para onde entenderem.
- O senhor é basco? - perguntou-lhe Victor. - Pergunto isso apenas por causa do seu apelido.
- Os meus bisavós eram bascos; aqui somos todos chilenos. Bem-vindos ao Chile!
Matias Eyzaguirre viajara de comboio até Arica para receber os refugiados do Winnipeg, que chegara com alguns dias de atraso devido ao problema no Panamá. Era um dos funcionários mais jovens do departamento, pelo que lhe saiu em sorte acompanhar o chefe. Nenhum dos dois cumpria de boa vontade aquela missão, pois estavam em total desacordo com a ideia de receber e aceitar os refugiados, aquele bando de vermelhos, de ateus, provavelmente todos criminosos, que, ainda por cima, vinham para o Chile para usurpar postos de trabalho aos chilenos, justamente quando o país vivia uma grave crise de desemprego e ainda não havia recuperado da crise económica nem das consequências do terramoto. Apesar do desagrado que ambos partilhavam, cumpriam com o seu dever. Chegados ao porto, embarcaram-nos numa vacilante lancha que, desafiando as vagas, os conduziu ao Winnipeg. Ali tiveram de subir por uma escada de corda, constantemente sacudida pelo vento, ajudados desde a lancha por uns rudes marinheiros franceses. O Capitão Pupin recebeu-os no convés com uma garrafa de conhaque e charutos cubanos. Os funcionários do Departamento sabiam que o capitão fizera aquela viagem contrafeito e que lhe desagradava sumamente a classe de passageiros que transportava. Ficaram, pois, surpreendidos, quando tiveram oportunidade de conversar com Pupin. Este, durante o mês de convivência com os espanhóis, mudara de opinião a seu respeito, ainda que mantivesse intocáveis as suas convicções políticas.
- Meus senhores, estas pessoas passaram por grandes privações. São gente boa, disciplinada e respeitadora. Vêm para o vosso país com vontade de trabalhar e de refazer as suas vidas - disse-lhes.
Matias Eyzaguirre provinha de uma família aristocrática, de um meio profundamente católico e conservador, que se opunha visceralmente à imigração. Mas, ao encontrar-se cara a cara com cada um daqueles refugiados, homens, mulheres e crianças, adquiriu uma perspetiva diferente da situação, tal como sucedera com Pupin. Fora educado num colégio religioso e vivia protegido pelos privilégios conferidos à sua classe social. O seu avô e o seu pai haviam sido juízes do Supremo Tribunal e dois dos seus irmãos eram advogados, de forma que, como se esperava que sucedesse, inevitavelmente, ele cursara direito, ainda que para tal não tivesse qualquer vocação. Frequentara com grande sacrifício a faculdade durante dois anos, e seguidamente, graças aos conhecimentos da sua família, fora admitido na carreira diplomática. Começara desde a base e, aos vinte e quatro anos, quando fora incumbido de carimbar os vistos dos tripulantes do Winnipeg, já tinha fama de bom funcionário. Dentro de dois ou três meses viajaria para o Paraguai no cumprimento da sua primeira missão no estrangeiro, e contava empreender essa viagem já casado, ou pelo menos de casamento marcado, com a sua prima Ofélia del Solar.
Uma vez solucionadas as questões burocráticas, uma dúzia de passageiros desembarcou, pois havia trabalho para eles no Norte, e o Winnipeg continuou a sua rota para o sul daquela longa pétala de mar descrita por Neruda. A bordo, uma tensa expectativa ia-se apoderando dos espanhóis. No dia 2 de setembro, avistaram os contornos de Valparaíso, seu destino final, e ao anoitecer, o barco fundeava frente ao porto. A ansiedade assumia proporções de histeria coletiva. Mais de dois mil rostos ansiosos assomaram às amuradas do convés, esperando o momento de pisarem aquela terra desconhecida, mas as autoridades alfandegárias decidiram que o desembarque apenas teria lugar no dia seguinte, assim que amanhecesse, e que seria feito lenta e ordenadamente. Miríades de luzes tremeluzentes do porto e das vivendas das colinas de Valparaíso competiam com o brilho das estrelas, de modo que, do barco, não se sabia ao certo onde terminava aquele paraíso prometido e onde começava o firmamento. Era uma cidade estrafalária, toda esculpida em socalcos, de elevadores, de ruas escarpadas, mais apropriadas para burros do que para pessoas, de moradias alucinadamente dependuradas nas extremidades de ladeiras íngremes, repleta de cães vadios, pobretona e suja, uma cidade de marinheiros e de comerciantes, e de vícios, como sucedia com quase todas as cidades portuárias, mas maravilhosa à sua maneira. Do barco, viam-na brilhar como uma mítica construção salpicada de diamantes. Ninguém dormiu nessa noite. Deixaram-se ficar no convés, contemplando aquela visão mágica e contando as horas. Victor haveria de recordar aquela noite como uma das mais belas da sua vida. Pela manhã, o Winnipeg atracou finalmente, com um enorme retrato do Presidente Pedro Aguirre Cerda pintado numa enorme tela e com uma bandeira chilena pendurados numa das amuradas.
Ninguém a bordo contava com a receção que os esperava. Tanto lhes tinham falado da campanha inclemente da direita e da cerrada oposição por parte da Igreja Católica, e da proverbial sobriedade dos chilenos, que num primeiro momento não compreenderam o que sucedia no porto. Uma multidão de gente contida por um cordão policial, portando cartazes e bandeiras de Espanha, da República, do país Basco e da Catalunha, apinhava-se diante deles, saudando-os num clamor imenso de boas-vindas. Uma banda de música tocava os hinos da Espanha republicana, do Chile, e a Internacional Socialista, acompanhada em coro por centenas de gargantas. O hino chileno resumia em poucos versos algo sentimentais o espírito hospitaleiro e a vocação libertária do país que tão prontamente os recebia: "Dulce pátria, recibe los votos / con que Chile en tus aras juro, / que o la tumba serás de los libres, / o el asilo contra la opresión"(9). No convés, os soldados, que haviam passado por tantas provações, choravam, emocionados. Cerca das nove horas da manhã, começou a realizar-se o desembarque. Os refugiados desciam em fila indiana para o porto. Ali chegados, cada um passou pela inspeção de saúde para ser devidamente vacinado, e seguidamente caiu nos braços do Chile, como diria anos mais tarde Victor Dalmau, quando teve oportunidade de agradecer pessoalmente a Pablo Neruda.
Naquele dia 3 de setembro, o dia esplendoroso da chegada dos espanhóis ao Chile, foi também o dia em que rebentou a Segunda Guerra Mundial na Europa.
Felipe del Solar viajara até ao porto de Valparaíso no dia anterior à chegada do Winnipeg, pois, de forma alguma, pretendia perder a possibilidade de presenciar aquele momento histórico, como o definiu. Segundo os seus companheiros
9. "Doce pátria, recebe os votos / que em teus altares o Chile jurou. / Serás dos livres a sepultura / ou refúgio contra a opressão." (N. do T.)
do Clube dos Indignados, era um exagerado. Diziam que o seu fervor em auxiliar os refugiados se devia mais ao facto de pretender contrariar a família do que ao seu bom coração. Passou boa parte do dia a cumprimentar os recém-chegados, misturando-se com a multidão que ali se dirigia para os receber, e conversando com os conhecidos que ia encontrando. Por entre os entusiastas que proliferavam no porto, havia representantes governamentais, dos trabalhadores, e das colónias catalã e basca, com quem tinham sido mantidos contactos constantes durante os últimos meses, a fim de preparar a chegada do Winnipeg. Havia também artistas, jornalistas, intelectuais e políticos, entre os quais se contava um médico, dirigente socialista, Salvador Allende, que ao cabo de alguns dias seria nomeado ministro da Saúde, e três décadas mais tarde seria Presidente do Chile. Apesar da sua juventude, era já uma personalidade de destaque no meio político, admirado por uns, detestado por outros e respeitado por todos. Por mais de uma vez participara nas tertúlias dos Indignados e, ao ver Felipe, cumprimentou-o de longe.
Felipe conseguira um convite para subir ao comboio que transportaria os refugiados de Valparaíso até Santiago. Ali dispôs de várias horas para compreender a verdadeira dimensão do que realmente sucedera em Espanha, pois, até à data, tudo quanto sabia a esse respeito lera-o na imprensa ou ouvira-o da boca de uns poucos, como, por exemplo, de Pablo Neruda. A Guerra Civil Espanhola era relatada no Chile como se se tratasse de um acontecimento distante e remoto, vivido e ocorrido noutra latitude e em outro tempo. O comboio avançava sem se deter, mas passava lentamente pelos apeadeiros das povoações à margem do caminho, pois em cada uma havia um monte de gente para saudar os recém-chegados com canções e bandeiras, e oferecendo-lhes bolos e empanadas que lhes entregavam através das janelas, correndo ao lado do comboio para acompanhar a marcha das carruagens. Em Santiago, esperava-os uma multidão frenética, que se aglomerava na estação, de tal forma que se tornava impossível circular. Havia gente que subira às colunas, outros penduravam-se nas vigas do teto, saudando aos gritos ou cantando e lançando flores. A polícia foi incumbida da tarefa de escoltar os espanhóis desde a estação até ao local onde se serviria um sumptuoso jantar em sua honra, um contundente menu de cozinha típica chilena, preparado pelo comité de receção.
No comboio, durante a viagem, Felipe ouvira diversas histórias da guerra, todas tendo como ponto comum o mais desesperante infortúnio. Terminou entre dois carros ali estacionados, fumando na companhia de Victor Dalmau, que lhe deu a sua perspetiva da guerra, tendo em conta a sua experiência e o quanto vivera e presenciara nos postos de primeiros socorros e nos hospitais de evacuação, onde assistira à proliferação da morte e do sangue.
- O que sofremos em Espanha não passa de uma amostra comparado com o que irá suceder na Europa - concluiu Victor. - Os alemães testaram o novo armamento connosco. Deixaram cidades inteiras reduzidas a escombros. E na Europa será ainda pior.
- Por agora, apenas a França e a Inglaterra enfrentam Hitler, mas certamente em breve contarão com outros aliados. Mais cedo ou mais tarde, os americanos serão obrigados a pronunciar-se - opinou Felipe.
- E no meio de tudo isto... qual será a posição do Chile? - interveio Roser, que se aproximara deles transportando às costas o filho, na mesma mochila que usara durante toda a travessia.
- Esta é a minha mulher... - apresentou Victor.
- Encantado, minha senhora. Felipe del Solar, ao seu dispor. O seu marido já me falou muito de si... É pianista, não é verdade?
- Sim... mas trata-me por tu - pediu Roser, repetindo a pergunta a Felipe.
Ele falou-lhe da numerosa colónia alemã residente no Chile, ali instalada desde há várias décadas, e citou o fenómeno do surgimento dos nazis chilenos, acrescentando, contudo, que, na sua opinião, nada havia que temer. Certamente que o Chile se manteria neutro na guerra. Deu-lhes a conhecer uma lista de industriais e de empresários que pretendiam dar trabalho a alguns espanhóis segundo as suas competências, mas nenhum dos postos de trabalho oferecidos se enquadrava nas qualificações de Victor. Sabia que não poderia exercer a sua profissão sem diploma. Felipe aconselhou-o a matricular-se na Universidade do Chile, de frequência gratuita e de grande prestígio, e que, uma vez ali, estudasse medicina. Talvez lhe reconhecessem a parte do curso que iniciara em Barcelona, bem como os conhecimentos práticos adquiridos durante a guerra. Ainda assim, iria demorar alguns anos a conseguir a graduação de médico.
- O principal, por agora - contemplou Victor -, é encontrar uma forma de ganhar a vida. Tentarei encontrar um trabalho noturno que me permita continuar a estudar durante o dia.
- Eu também preciso de arranjar trabalho - atalhou Roser.
- Para ti será fácil. Precisamos de pianistas por estas bandas!
- Neruda também me disse isso - apostrofou Victor.
- Por agora ficarão a viver em minha casa - ofereceu Filipe. Dispunha de dois quartos desocupados e, antecipando
a chegada do Winnipeg, contratara mais pessoal doméstico. Ao seu serviço tinha agora uma cozinheira e duas empregadas. Desta forma, cria poder evitar problemas de maior com Juana. As chaves dos quartos livres da casa paterna, que a boa mulher se recusara a entregar-lhe, foram, em tantos anos de convívio, o único motivo de discussão que entre eles existiu, mas gostavam demasiadamente um do outro para que tal divergência os separasse. Quando chegou de Paris o telegrama do pai, deixando bem claro que nenhum comuna poria pé em sua casa, Felipe tratou de se organizar para receber alguns espanhóis sob o seu próprio teto. A família Dalmau pareceu-lhe perfeita.
- Agradeço-te imenso, mas parece-me que o Comité de Refugiados nos conseguiu alojamento numa pensão, e dispuseram-se a pagar-nos os seis primeiros meses - esclareceu Victor.
- Tenho um piano e passo o dia inteiro no escritório. Poderás praticar sempre que quiseres sem que ninguém te incomode, Roser.
Foi esse o argumento definitivo. A casa, situada num bairro que aos hóspedes pareceu tão senhorial como os melhores de Barcelona, era elegante por fora e estava praticamente vazia, pois Felipe apenas se preocupara em adquirir os móveis indispensáveis. Detestava o estilo rebuscado da casa dos pais. Ali não havia cortinas nas janelas de vidros biselados, nem carpetes no chão de parquet, nem sequer um vaso ou uma planta à vista. As paredes apresentavam-se despidas. Mas, apesar da escassa decoração, de tudo emanava uma aura de inegável refinamento. Ofereceram-lhes dois quartos e colocaram à sua disposição os cuidados de uma das empregadas, a quem Felipe designou o papel de ama. Assim, Marcel teria quem tomasse conta dele enquanto os pais trabalhavam.
Dois dias depois, Felipe levou Roser a uma emissora de rádio, de cujo diretor era amigo, e nessa mesma tarde viu-se sentada diante de um piano a acompanhar um programa em direto. Anunciaram também o seu talento como concertista e como professora de música. Nunca lhe faltaria trabalho. A Victor conseguiu-lhe um emprego no bar do Clube Hípico, onde funcionava o mesmo sistema de contactos e de conhecimentos, e onde os méritos individuais contavam muito menos que os compadrios. O turno era das sete da tarde às duas da madrugada. Isso permitir-lhe-ia prosseguir os seus estudos, mal conseguisse inscrever-se na faculdade de medicina, que, segundo Felipe, seria muito fácil, pois o reitor era parente da família da sua mãe, os Vizcarra. Victor começou por carregar caixas de cerveja e por lavar copos, mas, gradualmente, aprendeu a distinguir os diferentes vinhos e a preparar cocktails. Então foi transferido para o balcão do bar, onde devia apresentar-se sempre de fato escuro, camisa branca e de laço. Apenas possuía uma muda de roupa interior além do fato comprado com o dinheiro de Aitor Ibarra em Argelès-sur-Mer, mas Felipe colocou o seu guarda-roupa pessoal à disposição.
Juana Nancucheo aguentou-se uma semana sem fazer perguntas sobre os refugiados alojados por Felipe, até que a curiosidade pôde mais que o seu orgulho e, munida de uma bandeja de bolos recém-saídos do forno, foi dar uma espreitada. Abriu-lhe a porta a nova ama, com o bebé nos braços.
- Os patrões não estão - disse.
Juana afastou-a, sem cerimónia, e entrou nos aposentos a passos largos. Inspecionou tudo de uma ponta a outra e chegou à conclusão de que os vermelhos, como lhes chamava Dom Isidro, eram bastante limpos e metódicos. Na cozinha, destapou as panelas e deu instruções à ama, que julgou demasiado jovem para a tarefa e com cara de tonta.
Por onde anda a passarinhar a mãe do miúdo? Muito bonito isso de trazer filhos ao mundo e depois não cuidar deles...
- Simpático, o Marcelito... não se pode negar... olhos grandes, gorducho e nada tímido. Lançou-me os braços ao pescoço mal me viu e agarrou-se-me à trança! - contou mais tarde a Felipe.
No dia 4 de setembro, em Paris, Isidro del Solar preparava-se para comunicar à mulher a irrevogável decisão de matricular Ofélia no colégio para raparigas, quando foram surpreendidos pela notícia de que estalara a guerra. O eclodir do conflito adivinhava-se há meses, mas ele descartara importância ao temor coletivo, pois tal facto interferia com as suas férias. Seria certamente um exagero dos jornais. Além disso, o mundo estava sempre prestes a resvalar nalguma questão de natureza bélica. Que necessidade havia de afligir-se com isso? Mas bastou-lhe assomar à porta do quarto para se aperceber da gravidade do que ocorrera. Deparou-se com uma atividade frenética. Os empregados do hotel corriam de um lado para o outro carregando malas e baús. Os hóspedes acotovelavam-se, as senhoras com os seus lulus nos braços, os cavalheiros procurando a todo o custo conseguir os serviços dos poucos táxis disponíveis, as crianças confusas e assustadas chorando. Na rua também imperava uma agitação digna de um estado de sítio. Meia cidade tentava refugiar-se no campo até que as coisas se esclarecessem. O tráfego estava completamente congestionado de veículos abarrotados de embrulhos até ao teto que tentavam avançar por entre um formigueiro de peões apressados. Soavam instruções perentórias por altifalantes, e guardas a cavalo procuravam a custo manter a ordem. Isidro del Solar teve de se resignar à ideia de que voltar tranquilamente a Londres, e ir buscar o automóvel último modelo que adquirira para depois embarcar no Reina del Pacífico rumo ao Chile, não passava de um plano que fora por água abaixo. Tinha de sair da Europa o mais rapidamente possível. Entrou em contacto com o embaixador do Chile na França.
Passaram-se três dias angustiantes até a Embaixada lhes conseguir passagens para o Chile no último barco disponível: um cargueiro a rebentar pelas costuras, em que viajavam mais de trezentos passageiros, onde normalmente apenas havia lugar para cinquenta. Para arranjar uma vaga para os Del Solar, estiveram a ponto de excluir uma família judia, que pagara os seus ingressos e que subornara um dos cônsules com as jóias antiquíssimas de uma avó, a fim de obter os vistos de residência. Já anteriormente sucedera que se recusassem a embarcar judeus, ou que um ou outro barco, depois de levantar ferros, os voltasse a deixar no ponto de partida, pois nenhum país os aceitava. Essa família, tal como muitas outras, conseguira fugir da Alemanha após ter sofrido grandes humilhações, sem, contudo, ter conseguido trazer consigo nada de valor. Para eles, afastarem-se da Europa era questão de vida ou de morte. Ofélia ouviu como suplicavam ao capitão e prontamente lhes disponibilizou o seu camarote sem previamente ter consultado a opinião dos pais, ainda que tal significasse ter de partilhar um estreito beliche com a mãe.
- São tempos de crise... temos de nos adaptar - aventou Isidro, mas, não obstante, sentia-se desconfortável com aquela proximidade com gente de tantas raças, incluindo sessenta judeus. A péssima comida, a maior parte das vezes arroz com arroz, a falta de água para os banhos, o sobressalto de navegarem às escuras para passarem despercebidos sob a mira dos aviões... - Não sei como vamos suportar um mês apertados como sardinhas em lata nesta sucata ferrugenta - insistia, enquanto a mulher rezava e Ofélia se ocupava a distrair as crianças e a pintar retratos e cenas de bordo.
Em breve, inspirada pela proverbial generosidade do seu irmão Felipe, distribuiu parte da sua roupa pelos judeus que haviam embarcado sem mais do que a roupa que traziam no corpo.
-Roupa tão cara... tanto dinheiro gasto, para depois andar esta rapariga a dar tudo ao desbarato! Ainda bem que o enxoval está guardado no porão! - resmungava Isidro, surpreendido pelo gesto daquela filha, que até então lhe parecera tão frívola.
Meses mais tarde, Ofélia tomaria consciência de que a Segunda Guerra Mundial a salvara de ingressar num colégio interno para raparigas bem-nascidas.
Aquela viagem, que normalmente durava vinte e oito dias, fez-se a todo o vapor em apenas vinte e dois, contornando minas flutuantes e evitando navios de guerra de ambos os lados. Em teoria, estavam a salvo porque viajavam sob a bandeira neutral do Chile, mas, na prática, não estavam livres de haver um qualquer mal-entendido e de acabarem a pique, afundados pelos alemães ou pelos Aliados. No Canal do Panamá depararam-se com medidas de proteção extremas: mecanismos antissabotagem, redes de arrasto e mergulhadores para despistarem possíveis explosivos instalados nas comportas. Para Laura e Isidro del Solar, o calor e os mosquitos eram um tormento. As incontáveis incomodidades, somadas à angústia com a guerra, mantinham-nos com o estômago apertado, mas, pelo contrário, para Ofélia, a experiência era, de longe, mais divertida do que a viagem a bordo do Reina del Pacífico, com o seu ar condicionado e aquelas orgias de chocolate.
Felipe foi esperá-los ao porto no seu carro, levando também um camião alugado, conduzido pelo motorista da família, para transportar a totalidade da bagagem. A sua irmã, que sempre lhe parecera um pouco néscia e de ar algo sonhador, como se retirada de uma novela romântica, surpreendeu-o. Encontrou-a mais crescida e mais séria. Crescera e haviam-se-lhe definido as feições. Já não era a miúda com ar de boneca de quem se havia despedido, mas uma jovem interessante. Caso não fosse sua irmã, diria mesmo que era uma rapariga bem apetecível. Matias Eyzaguirre também fora recebê-los ao porto no seu automóvel, com um ramo de rosas para a namorada renitente. Tal como sucedera a Felipe, também ele se surpreendeu com a mudança de Ofélia. Sempre a achara atraente, mas agora parecia-lhe simplesmente perfeita, e principiou a corroê-lo o ciúme atroz de que surgisse outro pretendente, mais inteligente, bem-parecido e rico que ele, pronto a arrebatá-la dos seus braços, pelo que decidiu apressar os seus planos. Logo que possível, comunicar-lhe-ia a nomeação para a sua primeira missão diplomática no estrangeiro, e quando se encontrassem a sós, dar-lhe-ia o anel de brilhantes que pertencera à sua bisavó. Um suor pegajoso escorria e empapava-lhe a camisa. Quem poderia saber como reagiria aquela jovem caprichosa ante a perspetiva de casar e partir com ele para o Paraguai?
A caravana constituída pelos dois carros e pelo camião passou por entre um grupo de cerca de vinte jovens portando suásticas, insultando e protestando contra os judeus que viajavam a bordo, e a quantos tinham vindo recebê-los.
- Pobres coitados. Vêm fugidos da Alemanha, e vejam o que encontram aqui... - comentou Ofélia.
- Não lhes dês importância. Os polícias vão dispersá-los rapidamente - tranquilizou-a Matias.
Durante a viagem para Santiago, quatro horas por uma estrada por pavimentar, curva e contracurva, Felipe, que viajava com os pais num dos automóveis, teve oportunidade de lhes contar como os espanhóis se estavam a adaptar bem, e que, em menos de um mês, a maioria já se encontrava instalada e a trabalhar. Muitas famílias chilenas haviam hospedado alguns. Era uma vergonha que, possuindo uma casa tão ampla, com uma dúzia de quartos desocupados, não fizessem o mesmo.
- Já sei que alberga um par de ateus comunistas em sua casa. Vai arrepender-se amargamente disso! - advertiu-o o pai.
Felipe defendeu-se, dizendo que de comunistas nada tinham os seus hóspedes... que seriam, quando muito, anarquistas, e que, quanto ao facto de serem ateus, isso havia que se averiguar posteriormente. Falou-lhes sobre os Dalmau, que eram gente decente e muito culta, e contou que o seu filho, ainda de tenra idade, gostava muito de Juana. Laura e Isidro já sabiam que a até então sempre leal Juana Nancucheo os traíra, e que ia diariamente a casa de Felipe para ver o bebé, a fim de supervisionar as suas refeições, e para o levar a passear no jardim com Leonardo, uma vez que a sua mãe estava sempre fora, como dizia, e que com a desculpa do piano nunca parava em casa, enquanto o pai vivia enfiado num bar. A Felipe pareceu espantoso que, mesmo após um tão longo período em alto-mar, os pais se encontrassem tão bem informados.
Em dezembro, Matias Eyzaguirre partiu para o Paraguai, sob as ordens de um embaixador déspota em relação aos seus subalternos e subserviente com os que o precediam na escala social. Matias pertencia a essa classe. Viajou sozinho, pois Ofélia recusara o anel com o pretexto de ter prometido ao pai que permaneceria solteira até que completasse vinte e um anos. Matias sabia muito bem que, caso ela pretendesse casar-se, ninguém seria capaz de a impedir, mas resignou-se a esperar, com todos os riscos que tal implicava. Ofélia tinha admiradores de sobra, mas os seus sogros garantiram-lhe que tomariam bem conta dela:
- Dê tempo à menina. Ainda é muito imatura. Vou rezar muito por vocês os dois e pedir que sejam felizes - prometera-lhe Dona Laura. Matias pensava seduzir Ofélia à distância, mediante uma ininterrupta correspondência, um dilúvio de cartas de amor. Para isso existiam os correios, e ele conseguia ser muito mais eloquente por escrito do que falando. Amava Ofélia desde criança. Eram feitos um para o outro. Disso não lhe restava a menor dúvida.
Alguns dias antes do Natal, como sempre fazia nessa data, Isidro comprou um porco alimentado à base de leite e contratou alguém que o matasse e esquartejasse no pátio mais afastado da casa, longe da vista de Dona Laura, de Ofélia e do Bebé.
Juana supervisionou a transformação do pobre animal em carne para assar, em salsichas, costeletas, presunto e toucinho. Estava encarregada de preparar o jantar do 24 de dezembro, que reunia a extensa família, e de instalar na lareira um presépio encomendado em Itália. De manhã cedo, quando foi levar à biblioteca o café ao patrão, plantou-se-lhe diante:
- Aconteceu alguma coisa, Juana?
- Eu acho que era decente convidar também os comunistas do menino Felipe...
Isidro ergueu os olhos do jornal e ficou a contemplá-la, perplexo e atónito.
- Digo isto apenas pelo Marcelito - disse ela.
- Quem?
- O patrão sabe perfeitamente a quem me refiro... ao miúdo, pois claro, o filho dos comunistas.
- Os comunistas ficam com os cabelos em pé mal ouvem a palavra "Natal", Juana. Não acreditam em Deus e não ligam a ponta de um corno ao Menino Jesus.
Juana abafou um grito e benzeu-se apressadamente. Felipe explicara-lhe um monte de tolices sobre os comunistas, sobre igualdade e sobre luta de classes, mas nunca ouvira que pensassem semelhante coisa de Deus e do Menino Jesus. Levou um minuto inteiro a recuperar o uso da palavra:
- Até pode ser assim, patrão, mas o miúdo não tem culpa nenhuma dos pais que tem. Acho que deveriam jantar connosco na noite de Natal. Já disse isso ao menino Felipe e ele está de acordo. E Dona Laura e a Ofelita também.
Foi assim que a família Dalmau passou o seu primeiro Natal no Chile, em casa dos Del Solar. Roser usava o mesmo vestido do seu casamento em Perpignan, azul-escuro, com flores costuradas na gola, e apanhou o cabelo numa rede de contas negras com um broche de azeviche, que Carme lhe oferecera, mal soube que estava grávida de Guillem. "Já te considero minha nora. Para estas coisas não são necessários papéis.", dissera-lhe. Victor envergava um fato de Felipe que lhe ficava um pouco largo no corpo e demasiado curto nas perneiras das calças. Assim que chegaram à casa da Rua Mar del Plata, Juana apoderou-se de Marcel e levou-o para brincar com Leonardo, enquanto Felipe conduzia os Dalmau para o salão, a fim de proceder às apresentações regulamentares. Contara-lhes que no Chile as classes sociais eram como uma tarte de mil-folhas: "É fácil descer, mas impossível de subir, pois aqui o dinheiro não compra linhagem.". As únicas exceções que permitiam alguma ascensão eram o talento, como o de Pablo Neruda, e a beleza irradiante de algumas mulheres. Fora o caso da avó de Ofélia, filha de um modesto comerciante inglês, mas dotada de um porte de rainha, que os fizera ascender, como diziam os seus descendentes, os Vizcarra. Se os Dalmau fossem chilenos, jamais em tempo algum teriam sido convidados para a mesa dos Del Solar, mas, por enquanto, na categoria de estrangeiros exóticos, encontravam-se numa espécie de limbo. Se tudo lhes corresse de feição, seriam incorporados numa das mil e uma subcategorias da classe média. Felipe advertiu-os de que em casa dos pais seriam examinados como feras de circo. Estariam perante gente conservadora, muito religiosa e intolerante, mas, uma vez superada a curiosidade inicial, seriam acolhidos de acordo com os ditames da obrigatória hospitalidade chilena. E assim foi. Ninguém lhes perguntou rigorosamente nada sobre a Guerra Civil nem sobre os motivos que os levaram ao exílio, em parte por ignorância - segundo dizia Felipe, apenas liam as páginas de crónica social do jornal El Mercúrio -, mas também por gentileza, uma vez que não pretendiam incomodá-los. Victor sentiu-se invadido por toda a timidez que o caracterizara na adolescência e permaneceu de pé, num recanto do salão francês, entrincheirado entre duas poltronas Luís XV, forradas de seda cor de musgo, quedo e mudo, a tudo respondendo o mínimo possível. Pelo contrário, Roser estava nas suas sete quintas, e não se fez rogada a tocar algumas canções alegres no piano, acompanhada em coro por alguns dos presentes já com um grão na asa.
Dos Del Solar, quem mais se impressionou com os Dalmau foi Ofélia. O pouco que deles sabia baseava-se em comentários de Juana. Imaginava-os um casal de tétricos funcionários soviéticos, isto apesar de Matias lhe ter referido a boa impressão que lhe haviam causado os espanhóis, quando lhes carimbara os vistos de residência à sua chegada a bordo do Winnipeg. Roser era uma jovem cheia de autoconfiança, sem qualquer assomo de vaidade ou de arrivismo. Explicou a um corrupio de senhoras, todas trajando de negro e com colares de pérolas, uniforme regulamentar das chilenas distintas, que fora pastora de cabras, padeira e costureira, antes de ganhar a vida como professora de piano. Disse isso com tal naturalidade, que foi elogiada como se tivesse desempenhado esses ofícios não por necessidade, mas por mero capricho. Depois sentou-se ao piano e conquistou por completo aquela distinta plateia. Ofélia sentia um misto de inveja e de vergonha ao comparar a sua existência de senhorita ignorante e ociosa com a vida de Roser, que era apenas dois ou três anos mais velha do que ela, segundo lhe dissera Felipe, mas que vivera três vidas mais. Sobrevivera à pobreza, a uma guerra perdida, ao desespero do desterro. Era mãe e mulher. Cruzara os mares e chegara a uma terra desconhecida com uma mão à frente e outra atrás, sem nada temer. Quisera ser como ela, assim digna e corajosa. Como se lhe lesse o pensamento, Roser aproximou-se dela e estiveram algum tempo a sós, fumando na varanda, para se refrescarem um pouco. Para Roser, um Natal passado em pleno verão era algo inimaginável. Ofélia admirou-se com a sua audácia, confessando àquela desconhecida que alimentava o sonho de partir para Paris ou para Buenos Aires, onde viveria da pintura, e de como isso era um sonho impossível e uma loucura, pois nascera prisioneira da condição de ser mulher, da sua família e das convenções sociais. E, com uma careta trocista para dissimular o choro iminente, acrescentou que o pior de tudo era o facto de não ser independente, pois nunca conseguiria viver da arte.
- Se tens verdadeira vocação, mais cedo ou mais tarde, vais começar a pintar a sério. E é bem melhor que seja o quanto antes... e assim será, se tiver de ser. E porquê em Paris ou em Buenos Aires? Só precisas de disciplina. Acontece o mesmo com o piano. Sabes, raras vezes dá para vivermos daquilo que realmente amamos, mas vale sempre a pena tentar - argumentou Roser.
Várias vezes nessa noite, Ofélia sentiu o olhar ardente de Victor Dalmau persegui-la pelo salão, mas como ele insistisse em permanecer no seu recanto sem se aproximar, a dada altura, sussurrou a Felipe que lho apresentasse.
- Ofélia, este é o meu amigo Victor, de Barcelona. Foi miliciano durante a Guerra Civil.
- Na realidade, fui apenas paramédico. Nunca tive de disparar uma arma... - esclareceu Victor.
- Miliciano? - inquiriu Ofélia, que nunca ouvira semelhante palavra.
- Era o nome que se dava aos combatentes antes de serem incorporados no exército regular - prontificou-se a explicar Victor.
Felipe deixou-os a sós, e Ofélia passou algum tempo na companhia de Victor, tentando entabular uma conversa sem, contudo, encontrar um tema de interesse comum, ou sequer um eco da parte dele. Perguntou-lhe pelo trabalho no bar, simplesmente porque Juana lhe havia mencionado tal facto, e com grande esforço conseguiu subtrair-lhe a informação de que pretendia terminar os estudos em medicina, que iniciara ainda em Espanha. Por fim, aborrecida com tantas pausas e tanto silêncio, deixou-o novamente sozinho. Pouco tempo depois voltou a surpreendê-lo a observá-la, e aquele atrevimento incomodou-a um pouco, ainda que ela também o estudasse dissimuladamente. Atraía-a aquele rosto de nariz aquilino e de malares salientes, aquelas mãos marcadas e de longos dedos, aquele corpo magro e seco. Gostaria de o desenhar, de o retratar com pinceladas negras e brancas sobre um fundo cinzento, com uma espingarda entre as mãos... e completamente nu. Corou ante essa simples ideia. Nunca pintara ninguém nu, e o pouco que sabia de anatomia masculina aprendera-o nos museus da Europa, onde a maioria das estátuas se encontrava mutilada ou coberta com uma folha de parra. As mais atrevidas e expostas eram, contudo, dececionantes, como David, de Miguel Ângelo, com as suas mãos enormes e uma insignificante pilinha de querubim. A Matias nunca o vira nu, mas já se tinham acariciado com suficiente intimidade para que ela adivinhasse o que se lhe ocultava no interior das calças. Haveria que ver depois para melhor avaliar... E porque coxearia o espanhol? Poderia ser uma heróica ferida de guerra. Perguntaria a Felipe em momento oportuno. A curiosidade era recíproca. Victor sentia que ele e Ofélia vinham de planetas distintos, e que ela pertencia a uma espécie diferente de mulheres, diferente de todas quantas habitavam o seu passado. A guerra tinha uma terrível capacidade de tudo deformar... até mesmo a própria memória. Talvez antes tivessem existido na sua vida jovens frescas, preservadas ainda da fealdade do mundo, tal como Ofélia, com vidas impolutas como páginas em branco, onde pudessem escrever os seus destinos com elegantes caligrafias sem mácula, mas não se recordava de nenhuma que assim fosse. Aquela beleza intimidava-o. Estava acostumado a mulheres prematuramente marcadas e desfiguradas pela pobreza e pela guerra.
Parecia-lhe alta, porque em Ofélia tudo era longitudinal, desde o pescoço longilíneo até aos pés finos, mas quando se lhe aproximou, reparou que apenas lhe chegava à altura do queixo. Tinha o cabelo numa gradação de tons de uma cor amadeirada, presos numa tira de veludo negro, a boca eternamente entreaberta, como se não lhe bastasse o espaço dos lábios para os dentes, uma boca pintada, uma boca cor de rubi. O mais chamativo eram, porém, os seus olhos azuis de sobrancelhas finas e arqueadas, muito separados, ostentando a expressão perdida de quem fixa o longe e o mar. Atribuiu esse facto à hipótese de Ofélia ser ligeiramente míope.
Depois do jantar, a família completa, com as crianças e os criados da casa, dirigiu-se à igreja para assistir à missa do galo. Os Del Solar ficaram surpreendidos com o facto de os Dalmau, supostamente ateus, quererem acompanhá-los, e mais ainda que Roser seguisse todo o ritual religioso em latim, conforme aprendera no colégio de freiras. Pelo caminho, Felipe tomou Ofélia por um braço e manteve-a afastada dos restantes, para lhe falar a sós e colocar os pontos nos is:
- Se te apanho a fazer charme para cima do Victor Dalmau, vou dizer ao papá! Estamos entendidos? A ver como reage se sabe que andas a arrastar a asa a um tipo casado, ainda por cima... um imigrante sem vintém.
Ela fingiu estupefação ante aquele comentário, como se jamais lhe tivesse ocorrido semelhante coisa. Felipe absteve-se de fazer a mesma advertência a Victor, porque não quis humilhá-lo, mas decidiu, por qualquer meio ao seu alcance, impedir que voltasse a ver a sua irmã. A atração entre os dois era tão fulminante e palpável que sem dúvida outros também teriam notado. E tinha razão. Mais tarde, quando Victor foi desejar boa noite a Roser, que dormia com Marcel no outro quarto, ela preveniu-o.
- Essa rapariga é inalcançável para ti, Victor. Nunca pertencerás ao seu meio social nem à sua família. Tira-a da cabeça.
- Esse seria o menor dos problemas... há inconveniente^ bem maiores que a classe social.
- Exatamente. Além de seres pobre e moralmente suspeito, à luz do que pensa de gente como nós esse clã tão elitista, não és propriamente um tipo simpático.
- Estás a esquecer-te de um aspeto fundamental: tenho mulher e um filho.
- Podemos divorciar-nos.
- Roser, neste país não existe divórcio... e, segundo Felipe, nunca existirá.
- Queres dizer que estamos para sempre presos um ao outro?! - exclamou Roser, assombrada.
- Podias dizer isso de uma forma mais delicada. Enquanto vivermos aqui, permaneceremos legalmente casados, mas assim que o regime de Franco cair e se restaurar a República, logo que regressemos a Espanha, divorciamo-nos e pronto!
- Isso pode demorar muito tempo, Victor! Entretanto, vamos ter de nos estabelecer aqui. E eu quero que Marcel cresça como um chileno.
- Como chileno, também... mas o nosso lar será sempre catalão, e com muita honra!
- Franco proibiu que se falasse o catalão - recordou-lhe Roser.
- Por isso mesmo, mulher!
VII.
1940-1941,
Toda a noite
dormi contigo,
enquanto girava e girava a sombria terra
sob os vivos e os mortos.
Pablo Neruda
"A noite na ilha".
Os Versos do Capitão.
Victor Dalmau foi admitido na universidade para completar os estudos de medicina, graças ao infalível sistema de cunhas e de conhecimentos tão em vigor no Chile. Felipe del Solar apresentou-lhe Salvador Allende, um dos fundadores do Partido Socialista, homem de confiança do Presidente e atual ministro da Saúde. Allende seguira apaixonadamente o triunfo da República em Espanha, o levantamento militar, a derrota da democracia e a ditadura instaurada por Franco, como se pressentisse que um dia ele próprio perderia a vida num conflito similar no seu país. Ouviu o pouco que Victor lhe contou sobre a guerra e o exílio, e intuiu tudo quanto ficou por dizer. Com uma simples chamada telefónica, conseguiu que a universidade lhe validasse os estudos iniciados em Espanha e lhe permitisse completá-los em apenas três anos.
Os estudos eram intensos. Victor tinha tantos conhecimentos práticos como os seus professores, mas sabia muito pouco de teoria. Uma coisa era remendar ossos partidos, outra bem distinta era saber identificá-los pelo nome. Dirigiu-se ao gabinete de Allende para lhe agradecer, sem saber como lhe retribuir o favor. Allende perguntou-lhe se sabia jogar xadrez e logo o desafiou para uma partida num tabuleiro que tinha no gabinete. Perdeu com elegância.
- Se pretende pagar-me de alguma forma, venha jogar comigo sempre que eu o chamar - disse a Victor ao despedir-se. Essas partidas de xadrez constituiriam a base da amizade entre os dois homens, que anos mais tarde determinaria o segundo exílio de Victor Dalmau.
Victor, Roser e o bebé viveram durante uns meses na casa de Felipe, até que tiveram condições de pagar um quarto numa pensão. Negaram-se a aceitar a ajuda do Comité porque, segundo disseram, havia gente mais necessitada do que eles. Em vão, Felipe tentou que permanecessem em sua casa, mas estes recusaram, considerando que já haviam abusado o suficiente da hospitalidade do amigo e que era tempo de se valerem por si próprios. Juana Nancucheo foi quem mais sentiu a mudança, pois, para ver Marcel, tinha de fazer um longo percurso de autocarro. Embora a amizade entre Victor e Felipe se mantivesse intacta, não foi fácil cultivá-la, pois pertenciam a círculos sociais distintos e ambos estavam muito ocupados. Felipe tentou integrá-lo no Clube dos Indignados, imaginando o quanto o amigo poderia contribuir naquelas tertúlias que iam perdendo o seu cariz intelectual para ganharem um tom cada vez mais frívolo, mas cedo se tornou claro que Victor nada tinha que ver com os seus amigos. Na única reunião que frequentou, respondeu com monossílabos ao bombardeamento de perguntas sobre as suas aventuras e desventuras na Guerra Civil de Espanha, e rapidamente os restantes membros se aborreceram da fatigante tarefa de lhe extraírem informações a conta-gotas e deixaram de lhe prestar atenção. Para evitar que se cruzasse com Ofélia, Felipe não voltou a convidá-lo para casa dos seus pais.
O trabalho noturno no bar apenas lhe permitia subsistir ajusta, mas serviu para aprender aquele curioso ofício e para usufruir da oportunidade de estudar os clientes. Foi assim que conheceu Jordi Moliné, viúvo catalão, que emigrara para o Chile há uns vinte anos, e que ali era proprietário de uma fábrica de sapatos; tinha por hábito sentar-se ao balcão, para, entre uma e outra bebida, trocar com Victor dois dedos de conversa no seu idioma nativo. Numa dessas noites, enquanto acariciava o seu copo de licor, explicou a Victor que fabricar sapatos era um ofício bastante aborrecido, mas muito lucrativo, e agora, que se encontrava sozinho e que ia envelhecendo, entendia que chegara o momento de abrandar o trabalho e conceder-se uma vida mais calma. Propôs a Victor que abrissem uma taberna ao estilo catalão: ele seria o investidor inicial, beneficiando da experiência de Victor no ramo. Victor replicou que a sua vocação era ser médico e não taberneiro, mas, nessa noite, quando contou a Roser a proposta que recebera, a ela pareceu-lhe uma ideia extraordinária; melhor ter um negócio próprio do que trabalhar para outros. E, como sustentou, se não resultasse, pouco se perderia, pois seria Jordi a arriscar o capital. Era necessário ser prudente com os gastos e ter em conta que os clientes apenas pretendiam passar algum tempo a beber e a esquecer as suas penas... quanto ao resto, era de somenos. Inspiraram-se n'O Rocinante, a taberna de Barcelona onde, até aos últimos dias, o pai de Victor jogara as suas partidas de dominó. Abriram o negócio num tasco de má morte, com barris fazendo as vezes de mesas, presuntos e tranças de alhos dependurados do teto, e um persistente odor acre a vinho rançoso, mas muito bem situado em pleno centro de Santiago. Roser ofereceu-se para tratar da parte da contabilidade, pois tinha mais aptidão para contas e matemáticas do que qualquer um dos sócios. Aparecia sempre com Marcel, instalava-o num recanto próximo da sua mesa de trabalho, enquanto colocava em dia os seus cadernos de números. Nem a mais irrisória cerveja escapava ao seu demolidor escrutínio. Descobriram uma cozinheira que sabia preparar butifarras com cubos de beringela, boquerones, calamares ao alho, atum com tomate e outras delícias típicas do seu país natal, que atraiu uma fiel e saudosa clientela de emigrantes espanhóis. Deram à taberna o nome de Winnipeg. Durante aqueles já dezoito meses que levavam casados, Victor e Roser desenvolveram uma perfeita e sólida relação fraternal, compartindo tudo exceto a cama: ela por ainda ter na lembrança Guillem, ele para evitar mais problemas. Roser interiorizara que o amor apenas acontece uma vez na vida de cada um, e que ela já tivera a sua quota-parte. Por seu lado, Victor dependia dela para o auxiliar a enfrentar os seus fantasmas. Considerava-a a sua melhor amiga e gostava cada vez mais de Roser, à medida que mais profundamente a ia conhecendo. Por vezes dava consigo a pensar como desejaria apanhá-la desprevenida, abraçá-la e beijá-la sem aviso, cruzando assim aquela fronteira invisível que os separava, mas estava consciente de que tal atitude seria uma espécie de traição ao seu irmão, e não poderia acarretar senão nefastas consequências. Um dia teriam de falar sobre isso... sobre quanto tempo dura o luto, sobre quanto tempo nos perseguem os nossos mortos. Esse dia surgiria quando Roser estivesse preparada e decidisse que estava na hora... tal como decidia tudo o resto. Até lá, ele distraía-se pensando em Ofélia del Solar como quem pensa na possibilidade de ganhar a lotaria, uma especulação inútil. Apaixonara-se por ela à primeira vista, com uma intensidade adolescente, mas como não voltara a vê-la, rapidamente o amor se convertera em lenda. Nas suas vagas lembranças, repassava os pormenores do seu rosto, dos seus gestos, do seu vestido, da sua voz... Ofélia era um reflexo frágil que se dissipava ao menor estremecimento. Amava-a teoricamente, com um amor platónico, idêntico ao dos trovadores de antanho.
Desde o início, Victor e Roser alicerçaram a sua convivência num sistema de confiança e de ajuda mútua, indispensável a qualquer relação saudável, e para conseguirem superar da melhor forma as provações do exílio. Acordaram que Marcel seria a sua prioridade até cumprir dezoito anos. Victor não via Marcel como seu sobrinho. Assumira-o como um filho, e esse assunto constituía para ele um ponto encerrado e inquestionável. Roser tinha esse aspeto sempre presente, e por isso estimava tanto Victor. O dinheiro que ambos iam ganhando era depositado numa caixa de charutos, e ali ficava, pronto para suprir os gastos comuns. Era ela a responsável pela gestão das finanças e dos assuntos da casa. Separava o dinheiro obtido em cada mês em quatro envelopes, um para cada semana, e respeitavam escrupulosamente esse princípio, ainda que tivessem de comer apenas sopa ou arroz com arroz e nada mais. De lentilhas, nem falar! Victor fartara-se delas para todo o sempre desde os tempos do campo de concentração. Se no fim algo sobrava, levavam o filho a comer um gelado.
Eram de temperamentos opostos, por isso se davam tão bem. Roser jamais sucumbia ao sentimentalismo, tão característico dos desterrados. Havia que olhar em frente. Não valia a pena perder-se em pensamentos vãos, recordando os escombros de uma Espanha que há muito deixara de existir. Por algum motivo se viram obrigados a partir! O seu apurado e implacável senso de realidade salvava-a das frustrações, das mágoas, do peso da vitimização e do hábito de se lamentar. Era indiferente ao cansaço ou ao desespero. Nenhum esforço lhe parecia demasiado. Possuía uma determinação de panzer para arrasar com os obstáculos que lhe surgiam.
Os seus objetivos eram simples e claros. Nada de continuar a acompanhar radionovelas ao piano. Sempre aquele entediante repertório constituído pelas mesmas composições, tristes, românticas, aguerridas ou tétricas, dependendo do que exigia o mote da representação. Estava completamente farta de Aída e do Danúbio Azul. O seu interesse verdadeiro era a música, apenas e só, como algo elevado e único propósito de vida. Mas, por enquanto, impunha-se esperar. Logo que a taberna lhes desse o suficiente para viver, e mal Victor se graduasse, tencionava inscrever-se na Faculdade de Música. Seguiria os passos do seu mentor, seria professora e compositora, como
Marcel Lluís Dalmau.
Ao contrário, Victor frequentemente se rendia, abatido, prostrado pelas recordações amargas e pela nostalgia. Só Roser se apercebia desses períodos sombrios, pois Victor continuava a fazer tudo do mesmo modo: ia à faculdade, estudava e à noite trabalhava na taberna, como sempre, mas andava ensimesmado, com o ar ausente de um sonâmbulo, não tanto devido ao cansaço de quem não dorme um sono inteiro, mas devido ao desgaste de se sentir preso numa vasta teia de responsabilidades. Enquanto Roser imaginava um futuro luminoso, ele via sombras que se estendiam por toda a parte.
- Vinte e sete anos e já estou velho! - lamentava-se. Sempre que Roser o surpreendia nestas elucubrações,
caía-lhe em cima com a ferocidade de um leão:
- Porque não os tens no sítio; porque todos passámos muito; porque andas sempre a lamentar-te e nem aprecias tudo o que temos de bom. És um ingrato. Há uma guerra horrível do outro lado do mar, e nós estamos aqui, tranquilos e de barriga cheia. E desde já te previno que vamos ficar por aqui muito tempo, porque o caudilho está de perfeita saúde... e vaso ruim não quebra!
Apesar disso, à noite, se o ouvia gritar nos labirintos de algum pesadelo, corria a despertá-lo, e deitava-se com ele, abraçando-o como uma mãe, e permitindo-lhe desafogar-se das suas mágoas de membros amputados e de corpos destroçados, de fuzilaria, de baionetas caladas, de charcos de sangue e de valas repletas de ossos.
Passaria mais de um ano até que Victor e Ofélia se voltassem a reencontrar. Por essa altura, Matias Eyzaguirre alugara num dos bairros principais de Assunção uma casa imponente, pouco condizente com o posto cinzentão que ocupava na Embaixada, e menos condizente ainda com o seu modesto salário de funcionário público. O embaixador tomou tal atitude como um atrevimento, aproveitando o mínimo pretexto para fazer um comentário sarcástico. Matias decorou a casa com uma parafernália de móveis enviados do Chile, e a sua mãe viajou para o Paraguai expressamente para dirigir o pessoal doméstico, tarefa, aliás, nada fácil, pois a maioria apenas falava guarani. A namorada, ainda que pouco convicta, por fim havia aceitado casar-se com ele, em parte graças à correspondência amorosa, tenaz e persistente, e, sem dúvida, devido à eficácia das missas e novenas promovidas por Dona Laura, sua futura sogra. Em inícios de dezembro, Matias foi a Santiago, onde oficializou o compromisso, uma festa íntima, realizada nos jardins da casa dos Del Solar, que contou com a presença dos parentes mais próximos das duas famílias... cerca de duzentas pessoas. As alianças foram benzidas por Vicente Urbina, sobrinho de Dona Laura, um sacerdote carismático, misterioso e enérgico, ao qual assentaria bem melhor um uniforme militar que a sotaina clerical. Ainda que contasse menos de quarenta anos, Urbina exercia uma temível influência, tanto no seio dos seus superiores eclesiásticos como junto dos seus fregueses de classe alta, entre os quais desempenhava as funções de conselheiro, de árbitro e de juiz. Era um privilégio que fizesse parte da família.
O casamento ficou aprazado para setembro do ano seguinte, mês pródigo à realização dos casamentos da alta sociedade. Matias colocou no dedo anelar da mão direita de Ofélia o ancestral anel de brilhantes, para advertir os potenciais rivais de que aquela jovem estava comprometida. Quis detalhar-lhe todos os preparativos que fizera para a receber no Paraguai como a uma rainha, mas ela, sempre evasiva, não lhe prestou grande atenção:
- Qual é a pressa, Matias? Daqui até setembro muita água pode correr debaixo da ponte...
Alarmado, ele apressou-se a perguntar-lhe a que espécie de águas se referia, e ela mencionou-lhe a possibilidade de a Segunda Guerra Mundial chegar ao Chile, ou a ocorrência de outro terramoto, ou, quem sabe, uma qualquer catástrofe no Paraguai.
- Ou seja, nada que nos diga diretamente respeito ou que deva preocupar-nos - concluiu Matias.
Ofélia aproveitava esse tempo de espera e ia organizando o enxoval em baús forrados de papel de seda e ramos de lavanda, e mandando lençóis e toalhas para bordar com as suas iniciais entrelaçadas com as de Matias para o convento da sua tia, deixando-se distrair pelas suas amigas no salão de chá do Hotel Crillon, provando e voltando a provar o vestido de noiva e o enxoval de casada, aprendendo com as irmãs mais velhas os fundamentos da organização doméstica, para a qual demonstrou uma surpreendente habilidade, isto tendo em conta a sua têmpera indolente e a sua fama de desarrumada. Dispunha ainda de nove meses até ao matrimónio, mas meditava já em possíveis pretextos para alargar esse prazo. Assustava-a dar esse passo irrevogável, viver com Matias noutro país, onde não conhecia ninguém, longe da sua família, rodeada de índios guaranis, a perspetiva de ter filhos, e a quase certeza de terminar os seus dias submissa e frustrada, como sucedera com a sua mãe e as suas irmãs. Porém, a alternativa que lhe sobrava era ainda pior: permanecer solteira significava ficar eternamente dependente da generosidade do pai e do irmão, e de se converter numa pária social. A possibilidade de arranjar um trabalho e de viver por sua própria conta era tão remota como a de partir para Paris e dedicar-se à pintura numas águas-furtadas em Montmartre. Assim estava, congeminando um rosário de pretextos para adiar o casamento, longe de imaginar que a Divina Providência em breve lhe enviaria o único verdadeiramente plausível: Victor Dalmau. Quando tornou a tropeçar nele, dois meses após a marcação do casamento e sete antes da sua realização, descobriu de uma assentada o amor pungente das novelas, o amor que Matias, com a sua inabalável lealdade, nunca fora capaz de fazer despontar.
Em pleno verão tórrido de Santiago, quando todos os que podiam rumavam às praias ou viajavam para o campo, Victor e Ofélia encontraram-se casualmente na rua. Ambos ficaram paralisados de surpresa e estupefação, e decorreu todo um eterno minuto antes que Ofélia tomasse a dianteira e o cumprimentasse, engasgando um mero olá, praticamente inaudível, que ele interpretou como um sinal favorável. Um ano amando-a sem a menor esperança... e agora apercebia-se, pelo menos assim o demonstrava aquele nervosismo de cria receosa, que ela também pensara nele. Achou-a ainda mais bela do que a recordava, com aqueles olhos claros, a pele bronzeada despontando sob um vestido decotado e umas madeixas de cabelo alvoroçadas, escapando de um chapéu de colegial. Assim que se recuperou, tentou um diálogo aberto e sem constrangimentos, e desta feita se inteirou de que os Del Solar passavam os três meses de verão entre a propriedade no campo e a casa de praia em Vina del Mar. Ela viera à capital para cortar o cabelo e para uma consulta no dentista. Por seu turno, ele resumiu-lhe em quatro frases sucintas a sua vida: Roser, o filho, os estudos, a taberna.
Rapidamente se lhes esgotou o fio da conversa, e permaneceram em silêncio, suando sob aquele sol canicular, conscientes de que se se separassem perderiam uma oportunidade única. Quando ela fez menção de se despedir, Victor tomou-lhe o braço e arrastou-a para a sombra mais próxima que encontrou, no caso, o toldo de uma farmácia, e pediu-lhe, numa voz entrecortada, permeada de hesitações, que passassem a tarde juntos.
- Tenho de voltar para Vina del Mar. O chauffeur está à minha espera - disse ela, sem a menor convicção.
- Diz-lhe que espere. Precisamos de falar.
- Victor, eu estou noiva...
- Quando vais casar?
- Que importância tem isso? Além do mais, também és casado... ?
- É justamente por isso que precisamos de conversar. As coisas não são o que parecem. Deixa-me explicar-te. Tens de me ouvir.
Levou-a a um hotel modesto, gasto que, ainda assim, não podia permitir-se, e ela voltou para Vina del Mar cerca da meia-noite, quando os pais estavam já a ponto de dar parte do seu desaparecimento às autoridades. O chauffeur, devidamente subornado, corroborou a desculpa de que havia furado um pneu pelo caminho.
Desde os quinze anos, altura em que alcançara a sua definitiva estatura e as formas de mulher, Ofélia atraía os homens com um poder de sedução alheio ao seu conhecimento e às suas intenções. Não se dava conta do vendaval de paixões e de corações partidos que deixava à sua passagem, salvo nas raras ocasiões em que o enamorado, ferido e despeitado, se tornava ameaçador, casos esses em que o seu pai se vira forçado a intervir. A sua plácida existência de senhorita transcorria mimada e vigiada, uma espada de dois gumes, pois se, por um lado, se viam reduzidos todos os riscos inerentes à sua condição, por outro lhe impedia que desenvolvesse, graças à experiência de vida, alguma sagacidade e intuição. Sob a sua atitude coquete ocultava-se uma inacreditável ingenuidade. Nos anos seguintes, comprovou que a sua aparência lhe abria portas e lhe facilitava quase tudo. O aspeto era o mais premente, e não poucas vezes a única coisa em que os demais reparavam. Nenhum esforço da sua parte era necessário, pois as suas ideias e opiniões passavam inadvertidas face à sua beleza. Durante os quatrocentos anos que sucederam à data da conquista da colónia chilena por um tosco conquistador, os Vizcarra foram aprimorando o puro-sangue europeu, ainda que, segundo Felipe del Solar, no Chile, ninguém, por mais branco que parecesse, deixava de possuir nas veias algo de indígena, salvo os imigrantes recém-chegados. Ofélia pertencia a uma família de mulheres em geral bonitas, mas fora a única que herdara os deslumbrantes olhos azuis da avó inglesa. Laura del Solar acreditava piamente no ditado segundo o qual o diabo semeia a beleza no intuito de colher as almas, tanto de quem dela seja portador, como dos que por ela sejam atraídos, por isso, em sua casa, era considerado de mau tom mencionar as virtudes dos físicos atributos. O seu marido apreciava a beleza das mulheres, mas, em sua casa, e em relação às suas filhas, tal consistia num constrangimento inultrapassável, pois Isidro tinha-se por guardião da virtude das donzelas, especialmente de Ofélia. A jovem acabara por resignar-se à teoria familiar de que a beleza se opõe à inteligência e de que apenas se pode ser possuidor de uma ou de outra alternativamente, uma vez que é sabido que juntas são de convivência impossível. Isso justificava os seus dececionantes resultados escolares, a sua preguiça em dedicar-se seriamente à pintura e em manter-se no caminho íntegro preceituado pelo padre Urbina. A sua sensualidade, que não sabia ainda identificar, atormentava-a, e a insistente pergunta de Urbina, - o que pensava fazer da vida - voltejava-lhe incessante na cabeça, sem que lhe encontrasse uma resposta satisfatória. A perspetiva de se casar e parir filhos parecia-lhe tão sufocante como o destino do convento, mas tinha-o por inevitável, um dado adquirido que apenas podia, quando muito, tentar postergar por algum tempo. E, conforme toda a gente lhe dizia até à exaustão, devia considerar-se grata e cheia de sorte pela existência de Matias Eyzaguirre, tão bom, tão nobre e tão bonito.
Matias fora, desde sempre, louco por Ofélia. Com ele descobriu e experimentou o desejo até onde lho permitia a rigorosa formação católica e a honrosa respeitabilidade dele, apesar de ela tentar amiúde cruzar aquela fronteira. Afinal, qual era a diferença entre acariciarem-se até desfalecerem ainda vestidos, ou de, simplesmente sucumbirem ao pecado como haviam chegado ao mundo? O castigo divino seria o mesmo! Em face da fraqueza carnal revelada por Ofélia, Matias assumiu a abstinência pelos dois; respeitava-a do mesmo modo casto que exigia que outros respeitassem as suas próprias irmãs e acreditava que jamais atraiçoaria a confiança que nele depositava a família Del Solar. O desejo da carne apenas se pode cumprir numa união devidamente santificada pela Igreja e com o fim único de procriar, acreditava. Não admitiria, nem no mais íntimo do seu ser, que o verdadeiro motivo para a abstinência não era outro que o do temor profano a uma gravidez indesejada. Ofélia jamais se atrevera a abordar tais assuntos com a sua mãe ou irmãs, mas tinha para si que o peso de semelhante culpa apenas se extinguia com o casamento. O sacramento da confissão perdoa a ofensa, mas a sociedade não perdoa nem esquece. "A reputação de uma donzela é branca como a seda, e a menor mancha a arruina.", asseguravam as freiras. Para quê dizer quantas manchas acumulara com Matias...
Nessa tarde, Ofélia acompanhou Victor ao hotel, consciente de que seria algo diferente dos recontros com Matias, que a deixavam sempre entre confusa e levemente aborrecida. Assombrou-a a sua própria determinação, tomada quase de , imediato, bem como a falta de pudor com que, uma vez a sós com ele no quarto, tomou a iniciativa. Achou-se detentora de um conhecimento que ignorava possuir, e que não sabia de onde lhe surgira, e dotada de uma falta de reservas, geralmente corolário de uma longa prática. No colégio aprendera a despir-se por partes: primeiro vestia por cima de tudo um longo roupão que a cobria da cabeça aos pés, e depois, gradual e lentamente, ia retirando a roupa. Mas nessa tarde, com Dalmau não teve tais pruridos. Despojou-se do vestido, do soutien, das ligas, das cuecas, e ergueu-se, olímpica e desnuda, com um misto de curiosidade em face do desconhecido prestes a revelar-se, e outro tanto de irritação dirigida à absurda timidez de Matias. Merece esta infidelidade!, decidiu, entusiasmada.
Victor não suspeitava que Ofélia fosse virgem, pois nada na inquebrável e aparente segurança da jovem o evidenciava. A sua virgindade há muito ficara para trás, no longínquo tempo da adolescência. Vinha de uma realidade diversa, de uma guerra, de uma revolução que abolira as diferenças sociais, os costumes retrógrados e a autoridade da religião. Na Espanha republicana, a virgindade era tida por obsoleta. Tanto as enfermeiras como as milicianas que brevemente amara desfrutavam da mesma liberdade sexual que ele próprio. Tão-pouco se lhe afigurou a possibilidade de que Ofélia tivesse transigido a acompanhá-lo, não por um impulso de amor, mas num repente de menina mimada. Estava apaixonado, e automaticamente supôs que ela também o estaria. Analisaria a magnitude do que lhes acontecera mais tarde, quando descansavam após os ardores do amor, abraçados naquela cama de lençóis amarelecidos pelo uso e manchados de sangue virginal, depois de lhe ter contado como e porque se casara com Roser, e que há mais de um ano sonhava com ela.
- Porque não me disseste que era a tua primeira vez? - perguntou-lhe.
- Porque te terias retraído - ronronou ela, espreguiçando-se como um gato.
- Desculpa, Ofélia... Devia ter sido mais cuidadoso contigo.
- Não tens por que desculpar-te. Estou satisfeita. Ainda sinto o corpo dormente. Mas agora tenho de ir. Já é muito tarde.
- Diz-me quando nos voltaremos a ver...
- Avisar-te-ei quando conseguir escapar-me. Dentro de três semanas regressaremos a Santiago. Aí será mais fácil. Vamos ter de ser muito, mas muito cautelosos. Se isto se souber... nem quero pensar como é que o meu pai reagirá!
- Alguma vez terei de falar com ele...
- Estás maluco? Como é que te passou tal coisa pela cabeça? Se por acaso ele imaginar que ando com um homem casado e com um filho, ainda por cima imigrante, mata-nos aos dois. Felipe já me preveniu disso.
Com o pretexto da consulta no dentista, Ofélia conseguiu voltar uma vez mais a Santiago. Durante as semanas de separação, comprovou, assustada, que a sua curiosidade inicial havia dado lugar a uma obsessão por recordar minuciosamente todos e cada pormenor daquela tarde no hotel, e por uma necessidade insuportável de voltar a ver Victor e de fazer amor com ele; de contar-lhe os seus segredos; de conversar e conversar; de averiguar tudo sobre o seu passado; de lhe perguntar porque coxeava; de fazer um inventário das suas cicatrizes; de saber coisas da sua família; de perceber o sentimento que o unia a Roser. Aquele homem carregava um tal fardo de mistérios, que decifrá-los todos cabalmente seria tarefa árdua e lentíssima. E o que significaria concretamente exílio?, e sublevação militar?, e vala comum?, e campo de concentração?... O que seria aquela história de mulas rebentadas ou de pão de guerra? Victor Dalmau tinha mais ou menos a mesma idade de Matias Eyzaguirre, mas era infinitamente mais velho, por fora, duro como cimento, e impenetrável por dentro, marcado por mil cicatrizes e outras tantas recordações aziagas. Diferentemente de Matias, sempre disposto a elogiar-lhe o temperamento explosivo e o egoísmo dos seus caprichos, Victor impacientava-se com as suas criancices e amuos, pois esperava dela o crescimento e a claridade de uma inteligência madura. Não lhe interessava nada que fosse superficial. Quando lhe fazia uma pergunta, por mais simples que fosse, ouvia a resposta com uma atenção de professor, sem lhe permitir escapulir-se com alguma brincadeira ou mudar de assunto. Assustada, Ofélia confrontou-se pela primeira vez com a ideia de ser tratada como uma mulher crescida.
A segunda vez que despertou entre os braços do amante, onde dormira por alguns minutos depois de terem feito amor, Ofélia decidiu que encontrara o homem da sua vida. Nenhum dos jovens do seu meio, pretensiosos, mimados e fracos, com o destino de antemão moldado pelo dinheiro e pelo poder das suas famílias, podia competir com ele. Victor recebeu aquela declaração emocionado, pois, para si, ela era também a eleita, mas não perdeu a cabeça, e dispôs-se a sopesar com calma a situação. Como novidade que era, prestava-se facilmente a reações exageradas. Falariam depois, assim que se refreassem os ímpetos do corpo.
Ofélia teria, sem hesitar, rompido o compromisso com Matias. Para tanto, bastaria que ele lho tivesse permitido, mas Victor demonstrou-lhe que não era livre e que nada tinha para lhe oferecer, a não ser a pressa daqueles encontros precipitados e proibidos. Então ela propôs-lhe que fugissem para o Brasil ou para Cuba, onde poderiam viver sob as palmeiras sem que ninguém os reconhecesse. No Chile estavam condenados a uma perpétua clandestinidade, mas lá fora o mundo era muito maior.
- Tenho obrigações para com Roser e Marcel. Além disso, tu não sabes o que é verdadeiramente a pobreza. Não aguentarias nem uma semana sob essas palmeiras de que falas... - retrucou-lhe ele, com bom humor.
Ofélia, na esperança de que este se cansasse da sua indiferença, começou a deixar sem resposta as cartas de Matias, mas tal não aconteceu, pois o persistente enamorado atribuiu o seu silêncio ao estado de tensão de uma noiva sensível. Entretanto, ela, surpreendida com a duplicidade que adquirira, continuava a mostrar perante a sua família uma gentil e dócil boa vontade em colaborar com os preparativos do casamento, que estava muito longe de sentir. Deixou que os meses transcorressem sem que se decidisse, encontrando-se com Victor em furtivas ocasiões roubadas ao tempo, mas à medida que se aproximava setembro, apercebeu-se de que teria de ganhar coragem para romper de vez o noivado, com ou sem o seu consentimento. Os convites já tinham sido enviados e já se anunciara a cerimónia no jornal El Mercúrio. Por fim, dirigiu-se ao edifício consular e pediu a um conhecido que enviasse, em correio diplomático, uma encomenda para o Paraguai. A missiva continha o anel de brilhantes acompanhado de uma carta em que Ofélia explicava a Matias que estava apaixonada por outro homem.
Mal recebeu o correio, Matias Eyzaguirre voou direto para Santiago, sentado no chão de um avião militar, pois em tempo de guerra a gasolina escasseava para voos de fantasia. Entrou como um furacão na casa da Rua Mar Del Plata à hora do chá, empurrando mesinhas frágeis e cadeiras de pernas torneadas, e Ofélia deparou-se com um Matias até então desconhecido. Aquele namorado complacente e conciliador dera lugar a um possesso que a sacudia, vermelho de ira e com o rosto molhado de suor e de lágrimas. Os seus gritos atraíram o resto da família, e foi assim que Isidro del Solar soube o que há vários meses acontecia mesmo debaixo do seu nariz. Conseguiu fazer com que o iracundo pretendente saísse de sua casa, prometendo-lhe que solucionaria aquele contratempo à sua maneira, mas as suas manifestações de autoridade chocaram inutilmente contra a obstinada teimosia da filha. Ofélia recusou-se a dar explicações, a revelar o nome do seu amante, e nem por sombras se mostrou arrependida da decisão que tomara. Simplesmente permaneceu muda e queda, boca fechada, sem pronunciar uma palavra sequer. Manteve-se impassível ante as ameaças do pai, o pranto desatado da mãe e os argumentos apocalípticos do padre Urbina, que, convocado com carácter de urgência, apareceu na qualidade de guia espiritual da família e de administrador privado dos punitivos raios de Deus. Na impossibilidade de conseguir dobrar Ofélia, e de a fazer pensar sensatamente, o pai proibiu-lhe toda e qualquer saída de casa, encarregando Juana da tarefa de a vigiar, encargo esse que Juana exerceu e levou a peito, pois tinha grande estima por Matias Eyzaguirre, um cavalheiro de pura cepa, desses raros, que cumprimentam a criadagem e que sabem os seus nomes, e porque também adorava a menina Ofélia. Enfim... o que dizer mais?
Assim, de boa-fé se prestou a cumprir a ordem do patrão. Contudo, o seu afinco de carcereira nada podia face à astúcia dos amantes. Victor e Ofélia arranjavam mil artimanhas para se encontrarem, nos sítios e às horas mais improváveis: no Winnipeg quando fechado, em hotéis de má morte, em jardins e cinemas, quase sempre acobertados pela cumplicidade do chauffeur. Ofélia, uma vez iludida a vigilância de Juana, dispunha de muito tempo livre, mas Victor, que vivia numa roda-viva, correndo de um lado para o outro a fim de conseguir articular os seus estudos com a taberna, só a duras penas conseguia subtrair do seu minguado tempo uma hora de quando em quando para estar com ela. Descuidou por completo a família. Roser notou-lhe as alterações das rotinas e confrontou-o, com a sua habitual franqueza:
- Andas apaixonado, não andas? Não quero saber quem é, mas exijo-te discrição. Somos hóspedes neste país, se bem te lembras, e se arranjas confusão, ou se te metes em problemas, deportam-nos aos dois e a Marcel. Estamos entendidos?
Ele sentiu-se magoado com a dureza destas palavras, ainda que tal não fosse estranho, face àquela bizarra relação matrimonial.
Em novembro, o Presidente Aguirre Cerda morreu, vítima de tuberculose, a três anos de terminar o seu mandato. No funeral, os pobres, que haviam beneficiado largamente das suas reformas, choraram-no como a um pai. Fora o funeral de Estado mais impressionante de que havia memória: até os seus adversários de direita elogiaram a sua honradez, e, ainda que contrafeitos, admitiram que a sua visão de futuro impulsionara a economia, a indústria, a saúde e a educação nacionais, mas nem por sombras iriam permitir que o Chile pendesse para a esquerda. O socialismo seria bom talvez para os soviéticos, que viviam lá longe e não passavam de uns bárbaros, mas não para a própria pátria. O espírito laico e democrático do falecido Presidente era um perigoso precedente que não deveria repetir-se nem firmar-se.
Felipe del Solar encontrou-se com os Dalmau no funeral. Como há vários meses não se viam, convidou-os para almoçar depois da cerimónia, para que pusessem a conversa em dia. Inteirou-se dos progressos de ambos, e de que Marcel, ainda que não tivesse cumprido sequer dois anos, já tartamudeava algumas palavras, quer em espanhol quer em catalão. Falou-lhes da sua família, de que o Bebé tinha um grave problema cardíaco, e que a sua mãe pretendia levá-lo em peregrinação ao santuário de Santa Rosa de Lima, pois no Chile havia uma grande carência de santos nacionais; e também que o casamento da irmã fora adiado. Nada em Victor deixou transparecer o estremecimento que o tomou por dentro ao ouvir o nome de Ofélia, mas Roser, pressentindo a sua reação, soube sem lugar para dúvidas a identidade da amante do marido. Preferiria continuar na ignorância, uma vez que agora o que temia não só se convertia em realidade, mas era ainda pior do que imaginara:
- Disse-te para esqueceres Ofélia, Victor! - repreendeu-o nessa noite, assim que se acharam a sós.
- Não consigo, Roser. Lembras-te de como amavas Guillem, e como o amas ainda? Passa-se o mesmo comigo em relação a Ofélia.
- E ela?
- É recíproco. Sabe que nunca poderemos estar oficialmente juntos, mas aceita as coisas como são.
- Quanto tempo julgas que essa miúda mimada vai aguentar viver o papel de tua amante? Tem toda uma vida de privilégios pela frente... teria de renunciar a tudo por ti. Uma vez mais te digo, Victor, se isto vem à baila, correm-nos daqui para fora a pontapé. Estás a brincar com gente muito influente.
- Ninguém vai saber...
- Tarde ou cedo, tudo se sabe...
O casamento de Ofélia com Matias foi oficialmente adiado sob o pretexto de problemas de saúde da noiva, e ele regressou ao seu posto no Paraguai, que abandonara precipitadamente, sem o consentimento do embaixador nem do consulado. Aquele deslize valeu-lhe uma admoestação sem consequência de maior, pois até então demonstrara uma incomum habilidade para a diplomacia, e soubera integrar-se nas esferas políticas e sociais, onde o embaixador, homem complexado, limitado e pouco hábil no trato social, tinha grande dificuldade em ser admitido. A Ofélia castigaram-na, submetendo-a a um ócio forçado. Aos vinte e um anos, encontrou-se retida em casa, aborrecida de morte, sob a vigilância de Juana Nancucheo. Nada ganhou quando confrontou a família, dizendo que não podiam mantê-la assim prisioneira, e que perante a lei era considerada maior de idade. Depressa lhe fizeram ver que não tinha para onde ir nem como sustentar-se por si própria:
- Pense muito bem na sua vida, Ofélia, porque se ousa sair da porta desta casa, nunca mais voltará a entrar - ameaçou-a o pai.
Em vão tentou conquistar a simpatia e a compreensão de Felipe, ou de alguma das irmãs mais velhas, uma vez que todos cerraram fileiras em torno da honradez do clã. A única cumplicidade com que podia contar era a do chauffeur, homem de retidão negociável. Acabou-se-lhe também a vida social, pois... como poderia aparecer em festas, se era público que se encontrava doente? As únicas saídas que lhe permitiam eram as visitas de caridade aos conventos que prestavam assistência aos pobres, as idas à missa com a família e a frequência das aulas de pintura, onde dificilmente se encontraria com alguém do seu círculo de conhecimentos. Conseguira, mediante uma birra épica, que o pai cedesse no tocante às aulas, e o chauffeur tinha instruções de a esperar à porta do atelier durante as três ou quatro horas que duravam as mesmas. Passaram-se vários meses sem que Ofélia revelasse progressos na sua arte, ficando assim evidente que carecia de talento, como, aliás, era do conhecimento da família. O que sucedia, na verdade, era que Ofélia entrava na escola de artes pela porta da frente, munida das suas telas e pincéis, atravessava todo o edifício, e saía pela porta das traseiras, onde Victor a esperava. Os encontros eram pouco frequentes, pois Victor tinha grandes dificuldades para fazer coincidir os seus escassos momentos livres com o horário das aulas dela. Andava com umas olheiras profundas de sonâmbulo, tão exausto que por vezes adormecia antes que Ofélia começasse sequer a despir-se.
Por seu turno, Roser dava mostras de uma contundente energia. Estava a adaptar-se na perfeição à cidade e começava a compreender os chilenos, que, no fundo, se assemelhavam aos espanhóis na generosidade, dramaticidade e agitação. Começara também a fazer amigos e aumentava a sua fama de pianista competente. Tocava na rádio, no Hotel Crillon, em igrejas e em casas particulares. Correu o boato de que era uma jovem de boa figura e de modos agradáveis, e de que era capaz de interpretar de ouvido qualquer melodia que lhe pedissem. Bastava assobiar um par de trechos ou de frases da ária pretendida, que, em poucos segundos, ela extraía do piano a melodia completa. Era o complemento e a presença ideal em festas e em receções solenes. Ganhava muito mais do que Victor no Winnipeg, mas isso custara-lhe descuidar o seu papel de mãe. Até aos quatro anos, Marcel tratara-a simplesmente por senhora. As primeiras palavras que pronunciou foram vinho branco, em catalão, no seu parque, por detrás do balcão onde Victor atendia os clientes. Roser e Victor revezavam-se para o carregarem na mochila, até que se tornou demasiado pesado. A cálida temperatura da mochila e o facto de junto a si sentir sempre o contacto com o corpo da mãe ou do pai conferiram-lhe segurança. Era um menino de aparência tranquila, sossegado e silencioso, que se entretinha sozinho e que raras vezes pedia fosse o que fosse. Apesar de o pai e a mãe sempre o levarem, quer para a rádio, quer para a taberna, era com uma viúva, dona de três gatos, que por uma modesta quantia cuidava dele, com quem Marcel passava a maior parte do tempo.
Contrariamente ao que podia esperar-se, a relação de Victor e de Roser fortaleceu-se durante esses tempos conturbados em que quase não se cruzavam, e além do mais, ele tinha o coração tomado por outra mulher. A amizade que sempre os habitara transformou-se numa cumplicidade profunda onde não cabiam segredos, suspeitas nem ofensas, e da base de que, quer um quer outro jamais se magoariam, e que, na hipótese remota de tal acontecer, seria devido a um mal-entendido ou a um qualquer equívoco. Ambos encontravam conforto um no outro, vendo e vivendo assim mais suavizadas as penúrias do dia a dia e os fantasmas do passado.
Durante os meses que passara em Perpignan, quando vivera em casa dos quakers, Roser aprendera a coser. No Chile, com as suas primeiras poupanças, adquirira uma máquina de costura a pedais, negra, reluzente, da marca Singer, ornada com letras e flores douradas. Um prodígio de eficiência. O matraquear rítmico da máquina substituía os exercícios de piano, e ao terminar um vestido ou um babete para o bebé, sentia-se tão preenchida e satisfeita como com os aplausos do público. Tirava ideias das revistas de moda, e assim conseguia andar sempre bem vestida. Para as suas atuações musicais, concebeu um fato largo, em tons de cinzento, ao qual adaptava ou acrescentava laços de várias cores, mangas mais curtas ou mais compridas, golas, flores ou fechos, de modo que em cada apresentação surgia sempre com algo novo e diferente. Penteava-se à moda antiga, com um puxo no alto da cabeça, sempre adornado por um grampo ou um broche, e pintava de vermelho as unhas e os lábios, estilo que manteria até à data da sua morte, quando já o cabelo se lhe ponteava de cãs e se lhe ressequiam os lábios.
- A tua mulher é muito elegante - dissera-lhe certa ocasião Ofélia, em que se encontrara com Roser no funeral de um seu tio.
Roser fora contratada para tocar, e cumpria a função de ir dedilhando melodias tristes num órgão, enquanto os parentes do morto desfilavam, dando os pêsames à viúva e aos filhos.
Ao avistar Ofélia, interrompeu a sua atuação e dirigiu-se-lhe, cumprimentando-a com um beijo e sussurrando-lhe ao ouvido que contasse com ela para tudo quanto precisasse. Tal atitude confirmou a Ofélia que a versão de Victor, segundo a qual mantinham apenas uma relação fraterna, era, de facto, a pura verdade. O comentário de Ofélia sobre Roser surpreendeu Victor, pois sempre que pensava na sua mulher, a imagem que lhe vinha à mente era a da jovem magra e simples dos tempos de Espanha, a da miúda desamparada que os seus pais haviam adotado, a namorada pouco chamativa de Guillem. Que Roser permanecesse a mesma de antanho ou que fosse a que agora Ofélia elogiava, em nada alterava os seus sentimentos por ela. Nada... nem a tentação de fugir com Ofélia para um paraíso tropical seria capaz de convencê-lo a separar-se dela ou da criança.
VIII.
1941-1942,
Ora bem,
se pouco a pouco deixares de me amar,
deixarei de te amar pouco a pouco.
Se de súbito
me esqueceres,
não me procures,
pois já te terei esquecido.
Pablo Neruda
"Se me esqueceres".
Os Versos do Capitão.
Quando confinaram Ofélia na casa da Rua Mar del Plata, os encontros amorosos com Victor tornaram-se cada vez mais escassos e esporádicos. Nesta nova existência, em que se via privado de Ofélia, Victor sentiu que lhe sobrava o tempo, e voltou inclusive a ter disponibilidade para aceitar os convites de Salvador Allende para umas partidas de xadrez. Trazia Ofélia no pensamento, mas já não o afogava aquela permanente ânsia dos encontros clandestinos. Já não se via obrigado a estudar noites inteiras para compensar o tempo que passava com ela. Na universidade, faltava bastante às aulas teóricas,
nas quais a frequência não era controlada, e porque para essas matérias podia estudar por livros ou apontamentos. Concentrava os seus esforços no laboratório, nas autópsias e na prática clínica, onde tinha de dissimular a experiência que adquirira na guerra para não humilhar os professores. Na taberna, cumpria o seu turno de trabalho à noite, aproveitando todos os momentos sem movimento para estudar, sempre atento a Marcel. Jordi Moliné, o sapateiro, revelou-se o sócio ideal, sempre conformado com os modestos lucros do Winnipeg e satisfeito por dispor de um lugar próprio, muito mais acolhedor que a sua solitária casa de viúvo. Ali podia conversar e beber em companhia de amigos, tomar o seu café com aguardente, saborear os pratos da sua distante terra natal e tocar canções no acordeão. Victor tentara ensinar-lhe os fundamentos do xadrez, mas Jordi nunca entendeu o propósito de mover as peças no tabuleiro, para trás e para diante, aparentemente sem nenhum objetivo de ganho material imediato. Quando notava que Victor estava demasiado cansado, de moto-próprio e com toda a boa vontade se prestava para o substituir na taberna, ainda que apenas servisse aos seus paroquianos vinho, cerveja e conhaque. Nada sabia de cocktails. Considerava-os uma moda passageira e coisa de maricas. Sentia um enorme respeito por Roser e nutria um carinho imenso por Marcel. Passava horas seguidas acocorado atrás do balcão a brincar com aquele neto que sempre desejara e que nunca tivera. Certo dia, quando Roser lhe perguntou se ainda tinha alguma família na Catalunha, ele contou-lhe que emigrara em busca de melhor vida há mais de trinta anos: fora marinheiro no Sudeste Asiático, lenhador no Oregon, maquinista de comboios e construtor na Argentina, enfim, passara por diversos ofícios até que chegara ao Chile, onde finalmente fizera dinheiro com a fábrica de sapatos:
- Sim, digamos que ainda tenha alguma família por lá! Mas não faço ideia do que lhes aconteceu. A guerra dividiu-os: uns permaneceram republicanos, outros tornaram-se apoiantes de Franco. Tinha, por um lado, milicianos comunistas e, por outro, padres e freiras.
- Mantém contacto com algum deles?
- Sim, com um ou dois. Repare só como o mundo é irónico! Tenho um primo que esteve escondido durante a guerra e agora é alcaide na cidade onde vive. É fascista, mas boa pessoa.
- Um destes dias vou pedir-lhe um favor.
- Às suas ordens, Roser!
- Durante a retirada de Barcelona, perdemos a minha sogra, a mãe de Victor. Tentamos procurá-la nos campos de refugiados franceses, fizemos investigações em ambos os lados da fronteira... e nada. Não a conseguimos encontrar.
- Isso aconteceu com muita gente. Tantos mortos, tantos exilados e tantos deslocados... tantos forçados a viver na clandestinidade... As prisões estão a rebentar pelas costuras. Todas as noites escolhem presos ao acaso e fuzilam-nos assim mesmo, sem julgamento nem nada. Assim é a justiça de Franco. Não quero ser pessimista, Roser, mas é provável que a sua sogra tenha falecido.
- Eu sei. Carme preferia morrer a ser desterrada. Separou-se de nós durante o caminho para França. Partiu, noite cerrada, sem deixar rasto. Uma vez que o senhor tem contactos na Catalunha, pensei que não se perdia nada em tentar averiguar alguma coisa...
- Dê-me os dados e a descrição dela, que eu me encarregarei disso, mas não tenha muitas esperanças. A guerra é um vendaval que não deixa senão um monte de escombros à sua passagem.
- A quem o diz, Dom Jordi!
Carme não era a única pessoa que Roser tentava encontrar. Um dos locais onde tocava frequentemente era na Embaixada da Venezuela, uma casa semioculta entre as árvores de um frondoso jardim, onde se passeava um solitário pavão real. Valentín Sánchez, o embaixador, era um sibarita, amante da boa cozinha, dos licores refinados e, sobretudo, de música. Pertencia a uma linhagem de músicos, poetas e sonhadores. Empreendera várias viagens à Europa com o objetivo de encontrar e resgatar partituras esquecidas, e no seu salão possuía uma extraordinária coleção de instrumentos, desde um cravo que se supunha haver pertencido a Mozart, até uma flauta que remontava à Pré-História, seu mais valioso tesouro, e que, segundo afiançara o anterior proprietário, fora esculpida num dente de mamute. Roser tinha muitas dúvidas sobre a procedência quer do cravo quer da flauta, mas sentia-se profundamente grata para com Valentín, em parte pela profusão de livros de arte que este lhe emprestava, em parte por ser a única a quem permitia que desfrutasse e usasse algumas peças da sua coleção. Uma noite, depois de as visitas saírem, Roser permaneceu algum tempo na sua companhia, saboreando uma bebida e contando-lhe do estrafalário projeto que tinha em mente, inspirado na coleção de instrumentos musicais do embaixador: nada mais nada menos que formar uma orquestra de música antiga. Era um tema pelo qual ambos eram apaixonados. Ela pretendia dirigir a orquestra e ele fazia questão de apadrinhar a sua criação. Antes de se despedir, Roser atreveu-se a pedir-lhe ajuda para tentar encontrar alguém que se perdera no incerto ir e vir do exílio:
- Chama-se Aitor Ibarra e emigrou para a Venezuela porque tem lá família... creio que uns parentes que trabalham na construção civil...
Dois meses volvidos, recebeu a chamada de uma secretária da Embaixada, fornecendo-lhe o endereço de uma empresa de venda de materiais de construção sediada em Maracaibo, Ifiaki Ibarra e Filhos. Roser escreveu várias cartas com a sensação de estar a lançar ao mar uma mensagem numa garrafa. Nunca recebeu resposta alguma.
* * *
O pretexto dos problemas de saúde de Ofélia, que a família sustentou durante vários meses como desculpa e justificação para o adiamento do casamento com Matias Eyzaguirre, tornou-se real quando, no ano seguinte, Juana Nancucheo se deu conta de que a jovem estava grávida. Primeiro foram os vómitos e enjoos matutinos, que em vão Juana tentou tratar com infusões de gengibre, anis e cominhos, até que se apercebeu que haviam passado nove semanas sem que tivesse encontrado rasto de panos higiénicos manchados no cesto da roupa suja. Um dia em que surpreendeu Ofélia retorcendo-se com cólicas no quarto de banho, encarou-a, decidida a esclarecer o assunto, e, levando as mãos à cintura, lançou-lhe:
- Vai dizer-me de uma vez por todas quem lhe fez isto, antes que a coisa chegue aos ouvidos do seu pai.
O desconhecimento de Ofélia face ao seu corpo era confrangedor e quase absoluto. Até que Juana lhe fizera aquela pergunta, jamais lhe ocorrera relacionar Victor Dalmau com aquele mal-estar, que atribuíra a um problema digestivo. Foi só então que compreendeu a dimensão do sucedido e o pânico paralisou-a.
- Quem é o fulano? - insistiu Juana.
- Nem morta te direi - e essa seria a única resposta que sairia da sua boca durante os cinquenta anos seguintes.
Juana decidiu então tomar em mãos próprias a resolução do problema, pensando que orações e remédios caseiros solucionariam semelhante infortúnio, sem levantar suspeitas na família. Ofereceu a São Judas, pau para toda a obra, uma série de velas aromáticas, deu a beber a Ofélia chá de arruda e introduziu-lhe na vagina folhas de camomila. Fê-la ingerir a arruda, mesmo sabendo que era um veneno, mas considerou que um buraco no estômago seria menos grave que o aparecimento de uma criatura indesejada, ainda por cima um bastardo. Uma semana depois, sem conseguir outro resultado além de um aumento alarmante das náuseas e de um invencível cansaço, Juana decidiu falar com Felipe, a pessoa em quem desde sempre mais confiara. A princípio pediu-lhe que não contasse a ninguém, mas Felipe chamou-a à razão, fazendo-a ver que aquele segredo era um fardo demasiado pesado para ser carregado apenas por eles os dois.
Felipe encontrou Ofélia estendida na cama, rendida de dores de barriga provocadas pela arruda, e tomada de febre e de angústia.
- Como é que aconteceu uma coisa destas? - inquiriu, tentando aparentar e manter a calma.
- Aconteceu como sempre acontece - respondeu-lhe ela.
- Isto nunca aconteceu na nossa família.
- Isso é o que tu pensas, Felipe. Coisas destas acontecem volta e meia... e os homens nem sequer se dão conta! São segredos de mulheres!
- Com quem é que tu... - vacilou ele, sem saber como dizê-lo sem a ofender.
- Não to direi nem morta.
- Terás de me dizer, porque a única solução será casares-te com quem te fez isto.
- Isso é impossível... porque ele não vive cá.
- Como não vive cá? Onde quer que esteja, havemos de o encontrar. E se não se casar contigo...
- O que pensas fazer nesse caso? Matá-lo? Pelo amor de Deus, que absurdo!
- Tentarei chamá-lo à razão. Mas se isso não resultar... o papá vai ter de intervir.
- Não! O papá não!
- Mas precisamos de fazer alguma coisa, Ofélia. Não vai ser possível esconder isto eternamente.
Em breve toda a gente vai saber... e vai ser um escândalo dos diabos! Prometo que te vou ajudar em tudo o que puder.
Por fim, acordaram e combinaram contar primeiro à mãe, para que esta fosse acalmando a ira paterna. O resto a seu tempo se veria. Laura del Solar recebeu a notícia com a certeza de que Deus finalmente lhe cobrava a paga do tanto que Lhe devia. E o pior de tudo era que o ocorrido com Ofélia era apenas a parte menor do drama. Como se não bastasse a gravidez indesejada, o coração de Leonardo trabalhava de modo irregular, a muito custo, martelando dificilmente entre penosas pausas. Desde sempre os médicos haviam diagnosticado que os seus órgãos eram frágeis, e que, consequentemente, a sua vida não seria longa. O Bebé apagava-se inapelavelmente, mas a mãe, apegada unicamente a orações e a promessas, recusava-se a aceitar os sinais evidentes. Laura sentia que se afundava numa lama espessa, arrastando consigo toda a família. E então sobreveio-lhe a dor de cabeça como uma pancada na nuca que lhe turvara a vista, cegando-a por momentos. Como iria contar o sucedido a Isidro? Estratégia nenhuma seria capaz de atenuar o choque. Restava-lhe esperar um pouco, a ver se a bondade divina intercedia a resolver o problema de uma forma natural: era sabido que muitas gravidezes terminavam assim, durante o processo de gestação. Contudo, Felipe convenceu-a de que quanto mais esperassem, mais insustentável se tornaria a situação. Ele mesmo se encarregou de ter com o pai uma conversa séria na biblioteca, enquanto Laura e Ofélia rezavam num fervor de mártires, refugiadas nos recônditos fundos da casa.
Transcorreu mais de uma hora, finda a qual Juana veio buscá-las com o recado de que Isidro as esperava. Isidro del Solar recebeu-as no umbral da porta, e sem outra palavra, aplicou a Ofélia dois bofetões, antes mesmo que Laura conseguisse interpor-se e que Felipe lhe detivesse o braço.
- Quem foi o desgraçado que arruinou a minha filha? Diga-me o nome dele! - bramou.
- Nem morta - respondeu Ofélia, limpando o sangue do nariz com a manga.
- Vai dizer-me, nem que eu tenha de açoitá-la!
- Nunca o direi a ninguém. Bata-me, se quiser!
- Papá... por favor - tentou intervir Felipe.
- Cale-se! Não del ordens para que esta fedelha de merda ficasse fechada em casa? Por onde andava, Laura, para permitir que isto acontecesse? Suponho que de missa em missa, enquanto o demónio se passeava à vontade aqui por casa! Será que não vêem o escândalo desatado que nos vai cair em cima? Com que cara é que vamos olhar para as pessoas na rua?
E continuou a gritar, desaforado, até que Felipe conseguiu interrompê-lo pela segunda vez:
- Acalme-se, papá. Vamos tentar encontrar uma solução. Vou fazer algumas averiguações...
- Averiguações? O que quer dizer com isso? - perguntou Isidro, subitamente aliviado, por não ser ele a ter de sugerir o óbvio.
- Quer dizer que eu devo fazer um aborto - disse Ofélia,
sem se alterar.
- Lembra-se de mais alguma solução? - espetou-lhe Isidro. Então, Laura interveio pela primeira vez, para dizer numa
voz trémula que isso nem pensar, porque era um pecado
mortal.
- Pecado ou não, esta complicação não se resolve no céu. Resolve-se cá na terra, e far-se-á o que for necessário. Deus
saberá entender...
- Não vamos tomar nenhuma medida precipitada sem falar primeiro com o padre Urbina - disse Laura.
Vicente Urbina acudiu ao chamamento da família Del Solar nessa mesma noite. A sua mera presença representava para eles um motivo de tranquilidade. Irradiava a firmeza e a inteligência de quem está acostumado a lidar com almas perturbadas e possui, ademais, contacto direto com Deus. Aceitou o cálice de Porto que lhe ofereceram e apostrofou que falaria com cada um dos membros da família individualmente, começando por Ofélia, que apresentava o rosto inchado e um olho fechado. Passou com ela quase duas horas, mas nem por isso conseguiu que lhe revelasse o nome do amante, nem obteve das suas palavras um mínimo sinal de
arrependimento.
- Não foi o Matias. Escusam de atirar as culpas para cima dele - repetiu pela vigésima vez, como uma lengalenga
interminável.
Urbina estava habituado a hipnotizar os seus fregueses com o paralisante poder do medo, de modo que a frieza gelada da jovem quase o fez enlouquecer. Passava já da meia-noite quando terminou de ouvir os pais e o irmão da pecadora. Fez questão de interrogar Juana, que nada pôde acrescentar ou aclarar, pois também ela ignorava a identidade do misterioso
amante.
- Talvez seja o Espírito Santo, meu padre! - concluiu,
trocista.
A sugestão de um aborto foi prontamente descartada por Urbina. Era um crime ante a lei e um pecado abominável perante os olhos do Divino, gestor com exclusividade dos misteres da vida e da morte. Havia alternativas, que ele se disporia a estudar nos dias seguintes. O fundamental era que o assunto fosse mantido a sete chaves dentro das paredes daquela casa. Ninguém deveria saber... nem mesmo as irmãs de Ofélia, nem o outro irmão, distante, que, por sorte, andava lá longe, a medir tufões nas Caraíbas. Os boatos tinham asas, como bem salientava Isidro. A prioridade era proteger a reputação de Ofélia e a honra da família. Urbina ungiu cada membro da família com os seus conselhos: a Isidro, que evitasse a violência, que conduz invariavelmente ao erro e ao exagero, mais ainda porque o momento era de extrema prudência; a Laura, que continuasse a rezar, e que contribuísse para as obras de caridade da Igreja; a Ofélia, que se arrependesse e que confessasse, porque, como era por demais sabido e ressabido, era fraca a carne, mas infinita a misericórdia de Deus. A Felipe, tomando-o de parte, disse-lhe que a ele cabia ser a pedra-de-toque da família na gestão daquele conflito, e que o fosse ver ao seu gabinete para delinearem uma estratégia conveniente.
O plano do padre Urbina revelou-se de uma simplicidade assustadora. Ofélia passaria os meses seguintes longe de Santiago, onde ninguém conhecido a pudesse ver, e, mais tarde, quando não se lhe pudesse dissimular a proeminência do ventre, iria para um retiro num convento de freiras, onde ficaria bem entregue e onde receberia todos os cuidados necessários até que chegasse o momento de dar à luz, e ali receberia também a ajuda espiritual de que tanto carecia.
- E depois disso, o que sucederá? - perguntou-lhe Felipe.
- Depois, o bebé será dado para adoção a uma família muito decente. Eu encarregar-me-ei disso. Entretanto, a ti compete-te tranquilizar os teus pais e a tua irmã, e ocupares-te dos pormenores. Como será inevitável... haverá alguns gastos!
Felipe assegurou-lhe que tomaria tais disposições a seu cargo e que recompensaria devidamente as freiras do convento, pedindo-lhe por último que, quando estivesse para acontecer o nascimento da criança, conseguisse permissão à tia Teresa, freira pertencente a outra congregação, para estar presente junto da sobrinha.
Os meses seguintes foram, para a família Del Solar, uma maratona de orações, promessas a todos os santos, penitências e atos de caridade promovidos por parte de Dona Laura, enquanto Juana Nancucheo velava pelo cumprimento das lides domésticas, cuidava também do Bebé, que retrocedera à época das fraldas e tinha de ser alimentado por meio de uma colher com papas de verduras moídas, e vigiava a Menina Caída em Desgraça, como nessa altura designava Ofélia. Isidro del Solar, instalado na sua mansão de Santiago, fingia esquecer o drama que decorria lá longe, amortalhado entre as mulheres da família, seguro de que Felipe tomara as medidas necessárias para prevenir e abafar os boatos. De momento, andava mais preocupado com a situação política do país, que podia diretamente afetar-lhe os negócios. A direita fora derrotada nas eleições e o novo Presidente, membro do Partido Radical, pretendia prosseguir com as reformas iniciadas pelo seu predecessor. A posição do Chile em relação à Segunda Guerra Mundial era de vital importância para Isidro, pois disso dependia a exportação da sua lã de ovelha para a Escócia e para a Alemanha, por intermédio da Suécia. A direita preferia optar pela neutralidade: para quê pronunciar-se e escolher, se assim se corria o risco de equivocar-se quanto ao lado vencedor? Mas o Governo e a opinião pública generalizada apoiavam os Aliados. Se esse apoio se concretizasse efetivamente, concluiu Isidro, as suas vendas na Alemanha iriam por água abaixo.
Ofélia ainda conseguiu enviar uma carta a Victor Dalmau, por intermédio do chauffeur, antes de este ter sido aparatosamente despedido, e ela, sem mais, desterrada para o campo. Juana, que desde sempre por ele nutrira uma visceral antipatia, acusou-o sem hesitar, mesmo que sem outras provas além de ter presenciado uma conversa sussurrada entre ele e Ofélia.
- Eu avisei-o, patrão, e o senhor não fez caso. É por causa desse cretino que agora a menina está grávida.
A Isidro del Solar foi como se todo o sangue lhe subisse à cabeça, sentindo que o cérebro lhe ia explodir. Que os rapazes da casa abusassem das criadas de quando em vez, era uma coisa, agora... que a sua filha fizesse o mesmo, e ainda por cima com um subalterno com cabelo de índio e marcado de bexigas... para ele era totalmente inconcebível! Teve uma visão fugaz da filha nua nos braços do motorista, daquele cabrão indigno, daquele filho de uma grandessíssima puta, os dois jazendo no cubículo dos fundos da garagem, e quase desmaiou. Sentiu um alívio profundo quando Juana esclareceu o mal-entendido, precisando que o homem servira apenas de alcoviteiro. Chamou-o à biblioteca e intimou-o, aos berros, para que soltasse o nome do culpado. Ameaçou mandar prendê-lo, para que os polícias lhe arrancassem a verdade a golpes e a patadas, mas quando nem isso resultou, tentou comprá-lo, também debalde, pois o homem jamais vira Victor. Apenas foi capaz de indicar-lhe as horas em que deixava e trazia Ofélia da escola de arte. Isidro deu-se então conta de que a filha jamais assistira às aulas. Da escola seguia a pé ou de táxi direta para os braços do amante. Afinal a miúda era menos tola do que pensava... ou talvez tivesse sido a luxúria a despertar-lhe a astúcia.
A carta de Ofélia continha a explicação que deveria ter dado pessoalmente a Victor, mas, nos momentos em que conseguiu telefonar-lhe, ele não se encontrava no Winnipeg nem em casa. Na quinta estaria completamente incomunicável. O telefone mais próximo distava cerca de quinze quilómetros da propriedade. Dizia-lhe, em suma, a verdade: que aquela paixão fora como uma embriaguez que lhe turvara o pensamento, que agora entendia o que ele lhe dissera - que os obstáculos que os separavam eram insupríveis. Admitiu, num tom quase indiferente, que, na verdade, o que sentira fora apenas uma paixão passageira... nada de amor. Simplesmente, dei-xara-se arrastar pela novidade. Não podia permitir-se, nem queria sacrificar por ele a sua vida futura nem a sua reputação. Anunciava-lhe que partiria por algum tempo de viagem com a mãe, e que, quando regressasse, já com as ideias mais claras, refletiria sobre a possibilidade de reatar com Matias. Concluía a missiva com um adeus seco, advertindo-o que de forma alguma voltasse a tentar estabelecer contacto com ela. Victor recebeu a carta com a atitude resignada de quem há muito esperava aquelas palavras. Nunca acreditou realmente que aquele amor daria frutos. Como lhe tentara demonstrar desde o princípio Roser, aquela relação era como uma planta sem raízes, destinada a murchar inexoravelmente.
- Nada cresce na penumbra dos segredos. O amor precisa de luz e de ar livre para se expandir - sustinha ela, sabiamente.
Depois de ler e reler a carta, Victor estendeu-a a Roser:
- Tinhas razão, como sempre - reconheceu.
A ela bastou-lhe um sumário olhar e uma leitura entrelinhas para saber-lhe o conteúdo. Compreendeu também que a frieza de Ofélia era apenas uma capa para disfarçar uma
tremenda fúria, e acreditou adivinhar a verdadeira causa: não
; era apenas a questão do não-futuro com Victor nem se tratava de um capricho de menina mimada. Supôs que a família
mantinha Ofélia reclusa em qualquer parte para se poupar da exposição e da vergonha de uma gravidez, mas absteve-se de partilhar esta suspeita com Victor, pois afigurava-se-lhe
uma crueldade. Que necessidade havia de atormentá-lo com mais questões por responder? Sentia uma espécie de pena por Ofélia. Tão ingénua e vulnerável. Era uma quase-Julieta, sacudida pelo ciclone de uma paixoneta infantil, mas, ao
; invés do jovem Romeu, deparara-se-lhe um homem maduro
, e calejado.
Deixou a carta sobre a mesa da cozinha e, tomando Victor pela mão, conduziu-o ao divã, único lugar disponível para se sentarem confortavelmente naquela casa simples.
- Deita-te. Vou fazer-te uma massagem.
Ele estendeu-se com a cabeça no regaço de Roser e rendeu-se à doçura branda daqueles dedos de pianista e à certeza de que, pelo menos enquanto ela vivesse, ele não estaria sozinho no epicentro daquele mundo miserável. Se junto dela até as más recordações eram suportáveis, também o seria o buraco que a ausência de Ofélia lhe rasgara no peito. Gostaria de contar a Roser a dor que o sufocava, mas faltavam-lhe as palavras. Palavras para descrever-lhe tudo quanto vivera com Ofélia, como certo dia ela lhe propusera que partissem para algum país distante, que fugissem juntos e que fossem eternamente amantes. Não conseguia, ou não sabia dizer-lho, mas Roser conhecia-o demasiado bem, e certamente já havia entendido tudo. Nisto estavam quando Marcel acordou, chamando-os aos gritos.
Roser não se equivocara quanto aos sentimentos de Ofélia. Desde que se apercebeu de que estava grávida, a paixão foi-se-lhe transformando numa raiva surda que a queimava por dentro. Passava horas a fio analisando a sua conduta e perscrutando a consciência como lhe prescrevera o padre Urbina, mas, em vez de se arrepender do pecado cometido, arrependia-se da sua evidente estupidez. Nunca lhe ocorrera perguntar a Victor como fariam para se prevenirem de uma gravidez indesejada, porque deu como um dado adquirido que ele teria a situação sob controlo. Além disso, como os encontros eram pouco frequentes, acreditava que tal não sucederia. Pensamento absurdo! Victor, mais velho e experiente, tinha a culpa daquele acidente imperdoável; a ela, a vítima, cabia-lhe pagar pelos dois. Era uma monumental injustiça. Não conseguia encontrar razões, nem sequer lembrar-se do que a levara a aferrar-se àquele amor sem esperanças, por um homem com quem nada tinha em comum. Depois de se deitar com ele, sempre em algum lugar sórdido, sempre desconfortável, e onde tudo se fazia à pressa, sentia-se tão pouco realizada como sucedia com os desajeitados amassos às escondidas com Matias. Supôs que tudo teria sido diferente se tivessem tido mais tempo para se conhecerem, mas nada disso acontecera. Apaixonara-se pela própria ideia do amor, pela história romântica e pelo passado heróico daquele guerreiro, como costumava chamar-lhe. Vivera uma ópera cujo desenlace fora, e seria, inevitavelmente trágico, estava certa. Sabia que Victor estava apaixonado por ela, ao menos tanto quanto conseguiria um coração repleto de cicatrizes, mas, pela sua parte, fora apenas um impulso, um capricho, uma fantasia. Sentia-se de tal forma nervosa, doente e prisioneira, que todos os pormenores da aventura que vivera com Victor, até os mais insignificantes, estavam irremediavelmente deformados ante o terror de ter destruído a sua vida. Para ele, prazer sem risco; para ela, risco sem prazer. Agora que tudo terminara, ela sofria as consequências, e ele podia prosseguir placidamente a sua existência como se nada... odiava-o por isso. Ocultou-lhe o seu estado, pois temeu que, ao revelar-lho, Victor reclamasse o seu papel de pai e não a deixasse em paz. Toda e qualquer decisão relativa à gravidez só e só a ela competia. A ninguém permitiria opinar ou interferir, muito menos àquele que tão grande dano lhe causara. Nada disto continha a carta, mas Roser tudo entreleu.
Aos três meses de gestação, as náuseas de Ofélia cessaram. Invadiu-a uma avassaladora torrente de energia como nunca antes. Ao enviar a carta a Victor, encerrara aquele capítulo da sua vida, e em poucas semanas deixou de se atormentar com lembranças e especulações sobre o que os dois poderiam ter sido. Sentia-se livre do seu amante, forte, saudável, com um apetite voraz de adolescente. Dava longas caminhadas pelo campo, seguida pelos cães da quinta, metia-se na cozinha a fabricar uma quantidade absurda de bolachas e bolos que depois repartia pelas crianças do lugar, distraía-se pintando mamarrachos com Leonardo, gigantescas manchas de cor que lhe pareciam bem mais interessantes que as paisagens de antanho, e, ante o desconcerto da lavadeira, dera-lhe para passar lençóis, e decorria horas e horas entre pesados ferros de carvão, transpirando, feliz.
- Deixem-na estar sossegada. Em breve lhe passará! - profetizou Juana.
O bom humor de Ofélia afigurava-se chocante e incompreensível a Dona Laura, que esperava vê-la eternamente debulhada em lágrimas, enquanto bordava roupinhas de bebé, mas Juana lembrou-lhe que também ela conhecera meses de euforia durante os seus estados de graça, antes de o peso do ventre se lhe tornar completamente insuportável.
Felipe visitava a quinta uma vez por semana, para saber dos gastos, para conferir as contas e para dar instruções a Juana, convertida em dona de casa, pois a sua patroa, de momento, encontrava-se comprometida e absorta em complicadas e transcendentes negociações com o Divino. Trazia notícias da capital que a ninguém interessavam, frascos de tinta e revistas para Ofélia, ursinhos de peluche e guizos para o Bebé, que já perdera o uso da fala e voltara a gatinhar. Vicente Urbina aparecera um par de vezes, envolto no seu odor a santidade, como dizia Juana Nancucheo, que não passava, afinal, de bafio de sotaina mal lavada e cheiro a loção de barba, a fim de avaliar o progresso da situação, reconduzir Ofélia aos caminhos do Senhor e a orientá-la para que fizesse uma confissão completa do sucedido. Ela escutava-lhe aquelas sábias palavras com o ar ausente de uma surda, sem demonstrar a menor emoção ante a perspetiva de ser mãe, como se o que carregasse no ventre não fosse mais que um tumor. Isso facilitaria a adoção, pensava Urbina.
A estadia no campo prolongou-se desde finais do verão até ao inverno, e teve a virtude de ir acalmando as celestiais e frenéticas súplicas de Dona Laura. Não se atrevia a pedir um aborto espontâneo, que sem dúvida solucionaria de imediato aquele drama familiar, pois tal seria tão grave como desejar a morte do marido, mas, no rosário das suas preces, subtilmente, ia insinuando a possibilidade dessa eventual ocorrência. O bucólico e aprazível ritmo da natureza, prosseguindo em sua marcha tranquila e imutável, os longos dias e as noites povoadas de silêncio, o leite morno e espumoso do estábulo, as resplandecentes travessas repletas de fruta e o pão aromático saído do forno de argila combinavam com o seu temperamento tímido muito mais que o bulício de Santiago. No que lhe dizia respeito, se dela dependesse a decisão, ficaria ali para sempre. Ofélia também se deixou amodorrar por aquele ambiente bucólico, e o ódio que a consumia contra Victor Dalmau deu gradualmente lugar a um vago ressentimento. Não era ele, afinal, o único culpado. Ela também tinha a sua parcela de responsabilidade. Começou a pensar em Matias Eyzaguirre com uma certa nostalgia.
A casa era antiga, de estilo colonial, com paredes grossas de adobe, telhas, vigas de madeira e chão de ladrilhos de argila, mas resistira bem ao terramoto de trinta e nove, diferentemente do que sucedera a outras vivendas da região, agora convertidas numa pira de escombros. Apenas algumas paredes apresentavam rachaduras, e haviam caído metade das telhas. No caos que se seguiu ao terramoto, aumentaram os assaltos por aquelas bandas. Havia vagabundos tentando fazer pela vida, um grande desemprego, que se atribuía à depressão económica dos anos trinta e à crise do sal. Quando o sal natural foi substituído pelo sal sintético, milhares de trabalhadores perderam os seus postos de trabalho, e essa retração ainda se fazia sentir anos mais tarde. Nos campos, os ladrões entravam de noite nas casas após envenenarem os cães de guarda, e levavam quanto podiam, fruta, galinhas, por vezes um porco ou um burro, para vender.
Os capatazes corriam-nos a cartuchadas, mas disto Ofélia não tivera conhecimento. Os dias de verão espreguiçavam-se longos, e ela passava as horas de maior calor descansando na sombra fresca dos corredores, ou desenhando cenas campestres, porque o Bebé já não tinha forças para acompanhá-la, manchando grandes telas com borrões de cor. Desenhava em pequenos postais os carros de bois, as vacas sonolentas da leitaria, o terreiro das galinhas, as lavadeiras, a vindima. O vinho produzido pelos Del Solar não podia competir em qualidade com outros vinhos melhores e mais afamados. A produção era limitada e vendia-se toda a restaurantes onde Isidro possuía contactos. O seu vinho estava longe de ser rentável, mas para ele era fundamental contar-se entre os vinhateiros, esse clube exclusivo de famílias conhecidas.
O sexto mês da gravidez de Ofélia coincidiu com o começo do outono. O sol punha-se mais cedo, e as noites, mais frias e penumbrosas, tornavam-se eternas. Aqueciam-se com mantas e braseiros de carvão e alumiavam-se com velas, pois haveriam de passar vários anos até que instalassem a eletricidade naquelas paragens longínquas. A Ofélia, o frio pouco a afetou, pois a euforia dos primeiros meses dera lugar a uma pachorrenta dormência de leão-marinho que não se confinava apenas ao corpo. Havia engordado quinze quilos e tinha as pernas inchadas como dois presuntos gigantes e disformes. Deixou de passear, de ler, de pintar e de bordar, porque logo se deixava cair prostrada pelo sono. Conformou-se a permanecer numa imobilidade apática, e a continuar a engordar, desistindo de tudo, de forma tão alarmante, que Juana Nancucheo tinha até de a obrigar a tomar banho e a lavar o cabelo. A mãe não se cansava de a avisar, dizendo-lhe que tivera seis filhos e que, se houvesse cuidado um pouco mais de si e do seu corpo, talvez tivesse conseguido preservar um pouco da frescura da juventude.
- E o que importa isso agora, mamã? Estou desgraçada, como todos dizem. De qualquer das formas, ninguém se vai interessar por mim. Vou converter-me numa solteirona gorda.
Entregou-se brandamente, tal como a sua família, nas mãos do padre Urbina, sem tomar parte das decisões sobre a criança que em breve nasceria. Tal como acedeu a refugiar-se no campo, longe da vista de todos, vivendo em segredo, assumindo a vergonha que o sacerdote e as circunstâncias em redor acabaram por inculcar-lhe, convenceu-se também de que a adoção era inevitável. A única saída plausível.
- Se eu fosse mais nova, diríamos que o bebé era meu e podíamos criá-lo na família... mas tenho cinquenta e dois anos. Ninguém acreditaria em semelhante coisa - dissera-lhe a mãe.
Nessa altura, uma preguiça invencível impedia Ofélia de pensar. A sua vontade, tudo quanto desejava, concentrava-se e resumia-se em duas palavras: comer e dormir. Mas, por volta do sétimo mês, deixou de sentir que tinha um tumor em expansão no seu interior e percebeu nitidamente a presença do Ser que lentamente em si gestava. Antes aquela vida manifestava-se como o voo de um pássaro assustado, mas
; agora, ao tocar o próprio ventre, conseguia definir os contornos daquele corpito minúsculo, identificar-lhe um pé ou
a cabeça. Então voltou aos lápis e aos seus blocos de folhas de papel, onde desenhava bebés e crianças de ambos os sexos, parecidos com ela, sem um único traço que fizesse lembrar Victor Dalmau.
De quinze em quinze dias, aparecia na quinta uma parteira enviada pelo padre Urbina para ver Ofélia. Chamava-se Orinda Naranjo e, segundo o padre, sabia mais do que qualquer médico sobre "doenças e coisas de mulheres", como denominava quanto se relacionasse com questões de reprodução. Inspirava confiança e credibilidade à primeira vista, com o seu uniforme de enfermeira e uma cruz ao pescoço. Vinha sempre com uma mala que continha todos os utensílios indispensáveis à prática do seu ofício. Media o diâmetro do ventre de Ofélia, media-lhe as tensões e consolava-a no tom lamentoso de quem se dirige a uma moribunda. Ofélia tinha-lhe uma profunda aversão, mas esforçava-se por ser amável, uma vez que aquela mulher seria necessária quando chegasse a hora. Como nunca vigiara a regularidade da sua menstruação nem fazia conta dos encontros com o seu antigo amante, não tinha a menor ideia de quando a criança fora concebida, mas Orinda Naranjo calculou a data aproximada do nascimento guiando-se pelas dimensões do ventre. Prognosticou que, como Ofélia iria ser mãe de primeira viagem, e como engordara bastante, seria possivelmente um parto difícil, mas que ficasse tranquila, que ela tinha uma vasta experiência..., que Orinda, ela mesma, já perdera a conta ao número de crianças que trouxera ao mundo. Recomendou que levassem Ofélia ao convento de Santiago, pois havia uma enfermaria muito bem equipada, e estariam próximas de uma clínica privada, caso as coisas se complicassem. Assim fizeram. Quando Felipe apareceu na propriedade para proceder ao traslado da irmã, deparou-se-lhe uma criatura irreconhecível, obesa e com manchas no rosto, arrastando uns pés descomunais, metidos nuns chinelos condizentes, abrigada num poncho que tresandava a bedum.
- Ser mulher, Felipe, é uma condenação desgraçada! -disse-lhe, à laia de explicação.
A sua bagagem consistia em dois vestidos de maternidade, do tamanho de tendas de campismo, um grosso casaco masculino e uma malinha primorosamente arrumada onde viajavam as roupinhas que a sua mãe e Juana haviam preparado para o bebé. O pouco que ela conseguira tecer não se aproveitara, por tão disforme que ficara.
Ofélia estava no convento há cerca de uma semana, quando, certa noite, despertou de um pesadelo alarmante,
empapada em suor, e com a sensação de ter hibernado durante meses, aprisionada numa densa névoa. Tinham-lhe destinado uma cela mobilada austeramente com um catre de ferro, um simples colchão de crina de cavalo, duas ásperas mantas de lã por cardar, uma cadeira, um baú para guardar a roupa e uma mesita de madeira por polir. Não precisava de nada mais e agradeceu aquele rigor espartano, aliás, condizente com o seu estado de alma. A cela dava para o jardim do convento, ornado com a sua fonte mourisca ao centro, suas árvores ancestrais, os seus canteiros de plantas exóticas, as suas estufas de madeira com ervas medicinais, tudo sulcado por diminutos carreiros de pedra, encimados por arcos de ferro forjado que na primavera se cobriam de trepadeiras de rosas. Ofélia despertou com a luz invernal daquele amanhecer tardio e com um arrulho de uma pomba que lhe pousara na janela. Demorou alguns minutos a aperceber-se de onde se encontrava e o porquê de estar cativa e encerrada naquela montanha de carne tão pesada que quase não lhe permitia respirar. Esse tempo de imobilidade fê-la recordar detalhes do sonho que tivera, onde era ainda a jovem de outrora, leve e ágil. Dançava descalça numa praia de areia negra com o sol a despenhar-se-lhe sobre o rosto e o cabelo revolto pela brisa impregnada de sal. Depois, o mar começava a agitar-se e depositava na orla da areia uma menina coberta de escamas como uma cria de sereia. Deixou-se ficar na cama quando ouviu ressoar o sino que chamava para a missa, e quando, uma hora volvida, passou uma noviça tocando uns ferrinhos a convocar para o pequeno-almoço, pela primeira vez preferiu deixar-se ficar a dormir o resto da manhã, pois não sentia o menor vestígio de apetite.
Nesse mesmo dia, pela hora da reza do terço vespertino, chegou de visita o padre Urbina. Recebeu-o um revolteio de hábitos negros e de toucas brancas, uma revoada de mulheres solícitas que lhe vinham beijar a mão e lhe pediam a bênção. Era um homem ainda jovem e altivo, que parecia envergar a sotaina como um disfarce.
- Como vai a minha protegida? - perguntou, bonacheirão, logo que se encontrou confortavelmente instalado com uma taça de espesso chocolate quente entre as mãos. Apressaram-se a ir buscar Ofélia, que acorreu, balançando-se como uma precária fragata no cimo daquelas pernas colossais. Urbina estendeu-lhe a santificada mão para o beijo regulamentar, mas ela estreitou-lha num aperto breve e firme.
- Como te sentes, minha filha?
- Como quer que me sinta, com esta melancia a fazer de ventre? - replicou ela, secamente.
- Compreendo, minha filha... mas deves aceitar os incómodos e o sofrimento. São coisas normais no teu estado. Oferece-os a Deus Todo-Poderoso. Já diz nas Sagradas Escrituras: o homem há de trabalhar e ganhar o pão com o suor da sua fronte e a mulher há de parir com dor.
- Que eu saiba, padre... o senhor não sua com o seu trabalho.
- Bom, bom... minha filha, vejo que estás transtornada.
- Quando virá a minha tia Teresa? O senhor garantiu que lhe conseguiria uma permissão para me acompanhar.
- Veremos. Orinda Naranjo comunicou-me que podemos contar com o nascimento dentro de poucas semanas. Reza à Nossa Senhora da Esperança para que te ajude quando chegar a hora, e prepara-te para, chegado o momento, te apresentares limpa e livre de pecados. Recorda que quando dão à luz, muitas mulheres entregam a alma a Deus.
- Confessei-me e comunguei todos os dias desde que aquiestou.
- Fizeste uma confissão completa?
- O senhor não desiste de querer averiguar quem é o pai da criança que trago no ventre, mas... não. Não disse o nome. Porque, quanto a mim, o que importa é o pecado em si e não com quem se peca.
- E o que sabes tu de classificação de pecados, Ofélia?
- Nada.
- Uma confissão incompleta vale tanto como se não te tivesses confessado.
- O senhor morre de curiosidade, não é verdade, padre? - sorriu Ofélia.
- Não sejas insolente! O meu dever sacerdotal é guiar-te pelo caminho do bem! Suponho que já te tenhas dado conta
disso...
- Sim, padre! E estou-lhe profundamente agradecida. Não sei o que seria de mim sem a sua ajuda - e disse isto num tom de tal maneira humilde que raiava até a ironia.
- Enfim, minha filha... Ao fim e ao cabo, tiveste sorte! Trago-te boas notícias. Andei a fazer as minhas investigações e descobri o casal ideal a quem dar o bebé para adoção. É gente decente, trabalhadora, com uma situação económica folgada e... são católicos, claro está! Por agora, não posso adiantar-te nada mais, mas fica tranquila. Eu cuidarei de ti e do teu filho!
- É uma filha.
- Como sabes isso?
- Porque a vi num sonho.
- Não creias nos sonhos...
- Há sonhos proféticos... mas, seja o que for, menino ou enina, eu sou sua mãe e penso criá-la. Padre Urbina, esqueça esse assunto da adoção.
- Mas, o que dizes, minha filha?! Por amor de Deus!
A decisão de Ofélia era irredutível. Os argumentos e ameaças do sacerdote nada lograram. Ofélia manteve-se inquebrável e impertérrita. Mais tarde, quando Felipe e a sua mãe chegaram para a ver e tentaram convencê-la, reforçados pela opinião da Madre Superiora, ouviu-os em silêncio, ligeiramente divertida, como se estivessem a dirigir-se-lhe numa língua desconhecida, mas a avalanche de repreensões excessivas e de advertências terroríficas acabou por surtir efeito, ou talvez fosse um daqueles vírus de inverno, que ano após ano matavam dezenas de velhos e de crianças. Ofélia rendeu-se, prostrada por uma febre altíssima, delirando com sereias, varada por uma lancinante dor de costas e roída e esgotada por uma tosse contínua que a impedia de comer e que não a deixava dormir. O médico que Felipe levou para a consultar receitou-lhe tintura de ópio diluída em vinho tinto e uma data de medicamentos nuns frasquitos azuis todos numerados, mas desprovidos de identificação. As freiras prescreveram-lhe infusões de ervas do jardim e cataplasmas quentes de linhaça para o congestionamento. Seis dias depois, tinha o peito queimado pelas cataplasmas, mas sentia-se melhor. Levantou-se, amparada pelas duas noviças que haviam cuidado dela dia e noite, e, em passos curtos e vacilantes, dirigiu-se para a salita de recreio do convento, onde costumavam reunir-se as freiras nos seus momentos de descanso, um compartimento alegre, banhado de luz natural, com um chão de madeira reluzente e vasos de plantas como únicos elementos decorativos. O aposento era presidido por uma estátua da Virgen del Cármen, padroeira do Chile, ostentando o Menino nos braços, ambos com coroas imperiais de metal dourado cingindo-lhes a fronte. Ali passou toda a manhã, sentada numa poltrona e agasalhada com uma manta, o olhar perdido no céu encoberto que se via da janela, suspensa num paraíso artificial erigido da combinação infalível do álcool e do ópio. Três horas mais tarde, quando as noviças a ajudaram a erguer-se, viram a mancha que alastrava no assento da poltrona e o fio de sangue que lhe descia pelas coxas.
Seguindo as instruções do padre Urbina, em lugar de chamarem um médico, convocaram à pressa Orinda Naranjo, que logo apareceu com o seu ar profissional e que, no seu tom plangente e lamentoso, determinou que o parto podia dar-se a qualquer momento, ainda que, referiu, segundo os seus cálculos, faltassem duas semanas de gestação. Instruiu as freiras para que mantivessem a paciente recostada, soerguida, com as pernas levantadas e com panos embebidos em água fria sobre o ventre.
- E rezem, porque os batimentos do coração quase não se ouvem. A criatura está muito fraca - acrescentou.
Por sua própria iniciativa, as religiosas tentaram conter a hemorragia com infusões de canela e leite morno com sementes de mostarda.
Ao receber o relatório da parteira, o padre Urbina ordenou a Laura que se instalasse no convento junto da filha. Isso faria bem às duas, disse-lhe, e seria bom para que se reconciliassem. Laura fez-lhe ver que não estavam desavindas, ao que o sacerdote retrucou que Ofélia estava desavinda com o mundo inteiro, até mesmo com Deus. Atribuíram a Laura uma cela idêntica à da filha, e pela primeira vez pôde viver a paz profunda da vida religiosa a que tanto aspirara. De imediato se adaptou às gélidas correntes de ar do edifício e aos rígidos horários dos rituais. Levantava-se ainda antes do amanhecer, e esperava o romper do dia na capela louvando o Senhor. Comungava na missa das sete. Almoçava em silêncio, com os restantes membros da congregação, uma refeição constituída de pão, queijo e sopa, enquanto alguém lia em voz alta as leituras do dia. Durante a tarde, dispunha de algumas horas para si própria, que passava a meditar ou entregue à oração.
Ao anoitecer, depois do jantar, refeição tão frugal quanto o almoço, mas, no geral, acrescida de algum peixe, participava com as restantes freiras do ofício das vésperas. Laura sentia-se feliz e integrada no seio daquele refúgio feminino, e até o incómodo da fome ou da falta de doces lhe pareciam privações agradáveis, ao pensar que dessa forma baixaria de peso. Amava aquele jardim encantado, os corredores largos e altíssimos, onde os passos ressoavam como castanholas, o aroma das velas e do incenso na capela, os rangidos das portas, o som dos cantos e dos sinos, o frufru dos hábitos e o murmúrio das rezas. A Madre Superiora eximira-a do trabalho na horta, do atelier de bordar, da cozinha e da lavandaria, para que se dedicasse inteiramente aos cuidados físicos e espirituais de que Ofélia carecia. Simultaneamente, devia, segundo conselho do padre Urbina, ir convencendo a jovem da necessidade de entregar a criança para adoção, de forma a, por um lado, legitimar aquele Ser engendrado pela luxúria, e, por outro, dar a Ofélia uma oportunidade de refazer a própria vida. Ofélia bebia a sua poção mágica em cálices de vinho e dormitava como uma boneca, imóvel no seu colchão de crina de cavalo, atendida pelas noviças e embalada pelo ininterrupto murmúrio da voz da mãe, que escutava difusamente, sem, contudo, dela extrair significado concreto. O padre Urbina tivera a amabilidade de novamente as visitar, e, após ter, pela enésima vez comprovado a teimosia e a inexorabilidade daquela jovem tresmalhada, fez que Laura del Solar o acompanhasse a um passeio pelo jardim, ambos protegidos por um guarda-chuva que os abrigava de uma ténue chuvita, branda como poalha de orvalho. Nenhum dos dois jamais reproduziria ou comentaria a conversa que então mantiveram.
Do parto, que, segundo o que lhe haviam contado, fora longo e difícil, ou dos dias que se lhe seguiram, a Ofélia nada permanecera na lembrança, em parte devido ao éter, à morfina e às misteriosas beberagens administradas por
Orinda Naranjo, que tiveram o condão de a sumir numa
bendita inconsciência durante toda a semana. Despertou perdida, sem saber onde estava e sem lembrar-se sequer do seu
nome. Como a mãe, ao seu lado, rezasse ininterruptamente,
banhada em lágrimas, coubera ao padre Vicente Urbina
a função de lhe comunicar a nefasta notícia. Apareceu-lhe
aos pés da cama logo que lhe reduziram os entorpecentes
e ela acordou o suficiente para perguntar onde se encontrava,
onde estava a sua filha.
- Minha filha, deste à luz um menino - informou-a o sacerdote no tom mais compassivo de que foi capaz -, mas
Deus, na sua infinita sabedoria, levou-o poucos minutos depois de nascer.
Explicou-lhe que o menino viera ao mundo asfixiado com o cordão umbilical, mas que, felizmente, houvera ainda tempo para o batizar, evitando-se assim que fosse para o limbo. A criatura seguira direta para o Céu, na companhia dos anjos. Evitara Deus o sofrimento e a humilhação da Terra a esse Ser inocente, e em sua misericórdia infinita, oferecia-lhe a ela a redenção.
- Reza muito, minha filha. Deves controlar a tua altivez e aceitar os desígnios divinos. Pede a Deus que te perdoe e que te ajude a carregar sozinha e com dignidade o peso deste segredo pelo resto da tua vida.
Urbina, em vão, tentou consolá-la, recorrendo trechos das Sagradas Escrituras e com ditos de sua própria lavra, mas Ofélia pôs-se a uivar como uma loba ferida, e a debater-se, sendo a custo contida pelas fortes mãos das noviças, até que a obrigaram a beber outro copo de vinho misturado com ópio. E assim, de cálice em cálice, sobreviveu meio anestesiada duas semanas inteiras, ao cabo das quais as freiras consideraram que bastava de poções e de rezas, e que havia que trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Mal pôde ter-se de pé, comprovaram que o corpo inchado diminuíra bastante de volume e que já não se assemelhava a um zepelim, tendo novamente adquirido forma de mulher.
Felipe viera buscá-la, a ela e à mãe. Ofélia exigiu ver o túmulo do filho. Voltaram então à propriedade campestre, e ao minúsculo cemitério da povoação mais próxima, para que pudesse depositar flores no lugar assinalado com uma cruz de madeira branca, onde se lia, sem nome, apenas uma data de morte. Um lugar onde repousava uma criança que não chegara sequer a viver.
- Como vamos... não podemos deixá-lo aqui sozinho... Fica tão longe para o visitarmos... - soluçava Ofélia.
De regresso à casa da Rua Mar del Plata, Laura absteve-se de relatar ao marido quanto sucedera nos últimos meses, supondo que Felipe o mantivera a par da situação, e porque, conhecendo-o, sabia que Isidro pretendia saber o menos possível, fiel à máxima de se manter o mais afastado que pudesse dos desvarios emocionais das mulheres da família. Recebeu a filha cumprimentando-a com um beijo na testa, como fazia todas as manhãs. Haveria de morrer, muitos anos mais tarde, sem que uma só vez lhe perguntasse pelo neto. Laura procurara consolo na Igreja e num mar de doces. O Bebé entrara na última etapa da sua curta existência e reclamava toda a atenção e cuidado da mãe e do resto da família, de forma que deixaram Ofélia na tranquila modorra da sua tristeza.
Os Del Solar nunca tiveram a certeza de terem conseguido abafar e esconder completamente o escândalo daquela gravidez incómoda, pois, como era sabido, as histórias e os sucessos daquela estirpe esvoaçavam como pássaros fugazes na periferia da esfera familiar. A Ofélia tinham deixado de servir os seus antigos vestidos de donzela solteira, de forma que, absorta na tarefa de comprar uns e de mandar fazer outros, se abstraiu por um tempo da dor que a aguilhava. O pranto sobrevinha-lhe durante a noite, quando a lembrança da filha lhe aflorava tão nítida que a sentia remexer-se-lhe no ventre, e um insípido gotejar de leite lhe aflorava e humedecia os mamilos. Retomou as aulas de pintura, desta vez frequentando-as e levando-as a sério, e retomou a sua vida social de antes, sem se deixar atemorizar pelos olhares curiosos que lhe lançavam nem pelos cochichos que percebia às suas costas. A Matias Eyzaguirre chegaram-lhe difusos rumores do sucedido, que ele depressa descartou, tomando-os como mais um caso da típica maledicência e espírito tacanho, tão imperantes no seu país. Assim que soube que Ofélia estava doente e se retirara para o campo, escreveu-lhe um par de cartas, mas, como não obteve resposta, enviou um telegrama a Felipe em que perguntava pelo estado de saúde da sua irmã. "Segue o seu curso normal", respondeu-lhe este. Isto teria parecido suspeito a qualquer um, desde que dotado de normal perspicácia, menos a Matias, que não era tolo, como acreditava Ofélia, mas apenas um daqueles raros corações bons e ingénuos. No final desse ano, aquele tenaz pretendente obteve permissão para abandonar o seu posto durante um mês e viajar de férias para o Chile, a livrar-se daquele calor húmido e dos rodopios de vento de Assunção. Chegou a Santiago numa quinta-feira de dezembro, e na sexta já se encontrava defronte da casa afrancesada da Rua Mar del Plata. Juana Nancucheo recebeu-o tão assustada como se lhe tivesse aparecido diante nada menos que a polícia, pois pensou de imediato que vinha recriminar a menina Ofélia pelo seu procedimento, mas, contudo, a intenção de Matias era bem diferente. Trazia na algibeira o anel de brilhantes da sua bisavó. Juana conduziu-o através da casa submergida em penumbra, pois no verão mantinham as persianas fechadas, devido ao calor, e também pelo luto antecipado por Leonardo. Nada de flores frescas nem do aroma de melões e de narcisos, trazidos diretamente da propriedade do campo, que sempre impregnavam o ambiente, nada de música na rádio nem da ruidosa receção dos cães da casa. Apenas a pesada e sólida presença dos móveis de estilo francês e dos quadros suspensos nas suas molduras douradas.
Encontrou Ofélia no terraço das camélias, desenhando a tinta-da-china, sob um toldo, protegida do ardor do sol por um chapéu de palha. Deteve-se um instante a contemplá-la, tão enamorado como antes, sem notar o excesso de peso que ainda aparentava. Ofélia ergueu-se e retrocedeu um passo, desconcertada, pois esperava tudo menos voltar a ver Matias. Pela primeira vez, apreciou-o como o homem que de facto era, e não como o primo suplicante e complacente com cujos sentimentos brincara durante tantos anos. Pensara muito nele durante os últimos meses, somando o facto de o ter perdido ao preço que estava a pagar pelos erros cometidos. Os aspetos do carácter de Matias que antes a irritavam afiguravam-se-lhe agora raras virtudes. Achou-o mais sólido e maduro... mais bonito.
Juana trouxe-lhes chá gelado e bolos de doce de leite, e permaneceu por ali, escondida atrás de uma moita de rododendros, tentando ouvir o que diziam. Devido ao posto que ocupava na família, tinha de se manter bem informada. Repetia isso vezes sem conta a Felipe, sempre que ele a repreendia por andar à escuta atrás das portas.
- Que necessidade tinha Ofélia de partir o coração de Matias? Tão bom que ele era! Não merecia passar por aquilo. Veja só, menino Felipe, mesmo antes de ele ter perguntado o que quer que fosse, ela contou-lhe tudo de uma assentada. Em detalhe, ainda por cima. Imagine só!
Matias tudo ouvira sem perguntas ou interrupções, secando com o lenço o suor do rosto, angustiado pela confissão de Ofélia e pelo aroma excessivamente doce das rosas e dos jasmins que se desprendia e subia do jardim. Assim que ela terminou de lhe contar, depois de algum tempo em silêncio a ordenar os pensamentos, ele concluíra que, no fim de contas, nada mudara e que Ofélia continuava a ser, e sempre seria, a mulher mais bela do mundo, a única que ele amara e que amaria até ao fim dos seus dias. Tentou dizer-lho com a mesma eloquência com que se expressava nas cartas, mas faltaram-lhe as palavras floreadas:
- Por favor, Ofélia, casa-te comigo!
- Mas não ouviste o que acabei de te contar? Não vais perguntar-me sequer quem era o pai do bebé?
- Isso não me interessa. A única coisa que quero saber é se ainda gostas dele.
- Aquilo não foi amor, Matias. Foi apenas excitação do momento.
- Então em nada interfere connosco. Sei que vais precisar de tempo para te recuperares, ainda que talvez seja impossível recuperar da morte de um filho. Quero que saibas que quando estiveres preparada, eu estarei aqui à tua espera, como sempre estive.
Dizendo isto, retirou do bolso a caixa de veludo negro e, delicadamente, colocou-a diante de Ofélia, sobre a bandeja do chá.
- Dirias o mesmo se eu tivesse um filho ilegítimo nos braços? - desafiou-o ela.
- Claro que sim!
- Imagino que nada do que te contei te tenha apanhado de surpresa, Matias. Sei como se espalham estas coisas... já deves ter ouvido rumores. A minha má reputação há de perseguir-me seja onde for. Se te casasses comigo irias destruir a tua carreira diplomática e a tua vida.
- Isso é problema meu!
Do esconderijo que ocupava, por detrás dos rododendros, Juana não pôde ver como Ofélia pegava na caixa de veludo e como a contemplava, absorta, sobre a palma da mão, como se se tratasse de um escaravelho egípcio. Apenas ouviu o silêncio sem se atrever a assomar por entre a folhagem. Mas, quando lhe pareceu que a pausa durava demasiado tempo, irrompeu do seu refúgio e apareceu como se ali estivesse apenas com o propósito de levantar a bandeja do chá. Então viu o anel no dedo anelar de Ofélia.
Pretendiam casar-se discretamente, mas, para Isidro del Solar, aceder a tal propósito equivalia a admitir a culpa. Ademais, o casamento da filha era uma estupenda oportunidade para matar dois coelhos de uma cajadada só: colocar em dia e de uma assentada mil compromissos sociais e dar uma bofetada de luva branca aos malparidos que andavam a espalhar mexericos sobre Ofélia. Nunca ouvira diretamente nada em concreto, mas em mais de uma ocasião pareceu-lhe que no Clube de la Unión se riam dissimuladamente nas suas costas. Os preparativos foram mínimos porque os noivos já tinham tudo pronto desde o ano anterior, incluindo os lençóis e os atoalhados bordados com as respetivas iniciais. Voltaram a publicar o anúncio da cerimónia nas páginas cor-de-rosa do El Mercúrio e a modista fez à pressa um vestido de noiva semelhante ao anterior, mas consideravelmente mais largo. O padre Urbina deu-lhes a honra de celebrar o casamento. A sua presença era, por si só, motivo mais do que suficiente para restaurar e atestar a honra de Ofélia. Ao preparar o casal para o casamento, por entre os conselhos e as advertências da praxe, referiu delicadamente o tema do passado da noiva, mas ela comunicou-lhe que Matias era conhecedor de tudo o que sucedera, e que, por conseguinte, não teria de carregar sozinha aquele fardo pelo resto da vida.
Antes de partirem para o Paraguai, Ofélia quis voltar ao campo para ver uma vez mais a campa do filho. Matias acompanhou-a e, juntos, endireitaram a cruz branca, depositaram flores frescas e rezaram por ele.
- Um dia, quando tivermos o nosso próprio jazigo, vamos trasladar o teu filho para estar sempre perto de nós, como
deve ser.
Passaram uma semana de lua de mel em Buenos Aires, antes de seguirem por terra para Assunção. Esses poucos dias bastaram a Ofélia para saber, sem margem para dúvidas, que, ao aceitar casar-se com Matias, tomara a mais sábia decisão da sua vida. Vou gostar dele como merece, ser-lhe fiel e fazê-lo feliz, prometeu a si mesma. Finalmente, aquele homem obstinado, dotado de uma paciência de santo, pôde ter a suprema satisfação de entrar na sua casa preparada com tanta minúcia e despesa, levando nos braços a mulher que amava. Ela pesava mais do que esperara, mas ele era forte!
Terceira parte.
Raízes e Regressos.
IX.
1948-1970,
E então todos os seres
terão direito
à terra e à vida.
E assim se cumprirá o pão do futuro.
Pablo Neruda
"Ode ao Pão".
Odes Elementares.
No verão de 1948, iniciou-se uma prática entre os Dalmau que havia de se prolongar por cerca de uma década. Durante o mês de fevereiro, Roser e Marcel alugavam uma barraca na praia, e aí passavam todo o mês. Victor ficava em Santiago a trabalhar e ia passar o fim de semana com eles, como faziam quase todos os pais de família chilenos oriundos do seu meio social, e que se orgulhavam de nunca tirar férias, sob o pretexto de serem indispensáveis nos seus trabalhos. Segundo Roser, tal conduta era apenas mais uma expressão do machismo tão característico daquelas paragens... como iriam eles abdicar da possibilidade de uma estival liberdade de solteiro, se a oportunidade se lhes deparava ali mesmo, à mão de semear? Não teria sido bem visto que Victor se ausentasse do hospital durante um mês seguido, mas o seu principal motivo para continuar a trabalhar eram as más recordações e os espectros de Argelès-sur-Mer que qualquer praia lhe trazia de volta ao pensamento. Prometera a si mesmo não voltar a pôr os pés na areia. Justamente nesse mês de fevereiro, teve a oportunidade de devolver o favor que Pablo Neruda lhe prestara aquando da emigração para o Chile. O poeta por essa altura cumpria funções de deputado e havia-se incompatibilizado com o Presidente da República, que cortara relações com o Partido Comunista, apesar de este o ter auxiliado a ascender ao poder. Neruda não poupava críticas àquele homem, produto das intrigas políticas. Considerava-o um traidor, um vampiro medíocre, oportunista e sem escrúpulos. Acusado de injuriar e caluniar o Governo, fora exonerado e era perseguido pela polícia.
Certo dia, dois dirigentes do Partido Comunista, que em breve seriam dados como foras-da-lei, apresentaram-se no hospital para falarem com Victor.
- Como já deve ser do seu conhecimento, foi emitido um mandado de prisão para o nosso camarada Neruda.
- Sim... li no jornal. Custou-me a acreditar.
- É necessário escondê-lo enquanto se mantiver na clandestinidade. Supomos que esta situação se resolverá em breve, mas, se não for este o caso, e se as coisas se complicarem, teremos de o fazer sair do país a qualquer custo.
- E como posso ajudar-vos? - perguntou-lhes Victor.
- Poderá alojá-lo durante algum tempo. Não será um período muito longo. Vamos ter de utilizar várias moradas provisórias para iludir a polícia.
- Com certeza. Será uma honra.
- Não preciso de lhe dizer que ninguém, mas ninguém
mesmo, deverá saber...
- A minha mulher e o meu filho encontram-se de férias, de modo que atualmente estou sozinho em casa. Ali ficará em segurança.
- Devemos também adverti-lo de que isto poderá ser arriscado e que poderá meter-se em maus lençóis... como cúmplice.
- Não importa - disse Victor, e apressou-se a fornecer-lhes a sua direção.
E foi assim que Pablo Neruda e a pintora Delia Del Carril passaram duas semanas em casa dos Dalmau. Victor cedeu-lhes a cama e levava-lhes as refeições preparadas pela cozinheira da taberna em pequenos recipientes, de modo a não chamar a atenção dos vizinhos. Ao poeta não passou despercebida a curiosa coincidência de os seus almoços e jantares virem de um sítio com o nome de Winnipeg. Também era necessário abastecê-lo dos jornais, de livros e de whisky, único tónico capaz de o acalmar, além de o distrair com longas conversas, uma vez que as visitas eram extremamente restritas. Era bon vivant e tinha um carácter profundamente conciliador de vontades. Precisava dos amigos junto de si, e precisava também dos seus adversários ideológicos, para praticar a verbal esgrima da polémica. Durante as noitadas que passaram naquele espaço exíguo, passou e repassou com Victor a lista dos refugiados que graças a ele embarcaram no Winnipeg, em Bordéus, naquele longínquo dia de agosto de 1939, bem como de outros tantos homens e mulheres, vítimas do êxodo de Espanha, que foram aportando ao Chile nos anos subsequentes. Victor fizera notar ao poeta que este, ao não acatar a ordem de apenas levar para o Chile mão de obra qualificada, mas também intelectuais e artistas, enriquecera o país com uma lufada de ar fresco de pensamento, conhecimento, talento e cultura. Menos de uma década depois, já se destacavam os nomes de cientistas, pintores, escritores, jornalistas, e até um historiador que sonhava poder cumprir a monumental tarefa de reescrever a história do Chile desde as suas origens.
Aquela reclusão forçada enlouquecia Neruda. Assim, encerrado entre quatro paredes, dava voltas e mais voltas para trás e para diante, como uma fera enjaulada. Não podia sequer assomar à janela, e a sua mulher, que renunciara a tudo, até à sua arte, para o acompanhar, só a muito custo conseguia retê-lo em casa. Durante esse período, o poeta deixou crescer a barba e ocupava o tempo escrevendo furiosamente versos e versos do que seria o Canto Geral. Como retribuição da hospitalidade, recitava, no seu tom lúgubre e inconfundível, versos, uns antigos, outros ainda inconclusos, que contagiaram Victor com o bichinho da poesia, vício que haveria de o acompanhar para o resto da vida.
Certa noite, foram visitados por dois desconhecidos munidos de guarda-chuvas e envergando gabardinas escuras, ainda que a essa hora fervilhasse o calor do verão. À primeira vista, pareciam detetives, mas tendo-se identificado como camaradas do Partido, sem mais explicações, conduziram o casal de refugiados para outra morada, quase não lhes dando tempo para arrumarem à pressa as suas roupas e os papéis com os esboços dos poemas por terminar. Negaram-se a confiar a Victor o novo endereço onde poderia visitar o poeta, mas disseram-lhe que, provavelmente, dentro em pouco teria de voltar a hospedá-lo, uma vez que não era fácil encontrar esconderijos seguros. Havia um contingente policial constituído por mais de quinhentos polícias incumbidos de seguir e farejar a peugada do fugitivo. Victor fez-lhes ver que na semana seguinte a sua família regressaria das férias e que a sua casa já não seria segura. No fundo, sentiu-se aliviado por recuperar a tranquilidade costumeira. O seu hóspede preenchera a casa até ao mais ínfimo recanto com a sua imensa presença.
Voltaria a vê-lo treze meses mais tarde, quando, juntamente com dois companheiros, organizaria a fuga do poeta para a Argentina, uma fuga a cavalo, atravessando as mais inacessíveis passagens através das cordilheiras do Sul. Durante esse tempo, o poeta, irreconhecível com uma densa barba de montanheiro, escondera-se em casa de amigos e de camaradas do Partido, enquanto a polícia lhe pisava os calos. Tal como a poesia, também aquela futura viagem à fronteira deixaria em Victor uma marca inolvidável. Cavalgaram através daquele cenário luxuriante de selva virgem, montanhas e árvores milenares, e água por todo o lado. Água, água e mais água, deslizando em riachos furtivos por entre troncos ancestrais, despenhando-se do céu em cascatas, tudo arrastando em rios turbulentos que os viajantes tinham de vadear com o coração reduzido ao tamanho de uma ervilha. Anos mais tarde, nas suas memórias, Neruda haveria de descrever e recordar aquela travessia. "Cada um dos expedicionários avançava embargado daquela imensa solidão sem limites, internado num denso silêncio verde e branco. [...] Tudo era simultaneamente uma natureza secreta e deslumbrante, e uma tensa ameaça de neve, de frio e de perseguição".
Victor despediu-se do poeta na fronteira, onde o esperavam uns gaúchos com cavalos frescos para prosseguirem a viagem. "Os Governos duram pouco, Dom Pablo, mas os poetas são imortais. Acredite no que lhe digo. Em breve o senhor regressará em glória ao Chile", disse Dalmau, ao abraçá-lo.
Neruda sairia de Buenos Aires com um passaporte de Miguel Ángel Astúrias, o insigne romancista guatemalteco, com quem tinha algumas parecenças físicas. Ambos possuíam "um nariz longo e pronunciado, rostos de traços salientes e corpos dotados de idêntica robustez". Em Paris, foi recebido como um irmão por Pablo Picasso, e homenageado no Congresso pela Paz, enquanto o Governo chileno declarava aos jornais que aquele homem era um impostor, que o verdadeiro Pablo Neruda estava ainda no Chile e que a polícia o havia já localizado.
* * *
No exato dia em que Marcel Dalmau cumpriu dez anos de idade, chegou a carta de Carme, que dera a volta a meio mundo antes de encontrar o destinatário. Os pais haviam-lhe falado da avó, mas nunca vira uma fotografia sua, e os relatos da vida e da família em Espanha pareciam-lhe tão alheios e remotos à sua realidade, que os classificara na categoria das inverosímeis novelas de terror e de fantasia que lia e colecionava. Nesse tempo negava-se a falar em catalão. Apenas o fazia com o velho Jordi Moliné, no Winnipeg. Com os demais, exprimia-se num espanhol de forte sotaque chileno, e com um linguajar tão impregnado de vulgaridades e de calão que lhe valia frequentes palmadas da mãe. Mas, à parte dessa mania, era um rapazinho exemplar. Sozinho e sem precisar ou pedir ajuda, tratava dos seus estudos, das suas roupas, dos transportes e, frequentemente, das refeições. Inclusivamente ia sozinho ao dentista e ao barbeiro. Parecia um adulto em ponto pequeno.
Certo dia, ao regressar do colégio, dirigira-se ao correio para retirar a sua revista sobre extraterrestres e sobre as maravilhas da natureza, e deixou a restante correspondência sobre a mesa da entrada. Estava habituado a encontrar a casa vazia àquela hora. Como os horários dos pais eram, em geral, imprevisíveis, aos cinco anos haviam-lhe dado uma chave da porta, e viajava sem companhia de adultos, quer de elétrico quer de autocarro, desde os seis anos. Era alto e seco, de rosto de rasgos definidos, olhos negros de expressão ausente, e um cabelo indomável, que apenas se conseguia domesticar recorrendo a uma boa quantidade de brilhantina. Além daquele penteado de cantor de tango, as suas demais similitudes com Victor Dalmau limitavam-se aos mesmos gestos comedidos e ao hábito de falar concisamente, sem fornecimento de detalhes de maior.
Sabia que não era seu pai, mas, para ele, esse facto era tão pouco relevante como a lenda de uma avó pretérita que escapara de uma motorizada em plena noite e se perdera em meio de uma multidão desesperada. A primeira a chegar a casa nessa noite foi Roser, segurando um bolo de aniversário, logo seguida por Victor, que cumprira um turno de trinta horas no hospital, e ainda assim não se esquecera de lhe trazer o presente com que sonhava desde há três anos: - É um microscópio a sério... dos profissionais... tem de durar até te casares! - disse-lhe, brincando, enquanto o abraçava. Era muito mais efusivo nas demonstrações de carinho e também muito mais brando do que a sua mãe. A ela, dobrá-la era tarefa impossível. Ao contrário, Marcel sabia sempre como levar a sua avante com Victor.
Depois do jantar e de terem aberto o bolo de aniversário, Marcel levou o correio para a cozinha.
- Olha! É uma carta do Felipe del Solar! Não o vejo há meses - comentou Victor, ao ver o remetente.
Era um envelope grande com o selo do Escritório de Advogados Del Solar. Dentro havia um bilhete dizendo que já era tempo de se reunirem para almoçar e que perdoassem a demora em lhes entregar a carta anexa, que fora enviada para a sua morada antiga, e que andara revoando de um lado para o outro até lhe chegar às mãos; que agora morava num apartamento mesmo em frente ao Clube de Golfe... Assim que abriu a carta, Victor soltou um grito que sobressaltou mãe e filho, que nunca o haviam ouvido levantar a voz:
- É da minha mãe! Está viva! - e mais não disse, porque se lhe embargou a garganta.
A Marcel pouco lhe interessou a notícia. Teria preferido que se materializasse um dos seus extraterrestres, em vez da avó, desinteresse que logo desapareceu quando lhe comunicaram a novidade da viagem que faria. A partir desse momento, tudo e todos se concentraram nos preparativos da viagem que empreenderiam para encontrar Carme. Fora um ir e vir de cartas sem parar, e de telegramas que se cruzavam em pleno ar, fora o exercício de concertar as aulas agendadas de Roser com o trabalho de Victor no hospital. De Marcel ninguém se ocupou. Para ver aquela avó que ressuscitara da morte e do desaparecimento, bem poderia perder o ano escolar, se necessário fosse. Viajaram numa companhia aérea peruana, fazendo escala em cinco cidades, até que chegaram a Nova Iorque, e dali a França de barco, de Paris a Toulouse de comboio, e de Toulouse a Andorra de autocarro, através de uma estrada que serpenteava como um réptil entre montanhas. Nenhum dos três voara anteriormente, e a experiência serviu para revelar a única fraqueza que se conheceu a Roser durante toda a sua vida: o pânico das alturas. Em circunstâncias normais, por exemplo, assomar à varanda do último andar de um arranha-céus, disfarçava a sua acrofobia com o mesmo estoicismo com que suportava todos os incómodos e todas as dificuldades da vida. "Peito às balas e cara alegre!", era o seu lema. Mas no avião, em pleno ar, foi diferente: falharam-lhe os nervos e a têmpera. O filho e o marido tiveram de a distrair e animar, e de lhe dar as mãos, e de ampará-la de cada vez que vomitava tomada de náuseas, durante as incontáveis horas de voo, e fazê-la descer do avião em braços, porque quase não era capaz de se ter nas pernas. Ao chegarem a Lima, segunda paragem depois de Antofagasta, Victor achou Roser tão debilitada que decidiu enviá-la por terra de regresso a casa e continuar a viagem com Marcel, mas ela disse-lhe, encarando-o com a sua habitual inexorabilidade:
- Eu vou até ao fim! Se for preciso, irei a voar até ao Inferno! Eu vou e não se fala mais no assunto!
E assim prosseguiu até Nova Iorque, tremendo de medo e vomitando continuamente em saquinhos de papel. Para ela isto consistia numa espécie de treino. Tornava-se-lhe claro que, em se concretizando o seu projeto da orquestra de música antiga, outro remédio não teria senão viajar de avião com frequência.
Carme esperava-os na estação de autocarros de Andorra La Vella, sentada num banco, direita como sempre, a fumar como sempre, vestida de luto pelos mortos, pelos desaparecidos e por Espanha, envergando um extravagante chapéu, e com uma bolsa no regaço, da qual sobressaía a cabeça de um cãozito branco. Não foi difícil reconhecerem-se, pois nenhum dos três mudara muito durante aqueles dez anos de separação. Roser continuava a mesma de outrora, mas adotara um estilo próprio, e Carme sentiu-se um pouco intimidada ante aquela súbita aparição bem vestida, maquilhada e segura de si. Vira-a pela última vez numa noite terrível, grávida, exausta e tremendo de frio, abrigada sob a cobertura impermeável de uma motocicleta. Só Victor se emocionou até às lágrimas. As duas mulheres cumprimentaram-se com um beijo como se se tivessem visto no dia anterior e como se a guerra e o exílio não passassem de episódios insignificantes nas suas pacíficas existências.
- E tu deves ser Marcel... Eu sou a tua avó. Tens fome? - e sem esperar resposta, estendeu-lhe uma arrufada que tirara daquela bolsa inacreditável, onde tudo parecia caber e coexistir.
Marcel, extasiado, examinava-lhe a geografia das rugas, os dentes amarelecidos pelo fumo, o cabelo grisalho que como palha seca e hirsuta lhe despontava do chapéu, e os dedos artríticos e retorcidos, pensando que, se aquela avó surgida do nada tivesse um par de antenas na cabeça, poderia passar perfeitamente por um dos seus marcianos de estimação.
Um táxi com uns vinte anos levou-os aos solavancos por uma cidade que se aninhava entre montanhas, e que, segundo Carme, era a capital da espionagem e do contrabando, praticamente as únicas atividades rentáveis naquele tempo. Ela dedicava-se à segunda, pois para singrar na espionagem impunha-se ter bons contactos com os americanos e com as principais potências europeias. Distavam quatro anos do fim da Segunda Guerra Mundial. As cidades devastadas iam recuperando lentamente das vagas da fome e dos escombros, mas havia ainda massas de refugiados e de desterrados que procuravam um poiso no novo mundo. Explicou-lhes que Andorra fora um vespeiro de espionagem durante a Segunda Guerra, e que, finda esta e iniciada a Guerra Fria, continuava a sê-lo. Fora uma via de escape para os que fugiam dos alemães, principalmente para os judeus e para os prisioneiros evadidos, que por vezes eram traídos pelos guias e terminavam os seus dias fuzilados ou entregues ao inimigo para que estes se pudessem apropriar do dinheiro ou das jóias que os infelizes levassem consigo.
- Há por estas bandas muitos pastores que enriqueceram... e todos os anos, durante o degelo, continuam a aparecer cadáveres com os pulsos amarrados por arames - informou-os o condutor do táxi, que também intervinha na conversa.
Depois da guerra, passaram por Andorra muitos oficiais alemães e simpatizantes dos nazis, fugindo para paradeiro incerto na América do Sul, ou ansiosos por chegarem a Espanha, onde, pensavam, contariam com a ajuda de Franco.
- Quanto ao contrabando, são apenas bagatelas, álcool, tabaco e outras ninharias do género. Nada de importante! - elucidou-os Carme.
Instalados na rústica casa que Carme partilhava com o casal de camponeses que lhe salvara a vida, frente a uma travessa de um suculento estufado de coelho com grão-de-bico e a dois jarros de vinho tinto, ali ficaram, contando os episódios da última década. Durante a retirada, quando a avó decidira que as suas escassas forças não lhe permitiriam prosseguir, e de que a perspetiva do exílio lhe seria intolerável, abandonara Roser e Aitor Ibarra para se deixar morrer de frio, durante a noite, longe da vista deles.
Contrafeita, amanheceu no dia seguinte, enregelada, mas muito mais viva do que desejara. Deixou-se ficar por ali, enquanto a massa de fugitivos avançava penosamente, dei-xando-a para trás, e se tornava cada vez menos numerosa, até que, ao anoitecer, se encontrou completamente só, sobre aquela terra exangue, enrolada como um verme. Não se lembrava do que sentira, explicou, mas soube que morrer seria difícil, e chamar a morte... uma covardia. O seu marido estava morto, e talvez também o estivessem os dois filhos, mas ainda havia Roser e a criança de Guillem... e por eles decidiu que valia a pena lutar e manter-se viva. Tentou levantar-se e prosseguir o caminho, mas faltaram-lhe as forças. Aproximou-se dela um cachorro que andava por ali a farejar em busca de restos que houvessem deixado os refugiados, e Carme permitiu que o bicho se aninhasse ao seu lado para juntos se aquecerem. Aquele animal fora a sua salvação. Uma ou duas horas mais tarde, um casal de camponeses que andara a vender os seus produtos aos fugitivos retardados, ouvindo os ganidos do cão, confundira-os com um choro de criança. Assim encontraram Carme e prestaram-lhe auxílio. Ficou a viver com eles, trabalhando arduamente a terra e subsistindo com o pouco que esta lhes dava, até que o mais velho dos filhos do casal os levou para Andorra. Ali passaram a guerra, contrabandeando entre Espanha e França, um pouco de tudo, incluindo pessoas, quando as havia dispostas.
- É este o cão, avó? - perguntou Marcel, referindo-se ao cão que lhe repousava nos joelhos.
- Sim. É este. Tem onze anos, e ainda vai viver outros tantos. Chama-se Gosset.
- Isso não é um nome! É "cãozinho" em catalão!
- Esse nome basta. Não precisa de mais nenhum! - replicou-lhe a avó, por entre duas fumaças do cigarro.
Haveria de passar-se um ano até que Carme aceitasse emigrar para o Chile, para junto da única família que lhe restava. Como nada sabia sobre o Chile, aquele verme comprido que se espreguiçava lá a sul dos mapas, pôs-se a investigar em livros e a sondar por aqui e por ali, se acaso alguém conhecia algum chileno a quem perguntar, mas nenhum passou por aquelas paragens nessa época. Retinham-na a amizade que cultivara com os camponeses seus salvadores, e com quem vivera e convivera todos aqueles anos, e o sobressalto que lhe provocava ter de percorrer meio planeta em busca do desconhecido, e ainda por cima na companhia de um cão já tão velho. Temia não gostar do Chile.
- Segundo o tio Jordi, é quase igual à Catalunha... - tranquilizou-a Marcel, numa das cartas que trocavam.
Uma vez tomada a decisão, despediu-se dos amigos, respirou fundo e abstraiu-se das preocupações e dos temores, disposta a desfrutar daquela inesperada aventura. Viajou por mar durante sete semanas, sem problemas de maior, com o cão numa bolsa, sem pressa, reservando-se tempo para um pouco de turismo, para conhecer e apreciar outras paisagens e outras línguas, para provar comidas exóticas, e para comparar com a sua novas culturas e novos costumes. Dia a dia, ia-se afastando do passado para se adentrar numa nova dimensão. Nos seus tempos de professora, aprendera e ensinara o mundo e as coisas do mundo, e agora comprovava que nada se parecia às descrições dos textos nem às fotografias. Tudo era muito mais complexo e colorido, mas menos distante e temível. Comentava com o bicho as impressões que ia recolhendo da viagem, e anotava tudo num velho caderno escolar, não fosse a memória falhar-lhe mais tarde. Ciente de que a vida é como que é, e, a seu modo, igual em toda a parte, embelezava cada feito e cada gesto. Para quê perder tempo a narrar trivialidades? A última etapa da sua epopeia foi a travessia do Pacífico, que a sua família fizera em 1939. Victor enviara-lhe dinheiro para que comprasse uma passagem de primeira classe, com o argumento de que Carme bem a merecia, depois de uma vida de tantas dificuldades, mas ela preferira viajar em classe turística, onde estaria mais à vontade. A guerra e o seu ofício de contrabandista tinham-na tornado numa mulher discreta, mas decidiu meter conversa com as pessoas que ia encontrando e conhecendo, pois dizia-lhe a experiência que a generalidade das pessoas gosta de conversar, e descobrira que uma ou duas frases bastam para fazer amigos e para compreender mais coisas do mundo. Cada um carrega às costas a sua história e a vontade de a contar.
A Gosset, que padecia dos inevitáveis achaques da idade, a viagem foi-o rejuvenescendo, e ao chegarem ao Chile parecia outro cão, mais desperto e sem aquele cheiro de cão velho de antes. Victor, Roser e Marcel foram esperá-los ao porto de Valparaíso. Acompanhava-os um cavalheiro rechonchudo e tagarela que se apresentou como Jordi Moliné...
- Ao seu dispor, senhora! - e acrescentou em catalão que estava disposto a mostrar-lhe o melhor daquele país. - Sabe que somos quase da mesma idade... eu também sou viúvo -concluiu, com certa galanteria.
Já no comboio que os levava a Santiago, Carme inteirou-se do papel de tio-avô improvisado que desempenhava Moliné e de como o neto ia diariamente à sua taberna, onde fazia os deveres, para não ficar sozinho em casa. Victor já não trabalhava à noite no Winnipeg. Era cardiologista no San Juan de Dios. Roser também por lá passava cada vez menos amiúde, mas supervisionava à distância a contabilidade, agora a cargo de um contabilista reformado que tomara entre mãos a tarefa em troca de comida, bebida e de companhia.
Carme reencontrara a sua família graças ao zelo de Elisabeth Eidenbenz, que se havia instalado em Viena, por inteiro absorta na missão que sempre lhe orientara a vida: ajudar mulheres e crianças. A cidade fora ferozmente bombardeada, e quando ela ali chegara, pouco depois que terminara a guerra, a população faminta escavava no lixo em busca de alimento, e centenas de crianças viviam como ratos entre os escombros daquela que fora, em tempos, a mais bela das cidades imperiais. Elisabeth concretizara o seu projeto de criar uma maternidade-modelo no palacete abandonado de Elne, onde acolhia mulheres grávidas, para que pudessem dar à luz em segurança e com todas as condições. Se bem que num primeiro plano a maternidade se destinasse a acolher refugiadas espanholas, provenientes dos campos de refugiados franceses, ali acorriam também judias, ciganas e outras mulheres, por uma ou outra razão, perseguidas pelos nazis. Com o apoio da Cruz Vermelha, a maternidade de Elne devia abster-se de prestar auxílio a refugiados políticos, mas a não-observância desta diretiva valeu a Elisabeth que, em 1944, a Gestapo a encerrasse. Conseguira, nesse espaço de tempo, salvar mais de seiscentas crianças.
Em Andorra, Carme conhecera casualmente uma dessas afortunadas mães, que lhe contara como graças a Elisabeth pudera dar à luz e ter o seu filho. Então, Carme relacionou o nome daquela enfermeira com o contacto a que, uma vez transposta a fronteira, deveriam recorrer para se reunir. Escreveu para a Cruz Vermelha e, de gabinete em gabinete, de país em país, tenazmente vencendo os muros da burocracia, e percorrendo de cá para lá a Europa em várias e sucessivas direções, conseguiu, por fim, localizar Elisabeth em Viena. E foi assim que, ainda através de carta, esta a informou de que pelo menos um dos seus filhos, Victor, se encontrava vivo; que casara com Roser; que tinha um filho chamado Marcel e que os três haviam emigrado para o Chile.
Não sabia, contudo, como localizá-los. Roser escrevera à família que a acolhera aquando da saída de Argelès-sur-Mer. Não fora tarefa fácil encontrar os quakers, que atualmente viviam em Londres. Depois de remexerem no sótão, lá acabaram por descobrir a única direção de Roser de que dispunham: a morada de Felipe del Solar, em Santiago. E assim, ainda que com um atraso de vários anos, Elisabeth Eidenbenz conseguiu cumprir o prodígio de fazer com que os Dalmau se reencontrassem.
Em meados da década de sessenta, a convite de Valentín Sánchez, Roser viajou para Caracas. O ex-embaixador da Venezuela no Chile, já reformado da carreira diplomática, dedicava-se por inteiro à sua paixão pela música. Naqueles vinte e cinco anos transcorridos desde a chegada a bordo do Winnipeg, Roser fizera-se tão chilena como qualquer nascido naquele país, como, aliás, sucedera com a maior parte dos espanhóis que ali haviam chegado nas mesmas circunstâncias, os quais não só se tinham tornado cidadãos chilenos de pleno direito, como, nalguns casos, haviam mesmo cumprido o sonho de Pablo Neruda, e tinham agitado a modorra da sociedade. Já ninguém se lembrava de que, quando se começara a projetar a ideia da imigração para o Chile, uma parcela da opinião pública se opusera firmemente, e todos eram unânimes quanto à magnífica contribuição com que aqueles refugiados tinham enriquecido o Chile. Roser e Valentín Sánchez, depois de muitos planos, de muita correspondência e de sucessivas viagens, conseguiram fundar a primeira Orquestra de Música Antiga do Continente Sul-Americano, patrocinada pelo petróleo, o inesgotável tesouro que o solo venezuelano expelia aos borbotões. Enquanto ele percorria a Europa para adquirir os instrumentos indispensáveis e para resgatar do esquecimento partituras desconhecidas, ela formava os futuros músicos, recrutados mediante estritos critérios de seleção, por ela promovidos, graças à sua posição de vice-diretora da Escola de Música de Santiago. Muitos candidatos de diversos países ali chegavam na esperança de tomarem parte daquela utópica orquestra. No Chile, faltavam os meios para levar a bom termo tão grande empreendimento. Outras prioridades se erguiam em matéria cultural e, das poucas ocasiões em que Roser conseguiu despertar e suscitar interesse no projeto, acontecia um terramoto ou uma súbita mudança de Governo que tudo adiava ou lançava por terra. Mas na Venezuela, com os contactos e influências certas, todos os projetos e sonhos eram possíveis. E isso tinha de sobra Valentín Sánchez. Ao longo dos anos, fora um dos poucos políticos capazes de pairar habilmente entre ditaduras, golpes militares, tentativas de implantação de regimes democráticos e o atual Governo, de tendência moderada e presidido por um seu amigo pessoal. O seu país via-se a braços com uma guerrilha de inspiração cubana, como, aliás, sucedia na maior parte dos países do continente sul-americano, menos no Chile, onde começava a tomar forma um movimento revolucionário de vertente mais teórica do que prática. Nada disso, porém, afetava a prosperidade do país, nem o amor e o culto dos venezuelanos pela música, por mais antiga que fosse. Valentín Sánchez deslocava-se com bastante frequência a Santiago, de tal forma que ainda ali possuía um apartamento que mantinha habitável e disponível para o que desse e viesse. Roser também o visitava em Caracas, e juntos tinham percorrido a Europa para tratarem de assuntos concernentes à orquestra. Aprendera a superar os seus medos e a andar de avião, recorrendo a uma mistura de narcóticos, de tranquilizantes e de gin.
Essa amizade não inquietava Victor Dalmau, porque Valentín era abertamente homossexual, mas, ainda assim, intuía a existência de um amante secreto. De cada vez que Roser regressava da Venezuela, voltava rejuvenescida, trazia sempre roupa nova, uma fragrância de odalisca e uma jóia discreta, como um coração de ouro ao pescoço numa corrente fina, algo que ela nunca compraria para si própria, uma vez que era dotada de um espírito profundamente espartano em tudo quanto dizia respeito a gastos pessoais. Mas, para Victor, o mais revelador de tudo era a sua renovada paixão e ardor, como se quisesse experimentar com ele alguma nova acrobacia ou divertimento aprendido nos braços de outro homem, ou simplesmente para expiar a culpa. Naquelas circunstâncias, e tendo em conta a relação liberal que os unia, tão liberal que ele a definia como uma camaradagem, qualquer assomo de ciúmes seria ridículo. Comprovou como mais uma vez Carme estava certa quando dizia: "Os ciúmes picam mais do que as pulgas". Roser, contudo, sentia-se bem no papel de esposa. Nos tempos em que ainda eram pobres, e quando estava apaixonado por Ofélia del Solar, Victor comprara, a prestações mensais, e sem que disso lhe desse prévio conhecimento, duas alianças de casamento, e exigira-lhe que ambos as usassem até se poderem divorciar. De acordo com o compromisso que estabeleceram, em que a verdade e só a verdade valia, Roser sabia que deveria contar a Victor da existência de um amante, mas sustentava que por vezes mais valia uma omissão piedosa do que uma verdade que a ninguém beneficiaria. Naturalmente Victor deduziu que, se Roser aplicava este princípio nos mais simples preceitos do dia a dia, por maioria de razão, procederia de igual modo, mais a mais quando o assunto em questão era uma infidelidade. Tinham-se casado por um critério de conveniência e de necessidade, mas facto era que já estavam juntos há vinte e seis anos e que gostavam um do outro com algo mais do que a tranquila resignação, por exemplo, patente naqueles matrimónios arranjados que se celebravam na índia. Marcel há muito cumprira os dezoito anos, e aquela data de aniversário, que marcaria o fim do compromisso, apenas veio comprovar o carinho mútuo que os unia e o tácito propósito de ambos continuarem casados por mais algum tempo, na esperança de que, de adiamento em adiamento, nunca chegassem a separar-se realmente.
Com o decurso do tempo, iam adquirindo os gostos e as manias um do outro, ainda que preservassem bem definidas as formas de ser de cada um. Tinham poucos motivos de zanga e quase nunca discutiam. Estavam de acordo em praticamente tudo, e sentiam-se tão confortáveis e completos com a presença próxima do outro, tão à vontade com a companhia um do outro, como se estivessem sozinhos. Conheciam-se tão profundamente que até fazer amor era um bailado simples e natural, que os deixava plenamente satisfeitos. Não se tratava de mais um gesto de rotina, pois ela rapidamente se teria aborrecido se assim fosse. A mulher que se abria nua sobre o leito era bem diferente da Roser sóbria, discreta e elegante que se apresentava nos palcos, ou quando no seu papel de professora de música. Haviam vivido e passado por muitos altos e baixos até terem alcançado aquela plácida existência da idade madura, já sem problemas económicos ou emocionais. Viviam sós, porque quando Gosset morrera, muito velho, cego e surdo, mas completamente lúcido, Carme se mudara para a casa de Jordi Moliné, e Marcel fora morar com dois amigos com quem dividia um apartamento. Formara-se em engenharia de minas e era funcionário da indústria do cobre, contratado pelo Governo. Não herdara uma partícula sequer do talento musical da mãe ou do avô, nem o temperamento aguerrido do pai, ou a inclinação para a medicina de Victor, ou a vocação para ensinar da avó Carme, que, aos oitenta e um anos era ainda professora numa escola:
- Que gostos tão estranhos tens, Marcel... Por que raio é que te interessam tanto as pedras? - perguntou-lhe a avó assim que soube a profissão que ele escolhera.
- Porque não respondem nem dão opiniões.
* * *
A relação fracassada com Ofélia del Solar deixou em Victor um sentimento de raiva surda e persistente que o acompanhou por um par de anos e que acabou por aceitar como a justa expiação por se ter portado como um idiota ao ter-se apaixonado por aquela jovem inexperiente, sabendo de antemão que não era um homem livre e que carregava às costas a responsabilidade de uma mulher e de um filho. Mas isso ocorrera já há muitos anos. Desde então, a ardente nostalgia que lhe deixara aquele amor foi-se esvaindo no limbo da memória em que as lembranças sempre se vão esbatendo e esboroando. Acreditava ter aprendido uma lição, ainda que o seu significado profundo, lido como um todo, lhe permanecesse no pensamento como um confuso e intrincado enigma. Fora a sua única distração amorosa em muitos anos, pois vivia submerso na exigência contínua do trabalho. Os encontros esporádicos com uma ou outra enfermeira complacente não contavam. Ocorreram raras vezes, quase sempre durante um dos períodos de urgência no hospital. Esses abraços esquivos e furtivos nunca chegaram a constituir um entrave, uma vez que careciam de passado e de futuro e se esqueciam em poucas horas. O sólido afeto que nutria por Roser era a âncora da sua existência.
Em 1942, pouco tempo depois de Victor ter recebido a definitiva carta de Ofélia, quando mantinha ainda a ilusão de poder reconquistá-la, ainda que sabendo que tal equivaleria a verter sal numa ferida por cicatrizar, Roser decidiu que ele carecia de uma cura drástica para sair daquele estado de ensimesmamento, e uma noite, sem aviso nem convite, meteu-se-lhe na cama, tal como fizera anos antes com o seu irmão. Aquela, pensava, fora a melhor decisão da sua vida, porque tivera como resultado Marcel. Nessa noite, contava surpreender Victor, mas apercebeu-se de que ele a esperava. Não se sobressaltou quando a viu transpor-lhe o umbral do quarto meio despida e com o cabelo solto; simplesmente se moveu na cama de forma a deixar-lhe espaço e a acolheu no seu abraço com uma naturalidade de marido. E assim estiveram, brincando e retouçando, boa parte da noite, conhecendo-se biblicamente, com pouca destreza, mas com bom humor, ambos conscientes de que desejavam a chegada daquele momento desde os precários instantes a sós vividos no bote salva-vidas do Winnipeg, quando nada mais faziam do que conversar castamente e em sussurros, enquanto da parte de fora outros casais aguardavam a sua vez para o amor. Não se lembraram nem de Ofélia nem de Guillem, cujo fantasma omnipresente os acompanhara durante a travessia, mas que no Chile se deixara absorver pelas novidades e pelas mudanças e que gradualmente se retirara para um compartimento discreto do coração de ambos, e ali permanecia sem importunar ninguém. Desde essa noite, passaram a dormir juntos. O orgulho impedia Victor de espiar Roser ou de partilhar com ela as suas suspeitas. Não relacionou aquela dúvida com as dores de estômago que o atormentavam, atribuindo-as a uma úlcera, mas nada fez para confirmar ou esclarecer o diagnóstico, a não ser ingerir leite de magnésio em quantidades alarmantes, para minorar o mal-estar. O sentimento que nutria por Roser era tão distinto da paixão estouvada que o assolara relativamente a Ofélia que haveria de suportar mais de um ano de mortificante tortura antes de saber dar-lhe um nome. Para se distrair dos ciúmes, refugiava-se no estudo e nas doenças dos seus pacientes. Tinha de estar sempre em dia em relação aos avanços da medicina, que se verificavam a uma velocidade vertiginosa, falando-se inclusivamente na futura possibilidade de transplantar um coração humano. Dois anos antes, no Mississipi, tinham conseguido transplantar o coração de um chimpanzé para um moribundo, e, ainda que o paciente sobrevivesse apenas noventa minutos após a cirurgia, o experimento serviu para elevar à categoria de milagres as possibilidades oferecidas pela ciência médica. Victor, tal como sucedia com milhares de outros médicos, desejava realizar essa proeza, mas com um coração humano. Desde que entre os dedos sustivera o coração de Lázaro, ficara fascinado por aquele órgão incrível.
A não ser pelo trabalho e pelo tempo consagrado ao estudo, a que votava toda a sua energia, Victor atravessava um dos seus períodos melancólicos.
- Andas muito ausente, filho - disse-lhe Carme durante um dos almoços dominicais da família, na casa de Jordi Moliné.
Ali falavam em catalão, mas Carme mudava para o espanhol sempre que Marcel estava presente, pois, aos vinte e sete anos, o neto persistia em se negar a falar o seu idioma de origem.
- A avó tem razão, papá. Pareces meio atordoado! O que se passa contigo? - perguntou-lhe Marcel.
- Sinto falta da tua mãe - respondeu Victor, num impulso. Isso foi uma revelação para ele. Roser estava na Venezuela para uma série de concertos, que a Victor parecia sucederem-se cada vez com mais frequência. Ficou a pensar no que acabara de dizer, pois, até o ter verbalizado, não tivera consciência real do quanto gostava de Roser. Eles os dois, que de tudo e sobre tudo falavam sem tabus ou constrangimentos, nunca haviam dito em palavras as coisas do amor, por um inexplicável pudor... Que necessidade havia de andar a alardear e a tagarelar sobre sentimentos, se bastava demonstrá-los? Se estavam juntos era porque gostavam um do outro. Para quê dar mais voltas àquela verdade tão simples?
Um ou dois dias mais tarde, enquanto ruminava a ideia de surpreender Roser com uma declaração formal e oferecer-lhe o anel de noivado que deveria ter-lhe dado há muitos anos, ela regressou sem aviso a Santiago, e os planos que vinha cultivando viram-se indefinidamente adiados. Regressara roçagante como nas viagens anteriores, com aquele ar de plena satisfação que tantas suspeitas despertava no marido, trajando uma minissaia aos quadrados pretos e vermelhos, como um avental de cozinha, que em nada parecia condizer com a sua personalidade discreta.
- Não te parece demasiado curta para a tua idade? - perguntou-lhe Victor, em lugar das eloquentes frases que com tanto esmero preparara.
- Tenho quarenta e oito anos, Victor, mas sinto-me como se tivesse vinte - respondeu-lhe, satisfeita.
Era a primeira vez que cedia às tendências da moda. Até então mantivera-se fiel ao seu estilo, que quase não sofrera alterações com o passo do tempo. A sua desafiante atitude convenceu Victor de que seria preferível manter as coisas como estavam e evitar o risco de um confronto que poderia ser doloroso, ou, quem sabe, definitivo.
Inteirou-se só muitos anos mais tarde, quando o assunto era já irrelevante, que o amante secreto de Roser fora o seu amigo Aitor Ibarra. Essa relação feliz e esporádica, porque apenas se encontravam quando Roser se deslocava à Venezuela, no restante tempo não se comunicando de nenhuma forma, durou sete anos. Começou aquando do primeiro concerto da Orquestra de Música Antiga, que fora considerado o grande acontecimento cultural do momento em Caracas. Aitor leu sobre o concerto nos jornais e, vendo o nome de Roser Bruguera, pensou que seria demasiada coincidência que se tratasse da mesma Roser, aquela mulher grávida com quem há tantos anos cruzara os Pirenéus. Ainda assim, decidiu comprar um bilhete para o espetáculo. A orquestra apresentou-se na Aula Magna da Universidade Central ao seu melhor nível, com as suas estruturas flutuantes de Calder e a melhor acústica do mundo. No centro do palco, dirigindo os músicos compenetrados nos seus preciosos instrumentos, alguns dos quais até então desconhecidos do público, Roser parecia muito pequena. Aitor observava-a através de uns binóculos, e o único traço que lhe reconheceu foi o carrapito em que prendia o cabelo, o mesmo que usava na juventude. Qualquer dúvida que ainda o habitasse dissipou-se assim que ela se voltou para receber o aplauso da plateia, mas a ela custou-lhe bem mais reconhecê-lo quando se apresentou no seu camarim, porque já não restava muito do jovem magro, sempre atento e de espírito brincalhão que lhe salvara a vida. Havia-se tornado num próspero empresário, de gestos pausados e com uns quilos a mais, com pouco cabelo e um farto bigode. De antanho, apenas conservava o olhar faiscante e alerta. Estava casado com uma mulher esplêndida que fora, em seu tempo, Rainha de Beleza. Tinha quatro filhos, uma mão-cheia de netos, e fizera fortuna. Chegara à Venezuela com uns magros quinze dólares no bolso. Ali fora acolhido por familiares, e dedicara-se a fazer o que melhor sabia: reparar automóveis. Logo abriu uma oficina mecânica, e em pouco tempo tinha sucursais em várias cidades; daí ao negócio de carros antigos para colecionadores foi apenas um passo. Era o país ideal para uma mente visionária e para um espírito empreendedor como o de Aitor.
- Aqui as oportunidades caem das árvores como as mangas maduras - contou a Roser.
Foram sete anos de paixão intensa, quer nos sentimentos em abstrato quer na expressão física dos mesmos. Costumavam passar dias inteiros fechados num quarto de hotel, fazendo amor como adolescentes, mortos de riso, com uma garrafa de vinho branco do Reno, pão e queijo, maravilhados pela afinidade intelectual e por aquele inesgotável desejo que partilhavam, pela primeira e única vez nas suas vidas... porque nem antes nem depois voltariam a sentir algo que se lhe assemelhasse. Encontraram um patamar seguro e estanque, secreto na vida de ambos, onde conseguiram manter resguardado aquele amor, sem beliscar os seus casamentos felizes. Aitor respeitava e estimava a sua deslumbrante mulher tanto como Roser em relação a Victor. Desde o início, quando quase perderam a cordura ante aquele súbito e arrebatador enamoramento, logo decidiram que o único futuro possível para essa tremenda atração seria sempre mantido na clandestinidade. De forma alguma pretendiam que tal sentimento causasse mágoa às suas famílias, nem que lhes voltasse de cabeça para baixo o mundo que tão laboriosamente haviam arquitetado. Assim fizeram durante esses benditos sete anos, e por muito mais tempo assim continuariam, se uma embolia cerebral não tivesse paralisado Aitor, condenando-o à imobilidade e a depender dos cuidados da mulher. Victor nada disto soube, até que certa vez Roser lho contou.
Victor voltou a ver Pablo Neruda por várias vezes, de longe, em aparições públicas, ou em casa do senador Salvador Allende, com quem se reunia de quando em vez para jogar uma partida de xadrez. Também foi convidado para diversos encontros em casa do poeta, em Isla Negra, uma moradia orgânica, com ar de navio encalhado, concebida numa arquitetura alucinada, empoleirada num promontório sobre o mar. Era o seu porto de escrita e de inspiração. "O mar do Chile. Aquele mar tremendo, com os seus eternos barcos esperando, com as suas torres de espuma branca e negra, os seus pescadores litorâneos, educados na arte da paciência... aquele mar natural, torrencial, infinito..." Ali vivia com Matilde, sua terceira mulher, na companhia da louca profusão dos objetos que colecionava, desde empoeiradas garrafas, que adquiria nas feiras de velharias, até carantonhas de proas de barcos naufragados. Ali recebia dignitários do mundo inteiro que vinham cumprimentá-lo e trazer-lhe convites, políticos locais, jornalistas e intelectuais, mas sobretudo amigos íntimos, entre os quais vários refugiados do Winnipeg. Era uma celebridade, já então traduzido em quanto idioma se falava sobre a Terra. Já nem os seus piores adversários eram capazes de lhe negar o poder mágico dos versos que escrevia. Amante da boa vida, tudo quanto o poeta desejava era poder escrever sem pausa, cozinhar para os amigos e que o deixassem tranquilo e em paz. Mas nem sequer naquela recôndita escarpa em Isla Negra isso era possível. Gente de todo o género vinha bater-lhe à porta a recordar-lhe que ele, conforme a si mesmo se definia, era a voz dos povos sofridos. Assim lhe chegaram um dia os seus camaradas de partido, a exigir que fosse o seu representante na campanha para as eleições presidenciais. Salvador Allende, o mais idóneo candidato da esquerda, por três vezes concorrera e por três vezes perdera: dele se dizia que estava marcado pela má estrela, de forma que o poeta se separou dos seus cadernos e percorreu de ponta a ponta o país, ora de automóvel, ora de camioneta, ora de comboio, confraternizando com o povo e recitando os seus poemas, acompanhado por um coro de camponeses, trabalhadores, pescadores, ferroviários, mineiros, estudantes e artesãos, que vibravam, enfeitiçados pelo magnetismo da sua voz. Serviu-lhe isto para dar um novo impulso à sua poesia combativa e para compreender que não nascera para as lides da política. Mal lhe foi possível, retirou-se em favor de Salvador Allende, que, contra ventos e tempestades, acabou por encabeçar uma coligação de partidos de esquerda: a União Popular. Neruda apoiou-o e auxiliou-o durante a campanha.
Então foi a vez de Allende percorrer de comboio o país de norte a sul, exaltando as multidões que se juntavam em cada estação para o verem e ouvirem, com os seus discursos inflamados, ora em vilarejos calcinados pela areia e pelo sol, ora em povoações envoltas em chuvas eternas. Victor Dalmau acompanhou-o em várias ocasiões, oficialmente na qualidade de médico, mas, no fundo, como companheiro de xadrez, única distração que Allende se permitia, já que no comboio não havia exibições de westerns, sua outra forma de aliviar a tensão. Era de tal forma enérgico, determinado e insone que os seus correligionários mal o conseguiam acompanhar, tendo de fazer turnos. Victor assumiu o turno das horas mais tardias da noite, em que o candidato, extenuado, precisava de se abstrair do ruído e do bulício das multidões e da sua própria voz, mediante a concentração de uma partida de xadrez que, por vezes, se estendia até ao amanhecer ou ficava pendente para a noite seguinte. Allende dormia muito pouco. Ia aproveitando uns sonos rápidos, uns dez minutos aqui e ali, onde cabeceava um pouco, sentado num qualquer recanto, para ressuscitar em seguida, fresco como uma alface, como se acabado de sair de um banho revigorante. Caminhava erguido e de peito cheio, disposto ao combate. Falava com voz de ator e com uma eloquência de predestinado. Era comedido nos gestos, ágil de pensamento e irredutível nas suas convicções. Durante a sua carreira política, chegou a conhecer o Chile como a palma das próprias mãos, e jamais duvidou da possibilidade de se conseguir uma revolução pacífica: a via chilena para o socialismo. Alguns dos seus partidários, inspirados no modelo da revolução cubana, argumentavam que não seria possível encetar uma revolução nos moldes protagonizados por Allende, e, simultaneamente escapar do imperialismo norte-americano. Tal só poderia levar-se a cabo, segundo eles, através da luta armada, mas para Allende, essa via revolucionária enquadrava-se perfeitamente no modelo e nos moldes da democracia chilena, cuja constituição respeitava. Acreditou até ao final que tudo era uma questão de denunciar, explicar, propor e convocar à ação, para que, a esse chamamento, os trabalhadores se erguessem e tomassem em mãos próprias as rédeas do seu destino. Político experimentado, conhecia também de sobra o poder dos seus adversários.
Em público, caracterizava-se, por vezes, pelo uso de uma certa pompa, que os seus inimigos gostavam de interpretar como arrogância, mas em privado era simples e divertido. Era profundamente leal à palavra dada. Incapaz de imaginar uma traição... e isso acabou por perdê-lo.
A Guerra Civil Espanhola apanhou Victor Dalmau ainda muito jovem. Pelos republicanos lutou e trabalhou incansavelmente, e isso custara-lhe o exílio. Aceitara a ideologia do lado que escolhera sem a questionar e sem vacilar. No Chile, absteve-se de qualquer atuação ou participação em partidos políticos, como fora imposto aos refugiados do Winnipeg, mas a amizade com Salvador Allende foi-lhe definindo e moldando o pensamento com a mesma clareza e com a mesma retidão com que a Guerra Civil lhe formara os sentimentos. Victor admirava-o no plano político, e também, ainda que com algumas reservas, no plano pessoal. A imagem de líder socialista de Allende não condizia com os seus hábitos burgueses: a sua propensão para vestir bem e usar roupa de qualidade, o seu refinado gosto em se fazer rodear de objetos únicos, que possuía graças aos presentes espontâneos de Governos de outros países, quer de quantos destacados artistas vicejavam na América Latina: quadros, esculturas, manuscritos originais, manipansos pré-colombianos, tudo o que haveria de desaparecer na rapinagem que sobreveio ao seu último dia de vida. Era suscetível ao elogio e às mulheres belas. Era capaz de as perceber no meio da multidão de um único olhar, e atraía-as com a sua personalidade carismática e com a sua privilegiada posição de poder. A Victor desagradavam-lhe estas fraquezas, que apenas numa ocasião comentou com
Roser.
- Que embirrento és, Victor... Allende não é nenhum Gandhi! - replicou ela.
Ambos votaram nele nessas eleições, não acreditando que fosse eleito. Até o próprio Allende duvidava, mas o certo é que em setembro obteve mais votos que os outros candidatos. Em caso de não se verificar uma maioria absoluta, o Congresso deveria decidir entre os dois candidatos com maior votação. Os olhos do mundo inteiro voltaram-se então para o Chile, aquela mancha que se alongava nos mapas e que desafiava todas as convenções.
Os partidários da utópica revolução socialista, feita partindo de uma conjuntura democrática, não esperaram pela decisão do Congresso. Acorreram em massa à rua a festejar e a partilhar aquele triunfo tão longamente aguardado. Famílias inteiras, desde avós a netos, vestindo os seus trajes domingueiros, saíram em peso, eufóricos e cantando, extasiados mas ordeiros, como se, de uma só vez, todos, por um tácito e misterioso acordo, houvessem fundado uma nova disciplina. Victor, Roser e Marcel misturaram-se com aquela turba pacífica, agitando bandeiras e cantando que o povo unido jamais seria vencido. Carme não os acompanhou, pois aos oitenta e cinco anos já não tinha energia para tais andanças nem entusiasmo para se deixar levar por algo tão ardiloso como a política, conforme lhes comunicou. A verdade é que saía cada vez menos, inteiramente dedicada a cuidar de Jordi Moliné, que havia envelhecido, entre uma profusão de achaques e dores várias e uma crescente falta de vontade de viver e de sair de casa. Mantivera-se de espírito jovem até ter perdido o Winnipeg, que, durante os seus anos dourados, chegara a alcançar um estatuto mítico na cidade. Fechara quando demoliram todo o quarteirão onde o bar se localizava, a fim de aí construírem uns arranha-céus altíssimos, que, segundo Moliné, viriam abaixo de uma assentada com o abanão do próximo terramoto. Carme, ao contrário, continuava tão lúcida, enérgica e ativa como sempre. Diminuíra de tamanho. Era um pequeno pássaro depenado, um monte de pele e ossos, escassa de cabelo e com um sempiterno cigarro pendurado na comissura dos lábios.
Era eficiente, incansável, de modos secos, mas secretamente sentimental. Fazia sozinha todo o trabalho doméstico e velava por Jordi como se cuidasse de uma criança desamparada. Ambos haviam planeado assistir ao triunfo de Allende pela televisão, acompanhados por uma garrafa de vinho tinto e por um pouco de presunto serrano. Viram a multidão empunhando tochas e cartazes, comprovaram o entusiasmo e a esperança...
- Já vivemos isto em Espanha. Tu não estavas lá, Jordi, mas foi igualzinho em 36. Oxalá não termine tão mal - foi o único comentário a que Carme se prestou.
Depois da meia-noite, quando começava a dispersar-se a multidão, os Dalmau encontraram Felipe del Solar, inconfundível, no seu casaco de pelo de camelo, e com o seu boné de jockey de camurça cor de mostarda. Cumprimentaram-se efusivamente, como bons amigos que eram, Victor encharcado de suor e rouco de tanto gritar, e Felipe impecável e cheirando a lavanda, luzindo a elegante indiferença que cultivara por mais de vinte anos. Vestia-se em Londres, cidade a que se deslocava uma ou duas vezes por ano, e assentava-lhe bem a fleuma britânica. Estava acompanhado por Juana Nancucheo, que os Dalmau reconheceram imediatamente, pois mantinha-se exatamente igual à Juana que, em tempos já distantes, se deslocava de elétrico a sua casa para ver o pequeno Marcel.
- Não me digas que votaste em Allende! - exclamou Roser, abraçando também Felipe e Juana.
- Como é que te foi passar uma coisa dessas pela cabeça, mulher? Votei no candidato da democracia cristã, ainda que não acredite nem nas virtudes da democracia nem nas do cristianismo... mas não podia dar ao meu pai a satisfação de votar no candidato dele! Sou monárquico.
- Monárquico, homem? E eu que te tinha como o único progressista entre os trogloditas do teu clã! - exclamou Victor, divertido.
- Isso foram excessos da juventude - brincou Felipe. - O que nos faz falta aqui no Chile é um rei ou uma rainha como na Inglaterra, onde tudo é muito mais civilizado - acrescentou, enquanto puxava o cachimbo, que trazia sempre por uma questão de estilo.
- Que fazes aqui na rua, então?
- Andamos a tomar o pulso à plebe. A Juana votou pela primeira vez. Há vinte anos que foi reconhecido o direito das mulheres ao voto, e ela exerceu-o para votar na direita! Não consegui meter-lhe na cabeça que pertence ao proletariado.
- Eu voto como o seu paizinho, menino Felipe. Esta história dos maltrapilhos ao poder, como diz Dom Isidro, já a vimos antes, e a mim não me convence.
- Quando? - perguntou-lhe Roser.
- Ela refere-se ao Governo de Pedro Aguirre Cerda - esclareceu Felipe.
- É graças a esse Presidente que estamos aqui, Juana. Foi ele que permitiu que viessem os refugiados do Winnipeg... Lembra-se? - perguntou-lhe Victor.
- Já vou a caminho dos oitenta, meu jovem... mas ainda
não me falha a memória!
Felipe contou-lhes que a família vivia entrincheirada na casa da Rua Mar del Plata, aterrorizada, à espera que as hordas marxistas invadissem a zona chique da cidade. Temiam a inversão da campanha de terror que eles próprios tinham criado. Isidro del Solar estava tão certo da vitória dos conservadores que tinha planeado e organizado uma receção para celebrar o triunfo com os seus amigos e correligionários. Ainda permaneciam na casa os cozinheiros e os criados de servir contratados para a ocasião, à espera que, por um qualquer golpe divino, se alterassem os resultados eleitorais, para que pudessem servir o champanhe e as ostras. Juana fora a única que quisera presenciar em plena rua o andamento das coisas, não por qualquer simpatia política, mas por questão de simples curiosidade.
- O meu pai já anunciou que vai mudar a família para Buenos Aires, até que volte o bom senso a este país de merda, mas a minha mãe diz que daqui ninguém a tira. Diz que não consegue deixar o Bebé sozinho no cemitério.
- E o que é feito de Ofélia? - quis saber Roser, intuindo que Victor não se atreveria a perguntar.
- Perdeu esta roda-viva das eleições. Nomearam o Matias responsável pelos Negócios Estrangeiros no Equador. Já tem o estatuto de diplomata de carreira, de modo que o próximo Governo não vai pô-lo na rua. Ofélia aproveitou para estudar e frequentar o atelier do pintor Guayasamín: expressionismo selvagem... tudo a pinceladas largas. A família acha que os quadros são uns abortos, mas eu tenho uns poucos.
- E os filhos?
- Também vão assistir a este cataclismo longe do Chile.
Estão a estudar nos Estados Unidos.
- E tu decidiste ficar?
- Sim, pelo menos por agora. Quero ver como é e no que vai dar esta experiência socialista.
- Espero que resulte - disse Roser.
- Alguma vez? Achas mesmo que os americanos vão permitir que a coisa avance? Ouve bem o que te digo... este país vai a pique - respondeu Felipe.
As manifestações de comemoração produziram-se sem alterações da ordem pública, e no dia seguinte, quando os mais assustados acorreram em pânico aos bancos para levantar as suas poupanças, e começaram a comprar passagens para escapar antes que os soviéticos invadissem o país, aperceberam-se de que tudo decorria como sempre, e de que estavam a limpar as ruas como em qualquer sábado comum, e nenhum valdevinos miserável andava de porrete na mão a ameaçar as pessoas honradas. Afinal de contas, a situação não parecia tão desesperada! Uma coisa seria ter a maioria dos votos, e outra bem distinta era chegar efetivamente à presidência. Faltavam cerca de dois meses para a promulgação da decisão do Congresso... dois meses para voltarem a situação a seu favor. A tensão sentia-se no ar, e o plano para descartar Allende começava já a tomar forma. Nas semanas seguintes, um complot apoiado pelos americanos culminou com o assassínio do comandante-chefe do exército, um militar respeitador da Constituição, que convinha retirar do caminho antes de qualquer maquinação. O crime, contudo, teve o efeito contrário ao planeado, e em lugar de sublevar os militares, produziu um clima de indignação coletiva e fortaleceu a tradição legalista em que se revia a maioria dos chilenos, pouco acostumados a esses métodos facínoras, característicos de uma qualquer república das bananas, mas não do Chile, onde as diferenças de opinião não se resolviam nem se decidiam à bala, como salientaram os artigos de opinião da época. O Congresso ratificou, por fim, Salvador Allende, que se tornou, assim, no primeiro Presidente marxista democraticamente eleito. A perspetiva de uma revolução pacífica já não parecia tão descabelada.
Durante aquelas turbulentas semanas entre a vitória eleitoral e a tomada de posse, Victor não teve oportunidade de jogar xadrez com Allende, porque para o Presidente aquele foi um tempo de reuniões políticas, de acordos e desacordos, tudo à porta fechada, de um contínuo jogo de cintura entre os partidos integrantes da União Popular, a ver quem detinha as melhores posições no Governo. Foi também um tempo de fuzilaria sem tréguas por parte da oposição. Allende denunciava com todos os meios ao seu dispor a intervenção do Governo dos Estados Unidos. Nixon e Kissinger tinham jurado que a experiência do socialismo chileno jamais triunfaria, pois, caso tal sucedesse, poderia o fenómeno atear-se como um rastilho de pólvora, arder por toda a América Latina e alastrar-se à Europa, e quando não puderam levar a cabo os seus intentos através do suborno ou da ameaça, começaram a cortejar os militares. Allende não subestimava os seus adversários, quer os internos quer os externos, mas tinha uma crença irracional em que o povo defenderia até ao fim o Governo democraticamente eleito. Diziam que era dotado de pulso firme, capaz de manejar qualquer situação de modo a voltá-la a seu favor, mas, durante os três dramáticos anos que se seguiriam, iria necessitar de muito mais magia do que de capacidade de pulso e de improvisação. As partidas de xadrez foram retomadas no ano seguinte, assim que o Presidente conseguiu restabelecer uma certa rotina na sua atribulada existência.
X.
1970-1973,
Em plena noite me pergunto:
O que será do Chile?
O que será da minha pobre Pátria obscura?
Pablo Neruda
"Insónia".
Memorial de Isla Negra.
Para Victor e Roser, a existência voltou rapidamente à rotina de sempre: ele com o seu trabalho no hospital, ela entregue às aulas de música, aos concertos e às viagens, enquanto o país era sacudido por um turbilhão de mudanças. Dois anos antes das eleições presidenciais, um cirurgião com mãos de ouro transplantara um coração humano. O recetor fora uma jovem de vinte e quatro anos, e o milagre sucedera num hospital de Valparaíso. A proeza já se realizara com sucesso uma vez na África do Sul, mas, ainda assim, esta operação continuava a ser um desafio às leis da natureza. Victor Dalmau seguiu cada detalhe do caso, apontando num calendário os cento e trinta e três dias que a paciente sobreviveu. Voltou a sonhar com Lázaro, o soldadito que resgatara da morte na gare da Estação do Norte, pouco antes do fim da Guerra Civil. Aquele pesadelo recorrente, em que Lázaro surgia com o coração inerte e depositado numa bandeja, dera, a pouco e pouco, lugar a um sonho luminoso, em que o rapaz surgia com uma janela aberta em pleno peito, por detrás da qual o seu coração batia em perfeita saúde, rodeado por raios de luz, como uma imagem do Sagrado Coração de Jesus.
Certo dia, Felipe del Solar foi consultar-se com Victor, porque vinha sentindo umas incómodas pontadas no peito. Nunca pusera os pés num hospital público. Quando necessitava de cuidados médicos, optava pelas clínicas privadas, mas, sabedor da boa reputação do amigo, decidira aventurar-se a sair da zona alta da cidade e dirigir-se à periferia habitada por gente de outra classe social.
- Quando é que vais ter o teu próprio consultório num lugar apropriado? E não me venhas com essa cantilena de que a saúde é um direito de todos e não apenas o privilégio de uns quantos afortunados, que isso já estou farto de ouvir! - disse Felipe, em jeito de cumprimento.
Sentia-se aborrecido porque não estava habituado a tirar senha e a ter de esperar pela sua vez, sentado numa desconfortável cadeira metálica. Depois de o examinar, Victor, sorrindo, anunciou ao amigo que o seu coração estava rijo e que as pontadas no peito talvez se devessem a ansiedade ou a uma consciência pesada. Enquanto se vestia para sair, Felipe comentou que metade do Chile sofria de problemas de consciência e de ansiedade devido à situação política que o país atravessava, mas no que a ele dizia respeito, acreditava que a tão apregoada revolução socialista não passaria do tinteiro, que o Governo inevitavelmente não conseguiria agir, paralisado pelas querelas e questiúnculas dos partidos que o apoiavam.
- Se fracassar, Felipe, não será tanto pelo que dizes, mas sobretudo pelas maquinações dos seus adversários e pela intervenção de Washington - replicou Victor.
- Aposto contigo que, no fim de contas, não haverá nenhuma mudança significativa a registar.
- Estás enganado, Felipe. As mudanças já começam a notar-se. Allende tem vindo a delinear este projeto político há pelo menos quarenta anos, e já o pôs em marcha a todo o vapor.
- Tudo bem, mas uma coisa é planear, e outra, bem diferente, é governar. Mais cedo ou mais tarde, verás como tenho razão. Vai haver caos político e social neste país... e a economia vai parar à bancarrota. Os nossos quadros carecem de preparação e de experiência. Além disso, passam o tempo todo em discussões intermináveis e nunca conseguem pôr-se de acordo em nada - disse Felipe.
- Em contrapartida, a oposição tem um único objetivo: derrubar o Governo a qualquer preço. Concordas? E pode ser que o consiga, porque conta com imensos recursos e com pouquíssimos escrúpulos - ripostou Victor, aborrecido.
Durante a campanha presidencial, Allende anunciara algumas das medidas que tomaria: nacionalizar a indústria do cobre; transferir algumas empresas privadas que considerava estratégicas para o controlo do Estado; expropriar terras. O efeito de tais reformas convulsionou o país. Ainda que nos primeiros meses os resultados destas medidas fossem promissores, com a emissão descontrolada de moeda, a inflação disparou, a ponto de a certa altura já ninguém conseguir calcular ou comparar a variação do preço do pão no intervalo de dois dias consecutivos. Tal como Felipe del Solar prognosticara, os partidos do Governo digladiavam-se continuamente, as empresas, agora em mãos dos trabalhadores, funcionavam em geral de forma deficitária, os níveis da produção despencavam vertiginosamente e as inteligentes ações de sabotagem por parte da oposição acabaram por provocar falhas no abastecimento dos bens essenciais. No seio da família Dalmau, Carme era quem mais se lamentava: - Ir às compras é uma confusão dos diabos, Victor! Nunca sei o que vou encontrar. Já sabes que eu não tenho jeito nenhum para a cozinha... Lá em casa quem cozinha é o Jordi. Mas, como também já sabes, tornou-se um velhote receoso e choramingas. Nunca sai de casa. Quem tem de aguentar horas na fila para tentar comprar um frango desnutrido sou
sempre eu! Tenho de o deixar sozinho durante horas a fio,
e ele fica muito alterado quando eu não estou... Já viste isto?
Emigrar para o fim do mundo, e também aqui ter de ir para
a fila para comprar cigarros!
- A mãe fuma demasiado! Não perca tempo com isso.
- Não perco tempo... pago aos profissionais.
- Profissionais? Que profissionais?
- Ui! Vê-se mesmo que estás habituado a comprar no mercado negro, filho! São rapazes ociosos ou velhotes reformados, que, por uma módica quantia, guardam o nosso lugar nas filas.
- Allende já veio explicar as razões das falhas no abastecimento. Imagino que tenha visto na televisão.
- E pela rádio também já o ouvi pelo menos umas cem vezes a dizer a mesma coisa! Que pela primeira vez o povo tem os meios para comprar, mas que os empresários o impedem de o fazer, porque preferem semear o descontentamento, ainda que para tanto tenham de se arruinar... Blá-blá-blá! Lembras-te de como foi em Espanha?
- Sim, mãe. Lembro-me demasiado bem. Tenho alguns contactos. Vou tentar arranjar-lhe algumas coisas.
- Algumas coisas como o quê, por exemplo?
- Por exemplo, papel higiénico. Tenho um paciente que às vezes me traz alguns rolos de presente.
- Isso, Victor! Valem o peso em ouro!
- Foi o que me disseram!
- Ouve, filho... por acaso, não conseguirás também leite condensado e azeite? O cu posso limpá-lo ao jornal, mas, por favor, vê se me consegues arranjar cigarros...
* * *
Não foram apenas os alimentos que desapareceram do mercado... deixaram também de se encontrar peças de substituição para motores, pneus de carros, cimento, fraldas, leite de fórmula e muitos, muitos outros bens essenciais. Ao invés, havia de sobra outros itens aparentemente inúteis, como molho de soja, alcaparras ou verniz de unhas. Quando começou o racionamento da gasolina, as ruas do país povoaram-se de ciclistas inábeis e inexperientes que serpenteavam entre os transeuntes, mas o povo continuava eufórico. Finalmente, pela primeira vez na História se sentia representado pelo Governo: todos iguais; companheiro para lá, companheiro para cá, companheiro Presidente. A escassez, os racionamentos e a sensação de constante precariedade não constituíam uma novidade para quem sempre vivera à justa ou sempre fora pobre. Por toda a parte se podiam ouvir as canções revolucionárias de Victor Jara, que Marcel sabia de cor, ainda que, de todos os membros da família Dalmau, fosse o mais indiferente às questões e à situação política. As paredes vestiram-se de cartazes e de murais, em todas as praças se representavam peças de teatro e os livros eram vendidos a preços irrisórios, para que todas as casas e todos os cidadãos pudessem ter a sua própria biblioteca.
Os militares permaneciam mudos e aparentemente tranquilos nos quartéis, e se alguns conspiravam, nada saía à luz. A Igreja Católica mantinha-se oficialmente à margem do confronto político, mas, nos púlpitos, havia sacerdotes que pareciam diretamente ressuscitados desde o tempo da Inquisição, sempre prontos a incitar ao ódio e à vingança. Por outro lado, havia também padres e freiras que simpatizavam com o Governo, não por uma questão ideológica, mas por entenderem que o atual poder político procurava servir e suprir o melhor possível as carências dos necessitados. A imprensa de direita convocava continuamente e em grandes parangonas: chilenos, juntem-se ao ódio!, e a burguesia, num misto de fúria e sobressalto, provocava os militares, incitando-os à sublevação: "Meninos! Maricões! Peguem nas armas enquanto é tempo!"
- Aqui pode acontecer o mesmo que sucedeu em Espanha! - repetia Carme, como uma cantilena contínua.
- Allende garante que aqui jamais haverá uma guerra fratricida, porque o Governo e o povo o impedirão - dizia Victor, para tentar tranquilizá-la.
- O teu camarada Allende é demasiado ingénuo e crédulo. O Chile, filho, está dividido em dois lados irreconciliáveis. Os amigos zangam-se, há famílias divididas, já não se pode falar à vontade com ninguém. Eu inclusivamente evito encontrar-me com algumas amigas minhas exatamente por isso.
- Não exagere, mãe.
Mas também ele, embora não o admitisse, sentia no ar a violência palpável. Uma noite, quando regressava de bicicleta de assistir a um concerto de Victor Jara, Marcel detivera-se a observar um grupo de jovens que, empoleirados numa escada, pintavam um mural, decorando-o com um cenário onde coexistiam pombas e espingardas. Do nada, surgiram dois carros de onde saíram uns homens armados com ferros e paus, e numa questão de segundos deixaram prostrados por terra os artistas. Antes que Marcel pudesse reagir, voltaram para os carros que permaneciam à espera com os motores ligados, e esfumaram-se tão velozmente como haviam chegado. Uma patrulha da polícia, possivelmente alertada por um vizinho, apareceu em poucos minutos seguida por uma ambulância que de imediato conduziu ao hospital os feridos mais maltratados. Marcel foi levado à esquadra mais próxima a fim de prestar declarações como testemunha.
Victor foi buscá-lo cerca das três da manhã, pois este, em pânico face ao ocorrido, receava voltar para casa de bicicleta.
Surgiu um movimento de esquerda, que, farto de esperar que se atingisse o patamar seguinte da revolução por meios pacíficos, defendia o recurso e a necessidade da luta armada, e, como contraponto, em breve se formou um outro grupo, fascista, que do mesmo modo rejeitava toda e qualquer solução civilizada de compromisso social. "Se se trata de lutar, pois lutemos", arengavam uns e outros. Para poder respirar, e para, por algumas horas, se afastar do carinho por vezes excessivo e meloso que Jordi lhe dedicava, Carme assistia às manifestações que nessa época enchiam as ruas, umas apoiando o Governo, e outras, igualmente numerosas, tomando partido da oposição. Saía de casa munida de umas sapatilhas desportivas, de um limão e de um pano ensopado em vinagre para se proteger das bombas de gás lacrimogéneo, e regressava mais tarde, encharcada até aos ossos pelos jatos de água com que a polícia dispersava a multidão para
restabelecer a ordem.
- Aqui o alvoroço é tremendo - dizia. - Basta uma só faísca para que tudo vá pelos ares!
Não foi o Governo que expropriou a propriedade rural de Isidro del Solar. Antes que tal ocorresse, os camponeses fizeram-se donos dos campos por iniciativa própria. Deu aquelas terras temporalmente perdidas, já que, como costumava dizer, mais cedo ou mais tarde a decência e a moral seriam restabelecidas. Concentrou todos os seus esforços em salvar o seu negócio de exportação de lã, antes que aquela desalmada turba lhe devorasse até os animais. Contratou uns peões do Sul, que, conhecedores do terreno, através de atalhos e de caminhos de cabras, lhe conduziram os rebanhos, de cordilheira em cordilheira, até à Patagónia Argentina, como estavam já a fazer alguns criadores de gado bovino. Também mudou a família para Buenos Aires, tal como havia anunciado.
Foi um êxodo em massa, que incluiu todos os membros da casa, até as filhas casadas, acompanhadas dos seus maridos, netos e respetivas amas. Só Juana Nancucheo ficou para tomar conta da casa da Rua Mar Del Plata. Laura teve de ser levada à força, atordoada com tranquilizantes e uma pródiga quantidade de doces, e após Felipe lhe ter prometido que durante a sua ausência manteria com flores frescas a campa de Leonardo. Dos Del Solar, foi Felipe o único que quis ficar, e permaneceu a trabalhar no seu escritório de advogado como se tudo permanecesse como antes, e sem incidentes de maior. Os seus outros dois sócios haviam partido para abrir uma sucursal em Montevideu.
Por esse tempo, Felipe aparecia amiúde em casa dos Dalmau, no Bairro Nunoa, onde não vivia ninguém pertencente ao seu meio social. Chegava sem aviso, com duas garrafas de vinho e vontade de conversar. Já não se sentia à vontade na companhia dos seus amigos de sempre, nem era bem-vindo junto dos seus conhecidos de esquerda, que suspeitavam daqueles lânguidos modos copiados dos ingleses, bem como da ambiguidade das suas posições políticas. Fazia tempo que o Clube dos Indignados se dispersara. Como distração, dedicou-se a adquirir a preço de saldo obras de arte anteriormente pertencentes a famílias que emigravam à pressa e pretendiam desfazer-se dos bens que não pudessem levar... e de tal forma se dedicou a este hobby, que rapidamente se viu obrigado a procurar uma casa maior, aproveitando o facto de as propriedades se venderem por "dá cá aquela palha". Não deixava de sorrir quando recordava como, quando jovem, criticara os excessos da mansão paterna. Quando Roser lhe perguntou o que faria com tanta tralha se decidisse, conforme várias vezes anunciara, exilar-se no estrangeiro, ele respondia-lhe:
- Tenciono guardar tudo num armazém até ao meu regresso. Isto aqui não é nem Cuba nem a Rússia... Não vai durar muito este modelo de socialismo chileno.
Parecia Felipe tão certo do que dizia que Victor, por mais de uma vez, se perguntou se o seu amigo não estaria metido em alguma conspiração para derrubar o governo. Não fosse o diabo tecê-las, nunca mencionou a Felipe as suas partidas de xadrez com Allende. Quando ao jantar Felipe bebia um copo a mais, soltava-se-lhe a língua e disparatava sem cessar contra a vida e a desilusão do mundo. Do idealismo da juventude pouco restara. Tornara-se um cínico. Admitia que o socialismo seria o sistema mais justo, mas que invariavelmente a sua prática conduzia a um Estado de Polícia, como em Cuba, onde quem estava em desacordo com o regime tinha duas alternativas: ou fugia para Miami ou terminava os seus dias como preso político. À sua natureza aristocrática repugnavam a cegueira da igualdade, a vulgaridade dos modos, os clichés revolucionários, os slogans dogmáticos, as barbas hirsutas, a fealdade imposta pelo estilo artesanal, móveis de madeira simples, tapetes de juta, alpargatas, ponchos, colares de sementes, saias de crochet, enfim, um desastre estético generalizado. "Não entendo por que raio hão de vestir-se como mendigos", lamentava-se... e o que dizer daquilo a que chamavam de cultura popular?, que nada tinha de cultura... era uma imitação horrível do realismo soviético, versão chilena, com murais onde pontificavam mineiros de punho erguido, retratos do Che Guevara, de cantautores sermoneando com as suas ladainhas monótonas, "Até a trutruca dos Mapuches e a quena dos Quíchuas estão na moda(10)". Mas, entre os seus amigos de direita, espraiava-se num discurso igualmente devastador contra os caciques recalcitrantes e conspiradores, encerrados no passado, ignorando as justas exigências do povo, dispostos a manterem os seus privilégios de antanho, ainda que fosse à custa da democracia e do progresso do país. Uns traidores!
10. Trutruca e quena são instrumentos de sopro destes povos indígenas. (N. do E.)
Já ninguém o suportava, e foi-se tornando cada vez mais solitário. Pesava-lhe aquela solidão de solteirão empedernido, e com a idade iam-se-lhe somando os achaques.
Victor, que tanto elogiara as melhoras nos serviços de saúde pública, exaltando medidas como um copo de leite diário para cada criança, a fim de combater a desnutrição, ou a construção de mais hospitais públicos, deparava-se com a falta de antibióticos, anestesias, agulhas, seringas, medicamentos básicos e de mãos suficientes para atenderem os doentes, porque muitos médicos haviam partido do Chile, escapando à temível tirania soviética por vir, que tanto propagandeava a oposição. Para agravar esta situação, grande parte dos médicos que ainda permaneciam no Chile declararam-se em paralisação laboral por tempo indefinido. Ele continuou a trabalhar como sempre, agora cumprindo horários duplos. Dormia de pé, exausto até à alma, com a inquietante sensação de já ter passado por algo muito semelhante aquando da Guerra Civil. Outros colégios profissionais, bem como diversas associações de patrões e empresários, seguiram-lhes os passos, declarando-se também em greve e paralisação. Quando, por fim, os camionistas se negaram a trabalhar, aquele país oblongo ficou completamente desprovido de transporte e de fornecimento: O peixe apodrecia no Norte, e as frutas e verduras no Sul, enquanto em Santiago faltavam os mais elementares produtos. Allende denunciava continuamente a intervenção americana que financiava os camionistas e a conspiração da direita. Também os estudantes contribuíam para o caos ocupando e entrincheirando-se nas universidades. Quando bloquearam com sacos de areia a entrada das faculdades, Roser passou a dar as suas aulas teóricas ao ar livre, em jardins públicos, tendo, para se abrigar, de recorrer à proteção de guarda-chuvas, se e quando os elementos a isso obrigavam. Prosseguia lecionando e avaliando como sempre, lamentando apenas não poder arrastar para o exterior um piano de cauda. As pessoas acostumaram-se à reiterada presença da polícia por toda a parte, envergando os seus uniformes de choque, aos panfletos e às bandeiras de protesto, aos cartazes incendiários, às palavras de ordem, às ameaças e às catastróficas advertências da imprensa, enfim, à gritaria inconsequente de um lado e de outro... de todos contra todos. Apesar de tudo, quanto à questão da nacionalização da indústria mineira, houve consenso generalizado.
- Já era tempo! - comentou Marcel com a avó. - O cobre é o ganha-pão do Chile. É o principal garante da economia.
- Se o cobre já é nosso, não vejo para quê nacionalizá-lo!
- Avó, o cobre sempre esteve em mãos de companhias de exploração americanas. O Governo confiscou-lhes os direitos, considerando pagas as indemnizações, uma vez que os americanos nos devem milhões e milhões de dólares por lucros usurários e por evasão fiscal.
- Os americanos não vão gostar nada disto. Lembra-te do que te digo, Marcel: isto vai dar uma bronca dos diabos - reiterou-lhe Carme.
- Assim que os americanos se forem, vão ser precisos mais engenheiros e mais geólogos. Não vai faltar-me trabalho!
- Fico contente por ti. Vão aumentar-te o salário?
- Não faço a mínima ideia... Porque perguntas?
- Para que sejas independente e para que te possas casar. Nesta família somos só quatro gatos-pingados, e se não te apressas, não vou ter tempo de conhecer os meus bisnetos. Já tens trinta e um anos. Vai sendo tempo de assentares a cabeça.
- Tenho-a muito bem assente nos ombros...
- Não vejo que haja mulheres na tua vida... Isso não é normal. Nunca te apaixonaste? Por acaso não és um daqueles... Bem... já sabes o que quero dizer...
- Mas que indiscreta tu me saíste, avó!
- A culpa disto é da tua mania das bicicletas... esmaga os testículos e causa impotência e esterilidade!
- Ah, ah!
- Tenho lido sobre essas coisas numa revista no cabeleireiro. Ainda por cima, és bem bonito, Marcel. Se cortasses o cabelo e essa barba, ias ficar igualzinho ao Dominguín.
- A quem?!
- Ao toureiro, quem haveria de ser? Além do mais, também não és nada tolo. Portanto... mexe-te! Pareces um monge franciscano.
Carme não contava que uma das consequências da nacionalização da indústria mineira fosse que a Corporação da extração de cobre decidisse enviar o neto para os Estados Unidos. Meteu-se-lhe na cabeça que não tornaria a vê-lo. Marcel partiu para o Colorado, uma cidade próxima das Montanhas Rochosas, fundada em plena febre do ouro, para aí estudar geologia. Levou a sua bicicleta desmontada. Não conseguiu deixá-la, uma vez que fora feita à sua medida, tal como se fez acompanhar de todos os seus discos de Victor jara. Partiu antes de a desordem se ter convertido na posterior onda de violência que haveria de destroçar por completo o país.
- Vou escrever-te todos os dias - foram as últimas palavras que lhe dirigiu a avó, já no aeroporto.
Marcel dedicara-se a estudar e aprender inglês com a mesma teimosa persistência com que se negava a falar o catalão, e em poucas semanas adaptou-se na perfeição à vida no Colorado. Chegara no início de um outono acobreado e, pouco depois, defrontava-se com a primeira neve. Juntou-se a um grupo de fanáticos por ciclismo, que treinavam para atravessar o país do Oceano Pacífico ao Atlântico, e a outro grupo que se dedicava à escalada. Victor nunca conseguiu visitá-lo, porque entre a confusão generalizada, os tumultos, as greves e as manifestações, não teve sequer tempo para respirar, mas Roser foi vê-lo algumas vezes, informando a família que Marcel já pronunciara provavelmente mais palavras em inglês do que em espanhol durante toda a sua vida. Havia cortado a barba e usava o cabelo preso numa trança que lhe pendia da nuca. E Carme tinha razão: apresentava certa semelhança com Dominguín. Distante do escrutínio da família e dos desmandos e preconceitos do Chile, no remanso intelectual da universidade, dedicado a decifrar a secreta e calada natureza das pedras, sentiu-se pela primeira vez confortável na própria pele. Ali não era um filho de refugiados. Ninguém por aquelas paragens ouvira sequer falar da Guerra Civil de Espanha, e poucos seriam capazes de situar o Chile num mapa, e menos ainda a Catalunha. Nessa realidade alheia e subordinada a outra língua, fez finalmente amigos, e ao cabo de poucos meses vivia num minúsculo apartamento com a sua primeira namorada, uma jovem jamaicana que estudava literatura e que escrevia artigos para diversos jornais. Roser conheceu-a durante a sua segunda visita, e quando regressou ao Chile comentou que, além de muito bonita, a rapariga tinha de extrovertida e alegre o que Marcel tinha de ensimesmado e silencioso.
- Pode ficar sossegada, Dona Carme, que finalmente o seu neto está a acordar para o mundo. A miúda jamaicana está a ensiná-lo a dançar aqueles ritmos caribenhos, nem iria acreditar se o visse a rodopiar ao som daquelas batidas. Até parecia um africano...
Carme, mais uma vez, estava certa: não voltaria a ver o neto, nem chegaria a conhecer-lhe a namorada jamaicana, nem o desfile de namoradas que se lhe seguiram, e que haveriam de perpetuar a estirpe dos Dalmau, porque amanheceu morta no dia do seu octogésimo sétimo aniversário, quando já tinham instalado no pátio da casa um toldo para a festa e feito os demais preparativos. Na noite anterior, deitara-se, perseguida, como sempre, pela sua tosse de fumadora inveterada, mas aparentemente de boa saúde, bem-disposta e antecipando a celebração do dia seguinte, jordi Moliné acordou ao romper do dia com a luz da manhã coando-se através das frestas das persianas, e deixou-se ficar a dormitar na cama, esperando que o cheiro do pão torrado lhe anunciasse que era hora de se levantar para o pequeno-almoço. Demorou alguns minutos a aperceber-se de que Carme permanecia ao seu lado, imóvel e fria como mármore. Segurando-lhe a mão entre as suas, ali se deixou ficar, quieto, chorando sem sobressalto, pensando na terrível traição de que ela houvesse partido primeiro, deixando-o só no mundo.
Roser soube do sucedido quando, cerca da uma hora da tarde, chegou com o bolo de aniversário e o carro repleto de balões para decorar as mesas, antes que chegassem os cozinheiros e os seus ajudantes. Estranhando o silêncio e a penumbra, as persianas ainda fechadas e o ar parado, chamou a sogra e jordi desde a entrada da casa, mesmo antes de tê-los procurado na cozinha e de se ter aventurado a entrar no quarto. Depois, quando por fim conseguiu reagir, pegou no telefone e marcou, primeiro o número de Victor, no hospital, e depois o contacto de Marcel, que se encontrava num hotel em Buenos Aires com um grupo de estudantes, para lhes anunciar que a avó havia morrido e que jordi desaparecera.
Em diversas ocasiões, Carme exprimira o desejo de, caso a morte a encontrasse no Chile, ser sepultada em Espanha, junto do marido e de Guillem, e, caso viesse a terminar os seus dias em Espanha, ser enterrada no Chile, para poder permanecer junto da família que lhe restava. "Querem saber porquê? Só para vos dar trabalho e por espírito de contradição!", acrescentava, rindo-se. Mas aquilo não era uma brincadeira para fintar a morte; era toda a angústia do tempo e do amor dividido, da separação forçada, de viver longe da sua terra e dos seus. Marcel conseguiu um voo para Santiago no dia seguinte. Velaram a avó na casa onde vivera dezanove anos com Jordi Moliné. Não houve qualquer cerimónia religiosa, pois a última vez em que Carme pusera pé numa igreja era ainda uma miúda, e isso vinha de um tempo sem memória, antes de se ter apaixonado por Marcel Lluís Dalmau. Mas, à última hora e sem aviso, apareceram dois padres da Sociedade Missionária Maryknoll, com quem Carme trocava cigarros, que lhes enviavam de Nova Iorque, por queijo manchego e presunto serrano que Jordi obtinha também por vias ilegais. Os sacerdotes improvisaram uma cerimónia fúnebre que teria sido do agrado de Carme, com guitarras e canto, em que o único inconsolável foi Marcel, que mantivera com a avó uma relação de grande cumplicidade. Permaneceu sentado num canto, entre lágrimas e dois copos de pisco, a chorar tudo o que não chegara a dizer-lhe, pela ternura perdida que tivera vergonha de demonstrar, por sempre se ter recusado a conversar com ela em catalão, por ter troçado dos seus péssimos dotes culinários, por não ter respondido a nenhuma das suas cartas. Fora ele quem sempre estivera mais próximo do coração daquela avó indomável e intrépida, que, todos os dias, desde a sua partida para o Colorado até à véspera da morte, lhe escrevera. O único objeto que haveria de acompanhar em permanência Marcel, onde quer que vivesse, seria aquela caixa de sapatos atada com um cordel, contendo as trezentas e cinquenta e nove cartas que a avó lhe enviara. Victor viera sentar-se junto dele, mudo e triste, pensando que a sua família perdera o pilar que durante tanto tempo a sustivera. Mais tarde, já bem entrada a noite, na intimidade do quarto, comentara isso com Roser.
- O pilar que sempre nos susteve foste tu, Victor.
Assistiram ao velório antigos colegas de trabalho de Carme, os vizinhos e ex-alunos da escola, conhecidos desde os tempos em que Carme acompanhava Jordi no Winnipeg, e alguns amigos de Victor e de Roser. Às oito da noite apareceu a polícia, que bloqueou a rua com as suas motocicletas para dar passagem exclusiva a três Fiat azuis. Num dos automóveis seguia o Presidente, que fizera questão de, pessoalmente, dar os pêsames ao seu companheiro de xadrez. Victor adquiriu um lote no cemitério onde sepultou a mãe, com lugar para os restantes membros da família, para Jordi, caso o encontrassem, e para o seu pai e irmão, se no futuro conseguisse, de alguma forma, trazê-los de Espanha. Apercebeu-se então que, a partir daquele momento, pertencia e pertenceria definitivamente ao Chile. "A nossa pátria é a terra onde repousam os nossos mortos", costumava postular Carme.
Entretanto, a polícia procurava Jordi Moliné por toda a parte. Os seus amigos e conhecidos eram os mesmos de Carme, e ninguém o vira. Pensando que se perdera, uma vez que estava já afetado por uma certa demência, e imaginando que não fora muito longe, os Dalmau afixaram avisos com a sua fotografia nas lojas das proximidades, e nunca fechavam à chave a porta da casa, para que Jordi pudesse entrar caso regressasse. Roser acreditava que ele saíra vestindo apenas pijama e chinelos de quarto, uma vez que toda a sua roupa se encontrava no guarda-fatos. Viu confirmadas as suas suspeitas, quando, no verão seguinte, o nível das águas do Rio Mapocho baixou e encontraram finalmente os restos do velhinho, enredado num restolho de plantas e de matagais. Da sua roupa apenas restavam os farrapos daquilo que fora o seu pijama. Passou um mês até o poderem identificar com toda a certeza. As autoridades entregaram-no então aos Dalmau, e estes puderam, enfim, sepultá-lo junto de Carme.
Apesar da conjuntura desfavorável, da inflação galopante e das notícias adversas e catastróficas que a imprensa divulgava sem descanso, o Governo de Allende contava ainda com amplo apoio popular, como o vieram a demonstrar as eleições parlamentares, em que obteve um inesperado aumento da votação.
Então tornou-se de todo evidente que não bastariam a crise económica e a incessante propagação do ódio para derrubar Allende.
- Doutor, olhe que a direita está a armar-se - disse a Victor o paciente que lhe levava papel higiénico. - Sei disso porque na fábrica onde trabalho agora há certas arrecadações fechadas a sete chaves com cadeados e trancas metálicas, a que ninguém tem acesso.
- Isso não prova nada...
- Alguns camaradas decidiram estabelecer turnos de vigilância noite e dia, doutor, por causa das ações de sabotagem... e viram que durante a noite camiões traziam em segredo grandes contentores. Como se tratava de uma carga diferente das entregas habituais, foram espiolhar. Aposto que estão cheios de armas! Ouça bem o que lhe digo, doutor... aqui vai haver um banho de sangue, porque a rapaziada do movimento revolucionário também está armada.
Nessa noite, enquanto terminavam uma partida que ficara suspensa desde há algumas noites, Victor comentou este diálogo com Allende.
A casa que o Governo adquirira para servir de morada oficial dos Presidentes era construída ao estilo espanhol, com janelas arqueadas, um mosaico com o escudo nacional no pórtico da entrada e duas altas palmeiras que podiam avistar-se a partir da rua. Os guardas conheciam Victor, e ninguém estranhava que ali chegasse a altas horas da noite. Ficavam longo tempo a jogar xadrez na sala, onde, por entre uma profusão de livros e de obras de arte, sempre havia um tabuleiro a postos. Allende escutou sem surpresa o que Victor lhe dizia, pois já estava ao corrente do sucedido, mas, legalmente, essas suspeitas não constituíam suficiente fundamento para que se pudesse proceder a uma revista, nem da fábrica em questão, nem de outras empresas, onde certamente estaria a acontecer o mesmo.
- Não se preocupe, Victor. Enquanto os militares permanecerem leais à Constituição e ao Governo, nada há que temer. Confio plenamente no comandante supremo das Forças Armadas. É um homem honrado - e acrescentou que igualmente perigosos eram os vociferantes extremistas de esquerda, que exigiam uma revolução em moldes similares à revolução cubana. Esses estouvados causavam tanto ou maior dano ao Governo que a direita, sustentava o Presidente.
Em finais desse mesmo ano, prestaram uma homenagem pública a Pablo Neruda. Realizou-se no Estádio Nacional, esse mesmo que, nove meses mais tarde, seria palco de tortura de presos políticos. Foi a última aparição pública do poeta, condecorado com o Prémio Nobel algumas semanas antes, recebendo a distinção das mãos do ancião monarca sueco. Abandonou o cargo de embaixador em França e retirou-se para a sua estrambótica casa na Isla Negra, que tanto amava. Estava doente, mas continuava a escrever no seu pequeno gabinete de trabalho, com o mar furioso rebentando-lhe em espuma mesmo defronte da janela. Ali o visitou várias vezes Victor durante os meses seguintes, na qualidade de amigo, e, em uma ou outra ocasião, como médico. Encontrava-o sempre envolto num poncho indígena e envergando uma boina, afável e glutão, preparado para partilhar com ele uma corvina no forno, regada com o excelente vinho chileno, e para conversar das coisas da vida. Já não era o homem descontraído e divertido que se disfarçava para receber os amigos e que, feliz e leve de espírito, escrevia odes aos dias. De toda a parte lhe chegavam convites, prémios e mensagens de admiração, mas o poeta vivia com o coração pesado. Temia pelo futuro do Chile. Estava a escrever as suas memórias, onde a menção à Guerra Civil Espanhola e ao Winnipeg ocupavam várias páginas. Emocionava-se ao recordar tantos camaradas espanhóis assassinados e desaparecidos, "Não quero morrer antes de Franco", dizia. Victor garantia-lhe que viveria ainda longos anos.
A doença que o consumia era de progressão lenta e estava controlada. Mas também ele suspeitava que o caudilho fosse imortal. Levava trinta e três anos agarrado ao poder, que exercia com mão de ferro. Para Victor, as lembranças de Espanha constituíam um terreno cada vez mais difuso na memória. Todos os anos, à meia-noite do dia 31 de dezembro, brindava pelo novo ano que chegava e pela possibilidade de um regresso para breve ao seu país natal. Mas apenas o fazia por hábito, não por um desejo premente ou concreto. No seu íntimo, suspeitava que a Espanha onde nascera, essa que tão bem conhecia e pela qual lutara, deixara há muito de existir. Durante aquele transcurso de tempo, dominada por uniformes militares e por sotainas, convertera-se num lugar a que ele não pertencia.
Também Victor, tal como Neruda, temia pelo Chile. O rumor de um possível golpe militar, que circulava há uns dois anos, ultimamente subira de volume e adquirira um tom mais premente. O Presidente continuava a manter a confiança nas Forças Armadas, ainda que soubesse que o exército se encontrava politicamente dividido. No início daquela primavera, a violência da oposição ascendera a limites nunca vistos, e o descontentamento reinante entre os militares tornara-se, no mínimo, desafiante. O comandante supremo, em virtude de não conseguir debelar ou fazer face à insubordinação dos oficiais, renunciara ao cargo. Justificara perante o Presidente a sua decisão com o argumento de que, como soldado, seria preferível retirar-se para evitar a quebra completa da disciplina militar. O seu gesto foi inútil. Alguns dias mais tarde, por volta das cinco da manhã, estalou o tão temido golpe militar. Em poucas horas ruiu o mundo e nunca mais nada voltou a ser como antes.
Victor, como sempre, saiu cedo para o hospital, e deparou-se com o espetáculo das ruas bloqueadas por tanques, e por fileiras de camiões verdes transportando tropas, helicópteros zumbindo e voando baixo como aves de mau agoiro, soldados com os rostos pintados como comanches, armados como se em plena guerra, que a coronhadas dispersavam os poucos civis que circulavam àquela hora matutina. De imediato compreendeu o que estava a acontecer. Apressou-se a voltar para casa e avisou, tanto Roser, que se encontrava em Caracas, como Marcel, ainda no Colorado. Ambos anunciaram que apanhariam o primeiro avião disponível e que regressariam logo que possível. Convenceu-os a permanecerem onde estavam e a que esperassem que passasse a tempestade. Em vão tentou comunicar com o Presidente, bem como com alguns dirigentes políticos das suas relações. Não havia notícias de qualquer espécie. As televisões e as rádios estavam nas mãos dos militares revoltosos, menos uma única emissora de rádio, que acabou por confirmar o que Victor receava. A operação para silenciar o país, organizada desde a Embaixada dos Estados Unidos, foi precisa, rápida e eficaz. A censura começou de imediato a estender os seus tentáculos e a fazer-se sentir. Victor decidiu, como sempre, que o seu lugar era no hospital. Dispôs num saco uma muda de roupa e uma escova de dentes, e, sempre optando por ruas secundárias, para lá se dirigiu no seu velho Citroen, munido de um rádio a pilhas que, entre ruídos e chiados de estática, ia transmitindo a voz do Presidente, denunciando a traição dos militares e o golpe fascista, exortando o povo a que permanecesse calmamente nos seus postos de trabalho, que não se deixasse provocar nem dominar pelo medo, e, reiterando, por fim, que permaneceria no cargo para o qual fora eleito, defendendo o Governo legítimo. "Nesta forçada alteração da História, pagarei com a minha própria vida a lealdade do povo." A Victor nublaram-se-lhe os olhos e não lhe foi possível prosseguir o caminho. Deteve-se quando sobre ele riscavam rugindo os aviões militares e começava a ouvir-se o fragor das primeiras bombas. Divisou ao longe o deflagrar de uma espessa nuvem de fumo, e apercebeu-se, incrédulo, que estavam a bombardear o Palácio Presidencial.
Os quatro generais da Junta Militar que passara a reger os destinos da Pátria, envergando os seus uniformes de combate, enfocados pela bandeira e pelo escudo nacional, por entre acordes de hinos marciais, apareciam várias vezes ao dia nas televisões, a difundir os seus comunicados e proclamações. A informação estava sujeita à censura, e tudo quanto se transmitia era previamente controlado pelos militares. Haviam informado que Allende se suicidara no palácio em chamas. Victor suspeitava que o Presidente fora assassinado, como sucedera com tantos outros. Só então compreendeu a gravidade do que ocorrera... e que não haveria retrocesso possível. Os ministros do anterior Governo foram detidos, o Parlamento suspenso sem data de reabertura, proibidos os partidos políticos, e suspensos até nova ordem os mais elementares direitos dos cidadãos e a liberdade de imprensa. Nos quartéis, prenderam todos os que hesitaram ou se recusaram a aderir ao golpe militar, e fuzilaram muitos deles, mas isto só muito mais tarde chegou ao conhecimento público, pois as Forças Armadas estavam empenhadas em transmitir a impressão de serem monolíticas e indestrutíveis. O comandante-supremo, destituído pelo golpe, refugiou-se na Argentina, para não ser assassinado pelos antigos camaradas de armas, mas de nada lhe valeu. Um ano depois, morria, com a mulher, como resultado da explosão de uma bomba que lhe fora instalada no carro. O General Augusto Pinochet encabeçara a liderança da Junta Militar, e em breve se converteria no rosto primeiro e na personificação da ditadura. A repressão foi instantânea, fulminante e implacável. Anunciaram que não ficaria uma pedra sequer por remover; que descobririam e capturariam todos os marxistas, onde quer que se escondessem, e que varreriam da Pátria o cancro e a contaminação comunista. Enquanto na zona alta de Santiago a burguesia celebrava o sucedido, abrindo, por fim, as garrafas de champanhe que tinham guardado desde há três anos, nos bairros operários reinava um clima de terror.
Victor não regressou a casa nos nove dias seguintes, em primeiro lugar, porque nas setenta e duas horas imediatas ao golpe houve ordem de permanência e ninguém podia sair à rua, e em segundo lugar, porque o hospital estava a rebentar pelas costuras: de toda a parte chegavam feridos alvejados, e as morgues rapidamente se encheram de corpos por identificar. Comia o que havia disponível na cafetaria, dormia sentado numa qualquer cadeira, lavava-se por partes com uma esponja, e uma só vez teve tempo para mudar de roupa. Várias horas passaram até que, por fim, conseguiu estabelecer uma comunicação internacional. Falou com Roser e disse-lhe que não pensasse em regressar sob motivo algum, até que ele a avisasse do contrário, e pediu-lhe que transmitisse o mesmo recado a Marcel. Encerraram a universidade e dissiparam a tiros toda e qualquer tentativa de resistência dos estudantes. Contaram a Victor que as paredes da Escola de Jornalismo e de algumas outras faculdades escorriam sangue. Não soube dar a Roser nenhuma informação sobre o que ocorrera com a Escola de Música nem com os seus alunos. Os médicos suspenderam a paralisação geral, e muitos dos seus colegas ausentes reocuparam os seus postos de trabalho de rostos e disposição alegre. Começara já a purga dos funcionários e mesmo dos pacientes, que os militares arrancavam das camas sem cerimónia. Colocaram um coronel como diretor do hospital e soldados armados com metralhadoras vigiando as entradas, os corredores, e até as salas de operações. Prenderam vários médicos comprometidos com a esquerda; outros fugiram ou exilaram-se, jamais regressando aos seus postos de trabalho.
Victor continuou a trabalhar com uma irracional sensação de impunidade.
Quando finalmente conseguiu ir a casa para tomar um banho e mudar de roupa, deparou-se-lhe uma cidade estranha e desconhecida, completamente limpa e pintada de branco. Nesses poucos dias, tinham desaparecido os murais revolucionários, os cartazes incitando ao ódio, o lixo, os homens barbudos e as mulheres trajando calças. Nas lojas voltou a ver produtos que há muito haviam desaparecido do comércio, e que apenas se conseguiam no mercado negro, ainda que fossem poucos os compradores, uma vez que, na generalidade, os preços tinham subido. Soldados e polícias armados vigiavam por toda a parte; havia tanques estacionados em cada esquina, e de quando em quando passavam velozmente camionetas com vidros foscos, as sirenes ligadas, uivando como chacais. Reinava a ordem impoluta dos quartéis e a paz artificial promovida pelo medo. Ao chegar a casa, Victor cumprimentou a sua vizinha de há tantos anos, mas esta não lhe respondeu e apressou-se a fechar a janela. Esse gesto deveria ter-lhe servido de aviso, mas Victor tomou a atitude da mulher como resultado do medo e da confusão face aos últimos acontecimentos. A sua casa permanecia tal como a deixara no dia do golpe: a cama por fazer, a roupa atirada por todo o lado, pratos sujos, comida com bolor verdoso na cozinha... Não teve coragem para arrumar e pôr em ordem fosse o que fosse. Deixou-se cair, exausto, de costas sobre a cama, e dormiu catorze horas seguidas.
Por esses dias, morreu Pablo Neruda. O golpe militar fora o culminar dos seus piores temores. Não resistiu à comoção e o seu estado de saúde sofreu um súbito agravamento. Foi levado de ambulância para uma clínica em Santiago.
As tropas revistaram o seu santuário em Isla Negra, remexeram sem critério os seus papéis e pisaram as suas coleções de garrafas, conchas e caracóis, em busca de armas e de guerrilheiros ocultos. Victor visitou-o na clínica, onde os guardas o revistaram, o fotografaram e lhe tomaram as impressões digitais, até que, findo este procedimento, o soldado encarregado de vigiar a porta do quarto de Neruda lhe bloqueou a entrada. Pelo que sabia da doença de Neruda, e pela forma aparentemente saudável e tranquila em que o vira ainda um mês antes, Victor estranhou a morte do amigo. Não foi o único a suspeitar das circunstâncias da morte do poeta. Em breve circulava o boato de que Neruda fora discreta e convenientemente envenenado. Três dias antes de ser internado na clínica, o poeta escrevera as últimas páginas do seu livro de memórias, páginas impregnadas da profunda deceção que sentia ao ver o seu país dividido, subjugado pelo medo, e por saber o seu amigo Salvador Allende sepultado em lugar incerto, sem outro séquito que a sua viúva... "... aquela gloriosa figura morta, despedaçada pelas metralhadoras dos soldados do Chile, que, uma vez mais, haviam traído o seu país", escrevera. E tinha razão. Já anteriormente, na história do Chile, houvera um levantamento militar contra um Governo legítimo, mas a fraca memória coletiva de tudo se esquecia e tudo descartara. O funeral do poeta foi o primeiro ato de público repúdio aos golpistas, e só não foi proibido porque os olhos do mundo inteiro estavam atentos. Victor, nesse momento, estava a operar um paciente em estado crítico, pelo que não pôde comparecer à cerimónia. Foi informado dos detalhes dias mais tarde, pelo homem do papel higiénico.
- Não havia muita gente, doutor. Lembra-se da multidão que estava no Estádio Nacional quando lhe prestaram homenagem? Bem... diria que desta vez não éramos mais de duzentas pessoas.
- A notícia saiu nos jornais à última hora... mesmo em cima do funeral. Poucos souberam da sua morte ou da cerimónia do enterro.
- E sabe, doutor... as pessoas têm medo.
- Muitos amigos ou admiradores de Neruda, a esta altura, devem estar escondidos ou presos. Conte-me como foi - pediu-lhe Victor.
- Eu era um dos que ia à frente da procissão fúnebre, mas estava assustado, doutor, porque havia soldados armados de metralhadoras ao longo de todo o percurso do cemitério. O caixão estava coberto de flores. Seguíamos todos em silêncio, até que alguém gritou: "Companheiro Pablo Neruda!", e todos respondemos a uma voz: "Aqui, agora e para sempre!".
- E o que fizeram os soldados?
- Nada... Então, um tipo valente gritou: "Companheiro Presidente!", e todos respondemos o mesmo: "Aqui, agora e para sempre!". Foi muito emocionante, doutor. Também gritámos que o povo unido jamais será vencido, e os soldados continuaram sem reagir, mas havia uns tipos que tiravam fotografias de todos os participantes no cortejo fúnebre. Sabe-se lá para quê...
Victor suspeitava de tudo e de todos. A realidade tornara-se fugidia. Vivia-se de omissão em omissão, de não ditos, palavras meias, mentiras, eufemismos, enfim, uma exaltação grotesca da benemérita pátria, dos bravos soldados e do regresso à tradição e aos bons costumes. A palavra "camarada" foi apagada do mapa. Ninguém se atrevia a proferi-la. Em murmúrios, falava-se da existência de campos de concentração, de fuzilamentos sumários, de milhares e milhares de presos, de desaparecidos, de fugitivos, de desterrados, de centros de tortura onde utilizavam carrascos para violar as mulheres... Perguntava-se onde estavam tantos torturadores e bufos, que durante o anterior Governo em parte nenhuma se avistavam. Haviam surgido em poucas horas, bem preparados e organizados, como se para isso tivessem sido treinados durante anos a fio. O recôndito Chile dos fascistas ali estava e sempre ali estivera, espreitando sob a superfície, pronto para emergir. Era o triunfo da direita dos privilégios de sempre e a derrota de um povo que acreditara na revolução. Victor soube também que Isidro del Solar, acompanhado pela família, como tantos outros, regressara poucos dias volvidos do golpe militar, pronto para recuperar as suas regalias e as rédeas da economia do país, mas não o poder político... esse era e seria exercido pelos generais, enquanto impunham a ordem, e resgatavam a pátria do caos em que o marxismo a sumira, como diziam os seus apoiantes. Ninguém, nem mesmo eles próprios, sabia quanto iria durar a ditadura.
Fora a vizinha quem denunciara Victor às autoridades: a mesma mulher que dois anos antes se valera da sua amizade com o Presidente para lhe pedir que o filho fosse admitido no Corpo de Polícia. A mesma a quem Victor implantara duas válvulas artificiais no coração. A mesma a quem Roser ora emprestava ora pedia açúcar ou arroz. A mesma que assistira, compungida, ao velório de Carme. Prenderam-no no hospital. Foram buscá-lo três homens sem uniforme quando Victor estava em plena sala de operações, mas tiveram pelo menos a decência de esperar que terminasse o seu trabalho.
- Acompanhe-nos, doutor - ordenaram-lhe em tom firme. - Trata-se de um mero procedimento de rotina...
Assim que chegaram à rua, algemaram-no e empurraram-no rudemente para dentro de um automóvel preto e vendaram-lhe os olhos. O primeiro soco alcançou-o no estômago.
Victor apenas recuperou a consciência e soube onde se encontrava dois dias depois, quando os seus carrascos se deram enfim por satisfeitos com os interrogatórios e o arrastaram para fora do edifício, já sem algemas e com os olhos descobertos. Só então pôde respirar de novo ar puro. Demorou vários minutos até que a vista se lhe acostumasse à luz intensa do meio-dia, e outros tantos para recuperar o equilíbrio e conseguir manter-se de pé. Encontrava-se em pleno Estádio Nacional. Um militar, um recruta ainda muito jovem, entregou-lhe uma trouxa, e, ainda que sem hostilidade, tomou-o de um braço e conduziu-o a passo lento até à galeria que lhe haviam destinado. Custava-lhe caminhar. Doía-lhe o corpo inteiro como resultado dos golpes recebidos e das descargas de eletricidade. Sentia uma sede digna de um náufrago e não conseguia, por mais esforços que fizesse, localizar-se ou situar-se no tempo, nem reconstituir o que havia acontecido. Podia ter permanecido nas mãos dos seus torturadores uma semana inteira ou apenas algumas horas. E o que lhe perguntavam? Allende... Xadrez... Plano Z... O que seria esse Plano Z?, não fazia a menor ideia..., mas não se encontrava só. Havia outros, muitos outros, espalhados ao longo daquelas celas. Havia ruído de pás de enormes ventiladores girando e girando, havia gritos arrepiantes, havia balas...
- Fuzilaram-nos... fuzilaram-nos... - murmurava Victor. Sentado nas galerias que frequentara para assistir a jogos
de futebol e a diversos atos culturais, como a cerimónia de homenagem a Pablo Neruda, via agora milhares de prisioneiros vigiados de perto por soldados. Quando o soldado que para lá o conduzira se afastou, outro prisioneiro se abeirou dele, sentou-o num banco e ofereceu-lhe água de um cantil.
- Fique tranquilo, companheiro. Por agora, o pior já passou. - Depois destas parcas palavras, deixou que Victor bebesse até esvaziar o cantil e ajudou-o a estender-se, colocando-lhe a trouxa sob a cabeça. - Tente descansar... Olhe que isto está para durar.
Era um trabalhador do setor metalúrgico que fora detido dois dias após o golpe e já estava ali há várias semanas.
Quando caiu a tarde e o calor começou a diminuir, e Victor conseguiu enfim sentar-se, o homem pô-lo ao corrente do procedimento a seguir.
- Tente não chamar a atenção dos guardas. Conserve-se o mais possível quieto e calado. Olhe que ao mínimo pretexto eles são bem capazes de nos matar à pancada. São umas bestas!
- Tanto ódio! Tanta crueldade... Não consigo entender... - estremeceu-se Victor. Sentia a boca seca e enredarem-se-lhe as palavras na garganta.
- Todos podemos converter-nos em selvagens se nos derem uma ordem e se nos meterem uma espingarda nas mãos... - interveio outro prisioneiro que se lhes acercara.
- Eu não, companheiro - rebateu o metalúrgico. - Eu vi, com estes olhos que a terra há de comer, como estes militares de merda destroçaram as mãos de Victor Jara, e como lhe gritavam: "A ver se agora cantas, cabrão!". E vi como depois de uma sova monumental o fuzilaram sem mais delongas.
- O fundamental é que alguém do lado de fora saiba onde estás - acrescentou outro -, assim podem seguir-te o rasto no caso de desapareceres. Acontece com muitos. És casado?
- Sim - assentiu Victor.
- Dá-me os dados, ou a direção, ou o número de telefone da tua mulher... assim a minha filha poderá avisá-la. Passa o dia inteiro do lado de fora do estádio com outros familiares dos prisioneiros à espera de notícias.
Mas Victor não acedeu. Temeu que aquele homem fosse um falso preso, um bufo para subtrair-lhes mais informação.
Uma das enfermeiras do hospital de San Juan de Dios, que presenciara a detenção de Victor, conseguira localizar Roser na Venezuela e informá-la por telefone de quanto ocorrera. Mal soube, Roser falou com Marcel para lhe comunicar a má notícia, ordenando-lhe que não saísse do Colorado, pois do lado de fora do país seria de maior utilidade do que no Chile.
Ela pretendia regressar de imediato. Comprou uma passagem de avião e, antes de embarcar, foi ver Valentín Sánchez. "Mal saiba o que foi feito do teu marido, vamos resgatá-lo.", prometeu-lhe o amigo. Deu também a Roser uma carta para o embaixador da Venezuela no Chile, seu antigo colega, e em cuja residência centenas de exilados esperavam a obtenção de um salvo-conduto que pudesse abrir-lhes a porta do exílio. Era uma das poucas embaixadas que atualmente auxiliavam os fugitivos do regime militar recém-instaurado. A Caracas começavam a chegar centenas e centenas de chilenos, que em breve se converteriam em milhares.
Roser aterrou no Chile em finais de outubro, e só em novembro soube que o marido fora levado para o Estádio Nacional, mas quando o embaixador venezuelano foi indagar a seu respeito, apenas recebeu a informação de que Victor Dalmau jamais ali estivera. Nessa altura, estavam a proceder à evacuação do estádio, distribuindo os prisioneiros por diversos campos de concentração, criados para o efeito por todo o país. Roser passou os meses seguintes a tentar localizá-lo, recorrendo a amizades, a contactos internacionais, pedindo auxílio a diversas autoridades, consultando as listas de desaparecidos afixadas nas igrejas. O nome de Victor não figurava em lado nenhum. Simplesmente isso: esfumara-se.
Fora conduzido juntamente com outros presos políticos numa caravana de camiões, um dia e uma noite de viagem, a um acampamento de extração de sal situado no norte do país, há muito abandonado e recentemente convertido em prisão. Aquele grupo era constituído pelos primeiros duzentos detidos que ocupariam o campo. Aquelas instalações improvisadas, que outrora abrigavam os trabalhadores da indústria do sal, estavam agora rodeadas de arame farpado eletrificado, vigiadas por altas torres e por militares continuamente armados de metralhadoras. Havia também um tanque que fazia sempre a ronda do perímetro do campo, de quando em vez auxiliado por aviões da Força Aérea. O diretor daquela prisão de segurança era um oficial de polícia, obeso, que não sabia exprimir-se senão por meio de desatada gritaria, e transpirava profusamente no interior de um uniforme que lhe ficava demasiado justo. Era um homem prepotente, forte com os fracos e fraco com os fortes, que se propôs a hedionda tarefa de infernizar continuamente a vida dos prisioneiros, como paga pelos crimes cometidos e pelos que pensavam ainda cometer, segundo lhes anunciou pelos altifalantes logo que chegaram. Mal desceram dos camiões, foram obrigados a despir-se integralmente, sendo deixados ali, expostos ao inclemente sol do deserto, durante horas a fio, sem receberem água ou alimento. Enquanto isso, o comandante percorria as fileiras de detidos, dirigindo-se a cada um deles a fim de os insultar e humilhar. Desde o princípio instaurou os castigos arbitrários, esperando assim quebrar por completo o moral das suas vítimas, sendo nisso imitado e seguido pelos seus subalternos. Victor Dalmau julgava estar mais bem preparado que os outros para resistir, devido à permanência de vários meses no campo de Argelès-sur-Mer, mas isso fora há muitos anos, no tempo em que era ainda jovem. Estava quase a chegar aos sessenta, mas, até ser detido, pouco tempo tivera para pensar na sua idade. Ali, naquele desterro do Norte, durante os dias ardentes e as noites gélidas das pampas do sal, desejou morrer de exaustão. Qualquer pretensão de fuga era impossível. Estava rodeado pela vasta imensidão do deserto: milhares e milhares de quilómetros de terra ressequida, pedras, areia e vento. Pela primeira vez, sentiu-se velho.
XI.
1974-1983,
Agora te contarei tudo.
Será tua a minha terra.
Eu a conquistarei,
não só para a ti a ofertar,
mas para todos,
para todo o meu povo.
Pablo Neruda
"Carta de viagem".
Os Versos do Capitão.
Durante os onze meses que passou no campo de concentração, em lugar de morrer de exaustão, como esperava, Victor Dalmau viu que se lhe fortaleciam a mente e o corpo. Sempre fora magro e seco de constituição, mas agora reduzira-se a músculos e fibra, com a pele queimada pelo sol impiedoso, pelo sal e pela areia, e o rosto marcado; era uma escultura de Giacometti em metal bruto. Não o derrotaram os absurdos exercícios militares, as flexões, as marchas sob o sol inclemente, as horas de imobilidade exposto ao gelo da noite, os golpes, as punições, nem os trabalhos forçados, geralmente associados a tarefas inúteis. Humilhado e faminto, resignou-se ao papel de prisioneiro. Renunciou à ilusão de controlar fosse o que fosse na sua vida: encontrava-se completamente sujeito em mãos dos seus captores, que sobre ele dispunham de um poder ilimitado, bem como de absoluta impunidade. Ele, Victor, era dono apenas das suas emoções. Para si próprio, repetia a fábula das canas, que sob a tempestade se dobram sobre si, e assim se protegem, sem, contudo, se quebrarem. Já vivera antes uma situação similar. Defendeu-se da estupidez e do sadismo dos seus algozes encerrando-se dentro de si, no privado espaço das suas recordações mais felizes, alimentando e agarrando-se à certeza de que, lá fora, Roser o procurava e o viria resgatar, e, submerso naquele silêncio, tão pouco falava que os outros prisioneiros lhe haviam posto a alcunha de "O Mudo". Pensava em Marcel, que passara os primeiros trinta anos de vida praticamente em silêncio, simplesmente porque não sentia vontade de falar. Do mesmo modo, ele não desejava fazê-lo... apenas porque não tinha nada para dizer. Os seus companheiros de cativeiro tentavam animar-se, cochichando longe dos ouvidos dos vigias, enquanto ele pensava com profunda nostalgia em Roser, em tudo quanto haviam vivido e no quanto a amava, e, para manter vivas a mente e a memória, repassava as jogadas de xadrez mais célebres que conhecia de cor, e algumas outras que jogara com o Presidente. Em determinada altura, acalentou a esperança de esculpir umas peças de xadrez a partir das porosas pedras que brotavam do deserto, a fim de poder jogar com os outros, mas nada disso era possível, sob a vigilância despótica dos guardas: quase todos provinham da classe operária; as suas famílias eram, em geral, pobres, e talvez a maioria tivesse, a princípio, simpatizado com a revolução socialista, mas agora cumpriam as ordens do novo regime com crueldade, como se as passadas ações dos prisioneiros constituíssem para eles ofensas pessoais.
Todas as semanas transferiam homens para outros campos de concentração, ou fuzilavam-nos, dinamitando-lhes os despojos mortais em pleno deserto. Ainda assim, era muito superior o número dos que chegavam do que dos que partiam. Victor calculou que ali havia mais de mil e quinhentos detidos, provenientes de todas as regiões do país, de todas as idades e de diferentes profissões. Entre si, apenas tinham em comum a recente condição de perseguidos. Eram os inimigos da pátria. Alguns, como ele, nunca haviam sido filiados em qualquer partido nem desempenhado cargos políticos. Encontravam-se ali devido a uma denúncia vingativa ou por um erro burocrático.
Começara a primavera, e os prisioneiros temiam já a chegada do verão, que convertia o campo num verdadeiro inferno durante as horas mais tórridas do dia, quando o destino de Victor mudou subitamente. O comandante sofreu um ataque cardíaco, enquanto seguia, como sempre, embalado na sua arenga de ameaças, ordens e insultos, frente aos prisioneiros que, formados, descalços, e apenas em roupa interior, tudo suportavam em silêncio. Ofegou, caiu de joelhos, arquejante, e por fim ali ficou, estendido sobre a terra, antes que os soldados mais próximos pudessem ampará-lo. Nenhum dos presos se moveu ou ousou articular o menor som. Para Victor, a cena transcorria em câmara lenta, como se se verificasse noutra dimensão, como parte de um pesadelo. Observou que dois soldados acorriam a erguer o comandante, enquanto outros se precipitavam a chamar o enfermeiro. Sem pensar nas consequências, avançou como um sonâmbulo por entre as fileiras de homens. A atenção de todos concentrava-se no comandante caído, de forma que, quando repararam em Victor e lhe ordenaram que se detivesse e que se deitasse no chão, este já se encontrava na frente da formação.
- É médico - gritou um dos prisioneiros.
Victor prosseguiu em passo apressado, e em poucos segundos aproximou-se do comandante inconsciente sem que ninguém lho impedisse. Os soldados tinham recuado um passo para lhe concederem um mais amplo espaço de manobra. Comprovou que o comandante não respirava. Por gestos, indicou a um dos guardas que lhe aliviasse a pressão do uniforme, enquanto lhe fazia a respiração artificial, comprimindo-lhe vigorosamente o peito com ambas as mãos. Sabia que na enfermaria dispunham de um desfibrilhador manual, porque já vira usarem-no para reanimar algumas vítimas de tortura. Poucos minutos depois, chegava, correndo, o enfermeiro, seguido de um auxiliar, trazendo oxigénio e o desfibrilhador, e ajudou Victor no processo de reanimação.
- Um helicóptero! Este homem precisa de ser levado para um hospital imediatamente - exigiu Victor, mal verificou que o coração voltava à vida.
Em ombros, conduziram o paciente à enfermaria, onde Victor o manteve com vida até à chegada do helicóptero, que sempre se encontrava a postos, estacionado num dos extremos do campo. Encontravam-se a trinta e cinco minutos de voo do hospital mais próximo. Ordenaram a Victor que acompanhasse o paciente; deram-lhe uma camisa lavada, umas calças e umas botas militares.
Era um hospital de província pequeno, mas bem apetrechado, que em tempos normais disporia de todos os recursos necessários para fazer face a uma emergência como aquela. Apenas havia dois médicos de serviço. Ambos conheciam a reputação do Doutor Victor Dalmau, pelo que o receberam respeitosamente. Por uma daquelas ironias da vida, tanto o cardiologista como o cirurgião-chefe haviam sido presos, comunicaram-lhe. Victor nem tempo teve para se questionar para onde os teriam levado, já que nenhum se encontrava entre os detidos do seu campo. A sala de operações era o seu habitat natural: fora durante décadas o seu lugar de trabalho por excelência, e, como sempre dizia aos seus alunos, o músculo do coração não tem nenhum mistério... os mistérios que se lhe atribuem são todos subjetivos.
Deu rapidamente as instruções necessárias, lavou-se, preparou o comandante e, auxiliado por um dos médicos, efetuou ; a cirurgia que havia feito milhares de vezes no exercício da sua profissão. Comprovou que a memória e a destreza das mãos lhe permaneciam intactas. Era como se se movessem com vontade própria.
Passou a noite inteira de vigília junto do paciente, muito mais eufórico que cansado. No hospital nenhum guarda armado o vigiou. Trataram-no com deferência e admiração, serviram-lhe um bife acompanhado de puré de batata, um copo de vinho tinto e um sorvete de sobremesa. Por algumas escassas horas, voltara a ser o Doutor Dalmau, em vez de um mero número. Quase não se lembrava de como era a vida antes de ter sido detido, da vida em liberdade. A meio da manhã seguinte, o estado do comandante ainda era considerado grave, mas permanecia estável. Chegara, entretanto, um cardiologista do exército, que viera propositadamente de Santiago. Deram ordem de reconduzir o prisioneiro ao campo de concentração, mas, antes disso, Victor conseguiu ainda pedir ao médico que o ajudara na cirurgia que entrasse em contacto com Roser. Era um risco, pensou, porque o médico devia ser de direita. Ainda assim, durante as horas que trabalharam juntos, tornara-se evidente que o respeito entre eles era mútuo. Victor estava certo de que Roser regressara ao Chile para o encontrar e resgatar, pois era o que ele, em circunstâncias idênticas, teria feito por ela.
O novo comandante do campo era tão adepto de métodos cruéis como o seu antecessor, mas Victor apenas teve de suportar esta conduta cinco dias. Na manhã do sexto dia, quando em alta voz pronunciavam o nome dos prisioneiros que levariam, disseram também o nome de Victor. Era esse o pior momento do dia, a possibilidade de serem transferidos para um qualquer centro de tortura, ou para um campo ainda pior - pior mesmo que a própria morte.
Após três horas em que foram obrigados a esperar de pé, o grupo foi conduzido a um camião. O soldado que conferia os nomes dos detidos numa lista deteve Victor antes que este subisse para o veículo.
- Tu ficas aqui, cabrão!
Teve de esperar mais uma hora antes de o levarem ao gabinete do comandante, onde este pessoalmente lhe anunciou, estendendo-lhe uma folha de papel, que Victor podia considerar-se um homem de sorte: a partir daquele momento, estava em liberdade condicional. E acrescentou:
- Se fosse por mim, meu comuna filho da puta, abria-te a porta do campo e mandava-te sozinho a caminhar pelo deserto..., mas, infelizmente, as ordens que tenho são de te levar novamente ao hospital.
Ali o esperavam Roser, acompanhada por um funcionário da Embaixada da Venezuela. Abraçou-a com o desespero de um náufrago, onde cabiam todos os longos meses de incerteza em que pensara nela com um amor que jamais se atrevera a confessar-lhe.
- Ai, Roser... como senti a tua falta! - murmurava, com o rosto enterrado no seu cabelo. Os dois choravam.
A liberdade condicional implicava apresentação diária numa esquadra da polícia para assinar um livro de presenças. E tal procedimento poderia ser muito demorado, dependendo da disposição e da boa vontade do oficial que estivesse de serviço. Assinou duas vezes antes de tomar a decisão de se exilar na Embaixada da Venezuela. Nesses dois dias, compreendeu que o facto de ter estado preso o condenava ao ostracismo. Não poderia voltar a trabalhar no hospital, os seus antigos amigos evitavam-no e poderia ser novamente detido a qualquer momento. O clima de tensão e de temor constante em que Victor vivia contrastava com o otimismo revanchista que demonstravam os partidários da ditadura. Não se comentava o que veladamente ocorria nas sombras. Ninguém ousava protestar. Os trabalhadores esmagados haviam sido completamente subjugados, perdendo os direitos conquistados. Agora, podiam ser despedidos sem razão e a qualquer momento, e aceitavam qualquer salário, por mínimo que fosse, porque na porta de cada fábrica havia uma fila de desempregados à espera de uma oportunidade. Era o paraíso dos empresários. A versão oficial descrevia um país limpo, organizado, onde imperava a ordem, um país que caminhava rumo à prosperidade e ao progresso. Victor pensava nos mortos, nos torturados, nos rostos dos homens que conhecera na prisão, e em todos os que simplesmente haviam desaparecido. Cada vez mais lhe custava reconhecer o país que o acolhera com um fraterno abraço, trinta e tantos anos antes, e que, desde então, passara a amar como própria pátria. Tudo estava diferente.
Ao segundo dia de liberdade, confessou a Roser que não conseguiria suportar viver em ditadura.
- Não consegui em Espanha... e não conseguirei aqui. Já sou demasiado velho para me sujeitar a viver no medo, Roser. Mas, se por um lado me é insuportável a ideia de viver em ditadura, também me parece intolerável a hipótese de partir para um novo exílio. A verdade é que é impensável permanecer aqui e aguentar as consequências...
Ela alegou que seria uma situação temporária, que o regime militar terminaria em breve, pois o Chile respirava uma grande e sólida tradição democrática. Então poderiam regressar. Mas esse argumento esfacelava-se ante a perspetiva de que Pinochet pudesse ou pretendesse seguir o exemplo de Franco, que já estava há trinta anos no poder. Victor passou a noite insone, com Roser encolhida ao seu lado, escutando os ruídos difusos que subiam da rua e pensando na ideia de partir. Por volta das três da madrugada, sentiu que um carro parava diante da sua casa. Só podia ser para o voltarem a prender!, pensou, sobressaltado, uma vez que, durante as horas do recolher obrigatório, apenas tinham autorização de circular veículos militares ou pertencentes a agentes de segurança. Nem pensar em fugir ou esconder-se. Permaneceu imóvel, empapado num suor gelado e com o peito a ressoar-lhe descompassado, convertido num tambor frenético. Roser, escondida pelas cortinas, assomou à janela e divisou um segundo automóvel preto que parava junto do primeiro.
- Victor, veste-te rápido - ordenou-lhe.
Então viu que vários homens desciam dos carros, descontraídos e sem pressa. Nada de correrias, nem gritos ou armas. Deixaram-se ficar por ali mais algum tempo, fumando e conversando descontraidamente, até que, por fim, partiram. Victor e Roser, trémulos e abraçados, esperaram junto da janela que o dia rompesse, e que, às cinco da manhã, terminasse o recolher obrigatório.
Roser conseguiu que o embaixador viesse buscar Victor num automóvel do corpo diplomático. Nessa altura, já a maior parte dos exilados conseguira partir para os países que os haviam aceitado, e as medidas de segurança impostas eram menos restritas. Victor chegou à Embaixada escondido no porta-bagagens. Um mês mais tarde, deram-lhe finalmente o visto de residência na Venezuela, e dois funcionários da Embaixada acompanharam-no até à porta do avião, onde Roser já o esperava. Estava lavado e barbeado e sentia-se tranquilo. No mesmo avião viajava outro exilado, a quem apenas retiraram as algemas quando já se encontrava no seu lugar. Ia imundo, desgrenhado e trémulo. Já em pleno voo, Victor, que o observava, acercou-se-lhe. Foi difícil entabular com o refugiado um diálogo mínimo e convencê-lo de que não era um agente dos Serviços de Segurança. Reparou que lhe faltavam os dentes da frente e que o fugitivo apresentava vários dedos partidos.
- Em que posso ajudá-lo, camarada? Sou médico.
- Vão regressar e voltar a levar-me para... - e, balbuciando, rompeu a chorar.
- Acalme-se. Já temos quase uma hora de voo. Não vamos regressar a Santiago, garanto-lhe. Este é um voo direto a Caracas. Sem escalas. Vão ajudá-lo, vai ficar e em segurança. Vou arranjar-lhe qualquer coisa para beber. Vai fazer-lhe bem.
- Preferia algo de comer... - suplicou o outro.
Roser passara longas temporadas na Venezuela dando concertos com a Orquestra de Música Antiga. Ali fizera amigos, tinha conhecimentos e movia-se à vontade, numa sociedade em que as regras de convivência eram muito diferentes das do Chile. Valentín Sánchez apresentara-lhe os contactos certos e abrira-lhe as portas do meio cultural. Há vários anos que o romance com Aitor Ibarra terminara, mas continuavam amigos. Ela visitava-o de quando em vez. O ataque sofrido deixara-o semi-inválido e com alguma dificuldade para modular corretamente as palavras, mas não lhe diminuíra nem a argúcia da mente nem o seu faro apurado para desenterrar qualquer possibilidade de um negócio rentável à espreita... negócios esse que o seu filho mais velho administrava. Residia no cimo da encosta de Curumo, onde cultivava orquídeas e colecionava pássaros exóticos e automóveis únicos, feitos à mão. Era um recinto fechado, um parque frondoso com várias construções, cercado por um alto muro de castelo e vigiado por um guarda armado. Ali viviam também dois dos seus filhos já casados e os respetivos netos. Segundo dissera, a sua mulher jamais suspeitara da longa relação que mantivera com Roser, ainda que ela duvidasse, pois, ao longo dos anos, haviam deixado diversos rastos e pistas do seu amor. Concluiu que a antiga Rainha da Beleza aceitara tacitamente que o marido fosse um mulherengo, como tantos outros homens, para os quais essa característica era evidente prova de virilidade, mas que deixara passar tal facto, não lhe conferindo importância de maior: era ela a esposa legítima, a mãe dos seus filhos, a única que contava. Desde que Aitor ficara prostrado pela paralisia, tivera-o exclusivamente para si, e chegara a gostar dele ainda mais, pois descobrira as suas muitas qualidades, essas que, com a agitação dos negócios e do dia a dia, haviam por tanto tempo permanecido ocultas aos seus olhos. Juntos envelheciam em perfeita harmonia, rodeados da família.
- Como vês, Roser, não há mal que bem não traga... Nesta cadeira de rodas sou melhor marido, pai e avô do que seria se ainda pudesse andar... e ainda que não acredites, agora sou feliz - comentara-lhe ele durante uma das suas visitas. Para não alvoroçar o amigo, ela decidiu não lhe referir o quão importante era para si a recordação daquelas tardes passadas entre beijos e vinho branco.
Ambos haviam jurado que jamais contariam aos respeti-vos cônjuges sobre aquele amor passado. Para quê magoá-los? Porém, Roser não cumpriu a sua parte. No período de dois dias entre a libertação de Victor e os preparativos para o novo exílio, apaixonaram-se como se tivessem acabado de se conhecer. Fora um descobrimento luminoso. Haviam sentido tão intensamente a falta um do outro que, ao reencontrarem-se, não se reconheceram como tinham sido outrora, e como sempre se tinham visto um ao outro, na época distante em que fingiam fazer amor no bote salva-vidas do Winnipeg, ainda jovens e tristes, consolando-se entre murmúrios e carícias castas. Ela apaixonou-se por um estranho alto e seco, de feições marcadas como que esculpidas em madeira escura, de olhar terno e cheiro a roupa recém-lavada, capaz de a surpreender e de a fazer rir por tudo e por nada, capaz de lhe dar prazer como se lhe soubesse de cor a geografia do corpo, capaz de a embalar e acolher a noite inteira, para que adormecesse e acordasse no seu ombro, de dizer-lhe coisas que ela jamais esperara ouvir, como se o sofrimento prolongado lhe tivesse demolido as defesas, deixando transparecer o homem secretamente sentimental que nele ainda vivia. Victor, por sua vez, apaixonou-se pela mulher de quem sempre gostara com um incestuoso afeto de irmão. Durante trinta e cinco anos haviam sido casados, mas só nesses brilhantes dias do reencontro ele fora capaz de vê-la desprovida da carga do passado, da sua condição de viúva de Guillem e de mãe de Marcel, convertida numa aparição jovem e fresca. Aos cinquenta e tantos anos, Roser revelou-se-lhe sensual, dotada de uma inesgotável reserva de energia e sem recear fosse o que fosse. Ela odiava a ditadura tanto como ele, mas não a temia. Victor deu-se conta de que, sem contar com voar de avião, Roser nunca temera nada nem ninguém, nem sequer durante o final da Guerra Civil. Com a mesma coragem com que nesses tempos enfrentara a perspetiva do exílio, enfrentava-o novamente agora, com o rosto erguido e os olhos postos no futuro, sem olhar para trás, sem nostalgias, sem uma queixa sequer. De que indestrutível matéria seria ela feita? Que sorte imensa tivera em tê-la junto a si tantos anos!... Como pudera ser tão insensível a ponto de não a amar como ela merecia desde o princípio?... Amava-a agora! Nunca imaginou que, já homem maduro, se pudesse enamorar como um adolescente e sentir o desejo deflagrar como uma labareda. Olhava-a deslumbrado, pois sob aquela mulher permanecia intacta a menina que Roser fora quando guardava cabras num qualquer monte da Catalunha; continuava ali a mesma inocência e o mesmo fulgor inebriante. Quisera protegê-la e cuidá-la, ainda que soubesse que nas horas amargas era ela a mais forte. Tudo isso e muito mais lhe disse nesses breves dias do reencontro, e continuaria a repeti-lo e a dizê-lo todos os dias até à hora da sua morte. Durante esses íntimos momentos de confissões e de lembranças, em que partilharam misérias e imensidões e segredos, ela falou-lhe de Aitor Ibarra. Ao ouvi-la, Victor sentiu que lhe disparavam um tiro em pleno peito. O facto de saber que essa aventura terminara já há bastante tempo não foi senão um meio consolo. Sempre mantivera desperta a suspeita de que, durante as suas viagens, Roser se encontrava com um amante... ou talvez com vários, mas a confirmação da existência de um amor duradouro e sério despertou-lhe uns ciúmes retroativos que, caso ela o tivesse permitido, teriam destruído a beleza daquele momento. Com o seu inabalável bom senso e sentido prático do mundo, Roser fez-lhe ver que nunca o negligenciara em favor de Aitor, pois para ambos, e desde o início, aquela relação permanecia num compartimento estanque dos seus corações, sem que interferisse nas suas vidas.
- Nesse tempo, Victor, nós éramos grandes amigos, companheiros, cúmplices e confidentes um do outro. Éramos marido e mulher, mas não os amantes que somos hoje. Se to tivesse contado na altura, ter-te-ia magoado muito menos porque nunca sentirias isso como uma traição. Ao fim e ao cabo, também me foste infiel.
Ao ouvir isto, Victor sobressaltou-se. Os seus deslizes amorosos haviam sido sempre insignificantes. Quase não os recordava, e nem por sombras suspeitava de que ela deles tivesse conhecimento. Aceitou o seu argumento com escassa convicção, e ficou a ruminar os ressentimentos por algum tempo, até se dar conta da inutilidade de se deixar afundar no pântano do passado. "O que lá vai, lá vai", como costumava dizer a sua mãe.
Victor foi recebido na Venezuela com a mesma despreocupada generosidade com que ali eram acolhidos milhares de emigrantes provenientes do mundo inteiro, e também, ultimamente, refugiados da recente ditadura do Chile, bem como da guerra suja entre a Argentina e o Uruguai, isto para não falar dos colombianos que passavam ilegalmente a fronteira, tentando escapar da pobreza. Era uma das poucas democracias que subsistia num continente assolado por regimes cruéis e por violentas ditaduras militares... e era também um dos países mais ricos do mundo, devido ao interminável caudal de petróleo que lhe jorrava da terra, abençoada também com a existência e abundância de outros minerais, com uma natureza exuberante e com uma localização privilegiada. Os recursos eram tantos que não havia necessidade de ninguém se matar a trabalhar. Havia oportunidades de sobra para todos quantos quisessem ali estabelecer-se. Vivia-se alegremente, de festa em festa, com uma grande liberdade, permeada por um profundo sentido igualitário. Qualquer mínimo pretexto era passível de ser comemorado e celebrado com música, baile e álcool; o dinheiro parecia correr sem fim; a corrupção beneficiava a todos. "Não te deixes enganar... há aqui muita pobreza, especialmente na província. Os sucessivos governos sempre se esqueceram e continuam a esquecer-se dos pobres... a necessidade gera violência, e, mais cedo ou mais tarde, o país há de pagar esta negligência.", confidenciava Valentín Sánchez a Roser.
Para Victor, que vinha de um Chile sóbrio e reservado, esmiuçado e recalcado pela ditadura, aquela alegria espampanante deixava-o chocado. Achou as pessoas superficiais, que ninguém levava nada a sério, que havia demasiado desperdício e ostentação, e que tudo ali era temporal e passageiro. Queixava-se de que não conseguiria adaptar-se e de que já não tinha idade para semelhantes andanças, ao que Roser rebatia que, se aos sessenta podia ainda fazer amor com o ardor de um jovem, adaptar-se àquele país fantástico seria tarefa fácil.
- Relaxa, Victor... Essa mania de andares melancólico não te adianta nada. A dor é inevitável; o sofrimento é voluntário.
O seu prestígio de médico competente era conhecido, pois vários estudantes que haviam estudado no Chile foram seus alunos. Não precisou, por isso, de ganhar a vida conduzindo um táxi ou servindo num qualquer café ou restaurante, como sucedia e sucedera já com tantos outros bons profissionais desterrados, que, na contingência de haverem sido privados do seu passado, se viam obrigados a começar do zero. Não lhe foi difícil convalidar o seu diploma de médico, e em pouco tempo estava a trabalhar no mais antigo hospital de Caracas. Nada lhe faltava, mas sentia-se irremediavelmente estrangeiro, vivendo em suspenso, sempre aguardando as notícias que vinham do Chile. Roser continuava com a sua orquestra e Marcel, que terminara o doutoramento no Colorado, estava a trabalhar na companhia petrolífera venezuelana. Estavam satisfeitos, mas não deixavam de pensar no Chile com a esperança de um regresso.
Enquanto Victor contava os dias para o torna-viagem, morreu Franco, no dia 20 de novembro de 1975, após uma longa doença e agonia. Pela primeira vez em muitos anos, Victor sentiu-se tentado a voltar a Espanha. "Afinal de contas, o caudilho era mortal como os demais..." fora o único comentário a que Marcel se prestara, ele que não sentia qualquer curiosidade pelo país dos seus antepassados. Era chileno de coração. Por seu lado, Roser decidiu acompanhar Victor, pois a ideia de qualquer separação entre os dois, por breve que fosse, enchia-os de angústia... era como que tentar as partidas do destino. Podia suceder que nunca mais se pudessem reencontrar. A lei que rege o Universo tende à entropia, tudo tende para o caos, para terminar, para perder-se, para quebrar-se e dispersar-se, as pessoas fatalmente se desencontram... reparem em quantos se perderam para sempre durante a retirada, os sentimentos esmorecem e desmoronam-se, e o esquecimento atravessa as vidas de uns e de outros como uma névoa que tudo tolda. É necessária uma vontade férrea para resistir a esta inexorabilidade.
- Isso são manias de refugiados - opinava Roser.
- Não. São manias de apaixonados - corrigia-a Victor. Viram na televisão o funeral de Franco: o caixão escoltado por um esquadrão de lanceiros a cavalo desde Madrid até ao Vale dos Caídos; uma multidão homenageando o caudilho; mulheres ajoelhadas em prantos; a Igreja representada pela faustosa pompa solene de bispos e mais bispos em seus paramentos de gala, o interminável desfile das Forças Armadas, políticos e personalidades diversas trajando luto rigoroso... menos o ditador chileno, envolto num manto imperial. No ar pairava a pergunta: o que será de Espanha, desta Espanha pós-Franco?
Roser convenceu Victor de que seria sensato esperarem mais um ano, a fim de poderem observar, à distância, como ocorreria a transição para a liberdade, encabeçada e liderada por um monarca, que, como se veio a verificar, não seria a mera marioneta franquista que muitos esperavam, mas um homem decidido a conduzir o país ao caminho da democracia, pacificamente, contornando os obstáculos colocados por uma direita intransigente, que se negava a qualquer mudança, receosa de que, sem Franco, perderia todos os privilégios de antanho. O restante da população clamava pelas ansiadas e urgentes reformas e por que Espanha se recolocasse na rota da Europa e no trilho do século XX.
Em novembro do ano seguinte, pela primeira vez desde os duros tempos da retirada, Victor e Roser Dalmau voltaram a pisar o solo do seu país natal. Ficaram pouco tempo em Madrid, que continuava a ser a bela capital imperial que sempre fora. Victor mostrou a Roser os edifícios e os bairros destruídos pelas bombas, que haviam já sido reerguidos, e levou-a à cidade universitária a ver o impacto das balas, que ainda persistia nítido em algumas paredes. Dirigiram-se à região do Ebro onde supunham que Guillem tombara, mas nada encontraram ali que lembrasse a mais sangrenta das batalhas da guerra, que tantos mortos custara.
Quando em Barcelona, procuraram no Raval a antiga casa dos Dalmau. Os nomes das ruas tinham sido mudados, de forma que lhes custou um pouco a situarem-se... mas, por fim, lá estava ela, velhíssima e degradada, a tal ponto que parecia que só por milagre se sustinha de pé. Do exterior parecia desabitada, mas após terem batido à porta, e depois de algum tempo de espera, veio abrir-lhes uma jovem com os olhos pesadamente pintados de preto, envergando uma andrajosa saia de estilo indiano. Cheirava a marijuana e a patchouli e teve alguma dificuldade em entender cabalmente o que pretendia aquele casal de desconhecidos, pois andava a divagar e a flutuar noutra dimensão, mas, por fim, lá os convidou a entrar. A casa fora recentemente ocupada por uma comuna de jovens que, ainda que com alguns anos de atraso, pois no tempo de Franco tal não seria permitido, haviam adotado o estilo de vida hippie. Percorreram todas as divisões com uma sensação de vazio no estômago. As paredes estavam descascadas ou rabiscadas, havia pessoas estendidas no chão, a fumar ou a dormitar, lixo por toda a parte, a cozinha e o quarto de banho imundos, portas e persianas balançando-se precariamente, e coroando e envolvendo tudo, um penetrante cheiro a abandono, ar estagnado, sujidade e marijuana.
- Eu bem te dizia, Victor... Não se pode recuperar o passado - comentou-lhe Roser assim que saíram.
Assim como não reconheceram a casa dos Dalmau, também não reconheceram Espanha. Os quarenta anos de franquismo empedernido tinham deixado um sulco profundo que se tornava evidente não só no trato com as pessoas comuns, mas também em todos e cada aspeto cultural. À Catalunha, derradeiro bastião da Espanha Republicana, coubera-lhe a mais severa vingança dos infames vencedores e a repressão mais cruenta. Surpreendeu-os, ainda assim, que a sombra de Franco pairasse sobre tudo, e sobre tudo pesasse como um espectro. Havia descontentamento provocado pelo desemprego, pela inflação, pelas reformas que se levavam a cabo e pelas que teimavam em não passar do papel, pelo ainda poder da franja mais conservadora e pelo tumulto e desordem dos socialistas. Uns defendiam que se separasse a Catalunha do resto de Espanha, outros queriam integrá-la ainda mais. Muitos dos desterrados da guerra foram regressando aos poucos, a maioria velhos e desiludidos, mas o país já não tinha lugar para eles. Victor, por nostalgia, foi à taberna O Rocinante, que ainda existia, com o mesmo nome, e aí bebeu uma cerveja em honra do pai e dos seus companheiros de dominó, os velhos que tinham cantado no seu funeral. Tinham-se modernizado os tempos e os costumes, já não havia presuntos dependurados do teto nem cheiro a vinho carrascão. Em seu lugar, havia mesas de acrílico e ventiladores. O gerente comentou-lhe que Espanha fora pelo cano logo depois de Franco: pura desordem e grosseria por toda a parte, greves, protestos, manifestações, putas e pandeiros ao virar de cada esquina, e comunistas por todo o lado. Já ninguém respeitava os valores da família e da pátria nem acreditava em Deus. O rei era um imbecil... grande erro o do caudilho em tê-lo nomeado seu sucessor.
Alugaram um pequeno apartamento na Gracia, onde viveram seis eternos meses. O des-exílio, como chamaram àquele regresso à pátria que tinham deixado tantos anos antes, veio a demonstrar-se tão duro quanto fora a partida em 1939, quando atravessaram a fronteira francesa... mas demoraram esse tempo a admitir o quanto se sentiam estranhos naquele país, agora desconhecido, ele por orgulho, ela por estoicismo. Nenhum dos dois encontrou trabalho, em parte porque não havia emprego para pessoas da sua faixa etária, em parte por falta de contactos. Não conheciam ninguém. Já não conheciam ninguém. O amor salvou-os da depressão, porque se sentiam recém-casados e em lua de mel, em lugar de duas pessoas maduras, ociosas e solitárias, que passavam as manhãs errando e perdendo passos pela cidade, e decorriam as tardes em salas de cinema, assistindo uma e outra vez a filmes repetidos. Espreguiçaram e desfiaram aquela ilusão o mais possível, até que, num entediante domingo, que em nada se diferençava de outros dias também tediosos, não aguentaram mais. Estavam a tomar uma taça de chocolate quente acompanhada de uma merenda leve, para se aquecerem e reconfortarem, num café na Rua Petritxol, quando, num impulso, Roser proferiu a sentença que haveria de lhes ditar o curso da vida nos anos futuros.
- Estou farta até aos olhos desta merda de sermos sempre forasteiros em toda a parte. Vamos para o Chile. Afinal, é lá o lugar a que pertencemos.
Victor soltou um sonoro respiro de dragão e, inclinando-se, beijou-a demoradamente na boca.
- Vamos fazer isso assim que seja possível, Roser. Prometo-te. Mas por agora teremos de nos contentar com voltar para a Venezuela.
Estabelecidos na Venezuela, onde tinham já criado raízes, onde também estava Marcel e onde tinham já trabalho e amigos, haveriam de se passar vários anos até que Victor pudesse cumprir a sua promessa. A colónia de emigrantes chilenos crescia dia após dia, porque além dos exilados políticos, chegavam muitos outros em busca de oportunidades económicas. No bairro de Los Paios Grandes, onde residiam, ouvia-se mais o sotaque chileno do que a própria pronúncia venezuelana. A maioria dos que chegavam permanecia isolada na sua comunidade, lambendo as recentes feridas, na expectativa constante de notícias do Chile, onde nada dava mostras concretas de mudar, apesar dos animadores rumores que corriam de boca em boca, sem que, contudo, chegassem a confirmar-se. A verdade é que, ao que parecia, a ditadura continuava de pedra e cal. Segundo Roser, integrarem-se o mais e o melhor possível seria a única solução, e a única forma de envelhecerem saudavelmente e em paz. Nada mais podiam fazer a não ser viverem um dia de cada vez, gratos por tudo quanto lhes oferecia aquele país tão generoso, agradecidos por terem conseguido trabalho e por terem sido tão amistosamente acolhidos, sem se lamentarem continuamente dos dissabores do passado. O regresso ao Chile continuaria, ^ assim, em suspenso, sem, contudo, lhes arruinar o presente, uma vez que aquele futuro que tanto aguardavam podia teimar em demorar. Esse pensamento manteve-os afastados da nostalgia e de viverem apenas alimentando-se de vãs esperanças. Tentavam decorrer e existir, dia a dia, tudo aproveitando o melhor possível, sem culpas nem ressentimentos, o que, juntamente à generosidade, constituía a grande lição de vida que lhes oferecia a Venezuela. Victor mudou mais durante a década que se passou entre os sessenta e os setenta anos do que em toda a sua vida. Atribuiu tais alterações ao seu súbito e inesperado estado de enamoramento, à incansável luta que Roser travava para lhe limar as arestas do carácter e para lhe levantar o ânimo, e à positiva influência da movida caribenha, como chamava àquela espécie de atitude relaxada institucionalizada, que lhe relegou às profundezas do ser a sua anterior proverbial sobriedade, senão para sempre, pelo menos por largos anos. Aprendeu a dançar salsa e a tocar cuatro.
Foi nessa época que reencontrou Ofélia del Solar. Durante todo aquele tempo, desde a sua paixão de juventude, ia sabendo notícias suas, esporadicamente e sem chegar nunca a vê-la, pois pertenciam a meios sociais muito diferentes, e ela passara grande parte da vida noutros países, devido à profissão do marido. Além disso, sempre a evitara, receoso de que aquele frustrado amor de juventude ainda não se tivesse de todo extinguido e pudesse, de alguma forma, interferir na sua vida atual com Roser. Nunca chegou a compreender o porquê de um corte tão brusco por parte de Ofélia, sem outra explicação que uma seca e breve carta, escrita no tom caprichoso de uma miúda mimada, que para ele em nada condizia com a mulher que se evadia das aulas de pintura para fazerem amor num hotel de terceira. A princípio, entre lamentações e recriminações mastigadas em silêncio, chegou mesmo a detestá-la, atribuindo-lhe os piores defeitos, tão característicos e arreigados à classe social a que pertencia: egoísmo, pedantismo, arrogância, irresponsabilidade... Depois, a pouco e pouco, à medida que, com o passo do tempo, o enfado e a mágoa se iam atenuando, ficara-lhe só a lembrança da mulher mais bela que alguma vez conhecera, a recordação da sua gargalhada súbita e da sua espontânea coqueteria. Pensava nela cada vez com menos frequência e deixou de sentir o premente desejo de saber notícias suas. Quando no Chile, ainda antes de se instaurar a ditadura, ia-se inteirando de retalhos e de pormenores isolados e difusos da sua vida, que lhe chegavam em parte por Felipe, com quem se reunia uma ou duas vezes por ano, para preservar artificialmente uma amizade, baseada fundamentalmente na gratidão de Victor. Vira por diversas vezes algumas fotografias pouco favorecedoras de Ofélia nas colunas sociais dos jornais, mas nunca na secção dedicada às artes: o seu trabalho permanecia, de todo, desconhecido no Chile.
- Ora, ora! Isso não quer dizer nada. Não é caso único! Está sempre a acontecer com outros talentos nacionais... e mais ainda se são mulheres - comentou Roser, quando, certa ocasião, trouxera de Miami uma revista onde os quadros de Ofélia ocupavam as quatro páginas centrais.
Victor examinou atentamente as duas fotografias da artista que acompanhavam o artigo. Os olhos continuavam os mesmos de outrora, mas o restante mudara muito... Atribuiu tais mudanças à eventual má qualidade das fotografias ou da câmara.
Entretanto, Roser surgiu com a novidade de que haveria uma exposição de quadros da sua autoria no Ateneu de Caracas.
- Já reparaste que ela está a usar o apelido de solteira? Victor notara-lhe que tal era um hábito muito comum
das mulheres chilenas, e que, além disso, Matias Eyzaguirre morrera há alguns anos... Se Ofélia não usara o apelido o marido quando ele estava vivo, para quê fazê-lo agora?
- Bem... seja como for, vamos à inauguração! - decidiu ela. A reação imediata de Victor foi negar veementemente, mas
a curiosidade acabou por vencê-lo. A exposição era constituída por poucos quadros, mas ocupava três salas, pois estes eram de grandes dimensões. Ofélia não se distanciara da influência de Guayasamín, o ilustre pintor equatoriano com quem estudara. As suas telas apresentavam um estilo bastante similar, traços fortes, linhas em tons de escuro, figuras abstractas... mas nada tinham que fizesse lembrar a mensagem humanitária que transparecia nos quadros do mestre: nada de denunciar a exploração do homem pelo homem, nada de retratar a crueldade ou os conflitos históricos que marcavam o seu tempo. Eram sobretudo imagens sensuais, algumas bem explícitas, todas representando casais enlaçados em poses retorcidas ou violentas, e mulheres abandonadas ao sofrimento ou ao prazer. Victor tudo observava, confuso, porque se lhe afigurava que as emoções e as sensações que os quadros transmitiam nada tinham que ver com a ideia que ele conservava da artista.
Recordava-se de Ofélia, mas de uma Ofélia atravessando as águas da primeira juventude, uma rapariga mimada, ingénua e impulsiva, por quem se apaixonara, a que pintava aguarelas com paisagens ou ramos de flores. Dela apenas sabia que fora, primeiro, mulher e depois viúva de um diplomata de carreira. Enfim, uma mulher tradicional, aparentemente resignada ao seu destino. Mas aqueles quadros revelavam, sobre essa pele exterior, um temperamento ardente e uma surpreendente criatividade erótica, como se a paixão que despontara nos leitos daqueles hotéis miseráveis tivesse permanecido calada e encerrada no seu interior e apenas se vertesse à custa de pincéis sobre a tela.
O último quadro, que, solitário, ocupava uma parede inteira da galeria, produziu em Victor um profundo impacto. Era um homem nu com uma espingarda entre as mãos, pintado em tons de negro, branco e cinzento. Victor ficou a estudá-lo por vários minutos, sentindo-se perturbado, ainda que não soubesse o porquê de tal sensação. Aproximou-se para ler o título escrito na parede: Miliciano, 1973.
- Não está à venda - disse uma voz ao seu lado.
Era Ofélia, muito diferente da Ofélia que lhe morava na lembrança e das poucas fotografias que vira, uma Ofélia envelhecida e desbotada.
- Este quadro é o primeiro de toda uma nova série de quadros e marca o fim de uma etapa da minha vida... por isso não o vendo.
- Foi o ano do golpe militar do Chile - aventou Victor.
- Não tem nada a ver com o Chile. Esse ano foi o ano da minha libertação enquanto artista.
Até esse momento ela não se tinha dignado olhar para o seu interlocutor. Falava sempre com o olhar perdido no quadro. Quando, enfim, se voltou para prosseguir a explicação, não o reconheceu. Tinham-se passado mais de quarenta anos desde a última vez em que haviam estado juntos, e ela encontrava-se em desvantagem porque jamais tivera oportunidade de ver uma única fotografia dele.
Victor estendeu-lhe a mão e apresentou-se. Ofélia demorou alguns segundos a situar aquele nome no baú da memória, e quando por fim o localizou, soltou uma exclamação de surpresa tão espontânea que Victor ficou convencido de que não passara de simples disfarce ou artifício, pois, na realidade, não chegara a perceber de facto quem ele era. O que ele carregara no coração com tanta mágoa durante todos aqueles anos, constatou, a ela simplesmente se escoara sem deixar o menor vestígio. Convidou-a para tomar uma bebida no bar e foi buscar Roser. Ao vê-las lado a lado, não deixou de notar como o tempo tratara de forma distinta as duas mulheres. Seria natural que fosse mais clemente e benévolo com Ofélia, mulher bela, refinada, frívola e rica. Mas não fora assim. Ofélia parecia mais velha do que Roser, com o cabelo descolorido, as mãos maltratadas e os ombros encurvados devido, pensou Victor, à sua profissão. Vestia uma túnica comprida e larga de linho cor de tijolo para disfarçar o excesso de peso, uma carteira enorme de tecido multicor típico da Guatemala e umas sandálias que lembravam as de um monge franciscano. Todavia, continuava a ser uma mulher bonita. Nos seus olhos, num rosto bronzeado de sol, mas cruzado de múltiplas rugas, brilhava a mesma luz que a habitara aos vinte anos. Roser, que à primeira vista não chamava a atenção, e que não era particularmente bonita nem atraente, pintava o cabelo e os lábios, trazia sempre arranjadas as suas mãos de pianista e com o tempo não perdera a postura nem aumentara de peso. Trajava com simplicidade elegante, calças negras e uma blusa branca. Cumprimentou Ofélia efusivamente, e logo se desculpou por não os acompanhar... tinha de se apressar para um ensaio da orquestra. Victor, a quem um único olhar interrogativo bastara para adivinhar-lhe a intenção de o deixar a sós com Ofélia, teve um instante de pânico.
No terraço do Ateneu, numa mesa entre esculturas modernas e plantas tropicais, Victor e Ofélia puderam passar a limpo o que de mais importante lhes sucedera no silencioso transcurso daqueles quarenta anos, sem, contudo, se referirem à paixão que outrora os alimentara. Victor não se atrevera a tocar nesse assunto, e muito menos a pedir-lhe qualquer explicação tardia, pois tal conduta pareceu-lhe, no mínimo, humilhante. Por seu lado, ela tão-pouco se prestou a abordar esse tema. O único homem relevante na sua vida fora Matias Eyzaguirre. Comparada com o extraordinário amor que vivera com ele, o episódio com Victor não passara de uma aventura, de uma paixoneta adolescente, que, a não ser pela existência de uma minúscula campa num isolado cemitério rural do Chile, já estaria há muito e para sempre esquecida. Também se absteve de partilhar esse facto com Victor. Esse segredo contara-o apenas a Matias. Carregara esse fardo em silêncio, resistindo e evitando o escândalo, como lhe sugerira e ordenara o padre Urbina.
Conversaram durante algum tempo como bons amigos. Ofélia contou-lhe que tivera dois filhos e que vivera trinta e três anos muito felizes com Matias Eyzaguirre, que continuou a amá-la com a mesma regularidade segura e com a mesma constância com que a perseguira até que ela acedesse a casar com ele. Amava-a tanto, e por vezes de uma forma tão possessiva, que os próprios filhos se sentiam pesados na presença de ambos.
- Mudou muito pouco ao longo do tempo. Sempre foi um homem calmo, sossegado, generoso, de uma lealdade inquebrável e incondicional para comigo. A passagem dos anos não fez senão aumentar-lhe as virtudes. Tentei apoiá-lo o melhor que soube e pude. A diplomacia não é uma coisa fácil. Mudávamos de país mais ou menos de três em três anos, deixando amigos e mais uma parte da vida para trás, para começar tudo outra vez noutro lugar. Também não foi fácil para os nossos filhos.
Nada fácil. E o pior de tudo foi a vida social. Eu não tenho vocação nenhuma para cocktails ou banquetes intermináveis!
- Podias ter-te dedicado à pintura...
- E eu tentei, mas só a tempo parcial. Havia sempre qualquer coisa mais urgente ou necessária para fazer. Quando as crianças cresceram e foram para a universidade, disse ao Matias que me queria reformar do emprego de mãe e de esposa e que pretendia dedicar-me exclusivamente à pintura. Ele achou justo. Deixou-me em completa liberdade. Nunca mais me pediu que o acompanhasse às receções e aos acontecimentos sociais, para mim, a pior parte... já te disse! Olha... um homem único! Tenho pena que não o tenhas conhecido.
- Só o vi uma vez. Foi ele quem me carimbou o visto de entrada no Chile, quando cheguei a bordo do Winnipeg, em 1939. Nunca o esqueci. Era um homem íntegro, Ofélia.
- Elogiava tudo o que eu fazia. Imagina que frequentou aulas de pintura e de arte para poder apreciar devidamente os meus quadros, porque não entendia nada de arte... e financiou a minha primeira exposição. Morreu vítima de um ataque cardíaco há seis anos... e não há um dia em que não chore a sua falta - confessou-lhe Ofélia, num impulso sentimental, que deixou Victor ruborizado.
Acrescentou que desde que se libertara dos seus deveres, vivia numa propriedade a duzentos quilómetros de Santiago, como camponesa, onde se dedicava ao cultivo de árvores de fruto e à criação de cabras anãs de longas orelhas, que depois vendia como animais de estimação. O resto do tempo passava-o pintando, e pintando, e pintando... a não ser quando viajava para visitar os filhos, que viviam no Brasil e na Argentina, ou quando, uma vez por mês, ia ver a mãe, nunca abandonava o seu atelier.
- A propósito... sabias que o meu pai morreu? Não?
- Sim. Saiu no jornal! Aqui os jornais chilenos chegam sempre com atraso, mas lá vão chegando... Estava muito próximo do Governo de Pinochet.
- Sim... mas isso foi só no início. Morreu em 1975. Se posso dizer isto... acho que a minha mãe rejuvenesceu com a morte dele. O meu pai era um déspota.
Contou-lhe que atualmente a mãe se dedicava menos às orações compulsivas e às obras de caridade, e mais a partidas de canasta e a sessões de espiritismo, que fazia em conjunto com um grupo de velhotas, e através das quais se comunicavam com as almas do além-mundo. Assim se mantinha em contacto com Leonardo, o seu eterno e adorado Bebé. O padre Vicente Urbina ignorava aquele mais recente pecado que manchava o lar dos Del Solar, porque ela tivera a sensatez de não lho confessar. Sabia que o facto de alguém se comunicar com os mortos era uma prática condenada e considerada demoníaca pela Igreja.
Ofélia referia-se ao sacerdote sempre com sarcasmo. Disse que, aos oitenta e tantos anos, Urbina era bispo e um dos mais acérrimos defensores dos métodos aplicados pela ditadura, todos plenamente justificados, tendo em conta as circunstâncias atuais, e a necessidade de proteger a cultura e a matriz cristã ocidental, face à ameaça e à perversidade do marxismo. O cardeal, que criara um departamento para proteger os perseguidos e tentar localizar os desaparecidos, viu-se obrigado a repreendê-lo quando, na sua exaltação, Urbina defendera publicamente a tortura e as execuções sumárias. O bispo continuava incansável no seu mister de salvar almas, principalmente as da sua clientela da zona alta da cidade, e continuava também a desempenhar funções de conselheiro privado dos Del Solar, muito mais poderoso e omnipotente desde a morte do patriarca. Dona Laura, os filhos, os genros, os netos e os bisnetos dependiam da sua suprema sabedoria para a realização de todas as decisões, das de grande monta às mais triviais e insignificantes.
- Eu escapei das suas garras porque ele não gosta de mim e porque felizmente passei grande parte da vida fora do Chile. É um homem sinistro. Felipe também se pôs a salvo... porque é o mais inteligente da família e porque passa metade do tempo em Inglaterra.
- O que é feito dele?
- Suportou estoicamente os três anos do Governo de Allende, porque acreditava que não duraria muito... e, de facto, não se enganava... mas, depois, a mentalidade tacanha da Junta Militar foi demais para ele. Até porque acredita que eles vão permanecer uma eternidade agarrados ao poder. Já sabes como ele é: venera tudo o que é inglês e detesta o ambiente hipócrita e santarrão do Chile. Aparece amiúde para ver a minha mãe e para controlar as finanças da família. Teve de tomar o lugar do meu pai nos negócios.
- Não tinhas outro irmão? Um que andava por aí a medir tufões e furacões...
- Sim. Instalou-se definitivamente no Havai. Só veio uma vez ao Chile para reclamar a parte dele na herança aquando da morte do meu pai. Lembras-te da Juana, a nossa governanta? A que adorava o teu filho Marcel? Está igualzinha! Ninguém, nem ela própria, sabe quantos anos tem..., mas continua ao leme da casa e ainda toma conta da minha mãe, que já tem noventa e tantos anos e está completamente demente. Aliás... o que mais há na minha família são dementes. Bem... já te contei as minhas novidades. Agora, conta-me tu, de ti e da tua família.
Victor resumiu-lhe em cinco minutos a sua vida, mencionando brevemente o período em que estivera preso, sem detalhar as dificuldades por que passara, em primeiro lugar, porque não achou de bom-tom fazê-lo, em segundo, porque supôs que Ofélia preferiria ignorá-las. Se ela adivinhou ou intuiu algo a partir das suas meias palavras, nada perguntou, limitando-se a afirmar que Matias sempre fora um conservador, mas que sempre servira o Chile como diplomata, e que, mesmo durante o período de Allende, tudo fizera sem nunca questionar as suas obrigações para com a pátria. Ao contrário, nos últimos tempos, sentia vergonha de representar o seu país, em virtude da má fama que a ditadura tinha conquistado aos olhos do mundo inteiro. A ela, a política nunca a interessara. A sua praia era exclusivamente a arte. Vivia em paz no Chile, entre árvores e animais... sem ler os jornais. Com ou sem ditadura, a sua vida era sempre a mesma, e seguiria imutável.
Despediram-se com a promessa de, a partir desse momento, manterem contacto, ainda que soubessem que tais palavras eram vazias de significado, não passando de mera formalidade. Quando se separaram, Victor sentiu-se aliviado. Com o tempo, todos os círculos e todos os ciclos se fecham. O de Ofélia concluíra-se e terminara sem mais, na mesa daquela cafetaria, sem deixar cinzas ou vestígios. As brasas há muito se haviam extinguido. Decidiu que, bem vistas as coisas, não se identificava com a personalidade de Ofélia nem gostava da sua pintura. O único traço que verdadeiramente lhe permanecia inalterável na memória eram aqueles estranhos olhos de um incrível azul cerúleo. Roser esperava-o em casa, um tanto inquieta, mas mal ele transpôs o umbral da entrada, bastou-lhe um olhar para rebentar numa gargalhada. Graças àquele encontro, o marido despojara-se do peso de vários anos. Comentou-lhe as principais notícias dos Del Solar e, em jeito de conclusão do tema, afirmou que Ofélia cheirava a gardénias moribundas. Tinha para si próprio que fora Roser quem urdira aquele encontro, que por isso mesmo o arrastara até à exposição e que propositadamente o deixara a sós com aquele antigo amor. Roser arriscava demasiado... e se, ao invés de se desencantar com a Ofélia atual, se tivesse voltado a apaixonar? Facto era que tal possibilidade não inquietava Roser em absoluto. O nosso problema é que ela me dá por adquirido, enquanto passo a vida apensar que ela pode ir com outro..., pensou.
XII.
1983-1991,
Habito agora um país tão suave
como a fina pele das uvas.
Pablo Neruda
"País".
Geografia Infrutuosa.
A notícia de que no Chile fora elaborada uma lista de cerca de mil e oitocentos exilados políticos cujo regresso à pátria enfim se permitia fora publicada no El Universal de domingo, único dia em que Victor e Roser se permitiam ler o jornal de ponta a ponta. Roser dirigiu-se ao consulado do Chile, onde a lista fora afixada numa janela, e, com efeito, um dos nomes que lá encontrou foi o de Victor Dalmau. Abriu-se-lhe o chão! Há nove anos que aguardavam aquele momento, e agora, que lhes surgia defronte, não conseguiu sentir alegria alguma. Aquilo significava uma vez mais abandonarem quanto possuíam, inclusivamente Marcel, para voltarem ao país de onde tinham partido por não suportarem a repressão. Perguntou-se que sentido fazia regressar se nada mudara realmente. Mas, nessa noite, enquanto conversava com Victor sobre o assunto, ele afirmou-lhe que, se não se apressassem a regressar de imediato, provavelmente nunca mais o fariam.
- Já começámos e recomeçámos do zero várias vezes, Roser. Podemos fazê-lo uma vez mais. Já tenho sessenta e nove anos e tenciono morrer no Chile - e ressoavam-lhe na memória uns versos de Neruda: "Como poderei viver longe / do que amei e do que amo ainda?".
Marcel manifestou-se de acordo. Ofereceu-se para, no lugar deles, ir fazer um reconhecimento prévio do terreno, e em menos de uma semana estava em Santiago. Ligou-lhes logo que pôde e contou-lhes que, aparentemente, o Chile se tornara um país moderno, mas que bastava escavar um pouco aquela superfície límpida para ver as fissuras e as falhas. Vicejava uma arrepiante desigualdade social. Três quartos da riqueza do país estavam nas mãos de uma dúzia de famílias. A classe média sobrevivia impulsionada pelo crédito; havia pobreza para muitos e opulência ao alcance de poucos; povoações misérrimas que contrastavam com brilhantes arranha-céus e mansões amuralhadas; bem-estar e segurança para uns, enquanto, para outros, apenas desemprego e repressão contínua. O milagre económico supostamente ocorrido e difundido nos anos anteriores, alicerçado na absoluta liberdade de capital e na ausência de direitos fundamentais, murchara como um balão de ar. Relatou-lhes ainda que era palpável o sentimento de que as coisas iam mudar. As pessoas pareciam menos diminuídas pelo medo, e havia manifestações em massa contra o Governo. Acreditava que a ditadura poderia cair pelo gume do seu próprio machado. Era, pois, o momento ideal para regressar. Acrescentou que, assim que chegara, lhe haviam oferecido o emprego na Companhia de Cobre, a mesma onde trabalhava antes de terem partido, quando não passava ainda de um recém-licenciado... e que ninguém lhe perguntara pelas suas convicções políticas. Apenas lhes interessavam o seu doutoramento nos Estados Unidos e a sua experiência profissional: "Vou ficar aqui, velhotes! Sou chileno." E essa foi a razão que definitivamente fez transbordar o copo... até porque eles também se consideravam chilenos, e em caso algum pretendiam separar-se do filho. Em menos de três meses, os Dalmau haviam vendido todas as suas posses e tinham-se despedido dos amigos e conhecidos. Valentín Sánchez propôs a Roser que regressasse triunfante e de cabeça erguida, visto que o seu nome jamais figurara em qualquer lista negra nem sob a impiedosa vigilância das autoridades, como ocorrera com o seu marido. Regressaria acompanhada pela Orquestra de Música Antiga... e regressaria em pleno para uma série de concertos gratuitos, em parques, jardins, igrejas e liceus. Quando ela inquiriu quem iria financiar semelhante empresa, ele respondeu-lhe que considerasse tal gesto um presente do povo venezuelano ao povo chileno. O orçamento para a área da cultura na Venezuela era generoso, e no Chile ninguém se atreveria a criar entraves. Tal constituiria uma afronta de proporções épicas e internacionais. E, de facto, assim foi.
Para Victor, no entanto, não foi tão fácil como para Roser abandonar novamente um país que tão bem os acolhera. Deixou para trás a sua posição no hospital de Caracas e a segurança económica que conquistara, para regressar a uma terra onde os desterrados eram vistos com desconfiança. Muitos apoiantes da esquerda culpavam-nos pelo exílio, em lugar de, diziam, terem permanecido como eles, para lutar contra o regime a partir de dentro. Por seu turno, a direita acusava-os de marxistas e de terroristas... por alguma coisa teriam sido corridos.
Quando se apresentou no hospital San Juan de Dios, onde trabalhara durante quase trinta anos, foi efusivamente saudado com abraços e até com algumas lágrimas, por antigos colegas e por enfermeiras de antes, que ainda se lembravam dele e que também tinham escapado à purga inclemente dos primeiros tempos da ditadura, quando médicos com ideias progressistas foram destituídos, presos ou simplesmente assassinados.
O diretor do hospital, militar de carreira, veio dar-lhe as boas-vindas pessoalmente e convidou-o para
o seu gabinete.
- Sei que o senhor salvou a vida do comandante Osório. Foi um ato muito nobre para alguém que se encontrava na sua situação - disse-lhe.
- Quer dizer: prisioneiro num campo de concentração? Sou médico. O meu dever é atender a quem precise dos meus serviços. Não importam as circunstâncias... Como está o comandante?
- Retirado há algum tempo... mas bem.
- Trabalhei muitos anos neste hospital e gostaria de ser reintegrado - disse Victor.
- Entendo o que me diz, mas deve ter em conta a sua idade.
- Ainda não completei setenta anos. Até há duas semanas, dirigia o Serviço de Cardiologia do Hospital Vargas, de Caracas.
- Infelizmente, devido ao seu historial de preso político, não nos é possível empregá-lo em nenhum hospital público. Oficialmente, encontra-se suspenso de funções até novas ordens.
- Quer dizer que não poderei trabalhar no Chile?
- Lamento, mas a decisão não depende de mim. Sugiro-lhe que procure trabalho numa clínica privada - disse o diretor, pondo termo à conversa e despedindo-se com um firme aperto de mão.
O Governo militar considerava que todos os serviços públicos deveriam ser entregues a empresas privadas. Nesta linha de pensamento, a saúde não era um direito fundamental, mas um simples bem de consumo como qualquer outro, suscetível de ser comprado e vendido. Nesses tempos, em que se privatizara tudo quanto fosse possível privatizar, desde a eletricidade às linhas aéreas, haviam proliferado as clínicas privadas, dotadas dos melhores recursos e equipamentos para proverem quem pudesse pagar pelos seus serviços. O prestígio de Victor continuava sem mácula, mesmo após tantos anos de ausência, de forma que conseguiu de imediato uma colocação na mais conhecida clínica de Santiago, e com um salário muito superior ao que obteria se trabalhasse no hospital público. Ali o visitou Felipe del Solar durante uma das suas frequentes estadas no Chile. Embora não se vissem há longos anos, e nunca tivessem sido o que verdadeiramente se pudesse designar por amigos íntimos, abraçaram-se com genuíno afeto:
- Soube que tinhas regressado, Victor. Fico muito contente com a notícia. Este país, mais do que nunca, precisa que as pessoas valiosas como tu se reintegrem.
- E tu? Também estás de volta? - perguntou-lhe Victor.
- Eu? Ninguém precisa de mim aqui. Agora vivo em Londres a tempo inteiro; não se nota?
- Nota, sim. Pareces um lorde inglês!
- Tenho de vir ao Chile amiúde por questões familiares, mas não suporto nenhum dos membros da minha família, salvo a Juana Nancucheo... que foi quem me criou, como sabes. Mas, enfim... não se escolhem os parentes!
Instalaram-se num banco do jardim, em frente a uma moderna fonte que lançava jatos de água como os esguichos de uma baleia, e assim souberam e contaram as novidades das respetivas famílias. Victor inteirou-se de que ninguém comprava os quadros que Ofélia pintava, isolada na sua casa no campo, de que Laura estava confinada a uma cadeira de rodas e que padecia de demência senil, e de que as restantes irmãs de Felipe se haviam, com o tempo, convertido numas dondocas envelhecidas e intratáveis.
- Os meus cunhados fizeram verdadeiras fortunas durante estes últimos anos, Victor. O meu pai nutria por eles um profundo desprezo. Dizia que as minhas irmãs se tinham casado com uns parvalhões enfatuados. Se os visse agora... tanto teria de engolir... - acrescentou.
- Este país tornou-se um paraíso para os negócios e para os negociantes - comentou Victor.
- Não vejo mal nenhum em ganhar dinheiro, se o sistema e a lei o permitem. E tu, Victor? Como estás?
- Estou a tentar adaptar-me e a ver se entendo o que se passou aqui. Este país está irreconhecível.
- Hás de concordar comigo em que está tudo muito melhor. O golpe militar salvou o país do caos em que Allende o mergulhou, e de cair numa ditadura marxista.
- Pois... e para evitar essa imaginária ditadura de esquerda, impôs-se uma implacável ditadura de direita.
- Ouve, Victor, guarda essas opiniões para ti... aqui não caem bem! Vá! Tens de admitir que estamos muito melhor. Temos, finalmente, um país próspero.
- Sim... mas com um custo social elevadíssimo. Tu vives no estrangeiro. Conheces as atrocidades que aqui se calam.
- Não me venhas com a cantilena dos direitos humanos, homem. Não há paciência para isso! São apenas excessos de alguns militares mais broncos. Ninguém pode acusar a Junta Militar ou o Presidente Pinochet por essas exceções. O importante é que agora temos uma economia que funciona impecavelmente e que impera um clima de calma. Sempre fomos um país de mandriões, e agora as pessoas têm de se esforçar e de dar no duro. O sistema de mercado livre estimula a criação de riqueza e favorece a competitividade.
- Isto não é mercado livre nenhum, Felipe, porque a força de produção está submetida e suprimiram-se os mais elementares direitos dos trabalhadores. Achas que se podia manter um regime destes numa verdadeira democracia?
- Isto é uma democracia... autoritária e protecionista...
- Mudaste muito, Felipe...
- Porque dizes isso?
- Recordava-te mais aberto e iconoclasta, um pouco cínico, talvez, mas sempre crítico, contra tudo e contra todos, sarcástico e brilhante.
- E continuo a sê-lo em alguns aspetos, Victor. Mas, à medida que vamos envelhecendo, vamo-nos definindo... E, sabes... eu sempre fui monárquico - sorriu. - Em todo o caso, meu amigo, recomendo que tenhas cuidado com a forma como exprimes as tuas opiniões.
- Terei cuidado, Felipe. Mas não tenho cuidado quando converso com os amigos.
Para suavizar o aborrecimento que sentia com a comercialização vigente da medicina, e por, de certa forma, ter passado a fazer parte desse negócio, Victor trabalhava também como voluntário num precário consultório numa das mais miseráveis povoações de Santiago, dessas que haviam eclodido nos arredores, como resultado das migrações em massa do campo, e com o desemprego que se verificara na indústria do sal meio século antes. Na de Victor, viviam pelo menos seis
mil pessoas. Ali, pôde tomar o pulso à repressão, ao descontentamento e às reais dificuldades e espírito de sobrevivência ! da população mais pobre. As pessoas viviam em barracas de cartão e de tábuas, com chão de terra batida, sem disporem de água corrente, eletricidade ou latrinas, entre o pó do verão e o lamaçal do inverno, entre lixo, cães vadios, moscas e ratos, ! a maioria sem emprego, ganhando a vida com biscates que o desespero não lhes permitia recusar, resgatando do lixo papel, vidro e plástico que depois tentavam vender, fazendo os trabalhos mais pesados durante o dia, ou traficando e roubando. O Governo estava a trabalhar na elaboração de um programa para erradicar o problema, mas as medidas atrasavam-se, e, por enquanto, a única solução era ocultar atrás de muros aquela miséria e aquele espetáculo lamentável que desfeava a cidade.
- E o mais impressionante de tudo - comentava Victor a Roser - são as mulheres. São, em geral, de um temperamento inquebrável, de um espírito de sacrifício incrível, mais aguerridas que os homens, mães dos filhos próprios e dos que por acréscimo acolhem sob o seu teto. Suportam o alcoolismo, a violência e o abandono dos sucessivos companheiros, mas nunca se dobram. Nunca se rendem.
- E contam com algum tipo de ajuda?
- Sim, alguma. Principalmente das igrejas evangélicas, de algumas instituições de caridade e de voluntários. Mas, sobretudo, preocupam-me as crianças, Roser. Crescem para ali de qualquer forma, ao deus-dará. Muitas vezes vão para a cama sem uma refeição decente. Vão à escola quando calha e chegam à adolescência sem outro horizonte que o de pertencerem a bandos de marginais, que se dedicam à violência, às drogas e a viverem da rua.
- Conheço-te bem, Victor. Sei que estás mais contente a trabalhar ali do que em qualquer outro lugar - comentou ela. E tinha razão.
Ao fim de apenas três dias a trabalhar naquela comunidade, juntamente com duas ou três enfermeiras e mais alguns médicos idealistas como ele que se revezavam, Victor recuperara a chama de entusiasmo inconformista que o animara na juventude. Todos os dias voltava para casa de coração apertado, com um fardo de histórias e de casos trágicos para contar, cansado como um mouro, mas impaciente por regressar ao consultório. A sua vida voltara a ter um propósito e um ideal claro que a todos presidia, como nos tempos da Guerra Civil, onde a sua missão no mundo era fundamental.
- Se visses como aquelas pessoas se organizam entre si, Roser. E como se entreajudam! Os que podem contribuem com algo para a panela comum, uma refeição que cozinham nuns grandes caldeirões sobre fogueiras ao ar livre. A ideia é conseguir pelo menos uma refeição quente para cada pessoa, ainda que por vezes não chegue para todos.
- Ah! Agora percebo onde vai parar o teu salário, Victor!
- Mas não é só a comida que falta, Roser. Também há carências enormes no consultório.
Contou-lhe que os moradores tentavam, a todo o custo, manter a ordem, a fim de evitarem a intervenção da polícia, que costumava aparecer por lá a remexer e a revistar tudo, armada como se fosse para a guerra. O sonho impossível era dispor de um teto e de um terreno próprio onde se pudessem estabelecer. Antes, ocupavam simplesmente um terreno e resistiam com uma tenacidade de leões a todas as tentativas de os desalojarem. A ocupação começava de mansinho, chegava um, depois outro, outro e outro, até que aquela discreta aparição se convertia numa procissão de gente sem conta, que surgia sigilosamente, transportando em carreias ou às costas os seus escassos pertences, arrastando os paupérrimos materiais disponíveis para construir um teto ou um abrigo, cartões, mantas, de tudo um pouco, vinham seguidos de perto por uma multidão de crianças e de cães, e quando as autoridades se apercebiam do sucedido, já havia milhares e milhares de pessoas ali instaladas e dispostas a resistir. Nos tempos atuais, tal seria uma temeridade suicida, pois agora as forças da ordem podiam invadir qualquer lugar com tanques de guerra e varrer tudo à metralha, sem que tivessem de responder por isso.
- Basta que algum dos líderes desta gente se lembre de organizar uma ocupação ou um protesto para logo desaparecer... e, caso volte a ser visto, será sob a forma de cadáver, estrategicamente deixado à entrada do acampamento para servir de exemplo e de advertência. Foi lá que deixaram o cadáver de Victor Jara, destroçado por mais de quarenta balas. Pelo menos foi o que me contaram.
No consultório, deparava-se com emergências de todo o tipo: queimaduras, fraturas de ossos, feridas de rixas à navalhada, ou provocadas por garrafas partidas que, à falta de melhor, os contundentes usavam como armas... casos de violência doméstica... enfim, nada que não soubesse tratar. E a sua mera presença conferia aos moradores uma sensação de conforto e segurança. Reencaminhava os casos mais graves para o hospital mais próximo, e na falta de uma ambulância, muitas vezes era ele próprio quem transportava os doentes no seu carro. Tinham-no prevenido contra os roubos. Era imprudente chegar ali num veículo próprio, que facilmente poderia ser desmontado para posteriormente ser vendido em peças no mercado negro, mas uma avó ainda jovem, uma das líderes dos moradores, dotada de personalidade de amazona, advertiu os adolescentes tresmalhados que o primeiro que tocasse no carro do médico ia passar um mau bocado. E foi o suficiente. Victor jamais teve qualquer problema. Os Dalmau viviam fundamentalmente de poupanças e do dinheiro que ganhava Roser, porque o salário que Victor recebia na clínica destinava-se inteiramente a comprar tudo quanto faltava no consultório. Roser, contente por ver Victor tão entusiasmado com aquele projeto, decidiu contribuir, conseguindo alguns instrumentos cirúrgicos e equipamentos financiados por Valentín Sánchez, que, além de um cheque chorudo, lhe enviou da Venezuela um carregamento substancial de produtos necessários, e passou a frequentar o acampamento nos mesmos dias que Victor, para aí dar aulas de música. Embora nunca o tenha partilhado com o marido, rapidamente descobriu que esse facto os unia ainda mais do que quando faziam amor. Ia mantendo Valentín a par dos avanços conseguidos, através de fotografias e de cartas que periodicamente lhe enviava. "Dentro de um ano vamos ter um coro infantil e uma orquestra de jovens. Terás de vir aqui para veres com os teus próprios olhos! Por agora, o que mais falta nos faz é um bom material de gravação, microfones e colunas para os concertos ao ar livre.", contava-lhe estes progressos conquistados em meio de tão vastas carências, sabendo de antemão que o seu amigo de longa data tudo faria para lhe conseguir mais apoios.
Pensando com uma certa inveja na descrição da bucólica vida que levava Ofélia del Solar, Victor convenceu Roser a mudarem-se para fora da cidade. Santiago era um pesadelo de trânsito, continuamente resfolegando um amontoado de gente apressada e de mau humor. Além disso, amanhecia sempre coberta por uma capa de névoa tóxica e poluente. Finalmente encontraram o que procuravam: uma casa rústica construída com madeira e pedra, com telhado de colmo, um capricho do arquiteto, que pretendera integrá-la e camuflá-la naquela paisagem agreste. Quando fora erigida, três décadas atrás, o caminho que lhe dava acesso não passava de uma serpente ziguezagueante entre despenhadeiros íngremes, enfim, um caminho próprio para mulas, mas, com o tempo, a capital foi-se ampliando até ao sopé da cordilheira, e quando eles se decidiram a comprar o terreno, aquela antiga zona rural, de leiras e de campos de cultivo, estava já, de certa forma, incorporada à cidade. Ainda assim, ali não chegavam nem os transportes públicos nem o correio, mas podiam dormir a usufruir do silêncio profundo da natureza e despertavam ao som de um coro de pássaros. Nos dias de semana, levantavam-se às cinco da madrugada para irem trabalhar, só regressando a casa quando já o crepúsculo descera, mas tão gratificante era o tempo que ali passavam que lhes dava ânimo para enfrentarem todos os problemas do dia a dia. Durante o dia, a propriedade estava desabitada, e nos primeiros dois anos foram assaltados onze vezes. Eram roubos de tão pouca monta que nem valia a pena incomodarem-se ou participarem à polícia. Levaram, entre outras coisas, uma mangueira de jardim, utensílios de cozinha, galinhas, um rádio a pilhas, um relógio despertador e outras bagatelas do género. Depois, levaram também o primeiro televisor que o casal comprara, bem como os dois que o sucederam. Então, decidiram prescindir de televisão... até porque pouco havia de interesse para ser visto! Estavam a considerar deixar sempre a porta da casa aberta, a fim de evitarem que os assaltantes lhes partissem os vidros para invadirem a casa, quando Marcel lhes trouxe do canil municipal dois possantes cães, que, embora ladrassem, eram muito mansos, e também um outro, de menor porte, mas mais agressivo. Isso resolveu o problema.
Marcel vivia e trabalhava entre os que, à falta de uma designação mais precisa, Victor chamava simplesmente "os privilegiados". Marcel não gostava de semelhante classificação, que, além do mais, não se aplicava às suas amizades em geral, mas para quê internar-se numa discussão com os seus pais, que a nada conduziria?
- Vocês são relíquias de outro tempo, velhotes. Ficaram presos algures nos anos setenta. Mexam-se e vejam se se decidem a voltar no tempo...
Telefonava-lhes diariamente e visitava-os todos os domingos, para o obrigatório almoço de família, como impusera Victor. Chegava sempre acompanhado por uma mulher diferente da anterior, mas, de certa forma, todas similares, pertencentes ao mesmo estilo: todas muito magras, de longos cabelos lisos, lânguidas de modos e quase sempre vegetarianas... em suma, completamente distintas da jamaicana de sangue quente que o iniciara nas artes e nas lides do amor. O seu pai jamais conseguiu distinguir a presente acompanhante do filho da anterior, nem saber ou fixar os nomes, antes que ele a trocasse por outra quase igual. Ao chegar, invariavelmente, Marcel segredava a Victor que se abstivesse de falar do exílio ou do consultório na favela, porque acabara de conhecer a atual acompanhante e ainda não estava certo quanto à sua tendência política.
- Basta olhar para ela um segundo, Marcel. Vê-se logo que vive numa redoma. Não tem noção nenhuma, nem do presente nem do passado. Aliás, a tua geração carece, em geral, de idealismo - replicava-lhe invariavelmente Victor.
Terminavam fechados na despensa, discutindo em voz baixa, enquanto Roser tentava distrair a visitante. Depois, já reconciliados, Marcel cozinhava uns bifes malpassados, enquanto Victor preparava uns espinafres cozidos para uma daquelas jovens de cabelos lisos e artificiais. Amiúde, juntavam-se-lhes os vizinhos, Meche e Ramiro, seu marido, que contribuíam para a refeição com um cesto de verduras frescas da sua horta ou com um frasco de compota caseira. Segundo profetizava Roser, Ramiro morreria a qualquer momento, ainda que se encontrasse completamente saudável. E assim sucedeu, de facto, quando certo dia foi atropelado por um condutor embriagado. Quando Victor perguntou a Roser como intuíra tal coisa, ela respondeu-lhe, com toda a naturalidade, que isso se lhe lia nos olhos: Ramiro estava marcado pela morte.
- Quando enviuvares, casas-te com a Meche, estamos entendidos? - segredara-lhe ela durante o velório. Ele assentiu, pois estava certo de que Roser viveria muito mais do que ele.
Victor e Roser trabalharam durante três anos no acampamento, ganhando a progressiva confiança e estima dos moradores, até que o Governo ordenou a evacuação de todas as famílias ali residentes, distribuindo-as por outras zonas da periferia da capital, a prudente distância dos elegantes bairros da burguesia. Em Santiago, uma das cidades mais segregacionistas do mundo, não podia permitir-se que os pobres vivessem em coexistência com a burguesia, ou perto da zona alta da cidade. Vieram os polícias com reforço dos soldados e, pela força das armas, levaram toda a gente em camiões do exército, escoltados por agentes uniformizados que rodeavam os veículos em motocicletas. Distribuíram os moradores do acampamento por diversas zonas de instalação provisória, todas iguais, ostentando ruas por pavimentar e casas como contentores, semeadas em meio do pó. Não foi este o único acampamento a ser desmantelado. Em tempo recorde, trasladaram cerca de quinze mil pessoas sem que a maior parte dos habitantes da cidade disso se apercebesse. Os pobres tornaram-se praticamente invisíveis. Foi atribuída a cada família uma moradia de madeira, com uma única divisão para uso comum, um quarto de banho e de uma cozinha, com mais condições do que as anteriores barracas que habitavam. Mas, por outro lado, com esta medida extinguiram o espírito e o sentido de comunidade que antes imperava e unia as pessoas. Aquela multidão via-se de súbito separada, vulnerável, desterrada e isolada. Agora cada um tinha de cuidar de si próprio. A operação foi organizada de forma tão rápida e precisa que Victor e Roser só no dia seguinte se deram conta do que sucedera, quando, como de costume, se dirigiram ao acampamento para trabalhar e depararam com um cenário de máquinas nivelando e limpando o terreno para ali construírem edifícios de apartamentos. Demoraram uma semana a localizar alguns dos grupos que haviam sido desterrados, mas foram advertidos pelos agentes da autoridade de que estavam a ser vigiados e de que qualquer contacto com os antigos povoadores seria considerado uma provocação ao statu quo. Victor tomou a demolição do acampamento como uma ofensa pessoal, um golpe baixo... mais um dos muitos do regime que ele sofria na pele. Não tinha ainda a menor intenção de se reformar. Continuava a encarregar-se dos casos mais graves da clínica, mas nem a prática da cirurgia, que tanto amava, nem o dinheiro que ganhava com o exercício da sua profissão podiam compensar o ter sido privado de acompanhar os seus pacientes do acampamento.
Em 1987, internamente pressionada pelo crescente clamor popular, e externamente censurada pela sua fama de violência e arbitrariedade, a ditadura pôs termo ao recolher obrigatório e permitiu uma certa liberdade de imprensa, abrandando ligeiramente a censura que sobre ela vinha exercendo nos últimos catorze anos. Foram também autorizados os partidos políticos anteriormente proibidos e foi admitido o regresso sem restrições de todos os exilados. A oposição continuava a exigir eleições livres, e, como resposta, o Governo impôs um referendo em que se deveria decidir se Pinochet governaria por um período de mais oito anos. Victor, que, sem ter participado em qualquer atividade política, sofrera as consequências como se o tivesse feito, considerou que era chegado o momento de intervir abertamente e sem reservas. Juntou-se à oposição, que tinha em mãos a tarefa hercúlea de unir e mobilizar o país, no sentido de derrotar o Governo militar no plebiscito que se avizinhava. Quando lhe bateram à porta de casa os mesmos agentes de segurança que já antes o tinham importunado, mandou-os embora com maus modos. Em lugar de o levarem de imediato algemado e encapuzado, limitaram-se a responder-lhe com ameaças evasivas e retiraram-se.
- Vão voltar - disse Roser, furiosa. Mas foram passando os dias e as semanas sem que o seu prognóstico se cumprisse. E foi esse um dos mais reveladores sinais de que, de facto, as coisas estavam finalmente a mudar no Chile, como pensara Marcel quatro anos antes. A impunidade com que a ditadura agia começava a esfumar-se.
O referendo realizou-se num surpreendente clima de tranquilidade, sob a supervisão de observadores internacionais, despertando a atenção da imprensa do mundo inteiro. Ninguém se absteve da oportunidade de votar, desde os anciãos em cadeiras de rodas, até mulheres prestes a dar à luz, nem os doentes acamados, que se faziam transportar em macas junto das mesas de voto. E ao fim do dia, estavam derrotados os ardis urdidos pelos cérebros ocultos nas sombras do poder e a ditadura era, enfim, vencida, no seu próprio território, e segundo as leis que ela própria criara e estabelecera. Nessa mesma noite, Pinochet, ante os resultados inegáveis da votação, endurecido e insensível pelo continuado exercício do poder absoluto, e isolado da realidade por tantos anos de impunidade, propôs um novo golpe de Estado, a fim de se perpetuar na cadeira presidencial. Mas, desta vez, os agentes do serviço de inteligência norte-americano, que outrora o haviam apoiado, e os generais por ele nomeados, que sempre tinham permanecido sob o seu controlo total, retiraram-lhe o apoio. Incrédulo até ao último momento, acabou por aceitar os resultados eleitorais e por reconhecer a derrota. Meses mais tarde, transferiu o seu cargo para um membro da população civil, para que este iniciasse o processo de transição para uma democracia condicionada e cautelosa, mas manteve as Forças Armadas controladas com mão de ferro e o país em permanente sobressalto. Haviam transcorrido dezassete anos desde o golpe militar.
Com o regresso da democracia, Victor Dalmau abandonou de vez a clínica para se dedicar inteiramente ao hospital de San Juan de Dios, onde foi integrado no mesmo posto que detinha antes de ter sido preso. O novo diretor, que fora aluno de Victor quando estudante, delicada e oportunamente se absteve de referir que o seu antigo professor já estava em idade de se retirar e de desfrutar de uma velhice descansada. Regressou numa segunda-feira de abril, com a sua bata branca e a sua pasta, gasta por quarenta anos de uso, e deparou-se com meia centena de pessoas, médicos, enfermeiros, auxiliares, e pessoal administrativo, que, em pleno átrio do hospital, e munidos de balões e de um bolo gigante coberto de merengue, tinham vindo dar-lhe as boas-vindas. Caramba... estou mesmo a ficar velho!, pensou consigo mesmo, enquanto sentia que os olhos se lhe marejavam. Não chorava há muitos anos. Os poucos saneados que regressavam ao hospital para reocupar os seus antigos postos eram recebidos com muito menos pompa e circunstância, pois, apesar dos progressos, era ainda pouco prudente chamar demasiado a atenção. Tinha-se tornado prática nacional reiterada fingir que o passado recente estava enterrado e que ficara para trás numa bruma de esquecimento, para se evitar qualquer provocação aos militares, mas, com a reintegração de Victor, tal não se verificou. O Doutor Dalmau deixara, entre todos com quem trabalhara, uma funda lembrança da sua total dedicação à profissão, da sua seriedade e competência inabaláveis, e da sua sempre presente disponibilidade para atender qualquer um que dele necessitasse, desde paciente a subalterno. Até os seus adversários ideológicos o respeitavam. Não foi, de facto, nenhum colega de trabalho que o denunciou. Victor devia o cárcere e o segundo exílio a uma vizinha invejosa, conhecedora da sua amizade com Salvador Allende. Pouco depois, foi convidado para dar aulas na Faculdade de Medicina e para assumir o posto de subsecretário no Ministério da Saúde. Destes convites, aceitou prontamente o primeiro, mas recusou o segundo, pois, como requisito de admissão, era necessário que se filiasse num dos partidos que integravam o atual Governo. Sabia que não era propriamente um animal político e que nunca o seria.
Sentia que havia rejuvenescido uns vinte anos. Andava eufórico. Após ter sofrido tantas humilhações e ter sido ostracizado no Chile, depois de ter sido, durante tantos anos, um estrangeiro forçado, parecia que finalmente a sorte mudara e decidira enfim sorrir-lhe. Agora era o Professor Dalmau, diretor de um Serviço de Cardiologia, o especialista mais admirado e afamado do país, capaz de conseguir proezas e verdadeiros milagres com um bisturi, proezas que outros nem em sonhos tentavam, aquele a quem até os próprios inimigos consultavam e procuravam, como acontecera em mais do que uma ocasião, quando operara dois militares de alta patente, que mantinham ainda intacto o seu poder, e um dos mais conceituados estrategas da política de repressão levada a cabo pela ditadura. Ante a necessidade de salvarem as suas vidas, aqueles homens vinham consultá-lo com o rabo entre as pernas... o medo jamais sentia vergonha, como bem dizia Roser. Era a hora da consagração; a sua hora; Victor atingira o auge da sua carreira e sentia que, por qualquer estranho e misterioso desígnio, de certa forma, encarnava também a mudança da situação no país. As sombras tinham retrocedido para as sombras; amanhecia a liberdade e, por acréscimo, ele vivia também um luminoso alvorecer. Mais uma vez se atirou ao trabalho e, por uma vez, abandonou o seu espírito introvertido e começou a procurar a atenção que lhe dirigiam, não deixando passar nenhuma oportunidade que se lhe afigurasse para aparecer em público. "Cuidado, Victor. Andas embriagado de triunfo... não te esqueças de que a vida dá muitas voltas", disse-lhe certa vez Roser, temendo que o marido se tivesse tornado um velho babado. Vinha-o observando com crescente preocupação: notava-lhe um certo pedantismo antes inexistente, um sempre presente tom de autoridade, uma tendência para falar ininterruptamente de si próprio, a abundância de opiniões categóricas, irremissíveis, o seu ar presumido e impaciente, inclusive com ela, sua mulher. Quando o chamou à atenção, ele respondeu-lhe que carregava muitas responsabilidades às costas e que sentia necessidade de se exprimir livremente e à vontade, pelo menos na sua própria casa. Roser via-o a almoçar na faculdade, rodeado de jovens estudantes que o escutavam com uma veneranda admiração de discípulos, e reparou como Victor parecia gostar daquele clima de reverência, principalmente quando provinha das jovens alunas, que elogiavam todos os seus comentários, por mais banais que fossem, com uma injustificável admiração boquiaberta. A ela, que como ninguém o conhecia, tanto por fora como por dentro, até ao mais ínfimo recanto da alma, surpreendeu-a e desapontou-a aquela vaidade que tardiamente despertara. Descobria agora quão vulnerável aos elogios podia ser um velho convencido... longe de imaginar que seria ela a causa que faria com que a vida de Victor, mais uma vez, desse uma volta completa.
Treze meses mais tarde, Roser começou a suspeitar de que uma qualquer doença grave a estaria a corroer por dentro, lenta mas inexoravelmente. Primeiramente atribuiu os sintomas ao cansaço, à idade ou apenas à imaginação, já que o seu próprio marido de nada se apercebera. Victor andava tão ocupado com os seus recentes sucessos que desleixara a relação com Roser, ainda que, quando juntos e a sós, continuasse a ser não só o seu melhor amigo como o amante que a fazia sentir-se ainda bela e desejável aos setenta e três anos. E como ele também a conhecesse tão intimamente, pensou, aqueles sintomas, a perda de peso, a coloração amarelada da pele e as náuseas que de súbito a atormentavam, não seriam coisa de maior. Haveria de passar mais um mês até que Roser se decidisse a consultar um médico... e, em parte, o que precipitou tal decisão foi, além da persistência dos sintomas, o facto de que ultimamente começara a acordar acometida de tremores e tiritando de febre. Por uma vaga sensação de pudor, e para não parecer alarmista perante o marido, decidiu consultar-se com um dos seus colegas. Dias mais tarde, quando recebeu os resultados dos exames, chegou a casa com a devastadora notícia de que tinha um cancro terminal. Teve de dizê-lo duas vezes para Victor poder assimilar e reagir.
Desde esse diagnóstico, a vida de ambos sofreu uma drástica transformação, porque a única coisa que desejavam, antes e acima de tudo, era prolongarem e aproveitarem o tempo que lhe restava. O balão de vaidade que Victor alimentara esvaziou-se-lhe de um só golpe, e do Olimpo a que ascendera, desceu ao inferno da doença. Pediu uma licença por tempo indeterminado no hospital e abandonou as aulas na faculdade para se dedicar completamente a Roser.
- Enquanto pudermos, Victor, vamos aproveitar o melhor possível. Talvez a guerra contra este cancro esteja perdida, mas isso não nos impede de ganharmos algumas batalhas de permeio.
Victor levou-a numa viagem romântica a um lago do Sul, um espelho cor de esmeralda que refletia bosques, montes, cascatas e as encostas de três vulcões cobertos de neve. No meio daquela paisagem deslumbrante e do absoluto silêncio da natureza, instalados numa cabana rústica, longe de tudo e de todos, puderam recordar cada etapa do passado de ambos, desde o tempo em que ela não passava de uma jovem magricela, enamorada de Guillem, até ao presente, em que se tornara na mulher mais bela que Victor jamais conhecera. Ela insistiu em nadar no lago, como se aquela água pura e gelada pudesse curá-la e lavá-la, purificá-la tanto por fora como por dentro. Também se dispôs a fazer algumas excursões, mas as forças não lhe permitiam caminhar como pretendia, e terminavam dando lentos passeios, ela agarrada ao braço do marido, amparando-se numa bengala que segurava na outra mão. Continuava a perder peso a olhos vistos.
Victor, que estava, desde sempre, habituado a lidar com o sofrimento e com a morte, estava familiarizado com as emoções vulcânicas que sempre agitam os pacientes, até porque sobre isso lecionava na faculdade. Amaldiçoar a sorte, ter acessos de raiva por padecer de determinada doença, maldizer o destino, recorrer ao divino para prolongar a existência terrena, afundar-se no mais fundo desespero e, por fim, no melhor dos casos, acabar por se resignar à inevitabilidade da morte. Roser saltou todas essas etapas e, desde o princípio, aceitou a ideia do fim com admirável calma e bom humor. Negou todos os tratamentos que lhe sugeriram Meche e outras amigas com a melhor das intenções.
- Nada de homeopatia, ervas do Amazonas, curandeiros de qualquer espécie ou exorcismos! Vou morrer. Já sei... E depois? Toda a gente, mais cedo ou mais tarde, acaba por ter de morrer.
Aproveitava todas as alturas em que se sentia melhor e com mais forças para ouvir música, tocar piano ou para ler poesia com a sua gata a dormitar-lhe no colo. Aquele animal, que Meche lhes tinha oferecido, com o seu porte de felino imperial, sempre fora meio selvagem, distante e solitário. Por vezes desaparecia por vários dias, regressando depois, com os restos ensanguentados de algum roedor no focinho, que depositava, numa cerimónia ou misterioso ritual de oferenda, sobre a cama dos donos da casa. A gata, porém, pareceu compreender que algo mudara no equilíbrio daquele mundo e, da noite para o dia, tornou-se meiga e brincalhona, nunca se separando de Roser.
A princípio, Victor ficou obcecado com a procura de tratamentos, uns já existentes, outros ainda em fase de experimentação. Estudava relatórios, lia estudos científicos, sabia de memória dados estatísticos sobre os efeitos de cada medicamento, sempre descartando os mais pessimistas e agarrando-se à mais insignificante brisa de esperança. Voltou a recordar-se de Lázaro, o jovem soldado da Estação do Norte, aquele que apenas regressara da morte graças à imensa vontade de viver que o animava. Acreditava que se conseguisse imbuir dessa vontade inquebrantável tanto o espírito como o sistema imunológico de Roser, talvez ela pudesse vencer o cancro.
Sempre se falou de casos assim... Sempre houve os milagres...
- Tu és forte, Roser... sempre foste. Nunca estiveste doente. Tens uma saúde de ferro. Vais ver que vais conseguir ultrapassar e vencer isto. Esta doença nem sempre é fatal -e repetia-o incessantemente, como uma espécie de mantra, sem que, contudo, conseguisse contagiá-la com aquele otimismo irracional.
Como médico, teria sido o primeiro a desincentivar tal esperança nos seus pacientes. Roser fingiu concordar enquanto pôde. Foi apenas por ele, e para lhe agradar, que se submeteu a sessões de quimioterapia e de radioterapia, certa de que estes tratamentos apenas serviriam para prolongar um processo que, dia a dia, se lhe tornava mais penoso. Suportou sem uma queixa, com aquele profundo estoicismo que desde o nascimento fora o seu mais marcado traço de personalidade, a aversão que tinha por medicamentos. Caiu-lhe todo o cabelo, até as pestanas. E estava tão magra e fraca que Victor conseguia erguê-la e transportá-la em braços sem esforço. Em braços a trasladava da cama para o cadeirão, em braços a levava ao quarto de banho e em braços a conduzia ao jardim, para que pudesse ver o voejar dos beija-flores em redor dos tufos de fúcsias e as lebres que passavam correndo em grandes saltos, como se fizessem troça dos cães, que, já muito velhos, não tinham vontade ou rapidez suficiente para as perseguir. Perdera o apetite, mas fazia questão de provar sempre os pratos que o marido lhe preparava com a ajuda de livros de receitas. No fim, apenas tolerava crema catalana, sobremesa que a avó Carme preparava em homenagem a Marcel todos os domingos.
- Quando eu morrer, Victor, quero que me chores um dia ou dois, só por respeito, e que consoles o Marcel; quero que retomes a tua vida... que voltes a trabalhar no hospital e que voltes à faculdade, mas, por favor, sê mais humilde... porque nos últimos tempos andavas insuportável - disse-lhe certa vez.
Aquela casa de pedra onde haviam vivido os últimos seis anos como casal foi o santuário de ambos até ao final. Tinham sido tempos felizes, mas agora, quando cada segundo do dia e da noite era uma fugidia partícula de tempo escasso, apreciaram-na, se se pode dizer, ainda mais plenamente. Adquiriram-na já bastante deteriorada e foram adiando e adiando as reparações necessárias. Era preciso substituir as persianas, os azulejos e as canalizações deterioradas dos quartos de banho, arranjar as portas emperradas, as que não fechavam e as que não abriam, tinham também de retirar a palha apodrecida do teto, onde os ratos teimavam em fazer ninho, limpar a fundo as teias de aranha, o musgo e as traças, e os tapetes poeirentos. Em nada disso repararam. A casa envolveu-os num íntimo abraço, protegendo-os das distrações e dos afazeres inúteis, da curiosidade e das lamentações dos conhecidos. O único visitante tenaz e constante era o filho. Marcel aparecia a cada passo, sempre carregado com grandes sacos do mercado. Trazia também comida para a gata, para os cães e para o papagaio, que à sua entrada o saudava sempre com um entusiasta: "Olá, giraço!" Trazia gravações de música clássica para a mãe, filmes para os distrair e revistas e jornais que nem um nem outro liam, porque, naquele momento, o mundo exterior nada lhes dizia nem nada tinha para lhes dar. Marcel tentava ser discreto. Tirava os sapatos na porta da entrada para não fazer barulho, mas enchia o espaço e o ambiente com a sua presença de homem grande e com a sua fingida alegria. Victor e Roser sentiam a sua falta se acaso não vinha um ou outro dia, mas, por outro lado, sentiam que preferiam estar sós quando ele estava. Também Meche, a vizinha, vinha sorrateiramente deixar-lhes mantimentos no alpendre e perguntar-lhes se precisavam de alguma coisa. Demorava-se o mínimo tempo possível, porque entendia que, nesse momento, tempo era justamente o mais importante para os Dalmau. Tempo para estarem juntos. Tempo para se
despedirem.
Chegou o dia em que, sentados lado a lado, no canapé de palhinha do alpendre, com a gata no colo e os cães estendidos aos pés, e com a vista das colinas douradas ao fundo e o céu azul do sol poente, Roser pediu a Victor que a deixasse partir porque estava muito cansada.
- Por favor, Victor, não me leves para o hospital, aconteça o que acontecer. Quero morrer em casa, na nossa cama, de mãos dadas contigo.
Victor, por fim, teve de aceitar a derrota e a sua impotência. Salvar Roser era uma tarefa que se encontrava para lá das suas possibilidades. E, por outro lado, não se sentia capaz de imaginar a sua existência sem ela. Deu-se conta, atónito, de que o meio século que haviam passado juntos escorrera num galope vertiginoso. Por e para onde tinham sumido todos os dias e todos os anos vividos a dois? O futuro sem ela era o imenso quarto vazio, sem portas nem janelas, que lhe surgia em pesadelos. Sonhava que fugia da guerra, do desfile do sangue e dos corpos mutilados. Corria e corria para longe, na noite, e de súbito avistava-se naquele quarto hermético, onde estava a salvo de tudo menos de si próprio. Abandonou-o a tenaz energia que o animara nos meses anteriores, quando se sentia invulnerável ao peso da idade. A mulher que tinha ao lado envelhecera também em poucos minutos. Pouco antes era ainda como a recordava e como sempre a recordaria: a jovem de vinte e dois anos com um recém-nascido nos braços, a que com ele casara sem amor e que depois o amara mais do que ninguém no mundo. A sua companheira de sempre. Com ela vivera tudo quanto valia a pena ser vivido. Ante a iminência da morte, a intensidade do seu amor por ela atingiu a insuportável ardência latejante e premente de uma queimadura. Quis abaná-la, despertá-la, gritar-lhe que não partisse, que ainda tinham muitos anos pela frente, muito tempo para se amarem mais do que nunca, e para viverem um para o outro e para estarem juntos sem se separarem um dia que fosse. Que... "por favor, Roser, não me deixes, não te vás!" Nada disso lhe disse, porém, porque só um cego não veria que a morte já ali estava, esperando, ao fundo do jardim, fitando a mulher numa silenciosa e suspensa paciência de espectro.
Corria uma brisa fresca, e Victor envolvera Roser em duas mantas que a cobriam até ao nariz. Daquele vulto informe assomava apenas uma mão esquelética que se agarrava à mão de Victor com uma força superior à que na realidade possuía.
- Não tenho medo de morrer, Victor. Estou contente. Quero descobrir o que há depois. E tu também não deves temer. Estarei sempre contigo, nesta vida e em todas as que vierem. É o nosso karma.
Victor rompeu a chorar em soluços desesperados. Ela deixou-o chorar, até que se lhe esgotaram as lágrimas e, finalmente, aceitara aquilo a que ela já se resignara há vários meses.
- Não vou permitir que sofras mais, Roser - foi a única coisa que Victor conseguiu dizer-lhe.
Ela deixou-se acolher no seu ombro, como fazia todas as noites, e ele embalou-a suavemente, até que o sono a venceu. Já estava escuro. Victor afastou a gata e, com muito cuidado para não a acordar, tomou Roser nos braços e levou-a para a cama. Estava leve como uma pluma. Os cães seguiram-no silenciosamente.
XIII.
Aqui termino de contar.
1994,
Apesar de tudo,
aqui permanecem fundeadas as raízes dos
meus sonhos.
Esta é a dura luz que amamos.
Pablo Neruda
"Regresso".
Navegações e Regressos.
Três anos depois da morte de Roser, Victor cumpriu oitenta anos na casa da colina onde com ela vivera desde que haviam regressado ao Chile, em 1983. Era uma rainha velha, trémula e frágil, mas conservava ainda o seu porte nobre. Para Victor, que desde criança sempre fora e se considerara um solitário, a viuvez pesava-lhe mais do que alguma vez teria imaginado. A vida favorecera-o com o melhor e o mais feliz dos casamentos, como diria qualquer um que os tivesse conhecido nos últimos tempos e não soubesse dos pormenores trágicos do passado de ambos, de forma que, ao enviuvar, não conseguiu habituar-se à ausência da mulher com a naturalidade e com a calma que ela teria desejado. "Quando eu morrer, Victor, vê se te casas rapidamente, porque vais precisar de alguém que tome conta de ti quando ficares decrépito e demente. A Meche parece-me um bom partido...", exigiu-lhe ela no final, entre sussurros roucos que se filtravam, dificílimos, através da máscara de oxigénio. Apesar da solidão, Victor gostava da casa vazia, que parecia ter aumentado de tamanho e estender-se arbitrariamente em várias direções. Agradavam-lhe o silêncio e a desordem, o cheiro dos quartos fechados e as eternas correntes de ar, que Roser combatera ainda mais intrepidamente do que aos roedores que habitavam o telhado. O vento sacudira furiosamente todo o dia. Os vidros estavam cegos e opacos de geada, e o trémulo lume que ardia na lareira parecia uma tentativa vã e ridícula de combater aquele inverno tão pródigo em chuva e granizo. Depois de meio século de convívio a dois, a viuvez continuava a ser-lhe uma realidade estranha. Sentia de tal modo a falta de Roser, que, por vezes, a sua não-presença lhe doía com uma dor física. Não pretendia resignar-se à ideia e às limitações da velhice: entendia a idade avançada como uma perturbação da realidade conhecida, que alterava o corpo e as circunstâncias do meio. Perdia-se o controlo de tudo, e terminava-se sem outro remédio que depender da bondade e da ajuda alheia. Contava morrer antes de atingir esse estágio. O problema era o difícil que por vezes é morrer com dignidade e rapidez. Parecia-lhe pouco provável que um enfarte o despachasse desta para melhor, porque o seu coração ainda batia saudável, isso repetia-lhe o seu médico quando, uma vez por ano, o examinava, e, invariavelmente, aquele comentário lhe despertava a recordação do soldadito Lázaro, cujo coração Victor sustivera entre os dedos. Não partilhava com Marcel o receio pelo futuro próximo. Do futuro mais distante, se fosse o caso, a seu tempo se veria.
- Pode acontecer-te qualquer coisa, papá... Imagina que cais ou que te dá um ataque quando eu estiver fora.
Podes ficar para aí estendido sem ajuda durante dias. E depois? O que fazias?
- O que fazia? Deixava-me morrer, claro, Marcel... e rezava para que ninguém aparecesse por aqui a incomodar-me nos últimos momentos. Não te preocupes com os nossos animais. Têm sempre água e comida para vários dias.
- E se ficas doente? Quem vai tomar conta de ti?
- Isso também afligia a tua mãe. A seu tempo se vê. Estou velho, sim, mas ainda não estou caquético. Tu tens mais doenças do que eu!
Era, de facto, verdade. Aos cinquenta e cinco anos, Marcel já tinha uma rótula artificial, já fraturara diversas costelas e por duas vezes a mesma clavícula.
- Isso acontece-te porque fazes demasiado exercício - opinava Victor. - É certo que devemos manter-nos em forma, mas daí a corrermos como loucos sem que ninguém nos persiga ou atravessar um continente de bicicleta... Devias casar-te. Assim tinhas menos tempo para todo esse desporto desenfreado e terias menos acidentes. Olha que o casamento faz muito bem aos homens... ainda que, em relação às mulheres, eu tenha as minhas dúvidas...
Apesar disso, ele próprio não estava disposto a seguir os seus conselhos matrimoniais. Sentia-se tranquilo com a vida que levava e bem de saúde. Desenvolvera a teoria segundo a qual a melhor forma de alguém se manter saudável era ignorar os sinais de advertência do corpo e da mente e conservar-se sempre ocupado. Na vida, dizia, deve sempre ter-se algum propósito superior. Estava a debilitar-se com o passar do tempo. Isso era inevitável. Os seus ossos deveriam estar tão amarelecidos e gastos como os seus dentes, os órgãos mais lentos e mais frágeis, e os seus neurónios estariam, inelutavelmente, morrendo a pouco e pouco. Mas esse drama desenrolava-se longe da vista, no interior remoto do organismo. Via-se ainda com bom aspeto. Além disso, quem se importa com a aparência ou com o estado do fígado, se ainda se conservam todos os dentes? Tentava, a todo o custo, ignorar as pisaduras e as marcas que do nada lhe pontuavam a pele, o dado irrefutável de que lhe custava cada vez mais subir a colina com os cães, abotoar a camisa, o cansaço da vista, a surdez e a tremura das mãos, que o obrigou a abandonar as salas de operações. Apesar dessa limitação, continuava ativo. Via alguns doentes no hospital de San Juan de Dios e dava as suas aulas na faculdade, que já não necessitava de preparar, bastando-lhe e bastando-se dos seus sessenta anos de experiência, contando os da guerra, que haviam sido, sem dúvida, os mais duros. Conservava ainda uma boa postura, os ombros direitos, o corpo firme, tinha bastante cabelo e o tronco erguido e aprumado como uma lança em riste, para compensar a coxeira, e porque a cada dia lhe era mais penoso dobrar os joelhos e a cintura.
Para não afligir o filho, nunca referia que a viuvez constituía para ele um peso difícil de suportar. Marcel preocupava-se demasiado. Tinha vocação de mãe-galinha. Para Victor, a morte não se traduzia numa separação definitiva nem irremediável. Imaginava a mulher a viajar no espaço sideral, onde talvez habitassem as almas dos mortos, enquanto ele, ainda no plano terreno, esperava a sua vez para a seguir, com mais curiosidade do que apreensão. Ali estaria com os seus pais, com Guillem, com Jordi Moliné e com tantos outros amigos e companheiros mortos na frente de combate. Para um agnóstico racionalista e científico de formação como ele, tal teoria apresentava falhas básicas, mas, ainda assim, servia-lhe de consolo. Mais de uma vez, Roser, meio a sério, meio em jeito de brincadeira, o advertira de que jamais se livraria dela, porque estavam feitos e destinados a permanecerem juntos, tanto nesta vida como nas futuras. No passado nem sempre foram um casal, dizia, o mais provável era que noutras vidas pretéritas tivessem sido mãe e filho, ou até irmãos... isso explicaria a relação de afeto incondicional que os unia. Essa ideia de repetição infinita de vidas em sucessão sempre acompanhadas da mesma pessoa deixava-o inquieto, mas pensava que se a repetição fosse um facto inevitável, então, mais valia que fosse com Roser do que com qualquer outra. Em todo o caso, aquela confabulação não passava de mera especulação poética, pois ele não acreditava nem no destino nem na reencarnação: ao primeiro considerava-o um truque das telenovelas, e à segunda não lhe atribuía crédito por matematicamente impossível. Segundo Roser, que amiúde se deixava cativar por práticas espirituais de lugares remotos, como o Tibete, as ciências e as matemáticas não podiam explicar todas as múltiplas dimensões da realidade. Isso parecia a Victor uma desculpa e um argumento pouco razoável.
A simples ideia de se voltar a casar causava-lhe arrepios. Bastava-lhe a companhia dos seus animais de estimação. Sempre conversava com os cães, com o papagaio e com a gata. As galinhas não contavam para esses diálogos, pois nem sequer tinham nome próprio. Iam e vinham à sua vontade, pondo e escondendo os ovos. À noite, quando regressava a casa, contava aos seus companheiros bichos os pormenores do dia. Eram também os seus interlocutores ideais sempre e nas raras ocasiões em que se tornava sentimental, e também o ouviam sem censura quando lhe dava para enumerar em voz alta e de olhos fechados objetos da casa, ou elementos da flora e da fauna do jardim. Era a sua maneira de exercitar a memória e a concentração, do mesmo modo que outros velhos se dedicavam a fazer puzzles. Quando as tardes se faziam longas, e dentro delas cabia tempo para recordar, procedia a desfiar a lista dos seus amores: o primeiro fora Elisabeth Eidenbenz, que conhecera num tempo remoto... 1936! Ao pensar nela, revia-a revestida de uma doce alvura de bolo de amêndoa. Nesse tempo, prometera que, depois de todas as batalhas, quando assentasse sobre a terra exangue a poeira dos escombros, ele a procuraria, mas a vida não lho permitira, e as coisas não aconteceram assim. Quando terminou a guerra, estava muito longe, do outro lado do mundo, casado e com um filho. Procurou-a muito mais tarde, movido apenas por curiosidade, e averiguou que Elisabeth vivia numa pequena cidade austríaca, no sossego e no afã de regar e tratar as suas plantas, completa e deliberadamente alheia à fama do seu heroísmo. Quando descobriu onde vivia, Victor escrevera-lhe uma carta a que ela nunca respondera. Talvez houvesse chegado o momento de lhe escrever novamente, agora que estava só. Seria uma iniciativa sem risco algum, porque era ínfima a probabilidade de se voltarem a ver. O Chile e a Áustria encontravam-se a mil anos-luz um do outro. De Ofélia del Solar, seu segundo amor, breve e apaixonado, preferia não se lembrar sequer. Os outros foram escassos. Nem amores se podia chamar-lhes. Talvez faíscas, coisas de momento... nada mais. Ainda assim, costumava engrandecê-los quando pensava neles, para manter afastadas as recordações mais amargas. A única que contava e que sempre contara era Roser.
Certo dia, dispôs-se a celebrar o seu aniversário, compartindo com os seus bichos o menu que sempre preparava em homenagem aos melhores momentos da sua infância e juventude. Carme, sua mãe, não era dotada da menor vocação para a cozinha. Dedicara-se sobretudo à arte e à missão de ensinar, ofício que a ocupava durante toda a semana. Aos domingos e dias festivos, também não cozinhava, pois preferia ir dançar sardanas defronte da catedral do Bairro Gótico, e dali dirigia-se a uma taberna onde desfrutava de um copo de vinho tinto na companhia das amigas. Victor, o pai e Guillem diariamente almoçavam pão com tomate e sardinhas e café com leite, mas, de quando em quando, a mãe amanhecia inspirada e preparava-lhes o único prato que sabia confecionar: o típico arroz negro, cujo pungente aroma ficaria e sempre seria associado por Victor a celebrações festivas.
Em homenagem a essa lembrança sentimental, Victor ia sempre ao Mercado Central no dia anterior ao seu aniversário, a fim de comprar os ingredientes para o fumet e os chocos frescos para o arroz. Catalão até à morte, como dizia Roser, que nunca colaborara na confeção daquela refeição festiva. Deixava-se ficar na sala, contribuindo com um concerto de piano, ou permanecia junto dele na cozinha, sentada num tamborete a ler-lhe versos de Neruda, uma ode de sabor marinho, algo como: "No revolto mar do Chile habita o róseo congro, enguia gigante de carne de neve", e era em vão que Victor lhe fazia notar que, em lugar do congro, rei de todas as aristocráticas mesas, aquele prato era feito com simples cabeças e caudas de peixe, mais comuns e acostumadas à sopa do proletariado, ou então, enquanto Victor aloirava em azeite a cebola e o pimento, e acrescentava os chocos cortados em rodelas, alguns dentes de alho, tomate picado e arroz, e finalizava a sua obra regando tudo com o caldo a ferver, tingida do negro da tinta dos chocos, dizia-lhe ditos engraçados em catalão, porque entre tanto ir e vir, entre tanto andar para cá e para lá, já se lhe ia esquecendo a língua materna.
Observava como o arroz ia cozendo lentamente numa paelheira. Preparava a receita em duplicado, com os ingredientes de sempre, ainda que tivesse de jantar o mesmo mais vezes durante a semana. Aquele aroma lendário e evocador da infância ia gradualmente invadindo a casa e a alma de Victor, enquanto ele ia debicando umas anchovas e umas azeitonas espanholas, que em toda a parte se conseguiam encontrar. Essa era uma das vantagens do capitalismo, dizia-lhe Marcel, para o provocar. Victor dava preferência aos produtos nacionais, pois, segundo ele, uma das formas de patriotismo era, em pequenos gestos, apoiar as indústrias locais, mas o idealismo fraquejava-lhe quando se tratava de assunto tão sério e sagrado como azeitonas ou anchovas. No congelador refrescava uma garrafa de vinho rosê para brindar com Roser, uma vez que o jantar estivesse pronto e servido. Pusera sobre a mesa uma toalha de linho e comprara uma meia dúzia de rosas de estufa e de velas para decorar a mesa. Ela, com a sua habitual impaciência, já teria aberto a garrafa há muito, mas, na sua condição atual, teria de se resignar a esperar. No congelador, havia também uma taça de crema catalana, cujo mais provável destino, uma vez que Victor não era particularmente apreciador de doces, era acabar devorada pelos cães. Estava nestes preparativos quando o sobressaltou o telefone:
- Parabéns, papá! Feliz aniversário! O que estás a fazer?
- A recordar e a arrepender-me...
- A arrependeres-te de quê?
- Dos pecados que não cometi.
- E o que mais fazes?
- Cozinho, filho. Onde estás?
- Num congresso no Peru.
- Outro? Passas a vida nisso...
- Estás a cozinhar o mesmo prato de sempre?
- Sim... o de sempre. Até parece que a casa cheira a
Barcelona!
- Suponho que tenhas convidado a Meche!
- Hummm!
Sempre Meche, a encantadora Meche, que o filho sempre tentava impor-lhe como medida extrema para resolver o problema da viuvez. Victor admitia que achava atraentes a vivacidade e a leveza de Meche, contrariamente à sua paquidérmica calma. Meche, com a sua atitude aberta e positiva, com as suas esculturas de mulheres de pronunciadas curvas e largas ancas e com a sua horta resplandecente de vegetais, manter-se-ia sempre jovem. Ele, com a sua propensão a fechar-se sobre si, envelhecia e envelheceria rapidamente.
Marcel adorava a mãe, e Victor suspeitava que ainda a chorava às escondidas, mas, apesar disso, estava convencido de que, sem uma companheira, o pai terminaria desleixado e convertido numa espécie de mendigo. Para o distrair e para
o dissuadir, Victor falara-lhe da intenção de restabelecer contacto com uma enfermeira que conhecera nos tempos de juventude, mas, quando se aferrava a uma ideia, Marcel nunca mais soltava o filão.
Meche vivia a uns escassos trezentos metros de distância, e entre as duas moradias havia outros dois terrenos de permeio, separados por fileiras de álamos, mas Victor considerava-a a sua única vizinha, pois aos outros apenas os cumprimentava com distância. Acusavam-no de ser comunista por ser exilado e por ter trabalhado num hospital de pobres. Por norma, evitava toda e qualquer companhia. Bastavam-lhe os colegas e os pacientes, mas não conseguia livrar-se de Meche, segundo Marcel, a companheira ideal: madura, viúva, com filhos e netos, e sem vícios maus ou notórios, oito anos mais jovem do que ele, alegre e criativa, e, além disso, gostava muito de animais.
- Prometeste-me que a ias convidar, papá! Não te esqueças que deves muitos favores e atenções à senhora!
- Olha... ela só me deu a gata porque estava farta de, volta e meia, ter de a vir aqui buscar... e não sei o que te leva a pensar que uma mulher absolutamente normal se haveria de enamorar por um velho coxo, arredio e mal vestido como eu! A menos que estivesse desesperada... e nesse caso, para que haveria eu de querer estar com ela?
- Não te faças de tonto, papá!
Aquela mulher perfeita também cozinhava bolachas e biscoitos e cultivava tomates, que lhe trazia discretamente e que deixava numa canasta que dependurava num gancho na entrada. Não se ofendia quando ele se esquecia de lhe agradecer. O seu habitual e aparentemente inesgotável entusiasmo era quase estranho e suspeito. Aparecia frequentemente com pratos excelentes e pouco convencionais, como sopa fria de abóbora ou frango guisado com pêssego e canela, oferendas que Victor Dalmau interpretava como uma forma de suborno. A mais elementar prudência prescrevia distância. Victor planeava passar os últimos anos da sua velhice calado, sossegado e tranquilo.
- Custa-me que estejas aí sozinho no teu aniversário, papá!
- Tenho a companhia da tua mãe, Marcel. Nunca estou só. Uma longa pausa na ligação levou Victor a aclarar que, embora não parecesse, permanecia lúcido e que aquilo de jantar com a mulher falecida era apenas um metafórico ritual anual, como a Missa do Galo, uma espécie de celebração íntima e privada. Nada de fantasmas... apenas um pouco de prazer melancólico e solitário recordando... um brinde por aquela mulher magnífica que, com alguns sobressaltos, era verdade, o suportara várias décadas.
- Boa noite, velhote! Não te deites muito tarde. Deve estar um gelo por essas bandas...
- E tu, filho, passa uma boa noite de farra e deita-te de manhã, que bem falta te faz...
Passava pouco das sete da tarde. Já escurecera e a temperatura descera alguns graus. Em Barcelona, a ninguém ocorreria um jantar de arroz negro antes das nove, e no Chile o costume era mais ou menos o mesmo. Jantar tão cedo era coisa de velhos. Victor dispôs-se a esperar comodamente instalado na sua poltrona favorita, que, apesar da desconjuntada e velha armação, tão bem adquirira e mantinha pronta e convidativa a forma do seu corpo, desfrutando do aroma da madeira de pinho que ardia na lareira e antecipando o prazer da refeição, com o livro que estava a ler, acompanhado de um pequeno copo de pisco simples, sem gelo, como ele gostava, a única bebida branca que se permitia ao final do dia, pois acreditava que a excessiva solidão conduz ao alcoolismo.
O conteúdo da paelheira era tentador, mas decidiu resistir-lhe até uma hora mais apropriada.
Estava nestas bucólicas divagações domésticas, quando os cães, que se haviam afastado para o necessário e costumeiro passeio pelos arredores antes de se recolherem, o interromperam com um coro de latidos furiosos. Deve ser alguma doninha, pensou. Mas em seguida, quando ouviu o barulho do motor de um carro lá fora, sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo: Não pode ser Meche! Já não teria tempo de apagar a luz e de fingir que estava a dormir... Normalmente os cães corriam ao seu encontro a saudá-la alegremente, mas desta vez continuaram a ladrar. Victor estranhou ainda mais quando ouviu uma buzina, porque esse procedimento não era habitual em Meche, a menos que precisasse de ajuda para descarregar um dos seus presentes incríveis, como um leitão assado ou uma das suas obras de arte. Meche tornara-se famosa pelas suas esculturas, sempre representando grandes mulheres gordas e nuas, algumas tão pesadas e volumosas como um bom leitão. Victor possuía vários exemplares, distribuídos por todos os recantos da casa, e um outro no seu consultório, que servia para surpreender os pacientes e para relaxar a tensão do primeiro contacto.
Pôs-se de pé com alguma dificuldade e, resmungando, acercou-se à janela com as mãos comprimindo os rins, um dos seus pontos mais débeis. Sofria também da coluna por causa da coxeira, que o forçava a pôr mais peso sobre a perna direita. A vara de quatro parafusos que lhe haviam colocado na coluna, bem como o seu firme propósito de conservar sempre uma postura correta, havia, até certo ponto, mitigado e diminuído o problema, mas sem o resolver ou erradicar por completo. Esse era outro bom motivo para defender o seu estatuto de viúvo: conservar a liberdade de falar sozinho e de praguejar e de se queixar das diversas dores que o apoquentavam, as quais, nem por sombras, admitiria em público.
Orgulho! Tanto a mulher como o filho lhe haviam frequentemente apontado esse defeito. Não se tratava de uma questão de simples orgulho, mas sim vaidade e brio pessoal: um truque de ilusionista para se defender da inevitável decrepitude. Não bastava caminhar direito nem dissimular a dor ou o cansaço. Também disfarçava muitos outros sintomas da idade: avareza, desconfiança, mau humor, algum azedume, e também maus hábitos de homem solitário, como não se barbear diariamente, repetir as mesmas histórias ou as mesmas anedotas, falar demasiadamente de si próprio ou de dinheiro e de questões de saúde.
À luz dos dois candeeiros da entrada, divisou uma camioneta parada frente à sua porta. Quando outra buzinadela se fez ouvir, Victor, supondo que o condutor tinha medo dos cães, chamou-os com um assobio. Os cães recuaram, obedecendo-lhe de má vontade e rosnando entre dentes.
- Quem é? - gritou Victor.
- Sou a sua filha! Doutor Dalmau, segure os cães, por favor.
A mulher não esperou que Victor a convidasse a entrar.
Passou rapidamente por ele, tentando o mais possível evitar a proximidade dos cães, receosa. Os dois maiores farejavam-na de perto, desconfiados, e o mais pequeno dos três, o que sempre parecia disposto a atacar, continuava a rosnar com os dentes à mostra. Victor seguiu-a, atónito, e, sem pensar, ajudou-a a livrar-se do casacão de viagem, pousando-o sobre o banco da entrada. Ela sacudiu-se como um animal encharcado, comentando o dilúvio, e estendeu-lhe timidamente a mão.
- Boa noite, doutor! Chamo-me Ingrid Schnake... posso entrar?
- Bem, parece-me que já entrou!
Victor examinava a intrusa à luz vacilante do fogo e das lâmpadas da sala. Vestia calças de ganga desbotadas, uma camisola de lã, branca e de gola alta, e calçava umas botas de homem. Nem maquilhagem nem jóias visíveis. Não era uma jovem, como primeiramente supusera. Tratava-se de uma mulher já com rugas nos olhos, que enganava quanto à idade, pois usava o cabelo comprido, muito elegante, e de movimentos graciosos. Recordava-lhe alguém.
- Desculpe aparecer assim de chofre e sem avisar! Vivo bastante longe, no Sul, e perdi-me pelo caminho. Além disso, não conheço bem Santiago. Nunca pensei que chegaria aqui a uma hora destas...
- Tudo bem. Em que posso ajudá-la?
- Hummm! O que é este cheiro tão apetitoso?
Victor Dalmau preparava-se para pôr aquela estranha na rua, que se introduzia assim, sem mais nem porquê, em sua casa, ainda por cima a uma hora daquelas, mas a curiosidade foi mais forte do que a irritação.
- É arroz de chocos.
- Vejo que tem a mesa posta. Interrompo? Posso voltar amanhã a uma hora mais apropriada, se preferir. Espera visitas, certo?
- Só a si, suponho! Como disse que se chamava?
- Ingrid Schnake. O senhor não me conhece, mas eu sei muito sobre si. Há muito tempo que o procuro.
- Gosta de vinho rosê?
- Gosto de todos os tipos de vinho. Receio que vai ter de me convidar a provar também um pouco desse arroz. Não como nada desde o pequeno-almoço! Chega para mim?
- Chega para a vizinhança inteira. Já está tudo pronto. Vamos sentar-nos à mesa e jantar. Entretanto conta-me por que raio é que uma miúda tão bonita anda à minha procura.
- Já lhe disse antes. Porque sou sua filha. E também já não sou nenhuma miúda, como diz. Tenho cinquenta e dois anos bem vividos, e...
- O meu único filho chama-se Marcel - interrompeu-a
Victor.
- Doutor, garanto que não vim aqui no intuito de o incomodar. Queria apenas conhecê-lo.
- Vamos pôr-nos à vontade, Ingrid. Pelo que vejo, esta vai ser uma conversa que promete durar.
- Tenho muitas perguntas para lhe fazer. Importa-se se começarmos com a sua história? Se estiver de acordo, depois conto-lhe a minha.
* * *
No dia seguinte, Victor telefonou a Marcel pouco depois
do amanhecer.
- Filho, acontece que de repente se nos aumentou a família. Tens uma irmã, um cunhado e três sobrinhos. A tua irmã, que, na verdade não o é exatamente tua irmã, chama-se Ingrid, e vai ficar aqui em casa uns dias, porque temos muito que contar um ao outro...
Enquanto ele falava com Marcel, a mulher, que na noite anterior tão inadvertidamente lhe irrompera casa adentro, dormia vestida e coberta por duas mantas no desconjuntado sofá da sala. A ele, que sempre fora propenso à insónia, uma noite em claro não lhe fazia a menor diferença, e durante aquela madrugada sentiu-se tão desperto como não voltara a sentir-se desde a morte de Roser. Pelo contrário, a visitante estava exausta, depois de ter passado dez horas a ouvir a história de Victor e a contar-lhe a sua. Dissera-lhe que a sua mãe era Ofélia del Solar, e que, segundo sabia, ele era seu pai. Levara vários meses a conseguir averiguar os factos, e, não fora pela consciência pesada de uma anciã, permaneceria para
sempre na ignorância.
E foi assim que, mais de meio século depois, Victor se inteirou de que Ofélia ficara grávida aquando do seu romance. Por isso desaparecera tão subitamente da sua vida.
Por isso a paixão se lhe transformara em rancor e rompera com ele sem qualquer explicação razoável.
- Creio que se sentiu ao mesmo tempo arrependida, prisioneira e sem futuro, devido à escolha errada que fizera. Pelo menos foi essa a única explicação que recebi - disse-lhe Ingrid. E continuou a relatar-lhe os pormenores que envolviam o seu nascimento.
Para fazer face à recusa de Ofélia, o padre Vicente Urbina tomara em mãos próprias o assunto da adoção da criança. A única cúmplice no plano fora Laura del Solar, sob a estrita promessa de nunca, mas nunca, revelar a ninguém o sucedido. Tratava-se, ademais, de uma mentira piedosa e necessária, perdoada em confissão, e diretamente aprovada desde as incomensuráveis altitudes celestes. A parteira, uma tal de Orinda Naranjo, encarregou-se de cumprir à risca as instruções do sacerdote, mantendo Ofélia em estado de semi-inconsciência, antes, durante e depois do parto, subtraindo o bebé com a cumplicidade da avó assim que este nascera, antes que alguém no convento disso se apercebesse ou começasse a fazer indagações. Quando Ofélia, alguns dias mais tarde, despertou do transe em que propositadamente fora induzida, explicaram-lhe que dera à luz um menino que morrera pouco depois de nascer.
- Só que não era um menino. Era uma menina... e era eu - concluiu Ingrid.
Haviam contado à mãe aquela versão, para evitar que ela, se num futuro hipotético suspeitasse do ocorrido, não pudesse, de forma alguma, localizar Ingrid. Dona Laura em tudo participou, e com tudo estivera submissamente de acordo, inclusive em tomar parte na farsa do cemitério onde plantaram uma cruz sobre um caixão vazio. A responsabilidade não era, no entanto, de sua lavra. O artífice fora alguém muito mais bem preparado do que ela. Um sábio, um homem de Deus... nada mais nada menos que o padre Urbina.
Durante os anos seguintes, ao ver que, ao fim e ao cabo, Ofélia conseguira um bom casamento, dois filhos saudáveis e uma vida tranquila, Dona Laura sepultara as suas dúvidas e a sua consciência no mais recôndito sótão da memória. O padre Urbina fizera-lhe saber que a bebé fora adotada por um casal de boa gente do Sul, católicos e de boas famílias. Nada mais podia dizer-lhe. E, sempre que ela tentava saber mais, recordava secamente a Dona Laura que deveria dar aquela neta como morta, e que, além do mais, não chegara nunca a pertencer à família, ainda que nas veias levasse o seu sangue. Fora desígnio de Deus confiá-la e entregá-la a outros pais. O casal que adotara a menina descendia de famílias alemãs. Altos, robustos, de cabelos loiros e olhos cor de céu, viviam numa bela cidade fluvial onde abundavam as árvores e a chuva, e que se situava a mais de oitocentos quilómetros de Santiago... mas disso não soube Dona Laura. Quando o casal Schnake perdera já a esperança de ter filhos próprios, recebera com profunda comoção a recém-nascida que lhes entregara o padre Urbina. Um ano mais tarde, a mulher engravidou. Tiveram ainda mais dois filhos, de aspeto tão teutónico como o dos progenitores, de forma que, entre eles, Ingrid, de baixa estatura, de cabelos e olhos escuros, surgia como um erro genético.
- Desde miúda que me sentia diferente, mas os meus pais mimaram-me até mais não poderem e nunca me disseram que fui adotada. Mesmo agora, se acaso falo no assunto, a minha mãe começa logo a chorar, apesar de ser um facto do conhecimento de toda a família - explicou Ingrid a Victor. Ao vê-la assim, exposta, a dormir no sofá, Victor pôde finalmente observá-la à vontade. Não era a mesma mulher com quem conversara horas a fio. Adormecida, assemelhava-se à Ofélia da juventude, as mesmas feições delicadas, as maçãs do rosto vagamente infantis, as mesmas sobrancelhas arqueadas, as madeixas do cabelo formando-lhe um V sobre a testa, a pele muito clara com um matiz dourado... só lhe faltavam os olhos azuis para ser quase igual à mãe. Assim que chegara a sua casa, Victor pensou que a conhecia de alguma parte, mas não lhe descobriu de imediato a semelhança com Ofélia. Agora, quando a via relaxada, pôde notar todas as semelhanças físicas e refletir sobre as diferenças de personalidade. Ingrid nada possuía da inconsequente coqueteria daquela Ofélia jovem que ele tanto amara. Era intensa, séria e formal. Era uma mulher da província, criada num ambiente conservador e religioso, com uma vida que avançara tranquila e sem oscilações de maior, até ao dia em que descobrira as suas origens e viera procurar o seu verdadeiro pai. Pensou que Ingrid não tinha muitas parecenças com ele: nem o corpo alto e seco, nem o nariz aquilino, nem o cabelo espetado, nem a expressão séria, ou sequer o seu carácter introvertido. Era uma mulher suave. Pensou que devia ser maternal e divertida. Tentou imaginar como teria sido uma filha sua com Roser, e lamentou que não a tivessem tido. A princípio, na verdade, não se consideravam realmente casados. Estavam juntos apenas por um acordo temporal, que convinha a ambos. Quando se aperceberam de que queriam e que estavam mais casados do que ninguém, haviam transcorrido vinte anos, e era já demasiado tarde para pensar em filhos.
Ia custar-lhe acostumar-se a aceitar a presença de Ingrid na sua vida, pois, até então, a sua única família era Marcel. Imaginou que Ofélia estivesse tão estupefacta como ele. A ela também lhe surgira em plena velhice aquela filha inesperada, que por acréscimo trouxera três netos. O seu marido, à semelhança dos pais adotivos, também era de origem alemã, tal como muitos outros habitantes de algumas províncias do Sul, desde o século XIX, graças a uma lei que consagrava uma política de imigração seletiva. A ideia era povoar e trazer para o país brancos de pura cepa, que inculcassem espírito de disciplina e de trabalho aos chilenos nativos, que tinham fama de indolentes.
Nas fotografias dos filhos que Ingrid lhe mostrou, apareciam três jovens, um rapaz e duas raparigas, com aspeto de valquírias, que Victor não conseguiu reconhecercomo seus descendentes.
- O filho de Ingrid está casado e a mulher dele está grávida. Dentro de pouco tempo serei bisavô - contou por telefone a Marcel.
- Então... eu sou tio dos filhos de Ingrid. Qual será o meu grau de parentesco com este filho do filho que vai nascer?
- Creio que será tio-avô.
- Que horror. Isso faz-me sentir velho! Não posso deixar de pensar na avó. Lembras-te como ela queria que eu lhe desse bisnetos? Coitada da velhota... morreu sem saber que já os tinha. Uma neta e três bisnetos!
- Temos de ir conhecê-los, Marcel! São todos meio alemães... e ainda por cima, de direita, e pior do que tudo... eram pinochetistas. Portanto, vamos ter de engolir muitos sapos e de morder a língua na presença deles.
- Oh, papá! O que importa é que são da família. Não vamos pôr-nos a discutir política!
- Também tenho de estabelecer alguma forma de contacto regular com Ingrid e com os meus netos. Caíram-me do céu, como maçãs. Sabes, acho que estava melhor antes, sozinho e tranquilo no meu canto.
- Não digas asneiras, papá! Eu estou a morrer de curiosidade para conhecer a minha irmã... ainda que não seja mesmo minha irmã!
Victor imaginou que um reencontro com Ofélia, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável se a família se reunisse, e viu essa possibilidade com naturalidade. Há muito se curara da mágoa e da nostalgia que sentia em relação a ela, e tinha alguma curiosidade em revê-la e corrigir a má impressão que esta lhe causara onze anos antes, no Ateneu de Caracas. Oxalá tivesse a oportunidade de lhe dizer que, graças a ela, finalmente possuía raízes no Chile. Raízes fundas, imutáveis. Raízes que não eram apenas de teor sentimental. Raízes que, ironicamente, nunca tivera em Espanha. Pareceu-lhe também uma partida do destino que, ao fim e ao cabo, viesse a fazer parte, ainda que indiretamente, da família Del Solar, a mesma que tão tenaz e ferozmente se opusera à imigração dos exilados espanhóis no Winnipeg. Ofélia dera-lhe um imenso presente: abrira-lhe a porta do futuro. Já não era um velho sem outra companhia que a dos seus animais de estimação. Tinha uma descendência no Chile, para além de Marcel, claro, que nunca se considerara pertença de outro lugar. Aquela mulher fora muito mais importante na sua vida do que alguma vez imaginara. Nunca chegara a entendê-la. Ofélia era muito mais complexa e atormentada do que ele a julgara. Pensou nos seus quadros e supôs que, ao optar por casar, ao colocar em primeiro plano a segurança do matrimónio e do seu lugar na sociedade, Ofélia se exilara de si mesma, renunciando a um vetor essencial da sua alma, que talvez já entrada na idade madura pudesse ter, pelo menos em parte, recuperado. Depois, ao recapitular mentalmente o que ela lhe contara sobre Matias Eyzaguirre, concluiu que a renúncia de Ofélia não fora motivada por frivolidade ou por capricho, mas sim por um amor estranho e peculiar.
Um ano antes, Ingrid Schnake recebera uma carta de uma desconhecida que dizia ser a sua mãe biológica. Não ficou totalmente surpreendida com o facto, uma vez que sempre se sentira diferente do resto da família. Primeiro, abordou os pais adotivos, que por fim admitiram a verdade, e depois preparou-se para receber a visita de Ofélia e de Felipe del Solar, que chegaram acompanhados por uma anciã envolta dos pés à cabeça em luto rigoroso: Juana Nancucheo. Nenhum dos três teve sequer um instante de dúvida.
Ingrid era de facto a filha perdida de Ofélia. As semelhanças eram evidentes. Desde então, Ofélia visitara por três ocasiões a filha, que a tratava com a cortesia indiferente que se dispensa aos familiares distantes, pois a sua verdadeira e única mãe era Helga Schnake. Aquela visitante com dedos manchados de tinta, que arrastava o vício de continuamente se lamentar de tudo, era, para Ingrid, uma estranha e uma desconhecida. Ingrid tinha consciência da semelhança física que ambas partilhavam e receava herdar-lhe também os defeitos, e que, ao envelhecer, se tornasse azeda e narcisista como a mãe. Por Ofélia, foi sabendo, a espaços, como peças de um quebra-cabeças, os detalhes do seu nascimento. Só no terceiro encontro é que Ofélia lhe revelou o nome do pai. Decidida a sepultar e deixar para trás o passado, Ofélia evitava falar daquela época, tudo cobrindo com a terra do tempo e do esquecimento. Obedecera à ordem do padre Urbina, de guardar silêncio sobre o ocorrido, e tanto se abstivera de referir aquele recém-nascido distante e desterrado num cemitério rural que esse episódio perdido da juventude acabara por se perder e se diluir através das pregas daquela reiterada omissão. Voltou a recordar a criança aquando do funeral de Matias e dispôs-se a cumprir a promessa que haviam feito quando casaram: de que o bebé seria trasladado e com eles repousaria no jazigo de família do cemitério de Santiago. Essa teria sido a altura ideal para exumar e trasladar os restos mortais, mas Felipe convenceu-a do contrário, com o argumento de que, caso o fizesse, teria de dar infindáveis explicações aos filhos e ao resto da família.
Quando se agravou o estado de saúde de Laura del Solar, Ofélia já vivia há alguns anos sozinha na sua casa de campo, dedicada exclusivamente à pintura, enquanto o filho mais velho construía uma barragem no Brasil e a filha trabalhava num museu em Buenos Aires. Dona Laura, a ponto de cumprir um século de existência, desde há algum tempo delirava continuamente.
Duas abnegadas empregadas se revezavam para a cuidar, sob a estrita e implacável supervisão de Juana Nancucheo, que, embora fosse quase da idade de Laura, aparentava, no mínimo, ter quinze anos a menos. Desde sempre servira aquela família e pretendia continuar assim, enquanto Dona Laura dela necessitasse. O seu dever era cuidá-la até ao último suspiro. A patroa permanecia acamada, repousando por entre almofadões de penas e lençóis de linho bordados à mão, vestida nas suas camisas de dormir importadas de França, rodeada dos refinados objetos que o marido comprara sem atender a gastos. Após a morte deste, Dona Laura libertara-se da armadura de ferro que fora para ela o casamento com aquele homem despótico e pôde, finalmente, dedicar-se a si própria e aos seus interesses, até que a velhice a deixou inválida e que a senilidade não lhe permitiu continuar a comunicar com o fantasma de Leonardo, seu eterno Bebé, durante as sessões de espiritismo. Foi-se-lhe embotando a mente. Confundia-se e perdia-se dentro da sua própria casa, e, quando se via ao espelho, perguntava quem era aquela velha tão feia que todos os dias a vinha perturbar. Por fim, deixou de poder levantar-se, pois as pernas e os pés, deformados e inchados pela artrite, recusavam-se a suportar-lhe o peso. Ficava prostrada no leito, onde prolongados períodos de pranto se sucediam a outros de total apatia, chamando o Bebé com um terror agónico e incompreensível, que o médico procurava, em vão, esmorecer com antidepressivos e calmantes. A família em peso, que acompanhava o fim de Dona Laura, acreditava que ela se ressentia da perda de Leonardo e que sofria como se aquela morte tivesse acabado de suceder.
Felipe del Solar, convertido em chefe do clã desde a morte do pai, viera propositadamente de Londres para tomar as rédeas da situação, colocar em ordem os negócios, pagar contas e dispor e tratar da distribuição da herança. Dizia-se que tinha um pacto com o demónio e que, graças a isso, não envelhecia, contrariando a sua mania de hipocondríaco. Padecia de mil e uma doenças que arrastava consigo, umas antigas, outras recentes, uma lista a que acrescentava um novo achaque por semana. Doíam-lhe até as pontas do cabelo! Mas, por uma dessas incompreensíveis ironias da vida e do mundo, nada disso transparecia. Continuava a ser o cavalheiro distinto que sempre fora. Convertera-se a régua e esquadro num gentleman inglês, trajando impecável, casaca e laço de seda, e com uma eterna expressão de fastio por tudo e por todas as coisas. Atribuía a sua boa figura e o seu resistente e ainda bom aspeto ao nevoeiro londrino, ao excelente whisky escocês e ao tabaco de cachimbo holandês que sempre fumava. Na mala de viagem trazia os documentos que lhe permitiriam vender a casa da Rua Mar del Plata, cujo terreno, sito no centro da capital, valia uma fortuna. Deveria, no entanto, esperar a morte de Dona Laura para finalizar os trâmites. Esta, reduzida a quase nada, persistiu chamando o Bebé até ao último alento, sem que, até ao fim, encontrasse paz, de nada lhe valendo os medicamentos ou as orações. Juana Nancucheo fechou-lhe os olhos e a boca, rezou uma ave-maria pela sua alma e retirou-se, exausta e arrastando os pés. Pelas nove horas da manhã do dia seguinte, enquanto a funerária preparava a casa para o velório, com o caixão depositado no salão principal devidamente ornado de coroas de flores, círios e fitas de tecido negro, Felipe reuniu os irmãos para lhes comunicar a venda da propriedade. Depois chamou Juana à biblioteca para lhe dizer o mesmo:
- Juana, esta casa vai ser demolida para se construir um edifício de apartamentos. Mas a ti não te vai faltar nada. Diz-me como e onde gostavas de viver.
- O que quer que lhe responda, menino Felipe? Não tenho família nem conhecidos ou amigos. Estou a ver que me tornei num peso para todos. Vai pôr-me num lar, não é?
- Há algumas residências para idosos muito boas, Juana, mas não farei absolutamente nada que não queiras. Preferes viver com Ofélia ou com outra das minhas irmãs?
- Eu vou morrer daqui a um ano, por isso, tanto me faz. Morrer é morrer e pronto. Está feito, e por fim descansa-se um pouco.
- Coitada... a minha mãe não pensava assim!
- Dona Laura sentia um grande peso na consciência, menino Felipe... por isso tinha tanto medo de morrer.
- Oh, Juana! Pelo amor de Deus! O que é que tanto afligia a minha mãe? Estava demente e ficou obcecada com a lembrança de Leonardo - alvitrou Felipe.
- Leonardo? Não, menino Felipe. Nos últimos tempos ela já nem se lembrava dele. Chorava pelo outro bebé... o bebé da Ofelita.
- Não estou a perceber, Juana.
- Lembra-se de que ela engravidou quando era ainda solteira? Pois bem, esse bebé não morreu, como disseram na altura.
- Mas se eu próprio vi a campa!
- Estava vazia. Era uma menina. Levou-a uma mulher... não me lembro do nome. Era a parteira. Isto contou-me Dona Laura, e por isso chorava. Porque decidiu fazer caso do que lhe disse o padre Urbina e roubou a filha da Ofelita. Passou a vida inteira com esse remorso a corroê-la por dentro, como um cancro.
Felipe, a princípio, esteve tentado a atribuir aquela história macabra ao delírio da mãe, ou, talvez, à senilidade da própria Juana, pensando também que, a ser verdade, mais valia manter Ofélia na ignorância. Contar-lhe tudo agora seria uma crueldade desnecessária. Mas Juana comunicou-lhe que, no leito de morte, prometera a Dona Laura reencontrar a criança para que ela pudesse, enfim, subir ao Céu, caso contrário ficaria para sempre no Purgatório, e uma promessa a um moribundo é coisa sagrada. Então apercebeu-se de que seria impossível silenciar Juana. Mais uma vez, seria ele que tomaria conta da situação antes que toda a família, e particularmente Ofélia, soubesse a verdade. Prometeu a Juana que iria pôr-se em campo e investigar, e que a manteria sempre informada e a par do que fosse descobrindo. "Comecemos então pelo padre, menino Felipe. Eu irei consigo". Não conseguiu livrar-se dela. A cumplicidade que os unira durante oitenta anos e a certeza de que ela era capaz de lê-lo até ao pensamento mais remoto obrigaram-no a atuar sem desculpas nem demoras.
Nesse tempo, Vicente Urbina deixara já de exercer funções, vivendo numa residência para padres idosos, ao cuidado de freiras. Foi fácil encontrá-lo e conseguir uma marcação. O padre ainda estava lúcido e lembrava-se perfeitamente dos seus antigos fregueses, principalmente dos Del Solar. Recebeu Felipe e Juana, desculpando-se por não lhe ter sido possível administrar pessoalmente a extrema-unção a Dona Laura, pois, ao tempo da morte desta, fora ele operado aos intestinos, e a convalescença demorava-se e prolongava-se indefinidamente. Sem grandes rodeios, Felipe repetiu-lhe o que Juana lhe contara. Com a sua experiência de advogado, ia preparado para um interrogatório complicado e para a necessidade de colocar o prelado entre a espada e a parede para o obrigar a confessar, mas nada disso sucedeu.
- Fiz o que era melhor para a família. Sempre fui muito cuidadoso e criterioso na escolha dos pais adotivos. Todos eram católicos praticantes - disse Urbina.
- Quer dizer então que Ofélia não foi o único caso?
- Não... Houve muitas jovens a quem sucedeu o mesmo. Mas nunca me deparei com nenhuma tão teimosa e resistente à ideia da adoção como Ofélia. Em geral, todas estavam de acordo com a ideia de se verem livres das criaturas. E o que mais poderiam fazer?
- Quer dizer, não foi preciso enganá-las para lhes roubar as crianças!
- Felipe! Não te admito que me faltes ao respeito! O meu dever era protegê-las e evitar o escândalo. Eram todas jovens de boas famílias!
- Escândalo é o senhor padre, com a velada aprovação da Igreja, ter cometido um crime, quero dizer, vários, muitos crimes. E isso castiga-se com a prisão. O senhor, infelizmente, já não tem idade para cumprir pena, mas exijo que me diga o nome das pessoas a quem entregou a filha de Ofélia. Vou escavar isto até ao fundo. Quero saber a verdade!
Vicente Urbina não fizera um registo dos casais recetores nem das crianças entregues. Era ele quem pessoalmente se encarregava de efetuar as transações. A parteira Orinda Naranjo atendia apenas aos partos e, de qualquer modo, já morrera há muito. Foi então que interveio Juana Nancucheo, dizendo que, segundo Dona Laura, quem recebera a menina fora um casal de alemães residentes no Sul do país. Certa ocasião, o padre Urbina deixara inadvertidamente escapar a informação e a anciã nunca mais esquecera esse detalhe acidentalmente revelado.
- Alemães, dizes tu? Devem ser uns que viviam em Valdivia! - cogitou o bispo.
Não se recordava do nome do casal, mas garantiu-lhes que a bebé fora bem acolhida e que nada lhe faltara. Era um casal com uma folgada situação económica. Por esse comentário, Felipe deduziu que aquelas entregas de crianças para adoções à margem legal envolviam também uma transação pecuniária. Em poucas palavras, Monsenhor dedicava-se à venda de crianças. Então, desistiu do primeiro plano, que consistia em tentar extrair de Urbina a maior quantidade de informação possível, para passar a uma segunda fase: seguir a pista das doações que a Igreja recebera com a interferência do padre. Seria uma tarefa difícil, mas não de todo impossível.
Era necessário recorrer aos contactos certos. Felipe sabia que o dinheiro sempre deixa rasto, e mais uma vez não se enganou. Oito meses passaram em suspensa espera até conseguir obter a informação pretendida. Localizou os pais adotivos de Ingrid quando já se encontrava em Londres, continuamente fustigado pelas sucintas mensagens que Juana lhe enviava, escritas em cartões postais e salpicadas de erros ortográficos e gramaticais, a recordar-lhe a sua responsabilidade na resolução do assunto da descoberta da filha de Ofélia. A anciã escrevia-lhe tais missivas a muito custo e enviava-lhas às escondidas, pois comprometera-se a guardar segredo absoluto até que Felipe desvendasse o enigma. Ele repetia-lhe uma e outra vez que tivesse paciência, mas Juana não podia dar-se esse luxo nem esse tempo, pois pressentia que lhe eram já escassos os dias neste mundo, e, antes de partir, tinha de cumprir aquele derradeiro propósito: encontrar a criança, e assim resgatar Dona Laura do Purgatório. Quando Felipe lhe perguntou como sabia a data exata da sua morte, Juana respondeu-lhe simplesmente que a tinha assinalada com um círculo a vermelho no calendário pendurado na cozinha. Estava, pela primeira vez, ociosa. Havia-se mudado para casa de Ofélia, e sem mais tarefas a cumprir, dedicava-se a preparar o seu próprio funeral.
Numa sexta-feira de dezembro, o correio finalmente trouxe a Felipe a lista das doações recebidas pela Igreja por intermédio do padre Urbina durante o ano de 1942. A única que lhe chamou a atenção foi a efetuada por Walter e Helga Schnake, proprietários de uma fábrica de móveis, que, segundo os seus informadores, prosperara, tendo atualmente várias sucursais ao longo das cidades do Sul. Eram todas dirigidas pelos filhos do casal e pelo genro. Tal como lhes garantira Urbina, tratava-se de uma família endinheirada. Chegara o momento de viajar novamente para o Chile e confrontar Ofélia.
Felipe encontrou a irmã a misturar tintas no seu atelier, um armazém gélido, com um forte cheiro de aguarrás e bordado de teias de aranha. Estava ainda mais gorda e andrajosa, com o cabelo totalmente branco, emaranhado e sujo, e usava um colete ortopédico devido às dores de coluna que a atormentavam. Juana, sentada num recanto, agasalhada num casaco comprido, usando luvas e gorro de lã, conservava-se igual.
- Quem te visse agora, Juana, jamais imaginaria que vais morrer em breve! - cumprimentou ele, beijando-a na testa.
Preparara cuidadosamente um discurso no tom mais compassivo que lhe fora possível para contar à irmã que tinha uma filha, mas todas as precauções e rodeios foram desnecessários, pois Ofélia reagiu com uma curiosidade vaga e distante, como se tal facto fosse apenas uma brincadeira ou uma qualquer trivialidade longínqua do seu mundo.
- Imagino que tenhas muita curiosidade em conhecer a tua filha - disse-lhe Felipe.
Ela explicou-lhe que teriam de esperar algum tempo, pois, no momento, estava embarcada no exigente projeto de pintar um mural. Juana interveio então para dizer que nesse caso iria ela, porque queria e devia ver a menina com os seus próprios olhos, para poder, enfim, morrer em paz. Foram os três.
Juana Nancucheo viu Ingrid uma única vez e, finalmente tranquila, comunicou com Dona Laura, entre duas orações, como fazia todas as noites, a fim de lhe explicar que a sua neta fora enfim encontrada, e que, estando expiada a sua culpa, poderia finalmente entrar no Céu. A ela, Juana, restavam-lhe ainda vinte e quatro dias. Voluntariamente, deixou-se ficar na cama, rodeada dos seus santos de cabeceira e das fotografias dos seus entes mais queridos, pertencentes todos à família Del Solar, e dispôs-se a morrer de inanição. Não voltou a comer ou a beber, apenas aceitando um pouco de gelo, de quando em quando, para humedecer a boca ressequida.
Partiu sem dor nem sobressalto alguns dias antes da data que previra.
- Estava preparada e com pressa - disse Felipe, desolado e órfão.
Livrou-se do caixão de pinho vulgar que Juana comprara e que mantinha erguido a um canto do quarto e fê-la sepultar com direito a missa cantada e um ataúde de madeira de nogueira com acabamentos em bronze, no jazigo dos Del Solar, junto dos seus pais.
* * *
Ao terceiro dia, o temporal amainou finalmente e o sol surgiu, desafiando o inverno, e os álamos, que como sentinelas velavam a casa de Victor Dalmau, amanheceram recém-lavados. A neve cobria toda a cordilheira e refletia o violeta do céu limpo. Os dois cães grandes puderam finalmente afastar a modorra do confinamento forçado e passear pelo jardim húmido a rebolar à vontade pela lama, mas o mais pequeno, que em idade canina era tão velho como o seu dono, deixou-se ficar estendido junto à lareira. Ingrid Schnake passara esses últimos dias com Victor, não tanto devido ao temporal, uma vez que estava acostumada à chuva perpétua da sua província do Sul, mas porque não queria que terminasse aquele primeiro encontro em que por fim se conheciam. Tinha planeado e ansiado aquele momento durante meses. Insistira com o marido e os filhos para que não a acompanhassem.
- Tinha de fazer isto sozinha, percebe? Custou-me bastante, porque é a primeira vez que viajo só e não sabia como me iria receber - disse a Victor.
Diferentemente do que sucedera com a mãe, com quem não conseguiu franquear a distância imposta por mais de cinquenta anos de afastamento, com Victor facilmente se tornaram amigos, tendo ficado claro que ele jamais podia competir pelo afeto da filha com Walter Schnake, o seu adorado pai adotivo, o único pai que como tal ela reconhecia.
- Está muito velhinho, Victor - contou-lhe. - Vai morrer-me a qualquer momento.
Ingrid e Victor descobriram que ambos tocavam guitarra por necessidade de consolo, que eram adeptos da mesma equipa de futebol, que a ambos agradava ler romances de espionagem e que sabiam recitar de memória muitos versos de Neruda: ela, os de amor, ele, os de sangue. Não eram estas, contudo, as únicas coisas que tinham em comum. Também partilhavam uma grande tendência para a melancolia, tendência essa que ele procurava manter afastada, mergulhando no trabalho, e que ela combatia com antidepressivos ou com o refúgio na inabalável segurança que lhe transmitia a família. Victor lamentou que a filha tivesse herdado dele aquele traço, em lugar do espírito artístico ou dos olhos cerúleos de Ofélia.
- Quando estou mais depressiva, é o carinho que sempre me salva - confidenciou-lhe Ingrid, para logo acrescentar que o afeto jamais lhe faltara: era a favorita dos pais, a protegida entre os irmãos mais novos e estava casada com um colosso cor de mel, capaz de erguê-la com um único braço e de devo-tar-lhe o amor tranquilo de um cão fiel.
Por sua vez, Victor contou-lhe que a ele também o carinho de Roser lhe permitira enfrentar e viver com aquela tristeza profunda que o cercava como um inimigo e que, por vezes, o sobressaltava com toda a sua carga de lembranças dolorosas. Sem Roser estava perdido! Havia-se-lhe extinguido até o menor vestígio de chama interior, e no seu lugar ficaram apenas as cinzas de uma dor brutal que arrastava desde há três anos. Surpreendeu-se da audácia e da sinceridade da sua própria confissão, feita numa voz tão quebrada, porque nunca ousara falar a ninguém daquele buraco de gelo que se lhe rasgara no peito. Nem sequer o dissera a Marcel.
Sentia que até a alma lhe diminuía de tamanho. Definhava com as suas manias de velho, num silêncio mineral, na sua solidão irremediável de viúvo. Afastara-se dos poucos amigos que ainda lhe restavam. Já não procurava companhia para jogar xadrez ou para tocar guitarra. Tinham terminado também os assados dominicais de outrora. Continuava a trabalhar, o que o obrigava a permanecer em contacto com os seus doentes e com os alunos, mas fazia-o através de uma impenetrável distância, como se os visse surgir difusos, como que filtrados, protegidos por detrás de um ecrã. Mercê dos anos que vivera na Venezuela, acreditava ter-se-lhe definitivamente evaporado a seriedade, que fora um traço inalienável da sua personalidade desde jovem, como se carregasse um perpétuo luto pelo sofrimento, pela violência e pela maldade do mundo. Qualquer hipótese de felicidade parecia-lhe obscena, ante tantas calamidades e desgraças. Enquanto na Venezuela, profundamente apaixonado por Roser, vencera a tentação de se refugiar na tristeza, que não era um manto de dignidade, mas de desprezo e de desrespeito pela vida, como ela, incansável, lhe repetia. Mas agora, a seriedade, aquela seriedade, regressara em força. Sem Roser, a sua fonte secava a olhos vistos. Só Marcel e os seus animais conseguiam enternecê-lo.
- A tristeza, minha eterna inimiga, volta a ganhar terreno, Ingrid! Por este andar, vou terminar os meus dias convertido num eremita.
- Faça como eu, Victor. Isso seria como deixar-se morrer em vida. Não espere que a tristeza venha ter consigo. Enfrente-a. Demorei muito a aprender isto nas minhas sessões de terapia.
- E que razões tens tu, menina, para te sentires triste?
- Não sei, Victor. O meu marido pergunta-me o mesmo. Suponho que não são necessários motivos. É uma questão de personalidade. E é muito difícil mudar.
- Para mim já é demasiado tarde. Não me resta outro remédio senão aceitar-me como sou. Já tenho oitenta anos, feitos no dia em que chegaste. Estou na idade das memórias, Ingrid. É tempo de fazer um inventário de tudo e de passar a vida a limpo - respondeu-lhe ele.
- Desculpe se sou intrometida, mas importa-se de me abrir o seu inventário?
- A minha vida foi uma série de navegações. Andei por quase todos os lugares da Terra. E em toda a parte fui estrangeiro sem saber que tinha raízes profundas. Com isso, também me navegou para longe a alma. Mas agora parece-me inútil fazer tais reflexões. Deveria ter pensado em tudo isto há muito tempo.
- Creio que ninguém pensa verdadeiramente na vida durante a juventude, Victor. E a maior parte das pessoas nunca chega realmente a fazê-lo. Olhe o exemplo dos meus pais: têm mais de noventa anos, e acredite que nunca lhes ocorreria. Limitam-se a viver o dia a dia, satisfeitos e tranquilos.
- É uma pena que este inventário só se faça na velhice, Ingrid... quando já não há tempo para alterar o rumo das coisas.
- Não se pode alterar o passado, mas talvez seja ainda possível eliminar as piores recordações.
- Olha, Ingrid: os acontecimentos mais importantes na vida de um Homem, os que determinam realmente o destino, quase sempre escapam completamente ao nosso controlo. No meu caso, ao fechar este relatório de contas, se assim posso chamar-lhe, vejo que a minha vida foi marcada pela Guerra Civil na minha juventude e mais tarde pelo golpe militar aqui no Chile, pelos campos de concentração e pelos exílios. Não escolhi nada disso. Foram coisas que simplesmente me couberam em sorte.
- Mas pôde escolher outras coisas... como a medicina.
- Nisso tens razão... e foi algo que me trouxe muitas alegrias. Sabes o que mais me marcou? O amor. Tive uma sorte incrível com Roser. Ela foi e sempre será o grande amor da minha vida. E graças a ela também tenho o Marcel e conheci a paternidade. Foi também fundamental para mim. Marcel permitiu-me manter a fé no melhor da condição humana. Sem ele, ter-se-ia há muito dissipado. Já vi demasiada crueldade, Ingrid. Sei do que os homens são capazes. Também amei muito a tua mãe, ainda que não tenha durado muito...
- O que aconteceu realmente?
- Eram outros tempos. O Chile mudou muito durante os últimos cinquenta anos. Ofélia e eu estávamos separados por um abismo social e económico.
- Se gostavam assim tanto um do outro, deveriam ter arriscado!
- A dada altura, ela propôs-me que fugíssemos para um qualquer país quente, onde pudéssemos viver o nosso amor sob as palmeiras. Imagina tu! Nesse tempo, Ofélia estava muito apaixonada e ainda tinha espírito de aventura. Eu estava casado com Roser. Não tinha nada para oferecer-lhe e sabia que, se ela viesse comigo, mais cedo ou mais tarde, iria arrepender-se. Se foi cobardia da minha parte? Fiz-me muitas vezes esta pergunta. Foi, acima de tudo, falta de sensibilidade. Não medi as consequências da minha relação com Ofélia. Fiz-lhe muito mal e magoei-a muito, ainda que sem intenção alguma. Nunca soube que ela estava grávida e que esperava um filho meu. Por outro lado, ela só agora soube que tinha dado à luz uma filha e que essa filha tinha sobrevivido. Acredito que se o tivéssemos sabido a tempo, a história, a nossa história, teria sido diferente. Mas nada ganhamos em revolver o passado, Ingrid. Em todo o caso, és fruto do amor. Nunca duvides disso.
- Oitenta anos é uma idade perfeita, Victor. O Victor já cumpriu de sobra com todas as suas obrigações. Agora pode fazer o que bem entender da sua vida.
- Como o quê, por exemplo? - perguntou Victor, sorrindo.
- Sair por aí numa aventura qualquer. Eu adoraria fazer um safari em África. Há anos que sonho com isso. Um dia convenço o meu marido e vamos! O Victor podia apaixonar-se outra vez... não tem nada a perder. Seria engraçado, não lhe parece?
A Victor pareceu-lhe voltar a ouvir Roser, quando, nos últimos momentos, lhe recordava que os seres humanos são criaturas gregárias, que não estão programadas para a solidão nem para viverem em solidão, mas sim para dar e receber. Por isso insistira tanto para que ele não se resignasse à viuvez... e chegara até a escolher-lhe uma namorada. Deu por si a pensar em Meche com uma súbita ternura. Meche. Aquela vizinha de coração aberto que lhe oferecera a gata, que lhe trazia tomates e verduras frescas da sua horta, a mulher diminuta que esculpia aquelas ninfas gordas. Decidiu que, mal a sua filha partisse, lhe iria levar o que restara do arroz negro com chocos e da crema catalana.
Serão, quem sabe, outras e novas navegações, pensou. E assim sempre seja... até à navegação final...
Isabel Allende
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